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Liz Fielding - Coração Roubado A Nanny For Keeps - Harlequin Romance 14 Jacqui Moore não quer mais ser babá! Não pode suportar a idéia de se apegar a uma criança novamente, para depois perder esse amor. Até ela conhecer a pequena órfã Maisie e tornar-se sua babá por uma noite. Agora os sentimentos de Jacqui estão confusos, pois, junto com Maisie, Harry Talbot, o charmoso dono da casa, roubou seu coração.
Digitalização: Rita Revisão: Andresa Bastos 1
A Nanny For Keeps Harlequin Romance 14 PUBLICADO SOB ACORDO COM HARLEQUIN ENTERPRISES II B.V. Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, o armazenamento ou a transmissão, no todo ou em parte, através de quaisquer meios. Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência. Copyright © 2005 by Liz Fielding Originalmente publicado em 2005 por Mills & Boon Tender Romance Título original: A Nanny For Keeps www.rrdonnelley.com.br
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Série Heart to Heart Author Title Ebooks Date Mar-1985 Carol Beach York Make a Wish May-1985 Carol Beach York A Likely Story Oct-1985 Abby Connell Spring Fever Dec-1985 Vicki Tyler Senior Year Jan-1986 Lisa Norby Friendly Rivals Mar-2005 Natasha Oakley For Our Children's Sake Jackie Braun In the Shelter of his Arms H.Romances 16 Apr-2005 Lucy Gordon A Family for Keeps H.Romances 01 May-2005 Jul-2005 Rebecca Winters Husband By Request Liz Fielding A Nanny for Keeps H.Romances 14 Dec-2005 Jan-2006 Caroline Anderson A Bride Worth Waiting For Mar-2006 Liz Fielding The Marriage Miracle Mar-2006 Marion Lennox Princess of Convenience Feb-2007 Melissa James Outback Baby Miracle Mar-2007 Jackie Braun Their Very Special Gift Sep-2007 Donna Alward Marriage At Circle M Nov-2007 Caroline Anderson Caring For His Baby Jan-2008 Melissa James A Mother In A Million Mar-2008 Jennie Adams To Love And To Cherish Apr-2008 Michelle Douglas The Loner's Guarded Heart Jun-2008 Lucy Gordon The Italian's Cinderella Bride Aug-2008 Donna Alward Falling For Mr. Dark & Dangerous Nov-2008 Myrna Her Millionaire, His Miracle MacKenzie Dec-2008 Lucy Gordon The Italian's Miracle Family Jan-2009 Linda Goodnight The Snow-Kissed Bride Jun-2009 Donna Alward Hired: The Italian's Bride Aug-2009 Michelle Douglas Bachelor Dad on Her Doorstep Oct-2009 Melissa James His Housekeeper Bride Jan-1985 Vicki Tyler Someday Soon Jan-1985 Carol Ellis Summer to Summer Apr-1985 Sandy Miller This Song Is for You
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Capítulo 1 Jacqui Moore estacionou o carro em uma ruela estreita cheia de curvas, perto de uma murada de pedra. Enquanto batia a porta, imaginava como seria bom saber dizer não. - É apenas um emprego temporário de babá, Jacqui. Moleza para alguém tão experiente quanto você. - Não sou babá, nem temporária. - Umas duas horas, no máximo - continuou Vickie Campbell, como se Jacqui nem tivesse falado. Eu não pediria se não fosse uma emergência, e Selina Talbot é uma cliente muito especial. - SelinaTalbot? - Agora consegui chamar sua atenção - disse Vickie, satisfeita. -Você sabia que ela adotou uma criança órfã refugiada? - Sabia, eu vi a foto na Celebrity... - Nós fornecemos todos os empregados dela. - Mesmo? - Jacqui sentiu a tentação. - Então por que não manda uma das suas maravilhosas babás para tomar conta da menininha? - Vou fazer isso. Já pensei em uma pessoa, mas ela está de férias... - Aliás, você me pediu para passar aqui, antes de eu ir ao aeroporto. Disse que tinha uma coisa para mim... - Ah, sim - Vickie abriu a gaveta da mesa e entregou a ela um envelope. Jacqui pegou o envelope com o selo de Hong Kong e, com o coração acelerado, abriu-o, pegando o conteúdo. Uma pulseira de prata e um cartão caíram no chão. Com uma sensação de pavor, ela apanhou os dois e leu a mensagem. - Jacqui? Ela ficou baratinada, incapaz de falar por um momento. - O que é isso? Os Gilchrist mandaram um presente para você? - Mais ou menos. Vickie pegou a pulseira da mão dela. - Ah ela, é linda; olhe que gentil! Tem algo gravado - disse ela, aproximando o objeto da luz e apertando os olhos para ler as minúsculas letras. - Preciso fazer exame de vista, mas acho que diz:..."esqueça e sorria..." - É uma citação de Christina Rossetti - disse Jacqui, entorpecida. - "Muito melhor esquecer e sorrir. Então poderá se lembrar e ficar triste". - Ah, sim... entendo. Talvez esse seja um bom conselho. - É verdade. - Sei como doeu perdê-la, Jacqui. Ela nunca vai esquecer tudo que fez por ela. Jacqui sabia exatamente o que fizera. É por isso que nunca mais poderia se arriscar. - Quer que eu feche para você? Como pareceria estranho jogar a pulseira e o cartão longe, ela deixou que Vickie fechasse a corrente em seu pulso. Depois, como precisava sair dali, disse: - Bem, é melhor seguir meu caminho. - Não precisa se apressar. Seu avião só sai daqui a algumas horas - Vickie deu um daqueles sorrisos abertos que dizem "vamos lá, entendo que tenha ficado chateada, mas está na hora de seguir em frente". - E, como você vai viajar, sem dúvida precisa do dinheiro. Não trabalha há meses... - Não trabalho para você há meses - corrigiu ela. - Mas tenho trabalhado como temporária em um escritório muito legal. Horas regulares, sem expediente nos finais de semana e o dinheiro também não é ruim. Vickie virou os olhos, sem acreditar em uma só palavra. "Muito legal" seria um exagero. - Eles me convidaram para continuar como efetiva - disse ela. Jacqui fizera um ótimo trabalho em seu emprego temporário, fazendo todas as tarefas chatas e repetitivas que ninguém mais queria fazer, e fazendo-as bem. Odiara cada minuto, mas era seu castigo, e por seis meses, se punira. Mas não tinha ajudado. Teria de tentar algo diferente, e talvez sua família estivesse certa. Tirar umas duas semanas de férias, sem pressão, lhe daria tempo para decidir o que fazer de sua vida. 4
- Você tira isso de letra - insistiu Vickie. Não atraíra todos os clientes da nata da sociedade deixando-se derrotar pelo primeiro obstáculo. - A estrada passa por dentro de Little Hinton? - Não exatamente por dentro - admitiu ela. - Mas é um desvio muito pequeno. A cidade não fica a mais de oito quilômetros da saída mais próxima. - Oito? Em linha reta? - Dez no máximo. Posso mostrar no mapa. - Obrigada, mas não quero. - Ok, ok. Vou ser honesta com você... - Isso seria ótimo. - Estou contando com você. Selina Talbot vai chegar a qualquer momento. - Se for usar subterfúgios maquiavélicos, Vickie, é bom você... - Por favor, é só um trabalhinho. E não vai querer deixar uma criança aqui, no meu escritório, chorando de tédio, vai? Por favor, Jacqui. Tenho reuniões, entrevistas... - E um escritório cheio de gente... - Mas estão todos atolados de trabalhos. É só deixar Maisie na casa da avó e depois pode seguir para as suas férias e passar duas semanas sem nem pensar em nós, aqui, trabalhando como escravos na chuva e no frio. - Acha que vai conseguir me deixar culpada? -perguntou ela. As férias não tinham sido idéia sua. Foi a família que ficara insistindo que precisava de um tempo. Não que fosse fazer diferença. Tinha de se encarar no espelho toda manhã. Suspeitava que Vickie armara essa "crise" para usar em benefício próprio. Era uma psicologia extremamente amadora, seria fantástico se Jacqui fosse embora e a deixasse às voltas com uma pirralha mimada provocando o caos em seu escritório tão bem-administrado. - Pago em dobro... - Isso é desespero. -... e quando você voltar - continuou Vickie, como se Jacqui nem tivesse falado - podemos bater um papo sobre seu futuro. - Não tenho futuro - declarou ela de forma convincente, cortando a conversa antes que perdesse o controle. Só concordara em passar no escritório a caminho do aeroporto, porque teria a chance perfeita de pedir a Vickie para tirar seu nome dos livros de uma vez por todas. Colocar um ponto final nas pequenas ofertas de trabalho que ela continuava deixando na secretária eletrônica. Na Espanha, estaria segura desses deslizes em sua determinação. - Não como babá - disse ela indo para a porta. - Mandarei um cartão postal... Antes disso, no entanto, alguém entrou. Era SelinaTalbot: alta, estonteante e claramente merecedora de cada centavo que ganhara como supermodelo. O rosto milionário de uma famosa marca de cosméticos. Maisie, sua filha adotada de seis anos, figurinha fácil nas intermináveis reportagens de "família feliz" de revistas de moda, e objeto do plano estratégico e pouco sutil de Vickie, estava ao lado dela. A menininha não estava usando uma roupa prática que qualquer babá sensata teria colocado para uma viagem. Em vez disso, ela vestia o "kit princesa": vestido branco cheio de babados, com uma faixa de cetim lilás na cintura, meias também brancas e sandálias de cetim - o realce perfeito para a bonita pele cor de chocolate. Uma tiara brilhante emoldurava seus cachos e completava o figurino. Só faltavam as asas. Uma das mãos estava segurando a da mãe. Na outra, pendia uma bolsa branca com uma aplicação dizendo "Coisas de Maisie" com o mesmo cetim lilás da faixa. A logomarca do estilista bordada na mesma cor mostrava que era uma criação única para a pequena modelo. A maioria das menininhas que conhecia, e eram muitas, teria ficado amarrotada e encardida usando tal roupa por cinco minutos. Mas não Maisie Talbot. Ela parecia uma linda boneca. Uma daquelas edições de colecionador que eram mantidas em redomas de vidro para não serem destruídas por dedos gordurosos. Maisie permaneceu imóvel, em silêncio e composta enquanto Selina se despedia da filha com um 5
beijo. Depois de escutar a apresentação de Vickie a "Jacqui Moore, a babá tão experiente de quem lhe falei", entregou a bolsa branca com as coisas da menina e saiu com uma enervante falta de carinho materno. Algo muito parecido com compaixão por essa garotinha ultrapassou as defesas de Jacqui: uma vontade perigosa de pegá-la e fazer carinho. O impulso morreu quando os olhos escuros de Maisie encontraram os seus e, com a pose de superioridade da mãe em uma passarela de Paris, avisaram para que não fizesse nada parecido com isso. Após estabelecer esse distanciamento, Maisie disse: - Gostaria de ir agora, Jacqui - e foi para a porta, onde esperou que alguém abrisse para ela. Vickie Campbell sussurou as palavras "por favor", enquanto Maisie batia o pé impaciente e Jacqui sentia a tentação de ir embora e deixar Vickie falando sozinha. Não foi o pedido suplicante de Vickie que fez a diferença. Só não conseguia dar as costas a uma criança que, apesar da aparência fria e controlada, parecia tão sozinha. - Você me deve essa, Vickie - disse ela, rendendo-se, impotente frente ao ataque canino. - Que bom! - respondeu Vickie com um sorriso de alívio. - Venha aqui quando voltar. Terei um trabalho que vai lhe deixar babando. Aaah... Quase caíra na armadilha! - Pensando bem, esta vez fica por minha conta - respondeu Jacqui. - Ok, Maisie, vamos antes que meu carro não ande mais. - É esse? - perguntou a menina, pouco impressionada, ao chegarem na rua e ela ser confrontada com um adorável Fusca, mas que, admitidamente, já vira dias melhores. - Este é o meu carro - concordou Jacqui, abrindo a porta. - Só ando de Mercedes. Neste momento, ela entendeu a ansiedade de Vickie de não ficar sozinha com Maisie. - Mas é uma Mercedes - disse ela, animadamente. - Mas não parece uma. - Não? Bem, hoje é como se fosse uma sexta-feira casual. Maisie franziu a pequena testa ao considerar a estranha afirmação. - O que é uma sexta-feira casual? Era tarde demais para desejar ter ficado de boca fechada. Tentar ser esperta para cima da menina de seis anos não colava. - É uma sexta-feira em que as pessoas podem ir trabalhar usando jeans em vez de terno - explicou. - Por que alguém ia querer fazer isso? Por prazer? - tentou a menina. - Ok, bem, algumas vezes, para arrecadar dinheiro para caridade, os adultos pagam para ter o prazer de vestirem o que quiserem para ir trabalhar. Você não gostaria de usar sua roupa de princesa para ir para a escola em vez do uniforme e arrecadar algum dinheiro para uma boa causa ao mesmo tempo? - Eu não vou à escola. - Não? - Tenho uma professora particular... É por isso que você não está usando um uniforme apropriado? Porque está vestida para arrecadar dinheiro para caridade? Jacqui, que nunca usara uniforme, apropriado ou não, fingiu não ter escutado. Preferiu limpar o assento traseiro, tirando uns papéis de bala do chão antes de colocar a bolsa branca ao lado da sua e dizer: - Ok, Maisie, entre que vou prender o cinto de segurança para você. Maisie entrou, feito uma princesa entrando em um Rolls-Royce, e arrumou a saia cuidadosamente. Só quando ficou satisfeita com o resultado, permitiu que Jacqui prendesse o cinto. - Então - disse Jacqui, se esforçando para travar a conversa - você pretende ser modelo quando crescer? também? - Ah, por favor - disse Maisie, lançando um olhar que deixaria qualquer um envergonhado. - Já fiz isso e é muito chato. - Já escutei isso - disse Jacqui, ligando o carro. - Quando crescer, vou ser médica como... - Como? - incentivou ela. Mas Maisie não respondeu, já tirando da bolsa as suas "coisas", um CD 6
player e os fones e demonstrando simplesmente não ter interesse algum naquela conversa. - Já estamos quase chegando, Maisie - disse, quando pegou a saída para Little Hinton. - Não estamos não - respondeu Maisie sem se incomodar em olhar para Jacqui. Bem diferente do usual "Já estamos chegando?", "Já estamos chegando?". A cidade ficava a uns quinze quilômetros da estrada, não oito, mas era bem fácil de encontrar, apesar de pequena. Tinha uma loja com uma agência de correios, um bar, um estacionamento e uma pequena escola, onde um grupo de crianças estava brincando de amarelinha no pátio, e algumas casas espalhadas contornavam um parque. Levou cinco minutos para verificar todas as casas, mas não foi surpresa descobrir que High Tops não estava entre elas. O lugar ficava em um pequeno vale. Havia várias montanhas, as quais ficavam escondidas pelas nuvens. Não precisava ser um gênio para imaginar onde era a localização provável de uma casa chamada High Tops. - Pode esquecer o cartão postal, Vickie Campbell - murmurou ela baixinho. - Eu disse que não estávamos chegando - disse Maisie. - É verdade, você disse. - São quilômetros e quilômetros subindo. Lá em cima - acrescentou ela, apontando na direção das montanhas cobertas por nuvens. - Obrigada, Maisie, mas vou pedir informação. - Eu sei o caminho. Já disse, é lá em cima. - Ótimo. Não vai demorar. A menina deu de ombros e colocou os fones de volta nos ouvidos. - High Tops? Você vai para High Tops? - o olhar que a mulher atrás do balcão lhe lançou não era encorajador. - Será que poderia me dizer por onde devo seguir? - pediu ela. - Estão esperando por você? Jacqui resistiu à vontade de perguntar se isso era da conta dela, mas, de acordo com o folclore, no campo, todo mundo se achava no direito de saber da vida de todo mundo. Além disso, realmente precisava de informações. - Sim, estão me esperando - disse ela. - Ah, bem! Pode levar essas correspondências para mim? A mulher não esperou a resposta dela, apenas entregou uma bolsa, cheia de cartas. - Está ok - disse ela - se puder me ensinar o caminho: Estou um pouco atrasada... - Todos iguais, vocês da cidade. Mas não vá correndo pela subida. Nunca se sabe o que tem na estrada lá em cima. Uma vez, vi uma lhama. A mulher não esperou uma resposta, o que estava bem para Jacqui, já que não esperava encontrar uma lhama, e saiu da loja para apontar o caminho certo. - É bem simples. Vá por aqui, vire a primeira à esquerda depois da escola e continue até o topo. É a única casa lá em cima. Não vai errar. - Muito obrigada. Ajudou muito. - Só tome cuidado com o caminho. As nuvens estão baixas hoje e aquela subida é cheia de buracos. Só jipes passam por ali, - disse ela lançando um olhar duvidoso para o Fusca. Jacqui achou isso muito improvável, mas não falou nada. Em vez disso, sorriu e disse: - Bem, obrigada pelas informações. E pelo aviso. Vou tomar cuidado com os buracos. E com as lhamas. Ficou definitivamente em alerta. Passando com cuidado por outra cratera, enquanto os limpadores de pára-brisa funcionavam, ela rangeu os dentes e continuou a subir em marcha lenta. - Quase lá - disse ela, de forma tranqüilizadora, mais para si mesma do que para Maisie, que ignorava os solavancos com a serenidade de uma duquesa. Muito mais serenidade do que ela mesma sentia enquanto o fundo do carro se arrastava em uma poça d'água. Um escapamento quebrado era a última coisa de que precisava. A tortura continuou por mais um quilômetro, aumentando a tensão e deixando seus ombros doloridos. Finalmente, quando estava começando a achar que não vira a casa no meio da névoa ou que pegara a subida errada, um portão coberto por liquens, que parecia não ser aberto há anos, apareceu do nada, bloqueando o caminho. Nele, havia duas placas. Em uma delas, um dia, devia estar escrito "High 7
Tops", mas estava tão velha que mal dava para ler. A outra era nova. Dizia "Mantenha distância". Jacqui saiu do carro e, evitando ao máximo a lama e as poças, empurrou o pesado portão, colocando todo o peso contra... e quase caiu de cara no chão quando ele abriu com dobradiças bem lubrificadas. Maisie não disse nenhuma palavra enquanto Jacqui limpava a lama do sapato e voltava para trás do volante. Mas tinha um sorriso satisfeito nos lábios que mostrava exatamente o que estava pensando: Princesinha 1x0 Adulta Burra. Jacqui passou a primeira marcha e uns cem metros à frente, surgiu através da névoa os contornos de uma casa de pedras imponente e sombria coberta por hera, com torres em cada canto, o telhado em forma de castelo sugerindo uma fortaleza, e não a casa da avó de alguém. Apesar do fato de nunca ter estado em nenhum lugar perto de High Tops, parecia familiar a Jacqui e ela sentiu algo estranho. Sem dúvida, era a combinação de névoa e lama. Podia não estar totalmente no espírito de sol, praia e cerveja, mas dadas as opções, sabia o que escolheria. Quase sentia pena de Maisie. Que ridículo, disse para si mesma. A qualquer momento, a enorme porta se abriria e a menina seria recebida por uma avó amorosa, que com certeza devia estar esperando por elas. A porta continuou fechada, porém, e para não expor desnecessariamente os sapatos de cetim de Maisie aos elementos da natureza, ela disse: - É melhor ficar aqui enquanto toco a campainha. Parecia que Maisie ia dizer alguma coisa, mas apenas suspirou. Jacqui foi envolvida pelo ar frio e úmido enquanto subia os degraus até as portas de ferro que não ofereciam concessões ao século vinte e um. Não havia nada remotamente moderno, como uma campainha elétrica. Apenas um sino antigo, que tocou. Em algum lugar, um cachorro soltou um latido fúnebre. Jacqui olhou em volta nervosamente, quase esperando O Cão dos Baskerville aparecer. Ridículo. Aqui não era Dartmoor... Mesmo assim, ela estremeceu e, segurando a corda com mais firmeza, tocou o sino de novo. De repente, um ferrolho foi aberto. Então, quando uma metade da porta rugiu, ela percebeu por que a casa lhe parecia tão familiar. Já vira antes, pelo menos algo parecido, em um livro de contos de fadas que ganhara quando era criança; um livro com todas aquelas histórias aterrorizantes sobre bruxas, duendes e gigantes. Esta era a casa onde o enorme gigante morava. Com um metro e oitenta, Jacqui era alta para uma mulher, mas o homem que abriu a porta formava uma sombra ameaçadora em cima dela. Tudo bem estava um degrau abaixo dele, mas não era só a altura, ele era largo também, seus ombros tomando o portal, e até seu cabelo, que parecia uma juba de leão escura e cheia e que não via tesoura há meses, era grande. Olhos dourados, que poderiam ser atraentes em qualquer cenário, e uma barba de três dias apenas aumentavam o efeito leonino. - Pois não? - disse ele, de forma desencorajadora. Era um pouco tarde para desejar ter se mantido firme em seu plano original; aquele em que ela estaria seguindo pela estrada sem nada mais desafiador pela frente do que ficar estendida em uma praia espanhola por duas semanas. Em vez disso, esforçou-se ao máximo para não pensar no gigante do livro que a assustara tanto ao pegar ossos de crianças para colocar no pão. Preferiu dar um sorriso simpático e esticar, a mão em um gesto cordial. - Olá, sou Jacqui Moore. - Da Agência Campbell... - Está vendendo alguma coisa? Se está acho que arriscou seu escapamento por nada... - Mais do que arrisquei - respondeu ela, irritada ao deixar a mão cair sem ser cumprimentada. Não deveriam fazer algo pela estrada? - Acho que isso é problema meu, não seu. Seja mais cuidadosa ao descer. - Disse ele, começando a fechar a porta. Por um momento, ela ficou chateada demais para fazer ou dizer alguma coisa. Então, quando a porta já estava quase fechada, ela fez o que qualquer babá engenhosa faria na mesma situação. Colocou o pé na porta. Que bom que estava usando bota. Se seu sapato fosse menos substancial, o pé teria sido esmagado. 8
O gigante olhou para o pé dela, depois para ela. - Mais alguma coisa? - perguntou ele. - Não veio apenas reclamar sobre o estado da estrada? - Não, não sou masoquista nem estou vendendo nada. Sou babá. Ele abriu um pouco mais a porta, soltando o pé dela. Jacqui não o tirou dali, nem quando os olhos de seu predador a inspecionaram de cima a baixo de forma que, em outras circunstâncias, mereceria um tapa. Mesmo sendo ousada, apenas um olhar para ele avisava que não seria inteligente tomar tal liberdade. Finalmente, ele balançou a cabeça. - Mesmo? Não estou convencido. Mary Poppins não sairia de casa sem seu guarda-chuva. Tudo bem era isso. Estava aqui fazendo um favor para Vickie, uma gentileza para uma criança. Tinha outras coisas para fazer e era isso que ouvia do gigante. - Poderia, por favor, avisar a Sra. Talbot que estou aqui? - respondeu ela, no seu tom "não estou impressionada". - Ela está me esperando. - Duvido muito disso - disse ele. Algo mudou na expressão do homem, que pareceu surpreendentemente sensual. - Sim... - hipnotizada por um momento, ela teve de se forçar a se concentrar em seu trabalho. - Eu, hã, trouxe Maisie... Ela se virou, não só para apontar para a menina, mas para se dar espaço para respirar. O gigante em seu livro nunca tivera esse efeito sobre ela. A resposta de Maisie a isso foi se afundar mais no banco ainda até que só sua brilhante tiara fosse vista. - Por quê? - perguntou o gigante, sem entusiasmo. - Para ficar. Para que mais? - Com a Sra. Talbot - retrucou, perplexo. - Sim, com a Sra. Kate Talbot. Avó dela - respondeu Jacqui com uma paciência exagerada. Talvez porque ele fosse alto, parecia levar muito tempo até que uma mensagem simples fosse levada ao cérebro dele. - Fui incumbida pela Agência Campbell, em nome de Selina Talbot, de trazer sua filha para High Tops. Na verdade, estou com um pouco de pressa e ficaria agradecida se pudesse deixá-la e seguir meu caminho. - Tenho certeza que sim, mas isso não será possível. Acho que perdeu sua viagem, Jacqui Moore. Minha tia... - Sua tia? - Minha tia, a Sra. Talbot, avó de Maisie - respondeu ele, zombando da explicação anterior dela no momento, está visitando a irmã dela na Nova Zelândia. - O quê? Não... - Será que está havendo algum mal-entendido aqui! - disse ela, em um esforço de se convencer. Vickie podia ser distraída, mas não era burra e levava seus negócios muito a sério. - A srta. Talbot levou a filha esta amanhã para o escritório. Eu estava lá quando ela chegou. - Sorte sua. - Eu quero dizer que ela não faria isso se sua mãe estivesse fora. Ela deve ter falado com a mãe, para ver se era conveniente. - Você teria feito isso. Eu certamente teria feito isso... A boca do gigante mais uma vez formou algo parecido com um sorriso, exceto que desta vez os olhos não pareceram nem um pouco contentes. Era mais de satisfação do que um sorriso de bom humor. -... mas mesmo quando era criança, Sally... Selina, tinha a tendência de achar que seus desejos eram uma ordem para a mãe. Ela nunca aprendeu a pedir com educação. Talvez quando se tem a aparência dela, isso não seja necessário. - Mas... - No entanto, desta vez ela terá de colocar a vida social de lado e ser mãe de verdade. - Mas... Mas estava falando com uma porta fechada. Harry Talbot fechou a porta, amaldiçoando Sally e aquela tal de Jacqui Moore. Ele respirou calma e profundamente e virou-se para encarar de novo a porta, antecipando mais um toque irado do sino. Porém, qual fosse o jogo de sua família, ele não ia jogar. Cuidar da coleção de animais resgatados de Sally era um preço baixo para se pagar pela solidão. Eles não falavam. Não faziam perguntas. 9
