O CAPETA ARREPENDIDO - Calipgio Doctor

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O CAPETA ARREPENDIDO (uma novela dos quintos) QUERUBIM SERAFIM

1)

O Gênio do Mal, pensabundo, ensimesmado lia, voraz, alguns contos do insígne Machado de Assis, quando um de seus ajudantes adentra a câmara principesca, à direita do palácio de rocha vulcânica, como quem dá um nó na linha do Equador, aos berros: - Oh Senhor! Oh Senhor! - Não é preciso gritar... não sou surdo. - Mas, Senhor... - E, não me chame desta maneira se não me confundem com... o outro. - Como chamá-lo, então? - Que tal... Dragão... Dragãozão... Que tal? O Lépido Dragão – e girou a mão no ar, em pose. - Lépido?... Não sei não... Dragãozão... Acho que pega mal, chefe. - Então, tudo bem. Vire-se. Chega de conversa. Esquece! – o gênio do mal falou rispidamente e, repentinamente, mostrando uma face angelical – Qual o problema, afinal? - Estão chegando mais pessoas! O gênio pulou no trono. - Mais! Pombas! – ele estava decididamente enraivecido – O que o Pedro pretende? Entupir de rebotalho isso aqui? Desse jeito fica incontrolável! - Pois é, supremo mestre... - Puxa saco! Mestre do que, mesmo? - Do Mal, mestre... do Mal. - Eu heim! Vade retro, Arrenegado! – falou bem alto o gênio, num latim, impecável. Depois, dirigiu-se a um telefone e se entendeu com a portaria do inferno. -

Alô?! Aqui sou ele.

-

Oi... ele. O que manda? – a pequena voz irritadiça através do fone perguntou.

-

É o seguinte: não deixa mais ninguém entrar.

-

Não, mesmo?

-

Não, mesmo! Manda tudo de volta para a Terra. É quase a mesma coisa. Tem menos fogo que aqui, mas, é quase a mesma coisa.

-

Por mim tudo bem, mas tem um Querubim aqui que não arreda pé enquanto não depositar a encomenda no primeiro poço sulfuroso que aparecer.

O Gênio tapou o fone com a mão e virou-se sorrindo para o Arrenegado, que aparava a unhas: - Esses Querubins nem sabem que o enxofre já acabou faz tempo. São completamente desatualizados – retomou a ligação: Muito bem! –no comunicador – vou já para aí, tá bom? – e virando-se para o auxiliar que testava um esmalte laranja: - Vou lá numa

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asa e volto na outra. Fica de olho nesses pecadores. Já passaram do ponto e eu os prefiro mal-passados.

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Uma dezena de pessoas estava deitada no salão de espera do inferno quando o Gênio apareceu. Alguns se levantaram, mas, a maioria nem se deu ao trabalho. Aliás, quando o Gênio apareceu começaram a vaiá-lo e jogar zombaria, coisa que o desgostou deveras. Mesmo assim, aproximou-se do Homem de Asas. - Queruba velho! Como vai? E o céu, gelado ainda?

- Diabolous!- em tom profético - Aquele que Separa. Tanto tempo não o vejo. Que história e essa de céu gelado? Anda estudando os gregos? - Ora, aqui um calor desgraçado, obviamente, pelo contraste, lá um frio medonho, não será assim? - Medonho...! Rá... Boa... Medonho só você... É que passamos, ainda, por reformas, sabe? – e, o anjo sentou-se na poltrona de vegetais secos – Faz tempo que você não aparece por lá, estou certo? Não tem saudade? Não sente uma certa melancolia de fim de tarde? O Gênio torceu o rosto e disse: - Não sei, estou um pouco desorientado quanto a esse negócio de religiosidade e fé. Há uma crise por aí. Olha só, eu entrei nesta sala e fui vaiado. Esses caras pensam que são piores do que eu. - São novatos. Pecadores recentes. Inexperiente. Sexo na web, essas coisas... A qualidade dos pecados também mudou... São uns desinformados, apesar da rede mundial. - Tudo, tudo bem! Eu compreendo, mas, o pior é que continuam a fazer das suas lá dentro, com ou seu piscina de lava ardente. Ninguém sofre, a não ser eu! Em vez de penarem seus erros, não! cometem mais – O Gênio bateu a mão no joelho – São insuportáveis. Se não fosse a minha responsabilidade, já teria pedido demissão. Ficaram um instante em silêncio que foi quebrado pelo querubim. - Lembra da revolução? - Sempre. Como haveria de esquecer? Entrei pelo cano – disse o Gênio. - Penso sempre nela. Atualmente estamos chegando no ponto que você queria alcançar, já naquela época. Realmente, você estava muitos anos à frente, meu velho. - Eu e o Chefe. Mas, já viu sujeito mais ciumento do que o Chefe? Mas, peraí, o que faz aqui um anjo de primeiro escalão? - Foi o que eu disse, estamos passando por reformas. Agora resolveram que somos todos iguais, que esse negócio de hierarquia fica por conta da escolástica e, para dar o exemplo, tenho de fazer um trabalho humilde... Coube a mim entregar essas porcarias pecadoras. - Reformas, reformas, mas os pecados continuam os mesmos. No entanto – o Gênio dizia bem alto – Não há vagas! Estamos lotados, Queruba velho. - E, o que é que eu faço com esse lixo? – perguntou, mantendo a calma notória de quem pouco se importa com o negócio.

