2- MARCOS-LARRY-W-HURTADO

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NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO r n w T ü M P n R Âw j?n

LApPW .|PÂTADO | r Ba? ca do na íçãoJjÂem porânea de Almeida

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r¥ C _ EDITORA ■

Vida

P a ra S h a n n o n , c o m am o r e g ra tid ã o

IBN 0-8297-1744-7 Categoria: Comentário © 1983, 1989 por L arry W. H urtado H endrickson Publishers, Inc. © 1995 por E ditora Vida Traduzido pelo Rev. Oswaldo Ramos Todos os direitos reservados n a língua portuguesa por E ditora Vida, Deerfield, Florida 33442-8134 — E.U.A. A menos que seja indicada outra fonte, as referências bíblicas são da Edição Contem porânea da Tradução de João F erreira de Almeida, publicada pela E ditora Vida. Capa: Jo h n Coté

ÍNDICE

Prefácio do Editor .............................................................................................. 5 Prefácio do A u t o r ............................................................................................... 8 A breviaturas .......................................................................................................10 Introdução ...........................................................................................................11 M arcos 1 O Precursor e Jesus (M arcos 1 :1 -2 0 ).................................................. 24 2 Inicia-se o M inistério (M arcos 1:21-45) ........................................... 36 3 Blasfêm ia e Más Companhias (M arcos 2 :1 -1 7 )...............................45 4 M ais Controvérsias (M arcos 2 :1 8 -3 :6 )...............................................55 5 O M inistério Am plia-se (M arcos 3 :7 -1 9 ).......................................... 67 6 Críticos, Fam ília e Seguidores (M arcos 3:20-35) ........................... 75 7 Ele Falou por Parábolas (M arcos 4 :1 -3 4 )..........................................82 8 Poder Sobre o M ar e Sobre os Espíritos (M arcos 4:35-5:20) ..... 92 9 Jesus, Procurado e R ejeitado (M arcos 5:21-6:6a) ........................... 98 10 A M issão e Herodes (M arcos 6:6b-29) ..........................................105 11 Revelando M aravilhas (M arcos 6 :3 0 -5 6 ).......................................111 12 Lim pos e Im undos (M arcos 7:1-23) ............................................... 120 13 M inistério em Território Gentio (M arcos 7 :2 4 -3 7 ).....................127 14 A lim entando 4.000 homens e o Seu Significado (M arcos 8:1-21) ......................................................................................133 15 Percepção Física e Espiritual (M arcos 8:22-9:1) ........................ 145 16 G lória no Topo do M onte e a D escida (M arcos 9:2-29) ............156 17 M orte de Jesus e Discipulado (M arcos 9 :3 0 -5 0 )..........................163 18 C asam ento, Filhos e Posses (M arcos 1 0 :1 -3 1 )........................... 171 19 Jerusalém Sobressai-se À Frente (M arcos 1 0 :3 2 -5 2 )................. 183 20 Jesus Entra em Jerusalém e no Tem plo (M arcos 11:1-25) ..... 193 21 C ontrovérsia no Tem plo (M arcos 11:27-12:27).......................... 203 22 Encerra-se a Controvérsia (M arcos 12:28-44) .............................215 23 Destruições e Perseguições Vindouras (M arcos 13:1-23) .......227 24 A Volta do Filho do Homem (M arcos 1 3 :2 4 -3 7 )........................ 237 25 D evoção e Traição (M arcos 1 4 :1 -1 1 ).............................................243 26 A Ú ltim a C eia (M arcos 1 4 :1 2 -2 6 ).................................................. 248 27 A Prisão e o A bandono de Jesus (M arcos 14:27-52) ................. 257

28 29 30 31 32

Julgam ento e Negação (M arcos 1 4 :5 3 -7 2 )..................................... 263 Entregue aos Gentios (M arcos 1 5 :1 -2 0 )..........................................274 Crucificado, M orto e Sepultado (M arcos 15:21-47) .................... 283 No T erceiro Dia, Ele Ressurgiu (M arcos 16:1-8) .........................298 Duas Antigas Conclusões de M arcos (M arcos 1 6 :9 -2 0 )............. 306

Prefácio do Editor

Em bora não apareça nas listas com uns de “best-sellers” , a B íblia continua ser mais vendida do que qualquer outro livro. E a despeito do crescente secularism o ocidental, não há sinais de que o interesse pela m ensagem da B íblia esteja arrefecendo. Bem ao contrário, núm ero cada vez m aior de hom ens e m ulheres volta-se para suas páginas em busca de luz e orientação, em meio à crescente com plexidade da vida moderna. Tal interesse sempre renovado pelas Escrituras encontra-se tanto dentro com o fora da igreja. Percebe-se este fato entre os povos da Ásia e Á frica, tanto quanto na Europa e A m érica do Norte. N a verdade, à m edida que saím os de países tradicionalm ente cristãos parece que o interesse pela Bíblia aumenta. Pessoas ligadas às igrejas tradicionais católicas e protestantes m anifestam o m esm o anseio pela Palavra que existe nas igrejas e com unidades evangélicas mais recentes. Desejam os, então, ao oferecerm os esta nova série de com entários, estim ular e fortalecer esse m ovim ento de âm bito m undial em prol do estudo da B íblia por parte dos leigos. C onquanto tenham os esperança de que pastores e m estres considerem esses volum es m uito úteis tanto à com preensão quanto à com unicação da Palavra de Deus, não os escre­ vem os prim ordialm ente para esses profissionais. Nosso objetivo é bene­ ficiar todos os leitores das Escrituras, provendo-lhes guias confiáveis sobre os livros da Bíblia, guias que representem o que há de m elhor na cultura contem porânea, e que não exijam, para a sua com preensão, preparo teológico formal. É convicção do editor, bem com o dos autores, que a Bíblia pertence ao povo, e não m eram ente aos acadêm icos. A m ensagem da Bíblia é tão im portante que de m odo algum pode ficar acorrentada a artigos eruditos, presa a ensaios e m onografias herm éticos, redigidos apenas para espe­ cialistas em teologia. Em bora a erudição rigorosa, esm erada, tenha seu lugar no serviço de Cristo, todos quantos participam do m inistério do ensino, na igreja, são responsáveis por tornar acessíveis à grande com u­ nidade cristã os resultados de suas pesquisas. Assim é que os eruditos em Bíblia, que se unem para apresentar esta série de com entários, escrevem tendo em mente estes principais objetivos.

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Prefácio do Editor

Há, em português, diversas traduções e edições contem porâneas do Livro santo, as quais, na sua m aioria, são muito boas. O leitor pode escolher, portanto, que edições da B íblia deve consultar a fim de m elhor com preender a m ensagem da Palavra de Deus. Entre essas muitas versões e edições da Escritura Sagrada, destacam os A Bíblia de Jerusa­ lém, baseada na obra de eruditos católicos franceses, vividam ente tradu­ zida para o português por um a equipe de tradutores brasileiros, talvez seja a m ais literária das traduções recentes. A BLH (Bíblia na Linguagem de Hoje), da Sociedade Bíblica do Brasil, é a tradução m ais acessível às pessoas pouco fam iliarizadas com a tradição cristã. Há, ainda, em português, a Alm eida Revista e Atualizada, e a Edição R evisada de A lm eida, além de outras. O estudante sério da Palavra de Deus deve possuir diversas versões das Escrituras para consulta e estudo, objetivando tanto variedade quanto clareza de com preensão — em bora se deva salientar que nenhum a dessas versões ou edições seja isenta de falhas, nem deva ser considerada a últim a palavra quanto a qualquer ponto. De outra forma, não haveria a m enor necessidade de um com entário com o este! Esta série de com entários, por ser tradução da língua inglesa, faz referências à NEB — que constitui verdadeiro m onum ento à pesquisa m oderna protestante — e a outras versões naquele idioma, entre elas a RSV, a NAB, a NIV. Com o texto bíblico básico desta série, em português, decidim os usar a ECA, por ser esta a m ais recente edição do texto de A lm eida, a que está-se tornando padrão em muitas instituições de ensino teológico, e tam bém por ser o texto utilizado nas lições bíblicas “V ida R adiante” , na Bíblia Thom pson, e em outras fontes de estudo. Por tais motivos, a tradução em português dessa série de com entários recebeu pequenas adaptações para que se ajustasse ao texto bíblico da Edição C ontem po­ rânea. C ada volum e desta série contém um capítulo introdutório expondo em m inúcias o intuito geral do livro e seu autor, os tem as m ais im portantes, e outras inform ações úteis. Depois, cada seção do livro é elucidada com o um todo, e acom panhada de notas sobre aqueles pontos do texto que necessitam de m aior esclarecim ento ou de explanação mais minuciosa. E sta nova série é oferecida com um a oração: que venha a ser instru­ m ento de renovação autêntica, e de crescim ento entre a com unidade

Prefácio do Editor

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cristã no inundo inteiro, bem com o meio de enaltecer a fé das pessoas que viveram nos tem pos bíblicos, e das que procuram viver, em nossos dias, segundo a Bíblia. E ditora Vida

Prefácio do Autor

Este livro é um a revisão do meu com entário sobre M arcos, que fez parte da série intitulada G oodN ew s Commentary, em 1983. Fiz algumas correções e revisões de m enor monta, em várias passagens; os com entá­ rios e as notas foram adaptados de modo que se ajustassem à New International Version (NIV) da Bíblia, a versão bíblica em que esta nova série se fundam enta. M inha esperança é prover ajuda útil no estudo do Evangelho de M arcos, ao reapresentar agora este com entário a um a faixa enorm e de leitores, com o quando o entreguei na versão original. Senti-m e bastante anim ado pela calorosa acolhida que a versão anterior desta obra recebeu da parte de muitos leitores, tanto em resenhas formais quanto inform ais. Espero que esta edição revista venha a ser de grande utilidade a muitos outros leitores, de m odo especial àqueles que têm pouco ou nenhum treinam ento teológico acadêm ico, bem com o a pastores, professores e estudantes. No que concerne a citações de outras obras, restringi-as a livros e obras de referência relativam ente acessíveis a pastores ou leitores em geral, seriam ente interessados. M eus colegas de estudos sobre o Novo Testam ento perceberão quanto devo a muitos estudos acadêm icos, não m encionados aqui, os quais têm natureza bem mais técnica, e por isso intim idariam os leitores, fossem tais fontes eruditas m encionadas neste volume. R egistro aqui m inha gratidão quanto a m uitos livros e artigos de revistas a respeito de M arcos, que me foram de grande proveito ao longo dos anos que venho dedicando a esse fascinante retrato do m inis­ tério de Jesus. D esejo agradecer a Philip A. Frank, da Hendrickson Publishers, seu auxílio nesta revisão. Ele engajou-se na prim eira versão desta obra, identificando os com entários concernentes à versão da B íblia que deno­ m inam os GNB, e fornecendo num erosas sugestões que objetivavam a nova redação, de m odo que se adaptasse ao texto bíblico da NIV. N a prim eira versão deste com entário, expressei m inha gratidão a pessoas que, de várias m aneiras, haviam cooperado na preparação da obra. Não lhes m encionarei os nom es de novo, mas renovo aqui minhas expressões de gratidão. Há, todavia, uma pessoa cujo nome repito, a

Prefácio do Autor

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quem dedico esta edição revista (com o o fiz, na edição anterior), que é m inha esposa, Shannon. A contribuição dela à m inha vida, nos últim os onze anos de nosso casam ento, tem sido tão enriquecedora que eu folgo em aproveitar esta nova oportunidade para assinalar m inha profunda alegria e gratidão pelo fato de usufruir sua com panhia. W innipeg, junho de 1989

Abreviaturas

AT cp ECA GNB IDB

Antigo Testamento compare Edição Contemporânea Almeida (Editora Vida) Good News Bible Interpreter’s Dictionary o f the Bible Editado por G. A. Buttrick. 4 volumes. Nashville: Abingdon,1962.

IDB Sup

Supplementary’ Volume: Interpreter’s Dictionaryo f the Bible.

KJV Lane MBA NEB NIDNTT

Nineham NIV NT veja RSV s.(ss.) v.(vv.)