Maisie era outra coisa. A mulher era outra coisa. Inesperadamente, o sino permaneceu em silêncio, mas não caiu na armadilha de acreditar, de ter esperança, de que elas tinham ido embora. Ela não ligara o carro, e assim que ela telefonasse para o escritório pedindo orientações, o homem saberia que Jacqui Moore, não se parecia em nada com as babás que tivera na infância. Usando uma calça jeans justa e um top que marcava as curvas, ela voltaria exigindo abrigo para sua pupila e um pouco de civilidade para si mesma. Ela teria de escolher entre duas coisas. E apenas como medida temporária. Enquanto isso, não ficaria por aqui esperando a conveniência dela. Tinha um aquecedor para consertar. Atrás dela, a porta do carro se abriu e Jacqui virou-se a tempo de ver Maisie saindo. - Maisie, fique no carro... Precisava pensar. Não, ligaria para Vickie... Ela teria de mandar alguém aqui para substituí-la... - Quero ir ao banheiro - disse a menina. - Agora. Para algumas crianças, aquilo significaria AGORA! Para outras, seria mais um aviso antecipado. Embora suspeitasse que Maisie era uma criança que achava que tudo que queria deveria ser dado a ela na mesma hora, estava contando com o fato de que ela não esperaria até o último momento para anunciar sua necessidade de ir ao banheiro. Olhou para a corda do sino com receio. Dadas as opções de puxar de novo a corda e instruir Maisie a cruzar as pernas, ela escolheria a última. Teria de ser corajosa. Logo... - Espere apenas um segundo, Maisie - pediu, consciente de que qualquer sinal de fraqueza seria aproveitado, então, tirando uma mecha de cabelo do rosto, ela procurou o celular na bolsa e discou para o escritório. Antes de enfrentar o gigante de novo, queria falar com Vickie e descobrir que diabos estava acontecendo. - E quero beber alguma coisa - acrescentou Maisie, não prestando atenção ao aviso de ficar quieta. - Por favor - corrigiu Jacqui automaticamente. Maisie suspirou. - Por favor. - Tem suco na minha bolsa no banco da frente. - Quero uma bebida quente. Princesinha 2x0 Adulta Burra ainda sem pontuação. Mas a menina tinha razão. A própria Jacqui começava a sentir necessidade de tomar algo para se aquecer. E agora que a idéia fora colocada em sua cabeça, um intervalo seria bem-vindo. - Olhe, me dê um minuto, ok? Preciso dar um telefonema e depois resolveremos tudo. Maisie deu de ombros, e Jacqui voltou a atenção para o telefone. - Vamos, vamos... - murmurou ela com impaciência, enquanto ficava cada vez mais molhada e gelada pela névoa. - Espere no carro, Maisie, está mais frio aqui fora, e seu vestido vai ficar molhado com esse tempo - disse ela, apelando para as prioridades da menina. Como ninguém atendeu, ela olhou em volta a tempo de ver um vestido branco desaparecendo pela lateral da casa. Capítulo 2 - Ah, droga! Jacqui não teve alternativa a não ser esquecer a ligação e correr atrás de Maisie, vagamente percebendo um quintal enorme com um estábulo do outro lado. Finalmente, alcançou Maisie quando ela estava entrando pela porta dos fundos, que, apesar do tempo, estava aberta. - O que você está fazendo? - Ninguém nunca usa a porta da frente - disse Maisie simplesmente. - Não? - Claro que não. Eu teria dito se você tivesse me perguntado. E, completamente alheia à lama que grudava nos sapatos, e com o vestido tão limpo quanto quando saíram do escritório, Maisie entrou na casa como se fosse a dona. Jacqui, sem alternativa, seguiu-a por um vestíbulo cheio de botas, guarda-chuvas e uma impressionante coleção de jaquetas emborrachadas que pareciam ter sido passadas de geração em geração, e por uma enorme cozinha de fazenda aquecida por um antigo fogão a lenha. Havia um cesto de cachorro ao lado, amorosamente dividido por uma galinha marrom, e três gatos 10
malhados. Um cão de caça grande, desgrenhado e com aparência triste estava deitado ao lado, limpando suas patas cobertas de lama. - Sabe, Maisie, às vezes não precisamos esperar até que nos perguntem. Jacqui parou. Obviamente, esse não era o tipo de conversa que uma babá normal tinha com uma criança de seis anos da qual estivesse cuidando. E Maisie, que não era uma menina de seis anos normal, respondeu dando de ombros: - Você não me escutou quando eu disse que sabia o caminho - salientou ela. - Achei que não ia escutar sobre a porta também. Sem continuar o assunto, Maisie abriu outra porta, deixando Jacqui sem escolha, a não ser deixar o calor da cozinha e seguir a menina por um corredor do qual subia uma escadaria daquelas construídas. - O quê? - falou Jacqui com rudeza. Então, fechando os olhos e lembrando-se de que Maisie era só uma menina, de que ela era a adulta e precisava tomar o comando, disse: - Desculpe, não quis ser rude. - Tudo bem. Não, não estava. Era apenas o último de uma longa série de erros que cometera naquele dia, dos quais o maior fora atender ao telefonema de Vickie. Enganando-se de que isso lhe daria a chance de convencer a mulher de que falava sério quando dizia que não queria mais ser babá. Quebrara todas as regras e estava sendo punida por isso. E então Vickie dissera que tinha uma encomenda para ela, e Jacqui percebera que não era tão imparcial ou forte quanto pensara. Respirou fundo para se acalmar, abriu os olhos e descobriu que acabara de cometer o enésimo erro, pois, enquanto não estava prestando atenção, Maisie desaparecera. Ah, maravilha! Obviamente seis meses trabalhando em um escritório tinham obscurecido seu instinto para o perigo. Computadores não fazem travessuras nem desaparecem no minuto em que você tira os olhos deles. Olhando em volta, tinha uma dúzia de portas para escolher e, ao abrir a mais próxima, encontrou uma grande despensa com prateleiras abarrotadas com o suficiente para alimentar uma família grande por meses. Ao se mover para a outra porta, o celular começou a tocar alto. Era Vickie. Colocou o telefone no ouvido e, sem preâmbulos, disse: - Temos um problema... - Jacqui? É você? - Sim Vickie sou eu - confirmou ela, abrindo a segunda porta da copa. - Jacqui, a que você colocou em uma furada. A terceira porta, que estava entreaberta, revelou uma sala de estar pequena, e muito usada. Dois labradores velhos tomavam conta do sofá e, pela quantidade de pêlos grudados ao tecido, consideravam sua propriedade particular. - Quem vai lhe cobrar por um escapamento novo... - Um escapamento novo? Essa certamente iria causar uma reação. - Jacqui, que está presa no meio do nada com uma menina precoce que não apenas se veste como uma princesa, como também acha que é uma... Vickie dissera que a nova babá que escolhera para Selina Talbot já estava de férias antes para poder assumir esse compromisso. Obviamente, Jacqui era a babá que escolhera; ela só não dissera ainda, esperando conseguir convencê-la... Que tola! "Levá-la para a casa da avó..." Foi o que lhe pediram. Não "levá-la para a avó". Nunca houve nenhuma avó, em lugar nenhum. E quando ficou claro que não havia nenhuma doce velhinha esperando para oferecer um lar quentinho, apenas um homem rabugento que não as deixou passar da porta da frente, Vickie estava contando com Jacqui para seguir em frente e assumir o controle. Sabia que ela abandonaria as férias para cuidar da menina até que a mãe voltasse. Afinal, o que mais ela poderia lazer? - Jacqui? Você ainda está aí? - Ah, sim. Ainda estou aqui, mas não por muito tempo. Fui um pouco lenta para perceber, mas já entendi tudo, Vickie Campbell, e isso, não vai funcionar. - Do que você está falando? Ela parecia tão inocente! Como se realmente não soubesse... 11
- Seu planinho para me fazer voltar a ser babá, para ganhar dinheiro para você, querida, é disso que estou falando! Não vou mais fazer isso, Vickie. Eu já disse!... - Jacqui, você está perturbada. Sofreu algum acidente? Maisie está bem? - Maisie? Como? Você está preocupada com Maisie? Na verdade, bem lembrado. Onde estava Maisie? Abriu outra porta. Desta vez, era um pequeno escritório bagunçado. - Estou preocupada com vocês duas - disse Vickie. - Eu também, mas estou especialmente preocupada em perder meu vôo - disse ela. - Foi um acordo barato feito no último minuto, e não vou conseguir reembolso da companhia aérea. Estou avisando que vou procurar você para ser ressarcida depois. Espero que Selina Talbot entenda por que um simples trabalho de duas horas vai custar tão caro. - Finalmente, interrompendo a busca e recorrendo à força de seus pulmões, ela chamou: - Maisie! Cadê você? - Jacqui? Você perdeu a menina? - Vickie estava começando a parecer preocupada de verdade, o que era muito animador. - Apenas temporariamente. Ela estará sã e salva no momento em que você chegar aqui para pegála. - Eu? Não posso pegá-la. Tenho uma reunião com o banco. Onde você está exatamente? - Exatamente? Em um corredor dentro de High Tops, Maisie está em algum lugar em High Tops também, só não sei onde. Quem não está aqui é a avó de Maisie. - Não entendi. Onde ela está? - Na Nova Zelândia. - O que ela está fazendo na Nova Zelândia, pelo amor de Deus? - Eu diria que ela está tirando férias... - Ok, ok. Desculpe... - Não se desculpe. Venha para cá. Se sair agora, estará aqui em uma hora e meia, e ainda haverá uma chance de eu pegar meu avião, e se isso acontecer eu posso até perdoá-la. - Jacqui, seja razoável. Não posso sair agora... - Acho que você vai ter de fazer isso. O tempo está passando. Já perdeu um minuto... - Por favor, me dê dez minutos! Vou tentar falar com Selina, descobrir o que está acontecendo. - Bela tentativa, mas já entendi o que você quer, e vou dizer uma coisa, nada que me oferecer vai me induzir a aceitar a ser babá de Maisie. - Mas... - A propósito, o ogro foi algo interessante. Onde você o encontrou? Não precisa dizer. Ah, sim, a produção da peça "João e o Pé de Feijão" deixou ele aqui. Com aquela aparência, ele nem precisaria de maquiagem. - Ok, entregue o telefone para a enfermeira me dizer em que hospital você está... O grito de Maisie por ajuda do andar superior a trouxe de volta à realidade. Antes de acudir a garota, Jacqui lembrou a amiga do caminho. - Jacqui! Onde está você? Minha meia-calça está toda embolada... - High Tops, Little Hinton, Vickie. Fui levada a acreditar que era um desvio pequeno, mas é só pedir informações... Mas preste atenção na subida. Os buracos são fundos e assim que você deixar a civilização, os nativos não são exatamente... - ao virar-se para a escadaria, percebeu que não estava mais sozinha. O ogro, sem dúvidas alertado pelo grito de Maisie por ajuda, estava bloqueando a passagem. ...receptivos. Jacqui se orgulhava de ser uma jovem sensata e moderna que nunca sucumbia a palpitações nervosas ou acessos de melancolia, independentemente da provocação. No entanto, seu coração acelerou por causa da presença inesperada, vinda do nada. Ele era tão físico, tão masculino, que fazia o coração acelerar. E tão claramente irritado por estar sentindo-se invadido. E, de algum lugar veio um gemido inexpressivo. O tipo de gemido que um rato faz quando se encontra frente a frente com um gato não muito bem-alimentado, parecendo um tigre selvagem e faminto... - Você ainda está aqui - disse ele, tirando-a da bizarra cadeia de pensamentos. Era uma afirmação, 12
não uma pergunta. Visivelmente, não estava satisfeito de vê-la, mas também dava para ver que não estava surpreso. - Maisie precisava ir ao banheiro - disse ela. E claro que eu não teria simplesmente entrado, mas ela mesma assumiu a situação... e entrou pela porta dos fundos. - Já conheço a forma como ela age. Aprendeu com uma especialista. - É a casa da avó dela - salientou Jacqui, odiando o fato de estar se desculpando quando era ele quem estava se comportando de forma tão rude. Maisie tinha tanto direito de estar ali quanto ele. E o que ele fazia ali, afinal de contas? - Infelizmente, como pode ver, a avó dela não está aqui para cuidar dela. - Certamente, houve um mal-entendido. - Isso é algo que você terá de resolver com Sally. Estou muito ocupado cuidando dos animais dela enquanto a mãe está viajando. O que respondia à questão. - Sim, bem, estou fazendo o que posso - disse ela, mostrando a ele o celular na mão e sacudindo-o para mostrar que as suas intenções eram boas, sendo que ao mesmo tempo estava se perguntando de onde ele surgira tão de repente. É óbvio que ela tinha consciência de que ele estava em algum lugar na casa, e o bom senso sugeria que ele escutaria o grito de Maisie por ajuda. Não que houvesse muito bom senso em jogo. Mas como ele aparecera atrás dela? - Deixarei que faça isso, então. Tenho um problema para resolver no porão. Ele se afastou dela e abriu uma porta que ficava escondida na madeira canelada. Um lance de degraus de pedra gasta levava para baixo da casa. Com a imaginação correndo solta e o coração imitando o trote de um cavalo, ela não perguntou que tipo de problema. Na verdade, nem queria saber. Só desejava que ele voltasse para lá. - Jacqui? Cadê você? O gigante olhou escadas acima. - É melhor não deixar Sua Alteza esperando - aconselhou ele. - Você está certo - disse ela, consciente de que parecia alguém tentando amansar uma fera com um gênio incerto, uma fera que, se tivesse chance, morderia. Absolutamente ridículo claro. - É melhor eu ir ajudar Maisie - decidiu, dando um passo para trás. Mas ela tropeçou no último degrau da escada, perdeu o equilíbrio e largou o celular enquanto segurava no corrimão em uma tentativa de se salvar. A mão de Jacqui fechou no ar, porém, quando ela aceitou que nada poderia salvá-la, o gigante pegou-a, apanhando-a no ar com mãos que pareciam muito seguras, apesar do medo da moça. Seguras... e muito grandes. Era uma tolice completa imaginar que elas estavam envolvendo sua cintura; sua cintura não era do tipo que cabia na mão, mas um modelo mais prático que vinha equipado com consideráveis quadris úteis para apoiar uma criança. Mas, por um breve momento, ela sentiu como se as mãos dele realmente envolvessem sua cintura e, finalmente, entendeu porque mulheres sensatas e cultas tinham se permitido usar pequenos espartilhos na busca de uma aparência frágil. Encarando aqueles olhos dourados de tigre, ela realmente se sentiu muito frágil. Completamente idiota claro, e ela sabia que devia se esforçar para se levantar antes que causasse um dano irreparável à coluna do homem. Ele era mais do que capaz de fazer isso e, antes que ela percebesse, estava de pé, seu rosto pressionado contra a lã macia da camisa dele, submersa nos estonteantes cheiros de roupa limpa, suor masculino, óleo quente... Muitos homens, e ela trabalhara por pouco tempo para alguns deles, teriam se aproveitado da situação, puxando-a para mais perto. O gigante, porém, não demorou em se afastar dela. As mãos dele continuaram segurando Jacqui com firmeza, mas não havia nada em seu comportamento que sugerisse que era algo além de uma ajuda. Não muito lisonjeiro considerando que estava levando mais tempo do que deveria. Ela considerou o fato de que não era comum ter de olhar para cima para ver alguém, mesmo um homem, e tinha de admitir que ao analisar de perto, ele era alguém que valia a pena ser visto. Antes que ela pudesse organizar o pensamento, ele disse: 13
- Está bem agora? - Estou - respondeu ela sem muita convicção, e ele não a soltou imediatamente. - Tem certeza? Ela pensou em chorar... - Tenho - insistiu ela, endireitando-se e ficando ereta. - Deveria tomar um calmante, Jacqui Moore - disse ele, finalmente soltando-a. - Está sendo um dia difícil - respondeu ela. - Qualquer dia envolvendo a minha prima tende a ser assim. - Hum... você está com frio? - Um pouco. A umidade é terrível. Não deve ser muito saudável morar em uma nuvem. - Existem lugares piores, acredite em mim, e a névoa da montanha tem suas vantagens. Visitantes inesperados, por exemplo, raramente ficam mais do que o necessário. - Posso imaginar, e você pode acreditar quando digo que não tenho intenção nenhuma de abusar de sua hospitalidade mais do que o necessário, pois tenho que pegar um avião - respondeu ela, sentindo-se tensa. - Então é melhor parar de ficar rodando por ai, caindo do nada e se cuidar, não acha? Encantador. Simplesmente encantador. Mas o gigante de seu conto de fadas também não era um adepto de gargalhadas, lembrou-se ela. Definitivamente, não era o tipo de história que contaria para uma criança sob seus cuidados. - É melhor eu cuidar de Maisie primeiro antes de começar a fazer umas ligações - disse ela, fazendo um movimento para pegar o celular. Ele se abaixou, pegou o telefone e entregou para ela, momento em que ela teve a oportunidade de ver bem suas mãos. E quase deixou o telefone cair de novo quando aqueles dedos longos roçaram nos dela. - É melhor se enxugar também. Tem muitas toalhas no banheiro. - Obrigada, Sr... - Talbot - respondeu ele. - É de família - acrescentou ele. - Certo - disse ela, resistindo à tentação de salientar que porque Selina era prima dele não queria dizer que tinham o mesmo sobrenome. Jacqui tinha certeza de que ele sabia disso e que estava apenas aproveitando a oportunidade para renovar as hostilidades. Estava claro que ele só não a deixara cair para evitar dar a ela uma desculpa para atrasar mais sua saída. Agora que estava na casa, ela não ia a lugar algum até que resolvesse o futuro imediato de Maisie. - Bem, Sr. Talbot só posso me desculpar por abusar de sua hospitalidade, mas, como vai levar um tempo para resolver o problema seria muito incômodo pedir uma xícara de chá? Só enquanto vou cuidar de Maisie. - Ou talvez você prefira que eu a deixe aqui para eu pegar o avião. - Não pode deixá-la aqui comigo. Bem, não. Obviamente não podia fazer isso. Mas será que ele estava apenas emitindo a reação de pânico de um homem com medo de crianças? Ou será que ele sabia do que estava falando? Ela tinha de admitir que ele não parecia em pânico. Pelo contrário, parecia um homem que sabia o que queria. Se ele conhecia ou se importava com as leis de proteção à criança, isso não era assunto dele; estava simplesmente dizendo como as coisas eram. - Você é o único membro da família disponível no momento - salientou ela. É claro que isso não fazia diferença, não podia deixar Maisie sob os cuidados dele sem a explícita autorização de Selina Talbot. A agência não podia apenas entregar a criança e sair correndo. Então, dando de ombros, ele perguntou: Houve uma pausa animadora, enquanto pesava as alternativas. - Indiano ou chinês? Ela conseguiu manter o sorriso de vitória longe do rosto ao dizer: - Indiano, por favor. Este definitivamente é um momento para algo revigorante e alegre, não cheiroso e refinado, não acha? Ela não ficou por perto para saber se ele concordava. Em vez disso, tomando a precaução de se virar para olhar onde estava pisando, subiu as escadas à procura da menina. Maisie, com as mãos na cintura, a meia-calça embolada em seus tornozelos franziu a testa para ela da porta do banheiro. - Onde você estava? Estou esperando há horas! 14
- Na verdade, foram minutos, mas se você tivesse esperado por mim em vez de desaparecer... - Eu disse que precisava ir! - Sei que disse - falou Jacqui, sendo mais gentil. - Mas não desapareça de novo, ok? - Ok - murmurou ela. - Estou falando sério. - Ok! Já escutei, certo? - Certo. E esperando ter estabelecido essas simples regras básicas, enquanto a menina lavava as mãos, aproveitou-se do convite de má vontade de Talbot para usar as toalhas, e se enxugar. Com sorte, suas roupas iam secar com o calor da cozinha e não pegaria uma pneumonia, mas, do jeito que as coisas estavam indo... - Maisie vamos descer e ver se conseguimos resolver esse problema. - Que problema? - Bem, sua avó não está aqui... - Eu sei. - Sabe? - Eu escutei - disse ela. - Isso não importa. Posso ficar aqui até que minha mãe volte para casa. Tenho o meu quarto, sabe, em uma das torres. Foi decorado especialmente para mim. As paredes são rosa e as cortinas, de renda, e tem a vista para onde moram os macacos e o pônei. O pônei é meu. - Mesmo? Eu tinha um pônei quando tinha sua idade. - Tinha? - Tinha. O meu pônei se chamava Chá de Maçã. Ele era laranja com maçãs pintadas nas costas. Maisie deu um olhar de pena para ela. - Meu pônei é de verdade. O nome dele é Chocolate. Quer conhecer? - Acho que não vai dar tempo, Maisie. O negócio é o seguinte, você precisa mais do que de um quarto... -Tenho mais... - Mais do que um quarto e um pônei. Você precisa de alguém para tomar conta de você. - Tem o Harry... - e Susan... - Susan? - a esposa do gigante? Bem... ótimo. Se Harry Talbot era casado, ou mesmo se essa mulher fosse sua companheira, as coisas poderiam se resolver. - Ela vem todas as manhãs para limpar e arrumar as coisas. - Ah, ótimo! - não, não era ótimo. E, fingindo um sorriso, pois não tinha nenhum motivo para sorrir. - Olhe, Maisie, é claro que houve alguma confusão nos planos, mas não precisa se preocupar. A Sra. Campbell, na agência, vai falar com sua mãe e resolver tudo. Maisie suspirou. - Ela não vai conseguir. Minha mãe já deve estar voando agora, e ela é obrigada a desligar o celular dentro do avião. - Como todo mundo. - Minha mãe diz que é um tremendo incômodo, mas eles atrapalham a eletricidade e se isso acontece, não podemos ver o filme. - Entendo o problema. Você sabe para onde sua mãe está indo? - Claro. Ela vai fazer uma sessão de fotos na Muralha da China. Isso fica do outro lado do mundo sabe. - Ouvi falar. - Ela disse que leva uma eternidade para chegar lá. Não exatamente uma eternidade, mas era certo que Selina Talbot não atenderia ligações pessoais até amanhã. Maisie olhou para ela com olhos enormes e solenes e disse de forma tranqüilizadora: -Tudo bem. Você pode ficar e tomar conta de mim. - Não! Não... - Por que não esperamos para ver o que a Sra. Campbell vai dizer? - sugeriu ela afastando a idéia ridícula de que essa menina estava envolvida na conspiração. Estava beirando a paranóia. Além disso, não fazia mais de duas horas desde que a mãe dela a deixara na agência. Enquanto 15
todos os normais precisariam desse tempo para chegar ao aeroporto e fazer o check-in, tinha quase certeza de que para pessoas como Selina Talbot, esse esquema era muito mais flexível. - Você não quer tomar conta de mim? - perguntou Maisie. - Não é uma questão de querer - disse ela. Maisie fixou o olhar nela, os olhos inocentes arregalados, e disse: - É porque não sou filha de verdade da minha mãe? Porque a minha cor é diferente da dela?
