Hermann Hagedorn - O Profeta das Selvas - Vida e Obra de Albert Schweitzer

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HERMANN HAGEDORN

O PROFETA DAS SELVAS

Vida e obra de Albert Schweitzer

O Profeta das Selvas Albert Schweitzer é um dos grandes homens do nosso século. Um gigante intelectual e espiritual, que empolgou e abalou a Europa e o mundo inteiro, não só com seus livros revolucionários, mas sobretudo com a sua própria vida de altruísmo humanitário e heroísmo crístico. Organista de fama mundial, primeira autoridade no campo das pesquisas sobre o grande compositor Bach, filósofo, ministro do Evangelho do Cristo, conferencista, exegeta, médico e cientista, construtor e missionário, foi Albert Schweitzer um Mestre de Vida. Aos trinta anos, abandona o conforto da civilização européia e a fama completa, para abismar-se nas florestas insalubres da África Equatorial Francesa, como médico e cirurgião, a fim de dedicar o resto da sua vida ao serviço imediato da parte mais infeliz da humanidade. Um místico em ação, eis o retrato perfeito de Schweitzer, exemplo para os homens de nossos dias que se sintam rebelados contra a injusta ordem social imperante, aniquiladora dos valores espirituais. Escreveu ele, em um de seus livros, com palavras de fogo, para todas as gerações: “A Reverência pela Vida não me permite considerar minha felicidade como propriedade pessoal. Em momentos em que gostaria de alegrar-me sem preocupações, ela desperta em mim a lembrança de misérias vistas ou sabidas. Assim como a onda não existe por si mesma, mas é sempre parte da movediça superfície do mar, assim eu também não posso viver minha vida por si mesma, mas sempre como parte da experiência que se desenrola ao meu redor. Abri vossos olhos e procurai alguém ou algum trabalho devotado ao bem-estar humano, que necessite um pouco do vosso tempo, ou da vossa amizade, um pouco de compaixão, ou de companhia, ou serviço; alguma boa obra que careça de voluntários que lhe dediquem uma noite livre, ou que lhe prestem outros serviços. Buscai, pois, audaciosamente, alguma situação em que vossa humanidade possa ser utilizada...” Hermann Hagedorn, amigo íntimo do grande herói da renúncia e do sofrimento – o verdadeiro herói – compôs uma obra fascinante. Ler O PROFETA DAS SELVAS é um enriquecimento inestimável. Motiva e eleva o homem de nossos dias àquela altura das grandes realizações. Faz com que renasça em nós o Ideal Sagrado, geralmente soterrado por ideologias mesquinhas e frustradoras. Albert Schweitzer como sábio e educador, aponta o verdadeiro caminho da Vida: Autoconhecimento e Auto-realização.

Prefácio da Presente Edição “Não há heróis da ação; há somente heróis da renúncia e do sofrimento”. Estas palavras sintetizam 90 anos da vida de Schweitzer. Depois de ele ter vivido 52 anos entre os negros primitivos da África; depois de ter realizado obras gigantescas nos mais variados setores da vida – como filósofo, ministro evangélico, músico, organista, como médico e cirurgião, como desbravador e construtor – Schweitzer, num retrospecto panorâmico de quase meio século de atividade terrestre, declara peremptoriamente que ninguém é grande pelo que faz; o homem só é grande por aquilo a que renuncia e pelo que sofre. Esta frase lapidar resume toda a filosofia cósmica do profeta das selvas africanas. “Quem não renunciar a tudo que tem não pode ser meu discípulo” – estas palavras do Cristo foram realizadas grandiosamente por Schweitzer. Depois de se ter formado em filosofia, teologia e música numa das Universidades da Europa; depois de ter sido ministro do Evangelho, conferencista, maestro de concertos musicais em diversos países, resolve ele abandonar tudo e cortar cerce o início da sua celebridade e desaparecer do cenário europeu para dedicar o resto da sua vida à parte mais atrasada da humanidade num dos piores climas do globo, no meio de povos selvagens incapazes de compreenderem os vôos do seu gênio e a grandeza do seu sacrifício. É opinião geral que Schweitzer tenha feito tudo isto por amor aos negros da África. Não é bem exata essa opinião. Os africanos que ele medicou e operou durante meio século, provavelmente já morreram todos – e que diferença faz terem morrido alguns decênios mais tarde ou mais cedo? O verdadeiro motivo dessa troca do conforto e da celebridade européia pelo desconforto e obscuridade da África não foi, a bem dizer, a filantropia pelos africanos. Por detrás de tudo isto se oculta uma razão-de-ser mais profunda e grandiosa. “Uma só coisa é necessária” – estas palavras de Jesus foram dirigidas à sua discípula Maria de Bethânia, quando ela estava sentada aos pés do Mestre, ouvindo sua palavra e realizando-se espiritualmente. Todos os homens realmente espirituais agiram e agem pelo mesmo motivo, para realizarem em si mesmos essa “única coisa necessária”, a sua auto-realização. Os místicos solitários procuram realizar-se espiritualmente em primitivas cavernas do Himalaia ou do deserto; os místicos solidários fazem a sua autorealização em plena sociedade – mas o fim supremo de todas as suas atividades visíveis é a “única coisa necessária”, a realização da tarefa suprema da sua existência terrestre, que o divino Mestre chama “o primeiro e maior de todos os mandamentos”, que é a mística do auto-conhecimento através da ética da auto-

realização; nestes dois mandamentos, afirma Jesus, consistem toda a lei e os profetas, consiste o Alfa e ômega da vida humana. Assim como Mahatma Gandhi não considerava a libertação da Índia como a tarefa principal da sua vida, mas sim a sua própria auto-realização – por sinal que nem sequer assistiu à declaração da Independência da Índia, na noite de 15 de agosto de 1947 – assim também esse outro super-homem de nosso século, Albert Schweitzer, não viu na cura dos negros a quintessência da sua vida, mas sim em curar-se a si mesmo de todas as misérias do ego humano e realizar plenamente o seu Eu divino. “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” – tanto Gandhi como Schweitzer se libertaram a si mesmos da tirania do seu ego pela soberania do seu Eu, libertando os seus semelhantes da tirania das opressões políticas e da tirania das doenças. Os ignorantes tacharão de “egoísmo” essa tarefa central da vida humana, como se egoísta pudesse ser um homem que superou definitivamente todas as suas egoidades humanas a fim de realizar a sua individualidade divina. Se, nos últimos decênios da sua vida, Schweitzer ficou célebre no mundo inteiro, não é culpa dele; aconteceu-lhe “de acréscimo” precisamente aquilo a que ele havia renunciado. A única modalidade perfeita de fazer bem aos outros é ser bom em si mesmo, realizar-se plenamente no seu Eu espiritual, e então todos os outros serão beneficiados por essa auto-realização, consoante as palavras de Gandhi: “Quando um único homem chega à plenitude do amor, neutraliza o ódio de milhões”. *** O presente livro, ora em nova edição, é uma espécie de auto-retrato de Schweitzer, um mosaico feito, de preferência, das palavras do próprio herói. Gandhi e Schweitzer são os autênticos “santos” do século XX. A santidade deles não é ritualista, não é aureolada do misticismo dos altares; é uma santidade dinâmica, realizada e testada no meio das adversidades da vida e das perversidades da humanidade. Se a nossa humanidade tem esperanças de melhores dias, então será essa nova humanidade modelada à imagem e semelhança desses heróis de nosso século. HUBERTO ROHDEN

Explicações Necessárias Neste ano de 1975 comemora-se no mundo civilizado o primeiro centenário do nascimento de Albert Schweitzer. Universidades, instituições culturais, fundações educacionais, igrejas e a imprensa de cinco continentes estão promovendo recitais, conferências, relatos e edições comemorativas de livros e monografias sobre este herói dinâmico da renúncia e do sofrimento e uma das mais impressionantes personalidades de nosso século. A Fundação Alvorada para o Livro Educacional, cumprindo seu supremo ideal que é orientar e iniciar o homem na consciência da sua Realidade interna e eterna – auto-conhecimento e auto-realização – resolveu editar, em 2.º edição, esta empolgante biografia de Albert Schweitzer, É oportuna esta reedição, pois em nossas pesquisas, não encontramos em circulação nas livrarias, nenhuma obra sobre Schweitzer. Os livros dele ou sobre ele, editados em nossa língua, acham-se todos esgotados. A “Edições Melhoramentos” editou os seguintes livros de Schweitzer: “Decadência e Regeneração da Cultura”, “Goethe – Discurso Comemorativo”, “Entre a Água e a Selva”, “Minha Vida e Minhas Idéias”, “Cultura e Ética”, “Minha infância e Mocidade” e “Histórias Africanas”, estes 2 últimos em um só volume. Publicou também a biografia “Um Místico em Ação”, de autoria de Mário Waissmann. O primeiro editor de “O Profeta das Selvas”, cedeu graciosamente, à Fundação Alvorada, os direitos autorais desta obra, contribuindo grandemente com nosso esforço para que o leitor brasileiro tenha, à sua disposição, um relato da vida e obra de um dos poucos homens univérsicos deste planeta. O magnífico prefácio que inicia a presente reedição, escrito por nosso principal editando e inspirador, o filósofo e educador HUBERTO ROHDEN, sintetiza toda a vida e obra de Albert Schweitzer e o qualifica, juntamente com Mahatma Gandhi, como “autênticos santos do século XX”. Esta biografia foi escrita ainda quando Schweitzer estava vivo. Ele ainda viveu muitos anos depois da obra ter sido lançada. E muitos eventos se sucederam na vida desse “homem completo”. Um dos acontecimentos significativos foi a láurea do Prêmio Nobel da Paz de 1953 – o supremo reconhecimento que o mundo presta aos seus maiores líderes e mentores nas várias áreas do conhecimento humano. Foi ainda distinguido com o “Prêmio da Paz” pela Associação Alemã dos Editores. Na Inglaterra, em 1955 foi-lhe atribuída a alta honraria da “Ordem do Mérito”. Foi ainda detentor de vários outros títulos honoríficos, dentre os quais destacamos: a “Medalha Grotius”, concedida pela Fundação Internacional

Grotius, da Holanda. O Prêmio da Fundação Joseph Lemaire, da Bélgica. O Prêmio Sonning da Dinamarca. A Medalha Goethe, oferecida pela cidade de Frankfurt, e muitos outros. Recentemente, na Holanda, foi estampado um selo com a sua efígie. Albert Schweitzer deixou este mundo físico em 1965, com 90 anos, em Lambaréné, no Gabão, país independente da África Equatorial. Hoje seu nome converteu-se em lenda. Laureado e glorificado pelos melhores, constitui símbolo que penetrou na própria história do nosso processo cultural. Albert Schweitzer sintetizou o ideal e o objetivo máximo do homem civilizado: foi verdadeiramente um místico e um homem de ação. Repeliu a especulação filosófica pura e gratuita e caminhou para uma filosofia grandiosamente autêntica e prática, na qual o buscador da Verdade sempre encontrou amparo e felicidade. Quando ele e a esposa embarcaram em Bordéus, a 28 de março de 1913, rumo à África, dando assim o passo de coragem de sua vida, e concretizando sua irreversível tomada de posição e vocação, o mundo perplexo não compreendeu o seu gesto inaudito de consagrar sua vida ao serviço da humanidade desorientada e sofredora. Mas, não tinha ele, aos 24 anos, em seu livro “A Filosofia da Religião de Kant”, reafirmado o enunciado deste pensador: “não existe critério da verdade fora da experiência”? Schweitzer, um Mestre de Vida, transmitiu sua poderosa mensagem indutivamente, isto é, através de exemplos de sua própria vida e experiência direta da Realidade. Albert Schweitzer converteu-se em arquétipo. Para milhares de homens de todas as raças do mundo, seu nome constitui, hoje, símbolo imaculado e autêntico do homem crístico, do homem integral. Seus biógrafos desta geração afirmam e os das gerações futuras reafirmarão: Albert Schweitzer empregou todos os recursos de sua alma, de sua mente, de seu coração e de suas forças corporais, para transmitir à humanidade uma única e mesma mensagem. A mensagem deste místico em ação – discípulo do Cristo, estudioso de Bach e Goethe, amigo de Romain Rolland, de Gandhi e de Einstein – constitui uma “viva oração de amor”. Sua vida é uma autêntica mensagem de auto-conhecimento revelado em auto-realização. Albert Schweitzer – um homem univérsico. *** A fim de fornecer ao leitor completa informação sobre Albert Schweitzer, damos no final deste livro a relação das suas obras (para maior facilidade de consulta os títulos das obras são precedidos de tradução). O Editor.

Capítulo 1 Fala Schweitzer: “Água e floresta virgem! Quem pode reproduzir a impressão que elas causam? Julgaríeis estar sonhando! Quadros fantásticos de paisagens antediluvianas, vistos não se sabe onde, tornam-se vivos. Não podeis dizer onde termina o rio, onde começa a terra. Poderosa teia de raízes cobertas de lianas emaranhadas projeta-se dentro da água. Touceiras de palmeiras, entremeadas de altos madeiros, que ostentam ramos verdes e folhas enormes; árvores solitárias que se alteiam como torres; largos trechos cobertos de tufos de papiros mais altos do que um homem, com grandes folhas em forma de leques... Entre a luxuriante folhagem, troncos apodrecidos de gigantes mortos erguem-se para o céu... Fora da vista, espelhos líquidos cintilam; em cada curva do rio novos tributários se revelam. Uma garça bate pesadamente as asas e pousa no tronco de uma árvore morta; pequenos pássaros azuis resvalam na água, e um casal de águias marinhas traça círculos no ar, muito alto. Então – sim, não pode haver engano! – alguma cousa pende de uma palmeira e se agita no ar: duas caudas de macaco! Logo aquilo que as acompanha, seus donos, torna-se visível. Agora é realmente África!” Fala Schweitzer: “A operação terminou, e no dormitório escassamente iluminado espreito o despertar do enfermo. Mal recupera a consciência, ele olha com espanto ao redor, e exclama repetidas vezes: “Não sinto mais dor! Não sinto mais dor! Sua mão procura a minha e não a solta mais. Então começo a dizer-lhe, e aos outros que estão no quarto, que foi o Senhor Jesus quem mandou o médico e sua mulher ao Ogowe, e que gente branca da Europa lhes dá o dinheiro para viverem aqui tratando dos enfermos. Tenho de responder a muitas perguntas: quem é essa gente branca, onde vive, e como sabe que os nativos sofrem tanto por causa das doenças. O sol africano brilha através dos tufos de café e penetra na escura barraca, mas nós, brancos e pretos, estamos sentados lado a lado, e sentimos que sabemos, por experiência própria, a significação das palavras: “E todos vós sois irmãos.” Fala Schweitzer: “Para conservar minha habilidade na execução ao órgão, eu tinha o magnífico piano com pedal, construído especialmente para os trópicos, e que me havia sido presenteado pela Sociedade Bach de Paris... No princípio, todavia, não tinha ânimo para praticar. Havia me habituado a pensar que meu trabalho na

África significava o fim de minha carreira artística, e que a renúncia seria mais fácil se deixasse que a falta de exercício me entorpecesse mãos e pés. Uma noite, porém, estava imerso em melancolia, tocando uma das fugas de Bach para órgão, quando repentinamente fui dominado pela idéia de que poderia empregar minhas horas vagas na África em aperfeiçoar e aprofundar minha técnica. Imediatamente formei um plano para tomar, uma após outra, as comunicações de Bach, Mendelssohn, Widor, César Franck e Max Reger, estudá-las cuidadosamente nos seus mínimos pormenores, aprendê-las de cor, mesmo que fosse obrigado a gastar semanas ou meses numa única peça...” Fala Schweitzer: “Temos habitualmente, cerca de quinze trabalhadores, número pequeníssimo em relação à esmagadora quantidade de trabalho que deve ser feito. Para nos certificarmos de que se faz algum progresso, um de nós é obrigado a ir com eles, como capataz; se fossem entregues a si mesmos, pouco ou nada produziriam. Por que motivo eles que aqui estão no momento, iam trabalhar para que outros, que daqui a alguns meses estarão no hospital, possam ter milho para comer e boas enfermarias para se abrigarem? Um dia com esta gente decorre como se fora uma sinfonia. Lento: Apanham de mau humor os machados e facões de mato, que lhes distribuo logo que desembarcam. A passo de caracol, a procissão desfila até o lugar onde mato e árvores vão ser cortados. Por fim, todos estão a postos. Com grande cautela os primeiros golpes são desferidos. Moderato: Machados e facões movem-se em cadência extremamente lenta, que em vão o capataz tenta apressar. A pausa do meio-dia põe fim ao tedioso movimento. Adágio: Com muita dificuldade consegui que os homens voltassem ao trabalho na floresta sufocante. Não sopra a mínima aragem. Ouve-se de espaço a espaço o golpe de um machado. Scherzo: Uns poucos gracejos, que em meu desespero me esforço por fazer, transformam a cena. A atmosfera mental torna-se mais viva; palavras alegres voam aqui e ali; alguns começam a cantar. Agora está ficando um pouco mais fresco. Uma brisa ligeira levanta-se do rio e insinua-se na espessura da mata. Finale: Agora todos estão joviais. Quem vai sofrer com isso é a malvada floresta, culpada de estarem aqui, em vez de ficarem no hospital confortavelmente sentados. Selvagens imprecações lhe são lançadas. Eles a atacam, rugindo e vociferando. Machados e facões golpeiam-na à porfia. Mas, que não voe um pássaro, nem apareça um esquilo. Não se façam perguntas, nem se de uma ordem. A mais ligeira distração quebraria o encanto. Facões e machados se aquietariam, todos começariam a conversar sobre coisas ouvidas ou acontecidas, e não seria mais possível obrigá-los a retomar o serviço.

Felizmente, não há distração. A música se faz cada vez mais alta e rápida. Se este “finale” durar uma boa meia hora, o dia não terá sido desperdiçado. E ele continua até que eu brado: “Amani! Amani!” (Chega! Chega), e ponho fim ao trabalho do dia.” Fala Schweitzer: “Se o dia não foi muito exaustivo, posso dedicar algumas horas, depois do jantar, aos meus estudos de ética e civilização... Estranho, sem dúvida, é o ambiente em que estudo. Minha mesa está atrás da porta gradeada que dá para a varanda, para que eu possa aproveitar o mais possível a leve brisa noturna. As palmeiras sussurram um “obligato” à música dos grilos e dos sapos, e da floresta vêm ásperos e aterrorizadores ruídos de toda espécie. Caramba, meu cão fiel, resmunga mansamente na varanda, como a dizer-me que ele está ali; aos meus pés, sob a mesa, estende-se um antílope anão. Nesta solidão, tento por em ordem pensamentos que me vêm perseguindo desde 1900, na esperança de dar algum auxílio, por pequeno que seja, à restauração da civilização. Ermo da mata virgem, como poderei agradecer-te, algum dia, tudo que por mim fizeste?...” Fala Schweitzer: “No dia 4 de dezembro quatro canoas são surpreendidas, na viagem de volta, por terrível tempestade. O Dr. Nessman, que nesse dia estava de serviço, não havia notado a tempo o perigo. Esperamos durante hora e meia, cheios de grande ansiedade, mas, por fim, o temporal amaina. Uma após outra, chegam as canoas, no meio de uma escuridão de breu, e debaixo de um aguaceiro diluviano. Haviam tido apenas o tempo necessário para abicar, em qualquer lugar das margens, e ninguém se afogara. Subo para a casa do médico, quase tonto de alegria.” 2 Quem é este viajante, que observa como um pintor e escreve como um poeta, este homem de letras que faz uma operação na selva africana, e acha tempo para segurar a mão de um negro e dizer-lhe quem é que havia enviado este médico ao coração das trevas? Um cirurgião, sem dúvida. Mas quem é este cirurgião que toca Bach e César Franck quando as sombras caem rápidas, e da dura provação de vigiar uma turma de trabalhadores nativos faz uma sinfonia? Esse músico que escreve até tarde da noite sobre a restauração da civilização; esse filósofo que fica “tonto de alegria” porque uma tripulação de homens pretos viaja através de uma tempestade tropical e chega sem a perda de uma única vida? É um doutor em medicina, um doutor em teologia, um doutor em filosofia, um doutor em música. Cientistas o consideram notável especialista no campo da medicina tropical; músicos o aclamam um dos maiores organistas do mundo. É autor da mais compreensiva e profunda biografia de Johann Sebastian Bach, e seu maior intérprete vivo. É uma autoridade na construção de órgãos e na sua estrutura. É um teólogo cujas conclusões a respeito das relações de Jesus com o pensamento popular do Seu tempo abalaram todos os seminários teológicos

do mundo. É um filósofo da História que desafia as concepções ocidentais, como nenhum outro pensador as desafiou desde que Osvaldo Spengler publicou a sua “Decadência do Ocidente”; um profeta na linha da grande tradição profética, que previu, na degeneração da ética do século dezenove, a sentença que recaiu sobre o mundo ocidental do século vinte; um humanitário, cujo exemplo pode fazer, em benefício de milhões, que ele nunca verá, mais do que seus hábeis dedos fizeram pelos milhares que salvou da agonia física. É, finalmente, um revolucionário, cuja insistência na Reverência pela Vida o coloca em dramática oposição tanto aos difamadores da civilização ocidental quanto aos seus defensores. E ele está na África Equatorial, tratando dos corpos de homens que se enfileiram entre os mais atrasados, os mais insignificantes dos habitantes do globo. 3 Aos trinta anos, Albert Schweitzer tinha nas mãos a maior parte das coisas pelas quais os homens dão a vida, e, às vezes, a alma: a segurança de um cargo público vitalício, numa das mais notáveis universidades européias; uma reputação, sempre crescente, como erudito e músico; a delícia de ensinar e pregar aquilo em que cria profundamente; a promessa de fama européia, e, certamente, mundial. E, num dia muito frio, quando as folhas das árvores caiam ao seu redor, ele pôs de lado tudo isso, para tornar-se médico entre os selvagens da África Central. Tinha ouvido falar da miséria do povo das selvas, das enfermidades nativas e dos flagelos causados por europeus comerciantes e traficantes de escravos. Como poderia dormir em paz o homem branco, com tamanha tortura sob sua janela – quando o homem branco tinha médicos, hospitais e enfermeiros sempre ao seu alcance? Quão empedernido estava o mundo do homem branco, em face do tormento do homem negro, tormento que o branco havia multiplicado e, em grande parte, causado diretamente! Que pesado fardo, que dívida tremenda recaía no homem branco, nele mesmo, Albert Schweitzer, como membro da raça culpada! Ele tinha, forçosamente, de resgatar aquilo que pudesse, a sua parte da dívida, usando a ciência do homem branco para aliviar o sofrimento do homem negro. Ele pagaria, sim,... mesmo que lhe custasse a vida... Não havia ele dito a si mesmo, naquele luminoso dia de Pentecostes, nove anos antes, que se dedicaria à teologia, à filosofia e à música até os trinta anos, e depois poria a sua vida ao serviço imediato da humanidade? Tinha agora trinta anos. O pacto estava tão vivo em sua memória como a fresca fragrância das flores no ar de maio, e o jubiloso canto dos pássaros à sua janela. Tais coisas não se esquecem. Resolução era resolução, e as resoluções são tomadas para serem cumpridas. Também as resoluções tomadas aos vinte e um anos no leito, na manhã de um domingo de Pentecostes? Sim, essas também. Isto é, se vós fosseis Albert Schweitzer. 4

Abrasa-se como Francisco de Assis, e assemelha-se a José Stalin ou assemelhava-se antes que Stalin viesse ao ocidente e reduziu o seu luxuriante bigode. Sua poderosa musculatura, o nariz dominador, a espaçosa fronte, o cabelo em desalinho, a grande boca com ares de humor mantém o bigode na devida proporção, e os olhos espaçados o tornam menos conspícuo. Seus olhos são negros abismos de concentrada tristeza e compaixão, fracamente iluminados pela esperança. O que ele vê é trágico e terrífico, mas sabe que acima do escuro véu brilham as estrelas, e há flores por onde passa, flores que ele saudará qual criança, com singela alacridade. Schweitzer é amigo de risadas francas. Exteriormente é um teutônico, mas, na realidade, é o produto de duas culturas. Nem alemão nem francês, insiste ele, mas alsaciano, “um pinheiro dos Vosges”, “Tenho minhas raízes nos Vosges, mas sempre, e em primeiro lugar, estou preocupado com o que desejo fazer como homem, servindo a humanidade.” É o que os homens sentem na sua presença, e se eriçam, tanto quanto o próprio Schweitzer, quando alguém se refere a ele como alemão ou francês. Ele não pode ser confinado em qualquer concepção meramente nacional. “Este homem é um humanitário, pertence ao mundo inteiro!” Nem pode ser confinado dentro de qualquer ortodoxia religiosa. Devotado aos ensinos de Jesus e à Igreja, a despeito do seu agnosticismo tangente ao último destino do ser, ele não é apenas tolerante para com outras crenças religiosas, mas também é eloquente no seu entusiasmo pela sabedoria ética dos grandes pensadores asiáticos. Tem sido chamado um santo moderno, mas ele resiste a qualquer esforço para o dotarem de um halo. Nada há nele do asceta desprendido, suspenso entre o céu e a terra. Conhece o mundo, sua força e suas fraquezas, e contempla uma e outra com tolerância, bondade e senso de misericórdia, qual filósofo da Escola Estoica que ele admira tão profundamente. Platão, se a ele se chegasse no deserto, talvez imaginasse que seu sonho do filósofo-rei se teria, por fim, realizado, porque esse homem tem o mesmo gênio para a organização e para o pensamento, como prova a sempre crescente eficiência do seu centro médico. Sua conversação, antes luz suave que faísca, e a humanidade e poder que dele fluem, sua capacidade de sentir-se à vontade com homens de todas as cores, classes ou credos, no Reno como no Sena ou no Ogowe, sua estatura intelectual, sua pura personalidade como ser humano, tornam-no o centro de qualquer reunião. Construtores de nações como Jan Smuts, da África do Sul, e o falecido Tomás Masaryk, da Tcheco-Eslováquia, vêem nele não só o sábio, mas o homem. “Aqui neste triste mundo em que vivemos – exclama Albert Einstein – há um grande homem!” Realistas o reconhecem como uma creatura de acordo com seus próprios corações. “Grande homem entre grandes homens”, tem sido chamado. É que esse humanitário nada tem de fraco. Ninguém alimenta a mínima dúvida sobre o homem a quem cabe a última palavra em Lambaréné. Ele receberá um novo médico com o calor de um pai acolhendo o filho pródigo, mais ai do moço se desobedecer às ordens e permitir que os funcionários do porto de

desembarque deixem passar sem pagamento de tarifas alfandegárias os materiais que trouxe consigo da Europa! Para o porto voltará ele, embora a viagem de ida e volta dure três dias sufocantes. Mas este severo julgamento é raro. Por via de regra, ele repreende, quando necessário, com uma brincadeira ou um jogo de palavras. Manobra por conseguir o que julga ser direito do hospital por meio de uma combinação de sagacidade e de encanto. Um mecânico branco, que fora por ele curado de grave enfermidade, prontificarase a consertar um velho motor, mas os dias passavam, e nada de consertar. O doente anunciou que ia sair do hospital, e pediu os remédios que o doutor lhe havia prometido. Schweitzer precisou ausentar-se por um dia, e quando voltou cumprimentou o mecânico com excepcional cordialidade. “Muita bondade a sua, meu caro senhor – exclamou – por ter adiado a sua partida para poder consertar meu motor! Fico-lhe muito agradecido. Fique tranquilo, eu prepararei seus remédios; o senhor terá tempo suficiente para consertar o motor.” O motor foi consertado. Schweitzer governa-se a si mesmo com a mesma firmeza com que dirige seu hospital, trabalhando mais do que qualquer dos seus subordinados, e deixando de tirar as férias que insiste em conceder aos outros. Quando a guerra terminou, enviou seus médicos e enfermeiras, uns após outros, para suas casas, mas ele mesmo ficou, embora a Europa e a América o estivessem chamando. No entanto, estava com setenta anos, e havia permanecido nos trópicos, sem nenhum intervalo, durante seis anos, quando o máximo para os homens brancos é calculado em dois. O hospital precisava dele; era quanto bastava. A ardente simpatia pelos sofrimentos do povo negro, que o havia impelido a abandonar uma grande carreira na Europa, não diminuía com o passar dos anos: ao invés, tornou-se mais profunda. Ele se identifica com cada paciente, sofre com seu sofrimento, atormenta-se com suas ansiedades. Quando um caso se agrava retrai-se ele em sombrio silêncio, e exulta expansivamente quando as coisas melhoram. Todavia, procura manter o grau de isenção necessário para conservar claro o seu discernimento. Com frequência está de tal modo fatigado, na hora das refeições, que não diz palavra. Nunca, porém, está tão cansado que não possa dar os restos da refeição aos seus animais de estimação, ou deixe de visitar a enfermaria das crianças, onde se põe a brincar com pretos e brancos juntos. À luz de todos os padrões, é ele um homem, às direitas e essa impressão é realçada ainda mais pela sua humildade. Ele, um dos artistas de maior sensibilidade do seu tempo, nada tem da presunção dos artistas; ele, um dos mais completos eruditos, nada tem da arrogância dos intelectuais; ele, um dos mais fascinantes filósofos, não quer saber de qualquer filosofia que não permita que um cão passe pela sala de visitas. Como pensador e como homem, ele é simples, em público como entre amigos. Quando o presidente de uma reunião em que ele ia fazer um discurso lhe perguntou como queria ser apresentado,

sugeriu o seguinte: “Vocês estão vendo aquele camarada que parece um cão escocês? aquilo é Albert Schweitzer.” Ele aprecia nos homens a “naturalidade”, a qualidade de ser cada qual ele mesmo e ninguém mais. Na África ou na Europa vive com a simplicidade de um eremita, viajando em terceira classe (quando na Europa ainda se podia viajar), carregando sua bagagem, comendo em restaurantes comuns, com o fim de economizar dinheiro para o seu hospital, e rindo-se dos americanos que dependem de táxis, comidas caras e carros de primeira classe nas viagens de trem. Detrás dele estão gerações de homens e mulheres que viveram no campo e do campo, e Schweitzer não pode desligar-se disso, mesmo que o queira. Na Alsácia, os sapatos que usa, o grande chapéu preto, a capa esvoaçando ao vento, são idênticos aos que um camponês usaria numa viagem à cidade; nunca vai além de um jaquetão grosseiro mesmo na tribuna de conferências ou na banqueta do órgão. Na África ele não é apenas médico: é carpinteiro, é construtor, é capataz da turma de pá e picareta, e, embora esteja na casa dos setenta, é ele que faz as compras e aciona o motor de gasolina de manhã cedo. O grande erudito, cujas obras brilham de imagens quais as de um manuscrito iluminado de algum escriba medieval; este “gênio da compaixão”, como tem sido chamado, constrói um hospital, em grande parte com as próprias mãos, e alegremente o reconstrói quando, após longa ausência, o encontra avassalado pela selva. Levanta cercas, pinta de cal as paredes, luta com folhas de zinco, e gasta dias numa canoa, de aldeia em aldeia, para obter folhas de palmeira para cobrir casas; cava, brande o machado, arrasta grandes toras, enquanto os negros que ele alimenta, se estendem à sombra das árvores, numa indiferença de enlouquecer. Um nativo vestido de branco, que ele chama para ajudá-lo, olha-o de alto a baixo e replica: “Eu sou intelectual; não arrasto madeira pelo mato.” Schweitzer responde: “Você é um felizardo! Eu também quis ser um intelectual, mas não tive jeito.” No seu grande coração os nativos, embora irresponsáveis como são, encontram abrigo. “Como gostamos deles, apesar dos aborrecimentos que nos dão? Que belos traços de caráter podemos descobrir neles, se não permitirmos que as muitas e variadas tolices do filho da natureza nos impeçam de ver nele o homem! Como nos revelam a sua natureza real, se temos amor e paciência bastantes para compreendê-los!” Schweitzer não pergunta se eles merecem o amor e a paciência que lhes dá. Quem é ele para comparar suas qualidades mentais e espirituais com as deles, para se comprazer no pensamento de que ele, como o mais capaz, tenha o direito de elevar-se à custa destes menos dotados, menos adiantados no processo evolutivo? São precisamente as reais vantagens que tem sobre eles que o impelem a servi-los. “A austera doutrina segreda-me palavras como estas: tu és feliz; portanto, estás em condições de abrir mão de muitas coisas. Tudo que recebeste mais que os outros em saúde, talentos, habilidade, êxito, numa infância alegre, em harmoniosas condições de vida de família, nada a isto deves tomar como se a ele tivesses direito: Tens de pagar por isso; tens de fazer, em

troca, um sacrifício desusadamente grande da tua vida, para o bem da vida de outros.” “A voz da verdadeira ética é perigosa para o afortunado.” Uma vez aceso o “fogo irracional”, não pode mais ser apagado... 5 Este discípulo de Jesus, cujas pesquisas tanto contribuíram para sacudir as concepções de Jesus comumente aceitas; este pensador que reconhece os limites do pensamento humano, e todavia insiste em que só pelo pensamento pode ser salva a civilização; este paciente e sobrecarregado doutor da África Equatorial, que significa ele para a geração que vê as luzes do pensamento e do ideal, da fraternidade, esperança e fé, obscurecendo-se nos cinco continentes? Significa isto: Num mundo que tem estado matando homens aos milhões, com a mesma indiferença com que uma dona de casa, com desinfetantes e água fervente, mata germes, Schweitzer aponta para o infinito valor do indivíduo e de todas as coisas vivas. Num mundo em que o coletivismo e a arregimentação, de uma forma ou de outra, são oferecidos como solução para todos os problemas sociais, econômicos e políticos que nos deixam perplexos, Schweitzer apresenta mais uma vez o supremo desafio, e dramatiza mais uma vez o supremo significado social, de um homem disposto a perder sua vida a fim de realizá-Ia integralmente. Num mundo em que os líderes em todos os terrenos exaltam a habilidade, e declaram por ação e inferência, se não por palavras, que a concepção de princípios nas relações dos homens é um resquício de superstição, Schweitzer apresenta uma concepção do Bem e do Mal tão simples quanto um axioma de geometria. Proclama que a ética é o sangue e a substância da civilização. Demonstra que sem uma base ética, isso a que os homens chamam civilização é uma miragem, tão incapaz de salvar a humanidade do suicídio quanto o reflexo de um oásis no céu é incapaz de salvar de morrer de sede um homem perdido no deserto. Num mundo em que as agências de governo e a vida comum buscam pensar em lugar do homem, de tal modo que ele, em grande parte, perdeu a capacidade e até o desejo de pensar por si mesmo, Schweitzer assumiu a posição “de quem visa aprofundar a vida interior dos homens, e torná-los mais limpos de coração, fazendo-os pensar.” Mais do que isto: chamando de novo a atenção para o que ele chama filosofia “elementar”, em contraste com os magnificentes, mas geralmente fúteis esplendores arquitetônicos do pensamento especulativo, ele deu ao homem comum uma nova oportunidade no domínio da mente. Finalmente: num mundo que se vê face a face com aniquilamento, porque os freios morais são por demais fracos para darem direção ao seu engenho mental, Schweitzer luta, como tem lutado por meio século, para dar aos homens uma

concepção filosófica do Universo em que vivem, uma Weltanschauung capaz de revitalizar nossa civilização moribunda.

Capítulo 2 Ele era uma coisa pequenina, quando, no dia 14 de janeiro de 1875, nasceu na velha casa cinzenta de telhado de ardósia de Kaysersberg, na Alsácia. Por várias semanas ninguém esperava que vivesse. Ainda seis meses depois as senhoras da paróquia, que o examinaram no seu vestido branco com fitas de cor, na ocasião em que seu pai era instalado no cargo de pastor da igreja evangélica de Günsbach, no Vale de Münster, mostraram-se tão reticentes que sua mãe fugiu para o quarto, levando-o nos braços, e inundou-lhe de lágrimas as faces. Mas o ar fino, carregado do cheiro dos pinheiros, que soprava das encostas das montanhas dos Vosges, mais a vaca do vizinho Leopoldo, realizaram o milagre. Ele venceu a morte, mas com o Diabo a coisa foi mais difícil. Periodicamente, nos cultos matutinos do domingo, Satanás aparecia ao menino ao lado do órgão, escondendo-se quando o pastor faltava, mas reaparecendo quando este se calava. Albert estava bastante orgulhoso do poder de seu pai sobre o Maligno, mas não ficou triste quando descobriu que o Diabo era apenas o barbaças do organista, que se refletia no espelho, acompanhando os movimentos do pastor. O único diabo que realmente infernizou o menino foi o coveiro, que fingia procurar incipientes chifres na sua testa e lhe disse, quando ele cresceu e se tornou soldado dos Prussianos, que teria de arranjar sua roupa com o ferreiro, e que elas seriam presas ao seu corpo com rebites. Mas o menino cedo aprendeu que o terror é vencido pela mente indagadora. Seu lar, sem dúvida, era de molde a inspirar serenidade e propiciar um tranquilo crescimento; nele não se refletia, de forma alguma, o turbilhão que a guerra franco-prussiana havia trazido a toda a comunidade alsaciana, cinco anos antes do nascimento de Albert. Seus pais conciliavam no lar, de modo feliz, ambas as tradições, a alemã e a francesa. A casa pastoral era úmida e sombria, mas nada havia de sombrio na pessoa do pastor e da sua enérgica e disciplinada esposa. O pai de Albert descendia de uma estirpe de pastores, professores, organistas e lavradores. Sua mãe era filha de um pároco do Vale. Música e piedade eram como ramos da mesma videira, entrelaçados através dos seus antepassados; música que era uma forma de piedade; piedade que buscava expressão na música. O pai de sua mãe, o pastor Schillinger, figura notável do Vale, havia sido um devoto do órgão, e quase uma autoridade em matéria de construção de órgãos. Improvisava música de tal modo que, décadas após a sua morte, os vizinhos ainda falavam disso. Também o pai de Albert tinha qualidades não desprezíveis de improvisador, e deliciava as crianças, ao anoitecer, com suas sonhadoras evocações, através de melodias não premeditadas. Assim, nos dois ramos dos antepassados de Albert, a música literalmente gotejava das pontas dos dedos.

O pastor era um homem benigno, em cuja teologia a calma luz solar da fé cristã ressaltava mais do que o trovão. O espírito de viver e deixar viver teria sido incutido nele, se já não o tivesse no coração. Por uma lei de Luís XIV, que os alemães não haviam modificado no curto período decorrido desde que tinham retomado a província, seu rebanho luterano compartilhava com a predominante população católica o único templo da vila. O padre era um cristão autêntico, como o próprio pastor Schweitzer, e davam-se melhor do que muitos irmãos da mesma denominação. O jovem Albert ficou impressionado com o esplendor do altar dourado, com seus grandes ramos de flores artificiais, seus altos candelabros de metal e majestosos círios, e na parede, ao alto, entre as janelas de vidros coloridos, as estátuas douradas de José e da Virgem. Nenhuma corrente de herdado puritanismo tornava sacrílega aos seus olhos toda essa magnificência, e a vista das encostas verdejantes e das colinas recamadas de bosques, que ele contemplava através do claro vidro das janelas não decoradas, parecia colocar a Sagrada Família bem no meio da comunidade Günsbach. Ele era precoce na sua profunda e sincera receptividade ao apelo religioso. Os cultos na igreja – cansativos para a maioria das crianças – enchiam-no de uma espécie de êxtase, que outras crianças excepcionais da sua idade acham na música, onde ele, aliás, também o encontrava. Não comunicava a ninguém sua alegria. Os registros indicariam, antes, que externamente ele aparentava uma indiferença que atingia as raias da irreverência. Tinha um modo especial que tornava frenéticos os mais velhos, pela sua aparente indiferença, quando na realidade, internamente se sentia quase ardendo. Gostava dos sermões do pai – assim escreveu em suas encantadoras “Memórias de Infância e Juventude” – porque em seu pai o sermão e a vida constituíam, de maneira evidente, uma só peça. Notava que os sermões eram o reflexo das experiências de todos os dias, e conhecendo bem o pai, veio a perceber, anos depois, o esforço que lhe custava ter de desnudar assim o seu coração, uma vez por semana, diante da sua congregação. Uma vez por mês, nos cultos menos formais da tarde, o pai contava histórias de missionários nos longínquos recantos da terra, e certo ano, em domingos sucessivos, leu as reminiscências de um alsaciano chamado Casalis, que trabalhara entre os negros da África do Sul. Sermões e histórias se imprimiram de tal sorte na mente do menino, que podia relembrá-los meio século depois. Mas o que para ele tinha significação ainda maior do que o sermão ou a história, era senso de consagração da pequena igreja, a profunda quietude, a reverência que notava nos adultos, a reverência que ele mesmo sentia, como alguma coisa que brilhava no seu próprio coração. Semelhante a essa reverência era a emoção que nele despertava a beleza do mundo natural. Aos setenta anos, recordava-se de como, em criança “como que se repassava na presença da natureza, sem que alguém o suspeitasse”.

Se foi precoce em sua relação com a Divindade e com a beleza natural, ainda mais o foi na percepção dos valores morais. Ainda bem pequeno, foi mordido por uma abelha, numa ocasião em que se tirava mel da colmeia do jardim da casa pastoral. Gostou tanto dos agrados que recebeu, que continuou a chorar e a lamentar-se depois de passada a dor. Essa fraude o atormentou todo o dia, e a sua lembrança, cinquenta anos depois, ainda o guardava de repeti-la. 2 Exteriormente, quando cresceu, era um menino autêntico, a ponto de ninguém sequer suspeitar o que lhe ia no íntimo; apenas sua mãe e sua irmã mais velha talvez tivessem disto leve noção. A família da residência paroquial era dona de um cão, que se divertia tentando morder o carteiro, e Albert recebeu a incumbência de conservar o animal dessa tentação, sempre que o homem das cartas estava para chegar. Para esse fim Albert usava uma chibata, ficando de vigia no canto do pátio, como um domador de leões. Orgulhoso de si mesmo como era, ninguém poderia ter imaginado a contrição que lhe enchia a alma quando, mais tarde, a sós com o cão, se lembrava de que lhe havia batido. O que não impedia que lhe batesse de novo no dia seguinte, e que logo depois se arrependesse outra vez. Era bem como os demais meninos, na pouco sagrada barulheira que armava na casa pastoral, sempre que o mandavam usar qualquer vestuário ou chapéu que seus camaradas não usassem, e insistia em sair, nos dias da semana, com os barulhentos tamancos de madeira, e sem o casacão em pleno inverno, porque os outros meninos usavam tamancos e não tinham casacos. Mas não revelou que um menino da sua idade, por ele derrotado numa briga, gritara que ele também seria mais forte, se como o filho do pastor tivesse sopa duas vezes por semana. Depois disso, como a sopa custava a descer pela garganta de Albert! Ele não queria nada que os meninos da vila não tivessem também. Tudo isto, em parte, porque eles o chamavam “filhinho de papai”, mas principalmente porque qualquer espécie de privilégio lhe repugnava. Estava decidido não permitir, na medida do possível, que coisa alguma o diferenciasse deles. Queria ser igual a eles internamente, assim como externamente, mas não era tão fácil. Podia, sim, tomar parte na vaia e gritaria com que outros acompanhavam através da cidade um certo mascate judeu, e escarnecer dele, porque outros assim faziam, mas recuou, acabrunhado, pelo sorriso embaraçado e manso da vítima; e, ao voltar para casa pensava na perseguição e no sacrifício de permanecer silencioso no meio dela. O sentimento da tristeza que vai pelo mundo despertou nele bem cedo, e, por entre sua natural alegria sentia-se sempre como que rodeado de sofrimento. Foi o que entressentiu nas feições da figura do Negro, detalhe do monumento de Bartholdi na praça pública de Colmar, dez milhas distante. Nesses semblantes de pedra havia o escultor posto toda a dor desses enjeitados da espécie humana; foi o que nele aprofundou a impressão deixada pelas reminiscências do missionário alsaciano.