Editado por K. Crim. Nashville: Abingdon, 1976 King James Version (Versão da Bíblia do Rei Tiago, autorizada, 1611) W. L. Lane. The Gospel o f Mark. Novo Comentário Internacional do Novo Testamento. Grand Rapids: Eerdmans, 1974 Macmillan Bible Atlas. De Y. Aharoni e M. Avi Yonah. Nova York: Macmillan, 1968 New English Bible

New International Dictionary o f New Testament Theology. 4 volumes. Editado por C. Brown. Grand Rapids: Zondervan, 1975-78 D. E. Nineham. Saint M ark Pelican New Testament Commentaries. Baltimore: Penguin, 1969 New International Version Novo Testamento veja Versão Padrão Revista (da Bíblia) seguinte (seguintes), de versículos ou páginas versículo (versículos)

Introdução /

Marcos

É bem possível que o registro m ais antigo de que dispom os sobre o m inistério de Jesus seja o Evangelho de M arcos, relato vívido e rápido que prende o interesse do leitor popular tanto quanto o do erudito. Q uando os cristãos iniciaram, pela prim eira vez, a discussão da necessi­ dade de elaborar uma lista de escritos que deveriam ser considerados dotados de autoridade para a fé cristã (discussão que, talvez, se tenha iniciado em m eados do segundo século), o Evangelho de M arcos estava entre os prim eiros m anuscritos selecionados para inclusão nessa lista. E claro que, até hoje, M arcos ainda é considerado um dos quatro retratos escritos inspirados, ou “canônicos” , de Jesus, no Novo Testam ento. Por esta e p or outras razões (algum as das quais serão debatidas nas páginas que se seguem ), o Evangelho de M arcos constitui docum ento deveras im portante. O tem po e esforço investidos em seu estudo nos dão retorno lucrativo. O propósito deste com entário inclui o encorajam ento aos leitores que disponham de pouco (ou nenhum ) estudo formal, acadêm ico, sobre assuntos bíblicos e teológicos, proporcionando-lhes um a análise mais proveitosa do Evangelho de M arcos. As discussões no com entário ba­ seiam -se em m eus estudos diretos do texto grego de M arcos. Entretanto, antes de analisar o conteúdo de M arcos em suas m inúcias, verificarem os, nesta seção introdutória, algum as inform ações genéricas aqui reunidas com o objetivo de orientar o leitor, proporcionando-lhe um estudo m ais racional desta vívida história de Jesus. Marcos e os Demais Evangelhos

M arcos é um dos quatro docum entos do Novo Testam ento a que dam os o nom e de evangelhos, havendo ainda outros escritos da igreja prim itiva denom inados hoje pela m esm a palavra. Se quiserm os apreciar adequadam ente o Evangelho de M arcos, é bom vê-lo em relação aos dem ais evangelhos. Prim eiro, vamos ver M arcos e os dem ais evangelhos canônicos do N ovo Testam ento. U m exam e dos quatro evangelhos canônicos dem onstrará que, em bora

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os quatro obviam ente tenham muitas características com uns, M ateus, M arcos e Lucas têm sim ilaridades específicas, ficando João à parte, por seus traços distintos. As sim ilaridades entre os três prim eiros evangelhos são tão extraordinárias que a m aioria dos eruditos advoga a existência de algum tipo de dependência literária mútua. A m aior parte dos eruditos em Novo Testam ento acredita que M arcos foi o prim eiro desses evan­ gelhos, e que M ateus e Lucas utilizaram M arcos com o fonte principal. Tal opinião tem sido questionada, de modo especial nos últim os anos; a tentativa de explicar as sim ilaridades e diferenças entre os três prim eiros evangelhos é assunto incessante, e centro de atividades acadêm icas para alguns especialistas em Bíblia. Essa controvérsia (denom inada de p ro ­ blema dos sinóticos) a respeito do relacionam ento entre os evangelhos de M ateus, M arcos e Lucas não precisa deter-nos por aqui. N osso m aior interesse é anotar apenas as sim ilaridades e diferenças básicas entre M arcos e os dem ais evangelhos. A característica que une os quatro evangelhos do Novo Testam ento é, a apresentação do m inistério de Jesus, a descrição do Senhor em term os que se harm onizam com a fé cristã. Por exemplo, ele é descrito com o o cum prim ento das prom essas do Antigo Testam ento (AT), cenualizadas num a personagem a ser enviada por Deus (o M essias), que representaria e desenvolveria a salvação de Israel e de todas as nações. Os evangelhos usam títulos tais com o Filho de Deus, Cristo (M essias) e Senhor e, reiteradam ente retratam Jesus com o o Enviado de Deus. Tal tipo de retrato de Jesus significa que os autores dos evangelhos apresentam -no com o propósito de despertar a fé das pessoas no Senhor; os evangelistas não estão tentando oferecer-nos apenas um docum entário para estudo histórico. C onquanto todos os evangelhos canônicos se caracterizem pela ênfase ao m inistério de Jesus, M arcos pode distinguir-se dos dem ais evangelhos sinóticos (M ateus e Lucas) pela ausência da história do nascim ento e da genealogia, e por um volum e m enor de m atéria que contém os ensinos de Jesus. N a igreja antiga, M arcos era considerado, com freqüência, form a abreviada de M ateus, sendo fácil determ inar com o essa im pressão chegou a desenvolver-se. A despeito destas diferenças de m aior peso (e de outras de m enor m onta) entre M arcos e os dem ais evangelhos sinóticos, fica bem claro, contudo, que os três são m uito parecidos em certos aspectos. M ostram -

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nos os eruditos, por exem plo, que todos os três aderem basicam ente à m esm a narrativa do m inistério de Jesus. Há variações entre os evange­ lhos sinóticos quanto à ordem dos incidentes e dos pronunciam entos, e certos traços individuais num ou noutro Evangelho que “interrom pem ” o esboço básico da narrativa (por exem plo, o bloco de ensinos, ou serm ão de M ateus, nos capítulos 5-7), porém , M arcos representa, no todo, a narrativa do m inistério de Jesus partilhada por todos os três sinóticos. Assim , em bora os eruditos discutam se M arcos foi ou não o prim eiro Evangelho a ser escrito, fica patente que M arcos representa a redação “básica” do Evangelho. N a verdade, é bem adequado recom endar-se que alguém com ece a estudar os evangelhos lendo prim eiro M arcos. N um a seção posterior desta Introdução estarem os exam inando com m aior cuidado as características que distinguem M arcos, em com paração aos dem ais evangelhos canônicos, em bora estes não sejam os únicos escritos a que se dá o nom e de evangelhos. Outros docum entos, em geral denom inados evangelhos apócrifos, surgiram na igreja prim itiva sem, todavia, serem incluídos no Novo Testam ento (NT). Tais m anuscritos apareceram depois dos evangelhos canônicos e, com freqüência, dão a im pressão de terem sido produzidos com o im itação dos textos genuínos. Alguns desses m anuscritos sobreviveram e estão disponíveis em inglês (alguns até m esm o em português); lê-los e com pará-los aos evangelhos do N ovo Testam ento é tarefa leve e fascinante.1 Vários desses evange­ lhos apócrifos dem onstram grande interesse pela infância de Jesus, e contêm m uitos relatos de obras m iraculosas a ele atribuídas que, certa­ m ente, são pura invencionice. Tal concentração na infância de Jesus distingue vários dos evangelhos apócrifos dos canônicos. O utro tipo de evangelho apócrifo consiste de enunciados de Jesus, com pouca ou nenhum a estrutura de narrativa; num texto com o o E vangelho de Tomé, tem os algum as revelações de Jesus, que teriam sido pronunciadas a seus discípulos após sua ressurreição. Esse tipo de Evangelho aparentem ente foi bastante popular entre alguns grupos de cristãos considerados heréticos pela “grande igreja” (os cristãos que obtiveram o direito de serem cham ados de “ortodoxos”). Teria sido, segundo parece, veículo para que se atribuísse a Jesus declarações capazes de dar apoio às opiniões religiosas desses grupos. Em razão disso, algum as características típicas desse tipo de literatura — a preo­ cupação com os enunciados de Jesus, com exclusão de narrativas, a

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ausência do relato da morte de Jesus, a afirm ação de estarem veiculando revelações (secretas) do Jesus ressurreto — tudo isso lançou tais “evan­ gelhos” apócrifos à parte, separados dos evangelhos canônicos. De fato, se alguém tom ar os evangelhos do N ovo Testam ento com o m odelos daquilo que qualifica um texto, de m odo que venha a ser cham ado e descrito com o Evangelho, esses docum entos tornam -se questionáveis quanto a se realm ente têm genuinidade para receber tal título. A lém de estudarem os evangelhos do NT em com paração uns com os outros e tam bém com esses escritos posteriores, os evangelhos apócrifos, os eruditos os com param ainda com docum entos não-cristãos do m undo antigo greco-rom ano. Tal espécie de estudo exige profundos conheci­ m entos especializados sobre os evangelhos, e sobre literatura antiga; além disso, em épocas recentes tem havido incessantes controvérsias quanto a se os evangelhos podem ser com parados a textos biográficos dos tem pos antigos. Não tentarem os, aqui, criticar essas análises com ­ plexas e, de m aneira algum a tentarem os form ular julgam ento sobre as questões em debate. Todavia, poderá ser útil o leitor ficar sabendo que, até m esm o entre aqueles eruditos que afirm am que os evangelhos são um a espécie de texto biográfico antigo, existe a aceitação do fato de constituírem textos singularm ente distintos. E certo que os evangelhos devem distinguir-se dos textos biográficos m odernos por dois fatores: prim eiro, a falta de atenção ao desenvolvim ento físico de Jesus e, segundo, a conexão íntim a com atividades relacionadas à pregação, ao ensino, e aos interesses das igrejas daquela época. A m otivação forte conducente à redação dos evangelhos não partiu de interesses biográfi­ cos, pelo menos com o os entendem os hoje, mas nasceu do desejo de increm entar a fé em Jesus, e a ela dar forma. Portanto, em bora seja im portante que os eruditos vasculhem os evangelhos no contexto da literatura antiga, proveniente do m undo greco-rom ano, perm anece fato inconteste que o contexto mais im portante para a com preensão dos evangelhos é a vida da igreja prim itiva e a natureza de sua fé. As Circunstâncias que Cercam o Evangelho de Marcos

O prim eiro versículo do texto de M arcos liga sua obra ao “Evangelho” , a saber, à pregação de Jesus com o sendo o Cristo, o Filho de Deus. Portanto, ao falarmos das circunstâncias que rodearam o Evangelho de M arcos, devem os iniciar com a vida da igreja prim itiva, de m odo especial a apresentação que ela fazia de Jesus na pregação, e na instrução dos

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novos convertidos. M arcos escreveu seu Evangelho prim eiro porque havia um a igreja cuja vida se edificava no m inistério de Jesus. As atividades de pregação e ensino da igreja prim itiva provêm não som ente a ocasião que propicia o Evangelho de M arcos, mas tam bém grande parte da explicação do conteúdo desse livro. Já faz várias décadas que os eruditos têm detectado, em todos os evangelhos canônicos, evidências do uso que se fez logo de início, oralm ente, das tradições concernentes a Jesus, pela igreja prim itiva. “Crítica de form a” é o nom e que se dá ao estudo dos evangelhos, conduzido com o objetivo de descrever os vários tipos de tradições acerca de Jesus, que poderiam ter sido usados pelos autores dos evangelhos, quando redigiam seus próprios textos. Este m étodo de estudo inicia-se m ediante a observação dos tipos de m ateriais de nossos atuais evangelhos — por exem plo, narrativas de m ilagres, parábolas e “histórias de declarações” (em que um a breve narrativa conduz a algum ensino de C risto de vital im portância); a seguir, analisam -se as unidades individuais dessa m atéria reunida, a fim de descrever-se de que modo poderiam ter sido influenciadas pelas igrejas que transm itiram e utilizaram tal matéria. C onquanto os eruditos que prom ovem esta pesquisa de modo algum concordam unanim em ente em todos os pontos, todos declarariam que os evangelhos contêm inform a­ ções a respeito de Jesus que foram usadas e transm itidas pela igreja prim itiva, prim ordialm ente porque essa m atéria inform ativa foi útil à vida operacional da igreja em assuntos com o a proclam ação de Jesus, à instrução quanto a questões de ética e aos debates com outros grupos religiosos (como o judaísm o, por exemplo). As observações acim a provêm breve descrição das circunstâncias gerais ligadas ao Evangelho de M arcos; todavia, será que poderíam os ser m ais específicos quanto a por que, quando e onde este escrito sagrado, antigo, em particular, se originou? As respostas a estas perguntas não são fáceis de obter-se, prim ordialm ente porque o autor da obra não nos fornece inform ações diretas desse tipo. O próprio docum ento não traz o nom e de seu autor, nem a data de redação, e tam pouco lugar e razões da redação. (C ontraste este fato com as observações iniciais de Lucas 1:1-4). Isto significa que qualquer tentativa de conseguirm os tais inform ações sobre M arcos obrigam , necessariam ente um escrutínio rigoroso do pró­ prio docum ento, à procura de pistas e indícios indiretos. Com o qualquer pessoa poderia suspeitar, a interpretação de tais indícios envolve tanto