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- Leva de volta para a Terra. Ninguém vai perceber. Aquilo está pior do que aqui. Além do mais - o gênio completou, coçando a barbichela – eu também preciso de sossêgo. Tem uma enxaqueca que não me larga. - Devo entender que não há negociação?! - Não... não há... Você sabe que não há, Queruba! Olha, fala para o Chefe mandar doutrinadores de várias igrejas para desafogar um pouco o local! Liberei a alfândega. Os líderes descentes da Fé podem entrar à vontade... Esse pessoal vai ficar assim até quando? Pra sempre, por acaso...? - Líderes descentes? Você está delirando?... Esse pessoal ficará assim... Segundo as escrituras... - Eternamente, tá, eu sei, mas, reforme isso também, que tal. O querubim bateu nas costas do Gênio do Mal, levantou o polegar com a intenção de se despedir, mais entediado do que insatisfeito. - Voltando, pessoal. Não é aqui que ficam. Muita gente começou a se lamuriar e não queriam sair daquele antro, onde se sentiam muito bem, mas, alguns anjos auxiliares passaram a empurrar os pecadores para fora do inferno. O Gênio sorria debochando e, quando o último se retirou, ele armou uma banana com os braços e pensou: - Vão amolar o boi-tatá! Tá?

3) Um dia, porém, o gênio reuniu todo o plantel demoníaco e passou a discursar dessa maneira: - Senhores. A partir de hoje devo declinar da minha posição de Maior entre os Maléficos, se bem que eu pessoalmente odeie essa denominação, pois os tempos são outros e, afinal, não fui eu quem mandou cortar as cabeças dos filisteus, quando voltaram para a terra Prometida, fossem eles crianças, mulheres ou velhos. A ordem veio de outro... devo deixar bem claro, de outro – e o Gênio estava sob aplausos e assobios de apoio. - Deixo o cargo, enfim, abdico dessa suprema honraria, em nome de Exu, uma vez que ele está muito bem cotado nas bases populares. Espero que mantenham a obediência e mantenham aquele caos que sempre nos definiu. - Mas, o que foi que aconteceu, Gênio do Mal? Porque essa mudança, assim, tão repentina? O Gênio olhou para o chão, pigarreou, passou levemente a mão na testa, como quem tira gotículas de suor e continuou: - Devo esclarecer que estou em crise ideológica. A minha fé está abalada. Os Satananases (demônios apreciadores de abacaxi), as Sapatãs (demônios fêmeas cujo pecado era o lesbianismo explícito), Belzebus (os capetas bois-da-cara-preta) e Anhangás (uns bichos perdidos), fizeram um “Ó” coletivo, com suas ovaladas bocas, que mais pareciam cantantes em finais de canções corais, certamente à capela. O Gênio das Trevas levantou os braços, fez um corte e pediu calma. - Acontece que não acredito mais em Deus. Não acredito no Chefe! Piorou. Todos solidários com o conflito do líder tentavam, inutilmente, dar conselhos e caminhos para que o gênio se posicionasse e permanecesse em seu glorioso trono, mas, falavam todos ao mesmo tempo, uma algaravia, e ninguém se entendia. A caverna estava

