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Título original: The road to Woodstock © 2009 Michael Lang Publicado mediante acordo com a Ecco, uma marca da Harper Collins Publishers. “Woodstock”, letras e música por Joni Mitchell. © 1968 (renovada) Crazy Crow Music. Todos os direitos administrados por Sony / ATV Music Publishing, 8 Music Square West, Nashville, TN 37203. Todos os direitos reservados. Usada com permissão de Alfred Publishing Co., Inc. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, armazenada ou transmitida para fins comerciais, sem a permissão do editor. Você não precisa pedir nenhuma autorização, no entanto, para compartilhar pequenos trechos ou reproduções das páginas nas suas redes sociais, para divulgar a capa, nem para contar para seus amigos como este livro é incrível (e como somos modestos). Este livro é o resultado de um trabalho feito com muito amor, diversão e gente finice pelas seguintes pessoas: Gustavo Guertler (publisher), Fernanda Fedrizzi (coordenação editorial), Paulo Alves (tradução), Jaqueline Kanashiro (revisão), Marcelo Viegas (editor) e Giovanna Cianelli (capa e projeto gráfico). Obrigado, amigos. Produção do e-book: Schäffer Editorial ISBN: 978-85-8174-491-9 2019 Todos os direitos desta edição reservados à Editora Belas Letras Ltda. Rua Coronel Camisão, 167 CEP 95020-420 – Caxias do Sul – RS www.belasletras.com.br
Para minha esposa, Tamara, e meus filhos, LariAnn, Shala, Molly, Harry e Laszlo, que enchem de amor a minha vida. E para meus pais, Harry e Sylvia.
De um certo ponto em diante, não há mais retorno. Esse é o ponto que deve ser alcançado. – KAFKA
SUMÁRIO
Prólogo I Brooklyn II O Grove III Woodstock, Nova Iorque IV Wallkill V Cidade de Nova Iorque VI Centro da cidade VII A fazenda de Yasgur VIII Bethel IX 13 e 14 de agosto de 1969 Três dias de paz e música X 15 de agosto de 1969 XI 16 de agosto de 1969 XII 17 de agosto de 1969 XII O depois Epílogo Agradecimentos Os setlists completos de Woodstock Fontes
Entrevista: Michael Lang
PRÓLOGO
São 10 horas da manhã do dia 18 de agosto de 1969, uma segunda-feira: Jimi Hendrix está tocando para um público de 40 mil pessoas. Cerca de mais meio milhão de pessoas foi embora durante a noite. Muitas delas precisaram estar no trabalho; outras precisaram voltar para suas famílias preocupadas, que tinham ouvido relatos conflitantes sobre o caos em Woodstock. Do palco, vejo cada vez mais gente se afastando. Jimi também percebe, e diz: “Vocês podem ir embora se quiserem. A gente só está fazendo uma jam, só isso. Vocês podem ir embora, ou vocês podem bater palmas”. Ele olha para os raios de sol derramados entre as nuvens – os primeiros que vemos depois de um bom tempo. “A igreja do céu ainda está aqui, como vocês podem ver”, murmura. Aqueles de nós reunidos ao redor do perímetro do palco estão hipnotizados por Jimi e sua band of gypsies. Eles tocaram a noite inteira, talvez até mais do que isso, e, como muitos de nós, há dias não dormiam mais do que poucas horas. Jimi tem terra sob as unhas e ainda aparenta majestade com sua blusa branca franjada de couro. O percussionista Gerry Velez, adolescente, pingando de suor, arrebenta as congas freneticamente. Juma Sultan, vestido de roxo, sacode as maracas e golpeia a percussão com baquetas com uma devoção religiosa. Antigos companheiros de exército de Jimi, o guitarrista Larry Lee usa uma echarpe verde na cabeça, cobrindo os olhos, e Billy Cox, a âncora inabalável de Jimi no baixo, tem a cabeça envolta por um turbante multicolorido. E o fenomenal baterista do Experience, Mitch Mitchell, em movimentos incessantes. Jimi pede desculpas por parar para afinar entre as músicas: “Só os cowboys se mantêm afinados”, diz rindo. Num minuto, Jimi está brincando com o público,
chamando uma “garota de calcinha amarela”, com quem ele se entrelaçou na noite anterior; em outro, está conduzindo a banda com uma olhadela, uma expressão, um movimento da mão; e então se perde num riff – sua guitarra levando-o a lugares desconhecidos. De volta à Terra, focado no público pequeno, porém entusiasmado, Jimi se dirige a nós com empatia e gratidão: “Vocês têm muita paciência – três dias [de paciência]! Vocês provaram para o mundo o que pode acontecer com um pouco de amor, compreensão e sons!”. Estamos prestes a “experienciar” algo que será único em nosso tempo: saindo de “Voodoo Child”, ele desvia para a melodia de “The Star-Spangled Banner”. Billy Cox e Larry Lee permanecem firmes, em pé, como se atentos. Enquanto Jimi constrói a música, acrescentando microfonia e distorção, sou arrebatado, assim como todo mundo ao meu redor. Percebo que o hino nacional jamais será o mesmo. Jimi se conectou à nossa experiência coletiva: todo o tumulto emocional e a confusão que sentimos como jovens americanos crescendo nos anos 1960 derramam pelas torres de som. Sua música nos leva ao campo de batalha, onde sentimos os mísseis e as bombas explodindo ao nosso redor; aos protestos e às marchas, em confronto com a polícia e os cidadãos raivosos. É uma repreensão poderosa à guerra e à desigualdade racial e social, e um grito de alerta para que as coisas que estejam quebradas em nossa sociedade sejam consertadas. * * * Ouvir Jimi me leva de volta a uma minúscula casa noturna no East Village, em Manhattan, onde eu, então um garoto de 16 anos do Brooklyn, vi John Coltrane tocar seu saxofone. Ele me levou numa viagem e, assim como Hendrix, foi uma revelação. Toda essa jornada – o festival e a estrada até ele – foi marcada por momentos como aquele. O que parece ter sido uma vida inteira de quase acertos, pequenas vitórias impulsionadas por um motor composto por indivíduos comprometidos e incansáveis, otimismo sério e ideias incríveis, culminou em três dias como o mundo jamais viu. Vejo Joan Baez rapidamente, sob a chuva, grávida, só curtindo o momento; Jerry Garcia assistindo aos shows do palco gratuito, compartilhando um baseado com garotos que ele nunca tinha visto antes; os trovões que rasgam o céu à noite; a Hog Farm distribuindo tigelas de granola para o pessoal entrincheirado na beira do palco, relutante em perder o lugar; Crosby, Stills & Nash cantando em harmonia às 3h30 da manhã em “Suite: Judy Blue Eyes”, a
canção que me deixou boquiaberto meses antes e me levou a chamar o então desconhecido trio para o festival; Pete Townshend golpeando Abbie Hoffman na cabeça com a guitarra; Sly Stone e a sua Family conduzindo toda uma congregação numa dinâmica de pergunta e resposta que elevou a todos. Olhando para o que sobrou do público, vejo muitos rostos cansados, os fãs mais ferrenhos e aqueles que só não querem ir embora, nunca mais. Cruzo o palco e atravesso a ponte até o nosso estacionamento de trailers. Quero alguns minutos a sós antes de lidar com o encerramento desse fim de semana incrível. Dormi um total de 6 horas ao longo dos últimos quatro dias e estou começando a sentir o peso disso. Meus sócios, John Roberts, Joel Rosenman e Artie Kornfeld, partiram para a cidade. Percebo que não vi e mal ouvi falar de Joel e John durante todo o fim de semana, e me pergunto como estavam as coisas para eles. Eu sei como estavam para Artie. Quando percebeu que não havia como impedir que aquele oceano de gente transbordasse pelas cercas, que as dezenas de milhares de pessoas que vieram para nossa festinha não iam comprar ingressos, Artie teve um momento de pânico. Mas logo se recuperou, e, entre doses de LSD, conduzir artistas ao palco e tentar convencê-los a ser filmados, Artie teve o melhor momento de sua vida. Foi o melhor momento de todas as nossas vidas. * * * Para mim, Woodstock foi um teste para ver se as pessoas da nossa geração realmente acreditavam umas nas outras e no mundo que estávamos batalhando para construir. Como faríamos quando estivéssemos no comando? Poderíamos viver como a comunidade pacífica a que visávamos? Eu tinha a esperança de que pudéssemos. Desde o início, acreditei que se fizéssemos o trabalho direito e de coração, preparássemos o terreno e déssemos o tom certo, as pessoas revelariam seus eus mais elevados e criariam algo maravilhoso. Woodstock veio simbolizar nossa solidariedade. Isso foi o que significou mais para mim: a conexão entre si, sentida por todos nós que trabalhamos no festival, todos que compareceram e pelos milhões que não puderam estar lá, mas foram tocados. Ao longo daquele fim de semana de agosto, durante um período muito tumultuado do nosso país, nós mostramos o nosso melhor, e nesse processo criamos o tipo de sociedade a que todos nós aspirávamos, mesmo que só por um
breve momento. A hora era a certa, o local era o certo, o espírito era o certo e nós estávamos certos. O que resultou foi uma celebração e uma confirmação da nossa humanidade – um dos poucos casos na história, até onde sei, em que a alegria se tornou uma grande notícia. Nos 242 hectares de Max Yasgur, todo mundo baixou a guarda e se tornou uma enorme família estendida. Reunir-se, curtir a música e uns aos outros, fazer parte de tanta gente quando a calamidade chegou – os engarrafamentos, os temporais – foi uma experiência transformadora. Nenhum dos problemas abalou nosso espírito. Na verdade, eles nos uniram ainda mais. Reconhecemos uns aos outros pelo que éramos no cerne, como irmãos e irmãs, e nos abraçamos nesse conhecimento. Compartilhamos tudo, aplaudimos a todos, sobrevivemos juntos. * * * Jimi termina seu set, eu saio do trailer e subo na minha moto rumo ao topo da colina. É uma BSA Victor, notoriamente difícil de dar partida, mas nessa manhã ela acorda com a primeira acelerada. Ao atravessar aquilo que se tornou um mar de lama, o cheiro da “cidade” sobe, forte e fétido. Quando alcanço o alto da colina, consigo ver membros da equipe desmontando o equipamento de Jimi e centenas de pessoas começando a limpar o campo de detritos devastado. O palco, onde uma equipe para lá de cansada está enrolando cabos e encaixotando equipamento, se ergue sobre um pano de fundo de manchas marrons. Uma vasta tela branca voa sobre ele ao vento, como uma vela enorme arrancada do mastro. Lembra-me do navio para a Terra do Nunca. Conduziu a todos nós pelas maiores aventuras e de volta para casa em segurança. À distância, o lago que foi a fonte da maior parte da nossa água potável está visivelmente mais baixo. Mais longe, nas colinas ao redor, rios de gente deixam os acampamentos rumo ao fim de suas jornadas. Atrás de mim, os estandes estão abandonados e vazios. Caminhões de lixo e de banheiros químicos vêm pela estrada agora liberada e começam a se aproximar do local. O bosque, à minha esquerda, do outro lado da Hurd Road, ainda brilha com a cor dos panos e das tintas dos mercados que foram montados ali. Desligo a moto e me estaciono no que sobrou de uma cadeira de jardim despedaçada, cercada por um colchonete enlameado, uma sandália partida e um cantil amassado. Pensando sobre o fim de semana que passou, compreendo que fomos todos testados, e que não ficamos passando vontade.
Foi uma viagem estranha e, por vezes, mágica que nos conduziu até ali. Centenas de pessoas se juntaram a mim nessa odisseia e trabalharam incansavelmente, seguindo em frente diante de empecilhos que, às vezes, pareciam impossíveis. Não sei ao certo para onde iremos daqui. Haverá problemas financeiros e a sociedade fraturada da Woodstock Ventures precisa de atenção – mas, por ora, Woodstock ter acontecido é o bastante. Olhando do alto da colina, me lembro do momento em que Richie Havens subiu no palco, na sexta-feira, como um farol de força em sua túnica alaranjada. Foi o primeiro artista a tocar, simplesmente porque ele e sua banda estavam lá e estavam prontos. Enquanto atravessávamos a ponte, apareceu um certo espanto e, então, um lampejo de medo em seus olhos quando ele avistou o público inacreditavelmente imenso – o que parecia quilômetros e mais quilômetros de gente. “Só estamos voltando para casa”, disse eu. Woodstock foi uma oportunidade, um momento, um lar pelo qual todos nós estivéramos esperando e trabalhando em prol. Quando Richie começou a cantar, atacando ritmicamente seu violão como se fosse um tambor falante africano, eu soube pela primeira vez que ficaríamos bem. O show havia começado e nós estávamos a todo vapor. Tudo pelo que havíamos passado nos últimos dez meses conduzira àquele momento, e eu fui tomado pela alegria. * * * De repente, alguém chega numa caminhonete atrás de mim e, num estalo, me desligo do meu devaneio: “Michael! Artie acabou de ligar e eles precisam de você lá, em Wall Street, agora mesmo!”.
Elvis é o rei – eu com 12 anos de idade.
I BROOKLYN
Sentado no escuro e fumacento Five Spot, clube no Bowery, no sul de Manhattan, observo John Coltrane viajar a fronteiras longínquas com sua música. Não há rede de segurança. Ele está tentando ver aonde isso tudo vai – está deixando que isso lhe aconteça, seu sax seguindo o que está dentro dele. Não se preocupa com a que destino sua música o leva, ou com o que há adiante. Saber que há perigo lá, mas que de alguma forma estará tudo bem, que há algo incrivelmente estimulante em estar próximo dessas fronteiras: é o lugar onde se deve estar. Para mim, um garoto de 16 anos do Brooklyn, esse é um conceito totalmente novo. A ideia de não precisar se manter dentro de uma forma ou seguir regras, mas improvisar, trabalhar a partir de uma inspiração interna, servirá como meu próprio manual de não instruções. * * * Cresci cercado por famílias judias e italianas em Bensonhurst, nas décadas de 1940 e 1950. Meus pais, Harry e Sylvia Lang, descendiam do Leste Europeu, e nós tínhamos uma vida modesta, assim como outras famílias de classe média da vizinhança. Meu pai tinha seu próprio negócio de sistemas de aquecimento, a Lang Engineering, e minha mãe era a contadora da empresa. Ele era um inventor e, na juventude, desenvolveu um sistema de lastro para submarinos da
Marinha e um sistema para remover poluentes da fumaça gerada por indústrias de carvão. Eu sempre senti que eles poderiam ter levado uma vida muito aventureira se minha irmã mais velha, Iris, e eu não tivéssemos chegado. Meu pai sempre me ensinou a contar comigo mesmo. Esta era a filosofia dele: resolver o que há para resolver, custe o que custar. Ele me deu muito cedo uma estratégia para sair de situações difíceis: tome o controle e siga em frente; recue só o suficiente para pensar com clareza; e confie nos seus instintos. Era assim que ele lidava com as coisas, e isso viria a me servir bem. Meus pais tiveram empreendimentos paralelos desde o início, com graus variados de sucesso, sendo o mais legal deles uma casa noturna de música latina no Upper West Side, chamada Spotlight Club. Nos anos 1950, o mambo reinava e músicos de Porto Rico e Cuba atraíam grandes públicos. O Spotlight Club era uma sala longa e escura, com um bar que tomava toda a extensão de uma parede, uma pista de dança ampla no fundo e um palco no fim do bar. Durante o dia, o interior parecia bem tristonho, mas à noite tudo era brilho e glamour. O andar de baixo era ocupado por um porão enorme, do comprimento do imóvel, e lá o grande maestro Tito Puente guardava alguns de seus tambores. Conhecido como El Rey, ele popularizou a música latina, que ficaria conhecida como salsa. Eu tinha apenas 11 ou 12 anos e acabara de começar a tocar bateria quando conheci El Rey, no Spotlight Club. Bonito, de cabelos muito negros, ele me incentivou a tocar e até me deixou batucar alguns ritmos em seus instrumentos. Naqueles anos, uma de suas músicas mais populares era “Oye Como Va”, que, uma década depois, se tornaria um sucesso do Santana depois do show em Woodstock. O rock and roll dos primórdios, que emergiu na minha infância – Elvis Presley; Buddy Holly; Chuck Berry; Little Richard; “Rock Around the Clock”, de Bill Haley and The Comets –, teve um grande impacto sobre mim, assim como o filme Sementes da violência, que me apresentou a canção de Bill Haley. Cantores harmonizando nas esquinas eram algo popular na minha vizinhança, e eu jogava beisebol de rua com um cantor de doo-wop fantástico, que morava na quadra de baixo. O único da família a tocar um instrumento, eu tinha 12 anos quando entrei para uma banda de rock and roll. Isso significava carregar penosamente minha bateria por escadas sem-fim para tocar em lugares badalados e glamourosos, como a Casa da Comunidade Judaica, na Bay Parkway. Mas foi o que me deu um lampejo da emoção que surge da conexão por meio da música. Eu também tocava percussão na banda da minha escola, a Seth Low Junior High. Porém, marchas e uniformes não eram para mim. A primeira vez que desfilei com a
banda da escola, no St. Patrick’s Day, pela 5th Avenue, desviei rapidamente na esquina da 16th Street e nunca mais olhei para trás. Foi o meu primeiro e último desfile. Todo verão, eu ia acampar no condado de Sullivan, a 140 quilômetros a norte da cidade de Nova Iorque, nas montanhas Catskills. Eu gostava de estar na natureza, especialmente andando a cavalo. No último ano em que acampei, com 11 anos de idade, convenci um auxiliar preguiçoso do estábulo a me deixar cuidar dos cavalos e levar os campistas nas trilhas de cavalgada no lugar dele. Ele me deu um belo cavalo malhado chamado Bobby durante aquele verão. Cavalgá-lo sem sela a todo galope era o epítome da liberdade. Foi também naquele verão que tive meu primeiro contato sexual, no estábulo, com uma das monitoras em treinamento. No inverno, nossa família fazia uma viagem de carro até Miami para, na primavera, subir para o Canadá, acompanhando a troca das folhas no caminho. Meus pais adoravam levar Iris e eu nessas longas viagens. Eu compartilhava do amor do meu pai por dirigir, e ele começou a me ensinar a guiar quando eu tinha 10 ou 11 anos. No dia em que tirei minha permissão temporária para dirigir, ele me levou até o meio de Manhattan e me fez dirigir até em casa, no Brooklyn, naquele trânsito insano. Logo depois de passar no exame de motorista, comprei uma moto. Eu era meio maluco. Me inclinava no assento, o que corta a resistência do vento, e então acelerava na Belt Parkway. Depois de alguns anos, parei de andar na rua, porque sabia que acabaria me matando, mas a excitação que eu tinha ao correr era como uma experiência transcendental, e uma sensação que sempre tentei recapturar. * * * Pouco depois de completar 14 anos, eu e meu amigo Irwin Schloss experimentamos maconha pela primeira vez. Seu irmão mais velho, Marty, que hoje é um rabino radical em Israel (Marty celebrou o bar-mitzvá de um dos filhos de Bob Dylan, nos anos 1980), era gerente do Cauldron, um restaurante macrobiótico descolado no East Village que estava sempre à frente do seu tempo. Marty nos influenciou bastante. Ele se interessava por filosofia oriental, levava uma vida muito boêmia e um dia deu um pouco de maconha a Irwin. Àquela altura, a maconha já era associada aos músicos de jazz e aos beatniks, mas ainda não era popular entre o grande público. Irwin e eu experimentamos pela primeira
vez numa tarde de outono no Seth Low Park, nos arredores do nosso colégio. Eu me lembro muito bem do meu primeiro baseado: estava enrolado numa seda amarela e, depois de aceso, as sementes ficavam estourando dentro dele. Isso foi bem antes dos hidropônicos e da eliminação das sementes. De primeira, não bateu. Marty tinha explicado a Irwin como inalar e segurar. Não me lembro de quantas vezes eu tentei até finalmente bater, mas quando bateu, eu ri pelo que pareceram horas. Foi meio que um momento de “Ah, agora eu entendi!”. Irwin e eu ficávamos chapados e ouvíamos música. Ríamos e depois ficávamos com fome. Experimentar maconha e, depois, LSD, me levaria mais longe do que qualquer motocicleta ou carro que já tive.
Meus pais, Harry e Sylvia Lang; e minha irmã, Iris, por volta de 1941.
Aos fins de semana, comecei a comprar porções de 5 gramas de maconha, que eram vendidas em envelopinhos marrons. Nas noites de sexta-feira, eu ficava no meu quarto com o rádio ligado na estação WJZ, ouvindo Symphony Sid, que me apresentou Charlie Parker, John Coltrane, Thelonious Monk, Miles Davis, Dizzy Gillespie, Max Roach, Celia Cruz. Sentado ao lado da janela aberta, eu
acendia um baseado e expirava na viela. Adorava ouvir jazz chapado. Em algumas noites, Symphony Sid dava a letra de que estava ficando com sono e fazia um convite aos ouvintes para que passassem na rádio se tivessem algo para mantê-lo acordado. Ele acabou sendo demitido da WJZ depois de ser pego com maconha. Logo descobri que meu amigo Kenny, que tinha largado a escola, curtia maconha. Íamos chapar na casa dele. Seus pais nunca estavam por lá. Um dia, cheguei da casa de Kenny e minha mãe me confrontou: ao arrumar meu guardaroupa, ela encontrou meu estoque de alguns gramas. Eu não queria perder a maconha, então tive de elaborar minha defesa rapidamente: saquei a Encyclopaedia Britannica, procurei pelo verbete Cannabis sativa e coloquei o artigo acadêmico na cara dela. Eu sabia que a descrição era bastante benigna – olhei logo depois de começar a fumar. Num texto casual, a enciclopédia afirmava muito claramente que a maconha não era viciante. “Eu sei o que estou fazendo”, disse à minha mãe. “Isso de que a maconha leva a drogas pesadas é mito. Fumar é divertido e me ajuda a ver as coisas de uma nova maneira. E você sabe que eu não bebo nada de álcool.” Essa conversa neutralizou a situação o bastante a ponto de, quando meu pai chegou em casa, nos sentarmos na mesa da cozinha para debater mais a fundo. Meus pais se mostraram bem razoáveis. Não ficaram exatamente extasiados com a ideia, mas aceitaram que não era algo danoso. Afinal, eles tinham vivido a Lei Seca – e meu pai até trabalhou brevemente para fabricantes de bebida clandestinos. Em 1958/59, havia propaganda antidrogas na escola, algo como “Cuidado, a maconha é o primeiro passo na estrada para o vício em drogas...”, mas as grandes campanhas antidrogas ainda não haviam começado; as autoridades ainda culpavam as histórias em quadrinhos e o rock and roll pela delinquência juvenil. * * * Aos 16 anos, descobri o LSD-25 – a fórmula farmacêutica original desenvolvida por Sandoz em Basel, na Suíça. Em 1961, o LSD ainda estava bastante distante dos radares do grande público. Timothy Leary ainda não tinha começado sua campanha “turn on, tune in, drop out”, e a droga só se tornaria ilegal dali a cinco anos. Eu realmente não sabia o que esperar. Minha primeira viagem foi na casa de Kenny. Ele sacou um pequeno frasco com um líquido azul
translúcido. Não consigo me lembrar de como ele conseguiu aquilo ou quem o ensinou como tomar. Com um conta-gotas, derramei uma quantidade minúscula sobre um torrão de açúcar, coloquei-o na boca, deixei-o dissolver e esperei. Tudo se tornou superclaro e super-real. Cada um dos sentidos foi intensificado, e alguns dos sentidos foram além de se intensificarem. Nunca vou me esquecer daquela sensação de tudo entrando num foco afiado. Eu adorava ouvir música viajando de ácido. Você entrava naquele mundo, fosse jazz, música clássica ou indiana, ou, mais tarde, música psicodélica, tipo Hendrix ou os Mothers of Invention –, qualquer que fosse a música, ela meio que te devorava. Você se tornava a música. O LSD abriu minha mente para uma nova forma de pensar, e eu comecei a ler livros como Sidarta, de Hermann Hesse; os escritos de Kahlil Gibran; e As portas da percepção, de Aldous Huxley (o livro que deu a Jim Morrison e Ray Manzarek o nome da banda deles). De repente, eu estava numa jornada. Tomar ácido significava colocar-se no limite, para além da zona de conforto e do que você estava acostumado. Era como abrir mão do controle sobre sua mente e seu espírito. Desde a primeira vez que tomei ácido, senti que estava abrindo uma porta entre minha subconsciência e minha consciência, entre mim e o cosmos. Eu podia me observar inteiro. Estava conectado a tudo. Ao viajar, me sentia muito confortável naquele estado alterado. Às vezes, as pessoas com quem eu estava ficavam um pouco assustadas sob o efeito do ácido, mas eu sempre fiquei tranquilo com as sensações e conseguia trazê-las de volta a um bom lugar. Era uma experiência de aprendizado – uma revelação, nunca uma paranoia. Eu nunca tive uma bad trip. Na segunda ou terceira vez que tomei ácido, eu e meus amigos decidimos ir de metrô até Manhattan. Sentado ao lado da porta do trem, vi o cara sentado à minha frente se transformar num coelho. Ele começou a fungar, e depois criou bigodes e orelhas grandes. Isso não me assustou; eu só absorvi. Ao chegarmos na Times Square, por volta das 4 horas da manhã, passeamos pelos canyons vazios de Manhattan. Eu estava tão absorto, que, quando me dei conta, olhei em volta e estava sozinho. Meus amigos tinham desaparecido. Depois de caminhar pelo que pareceram quilômetros, me encontrei numa floresta densa. Sentei-me num banco e fiquei em comunhão com a natureza por horas a fio, até que olhei para o céu e o Sol tinha nascido. Percebi o Empire State Building assomando assombroso, trazendo-me de volta ao mundo real num choque. No fim das contas, eu havia entrado num pequeno parque ao lado da Igreja da Transfiguração, saindo da 5th Avenue.
* * * No verão após o penúltimo ano do ensino médio, descobri o Greenwich Village. Eu já tinha estado lá algumas vezes com a família para ver A ópera dos três vinténs, num teatro na Christopher Street, ou só para passear. Mas, em 1961, me encontrei com Kenny e sua nova namorada, Kathy, num lugarzinho chamado Village Corner, e fui instantaneamente conquistado pelo clima, pela cultura e pelas pessoas do bairro. Kenny e Kathy estavam acompanhados de Pauline, uma linda mulher negra de uns 20 e poucos anos. Kathy, uma bela ruiva, dividia um apartamento com ela no número 500 da West Broadway. Pauline e eu nos demos muito bem. Acabei passando a maior parte do verão com ela, dormindo em seu apartamento. Pauline e Kathy eram garotas de programa. Pauline não fazia programas, mas atuava como cafetina. Ela fazia as reservas, marcando os programas no apartamento da West Broadway. Deixava as garotas em locais variados para os “encontros”. Na verdade, eu não pensava muito no que ela fazia, só “é a vida dela, e isso é o que ela faz para ganhar dinheiro”. Eu tivera duas outras namoradas, mas estar com Pauline era uma experiência muito madura. À noite, ela usava roupas elegantes, como era de costume entre as garotas da época, de salto alto e um vestido justo, num modo meio acompanhante de luxo, muito elegante, nunca vulgar. Elas tinham uma clientela de elite composta por executivos bem de vida, e seus serviços eram caros, várias centenas de dólares. Naquela época, isso era muito dinheiro. As garotas moravam num pequeno prédio de fundos na região fronteiriça entre o Village e o que hoje se chama SoHo, na época uma área ainda industrial, com depósitos que estavam só começando a ser convertidos em lofts de artistas. O apartamento de Pauline era bastante boêmio: colchões no chão, velas acesas, música sempre tocando, cortinas escuras nas janelas, echarpes sobre os abajures. Não passávamos muito tempo no apartamento, exceto para dormir. À tarde, Pauline, geralmente de collant, saia e usando uma peruca, me guiava pelo Village. Mais tarde, começávamos a noite no Village Corner e então dávamos um giro, parando no Village Gate ou no Five Spot, para ouvir um pouco de jazz. Para mim, sempre foi fascinante o modo como quatro ou cinco músicos travavam um destino de improviso, sem mapa. Às vezes, terminávamos no Harlem, conferindo os clubes de jazz e R&B.
Meus pais e eu, por volta de 1949.
Todo aquele mundo em que Pauline vivia me fascinava. A contracultura estava se desenvolvendo a partir do que tinha sido a era beatnik e se tornando a cena folk. Era inspirador estar em meio a fotógrafos e pintores, além de pessoas à margem e outsiders, que buscavam seus interesses em vez de marchar no ritmo do status quo. Surgiam pequenos negócios que atendiam à população local. No East Village, no St. Mark’s Place, a loja A Different Drummer vendia roupas vintage. As pessoas começaram a se vestir de uma forma nova. Deixei meu cabelo crescer. O Village abriu meus olhos para um estilo de vida muito atraente, completamente diferente daquele que eu conhecia em Bensonhurst. Depois de uns dois meses, Pauline disse que achava que eu estava me apaixonando por ela e que o nosso lance não era para durar. Tomando-me pelo inocente que eu de fato era, ela não queria que eu me apegasse demais. Doeu, mas ela me dispensou com muita bondade. Nunca mais vi Pauline, mas o verão
que passamos juntos me transformou. Ela abriu portas que nunca mais se fecharam. * * * Durante meu último ano do ensino médio, graças ao sr. Bonham, meu conselheiro estudantil, me foi dada a oportunidade de começar a faculdade mais cedo. A New York University aceitou que eu começasse em janeiro, contanto que terminasse o ensino médio à noite. Enquanto 1962 começava, eu estava de volta ao Village. Meus pais se deleitaram com essa sequência de eventos: a faculdade sempre foi o objetivo deles para mim, e, naquela época, a NYU não era muito cara e eu poderia ir de transporte público do Brooklyn. Naquele verão, consegui um emprego numa butique descolada na Bleecker Street, chamada Village Cobbler. Vendíamos brincos esquisitos, peças de couro, artesanato e todo o tipo de outros achados. Eu gostava de estar em meio à cena folk que desabrochava no Village. A música tinha de fato decolado, com toda uma nova geração de cantorescompositores sentindo o clima nos clubes do Village. O primeiro álbum de Bob Dylan tinha saído pela Columbia, mas ele ainda tocava pelo bairro de vez em quando. Eu frequentava os cafés e clubes que pontuavam as ruas Bleecker e MacDougal – o Café Wha?, o Bitter End, Gerde’s Folk City, o Gaslight – e via artistas como Bob Gibson, Phil Ochs, Jack Elliott, Fred Neil, Dave Van Ronk. O Washington Square Park era cheio de violonistas e tocadores de bongô, artistas de todo o tipo e uma abundância de traficantes. Era possível conseguir erva a qualquer hora do dia. Num café pequenino na MacDougal Street chamado Rienzi’s, eu sentava perto da janela e observava os personagens loucos e peculiares a passar – ainda não eram hippies, mas alguns esquisitões pioneiros. Eu tinha arrumado uma câmera Super-8 e decidi fazer um documentário sobre a vida pelas ruas do Village. Comecei a filmar o que se chamaria A View from Rienzi’s, mas nunca concluí. * * * Antes de fazer 18 anos, em dezembro, recebi minha convocação para o exército. Em 1962, a Guerra do Vietnã ainda não era oficial, mas a situação no
país estava piorando. Na minha opinião, os Estados Unidos não tinham motivo para se envolver num conflito no Sudeste Asiático que já durava quarenta anos. Eu não tinha nada contra os vietnamitas. Fui a um psiquiatra por três semanas, na esperança de receber um atestado médico que recomendasse minha dispensa. O médico pôde ver que eu não tinha respeito por autoridade e que eu nunca atiraria em outro ser humano só porque fui ordenado a fazê-lo. Ele escreveu uma carta de avaliação dizendo que eu não era um bom candidato ao exército. Pensei que estava tudo certo para minha dispensa, mas, em vez disso, recebi um aviso para comparecer ao exame médico no Borough Hall, no Brooklyn. Durante todo o processo de testes e exames variados, eu esperei que me tirassem da fila e dissessem: “Você não é o que estamos procurando”. Mas isso não aconteceu. Por fim, apesar dos oficiais uniformizados que tentavam nos organizar, escapei da fila. Corri para o andar de baixo, à procura do consultório de psiquiatria. Entrei e soltei: “Escuta, eu não sei se vocês olharam para a minha papelada, mas vocês realmente não iam me querer no exército”. Sentei com o psiquiatra e conversamos sobre isso. Eu disse a ele que era contra a guerra por razões morais, que não acreditava na matança. Era um estágio tão inicial da guerra, que o exército dos EUA ainda não estava desesperado por tropas. Estaria dentro de quatro ou cinco anos, quando a convocação era praticamente inescapável. Depois de uma longa discussão, o médico me deu a dispensa. Nunca mais ouvi do serviço de alistamento. Eu tinha evitado ser forçado a lutar numa guerra na qual eu não acreditava. Não fazia ideia de que, ao final da década, haveria milhões de jovens com pensamento como o meu em Woodstock, tomando a mesma posição pela paz.
Iris e eu em Bensonhurst, por volta de 1949.
Atrás do balcão do head shop, com o funcionário Howard Zaitcheck, 1967.
II O GROVE
Enquanto a chuva metralha o palco sem teto, a coisa vai ficando feia entre o público, os temperamentos crescendo como a umidade em Miami. Alguns idiotas começam a jogar garrafas de Coca e pedras, e ressoam os pedidos para a música começar. Não posso colocar no palco nenhuma das bandas que tocam eletrificadas, apesar de um cantor britânico completamente doido anunciar que sua banda, o Crazy World of Arthur Brown, gostaria de tocar e, se possível, experimentar uma eletrocussão. “Seria lindo!”, ele insiste. Penso que a imagem de Arthur fritando num choque não seria linda. Precisamos é de uma performance acústica poderosa. Assim que a chuva baixa e a equipe começa a tirar a água do palco – um par de caminhões –, vejo John Lee Hooker, cool como sempre, fumando um cigarro, sentado à beira do palco, esperando por sua vez. É dele que preciso. Vinte minutos depois, o veterano do blues, de 50 anos, coloca o público para comer em sua mão. Ele provavelmente já tocou em condições piores. Chapéu baixo, ainda de óculos escuros, ele rosna sua marca registrada, “Boogie Chillun”, e golpeia o ritmo no violão. Em seguida, improvisa um talking blues sobre tocar na chuva. A audiência fica embasbacada. Sou atingido pelo poder que a música tem de alcançar as pessoas e mudá-las. No final do set, uma garota sobe no palco e deixa um buquê de flores aos pés de John Lee.
* * * Na primavera de 1964, me transferi para a Universidade de Tampa, que se mostrou uma cidade cheia de astronautas e não muito mais do que isso. Durei apenas seis meses. Eu era muito certinho e muito tenso. Mudei-me de volta para Nova Iorque e retornei à NYU, mas continuei a visitar a Flórida. Eu e um amigo de Bensonhurst, Bob West, dirigíamos até Miami. Naquela época, viajar pelo sul com placas de Nova Iorque poderia ser assustador. Viajantes da Liberdade1, que vinham do norte para ajudar no registro de eleitores negros e a lutar pelos direitos civis, frequentemente se deparavam com encrenca. Minha irmã estava entre esses ativistas: quando Iris se formou em direito, ela e seu marido, Paul Brest, advogado, passaram quase dois anos no Mississippi, trabalhando para um fundo de defesa legal para ajudar a fomentar a dessegregação nas escolas. No sul, a maioria dos nortenhos – especialmente se tivesse cabelo comprido – era vista com desconfiança. Numa das viagens em que eu e Bob guiamos um Corvette até a Flórida, paramos numa lanchonete, na Carolina do Sul. Naquela época, nosso cabelo era bem comprido. Sentamos no balcão e, ao pedirmos café, notamos uma placa na máquina de leite, que dizia: OS OLHOS DA KU KLUX KLAN ESTÃO SOBRE VOCÊ. Sem pensar muito em onde estávamos, rachamos o bico, o que chamou a atenção de alguns dos clientes. O clima esquentou rapidamente e, como num filme, corremos para o carro com um bando de caras atrás da gente. Eles pularam numa picape e nos perseguiram, mas o nosso Corvette os deixou para trás com facilidade. Em outra dessas viagens, Bob e eu acabamos em Coconut Grove, um bairro tropical preguiçoso ao sul de Miami. Perto do campus da Universidade de Miami tinha um clima artístico e relaxado, o tipo de lugar onde os cachorros se deitam e dormem no meio da rua. O Coconut Grove foi uma revelação para mim, parecia o lugar perfeito para viver. No final de 1965, durante meu semestre de outono na NYU, percebi que estava farto da faculdade. Decidi me mudar para Miami e abrir uma loja de apetrechos para o uso de maconha. Depois de ter visto meus pais começarem novos negócios, fossem ou não relacionados às áreas deles, pensei: “Por que não?”. Eu poderia aprender por conta própria, como eles tinham feito. “A faculdade não está rolando para mim”, eu disse a eles. “Quero cair no mundo.” Como de costume, eles ficaram receosos, mas me apoiaram. Larguei a NYU naquele semestre e passei a primavera desenvolvendo ideias, fazendo contatos e pensando no que exatamente seria a loja. Vendi um pouco de maconha para me
virar, e tinha uma conta bancária com US$ 4 ou US$ 5 mil de saldo, a maior parte disso vinda do meu dinheiro de bar-mitzvá e do que ganhei fazendo alguns bicos. Isso me deu capital o suficiente para comprar produtos, alugar um espaço e montar a loja. Durante meu último semestre na NYU, retomei contato com Ellen Lemisch; tínhamo-nos conhecido na infância, na ótica do pai dela. Ellen e sua irmã gêmea idêntica moravam num apartamento enorme no Upper West Side. Elas alugavam quartos, e o lugar se tornou uma encruzilhada de ideias, com pessoas interessantes indo e vindo constantemente. Uma espécie de salão contracultural, onde a energia era incessante. Ellen e eu nos apaixonamos, e ela decidiu se mudar para a Flórida comigo. Ela conhecia muitos artistas e artesãos que faziam caixinhas para guardar maconha e todo o tipo de coisas lindas para quem era ligado nisso. Começamos a fazer uma coleção para a loja.
Eu; Howard Zaitcheck (em pé); e um cliente, na frente da Head Shop South, Coconut Grove, 1967.
No East Village, Jeff Glick, um empreendedor muito descolado, abrira sua primeira head shop. Localizada na East Ninth Street, foi a primeira do gênero,
vendendo sedas, cachimbos e outros apetrechos. Jeff estocou sua loja com os primeiros pôsteres de Peter Max e outros artistas psicodélicos. A arte de Peter era famosa como um fenômeno pop. Jeff, que era um cara muito generoso, me mostrou o funcionamento do ramo e também me apresentou a Peter. Quando contei a Peter dos meus planos, ele me convidou até seu apartamento, no Upper West Side, para pegar alguns pôsteres para minha própria loja. Acho que ele estava esperando um pedido grande e trouxe dezenas de pôsteres. Porém, com meu orçamento minúsculo, escolhi apenas seis. Felizmente, isso não o incomodou e de imediato nos tornamos amigos próximos, numa amizade que dura até hoje. Ellen e eu arrumamos um carro espaçoso, carregamos as malas e partimos para Miami. No outono de 1966, depois de procurar em vão um ponto no Coconut Grove, achamos um espaço vazio ao sul de Miami, perto da universidade. A Head Shop South foi inaugurada no Sunset Boulevard, com rock and roll nas ruas. Contratei uma banda local para tocar e o lugar ficou lotado. A molecada no sul da Flórida ainda parecia bem certinha – não havia muitos cabeludos como em Nova Iorque e São Francisco –, mas estava ansiosa para nos conferir. Infelizmente, também o estavam o chefe de polícia e os agentes da Wackenhut, uma notória força de segurança privada que atuava como órgão de combate às drogas e aos entorpecentes. No dia da inauguração, eles apareceram, deram uma olhada e, no dia seguinte, nos fecharam por não termos uma licença. Aquela era uma comunidade de direita muito conservadora, e nós não éramos exatamente a praia deles. Levei o caso ao tribunal. Durante a audiência lotada, cheia de cidadãos hostis e alguns esquisitões, um professor da Universidade de Miami se levantou para falar em apoio aos meus direitos. Ele se deixou levar e, em consequência, acabou me afundando por completo. Meu pedido de licença foi recusado de cara. Antes que eu tivesse a chance de apelar, o chefe de polícia, originário do Bronx, me ligou e nós tivemos uma conversa em off muito direta. “Veja bem”, disse ele, “aqui não é Nova Iorque. É o sul conservador, e eles nunca vão te deixar abrir um lugar como este.” Segui o conselho dele e novamente procurei por algum lugar vago no Grove. Ellen e eu nos mudamos para um hotel na Bayshore Drive e, por fim, alugamos de um saxofonista chamado Twig um velho bangalô de madeira na 27th Avenue. O Grove era uma mistura fascinante de magnatas que moravam em propriedades deslumbrantes no South Grove e outsiders – artistas, artesãos, músicos, pescadores, contrabandistas e alguns hippies. Podia-se ouvir música folk no
Gaslight, aberto por Sam Hood, filho do dono do Gaslight de Nova Iorque. O gênio recluso Fred Neil, nativo da Flórida, tinha voltado para o Grove depois de viver em Nova Iorque e causar um rebuliço no Village. Ele era um ímã de cantores-compositores como David Crosby, que frequentemente viajava até o Grove para tocar no Gaslight e andar com Fred. Situado na Biscayne Bay, o Grove era tão relaxado quanto o sul de Miami era recatado. No coração do bairro, encontrei um chalé branco com uma varanda cercada por janelas, onde poderíamos expor os pôsteres. Entre os vizinhos, a marcenaria de Adam Turtle, o Ludicios Leather Shop, os estúdios dos escultores Lester Sperling, Michael “Michelangelo” Alocca, David Dowes e Grail Douglas e do pintor Tony Scornavacca. O Grove também servia de lar para o Dolphin Research Center, do dr. John Lilly, montado no que fora um antigo banco no centro da comunidade. As primeiras pesquisas de Lilly sobre a comunicação com golfinhos incluía dar LSD aos animais. Ele enfim começou a viajar com eles num tanque de água salgada construído no cofre principal do banco. Depois de ter perdido o dinheiro do depósito e do aluguel da loja no sul de Miami, esgotei todos os meus fundos. Liguei para meus pais e disse a eles que precisava de um empréstimo, ao que concordaram sem fazer perguntas. Meu pai pediu que meu tio Sam, irmão da minha mãe que morava em Miami, me desse US$ 3.500, que lhe seriam reembolsados por meu pai. Sam ficou fora de si. Ele não podia acreditar que meu pai estava fazendo aquilo: “Você está maluco? Uma loja de maconheiro?”. Desta vez, antes de abrir, pedi e consegui uma licença para operar uma “loja de presentes”. Bob West nos ajudou no início. A loja tinha cinco cômodos, onde dispusemos nossos produtos: estantes de vidro repletas de todo o tipo de parafernália para fumar, incluindo uma variedade de sedas, narguilés turcos e cachimbos exóticos. O mercado de pôsteres tinha estourado em 1966 e nós enchemos as paredes e os tetos com pôsteres em preto e branco de ícones da cultura pop, como os irmãos Marx; Marlon Brando, em O selvagem; Allen Ginsberg; Bob Dylan; e Lenny Bruce. Além dos pôsteres de Peter Max, tínhamos os artistas de São Francisco, que criaram os fantásticos panfletos dos shows no Fillmore e no Family Dog. Cortinas de contas decoravam as passagens, e em alguns cômodos lâmpadas estroboscópicas piscavam e luz negra brilhava, criando um tom púrpura. Deixávamos discos tocando sem parar – Beatles, Stones, Mothers of Invention, Dylan, Byrds. Aos fins de semana, os negócios eram ótimos. As noites de sexta-feira eram de festa, ficávamos abertos até a meia-noite. A loja se tornou um ponto de encontro para a crescente
contracultura de Miami. Quando a loja estava fechada, nós íamos velejar ou visitar amigos, cozinhar, ouvir música e chapar. Comprei uma van VW antiga, perfeita para passear pelo Grove. Os vidros dianteiros estilo safári abriam e nós fazíamos excursões místicas à meia-noite. Tomávamos ácido, ficávamos muito chapados e íamos até o mar ou à usina elétrica, para observar as luzes. Continuei a usar o ácido como uma ferramenta de exploração. Uma experiência educativa que expandiu minha consciência, e eu encontrei um caminho espiritual muito claro. Gostava de levar as pessoas em viagens e guiálas. Colocava para tocar certos discos para criar uma jornada musical. No começo, eram álbuns de jazz; depois, passei para o grande citarista indiano Ravi Shankar e Frank Zappa and the Mothers of Invention. * * * Por fim, as coisas terminaram entre mim e Ellen, e ela se mudou de volta para Nova Iorque. Depois de alguns meses, comecei a sair com Sonya Michael, uma artista local. Era uma loira linda de 20 e tantos anos. Sonya dividia um estúdio de pintura com outro artista e músico chamado Don Keider. DK, que tocava vibrafone e bateria, por fim se tornaria o elo entre mim e meu futuro parceiro de Woodstock, Artie Kornfeld. Sonya, DK e eu começamos juntos uma companhia de pôsteres chamada Sodo Posters (Sodo, uma corruptela de Sonya e Don). Eles criaram artes incríveis para pôsteres de luz negra com títulos como Speed, Lucy in the Sky, Mushroom Mountain e The Trip. Os pôsteres vendiam bem e nós começamos a enviá-los para outras lojas ao redor do país. Uma verdadeira cena se desenvolveu em torno da loja, e, em 1967, um jornal underground chamado Libertarian Watchdog montou sua redação nos fundos. Não demorou para aparecer a polícia, que já vinha me incomodando havia algum tempo, multando meus clientes por coisas ínfimas, como atravessar a rua fora da faixa. Ficou ainda pior depois que eu e a loja aparecemos num especial de TV intitulado “Marijuana in Miami”, reportagem reveladora sobre o uso de drogas pelos jovens no condado de Dade, que foi ao ar no dia 13 de junho de 1967. Filmaram na loja e, parecendo ter 16 anos diante das câmeras, expliquei como alguns dos nossos produtos poderiam ajudar a recriar uma experiência psicodélica. Alguns dos consumidores entrevistados tiveram seus rostos cobertos por sombras, de forma a proteger suas identidades. Mas senti que estávamos
encabeçando um movimento no sul, e eu queria que as pessoas soubessem da loja e o que tínhamos a oferecer. Em breve teríamos nosso próprio esquadrão de motos da polícia. Estacionavam na nossa esquina todas as noites de sexta e sábado, davam qualquer multa que pudessem e, sempre que possível, me prendiam. Isso continuou por vários meses e, depois de um tempo, fiquei bem amigo de alguns dos policiais. Eram caras decentes, tinham mais ou menos a minha idade e, no fim, a curiosidade os venceu e nós começamos a conversar. Um deles, “Bob, o Tira”, mais tarde apareceria para trabalhar em Woodstock. Os políticos locais ficaram obstinados a acabar com o uso de maconha e elaboraram um plano para uma enorme batida por todo o Coconut Grove. Graças a um amigo que trabalhava no gabinete do procurador, ficamos sabendo desses planos com bastante antecedência, incluindo uma lista de busca e apreensão com cerca de noventa nomes e endereços. Minha loja não estava na lista, mas minha casa, na 27th Avenue, onde eu dava umas festas ocasionalmente, sim. Na época, eu já estava com planos de me mudar para uma casa no exuberante e tropical South Grove, onde o ar pesa com o perfume de jasmim. Tinha alugado uma bela casa de adobe ao estilo espanhol, de propriedade de uma aristocrata sulista chamada Mary Whitlock. Quando a grande batida aconteceu, eu já tinha levado tudo para a nova casa, com exceção de alguns itens que deixei para “entreter” a polícia naquela noite: quando chegaram ao endereço na 27th Avenue, munidos do mandato, encontraram um toca-discos ligado a todo volume e luzes estroboscópicas piscando sem parar. Avisamos nossos amigos sobre a lista, então as casas de todos eles não continham nada ilegal, e não haveria ninguém para receber o mandato. Enquanto dezenas de viaturas aguardavam no estacionamento da Florida Pharmacy para partir para uma noite de prisões, nós estávamos todos andando de bicicleta pelas ruas do Coconut Grove. Estava mais para Keystone Cops2 do que para Dragnet3: enquanto uma fila de viaturas acelerava pelo Grove numa direção, um número igualmente grande de ciclistas cabeludos passava zumbindo por eles, na direção oposta. Só conseguiram prender as duas ou três pessoas que não receberam o aviso. * * *
Com a Head Shop South se tornando o epicentro do underground de Miami, foquei em trazer mais música para a região. Todo mundo queria ver as bandas cujos álbuns ouvíamos. O primeiro be-in, com o Grateful Dead como atração, acontecera em janeiro de 1967, no Golden Gate Park, em São Francisco, e logo outros be-ins ocorreriam no Central Park, em Nova Iorque. Organizei uma reunião das tribos no nosso próprio parque, no Grove. Algumas bandas locais tocaram e nós tivemos um bom número de presentes. Pessoas com violões se sentavam no chão e tocavam; incenso e fumaça enchiam o ar.
Os sócios da Joint Productions (da esquerda para a direita): Marshall Brevitz; o chefe de segurança John Ek; eu; Barry Tanan; e um desconhecido. © EDDIE KRAMER
A maior parte das bandas em turnê que vinham de Nova Iorque ou da Califórnia tocava numa grande casa de rock em Miami chamada Thee Image. Os artistas maiores tocavam no Dinner Key Auditorium, localizado no que fora um hangar de hidroaviões da Pan Am, à beira-mar no Grove. Futuramente, o auditório proibiria bandas de rock de se apresentarem lá, depois que Jim Morrison foi preso por supostamente expor suas partes íntimas no palco durante um show do Doors ali, em março de 1969. No final de 1967, comecei a
promover alguns shows num anfiteatro a céu aberto, em Key Biscayne. Entre os artistas estava Ravi Shankar, que fora uma sensação no Monterey Pop Festival, em junho. Procurei por lugares interessantes onde fazer shows, incluindo a reserva indígena Seminole, nas Everglades, onde era possível fumar maconha sem ser importunado pela polícia. Encontrei-me com anciãos da tribo para debater essa possibilidade. Eles gostaram da ideia, mas não conseguimos entrar num acordo quanto à época. Qualquer um envolvido no underground – de Timothy Leary a Jerry Garcia – passava na minha loja quando estava em Miami. Num dia de dezembro, Paul Krassner, editor da revista The Realist, apareceu. Eu o conheci em Nova Iorque, uns dois anos antes, quando assisti à sua aula “Do Mickey Mouse aos BoinasVerdes”, na New School for Social Research. Com ele, estava o “Capitão América” em pessoa, Abbie Hoffman. Abbie se apresentou e nós nos conectamos de imediato. Ele tinha um ótimo senso de humor e estava comprometido a difundir a contracultura e a se infiltrar no mainstream. Ele e Paul bolaram os Yippies, ou Youth International Party (Partido Internacional da Juventude), enquanto curtiam as ilhas das Florida Keys. Meu caminho e o de Abbie se cruzariam novamente em Nova Iorque, e ele acabaria tendo um papel importante em Woodstock. ABBIE HOFFMAN:
Conheci Michael Lang cerca de um ano antes [de Woodstock]. Ele estava tocando uma loja de parafernália de maconha no Coconut Grove. Depois de dar uma fala na loja, fiquei por ali mais alguns dias porque fazia calor e eu estava escrevendo Revolution for the Hell of It... Ele me contou que tinha uma ideia – uma ideia livre, flutuante – para um festival. Parecia que o dono de uma pequena lojinha de maconha no Coconut Grove teria um devaneio, mas não a visão de fato para organizar algo como o que, bem, eu considero o maior evento cultural do século. Mas ele teve. Outra cena intrigante em Miami girava em torno do Seaquarium, lar dos vários golfinhos que interpretavam o Flipper, do seriado de TV semanal. O treinador dos mamíferos, Richard O’Barry, se tornaria um pioneiro dos direitos dos animais. Uma espécie de místico no que dizia respeito aos golfinhos, Ric se dera conta da inteligência deles e de seu desejo de se comunicar. Depois que Cathy – uma das golfinhos fêmeas que interpretava Flipper – ficou deprimida e “cometeu suicídio”, Ric teve uma epifania. Percebendo que era desumano manter
os golfinhos presos em tanques, ele começou uma cruzada de vida para libertálos. Ric e Fred Neil se tornaram muito amigos, e Fred se convenceu de que poderia se comunicar com golfinhos por meio da música. Muitos dos amigos de Fred vieram ao Coconut Grove para visitá-lo e conhecer os animais. RIC O’BARRY: Lembro-me de observar Fred com a cabeça debaixo d’água, com
bolhas subindo por todo lado, tentando cantar submerso para os golfinhos. Ele também tocava seu violão de doze cordas. Os golfinhos emergiam e encostavam no violão quando ele tocava certos acordes. Fred sempre dizia que era o tom que os atraía. Trazia seus amigos para tocar música para os golfinhos – Joni Mitchell, Ramblin’ Jack Elliott, David Crosby e muita gente descolada. O público se perguntava o que aqueles cabeludos estavam fazendo, viajando pelo aquário. Ric e eu éramos vizinhos e ficamos amigos. Inspirados pelo que acontecera em Monterey no ano anterior, decidimos organizar o primeiro festival de música da Flórida. Queríamos apresentar um line-up diversificado, a céu aberto, ao longo de vários dias, bem na linha de Monterey. Minha cozinha virou nosso escritório e formamos uma sociedade chamada Joint Productions, juntamente com um baterista chamado James Baron e meu amigo e advogado Barry Taran. Em abril, depois de o Grateful Dead tocar três noites no Thee Image, o dono da casa, uma figura levemente escusa de nome Marshall Brevitz, nos ligou para dizer que queria participar da organização do festival também. Saímos à procura de um lugar e escolhemos o hipódromo Gulfstream, na cidade vizinha de Hallandale. Circundado por palmeiras, era um dos hipódromos mais antigos do sul da Flórida, local do Florida Derby, e contava com uma pista de terra de 1 quilômetro e meio, com um gramado no centro, além de arquibancada. Chegamos a um acordo com a gerência do Gulfstream assim que a temporada de hipismo acabou, no final de abril. Marshall Brevitz só botaria seu dinheiro se realizássemos o show dentro de três semanas, então escolhemos os dias 18 e 19 de maio. Ele sugeriu que eu falasse com Hector Morales, agente da William Morris, de Nova Iorque, então viajei até lá para uma reunião com ele.
Ric O’Barry fazendo uma serenata para uma baleia orca. Seaquarium, Miami, 1968 [CORTESIA DE RIC O’BARRY]
“Você quer fazer um show desse tamanho em três semanas?”, repetiu Hector quando expliquei que queria fechar seis ou sete artistas grandes para tocar para um público de 25 mil pessoas. “Você está doido!” Porém, à medida que conversamos mais, o convenci a ajudar. Conseguimos uma escalação impressionante: John Lee Hooker, Chuck Berry, Mothers of Invention (liderados por Frank Zappa), Blue Cheer, Crazy World of Arthur Brown e Jimi Hendrix Experience. Hendrix estava em turnê pelos Estados Unidos naquela primavera e esse seria o show final, de última hora. Fechamos as atrações com
alguns grupos locais: uma banda de pop rock de Tampa, com um toque latino, o Blues Image; um combo de free jazz, de Miami, o Charles Austin Group; e uma banda de garagem chamada Evil. Tivemos que nos desdobrar para conseguir equipamentos de som e de palco. Por conta do tempo apertado, optei por caminhões que poderiam ser trazidos para a pista. A ideia era criar um conjunto de três palcos diferentes alinhados, de forma que pudéssemos fazer um rodízio de montagem e desmontagem de equipamento. Assim, uma banda conseguiria começar imediatamente após a outra. Para o som, recorremos ao respeitado Criteria Studio, de Miami, na época conhecido mais por receber artistas de jazz e R&B, mas onde o Grateful Dead acabara de gravar algumas músicas. Era o maior estúdio do sul, na época, e mais tarde ficaria famoso como o lugar onde foram gravados Layla, de Derek and the Dominos; e Eat a Peach, dos Allman Brothers. DK me apresentou ao engenheiro de gravação do Criteria, Stanley Goldstein, que não só nos ajudou a cumprir essa façanha, como também se tornaria uma peça importante para montar a equipe de Woodstock. Ric e eu nos encontramos com Stanley no Criteria, para determinar o que precisaríamos para o festival. Tivemos a sorte de Mack Emerman, o chefe do Criteria, ter confiança em nós para nos emprestar os equipamentos do estúdio e dar a Stan o sinal verde para trabalhar no festival. As habilidades de improviso de Stan me impressionaram. De aprendizado rápido, ele não tinha medo de tentar algo novo. Também conheci Bob Dacey, um cineasta disposto a filmar o festival e receber depois. Com o line-up fechado faltando poucos dias para o festival, não tivemos muito tempo para promovê-lo. Criamos rapidamente algumas versões de pôster, alguns com um retrato de Hendrix, para distribuir pela cidade. Os ingressos custavam US$ 5, com shows à tarde e à noite de sábado e domingo. Também alugamos estandes para vários vendedores comercializarem toda a sorte de itens psicodélicos. Meu pai veio até o hipódromo um dia antes de o festival começar, e eu o levei até a pista e expliquei o que pretendíamos fazer. Ele, sem demora, foi direto ao ponto: “Como você acha que vocês vão se sair financeiramente?”, perguntou. Respondi apontando para os guichês de apostas. Rimos os dois. O dia 18 de maio foi mágico. Vieram cerca de 25 mil pessoas, que se acomodaram em cangas no gramado ou empoleiradas na arquibancada, voltadas para os palcos montados na ponta oeste da pista. A música começou por volta do meio-dia. Havia alguns esquisitões, parecendo vindos de Nova Iorque ou São
Francisco, espalhados pela multidão, mas boa parte do público parecia composta por universitários certinhos. O Fort Lauderdale News fez uma cobertura e publicou um artigo intitulado HIPPIES ESTRANHAMENTE BEM COMPORTADOS: REPÓRTER FICA LADO A LADO COM OS ESQUISITÕES: “Chame-os de hippies, paz e amor, ou como quiser, essa geração tem muito mérito. São pessoas gentis, agradáveis, educadas com estranhos e entre si. Conversei brevemente com os que estavam mais desleixados, com os mais cabeludos e com os mais esquisitos. Todos foram simpáticos, bem-educados e de fala mansa. E todos concordaram que estavam lá para ouvir a música de que gostam e para estar entre outros como eles”. A perspectiva basicamente positiva do jornal foi oposta à do Miami Herald, que alertava que os hippies na vizinhança poderiam acabar com o valor imobiliário de uma determinada área e foi rápido em noticiar os poucos furtos que ocorreram no festival – toca-fitas e fitas furtados de carros. A maior parte dos artistas fez dois sets, exceto Hendrix. Jimi e a banda tinham perdido o traslado do aeroporto e, enquanto os Mothers of Invention tocavam, nos demos conta de que Hendrix estava atrasado. Em pânico, contatamos o tour manager do Experience, Gerry Stickells, no aeroporto internacional de Miami, e descobrimos que eles tinham perdido o traslado. Então fretamos um helicóptero para transportá-los até o show, e logo ouvimos o zunido das hélices lá no alto. Jimi, Noel Redding e Mitch Mitchell pousaram de um jeito espetacular, um pouco além do palco. Não sei quem estava mais em êxtase, eu ou o público. Vestindo uma camisa branca de babados e um chapéu Fedora preto, Hendrix fez um show incandescente. Naquela noite, assistindo dos andaimes, vi todo mundo na plateia totalmente absorto e maravilhado com o que estava acontecendo no palco. Mais tarde, descobri que o Experience estava numa experiência psicodélica: MITCH MITCHELL: Vem um cara para nos dar um pouco de energia extra, mas
no fim era algum tipo de alucinógeno. Olhei para cima e vi o cara que nos dera o pó numa torre de iluminação, a uns 6 metros de altura. De repente, eu estava na mesma altura dele, olhando para uma concha vazia e tocando bateria. Obviamente, o pó não era o que tínhamos pensado. Olhei para o outro lado e lá estava Jimi, na mesma altura que eu, e nós meio que nos entreolhamos e acenamos com a cabeça... foi algo totalmente Além da imaginação.
Assim como a maioria das performances, a de Jimi foi gravada: por anos, “Foxey Lady”, “Fire”, “Hear My Train a Comin’” e “Purple Haze” circularam por aí em registros piratas. Na internet, os fãs ainda falam muito entusiasmados sobre o show: “O show mais misterioso e fascinante do JHE”, “O melhor show que vi na vida, de qualquer artista”. Além das imagens documentais, a ABC vinha acompanhando Hendrix e filmou parte da apresentação. Linda Eastman (mais tarde McCartney), uma boa amiga de Jimi, tirou algumas fotos ótimas do Experience, e o engenheiro de som de Hendrix, Eddie Kramer (que depois gravaria os shows de Woodstock, em 1969), registrou parte do festival também. Décadas mais tarde, o Petersen Museum, de L.A., exibiu a Stratocaster que Jimi tocou, e que naquele dia acabou com Frank Zappa. Este a conseguiu, disse ele, depois que Hendrix quebrou o braço da guitarra, a encharcou de fluido de isqueiro, ateou fogo e a jogou do palco. Zappa trocou o escudo derretido e o braço quebrado e a usou por anos. O show de sábado terminou com uma fantástica demonstração de fogos de artifício – o gran finale foi um símbolo da paz espetacular aceso no céu. As coisas pareciam boas demais para serem de verdade. E eram. Como o sul da Flórida vinha enfrentando uma longa seca, sem sinais de precipitação, decidimos dispensar o caro seguro contra chuva. Sem nosso conhecimento, no sábado, as autoridades pediram uma semeadura das nuvens sobre as Everglades. O resultado foi uma monção no domingo – aguaceiros torrenciais, granizo, relâmpagos e ventos de 80 km/h. Dez centímetros de chuva caíram por todo o dia e toda a noite, o que reduziu em muito o comparecimento. Para somar aos nossos problemas, descobrimos que a falsificação de ingressos tomou uma porção do nosso dinheiro das entradas em ambos os dias. No domingo, colocamos dois ou três artistas para tocar cedo, e daí em diante foi tudo à completa merda. Nuvens escuras ameaçaram o set dos Mothers of Invention, e Zappa recomendou a arquibancada coberta ao público, no caso de a chuva despencar, mas, “é claro, se vocês curtirem ficar sentados na chuva, bem, então só entrem no groove”.
O público do Miami Pop no nosso dia de sol, 18 de maio de 1968. © EDDIE KRAMER
Não teve groove para nós. Tivemos de parar a música enquanto esperávamos por uma pausa na chuvarada. Horas se passaram, e um cara subiu no palco vazio e tentou incitar o público encharcado a se revoltar. Antes de colocar John Lee Hooker no palco, eu precisava buscar US$ 750 em dinheiro vivo na bilheteria para pagá-lo. Quando abri a porta, dei de cara com um impasse feio em progresso. John Ek, nosso chefe de segurança, estava ameaçando o motorista da Brink’s, que chegara para buscar os rendimentos das entradas. Uma figura bruta, Ek ficou famoso por inventar a faca Ek Commando, que ele descreveria de batepronto. É uma faca longa e fina, muito estreita na base, de modo que, ao esfaquear alguém, você consegue desconectar a lâmina do cabo, quebrando-a. Ek deduziu que estávamos com problemas financeiros por causa da chuva e exigiu que fosse pago antes que qualquer quantia de dinheiro deixasse o local. O guarda da Brink’s, cuja missão era coletar os recibos da bilheteria e transportar o caixa até o banco, não estava prestes a recuar. Os dois trocavam berros, comigo no meio; então ambos ameaçaram sacar suas armas. Fiquei petrificado, mas sabia que havia uma situação possivelmente mais perigosa fermentando do lado de fora. Por instinto, tentei mudar a energia na sala.
“Parem aí!”, gritei ao colocar as mãos para cima. “Esse dinheiro ainda é nosso e ninguém vai levar nada a lugar nenhum antes de eu colocar alguma música para rolar. Voltarei aqui e nós vamos resolver isso.” Enquanto eles absorviam essas novas informações, peguei o dinheiro e corri para encontrar John Lee. Ele entrou no palco e fez aquele show memorável, e eu retornei à bilheteria para chegar a um acordo.
John Lee Hooker esperando para entrar no palco, 19 de maio. © KEN DAVIDOFF/WWW.THEMIAMIPOPFESTIVAL.COM
STAN GOLDSTEIN: Michael esfriou os ânimos naquela cena. Parecia o duelo do
O.K. Corral4. Naquele dia, em que tudo estava caindo aos pedaços, Michael simplesmente brilhou, e aquele foi o começo do meu respeito por ele nesse tipo de circunstância difícil. Ele manteve a cabeça no lugar, continuou a funcionar. Fez o melhor que pôde, o que com frequência era bastante espetacular. Quando
tudo ao seu redor em sua organização estava falhando, Michael lidava com as situações à medida que elas emergiam e como elas deviam ser atendidas, ao passo que todas as outras pessoas corriam, se escondiam, desapareciam, entravam em pânico, e assim por diante. Apesar do alívio durante a apresentação de John Lee, a chuva não passou por completo. A última banda do dia, o (muito louco) Crazy World of Arthur Brown, finalmente conseguiu entrar no palco. Fizeram jus de sobra ao nome, e no final de seu grande sucesso psicodélico “Fire”, Arthur chutou o órgão do palco. Mais tarde, descobri que, nas primeiras horas da madrugada, ele partiu para Fort Lauderdale a pé. Depois do show, muitas das bandas voltaram para o hotel para festejar no bar. NOEL REDDING: O show que fizemos no Miami Pop Festival foi excelente, e
quando a chuva estragou as coisas no dia seguinte, Jimi e eu fomos para o hotel para uma jam e maluquices em geral com Arthur Brown, [o dono de clubes e empresário de artistas] Steve Paul, os Mothers of Invention e o Blue Cheer.
Um dos pôsteres de Hendrix no Miami Pop Festival, 1968 © KEN DAVIDOFF/WWW.THEMIAMIPOPFESTIVAL.COM
EDDIE KRAMER: “Rainy Day, Dream Away” foi escrita [por Jimi] em Miami,
nunca vou me esquecer. Foi no banco traseiro de um carro. Estávamos saindo do hipódromo... Caía uma tempestade torrencial, e ele começou a escrever a música bem ali. Nossas dores de cabeça continuaram depois do festival, já que a Joint Productions devia a muita gente um dinheiro que não tínhamos. Stan provavelmente sabia que não conseguiríamos pagar ao Criteria o que devíamos, mas continuou a dar o máximo de si. STAN GOLDSTEIN:
Tínhamos montado todo o esquema de alimentação da equipe em um dos caminhões, o mesmo em que eu também guardei minhas ferramentas pessoais. Quando o pessoal do Hendrix decidiu que ele não poderia tocar por causa das chuvas, eles colocaram todo o equipamento de Jimi naquele caminhão e deram no pé, desapareceram. Eu não fazia ideia do que tinha acontecido. Depois do festival, comecei a procurar pelo caminhão que estava com as minhas ferramentas, porque eu precisava delas para desmontar todo o equipamento, e ele simplesmente tinha desaparecido. Só o encontramos uns dois dias depois, no aeroporto internacional de Miami, lacrado. Abri as portas traseiras do caminhão e veio um fedor horrível. O caminhão tinha ficado no sol contendo todos os pratos de deli que tínhamos comprado para alimentar todo mundo: salada de repolho, salada de batatas, rosbife e pastrami. Aquilo era tudo que tinha no caminhão. Minhas ferramentas sumiram com Jimi. Na esteira do festival, tivemos de lidar com inúmeras contas não pagas. Nunca conseguimos obter as gravações e imagens do festival: elas foram seguradas pelas partes que as fizeram até que pagássemos por elas – o que nós não conseguíamos fazer. Esses registros desapareceram gradualmente ao longo dos anos. Parte do set dos Mothers of Invention apareceu no álbum de 1969, Uncle Meat. Zappa ajudou o Blues Image a assinar um contrato, e eles fizeram sucesso com “Ride Captain Ride”. O guitarrista solo Mike Pinera depois entraria para o Iron Butterfly, e o percussionista Joe Lala se tornou um dos principais músicos de estúdio de L.A., tocando com Crosby, Stills, Nash & Young, entre outros. O Jimi Hendrix Experience voou para Nova Iorque, onde gravaram a maravilhosa “Rainy Day, Dream Away” para o disco Electric Ladyland, lançado mais tarde naquele ano. Quanto a nós, nosso advogado nos aconselhou a declarar
falência. No Criteria, nos reunimos com Mack, Stan e outros credores e demos a má notícia a eles.