Era extremamente sensível aos sofrimentos dos animais. Viu-se perseguido durante semanas pela visão de um velho cavalo a manquejar, puxado por um homem, enquanto outro, por trás, lhe dava pancadas. Certo dia, montando o decrépito cavalo castanho de um vizinho, não resistiu à tentação de chicoteá-lo para fazê-lo trotar, embora visse que o pobre rocim estava esgotado. Para não estragar o divertimento do menino, o vizinho concordou. Só quando desarreava o pobre animal e viu como seus flancos arquejavam, é que Albert percebeu o que havia feito. Que adianta agora, perguntou a si mesmo, cheio de tristeza, olhar para os pobres olhos cansados e pedir perdão em silêncio? Outra ocasião, montando o mesmo cavalo, vibrou o chicote contra um cão bravio que havia saltado de uma porta. O rebenque atingiu o cão num olho, e a dor intensa o fez rolar na neve. Durante semanas o menino viveu num estado que raiava pela angústia. Os sofrimentos dos animais eram para ele tão reais, que não podia compreender por que, nas suas orações, ao deitar-se, mandavam-lhe que orasse apenas por seres humanos. Obedecia, mas quando sua mãe havia dito com ele as orações, ao pé da cama, apagava a luz e saía do quarto, o menino voltava as suas devoções, com uma oração por conta dele, que abrangia todas as creaturas viventes: “Ó Pai do céu – murmurava – protege e abençoa todas as coisas que respiram. Guarda-as de todo mal, e faze que durmam em paz”. Os meninos da vila, seus companheiros de brinquedos, não tinham paciência com aquilo, que lhes pareciam coisas afeminadas, e por isso Albert preferiu guardar para si as suas convicções. Não queria que dissessem que ele era diferente por ser filho do pastor, que algo os separasse, que ele fosse um snob. Quando, pois, num dia de primavera, um amigo o convidou para ir ao bosque com a sua funda para caçarem pintarroxos ou tordos, sentiu o coração fraquejar, mas não ousou recusar. Numa árvore ainda sem folhas, um bando de pássaros chilreava, completamente destemeroso dos meninos que avançavam para ele. O amigo ajoelhou, colocou uma pedra na tira de couro, e fez pontaria. Albert ouviu a Voz Interior bradar-lhe claramente, mas quando o companheiro lhe ordenou que fizesse o mesmo obedeceu passivamente. De repente, nesse momento, os sinos da igreja começaram a tocar, misturando o seu júbilo ao brilho do sol e ao canto dos passarinhos. Para o pequeno Albert, com seus sete anos, eram como que uma voz vinda do alto, exclamando: “Não matarás! Agitou os braços, os passarinhos levantaram vôo, e, deixando o enraivecido companheiro; correu para casa sem tomar fôlego. Esta experiência o abalou, e ficou em sua memória como um dos pontos culminantes da sua infância, porque não somente tornou mais profunda a sua convicção de que matar não era para ele, mas lhe deu também a coragem de emancipar-se das atitudes da maioria. 3 Antes mesmo de ir para a escola da aldeia, seu pai lhe deu lições ao piano do avô Schillinger. O pastor Schweitzer tinha poucos conhecimentos de técnica,

mas a música que estava no menino saltou ao encontro da música que estava no pai. Bem depressa ele também descobriu que, sem esforço, podia fazer coisas nas teclas que felizmente se tornavam melodiosas harmonias. Perguntou a sua primeira professora porque tocava as melodias dos hinos com um dedo só, quando a gente pode tocá-las muito mais agradavelmente com as duas mãos; e imediatamente fez uma demonstração com toda a força. Percebeu que a professora o olhava de modo esquisito, e sentiu-se envergonhado da sua exibição. Havia pensado que todos os meninos pudessem tocar coisas daquele jeito. Mas a professora não lhe guardou rancor, e, de fato, ele a achou excepcionalmente amistosa daí por diante. Quando tinha cerca de oito anos, escutando de uma sala vizinha uma classe de canto de meninos maiores, ouviu pela primeira vez cantar a quatro vozes, e ficou tão fora de si que teve de apoiar-se na parede para não cair. Nesse ano começou a tocar órgão, embora suas pernas a muito custo alcançassem os pedais. Mas ele crescia depressa, e um ano depois, pela primeira vez tomou o lugar do organista, num culto na igreja de seu pai. 4 Na escola não foi nada brilhante. Bem devagar aprendeu a ler e escrever, mas discutia tudo quanto lia, o que é o único meio de conhecer. Devorava as histórias da Bíblia, e muito cedo aplicou a “alta crítica”. A história dos Magos o empolgou. Mas teve de apoiar-se na parede para não cair. Nesse ano começou a tocar órgão, embora suas pernas a muito custo alcançassem os pedais. Mas ele crescia depressa, e um ano depois, pela primeira vez tomou o lugar do organista, num culto na igreja de seu pai. Albert foi enviado à escola numa antiga e pequena cidade, com uma elevação chamada a Colina do Monge, em memória da abadia beneditina que havia dominado o vale durante séculos, e um romântico alcantil, ali perto, pelo qual um rio se despenhava fragorosamente. De tal maneira amava a beleza da região, pela qual a estrada para Münster seguia seu curso sinuoso, que fugia à companhia dos outros meninos de Günsbach, que frequentavam a mesma escola, a fim de estar a sós com seus pensamentos. Aqueles campos de cores vivas, dispostos como um tabuleiro de xadrez; aqueles bosques bem tratados, onde a viva imaginação de uma criança não podia deixar de ver os elfos brincando de esconde-esconde, e os barbudos anões sentados solenemente em tamboretes para saudar os viandantes! Através das manchas de luz e sombra, qualquer menino podia ver os cavaleiros de armadura cavalgando para Schwarzenburg, cujas pitorescas ruínas se erguiam entre as ramagens do Schlosswald. Pelas longas aléias de faias de troncos lisos, certamente o próprio Deus passeava, protegendo seus filhos – as lebres, os esquilos, o veado que Albert via ao escurecer, aqui e ali, levantando abruptamente os chifres. Os pássaros que cantavam ao romper da aurora, por certo Deus providenciaria para que não sofressem, quando chegassem os ventos gelados e caíssem as neves. Passeando pelos bosques, ou sentado no rochoso promontório, que se elevava por sobre os vinhedos, dominando a vila, o menino pensava muito no sofrimento,

que parecia não poupar nem os homens nem os animais. O sofrimento estava no seu próprio lar, onde o pai, havia anos se arrastava penosamente, vítima de reumatismo muscular e de enfermidades do estômago. A mãe estava sempre sobrecarregada, com cinco filhos para alimentar e vestir, apenas com o salário de um pároco rural. Qual o sentido desse sofrimento? e que poderia alguém fazer para remediá-lo? Com que diligência e cuidado devíamos evitar aumentá-lo! Começou a perceber que o homem não tem o direito de causar dor ou morte a outra creatura vivente, a não ser em caso de urgente necessidade. Como é terrível causar sofrimento e morte por simples descuido ou inadvertência! Seus companheiros julgavam-no um maluco sentimental. Pois não! se isso era loucura, ele seria um louco. Tomou sua decisão: nada havia de embotar seus sentimentos a esse respeito. Nas suas idas e vindas a caminho da escola e da casa, tentou transformar em poemas os seus pensamentos. Um verso, talvez, ou dois ou três, e depois esbarrava numa barreira intransponível. Decididamente, não era poeta. Tentou desenhar o romântico e velho castelo que se erguia à sua margem da estrada, e também fracassou. No piano e no órgão, porém, era diferente. As melodias fluíam como linfa pura e cristalina por entre as pedras que eram as teclas... 5 A despeito do sofrimento que sentia ao seu redor, e da nuvem que pairava sobre sua própria casa, o menino reconheceu bem cedo que era um favorito da sorte e, como o Salmista, também ele tivera herança feliz. Fosse a casa pastoral úmida e pouco ensolarada; embora sua mãe desse de rédeas ao famoso mau gênio dos Schillinger e manejasse a vara – o certo é que todos se amavam mutuamente, e mais que todos o pai e a mãe; a família era unida no amor a Deus e aos homens; havia paz no lar, paz nos corações. A disciplina doméstica era rígida, mas de tal modo permeada de amor e iluminada de risos, que foi o amor, e não a compulsão, que ficou na memória das crianças. Cinco meninos e meninas e mais seus amigos – sempre bem recebidos – contribuíam para encher de tumulto a casa. Mas pastor Schweitzer e sua dinâmica esposa sabiam que mesmo tumulto deve, de algum modo, ajustar-se aos padrões de um lar cristão. O piano do avô Schillinger contribuía também para o rumor e a confusão de cada dia.

Capítulo 3 Aos dez anos, foi Albert enviado ao colégio, o Gymnasium de Mülhausen, na Alta Alsácia. A cidade era famosa pelas suas tecelagens de algodão, suas experiências sobre alojamentos industriais, e sua longa tradição de independência. Sob o Sacro Império Romano fora cidade livre, e depois república, com um colégio de liberdades civis acima de tudo quanto a moderna democracia pudesse exigir. O lar do cidadão era a sua fortaleza. Acusado que fosse de qualquer crime, mesmo de assassínio, nenhum beleguim podia entrar na casa, e o juiz procedia ao inquérito permanecendo fora, na calçada! Por algum tempo, a cidade fora um Cantão livre da Suíça. Três quartos de século antes de Schweitzer nascer, a cidade pedira e obtivera a sua inclusão na República francesa. Mudando-se para Mülhausen, Albert ouviu falar muito menos de liberdade do que de disciplina, por parte dos seus tios-avós paternos, em cuja casa ficou alojado. Tio Luís era superintendente das escolas primárias da cidade, e por conseguinte revelou um interesse, tanto profissional quanto familiar, em que este seu afilhado recebesse a educação que lhe era oferecida. Em verdade, era muito mais do que um competente educador, e combinava dons excepcionais de organizador com um genuíno talento musical e um espírito profundamente religioso. Tia Sofia, como toda mulher sem filhos, tinha convicções muito firmes sobre a maneira de criar meninos. Os dias de Albert foram regulados minuto por minuto. De manhã, escola; depois do almoço, piano, mais escola, exercícios escolares em casa, e outra vez piano. Às tardes dos domingos, possivelmente um passeio afinal. Isto, e nada mais, no capítulo das recreações. A vida no silencioso apartamento, residência oficial do tio Luís, tendia a tornarse erma e fria para o menino de dez anos, que viera da casa rural onde fora feliz e livre de inibições. Sentia desesperadas saudades do pai, tão bom, da mãe, tão dedicada e enérgica; saudades das belezas da natureza, dos campos e das flores, do mundo limpo e claro da floresta em que viviam os anões e as fadas. Refugiou-se então aos seus sonhos, e quando o supunham entregue às frações, ou às conjugações latinas, lá estava ele imaginando o que estariam fazendo os irmãos e as irmãs para porem em polvorosa a casa pastoral; ou cismava sobre o que produzia os flocos de neve; ou por que razão os homens sofriam... O diretor mandou chamar o pai: se Albert não estudasse mais, perderia a bolsa de estudo que lhe cabia como filho de pastor. Talvez fosse melhor encarar os fatos e retirar Albert do Gymnasium. Alguns meninos tinham jeito para a educação superior, outros... O pai não o repreendeu. Seu desapontamento era

tão profundo que não dava lugar à cólera. Mesmo assim, Albert não sentiu nenhum desejo de entrar nos eixos. Todavia, três meses depois ele figurava no grupo superior da sua classe. O milagre fora produzido, inconscientemente, por um novo professor, que desempenhava suas funções com tal precisão, que o menino não suportou a idéia do que semelhante modelo pensasse dele, se continuasse indolente como andava. Suas notas subiam em ângulo agudo. Mas, o que era mais importante, começou a escrever, aos poucos, o que significava ensinar. Não era encher de fatos a cabeça da gente, nem mesmo treinar outrem a pensar. Pôr-lhes diante dos olhos o exemplo de uma consciência em ação, isto é que era ensinar. Começou a ler, e leu prodigiosamente. Começar a ler um livro era terminar a leitura de uma assentada. Tia Sofia protestava contra esse “devorar” de bons livros. Ela também gostava de ler, mas com uma diferença. Como havia sido professora, lia por amor ao estilo, saboreava as palavras, demorava-se nos períodos. Uma hora antes do jantar, duas depois, com a regularidade de um relógio, parando as dez e meia, embora estivesse no meio de uma sentença, ou o herói estivesse no meio de um beijo. Albert galopava de um livro a outro, apesar das ordens ou dos rogos da tia, dizendo de si para consigo, em defesa própria, que ele também não era indiferente ao estilo, e que, quando saltava trechos, era um indício seguro de que alguma coisa estava errada. Lia também os jornais de um modo que suscitava de novo a indignação da tia Sofia. Um menino de onze anos nada tinha que fazer com a literatura de ficção da imprensa, nem com as narrativas de crimes, declarava ela, mesmo que estes fossem narrados à maneira discreta da imprensa teutônica. Uma noite, ao jantar, tia Sofia lançou o intertido sobre a leitura de jornais. – Mas eu não estou interessado nos crimes – protestou Albert – é na política. Política é história, história contemporânea. Nós estudamos história na escola. Tio Luís olhou por cima das suas batatas fritas e da salada. – Vamos ver, agora mesmo, se o rapaz está realmente lendo política. Diga-me os nomes dos soberanos dos Estados Balcânicos. Albert enumera-os. – Muito bem – prosseguiu o superintendente das escolas – diga-me agora os primeiros-ministros desses países. O menino desfiou o rosário de nomes difíceis. Em seguida deu jeito de dizer ao tio a composição dos três mais recentes ministérios franceses, e o resumo do discurso de um dos principais membros do Reichstag. Isto resolveu a questão da leitura dos jornais, não só antes da refeição da noite, como também depois dela. Se Albert entremeava um pouco de ficção romântica,

isso era lá com ele, que sabia o que fazia. Mas tio Luís começou a tratá-lo como se fosse adulto, discutindo gravemente com ele, por cima da vitela assada, o estado da nação. 2 Tia Sofia, porém, não fez o mesmo: tinha um dever a cumprir e o cumpriria como só uma tia alemã daquela geração o poderia fazer. Estava decidida a não fraquejar, para não se tornar pedra de moinho no pescoço do menino que lhe havia sido confiado. Oh! as escalas ao piano, às tardes, quando ele queria correr pelas verdes colinas acima ou vaguear pelo monte com os outros meninos! – Você não sabe o que a música há de significar para você algum dia! Justiceira, bondosa e decidida como era, tia Sofia só fraquejou uma vez, mas essa única fraqueza produziu enorme diferença nas relações entre ela e Albert. A primavera estava no ar. Do seu lugar à mesa de estudo, ele podia sentir, mesmo sem vê-la, que a primavera estava a caminho, e que as folhinhas de grama nova estavam a despontar por entre as manchas de neve derretida. Estar lá fora, ao ar livre; sentir de novo o êxtase das verdes encostas e das florestas misteriosas, a emocionante beleza da natureza! Tia Sofia, que passava a ferro perto dele, viu, desta vez, alguma coisa que estava além do alcance dos seus olhos práticos e agudos. – Venha comigo. Vou levá-lo a passeio. Cruzaram a ponte que galgava um dos ramos do Canal Reno- Ródano. Pedaços de gelo flutuavam nas águas escuras. Subiram pela Colina do Veado, até uma área de vilas e jardins fechados, que dominava a cidade fumarenta e as colinas além. Albert inebriava-se com o perfume e a beleza daquela cena familiar, que, havia tanto tempo, não contemplava, e sentia como que uma fina e suave mão pousada no seu coração. A cada momento esperava ouvir a sua companheira dizer que era tempo de voltarem para casa; ela, porém, nada dizia, e ele também se calava; havia entre ambos, agora, um sentimento íntimo de camaradagem. As sombras já haviam caído e era noite fechada quando regressaram. Daí por diante a vida foi diferente. 3 Mas ainda teve de praticar as escalas. Sua mentora teve de cuidar disso durante quatro longos anos, e suportou a relutância com inesgotável paciência. Alguma coisa nela, ou nele, impedia-o de ver uma relação entre as escalas e as harmonias que seu pai tirava do piano do avô Schillinger, para não falar das suas próprias excitantes experiências na tecitura de novas tramas de sons. O próprio

organista da igreja de Santo Estêvam a que fora enviado para uma instrução mais formal, parecia incapaz de ajudá-lo neste ponto. Para falar verdade, alguém ouviu este brilhante graduado da Hochschule für Musik de Berlim observar que, para ele, Albert Schweitzer era tal qual uma dor nas vértebras superiores. Provavelmente, Albert não explicava direito à tia Sofia o que o seu professor queria que ele fizesse durante as horas em que ela o prendia ao banco do piano. Em vez de estudar as peças que o professor indicava, ele tocava o que queria, ou, pior ainda, perdia-se em nebulosas improvisações. Todavia: por trás da sua execução, para não dizer assassínio, dos mestres, havia alguma coisa. Então, esse homem pensava que ele, Albert; ia mostrar-lhe o que significava para ele aquela maravilhosa peça? Nunca! A mãe de Albert era assim: abrasava-se por dentro, com Albert. Mas permitir que alguém o soubesse? Antes morrer. Certa vez, o menino de tal maneira assassinou Mozart, que Herr Münch se enraiveceu, com aquela espécie de desespero que parece característica dos professores alemães de música. Quando sua fúria se extinguiu, abriu um livro de música num dos pequenos “Cantos sem Palavras” de Mendelssohn. – Você não merece que eu lhe dê belas músicas para tocar. Suponho que você vai poluir este Canto, como poluiu o resto. Quando um menino não tem nenhum sentimento, eu não lho posso dar. Ah! É assim? pensou Albert. Pois hei-de mostrar-lhe se tenho ou não sentimento! Conhecia bem aquela peça, e muitas vezes a havia tocado para seu próprio prazer, quando devia ter estado fazendo exercícios de dedilhação. Na semana seguinte lançou-se ao estudo, experimentando mesmo vários jogos de dedos e de toques. Quando chegou a hora da lição, após ter acabado as escalas e o estudo, respirou profundamente, resignando-se a desnudar sua alma, e tocou a peça de Mendelssohn dando tudo que tinha. O senhor Münch falou pouco, mas apertou o ombro do menino, e ele mesmo tocou outro Canto. A seguir deu a Albert, para ensaiar, uma peça de Beethoven. Algumas semanas depois, deu ao aluno e novo amigo uma distinção ainda maior: o privilégio de experimentar a mão no Mestre dos Mestres, Johann Sebastian Bach. Não muito depois, o menino estava ao novo órgão de Eugênio Münch, em Santo Estevam, aprendendo a lidar com três teclados e vinte e seis registros. Resplandecia de gozo e orgulho. Sessenta anos depois, ainda não se havia dissipado a sua gratidão por haver tido por mestre a Eugênio Münch. “Sua interpretação – escreveu – tinha uma limpidez, uma vivacidade de expressão, uma arquitetura musical que raramente tenho encontrado, mesmo nos mais famosos organistas.” Seu professor deixou-o tomar parte numa execução do “Requiem” de Brahms, e pela primeira vez aprendeu aquilo que, nas suas reminiscências, chamou “o

enlevo de deixar o órgão lançar suas ondas sonoras dentro das harmonias da orquestra e do coro”. Aos dezesseis anos ouviu “Tannhäuser”, e por muitos dias viveu dentro de uma nuvem de luz, com sério prejuízo para seus estudos em casa. Recebeu a Confirmação aos catorze anos. Na Alemanha do século 19, na década de 80 a 90, a Confirmação era parte inevitável do ritual da adolescência. A gente ia à escola, ou ao Gymnasium (se o pai podia com a despesa e se você tinha miolo para aguentar o passo), estreava calças compridas (ou saia), agonizava com o primeiro amor, tinha cachumba e era confirmado (às vezes sem saber em que). O ato solene – em verdade, era soleníssimo, na atmosfera do Domingo de Ramos, com os sinos cantando entre a alegria da primavera em início – era precedido de um ano de aulas semanais de instrução nos elementos da fé luterana. Albert esperava ansiosamente o ensino que um velho e bondoso clérigo de Mülhausen ia ministrar-lhe. Aos catorze anos, sua mente e seu espírito estavam ambos em estado de incandescência. Tudo que era grandioso parecia-lhe possível. Remover montanhas? Por que não? Um idealista? Decerto. Como é possível ser cristão sem ser idealista? Todavia, quando fazia essa pergunta, parecia-lhe que todos ao seu redor, todos aqueles a quem ele respeitava, admirava e até reverenciava davam um suspiro triste e ficavam silenciosos. Os mais idosos, que visitavam a casa de seu pai, ou se sentavam à mesa de tia Sofia falavam de idealismo – que era, desde Hegel, a palavra-chave do pensamento germânico – e suas conversas terminavam sempre por um suspiro. Sim, era muito bom ter ideais e como havia sido maravilhoso acreditar neles! Outrora a gente havia flamejado de entusiasmo, mas, naturalmente, quando nos tornamos homens pomos de lado essas coisas. O que Albert pôde colher dessas conversas foi isto: que a desilusão era um passo essencial para se obter aquela maturidade, aquela perfeição da personalidade que se esperava de um homem. Mas ninguém parecia alegrar-se com isso. Nos melhores homens que conversavam com seu pai ou com tio Luís o menino percebia um foco de insatisfação. Esses homens olhavam para as aspirações e nobres causas da sua juventude como algo precioso a que se deviam ter aferrado. Contudo, aceitavam como lei natural a incapacidade do idealismo para manter-se. Por dedução, se não diretamente, eles chegavam mesmo a avisar amavelmente o adolescente de que, algum dia, ele viria a reconhecer que muito daquilo que agora mais amava era pura ilusão. O menino ouvia as conversas e não fazia comentários. Rapazes de catorze anos não se metiam nas conversas dos mais velhos, pelo menos na Alsácia de 1880. Mas no íntimo ele se rebelava. Então, a desilusão fazia realmente parte desse negócio de crescer? Santo Deus! Teria ele, algum dia, de olhar para trás, para a

sua juventude, com o mesmo sentimento melancólico de nobre futilidade? Não! Nunca, se o pudesse evitar! Jamais se resignaria a essa trágica sisudez. Que fazer? A classe de catecúmenos para a Confirmação, dirigida pelo pastor Wennager, parecia-lhe uma oportunidade enviada por Deus para descobrir o que fazer. Mas logo soube que, na opinião do pastor, fazer perguntas era prerrogativa exclusiva do professor. Não estimulava os ouvintes a fazerem perguntas. O Evangelho era matéria de fé e não da razão, e na presença das realidades da fé, afirmava o pastor, a razão deve ficar caladinha. Quanto a isto, Albert alimentava idéias próprias. A razão nos foi dada – dizia de si para consigo – para que possamos compreender realmente as concepções da religião, mesmo as mais elevadas. Não discutiu o assunto, mas esse pensamento, que logo se tornou convicção, encheu-o de serena alegria. O pastor, como antes acontecera com o professor de música, nem suspeitava o que se passava no íntimo do forçudo rapaz de catorze anos. Chamou Albert ao seu escritório para uma conversa de alma para alma. Achou-o reticente e evasivo. Albert gostava do idoso senhor, e apreciava a terna solicitude dos seus esforços no sentido de descobrir os pensamentos e resoluções com que preludiassem o momento solene em que se uniria à igreja. Mas, deixá-lo olhar dentro do seu coração? Deixá-lo ver as chamas de aspiração que se erguiam para consumir, uma após outra, as barreiras que havia entre ele e Jesus? Isso nunca! A conversa acabou em fria separação. O pastor disse a tia Sofia, com muita tristeza, que para Albert a Confirmação evidentemente nada significava. A verdade era que o rapaz estava tão emocionado pelo caráter sagrado do rito que se ia realizar, que pouco lhe faltou para adoecer. Quando, no grande dia, Eugênio Münch evocou, ao órgão, os grandiosos esplendores do “Erguei Para o Alto os Corações”, o coração de Albert parecia prestes a estourar. 4 Para um adolescente de menos de quinze anos, de inteligência tão brilhante, como Albert Schweitzer, tão independente na resolução das suas próprias idéias, e tão teimoso em sustentá-las, o colégio era algo que devia ser interessante e até excitante. Em matemática e línguas ele viu que produzia na razão direta do seu esforço, mas em história era brilhante, trabalhasse ou não. Aqui a paixão pela leitura, a voracidade intelectual que tia Sofia tanto se havia esforçado para reduzir aos limites de respeitável temperança, ajudou-o muito. Além disso, seu professor era um erudito original, que o tratava menos como aluno do que como amigo. No Gymnasium a ciência era tratada como enteada; os livros de texto eram obsoletos e os professores sabiam reproduzir as fórmulas, mas pouco entendiam do que elas significavam. Livros e professores, pareciam a Albert um tanto prolixos e arrogantes, demasiadamente relutantes em admitir a exiguidade do conhecimento da natureza. Como era absurdo crer

que compreendessem verdadeiramente o mistério do vento e da chuva, da neve, do granizo e das nuvens, da combustão espontânea, do trovão e do raio, das monções e das correntes equatoriais. Quanto à “energia” e à “vida”, que os cientistas classificavam e rotulavam tão impecavelmente, não eram elas inexplicáveis por sua própria natureza? Como em anos anteriores, ele tornou a sonhar, empolgado pelas maravilhas do mundo ao redor. Uma gota de chuva podia fazê-lo esquecer o tempo, o alimento, e até o trabalho. Para um rapaz sob a tutela de tia Sofia era isto um lapso muito sério. Mas a sede de conhecimento que na contemplação de um floco de neve o arrebatava; conservou-o em equilíbrio. Não era apenas no mundo natural que ele enfrentava o mistério do Incognoscível. Também os fatos históricos estavam como que imersos num nevoeiro, que se abria só por um instante, para logo depois fechar-se, tantalizante, revestindo de grotescas proporções o que revelava. Dedicado, como era, ao estudo da história, chegou gradualmente à conclusão de que o homem nunca poderá compreender realmente o passado. O mais que pode fazer é descrever-lhe uns fragmentos, na razão que os discernisse. 5 Aos catorze anos, sua fome de saber e de compreender, a resolução da sua mente honesta de pesquisar e enfrentar as realidades da existência (combinadas, sem dúvida, com a compreensão que ele possuía da sua própria capacidade), fizeram de Schweitzer por algum tempo um flagelo, uma verdadeira praga para todos. Esquecida estava a atitude de reserva que herdava de sua mãe; esquecidas as injunções de tia Sofia, e a velha tradição teutônica que exigia, da parte dos jovens, uma atitude de modéstia perante cabelos grisalhos. O adolescente lançava suas opiniões em qualquer conversa, desafiava qualquer afirmação, discutia qualquer assunto. O que o dominava não era apenas a mania de controvérsia: sentia uma apaixonada necessidade de pensar e de inquirir de outros, para saber o que eles aceitavam como verdadeiro. Estava possuído da convicção de que, se o homem quisesse progredir, a inteligência e o conhecimento deviam suplantar a ignorância e as opiniões vazias, e que ele mesmo devia iniciar, sem demora, esse magno empreendimento que era a existência humana. Como o Velho Marinheiro, ele agarrava todo ser humano que lhe cruzasse o caminho, desfechando-lhe perguntas de caráter vital; e fazia quanto podia para transformar em graves dissertações as conversas banais de algum círculo social. Era necessário desmascarar a falácia da mente convencional! que a verdade fosse revelada! Conversação? Mero bate-papo sobre isto ou aquilo? Palavrório! Conversar era iluminar! Pobre do sisudo rapaz! ai dos seus bons propósitos! Muitas e muitas vezes, em Günsbach e em Mülhausen, o resultado eram respostas ferinas e

descomposturas. Ele era, em verdade, tão insuportável quanto o pode ser um rapaz razoavelmente educado. Foi essa ansiosa busca da verdade que provocou o único atrito entre pai e filho. O pastor não costumava proferir palavras rudes, mas, quando ia visitar alguém em companhia do filho, exigia ele a promessa prévia de que não estragaria o dia “imiscuindo-se estupidamente” na conversa. Albert, que no íntimo do seu coração, era humilde e devotado ao próximo, embora um pouco menos do que à verdade, fazia o que podia. Tornou-se uma das principais disciplinas da sua vida suportar conversas que não passavam disso e ouvir, sem protesto explícito, inanidades convencionais. Gradualmente, voltou a ser um membro civilizado da sociedade. Pelo menos externamente... 6 A harmonia voltou à casa pastoral, em Günsbach, assim como ao apartamento do superintendente, em Mülhausen. Na casa pastoral a harmonia era maior do que nunca, porque, depois de muitos reveses, a fortuna estava sorrindo abertamente à família Schweitzer. Uma prima remota havia deixado à mãe de Albert seus modestos haveres. A comunidade protestante adquirira uma nova residência pastoral, cheia de sol, com um jardim, e assim a saúde do pastor melhorava dia a dia. Albert ia para casa todas as férias, divertindo-se à vontade, feliz por estar livre da disciplina e do rigor que, sob os olhos de lince de tia Sofia, o mantinham no caminho reto e estreito durante todo o período escolar. Sua mãe não admitia tolices, mas ele sentia-lhe a compreensão e simpatia, mesmo para com as suas loucuras. Entre ele e o pai não havia nada desses atritos que tantas vezes esfriam as relações entre a nova e a velha geração. Albert não achava motivo para imaginar que não era compreendido, nem o pai lamentava um abismo imaginário entre ambos. Eram amigos, e pareciam contemporâneos. O filho podia falar com seu pai sobre os pensamentos que lhe agitavam a mente: o porquê do sofrimento do mundo, esse problema que ele levara consigo desde a infância, e que se ia tornando mais agudo e persistente à medida que se aproximava da virilidade; sobre a compreensão, que lhe havia chegado ultimamente, de que não devia aceitar como um direito natural a excepcional felicidade que gozara e a felicidade que estava gozando ainda agora. Bem quisera persuadir-se de que seus dons eram apenas boa sorte, e que ninguém tinha nada com isso. Mas uma Voz íntima não lhe permitia repousasse nesse leito de rosas. A Voz estava dizendo que todo aquele que é cumulado de alegria e beleza tem uma dívida a que não pode fugir. Quem não conhece a dor tem o dever de aliviar o sofrimento dos menos afortunados.

Albert não queria ouvir essa Voz, e períodos havia em que não a escutava sentindo-se livre para dirigir sua própria vida, fazer planos, sonhar com o futuro. Ela, porém, sempre voltava, e falava com insistência cada vez maior. Havia demasiado sofrimento no mundo. O homem tem de pagar a Deus e à humanidade pela grande felicidade que possui. Seriam esses pensamentos alheios à mente do pastor Schweitzer? Estranhos, certamente, nos lábios de um rapaz de dezesseis anos; estranhos, talvez, em quaisquer lábios no começo da última década de um século complacente; mas não eram estranhos ao pastor de Günsbach, que pregava o Evangelho de Cristo a camponeses carregados de trabalho, e que desde tempos imemoriais conheciam o peso do sofrimento. 7 O exame final de um estudante que se graduasse no Gymnasium é, ou era na juventude de Albert Schweitzer, uma solene e terrível provação, com todo o corpo docente, alinhando como um supremo tribunal, enfrentando um estudante metido na sua primeira sobrecasaca preta. No caso de Albert, a solenidade foi prejudicada pelas calças, que tomara emprestadas, para a ocasião, de um tio que era baixo e gordo, ao passo que o nosso jovem era alto e magro. Seus camaradas estavam sobre brasas, enquanto marchavam com ele para o salão de julgamento, e alguns dos professores sorriam à socapa. Mas não sorriu o examinador-presidente, importado de Estrasburgo, que julgava a hilaridade fora de lugar, e fez o possível para secá-la no nascedouro. Torturou o pobre Albert sem dó nem piedade, pondo à mostra os espaços vazios nos conhecimentos do rapaz, com uma espécie de maligna satisfação. Mas, quando chegou a vez da História, a violência do seu ataque abrandou. Era historiador ele mesmo, e ficou tão encantado com o evidente deleite de Albert nesse campo, que deixou abruptamente de examinar, passando a conversar com ele. Assim terminaram os dias escolares de Albert Schweitzer.

Capítulo 4 Quatro meses depois foi Albert a Paris. Tinha dezoito anos. O alto e vigoroso rapaz de olhos de artista, colocados fundo sob a larga fronte e os escuros cabelos revoltos, nunca havia saído da sua província natal, nem visto cidade maior que Estrasburgo, capital da Alsácia. Todavia, já estava maduro; era um pensador de mentalidade excepcionalmente independente, e um músico de tal distinção, que o organista de Santo Estevam, em Mülhausen, lhe havia dito estar preparado para ser organista em São Sulpício. No começo de outubro de 1893, graças a uma tia que morava em Paris e lhe conseguiu a apresentação, Schweitzer achou-se na presença de Charles Marie Widor. Sucessor de César Franck como professor de órgão no Conservatório, revelou personalidade singularmente cativante. Próximo dos cinquenta anos, combinava, como só um parisiense pode fazer, a sofisticação de um homem de sociedade com a simplicidade de um grande artista. Se o campônio alsaciano se sentiu encantado diante desse virtuose e mestre, cujas óperas e peças de orquestra haviam sido tocadas diante dos mais exigentes auditórios da Europa, não deixou o gelo de se derreter em barro. É que o parisiense tinha em sua família algo da Alsácia, seu avô húngaro havia sido vendedor de órgãos em Colmar, apenas dez milhas ao leste da aldeia em que Schweitzer havia passado a infância. O moço perguntou se podia tocar alguma coisa ao órgão. – Tocar o que? perguntou Widor. – Bach – foi a resposta – Bach, naturalmente! O francês nem podia imaginar as emoções que agitavam o moço, quando tomou lugar diante do majestoso instrumento construído por Cavaillé-Col, o mestre dos construtores de órgãos da Europa. Por que, dizia o rapaz de si para si, por que pensara, um momento sequer, que o grande Widor se incomodaria em ensinar um rapaz desconhecido, vindo de uma província que França perdera? Se o próprio Widor estava inclinado a pensar o mesmo, não pensou assim por muito tempo. Reconheceu que ali não estava um jovem comum, que, quando muito, pudesse nutrir a esperança de, algum dia, tocar hinos em alguma igreja obscura. Era um musicista inteligente dotado de imaginação e insondável profundeza de sentimento; e, ainda mais, de um extraordinário conhecimento do gênio imortal que reverenciava.

Com a respiração suspensa, o moço esperou o veredicto. Sim, disse o mestre – e cinquenta anos depois Schweitzer ainda era incapaz de descrever o calor desse julgamento – ele aceitava “monsieur” Schweitzer como aluno. O jovem ia ter certo número de lições antes de voltar para casa, para a reabertura da Universidade, e voltaria a Paris sempre que pudesse. 2 Nos últimos dias daquele mês Schweitzer matriculou-se em Estrasburgo, para estudar teologia e filosofia. Depois de uma carreira que refletia as violentas alternativas do domínio alemão e francês na província, a Universidade havia sido renovada pelas autoridades germânicas, logo depois da guerra franco-prussiana. Decididas a começar seu governo, pelo menos no campo educativo, num alto nível, haviam enviado à nova instituição os mais capazes e jovens elementos do sistema educacional alemão. Haveria melhor maneira de conquistar um povo dividido em política, em religião, e em seus próprios corações, do que apresentar-lhe o que de mais elevado existia na cultura alemã, no espírito alemão? Nova em anos, a Universidade era também nova no espírito, mais livre, por conseguinte, do que a maioria das instituições germânicas de mais alto nível cultural, das paralisantes garras do tradicionalismo. Nada havia, porém, de imaturo ou hesitante na Universidade, como há, com frequência, nas universidades americanas que contam apenas vinte anos. Havia sido fundada no século dezesseis, e na sua nova fase retinha mais do espírito da Reforma do que porventura agradasse à população predominantemente católica. A própria cidade estava permeada de tradições, que remontavam à época anterior à ocupação romana. Era uma bela cidade, sua beleza se revelava progressivamente aos olhos do visitante, à medida que este subia a escada circular, dentro da soberba torre da igreja de estilo gótico. Vista da plataforma acima da fachada, Estrasburgo parecia uma cidade de clarabóias, milhares delas, em fileira, pequenas, sonolentas, de olhos meio abertos, às vezes uma dúzia ou mais num único telhado comprido e inclinado. Subindo mais alto pela torre, o visitante perdia de vista o exterior das pitorescas e velhas casas, e olhava para os pátios com varandas de madeira, roupas estendidas para secar, flores multicores. Subindo um pouco mais, via os jardins dos terraços, com pombais e tufos de oleandro, ninhos de cegonhas com os barulhentos filhotes a reclamar alimento. Mais alto ainda via as verdes muralhas da cidade fortificada, o rio com seus meandros, os canais, as estradas entre os campos cultivados, as vilas espalhadas, a fita brilhante do Reno, franqueada de salgueiros ou filas de álamos, e, mais além, escura e tentadora, a Floresta Negra. A Catedral era o coração da cidade, a cujas palpitações pareciam responder as dos corações dos seus habitantes.

As universidades germânicas davam menos importância à assistência às aulas do que à pesquisa independente. Conferências sobre os três primeiros Evangelhos lançaram Schweitzer à leitura de comentários, e estes o fizeram pensar por si mesmo. A mente indagadora que, na infância, procurava descobrir como a Sagrada Família podia ter sido pobre, quando os Magos do Oriente haviam dado ao Menino Jesus tanto ouro e tantas pedras preciosas, começou agora a focalizar problemas teológicos mais vitais. Havia passagens nos Evangelhos, parecia-lhe, que não tinham sentido, pelo menos na base dos dogmas aceitos. Por outro lado, havia episódios que não se enquadravam no resto da narrativa, e, no entanto, tinham o cunho de historicidade. Como podia ser isto? A paixão pela verdade, que o havia tornado uma peste aos catorze anos, não admitia transigências. Disseram outros, mais acomodatícios, piedosamente, que a Bíblia era a Bíblia, e quem eram eles para discuti-la? Nada disso com o jovem Schweitzer! Ele discutia cada uma das suas palavras. A verdade! era o que importava. A verdade! Não importavam as teorias que ela derribasse, nem os bolorentos dogmas que solapasse. Havia, por exemplo, aquele episódio no Evangelho segundo Mateus, quando Jesus envia seus discípulos. Eles deviam anunciar ao povo as boas-novas de que o fim do mundo natural estava próximo, e que o Reino supernatural estava iminente. Não seria missão fácil, disse Jesus. Como seus seguidores, maus tempos os esperavam. Haveria perseguições, e nenhum deles seria poupado. Mas não teriam concluído o giro das cidades e aldeias de Israel antes que o Reino chegasse. Presumivelmente os discípulos fizeram o giro e voltaram. Mas, a julgar pelos registros, nada acontecera. O mundo continuou como antes. Quanto a perseguições, nenhum daqueles ardentes arautos do novo dia sofrera um arranhãozinho que fosse. Jesus, ao que parecia, se havia enganado. Mas estava Jesus sujeito a errar? Pois, se ele era divino? O professor de Schweitzer, o eminente e erudito pesquisador bíblico Heinrich Holtzmann, explicou que essa passagem era, evidentemente, uma adição posterior à história de Cristo, feita, após a sua morte, por seus seguidores. Schweitzer ouviu, mas não se convenceu. Como podia alguém acreditar que outra geração ousasse pôr nos lábios de Jesus palavras que haviam sido desmentidas pelos fatos subsequentes? Não: essa solução do problema era fácil demais. Alguma coisa estava errada, num ponto qualquer. Quais teriam sido, então, os fatos reais? Enquanto o jovem teólogo estava meditando nesse problema, o Kaiser estendeu o braço e o arrastou para o Exército alemão, para um ano de serviço militar

obrigatório. Se o conscrito alsaciano sentiu algum ressentimento por essa interrupção dos seus estudos, dele não deixou rastro na sua autobiografia. Era forte como um boi, e exultava na sua força. Tinha a habilidade manual de um camponês, e com isto se alegrava. Exercícios militares debaixo do sol ardente, por horas e horas, não o amedrontavam, nem as marchas forçadas e os combates simulados, entre os perenes encantos da Floresta Negra e dos Vosges, Mas levou consigo um Novo Testamento grego e um exemplar dos comentários de Holtzmann, entremeando exercícios e manobras com o estudo dos textos originais e erudita exegese. Terá existido alguma vez, dirá alguém, um recruta que, depois de um dia inteiro no campo, perseguindo um inimigo imaginário, se conservasse acordado à noite, ruminando dolorosas questões teológicas? Como podia Jesus ter levado seus discípulos a esperar acontecimentos que nunca se deram? E quais teriam sido os sentimentos do mestre, quando as coisas se passaram de maneira diferentes da que havia esperado? Existem elementos na história, imediatamente depois deste episódio narrado por Mateus, que causam igual perplexidade, e que, combinados com o precedente, só podem significar uma coisa. Será possível que Jesus houvesse partilhado da ilusão popular do seu tempo, de que o Reino de Deus viria no meio de uma convulsão apocalíptica da natureza e do homem? Durante um século, o pensamento teológico progressivo havia explicado que parte da glória de Jesus está na rejeição dessa concepção materialista da salvação. O povo de fato se revoltou contra Ele, afirma a teologia moderna, porque pregava um Reino espiritual, um Reino dos Céus no coração. Estariam os modernistas, condescendendo talvez com alguma teologia preconcebida, com o intuito de estabelecer vínculo mais estreito entre Jesus e estas idéias recentes? Para cima e para baixo das quentes e verdejantes colinas da Alsácia Inferior, perseguiam estas indagações o robusto recruta de alma sensível. Possuía ele o dom de fazer uma cousa com a cabeça, e outra coisa completamente diferente com o resto do corpo. Seu bem-humorado capitão, que havia chegado ao ponto de deixá-lo ir ocasionalmente ouvir conferências na Universidade, não achou razão alguma no campo de manobras, para duvidar que o jovem militar estivesse integralmente devotado à técnica de matar em massa. Quando o professor Holtzmann sondou o que Schweitzer teria estudado durante o verão, o moço absteve-se cuidadosamente de insinuar seu erudito mentor que as teorias dele não tinham sentido. Quando chegasse o tempo de mostrar a Holtzmann quão errado estava, ele o faria não em simples conversa, mas num livro. Enquanto isso, fortalecia-se por meio de pesquisas independentes nos Evangelhos sinópticos e nos problemas da vida de Jesus, e alargava seu pensamento por meio de estudos filosóficos. 3

Que tempo maravilhoso, aquele! Que mentalidade, que eloquência, que pensamentos novos e excitantes, que sacudiam as bases da crença, mas serviam para provar se a fé que um homem possuía tinha poder suficiente para se manter! Que ensino! Velho Testamento, Novo Testamento, a Igreja, dogmas, dogmática, ética, teologia prática. Que personalidades! Ziegler, filósofo, professor de ética, sociólogo; Holtzmann, incrivelmente erudito, ligado ao passado mais do que ao futuro; Windelband, com sua espessa barba, que lhe dava aparência de um atarracado duende fugido de um conto de fadas de Grimm, mas cuja história da filosofia era uma obra clássica; estes e outros não menos eminentes, todos trabalhando livremente sob um governo imperial muito sensível em matéria política, mas que deixava a todos plena liberdade em qualquer outro terreno. Os grandes filósofos especulativos, Kant, Fichte, Hegel, empolgaram Schweitzer. De que brilho haviam eles enchido a segunda metade do século dezoito e os primeiros anos do dezenove! Avidamente voltou-se ele para Goethe, que lhes fora contemporâneo, para ver como o maior poeta da Europa daquele período havia sido influenciado no seu pensamento pelos maiores filósofos europeus. Com grande surpresa descobriu que não havia sido influenciado de maneira alguma. Como era possível que aquele titânico intelecto houvesse permanecido dentro da aura dos antigos Estóicos, deixando passar ao seu lado o mais original e poderoso pensamento filosófico depois de Spinoza? Schweitzer foi aos Estóicos e achou a resposta. Ao contrário dos seus predecessores, que haviam lidado com os problemas fundamentais do ser, tentando reduzir toda a existência à unidade na água, no ar ou no fogo, os Estóicos haviam, ao que parecia, escolhido arcar com as questões imediatas que agitam o coração humano – a relação do homem com o universo em que vive, o sentido da vida, a natureza do bem. Ainda mais: haviam feito isto de modo não somente profundo, mas compreensível para a mente comum, e desta maneira tinham estimulado os homens a pensar, a construir uma vida interior e a desenvolver o senso de responsabilidade. Com que lógica retilínea ia ao alvo o pensamento dos Estóicos! Com que firmeza enfrentavam a realidade mesmo quando esta os aterrorizava! Os resultados finais do pensamento estóico podiam deixar de satisfazer o teólogo adolescente, mas Schweitzer não podia fugir à convicção de que estas duas simples maneiras de filosofar eram certas, e não podia compreender por que as gerações seguintes as haviam abandonado. Através dos Estóicos o ávido estudante chegou a compreender a razão por que Goethe se conservara afastado dos gigantes especulativos do seu tempo. A filosofia existia para o homem, e não o homem para a filosofia. O que importava à creatura humana não era a natureza do universo, ou o problema do conhecimento, e sim como enfrentar as situações comuns da vida – sofrimento e dor, casamento e filhos, a morte, o senso da pequenez do indivíduo debaixo das estrelas, a ânsia de segurança. De um lado, o moço via os grandes

pensadores especulativos; do outro, as mentes humildes e na maioria anônimas (com exceção de Goethe) que não ambicionavam senão descobrir a maneira de suportar a vida, ou ampliá-la, e discernir quaisquer desígnios porventura existentes em suas complexidades, frustrações e arrebatamentos. Schweitzer reverenciou os gigantes, mas o seu realismo o atraiu para os pensadores “elementares”. 4 Achou amigos entre os estudantes e nas famílias dos professores, e tornou-se parte integrantes de um grupo de inteligentes jovens de ambos os sexos, atraídos mutuamente pelo comum amor à natureza e por uma inebriante certeza de serem os arautos de uma nova época. Pertenciam a uma dúzia de campos, desde a ciência social até as belas-artes; cada um era um especialista, mas, graças à largueza e profundidade da educação germânica, cada um deles era capaz de discorrer com brilho sobre assuntos dos domínios alheios. Reuniamse, aqui e acolá, passeavam juntos de bicicleta, faziam músicas e lutavam com problemas sociais e estéticos. A concepção da “arte pela arte”, que estava absorvendo a mocidade de toda a Europa, colidia neles com idéias de dedicação ao bem-estar público, alheias à tradicional convicção germânica da obrigação para com o Estado, embora permeadas pelo mesmo senso espartano do dever. Quem inspirava seu pensamento político não era Bismarck, ou o jovem Kaiser Guilherme Il, mas o socialista-cristão Frederico Naumann, que lutava por uma síntese entre a crescente consciência nacional e a aspiração pela justiça social e econômica. A bicicleta era nova naquele último decênio do século 19, um verdadeiro tapete mágico. Pedalar para fora da cidade, ao escurecer, e procurar lírios silvestres ao longo do Reno, era uma aventura. Esconder ovos de Páscoa nas ruínas de algum castelo que se elevava por sobre a floresta, era um encanto. Para Schweitzer, o apelo do mundo verde nunca emudeceu, e sua beleza nunca deixou de refrescar-lhe a mente e o corpo. “Dizem que sou homem de ação – escreveu ele – mas na realidade sou, fundamentalmente, um sonhador.” 5 Filosofia, teologia, amizades, palestras; o inebriamento e o refrigério da natureza; sempre, entrelaçando tudo, Como um fio de ouro, a música. Música nos lábios, na cabeça, nos dedos e nos pés. Estudou teoria com um excêntrico tradicionalista, que se recusava a admitir que depois de Beethoven existisse coisa digna de ser ouvida, mas ensinava admiravelmente o contraponto. O irmão do professor de música de Albert em Mülhausen era organista da igreja de São Guilherme, que distava da Universidade poucos quarteirões. Ernesto Münch havia captado a atenção do público amante de música, até além dos limites da província, pelo que tinha feito para despertar maior apreciação pelos esplendores metafísicos de Bach. Persuadiu a orquestra municipal de

Estrasburgo a que o acompanhasse na execução das Cantatas de Bach, chamando o seu melhor discípulo para tocar o órgão nos ensaios e, ocasionalmente, nas próprias apresentações públicas. A idéia de consagrar-se à música como carreira fuzilava de vez em quando pela mente de Schweitzer, mas ele a repelia. Embora tirasse o melhor resultado possível do seu dom hereditário de improvisação, e fosse um intérprete inteligente do gênio dos outros, reconhecia não possuir o dom da creação musical. Era eficiente como acompanhador, dizia com seus botões, principalmente por ter tido mestres excepcionais. Todavia, essa ótima instrução não era suficiente para explicar o fato de ser ele, aos dezoito anos, maior conhecedor de Bach do que a maioria dos organistas de Estrasburgo. Um pomposo cavalheiro, cujo instrumento fora ouvir, tocou para ele uma grande fuga de Bach. Enxugando o suor da fronte quando terminou, voltou-se para o jovem estudante, dizendo-lhe com superior condescendência: “Agora, rapaz, toque isto, se puder!” Schweitzer sentou-se no banco, fechou o livro de música, e tocou de cor a fuga do princípio ao fim. Ampliou sua instrução em São Guilherme, fazendo rápidas viagens a Paris, passando horas estimulantes com Widor e o órgão de São Sulpício, tendo ao lado, ocasionalmente, seu grande construtor, Cavaillé-Col. Em Paris estudou também piano. Tinha dois professores. Um deles era Marie Jaell-Trautmann antiga aluna de Liszt; ela ensinou-lhe a necessidade de tornar os dedos tão conscientes quanto possível da sua relação com as teclas; o outro, um francês chamado Philipp, que seguia os métodos tradicionais. Nenhum deles tinha boa opinião do outro, e assim Schweitzer resolveu tomar o que cada um tinha de melhor, e ia de um para o outro como uma lançadeira, tocando com felicidade à maneira de Jaell, pela manhã, e seguindo devidamente o estilo de Philipp, à tarde; e não dizia a nenhum deles que era aluno do outro. O teatro municipal de Estrasburgo deu-lhe uma educação compreensiva da música de ópera, especialmente Wagner, e também Mozart, e Gluck, e os compositores franceses e italianos contemporâneos. Tais companhias, mesmo nas menores cidades da Alemanha, eram extraordinariamente satisfatórias na última década do século dezenove. Raramente brilhavam nomes famosos nas paredes do teatro, mas os cantores eram rigidamente ensaiados e habilmente dirigidos, desenvolvendo uma unidade de espírito e de tom raramente igualada pelo Metropolitan de Nova York. Sentia-se mais à vontade com Wagner. Entusiasta de Bach, Schweitzer não via com paciência os esforços para engrandecer os mestres clássicos à custa do mago de Bayreuth. Meio século depois, sua devoção por Wagner ardia com a mesma intensidade. “Sua música é tão grande, tão simples, que faz de Wagner o igual de Bach e de Beethoven” – escreveu na África em 1945. “Tamanha segurança na composição; tão grandiosa arquitetura musical; tal riqueza de temas; tão consumado conhecimento dos recursos naturais de cada

instrumento; tanta poesia, vida dramática, poder de sugestão! Tudo isto é único, insondável na sua grandeza, um milagre de poder creador!” No seu terceiro ano de Universidade, seus tios de Paris lhe deram bilhetes para a representação da tetralogia wagneriana em Bayreuth, revivida pela primeira vez desde a sua apresentação original sob a direção do próprio compositor, vinte anos antes. Limitou-se a uma única refeição diária, para poder custear as despesas da viagem por estrada de ferro. Trinta e cinco anos depois, com a civilização ocidental a desintegrar-se ao redor dele, ainda se lembrava do vilão da peça, o Loge de Heinrich Vogl, lançando sua capa escarlate ora sobre o ombro direito, ora sobre o esquerdo, simbolizando “a incansável força de destruição entre os deuses, apressando-se insensatamente para a sua destronização.” Destruição? Destronização? Na viagem de volta do santuário de Wagner, Schweitzer parou em Stuttgart, para ouvir no Liederballe o novo órgão, que ouvira elogiar. Representaria ele, realmente, o grande passo para a frente na arte da construção de órgãos, como todo o mundo dizia com entusiasmo? Havia notado, com tristeza, que, aqui e ali, excelentes e velhos órgãos de igrejas estavam sendo “modernizados” e arruinados, ou inteiramente postos de lado e substituídos por novos instrumentos, inferiores sob todos os aspectos, salvo pela facilidade técnica de manejo. Haveria alguma coisa a solapar os padrões dos homens? O caos de sons que saiu asperamente do órgão de Stuttgart confirmou os pressentimentos que o haviam obsedado. A construção de órgãos estava retrogradando, e não progredindo. Por que? A pergunta o perseguia, Schweitzer estava decidido a encontrar a resposta. Perguntas semelhantes, em outros campos da atividade contemporânea, estavam provocando nele indagações fundamentais, com relação ao estado do mundo em que ele havia, naquele ano, atingido a maioridade. Todas as pessoas com quem falava, e todos os livros que lia, e que sintetizavam o progresso do século dezenove, tinham por segura a civilização ocidental, e garantiam que ela prosseguiria indefinidamente, de triunfo em triunfo. Progresso? Naturalmente! Para alturas ainda maiores. Não estava sendo vencida a ignorância, por toda parte? Não estava a superstição no seu ocaso? Durante um quarto de século não houvera guerra de grandes proporções, e bastava a alguém olhar para a intrincada teia da vida econômica do mundo para persuadir-se de que a guerra seria a última coisa que seus senhores permitiriam. A facilidade de comunicações, além disso, estava derrubando os muros do nacionalismo. Quase todos viajavam, e os que ficavam em casa liam sobre outros países e outros povos. Estava nascendo uma sociedade internacional. A ciência conquistava diariamente novo terreno, não só na invenção, senão também no pensamento.