Capítulo 3 Jacqui sentiu como se todo o ar tivesse sido tirado dela. O fato de Maisie ser negra nem passara por sua cabeça, mas era possível que a adoção feita pela estonteante Selina Talbot a tivesse exposto a todos os tipos de lembranças desagradáveis, desde inveja até descortesia. E Jacqui estava tão envolvida com seus próprios problemas que permitira que a aparência segura dessa menininha a levasse a acreditar que ela não era atingida pelas coisas que aconteciam em volta. A última coisa de que precisava neste momento era ficar responsável pela filha de outra pessoa. Com a mãe viajando para um compromisso importante e a avó de férias do outro lado do mundo, só restava o gigante para tomar conta dela. E isso nunca ia acontecer. Maisie precisava de tranqüilidade e teria isso, não importava o quanto isso atrapalharia os planos de Jacqui. - Não, Maisie. Não tem nada a ver com o fato de você ser adotada - disse ela com firmeza. - É apenas que... Maisie levantou a cabeça e olhou bem dentro de seus olhos. - Acho que é por isso que Harry não me quer - disse ela. Jacqui ficou profundamente surpresa, e a resposta foi automática: - Ah! Tenho certeza de que isso não é verdade. - Mas, mesmo assim, lembrou de como ele olhou sem emoção Maisie enquanto ela esperava no carro. Lembrou-se do jeito como Maisie se abaixara no banco como se para se esconder dele. Jacqui tentou se recordar de tudo que lera sobre a adoção. As revistas tinham dado muito destaque na época. Saber quem Maisie era ou de onde vinha desculparia o comportamento de Harry Talbot. O nome não combinava com ele, decidiu ela. Trazia uma sensação de aconchego. Era o nome de um homem que lhe daria um abraço quando estivesse triste, que lhe contaria histórias engraçadas, que saberia todas as rimas das canções de ninar. Não era o nome de um homem que rejeitava uma menininha porque ela era adotada... Na verdade, não conseguia pensar em um nome horrível o suficiente para um homem assim, e queria muito abraçar essa menininha... Mostrar a ela que pelo menos uma pessoa no mundo se importava com o que acontecia com ela. Isso não era bom. Lutando contra isso, levantou-se e, em vez de abraçar a menina, sentou-se no degrau mais baixo para ficar na mesma altura que Maisie. Então, pegando as mãos dela, disse: - Escute, Maisie. Para mim, não faria a menor diferença se você fosse cor-de-rosa com cabelo verde e bolinhas roxas, entendeu? Maisie olhou para ela por um longo tempo. Então, deu de ombros como se não se importasse e disse: - Ok. Não era uma prova veemente de confiança, mas o que esperava? Com crianças, não havia resultados instantâneos. A confiança tinha de ser conquistada. Teria de mostrar a menina que era verdadeira e, então, começaria com a verdade. - Você é uma menina inteligente, então não vou fazer rodeios. Temos um problema. O plano era que eu simplesmente a trouxesse para cá e a entregasse para sua avó. Você sabe que eu não deveria ficar aqui, nem por pouco tempo, não sabe? Ela deu de ombros de novo, desta vez olhando para os sapatos. - Acho que sim. - Não é porque não gosto de você, não é porque você é negra, é porque eu deveria pegar um avião em... - ela olhou para o relógio e viu que o tempo estava passando rápido demais -... breve. 16
- Como a minha mãe. Foi uma afirmação simples, sem expressão, que sugeria que ela era mais uma pessoa que ia viajar e abandoná-la. Não era justo. Mas, no lugar de Maisie, também não se importaria a mínima com o que era justo. Bem diferente de Selina Talbot, que viajaria na primeira classe, provavelmente com uma cama, e chegaria em Beijing parecendo mais relaxada e descansada do que Jacqui depois de ser espremida feito sardinha em três horas na classe executiva. - Sua mãe está trabalhando, o que é muito importante. Eu só estava indo para a Espanha -... para passar férias. - Ah - ela pareceu momentaneamente desanimada, mas na mesma hora iluminou-se. - Você tem de ir para a Espanha? É legal passar as férias aqui. - Tenho certeza que sim. Para você. Quando sua avó está aqui - E você tem seu pônei para montar. - Tem muitos outros animais. Não temos nenhum em casa porque Londres não é um bom lugar para eles, mas minha mãe sempre os salva e manda para cá porque tem muito espaço. Tem cachorros e gatos e galinhas e patos e coelhos... - Mas vou entender se você for... - Obrigada, Maisie, mas não vou a lugar algum até que tenha alguém para cuidar de você, ok? Ela não levantou o olhar, em vez disso arrastou o sapato de cetim pelo carpete puído. - Mesmo se você perder o avião? - Mesmo se eu perder o avião - garantiu ela. Que outra alternativa tinha? - Promete? Maisie estava esperando ansiosamente pela sua resposta, e a verdade era que não iria a lugar algum até que ficasse satisfeita com os planos para essa menina. Não era um compromisso para a vida inteira. - Prometo, Maisie. - Ok. E se você não conseguir encontrar alguém, vai ficar e cuidar de mim até minha mãe voltar para casa, não vai? - Encontrou tudo de que precisava? Jacqui nunca pensara que ficaria satisfeita de ver Harry Talbot; não estava, mas ficou contente com a interrupção e levantou-se logo. - Encontrei, obrigada. - É melhor vocês irem para a cozinha se aquecerem. - Ele olhou para a menina do alto de sua envergadura, e Jacqui pensou nos homens de sua família que se abaixariam, pegariam-na no colo e fariam-na rir. - Oi, Maisie. Jacqui sentiu as mãos da menina tremerem nas suas enquanto abaixava os olhos e dizia: - Oi, Harry. Posso ver os filhotinhos de Meg? Cachorrinhos, coelhos, burros e o pônei. Era fácil entender por que Maisie queria ficar ali... Mas o que acontecera com a lhama? - Eles estão lá no estábulo. Não vou levá-la lá vestida desse jeito. - Ela pode se trocar - disse Jacqui. - Se você puder pegar a bolsa dela no carro... Não está trancado. Harry Talbot lançou-lhe um olhar do tipo que avisava para não fazê-lo de bobo: - Trarei os cachorros até a cozinha. Disse ele, saindo em seguida - Então, enquanto ela ainda estava tentando pensar em uma resposta que fosse adequada aos ouvidos de uma menina de seis anos, ele virou-se e saiu. Mas ele preparara o chá e havia um apetitoso bolo de cereja em cima da mesa. - Você gosta de chá, Maisie? Ou prefere leite? - Chá, por favor. E um pedaço do bolo da Susan. Ela serviu o chá, acrescentando bastante leite à xícara de Maisie. Então, quando estava cortando o bolo, seu celular começou a tocar. Era Vickie de novo. Jacqui entregou um prato para Maisie, depois, levou o telefone para o pequeno escritório para que pudesse falar com liberdade. - Então, Vickie, quais são as novidades? - Não consegui falar com Selina, mas deixei uma mensagem de voz pedindo para ela entrar em contato com urgência. Assim que ela ligar, saberei o que ela quer que eu faça. - Bela tentativa, mas de acordo com Maisie, a mãe está indo para a China. Ela só conseguirá ouvir a mensagem amanhã. 17
- Ah... que droga! - Qual é o problema, Vickie? Você achou que eu não ia descobrir? - Juro que não sabia para onde ela estava indo. Era apenas um "serviço simples de entrega". China? - De onde vem a seda - respondeu Jacqui, sarcástica. - Ela vai tirar fotos na Muralha da China com roupas que nenhuma de nós nunca poderá comprar, nem em sonhos. Você deve ter alguém para entrar em contato em caso de emergência. - Claro que tenho. - É a avó dela. Em High Tops. - Ah! Vamos falar sério... - Sério! Olhe, eu realmente quero que você volte a trabalhar para mim, você nasceu para cuidar de crianças, mas não sou burra de achar que poderia enganá-la assim. - O quê? Então por que estou aqui? - Ok! Admito que não fui totalmente sincera ao pedir que entregasse Maisie. Eu só queria que você se lembrasse da sua vocação, antes de ficar deitada em uma praia pensando em seu futuro profissional. E admito que guardei aquele embrulho até ter o trabalho certo para seduzi-la... Jacqui gostaria que a mulher tivesse deixado o embrulho em uma gaveta e se esquecido dele. - Eu poderia processá-la - disse ela. - Desculpe, mas eu estava desesperada. Não sabia mais como fazê-la ver que nasceu para isso. A última coisa que quero é que você fique tão brava que nunca mais vá querer falar comigo, muito menos trabalhar para a agência. - Acho que seus argumentos são ruins, não? - Entendo que esteja zangada, mas tem de acreditar em mim... Pensaria nisso, mas não agora. Isso era perda de tempo. - Então, o que deu errado? A imagem de mãe e filha perfeitas das revistas deve ser um pouco exagerada, mas não posso acreditar que Selina Talbot seja tão negligente com Maisie. Ela deve ter falado com a mãe antes de mandar a menina ficar aqui. - Francamente? Não faço idéia. Talvez a secretária dela, a agente ou alguém do exército de empregados que ela tem para resolver os detalhes chatos deveria ter resolvido isso. Quem está na casa agora? - O primo de Selina, e deixar Maisie com ele não é uma boa opção. Eu não vi mais ninguém, mas Maisie afirma que tem uma mulher que vem todo dia para limpar e cozinhar. - E você tem um avião para pegar. - E eu tenho um avião para pegar. Cadê você? Suponho que já esteja a caminho? arriscou ela, sem convicção. A ligação estava muito boa, para ser do viva-voz do carro. - Jacqui, por favor, tente entender, se eu pudesse ter saído daqui, eu teria feito isso, mas já tive de desmarcar uma reunião importantíssima para tentar resolver esse problema. Não vou conseguir sair daqui do escritório antes das seis e... Ela parou de repente. - E? - Nada. - Certo. O que quer dizer "nada"? - Ganhei um convite para a Convent Garden Opera de um cliente. É uma noite de gala, mas se eu conseguisse sair daqui a tempo de fazer alguma coisa por você, eu sacrificaria... - Pare! Não minta para mim. Vou perder minhas férias na praia. É isso que quer dizer? - Sinto muito. Mesmo. É claro que Selina Talbot vai reembolsá-la pelo custo da viagem... - Você é bem franca em relação a dinheiro. - Se ela quiser continuar contando com a agência, vai pagar sorrindo. - Bem, como essa circunstância em particular não deve ser coberta pelo meu seguro de viagem, ela terá de me reembolsar. Mas meu vôo perdido é a menor de nossas preocupações agora, você não acha? Tem uma menininha aqui e ninguém para cuidar dela. - Você está aí. E como suas férias já foram arruinadas você poderia assumir o trabalho. Surpresa, surpresa! Ela nem se ofereceu para tentar encontrar uma substituta. Não que isso tivesse importância, porque prometera a Maisie que ficaria. - E por quanto tempo seria? 18
- Na verdade, eu não sei. Como já disse, esse era só um serviço de entrega, mas falarei com Selina amanhã. Até lá, estou em suas mãos, Jacqui. - O gigante não vai gostar disso - disse ela. - Ele não gosta de companhia. - Gigante? É o homem com quem não deixaria Maisie? Vocês vão ficar bem aí? Talvez deva levar Maisie para o hotel mais próximo até perguntarmos para Selina. - Maisie quer ficar, mesmo não gostando dele, o que sugere que ele é rabugento, mas não é perigoso... - a voz dela falhou ao lembrar-se dos olhos dele, das mãos, do toque da camisa dele contra seu rosto, e ela engoliu seco. Havia perigo, pensou ela. - Ficaremos longe dele o máximo possível enquanto você resolve tudo com Selina. - Você é o máximo, Jacqui. Sua diária vai ser recompensada com um salário em dobro. - Ah, não, você não me ganha assim. Estou de férias. Seis meses atrás, eu disse para você que nunca mais faria isso por dinheiro, e eu estava falando sério. - Mas... - Mas nada. Apenas se concentre em encontrar Selina e descobrir em que ela estava pensando, o que ela vai fazer em relação à filha e, mais importante de tudo, quando ela volta. Enquanto isso, eu tenho de contar para Harry Talbot que ele tem hóspedes em casa. - Fico te devendo essa, Jacqui. Fica mesmo, pensou ela ao desligar o telefone, olhar para porta e encontrar Maisie ali, o rosto cheio de alegria ao levantar um monte de pêlos pretos no colo, um labrador agitado, para ela ver. - Olhe, Jacqui! Ele não é fofo? - É lindo - disse ela, abaixando-se ao lado da menina e acariciando o pêlo sedoso do cachorrinho. Vocês combinam. - Qual é o nome dele? - Acho que ele ainda não tem nome. - Bem, talvez você deva dar um nome a ele. - Mas ele deve estar sentindo falta dos irmãos. - Bem, tenho de falar com o Sr. Talbot. - Ele voltou para o porão - Maisie levou o filhote de volta para a cozinha e colocou-o em uma cesta com outros bichinhos. - Ele deve estar consertando o aquecedor. - Está? - É perda de tempo. Vovó sempre diz que está mesmo quebrado, é por isso que ela... - Por isso o quê, Maisie? - Por isso que ela vai comprar um novo. - Nesse caso, talvez seja melhor não incomodá-lo de novo. Vou pegar nossas coisas no carro. - Você pode parar o carro aqui atrás para não precisar carregar tudo. É o que todo mundo faz. - Muito esperta você, Maisie. - Pode colocar na garagem, se quiser. - Talvez seja melhor eu esperar um convite de Harry primeiro. - Não vai demorar. Não saia daqui enquanto vou lá fora. E não toque em nada. - Exceto nos filhotinhos.- Sorriu. - Ok, Jacqui. - Prometa. A menina olhou para ela e riu, e naquele instante Jacqui soube que o destino estava selado. Não iria a lugar algum até que Maisie a dispensasse. - Prometo - disse ela. Harry Talbot levantou a cabeça ao escutar o som de um carro ligando, tentando reprimir a culpa pelo o ronco mostrando que o escapamento fora destruído na subida. Ele prometera à tia que consertaria a estrada enquanto ela estivesse fora. E consertaria. Pouco antes de ela voltar. A última coisa que queria eram vizinhos aparecendo para ajudar. Até convencera o carteiro de deixar a correspondência na loja. Droga viera para cá para evitar companhia. Ficar sozinho. Era muito para se pedir? Bateu com a chave inglesa na lateral do aquecedor e depois a jogou no chão, indo em direção às escadas. Se Jacqui Moore fosse descer com o escapamento daquela forma, não haveria mais nenhum ao chegar à rodovia. Mas quando ele chegou à porta da frente, não havia nem sinal dela nem do carro. Nenhum alívio, só culpa. Amanhã. Faria alguma coisa a esse respeito amanhã. E enquanto isso ligaria para a oficina da cidade e pediria para que esperassem por ela e oferecessem ajuda. 19
Um dos cachorros, bem magricelo, juntou-se a ele, esperando um passeio. - Pode esquecer, seu vira-lata - disse ele, voltando para a casa, segurando-se para não pegar um atalho pela porta da frente. - Vou dar a volta com você. Susan vai nos matar se sujarmos o chão encerado dela com lama - ele fechou a porta e seguiu o vira-lata para os fundos da casa. Parou bruscamente quando viu o Fusca parado no quintal. Devia ter percebido que era bom demais para ser verdade. Jacqui Moore, alertada pelo cão, que correra para ela em busca de um carinho, levantou da mala do carro como se fosse pega fazendo algo errado. Esquecendo-se, por um momento, que sua intenção era pedir desculpas, ele disse: - O que você pensa que está fazendo? Que pergunta estúpida, podia ver o que ela estava fazendo. Estava descarregando o carro, ora! - Você se importaria de não falar assim na frente de Maisie? - respondeu ela, entregando uma pequena bolsa branca para a menina. - Sinto muito - disse ele, aproximando-se e chamando o cão antes que as duas ficassem cobertas de lama, atrasando ainda mais a saída. - Vou refazer a pergunta. Que diabos você pensa que está fazendo? Jacqui inclinou-se para dentro do carro, aparentemente para pegar uma outra bolsa, mas na realidade para respirar fundo. Ela entendia que Harry Talbot não as queria ali atrapalhando a vida. Entendia e não gostava de ser tamanho incômodo, mas sua maior preocupação era com Maisie. Detestava discussões, mas como estava claro que não tinha alternativa, era melhor esclarecer tudo. Quanto antes ele percebesse que não conseguiria intimidá-la, mais cedo deixaria de tentar. - Leve sua bolsa para dentro, Maisie, e fique lá no quentinho - disse ela. E só então, voltou a atenção para Harry. Não era tão difícil. A blusa de lã cinza caía solta dos ombros dele, sugerindo que ele, por mais improvável que parecesse, tinha perdido peso e músculos. Que um dia ele fora ainda maior do que era agora. A calça jeans gasta que ele usava, porém, ainda apertava as fortes coxas e salientava seu abdômen. - Bem, Sr. Talbot - disse ela, tentando apagar os pensamentos da sua cabeça. - Isto é um carro e isto é uma bolsa, e eu estou tirando as bolsas do carro. Ironia percebeu Harry, fora um erro. Soubera disso desde o momento em que abrira a boca. Arrependera-se no momento em que pronunciara as palavras. O fato de ela ser loura, com as curvas nos devidos lugares, não fazia dela uma burra. Apesar de lábios sedutores e de um sex appeal que despertava os instintos masculinos mais básicos, ela era uma babá e babás não faziam isso. - Por quê? - perguntou ele. - Você não parece burro... - respondeu ela, sacudindo a cabeça, fazendo seu cabelo úmido balançar de forma convidativa ao toque. Quanto tempo fazia desde que ele não tocava o cabelo de uma mulher...? Ele não estava disposto a discutir isso. Já conversara o suficiente. - E você não pode ficar aqui. Ela sorriu. - Viu? Eu estava certa. Você sabia a resposta o tempo todo. - Estou falando sério. - Sei que está e sinto muito, de verdade. Mas o carro está com problemas, Maisie está cansada e, como você já disse, não pode cuidar dela sozinho. - Não foi o que eu... - ele parou, de repente consciente do enorme abismo se abrindo na sua frente. Se ele se declarasse capaz de cuidar de uma menininha, principalmente daquela, ela iria embora, deixando-o para fazer isso. Ele viera para High Tops para ficar sozinho. Para ter paz. Para procurar algum tipo de futuro para si. Jacqui tinha de ir embora e levar a menina junto. Agora. - Você não disse que tinha de pegar um avião? - perguntou ele. - Posso pegar outro vôo. - Não se preocupe, Sr. Talbot, ficaremos longe do seu caminho o máximo possível. - Isso é intolerável. Vou falar com Sally, para resolvermos isso. - Terá de esperar - respondeu ela. - Ninguém conseguirá falar com sua prima até amanhã. Ela está a caminho da China. 20
- China? - De onde vem a seda - os dois se viraram para olhar para Maisie, que estava parada na porta, e quando conseguiu a atenção deles, ela deu de ombros e disse: - Foi o que Jacqui falou quando estava ao telefone. - Você estava escutando? - perguntou Jacqui, apenas preocupada. Harry suspeitou que ela estava tentando se lembrar se falara algo que a menina não pudesse ouvir. - Não. Maisie olhou para ela, a imagem da inocência. Algo que ele a vira fazer centenas de vezes. Ela estava escutando... - Quando está previsto para Sally chegar na China? - perguntou ele - Não faço idéia - disse Jacqui, acrescentando uma mala com rodinhas à bagagem, que segurava enquanto fechava a porta. - Alguma hora amanhã, acho. Ela pode pegar as mensagens antes, se tiver alguma escala. Provavelmente, já será madrugada aqui e então ela terá de esperar para ligar. Harry duvidava que a diferença de fuso horário impediria sua prima de ligar. Seria a certeza de que se ligasse para casa teria de fazer alguma coisa em relação à confusão que arrumara, e não consideração. Isso e o fato de que quanto mais demorasse, mais provável seria que alguma outra pessoa já tivesse resolvido os problemas na hora que ela ligasse. Ele não disse isso. - Em outras palavras, estou preso aqui com vocês duas por essa noite. - Obrigada pela calorosa recepção - disse ela e deu um sorriso nada simpático. - E pelo chá. Que pelo menos, estava quente quando eu tomei. A que horas você janta? - Na hora em que estiver disposta a fazer, Srta. Moore. Chá é o máximo que sei fazer - ele não se incomodou em dizer essa mentira. Só queria que ela fosse embora e não se importava o que teria de fazer para isso acontecer. Ela o encarou. - Alguém programou você? - O quê? - Quero saber se alguém o levou para um laboratório e inseriu em sua cabeça um chip com frases machistas? - Engraçado... Sempre fui levado a crer que isso era genético. - É apenas uma desculpa que os homens desonestos inventaram para evitar fazer a sua parte no serviço doméstico. - Possivelmente - admitiu ele. - Embora minha teoria pessoal seja que foi inventada por mulheres patéticas para desculpar sua falta de capacidade de controlar os homens. Por mais que tentem. - Só perguntei o horário que você come - continuou ela, com uma calma aparente impressionante para que não o incomodemos. Você, claro, será mais do que bem-vindo para se juntar a nós na hora do jantar. - Você não encontrará nenhum empanado de peixe no meu congelador. - Não? Bem, tenho certeza de que daremos um jeito. Ele deu de ombros. - Maisie tem um quarto na torre leste - disse ele, resistindo à inclinação natural de pegar as malas e carregá-las para ela. Quanto pior fosse a opinião dela a seu respeito, mais provável seria que se manteria longe dele. - Ela sabe onde fica. Pode ficar com o quarto ao lado. Não se sinta em casa, você não vai ficar nem um minuto a mais do que o necessário. - Maravilha! Eu tinha dito que não tínhamos nada em comum, mas sabe exatamente o que prometi para Maisie? - Que eu só ficaria aqui até que encontrássemos alguém de quem ela gosta para cuidar dela. Ele ignorou o sorriso e disse: - Fico contente em saber disso. Deixe as chaves comigo que coloco o carro na garagem. - Ah, certo - disse ela, claramente desconcertada por tal atenção. - Bem, obrigada... - Nada tão velho deve ser deixado no sereno. Darei uma olhada no escapamento. Não quero que nada atrase sua saída pela manhã. Capítulo 4 Jacqui estava tremendo tanto por causa do confronto com Harry Talbot que suas pernas estavam moles ao subir as escadas. 21
Graças a Deus, Maisie estava pulando, subindo feliz o segundo lance de escadas rumo ao quarto, e aparentemente, nem um pouco incomodada pela falta de boas-vindas. Sempre soubera que o gigante não ia ficar feliz quando soubesse que elas iam ficar, embora ela não estivesse preparada para uma resposta tão hostil. Não que ela tivesse exatamente ajudado no assunto. Se Harry Talbot era um ninho de marimbondos, ela era a idiota cutucando. O que não era típico dela. Geralmente, ela era o tato em pessoa. Estava sempre preparada para ver o ponto de vista da outra pessoa. Até o ponto de ser desprezada. Testemunha disso era o modo como Vickie Campbell a enrolara... Colocar panos quentes era algo que costumava fazer, mas a atitude de Harry Talbot a deixou furiosa. Estava na descrição de seu cargo fazer frente a ele, se necessário, para o bem de Maisie. Infelizmente, fizera bem mais do que isso. Não que fosse apenas culpa sua. Ele também a provocara. Ela não poderia ter deixado mais claro que não queria ficar, mas, honestamente, pelo jeito como ele a fitou, qualquer um pensaria que ela inventara tudo só para irritá-lo. Como se ela tivesse tido escolha ao abandonar suas férias no sol, para ficar no topo de uma montanha fria e coberta por névoa com um gigante mal-humorado. - Este é o meu quarto - anunciou Maisie, abrindo a porta, forçando-a a afastar Harry Talbot da cabeça e concentrar-se no trabalho. Jacqui entendeu na mesma hora por que a menina queria ficar ali apesar de Harry. O quarto, no topo da torre, era pura fantasia de princesa, desde a cama com dosséis coberta de renda, até os móveis pintados à mão. Harry Talbot devia ter consertado o aquecedor porque o quarto estava quente e, apesar do tempo horrível, não parecia nem um pouco úmido. - É encantador, Maisie. Sua avó fez isso tudo para você? - Não seja boba. Minha mãe contratou um decorador. É claro que sim. Volte para a escola - disse Jacqui para si mesma - enquanto a menina ia até a janela. - Dá para ver o pasto do Chocolate daqui. Jacqui, preparada para admirar de longe algum pequeno pônei gordo, seguiu-a, mas a névoa no vidro impedia a visão. - Não está muito bom lá fora - Maisie franziu a testa. - Ele vai ficar com frio. - Ele não vai ficar no estábulo onde é quente? - Talvez. Podemos ir lá para conferir? Jacqui preferia ficar longe. Harry Talbot dissera que olharia seu carro, e ela não estava com vontade nenhuma de encontrá-lo até que ele tivesse a chance de esquecer de algumas coisas que ela falara. Até que ela tivesse a chance de esquecê-las. Mas por algum motivo, achava que Maisie não tinha o hábito de aceitar um "não" como resposta. - Tudo bem, mas acho que deve mudar de roupa primeiro. Você tem alguma coisa mais... adequada? Você sabe, para andar a cavalo? Mesmo enquanto falava, imaginava a pequena Bonnie Butler de “E o Vento Levou”, vestida com roupas de montaria de veludo e penas de avestruz. Ou será que ela imaginara as penas...? - Calças, por exemplo? - disse ela com mais esperança do que certeza, abrindo a bolsa da menina para procurar. Ao tirar vestido atrás de vestido da mala e pendurá-los nos cabides forrados com cetim lilás que encontrara no armário, descobriu que o vestido de babados era, para o padrão de Maisie, até simples. Tinha até asas de fada para ocasiões especiais. Bordadas com contas prateadas e, claro, lilás. Muito bonitas, mas de forma alguma, razoáveis. Não havia nenhuma calça jeans, ou botas de montaria, o que seria mais o estilo de Maisie. Nem chapéu. Nem um par de galochas para manter os pés dela secos. Só mais sapatilhas para combinar com os vestidos. - Tem galochas e casacos no vestíbulo dos fundos - explicou Maisie. - É só experimentar até encontrar um que sirva. - Certo, bem, vou colocar minha mala no quarto ao lado e podemos descer. "O quarto ao lado" não tivera um decorador nos últimos cinqüenta anos, a julgar pelo papel de 22
parede floral desbotado. Mas estava quente e, mesmo em estado ruim, era confortável. Procuraria mais tarde o armário de lençóis e arrumaria as camas. Obviamente, brincar com o pônei era muito mais importante agora. Dez minutos depois, elas estavam atravessando o quintal. Jacqui, bem protegida com botas, não quisera se juntar a Maisie na procura de um par de galochas que servisse, mas pegara emprestada uma jaqueta emborrachada velha. A menor jaqueta no vestíbulo ainda era muito grande para Maisie. Dobrar as mangas funcionou, mas Jacqui teve de prender o riso ao vê-la pulando feliz pelo quintal usando galochas verdes enormes, uma jaqueta com babados brancos aparecendo e uma tiara brilhante na cabeça. Maisie Talbot podia ser precoce, mas certamente não era chata. - Onde vocês duas estão indo? - Harry apareceu na entrada da garagem, limpando a graxa das mãos em uma estopa. - Maisie quer dizer "oi" para o Chocolate, pônei dela - acrescentou Jacqui já que ele pareceu não saber do que estava falando. - Esse é o nome dele? - a expressão dele sugeria que nunca um pônei e um nome combinaram tanto. - Tudo bem, só não fiquem andando por aí na neblina. É fácil se perder. Acho que não existe nenhuma chance de você se perder, não é? Ela não gostou do comentário. - Essa é sua idéia de brincadeira? Se era ela não estava preparada para analisar o significado exato disso. - É...Não... Sinto muito... Ele usou a cabeça para indicar a extremidade do quintal. - O pônei está na última cocheira. Não dê açúcar a ele, ele já está velho e os dentes, fracos. Tem cenouras em um cesto pendurado na parede. Maisie saiu correndo, mas Jacqui permaneceu parada. - Qual é o veredicto sobre meu carro? - Não sou mecânico, mas posso dizer que o escapamento fez sua última viagem. Vou ligar para a oficina. Não se preocupe, vou colocar na minha conta. - Obrigada. Ele deu de ombros. - Acho que você provavelmente já sofreu o suficiente nas mãos da família Talbot por um dia. Não é melhor ir para garantir que Maisie não vai ser esmagada pelo pônei? E finalmente conseguiu o que poderia ter sido apenas um sorriso do homem. Por um momento, nenhum deles se moveu. - É melhor eu ligar para a oficina... - Eu vou ver o que... Ele se moveu primeiro, voltando para a casa sem falar nada. Ela o observou por um momento, depois colocou os hormônios de volta no lugar deles, e foi atrás de Maisie. - Você encontrou alguma coisa? Para o jantar de Maisie? Jacqui levantou o olhar do molho que estava mexendo no fogo, Não via Harry desde que ele a deixara na porta da garagem. O encontro seguinte não foi mais agradável, mas pelo menos ele não parecia prestes a fazer algo, digno de um ogro. - Encontrei, obrigada. Estou fazendo um espaguete à carbonara para nós duas. Ou melhor, penne à carbonara. É mais fácil para as crianças comerem. Ele levantou as sobrancelhas, - O jantar para as crianças melhorou desde a minha época. O melhor que eu podia esperar era macarrão com queijo. - As babás evoluem com o tempo, como todo mundo, Sr. Talbot. E as crianças também. Parece que é um dos pratos favoritos dela, e como tinha todos os ingredientes à mão... Mas sei fazer empanados de peixe. E não aqueles congelados, claro. Eu mesma os preparo. - Não sabia que você conseguia. A tentação de dar uma resposta à altura foi forte, mas ela se segurou. Maisie queria ficar ali e deixá-lo bravo não ia ajudar em nada. - Você provavelmente os chama de gurjões. E paga um preço exorbitante por eles em restaurantes. 23