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certa sofisticação escolástica quanto boa dose de capacidade de ju lg a­ m ento. Por essa razão, os eruditos concordam totalm ente com respeito a nenhum a das circunstâncias específicas desse docum ento! À face disso, portanto, deverem os assum ir um a postura tentativa ao sugerir respostas às perguntas, aqui. Há porém o conforto que tanto o leitor típico quanto o erudito poderão usufruir, ao entenderem que o autor da obra aparente­ m ente não considerou tais inform ações essenciais à com preensão do livro, pois, de outra forma, ele as teria fornecido. D esde pelo menos o segundo século da era cristã, João M arcos (o parente de B am abé, de Atos 12:12, 25) tem sido considerado o autor do Evangelho de M arcos, que teria sido escrito em Roma, baseado, de certa form a, nas pregações do apóstolo Pedro. Esta é ainda a opinião de alguns eruditos, conquanto se deva adm itir que as evidências são pouco mais do que antiga tradição eclesiástica. Alguns têm visto um a referência m uito indireta ao autor na expressão “certo jovem ”, de M arcos 14:51 -52; todavia, não há indícios no docum ento em si de que tal incidente deva ser tom ado desse modo. Pode parecer estranho, e até m esm o desconcer­ tante a princípio, mas é provável que jam ais venhamos a saber com certeza quem redigiu este evangelho — talvez o prim eiro. V isto que o nom e do autor é incerto, a m aioria dos eruditos utiliza o nom e de M arcos apenas com o m odo conveniente de referir-se ao autor desse docum ento anônim o, o que nós tam bém farem os neste com entário. Seja com o for, m uito m ais im portante do que o nom e do autor é o que podem os colher desse livro quanto aos propósitos do autor e suas ênfases e, talvez, quanto à am bientação da redação. C om ecem os pelo óbvio: o autor escreveu para leitores de língua grega, visto ter sido essa a língua do texto original. De m odo m ais específico, os prim itivos leitores aparentem ente não estavam fam iliarizados com as línguas sem íticas da Palestina (aram aico e hebraico), visto que o autor faz pausas a fim de interpretar certas frases nessas línguas, quando as em prega (veja 5:41; 7:11, 34; 10:46; 15:22, 34). Além disso, o autor explica costum es judaicos e grupos religiosos a seus leitores, o que indica que não eram residentes na Palestina e talvez não fossem judeus (veja 7:3-4; 12:18; 14:12). Todavia, tudo isso é apenas ligeiram ente útil, pois, inform a-nos só o que os leitores originais não eram. A única conclusão positiva que podem os tirar é que M arcos escreveu para cristãos gentios, m oradores fora da Palestina. Certas tentativas para localizar o Evangelho

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mais especificam ente não receberam am pla aceitação. Todavia, isso significa, com toda certeza, que as circunstâncias históricas do livro refletem a expansão do cristianism o entre os gentios, um desenvolvim en­ to que m udou o m ovim ento cristão: aquilo que de início teria parecido uma seita judaica transform ou-se em religião à parte. As inform ações mais diretas acerca desse desenvolvim ento, em seus prim órdios, encontram -se nas cartas de Paulo, no NT; vários eruditos têm apontado, com algum as m inúcias, as sim ilaridades de tem as e vocabulários entre M arcos e os escritos paulinos. Não é nosso propósito, aqui, ilustrar quaisquer conexões diretas entre M arcos e Paulo; alm eja­ mos apenas indicar que este Evangelho com toda probabilidade foi escrito para cristãos sem elhantes àqueles a quem foram dirigidas as cartas de Paulo, e que deve ser visto com o parte do crescim ento do cristianism o, que alcançou o am plo m undo greco-rom ano do prim eiro século cristão. As discussões eruditas sobre a data de M arcos giram em torno da possibilidade de colocar-se ou não o livro em relação à revolta dos judeus contra os rom anos, em 66-72 d.C. M arcos 13:14-20 profetiza grande tum ulto na Judéia, em linguagem tom ada de em préstim o do A T : “quando virdes a abom inação que causa a assolação, situada no lugar onde não deve estar...” (veja Daniel 9:27). Alguns eruditos estão convencidos de que tal profecia não poderia ter sido pronunciada por Jesus, que essa passagem refere-se ao cerco e tom ada de Jerusalém pelo exército rom ano (67-70 d.C ), e que teria sido escrita em form a de profecia depois de os eventos terem acontecido. De acordo com tais eruditos, o Evangelho de M arcos teria sido escrito em 70 d.C., ou logo depois. Outros eruditos concordam que essa passagem não partiu de Jesus, mas argum entam que a linguagem um tanto enigm ática indica ter sido redigida pouco antes de a conquista de Jerusalém com pletar-se, o que coloca M arcos nalgum período entre 67-70 d.C., isto é, durante o cerco da cidade. A inda outros eruditos não encontram razão plausível para duvidarm os de que tal profecia sobre o julgam ento divino, que viria m ediante destruição bélica, poderia ter sido pronunciada por Jesus uns trinta e cinco a quarenta anos antes da revolta judaica. M ais ainda, argum entam eles que os porm enores da passagem podem de fato indicar que a profecia originou-se bem antes da guerra na Judéia. Tais porm enores incluem o fato de o tum ulto profetizado não ser descrito com clareza mas, apenas com palavras

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tom adas de em préstim o de passagens proféticas do AT, e o fato interes­ sante de o conselho dado, para fugir para as m ontanhas da Judéia, não ter sido seguido pelos refugiados do cerco de Jerusalém , visto que as m ontanhas ao redor de Jerusalém estavam sob o controle dos romanos. Estes eruditos chegam à conclusão de que a data da com posição de M arcos não pode ser determ inada com precisão, mas poderia talvez ser calculada entre 50 e 70 d.C. Talvez seja m elhor não nos preocuparm os dem ais com a questão da data e do lugar exatos em que M arcos teria sido escrito, visto que a discussão toda desse assunto parece não levar a conclusão algum a, baseada que está em julgam entos intricados a respeito do Evangelho e da história toda do prim eiro século.2 Para nossos propósitos, indicarem os que M arcos teria sido escrito em algum a época entre 50 e 75 d.C., visto que não vejo nenhum a exigência para sermos mais precisos neste ponto. Assim com o não há indicações diretas quanto a quem foi o autor de M arcos, nem quando foi escrito, tam pouco há declaração no texto quanto às razões por que foi escrito. As conclusões quanto aos propósitos do autor tam bém só podem ser deduzidas de um estudo cuidadoso do conteúdo do livro. (Com pare as declarações explícitas de intenção em Lucas 1:1-4 e em João 20:30-31). De modo mais específico, os eruditos tentam determ inar os tem as e as ênfases do Evangelho, em seus esforços para descobrir os propósitos do autor ao redigir seu Evangelho, e procu­ ram as repetições e os assuntos para os quais M arcos concede grandes espaços. Este processo erudito em geral recebe o nom e de crítica redacional e, às vezes, crítica literária, dependendo da natureza exata do m étodo em pregado. Os eruditos tam bém estudam M arcos (ou qualquer dos outros evangelhos) com parando-o com os dem ais evangelhos, e tal com paração pode ser feita com muitas m inúcias, se determ inado inci­ dente estiver registrado em M arcos e em outro (ou outros) Evangelho. Para esse tipo de análise um resum o dos evangelhos é m uito útil. Ferram enta excelente é B. H. Throckm orton, G ospel Parallels (Nova York: Nelson, 1967), resum o que em prega o texto de RSV dos três prim eiros evangelhos (sinóticos). Farem os muitas com parações m inu­ ciosas no corpo principal deste com entário, m as aqui exam inarem os apenas algum as das principais ênfases de M arcos. Fica bem claro que nem sem pre podem os determ inar os propósitos do autor, nem a ocasião da escrita, m ediante a análise do que parece estar sendo enfatizado;

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todavia, o estudo das ênfases e dos tem as de qualquer autor nos recom ­ pensa com valioso galardão, porque nos ajuda a ficar m ais fam iliarizados com o texto que estam os examinando. Principais Temas e Ênfases de Marcos

Conquanto todos os quatro evangelhos sejam livros acerca de Jesus, cada um deles tem coisas particulares a dizer a respeito do Senhor, de modo que poderíam os com eçar esta introdução aos tem as e ênfases de Marcos descrevendo os fatos especiais que aparentem ente este Evange­ lho sublinha, ao referir-se a Jesus. Torna-se aparente de imediato, ao leitor, que M arcos apresenta um retrato de Jesus do ponto de vista da fé cristã. O versículo de abertura informa-nos: “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de D eus” . Ao prender-se a tal diretiva, o livro fornece fragm entos de inform ações sobre a pessoa de Jesus apenas incidentalm ente. Ficam os sabendo que ele veio de N azaré (1:9), que o nom e de sua m ãe era M aria, que tinha quatro irm ãos e núm ero incerto de irm ãs (6:1-3), que havia reagido favoravelm ente ao m inistério de João Batista, subm etendo-se ao batism o pelo profeta (1:9), mas isso é virtualm ente tudo. N a verdade, se M arcos fosse o único Evangelho disponível, as origens terrenas de Jesus seriam grande m istério. Esse relativo silêncio acerca do nascim ento e infância de Jesus, em com paração com as narrativas de nascim ento em M ateus e Lucas, tem sido tom ado com o indício de que o autor de M arcos desco­ nhecia tais tradições; todavia, essa opinião não é mais nem m enos viável do que a opinião contrária— segundo a qual o autor conhecia as tradições sobre o nascim ento e a infância de Jesus mas, deliberadam ente decidiu excluí-las de seu livro. Desse modo, em bora não saibam os com muita certeza o raciocínio com pleto subjacente ao fato, podem os afiançar que M arcos é um livro que trata do ministério adulto de Jesus, e que o autor considerou suas inform ações a respeito do m inistério do Senhor suficien­ tes para retratar-lhe as Boas Novas. A falta de inform ações a respeito da pessoa de Jesus harm oniza-se, contudo, com o tom m ais forte de m istério que envolve a figura do Senhor, em M arcos. É que em bora o leitor receba logo de início o significado religioso de Jesus, no prim eiro versículo do livro, o autor persiste em retratar as personagens hum anas que se encontram com o Senhor com o tendo grande dificuldade em com preendê-lo. Esse tom de m istério, esse ar de segredo, de M arcos, é característica bem conhecida