Frank Zappa no backstage do Miami Pop, 19 de maio. © KEN DAVIDOFF WWW.THEMIAMIPOPFESTIVAL.COM
STAN GOLDSTEIN: Michael apareceu e havia infelicidade e descontentamento
da parte dos credores. Michael disse que eles fariam o melhor do melhor que pudessem para honrar todas as dívidas e obrigações e observou que as gravações poderiam ter algum valor. Ele foi legal, então aquele foi mais um momento em que uma relação foi travada entre Michael e eu, porque eu era, por predefinição, o capitão do time dos credores. E Michael era o capitão do time dos organizadores. Depois do Miami Pop Festival, Michael promoveu alguns shows
adicionais. Um deles foi no Miami Marine Stadium, para o qual o Criteria fez o som. Mas eu não liguei os equipamentos até ser pago. RIC O’BARRY: Tentamos compensar organizando um show dos Byrds e do
Steppenwolf um tempo depois, no Miami Marine Stadium. Começou a chover de novo, e choveu por quarenta dias. Perdi uma fortuna – todo o dinheiro que eu tinha ganhado com o seriado Flipper. Michael fez as malas sem um tostão e voltou para Nova Iorque. * * * À nossa volta, o Grove estava mudando: a polícia continuava a importunar os hippies, os aluguéis e condomínios estavam subindo, as velhas casas de madeira sendo derrubadas e as lojas de parafernália de maconha proliferando. Sem dinheiro e um pouco esgotado do sul da Flórida, pensei que era hora de voltar para Nova Iorque. A 140 quilômetros ao norte da cidade, Woodstock tinha se tornado um ímã para músicos. Eu me lembrava de seu clima artístico e de cidadezinha. O lugar tinha um histórico que atraía artistas e boêmios. Minha namorada, Sonya, e eu decidimos conferir por nós mesmos.
Linda Eastman (depois McCartney); Jimi Hendrix; e Mitch Mitchell, no Miami Pop Festival, 18 de maio de 1968. © KEN DAVIDOFF/WWW.THEMIAMIPOPFESTIVAL.COM
O Jimi Hendrix Experience no palco do Miami Pop, 18 de maio. © KEN DAVIDOFF/WWW.THEMIAMIPOPFESTIVAL.COM
1. Grupos de ativistas pelos direitos civis que, a partir do início da década de 1960, viajavam pelo sul dos EUA em campanhas contra a segregação, em prol da igualdade racial e dos direitos da população negra. (N. do T.) 2. Personagens de esquetes de comédia pastelão do cinema mudo, em que os policiais eram atrapalhados. (N. do T.) 3. Série policial, por sua vez séria, criada em 1951. (N. do T.) 4. Considerado um dos mais célebres confrontos da história do velho oeste americano, o tiroteio entre um grupo de foras da lei e oficiais liderados por Wyatt Earp aconteceu no O.K. Corral, em Tombstone, no Arizona, em 1881. (N. do T.)
III WOODSTOCK, NOVA IORQUE
Deitado num cobertor sob as estrelas e ouvindo rock and roll alto, me sinto no paraíso. Uma mulher com longos cabelos ruivos canta um blues de forma poderosa, com uma voz maior do que ela. “Quem é essa?”, pergunto ao cara sentado ao meu lado. “Ellen McIlwaine”, diz ele, ao me passar um baseado robusto. “Jimi Hendrix tocava com ela lá no Café Wha. Ela se mudou da cidade para Woodstock com a banda nova, o Fear Itself. Tem a melhor voz da cidade e toca uma guitarra slide matadora”. Centenas de pessoas se espalhavam pelo gramado – algumas com sacos de dormir e tendas armadas próximo a vans VW. Fumaça aromática sopra com a brisa. Já tinha ouvido falar como eram legais os Saturday Soundouts semanais, e agora vejo por que todo mundo em Woodstock se empolgava com eles. Para o segredo mais bem guardado da Costa Leste, a chave é o cenário campestre: um prado coberto de verde saindo de uma estrada rural sinuosa a 10 minutos da cidade. O Soundout encarna o tipo de clima sossegado que tentamos criar em Miami. Acho que esse é o melhor jeito de ouvir música, cercado por colinas vastas e terras férteis, sob um céu imenso. * * * Na superfície, Woodstock não mudara muito desde minhas visitas quando criança até o fim do verão de 1968: um vilarejo pitoresco aninhado nos braços de
um verde suntuoso e de montanhas azuladas. Sonya e eu nos hospedamos no hotel Millstream – o único da cidade – e começamos a explorar. No dia seguinte, um corretor já tinha encontrado para nós um belo celeiro vermelho numa via tranquila chamada Chestnut Hill Road. O mesmo riacho brilhante que corria pelos arredores do hotel também passava pelo nosso novo lar. A serenidade era inspiradora. Ao longo da Tinker Street, o pitoresco “centro da cidade” de Woodstock, havia uma loja de materiais de construção, galerias de arte, cafés e lojas ecléticas. Nossa favorita era o Juggler, um empório que vendia suprimentos de arte, livros, cordas de violão e discos. Os donos, Jim e Jean Young, tinham se mudado de Berkeley para a Costa Leste. Cerca de quinze anos mais velhos do que eu, eram dois fãs com cabeça aberta de música e que nos acolheram sob suas asas. À noite, um bom tanto dos 3 mil habitantes de Woodstock se aventurava a sair de casa para fazer um pouco de música e festejar no Café Espresso, no Deanie’s, no Elephant e no café Sled Hill. O povo da cidade era uma combinação de “descendentes dos colonos holandeses e ondas sucessivas de artistas, artesãos, dançarinos, músicos, gente que largou a cidade e rebeldes à procura de uma alternativa verde ao Greenwich Village”, como descreveu Robert Shelton, biógrafo de Dylan. Há muito o vilarejo era povoado por essa mistura de camponeses trabalhadores e boêmios de espírito livre. Originalmente cultivada pelos holandeses em meados do século 18, a região a leste das Catskills vinha servindo como um ninho para artistas havia mais de sessenta anos. Em 1903, um trio de utopistas – o abastado inglês Ralph Whitehead, o escritor Hervey White e o artista Bolton Brown – se estabeleceu em Woodstock para seguir o pensamento do filósofo John Ruskin contra a industrialização galopante. Em 4,8 quilômetros quadrados, sob abrigo da Overlook Mountain, criaram a Byrdcliffe Arts Colony, para buscar os ideais do movimento de artes e ofícios. White mudou-se para Glenford, perto dali, e fundou a Maverick Colony, onde artes cênicas e música eram o foco. Em 1912, um braço da Liga de Estudantes de Arte de Nova Iorque fez um curso de verão na cidade e alguns pintores e escultores ficaram por ali. Na década de 1920, já havia festas bacantes, com foliões excêntricos vestindo fantasias feitas à mão para celebrar a noite toda. Um panfleto do primeiro Maverick Festival anual, que aconteceu em agosto de 1915, prometia “esportes selvagens” e a dançarina Lada, que “ilumina música linda como poemas e lhe faz senti-la religiosamente... você chora com algo tão extraordinário de se ver... Tudo isso no insano teatro da pedreira, sob a luz da lua, com a orquestra uivando
em arrebatamento e as tochas ciumentas queimando ao vento! À tarde também haverá um concerto, com um concurso, e coisas estranhas acontecendo no palco... Haverá uma vila que durará apenas um dia, a qual foi decorada por artistas loucos com flâmulas gloriosas e brasões na entrada pela mata”. Embora colecionadores de música folk e músicos eruditos, incluindo Aaron Copland, tenham vivido na região desde os anos 1940, a cena musical realmente se fortaleceu depois da chegada de Albert Grossman, nos anos 1960. Muitos dos artistas empresariados por ele, Bob Dylan entre eles, se apaixonaram pelo lugar. Na época em que cheguei, Dylan tinha se estabelecido nos arredores da cidade com a família e vivia discretamente. Mais comumente visíveis por ali, seus músicos de apoio, que se intitulavam The Band, tinham acabado de lançar seu primeiro álbum, Music from Big Pink. O nome vinha de uma casa em West Saugerties, perto dali, onde alguns membros da The Band viviam em 1967 – o marco zero para as Basement Tapes, que logo se tornariam lendárias e pirateadas, gravadas na casa com Dylan. No verão de 1968, a The Band – Rick Danko, Levon Helm, Garth Hudson, Richard Manuel e Robbie Robertson –, na estrada há anos, já tinha se dispersado entre a comunidade de Woodstock. GARTH HUDSON: Acabamos gostando desse estilo de vida, de cortar madeira e
bater o martelo no dedão, consertar o gravador ou a tela da porta, vagar pela mata... Era relaxante e discreto, algo de que não desfrutávamos desde que éramos crianças. No café Elephant, jams improvisadas começavam com gente como Paul Butterfield, um grande cantor e gaitista de blues, e Tim Hardin, brilhante cantor e compositor. Com frequência era possível ver Rick Danko, jogando damas no Café Espresso, ou Richard Manuel, bebericando vinho tinto no Deanie’s. (Todos eles participariam do festival um ano depois.) O Café Espresso, onde Dylan batia cartão no início da década de 1960, era tocado por um francês meio paternal chamado Bernard Paturel. BERNARD PATUREL:
Há uma magia aqui, uma emanação. Muitos músicos, artistas e escritores. Uma pessoa talentosa sentiria as vibrações e ganharia o apoio de outras pessoas assim ao morar aqui. Há algo no ar. Você pode visitar alguém que talvez tenha o mesmo espírito, a mesma atitude.
LEVON HELM: O povo daqui é como o povo lá nas montanhas Ozark. É um
povo do campo, naquele jeito bom de um cidadão íntegro, assim como lá de onde eu venho [no Arkansas]... Qualquer um que more aqui é abençoado. A cidade de fato parecia um abrigo contra a tempestade (como Dylan depois cantaria), em setembro de 1968. Enquanto a situação no Vietnã piorava, os Estados Unidos tinham perdido a linha naquele ano, com um evento trágico após o outro: os assassinatos de Martin Luther King Jr. e Bobby Kennedy; tumultos raciais em cidades por todo o país; prisão e espancamento daqueles que protestavam contra a guerra; estudantes presos por protestar no campus. Em agosto, a polícia agrediu e lançou bombas de gás contra manifestantes na Convenção Democrática Nacional, em Chicago. Abbie Hoffman, os Yippies, os Panteras Negras e outros ativistas conhecidos como os Oito de Chicago1 foram incriminados em acusações falsas. Àquela altura, Abbie parecia ser preso a cada semana. Em Woodstock, os Soundouts eram um contraste direto ao clima no país. Havia uma sensação de alegria e cura neles – um resultado daquele cenário bucólico –, com crianças correndo na rua, gente compartilhando baseados e se espreguiçando em cangas enquanto o sol se punha. Desde 1967, os shows aconteciam em todos os fins de semana de verão na fazenda Peter Pan, uma propriedade na sinuosa Glasco Turnpike, entre Woodstock e Saugerties. A dona era Pan Copeland, uma mulher rabugenta que tinha também a Corner Deli na cidade. Três ou quatro artistas se apresentavam num palco improvisado, de cerca de 15 centímetros de altura, no que antes fora um milharal. Havia artistas locais como Ellen McIlwaine e o Fear Itself, Chrysalis, Cat Mother e a ColwellWinfield Blues Band, e depois nomes de fama nacional, que tinham se mudado para a cidade, como Van Morrison e Tim Hardin. Entre os shows, ganhávamos serenatas das cigarras e dos pássaros. As pessoas armavam barracas ou estacionavam trailers no pasto vizinho. “Não seria legal dar um grande show em que as pessoas pudessem acampar assim, e que durasse um fim de semana inteiro?”, perguntei a Sonya. Os Soundouts reaqueceram a ideia que tinha me ocorrido pela primeira vez em Miami. Porém, aqui, eu comecei a ver as peças de algo ainda maior se juntando. Numa viagem à cidade, reatei contato com Don Keider, que tinha se mudado do Grove para Nova Iorque para tocar vibrafone com uma banda chamada Mandor Beekman. Don e alguns caras de seu quarteto de jazz de Miami – o baterista Abby Rader e o tecladista Bob Lenox – se uniram a alguns roqueiros do
Brooklyn e mudaram o nome para Train. DK me chamou para ser empresário da banda, e embora ainda não tivesse ouvido as músicas, eu disse: “Claro, vou ver isso aí”. Ele precisava da ajuda e eu aprenderia algo novo. O Train estava em transição do jazz direto para um som mais rock fusion. Apresentei-os a Garland Jeffreys, um talentoso cantor e guitarrista. Garland tinha uma companhia de iluminação no East Village chamada Intergalactic. Eu o conheci quando comprei algumas luzes estroboscópicas para a Head Shop South. Ele vinha escrevendo umas músicas ótimas e se apresentando no Village, e DK e os caras gostaram de suas letras poéticas. Quando Garland entrou, o som da banda começou a se firmar. DON KEIDER: Estávamos ficando num prédio bombardeado, ao lado da linha
do trem, no West Side. Nosso espaço de ensaios ficava no andar acima de uma fábrica de roupas clandestina. Era insano! Não sei como sobrevivemos àquilo. Mas eu tinha muita fé que Michael poderia nos ajudar a chegar a algum lugar. Ele tinha provado sua proficiência nos negócios em Miami com a nossa companhia de pôsteres. Começamos com uns dois pôsteres, e de repente estávamos imprimindo milhares. Ele os distribuía por todo o país. Ganhamos um bom dinheiro com todos aqueles pôsteres. Eu pegava o ônibus Trailways de Woodstock até o terminal Port Authority para trabalhar com o Train. Numa dessas viagens, pensei: não seria ótimo se houvesse um estúdio em Woodstock, onde os artistas pudessem gravar no campo? Assim como Miami tinha o Criteria, que era uma extensão da Atlantic Records, Woodstock precisava de um estúdio. Cada vez mais músicos passavam um tempo na região – Van Morrison, Jimi Hendrix, Janis Joplin. Fred Neil se mudou do Coconut Grove para lá. Comecei a procurar e encontrei uma casa vitoriana dilapidada e algumas dependências numa propriedade isolada cercada por árvores logo depois da saída da cidade. Originalmente o lugar fora o Tapooz Country Inn, um destino de férias operado por uma família armênia, com chalés, um salão de baile, uma piscina no formato de um piano e um gazebo. Alexander Tapooz, figura excêntrica, vendedor de tapetes, disse que os 12 hectares e as dependências poderiam ser comprados por cerca de US$ 50 mil. Numa estrada esburacada, cercada por árvores, saindo da Yerry Hill Road, o local estava seriamente malconservado, mas eu conseguia visualizar a conversão do salão de baile num
estúdio. Com apoio financeiro, pensei, eu poderia construir um complexo de gravação dos mais modernos, um retiro para músicos que quisessem fugir da cidade grande por um tempo para gravar. Enquanto isso, num dia no final de outubro, em que eu estava na cidade com o Train, Abby Rader me falou de um cara de uma gravadora que ele conhecia. “Ele é um figurão na Capitol Records”, disse. “Artie Kornfeld. Ele é de Bensonhurst, como você.” Estávamos na calçada e eu vi um orelhão. “Tem uma moeda?”, perguntei. Liguei para a Capitol e pedi o gabinete de Artie. Eu era vice-presidente do departamento de A&R2 na Capitol. Fui originalmente músico e compositor, trabalhei com [Gerry] Goffin e [Carole] King, [Neil] Sedaka e Leiber e Stoller no Brill Building. Depois fui para a Mercury, onde compus e produzi alguns grandes sucessos dos Cowsills. Eu tinha apenas 24 anos quando cheguei à Capitol. Um dia, minha secretária me disse: “Tem um cara chamado Michael Lang aqui para vê-lo”. Eu disse: “Quem é Michael Lang?”, ao que ela respondeu: “Ele disse: ‘Fale pra ele que sou da vizinhança’”. Então, na hora, eu já sabia: Bensonhurst. Foi por isso que disse: “OK, mande-o entrar”. Michael foi o meu segundo hippie. Eu tinha contratado Debbie Harry – que depois seria do Blondie – e sua banda Wind in the Willows, então eles foram os primeiros hippies que conheci. A afinidade entre Michael e eu foi instantânea. Falamos sobre nosso bairro, fumamos um e foi melhor do que qualquer coisa que já fumei. Eu meio que me apaixonei por Michael porque éramos muito próximos intelectualmente – e ambos éramos malucos. Nossa conexão foi de um nível muito alto. ARTIE KORNFELD:
Quando entrei no gabinete de Artie pela primeira vez, com os discos de ouro na parede, estava esperando alguém muito mais corporativo. Em vez disso, lá estava ele sentado, de pernas cruzadas na mesa – era um pouco daquela tentativa careta de parecer cool. Mas ele foi muito gentil e realmente receptivo. Filho de policial, ele definitivamente tinha a típica personalidade “do bairro” – algo que compreendi no ato. Falamos sobre pessoas que nós dois conhecíamos em Bensonhurst e nos demos bem de imediato. Artie e eu nos encontramos logo depois disso e eu trouxe a banda para ele conhecer. O Train ainda não estava com todas as músicas definidas. Era uma banda meio caótica e estava bebendo na fonte de John Coltrane, com muita
improvisação e jams de teclado. Bob Lenox, em particular, era um jazzista muito interessante. Embora eles levassem certo tempo para se entrosarem, havia momentos em que estavam com tudo – e quando tudo funcionava, soavam ótimos. ARTIE KORNFELD: O Train era terrível. Mas eu gostava do Michael, então dei
a eles um orçamento de US$ 10 mil. Disse que os levaria aos estúdios da Capitol para gravar umas demos e ver se poderíamos assinar com eles. Embora o som viajandão e as letras politizadas do Train não fossem a praia de Artie, ele confiava em mim. Eu achava que a música deles poderia se encaixar nas novas e livres rádios FM, que favoreciam álbuns de rock mais pesado, ao contrário dos singles pop que abundavam nas rádios AM, que eram o mundo de Artie. Desnecessário dizer que o Train ficou pra lá de contente com essa virada nos acontecimentos. DON KEIDER:
Michael realmente nos ajudou muito com o lance com a Capitol. Logo depois disso, chegamos ao nosso espaço de ensaios uma noite e estava completamente vazio. Alguém tinha invadido. Levaram um [órgão Hammond] B-3, meu vibrafone, dois kits de bateria, todas as guitarras e os amplificadores. Todos os nossos itens pessoais – roupas e tal – tinham sumido. O lugar foi até varrido! Mas o dinheiro tinha acabado de chegar da Capitol, e Artie e Michael nos deram sinal verde para comprarmos o que precisássemos. Então, comprei uma bateria destruidora e outro vibrafone, e todas as nossas coisas foram supridas, e a Capitol nos deu um sistema de som avassalador. Artie marcou uma gravação de demos na Capitol para o Train, para ver se a gravadora assinaria a banda. O Train tocava pela cidade – e enfim chegara ao Fillmore East de Bill Graham, inaugurado em março na 2nd Avenue, e ao Electric Circus, na St. Mark’s Place. Dividiram alguns shows de jazz incríveis com John Cage, Cecil Taylor, Charles Mingus, Ornette Coleman, Don Cherry e Jack DeJohnette (a Capitol, no fim das contas, rejeitou as demos gravadas pela banda e o Train assinou com a Vanguard, que lançou o único álbum deles, Costumed Cuties, em 1970). Eu passava cada vez mais tempo na cidade com Artie e sua esposa, Linda, no
apartamento deles, na 56th Street, saindo da Sutton Place, jogando sinuca, fumando maconha e conversando até altas horas da madrugada. Era como se Artie e eu nos conhecêssemos a vida inteira. Artie e Linda eram almas gêmeas – moravam num daqueles arranha-céus novos e muito chiques com sua filhinha, Jamie. Ele acabaria por me emprestar seu carro da empresa, um Buick, para facilitar minhas idas e vindas de Woodstock. Sonya não gostava de Nova Iorque, então eu sempre ia sozinho e voltava para casa toda noite. Mais tarde, à medida que fiquei envolvido por completo no planejamento e na produção do festival, Sonya e eu gradualmente nos afastamos. ARTIE KORNFELD: Michael, Linda e eu nos tornamos meio que como Butch
Cassidy, Etta Place e o Sundance Kid. Ele foi meu primeiro amigo hippie. Costumávamos fumar um e observar a cidade do décimo sexto andar. Ficávamos lá até umas 3 ou 4 da manhã jogando sinuca. Ele me chamava de Krombine e eu o chamava de Clang. Certa noite, ele disse: “Artie, você faz isso há anos, e você está esgotado”. “O que você quer dizer com esgotado?”, repliquei. E ele disse: “Bem, você assina artistas, vai para o estúdio, e faz esse tipo de coisa, mas você não vai mais aos clubes como costumava, não vai ouvir os novos artistas, a menos que precise”. Contei a Artie sobre os Soundouts em Woodstock e meu festival em Miami. Conversamos por semanas sobre criar uma versão dos Soundouts como uma série de shows de verão. Então, durante um de nossos devaneios noturnos, o conceito de um festival em Woodstock se desenvolveu: “Vamos fazer algo grande de verdade! Vamos convidar todo mundo e colocar tudo junto no campo, onde as pessoas possam acampar!”. O entusiasmo de Artie propulsionou a ideia adiante. Também discutimos a possibilidade de um estúdio/retiro na propriedade dos Tapooz, na Yerry Hill Road, e ele adorou essa ideia. Decidimos seguir em frente com ambos os projetos. Meu amigo que gerenciava o Juggler, Jim Young, era envolvido com negócios imobiliários, então, em dezembro, começamos juntos a procurar possíveis locais para o festival. Paguei a ele uma pequena caução para me ajudar a encontrar um lugar, e visitamos várias propriedades no condado de Ulster. Havia um campo aberto de 28 hectares na Route 212, a leste de Woodstock, que em algum momento teria sido um campo de golfe. Numa área chamada Krumville, achamos uma velha pista de corrida para minicarros e karts, o que era bem legal.
Mas percebi que esses lugares eram muito pequenos e inacessíveis para o festival. Então, logo depois do Ano-novo, perto de Saugerties, nos deparamos com a fazenda Winston. Era perfeita – quase 300 hectares, colinas extensas e bem perto da New York State Thruway. Seu dono era o sr. Schaller, chefão das carnes Schaller & Weber, marca famosa por suas salsichas alemãs. Schaller usava aquelas terras somente para caçar e para um retiro ocasional de fim de semana. Depois de conversarmos várias vezes com o caseiro, parecia que Schaller talvez estivesse aberto a alugar a propriedade. Quando contei a Artie, ele concordou que parecia ideal. Tudo que precisávamos agora era de um investidor. Artie foi sondar vários executivos de gravadoras. Recentemente, eu havia conhecido um advogado do ramo do entretenimento, Miles Lourie, e contei nossas ideias a ele. Miles ficou intrigado com o festival e com o estúdio e conhecia dois jovens investidores de capital de risco, John Roberts e Joel Rosenman, que estavam financiando um novo estúdio de gravação, em Manhattan. Talvez eles apoiassem financeiramente o estúdio em Woodstock. Miles marcou uma reunião numa tarde no começo de fevereiro no apartamento dos caras, no Upper East Side. Tinham mais ou menos a nossa idade, e o apê de solteiros deles, na East 58th Street, funcionava também como escritório. Ao conhecê-los, me dei conta de que éramos de mundos completamente diferentes. Garoto rico, aos 21 anos, John Roberts tinha herdado US$ 1 milhão do espólio de sua mãe, parte de um império farmacêutico, e recolheria ainda mais. Joel, filho de um dentista de Long Island, tinha se formado em direito em Yale recentemente. Os dois tinham formado uma sociedade empreendedora chamada Challenge International Ltd. Seu primeiro grande projeto, o Media Sound, estava em construção na 57th Street. De postura aberta e relaxada, John me conquistou logo de cara. Era um cara direto, pé no chão, completamente sem malícia. Joel parecia mais com o que eu esperava de um engravatado. Ele era, de algum modo, menos acessível, ao mesmo tempo em que tentava com muita força ser charmoso. Não senti muita firmeza quanto a ele, mas os dois tinham um ótimo senso de humor, e Joel tinha uma risada boa e aberta. Isso me tranquilizou. Em seu livro de 1979, Young Men with Unlimited Capital, Joel e John recordaram suas impressões de nós em nosso primeiro encontro: Kornfeld tem cabelos castanhos meio longos e está vestindo um colete de couro bordado sobre uma camiseta... Lang, porém, não pode ser colocado no mesmo espectro. Uma enorme auréola de cachos escuros
emoldura um rosto que é, por vezes, maligno, malicioso, enigmático, endiabrado e inocente. Sob esse semblante mutável: uma camisa de trabalho desfiada, um cinto de couro indígena, calça Levi’s desbotada, botas de cowboy rachadas e sujas. Não há tempo para processar espanto. Ao se apresentar e a Lang, Kornfeld aperta firme com ambas as mãos primeiro a de John, depois a de Joel, e sorri um sorriso de comiseração fraternal, como se os três compartilhassem algum segredo doloroso ou estivessem prestes a embarcar numa missão perigosa para além das linhas inimigas. Lang está alegremente aquiescente, receptivo, afinado com vibrações desconhecidas. Não falei muito. Meu pai me disse certa vez: “Se você está falando, não está aprendendo”. Artie conduziu a reunião habilmente, articulando com entusiasmo nosso conceito do estúdio em Woodstock. Não pretendíamos discutir o festival em detalhes, mas Artie o mencionou de passagem. De vez em quando, John e Joel me lançavam olhadelas, e eu sorria enquanto Artie fazia a apresentação. Nossos futuros sócios não pareciam muito interessados na ideia de um estúdio no campo. JOEL ROSENMAN:
O papo que eles desdobraram foi uma história essencialmente desinteressante sobre a necessidade de um estúdio de gravação em Woodstock, em Nova Iorque. Eles nos impressionaram com os superastros que moravam em Woodstock, mas não conseguiram nos convencer a gastar dinheiro para construir um enorme complexo para esses astros. Embora nós não tivéssemos aberto as portas do Media Sound, já tínhamos conhecimento o suficiente de conversar com especialistas sobre o que é preciso para tornar um estúdio rentável, e é preciso mais do que alguns álbuns de superastros, por melhor que sejam, porque o fato de que eles venderão 1 milhão de cópias não aumenta o seu valor por hora, e não aumenta a quantidade de horas que eles vão reservar no estúdio para produzir aquele álbum. É claro que os especialistas de Joel não sabiam que um estúdio onde álbuns de sucesso foram gravados atrairia um fluxo contínuo de negócios da parte dos artistas que almejassem capturar seu próprio momento mágico – como vimos depois no Bearsville Studio. No final dos anos 1970, Albert Grossman abriria esse estúdio a menos de 1 quilômetro e meio da propriedade dos Tapooz. Um
dos estúdios independentes mais procurados do país por trinta anos, o Bearsville originou álbuns dos Rolling Stones, Foreigner, Bonnie Raitt, R.E.M., Patti Smith, Jeff Buckley, Van Morrison, The Band, Dave Matthews, Phish e dezenas de outros artistas de renome. Porém, naquele dia de fevereiro de 1969, John e Joel quiseram saber mais, principalmente sobre o festival, embora eu achasse que John começara a se interessar pela ideia do estúdio. Perguntaram sobre o tamanho e a localização do festival, o preço dos ingressos e o orçamento geral. Dissemos que não estávamos preparados para discutir o festival. John e Joel pareciam uma dupla improvável como parceiros para o evento, mais adequados para o projeto do estúdio. Eram inteligentes e tinham uma equipe ótima a postos para desenvolver e colocar um estúdio para funcionar. Artie e eu poderíamos providenciar a estética e a ambiência adequadas. Artie disse a eles: “Já estamos bem adiante no festival com algumas outras pessoas, mas tudo bem, voltamos e trazemos o orçamento”.
Joel Rosenman. © PENNY STALLINGS
Nós dois vínhamos discutindo uma possível sociedade para o festival, tanto com Alan Livingston, que foi quem levou Artie para a Capitol Records, quanto com Larry Uttall, presidente da Bell Records. Dois dias depois da nossa reunião na Challenge, Larry ligou para Artie para dizer que queria se encontrar para discutir o envolvimento da Bell no festival. Ficamos eletrizados com a notícia, e Artie contatou John e Joel para contar a eles o que estava rolando. “Já está tudo certo para o festival”, disse ele, “mas ainda queríamos levar adiante o estúdio.” John e Joel ficaram amargamente desapontados – só pela nossa breve menção –, pois tinham sido contagiados por aquela ideia toda. Acredito que eles estivessem vendo o festival como uma possibilidade de investimento de algo
incomum, porém lucrativa, e que poderia ser divertida. “Sempre que achamos um projeto de que gostamos, vem uma grande corporação e o toma de nós”, Joel disse a Artie. Artie e eu debatemos a questão e decidimos voltar atrás e nos encontrar com eles de novo antes de tomar uma decisão final. Ambos gostávamos deles, e a ideia de trabalhar com dois caras da nossa idade nos agradava. Se eles concordassem com os dois projetos, consideraríamos fechar com eles. Como ainda estávamos nos estágios iniciais do planejamento, eu ainda não tinha somado os números finais para um festival. Extrapolando o orçamento de Miami, cheguei a um custo total de US$ 500 mil. Esbocei um plano rudimentar que pedia um investimento de US$ 250 mil em dinheiro. O balanço viria das vendas de ingresso antecipadas. Calculei US$ 100 mil para os depósitos dos artistas e US$ 150 mil para a equipe pré-evento, o departamento jurídico, o escritório, o aluguel da propriedade, a preparação do local e a produção. Esperava alugar a fazenda Winston por US$ 5 mil, mas isso ainda estava no ar. A título de simulação, calculamos um público de 100 mil pessoas num festival de dois dias, com ingressos entre US$ 5 e US$ 6 por dia. Poderíamos realizar nosso sonho e ter lucro. (É claro que tudo isso mudaria à medida que o conceito evoluía e o festival passou para três dias, com um público estimado de 200 mil pessoas por dia). Depois de mais algumas reuniões, John concordou em financiar o festival e o estúdio. Nós nos tornaríamos sócios e, como os projetos eram baseados em Woodstock, decidimos chamar nossa companhia de Woodstock Ventures. O contrato foi redigido e começava da seguinte forma: Pelo presente acordo, Rosenman e Roberts são os únicos acionistas, oficiais e diretores da Challenge, a qual está no ramo de investir fundos em novos empreendimentos. Pelo presente acordo, Lang apresentou a Rosenman e Roberts dois empreendimentos, um solicitando o estabelecimento de um festival de música em Saugerties, no estado de Nova Iorque, e o outro solicitando a criação de um estúdio de som em Woodstock, no estado de Nova Iorque. O contrato solicitava um investimento de US$ 200 mil, mais uma taxa de contingência de 10% para a produção do festival, e US$ 275 mil mais 10% para a criação do estúdio. A companhia emitiria duzentas ações. Como o dinheiro era dele, John receberia sessenta ações; Joel, quarenta; e Artie e eu receberíamos cinquenta cada. Eu deveria providenciar uma apólice de seguro de vida para mim mesmo no valor de US$ 500 mil, com a Woodstock Ventures como beneficiária,
e seria de responsabilidade minha obter quaisquer fundos adicionais, caso o valor acordado não fosse suficiente para financiar o festival ou o estúdio. Com base na propriedade da fazenda Winston, que Jim Young e eu tínhamos encontrado, eu tinha de garantir que o festival se localizasse no norte do estado de Nova Iorque. Eu seria pessoalmente responsabilizado por qualquer perda ou despesa da Woodstock Ventures ou da Challenge se o local ou os alvarás não pudessem ser obtidos. Até a realização do festival, eu receberia um salário de US$ 400 por semana. Por estar sob um contrato exclusivo de dois anos com a Capitol, Artie não pôde assinar o acordo de sociedade, mas concordamos em segurar a parte dele até que ele estivesse legalmente autorizado a participar. O contrato foi assinado em 28 de fevereiro de 1969. Joel tinha receio de que John não precisasse mais dele como sócio, já que Artie e eu tínhamos funções claramente definidas e o know-how para organizar o festival. JOEL ROSENMAN: Lembro-me de dizer: “Você está no caminho certo, Jock.
Tem um bom projeto e bons parceiros. Você não precisa de mim. Você tem Michael e Artie”. John me chamou de lado e perguntou se eu conseguiria achar uma função para Joel. Fiquei impressionado com a preocupação dele e mais do que contente em ter o envolvimento de Joel. Certamente havia trabalho o bastante a ser feito. Com a papelada assinada, dividimos as responsabilidades. John e Joel lidariam com a parte administrativa e a distribuição de ingressos. Meu trabalho seria o de pôr a mão na massa como produtor do festival, contratar os artistas, projetar e preparar o local e montar a equipe de produção. Minha primeira ideia para o estúdio foi Stan Goldstein. Ocorreu-me que ele também poderia ajudar a colocar em prática os planos para o festival. Nossa prioridade número 1: bater o martelo no local do festival e deixá-lo pronto no espaço de seis meses. Parecia moleza. A largada fora dada.
John Roberts. CORTESIA DE JENNIFER ROBERTS
Chip Monck e eu revisando os mapas do local. © HENRY DILTZ
1. Posteriormente, o grupo passaria a ser chamado de Os Sete de Chicago, uma vez que Bobby Seale, cofundador dos Panteras Negras e um dos acusados, teve seu julgamento desvinculado do caso. (N. do T.) 2. Artista e repertório. (N. do T.)
IV WALLKILL
“É ‘senhorita Lang’ ou ‘senhor Lang’, uma moça ou um rapaz?”, ouço as pessoas zombando enquanto caminho até o púlpito. Entre provocações e assovios, me concentro na tarefa que tenho nas mãos: convencer a população de Wallkill a nos deixar manter nosso festival em seu município e mostrar a ela que não havia com o que se preocupar. A sala de reuniões da prefeitura de Wallkill está lotada, todos em pé. As emoções estão à flor da pele. Donas de casa de meia-idade, comerciantes de cidadezinha e fazendeiros desgastados pelo tempo trocam histórias de horror sobre hippies. Há um medo real de que serão sobrepujados e molestados por hordas de esquisitões cabeludos. O supervisor legislativo da cidade de Wallkill, Jack Schlosser, bate o martelo na mesa, onde está sentado entre seis outros membros do conselho. “Deixem o sr. Lang ter a palavra.” Nessa noite agradável de meados de julho, estou aqui para apresentar nossos planos para o festival, acompanhado pela minha equipe de ases da produção. Embora eu esteja preparado para um pouco de relutância, fico surpreso com a profundidade da preocupação deles. “Vejam bem”, digo a eles, “estamos aqui para trazer para Wallkill algo que será bom para todo mundo. Não somos alienígenas, não somos viciados em drogas e sabemos o que estamos fazendo. Somos profissionais em nossas áreas de atuação.” Eles agem um tanto quanto surpresos com o fato de que sei falar um inglês que eles compreendem, e, a contragosto, começam a perder um pouco da hostilidade.
A sala fica em silêncio enquanto explico nossos planos de uma maneira bem pé no chão. “Teremos música e arte, comida e diversão. Vamos acampar no campo – o tipo de coisa que vocês faziam quando eram crianças. Contratamos os melhores profissionais do ramo para garantir que o evento seja seguro e que haja o mínimo de inconvenientes possíveis para a comunidade. Não seremos mais invasivos do que a Orange County Fair, que vem à cidade todo ano.” Enquanto prossigo com minha fala, a temperatura na sala baixa. A calma está sobrepondo a agitação, e decido que é melhor encerrar enquanto estou na dianteira. Encerro. “Alguma pergunta?” “Sim!”, diz um cara que poderia ser técnico de um time de futebol do ensino médio. “Você falou de uns músicos famosos que vão se apresentar aqui. Mas e quanto às pessoas que virão para cá para ver esses músicos? Que tipo de gente elas são?” “São como seus próprios filhos”, respondo sem titubear. “São amantes da música.” Os membros mais jovens do público aplaudem e até alguns dos engravatados dão risada. Nossa intenção é ficar aqui – custe o que custar – e realizar o festival dentro de dois meses. Estou confiante de que a oposição pode ser superada. * * * Quanto à Woodstock Ventures, durante as primeiras semanas da nossa sociedade, Joel, John, Artie e eu desenvolvemos uma comunhão inquieta. Certa noite, nos reunimos todos no apartamento de Artie. Sentamos no chão, compartilhando um baseado e discutindo nossos planos, e não pude deixar de pensar o quão interessante era essa sociedade – o que eles queriam de nós e o que nós queríamos deles. John e eu entramos numa discussão sobre o “clima”. Eu percebia que ele estava fora de sua zona de conforto, mas o baseado o relaxou um pouco e acabamos dando umas boas risadas. Pareciam intrigados por esse mundo que estávamos apresentando a eles, porém, nossas experiências e abordagens de vida eram completamente distintas. Eu confiava na intuição e no instinto, e eles confiavam em especialistas, pesquisas e ferramentas de marketing – técnicas de negócios comprovadas no mundo deles. Artie era talentoso na composição e na promoção musical e se encaixava num meio termo. Eu sabia que, para Woodstock ser um sucesso, deveria ser algo autêntico de cima a baixo.
Estávamos nos dispondo a criar um novo paradigma para festivais E, ao mesmo tempo, tentávamos unir várias facções da comunidade da contracultura. De modo geral, eu visualizava o festival como uma reunião das tribos, um refúgio para gente com um mesmo pensamento, onde novos estilos de vida experimentais seriam respeitados e acomodados. Sabia que flexibilidade e adaptabilidade seriam fundamentais para criar essa mescla de arte e comércio nunca antes vista. John e Joel eram conservadores demais para transformar a minha ideia em realidade. Como o conceito de Woodstock estava se provando um diagrama em desenvolvimento na minha cabeça, eu achava o trabalho colaborativo difícil. Era capaz de fechar os olhos e ver os componentes do festival, para então fazer malabarismos com eles no ar até que estivessem elaborados a ponto de eu poder atribuir sua execução aos membros da equipe. Exceto por uma tabela organizacional inicial, que desenhei indicando as várias funções e posições a ser preenchidas, nós improvisámos à medida que íamos em frente.
Nosso escritório no celeiro no local do festival em Wallkill. © ALBERT/TIMES-HERALD RECORD
Decidimos chamar a nossa criação de An Aquarian Exposition: The Woodstock Music and Art Fair [em tradução livre, Uma Exposição Aquariana: Feira de Música e Artes de Woodstock]. Esse nome, “Woodstock”, simbolizava o cenário rural e natural que eu imaginava. Sugeri “Exposição Aquariana” para abranger todas as artes, não apenas música, mas artesanato, pintura, escultura, dança, teatro – como uma versão de 1969 dos antigos festivais Maverick. E queria uma referência à Era de Aquário, era de grande harmonia prevista por astrólogos, que coincidiria com o fim do século 20, uma época em que as estrelas e os planetas se alinhariam para propiciar mais compreensão, empatia e confiança ao mundo. Nosso festival seria o lugar para a gente se reunir para celebrar a chegada de uma nova era.
Eu no escritório da produção. © HENRY DILTZ
Houvera tanto conflito ao longo do ano anterior, com confrontos violentos ocorrendo em universidades, em guetos urbanos e em protestos por todo o país. Em Woodstock, concentraríamos nossa energia na paz, deixando de lado a discussão de questões políticas no palco para apenas curtir o ritmo do que fosse possível. Era uma chance de ver se conseguiríamos criar o tipo de mundo pelo qual vínhamos batalhando ao longo da década de 1960: essa seria a nossa declaração política – provar que a paz e a compreensão eram possíveis e criar um testamento ao valor da contracultura.
Seriam três dias de paz & música Para estimar o tamanho do público, começamos a pesquisar os principais centros populacionais do corredor nordeste – Nova Iorque, Nova Jersey, Connecticut, Massachusetts. Ao fazer as contas, percebemos que talvez recebêssemos até 200 mil pessoas. O número parecia quase inconcebível para um show: recordes de público tinham sido quebrados no Shea Stadium, quando os Beatles tocaram lá em 1965 e 1966 para 55 mil pessoas. Em 1967, algo entre 25 mil e 30 mil pessoas estiveram em cada um dos três dias do Monterey Pop, mas ninguém passou a noite no Monterey Fairgrounds, onde o festival aconteceu.
No início de março, contatei um corretor de imóveis para tratar da propriedade da fazenda Winston. Ele conversou com Schaller, o proprietário, e pareceu confiante quanto ao nosso aluguel para um festival de música e artes. Estimou US$ 40 mil para um aluguel de doze semanas – muito mais do que tínhamos orçado – e encaminhou os dados para contato ao advogado de Schaller, em Manhattan. Enquanto isso, se espalhou por Woodstock a notícia de que eu estava pensando em realizar um festival na região. Logo eu receberia um recado do supervisor legislativo da cidade, Bill Ward, e um oficial da vigilância sanitária do condado, que deixaram claro que não queriam que um grande evento a céu aberto ocorresse na cidade de Woodstock. De repente, o corretor de Schaller parou de atender minhas ligações. John e Joel contataram o advogado de Schaller e marcaram uma reunião para a última semana de março. Pelo menos tínhamos o local para o estúdio de gravação. No dia 17 de abril, colocamos US$ 4.500 de depósito para a propriedade dos Tapooz, que negociamos para comprar por US$ 55 mil. Determinamos o escopo do complexo, cuja descrição seria a seguinte num artigo da Billboard: “Um centro de gravação está se estabelecendo [em Woodstock] pela Woodstock Ventures, que acabou de comprar um sítio de 12 hectares perto da Woodstock Music and Art Fair – um complexo com um estúdio de 16 pistas e um hotel... Joel Rosenman disse que o Woodstock Sound Studios propiciará aos produtores e artistas criarem numa atmosfera agradável, onde será fácil garantir um tempo adequado de gravação. O estúdio fornecerá alojamento, estúdio de ensaio, uma cozinha 24 horas e dependências recreativas, incluindo uma piscina e uma quadra de tênis. Stan Goldstein, que já foi do Criteria Studio, em Miami, está servindo de consultor para a construção do estúdio e será engenheiro de som lá”. Embora o local do festival ainda não estivesse definido, escolhemos o fim de semana de 15 de agosto como a data que ele seria realizado. Eu precisava colocar as coisas para andar e contratar as bandas, antes que elas fechassem as datas em outros lugares. Dos shows que promovi e organizei em Miami, aprendi muita coisa sobre palco, o que funcionava e o que não funcionava para o público. No Miami Pop, fizemos experimentos com diferentes tipos de música – blues, rock and roll clássico, acid rock, pop, folk – e percebi que o público curtiu todos eles. A garotada da contracultura não fechava seus gostos musicais num nicho. Então decidi pensar num grupo eclético de artistas e bolei uma lista de desejos que ia de Jimi Hendrix a Johnny Cash. Comecei a passar um tempo novamente com Hector Morales, na William Morris. Quando ele me ajudou com o festival de Miami, nos tornamos bons
amigos. Ele me deixava ficar no escritório de manhã até a noite, aprendendo a contratar artistas. A assistência de Hector teria um valor inestimável ao longo de todo o projeto. Logo me dei conta de que, para dar credibilidade ao nosso show, eu tinha de fechar contrato imediatamente com alguns dos artistas maiores oferecendo-lhes um cachê que garantiria sua participação. Por exemplo, se um artista andava recebendo US$ 7.500, eu ofereceria US$ 10 mil. Uma vez que dois ou três nomes grandes estivessem contratados, eu seria levado a sério pelos agentes e empresários dos artistas, e os cachês se tornariam mais razoáveis. Jefferson Airplane, Creedence Clearwater Revival e Canned Heat foram as primeiras bandas a aceitar. Conseguimos o Airplane e o Creedence por US$ 10 mil cada. O Canned Heat tinha conseguido dois grandes sucessos depois do show em Monterey, “On the Road Again” e “Going Up the Country”, então o cachê deles foi de US$ 12.500. Fechei com Crosby, Stills & Nash antes do álbum de estreia deles sair. O empresário deles, David Geffen, veio até o escritório de Hector certo dia, tendo em mãos uma prensagem-teste do disco, que eles tinham acabado de gravar. “Esperem só até ouvir isto aqui!”, bradou. Fomos nocauteados. O Buffalo Springfield e os Byrds eram dois dos meus grupos favoritos de todos os tempos, e o CSN levava a música deles a um outro nível. As harmonias vocais eram fantásticas em “Helplessly Hoping” e “Suite: Judy Blue Eyes”. E adorei a interligação entre guitarra e órgão em “Wooden Ships”, que mais tarde descobri ter sido inspirada pelas aventuras de Crosby no Grove. Eu sabia que “Marrakesh Express” seria um sucesso. Geffen estava à procura do lugar certo para dar início à primeira turnê da banda, e todos concordamos que esse lugar era Woodstock. Fechei com eles no ato, pagando os US$ 10 mil que ele pediu. Fechamos muitos contratos interessantes dessa forma – novos artistas, como Joe Cocker e Mountain, a serem apresentados aos nossos camaradas em Woodstock. Lá pelo final de março, o burburinho sobre o festival já começava a se espalhar. Certa noite, Garland Jeffreys e eu fomos a uma apresentação de Van Morrison em Nova Iorque, no Scene, um clube muito legal cujo dono era o empresário de Johnny Winter, Steve Paul. Batemos um papo sobre o festival com Steve e outros, e, no dia seguinte, recebi um telefonema de alguém em Los Angeles dizendo que gostaria que sua banda tocasse. Artie começou a ligar para seus amigos das rádios e conseguiu que eles mencionassem Woodstock na programação. Minha filosofia para todos os aspectos da equipe do festival era conseguir as
melhores pessoas disponíveis para ela. Procurei aqueles com mais expertise em seus respectivos ramos e, sempre que possível, gente que compreendesse o que estávamos tentando fazer. Quando contatei Stan Goldstein em Miami, para ver se ele estaria disponível, soube que ele deixara o Criteria e calhava de estar em Nova Iorque. Estava trabalhando como engenheiro de som (sua primeira paixão) no Hit Factory, mas estava prestes a partir para trabalhar em Los Angeles. Encontrei-me com ele em Nova Iorque e o contratei por um salário de US$ 500 por semana, US$ 100 a mais do que eu estava ganhando. STAN GOLDSTEIN:
Michael me ofereceu a oportunidade de comandar os preparativos físicos para o festival. Eu disse a ele que não estava muito interessado em fazer um festival. Meu interesse era seguir uma carreira na área de gravação. Michael revelou que um estúdio estava sendo construído, simultaneamente ao desenvolvimento do festival, na propriedade dos Tapooz. Por fim, chegamos a um acordo em que eu o ajudaria a projetar e contratar pessoal para o festival, e assim que os postos principais estivessem ocupados e o projeto completo, eu seria liberado e começaria a construir o estúdio em associação com o engenheiro de som chefe do Media Sound, que era o estúdio de John e Joel. Seríamos cochefes nesse novo estúdio que surgiria. Pouco tempo depois da minha entrada, decidiram que seria um evento de três dias, e foi estabelecido o roteiro para cada um desses três dias. O show da sextafeira começaria no fim do dia – música suave, sem headliners muito grandes, de forma que pudéssemos organizar as chegadas, com algumas pessoas chegando no fim da tarde de sexta-feira, depois do trabalho. No sábado e no domingo, teríamos os headliners. O slogan “Três Dias de Paz e Música” foi escolhido, e Michael teve a ideia de termos um violão e uma pomba como logo – o que depois se desenvolveu num pôster brilhante de Arnold Skolnick. Ao contrário da localização encerrada do hipódromo Gulfstream, para esse festival nós precisávamos construir uma cidade, um lugar de onde as pessoas não fossem embora no fim do dia, onde quisessem passar a noite acampando e ter uma experiência mais longa. Stan e eu começamos imediatamente pesquisar a logística para acomodar 200 mil pessoas que passariam três dias no local. Como não havia precedentes para o que estávamos planejando – exceto pelo exército –, começamos a desenvolver estratégias para determinar o que precisaríamos no local e o quanto custaria. Por exemplo, para estimar de quantos banheiros
químicos precisaríamos, cronometrávamos as pessoas entrando e saindo do banheiro em lugares públicos.
Artie Kornfeld. © HENRY DILTZ
STAN GOLDSTEIN:
Eu chegava cedo ao Yankee Stadium, ia até um dos banheiros e contava as cabines. Eu tinha um relógio e uma prancheta e contava quantas pessoas passavam pelas portas em que período de tempo. Então eu dividia esse número pelo número de assentos disponíveis para determinar quantas pessoas usariam quantas privadas durante tal período de tempo. Pensamos que o exército dos EUA teria informações sobre como montar “cidades” temporárias para o posicionamento de tropas no exterior ou em locais remotos. Stan tentou arranjar meios de ir até o Pentágono, mas suas visitas foram
canceladas. O exército não estava disposto a divulgar informações sobre saneamento em campo. Quando John e Joel se encontraram com o advogado de Schaller no final de março, a reunião não foi bem. Foram informados de que, no fim das contas, Schaller tinha decidido não alugar a propriedade para nós de forma alguma. Começamos a ficar preocupados. Tínhamos agendado os artistas, estávamos contratando a equipe e não tínhamos um lugar para o festival. Começamos a procurar em áreas um pouco mais distantes de Woodstock, observando propriedades de helicóptero e dirigindo para conferir possíveis locais. Ainda havia neve no chão, então uma exploração precisa dos locais em potencial significava muita caminhada. Foi numa dessas andanças que conheci Tom Rounds, Tom Driscoll e Mel Lawrence, da Arena Associates, localizada em L.A. Aproveitando-se da base que deixei, tinham produzido o segundo Miami Pop Festival no hipódromo Gulfstream, em dezembro de 1968, depois que me mudei para Woodstock. Ouvi elogios de Stan ao festival, que tinha gravado algumas das atrações. Convidei-os para conhecer e discutir a nossa Exposição Aquariana. Rounds vinha do rádio, Driscoll controlava um império de morangos na Califórnia e Mel era o cara das operações. Sem experiência em liderar operações grandes, eu estava considerando contratar um produtor executivo, alguém hábil na produção e também em conduzir um negócio com centenas de empregados. A Arena Associates queria US$ 50 mil para cada sócio, mais uma porcentagem da bilheteria, para a produção física. Era dinheiro demais. “Obrigado por terem vindo”, disse a eles, “mas acho que farei sozinho.”
Mel Lawrence e Dale, da equipe de arte. © RONNA ELLIOT
Porém, durante nossas reuniões e pesquisas de campo, Mel e eu rapidamente nos entendemos. Ele era um cara muito prático e mão na massa, e compreendia o que eu estava tentando fazer. Eu precisava de alguém para ser administrador do local, e ele parecia ter o conjunto de habilidades necessário e o mesmo tipo de visão que eu. Enquanto os três estavam saindo, pedi a Mel que ficasse. Ele concordou em se juntar à minha equipe por um pagamento fechado de US$ 8 mil. MEL LAWRENCE: Eu estava viciado em ser um general e disse: “Quero fazer isso”. Eu gostei do Michael. Ele tinha um ar confiante, e fazia você se sentir confiante. Essa qualidade lhe fazia ter fé nele. Mel entrara para o ramo dos shows por meio do rádio e estivera envolvido em alguns grandes eventos no Havaí. Trabalhou no primeiro festival pop do país, o Magic Mountain Festival, no norte da Califórnia, e cuidou do palco, das barreiras de segurança e das operações de tráfego no Monterey Pop na semana seguinte. Como nosso administrador local, ele poderia auxiliar em todas essas áreas e muito mais.
MEL LAWRENCE: Nossa primeira reunião de planejamento para Woodstock
aconteceu numa lanchonete na 6th Avenue. Michael, Stan e eu começamos um dos meus esboços patenteados, que podem chegar a quinze ou vinte páginas. Nós meio que desenhamos o festival em guardanapos. No último domingo de março, John e Joel dirigiram ao norte do estado para dar uma procurada, cada vez mais desesperados em busca de um lugar. Ao voltarem para a cidade, no Porsche de John, viram uma placa na Rota 17 que dizia: PARQUE INDUSTRIAL MILLS, ALUGA-SE. Eram 80 hectares no município de Wallkill, no condado de Orange, a cerca de 1 hora e meia de viagem de Nova Iorque. O preço para um aluguel de quatro meses era de US$ 100 mil, sujeito à aprovação do conselho de zoneamento. Joel e John pagaram US$ 1.500 como depósito para uma garantia de duas vias e trinta dias no terreno. Apresentaramse ao conselho de zoneamento de Wallkill no dia 18 de abril e disseram que realizaríamos um festival de artes no Parque Industrial Mills com um possível público de 40 a 50 mil pessoas ao longo de dois dias. Eles amenizaram o componente rock and roll, talvez até demais, e prometeram subscrever um seguro de responsabilidade civil para o evento. Os membros do conselho de zoneamento de Wallkill pareceram um pouco duvidosos, mas disseram a eles que não tinham objeções aos nossos planos. Quando fui conferir o Parque Industrial Mills, minha primeira reação foi de horror. A propriedade terraplanada parecia ter passado por um terremoto. Urubus voavam em torno dali. Era o mais distante possível do que eu estava procurando. Eu imaginara chegar num cenário pastoral e vasto de beleza e calma, capaz de trazer conforto e paz. O lugar era feio, frio, duro e sujo, e eu sentia como se alguém tivesse tirado o que quisesse daquela terra e deixado os detritos.
O artista Tom Edmunston (de chapéu) e Mel Lawrence. © RONNA ELLIOT
John, não sem motivo, estava ficando ansioso, e depois de conversar com Mills e mostrar o local a Mel, fui persuadido de que conseguiríamos transformálo numa paisagem aceitável. Nunca seria um lugar idílico, mas tinha eletricidade, água e acesso pelas estradas principais. O nome do nosso festival continuaria a ser Woodstock, não importava onde ele acontecesse. Daquilo eu não abriria mão. O nome Woodstock acabara por representar o coração daquilo que eu esperava realizar. Rapidamente começamos a formar a equipe. A maior parte do pessoal técnico chegou por meio da organização Fillmore, de Bill Graham. O melhor diretor de iluminação do rock and roll, Chip Monck, trabalhou em Monterey e no
Miami Pop Festival, do Mel Lawrence. Começou sua carreira no Village Gate, foi o responsável pela iluminação dos festivais de Newport desde o início, em 1959, e fez o projeto de iluminação do Fillmore East. Ele me ligou a respeito do nosso festival ao ficar sabendo dele por Hector Morales.
O engenheiro de som Bill Hanley e o agente de artistas John Morris. © HENRY DILTZ
CHIP MONCK: Fui me encontrar com Hector Morales e ele disse: “Ei, esse
garoto de cabelo cacheado veio aqui e está fechando contrato com todos os artistas do mundo”. Eu não estava trabalhando no momento e achei que aquilo soava como algo bem grande! Então liguei para Michael e disse: “Caramba, vamos tomar um café e trocar umas ideias”. Contatei Annie Weldon, que na época era casada com John Morris, e disse: “Posso levar esse garoto para apresentá-lo a você e a John? Vocês poderiam encarecidamente nos receber para que a gente coloque as coisas para andar?”. Então nos reunimos na casa deles, na 13th Street com a 6th Avenue. “Hector me explicou o que você está organizando”, eu disse a Michael, “e eu quero muito saber mais a respeito e se podemos ajudar de alguma forma.”
Michael expôs sua visão, sem revelar demais, só o necessário. Cabia a nós entrar em sintonia e concordar. É assim que funciona com um promoter ou um empreendedor habilidoso. Você recebe ordens. Michael foi sutil, e quando se via num buraco ou sem saída, recorria a seu famoso balbuciar. Ele estimava receber talvez 250 mil pessoas. A minha expectativa era de algo entre 150 e 200 mil. Seria enorme, com todos aqueles artistas, e tinha de ser feito da maneira correta. Sempre que alguém se encontrava com Michael e percebia o que ele estava fazendo e o que seria realizado, imediatamente se dispunha a participar. Chip entrou no barco por um salário de US$ 7 mil. Um cara charmoso e sereno, tinha uma boa compreensão do que estávamos tentando concretizar. John Morris, amigo de Chip, meio que conseguiu um trabalho só na conversa. Tinha sido o braço direito de Bill Graham no Fillmore e conhecia inúmeros artistas e seus empresários. Contratei-o para ser o intermediário entre os artistas – ele ajudaria com algumas das contratações – e depois trabalharia com os agentes e os empresários, para cumprir as listas com os requisitos técnicos de cada artista. Durante o festival, ele serviria de ligação com as atrações do festival. Tanto Chip quanto John recomendaram Chris Langhart como diretor técnico. Considerado um gênio por todo mundo que trabalhou com ele, Chris lecionava design cênico na NYU e tinha desenvolvido as plantas de encanamento e engenharia do Fillmore East. Ele faria a mesma coisa para nós. CHRIS LANGHART: Chegamos à negociação dos salários, e Michael [era] bem
safo. Depois de muita discussão, enfim chegamos a um número mínimo e um máximo. Ele anunciou que decidiria na cara ou coroa, e, a meu ver, havia uma distância bem grande entre o mínimo e o máximo. “Não vamos fazer esse jogo de cara ou coroa, porque tenho um aluno que consegue lançar a moeda e tirar o mesmo resultado doze vezes de treze”, disse eu. Então ele deu aquele sorriso largo do Gato de Cheshire, e decidimos um [único] valor, e daí em diante fomos bem diretos. Contratei Bill Hanley para construir nosso sistema de som. Digo construir, porque até então não existia um sistema que pudesse fornecer som para um público do tamanho que nós esperávamos. Originalmente eu havia cogitado Owsley Stanley para esse trabalho, ele tinha desenvolvido o enorme sistema de
som do Grateful Dead e era o engenheiro de som deles (além do principal fabricante de LSD do país). Mas Hanley era o melhor técnico de som no ramo e era disso que eu precisava. Encontrei-me com ele, expliquei o tamanho do projeto e ele pareceu interessado e ávido por aceitar o desafio. “Sei como fazer”, disse. “Posso construir um sistema de som que vai funcionar.” Uma empresa chamada Concert Hall Publications, operada por Bert Cohen e Michael Foreman, na Filadélfia, tinha trabalhado no festival de Mel Lawrence em Miami, principalmente na montagem de palco e na promoção. Artie conhecia Michael, que às vezes escrevia para a imprensa underground. Contratamos os dois para desenvolver nossa campanha de propaganda e para criar o livreto com o programa do festival. Porém eles quiseram fazer mais, e Bert de algum modo convenceu John e Joel a contratá-los para fazer o design do interior dos escritórios da Woodstock Ventures, na West 57th Street. Embora nós quatro tenhamos percebido logo o absurdo, Bert transformou o novo escritório numa cidadela psicodélica extravagante. A ideia era evocar um ambiente como as salas de luz negra da head shop, ou o interior do Electric Circus, e os escritórios consistiam em plataformas dispostas em diferentes alturas e acarpetadas num tom verde-amarelado. Essa tentativa equivocada de parecer antenado passou reto pelo cool e caiu no ridículo. Eu detestei o design, mas havia outras razões para querer um escritório separado. Os departamentos de propaganda, bilheteria e negócios ficariam localizados no norte de Manhattan, e eu precisava trabalhar sem interferências. Devido à natureza do completo desconhecimento de John e Joel desse nosso meio, menos ainda do lado técnico da organização de um show ou de qualquer coisa relacionada à produção, eu não conseguia enxergar uma forma de trazê-los para as especificidades dos meus planos. Não achava que eles entenderiam ou pegariam o jeito. Desde o início, pensei que cada um de nós focaria em seu papel individual. Eu produziria, Artie faria a promoção e eles lidariam com as finanças e a bilheteria. Se eu fosse parar para explicar o meu trabalho a John e Joel, o festival nunca aconteceria. Então abri um escritório separado para a produção na 6th Avenue, no Village. Era ali onde faríamos tudo tomar forma. Stan Goldstein tinha uma habilidade incomum de aparecer com justamente a pessoa mais exata para muitos dos cargos que precisávamos preencher. Uma das mais indispensáveis foi Joyce Mitchell, que se tornou a administradora do escritório de produção, no centro de Manhattan. Uma morena impressionante, de uns 30 e poucos anos, tivera amizade com os beatniks e escritores como Terry Southern e James Baldwin. Foi coordenadora de mídia da campanha presidencial
de Bobby Kennedy e, antes disso, produziu programas de rádio para as Forças Armadas, apresentados por Merv Griffin e Eddy Arnold. Mudou-se para Nova Iorque em 1957, depois de ter se formado na Universidade de Miami e morado em Paris. JOYCE MITCHELL: Encontrei-me com Michael e Stan em algum lugar perto
do Lincoln Center para comermos hambúrguer. Aquele garoto de cabelo cacheado me disse: “O que você faria em relação aos banheiros se tivesse 100 mil pessoas num campo aberto?”. E eu respondi algo do tipo: “Bom, eu teria duas retroescavadeiras, uma para cavar e outra para cobrir a outra trincheira”. E daí ele ou Stanley disse: “Bem, é uma resposta melhor do que a que o Exército dos EUA nos deu. Você está contratada”. “Para quê? Cavar latrinas?”, perguntei. Foi como tudo começou. Não acho que eu tenha saído daquela reunião sabendo no que estava me metendo. Michael de fato me disse que eles queriam dar a maior festa de rock and roll de todos os tempos. A primeira coisa que eles queriam que eu fizesse era montar o escritório de produção. Todos os vários gerentes de produção – Mel Lawrence, Chip Monck, John Morris – estavam discutindo sobre quem ficaria com qual espaço. John queria mais espaço. Mas quem precisava do espaço era Mel e Chip, porque faziam um trabalho amplo de design. Mel criou uma grande maquete tridimensional do local de Wallkill. Eu trabalhava bem ao lado do escritório de Michael. As coisas começaram de maneira bem profissional. Muito esperto, Michael reunia regularmente todos os chefes de departamento. O método dele de gerenciamento funcionava de forma que todos nós entendêssemos por completo o que os demais estavam fazendo – assim, poderíamos alternar funções, se necessário. As habilidades gerenciais de Michael me impressionaram muito. Batemos muita boca, inventamos orçamentos, estávamos realmente improvisando. Michael só disse: “Me arrume o dinheiro”. Por sorte, eu tinha feito uma disciplina de contabilidade na faculdade, por insistência do meu pai, então era capaz de criar orçamentos e manter os relatórios de produção rodando. Era tudo muito rápido e furioso.
Peter Goodrich. © HENRY DILTZ
Por meio de Chris Langhart, encontramos Jim Mitchell, que tinha sido professor de teatro na NYU. Ele se tornou nosso agente de compras e ajudou a tirar um pouco do trabalho das costas de Joyce. Jim abriu contas em várias empresas para obter equipamento e suprimentos. Sua visão estava se deteriorando lentamente, ele não estava tão bem de saúde, mas ainda assim trabalhou duro. Nosso escritório de produção era bem proletário, apenas dois andares num predinho antigo, cheios de mesas e arquivos. Chip pegou toda a mobília da rua, construiu ele próprio alguns móveis e montou o escritório em menos de 48 horas. Contratamos uma recepcionista que era de espírito livre, mas todos os demais estavam ralando ao máximo no trabalho. Era permitido fumar maconha a qualquer momento, e nós nos divertíamos, mas ninguém estava para brincadeira. Não era uma festa. Tínhamos trabalho a ser feito, não muito tempo para fazê-lo e havia um orçamento, mas que fora criado meio que do nada. Não tínhamos dinheiro para desperdiçar. Joyce lidava com a contadora de John e Joel, uma ruiva formidável chamada Renee Levine.
JOHN ROBERTS:
[Renee] se tornou uma parte indispensável da nossa organização. Para a equipe em geral, ela era uma figura maternal. Para Michael e Artie, ela era a barricada que se erguia entre eles e os reembolsos de seus vouchers de gastos bizarros. Para Joel e eu, ela virou uma amiga leal e confiável, a guardiã do talão de cheques, a voz ensurdecedora da sanidade e a judia rabugenta e sagaz, que sempre reconhecia um vagabundo ao vê-lo – e ela viu muitos... Ela peitou advogados, contadores, agentes, estrelas do rock e até policiais armados. Todos eles, assim como nós, tiveram muito mais do que esperavam. Artie trabalhava no escritório de John e Joel, e a relação logo ficou tensa. Artie era expressivo com suas ideias, algumas realistas, outras não. John e Joel estavam focados em ganhar dinheiro, e queriam ver as questões práticas abordadas de forma eficiente. Artie estava começando a ficar chapado demais e às vezes perdia o foco, e os dois estavam ficando irritados com ele. Artie, por sua vez, reclamava que John e Joel eram caretas demais e estavam menosprezando suas contribuições. Eu dizia para ele não se preocupar com isso – “só os mantenha na linha, para que eu não precise lidar com isso”. Eles me ligavam cada vez mais para reclamar que Artie estava sendo irracional, ou chapado, ou simplesmente não estava lá, e eu dizia: “OK, vou falar com ele”. Mas eu não podia ir até lá constantemente para resolver os conflitos deles. Se eu fosse mais velho, talvez tivesse encontrado uma maneira de encurtar a distância que crescia entre eles. Porém, eu não tinha tempo e tampouco acreditava que, dadas as respectivas personalidades, isso poderia ser feito. Estava trabalhando 24 horas por dia e simplesmente não tinha as respostas para essas questões. Como eu estava passando muito tempo em Nova Iorque, aluguei quartos no Chelsea Hotel, onde Mel e eu – e quem mais precisasse de uma cama – dormíamos. Enquanto isso, Stan tinha se mudado para Wallkill em abril para acessar quaisquer problemas existentes antes que montássemos nossa base de operações. STAN GOLDSTEIN: Fui com antecedência para Wallkill, o primeiro a realmente
se mudar para lá. Comecei a me apresentar, e a nós, ao pessoal local. Fui até o jornal, o Times Herald-Record, de Middletown, conheci o editor Al Romm e a redação, e falei de nossos planos a eles. Até esse momento, não havia nenhum anúncio público. Fui me encontrar com Jack Schlosser, o supervisor legislativo do município de Wallkill, para o que na época pareceu uma reunião cordial. Visitei
o prefeito de Middletown, que não foi tão cordial, mas foi OK. E então comecei a tratar com os comerciantes locais. De abril até maio, Stan fez o serviço em Wallkill, abrindo contas discretamente nas prestadoras de serviços públicos e investigando negócios e empreiteiros locais. Contanto que nos mantivéssemos discretos, tudo ficaria tranquilo em Wallkill. Porém, lá pelo final de maio, depois que a notícia chegou aos jornais locais, as forças anti-Woodstock começaram a se coalescer. STAN GOLDSTEIN: Havia rumores incipientes; havia todas essas questões sobre
quais seriam as nossas intenções, e parecia que a melhor maneira de lidar com isso era me dispor para uma reunião na prefeitura [na primeira semana de junho], para responder a essas questões. Preparando-se para se mudar para Wallkill, Mel contratou uma assistente. Entrou em contato com um velho amigo de Bensonhurst, Barry Secunda, que era gerente do Electric Circus, casa noturna no East Village. Barry recomendou sua namorada, Penny Stallings, texana que acabara de mudar para Nova Iorque depois de se formar na Southern Methodist University.
Penny Stallings, a assistente de Mel. © HENRY DILTZ
PENNY STALLINGS:
Eu estava basicamente à toa. Tinha uma formação universitária que não tinha nada a ver comigo. Estava totalmente perdida em Nova Iorque. Eu era uma legítima garota do Texas, com muita maquiagem no rosto e cabelos extraloiros – não muito naturais –, e, no escritório, fui parar bem no meio dos hippies. Com exceção de Mel, que era arrumadinho e um executivo, todo mundo era alternativo e tinha cabelo comprido, e as mulheres não usavam maquiagem. Elas eram muito bonitas, e queria fazer aquilo também, mas não conseguia. A vida no escritório era fabulosa, simplesmente hilariante. Eu estava sempre rindo na maluquice constante, um verdadeiro circo o tempo todo. Stan era como Allen Ginsberg. Era verborrágico e muito inteligente. Os ouvidos de Michael eram dele. Joyce vetava tudo antes de qualquer interação com Michael. Era preciso passar por ela antes, e com bastante frequência ela decidia que não era necessário que se falasse com ele, no fim das contas. Ela era uma pessoa superprotetora, que fazia interferência para com Michael. Estava no grupo da “gente grande”. Tinha uma aparência completamente oposta à minha. Não usava maquiagem e tinha um cabelo crespo incrível, boêmio, estiloso. Era uma mulher muito bonita, e isso se somava ao poder dela.