- Está com fome? - perguntou ela, concentrando-se no molho, pois assim não precisava olhar para ele. Fiz comida demais se preferir, posso deixar um prato na geladeira para você esquentar quando estivermos longe de você. Ela percebeu que ele estava hesitando. Na dúvida entre dizer a ela para cair fora e o desejo de comer algo que não saíra de uma lata. Como a despensa estava cheia de latas, Jacqui tinha quase certeza de que era isso que ele vinha fazendo. Porém, tudo que ele disse foi: - Obrigado. Não foi exatamente decepção que fez o coração dela se apertar. Mas apenas por um momento, tivera a esperança de que ele puxaria uma cadeira, se sentaria à mesa e comeria com elas. Patético. Maisie era a única por aqui que tinha asas de fada. Se bem que ele ainda estava na cozinha. Ela estava se concentrando inteiramente no molho, mas podia sentir a presença dele por certo. - Tem sorvete na geladeira se Maisie quiser - disse ele. – A não ser, claro, que você também prepare em um passe de mágica um pudim maravilhoso. Ele quase foi legal. Quase. Por um momento. Ela ia recompensá-lo com um sorriso, mas quando se virou, ele já tinha saído. Jacqui deu banho em Maisie e arrumou-a para dormir, aconchegando-a com um bichinho de pelúcia e lendo uma história de um dos muitos livros na prateleira. Uma história divertida sobre a hora de dormir de um pequeno urso. Nada que pudesse causar pesadelos. Ela dormiu antes do pequeno urso, e Jacqui ficou ali sentada por um tempo, observando-a respirar. Afofou a coberta. Diminuiu a luz até que o quarto ficasse na penumbra. Em algum lugar, do outro lado do mundo, outra criança logo estaria começando um novo dia. Amarrotada e mal-humorada por causa do sono, buscando o abraço de outra mulher... Ela piscou, tocando na pulseira enquanto engolia a dor que sentia. Banho. Precisava ficar mergulhada em uma água quente e cheirosa. Esqueça e sorria. Isso não era possível, mas talvez devesse tentar se concentrar na alegria em vez de no sofrimento... Como estava viajando com poucas roupas e não trouxera um robe, pegou um que estava pendurado atrás da porta do quarto antes de descer para pegar algo quente para beber na cozinha. Apenas as luzes embutidas sobre os balcões estavam acesas, deixando o centro do cômodo mal iluminado. A galinha agitou-se e cacarejou de forma desaprovadora em sua cesta. Jacqui manteve distância dela. Não gostava muito de galinhas, mesmo quando eram animais de estimação. Os gatos não moveram mais do que um bigode. Foi o cachorro, sempre com esperança de ganhar comida, que atravessou o chão de pedras e fez com que ela se virasse. Harry Talbot estava sentado na mesa da cozinha, terminando o jantar. Agora estava de pé e era difícil dizer qual dos dois ficou mais surpreso. - Desculpe - disse ela. - Achei que você já tinha terminado há muito tempo. - Sim, bem, eu já teria terminado, mas aqueles burros travessos não sabem como têm sorte. Eles fizeram uma bela bagunça para fugir quando fui alimentá-los - disse ele, empurrando a cadeira para trás. - Quando consegui prender todos eles, já estava coberto de lama. O que explicava por que o cabelo escuro dele estava molhado e penteado para trás, se bem que onde estava secando já estava começando a levantar, formando uma confusão de cachos irregulares. E também explicava por que ele estava usando calças jeans e camisa azul-escura sem gola limpa, e por que estava com a aparência boa o suficiente para comer sozinho. - E a lhama? - perguntou ela. - Quem lhe contou sobre a lhama? - A mulher na loja da cidade me avisou para tomar cuidado com ela na estrada. - A lhama estava procurando companhia. Kate encontrou um lar para ela em um rebanho do outro lado do vale. - Ah, sim. - Bem, o que você quer? - Nada. Vou voltar para o quarto, não quero incomodá-lo. - Já incomodou, então é melhor fazer o que veio fazer. O que você quer? - repetiu ele. Ele não mudara em nada seus modos. Exatamente a mesma coisa. 24
- Eu ia preparar algo quente para tomar e levar lá para cima. - Faça o que quiser. Já terminei - disse ele, abandonando a refeição pela metade e fazendo um movimento para sair. - Quer que eu prepare alguma coisa para você? - perguntou ela, sentindo-se péssima por interromper o jantar dele, apesar de momentos antes, ter torcido para ele se engasgar. Era apenas educado oferecer. Um deles devia fazer um esforço, e claramente não seria ele. - Bancar a deusa doméstica não vai me fazer mudar de idéia, Srta. Moore. Sei muito bem preparar meu próprio café. - Obviamente você tem de saber - respondeu ela - ou ficará sem. - Na verdade, vou fazer chá continuou, em um esforço de conciliação. Afinal de contas, ela não apenas igualara-se na grosseria, como também fora bem-sucedida. - Mas, sabendo de sua competência duvidosa, eu não me incomodaria em lhe fazer um bule de café. Já que vou ferver água de qualquer jeito. Pode voltar depois que eu subir e tomar o café se não quiser ficar. Houve um momento de silêncio absoluto, o ar pesado com palavras esperando para serem ditas. Nem o cachorro se moveu. Harry sentiu os pés colados no chão. Não sabia lidar com pessoas. Não sabia lidar com esta mulher que um momento era toda curvas e tentação, e no seguinte desaprovação e língua afiada. Era muito complexo. Muito difícil. Tinha de ficar sozinho. Era a única forma de sobreviver... Mas o corpo, que ele conseguia dominar há tanto tempo por pura força de vontade, de repente parecia incapaz de obedecer ao mais simples comando. Seu corpo exigira a comida que a mulher tinha feito e agora parecia incapaz de se afastar; preso entre a possibilidade do paraíso e a certeza do inferno. Enquanto Jacqui esperava, o silêncio pareceu se estender. Ela não conseguia entender, por mais que tentasse, o que havia de tão difícil em responder a uma pergunta tão simples. Mesmo assim, podia perceber a luta que estava sendo travada dentro da cabeça dele. Ela se sobressaltou quando ele finalmente se moveu, pegou o prato, levou até a pia, e passou uma água antes de colocar na máquina de lavar louças. - Você é uma mulher muito irritante, sabia disso? - disse ele e bateu a porta da máquina, fazendo as louças balançarem. Ela achou que ele combinava muito com ela quanto a isso, mas as boas maneiras e seus bem aliados instintos de sobrevivência sugeriam que seria mais sábio não dizer. Em vez disso, ela atravessou a cozinha, pegou a chaleira e começou a enchê-la. - Boa cozinheira, mas irritante - continuou ele. - Eu podia ser irritante e não cozinhar bem... Sobre isso, aparentemente, ele não estava preparado para dar palpite. Em vez disso, ele perguntou: - Maisie já está dormindo? - São quase dez horas. É claro que ela está na cama. - Não tem nada claro sobre isso. Ela costuma ficar acordada até meia-noite, andando por aí e sendo mimada pelos amigos ridículos de Sally. - Mesmo? Bem, ela teve um dia longo. Ela nem chegou ao fim da história antes de cair no sono. - Incrível. - Você não gosta muito dela, não é? - Sally devia se ater a salvar animais mudos - disse ele, o que não respondia a pergunta dela. Mas as coisas que não são ditas sempre podem ser reveladoras. E Jacqui suspeitava que o que ele não disse tinha muito significado. - Ela pode abandoná-los aqui depois de tirar uma foto sem causar nenhum mal. O quê...? Ele estava insinuando...? - Maisie não foi abandonada - afirmou ela. - Não? Como você chama isso? - Acredito que o que aconteceu hoje não foi nada mais do que um triste mal-entendido. Na verdade, queria perguntar uma coisa para você. Você sabe se ela tem roupas aqui? Roupas para brincar no quintal? Não achei nada no quarto dela. Jeans já ajudaria. - Sem dúvida. Mas acho que não posso ajudá-la. Além disso, ela não vai precisar já que não vai ficar. Jacqui não era uma mulher violenta, mas se ele fosse um pouco menor, teria o sacudido. Do tamanho que era, ele provavelmente riria na cara dela. Melhor não arriscar. Tinha de começar com mais 25
calma. Ela parou. Não havia por que perder seu tempo se preocupando com a terapia do "sorriso". Seria mais útil aproveitar o momento, conversar com ele. A chaleira ferveu nesse momento, distraindo-a, e quando serviu a água em uma caneca sobre o chá para si e preparou o café para Harry, já tinha pensado melhor sobre o assunto. Se conversasse com ele e fracassasse, ele continuaria teimosamente firme em sua posição. Cada vez que ele dizia "ela não vai ficar", as palavras se tornavam mais difíceis de serem retiradas. E Maisie queria ficar. Pelo menos, dessa vez, ele não parecia disposto a brigar. Não haveria uma chance melhor de conversar com ele. Nada que o ameaçasse; o que era um pensamento estranho, já que ele era o ogro, não ela. Até agora, eles ainda não tinham tido o que poderia ser descrito como uma conversa normal. - Aquela galinha mora mesmo aqui na cozinha? - perguntou ela, dizendo a primeira coisa que lhe veio à cabeça. - A história é que um dos gatos a trouxe para cá para se proteger da chuva quando ainda era um pintinho e cuidou dela como se fosse seu filhote. - Você está dizendo que ela acha que é um gato? - Essa é a teoria da tia Kate. - Você não acredita nisso? - Não notei nenhum problema de identidade nela, mas se você tivesse de escolher entre uma cesta em frente ao fogão ou ficar com as outras no galinheiro, o que você escolheria? - É um ponto de vista um tanto cínico. - E qual é a sua resposta? - Ela é uma galinha esperta. Mas aposto que os ovos devem confundir bastante os gatos. Pronto! Quase o pegara com essa. Ele não sorriu, mas apareceu uma linha de expressão ao lado da sua boca. O que ele fez foi pegar a cafeteira e servir-se de uma caneca de café. - Para onde você está indo? - perguntou ele, olhando de lado e pegando-a olhando para ele. - Para lugar nenhum - disse ela, um pouco confusa. Ele se virou e debruçou-se sobre o balcão, ainda encarando a moça. - Para as suas férias? Ah, isso. Ela se esquecera completamente da Espanha. Além disso, ali estava quente o suficiente para torrar a pele. Havia um bom espaço entre eles, mas o robe de plush era muito quente. E não respeitável o suficiente. Estava curto, claro. Sempre ficavam assim, mas ela nunca pensara que os tornozelos eram uma parte que precisava cobrir. Mas agora os tornozelos nus pareciam sugerir pernas nuas, o que sugeria todos os tipos de outras possibilidades. E parecia muito apertado. Embora o robe devesse ser do seu tamanho, obviamente fora lavado com freqüência, e Jacqui tinha a desconfortável sensação de que em algum lugar perto da coxa, ele devia estar abrindo um pouco. Não ousou olhar para baixo. Fazer isso simplesmente chamaria a atenção dele para o fato. Não que ele parecesse interessado nas pernas dela. Na verdade, o olhar dele parecia cravado no V profundo do decote do robe. De forma alguma era um olhar malicioso. O que era loucura. Ela estava louca. Como havia uma grande probabilidade de uma babá ter de se levantar no meio da noite, sonolenta para atender a uma criança agitada, não levou muito tempo para descobrir que as espertas usam pijamas decentes. Não que isso fosse um problema agora, mas ela não podia se dar ao luxo de se desfazer de roupas de dormir perfeitas, e não havia nada de fantástico no short de jérsei com camiseta que estava usando. Mas não estava em uma praia. Estava em uma casa isolada com um homem que não conhecia, e ele estava encarando seu decote. Muito ruim. Mas seu decote estava respondendo... 26
Capítulo 5 - Quer leite? - perguntou ela. Não esperou a resposta dele, mas foi até a geladeira, demorando-se um pouco, aproveitando a oportunidade para fechar mais o robe, antes de se virar com o jarro. - Não, obrigado - respondeu ele quando ela ofereceu. Jacqui tinha a sensação de que ele sabia exatamente o que ela fizera, mas ele não deu nenhum sorriso de satisfação. Apenas fitou seu café enquanto ela, tirando o saco do chá, jogava leite na caneca. - Não está muito tarde para tomar café? Ele não respondeu, apenas lançou um olhar que sugeria que ela estava atravessando uma linha muito tênue, mas ele vinha fazendo variações disso desde que ela chegara. Isso fazia com que se lembrasse de uma criança triste, testando até o limite sua decisão de amá-la. Testando sua promessa de ficar... - É apenas uma opinião profissional - acrescentou ela. - Mantenha suas opiniões para Maisie, Mary Poppins. Se ele queria que ela fugisse do perigo, teria de fazer melhor do que isso. Mary Poppins era, afinal, "praticamente perfeita em todos os aspectos". - Falta de sono pode deixar qualquer um mal-humorado - disse ela, sem recuar e disse: - Mas você está certo, isso não é da minha conta. Só não me culpe se não conseguir dormir. - Por que não? Acho que nós dois sabemos que você me manterá acordado... Ele parou, como se as imagens que suas palavras evocavam o tivessem surpreendido de continuar, e ele se esquecesse do que ia dizer. O tempo diminuiu o ritmo, e o ar pressionou-a, deixando-a consciente de cada centímetro de sua pele enquanto a mente se enchia com a imagem dele em um quarto pouco iluminado, os ombros nus encostados nos travesseiros, braços atrás da cabeça, bem acordado. Pensando nela. Seu corpo inteiro respondeu a essa imagem perturbadora, com consciência sexual, com a dor do desejo. Os seios inchados, os mamilos rijos de forma quase dolorosa encostando no tecido macio. Há tanto tempo submersa em uma profissão que exigia tanto dela, ela se esquecera de como as necessidades físicas podiam ser. Como conseguia dominar a vontade, dominar todos os outros pensamentos... - Como um espinho no colchão - disse ela logo, quebrando a tensão. Então, porque não queria prolongar-se no assunto, ela rapidamente voltou para a pergunta anterior dele, respondendo: - Espanha. - Espanha? Ah, suas férias. Sozinha? Ela não pensara que ele faria essa pergunta e, embora provavelmente fosse muito mais seguro apenas pegar sua caneca, dar boa noite e se recolher no quarto, ela perderia a oportunidade de conhecê-lo um pouco melhor. Para o bem de Maisie, claro. Então, ela deu um gole no chá, já que a boca estava um tanto seca. - Isso importa? - Se você fosse com seu namorado, imagino que ele ficaria farto. - Se eu fosse com um namorado, acredite em mim, eu ficaria farta, mas não precisa se preocupar com algum homem furioso aparecendo em sua porta para piorar a situação. - Pelo menos, tem muitos vôos para a Espanha. Só vai perder um dia. Bem, ela não acreditou que ele estava realmente interessado em seu bem-estar. Era como o carro. Arranjar para que fosse consertado não era atencioso. Mas significava que ela não teria desculpa para ficar. - Infelizmente, não é tão simples assim. Era um pacote pela metade do preço, fechado no último minuto. Se você não aparece, azar o seu. - Não pode remarcar? Em que planeta ele estava? - Não se preocupe com isso. A agência vai resolver isso com sua prima. Eles me prometeram que não sairei no prejuízo. - Que bom, mas você não vai receber o dinheiro nas próximas duas semanas, vai? Ela deu de ombros. - Não importa. Só estou fazendo trabalhos temporários no momento, então posso remarcar minhas férias para quando for melhor para mim. - Isso não parece justo. Se você quiser, posso cobrir o prejuízo e depois acerto com Sally. - Meu Deus, você está mesmo desesperado para se ver livre de mim. Uma mulher com baixa auto-estima poderia ter se aborrecido, mas ela fez uma careta na tentativa 27
de sugerir que achava a persistência dele engraçada. - Só estou fazendo o possível para ser razoável. Razoável seria dizer algo como "Sinto muito por estar tendo tantos problemas. Fique a vontade aqui enquanto minha família inútil resolve tudo...". Ou palavras parecidas. - Você não entende mesmo, entende? - Entender o quê? Ela bebericou o chá, depois arriscou um olhar para ele sobre a borda da caneca. Jacqui achou que ele não parecia tão desinteressado, mas reprimiu com firmeza qualquer sentimento de culpa. Não tinha feito nada para se sentir culpada. Era ele quem estava agindo feito um idiota. - Deve entender que não posso ir a lugar algum até que tenha certeza de que Maisie está segura. - Então tenho outra sugestão, Srta. Moore. Vá para a Espanha e leve Maisie com você. - Assim você receberá para ficar deitada pegando sol. Ela riu. - Você obviamente tem uma idéia muito limitada do que significa cuidar de uma criança. - Pago até para uma viagem melhor. - Sinto muito - disse ela. Apesar do que Maisie lhe contara, o homem continuava levando-a a achar que ele merecia alguma consideração. Ele não merecia nada. - Apesar de tão atraente, existem duas razões para eu não poder aceitar a sua oferta. Primeira, eu precisaria de uma autorização por escrito do tutor legal dela antes de tirá-la do país, algo que acredito que até você concordaria que é essencial. - Você faz idéia de como as meninas bonitinhas interessam o mercado ilegal de adoção? - Tenho uma idéia melhor do custo do que você, imagino. - E não sou tão burro quanto você parece acreditar. Liguei para a sua agência esta tarde e a encantadora Sra. Campbell me passou por email seu currículo junto com todos os tipos de recomendações. - Ela fez isso? - Por que você largou a faculdade no meio do segundo ano? Ele não queria uma resposta para a pergunta, era simplesmente um jogo de poder, uma demonstração de que realmente tinha informações sobre ela. E ela não sabia quase nada sobre ele. Não estava tendo um dia muito bom. Princesinha, 2x1 Gigante. - Então - continuou ele - agora que esclarecemos esse pequeno problema e, supondo que, usando as maravilhas da tecnologia, Sally passasse um fax para sua agência com sua permissão escrita, qual é a segunda objeção? - Maisie quer ficar aqui - disse ela. - E meu trabalho... - ela decidiu que não era um bom momento de dizer a ele que na verdade não estava recebendo para fazer isso. -... é fazer com que ela fique feliz. Por que não telefona para sua nova amiga, a Sra. Campbell, e pergunta se ela estaria preparada para apostar que eu faria isso? Apesar do calor que sentiu ao acabar com os planos dele, ela antecipou uma reação negativa a esse desafio e, julgando que era um bom momento para se retirar, não perdeu tempo. - Boa noite, Sr. Talbot - disse ela, indo para a porta. - Durma bem. Na verdade, o "durma bem" foi provavelmente um erro, e apenas porque estava segurando uma caneca com chá quente, não saiu correndo. Ela conseguira dizer a última palavra e agora, com dignidade, estava deixando-o para pensar a respeito. - Harry - disse ele, assim que ela chegou à segurança da porta. - Pode me chamar de Harry. Acho que já trocamos insultos suficientes para continuarmos sendo formais, não acha? Agora que tivera a chance de avaliar alguns dos pontos positivos dele, Jacqui tinha de admitir a tentação. Não havia dúvidas, de banho tomado, o homem era quase dois metros de pura tentação. Com um corte de cabelo decente e um bom barbeador, ela suspeitava que ele seria pura dinamite. Pena que ele não tinha um coração que combinasse com o corpo. - Está se rendendo, Sr. Talbot? Ele contraiu o rosto, e Jacqui teve a desagradável impressão que era ela quem estava com a língua afiada. Impossível que um homem da estatura dele, com a personalidade dele, pudesse algum dia se sentir vulnerável, mas ela gostaria de ter ficado com a boca fechada dessa vez e respondido ao convite dele 28
com um sorriso encorajador, dando-lhe uma chance de dizer exatamente o que eslava oferecendo. - Não, Srta. Moore. Estou simplesmente sugerindo uma trégua durante a noite. Então, estava tudo bem. Não causara nenhum mal. Ele era o mesmo de sempre. Podia estar presa em uma montanha coberta de névoa com uma princesinha e um gigante mau, mas isso não era um conto de fadas. E embora seu café fosse bom, precisaria mais do que uma xícara para transformar Harry em um príncipe encantado. Mas um beijo era a cura tradicional... - Nesse caso - disse ela. Boa noite, Harry. Por um momento, pareceu que ele ia responder, e ela esperou, a mão segurando a porta, esperando alguma indicação de que ele estava cedendo. Oferecendo mais alguma coisa. - Boa noite, Jacqui. Depois disso, ela não teve escolha à não ser fechar a porta e sair, mas subiu as escadas para o segundo andar com uma sensação de arrependimento. Foi ver Maisie, endireitou os cobertores e observou-a por um tempo antes de ir para seu quarto. Harry não se moveu por um longo tempo. O café esfriou em sua caneca e no bule. E ele ainda esperava o ar ficar mais tranqüilo, como era antes de Jacqui Moore perturbar tudo. Após um tempo, um gato se espreguiçou e foi para a porta, uma sombra escura saindo para sua caça noturna. O cão de caça peludo se levantou e foi colocar o nariz em sua mão, sugerindo com educação que era hora de dar uma caminhada. Os animais pareciam não perceber os redemoinhos criados pela presença dela que ainda pairavam pelo ar. Moveu-se rapidamente, passou pelos outros cães, sem parar para vestir o casaco que pegou no cabide enquanto saía para as montanhas. O velho labrador voltou depois de um tempo, mas o cão de caça ficou com ele enquanto atravessava quilômetros, determinado a afastá-la da mente. Do coração. Jacqui deixou Maisie decidindo entre tafetá rosa e seda amarela e desceu determinada a encontrar algo mais prático para ela usar. Procurou no pequeno escritório, mas não havia nem sinal de Harry Talbot. Nenhum sinal de que ele estivera ali, já que a bolsa de correspondência que ela deixara na escrivaninha continuava da mesma forma. Teve mais sorte na cozinha, onde uma mulher maternal estava ocupada tirando a louça da máquina. - Você é Susan? - perguntou ela, animada com a visão de uma possível aliada. - Sou Jacqui. A babá de Maisie. Temporariamente. - O Sr. Talbot explicou sobre o mal-entendido? - O Sr. Harry? Não. Mas sempre que possível, fico bem longe dele - disse ela, enxugando as mãos no avental. - Só venho aqui todos os dias porque a patroa se recusou a ir até eu prometer que ficaria de olho na comida dele. - Mas, é claro, que escutei falar que alguém aparecera com a Srta. Maisie ontem de tarde. Jacqui não ficou surpresa ao ouvir isso, já que essa devia ser a fofoca quente da loja da cidade. Sem dúvidas, todos estavam esperando ansiosos as novidades sobre a mulher que estava no carro. - Eu esperava encontrar a Sra. Talbot aqui. O plano era Maisie ficar com ela enquanto a mãe está fora. - Isso é novidade para mim. Ela foi para a Nova Zelândia, sabe? Ficar com a irmã. - O Sr. Talbot me disse que ela estava viajando. - Ele pagou tudo. Ela foi de primeira classe. - Muito generoso da parte dele. - Pode ser – disse ela sem se comprometer de forma alguma. - Ela não disse nada sobre Maisie vir ficar aqui? - Bem, não. A Srta. Sally não faz planos com tanta antecedência. Jacqui franziu a testa. Antecedência? - Quando a Sra. Talbot foi para a Nova Zelândia? - Em novembro. - Mas isso foi há cinco meses. - Isso mesmo. Ela foi sem pressa. Pegou um navio para atravessar parte do caminho. Mas chegou para o Natal. 29
- Ah! - Não tem por que viajar para tão longe para ficar cinco minutos, não é? - Hã... não. Ela deve voltar logo? - Não que eu saiba. Na última carta, ela disse que como o Sr. Harry estava feliz em ficar e tomar conta de tudo, ela ficaria mais um pouco. - E o Sr. Ha... Talbot está feliz aqui? - Bem, eu não diria exatamente feliz, mas não está com pressa de ir embora. Aqui é a coisa mais próxima que ele tem de um lar. Era? Ela deixou a pergunta morrer nos lábios. Um passo adiante seria motivo para fofoca. - Não entendo por que a Srta. Talbot mandou Maisie para cá. Ela devia saber que a mãe não estava aqui para cuidar da menina - comentou Jacqui. - Aquela lá vive em um mundo só dela. Sempre viveu. - Mesmo assim. É difícil entender como alguém poderia cometer tal engano - disse ela, colocando a água para esquentar. - Quer uma xícara de chá? - Agora não, obrigada. Vou cuidar das galinhas. Mas vou tomar quando voltar. Jacqui não gostava de fofoca, mas esperara uma conversa animada e algumas respostas para as muitas perguntas que fizeram com que ficasse metade da noite acordada. - Tudo bem - disse ela. - Antes que você se vá, posso perguntar uma coisa? - Perguntar você pode - respondeu ela desconfiada. - Só não posso prometer uma resposta. - Maisie não trouxe nenhuma roupa para brincar lá fora. Não tem nenhuma no quarto dela e o Sr. Talbot parece não saber se ela tem alguma aqui. - E por que ele saberia? - Na verdade, eu não sei. Não sei de nada. Talvez humildade fosse a resposta, porque Susan disse: - Bem, ele está sempre fora se aventurando por algum lugar, não é mesmo? Não dá notícia por meses, às vezes anos, aí de repente aparece. Que sorte suas visitas terem coincidido... Por mais que Jacqui quisesse prosseguir com isso, Susan já estava no vestíbulo. - Você sabe? - perguntou ela, com um toque de desespero. A mulher pensou por um minuto, depois balançou a cabeça, reforçando a mensagem. - Não. - Talvez eu possa procurar por aí e tentar encontrar - sugeriu Jacqui. - Onde seria um bom lugar para começar? - Já disse, ela não tem roupas aqui. – A última babá sempre trazia tudo de que ela precisava. - A crítica ficou nas entrelinhas, mas não foi velada. - Não tive esse luxo. Estou tendo de me virar com o que me deram. Tafetá rosa e galochas terão de servir. - Acho que você poderia dar uma olhada na antiga suíte infantil - disse Susan, abrandando ao tirar seu cachecol do bolso do avental. - Talvez encontre alguma coisa da Srta. Sally lá. Fica lá em cima é... ela pensou por um momento -... é a quinta porta. - Obrigada Susan. - Ela sorriu. - Espero que esteja preparada para um sanduíche de bacon quando terminar com as galinhas. Para acompanhar o chá. A mulher sorriu. - Tudo bem, então. Se você insiste. Estarei de volta em meia hora. O que dava a Jacqui muito tempo para explorar a "antiga suíte infantil". Ela subiu o primeiro lance de escadas e, como instruído, virou à direita, passando por um corredor comprido, iluminado por uma série de janelas que deviam ter uma vista bonita quando não estavam obscurecidas pela névoa. O chão encerado era dividido por uma passadeira e as paredes internas eram decoradas com cômodas antigas e alguns quadros bonitos, que faziam-na lembrar que, apesar de sua primeira impressão, era uma casa imponente. Podia estar um pouco mal-cuidada por fora, mas era o que antigamente se chamava a casa de um gentleman. Ela pensou com pena sobre o gentleman na casa, contando as portas até chegar na quinta. Como ainda era cedo, e a névoa da montanha deixava os quartos escuros, ela procurou o interruptor de luz. Um lustre acendeu e, na mesma hora, ela percebeu que estava certa. Aqui não era uma suíte infantil, mas o quarto principal, e decorado em alto estilo pelo gentleman, dono desta casa décadas atrás. 30
Elegante, caro e com uma cama imponente com quatro dosséis. Jacqui se virou, com a intenção de se retirar imediatamente. E se viu cara a cara com Harry Talbot, parado em frente a uma cômoda com gavetas, aparentemente procurando cuecas. Já era ruim o suficiente ela ter entrado no quarto dele sem bater, mas ainda pior era o fato de ele ter acabado de sair do banho e estar pelado, apenas com uma toalha enrolada em volta do quadril. Quando ele se virou para encará-la, a toalha perdeu a luta contra a gravidade. Ele não fez nenhum movimento para impedir e, apesar de ela ter aberto a boca com toda intenção de se desculpar por ter entrado no quarto dele, ela percebeu que estava incapaz de falar. Ele era lindo. Esbelto, musculoso, esculpido, ele tinha um tipo de corpo que os artistas amavam desenhar nas aulas com modelos vivos. Até o cabelo dele, espesso e cheio, formava cachos com gotas de água escorrendo em um movimento sensual e lento. Ela observou uma cair no ombro dele, deslizar pelo peito até se tornar parte dele. Ele representava a perfeição do Davi de Michelângelo. O que fazia as cicatrizes nas costas dele, cicatrizes que ele não se movera rápido o suficiente para esconder dela, ainda mais terríveis. Sem pensar, ela se aproximou, como para tocá-lo, passar a dor para seu próprio corpo. Antes de os dedos dela fazerem contato, ele pegou o pulso dela e, com um movimento rápido e selvagem, empurroua para fora do quarto. Então, ele disse: - Fique aí. Não se mova. - E fechou a porta na sua cara. Embora todos os seus instintos dissessem para correr, as pernas dela não obedeciam aos movimentos. O corpo inteiro estava tremendo, e ela cobriu a boca com a mão como para impedir que saísse um grito. O que acontecera com ele? Ela nunca vira nada parecido com as cicatrizes que se formaram onde a carne dele tinha sido rasgada. Eram algo que nunca mais queria ver de novo. Ela gemeu e se encostou a porta, quase caindo nele quando ele abriu-a, desta vez enrolado em um grosso robe atoalhado. - Você está bem? - perguntou ele, segurando-a, apertando seus braços com tanta força para mantêla à distância que seus dedos entraram na pele dela. Jacqui não perguntou o que ele queria dizer. Ela apenas assentiu e ele a soltou o suficiente para a circulação dela ser restabelecida. Mas ele não a soltou. Talvez seja ele quem precise de um apoio, pensou ela, perto o suficiente para ver que a barba que começava a crescer disfarçava a aparência sombria dele. - Então, o que você queria que não podia esperar? Sally entrou em contato? Tão frio. Tão direto. Tão "nem pense em mencionar o que viu". - Não. Ainda está cedo para ligar para a agência... - Na verdade, eu não estava procurando por você. Estava procurando a antiga suíte infantil. Su... Susan disse que poderia ter alguma coisa adequada para Maisie vestir lá. Suba as escadas, quinta porta, foi o que ela disse... Como se o que Susan tinha dito fosse importante. Ou o fato de Maisie brincar no estábulo usando um vestido de festa. - Harry... - Ela supôs que você viria pelas escadas da frente - disse ele, cortando-a antes que pudesse fazer a pergunta. - É por aqui - e ele apontou a direção do corredor. - Fique à vontade - disse ele, abrindo a porta. Depois se virou de forma abrupta e se afastou. - Harry! Ele parou na entrada do quarto, sem olhar para ela. - Não pergunte - avisou ele. Por um momento, nenhum dos dois se mexeu. Então, aparentemente satisfeito por ter se feito entender, ele entrou e fechou a porta. Capítulo 6 Maisie, depois de escolher finalmente o vestido de tafetá rosa, não ficou satisfeita com as alternativas que Jacqui encontrara. - Eles têm cheiro ruim - disse ela, torcendo o nariz com nojo. - Só porque não são usados há muito tempo. Não estou pedindo para vestir essas roupas até que sejam lavadas. Só quero me garantir que vão servir. 31
- Não vão. - Provavelmente não - concordou ela. - Acho que sua mãe devia ser mais alta do que você. - Não era não. Ela me disse que era exatamente da minha altura. - Ah, bem, essas roupas eram dela, então ficarão boas. Maisie, rapidamente se recuperando de seu erro, pegou um suéter com a estampa de um personagem de desenho animado e segurou-a com os braços esticados. - Nem morta minha mãe usaria uma coisa assim. Tendo antecipado essa reação, Jacqui pegara uma fotografia que encontrara presa em um mural na outra suíte infantil. Estava com as bordas viradas, muito desbotada e, sem dúvidas fora presa ali por causa do filhotinho que uma jovem Selina Talbot estava segurando, e não por razões estéticas. Ou talvez porque, atrás dela, estava o primo mais velho, mais alto e protetor, Harry. A razão não importava. O que importava era que ela estava usando o suéter. - Por que ela guardaria um suéter ridículo? - perguntou Maisie, virando as costas para a foto, pouco animada por ver a prova de que estava errada. - Você nunca guardou um vestido favorito, mesmo quando ele não servia mais, apenas para se lembrar como se sentia quando o usava? - perguntou Jacqui. Maisie deu de ombros. - Acho que sim. - É Harry que está com minha mãe? Jacqui olhou para a fotografia e mostrou para a menina de novo. - Por que não pergunta a ele? - Não, já sei. É ele. - A não ser que ele tenha um irmão gêmeo - concordou ela. Pensando de novo, não tinha dúvidas da razão de Selina guardar essa fotografia onde pudesse ver. O homem tinha defeitos sérios, mas o menino tinha a pose de um herói para ser adorado. E a mão dele no ombro dela teria tornado o suéter especial também. - Ok, o tempo está horrível lá fora, então não pode sair para brincar, mas enquanto isso colocarei essas roupas para lavar e depois, talvez, se as nuvens forem embora à tarde, eu tire uma foto sua usando o suéter. A menina não respondeu. - Com um filhotinho. Você poderia dar as fotos para sua mãe quando ela voltar. Tenho certeza de que ela iria gostar. - Só se Harry também aparecer - Maisie insistiu sabendo que não tinha saída, mas tentou seu último golpe. - Aí seria igualzinha. - Que ótima idéia - disse Jacqui. Embora o que Harry Talbot ia pensar a respeito fosse uma coisa completamente diferente. - Você pode pedir para ele por mim? - perguntou com vontade. - Claro, querida. Claro que peço a ele. Maisie era pequena, mas inteligentíssima. Jacqui não precisou usar suas habilidades de negociação imediatamente, pois Harry, sem nenhuma surpresa, não estava por perto querendo conversar. Quando o café da manhã terminou, ela deixou Maisie "ajudando" Susan com alguns pratos e foi ligar para Vickie. Quando abriu a porta do escritório, Harry levantou o olhar da pilha de correspondência que de tirara da bolsa. - Desculpe. Não queria perturbá-lo. - Sua presença na casa perturba até o ar - declarou ele. Respirou fundo para recobrar a compostura, e acrescentou: - Entendo que não há nada que você possa fazer a esse respeito, mas será que poderia parar de aparecer toda hora na minha frente? - Ajudaria se você não se mostrasse tão ofendido pela minha presença - rebateu ela. - Não estou... - começou ele, irritado, mas parou, talvez não querendo falar uma mentira. Então fez o que qualquer homem que sabia que estava errado faria: partiu para o ataque. - Você deixou esse lixo aqui? - Se você está se referindo à correspondência, sim. A mulher da loja me pediu para trazer. - Quando for embora, sugiro que leve de volta para ela e diga... - Tenho uma idéia melhor, Sr. Talbot - disse ela farta dele descontar seu mau humor em cima dela. - Por que você não diz isso pessoalmente? Mas bem, alguma novidade da sua prima? Ele disse que não. 32