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de quem estuda o Evangelho, e tem suscitado muito interesse. Alguns iêm descrito M arcos com o um livro que retrata um “segredo m essiâni­ co” , o segredo do m essianism o de Jesus, mantido oculto dos olhos do povo que testem unhou o m inistério do Senhor, e que só se revelou na pregação da igreja. Não se pode negar que M arcos, mais do que qualquer outro Evangelho, m ostra Jesus insistindo na privacidade, na ação secreta: silencia os dem ônios que o aclam am (veja 1:25, 34), ordena aos curados que não o divulguem (veja 1:44; 5:43), e ordena aos discípulos que guardem para si mesmos a revelação de sua glória (8:27-30; 9:2-9). Com o verem os na discussão de certas passagens específicas, esse tem a de M arcos — o segredo ou a discrição — talvez deva ser considerado com o parte de uma ênfase m aior sobre o m istério da pessoa e do significado reais de Jesus. Prossegue a controvérsia entre os eruditos a respeito de quanto desse tem a de m istério e discrição deriva das próprias ações de Jesus, e quanto é ênfase editorial derivada do próprio M arcos ou de sua tradição. Inclino-m e a considerar a ênfase do Evangelho de M arcos sobre o m istério da pessoa de Jesus com o algo atribuível ao próprio autor. A nota de discrição poderia, até certo ponto, refletir as tentativas do próprio Jesus de cortar as especulações de que ele estaria se apresentando como o líder messiânico de um novo movimento cheio de aspirações políticas. O fato de Jesus ter sido crucificado pelos romanos com o alguém que se autoproclamava rei (15:26), demonstra que ele susci­ tava esperanças e temores próprios de um pretendente ao messianismo. M as voltem os à questão sobre por que o tem a de m istério e segredo é tão preem inente em M arcos: sugiro que sua preem inência deva ser entendida com o parte de um tem a bem m aior de M arcos. Um dos seus pontos mais im portantes é que a crucificação de Jesus foi sua obra-m estra, e que o mais — até m esm o os exorcism os, as curas e outros m ilagres — tudo foi apenas indício incom pleto da verdadeira natureza e signifi­ cado de Jesus. Essa é a razão por que ninguém tem perm issão para aclam ar Jesus abertam ente com o Filho de Deus, ou M essias, visto que qualquer aclam ação desligada da crucificação é inválida, e desencam i­ nha. Essa é a razão, tam bém , por que as pessoas, inclusive os discípulos, são apresentados em M arcos (mais do que nos demais evangelhos), com o estando bastante espantados e até estupidificados. N a perspectiva de M arcos, ninguém poderia com preender o verdadeiro significado de Jesus e sua obra, enquanto o Senhor não a houvesse com pletado m ediante sua

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morte em resgate de muitos (10:45). Assim, há uma razão teologicamente profunda para a ênfase na discrição, no mistério, para a estagnação das multidões e dos discípulos. Esse Jesus misterioso também age com grande autoridade (veja 1:27; 2:10,28; 7:19; 11:15-19,27-33), até mesmo executa ações próprias de Deus apenas, como perdoar pecados. Demonstra ter poderes de Deus sobre a natureza (veja 4:35-41; 6:45-52), e recebe reconhecimento da parte de demônios (veja 1:24; 5:7) e do próprio Deus (1:11; 9:7). Tudo isso indica de m odo vigoroso que Marcos queria enfatizar que aquela Pessoa que haveria de oferecer sua vida em resgate de muitos, cuja maior obra seria sua humilhação e morte, na verdade é bem maior do que um profeta, que um mero homem de qualquer categoria; ele é o Filho de Deus e, de certa forma misteriosa, um Ser divino. E este interesse pela Pessoa de Jesus que explica a ênfase de M arcos no conflito do Senhor com os poderes demoníacos (também mais salientado em Marcos do que nos demais evangelhos). Em Marcos, Jesus verdadeiramente traz o reino de Deus ao mundo perturbado pelos poderes maléficos, e destrói a escravidão que vinham exercendo sobre as pessoas; e esse conflito direto demonstra ser ele o divino Filho que executa a vontade de Deus, ao expelir os poderes antagônicos. Entretanto, o livro de Marcos não é só um livro sobre Jesus: é também sobre como ser seguidor de Jesus, seu discípulo. Marcos estava interessado em enfatizar que a cruz não era apenas a obra-prima de Jesus, a mais importante, mas que era também o padrão do discipulado. Como veremos posteriormente, nos comentários, Marcos 8-10 concentra-se de modo espe­ cial na descrição que Jesus faz de seus próprios sofrimentos vindouros como sua função essencial, e na definição de discipulado como a obediência a seu exemplo, que os discípulos devem seguir (veja 8:27-38). Marcos desejou enfatizar que o Evangelho centraliza-se no sofrimento de Jesus pelos homens, e também desejou corrigir a noção de discipulado como vida fácil e triunfante. Há, neste livro, não apenas profunda teologia do Evangelho, mas também vívida descrição da vida cristã. Vimos de m odo breve as principais ênfases de Marcos; no exame mais acurado do texto haveremos de discutir estes e outros temas de modo mais profundo. Antes, porém, de abrirmos o texto de Marcos, será útil descrever­ mos em poucas palavras os traços predominantes de seu estilo, de m odo que o leitor fique melhor preparado para entender o que o autor escreveu.

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0 Estilo Literário de Marcos

C om ecem os com as noções m ais básicas. O relato de M arcos é narrativo, com unicando a im pressão de ação rápida. O estilo do texto grego é sim ples, sem sofisticação, em pregando muitas sentenças simples ligadas entre si pela preposição “e” . Um a com paração entre os eventos encontrados em M arcos com os dos outros evangelhos dem onstra que sua versão com freqüência parece mais verbosa e não tão bem construída. N o entanto, M arcos em prega certas técnicas que dem onstram algum a perícia e vocação literária. Com o verem os, às vezes ele cita o AT, e mais freqüentem ente a ele faz alusão, parecendo esperar que seus leitores estejam bastante fam iliarizados com o Livro Sagrado, de modo que consigam apreciar suas alusões. Para M arcos e seus leitores, o A T é Escritura Sagrada e som bra profética da obra de Jesus. Várias vezes M arcos liga duas histórias, acoplando-as entre si, sendo sua intenção usar am bas de tal m odo que uma ilum ine a outra. M arcos tam bém agrupa algum as histórias, com o objetivo de salientar determ inado ponto (veja as histórias de conflito de 2:1-3:6), prática que às vezes exige grande extensão de texto; bom exem plo disso são os capítulos 8-10. A cim a de tudo, se com pararm os as passagens de M arcos com seus paralelos de outros evangelhos, verificarem os que o autor não está apenas repetindo histórias, sem o m ínim o cuidado. M arcos escreveu segundo objetivos teológicos e trabalhou no sentido de fazer que seu texto com unicasse e provasse com clareza seus pontos de vista. Para com preender e apreciar bem as intenções de M arcos, o leitor deve ler seu texto com vagar, dando-lhe a atenção e reflexão que merece. Nos com entários que se seguem, espero que o leitor encontre ajuda e enco­ rajam ento para essa tarefa. Esboço Básico

E m vez de tentar justificar um esboço m inucioso aqui, julguei que seria m elhor apresentar apenas um a descrição básica da estrutura geral do Evangelho de M arcos. 1:1-13 Prólogo e A m biente 1:14-8:30 M inistério, Conflito, R ejeição e a Questão da Identidade de Jesus 8:31-10:52 A M issão de Jesus e o Discipulado 11:1-16:8 O M inistério de Jerusalém , a M orte e a R essurreição de Jesus.

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Notas 1. A tradução padrão para o inglês de muitos destes evangelhos apócrifos é de E. Hennecke e W. Schneemelcher, New Testament Apocrypha, 2 vols., trad, de R. McL. W ilson (Philadelphia: W estminster, 1963). 2. As principais obras referenciais sobre questões relacionadas a data, autoria e origem dos escritos neotestamentários, e assuntos correlatos, são as seguintes: W. G. Kümmel, Introduction to the New Testament, trad, de H. C. Kee (Nashville: Abingdon, 1975); D. Guthrie New Testament Introduction (Downers Grove, III.: Inter-Varsity, 1970). A obra de R. Martin, New Testament Foundations: A Guide fo r Christian Students (Grand Rapids: Eerdmans, 1975), trata-se de uma discussão em nível de estudantes sobre a natureza e origem dos evangelhos.

Nota: H á um a lista de abreviaturas em pregadas neste com entário, no com eço deste volume.

1 . 0 Precursor e Jesus (Marcos 1:1 -20)

1: 1- 8 / N esta seção introdutória breve, m as com pacta, M arcos descre­ ve de início Jesus por títulos que resumem , segundo o autor, o significado próprio de Jesus e, a seguir, liga-o a tem as proféticos do Antigo T esta­ m ento e à figura histórica de João Batista. É interessante que, em bora M arcos apresente as personagens hum anas de sua história, inclusive os discípulos, com o pessoas sem i-incapazes de perceber de m odo adequado quem é Jesus na realidade, enquanto o Senhor não ressurgir, o leitor recebe, já na prim eira linha, os títulos que com provadam ente são os prediletos do evangelista para com unicar a real dignidade de Jesus — Cristo (M essias), e Filho de Deus. Há um a certa discrição, um certo m istério que envolve Jesus, nesse livro, mas ao leitor se lhe revela todo o segredo logo de início. O efeito disso é que o leitor fica preparado para sentir toda a tragédia e gravidade da rejeição de Jesus pelos seus inim i­ gos, e a falta de com preensão por parte de seus discípulos. A apresenta­ ção de Jesus m ediante esses títulos tam bém nos dem onstra, de imediato, que a m otivação do autor é sua adoração a Jesus, e que a obra foi escrita não do ponto de vista de um observador histórico descom prom etido, mas de alguém que tem em m ente profundos interesses religiosos. As passagens do AT (Antigo Testam ento), a saber, M alaquias 3:1 e Isaías 40:3 (veja notas sobre 1:2, 3), são m encionadas a fim de dem ons­ trar que João B atista e Jesus devem ser entendidos no contexto das profecias, as quais eram consideradas pelos antigos judeus e cristãos com o Escrituras Sagradas, a revelação divina dos propósitos de Deus. Em outras palavras, segundo a perspectiva do autor, nem Jesus nem o B atista surgiram “do nada” , mas, ao contrário, vieram em cum prim ento do plano de redenção elaborado por Deus. Esta atitude, segundo a qual o Antigo Testam ento é o registro da obra e do plano de Deus, e que Jesus deve ser interpretado com o o cum prim ento da obra e da palavra de Deus, no A ntigo Testam ento, reflete-se por todos os escritos do NT (Novo Testam ento), tendo recebido expressão contínua, à m edida que a igreja utilizava os escritos do Antigo Testam ento com o Escritura Sagrada, em sua história subseqüente. Esta com preensão se reflete, naturalm ente, na inclusão do Antigo Testam ento com o parte da Bíblia cristã, decisão ainda

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aceita por todos os principais segm entos do cristianism o de hoje. Os prim itivos cristãos não só viram Jesus prefigurado em certas profecias do AT, referentes à redenção que haveria de vir, mas indo além , consi­ deraram Jesus a culm inância de tudo quanto Deus havia realizado no AT. Neste sentido, tudo virtualm ente no AT parecia antecipar e prefigurar Jesus, em quem “tudo se cum priu” . As passagens citadas aqui em M arcos parecem relacionar-se de m odo específico a João Batista. Ele é visto com o o m eu anjo enviado, o qual preparará o cam inho para Jesus; é a voz do que clam a no deserto, exortando Israel a preparar o cam inho do Senhor. Essa função se torna clara na descrição que M arcos faz do Batista, que está batizando no deserto (v. 4), conclam ando Israel ao arrependim ento, e anunciando alguém que viria depois dele (vv. 7-8) com um m inistério mais signifi­ cativo ainda. A passagem de M alaquias 3:1 (citada em 1:2) parece ter sido enten­ dida por m uitos judeus e cristãos antigos com o predição de um a perso­ nagem profética do final dos tem pos, a qual seria, no contexto de M alaquias 4:5-6, sem elhante a Elias, o profeta do A T (veja 1 Reis 17-21; 2 Reis 1-2). A descrição que M arcos faz do vestuário do B atista (v. 6) parece objetivar trazer à lem brança de seus leitores a im agem de Elias, que usava vestim enta sem elhante no AT (2 Reis 1:8). N a verdade, M arcos noutra passagem explicita um pouco m ais (veja com entários de M arcos 6:15) a expectativa em torno de alguém à feição de Elias, e a conexão entre Elias e João Batista. E m bora esta conexão entre o B atista e a expectativa de alguém parecido com Elias, no antigo judaísm o, fique im plícita aqui, o principal objetivo de M arcos, nesta seção, e nos versículos seguintes, é relacionar João B atista a Jesus. Nos versículos seguintes M arcos diz-nos que Jesus foi batizado por João (1:9), ocasião em que Jesus recebeu o cham ado para o m inistério (1:10-11), e que o m inistério de Jesus na G aliléia iniciou-se após a prisão do B atista (1:14). Na passagem em foco, João B atista é apresentado com o o Precursor de Jesus. Isto significa que M arcos deseja transform ar o m inistério de João no am biente histórico im ediato ao m inistério de Jesus e, nesse processo, deseja que a predição feita por João sobre alguém m aior do que ele próprio, que haveria de vir, seja predição (e endosso) sobre Jesus. Esta conexão entre Jesus e João é bem confirm ada no NT. Todos os