O progresso, pela sua própria natureza, era automático, expandindo-se por crescimento celular. Essa unanimidade de opinião impressionou o jovem estudante de teologia, sem o convencer. Desde que havia deixado o abrigo da casa pastoral de Günsbach e do apartamento do inspetor escolar em Mülhausen, para mergulhar no mundo maior de Estrasburgo e de Paris, sentia apreensões e desconfianças quanto à convicção generalizada de que a humanidade estivesse constantemente avançando do bom para o melhor, do melhor para o ótimo. Aqui e ali, na imprensa, notava idéias desumanas apresentadas por homens públicos, e esperava ansiosamente o indignado repúdio do público; mas esperava em vão. Ninguém parecia chocado quando governos e nações propunham e faziam coisas que a geração anterior teria julgado intoleráveis. “Esperteza” era a nova palavra que andava nos lábios de todos. Justiça – a excelsa paixão que iluminara o século dezoito – parecia ter poucos amigos, e estes primavam por sua tibieza. Percebia uma estranha fadiga intelectual e espiritual entre os homens que dirigiam os negócios do mundo. “Nossas esperanças no futuro da humanidade foram postas demasiadamente alto” – pareciam dizer. “Homens práticos devem concentrar-se naquilo que razoavelmente podem esperar atingir.” Lembrava-se das conversas dos adultos sobre idealismo, quando era menino; reconheciam o valor das aspirações juvenis e estavam tristemente convencidos de que os homens “amadurecidos” deviam aceitar a vida tal como a encontram, e aproveitá-la do melhor modo possível. Não seria “fadiga” desta geração o resultado daquela transigência? Ou talvez a transigência fora o resultado de uma fadiga anterior. Que era esta fadiga da mente e do espírito? Seria sinal de que a civilização ocidental já havia terminado a sua carreira, e devia dar lugar a um movimento nascido de mentes mais arejadas, de povos menos artificializados e mais jovens? O opulento século da Luz e o inspirado século das conquistas científicas, que o seguira, seriam eles apenas o último e magnífico lampejo do dia que morre? Schweitzer não podia aceitar essa teoria fatalista. Havia decadência, sem dúvida, mas decadência não é destino. 6 Para Schweitzer, os anos de estudante passaram com a rapidez das férias de verão. Era feliz, e na sua felicidade era bastante objetivo para saber que era feliz. Felicidade! Que é que ele havia dito a si mesmo? Tens de pagá-la? Tens de dar alguma coisa àqueles que nunca a possuíram? Expulsou da mente essa idéia. Por que não havia de gozar? Por que não havia de beber a largos haustos? Demais, não era o gozo vulgar o que ele desejava. Haveria paixão mais sublime do que a busca da beleza e da verdade? – Tens de pagar – dizia a Voz no seu coração.

– Pagar? Mas, como? – Em serviços àqueles que não conhecem a felicidade; àqueles que morrem de fome no corpo ou na alma; àqueles que se estorcem nas garras da dor. Tu, que estás farto, que não conheces a dor, que estás cumulado de bênçãos, tens uma dívida. – Então, a erudição não é serviço? E o pensamento? A busca da verdade? Varrer a ignorância e as concepções convencionais? E a arte, não é serviço? – Os afortunados entre os homens, os que são grandemente abençoados, são eles chamados para um serviço mais imediato? – Que espécie de serviço? – O serviço do coração e das mãos. O ato singelo, sem heroísmo, persistente, diário, o serviço de te dares àqueles que não poderão compensar-te pelo que lhes deres. – Tudo isso? – É demais? – Não! Não é demais, pelo que tive, pelo que hoje tenho. Na casa pastoral de Günsbach, na radiante manhã de um domingo de Pentecostes, Albert Schweitzer estava no leito, ouvindo os passarinhos cantarem ao primeiro calor do novo ano. Que manhã! As macieiras brancas de flores, os lilases pródigos de perfume, a folhagem de um verde tenro quase cobrindo as janelas da igreja, que elevava delicada brecha da sua torre esguia por cima do cálido vale alsaciano. Quem, aos vinte e um anos, não sentiria o coração palpitar de deliciosa alegria, e não recordaria outras delícias provadas através dos anos ricos e felizes? O êxtase de viver exaltou-o de tal maneira, pondo-o como que fora de si, que a Voz, da qual havia fugido, tentando silenciá-la, falou como nunca antes falara. Desta vez ele não protestou. Confusamente, porém, percebeu o que estava sendo convidado a abandonar: uma carreira, o apreço do mundo, triunfo, fama... Na sua consciência surgiram palavras familiares, embora obscuras: “Quem perder a sua vida salvá-la-á”. Até essa data nunca compreendera o que significavam. Nem agora o compreendeu, mas sabia que vinham a propósito. – Tens de pagar... Sim, mas como podia alguém pagar por tantas bênçãos, tão prodigamente concedidas? Como... havia... Jesus... pago? Uma oficina de carpinteiro até aos trinta anos. Sua habilidade no uso das ferramentas. As colinas da Judéia, os campos, o lago, madrugadas e poentes, a lua nova; sua mãe, seus irmãos e irmãs, seus amigos. Gozar tudo Isto

plenamente... até os trinta anos. Depois, Deus e Homem, por todo o tempo que lhe fosse concedido... Trinta. Queria dizer, mais nove anos. Muito podia ele fazer em nove anos. E depois? Que se esperava dele ao fim dos nove anos? Não importava saber! Sabê-lo-ia quando o tempo chegasse. Lembrar-se era o principal. Lembrar-se. Nunca permitir que a resolução falhasse, e que o fogo irracional fosse extinto. O mais estava nas mãos de Deus.

Capítulo 5 Nove anos! Exames... com Windelband muito amistoso, passando depressa sobre os pontos em que suspeitava estar o rapaz um tanto inseguro... Teses... e mais exames. A dissertação sobre o problema de última Ceia, e um doutorado em Teologia. A tese sobre a filosofia religiosa de Kant, e um doutorado em Filosofia. E sempre órgãos... órgãos novos... órgãos velhos... órgãos em remotas igrejas do campo, órgãos em grandes e novas salas de concertos. Órgãos e organistas, órgãos e discussões. Os velhos órgãos melhores do que os novos? Fantástico! Aliás, que sabe de órgãos o jovem doutor? Não muito, diria ele, mas estava aprendendo. Sua intenção era descobrir exatamente o que é que faz bom um órgão, e o que é que está sendo sacrificado quando se faz um mau. Estava em jogo uma questão moral. O mundo está jogando fora uma parte da sua herança; Schweitzer faria tudo que estivesse ao seu alcance para sustar esse esbanjamento. 2 Um prêmio de viagem levou o erudito e brilhante jovem a Paris. Achou antiquados os métodos de ensino da Sorbonne; a Bibliothèque Nationale estava infestada pela burocracia. Mas Paris era Paris, embora Schweitzer não dedicasse suas noites às alegrias de Montmartre. Dedicou-as a Kant, às vezes. todos os seus minutos. Tocar órgão lhe era descanso, sob a direção de Widor. O maior dos organistas da França admitia francamente que seu aluno sabia mais do que ele sobre Johann Sebastian Bach. Um dia, quando juntos estudavam os prelúdios corais, o mestre confessou quanto estes o desnorteavam. “A lógica musical de Bach nos prelúdios e fugas – disse ele – é muito simples e clara: mas torna-se nebulosa quando enceta uma melodia coral. Quanto mais os estudo, tanto menos os compreendo. “Naturalmente, muitas coisas nos corais devem parecer-lhe obscuras – respondeu Schweitzer – uma vez que só podem ser explicadas pelos textos com que se relacionam.” De memória, o moço traduziu em francês os textos dos movimentos que haviam intrigado seu professor. O rosto do francês clareou. Em tardes sucessivas, estavam eles sentados ao piano de Widor, lado a lado, tocando todos os prelúdios corais. À proporção que Schweitzer os explicava, um após outro, o

grande organista começou, para seu próprio espanto, a reconhecer que pela primeira vez estava travando conhecimento com o verdadeiro Bach. “Como!” – exclamou. “Bem sabia eu que ele era um incomparável contrapontista. Mas é muito mais do que isto! É um ser humano, com um sem igual desejo de exprimir idéias poéticas, e capacidade para exprimi-las; uma inimitável ânsia de reduzir à unidade a palavra e o som. Meu amigo – continuou com entusiasmo – por amor aos meus colegas de órgão na França, deve escrever tudo quanto me disse sobre os prelúdios corais de Bach. E deve escrever sobre o fundo da música religiosa alemã do tempo de Bach.” 3 Paris era fascinante. A aliança com a Rússia estava ressuscitando o respeito próprio e as esperanças dos franceses destruídos pela derrota de 1870. Ao mesmo tempo, o “caso Dreyfus” agitava todo o país, dividindo famílias, separando amigos de longa data, tirando os intelectuais das suas torres de marfim e jogando-os ao meio de uma confusão tal como a França não conhecera havia cem anos. Os intelectuais estavam dilacerados pelo conflito, mas, ao que parecia a Schweitzer, não tinham sérias preocupações com o futuro. Os livros daquele período e a imprensa diária pareciam ter por certo não só que o mundo ocidental havia feito coisas miraculosas na ciência e na mecânica, senão também que no terreno intelectual e ético havia atingido alturas nunca dantes alcançadas. Schweitzer duvidava disso. Parecia-lhe que na vida mental e espiritual o ocidente estava não só abaixo do nível das gerações anteriores, mas, sob muitos aspectos vivia das vitórias passadas. Era como um herdeiro estróina a dissipar a fortuna da família. Mas ai de quem ousa dizer tal coisa numa roda de intelectuais! 4 Schweitzer foi a Berlim para estudar filosofia e ouvir prelações de Adolf Harnack, Friedrich Palsen e outros gigantes da Universidade. A despeito da paixão do jovem Imperador por plantar Hohenzollerns de bronze aqui e ali, ao longo das avenidas da capital, o alsaciano gostava de Berlim. Pelo fim do século, Berlim era como uma cidade provinciana que houvesse crescido demais; orgulhosa da sua segurança, da sua música, dos seus teatros, da unidade da sua vida intelectual centralizada na Universidade, e da franqueza com que suas portas se abriam ao estrangeiro. Na imprensa e nos livros que circulavam em Berlim, Schweitzer notou a mesma disposição para aceitar aquilo que era moralmente inaceitável, como já havia notado nos jornais e livros de Estrasburgo e de Paris; o mesmo senso de fadiga moral e espiritual, aliado ao mesmo otimismo quanto ao futuro.

Em Berlim a grande palavra nova era Realpolitik, aplicada especialmente aos assuntos exteriores. Queria dizer: fazer tudo quanto é bom para a nação, sem ter em conta os princípios ou quaisquer concepções da decência. “Aquilo que precisa ser feito, deve ser feito sem olhar para o direito ou para o destino daqueles que são atingidos.” Com palavras mais claras: a força é que faz o direito. Qual a resposta a tudo isto? Ele a encontrou na Aufklärung (Esclarecimento), no século de Bach, de Kant, de Goethe, de Rousseau e de Voltaire. Como os romanticistas escarneceram daquele século! Averbaram-no de seco e descolorido. Todavia, como havia sido brilhante pela sua bondade e sabedoria! Que riqueza de fé e de inflexível heroísmo, mesmo nas coisas simples! Com tudo isso, esse século havia também conservado clara a sua percepção da realidade, seu senso dos direitos humanos e do valor do indivíduo. Na casa da viúva do humanista Ernesto Curtius, encontrou-se com muitas das mentalidades dirigentes da nova Alemanha, eruditos e cientistas, artistas e homens de letras. Uma noite alguns deles, que haviam chegado de uma reunião da Academia de Ciências, estavam discutindo a comunicação que tinham ouvido. Por entre o rumor da conversação geral, Schweitzer apanhou uma exclamação de intensa desilusão: “Ach was! Wir sind ja doch alle nur Epigonen! Qual! Todos nós, nada mais somos senão herdeiros do passado!” Quando ia para casa, essa noite, aquelas palavras ainda lhe soavam na mente. Evidentemente, ele não havia errado muito no seu julgamento da época em que estava vivendo! Não tinha havido progresso, e sim retrocesso! Havia de escrever um livro, que intitularia Wir Epigonen – “Nós, Herdeiros do Passado” – livro em que pintaria o quadro, tal qual o via, de uma grande civilização que, no seu orgulho por conquistas de valor secundário, estava renunciando aos princípios éticos dos quais dependia a sua existência. 5 Viveria a sua própria vida, dissera ele, até os trinta anos. Nove anos! Três havia passado em estudos e meditação e no delicioso exercício dos seus dotes musicais. Havia-se fixado na Universidade e obtido um lugar de coadjutor na Igreja de São Nicolau, assistente dos dois piedosos e velhos cavalheiros que eram seus pastores regulares. Os cultos das tardes de domingo, no velho templo de grande e íngreme telhado e filas de pequenas seteiras, constituíam para ele um deleite particular, porque neles podia usar o estilo simples e íntimo que havia herdado do pai. Tinha o dom de “apanhar os pensamentos maduros da gente –

como disse um dos seus ouvintes – e levá-los mais longe do que eles poderiam ir por si mesmos”. Trabalhava os seus sermões, escrevia-os, confiava-os à memória; e as mais das vezes dava-lhes uma orientação inteiramente nova, no último minuto. O número de seus ouvintes aumentava de domingo a domingo, mas sempre havia uma queixa: seus sermões eram muito curtos! Schweitzer desculpava-se: “Perdoem-me. Os senhores vêem que sou muito moço, e tenho de parar quando minhas idéias se acabaram”. Um dos seus superiores chamou-o e, tão embaraçado quanto o próprio Schweitzer, advertiu-o delicadamente de que, com idéias ou sem idéias, vinte minutos era o mínimo. Três vezes por semana ensinava uma classe de meninos candidatos à Confirmação. Com palavras simples, facilmente compreendidas e guardadas, ensinava as verdades do Evangelho, a natureza da Igreja e a necessidade de reservar uma hora por semana, pelo menos, para adoração, uma “hora solene para a alma”. Dava aos meninos o mínimo possível de deveres para fazer em casa. As lições deviam ser um refrigério, não um sacrifício. Caracteristicamente, não fazia muito cabedal dos dogmas, As crenças tradicionais eram importantes, decerto, mas a palavra de São Paulo ainda era válida: “Onde há o espírito do Senhor, aí há liberdade”. Convinha lembrar, também, que havia limites ao que os homens conheciam, ou podiam conhecer, no campo da religião como no da história; e para algumas perguntas não havia respostas deste lado do infinito. Aqui é que a fé entrava em ação. Não se havia esquecido das suas experiências de menino, e mantinha seu ensino tão próximo das realidades da vida quanto podia, e a si mesmo tão acessível quanto possível às perguntas da juventude perplexa. Um menino parecia indiferente? Lembrava-se então do muito que pode estar no coração de um jovem sem que os mais velhos o suspeitassem sequer. Olhava de frente a questão do idealismo e da desilusão, que havia perturbado a sua própria juventude. Assim, o conselho que dava aos seus meninos não era que estivessem alerta para que a realidade não lhes corrompesse os ideais, mas, antes, que crescessem dentro dos seus ideais, para que a vida não lhos arrebatasse. Além do seu trabalho de coadjutor, seu ensino, suas pesquisas e seus escritos, exercia funções administrativas como guardião do colégio teológico, o que incluia, no seu modo de atender, relações pessoais com os jovens “teólogos” que moravam na escola. Dava-lhes toda a liberdade que podia, mas tinham de trabalhar a valer. Se não o sabiam Schweitzer ensinava-os, ou se, a despeito disso, negligenciassem os estudos – e as tentações em Estrasburgo eram fortíssimas – ele agia como amável acicate. Os estudantes chamados para

prestar exames preocupavam-se de modo especial, e trabalhava então com eles todas as horas da noite. Não lhes perguntava quanto sabiam, mas mostravaIhes quanto sabiam de fato. Alguns dos seus colegas não apreciavam essa solicitude, mas ele não fazia caso. O que importava era que um jovem tímido adquirisse confiança em si mesmo. Incidentalmente, ao lado de todas essas atividades, Schweitzer adquiria experiência no serviço social. Quis contribuir para a educação de crianças negligenciadas ou sem recursos, e ofereceu uma parte das suas espaçosas acomodações oficiais para esse fim. Mas descobriu que as disciplinadas operações mentais da Alemanha oficial eram incapazes de aprender uma concepção tão nova de cooperação voluntária. Havia uma repartição do governo encarregada desses assuntos, e isso era suficiente – muito obrigado. Mesmo quando o orfanato de Estrasburgo foi destruído por um incêndio, a espinha oficial permaneceu rígida. Schweitzer ofereceu abrigo para alguns dos que haviam ficado sem teto, mas nem lhe permitiram terminar a frase com que fazia o convite. O Estado não precisava do auxílio do jovem doutor. Uma vez que não lhe permitiam ajudar as crianças desamparadas, resolveu fazer o que pudesse pelos vagabundos, aliando-se ao coadjutor de uma igreja vizinha na direção de uma espécie de albergue, e ajudando-os com os recursos de que necessitavam e que podia obter dos amigos. De bicicleta ia de um extremo ao outro da cidade e aos subúrbios, ao tugúrio de alguém que pedia auxílio, perguntando a si mesmo se não era um tolo sentimental, ao gastar assim o seu tempo, que poderia usar muito melhor no estudo e em pesquisas. Goethe foi quem lhe deu segurança, o sábio e equilibrado Goethe que uma vez havia posto de lado um trabalho importante para empreender uma jornada, em pleno inverno, para visitar um amigo necessitado de amparo espiritual. Sim, temos de fazer na vida outras coisas mais, além de estudar e escrever, de pregar e ensinar. É o que ele compreendera nitidamente naquela manhã de Pentecoste, sete, não, oito anos antes. Seria então aos vagabundos que ele teria de prestar o “serviço imediato” para o qual havia sido chamado? Não, não a eles. Então a quem? Não achou resposta. Sem dúvida, a resposta viria a seu tempo... Johann Sebastian Bach estava com ele à noite e pela manhã. O ensaio que havia prometido a Widor escrever para os organistas de França estava alcançando proporções imprevistas. Havia planejado completá-lo no decurso de umas férias de outono, na casa pastoral de Günsbach, mas, ao fim de dois meses, percebeu que apenas dera início à obra. Se tivesse que dizer tudo que devia ser dito, escreveu a Widor, seria preciso escrever um livro de vulto. Tanto melhor, respondeu Widor entusiasmado, e ele mesmo escreveria a introdução. Schweitzer, que andava totalmente imerso em estudos históricos, pregando, ensinando e fazendo conferências, tomou um longo hausto e pôs mãos à obra. 6

No seu quarto do Colégio de São Tomás, onde havia passado tantas horas felizes quando estudante, Schweitzer, no meio de outras atividades, prosseguia nas pesquisas sobre a vida de Jesus, que tanto o haviam empolgado durante o seu primeiro ano na Universidade, e no seu período de serviço militar. Estava às voltas não simplesmente com a interpretação de passagens controversas, mas com questões que atingiam o próprio âmago da fé cristã. Não trabalhava apenas para satisfazer a curiosidade ou os altos propósitos da erudição, mas, consciente e deliberadamente, com o intuito de preparar o terreno para uma nova interpretação do universo, essa concepção ainda inescrutável, que havia de trazer nova vida e novos princípios normativos aos séculos vindouros. Quem ousaria profetizar o que seria essa concepção? Podia-se apenas adivinhar que seria a conquista de algum gênio supremo, cuja retitude seria provada pelo fato de que homens como ele mesmo, “trabalhando em nosso Eu pobre e incompleto”, o combateriam até a morte! O intuito inicial de Schweitzer era destruir de uma vez para sempre a concepção, a seu ver errada, da história de Jesus que os teólogos do século dezenove, procurando tornar Jesus compreensível ao seu tempo, haviam tornado canônica. O retrato que esses corifeus haviam traçado era simpático a uma época em que os dogmas se estavam enfraquecendo, e os intelectuais se irritavam com referências ao supernatural; esse retrato representava Jesus como a mais avançada floração da natureza humana no processo evolutivo, e assim o acomodava com a era de progresso social e científico. Schweitzer concordava em que o retrato era atraente. Mas os fatos o apoiariam? Foi Jesus, realmente, o suave liberal como os escritores teológicos e os pintores sentimentais da época o haviam pintado? Não teria sido, ao invés, inteiramente diferente, isto é, um espírito ardente, apocalíptico, um guerreiro, um arauto do Reino de Deus, um Reino supernatural? Se o jovem erudito recuou perante a resposta afirmativa que via aproximar-se nada disto deu a entender. A verdade! A verdade, mesmo que doesse, mesmo que dilacerasse o coração! As profundezas do jovem alsaciano clamavam pelas profundezas do seu Mestre por uma concepção do destino humano menos fantástica, menos superficial, mas não encontrava argumento capaz de contrabalançar a montanha do outro lado. O que encontrou foi algo inteiramente diferente do quadro que a erudição do século dezenove havia tornado popular, mas não menos magnífico. Era a infusão, na tradicional concepção do Reino, de um espírito ético tão poderoso que poderia galvanizar e refazer toda a estrutura social do mundo ocidental. O Reino sobrenatural estava próximo, dissera o carpinteiro Galileu ao seu povo, mas eles não poderiam esperar ter parte nele se nesse ínterim não se preparassem. Nas convulsões que precederão a Vinda, disse-lhes Jesus, haverá uma grande separação: as ovelhas e os bodes, o trigo e a palha, as virgens sábias e as virgens tolas. Preparai-vos para o juízo, exclama ele. Pode vir a qualquer momento, como um ladrão de noite, como o dono da casa que volta de

uma longa viagem. Provai que estais prontos para o Reino, venha quando vier. Sede humildes, sede misericordiosos, sede honestos com vós mesmos, sede puros de coração. Esquecei-vos do vosso indumento e pensai no Reino. Tende fome e sede de justiça. Tornai bem por mal, e aceitai o que vier como consequência. Fazei aos outros o que desejais que os outros vos façam. Curai os enfermos e pregai o Evangelho. Sede como crianças. Confiai. Crede. A magnificência dos ensinos morais de Jesus abalou Schweitzer, enquanto os estudava de novo à luz das predições de Jesus tangentes ao iminente fim do mundo. Seria possível, perguntava-se a si mesmo, que uma consciência de divino amor e poder tão supremamente sensível, uma ética tão profunda e espiritual, pudesse unir-se na mesma pessoa com idéias de tão ingênuo realismo, como a concepção tradicional do Reino? A inteligência moderna recuava diante desse paradoxo. Todavia, se ela rejeitasse as próprias palavras de Jesus; que seria da Cristandade? Schweitzer completava um aspecto do seu estudo para logo encetar outro. A única maneira para dissipar o mito popular e romântico, seria apresentar a figura histórica de Jesus em tão vivo relevo que mito algum pudesse subsistir ao seu lado. Ele buscou o Jesus da História como outros têm buscado umas minas de ouro perdidas, uma fugitiva fórmula matemática ou uma nova estrela nos céus. Estudou todas as tentativas anteriores de reconstruir a História suprema, buscando ressuscitar a figura histórica de sob a montanha de eruditas exegeses. Como distinguir o que era lenda, o que era realidade, o que era idéia de uma geração posterior acerca do que teria sido histórico, no conjunto dos fatos? Qual teria sido, enfim, a verdade sobre Jesus? À proporção que ia reunindo os livros de que necessitava para cada capítulo, empilhava-os nos cantos do escritório, com grande desgosto da caseira suábia. Essas pilhas eram sagradas, dizia-lhe ele. Pode varrer ao redor delas, se for preciso, e espaná-las, se quiser; mas deixe-as onde estão, sob pena de... sabe Deus de que. Mês após mês, ano após ano, os visitantes tinham de abrir caminho por entre torres desiguais, oscilantes, e ocasionalmente desmanteladas, enquanto a eficiente empregada, vencida pela frustração, com dificuldade escapava da apoplexia. 7 O homem que, numa esplêndida manhã de maio, aos vinte e um anos, resolvera entregar-se ao estudo e à arte até os trinta, e depois ao serviço imediato da humanidade, tinha agora vinte e sete; ele que, seis anos antes, vivia tão maravilhosamente que se sentia esmagado pelo sentimento de ter de pagar, de qualquer maneira, pelo muito que lhe fora dado, vivia ainda um período maravilhoso. A exultação que lhe davam a pregação e o ensino crescia de ano a ano. Os estudos históricos em que estava empenhado empolgavam-no; e a

idéia de interpretar Bach para o povo da sua segunda pátria, a França, desafiava nele não só o músico, mas também o europeu. O simples fato de estar vivo em Estrasburgo, de trocar idéias com seus companheiros das diversas faculdades, de passear de vez em quando pelos belos arredores, de pensar no livro sobre civilização e decadência que tencionava escrever um dia, tudo isto era felicidade genuína, que, dia a dia, aprofundava sua resolução de pagar em serviço o que havia recebido. Alguém lhe perguntou, quarenta anos depois, se as tentações de abandonar seu elevado propósito não tinham sido quase irresistíveis, ao que Schweitzer respondeu que não sabia de tentação alguma. Estivera demasiadamente ocupado para pensar em si mesmo – e por demais feliz.

Capítulo 6 Entretanto, havia uma como que sombra nas profundezas da sua felicidade. Na sua maturidade reconheceu, com um senso de tragédia, aquilo que, desde muito, havia intuitivamente percebido: que o mundo era “inexplicavelmente misterioso e cheio de sofrimento”. A simpatia pelos povos desprezados, despertada na infância pelas leituras que seu pai fazia das memórias de Casalis, missionário africano, e aprofundada pela contemplação do “Negro” de Bartholdi, em Colmar, era alimentada por tudo quanto lia sobre a exploração dos negros pelos homens brancos, no Congo e em outros lugares, e pelos relatórios que das condições da África faziam os missionários alsacianos que iam para casa em gozo de férias. Era uma página sombria, a da barbárie do branco emparelhando com a do negro; uma página de inconcebível miséria. Como podia a mente européia, tão sensível em outros sentidos, ser tão empedernida neste ponto? Milhões, em áreas remotas da terra, sofriam enfermidades em grande parte veiculadas pela luxúria e pelo álcool do homem branco, e o homem branco indiferente, como se nada disso lhe dissesse respeito! Havia umas poucas centenas de médicos em todas as imensas possessões coloniais das grandes potências, e, mesmo esses poucos se ocupavam principalmente com os colonizadores brancos e com os militares! Quando perceberiam os líderes da Europa que, como herdeiros da civilização do mundo, tinham responsabilidades para com esses párias e enjeitados? Talvez, algum dia, alguém os despertaria da sua apatia, alguém que se impressionasse a ponto de oferecer sua vida pela causa... Pensamentos do livro que primeiro havia sonhado, nos seus anos de estudante, Wir Epigonen, flutuavam com persistência no fundo da sua mente. Algum dia havia ele de escrever a sua jeremíada, mostrando a curva descendente da civilização. Essa indiferença, essa vida bidimensional, esse deleite pueril nas cousas materiais – era necessário que os homens vissem para onde tudo isto os levaria. 2 Não era doutrinador e, embora fosse excelente conversador, ouvia mais do que falava, contente de sentar-se humildemente diante de grandes mentes e personalidades, e deles receber alimentos: colegas da Universidade, músicos, artistas e homens de letras de Paris, mulheres de grande coração, onde quer que os encontrasse.

De Goethe, Schweitzer havia aprendido a reverenciar as mulheres que sobressaíssem da craveira comum, e gostava da companhia de senhoras idosas, que houvessem entretecido a experiência com a filosofia e tivessem visão pessoal da vida. Sua primeira impressão da viúva de Ricardo Wagner, quando em Heidelberg, a encontrou numa execução da Missa em Si-Bemol de Bach, não foi muito favorável. Cósima tinha, para ele, excessivamente ares de grande dame, mantendo a sua corte com visível condescendência. Mas no lar dela em Bayreuth, teve a oportunidade de ver quão amável ela podia ser para com simples curiosos e quão jeitosamente sabia receber hóspedes de toda qualidade. Chegou a conhecê-la como uma creatura de estranhos contrastes e contradições, que, por trás de uma aparência altaneira ocultava um espírito indagador. 3 Em Paris, Schweitzer encontrou Romain Rolland. O autor teatral e poeta, historiador e biógrafo, que estava beirando os quarenta anos. Figura solitária, tímida, com a fronte de um vidente e olhos nos quais Stefan Sweig ia notar “um matiz azul como o de águas profundas de excepcional pureza”, era no físico diametralmente oposto ao robusto alsaciano. Todavia, com sua fragilidade, era um lutador. Havia ajudado a estabelecer a inocência de Dreyfus, e era o guia de um pequeno grupo que lutava por libertar o teatro francês do domínio do triângulo amoroso e dar-lhe um sentido além do simples divertimento ou sensação. Acima de tudo, era um tolstoiano e um internacionalista, que buscava apaixonadamente a integração da Europa numa consciência européia que transcendesse os temores e os preconceitos nacionais. Pioneiro, erguia-se insulado, de pé, numa fronteira que a maioria dos seus conterrâneos nem sequer podia conceber. Poucos tomavam conhecimento dele como pessoa, e esses poucos escarneciam dele, ou encolhiam os expressivos ombros parisienses. Quando Schweitzer se encontrou com ele, Rolland acabava de publicar, numa revista obscura, a primeira parte de uma novela em dez volumes, que havia carregado na mente e no coração durante vinte anos, e com a qual contava dar sentido à sua vida até então frustrada. Era a história de um grande músico, um alemão – sim, alemão – que devia reunir em sua personalidade e espírito, o fogo e a luz de todos os povos da Europa. Os dois homens encontraram-se como músicos, ambos devotados à grande tradição germânica; e em breve perceberam que, além do artista que havia em cada um deles, vivia neles também o homem de transcendente idealismo, que se dava a si mesmo, com absoluta abnegação, à obra de redimir a humanidade. Quando Rolland faz o Rei Luís IX dizer, no leito da morte, que “é glorioso lutar pelo inatingível, quando o inatingível é Deus”, estava ecoando a voz do próprio coração de Schweitzer, assim como Schweitzer iria ecoar a voz do coração de Rolland, quando escrevia em sua autobiografia: “Não há heróis de ação; há heróis unicamente da renúncia e do sofrimento”.

No pequeno apartamento de Rolland, muito acima do rumoroso tráfego do Boulevard Montparnasse, conversando horas seguidas, ou então, ora um, ora outro, enquanto seus dedos corriam pelo teclado do piano, esses compassivos amantes da humanidade, esses sonhadores de uma fraternidade que transcendesse qualquer fronteira nacional, tornaram-se amigos. Embora dotado de mentalidade tenaz e de confiança em si, Schweitzer sentiu-se encorajado ao encontrar, numa geração intoxicada pelo êxito material e pelas conquistas científicas, um homem tão possuído por uma grande idéia ética. É que esse recluso, pintando o retrato de Jean-Christophe, traço por traço, no seu aposento cheio de livros, era um profeta que via aquilo que, dois decênios mais tarde, milhões de homens em agonia iam ver vagamente, buscando ansiosamente atingi-lo: a unidade espiritual da Europa, que pudesse tornar-se o fundamento de uma unidade política. À semelhança do seu amigo alsaciano, Rolland não alimentava ilusões quanto ao caráter automático do progresso e sua inevitibilidade. A Civilização, ele o sabia, repousa em bases éticas, e quando estas são negligenciadas toda a estrutura se desmorona. 4 Romain Rolland alargou o horizonte internacional de Schweitzer, e o grupo de Estrasburgo, com o qual se reunira periodicamente desde seus dias de estudante, lhe estimulou a consciência social. A maioria era constituída de liberais em política, e todos sentiam os efeitos da vitalizante atividade de um moço chamado Schwander, que, recentemente, havia sido nomeado burgomestre – magistrado que, nas cidades alemãs, combina o impressivo caráter de um prefeito com a indeterminada função e a independência política de administrador da cidade. O Dr. Schwander era um novo e brilhante tipo de servidor público alemão, que havia subido de escriturário do departamento de prosperidade se doutorara em economia política. Sua nomeação aos trinta e seis anos havia levantado perante o Kaiser um indignado protesto do comandante das forças militares das províncias recentemente anexadas. O Kaiser preterira o seu afobado general, e o jovem radical havia iniciado seu regime conclamando os elementos pensantes da cidade para colaborarem na obra das suas agências de assistência social. Persuadiu protestantes e católicos a trabalharem juntos, germanófilos e francófilos, e até operários e professores universitários, para o alargamento dos corações e das mentes. Entre a gente moça do grupo com que Schweitzer passeava de bicicleta, discutia e fazia música, estava a filha de um distinto professor de História na Universidade. Conversando um dia com Schweitzer acerca da pregação, Helena Bresslau exprimiu espanto ao ouvi-lo usar, em seus sermões, sentenças de cunho francês, que eram habituais entre os alsacianos no seu falar diário, mas pouco comuns em discursos formais ou impressos. O doutor propôs, então, que ela lhe examinasse os manuscritos com olho crítico. Discussões de forma levaram-nos a discussões de conteúdo, e a um crescente interesse nas idéias

de cada um. Concordaram no reconhecimento de que suas vidas não eram deles mesmos, para fazerem delas o que quisessem. Ambos haviam determinado uma data após a qual assumiriam responsabilidades pela vida de outros. Schweitzer decidira que aos trinta; Helena Bresslau, aos vinte e cinco. Ambos reconheciam que eram, num sentido muito real, fideicomissários, obrigados para com Deus e para com os homens a passar a outros o bem que a vida lhes outorgara. Havia entre eles outro laço comum: ambos estavam empenhados em descobrir o campo especial em que seus dons pudessem ser mais úteis para o serviço da humanidade. A moça, já de posse de um diploma de professora, concluíra um curso de enfermagem, e trabalhava no terreno social, tendo sido chamada para organizar uma maternidade. Agora seus papéis se trocaram; precisava ela do auxílio do teólogo no preparo de folhetos e outro material necessário ao levantamento de fundos para a nova fundação. Novos horizontes para mentes sociais em maturação... novos impulsos... novas visões... E sempre a velha e cálida camaradagem. Os jovens do grupo pedalavam através das vilas alsacianas, para verem belas ruínas sepultadas nos bosques ou clareiras isoladas na Floresta Negra, nas quais sempre se lhes deparava uma taverna onde lhes serviam café e bolos de manteiga. Ocasionalmente, os moços se dirigiam em bando à igreja de Schweitzer para ouvi-lo pregar, ou aos seus espaçosos aposentos de reitor do colégio teológico, para ouvi-lo tocar alguma fuga ou cantata de Bach ou passagens da Paixão Segundo São Mateus. 5 Era neste ambiente de humana camaradagem, enriquecendo seus sentimentos bem como a mente, que Schweitzer prosseguia suas pesquisas teológicas. Descobriu que o trabalho, em que havia tanto tempo estava empenhado, desafiava não só sua erudição, sua capacidade de organização, suas forças dedutivas e sua imaginação, senão também os mais profundos recursos do seu espírito. Via claramente as conclusões revolucionárias que derivavam das suas pesquisas. Que efeito produziriam elas no mundo cristão? Convinha, sim, resolver problemas históricos e situar Jesus em perspectiva mais clara. Mas que aconteceria se, nesse processo, ele, Albert Schweitzer, levasse confusão aos corações dos crentes? A questão o perturbou, sem contudo detê-lo. As dores do ajustamento seriam agudas para muitos, sem dúvida; todavia, no fim, a verdade não deixaria de redundar em maior profundeza de compreensão e de visão. Deixemos os cristãos encarar o fato de que o mundo em que Jesus nasceu e morreu não era o mundo deles, nem o mundo do século vinte era o mundo de

Jesus. Deixemo-los até enfrentar o fato, ainda mais perturbador, de que a verdade religiosa varia de época para época. A religião do amor era a mesma para sempre. Que importam, pois, as roupagens de que a tenham revestido as sucessivas gerações? 6 Ao lado dos seus estudos da vida de Jesus, Schweitzer trabalhava na sua biografia de Johann Sebastian Bach. O pequeno ensaio que havia previsto tinha crescido até tornar-se um livro de quatrocentas e cinquenta páginas. Sua publicação em Paris havia agitado os entusiastas de Bach em toda a Europa, não tanto porque apresentasse novos dados biográficos, mas porque sua interpretação da música de Bach lhe dava, nas palavras de Leo Schrade, “o aspecto de uma nova revelação” que “fazia de Bach um novo tema do pensamento estético”. Dalém Reno veio o pedido de uma tradução alemã. Quem melhor do que o autor dominando igualmente as duas línguas, a poderia fazer? Pôs mãos à obra, não tardando, porém, de verificar, com extrema confusão, que era incapaz de traduzir sua própria obra. Chegou à conclusão de que, se quisesse produzir algo que merecesse ser lido, deveria voltar às suas fontes e escrever um livro inteiramente novo. Mas foram em vão os seus esforços iniciais: o livro não sairia. Bayreuth e “Tristão e Isolda” juntos o impeliram, finalmente, ao ponto de meter ombros à empresa. Numa taverna, depois do espetáculo, abrindo caminho através da multidão que suavizava suas emoções com fumo e cerveja, ele escreveu, de regresso a seu quarto de dormir, as páginas iniciais do novo livro. Quando depôs a pena, o sol estava alto no céu. 7 Nove anos... o nono estava a terminar. A Albert Schweitzer faltavam menos de três meses para completar os trinta anos, e, embora sua resolução continuasse tão firme e clara como sempre, não tinha a mínima idéia do modo como realizaria “o serviço direto à humanidade” que resolvera prestar. Um dia viu, na sua mesa do colégio teológico, uma revista de capa verde. Era o relatório da Sociedade Missionária de Paris. Esta sociedade ocupava lugar querido no seu coração. Fora ela que enviara o dedicado Casalis, cujas cartas seu pai havia lido do púlpito, em Günsbach, quando Albert era menino. Pôs de lado a revista, sem abri-la; mas naquela noite à mesa de trabalhos seus olhos foram atraídos pelo título de um dos artigos. Leu-o e ficou absorto. O presidente da Sociedade, um compatriota alsaciano, estava mostrando a necessidade, a verdadeira fome de obreiros para o Congo Francês. O quadro que traçava dos selvagens torturados pela superstição iluminou a alma de Schweitzer, com o fulgor de uma revelação.

Fechou a revista e calmamente começou seu trabalho noturno. Estava terminada a busca. Sabia, por fim, qual seria o seu “serviço direto”. 8 “15 de janeiro de 1905. Tinham expirado os nove anos. Sob uma janela do seu quarto de estudo que dava para o norte, a filha de um velho amigo estava pintando seu retrato. A condessa de Erlach estivera gravemente enferma, e o médico esperava que a paleta e os pincéis lhe apressassem o restabelecimento. Toda entregue ao trabalho, a talentosa aluna de Gustavo Henner não imaginava os pensamentos que turbilhonavam na mente do seu modelo, naquele seu trigésimo aniversário. Schweitzer pensava na sua resolução, pensava na África, pensava no homem da parábola que, “desejando construir uma torre, primeiro faz a conta dos seus recursos, para ver se pode terminá-la”. Quais seriam os elementos essenciais? Saúde, em primeiro lugar, e ele a tinha em abundância. Nervos sólidos, energia, senso prático, rijeza, prudência. Tudo isso possuía ele. Predileções pessoais, não as tinha que a selva não pudesse satisfazer. Teria a têmpera necessária para suportar um possível fracasso? Ainda aqui a resposta era afirmativa. Uma coisa mais: teria ele qualquer idéia de heroísmo? Se a tivesse, a tentativa estaria errada. Somente um homem que não pensasse em heroísmo, dizia consigo mesmo, mas tivesse apenas um senso de obrigação, aliado a um sóbrio entusiasmo, é que seria capaz de tornar-se o tipo de “aventureiro espiritual” de que o mundo carecia. Caso fosse mesmo, havia de ser na qualidade de médico-missionário. Não era suficiente falar da religião do amor: seria forçoso praticá-la. Além disso, o que o Congo precisava não era evidentemente de mais um pregador ou professor, mas, sim, de um médico. A tragédia imediata do Congo não era a ignorância, ou a vacuidade espiritual, porém a dor. Quanto tempo levaria para tornar-se um médico, um cirurgião? Seis anos? Sete, talvez? Pois não! Arriscá-lo-ia. A condessa dava habilmente uma pincelada aqui, outra acolá. A parecença era extraordinária. A artista, porém, nunca soube que a imaginação por trás dos olhos profundos e escuros que havia pintado estava na África Equatorial Francesa. 9 Schweitzer não contou logo à família e aos amigos a decisão de abrir mão das conquistas e as promessas da sua carreira de erudito, professor, pregador e músico, para tornar-se missionário-médico. “Por natureza, sou pouco comunicativo naquilo que se refere à minha vida pessoal”, explicou ele numa carta particular, quarenta anos depois. “Herdei isto de minha mãe, juntamente com a mania de escritor.” Detestava falar daquilo que mais lhe deliciava o coração. Odiava ainda mais a idéia de autocomplacência aliada à publicidade de tão drástica determinação. Assim, nada disse, e caladamente deu os passos necessários para iniciar o curso médico.