- Nada da sua agência, também? - Eu ia ligar para lá agora mesmo. - Fique à vontade. Ele empurrou o telefone na direção dela e ela pegou o aparelho. - Está sem linha. Ele pegou e escutou, como se não acreditasse nela. - Estou errada? - perguntou ela, com uma doçura fingida. Ele murmurou alguma coisa. Jacqui não pediu para ele repetir; achava que não era nada que gostasse de escutar. - Isso acontece sempre aqui - continuou ele. Que bom que você tem um celular. Vou reclamar o problema, posso? Se puder... ela pensou, que, na verdade, seria muito bom deixá-lo sem contato com o mundo exterior e tinha certeza de que o mundo exterior agradeceria a ela. Mas afastou da mente esses pensamentos e decidiu fazer a ligação primeiro. Se as novidades fossem boas, ele ficaria com o humor melhor. O problema é que, não conseguia encontrar o celular. Deixando Harry sozinho no escritório, procurou no bolso, que era onde o aparelho costumava ficar durante o dia. Depois, procurou na mesa de cabeceira, que era onde geralmente passava a noite. Também não estava na cozinha, e Maisie, usando um avental enorme e com manchas de farinha no rosto, apenas fez cara de quem não o vira. O escritório era o único lugar que faltava e, como era o último lugar em que se lembrava de estar com ele, não tinha opção à não ser entrar na jaula do leão pela segunda vez naquela manhã. Desta vez, tomou a precaução de bater na porta antes de abrir. Harry levantou o olhar. - Então? - Não sei se você viu - disse ela. - Não consigo encontrar meu celular. Se não estiver aqui, não sei onde mais procurar. - Não vi, mas também não estava procurando. Pode estar aí embaixo. Ele apontou para a correspondência espalhada em cima da mesa, a maioria delas propagandas inúteis que aparentemente ainda não tinham sido locadas. Ela encheu a mão com várias cartas e continuou procurando, jogando a maioria delas na lata de lixo ainda fechadas e separando as correspondências pessoais e as contas. Quando levantou o olhar, percebeu que ele a estava observando. - Que foi? - Continue, está fazendo um bom trabalho. - É bom saber que sou útil para alguma coisa, mesmo que seja apenas me livrar do lixo! - ela começou a se sentir constrangida já que ele continuou a observá-la. Então, jogou fora o último envelope, endireitou os papéis na mesa. - Só preciso do telefone. Não está na mesa, está? - Isso é ridículo! Tem de estar em algum lugar! Você se importaria de levantar? - Não está aqui - disse ela, se afastando. - Talvez tenha caído no chão. Ela já estava de joelhos quando percebeu que, em vez de ficar em pé deixando-a procurar, ele fizera o mesmo. Levantando o olhar, esperando encontrar nada mais perigoso do que os joelhos dele, ela deu com os olhos dele. O certo a se fazer seria sorrir e continuar procurando. Mas ela não fez o certo. A proximidade gerava calor suficiente para queimar seu corpo todo, e por isso, ela se afastou, batendo com a cabeça na quina da mesa e caindo com um gemido de dor. Depois disso, ela só viu quando estava sentada na cadeira dele e ele abaixado na sua frente. - Jacqui? - Estou bem... - disse ela, tentando se levantar. Estou bem. - Não se mexa. Parece um pouco tonta. - Não, mesmo - a cabeça parecia que ia explodir e as pernas estavam fracas. Apesar do protesto, ela continuou onde estava. - Olhe para mim. - Quantos dedos tem aqui? Ficando satisfeito ao ver que ela não estava vendo 33
dobrado, ele se levantou e começou a repartir o cabelo dela delicadamente, bem acima da testa olhando de perto para o machucado. - Com licença - disse ela, querendo dizer "que diabos você está fazendo". - Você é médico? - Sou, e posso dizer que o prognóstico é de uma dor de cabeça e um galo do tamanho de um ovo. - Eu poderia ter dito para você que... - Você é médico mesmo? - Estou um pouco sem prática - admitiu ele - mas acho que dou conta de uma simples batida na cabeça. - Simples! - exclamou ela. - Viu? Você já está praticamente de volta ao normal. Vou pegar um saco com gelo. - Não precisa. - Está questionando meu diagnóstico? Também é médica? - Sarcasmo é tão pouco atraente. Além disso, você leu meu currículo. Sabe exatamente o que sou. - Tenho uma boa idéia, embora ainda gostaria de saber por que você desistiu da faculdade de enfermagem. - Mas espere. Fique quieta e não se mova. Já volto. - Tome conta de sua vida - murmurou ela com rebeldia, depois de ele sair do escritório. Obviamente ele sabia o que estava falando, quando a aconselhou a ficar quieta. - Susan está preparando uma xícara de chá para você - disse ele ao voltar um ou dois minutos depois com gelo triturado enrolado em um pano. Ele colocou-o na testa dela e disse: - Que tal? - Gelado? - tentou ela. - Certamente era uma idéia bem melhor do que a do chá, cuja idéia a fazia sentir-se enjoada. Não disse isso a ele. Dr. Talbot diagnosticaria uma concussão e a mandaria para o hospital antes que ela pudesse reclamar, e isso o deixaria feliz... Ela, porém, agradeceu a ajuda e tirou o saco de gelo da cabeça. - O que Maisie está fazendo? - perguntou ela, mais por distração do que por preocupação. - Sendo Maisie. Estranhamente, ela entendeu exatamente o que ele queria dizer. - Droga! O que eu fiz com meu celular? Tinha certeza de que tinha colocado no meu bolso. - Talvez tenha caído em algum outro lugar. Você vai encontrá-lo quando ele tocar. - Mas eu o quero agora! - Desculpe... Só preciso saber o que está acontecendo. Maisie não devia ter sido deixada dessa forma. - Achei que tivesse dito que ela queria ficar. - Não é essa a questão. - Mas você está certo. Ela parece feliz. - Mas é claro que você quer seguir sua vida. - Eu não disse isso. - Disse? - Não - Você encontrou alguma roupa mais prática para ela usar enquanto isso? - Encontrei, ou melhor, não. - Bem, ficou muito claro - ele se inclinou na frente dela para verificar se seus olhos não estavam ficando vidrados. - Eu encontrei algumas coisas - disse ela, levantando-se. - Mas ela realmente não é uma menina que usa suéter e calça jeans. - Ela não pode passar a vida toda usando vestidos de festa. Ela tem de ter roupas comuns. - Acho que você está certo. Obviamente houve algum engano na hora de arrumarem a mala dela. Felizmente, eu encontrei isso - ela procurou no bolso de sua camisa e tirou a fotografia que encontrara. Os dedos estavam molhados, e ela enxugou-os na manga antes de entregar para ele. É a mãe dela usando a mesma roupa. Ele olhou a foto por um momento, depois devolveu para ela, sem comentar. - Funcionou? - Você trocaria babados de tafetá rosa por macacão jeans sem reclamar? - Felizmente, nunca tive de fazer essa escolha. Aquilo foi um sorriso? Uma leve insinuação de um sorriso? - Na verdade, tive uma idéia brilhante e sugeri tirar uma foto dela exatamente como essa. - Então, qual é o problema? Precisa de uma máquina? Deve ter uma em algum lugar por aqui. - Obrigada, mas tenho uma câmera. Estava saindo de férias - lembrou ela. - Então ela ainda vai tirar foto cheia de babados rosa? É melhor tirar isso, não? - Não. Você está na fotografia original, e ela quer uma exatamente igual. - Mas não tem pressa. As 34
roupas estão lavando e é melhor não tirar fotografias esta manhã. Enquanto isso, vou procurar meu celular. - Jacqui... Ela fez um esforço para levantar, mas os joelhos dela não responderam. Não tinha nada a ver com a forma como ele dissera seu nome. - Sinto muito. - Por quê? Não foi culpa sua eu ter batido com a cabeça. - Sobre suas férias. - Ah, isso... - Prometo não tocar mais no assunto se você tirar a foto com Maisie. - Você providencia o sol... e eu apareço para tirar a foto - ele não resmungou exatamente, o embrião de sorriso se fora mas ele não pareceu irritado pela tentativa dela de fazer uma chantagem emocional. Isso indicava que ele sabia alguma coisa sobre as condições climáticas em High Tops que ela não sabia. Não importava. Ele prometera. E o sol teria de aparecer em algum momento, se ela ficasse ali tempo suficiente... ele estava brilhando naquela velha fotografia que encontrara, não estava? - Agora que resolvemos isso, tem alguma chance de eu tomar umas duas aspirinas? - Só se você ficar deitada por uma hora para esperar que façam efeito. - Está me mandando para a cama? Que coisa burra de se dizer. Da forma como se sentia naquele momento, ele teria de carregá-la, e ela não achava que encostar no peito dele faria algum bem para seu estado atual. E ela não era tão magra quanto a prima dele. - E Maisie? - perguntou ela. - Susan pode tomar conta dela. - Ela tem outras coisas para fazer. Galinhas, casa, trabalho... - Isso não é problema seu. Ok, ela tivera esperanças de que ele mudaria completamente e se ofereceria para cuidar dela, mas sua cabeça doía muito para pensar nisso. - Tudo bem. Mas não vou para cama de jeito nenhum. - É claro que eu poderia insistir para você ir ao pronto-socorro tirar uma radiografia. Bem... - você pode ficar na biblioteca. - Na biblioteca? Você quer dizer que vai deixar eu voltar para a parte elegante da casa? Tinha realmente dito isso? A batida em sua cabeça deve ter sido mais forte do que pensara. Ele contraiu o rosto, possivelmente porque era contra a ética médica gritar com alguém sentindo dor, mandar que calasse a boca. - Acho que "elegante" é um pouco demais, mas pelo menos não vai ter que dormir em um sofá cheio de pêlos de cachorro. Ela achou que deveria dizer alguma coisa, porém não conseguiu pensar em nada razoável. - Consegue andar? - Claro que consigo andar - disse ela, fazendo o possível para ignorar o fato de que sua cabeça rodava. - Não sou uma inválida. - Não, só uma chata. Você nunca vai parar de falar assim? - Claro que eu... - Foi uma pergunta capciosa, não? Ele não respondeu, provavelmente para demonstrar que um deles tinha controle sobre a boca. Jacqui olhou rapidamente para o corredor, a escadaria de carvalho que levava ao quarto dele e, então, estava em um quarto que tinha o clima perfeito de conforto que só se consegue através de gerações. Havia cortinas de veludo que um dia foram verdes, tinham agora um desbotado cinza. Um tapete persa puído. Um conjunto estofado enorme. Uma bonita lareira de toras. E várias prateleiras de livros nas paredes. Nada parecido com a terrível casa do gigante do livro de história de sua infância. Harry foi até a lareira e abaixou-se para acendê-la, embora o cômodo não estivesse frio. Ela encostou-se na beira do sofá, enquanto observava os movimentos hábeis dele. E esqueceu-se de sua própria dor no estômago piorar. Então fechou os olhos. - Jacqui? - Você está bem? 35
- Estou - disse ela, abrindo os olhos. - Você está um pouco pálida. Está enjoada? Estava, mas não por conseqüência da pancada na cabeça. - Estou bem, mesmo. Ele continuou olhando para ela por um momento, antes de virar-se para o fogo de novo. Quando teve certeza de que estava aceso, colorou um anteparo na frente. - Jacqui. - Ela olhou para o pacote de gelo que estava derretendo em seu colo. - Não preciso disso - protestou ela. - Eu deveria estar... - O quê? ... Procurando o celular. Para ligar para Vickie. Mas, como Harry comentara, Maisie estava feliz. Então por que estava esquentando a cabeça, em vez de fazer o que mandaram, relaxar e deixar as coisas se resolverem sozinhas? - Nada - respondeu ela. - Agora você só tem de colocar os pés para cima e eu vou pegar as aspirinas. E para evitar qualquer discussão, ele se abaixou, levantou os pés dela e colocou-os no sofá. Capítulo 7 Quando Harry voltou dois minutos depois com as aspirinas e um cobertor, Jacqui dormia. Ele a observou por um tempo. A cor voltara e sua respiração estava normal, mas havia manchas escuras embaixo dos olhos dela que não tinham nada a ver com a pancada na cabeça. Ele as notara ontem à noite quando ela descera para tomar um chá, sem a maquiagem que usara para disfarçar as olheiras. Jacqui Moore, ele suspeitava, não vinha dormindo bem há algum tempo. Não havia dúvidas de que tinha algum homem por trás disso. Por que outro motivo ela estaria saindo de férias sozinha? Ele deixou os analgésicos no sofá e, com tanta gentileza quanto conseguiu, cobriu-a com o cobertor. - Como ela está? - perguntou Susan, que entrara com o chá. - Ela apagou. - Jacqui não deve ficar sozinha. O filho da minha irmã caiu de uma árvore e... - Certo, obrigado, Susan. Não sairei daqui, ficarei de olho nela. Pode deixar a bandeja. - Tudo bem. Estarei no quarto lá de cima se precisar de mim. - Leve Maisie com você. Não quero que ela venha aqui perturbar Jacqui. Susan fez um som que só mulheres com uma certa idade conseguiam. Dizia mais do que palavras. - Ela deveria estar na escola, brincando com crianças da idade dela. - Guarde o sermão para quando Sally voltar. - Não posso me segurar. Tenho certeza de que a Sra. Jackson, diretora da escola, ficaria feliz em matricular Maisie. - Sem dúvida, mas ela não vai ficar. - Se você está dizendo... - ela colocou a bandeja na mesa - bem, não posso ficar aqui fofocando. Se precisar de alguma coisa, sabe onde me encontrar. - Pode procurar o celular de Jacqui? Não está em meu escritório. Ela deve ter deixado cair em algum lugar lá em cima. - Está bem. Quando ela se virou, os dois viram Maisie, meio escondida pela porta aberta, aparentemente com medo de se aproximar mais. - Ela está morta? - sussurrou ela. - Eu a matei? - Você?! - exclamou Susan. - Por que você pensaria uma coisa dessas...? Ele atravessou a biblioteca até a porta, levando-as para fora. - Ela bateu com a cabeça na mesa, Maisie. Não tem nada a ver com você - disse ele, colocando um ponto final na discussão. Mas ela estava procurando o... Ela vai ficar bem. Só precisa de sossego por uma hora, só isso. Vá com Susan, agora. - Eu preferia levar você para a escola. - Obrigado Susan. - Posso? Na cidade? Agora? Por favor... Maisie estava agitada de forma pouco habitual. - Acho que não. Talvez - acrescentou ele cruelmente, - se sua mãe tivesse colocado na mala algu36
ma roupa razoável para você usar... - Não foi culpa dela! Eu que arrumei a mala. Eu só queria ficar bonita para você gostar de mim! Então, como se estivesse horrorizada pelo que dissera, ela se virou e saiu correndo. Susan apenas olhou para ele. - Você sabe, Sr. Harry, não é da minha conta dizer isso, mas essa menina precisa de um pouco de ordem na vida dela. - Você está certa, Susan - concordou ele. - Isso não é da sua conta. Ela resmungou algo e foi atrás de Maisie. O cão de caça se aproveitara da chegada de Susan para entrar sorrateiramente na biblioteca e estava deitado tranqüilamente em frente à lareira, esperando não ser notado. Harry jogou mais uma tora e depois se virou para certificar-se de que Jacqui não tinha sido perturbada. Ela estava virada de lado, o rosto repousando nas mãos, uma mecha de cabelo sedoso caindo sobre a sua testa. Ele passou o dedo por baixo da mecha, tirando-a com cuidado do rosto. E foi quando ele notou a pulseira de prata no pulso dela. Viu também o único detalhe, o coração de prata. Tinha uma mensagem gravada, palavras minúsculas que ele sabia que não eram da sua conta, mas ao se mexer, o ângulo da luz mudou e as palavras saltaram para ele: "... esqueça e sorria...". Ele conhecia isso de algum lugar e procurou nas prateleiras um dicionário de citações, finalmente encontrando o verso. E ele sentiu... alguma coisa. Deixara de lado as emoções, por tanto tempo, que agora não sabia dizer o que era. Apenas que doía. Que se não a afastasse, a dor se tornaria insuportável. Mas ele reconhecera o perigo no momento em que ela colocou o pé em sua casa e se recusou a ser colocada para fora. Ele tentara, mas diferente da maioria das pessoas, ela parecia imune à sua rudeza. Era quase como se ela entendesse o que ele estava fazendo. Ridículo, claro, pensou ele. Ela não o conhecia e não sabia nada a seu respeito. Mesmo assim, ela encontrara um jeito de entrar em sua casa, em sua vida, e ele estava com medo de que ela não ficaria contente até que derrubasse a armadura que ele montara para manter afastados os curiosos, os intrusos. Neste momento, essa parecia a menor de suas preocupações. Podia manter o mundo externo afastado. Era o que estava dentro dele que não conseguia encarar. Afastando-se cambaleante do sofá, ele pegou uma biografia na prateleira e acomodou-se em uma poltrona. Lendo. Observando. Observando... Jacqui se agitou. Estremeceu quando a testa encostou na lateral do sofá. E arriscou abrir os olhos. As toras tinham queimado até se tornarem um brilho translúcido. O cão de caça, que Jacqui tinha certeza que não devia estar na biblioteca, estava deitado tirando um cochilo em frente ao fogo. Com cautela, ela procurou o machucado na testa. Estava dolorido, mas o galo estava pouco visível, e vendo que sobreviveria, ela se sentou com cuidado para não fazer nenhum movimento brusco. E foi quando ela viu que não apenas o cão lhe fazia companhia. Harry Talbot estava sentado em uma poltrona perto da lareira. Ele estivera lendo, mas o livro caíra no chão e ele estava dormindo profundamente. A maioria das pessoas e ela se incluía nessa "maioria", fica levemente abobalhada enquanto dorme; com a bochecha e o queixo caindo um pouco. Mas não havia nada disso nos traços de Harry. A diferença era na ausência de tensão. Ela sumira do rosto dele, e a mudança era tanta que ela finalmente entendeu que não era com ela nem com Maisie que ele estava usando sua rudeza para que ficassem afastadas. Era com o mundo inteiro. Ela não o incomodou. Em vez disso, levantou a perna e, apoiando-se na almofada que fora colocada sob ela, sentou-se. O cão levantou a cabeça animadamente. - Shh! Deite, rapaz - sussurrou ela para o animal. Talvez ele tenha entendido, ou talvez fosse esperto o suficiente para perceber que, se se movesse e perturbasse o homem que dormia, perderia o lugar quentinho em frente à lareira. Então, ele repousou a cabeça sobre as patas, levantou os olhos para Harry e suspirou. 37
Como Maisie, ele era outra alma em busca de um mundo mais generoso, de um toque afetuoso. O pensamento, de alguma forma, pegou-a de surpresa. Por que Maisie buscaria atenção em Harry? Por que ele se opunha à adoção dela? Havia alguma coisa sombria a esse respeito? Ele deixara subentendido que sabia de mais coisas. Ainda assim, a forma estranha e levemente agressiva que Maisie adotava ao falar dele, trazia todas as marcas de uma necessidade silenciosa de ser notada, amada. - Um centavo por seus pensamentos. Ela deu um pulo, sobressaltada pela voz de Harry. - Desculpe - disse ele. - Não queria assustá-la. Como está a cabeça? - Bem. Um pouco dolorida - não está mal. Parece que você também precisava dormir... Ele pegou o livro e ficou de pé. - Apenas descansando os olhos - disse ele, dispensando a preocupação dela enquanto guardava o livro na prateleira. - Bem... estou pronta para o chá agora - ela falou, levantando-se com cuidado do sofá. Ou estaria pronta depois que fosse ao banheiro. - Posso preparar para você também? - então, ela viu a bandeja arrumada para dois. - Ah! - ela se aproximou e pegou o bule. Estava gelado. - Por quanto tempo eu dormi? Ele olhou no relógio. - Duas horas. - Você acha que peguei no sono porque tive uma concussão? Eu estava apenas cansada. Não dormi bem a noite passada. - Desculpa indireta para a precariedade do quarto, colchão duvidoso. Mais preocupação com o anfitrião do que com o conforto... - Por favor, não se desculpe. A cama estava boa. Eu só estava preocupada com Maisie. - Você já verificou se os telefones voltaram a funcionar? - Ainda não - admitiu ele. - Fique à vontade. Ele apontou para um telefone em uma pequena escrivaninha perto da janela. Diferentemente da mesa do escritório dele, essa não tinha bagunça e nela havia apenas um laptop e o telefone. Ela pegou o aparelho. Não dava linha, mas o cão, prevendo algo, aproximou-se e começou a cheirar embaixo da mesa, batendo com alguma coisa contra o móvel. Olhando atrás da mesa para ver o que ele pegara, Jacqui percebeu que era a tomada do telefone. Não estava ligada, e sim caída no chão. Quando ia dizer a Harry, viu Susan e Maisie, em sua combinação ridícula de vestido de babados e galochas, dando cenoura para um casal de burros que estava perto do muro de pedra que separava a estrada do campo. De repente, entendeu o que tinha acontecido. Maisie. Foi ela! Andara pela casa desligando os telefones. Escondera o celular. Apenas para ganhar tempo. - Bem? - perguntou Harry. Ela se espantou com a proximidade da voz dele e praticamente colidiu com ele ao se virar na tentativa de esconder o que Maisie fizera. Por um momento, a biblioteca girou, e ela precisou se segurar para não cair. Harry amparou a moça. - Jacqui? Quando ela levantou o olhar, o rosto dele não estava mais distante, contraído, furioso, mas demonstrando apenas preocupação. - Está se sentindo tonta? Não... Sim... Não da forma que ele pensava... - Estou bem - disse ela, um pouco sem fôlego. - Diferente do telefone. Contar a ele o que Maisie fizera só pioraria as coisas entre eles, e ela refletiu que mais alguns minutos não mudariam as coisas. Só o que precisava fazer era esperar até que Harry estivesse em uma distância segura, ligar o telefone e deixá-lo supor que tinham consertado o telefone. - Ainda sem linha? - perguntou ele. O subconsciente implorava: "Diga a ele". Ela o ignorou. - Hã, ainda... nada... - disse ela, levantando o telefone para que ele pudesse escutar. Embora isso fosse tecnicamente verdade, ela estava bem consciente de que isso era "mentir por 38
omissão", e sua voz tinha aquela qualidade levemente furtiva que sua mãe reconheceria na hora. Claro, isso devia ter mais a ver com a mão de Harry apoiada em seu ombro, sua proximidade, do que com a total inabilidade de mentir sem levantar a voz. Ele pegou o telefone da mão dela, mas talvez tivesse aprendido a lição da última vez, porque não se incomodou em escutar, simplesmente desligou. - É melhor dar mais uma olhada na sua cabeça - falou ele. Harry não esperou a permissão dela para isso. Ela recuou apenas o suficiente para mostrar ao homem que podia se virar, mas não tão longe que quebrasse o contato. - Gostaria de entender melhor. Quando diz que é médico... - Sim? - Está querendo dizer que cursou medicina? Jacqui finalmente conseguiu o sorriso que esperava. Humor genuíno, que ficava tão bem, tão sensual em um homem. - Essa é uma boa pergunta, Jacqui. Mostra que seu cérebro ainda está funcionando bem. - Ah, meu Deus, isso significa que a resposta é não... Que bom - disse ela. - Você pode me responder? Ou devo concluir pela evasiva que você, na verdade, é doutor em filosofia? Um estudioso em algum assunto tão obscuro quanto escrita babilônica, talvez? Ou nos hábitos de reprodução dos macacos? Ou até...? - Relaxe, Jacqui. Está segura em minhas mãos. Não se sentia segura... Mas isso era o que uma pancada na cabeça fazia. Deixar as coisas indefinidas. Principalmente os sentidos; ele era o gigante mau que morava no topo da montanha, lembrou-se ela... - Medicina é o negócio de família. Meu bisavô era o médico local. - Mesmo? A cidade não parece grande o suficiente para ter vários médicos. - Mas costumava ser na época em que, nas fazendas, havia homens e não máquinas. Mas o consultório fechou uns dez anos atrás quando meu primo foi trabalhar em um hospital grande em Bristol. - Que bom para ele. Não muito bom para o pessoal daqui. O que eles fazem agora? - Dirigem quinze quilômetros até a cidade mais próxima, como a maioria das pessoas em comunidades rurais. - Definitivamente não é bom quando se é velho ou tem uma criança doente. - Eles deviam experimentar viver em um lugar onde se tem de caminhar por uma semana... Então, quando ele desaparecia por meses, estava trabalhando? Na África? Ela não pressionou para que ele desse mais detalhes, apenas armazenou a informação para examinar mais tarde. - Então, esse era seu bisavô. E seu avô? - O quê? - perguntou Harry ameaçador. - Você disse que era negócio de família - lembrou ela. Por um momento, ela achou que ele fosse mandá-la para o inferno e dizer para não se meter onde não era chamada. - Ele é cardiologista - disse ele. E meu pai é oncologista, e minha mãe é pediatra. Tem mais alguma coisa que gostaria de saber? Ele parecia um pouco surpreso por ter dito tanta coisa, pensou ela. Como se não estivesse acostumado a falar sobre si mesmo ou sobre a família. - Todos eles são pessoas muito ocupadas, como você pode ver. Como Selina Talbot. Obviamente colocando a carreira na frente da família também. - E você? - perguntou ela, olhando para ele. - Vou ver você de novo - ele pegou o queixo dela antes que ela pudesse argumentar, sendo assim forçada a ficar com a cabeça parada enquanto ele verificava com o dedo sua linha de visão para que ela seguisse com os olhos. - Sou um médico que está satisfeito por você não ter se machucado gravemente desta vez, mas que aconselharia ter mais cuidado ao engatinhar embaixo dos móveis. E evitar andar para trás. - Não foi isso que perguntei, Harry. - Eu sei. A mão dele estava gelada quando encostou no pescoço e no queixo dela. E tudo que era feminino nela respondeu com uma onda poderosa de desejo. Ela sentiu que queria que ele a beijasse. Que a tocasse. Que a envolvesse nos braços fortes o suficiente para carregar o mundo inteiro. 39
Talvez a pancada na cabeça dela tenha causado mais danos do que ele imaginava, porque ela sentia uma reação tão forte quanto a sua por parte dele. Poderiam ficar assim para sempre, trancados em um encantamento de algum conto de fadas no topo dessa montanha coberta de névoa... - E? - insistiu ela, quebrando a magia. Contos de fada eram para crianças. - Não tenho resposta para sua pergunta, Jacqui. Não sei mais o que sou. Antes que ela conseguisse ao menos começar a formular uma resposta, ele recuou, deixando a mão cair, distanciando-se dela. Agora que ele se abrira, como uma ostra envolvendo uma pérola, ela suspeitava que ele se sentia exposto e vulnerável. Como para confirmar seus pensamentos, ele quebrou o contato visual com ela, olhando para a janela. A distância, física e mental, apenas servia para demonstrar como tinham estado próximos por aquele breve momento. Como era frio estar separado. - A névoa está indo embora. Parece que vai conseguir um pouco de sol antes de ir embora. - Deixarei minha câmera pronta - disse ela, com o coração apertado ao se virar para acompanhar o olhar dele. Maisie e Susan estavam voltando para a casa. A névoa certamente estava menos densa e ela até teve a impressão de ver o céu azul. - E melhor eu ir ajudar Susan - disse ela. E sondar Maisie sobre o telefone. Vickie e Selina deviam estar arrancando os cabelos. Não que estivesse agindo de forma muito mais responsável. Realmente devia ter contado a Harry, mas ele ficaria com tanta raiva da menina, e uns minutos a mais ou a menos não fariam diferença. Assim que ele saísse para consertar o aquecedor, ou qualquer coisa que fosse fazer para preencher o seu dia, ela ligaria o fio do telefone. Ela atravessou a biblioteca, pegou a bandeja, e Harry, como se arrependido da confidencia, foi rapidamente abrir a porta. - Está quase na hora do almoço - disse ela. Ia sugerir que ele se juntasse a elas, mas pensou melhor. Faria o possível para aproximar Maisie e Harry, mas se fosse muito óbvia, ele perceberia. Posso providenciar alguma coisa para você? - Você deveria ir com calma. - Estou indo com calma. Passei a manhã inteira dormindo em frente ao fogo enquanto Susan fez o meu trabalho e o dela. Se isso lhe deixa mais tranqüilo, - acrescentou ela - posso assegurar que não será nada mais elaborado do que torradas ou um sanduíche. O que você prefere? Ela foi esperta ao não sugerir que ele se juntasse a elas na cozinha. - Se você for preparar sanduíches, aceito um. Ele deixou-a parada na porta, foi até a escrivaninha e abriu o laptop. Para demonstrar que não tinha intenção de sair dali pelo resto do dia, sentou-se, assim conseguindo com um único golpe acabar com os planos dela. Harry ligou o laptop, determinado a não olhar na direção de Jacqui enquanto ela deixava a biblioteca. Mas a delicadeza da pele dela estava grudada em seus dedos, o cheiro dela renovava seu corpo como o ar de primavera. Pensamentos pouco adequados para um médico. Porém, não se via como um desde que fora mandado embora para casa seis meses antes de quase ter um colapso nervoso. Mal conseguira acreditar no que estava ouvindo quando respondera à pergunta de Jacqui com um "sim". Como se quisesse que ela tivesse uma idéia positiva a seu respeito. Não se importava com o que ela pensava dele. Fez uma careta. Insistira tanto para que ela fosse embora assim que o carro fosse consertado. Agora, não podia mais pedir para ela voltar para Londres hoje. Mesmo se a oficina trouxesse um escapamento novo para o carro dela, se a linha telefônica voltasse a funcionar e Sally se mexesse para providenciar novas alternativas para Maisie. Ele passou a mão no rosto, sentiu a barba que não fazia há dias. Era só imaginação, ou quando abrira a porta para ela, Jacqui o olhara como se fosse um monstro? Fechou o laptop. E daí se ela achasse? A chegada da caminhonete da oficina o poupou de confrontar-se com seus pensamentos, mas ao 40