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quatro evangelhos descrevem o com eço do m inistério de Jesus fazendo referência a João B atista (cp. M ateus 3:1-17; Lucas 3; 1-22; João 1:6-35); e os relatos sobre a igreja nascente, em Atos dos Apóstolos, de m odo sem elhante traçam o início do m inistério de Jesus na obra do Batista (Atos 1:21-22; 10:36-38). N outra passagem de M arcos há o registro do boato segundo o qual após a execução do Batista algum as pessoas (de m odo especial Herodes Antipas, governador da Galiléia), viam em Jesus, talvez, o reaparecim ento do profeta m artirizado! Isto deixa im plícito que teria havido suficientes sim ilaridades entre os m inistérios de Jesus e de João, para que tais idéias penetrassem na mente das pessoas. A lém disso, pelo relato de M arcos sobre a controvérsia entre Jesus e as autoridades religiosas, em torno da purificação do tem plo (11:27-33), ficam os saben­ do que Jesus exigiu que se fizesse um a avaliação do m inistério do Batista, com o condição prelim inar para a defesa de suas próprias obras, im pli­ cando talvez que ambos os m inistérios devessem ser considerados uni­ ficados. Josefo,* historiador judeu que escreveu na segunda m etade do prim ei­ ro século d.C., tam bém se refere ao Batista. A referência que ele faz a João relaciona-se com um a descrição do governo de Herodes Antipas, que m andara m atar o profeta. Josefo descreve João com o personagem popular entre as m assas, m uito respeitado por sua piedade e seu forte apelo à retidão; esta evidência do im pacto causado por João sobre a Palestina do prim eiro século pode ajudar-nos a entender por que os evangelhos ligam o Batista a Jesus de m odo tão explícito. Fazer isso era o m esm o que relacionar Jesus à personagem religiosa altam ente respei­ tada do judaísm o do prim eiro século; declarar o endosso profético do B atista sobre Jesus significava definir de certo m odo o m inistério de Jesus, m ediante tal associação, e tam bém significava distinguir Jesus com o m aior do que João. A partir das descrições que o NT e Josefo fazem de João Batista, ficam os sabendo que se tratava de um pregador sem elhante a profeta, que convocou Israel ao arrependim ento, e à preparação para o dia * Josefo, Jewish Antiquities, 18.116-119. Uma boa tradução (para o inglês) da obra de Josefo é Josephus, Loeb Classical Library, 10 vols. (Cambridge: Harvard University Press, 1969), vol. 9, pp. 81-85. Consulte também artigos sobre João Batista em IDB, vol. 2, pp. 995-62, d IDBSup, pp. 487-88.

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vindouro da m anifestação da salvação (aos que estivessem p rep ara­ dos) e do ju lg am en to (veja M ateus 3:1-12). Parte de seu m inistério foi ded icada à im ersão dos ju d eu s arrependidos no rio Jordão, prática de que se d erivou sua designação de João B atista (ou batizador). P arece que esse ritual foi novidade na religião judaica. A seita ju d a ic a de Q um ran (lugar onde se encontraram os rolos do m ar M orto) teria praticado im ersões ritu alísticas todos os dias, com o sím bolo (e e fei­ to?) da p u rificação diária, da elim inação da im undícia religiosa. É possível que quando os gentios se tornavam prosélitos (convertidos à religião judaica) passavam por um ritual im ersionista (batism o), com o parte das exigências concernentes à conversão (em bora os eruditos discordem quanto à época em que os batism os de prosélitos se inicia­ ram ). O rito batism al de João era diferente. Parece que João adm inis­ trava o batism o um a única vez a cada pecador penitente, o que o diferencia do rito im ersionista diário de Qum ran, m as o aproxim a da prática batism al dos prosélitos. Entretanto, João procurava levar Israel (os ju deus) ao arrependim ento e batism o, enquanto o batism o dos prosélitos era prescrito apenas a pessoas não-judaicas que tencionavam aderir ao judaísm o. Por isso, não existe um a an alo g ia p ara o rito de João. O ritu al cristão do batism o, que d ata de um a ép o ca lig e ira m e n ­ te p o ste rio r à do B atista, p o d eria ter sido copiado do ritu al de João, em alg u n s aspectos: o b atism o era ad m in istrad o um a única vez a cad a p esso a e todos deviam ser batizad o s, tan to ju d e u s quanto gen tio s, isto é, os que q u isessem to rn ar-se cristãos. A característica final a respeito de João, m encionada nesta parte de M arcos, é que João anunciava alguém m aior do que ele m esm o, que desen v o lv eria um m inistério m ais expressivo (vv. 7-8). Enquanto João batizav a com água, aquele que havia de vir b atizaria com o E sp írito Santo. E sta declaração deve ser entendida à luz das p ro m es­ sas do AT, segundo as quais haveria um a época em que D eus conce­ deria seu E spírito a seu povo, dando a todas as pessoas um re lacio n a­ m ento especial com o Senhor e, desse m odo, as bênçãos da salvação, (veja Joel 2:28-32; E zequiel 36:22-32; Jerem ias 31:31-34). É óbvio que o E spírito Santo não é um líquido, e a m enção de “b atism o ” com o E sp írito Santo é apenas um a figura de linguagem cujo objetivo é asso ciar a salvação vindoura ao próprio m inistério (de batism o) do B atista e, ao m esm o tem po, dem onstrar a superioridade de um sobre

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o o u tro , m e d ia n te o c o n tra ste en tre o E sp írito S an to e a água. E sta ab ertu ra do livro de M arcos, com um a referência a João B atista, significa que som os colocados de im ediato na época do m in istério de um Jesus, sem inform ações sobre sua infância. Em bora M ateus e Lucas contenham histórias sobre o nascim ento e a infância de Jesus, M arcos atira o leitor quase de supetão ao seu m inistério, já em andam ento. Os eruditos discordam entre si quanto a se M arcos ignorava os fatos da infância de Jesus, ou se estes não lhe in teressa­ vam , e por isso não fizeram parte de seu plano ao escrever sobre a vida de Jesus. Sejam quais forem as razões, a ausência de relatos sobre a infância de Jesus, e a narrativa rápida, nervosa, no livro todo, tornam o E vangelho de M arcos um resum o encantador do m inistério do Senhor. 1:9-13 / N esta passagem , Jesus aparece na narrativa pela prim eira vez, tornando-se clara a razão da im portância do aparecim ento de João B atista prim eiro, na história: Jesus é batizado por João. Isso significa, sem dúvida, que a narrativa de M arcos, além de associar João a Jesus, fazendo dele testem unha do Senhor, tam bém liga Jesus ao B atista, com o alguém que lhe aceitou a m ensagem e lhe obedeceu à co n v o ca­ ção p ara o batism o. T odos os quatro evangelhos testem unham o relacionam ento ex is­ tente entre Jesus e o B atista, m as no Evangelho de João m uitos eruditos enxergam evidências de que o autor tentou deixar bem claro que Jesus era m uito superior ao B atista, talvez com o objetivo de neutralizar toda sugestão de que Jesus teria sido seguidor do B atista e, portanto, inferio r ao profeta. E interessante constatar, por co m p a­ ração, que o quarto E vangelho silencia quanto ao fato de Jesus ter sido batizado por João (João 1:29-34), m as inclui um a passagem relativ a­ m ente longa em que o B atista descreve de m odo explícito a supe­ riorid ad e de Jesus (João 3:22-30). N a passagem à nossa frente não existe nenhum a relutância em associar o início do m inistério de Jesus com o B atista. P or ocasião de seu batism o, Jesus experim enta um a visão que M arcos apresenta com o o cham ado de Jesus para o m inistério. E ssa visão dos céus abertos (gr.: “céus que se fendem ” ) aparentem ente significa que D eus está prestes a agir de m odo direto, e que Jesus recebe um panoram a de caráter íntim o dos propósitos divinos. O

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fe n ô m e n o p o d e ser alu são a Isa ía s 64:1, em que o p ro fe ta o ra a D eus: “O h! se fe n d esses os céus e d e s c e s se s ” , num c o n te x to em que se a p e la p a ra a salv aç ão d iv in a em pro l do povo de Isra el (6 4 :1 -1 2 ). O p o n to cen tral da alu são seria que o cham ado de Jesus, da p arte de D eus, deve ser visto com o cum prim ento daquela oração, e com o esperança do novo livram ento e revelação refletidos em Isaías 64. A descida do Espírito de Deus sobre Jesus com o pom ba dem onstra que Jesus foi enviado por Deus. É fato que lem bra ao leitor Isaías 61:1, em que o servo de Deus descreve sua vocação com o envolvendo o Espírito de D eus vindo sobre ele (“O Espírito do Senhor Deus está sobre m im ”). A voz vinda dos céus é, inquestionavelm ente, a voz de D eus, e sua declaração faz alusão a várias passagens do A T que identificam Jesus com p ersonagens reverenciadas, nas passagens que estam os exam i­ nando. Tu és o m eu F ilho am ado ressoa com o eco de Salm o 2:7, que originalm ente se d irigia aos reis judeus. Filho am ado lem bra G ênesis 22:2, em que D eus se dirige a A braão ordenando-lhe que lhe ofereça o filho (“o teu único filho, Isaque, a quem am as”). Em quem me com prazo reflete Isaías 42:1, em que D eus aponta seu servo com o o escolhido para falar em seu nom e. P arece que nos dias de M arcos o Salm o 2, Isaías 42 e talvez G ênesis 22:2 tenham sido interpretados por algum as pessoas com o predições a respeito do M essias (o U ngido, o C risto), pelo que a alusão a essas passagens d esig n a Jesus, de m odo im plícito, com o o que veio cum prir tais predições. C om o verem os em passagens subseqüentes, M arcos deseja in crem en tar e alargar o significado de Jesus, m uito além do conceito de ser ele o M essias; todavia, a alusão a estes versículos do A T significa que M arcos tam bém deseja atribuir a Jesus toda a honra atribuível à P essoa do M essias, segundo a esperança judaica. A visão e a voz que a acom panhou, vindas dos céus, são sem elhan­ tes aos relatos do AT de profetas que foram cham ados por D eus a fim de falarem a Israel. Isaías (6:1-13) e E zequiel (1:1-2:10) nos p ro p o r­ cionam descrições longas de tais experiências; todavia, visões assim , acom panhadas da experiência de ser cham ado por D eus, parecem ter tam bém originado o m inistério de vários outros profetas (veja A m ós 7:1-9:1). E certo que M arcos considerava Jesus superior a um profeta,

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m as este re la to p arece d e sc re v e r o in ício do m in isté rio de Jesus com o p ro v o c a d o p o r u m a e x p e riê n c ia v o ca cio n al p ro fé tic a . É dig n o de n o ta que Jesu s, n o u tra passagem , igualou-se a um profeta (6:4), e que algum as pessoas assim o consideravam (6:15; 8:28). T odavia, ainda que o m odo da vocação, aqui, assem elhe-se ao dos profetas do AT, o cerne desse cham ado é servir com o F ilho am ado de D eus! Os três evangelhos sinóticos descrevem Jesus, que sofre um p erío ­ do de tentação no deserto, logo após seu batism o, m as no relato de M arcos há peculiaridades interessantes. Os relatos de M ateus (4:1-11) e o de L ucas (4:1-13) descrevem Jesus sendo levado pelo E spírito ao deserto, m as em M arcos o E spírito o im p eliu para o d eserto (1:12). E m bora não conheçam os, na verdade, o que estava por trás da escolha que M arcos fez de palavras, aqui, o efeito que ele produz é o de tornar a ten tação algo não procurado, um a experiência nada confortadora, um a provação. O fato de ter sido o E spírito que conduziu o Senhor ao deserto significa que a provação ali fora determ inada por Deus, com o parte do preparo necessário ao escolhido F ilho de D eus. N ote-se ainda que só M arcos m enciona as feras nessa experiência no deserto (1:13); sua intenção, pelo que parece, seria salientar os perigos do am biente. A lguns eruditos sugerem que o autor do E vangelho alude ao relato da C riação, no qual A dão dá nom es aos anim ais no Éden (G ênesis 2:18-19). O significado dessa possível alusão seria que M arcos estaria retratando Jesus com o o novo A dão, o que re p re­ sen taria um novo com eço para a raça hum ana. (E ntretanto, não me deixei p ersu ad ir p o r essa sugestão.) O s três evangelhos sinóticos inform am que a tentação durou q u a­ renta dias; deveríam os notar dois fatos a respeito desse núm ero. P rim eiram ente, trata-se de um núm ero redondo e, com toda p ro b ab i­ lidade, não foi m encionado com a intenção de estipular um período cronológico exato para a tentação. Em segundo lugar, vale a pena observar que os quarenta dias da tentação de Jesus, no deserto, ressoam com o eco das tradições segundo as quais Israel passou quaren ta anos no deserto (D euteronôm io 29:5), e M oisés passou quaren ta dias no m onte Sinai aguardando a entrega da lei (Ê xodo 24:18). O objetivo das prováveis alusões a estas tradições é tran sfo r­ m ar o período que Jesus passou no deserto num tem po de nova