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cheia e até alguns terráqueos palpiteiros queriam dar opiniões tentando entender o processo da abdicação infernal. O Gênio, percebendo a presença dos pecadores gritou: - Mas, não pensem vocês – e apontava para os pecadores que retrocediam com certo palor nas faces – que as coisas ficarão moles por aqui. Exu será devidamente assessorado por Ariel, o espírito do Ar e, ai de vocês! se desobedecerem as recomendações dos dois. Eles soltam o Bicho-Preto encima de vocês, porcos azedos! - Não adianta Gênio – o Arrenegado puxava-o pelo rabo – fiquei sabendo que eles adoram o Bicho-Preto... principalmente quando o Bicho-Preto morde a bunda deles. - É, amigos. O inferno já não é mais como antes. Ainda bem! – o Gênio ainda falou – o problema é que em breve perderemos nossas conquistas. Eu queria transformar o homem em deus, no entanto, ele prefere ser porco. Por isso, me vou, com minhas pérolas. - Para onde? – gritaram todos – Para onde, Gênio? - Para a Terra! – e sumiu na luz. Na escuridão. Na luz. Na escuridão... há muita controvérsia a esse respeito.

4) O padre Demócritos acordara cedo. Era impossível dormir até tarde na cidadezinha de Mococa, por dois motivos: o primeiro e menos importante: tinha uma missa para rezar, e, em segundo lugar, mas mais importante: tinha de tratar da política local, o resto do dia. Eram as coisas que mais lhe interessavam. Mas não mais do que uma terceira coisa. Espreguiçou-se na cama e seu braço bateu nos ombros de sua secretária, a qual, por questão de trabalho, fizera serão naquela noite. Ela imediatamente pediu benção e, como padre Demócritos estava teso, ou seja, entesouiasmado, aspergiu-a com sêmen santo. Padre Demócritos se levantou, lavou o rosto com sabonete dos mais cheirosos, aroma de Mel glicerinado e misto com elos aromáticos do alecrim, pôs os óculos de aros grosso e escuros, lambuzou os cabelos pretos com um glostora velho, cabelos esses, recentemente, tornados na cor da Henna Egípcia, tomou café puro, retirado dos quintais da cidade, e, saiu para a sacristia. Tomou da estola adequada e rumou para o confessionário, ainda guardando lembranças da noite exemplar que a secretária dividira com ele. A moça ensinara-lhe truques desconhecidos, como por exemplo, aquele truque do número. Ao sentar-se no banco dos confessores, após fechar o cortinado, sentiu um hálito quente, através da janelinha gradeada. Achou estranho, mas mesmo assim benzeu-se e benzeu o confessando, através da janela e perguntou: - Qual o seu problema, meu filho? Após uma breve pausa, uma voz resolveu se fazer perceber, mostrando uma cor tenor, contrariamente ao que dizem as lendas. - Padre, eu pequei. Demócritos, no reflexo, quase que disse, “eu também e daí?”, mas se conteve. Tinha um papel a desempenhar. - De que forma o filho tem pecado? – o padre perguntou acostumado e solícito, mas um tanto alheio, coçando a testa.

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- De muitas formas... eu, por exemplo, acredito que governo metade do mundo... mas, o principal dos meus pecados, que eu acho, é a ocultação de criminosos. - O filho precisa entregar os criminosos para a justiça. – Demócritos aconselhou piamente. - Qual justiça? - A justiça dos homens é claro. - E na justiça de Deus, não vai nada? - Possivelmente Deus já terá julgado tais criminosos, e eles terão que prestar contas no Juízo Final, mas, mesmo assim eles precisam prestar contas, agora, à comunidade. Precisam ir a um julgamento civil, meu filho. - Seu filho? - Sim...considero a todos meu filhos... – franziu a testa , o padre. - Mas, isso já aconteceu. – Tornou o confessando. Foram punidos, foram condenados e coube a mim, sob ordens de Deus, ocultar pra sempre tais criminosos! O padre Demócritos pensou: “Esse é louco”! - Não estou entendendo. - Mas vai entender já já! Durante alguns segundos o padre Demócritos ficou entre sair do confessionário ou esperar, mas, repentinamente a cortina abriu e uma alegoria vermelha começou a saltar em sua frente, abrindo um tridente e chacoalhando o rabo, rindo de gaiato. Demócritos olhou, estupefato. -E, agora, entendeu? - Ainda não. Quem é você? Ainda não estamos em fevereiro. O gênio parou, desalentado. Comentou consigo mesmo: - Sem moral! Completamente desmoralizado! E, ainda, com essa roupa de palhaço medieval! - Quem é o senhor, se me pode dizer? – pediu Demócritos, saindo do confessionário e fechando o breviário com certo barulho brusco – Há algum baile à fantasia, por acaso? - Eu sou – estufou o peito para dizer, pomposamente, esperando quiçá alguns acordes sinfônicos que não vieram – Lúcifer! O padre Demócritos olhou a figura, atentamente, de cabo a rabo, por assim dizer; aprumou óculos, passou as mãos pelos cabelos pintados, coçou a ilharga e começou a rir, desbragadamente, às bandeiras soltas, às escâncaras. - Lúcifer! Rá, rá, rá, rá, rá! Lúcifer? Essa foi muito boa, conta outra! Que coisa de louco, mesmo; louco, louco! Rapaz! Você é algum ator? Tem circo na cidade?– De repente ficou sério – Quer brincar comigo, seu palhação? Pensa que tenho tempo pra perder? Mas, o Gênio não se fez de rogado e não aceitou a reprimenda. - Ah! Então ficou nervozinho, heim, Demócritos? Vai mesmo me esnobar, padreco, pois fique sabendo que Tonica acaba de se levantar, está se lavando... – fez mão em concha como se ouvisse algo – Neste momento está limpando o que ficou preso nos pelos... O padre ficou lívido. Perguntou:

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- Como é que você sabe? - Já falei o meu nome. Mas você não acreditava ainda... posso garantir que o seu pedido de empréstimo ao governo não passa na câmara. Será rejeitado, pois descobriram que o seu interesse é aliviar os cofres públicos de seu recheio, não é? Além do que a cidade ficaria com uma dívida até o ano 2010. Não é? 30 anos de dívidas. O Padre Demócritos retrocedeu um passo. - Você deve ser agente dos fiscais de renda! - Não, meu inimigo, não! Sou o anjo das trevas! O arcanjo das quimeras! Antes eu regia o Coro Celestial... – e a voz tremeu, cavernosa. Imediatamente o céu se fez negro, vestindo túnica de ventos e nuvens cinzentas, lançando coriscos prateados por todos os lados. A chuva desabou soturna sobre a igreja. Somente sobre a Igreja. O pároco não conseguiu fechar a boca e benzeu-se, enquanto pedia ajuda a Santa Bárbara. - Não acredito em você! – Demócritos gritou. - Mas, eu acredito em você e sei que o inferno está lotado de gente do seu tipo, por causa da existência de pessoas do seu tipo e alguns piores, que gostam de criancinhas..., por exemplo – e, o sol voltou escandaloso, ardente e súbito. O Gênio coçou a barbichela. O rabo, com um volteio se aproximou do padre, que retrocedeu mais um passo, retirando o crucifixo e passando a rezar: - Mas – disse o Gênio do Mal – quem sou eu para acusar? - O que você deseja... Anjo decaído? - Nada. Apenas vim me confessar, mas, parece que são poucos os que levam suas funções a sério neste planeta horrendo. – e a voz do Gênio pareceu a dos narradores dos antigos filmes noir, meio anasalada e veludosa. - Essa é a história da humanidade! Naquela quarta-feira terrível eu mostrei-lhes o fruto e me chamaram de Serpente Maldita. Quis esclarecê-los e me prenderam na pedra para que Abutre comesse minhas entranhas, eternamente. Sabia que o enxofre acabou há muito tempo? Desde que Sodoma e Gomorra foram destruídas por aquelas bombas atômicas gastaram todo meu estoque. Demócritos já estava escorado, cambaleante, entre a parede e a porta da sacristia perto do altar. - E, estou aqui, agora perambulando, vagamundo pela terra, tentando encontrar um motivo para que eu seja tão amaldiçoado o tempo todo, sendo que eu nada fiz. Nunca matei ninguém. O primeiro assassino foi Cain. Eu apenas tinha dado um fruto a dois pelados que encontrei no caminho. Falaram que se eles comessem do tal fruto morreriam e, não morreram coisa nenhuma... por aí se vê que o primeiro mentiroso não sou eu, no entanto fui chamado de Pai da Mentira. E aí! Como se explica isso? - A culpa não é minha, Bruxo do Inferno. - É sim... também... pois você propaga essa informação por aí e, estas histórias são contadas há milênios. E a mentira repetida mil vezes... Ainda por cima, na escondida, não cumpre o que prega, quer dizer, é um hipócrita! E, eu – o gênio abaixara-se para pegar o tridente que estava no chão – sou mandado para as profundezas da terra, tomar desoladas ondas de calor e alojar bandos irremediáveis de pecadores. – Virou-se, subitamente, para Demócritos: – Afinal, você absolveu ou não, aquela cambada? - Alguns têm pecado mortal, seu Pai do Mal. - Detalhes Burocráticos. Não sabia que O Chefe esta fazendo reformas?