Eu chamava Chip de “Manners, o Mordomo”, que era um personagem de um comercial de TV da época, porque ele era tão, mas tão britânico sem ser britânico. Era engraçado, lindo e muito descolado. Ele e John Morris eram muito legais e terrivelmente tolerantes comigo, porque eu sabia menos que nada do que estávamos fazendo. Na primeira semana de junho, Mel levou Penny e uma pequena equipe até Wallkill para começar a preparar o local, que necessitava de um trabalho extenso para recuperar a terra do estrago industrial. Na propriedade, descobrimos antigos maquinários agrícolas e falamos sobre como lidar com eles. A ideia de Mel foi criar personagens em cima deles, o que eu achei ótimo. Quando Mel trabalhou no festival, em Miami, contratou Bill Ward, escultor e professor de artes na universidade de lá, para incentivar seus alunos a criar obras de arte no hipódromo Gulfstream. Queríamos algo parecido para o local de Wallkill, e Bill concordou em trazer uma equipe até Nova Iorque. Mel e eu mapeamos tudo. Queríamos que o local levasse as pessoas a se sentirem confortáveis, seguras e próximas da natureza. Baseados no fluxo do público, começamos a situar o posicionamento dos vários elementos: palco, área de camping, banheiros, cozinhas, estandes. Mel deu início ao paisagismo e ao desenvolvimento do local; deixamos a construção do palco, a tubulação e o encanamento por último; eu tinha um pressentimento de que devíamos evitar instalar qualquer coisa permanente, só por desencargo, caso nos deparássemos com problemas imensuráveis ali. Confiante de que Mel e eu estávamos esclarecidos quanto ao plano, deixei-o fazer sua parte, e o mesmo valeu para Chip e os outros chefes de departamento. Assim que soube que eles entendiam exatamente o que eu estava esperando, não tentei dizer a eles como fazer seus trabalhos. Mel e sua equipe ficavam em Wallkill, enquanto eu ia e vinha da cidade, onde Chip, John Morris e Joyce ainda trabalhavam em nosso escritório de produção, no Village. MEL LAWRENCE: Montamos um escritório num grande celeiro vermelho no local com Stan, Penny, o agente de compras Jim Mitchell e alguns outros, e começamos a resolver os problemas de logística. As pessoas começaram a ouvir falar que haveria um festival, apareciam lá e diziam: “Sou carpinteiro, sou jardineiro”. E eu dizia: “OK, está contratado!”. A equipe de Miami chegou no início de junho também e começou a fazer um
brainstorm de ideias. Havia hera venenosa e carvalho por toda a propriedade dos Mills, e a aplicação de herbicida levou muitas horas de trabalho. Hospedamos todo mundo num resort nas Catskills, que Mel se lembrava de ter visitado na infância. PENNY STALLINGS: Todos nós ficamos numa colônia de bangalôs kosher em
Bullville, chamada Rosenberg’s. O Rosenberg’s era parado no tempo, nos anos 1950. Era um lugar onde você comia três refeições e ficava sentado sem fazer nada nos intervalos entre elas, e as pessoas aparentavam isso também – eram muito grandes. A comida consistia em peito bovino bem-passado e batatas, e a única coisa que a gente comia era a torta de maçã, que era divina. Fazíamos as nossas refeições no mesmo horário dos outros hóspedes, e era hilário. Bill Ward veio da Flórida com sua esposa, Jean, que sabia soldar. Aprendi os trabalhos “de macho” com ela, que cresceu entre irmãos homens na Pensilvânia e tinha todas essas habilidades que nenhuma outra mulher que eu conhecia tinha. Bill e Jean dirigiam pela região à procura de equipamento agrícola antigo para fazer arte orgânica a partir da terra. BILL WARD:
Quando chegamos lá, havia toda aquela garotada hippie trabalhando conosco, e alugamos três ou quatro caminhonetes e uma perua para irmos à cidade comprar suprimentos como pás, rastelos e martelos. A princípio, as pessoas ficavam contentes em nos ver, porque gastávamos dinheiro. Mas depois comecei a me meter em encrenca. Percebi que quando eu aparecia numa caminhonete cheia de moleques hippies, eles atraíam atenções negativas. Minha aparência não era lá muito melhor: calça e jaqueta jeans e um boné de beisebol. Como eu era o mais velho ali, fui não oficialmente nomeado o líder no hotel, e os Rosenbergs vieram até mim e disseram: “Você não pode mandar esses garotos usarem camisa e sapatos no jantar?”. Eles ficaram muito felizes em nos ver quando chegamos, porque a temporada ainda não havia começado e estavam ficando com o nosso dinheiro. Mas quando outros hóspedes começaram a chegar, passaram a ser mais exigentes e nos quiseram fora dali. Enquanto isso, em Nova Iorque, eu, atolado em reuniões, precisava de uma assistente. Por meio de um músico amigo de Stan, encontramos Ticia Bernuth (hoje Agri), uma mulher fascinante, mais ou menos da minha idade, que tinha passado os últimos anos viajando pelo mundo.
TICIA BERNUTH AGRI: Quando ouvi falar do cargo, algo se deu sobre o meu
corpo e eu disse: “Tem de ser eu. Me arrume a entrevista!”. Havia voltado para Nova Iorque depois de passar por setenta e dois países e viajar por todo o Oriente Médio. Em 1965, tive esse desejo de explorar e ver o mundo. Morei na Itália e de lá comecei a viajar: Afeganistão, Paquistão, Índia, norte da África, a Europa toda. Tinha um saco de dormir e vivia com US$ 1 por dia. Era tudo muito livre e fácil naquela época. Durante minha entrevista com Michael, ele me perguntou sobre mim e eu comecei a falar sobre estar na Arábia Saudita e dirigir pelo deserto e encontrar árabes com sabres adornados com joias que nos levaram a um palácio. Contei muitas boas histórias como essas a Michael, e foi provavelmente por isso que fui contratada. JOYCE MITCHELL: Fui uma das que entrevistou Ticia. Quando ouvi as histórias
dela sobre o Saara, pensei: “Essa é alguém que vai manter Michael na linha”. Ela era maravilhosa. PENNY STALLINGS: Ticia tinha cabelos ruivos quase até a cintura. Era alta e
magra, com pernas muito longas e uma sainha curta. Era muito bonita. A secretária hippie glamourosa perfeita. TICIA BERNUTH AGRI: Todo mundo era muito amigável, era como se já os conhecesse. Lembro de um dos membros da equipe de Michael, Peter Goodrich, falando de cachorros-quentes. Quilômetros e quilômetros de cachorros-quentes. Ele dizia que precisávamos de uma quantidade de cachorros-quentes que, se enfileirada, atravessasse os Estados Unidos. No dia em que Ticia começou, eu estava entrevistando candidatos para o que era provavelmente o trabalho mais importante da nossa equipe, o de chefe de segurança. Ela ficou na sala enquanto eu conversava com um ex-delegado da Flórida, que falava de arame farpado e cães de ataque. Ticia e eu trocamos um olhar que dizia: “Sem chance”. Foi bacana ver que estávamos em sintonia. Depois que o homem saiu, eu disse a Ticia: “Tem um outro cara da segurança vindo amanhã de Washington, Wes Pomeroy. Por que você não vai buscá-lo no aeroporto?”. No momento em que a conheci, pude perceber que Ticia não se intimidaria em se encontrar e conversar com ninguém. Eu precisava dessa habilidade, porque estava lidando com um mundo que ia além das minhas próprias experiências e viagens. Para interagir com todo o tipo de gente, ela
precisava estar confortável em sua própria pele, ser esperta o bastante para lidar com o que quer que aparecesse e ser tratável com todo mundo, de políticos a astros do rock e engenheiros sanitaristas. Pensei: “Vamos ver como ela se sai com Wes. Vamos ver se a minha leitura dela está correta”. Ela lidou muito bem com a situação e eu soube que seria uma ótima assistente pessoal para mim. Wes Pomeroy nos foi recomendado pela Associação dos Chefes de Polícia, e foi descrito como “não um típico oficial de polícia”. Nunca havia sido chefe de polícia, mas era bem conhecido no ramo. Durante o governo de Lyndon B. Johnson, serviu como diretor da agência de administração de assistência à polícia, respondendo diretamente ao procurador-geral Ramsey Clark. Quando Nixon foi eleito e substituiu Clark por John Mitchell, Wes foi solicitado para ficar. Mas Mitchell e o governo Nixon mudaram o papel da agência, de um departamento que ensinava à polícia e aos administradores públicos a lidar pacificamente com agitações civis, para ser essencialmente um fornecedor de armas (espingardas, gás lacrimogêneo, cassetetes) para os departamentos de polícia locais. Wes serviu como representante da Secretaria de Justiça, em Chicago, durante a Convenção Democrática Nacional de 1968, onde tentou em vão negociar com o prefeito, Richard J. Daley, para evitar os tumultos. Ele acabara de se demitir do governo Nixon para abrir uma firma de consultoria em segurança. Suas credenciais com Nixon, pensei, nos dariam credibilidade junto ao estado e à polícia local. TICIA BERNUTH AGRI: Michael entrevistou Wes e eles tiveram uma empatia
imediata. Wes não queria saber de outra coisa que não paz e amor. Tínhamos passado por tempos difíceis no país e Wes estava tentando curar a visão negativa que os hippies tinham da polícia.
Minha assistente, Ticia Bernuth. © HENRY DILTZ
Perguntei a Wes como ele lidaria com a possibilidade de pessoas chegarem a Woodstock com a intenção de entrar sem pagar. Eu sabia que a abordagem tradicional da polícia, de confronto e força bruta, só traria angústia e más vibrações (e mais tarde, naquele verão, eu veria minha teoria se provar verdadeira em festivais de música pop em Newport, Atlanta e Denver). Outros candidatos que eu havia entrevistado para o cargo tinham sugerido de tudo, de corredores duplos de arame farpado, com cachorros perambulando entre eles, a guardas armados a cada 15 metros, com muros como os do presídio de Attica. Wes, por
outro lado, perguntou o que eu pensava sobre essa questão. Um bom sinal. Eu disse a ele que Woodstock seria aberto a todos. Para quem não tivesse dinheiro para comprar um ingresso, haveria um palco gratuito, bem como um sistema de som que permitiria ouvir as bandas do palco principal. Haveria camping e cozinhas gratuitos. Teríamos cercas e portões para a área principal dos shows, mas eu acreditava que se oferecêssemos entradas a um preço justo por tudo o que o festival oferecia, a maioria das pessoas respeitaria os portões e compraria um ingresso. Wes pensava que essa era não só a coisa mais inteligente a se fazer, mas também a coisa certa. Ambos sabíamos que, na verdade, não havia como policiar e controlar uma multidão do tamanho da que estávamos esperando. O que se deveria fazer, então, era propiciar o clima certo e criar a atmosfera certa, e o público se encarregaria do resto. Também discutimos sobre as drogas: “Se estiverem fumando maconha”, disse Wes, “deixaremos. Nunca vi maconha tornar ninguém hostil”. Se houvesse drogas pesadas sendo vendidas, decidimos que tentaríamos chegar até os traficantes e entregá-los às autoridades. Concordamos que a segurança dentro do terreno do festival caberia a nós. Wes tinha influência para convencer a polícia local disso. Ele era uma pessoa esclarecida em meio ao mundo policial mal esclarecido. Sem se preocupar com estereótipos e retórica, Wes abordava seu trabalho com sabedoria e uma percepção do comportamento humano. Depois de ter sido incomodado incessantemente por policiais em Miami, fiquei muito aliviado em encontrar alguém cuja ideia de policiamento era ajudar, não importunar. Wes parecia menos preocupado em ter preconceitos e mais com ser prudente. Isso era fundamental para mim, mais do que ele concordar com as nossas visões políticas. Eu sabia que tínhamos encontrado o homem para o trabalho. WES POMEROY: Gostei do que vi. Eram caras muito interessantes e idealistas.
Inteligentes. Tinham muitas grandes ideias que não os assustavam. Pensavam que poderiam fazer algo grande, e eu pensei: “É, talvez eles possam”. Não se vê gente assim com muita frequência. Eles tinham muito dinheiro, e estavam dispostos a investir naquilo, e Michael parecia ser alguém que todos eles respeitavam. Fiquei muito confortável no meu posto, e eles ficaram confortáveis em relação a quem eu era, e foi algo muito estimulante de fazer.
Wes recomendou que contratássemos Don Ganoung, que tinha sido padre episcopal e colega dele na agência da polícia. Don cuidaria das relações comunitárias e se tornaria o aliado de Stan para lidar com a população cada vez mais hostil de Wallkill. Era um cara muito amigável e despreocupado. Tinha 30 e poucos anos e se portava com graça e bom humor. Na primeira semana de junho, Stan e Don foram juntos a uma reunião do conselho municipal de Wallkill, para responder a perguntas e tentar apaziguar as preocupações quanto ao festival (isso abriria caminho para a reunião à qual eu compareceria duas semanas depois). STAN GOLDSTEIN:
A oposição se uniu muito, muito rapidamente, e fui bastante malhado. Fui informado de que tínhamos alvará, quando na verdade não tínhamos. Simplesmente houve uma determinação não vinculativa de que nós não precisávamos de um. Descobri ainda que John e Joel tinham desvirtuado o festival ao apresentá-lo à cidade: não haveria música alta, o público seria de no máximo 50 mil pessoas, e seria um festival simpático e tranquilo de country e folk, sem muito barulho e tumulto. Não houve discussão sobre o camping. Ficou imediatamente claro para mim que estávamos rumando para um problemão. Reportei à Woodstock Ventures: “Temos um problema real em potencial aqui. Não temos alvará. Não temos autoridade para prosseguir, e a coisa vai ficar feia, e como assim vocês não têm um advogado?”. Para ajudar a lidar com a crise que se formava, contratamos um advogado local, Sam Eager. Como tínhamos um contrato de aluguel assinado com Howard Mills e o conselho de zoneamento tinha dado sinal verde a John e Joel em abril, pensamos que estivéssemos legalmente liberados para prosseguir. Não nos demos conta de que, em lugares como Wallkill, novos decretos poderiam se materializar à vontade, e nossos direitos, assim como a garantia de que tínhamos do local, eram muito mais tênues do que pensávamos. Enquanto isso, Don Ganoung se deparou com problemas no lugar onde tinha escolhido para morar. Ele alugara um quarto em cima do bordel local (que se disfarçava de bar), onde se encontrava com a filha do prefeito de Middletown. A policial fez uma batida antidrogas no lugar e encontrou Don no quarto com a filha do prefeito. Isso colocou ainda mais tensão nas nossas relações com o município de Wallkill, onde as coisas iam de mal a pior. Era semelhante demais à minha experiência em Miami.
A linha telefônica do nosso escritório local estava sendo bombardeada com ameaças de morte por parte de moradores que odiavam hippies, e uma noite alguém disparou tiros de espingarda contra as paredes do celeiro. Mills e sua esposa eram aterrorizados por ameaças telefônicas de que sua casa seria incendiada se não cancelassem o festival. Com a manchete FACÇÃO DE WALLKILL CINGE PARA BLOQUEAR FESTIVAL DE MÚSICA FOLK, o jornal de Middletown reportou que havia sido formado um comitê de cidadãos preocupados para nos impedir de prosseguir. O procurador da cidade de Wallkill nos enviou uma carta oficial, exigindo que submetêssemos à revisão da comissão uma série extensa de documentos que detalhassem todos os aspectos do festival, da segurança ao tratamento de água e esgoto, e até ao estacionamento e trânsito, a maior parte dos quais ainda estava no ar. As minhas experiências em Miami tinham me ensinado a lidar com gente conservadora e autoridades de cidade pequena. Foi um bom treinamento para o que estava por vir em Wallkill. Tendo passado um tempo nas Catskills com minha família na década anterior, eu tinha uma noção do que estávamos enfrentando. Mas achei que seríamos capazes de superar os preconceitos contra nós e a contracultura que representávamos. Sempre senti que um meio-termo poderia ser encontrado entre todas as pessoas. Quando chegou a hora de comparecer à reunião do conselho municipal de Wallkill, com o núcleo da minha equipe de produção, em junho, pensei que ao nos ouvir e nos ver cara a cara, os moradores da cidade passariam a compreender nosso ponto de vista. Eu nunca tive problemas em me comunicar com as pessoas. Custasse o que custasse, eu conseguia ser acessível à maioria delas. Não prejudicava também o fato de que todos na minha equipe de especialistas eram bons oradores. Naquela noite de junho, depois da reunião na prefeitura, estávamos ao mesmo tempo eufóricos e preocupados. Achei que tínhamos sido convincentes, mas sabíamos que tínhamos um longo caminho adiante, se quiséssemos ficar em Wallkill.
Sunny Schneer, publicitária da Wartoke, e Billy Soza, um dos artistas nativoamericanos convidados a Woodstock por John Morris. © HENRY DILTZ
Lee Mackler Blumer, assistente de Wes Pomeroy. © HENRY DILTZ
V CIDADE DE NOVA IORQUE
“Vou tomar os seus artistas! VOCÊ ESTÁ FORA DESSE NEGÓCIO!” Estou sentado à mesa diante de um dos mais poderosos promoters da indústria musical – o cara que inventou isso tudo. Bill Graham está me encarando furioso e falando muito alto. “Vou comprá-los pagando mais do que você”, promete ele. Parece ter 2,50 metros de altura. O arenque curado que ele está comendo é a única coisa que o coloca no meu foco. Alguns dias antes, ele ligou para John Morris e começou a ameaçá-lo. John tinha trabalhado para Graham no Fillmore e ficou totalmente intimidado. Com os nervos à flor da pele, entrou de supetão no meu escritório: “Já era! Bill vai puxar o nosso tapete!”. “Que Bill? Que tapete? Não tem tapete nenhum aqui”, eu disse a John. “Calma.” “Você não está entendendo!”, diz ele. “É o Graham, ele tem o poder e pode fazer isso! Ele pode acabar com a gente!” Percebo que John acredita com firmeza que estamos completamente fodidos. “Ligue de volta para ele e marque uma reunião. Vou cuidar disso. Confie em mim, John. Não se preocupe.” É começo de junho e sei que meus artistas estão firmes, os contratos estão assinados, os depósitos foram feitos e o festival está sendo falado por todo o país. Pela primeira vez na história, estamos criando um evento nacional. Graham é importante, é o promoter de rock mais influente do país, mas não é Deus, digo a mim mesmo. Também sei que
Graham geralmente tenta conseguir negócios exclusivos para eventos dentro de um raio de 80 quilômetros do Fillmore East. Nosso festival está a quase o dobro dessa distância da cidade. No mundo de Bill, ele me tem numa desvantagem enorme. Preciso trazê-lo para o meu mundo. Então John e eu nos encontramos com Bill no Ratner’s, o restaurante judaico vizinho ao Fillmore, na 2nd Avenue. “Esse é o meu negócio!” Graham desce o punho na mesa frágil. “Como você tem coragem de tentar ferrar comigo, garoto?” Dou um suspiro silencioso de alívio. Vejo que há um problema real aqui, não é só uma coisa irracional, motivada pelo ego. Com isso consigo lidar, penso. Me vem à mente um incidente lá atrás em Bensonhurst: alguns dos valentões da vizinhança, que dominavam o pátio da escola, provocando meu primo, que era meio nerd. Sempre sobrava para mim, e eu tinha que resgatá-lo deles sem eu mesmo apanhar. Era questão de ganhar respeito ao não demonstrar medo, e ser capaz de alterar a dinâmica por meio de um discernimento empático do que está motivando as coisas. “Primeiro de tudo: nós vamos fazer esse festival. Ninguém vai nos parar, nem mesmo você”, digo a Bill, olhando-o nos olhos. “Qual é o seu problema com a gente? Não estamos competindo com você. Estamos a 150 quilômetros de distância.” “Você fechou com quase todas as minhas atrações da primavera inteira”, diz ele. “O público não vai pagar ingressos para ver esses artistas individualmente no Fillmore se puderem esperar e vê-los todos de uma vez em Woodstock”, explicou, numa voz discretamente mais calma. A solução me vem num estalo. “OK, já sei”, digo. “Eu não fazia ideia de que afetaríamos sua bilheteria. Acho que temos um jeito de fazer isso funcionar para nós dois. Estou planejando anunciar artistas até a última semana antes do festival”, explico a ele. “Me mande sua agenda de agora até agosto e eu só anuncio os artistas que tocarem no Fillmore depois deles terem tocado lá.” Há silêncio por alguns momentos e percebo que ele está trocando de marcha e se familiarizando com essa nova situação. Ele pode não gostar da ideia de que nós existimos, mas na verdade não tem argumentos para continuar nos atacando. “OK”, diz ele. “Isso funciona.” Graham anuncia a maioria de seus shows e adora apresentar os artistas, então o convido para ser mestre de cerimônias de um dos dias do festival. Percebo que ele fica lisonjeado, porém recusa. Diz que vai até lá, mas não vai anunciar, e conclui: “Você é o produtor, é o seu show. Não podemos ambos ser Deus no mesmo dia”. * * *
Na terceira semana de maio, as coisas já estavam num ritmo frenético em Nova Iorque; o escritório estava agitado e se expandindo rapidamente. Eu tinha contratado mais pessoal, inclusive Peter Goodrich, um velho amigo de Miami. Um bom contador de histórias e versado nas ruas, Peter era uma figurinha carimbada no Grove. Desses caras que sabe um pouco de tudo e muito sobre arte, tinha 41 anos e era especializado em arte pré-colombiana e em Colombian gold1. Depois descobri que ele e Joyce Mitchell se conheciam de Miami, nos anos 1950. Ele parecia conhecer todo mundo que era descolado, de Miami a L.A. Eu precisava de um confidente como Peter, alguém que conseguisse pensar de pés no chão e em quem eu pudesse confiar por completo. Coloquei-o para comandar as concessões, desde as dos artesãos às da Coca-Cola. Estávamos criando um bazar no bosque para fornecedores de roupas, velas, cerâmica, cachimbos, pinturas e esculturas – toda a sorte de itens contraculturais de lojas como Earthcrafts, Sorcerer’s Apprentice, Fur Balloons e Xanadu. Os vendedores pagariam uma taxa de US$ 300 para alugar um estande, que nós montaríamos, e boutiques da moda, como A Different Drummer e Limbo, se inscreveram. Também construiríamos estandes de concessão em vários pontos do local para comida e bebida. A tarefa mais difícil para Peter foi encontrar uma companhia para cuidar da comida. A princípio, tínhamos achado que isso seria muito fácil, e um grande meio de lucro para nós. No fim das contas, as grandes companhias de venda de comida, como a Restaurant Associates, que trabalhava com estádios de beisebol e arenas esportivas, não quis pegar Woodstock. Ninguém jamais fornecera serviços alimentícios para um evento desse tamanho. Eles não quiseram colocar o capital de investimento necessário para suprir uma quantidade tão enorme de comida, cozinhas no local e equipe, além do transporte de tudo isso. E se não conseguíssemos atrair o público que prevíamos? Eu esperava que Peter conseguisse convencer o Nathan’s – um favorito de Coney Island – a trabalhar conosco. MEL LAWRENCE: O membro mais velho da equipe, Peter, já tinha feito quase
tudo o que uma pessoa pode fazer, e todos nós o respeitávamos muito. Era muito próximo de Michael e eu me tornei muito próximo dele. Tinha reuniões com todas as grandes empresas de cozinha, como o Nathan’s, o cara que depois foi dono do Windows on the World, e a Greyhound, sem sucesso. Outra pessoa crucial em nosso escritório era Kimberly Bright, que contratei
por US$ 100 por semana para acender incensos e dispor flores. Ela trazia uma certa tranquilidade ao espaço e, em algumas tardes, dava aulas de ioga. Nós a creditamos como “conselheira espiritual” no livreto do programa de Woodstock. JOYCE MITCHELL: Kimberly abria o escritório todo dia e se certificava de que
as coisas estavam organizadas e limpas. Eu a chamava de “garota do incenso” e ela era uma alma muito linda, que flutuava por ali algumas horas por dia, fazendo as pessoas sorrirem. Minha visão para o festival tinha evoluído para um quadro complexo, tridimensional, que abrangia elementos múltiplos: físicos e emocionais, espirituais e práticos, artísticos e comerciais. A interação entre todos esses elementos era difícil de captar para alguns. Exceto pelo núcleo central, os membros da equipe não precisavam entender o grande quadro, contanto que cumprissem suas atribuições individuais. Eu esperava que John e Joel passassem a ver, para além do dinheiro, o que o festival poderia ser. Artie sacava completamente, mas não sabia de fato como chegar a esse resultado. Então devotei-me à tarefa de me manter verdadeiro aos ideais que Artie e eu tínhamos desenvolvido no início dessa aventura. Certifiquei-me de que os cabeças da equipe, como Mel, Chip, John, Chris e Joyce, estivessem todos na mesma sintonia quanto à produção e ao design. Mas quanto ao grande quadro, eu sabia que todo mundo ia sacar quando tudo se concretizasse no final.
Minha visão para o festival tinha evoluído para um quadro complexo, tridimensional, que abrangia elementos múltiplos: físicos e emocionais, espirituais e práticos, artísticos e
comerciais. JOHN MORRIS: Michael era quem tinha a visão e a ideia e que levantava a
bandeira de toda aquela fantasia. Se tínhamos como objetivo o sonho ou a intenção de alguém, esse alguém era Michael – e a energia era dele, sem dúvida. Eu via e apreciava as diferentes qualidades entre nossa equipe de produção: em John, era seu jogo de cintura equilibrado com seu conhecimento de negócios. Joyce era viajada e tinha experiência em liderança. Em Chip e Chris, era a qualidade do trabalho deles e a profundidade de suas experiências. O fato de que eles não se intimidavam com o projeto me dava muita confiança neles e em quem eles recomendassem para certos trabalhos. Meu contrato com Chip proporcionava a ele US$ 6 mil adicionais para contratar um gerente de palco, um designer e um mestre de obras. Chip escolheu Steve Cohen, projetista formado na Carnegie Tech, que trabalhara na produção do Fillmore e no Philadelphia Folk Festival. Chris, Chip e Steve se tornaram o núcleo da equipe de produção. Os três, junto a John Morris e Bert Cohen, tinham opiniões fortes quanto ao design de palco, então fiz uma “competição” em que qualquer um da nossa equipe poderia apresentar um design. Eu tinha alguns requisitos: não queria que o palco fosse chocante ou chique; queria algo que fosse familiar e muito orgânico. Queria algo substancial, que deixasse todo mundo confiante. Assim como no Miami Pop, queria um design com o qual a equipe pudesse montar o equipamento da banda seguinte enquanto a anterior estivesse no palco, de forma a não haver intervalos muito longos entre as atrações. Recebi cerca de uma dúzia de sugestões – incluindo maquetes feitas com palitos de sorvete – de diferentes tipos de palco, alguns bem doidos. Um parecia um bolo de aniversário, com plataformas em espiral subindo até o céu. Esses designs escandalosos não se encaixavam no que eu estava tentando fazer. Queria algo mais rústico, como se nascesse do chão. Como os Soundouts, mas numa escala enorme. Ficamos com três finalistas: Bert Cohen, Chris Langhart (escolha de John Morris) e Steve Cohen (escolha de Chip). Bert tinha projetado o palco para o festival de Mel em Miami e imaginou uma ideia similar para Woodstock, com um par de grandes plataformas no formato de um toca-discos, conectadas por
um sistema de carrinhos, de forma que as montagens das bandas poderiam ser alternadas em cada palco. Uma estrutura gigante em formato de guarda-chuva seria o teto, conectado aos palcos por mastros altos erguidos entre as plataformas. O topo girava e seria decorado com 24 bandeiras. Achei que era sofisticado demais para uma paisagem pastoral. O palco de Chris era focado numa única plataforma circular, ladeada por um par de postes telefônicos de 24 metros, que suportariam uma barra transversal no formato de um sinal da paz. No topo, um toldo com luzes por baixo, preso aos postes por uma série de cabos. Chris disse que pensava numa “coisa moderna e bombástica” e tinha se inspirado em alguns desenhos de pistas de patinação japonesas que tinha visto. Era uma ideia interessante, mas não propiciava formas rápidas de troca entre uma banda e outra. Dispensei, mas atribuí outra tarefa a Chris: um conceito rústico e bonito para o pavilhão dos artistas, onde os músicos passariam tempo quando não estivessem no palco: uma estrutura aberta, escultural, feita de 34 postes telefônicos – como se fossem um brinquedo de montar –, com um “teto” de tecido branco pendurado sobre as vigas cruzadas. Chip insistia no design de palco de Steve, e depois de fazer algumas sugestões, concordei. Um par de postes de 21 metros ancorados em blocos de concreto manteriam o palco firme no chão. No topo dos postes, haveria um enorme teto em formado de cogumelo, onde seriam afixadas mais de 250 luzes. Contava com um sistema rotativo enorme, que consistia em três meio círculos sobre rodas, para a transição rápida entre as bandas. Planejado para ser o maior palco construído na época, o custo estimado seria de US$ 20 mil. * * * No final da primavera, outra mulher muito enérgica e inteligente se juntou à nossa equipe. Lee Mackler (hoje Blumer) foi contratada para trabalhar para Wes na segurança e nas relações comunitárias. Assim como eu, ela cresceu num bairro judaico no Brooklyn, o Sheepshead Bay. Muito viajada, morou na África por um tempo, depois voltou e trabalhou para Dick Clark, cuidando das turnês dos Monkees com um então desconhecido Jimi Hendrix como atração de abertura. Atuou por um período no escritório de Albert Grossman, depois com Bill Graham, onde conheceu John Morris, que a recomendou para nós. LEE MACKLER BLUMER: Bill Graham tinha muito bom gosto, e seus talentos
iam muito além do que qualquer coisa que qualquer um poderia imaginar. O Fillmore East tinha um grupo incrível de pessoas. Ele motivava a equipe, não era só um trabalho. A atitude ali era de que era mais do que trabalho, você sabia que fazia parte de algo muito maior do que você mesmo. E essa mesma ideia foi traduzida para nós, que trabalhamos juntos em Woodstock. No início de junho, eu estava focado em já fechar o máximo possível de atrações. Meu plano era começar o fim de semana do festival tranquilo, fazendo da sexta-feira o dia do folk; no sábado, apresentar primordialmente artistas da Costa Oeste; e, no domingo, trazer as bandas de rock maiores e de apelo internacional. O line-up de 15 de agosto estava quase completo, por um gasto razoável: Tim Hardin, que tinha se tornado um amigo (US$ 2 mil); a Incredible String Band, grupo de folk rock psicodélico da Inglaterra (US$ 4.500); Ravi Shankar, cuja música tinha feito parte da trilha sonora do meu head shop (US$ 4.500); Richie Havens, artista incrível até hoje (US$ 6 mil); Arlo Guthrie, cuja épica “Alice’s Restaurant” se tornara parte da textura dos anos 1960 (US$ 5 mil); e Joan Baez, uma das que mantêm a chama acesa (US$ 10 mil). Esperávamos persuadir Donovan e Johnny Cash a se apresentarem, mas ambos declinaram. A brilhante compositora Laura Nyro era uma possibilidade, mas seu medo de palco a impediu de aceitar nossa oferta. Simon & Garfunkel teriam sido ótimos para o line-up de sábado, mas depois de terem feito uma turnê anteriormente naquele ano, estavam fartos um do outro e não queriam se apresentar no verão. O The Doors também estava no topo da nossa lista, mas desde a prisão de Jim Morrison em Miami, em março, ele se tornara muito paranoico. Disse a seu agente que não queria tocar em Woodstock, com medo de ser assassinado no palco. Ainda havia muitos espaços a preencher no sábado. Tínhamos algumas bandas ótimas da região de São Francisco entre as atrações: além do Creedence Clearwater Revival, do Canned Heat e do Jefferson Airplane, Bill Graham confirmou o Grateful Dead (US$ 7.500). Contratei Janis Joplin (US$ 15 mil) por meio de Albert Grossman, que também nos deu o The Band (US$ 15 mil). Albert gostava da política de “nações favorecidas”, contanto que as nações dele fossem as favorecidas. O The Band faria parte do festival desde o início. Music from Big Pink tinha ampliado a paisagem musical e tivera um impacto profundo sobre mim. Conheci Rick Danko e Richard Manuel, e esperava que Dylan talvez aparecesse com eles. Não fazia turnês desde 1966, e eu não queria forçar a barra com ele. Bob se
sentia pressionado por tanta gente da contracultura que reivindicava coisas dele. Eu não queria somar a esse fardo, então não o convidei. É claro que eu ia querer os Beatles também, mas eles teriam subjugado o line-up, e, de qualquer forma, tinham parado de fazer turnês e estavam prestes a acabar. John Lennon me influenciou muito, e eu entrei em contato com ele por meio de Chris O’Dell, que trabalhava na Apple, a nova agência/gravadora dos Beatles. Chris estava trabalhando a meu favor para que acontecesse, mas, em maio, autoridades de imigração negaram a entrada de Lennon nos Estados Unidos devido a acusações relacionadas a drogas no ano anterior. O governo Nixon queria mantê-lo fora do país por causa de seu ativismo contra a guerra, seus bed-ins com Yoko e outros protestos.
Eu era um grande fã dos Stones, mas assim como os Beatles, eles teriam dominado o festival e mudado o foco da nossa mensagem. Woodstock não era para ser a respeito de uma única banda ou um conjunto de bandas. Era a respeito das pessoas e as ideias e músicas entrelaçadas em suas vidas. O Blood, Sweat and Tears foi chamado para a noite de domingo. Era um grupo afiado, com um naipe de metais matador que remetia às big bands dos anos 1940 (US$ 15 mil). Também convidei o Iron Butterfly, mais conhecido por sua
jam com solo de bateria “In-A-Gadda-Da-Vida” (US$ 10 mil). Pensei que, para o encerramento à meia-noite do domingo, teria de ser Hendrix. Jimi tinha tocado no meu festival em Miami por US$ 5 mil. Agora, um ano depois, ele tinha se tornado o músico de rock mais bem pago do mundo. Acabara de ganhar US$ 150 mil no Madison Square Garden. Minha política de não favorecimento para a contratação dos artistas maiores tinha um teto de US$ 15 mil. Isso não colaria com o empresário de Jimi, Michael Jeffrey. Michael morava em Woodstock, e Jimi estava alugando uma casa ali perto, em West Shokan. Até então, eu convencera Jeffrey a baixar para US$ 50 mil, mas isso ainda era mais do que eu podia pagar. Da parte de Jimi, eu sabia que ele queria tocar; de vez em quando ele aparecia e participava de jams sem se anunciar no Scene de Steve Paul e outras casas. Então fui falar com seu agente, Ron Terry. Muito bronzeado e calçando sapatos brancos de couro legítimo, Ron parecia que não podia esperar para estar de volta à praia. Expliquei a ele nosso teto de US$ 15 mil, mas ele não aceitava. Tinha sido instruído por Michael Jeffrey a chegar a um acordo, mas para um valor mais alto (Michael, ao que parece, ficou obcecado com a ideia de Jimi ser o artista mais bem pago do festival). Havia um outro problema com a contratação de Hendrix. Jeffrey e Terry exigiam que Jimi fosse anunciado como headliner, o que significava que ele seria listado em primeiro lugar em todos os anúncios de rádio e impressos, com seu nome maior do que o de todos os outros artistas, e que ele teria de encerrar o festival. Até então, esse sistema hierárquico de headliners era sagrado na indústria musical, mas, para Woodstock, busquei uma abordagem diferente. Decidi que todos os artistas seriam tratados de forma igual: em anúncios e pôsteres, seriam listados em ordem alfabética e com a mesma fonte. Ao meu ver, isso era importante por conta do grande número de nomes famosos, além do tom que isso daria, de forma geral. Eu queria muito que Jimi tocasse, mas não podia quebrar a cláusula de contrato de não favorecimento ou mudar a política dos anúncios. Então ofereci a seguinte solução a Terry: US$ 30 mil para dois shows. Jimi abriria o festival com um set acústico e encerraria com a banda (mal sabia eu que o Experience tocaria seu último show no Denver Pop Festival, em 28 de junho). Poderíamos elaborar dois contratos de US$ 15 mil. Terry não tinha certeza se isso funcionaria, então pedi a ele que colocasse Jeffrey no telefone. Michael e eu conversamos e, depois que incluí US$ 2 mil de ajuda de custo, ele concordou. Eu queria de coração que Roy Rogers encerrasse o festival com o tema de seu programa, “Happy Trails”. Nós todos tínhamos crescido assistindo a Roy, Dale
Evans e ao cavalo Trigger nas manhãs de sábado, e eu pensei que esse seria o “boa-noite” perfeito para três dias de paz e música. Mas seu empresário, Art Rush, recusou minha proposta. Para ajudar a financiar as contratações de artistas e nosso orçamento que não parava de crescer, precisávamos abrir as vendas de ingressos. Contratamos Keith O’Connor, que tinha trabalhado na bilheteria do Fillmore, para trabalhar para John e Joel com os ingressos. Ele montou uma rede de pontos de venda em butiques e head shops, bem como um sistema de venda por correspondência a partir dos escritórios da Woodstock Ventures. Vendemos os primeiros ingressos antecipados por US$ 6. Depois ajustamos os preços para US$ 7 para um dia, US$ 13 para dois dias, e US$ 18 para três; imprimimos ingressos codificados, que seriam difíceis de falsificar. Várias jovens foram contratadas para começar a enviar os pedidos. Nas duas primeiras semanas, venderíamos US$ 169.338 em ingressos. Quando Artie saiu da Capitol, em maio, realocou-se para os escritórios com John e Joel em tempo integral. Trouxe consigo sua secretária, Gisella Bitros. John ficou desnorteado com a adorável “Gizzy” e, graças à influência dela, logo começou a mudar: deixou o cabelo crescer, passou a usar miçangas e a curtir acid rock. Embora John estivesse se soltando, Joel se manteria muito reservado. A relação deles com Artie continuava a se desintegrar, o que criava mais pressão sobre mim. Eles me ligavam para informar que Artie sumia por dias a fio, e John e Joel questionavam cada vez mais o papel dele na nossa empresa, e se ele deveria continuar como sócio igualitário. * * * As notícias sobre o festival continuavam a se espalhar. Bem no início, Artie e eu tivemos uma reunião com uma agência publicitária de renome, liderada por Michael Goldstein, dentre cujos clientes estava Jimi Hendrix, mas eu não gostei de suas estratégias e atitudes antiquadas. Um trio de jovens publicitários compreendeu muito melhor de onde estávamos partindo. Perguntei a Jane Friedman, Pat Costello e Rod Jacobson se eles poderiam cuidar pessoalmente da nossa campanha publicitária, e eles ficaram tão apaixonados pela ideia, que decidiram sair da Goldstein Associates e abrir sua própria agência, que chamariam de Wartoke Concern.
JANE FRIEDMAN: Queríamos desesperadamente fazer o festival, não só porque
era uma conta de RP, mas porque estávamos muito envolvidos com o movimento antiguerra naquela época. Havia tanta coisa acontecendo política e sociologicamente no mundo, e percebemos que Woodstock seria especial. Se você se ligasse em política naquela época, aquela seria a conta mais inspiradora de se ter naquele momento. Michael e Artie realmente construíram aquilo de forma sólida, e foi como construímos o festival na nossa campanha. Estávamos procurando desesperadamente por um projeto no qual depositar nossa esperança por mudança, e aquele festival representava uma nova maneira de pensar e viver. Investimos muito trabalho e energia em fazer aquilo acontecer. Nosso contrato era de três meses, e nós passamos cada um dos dias no escritório, das 10 horas da manhã até as 3 horas da madrugada, e enviávamos cerca de 3 mil correspondências em cada um dos dias desses três meses. Desenvolvemos uma lista incrível de imprensa underground. Naquela época, havia pouca cobertura diária de música pop e poucas revistas. Nós não as deixamos em paz e mandávamos o mesmo tipo de informação dia após dia, sempre com algo novo, mas incluindo as mesmas coisas de antes, de forma que começasse a ressoar. E cobrimos o rádio também, pelo mundo todo. Nossos primeiros releases de imprensa afirmavam que haveria dois dias de shows – um estratagema para ganharmos mais cobertura das publicações quando, mais tarde, anunciássemos o acréscimo de um terceiro dia ao festival (no final do ano, graças a Woodstock, a Wartoke seria citada numa publicação do ramo como a agência de publicidade mais eficaz do país). JANE FRIEDMAN:
Pessoas começaram a telefonar do país todo e, naquela época, falar com alguém a 1.200 quilômetros de distância sobre um evento em Nova Iorque simplesmente não era comum. Quem se importava, se não fosse no seu próprio bairro? De repente, havia gente do outro lado do país querendo vir: editores de jornais universitários, presidentes de grêmios estudantis, organizadores de atividades estudantis, colunistas de jornais diários, jornalistas musicais, pessoas interessadas em rock and roll, repórteres e editores de jornais underground, pessoas envolvidas com política. Woodstock foi um evento político no sentido de que sua própria existência era uma demonstração do estilo de vida contracultural. A abordagem da Wartoke incluía fazer de mim a principal “cara” de
Woodstock. Embora eu ficasse bem tímido com os holofotes e me sentisse desconfortável em ser a voz do festival, Artie me encorajou a assumir esse papel, do qual ele compartilhava em certa medida. Sempre fui relutante em falar sobre planos. Minha linha de pensamento é: me deixe fazer, e as ações falarão por si mesmas. Por um certo período de tempo, John e Joel ficaram ausentes da publicidade do festival. Aparentemente, alguém na Wartoke achou que a imagem de capitalistas deles iria desmantelar a nossa credibilidade junto à contracultura – um elemento crítico para o nosso sucesso. Artie também sentia que a imagem deles, de homens de negócios certinhos, ia contra a nossa credibilidade underground. Excluído de alguns releases de imprensa e oportunidades de entrevista durante o período em que estávamos solidificando nossas relações com o underground, Joel ficou indignado e nos confrontou a respeito disso, o que me pegou de surpresa. Na época, eu não imaginava que a publicidade pessoal seria tão importante para ele. A coisa toda se extrapolou, e lá pelo meio de agosto, Joel e John provavelmente desejaram nunca ter insistido em serem incluídos no material de imprensa. * * * Um dos últimos artistas contratados foi o Santana, e isso acabou sendo um dos acontecimentos mais positivos num mês cada vez mais complicado. Depois de termos feito as pazes com Bill Graham no Ratner’s, no início de junho, ele reapareceu ameaçando cancelar a participação do Grateful Dead, se eu não contratasse as bandas de São Francisco que ele começara a empresariar, o It’s a Beautiful Day e o Santana. Nenhuma delas tinha lançado discos e eu não tinha ouvido suas músicas. Eu não ia contratar alguém antes de ouvir a música. “Me mande umas fitas”, pedi. Ele o fez e eu gostei de ambas as bandas, mas o Santana me nocauteou em cheio: o estilo latin rock único de Carlos Santana na guitarra, os vocais e o órgão B-3 cheios de soul de Gregg Rolie e uma cozinha fantástica. Lembrou-me da música que Tito Puente tocava no clube dos meus pais tantos anos atrás, mas com uma pegada pesada de rock and roll. “Diga ao Bill que fico com o Santana”, eu disse a John Morris. “Eles podem abrir o show de sábado. O som deles é incrível.” Bill nos deixou assinar com o grupo por US$ 1.500 – a melhor barganha do festival e um dos maiores destaques. Com uma gama incrível de talentos já agendados e trabalhando com a
melhor equipe do ramo, por um momento eu estive no topo do mundo. Porém, no meio de junho, apesar de duas reuniões na prefeitura com os moradores da cidade e dos nossos maiores esforços para manter os canais de comunicação positivos abertos, as coisas estavam fervendo em Wallkill. E justo quando parecia que as coisas não poderiam piorar, novos conflitos se desenvolviam rapidamente em Nova Iorque.
O cinegrafista Michael Margetts e Don Ganoung, que cuidava das relações com a comunidade. © HENRY DILTZ
1. Variedade de cannabis originária das montanhas de Santa Marta, na Colômbia. (N. do T.)
VI CENTRO DA CIDADE
“Estou cagando para o seu festival! Nós vamos derrubar essa porra desse festival bem na cara de vocês, a menos que cumpram nossas exigências!” Abbie Hoffman está berrando na cara de Joel. No quartel-general do Yippie, a sala austera no segundo andar do prédio de tijolos ocupado pelo partido reverbera com o som da voz de Abbie. Quando Joel tenta negociar com ele, Abbie solta os cachorros. Joel empalidece e eu sinto seu medo. Se eu não conhecesse Abbie, talvez ficasse amedrontado também. Mas eu o conheço, e conheço um pouco de seu teatrinho. Nesse momento ele está interpretando Jesse James. Em vez de roubar um trem, ele quer uma parte do nosso festival. Eu preciso ser Billy the Kid. * * * Há semanas vínhamos escutando disparos contra nós vindos do underground. Uma noite, enquanto trabalhava até tarde no escritório no Village, estava ouvindo a WBAI-FM, a “rádio do povo”. O DJ/comentarista Bob Fass, grande amigo da esquerda, começou a malhar Woodstock: “O que dizem por aí é que esse festival é uma grande roubada! Os organizadores não ligam para as pessoas. Só querem tirar um troco. A música é
para o povo. Devia ser de graça!”. Bravo, liguei para a rádio e pedi para falar com Fass. Ele tinha sido mestre de cerimônias de alguns dos Soundouts, então fiquei surpreso com sua atitude. “Escuta aqui, você acha que estamos aqui trabalhando às 3 horas da manhã porque não ligamos para as pessoas?”, desafiei. “Você acha que algo desse tamanho pode ser organizado sem dinheiro? Como você paga por palcos, médicos, bandas, água, banheiros, comida e energia elétrica e por mais 1 milhão de outras coisas necessárias para fazer isso acontecer? E ainda faz isso de um jeito que dá mais do que recebe?” “Estou falando de uma troca justa!”, prossegui. “Acredito fortemente que estamos buscando mais do que isso, o movimento não vai a lugar nenhum!” “Esse festival pode ser a oportunidade para as pessoas realmente se unirem”, continuei. “Para sermos nós mesmos, só entre nós. Pelo menos dessa vez estamos na posição de fazer isso direito e de forma justa. Você não está fazendo um favor pra ninguém ao nos rechaçar, porque, se isso funcionar, significará que o festival não vai acontecer. E, mais uma vez, tudo o que vai sobrar pra gente é esse monte de falatório!” Ele foi bem tranquilo quanto ao meu desabafo, e quando desliguei, depois de quase 1 hora, esperei tê-lo deixado com algumas coisas a pensar. No dia seguinte, Abbie Hoffman apareceu no nosso escritório, no Village. Queria falar sobre Woodstock. Tinha ouvido falar do festival numa reunião do Yippie, em Ann Arbor. ABBIE HOFFMAN: Eu disse [a Michael]: “Essa cultura pertence ao povo na rua.
Estamos tentando construir uma contracultura. Estou organizando uma coalizão de grupos do Lower East Side e queremos uma reunião”. Chegamos a uns oito ou dez grupos – os Yippies; o Comitê Médico Pelos Direitos Humanos; os Up Against the Wall Motherfuckers; um pessoal antiguerra; o Clube de Serviço do East Side, que cuidava de pessoas em bad trips e que tinham fugido de casa no Lower East Side. Michael concordou em se encontrar conosco. ROZ PAYNE, CINEASTA ATIVISTA: Eu estava com um grupo de cinema chamado
Newsreel e andava com os Yippies. Eles eram tão mais divertidos, em comparação ao outro pessoal dos movimentos. Abbie e eu simplesmente entramos no escritório do Michael um dia e dissemos a ele: “Beleza, isso é um assalto, viemos pegar o que é nosso!”. Éramos bem prepotentes naquela época.
Michael era muito fofo e tinha um cabelo bonito. Não era uma ameaça nem nada, e sim muito amigável. Ele disse “OK!”. Acho que Abbie pensou que entraríamos lá e faríamos o que quiséssemos, mas, ao mesmo tempo, aqueles caras não eram nossos inimigos. Michael estava sorrindo, foi legal e apenas concordava com tudo. TICIA BERNUTH AGRI:
Michael tinha a habilidade de permitir tudo, não resistir e até mesmo dar certo espaço às coisas, o que desarmava a situação. Eu não consegui encontrar John, então liguei para Joel e dei a ele um breve resumo do show de Abbie. Foi muito difícil transmitir as nuances a Joel, porque não havia um quadro de referências comum entre nós. Fiz o que pude e marquei uma reunião para que Joel e eu nos sentássemos com Abbie no quartel-general do Yippie. Com toda a pressão e negatividade vindo de Wallkill, fiquei animado com a ideia de que pelo menos nós finalmente íamos ganhar algum apoio de nossos irmãos e nossas irmãs no underground. A comunidade de ativistas, radicais e agentes políticos do Lower East Side pensava que estávamos tentando levar vantagem sobre a contracultura, pelo menos essa foi a posição que eles escolheram tomar. Pareciam se preocupar que seus ideais estivessem sendo cooptados pela América corporativa sob o disfarce da Woodstock Ventures. O tempo todo tentei deixar claro que nós fazíamos parte da contracultura. Que eu estava tentando conciliar nossos princípios comuns com um mínimo de comércio, só o suficiente para de fato manifestar algo desse mundo melhor a que visávamos, que Woodstock era do povo e para o povo, que tudo bem alguém bancar esse nosso negócio para ter um lucro justo. Na reunião, descobrimos que a solução, por ora, ironicamente, era dinheiro. Abbie pediu uma doação de US$ 20 mil para a causa. “Você está tomando da cultura, então você deveria devolver à cultura!”, argumentou ele. “E quanto à nossa causa?”, perguntei. “Pelo que exatamente você acha que devemos pagar?” “Olha só”, respondeu ele, “você vai atrair esse monte de moleques da cidade até o campo, trazendo fumo e ácido, sem serviços de apoio e sem habilidade de sobrevivência. Queremos ir até lá e dar um guia diário de sobrevivência e distribuir nossos panfletos, informações sobre os movimentos políticos e sociais em que estamos envolvidos. E queremos tomar conta da nossa gente. Tudo o que
vocês querem é ganhar dinheiro.” Suas palavras pareciam visadas ao benefício do outro pessoal dos movimentos ali naquela sala, a “coalizão” jogada para a qual ele era o porta-voz. Abbie e eu já tínhamos tido pelo menos uma conversa sobre como nos prepararíamos. Mas suas palavras faziam sentido para mim. “Joel e eu precisamos de 1 minuto para discutir isso”, eu disse aos presentes, e nós dois fomos até o corredor. Joel me perguntou se eles realmente poderiam causar problemas e eu disse que sim. Perguntou se havia alguma outra saída que não nos custaria dinheiro e eu disse que não: “Mas se eles fizerem mesmo o que estão falando que farão, e eu acredito que vão, vai ser uma grande ajuda para nós em campo e também vai somar credibilidade à nossa mensagem”. Joel não ficou contente. Ele não gostava daquela gente, não gostava da política deles, e não gostava de ser extorquido. Mas isso era um negócio das ruas, e as regras eram diferentes, e eu acreditava que poderíamos transformar a situação em algo positivo para todos nós. Voltamos para dentro e eu disse: “É o seguinte: se a preocupação de vocês é realmente ajudar as pessoas a superar as dificuldades, nós vamos lhes dar dinheiro suficiente para publicar seu guia de sobrevivência, para suas prensas, e espaço para montar suas mesas [no festival]. Vocês nos disseram que não acham que estamos fazendo o bastante para nos preparar, então vocês podem nos ajudar a dar assistência aos garotos quando eles chegarem”. Abbie pareceu gostar dessa ideia e pediu alguns minutos para tratar com seu pelotão. Depois, ele, que não era nenhum estranho à negociação, perguntou quanto estávamos dispostos a oferecer. Propusemos US$ 5 mil, mas chegamos a um acordo de US$ 10 mil. Embora Joel ainda estivesse relutante em desembolsar US$ 10 mil, levei o negócio até John para conseguir sua aprovação para liberar o dinheiro. ABBIE HOFFMAN: Com metade dos US$ 10 mil, compramos uma prensa, que, no fim, foi o que salvou nossas vidas. Tenho certeza de que salvou muitas vidas. Distribuímos informações sobre sobrevivência, além de informação política. O dinheiro também foi investido no aluguel de um caminhão, suprimentos de papelaria e uma certa vitamina que usávamos para rebater bad trips de ácido. Ganhamos uns cem ou duzentos ingressos. Demos muitos deles para a WBAIFM, para ajudar a levantar fundos para a rádio, e outros distribuímos na rua, para pessoas que não podiam pagar para ir. Havia uma comunidade revolucionária que sentia que aquela música tinha crescido em suas entranhas e que estava em conflito com a sociedade mainstream
– com a polícia, que trabalhava para a sociedade mainstream; com a guerra no Vietnã; com o racismo praticado pela sociedade. Parecia bastante natural, já que teríamos esse tipo de evento, tentar incutir algum conteúdo político nele. Não é que fôssemos contra o festival, queríamos que o festival fosse visto dentro do contexto do que mais tarde denominei “a Nação Woodstock”, visto num contexto que não estivesse removido da política. Nossa reunião no quartel-general do Yippie calhou de acontecer no mesmo dia, 19 de junho, em que nosso “Aviso Público e Declaração de Intenções” foi publicado no Times Herald-Record, de Middletown: Certos indivíduos nesta região criaram boatos com a intenção expressa de gerar uma atmosfera tão carregada de emoções, que a razão e o bom senso não podem prevalecer [...]. Eles estão tentando, por alguma razão desconhecida, tornar impossível para as autoridades fazer qualquer coisa a não ser apresentar um bloco sólido de oposição à nossa apresentação, independentemente do que suas investigações e consultas revelem [...]. É nossa intenção permanecer em sua comunidade [...]. Woodstock Ventures O que começara como um conflito entre desconfiança e confusão em Wallkill se tornara uma guerra total. Nosso anúncio de meia página foi nossa tentativa de nos defender dos ataques do Comitê dos Cidadãos Preocupados (CCP) e das manobras realizadas pelas autoridades da cidade para impedir o festival com um novo decreto que proibia multidões de 5 mil pessoas ou mais. Havíamos recebido duas convocações para nos apresentarmos à corte suprema estadual no dia 7 de julho, para enfrentar ações movidas pelos donos da propriedade vizinha à dos Mills, que alegavam que nosso festival seria um transtorno público e deveria ser banido. O Times Herald-Record noticiou depois que, segundo o procurador da cidade, uma liminar proibindo o nosso festival poderia ser emitida em três semanas. O porta-voz do CCP, Frank Jennings, disse ao jornal que seu grupo tinha coletado duzentas assinaturas numa petição para impedir o festival porque “os cidadãos temiam pela saúde, pelo bem-estar moral da comunidade e também dos visitantes do festival”. Mel, Chris, Stan, Wes e as equipes estavam trabalhando incessantemente para finalizar nossos planos de saneamento básico, tratamento de esgoto,
distribuição de água, equipe médica, rotas de trânsito, estacionamento, preparo da comida e segurança para apresentá-los em detalhes às autoridades de Wallkill. Esses planos determinariam se nós cumpríamos ou não os critérios necessários para obter uma licença que permitisse o agrupamento de um grande número de pessoas. As autoridades ameaçaram: sem licença, não há festival. Na comunidade de Wallkill, estávamos tentando convencer a oposição de que sabíamos o que estávamos fazendo e que poderíamos trazer algo de positivo para o condado. Mel pediu a George Emmerich, chefe de política de Hallandale, Flórida, para dar uma declaração a respeito do quão bem organizado havia sido o Miami Pop Festival: “Foi ordeiro e os problemas foram mínimos, considerandose o número de pessoas envolvido”, reportou Emmerich. “O público foi educado e bem-comportado. O produtor acatou todos os pedidos feitos como precauções de segurança.” Para melhorar as relações com a comunidade, contratamos a então namorada de Mel, Rona Elliot, para ajudar com as RPs locais. Rona, embora tivesse apenas 22 anos, já tinha experiência com promoção de eventos e publicidade em rádio (que foi como ela conheceu Mel) e para alguns festivais. Ela fez aberturas amigáveis a jornais, rádios e emissoras de TV locais e diversas organizações, como o Clube Kiwanis1, onde deu uma palestra sobre como o festival beneficiaria a comunidade. Ajudou até mesmo a organizar um baile de quadrilha. Recrutamos uma banda de soft rock de Boston, o Quill, para se apresentar de graça na área. Como eles tocavam um rock and roll bastante benigno, pensamos que isso causaria uma boa impressão nos locais. LEE MACKLER BLUMER: Organizei uma turnê “de boa vontade” para o Quill.
Fomos até a Warwick School for Boys, um lar para delinquentes juvenis, a algumas prisões e a um hospital psiquiátrico. Mas isso não chegou a realmente ajudar a elevar nosso status na comunidade. Eles só queriam saber de nos ver como o perigo. Não queriam saber nada das boas ações que estávamos fazendo. Don [Ganoung] vestia a batina e tentava convencê-los de que não íamos colocar ácido na água, mas não creio que ele tenha mudado muitas cabeças. Também tentamos provar nossa sinceridade à comunidade underground. Com esse fim, a Wartoke organizou um encontro público no Village Gate, em Nova Iorque, para reunir diversas facções para um debate. O convite da Wartoke dizia: VOCÊ ESTÁ CONVIDADO A PARTICIPAR DE UM SEMINÁRIO PARA DESENVOLVER E
ESTABELECER REGRAS BÁSICAS PARA PROGRAMAS AO AR LIVRE DE PAZ E MÚSICA.
JANE FRIEDMAN: Decidimos que deveríamos fazer alguma coisa para tornar as
pessoas donas do festival, porque havia uma ameaça de insurgência por parte de várias facções políticas, do tipo que se não fizéssemos isso, eles causariam tumultos. Convidamos universitários de todo o país para vir para o nosso seminário e tomar uma decisão: deveriam aqueles três dias de paz e música ser nossas merecidas férias depois de passar o ano inteiro trabalhando em prol da revolução? Tudo bem se dispensássemos a política e nos divertíssemos? Ou deveríamos transformá-lo num evento político? Artie e eu queríamos que Woodstock fosse um evento cultural, não desprovido de política, mas uma chance para a cultura se firmar sozinha e tratar apenas de si mesma. Se Woodstock desse certo, essa seria a maior afirmação política possível. No dia 26 de junho, no Village Gate lotado, um ativista chamado Jim Fouratt serviu como moderador. Extremamente articulado, Jim conduziu a discussão na direção da paz e do amor. Wes Pomeroy e eu falamos sobre como poderíamos prevenir conflitos com a polícia – outra revolta violenta acabara de acontecer num festival em Northridge, na Califórnia. Quisemos explicar num fórum público como o nosso festival seria diferente daqueles onde problemas haviam insurgido. Eu já tinha planejado comparecer a outros festivais, para ver como eles lidavam com as multidões, e aprender com o que eles fizessem de certo ou de errado. “Planejamos criar uma comunidade entre todas as pessoas que forem ao festival”, Wes disse a eles. “O que vai acontecer então, será de responsabilidade do público tanto quanto dos organizadores. Se você der às pessoas o que fazer, e fazer valer o que elas pagaram, não haverá encrenca alguma.” “O direcionamento da publicidade para o festival será no sentido de informar os garotos que tipo de instalações encontrarão lá e que tipo de comunidade estamos criando”, eu disse. “A ideia é deixar o público quase tão envolvido quanto os artistas. Se o público participa do festival, as pessoas vão querer respeitar os direitos umas das outras.” Eu também queria que o público ali presente soubesse que não se tratava apenas de dinheiro. No que dizia respeito a dinheiro, todos nós sabíamos o que podíamos fazer para sobreviver. Mas se você consegue sobreviver e ainda fazer
algo bom, é aí é que está. Eu era solteiro, tinha poucas necessidades materiais na época, e estava vivendo um sonho. Porém, eu sabia que John deveria ter um retorno do investimento e do trabalho duro dele e de Joel, e que Artie e eu merecíamos algo por todo o nosso trabalho. Depois de aproximadamente 4 horas de debate, as cerca de duzentas pessoas no seminário votaram que Woodstock deveria permanecer da forma como tínhamos vislumbrado: três dias de paz e música. A política, embora representada nos estandes e no material impresso distribuído numa área chamada Movement City, não faria parte do que acontecesse no palco. Ao tomar pauladas da direita e da esquerda, eu vi claramente o caminho que devíamos percorrer: era o lugar onde a arte e o comércio pudessem coexistir, onde ideias opostas pudessem coabitar, onde nossa humanidade viria em primeiro lugar e nossas diferenças apenas dariam certo colorido. Alguns elementos do festival tinham raízes profundas no movimento underground, mas sem a política explícita. O foco permaneceria paz e música. * * * Mais ou menos na mesma época, Stan contatou um grupo com experiência em montar e gerenciar acampamentos e cozinhas gratuitas. A Hog Farm era – e ainda é – uma comuna de entretenimento/ativismo formada em Los Angeles, em 1965. Em 1969, viviam no Novo México quando não estavam apresentando seu show gratuito itinerante Hog Farm and Friends (o nome “Fazenda de Porcos” vem da época em que eles cuidavam de uma fazenda de porcos em Sunland, na Califórnia). Um dos fundadores, Hugh Romney, tinha sido poeta beatnik nos anos 1950 e, acompanhado por músicos de jazz, costumava fazer leituras no Village. Abriu shows de John Coltrane e Thelonious Monk, e, no início da década de 1960, foi diretor de poesia do Gaslight. Sua inteligência e seus aforismos subversivos impressionaram Lenny Bruce, que se tornou seu agente por algum tempo. A Hog Farm incluía a esposa de Hugh, Bonnie Jean (a inspiração para “Girl from the North Country”, de Dylan), e vários membros dos Merry Pranksters, que preparavam os testes de ácido com Ken Kesey e o Grateful Dead, na região de São Francisco. O ônibus psicodélico dos Pranksters inspiraria o ônibus da própria Hog Farm, o Road Hog. Stan entrou em contato com eles primeiro em abril, quando estavam ilhados em Nova Iorque, depois de um incidente na
Pensilvânia. Eles estavam viajando em seu ônibus e foram parados pela polícia. Um hog farmer foi preso quando os policiais encontraram um cachimbo com cinzas de maconha em seu saco de dormir. Os outros estavam fazendo bicos em Nova Iorque para levantar fundos para pagar a fiança. Stan se encontrou com eles num loft, na Houston Street, que pertencia a Calico (apelido de Elizabeth Zandermee), amiga da Hog Farm e do Grateful Dead. Stan contou a eles do festival e que gostaríamos que participassem. Pareceram receosos, mas aceitaram se encontrar comigo. HUGH ROMNEY:
Stan Goldstein vem até nossa cozinha e parece Allen Ginsberg numa dieta orgânica. Ele diz: “Que tal participar desse festival de música no estado de Nova Iorque?”. Ele tinha dado um pega além da conta, então o dispensamos. Alguns dias depois, Stan e eu nos encontramos com Hugh, Bonnie Jean e alguns outros no Cauldron. Figura inesquecível, Hugh não tinha a maioria dos dentes e usava um chapéu de cowboy de palha decorado com uma grande pena. Ele me passou a impressão de uma espécie de palhaço cósmico/pistoleiro de palavras. Hoje, todo mundo o conhece por Wavy Gravy – B. B. King deu esse apelido a ele num festival no Texas, pouco depois de Woodstock. Naquele dia, no Cauldron, comendo bowls de arroz integral e legumes no vapor, conversamos sobre o que Woodstock seria e sobre o papel que eu visualizava para eles: principalmente cuidar dos acampamentos, do palco gratuito e da cozinha gratuita. A conversa voltou-se para as experiências deles em lidar com pessoas em bad trips de ácido e overdoses, e me dei conta do quão importantes eles poderiam ser em nos ajudar a alcançar nossos objetivos. “Como vocês lidariam se saísse uma briga nos acampamentos?”, perguntei. Quando Hugh respondeu “com tortas na cara!”, fui convencido por completo. Decidimos que um pequeno grupo de hog farmers levaria o Road Hog até Nova Iorque em julho, para ajudar Mel e sua equipe a construir um playground para as crianças e a limpar as trilhas ao redor das áreas de camping. Quando Hugh perguntou como o restante dos cerca de oitenta hog farmers chegaria a Nova Iorque, eu disse: “Não vai dar tempo de vocês irem de ônibus, então vamos levá-los de avião”. Eles ficaram estupefatos com isso, mas fiquei com a sensação de que não acreditavam que eu estava falando sério. Pelos serviços deles, chegamos a um pagamento de US$ 8 mil, mais todos os suprimentos que
sobrassem e o equipamento comprado para as cozinhas e os acampamentos. STAN GOLDSTEIN:
Depois que retornaram ao Novo México, Bonnie Jean caminhava uns bons quilômetros da propriedade da Hog Farm até o telefone mais próximo, e a cada vez nós conversávamos sobre os planos para o envolvimento deles no festival. E então combinávamos a nossa conversa seguinte, à medida que íamos tratando dos assuntos. Stan e eu nos sentamos com Wes Pomeroy e discutimos o papel que tínhamos delimitado para a Hog Farm. Ele ficou meio cético, achando que eles pudessem causar mais do que resolver problemas. Queria que a Hog Farm fosse checada. Para mim, isso parecia bom senso, então enviei Stan ao Novo México no dia 21 de junho. Ele chegou enquanto a Hog Farm, os Pranksters, entre outros, comemoravam o solstício de verão em Aspen Meadows, nos arredores de Santa Fé. STAN GOLDSTEIN: Fui para trabalhar de camisa social branca, calça social e
carregando uma maleta. Lá, me encontrei com Jim Grant, amigo de Wes, que era o chefe da Comissão Contra o Crime do Governo do Novo México, que viria comigo para ser o observador externo a reportar a Wes. Ele nos escreveu num relatório preliminar: “A Hog Farm pode ser recomendada, não necessariamente por seu mérito artístico (sem julgamento aqui), mas por suas atitudes e sua conduta responsáveis”. Porém, depois do solstício, ele prosseguiu com um “relatório suplementar”: “A empreitada toda parece completamente desprovida de organização ou gerência [...]. Houve certa quantidade de mamas expostas [...]. Pode ser que, quando essas pessoas fazem suas ‘coisas’ para si mesmas, as circunstâncias são completamente diferentes de quando montam uma produção estritamente por lucro”. HUGH ROMNEY: Stan aparece um dia com uma daquelas maletas chiques de
executivo como as que os roqueiros que estão sempre por cima tendem a ostentar. Ele anuncia que vamos ter nosso próprio jato da American Airlines para nos levar até Nova Iorque. Ficamos estupefatos, e escolhemos a nata do pessoal da cena da comuna para fazer parte da nossa equipe.