Se nele houvera qualquer ambição mundana, teria sido tentado, talvez nos meses subsequentes, a enfraquecer a sua juvenil resolução. O diabo levou-o a uma alta montanha, da qual pôde ver toda a Europa e os continentes além. Seu livro revolucionário sobre Bach, no qual demonstrara que o cantor da Igreja de São Tomás não havia sido simplesmente um transcendente geômetra da música, mas um supremo pintor de tonalidades, intensamente sensível a todos os aspectos do mundo natural, esse livro fizera dele uma personagem importante em Paris. Era o líder de um pequeno grupo que incluía Widor, Vincent d’Indy, Paul Dukas e Alexandre Guilmant; esse grupo havia fundado a Société de J. S. Bach de Paris, convidando Schweitzer para seu organista. Brilhantes salões abriam-lhe as portas. Pediram-lhe que fizesse conferências sobre os gigantes da literatura e da filosofia alemã. Para além da fronteira sul da França, o Orfeão Catalão de Barcelona contratou-o para tocar órgão nos seus periódicos concertos de Bach. A Europa estava tomando conhecimento de um dos seus filhos mais promissores. 10 Em Paris, num dia gélido de outubro de 1905, nove meses depois que a condessa terminara o retrato de Schweitzer, este pôs numa caixa do correio meia dúzia de cartas, nas quais contava à família e aos amigos mais íntimos a sua decisão de ir para a África como médico-missionário. A notícia estourou como uma bomba em Paris, Günsbach e Estrasburgo. Rolland mostrou-se indiferente e Schweitzer deduziu que ele não aprovava o plano. Widor ralhou com ele como um tio holandês: “Você se parece com um general que vai à linha de fogo armado de espingarda”. Schweitzer compreendeu o desapontamento de seus pais, como também sabia confiavam na pureza dos motivos do filho e no seu critério. Temiam, porém que o filho se estivesse lançando a uma aventura talvez demasiadamente difícil para ele, e na qual viesse a fracassar por tentar viver uma vida muito diferente daquela para a qual parecia destinado pela natureza dos seus dons. Não simularam compreender, mas reconheceram que devia existir uma razão muito profunda por trás da revolucionária decisão do filho sempre tão equilibrado, e o sustentaram com sua fé. Aliás, bem sabiam eles que não adiantava tentar dissuadi-lo. Seus colegas da Universidade e os outros amigos foram menos confiantes, censurando-o, principalmente, por não lhes ter feito antecipadamente nenhuma confidência. Em vão lembrava ele aos colegas teólogos que, como São Paulo, não havia “consultado a carne e o sangue” ao tomar essa resolução. São Paulo, responderam-lhe, não vinha ao caso. O ponto era este: tinha ele, Albert Schweitzer, ficado maluco? Umsattln – pular de uma carreira para outra – era, para a maioria dos alemães daquela geração, indício de uma instabilidade de

julgamento e de propósito tão repreensível quanto um divórcio à toa. Fazer uma coisa daquelas, quando já tinha subido mais da metade da escada! Esquecer-se a si mesmo a tal ponto, e a dignidade da posição que havia conquistado! Naufragar logo no começo do que prometia ser uma grande carreira! Que desperdício! Desperdício! Não foi isto que Judas exclamou quando Madalena derramou sobre os pés de Jesus aquele unguento precioso? “Por que vai você enterrar-se vivo no mais esquecido recanto do mundo, quando o mundo intelectual está aos seus pés?” Não fala o Evangelho de talentos enterrados? Sim, disse Schweitzer, mas também diz algo sobre o Rico e Lázaro, e alguma coisa bem definida acerca de perder a vida para ganhá-la. “Você está servindo a humanidade aqui mesmo onde está fazendo aquilo para o que o ambiente e a educação o prepararam. Será que erudição não é serviço? Ensinar não é serviço? Pregar não é serviço?” Decerto. Mas esse serviço é fácil demais. Não é serviço real enquanto a dádiva não custar sacrifício?” “Você nada tem de ver com o negro da África Central! Você tem obrigações para com o homem branco do mundo ocidental! Outros homens podem trabalhar entre os africanos, homens que não tenham os dons de erudição e de arte que você tem!” É verdade. Mas poucos o estão fazendo. Os amigos acoimaram-no de sentimentalista. “Os povos que vivem no seio da natureza nunca são tão doentes como nós, nem sentem tanto a dor.” É o que ele duvidava. “Você está atirando pérolas aos porcos. Cristianismo é coisa alta demais para o homem primitivo.” A isto não respondeu Schweitzer. Seria possível que fosse verdade? “Faça conferência em benefício dos seus selvagens, se acha que é necessário”, aconselhou-o uma distinta senhora. “Dessa maneira pode ajudá-los muito mais do que indo pessoalmente à África.” Ele citou-lhe Goethe: “No princípio era a ação” – Im Anfang war die Tat. A dama encolheu os ombros. “Isso está fora da moda. Atualmente, a propaganda é a mãe da ação.” Extremamente dolorosos para Schweitzer eram os encontros com homens e mulheres que se diziam cristãos – e na maior parte das áreas da vida o eram de

fato. Sabia que haviam lido o Novo Testamento, e estavam familiarizados com vidas humanas radicalmente desviadas dos seus cursos, a fim de atenderem ao apelo do amor cristão. Forçosamente eles deveriam entender o que ao raciocínio humano parecia irracional, que há ocasiões em que os planos humanos e as humanas ambições devem ser submetidos à vontade de Jesus. Era para ele uma tortura abrir o coração ao ponto de mostrar a profundeza do impulso que o levara àquela decisão, para receber em troca apenas incredulidade, acusação de orgulho, suspeitas quanto aos seus motivos. Que é que havia realmente atrás daquela tolice? Estava desapontado com o reconhecimento público que havia tido? Ou teria sido infeliz no amor? A idéia de ir para a África já era bastante ruim. Mas ir como médico! Se havia de ir, por que não ir como um missionário regular? Tinha o grau de doutor em Teologia, tinha sido ordenado ministro, gostava de ensinar e pregar. Pelo amor de Deus, por que ir como médico, estudar anos um campo completamente afastado de outro qualquer que a sua mente versátil havia abordado? Mais uma vez Goethe veio em seu auxílio, Goethe, que faz os personagens que mais retratam o próprio poeta – Fausto e Wilhelm Meister – findar seus dias, um como engenheiro conquistando terra ao mar, o outro como cirurgião, para que possam encontrar plenitude e redenção pela ação isenta de egoísmo. Tentou fazer que os amigos vissem que a prática cristã era mais importante do que a eloquência cristã – mas sem resultado algum. Durante semanas, colegas bem-intencionados o bombardearam com argumentos e vasculharam seu coração em busca de motivos ocultos. Schweitzer sentiu-se grato aos que se contentaram em julgá-lo um pouco fora de si, e o trataram com amigável zombaria. Vinte anos mais tarde um escritor francês, em Le Ménestrel, insinuou a razão principal da oposição que Schweitzer encontrou: realmente, aceitar as concepções que guiaram Schweitzer obrigava um homem, ou a ir e fazer o mesmo, ou, com humildade, encarar o fato de que ele mesmo não possuía o amor e a coragem necessários para tanto. 11 Não foram apenas seus colegas teólogos que causaram estranheza a Schweitzer pela evidente incapacidade de compreender o sentido do evangelho cristão. A comissão diretora da Sociedade Missionária Evangélica de Paris, à qual oferecera seus serviços, também errou ao avaliar seus intuitos limitando-se a frisar o perigoso propósito do jovem teólogo de conhecer toda a verdade acerca de Jesus. O livro de Schweitzer ainda não fora publicado, mas seu primeiro ensaio estava em circulação, e era densamente suspeito. O diretor da Sociedade sentiu-se aliviado quando Schweitzer deixou bem claro que planejava ir ao Congo simplesmente como médico; mas os companheiros dele continuaram nos seus temores.

Capítulo 7 Pelos fins de outubro de 1905, voltou Schweitzer a ser estudante com grande desgosto do deão da Faculdade de Medicina, o qual estava inclinado a mandálo para o departamento de psiquiatria. Para o estudioso que havia aprofundado na teologia e filosofia; para o musicólogo que durante anos se havia devotado à interpretação da arte e do pensamento de Johann Sebastian Bach; para o artista que vivia para a música, que lhe era alimento e bebida, o ar que respirava e a voz do seu ser interior, a provação de abrir caminho para a compreensão das ciências e da atitude científica da mente significava um tremendo esforço imposto a todas as suas energias intelectuais e físicas. Em parte para sua manutenção, mas também parece, por motivo mais profundos, continuou com todas as suas atividades anteriores. Não tolerava o pensamento de abandonar suas aulas na Universidade, ou sua pregação, suas pesquisas, sua música, seu trabalho com os meninos da classe de confirmados. Algum dia, naturalmente, teria de abandonar tudo isso. Era essa a essência daquela resolução do Domingo de Pentecostes, a que acabava de apor o seu sinete. Era o preço do serviço; era o que Jesus queria dizer quando falou de perder a vida para ganhá-la. Mas, ó Deus, ainda não, ainda não! A gente pensa em Agostinho, já inclinado às coisas divinas, mas ainda apegado à sua amante cartaginesa. “Ó Deus, faze-me puro. Mas não agora!” Paris... Barcelona... concertos de Bach... Noite após noite, o livro sobre Bach... noite após noite, o estudo da vida de Jesus... Também, para que outro fim lhe havia dado Deus aquele corpo de possante veado galheiro? 2 Trabalhando semana após semana, mês após mês, furtando horas e ocasionalmente noites inteiras aos estudos ou ao sono, ele mergulhava fundo, comparava, avaliava. Desmontando as pilhas de livros que lhe enchiam o escritório, e perseguindo a verdade através dos séculos, Schweitzer achou o Jesus histórico, unicamente para perdê-lo de novo. Haviam os eruditos, havia ele mesmo, imaginado que quando tivessem encontrado o Jesus da História, poderiam trazê-lo diretamente ao mundo contemporâneo como um mestre e salvador?

Que poderia realmente significar para ele, ou para qualquer homem da sua geração e do seu século, aquela esquiva figura de um mundo que ficara mil e novecentos anos atrás, no passado, este estranho Jesus, com sua fantástica e até teatral concepção de juízo e redenção? Enquanto trabalhava, a verdadeira significação e o verdadeiro poder de Jesus começaram a alvorecer em sua alma. Não era o poder da figura histórica, pregando uma doutrina que o século vinte podia aceitar e aplaudir porque era universal. O Jesus histórico havia negado o mundo. A mente moderna o afirmava. Não era no céu, nem numa terra sobrenaturalmente transformada, insistia a mente humana, que a nossa vida real devia ser vivida, mas neste presente Aqui e Agora, na terra, como os homens a conhecem através da experiência diária, desde o berço até a sepultura. Schweitzer afirmava que os teólogos haviam enfraquecido a mente contemporânea, pela sua recusa de encarar o abismo existente entre o Jesus histórico e o homem do mundo moderno. Por que ignorar o conflito? Por que fingir a sua não existência? Por que poupar ao indivíduo a luta com Jesus quanto ao valor dos bens materiais e intelectuais? Vivemos neste mundo, não no outro. Mas, para que valha a pena viver neste mundo, o indivíduo deve ser transfigurado “pela rejeição pessoal do mundo” pregada nos discursos de Jesus, pela sua resolução pessoal de não permitir que o ódio, a lascívia e a ambição do mundo possuam e dirijam sua vida. “É unicamente por meio da tensão assim criada que a energia religiosa pode ser comunicada ao nosso tempo.” Enquanto trabalhava, parecia a Schweitzer que sua própria relação com o Jesus da História se desenrolava sem nenhum raciocínio consciente da sua parte. Jesus não havia julgado necessário dar aos seus amigos e seguidores nenhum discernimento do segredo da sua personalidade. A única coisa que havia pedido tinha sido que, em tudo quanto fizessem e em tudo quanto fossem, provassem ser homens por ele obrigados a deixar para trás a vida egocêntrica e a tomar a vida teocêntrica. Trabalhando mês após mês, chegou a conhecer Jesus não só como o protagonista da suprema história de amor e sacrifício deste mundo, nem só como o maior mestre e profeta da História, mas também como uma Pessoa que tinha autoridade sobre ele. A longa tarefa aproximava-se do fim. O capítulo final estava sob sua mão, a última página, o derradeiro parágrafo: “Como um desconhecido, como um anônimo, Ele vem a nós, assim como, na praia do lago, se aproximara daqueles homens que não sabiam quem Ele era. Suas palavras são as mesmas: “Segueme!” e confia-nos as obras que Ele tem de realizar em nossa época. Ele ordena. E àqueles que obedecem, sejam sábios ou simples, Ele se lhes revelará através de tudo quanto tiverem o privilégio de experimentar em Sua companhia, de paz e atividade, de lutas e sofrimentos, até que cheguem a saber, como um segredo inexplicável, quem é Ele...”

3 A publicação do livro intitulado “Em busca do Jesus Histórico” causou quando muito uma ligeira agitação na plácida corrente da vida acadêmica alemã. A Faculdade Teológica de Estrasburgo engoliu sem grande avidez as heresias do seu precoce sábio, aceitando como coisa natural que toda pesquisa da verdade histórica era justificada. A personalidade de Schweitzer era tão calmante na sua modéstia e no seu encanto, que nenhum dos seus colegas se sentiu inclinado a reconhecer quão revolucionário ele era realmente. A julgar pelas repercussões imediatas, o jovem erudito poderia persuadir-se de que o mundo dos sábios considerara insignificante o seu livro. Foi a Inglaterra que lhe mostrou seu engano, se é que o alimentava. Em Oxford e Cambridge os entendidos aceitaram suas conclusões como autorizadas, e seus entusiásticos comentários tiveram repercussões continentais. Entre o clero, de Amsterdam a Königsberg, começaram a ouvir-se sussurros de que algo de cataclísmico estava convulsionando a teologia cristã. Pastores confortavelmente instalados na sua ortodoxia, ficaram alarmados ao saber que o Jesus histórico devia ser considerado capaz de errar. Havia declarado, e até insistido, de acordo com esse homem chamado Schweitzer, que o Reino sobrenatural estava prestes a aparecer. Havia, de fato, empenhado sua vida nisso. Mas o Reino não tinha aparecido. E agora? A confusão e a dor entre os crentes cristãos, como Schweitzer havia previsto, manifestaram-se, conforme esperava, em eloquentes impropérios contra ele. 4 Schweitzer não teve tempo para preocupar-se com o que o mundo estava dizendo do seu livro ou dele mesmo. Anatomia, fisiologia, química, física, zoologia, botânica... Tinha motivos para bendizer o hábito, cultivado na infância, de dedicar-se com zelo especial a tudo quanto lhe fosse mais difícil. Por mais árduo que fosse, para a mente treinada nas humanidades, lutar com fórmulas científicas, ele aceitou o desafio. Era estimulante para ele trabalhar com homens que reconheciam a necessidade de justificar com fatos qualquer afirmação que fizessem. Em filosofia, uma opinião usurpava com frequência o lugar da verdade; em história, era a imaginação. A ciência fê-lo baixar à dura realidade dos fatos, e daí a uma nova síntese da verdade e do fato. Durante seis anos prosseguiu seus estudos científicos e médicos, aprendendo os rudimentos da teoria médica, e descobrindo, com deleite, a extrema semelhança entre o zelo pela pesquisa científica e a paixão da expressão na arte. Seu segundo período de estudante foi um tempo de fadiga sempre crescente, e por fim desesperada. Nem assim quis abandonar seus trabalhos na paróquia, nem suas conferências. Tinha de terminar o livro sobre Bach, dizia a si mesmo, antes de ir para a África. Tinha de dar concertos para custear suas despesas.

Os concertos eram provações fatigantes, porque exigiam preparação não só na técnica, senão também na familiaridade com o instrumento que devia tocar. Não raro, passava oito horas ao órgão, para descobrir a tonalidade exata que cada peça do programa parecia exigir. Não se satisfazia com julgar o tom ouvindo-o apenas da galeria do órgão; sentia a necessidade de descer à nave, ou ao auditório, para escutar, enquanto outro organista tocava a peça, linha por linha, de acordo com as indicações por ele registradas. Os frequentadores dos concertos, que se maravilhavam com a clareza e a qualidade espiritual da sua execução, não suspeitavam sequer das dores que isto representava. Todavia, com todo o trabalho que lhe dava um único recital, achava tempo para ir a Paris meia dúzia de vezes por ano, para os concertos da Sociedade de Bach na modesta sede de Union Chrétienne, e, mais tarde, na mais imponente Salle Gaveau. Ajudava a preparar os programas, escrevia pessoalmente as notas para esses programas, ia a ensaios, e incendiava cada membro da orquestra e do coro com o fogo da sua personalidade. Uma vez, quando a Sociedade estava em dificuldades financeiras, chegou ele a pedir os fundos necessários para mantê-la viva. Na sua paixão pela música, na sua alegria de ensinar, no seu deleite pelo trabalho mental, parecia impelido a pôr cada átomo de possível perfeição dentro do tempo que ainda lhe restava. O sábio e o discípulo, o professor e o discípulo, o músico e o discípulo, o pregador e discípulo, porfiavam dentro dele pelo domínio. Ouvia a Voz, que lhe ordenava perder tudo para ganhar tudo, e sabia que ela venceria por fim, mas, quase desfalecendo de extenuação, suplicava: “Ainda não! Ainda não!” O erudito, o músico e o intérprete de Bach uniam-se como um só homem na cruzada para estabelecer padrões na construção de órgãos. Com sono ou sem sono, como podia abrir mão dessa campanha de dez anos para evitar que homenzinhos de curta visão refugassem, como ferro velho, magníficos e antigos órgãos, por causa de alguns registros adicionais, ou por causa de algum Júpiter Tonante? Nesse assunto estava envolvido muito mais do que o órgão. Num campo limitado, estava ele lutando contra a degeneração dos produtos de um sistema industrial mecanizado, e contra a desintegração da própria civilização. Publicou um panfleto, “A Arte de Construir e Tocar Órgãos na Alemanha e na França”, no qual sumariou uma década de pesquisas e de estudos da natureza e das possibilidades dos órgãos velhos e novos. Esse trabalho fez dele a maior autoridade da Europa em matéria de órgãos, e alvo de tempestades num novo campo; ao redor dele vendavais das controvérsias e das recriminações, como já estavam surgindo no campo da teologia. A controvérsia acrescentou novo trabalho e mais responsabilidade ao seu programa já tão sobrecarregado; Schweitzer, porém, lançou-se a ela, como um cavalo de corridas a um obstáculo. Noite após noite passou estudando projetos de órgãos. Escreveu centenas de cartas a bispos, reitores, prefeitos, fabricantes

de órgãos, organistas. Viajou para lugares distantes, a fim de estudar questões de restauração, reconstrução, substituição. Advogou diante de consistórios e conselhos de igrejas. “Não vos deixeis seduzir por esses ásperos órgãos novos, com sua barulhenta confusão de sons! Voltai para os nítidos e suaves tons dos velhos instrumentos do século dezoito” como os que o grande fabricante francês de órgãos, Cavaillé-Col, estava produzindo. A França estava agindo melhor do que a Alemanha. Os franceses e não os alemães, é que estavam mantendo a grande tradição alemã da construção de órgãos. Riam-se dele, e encolhiam friamente os ombros. Criou inimigos. Chamou-se a si mesmo de louco, por estar gastando seu tempo e suas energias, mas sabia que o esforço valia a pena, pois a luta pelo bom órgão era, na essência, parte da eterna luta pela verdade. Quantas fases revelava essa luta! Como podia um homem deixar de corresponder ao desafio, pelo simples fato de estar morto de cansaço? Abandonar seus concertos em Paris? Como, se eles eram uma parte do seu esforço em favor de melhor compreensão entre a Alemanha e a França! Em França, ele estava pregando Bach; na Alemanha, Widor e Cavaillé-Col. Quem podia interpretá-los melhor do que ele, um alsaciano, um devotado herdeiro das altas tradições dos dois países? À medida que os anos passavam e ele se assenhoreava de uma ciência após outra, na longa jornada para o seu diploma de médico, sua fadiga tornou-se como que um polvo a estender seus tentáculos ao redor dele. Trinta anos mais tarde, escreveu ele a um correspondente americano sobre o “terrível esforço” que teve de fazer para completar suas obras teológicas, e para manter-se no mais alto nível como músico, durante os anos em que estudou medicina. Como invejava os homens que podiam concentrar-se num só campo do conhecimento! Ouvir conferências, horas a fio, tornou-se-lhe uma tortura; as palavras dos eruditos oradores deixavam, finalmente, de penetrar na sua mente exausta. Todavia, nem com isto suportava a idéia de pôr de lado algumas das suas atividades. Em breve estaria na África, onde não haveria mais ensino, nem pesquisas, nem pregação, nem órgãos. Tudo isso estava certo. Era o preço. Mas, ó Deus, ainda não! Achar tempo para dormir era um problema muito serro. Possuía a bendita habilidade de cochilar a qualquer momento, sempre que dispusesse de um quarto de hora, de dia ou de noite, mas esses instantes de completo repouso, somados às horas de escuridão que podia furtar para deitar-se, nunca atingiam nem metade do que era necessário. A beleza e solidão da natureza salvaram-no de uma prostração nervosa; a natureza e a música. Nos seus raros feriados, escapulia para a casa pastoral de Günsbach, e passava horas sentados nos bosques, ou no rochoso promontório que se erguia entre as vinhas, ouvindo os pássaros e o vento na folhagem,

voltando ao trabalho com renovada energia. Com mais frequência, após os diversos labores do dia, vagava pelas sombras da Igreja de São Nicolau, e, subindo à galeria do órgão, deixava corpo e alma flutuar beatificamente em rítmicas ondas de som. Havia uma fonte ainda mais profunda, da qual, a intervalo, tirava vida nova. Na sua autobiografia, nada diz sobre isto. Era, como vimos, incorrigivelmente reservado quanto às coisas que mais perto do seu coração estavam. Herança da mãe, diria ele, juntamente com a mania de escritor. O que tinha a dizer a respeito de Jesus, ou de São Paulo, ou dos filósofos da China e da Índia, ou de órgãos, ou de declínio e da restauração da civilização, tudo isso, dizia, podia ter importância para o público. Mas que o seu caminho e o de Helena Bresslau se aproximavam cada vez mais um do outro, isto não era da conta de ninguém; era só com os dois. Ela agora o estava ajudando nos seus exercícios de órgãos e nas suas publicações; ficava escutando no corpo da igreja enquanto ele experimentava os registros; ou, sentada ao seu lado no banco do órgão, puxando os registros segundo indicações dele. Desde que havia chegado à resolução de estudar medicina e ir à África, ficara entendido, tacitamente, que iriam juntos. Mas nunca falavam disso, nem mesmo entre si. 5 Pelo fim de 1911, seis anos depois de ter lançado a bomba entre os amigos, quinze anos depois do Pentecostes da sua grande resolução, foi aprovado nos exames finais. Pagou a taxa com estipêndio que recebera como organista num festival de música francesa em Munique. Ao sair da sala de exame para a escuridão de uma noite de inverno, estava numa espécie de estupor, incapaz de perceber que terminara a longa provação, mal ouvindo as congratulações do chefe dos examinadores. Tinha ainda um ano de serviço interno e uma tese para escrever, mas isto lhe parecia brinquedo de criança. Seis meses depois, Helena Bresslau e ele estavam casados. Como tencionava trabalhar num país estrangeiro, onde credenciais reconhecidas eram essenciais, sua esposa havia, antes do casamento, seguido outro curso de enfermagem, e tirado um certificado do governo. Pelo fim do ano de 1912, estavam prontos para a partida, mas os sobre-humanos esforços dos anos de estudo de medicina estavam-se vingando, e Schweitzer precisou de mais seis meses para restaurar suas energias. Ele as empregou, caracteristicamente, em preparar uma nova edição do livro “Em Busca de Jesus Histórico”, tendo a esposa por hábil assistente. Quando se aproximava o tempo em que ia pôr ponto final a sua vida de intelectual e de artista, para encetar irrevogavelmente a vida de servidor da humanidade, percebeu, como nunca antes, o peso da decisão que havia tomado. Ia renunciar ao órgão para sempre, abandonaria seu magistério e, o que era particularmente doloroso para um homem que tanta confiança tinha em si,

perderia sua independência financeira. Para o resto da vida teria de confiar em alguém que apoiasse o seu projeto, mantendo-o a ele e a sua família. Somente sua esposa e uns poucos amigos mais íntimos sabiam o que lhe custavam esses sacrifícios. Quando, por fim, renunciou à cátedra teológica na Universidade, e ao seu cargo em São Nicolau, foi como se arrancasse o coração do peito. 6 Schweitzer foi a Paris para fazer um curso de medicina tropical e obter suas credenciais de missionário-médico. Não pediu, e sem dúvida não precisava dele, auxílio financeiro à Sociedade Missionária de Paris. Não queria sentir-se peado por uma organização. Queria ser o seu único senhor. O único que pediu foi um lugar para erguer o hospital, que pretendia criar, no terreno da missão, em Lambaréné, na colônia de Gabon, África Equatorial Francesa, ao sul de Camerum. O diretor da Sociedade suplicou aos companheiros que não perdessem a ótima oportunidade de conseguir o médico para a missão como tantas vezes e com tanta ânsia haviam pedido em oração. Mas os ortodoxos não viram nenhuma oportunidade; só viram um perigo. M. le docteur poderia sentirse tentado a confundir os demais missionários com a sua sapiência, e os nativos com a sua pregação. Exigiram que comparecesse perante a diretoria, e submetesse suas crenças a um rigoroso exame. Schweitzer viu o escolho, pois estava ciente do destino de outro pretendente, que havia sido rejeitado porque não dera incondicional assentimento à teoria de que o autor do Quarto Evangelho fosse realmente o Apóstolo João. Quando Jesus chamou seus discípulos, afirmou Schweitzer, não lhes fez nenhuma pergunta teológica. De fato, nada lhes havia pedido, senão que o seguissem. Aliás, não declarou Jesus que “quem não é contra nós e por nós”? Até um maometano podia ser aceito para o serviço, desde que aliviasse os sofrimentos dos nativos. A comissão ergueu as mãos num indignado protesto. Depois disso, Schweitzer começou a tocar campainhas, visitando individualmente os membros. Empenhou sua palavra de que seria um médico, e nada mais que um médico, permanecendo “mudo como um peixe” em matéria de teologia. A comissão amoleceu e, depois da resignação de um intransigente, concordou finalmente em dar, a este perigoso radical, alguns acres do seu sagrado terreno. Com o característico esquecimento de si mesmo, Schweitzer enfrentou a dura tarefa de levantar fundos para o hospital, fortalecido pelo bom-humor, apreciando o calor com que os amigos o recebiam, sem, contudo, deixar de notar a queda da temperatura quando lhes revelava seu propósito. A presunção de pedir auxílio para um projeto que ainda estava apenas no domínio da esperança e das boas intenções pesava sobre ele; e, quando seus amigos davam, davam não porque cressem naquilo que ele estava fazendo, mas porque criam nele. Ficou emocionado com a boa-vontade com que os crentes alemães contribuíam

para uma empresa que ia ser fundada numa colônia francesa. Certamente, as velhas inimizades estavam sendo esquecidas, apesar de todo o rumor de sabres em Berlim, e das truculentas conversas sobre revanche em Paris. Vieram contribuições de São Nicolau e de outras paróquias. Concertos aqui e ali ajudaram grandemente. Schweitzer teve especial prazer com as contribuições para o seu fundo, provenientes dos direitos autorais do seu livro sobre Bach, agora em edição inglesa, suplantando a francesa e a alemã. Imagina-se o velho Cantor de Leipzig a ajudá-lo indiretamente a estabelecer um hospital para negros, nas selvas! A soma total que recolheu era o suficiente para manter o hospital por um ano. Aproximava-se o tempo da partida. Quando o doutor estava arrumando as malas de mão, sua esposa notou que ele estava separando dois mil francos em ouro. “Para que todo esse peso?” perguntou-lhe. “Temos de contar com a possibilidade duma guerra”, respondeu. Membros da embaixada russa em Paris haviam dito a amigos dele que a guerra viria, assim que a Rússia terminasse as suas ferrovias estratégicas na Polônia. Na Alemanha, como na Franca, o ouro estava sendo retirado da circulação. Isto era terrível. “Se a guerra vier, o ouro conservará o seu valor, mas o papel-moeda e os créditos bancários... quem o sabe?... Precisamos estar preparados.” No Domingo da Páscoa de 1913, com a esposa ao lado, setenta caixas de materiais no porão, e todos os sinos de França tocando o Evangelho da Ressurreição, Albert Schweitzer embarcou para a África.

Capítulo 8 Onde o Rio Ogowe se lança no Golfo da Guiné, a umas setecentas milhas ao norte do Congo, a África recebeu a Schweitzer. Um barco branco tomou ele e sua esposa, e levou vagarosamente, subindo a larga estrada líquida, que fluía indolentemente, por entre barrancos cobertos de impenetráveis e misteriosas selvas. Água e selva, todo aquele dia e metade do seguinte. Água amarela e folhagem verde-escura, água sombria e bosques desatados em pingentes multicores de lianas, pompeando ao sol as flamas das suas flores. Água e pássaros de penas brilhantes – papagaios, açores, colibris, papa-moscas – e, no topo das palmeiras, bandos de pardais em barulhento conciliábulo. Um rio? Não, um sistema fluvial, com ramificações entrelaçadas como as trepadeiras que se emaranham nas margens, e, entre elas, lagos que reverberam ao sol. O barco parou numa aldeia, onde o capitão comprou lenha para a máquina; e pagou com álcool. Passaram por outras aldeias. Desertas. Por que? O negociante francês que estava ao lado de Schweitzer encolhe os ombros. L’alcohol... Lusco-fusco... e a escuridão das selvas... Noite... a lua e as estrelas tremeluzindo nas águas brilhantes. A dor e o medo enchiam as trevas com a sua presença. O barco beirava a muralha selvática, e o calor que dali se desprendia era quase insuportável. Numa tranquila baía o vapor lançou âncora, para esperar o dia. Madrugada. As rodas de pás agitaram as águas mais uma vez. Quarenta anos antes, um rapaz inglês havia remado ali, rio acima, ao romper da aurora, e, na sua velhice, lembrava-se de tudo aquilo em todo o seu brilho. “O Ogowe estava cheio de vida e de sons estranhos, logo ao amanhecer” escreveu Trader Horn. “Era um verdadeiro jardim zoológico em liberdade. Hipopótamos corriam dos brejos cobertos de papiros, e lançavam-se às águas profundas; crocodilos deslizavam das margens... Aves de toda espécie esvoaçavam de um lado para outro. Agora o grou de linda crista levanta-se e voa para longe, e todos os outros pássaros, alertados, o seguem... O mais lindo pássaro do mundo é o “pippio”... coisa maciça feita de esmeralda e ouro. Borboletas de todas as cores e formas. Pousadas no galho estendido de uma grande árvore, umas grandes corujas, altas e imóveis, com os grandes olhos redondos e amarelos esbugalhados, olhando vagamente para parte alguma.” O rio estreitava-se, a água corria mais depressa, as paredes da floresta pareciam mais altas. O vapor parou em outro desembarcadouro: N’Gomo, a estação missionária mais próxima de Lambaréné. Cinco horas mais tarde as verdes

colinas, para ver as quais o doutor viajara tanto, elevavam-se adiante. Quando o barco lançou os cabos, uma comprida e estreita canoa, tripulada por jovens negros de rostos radiantes, todos cantando, rodeou-lhe rapidamente a proa. Schweitzer e sua esposa deslizaram para dentro daquele tronco de árvore escavado, meio desconfiados. Os remadores ergueram-se ainda cantando, e levaram a canoa para diante, com grandes remadas regulares. Depois de meia hora tomaram por um afluente, ao lado de verdes elevações, que subiam à direita para uma verdejante colina banhada pela cálida luz de um fim de tarde. O doutor notou os pequenos edifícios brancos, cada um no alto de pequeno outeiro. O canto dos remadores intensificou o seu júbilo. A um repentino pé-de-vento a canoa oscilou perigosamente, mas logo deslizou com segurança para águas tranquilas. No rudimentar desembarcadouro, mãos brancas e pretas se estenderam. Albert Schweitzer estava no seu posto. 2 A Missão de Lambaréné estava situada em três pequenas colmas, sobre o Ogowe. Tinha sido estabelecida, quase quarenta anos antes, por um missionário-médico americano por nome Nassau, passando para a Sociedade Missionária de Paris quando o Gabon se tornou possessão francesa. Dez anos antes da vinda do Dr. Nassau, Trader Horn fundara um posto comercial a uma ou duas milhas rio acima. Vinte jardas atrás dos topos das colmas, coroados pelos alvos edifícios quadrados da missão, estava a mata virgem, enorme e escura, não subjugada pelos homens, invadindo dia e noite a pequena área que os missionários haviam desbravado para suas frágeis estruturas cobertas de folhas de samambaia, seus limoeiros e seus cacaueiros, suas mangueiras e seus pés de café. Ao pé das colinas corria o rio. A região de terras baixas e de pântanos, de águas preguiçosas e densas florestas, era insuportavelmente quente na estação que os europeus conhecem por verão, e ainda mais quente nos meses que o seu calendário chama inverno. Em tempos idos estivera densamente povoada, mas trezentos anos de álcool e o tráfico de escravos liquidaram a maior parte dos aborígenes. As tribos canibais que invadiam a região, vindas do interior para encher o vácuo, tinham sido impedidas de eliminar o resto pelas armas dos brancos, que tinham vindo em busca de mogno e outras madeiras de lei. Era nesta selva virgem que Albert Schweitzer pretendia, sozinho, sem o amparo de um governo ou de uma instituição particular, fundar um hospital. A localização da Missão era altamente estratégica para esse empreendimento, pois os doentes poderiam ser trazidos por água de centenas de milhas de distância, rio acima e rio abaixo. Haviam prometido a Schweitzer um edifício de chapas de zinco para seu uso, mas o negócio da madeira estava no auge, absorvendo toda mão-de-obra disponível ao longo do Ogowe, e com a maior boa-vontade do

mundo o chefe da Missão tinha sido incapaz de mandar erguer a construção. A chegada das setenta e seis caixas do doutor criou um problema de armazenagem que dramatizou, logo de início as dificuldades que o mais revolucionário teólogo da Europa e a maior autoridade viva em Bach poderia encontrar nas selvas. Contrariando todos os editos baixados pela Missão, especialmente o que restringia os pedidos de assistência médica aos casos mais sérios, os pacientes começaram a chegar em número desconcertante. Não vinham sós, mas em família. Parecia, sem dúvida, que todo mundo estava chegando, menos a única pessoa de quem Schweitzer precisava mais do que de outra qualquer. Tinha feito tratos para que um intérprete o estivesse esperando quando chegasse, mas o homem meteu-se numa demanda judiciária, numa aldeia a sessenta milhas de distância; e para os nativos, demandas eram mais importantes do que qualquer promessa ou salário. Schweitzer enviou um mensageiro rio acima, com um urgente apelo que derreteu o coração do intérprete, mas não logrou estimular suas reações motoras. “Doutor – disse o diretor da escola de meninos da Missão – sua educação começou.” Tinha começado mesmo, em mais de um campo. Tratando e pensando os doentes ao ar livre, diante do pequeno bangalô branco que havia sido destinado a ele e a esposa, aprendeu alguma coisa da força do sol equatorial não menos selvagem do que a chuva equatorial. Acabou por compreender que um abrigo qualquer seria melhor do que nenhum, e transformou um galinheiro em hospital. Sua mulher tomava conta dos instrumentos cirúrgicos e das ataduras, e ajudavao nas operações. Um dos seus pacientes, um alto e magro nativo que havia sido cozinheiro de profissão, e adquirira algum conhecimento de francês e inglês como um incidente da vocação, revelou dons tanto de intérprete quanto de ordenança. José Azvawami tinha aprendido na cozinha toda a anatomia de que era sabedor; fornecia sempre, nos momentos mais desesperados, o alívio da nota cômica, com suas referências a partes do corpo em terminologia culinária. Os nativos chamavam “Oganga” ao novo médico, isto é, feiticeiro, porque executava mágicas com instrumentos misteriosos e brilhantes. “Agora eu acredito que temos um médico de verdade”, exclamou uma velha a cujo peito Schweitzer havia aplicado o estetoscópio; “ele sabe que não posso respirar bem de noite, e que meus pés estão inchados, mas eu não lhe disse nada disso, e ele nem viu meus pés.” A anestesia enchia-os de pasmo. “Desde que o doutor chegou – escreveu uma menina nativa da escola da Missão a um correspondente desconhecido na Alsácia – temos visto as coisas mais estupendas. Antes de tudo, ele mata os doentes; depois os cura, e por fim os ressuscita de novo.”

Um homem assim era bom como amigo, mas perigoso como inimigo. Quem podia curar, certamente também podia provocar doenças. Pois, não eram todas as doenças, inclusive o verme, a dor causadas por espíritos maus? O verme que, em geral começava pelos pés, mas acabava sempre no coração? O doutor começou a ver que a dor não era o pior inimigo que ele tinha de enfrentar e subjugar de qualquer maneira. O medo pairava sobre a selva; era como que seu mau espírito, negro, imenso, vivo em dez milhões de fibras, lançando o seu hálito sufocante sobre as mesquinhas creaturas que viviam suas vidas mesquinhas nas monstruosas profundezas desse espírito: medo de uma centena de venenos sutis nas mãos de qualquer homem, que, porventura, fosse possuído de desejo de matar; medo do hediondo feitiço, contra o qual não havia vida ou contrafeitiço que prevalecesse. Schweitzer, observando seus filhos da selva, disse a si mesmo: Sim, é preciso curar-lhes as enfermidades; mas é preciso, também, curar-Ihes o medo. Se a gente civilizada pudesse ver quão terrível era a vida destes milhões de negros, vivendo em contínuo terror, não perceberia o caminho do dever? Se o doutor tivera qualquer escrúpulo quanto a “desperdiçar” suas energias com estas esquecidas creaturas das florestas africanas, ter-se-ia desvanecido durante a sua primeira quinzena em Lambaréné. Se tivesse alimentado ilusões, como alguns dos seus amigos em Estrasburgo haviam afirmado, dizendo que os nativos não sentiam a dor como a sentem os mais civilizados e sensíveis povos da Europa, teria sepultado essas ilusões, cheio de vergonha. Tratava de trinta a quarenta pessoas por dia, que sofriam de malária, doenças cardíacas, disenteria, elefantíase, supurações ósseas e doenças da pele de toda espécie. Nenhuma dúvida lhe restou quanto à miséria que suportavam, ou à dor que sentiam. “Entre nós, aqui, todos são doentes”, disse-lhe um jovem nativo. “Nossa terra devora seus próprios filhos”, afirmou um velho cacique. 3 Schweitzer decidiu que o lugar escolhido para o hospital, que de qualquer modo teria de construir, era impróprio, e foi de canoa a Samkita, estação missionária situada a trinta e cinco milhas rio acima, para assistir a uma conferência da Missão, e obter permissão para usar um lugar mais conveniente. A jornada, com dois missionários brancos e doze remadores nativos, começou antes do raiar do dia, e terminou muito depois de haver caído a noite. Gozou durante todo o dia do canto dos remeiros, através do qual eles lamentavam sua triste sorte, por terem de trabalhar tanto e tão duramente, ou informavam a todos os grupos de choças por que passavam o lugar para onde se dirigiam, e quem eram seus passageiros. Uma vez a balada cessou repentinamente, como que obedecendo a uma voz de comando. Os remos desviaram violentamente a canoa do seu curso. Diante de nós dois hipopótamos gozavam seu banho matinal.

A conferência ofereceu a Schweitzer a primeira oportunidade para notar a qualidade dos outros missionários da região do Ogowe, os membros da sua família em Cristo, tão longe da pátria francesa, mas tão satisfeitos; tão dedicados aos seus filhos adotivos, tão esquecidos de si mesmos, tão unidos. Ficou com eles uma semana e, quando a conferência terminou, levava consigo não só a licença para construir seu hospital onde quisesse, mas também 4.000 francos para a construção. Imediatamente após seu regresso pôs mãos à obra. Havia algo de grandioso, disse a si mesmo, na preguiça dos cinco ou seis trabalhadores que havia conseguido; mas preguiça não constrói hospitais. Assim sendo, abriu mão da turma em favor da tripulação de um negociante de madeiras que casualmente apareceu por ali e compreendeu que um hospital podia ter sua utilidade mesmo para um negociante de madeiras. Schweitzer em pessoa empunhou uma pá, mas isso não adiantou nada para envergonhar o capataz da turma, o qual, deitado à sombra, não fazia nenhuma contribuição mais fatigante do que algumas palavras ocasionais de encorajamento. Quando nem ele nem o capataz estavam presentes, o trabalho parava completamente. Numa ocasião Schweitzer perdeu a paciência. Os nativos ficaram impassíveis. “Não grite com a gente”, protestou um deles. “A culpa é sua. Fique aqui, e nós trabalharemos; mas quando você está no hospital com os doentes, nós ficamos sozinhos e não fazemos nada.” Isto era claro. A temperatura do doutor podia subir porque havia uma tarefa que devia ser feita, e com doentes chegando em correntes de perto e de longe, o tempo era precioso, mesmo na selva. Mas não podia fazer coro com os negociantes brancos na sua indignação contra a preguiça do negro. O negro não era preguiçoso. Era simplesmente um homem livre, que recusava vender seu direito de primogenitura por umas poucas moedas de prata, das quais, aliás, não necessitava. Tirando abrigo e alimento da generosidade da natureza, trabalhava apenas para obter certas coisas desejáveis: uma garrafa de rum, um par de sapatos, ou uma esposa. Emprego permanente, dia de oito horas, e outras concepções da indústria moderna eram para ele tão remotas, tão alheias ao seu pensamento, quanto a termodinâmica. Os trabalhadores, depois de nivelarem o terreno, receberam seu salário de dois dias e tocaram para a aldeia mais próxima. Voltaram bêbados como gambás, e um teólogo-músico-filósofo-cirurgião e o seu prendado assistente e excozinheiro ficaram sozinhos para transformar num hospital uma pilha de madeira, uma porção de chapas de zinco ondulado. A carreira de Schweitzer, mesmo variada como fora, não o havia preparado para manejar um serrote ou um martelo, um esquadro ou uma plaina, e ele resmungava contra o tempo roubado ao seu serviço médico. Afinal, tinha vindo à África como médico ou como capataz de uma turma de trabalhadores braçais? Felizmente a Missão pôde dispor de dois homens com experiência como

mecânicos. Mesmo assim, a estação chuvosa estava em meio antes que, no começo de novembro, o edifício estivesse pronto. Continha uma sala de consultas, uma de operações com a de esterilização ao lado, e um ambulatório. Janelas altas e largas, o chão de cimento, o forro de folhas de palmeiras seguras por meio de delgados talos de árvores sobrepostos. Ao longo do caminho que do hospital ia ao rio Schweitzer edificou, em grande parte com as próprias mãos, uma sala de espera e um dormitório. Fê-los, à maneira de choças nativas, de troncos brutos e folhas de ráfia, e logrou persuadir os nativos, que traziam os enfermos e deles cuidavam, a que construíssem eles mesmos as camas. Capim seco serviu de colchões. O que o centro médico perdia em estilo, ganhava em localização. Da base da colina em que estava o bangalô do doutor, olhava para um curso de águas brilhantes, que mais parecia um lago. Além de uma larga faixa de areia, o rio desviava-se para o ocidente, fechando a vista, naquela direção, à direita e à esquerda, com ribanceiras cobertas de verdejante mataria. Atrás do dormitório, à beira da água, uma mangueira magnífica oferecia sombra benfazeja. Perto dela, o admirável José construiu uma cabana para uso próprio. José estava justificando amplamente o título, que havia assumido por sua conta e risco, de “primeiro assistente do doutor de Lambaréné”. Não sabia ler nem escrever, é verdade, mas falava oito dialetos africanos, além do francês e do inglês. Possuía essa espécie de memória, primitiva, que lhe permitia, mesmo sem conhecer as letras, identificar qualquer remédio nas prateleiras do ambulatório, apenas pela aparência das palavras escritas nos rótulos. Tinha tendência para o luxo, e gastava metade do dinheiro que ganhava em roupas, gravatas e sapatos. O doutor sorria, ao ver que José se vestia muito melhor do que ele. Começava a amar esses filhos adotivos. Havia um jovem e tímido africano chamado Oyemba, que ensinava na Missão, pelo qual Schweitzer se sentiu imediatamente atraído. Em regra, uma pequena dose de educação era suficiente para tornar um nativo insolente, com bazófias de “intelectual”, mas “O Canto” (que assim se interpreta o nome Oyemba) era bondoso e simples, com um ar distinto e cortês que se refletia na sua casa bem ordenada, na sua habilidosa mulher e nos filhos disciplinados. “Eu o tenho na conta de um dos homens mais distintos que conheço” – escreveu Schweitzer num relatório para os seus mantenedores europeus. Não apreciava apenas os nativos excepcionais, senão também o atraíam os habitantes comuns das aldeias, Ogowe acima e abaixo, com todas as suas faltas. A maioria deles era selvagemente primitiva na sua maneira de viver, e os conversos eram frequentemente arrogantes, mas quase todos meditavam sobre a vida, alguns com tal profundeza, que teria envergonhado o comum dos homens brancos. Nas suas viagens de canoa a aldeias distantes, para visitar algum missionário doente, ou conseguir trabalhadores, ou deter uma epidemia antes

que ela alastrasse, Schweitzer descobriu que os africanos eram tão interessados em saber dos usos e costumes do mundo de que ele viera, como ele o era em saber do mundo deles. – “Qual é a diferença entre a terra dos homens brancos e a nossa?” – soíam eles perguntar. E nunca se cansavam das suas respostas. Havia uma coisa, por exemplo, que eles nem sequer podiam imaginar: o incêndio das florestas, lá na terra donde ele viera, e que consumia a madeira de áreas enormes. Mesmo na estação seca, a selva era tão úmida, que a muito custo conseguiam queimar os troncos derrubados para fazer novas plantações de bananeiras. Os nativos conversavam horas seguidas sobre a fantástica idéia de florestas em chamas. Outra diferença, continuava o doutor, era que na Europa a gente remava por divertimento. Seus ouvintes quase rolavam de tanto rir. “Quem os manda remar?” “Ninguém”. “Mas alguém há de dar-lhes algum presente para que remem?” ‘Não, eles remam por sua livre vontade, e nada pedem em troca. Algumas vezes remam até ficarem exaustos.” Corridas, isto os nativos podiam entender. Quando em viagem, divertiam-se com esse esporte, ocasionalmente, em curtas distâncias. Mas a idéia de que alguém se metesse num bote sem precisar fazer uma viagem, ou sem ser obrigado a transportar mercadorias, era incompreensível para eles. Mais difícil ainda de entender era o fato de gastar o tempo de descanso praticando o remo. Bem, se o doutor o dizia, eles acreditavam. Mas quando ele chegou ao terceiro ponto de diferença, protestaram em altas vozes: o doutor estava zombando deles! “Na Europa um homem pode casar-se sem ter de pagar pela mulher.” Isto era demais! Do berço à sepultura a vida dos nativos estava envolvida e permeada da idéia de que as mulheres eram objetos de propriedade pessoal, que podiam ser comprados e vendidos à vontade. Dificilmente se encontrava um homem adulto, em todo o Ogowe, que não estivesse pagando prestações por sua mulher, com intermináveis altercações com os parentes dela. Seria possível que houvesse um lugar no mundo em que um homem não fosse infernizado e explorado pelos parentes da esposa? Schweitzer não ousou dizer-lhes que, em certas circunstâncias, um homem, lá na Europa ou na América, podia até ganhar dinheiro ao tomar esposas: não ousou expor-se ao risco de que esses brotinhos das selvas espalhassem a notícia de que o doutor não passava de um execrável mentiroso. Dia a dia, os pacientes chegavam, quase sempre de canoa, com suas mulheres, filhos e amigos, e todos precisavam de ser alimentados e alojados de qualquer

maneira. Vinham com lepra, com a doença do sono, com hérnias estranguladas. O mais que ele podia fazer, em alguns casos, era aliviar-lhes a agonia final. O mais que podia fazer por outros era mandá-los de volta para casa, com caixas de remédios e instruções que, bem o sabia, metade deles esqueceria ou transgrediria. Mas a muitos ele erguia do leito de sofrimento para a vida ativa e para o trabalho. Quando um homem operado dizia, arfando de alegria, que não tinha mais dores, o doutor desejava que os amigos que dele haviam zombado, e, ainda mais, aqueles que o haviam auxiliado com seu dinheiro, pudessem contemplar a cena e conhecer algo da alegria que cantava no seu próprio coração. Todavia, se havia arroubos no seu coração, havia também agonia, na presença de quadros e odores incrivelmente horripilantes. Mesmo com o auxílio da sua valente esposa, como enfermeira, anestesista e assistente-geral, o trabalho, algumas vezes excedia a medida do suportável; sua esposa tinha sua própria tarefa, pesada e absorvente, como dona de uma casa africana. A faina diária exasperava os nervos do médico e, de vez em quando, despertava nele o mau gênio que herdara de sua mãe, juntamente com a reserva e a mania de escritor. Nunca parecia ter tempo suficiente. Muitas e muitas vezes, a vontade de certificar-se da correção de um diagnóstico o conservara de olho grudado ao microscópio, por uma manhã inteira, enquanto vinte doentes pretos esperavam fora, para terem algum dente arrancado, tratadas as chagas ou renovados os curativos. Além disso, ele era seu próprio boticário, obrigado a encontrar minutos para destilar água ou preparar remédios. Finalmente, era também seu próprio comissário. A necessidade de achar alimento para seus pacientes, e para os amigos que os traziam, obrigava-o a puxar pela imaginação e pelo engenho. Não adiantava publicar um aviso de que não daria tratamento a quem não trouxesse tantas bananas ou tantas raízes de mandioca: os pacientes continuariam a vir sem trazer nenhuma contribuição para a despensa; outros, devido a uma invasão de elefantes nas suas plantações de bananas, não tinham mesmo nada para trazer. O doutor ficava com dó deles, operava-os ou curava-lhes as feridas, e engenhava algum modo de arranjar as provisões necessárias. Com tudo isto nas mãos – e no coração – devia ainda estar sempre preparado para uma operação de urgência quando, sem aviso prévio, os nativos lhe traziam um homem torturado pela dor. Ele era o único médico num raio de centenas de milhas. Não se tratava apenas de salvar uma vida: ele podia poupar a um homem dias de tortura. E não era a dor, para a humanidade, ainda mais terrível do que a própria morte? Que importava a fadiga, ou o peso de um trabalho que esmagaria três homens, no enervante ar tropical, quando ele podia colocar a mão na testa de um negro e dizer-lhe com tranquila segurança: “Não tenha medo; você vai dormir, e, quando acordar, não sentirá mais dor”. 5