empurrar a cadeira, viu a pulseira de Jacqui jogada ao lado da escrivaninha. E então, ao abaixar-se para pegá-la, viu a tomada do telefone caída no chão. Capítulo 8 Quando Harry se aproximou da cozinha, escutou uma gargalhada. Isso fez com que parasse abruptamente. - Susan, uma palavra - disse ele, com um tanto mais de rudeza do que tinha intenção. - Estou de saída - respondeu ela, pegando um cachecol no bolso. - Devia ter ido embora meia hora atrás. - É só um minuto. Só gostaria de pedir que tivesse mais cuidado ao passar o aspirador de pó. Ela levantou a cabeça. - Faço o melhor que posso para limpar os pêlos dos cachorros. Eles não deveriam entrar na biblioteca nem na sala de estar. A senhora não admite isso quando está em casa. Claro, se eu tivesse um daqueles aspiradores... - Não estou falando sobre os pêlos dos cachorros, mulher! Harry se viu confrontado por três pares de olhos femininos: um par se estreitou em desaprovação, um par era escuro e muito redondo, o outro contornado por sobrancelhas levemente arqueadas. - Sei que trabalha duro para limpar a sujeira que os animais de Sally fazem, mas não é esse o problema. Ele teve a estranha sensação de que todas estavam prendendo a respiração. - Pelo contrário - continuou ele. - No seu esforço de fazer um serviço completo, parece que você soltou a tomada do telefone da biblioteca. É por isso que não conseguimos fazer nem receber ligações a manhã toda. Ela franziu a testa. - Mas eu não... Pelo canto do olho, ele viu um movimento, mas quando se virou para olhar para Jacqui, ela não estava fazendo nada mais suspeito do que colocar o cabelo atrás da orelha. Harry virou-se para Susan de novo, que, com uma humildade rara, disse: - Sinto muito, senhor. Serei mais cuidadosa daqui em diante. - Não! - Maisie, que estava sentada à mesa da cozinha, ficou de pé, derrubando a cadeira e fazendo a galinha sair cacarejando. - Não! - repetiu ela. - Não deve culpar Susan. - Fui eu! - disse ela, parecendo mais uma adolescente irritada do que uma menina de seis anos. - Maisie? Foi de propósito? Ele olhou para Jacqui à procura de algum tipo de razão e percebeu que ela sabia. Os olhos dela estavam cheios de lágrima, implorando a ele para entender, para ser generoso... - O que você fez, Maisie? - Desliguei o telefone. - Da biblioteca? - Da biblioteca - respondeu ela com um toque de desafio. - Do escritório, da cozinha... Ele foi até o telefone da cozinha e puxou um sofá para encontrar a tomada solta no chão. Harry não perguntou mais nada, podia imaginar agora Sally tirando a tomada quando não queria atender a uma ligação. Ele simplesmente colocou-a no lugar e levantou-se. Maisie podia ser um pequeno demônio, mas pelo menos não estava preparada para deixar uma outra pessoa levar a culpa por ela. Ele sabia exatamente por que ela desligara os telefones, claro. Jacqui repetira diversas vezes. Ela não queria que ele falasse com Selina nem com tia Kate. Queria ficar. Se ele permitisse que Maisie lhe dissesse isso, nunca seria capaz de mandá-la embora... - Obrigado por ser tão honesta - disse ele. - Foi muito corajoso de sua parte. - E você, Susan, é muito mais bondosa do que ela merece. Deixe um bilhete sobre esse aspirador na minha mesa que resolverei isso. Houve uma batida rápida na porta dos fundos e um chamado: - Alguém em casa? - É o mecânico que veio consertar o carro - disse ele para Jacqui. - Posso confiar em você para ligar para a agência enquanto falo com ele? 41
Ele não se incomodou em disfarçar a raiva. Ela era adulta e não merecia tratamento de criança. - Devem estar muito preocupados por não terem tido notícias suas. Ou a história do celular perdido era mentira também? Ela olhara para ele com aqueles grandes olhos acinzentados, segurara o telefone para ele escutar o silêncio e todo o tempo sabia o que Maisie tinha feito... Enquanto ele se afastava, escutou o telefone começar a tocar. Como previsto isso não indicava alívio. Pelo contrário, tinha um som estridente de sino. - Bom dia, Dr. Talbot. O mecânico colocara o carro de Jacqui na carroceria de sua caminhonete e estava limpando as mãos em uma estopa. - Mike, vai levar o carro para a oficina? - Melhor dar uma boa olhada na parte de baixo do carro. Nada pior do que um serviço mal feito. - Verdade. - Quer que eu espere até sua hóspede ir embora? Ela não vai querer colocar o novo escapamento para descer a ladeira, não é? Ele não dissera nada sobre uma hóspede, nem que o Fusca pertencia a uma mulher. Mas ela pedira informações na loja da cidade, o equivalente local a uma manchete de jornal. - Quando vai ficar pronto? Quanto mais cedo ficasse pronto, mais cedo se livraria da presença perturbadora dela. Voltaria ao normal. Ou o mais próximo disso que conseguisse. - Ah, bem, eu liguei mais cedo. Você sabia que seu telefone está com problemas? Já avisei a companhia. - Então sua ligação deve ter resolvido, porque já está funcionando de novo. - Ah, tudo bem - disse ele, apontando para o carro. - O problema é que esse é um modelo antigo. Vai levar um dia ou dois para conseguir as peças, mas como tive de vir aqui em cima falar com o senhor, achei que pouparia uma viagem ao levá-lo comigo. O atraso vai ser um problema? - Vai fazer alguma diferença se eu disser que sim? - Não, mas posso providenciar um carro alugado, se a senhorita precisar... Ele resistiu à tentação. Mesmo se arrumasse um outro carro, para onde ela iria? Pensara em sugerir que levasse Maisie para a casa dela. Se ela recusasse, não havia como insistir. - Daremos um jeito. Apenas faça o serviço o mais rápido possível. E Mike, pergunte ao seu irmão se ele vai consertar os buracos na ladeira - o objetivo de negligenciar isso antes fora uma maneira de afastar pessoas, não deixá-las presas aqui sem poder sair. - Quero conversar com ele assim que o tempo melhorar. - Não espere muito tempo. Ele vai começar a trabalhar nas casas novas depois da Páscoa. - Casas novas? - Um pouco de desenvolvimento. Sua tia Kate é uma mulher cautelosa. Ela levou a cabo o plano de construção no campo embaixo da estrada. As casinhas vão manter os jovens aqui e salvar a escola da cidade. Além disso, é um meio de trabalho para nós. - Vai mandar sua menininha para lá? As palavras dele, ditas com tanta casualidade, foram como uma facada bem no coração. - Não. Ela não vai ficar. Ligue para mim quando o carro estiver pronto. Sem esperar por uma resposta, ele se virou e saiu rumo à montanha chuva de névoa. Jacqui, desligando o telefone, viu seu precioso carro sendo carregado pela caminhonete e, como Harry não estava por perto, foi ver o que estava acontecendo. O mecânico acabou de prender o carro e então levantou o olhar. - Bom dia, senhorita. Essa é a sua beleza? Ela sorriu. - É lindo, não é? - Graças a você. Pena ter tido de subir até aqui. - Para onde vai levá-lo? - Oficina do Mike. A propósito, eu sou o Mike, ele esticou a mão, e, percebendo que estava suja, pensou melhor. - Você encontra nossa oficina lá embaixo, atrás da loja da cidade. Disse para o Dr. Talbot que vai levar uns dois dias para eu conseguir as peças. É a idade do carro, entende? Não costuma ter peças em estoque. Eu ofereci para providenciar um carro de aluguel, mas ele disse para não me incomodar. 42
- Disse? - o coração dela deu um pulo que ela não conseguiu decifrar. Talvez porque quisesse dizer que ele não a colocaria para fora na primeira oportunidade que tivesse. - Se não estiver bom para a senhorita, é só dizer. - O quê? Não. Não, mesmo, se eu precisar ir à cidade, tenho certeza de que Harry não vai se incomodar de me emprestar o jipe dele. E entendo sobre as peças. Já tive problemas parecidos antes. Não estou com nenhuma pressa. Por alguma razão, ele pareceu achar isso engraçado. - Como quiser, senhorita. Pode fechar o portão para mim? - Claro. Ela esperou até que ele tivesse passado e fechou-o antes de voltar para a casa. Um movimento chamou sua atenção e ela viu a forma escura de um homem movendo-se rapidamente com passos furiosos em direção ao cume da montanha. Ele tinha todo o direito de estar furioso. Jacqui devia ter contado sobre a proeza de Maisie com os telefones. Mas agora reforçara sua maluquice ao encorajar Mike a não ter pressa em consertar o carro. Não que isso fosse fazer alguma diferença de um jeito ou de outro, já que tudo o que Vickie conseguira lhe dizer na rápida conversa que tiveram foi que Selina Talbot não tinha respondido aos seus recados, mas para "não se preocupar" que ela estava "ligada". Talvez devesse fazer o serviço completo, ligar de volta para ela e dizer para não se apressar também, embora estivesse chegando rapidamente à conclusão de que isso não faria nenhuma diferença. Selina Talbot devia saber que a mãe estava na Nova Zelândia, já que não fora uma viagem marcada de última hora. Talvez fosse paranóia, mas estava começando a ter uma forte sensação de que Selina sabia o que estava fazendo. Que Harry seria o único adulto responsável disponível e, em vez de dar a ele a oportunidade de dizer não, simplesmente apresentara uma situação irreversível. Sozinho com uma menina... e uma babá. Porque desde que chegara a essa conclusão, ora óbvio que, apesar de seus protestos dizendo o contrário, Vickie Campbell, que não era nada burra quando se tratava de seus negócios, devia saber exatamente qual era a situação. A única coisa que a deixava confusa era o fato de ninguém ter pensado em arrumar uma mala para Maisie com roupas mais razoáveis. - Os coelhos! Você tem que ver os coelhos! Jacqui estava fazendo um tour com Maisie para conhecer os animais. Já tinham dado uma maçã para Chocolate e escovado a crina dele. Tinham levado cenouras para os burros, que estavam com cara de poucos amigos, mas, lembrando-se do problema que Harry tivera com eles, Jacqui segurou firme a mão da menina quando foram para o portão. Agora estava sendo arrastada para um pequeno cercado atrás do estábulo, onde os coelhos e galinhas tinham grande e confortável alojamento. A relutância tinha mais a ver com as galinhas do que má vontade em visitar os coelhos. Elas ficavam soltas, ocupando-se em perseguir minhocas. Jacqui não gostava de seus bicos afiados, dos pequenos olhos, e do jeito que andavam levantando a cabeça. As galinhas deixavam-na nervosa. Já os coelhos, estavam resistindo à tentação de deixar o conforto das gaiolas e se aventurar em uma corrida. - Experimente dar uma cenoura, Maisie. Coelhos gostam de cenoura, não gostam? - Não tanto quanto de folhas, ela deu um pulo quando Harry falou poucos metros atrás dela. A grama macia abafara a aproximação dele, e ela estava tão distraída, olhando as galinhas, que não o vira. - Por que você não me contou, Jacqui? Não querendo que Maisie testemunhasse o que seria uma conversa constrangedora, Jacqui deixou-a empurrando uma cenoura pela cerca de arame e foi até o muro de pedra na outra extremidade. Harry, entendendo a dica, seguiu-a, virando as costas para o muro e encostando-se nele. Esperando a explicação dela. - Fiquei sabendo sobre o telefone cinco minutos antes de você. Peço desculpas por não contar, mas percebendo que devia ter sido Maisie e sabendo o quanto você detesta que ela esteja aqui, esperava protegê-la de sua raiva. - Eu tinha a intenção de lidar com isso sozinha na primeira oportunidade. Teria dado certo se você não tivesse decidido ficar na biblioteca. - Você achou que eu gritaria com ela? 43
- É uma suposição razoável. Mas você não gritaria, não é mesmo? - Apesar das aparências, Jacqui, não sou um ogro. Ela se aproximou, tocou o braço dele, com muita leveza, como se o gesto de alguma forma fosse mostrar que tinha entendido tudo errado. É claro que ele não era um ogro. Ele era infeliz. Mas não era assim na maioria dos contos de fadas? - Quero dizer, você guarda tudo aí dentro. Talvez fosse melhor se você gritasse com Maisie... Tenho certeza de que ela conseguiria lidar com a explosão emocional bem melhor do que com a indiferença... - Posso continuar sem psicologia amadora, disse ele. - Só estou dizendo o que vejo, mas da próxima vez talvez seja melhor botar tudo para fora. Dizem que é terapêutico. - Você não entende como isso é difícil para mim... - ele fez um gesto de impotência. - Ela é só uma menininha, Harry. O fato de ela ser adotada, de ter uma cor diferente da sua, não faz a menor diferença. Ela só quer que você a aceite... Ela ia dizer "a ame", mas achou que isso seria emocional demais. - Cor? - perguntou ele, franzindo a testa. Jacqui engoliu em seco, desejando não ter trazido esse assunto à tona agora. Mas as palavras não podiam ser retiradas. - Ela me disse. - O quê? - Quando eu tentei explicar que não poderia ficar aqui, ela me perguntou se era porque ela era adotada. Por causa da cor dela... Ela olhou para Maisie, cantarolando para os coelhos, incitando-os a brincar. A garota parecia tão feliz, tão relaxada, tão diferente da menininha que fizera aquela súplica comovente. - O que ela disse, Jacqui? Ela levantou a mão, fazendo um gesto para que ele esperasse, pois por um momento, não conseguiu falar... - Tudo bem - disse ele. - Posso imaginar tudo sozinho. Ela disse que eu não a amava, não a queria porque ela é adotada ou diferente. É essa a questão? Ela disse que sim e perguntou: - Isso é um problema para você? Ele não disse nada por um tempo, apenas olhou o chão. - É, isso é um problema. - O quê? Ela não disse isso em voz alta, mas talvez sua expressão fosse suficiente. - Quando olho para ela tudo que consigo sentir é. - Não. Nem mais uma palavra. Eu estou aqui morrendo de constrangimento por pensar mal de você, e agora você me diz que é verdade? - Eu... - Veja, Jacqui! - Maisie com os olhos brilhantes, correu com alguma coisa presa em sua mão. Jacqui se recompôs, depois se virou e abaixou até a altura da menina para que pudesse ver o que ela estava segurando. Forçou-se a sorrir. A falar normalmente... - O que você tem aí, amor? Maisie abriu as mãos e mostrou um pintinho amarelo. - Ah - disse ela. - Ele fez cocô em mim... - Era tudo de que precisávamos - resmungou Harry. - Pintinhos soltos. Pelo amor de Deus... - Onde você o encontrou, Maisie? - perguntou Jacqui, interrompendo Harry antes que ele dissesse alguma coisa que deixaria a menina realmente chateada. Tentando ignorar o que ele acabara de lhe dizer enquanto pegava um lenço no bolso para limpar a sujeira. Levando uma bicada do bichinho. - Perto da cerca. Tem um monte deles. Venha ver - ela não esperou, começou a atravessar o cercado com botas que eram pelo menos dois tamanhos acima do dela. - Espere! Tome cuidado, Maisie. Você não vai querer pisar neles. Ela podia não gostar muito de galinhas, mas não queria ver uma pisoteada. - Vamos precisar de uma caixa para colocá-los dentro. Tenho certeza de que vi uma no vestíbulo ela se virou para Harry, que ainda estava encostado no muro. - Você poderia pegar? 44
- Você quer saber o que gostaria de fazer? - perguntou ele. - Já sei, mas pode esperar, porque não vai acontecer logo. - Parece que você sabe de alguma coisa que eu não sei. - Primeiro as galinhas - disse ela. - Depois as notícias ruins. Capítulo 9 Jacqui, embora estivesse grata por cercar os pintinhos, não acreditou quando Maisie ofereceu um a Harry quando ele voltou com a caixa. Ele parecia tão imenso ao lado dela. Ela parecia tão vulnerável e sabia que ele poderia facilmente acabar com ela com uma palavra dura. Mas ele não fez isso. Após um longo momento, ele se abaixou, colocou a caixa no chão em frente a ele e deixou Maisie colocar o bichinho em suas mãos. - Bem, o que você está esperando? - perguntou ele. - Vá e encontre mais pintinhos. Não foi exatamente um elogio, mas Maisie saiu correndo, na ânsia de agradá-lo. Durou apenas um segundo, mas o olhar dele ao observá-la desmentiu todos os sentimentos medonhos de choque e nojo que ela estava sentindo. Enquanto Harry a observava ir, esquecendo-se da atuação de princesa e sendo apenas uma menina de seis anos de idade cheia de animação, os sentimentos reais dele ficaram estampados no rosto por breves momentos. Por trás da máscara de frieza, havia irritação. Diversão também. Mas, acima de tudo, amor. Quando ele olhou para Jacqui, os sentimentos tinham desaparecido, porém ela não se enganaria de novo. - Ai! Pare com isso! - ela espantou a irritada galinha mãe que estava desaprovando a operação de resgate deles e estava bicando seus tornozelos. - Vamos cuidar de seus bebês, ok? - Eu disse para você colocar galochas - falou Maisie ao passar por ela e parecendo uma adulta dizendo para uma criança "eu disse para você". - É melhor isso não ser um sorriso - avisou ela. - Não chega nem perto - garantiu Harry. Dez minutos depois, ao colocar o último pintinho na caixa, Jacqui disse: - Temos muitos pintinhos. Aonde vamos colocá-los? - No estábulo. Aqui, pegue a caixa. - Vou lá procurar algumas tábuas para mantê-los cercados. - Eles vão precisar de água e comida - lembrou Maisie, ainda animada. - Você está certa. Quer providenciar isso? Ela levantou os ombros até as orelhas em um absoluto acesso de alegria por receber de Harry uma tarefa importante para fazer, e saiu correndo. - Por que você está tão satisfeita? - perguntou ele, dando um sorriso. - Eu? - perguntou Jacqui. - O gato de Alice no País das Maravilhas me veio à cabeça. Não era exatamente a imagem que ela estava se esforçando para passar, mas manteve o sorriso colado no rosto: - Tenho uma disposição natural, Harry. É melhor ir se acostumando com isso. - É sua forma de me dizer que ficará por perto por mais algum tempo? - Essa é a notícia ruim. Sua prima não respondeu às mensagens deixadas pela agência, então, a não ser que você tenha um plano melhor, está preso aqui conosco. Ele não disse nada. - É claro - continuou ela - que ela pode ter decidido entrar em contato diretamente com você. É inteiramente possível que enquanto você estava "sei lá onde" e nós estávamos nos divertindo aqui com essas galinhas adoráveis, ela tenha deixado um recado na secretária eletrônica. É até possível que ela nem tenha esperado para nos telefonar, e sim entrado em um avião para voltar para casa no minuto em que escutou a primeira mensagem... - Espero que não esteja com esperanças quanto a última opção - respondeu ele finalmente. - Não estou com nenhuma esperança... - Mulher esperta! Você vai ficar? Ele estava pedindo? Pedindo realmente para ela ficar? - Você pode ficar? - continuou ele, já que ela não deu uma resposta imediata. - Acho que estamos considerando sua presença como certa. - Não... 45
- Não? - Sim... - ela se recompôs. - Você não está considerando minha presença como certa? Essa honra pertence a outra pessoa. E sim, claro, ficarei por quanto tempo precisarem de mim - e ela percebeu que estava sorrindo de novo. - Obrigado - disse ele. - Eu mesmo farei reservas para as suas férias assim que as coisas voltarem ao normal. Ela deu de ombros. - Maisie disse que aqui é um bom lugar para ficar nas férias e, apesar do tempo e das galinhas, posso entender por que ela gosta tanto. Além disso, o sol faz muito mal para a pele. - Alguma coisa que eu disser vai lhe impedir? - Bem, enquanto você está aqui, podemos acertar algumas coisas? Ela ignorou a rudeza. Agora que via isso como um mecanismo de defesa era fácil ignorar, e sorriu, como se ele tivesse dito algo engraçado. - Como ficarei aqui por um tempo, terei de pedir para me avisar quando for desaparecer como aconteceu hoje na hora do almoço. - Eu acho que você é a babá de Maisie, não minha. - É mesmo? - ela não era babá de ninguém, mas não via necessidade de dizer isso para ele. - É só uma questão de ser o parente mais próximo, em caso de acidente, doença, só isso. Também preciso de uma lista com os telefones essenciais, um carro que eu possa usar em uma emergência e chaves da casa e do carro. - Mais alguma coisa? - Sim - respondeu ela. - Você não almoçou. Deixei sanduíches prontos na geladeira para você. Com isso, ela se virou e saiu. - Jacqui... Como está a sua cabeça? Ela olhou para trás por cima do ombro. Ele não se movera e, por um momento, ela sentiu a tentação de "dar uma de Maisie", fazer com que ele se aproximasse mais para dar mais uma olhada. - Você fez um bom trabalho, doutor - a voz saiu um pouco rouca. - Vou recomendá-lo para as minhas amigas. Então, com receio de estar bancando o Gato de Alice mais uma vez, ela levantou um pouco a caixa com os pintinhos para indicar que era melhor ir embora. O sorriso poderoso dela fez Harry tremer. Foi apenas sua mão, segurando a pulseira dela no bolso, que o manteve no chão. Quando a encontrou, tivera a intenção de devolver logo para ela, mas o problema com o telefone tirara isso de sua cabeça e, então, seguira para as montanhas como se quanto mais alto subisse mais longe ficaria de tudo que o fazia se lembrar de tudo que perdera. Exceto que naquele dia sentira-se preso. Não apenas a Maisie, mas a Jacqui. Então, enfiando as mãos nos bolsos encontrara a pulseira. Fora por isso que a chamara. Para devolver. Seus dedos brincaram com a corrente, e roçaram o coração. Tirou do bolso e olhou para ela de novo "...esqueça e sorria..." Quem ela deveria esquecer? Ele queria perguntar para ela se tinha conseguido. E se tivesse conseguido, qual era o segredo. Mas talvez ela estivesse achando tão difícil quanto ele, e ele colocou a pulseira de volta no bolso. Era mais seguro não entrar nesse terreno. Deixaria em algum lugar para ela encontrar. Mais tarde, quando os pintinhos estavam seguros e ele evitou jantar com Maisie, comendo os sanduíches que Jacqui deixara para ele enquanto estava no escritório vendo a contabilidade da casa, ele pegou o telefone para tentar outro contato com a prima. Apesar da boa vontade da moça em ficar, ele não queria abusar do bom coração de Jacqui. E mesmo assim, ao colocar o telefone no ouvido, ele percebeu que estava quase desejando que não tivesse linha de novo. Porém não teve essa sorte. Conseguiu encontrá-la na primeira tentativa. - Harry? - Sally parecia quase tão chateada ao escutar a voz do primo quanto ele de estar ligando para ela. - Você faz idéia de que horas são aqui? Ele pensou. Duas, três da manhã. - Estava dormindo? - Claro que eu estava dormindo! Claro que ela estava. Ele não ligara no meio da noite apenas para ser importuno. Sabia que se ela 46
estivesse pensando com clareza, teria ignorado sua ligação. - Liguei por causa de Maisie. - Ah! - disse ela. - A agência e a babá achavam que ela ia ficar com a tia Kate, Sally. - Mesmo? Por quê? Eu simplesmente pedi para que a deixassem na casa da avó. Eles já tinham feito isso antes. - Você não está entendendo, Sally. Essas pessoas são responsáveis, levam suas obrigações a sério. Não iam deixá-la com qualquer um. - Mas você não é qualquer um, é? - Ela é responsabilidade sua, Sally - disse ele, recusando-se a falar disso. - Uma criança. Não pode tratá-la como um de seus animais. Terá de mandar um fax para a agência dando permissão para ela ficar aqui comigo. - Ok. Considere isso resolvido. É só isso? Não haverá corretivo suficiente no mundo para disfarçar minhas olheiras amanhã se eu não dormir agora. Ela não está doente ou nada parecido? - E se ela estivesse? Você largaria tudo e voltaria para casa? - Não seja bobo, querido. Ela não ia me querer. Ela nunca me quer. Além disso, você sabe o quanto sou incapaz com essas coisas. Havia muitas outras coisas que ele sabia e ficou tentado a dizer todas elas, mas para quê? - Quando você volta para casa? - No mínimo, daqui a um mês. Daqui, vou para o Japão e depois para os Estados Unidos gravar uns comerciais. Depois disso, vou passar um tempo no iate de um amigo. Preciso de férias! - E Maisie? Você não acha que ela gostaria de ir com você? - Maisie? O que ela faria em um iate? O romance de Sally com um bilionário era o atual assunto das fofocas e ela claramente não queria uma criança para atrapalhar. - Um mês? - perguntou ele. - Certo! - Bem, talvez um pouco mais. Depende se os decoradores já tiverem terminado a casa. - Decoradores? - Sairá em uma revista no final do ano, então os designers estão se matando para fazer a reforma para mim para ganharem publicidade. Deve ficar pronto na Páscoa, mas você sabe como essas coisas podem demorar. - Sei, sei... - concordou ele, entendendo por que Maisie não podia simplesmente ficar em casa com a comitiva de empregados de Sally para tomar conta dela, como geralmente acontecia. - Gostaria de falar com Maisie? - Estou cansada, Harry. - Com a Jacqui, então? - Quem? - A babá que a trouxe para cá. - O quê? Mas eu pensei... Ela não ia sair de férias? - Ia. Ela perdeu o avião por causa da sua incompetência, e agora ela desistiu das férias para ficar e cuidar de Maisie. - Pelo amor de Deus, Harry, por que você deixou que ela fizesse isso? Você é perfeitamente capaz de cuidar de uma criança, não é? - Eu não a deixei fazer nada. Ela insistiu - disse ele. - Vickie Campbell disse que ela era uma preciosidade. Está com esperanças de convencê-la a ficar com o emprego. - Mesmo? Pelo bem de Maisie, espero que ela tenha sucesso. O fato de Jacqui Moore estar cuidando dela era a única coisa que o deixava feliz. Chegou a pensar em ligar para a tia, mas ligar para Sally no meio da noite para pegá-la desprevenida era uma coisa, e outra completamente diferente era perturbar Kate no amanhecer na Nova Zelândia para escutar suas reclamações. E o que ela faria? Abandonar as primeiras férias que ela tirava em anos só porque ele queria manter-se distante? Ela pegaria o próximo avião se ele pedisse, sabia disso, mas já era ruim o suficiente que a própria filha a tratasse feito uma escrava. Esse era o problema de ocupar o mais alto degrau. Não se pode simplesmente fugir quando as 47
coisas ficam difíceis. Jacqui ia ficar. Maisie estava feliz. Quanto a ele... bem, neste momento, tudo que precisava era de um banho quente para aliviar as dores que sempre apareciam quando o clima estava úmido. Se ele tivesse muita sorte, Jacqui poderia até ter deixado algumas sobras do jantar para ele requentar. Ainda estava sorrindo em pensamento ao parar no topo das escadas, atônito pelos sons misturados de gargalhadas e água que vinham do andar de cima. Parecia tão alegre, tão normal, que ele se aproximou. - Um, dois, três... - a água bateu na mão de Maisie e ela caiu na gargalhada quando caiu pela lateral da banheira. Jacqui pegou uma toalha para evitar a inundação, mas ao jogá-la no chão, confrontou-se com um par de pés enormes vestidos apenas com o que agora eram um par de meias molhadas. - Ah! - disse ela, olhando para cima. - Desculpe! Estávamos fazendo uma competição de quem joga água mais longe. - Quer brincar? - Você está planejando inundar a casa? - Não vai sair pelo teto, vai? - perguntou ela, ficando de pé. - Não, mesmo, tudo bem. Não queria acabar com a diversão de vocês. Só vim devolver isso - ele tirou a pulseira do bolso. - Encontrei na biblioteca. Achei que podia estar preocupada. Jacqui olhou para o pulso, quase não conseguindo acreditar que ficara esse tempo todo sem a pulseira e nem dera falta. - Dizeres interessantes... - Você leu? Praticamente precisa de uma lente de aumento para ver. - Tenho uma excelente visão. De trás dela, Maisie, em um sussurro alto, disse: - Pergunte a ele agora. - Perguntar o que para mim? Jacqui, que já ia falar, foi impedida por um dedo de advertência. - Maisie? - incitou Harry. A menina, de repente não tão segura de si mesma, começou a brincar com um pato de plástico, empurrando-o para baixo da água e deixando voltar. - Sobre o que Susan disse hoje de manhã. Ele se ajoelhou ao lado da banheira, ignorando a água que encharcava suas calças, pegou o pato e segurou-o para que ela fosse forçada a olhar para ele. - Susan disse um monte de coisas hoje de manhã. Ela murmurou alguma coisa. - Sobre ir para a escola da cidade - responde ela, contrariada. - Você realmente gostaria de ir? - o rosto dela dizia tudo. - Mas o que você iria vestir? Não pode ir para a escola usando vestido de festa. - Por quê? - Porque - disse Jacqui, - deixaria todas as outras meninas tristes por não terem nada tão bonito. - Ah entendi! Tem aquelas roupas velhas que você encontrou - disse ela, levantando os olhos arregalados, a voz um pouco trêmula, depois voltando sua suplica para Harry. Jacqui percebeu que ela nunca usava o nome dele. A maioria das crianças o chamaria de "tio Harry". Ele não respondeu na mesma hora, mas se virou para ela e disse: - Jacqui, o que você acha? A moça fez o possível para ignorar o frio que sentiu na barriga com a prova de confiança. Mas era mais provável que a verdade fosse mais simples. Deixando a decisão nas mãos dela, ele poderia se desligar das conseqüências se a experiência se tornasse um fracasso. Jacqui tinha medo que acontecesse isso. Uma menina de seis anos que nunca tinha ido à escola tornava a situação desafiadora. Principalmente, se ela fosse uma princesinha como Maisie. Mas se ela fosse para a escola, ficaria longe de Harry a maior parte do dia. E se tudo corresse bem, seria muito difícil ele mudar de idéia quanto a ela ficar. O que significava que teria de fazer tudo para garantir que as coisas dessem certo. - Se a diretora não se incomodar em aceitá-la para as últimas duas semanas do período, tenho certeza de que ela gostaria da companhia - disse ela. - Só tem um problema. Notei, quando passei pela cidade, que todas as crianças usavam uniforme. Saia cinza, camisa branca e suéter vermelho. E tênis... - Pretos? 48
- Ou marrons. - Tênis pretos ou marrons? Bem, acho que isso muda tudo. Maisie não ia querer usar nada parecido com isso. Ele se levantou, claramente pensando que era o fim e, por uma fração de segundo, Jacqui seriamente considerou bater em Harry. Maisie se antecipou a ela, ficando de pé, abrindo os braços e espirrando água para todos os lados ao afirmar: - Sim, eu usaria! Eu quero um uniforme! Gosto de cinza. Harry, a meio caminho da porta, parou e voltou. - Você tem certeza? Não vá fazer Jacqui levar você até a cidade para comprar um uniforme se você for mudar de idéia. - Por favor, por favor, por favor! - implorou ela. Jacqui percebeu que, de fato, ele fizera Maisie pedir roupas que normalmente preferiria morrer a ter de vestir, e não teve certeza se estava irritada com ele ou admirada por sua jogada psicológica. Talvez ele achasse que ela ia dizer alguma coisa, porque esticou a mão para impedi-la. - Ok, se é isso que você quer, ligarei para a diretora e pedirei que a aceite. Mas tenha certeza de que é isso mesmo que você quer. Depois que começar, não poderá mudar de idéia. - Eu não vou mudar de idéia! Harry olhou para ela então, e Jacqui percebeu que o disfarce "eu não quero saber" caíra de novo. O sorriso dele, uma combinação de ternura e solicitude, e um olhar satisfeito consigo próprio acenderam o rosto dele e, sem nem pensar a respeito, ela colocou a mão no braço dele, ficou na ponta dos pés e deu um beijo em seu rosto. Por um momento, houve uma ilusão de que o tempo tinha parado. Não houve nenhum som, nenhum movimento. Era como se uma fração de segundo estivesse sendo esticada infinitamente enquanto o sorriso dele se transformava em algo muito mais profundo. O sorriso desapareceu rapidamente. Agora a voz dele era suave, quase inaudível. - Você corre riscos terríveis, Jacqui Moore. Ela engoliu em seco, bem consciente dos riscos que estava correndo com seu coração frágil e disse: - Nada que valha a pena ter está livre de riscos. - Eu sei - concordou ele. - Mas uma vez que se arrisca, tem de viver com as conseqüências.