STAN GOLDSTEIN: A Hog Farm parecia ter uma cena bastante organizada,
então não vimos nada de errado com eles. Por sorte, Jim Grant foi embora antes das corridas de ônibus: Ken Kesey veio para o evento e apareceu com os apetrechos de costume – maconha e amigos – e trouxe muita cerveja. Foi a primeira vez que muitos de nós viram garrafas de cerveja com tampas desenroscáveis, e Kesey tinha batizado a cerveja. Cerveja psicodélica! Em meio àquela cerveja, todos decidiram disputar uma corrida de ônibus no pasto. Todos aqueles ônibus dispararam pelo campo, guinando para o lado para desviar de buracos em cima da hora, com gente se segurando no teto, nos para-choques e nos capôs, todo mundo sob o efeito de psicodélicos. Foi uma vista digna de nota. * * * Pouco depois que Stan voltou do Novo México, viajei para Denver para conferir o festival pop de três dias no Mile High Stadium, de 27 a 29 de junho. Lá, dei de cara com tudo o que eu queria evitar em Woodstock. Logo de cara havia tensão entre a polícia e um grupo de dissidentes chamado Frente de Libertação Americana, que estava na cidade para um grande protesto de 4 de Julho. Causavam agitação nos jovens, dizendo que o festival deveria ser gratuito. Quando cheguei no sábado, havia vários esquadrões da polícia – talvez 150 homens portando equipamento antimotim completo – posicionados nos estandes ao lado esquerdo do palco. Acredito que pensaram que uma demonstração de força serviria para dissuadir os que tentassem entrar sem pagar e os manifestantes, mas a minha sensação é de que aconteceria exatamente o oposto. Algumas centenas de pessoas começaram a agitar os portões e, para impedilas, mais esquadrões de polícia com equipamento antimotim apareceram. Um tumulto entre garotos atirando pedras e garrafas e policiais portando cassetetes resultou em muitos ferimentos de ambos os lados. Então, no meio do set de Johnny Winter, a polícia começou a soltar gás lacrimogêneo na área próxima dos portões de entrada. O vento soprou o gás até o palco, o que afetou a todos. Por fim, a polícia fez com que o organizador abrisse os portões, e centenas de pessoas voaram para dentro do estádio a tempo de pegar o show de encerramento, do Creedence Clearwater Revival. Pensei que devesse voltar a Nova Iorque no domingo à noite, mas eu queria muito ver Joe Cocker e sua Grease Band. No fim das contas, o domingo viu mais
violência do que o dia anterior. Milhares de pessoas apareceram sem ingressos, na expectativa de outro show de graça, e foram recebidas por cães policiais raivosos, gás de pimenta e centenas de policiais vestidos para a batalha. Para mim, parecia óbvio que a abordagem afrontosa da polícia provocara a violência. Tive muito no que pensar. Decidi que não teríamos a presença de polícia uniformizada no nosso evento. Eu faria o que fosse preciso para prevenir que algo como o que ocorreu em Denver acontecesse em Woodstock. Quanto à música, Joe Cocker e a Grease Band foram incríveis. Eu tinha contratado Cocker depois que Artie me deu uma fita que recebera de Denny Cordell, produtor de Joe. Na época, ele era praticamente desconhecido. Todo mundo que ouvia a voz dele pela primeira vez pressupunha que ele fosse um cantor negro de soul, quando na verdade era um cara magricelo inglês que pulava pelo palco como se estivesse tendo convulsões. Esse sabia uivar! * * * Quando fui para Denver, a relação entre Joel, John e Artie já tinha se deteriorado por completo. Desde a saída de Artie da Capitol, ele não estava mais proibido por contrato de entrar como sócio da nossa companhia. Eu estava cuidando da parte dele e precisávamos transferi-la legalmente. John e Joel estavam me pressionando cada vez mais para não assinar contrato com Artie, pois achavam que ele ficaria com mais do que merecia. Ligavam quase todo dia para relatar alguma farsa que Artie teria cometido ou reclamar que ele estava fugindo de alguma responsabilidade. Minhas tentativas discretas de segurar as pontas de ambos os lados tampouco tinham ajudado muito. “Veja, nós vamos acertar isso”, disseram, “mas nós simplesmente não vemos a possibilidade de trazê-lo para a companhia do jeito que as coisas estão. Vamos dividir a parte dele entre nós três.” A meu ver, a parte de Artie era dele desde o início, e eu decerto não estava numa posição de tomá-la. Eu já estava com muita coisa para resolver e não tinha o tempo nem a habilidade para mudar a dinâmica da relação deles. Disse que eles estavam me pressionando demais, que eu estava indo para Denver e assinaria a papelada de Artie quando voltasse. “Vocês que sabem, caras. Se virem!” Mais tarde, fiquei sabendo que, depois que fui embora, Joel entrou em pânico, pensando que eu tinha pirado e abandonado a sociedade de vez. Tudo o que eu queria era que eles cuidassem do que tinham para fazer e me deixassem cuidar do
que eu tinha para fazer. Joel foi se encontrar com Artie naquele fim de semana e eles começaram a dialogar. Resolveram as coisas o suficiente para a nossa sociedade se manter intacta. * * * No final de junho, John Morris passou uma noite intensa com Pete Townshend no apartamento do agente de talentos Frank Barsalona, em Manhattan. John pedira a Frank, dono da Premier Talent, para nos ajudar a contratar o The Who. A banda apresentara sua brilhante ópera-rock Tommy durante toda a primavera, em turnê pelos Estados Unidos, tocando principalmente em teatros e casas de espetáculo. John e eu concordamos que o Who era o que precisávamos para a noite de sábado. Mas Pete Townshend era veementemente contra tocar em Woodstock, embora Frank tentasse convencê-lo de que o show daria um impulso enorme na carreira do Who. Aparentemente, a banda estava exausta e queria retornar à Inglaterra assim que a turnê terminasse. Então Frank convidou Pete e John para jantar em sua casa. Ele deduziu que, se necessário, poderiam passar a noite inteira convencendo Townshend a tocar em Woodstock. Naquela noite, John e Frank insistiam em trazer o assunto à tona, apesar de Townshend se recusar a ser convencido. Quando o road manager do Who, John Wolff, apareceu à 1 hora da manhã, Frank os lembrou que a banda teria de voltar aos EUA na mesma semana de Woodstock, para um show no dia 12 de agosto promovido por Bill Graham, no Tanglewood. Mesmo assim, Townshend e Wolff disseram não. Frank e John Morris ficaram acordados a noite toda, recusando-se a desistir, e duraram mais do que Pete, que lá pelas 4 ou 5 horas da manhã começou a pegar no sono. Os dois insistiam em acordá-lo até que, finalmente, às 8 horas da manhã, Townshend não aguentava mais: “OK, vamos tocar! Só me deixem ir pra porra da cama!”. Depois de uma pequena negociação, John Wolff concordou com o valor de US$ 12.500, metade a ser paga no ato da assinatura do contrato. O contrato também deixava clara a nossa política de “sem estrelas em destaque”: “Os artistas serão listados em ordem alfabética. Este é um conceito de festival, então a ordem dos artistas fica a critério da organização” (depois, o The Who incluiria um fac-símile do nosso contrato na parte interna da capa do álbum Live at Leeds). * * *
Agora que a maior parte das contratações de artistas estava completa, precisávamos criar um visual que carregasse nossa mensagem em anúncios, pôsteres e outdoors. No início, tínhamos anunciado a Exposição Aquariana com um pôster de David Byrd, mas não era essa a imagem que estávamos buscando. John Morris sugeriu que déssemos uma chance ao artista gráfico Arnold Skolnick. Dei a pauta a Arnold e disse que a mensagem principal era “três dias de paz e música”, e que eu queria uma pomba empoleirada num violão como nosso símbolo. Os nomes das bandas seriam todos do mesmo tamanho e em ordem alfabética, e haveria uma descrição do local. Muita gente achou que não enfatizar os artistas nas nossas propagandas era contraproducente. Todos os festivais antes (e depois) de Woodstock eram focados nos artistas, mas o ponto era justamente esse. Woodstock não era para ser um evento qualquer. Seria divulgado como um evento que era sobre nós: nossa cultura, nossa música, nossa arte e nossos valores. Alguns dias depois, Arnold retornou ao meu escritório com um mock-up do pôster. Era perfeito: inspirado por alguns recortes feito por sua filha pequena, ele criou uma imagem simples, em cores primárias, de um pássaro branco empoleirado no braço de um violão azul e verde, sobre um fundo vermelho. ARNOLD SKOLNICK:
Eu estava hospedado na Shelter Island e desenhava passarinhos o tempo todo. Apenas peguei um estilete, recortei aquele passarinho do caderno de esboços que eu usava e o transformei numa pomba. Artie continuou a mandar anúncios para as estações de rádio FM e jornais underground, do Great Speckled Bird, de Atlanta, ao Western Activist, de Kalamazoo; do Hair, de Minneapolis, ao Door, de San Diego; quase quarenta, ao todo. Depois de ser confrontado por Joel e John, Artie ficou mais focado nessa área. ARTIE KORNFELD:
Publiquei um anúncio com um cupom para as pessoas comprarem ingressos antecipadamente. Estávamos ficando sem dinheiro e esse anúncio custou mais de US$ 1 milhão. * * *
O anúncio do cupom trazia a mesma descrição do local do festival que aparecia no pôster de Skolnick:
MOSTRA DE ARTE Pinturas e esculturas em árvores, no gramado, cercadas pelo vale do rio Hudson, estarão em exibição. Artistas consagrados, artistas “do gueto” e aspirantes a artistas terão prazer em discutir seu trabalho, ou o esplendor intocado das cercanias, ou qualquer outra coisa que você tiver em mente. Se você for um artista e quiser expor, escreva para nós para receber as informações.
BAZAR DE ARTESANATO Se você gosta de bugigangas criativas e tralhas velhas, vai adorar passear pelo nosso bazar. Verá criações imaginativas de couro, cerâmica, contas e prata, bem como mapas astrais, roupas de lazer e sapatos gastos.
OFICINAS Se você gosta de brincar com contas, improvisar no violão, escrever poesia ou modelar argila, dê uma passada numa das nossas oficinas e veja o que você pode dar e receber.
COMIDA Haverá refrigerantes e cachorros-quentes e dezenas de combinações curiosas de comidas e frutas para experimentar.
CENTENAS DE HECTARES PARA EXPLORAR Dê uma volta por três dias sem ver um arranha-céu ou um semáforo. Solte pipa, tome banho de sol. Cozinhe sua própria comida e respire ar puro. Acampe: água e banheiros serão disponibilizados. Barracas e equipamento de camping estarão disponíveis na Loja do Acampamento.
No final de junho, jornais diários por todo o país estavam publicando artigos sobre o festival, incluindo uma extensa matéria sindicada com a manchete ROCK CHEGA ROLANDO NA TERRA DO RIP VAN WINKLE2, que detalhava os problemas que estávamos tendo em Wallkill e os esforços da população local para impedir o festival. Render-se não fazia parte do nosso vocabulário, e nossas equipes estavam trabalhando firmemente no local. Nossos números lá tinham chegado a setenta e cinco pessoas. Mudamo-nos para um hotel maior, chamado Round Top, e contratamos duas cozinheiras para preparar as refeições para todos os trabalhadores. O decreto proposto por Wallkill – com a lista de obstáculos insuperáveis – assomava à espreita. Além de toda a papelada que tínhamos de encaminhar ao conselho municipal, teríamos de obter aprovações do departamento de saúde pública do condado, do inspetor de vigilância sanitária da cidade, do secretário municipal de saúde, da Comissão de Recursos Aquáticos do Estado, do inspetor de edificações da cidade, do departamento rodoviário do condado, do departamento estadual de transportes, do xerife, da polícia estadual, do engenheiro-chefe, do corpo de bombeiros local, do conselho dos bombeiros, da comissão de zoneamento, da polícia municipal e do coordenador dos bombeiros do condado. Era impossível para qualquer um cumprir essas condições. Saiu um editorial no Times Herald-Record, de Middletown, que disse exatamente isto: As “regulamentações” são tão severas, que para nós seria inconcebível eles passarem até mesmo num escrutínio jurídico casual. Claramente, as autoridades da cidade esperam que o prospecto de litígio vá desencorajar os organizadores do enorme festival de música e artes [...]. Vemos o decreto proposto como um exemplo flagrante do mau uso de poder governamental. É correto que um município proteja seus cidadãos de excessos que possam surgir quando da congregação de milhares de pessoas; e é, na nossa opinião, altamente impróprio proibir um evento sob o disfarce de regulamentações. O rascunho do decreto, por exemplo, estipula que “nenhuma luz deve brilhar para além do perímetro da propriedade” [...] que nenhuma música “deve ser audível para além do perímetro da propriedade” e que nenhum barulho ou odor desagradável “deve ser permitido a emanar da propriedade” [...]. Na pressa de obstruir o festival, que será no meio de agosto, as autoridades que arquitetaram esse decreto talvez não tenham ponderado
todas as suas implicações. Por exemplo, a tradicional Orange County Fair, marcada para o fim de julho, não conseguiria de forma alguma passar no teste de luzes-barulho-odor que o supervisor Jack Schlosser e seus associados elaboraram. Outro exemplo, as corridas privadas de Stock Car que acontecem no parque, que espalham poluição a 15 quilômetros de distância, estariam falidas [...]. Sugerimos que o conselho municipal descarte esse plano monstruoso e direcione suas energias para um conjunto justo – repetimos, justo – de regulamentações. * * * Uma votação do decreto pelo conselho – que nós sabíamos que ia passar – aconteceria no dia 2 de julho. Stan disse ao Poughkeepsie Journal: “Os pontos do decreto que são justos e corretos serão obedecidos por completo, exatamente como sempre foi nossa intenção. Mas os pontos do decreto que são irrazoáveis e impossíveis, estes nós iremos combater”. Ao contrário das batalhas que eu havia enfrentado ao longo do mês anterior, quanto a essa eu tinha um mau pressentimento.
Moradores de Bethel observam pela janela enquanto nos reunimos com autoridades da cidade para nos certificar de que podemos realizar o festival em White Lake. © CHARLIE CRIST/TIMES-HERALD RECORD
1. Sociedade filantrópica fundada em Detroit, em 1915. (N. do T.) 2. Personagem criado pelo escritor Washington Irving, em 1819, um colono que acaba pegando no sono nas montanhas e dorme por 20 anos, acordando depois da independência dos EUA. (N. do T.)
VII A FAZENDA DE YASGUR
“Fico com medo de pensar no que vai acontecer se as 40 mil pessoas que já compraram ingressos chegarem a Wallkill e não houver um festival!” “Isso é uma ameaça velada?”, vem a pergunta em voz alta do fundo da sala lotada. “Não tem nada de velada!”, respondo. “É um problema que diz respeito a todos nós.” Mais uma vez estou me dirigindo a um grupo hostil de habitantes de Wallkill. É 14 de julho e quero que eles saibam que pode haver consequências tanto para eles quanto para nós se o festival for cancelado. A raiva na sala é tão palpável, que não consigo deixar de pensar no que aconteceu mês passado no Denver Pop Festival, quando a polícia e os garotos se digladiaram. Como em Denver, a comunicação se rompeu por completo. Tento entender como foi que chegamos aqui. Como é que o medo se torna tão arraigado, que exaure todas as possibilidades de discurso, lógica e jogo limpo? Duas semanas atrás, no dia 2 de julho, depois de 5 horas de debate, o conselho municipal aprovou a nova lei, de dez páginas, de regulamentação de aglomerações de mais de 5 mil pessoas, com um placar de 5 a 0. Foram feitas pequenas modificações, incluindo a redução do nosso recém-requerido seguro-fiança de US$ 1 milhão para meio milhão de dólares – e a isenção do Orange County Fairgrounds (que abrigava as atrações da feira do condado e as corridas de dragster) de cumprir esse regulamento. Comparecemos diante da Comissão de Recursos de Zoneamento e defendemos o
nosso lado, depois de termos nossa licença para construir no local negada. Essa é a mesma sala em que, exatamente três meses antes, John e Joel tiveram o sinal verde da comissão quando primeiro propuseram realizar uma feira de música e artes no Parque Industrial Mills. Ensaiei a apresentação de forma a impressionar a comunidade com nossa competência e nosso planejamento abrangente. Mel, Stan e Don dão argumentos bem articulados e convincentes. Stan lê um depoimento que caracteriza nosso festival como “um evento cultural de primeira grandeza, envolvendo artistas de todos os tipos, incluindo pintores, escultores, cineastas e grupos teatrais, além de músicos”. Ele também afirma que estamos comprometidos “a preservar e realçar a atmosfera pastoral do local”. Mel, munido de mapas, diagramas e tabelas detalhados, explica que o local será delimitado por correntes e cercas reforçadas com concreto, que um sistema intrincado de estradas e trilhas está sendo preparado e que, além da música, das exposições de arte e dos estandes de artesanato, haverá alimentação, instalações médicas, áreas de camping, banheiros químicos e muitas das coisas que se pode encontrar na feira do condado. Don Ganoung expõe mais detalhes a respeito dos nossos planos para a segurança e o trânsito. Ele diz que estamos providenciando mais de 4 mil seguranças, sessenta unidades de rádio portáteis e guardas para o estacionamento e o palco. Os estacionamentos, explica ele, serão distribuídos ao longo de áreas adjacentes, onde alugamos mais terras, e duzentos ônibus transportarão o público do festival aos estacionamentos. “Haverá também um processo de filtragem de causadores de problemas, já que não será permitido dirigir até o recinto do festival”, acrescenta Mel. “Alguns de nossos funcionários ficarão a postos nos pontos de ônibus para observar e rastrear aqueles que parecerem estar procurando encrenca.” Então chega minha vez. “Já investimos mais de US$ 500 mil neste projeto”, digo a eles. “Não podemos recuperar esse dinheiro. Estamos indo adiante com esse festival. Nosso trabalho foi freado pelas circunstâncias das últimas semanas, mas isso está para mudar. Estamos totalmente comprometidos com o evento, com os planos e com o local.” Minhas palavras são recebidas com um alvoroço barulhento e raivoso. Lembro-me de quando me vi entre dois revólveres sacados no Miami Pop. Penso comigo que, definitivamente, é hora de intensificar os esforços para encontrar outro lugar. O clima na sala esfria um pouco quando a comissão declara que nosso escritório local – o celeiro ao lado da propriedade de Mills – viola as leis municipais de zoneamento porque estamos operando um negócio numa área residencial. Temos de fechar o escritório imediatamente. Depois de aplausos efusivos dos locais, a declaração seguinte é tão ruim quanto. A comissão vai tomar uma decisão quanto à nossa licença dentro de 48 horas.
Estamos a um mês do festival, e cavalgamos em direção a uma emboscada da qual não há saída. É hora de picar a mula do condado de Dodge. * * * No dia seguinte, o Times Herald-Record de Middletown, dando continuidade à sua cobertura detalhada de toda essa saga, reporta: Pela primeira vez, as relações conscientemente educadas entre a população local e os organizadores do festival se romperam, à medida que a audiência da Comissão de Recursos de Zoneamento se arrastava por horas numa sala abarrotada na prefeitura. Os locais, aparentemente irritados com a extensão da apresentação da Woodstock Ventures à comissão, lançou provocações e insultos aos representantes do festival. O cabeludo Lang, 24, foi recebido com uma saraivada de chavões a respeito de seu cabelo comprido (“Ele não é bonitinho?”) quando se levantou para se dirigir aos presentes. Porém, ele os inquietou com sua previsão de que 40 mil portadores de ingressos “desapontados” apareceriam em Wallkill. Não tínhamos muita esperança de que obteríamos a licença, especialmente ao levar em conta a sequência de reveses que vinha ocorrendo desde o dia 2 de julho. No dia 8 de julho, o Corpo de Bombeiros de Middletown recusou por unanimidade uma proposta para suprir pessoal para cuidar dos estandes de alimentação do Nathan’s. Os membros da corporação rejeitaram as longas horas de trabalho requeridas pela Nathan’s (das 18h30 às 4h30) de seus funcionários e o salário baixo oferecido pela empresa (US$ 1,75 por hora). A Nathan’s precisava de trezentos funcionários para os estandes, e o diálogo entre a companhia de cachorros-quentes e Peter Goodrich começou a se abalar. Agora, com o risco de perdermos nosso local, a Nathan’s ameaçava cancelar o contrato. Em 11 de julho, mesmo dia em que Mel e Rona conduziram uma visita guiada ao local do festival à imprensa, foi realizada uma audiência para tratar da interdição levantada contra nós pelo CCP. O juiz Edward M. O’Gorman, de Monroe, se recusou a emitir uma decisão sobre o caso, alegando que a interdição era prematura, já que a Comissão de Zoneamento, até aquele momento, não tinha aceitado nem negado nossa licença de construção. Em outras palavras, se a comissão não nos barrasse, aí então ele daria atenção ao caso. Dois dias depois, Clark Bell, da Assembleia Legislativa do condado de
Ulster, um republicano de Woodstock, lançou uma declaração à imprensa a respeito de uma carta que acabara de enviar ao governador, Rockefeller, solicitando a nomeação de um coordenador para supervisionar o festival. A declaração de Bell dizia que a guarda nacional deveria ficar alerta, e que a polícia estadual e o departamento de polícia do condado de Ulster estavam se preparando para lidar com turbas de gente que chegariam por engano em Woodstock à procura do festival. Ele nos acusou de “romantizar Woodstock. Tornaram conhecido o fato de que Bobby [sic] Dylan mora em Woodstock e que os Beatles passaram férias em Woodstock alguns anos atrás” (na realidade, durante o fim de semana de 15 a 17 de agosto, Woodstock seria uma cidade fantasma). Também recebemos reclamações da aldeia de Wallkill, no condado de Ulster, que possíveis frequentadores do festival estavam confundindo com o município de Wallkill – no condado de Orange –, nosso local de fato. Aparentemente, a Wallkill errada estava sobrecarregada de perguntas e consultas sobre o festival.
O QG da Woodstock Ventures no prédio da companhia telefônica de Nova Iorque em Kauneonga Lake. © HENRY DILTZ
O dia D chegou na terça-feira, 15 de julho: sem nenhum de nós presente, a comissão lançou uma decisão de quatro páginas REJEITANDO nosso pedido de uma licença. A decisão determinava: “De modo geral, os planos encaminhados são indefinidos, vagos e incertos. Ademais, o número estimado de pessoas a comparecer tem sido muito indefinido e incerto, e, a julgar pela quantidade e pelo tipo de propaganda, a empreitada iria contra o decreto de zoneamento. Problemas de incêndio, proteção policial e saneamento básico iriam contra a saúde e a segurança do público”. Incredulidade, choque, raiva, frustração. Do nosso escritório local, onde estava empacotando a mudança, Stan disse a um jornalista: “Há algum campo por aí, e quando chegarem os dias 15, 16 e 17 de agosto, haverá pessoas nele ouvindo a melhor música. Se você me perguntar como vamos fazer isso, não sei. Mas nós vamos”. Eu também sabia que faríamos, mas não seria em Wallkill, e eu fiquei estranhamente aliviado. A cidade tinha me parecido estranha desde o início, e as coisas só pioraram. Conversei com John e pude sentir que ele e Joel estavam devastados. Eles sabiam também que não conseguiríamos recuperar o investimento em Wallkill. Tentei reafirmar a eles que encontraríamos um novo local, mas eles já estavam fartos de me ouvir falar “Está resolvido!”, e sentiram que aquele foi o tiro de misericórdia. Ao ligar para Artie em seguida, tive uma conversa parecida, exceto que – como sempre – ele se empolgou com o meu otimismo e eu me empolguei com a fé dele em mim. Falei com o restante do time e disse a eles: “Não se preocupem, tenho as coisas sob controle. Vai acontecer. Só se preparem para a mudança”. Poderíamos apelar da decisão da comissão, mas sabíamos que isso levaria mais do que o tempo de um mês que faltava para a data do festival. John soltou imediatamente um release de imprensa declarando que havíamos sido injustamente expulsos do local e que iríamos processar os responsáveis: As declarações [...] feitas pela Comissão de Recursos de Zoneamento do município de Wallkill e outros indivíduos são completamente falsas. De acordo, temos assessoria jurídica em Nova Iorque e em Wallkill para estabelecer danos morais e para prover compensação por tal assédio ofensivo e pelas declarações totalmente desonestas de certos indivíduos. Nunca na história dos eventos a céu aberto desse tipo foram feitos preparativos tão enormes e minuciosos para a segurança e o bem-estar de todos os presentes. Haverá um festival de Woodstock – não se enganem!
MEL LAWRENCE: Não se pode avaliar em termos de dinheiro o suor e o amor
que investimos naquelas terras durante aquele mês e meio. Erguemos paredes e estruturas de pedra com nossas próprias mãos. Transformamos aqueles hectares numa obra de arte antes de sermos expulsos pela mesquinhez e pelo ressentimento. Já tínhamos cavados os buracos para os postes e as companhias prestadoras de serviços públicos dos condados de Orange e Rockland estavam instalando as linhas de energia. Eu tinha encomendado os postes que seriam a estrutura de apoio do palco. Estavam vindo de muito longe num grande caminhão. Quando você descarrega postes telefônicos gigantes de um caminhão, eles simplesmente saem rolando, não é a coisa mais fácil buscá-los. Justo quando o telefone do escritório tocava com a decisão da Comissão de Zoneamento, os caminhoneiros chegaram com os postes, dizendo: “Podemos descarregar?”. “Segura aí!”, eu os parei assim que soubemos que estava acabado. STAN GOLDSTEIN:
A conduta de Michael permaneceu, ostensivamente, inabalável ao longo de praticamente tudo. Você podia se inflamar e soltar o verbo nele, como eu fiz de tempos em tempos, e ele simplesmente absorvia como uma esponja e permanecia calmo. O que, é claro, se você fosse doido, só te enfurecia ainda mais! Ao longo daquilo tudo, Michael permaneceu bastante Michael, seu jeito de sempre, aquela figura às vezes enigmática. Tínhamos de achar um novo local para o festival. E rápido. Eu sabia que a moral iria por água abaixo se eu não recentrasse todo mundo ao trabalho imediatamente. Coloquei todos os que não estavam empacotando a mudança aos telefones para falar com a imprensa, as estações de rádio locais, os corretores de imóveis e outros que pudessem nos ajudar a encontrar um novo lar. PENNY STALLINGS:
Michael trabalhou à exaustão para conseguir um novo espaço. Quando foi determinado que não daria certo em Wallkill, ele foi extremamente firme em reassegurar que, de algum modo, o festival iria acontecer. Toda a cobertura de rádio que se seguiu resultou em vários telefonemas de pessoas com sugestões de locais. Alguns eram trotes, mas checamos todos. Um dia depois do veredicto, 15 de julho, Ticia recebeu uma ligação em nosso
escritório no Village de um cara que dizia ter um lugar no condado de Sullivan que seria perfeito para o festival. TICIA BERNUTH AGRI: Quando perdemos o local, Michael disse a todo mundo:
“Não se preocupem, temos tudo sob controle!”. Ele me disse: “Ticia, não saia de perto dos telefones enquanto eu estiver no escritório do advogado”. Ele, John, Joel e Artie estavam em reunião com o advogado, Paul Marshall, para discutir as opções disponíveis. Enquanto ele estava fora, um cara ligou dizendo: “Meu nome é Elliot Tiber, eu tenho uma propriedade e nós queremos vocês em White Lake!”. Eu disse: “É mesmo? Vamos já para aí!”. Liguei para Michal imediatamente, e em alguns minutos ele me buscou para irmos até lá. Assim que recebi a notícia de Ticia, liguei para Mel e Stanley e disse a eles que me encontrassem no endereço informado a Ticia, no El Monaco Motel, em White Lake. Meu único luxo da Woodstock Ventures, um Porsche 912 de 1969, que aluguei por toda a duração do projeto, conseguia chegar no local em cerca de 90 minutos. Ticia e eu voamos pela New York State Thruway até a rota 17, depois pela rota 17B e a estrada rural 52. Nosso destino nas Catskills – o município de Bethel, no condado de Sullivan – trouxe lembranças das férias em família que passei lá na infância. Seguindo as instruções de Elliot, estacionamos num dos hotéis de beira de estrada de aparência mais sofrível que já vi. O letreiro caído dizia EL MONACO, então sabíamos que estávamos no lugar certo. Um cara gordinho de uns 30 e poucos anos veio nos receber, apresentando-se como Elliot Tiber. Descobri que seu nome real é, na verdade, Eliyahu Teichberg e que ele cresceu em Bensonhurst, muito perto de mim. Ele nos contou que o hotel pertencia a seus pais e que só dois dos 80 quartos estavam ocupados. Em dado momento, uma senhora judia, aparentemente doida, com um sotaque russo carregado, correu para fora e começou a trocar berros com Elliot. Tratava-se da mãe dele. Apesar de levar bronca dela, Elliot se manteve alegre e animado. Ficou óbvio que aquele tipo de coisa acontecia entre eles o tempo todo. Elliot parecia fora de si de alegria em nos ver e determinado a se envolver com o festival de alguma forma. Começou a falar sobre um teatro que construíra num celeiro na propriedade. “Realizo um festival de teatro todo verão”, contou-nos, “e já tenho a licença para a produção deste ano, então vocês já têm a sua licença!” Uma trupe off-off-off-Broadway, a Earthlight Theatre, passou quatro meses lá,
dormindo num alojamento deplorável na propriedade. Decidimos esperar por Mel e Stan, que estavam dirigindo os 56 quilômetros de Wallkill até lá para nos encontrar, antes de ver o local. Quando eles enfim chegaram, dissemos: “OK, Elliot, vamos ver o que você tem aí!”. “Venham comigo! É um anfiteatro natural e perfeito para o festival!”, prometeu Elliot, com um sorriso largo. Dando a volta em torno do hotel, passamos por todos os tipos de placas feitas à mão em diferentes edifícios em condição precária, batizados com o nome de diversas celebridades, como Jerry Lewis e Elvis Presley. Alguns bangalôs espalhados por ali estavam caindo aos pedaços, e havia uma piscina vazia cheia de entulho. À medida que caminhávamos em direção a um prado em declive, o solo parecia encharcado e molenga sob minhas botas. Isso não parecia um bom presságio. Começamos a descer uma inclinação gradual, direto para um grande pântano coberto por vegetação irregular e tocos de árvores. Enquanto nos arrastávamos, perguntei, com medo da resposta: “Então, falta muito para chegar até o local?”. “Vocês estão nele!”, respondeu Elliot, abrindo os braços grandiosamente. “É claro, podemos passar uma escavadeira e secar tudo isso aqui.” “É esse o lugar que estávamos esperando para ver?”, Mel explodiu com Elliot. “Que idiota! O que você pensa que está fazendo? Você realmente acha que podemos usar isto aqui?” Concordei da maneira mais diplomática que pude. “Isso não vai funcionar de jeito nenhum.” Quando voltamos à recepção do hotel, perguntei a Elliot: “Talvez tenha alguém que possa nos mostrar a região?”. “Vou ligar para um amigo”, ofereceu Elliot, reanimando-se um pouco depois de parecer bem cabisbaixo. “Ele trabalha no mercado imobiliário.” Stan foi embora, mas Mel decidiu ir comigo e Ticia. Depois de cerca de meia hora, um sujeito com pinta de malandro chamado Morris Abraham chegou num grande Buick. Ele teria prazer em nos levar para ver algumas propriedades. A alguns quilômetros do hotel de Elliot, dirigimos pela rota 17B por entre terras magníficas – é uma região agrícola absolutamente maravilhosa, com pastos abertos por todos os lados. Viramos à direita para sair da 17B e pegar a Hurd Road. Depois de cerca de meio quilômetro, alcançamos o topo de uma colina, e lá estava. “PARA O CARRO!”, gritei, mal podendo acreditar no que estava vendo. Era o terreno dos meus sonhos, o que eu vinha esperando desde o início. Não me
passou despercebido o fato de que tínhamos saído de Wallkill para chegar em Bethel, “a Casa de Deus”1. Saí do carro e caminhei até aquela perfeita bacia verde. Na base, uma elevação só esperando pelo nosso palco. Os outros se juntaram a mim. Mel, Ticia e eu trocamos olhares maravilhados. “A quem pertencem essas terras?”, perguntei a Abraham. “Max Yasgur”, respondeu ele. “Ele é o maior produtor de laticínios do condado. Tem dez fazendas e mais de 800 hectares. Posso ligar para ele e ver se ele tem interesse em alugar o terreno para vocês.” “Sim, vamos fazer isso”, eu disse. Precisei me esforçar para permanecer calmo. Não queria parecer empolgado demais na frente daquele cara. Passamos por uma placa que dizia HAPPY AVENUE, e dirigimos até chegar a um orelhão, de onde Abraham falou com Max. De lá, fomos para a casa dele – uma simples casa de campo branca – e conhecemos Miriam e Max Yasgur, um casal bonito, na faixa dos 40 anos. “Essas pessoas estão interessadas em alugar algumas terras suas, Max, para fazer um festival de música”, explicou Abraham. O rosto de Max expressava uma inteligência afiada, e ele me olhou nos olhos. “Vocês são o pessoal que perdeu o local em Wallkill, não?” Preparei-me para o pior, quando ele acrescentou: “Acho que fizeram uma grave injustiça com vocês lá, jovens. Sim, vou lhes mostrar as minhas terras. Podemos conseguir um bom negócio pro seu festival de música”. Max entrou no carro conosco e Morris disse a ele que tínhamos visto o campo saindo da Hurd Road e gostaríamos de começar por lá. Enquanto dirigíamos, Max apontava algumas das terras que possuía. Meu coração estava batendo tão rápido, que eu torcia para que ninguém ouvisse. Chegamos de volta ao terreno e eu pedi a Ticia e Mel que aguardassem no carro e mantivessem Morris ocupado enquanto Max e eu caminharíamos até o que, na minha cabeça, já tinha se tornado um lar. “Max, podemos conversar sobre esse terreno?”, perguntei. “Este é o lugar perfeito para nós. É do tamanho e do formato certos, tem pontos de vista ótimos e um clima ótimo.” Alguma coisa na postura de Max me dizia para ser completamente franco com ele: “É como se fosse feito para nós”. Eu queria fechar negócio bem ali, no campo. Caminhamos até a elevação acima da bacia. “Quanto de terra você diria que precisa?”, perguntou ele. “Bom, além desse terreno e o que você tiver ao redor dele, precisamos de mais 240 hectares, incluindo espaço para camping e estacionamento”, respondi. “Ainda tenho uma safra de alfafa crescendo aqui e safras em vários outros
campos também”, disse Max. “O quão cedo você precisa dessas terras?”. “Agora seria cedo demais?”, perguntei com um sorriso. Max riu e sacou um lápis do bolso da camisa. Molhou a ponta do lápis com a língua e começou a rabiscar números num caderninho. Um cara astuto, calculou quanto perderia na safra e quanto custaria para replantar o campo. Quando ele chegou a um resultado para a bacia, me pareceu um preço justo e eu disse sim de imediato. Concordamos que ele calculasse o valor pelos outros terrenos da mesma forma, levando em consideração se ele conseguiria ou não fazer a colheita antes que precisássemos preparar as terras. Seria uma soma considerável, mas eu sabia que aquelas terras eram o nosso Woodstock – e Max era nosso salvador. Quando nos cumprimentamos, só então percebi que ele tinha apenas três dedos na mão direita. Mas seu aperto de mão era forte como ferro. Ele cuidou destas terras sozinho, pensei. * * *
SEM MAX YASGUR, NÃO HAVERIA WOODSTOCK. Max era conhecido no condado de Sullivan como um homem de palavra e força de vontade. Crescera numa fazenda com uma pensão, que recebia hóspedes no verão. Seu pai morreu quando ele era adolescente, então ele se tornou o chefe da família. Estudou direito imobiliário na minha alma mater, a NYU, mas seu sonho era expandir a propriedade da família e criar a Yasgur’s Dairy, a maior produtora de leite do condado de Sullivan. Continuou a comprar fazendas e terras, criando seu rebanho leiteiro, até atingir seu objetivo. Desenvolveu rotas de entrega e construiu um enorme complexo refrigerado e uma indústria de pasteurização. Todo esse trabalho duro, porém, teve seu custo, e quando o conhecemos, Max já tinha sofrido três ataques do coração. Havia um tanque de oxigênio à disposição dele o tempo todo, e uma tenda de oxigênio em seu quarto. Liguei para John e Joel para contar a novidade a eles: estávamos de volta ao
jogo – tínhamos o lugar perfeito para o festival. John ficou cautelosamente otimista no telefone, mas concordou de imediato em vir até Bethel no dia seguinte para os acordos finais com Max. Eu esperava que ele e Joel reconhecessem aquele milagre quando vissem as terras com os próprios olhos. Liguei então para Artie e Joyce Mitchell e pedi que avisassem a todos que tínhamos um lar. Liguei para Stan e pedi que reunisse todos os mapas que tínhamos e voltasse para Bethel assim que possível. Mel retornou a Wallkill para organizar a mudança, de forma que os caminhões pudessem começar a transportar tudo na segunda-feira. No dia seguinte, John e eu nos encontramos com Max, seu filho Sam, que era advogado, e seu gerente do banco. Concordamos com um valor de US$ 50 mil, mais US$ 75 mil como depósito de caução para cobrir quaisquer danos que pudessem ocorrer, e John trouxe cheques preenchidos com esses valores. Depois de negociar os demais termos do aluguel, incluindo o que podíamos e o que não podíamos fazer com a terra, assinamos o contrato às 22 horas daquele dia. MIRIAM YASGUR: Michael leva uns 15 ou 20 minutos para te encantar, e depois
de conversarmos com ele por um tempo, ele realmente nos deixou tranquilos. Explicou como o festival seria, e fez parecer que seria muito simples e nada tão grande. Ele tem um jeito de atrair simpatia – acho que ele é um malandro nato. Mesmo você sabendo que está sendo levado na conversa, não há como não gostar dele. John passou a impressão de uma pessoa muito correta, e provavelmente um dos jovens mais honrados que já conheci. JOHN ROBERTS: Depois que o negócio foi fechado, estávamos voltando para
Nova Iorque, e, Michael Lang, como de costume, teve a palavra final. “Sabe”, disse ele, “quando começarmos a trabalhar naquele pasto, vai ter tanta coisa acontecendo, que vamos perder a conta das provisões contratuais que violamos.” “É claro”, acrescentou ele, depois de uma pausa considerável, “que Max provavelmente vai perder a conta também.” JOEL ROSENMAN: Max queria se assegurar de receber aqueles US$ 50 mil antes
que algum outro fazendeiro recebesse. Dito isso, vou dizer o seguinte sobre Max: ele nunca pediu nem um centavo a mais de nós depois que o pagamos. Na sexta-feira, 17 de julho, os jornais começaram a noticiar que estávamos
nos mudando para White Lake. A princípio, Max foi discreto, dizendo à imprensa que ainda estava decidindo se alugaria as terras para nós, mas eu sabia que aquele aperto de mão era a garantia dele. Era um homem íntegro e idealista. Não creio que sua única motivação tenha sido o dinheiro. Max alugaria as terras para nós para nos dar uma chance justa de realizar nosso sonho, da mesma forma como ele havia feito com o leite. Mostramos a ele todos os nossos mapas e projetos detalhados para Wallkill, e ele ficou impressionado com nossa diligência, afinal, não era algo simplesmente jogado. Ele queria ser pago por suas terras, mas em troca nós também ganhamos sua lealdade. Ainda tínhamos de nos reunir com as autoridades de White Lake e obter as licenças necessárias. Depois do que havíamos passado, estávamos nervosos quanto a isso. Max prometeu nos ajudar o máximo que pudesse, e no fim de semana tivemos uma reunião preliminar com o supervisor da cidade de Bethel, Daniel Amatucci. Ele achou que não haveria problemas, mas marcou uma reunião especial para nós na Câmara Municipal na segunda-feira, 21 de julho. Nos movíamos o mais rápido possível. Enquanto as autoridades de Wallkill estavam preparando uma ordem judicial para cessarmos as atividades da Woodstock Ventures, no intuito de nos expulsar da propriedade de Mills, já estávamos bem longe de lá. Imagine fechar a porta do estábulo depois que o cavalo fugiu! Começamos a esvaziar o celeiro e a transportar os móveis, arquivos e suprimentos para White Lake. Fiz um acordo com Elliot para alugar o hotel inteiro durante o período do festival até setembro, e assim ajudei a salvar o El Monaco da falência. O hotel também virou um ponto de venda de ingressos. Montamos os escritórios em três quartos fuleiros, e nós e parte da equipe nos instalamos nos restantes. Também montamos um quartelgeneral do festival no prédio antigo da companhia telefônica de Nova Iorque, no vilarejo vizinho de Kauneonga Lake. Perto da propriedade de Max, Penny encontrou um hotel abandonado chamado Diamond Horseshoe, que poderia abrigar uns cento e cinquenta trabalhadores. Precisava de algumas reformas para ficar habitável, mas os proprietários alugaram por uma merreca. Chris Langhart e seu time começaram a fazer os reparos suficientes para termos água encanada e energia elétrica, mas não muito mais do que isso. Na segunda-feira, já estávamos contatando a companhia de energia, a telefônica e outros fornecedores, para trazer energia elétrica e comunicações para a propriedade. Jim Mitchell pediu alguns trailers para uso da produção no local, perto do ponto onde o palco seria construído. Na propriedade de Mills, nosso plano era trazer água em caminhões-pipa, mas as terras de Max,
convenientemente, eram adjacentes a um pequeno e límpido lago chamado Fillipini’s Pond. * * * No dia 19 de julho, o Kingston Freeman publicou: A Woodstock Ventures contatou duas fontes no condado de Sullivan a respeito de realizar o evento na região. O Freeman falou com Max Yasgur, dono de uma fazenda de 800 hectares, no Município de Bethel, que confirmou [...] o possível uso de sua propriedade como local do evento. Yasgur afirmou que ainda não tinha decidido se disponibilizaria ou não sua propriedade, mas acrescentou que espera tratar nesta noite com representantes do evento. O mistério em torno desse festival sem-teto aumentou hoje, quando um morador do Município de Bethel afirmou que realizará uma coletiva de imprensa na segunda-feira para revelar informações sobre um “Festival de Música em White Lake”. Elliot Tiber se recusou a confirmar rumores de que a Exposição Aquariana e que o Festival de Música de White Lake seriam a mesma coisa. Embora eu devesse muito a Elliot pelo telefonema que nos trouxe até aqui, a última coisa de que precisávamos agora era de um disparo de canhão. Cancelei a coletiva de imprensa e disse a ele que, se abrisse a boca de novo sem o meu conhecimento, sairíamos de seu hotel num piscar de olhos. Eu não queria ninguém queimando a largada e anunciando nada antes que estivesse tudo resolvido com a Câmara Municipal. Outro problema chegou a nós graças ao nosso agente imobiliário, Morris Abraham. Ele me disse que precisávamos arrumar US$ 10 mil para algumas autoridades anônimas, se quiséssemos nos assegurar de que todas as aprovações e licenças necessárias fossem concedidas. Planejávamos pagar a ele uma comissão por nos levar até Max, mas isso cheirava a extorsão. Senti que, se fizéssemos esse pagamento, mancharíamos a empreitada toda e isso de alguma forma voltaria para nos pegar. O carma opera em todas as direções. Stan e eu conversamos sobre a questão e decidimos informar Max do que estava acontecendo. No caminho, concordamos que, em vez de pagar Morris e seu comparsa na câmara, seria mais sábio doar o dinheiro a um hospital local, como sinal de nossas boas
intenções.
Rona Elliot faz uma pausa para comprar joias. © HENRY DILTZ
Quando contei a Max do pedido de pagamento, ele estourou. “De jeito nenhum vocês vão ser subornados por Morris Abraham! Vou descobrir quem está por trás disso e garantir que não haja obstáculos para o seu festival. E, se houver, vou tornar pública essa tentativa de suborno!” Max tinha se tornado nosso mais ferrenho aliado. Gostou também da nossa ideia de doar o dinheiro ao hospital, e nós prometemos cumprir com isso. John concordou e a doação foi feita ao Bethel Medical Center. * * * No domingo, 20 de julho, fizemos uma pausa nos preparativos para nossa reunião na prefeitura para assistir ao pouso lunar e ver Neil Armstrong andar na lua. Que ironia! Os EUA estavam colocando um homem na Lua, e nós só
estávamos tentando conseguir pousar na Terra. Na noite da segunda-feira, Don Ganoung, Mel, Stan e eu chegamos para a reunião com o supervisor Dan Amatucci, o conselho municipal de Bethel e o conselho de zoneamento de Bethel. A sala era minúscula, e todos nós sentamos juntos, ao redor de uma mesa. Apareceram alguns moradores da cidade, mas só havia espaço para uns poucos de pé. Alguns assistiram por uma janela aberta. Mel apresentou um mapa rapidamente desenhado das terras de Max, que foi entregue à comissão de zoneamento. Identificamos o terreno onde gostaríamos de realizar o festival: 4,8 quilômetros a oeste de White Lake, num quadrante cercado pela rota 17B, a Perry Road, a Hurd Road e a West Shore Road. Contratamos um advogado do condado de Sullivan, Richard Gross, que disse aos membros da comissão que fora informado pelo procurador do município de Bethel, Frederick Schadt, que não havia problemas de zoneamento: a propriedade de Max era classificada como comercial e agrícola. Prometemos encaminhar os projetos das construções assim que possível para a aprovação da comissão. Max foi bem eloquente em nosso favor, clamando à comissão que aprovasse o festival: “Tudo o que eles pedem é jogo limpo. Se formarmos uma barreira contra aqueles que querem deixar o cabelo crescer, podemos muito bem formar uma barreira parecida contra aqueles que usam casacos longos ou frequentam uma igreja diferente da nossa”. “Eu não me oponho a nada, se estiver na legalidade”, anunciou Amatucci, depois de nossas falas. “Qualquer um será bem recebido na cidade se obedecer à lei, tiver boas maneiras e viver dentro da lei. Quem fizer isso não terá problemas.” Depois de 3 horas de discussão, aguardamos a votação do lado de fora da prefeitura. Enquanto nosso destino era selado naquela sala, sentei-me sozinho na escadaria do prédio, refletindo sobre aquilo que deveria ser algum tipo de intervenção cósmica que, apenas horas depois de termos sido expulsos de Wallkill, nos levou a um homem como Max Yasgur e a esse lugar perfeito. Apenas coincidência ou sorte não eram explicações suficientes. Era algo de carma. Era para nós estarmos ali. Ao olhar para a bandeira americana flamulando no pórtico acima de mim, eu sabia que teríamos as aprovações necessárias. Ambas as comissões votaram unanimemente a nosso favor. Logo depois da reunião, Don Ganoung disse à imprensa: “Eles nos deram o sinal verde. O festival acontecerá como planejado! Estamos todos muito animados. Superamos o maior obstáculo que se pode imaginar”.
* * * Na reunião, enfatizamos nosso desejo de envolver os negócios locais no festival. Os membros da pequena comunidade comerciária de White Lake nos receberam de braços abertos. Ken Van Loan, dono de uma oficina mecânica e presidente da Associação de Empresários de Bethel, disse à imprensa: “Esta é a melhor coisa que já aconteceu ao condado de Sullivan. É uma injeção de ânimo na economia da cidade. O festival vai impulsionar dinheiro a ser gasto em Bethel com hospedagem, alimentação e manutenção automobilística”. Depois, ele estimou que gastaríamos US$ 200 mil em Bethel nos primeiros dez dias de nossa estadia lá. A população de Bethel era de apenas 2.366 habitantes. Aquela região do condado de Sullivan passava por tempos difíceis, depois do auge como estância turística nas décadas de 1940 e 1950. As famílias passaram a optar por destinos mais exóticos para as férias de verão. O turismo e a agricultura continuaram a ser as principais fontes de renda da região. Ainda havia alguns grandes hotéis perto da cidade de Liberty, que atendiam a turistas judeus bem de vida vindos de Nova Iorque – como o Neville, o Grossinger’s e o Concord –, mas a zona rural era pontuada principalmente por colônias de chalés derrubados e hotéis fracassados. O vilarejo de Monticello, ali perto, tinha um hipódromo, mas que não se podia dizer que era uma atração próspera. Parecia que Bethel precisava de nós tanto quanto precisávamos dela. Nem todo mundo ficou contente com a nossa chegada. Na noite de domingo, uma grande placa de compensado com dizeres toscamente escritos tinha sido colocada na estrada ao lado da entrada da propriedade de Max: NÃO AO FESTIVAL DE MÚSICA HIPPIE DE MAX – NÃO AOS 150 MIL HIPPIES AQUI! NÃO COMPREM LEITE. Não era um bom presságio para nós. Mas quando Max viu a placa, isso só fortaleceu a determinação dele em ajudar a tornar nosso festival uma realidade. Isso dava uma medida de quem ele era. Todos os jornais locais publicaram matérias sobre nosso ressurgimento das cinzas. “Comparando a nossa recepção aqui com a que tivemos no Município de Wallkill”, Rona teria dito numa citação, “estamos maravilhados! Temos recebido uma cooperação fantástica do condado, do município e das autoridades.” Paul Marshall disse ao Newsday que a mudança do festival custaria cerca de US$ 100 mil. Outro jornal noticiou que tínhamos vendido 70 mil ingressos. Quando esses números foram publicados, Dan Amatucci começou a lidar com telefonemas de
moradores locais preocupados, cerca de vinte por dia. “Vai ser pior que gafanhoto em plantação”, um morador disse ao Times Herald-Record. Até aqui, porém, nenhuma ameaça de ação legal. Max continuou a se expressar em nosso favor: “São uns garotos muito bons, e eu os tenho por bem-vindos”, disse ao Record Call, de Hackensack. “Sou de uma geração diferente, que fazia outras coisas [...]. Só porque um rapaz usa cabelo comprido, não significa que ele vai violar a lei. Não acredito nessa bobagem. Isso vai ser algo diferente, mas não tenho temor algum.” Para apaziguar os temores de outros moradores, publiquei uma declaração: “Pode ter havido um equívoco quanto ao número total de pessoas a comparecer ao festival. O número de 150 mil informado será o público total ao longo de três dias, com possivelmente 50 mil pessoas por vez”. Isso não foi sincero, mas necessário naqueles primeiros dias em Bethel. “Se os moradores das áreas imediatas estão preocupados quanto à proteção de suas propriedades”, Wes assegurou aos vizinhos inquietos, “colocaremos equipes de segurança em seus lares 24 horas por dia.” Informamos, ainda, que helicópteros seriam usados para o controle de trânsito, bem como para transportar quem precisasse ser levado ao hospital. Ambulâncias, médicos e enfermeiras estariam no local durante todo o tempo. Sabíamos que tínhamos de nos mover a todo vapor para erguer o festival, não só para estar tudo pronto a tempo dos shows, mas também para chegar num ponto em que nada nem ninguém mais pudesse nos parar. Era como um assalto: entre, levante-se e pegue tudo antes que alguém tenha a chance de impedir. JOHN ROBERTS: Quando Max entrou na jogada, isso meio que liberou um impulso de generosidade da nossa parte, então nós simplesmente começamos a gastar. As coisas estavam acontecendo rápido demais para pensarmos em termos de lucro e prejuízo. Juro que nunca pensava em lucro e prejuízo. Só pensava em fazer a coisa acontecer, e, em retrospecto, consegui determinar por que fui tão displicente no meu pensamento naquele momento. Foi porque eu contemplara o abismo de uma aniquilação total na semana anterior! Os US$ 750 mil que tínhamos gastado até 1º de julho já eram, e, além disso, teríamos de estornar cerca de US$ 600 mil de ingressos devolvidos, então, comparado a um banho de US$ 1,3 milhão, todo o resto parecia uma enorme queda d’água. Nós [não mais] estávamos fazendo os cálculos de qual seria a renda. Caso contrário, não haveria festival, e podíamos esperar que, qualquer que fossem os direitos complementares, qualquer número de ingressos vendidos nos traria retorno. Toda semana somávamos dezenas de milhares de dólares em ingressos vendidos,
então sempre tínhamos o suficiente para nos manter até a última semana, quando nos mudamos para White Lake, e então ficamos com gastos enormes e nenhuma renda. Alguns dos gastos não foram previstos. O orçamento original voara pela janela. Tudo começou ao mesmo tempo no local. Tínhamos vinte e oito dias para construir o que normalmente levaria três meses. Na segunda e na terça-feira, 21 e 22 de julho, os caminhões começaram a chegar com os materiais de construção, e nós concluímos o layout do local. Convencemos a companhia de energia elétrica a puxar cabos de energia a 120 quilômetros dali. O representante local da companhia telefônica resistiu ao nosso pedido de várias linhas para os trailers da produção, a área do backstage e o escritório da segurança, sem falar nas centenas de orelhões que queríamos para a área das concessões. Por fim, Chris Langhart ligou para um executivo de uma companhia telefônica que ele conhecia em Ohio, que então veio até nós para prestar consultoria. Nesse papel, ele conseguiu pressionar a telefônica local a realizar esse trabalho impossível dentro do tempo que nos faltava, e eles trouxeram oito equipes para fazê-lo. A instalação das linhas telefônicas nos custou cerca de US$ 20 mil, mas a Bell2 de Nova Iorque realmente fez fortuna com as milhares de ligações a cobrar feitas pelo público nos orelhões durante o festival.
Max Yasgur (à esquerda, com o cachimbo) e eu. © BILL EPPRIDGE
Todo mundo estava se movendo como se estivesse possuído. Nossa prioridade era estabelecer vias e instalar os sistemas de encanamento. Max não queria canos subterrâneos, o que complicava tudo, mas Chris Langhart descobriu um jeito de contornar isso. Era como esquematizar e instalar uma infraestrutura para uma cidade, algo imenso para se construir em um mês. Conseguimos ainda permissão de Max para cavar vários poços para ajudar no suprimento de água. MEL LAWRENCE: Arrumamos um bruxo da água, que era um cara albino com
um cajado de adivinhação, e ele tocava em tudo. Acho que encontramos água em cinco de oito tentativas. Wes começou a trabalhar na nova disposição do estacionamento. Percebemos que precisaríamos alugar mais terras ao redor daquela área para os estacionamentos, pois esperávamos usar o sistema elaborado para Wallkill de
levar pessoas de ônibus até o local. No fim, gastamos mais US$ 25 mil no aluguel dessas terras. Um escritório de contratação foi montado no El Monaco, consistindo apenas de umas mesas na parte da frente da recepção. Parecia que todo mundo que morava num raio de 150 quilômetros dali, tinha menos de 30 anos e sabia usar um martelo apareceu para se candidatar para trabalhar. Contratamos aproximadamente setenta carpinteiros e trabalhadores braçais para erguer o palco de 21 x 24 metros, as torres de iluminação e de som, o pavilhão dos artistas e cerca de cinquenta estruturas de concessão. Em questão de um ou dois dias, tínhamos mais de duzentos trabalhadores preparando a terra e as áreas de camping, incluindo o primeiro grupo dos Hog Farmers, que chegara ao Road Hog. Algumas semanas depois, esses números aumentariam para mais de mil. Chip Monck e Steve Cohen chegaram com suas plantas e seus projetos. Steve designou seu assistente, Jay Drevers, um carpinteiro do Fillmore de 21 anos, como mestre de obras para a construção do palco. Mel conseguiu o desvio de todos aqueles postes telefônicos até White Lake. Assinamos contrato com uma firma de coleta de lixo, que usaria compactadores para tratar o lixo antes de levá-lo embora, e fizemos um acordo com a Portosan, para fornecer e tratar os banheiros químicos. Desde os primeiros dias, o mau tempo atormentou nosso progresso em Bethel. A chuva complicava a poda e a limpeza dos campos e freava a construção das vias. Alguns trechos tinham de ser refeitos três ou quatro vezes, já que a passagem simplesmente afundava na lama depois de um temporal mais forte. Membros das equipes de trabalho se arrastavam pela lama e pela grama alta, molhados até os joelhos. “Os garotos não se importam com isso”, disse Rona a um jornal. “É parte das coisas deles, da mesma forma que alguns caras gostam de caçar ou pescar na chuva.” MEL LAWRENCE: Nós éramos uma equipe realmente muito unida. Havia caras
cortando árvores para que construíssemos os estandes de comida, caras erguendo o palco, caras abrindo passagens pela mata. Todo mundo num esforço mútuo. Tentei dizer a eles que o carma era o que nos sustentaria ao longo disso. Se tratássemos a terra, que era tão bela, com respeito – sem passar com nossos caminhões por onde as pessoas ficariam, e sim usar as estradas –, o carma voltaria para nós. Todo mundo se convenceu disso. E chovia absurdamente o tempo todo. Todo mundo tomava injeções de vitamina B12 toda semana na clínica
local. Era ótimo!
Eu acordava de manhã e havia 150 coisas impossíveis para executar naquele dia. Eu as resolvia uma por uma, e então acordava no dia seguinte e começava tudo de novo. Eu acordava de manhã e havia 150 coisas impossíveis para executar naquele dia. Eu as resolvia uma por uma, e então acordava no dia seguinte e começava tudo de novo. Prendia-me ao momento presente, assim a pressão não tomaria conta de mim. Adorava o desafio e o balé de todas aquelas peças se movendo. Com o tempo, aconteceu com quase todo mundo. Quando alguém da equipe saía vagando pelo bosque, balbuciando: “Chega, não aguento mais. Está tudo em cima de mim e nós não vamos conseguir nunca!”, eu os trazia de volta dizendo: “Sei que é difícil e que há muita pressão, mas não é só sobre você. É sobre todos nós. Acredite, juntos nós vamos conseguir terminar isso aqui”. Todo mundo sabia o que estávamos enfrentando. Os homens da companhia telefônica trabalhavam 24 horas para nós; a companhia de energia elétrica fazia o mesmo. Todo mundo realmente arregaçou as mangas, da melhor forma possível. Era contagiante. Dado o tempo que tínhamos, era uma tarefa de proporções heroicas, e todo mundo se mostrou à altura da ocasião. JOEL ROSENMAN: Michael conseguiu um pessoal bom. Ele não tinha certeza,
creio eu, de quem precisava, então contratou talvez o dobro do pessoal necessário, e nós pagamos talvez mais do que precisávamos. Mas acho que é crédito dele ter reunido um grupo de pessoas que deu o máximo de si ao que era necessário para realizar o projeto. Do escritório em Nova Iorque, começamos a notificar empresários e agentes sobre a mudança do local e acrescentamos uma cláusula referente a isso no contrato. A maior parte dos artistas ficou tranquila quanto a isso, embora o Creedence Clearwater Revival tenha mandado um recado por meio de seus agentes que “não queria tocar num pasto de gado!”. Felizmente eles mudaram de
ideia. O Jeff Beck Group cancelou, não por causa da mudança de local, mas porque tinham acabado depois que o vocalista, Rod Stewart, decidiu se juntar aos Faces. Acrescentamos mais alguns artistas de blues rock: o texano Johnny Winter, um guitarrista de slide incrível; a Keef Hartley Band, da Inglaterra (Hartley era um baterista que tinha tocado com John Mayall); e outro grupo britânico, o Ten Years After, com Alvin Lee, o guitarrista mais rápido do pedaço. Também contratei o Mountain, um novo power trio formado pelo grande produtor Felix Pappalardi, que tinha trabalhado com o Cream e os Youngbloods, entre outros. Pappalardi tocava baixo e Leslie West era o frontman, com uma voz imensa e um estilo de guitarra eletrizante. Todas essas eram bandas inspiradas pelos bluesmen originais, como Robert Johnson e Muddy Waters. No Scene de Steve Paul, descobri um grupo meio retrô, estilo anos 1950, chamado Sha Na Na. Um bando de estudantes da Columbia University que tocava clássicos do rock and roll e se vestia como na década de 1950. O nome era inspirado num verso do velho sucesso de doo-wop “Get a Job”. Usavam brilhantina no cabelo e faziam coreografias. Achei que eles seriam algo divertido a acrescentar, ao afirmarem nossas raízes no rock and roll enquanto dessem ao público uma oportunidade de relaxar. Fui até o backstage para vê-los depois do show e ofereci a data. A essa altura, todo mundo estava sabendo de Woodstock e eles ficaram extasiados com o convite. Assinei com Sly and the Family Stone por meio de Hector Morales. Eu adorava o som deles – rhythm and blues e soul com pegada de rock –, e as letras de Sly eram muito profundas. Foi um dos primeiros artistas que contratamos, mas eu o dispensei porque ele vinha ganhando uma má reputação por cancelar shows. Hector me garantiu que Sly vinha cumprindo as datas de verão e que Woodstock era importante para ele, então recontratei a banda e esperei pelo melhor. Achávamos que tínhamos o Moody Blues no line-up também, mas o empresário deles nos escreveu dizendo que “um álbum que está sendo gravado [...] em Londres não está saindo muito bem” e que o grupo teria de cancelar a vinda aos EUA para concluí-lo. Enquanto tudo estava indo pelos ares em Wallkill, eu recebi uma carta da Apple Corps Ltd. Embora John Lennon ainda não pudesse entrar no país, eles me ofereceram dois de seus novos artistas: James Taylor e Billy Preston. A Apple queria enviar também um filme experimental para nós projetarmos e uma instalação de plástico prateada para representar a Plastic Ono Band. Devido à bagunça na busca por um novo local, a carta ficou juntando pó no escritório local
e não recebeu minha devida atenção até ser tarde demais. Tudo isso teria sido um acréscimo ótimo àquele fim de semana – até mesmo a aparição conceitual da Plastic Ono Band. Os rumores sobre Woodstock corriam soltos. Depois do fiasco de Wallkill, vários jornais noticiaram que Lennon e possivelmente Dylan estariam lá, mas agora precisávamos espalhar a notícia de que o show ainda estava valendo. A Wartoke fez alguns telefonemas e enviou uma enxurrada de releases de imprensa para centenas de jornais, comunicando a mudança de local. JANE FRIEDMAN:
Àquela altura, éramos questionados constantemente por todo mundo sobre o que aconteceria com Woodstock. Não queríamos que isso morresse, então mantínhamos as informações circulando a cada dia. Quando ficou controverso, tentamos engajar as pessoas a tomar um lado. Foi uma campanha brilhante. Como viramos notícia nacional por conta disso, sermos expulsos de Wallkill foi provavelmente o maior empurrão publicitário que poderíamos ter tido. Para aproveitá-lo ao máximo, decidimos criar um anúncio para publicar no New York Times, no Daily News e em outros jornais, explicando o que havia acontecido e dando informações sobre nossa nova localização. Encomendamos uma caricatura a Arnold Skolnick com dois caipiras portando espingardas ao lado de uma garrafa de Moonshine. O anúncio saiu por uma semana, a partir de 25 de julho. Hoje, parece um pouco pesado demais, embora tenha sido engraçado. Provavelmente ajudou a vender alguns milhares a mais de ingressos. Alguns dias depois, em 28 de julho, foi realizado um show beneficente no Village Gate para levantar fundos para bolsas que permitissem a “artistas do gueto” (os precursores dos grafiteiros) exporem em Woodstock. Era parte do programa de artes que planejamos, buscando artistas de todos os tipos para exibir e vender sua arte no festival. Entre os que se apresentaram no show estavam Marian McPartland, Les McCann e Roberta Flack. John Morris também teve a ideia de trazer artistas indígenas do Novo México no avião que havíamos fretado para transportar a Hog Farm. Entramos em contato com alguns membros da tribo Hopi, que concordaram em embarcar no dia 7 de agosto com Hugh Romney e os demais. O dia 28 de julho também marcou a data da nossa primeira coletiva de
imprensa em White Lake, bem como outra reunião na prefeitura com a polícia, as autoridades locais e os representantes do departamento estadual de saúde. Foi uma semana absurdamente movimentada desde que ganhamos o OK. Porém, os problemas começaram a espreitar novamente. Um grupo de moradores raivosos apareceu na prefeitura com sua variedade própria de petição do Comitê de Cidadãos Preocupados. Esse comitê incluía dois membros da comissão de zoneamento que tinham votado “sim” uma semana antes. Agora, conluiados com alguns dos vizinhos de Max e alguns outros locais, estavam chamando Woodstock de “um estorvo público, uma ameaça sanitária e propício a congestionamento de trânsito, com risco de incêndio e riscos sanitários”. Planejavam fazer o que pudessem para impedir a realização do festival. Passamos 8 horas respondendo perguntas e mostrando nossos planos às autoridades locais. Por fim, concordaram conosco que não havia tempo nem motivo para uma assembleia a respeito do nosso festival. No entanto, a celebração da nossa vitória durou pouco. No dia seguinte, recebemos duas intimações para nos apresentar ao juiz George Cobb, em Catskill. Um conjunto de quatro acampamentos de verão moveu uma ação contra nós, alegando que estávamos atrapalhando os negócios deles, e outro embargo foi pedido por proprietários de casas de veraneio vizinhas às terras de Max. “O aparente mar de rosas em que a Exposição Aquariana da Woodstock Ventures flutuava na semana passada se tornou uma mata densa”, como colocou o Times Herald-Record. Eu concordava em gênero, número e grau.
Uma escultura de madeira criada por Buster Simpson. © HENRY DILTZ
1. Referência ao contraste entre os nomes dos dois municípios: “Wallkill” se traduziria livremente em algo próximo de “muralha assassina”, ao passo que “Bethel” remonta à cidade bíblica de Betel, do hebraico BethEl, ou “Casa de Deus”. (N. do T.) 2. A companhia telefônica responsável. (N. do T.)
VIII BETHEL
“O que você faria se um garoto cabeludo lhe passasse um baseado?” “Eu o prenderia!” “Sinto muito, não podemos contar com você.” Numa sala acima do Ratner’s, ao lado do Fillmore East, estou observando o processo seletivo para a nossa Corporação de Serviços de Paz. Wes; Lee; Joe Fink, chefe do nono distrito no East Village; e John Fabbri, ex-chefe de polícia do sul de São Francisco, estão entrevistando centenas de policiais de Nova Iorque. Cerca de quinhentos passaram da primeira etapa, e estamos nos certificando de que eles têm a atitude certa para trabalhar em Woodstock. Não creio que tenha ficado cercado de tantos policiais desde as quase batidas no Coconut Grove. Só que, desta vez, a maioria deles está do nosso lado. Estamos gastando US$ 100 mil em segurança, incluindo os salários de John Fabbri, Wes Pomeroy, Don Ganoung e Jewell Ross, capitão da polícia de Berkeley aposentado. Esses são caras esclarecidos, que não perdem a calma ao lidar com grandes multidões de garotos, como aquelas que lotaram o Golden Gate Park durante os primeiros be-ins. Joe Fink também tem sido uma ajuda e tanto.
Eu, Chris Langhart e Ticia. © HENRY DILTZ
Wes contratou Jewell Ross para escrever um manual de conduta, e ele criou a Corporação de Serviços de Paz. Wes conseguiu também permissão do comissário de polícia de Nova Iorque, Howard Leary, para colocar avisos em todas as delegacias, convidando os policiais para trabalhar conosco. Todos os candidatos tiveram de preencher um questionário, e aqueles cujas respostas mostravam que tinham pensamentos alinhados com o que queríamos foram chamados para esse processo seletivo. Wes se dirigiu aos candidatos ali reunidos: “Queremos vocês para trabalhar num festival de rock, onde centenas de garotos estarão relaxados, tranquilos e vestidos de muitas maneiras diferentes. Vocês têm de estar confortáveis com isso. Não serão permitidas armas de nenhum tipo – nem armas nem cassetetes. Seu papel será ajudar as pessoas, e é o que vocês fazem na maior parte do tempo, de qualquer forma, como agentes de polícia. E, se os garotos precisarem saber como conseguir ajuda, vocês os ajudarão. Não esperamos que haja violência, mas pode haver pessoas que passem mal ou fiquem desorientadas, e queremos que vocês cuidem delas como qualquer policial faria nas ruas de Nova Iorque. É moleza ir até lá e não se preocupar em proteger a lei, OK?
Só sejam legais, e nós vamos pagar US$ 50 por dia para vocês serem legais”. Alguns policiais se levantam e vão embora. Porém, por fim, cerca de 350 pensam que esse é um ótimo meio de ganhar um dinheiro extra e passar um dia no campo. Lee tira as medidas deles para os “uniformes”, que serão calças boca de sino, uma camiseta vermelha estampada com a palavra PAZ na frente e o nosso símbolo com o violão e a pomba nas costas, um quebra-vento e um capacete de safári. * * * Contratei uma empresa chamada Intermedia Systems, comandada por Gerd Stern, para ajudar Wes e Don Ganoung a projetar os estacionamentos e fazer a logística dos campings. Conheci Gerd em 1966, quando ele forneceu alguns dos pôsteres de luz negra, fractais e outros itens que comprei para montar o estoque da loja na Flórida. Baseada em Boston, sua companhia tinha se expandido, e ele e sua equipe estavam produzindo também todas as placas de que precisávamos. Calculamos cerca de duzentas placas a serem dispostas pelo festival para guiar o público até as diferentes áreas e fornecer informações. A Intermedia, por sua vez, contratou Alton Kenley, o cartazista da Family Dog, de São Francisco, para supervisionar o design e a produção das placas no local. Ele montou uma pequena oficina de silkscreen e logo começou a criar cartazes com dizeres como POR FAVOR, DEIXE AS VACAS DO MAX MUGIREM EM PAZ e CAMINHO MANEIRO. Os coordenadores da Intermedia nos ajudaram a calcular o quanto de espaço precisaríamos para o camping, determinado pelo número de ingressos vendidos, e nossas terras continuaram a aumentar. Wes fechou contrato com uma companhia de aviação para colocar helicópteros e pilotos à disposição por todo o fim de semana do festival. Alugamos mais terras de um vizinho de Max atrás do palco para construir um heliporto, projetado por Chris Langhart. Quilômetros de luzinhas de Natal serviriam de iluminação ali e nas áreas de camping. As previsões de um público cada vez maior impactaram em muito o número de estandes de comida de que precisaríamos. Depois do fracasso em Wallkill, o Nathan’s tinha caído fora, e a opção de Peter Goodrich como último recurso era uma companhia improvisada chamada Food for Love. Peter conhecera Charles Baxter, Jeffrey Joerger e Lee Howard no Village; infelizmente, eles não tinham muita experiência no ramo da cozinha: Joerger vendia antiguidades, Howard tinha um estúdio de ensaios e Baxter reuniu os três
como o grupo responsável pela alimentação em Woodstock. O advogado deles arranjou um contrato desigual para nós. Forneceriam comida o bastante para 150 a 200 mil pessoas, mas teríamos de pagar US$ 75 mil de cara para cobrir os custos da comida, dos suprimentos e dos salários. Eles reembolsariam a Woodstock Ventures com o que tirassem na concessão, e então dividiríamos o lucro. Nenhum de nós gostou desse arranjo, mas não tínhamos muita escolha.
O campo de Max, faltando 8 dias para o festival. © HENRY DILTZ
JOHN ROBERTS: Apenas um deles tinha alguma experiência com serviços de
alimentação. Peter Goodrich disse basicamente: “Eles são a única opção por aqui. Já fizeram pedidos de pães de cachorro-quente e Coca-Cola e estão se equipando. Não acho que mais ninguém consegue vir para cá em duas semanas e fazer esse trabalho. Eles podem fazer. Ou ficamos com eles ou ficamos sem comida”.