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- Que Chefe? - O nosso Chefe, Padre Demócritos Pará Brasília Ruas, o nosso Chefe, padreco danado! Nisso, o Gênio se espreguiçou e pediu água. Estava com muita sede, uma vez que falara demais. Concluiu que ia zanzar pela cidade para ver se encontrava subsídio para a sua fé combalida, aproveitando para tirar a ridícula roupa. Devolveu o copo e partiu numa espoleta prateada.

5) Já avançava a tarde e o Gênio caminhava absorto, olhando para uma ponte sobre o pequeno rio que cortava a cidade; era o Ribeirão do Meio. Parou por ali e se pôs a jogar pedregulho na água. Às suas costas, o sol descia para a noite e ela, a noite, veio se aproximando cautelosa, mas, bem escura. Não havia estrelas, somente névoas; nem havia lua, tampouco. Breu solene acampou sobre a cidade. O Gênio permanecia sobre a ponte e muitas vezes um transeunte aconselhou-o a se retirar dali, pois a noite era de ninfas e duendes. O Gênio riu, mas, fingiu-se de assustado, fingindo que tremia. Mais tarde, um velho se aproximou. Longas barbas, chapelão, cajado e voz gutural. Aproximou-se, dizia, e apontava o dedo para o Gênio das trevas: - Eu o conheço muito bem. O reconhecido punha as mãos na cintura, olhando de lado.“Epa!”, pensou “ Não me deixam em paz nem aqui?!” - Eu o conheço muito bem, você é o Beiçudo – instantaneamente o Gênio tomou forma de um macaco que mostra os lábios com acinte e pula pra todo lado – o Bicho, o Bode-Preto – e, novamente, se efetivava a transmutação em bode, mágica rápida e certeira, mas, o velho continuou: - O Bute, o Cafuzo, o Caneco, o Caneta... - Eh! Péra lá. Ta legal que inventem um monte de apelidos, mas, Caneco... Caneta... Se em cada país for assim, eu devo ter um zilhão de nomes... O que mais? - Canheta! - Essa é boa Canheta... Qual é? - Você é aquele que destrói as famílias, os casamentos, os amores. Você é aquele que acaba com a vida das pessoas... o Esquerdo, o Cão... - Acho que o senhor me confundiu com algum bandido por aí... - Não, não confundi coisa alguma. Você é o Canhim, o Diacho, o Futrico, o GrãoTinhoso... - Taí! Grão-Tinhoso... gostei: Tem o seu valor, a sua nobreza! O Grão-Tinhoso Magno, fica bem... Mas, e você é quem? O outro começou a retirar a fantasia. - Sou o Moleque de Surrão! - O Primo do Pererê! Dá lá um abraço! - Exato! Às suas ordens. – Abraçaram-se – O que é que o Gênio faz por aqui? - Peregrinação. Tento encontrar o caminho da nova costela de Adão. Abdiquei do meu trono sub-terráqueo e me pus a procurar uma nova ideologia.