A música ajudava-o a manter seu equilíbrio espiritual. Houve um dia em que uma grande caixa, segura com tiras de metal, foi levada colina acima, para a pequena casa do doutor, aos ombros de uma dúzia de nativos. Continha um piano construído para os trópicos, um piano “às direitas”, com implementos de órgão de pedal; era um presente da Sociedade Bach de Paris ao seu organista. Durante alguns meses, Schweitzer não ousou fazer mais do que deixar os dedos errarem vagamente sobre o teclado. Praticar? Cultivar sua arte? Não; tudo isso ficara para trás; era uma das delícias a que havia renunciado. Tivera seus anos felizes, e agora estava pagando essa felicidade, como os homens devem pagar, se quiserem contemplar-se ao espelho sem um sentimento de vergonha. Era melhor deixar que os dedos e pés se endurecessem, e que sua técnica enferrujasse pela falta de uso. Mas, num entardecer, cansado e saudoso, quando estava tocando uma das fugas de Bach para órgão, pensou: Afinal de contas, que mal há em praticar? Qual o erro, se empregar as horas livres, que pudesse encontrar, em aperfeiçoar sua técnica, e aprofundar sua compreensão da grande música de órgão? Este pensamento fez-lhe o coração bater mais depressa. “Tenho paixão pela música, como outros a têm pelo tabaco ou pelo vinho”, dissera certa vez a um amigo inglês. Começou a estudar composições dos seus mestres favoritos, e a prática diária conservou a agilidade dos seus dedos e pés. Nas horas calmas que viveu com Bach, aprendeu muito do sentido das suas obras, que lhe havia escapado na vida agitada de Estrasburgo. Havia muito que fazer no hospital, mas o mesmo não acontecia com o órgão, pois não tinha que preparar concertos, nem apressar-se para tomar o trem para Dresden, ou Paris, ou Barcelona. Podia separar apenas meia hora por dia, mas esses trinta minutos ele os podia empregar num simples trecho, e até num único compasso, se fosse preciso! Quem disse que na selva não há compensações? 6 Havia-as, de fato, e muitas, e a maior de todas era a oportunidade de dar a mensagem de Cristo na sua maior simplicidade, a homens e mulheres para quem o Evangelho ainda tinha o caráter excitante de uma nova descoberta. Havia prometido não pregar; seria “mudo como um peixe” quando estivesse na África. Seus companheiros da Missão o desligaram dessa promessa. Não partilhavam dos temores dos ortodoxos de Paris, quanto à ameaça de que seus pontos de vista teológicos pudessem constituir para a paz interna dos nativos africanos. Dogmas cristãos simplesmente deixavam de ter valor na selva. O que importava era a vida e os ensinos básicos de Jesus expressos em termos capazes de libertar os nativos da sua escravização ao terror, nas suas formas múltiplas e malignas. Mesmo nas reuniões do Sínodo ninguém discutia assuntos doutrinários. Schweitzer viu que os missionários estavam muito ocupados em

aprender, uns dos outros, a maneira de desenvolver em seus distritos uma vida que se aproximasse da vida cristã. Desta maneira Schweitzer sentiu-se encorajado para transmitir aos nativos a mensagem de Jesus, e a dava um dia por semana com seus lábios, assim como já a estava dando sete dias por semana com sua vida. 7 Carpinteiro e construtor, médico, pregador... e juiz. Schweitzer havia anunciado que, em qualquer questão que houvesse no recinto do hospital, a lei dos brancos deveria prevalecer, e ele mesmo a administrava à maneira de Salomão e de Harum al Raschid. Certo dia, ouvindo uma altercação na margem do rio, Schweitzer descobriu que um dos nativos havia tomado “emprestada” a canoa de outro, na noite anterior, sem ao menos um “com licença”, e havia ido pescar. O dono da canoa reclamava sua parte na pesca. O doutor ouviu a acusação e a defesa, e estabeleceu o fato de que ambos os litigantes tinham direito, e ambos estavam errados. “Você está no seu direito – disse ao dono da canoa – porque o outro homem devia ter pedido licença para usar seu bote. Mas você está errado, por ter sido descuidado e preguiçoso, limitando-se a enrolar a corrente da canoa num tronco de palmeira, em vez de prendê-la com cadeado, como todos nós aqui fazemos. Seu descuido induziu à tentação o outro homem. Além disso, você é culpado de preguiça, porque estava dormindo na sua choça, quando devia ter aproveitado o luar para ir pescar.” Voltou-se para o outro homem: “Você errou, por ter tomado a canoa sem pedir licença ao dono; mas está certo, porque você não foi preguiçoso como ele, e não quis que a noite de luar passasse sem tirar proveito dela.” Então pronunciou a sentença: o homem que havia ido pescar devia dar um terço da pesca como compensação ao dono da canoa; um terço ficaria com ele, pelo trabalho de apanhar o peixe; o terço restante o doutor o reclamou para o hospital, porque o litígio tivera lugar nas suas terras e porque ele havia perdido tempo em resolvê-lo.

Capítulo 9 Estação chuvosa, estação seca, e outra estação chuvosa. O calendário tradicional perdia seu sentido, ao longo do Ogowe, quando janeiro era mais quente do que julho e os pés eram como pesos, em qualquer época do ano, na subida de quatro minutos do hospital à casa do doutor. O próprio doutor precisou de um doutor, e tomou o pequeno navio de rodas, rio abaixo, até o Cabo Lopez, para que um cirurgião militar lhe tratasse um abscesso. Durante quatro dias, com a esposa ao lado, gozou a vida numa cadeira de braços, na varanda que dava para o Atlântico, aspirando as brisas frescas e salinas. Quase havia esquecido o que era uma brisa. Em Lambaréné não havia ar em movimento, a não ser quando desencadeava um ciclone. Aproveitou a forçada inação para escrever um relatório sobre os madeireiros e balseiros da mata virgem. Queria que seus amigos e sustentadores conhecessem tudo acerca da terra cujo povo estavam salvando. Na vagarosa jornada de volta a Lambaréné, a bordo de um barco mercante que andava vendendo querosene americano, escreveu outro trabalho sobre os problemas sociais da selva. Nos intervalos do seu trabalho, o doutor e sua esposa contemplavam a paisagem, que. agora lhes era familiar, mover-se lentamente, e falavam, esperançosos, de uma visita à terra natal. Era lei nos trópicos, que mulheres e homens brancos voltassem ao norte, por alguns meses, de dois em dois anos, se quisessem conservar a saúde. Havia famílias e amigos a visitar, havia necessidade de estabelecer as bases para sustentar o hospital, e que fossem conhecidas na França, na Inglaterra e na Alemanha. Agora ele podia levantar dinheiro com uma segurança que antes não era possível, quando o trabalho não passava de uma esperança e de um plano. Agora tinha algo de que falar, fotografias a mostrar, e histórias a contar. Demais, podia apelar, podia desafiar os homens de boa-vontade, em todos os países da Europa. 2 O doutor e sua esposa voltaram à Missão no dia dois de agosto. Dois dias depois, Schweitzer recebeu um aviso do negociante branco da aldeia de Lambaréné: “Na Europa há mobilização, e provavelmente já houve declaração de guerra.” Havia um mês que Schweitzer não tinha notícias da Europa; nada sabia do trágico emaranhamento de ultimatos e contra-ultimatos, mobilizações e

contramobilizações que havia enchido de febril atividade a última semana de julho. Mas o longo açoite da guerra golpeou-o naquele mesmo dia. Não era ele um súdito germânico vivendo numa colônia francesa? Ele e a esposa foram prevenidos de que deveriam considerar-se prisioneiros de guerra. Podiam permanecer em sua casa, mas sem se comunicarem nem com os nativos, nem com os europeus da Missão, e deviam obedecer, sem discussão às ordens dos soldados negros destacados para vigiá-los. E o hospital? Os enfermos, cujas chagas necessitavam de curativos? Os sofredores, que uma operação poderia libertar da dor? C’est la guerre. A burocracia colonial obedecia às ordens, encolhia os ombros com pena, e não fazia perguntas a respeito de loucura ou de humanidade. Pela primeira vez desde que havia começado seus estudos médicos, Schweitzer achou-se sentado à sua mesa de trabalho, de manhã. Se o mundo estava mesmo decidido a enlouquecer, isto não era motivo para que ele deixasse de acabar seu livro sobre o misticismo de São Paulo. Mas logo descobriu que não podia concentrar-se no Apóstolo dos gentios. Sua mente estava em Günsbach com seu pai e sua mãe; em Estrasburgo com Holtzmann, Windelband e Ziegler, e com seus nobres e velhos pastores de São Nicolau; nos seus Vosges encantados, onde moços – alguns deles seus antigos alunos – logo estariam marchando pelos campos tranquilos que ele conhecia, subindo as verdes encostas para morrer – gritando, talvez – nos ensolarados bosques de faias, nos quais seus cantos haviam ecoado; via-se em Bayreuth, com Cosima Wagner e seu filho Siegfried, que lutavam para manter a tradição do mestre. Sua mente estava em Paris, com Widor e Rolland e uma dúzia de outros amigos queridos; com a Sociedade Bach e com a Comissão Missionária Evangélica; em Berlim, com Harnack e Grimm, e com as brilhantes mentalidades que quinze anos antes se haviam reunido no salão de Curtius; em Cambridge, onde um grande erudito católico havia apresentado seu livro “Em Busca do Jesus Histórico” ao mundo de língua inglesa. Estes homens e mulheres representavam a civilização, ou então essa palavra não tinha sentido; e agora muitos deles se enfrentavam como inimigos! Civilização! Ainda havia de escrever o livro que sonhara desde aquela noite em que alguém, no salão de Curtius, havia exclamado, com desprezo, que ele mesmo e seus contemporâneos eram apenas ecos das trombetas do passado. A geração que havia colocado sua fé no poder imanente do progresso de realizar-se a si mesmo, natural e automaticamente, a geração que havia estado tão segura de que os ideais éticos estavam fora de moda, bastando-lhe apenas o conhecimento e as conquistas materiais, estava agora ouvindo a voz do destino. Ele, Schweitzer, havia de ser o intérprete do julgamento do mistério dessa geração. Haveria de mostrar aos homens o que lhes aconteceria, se persistissem em construir suas casas sobre a areia.

O que lhes aconteceria? O livro que planejava já estava fora de moda. A casa construída sobre a areia havia desabado. Tudo que ele podia fazer, agora, era analisar a loucura dos construtores e a natureza da areia. Dia a dia, o historiador de Jesus, o apocalíptico, trabalhou no seu melancólico necrológio. Um dia, um nativo galgou a colina da sua casa, e timidamente lhe apresentou um bilhete do administrador local francês. Como o portador estava enfermo, o doutor podia examiná-lo e receitar remédios. Outros homens vieram, trazendo outros bilhetes. O administrador reconheceu que a lógica tem seus limites, e o senso comum suas exigências. Enquanto isso Widor, em Paris, estava fazendo o possível para injetar uma boa dose de razão num Ministério das Colônias atormentado pela guerra. O comandante do distrito recebeu comunicação de que Monsieur Schweitzer já não era considerado uma ameaça, e, aliviado da carga de escrever bilhetes, anunciava ao doutor que podia também voltar ao seu hospital. Assim Schweitzer passou a trabalhar à noite, em vez de pela manhã, no seu estudo sobre decadência e queda, com o acompanhamento de sons que somente ele podia ouvir através de um milhar de milhas do deserto e mar. 3 Fim de 1914. As velas da pequena palmeira, que servia de árvore do Natal, haviam queimado apenas pela metade, quando o doutor as apagou. “Por que estás fazendo isso” – perguntou a esposa. “São as únicas que temos, e precisamos guardá-las para o ano próximo.” “O próximo ano?” duvidou ela, sacudindo a cabeça. Onde estariam eles, no Natal seguinte? Em casa, na Alsácia, como haviam planejado com tanto carinho? Aqui mesmo em Lambaréné? Onde? 4 A vida continuava na pequena casa da colina, e no hospital lá embaixo, mas parecia a Schweitzer, onde quer que fosse, ouvir os gemidos dos feridos e os estertores dos moribundos, nos vales de França e nas florestas e pântanos da fronteira ocidental da Rússia. Os nativos mostravam-se preocupados e atemorizados pela guerra. Cada vez que chegava o correio, o cozinheiro do doutor lhe perguntava: “Ainda há guerra?” “Sim – respondia o doutor – ainda há guerra.” O homem sacudia a cabeça tristemente e murmurava: “Oh, lalá! Oh, lalá!”

Quando se espalhou a notícia de que dez dos brancos que haviam voltado para a pátria, em obediência à ordem de mobilização, haviam sido mortos, um velho nativo exclamou: “Já dez homens mortos, nesta guerra! Por que as tribos não se reúnem para negociações de paz? Como podem pagar tantos homens mortos?” Parece que nas lutas dos nativos, todos os que caem em combate, pertençam aos vencidos ou aos vencedores, devem ser pagos pelo lado contrário. Os nativos faziam perguntas simples e penetrantes. Como era possível que os homens brancos, que lhes haviam trazido o evangelho do Amor, esquecessem os mandamentos do Senhor Jesus a ponto de se cortarem a garganta uns aos outros? Para tais perguntas Schweitzer não tinha resposta, nem fazia esforços para atenuar e explicar o caso. A humanidade estava face a face com algo “terrível e incompreensível”, dizia ele. Sentia-se enojado quando lia revistas européias, que diziam que a guerra era necessária, para que a “nobre sede de glória” que há nos corações dos homens pudesse ser saciada; e todas as manhãs, ao descer para o hospital, dava graças a Deus porque, em tempos tais como esses, havialhe sido concedido salvar vidas, em vez de destruí-las. Ao longo do Ogowe, os nativos sentiam a guerra principalmente no preço sempre crescente do tabaco e na cessação do comércio de madeiras; mas logo os exércitos coloniais franceses necessitaram de carregadores, e a guerra chegou às trilhas da selva, onde homens negros caíam de fraqueza e ficavam insepultos no lugar em que caíam. Schweitzer viu uma companhia de carregadores recrutados que estava sendo levada numa embarcação, e sentiu o coração cortado de dor ao ouvir os lamentos das suas esposas, no cais. O vapor desapareceu numa curva; dissolveu-se a esteira de fumaça e desapareceu; mas numa pedra da margem, uma velha, cujo filho havia sido levado, chorava silenciosamente. O doutor tomou-lhe a mão e tentou consolá-Ia; ela, porém, continuou a chorar e parecia não ouvir suas palavras; e ele também chorou, e os raios sanguíneos do sol poente lhe inundavam o semblante. 5 Na Europa, os exércitos avançavam, recuavam, tornavam a avançar. No mar, os submarinos atacavam, e os inocentes pereciam com os culpados. Em Lambaréné as chuvas solaparam o hospital, e o doutor foi obrigado a construir muros de reforço e valetas; os cupins deram na despensa; a formiga correição, em marcha, apresentava um drama de militarismo implacável, só inferior em terrível eficiência ao que a Europa estava apresentando à humanidade. O alimento tornou-se escasso, e os Schweitzers foram obrigados a contentar-se com carne de macaco. Um dos missionários da estação mantinha um negro caçador, e regularmente enviava ao doutor parte da sua caça. “Pode a gente pensar o que quiser sobre o darwinismo e a descendência do homem – escreveu

Schweitzer numa carta para casa – mas ninguém se liberta facilmente do preconceito contra a carne de macaco.” Nem tampouco se tornaram os bifes de macaco mais gostosos quando um branco observou, incidentemente, ao doutor: “Comer macaco, como você sabe, é o primeiro passo para o canibalismo.” Morte e destruição... Que lhe importava lá o que ele comia? Na Europa eles se estavam matando aos milhares. Na África ele estava salvando algumas dúzias, alguns centos de vidas. Para que servia todo aquele trabalho? Os doentes vinham numa corrente contínua, sem parar, dia a dia... Desintegração e decadência... Uma grande civilização desmoronando-se aos olhos dos homens. Uma civilização que Sócrates havia ajudado a construir... Platão... os Estóicos... Jesus... Paulo... Agostinho... São Tomás de Aquino... Descartes... Spinoza... Goethe... Desabando aos olhos dos homens. No silêncio da noite da selva, quebrado apenas pelo suave sussurro das frondes das palmeiras e pelo trilar de inúmeros insetos, Schweitzer, lendo, pensando, escrevendo, acordou como que de um torpor. Que estava fazendo? Reexaminando as razões para a decadência e a queda? Olhar para trás era fácil. Por que contentar-se com a análise de uma geração de epígonos moralmente fatigados? Não haveria algo maior que ele pudesse fazer? Por que não ir além, à visão construtiva? Por que não passar do estudo da decadência da civilização para a esperança da sua revitalização? O livro que o primeiro havia concebido em Berlim, quinze anos antes, como um epitáfio, e que devia chamar-se “Nós, os Herdeiros do Passado”, tornou-se, nas longas e escuras horas da noite, depois de terminado o labor diário, um apelo para a restauração. Noite por noite, quando o último paciente havia sido pensado e ele havia ceado na pequena casa da colina, o médico das selvas tateava pelas selvas animadas e confusas do pensamento, em busca da perdida pirâmide da civilização. Qual era a natureza dessa atitude perante a vida, dessa Lebensanschauung, como os germânicos a chamam, pela qual o homem ocidental anseia como um mundo cada vez mais satisfatório? Mundo em que sua crença em princípios éticos estava fundada? Não seria esta: aceita a vida como digna de ser vivida, e aceita o mundo como digno de viver nele? O cristão medieval podia olhar a vida como se estivesse focalizada no céu, e rejeitar o mundo como um vale de lágrimas que conduzia àquela cidade além do sol e da lua, onde tudo seria gozo e cânticos. O homem moderno, não. Esta vida e este mundo constituem seu interesse e sua preocupação primordiais. Emergindo da Idade Média para a Renascença, afirmando afoitamente a vida e o mundo, o homem ocidental havia trocado a ética de uma fé que rejeita o mundo por uma fé que exulta no mundo. Nesta união, encontrou ele uma nova relação com seus semelhantes e uma nova

necessidade, pela sua própria ação, de crear novos valores materiais e espirituais, tendentes a um mais alto desenvolvimento do indivíduo e da humanidade. “Impressionado pela grande experiência de ver o mundo como constituído e mantido por forças dotadas de um desígnio definido – escreve Schweitzer em sua autobiografia – resolve o homem tornar-se uma força ativa e teológica no mundo. Olha confiantemente para novos e melhores tempos, que hão-de raiar para a humanidade, e aprende por experiência que os ideais sustentados e praticados pela massa do povo hão-de vencer as circunstâncias e remodelá-las.” Que foi que fez arrefecer este alto ardor? perguntou Schweitzer. Que havia por trás da catástrofe que quase havia destruído a civilização? Não seria outra catástrofe, mais pessoal e individual? 6 Maio passou para junho e junho cedeu lugar a agosto. Rio acima, rio abaixo, as canoas chegavam, trazendo corpos negros contraídos de dor; homens com as mãos comidas de lepra, mulheres com cabeças a estourar com a doença do sono, crianças que eram uma chaga só. Todo o dia o doutor trabalhava para eles e metade da noite prosseguia seu caminho através da escuridão da mente, buscando o sentido da civilização e da sua decadência. A tragédia do pensamento europeu era que, por um lento, mas irresistível processo, a afirmação do mundo e da vida, por parte do homem, se divorciara das concepções éticas recebidas da fé cristã. A vontade de progredir permanecia, mas, sem um alvo moral, vagava o homem sem rumo, tragicamente. Que teria acontecido, pois para que uma filosofia da vida que havia conduzido os homens de triunfo em triunfo, houvesse perdido seu conteúdo ético, perdendo, deste modo, seu poder de controlar as forças materiais destinadas a servir à humanidade? Do fundo da noite sufocante, com as trevas e o terror da selva a rodeá-lo, Schweitzer encontrou resposta. O pensamento do qual surgira essa filosofia fora nobre e entusiástico, sem dúvida, mas não fora assaz profundo. A idéia de que a afirmação da vida e do mundo deve ser permeada pela ética para que a civilização triunfe, tinha antes sido matéria de sentimento e experiência que de prova, mais de crença que de pensamento. Desta forma havia perdido o respeito dos pensadores de gerações sucessivas. Que era a decadência da civilização, se não o resultado inevitável deste ceticismo acumulado com referência a uma concepção que, por inspiradora e creadora que fosse, não passava em última análise, de um simples e magnífico postulado? 7

A estação seca estava no auge. Os nativos tremiam de frio, à noite, e na igreja de Lambaréné espirravam e tossiam como qualquer congregado do Hertfordshire ou da Alsácia. Grandes bancos de areia apareciam nas águas barrentas do rio, convidando um cirurgião, que saíra do banho de vapor de um hospital feito de zinco ondulado, a aspirar as brisas do rio ao clarear do dia. À noite, na pequena casa quadrada de telhado reto e larga varanda, Schweitzer lutava com o Anjo. Não passaria de ilusão, esta filosofia de afirmação ligada à ética, da qual o homem moderno havia derivado a força e o esplendor do mundo moderno? Seria tudo isso um sonho, que nunca cessasse de excitar o coração dos homens, sem, contudo, possuí-lo verdadeiramente? Se assim fosse, era loucura tentar perpetuá-lo, uma vez que coisa alguma que não esteja solidamente firmada em sua mente é capaz de impulsionar permanentemente o homem. Todavia, seria realmente uma ilusão? Não seria, talvez, um pressentimento da verdade, fracamente discernida, embora nunca realmente apreendida? Se se pudesse, por meio de um modo de pensar vigoroso e simples, apreender e definir a verdade até aqui apenas adivinhada, suposta, crida... Se se pudesse descobrir uma idéia que abrangesse tanto a ética quanto aquela fé na vida e no mundo que impelia os homens à ação e ao progresso! A aspiração tornou-se resolução, e a resolução tornou-se uma obsessão. Schweitzer percebeu que não podia pensar em outra coisa. Estava em sua mente enquanto examinava os enfermos, quando se curvava sobre o microscópio, quando pensava feridas, quando operava. Qual era a natureza real da ética? a natureza real das afirmações básicas do homem? e que havia de comum entre elas? Schweitzer levou suas apaixonadas indagações rio abaixo, ao Cabo Lopez, porque sua esposa estava começando a sentir os efeitos do clima, como acontecia com ele mesmo. Um branco, negociante de madeiras, ofereceu-lhes sua casa; alimentavam-se de arenques, que o doutor pescava no estuário, e sentiam a lassidão da selva fugir diante do ar suave que soprava através das vagas do Atlântico. Até neste paraíso de amplas águas azuis e praias orladas de matas escuras, Schweitzer sentia-se perseguido pela pergunta: que há de comum na ética e na afirmação da vida e do mundo? Voltou-se para a filosofia em busca de luz, e esta lhe faltou. A filosofia, parece, não havia jamais enfrentado o problema que ele estava procurando resolver. O que ela dizia da ética, além do mais, parecia-lhe tão estreito quanto sem vida, destituído de conteúdo real, sem oferecer nenhum acesso à idéia unificadora que ele estava buscando. À medida que penetrava mais a fundo no domínio da filosofia, tornava-se consciente, como nunca antes, de que essa região central, para dentro da qual sua busca o havia conduzido, era terra praticamente inexplorada.

Ora de um ponto, ora de outro, ele penetrava nela, e voltava fatigado e descoroçoado. Como os grandes e pequenos círculos que vemos num sonho febril, como a reiteração de um disco riscado de fonógrafo, a persistente indagação vibrava na sua mente excitada: Que é que a ética e a afirmação da vida e do mundo têm em comum? Tinha a sensação de estar perdido num bosque sem poder encontrar um trilho, parecia que empurrava com todas as forças uma porta de ferro, que não cedia. O doutor recebeu um chamado de N’Gomo, cerca de 160 milhas rio acima, para atender a esposa de um dos missionários. O capitão de um pequeno vapor deulhe lugar em sua já sobrecarregada barcaça e um grupo de nativos permitiu-lhe compartilhar o conteúdo da sua panela. Enquanto o vapor subia lentamente a corrente, serpenteado por entre bancos de areia, Schweitzer estava sentado na coberta da barcaça, pedindo em pensamentos, tateando mentalmente pela concepção elementar e universal da ética que revitalizasse e fortalecesse o postulado-mestre da civilização ocidental. Para manter a mente concentrada no problema, rabiscava no papel, de vez em quando, palavras isoladas, frases, sentenças desconexas. Um dia inteiro ficou assim, e todo o dia seguinte. Ao entardecer do terceiro dia, enquanto os barcos abriam caminho por entre um rebanho de hipopótamos, a frase “Reverência Pela Vida” relampeou diante dele, como que vindo do papel que tinha nas mãos. Reverência Pela Vida! O trilho através da mata estava aberto diante dele; a porta de ferro havia cedido. Havia encontrado a concepção comum à ética e àquela afirmação da vida e do mundo que era a dinâmica do progresso. A civilização, pois, não repousava num belo sentimento, numa tradição ou suposição, à mercê de qualquer céptico: repousava sobre uma idéia. 8 As velinhas que haviam queimado pela metade no primeiro Natal da guerra, consumiram-se até o fim no segundo. A alma da Europa estava enferma, e seu gênio agonizava. Com muito atraso chegavam os jornais europeus, que pareciam insignificantes e irreais na selva, onde o doutor batalhava dia e noite para salvar vidas; vidas que pareciam não ter sentido para a humanidade, exceto no sentido de ser vida, e, portanto, preciosas em qualquer lugar, fossem quais fossem os corpos em que respiravam e palpitavam. Mensagens ocasionais chegavam da Alsácia e um dia a guerra feriu o doutor no íntimo da alma, com implacável selvageria, quando veio a notícia de que sua mãe havia sido pisada e morta pela cavalaria na rua da aldeia. 1916, 1917. Em Lambaréné o doutor continuava a trabalhar, solitário mas teimoso. Na Europa, seus amigos, divididos e acossados pela guerra, empobrecidos até a penúria, estavam impossibilitados de renovar suas

contribuições para o seu trabalho. Todavia, os enfermos continuavam a chegar, em número sempre crescente, e ele não podia recusar-Ihes seu auxílio. Foi obrigado a tomar dinheiro emprestado da Sociedade Missionária de Paris, para suprir o hospital, e sombriamente, em noites cheias de ansiedade, refletia como poderia ele, quando a paz viesse, ele, músico e erudito, pagar aquilo que era uma obrigação pessoal. Mas não valia a pena correr risco para salvar uma vida, ou para aliviar uma hora de agonia? A humanidade respondera que sim. A guerra dizia que não. Os Schweitzers estavam em Lambaréné havia quatro anos e meio quando, certo dia, vieram ordens para que fossem levados para a França, onde seriam internados como prisioneiros de guerra. Schweitzer não se queixou, nem então nem depois. Com o auxílio dos missionários e de alguns nativos, ele e a esposa empacotaram seus objetos pessoais, o piano-órgão, os instrumentos cirúrgicos e os remédios, e, depois de três dias de frenéticos preparativos, embarcaram para uma viagem que para eles não tinha destino certo. Pela primeira vez desde a infância de Schweitzer, a direção da sua vida estava em outras mãos que não as dele.

Capítulo 10 Nas casernas de Bordéos, o doutor, que nunca estava enfermo em dias de sua vida, apanhou disenteria. Ainda estava muito fraco quando, três semanas depois, ele e sua esposa foram enviados, em plena noite, para um campo de internação em Garaison, nos Pirineus. Durante um longo e frio inverno viveram num mosteiro abandonado, juntamente com um agregado de gente sem lar que só uma guerra podia congregar: gerentes de bancos e cozinheiros, garçons e arquitetos, músicos e alfaiates de senhoras, artistas, engenheiros, sapateiros e sacerdotes. Porque Romain Rolland o havia citado num dos seus livros, Schweitzer foi eleito membro honorário de uma orquestra de ciganos, com o privilégio de uma serenata no dia do seu aniversário. Generoso e expansivo, logo se tornou o médico do campo, e amigo do amável teosofista que era o governador. Sem livros ao seu dispor satisfazia sua sede de conhecimento extraindo-o sistematicamente dos seus companheiros de prisão, estendendo seus conhecimentos a campos a que antes não tivera acesso, nem por experiência normal, nem pelas leituras. Todos os dias, numa prancha marcada como um teclado de órgão, e com pedais imaginários no chão, memorizava peças de Bach ou de Widor. Quando tinha oportunidade, traçava o esboço do quarto e último volume da sua obra filosófica sobre a decadência e restauração da civilização. O nome Garaison é palavra provençal que significa “cura”, e o ar claro e frio dos Pirineus restituiu à senhora Schweitzer grande parte das forças que a África Equatorial havia esgotado. Mas o doutor não reagiu da mesma forma. O ataque de disenteria que sofrera deixara-lhe um abatimento que se acentuava à proporção que os meses passavam, até que aquele corpo, que havia suportado o tríplice esforço dos anos de preparação médica, e quatro anos e meio de selva africana, deixou de responder a qualquer apelo. A transferência dos prisioneiros para outro mosteiro abandonado, entre os bosques de oliveiras de S. Remy de Provence, não longe de Arles, foi um golpe para o doutor e sua companheira. Num quarto imortalizado por Van Gogh, que ali estivera confinado pouco antes da sua morte, sofriam com os ventos gelados, o chão de pedra, e dolorosos ecos do que havia sido uma casa de loucos. O corpo enfraquecido de Schweitzer ardia em febre. No meio do verão foram permutados e enviados à Suíça. Nenhuma palavra antecipada os havia preparado para a emoção de ver meia dúzia de amigos esperando-os na estação de Zurich, nem para o golpe de verem em Constança,

além da fronteira alemã, as pálidas e emagrecidas faces de homens, mulheres e crianças subnutridos por quatro anos de guerra. Estrasburgo estava em “blackout”, sem mostrar a mínima réstia de luz. A muito custo Schweitzer descobriu o caminho, dentro das trevas, através daquelas ruas tão familiares e tão caras, às quais tantas vezes, naqueles últimos cinco anos, voltara em espírito. Günsbach estava nas linhas de frente, quase sempre debaixo de fogo, e, fraco como estava, Schweitzer teve de andar a pé as dez milhas desde Colmar. Encontrou seu pai ainda vigoroso, desafiando o canhoneio. Sua mãe, morta debaixo dos cascos dos cavalos, estava em todos os quartos, um pouco mais silencieuse do que em vida; era uma presença viva, que partia o coração. Mesmo anos mais tarde, Schweitzer se recusava a falar das suas experiências de guerra. “Eram parte da loucura do mundo”, disse ele ao seu amigo quaker, Hubert Peet. “Procuremos esquecer aquele tempo de ódio e de terror.” 2 Foi um tempo amargo, o mais amargo da sua vida, e o fim ainda não estava próximo. As colinas e os vales tão seus amados, estavam devastados; os encantados bosques de faias da sua infância eram agora selvas de troncos quebrados e enegrecidos. Velhos amigos estavam mortos, alguns deles pelas próprias mãos. Como se não bastasse a guerra, e a seca dominava a região, e para milhares a morte pela fome era um espectro sempre presente. Calaram-se os canhões; o armistício foi assinado; a guerra acabara. Mas na casa pastoral de Günsbach o filho do pastor revolvia-se no seu leito, a febre sempre a aumentar, e uma dor como as que em Lambaréné haviam despertado nele a mais profunda compaixão. Reconheceu os sintomas. Era necessária uma operação imediata. Arrastou-se como pôde até meio caminho de Colmar, antes de achar um veículo que o levasse até o trem que o transportasse a Estrasburgo. As perspectivas que tinha diante de si, nas longas semanas de convalescença no hospital, não eram de molde a favorecer-lhe o restabelecimento. Sua vida afigurava-se-lhe como os enegrecidos topos das colinas dos Vosges, ou como as casas rurais cujos telhados haviam desabado dentro das paredes fendidas. Sua saúde estava abalada; seu hospital em ruínas. Não tinha recursos; só dívidas, dívidas enormes, para com a Sociedade Missionária e amigos pessoais em Paris, que lhe haviam adiantado os fundos necessários para comprar drogas e provisões. Nem sequer sabia se poderia ganhar o suficiente para sustentar sua mulher e a menina que lhes havia nascido no dia do seu próprio aniversário, dois meses depois do armistício. Poderia, naturalmente, lecionar de novo; mas ninguém sabia o que havia de ser da Universidade, agora que Estrasburgo era francesa outra vez. Seu amigo, o burgomestre, aquele mesmo Dr. Schwander que tanto havia feito para despertar e pôr em ação a consciência social dos melhores elementos da

população, pediu-lhe que fosse servir no hospital municipal, e a igreja de São Nicolau convidou-o a reassumir seu antigo lugar de pároco, residindo na casa pastoral. Aceitou ambas as ofertas, que vinham atender às suas necessidades imediatas, sem, contudo, aliviá-lo do senso de impotência que se apoderara dele. Numa simples cartada, havia arriscado tudo quanto tinha, tudo quanto era, e mesmo o que parecia vir a ser; e havia perdido. De escasso consolo lhe era saber que não perdera por sua culpa, e que ele e a sua grande empresa eram apenas duas das quase cinquenta milhões de ruínas similares, vivas ou mortas, espalhadas por todo o globo. Havia fracassado. Tivera um grande sonho, e o sonho se dissipara. Havia esperado não só aliviar, por alguns decênios, algo do sofrimento dos menos favorecidos, os enteados das nações que dominavam o mundo, mas dar exemplo, para estimular a imaginação e despertar a consciência da humanidade. Havia fracassado. As formigas, o cupim e a selva tomariam conta do seu hospital; os nativos mergulhariam de novo nos antigos abismos de sofrimento e de terror; os corações humanitários, em meia dúzia de países, se voltariam para outras causas, mais promissoras. Tudo que ficaria seriam suas dívidas, os generosos adiantamentos de amigos que acreditavam na sua integridade; como poderia um intelectual e um músico pagá-las jamais? As atividades de Schweitzer no hospital em S. Nicolau, ao invés de aliviar sua depressão, serviam antes para torná-la ainda mais dramática, porque lhe lembravam os anos exuberantes e frutíferos que precederam sua partida para a África. Que alegria no trabalho, que aspirações, que esperanças, que conquistas! Tudo isso havia passado. Mesmo entre os intelectuais ele não era senão um fantasma do passado. Sentia-se como uma velha moeda que houvesse rolado para debaixo da mesa, e ali permanecesse esquecida. A necessidade de segunda operação, e a própria operação, um ano depois da sua volta ao país natal, aprofundaram o senso de fraternidade com todos os que sofrem, sentimento que ele tivera desde a sua infância. Que laço é a dor! Como nos faz sentir o desejo de aliviar a angústia dos outros, angústia do corpo, angústia da mente e do espírito! Uma idéia fulgurou e tomou posse dele – a fraternidade dos que trazem as marcas da dor. Fraternidade não só no sentido de compaixão, mas também de um corpo coeso, uma grande e não organizada companhia mundial, levada pelo sofrimento a ajudar os sofredores; todos os homens, mulheres e crianças que conheceram a dor, empenhados, enquanto tivessem vida, em aliviar a dor. Enfermo e desanimado, Schweitzer tornou-se uma figura familiar aos oficiais aduaneiros alemãs, quando a nova fronteira foi estabelecida no Reno, quando levava mochilas cheias de alimento a Kehl, para serem mandadas a Hans Thoma, o velho pintor, para Cósima Wagner, e outros amigos, que na Alemanha passavam fome. A fraternidade dos que trazem as marcas da dor!

3 Um raio de luz brilhou em suas trevas quando, pelo fim de 1919 o Orfeão Catalão de Barcelona o convidou para tocar órgão num dos seus concertos. A recepção que teve constituiu para ele um grande refrigério. Embora o mundo erudito o ignorasse, dizia a si mesmo durante a longa viagem de volta, o mundo da arte parecia ter ainda um lugar para ele. Mesmo entre os eruditos, não estava tão esquecido como supunha. Na Suécia, um notável filósofo de religião, que era também o mais alto dignitário eclesiástico do seu país, lembrava-se do tratado de um jovem intelectual sobre a filosofia religiosa de Kant, da sua busca do Cristo histórico, e dos seus estudos do mundo espiritual de São Paulo, e indagou sobre o paradeiro e destino de Albert Schweitzer. Ninguém parecia saber nada, além de um boato de que ele havia sido internado e estava ainda preso em qualquer lugar; a última notícia que dele se tinha, era que estivera trabalhando em algum tratado de ética. O arcebispo Nathan Söderblom era homem de ação. De um modo ou de outro, alguém teria de libertar aquele brilhante intelectual. Por que não convidaria ele o prisioneiro para fazer uma série de conferências na Universidade de Upsala, reforçando o convite com uma discreta pressão sobre qualquer governo que o tivesse em custódia, para que permitisse ao internado aceitá-lo? O alto dignitário sueco escreveu ao arcebispo de Canterbury. Imaginese, o arcebispo de Canterbury!... Schweitzer nem sequer sonhava com a impressão que causara nos mais elevados círculos eclesiásticos. Uma noite, na véspera de Natal, voltava ele, doente e deprimido, do seu giro diário no cumprimento de fastidiosos deveres, quando encontrou à sua espera um grande envelope, de aspecto importante. Continha uma carta do arcebispo Söderblom, que o convidava para, na primavera seguinte, dar uma série de conferências na Fundação Olaus-Petri da Universidade de Upsala. O assunto ficaria ao critério do conferencista, devendo, porém, mover-se no terreno da ética. A Fundação solicitava o privilégio da publicação das conferências. Enquanto lia, lágrimas lhe toldavam os olhos. Finalmente ele não estava tão completamente esquecido, como havia pensado! Podia falar do assunto mais do seu coração, e as conferências seriam publicadas! E ele havia imaginado que ninguém desejaria sequer ouvi-lo falar sobre esse tema, e que nenhum editor estaria disposto a imprimir-lhe as palavras! E era Söderblom quem queria que ele falasse, Söderblom, cuja influência sobre seu próprio pensamento, Schweitzer há tanto tempo reconhecera! Apressou-se a mostrar a carta a sua esposa. Que presente de Natal! E eles que haviam esperado um sexto “Natal de guerra”, solitário e infeliz!

De repente uma nuvem encobriu o sol: doente como estava, com a ferida da sua segunda operação ainda aberta depois de seis meses, teria ele o direito de empreender a longa jornada e impingir-se a estrangeiros? Na sua resposta ao arcebispo ele expôs esses escrúpulos. Nathan Söderblom não lhes deu importância. “Venha”, escreveu. “Temos médicos competentes em Upsala, e a mudança de ar far-lhe-á bem. Teremos cuidado com a sua dieta.” 4 Schweitzer estava cansado e doente quando, em abril de 1920, chegou a Upsala com sua esposa. Os Söderblom – eram dez, além do arcebispo e sua esposa – cercaram-nos com o calor da sua vida de família. O grande e belo Primaz, de olhos azuis e cabelos castanho-claro, falava o francês e o alemão tão fluentemente quanto a sua própria língua, e mostrou um senso de humor e uma mente que funcionava como uma máquina bem lubrificada. As conferências de Schweitzer, em Upsala, seguiram o plano geral dos capítulos da filosofia da civilização que havia sido obrigado a deixar em Lambaréné e tratavam do problema da afirmação da vida e do mundo em relação com a ética, desenvolvida pela filosofia e pelas grandes religiões do mundo. Seus auditórios deram-lhe tal atenção e tanta simpatia, que o coração do conferencista estava em fogo. Quando, na última palestra, apresentou as idéias fundamentais da ética da Reverência Pela Vida, a reação dos ouvintes foi tão eletrizante que Schweitzer mal pôde dominar sua emoção e terminar seu discurso. Havia falado das profundezas do seu ser e havia quem mostrasse interesse! Apresentara pensamentos que o tinham perseguido durante vinte anos, pensamentos que ele julgava irremediavelmente incompatíveis com o espírito da época, fadados ao escárnio e ao esquecimento; no entanto, estes homens e estas mulheres, expoentes da vida intelectual e religiosa da Suécia, os haviam recebido bem, e até tinham aplaudido!... Schweitzer começou a sarar. O arcebispo teve parte pessoal nesse processo. Revelou-se uma personalidade singularmente atraente, que havia conseguido que o entusiasmo por Zoroastro, Inácio de Loiola e pelo Teatro sueco parecesse natural na pessoa do metropolitano do rebanho luterano, Söderblom, o líder do movimento ecumênico na Europa. Totalmente despretensioso, embora dominante, e mesmo majestoso quando no exercício do seu cargo eclesiástico, quebrava sem cessar os padrões de um dignatário da Igreja, por maneira pitoresca e às vezes impressionante, como na ocasião da instalação de um novo pastor numa cidade vizinha. Ninguém sabia como, mas o caso é que a parte superior do seu báculo episcopal tinha desaparecido. Um bispo sem báculo é como um rei sem cetro, um soldado sem arma, um operário sem ferramenta. O povo estava reunido, os sinos tocavam,

quando o arcebispo teve uma inspiração. Desapareceu no jardim da residência episcopal, e voltou com uma haste de lilás em botão nas mãos e um sorriso radiante nos lábios. Colocou a haste na metade inferior do báculo de prata e, com grande gozo de Schweitzer, tomou seu lugar na procissão e dirigiu o serviço religioso com irrepreensível dignidade. Nessa noite Schweitzer assistiu a uma reunião diocesana no quarto do novo pastor, estando o arcebispo sentado na mala do recém-chegado, e o clero espalhado pela cama e pelo sofá. Por que fazer as coisas com documentos, observou o Dr. Söderblom a Schweitzer, quando é muito mais simples para todos “conversar sobre as coisas de maneira fraternal”? Semelhante homem não levaria muito tempo para notar que seu hóspede andava preocupado com algo. Num passeio na chuva, com os ombros tocandose debaixo de um único guarda-chuva, o arcebispo fez perguntas discretas, e descobriu que o doutor estava mais enfermo de coração do que havia jamais estado de corpo. Suas dívidas, os apelos que lhe estavam chegando de Lambaréné, as idéias de que talvez nunca mais estaria em condições de restabelecer seu trabalho na África pois não via esperança alguma de pagar o dinheiro que devia, tudo isto lhe passava na cabeça como uma montanha. “Olhe – disse o arcebispo – nós talvez possamos fazer alguma coisa. A Suécia ganhou muito dinheiro durante a guerra. Por que não dar concertos de órgão e fazer conferências sobre o seu trabalho africano? Se fizermos as coisas direito, o senhor poderá arranjar dinheiro suficiente para pagar boa parte da sua dívida.” O arcebispo não era homem para chocar uma idéia e depois jogá-la aos corvos. Noite por noite conferia com Schweitzer, estudando o seu itinerário e escrevendo cartas de apresentação a bispos, diáconos, organistas e amigos que tinham quarto para hóspedes. Incidentalmente deu a entender a um editor que o doutor das selvas tinha dentro dele uma grande história, e que ele, editor, faria muito bem em extraí-la. No meado de maio, Schweitzer começou o seu giro, que o levou a todas as cidades maiores da Suécia, e a paróquias remotas, cujas pequenas e brancas igrejas elevavam suas torres ao lado de lagos azuis, ou se erguiam solitárias e corajosas, no meio de negras florestas de pinheiros. Das profundezas do seu devotamento ele falou das necessidades dos nativos africanos, da culpa da raça branca, da oportunidade de fazer reparação; da luminosidade da sua visão, falou da “fraternidade dos que trazem as marcas da dor”. Quem pertencia a essa fraternidade? Aqueles que haviam aprendido, por experiência, a significação da angústia do corpo; vigorava estreita afinidade entre eles, no mundo inteiro. “Estão unidos por um laço secreto. Cada um, e todos eles, e cada um deles, sabem a ânsia com que espera a libertação das garras da dor.”