Providenciar a alimentação para os artistas se mostrou uma tarefa mais fácil. Certa manhã, numa completa surpresa, uma limusine chegou ao El Monaco e dela desceu Barry Imhoff. Um cara grande, de quase 1,80 metro e 140 quilos, Barry tinha fornecido alimentação para eventos de Bill Graham. Tinha vindo de Nova Iorque para me mostrar seus produtos. Naquela hora do dia, havia talvez uns cem garotos aglomerados no estacionamento à procura de trabalho ou só curtindo. Foi uma cena bem pitoresca. Barry estava segurando uma mala e disse: “Adivinhem o que eu trouxe para vocês? Cheguem aqui até o carro!”. O pessoal se reuniu em torno da limusine, Barry apoiou a mala no capô, abriu e me mostrou o primeiro telefone portátil que vi na vida. “Se alguém no planeta precisa disto neste momento, é você!”, disse ele. Era quase como ficção científica. Percebi que aquilo era um aquecimento de Barry para o motivo real de sua visita: serviço de alimentação. Eu já estava desconfortável com todo aquele negócio de limusine – nada contracultural – quando ele abriu o porta-malas e, como se estivesse libertando um gênio da garrafa, levantou a tampa de uma enorme terrina de prata para revelar um assado monstruoso, sangrando e fumegando numa bandeja de prata. Os garotos se amontoavam enquanto Barry cortava fatias generosas de carne para distribuir para a multidão, pedindo sua aprovação. Aquele telefone definitivamente seria uma mão na roda, mas, no fim das contas, o rosbife de Barry perdeu para os omeletes de David “Potbelly” Levine, conhecido por seu restaurante em frente ao Fillmore. Embora Barry não tenha ficado com o serviço de alimentação do pavilhão dos artistas, Bill Graham pediria a ele para estocar seu trailer em Woodstock com um freezer cheio de filés. * * * No dia 7 de agosto, oitenta e cinco membros da Hog Farm, incluindo sete bebês e mais quinze artistas da tribo Hopi, vieram de Albuquerque no voo 281 da American Airlines, desembarcando no aeroporto JFK. A Wartoke transformou a chegada deles, num jato fretado, numa grande oportunidade de notícia. Repórteres lotaram o lugar, e Hugh Romney se mostrou um porta-voz estelar. HUGH ROMNEY: Não tínhamos noção da magnitude das coisas até chegarmos
ao aeroporto. Havia imprensa do mundo todo, uma parede inteira. Eles me
perguntaram se nós faríamos a segurança e eu pensei: “Ah, meu Deus, nós somos a polícia! Não acredito nisso!”. E, de primeira, disse: “Bem, você se sente seguro?”. E o sujeito: “Bom, com certeza”. E eu: “Bem, então está dando certo!”. Outro cara perguntou: “O que vocês vão usar para controlar a multidão?”. E eu disse: “Tortas de creme e garrafas de água tônica!”. Reparei que estavam todos tomando nota. Deus sabe o que mais foi discutido. Essa ideia de que a Hog Farm cuidaria da segurança surgiu a partir de um comentário inocente que Mel fez à imprensa uma semana antes. Nós nunca pedimos isso a eles e foi uma surpresa tanto para nós quanto para Hugh Romney quando o jornalista o questionou. Sempre pensamos que eles ajudariam a montar as coisas nas áreas de camping como guardiões da paz, mas que a segurança ficaria a cargo dos policiais de folga. Mesmo assim, o New York Post publicou algumas fotos da chegada da Hog Farm com a legenda: “Atuarão como força de segurança auxiliar, ajudando 346 policiais de Nova Iorque em férias, com salário de US$ 50 por dia, mais alojamento e refeições, a manter a ordem no festival, que espera atrair 100 mil pessoas por noite”. Essa legenda logo voltaria para nos assombrar. John Morris, sempre estiloso, alugou limusines para transportar os Hopi até Bethel, e nós fretamos um ônibus da Trailways para o pessoal da Hog Farm. Em Bethel, os doze que tinham vindo antes do Novo México já tinham montado barracas, ocas, puxadinhos e ônibus psicodélicos na área de camping. Mais ou menos uns vinte Merry Pranksters tinham se juntado a eles, incluindo Ken Babbs, que tinha dirigido o Furthur, o lendário ônibus do grupo, desde o Oregon. Pagamos as despesas da viagem depois que o valor foi negociado com Ken Kesey (que decidiu de última hora não vir). Apareceram também membros da Ohayo Mountain Commune em Woodstock e pessoas de outros grupos. Rapidamente formou-se uma grande cena, e ficavam todos em volta de uma cozinha que montaram num domo geodésico de madeira.
Artie, Linda Kornfeld e eu. © JIM MARSHALL
Construindo o toca-discos para o palco, 11 de agosto. © HENRY DILTZ
Todos se reuniam de manhã para fazer ioga antes do café, e então Stan os dividia em diferentes equipes, de acordo com as habilidades de cada um: cavar fogueiras, abrir trilhas pela mata, empilhar lenha, erguer o palco gratuito. O único problema que tivemos foi quando chegou o pessoal do controle de pragas para pulverizar DDT, a fim de nos livrar dos mosquitos. A Hog Farm estava ligada nos efeitos colaterais dos pesticidas muito antes de o grande público saber qualquer coisa a respeito. Ameaçaram ir embora por conta disso, e nós cancelamos a pulverização. Um dos Pranksters, Paul Foster, elaborou um logo especial para a Hog Farm, um porco alado voando, que Alton Kelley imprimiu em silkscreen em faixas de tecido vermelho. Estas foram distribuídas como braçadeiras aos membros das comunas e seu grupo de voluntários, cada vez maior. À noite, todos se reuniam ao redor da fogueira. Às vezes, Wes Pomeroy e sua mulher e suas filhas se juntavam a eles, e Stan passou bastante tempo lá. STAN GOLDSTEIN: A Hog Farm tinha crescido em muitas centenas. A notícia
se espalhou e nós recebemos uma comuna daqui, um grupo dali, uma ou duas semanas antes do evento. Eles chegavam sem avisar oficialmente. O Orson Welles Theater, que era um grupo de teatro comunal de Boston, chegou de ônibus e trouxe projetores e telões para exibir filmes nos acampamentos. Eram um grupo muito hábil e bem organizado. Conseguimos essa força de gente que era do festival, mas não empregada pelo festival, que àquela altura sabia o que estávamos fazendo e tinha uma boa ideia de como nós nos dedicávamos a cuidar das pessoas que chegavam. Assim, havia todo um contingente para tratar de problemas e ajudar pessoas. Depois que esses grupos chegavam e eram orientados, todos nós comíamos em grupo na cozinha da Hog Farm. Tínhamos reuniões todos os dias, com distribuições de tarefas e conversas sobre como as coisas deveriam ser feitas e quais eram os problemas. Num esforço para preparar o terreno para os acampantes novatos, pedimos à Hog Farm para desbravar essa trilha. Stan, Hugh e Tom Law, que também dava aula de ioga, mostravam aos recém-chegados como montar seu acampamento. Essas pessoas então se instalavam numa área diferente, para que, quando outros chegassem, já houvesse uma operação de camping em funcionamento, com fogueiras comunitárias e divisórias de madeira em cada área. Essa organização não oficial acontecia continuamente por toda a propriedade. Aonde quer que você fosse, encontraria alguém que tinha uma noção de como montar um acampamento e como conseguir qualquer coisa que você precisasse.
O projetista do palco, Steve Cohen, eu e o mestre de obras da construção do palco, Jay Drevers. © HENRY DILTZ
Montando o acampamento da Hog Farm (da esquerda para a direita) - Tom Law, Hugh Romney, um Hog Farmer desconhecido, Stan Goldstein, um desconhecido. © HENRY DILTZ
Nossa academia de ginástica da selva, no parque das crianças. © HENRY DILTZ
WES POMEROY: O [pessoal da Hog Farm] disse: “Somos todos iguais, não tem
ninguém no comando, e ninguém fala sozinho por todos”. Exceto, obviamente, que havia alguns que eram líderes. Sempre havia algum tipo de ioga pela manhã. Eu ia até lá, me sentava no chão e simplesmente estava lá. Alguém soprava uma concha, as pessoas começavam a se aproximar e ficávamos conversando. Eles eram muito eficazes e bondosos, fico contente que tenham estado lá. Suas funções eram claras, mas seus parâmetros eram ambíguos, e tentar estruturá-los mais seria apenas um trabalho infrutífero. Então, quando eu queria falar com eles, simplesmente ia até lá e rondava, meio que de bobeira e jogando conversa fora. Nós nos demos bem, e Hugh Romney é um grande amigo. Stan era quem interagia com eles de maneira mais próxima. Ele os conhecia melhor, mas todos nós nos dávamos confortavelmente bem. Vivíamos todos juntos, e eles sabiam quem eram minhas filhas, então eu não precisava me preocupar com elas, pois estavam mais seguras do que em qualquer outro lugar. Descobri há muito
tempo que os jovens fazem o que querem, de qualquer jeito, então pra que fazer papel de bobo? HUGH ROMNEY: Vieram cerca de mil pessoas, que se dividiram entre as várias
equipes. À medida que elas chegavam, nós fornecíamos plástico para que elas fizessem pequenos abrigos. Stan e os organizadores foram extraordinários na capacidade de enxergar além das cores psicodélicas e ver o que nós éramos realmente capazes de fazer. Fizemos uma fogueira tão grande, que eu disse: “Precisamos de um marshmallow gigante!”. Rodamos por uns 30 quilômetros e compramos todos os marshmallows de todas as lojas, amassamos todos juntos, espetamos numa forquilha e fizemos um marshmallow gigante na fogueira naquela noite.O bom humor era o laço entre nós. Montei um quadro de avisos, uma vez que um dos meus fortes é ser muito ágil com papel e grampeador, e cortamos um buraco num dos lados do quadro, de forma que você podia enfiar a cabeça e fazer anúncios em quatro e cinco dimensões. Um dia, quando coloquei minha cabeça no buraco para fazer um anúncio, lá estava Max Yasgur e toda sua família. A revelação humana popular que ocorreu a Max Yasgur a partir daquilo realmente abriu a cabeça dele. Era um clima de “apenas pessoas comuns”, com o qual ele se identificou. A Hog Farm deu um tom que era passado de pessoa a pessoa, como um baseado, e recebia bem a todos. Logo, todos nós éramos bem-vindos. Lisa Law (Hog Farmer que na época era casada com Tom Law) se encarregou de estocar as cozinhas gratuitas que eles organizavam para alimentar quem não tivesse meios ou suprimentos. Ela e Peter Whiterabbit foram até a cidade para comprar suprimentos: algo em torno de 160 mil pratos de papel, 680 quilos de triguilho, 680 quilos de aveia em flocos, 100 quilos de groselha e muitas castanhas e frutas secas. Demos US$ 3 mil a ela para cobrir essa primeira leva, que também incluiu facas e panelas de aço inox, já que ela se opunha a usar alumínio. Ela ficou sem dinheiro e foi até o escritório no Village, onde Joyce deu mais US$ 3 mil para concluir as compras. LISA LAW: Eles simplesmente me deram o dinheiro. Não houve problema
algum. Usei-o de forma frugal. Meu trabalho era tornar as coisas mais fáceis para o pessoal da cozinha, de modo que eles pudessem produzir a maior quantidade
de comida. E Yasgur nos fornecia iogurte, leite e ovos. Pegávamos umas caixas de ovos todos os dias. Estávamos comprando os ovos dele, mas vinha direto ali da fazenda, então era muito legal. Os acampantes começaram a chegar de imediato, então estávamos na cozinha continuamente e tentando nos organizar para o que iríamos fazer. * * * Eu ainda esperava incluir mais algumas atrações surpresas no show, em particular alguns artistas que moravam em Woodstock. Paul Butterfield concordou em se apresentar com sua Blues Band na noite de domingo. Fred Neil tinha se mudado para lá do Coconut Grove. Sua música “Everybody’s Talkin’” foi o tema do filme Perdidos na noite (e logo se tornaria um enorme sucesso de Harry Nilsson). Isso o fez ainda mais recluso do que já era, mas ele disse que tocaria na noite de sexta. Acrescentamos seu nome ao release de imprensa que listava o line-up. Então, alguns dias antes do show, ele ligou para dizer que não conseguiria vir. Bob Dacey, que eu conhecera no Grove e agora tinha o café Sled Hill, em Woodstock, conseguiu para mim um encontro com Bob Dylan em sua casa. As canções de Dylan eram importantes na minha vida, assim como o eram na vida de inúmeras outras pessoas. Só pensei em dizer a ele que todos nós adoraríamos vê-lo lá, de surpresa, é claro. Sua esposa, Sara, fez o almoço e todos conversamos sobre o que eu tinha planejado. Expliquei os motivos pelos quais eu não havia feito um convite oficial para tê-lo no festival. Sabia que ele ficava desconfortável com o manto de “profeta” que a imprensa lhe havia colocado. Ele raramente tocava em público desde 1966. Bob era o artista mais importante da nossa geração, e por causa do meu respeito por sua arte e seu talento, subestimei o lado dele, que se importa com negócios. Talvez, se eu tivesse oferecido uma quantia grande o suficiente por meio de seu agente, ele tivesse tocado, como tocou no festival da Ilha de Wight, pouco depois de Woodstock. De qualquer forma, durante as 2 horas do nosso encontro, ele foi cordial e disse que talvez desse uma passada.
O artista Ron Liis. © HENRY DILTZ
Mais tarde, naquela semana, Al Aronowitz escreveu no New York Post: No dia anterior, choveu tão forte, que a lama era funda o suficiente para te dar uma boa vantagem para chegar até a China [...]. Os donos da Feira de Música e Artes de Woodstock estavam ocupados, agindo como gente que tem meio milhão de dólares para gastar. Enquanto isso, a uma hora e meia dali, onde Woodstock realmente fica, Bob Dylan lidava com rumores de que ele faria uma aparição surpresa no festival. “Talvez eu faça, se tiver vontade”, disse. “Fui convidado, então sei que tudo bem se eu aparecer [...]. Minha opinião sobre o festival não é diferente da de todo mundo. Acho que todos vão provavelmente se divertir, mas não vou culpá-los se não se divertirem.” Alguns dias depois do festival, estava atravessando a Tinker Street em Woodstock e me deparei com Bob, que estava num jipe aberto com Bernard
Paturel, do Café Espresso. Quando eles passaram, acenei e dei de ombros como se quisesse dizer “que pena que você não foi”. Com um sorriso largo, Bob acenou de volta com o chapéu, no que entendi como “pena, mesmo” (vinte e cinco anos depois, ele finalmente subiria no palco de Woodstock). * * * Como no Miami Pop, eu planejava filmar e gravar o festival, só que, desta vez, Artie e eu visávamos a algo maior para o filme. Vínhamos tentando vender os direitos de filmagem, mas sem sucesso até então. D. A. Pennebaker tinha filmado o Monterey Pop Festival, mas o filme foi um fracasso, então os estúdios viam filmes de shows como prejuízos. De início, Artie e eu conversamos sobre a importância de capturar a construção e a preparação do local. Eu tinha feito amizade com Alan Douglas, cuja companhia de multimídias atuava na música, no cinema e na fotografia. Ele concordou em ajudar a bancar as primeiras filmagens e se ofereceu para levantar fundos para fazermos o filme. Além de documentar a montagem, discutimos a possibilidade de mandar equipes de filmagem até a Califórnia, o Texas e Ohio, para acompanhar a viagem de grupos até Nova Iorque, documentando suas experiências a caminho do festival e além. Infelizmente, com a mudança para White Lake, nosso tempo ficou curto e não conseguimos realizar as filmagens longínquas. ALAN DOUGLAS: Eu ficava pressionando – “Michael, temos que começar” –,
até que faltava duas semanas para o festival e não havia um contrato de filmagem ainda. Embora fôssemos basicamente uma companhia de gravação, estávamos fazendo livros, filmes e outras coisas, contávamos com os que chamávamos de “cineastas underground” no meu escritório e eu tinha uma sala de edição no andar de baixo. Então eu disse: “É melhor mandar uns caras até lá e começar a filmar”, porque, àquela altura, eles já estavam erguendo os palcos e preparando os campos, e pensei que, se de fato fossem fazer um filme, aquela seria uma parte importante. Havia dois cineastas hippies de Londres trabalhando comigo, Malcolm Hart e Michael Margetts, e um cineasta conhecido de Nova Iorque, Marty Topp, então equipamos todo mundo. Dei a eles os filmes, aluguei as câmeras e os mandei até Woodstock umas duas semanas antes, então as duas semanas de preparativos que você vê no filme foram filmadas pelo nosso pessoal.
Michael e Malcolm estavam a todo vapor e entraram de cabeça. Alugaram um carro da Avis, removeram a tampa do porta-malas e Michael filmava dali, enquanto Malcolm dirigia. Parecia que eles estavam sempre filmando, dia e noite. Registraram até a filha de Wes Pomeroy, Ginny, andando a cavalo com um Hog Farmer.
Jean Ward preparando o solo. © PENNY STALLINGS
Quando Joel chegou a Bethel, na semana do festival, ele estava um pouco
desorientado e não tinha certeza de onde direcionar sua energia. Ainda estávamos tratando de questões referentes às licenças, e as operações de bilheteria precisavam de atenção. Eu esperava que ele focasse nessas áreas, mas Joel parecia mais interessado em entender o que eu estava fazendo. Ele ficou particularmente aborrecido com a equipe de filmagem enviada por Alan Douglas. Aparentemente, ele via isso como um autoengrandecimento da minha parte, e criticava repetidamente a ideia de gastar tempo e recursos na feitura de um filme. É claro que Joel depois se tornaria o beneficiário de nossos esforços, quando o filme se tornou o maior trunfo da Woodstock Ventures. Eu gostava muito do trabalho documental dos irmãos Maysles – David e Al –, e nós nos encontramos várias vezes com eles e seu produtor, Porter Bibb. David e Al conferiram o local e pareceram interessados em fazer o filme de maneira independente, mas estavam com dificuldades para encontrar financiamento. Recomendaram a Wadleigh-Maurice Productions para filmar as performances. Michael Wadleigh tinha mais ou menos a minha idade e largara a faculdade de medicina da Columbia University para se tornar cineasta. Ganhara um prêmio pelo documentário No Vietnamese Ever Called Me Nigger. O produtor Bob Maurice era um sujeito persistente, determinado a fazer o filme. Com uma câmera portátil, Wadleigh tinha filmado recentemente algumas performances ao vivo eletrizantes de Aretha Franklin e James Brown, e estava ávido para fazer outras. A Wadleigh-Maurice Productions vinha trabalhando com uma nova máquina de edição experimental, que poderia dividir a tela em três imagens diferentes de uma vez. Eles acharam que essa seria a melhor maneira para capturar o entusiasmo de uma apresentação ao vivo. Seu produtor associado, Dale Bell, começou a estocar filme de 16 mm e a reunir uma equipe com câmeras suficientes para filmar três dias e três noites de performances. DALE BELL:
No sábado anterior ao festival, nosso pequeno grupo de seis pessoas foi até White Lake em dois carros para conhecer Michael Lang. Se eu tive alguma sabedoria, foi dizer: “Vamos filmar, guardar os negativos e esperar que venham até nós, porque uma vez que tivermos a posse dos negativos que nós filmamos, estaremos no controle”. Essa era parte da filosofia que Bob, Michael e eu estávamos desenvolvendo. Então fomos até lá e deixamos um operador de câmera, um operador de som e um produtor. Foi tipo: “Vocês são nossos representantes, só filmem tudo o que andar e falar”.
Eu queria contratar alguém para fotografar o evento, e Chip recomendou Henry Diltz. Henry morava em L. A. e acabara de fotografar a capa do primeiro álbum de Crosby, Stills & Nash. Antes de se tornar fotógrafo de rock, fez parte de um grupo folk no Havaí. Por coincidência, ele conhecia Mel de lá e se deu bem com todo mundo logo de cara. HENRY DILTZ: Eu gostava de ir todos os dias aonde estavam erguendo o palco.
Era como um grande navio de guerra – tinha vista para os pastos verdes e o céu azul e realmente parecia um oceano. Umas garotas hippies que cuidavam da cozinha traziam almoço para o pessoal que estava erguendo aquele negócio. Michael Lang tinha uma moto antiga na qual vinha pelos campos de alfafa, de jaqueta de couro e cabelo encaracolado. Tinha algo de angelical. Chip, Michael e Mel eram como generais. As pessoas recebiam ordens e resolviam problemas e as coisas se desenrolavam de uma maneira muito clara e eficiente, mas muito amigável. PENNY STALLINGS: Michael ia inventando as coisas. Era tão intuitivo quanto à forma como operava, que tudo funcionava. Havia alguns caras que quase tinham medo de Michael – o que era muito engraçado para aqueles de nós que trabalhavam para eles. Vê-los meio atônitos, sem saber como lidar com Michael. Era algo muito engraçado de observar. Michael era a presença silenciosa e misteriosa atendida pelos caras que eram mais velhos e que realmente tinham alguma experiência em organizar shows, promover e trabalhar no Fillmore. Muitos de nós, mais jovens, viam Woodstock como um evento muito politizado, íamos mostrar ao mundo quem e o quão grandes éramos. Mas Mel, John e Chip não necessariamente viam dessa forma. Só estavam trabalhando, não fumavam maconha, não ligavam para todo aquele ethos hippie, não moravam conosco, não conviviam conosco. Não se impressionavam com nada daquilo. Michael, o chefe deles, sim. Havia os sonhadores que chegavam – como Tom Edmunston – e diziam: “Vamos ter uma esfera gigante perfumada aqui e todo mundo vai tocar nela”. E o que isso seria e como seria construído, ninguém sabia. Michael gostava dessas ideias – ele queria essas ideias, queria essas opiniões. Por outro lado, como de fato fazer isso? Bem, não se fazia. Os artistas que vieram da Flórida – Ron Liis, Bill Ward e Buster Simpson – chegaram de fato a fazer instalações de arte. A arte deles lá foi realmente maravilhosa e doida, mas havia muitos outros extremos, também, que meio que apenas se evaporaram pelo caminho.
BILL WARD: Ron é um líder nato – tem 1,90 metro e parecia um hippie. Tinha
uma barba grande e usava um colete com sinos pendurados. Era um bom artista, tinha um bom olho e comandava a equipe, que construía tudo. Mel eventualmente pediu que eu tentasse conversar com Ron, que estava o deixando louco. Ron simplesmente fazia as coisas de seu jeito, qualquer que fosse o expediente. Aparentemente, certa vez – eu não estava lá quando aconteceu –, ele pegou a empilhadeira da equipe do palco sem pedir e isso resultou numa briga. Ron tinha uma inclinação de simplesmente pegar qualquer coisa que quisesse. Nossa equipe era ótima: Buster Simpson era um amigo de Ron do Meio Oeste. Hoje ele é um escultor muito bem-sucedido em Seattle. Buster entrou de cabeça logo de cara, e outro membro da equipe, Herb Summers, é um artista muito talentoso, com boas ideias e fácil de conviver – todos eles colaboraram. Buster e sua namorada fizeram aquelas esculturas conceituais a céu aberto. Fizeram uma oca aberta e suspenderam uma pedra enorme no meio dela, presa por cordas, e uma estrutura vertical com pintinhos.
Ticia em White Lake; Peter Goodrich está ao fundo, à direita. © PENNY STALLINGS
PENNY STALLINGS: A certa altura, Buster queria colocar uma garotinha com
um avental estampado de bolinhas perambulando pelo festival. Era esse tipo de coisa que eles faziam – maravilhoso. Por toda a bacia verde exuberante que se abria diante do palco, as equipes cavavam buracos e instalavam postes com belas flâmulas que Mel tinha encomendado de um cara no Bronx. Com 1 metro e meio de comprimento e estampadas com símbolos da paz e outros desenhos, as flâmulas desapareceram rapidamente quando o público começou a chegar. Demo-nos conta de que precisávamos de uma ponte entre o pavilhão dos
artistas e o palco, então Chris projetou uma. Esse era o grande lance de Chris; se eu conseguisse imaginar algo, ele conseguiria construir. A ponte tinha cerca de 6 metros de altura e a vista ao cruzá-la era incrível. Chris calculou o peso que ela precisaria suportar ao perguntar a John Morris o peso de Jimi Hendrix e o da groupie média, e multiplicou essa soma por dez ou doze. Alguns dos artistas de Miami pintaram murais maravilhosos para decorar as laterais da ponte. Naquelas últimas semanas antes do festival, também estávamos correndo para montar nossa operação médica. De início, buscamos conselhos do Comitê Médico pelos Direitos Humanos, em Nova Iorque, e Don Ganoung e Wes conversaram com médicos na região de Wallkill, mas tivemos de recomeçar do zero no condado de Sullivan. Bill Ward recomendou Bill Abruzzi, um médico do vilarejo vizinho de Wappingers Falls, que ele conhecera quando foi voluntário na marcha pelos direitos civis de Montgomery a Selma, em 1965. Completamente simpático à nossa causa, ele topou e começou a elaborar um plano médico. Baseado em nossas estimativas de público naquele momento, recrutou seis médicos, trinta e seis enfermeiros e dezoito assistentes (para os quais pagamos seguro de malversação) a custo próximo de US$ 16 mil (por fim, inúmeros voluntários se apresentariam, totalizando cerca de vinte e cinco médicos e duzentos enfermeiros). Os três hospitais locais foram colocados em alerta. Don Ganoung contratou ainda um grupo de radioamador da região para nos ajudar com a comunicação no local. Notificou o escritório de empregos local para solicitar trabalhadores para o fim de semana do festival: precisávamos de setenta atendentes de estacionamento, trezentos funcionários para os estandes de comida e duzentas pessoas para recolher o lixo do local a cada dia. Mel encontrou uma companhia que tinha um enorme compactador de lixo – um dos primeiros do tipo – para usarmos no local e ajudar com a limpeza. * * * Quanto mais dinheiro gastávamos, melhor éramos tratados pela comunidade. Estávamos comprando materiais localmente e contratando moradores, e à medida que isso acontecia, mudava um pouco a postura negativa e a cidade começava a simpatizar conosco. Cada vez mais residentes de White Lake entravam no espírito de Woodstock. Tornaram-se apoiadores porque gostaram do que estávamos fazendo, e viram que todo mundo estava trabalhando duro. Durante aquelas duas últimas semanas antes do festival, parecia que milhares de
pessoas se ofereceram para ajudar de todas as formas.
Os cineastas Malcolm Hart (ao centro) e Michael Margetts (à direita) na oficina mecânica local. © HENRY DILTZ
JOHN ROBERTS:
Não queríamos repetir muitos dos erros que tínhamos cometido em Wallkill. Então prestamos muita atenção às políticas; quem tínhamos de conhecer, o que tínhamos de fazer, quem tínhamos que convencer, quem tínhamos que evitar; havia muito trabalho a ser feito nessas áreas. As relações públicas se tornaram extremamente importantes. Don Ganoung e Rona continuaram a tomar a liderança das relações públicas, mas Elliot Tiber ocasionalmente se juntava a eles. Elliot insistiu em deixar a trupe do Earthlight Theatre à nossa disposição e ofereceu o El Monaco como local para uma prévia do festival com teatro gratuito para os moradores de White Lake. Foi um desastre e tanto. Diante de uma plateia de velha guarda,
fazendeiros e famílias, os atores ficaram pelados para encenar uma cena de Oh! Calcutá!. O pessoal da cidade saiu correndo. De algum modo, surgiu um boato de que Peter e eu planejávamos ter um grande carregamento de maconha no festival, supostamente enviado de Miami. A história dizia que na segunda-feira anterior ao festival, o barco que transportava nosso suprimento foi parado pela Guarda Costeira ainda na Flórida. Tudo mentira. * * * A contagem regressiva começou na segunda-feira, 11 de agosto, quando milhares de pessoas começaram a aparecer. Anunciáramos que as áreas de camping seriam abertas na quarta-feira, mas isso não pareceu impedir aqueles que quiseram chegar mais cedo. Estávamos trabalhando 24 horas por dia, na tentativa de concluir a montagem do palco, das torres, dos estandes, das vias, dos estacionamentos, do encanamento, dos bebedouros, das instalações médicas e das cozinhas e cuidar de centenas de outros detalhes ainda inconclusos. Pessoas discutiam sobre mão de obra e equipamento. Simplesmente não havia muito o que ver. A cerca em torno do perímetro só estava parcialmente pronta, e não vi sinal algum das cabines de bilheteria. Presumi que Joel e Keith O’Connor, que lidava com a operação da bilheteria do escritório da Woodstock Ventures, estivessem cuidando da chegada e instalação, mas por alguma razão as cabines nunca apareceram. Mais tarde, descobri que o dono da oficina local, Ken Van Loan, tinha tentado transportar as cerca de doze cabines até nós de última hora, mas ficou preso no trânsito com a primeira leva e teve de dar meia-volta. Estávamos tão ocupados com os preparativos, que quase esquecemos de nossos recentes problemas legais. Paul Marshall tinha nos assegurado de que as tentativas de impedir o festival por parte de acampamentos de verão e donos de propriedades vizinhas não dariam em nada. Só teríamos certeza disso a poucos dias da abertura – quando houve uma audiência na terça-feira, 12 de agosto. Paul, Don Ganoung e Wes chegaram naquele dia em Catskill, às 10 horas da manhã, para se apresentarem à suprema corte estadual, e, por coincidência, Paul tinha frequentado um daqueles acampamentos na infância. Ele conversou com o dono desse acampamento, o “tio Davy”, antes da audiência – o que ajudou, acredito.
Durante a sessão, Paul apontou que gastamos US$ 1.400 milhão e estávamos comprometidos a gastar mais US$ 300 mil até o fim do festival; até então, tínhamos vendido 124 mil ingressos antecipados. Por fim, depois de um longo dia com Wes, Don Ganoung e Paul Marshall garantindo que tínhamos os meios para proteger as propriedades dos envolvidos, todos eles concordaram em retirar as queixas. Nosso último obstáculo legal estava superado. Em apenas três dias, a Exposição Aquariana seria inaugurada na data planejada.
Conferindo o terreno dos acampamentos. © HENRY DILTZ
IX 13 E 14 DE AGOSTO DE 1969
“Nossos estandes não estão prontos! Cem mil dólares de comida vão apodrecer graças a você! Quem precisa disso? Vamos vazar daqui, a menos que nosso acordo seja renegociado!” “Seu babaca! Você deveria estar com a sua merda toda em ordem, e só está usando isso como desculpa para tirar vantagem do acordo!” Com isso, Peter Goodrich desce a mão na cara de Jeffrey Joerger. Por essa eu não esperava. Ao cair, Jeffrey berra: “Seu filho da puta! Você me bateu!”. Ele vai atrás de uma faca que tem guardada. Lenny Kaufman, que contratei como segurança especial, percebe isso e, quando nossos olhares se encontram, aceno e ele vai em direção a Joerger para detê-lo. “Vou pegar minha arma!”, grita Jeffrey ao recuar para dentro de seu trailer, bater e trancar a porta. É quinta-feira de manhã – a véspera do festival –, e as pessoas estão chegando aos montes. Perdemos a conta desde ontem, mas já temos provavelmente 60 mil pessoas aninhadas na bacia e acampando na mata. O pessoal da Food for Love apareceu na terça à noite e está puto da vida desde então, porque os estandes estão pela metade – nossas equipes não param de alternar os projetos prioritários ainda incompletos antes do dia de abertura. O palco ainda não está montado. A chuva incessante resultou num
poço de lama ao redor dele, o que atrasou a instalação da base de concreto, que só aconteceu há poucos dias. As mesmas condições climáticas abissais também frearam o andamento dos estandes de artesanato e comida. Até as estradas que abrimos não param de virar pântanos. “Olha, Jeffrey, vamos resolver isso!”, berra John Roberts em direção à porta trancada do trailer. “Vamos fazer uma reunião esta noite e resolver essa situação.” John diz que tem dúvidas quanto à sanidade de Joerger, e eu só penso: “Arma?”. John, Mel, Joel e eu vemos que temos um problema. Temos a cozinha gratuita na Hog Farm, com granola e arroz integral de sobra, mas se a Food for Love não conseguir preparar cachorros-quentes e hambúrgueres, teremos que lidar com milhares de jovens zangados e famintos. Contatamos Wes pelo rádio e o atualizamos da situação. “Cheguem a um acordo com eles, façam o que for preciso”, aconselha Wes. “A última coisa de que precisamos são garotos morrendo de fome, ainda mais porque não temos nenhum policial de Nova Iorque.” * * * Os últimos dois dias antes do festival foram 48 horas de incêndios incessantes a serem apagados – literal e figurativamente. Na quarta-feira, Lee recebeu um telefonema que deu o tom do que viria. Na semana anterior, Joe Fink tinha vindo até Woodstock e feito o reconhecimento da área, e tudo parecia de acordo com o nosso plano para os policiais “de férias” trabalharem em turnos ao longo dos três dias. Fizemos acordos para hospedar, alimentar e transportar os policiais da cidade, estipulando que eles não trariam armas. Mas então, no East Village, os Up Against the Wall Motherfuckers1 começaram a distribuir panfletos antagônicos: “Vamos todos para Woodstock e receber os gambés de Nova Iorque que estarão lá desarmados, dar a eles umas boas-vindas muito calorosas”. Além disso, o chefe Leary viu as fotos da chegada da Hog Farm ao JFK impressas em todos os jornais e leu que eles estariam se juntando à força policial nova-iorquina na equipe de segurança. Ele então cancelou o esquema todo.
Chip decifrando um labirinto de cabos debaixo do palco. © HENRY DILTZ
Na manhã da quarta-feira, uma mensagem foi telegrafada a todas as delegacias de Nova Iorque: “Chegou ao conhecimento do departamento que certos membros da força policial se comprometeram a realizar funções diversas durante a Feira de Música e Artes de Woodstock [...]. Não será concedida permissão para trabalho extra onde, como condição de emprego, o uniforme, o escudo, a arma ou o exercício de autoridade de um policial não sejam usados”. Ficou entendido que quem fosse contra essa ordem poderia ser demitido. Joe ligou para Lee com a má notícia de que os 346 policiais que havíamos selecionados não viriam. Quando Wes soube, ficou furioso. WES POMEROY: O chefe Leary bateu a porta na nossa cara... Enviou ordens
para que nenhum policial de Nova Iorque fosse até Woodstock. Foi por causa da Hog Farm! Ele disse que tinha acabado de ficar sabendo, o que era mentira, então lá estávamos, com toda a nossa Corporação de Serviços de Paz por água abaixo.
Um aparelhador em pleno voo. © HENRY DILTZ
LEE MACKLER BLUMER: Wes e Joe Fink começaram a elaborar um plano para
contornar isso. Já estávamos sobrecarregados só de ver o tanto de gente que estava na propriedade antes mesmo de haver portões, e sabíamos que a segurança estava em perigo sério. Wes sentiu-se traído pela irmandade da polícia, e até o New York Times publicou um editorial repreendendo Leary por ter retirado o apoio da polícia de última hora. Joe se manteve em contato com Wes o dia todo, prometendo
convencer alguns dos homens a desobedecer às ordens e fazer esse bico para nós clandestinamente. Wes contatou agências de polícia locais e agentes penitenciários na tentativa de conseguir pessoal para substituí-los, mas a maioria negou. Tínhamos que fazer alguma coisa. A polícia era parte de nossa estratégia para convencer as autoridades locais a nos deixar realizar o festival. Além de querermos os policiais como pacificadores, precisávamos deles para direcionar o trânsito e lidar com emergências médicas. Eu não queria correr riscos ao não ter nenhum tipo de segurança profissional. Haveria inúmeros pagamentos em dinheiro vivo, entre a bilheteria e as concessões, então liguei para um amigo, Lenny Kaufman. Ex-motoqueiro, segurança de bar e aventureiro, Lenny era sempre firme em situações complicadas e eu confiava nele por completo. Pedi a ele que reunisse seis ou sete homens em quem tivesse confiança absoluta e os trouxesse até o festival naquela noite. A quarta-feira foi mais um dia chuvoso, o que tornou algumas das últimas instalações elétricas muito arriscadas. O trailer perto do terminal de energia elétrica principal estava com as escadas “quentes”. Os eletricistas não conseguiram aterrar os degraus por alguma razão, então, toda vez que você pisava neles, tomava um choque. Eles se apressaram para concluir o elevador que transportaria amplificadores e equipamentos até o palco, a 9 metros de altura. Bill Hanley chegou com o equipamento especial que desenvolveu para levar o som o mais longe possível, até ultrapassar os limites do festival. Ele construiu uma mesa de som customizada e alto-falantes de luxo, com uma apólice de seguro de US$ 3 milhões para esse equipamento. Usamos gruas para posicionar seis alto-falantes e cornetas no topo das torres, e os monitores foram aparafusados na frente do palco. Eddie Kramer, que eu conhecera com Hendrix no Miami Pop, gravaria o show, juntamente com Lee Osborne, de um trailer atrás do palco. Ahmet Ertegun comprara os direitos do áudio para a Atlantic, a gravadora de Crosby, Stills & Nash. Além do palco principal, Hanley montou um sistema de som menor para o palco gratuito, ao lado da Hog Farm. Ali, concluímos um teatro de marionetes e um playground no dia anterior. Vínhamos instalando uma cerca de correntes ao redor de todo o local, separando a área gratuita da seção mais próxima ao palco principal. Descobri depois o que estava acontecendo com algumas das cercas por meio de Roz Payne, amiga de Abbie Hoffman. ROZ PAYNE: Cheguei alguns dias antes do festival e acampei com a Hog Farm.
Havia equipes de trabalhadores instalando os postes e as cercas de arame em torno da propriedade, para impedir que quem não tivesse ingresso entrasse. Toda noite, depois que eles saíam, Paul [Krassner], Abbie, Jean-Jacques [Lebel] e eu desmontávamos a cerca. Deixávamos os postes, mas tirávamos o arame. Fazíamos outras coisas também. Achamos uma placa que dizia PASSAGEM PROIBIDA, e Jean-Jacques escreveu por cima com tinta QUADRO DE AVISOS DO POVO, e deixamos assim no lugar. Fizemos uma placa que dizia trilha de HO CHI MINH para a via principal pela mata. * * * Estava avisado o tempo todo para o pessoal da Movement City que haveria áreas gratuitas. Eu sabia que eles eram engenhosos o bastante para esgueirar algumas pessoas para dentro, mas achei que, entre as vendas de ingresso antecipadas e o pessoal que fosse comprar ingressos na hora, nos sairíamos bem financeiramente. Com todos os atrasos por causa da chuva, parei de me preocupar com as cercas e me concentrei em montar o palco e a estrutura de som para que os shows começassem na hora. Acabamos nos dando conta de que Steve Cohen tinha exagerado no design do teto do palco. Por duas semanas, o clima nos impediu de juntar todas as peças do quebra-cabeça. Os andaimes de madeira acabaram se mostrando pesados demais para o nosso propósito. Nunca conseguimos cobri-los devidamente com lona para protegê-los da chuva. O teto deveria ter andaimes cruzados, onde as luzes ficariam penduradas. Mas não conseguimos subi-los, então Chip acabaria por iluminar todos os shows com doze holofotes Super Troupers a partir das torres. “Temos 650 mil watts enferrujando debaixo do palco!”, Chip nos lembraria. Alugamos duas gruas enormes por US$ 1.000 por dia para ajudar na construção do palco e das torres. As gruas ficaram presas do lado do palco porque a cerca de madeira que o circundava, bem como uma outra construção, nos impediram de tirá-las dali antes que o público começasse a chegar. CHIP MONCK: O que precisávamos era de um aparelhador peso-pesado com
uma companhia inteira por trás, uma direção de produção que fosse excepcionalmente consistente e empreiteiros adultos e capazes de lidar com grandes cargas. Mas não contávamos com isso, e todo mundo dizia: “Não se
preocupe, vai acontecer”. Não tínhamos empreiteiros. Deveríamos ter agido como se estivéssemos construindo um prédio. Deveria haver um supervisor no local, um ferreiro, uns dois soldadores. O design era incrível, e contava com camadas e mais camadas de lonas, quase como escamas de peixe. Teria sido maravilhoso. Deveríamos ter contado com uma equipe completa dedicada somente ao palco. Tínhamos só quatro caras trabalhando nos andaimes. Foi um grande erro. Não dá para economizar em coisas assim. Ficamos todos bastante encobertos pelo tamanho da coisa toda. Aluguei as luzes de Charlie, da Altman Stage Lighting, em Yonkers. No final, ele ficou muito puto porque suas quinhentas braçadeiras de C – US$ 6 cada – ficaram enferrujadas e difíceis de abrir, então tiveram de ser jogadas fora. Havia três arcos a precisamente 30 metros à esquerda e 15 graus à direita da linha central do palco; havia outros três em outra torre. Aí, quase 15 graus à direita e à esquerda exatas, havia mais dois followspots. Então só tínhamos esses dez. Era o mínimo necessário – não havia luz de ambiência nem luz de fundo, nada mais. O único outro elemento cênico de fato eram aquelas lampadazinhas que geralmente ficam penduradas em estacionamentos retrô, um cabo com pequenas lâmpadas – tínhamos pequenas lâmpadas de 7,5 watts, uma a cada 30 centímetros, e elas ficaram nos cabos de aço que mantinham os andaimes no lugar. E era só isso, então não dava pra andar no escuro com elas, mas também deram uma certa característica. * * * A pressão da água não parava de cair. Tínhamos 22 quilômetros de tubulação e os vazamentos começaram a pipocar quando o público chegou. Chris teve a ideia brilhante de colocar estojos de plástico com antigos telefones a manivela do exército em pontos ao longo da tubulação, de forma que quando um vazamento era encontrado, uma chamada poderia ser feita na hora e a equipe poderia consertar o problema mais rapidamente. Colocamos centenas de placas de PERIGO próximas à tubulação, para evitar que pessoas pisassem e causassem mais vazamentos. Era óbvio que haveria muito mais gente do que havíamos dito a Max originalmente, então fui até a casa dele para conversar sobre isso. As pessoas já estavam chegando às dezenas de milhares. “Estávamos pensando num máximo de 200 mil pessoas, mas parece que podem ser mais”, disse a ele. “Porém, nós
vamos cuidar disso.” Mal terminei de dizer as palavras e Max já voltou para baixo da tenda de oxigênio em seu quarto. Miriam estava com medo de que as multidões e o caos pesassem muito sobre Max, e com razão, pois seria um grande peso para qualquer um. Quando emergiu, depois de sua dose de oxigênio, Max parecia inabalado. Conhecia o tamanho das instalações que estávamos construindo e que nossos preparativos eram os mais seguros possíveis. Por duas semanas ele estivera constantemente lá conosco, e acho que os números não foram uma completa surpresa para ele.
O acampamento da Hog Farm. © HENRY DILTZ
WES POMEROY: [Na quarta-feira] já não havia mais tempo para planejamento.
Temos de lidar com o que temos, e pronto. Muita gente ligava dizendo: “O que vocês vão fazer quanto a isso? Tem muita gente aqui na minha plantação!”. Negociamos com eles e nos comprometemos a comprar a colheita. As pessoas estavam chegando e acampando em cima de toda a alfafa verde e arruinando as colheitas, e nós estávamos numa sinuca de bico. Só nos certificamos de verificar
se a reclamação era legítima, e então cuidaríamos dela. Era muito parecido com uma operação militar, do ponto de vista da logística. A dinâmica era a mesma: você faz o máximo de planejamento possível, constrói todas as linhas de suprimentos, faz os pedidos de todos os suprimentos que precisa – comida, latrinas – e vai em frente, e se essas linhas se quebrarem, você constrói outras. * * * Tínhamos um esquema detalhado de turnos para a segurança, que cobria patrulhamentos gerais e direcionamento e entrada nos estacionamentos. Com os policiais de Nova Iorque fora de questão, Wes elaborou uma estratégia com a polícia estadual que incluía trânsito de mão única e certas vias que estariam abertas somente para os veículos de emergência e de serviço. Quando Wes ligou para os agentes rodoviários na quarta-feira, para colocar isso em ação, o responsável pelo quartel designado da polícia estadual decidiu não colaborar e se recusou a implementar o plano de trânsito. STAN GOLDSTEIN: Nós não só não tínhamos mais um plano de trânsito para
implementar como também não tínhamos agentes nas vias para direcionar o público aos estacionamentos. Quando as pessoas não sabiam onde estacionar, simplesmente estacionavam onde podiam, o que transformou as estradas naquilo que se transformaram. E um detalhe: o policial no comando do quartel que se recusou a colaborar conosco é o sujeito que, depois, comandou a retomada da prisão de Attica. Ele deu a ordem para disparar e depois tentou encobrir o fato de que seus homens mataram os reféns. Depois de dispensar nosso plano, a polícia estadual montou um bloqueio da saída mais próxima da rodovia, onde qualquer carro suspeito era parado e revistado. Oito jovens foram presos por posse de drogas variadas, e alguns por posse de cachimbos. Providenciamos advogados para fornecer aconselhamento legal gratuito exatamente para esse tipo de circunstância. Por fim, aconteceram cerca de oitenta prisões por drogas – nada mau, porém, considerando o número de pessoas presentes. A viação Short Line colocou alguns ônibus extras a partir do porto em Nova Iorque até Bethel para suprir a demanda, e algumas pessoas vieram de avião,
desembarcando no pequeno aeroporto do condado de Sullivan, mas a maioria estava viajando de carro até o festival. À medida que as caravanas começaram a chegar em White Lake, os locais saíram às calçadas, observando como se fosse uma parada circense. Abbie Hoffman mais tarde contaria uma história engraçada sobre a viagem de ônibus da Short Line de Nova Iorque, relatada por sua esposa, Anita. ABBIE HOFFMAN: Anita me contou de um ônibus que vinha pela rodovia cheio dos malucos, todo mundo rindo, cantando e passando baseados. Daí, o ônibus ficou parado no trânsito e os garotos viram um cara na estrada, pedindo carona, e todos começaram a pular e berrar: “Tragam ele pra dentro! Tragam ele pra dentro!”. O motorista começou a suar e a gritar coisas sobre regras da viação e outras merdas. Uma espécie de milícia popular foi formada instantaneamente e saiu pelo corredor quando, de repente, as portas do ônibus se abriram e um maluco com uma mochila nas costas subiu a bordo. Todo mundo começou a brincar e fazer palhaçada, e até o motorista se acalmou. Não aceitou o baseado oferecido por um rapaz, mas coçou o cabelo desgrenhado do cara e sorriu. A Short Line depois faria um anúncio com comentários dos motoristas sobre as alegrias de transportar os jovens até Woodstock. Um deles, Eugene Jennings, disse: “Ficamos presos no trânsito por 3 horas, e o único barulho que ouvi foi o de piadas sobre o letreiro de EXPRESSO do ônibus. As roupas deles podem ser meio desgrenhadas, mas eram limpos e generosos. Com eles, é viva e deixe viver”. Depois de umas 2 horas de sono na noite de quarta-feira, acordei com o primeiro dia ensolarado e sem nuvens em mais de uma semana. Pensei que aquilo tinha de ser um bom sinal. Dito e feito, alguns dos problemas se resolveram sozinhos na quinta-feira, embora outros tenham aparecido no lugar – como a briga da Food for Love. Na tarde daquele dia, como Joe Fink tinha prometido, policiais começaram a chegar de Nova Iorque e a se apresentar para o trabalho. WES POMEROY: Finalmente, na quinta-feira, recebemos a notícia de que um
bando de policiais queria falar conosco. Eles chegaram e disseram: “Aqui estamos, queremos trabalhar”, então mandei Don Ganoung para falar com caras como “Robin Hood” e “Errol Flynn”. Estavam todos usando codinomes. Queriam ser pagos em dinheiro e um valor maior do que tínhamos prometido.
Nós nos sentimos extorquidos, mas não havia escapatória. Então os contratamos para turnos de 12 horas por US$ 100 por dia, o dobro do que iríamos pagar – e tivemos de pagar em dinheiro. Fiquei furioso com isso tudo, mas não havia nada que eu pudesse fazer. Havia outro nível de segurança que usamos, os guardas para as casas e fazendas. Eram agentes especiais – montamos um serviço de guarda para o pessoal que morava por ali.
A cozinha gratuita da Hog Farm. © HENRY DILTZ
Os cineastas Michael Wadleigh e Bob Maurice. © HENRY DILTZ
Naquela noite, Wes e John Fabbri me chamaram para me encontrar com os 276 policiais que apareceram para receber orientações, os “uniformes” e os walkie-talkies. “Aqui está o chefe”, disseram, ao me apresentar. Incrivelmente, ninguém riu. Relembrei aos policiais que seu trabalho era ajudar as pessoas, não importuná-las por pequenas ofensas. Disse a eles que se divertissem e não ficassem muito chapados. Isso rendeu algumas risadas. A outra boa notícia da quinta-feira veio de Artie – ele finalmente conseguira um contrato cinematográfico. Tinha dois contatos na Warner Bros., do tempo em que trabalhara na indústria fonográfica, que tinham influência para fechar um contrato. Antes de irem para a Warner Bros., Freddy Weintraub tocava o Bitter End, no Village, e Ted Ashley era dono da agência de talentos Ashley’s Famous, que trabalhava com os Cowsills – de quem Artie tinha sido empresário. Ted se tornara presidente da Warner Bros. Pictures e Freddy, vice-presidente. Artie
encontrou-se com eles na quinta-feira. ARTIE KORNFELD: Eu disse a eles: “Se houver um tumulto e todo mundo
morrer, vocês vão ter um dos filmes mais assistidos de todos os tempos. Se correr da maneira como esperamos que corra, vocês terão um filme maravilhosamente bonito, que vai nos render muito dinheiro”. Sentamos com papel e lápis e escrevemos nosso contrato – metade para a Warner e metade para a Woodstock Ventures, depois dos custos negativos, e então tivemos de trazer Wadleigh para fechar contrato para ele ser o diretor, e foi esse o acordo cinematográfico. Cem mil dólares pelas imagens filmadas – e foi assinado apenas por Ted Ashley e eu. Foi assim que aconteceu. Entrei então numa limusine e parti para Woodstock, mas a limusine quebrou e minha esposa e eu pedimos carona até o festival. JOYCE MITCHELL: Eu estava na reunião que Artie Kornfeld fez com Freddy, e
uma das perguntas que Freddy me fez foi: “Nós temos as autorizações de quantos grupos?”. Isso foi depois de Michael ter me mandado tentar conseguir as autorizações, e acho que tínhamos de pelo menos meia dúzia de bandas – nenhuma das principais. Michael Wadleigh assinou como diretor com a Warner na sexta-feira. O estúdio acabou nos dando mais US$ 50 mil naquele dia, para helicópteros extras para transportar artistas até o local. Quando eles chegavam, Artie ia com eles do pavilhão dos artistas até o palco para obter a permissão deles para serem filmados. Receberiam um adicional de cinquenta por cento do cachê pelos direitos de filmagem. O filme renderia carreiras de uma vida inteira para muitos dos artistas que se apresentaram naquele fim de semana. Outros, porém, nunca concordariam em estar no filme. Neil Young (que tinha se juntado a Crosby, Stills & Nash logo antes de sua apresentação) e o Grateful Dead negaram. Albert Grossman se recusou a permitir que qualquer um de seus artistas aparecesse no filme, embora a Warner Bros. por fim tenha conseguido incluir Richie Havens – o The Band e Janis Joplin finalmente apareceriam na versão do diretor, vinte e cinco anos depois. Em dado momento, nós poderíamos ter sido donos do filme logo de cara. Antes que Artie assinasse com a Warner Bros., Bob Maurice contatara John Roberts, pedindo que ele investisse US$ 100 mil, que eles realmente precisavam para pagar os rolos de filme da Kodak, os operadores de câmara trazidos da
Costa Oeste e outros gastos. Foi uma aposta, e John estava tão sobrecarregado com nossos custos astronômicos e tão pouco impressionado com o que viu de potencial para o filme, que disse não. Pensou que um documentário não ganharia um tostão. * * * Durante toda a tarde de quinta-feira, as pessoas não paravam de chegar ao local. O produtor associado do filme, Dale Bell, Michael Wadleigh e a equipe deles chegaram, incluindo os cinegrafistas documentais David Myers e Al Wertheimer, entre outros, e os editores/diretores-assistentes Thelma Schoonmaker e Martin Scorsese, que tinham acabado de se formar na NYU Film School. John Binder, supervisor de produção, mais tarde se lembraria de perguntar a Michael Margetts sobre qual era a situação geral, e Margetts respondeu: “Quando vejo algo interessante, simplesmente aperto o botão, e isso deu o tom para todo o filme. Woodstock era impossível de organizar, e ninguém organizou”. DALE BELL: Reuni um grupo de oitenta pessoas em quatro dias para estar lá na
manhã de quinta-feira, depois de implorar, emprestar e roubar todo o equipamento de filmagem de forma que tivéssemos os mesmos equipamentos intercambiáveis – lentes, cartuchos, câmeras, motores. Graças a Deus por Michael, Chris Langhart, Steve Cohen e Chip: pedi um espaço na frente do palco – suportes de compensado de 1,2 x 2,4 metros a cerca de 1,2 metro abaixo do nível do palco, de forma que nossos caras pudessem pegar ângulos de câmera perfeitos. Sabíamos que tudo seria operado à mão. Sabíamos que precisávamos de oito trocadores de cartucho e cinegrafistas assistentes sob o palco o tempo todo enquanto houvesse música, só trocando os cartuchos e registrando quem estava filmando o quê e qual rolo de câmera fora usado. Parte da equipe de filmagem começou a gravar os moradores locais e suas reações ao festival, bem como as pessoas abandonando seus carros nas estradas congestionadas, o que no meio da tarde de quinta-feira já se estendia por quilômetros. A minúscula rota 17B estava se tornando um estacionamento de 30 quilômetros de comprimento, e começamos a ouvir notícias de que os atrasos na rota 17, maior, começavam a se estender até a New York State Thruway, a
rodovia principal.
O Merry Prankster Ken Babbs e o artista/fotógrafo Ira Cohen. © BARON WOLMAN
PARRY TEASDALE, CINEGRAFISTA UNDERGROUND: Eu
tinha 21 anos naquele verão e conhecia a região, porque minha avó tinha uma casa de veraneio ali perto. Cheguei lá no início da semana, montei o acampamento, fui embora brevemente, depois voltei com alguns amigos na noite de quinta-feira. Lembro-me de me sentir, enquanto andávamos pela Hurd Road, como se estivéssemos num mar de humanidade. Todo mundo estava indo em apenas uma direção: para dentro. E realmente não havia espaço algum para veículos, eles não conseguiam entrar. Estava lotado demais. Ao meu redor, tudo estava escuro, e só se podia ouvir gente caminhando e falando baixo. Ocasionalmente alguém cantava, ou tocava um tambor, mas eu sentia como deveria ser caminhar numa peregrinação pela Índia. ROB KENNEDY, QUE ESTEVE NO FESTIVAL: Eu tinha 16 anos e peguei carona do
norte de Nova Jersey com três amigos. Nós nos dividimos em grupos de dois e
pedimos carona pela rota 17, e curiosamente ambos os grupos chegaram a Bethel ao pôr do sol da quinta-feira, então não tivemos muitos problemas para nos reencontrar. Era uma caminhada muito longa até a entrada, e paramos perto do local do festival para montar as barracas e comer alguma coisa. Quando fizemos isso, meu amigo Mark tinha achado o local e voltara radiante. Estávamos todos pirando muito forte de ácido e vagamos até o festival. Trouxemos uma quantidade modesta de suprimentos, que consumimos rapidamente. Mas não tenho muita lembrança de ficar com fome. Todos tínhamos ingressos, que se provaram totalmente desnecessários. Mandei o pagamento do meu ingresso de sexta-feira pelo correio e comprei os de sábado e domingo de última hora, de um amigo que não foi. Uma vez que estávamos dentro do festival, basicamente delimitamos uma área de forma a não nos perdermos uns dos outros. Sob o efeito do ácido, o número de pessoas era esmagador. A ideia de encontrar o caminho de volta para um grupinho de quatro amigos depois de ir dar uma mijada era desconcertante. Então nós praticamente nos restringimos a um ponto da noite de quinta-feira até a manhã de domingo. Acho que nenhum de nós acreditava que havia tantos hippies assim nos EUA. Na época, nós éramos os únicos esquisitões na nossa escola. Sabíamos que havia alguns nas cidades vizinhas, mas não fazíamos ideia. Esse foi um dos aspectos mais empoderadores de Woodstock. Nós nos demos conta de que éramos um grande número. * * * Ligamos para todos os fornecedores e funcionários que não tinham aparecido e suplicamos que eles viessem imediatamente, antes que ficassem presos no trânsito. O dr. Abruzzi chegou e, ao ver quanta gente já estava lá, providenciou mais suprimentos médicos e pessoal. Fizemos chamadas urgentes para mais helicópteros, pois ficou óbvio de que precisaríamos deles não só para transportar pessoas doentes, mas também suprimentos. John, que chegara na manhã de quarta-feira, e Joel, que estava no local desde segunda, ficaram muito aborrecidos com as milhares de pessoas que já se encontravam dentro da bacia. O tempo todo dissemos que a área de camping seria gratuita. Mas agora parecia que os lugares mais privilegiados, na frente do palco, já tinham sido pegos por gente que chegou antecipadamente – antes que as cercas, os recolhedores de ingressos e as bilheterias estivessem no lugar. John conversou com Wes sobre como lidar com as milhares de pessoas já dentro do
local, e foi aconselhado a deixar para lá, já que não havia como dispersar aquele tanto de gente sem incitar um tumulto. WES POMEROY:
Era como estar em combate, tudo estava mudando. Mas quando você sabe com o que está lidando, simplesmente muda junto. Só ficou realmente caótico na véspera. Quando toda aquela gente começou a chegar, nós vimos e começamos a lidar com isso da melhor maneira possível. Sabíamos que não teríamos cercas ou portões, e isso foi uma grande decepção. Mas a cerca foi irrelevante, e havia um buraco cavado sob ela, e a ideia era que eles silenciosamente espalhariam a notícia de quem quisesse poderia entrar sem pagar. BILL GRAHAM:
Fui até lá no dia anterior. Constantemente eu dava umas voltas, e era uma vista e tanto. Na hora, pensei que não poderia resultar em coisa boa, porque era algo enorme e sem precedentes. Foi o primeiro do tipo. Eu sabia que haveria algumas falhas, principalmente o trânsito. Com 90 mil ratos tentando entrar pelo mesmo buraco, tinha de haver problemas. Na noite de quinta-feira, John, Joel, Peter Goodrich e eu nos reunimos novamente com os caras da Food for Love no trailer deles. Eles não se aventurariam a sair, mas mandaram o advogado nos dizer que se recusariam a operar os estandes de comida, a menos que ficassem com 100% dos lucros, depois de reembolsar os US$ 75 mil que John adiantara pela comida. John estava contando muito com esse lucro e todos nós ficamos ultrajados com essa tática de extorsão, mas, como Wes nos aconselhou, concordamos com as exigências, na esperança de consertar depois. Mais tarde, naquela noite, o Diamond Horseshoe, onde quase duzentos membros da nossa equipe estavam hospedados, pegou fogo e todo mundo teve de fugir. Por sorte, ninguém se feriu. Provavelmente mais da metade das pessoas hospedadas lá estava no local, trabalhando a noite toda. Os caminhões de bombeiro não conseguiram chegar por conta do congestionamento nas estradas, mas quem estava no hotel conseguiu apagar o incêndio, que aparentemente foi causado por um curto-circuito no porão. Os jornalistas, que estavam chegando em massa, não paravam de me perguntar se íamos conseguir, se haveria três dias de paz e música. Será que o público seria pacífico? Ou haveria violência e caos como nos outros festivais?
“Se a coisa ficar feia”, eu disse a um repórter do Washington Post, “eles só estarão se voltando contra si mesmos. Nosso festival está sendo feito pelas pessoas que são essa cultura. Se não puder ser feito dessa forma, então eu estava errado, errado em relação a tudo!” Ticia, que estava ao meu lado, como estivera nas últimas semanas, falou também. “Se funcionar da maneira como nós sonhamos, então as pessoas terão uma visão diferente dessa cultura, de nós.” Ticia não podia estar mais certa. “Tome o controle e siga em frente.” As palavras de Harry Lang voltariam à minha mente muitas vezes naquele fim de semana.
O quadro de avisos da Hog Farm. © HENRY DILTZ
1. Grupo anarquista nova-iorquino dos anos 1960. (N. do T.)
TRÊS DIAS DE PAZ E MÚSICA
SEXTA-FEIRA, 15 DE AGOSTO Richie Havens Sweetwater Bert Sommer Tim Hardin Ravi Shankar Melanie Arlo Guthrie Joan Baez SÁBADO, 16 DE AGOSTO Quill Country Joe McDonald Santana John Sebastian Keef Hartley Band Incredible String Band Canned Heat Mountain Grateful Dead Creedence Clearwater Revival Janis Joplin Sly and the Family Stone The Who Jefferson Airplane
DOMINGO, 17 DE AGOSTO Joe Cocker and the Grease Band Country Joe & The Fish Ten Years After The Band Johnny Winter Blood, Sweat and Tears Crosby, Stills, Nash & Young Paul Butterfield Blues Band Sha Na Na Jimi Hendrix
Eu, Joyce Mitchell e Ticia ao telefone. © BARON WOLMAN
X 15 DE AGOSTO DE 1969
“Ei, Richie, que tal entrar daqui mais ou menos 1 hora?” “Não, cara, eu não! Arrume outra pessoa! Não quero ser o primeiro artista naquele palco!” “Vamos lá, a sua banda está aqui, você consegue encarar isso! Imagina como vai ser maneiro ser o primeiro artista no palco.” “Não, cara, meu baixista não está aqui. E, se o show atrasar, e eu aparecer no palco, o público vai ficar louco e jogar latas de cerveja em mim!” “Bom, dê uma pensada...” São 3 da tarde de sexta-feira e estou tentando convencer Richie Havens a dar o pontapé inicial no festival. Nos anúncios, dissemos que a música começava às 4, e, embora as pessoas não parecessem inquietas, algumas estavam amontoadas na frente do palco desde quarta-feira. Não quero arriscar deixar o público sem música por muito tempo. Já passei por isso e não quero repetir a dose. Estou acordado há 48 horas seguidas, na terceira marcha e rodando na reserva. Estamos ocupados desde o nascer do sol, tentando concluir um milhão de coisas para que a música possa começar. Esta é a parte que mais amo: ver tudo se juntar, as últimas peças se encaixando. Parece que trabalhamos nisso aqui por uma vida inteira, e a euforia do dia de abertura, combinada com o número sem precedentes do público, é exatamente o combustível de que preciso para seguir em frente.
Mas com a previsão do tempo não muito boa para o fim de semana, há conversas apocalípticas sobre desastres em potencial. Mel, Stan, John Morris e Chip alternadamente me acossam com problemas, que vão de vazamentos na tubulação a vizinhos raivosos reclamando de intrusos que cruzaram nossa cerca não terminada (Mel recomenda retirar o que resta dela). John e Joel estão se desesperando por causa dos milhares de “filadores” que aumentam a cada hora. A condição nas estradas continua a piorar, e estamos com medo de que suprimentos cruciais não cheguem a tempo. Aumentamos nosso esquadrão de helicópteros para transportar os músicos hospedados no Holiday Inn e no Howard Johnson’s, em Liberty. Entre os primeiros a chegar está Richie Havens, com seu violonista e seu percussionista. Vi-os andando pelo pavilhão dos artistas, quase pronto, e decidi pelo menos abordar a ideia. Richie é um profissional – começou a tocar nos cafés do Village no início dos anos 1960. Alto, com uma voz poderosa e um estilo único de tocar violão, sempre pareceu destemido. Nossa banda de abertura, o Sweetwater, grupo de folk rock de L.A., aparentemente está presa no trânsito, vindo do hotel, em Liberty. O equipamento da banda está em outro engarrafamento. Não quero colocar essa pressão sobre Richie agora, mas não o tiro de vista, sabendo que posso precisar ter com ele novamente daqui a mais ou menos 1 hora. RICHIE HAVENS:
Eu, meu violonista, Deano [Paul Williams], e meu percussionista, Daniel Ben Zebulon, estávamos espremidos na bolha de vidro da cabine do helicóptero. Estávamos sentados atrás do piloto, com duas congas e dois violões apertados entre a gente. O vidro nos cercava de cima a baixo. Ao olhar para baixo, eu conseguia ver o chão claramente, como se estivesse sentado no ar. Viramos um pouco à esquerda e o mar de árvores mudou para um outro tipo de mar, tão belo quanto. Fiquei boquiaberto quando vi toda aquela gente, centenas de milhares. Definitivamente, mais do que as 200 mil pessoas noticiadas pelos jornais de Nova Iorque na manhã seguinte, pareciam muito mais meio milhão naquele primeiro dia. Era maravilhoso, como dois Times Squares no réveillon, em plena luz do dia, sem muro ou prédios para cercar as pessoas. Elas preenchiam o campo e formavam um cobertor humano por cima da estrada até o outro lado da colina, até as florestas e ao redor de todo o campo, onde era impossível de alguém enxergar o palco. Nosso helicóptero pousou bem atrás do palco. Ao sair, olhei em volta e vi três estradas bloqueadas pelo cobertor de gente, em especial a estrada na base da colina, que dava diretamente para a área do palco. Estava bem tranquilo por onde quer que eu olhasse. Mesmo quem estava mais perto do palco não clamava para nada acontecer. Era um dia de verão e estava todo mundo se
divertindo no campo. Alguns fumavam maconha, dançavam ao som de rádios portáteis ou jogavam frisbee. Outros tomavam sol, tiravam uma soneca ou se pegavam debaixo de lençóis. Mas, mais do que tudo, estavam todos se conhecendo ou compartilhando o momento. Não importava de onde vieram ou o quão velhos ou jovens eram. A vibe era boa naquele lugar. * * * As últimas 24 horas tinham sido uma corrida incessante contra o tempo. A equipe trabalhou a noite toda tentando terminar o palco, e, enquanto o sol nascia, finalmente colocou o toca-discos de madeira de 12 metros no lugar. Se conseguirmos seguir em frente, tenho certeza de que tudo dará certo.
Eu e Bill Graham. © JIM MARSHALL
Vendo como Tim Hardin estava. © HENRY DILTZ
Reunião da patrulha da paz. © HENRY DILTZ
Como se em resposta a esse pensamento, uma bela mulher chegou no backstage com um grande saco plástico com pó branco. Um bom samaritano tinha pedido meio quilo de cocaína para distribuir para as várias equipes que trabalharam a noite toda e agora tinham de enfrentar o que certamente seria um fim de semana sem dormir. Por volta das 8 da manhã, todos os chefes de equipe se reuniram em frente aos trailers da produção. Justo quando o pó foi depositado numa mesa para ser dividido e distribuído, as nuvens se fecharam e a chuva caiu forte como uma mangueira de incêndio. Antes que alguém conseguisse se mexer, os grânulos cintilantes se tornaram uma maçaroca. As pessoas se debateram para pegar a pasta branca enquanto a chuva escorria como riachos pelo chão. Os deuses tinham falado novamente. Decisões de última hora precisavam ser tomadas. Abordei Chip Monck e John Morris e disse a eles que fariam as vezes de mestres de cerimônia. John já estivera ao microfone, testando-o na quinta-feira, quando Bill Hanley e sua equipe botaram o P.A. para funcionar. John já tinha anunciado shows no Fillmore e adora os holofotes. Embora Chip nunca tenha feito isso antes, é articulado e tem uma presença imponente, que fará dele um bom mestre de
cerimônias. CHIP MONCK: Às 7 da manhã do primeiro dia, Michael veio até mim no
palco, enquanto eu trabalhava, e disse: “Chip, já que não há muita iluminação a fazer, você tem outro trabalho, o de mestre de cerimônias”. De repente, dava para ouvir meus joelhos batendo um no outro! Fiquei apavorado! E ele só disse: “Faça o trabalho e cumpra essa tarefa”. A primeira coisa que anunciei foi um pedido para as pessoas na bacia se levantarem e se afastarem do palco. E então começaram a aparecer os bilhetinhos com coisas do tipo: “Harold, por favor vá até a tenda azul lá atrás para pegar seus comprimidos para diabetes”. É claro que isso significava que alguém ia conseguir drogas. Na manhã de sexta-feira, pelo menos 200 mil pessoas já lotavam os campos de Max. Com as cercas retiradas, todos sabíamos que era impossível recolher ou vender ingressos – embora houvesse gente à procura de onde comprá-los –, mas continuamos a trocar ideias sobre o que fazer. Não consegui localizar Keith O’Connor ou Joel, então liguei para Mel para descobrir o que tinha acontecido com nossa operação de ingressos. Ele disse estar por fora da situação. Aparentemente, as cabines portáteis onde ficariam os vendedores de ingressos nunca chegaram. O plano original era que os portões para a área principal abrissem às 13 horas, mas, é claro, não havia portões. Artie pensou que poderíamos colocar mulheres “usando vestidos transparentes” para passar o chapéu, e olhe que ele ainda nem estava drogado. Quando vi as câmeras filmando nossas discussões bastante tensas, conduzi todo mundo para longe das lentes. Embora eu quisesse que Woodstock fosse documentado, há limites. Mais tarde, naquele dia, depois de conversar com John e Wes, aceitamos aquilo que umas 200 mil pessoas já sabiam. John ficou desolado. Pedi a John Morris que anunciasse do palco, afirmando o óbvio: “O show é gratuito a partir de agora”. Depois dos aplausos, ele continuou: “O pessoal que está organizando isso aqui vai tomar um banho, um banho e tanto...”. Nossa esperança era que essa mensagem inspirasse as pessoas a colaborar e ajudar o próximo; estávamos todos juntos nessa, não importava a situação. JOYCE MITCHELL: Tínhamos bastante certeza de que seria um festival gratuito,
muito antes disso ser anunciado. Foi uma combinação de todos os vários grupos
underground que vieram até Michael, mais o fato de que sabíamos que nunca conseguiríamos terminar aquela maldita cerca a tempo. Havia muito mais coisas que sabíamos e não compartilhamos com os outros. Não era uma conspiração, simplesmente foi assim. Do ponto de vista de Michael, estava claro que o que importava era realizar o festival. WES POMEROY:
Senti como se os estivesse deixando na mão, como se de alguma forma eu tivesse fracassado, mas precisava ser franco, e disse a John: “Não há nada que possamos fazer. Não consigo proteger o seu dinheiro”, e sugeri que, se quisessem, poderiam montar alguns pontos onde incentivassem as pessoas a fazer doações. Achei que isso seria bem eficaz, pois o pessoal estava se sentindo grato. Havia gente perguntando: “Onde podemos dar nosso dinheiro?”. Porém, por alguma razão, isso não foi adiante. Chip e John, do palco, continuavam a reafirmar ao público que o show começaria em breve. Começamos a tocar os álbuns novos do Led Zeppelin e de Crosby, Still & Nash no P.A. e a vibe parecia boa. Em dado momento, Stephen Still ligou para John Morris no escritório da produção. David Geffen ou alguma outra pessoa tinha contado a ele da multidão, e ele e a banda estavam ficando nervosos quanto ao show. “Ouve isto: estamos tocando o disco e o pessoal está adorando!”, tranquilizou John, segurando o telefone de forma que Stills pudesse ouvir “Suite: Judy Blue Eyes” seguida de aplausos. “OK, estaremos aí!”, disse Stephen. “Vamos de helicóptero no domingo.” Num determinado momento, Bill Graham apareceu no backstage. John Morris tentou puxar conversa com ele e lamentar as dificuldades com o trânsito e as multidões. Bill ficou sem saber o que dizer; ninguém nunca precisara lidar com o que estávamos enfrentando. “É hora de parar de ser um promoter e ser um produtor!”, ele me disse. “Você tem toda essa gente aqui! O que vai fazer com ela?” “Vamos cuidar disso, Bill”, eu disse ao subir as escadas para o palco. Por volta das 16 horas, eu estava numa espécie de posto de comando que Chip armara do lado direito do palco, onde eu passaria a maior parte do fim de semana. Ouvi o rugido de motores e vi um grupo de cerca de vinte motos vindo pela West Shore Road, logo atrás do palco. A preocupação se abateu sobre mim por um momento quando me dei conta de que era uma gangue de motociclistas da cidade. Quando eles passaram, notei o quanto estavam sendo educados com as pessoas que abriam passagem para eles. À medida que avançaram, foram
engolidos pela multidão.