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- Sempre soube que você era revolução pura, desde o começo dos tempos. Revoluções por Minuto. A revolução das revoluções Depois, fiquei sabendo que tinha ganhado um cargo no Hades, Procurador Infernal e o escambáu, ou coisa que o valha. Eu e minha turma tiramos você da nossa idéia, pois pensávamos que havia traído a causa. - Nunca traí, na verdade. Mas, que eu me acomodei, lá isso também é verdade. – O Gênio coçou a cabeça. Convidou o outro para andarem pelas ruas. Tomaram a direção do cinema, perto da praça. – Estou disposto a corromper todo mundo novamente. Dar maçã para todo mundo e ver até que ponto, conhecendo as informações que temos, até que ponto continuam a viver como porcos. - Isso tá difícil, Gênio, muito difícil. - Quero voltar pra ativa. - Conte conosco. - Obrigado. Mas, acredito que tenhamos de mudar a imagem. Assumir, definitivamente a nossa posição de iluminados. Ser Lúcifer e ser o Guardião da Luz. Uma volta às origens... que acha? - A luz da inteligência e do conhecimento – o outro completou. - Você quer coisa pior do que ser chamado de Dialho, Mafarrico, Rabudo, ou mesmo, Pedro-Botelho? Baixo nível. - Baixíssimo. É, Gênio, você tem razão. Os inimigos sempre tiveram a mídia nas mãos. - No entanto, de qualquer forma, estou pensando num caminho. - Aconselho a falar com o Chefe. Direto com ele. Afinal, você era o segundo na hierarquia, não era? - Estão ocorrendo reformas nas alturas. - Quem disse? - O Queruba. - O Queruba é um reaça dos piores. Conservador! Cuidado com ele. Porque é que você pensa que ele agora carrega o lixo lá para baixo? O Gênio fez cara de espanto e ares de ignorante – Ele quer tomar o seu lugar, meu amigo? - O outro passou o braço sobre o ombro do Gênio, dirigindo-o ladeira acima, na direção de um agrupamento de pecadores em potencial. - As reformas estão acontecendo, sim, mas, é na burocracia inteira. – o Moleque parou para olhar e balançou as mãos. – Lá está a turma. Temos programa de ação para hoje. Quer observar? Em seguida, uma multidão de anjos decaídos, pés-de-meia, zarapelhos, capirotos, cramulhanos, dubás e entidades menos aquinhoadas de inteligência, compareceram à porta do cinema onde passavam filmes variados, carregados de mensagens alienadas e alienantes – assassinatos, corredores do terror, cachorros falantes, e coisas assim. Todos os integrantes da comitiva principiaram a insuflar no pensamento dos jovens e das moçoilas idéias para que sentassem nos bancos da praça e discutissem as más ações do padre Demócritos, que era prefeito da cidade, ao mesmo tempo em que vigário e vigarista conhecido e reconhecido por suas mulheres e filhos; o Bispo lhe dava todo apoio. A quadrilha era muito organizada. No entanto, a imagem da alienação que se sobrepunha, estampada nas fotografias da propaganda do filme, foi mais forte, e, aos magotes, os

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jovens e as moçoilas penetraram no cinema, bovinos, pecuários, escolhendo lugares bem escondido nos fundos e sob as poltronas. Mesclando as ações do filme com as ações do relacionamento acalorado na escuridão da sala de projeção, às vezes um acabava fazendo xixi na mão do outro. Mas, até aí... - Mas, o que foi? – o Gênio perguntou, abrindo os braços. – Sexo é proibido? Sexo é alguma coisa de Mal? - Aí é que está o fio do novelo. Temos poucos poderes sobre estas pessoas. Quase poder nenhum sobre a cidade. No nosso planejamento tentamos mudar as feições do modo de vida das pessoas, no entanto, eles preferem somente os prazeres da carne e alienações imediatas. E nada dos prazeres da mente. E nem ligam para os terrores do quotidiano. - Ante a face do espanto do Gênio, o primo do Pererê falou: - E, olha que eu não sou puritano. O erotismo esta aí para ser usado, abusado e acusado, como já foi dito em outras histórias e outros tempos... mas, há mais coisas pra se fazer, não acha? Uma revoluçãozinha ou duas! - Pois é. Panis et circus et coitus.