Em paróquias humildes e obscuras, como nas cidades e vilas, o povo afluía para ouvi-lo. Schweitzer era conhecido pelos intelectuais suecos como pensador e teólogo, mas era o médico das selvas, o pioneiro da mata virgem, que comovia o público em geral; o homem de coração, como o dissera uma das suas hospedeiras, a baronesa Lagerfelt, o homem que tinha o dom de falar aos corações. Missões não eram novidade para os suecos, mas nunca uma personalidade, um espírito, como Schweitzer lhes havia apresentado tão luminosamente, o dever que recai sobre a civilização ocidental de fazer alguma coisa em favor dos filhos da noite africana. Nunca, certamente, a história do sofrimento nativo lhes havia sido contada com tanta música como esse robusto visitante, com seu negro bigode e seus olhos escuros e bondosos, evocava dos velhos órgãos da Suécia. Através do encantamento daquela primavera reveladora, a Suécia deu da sua abundância, e ganhou mais do que deu. Tocando Bach e Mendelssohn e César Franck, Schweitzer despertou organista após organista, e uma congregação após outra, para a beleza do timbre de órgãos que eles estavam prestes a pôr de lado como antiquados. Ao tempo em que Schweitzer estava terminando sua jornada de seis semanas, dois movimentos iam tomando forma: um para uma associação de amigos de Lambaréné, outro para salvaguardar o gosto público em matéria de órgãos. Muito antes do fim do seu giro, Schweitzer percebeu que suas perspectivas tinham sofrido uma transformação revolucionária: seria capaz de pagar suas dívidas! Quando se acostumou a este pensamento, uma nova possibilidade entrou em foco. Se o público europeu estava tão disposto como parecia, para ouvi-lo tocar Bach e falar de Lambaréné, certamente não haveria razão para que ele não reabrisse o hospital! Não havia razão? Havia, sim, uma razão poderosa. O clima tropical tinha cobrado pesado tributo de sua esposa. Ele não podia pedir-lhe que voltasse à África, levando a filha. Nos interlúdios de calma, que a viagem lhes permitia, o doutor e sua valorosa companheira enfrentaram os fatos e chegaram a uma decisão. Schweitzer devia voltar a Lambaréné, mas iria só. A decisão foi dolorosa para ambos, mais dolorosa, como o doutor reconheceu para a esposa que teria de esperar ano após ano na Europa, criando a filha sem ter o esposo ao seu lado. “Nunca deixei de ser grato – escreveu ele dez anos depois – pelo fato de que ela se sacrificou até o ponto de concordar, nestas circunstâncias, para que eu reassumisse o trabalho em Lambaréné.” 5 Quando Schweitzer voltou a Estrasburgo, era outro homem. A Suécia havia-lhe devolvido a segurança. A Suécia havia recebido bem suas idéias, mostrando-lhe como pagar suas dívidas, colocando-lhe nas mãos, por meio das suas conferências e dos seus recitais, o necessário para saldar os débitos mais

prementes. A Suécia lhe tinha dado a coragem de pensar em reabrir seu hospital em Lambaréné. Havia gente no mundo que se interessava por isso! Era tudo que ele precisava saber. Sabendo da existência de interessados, podia começar de novo, reconstruir o que tinha sido destruído. Como primeiro passo para Lambaréné, escreveu o livro de reminiscências africanas que a firma Lindblad, de Upsala, lhe havia pedido por instigação do arcebispo. “À Beira da Floresta Virgem” apareceu em sueco e alemão no ano seguinte e pouco depois em inglês, e criou um círculo, cada vez maior, de amigos e mantenedores, e, incidentalmente, proporcionou ao autor bons direitos autorais. Schweitzer respirava aliviado. Rumores acerca das suas conferências em Upsala estavam circulando entre os doutos. Foi convidado para fazer conferências, aqui e ali, sobre a filosofia da civilização, ou sobre os problemas do Cristianismo primitivo, dos quais havia tratado em seus escritos teológicos. Parecia que, se uma parte do mundo erudito o havia esquecido, uma parte maior o estava descobrindo pela primeira vez, não sem uma certa excitação. Renunciou aos seus cargos em Estrasburgo, e mudou-se com a família para a casa pastoral de Günsbach, onde teria a calma necessária para trabalhar na sua “Filosofia da Civilização”. Mas só lhe era permitido trabalhar esporadicamente. Foi chamado para fazer conferências na Suíça, e outra vez na Suécia. Foi convidado para fazer as Dale Memorial Lectures no Mansfield College, de Oxford, e escolheu por tema “A Luta pela Concepção Ética do Mundo na Filosofia Européia”. No Selly Oak College, de Birmingham, falou sobre “Cristianismo e as Religiões do Mundo”. Mais insistentemente que nunca, Schweitzer falou às crianças de Inglaterra. Quando um escritor inglês, que estava reunindo uma coleção de histórias de heróis, lhe pediu uma palavra pessoal para o capítulo sobre “Oganga, o Médico das Selvas”, Schweitzer enviou esta mensagem: “Diga aos meninos e meninas da Inglaterra que as verdades que eles sentem mais profundamente em seus corações, são as verdades reais. O amor de Deus fala em nossos corações, e procura agir no mundo através de nós. Devemos dar ouvidos a essa voz. Devemos ouvi-la como uma pura e distante melodia, que chega até nós através dos rumores do mundo. Alguns dizem: “Quando formos grandes, ouviremos. Agora, enquanto somos jovens, preferimos pensar em outras coisas”. Mas a voz do Amor, com que Deus nos fala nos recessos do coração, fala-nos quando somos jovens para que nossa juventude possa ser realmente juventude, e para que possamos tornar-nos filhos de Deus. Felizes aqueles que a escutam!” Da Inglaterra, Schweitzer voltou de novo à Suécia, depois à Suíça. Em Copenhague falou sobre ética, em Praga deu um curso de filosofia da civilização. Bendisse a disciplina e a prática que Lambaréné lhe havia proporcionado, na

arte de falar por meio de intérpretes: sentenças curtas, simples, claramente construídas, ensaiadas de antemão com o intérprete, para que, na tribuna, ele as pudesse lançar ao intérprete como uma bola, e este as lançasse ao auditório da mesma maneira. Aonde quer que fosse, dava recitais de órgão. Um dos primeiros foi na Abadia de Westminster. Um amigo, Hubert W. Peet, deixou uma descrição do médico da selva, quando este um dia antes do concerto, ensaiava no grande órgão. A Abadia estava em trevas, com exceção de algumas luzes na galeria do órgão. “Um débil clarão do dia que expirava lá fora mostrava, em cores discretas, os velhos vitrais coloridos das janelas, e incidia, aqui e ali, nos entalhes dourados do altar.” Schweitzer estava estudando a partitura de um dos Prelúdios de Bach, marcando as páginas com um lápis azul ou vermelho, que pendia de um cordel ao seu pescoço. Não queria ter um acorde erradamente acentuado, nenhuma falha na música, no recital do dia seguinte. O mundo agitava-se fora das paredes, mas era como se estivesse a milhares de milhas de distância. Enquanto o órgão ressoava nas abóbadas da nave, qual majestosa avenida em vasta floresta, o inglês, ouvindo nas sombras, parecia ver outro mundo de árvores gigantescas, e entreouvia outras harmonias. A obra desse homem, dizia ele de si para consigo, constituía uma unidade. Tocar órgão na Abadia, curar corpos e almas na África Equatorial, eram apenas diferentes expressões de uma vida consagrada. Naquela primavera, Schweitzer deu concerto em muitas das grandes igrejas do continente. Um organista dinamarquês, que o seguia de concerto em concerto, perguntava a si mesmo o que havia de tão fascinante na arte de Albert Schweitzer, que o fazia aparecer como um pioneiro? Não seria, paradoxalmente, sua naturalidade, sua simplicidade? Outros organistas, nos vinte anos precedentes, haviam tocado Bach por causa dos efeitos que podiam obter dele. Este homem parecia decidido a expressar apenas o que estava realmente nas composições do mestre, mas expressá-lo com toda a penetração possível, apanhando a profunda vitalidade que pulsava na música, revelando a cor e o sentimento poético naquilo que para outros era matemática musical. Sempre que fazia conferências e dava concertos, Schweitzer achava oportunidade para falar em favor do seu hospital; e por toda parte fazia amigos, acendia imaginações, despertava consciências de homens. Como um profeta vindo do deserto, inflamado pela sua visão, ele pregava arrependimento aos ricos da Europa que desprezavam o Lázaro que lhes jazia às portas. Na África, “milhões e milhões vivem sem amparo ou sem esperança de amparo”, declarava ele onde quer que falasse de Lambaréné. “Cada dia, milhares e milhares suportam os mais terríveis sofrimentos, que a ciência médica poderia pouparlhes, Cada dia reina em muitas e muitas choças remotas um desespero que a Europa podia banir.” Caridade cristã? Sim. Mas, muito mais profundo do que isso, uma obrigação, um dever de “que não nos podemos esquivar”.

Que significava o fato de que este e aquele povo nativo houvesse morrido, que outros estivessem morrendo, e que as condições de outros ainda estivessem ficando progressivamente piores, como resultado da sua descoberta por homens que se diziam seguidores de Jesus? “Quem pode descrever a injustiça e as maldades que, no decurso de séculos, eles sofreram às mãos de europeus? Quem pode medir a miséria ocasionada entre eles pelas bebidas de fogo e hediondas doenças que nós lhe levamos?” Com eloquente insistência falava aos seus auditórios do débito que pesa sobre a civilização ocidental. “Não estamos livres para conferir benefícios àqueles homens, ou deixar de fazê-lo, à nossa vontade. É nosso dever. Tudo que lhes dermos não é benevolência, e sim pagamento de débito. Para cada um que espalhou males, alguém deve ir para levar auxílio, e quando tivermos feito tudo que esteja ao nosso alcance, não teremos expiado sequer a milésima parte da nossa culpa.” 6 Já estava na Europa havia quase quatro anos quando, com a força de uma revelação, percebeu o que tinha acontecido na sua vida. Quando, dezoito anos antes, tinha resolvido trabalhar entre os negros africanos, havia, consciente e deliberadamente, aceitado as três renúncias que esse trabalho parecia implicar inevitavelmente. Quão misteriosa é a vida! Aquilo a que tinha renunciado lhe estava sendo devolvido em forma muito mais rica, em medida muito maior. Tinha renunciado às alegrias do órgão, à emoção de unir suas vagas de som, profundas como o oceano, aos esplendores corais das grandes cantatas? Pois bem: ele estava tocando em meia dúzia de países, quando antes tocava em dois apenas; e tocando não como acompanhador, e sim como solista! Tinha renunciado ao ensino universitário? Naquele tempo ensinava numa só Universidade; agora estava ensinando em uma dúzia! Renunciara à sua independência financeira? Possuía-a agora, em grau tal que dificilmente podia ter imaginado um decênio antes! Era como a história de Abraão, que estava preparado para oferecer seu filho Isaac no altar, como sacrifício a Jeová, quando, no último minuto, o Anjo lhe deteve o braço, fazendo dele, através do seu filho, o pai de uma grande nação. “Quem perder a sua vida, salvá-la-á...” 7 Nos intervalos dos seus giros pela Europa, Schweitzer estabeleceu nova base para ele e sua família em Königsfeld, na Floresta Negra. A saúde de sua esposa exigia altitude, e ele construiu uma casa de andar e meio na periferia de uma vila pacífica dominada pela presença dos Irmãos Morávios (Herrenhüter), que tinham ali um retiro. Desde a sua adolescência, Schweitzer se sentira atraído pelos Irmãos, com o seu simples espírito cristão, da mesma forma por que se sentira

atraído pela Sociedade de Amigos (quakers); queria que sua filha, Rhena, agora com três anos, crescesse no meio deles e frequentasse sua escola. Ele mesmo estabeleceu estreitas relações pessoais com muitos dos Irmãos. Em Königsfeld, quando suas conferências e seus concertos lho permitiam, Schweitzer continuava sua História da Civilização. No espírito dos Estóicos e de Goethe, estava escrevendo-a não para os profissionais em filosofia, mas para o homem comum que pensasse ou pudesse ser persuadido a pensar. O problema, ele bem o sabia, não era persuadir os profissionais, absorvidos em abstrações, e que presumivelmente não podiam, de forma alguma, ser persuadidos a descerem ao nível da terra. O problema era, numa época que desencorajava o pensamento, ajudar o médico e o advogado, o homem de negócios, a dona de casa, desanimados pelo estado do mundo, a chegarem a alguma concepção do sentido da civilização, e da parte que podiam desempenhar na preservação da mesma. A Europa estava enferma, o mundo inteiro estava enfermo. A Alemanha estava um pouco mais doente do que o resto, derrotada, aturdida pela inflação, arrastada de uma conferência internacional para outra, num esforço para fazer que o espírito de vingança assumisse aspecto de justiça e de sanidade econômica; a Itália curvando o pescoço ao fascismo; a Rússia debaixo de uma nova espécie de terror sangrento; a França em perpétua confusão política; Inglaterra lambendo suas feridas, e chorando a morte de uma geração. “Estamos vivendo hoje sob o signo do colapso da civilização. A situação não foi produzida pela guerra, que é apenas uma manifestação daquele.” Assim abre ele a “Decadência e Restauração da Civilização”, primeiro volume da sua “História”. “Está claro agora para todos – continua e, certamente, era indevidamente otimista na opinião que tinha da perspicácia dos homens, se não da civilização deles – que o suicídio da civilização está em franco progresso. O que ainda resta já não está seguro. Ainda está de pé, sem dúvida, porque não foi exposto à pressão destruidora que derrubou o resto, mas, como este, está construído sobre areia e o próximo desmoronamento, provavelmente, o levará de roldão.” Era horrível notar os sinais da decadência. Alguns homens talvez se limitassem a analisar as condições da civilização e comentá-las prudentemente. Ele não. Que seria do mundo, perguntava a si mesmo, se o processo de desintegração não fosse detido? A esta pergunta, estremecia. O futuro da humanidade estava ligado a esta pergunta. Os homens falavam levianamente da morte da civilização, como se tivessem outra para pôr no lugar dela. Três mil anos antes, talvez fora possível. Mas hoje? Se a civilização ocidental falhasse, quem tomaria a direção? Não era a civilização de uma raça, mas a da humanidade, presente e futura, que devia ser dada por perdida, se a fé no renascimento da civilização ocidental se mostrasse vã.

Que é que constitui a civilização? Quais são seus fundamentos? Os contemporâneos afirmavam categoricamente que a civilização era uma manifestação natural da vida, no curso da evolução humana, e que qualquer concepção moral da mesma era “racionalista e antiquada”. Reconhecia que o que falava neles era o espírito da época. Mas não era a outra “a simples verdade com a qual temos de contar”? Schweitzer levou a conclusão diretamente ao indivíduo. “Os problemas envolvidos no salvamento da civilização, mesmo os que se situam inteiramente na esfera material e econômica, devem, em última instância, ser resolvidos unicamente por uma transformação interior do caráter. As mais sábias reformas de organização podem levá-los apenas mais perto da solução, mas nunca à meta final. A única maneira concebível de realizar a reconstrução do nosso mundo, em novas linhas, é, antes de tudo, que nós nos tornemos homens novos sob as velhas circunstâncias, e depois, como sociedade, com nova disposição de ângulo, de tal modo suavizar a oposição entre nações, que as condições para uma verdadeira civilização possam novamente tornar possíveis. Qualquer outra coisa é trabalho mais ou menos perdido, porque estaríamos construindo não no espírito, mas em coisas meramente externas.” Página por página, na selvática beleza de Königsfeld, na calma de Günsbach, no encanto redivivo das colinas dos Vosges devastadas pela guerra, Schweitzer ia esculpindo suas verdades duras, inflexíveis, inexoráveis, acerca do pensamento e da conduta individual e social. Corrigia as provas da “Civilização e Ética”, segunda parte da sua História, no meio do encaixotamento de provisões para reiniciar os seus trabalhos em Lambaréné.

Capítulo 11 Outra vez Bordéos, com suas memórias de prisão e doença. Mais uma vez, a longa viagem para o sul, desta vez num cargueiro, acompanhado não pela esposa, mas por um atraente jovem estudante de química de Oxford, Noel Gillespie. De novo o verde e azul de Cabo Lopez, e o estuário do Ogowe, de uma milha de largura, o branco navio de roda de pá, mais desleixado e sujo do que nunca, a interminável e lenta viagem através de pântanos, as aldeias decadentes, os nativos vitimados pela miséria. Mais uma vez as colinas verdes de Lambaréné; mãos que se estendem, brancas e negras; o alvorecer de um domingo de Páscoa... O doutor contemplou o teatro dos seus labores de quatro anos, com o coração em chaga viva. Estar de volta depois de sete anos (e que anos!) era muito. Mas voltar sem “a mais leal das companheiras”, como havia descrito a esposa na dedicatória da sua “Civilização e Ética”! E voltar para essa desolação. Percorreu o cenário familiar, como que a sonhar, opresso num pesadelo. Sabia que ia encontrar devastação, mas a sua imaginação não calculara a eficiência das forças de destruição, nem a luxuriante capacidade da selva. O pequeno centro médico, que fora o seu orgulho, lembrava uma daquelas ruínas das lendas, sepultado no mato, coberto de espessa capoeira. De todas as estruturas que tão laboriosamente erguera; somente duas revestidas de folhas de zinco, restavam, mas mesmo assim com as cobertas de sapé abertas por toda a parte ao sol e à chuva. O caminho que levava para o que havia sido sua casa estava tão fechado que mal se lhe podia encontrar vestígios. O doutor encarou a desolação e, caracteristicamente, sentiu o impulso de tirar dela uma bênção. Construiria um hospital maior num lugar mais amplo, onde houvesse espaço para expandir-se. Conhecia o lugar exato, menos de duas milhas rio acima, onde o Ogowe se bifurca. Um “Rei do Sol” tivera ali a sua aldeia, antes que Trader Horn estabelecesse um posto comercial; o solo tinha sido cultivado, de maneira que a floresta era ainda recente, não sendo difícil limpar o terreno. A perspectiva encheu-o de nova esperança. Mas a realidade da África Equatorial mostrou-lhe como era vã essa esperança. O problema de mão-de-obra estava tão difícil como sempre. Bom número de carpinteiros havia prometido, antes da sua chegada, que estaria ali para ajudá-lo, mas não estava. O comércio de madeira estava de novo prosperando, e todos os homens válidos estavam ocupados em derrubar as grandes árvores, ou ajudando a dirigir as jangadas de

troncos para ornar. Que loucura, pensar em construir um novo hospital, quando nem sabia se estaria em condições de restaurar o velho! Os missionários tinham feito o que podiam para conservar intactos os telhados, mas finalmente haviam desistido, um ano antes. Nem cobertas de folhas entrelaçadas podiam ser obtidas. Mas, com buracos do tamanho de um punho no teto, como poderia ele guardar as provisões, ou examinar os pacientes, ou operar? Três horas após sua chegada, Schweitzer estava numa canoa, com seu jovem companheiro, dirigindo-se a força de remos para uma aldeia distante. Não tinha outra alternativa, embora fosse domingo, e domingo de Páscoa. Tinha de conseguir telhas a qualquer custo. Cumprimentou velhos amigos, pediu, adulou, caceteou, vasculhou dentro e fora das imundas cabanas. Chegou a ameaçar: nenhum outro homem enfermo daquela aldeia seria recebido no hospital, se as telhas não aparecessem. Os nativos sorriam, sem tomar a sério as ameaças do “nosso doutor”. Mas, quando os brancos voltaram para casa, varando um aguaceiro, à tarde, tinham quarenta e seis telhas de folha na canoa. Os piores buracos puderam ser consertados. Assim apesar de tudo, o doutor pôde celebrar a Páscoa com paz no coração. 2 Os doentes começaram a chegar no dia seguinte, e com eles, graças a Deus, meia dúzia de trabalhadores, arranjados por um nativo negociante de madeiras, para fazerem os reparos mais urgentes. Duas semanas de cuidadosa vigilância por parte do jovem Noel, e a farmácia e sala de exame dos enfermos estavam suficientemente restauradas para o uso. Mas o telhado do hospital ainda estava aberto às intempéries. Muitos dos pacientes ficavam molhados até os ossos, de noite, e apanhavam resfriados. Numa agonia de desespero o doutor viu morrer dois deles. Tardes e tardes que deviam ser consagradas aos doentes, Schweitzer as passou numa canoa, indo de aldeia em aldeia, pedindo telhas de folhagens. Foi chamado a uma aldeia distante para salvar a vida de um recém-nascido, e arrancou a quem o chamara a promessa de quinhentas telhas, caso salvasse a criança – e sentiu-se com isto como um cachorro. Estava perdendo o senso moral, dizia a si mesmo, e sonhava com o dia em que as construções estivessem terminadas, sem mais necessidades de dirigir os homens no serviço, nem forçar ninguém a fornecer-lhe telhas. Mas as telhas se tinham tornado uma obsessão. Mesmo a mais insignificante abertura no telhado, como sabia de amarga experiência, significava insolação. As energias lhe estavam fugindo. A muito custo se arrastava de um lado para outro, e foi com horror que verificou que não prestara atenção às pequenas frestas do telhado sob o qual estava examinando seus pacientes. Das telhas de folhas talvez dependesse todo o futuro do hospital.

De qualquer maneira, o telhado foi remendado. O doutor estava iniciando com ânimo as obras de um novo edifício, quando os trabalhadores o abandonaram. O contrato delas com o madeireiro tinha expirado, e eles queriam voltar para casa; nenhuma soma de dinheiro seria capaz de persuadi-los a ficar. Não havia possibilidade de contratar outros, e assim o doutor se viu obrigado a utilizar voluntários, na medida em que pudera obtê-los entre os que vinham ao hospital acompanhando enfermos amigos ou parentes. Nunca sabia de um dia para outro quantos seriam. Ora tinha seis, ora dois, ora nenhum: os outros tinham ido pescar, ou haviam remado para casa para buscar comida ou para um bate-papo qualquer. Havia dias em que não se fazia trabalho algum. Ele mesmo era obrigado a servir de capataz, com a tarefa de arrancar seus relutantes obreiros das suas panelas de carne, todas as manhãs, com lisonjas e a promessa de comida e presentes, e de mantê-los no trabalho quando suas energias falhassem. Geralmente ele o fazia com uma risada, acompanhada, ocasionalmente, de uma discreta insistência. Certa vez seus pretos, que estavam consertando um telhado, decidiram, ao meio-dia, que já tinham trabalhado bastante nesse dia. O doutor pensou na possibilidade de um dilúvio à tarde e suas consequências, sem falar de um possível tufão. Mas não bradou nenhuma ordem. Simplesmente sorriu para eles. “Vocês não descerão desse telhado enquanto não acabarem o serviço, mesmo que tenham de passar aí a noite.” Tirou a escada e foi-se com ela. Os homens acharam graça, atiraram-se ao trabalho, e foram recompensados com uma ração extra de arroz, bananas e bacalhau, quando a noite desceu sobre um telhado em perfeitas condições. A tarefa do doutor não era apenas vigiar para que o trabalho fosse feito, mas também verificar, ao fim de cada dia, que os machados, martelos, a madeira e o cimento fossem recolhidos e colocados em lugar seguro. Os nativos tinham idéias originais quanto a direito de propriedade: um homem prudente tomava conta das suas posses; um descuido qualquer lhe proporcionaria desagradáveis surpresas. Qualquer coisa que não estivesse fechada a chave, ou devidamente presa, era, por isso mesmo, considerada bem público. Materiais de construção eram quase tão difíceis de conseguir como a mão-deobra. Bambu apropriado só podia ser encontrado em certo lugar do pântano! As folhas de ráfia usadas para as telhas eram igualmente raras, e acessíveis apenas em determinadas estações. O doutor tinha de enviar uma canoa a vinte milhas de distância, para buscar a fibra que prendia as telhas e ripas do telhado. Ele não possuía uma canoa de tamanho conveniente, e era forçado a pedi-la a um vizinho, ou a tomar-lha emprestada. Muitas vezes acontecia que, depois de conseguir uma canoa, não tinha homens para irem buscar o bambu, e, quando tinha os homens, não tinha a canoa. E só durante três semanas, na primavera, quando as águas estavam altas, é que se podia conseguir bambu. Se então não

fosse possível ir buscá-lo, não lhe restava outra alternativa senão adiar a construção até o ano seguinte. Os pés do doutor ulceraram-se; não podia usar sapatos, e tinha de arrastar-se, com muitas dores, com sapatos de madeira, iguais aos que os aldeões de Günsbach usavam quando ele era menino. Mas o trabalho não podia parar. Precisava de tijolos para os alicerces e as paredes, mas como os nativos não mostrassem vontade de fabricá-los com o admirável barro de que dispunham, ele mesmo pôs mãos à obra. Como no caso do bambu também aqui o tempo era fator importante, pois só dois meses, na estação seca, estavam livres de chuvas, para que os tijolos pudessem secar. O apelo do doutor, reclamando auxiliares, fez com que todos os nativos aproveitáveis fossem pescar. Em vão os censurava, reduzia-lhes as rações, ou os ameaçava de não curar mais os seus filhos. Rio acima e rio abaixo correu a voz: “Mantenham-se longe do doutor de Lambaréné. Está com mau espírito e quer obrigar a gente a trabalhar”. O rumor até lembrava os tempos do Egito: “O doutor está oprimindo o povo para obter tijolos.” Schweitzer não costumava desistir facilmente de qualquer coisa que decidisse empreender. Vivia com tijolos o dia inteiro, e de noite sonhava com tijolos. Mas a tarefa de combinar Faraó, superintendente e médico era excessiva, mesmo para ele. Houve regozijo no hospital quando se soube que o doutor desistira dos tijolos. Foi bom que o fizesse, porque o clima pregou-lhe uma peça: pela primeira vez, na memória do mais velho habitante da zona, não houve estação seca. Com todas as complicações e demoras, o programa de reconstruções ia sendo executado, quando um acontecimento imprevisto forçou um novo adiamento. Uma das vítimas da doença do sono ficou louca, e teve de ser posta em lugar fechado. Nenhum edifício provou ser assaz firme para prendê-la. O doutor encarregou Noel de construir uma cela; mas noite após noite, durante dez dias, o enfermo descobria-lhe o ponto fraco e fugia. Quando o último ponto fraco foi reforçado, e o jovem de Oxford estava pronto para recomeçar a construção dos novos edifícios, o chão do antigo galinheiro cedeu debaixo do louco furioso, e o doutor teve de empregar todos os braços que pôde obter na construção, não para fazerem um novo assoalho, mas para construírem uma casa inteiramente nova. Não era coisa fácil, nos trópicos. A casa devia ser construída sobre pilares para desafiar as formigas; devia ter paredes de trançado bem fechado para repelir as serpentes; devia ter um telhado bem sólido para desencorajar os leopardos; e devia ser fácil de transportar, no caso de se verificar a necessidade de localizá-la em ponto melhor. Somente Schweitzer possuía a experiência necessária, e mais uma vez os doentes tiveram de esperar, enquanto o hábil médico martelava e serrava, ou, com paciência e alegria sintética, injetava energia no gênio versátil dos obreiros negros.

3 Schweitzer descobriu que tinha de travar batalha, não só contra a doença e a inata relutância dos africanos para qualquer trabalho que não fosse necessidade imediata. A mais insidiosa tentação do homem branco, no seu trato com os nativos, também ele a teve de arrastar: a tentação de se tornar brusco. A maioria dos negociantes e oficiais brancos cedia a essa tentação em nome do realismo, ou, como diziam, em defesa própria. Numa carta aos seus mantenedores europeus, Schweitzer falava do “terrível certame entre o obreiro europeu que tem responsabilidade e está sempre apressado, e o filho da natureza que não sabe o que é responsabilidade”, e se embala, feliz, na sua ignorância do tempo. Nesta luta diária, e até de cada hora, Schweitzer reconheceu que cada homem branco, inclusive ele, estava continuamente em perigo de “ruína moral paulatina”. Dominar pelo chicote, figurada ou literalmente, criava mais problemas do que solvia. Supor uma igualdade inexistente, não dava resultados melhores. Schweitzer verificou que só havia uma base de autoridade real. O nativo não tem capacidade para julgar as conquistas técnicas do homem branco como prova de superioridade mental e espiritual; mas parece ter uma intuição infalível quanto à evidência da posse de qualidades morais. Quando encontra bondade, justiça e integridade, reconhece superioridade. Quando não as encontra, torna-se insolente. Manter essas elevadas qualidades, conservar-se humano, e desta forma obter autoridade e liderança, eis o perpétuo desafio! Ser e continuar a ser, nas selvas, um bandeirante da civilização... O teste, Schweitzer o sabia, era o antigo teste cristão: pensar dos homens como massa, ou do homem como pessoa? Temos interesse ou não em conhecer o africano de homem para homem? Que esplêndidas qualidades de afeição, de lealdade e de tato revelava o nativo, e daquilo que o homem branco chama boa educação! Indolente, e até insociável e sem espírito de cooperação, mas dotado de bom coração, tardo em irar-se ou vingar-se. “Que boa coisa é que os negros tenham melhor caráter do que nós!” observou certa vez, um negociante branco a Schweitzer. Oyembo, o amigo de Schweitzer, tinha-o ajudado, nos primeiros anos, a manter sua perspectiva sobre os nativos, e um dos seus desapontamentos ao voltar a Lambaréné depois de sete anos de ausência, foi saber que “O Canto” havia, aparentemente, seguido o caminho do egoísmo e do proveito pessoal. Havia abandonado o ensino, e estava mergulhado no tráfico de madeiras. Outro homem bom que se perde, pensou o doutor. Tinha alimentado altas esperanças naquele homenzinho tímido e sensível, e não podia passar perto da cabana onde vivera Oyembo, ao lado da escola de meninos, sem sentir um aperto no coração.

Tão grande era a tristeza que sentia por causa de seu amigo negro que nem ousou perguntar a algum dos missionários o que lhe havia acontecido; só depois de alguns anos é que soube a verdade. Oyembo, ao que parecia, não havia abandonado de todo o ensino; tinha apenas deixado de ensinar crianças e estava educando a sua aldeia inteira, demonstrando o significado da cooperação para o bem-estar comum na reconstrução da aldeia, fazendo novas plantações de bananas e cassava café e cacau, construindo uma escola e estabelecendo uma próspera cooperativa de madeireiros. Tinha educado de tal modo os habitantes da aldeia que eles já nem roubavam, nem aceitavam presentes em troca de serviços que nada lhes haviam custado, 4 Rio acima, rio abaixo, eles estavam clamando pelo toque curador do doutor: os leprosos, os que sofriam da doença do sono, as crianças cobertas de chagas da cabeça aos pés. Ele oferecia seus remédios e suas injeções intra-venosas por um preço: telhas de folhas, ou bananas para alimentar seus doentes. Sem telha, ou sem banana não haveria cura. Mas na presença de alguma mãe dolorosa ele encontrava desculpas e fraquejava, nem mesmo mostrava má vontade contra os chefes, quando deixavam de apresentar as quinhentas telhas que haviam prometido em troca das suas curas. Não era possível manter bases comerciais com estes primitivos homens da selva, quando vidas estavam em jogo. De vez em quando, nas trevas da noite, mulheres e homens moribundos eram abandonados no desembarcadouro do hospital. Não havia esperança para eles, diziam seus vizinhos da aldeia; para que então preocupar-se com eles? Quando morriam, os outros pacientes do doutor duvidavam se ele era realmente o que por aí se dizia. Pois não é o primeiro teste de um feiticeiro a capacidade de reconhecer se uma doença era ou não fatal? E que feiticeiro aceitaria um caso perdido? O doutor sorria com o seu tolerante sorriso, e aliviava quanto possível as últimas horas daqueles infelizes enjeitados. Passavam os meses, as obras de reconstrução prosseguiam, e a fadiga, como a que ele conhecera nos últimos anos do seu curso médico, apoderara-se do doutor e não queria largá-lo. Tanta coisa para fazer, e tão pouco tempo disponível! A chegada de uma enfermeira formada de Estrasburgo, foi um auxílio, mas ele tinha maior necessidade de um médico. Tanta construção, tanta necessidade de controle, tanto falatório, tanta adulação! E não tinha tempo para fazer, com a metade da eficiência necessária, a coisa principal para a qual tinha vindo à África! Sofria, reconhecendo como era superficial o exame dos doentes, e a pouca atenção que estava dando aos que se submetiam aos drásticos tratamentos exigidos pelas doenças tropicais. O microscópio, tantas vezes negligenciado, parecia olhar para ele com ares de censura: “Por que não me perguntou? Eu lhe teria dito”. A tradição e a prática de uma vida inteira faziam com que sentisse remorsos por estar fazendo trabalho imperfeito, embora contra a sua vontade.

Estava no fim das suas forças. Nem um dia mais poderia arcar com a dupla carga de médico e construtor... Ouviu o silvo estridente do vapor do rio, e saltou para uma canoa. Na soberta um moço alto chamou-o, e um minuto depois uma forte mão apertava a sua. “O senhor vai descansar agora – dizia o filho de um amigo de Estrasburgo, dos tempos do curso médico – eu vou fazer tudo.” “Ótimo!” bradou Schweitzer jubiloso. “Pode começar pondo sua bagagem nas canoas.” Por fim, tinha um assistente, e esta idéia o dominou de tal modo, que mal pôde falar durante a breve travessia. Que luxo abençoado, poder alguém confessar a si mesmo quão mortalmente cansado se sente! 5 Tudo ficou diferente com o Dr. Nessmann ao seu lado. O moço parecia talhado para a África, com seu senso prático, seu bom-humor, sua capacidade de organização, sua habilidade com os nativos. Schweitzer podia ficar dias e dias no trabalho da construção, certo de que os doentes não seriam descuidados. Auxílios de outra forma estavam chegando: outra enfermeira da Alsácia, um barco a motor de amigos da Suécia, outro médico, desta vez da Suíça; e, o que de todos os dons de Deus era o mais bem-vindo no momento, um carpinteiro. O homem tinha lido as dificuldades do doutor, e decidiu oferecer-lhe voluntariamente seus serviços. Não escreveu uma palavra sequer: veio, simplesmente. Schweitzer pô-lo a trabalhar numa casa de dez cômodos com a qual estava sonhando. Felizmente, o carpinteiro mostrou ter o dom de lidar com os nativos. Felizmente também, a esposa de um madeireiro branco apanhou uma infecção na garganta, e o marido, grato pela cura, mandou-lhe dois serradores para cortar vigas. Schweitzer respirou profundamente aliviado. Por fim estava vendo a luz. O hospital seria restaurado bem depressa. Podia agora voltar ao seu livro sobre o misticismo de São Paulo, no qual vinha trabalhando esporadicamente, havia mais de vinte anos, e ansiava por terminar. Mas a natureza, juntamente com a natureza humana, se interpuseram. Pacientes começaram a inundar Lambaréné corno nunca antes. Não eram tanto os moradores das aldeias das redondezas como imigrantes vindos do interior, “proletários sem lar” como os descreveu Schweitzer, “no pior e mais triste sentido da palavra”, atraídos para as florestas do baixo Ogowe pelo declínio da população local e as necessidades da indústria madeireira. Schweitzer sentiu um peso no coração, quando os viu chegar, porque essa vinda significava fome no interior, onde os braços deles eram necessários para o cultivo das plantações, e fome, também, na região do Ogowe, onde nada produziam e só ajudavam a consumir provisões de alimentos, já perigosamente baixas.

Vinha ter com ele com malária e disenteria, e com úlceras nos pés, tais como ninguém, que não estivesse acostumado aos trópicos podia sequer imaginar. Schweitzer sentia por eles, pela sua miséria, “uma simpatia indescritível” mesclada de desespero. Eram verdadeiras crianças, na sua irresponsabilidade. O tempo nada significava para eles, nem o regulamento, com efeito, nem o mais simples regulamento lhes podia ser comunicado, porque, onde nos primeiros tempos apenas duas línguas eram faladas, agora havia dez, e até um bom intérprete tem seus limites. Mas Schweitzer não havia estado na África tantos anos sem aprender a comunicar-se sem palavras, ou a adaptar os métodos terapêuticos dos brancos à psicologia dos negros. Nunca se esqueceu de que o feiticeiro nativo também processava curas, e que na mente do enfermo ele precisava, para ser eficiente, exceder em magia o próprio mágico. O Dr. Nessmann notou como o doutor, ocasionalmente, assumia a pose e quase a qualidade do grande feiticeiro, olhando dissimuladamente para a enfermeira negra que servia de intérprete, enquanto engenhava complicados ardis para convencer o doente negro de que o verme, a dor, estava sendo exorcizado. Schweitzer deu-se conta do terror do selvagem, convencido, quando era deitado na mesa de operação, de que havia caído no meio de canibais e estava a caminho da panela. De um desses selvagens ele disse, mais tarde, depois de operá-lo de hérnia estrangulada: “Nunca usei o bisturi com tanta emoção”. Não pôde salvar a vida desse homem, mas ao menos pode aliviar-lhe o sofrimento e o temor, e o sorriso de compreensão e gratidão com que o negro o obsequiou, quando acordou da anestesia, valeu por muitos casos de indiferente aceitação de benefícios por parte de enfermos, convencidos de que o doutor estava ficando rico pelo seu trabalho. Nenhuma ingratidão, porém, fazia o doutor esquecer que esses selvagens eram seus irmãos e suas irmãs. Cada paciente merecia seu interesse e cuidado pessoal, e ficava sentado uma noite inteira à cabeceira de um doente, ou acordava cada duas ou três horas para cuidar de outro. Quando dois enfermos morreram em rápida sucessão, ele sofreu tão profundamente que mal pôde arrastar-se para fora. Alguma coisa saía dele, cada vez que um corpo negro era enrolado em lençóis e folhas de palmeira e baixado ao lugar do último repouso, no cemitério da floresta. A fome do interior espalhou-se pela região de Ogowe, e tornou-se desesperadora quando um navio carregado de arroz, que buscava a foz do rio, naufragou. Aqui e ali Schweitzer reunia o arroz disponível, e passava noites em claro imaginando como poderia mandar os enfermos para suas aldeias, no caso de ser obrigado a fechar o hospital. Desencadeou-se então uma epidemia de disenteria. Seus auxiliares tiveram de sustentar uma batalha fim para evitar que enfermos de disenteria espalhassem a infecção, e para impedir que outros, que estavam convalescendo de uma ferida ou de uma fratura da perna, apanhassem o mal de seus vizinhos. Os selvagens

não observavam as regras do hospital nem para sua própria segurança, saindo furtivamente da cama, no escuro, para beber a água poluída do rio, em vez de andar uns trinta metros, até a fonte pura. O hospital inteiro estava ficando infeccionado. Se a menos tivesse uma enfermeira para contagiosos, resmungava o doutor, onde pudesse isolar os disentéricos! Buscava dirigir suas crianças indisciplinadas com todo o bom-humor que ainda lhe restava, mas um dia, no consultório, sua paciência, esticada até os últimos limites, finalmente estourou. Lançando-se numa cadeira, exclamou: “Que estúpido fui eu para vir aqui tratar de selvagens desse tipo!” “Sim doutor – observou seu fiel assistente negro – aqui na terra o senhor é um grande estúpido, mas não lá no céu!” 6 A fome e a disenteria aprofundaram nele a convicção, que havia assaltado no regresso à África, de que precisava mudar o hospital para um lugar com maior espaço para expandir-se, e terra para fazer plantações. Necessitava de uma secção isolada para casos contagiosos, celas para os insanos, e acima de tudo, necessitava de enfermarias gerais, melhores do que buracos negros e abafados. E precisaria de terras! Nunca mais a fome o apanharia desprevenido! À sua maneira característica, não partilhou com ninguém a sua convicção; ia, porém, muitas vezes, sozinho, ao lugar que havia notado um ano e meio antes, quando voltou a Lambaréné. Um vale espaçoso, não longe do rio, proporcionava localização apropriada para o hospital, e as colinas que se erguiam suavemente pareciam ter sido criadas para as moradias dos auxiliares. Se tivesse uma varinha mágica para mudar o hospital! Mas essas varinhas não existem, pelo menos na África. O trabalho seria insano, e ele teria de dirigir todo o serviço, em todos os pormenores. Além disso, tinha dito à sua esposa que voltaria à Europa dentro de dois anos! Se mudasse o hospital, seriam três... pelo menos... Sem consultar ninguém, e com o coração pesado, tomou sua decisão e requereu ao Comissário do Distrito o direito de utilizar uns cento e setenta acres. Depois, satisfeitas as exigências legais, reuniu seu pequeno estado-maior de médicos e enfermeiras, e disse-lhes o que havia feito. Houve um minuto de silêncio estupefato, que terminou com brados de alegria. O doutor viu que não precisava persuadir a ninguém. A maioria parecia ter reconhecido, antes dele mesmo, a necessidade de fazer alguma coisa, se quisesse ter espaço ao menos para mover os cotovelos. 7 A fome teve suas vantagens. Quando viram que trabalhar representa não só uma ração completa de alimento, mas um presente a ganhar, e a indolência

representava dois terços da ração, sem presente algum, os convalescentes e os companheiros de enfermos fizeram menos objeções ao trabalho do que nos dias de abundância. Trabalhavam, é claro, só com vigilância, mas o doutor, conhecendo a natureza humana nas selvas, não esperava outra coisa. Verificou, porém com desânimo, que os nativos não se curvavam a nenhuma outra autoridade senão a do “velho doutor”, como lhe chamavam. Durante semanas, que se tornaram meses, permaneceu vigiando seus relutantes obreiros, na luta para arrancar da floresta a terra sobre a qual se ergueria a sua casa de saúde, a terra que daria alimento para seus doentes, médicos e enfermeiras. De quando em quando sua paciência sofria terríveis provas, e ele, à luz do sol dos trópicos, via a incongruência de perder meses de vida na chefia de uma turma de selvagens, ele, filósofo, músico, cirurgião. Era então que se lembrava do seu grande mentor, Goethe, que induzia Fausto, no fim da sua vida, a encontrar a satisfação e a paz interior, até então inutilmente buscadas, em conquistar ao mar a terra em que homens pudessem viver e nutrirse. De outra fonte mundana veio-lhe o auxílio. Chegou do Canadá uma inteligente admiradora sua, a senhora C. B. Russel. “Venha, mas venha com vontade de fazer tudo”, escrevera-lhe o doutor. Entendia ele que, embora os nativos não quisessem trabalhar sob as ordens de ninguém que não fosse ele mesmo, trabalhariam de boa-vontade para uma mulher; e assim colocou a recémchegada à frente de um grupo de nativos, que estava construindo um cais à margem do rio. Quando ela lhe perguntou, meio tomada de pânico, como deveria agir, Schweitzer lhe respondeu: “É muito simples: imagine que a senhora é um cão pastor, e proceda como se o fosse. Então tudo dará certo”. Nas ocasiões em que, no meio do calor sufocante, o entusiasmo da Sra. Russel esfriava, Schweitzer mandava Goethe para o lado dela, e nova energia lhe vinha. A tarefa de limpar o sítio para o novo hospital levou três meses, porque nunca havia mais de vinte homens para o serviço, e frequentemente nem metade. As construções que lentamente se levantaram, durante o ano seguinte, eram de folhas de zinco, em vez da estrutura de bambu e folhagem do velho hospital. Arriscando a sorte, Schweitzer havia mandado buscar na Europa essas folhas metálicas, na esperança de que os amigos do hospital as custeassem. Ele mesmo, metido em calças remendadas e camisa branca, ajudado por um ou outro dos convalescentes, fincava as estacas sobre que se ergueriam os edifícios para conservá-los acima das inundações que desciam das colinas ou subiam do rio. Vagarosamente, uns após outros, os prédios apareciam, indicando ruas e por fim uma aldeia. Ao longo do rio, os gigantes da floresta estrondavam ao tombarem por terra, e por entre os grandes troncos surgiam valentemente os esperados brotos de tenras couves, e o feijão rompia caminho pelo solo. Por fim o hospital dispunha de uma horta. Schweitzer deu-lhe o nome de Jardim do Éden, e cercou-a de árvores frutíferas. Sonhara longamente com

o dia em que seus pacientes pudessem furtar frutas à vontade e ainda sobrassem! Enquanto isso, duas milhas adiante, o trabalho de medicação continuava no velho hospital: disenteria, úlceras, doenças do sono, ferimentos de armas de fogo, mordidas de animais, loucura – e os médicos e enfermeiras se alternavam nas operações e na pintura da casa. O doutor já se resignara a pôr de lado o pensamento de trabalhar no seu livro sobre São Paulo; deu um jeito, porém, de continuar a prática diária ao órgão, a que se havia devotado doze anos antes. Seus dedos deviam continuar ágeis, para os concertos na Europa destinados a sustentar Lambaréné. Quinze meses depois de ter Schweitzer anunciado sua decisão de mudar o hospital, os enfermos foram transferidos para os novos edifícios. Na primeira tarde, enquanto percorria as enfermarias, sentia o coração cheio de gozo, porque via, por fim, seus doentes abrigados como seres humanos. Os negros exultavam com ele, e saudavam-no, ao passar, com o brado: “É uma boa cabana, doutor, é uma boa cabana!” Numa exaltação de uma alegria tal como raramente experimentava, elevou seus pensamentos em gratidão a Deus, e aos amigos da Europa que haviam sido instrumentos da Providência. Havia ainda muito serviço que fazer, e a cada minúcia deu cuidadosa atenção. Uma das mulheres do corpo de empregados, vigiando de noite, notou que todas as manhãs, às duas horas, o doutor passava por sua janela. Uma noite ela saiu ao seu encontro, e soube que o que o conservava de pé e inquieto era a necessidade de descobrir como a brisa noturna, que soprava do rio, afetava as enfermarias de casos graves, situadas perto da água. Queria estar seguro de que as janelas se ajustavam devidamente. Foi num estado de um como que arroubo de gratidão que, seis meses após a mudança dos pacientes para o novo hospital, ele partiu para a viagem à Europa para ver sua esposa, e Rhena, sua filha. De pé no convés do vapor, ao largo do Cabo Lopez, vendo afastar-se as verdes praias africanas, sabia que, pela primeira vez desde que havia fundado o hospital, catorze anos antes, tinha o direito de sentir a emoção da vitória. Mas o sentimento que o animava era menos de exaltação do que de agradecimento às pessoas que haviam trabalhado, lutado e sofrido ao seu lado, e àqueles outros que, de longe, o haviam feito seu mensageiro nesta missão de misericórdia. Duas das enfermeiras, que iam para casa, estavam ao seu lado. Os três pensavam na África, tão terrível e tão bela; nos nativos, tão irritantes e tão queridos; no trabalho, tão exaustivo e tão confortador. Quando a última e tênue linha do continente negro desapareceu no horizonte, trocaram um solene aperto de mão, e desceram para seus camarotes.