Um fotógrafo molhando os pés. © BARON WOLMAN
Conseguindo drogas. © BARON WOLMAN
O público era um organismo vivo e respirando. Não havia fronteiras. Havia gente nua, gente chapada, gente careta e todo tipo de gente no meio disso. Era uma multidão muito legal. ROB KENNEDY, QUE ESTEVE NO FESTIVAL
ROB KENNEDY, QUE ESTEVE NO FESTIVAL: O público era um organismo vivo e
respirando. Não havia fronteiras. Havia gente nua, gente chapada, gente careta e todo tipo de gente no meio disso. Era uma multidão muito legal. Uma história engraçada: um dos meus amigos levou um cachimbo bem grande, tipo Sherlock Holmes. O cabo tinha pelo menos 25 centímetros, e o bojo era enorme e sempre induzia ataques de tosse. Depois de um ataque desses particularmente ruim, outro amigo nosso ficou furioso e arremessou o negócio o mais longe possível. O dono do cachimbo ficou muito aborrecido e começou a berrar: “Joguem de volta, joguem de volta!”. De repente, o cachimbo reapareceu – ainda queimando – bem em cima da cabeça do cara que tinha arremessado. Carma instantâneo! Na mata próxima da área dos estandes de concessão, surgiu um mercado de drogas e parafernália. Os itens incluíam toda uma variedade de ácidos, THC, mescalina, peiote, cogumelos, muitas variedades de maconha e haxixe. Os estandes vendiam seda, cachimbos, piteiras e cigarros. Pessoas continuavam a chegar ao local durante o dia todo. Demorava-se pelo menos 8 horas de carro para percorrer os 160 quilômetros desde Nova Iorque. O trânsito parava na rodovia quilômetros antes de chegar à saída 16, que levava à muito entupida rota 17. Por fim, a polícia estadual não deixaria mais os carros pegarem essa saída. A rota 17B, com 40 quilômetros, tinha parado de andar desde a noite de quinta-feira. Na tarde da sexta-feira, o trânsito estava travado num raio de 32 quilômetros do local. GREIL MARCUS, JORNALISTA MUSICAL:
A intrépida equipe da Rolling Stone achou que seria inteligente driblar o trânsito, então deixamos a cidade de manhã cedo e partimos para lá... Chegamos até Monticello, uma cidadezinha a 130 quilômetros do festival... Doze quilômetros de uma estrada duplicada congestionada com milhares de carros que mal se moviam. Motores esquentando, gente desmaiada na beira da estrada, todo mundo sorrindo numa perplexidade comunal. Os carros pifados pareciam os esqueletos dos cavalos que morreram na Trilha do Oregon. As pessoas começaram a improvisar, iam pelo acostamento até darem de cara com alguns outros milhares que pensaram na mesma coisa, e então paravam de novo. As duas pistas enfim se transformaram em quatro e mesmo assim nada se movia... Muitos garotos estacionavam e começavam a andar pelos campos. Jovens esgotados pegavam o caminho de volta e nos diziam que nada estava andando e ainda havia quase 10 quilômetros
adiante.
Leite fresco. © BARON WOLMAN
Era um engarrafamento cósmico, em que todos os carros se encaixavam como peças de um quebra-cabeça e ficavam lá para sempre... A estrada para White Lake era uma vista incrível: parecia, como disse alguém, o exército de Napoleão batendo em retirada em
Moscou. GREIL MARCUS, JORNALISTA MUSICAL
© KEN REGAN
JONATHAN GOULD, QUE ESTEVE NO FESTIVAL: Nos separamos do rebanho de
carros atolado na rota 17B e partimos por conta própria. Depois de alguns quilômetros de uma estrada de cascalho poeirenta, nos deparamos com o
minúsculo aeroporto do condado de Sullivan, que era mais uma pista de pouso do que um aeroporto, cercado por uma série de hangares e prédios utilitários malcuidados. Não me lembro de nenhum de nós ter articulado o próximo passo em nosso plano. Da minha parte, eu estava usando o que qualquer criptohippie/aspirante a músico de rock de respeito de 17 anos que acabara de voltar de Londres usaria para uma saída de três dias nos confins da zona rural do estado de Nova Iorque: um blazer costurado sob medida, uma camisa amarela larga com mangas balonê e um par de calças de veludo boca de sino. Meu cabelo batia nos ombros; e óculos de sol estilo aviador completavam a produção. Meus amigos Tom e Chris estavam vestidos de maneira mais modesta. Pelo que me lembro, usavam jeans da cabeça aos pés. Nossos trajes implicavam uma narrativa: eu era um músico de rock, aqueles eram meus roadies. Imbuídos dessa fantasia, atravessamos o estacionamento e entramos numa fila de cerca de vinte e cinco pessoas vestidas de forma muito colorida, na beirada de uma pista coberta por ervas daninhas onde os helicópteros estavam pousando e decolando. A única coisa que me lembro é da sensação de esperar que alguém numa posição de autoridade nos dissesse: “Que diabo vocês pensam que estão fazendo?”. Os helicópteros continuavam a pousar e decolar, cada um levando dois passageiros sentados, além do piloto. Por fim, chegou a nossa vez. Chris e eu nos agachamos e corremos pela pista (tínhamos visto isso na TV), subimos na cabine de vidro em forma de bolha, apertamos os cintos de segurança, e lá fomos nós.
Artie com Albert Grossman. © HENRY DILTZ
Eu nunca estivera num helicóptero, muito menos sentado na porta aberta de um voando baixo, disparando pelas colinas da zona rural de Nova Iorque. Foi uma viagem abençoadamente curta. Chegamos no topo de uma colina e lá, espalhada numa grande bacia abaixo de nós, estava a maior multidão que já vi. Circulamos essa multidão uma vez e descemos em direção a uma área à esquerda do palco. Durante todo o voo, Chris e eu evitamos fazer contato visual enquanto canalizávamos toda nossa atenção à tentativa de parecer o tipo de gente que voa em helicópteros o tempo todo. Agora nos preparávamos para a hora da verdade, quando tocaríamos o solo e nosso papel de impostores descarados seria exposto. Como era de se esperar, assim que pousamos, dois roadies hippies mal-encarados vieram correndo em direção ao helicóptero (me lembro de pensar que pelo menos não eram policiais). Um deles se apoiou na porta e gritou sob o rugido do motor: “Vocês precisam de alguma coisa?”. Se precisávamos de alguma coisa? Bem, não, não agora, obrigado. Desprendemos os cintos de segurança, descemos da bolha de vidro, fizemos nosso agachamento de helicóptero, agora que éramos experts, e corremos pelo campo, escoltados pelos dois roadies hippies, que nos deram algumas rápidas orientações (“o backstage é aqui, a comida fica ali”). O helicóptero de Tom pousou alguns momentos depois, e ele também emergiu
incontestado. Estávamos em Woodstock, com os pés no chão e a cabeça nas nuvens. No fim do dia, Wes fez um pronunciamento para as rádios locais, pedindo às pessoas que não tentassem vir até Woodstock, que nossa capacidade tinha chegado ao máximo. Foi estimado que 1 milhão de pessoas tentaram chegar na sexta-feira e tiveram de dar meia-volta.
Uma boutique na mata. © BARON WOLMAN
Barraca de melancias. © KEN REGAN PENNY STALLINGS: Foi como se a Terra balançasse enquanto a geração baby
boomer inteira tentava chegar lá. JOYCE MITCHELL: Meu escritório era um trailer, e foi de lá que o repórter do
New York Times ligou para o jornal e disse que éramos um desastre. Eu quis enforcá-lo, mas, você sabe, “liberdade de imprensa”. Eu estava bem na outra ponta da ponte, e fazia a comunicação – levava mensagens até o palco. Estava brigando com o agente de Jimi Hendrix, para que tentasse convencê-lo a vir. Originalmente, eu queria que Jimi tocasse um set surpresa na sexta-feira, para dar início ao festival, mas ele ainda não tinha chegado. Lá pelas 16h30, sabíamos que tínhamos de aprontar alguém para entrar no palco. A única outra possibilidade além de Richie era Tim Hardin. Quando o abordei, ele estava tocando violão e cantando sozinho no pavilhão dos artistas. “Ei, Tim, você quer abrir esse negócio?” “De jeito nenhum, cara! Não posso tocar agora, não eu, não como primeiro!
Não consigo lidar com isso!” Ele me olhou com desespero. “Estou esperando pela minha banda.” Eu sabia que ele era frágil. Acabara de largar o vício em heroína usando metadona e eu não queria pressioná-lo. Tim era um amigo, e eu era um grande fã da música dele e esperava que ele fizesse o seu melhor no palco. Esse poderia ser um momento crucial para a carreira dele. Teria de ser Richie, eu sabia que ele daria conta, e seu semblante poderoso, porém tranquilo, era exatamente do que precisávamos para determinar o tom para a decolagem. Independentemente do que ele dizia, estava pronto e precisava do mínimo de preparação e equipamentos. Quando me viu chegando, Richie parecia assustado e tentou escapar. RICHIE HAVENS: Lá vinha Michael andando lentamente em minha direção, e
eu sabia exatamente o que ele ia falar. Podia ver seu sorriso ficando cada vez mais largo à medida que ele se aproximava. Ele então pendeu a cabeça para um lado e disse: “Richie, por favor, ajude a gente. Ah, cara, você tem que nos ajudar”.Quando percebi que dessa vez ele estava falando sério, pude sentir meu coração começando a entrar em pânico. E eu implorava dizendo: “Michael, eu tenho que ser o quinto, não o primeiro”. “Por favor, Richie, cara, por favor!” Finalmente fui convencido. Às 17h05, vestindo uma túnica laranja e calças brancas, Richie Havens entrou naquele palco enorme com seu grande violão Guild e se acomodou numa banqueta alta de madeira. Ladeado por seu percussionista e seu violonista, começou a conversar com o público como se estivesse no Café Wha?: “Sabe, nós realmente conseguimos! Desta vez nós conseguimos. Eles nunca mais serão capazes de nos esconder!”. “Get Together”, “I’m a Stranger Here”, “High Flying Bird”, “I Can’t Make It Anymore”, “Handsome Johnny”. Depois de tocar um set enérgico de canções folk por cerca de 40 minutos, Richie se levantou da banqueta para encerrar sua performance. Ainda não estávamos prontos para um próximo artista, então acenei para que ele continuasse. Como o guerreiro que era, ele simplesmente foi que foi. Levantava para sair do palco e nós o mandávamos de volta. Não tinha um setlist por onde se guiar, mas retornava com canção atrás de canção, e sua banda seguia junto. Por fim, ensopado de suor, nos deu um olhar que dizia que aquele – seu sexto ou sétimo bis – era o último.
RICHIE HAVENS: Volto para o palco mais uma vez, quando finalmente tinha
esgotado por completo o repertório, e sei que tenho de terminar, qualquer que seja a situação. Então começo a afinar e reafinar, na esperança de me lembrar de alguma canção que tenha esquecido, quando ouço aquela palavra de novo na minha cabeça, a palavra que eu não parava de ouvir enquanto observava a multidão nos primeiros momentos no palco. A palavra era liberdade. E digo à multidão: “Liberdade é o que todos estamos falando em conseguir. É o que estamos procurando... Acho que isso é liberdade”. Começo a tocar o violão e a palavra liberdade (“freedom”) sai da minha boca com um ritmo próprio, “FREE-dom, FREE-dom”. Meu pé assume o comando e conduz meu violão a um ritmo mais rápido e poderoso. Não sei para onde isso está indo, mas a sensação é boa e, de algum modo, me vejo mesclando com uma canção antiga – “Sometimes I Feel Like a Motherless Child” –, um grande spiritual que minha avó costumava cantar para mim como um hino quando eu era garoto, no Brooklyn. É uma música linda, que eu não tocava havia seis ou sete anos. O ritmo é forte e meu pé está me conduzindo. Deano e Daniel estão seguindo, entrando na música, entoando frases em resposta a mim. Mas “FREE-dom” está sempre lá, como uma linha de baixo tácita ou um refrão distante. Era a mesma sensação que eu vinha experimentando o tempo todo. A sensação de que Bethel era um lugar tão especial, um momento em que todos nós sentimos que estávamos no centro exato da liberdade verdadeira. Estou cantando “FREE-dom, FREE-dom”, pegando o ritmo em outra batida, cuja pulsação me carrega e me conecta a todo o Festival de Woodstock em meus momentos derradeiros no palco. Foi como se eu pudesse sentir as pessoas que eu nem conseguia ver, do outro lado da colina... “Batam palmas! Batam palmas!” (Clap your hands! Clap your hands!). E todos bateram! Ao observar Richie sair do palco depois de seu set incrível, vi meu pai, com um grande sorriso no rosto, sentado no andaime inferior do palco. O melhor lugar na casa. Como suceder Richie? Artie e John Morris deram a resposta na forma de Swami Satchidananda, um líder espiritual indiano que gostaria de dizer algumas palavras para o público. Meu velho amigo Peter Max, que vinha estudando meditação e ioga, trouxera o Swami e um grupo de seus seguidores até Woodstock.
ARTIE KORNFELD: Não houve discussão sobre isso, porque logo que surgiu a
ideia, Michael achou que seria legal. Eu via como “que ótima vibe para se expressar”. Ele lançou uma onda de paz ali. JOHN MORRIS: Lá estava aquele homenzinho minúsculo num robe... Levei-o
até o palco, ele se sentou e, com sua voz esganiçada, falou com o público... Foi parte da influência calmante. Foi como uma invocação. Embora não estivesse no line-up, John Sebastian era um rosto familiar que estava curtindo no backstage. Depois que sua banda, o Lovin’ Spoonful, terminou, no ano anterior, ele vinha passando um tempo na Califórnia, vivendo numa comuna com o Firesign Theatre e escrevendo músicas para seu primeiro álbum solo. Ele encontrara a Incredible String Band por coincidência no aeroporto de Albany, na sexta-feira de manhã, e eles o convidaram para ir junto no helicóptero que mandamos para buscá-los. JOHN SEBASTIAN:
Acabei no backstage principalmente porque eu conhecia todo mundo; eram todas as pessoas com quem eu já havia tocado, tinha amizade, fumara maconha junto. Era uma comunidade em absoluto. Me senti muito integrado ao grupo. Rapidamente me deram todos os passes de que eu precisaria, e eu comecei a vagar pelo backstage. Todo mundo estava processando simultaneamente o fato de que tinha se tornado um festival gratuito. A mecânica de colocar e tirar os artistas do palco tinha sido pensada, mas era uma tarefa monumental. Assim, aqueles que não estavam no palco se viam ajudando com a comida ou acomodações, ajudando de qualquer maneira que pudessem. Dei uma volta e encontrei um ônibus-tenda Volkswagen de 2,5 x 2,5 metros que tinha se tornado um camarim. Me senti muito em casa. Varri a tenda e comecei a fixá-la um pouco mais firmemente. Tinha sido montada muito rápido e alguém obviamente tinha pulado dentro dela e sacudido as estruturas. Então comecei a firmá-la no chão, e Chip Monck apareceu em determinado momento e disse: “Nossa, você conhece isto”. E eu disse: “Bem, faz meses que moro numa tenda exatamente como esta”. “Fantástico, você é o responsável por esta tenda”, disse ele. Por mim, tudo bem. Toda a Incredible String Band guardou seus instrumentos nela. Eles tinham um oud, um violão de doze cordas, uma cítara, bandolins e banjos. Escondemos essas coisas nas extremidades da tenda, de forma que nenhuma umidade entrasse. Ainda era muito cedo, então decidi que circularia em torno da multidão, só
pra ver o que estava rolando. Foi uma longa caminhada, levou 3 horas. Vaguei até a área arborizada, e onde havia uma academia da floresta, vários artesãos tinham montado seus pequenos mundos. Foi incrivelmente mágico vagar por essa área e ver as várias facções dessa comunidade de almas que haviam se unido. Ninguém me reconheceu. * * * Reservamos uma área no backstage para os amigos e a família. Meus pais ficaram maravilhados com o que viram. Queriam ficar para o festival todo, mas tinham deixado a cachorra no carro e tiveram de sair para ver como ela estava. Logo eles ligariam para dizer que, por causa do trânsito, não conseguiram chegar até o carro. Mandei um helicóptero para buscá-los, e depois sua cachorra, Judy, e levá-los até Monticello. Foi como ver a minha vida passar diante dos meus olhos num flash: eu convidara Ric O’Barry, de Miami, que também tentou convencer Fred Neil a vir. Peter Max estava lá, e muitos amigos de Woodstock, do Grove e do Brooklyn. Eu mal estivera em casa por semanas a fio e meu relacionamento com Sonya tinha basicamente acabado, mas ela estava lá, junto com outros amigos do Grove. Eu convidei o Train, mas eles estavam em estúdio, finalmente gravando seu primeiro álbum pela Vanguard, a mesma gravadora de Joan Baez e Country Joe and the Fish. CHRISTINE OLIVEIRA, QUE ESTEVE NO FESTIVAL: Eu era amiga de Michael e
Sonya, do Coconut Grove, e me mudei para Woodstock pouco depois deles. Depois de assistir a Michael entrar e sair da cidade, planejar o festival por meses, tínhamos de ir, e ele nos deu ingressos. Estávamos acampando ao lado da Hog Farm, e éramos, acho, meio que a elite, mas eu não sabia disso. Nossa área tinha seu próprio anfiteatro, então o pessoal que se apresentou ia até lá para tocar, já que você podia ficar por ali sem ninguém te ver. A Hog Farm era muito unida em termos de organização da comida para todo mundo e de cuidar da higiene. Eu detesto multidões, então fiquei nessa área, porque dava para ouvir tudo, de qualquer forma. Pensei: “Isso é algo que acontece uma vez a cada milênio”. Atribuo muito disso à energia de Michael de ter levado aquele festival até ali. No primeiro dia, sentei-me com o público na frente do palco principal por 4 horas e finalmente pensei: “Não consigo mais ficar aqui sentada”. Não era um público ruim, mas eu precisava me levantar. A maioria das pessoas estava muito
chapada. Tinham 15, 16, 17 anos, e nunca tinham estado longe de casa. Eu já tinha 26 anos. Do palco, eles chamavam: “Fulano e sicrano, venham buscar seus remédios de diabetes”, e isso foi um choque para mim, porque eu nunca tinha ouvido falar que havia tantos diabéticos assim. Levantei-me e dei uma volta. Havia tubulação espalhada pelo chão, o sistema de água estava quebrado e as vias não estavam apropriadas para os carros entrarem e saírem. Estavam construindo o palco até o último minuto. Até mesmo enquanto os primeiros artistas tocavam, ainda estavam trabalhando em alguma coisa. Havia uma pequena vila e um bosque, com estandes de concessão e umas coisas lindas, trabalhos de couro e tie-dye, mas era toda uma cultura. A montagem estava belíssima, com uma enorme academia na selva e um playground. Era um vilarejo mágico utópico.
Penny dando um tempo ao lado do palco. © HENRY DILTZ
ABBIE HOFFMAN: Foi uma cena muito bela, com as pessoas cuidando umas das
outras. Consegui com que Bobby Neuwirth, Rick Danko, John Sebastian e outros viessem e fizessem um pequeno show no palco gratuito. Foi muito especial. Joan Baez esperou por 1 hora na chuva para entrar no palco, sem dizer a ninguém quem era. JOHN SEBASTIAN: Rick Danko e eu fomos até a grande tenda onde a Hog
Farm colocou as pessoas que passavam mal de ácido. Havia gente deitada em macas de lona, e [Hugh Romney] andava pra lá e pra cá num traje branco. Cada garoto que entrava ia até ele e dizia: “Ei, cara, pegue esse ácido aqui e nunca mais me deixe ver esse negócio”. Rick e eu tentamos pensar em todas as canções que poderíamos tocar para quem estivesse mentalmente desorientado. Era easy listening hardcore. Pequenas jams improvisadas também rolavam no backstage. Certo momento, Jerry Garcia e Mimi Fariña estavam cantando e tocando juntos. No palco principal, a programação de sexta-feira se ajeitava. Encontramos o Sweetwater e eles finalmente chegaram, depois que os buscamos de helicóptero. Porém, tiveram alguns problemas com o som, devido a toda a instrumentação que usavam, incluindo flauta, violoncelo, teclados, congas, bateria, baixo e dois vocalistas, Nancy Nevins e Albert Moore. ALEX DEL ZOPPO, DO SWEETWATER: Tínhamos uma banda bastante eclética.
Era uma banda de raças e gêneros distintos – italianos, judeus, mexicanos, irlandeses. Aceitávamos qualquer um! Sete pessoas e uma instrumentação muito estranha: sem guitarra. Infelizmente, era complicado montar nosso palco. Estávamos acostumados a entrar no palco sem passagem de som, mas não a ser a passagem de som! E, até onde sabemos, Albert encontrou alguém que ele conhecia e tomou um pouquinho daquele ácido marrom, o que não foi uma boa ideia. FRED HERRERA, DO SWEETWATER: Fomos o primeiro grupo eletrificado no
palco, com microfones para os amplificadores e a bateria. Então, em essência, fomos a passagem de som para a equipe de som. Eles ficaram ajustando os volumes durante todo nosso set, então tudo era intermitente. Eu meio que conseguia ouvir dos alto-falantes principais o que estava chegando até o público.
Mas não conseguia ouvir o que estava rolando do outro lado do palco, e de lá eles não ouviam o lado de cá. Estávamos tentando ouvir nossos amplificadores, mas estavam tão distantes um do outro, que mesmo o baixo que eu tocava, e estava com volume bastante elevado, se perdia. Era simplesmente sugado no ar. Com uma voz de tenor assombrosa, o cantor e compositor Bert Sommer tocou “Jennifer”, “She’s Gone”, “America”, de Simon & Garfunkel, e outras baladas, sentado no palco de pernas cruzadas, acompanhado por guitarras. Artie produziria seus dois álbuns seguintes. Mais músicos apareciam no Holiday Inn em Liberty, e nós mandamos Joyce de helicóptero para se certificar de que estava tudo bem por lá. JOYCE MITCHELL: Todo mundo estava no hotel brigando pelos quartos – não
havia quartos suficientes. Janis estava lá. Tentei acalmá-la no lobby, porque ela estava muito bêbada e fazendo muitas exigências. O Grateful Dead foi muito querido. Disseram que compartilhariam quartos. O The Who estava lá e foi difícil fazer o Keith Moon sossegar. O filho da puta tentou me estuprar! Tive que literalmente empurrá-lo para tirá-lo de seu quarto. Ele estava me agarrando. ELLEN SANDER, JORNALISTA MUSICAL: A vários quilômetros dali, a culminação
da história do pop se desenrolava, mas uns duzentos de seus superastros e suas equipes de turnê estavam ilhados no Holiday Inn. O [Jefferson] Airplane e o The Who tinham acabado de tocar no Tanglewood alguns dias antes, então já estavam lá. Alguém trocou uma nota de US$ 5 no bar e colocou todas as moedas na jukebox, para tocar “Hey Jude” sessenta vezes seguidas. O bar inteiro cantava com o refrão, de braços dados, dançando de um lado pro outro e rindo, entre eles, Jack Casady, Marty Balin [ambos do Airplane], Janis Joplin e Jerry Garcia. Um jogo de pôquer de alto risco rolava num canto do bar. Mais tarde, [a cantora folk] Rosalie Sorrells e Jerry Garcia se sentaram no chão com violões e cantaram músicas folk juntos. Judy Collins se sentou para almoçar na ponta de uma longa mesa na sala de jantar, acompanhada por Clive Davis e Jac Holzman [executivos da indústria fonográfica]. Quando a noite chegou, Tim Hardin disse que estava finalmente pronto para entrar no palco. Sua banda chegara, mas ele entrou sozinho com o violão, tocando algumas das músicas maravilhosas que escreveu, como “If I Were a
Carpenter” e “Reason to Believe”. Seu set começou potente. GILLES MALKINE, VIOLONISTA DE TIM HARDIN:
Eu tinha 20 anos e tocava violão base com Tim. Ele fez a primeira metade do set sozinho. Mas então, lá pelo meio, chamou a banda. Era impossível ver o final da multidão. Era como se toda a humanidade estivesse olhando para você. E acho que tudo bem para quase todo mundo na banda, mas eu fiquei bastante exaurido. Estava no fim das minhas forças. De repente, ele nos lança o título de uma música que ainda não tinha sido escrita. Sua mulher, Susan, tinha escrito um poema chamado “Snow White Lady”, sobre heroína, então ele disse: “‘Snow White Lady’ em fá”, e colocou uma folha de papel amassada sobre o teclado e começou a tocar, então nós só o seguimos, mas foi um desastre. Ele cantou meio que como um mantra – era um único acorde e ele estava procurando pela melodia ali. OK, você pode fazer isso num café em algum lugar, mas Jesus Cristo, o mundo inteiro estava olhando para nós! Depois dessa primeira música, começamos a melhorar um pouco, mas qualquer outro público teria ido embora, de tão ruins que estávamos. Foi tão desastroso que, depois disso, deixei o mundo da música por muitos anos. Fiquei desapontado quando as coisas se desmantelaram para Tim no palco. Porém, quando acabou, ele estava aliviado e feliz. Por volta das 22h30, estávamos preparando Ravi Shankar para entrar no palco, quando começou a trovoar. Ele dizia a Al Aronowitz: “Estou com medo caso algo dê errado com tanta gente”, mas, uma vez em cima do palco, sua música transcendeu os problemas climáticos. A vibe foi intensa. Quando esses momentos espirituais aconteciam, era possível senti-los. Dava para sentir todo mundo se unindo. GILLES MALKINE: Um artista que estava quilômetros acima de todos os outros
era Ravi Shankar. Ele não falou nada, foi música pura. O efeito que ele causou naquela plateia foi incrível, apenas com música. E, em certos momentos da performance, pessoas se levantavam e berravam, por causa do lugar aonde ele as levara. Dizem que leva uma vida inteira para formar um citarista. Eu acredito nisso, porque trata-se de deixar sua mente para trás! E apenas seguir a música e o fluxo e alguns outros músicos com quem você tocou a vida inteira, como Ustad Alla Rakha, que tocava tabla. Ele despertou aquela plateia e a levou junto consigo em sua jornada musical elevada. Ninguém mais poderia alcançar isso.
AL ARONOWITZ, REPÓRTER DO NEW YORK POST: Shankar estava no meio de
sua performance quando a chuva começou a cair, acompanhada de alguns relâmpagos, e a água era assustadora. A chuva começou a acumular no toldo acima do palco e ameaçou derrubá-lo. Em outro momento, os seguranças do festival expressaram o medo de que o palco, construído sobre andaimes, estaria começando a deslizar na lama. Porém, quanto mais forte a chuva caía, mais determinada a plateia parecia ficar. Agrupados ao redor de fogueiras, a maior parte do público esperou por 1 hora, enquanto a música foi interrompida porque a chuva ameaçava dar um curto-circuito no equipamento elétrico. Porém, mesmo sob a chuva, a multidão ovacionou em pé. A escuridão e as chuvas pesadas causaram alguns alarmes falsos e temores quanto à solidez do palco. Por ele ter sido erguido na subida de uma colina, ficamos preocupados que se movesse. Pode ter se movido um pouco, mas a base estava presa em concreto, então teriam sido só alguns centímetros, se tanto. A lona que cobria o palco se encheu de água, então, no sábado, usamos a grua para elevá-la e esvaziá-la. Caso contrário, uma tonelada de água teria caído sobre a cabeça de alguém.
Swami Satchidananda e seus seguidores chegando, 15 de agosto. © HENRY DILTZ
Depois do set de Ravi Shankar, a cantora folk Melanie apareceu no backstage com Artie Ripp. Amigo de Artie Kornfeld da indústria fonográfica, Ripp estava trabalhando com Melanie e sugeriu que ela tocasse algumas músicas ao violão. Na época, ela era bem desconhecida, mas já na primeira estrofe de “Beautiful People”, ela realmente se conectou, com sua voz singular e trêmula. Sozinha no escuro, ela conseguiu tocar por completo milhares de pessoas reunidas diante dela. Inspirada pelo que aconteceu, ela iria para casa e escreveria “Lay Down (Candles in the Rain)”, que se tornou seu primeiro grande sucesso, em 1970. MELANIE:
Foi mágico. Tive minha primeira experiência fora do corpo. Comecei a atravessar a ponte até o palco, e simplesmente saí do meu corpo, alcançando uma vista mais alta. Observei a mim mesma entrando no palco, se sentando e cantando alguns versos. Começou a chover pouco antes de eu entrar. Ravi Shankar tinha acabado de concluir sua performance e [Chip Monck] disse que se acendêssemos velas, isso ajudaria a manter a chuva longe. Quando terminei meu set, toda a colina era uma massa de pequenas luzes a piscar. Foi uma
experiência incrível estar lá, naquele momento, e vivê-lo por intermédio daquele grupo de pessoas que estavam reconhecendo umas às outras, como se fôssemos todos uma família. Woodstock foi uma afirmação de que éramos parte uns dos outros. * * * O acender das velas determinaria um costume que é seguido até hoje. As velas se tornaram isqueiros, que então se tornaram telefones celulares. A chuva ameaçou a performance de Arlo Guthrie e sua banda, mas nós decidimos seguir em frente. A essa altura, Arlo, achando que já estava de fora, tinha tomado ácido. Não estava a fim de entrar no palco, mas nós o convencemos. Fez um ótimo set, abrindo com “Coming Into Los Angeles”. Ele travou uma espécie de conversa de mão única com o público, parando no meio de “Walking Down the Line”, de Dylan, para desenvolver um pensamento aleatório. Todo mundo adorou. Joan Baez, que estava grávida, não pareceu nem um pouco aborrecida pelos atrasos. Trouxe uma xícara de chá quente para Melanie, que estava tossindo. Em dado momento, Artie e eu estávamos um do lado do outro e ele dizia: “Como é que eu vou voltar para a 56th Street depois disso? Mudou a minha vida”, tentando me explicar pelo que estava passando, quando Joan foi até ele e disse: “Acho que ele sabe”. Ela tinha um bom senso de humor, lidando com tudo com muita calma, até mesmo quando Abbie Hoffman deu a ela, reconhecidamente uma pacifista, um canivete de presente. Por fim, pouco depois da meia-noite, Joan entrou no palco. Começou seu set com a animada canção gospel “Oh Happy Day”. Observou a plateia e falou sobre seu marido, David Harris, que acabara de ser preso por resistir ao alistamento, e então cantou a balada sindical favorita dele, “Joe Hill”. A música seguinte fora inspirada por sua irmã Mimi, “Sweet Sir Galahad”, e Joan brincou que aquela era a única música que tinha escrito que podia cantar em público. Depois das canções folk, ela passou para algumas músicas de country rock coescritas por Gram Parsons, “Hickory Wind” e “Drug Store Truck Drivin’ Man”. E então a versão comovente e à capela de “Swing Low, Sweet Chariot”, seguida de “We Shall Overcome”, encerrou o primeiro dia de música, por volta das 2 horas da manhã. JOHN MORRIS: No fim da noite de sexta-feira, ainda tínhamos muitas coisas a
fazer que estavam acumuladas. Foi como um primeiro round, e perguntas como “O que podemos fazer aqui? O que podemos reforçar? Onde estamos? O que está acontecendo? O que está faltando? O que estamos fazendo?” surgiram aos montes. Trabalhamos por toda a noite. Estava todo mundo lá e tínhamos de cuidar deles, de algum modo. Tínhamos de fazer funcionar. A sexta-feira pareceu uma eternidade, mas uma eternidade no Paraíso. Contra todas as dificuldades e apesar da infraestrutura ter sido levada quase até o limite de rachar, estávamos vivendo – pelo menos naquele momento – no tipo de mundo que vislumbrávamos. Havia 1 milhão de peças em movimento, rodando, todas se juntando, e eu estava completamente em casa. Depois de um cochilo de umas 2 horas bem tarde da noite de sexta-feira, em um dos trailers, eu estava pronto para começar a fazer tudo de novo.
Joan Baez com o empresário de Joe Cocker, Dee Anthony, e o produtor de Joe, Denny Cordell. © HENRY DILTZ
Richie Havens abre o festival. © HENRY DILTZ
Sly Stone. © LEE MARSHALL
XI 16 DE AGOSTO DE 1969
“Se não recebermos o dinheiro, não vamos tocar!” É final da tarde de sábado e o road manager do Grateful Dead, Jon McIntire, e o do The Who, John Wolff, me encurralaram no meu trailer. Os ânimos estão exaltados. O road manager deve ser pago antes de a banda entrar no palco. “Olhem, vou lhes dar cheques”, digo. “Vocês poderão descontá-los depois do fim de semana. Todo mundo está no mesmo barco, não há dinheiro vivo no local. Os portões foram cancelados, é um show de graça, vocês sabem com o que estamos lidando...” “Não é suficiente, tem de ser dinheiro, senão não haverá música”, repete Wolff. Devemos a eles a metade dos cachês: US$ 3.375 ao Dead e US$ 6.250 ao Who. Não sei como poderíamos conseguir o dinheiro a tempo de eles entrarem no palco. “Estamos numa baixa séria de dinheiro”, repito, “mas vou lhes dar cheques agora e vocês poderão ir ao banco na segunda-feira e descontá-los, e eu prometo que haverá fundos.” “Só se for um cheque visado”, eles insistem. Então me ocorre como conseguir convencer esses caras a deixar seus artistas tocarem. No fundo, sei que o Dead não vai apresentar problemas; seus amigos estão aqui, eles vão tocar independentemente da circunstância. Jerry Garcia já fez jams no palco gratuito. O The Who, por outro lado, pode estar à procura de uma desculpa para não tocar. Eles ainda parecem putos por terem concordado em tocar naquele que vai ser o
show mais importante de sua carreira. Desde que Pete Townshend chegou, está carrancudo com todo mundo e ficando mais na dele. Essa coisa de paz e amor não é muito a praia dele. Olho diretamente para Wolff. “Se essa é a sua decisão, vou lá anunciar que o The Who não vai tocar porque não demos dinheiro.” O The Who é musicalmente importante e uma das melhores bandas ao vivo que existem, então é uma aposta um pouco arriscada. Eu sei que nunca faria esse anúncio. Mas com todas as mudanças no line-up e os artistas aparecendo de surpresa, o público provavelmente nem vai notar se eles não tocarem. Wolff e McIntire trocam olhares. “Esquece!”, diz Wolff, antes de eles saírem batendo os pés. É a última palavra que vou ouvir deles até segunda-feira, penso. * * * Mel Lawrence foi o primeiro membro da nossa equipe a acordar na manhã de sábado. Ao nascer do sol, ele deu um giro pelo local para se certificar de que todo mundo tinha passado bem depois da noite chuvosa. Mel estava numa ação preventiva e queria cuidar das coisas cedo. MEL LAWRENCE:
Depois daquela noite incrível de sexta-feira, as pessoas simplesmente dormiram na bacia, exatamente no lugar em que estavam. Todo mundo estava dormindo e tudo estava silencioso, então fui até o palco e os escritórios de produção, onde todo mundo estava dormindo também. Devia ser umas seis e pouco, e eu sabia que tínhamos que limpar o lugar, então minha equipe e eu pegamos sacos de lixo e os distribuímos por todo um lado da bacia, enfileirados. Quando o público começou a acordar, Mel subiu no palco e fez um pequeno discurso sobre “por que não damos uma limpada na nossa área? Vamos passar sacos para vocês colocarem seu lixo, e então vamos pegá-los”. Isso funcionou. Colocamos música para tocar, e demos a largada de sábado. ABBIE HOFFMAN: Veio a manhã depois das chuvas... um rapaz saiu de sua
barraca e, levando um punho cerrado aos céus, disse: “Vai se foder, chuva, vamos ficar aqui pra sempre!”. Foi aí que a batalha começou para mim. Foi aí que senti
uma paz. Era por volta das 5 horas da manhã e eu estava coberto por um naco de lona, com um buraco cortado para a cabeça. Lembrei-me do general George Patton inspecionando as tropas na Normandia enquanto dava uma volta para avaliar os estragos. A área principal tinha se transformado num enorme lamaçal, barracas caídas, motos viradas, latas, garrafas e toda sorte de lixo. Cara, tinha mais lixo descarregado na Nação de Woodstock naquela noite do que no Lower East Side durante toda a greve dos lixeiros. Nossos planos para a remoção de lixo eram extensos. Eram baseados em cálculos feitos por Peter, Stan e Mel. Tínhamos estimado o número de copos, pratos, latas, garrafas e guardanapos que usaríamos em um dia. Calculamos o que imaginamos que seriam o peso e o tamanho médios, multiplicamos por quatro dias, e então multiplicamos esse número por 200 mil. Com essa informação, alugamos os maiores compactadores de lixo disponíveis e os dispusemos estrategicamente por todo o local. Coletaríamos o lixo, levaríamos até os compactadores, que seriam então carregados em caminhões, que os transportariam até o depósito de lixo local. Um plano muito bom, que funcionou maravilhosamente bem no primeiro dia, até chegar a parte de “levar embora”. O trânsito estava congestionado demais para conseguirmos.
Os Hog Farmers fazendo um círculo para mostrar aos helicópteros onde pousar. © HENRY DILTZ
Com notícias no rádio sobre os engarrafamentos e uma falta de suprimentos chegando, rumores sobre falta de comida e água, caos e indigência corriam soltos pela mídia mal informada. Para a imprensa, era uma área de desastre. Eu sabia que as coisas não estavam tão ruins assim. Dei uma volta pelo local para ver com meus próprios olhos. No meio da multidão, encontrei Mel, que estava tentando consertar um dos vários banheiros químicos cheios. Os caminhões a vácuo tinham conseguido atender na sexta-feira, mas no sábado ficaram presos no trânsito ao tentar sair dali. Mel recorreu a uma variação de um dos nossos primeiros planos de saneamento: cavar trincheiras profundas e preenchê-las com terra novamente após cada descarregada. Conseguimos uma retroescavadeira para cavar uma trincheira de 30 metros de comprimento, largura e altura, e era para lá que o esgoto iria. MEL LAWRENCE:
A trincheira ficava no topo de uma colina. Era lá que depositavam o esgoto. Ouvi falar que, no ano seguinte, a safra de milho ali foi ótima!
MIRIAM YASGUR: Jovens passavam correndo de moto pelas nossas plantações
de milho, bem ao lado das nossas instalações principais. Estavam quebrando os pés de milho, e Max imediatamente ligou para Michael e disse: “Você sabe que eles estão destruindo essa plantação, que absolutamente não faz parte das terras que aluguei para vocês?”. Não demorou muito até que um grupo de outros jovens viesse e colocasse placas ao redor de toda a plantação: NÃO ANDE PELA PLANTAÇÃO... ESTA É A COLHEITA DO MAX. Ninguém mais andou por ali. Davam a volta. Havia gente acampando na beira da estrada que começou a vir até a minha garagem. Eu saí e disse aos jovens: “Olha, não podemos ter gente acampando na entrada da garagem. Nossos homens estão trabalhando, precisam entrar e sair”. E então eles mudaram para outro lugar. Ninguém acampou na frente da minha garagem. Ninguém acampou perto dos laticínios.
Hugh Romney, Abbie Hoffman e Paul Krassner. © HENRY DILTZ
O conselho de saúde mandou um cara até o festival na manhã de sexta-feira para inspecionar tudo. Segundo Mel, ele poderia nos ter fechado. Mas trouxe sua filha junto e ela desapareceu assim que eles chegaram. Ele passou o fim de
semana inteiro à procura dela, e nunca chegou a preencher o relatório. Tenho certeza de que sua filha estava se divertindo como nunca. De manhã cedo, fui até a Hog Farm e a Movement City. Inacreditavelmente, no caminho, encontrei por acaso minha velha amiga Ellen Lemisch. Ela subiu na garupa da minha moto, e conversamos enquanto ela me acompanhava em minhas tarefas. Num dado momento, ela disse: “Você se dá conta do que fez, Lang?”. Isso me balançou, pois de repente eu de fato me dei conta de que agora aquilo era algo que tínhamos feito, não mais algo que estávamos tentando fazer. Todos os nossos espíritos tinham içado velas dias atrás e Woodstock agora estava se movendo com sua própria força. * * * Durante todo o dia, entre um show e outro e sempre que eu achava que as coisas estavam sob controle, tirava alguns minutos para pegar minha moto e dar uma olhada na nossa cidade não tão pequena assim – as tendas médicas, o heliporto, o palco gratuito, as várias áreas de camping, a Movement City, as cozinhas gratuitas. A comunicação local entre as diferentes áreas era limitada, então esse era o único jeito de ter uma noção da situação em tempo real. Todo mundo parecia estar com tudo em ordem. Dei um oi rápido a Paul Krassner, que estava curtindo no estande do Yippie.
Autorretrato de Henry Diltz pelo retrovisor de um ônibus da Hog Farm. © HENRY DILTZ
PAUL KRASSNER, COFUNDADOR DO YIPPIE E EDITOR DA REVISTA THE REALIST:
Woodstock se encaixava na nossa visão original do que o protesto na Convenção Democrática de Chicago deveria ter sido no ano anterior: um evento alternativo com música, uma comunidade especial com pessoas que compartilhavam do mesmo sistema de valores, no qual era impossível separar idealismo da irreverência. STAN GOLDSTEIN:
O público começou a ser sua própria entidade
autopoliciada, autorregulada e autocontrolada. Havia tendas improvisadas, ocas, barracas, abrigos feitos com fardos de feno. Bem como esperávamos, havia pequenos acampamentos espalhados pelo perímetro, com as pessoas compartilhando tudo. Notei cada vez menos gente cuidando dos estandes na Movement City, montados por diversas organizações políticas. Toda aquela aglomeração havia se tornado a Movement City. TOM SMUCKER, ATIVISTA E ESCRITOR: Fomos até lá com nossos panfletos social-democratas. E montamos nosso estande com os demais. Atrás havia a máquina que prensaria um jornal a cada dia... Abbie Hoffman estava lá, o SDS, os Motherfuckers, os Peaceniks, swamis, Meher Babaites, os caras do food truck Hot Chow Mein, estava todo mundo lá, tentando conseguir um lugar... Mas os estandes nunca foram usados. O cenário [no festival] era tão viajandão, que as pessoas começaram a sair [da nossa área] logo de cara. Os panfletos se molharam com a chuva e nunca foram distribuídos. Você aproveitava a energia gigantesca, a liberdade, toda aquela música boa e o companheirismo geral, e curtia isso. Em meio à chuva e à lama, à falta de água, ao calor e ao frio, a Hog Farm servia ao povo, qualquer que fosse sua ideologia. * * * Mais importante do que a política, era a comunidade. Todas aquelas pessoas diferentes se unindo e se dando bem, compartilhando. A Hog Farm manteve várias filas por comida andando, e embora as dos banheiros químicos e telefones se acumulassem, ninguém parecia se importar. Ligavam para seus amigos para dizer como estava ótimo lá. Começou a se espalhar a notícia de que o cenário era bem diferente daquele que estava sendo pintado pela mídia. As únicas reclamações que ouvi foram de gente que tentava comprar tíquetes para trocar por hambúrgueres e Coca-Cola nos estandes da Food for Love. As filas eram longas e elas tinham de esperar de novo pela comida. Jeffrey e companhia tinham administrado mal seus suprimentos, que já estavam nas últimas. Então começaram a cobrar um valor exagerado por cachorros-quentes frios (US$ 1 cada, quando o preço normal era de US$ 0,25) pelos quais as pessoas tinham que ficar horas na fila esperando. Isso enfureceu os Motherfuckers e mais um pessoal da Movement City, sem contar os jovens famintos.
Por causa dos relatos de falta de suprimentos, grupos locais do condado de Sullivan se uniram e juntaram milhares de doações de comida a serem levadas até o festival por via área. Gente que chegou depois de andar quilômetros contou histórias de moradores da cidade oferecendo comida e bebida ao longo do caminho. A imprensa publicou relatos de preços inflacionados, mas acho que a maior parte dos moradores de White Lake estavam dando o que podia. BILL WARD: Deixamos o festival na noite de sexta-feira para tentar chegar ao
Diamond Horseshoe. Ficamos presos no engarrafamento, abandonamos o carro e andamos 8 quilômetros até o hotel. Na manhã de sábado, acordei cedo e voltei até o carro. Havia carros por todos os lados, abandonados por toda a estrada. Havia lixo e gente por todo o lugar. Um simpático casal de idosos que morava por ali tinha um monte de hippies acampando em seu quintal, a quem levavam comida e água, e o pessoal compartilhava Coca-Cola. Todos aqueles grupos de pessoas que pareciam ser tão distintos estavam para todo lado, batendo papo e compartilhando coisas. TOM SMUCKER: As poucas inconveniências deram a todo mundo alguma coisa
para fazer e desenvolveram um motivo para cooperação, o que te fazia se sentir bem. GILLES MALKINE: Todo mundo se esforçou para ajudar uns aos outros, para
ser como uma família, brincar na lama, compartilhar, ajudar. Muitos dos habitantes locais sentiram isso também. As pessoas diziam repetidamente: “Esses garotos são maravilhosos. Nós os ajudamos. Ficamos sem comida também”. Foi uma coisa maravilhosa e despertou o melhor em todo mundo. Com a chuva, foi quase como se dissessem: “OK, é hora de lavar agora, hora da limpeza, e não vamos nos esquecer de onde estamos”. Não foi ameaçador, e não diminuiu os ânimos em nada. Foi tipo: “Ah, agora temos que lidar com isso. Bom, lidemos”. E foi engraçado e tornou a lama divertida.
Uma aparição de John e Yoko. © BARON WOLMAN
CHRISTINE OLIVEIRA:
Depois da chuva, foi horrível. Virou uma cidade de lama! Não me molhei tanto, porque fiquei debaixo da tenda, mas a lama era
inacreditável. Não dava para chegar até os estandes de comida por causa do lamaçal. Virou uma piada. Trouxemos muita comida, então sempre dava para pegar alguma coisa. Estávamos bem ao lado da Hog Farm. Eles tinham comida macrobiótica, muitos vegetais saudáveis, arroz. Era saboroso. ABBIE HOFFMAN: Havia pontos com orelhões, e um desses orelhões era uma
linha direta com os organizadores. Depois de algumas horas no sábado, os donos do festival nos deram walkie-talkies e acesso a um helicóptero. Foi interessante, porque o pessoal que pilotava os helicópteros era, é claro, da Guarda Nacional. E estavam prontos para ir para o Vietnã. Eram caras militares, e cá estávamos nós, a antítese disso. Mas quando se tratava de salvar vidas e enviar informação confiável sobre não beber certa água, de repente todo o sexo casual e toda a nudez e todas as drogas, e o fato de que éramos contra a guerra, não importavam. Então, em certo sentido, éramos todos americanos. Não consigo me lembrar de um único momento sequer de atrito. PARRY TEASDALE: Um amigo meu estava vagando pelo festival e me disse no
sábado que tinha um cara fazendo vídeos na Movement City, e eu disse: “Alguém mais está fazendo vídeos. Como isso é possível?”. Era algo tão novo, que achei que eu era o único ali que tinha uma câmera. Lá estava David Cort, e ele tinha um equipamento portátil de vídeo, então eu disse: “Por que não levo alguns dos meus equipamentos até o seu local?”. Então levei algumas coisas até a Movement City – meu monitor, minha câmera, meu gravador –, e daí montamos meu sistema numa espécie de cabine, de forma que as pessoas pudessem entrar e assistir a si mesmas e falar. Naquela época, se ver numa tela de vídeo era novidade. David e eu também demos uma andada juntos e filmamos sequências de pessoas que estavam trabalhando na tenda médica e trazendo água. Entrevistamos as pessoas e registramos o que estava rolando na Movement City.
Jerry Garcia. © JIM MARSHALL
HUGH ROMNEY: Havia uma energia incrível, e quando você se rendia a ela,
não parava mais. Aquela energia simplesmente tomou conta de tudo. Ser usado por essa energia dava uma sensação sensacional. O que tocou Woodstock pra frente foi o espírito de voluntariado, esse sistema instantâneo de suporte de vida. * * * Mais e mais pessoas, algumas que viajavam desde sexta-feira, continuavam a chegar. À medida que a multidão crescia, o número de gente que precisava de cuidados médicos aumentava. A maior parte eram casos de gente que tinha cortado o pé em garrafas quebradas. Helicópteros transportavam os casos sérios até os hospitais do condado de Sullivan. No sábado, já havia cerca de vinte médicos e cinquenta enfermeiros no local – e mais para chegar. Na manhã de sábado, recebemos a notícia horrível de que Raymond Mizsak, de 17 anos, de Trenton, Nova Jersey, foi morto ao ser atropelado por um trator enquanto dormia num saco de dormir na beira da estrada. Foi devastador saber disso.
Haveria mais duas mortes no domingo, uma por overdose de heroína e outra por rompimento do apêndice. Ao longo do fim de semana, dois bebês nasceram – um num carro parado no trânsito e outro num hospital local, depois que a mãe foi levada até lá de helicóptero. A comunidade estendeu as mãos para ajudar: quando os hospitais ficaram sobrecarregados, uma escola em Monticello foi transformada numa ala hospitalar. A Mohawk, uma companhia aérea regional, hoje extinta, ofereceu voluntariamente um avião de quarenta lugares para trazer Don Goldmacher e June Finer, do Comitê Médico pelos Direitos Humanos, de Nova Iorque, além de mais médicos e suprimentos. Expandimos nossa operação médica ao transformar a “cantina” da equipe – uma enorme tenda listrada rosa e branca – em outro hospital de campo. PENNY STALLINGS: Peter Goodrich estava no comando do que deveria ser a
tenda de descanso dos funcionários. Na tarde de sábado, já estava claro que nenhum de nós ia dormir, muito menos passear até a cantina para comer alguma coisa. Então propus a Peter que convertêssemos a tenda num posto médico. As pessoas estavam cortando e torcendo os pés ao andarem descalças na lama. E havia bad trips suficientes para lotar uma miniala psiquiátrica.Havia fogo nos olhos de Peter quando ele me informou que não tinha a intenção de abrir mão da sua tenda. Ele tinha nocauteado a última pessoa com quem tivera um desentendimento, então juntei toda minha coragem para dizer a ele que eu me responsabilizaria por fazer a mudança. Em outras palavras, ela ia acontecer, e eu ia lutar por isso se precisasse. Espumando de raiva, ele deu as costas e saiu pisando duro pela lama, ralhando o tempo todo. Para meu alívio, Chris Langhart não viu problema em acatar uma ordem minha. Junto com dois de seus funcionários, levou tubulação e energia elétrica até a tenta num piscar de olhos. Outros membros da equipe colocaram tábuas no chão molhado e trouxeram as macas, os cobertores e os suprimentos médicos que tinham sido entregues para nós pela Guarda Nacional.
Janis Joplin e Grace Slick. © HENRY DILTTZ
Abbie Hoffman, cujo pai fora distribuidor de suprimentos médicos, se envolveu nisso e foi de uma enorme ajuda, emprestando sua engenhosidade ativista a situações tensas. Trabalhou com os médicos nas tendas e ajudou na Hog Farm. De início, bad trips e fraturas estavam sendo tratadas nas mesmas instalações, e isso não estava dando certo. Uma tenda separada para as trips foi montada e operada pela Hog Farm, o que resolveu o problema. O método deles para lidar com uma bad trip era conversar suavemente para acalmar a pessoa, oferecendo amor e conforto até que o pior tivesse passado. Então pediriam à pessoa que ficasse por ali e ajudasse o próximo que entrasse ali pirando. ROZ PAYNE:
Eu estava ajudando Abbie na tenda médica com Don Goldmacher e June Finer. June era uma médica fabulosa que trabalhava em clínicas, e Don trabalhava numa clínica de reabilitação no sul do Bronx, e eles sempre estavam presentes nos protestos. ABBIE HOFFMAN: As placas foram colocadas rapidamente: CORTES, SALA DE
ESPERA, ADMISSÃO, VOLUNTÁRIOS, REPOUSO, EMERGÊNCIA, HEXAMINA.
Velhos amigos começaram a chegar. Abe Peck, ex-editor do Chicago Seed e um dos maiores caras vivos, comandou a operação dos voluntários. Roz Payne, da Newsreel, assumiu a liderança do controle de informações e manteve os curiosos fora dali. Um político local pediu que a Guarda Nacional, que estava acampada ali perto, fornecesse helicópteros. A guarda concordou, e seus helicópteros transportaram as doações de comida. Ao todo, algo em torno de 10 mil sanduíches, água, frutas e alimentos enlatados foram doados por gente de todo o condado de Sullivan. O primeiro helicóptero da Guarda Nacional não conseguiu achar um ponto para pousar perto das cozinhas gratuitas, então foi embora até que alguém conseguisse falar com Stan. Ele reuniu um grupo bem grande de pessoas num campo perto das cozinhas, pediu que elas dessem as mãos, formassem um grande círculo e então se sentassem. Colocaram um marcador no meio para indicar o ponto de pouso. Quando a guarda pousou, todos no círculo viraram carregadores, descarregando o helicóptero e transportando a comida até as cozinhas gratuitas. Em algum momento da tarde, um repórter do New York Times me puxou para uma entrevista. Eu disse a ele rapidamente: “São as 500 mil pessoas mais bem comportadas que se pode imaginar num fim de semana chuvoso e lamacento. Não houve brigas ou incidentes violentos de nenhum tipo”. Um oficial da polícia estadual disse ao mesmo repórter que estava “estarrecido com o tamanho da multidão. Não consigo acreditar que não tenha havido pelo menos pequenos incidentes de mau comportamento da parte dos jovens”. HENRY DILTZ: Atrás do palco havia um lago onde todo mundo ia nadar nu.
Eram realmente como ciganos. Todos tiravam as roupas e entravam no lago para nadar. Então fui até o cais e comecei a tirar fotos, e ninguém ligou. Tirei uma foto linda de uma garota meio que à deriva na água, com ninfeias. Parecia uma pintura pré-rafaelita. JANE FRIEDMAN: Saíamos caminhando e não estávamos sob o efeito de ácido
ou de nenhuma outra droga, mas era como se estivéssemos, só aquela sensação de relaxamento total de todo aquele grupo enorme de pessoas. Todo mundo estava relaxado. Não havia tensão alguma, nenhum estresse, nenhuma raiva, nenhum
bate-boca mesquinho. Provavelmente era por causa de todas as drogas, mas, ao mesmo tempo, era uma grande massa de serenidade maravilhosa. E os artistas eram muito legais. Todo mundo estava orgulhoso de estar lá. O Quill, a banda de Boston que tocou para nós nos shows gratuitos em Wallkill, abriu os shows de sábado um pouco depois do meio-dia. Depois de uma manhã chuvosa, o dia ficou quente e úmido. O Quill jogou todo tipo de instrumento de percussão para o público, para que o pessoal tocasse junto. Eram uma banda jovem e animada, na posição pouco invejável de dar início aos procedimentos enquanto o som ainda estava sendo ajustado. Então eles tocaram jams livres e canções com toques psicodélicos, como “They Live the Life” e “That’s How I Eat”. A essa altura, John tinha encurralado Joe McDonald e o convencido a tocar para manter a multidão feliz, enquanto preparávamos o palco para o Santana. Sua banda, Country Joe & The Fish, estava agendada para o domingo, mas quando John o viu de bobeira, o agarrou na hora. Havia conversas de que Joe pudesse tocar sozinho de qualquer forma, então John basicamente o convenceu, de algum modo, de que não havia momento melhor do que o presente para tentar. COUNTRY JOE MCDONALD: Eu falei que não tinha violão. Não tinha nem uma
palheta, só um daqueles envelopes de fósforo de cartolina. Me deram uma corda para usar de correia. Cantei um mix de músicas folk. Não tinha muita gente prestando atenção em mim. Eu os observava e eles estavam conversando. Conheciam o Country Joe & The Fish, então não fiquei muito surpreso. Eu era tipo muzak ou alguma coisa assim. Sabia que meu trabalho era só subir no palco e matar o tempo. Porém, depois de mais ou menos 1 hora, fiquei mais confiante, e concluí que não tinha mais nada a perder. O tédio traz à tona a confiança. Parei de tocar por 1 minuto, fui até o meu empresário e perguntei se deveria tentar o grito da torcida. Voltei.Disse: “Me deem um F”. E todo mundo se virou para mim e disse: “F”.Depois eu disse: “Me deem um U”. E eles berraram de volta: “U!”. E assim por diante. Continuei a cantar a música, com todo mundo me encarando. Minha adrenalina foi a mil. Embora o público não tenha se conectado muito com as versões acústicas de Joe para “Ring of Fire” ou “Tennessee Stud”, sacaram totalmente o “Fish Cheer”
e sua irônica canção antiguerra “I Feel Like I’m Fixin’ to Die Rag”, que se tornou um hino de Woodstock e um dos destaques do filme. Centenas de milhares de pessoas cantando juntas So it’s one, two, three, what are we fighting for? Don’t ask me, I don’t give a damn. Next stop is Vietnam1 foi uma declaração e tanto contra a guerra. Entre os shows, Hugh Romney acabou no palco para fazer os anúncios e, nessas, se tornou um dos favoritos do público. HUGH ROMNEY: Eu estava trabalhando basicamente o tempo inteiro naquela
situação de acalmar os drogados, ocupado entre um caso e outro. Acabei no palco porque eu precisava dar alguns avisos para Chip, e também tinha a questão de que ele fizera um anúncio sobre evitar o “ácido azul”. Chip disse: “Sobe aqui e diz você mesmo”. Ele não teve objeção em me deixar falar ao microfone, e as únicas vezes que subi lá foi quando eu tinha algo a dizer voltado para a consciência coletiva. Mais tarde, quando as chuvas chegaram e estava sendo noticiado que [o festival] era uma zona de desastre, eu disse: “Há um pouco do Paraíso em cada zona de desastre!”. Hugh apaziguou os temores das pessoas quanto ao “ácido ruim”. “Não é veneno”, disse ele, do palco, “só é mal fabricado”.
Jorma Kaukonen e uma amiga. © JIM MARSHALL
Hugh Romney e Chip Monck fazendo anúncios na manhã de sábado, 16 de agosto. © HENRY DILTZ
O Santana viria em seguida, e eu estava bastante ansioso pela performance deles. Esperava que eles alavancassem o nível de energia do dia. Quase ninguém os tinha visto ao vivo na Costa Leste, embora já tocassem na região de São Francisco havia alguns anos. CARLOS SANTANA:
Chegamos a Woodstock às 11 da manhã. Tínhamos ouvido falar que estava uma zona de desastre. Levaram-nos até lá de helicóptero.
Passamos um tempo com Jerry Garcia e descobrimos que só tocaríamos às 8 da noite. Disseram-nos para relaxar e ficar tranquilos.Uma coisa levou à outra. Eu queria tomar um pouco de mescalina. Justo no momento em que minha viagem estava no auge, chega um cara para mim e diz: “Olha, se vocês não entrarem agora, não vão mais tocar”. Entrei no palco e vi esse oceano que se estendia até onde meus olhos conseguiam enxergar. Um oceano de carne e osso e cabelos e dentes e mãos. Só toquei. Rezei para que Deus me mantivesse afinado e no tempo. Já tinha tocado drogado antes, mas não para uma plateia tão grande. Porque seria como se conectar a um montão de corações – e a todas aquelas pessoas ao mesmo tempo. Mas conseguimos. Foi incrível. Nunca vou me esquecer de como a música soava, rebatendo contra um campo de corpos. Para a banda, como um todo, foi ótimo. GREGG ROLIE, VOCALISTA/TECLADISTA DO SANTANA:
Tocamos uns para os outros. Normalmente, Carlos ficava de costas para o público, porque tocávamos como jazzistas. E calhou de ter 500 mil pessoas ali. Você consegue ver as primeiras 10 ou 20 mil; depois disso, é só cabelo e dentes. Então não havia nada o que temer. Se eu soubesse do que aquilo se tratava e o que Woodstock acabaria significando, provavelmente teria morrido de medo. Com uma cozinha monstruosa, o Santana foi a primeira banda que realmente fez todo mundo se levantar e dançar. As noites de sábado na casa noturna dos meus pais, em que o pessoal dançava mambo, me vieram num flash. Carlos Santana tinha mesclado aquela sonoridade latina com rock and roll e era fenomenal. Em “Soul Sacrifice”, Michael Shrieve tocou um dos solos de bateria mais incríveis que já ouvi, com os percussionistas entrando e os voos da guitarra de Carlos juntando tudo num crescendo. O público foi ao delírio. Era óbvio que ali nascia outro astro. MICHAEL SHRIEVE, BATERISTA DO SANTANA: O tamanho da multidão era tão
grande, que era como estar na praia e observar o oceano, e ver a água, o horizonte e o céu. Era um mar de gente até onde você conseguisse enxergar. Éramos uma ganguezinha de rua fazendo música juntos e esperando que aquilo passasse algo. Mas quando relembro o solo de bateria que fiz, fico louco por causa de algumas escolhas que tomei, em termos de parar o groove e tocar bem suave. Mas funcionou para o público. Foi bem tribal.
Pessoas continuavam a encher a bacia, enquanto cada vez mais artistas e amigos passavam pelo backstage. Enquanto desmontávamos o equipamento do Santana, Chip Monck espiou John Sebastian e o agarrou para que tocasse algumas músicas no palco. Ele tinha tomado um pouco de ácido, mas foi mesmo assim, falando à plateia como se fossem velhos amigos. “Isso é de foder a cabeça”, disse, e começou uma espécie de acid rap antes de tocar “Rainbows All Over Your Blues”, “Darlin’ Be Home Soon” e “Younger Generation”. Quando ele terminou de tocar, o sol tinha saído. De lá pra cá, John disse que foi sua pior performance de todos os tempos, mas eu achei maravilhosa a forma como ele abraçou aquela plateia enorme como uma família, reforçando a ideia de nosso agrupamento como uma nova comunidade.