6) E foi assim, que o Gênio, completamente desatinado, pronto para uma rebelião maior do que no inicio dos tempos, partiu em vôo rasante na direção do Céu, do Empíreo. Chamou Virgilio e Dante para o auxiliarem e não se perder pelo caminho, uma vez que jogado nas profundas e tendo ficado durante milênios enterrado em meio a fogo e crepitar de almas inglórias, não saberia mais como se dirigir ao grande palácio no céu e, além do mais, as versões da Divina Comédia não eram confiáveis. - Não há palácio no céu, - disse Virgilio – O chefe não mora em palácios. Ele esta em toda parte, você sabe. Além disso, eu não posso passar do Purgatório. Tenho dívidas a pagar. - Inadimplente – e Dante riu da própria piadinha. O Gênio e Virgílio olharam para ele e não deram atenção. - Sei de um lugar onde ele nunca esteve – o Gênio disse. - Duvido! – exclamou Dante Alighieri – De-u-du, ve-i-vi, de-o-do Duvido! - Ele nunca esteve no Inferno! – o Gênio gritou e Dante teve que calar a boquinha, fingindo que lia versos para Beatrix ou então que analisava as configurações do Cruzeiro do Sul. - Bom! De qualquer forma, não adianta brigar, Gênio. Sabemos da sua importância. O Chefe só estava esperando que deixasse a raivinha de lado e aparecesse para um bom papo. E depois, se você não tomar qualquer iniciativa logo logo teremos a Igreja dos Demônios de Cristo por aí... sabe como são esses evangélicos. -Porra! Eu fico comendo fumaça durante séculos, jogado lá embaixo pelos querubins, invejosos por eu ter a boa idéia de carregar e distribuir a luz, e, agora vem um para me dizer que era pra eu não ter raivinha? – o Gênio estava furibundo. – Não acredito nele. Só vendo. - Você também sabe que não adianta não acreditar, não é? Dante aparteou: - O Gênio – Dante desdenhava – não tem capacidade para entender essas coisas, amigo Virgilio; essas nuances, caro Mentor, essas veleidades poéticas, enfim... deixa pra lá.

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- Quem pediu sua opinião, oh velhote! Fique sabendo que a Beatrix não é para seu bico. Hoje ela já não gosta mais de velhuscos. – E, virando-se para o Virgilio, baixinho: Manda esse cara embora. - Não dá. Foi ele quem escreveu o livro... E, depois, foi você quem o convidou. Eu não o traria, mas agora é tarde. Já passei por isso uma vez. É duro mas passa. - Como é? Vamos ou não vamos? Olha a hora. – gritou Dante, fechando o seu livro e dando uma olhadelha no page.

7) Assim foram os três. Virgilio: de boa vontade; Dante: de má vontade; o Gênio, sem vontade alguma, apenas querendo descobrir a verdade, tediosamente escondida, sempre fujona da mão de todos. Galgaram os sete céus. Passaram através de corredores formados por milhares de Anjos, Arcanjos, Potestades, Querubins, Serafim, sendo que todos olhavam para o Gênio e davam adeusinho para ele. Uns bem afoitos, outros olhando para os lados, fugindo de espiões, a modos de medo e insegurança. Passaram por arcos translúcidos e pontes vertiginosas cambiante entre lilás e marfim. Transpuseram rios dourados de estrelas e vácuos consagrados, onde pastas de ameixa salpicavam no rosto dos viandantes. Voaram sobre os anciães e santos, encarapitados eternamente, envoltos em teias prateadas de aranhas igualmente eternas, mas, desmemoriadas; eles não gostavam muito do Gênio, pois este já nascera com o dom do entendimento enquanto aqueles tiveram que viver na terra para compreender os mistérios da natureza. E nada compreenderam. Finalmente chegaram a lugar algum.

8) E, o Gênio ficou lá. Sozinho, esperando. Ninguém apareceu e, para não perder tempo, começou a pensar. Pensou muito e se absolveu de muita coisa, culpando-se de outras. O Gênio fazia seu ato de contrição ao mesmo tempo em que eliminava uma fonte de problemas que não fora criado por ele mas, apenas em seu nome. Apenas. Acabou descobrindo que era realmente o Ser mais importante do universo, depois do Chefe, é claro. Ele era o Conductor das vozes canoras do céu, o Guardião da Luz Eterna, Chefe-comandante de legiões, Príncipe do planeta terra. Que culpa tinha ele se a criação humana era algo de segunda categoria? Dentes que apodrecem... cópula para gerar nascimentos, envelhecimento... coisas realmente sem sentido... a juventude antes da velhice... Tudo, na verdade, parecia uma obra ao acaso. Qual a culpa do Gênio se o homem, uma vez dono da ciência e do conhecimento, desandou a fazer bobagem em cima de bobagem? No entanto, lá foi ele para as profundezas, como persona non grata, sob a língua ferina da turma do Gabriel. - Eles não queriam que eu governasse a Terra, mas acabaram eles a governar, não é? Deus no que deu. E, foi assim que, munido de mais entendimento e aproveitando que estava em meio a antigos comandados seus, arrebanhou um milhar deles e voltou para Terra, numa segunda carga, Carregando a Luz e tudo o que tinha direito. Uma legião descendo no planeta ao som grandioso da abertura Prometeu, de Beethoven.

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O CAPETA ARREPENDIDO - Calipgio Doctor

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