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re v elaçã o e salv aç ão , e q u iv a le n te ao que foi dad o a M o isés e Israel no tem p o clá ssic o do Ê xodo. Je su s foi ac la m ad o p o r D eus em seu b atism o , d o ta d o do E sp írito de D eus, dirigido pelo E spírito ao deserto para a provação e foi lam bém servido pelos anjos (v. 13). M ateus (4:1-11) e Lucas (4:1-13) devotam m aior espaço ao relato da tentação, m as até m esm o a n arra­ tiva m ais breve de M arcos deixa bem claro que o episódio é prova e preparo para quem fora cham ado a executar um a obra que ninguém mais poderia executar. B em cedo, neste E vangelho, Jesus encontra-se com Satanás (v. 13), sob circunstâncias adversas, com o deixa im plí­ cito a narrativa, e o vence, estabelecendo o tom do conflito do Senhor contra os poderes dem oníacos prevalecente pelo resto do livro. 1:14-20 / A ligação que se faz entre o início do m inistério de Jesus e a prisão do B atista produz o efeito de associar Jesus ao m inistério de João de m odo mais claro ainda do que fora indicado nas passagens preceden­ tes. Tal fato é especialm ente notável à vista da sim ilaridade parcial entre suas m ensagens. Em 1:4 João vem “pregando... arrependim ento” e aqui, cm 1:15, Jesus pronuncia um a m ensagem semelhante. N o entanto, há im portantes diferenças entre Jesus e João, m encio­ nadas na passagem diante de nossos olhos. A qui, Jesus afirm a que o reino de D eus está próxim o, e que o dia (o tem po) está cum prido. Essa convicção de que o tem po determ inado por D eus havia chegado é sem elhante ao senso de urgência do B atista, e sua certeza de haver sido cham ado para preparar Israel para o dia da salvação de Deus (1:4-8). E ntretanto, as palavras de Jesus refletem sua convicção de que o dia do reinado de D eus estava m ais próxim o ainda do que o B atista podia suspeitar. Em M arcos, a m ensagem de Jesus é cham ada de E vangelho do reino de D eus, m as não se diz isso das palavras de João B atista; parece que esta expressão objetivava dar à m ensagem de Jesus um significado especial, acim a da m ensagem de João. A convicção urgente que se reflete nas palavras de Jesus estabelece o tom para o resto da história de seu m inistério, e ju n to à sua aclam ação com o o F ilho de D eus, assinala sua obra com ex traordiná­ rio significado. “ R eino de D e u s” significa, aqui, governo de D eus. A m ensagem de Jesus significa que D eus com eçou a estabelecer seu governo num m undo visto por m uitos ju d eu s religiosos com o estando sob o p oderio satânico do mal. R eino de D eus, desse m odo, representa

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o triunfo do plano de D eus para nossa salvação, sobre o pecado hum ano e sobre a oposição dem oníaca. Dizia um a antiga oração judaica: “Que Deus estabeleça seu reino em nossa época”, e o anúncio de Jesus deve ser entendido no contexto da esperança refletida nessa oração. O leitor não deve subestim ar a im portância central desta m ensagem sobre o reino de Deus que se aproxim a a fim de poder entender bem o m inistério de Jesus. Virtualm ente tudo no com portam ento e ensino do Senhor basea­ va-se nesta convicção sobre seu dia com o o tem po da vinda do governo de Deus, e a convicção acom panhante de seu papel de arauto, e mais ainda, de ser ele próprio o meio dram ático pelo qual se estabeleceria. Jesus cham a quatro homens para serem seus discípulos, e isso produz o efeito im ediato de alargar o círculo de atenção, de m odo que inclua o próprio Jesus e o grupo escolhido para acompanhá-lo. N outra passagem do livro verem os algumas evidências de com o M arcos tratou o tópico do discipulado cristão; neste texto vemos o m odelo ideal na reação im ediata dos quatro hom ens ao cham ado em basado na autoridade de Jesus. A convocação de Jesus ao discipulado inclui a prom essa de que aqueles hom ens se tornariam pescadores de hom ens, a saber, foram cham ados para atuar na m issão do Senhor, não para serem meros observadores. M ais tarde, verem os que doze hom ens foram cham ados dessa forma, e ficam os sabendo de m odo específico que lhes foi entregue um m inistério talhado segundo o m inistério do próprio Jesus (3:13-19). O objetivo desse episódio é apresentar aos leitores do Evangelho alguns seguidores de Jesus com os quais poderão identificar-se. Assim é que os leitores são incluídos nesta história; o leitor cristão deve atender ao cham ado e seus deveres, e atentar para as provações e os fracassos dos discípulos, tendo em vista tirar lições para suas próprias vidas.

Notas Adicionais #1 1:1 / Evangelho é um termo grego (euangelion) em pregado no mundo contem porâneo para referir-se a uma m ensagem de boas novas, mas parece ter adquirido um significado especial para os prim itivos cristãos, como termo técnico designativo da salvação m ediante Jesus. (Veja Marcos 1:14-15; 8:35; 10:29; 13:10; 14:9; Romanos 1:1, 16-17; 1 Coríntios 4:15). Aqui, também, o term o se refere à m ensagem de Jesus, e não ao livro. A palavra E vangelho só foi aplicada a livros no segundo século, quando aparecem as prim eiras referências aos “quatro ev angelhos” , designando os escritos canônicos atribuídos a Mateus, Marcos, Lucas e João.

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Filho de Deus. Estas palavras estão ausentes em alguns manuscritos antigos importantes e do texto neotestamentário. A afirmação de que Jesus é o Filho de Deus aparece em vários pontos de Marcos, indicando que a filiação divinal de Jesus é parte importante do retrato delineado pelo evangelista (cp. 1:11; 3:11; 5:7; 9:7; 14:61-62; 15:39), o que leva a maior parte dos eruditos a crer que esse título estava aí, originalmente, na abertura do livro, tendo sido omitido por acidente em algumas cópias. É muito significativo que Jesus seja chamado de Filho de Deus apenas por Deus (1:11; 9:7), pelos demônios (3:11; 5:7), e por um homem, o centurião ao pé da cruz (15:39), o que ilustra a ênfase de Marcos na cegueira das pessoas quanto a Jesus e seu ministério. (Veja “Filho de Deus”, NIDNTT, vol. 3, pp. 634-48). 1:2 / como está escrito no profeta Isaías: é tradução literal. É o texto dos manuscritos mais antigos, mas em muitos dos manuscritos posteriores a redação é: “como está escrito nos profetas”. A maioria dos eruditos suspeita de que este último texto surgiu porque a citação apresentada nos vv. 2-3 na realidade é de Malaquias 3:1 e Isaías 40:3; alguns copistas poderiam ter achado necessário evitar dar a impressão de que o autor do Evangelho por engano atribuiu a Isaías uma profecia de outro profeta. Não sabemos com certeza por que o autor atribui a declaração profética, dupla, somente a Isaías; pode ser que ele estivesse usando uma lista de profecias do AT, à guisa de auxílio didático, e a passagem citada aqui estaria relacionada sob o nome de Isaías. diante da tua face, o qual preparará o teu caminho: esta citação não é repetição literal do texto hebraico de Malaquias 3:1. É de interesse especial o fato de no hebraico lermos assim: “a fim de preparar um caminho para mim”. Aqui em Marcos a profecia parece dirigir-se a Jesus — teu caminho, no v. 2. 1:3 / do Senhor: talvez se refira a Jesus, a quem se atribui este título noutras passagens do NT (em Marcos cp. 5:19; 11:3; também, veja 1 Coríntios 8:6; Atos 9:1-29). 1:4 / o batismo de arrependimento, para remissão dos pecados: o batismo de João era uma demonstração imediata de arrependimento, assim como o atendimento a um apelo para vir a Cristo é considerado sinal de arrependimento em alguns círculos eclesiásticos hoje. 1:5/ Toda a província da Judéia e os de Jerusalém: é provável que Marcos não estivesse querendo dizer que todas as pessoas dessas áreas iam ter com ele! 1:6 / O vestuário e a dieta de João Batista parecem refletir a vida austera de um monge do deserto. A partir de outras referências (Mateus 11:7-8, 16-19) ficamos com a impressão de que o Batista vivia segundo padrões ascéticos rigorosos, talvez modelados pelos votos do nazireado, descritos no Antigo Testamento, que envolviam abstinência de vinho, dentre outras regras estritas (veja Números 6:2-21; Juizes 13:5-7; 16:17; Amós 2:11-12). 1:8 / o Espírito Santo: Os relatos da mensagem de João em Mateus 3:11 e Lucas 3:16 afirmam que aquele que haveria de vir batizaria com “o Espírito

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Santo e com fogo”. “Fogo” talvez seja símbolo do julgamento vindouro, mencionado em outras passagens. Aqui (e em Atos 1:5) não existe referência a julgamento, pelo que só se menciona o Espírito Santo, referindo-se à salvação vindoura. 1:9 / Nazaré: faz parte da tradição uniforme evangélica que a cidade de residência de Jesus era Nazaré, pequena vila no centro da Galiléia que, não fora esse fato, nenhuma importância teria na história. (Veja MBA, 228; IDB, vol. 3, pp. 524-26.) 1:10/ como pomba: conquanto haja quadros retratando esta cena, mostrando o Espírito em forma de pomba pousando sobre a cabeça de Jesus, a comparação refere-se ao modo suave como o Espírito desceu sobre Jesus, não se podendo tirar nenhuma conclusão quanto a uma forma visível do Espírito. 1:12 / o deserto: a área em questão aqui talvez seja a região estéril, perto da praia norte do mar Morto. Em 1:4 ficamos sabendo que “apareceu João... no deserto; o fato de ele ter sido preso por Herodes (Antipas) significa, talvez, que o ministério do Batista estivesse centralizado na foz do Jordão, isto é, em sua extremidade sul. 1:14 / João foi entregue à prisão: neste ponto, Marcos não explica a prisão de João, nem relata suas conseqüências. Em 6:14-29 ele fornece um relato bastante completo dessa questão. Galiléia: é o nome dado à parte da antiga Palestina, ao norte de Samaria. Parece que Jesus fez da Galiléia (região de sua residência) sede principal de seu ministério. Era região administrada por Herodes Antipas, governo títere dos romanos; a Judéia, ao sul, era administrada por um governador militar romano. 1:16 / Simão e André: destes dois dizem outras tradições evangélicas que eram irmãos (Mateus 4:18; 10:2; Lucas 6:14; João 1:40), como também João e Tiago, filhos de Zebedeu (Mateus 4:21; Lucas 5:10). É interessante observar que Simão (Pedro, cp. 3:16) e João haveriam de ser mais freqüentemente mencionados na tradição cristã, do que André ou Tiago (que teria sido martiri­ zado, segundo Atos 12:2). Simão Pedro é preeminente entre os discípulos; em todos os evangelhos e na maior parte das tradições cristãs é considerado representante e chefe dos doze apóstolos. lançavam a rede ao mar... pescadores: a pesca constituía importante atividade industrial, nos tempos romanos, ao redor do lago da Galiléia; a impressão que se tem aqui é que os quatro homens eram sócios de um empreen­ dimento modesto (ou grande!). É bem provável que fossem todos da “classe média” do ponto de vista econômico, visto que os filhos de Zebedeu, pelo menos, tinham empregados em sua empresa familiar (1:20). 1:17 / pescadores de homens: muitos eruditos pensam que temos aqui uma alusão a Jeremias 16:16, em que Deus promete que “pescadores” haverão de encontrar israelitas, de modo que possam ser levados a julgamento e, por fim,

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à restauração. As palavras de Jesus, aqui, poderiam representar alguns indícios de que o seu ministério marcaria o cumprimento dessa promessa profética. É evidente que Marcos não restringe os discípulos à “pescaria” de judeus, visto que ele sabe que as palavras do profeta assumiriam significado muito mais amplo, na missão internacional da igreja.