Country Joe McDonald se preparando para entrar, 16 de agosto. © JIM MARSHALL HENRY DILTZ, FOTÓGRAFO: Fiquei atrás de John Sebastian no palco e fiz uma
foto daquela figura sozinha, numa jaqueta colorida, diante daquele mar de
humanidade. John e suas roupas tie-dye, em pé, no palco, fazendo o símbolo da paz. Todas aquelas pequenas cabeças se estendendo até o infinito. Por toda sua esquerda, por toda sua direita. E a colina completamente coberta por barracas e tendas. JOHN SEBASTIAN: Passei anos desprezando o traje que usei – jeans Levi’s e
jaqueta, ambas tie-dye. Meu “terno de luz” de Woodstock, como alguns chamaram. ALAN DOUGLAS, PRODUTOR E EXECUTIVO DA INDÚSTRIA MUSICAL: Meus caras
ficaram sem filme na quinta-feira, então carregamos o carro na sexta para suprilos com mais filme e câmeras. Havia seis de nós com câmeras e filme no colo de todo mundo, e quando chegamos lá, já estava tarde. Enfim chegamos a um lugar onde os carros estavam todos estacionados em ambos os lados da estrada, até onde dava para ver. A polícia nos parou e disse: “Sentimos muito, não dá para ir mais longe do que isso”, e nós explicamos que estávamos com as câmeras que o pessoal precisava. E eles disseram: “Sentimos muito, vocês têm de ficar aqui, não podem ir adiante”, e nos fizeram estacionar. Eu disse: “Onde é o lugar?”. E eles falaram: “Uns poucos quilômetros daqui”, apontando para uma floresta e uma trilha. Descemos do carro, carregando as coisas, e caminhamos por 8 horas até chegar lá. Bebemos refrescos durante todo o caminho. Perdemos toda a noite de sexta-feira e chegamos lá no sábado de manhã. Todo mundo estava tão esgotado, que nós simplesmente caímos no chão ao chegar. Michael arrumou algumas coisas atrás do palco para seus amigos e sua família, e todo mundo montou tendas. Estávamos profundamente envolvidos num projeto de Lenny Bruce na época, então uma jovem chamada Doris Dynamite montou nossa tenda e estendeu uma bandeira do Lenny Bruce na frente dela. Fiquei deitado lá a maior parte do dia, até que, no final da tarde, fui até o palco, e a multidão era incrível. Michael sempre diz: “O público foi a grande estrela”. Ele estava certo. Foram simplesmente tão inspiradores! Nunca ouvi os músicos tocarem da forma como tocaram e, é claro, só se podia ver os brancos dos olhos deles. O lugar inteiro estava alucinando, então era sempre um pouco surreal. ELLEN SANDER: Na tarde de sábado, o tempo deu uma trégua. O show do
[Jefferson] Airplane estava marcado para tarde da noite, para encerrar o dia, mas
eles quiseram ver o festival, assim como todos os artistas hospedados no Holiday Inn. Relatos sobre o tamanho da multidão e a bagunça incrível chegavam a cada hora. Enfim, foi reunida uma caravana de pelo menos uma dúzia de carros. Entre os presentes estava Bear – Augustus Stanley Owsley III, anteriormente conhecido como o rei do ácido de São Francisco, um renomado operador de som e guardião de um lote de droga capaz de levitar o festival inteiro. E escoltando o Airplane, suas esposas e esse lote monstruoso de drogas estavam quatro policiais rodoviários, encabeçando a caravana e na retaguarda, conduzindo aquela dúzia de carros para a área do festival. Os astros e seus convidados descarregaram e caminharam até o pavilhão onde havia frutas, vinho, sanduíches e ponche de sobra. De imediato, alguém começou a colocar ácido num enorme tonel de ponche. Alguns momentos depois, foram pegos no flagra e quase 40 litros de ponche foram derramados no chão, não sem antes parte da bebida ter entrado na corrente sanguínea de quem bebeu dos copos descartáveis sem desconfiar de nada. Al Aronowitz, alertado do conteúdo de seu copo enquanto bebia, cuspiu tudo, xingando raivosamente. Atravessamos uma ponte da área dos artistas até o palco, um par de ripas suspenso a 6 metros do chão, sobre o muro que separava as estrelas da geral e lhes dava uma vista espetacular daquelas centenas de milhares de pessoas, prados cheios delas, se estendendo por um campo a cerca de 800 metros de distância. E todas elas de pé, dançando ao som do rock de base latina do Santana; eram como uma grande massa móvel de camisetas, garrafas de refrigerante e sorrisos, com nuvens e mais nuvens de fumaça pungente subindo do meio deles. Uma coisa com a qual tomei cuidado durante todo o fim de semana: nunca beber de um copo ou garrafa aberta que alguém oferecesse. Eu não queria ser drogado. Estava envolvido demais naquele momento e fazendo muito malabarismo para me arriscar para fora desse estado de consciência. Antes de o fim de semana acabar, Artie e Linda foram drogados, e até mesmo Mel e Joyce, ambos normalmente bem caretas, tomaram ácido. * * * Embora Garcia, Owsley e outros membros do Grateful Dead tivessem chegado cedo, Bob Weir e o empresário do Dead, Rock Scully, chegaram no sábado depois que sua limusine ficou presa na rodovia e eles tiveram de
caminhar. ROCK SCULLY, ENTÃO EMPRESÁRIO DO GRATEFUL DEAD: Os duzentos tabletes
de ácido Sunshine que eu tinha escondidos num estojo art nouveau prateado estavam escorrendo pela minha perna sob a chuva incessante. Meus poros ficaram saturados com aquele negócio. Minha boca estava borrada com ácido fluorescente, minha mão era uma enorme garra cor de laranja viva, minhas calças cor de açafrão brilhante. Havia um rio de ácido laranja atrás de mim e variedades estranhas e mutantes de vegetação começavam a brotar, à medida que eu passava. BOB WEIR, DO GRATEFUL DEAD: Quando cheguei lá, acampei numa tenda a
cerca de 800 metros do palco. Meio que fiquei vagando. Tinha muita lama. Não havia comida nem banheiros suficientes. Mas todo mundo estava curtindo bastante, iam aproveitar ao máximo. PAUL KANTNER, DO JEFFERSON AIRPLANE: Sempre gostamos de mergulhar em
águas de profundidade desconhecida, então fomos para Woodstock com a cabeça aberta. E foi fodido, o que era bom. Se tivesse sido completamente organizado, aí então teria sido fodido de verdade. Mas o senso de caos e anarquia – duas das minhas palavras favoritas – prevaleceu e tornou o festival aquilo que se tornou. Sem cercas, sem segurança, nada dessas merdas. Fiquei chapado de ácido, dei umas voltas, curti. Havia gente armando tendas e fogueiras, cozinhando, nadando e dançando. Era como uma cruzada das crianças, um ótimo experimento social. Algo que simplesmente não havia acontecido antes. Era semelhante ao rafting, no sentido de que você nunca sabe o que virá depois da próxima curva, nem está preocupado com isso, porque está ocupado demais desviando das rochas. * * *
Grateful Dead. © KEN REGAN
o senso de caos e anarquia – duas das minhas palavras favoritas – prevaleceu e tornou o festival aquilo que se tornou. Sem cercas, sem segurança, nada dessas
merdas. PAUL KANTNER, DO JEFFERSON AIRPLANE Depois de John Sebastian, tocamos as coisas adiante e preparamos o palco para a Keef Hartley Band. O grupo tocava uma mistura de jazz, blues e rock. O baterista Keef Hartley foi membro dos Bluesbreakers, de John Mayall, por muitos anos, e sua nova banda expandira a sonoridade do blues para incluir um naipe de sopro. Tocaram uma velha canção de Sleepy John Estes, “Leaving Trunk”, estendida numa jam que seguiu para composições originais, como “Sinnin’ for You” e “Just to Cry”. Em seguida veio a Incredible String Band, cujas improvisações folkpsicodélicas incluíam banjo, oud, bandolim e teclados. O vocalista Robin Williamson começou o set recitando um extenso poema. Da Escócia, a banda era inspirada em música folk inglesa antiga e ragas indianos, como a música modal de Ravi Shankar. Era possível ouvir essa mescla em canções como “When You Find Out Who You Are”. Foram os precursores do atual movimento freak-folk. O Canned Heat manteve o público animado, tocando “Going Up the Country” e alguns boogie blues, incluindo um improvisado na hora, que depois recebeu o título de “Woodstock Boogie”. Não consegui ver muita coisa do show deles devido ao meu confronto com Wolff e McIntire quanto às questões de dinheiro para o Who e o Dead. Mais tarde, descobri que, depois de irem embora do meu trailer, encurralaram John Morris com a mesma ameaça. Como John foi quem pressionara o Who a concordar a participar de Woodstock, ele se sentiu obrigado a pagá-los. Sabia que não teria chance nenhuma comigo, então – quebrando protocolo novamente – ligou para Joel do posto telefônico. Convenceu-o de que o Who e o Dead não tocariam sem a grana, temperando o pedido com a perspectiva de um tumulto de uma turba raivosa por conta do cancelamento dos shows. Joel se dispôs a resolver o que ele não percebera se tratar de um falso dilema. Ligou para Charlie Prince, gerente do banco de White Lake, onde tínhamos aberto uma conta, e explicou a situação. Levado de helicóptero, Charlie foi até o banco, fechado na noite de sábado, pegou alguns cheques em branco e os preencheu para nós. Isso mostra o quanto parte do pessoal da cidade acreditava em nós.
Janis Joplin e Snooky Flowers. © HENRY DILTZ
Quando retornei ao palco, o Mountain tinha começado. Tocavam um blues mais pesado do que o Canned Heat, com os vocais rugidos e a guitarra furiosa de Leslie West. Eram mais uma banda nova e o público adorou, especialmente standards como “Stormy Monday” e o épico de Jack Bruce, “Theme from an Imaginary Western”. Para não serem superados pelo Canned Heat, inventaram sua própria música no festival, que chamaram de “For Yasgur’s Farm”. LESLIE WEST: Acho que eu tinha mais amplificadores do que todo mundo ali.
Foi paralisante, porque aquele palco e aquele cenário eram uma espécie de anfiteatro natural. O som era tão alto e chocante, que fiquei assustado. Mas quando comecei a tocar, só fui que fui, porque fiquei com medo de parar. Cada vez mais artistas apareciam no pavilhão. O Mountain trouxera um
monte de frango assado, que compartilharam com Janis Joplin e sua banda. Janis estava servindo champanhe para todo mundo. John Sebastian corria pra lá e pra cá quando não estava atendendo ao “camarim” – o trailer VW que ele estava supervisionando. JOHN SEBASTIAN: Àquela altura, eu estava principalmente comprometido em
manter a tenda seca. Por causa das chuvas, Sly Stone estava tendo dificuldades em se manter limpo. O equipamento de palco dele era muito mais espetacular do que o do resto do pessoal. Eu estava tentando tranquilizá-lo e, em dado momento, fui até ele, e sua irmã estava resmungando sobre alguma coisa. Eu disse: “Nossa, tem algo que eu possa fazer? Querem usar a tenda ou alguma coisa assim?”. E Sly disse: “Ah, ela só precisa de um pouco de carne vermelha e ficará bem”. Imagino se a Sister Rose chegou a descobrir o trailer de Bill Graham, com todos aqueles filés. * * * Em seguida: o Grateful Dead. Àquela altura, uma combinação do clima e dos alucinógenos se provou a desgraça deles. Enquanto carregavam seu pesado equipamento no toca-discos de 12 metros no palco, as rodas da plataforma quebraram. Isso causou um atraso, que foi aumentado quando o Dead insistiu que seu operador de som, Owsley Stanley, refizesse a fiação do palco para seu show. Fuçar no sistema de som e esses remendos resultou em choques constantes nas guitarras. ROCK SCULLY: Estávamos nos preparando para colocar nosso equipamento no
palco. Era tudo sobre plataformas, mas nosso equipamento era tão pesado, que quebrou as rodas das plataformas e tivemos que mover tudo à mão, o que levou uma eternidade. Nesse meio tempo, uns anúncios de pesadelo chegavam pelo P.A. “Por favor, todo mundo, desçam da torre, alguém acabou de cair!”. “Não tomem o ácido marrom, tem ácido ruim por aí!” Eles não disseram o que as milhares de pessoas que já tomaram esse ácido deveriam fazer... Cometo o erro de pensar no que mais pode acontecer. E, de repente, como se
alguém tivesse puxado um cabo de força, a escuridão toma conta. O vento aumenta e o palco começa a vibrar, tremer fisicamente. Nosso lindo telão gigante para o show de luzes se transformou numa vela de barco e está movendo o palco por um mar de lama, como o bom navio Marie Celeste. Começa a deslizar, está, oh-oh, tombando, e Dicken, meu irmão, tem de subir no mastro e cortar o telão com uma faca. Não é um bom presságio, Capitão... Na metade da primeira música, “St. Stephen”, um maluco conhecido nosso corre para o meio do palco e começa a jogar LSD para o público. Depois de todos aqueles avisos! OK, o ácido dele é roxo, mas parece marrom. Oh, não, é o ácido marrom, o ácido que a gente... não deve tomar. Quando Garcia vê esse cara louco, pirado, lançando o que parece ser ácido marrom do palco, algo que, sob circunstâncias normais, ele poderia achar engraçado e pitoresco, agora parece sinistro. Ele se faz a pergunta que quem está completamente chapado, fora de si, sob o efeito de substâncias psicotrópicas, nunca deve se perguntar: “Por que eu?”. Para piorar, o Dead está tocando terrivelmente mal. Simplesmente não conseguem começar direito, não conseguem acertar. Nenhuma música. E o som está horrível, está ventando muito, e frio. Por fim, o set do Dead termina com “Lovelight”, mas nem mesmo esse número do Pigpen, garantia de levar o público à loucura, consegue ficar bom. Graças a Deus terminou! JERRY GARCIA:
Nossa senhora, fomos horríveis! Fomos completamente atrozes! Eu estava chapado e vi bolas azuis de eletricidade quicando pelo palco e saltando sobre a minha guitarra quando eu tocava as cordas. Gente gritava de trás dos amplificadores: “O palco está caindo! O palco está caindo!”. Como ser humano, foi maravilhoso curtir com meus amigos e compartilhar pequenas e ótimas jams. Mas a nossa performance no palco foi, musicalmente falando, um total desastre, que é melhor ser esquecido. BOB WEIR: Chovia cântaros quando tocamos. A chuva foi parte do nosso
pesadelo. A outra parte foi o nosso operador de som, que decidiu que o aterramento do palco estava todo errado. Ele demorou umas 2 horas para trocálo, o que atrasou o show. Ele finalmente fez a instalação da maneira que queria, mas toda vez que eu encostava no meu instrumento, tomava um choque. O palco estava molhado e a eletricidade passava por mim. Eu era um condutor! Tocar minha guitarra e o microfone foi quase fatal. Vi uma grande faísca azul, mais ou menos do tamanho de uma bola de beisebol, e fui jogado uns 2 ou 3 metros pra
trás, até o meu amplificador. Alguns artistas tiveram suas carreiras feitas em Woodstock, mas nós passamos uns vinte anos tentando compensar por aquilo. Foi provavelmente o pior show que já fizemos. TOM CONSTANTEN, TECLADISTA DO GRATEFUL DEAD: O público já estava legal
e azeitado quando entramos no palco. Parecia uma daquelas pinturas de Hieronymus Bosch, com 10 mil corpos grotescos. A eletricidade no palco durante a performance não me incomodou, mas como todos os outros estavam muito enlouquecidos, ficava difícil manter o tempo. Não foi um show especialmente longo. Acho que tocamos por 45 minutos. Todo mundo gostou de deixar o palco, nos sentimos como uma jukebox androide. Com o Dead saindo às pressas do palco por volta das 22 horas, tentamos nos preparar rapidamente para o Creedence Clearwater Revival. Acho que a experiência do Dead deixou o Creedence nervoso também, mas eles não demonstraram. Àquela altura, eles já eram praticamente uma máquina de hits, e tocaram com convicção e intensidade: “Born on the Bayou”, “Green River”, “Bad Moon Rising”, “Proud Mary”, “I Put a Spell on You”. Um atrás do outro, com a voz e a guitarra solo bluesy e a gaita habilidosa de John Fogerty, até um grand finale, com “Suzie Q”. STU COOK, BAIXISTA DO CREEDENCE CLEARWATER REVIVAL: Não dava para ver
nada. Tivemos alguns problemas técnicos. Depois da primeira música, ficamos sem saber se havia alguém lá. Estava muito quieto. Mas um cara, lá do fundo, berrou: “Estamos com vocês!”. OK, acho que o show é pra esse cara. E seguimos tocando, sem ter ideia no que estávamos envolvidos. Mais tarde, a ficha começou a cair para nós do que tinha acontecido, e pensamos que nunca mais veríamos algo como aquilo. JOCKO MARCELLINO, BATERISTA DO SHA NA NA: Eu tinha tomado um negócio
que alterava as faculdades mentais, e não era aprovado pelos órgãos responsáveis. Pensei: “Preciso ficar sozinho”, mas havia 500 mil pessoas! Então fui andando até o topo da colina para tentar colocar a cabeça em ordem. O Creedence estava arrebentando com “Born on the Bayou”. E ouvir aquilo me colocou de volta nos eixos.
JOHN SEBASTIAN:
O Creedence Clearwater entregou um set que foi tão importante e delicioso quanto o de qualquer outro artista em Woodstock. Acho que talvez eles não tiveram nenhum concorrente à altura, além de Sly Stone e Jimi Hendrix. Foi tão afiado e tão maravilhosamente potente, em especial no meu estado de psicodelia. Mas Fogerty saiu do palco e disse: “Bem, caras, vocês realmente estragaram esse show”. Janis Joplin e sua nova banda, uma espécie de Stax/Volt Revue com metais, veio em seguida. Fiquei um pouco desapontado com a performance. É claro que a voz de Janis estava incrível como sempre, mas ela não parava de se virar para dar instruções aos músicos, que só tinham tocado com ela umas duas vezes até então. Em dado momento, ela deixou Snooky Flowers, um vocalista funky de R&B, cantar “I Can’t Turn You Loose”, de Otis Redding, e, tirando os sapatos, parecia feliz, dançando e desfilando descalça pelo palco. Seus testemunhos devastadores em “Try (Just a Little Bit Harder)” e “Work Me Lord” arrasaram o público, que implorou para que ela não parasse. No final de seu longo set, depois de versões angustiantes de “Piece of My Heart” e “Ball and Chain”, eu quase esperei que todo mundo desmaiasse numa pilha. ELLEN SANDER: Janis Joplin dançou como se fizesse parte do público, que gritava de volta para ela, e não a deixou sair do palco até que esgotasse a última gota de energia dela. Todo mundo estava preparado para o show de Sly and the Family Stone – que estavam prontos para dar um SHOW. Ostentavam trajes fantásticos: Sly, com franjas brancas; Sister Rose, numa peruca platinada e um vestido franjado; e o baixista Larry Graham, num chapéu decorado com penas e um terno combinando. A performance foi mais do que fenomenal – “M’Lady”, “Sing a Simple Song”, “You Can Make It If You Try”, “Everyday People”. Durante o final espetacular com “Dance to the Music”/“Music Lover”/“I Want to Take You Higher”, Sly levou a todos nós a uma igreja psicodélica, enquanto ele e 500 mil pessoas trocavam chamados e respostas febris, como um pregador e sua congregação num avivamento no sul profundo. CARLOS SANTANA: Pude testemunhar o auge do festival, que foi Sly Stone.
Não acho que ele chegou a tocar tão bem daquele jeito de novo. Havia literalmente fumaça subindo de seu penteado afro.
ELLEN SANDER: Grace Slick e Janis Joplin estavam dançando juntas, com os
olhos bem fechados, os punhos cerrados e os corpos sacolejando. “Higher!”, Sly berrava para o público. “Higher!”, explodiam de volta, com a força de meio milhão de vozes no mais alto volume. Ele lançou os braços num sinal da paz, uma onda de franjas estendidas sob eles, e o público respondeu, gritando “Higher” em uníssono e levantando os braços e os dedos, alegremente, desesperadamente, braços e mãos e dedos levantados em sinais da paz, cabeças e vozes gritando na noite, gritando a súplica angustiada dos anos 1960, “Higher, higher!”. Demorou um pouco para pousarmos no chão novamente depois da performance de Sly, mas deixei com Abbie Hoffman para reverter o clima. Ele me puxou no backstage, dizendo, numa voz de pânico: “Acabei de ver um cara correndo com uma arma, você tem que me ajudar a encontrá-lo!”. Eu não percebi na hora, mas Abbie, depois de um turno de 24 horas nas tendas médicas, tinha decidido relaxar um pouco. Tomou um, ou dois, ou três ácidos. Sem ver ninguém da segurança por perto, ele e eu saímos à procura do pistoleiro. “Acho que ele foi pra baixo do palco!”, disse Abbie com total convicção, então começamos a procurar por todo lado debaixo da enorme estrutura, onde os assistentes estavam trocando cartuchos de filme. Depois de alguns minutos de busca infrutífera, Abbie parou. Voltou-se para mim com uma expressão perplexa no rosto e disse: “Você realmente não está com medo de morrer, né?”. Não soube muito bem o que entender disso, mas comecei a questionar a esperteza daquela busca. Quando o “maluco com uma arma” virou o “maluco com uma faca”, me dei conta de que o único maluco com quem eu ia trombar lá embaixo era Abbie. Eram 3 e meia da manhã e o The Who estava prestes a entrar no palco, então eu disse: “Olha, Abbie, quem quer que você viu já se mandou, então vamos lá só assistir a um pouco de música e relaxar por uns minutos”. Ele concordou, nós subimos de volta para o palco e nos sentamos com músicos de vários grupos que tinham se reunido para assistir. Abbie não parava quieto ao meu lado. Não parava de falar: “Preciso muito falar alguma coisa sobre John Sinclair! Ele está apodrecendo na cadeia por fumar um baseado!”. Sinclair, empresário da banda de rock radical de Detroit MC5 e fundador do White Panther Party, fora emboscado pela polícia e sentenciado a dez anos de prisão pela posse de dois baseados.
“OK, Abbie”, tentei ser razoável com ele, “haverá uma oportunidade mais tarde, entre um show e outro ou coisa assim.” Porém, ele persistiu: “Não, eu preciso muito falar alguma coisa! Agora!”. “Abbie, o The Who está tocando”, relembrei – eles estavam mais ou menos na metade da execução de Tommy na íntegra, então não sei como ele não percebeu. “Você não pode fazer um discurso no meio do show deles, deixe eles terminarem! Calma!” Logo depois de “Pinball Wizard”, Abbie deu um pulo antes que eu conseguisse agarrá-lo e correu até o microfone de Pete Townshend, enquanto Pete estava de costas, ajustando o amplificador. Abbie começou a suplicar com muita seriedade que o público pensasse em John Sinclair, que precisava da nossa ajuda. Ele estava bem à vontade, repreendendo todo mundo por estar se divertindo. “Ei, todo mundo aí que está se divertindo enquanto John Sinclair é um preso político...” BLAM! Townshend, ao se virar novamente e ver Abbie ao microfone, deu-lhe uma guitarrada na cabeça. Abbie cambaleou e então pulou no pit dos fotógrafos, passou por cima da cerca e desapareceu no meio da multidão. Uma saída bem dramática. Foi a última vez que o vi naquele fim de semana. HENRY DILTZ: Eu estava bem na frente do The Who, na beira do palco. Lá
estava Roger Daltrey, com as franjas da jaqueta esvoaçando. Abbie Hoffman correu para o palco e Pete Townshend pegou a guitarra, segurou-a de maneira perfeitamente reta, com o braço voltado para o cara, como uma baioneta, e blam. Eu achei que ele tinha matado Abbie. No começo do show, Townshend já tinha chutado Michael Wadleigh no peito enquanto o diretor se agachava na frente dele com a câmera. Agora Townshend estava transbordando de fúria. “A próxima pessoa que atravessar essa porra de palco vai morrer, porra!”, berrou enquanto afinava sua Gibson SG. A princípio, o público pensou que ele estivesse brincando e começou a rir e aplaudir. “Vocês podem rir”, disse ele friamente, “mas estou falando sério!” PETE TOWNSHEND: Minha reação foi mais instintiva do que pensada. O que
Abbie estava dizendo era politicamente correto de muitas maneiras. O pessoal em Woodstock era realmente um bando de hipócritas, reivindicando uma revolução cósmica simplesmente por terem tomado um pasto, quebrado umas
cercas, tomado ácido ruim e depois tentado dar no pé sem pagar as bandas. Tudo isso enquanto John Sinclair apodrecia na cadeia depois de uma armação da polícia. O The Who continuou sua performance extasiante de Tommy, e quando o sol já estava nascendo, tocou clássicos selvagens do rock and roll de quando eram mods: “Summertime Blues”, “Shakin’ All Over” e “My Generation”. Foram impressionantes. Mais tarde, não pude acreditar que a banda achou que tocou abaixo da média e que o público não tinha curtido Tommy. PETE TOWNSHEND: Ninguém estava entendendo Tommy. Lá pelo [final do
set], eu estava meio acordado, a gente só estava ouvindo a música, quando de repente, bang! A porra do sol nasceu! Foi simplesmente incrível. Eu realmente achei que, de certa forma, não merecíamos aquilo. Passamos uma vibe tão ruim – e, quando terminamos, já era dia. Saímos do palco, entramos no carro e voltamos para o hotel. Foi fantástico pra caralho. BILL GRAHAM:
O The Who foi brilhante. Townshend é como uma locomotiva quando se empolga. É como um cavalo selvagem. Quando ele sai com tudo, cuidado.
The Who. © HENRY DILTZ
Roger Daltrey, do The Who: Fizemos um set de 2 horas e meia... Isso fez a nossa carreira. Éramos uma grande banda cult, mas Woodstock nos cimentou no mapa histórico do rock and roll. O Jefferson Airplane fez o melhor possível para suceder ao The Who, mas qualquer coisa depois deles seria anticlimática. Porém, o sol estava brilhando, e o Airplane, que vinha farreando havia 24 horas, aproveitou ao máximo. Acompanhando-os nos teclados estava Nicky Hopkins, que tinha tocado com os Stones e teria tocado em Woodstock com o Jeff Beck Group. “Vocês ouviram as bandas pesadas”, disse Grace Slick, do palco, “agora, recebam a Música Maníaca da Manhã”. A beleza de Grace me fazia perder o fôlego. Ela, Marty Balin, Jorma
Kaukonen e Paul Kantner alternavam os vocais principais. “Somebody to Love”, “Volunteers”, “White Rabbit” – tocaram seus maiores sucessos e também jams psicodélicas mais longas. GRACE SLICK: Tínhamos ficado acordados a noite toda e eu cantei as malditas
músicas de olhos fechados, meio adormecida e meio cantando. Provavelmente teríamos tocado melhor se estivéssemos despertos, mas parte do charme do rock and roll é que, às vezes, você está aos trapos. Eles estavam exaustos, assim como todos nós. Nossa cidade recém-criada foi conduzida a alguns sonhos malucos por sua canção de ninar matinal viajandona. A maneira perfeita de começar o terceiro dia.
Geraldo Velez e Juma Sultan na percussão, Larry Lee na guitarra base e Billy Cox no baixo com Jimi Hendrix. © HENRY DILTZ
1. “Então é um, dois, três, pelo que estamos lutando? Não pergunte para mim, eu não estou nem aí. A próxima parada é o Vietnã”, em tradução livre. (N. do T.)
XII 17 DE AGOSTO DE 1969
São 16h30 do domingo, e a primeira banda do dia – Joe Cocker and the Grease Band – acaba de terminar seu set. Há uma tempestade chegando e vai ser daquelas. Eu não via o vento bater tão forte assim desde que uma tempestade tropical passou pelo Coconut Grove com toda força, em 1966. A equipe de palco está correndo para todo lado para cobrir todo o equipamento com o que resta dos plásticos e das lonas antes que as chuvas cheguem. Depois de três dias disso, já usamos quilômetros de cobertura de plástico. Trovões retumbantes e relâmpagos rasgados parecem ser a maneira de a Natureza dizer que ela pode produzir fogos de artifício muito maiores do que as explosões sônicas do nosso palco. Alguns dos ajudantes de palco apontam para cabos que antes estavam enterrados e agora se tornam notadamente mais visíveis, à medida que a terra se tornou lama ao longo do dia anterior. Esses cabos levam a fiação elétrica debaixo do palco até as torres. Um dos eletricistas está convencido de que o revestimento dos cabos está se desgastando, deixando os fios expostos. Chip diz que vai dar uma olhada, mas que esses cabos “pau de cavalo” são impenetráveis, que batidas de pés são incapazes de danificar o revestimento. São cabos de mineração e têm uma camada sólida de cobre sob a borracha exterior. Mas enquanto estamos deliberando, alguém entra em pânico, liga para o posto telefônico e deixa o aliado de Wes na segurança, John Fabbri, surtado. Ele diz que devemos desligar tudo, e discute com Joel sobre o que seria pior: um tumulto violento ou uma
eletrocussão em massa. Peço para alguém ligar de novo e dizer a eles que vamos garantir que nenhuma das duas coisas aconteça. Os cabos são seguros, mas a energia elétrica do palco não pode ser usada durante a tempestade. Vamos ter que desligar tudo por um tempo, de qualquer maneira. Estou acostumado com a chuva. Mais preocupantes são as torres de 18 metros. Em cima delas estão os enormes holofotes Super Trouper, pesando centenas de quilos. Se um balançar e cair, pode ser um desastre. Os ventos de 60 km/h estão fazendo as torres balançarem, o que é assustador, especialmente porque há garotos pendurados na estrutura e outros milhares aninhados ao redor da base das torres. Chip manda alguns dos aparelhadores subirem no topo das torres para deitar os holofotes de lado e amarrálos. As torres são desenvolvidas para aguentar ventos fortes, mas a tempestade está testando o limite delas, ainda mais com o peso extra dos jovens pendurados. Temos que fazer as pessoas descerem delas e se afastarem, sem causar pânico. O vento é feroz. As lufadas sopram a chuva como projéteis molhados, encharcando tudo. John Morris reage rapidamente. Pega o microfone para avisar o público do que vamos fazer e o que eles devem fazer. “Por favor, desçam das torres! Se afastem das torres! Abram espaço antes que alguém se machuque! Fiquem de olho nas torres.” Ele está sozinho no palco, enquanto a equipe, os músicos e os espectadores buscam abrigo. Embora o microfone esteja quente, ele precisa passar a mensagem antes que a energia seja cortada. Depois de dois dias fazendo anúncios no palco e dormindo pouco, John está sem voz. Observo-o dar o máximo de si para ajudar a manter as pessoas seguras. Ele tem nas mãos o que pode ser um para-raios, mas não hesita. “Proteja-se, galera, parece que teremos que enfrentar essa!” John diz à multidão que teremos de desligar tudo até a tempestade passar, mas que estamos ali com eles e eles estão ali uns com os outros, e juntos vamos superar isso. É um momento heroico para John. * * * A manhã começara com céu azul. O pessoal acordou com o som da voz rouca de Hugh Romney: “O que temos em mente é café da manhã na cama para 400 mil! Agora vai ser comida boa e nós vamos levá-la até vocês. Estamos todos alimentando uns aos outros”. Stan e Hugh elaboraram um plano para distribuir milhares de tigelas de granola na área perto do palco. Algumas pessoas que não queriam perder o lugar estavam sem comer.
STAN GOLDSTEIN: Havia gente sentada na frente do palco, bem no centro, que
não trocaria aquele lugar para sair para pegar um sanduíche, ou comer alguma fruta, ir ao banheiro. Iam ficar lá e não iam se mover. Agora, se um repórter fosse até eles e dissesse: “Como você está?”, eles certamente diriam: “Ah, cara, está tudo bem”. “Há quanto tempo você está aqui?”, e afirmariam: “Ah, acho que faz uns dois dias”. “Você já saiu daqui para comer alguma coisa?”, e escutariam esta resposta: “Ah, não, cara, estou com muita, muita fome”. “Você não comeu nada há dois dias?”, e ouviriam: “Não, cara, não comi nada, estou com muita fome”. E então esse repórter iria embora e noticiaria que esses garotos estão morrendo de fome na frente do palco. A verdade é que aquele garoto não conseguiria se mover 3 metros para conseguir comida. Os Hog Farmers carregaram uma caminhonete com latões cobertos com plástico e cheios de granola. Prontos, guiaram a caminhonete pela multidão. “Com licença, por favor, caminhonete passando. Por favor, vocês poderiam ir para o lado, estamos trazendo uma caminhonete com comida.” STAN GOLDSTEIN: Falei com os terceirizados, cuja comida tinha esgotado, e
consegui que eles nos ajudassem a carregar todos os utensílios de papel não utilizados até a cozinha gratuita. Consegui mais uns 150 mil utensílios como doação deles. Havia dois estandes a menos da Food for Love no domingo do que no dia anterior. Garotos raivosos e membros dos Motherfuckers, fartos dos preços e da espera, incendiaram os estandes na noite de sábado. Os Hog Farmers tentaram neutralizar a situação e pelo menos controlaram o incêndio, que não foi além de dois estandes. Hugh até pediu ajuda aos garotos quando falou na manhã de domingo: “Tem um cara ali – o cara do hambúrguer –, que teve o estande incendiado na noite passada. Mas ainda restaram algumas coisas, e quem de vocês ainda acreditar que o capitalismo não é tão esquisito assim, pode ajudá-lo e comprar uns hambúrgueres”.
Woodstock já parecia um modo de vida. Todo mundo tinha se estabelecido, e
tínhamos encontrado um jeito de lidar com os problemas mais tensos, e crises como falta de comida e saneamento estavam quase sob controle.
O público no dia 17 de agosto. © HENRY DILTZ
No domingo, Woodstock já parecia um modo de vida. Eu estava quase acostumado. Esperava ver as coisas que eu via: até os rostos da multidão se tornaram familiares. Era como ver o pessoal do bairro que você cresceu. Acho que nossa mente se adapta a qualquer coisa depois de um tempo. Todo mundo tinha se estabelecido, e tínhamos encontrado um jeito de lidar com os problemas mais tensos, e crises como falta de comida e saneamento estavam quase sob controle. Tínhamos entrado numa rotina de enviar gente para consertar os canos para que a água continuasse a chegar, e demos um jeito de deixar os caminhões entrarem e saírem quando fosse necessário. * * * Para começar as atividades do dia, alguém no palco tocou “Reveille”, desafinando na corneta. O destaque da manhã foi a aparição de Max Yasgur. Eu tinha ido à casa dele algumas vezes durante o fim de semana e ele não estava passando bem, enfrentando vários ataques de angina. Quando ele abordou Mel e a mim no backstage, pensamos: “Oh-oh, problemas”. Mas assim que vimos um largo sorriso aparecer em seu rosto esquelético, soubemos que estava tudo bem. MIRIAM YASGUR: Ele foi até lá para ver o que estava acontecendo. Queria
expressar sua gratidão e dizer que agradecia a maneira como estavam agindo. Max voltou e disse: “Você não acredita na vista lá de cima!”. Pedi a Max que subisse no palco e dissesse algumas palavras para o público, que eles adorariam conhecer o homem que deu a eles e a nós as terras para esse fim de semana maravilhoso. Ele pareceu um pouco tímido de início, mas não demorou muito para convencê-lo. Chip o acompanhou até o microfone e Max começou: “Sou um fazendeiro...”, e o pessoal aplaudiu. “Não sei como falar para vinte pessoas de uma vez, menos ainda uma multidão como esta.” Max prosseguiu lenta e claramente, observando com certa dificuldade através dos óculos as multidões que se estendiam até o horizonte. “Este é o maior grupo de pessoas já reunido num único lugar, mas acho que vocês provaram algo para o mundo: que meio milhão de garotos pode se juntar e ter três dias de diversão e música, e mais nada além de diversão e música! E peço que Deus os abençoe por isso!” Foi incrivelmente comovente ver Max no palco, tomado de emoção. Ao
observá-lo falar nessa reunião histórica, fiquei novamente emocionado com a sequência miraculosa de eventos que nos trouxera até esse momento. Max esteve do nosso lado o tempo todo. Quando descobriu que algumas pessoas estavam vendendo água da torneira aos presentes, colocou uma placa enorme em seu celeiro, que dizia ÁGUA GRÁTIS. Distribuiu água, leite, queijo e manteiga – e pediu a um parente que doasse pão para acompanhar. Sua filha, enfermeira, foi voluntária na tenda médica, e seu filho ajudou a coordenar o trânsito. “Se a lacuna geracional deve ser preenchida”, ele disse a um repórter, “as pessoas mais velhas têm de fazer mais do que nós fizemos.” Era hora de começar a música, e, por volta das 14 horas, Joe Cocker entrou no palco. Outro desconhecido que estava prestes a se tornar um astro. Acompanhado pela Grease Band, deixou o público boquiaberto com seus vocais emocionantes e seus movimentos singulares no palco. Acho que se pode dizer que Joe meio que inventou a air guitar naquele dia – ou pelo menos a popularizou. A Grease Band tinha uma abordagem despojada e começou o set com uma jam de blues sem Joe, antes de se lançar no repertório quando Cocker entrou. Joe pegou todo tipo de cover e os tornou próprios: “Dear Landlord”, “Feelin’ Alright”, “Just Like a Woman”, “I Don’t Need No Doctor”, “I Shall Be Released”. Transformou “Let’s Go Get Stoned”, de Ashford & Simpson, num hino, improvisando uma parte sobre sua estadia em Nova Iorque. Para o grand finale, tocou aquela que se tornou sua marca registrada, “With a Little Help from My Friends”. A canção descreveu aquele fim de semana com perfeição e todo mundo soube disso. Sua versão uivante e expressiva transformou o sucesso dos Beatles numa canção de Joe Cocker. Bem na hora em que terminavam o show, o céu escureceu. E então o inferno começou a correr solto. JOE COCKER: Eu era o único cara na banda que não tinha tomado ácido naquele dia e me arrependi [disso] em certa medida... Eu não achei que estivesse me comunicando com aquela massa de gente até tocarmos “Let’s Go Get Stoned”, que fez todo mundo levantar, porque a maior parte deles estava [chapado]. Quando chegamos à “With a Little Help from My Friends”, senti que, quando chegamos no final dessa música, tínhamos pego a consciência coletiva [daquela multidão]. De repente, senti que eu conseguira fazê-los aceitar o que estávamos fazendo. Foi um sentimento muito poderoso. E então isso foi abalado quando alguém berrou para mim: “Joe, olhe para trás!”. Virei-me e vi umas nuvens enormes se fechando. Só pensei, minha nossa, nós fizemos isso? Vinte minutos depois de cortarmos a energia, a pior parte da tempestade
passou. Mas a chuva continuou a cair e tivemos de manter o show desligado. Eu tinha planejado uma surpresa para o público, e enquanto Artie e eu observávamos do palco, um avião sobrevoou o festival, lançando milhares de flores do céu. BILL WARD: Ainda estava nublado e escuro, mas tinha parado de chover, e um
aviãozinho sobrevoou o festival lançando flores que planaram sobre nós. Milhares de pessoas olharam para o céu. Só ficaram lá, de pé, boquiabertas. Estava todo mundo molhado, o lugar estava cheio de lama, e o pessoal se divertia rolando na lama. Havia um pasto íngreme lá, e algumas pessoas estavam vestidas, outras não, e elas saíam correndo, caíam de bunda e desciam escorregando na lama. GREIL MARCUS: Os garotos berravam: “Foda-se a chuva, foda-se a chuva”, mas
na verdade foi só mais uma oportunidade para um novo tipo de diversão. Presentes estranhos dos elementos naturais, nossos próprios santos dos últimos dias apareceram do nada. Na frente do palco, um garoto negro e um garoto branco tiraram as roupas e dançaram na lama e na chuva, em roda, num círculo que aumentava à medida que mais pessoas se juntavam a eles.
Eu tinha planejado uma surpresa para o público: um avião sobrevoou o festival, lançando milhares de flores do céu.
Direitos dos animais em Woodstock. © KEN REGAN GREIL MARCUS: Moonfire, um feiticeiro bondoso, pregou para uma pequena
multidão que se reuniu debaixo do palco em busca de abrigo. Um homem alto, de cabelos castanhos avermelhados e olhos brilhantes, descalço e nu debaixo de seu robe, tinha viajado para o festival com sua amante, uma ovelha... Num canto, seu cajado, com um crânio humano na ponta, e o cabo gravado com sua mensagem: NÃO COMA OS ANIMAIS/AME-OS... Albert Grossman, com o rabo de cavalo ensopado, estava ali por perto, e Moonfire caminhou até ele para dar sua bênção. Grossman curtiu. A chuva simplesmente significava um bom momento para conhecer novas pessoas. O Ten Years After tinha chegado nas primeiras horas da madrugada e deveria entrar depois de Joe Cocker, que eles conheciam de sua terra natal, a Inglaterra. O palco ainda estava molhado e eu estava preparado para segurar o show até que fosse seguro religar a energia. Mas o Country Joe & The Fish
insistiram que conseguiriam tocar sem eletricidade. A tempestade tinha realmente nos atrasado, e havia tanta água no palco, que precisávamos de tempo para secá-lo. Os ajudantes de palco tentaram desencorajar a banda, dizendo que ainda era perigoso demais ligar a força e montar os microfones e amplificadores. Porém, Joe McDonald e Barry Melton não aceitavam “não” como resposta. Não precisava de energia elétrica, disseram, iam tocar acústico, sem microfones, sem amplificadores, sem eletricidade. Tinham um ukulele, instrumentos de percussão e alguns tambores. JOYCE MITCHELL:
Country Joe chegou e disse: “Não aguento mais isso. Aqueles garotos estão lá na chuva, na lama. Vamos tocar música para eles”. E foi o que fizeram. Para mim, ele foi um grande herói. Não consigo expressar o quão impressionada fiquei com a maneira com que ele fez aquilo. COUNTRY JOE MCDONALD: Quando a energia foi cortada, os garotos ficaram
entediados. Depois de termos tocado em muitos protestos, sabíamos que as pessoas responderiam a algum tipo de barulho não amplificado. Acabamos tocando latas e panelas e tocamos alguns tambores agitprop. Entoamos um canto de “sem chuva” e tocamos cowbells, e o público nos seguiu. Então tivemos a ideia de passar drinques para eles. E tudo estava indo muito bem até que Barry Melton, que era o guitarrista solo do Fish, trouxe dois engradados de latas de cerveja e começou a atirá-las no público, acertando algumas pessoas na cabeça. Começaram a jogar coisas em nós em resposta. GREIL MARCUS: O Fish continuou a tocar, e Joe, a sorrir. Eles me lembraram
dos corajosos palhaços de rodeio, que correm para a arena quando o peão está machucado e o touro pronto para pisoteá-lo. COUNTRY JOE MCDONALD: Me senti completamente em casa, era de fato um
espaço livre incrível. Em 1969, a contracultura não era um lugar seguro para se estar. Muita gente não gostava de nós e poderia simplesmente nos bater ou prender por sermos roqueiros ou hippies. Então foi muito reconfortante estar num ambiente totalmente livre, onde você não seria escorraçado por fazer parte da contracultura. E para mim ficou óbvio desde o início que aquela era nossa turma.
Junto com as latas de cerveja, Barry e a banda lançaram laranjas e garrafas de champanhe. Finalmente, às 18h30, o sol de fato voltou e nós religamos a força. Algumas pessoas foram embora, mas as que ficaram pareciam quase revigoradas pela tempestade. Plugado, o Fish se lançou no set regular, repetindo a animada “Rock and Soul Music”. Quando terminaram, o sol estava se pondo. O Ten Years After já estava no palco, esperando seu equipamento ser montado. O guitarrista e cantor Alvin Lee estava pilhado e pronto para começar. LEO LYONS, DO TEN YEARS AFTER: Tínhamos chegado de um show em St.
Louis, Missouri, às 6 horas da manhã. Eu não tinha comido nada. Quando chegamos, Pete Townshend chegou para mim e disse: “Não coma nem beba nada que não esteja lacrado, porque está tudo batizado. Acabei numa trip ontem à noite, é um negócio muito, muito duvidoso”. Devíamos entrar no palco logo depois de a chuva parar, e então o Country Joe & The Fish passou na nossa frente e pulou no palco antes de nós. Como tínhamos esperado tanto, queríamos entrar, tocar e dar no pé dali. Tivemos problemas de afinação – tivemos de parar depois da primeira música e reafinar, mas o público foi ótimo. * * * Por volta das 20 horas, Alvin Lee abriu com a bluesy “Spoonful”, seguida por uma extensa “Good Morning, Little Schoolgirl”. A banda terminou o set de 2 horas com um longo improviso, “I’m Goin’ Home”, que fazia referência a várias músicas dos primórdios do rock and roll e demonstrava a habilidade de Alvin na guitarra. Ele deixou o palco carregando uma melancia que alguém tinha passado para ele. O Iron Butterfly estava agendado para a tarde do domingo, mas John Morris me disse que o agente deles tinha ligado com uma exigência de última hora, que um helicóptero fosse buscá-los em Nova Iorque. Aparentemente, o agente tinha um verdadeiro problema de atitude e nós estávamos afundados até a cabeça em problemas. Então eu disse a John que falasse para ele esquecer, nós tínhamos coisas mais importantes com as quais lidar. LEE DORMAN, DO IRON BUTTERFLY: Fizemos checkout do nosso hotel e fomos
umas duas ou três vezes até o heliporto na 33th Street. Mas o helicóptero nunca veio. Acho que eles tinham coisas mais importantes para fazer, tipo alimentar as
pessoas. Teria sido ótimo tocar “In-A-Gadda-Da-Vida” lá. Em seguida, veio a The Band. Eu estava muito ansioso pelo set deles. Tinha me tornado amigo de Rick Danko e Richard Manuel. Embora Rick já estivesse no festival há algum tempo, os demais chegaram bem antes da tempestade. Pareciam um pouco sobrecarregados, e acho que estavam nervosos quanto ao som não ser perfeito. Eram muito exigentes com sua produção, e esse show seria despojado demais para os padrões deles. Porém, o festival era do lado das casas deles, então foi um trabalho fácil. ROBBIE ROBERTSON: Havia uma área onde todo o tipo de gente – artistas, empresários, gente de gravadora, qualquer um – estava socializando. Rostos como de um filme de Fellini passavam de um lado para o outro, era como uma caravana cigana, uma cena muito colorida. Um grupo de músicos se reuniu no palco e observou atentamente enquanto abriam o set com uma animada “Chest Fever”. Levon, Rick e Richard alternavam os vocais principais à medida que tocavam faixas do álbum Music from Big Pink: “Tears of Rage”, “This Wheel’s on Fire”, “The Weight”. Algumas das músicas que tocaram só sairiam em vinil alguns anos depois. Achei que eles soaram fantásticos, mas como eram musicalmente sutis e pareciam tocar mais para si mesmos, não se conectaram tão bem com os jovens na plateia. ROBBIE ROBERTSON: Depois de três dias de música e um tempo inclemente
sobre o público, foi difícil acertar o clima. Tocamos um set lento e soturno de música da montanha. Parecia apropriado, do nosso ponto de vista. Estávamos pensando: “Esses pobres garotos têm aguentado muita coisa, então talvez devêssemos mandar um pouco do nosso sentimento espiritual a eles”. Tocamos músicas como “Long Black Veil” e “The Weight”, e tudo tinha um certo ar de reverência. Até as músicas mais rápidas soavam quase religiosas. Pensei: “Meu Deus, não sei se este é o lugar certo para isso”. Observei o público e parecia que os garotos estavam olhando para nós de forma meio engraçada. Estávamos tocando da mesma forma que tocávamos em nossa sala. Éramos como órfãos na tempestade ali. Quando a The Band terminou, fizemos outra mudança complicada de palco para a entrada de Johnny Winter. Em momentos como esse, sentimos muita
falta do uso do palco toca-discos. Já passava da meia-noite e tinha esfriado. Por cerca de 1 hora, Winter aqueceu o festival, tocando um slide espetacular numa mistura de blues texano, R&B e rock and roll dos primórdios, incluindo “Johnny B. Goode”, de Chuck Berry, para encerrar seu show. Houve mais uma troca grande de equipamentos para a montagem da próxima banda, o Blood, Sweat and Tears, um grupo de jazz rock de oito membros, com um naipe de metais. Conduzidos pelo baterista Bobby Colomby, tinham uma sequência recente de dois sucessos, “You’ve Made Me So Very Happy” e “Spinning Wheel”. Destaque no set, “And When I Die” seria seu próximo hit. GREIL MARCUS:
O cenário do palco na noite de domingo foi curioso. As bandas estavam lá, socializando, tocando, montando o equipamento, curtindo os outros músicos: The Band; Blood, Sweat and Tears; Paul Butterfield. Agora, em termos de prestígio, não há dúvidas de que a The Band reinou naquela noite, pelo menos para os outros músicos, se não para o público. Enquanto Helm, Danko e Robertson, sentados sobre amplificadores, assistiam a Johnny Winter, estrelas do passado e do presente vinham cumprimentá-los, se apresentar, demonstrar seu respeito artístico. David Clayton-Thomas, o jovem cantor canadense do Blood, Sweat and Tears, abriu um sorriso largo e deu apertos de mão vigorosos – um homem na escada do sucesso, sua banda vendendo mais do que todo mundo no país e impressionando o público muito mais do que a The Band naquela noite, mas ainda muito à sombra dos homens de Big Pink, que tocam música real, que vêm de um senso histórico real. Músicos, jornalistas e muitos outros se reuniram no palco, esperando ansiosamente pelo próximo grupo: Crosby, Stills, Nash & Young. Neil Young tinha acabado de entrar para a banda, e eles só tinham tocado um show, na noite anterior, em Chicago. Todos queríamos ouvir seu álbum de estreia tocado ao vivo. GRAHAM NASH: Quando descemos do helicóptero, fomos recebidos por John
Sebastian. Acendemos um baseado e fizemos uma festa na tenda dele – ele estava com lama até os joelhos. Sebastian nos contou histórias vívidas sobre a chuva e a lama. O backstage estava completamente caótico. Não ficamos com medo da multidão, estávamos mais preocupados com nossos companheiros. Acho que Stephen e eu estávamos um pouco nervosos por Hendrix, The Band e o Blood,
Sweat and Tears estarem lá. E acho que Neil estava nervoso quanto a tocar conosco. DAVID CROSBY: Estávamos assustados. Todo mundo que nós respeitávamos na
maldita indústria musical estava num círculo atrás da gente quando entramos no palco. Todo mundo estava curioso quanto a nós. Éramos os garotos novos no pedaço, era a nossa segunda performance em público, ninguém tinha nos visto ainda, todo mundo tinha ouvido o disco, todo mundo se perguntava: “Que diabos é a deles?”. Então, quando começou a correr a notícia de que estávamos prestes a começar, todo mundo veio e formou um arco atrás de nós. Isso foi intimidador, para dizer o mínimo. Olho para trás e lá estão Hendrix, Robbie Robertson, Levon Helm, Grace Slick, Paul Kantner, todo mundo que eu conhecia e todo mundo que eu não conhecia.Eu também estava completamente chapado, porque fumamos uma maconha incrível, Colombian Gold, que um amigo meu chamado Rocky tinha trazido para o festival. Por volta das 3h30 da manhã, Graham, Stephen e David entraram no palco e começaram o show sozinhos. Depois, Neil, o baixista Greg Reeves e o baterista Dallas Taylor se juntaram a eles. Stills e Young tocaram uma versão acústica de tirar o fôlego de “Mr. Soul”, canção de quando faziam parte do Buffalo Springfield. O público e todo mundo no backstage entrou em transe. “Long Time Gone”, outro ponto alto, se tornaria a faixa de abertura do filme Woodstock. GREIL MARCUS: A performance deles foi assustadora, uma prova brilhante da
magnificência da música, e eu não acredito que poderia ter acontecido com tamanha força em outro lugar. Esse foi um festival que triunfou sobre si mesmo, à medida que Crosby e sua banda conduziram o caminho até o final dele. GRAHAM NASH: Achei que fizemos um show fraco. Quando você considera
tocar violão para 400 mil pessoas e tenta alcançar o final da multidão com canções como “Guinnevere”, é absurdo. Mas nós certamente demos nosso melhor. Claro, a “Suite” estava um pouco desafinada, mas e daí? DAVID CROSBY:
Fomos bons, graças a Deus. O show foi muito bom. O pessoal de quem eu já era amigo próximo – Paul Kantner, Grace Slick, Garcia e
muitos outros – ficou eletrizado. Disseram: “Uau! Vocês arrasaram! Deu certo!”. Eles adoraram, todo mundo adorou. Como não adorar? “Suite: Judy Blue Eyes”. Como não gostar disso? Outro amigo que pude conhecer em Woodstock, Paul Butterfield, tocou em seguida – deviam ser 6 horas da manhã quando terminamos de montar seu grande equipamento. Paul era um ótimo gaitista e vocalista de Chicago, capaz de improvisar em blues por horas: “Born Under a Bad Sign”, “Driftin’ and Driftin’”, “All in a Day”. Seu afiado naipe de metais incluía o saxofonista David Sanborn, e ele contava com Buzzy Feiten na guitarra. Reconheci vários dos membros de sua banda da cidade. A essa altura, as equipes estavam exauridas. Mas todo mundo segurou as pontas e seguiu em frente. Na bacia, pessoas continuavam a partir. Isso, na verdade, foi um grande alívio, porque a ideia de meio milhão de pessoas tentando ir embora de uma vez era atemorizante. Em vez de aguardar um encerramento, todo mundo estava meio que largando mão. Tive uma sensação de que o festival não ia tanto terminar, mas sim perder o ar aos poucos, como um grande suspiro. A banda de doze estudantes da Columbia, o Sha Na Na, aguardava ansiosamente por sua vez desde a tarde do domingo. Estavam com medo de não conseguirem tocar o show de 30 minutos que lhes fora dado. Por volta das 7h30 da manhã, entraram no palco com seus ternos de lamê dourados e seus topetes. Passearam tranquilamente por uma variedade de standards dos primórdios do rock and roll, como “Get a Job”, “Teen Angel” e “Duke of Earl”. Seu entusiasmo e sua energia pareceram reavivar aqueles que estavam privados de sono. Michael Wadleigh e sua equipe se preparavam para filmar Hendrix, e conseguiram capturar rapidamente “At the Hop” e mais duas outras músicas. JOCKO MARCELLINO, DO SHA NA NA: No pavilhão dos artistas, conversamos com todas aquelas pessoas. Nós éramos os garotinhos. Mas eles nos deram certo respeito. Quase não tocamos. Simplesmente nos encaixamos ali. Estávamos ficando putos. Eu adoro Paul Butterfield, mas ele demorou uma eternidade. Não gostei dele naquele dia. Por fim, conseguimos tocar antes de Hendrix. Àquela altura, era um acampamento de refugiados, a maioria das pessoas tinha ido embora. Conheci um cara, anos depois, que teve uma viagem de ácido na noite anterior. Adormeceu e acordou enquanto estávamos tocando, não fazia ideia de quem éramos e achou que estava numa viagem incrível.
Jimi Hendrix tinha chegado no domingo, por volta do meio-dia, e eu o conheci com Michael Jeffrey no backstage. Sugeri que Jimi tocasse à meia-noite, porque estávamos atrasados o fim de semana todo. A nova banda dele estava junta havia pouco tempo. Ficaram hospedados na casa de Jimi em West Shokan, trabalhando no material a ser tocado em Woodstock. Tínhamos alugado um chalé perto da área do backstage, onde os levei para passar o tempo. Jimi ocasionalmente ia até o palco ou ao pavilhão dos artistas. Em algum ponto durante a noite, ficou claro que os shows não terminariam antes do amanhecer. Chequei se Jimi mudaria de ideia quanto a tocar à meianoite, mas Jeffrey ainda estava determinado que ele tocasse no encerramento. Finalmente, às 8h30 da manhã da segunda-feira, Hendrix e sua banda se dirigiram ao palco. O fato de que só restavam quarenta mil pessoas não pareceu incomodá-lo. Seu show daquela manhã acabaria sendo o mais longo de sua carreira – 2 horas. Ele começou apresentando seu novo grupo: Billy Cox, no baixo; Juma Sultan e Gerry Velez, na percussão; Larry Lee, na guitarra base; e Mitch Mitchell, na bateria. “Cansamos do Experience, e de vez em quando estávamos ficando doidos demais, então decidimos mudar a coisa toda e chamar de Gypsy, Sun, and Rainbows... Só ensaiamos umas duas vezes, então... Nada além de ritmos primários, mas, digo, é o primeiro raio de um sol nascente, de qualquer forma, então é melhor começarmos da terra, que é ritmo, certo?” Depois de afinar sua Strato branca, Jimi se lançou em “Message to Love”, seguida por “Hear My Train a Comin’”. A banda parecia própria para o improviso, e canções se transformavam em longas jams. Hendrix tinha um ar de serenidade naquela manhã, até mesmo em “Foxey Lady”. Larry Lee assumiu os vocais em duas músicas, incluindo “Gypsy Woman”, de Curtis Mayfield. Tanto Lee quanto Hendrix não paravam de afinar suas guitarras, e em dado momento Jimi disse: “A gente vai tocar bem baixinho e desafinado”.
Crosby, Stills, Nash & Young. © HENRY DILTZ
O palco enorme estava ocupado de maneira bem esparsa, em comparação ao quão lotado estivera durante todo o fim de semana, com músicos, equipes e amigos. Jimi, com um cachecol vermelho no pescoço e vestindo uma jaqueta de couro branca franjada e decorada com contas, parecia um curandeiro místico em meditação. De olhos fechados e cabeça para trás, mesclava-se à sua música; sua Strato – tocada ao contrário, já que ele é canhoto –, sua varinha mágica. Embora estivesse cercado pela banda, projetava a sensação de estar completamente só. Quando ele começou o hino nacional de maneira quase reverente, o público esfarrapado, esgotado e enlameado aproximou-se mais. Aqueles de nós que mal dormiram em três dias foram despertos, inebriados pela música de Jimi. Num minuto ele entoava a velha melodia, no outro, imitava “bombas explodindo no ar” com microfonia e distorção. Foi brilhante. Uma mensagem de júbilo e amor pelo país, ao mesmo tempo uma compreensão de todo o conflito e toda a agitação que dividiam os EUA. ROZ PAYNE: Eu estava trabalhando na tenda das bad trips quando ele começou
a tocar o hino. Tudo pareceu parar. Antes disso, se alguém tivesse tocado “The Star-Spangled Banner”, teríamos vaiado. Depois disso, essa se tornou a nossa música. TOM LAW, DA HOG FARM: Eu estava bem na frente dele. Não havia quase
ninguém mais do público. Me senti como se ele fosse o poeta definitivo do festival com aquela composição. Era como se ele nos conduzisse para o coração da besta e o acertasse em cheio.
GRAHAM NASH: Hendrix foi OK. Eu já o tinha visto em melhor forma. Mas
“The Star-Spangled Banner” foi surreal. Provavelmente os 2 minutos mais criativos que se pode encontrar no rock and roll. MEL LAWRENCE: Acordei ao som de Jimi Hendrix. Estava no meu trailer, na
colina, olhei para aquele cenário deprimente da bacia três quartos vazia, cheia de lixo, e gente indo embora diante de Jimi Hendrix. E então ouvi “The StarSpangled Banner” e fiquei arrepiado. Na sequência de “The Star-Spangled Banner”, Jimi emendou “Purple Haze”. Pensei em Miami em maio de 1968, quando Hendrix chegou de helicóptero e tocou essa música no palco no hipódromo. Era como se aquele dia fosse um presságio desse. Na manhã de segunda-feira, Jimi encerrou seu set com um instrumental depois chamado de “Woodstock Improvisation”, seguida pela pungente “Villanova Junction” e, por fim, por volta das 10h30, “Hey Joe”. Era o fim. O que parecera uma eternidade, agora parecia um piscar de olhos. Nada mais seria como antes.
O que parecera uma eternidade, agora parecia um piscar de olhos. Nada mais seria como antes.
The Band. © HENRY DILTZ
Max e Miriam examinam o local do festival. © BILL EPPRIDGE
XIII O DEPOIS
Segunda-feira, 18 de agosto, 13 horas: observo os campos onde estive entrincheirado nas últimas três semanas. É uma vista muito diferente da que me foi descrita por aqueles que vieram pelo ar durante o auge do festival – quando, por quilômetros a fio, só se podia enxergar uma manta de gente. Um cara do Sweetwater disse que eram campos e mais campos de flores selvagens. Agora são campos e mais campos de lama. Tenho de ir até o banco em Wall Street para me encontrar com Joel, John e Artie, e um dos pilotos de helicóptero me ofereceu uma carona. Quando viramos para o leste, noto algo lá embaixo, na bacia, perto da frente do palco: um enorme símbolo da paz. É feito de lixo – sapatos, cobertores, latas, garrafas, papel, camisetas, sacos de dormir e cascas de melancia. Os jovens que ficaram para ajudar com a limpeza criaram esse símbolo daquilo que todos esperamos ser o nosso legado. Guardo essa imagem comigo enquanto rumo para Manhattan e para o Bank of North America. Ao deixar o mundo de Woodstock em direção ao mundo de Wall Street, me pergunto para onde estou, literalmente, voando. John, Joel, Artie e eu vamos estar juntos pela primeira vez desde quinta-feira. Sei que temos algumas questões financeiras desagradáveis com as quais lidar, só não estou certo do quão desagradáveis elas são. Exceto pelo momento no sábado, em que o motorista da Brink’s chegou no meu trailer e eu o mandei embora de mãos vazias, esta é a primeira vez que foco minhas atenções em
finanças desde que o festival começou. Com sorte, quaisquer problemas podem ser resolvidos. Mas não sei quantos cheques John preencheu ao longo do fim de semana, ou quanto dinheiro ainda há para ser recolhido dos pontos de venda antecipada. * * * Depois que Jimi Hendrix terminou seu show de 2 horas na manhã da segunda-feira, o festival estava oficialmente encerrado. Como as pessoas estavam indo embora gradualmente desde o domingo, o trânsito andou tranquilamente, direcionado por trezentos policiais e bombeiros voluntários. Quem buscava carona segurava placas com seus destinos, e linhas de ônibus da Short Line funcionaram sem parar de Monticello a Nova Iorque. Um jornal descreveu algumas partidas bem absurdas: “Onze jovens se penduraram nos para-lamas, para-choques, capôs e em cima de um Chevrolet 1957, que passava raspando no asfalto a cada desnível. Um repórter viu três jovens amarrados ao porta-bagagem em cima de uma station wagon Ford com placas de Nova Jersey [...]”. Outro jornal reportou que os moradores de White Lake continuaram a ajudar o público do festival, “obviamente comovidos pelo suplício dos jovens sem comida, sem dinheiro e sem alojamento. Alguns abriram suas portas para que eles passassem a noite, outros deram comida e água. A polícia de Monticello abriu o pequeno parque da cidade para oferecer um lugar para dormir àqueles que aguardavam pelos ônibus da Short Line”. PARRY TEASDALE: Eu conhecia um casal que morava ali perto, cujo filho –
meu amigo – tinha sido morto no Vietnã. Quando ficaram sabendo de todos aqueles garotos sem nada para comer, disseram: “Há garotos que estão com fome, e nós vamos alimentá-los”. Pegaram todos os cachorros-quentes que conseguiram, foram até o festival e alimentaram os jovens. CHRISTINE OLIVEIRA: Saímos de lá na segunda-feira à tarde. Paramos porque
não sabíamos exatamente qual estradinha pegar para voltar para casa e não tínhamos um mapa, e as pessoas diziam: “Vocês têm comida o suficiente?”. Elas vinham trazendo sanduíches. Passei a manhã da segunda-feira resolvendo o máximo que pude antes de
partir para a reunião no banco. Mel e Stan supervisionariam a limpeza. Estimamos que custaria cerca de US$ 50 mil e levaria no mínimo duas semanas para restaurar as terras de Max e dos outros fazendeiros de quem alugamos terrenos. Cerca de 8 mil pessoas ainda estavam acampadas nas áreas ao redor, incluindo a Hog Farm e outros membros de comunas. Muitos ajudaram a remover o lixo dos campos. Mel começou a procurar por ajuda voluntária, a começar pelos escoteiros, para auxiliar as equipes de limpeza que havíamos contratado. MEL LAWRENCE: A limpeza foi muito interessante. Gente que estava a 30
quilômetros de distância ligava dizendo que precisávamos limpar o celeiro deles – viam essa situação como uma oportunidade de ter a propriedade limpa. Usamos uma carregadeira para empurrar tudo numa grande pilha e carregá-la num caminhão. Havia milhares de sacos de dormir e peças de vestuário deixados para trás. PENNY STALLINGS:
Tivemos de limpar tanta coisa. Mel comparou o local, depois de todo mundo ter ido embora, a Andersonville, um campo de detenção da Guerra Civil. O solo estava fumegando de tanta gente que estivera lá. HENRY DILTZ: O que sobrou foi lixo enlameado. Sacos de comida, roupas,
tudo encharcado e pisoteado na lama. Esse monte de coisa jogada lá, como cadáveres. Você já viu aquelas fotografias antigas de campos de batalha, com cadáveres de cavalo inchados, balas de canhão, soldados mortos no chão? É o que parecia. Membros da equipe se reuniram no meu trailer da produção. Até que nossa situação financeira estivesse resolvida, tive de explicar que não conseguiríamos pagar ninguém. Enquanto isso acontecia, repórteres estavam por lá fazendo perguntas. Quando um deles, do New York Times, questionou sobre o nosso status financeiro, disse a ele que gastamos muito mais do que ganhamos: “Veio tanta gente... e nós tivemos de cuidar de todos. Valeu a pena”. O jornalista escreveu no Times: “Hoje, um trailer servindo de escritório, estava cheio de jovens trabalhadores esperando para serem pagos. Foi dito a eles que só pegassem o que fosse absolutamente necessário, até que os organizadores pudessem obter dinheiro. No espírito de compartilhamento que marcou o fim de semana,
champanhe e cigarros foram ofertados”. Stan ficou em Bethel nas três semanas seguintes, durante a maior parte dos processos de limpeza e desmontagem. Ele criou formulários para que os vizinhos pudessem registrar reclamações de perdas e danos, ou apenas pedir a remoção do lixo. STAN GOLDSTEIN:
Fiquei para acalmar as cabeças quentes. Houve dois resultados imediatos: um grupo de pessoas muito verborrágicas e descontentes, em cujos pastos e gramados haviam acampado, e que alegaram todo o tipo de dano proveniente das pilhagens das hordas. E aí havia as outras pessoas, que diziam: “Uau, que coisa miraculosa vocês fizeram... os jovens foram ótimos... como vocês conseguiram?!”. É claro, muitos dos comerciantes da região ficaram muito felizes. Eles nunca tinham feito tantos negócios em um período tão curto de tempo. Muita gente começou a entrar com processos, incluindo o presidente do autódromo de Monticello, que tinha uma corrida planejada para aquele fim de semana; no fim das contas, cerca de oitenta processos seriam abertos (a maioria foi acordada fora dos tribunais ou retirada). Políticos começaram a pedir uma investigação do festival. Um deles, o deputado Martin McKneally, visitou o local de helicóptero e publicou uma declaração: “O fedor que subiu da colina na fazenda de Yasgur vai ficar nas narinas do povo do condado de Sullivan por muitos anos”. Ele ainda comparou o cheiro ao “lixo do Egito”. O procuradorgeral do estado, o general Louis J. Lefkowitz, anunciou que fora acionado por autoridades de Nova Iorque para investigar o festival. Lefkowitz se preocupava com os compradores de ingressos que não conseguiram chegar ao festival. Como os ingressos não foram recolhidos, era impossível distinguir quem tinha chegado e quem não tinha. John e Joel, mais tarde, fecharam um acordo para pagar um montante de US$ 25 mil ao estado para cobrir as alegações nesse sentido. Enquanto o local estava sendo limpo, várias ferramentas e vários equipamentos simplesmente desapareceram. Tínhamos dito à Hog Farm que poderiam pegar qualquer equipamento deixado na área deles, e eles nos levaram a sério. ROZ PAYNE: Fiquei por lá alguns dias depois do fim do festival – todo mundo
estava indo embora, as pilhas de lixo deixadas para trás, e nós tínhamos
equipamento de som no palco, uma impressora, geradores deixados para trás, um hospital de campo. A essa altura, a maioria das pessoas já havia ido embora. A Hog Farm estava catando garrafas. Contatei gente em Nova Iorque para trazer o maior caminhão alugado possível. Também pedi a um amigo que trouxesse meu pequeno Volkswagen vermelho. Carregamos todo o equipamento hospitalar num caminhão de mudança, exceto por uma pequena geladeira, que colocamos atrás do meu VW. Colocamos a impressora no caminhão alugado – o que víamos, pegávamos. Alguém pegou os aparelhos de ar-condicionado dos trailers. Demos a impressora aos Panteras Negras, que a usaram para imprimir seu jornal. E demos o equipamento hospitalar à clínica gratuita deles. PENNY STALLINGS:
A Hog Farm começou a colocar equipamentos de construção que havíamos alugado nos ônibus deles, e eu disse: “Não, não, vocês não podem fazer isso – precisamos disso para o ano que vem”. Pensei que o festival ia acontecer de novo. Dali em diante, haveria uma reunião das tribos, uma mudança na maré da filosofia e do pensamento político no país. Porém, Mel disse o seguinte para mim em relação ao equipamento: “Por que você se importa? Deixe-os levar”. Essa era a filosofia hippie: todos nós compartilhamos. Mas eu sabia que John pagaria por aquelas coisas. Ele era um cara maravilhoso e eu queria que ele pagasse pelo próximo festival no verão seguinte. Embora algumas autoridades locais estivessem zangadas por conta do caos e das inconveniências, muitas tinham coisas positivas a dizer. O xerife do condado de Sullivan, Louis Ratner, disse aos repórteres: “Nunca conheci um grupo de garotos mais simpático”, e outro policial disse: “Quando nossas viaturas ficavam presas no trânsito, eles até nos ajudavam a sair. Acho que muitos policiais daqui estão repensando suas atitudes”. Embora tenham soado alguns alarmes quanto a emergências médicas, no final, o Dr. Abruzzi informou que sua equipe tinha tratado de cerca de 5 mil pessoas desde a quinta-feira, mas quase metade dos casos era de cortes nos pés. “É mais ou menos o que se espera numa cidade de mais de 300 mil habitantes”, disse ele sobre o número de pessoas atendidas. Fomos abertamente criticados pelo New York Times, o que aborreceu John e Joel em particular. A edição da segunda-feira contou com um editorial intitulado PESADELO NAS CATSKILLS, que nos condenava: Os organizadores desse evento, que aparentemente não tinham a
menor preocupação com o tumulto que ele causaria, deveriam ser responsabilizados por sua má gestão. Tentar abarrotar várias centenas de milhares de pessoas numa fazenda de 240 hectares com apenas algumas instalações sanitárias montadas às pressas mostra uma completa falta de responsabilidade. Em contraste, Max tinha palavras gentis a respeito de nós. Na segunda-feira à tarde, ele deu uma coletiva de imprensa em sua fazenda, onde disse aos jornalistas reunidos: “Os jovens foram maravilhosos, honestos, sinceros, bons garotos que disseram: ‘Aqui estamos. Isto é o que somos. Esta é a forma como nos vestimos. Esta é a nossa moral’. Não houve um único incidente o tempo todo. Os garotos foram educados, compartilharam tudo com todo mundo e me forçaram a abrir os olhos. Acho que os EUA têm de prestar atenção. O que aconteceu em Bethel nesse último fim de semana foi que esses jovens, juntamente com o pessoal da cidade, transformaram o festival Aquariano numa vitória drástica do espírito de paz, boa vontade e compaixão humana”. Ninguém tinha muita certeza de quantas pessoas havia no festival. Fotografias aéreas foram estudadas e foi estimada uma média entre 450 mil a meio milhão. Charlie Feldman, historiador de White Lake, estava certo de que “havia 700 mil pessoas lá. A estimativa de público se baseia em fotos áreas, e havia milhares de pessoas debaixo de árvores”, que não conseguiriam entrar na contagem. * * * Ao chegar no heliporto de Wall Street no meio da tarde, fui às pressas aos escritórios do banco. Entrei numa sala grande, com vidros escuros, e procurei por meus sócios. Não foi fácil encontrá-los, com todos os mandatários, bancários e advogados de falência presentes ali. Finalmente os vi, no gabinete do presidente, cercados pelo irmão de John, Billy, que era advogado, por vários outros advogados e por um senhor mais velho, que vinha a ser o presidente do banco. Quando coloquei a cabeça para dentro do gabinete, a primeira coisa que notei foi um enorme aquário encostado na parede. Pensei: “Seria uma piranha?”. Foi nesse momento que o cheiro de medo, angústia e cólera no gabinete se abateu sobre mim. Sem o meu conhecimento, Artie tinha convidado duas pessoas para a
reunião. Enquanto ainda estava bem chapado em Woodstock, ele contou a Albert Grossman e Artie Ripp sobre o compromisso da segunda-feira. Aparentemente, ambos estavam interessados em formar uma sociedade comigo e Artie. Eles sugeriram levantar fundos para comprar a parte de Joel e John da Woodstock Ventures. Acreditavam que o filme de Woodstock seria enorme e que havia grande valor na marca. ARTIE RIPP: Eu estava feito um rabino dentro do armário e pensava em como
faríamos aquilo funcionar. Como você se dá conta de outras oportunidades depois disso? A realização em si havia sido como a invasão da Normandia. Eu era amigo de Albert Grossman, que era claramente um jogador de peso, por conta dos artistas com quem trabalhava e de sua influência no ramo em geral. Fomos de helicóptero de Woodstock com Artie. Voamos para Wall Street e fomos ao gabinete do banqueiro – eis um cara que tem em seu gabinete um retrato de Mao Tsé-Tung e uma piranha num aquário. Já sei que esse cara tem a porra de um parafuso a menos. Ele quer deixar claro que pensa fora da caixa, à esquerda da direita e à direita da esquerda e bem longe do centro. ARTIE KORNFELD: Cheguei à reunião com Artie Ripp, e o banqueiro estava
jogando carne no tanque da piranha. Depois de voltar daquela experiência belíssima, eu estava vendo tudo o que eu odiava no mundo do capitalismo. A reunião estava acontecendo desde as 9 horas da manhã. John passara o fim de semana preenchendo cheques para pagar uma longa lista de pessoas que conseguiram chegar ao posto telefônico. Agora ele e sua família teriam de garantir mais de US$ 1 milhão ao banco para fazer valer esses cheques. A outra opção era a Woodstock Ventures declarar falência. Os representantes do banco disseram que segurariam todos os cheques até quinta-feira, quando já teríamos um relatório completo de quaisquer fundos que entrassem. Independentemente disso, não havia um cenário financeiro claro a se tratar na reunião, ou pelo menos ninguém estava interessado em me informar um. No mínimo, eu esperava que nós quatro no sentássemos e avaliássemos nossa situação, para explorar as possíveis soluções. Não estávamos sem bens. Tínhamos criado uma quantidade enorme de boa vontade; tínhamos o filme e as gravações daquilo que se tornara um evento de proporções históricas. Porém, ficou claro que o irmão de John, Billy, estava representando a família Roberts, que para
todos os efeitos práticos tinha tomado o controle da Woodstock Ventures. O clã Roberts estava tomando uma posição admirável ao apoiar John, tirando a todos nós da fogueira da falência, mas eu sentia que eles não tinham interesse em ver nossa sociedade continuar. O molde já estava fundido antes mesmo de eu pousar no heliporto. Ainda assim, não pude evitar pensar no que John devia estar passando. Me entristecia o fato de que ele e Joel não haviam tido a mesma experiência incrível com Woodstock do que Artie e eu. Por qualquer razão, eles passaram três dias miseráveis enfurnados no posto telefônico em White Lake, e agora John tinha de comprometer seus fundos para pagar nossas contas. Eu certamente não tinha o dinheiro para pagar minha parte, tampouco o tinha Artie ou Joel. Eu também sabia que mesmo que John se sentisse bem mal, a posição de Joel – ele era sócio de John, mas a família Roberts o considerava alguém de fora – era, de algum modo, pior. Joel e John estavam devastados e voltaram sua raiva e seu ressentimento contra mim e Artie. A disposição da família de John para conosco era similar, e até mesmo Joel parecia ter se tornado persona non grata aos olhos deles. Rapidamente, a situação passou a ser eles contra nós. Concordamos em adiar as coisas e voltar a nos reunir quando mais informações estivessem disponíveis. Não houve alegria naquele dia. LEE MACKLER BLUMER:
John e Joel voltaram da reunião e estavam muito perturbados. Acho que foi quando o pai de John disse que iria bancar tudo. Posteriormente, ele diria que eles nunca mais poderiam usar o logo ou chamar mais nada de Woodstock novamente. John Roberts prometeu que nunca daria os direitos a ninguém enquanto seu pai estivesse vivo. O pai achava que Woodstock manchava o nome da família. Acho que o irmão de John por fim mudou de ideia, ao se dar conta de que era um fenômeno cultural e de que [John] tinha tanto a ver com aquilo. Mas não acho que seu pai realmente o perdoou por Woodstock. Eu precisava dormir antes de voltar para White Lake para acompanhar a situação por lá. Fiz check-in no Chelsea Hotel e dormi por 18 horas. Ao ir embora, por volta das 14 horas do dia seguinte, vi Janis Joplin, com penas e tudo, no lobby. Ela e sua banda estavam hospedados lá também. “É você!”, ela gritou. Quando olhei em volta para ver para quem ela estava gritando, ela pulou para me
dar um abraço. A opinião pública em relação ao festival estava dando uma completa virada. Na terça-feira, o New York Times publicou mais um editorial, desta vez mais positivo e intitulado A MANHÃ SEGUINTE EM BETHEL. O Boston Globe comparou Woodstock à marcha em Washington, ao escrever: O Festival de Música e Arte de Woodstock certamente entrará para a história como um evento de massa de grande e positiva significância para a vida do país [...]. O fato de tantos jovens conseguirem se reunir tão pacificamente e com tamanho bom humor numa área de menos de 2 quilômetros quadrados [...] fala imensamente sobre a dedicação deles ao ideal de respeito pela dignidade dos indivíduos [...]. Numa nação assolada por violência crescente, esse é um sinal vibrante de esperança. Se a violência é contagiosa, a não violência, felizmente, também o é. O caráter benigno dos jovens reunidos em Bethel comunicou-se com muita gente de gerações mais velhas, incluindo policiais, e a lacuna geracional foi preenchida com sucesso em inúmeros casos. Qualquer evento capaz de fazer isso tem um toque de grandeza. Havia uma lacuna, porém, que não estávamos preenchendo. Al Aronowitz concluiu sua cobertura diária para o New York Post com um artigo no dia 19 de agosto intitulado O DEPOIS EM BETHEL: LIXO & CREDORES. Nele, questionava: Você imagina onde os quatro garotos que promoveram esse negócio vão conseguir o dinheiro [para pagar as dívidas], e Mike Lang sorri e lhe diz o quão feliz ele está. Enquanto isso, em Nova Iorque, seu sócio John Roberts, de 24 anos, está ocupado transferindo várias centenas de milhares de dólares de uma conta para outra. A fortuna pessoal de Roberts foi usada como garantia, com a fiabilidade dividida em quatro. “John”, diz Mike Lang, vestindo o mesmo colete indígena de couro que usou a semana inteira, “está muito feliz com o sucesso disso tudo”, e conta que a cidade, o condado e Max Yasgur [...] pediram para o festival retornar no ano seguinte [...]. Perguntamos por que ele não viu John Roberts ao longo de todo o fim de semana. “Ah”, diz Mike. “John não veio. Ficou muito nervoso.” * * *
Na manhã de segunda-feira, quando fui entrevistado por Aronowitz, eu estava otimista quanto ao futuro da Woodstock Ventures. E realmente não tinha uma boa resposta para por que John e Joel não conseguiram encontrar meia hora para ir até o festival. Passei toda a quarta-feira em White Lake, para me certificar de que a limpeza estava progredindo e para atualizar a equipe da situação. John prometera que todo mundo seria pago. Peguei uma caminhonete emprestada e percorri os campos e as estradas para ter uma noção do trabalho que teríamos pela frente. Seria extenso. Sentimos falta de cerca de quarenta veículos alugados; mais de vinte nunca foram encontrados. Alguns acabaram em lagos e lagoas. Naquela noite, voltei para a cidade. Joel e John tinham me chamado para uma reunião no apartamento deles, para que nós três pudéssemos conversar. Antes de deixar o condado de Sullivan, pensei em passar no El Monaco e dar um alô para Elliot Tiber, ver como ele tinha se saído. Colocamos a conversa em dia e, quando eu estava de saída, ele disse: “Espere um minuto! Tenho algo para você”. Ele entrou no escritório e voltou com US$ 31 mil num saco de papel. “Tome”, disse. “Vendemos todos os ingressos que tínhamos aqui na manhã do primeiro dia.” Todos os pontos de venda de ingresso, no fim, renderam US$ 600 mil adicionais. O fato de Elliot ter nos lembrado dos pontos de venda é indicativo do nosso pensamento paralisado naqueles primeiros dias pós-festival. Guardei o dinheiro sob o estepe no porta-malas (na verdade, sob o capô) do meu Porsche e parti para a cidade. Cheguei por volta das 20 horas no prédio no Upper East Side e estacionei na frente. Eu estava um pouco nervoso, sem saber o que esperar. Tínhamos todos passado por uma grande provação juntos e, quando terminou, nos dividimos com uma explosão. E agora? Desde a reunião desagradável no banco, a comunicação entre nós tinha sido reduzida a zero. Quando Ripp e Grossman apareceram no banco naquele dia, me senti francamente rechaçado, vendo-me colocado como um estranho contra os meus sócios. Pensei: “É só o espectro da família de John que me coloca deste lado da mesa”. O sentimento de Artie era bem menos ambivalente. Ele não queria ter mais nada a ver com John e Joel. Toquei a campainha do apartamento 32C, e John abriu a porta, parecendo uma década mais velho do que seus 24 anos. Joel também parecia abatido. Sentamo-nos e tentamos analisar as coisas. Eles queriam saber quais eram os meus planos. Eu não tinha plano algum de fato, além de terminar a limpeza do festival e lidar com a situação estranha em que o nosso negócio se encontrava.