Capítulo 12 Em Königsfeld, na Floresta Negra, a menina de cinco anos, que ali ficara quando seu pai foi para a África pela segunda vez, tinha agora oito, e ia à Escola dos Amáveis Morávios. A altitude e os bosques de pinheiros haviam restabelecido a saúde da mãe, e uma família feliz fazia vibrar a pequena casa com a narrativa dos diferentes eventos de três anos de separação. O doutor não podia ficar com elas muito tempo. Deste e daquele país vinham pedidos para conferências e concertos e histórias de Lambaréné. Em Estrasburgo tinha aposentos, onde dormia quando tinha de consultar a Biblioteca da Universidade, para o trabalho do seu livro sobre a mística de São Paulo, que havia resolvido terminar. Naquele apartamento de quatro quartos, na Speichergasse, podia armazenar os fornecimentos que estava comprando para Lambaréné, e encaixotá-los com o auxílio de uma ou outra das enfermeiras que estavam de licença. O hospital estava sempre com ele, de dia e de noite. Em todas as malas postais seguiam cartas dele para cada um dos médicos e enfermeiras, e desta forma mantinha-se informado de tudo que acontecia. Pelo fim do verão, Schweitzer estava na Suécia, na Dinamarca, na Holanda, fazendo conferências e tocando órgão. Da Holanda passou para a Inglaterra, sem outra razão senão a de estar perto, e não querer perder a oportunidade de visitar os amigos que, há tantos anos, estavam sustentando seu hospital. Gostava da Inglaterra, porque os intelectuais britânicos haviam sido os primeiros a receber bem sua revolucionária tese teológica, e porque os ingleses, homens e mulheres, desde o princípio, haviam dado ao seu trabalho africano um apoio entusiástico e constante. Por insistência desses amigos liberais, Schweitzer escreveu suas idéias e convicções sobre a política básica e as condições sociais na África, para serem publicadas na Contemporary Review. O começo era característico: estava, dizia ele, discutindo a colonização e as relações entre a raça branca e as raças de cor, não como um poeta ou um artista as poderiam ver, mas “como um camponês fala das suas couves”, como o homem do campo, isto é, cavando e semeando, adubando as plantas e cuidando delas. Tinham as raças brancas o direito de colonizar a África? Não, se considerassem as raças de cor meramente como matéria-prima para suas indústrias. Sim, se sentissem responsabilidade pela saúde moral das raças sujeitas e pelo seu crescimento no sentido de uma ordem melhor. Com os olhos fixos no cálido humanitarismo do seu século predileto, Schweitzer fez uma lista dos direitos fundamentais do homem que o negro poderia esperar gozar. Havia o direito à

habitação, o direito de livre circulação, o direito ao solo, ao seu melhoramento e usufruto, o direito ao trabalho livre e à livre troca, o direito à justiça, o direito à organização natural nacional, o direito à educação. Com a profunda experiência pessoal que tinha dos irritantes nativos e dos atrabiliários administradores brancos, examinou cada um destes sete direitos, com tanta compreensão e moderação, tanta isenção de qualquer idéia de crítica ou de autocomplacência, que o caráter revolucionário do artigo não se revelou imediatamente. O que realmente fez, no seu ensaio aparentemente inocente, foi estabelecer um Código de Direito para as raças submetidas, e o programa de uma nova ordem social para a África. 2 Na primavera do ano seguinte estava Schweitzer na Holanda, fazendo o circuito das pequenas cidades da Frísia, com o vento agudo que soprava do Atlântico; seguindo, em maio, através de campos cobertos de flores, para Amsterdam e Haarlem. Por onde quer que andasse estava entre amigos; entre eles, em primeiro lugar, os pastores, que traziam ao sábio, ao teólogo, ao filósofo e ao discípulo de Cristo, seus problemas de doutrina e vida; depois os músicos, especialmente os organistas, prestando homenagem ao homem que lhes havia mostrado o valor dos velhos órgãos de igrejas, e os conduzira a uma compreensão mais profunda da arte de Bach; por último, em número maior, os que se haviam sentido empolgados pelas suas conferências ou pelos seus livros sobre a África. Nesses circuitos trabalhava ele a média de dezesseis horas por dia, com uma ou outra excursão ocasional para examinar algum belo e velho órgão de igreja, o que constituía a sua única recreação nessas ocasiões. Houve um domingo celestial em Bolsward, na Frísia holandesa, quando, pela manhã, as velas dos botes, deslizando nos canais, pareciam flutuar pelos campos, sob o céu de um azul pálido. Schweitzer embevecia-se com tanta beleza, e exultava com a vastidão da “Groote Kerk” e com as linhas admiráveis do órgão. “A simples vista do órgão – costumava dizer – é suficiente para fazer música no espectador.” Iluminava-se-lhe o semblante quando os primeiros sons profundos respondiam ao toque dos seus dedos. “Vocês não tiram tais ressonâncias dos seus instrumentos modernos!”, ou “Meu Deus, que mecanismo tão maravilhoso!” ou ainda “Esta era a nota de pedal que Bach tinha no pensamento no grande solo da Tocata em Si-Maior.” E então, ele talvez tocaria a poderosa primeira frase da Tocata no órgão que não lhe era familiar, com deslumbrante claridade e instintiva seleção das vozes apropriadas a este instrumento peculiar. A Alice Ehlers artista da espineta, confiou o segredo da sua magia: “Esteja sempre atenta às vozes interiores da música de Bach. Cada voz vive a sua própria vida, dependente e independentemente ao mesmo tempo. Se a senhora considerar a música de Bach desta maneira, deixando que cada voz cante a sua própria beleza, estou certo de que não falhará.”

Praticar para um concerto naqueles velhos órgãos era uma provação não só para o doutor, senão também para seus assistentes, que operavam os registros sob sua direção. Nenhuma peça podia ser tocada da mesma maneira em dois órgãos diferentes. Nas seis horas de prática havia sempre um interminável subir e descer de velhas escadas de caracol, com Schweitzer ora ao órgão ora no corpo da igreja, exclamando: “Que engano é esse? Por que faz soar essa trombeta?” ou, quando um concerto terminava, dirigindo aos assistentes seu cálido sorriso: “Deveras”! vocês fizeram um belo trabalho esta noite. Um giro pela Inglaterra seguiu-se ao da Holanda, culminando em um novo conhecimento. Maude Royden era pastora de uma congregação independente conhecida como “Guildhall Fellowship” que se reunia regularmente no seu próprio templo em Eccleston Square, e reconhecia em Schweitzer “uma das maiores personalidades vivas”, cujas conclusões teológicas podiam “despojar de toda a validade não só dos ensinos intelectuais mas também as doutrinas morais de Cristo”, mas cuja vida era “Cristianismo em ação”. Essa comunidade adotou Lambaréné como causa própria, e tornou-se um dos seus mais firmes sustentáculos assim como a sra. Royden se tornou o mais inteligente intérprete de Schweitzer no mundo de língua inglesa. 3 Pelo fim de agosto Schweitzer estava na Alemanha. A municipalidade de Frankfurt-sobre-o-Reno tinha, um ou dois anos antes, criado o Prêmio Goethe, de vinte mil marcos, em honra do maior dos alemães. Esse prêmio seria concedido anualmente a um escritor que expressasse, na sua vida e obra, até certo ponto, as qualidades ligadas ao mais nobre dos poetas germânicos. O prêmio de 1928 havia sido atribuído a Albert Schweitzer, possuidor de um espírito de universalidade comparável ao do próprio Goethe, e por seu esforço para desenvolver uma filosofia da vida e da humanidade (Weltanschauung) que podia ser considerada uma continuação da do grande filósofo-poeta da Germânia. Honras mundanas importavam pouco a Schweitzer, mas este prêmio o impressionou. Desde seus dias de estudante, o espírito não tanto do filósofo, do poeta ou do cientista, quanto o do ser humano que lutou por obter a integração nos mais altos níveis da vida, tinha-o acompanhado em todas as lutas; estava sempre ao seu lado nos momentos críticos, proferindo a palavra-guia, ajudandoo a resistir, estimulando-o a crescer. No aniversário do nascimento de Goethe, foi ele recebido pelo prefeito, na presença dos líderes científicos, literários e artísticos de Frankfurt, reunidos na Goethehaus (Casa de Goethe). A cerimônia da entrega do prêmio foi cercada de música, começando com Handel, finalizando, apropriadamente, com Bach. O Prefeito foi eloquente no seu discurso. Aqui estava um teólogo e um filósofo, vantajosamente conhecido em todas as comunhões, e que granjeara fama como

abalizado artista. Através da sua obra de médico e missionário, na região mais obscura da África, conquistara a admiração dos amantes da humanidade em todo o mundo”. Era “ao amigo do homem”, Albert Schweitzer, cujos labores fecundos pressagiavam um novo nascimento espiritual para a Germânia e, sem dúvida para toda a Europa, era a ele que o Prêmio Goethe fora concedido. Schweitzer respondeu com uma felicidade só igualada, nos seus escritos, pelas “Memórias de Infância e Juventude”. Fazendo caso omisso dos louvores, falou da sua relação pessoal com o grande poeta, que, “no meio da profunda e variadíssima experiência da sua época, amou o seu tempo e trabalhou por ele” buscou compreendê-la e “cresceu para ser parte dele.” “Um espírito como Goethe – disse Schweitzer – nos impõe três obrigações. Temos de lutar com as condições, para assegurar que homens aprisionados no trabalho, e que estão sendo por ele esgotados, possam, apesar disso, preservar a possibilidade de uma existência espiritual. Temos de lutar com os homens, para que, embora estejamos continuamente arrastados para as coisas externas de que está repleta a nossa época, possam encontrar e manter o caminho da interiorização. Temos de lutar com nós mesmos, e com todos e tudo ao nosso redor, para que, num tempo de ideais confusos, que ignora todos os clamores da humanidade, possamos permanecer fiéis aos grandes ideais humanos do século dezoito, transportando-os ao pensamento da nossa época e buscando realizá-los em nossos dias.” 4 O Prêmio Goethe construiu uma casa para o doutor. Apreciava os encantos bucólicos de Königsfeld, a bênção e o refrigério da Floresta a companhia ocasional dos Irmãos Morávios, tão bondosos, tão sinceros, tão chegados a Deus. Gostava da casa tão simples, embora tão pequena que um camundongo roendo no porão era ouvido no sótão. Amava a solitude, que lhe dava a oportunidade de trabalhar ininterruptamente no seu São Paulo. Mas tinha de encarar o fato de que, mesmo em férias, ele já não pertencia inteiramente a si mesmo, à sua família ou ao seu trabalho. Tinha de manter contato com as igrejas alsacianas, que em grande parte sustentavam o seu hospital. Demais, havia amigos que queriam vê-lo, e não podia sempre pedir-lhes que empreendessem a tortuosa jornada para a Floresta Negra. Necessitava de uma casa espaçosa para conter sua biblioteca e servir de quartel-general e abrigo para o pessoal de Lambaréné, quando estivesse em férias. Günsbach ainda lhe era lar, embora a casa pastoral já não estivesse na família, porque seu pai havia falecido e um novo pastor estava residindo na velha casa. Resolveu empregar o dinheiro do Prêmio Goethe na construção de uma casa própria. Com o hospital firmemente estabelecido, disse ele, poderia, quando a velhice chegasse, passar férias cada vez mais longas na Europa. Como seria agradável, então, estar rodeado pelas montanhas, bosques e vales que havia

conhecido e amado na sua juventude, permanecendo até o fim un sapin des Vosges (um pinheiro dos Vosges), descansar (e Deus sabia como precisava de descanso!) e completar os livros em que havia trinta anos estava trabalhando! A casa, desenhada por um arquiteto alsaciano de acordo com os esboços de Schweitzer, ficou pronta no ano seguinte. Mas o pensamento de que estava recebendo o dinheiro da Alemanha, que apenas se estava restabelecendo da sua orgia inflacionária, o atormentava. Por meio de amigos, fez arranjos para fazer conferências e dar concertos na Alemanha, em benefício de causas caritativas de lá, e das missões alemãs no exterior; e não descansou enquanto as somas recebidas não igualassem o total do Prêmio Goethe. 5 Com exceção dessas conferências e recitais, Schweitzer trabalhou durante o ano de 1929, em Königsfeld, levando até o fim sua obra monumental sobre a mística de São Paulo. Não havia de levar, pela terceira vez em vinte e cinco anos, o seu manuscrito para a África. Em certo sentido, o livro era o complemento da “Busca do Jesus Histórico”, e revelava Paulo como participante da ilusão de uma iminente e cataclísmica vinda do Reino que, segundo Schweitzer cria, havia inspirado os atos de Jesus e determinado sua mensagem. Em 1929 trabalhou no livro, completando o capítulo final em dezembro, a bordo do navio que o estava levando, com a esposa, de Bordéos ao Cabo Lopes; escreveu o prefácio no dia depois do Natal, na coberta dum imundo barco fluvial que sabia o Ogowe à Lambaréné. 6 Os dois anos passados na Europa foram para Schweitzer de refrigério físico e mental. Deram-lhe novos amigos, e a oportunidade de ligar velhos amigos e mantenedores com novos laços de conhecimento, entusiasmo e afeição pessoal. Sentia-se grato com os aplausos e as honrarias, enquanto contribuíssem para fortalecer seu hospital. Mas, com todas estas satisfações, sua visita trouxe-lhe profundas apreensões. É que vira o mundo de após-guerra como não o poderia ver de Lambaréné, como não o havia visto da própria Europa nos atarefados anos que se seguiram ao armistício, quando se viu obrigado à tarefa de conferencista e concertista, para restaurar a sua arruinada empresa africana. Nesse mundo via ele, precipitandose para novo desastre, todas as tendências rumo à queda e à decadência que havia percebido e deplorado vinte ou trinta anos antes. A deserção da razão e do pensamento havia sido, durante uma geração, bastante má para todas as consciências, mas nunca houvera tantos esforços organizados, por parte das sociedades políticas e até religiosas, no sentido de desacreditar o pensamento individual, e fazer com que os homens entregassem a sua mente à autoridade de grupos que buscavam fortalecer-se, não por idéias, mas por uma unanimidade compulsória. Tudo que um homem via ou lia, todos com quem se

encontrava, as associações que exigiam sua lealdade, tudo incutia nele a mesma propaganda de desconfiança de si mesmo, da dependência. Os homens pareciam não ter mais nenhuma confiança espiritual em si mesmos. Eram, sem dúvida, eficientes nas coisas materiais, porém mental e espiritualmente amesquinhados. Era incrível que uma geração, que tanto se adiantara no terreno das descobertas e invenções, pudesse descer tanto, a ponto de abrir mão do seu direito de pensar. Terrível falência espiritual! Os filósofos os haviam desnorteado, mesmo os maiores: Kant, Fichte, Hegel, construindo grandes castelos especulativos no ar, que assombravam os homens com o seu esplendor, e os faziam desprezar e abandonar o pensamento simples e fundamental, que os poderia ajudar a suportar e quiçá dominar a tensão do trabalho e da aflição, o mistério da vida e da morte. Goethe havia percebido a situação e desafiado os homens a pensarem por si mesmos, para alcançarem a serenidade. Todos os homens deviam ver isto e na Reverência Pela Vida, encontrar de novo o desejo e a capacidade de pensar. Schweitzer estava consciente, como nunca antes, de uma missão, da qual a sua obra na África, seus livros, suas conferências e sua música, eram a múltipla expressão. A missão era definida e clara: despertar a alma adormecida dos homens, e fazê-los pensar.

Capítulo 13 “O céu acima das palmeiras que estão diante da minha janela é de um azul brilhante. A brisa, quase imperceptível, sobe do rio. Alguns cabritos do hospital retouçam no campo, cada um deles acompanhado por uma garça branca. Som algum perturba o silêncio.” África outra vez... o novo hospital cheio de pacientes vindos de um perímetro cada vez mais largo... nova construção... uma verdadeira unidade para os insanos, finalmente; uma dádiva da Guildhall Fellowship de Maude Royden... o Jardim do Éden crescendo todos os meses, com novas fileiras de legumes e novas plantações de bananeiras e coqueiros... Numa torre de madeira pende agora um sino, vindo de uma fundição da Alsácia, e que serve para chamar o povo à oração, em contraste com o gongo que chama os homens para o trabalho. “O gongo é a voz do doutor; o sino é a voz de Deus”, dizem os nativos. No cais uma lâmpada brilha todas as noites, levando às trevas tropicais a mensagem do doutor: “Aqui, a qualquer hora que chegardes, encontrareis luz, auxílio e bondade humana”. Nos meados de janeiro Schweitzer atingiu os cinquenta e cinco anos, mas a sua atividade não mostrava sinais de diminuir. Com dois, e às vezes três médicos, além dele, e com a esposa outra vez ao seu lado, podia muito bem ter dito a si mesmo que já era tempo de entregar mais e mais serviço aos homens mais moços. Ao invés disso, ele realizou um sonho de muitos anos, e começou a enviar uma unidade ambulante às regiões circunvizinhas, para servir àqueles que, por uma ou outra razão, não podiam fazer a viagem a Lambaréné. Pessoalmente, trabalhava tanto quanto antes, não só como médico, senão também como carpinteiro, pedreiro, pintor e eletricista, até que pôde escrever aos seus mantenedores europeus que “por fim tinham terminado as operações de construção; como alivia nosso trabalho, termos finalmente, espaço suficiente para trabalhar!” Por insistência de dois dos seus colegas médicos, dedicava agora a maior parte das suas manhãs a escrever a história da sua vida. Já havia escrito uma breve autobiografia para uma coleção intitulada “A Filosofia Contemporânea à Luz da Autobiografia”, e esse esboço havia provocado um pedido do editor e de seus amigos para que ele o desenvolvesse num livro. “Aus Meinem Lebem und Denken” (“Da Minha Vida e do Meu Pensamento”) seria o título.

Em suas mãos a história se desenrolou, nos meses seguintes, assumindo um caráter muito maior do que o de uma narrativa modesta e singularmente atrativa de uma grande vida. Tornou-se como que uma harmonia cósmica, um drama de Prometeu contra o Caos, culminando num hino de exaltação da Reverência Pela Vida. “Eu sou vida que deseja vida, no meio da vida que quer viver.” Qual será a relação do homem com a vontade de viver que o cerca e que o destruirá, se necessário, para sobreviver, assim como ele mesmo destruirá, se for necessário, para poder sobreviver? Ele pode negar a vida, e, se for coerente, suicidar-se. Mas, se afirma a vida, se a aceita como tendo sentido e validade para ele, então ele aprofunda e exalta sua vontade de viver e sente a compulsão de prestar a todas as outras vontades de viver a mesma reverência pela vida que presta à sua própria. Na sua própria vida sente ele essa outra vida. Aceita por bom o seguinte: preservar vida, promover vida, elevar ao mais alto valor a vida que é capaz de desenvolvimento; aceita como mau: destruir vida, prejudicar vida, reprimir vida susceptível de desenvolvimento. Não tinha a grande falta de todas as éticas sido a de se preocuparem somente das relações de homens para homem? Na verdade, um homem só é verdadeiramente moral quando a vida, como tal, é sagrada para ele e das plantas e animais tanto quanto a dos seus semelhantes, e quando auxilia, na medida do possível, a vida que deles necessita. A ética das relações de homem para homem não é algo a parte por si mesma: é apenas uma relação particular, corolário da universal. A Reverência Pela Vida era a resposta realística à realística pergunta de como o homem e o mundo estão relacionados. “O mundo não consiste só de acontecimentos; contém vida também, e eu tenho de estar em relação não só passiva, mas também ativa, com a vida do mundo, na medida em que ela se põe ao meu alcance. Colocando-me ao serviço daquilo que vive, eu atinjo uma atividade exercida sobre o mundo, que tem sentido e propósito...” “A ética da Reverência Pela Vida é a ética do Amor ampliado até a universalidade. É a ética de Jesus, agora reconhecida como uma necessidade do pensamento.” Nas manhãs quentes, nas longas e abafadas noites de Lambaréné, Schweitzer, inconscientemente, desenrolou, na história da sua vida e do seu pensamento, o drama da mente do homem que luta por ferir uma centelha dentro das trevas, e acender um archote que possa iluminar para ele, e através dele para a humanidade, a selva na qual a humanidade se acha errante, num desespero cada vez mais profundo. Terminou o seu drama com uma nota de esperança. O panorama do mundo era negro, sem dúvida. O homem que renuncia ao pensamento e aos ideais que provêm do pensamento só podia acabar em miséria espiritual e material. Todavia, ele estava convencido de que o espírito gerado pela verdade era ainda

mais forte do que a força das circunstâncias. “Nenhum outro destino aguarda a humanidade senão aquele que ela mesma prepara, por meio da sua dispensação mental e espiritual. Por conseguinte, eu não creio que ela tenha de palmilhar até o fim o caminho da ruína... Tendo, como tenho, confiança no poder da verdade e do espírito, eu creio no futuro da humanidade.” 2 Não muito tempo depois de ter terminado sua autobiografia, recebeu Schweitzer uma mensagem da municipalidade de Frankfurt, convidando-o para fazer o discurso comemorativo do centenário da morte de Goethe, no mês de março seguinte. Foi com desânimo que ouviu esse apelo, e apressou-se a enviar um cabograma, lembrando ao Prefeito e sua Comissão que nas universidades germânicas havia muitos homens “realmente eruditos”, muito mais do que ele, que poderiam dar cabal desempenho ao encargo. Mas a resposta frisava, com todos os requintes de cortesia social, que, tendo Schweitzer aceito o Prêmio Goethe, não estava em condições de recusar esta segunda distinção, por mais pesada que fosse. Felizmente, possuía as obras completas de Goethe na sua biblioteca de Lambaréné. Apesar de esgotado, passou noites e noites, durante semanas e meses, imerso nos escritos do poeta-filósofo. Era um contato revigorante com aquela grandeza que o havia possuído e inspirado desde seus dias de estudante. Todavia, que tinha a dizer, a este século vinte de confusão e obscurantismo, aquele gênio olímpico do século dezoito, o século do Esclarecimento? Noites intermináveis, cheias das vibrações que milhões de insetos punham no ar abafado, enquanto, de tempos a tempos, o som de um tambor distante vinha da floresta, ou ritmo de danças selvagens, ou ainda um canto fúnebre de alguma aldeia enlutada, Schweitzer meditou na vida que ele ia ter o privilégio de interpretar numa hora sombria, para um mundo enfermo pela guerra, subnutrido, desnorteado, e que estava clamando por alguma coisa que de qualquer maneira, lhe desse segurança. Terminara o esboço do seu discurso antes de tomar o navio para Bordéos, no começo de janeiro de 1932, e escreveu o discurso na viagem de dezoito dias, completando-o quando o Brazza entrava no Gironda. Mas, ao pôr pé em terra, estava mais morto que vivo. 3 22 de março de 1932. O céu estava claro naquele primeiro dia da Primavera. Na Praça de Goethe duas coroas de flores jaziam na base do monumento do poeta, e, fora da grade de ferro, havia grupos de homens e mulheres trajando com simplicidade. Pela manhã, bem cedo, os carros começaram a rodar para a Casa da Ópera, conduzindo os maiorais da cidade – oficiais, sábios, homens de letras, artistas,

músicos, clérigos. A orquestra tocou a marcha fúnebre da Terceira Sinfonia de Beethoven. Cem anos antes, às onze horas e quinze minutos, Goethe havia exalado o último suspiro da sua vida rica e frutífera. Às onze e um quarto, Schweitzer foi chamado da sua cadeira para a tribuna, dando começo ao seu discurso. Falou a uma casa consciente de uma tragédia nacional de tal magnitude, qual o poeta, nos seus momentos mais negros, nunca havia pintado ou adivinhado. O povo alemão estava oscilando à beira de um abismo. Um Marechal de Campo bem-intencionado, mas decrépito mantinha um governo que para ele era repugnante quanto obscuro. A depressão econômica, pairando como um íncubo sobre o mundo inteiro, estava sufocando um povo humilhado pela derrota militar, devastado pela inflação, debilitado pela subnutrição. Havia mais de seis milhões de desempregados. Trinta milhões ignoravam inteiramente, cada dia, donde lhes viria a refeição seguinte. O futuro? “Vocês não têm futuro”, diziam os professores aos seus alunos. “Não há campo algum de trabalho que não esteja superlotado.” Teriam de passar a vida inteira nas listas de auxílio de governo? Milhares suicidavam-se, centenas de milhares morriam calmamente de fome. Cercada por inimigos de dentro e de fora, a República Alemã lutava como um veado acuado. Dentro do seu quadro liberal, uma vintena ou mais de partidos políticos lutavam pelo poder. Atrás deles, e por meio deles, em cada Estado da União Federal, em cada província, uma Direita fanática atacava ferozmente uma fanática Esquerda. Caminhões de partidários iam de cidade em cidade, desafiando outros partidários não menos apaixonados pela sua causa. Cada dia trazia narrativas de lutas de rua, derramamento de sangue e morte. Arrogante e segura, no meio da confusão, soava a voz estridente do psicopata Adolfo Hitler. Foi sobre este fundo que Albert Schweitzer esboçou o papel do poeta e profeta que, através de cinquenta volumes, dizia e redizia insistente e inesquecivelmente: que a suprema necessidade do homem era a ser ele mesmo, e, sendo ele mesmo, crescer na percepção e na ação ética. Parecia estranha esta mensagem a uma geração que buscava a salvação em movimentos de massa e em fórmulas econômicas e políticas? Logo no começo da era industrial havia Goethe percebido, confusamente, que viria um tempo em que a confiança do homem em seu próprio espírito seria ameaçada pela imposição de uma vontade da massa. “Goethe é o primeiro a sentir algo parecido com medo com relação ao homem. Numa época em que outros se mostram despreocupados, ele adivinha que o grande problema com que o homem do futuro enfrentará será o de como o indivíduo poderá sobreviver no seu conflito com a massa”. Sua intuitiva apreensão havia sido terrivelmente justificada. Em escala mundial, a geração atual estava experimentando uma gigantesca repetição da tragédia de Fausto. “A cabana de Filemon e Baucis está ardendo em milhares de fogos! Em múltiplos atos de violência e assassínio, a mente desumanizada prossegue no seu diabólico esporte. Mefistófeles zomba de nós

com mil caretas. Por mil formas a humanidade rogou sua relação natural com a realidade, e procurou a salvação nas encantações de algum politiqueiro econômico ou social, recuando ainda mais a possibilidade de sair da miséria social e econômica. E o temível sentido deste ridículo bruxedo – seja qual for a variedade de necromância econômica e social de que ele possa ser a expressão – é sempre este: o indivíduo terá de renunciar à sua existência como pessoa, material e espiritualmente, e continuar apenas como uma unidade coletiva, que lhe escravizará o corpo, a mente e o espírito.” Falou Schweitzer da “hora mais tremenda do destino, como nunca antes havia soado para a humanidade”, esta “hora fatídica”, em que Goethe era chamado a falar como jamais outro poeta ou pensador o fizera. Que é que ele diz à nossa época? Ele diz que o drama temeroso em que o homem está envolvido só pode terminar quando ele varrer do seu caminho todo o aparato mágico com que se tem enganado e entorpecido a si mesmo, e esquecer todas as superstições, e resolver reatar de novo, a qualquer custo, uma relação natural com a realidade.” Goethe exorta o indivíduo, continuou Schweitzer, a não abandonar o ideal do homem como pessoa, mesmo que o ideal vá de encontro às condições que se desenvolveram no mundo contemporâneo. Não desista! Permaneça como ser humano cuja alma lhe pertence! Nem tudo na História está em fluxo eterno, como as mentes superficiais talvez suponham. “Ideais que exprimem verdades duradouras ajustam-se a condições variáveis, e nelas crescem em profundidade e reclamam seu lugar. Um deles é o ideal da humanidade pessoal. Se for abandonado, o homem está destruído como ser que pensa e que tem aspirações, e isto é o fim da civilização; ou, antes, o fim da humanidade.” Do princípio ao fim, seu discurso foi um desafio a Adolfo Hitler e suas hordas que, nesse mesmo momento em que ele falava, estavam hipnotizando o povo alemão com seu faquirismo e que, dentro de um ano, estariam mostrando ao mundo o que pensavam do homem como ser pensante. 4 Pelo fim da primavera estava Schweitzer dando uma série de concertos na Alemanha e na Holanda, e no começo do verão estava na Inglaterra. Tocou órgão na Catedral de S. Paulo, em São Botolfo, Bishopsgate e em outros templos londrinos, em benefício do seu hospital; pregou na Guildhouse de Maude Royden; irradiou um recital de órgão da igreja de S. Margarida, Westminster. Na Rhodes House, Oxford, fez a conferência do Deneke Memorial, sobre “Goethe como Pensador e Homem”, e em Manchester falou do desenvolvimento da filosofia de Goethe. Oxford aumentou-lhe a lista de doutorados com um diploma honorário em Teologia. St. Andrews conferiu-lhe um doutorado em Jurisprudência; Edimburgo deu-lhe o capelo de Teologia e Música.

Edimburgo exigiu-lhe um concerto na catedral e conferências sobre Lambaréné. Glasgow, que havia proporcionado a Livingstone seu curso médico, saudou os Schweitzers num banquete cívico. O doutor relembrou que nos tempos de menino havia, por algum tempo, negligenciado os estudos para ler Walter Scott do começo ao fim, e que por vários anos havia sonhado com levar sua mãe numa visita à Escócia. Fez uma pausa: “Ela foi pisada e morta pela cavalaria numa rua de aldeia, na Alsácia, e por isso nunca viu a Escócia”. Na sua volta da Inglaterra, Schweitzer viajou pela Alemanha, tocando em Heidelberg, Munique, Augsburg e outros centros de ensino e cultura. Havia algo de soberbamente apropriado, e que lisonjeava a imaginação, no fato de ser o órgão o que mais contribuíra para atender às necessidades do hospital nas florestas de Lambaréné; o instrumento que tinha sido o seu conforto nas horas de amargura, o órgão que ele havia, com tanta persistência, defendido dos ataques de uma geração cujos padrões estavam em declínio; o órgão que desde a infância, havia dado tantas riquezas a sua mente e ao seu espírito. 5 Visitantes que, pelo fim daquele verão, entravam na casa de Günsbach, que o Prêmio Goethe havia construído, encontravam Schweitzer trabalhando no terceiro volume da sua História da Civilização, que tratava da filosofia da ação concretizada na Reverência Pela Vida. Notavam que sua alta e vigorosa estatura vinha um tanto curvada, como que acabrunhada pelo peso do mundo; parecia fatigado, mas o negro cabelo e o bigode mostravam apenas alguns fios grisalhos, e os olhos azuis faiscavam à menor provocação. Apesar de ocupadíssimo, parecia ter sempre tempo para atender aos que vinham para ver o homem cuja obra haviam ajudado a manter. Conversava com eles à mesa, enchendo-os de perguntas, e levava-os à velha casa pastoral na qual vivera quando criança, à escola que frequentara, aos bosques que haviam sido testemunhas das suas angústias infantis em face da dor que havia no mundo. Frequentemente levava um hóspede até a galeria do órgão, na igreja que fora de seu pai durante duas gerações, e fazendo-o sentar-se ao seu lado, fazia os dedos correrem pelo teclado. Fosse um hino que tocava, algum dos velhos e sonoros corais alemães, uma fuga de Bach, ou alguma coisa de Mendelssohn. Fosse o que fosse, parecia sair dele sem nenhum esforço consciente, como uma espécie de emanação harmoniosa da sua vida interior. Ele amava essas horas ao órgão, tanto quanto seus visitantes. Sentia-se feliz e livre de tensões quando estava ao órgão; talvez só ali era realmente feliz. O divertido e chocalhante trenzinho que subia para o Münstertal, e que parecia apitar e parar mais do que andar, trouxe-lhe um velho amigo, Stefan Zweig, biógrafo, novelista e poeta. Enquanto Schweitzer falava de Lambaréné ou da sua obra filosófica, e lhe mostrava fotografias africanas, ou mandava que as enfermeiras, que estavam em repouso em sua casa, contassem suas histórias,

o visitante notava, com satisfação, que, apesar da infindável e severa prova a que este homem se submetera, seus olhos eram límpidos e quentes como sempre, e suas feições, nitidamente cinzeladas, não mostravam nenhum enfraquecimento da sua força heróica. Em níveis mais profundos o homem de letras tornou-se consciente de que nesse homem se uniam, como raramente acontece, a segurança e a serenidade. Mais tarde ele escreveu: “Nele percebemos um poder que, invisível para nós, se expressa, em outro continente, em atos de misericórdia e de criação ética, e ao mesmo tempo desperta ou aumenta um poder congenial em milhares de outras pessoas. Enquanto está aqui descansando e palestrando, é, realmente, o líder de uma hoste invisível, o ponto central de um círculo mágico, que, sem exercer qualquer força exterior, tem desencadeado maior poder e maiores realizações do que dúzias de líderes políticos, intelectuais e autoritários”. Schweitzer guiou esse visitante, ao lusco-fusco, através da pequena cidade, até a igreja de seu pai. Antes de morrer, vítima do sadismo nazista, Zweig nos traçou um retrato de Schweitzer inclinado sobre o teclado. “Nunca senti o poder metafísico de Johann Sebastian Bach como naquela igreja protestante, evocado por um homem verdadeiramente religioso, que lhe dava substância pela sua absoluta abnegação. Suave e misteriosamente, enquanto Schweitzer tocava a Cantata do Advento, um coral e depois um improviso, sentia-se a poderosa música encher o sombrio corpo da igreja, ao mesmo tempo que enchia o coração.” O doutor, naquele verão, abriu a sua porta acolhedora para um estrangeiro vindo de Münstertal, um rude aldeão, vestido com a roupa de visita, o que não parecia deixá-lo satisfeito. “Estou dando uma volta, tentando levantar dinheiro”, explicou ele. “Meu Deus, que trabalhão!” Enxugou a testa. “Todos dão desculpas, e alguns até me batem a porta no rosto. Suponho que o senhor também não me dará nada.” “Para que fim está o senhor pedindo dinheiro?” perguntou-lhe Schweitzer. “Para a nova igreja.” “Bem, bem. Entre. Vamos conversar.” O resultado foi uma contribuição e um convite para jantar com o doutor. “Bem compreendo o que o senhor sente”, observou o hospedeiro enquanto jantavam. “Eu também sou um inveterado pedinchão. Permita que lhe dê um conselho. Nunca perca a esperança”. “E o senhor, para que fim levanta dinheiro?” “Ora, para um velho hospital na África.” Abruptamente o aldeão empurrou a cadeira. “Herr Jesu! O Senhor é o famoso Dr. Schweitzer? Não posso receber nada do senhor! Não, do senhor não!”

Nem todos os que bateram à porta do doutor, naquele ano, eram tão sensíveis às suas necessidades e responsabilidades como aquele seu conterrâneo alsaciano; nem todos eram merecedores do seu tempo como aquele professor americano e sua esposa, que voltaram para casa, em Vermont, para organizar a Fraternidade Schweitzer, com o fim de manter o hospital de Lambaréné. A maioria vinha por curiosidade, ou por uma espécie de adoração ao herói, e fazia perguntas a que qualquer dos seus livros poderia ter respondido. Um amigo, visitando os Schweitzers, protestou contra ele por dar tanto tempo a estranhos. “Se eles querem fazer-me perguntas – disse o doutor – tenho de responder-lhes”: Fez uma pausa, e continuou: “O senhor quer dizer que não me faria perguntas como essas?” “Nem por sombra ia impor-lhe mais essa carga.” “Por que não?” “Porque me preocupo muito com o senhor.” “Quer dizer, o senhor acha que os que mais se preocupam são os que não aparecem?” “Exatamente.” “O senhor não teria vindo se eu não o tivesse convidado?” “Naturalmente não.” “Então acha que os que têm verdadeiro interesse ficam de lado? Nesse caso, estou dando meu tempo principalmente a gente que no fundo é a que menos se interessa.” 6 “Hoje o nevoeiro do outono cobre os prados” escreveu Schweitzer a um amigo, naquele setembro. “É indescritivelmente belo”. Por algum tempo não houve concertos nem conferências; a estação para visitantes tinha acabado, e o doutor podia dedicar horas e dias às questões filosóficas que durante anos lhe haviam tantalizado a mente. Por fim, dizia de si para consigo, ia sondar até o fundo o pensamento chinês e hindu. Enquanto estudava, começou a formar-se nele uma nova concepção. Descreveria a marcha das idéias filosóficas entre os pensadores europeus e entre os seus descendentes em o Novo Mundo, assim como entre os pensadores da China e da Índia, no passado e no presente, e os grandes pensadores religiosos de todas as épocas, e os grandes místicos. Contaria, de fato, toda a grandiosa história do pensamento humano nos campos da filosofia, da religião e do misticismo, desde a aurora da civilização até o dia presente. Faria a história tão compacta que servisse como uma espécie de

prelúdio histórico ao terceiro volume da sua História da Civilização, da qual constituiria os capítulos preliminares. O projeto fez que sua mente se exaltasse e o obrigasse a trabalhar a todo vapor. Trabalhou até o dia da sua quarta partida para a África, em março de 1933, e mesmo durante a viagem, agradecendo a Deus porque alguns desarranjos na máquina do navio dilataram a viagem de três para cinco semanas. 7 Dez meses depois Schweitzer estava de volta à Europa para preparar as conferências Hibbert, que, a convite de Oxford, devia fazer naquele outono, e as conferências Gifford, em Edimburg, imediatamente depois. Sentia-se grato ao pessoal do hospital pela sua eficiência e dedicação, que lhe permitiam consagrar, durante uma estação inteira, todo o seu tempo e energia à enfermidade espiritual da humanidade, da qual tudo o que enfrentara na África era apenas um sintoma. Seu terceiro volume o estava intrigando. Dia a dia, lutou para integrar a história da marcha do pensamento filosófico na apresentação de um conceito da existência humana em termos de Reverência Pela Vida. Mas a integração não vinha. Aquilo que devia ser um único capítulo estava se projetando pelo volume inteiro. Gradualmente chegou a reconhecer que estava tentando unir dois livros que, pela sua natureza, não se podiam combinar. Cortou o nó górdio publicando uma parte do inassimilável material num pequeno volume intitulado “O Pensamento Hindu e seu Desenvolvimento”. O amigo de Gandhi, Charles F. Andrews, a quem Schweitzer admirava grandemente, auxiliou-o a nascer. Algum dia, pensou Schweitzer, haveria um volume gêmeo, sobre os pensadores da China, quando encontrasse entre os sinólogos uma mente tão perspicaz quanto a de Andrews para pilotá-lo por entre os escolhos. Em outubro estava em Oxford, realizando as “Hibbert Lectures” sobre “O Fator Religioso na Civilização Moderna”. Era a religião uma força no mundo contemporâneo? A esta pergunta, ele mesmo respondeu com uma enfática negativa. Ainda havia religião no mundo; muita religião na Igreja; e muitos indivíduos piedosos. Coisas belas estavam sendo feitas sob o impulso do Cristianismo. Existia uma sede profunda de religião em muitos que já não pertenciam a igrejas. Mas que a religião fosse uma força? Não! Prova disto? A guerra! A religião, unindo suas forças com o espírito do mundo, havia perdido a sua pureza, e, portanto, sua autoridade. Podia ainda protestar, mas não dirigir. “O espírito da época não lhe dá ouvidos, e segue o seu próprio caminho.” A religião ética tinha sido, uma vez, uma força na vida espiritual do seu tempo. No século dezoito “o pensamento era religioso, e a religião era uma religião pensante... tinha poder sobre a realidade”.

Mas agora? Não era a religião semelhante aos grandes rios africanos na estação seca – um grande leito, bancos de areia, e, entre eles, um tênue fio de água? “Uma verdade permanece firme. Tudo que acontece na história do mundo repousa em algo espiritual. Se o espiritual é forte, cria história. Se é fraco, tolera a história... Conquistaremos novamente ideais que tenham poder sobre a realidade?” É necessário que o homem encare o fato de que o pensamento nunca explicará o universo e, com humildade, procure o caminho para o conhecimento, na medida em que a humanidade o possa atingir. “Quanto mais profundamente no abismarmos na natureza, tanto mais reconhecemos que ela está cheia de vida, e tanto mais compreenderemos que toda a vida é um segredo, e que estamos unidos com toda a vida que há na natureza.” Quanto à ética, seja esta a sua medida do bem e do mal: “É bom preservar vida; é mau prejudicar ou destruir vida”. Não foi esta a mensagem de Jesus? Por mais que lutemos, não podemos fugir a isto, ou descobrir qualquer outra “relação com outros seres, que seja tão cheia de significação quanto a relação do amor”. “Estamos agora vagueando nas trevas – concluiu Schweitzer – mas... estamos avançando... “Virá outra vez um tempo em que a religião e o pensamento ético se unirão “Olhemos para a luz.” Schweitzer repetiu as conferências em Manchester e no “University College” de Londres. Em novembro, em Edimburgo, quando fez as “Gifford Lectures” sobre “O Problema da Teologia Natural e da Ética Natural”, “teve a alegria”, como escreveu a um correspondente americano, de encontrar-se com Sir Wilfred Grenfell, fundador do grande trabalho de assistência médica na península do Lavrador. Schweitzer assinalou o fato, escrevendo no livro de hóspedes da casa em que se encontraram: “O hipopótamo encontrou-se com o urso polar.” 8 Europa e África, Europa e África. Um ano na Europa, seis meses na África; ano e meio na Europa, dois anos na África. Günsbach... como acalmava o cérebro superexcitado, como confortava o corpo cansado, estar no cenário da sua infância, sentir a contínua presença de seu pai e de sua mãe, ouvir o profundo apelo do sino da igreja, tocar órgão, pregar no púlpito de seu pai, e às vezes no de seu avô, lá no vale! Passou um inverno em Lausanne, com a esposa e a filha, agora com dezesseis anos; mas, quando estava na Europa, raramente lhe era permitido ficar num lugar por muito tempo. Os chamados eram incessantes, e, por causa do hospital, não podia recusar-se a atendê-los. Havia um convite que lhe valia imenso, porque lhe proporcionaria oportunidade para agradecer a seus amigos americanos pelo auxílio que lhe haviam prestado no correr dos anos; mas seu senso teutônico de dever não lhe permitia aceitá-lo. Desejava ardentemente juntar-se à assembléia dos grandes sábios que iam receber graus

honorários por ocasião do Tricentenário de Harvard, e foi “com o coração pesado”, escreveu a um amigo, que recusou comparecer. “Preciso terminar a filosofia”, explicou. “Poderei então morrer em paz”. Era a Filosofia da Civilização, na qual vinha trabalhando havia vinte anos, o pensamento de toda uma vida, que, com a sua própria vida, seria a sua contribuição para a sua época. A um amigo que lhe perguntou se era feliz, Schweitzer respondeu: “Sim, quando estou trabalhando, e indo de um lugar para outro. Como indivíduo, já deixei de existir, e já não conheço felicidade pessoal”. Um eco dessas palavras elegíacas, mas desafiadoras, vibrava através de uma palestra que fez aos meninos de uma escola inglesa: “Não sei qual será vosso destino. Uma coisa, porém, sei: os únicos, dentre vós, que serão realmente felizes, serão aqueles que buscarem e acharem o segredo de servir”.

Capítulo 14 A tragédia dos tempos acompanhava-o sempre, na África como na Europa. A desintegração daqueles valores morais que são o sangue vital da civilização, pacientemente formados e alimentados através de cinquenta séculos, estava, ele bem o sabia, indo na direção de um dos grandes cataclismas da história humana. Apesar de familiarizado com o fato, havia momentos em que ele mesmo achava difícil entendê-lo. “É difícil compreender – disse ele ao Alto-Comissário inglês na Palestina, Sir Arthur Wauchope, que o havia chamado a Londres para esclarecimento e orientação – é difícil compreender que o homem rejeite e esqueça a visão que uma vez teve e volte para trás. Não é bastante ensinar ética; é preciso viver a ética. A base de todo grande pensamento é a mesma. O amor é a razão em sua culminância. Die Liebe ist die hoehste Vernunft.” Apesar de ter viajado constantemente naqueles anos da metade do terceiro decênio do século, havia um país da Europa no qual não pusera o pé. Nem da África, nem da segurança do seu lar na Alsácia, que mais uma vez fazia parte da República Francesa, lançou ele acusação alguma contra Hitler, nem se uniu aos sábios europeus nos seus manifestos, eloquentes na sua justa indignação contra a barbaria nazista. Essa espécie de combate, parecia dizer, não era para ele. Estava lutando, sem dúvida, agressiva e persistentemente, mas em outros níveis. Havia lutado, de fato, muito antes que outros intelectuais se dessem conta da situação; na realidade quatro decênios antes; lutando em seu próprio pensamento para ver, no meio da confusão de valores de um materialismo triunfante, quais eram realmente as bases da civilização; em seus livros, ou na plataforma de conferências, lutando para encontrar as palavras capazes de ajudar os outros a verem o que ele via; nos seus trabalhos na África, para demonstrar o dever individual àqueles que haviam caído vítimas do “progresso” ocidental. Sob a ameaça do látego que estalava em vastas áreas da Europa, através do tumulto das fábricas de munições que trabalhavam febrilmente, preparando as democracias ocidentais para responder à força com a força, no ar fétido do relativismo ético que parecia envenenar todos os líderes intelectuais do mundo, Schweitzer dizia serenamente, que ainda existiam coisas tais como a verdade e o erro; que tudo que promovia a vida estava certo, e tudo quanto impedia a vida era errado, e que, sendo feito de seres humanos, a base de qualquer sociedade duradoura era a Reverência Pela Vida.