2. Inicia-se o Ministério (Marcos 1:21-45)

1:21-28 / É significativo que a prim eira cena do ministério de Jesus (após o cham am ento dos quatro discípulos) é aquela em que Jesus ensina e tam bém pratica um exorcismo. Ambos os atos recebem ênfase no Evangelho de M arcos, com o características salientes do m inistério de Jesus. Ao colocar este relato logo no início do relato do m inistério do Senhor, M arcos m ostra ao leitor, de imediato, um a cena representativa. Em bora M arcos diga que Jesus saiu “pregando” (1:14), de form a mais característica o evangelista descreve Jesus aqui com o ensinando (v. 21). Não som os inform ados sobre o conteúdo do ensino; em vez disso, o autor enfatiza o modo do ensino — os ensinava com o tendo autoridade (v. 22). Devem os observar que essa expressão é em pregada várias vezes a respeito de Jesus, na história narrada por M arcos, e que um dos principais objetivos de seu livro aparentem ente era evidenciar a autoridade de Jesus. Esse tópico surge no versículo 22, depois no 27, m as o autor retom a o assunto da autoridade de Jesus em 2:10 (autoridade para perdoar pecados), em 3:15 e 6:7 (autoridade conferida aos discípulos para exor­ cizar dem ônios), e com relação à investida de Jesus contra os cam bistas e vendilhões do tem plo (11:28-33). Nestas passagens, de modo cum ula­ tivo, tem os Jesus (a) exibindo autoridade no ensino, (b) exercendo autoridade sobre os dem ônios, (c) dem onstrando autoridade para perdoar pecados, (d) assum indo autoridade sobre o tem plo e sua adm inistração, q (e) conferindo autoridade a seus apóstolos, a fim de que expandissem seus ataques contra os poderes dem oníacos. As m ultidões no v. 22 contrastam a autoridade de Jesus, afirm ada em seus ensinos, com a dos escribas (algum as traduções trazem “m estres da lei” ; veja nota sobre o v. 22). Esses hom ens estudavam o A T com o p articu lar interesse de ensinar a interpretação e aplicação adequadas dos m uitos m andam entos da lei religiosa atribuída a M oi­ sés. O ponto central de M arcos, neste caso, é que o ensino de Jesus não era visto sim plesm ente com o outro exem plo de erudição adquiri­ da, ou com o a opinião de um escolástico ao lado das opiniões de outros m estres em questões religiosas. Ao contrário, o povo é retratado com o percebendo nos m odos e palavras de Jesus um a autoridade m uito

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superior àquela que estavam habituados a ver nos dem ais m estres. A reação do povo, nos versículos 22 e 27, denota surpresa e maravilham ento, não fé, todavia. A m ultidão nota a dem onstração de autorida­ de, m as parece incapaz de identificar sua origem e natureza. V erificare­ mos, em passagens subseqüentes, que M arcos m enciona esse espanto e adm iração com freqüência (veja 2:12; 7:37), mas eni todos esses exem ­ plos tal reação é considerada, com clareza, algo inferior à fé cristã, destituído da verdadeira ilum inação concernente ao que Jesus significa. Este relato a respeito do ensino de Jesus inclui a notável história do hom em possesso de espírito im undo (veja nota sobre o v. 23). M arcos tenciona, é óbvio, que esta parte do episódio seja ilustração do fato de Jesus ser m uito mais que um m ero mestre, igual aos dem ais, e que a autoridade que o Senhor reivindicava para seu ensino era autoridade real, não palavras vazias. Entenderem os, pois, o porquê de essas notícias se divulgarem tão depressa (v. 28): foi devido, de modo particular, a esse tipo de obra. O tem a da expulsão de espíritos im undos (v. 27), ou dem ônios, isto é, Jesus libertando as pessoas do poder de Satanás, certam ente ocupa a m aior parte do Evangelho de M arcos. Encontrarem os num erosos exem ­ plos desse tem a em episódios subseqüentes, de modo que o leitor fica preparado, aqui, para avaliar o m inistério de Jesus com o ataque aos poderes m alignos. Vemos, então, nisso, que o “reino de D eus” anunciado por Jesus no v. 15 envolve a libertação das pessoas dessas forças dem oníacas, à sem elhança desse hom em neste episódio. Este fato dá à frase “reino de D eus” realidade dinâm ica e m aterial, afastando para longe a idéia errônea de ser m ero conceito ético. Como esta cena dem onstra, o reino de Deus é o poder de Deus (a autoridade de Deus) em ação. N este relato de exorcismo, som os apresentados a outro tem a im por­ tante que percorre o livro de M arcos: a aclam ação de Jesus pelo hom em possesso de espírito im undo, e a ordem de Jesus para que se calasse (vv. 23-25). N outras passagens os dem ônios proclam am Jesus, tam bém (3:11; 5:7), e som os inform ados de que os dem ônios sabiam quem era Jesus (“porque o conheciam ” , 1:34). De modo característico, Jesus os reduz ao silêncio (1:25, 34; 3:12), rejeitando a aclam ação deles, ainda que em preguem , aparentem ente, títulos que refletem o verdadeiro signi­ ficado de Jesus. E claro que essa rejeição do louvor dem oníaco anula a acusação feita pelos adversários de Jesus, segundo a qual ele era feiticei-

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ro, e m anipulava os dem ônios a fim de trazer glória a si m esm o (veja 3:22-30). Jesus não dá tréguas, nem negocia condições: expulsa os dem ônios com grande autoridade. Devem os observar que essa redução dos dem ônios ao silêncio, mais o m aravilham ento da congregação na sinagoga, fazem parte da ênfase m aior, em M arcos, na identidade ou no verdadeiro significado de Jesus. Em vários pontos da narrativa que se segue, M arcos m ostra-nos as m ultidões (2:12; 6:2-3; 7:37) e os discípulos (4:41; 6:49-52; 8:17-21, 32-33) tentando im aginar quem é de fato Jesus, e incapazes de avaliá-lo, e à sua missão, de modo apropriado. M ostra-nos M arcos, tam bém , várias opiniões (eiTÔneas) a respeito de Jesus, as quais circularam durante seu m inistério (3:20-22; 6:14-16; 8:27-28). Tudo isso cria tensão m uito forte no relato, visto que o leitor sabe do significado e da identidade reais de Jesus; os esforços desajeitados no sentido de entender Jesus, da parte das personagens hum anas, na história, tornam -se mais desapontadores ainda. A proibição das aclam ações dem oníacas por Jesus tam bém dem onstram que o Senhor não estava interessado em mera aclam ação; sim ultanea­ m ente, tais clam ores ajudam a estabelecer, perante o leitor, a validade das afirm ações feitas a respeito de Jesus no início deste Evangelho (1:1), que constituem parte integrante da fé cristã. Verificarem os, m ediante exam e das seções subseqüentes de M arcos, que nenhum ser hum ano entende Jesus com precisão, senão depois de ele ser crucificado e ressurgir. Até m esm o a aclam ação que Pedro faz de Jesus com o o “Cristo” reflete um a com preensão defeituosa dos propósi­ tos de Deus (8:28-33). Logo correu a sua fam a (v. 28) diz M arcos, não em função da verdadeira fé, m as apenas com o notoriedade. Esse fato detona de im ediato algo que traz um a nota trágica, na história, enquanto se arm a o cenário para os relatos subseqüentes do m inistério de Jesus. 1:29-34 / N este episódio, Jesus é m ostrado curando um a determ inada pessoa, a sogra de Pedro, o que parece constituir ilustração e docum ento sum ários da referência aos m ilagres de cura feitos por Jesus, em 1:32-34. Os discípulos designados com o estando com Jesus: Sim ão (depois cha­ m ado de Pedro, 3:16), André, Tiago e João, são os m esm os já m encio­ nados em 1:16-20, todos de Cafarnaum ; a m enção deles por seus nom es, neste relato específico, bem dom éstico, em presta à cena um realism o especial. A intenção talvez seja que vejamos na sim plicidade do ato de Jesus,

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ao tom ar a m ão da m ulher a fim de curá-la, outro indício do poder e autoridade do Senhor — agora diante da doença. A reação da m ulher talvez reflita o intento de M arcos, em exem plificar a reação apropriada de seus leitores que tam bém foram “tocados” por Jesus. N outra passagem M arcos m ostra Jesus ensinando que o serviço m útuo entre os discípulos é a reação apropriada à m ensagem do Evangelho (9:33-35; 10:42-45). Portanto, nos versículos 32-34, M arcos nos dá um dos vários “resumos de transição” dos prim eiros capítulos de seu relato (outros exem plos são 1:39; 3:11-12; 4:33-34; 6:6, 56). São passagens em que M arcos resum e alguns aspectos do m inistério de Jesus e, ao m esm o tempo, faz uma transição para outra narrativa. Tais passagens tam bém são interessantes com o indicativas dos interesses editoriais de M arcos, visto constituírem , com clareza, seus com entários diretos sobre as tradições de Jesus com as quais está trabalhando. Na presente passagem , Jesus é retratado operando m uitas m aravilhas, curando m uitos doentes de diversas enfer­ m idades, inclusive exorcism os, havendo renovada ênfase em que Jesus, de m odo característico, silenciava os dem ônios precisam ente porque o conheciam . Tal fato deve ser entendido no contexto da confusão e adm iração entre o povo, na sinagoga (1 :27), sendo o resultado um a tensão e ironia que se criam na história — os dem ônios conhecem a Jesus, mas as pessoas não conseguem entender seu verdadeiro significado. 1:35-39 / A quele que nos episódios anteriores é retratado exercendo tão grande poder e autoridade, é descrito aqui à procura de um lugar tranqüilo para a oração. Visto não ser-nos relatado que oração Jesus pronunciou, deve ser o m ero ato de Jesus ter orado que cum pre o propósito da narrativa de M arcos aqui. M arcos m enciona Jesus orando em apenas duas outras ocasiões: em 6:46, após a alim entação de cinco mil hom ens, e em 14:32-39, em G etsêm ani, pouco antes da prisão do Senhor. Em contraste, Lucas m enciona oito ocasiões em que Jesus orou (3:21; 5:16; 6:12; 9:18, 28; 11:1; 22:32, 41), em bora não m encione Jesus em oração no seu relato paralelo a este (cp. Lucas 4:22-43). O fato de Jesus expressar sua convicção, quanto ao rum o de seu m inistério no debate que se segue de im ediato (v. 38), pode significar que sua prece pode ser tom ada com o um esforço p ara determ inar a direção de D eus em seu m inistério. O relato de M arcos explica a fonte do poder de Jesus contra doenças e dem ônios, e m ostra tam bém , no com portam ento de Jesus, um exem plo