John perguntou se eu estaria disposto a permanecer com eles na Woodstock Ventures, que presumiram manter. Eu tinha passado a respeitar e gostar de John, e apesar de ainda ter dificuldades em me relacionar com Joel, achava que o coração dele – ainda que não a cabeça – estava no lugar certo, especialmente no que dizia respeito a John. Caso eu escolhesse permanecer, porém, estava claro que Artie não prosseguiria conosco. Embora continuar como sócio deles provavelmente fosse a decisão certa em vários níveis, abandonar Artie não era algo para o qual eu estava preparado. Joel e John ficaram incrédulos. Simplesmente não conseguiam entender a minha escolha. Eu sentia que não tinha escolha. Ao me preparar para ir embora, lembrei-me do dinheiro escondido no Porsche. “Quase que esqueci!”, disse. “Passei no El Monaco e peguei os recibos dos ingressos. Depois da comissão, ficamos com US$ 31 mil. Vocês querem que eu deposite, ou querem descer comigo e pegar?” Antes que eu pudesse terminar a frase, Joel estava me acompanhando até o carro. Ao longo das semanas seguintes, nós quatro começamos a discutir a dissolução da Woodstock Ventures. Ficou determinado que a sociedade estava US$ 1,4 milhão no vermelho. Joe Vigoda, um advogado da indústria fonográfica, representou Artie e a mim. Procedemos na base de que ou eles comprariam nossa parte, ou nós compraríamos a parte deles. Meu interesse não era sair da sociedade, mas tirar Woodstock das dívidas. Fizemos uma oferta que deixaria John e Joel em débito até que nós tivéssemos o dinheiro para pagá-los. John ficou ultrajado com a ideia. Todo mundo estava trocando gritos, e nada foi resolvido. Eu sempre fui muito bom em unir elementos díspares, mas com a pressão familiar, a desconfiança de um lado e a impossibilidade de uma reconciliação com Artie do outro, eu não conseguia ver uma forma de andar para a frente, a menos que encontrássemos algum alívio imediato para nossos problemas financeiros. Artie e eu fomos nos encontrar com Freddy Weintraub na Warner Bros. Pedimos um adiantamento de US$ 500 mil no lugar da nossa parte nos lucros do filme, de forma que pudéssemos tirar a sociedade dos problemas imediatos e pagar algumas dívidas. Weintraub negou, alegando que a rentabilidade do filme ainda estava em dúvida. Para mim, isso era besteira. Ted Ashley e os executivos da Warner Bros. sabiam o que tinham nas mãos. Era bom para eles nos ter numa posição vulnerável, porque isso tornaria a oferta deles para comprar nossa parte mais atraente. Tirei o fim de semana de folga e voei até a Inglaterra, para o festival da Ilha
de Wight, entre os dias 29 e 31 de agosto. Fui com Albert Grossman e a The Band, que acompanharia Bob Dylan. Queria ver se o espírito de Woodstock tinha cruzado o oceano. Se nossa firma sobrevivesse, isso talvez tivesse algum efeito sobre nossos planos futuros. O show foi um pouco decepcionante: por mais bela que fosse a Ilha de Wight, faltava a magia de Woodstock – pelo menos para mim. Joel via desta forma: “Quanto tudo acabou, Mike Lang e Artie Kornfeld foram pra algum lugar, à Ilha de Wight, ou a alguns programas de TV, e disseram: ‘Partimos pra próxima. Woodstock está no passado’. Seus dois exparceiros ficaram lá, limparam as terras e pagaram os terceirizados”. * * * Em Nova Iorque, a situação continuava a se deteriorar. Em nossa reunião seguinte, nos sentamos para discutir um acordo. Dessa vez, oferecemos tirar Joel e John da jogada, assumir as dívidas e pagar US$ 150 mil a eles, ou eles poderiam ficar com a dívida e nos pagar US$ 75 mil. Devia haver algum embasamento para a disparidade entre esses dois montantes, mas não me lembro mais qual era. Precisávamos de um relatório da situação financeira da Woodstock Ventures para que pudéssemos apresentar nossa posição para os possíveis investidores. Além de Albert Grossman, Artie Ripp tinha achado alguns outros apoiadores em potencial, e parecia possível levantar o dinheiro de que precisávamos. No fim das contas, Artie e eu tivemos de vender nossa parte para Joel e John. O clã Roberts de repente mudou o tom, ameaçando declarar a falência a que tão veementemente se opuseram algumas semanas antes. A essa altura eu já estava farto de discussões, aborrecimentos e ressentimentos. Nossa oferta para pagar as dívidas e assumir as responsabilidades fora sincera. Eu não queria que nossos empregados e terceirizados sofressem as consequências, caso a família Roberts levasse adiante a ameaça de declarar falência. Eu não estava em Woodstock como um negócio, e nunca vi a organização de shows como uma carreira. Tinha vivido meu sonho e ganhado muito com o sucesso dele. Se não vamos conseguir terminar isso bem, pensei, então vamos pelo menos terminar. Então Artie e eu concordamos em deixar a sociedade. A cisão foi noticiada no New York Times, no dia 8 de setembro. Cedemos nossas ações e todos os direitos ao nome Woodstock. Mantive a opção de comprar de volta a propriedade de Tapooz a preço de custo. Embora a Billboard tenha publicado o
artigo que descrevia em detalhes o novo estúdio a ser operado pela Woodstock Ventures, o projeto tinha definhado desde que as coisas implodiram em Wallkill. O acordo de compra determinou US$ 31.750 para cada um de nós dois. Nosso advogado nos fez assinar uma carta, reconhecendo que ele se opunha à nossa aceitação do negócio. JOYCE MITCHELL: Me lembro de ir a uma das reuniões com o advogado; eu
poderia estrangulá-lo agora. Não gostei do fato de que eles estavam comprando a saída de Michael. Achei aquilo errado, mas não acho que ele tivesse escolha. Pouco depois do acordo, a Warner Bros. pagou US$ 1 milhão a Joel e John para comprar a metade da Woodstock Ventures dos direitos do filme, além de uma pequena porcentagem do bruto. Artie e eu nunca teríamos vendido nossa parte, e talvez Weintraub e os demais na Warner se deram conta disso. Artie e eu, mais tarde, desconfiamos que conversas sobre essa compra já estavam acontecendo com o clã Roberts, sem nosso conhecimento, antes de deixarmos a Woodstock Ventures. Quando Woodstock foi lançado, em março de 1970, tornou-se um tremendo sucesso – e levou o festival a pessoas de todo o país e ao redor do mundo. Ganhou um Oscar de melhor documentário e foi indicado em várias outras categorias. Nos primeiros dez anos desde o lançamento do filme, a Warner ganhou mais de US$ 50 milhões com ele. Em 1969, antes do lançamento, a Warner Bros. Pictures era o estúdio menos rentável entre os oito principais de Hollywood. Ao comprar Woodstock, o estúdio fez sua primeira grande jogada em muitos anos. Na première, o presidente da Warner, Steve Ross, veio até mim e disse: “Você e Freddy Weintraub podem fazer qualquer coisa juntos!”. Entre o filme e dois álbuns de trilha sonora, o capital da Warner começou a voar alto. A companhia agora fazia parte do ramo da cultura jovem. Artie e eu nunca vimos um centavo dos lucros do filme ou das trilhas sonoras. ARTIE KORNFELD:
Juntos, nós perdemos provavelmente cerca de US$ 50 milhões, depois de termos sido forçados a sair da sociedade. Embora tenhamos cortado os laços com John e Joel, membros da equipe que continuaram a trabalhar para a Woodstock Ventures me mantiveram por dentro das questões ligadas ao festival. Depois de umas seis semanas desde o nosso rompimento, a cópia de um memorando para John e Joel de nosso agente de
compra, Jim Mitchell, cruzou minha mesa. Era uma resposta a uma proposta de negócios absurda que Joel e John tinham abraçado: uma espécie de Woodstock itinerante, numa turnê por todo o continente africano. Achei isso bem engraçado. Eu tinha seguido em frente, mas Woodstock estaria comigo aonde quer que eu fosse. Eu não precisava de um pacote turístico para isso.
10 de novembro de 1969 PARA: John Roberts Joel Rosenman ASSUNTO: turnê na África Sinto que, no momento, devemos cancelar, pelo menos temporariamente, a turnê na África proposta. Algumas das razões para isso são: 1. Falta de fundos 2. Falta de artistas 3. Falta de informações a respeito dos possíveis lucros ou prejuízos financeiros de tal turnê 4. Falta de qualquer razão real para que essa turnê deva acontecer 5. Nenhuma informação concreta a respeito de como a mecânica de tal turnê seria operada 6. Falta de pessoal qualificado Sinto que uma turnê desse tipo é um veículo válido para espalhar a fama de Woodstock. Porém, neste caso em particular, há pontas soltas demais. Penso que, se formos fazer uma turnê na África, não deve ser apenas algo único, mas sim parte de um plano maior e mais abrangente. No presente momento, tal plano não existe. Antes de nos comprometermos seriamente com qualquer turnê, especialmente numa área tão desconhecida como a África, sugiro que mandemos um de nossos próprios agentes com o sr. Gibson para examinar minuciosamente a situação. Obrigado. James C. Mitchell
EPÍLOGO
Dois meses se passaram desde Woodstock. É um daqueles dias de outubro tipicamente ensolarados em Los Angeles, e estou dirigindo meu carro alugado pela Sunset Strip. Vim de Nova Iorque para uma reunião na Columbia Pictures a respeito de uma ideia para um filme. A Rolling Stone, com a manchete “WOODSTOCK 450.000”, chegou às bancas de jornal junto com a edição especial da revista Life sobre Woodstock. Dentro de alguns meses, o filme e o álbum da trilha sonora do festival serão lançados. Percebo que o motorista de um conversível azul, na faixa ao lado da minha, está reduzindo a velocidade e acenando. Reconheço o cabelo claro, as longas costeletas e o rosto bem desenhado. É Stephen Stills. “Ei, cara, não acredito que te encontrei”, berra ele. “Me segue até a minha casa. Tenho algo que você precisa ouvir.” “Claro”, digo, curioso, e o sigo pela via movimentada. Não via Stills desde que ele foi embora de Woodstock de helicóptero, na manhã da segunda-feira de 18 de agosto. Viramos à direita na Laurel Canyon e subimos pela colina até chegarmos numa garagem escondida atrás de um portão de segurança. Estaciono ao lado de uma Mercedes 600 com o capô levantado e sigo Stills escada abaixo até uma sala de música no porão, com amplificadores e microfones montados. Dallas Taylor está mexendo numa bateria quando entramos, e Stills diz a ele: “Vamos tocar a música pro Michael”. Ele se senta diante de um órgão Hammond B-3, começa a tocar, e se aproxima do microfone: I came upon a child of God He was walking along the road And I asked him, Tell me where you are going
And this he told me He said, I’m going down to Yasgur’s farm Gonna join in a rock ‘n’ roll band I’m going to camp out on the land And get my soul free We are stardust We are golden And we’ve got to get ourselves Back to the Garden...1 Stills percebe a minha expressão atônita e abre um grande sorriso. “Logo depois que fomos embora do festival”, explica, “fomos ver Joni Mitchell no set do The Dick Cavett Show. Nós a deixamos para trás quando voamos para Bethel – [David] Geffen não achou que ela conseguiria voltar a tempo de fazer o programa de TV. Ela assistiu à cobertura do festival pela televisão, escreveu essa música no apartamento de Geffen, em Nova Iorque, e nos deu a fita naquela noite. Acabamos de gravar para o nosso próximo álbum.” Fiquei completamente maravilhado. A sensação de ouvir a música pela primeira vez, daquele jeito, permanece comigo até hoje. * * * Algumas semanas depois do festival, pessoas começaram a ligar com propostas de negócios. Eu estava agora na posição de me tornar um promoter de nível nacional. Mas organizar shows ou turnês comuns tinha pouco apelo para mim, e eu não estava atrás desse tipo de trabalho. Depois da experiência com Woodstock, sentia que a maior parte das situações da indústria musical pareciam mundanas. E, embora eu estivesse quase quebrado financeiramente, ainda estava explorando e tentando compreender quem eu era e para onde eu realmente queria ir. Entretanto, em dezembro, recebi um telefonema da organização dos Rolling Stones. Sam Cutler2 queria auxílio com o planejamento de última hora de um show no norte da Califórnia. Os Stones estavam perdendo o autódromo de Sears Point há apenas dias do show gratuito, marcado para 6 de dezembro, e queriam saber se eu poderia ir até lá ajudar. Era um desastre anunciado, mas concordei em dar qualquer assistência que eu pudesse. A banda e sua equipe abordaram o
show com boas intenções, mas quase sem planejamento ou infraestrutura. O local mudou para o autódromo de Altamont. Aquele dia em Altamont foi uma das piores experiências da minha vida. Pude verdadeiramente ver o lado negro da cultura das drogas. Gente chapada de todo o tipo de mistura exótica simplesmente vagava pela multidão. Houve espancamentos ao longo de todo o dia, até bem na frente do palco, e não havia quem os parasse. Os Hells Angels, que estavam lá para defender o palco e proteger suas motos estacionadas perto dele, provinham a única segurança. Eles espancaram não só os membros do público que tiveram a má sorte de serem empurrados contra as motos dos Angels, como também músicos como Marty Balin, do Jefferson Airplane, que tentou intervir. Um membro do público, Meredith Hunter, estava lá com a namorada e entrou num entrevero durante à tarde. Ele saiu e, mais tarde, retornou com uma arma. Ao sacá-la, foi esfaqueado até a morte por um Angel. O assassinato de Hunter foi registrado em filme pelos irmãos Maysles em seu documentário sobre Altamont, Gimme Shelter. Apenas quatro meses depois de Woodstock, havia quem dissesse que Altamont marcou o fim de uma era. Eu não vi dessa forma. O que aconteceu em Altamont foi terrível e mostrou o quão lamentáveis as coisas podem se tornar sem antecipação e devido preparo. Aquele deveria ter sido um grande dia de música para a região de São Francisco. Para mim, o fim chegou cinco meses depois, quando quatro estudantes foram mortos a tiros, e outros nove feridos, por membros da Guarda Nacional na Kent State University, em Ohio. A imagem de jovens americanos desarmados caindo baleados num campus universitário, com disparos de outros jovens americanos uniformizados, nos aproximou do quanto a situação estava fora de controle durante o governo Nixon. A reação imediata de Neil Young, a canção “Ohio”, que Crosby, Stills, Nash & Young gravaram em questão de dias, demonstrou mais uma vez como a música era capaz de refletir sobre os acontecimentos do nosso tempo e ajudar a apontar o caminho para reverter as coisas. * * * Em 1970, Artie e eu formamos uma sociedade e tentamos construir um novo tipo de negócio de entretenimento. Não durou muito. Embora eu adorasse Artie e Linda, fazer negócios juntos simplesmente não funcionou. Separamo-nos em
menos de um ano para cada um seguir seu próprio caminho. Éramos amigos tão próximos, que romper a relação profissional nos afetou profundamente num nível pessoal. Artie se sentiu como se eu o estivesse abandonando, e eu sentia que não podia continuar. Isso abalou nossa relação por anos. No início dos anos 1970, depois de recusar uma oferta dos executivos da Gulf+ Western para capitanear a Paramount Records, concordei em pegar um contrato de produção, que depois se tornou o selo Just Sunshine. Fiz álbuns com gente de cuja música eu gostava: um então desconhecido Billy Joel, a cantora e compositora Karen Dalton, a cantora de R&B Betty Davis, o bluesman Mississippi Fred McDowell, e o grupo gospel Voices of East Harlem, para citar apenas alguns. Assim como a organização de shows, gerenciar artistas não me atraía, mas eu agenciava Billy Joel de forma provisória, enquanto procurávamos por alguém para trabalhar com ele em tempo integral. Certo dia, Billy e eu estávamos a caminho do aeroporto e “You Are So Beautiful”, de Joe Cocker, começou a tocar no rádio do carro. Billy olhou para mim e disse: “Sabe, não importa quantas vezes tentem botar esse cara pra baixo, ele sempre parece se levantar de novo”. Reencontrei-me com Joe Cocker em 1976. Eu sabia que ele tinha destruído a carreira ao fazer shows desastrosos demais, bêbado demais para ficar de pé. Ainda assim, fiquei chocado com sua condição física e quase incoerência. Ao me lembrar das palavras de Billy, concordei em trabalhar com ele temporariamente para tentar reestabelecer sua saúde e sua reputação. Essa associação durou dezesseis anos. Durante esse tempo, o ajudei a controlar seu alcoolismo, retomar o foco em seu talento incrível e reestabelecer-se como um grande astro na Europa e ao redor do mundo (num momento à la Spinal Tap, em 1991, nos separaríamos). Enquanto gerenciava as carreiras de Joe e também de Rickie Lee Jones, em 1987 produzi um festival com o promoter Peter Riger, da Alemanha Ocidental, para 250 mil jovens alemães do outro lado do muro, na Berlim Oriental. Com Joe como headliner, incluímos bandas das Alemanhas Oriental e Ocidental e da Rússia. Em seguida, fizemos outro show ao ar livre para 100 mil jovens, em Dresden. Fomos os primeiros ocidentais a tocar em Dresden desde a Segunda Guerra Mundial. Esses shows conduziriam a um evento dos vinte anos de Woodstock, em 1989. Eu esperava que acontecesse em ambos os lados do Muro de Berlim. Pensei que o espírito de Woodstock pudesse criar uma ponte entre o Oriente e o Ocidente.
Depois de dois anos inacreditáveis de reuniões e dezenas de interlúdios “capa e espada” na Alemanha Oriental, finalmente obtive a aprovação implícita do governo Honecker para prosseguir. Mas, no final das contas, o projeto foi bombardeado pela Warner Bros. e pelo Partido Comunista em Moscou. Estranhos parceiros. Por coincidência, no dia da queda do muro, em 1989, eu estava de volta a Berlim numa turnê de Joe Cocker. Com o prefeito, organizamos um show/celebração espontâneo, contando com bandas de ambos os lados. Com milhões de pessoas nas ruas de Berlim e mais “atravessando” o muro, foi uma experiência incrível estar em meio à história acontecendo. Embora por anos eu apostasse no contrário, haveria dois festivais que celebrariam o aniversário de Woodstock: em 1994, o vigésimo quinto aniversário, e em 1999, o trigésimo. John Roberts e eu sempre conseguimos nos manter em contato, e no final dos anos 1980 começamos a conversar sobre Woodstock novamente. Enfim, ele, Joel e eu nos encontramos para discutir o vigésimo quinto aniversário. No inverno de 1994, consegui garantir a fazenda Winston, de 320 hectares, as terras da família Schaller, perto de Saugerties, onde originalmente queríamos que Woodstock acontecesse. Com três quartos da Woodstock Ventures reunidos, eu trouxe John Scher (então presidente da PolyGram) à baila e juntos produzimos o que todos sentimos ter sido um ótimo festival para 350 mil jovens muito felizes e, em muitos casos, seus pais. Artie, cuja esposa, Linda, morrera tragicamente, em 1988, veio da Flórida para compartilhar o fim de semana de 12, 13 e 14 de agosto conosco. Muitos dos artistas que se apresentaram no Woodstock original retornaram, entre eles Santana; Joe Cocker; e Crosby, Stills & Nash, bem como novos nomes, como Sheryl Crow; Green Day (cujo empresário fizera parte do Sha Na Na em 1969); Porno for Pyros (cujo líder, Perry Farrell, fundou o Lollapalooza, uma espécie de Woodstock itinerante); Red Hot Chili Peppers; e Metallica. A imprensa criticou nosso patrocínio por uma grande corporação (a Pepsi), mas isso tinha se tornado parte do ramo dos shows – até mesmo para Woodstock. E a maioria das pessoas que veio não se importava. As realidades dos custos do festival (mais de US$ 30 milhões) significavam que o preço dos ingressos para o fim de semana seria substancialmente mais alto sem os patrocinadores. Embora esse não fosse o meu cenário ideal, para mim estava tudo bem, contanto que não comprometesse nossos planos. No verdadeiro estilo de Woodstock, o espírito comunal viveu, choveu feito o
inferno, o Povo da Lama era abundante e o Woodstock ’94 rendeu dinheiro para todo mundo, menos para nós. Cinco anos depois, entre os dias 23 e 25 de julho, o Woodstock ’99 aconteceu na base Griffiss da Força Aérea, no Vale de Mohawk, no estado de Nova Iorque, perto da cidade de Rome. John Scher (agora na Ogden), Ossie Killkenny e eu produzimos o festival, com a Woodstock Ventures servindo como licenciante. Queríamos voltar à bucólica fazenda Winston, mas o equilíbrio político na câmara municipal de Saugerties tinha mudado e eles não conseguiram tomar uma decisão para nos dar o sinal verde. A base Griffiss era adequada caso chovesse, e a logística era fantástica: centenas de estruturas para alojar nossas equipes; centenas de hectares para estacionamento, camping e performances; e fácil acesso ao local. Mais uma vez, eu quis uma mistura de artistas clássicos, jam bands e o lado menos extremo da música pesada daquele momento. Contra meus instintos, segui o consenso e então o line-up, um amálgama incrível dos maiores artistas da época, foi mais dark e agressivo do que eu gostaria. Em dado momento durante o planejamento, conversei com Prince sobre um tributo a Hendrix, e ele me perguntou: “Por que vocês vão ter todas essas bandas horríveis?”. Eu não tinha uma resposta satisfatória. Durante os shows de bandas como Limp Bizkit, Korn e Rage Against the Machine, o mosh pit era uma visão assustadora. Os moshes ficaram muito agressivos, e nós ficamos horrorizados ao descobrir, mais tarde, que foram reportados incidentes de mulheres que foram molestadas. Fez um calor brutal, sem chuva para aliviar, e embora houvesse água de graça de sobra nas torneiras, os estandes terceirizados vendiam garrafas a US$ 4, como se fosse no Yankee Stadium. Quando fiquei sabendo dos preços, tentei fazer com que os terceirizados os reduzissem para algo razoável, mas me disseram que era tarde demais. Para equilibrar isso, encomendei vários trailers para distribuir água de graça ao redor do local. Embora a grande maioria dos jovens tenha se divertido, o festival se tornou algo mais próximo de uma enorme festa de spring break da MTV do que um Woodstock. Às 19 horas da última noite, o prefeito de Rome e várias autoridades do condado e do estado realizaram uma coletiva de imprensa para nos parabenizar pelo excelente fim de semana e para nos convidar a voltar. Algumas horas depois, enquanto o festival encerrava com os Chili Peppers tocando um cover de “Fire”, de Hendrix (que tinha sido tão poderosa em 1969), alguns dos garotos mais ao fundo do público começaram a acender fogueiras. Logo, um grupo de cerca de cinquenta valentões idiotas, dispostos a provocar a multidão, decidiu atear fogo
numa fila de furgões de suprimentos; depois, passaram pelos estandes, “liberando” o que pudessem. Quando o tumulto cresceu e passou a envolver várias centenas de pessoas, a polícia chegou em massa. Garotos corriam para todo o lado, principalmente para sair do caminho. Entrei com dificuldade no meio daquilo tudo para ter certeza de que a polícia não estava reagindo com exagero. Para crédito dos policiais, eles demonstraram grande contenção em meio à desordem. Em retrospecto, me dei conta de que fracassei em prestar atenção à lição que eu tinha aprendido tão claramente em 1969 e tantas vezes desde então: confiar nos meus instintos. * * * Nos anos que se passaram desde Woodstock, organizei muitos eventos nos EUA e no exterior, e busquei interesses na música, no cinema e nas artes. Ao longo do caminho, produzi um curta-metragem de Wes Anderson chamado Bottle Rocket, que apresentou Wes e os atores Luke e Owen Wilson ao mundo. Numa viagem a Moscou para trabalhar com o Museu do Kremlin, adquiri os direitos cinematográficos do clássico da literatura russa O mestre e a margarida, de Mikhail Bulgakov. O filme ainda se encontra em desenvolvimento. Pelos últimos quarenta anos3, Woodstock tem sido o elefante na sala em minha vida. Para manter a proporção, tornei a sala muito maior. Está cheia de familiares e amigos e aventuras vividas e ainda por vir. Muitos dos artistas de Woodstock relembram do festival de 1969 como um ponto de virada para todos nós. Como disse Carlos Santana mais recentemente, “em Woodstock, vi uma aventura coletiva representando algo que ainda se mostra verdadeiro hoje. Quando o Muro de Berlim caiu, Woodstock estava lá. Quando Mandela foi libertado, Woodstock estava lá. Quando celebramos o ano 2000, Woodstock estava lá. Woodstock ainda existe todos os dias”. John Lennon disse certa vez: “Não é muita gente que percebe todo o bem que surgiu dos últimos dez anos. Woodstock é a maior massa de pessoas já reunidas para alguma coisa que não seja a guerra. Ninguém teve um exército daquele tamanho sem matar alguém ou sem algum tipo de cenário violento, como os romanos ou qualquer coisa assim, e até mesmo um show dos Beatles era mais violento do que aquilo”. E o falecido Abbie Hoffman nunca desistiu da comunidade que encontrou e
da qual fez parte naquele fim de semana em White Lake e que o inspirou a escrever o livro Woodstock Nation. Pouco antes de sua morte, em 1989, ele disse: “Daquele senso de comunidade, daquela visão, daquela visão utópica vem a energia para sairmos lá fora e de fato participarmos do processo, de modo que a mudança social ocorra”. Em 1994, o crítico cultural Greil Marcus descreveu a interpretação de Jimi Hendrix do nosso hino nacional como “seu grande NÃO para a guerra, para o racismo, para qualquer coisa que você ou ele pudesse imaginar e quisesse que sumisse. Mas então aquela discordância se despedaçou, e por mais de 4 complexos minutos e meio, Hendrix buscou cada fissura invisível num vaso que já fora inteiro, sentindo e explorando e testando a si mesmo e sua música contra a angústia, a fúria, o medo, o ódio, o amor oferecido e o amor recusado. Quando terminou, tinha criado um hino que nunca pôde ser resumido e que nunca descansaria. No final, foi um grande SIM, tanto uma ameaça quanto um aceno, um convite aos EUA para se equiparar a seus perigos, seu glamour e à sua liberdade”. Durante uma época de grandes desafios nos EUA, uma comunidade surgiu a partir de Woodstock. Originando-se de valores e aspirações similares, um senso de possibilidade e esperança nasceu e se espalhou ao redor do globo. Demorou quarenta anos para ver algumas das mudanças que foram primeiro vislumbradas durante aqueles três dias de agosto. O espírito abraçado em Woodstock continua a crescer. É possível vê-lo nos muitos movimentos ambientais, em organizações populares, como a MoveOn, e naquilo que alguns estudiosos chamaram de um momento Woodstock, a eleição de nosso primeiro presidente afro-americano. Ao refundir o hino nacional naquele dia, na lama, Jimi Hendrix deu voz a um futuro onde um Barack Obama poderia trazer mudança aos EUA e esperança ao mundo. Quarenta anos depois disso, o Wall Street Journal se referiria à posse de Obama como o “Woodstock de Washington”. Vivenciando a alegria na união de milhões que celebravam em Washington, um blogueiro chamado Brian Hassett colocou da seguinte forma: “Enquanto aquilo acontecia, cada uma das pessoas que eu encontrava estava radiante de alegria. Em termos de euforia em massa, a única coisa da qual já ouvi falar que foi próxima disso foi Woodstock, em 1969. Aquilo mudou muito nosso país, mas, desta vez, Woodstock está sentado no poder. O ‘Star-Spangled Banner’ de Jimi foi o prelúdio, e meros quarenta anos depois, aqui está aquele espírito avassalador de um pensamento novo que está de fato tomando as rédeas do governo”.
No dia seguinte à posse, uma coluna de Gail Collins, “Woodstock sem a lama”, saiu no New York Times. “Tendo a sorte de estar presente em dois dos eventos mais memoráveis da história americana moderna”, escreveu ela, “sou capaz de relatar que a cerimônia de posse em Washington foi muito parecida com um Woodstock no tempo frio. Em ambos, havia um senso maravilhoso de comunidade.” No final de 1969, Jimi Hendrix escreveu um poema celebrando Woodstock, dizendo em palavras aquilo que sua música tinha dito em agosto: “Quinhentas mil auréolas brilharam mais do que a lama e a história. Nós nos banhamos e bebemos das lágrimas de alegria de Deus. E, desta vez, e para todo mundo, a verdade não era ainda um mistério”. As palavras de Jimi – e o espírito de Woodstock – reverberam até mesmo agora.
1. “Deparei-me com um filho de Deus / Ele caminhava pela estrada / E perguntei a ele, Diga-me para onde você está indo / E isso foi o que ele me disse / Ele disse, Estou indo para a fazenda de Yasgur / Vou entrar para uma banda de rock ‘n’ roll / Vou acampar na terra / E tornar meu espírito livre / Somos poeira de estrelas / Somos de ouro / E temos de nos conduzir / De volta ao jardim...”. 2. O road manager dos Stones na época. (N. do T.) 3. O livro foi escrito em 2009.
AGRADECIMENTOS
Quando fui convidado a escrever este livro, pensei nas muitas outras histórias que já foram escritas sobre aquele fim de semana em agosto de 1969. Algumas foram engraçadas, outras cínicas, mas todas foram contadas por pessoas que, na melhor das hipóteses, só sabiam parte da história e, na pior, a inventaram à medida que contavam. Há um velho ditado que diz que, se você se lembra dos anos 1960, você não estava lá de verdade. Trabalhar com Holly e fazer as primeiras entrevistas para este livro me convenceu de que eu estava. Exceto pelas histórias que eu vinha contando ao longo dos anos, minha memória daqueles tempos permanecia vaga. Comecei a buscar um modo de reacessar aquela parte da minha vida. Meu amigo Steve enfim sugeriu que, se esta seria a minha voz, que eu começasse escrevendo de fato. Uma proposição desafiadora, mas na qual mergulhei. Com o ato físico de escrever, as portas se abriram amplamente, deixando entrar uma inundação de rostos e lugares, visões e cheiros, e eu fui imerso na aventura desde o início novamente. O alívio foi grande, mas me dei conta de que muito do que aconteceu em Woodstock, e nos meses que o precederam, foi o resultado da minha própria jornada interior. Isso geralmente é, para mim, algo difícil de revelar, mas agora compreendo que é necessário, se as pessoas que estão lendo isto compreenderem por que as coisas aconteceram como aconteceram. Holly e eu achamos nosso groove, e espero que tenhamos sido bemsucedidos. Obrigado a todos que ajudaram neste trabalho. A todas as pessoas que concederam entrevistas e contribuíram com suas lembranças e percepções: Ticia Bernuth Agri, Paula Batson, Dale Bell, Lee Mackler Blumer, Iris Brest, Stu
Cook, David Crosby, Alan Douglas, Rona Elliot, Jane Friedman, Susan e Dick Goldman, Stan Goldstein, Jonathan Gould, Wavy Gravy, Don Keider, Rob Kennedy, Artie Kornfeld, Eddie Kramer, Lisa Law, Tom Law, Mel Lawrence, Gilles Malkine, Jocko Marcellino, Peter Max, Joyce Mitchell, Chip Monck, Graham Nash, Ric O’Barry, Christine Oliveira, Roz Payne, Artie Ripp, Gregg Rolie, Marsha Rubin, Carlos Santana, Michael Shrieve, Penny Stallings, Stephen Stills, Parry Teasdale, Bill Ward, Robert Warren e Jeremy Wilber. Obrigado a Joel Makower por sua generosidade ao ceder-nos suas entrevistas com aqueles que não estão mais entre nós. Um agradecimento especial a Steven Saporta, cujos conselhos e cujas orientações me ajudaram a achar o caminho quando eu estava buscando um meio de contar esta história. Obrigado a Dan Halpern, da Ecco, cujo entusiasmo me convenceu de que esta era uma história que valia a pena ser contada; a Abigail Holstein, que manteve o livro nos eixos; a Suet Yee Chong, pelo design gráfico do livro; e a Katharine Baker, por sua expertise. A Sarah Lazin, por suas análises calmas e seu enorme conhecimento do ramo: “Só dê um passo de cada vez e você chegará lá”. Obrigado a Lee Blumer e Penny Stallings por suas histórias e seu incentivo. E, especialmente, a Holly George-Warren, por sua dedicação e seu humor, sem os quais nós ainda não teríamos terminado de escrever. A Linda Kornfeld, cujo amor e apoio tiveram muito a ver com o porquê de Artie e eu termos seguido em frente. A John Roberts, que nos deixou cedo demais e cujo caráter continua a me dar algo ao qual aspirar. A Tamara, Harry e Laszlo, por aguentarem as altas horas da noite e as primeiras horas da manhã de “Só preciso terminar esta página”. Um grande obrigado aos fotógrafos, que capturaram tantos momentos especiais e compreenderam que a mágica real estava nas pessoas. A Henry Diltz, que se tornou um membro do time; a Jim Marshall; Lee Marshall; Ken Regan e Baron Wolman; e a Ken Davidoff e Eddie Kramer pelo Miami Pop. Obrigado, ainda, a outros que ajudaram: nossa transcritora Judy Whitfield; Damien Tavis Toman; Nicole Goldstein; KellyAnn Kwiatek; Bob Merlis; Bill Rush; Andy Zax; Charles Cross; e ao Times Herald-Record, de Middletown. E, por fim, a todas as pessoas que trabalharam, se apresentaram, foram e resistiram – e mudaram nossa vida para sempre. ML Woodstock, Nova Iorque Março de 2009
DIA UM: SEXTA-FEIRA, 15 DE AGOSTO
RICHIE HAVENS “From the Prison” > “Get Together” > “From the Prison” “I’m a Stranger Here” “High Flying Bird” “I Can’t Make It Anymore” “With a Little Help From My Friends” “Handsome Johnny” “Strawberry Fields Forever” “Freedom (Motherless Child)” e encerramento SWEETWATER “Motherless Child” “Look Out” “For Pete’s Sake” “What’s Wrong” “Crystal Spider” “Two Worlds” “Why Oh Why” “Let the Sunshine In” “Oh Happy Day” “Day Song” BERT SOMMER “Jennifer” “The Road to Travel”
“I Wondered Where You’d Be” “She’s Gone” “Things Are Going My Way” “And When It’s Over” “Jeanette” “America” “A Note That Read” “Smile” TIM HARDIN “How Can We Hang on to a Dream” “Susan” “If I Were a Carpenter” “Reason to Believe” “You Upset the Grace of Living When You Lie” “Speak Like a Child” “Snow White Lady” “Blue on the Ceiling” “Simple Song of Freedom” “Misty Roses” RAVI SHANKAR “Raga Puriya-Danashri / Gat in Sawaritai” Fala de Ravi Solo de tabla em Jhaptal Fala de Ravi “Raga Manj Kmahaj” MELANIE “Close to It All” “Momma Momma” “Beautiful People” “Animal Crackers” “Mr. Tambourine Man” “Tuning My Guitar” “Birthday of the Sun”
ARLO GUTHRIE “Coming Into Los Angeles” “Wheel of Fortune” “Walking Down the Line” Discurso de Arlo: Exodus “Oh Mary, Don’t You Weep” “Every Hand in the Land” “Amazing Grace” JOAN BAEZ “Oh Happy Day” “Last Thing on My Mind” “Joe Hill” “Sweet Sir Galahad” “Hickory Wind” “Drug Store Truck Drivin’ Man” “One Day at a Time” “Why Was I Tempted to Roam” “Warm and Tender Love” “Swing Low, Sweet Chariot” “We Shall Overcome”
DIA DOIS: SÁBADO, 16 DE AGOSTO
QUILL “They Live the Life” “That’s How I Eat” “Driftin’”
“Waiting for You” COUNTRY JOE MCDONALD “Janis” “Donovan’s Reef” “Heartaches by the Number” “Ring of Fire” “Tennessee Stud” “Rocking All Over the World” “Flying All the Way” “Seen a Rocket” “Fish Cheer” / “I Feel Like I’m Fixin’ to Die Rag” (bis) SANTANA “Waiting” “Evil Ways” “You Just Don’t Care” “Savor” “Jingo” “Persuasion” “Soul Sacrifice” “Fried Neckbones” JOHN SEBASTIAN “How Have You Been” “Rainbows All Over Your Blues” “I Had a Dream” “Darlin’ Be Home Soon” “Younger Generation” KEEF HARTLEY BAND “Spanish Fly” “She’s Gone” “Too Much Thinkin’” “Believe in You” Halfbreed Medley: “Sinnin’ for You” (intro) / “Leaving Trunk” / “Just to Cry” /
“Sinnin’ for You” INCREDIBLE STRING BAND “Invocation (spoken word)” “The Letter” “Gather ‘Round” “This Moment” “Come With Me” “When You Find Out Who You Are” CANNED HEAT “I’m Her Man” “Going Up the Country” “A Change Is Gonna Come” / “Leaving This Town” (“I Know My Baby”?) “Woodstock Boogie” “On the Road Again” MOUNTAIN “Blood of the Sun” “Stormy Monday” “Theme from an Imaginary Western” “Long Red” “For Yasgur’s Farm” “Beside the Sea” “Waiting to Take You Away” “Dreams of Milk and Honey” “Southbound Train” GRATEFUL DEAD “Saint Stephen” “Mama Tried” “Dark Star” “High Time” “Turn on Your Lovelight”
CREEDENCE CLEARWATER REVIVAL “Born on the Bayou” “Green River” “Ninety-Nine and a Half” “Bootleg” “Commotion” “Bad Moon Rising” “Proud Mary” “I Put a Spell on You” “Night Time Is the Right Time” “Keep on Chooglin’” “Suzie Q” JANIS JOPLIN “Raise Your Hand” “As Good as You’ve Been to This World” “To Love Somebody” “Summertime” “Try (Just a Little Bit Harder)” “Cosmic Blues” “I Can’t Turn You Loose” (com participação de Snooky Flowers) “Work Me Lord” “Piece of My Heart” “Ball and Chain” SLY AND THE FAMILY STONE “M’Lady” “Sing a Simple Song” “You Can Make It If You Try” “Everyday People” “Dance to the Music” “Music Lover” “I Want to Take You Higher” “Love City” “Stand”
THE WHO “Heaven and Hell” “I Can’t Explain” “It’s a Boy” “1921” “Amazing Journey” “Sparks” “Eyesight to the Blind” “Christmas” “Tommy Can You Hear Me?” “Acid Queen” “Pinball Wizard” “Do You Think It’s Alright” “Fiddle About” “There’s a Doctor I’ve Found” “Go to the Mirror Boy” “Smash the Mirror” “I’m Free” “Tommy’s Holiday Camp” “We’re Not Gonna Take It” “See Me, Feel Me” “Listening to You” “Summertime Blues” “Shakin’ All Over” “My Generation” “Naked Eye” JEFFERSON AIRPLANE “The Other Side of This Life” “Somebody to Love” “3/5ths of a Mile in 10 Seconds” “Won’t You Try” / “Saturday Afternoon” “Eskimo Blue Day” “Plastic Fantastic Lover” “Wooden Ships” “Uncle Sam’s Blues” “Volunteers”
“The Ballad of You and Me and Pooneil” “Come Back Baby” “White Rabbit” “The House at Pooneil Corners”
DIA TRÊS: DOMINGO, 17 DE AGOSTO
THE GREASE BAND (SEM JOE COCKER) Jam “40,000 Headmen” JOE COCKER AND THE GREASE BAND “Dear Landlord” “Something’s Coming On” “Do I Still Figure in Your Life” “Feelin’ Alright” “Just Like a Woman” “Let’s Go Get Stoned” “I Don’t Need No Doctor” “I Shall Be Released” “Hitchcock Railway” “Something to Say” “With a Little Help from My Friends” COUNTRY JOE & THE FISH “Rock and Soul Music” “Love” “Not So Sweet Martha Lorraine”
“Sing Sing Sing” “Summer Dresses” “Friend, Lover, Woman, Wife” “Silver and Gold” “Maria” “The Love Machine” “Ever Since You Told Me That You Love Me (I’m a Nut)” Jam curta “Crystal Blues” “Rock and Soul Music” (bis) “The Fish Cheer” “I Feel Like I’m Fixin’ to Die Rag” TEN YEARS AFTER “Spoonful” “Good Morning, Little Schoolgirl” “Hobbit” “I Just Can’t Keep from Crying Sometimes” “Help Me” “I’m Goin’ Home” THE BAND “Chest Fever” “Don’t Do It” “Tears of Rage” “We Can Talk About It Now” “Long Black Veil” “Don’t You Tell Henry” “Ain’t No More Cane” “This Wheel’s On Fire” “I Shall Be Released” “The Weight” “Loving You Is Sweeter Than Ever” JOHNNY WINTER “Talk to Your Daughter” / “Six Feet in the Ground”
“Leland Mississippi Blues” “Mean Town Blues” “Mean Mistreater” “I Can’t Stand It” “Tobacco Road” “Tell the Truth” “Johnny B. Goode” BLOOD, SWEAT AND TEARS “More and More” “Just One Smile” “Something’s Coming On” “More Than You’ll Ever Know” “Spinning Wheel” “Sometimes in Winter” “Smiling Phases” “God Bless the Child” “And When I Die” “You’ve Made Me So Very Happy” CROSBY, STILLS, NASH & YOUNG “Suite: Judy Blue Eyes” “Blackbird” “Helplessly Hoping” “Guinnevere” “Marrakesh Express” “Four and Twenty” “Mr. Soul” “I’m Wonderin’” “You Don’t Have to Cry” “Pre-Road Downs” “Long Time Gone” “Bluebird Revisited” “Sea of Madness” “Wooden Ships” “Find the Cost of Freedom”
“49 Bye-Byes” PAUL BUTTERFIELD BLUES BAND “Born Under a Bad Sign” “No Amount of Loving” “Driftin’ and Driftin’” “Morning Sunrise” “All in a Day” “Love March” “Everything’s Gonna Be Alright” SHA NA NA “Get a Job” “Come Go with Me” “Silhouettes” “Teen Angel” “Her Latest Flame” “Wipeout” “Who Wrote the Book of Love” “Little Darling” “At the Hop” “Duke of Earl” “Get a Job” (bis) JIMI HENDRIX “Message to Love” “Hear My Train a Comin’” “Spanish Castle Magic” “Red House” “Mastermind” “Lover Man” “Foxey Lady” “Jam Back at the House” “Izabella” “Gypsy Woman” “Fire”
“Voodoo Child (Slight Return)” “The Star-Spangled Banner” “Purple Haze” “Woodstock Improvisation” “Villanova Junction” “Hey Joe”
FONTES
Michael Lang foi a principal fonte de informação de A estrada para Woodstock. Todas as fontes complementares de citações específicas estão listadas abaixo, em ordem cronológica, dentro de cada capítulo em que o material foi usado. (As fontes estão abreviadas depois da primeira menção.) 2. O GROVE Entrevista de Holly George-Warren [HGW] com Don Keider [DK]; entrevista de HGW com Stan Goldstein [SG]; Abbie Hoffman [AH] entrevistado por Joel Makower para seu livro Woodstock: The Oral History (Nova Iorque: Doubleday, 1989) ©Joel Makower, todos os direitos reservados para esta e todas as atribuições a Makower; entrevista de Henry Llach com Ric O’Barry; “Flower Children Strangely Mannerly: Reporter Rubs Elbows with Weirdos”, Fort Lauderdale News, 19 de maio de 1968; Mitch Mitchell, www.rockprophecy.com; Noel Redding e Carol Appleby, Are You Experienced?: The Inside Story of the Jimi Hendrix Experience (Nova Iorque: Da Capo, 1996); Eddie Kramer, www.rockprophecy.com. 3. WOODSTOCK, NOVA IORQUE Alf Evers, Woodstock: History of an American Town (Woodstock, Nova Iorque: Overlook Press, 1987); Robert Shelton, No Direction Home: The Life and Music of Bob Dylan (Nova Iorque: Beech Tree Books, 1986); entrevista de HGW com Jeremy Wilber; entrevista de HGW com Gilles Malkine [GM]; Barney
Hoskyns, Across the Great Divide: The Band and America (Nova Iorque: Hyperion, 1993); Sid Griffin, Million Dollar Bash: Bob Dylan, the Band, and the Basement Tapes (Londres: Jawbone, 2007); entrevista de HGW com DK; entrevista de HGW com Artie Kornfeld [AK]; entrevista de Joel Makower com AK; Joel Rosenman, John Roberts e Robert Pilpel, Young Men with Unlimited Capital [YMWUC] (Nova Iorque: Harcourt Brace Jovanovich, 1974); entrevista de Joel Makower com Joel Rosenman. 4. WALLKILL “Woodstock Studios Set”, revista Billboard, 5 de julho de 1969; entrevista de HGW com SG; entrevista de HGW com Mel Lawrence [ML]; entrevista de HGW com Chip Monck [CM]; entrevista de Joel Makower com Chris Langhart; entrevista de HGW com Joyce Mitchell; YMWUC; entrevista de HGW com Penny Stallings [PS]; entrevista de HGW com Bill Ward [BW]; entrevista de HGW com Ticia Bernuth Agri [TBA]; entrevista de Joel Makower com Wes Pomeroy [WP]. 5. CIDADE DE NOVA IORQUE Entrevista de HGW com ML; entrevista de HGW com Joyce Mitchell; entrevista de Joel Makower com John Morris; entrevista de HGW com Lee Mackler Blumer [LMB]; entrevista de HGW com Jane Friedman [JF]. 6. CENTRO DA CIDADE Entrevista de Joel Makower com AH; entrevista de HGW com Roz Payne [RP]; entrevista de HGW com TBA; “Public Notice and Statement of Intent”, Times Herald-Record [THR], 19 de junho de 1969; entrevista de HGW com LMB; entrevista de HGW com JF; entrevista de HGW com SG; entrevista de HGW com Hugh Romney [HR]; “Woodstock: Mud, Music, & Magic”, reportagem pela equipe do Record, escrita por Mark Pittman com Stephen Israel, publicação especial do Times Herald-Record [THRsp], 12 de agosto de 1989; entrevista de HGW com AK; “Editorial”, THR, 27 de junho de 1969, usado sob permissão. 7. A FAZENDA DE YASGUR “Show Will Go On, Rock Fete Promoters Boast”, THR, 15 de julho de 1969; “Festival Seen Moving to Sullivan”, Kingston Freeman, 19 de julho de
1969; “Aquarian Expo Wins A-OK from Bethel Boards”, THR, 22 de julho de 1969; “Businessmen Throw Weight Behind Exposition”, THR, 31 de julho de 1969; “Rock at Woodstock”, por Jane Stuart, Hackensack, NJ, Record Call, 27 de julho de 1969; “Rock Fete Readies Bethel Site; Few Protest”, THR, 24 de julho de 1969; entrevista de HGW com ML; entrevista de HGW com SG; entrevista de HGW com PS; entrevista de HGW com TBA; entrevista de Joel Makower com Miriam Yasgur [MY]; entrevista de Joel Makower com John Roberts; entrevista de Joel Makower com Joel Rosenman. 8. BETHEL Entrevista de Joel Makower com WP; entrevista de Joel Makower com John Roberts; entrevista de Joel Makower com HR; “Members of the Hog Farm”, New York Post, 7 de agosto de 1969; entrevista de HGW com SG; entrevista de Joel Makower com Lisa Law; “Woodstock... Well, Dylan Likes the Name”, por Al Aronowitz, New York Post, 11 de agosto de 1969; entrevista de HGW com Alan Douglas [AD]; entrevista de HGW com Dale Bell [DB]; Henry Diltz citado em: Jack Curry, Woodstock: The Summer of Our Lives [WSOOL] (Nova Iorque: Weidenfeld and Nicholson, 1989); entrevista de HGW com PS; entrevista de HGW com BW. 9. 13 E 14 DE AGOSTO DE 1969 Entrevista de Joel Makower com WP; entrevista de HGW com LMB; entrevista de HGW com RP; entrevista de HGW com CM; entrevista de HGW com SG; Abbie Hoffman, Woodstock Nation [WN] (Nova Iorque: Vintage Books, 1969); entrevista de HGW com AK; entrevista de HGW com Joyce Mitchell; entrevista de HGW com DB; entrevista de HGW com Parry Teasdale [PT]; entrevista de HGW com Rob Kennedy [RK]; Bill Graham e Robert Greenfield, Bill Graham Presents: My Life Inside Rock and Out [BGP] (Nova Iorque: Doubleday, 1992); “Thousands Rolling In for Woodstock Rock”, Washington Post, 14 de agosto de 1969. 10. 15 de agosto de 1969 Richie Havens com Steve Davidowitz, They Can’t Hide Us Anymore (Nova Iorque: Spike, 1999); entrevista de HGW com CM; entrevista de HGW com Joyce Mitchell; entrevista de Joel Makower com WP; entrevista de HGW com RK; “The Woodstock Festival”, por Greil Marcus, Rolling Stone [RS69], 20 de
setembro de 1969; e-mail de Jonathan Gould para HGW; entrevista de HGW com PS; entrevista de HGW com AK; entrevista de Joel Makower com John Morris; WSOOL; entrevista de HGW com Christine Oliveira [CO]; entrevista de Joel Makower com AH; entrevista de Rona Elliot [RE] com Alex del Zoppo; entrevista de RE com Fred Herrera; Ellen Sander, Trips: Rock Life in the Sixties (Nova Iorque: Charles Scribner’s Sons, 1973); entrevista de HGW com GM; “Rock Time in the Mountains”, por Al Aronowitz, New York Post, 16 de agosto de 1969; “Woodstock Remembered”, Rolling Stone [RS89], 24 de agosto de 1989; entrevista de Joel Makower com John Morris. 11. 16 DE AGOSTO DE 1969 Entrevista de HGW com ML; WN; entrevista de Joel Makower com MY; THRsp; entrevista de HGW com SG; “The Politics of Rock: Movement vs. Groovement”, por Tom Smucker, Fusion, 17 de outubro de 1969; entrevista de HGW com BW; entrevista de HGW com GM; entrevista de HGW com CO; entrevista de Joel Makower com AH; entrevista de HGW com PT; entrevista de Joel Makower com HR; entrevista de HGW com PS; entrevista de HGW com RP; “300,000 at Folk-Rock Fair Camp Out in Sea of Mud”, New York Times, 17 de agosto de 1969; WSOOL; entrevista de HGW com JF; BGP; entrevista de HGW com Gregg Rolie; entrevista de HGW com Michael Shrieve; entrevista de HGW com AD; Sander, Trips; Rock Scully com David Dalton, Living with the Dead: Twenty Years on the Bus with Garcia and the Grateful Dead (Nova Iorque: Little, Brown, 1996); “Woodstock Remembered”, Rolling Stone, 24 de agosto de 1989; Blair Jackson, Garcia: An American Life (Nova Iorque: Viking, 1998); entrevista de HGW com Stu Cook; entrevista de HGW com Jocko Marcellino; WSOOL; Mark Wilkerson, Who Are You: The Life of Pete Townshend (Londres: Omnibus Press, 2008); BGP. 12. 17 DE AGOSTO DE 1969 Entrevista de HGW com SG; entrevista de Joel Makower com MY; RS89; entrevista de HGW com BW; RS69; entrevista de HGW com Joyce Mitchell; WSOOL; entrevista de RE com Leo Lyons; THRsp; David Crosby e Carl Gottlieb, Long Time Gone: The Autobiography of David Crosby (Nova Iorque: Doubleday, 1988); Payne: Charles Cross, Room Full of Mirrors: A Biography of Jimi Hendrix (Nova Iorque: Hyperion, 2005); entrevista de Joel Makower com Tom Law; entrevista de HGW com ML.
13. O DEPOIS Entrevista de HGW com PT; entrevista de HGW com CO; entrevista de HGW com ML; entrevista de HGW com PS; WSOOL; “A 19-Hour Concert Brings Quiet Back to Max Yasgur’s Cows”, New York Times, 18 de agosto de 1969; entrevista de HGW com SG; entrevista de HGW com RP; “Nightmare in the Catskills”, New York Times, 19 de agosto de 1969; “Woodstock Farmer Asks Another Fest”, Wayne Today (Nova Jersey), 19 de agosto 1969; entrevista de HGW com Artie Ripp; entrevista de HGW com AK; entrevista de HGW com LMB; “Morning After at Bethel”, New York Times, 20 de agosto de 1969; “Happening in Bethel”, Boston Globe, 19 de agosto de 1969; “Aftermath at Bethel: Garbage & Creditors”, por Al Aronowitz, New York Post, 19 de agosto de 1969; entrevista de Joel Makower com Joel Rosenman; entrevista de HGW com Joyce Mitchell. EPÍLOGO “Carlos Santana”, Mojo, novembro de 2008; entrevista de Joel Makower com AH; “Woodstock 25 Years Later”, por Greil Marcus, Interview, agosto de 1994; blog de Brian Hassett, 20 de janeiro de 2009; “Woodstock Without the Mud”, por Gail Collins, New York Times, 21 de janeiro de 2009.
Entrevista: Michael Lang
Como é a sensação de ter o seu livro lançado no Brasil? Sinto-me honrado em ter o meu livro publicado no Brasil. Estive aí muitas vezes. Conhece algo de rock brasileiro? Já ouvi rock brasileiro e gosto muito. Você tem contato com os fãs brasileiros? Vários fãs brasileiros têm me pedido ao longo dos anos para levar [o festival de] Woodstock para o Brasil. O livro foi originalmente escrito por ocasião dos 40 anos do festival. Dez anos se passaram, e agora Woodstock completa 50 anos. Qual a avalição que faz do legado nos dias de hoje? O legado de Woodstock parece mais forte e relevante do que nunca. Se tivesse que criar um top five dos shows do festival, qual seria? Meu Top 5 dos shows de Woodstock poderia ser: Jimi Hendrix; Santana; Sly and the Family Stone; Crosby, Stills, Nash & Young; e Joe Cocker. É claro, teve muitos outros shows extraordinários, como The Who.
Depois do festival, você manteve contato com Max Yasgur? Sabe, por exemplo, se ele chegou a escutar a música “Woodstock” no disco do Crosby, Stills, Nash & Young? Max Yasgur ouviu “Woodstock” do Crosby, Stills, Nash & Young. Infelizmente, ele morreu alguns anos depois de Woodstock de um ataque cardíaco. Ele foi o cara mais legal que já conheci. Deixe um recado para os leitores brasileiros. Gostaria de agradecer todos os fãs brasileiros e quem sabe levaremos o festival para o Brasil no futuro.
Planet Hemp de Luna, Pedro 9788581744681 496 páginas
Compre agora e leia A HISTÓRIA DA BANDA DE ROCK MAIS POLÊMICA DO BRASIL CONTADA ATÉ A ÚLTIMA PONTA Como um terremoto, o Planet Hemp abalou as estruturas do rock nacional nos anos 1990. A mistura
explosiva de rap e rock e o discurso de legalização da maconha fizeram a cabeça de milhões de jovens brasileiros, mas também incomodaram muita gente. Coragem, polêmica, irreverência e muito sucesso. Disco de Ouro e de Platina, shows lotados e a polícia nos calcanhares, culminando com a prisão da banda em Brasília, em 1997: um enredo digno de livro. E aqui está ele. A biografia definitiva de rock mais polêmica do Brasil, nos mínimos detalhes. Até a última ponta. Compre agora e leia
Vai lá e faz Mattos, Tiago 9788581743660 320 páginas
Compre agora e leia O mundo está cheio de histórias de empreendedores que começaram do nada. Tiago Mattos, um dos maiores futuristas brasileiros, formado pela Singularity – a universidade erguida no Vale do Silício pelo Google em
parceria com a Nasa – vai te mostrar neste livro que, sim, você pode criar uma empresa bem-sucedida do zero se tiver o mindset certo e entender como o mundo está mudando. Porque nunca foi tão fácil fazer. Nunca foi tão fácil fazer um livro, uma música, um filme, uma reunião dos colegas do ensino médio, uma passeata, um partido político, uma casa, um carro, uma declaração de amor, uma viagem ao redor do mundo. Nunca foi tão fácil fazer uma empresa. Nunca foi tão fácil entender que ninguém fará o mundo que você quer por você. Só você. Compre agora e leia
O cabelo de Dalila Ribeiro, Paulo 9788581741789 150 páginas
Compre agora e leia Você está deitado em sua cama, enquanto uma chuva bate eternamente sobre o telhado de zinco. Ao seu lado, a mulher com quem você divide a
mesma cama, a mesma chuva, a mesma vida, mal se move sob um cobertor que ambos compartilham e disputam. O que você tem de seu são esse quarto e suas memórias, as que você honestamente possui, e que se revolvem em sua mente, ao som da chuva. O Cabelo de Dalila é ao mesmo tempo um ensaio e a comprovação do ensaio, que demonstra que tudo que temos de nosso nesse mundo é o presente. O significado desse presente somente pode ser compreendido como a totalização de todos os momentos que o criaram, feita sob um teto e a chuva que nele bate. Neste universo, a literatura é convertida em uma operação de cálculo diferencial, na qual a variável desconhecida tende a zero e o nosso presente assume seu valor absoluto. Compre agora e leia
O poder do tempo livre Braga, Luciano 9788581743899 112 páginas
Compre agora e leia Você quer mudar sua vida, mas não tem tempo. Bobagem. Todo mundo tem tempo. Confie em mim. A ideia deste livro é que você encontre tempo onde acha que ele não existe. Que você descubra o que realmente gosta de fazer, para criar um projeto paralelo ou aperfeiçoar o
que você já faz. Este livro não é simplesmente para ser lido. É para ser usado. Então faça bom uso dele. Comece agora mesmo a se dedicar àquilo que você ama. Isso vai fazer uma grande diferença na sua felicidade. Escolha viver uma vida incrível. Ela é muito curta para não ser. Compre agora e leia
Revolução Laura D'Ávila, Manuela 9788581744766 192 páginas
Compre agora e leia A maternidade é revolucionária E-BOOK COM TEXTO EXCLUSIVO DE DUCA LEINDECKER Este livro é o registro afetivo de uma mulher, mãe de uma criança de dois anos, que aceitou o desafio de concorrer à presidência do Brasil em novembro de 2017 e que, em agosto de 2018,
tornou-se candidata a vice-presidente, chegando ao segundo turno. Uma mulher que percorreu um país continental, amamentando sua filha e construindo uma nova forma de ocupação do espaço político. Também é uma conversa, sobre uma jornada de aprendizado e acolhimento. Sobre privilégios; sobre as lutas para que privilégios não existam mais. É sobre direitos. É sobre feminismo e liberdade. É sobre afeto, carreira e amor, porque não tem sentido ser pela metade. É sobre estar e não estar; presença e ausência. Sobre ser mãe e mulher; ser madrasta e não ser bruxa. Sobre acolher, sonhar um outro mundo e ser o outro mundo sonhado. E, profundamente, é sobre uma revolução chamada Laura. Uma revolução de amor, de amor próprio, de potência. Porque depois de gerar um filho não há nada, nadica de nada que uma mulher não possa fazer. Filha, você me ensina a ser feliz quando não tenho controle de nada. Você me salva sendo amor em tempos de ódio. Obrigada. Certa vez, em uma das ocasiões em que ela não estava sendo bem acolhida, eu disse: se for mais simples aceitar uma mulher na condição de primeira-dama, do que de uma criança de dois anos e meio, digam a todos que Laura é minha primeira-dama. Ela é minha filha e precisa ser amada. Maternidade em poucas palavras: chuva de cuspe. Passamos a vida julgando as maternagens de outras mulheres. Quando chega a nossa vez percebemos que cuspíamos para cima. Quem nunca? Compre agora e leia