Capítulo 10 Harry sabia que estava brincando com fogo. Apesar dos modos ríspidos e de seu árduo esforço em manter distância, Jacqui não ficara desencorajada, continuara a aproximar-se dele e finalmente o tocara. Não apenas fisicamente, mas no lugar escuro e fechado onde ninguém esteve nos últimos cinco anos. Nem mesmo ele. Por que ela não tinha medo dele? Todas as outras pessoas pareciam entender a mensagem de "mantenha distância", mas ela persistia em ignorá-la. E agora ela o beijara, e ele colocara o braço em volta dela, de novo, e a única coisa que passava em sua cabeça era responder ao beijo dela. Realmente beijá-la. Deveria ter deixado que ela caísse na banheira. Melhor ainda, ter se jogado nela. A água não estava fria, mas teria servido para apagar o calor que fluía pelas veias sempre que estava a uma distância em que podia tocá-la. Ela estava arruinando todo o esforço que ele tivera em colocar sua vida de volta nos eixos, trabalho duro que tivera para bloquear todas a emoções, para voltar ao campo de batalha. Fazer seu trabalho. Ela era muito ruim para sua paz de espírito, e ele deveria colocar um ponto final nisso agora mesmo, mas ela era encantadora, e a bondade e o calor que emanavam dela o chamavam como uma lareira em uma noite fria de inverno. Jacqui, então, sentiu o roçar de lábios de Harry nos seus. Não era um beijo de verdade em nenhum sentido, apenas o suficiente para provar o ponto de vista dele e demonstrar o perigo que ela estava correndo. Tarde demais. Por mais que tenha sido breve, o beijo teve o poder de excitar seu corpo, tirá-lo da languidez como os primeiros raios de sol na primavera abriam o botão de rosa, e o coração dela ficou 49
aos pulos. E, levantando o olhar para o calor dos olhos dele, ela entendeu que, enquanto Harry Talbot estava resguardando seu coração de todos os intrusos, ela estava entregando o seu. - Com licença! Se vocês forem se beijar... - Não! - Jacqui recuperou-se primeiro, se virando de forma abrupta e, pegando uma toalha envolveu Maisie, tirou-a da água e começou a enxugá-la. - Perdi o equilíbrio só isso e o tio Harry me segurou. Maisie lançou-lhe um olhar de "você acha que sou idiota?" depois se virou para Harry e, sem nenhuma expressão, disse: - Ele não é meu tio. Ele é meu pai. Isso teve o efeito totalmente contrário. Harry congelou. Que diabos Sally andava dizendo para a menina? Que histórias fantasiosas ela colocou na cabeça dela? E uma culpa tomou conta dele, tão real quanto a dor que sentia, deixando-o sem fôlego. Ele abrira mão da garotinha para uma mulher que a tratava como se fosse um objeto. Fora embora, desistindo de todo o direito ao amor. Tinha de dizer alguma coisa, e rápido, porque os olhos de Jacqui estavam fazendo perguntas óbvias e exigindo nada mais do que a verdade. - Jacqui - começou ele. Gaguejou. A expressão dela mudou de indagação confusa para a absoluta certeza. Então, ela disse: - Com licença, Harry. Está tarde e preciso colocar Maisie para dormir. Vamos fazer compras amanhã. Poucos minutos antes, ele estava lamentando o fato dessa mulher ter aberto uma brecha no muro defensivo que construíra contra laços afetivos e que estava desmoronando tijolo a tijolo. Agora ela se retirara e era como o sol indo embora. Ele tentou dizer alguma coisa, mas era tarde demais. Ela fora embora. E Maisie também. Por um momento, ele sentiu a tentação de ir atrás delas, exigir que o escutassem de forma justa. Mas isso era justo? Fizera o que fizera e não havia como mudar isso. Talvez fosse melhor dessa forma. Deveria apenas ir tomar o banho que estava planejando e ficar longe delas para o bem de todos. Porém, foi atraído pelo barulho no quarto, como tinha sido mais cedo pela gargalhada delas. Ouviu a voz suave de Jacqui tentando tranqüilizar a menina e colocá-la na cama. Maisie estava desesperada. - Desculpe, desculpe... não queria dizer aquilo. Ele não vai me fazer ir embora, vai? Ainda posso ir para a escola... Ele bateu e abriu a porta. Sentiu o coração se apertar ao ver Maisie encolhida na cama. Mas elas estavam olhando para ele, esperando que falasse alguma coisa. - Jacqui, me procure amanhã antes de sair para fazer compras - disse ele, forçando as palavras para passarem pelo nó na garganta. - Vai precisar de dinheiro. Ele sabia que Jacqui estava procurando dicas do que ele estava pensando. Harry esperava que ela o entendesse, porque tinha abandonado o script que tinha escrito para si mesmo e estava perdido na escuridão, procurando por alguma luz que lhe mostrasse o caminho. - Eu ficaria mais feliz se você também fosse - disse ela. - Sou péssima para me encontrar em cidades estranhas. E lá estava. Sua luz na escuridão... - Claro - concordou ele. Você sabe do que ela vai precisar? - Farei uma lista... - Harry... Deixei comida para você do jantar na geladeira - e a luz se tornou mais forte, mais brilhante. Para Harry, parecia que estava esperando horas quando Jacqui o encontrou, equilibrando uma bandeja para passar pela porta da biblioteca. - Fiz café. - Você não precisava fazer isso - disse ele, pegando a bandeja dela e colocando na mesa de centro. Ou talvez precisasse. A bandeja e o café não eram nada além de uma desculpa, ele percebeu, alguma coisa para mantê-la ocupada para que evitasse olhar diretamente para ele. Foi só agora, quando ela não o estava evitando, que ele percebeu como o olhar dela era direto. Ela serviu duas xícaras de café, entregando o dele preto e sem açúcar sem perguntar, depois se sentou em uma poltrona do outro lado da lareira e esperou até que ele se juntasse a ela. 50
Bem, ok, ele não tinha esperanças de fugir sem dar alguma explicação. Se ela não o tivesse encontrado, ele também não a teria procurado, mas negaria até o último suspiro que estava se escondendo dela. Se esse tivesse sido o caso, ele teria feito muito melhor. Mas ele se escondera de si mesmo e dos outros. - Você deve estar se perguntando... - Sim, estou, mas antes que comece, Harry, acho que deve saber que eu e Maisie conversamos um pouco sobre a história de desligar os telefones, dizer a verdade, esse tipo de coisa. Ela confessou ter escondido meu celular e ter esvaziado a mala e trocado as roupas normais que a mãe tinha colocado para ela pôr os vestidos mais bonitos. Parece que ela queria que você a notasse. - Pode dizer a ela que ela teve sucesso. - Sugiro que você mesmo diga. Ele podia ver que Jacqui não estava achando engraçado, mas não tinha esperado que ela achasse. Ele estava com problemas sérios e não só por causa de Maisie. - Será a primeira coisa que farei - prometeu ele. - Até agora, tudo bem. Agora é ladeira abaixo. De fato, ela ficou preocupada de eu pensar que era tudo um conto de fadas... - ela colocou a mão no bolso e pegou uma folha de papel dobrada - ...que me mostrou a certidão de nascimento dela. - A certidão de nascimento? O que ela está fazendo com isso? Devia estar bem guardada. - Ela disse que encontrou "dando bobeira". Acho que a verdade é que ela procurou pela certidão, talvez tenha se aproveitado de um cofre aberto. - Ela é um tanto engenhosa não? - concordou ele. - E no caso de você estar se perguntando por que, eu diria que ela estava tentando descobrir quem era. O sorriso dele durou pouco. - Ela sabe quem ela é. - Você acha? Se você fosse ela, não teria algumas dúvidas? - Ela deveria ter perguntado a Sally - então, percebendo como teria sido infrutífero, se alguém vivia em um mundo de fantasia, esse alguém era sua prima, ele disse: - A certidão de nascimento dela não diz nada. - Não? - Jacqui abriu o documento estreito e comprido em seu colo. - Eu diria que esse pedaço de papel nos diz muita coisa. Por exemplo, não é uma certidão de nascimento comum. Nem mesmo uma certidão de adoção, e sim uma certidão de nascimento consular tirada em Digali, um país subafricano que esteve em guerra durante anos. Você trabalhou lá? - Sim, eu estava, para uma instituição de caridade médica internacional. - Mesmo? - o interesse dela foi imediato. Como eu lhe invejo! - Você devia ter continuado na faculdade e se especializado se quisesse ser enfermeira no campo de batalha. Só Deus sabe como eles precisam. - Eu sei, mas a vida tem o hábito de entrar no nosso caminho - ela pareceu não estar ali por um momento e, embora Jacqui estivesse sorrindo, ele achou que era a coisa mais triste que já vira. - Você vai me contar? - perguntou Harry. Porque ele queria saber, precisava saber o que tinha acontecido para deixá-la tão triste, para que pudesse começar a pensar em como melhorar as coisas. - Talvez mais tarde... Dependeria da franqueza dele com ela? Não tinha intenção nenhuma de mentir para ela. - Isso é uma promessa? - perguntou ele, inclinando-se na cadeira, enquanto esperava a resposta dela. Quando, finalmente, ela respondeu apenas balançando a cabeça, ele soube que essa não era uma decisão fácil, que ela pensara muito antes de decidir confiar nele. A expressão dela também era intensa e séria. E então algo brilhou em seus olhos ao dizer: - É um acordo, Harry. Você me conta seus segredos, e eu lhe conto os meus. - Meus segredos estão aí, no seu colo, em um documento público que qualquer um pagando por uma cópia no cartório pode ver. - Você é um mentiroso, Harry Talbot... As palavras foram duras, mas a voz dela, não. Nem seus olhos. Ele não respondeu, e Jacqui falou: - Ok! Vamos ver - ela olhou para a certidão de nascimento de Maisie e começou a ler. - Pai: Henry Charles Talbot. Profissão: Médico. Mãe: Rose Ngei. Profissão: Nenhuma. Nome do 51
bebê: Margaret Rose. Lugar de nascimento... Jacqui não podia acreditar. - Como você fez isso, Harry? Por que fez isso? - Porque eu não estava preparado para deixar que Maisie se tornasse mais uma estatística de guerra. - Devia haver dezenas de bebês, centenas... - Milhares - disse ele. - São sempre os inocentes que sofrem mais. - Então por que ela? Ele abaixou a cabeça por um momento, não querendo reviver o horror. Queria se levantar, sair da sala, perder-se nas montanhas, mas isso era o que vinha fazendo há anos. Fugindo, enterrando-se no trabalho. Ajoelhou em frente à lareira, mexeu nas cinzas com um graveto, jogou mais algumas toras, observou elas pegando fogo. Adiou a resposta o máximo possível. Ela não o pressionou. Ficou completamente em silêncio enquanto ele organizava os pensamentos, e finalmente não havia mais nada a fazer a não ser começar. - A mãe dela era uma refugiada fugindo da guerra - disse ele. - Eu nunca soube o nome dela... Eu inventei. Não sei nem de onde ela veio, apenas que ela teve a infelicidade de entrar em um campo minado. Ela foi levada para o hospital no campo de batalha onde estávamos. Ela e o bebê estavam quase mortos. Tudo que pude fazer foi entregar Maisie para a emergência. Jacqui não disse nada, apenas cobriu a boca com a mão para sufocar palavras que sabia não terem significado. - Maisie era pequena, fraca, mas quando afastei seu corpinho esquelético do que sobrara da mãe e limpei-a, ela soltou um grito de... triunfo, era como se ela estivesse dizendo: "Consegui! Estou estou viva!" E ela agarrou meu dedo como se nunca mais fosse soltar. Naquele lugar horrível, parecia um milagre, Jacqui. - E foi. Você a salvou. - Para quê? A realidade era que ela não duraria um dia em um campo de refugiados sem uma mãe para cuidar dela. - Mas ela sobreviveu. - Eu prometi que ela não seria mais uma casualidade sem nome de uma guerra inexplicável. - Você a salvou - sussurrou ela de novo. - Como fez isso? - Mantive ela comigo. Ela dormia e viajava ao meu lado. Eu a alimentei, cuidei dela, e nas ocasiões em que eu operava, a colocava em uma mochila para bebês nas minhas costas. Harry deve ter estremecido ao se lembrar disso, porque Jacqui, de repente, estava ajoelhada na frente dele, segurando sua mão por um momento antes de passar o braço em volta do pescoço dele e puxá-lo para mais perto, aninhando-o em seu peito. - Então, me conte - sussurrou ela no pescoço dele. - Conte o que aconteceu com você. O calor e o cheiro dela pareciam penetrar em sua pele, restaurando algo dentro dele que fizera o possível para matar. Doía, mas a ferida estava cicatrizando. - Cada momento está tão claro na minha cabeça - disse ele. O calor do final da tarde. A poeira. As moscas. O peso de Maisie nas costas... - A clínica tinha acabado de fechar e eu estava caminhando de volta para o meu alojamento começou ele. - Maisie acordou, começou a choramingar. Eu tirei a menina da mochila e peguei-a no colo. A última coisa que lembro é do rostinho dela sorrindo... Então o mundo explodiu quando uma granada caiu em algum lugar atrás de nós, e eu fui jogado para frente pela rajada. - Maisie? Ela não se machucou? - Quando o bombardeio parou, me encontraram em um abrigo, curvado sobre ela, protegendo-a. Eu devo ter rastejado até lá, mas não me lembro como cheguei lá... - Você a salvou de novo... - Um momento antes... - Sssh! - disse ela, ajoelhada na frente dele. - Você a salvou. Ao fazer um carinho nele, ela disse: - Ah! - Então foi isso que aconteceu com suas costas... Finalmente, ela gaguejou, e foi ele quem tranqüilizou-a, abraçando-a forte. - Esqueça o que você viu - disse ele. - Não! Eu quero ver agora - e sem esperar, ela começou a desabotoar a camisa dele. Ele segurou 52
suas mãos para impedi-la, mas ela continuou segurando a camisa, olhou para ele, manteve-se firme até que ele soltasse suas mãos, a deixasse fazer o que queria. Ela beijou-o com tanta doçura que a resposta urgente de um corpo já sobrecarregado de estímulos pareceu... profana. Quando ele recuperou o fôlego, fazendo o possível para enfrentar o desejo que o deixava completamente sem defesa, ela continuou desabotoando a camisa, tirando-a da calça, empurrando-a até que caísse no chão. E, então, ela o tocou. As pontas de seus dedos contornaram os ombros dele, os braços. Depois, com mais confiança, deslizou a mão pelos tecidos cicatrizados. - Dói? - perguntou ela. Doer? Com o rosto encostado no peito dela, seu cabelo roçando no rosto dela, Harry estava além de sentir alguma coisa a não ser seu membro ereto pressionando contra o zíper. - Sim - respondeu ele com dificuldade, não era mentira, estava sentindo dor. Porém, não eram suas costas que estavam doendo. - Mas não se preocupe. Estou bem. - Está mesmo? Então por que Maisie mora com sua prima? E por que você está tão infeliz? - Infeliz? - ele recostou-se na cadeira para aumentar a distância entre eles. Tomou em gole do café morno, ganhando tempo para se recompor, para pensar. - Você vai negar isso? - Não, não vou negar, mas é como você disse. A vida entra no nosso caminho. Meus ferimentos foram muito graves para serem tratados no local, mas eu me recusei a ser mandado de volta para casa por causa de Maisie, e isso foi um problema porque ela não tinha documentos. Eu não tinha nenhum direito. Precisava de outro milagre. - E conseguiu. - Quando se tornou uma questão de vida ou morte, o diretor da unidade médica pediu para o cônsul tentar conversar comigo, colocar juízo na minha cabeça. Ele era um homem verdadeiramente piedoso e fez um registro de nascimento para Maisie. Não me perguntou o nome do pai, só me perguntou o meu e preencheu. Quando ele chegou ao nome da mãe, eu inventei. Eu dei a Maisie o nome de minha mãe. Ao terminar de escrever o documento, ele me deu uma cópia da certidão e me parabenizou pela minha nova filha. Ela é minha filha, Jacqui. E eu teria feito coisas muito piores do que mentir para o cônsul para ficar com ela - e como, de alguma maneira, era importante convencê-la, ele disse as palavras que nunca antes tinha pronunciado. - Eu a amava, Jacqui. Amava. Não havia como simplesmente entregá-la a um orfanato, por melhor que fosse. - Claro que você não podia. Você a trouxe para casa, para High Tops. - Quem dera. A verdade é que depois que eu fui trazido para casa, passei um tempo absurdo no hospital. Enxerto de pele, esse tipo de coisa. Sally aproveitou a brecha, pegou Maisie, contratou uma babá, se divertiu em vesti-la com roupas lindas. - Como brincar de boneca - disse Jacqui. - Algum repórter viu, conseguiu tirar fotos dela com uma criancinha negra, e em poucos dias os boatos estavam em todos os jornais. Ninguém me consultou sobre nada. - Então ela fingiu ter adotado a pequena órfã de guerra. - Na verdade, ela fez isso para me proteger. Para proteger Maisie - devia isso à prima. - Além disso, todas as grandes estrelas fazem isso o tempo todo. É uma boa publicidade. - Você deve odiá-la tanto. - Não, eu simplesmente a conheço, só isso. É por isso que ela me evita a todo custo. - E Maisie? - Quando eu fiquei bom o suficiente para pedi-la de volta, ela já tinha uma nova vida. Eu não gostei muito, mas não podia levá-la comigo para outros países, para zonas de guerra, para lugares miseráveis onde a vida dela correria perigo. - Você poderia ter ficado em casa com ela. - Talvez eu tivesse ficado, se as coisas tivessem sido diferentes. Mas eu já estava fora da vida dela por tanto tempo que Maisie tinha me esquecido. - Ela não tinha esquecido você, Harry. Ela achava que você a tinha abandonado e o estava castigando por isso. - Ilusão pura, Jacqui, não acha? 53
- Pode ser. Mas você tem de se fazer uma pergunta. Se ela o esqueceu, por que ela me disse que vai ser médica quando crescer? O coração dele acelerou. - Quando ela lhe disse isso? - No caminho para cá. Eu perguntei se ela ia ser modelo como a mãe, e ela me respondeu logo que ia ser médica como... - Como? - Ela parou, não terminou a frase. Você já percebeu como ela faz isso? Diz coisas pela metade. Agora eu percebo que uma vez ela chegou muito perto de me contar que sabia que a avó não estava aqui. Com Maisie, temos de saber a pergunta certa a fazer. - Ela deve ter escutado Sally falar, pois ela certamente sabia que a mãe não estava aqui. - Você falou com ela? - Mais cedo. Ela disse uma coisa estranha também. Disse que você não devia ficar. Pareceu um tanto irritada pela sua dedicação ao trabalho. - Mesmo? - ela sorriu. - Fico imaginando por quê. Vamos pensar... Será que ela queria que você tivesse a chance de se aproximar de Maisie de novo? - Você está sugerindo que ela se cansou de brincar de mãe e quer devolvê-la para poder brincar de casinha com um bilionário? - Você a conhece, eu não. Ela é assim tão superficial? De uma coisa eu sei, Harry. Maisie realmente quer ficar aqui com você. Talvez Sally também saiba disso. Talvez, apesar de todas as evidências mostrando o contrário, no caso de sua prima, a beleza seja mais do que apenas exterior. Ele olhou para ela, como se não tivesse palavras. - O quê? - Estava apenas me perguntando como você se tornou tão sábia. - Quem dera - e ela apertou a corrente do pulso contra o peito. - Agora, me conte - disse. - Conte sobre ele. - Ele? - Não é ele? Foi nesse momento que Harry entendeu como estava completamente indefeso e curioso. - Eu prometi, não prometi? - disse ela, como se estivesse arrependida. - Prometeu, e eu aposto que você nunca quebrou uma promessa na vida. - Uma vez. Apenas uma vez. Eu prometi a Emma que nunca a deixaria, mas acabei não tendo escolha - ela abriu a pulseira, levantou-a. - Eu mandei fazer isso para o aniversário dela no mês passado. Queria que ela soubesse que não tinha problema me esquecer, seguir em frente. A família dela mandou de volta. - A família dela? Jacqui olhou para ele, a expressão confusa, e ele de repente compreendeu o que ela estava dizendo. Emma não era uma namorada, e sim uma criança. - Por quanto tempo você foi babá dela? - perguntou ele logo, antes que ela percebesse o que ele pensara. - Anos. Talvez tempo demais. Você me perguntou por que larguei a faculdade. Fiz isso por Emma. Acho que você provavelmente é a única pessoa que vai entender o por quê. - Aceito isso como um elogio. - Acredite em mim, tinha de ser dessa forma - ela se afastou, como se fosse doloroso demais continuar, procurando um café. Harry pegou a mão dela, impedindo-a. - Esqueça o café - disse ele e, levantando-se, puxou-a para ficar de pé. - Vou fazer mais. Ou vai me dar outro sermão sobre tomar café tarde da noite? Ela fez um esforço para sorrir. - Já está sendo difícil contar para você a história da minha vida. - Então, vou pegar alguma coisa para suavizar a dor - disse ele, apanhando uma garrafa de bebida. Ele enxotou o cachorro do sofá, colocou-a sentada ali e foi preparar, não o café, mas chocolate que, com um toque de brandy, era a mais reconfortante das bebidas. Ela pegou a caneca e sorriu. - Humm, está ótimo. 54
- Era o que minha babá fazia para mim quando eu precisava me acalmar - disse ele. - Ela lhe dava brandy! - Só o suficiente para perfumar o vapor. Vamos aconchegue-se - disse ele, levantando o braço. Você deve experimentar toda a sensação de conforto. Ela olhou para Harry. - Sabe, a primeira vez que o vi, achei que era o gigante dos meus pesadelos de criança. - Sei, ouvi sua descrição de mim quando estava falando com Vickie Campbell, eu deveria ter corrido naquela ocasião. - Corrido? - Atrás da minha vida. Todo mundo sabe o que João fez com o gigante. Harry assentiu com a cabeça e, sorrindo, ela se aninhou nele. Ficaram sentados em silêncio por um tempo, tomando o chocolate, acalmando-se, aos poucos ele sentiu a tensão se afastar. Ele achou que poderia ser feliz apenas ficando sentado ali, seu braço em volta dela, para o resto da vida. No entanto, havia demônios para enfrentar. Então ele pegou a caneca dela, colocou no chão e disse: - Conte-me sobre Emma, Jacqui. E devia estar pronta para falar, pois não hesitou. - Eu sempre amei crianças. Minhas irmãs são mais velhas do que eu e, na época que eu fui para a faculdade, estavam aumentando a taxa de natalidade. Vickie Campbell as conhecia, me viu brincando com umas crianças e me ofereceu uma chance de trabalhar com ela como babá temporária durante as férias. - Como funciona isso? Babá temporária? - Ah, eu transportava crianças, como devia fazer com Maisie. Cobria emergências quando uma babá faltava ou a mãe tinha de ir para o hospital - ela olhou para a caneca. - Ou morria. - Foi isso que aconteceu com Emma? A mãe dela morreu? - Acidente de carro. Uma tragédia. O marido não suportou. Ela era muito pequena e estava com raiva porque a mãe a tinha deixado e não entendia o porquê. Eu passei o verão todo com eles. Ela estava prestes a me aceitar, a se abrir, começando a confiar em mim, quando chegou a hora de voltar para a faculdade. O que eu ia fazer? Se eu a deixasse, ela perderia, pela segunda vez em sua curta vida, a única pessoa com quem podia contar. Ela nunca mais acreditaria em ninguém de novo. Harry e Maisie, recusando-se a ir embora. - Entendo que você nunca abandonaria alguém que precisasse de você... - Eu nunca deixei que ela esquecesse a mãe nem tentei tomar o lugar dela, mas aquela mulher era apenas um rosto abstrato em uma fotografia. Na prática, eu era a mãe dela. O pai também, já que ele não era muito presente. Eu prometi a ela que sempre estaria ao seu lado, que nunca a deixaria. - O que aconteceu? - David Gilchrist trabalhava em um banco de investimentos. Um homem rico, honrado. Eu era babá de Emma fazia quase quatro anos quando ele trouxe para casa uma mulher que tinha conhecido em suas viagens e calmamente me informou que estavam casados. E com a mesma calma disse a Emma que ela ganhara uma nova mãe. Emma, frente a uma completa estranha, declarou que eu era sua única mãe. Eles me colocaram para fora de lá mais rápido do que você possa imaginar, e em poucas semanas eles se mudaram de mala e cuia para Hong Kong. - E a pulseira? - Eles devolveram com um bilhete me lembrando que eu tinha sido apenas uma empregada e me pedindo para não procurar Emma de novo. Nada de presentes de aniversário nem de Natal. Nada de cartão. Nada. A nova Sra. Gilchrist mandou a pulseira para a agência, em vez de diretamente para mim. - Isso foi horrível. - Foi sim, mas acho que ela acreditava que se não me apagasse da memória de Emma, nunca ganharia o amor dela, e talvez ela estivesse certa. A verdade é que eu me envolvi tanto emocionalmente que esqueci do primeiro princípio das babás. A criança que você cuida não é sua. Tem de estar preparada para ir embora... Jacqui piscou e uma lágrima escapuliu. Ele enxugou-a com a ponta do polegar. - Não existem regras quando se trata de crianças. Você as ama porque não consegue evitar, e quando as perde, dói. - Você tem outra chance com Maisie. Não desperdice. 55