Para Schweitzer, Hitler não era um fenômeno sobrenatural, engendrado no inferno e lançado pelo demônio nos corações de um povo apenas. Hitler era um produto de forças que haviam estado agindo no mundo por um século e mais, revelando-se lugubremente ora na Rússia, ora na Itália, ou na Alemanha, ou na Espanha, e, em incidentes isolados, em todos os outros países. Na sua infância Schweitzer sentira uma vaga consciência dessas forças, na fadiga espiritual de muitos homens mais velhos. Na sua juventude, havia começado a anotar claramente seus efeitos no pensamento político da sua geração. A exclamação desiludida do sábio, no salão de Curtius: “Qual! todos nós, não passamos de uns epígonos!” havia-lhe mostrado, numa espécie de estonteante revelação a exaltação das suas desconfianças. A primeira guerra mundial mostrara-lhe que a dissolução do organismo social do mundo estava muito mais próxima do que ele imaginara. Sem padrões morais, os homens eram animais selvagens, e ninguém se deveria admirar de que eles agissem como animais. Assim, nesse tempo, em face da cambaleante estrutura da civilização ocidental, Schweitzer – na África e na Europa, no seu hospital, na sua mesa de trabalho, na plataforma de conferências, ao órgão – pregava a Reverência Pela Vida, e praticava-a durante as dezoito horas de cada um dos seus atarefadíssimos dias. 2 Lambaréné era Reverência Pela Vida; e o tinha sido desde o início, mesmo antes de haver Schweitzer, hesitante e atormentado quase literalmente pescado as palavras luminosas nas escuras águas de um rio africano. Nativos sem conta poderiam testemunhar essa reverência no doutor, na sua esposa, nos seus dedicados cooperadores. Neles, algo mais do que o corpo havia sido curado. Por meio dos sermões dominicais do doutor, proferidos sob o beiral de um dos edifícios do hospital a uma congregação acocorada ou deitada no chão, e vazados nos termos mais simples, tirados da própria experiência dos nativos; ano por ano, ao longo do Ogowe, através da palavra falada e do silencioso sermão da vida diária do doutor, a Reverência Pela Vida tornou-se realidade nas suas mentes entenebrecidas e assombradas. Os homens começaram a compreender porque não deviam matar sem necessidade, ou torturar, ou roubar, ou tirar vingança; as mulheres começaram a criar criancinhas cujas mães haviam morrido de parto, em vez de deixá-las morrer com medo da mesma maldição que elas supunham ter morto as mães. Para o doutor, Reverência Pela Vida significava reverência por qualquer espécie de vida. Era-lhe um tormento ver, na estação seca, as pesadas nuvens de fumaça por sobre a floresta e, à noite, contemplar os dardos de chamas que apunhalavam o horizonte. Os nativos estavam queimando árvores abatidas, para fazerem novas plantações. Tinha de ser assim, para que seres humanos não perecessem de fome, mas ele se sentia tomado de compaixão pelos animais que morriam aos milhares na conflagração. Na China antiga, lembrava-se, a queima de florestas era considerada crime, porque significava morte dolorosa

para tantas creaturas. Todavia, ao longo do Ogowe, os nativos precisavam viver... Enfrentava o trágico dilema, concordava, mas o coração lhe doía. Reverência Pela Vida queria dizer respeito a toda e qualquer vida: a vida humana em primeiro lugar, sem dúvida, mas também a vida animal, e até a vida vegetal. “Um homem é verdadeiramente moral – havia escrito quase vinte anos antes na sua “Civilização e Ética” – somente quando ajuda a toda vida no que pode, e quando se esquiva de prejudicar qualquer ser vivente. Não pergunta em que medida esta ou aquela vida merece seu interesse e simpatia, se tem ou não tem valor, nem indaga se e em que extensão ela é capaz de reagir. A vida como tal é que lhe é sagrada. Um homem assim não arranca as folhas das árvores, nem as flores, e toma cuidado para não esmagar um inseto. Se, no verão, trabalha à luz de uma lâmpada, conservará fechada a janela e respirará o ar abafado e quente, para não ver insetos e mais insetos cair com as asas chamuscadas. Se vai por uma rua após um aguaceiro e vê uma minhoca deixada na calçada pela água, sabe que logo será torrada pelo sol, se não puder alcançar a terra em que se possa abrigar, e a levanta da pedra mortífera e a coloca na grama... Não tem medo de que se riam dele como de um sentimental. O destino de todas as verdades é serem objeto de escárnio, antes de serem reconhecidas pelas massas”. No início da história do hospital, Schweitzer havia baixado um decreto pelo qual, dentro da área em que exercia jurisdição, nenhum animal fosse morto sem necessidade, e qualquer que trouxesse um animal ferido ou orfanado ao hospital, seria considerado benfeitor e receberia um presente. O recinto era um verdadeiro jardim zoológico de creaturas silvestres, transformadas em animais domésticos muito da estimação do doutor; nos primeiros tempos houve um antílope anão, que se aventurava até a mesa do doutor em busca de carícias; depois, macacos sem número, uma cegonha, uma família de pelicanos, algumas cabras brancas que tinham o mau costume de comer a casca das pequenas árvores frutíferas; e um gorila, um porco-espinho, uma coruja branca que respondia pelo seu nome nativo de Akfu, um chipanzé macho chamado Julot e uma fêmea Zeferina, um javali por nome Josefina. Schweitzer reconhecia que a Reverência Pela Vida, e não só pela vida humana, apresenta problemas que o homem ocidental não se satisfazia de evitar com um tabu oriental. Para que um leopardo não invadisse os terrenos do hospital, e um elefante não destruísse as plantações das quais dependia a vida do hospital, ele, Schweitzer, tinha de matar para que ele e outros pudessem viver. Em qualquer parte do mundo o homem precisa matar para viver. Até um vegetariano deve matar, se não quiser entregar sua colheita aos caracóis, às lagartas, aos ofídeos e gafanhotos, e sua casa às formigas, aos roedores, insetos e fungos. Então, que é da Reverência Pela Vida, por toda espécie de vida?

Não seria esta a resposta? O homem deve, sem dúvida, destruir vida, mas destruí-la só para preservar ou aumentar a vida em suas formas mais altas. Deve viver diariamente de juízo em juízo, decidindo cada caso à medida que se lhe apresente do modo mais sábio e misericordioso possível, sem ceder a uma consciência elástica. Você está certo de que tem o direito de esmagar essa aranha no chão do seu quarto? Não poderia apanhá-la e por fora de casa? E quanto à vivissecção de animais? A dor infligida a um cão ou a uma cobaia é realmente necessária ao bem da humanidade? Será que o adiantamento da ciência justifica a agonia do animal? Quanto à vida vegetal, ceife sem medo seu trigal, mas tema o seu julgamento interior, se no caminho para casa cortar à toa uma flor ou as hastes de capim! Hora por hora deve, pois, o homem levar sua vontade ao tribunal da consciência. “Nos conflitos éticos o homem só pode chegar a decisões subjetivas. Ninguém pode marcar para ele, em cada caso, os últimos limites da sua possível persistência na preservação e promoção da vida. Só ele é que pode julgar, guiando-se por um sentimento da mais alta responsabilidade com relação à vida alheia.” O essencial é que o homem nunca permita que sua sensibilidade se embote e caleje, ou que perca a delicadeza para com tudo que vive. Alerta! quando sua consciência lhe disser que tudo está certo. “A boa consciência é uma invenção do diabo.” 3 “Sou interrompido de minuto em minuto” – escreve Schweitzer a um amigo. “A bagagem de duas enfermeiras em vésperas de partida está sendo preparada. Os motores dos botes fazem barulho perto do hospital. Você devia ver esta atividade. O sol brilha maravilhosamente sobre o rio. De que servem todo este esplendor e toda esta beleza, quando as coisas vão tão mal no mundo do homem.” Schweitzer estava elaborando o seu terceiro volume, às vezes até a madrugada, mas as notícias que vinham da Europa caíam como prenúncios de inverno nos seus campos férteis, e gelavam até mesmo a sua fenomenal capacidade de pensar. A guerra civil, amarga e sangrenta, estava estraçalhando a Espanha. A Finlândia lutava pela vida contra o seu gigantesco vizinho. A Áustria estava sentindo a geada nazista sobre a perene primavera do seu coração. Abatido e derrotado pela primeira vez, o doutor deixou de lado sua obra filosófica, fugindo da contemplação de uma civilização enlouquecida para a simplicidade de um mundo primitivo, cujo fetichismo e encantações tinham mais sentido do que os discursos e atos dos estadistas europeus. Possuia volumes de notas sobre os costumes tribais, e incidentes esclarecedores do hospital, muitos que

sabia interessariam a seu público, cada vez mais vasto na Europa e na América, e eles os reuniu num livro de “Narrativas Africanas”. As manobras diplomáticas entre a Inglaterra, a França e a Alemanha, no outono de 1938, convenceram Schweitzer de que a guerra era iminente. A crise tchecoeslovaca causava tanta febre em Lambaréné quanto em Londres ou em Paris. Era preciso reunir estoques de provisões e de remédios, para o caso de guerra. O perigo passou, por um momento, mas as apreensões de Schweitzer não foram acalmadas por um acordo baseado na traição. Quando, para comemorar seu vigésimo quinto aniversário na África, os europeus da região do Ogowe levantaram dinheiro para comprar um equipamento radiológico para o hospital, ele viu realizar-se um sonho muito querido, mas relutantemente o pôs de lado, e pediu licença para encomendar uma reserva de medicamentos, em vez do equipamento. Trabalhava ainda com a antiga energia, das seis da manhã até a meia-noite, e ele mesmo se admirava do muito que ainda podia fazer com os seus sessenta e quatro anos. “No momento, antes que venham os grandes furacões – escrevia ele a um amigo pelos fins de 1938 – estou trabalhando nas valetas para escoar as águas. É um problema sério, aqui, porque o hospital está ao pé de uma pequena colina... há um ano e meio que não tenho um dia livre, nem me distanciei do hospital mais de cinco quilômetros. Você pode imaginar alguém tão apegado a um só lugar? Mas em tudo isso há alguma coisa boa e salutar.” Em janeiro de 1939 foi à Europa, para ver a esposa e a filha. Além disso, teve de conceder que estava extremamente cansado, e sentia a necessidade de descarregar em outros ombros, durante algum tempo, os múltiplos deveres que não podia evitar quando estava em Lambaréné. Não havia dito que, quando a idade pesasse sobre ele, passaria férias cada vez mais longas entre as montanhas e as memórias de Günsbach? Por muito que o restante da Europa estivesse perturbado, em Günsbach encontraria paz, e poderia dar forma e coerência ao seu terceiro volume. Antes mesmo de alcançar a França, viu quão ilusória eram suas esperanças. Em todos os portos em que o navio escalou, viu vasos de guerra reunidos; em todas as irradiações que ouvia, reconhecia a nota fatídica da sentença. Guerra! Podia não vir em seis meses, como podia vir em seis semanas, ou mesmo antes. Antes de desembarcar em Bordéos no dia primeiro de fevereiro, estava decidido a voltar para a África no mesmo vapor, uma quinzena depois. Quando a guerra viesse, ele seria necessário para pilotar o hospital em águas revoltas. Passou duas semanas na Alsácia e na Suíça, com a família, pondo em ordem seus negócios pessoais e fazendo compras para o hospital. Seus amigos não partilhavam das suas apreensões, e os de Estrasburgo ainda menos, o que era irônico, pois estavam como entre canhões prontos para disparar. Censuravam-

no amavelmente por ser alarmista que, vivendo longe da cena, havia perdido a perspectiva. Schweitzer não discutia. Orava. 4 Na primeira semana de março estava de volta a Lambaréné. Enquanto o vapor fluvial o afastava do mar, perguntava a si mesmo, com o coração a tremer, o que estaria escrito nas páginas negras da história, antes que ele de novo embarcasse em Port Gentil. Lançou-se imediatamente ao trabalho de acumular reservas de medicamentos, material cirúrgico e alimentos, quanto lho permitiam seus recursos. Esperava a guerra para julho. Ela veio em setembro e, apesar de todos os seus preparativos, trouxe algo semelhante a confusão de uma cidade medieval em vésperas de assédio. Qual outro José, preparou-se para os sete anos de fome – embora sem nunca pensar que o pudessem ser de verdade – comprando todas as reservas de arroz que pode encontrar. Com relutância, mandou de volta os doentes que não tinham necessidade imediata de tratamento ou de operação, porque as reservas cirúrgicas deviam ser poupadas tanto quanto as provisões de boca. “Que dias tristes passamos, mandando aquela gente para casa. Alguns foram enviados nas embarcações fluviais que escalavam em Lambaréné e os aceitavam a bordo. A outros apenas lhes podia dizer “Deus vos guie” quando partiam pelos difíceis trilhos da floresta. Mandou também para suas aldeias um considerável grupo de auxiliares nativos, operários e trabalhadores do campo. Um médico suíço, convocado para o serviço militar em sua pátria, partiu a vapor; uma das enfermeiras, que ia sair em férias, apanhou o último avião que levava passageiros civis para a Europa. Como o serviço no hospital estava grandemente reduzido, outras enfermeiras aceitaram lugares nos superlotados hospitais coloniais. Desafiando os mares infestados de submarinos, uma médica veio de Letônia; e da França, para partilhar mais uma vez do seu auxílio, chegou felizmente à esposa do doutor. A guerra veio chegando cada vez mais perto. No meio do seu primeiro ano, o velho Brazza, que tantas vezes tinha levado o doutor à Europa e da Europa à África, foi torpedeado, levando para o fundo do mar o último carregamento de medicamentos e material cirúrgico com que Schweitzer contava. Sete meses depois a guerra estava literalmente às portas. Durante semanas as forças da França livre combateram as tropas do governo de Vichy, ambas querendo Lambaréné, mas felizmente os comandos dos dois lados ordenaram que seus bombardeios poupassem o hospital, que estava a duas ou três milhas da cidade. Através do furioso bombardeio, o doutor protegeu os pacientes e as enfermeiras contra os tiros perdidos, reforçando as paredes que davam para Lambaréné com grossas folhas de zinco ondulados. 5

A guerra abalou a vida econômica da floresta. O tráfego marítimo estava à mercê dos submarinos; os depósitos de madeira foram fechados, e o comércio de café, cacau, e óleo de palmeira também chegou a um ponto morto. Mas a borracha estava de novo com grande procura e a indústria, que a competição das Índias Orientais havia esmagado um quarto de século antes, reviveu, com todas as suas agruras para os trabalhadores, que eram obrigados a viver em acampamentos móveis, longe das suas aldeias. Os sofrimentos que suportavam, mesmo que fora apenas dos insetos, torturavam o coração do doutor. Nem todas as transformações que a guerra trouxe à área do Ogowe foram más. Estradas estratégicas foram lançadas através da floresta, pontes foram construídas nas correntes menores, e balsas foram colocadas para a travessia dos rios. Os construtores de estradas chegaram até Lambaréné, trazendo a rodovia da Cidade do Cabo a Argel. Essas estradas eram rudimentares, e viajar por elas não era nenhum luxo, mas trouxeram o transporte motorizado àquela área, o que era muito. O doutor podia viajar agora para as estações das missões interiores num dia, quando outrora esse trajeto lhe tomava doze dias de viagem a pé. O colapso do comércio de madeira barateara o trabalho, e o doutor viu a oportunidade de livrar alguns dos nativos da fome e ao mesmo tempo empreender certas obras que havia muito vinha adiando. Preparou certo número de acres para as árvores frutíferas do seu viveiro limpou outros acres do mato e das trepadeiras que abafavam as palmeiras, e construiu muros. e apoio para evitar que o Jardim do Éden deslizasse para o no. Gradualmente o hospital começou a funcionar de novo mais ou menos como antes. O desânimo do doutor era cada vez maior, ao notar as falhas nas prateleiras da sua farmácia. A guerra estava no segundo ano, e as reservas começavam a escassear. As compras de provisões e os salários que pagava aos obreiros nativos estavam esgotando seus recursos financeiros. Mas como podia mandar de volta pacientes que vinham a ele de duzentas e cinquenta milhas de distância, pelas trilhas da floresta? Tinha de alimentá-los quando vinham... Podia comprar mandioca e bananas dos nativos, mas, seis meses após o começo das hostilidades, o preço do arroz já era proibitivo. Felizmente, a França livre conquistou a colônia, e as relações postais com a GrãBretanha e com os Estados Unidos foram restabelecidas. A despeito das suas próprias perdas e privações, os amigos da Inglaterra começaram a fazer de novo suas contribuições, e a remeter os donativos enviados pelos leais mantenedores suecos. A Europa Continental, encerrada num anel de ferro, nada podia fazer, mas amigos americanos entraram na brecha trágica. Everett Skillings, do Middlebury College, e Thomas S. Bixler, de Harvard, que haviam visitado Schweitzer numa ou noutra das suas estadas na Europa, mandaram dizer-lhe que estavam organizando algo que na verdade era uma expedição de socorro. O diretor da “New York Postgraduate Medical School and Hospital”, Dr. Edwar

H. Hume, oferecera-se voluntariamente para enviar todos os recursos médicos de que o hospital de Lambaréné necessitasse. Schweitzer respirou de novo, e assim continuou nos meses seguintes. As brechas em suas prateleiras alargavam-se, parecendo até que eram feitas só de brechas, e ainda o prometido carregamento não chegava. Chegou, enfim na primavera de 1942. Também chegou dinheiro, e o doutor pôde dar aos doentes alimentação melhor, e enviar seus auxiliares em férias para as montanhas do interior, para que restaurassem as energias, que o perpétuo calor lhes havia tirado. Mas o doutor recusou-se a tomar a sério as súplicas do presidente da Schweitzer Fellowship dos Estados Unidos, para que ele mesmo tomasse férias. O trabalho estava aumentando. Os europeus brancos da região, exaustos pela permanência forçada na zona florestal, estavam-se acumulando no hospital, com anemia, úlceras do estômago ou malária. Os nativos estavam chegando, como antes da guerra, numa corrente contínua. “O senhor quer que eu tome férias” – escreveu Schweitzer ao Dr. Skillings. “Não é possível. Para que o hospital funcione normalmente, preciso estar em meu posto todos os dias, por muitas razões. E notei que aqueles que partiram para respirar os bons ares da África do Sul voltaram quase todos mais cansados do que quando partiram. Porque há a longa viagem em estradas que não são realmente estradas, e dias e dias de trem. E as pesadas despesas dessas viagens e das estadas nos hotéis! Demais, se eu voltasse das férias, encontraria em minha mesa uma montanha de correspondência, e tantos concertos nos edifícios estariam à minha espera, e tantas coisas estariam por fazer! É que somos muito poucos. Tenho de fazer outros trabalhos ao lado do meu trabalho médico. Sou eu quem liga os motores todas as manhãs, por algum tempo, ia ao mercado as oito e meia da manhã, para comprar bananas, mandioca e milho, para a alimentação dos doentes; sou eu quem vai às plantações todos os dias para ver o que os trabalhadores fizeram (ou deixaram de fazer). Sou eu quem verifica se as frutas foram colhidas e colocadas em palha para não se estragarem... Ninguém pode ocupar meu lugar. Creia, meu amigo, que ando certo quando fico no meu posto, faço meu trabalho diário, sonhando que um dia há de vir, depois da guerra, quando tomarei férias de verdade, e dormirei tanto quanto quiser, e darei passeios, e trabalharei o dia todo e metade da noite na filosofia, sem ter de romper o fio do pensamento. Também tocarei órgão... Não se preocupe comigo. Ia-me esquecendo: quem tomará conta da farmácia se eu for embora? Dá grande trabalho vigiar para que os remédios não se estraguem, e o catgut para as operações seja devidamente conservado em soluções desinfetantes, e os objetos de borracha sejam continuamente vigiados; por que não podemos substituir o que se estragou. Estou desenrolando diante do senhor as prosaicas tarefas da vida que levo. Mas quando sou médico, quando estou ao órgão, ou quando trabalho na filosofia durante a noite, esqueço todos esses estafantes

serviços. Por isso, deixo que meus companheiros tomem férias. Eles bem as mereceram. Quanto a mim, vou usar do privilégio dos velhos, que ficam em casa e se julgam indispensáveis.” Estava usando as reservas de humor, que eram sua defesa quando a tensão se tornava mais aguda. Não eram somente as responsabilidades que tinha ante os olhos, mas a guerra distante, era um pesadelo para seu coração. Tantos amigos pessoais estavam em constante perigo, ou sofrendo privações! A perseguição dos judeus, os campos de concentração, os sofrimentos dos refugiados em milhares de caminhos de horror! Não era justo que enquanto outros estavam condenados a sofrer tanto, ou a causar sofrimento e morte, ele, sua esposa e seus colaboradores tivessem permissão para aliviar o sofrimento e dar conforto? O reconhecimento deste privilégio, que lhes era concedido, renovava-lhes as forças dia a dia, e tornava precioso aos seus olhos o mais árduo e comum dos serviços. Pelo fim do quinto ano de guerra, o trabalho e a tensão incessantes, somados à prolongada permanência no sufocante clima equatorial, produziram no doutor e na sua intrépida esposa uma fadiga que pôs à prova seus últimos recursos de corpo e espírito. “Às vezes nossos pés se arrastam como se fossem de chumbo – confessou a senhora Schweitzer em carta a uma amiga – mas continuamos andando.” Cada dia, pareciam exaurir suas reservas finais, para atender às exigências do hospital, e cada noite tinham um pouco menos para levar ao dia seguinte. Não cair doente, conservar-se apto para o trabalho, tornou-se uma obsessão para o doutor, e para sua esposa, e para cada um dos membros do seu dedicado quadro. Ninguém podia fracassar. Não haveria substituições. De qualquer maneira, pela graça de Deus, todos deveriam manter-se firmes. “Por isto ficamos firmes” – escreveu Schweitzer no seu primeiro relatório após a guerra. 7 Entretanto, não era apenas no hospital e na plantação que o doutor ficava firme. “A despeito da minha fadiga e das preocupações – escreveu ao seu amigo americano. Skillings – ainda estou em condições de trabalhar no meu volume de filosofia, mas somente depois das vinte e uma horas, e até tarde da noite; infelizmente, nem todos os dias, às vezes só duas ou três noites por semana. Mas isso permite que me concentre no assunto, e vagarosamente vou para a frente. Como serei feliz quando a paz vier, e puder libertar-me um pouco de outros labores, e dedicar-me a este trabalho com mais ou menos continuidade, pois ainda desejo terminá-lo.” Maravilhava-se da força e da resistência que ainda possuía, e agradecia a Deus por elas, com abundância de coração. Teria ele sonhado em delegar o serviço do hospital aos seus assistentes, quando chegasse aos sessenta e cinco, para passar uns meses de cada ano na Europa, estudando e escrevendo, dando

concertos em benefício do hospital, e mesmo – não seria impossível – tomar algumas semanas de férias? Bem, se nisto sonhou, não passou de um sonho. Ei-lo beirando os setenta, trabalhando tão duramente como sempre. Atingiu os setenta anos em meados de janeiro de 1945, e o mundo tomou conhecimento desse fato por meio de editoriais, sermões e irradiações, e auxílios a Lambaréné. Schweitzer passou o dia, que era domingo, em algo mais do que a rotina usual, operando uma hérnia estrangulada pela manhã, vigiando alguns cardíacos que o preocupavam; no hospital desde o repentino romper da aurora até o rápido cair da noite. Setenta! disse de si para consigo. Por causa do trabalho que ainda precisava fazer e dos anos em que o hospital ainda necessitaria dele, deveria ter trinta, e não setenta! A British Broadcasting Company havia-o informado por cabograma de que iria fazer uma transmissão especial em sua honra, e todos os doentes brancos e os empregados do hospital estavam reunidos em torno dele e de sua esposa, aquela noite, para ouvirem o tributo da Inglaterra. O vento, soprando brandamente em torno das palmeiras, lá fora, apesar da janela aberta, não trazia conforto algum aos que estavam dentro; o calor era sufocante. Acenderam-se as luzes do rádio, mas durante um minuto os ouvidos atentos só ouviram o trilar dos grilos, e, dalém do rio, o bater de um tambor. Repentinamente, clara como o cristal, a voz do teólogo Nathaniel Micklem veio do alto-falante, contando a história de Albert Schweitzer. Seguiu-se um dos discos de órgão do próprio Schweitzer, tão isento de interferências atmosféricas, tão íntimo e persuasivo como se os ouvintes estivessem em a nave da grande Abadia e Schweitzer estivesse realmente ao teclado. O locutor disse: “Dr. Schweitzer está-nos ouvindo neste momento em Lambaréné.” Foi como se o espaço houvesse sido anulado, e todos pareciam estar juntos: seus amigos no estúdio de Londres, ele e sua esposa e amigos no coração da África, os ouvintes em todo o mundo. 8 Schweitzer estava sentado à sua mesa depois da refeição do meio-dia, quatro meses depois, quando um dos seus pacientes brancos apareceu à janela, esbaforido. “O rádio alemão está anunciando que foi concluído um armistício na Europa!” O doutor acabou a carta que estava escrevendo. Pelo meio da tarde, depois de uma sucessão de serviços no hospital, tocou o gongo e deu à família do hospital a notícia: terminara a guerra na Europa. Doía-lhe de fadiga o corpo inteiro; ansiava pela calma e a oportunidade de pensar naquilo que estava para vir. Mas havia nativos nas plantações, os quais devia vigiar para que o trabalho fosse feito realmente. Só quando a noite chegou é que ele pôde sentar-se e deixar que os pensamentos que tinham estado

girando vagamente no seu cérebro, adquirissem certa nitidez. Que significava o fim das hostilidades? Que estariam pensando esses milhões que nessa noite poderiam dormir, afinal, sem o terror dos bombardeios? Como evitar nova mortandade, quando esta acabasse? Tornou-se de novo consciente do sussurro das palmeiras, do rumor dos insetos, e, à distância, dos sons noturnos da selva, tão pungentes na sua melancolia. Lao Tsé atraiu-o de uma das estantes, e ele tomou o pequeno livro de provérbios do sábio chinês, que havia conhecido guerras e vitórias dois séculos antes de Sócrates, seis séculos antes de Cristo. “As armas são instrumentos desastrosos – leu Schweitzer, em voz alta, para a esposa – e não são ferramentas apropriadas para um nobre ser. Só quando não pode evitá-lo, é que faz uso delas. Para ele, a calma e a paz são os dons mais altos. Pode vencer, mas não tem nisso nenhum prazer. Quem quer que se regozije com a vitória pode regozijar-se também com o assassínio...” “Na celebração de uma vitória, o general deveria agir como se assistisse a um funeral. A matança de seres humanos em grande número deve ser lamentada com lágrimas de compaixão. Portanto, aquele que venceu uma batalha deve comportar-se como se estivesse numa cerimônia fúnebre.” Reverência Pela Vida! Vinte e cinco séculos depois, um punhado, quando muito, acreditava nela! Razão maior, pois, para “permanecer firme e trabalhar no mundo, como alguém que visa aprofundar a vida interior dos homens, fazendoos mais puros de coração, fazendo-os pensar.” 9 Fala Schweitzer: “Numa época que considera ridículo, inferior, antiquado e felizmente superado tudo quanto lembra racionalismo ou liberalismo, escarnecendo até da vindicação dos inalienáveis direitos humanos conquistado no século dezoito, tomo a posição de quem coloca sua confiança no pensamento racional. Atrevo-me a dizer à nossa geração que não pode pensar que pôs de lado o racionalismo, porque o racionalismo do passado foi forçado a dar lugar primeiro ao romantismo, e depois a uma Realpolitik que está chegando a dominar a esfera mental e espiritual assim como material. Quando ela tiver experimentado todas as loucuras desta Realpolitik universal, lançando-se numa miséria espiritual e material cada vez mais profunda, nada lhe será deixado, senão a confiança em um novo racionalismo, mais profundo e produtivo do que o velho, e buscar nele a libertação. “Renunciar a pensar é admitir a bancarrota espiritual. Quando os homens cessam de crer que podem achar a verdade através dos processos do seu próprio pensamento, começa o cepticismo. Aqueles que procuram, deste modo, modular o cepticismo à nossa época, fazem-no na expectativa de que,

renunciando a toda esperança de chegar à verdade por si mesmo, os homens acabarão por aceitar como verdade aquilo que lhes é incutido à força por meio de autoridade e propaganda.” Fala Schweitzer: “A Cristandade necessita do pensamento para poder compreender sua própria essência. Durante séculos ela entesourou os grandes mandamentos de amor e misericórdia como verdade tradicional, sem ver neles razão para combater a escravidão, a queima de feiticeiras, a tortura, e tantas outras atrocidades antigas e medievais. Só quando sentiu a influência do pensamento do esclarecimento (Aufklarung) é que ela se sentiu impelida a entrar no combate pela humanidade. A lembrança disto deve preservá-la para sempre de assumir qualquer ar de superioridade em relação ao pensamento.” Fala Schweitzer: “Mentes engenhosas em botas de sete léguas disparatam em torno da história da civilização, e tentam fazer-nos crer que a civilização seja algo que cresça e floresça espontaneamente em certos povos, em determinado tempo, e depois murcha, inevitavelmente, de modo que sempre novos povos, com novas civilizações, devam substituir aqueles que se esgotaram. Quando esses tais são intimados a provar sua teoria, para dizer-nos quais os povos destinados a serem nossos herdeiros, vêem-se em embaraços. Não existem, de fato, povos aos quais semelhante tarefa possa ser confiada, nem remotamente. Todos os povos da terra sentiram grandemente a influência, tanto da nossa civilização quanto da falta dela, de maneira que todos, mais ou menos participam do nosso destino. Em nenhum deles se encontram pensamentos capazes de guiar a qualquer movimento cultural original de importância. “Voltemos as costas ao brilho intelectual e a interessantes exames da história da civilização, e lidemos realisticamente com o problema da nossa civilização em perigo... Pelo entusiasmo em nosso progresso no conhecimento e capacidade, chegamos a conclusões erradas no tocante à verdadeira natureza da civilização. Damos excessivo valor às conquistas materiais, e já não estamos suficientemente conscientes da significação do que é mental e espiritual. Agora os fatos estão diante de nós, advertindo-nos de que devemos entrar em nós. Em termos terrivelmente severos, estão nos dizendo que uma civilização que se desenvolve apenas no plano material e não proporcionalmente no plano mental e espiritual, é como um navio com o leme avariado, que não mais obedece ao comando, e se precipita para a catástrofe.” Fala Schweitzer: “Entre os atributos mentais do homem comum está a capacidade de pensar, que não só torna possível ao indivíduo produzir uma concepção filosófica pessoal da vida, mas que, em geral, torna necessária essa concepção. Os grandes

movimentos científicos, nos tempos antigos e modernos, justificam a crença de que há na massa da humanidade uma capacidade de pensamento elementar que pode ser despertada para a atividade. Esta crença é fortalecida pela observação da humanidade e pelas relações com os jovens. Um impulso fundamental para refletir sobre o universo nos instiga durante os anos em que começamos a raciocinar independentemente. Mais tarde, permitimos que enfraqueça, embora percebamos claramente que nos estamos empobrecendo, e perdendo a capacidade de realizar o bem. Somos como fontes de água que não correm mais, porque não foram cuidadas, e gradualmente obstruídas por detritos.” “Mais do que qualquer outra geração, a nossa negligenciou o cuidado das mil fontes do pensamento; daí, a seca de que padecemos. Mas, se nos levantarmos e lançarmos fora os detritos que cobrem as águas, nova vida irromperá das areias irrigadas, onde antes era apenas o deserto... “Quando, na primavera, o cinzento das pastagens mortas cede ao verde, é devido aos milhões de rebentos novos que brotam das velhas raízes. Semelhantemente, a renovação de pensamento, que é essencial ao nosso tempo, só pode vir se muitos, meditando no sentido da vida e do universo, derem nova forma aos seus sentimentos e ideais.” Fala Schweitzer: “Quando às nossas seleções com outros homens, a ética da Reverência Pela Vida lança sobre nós uma responsabilidade tão ilimitada que se torna aterradora... “De acordo com a responsabilidade de que sou consciente, eu mesmo é que tenho de decidir qual a parcela da minha vida, de minhas posses, dos meus direitos, da minha felicidade, do meu tempo e do meu repouso que devo dedicar a outrem, e qual a parte de tudo isso posso reservar para mim. “No que concerne às posses, a ética da Reverência Pela Vida é francamente individualista, no sentido de que a riqueza, adquirida ou herdada, deve ser posta ao serviço da comunidade, não através de medidas tomadas pela sociedade, mas pela decisão absolutamente livre do indivíduo. Ela espera tudo do crescimento do senso individual de responsabilidade. A riqueza deve ser encarada como propriedade da sociedade confiada ao soberano domínio do indivíduo. Um homem serve à sociedade por meio de um negócio no qual certo número de empregados ganha sua vida; outro, entregando sua riqueza para socorrer seus semelhantes. Entre estas duas espécies extremas de serviço, cada um decida de acordo com a responsabilidade que as circunstâncias da vida lhe impuserem. Ninguém julgue ao seu próximo. O que importa, realmente, é que cada um considere as suas posses como algo com que pode servir o próximo. Pouco importa se isto se realiza guardando e aumentando sua riqueza,

ou entregando-a. Das formas mais diversas, a riqueza deve atingir a comunidade, para que esta se beneficie da melhor maneira possível... “Quanto aos meus direitos, a ética da Reverência Pela Vida me permite tampouco que os considere meus. Não permitirá que minha consciência persuada que, por ser mais forte, possa progredir mesmo por meios legítimos, à custa dos que são mais fracos do que eu. Naquilo que a lei e a opinião pública permitem, ela cria para mim um problema que devo resolver. Ordena-me que pense nos outros, e pede-me que considere se devo arrogar-me o direito de apanhar todas as frutas que posso alcançar. Desta, pode suceder que, em obediência ao respeito pelos outros, eu faça algo que, na opinião comum, parece loucura. Pode mesmo acontecer que se revele uma loucura, pelo fato de que minha renúncia não tenha sido de nenhum benefício para aquele em cujo favor foi feita; e no entanto, eu estava certo. A Reverência Pela Vida é o tribunal de última instância. O que ela ordena tem significação, mesmo que pareça insensato ou fútil... “A Reverência Pela Vida não me permite considerar minha felicidade como propriedade pessoal. Em momentos em que gostaria de alegrar-me sem preocupações, ela desperta em mim a lembrança de misérias vistas ou sabidas, e não permitirá que eu expulse esses intrusos. Assim como a onda não existe por si mesma, mas é sempre parte da movediça superfície do mar, assim também eu não posso viver minha vida por si mesma, mas sempre como parte da experiência que se desenrola ao meu redor. “A Reverência Pela Vida é um credor inexorável! Mesmo que nada ache num homem para penhorar, senão um pouco de tempo ou de lazer, lança sobre estes uma ordem de penhora... “Abri vossos olhos e procurai um ser humano ou algum trabalho devotado ao bem-estar humano, que necessite um pouco do vosso tempo, ou da vossa amizade, um pouco de compaixão, ou de companhia, ou de serviço. Pode ser um recluso... um inválido... um velho ou uma criança. Ou então, alguma boa obra que careça de voluntários que lhe dediquem uma noite livre, ou que lhe prestem outros serviços. Quem poderá enumerar os muitos meios pelos quais pode ser empregado esse valioso capital que é o ser humano! Por toda parte ele é necessário, e cada vez mais! Buscai, pois, ansiosamente, alguma situação em que vossa humanidade possa ser utilizada... “Para qualquer homem, qualquer que seja a sua situação na vida, a ética da Reverência Pela Vida produz isto: ela o força a preocupar-se sempre com todos os destinos humanos, os destinos da vida, que seguem seu curso na sua própria área de vida, e o força, também, a dedicar-se, como homem, ao homem que dele necessite. Não permitirá ao erudito viver apenas para a sua erudição, embora esteja fazendo bom uso dela. Não consentirá ao artista viver só para sua arte, mesmo que esteja dando muito a muitos. A Reverência Pela Vida não permitirá

ao ativo homem de negócios pensar que, nas suas atividades profissionais, já cumpriu todas as exigências que pesam sobre ele. A todos pede que dêem a outrem uma parcela da sua vida.” Fala Schweitzer: “Admito que a fé na possibilidade de transformar o estado moderno em estado civilizado é nada menos que heróica. O estado moderno está numa condição de penúria material e espiritual sem precedentes. Vergando ao peso das dívidas, estraçalhado por conflitos econômicos e políticos, destituído de toda autoridade moral, e a muito custo podendo manter sua autoridade imediata, tem de lutar pela sua existência numa sucessão de dificuldades sempre renovadas. Onde irá ele buscar, em face de todas estas coisas, a capacidade para desenvolver-se num estado verdadeiramente civilizado?... “Vivendo no estado moderno, e enfrentando o ideal de um estado civilizado, temos, antes de mais nada, de renunciar às ilusões que aquele alimenta sobre si mesmo. Só na medida em que muitos assumirem para com ele uma atitude crítica, é que ele poderá recuperar o senso de si mesmo. A absoluta incapacidade do estado, na sua presente condição, para manter-se, deve tornarse uma convicção universal, para que as coisas possam melhorar. “Ao mesmo tempo, por meio do muito pensar no estado civilizado, é preciso que se torne comum a todos a percepção de que todas as medidas meramente externas para reerguer e purificar o estado moderno, por muito eficientes que sejam, não surtirão efeitos adequados, enquanto não se modificar o espírito do estado. Vamos, portanto, empreender a tarefa de guiar o estado moderno, quanto o permita o poder do nosso pensamento, para a moralidade e a espiritualidade do estado civilizado, qual este deve ser de acordo com a concepção da Reverência Pela Vida! Queremos que ele seja mais espiritual e mais ético do que qualquer outro jamais tenha sido. Só buscando o verdadeiro ideal é que haverá progresso. “Objeta-se que a experiência nos ensina que o estado não pode existir confiando apenas na integridade, na justiça, e em considerações morais, mas que, em última análise, tem de recorrer a oportunismo. Esta “experiência” nos faz sorrir, refutada como está pelas funestas consequências que tem produzido. Temos, por conseguinte, o direito de declarar que a verdadeira sabedoria está na direção oposta, e que, para o estado como para o indivíduo, a verdadeira força deve ser encontrada na espiritualidade e na moral. O estado vive pela confiança dos que a ele pertencem, e pela confiança que os outros estados depositam nele. Uma política oportunista pode registrar triunfos temporários, mas com o tempo fracassará irremediavelmente. “Assim, a afirmação ética do universo e da vida exige que o estado moderno se torne uma personalidade ética. Insiste nesta exigência, e não se deixa dissuadir

pelos sorrisos dos sofistas. A sabedoria de amanhã tem um tom diferente do da sabedoria do ontem. “Somente na medida em que tiver um novo espírito e uma nova índole imperando dentro dele, poderá o estado realizar a paz dentro das suas fronteiras; só quando esse novo espírito e essa nova índole reinarem entre os estados, poderão eles compreender-se mutuamente, e cessarão de destruir-se uns aos outros; só quando os estados modernos enfrentarem o mundo colonial com novo espírito e nova índole, diferentes dos do passado, cessarão de carregar-se de culpas nessas regiões do mundo... “Estamos, por conseguinte, libertos de qualquer obrigação de conceber o estado civilizado como tendo sua base no nacionalismo e na organização nacional, e temos a liberdade de voltar à profunda “ingenuidade” de pensar nele como um estado dirigido por uma consciência ética. Confiando no poder do espírito civilizado e na índole que brotam da Reverência Pela Vida, tomamos sobre nós a tarefa de tornar realidade este estado civilizado.”

Obras de Albert Schweitzer, sobre vários assuntos e em várias línguas

FILOSOFIA A Filosofia da Religião de Kant. – Die Religionsphilosophie Kants – Ed. Mohr. Tübingen 1899, 325 págs. Filosofia da Cultura I – Decadência e Regeneração da Cultura. – Kulturphilosophie I – Verfall und Wiederaufbau der Kultur – Editada em inglês, sueco, dinamarquês, holandês e português. * Filosofia da Cultura II – Moral e Cultura. – Kulturphilosophie II – Kultur und Ethik – Ed. München 1923, Editada em inglês e holandês. A Concepção do mundo dos pensadores indianos. – Die Weltanschauung der indischen Denker – München 1935, Beck, 201 págs. Edições em francês, inglês e holandês. MÚSICA Jean Sébastian Bach, le musicien poète. – 1.ª ed. em francês, Paris Costallat 1904, 455 págs. A mesma obra, posteriormente em alemão: Johann Sebastian Bach, com 834 págs. Editada também em inglês. Arte de construir e de tocar órgão, na Alemanha e na França. – Deutsche und französische Orgelbaukunst und Orgelkunst. – Leipzig, 1906, Breitkopf & Hartel, 51 págs. Prelúdios e fugas de Bach para órgão. – Bachs Präludien und Fugen für Orgel – Edição crítica com indicações práticas sobre a reprodução dessas obras. Em colaboração com Charles Marie Widor. Nova York, 1912/14 4 vols. Também em edições inglesa e francesa. TEMAS BIOGRÁFICOS E AUTOBIOGRÁFICOS Eugène Münch (organista alsaciano) Mülhausen, Alsace – Brinkmann, 1898. Goethe – Discurso comemorativo. – Goethe - Gedenkrede – Proferido por ocasião do centenário da morte do poeta, em 1932. Ed. no ano seguinte em München, Beck, 51 págs. Existe também em inglês e português. *

Minha infância e mocidade. – Aus meiner Kindheit und Jugendzeit – München, Beck, 1923, 64 págs. Edições em francês, inglês, holandês, sueco, dinamarquês, tcheco e português. * Autobiografia. – Selbstdarstellung – Leipzig, Félix Meiner, 1929, 44 págs. Existe também em holandês. Aspectos de minha vida e do meu pensamento. – Aus meinem Leben und Denken – Leipzig, Félix Meiner, 1931, 211 págs. Edições: inglesa, americana, holandesa e sueca. TEOLOGIA A Santa Ceia à luz das investigações científicas do século XIX e dos relatos históricos. – Das Abendmahlsproblem auf Grund der wissenschaftlichen Forschungen des 19. Jahrhunderts und der historischen Berichte – Tübingen, Mohr, 1901, 62 págs. O mistério do Messianismo e da Paixão – Um esboço da vida de Jesus. – Das Messianitäts – und Leidensgeheimnis, Eine Skizze des Lebens Jesu. – Tübingen, Mohr, 1901, 109 págs. Existe também em inglês. História das pesquisas em torno da vida de Jesus. – Geschichte der Leben Jesu-Forschung – Tübingen, Mohr, 1913, 406 págs. Existe também em inglês. História das pesquisas em torno da vida do apóstolo São Paulo – Da Reforma até à atualidade. – Geschichte der Paulinischen Forschung. Von der Reformation bis auf die Gegenwart. – Tübingen, Mohr, 1911, 197 págs. Existe também em inglês. O Cristianismo e as religiões do mundo. – Das Christentum und die Weltreligionen. – München, Beck, 1924, 59 págs. Admirável estudo comparativo, concluindo pela excelência do Cristianismo, Edições: inglesa, dinamarquesa. sueca, norueguesa, italiana e japonesa. A mística do apóstolo São Paulo. – Die Mystik des Apostels Paulus – Tübingen, Mohr, 1930, 405 págs. Existe também em inglês. Apreciação da personalidade de Jesus, sob o ponto de vista psiquiátrico. Exposição e crítica. – Die psychiatrische Beurteilung Jesu. Darstellung und Kritik – Tübingen, Mohr, 1913, 46 págs. GENERALIDADES Entre a água e a selva – Zwischen Wasser und Urwald – Bern & München, 1921, 169 págs. Edições: sueca, inglesa, dinamarquesa, holandesa, polonesa, húngara, finlandesa, americana, espanhola, portuguesa* e japonesa. Notícias de Lombaréné. – Mitteilungen aus Lambarene – Bern, Paul Haupt, 1924/5/7, 3 folhetos; em inglês, holandês, dinamarquês e sueco.

Histórias africanas. – Afrikanische Geschichten – Leipzig, Félix Meiner, 1938, 98 págs. Existe também em inglês e português.* * Obras editadas pela “Edições Melhoramentos”.

* Além destes livros, Albert Schweitzer produziu mais de vinte importantes trabalhos sobre diversos temas de suas variadas especialidades, publicados como parte de obras realizadas em colaboração, sem considerar, desde logo, os inumeráveis artigos que foram publicados em revistas de larga circulação, da Europa, Asia e América. Sua importante produção, como afirma Mário Waissmann, foi traduzida para a maioria das línguas, provocando o aparecimento de livros, monografias, trabalhos diversos e comentários cujas fichas ultrapassam a casa dos seiscentos.

Albert Schweitzer Albert Schweitzer sintetizou o ideal e o objetivo máximo do homem civilizado: foi verdadeiramente um místico e um homem de ação. Repeliu a especulação filosófica pura e gratuita, e caminhou para uma filosofia grandiosamente autêntica e prática, na qual o buscador da Verdade sempre encontrou amparo e felicidade. Quando ele e a esposa embarcaram em Bordéos, a 28 de março de 1913, rumo à África, dando assim o passo de coragem de sua vida e concretizando sua irresistível tomada de posição e vocação, o mundo perplexo não compreendeu o seu gesto inaudito de consagrar a sua vida ao serviço da humanidade desorientada e sofredora. Albert Schweitzer converteu-se em arquétipo. Para milhares de homens de todas as raças do mundo, seu nome constitui, hoje, símbolo imaculado e autêntico do homem crístico, do homem integral. Seus biógrafos desta geração afirmam e os das gerações futuras reafirmarão: Schweitzer empregou todos os recursos de sua alma, de sua mente, de seu coração e de suas forças corporais, para transmitir à humanidade uma única e mesma mensagem. A mensagem deste místico em ação – discípulo do Cristo, estudioso de Bach e Goethe, amigo de Romain Rolland, de Gandhi e de Einstein – constitui uma “viva oração de amor”. Sua vida é uma autêntica mensagem de auto-conhecimento revelado em auto-realização. Albert Schweitzer – um homem univérsico
Hermann Hagedorn - O Profeta das Selvas - Vida e Obra de Albert Schweitzer

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