- Graças a você. - Acho que foi um esforço conjunto, Harry. - Mas você estava aqui no meio do fogo cruzado. Quantas mulheres teriam ficado? - Foi Maisie quem quis ficar. - Então pretende ir embora agora que já bancou a Mary Poppins? - Como? Você mandou meu carro embora. E Maisie me prometeu que eu me divertiria se passasse as férias aqui. - E o que você prometeu para ela? - Apenas que eu ficaria enquanto ela precisasse de mim, Harry. Aprendi a lição. Nada de promessas de "para sempre". - Nenhuma? Ela estava encostada nele, e seu rosto se levantou para fitá-lo. Ele levantou a mão, sem certeza, sentindo um medo desesperador, mas estava fugindo há muito tempo. Agora era a hora de ficar, de dizer o que queria. Maisie de volta em sua vida. Uma nova vida. Jacqui. - E se eu dissesse que preciso de você? - perguntou ele. - Você nem me conhece, Harry. Ele tocou o rosto dela, afastou o cabelo dos olhos, enrolando como um menino tentando decidir como daria seu primeiro beijo. Ela deu um olhar de mulher preparada para esperar até que ele decidisse. - Seu caráter brilha em tudo que você faz. Eu sou o risco aqui, mas estou pedindo para se arriscar. Você vai ficar? - O que você está pedindo? Ele respondeu com um gentil roçar de seus lábios nos dela. - Você sabe o que estou pedindo. Houve uma pausa longa, um silêncio que pareceu interminável, que foi quebrado pela porta da cozinha abrindo. - Eu queria um copo de água... - Então, vendo-os um nos braços do outro, Maisie parou e disse: Ih! Jacqui correu para o meio da cozinha e pegou um copo no armário, enchendo-o com água e entregando a Maisie. - Querida, vamos voltar para cama - disse ela. Temos de acordar cedo amanhã de manhã. Mas Maisie se recusou a ser apressada. Bebeu devagar, quando terminou, olhou diretamente para ele. - Algum problema? - perguntou ele. Esperava que ela não dissesse que tinha mudado de idéia sobre ir para a escola da cidade. Já começara a imaginar-se de mãos dadas com ela entrando pelo portão no primeiro dia de aula... - Você é meu papai, certo? - perguntou ela. - Certo - disse ele, lutando contra o nó na garganta. - Então, se você está beijando Jacqui, isso quer dizer que ela vai ser a minha mamãe? - Você já tem uma mamãe - disse Jacqui logo, com a intenção clara de poupá-lo do constrangimento de responder a essa pergunta. Maisie não era tão facilmente distraída. Capítulo 11 Harry se apressou antes que ela pudesse levar Maisie para cima, e Jacqui sentiu como se estivesse na beira de um precipício. Um passo em falso significaria desastre. Estaria mentindo para si mesma se fingisse que não queria que Harry a tivesse beijado, de verdade. Queria isso desde o momento que os olhares se cruzaram. Houve uma espécie de reconhecimento, uma atração que levava um homem e uma mulher a se jogarem em uma cama sem pensar muito no futuro. A honestidade a levava a admitir que queria muito mais que um beijo, mas sabia como era fácil ser levada pelas emoções. Seria tão fácil para ela imaginar que o que sentiu, o que Harry sentiu, era pouco mais do que um momento de atração, de desejo. Seria ótimo se o bem-estar de uma criança não estivesse envolvido, mas não podia se permitir confundir seus papéis agora. Machucar outra menininha com promessas que nenhum deles sabia se 56
poderia cumprir. Maisie, claro, não tinha tal problema. - Mamães fazem coisas. Como encontrar pintinhos, cozinhar, ter tempo para brincar. Minha mãe está sempre ocupada. Sempre saindo. Jacqui é como a mamãe dos livros de história. Jacqui viu o rosto de Harry se contrair, e disse: - Bem, mas agora eu acho que você deve ir para a cama - olhou para ele. - Certo papai? - Certo - ele pegou Maisie no colo em um piscar de olhos. - Dormir cedo para acordar cedo... Pois assim poderemos fazer nossas compras para a escola? Ainda tem certeza de que quer ir? Maisie riu, e Jacqui, cujo primeiro instinto foi segui-los, parou na porta da cozinha e, como sua ausência não foi notada, pegou a bandeja na biblioteca e lavou as canecas. Depois arrumou o vestíbulo, colocando as botas em ordem de tamanho. Quando, depois disso, Harry não voltou, ela subiu e passou para ver Maisie. Ela pegara no sono enquanto Harry lia uma história, mas ele não se movera, claramente incapaz de tirar os olhos da menina. Ele tinha dito que era um risco, mas não havia nada errado com um homem que olhava para uma criança com tanta ternura, tanto amor, e ela desculpou os seus hormônios por ter duvidado do bom gosto deles. Eles obviamente reconheciam um bom homem quando viam um. Após um momento, sentindo-se uma intrusa, ela se virou. Fizera o trabalho que lhe pediram. Deixara Maisie em um lugar seguro. Era hora de ir embora. - Não vá, Jacqui... Ela parou, olhou para trás. - Achei que não tivesse me visto. - Não precisei vê-la. Senti a presença. - Não vá, Jacqui. Prestes a perguntar como ele sabia no que ela estava pensando, decidiu não perguntar. Ele lia seus pensamentos desde o momento em que chegou. A única defesa era não pensar. - Maisie não precisa mais de mim agora - disse ela. Estava livre da promessa. - Ela tem você. - E se eu disser de novo que preciso de você? Ela se lembrou de que não fizera promessas para ele. Que, apesar de tudo, ela deveria estar na Espanha. Que tudo de que ele precisava, tudo que estava pedindo, era para ela ajudá-lo com Maisie. - Você é como todos os homens - disse ela, brincando. - Não consegue fazer compras sozinho. O olhar dele não vacilou. - Isso é um sim? - Vou ficar mais um pouco - concordou ela, sabendo que era uma tola. Aliás, Maisie nunca foi à escola antes. Deve estar achando isso um... desafio. - Isso é uma promessa? Ele estava perto o suficiente para tocá-la, beijá-la. Apenas um beijo seria o ideal para ela jurar sua vida a ele. - É uma promessa. Quando um momento era precioso, parecia insuportavelmente breve. Ela passou o dia com Harry e Maisie comprando roupas "normais". Primeiro material escolar, depois eles se descontrolaram um pouco e compraram uma pilha de coisas que meninas precisam. Sapatos para brincar. Galochas do tamanho dela. Casacos quentes, calças, camisetas, meias... - Você sabe que Maisie deve ter todas essas coisas em casa... - Mesmo? - Harry balançou a cabeça. - Não vi nada disso em High Tops, você viu? - Não, quis dizer... - ela entendeu e quase o abraçou. Jacqui se segurou, vinha fazendo muito isso nos últimos dias o que era ruim, porque nunca sentira nenhuma vontade de abraçar o pai de Emma. Então, colocou um par de meias na cesta e se satisfez com um sorriso. Ele não correspondeu ao sorriso. Ela engoliu em seco e, incapaz de lidar com o olhar direto dele, virou-se para Maisie. - Está com fome? Jacqui fez o possível para levar todos para o caminho da boa comida, mas Maisie queria hambúrguer, e Harry disse: - Só dessa vez! - e estava resolvido. Assim como estava resolvido quando ela insistiu que ele deveria levar Maisie à escola no dia seguinte. 57
- Nós dois iremos. Assim, a diretora vai conhecer você. Mas quando Maisie, tão pequena em sua saia cinza e suéter vermelho, afastou-se deles e foi engolida por uma multidão de crianças ávidas para descobrir quem ela era, de alguma forma eles estavam de mãos dadas. - Ela vai ficar bem, não vai? - perguntou Harry. - Você devia se preocupar com as outras crianças - respondeu ela, sem olhar para ele ao afastar uma lágrima. Maisie voltou da escola exultante. - Brilhante! Seu nome já está na lista de mães para leitura e eu vou ser uma fada na peça do final do período, e vocês dois vão ter de sentar na primeira fila para poderem me ver. Mas então a irmã de Jacqui ligou para saber como estavam suas férias e, quando ela explicou o que tinha acontecido, escutou um sermão sobre deixar-se envolver para cuidar de outra criança quando deveria estar viajando. Tudo carregado com um "você nunca aprende a lição", em tom de bronca. Mas não ia ficar para sempre. Só até o final das aulas. Nem por toda a Espanha perderia o prazer de ver Maisie em sua primeira peça na escola. Vickie telefonou e disse que Selina Talbot mandara um fax se desculpando e com uma permissão para deixar Maisie com Harry. - Não precisa ficar nem mais um dia, querida. Estive na agência de viagens e eles vão me mandar os horários dos vôos esta tarde. Selina vai pagar por uma viagem melhor. - É muita gentileza dela, mas, na verdade - disse ela - acho que não vou para a Espanha este ano. Gosto daqui. - Mas você não pode ficar! - Não posso? - Selina não gostou de você ter ficado. Ela não vai pagar por mais nenhum dia. - Vickie, querida, posso fazer o que eu quiser. Não trabalho para você nem para Selina - e ela desligou. Levantou o olhar, sabendo que Harry estaria ali. Ele estava encostado na porta, algo próximo de um sorriso nos lábios. Quase rindo, mas não inteiramente. - É só até acabarem as aulas - disse ela. - Não posso perder a peça da escola. - Maisie vai ficar feliz. E você, Harry? - perguntou-se ela. Mas ele não estava dizendo nada. Não estava se insinuando para ela. Não estava mais procurando por ela. Mais nenhuma caneca de chocolate. Ele estava apenas ali. Levando-as para a escola todos os dias, apesar de os buracos terem sido tampados e o carro dela estar de volta à garagem. Café da manhã com Maisie, então, depois de levá-la para a escola, aparecia na hora do almoço, vindo dos campos ou da biblioteca, pronto para dividir um sanduíche se ela tivesse preparado. Pronto para preparar e dividir com ela, se tivesse ficado ocupada ajudando Susan. Empurrando o carrinho do supermercado quando ela queria comprar alguma coisa, e um tanto feliz em demonstrar que sabia cozinhar tão bem quanto ela quando cismava. Ele não desaparecia quando o jantar acabava, ficava para ajudar a arrumar a cozinha, conversava com Maisie sobre o dia. Fazia café. Juntava-se a elas no ritual de tomar banho, e se alternava com Jacqui para ler histórias antes de Maisie dormir. E depois que Maisie dormia, eles passavam as noites na biblioteca, em frente à lareira, lendo, com a música tocando baixinho ao fundo. Maisie estava certa. High Tops era um lugar maravilhoso para se ficar agora que a névoa evaporara e o céu estava de um azul límpido contrastando com a beleza do vale. Havia narcisos e cordeiros por toda parte e, além disso, alguém tinha de ficar de olho naquelas galinhas estúpidas que ficavam escondendo seus ovos, no desespero de chocar os pintinhos. -Recebi um e-mail da tia Kate essa manhã - disse ele. Era o último dia de aula, e eles estavam indo para a escola assistir à peça. De manhã, nenhum deles dissera nada sobre a partida dela, mas ela arrumara suas coisas para não ter desculpa para atrasos. - Ela disse quando vai voltar para casa? - Não. Ela gosta da Nova Zelândia e não quer deixar a irmã. Ela vai morar lá mesmo. 58
- Ah! Ela vai vender a casa? Você terá de encontrar outro lugar para morar? - Isso a deixaria preocupada? - Eu? Por que está perguntando? - Porque é importante para mim. Quero saber como se sente. - Maisie adora a casa. - Isso é algo importante para se levar em consideração - concordou ele. - E você? Também adora a casa? Apesar das galinhas? - Estou me acostumando com as galinhas - disse ela com cuidado. Aliás, o que vai acontecer com os animais se você for embora? - Vou ter o prazer de falar para Sally que ela vai ter de encontrar um abrigo para eles. - Claro - disse ela, dando um sorriso que logo se apagou. Se o sentimento não viesse de dentro, nada poderia fazer um sorriso ser real. - Você é tão duro. É um lugar maravilhoso para se viver, Harry, mas são as pessoas que fazem um lugar especial. - Também acho - concordou ele. - O que você vai fazer se sair da casa? - A pergunta certa, Jacqui, é o que vou fazer se ficar. - Ok, isso também. - Eu estava pensando em reabrir a clínica na cidade. Com novas casas, novas pessoas, vai ser necessário. - Então você respondeu à sua própria pergunta. É a casa da sua família. Maisie é a sua família. E tem muito espaço para a mãe dela visitá-la quando... - Quando ela precisar de algumas fotos novas para alguma revista de celebridades? - Eu ia dizer quando ela estivesse se sentindo maternal. Tenho certeza de que ela ama Maisie do jeito dela. - Claro que ela ama. Ah, devíamos ter saído mais cedo. A cidade estava cheia de carros, todos estacionados na rua. Até o estacionamento da lanchonete estava cheio, e Harry conseguiu a última vaga, apertando o jipe em um espaço em frente à igreja. Foi só então que ele se virou para ela e disse: - Tenho mais uma. - O quê? - Pergunta. - Harry... - Considerando que as pessoas são mais importantes que os lugares, você vai ficar? Ela foi salva de ter de responder pelo celular. - Deve ser da... agência - gaguejou ela, procurando o aparelho na bolsa. - Liguei na semana passada e pedi para conseguirem alguma coisa para mim na semana que vem. - Desfaça sua mala, Jacqui - disse ele, pegando o telefone antes que ela pudesse ver quem era. Ele desligou e colocou em seu bolso. - Você não precisa de um emprego temporário. Estou lhe oferecendo um para o resto de sua vida. Você só precisa dizer sim. Mas não agora - ele saiu, abriu a porta do lado do carona. - Vamos - disse ele, tirando-a do carro como se ela fosse uma pluma. - Maisie não irá nos perdoar se chegarmos atrasados. Ficar? Para o resto da vida? A tarde foi divertida. Maisie, vestida de fada, com asas e varinha de condão, era quem dava a vida para os animais. Ela foi a estrela. Demorou uma eternidade até que conseguissem finalmente ir embora. Todos queriam dizer oi, convidar Maisie para brincar. Por sua vez, Harry anunciou uma caça aos ovos de Páscoa em High Tops, o que deixou Maisie pulando de alegria e querendo saber todos os detalhes no caminho de casa. Era como uma festa? Jacqui faria um bolo? Todo mundo poderia ir? Quando chegaram ao topo da ladeira, Jacqui estava se sentindo pressionada. Isso era injusto. Harry a estava manipulando, a colocando contra a parede. Se ele precisava que ela ficasse para cuidar de Maisie, devia simplesmente dizer. E ela poderia dizer não. - Parece que temos visita - disse Harry ao diminuir a velocidade. - O portão está aberto. E então ela viu quem era e pulou do jipe antes mesmo que ele parasse. Levantou a menininha que, com o cabelo louro voando atrás de si, se jogou em seus braços. 59
- Emma! Minha querida! O que você está fazendo aqui? - ela olhou para os Gilchrist, parados ao lado do carro, parecendo desesperados, e soube por que eles estavam ali. Momento no qual, com o coração apertado, ela soube que havia apenas uma resposta para a pergunta de Harry. Ela queria ficar, mas ia ser chamada a cumprir sua promessa. Ela colocou Emma no chão, embora a menina continuasse segurando sua mão, e encorajou Maisie, que na mesma hora pegou a outra, a levar Emma para ver o pônei. Emma ficou tão impressionada pelo fato de Maisie ter um pônei que se permitiu ir. Depois, apresentou os Gilchrist a Harry. - Harry, estes são Jessica e David Gilchrist. Eu trabalhava para David como babá de Emma. - Jacqui me contou sobre vocês - disse ele. E, pegando a chave da porta da frente, ele os convidou para entrar. - Temos uma lareira na biblioteca, por que não ficam à vontade enquanto preparo um chá? David Gilchrist levantou as sobrancelhas, impressionado por um homem que preparava chá para as visitas quando tinha uma empregada para fazer isso. A nova Sra. Gilchrist parecia simplesmente desesperada. - Jacqui - disse ela, assim que Harry saiu. - Cometi um erro terrível. Você pode me perdoar? - Claro. Não precisava ter vindo até aqui para me dizer isso. Como souberam que eu estava aqui? - A Sra. Campbell nos disse. Ela disse que ia telefonar e lhe avisar que nós estávamos a caminho. - Meu celular estava desligado. Estávamos na peça da escola de Maisie. Espero que não tenham esperado muito tempo. Jessica balançou a cabeça como se isso não fosse importante. - Você é tão boa com crianças! - Não existe nenhuma mágica nisso, Jessica. Elas são pessoas, como todos nós. - Você faz parecer tão fácil. Emma... não consigo me aproximar dela. Ela me odeia. Estou lhe pedindo, implorando, para voltar. Ela me disse que você prometeu que sempre estaria ao lado dela se ela precisasse. Você terá seu próprio apartamento, seu próprio carro, pagaremos o que você pedir. Hong Kong é um lugar maravilhoso. Jacqui cobriu a mão dela, fazendo-a parar. - Você acha que depois do que aconteceu eu poderia ou faria isso por dinheiro? Jessica, então, levantou o olhar, confusa. - Mas você está aqui. A Sra. Campbell disse que era apenas temporário. Estamos lhe oferecendo um bom emprego permanente... - Você a escutou, Sra. Gilchrist. Jacqui não está à venda. E, apesar de tudo que a Sra. Campbell pode ter dito, ela não é babá de Maisie. Os três se viraram para Harry, que estava parado na porta com a bandeja nas mãos. - Então o que ela é? - perguntou David. - Para Maisie, ela é a mãe dela. Para mim... ela é a luz no final de um túnel comprido e escuro. Calor em uma noite fria de inverno. Conforto. Alegria. Ela simplesmente completa o meu mundo. - Hum, entendo. E a resposta suave de Harry: - Não, Gilchrist, você não faz a menor idéia. - Estamos perdendo nosso tempo aqui, Jessica. Existem centenas de babás para o emprego que estamos oferecendo. - Você não aprendeu ainda? - perguntou Harry, com uma calma assustadora. - Cuidar de uma criança não é um emprego... David Gilchrist ficou de pé, puxando o braço da esposa, e disse: - Vamos embora. Jacqui também levantou. - Não! Esperem... - ela se virou para Harry implorando silenciosamente para ele entender. E Harry Talbot, que expusera seu coração desprotegido e machucado para mantê-la ao seu lado, soube que ele seria partido mais uma vez. - Harry, pode levar David para ver as crianças? Para ver se não estão fazendo nenhuma besteira? Preciso conversar com Jessica. - Achei que você fosse com eles. - Porque eu prometi? - Jacqui, encostada no portão para observar o carro dos Gilchrist sumir de 60
vista, dando um último adeus para Emma, procurou a mão dele. - Porque você prometeu - disse ele. - Emma não precisa de mim. Ela tem uma mãe. Alguém que cuidará dela porque a ama, não porque vai receber seu pagamento no final do mês. - Ah, certo, como você fazia. - David Gilchrist é rico, boa pinta, ainda é jovem. Era inevitável que ele se casasse de novo. - Com você em casa, não posso imaginar porque ele procurou mais. Ela riu. - Ah, por favor. Eu era uma empregada. Ele provavelmente acha que eu encontrei alguém do meu nível... Um... como ele lhe chamou? - Um "cavalheiro fazendeiro". - Você não o corrigiu. - Não achei que ele valesse o esforço. Então, Emma ficou contente? A pulseira compensou perder você? - Ela não me perdeu. Agora ela entende isso. Ela só precisava saber que eu não a tinha abandonado, Harry. A pobre Jessica Gilchrist entrou em pânico, achou que teria de me eliminar completamente da vida deles para que Emma pudesse amá-la. Ela não entendia que o amor de uma criança é infinito. - É simples assim? - Não, vai levar tempo, mas eu disse que ela poderia ligar para conversar quando quisesse. - De Hong Kong? - Eles podem pagar. - E o que você disse a Emma? - Que eu sempre a amaria. Que eu sempre estaria ao lado dela quando ela precisasse. Que não preciso morar na mesma casa, nem no mesmo país, para que isso seja verdade. Ela só precisa pegar o telefone. - Você disse que ela podia ligar quando quisesse também? - Na verdade Harry fiz mais do que isso. Disse que ela podia vir passar o verão aqui. Você se importa? Importar? Se Emma vinha passar o verão significava que Jacqui estaria lá. - A única coisa que me importa é se você vai ficar ou não. Eu cheguei a pensar por um momento que eu a tinha perdido. - Pensou? - E você me deixaria ir embora tão facilmente quanto deixou Maisie? - Não, meu amor. Os Gilchrist estavam lhe oferecendo um emprego. Eu estou oferecendo minha vida. Tudo que eu tenho. - Fale-me sobre o futuro, Harry - pediu ela, a voz engasgada na garganta. - Sobre o resto de nossas vidas. - Ser a esposa de um médico da zona rural não é a opção mais refinada - disse ele. - Nada como o estilo de vida luxuoso que você teria em Hong Kong. E eu sei o quanto você não gosta das galinhas... - Estou me acostumando às galinhas e, espera aí, isso foi um pedido de casamento? - Quer que eu ajoelhe? Ela olhou para baixo. Ainda havia uma poça de lama bem no meio da estrada, mas ela ficou com pena dele e disse: - Por que não deixamos isso para depois? Depois que você me mostrar a história do "calor em uma noite fria de inverno". - Não estamos no inverno, meu amor. O sol está brilhando. Domingo que vem é a Páscoa. - Já vi neve na Páscoa. - Bem, já que você mencionou isso, pode estar certa. Provavelmente teremos neve esta noite - ele passou o braço em volta dela enquanto caminhavam de volta para casa. - Mais alguma coisa que eu possa fazer por você? - Bem, eu realmente detesto aquela placa escrito "mantenha distância" no portão. - Vou tirar agora mesmo. - E nós devíamos ter uma cabra, você não acha? - Uma cabra? - ele riu. - Já tentou tirar leite de uma cabra? 61
- Não, mas deve ser obrigatório. - Todo fazendeiro tem uma. - O que a faz pensar que sou um fazendeiro? - Cinco burros, um pônei e perdi a conta de quantas galinhas e coelhos. Ele parou. - Olhe a sua volta - ela olhou. - Não, tudo à volta. Do cume da montanha até onde pode ver, à direita e à esquerda. Para baixo, até a estrada principal. Ele viu um brilho nos olhos dela. - Tudo isso? - Era parte da propriedade original, mas meu avô deu aos moradores o domínio uns cinqüenta anos atrás. A maior parte da terra está arrendada a fazendeiros locais. - Mas é imenso! Você tem como comprar da sua tia? - Ao preço de hoje, seria difícil, mas comprei da minha tia Kate dez anos atrás quando ela queria financiar a carreira de Sally. - Mas ela continuou morando aqui? - Nada mudou, só o proprietário. Dei a ela a autoridade legal de administrar tudo, como ela fez, e devo dizer que ela fez um ótimo trabalho. Só agora descobri que ela conseguiu uma pequena fortuna para mim vendendo o terreno. Com a expansão da cidade, haverá mais. Terei de renegociar o preço que paguei a ela para refletir isso. Ainda quer uma cabra? - Posso pedir também um pônei para Maisie? Um que não vá morrer se ela montar nele... - Nós poderíamos dar um a ela de aniversário. Nós. Jacqui achou que essa era a palavra mais bonita que já escutara e, dando o braço para ele, disse: - Perfeito! - Ela provavelmente gostaria de ter alguns irmãos e irmãs. Ela olhou para ele. - Isso é um plano a longo prazo. - Já que vai ser uma noite fria, poderíamos começar já, se você quiser... Com os planos... Começando com uma data para o casamento - um beijo longo não deixou dúvidas sobre os sentimentos de ambos. Junho, todos concordaram, era o mês perfeito para um casamento no campo. A igreja fora decorada com flores oferecidas por Selina Talbot, no lugar de sua presença. Ela se casara com o tal bilionário e não queria que ninguém interrompesse sua lua-de-mel, nem Maisie, que teve um papel de destaque como dama de honra. A ladeira não precisou de ajuda. A própria natureza se encarregou de decorá-la para o dia especial com flores amarelas e brancas. As damas de honra, Maisie, Emma e as sobrinhas de Jacqui, foram levadas para a igreja em uma charrete puxada por um esperto pônei. Jacqui seguiu alguns minutos depois, em outra charrete, com seu pai, os arreios enfeitados com flores. - Você realmente não se incomoda de eu não estar me casando em casa? - perguntou ela. Seu pai apertou sua mão. - Esta é a sua casa, Jacqui. Nunca a vi mais feliz. - Estou tão agradecida a você e a mamãe por ficarem para cuidar de Maisie enquanto ficarmos fora! - Este é um lugar mágico querida. Teremos os melhores dias de nossas vidas. Os votos de "até que a morte nos separe" foram feitos não apenas com palavras, mas com olhos, corações e almas, e a festa que se seguiu também foi. Não houve cerimônia no café da manhã matrimonial. A comida foi colocada em uma enorme tenda na parte mais plana da propriedade e todos podiam se servir. A dança não ficou devendo nada para as músicas altas das boates. Era um maravilhoso grupo de violinistas que nem um adolescente chato conseguia resistir. A festa continuou por muito tempo depois que os personagens principais saíram sorrateiramente para começar a lua-de-mel, uma celebração à vida, ao amor, a todos os pequenos prazeres. Como a dona da loja da cidade disse para a esposa do vigário, depois de muitas taças de cham62
panhe, era como se o lugar voltasse à vida depois de um inverno muito longo.
FIM
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