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para seus leitores, na busca fervorosa e dedicada da face de D eus, m ediante a oração. A referên cia ao povo que sai à procura de Jesus não recebe expli­ cação da parte de M arcos, m as a passagem paralela de Lucas diz que “ a m ultidão procurava-o... e instava para que não se ausentasse” (L ucas 4:42). S eria isto indício de que desejavam transform á-lo em chefe de um m ovim ento popular, à sem elhança do episódio de João 6:14-15? Se assim foi, a oração de Jesus poderia ter sido um pedido para que D eus lhe indicasse o cam inho certo, frente à reação do povo. N o resum o que conclui este episódio (v. 39), devem os notar o que j á salientam os em nosso com entário de 1:21-28 — o resum o caracte­ rístico que M arcos faz do m inistério de Jesus envolve o ensino, a p reg ação e a expulsão de dem ônios. 1:40-45 / E ncontram os aqui outro tipo de doença, e o poder de Jesus para debelá-la. D esta vez, trata-se de um lep roso (veja notas, para d iscussão do term o em pregado). E ssa doença fazia que a pessoa ficasse ritu al e socialm ente “ im unda” , de acordo com a lei do AT (L evítico 13-14), significando que a pessoa estava proibida de fre­ qüen tar o tem plo e outras reuniões sociais ou religiosas. A lém disso, quem q u er que tocasse um leproso tam bém ficaria im undo. E ssa é a razão p or que o leproso, aqui (1:40), pede: Se q u iseres, bem podes lim p ar-m e. E star nas condições desse hom em não era apenas ser doente; o pobre hom em era um prisioneiro, im pedido de ter vida norm al. N ão se pode neg lig enciar o fato que todas as narrativas paralelas desse m ilagre m encionam que Jesus tocou-o (1:41; L ucas 5:13; M a­ teus 8:3). A razão para a m enção desse fato parece ser esta: m ostrar que Jesus não só curou o hom em m as tam bém restabeleceu contato social com ele. Ao tocá-lo, Jesus na verdade violou as leis concernen­ tes à pu rificação cerim onial, por am or ao hom em a quem curou. Sem dúvida, M arcos queria que seus leitores vissem a sem elhança desta ação de Jesus com sua calorosa acolhida de outros “ m arg in ais” , com o os publicanos eram exem plo. A incerteza detectada no pedido do hom em , se q u iseres, bem p odes lim p ar-m e, recebe em troca a firm eza da resposta de Jesus: Q u ero, sê lim po, e o leitor vê nesse diálogo o coração de Jesus revelado. M arcos é o único a atribuir a Jesus de m odo direto certa em oção ligada

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a esta cura — Jesus, com grande com paixão... (v. 41). C onquanto haja algum a incerteza a respeito do texto, aqui (veja as notas) esta é, com certeza, a tradução correta, pelo que fica enfatizada a com paixão de Jesus no relato de M arcos. É curioso que M arcos tenha escrito que Jesus falou ao homem, advertindo-o severam ente no sentido de não fazer publicidade. Os relatos paralelos de M ateus 8:4 e Lucas 5:14 incluem a ordem de m anter silêncio; todavia, a expressão de M arcos é mais rigorosa em suas cono­ tações do que aquelas usadas pelos outros evangelistas. Talvez isso se relacione com a ênfase m aior da parte de M arcos na discrição que Jesus desejava; observe-se, contudo, que o desejo do Senhor ficou frustrado de acordo com M arcos, cujo relato salienta as dificuldades que a publi­ cidade lhe trouxe (1:45). Em bora o ex-leproso receba ordens para não fazer propaganda, tam ­ bém recebe ordens para seguir o que prescreve o ritual do AT, a fim de atestar sua cura (v. 44). Isto significa que Jesus faz distinção entre a publicidade (oca) de seu poder, por um lado, e o “ testem unho” adequado, por outro lado. Para lhes servir de testem unho é expressão que faz lem brar o uso que M arcos faz do term o “ testem unho” em 6:11 e 13:9 (veja notas sobre este versículo). N esta passagem , então, o leitor deve enxergar um a lição na qual o testem unho adequado, baseado na obe­ diência a Jesus, fica em contraste com a publicidade sensacionalista e oca, que proclam a Jesus com o m ilagreiro. C onquanto esse hom em tenha sido curado por Jesus, e ao Senhor devesse obediência, m ostra-se deso­ bediente, e sem a visão genuína do que Jesus significa. Ir ao sacerdote seria dem onstrar sua cura não apenas com o libertação do poder de uma doença, mas também com o sinal de que raia um novo dia, o da m iseri­ córdia de Deus, ultrapassando a antiga ordem (representada pelo tem plo, pela lei e pelo sacerdote). É que a lei de M oisés e suas instituições só podiam atestar a doença ou a saúde, enquanto Jesus dem onstra ter poder para curar, para libertar a pessoa do veredicto da lei, segundo a qual um leproso era um a pessoa “ im unda” .

Notas Adicionais # 2 1:21 / Cafamaum: uma cidade de pescadores, na praia ocidental do lago da Cialiléia. Seu nome é hebraico, e significa “ vila de Naum” . Era o lugar de residência de Pedro e outros membros do grupo dos doze discípulos (1:29). Aparentem en­ te, Jesus fez da cidade sua residência e sede ministerial (Mateus 4:13).

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Mateus 11:23-24 e Lucas 10:15 registram a condenação de Cafarnaum, bem como de outras cidades, à vista da reação negativa à mensagem de Cristo. O lugar conhecido como Tel Hum hoje, é identificado com Cafarnaum pelo governo israelense, e por muitos arqueólogos. (Veja IDB, vol. 1, pp. 532-34; MBA, 228). sábado... sinagoga: A ordem para que se observe o sétimo dia da semana como dia de descanso do trabalho, e época de reflexão religiosa, aparece nos códigos legais do AT (Êxodo 10:8-11; Deuteronômio 5:12-15); a obediência a esta ordem tornou-se uma das principais características da vida judaica. A época de Jesus, já se dava grande importância simbólica à guarda do sábado. O reino de Deus, que tanto se esperava, era considerado o Sábado (descanso) da história humana; às vezes, a história era representada como estando dividida em sete períodos, o último dos quais seria o milênio prometido, época de felicidade e justiça, comumente associada ao aparecimento do Messias. A época de Jesus, a sinagoga se tornara uma instituição judaica familiar, conquanto não seja mencionada no AT. Parece que durante ou após o exílio babilónico alguns judeus religiosos começaram a reunir-se, aos sábados, para oração e instrução religiosa; a partir dessa prática surgiu a sinagoga, como instituição firmada. É termo grego que significa “reunião”, tendo sido tomada de empréstimo pelos judeus, que a incorporaram ao aramaico. Dez homens adultos era o quórum exigido para a instalação de uma sinagoga. Já à época de Jesus, essa palavra era aplicada a edifícios usados para as reuniões; parece, também, que havia certa ordem padrão para o culto, consistindo de orações (inclusive orações predeterminadas que eram “rezadas”), leituras do AT e um tipo de sermão. Nos tempos de Jesus, as sinagogas não eram chefiadas por um rabino profissional, como em nossos dias. Em vez disso, havia dirigentes leigos que faziam a supervisão das reuniões. Se em determinada reunião comparecesse alguém reconhecido como mestre religioso, tal pessoa seria convidada para pronunciar o sermão. No episódio em pauta, Jesus aparentemente é retratado pregando o sermão; ele teria sido convidado em razão de sua crescente popula­ ridade. (Veja “Sinagoga”, IDB, vol. 4, P. 476-91). 1:22 / escribas: estes homens (às vezes denominados mestres da lei, ou escribas e fariseus) formavam um corpo bem conhecido, nos tempos de Jesus, tendo surgido durante ou após o exílio babilónico (sexto século a.C.). Entre eles talvez estivessem sacerdotes e muitas outras pessoas sem ascendência sacerdo­ tal, cuja atividade principal era o estudo, a discussão e o ensino da lei religiosa do judaísm o antigo, baseada nas leis do AT, atribuídas a Moisés. A erudição desses homens lhes conferia grande respeito entre a população; as funções que desempenhavam parecem constituir um estágio preliminar das modernas fun­ ções dos rabinos, no judaísmo de hoje. Suas discussões sobre as exigências da lei judaica com freqüência eram muito complexas, envolvendo argumentos minuciosos quanto ao significado de algumas passagens do AT. Em seu grande

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zelo por fazer que a lei judaica se tornasse aplicável a todas as áreas da vida, produziram um colossal volume de legislação oral, coleções de precedentes e julgamentos de jurisprudência emitidos por mestres respeitados; tudo isso veio a adquirir valore peso iguais aos mandamentos escritos do AT). (Veja nota sobre 2 :6 ). 1:23 / espírito imundo: o termo empregado aqui, no grego, é literalmente traduzido, e aparece várias vezes em Marcos (veja 3:11; 5:2; 6:7). Em outras passagens, Marcos emprega o termo “demônio”, a fim de indicar o mesmo fenômeno (veja 1:34, 39; 3:22). Noutras partes, a expressão literal “espírito imundo” é empregada como sinônimo (veja Lucas 7:21; 8:2). Todos esses termos se referem à crença comum, na vida judaica antiga, de que há poderes maléficos, entendidos como seres reais dos quais o chefe é Satanás (veja 3:22-26). A descrição que Marcos faz deles como “imundos” significa que estão relacionados com o maligno, e com coisas consideradas impuras, da perspectiva religiosa. As pessoas afligidas por tais espíritos, em Marcos, em geral são descritas como estando sob o controle de uma vontade e de um propósito que não lhes pertencem (veja 5:1-20; 9:14-27). Os relatos se parecem com descri­ ções de certos tipos de comportamento que, em linguagem médica moderna, recebem o rótulo de perturbações mentais bastante severas. Conquanto seja verdade que os autores dos evangelhos empregam a linguagem descritiva própria de seus dias, para tais condições específicas, e que o leitor moderno poderá sentir-se pouco à vontade, à face dessas idéias sobre “possessão demo­ níaca”, não deveremos permitir que a perspectiva médica obscureça o fato que o relato evangélico mostra Jesus trazendo libertação e saúde a pessoas aflitas assim, como parte da manifestação do governo de Deus. Jesus é retratado demonstrando piedade por tais pessoas, e libertando-as, em vez de condenan­ do-as ou supersticiosamente evitando-as, o que constitui importante modelo, para nossos dias, do cuidado a ser ministrado às pessoas perturbadas. 1:30 / a sogra de Pedro: em 1 Coríntios 9:5, Paulo se refere a Pedro como sendo casado. Em 10:28 Pedro fala de haver deixado tudo a fim de seguir a Jesus. Isto poderia significar que Pedro (e outros discípulos) deixaram a esposa e outras responsabilidades, para poderem atender ao chamado de Jesus, embora tal atitude certamente não implicou deserção marital, mas tempo prolongado longe do lar. 1:35 / lugar deserto: a descrição do lugar, no original grego, parece a descrição do lugar onde Jesus foi tentado (1:12), o que poderia significar que Marcos via certa relação entre os dois episódios, talvez porque em ambos os casos Jesus se preparasse para o prosseguimento de seu ministério. 1:36 / Simão: observe aqui a preeminência dada a Simão Pedro, dentre os discípulos. E claro que isso é característica da tradição do Evangelho todo, na qual Pedro desempenha funções representativas entre os demais. 1:40 / leproso: o termo grego lepros é empregado nas traduções gregas antigas do AT para referir-se a grande variedade de doenças da pele; aqui, talvez,

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não corresponda ao emprego médico moderno da palavra “lepra”. O relato do AT (Levítico 13-14) parece refletir a dificuldade antiga de tratar-se de tais doenças, e a dificuldade em diagnosticá-las nas situações primitivas. Não podemos saber, portanto, qual seria o diagnóstico exato para o problema desse homem. (Veja “Lepra”, IDB, vol. 3, pp. 11-13). 1:41 / com grande compaixão: alguns manuscritos antigos trazem aqui: “movido de ira”. E possível que este tenha sido o texto original, mas à vista do apoio fraco da parte dos manuscritos, e do fato que esta frase poderia ter sido incluída a fim de tornar a emoção de Jesus mais compatível com sua ordem severa (vv. 43-44), talvez seja mais prudente considerar o texto que aparece em nossas traduções, hoje, como o texto original. 1:43 / Advertindo-o severamente, logo o despediu: a ordem severa dada aqui pode parecer estranha ao leitor, mas parece que Marcos tenciona enfatizar que as ações do ex-leproso constituíram evidente violação às instruções muito claras de Jesus. Embora Marcos diga que tendo ele saído, começou a apregoar muitas coisas, e a divulgar o que acontecera, e empregue as palavras da proclamação cristã a fim de descrever as ações desse homem (lit., “ele começou a proclamar fortemente, e a veicular a palavra”, v. 45; cp. 1:39, onde a mesma palavra é empregada), devemos considerar o homem como desobedecendo a Jesus; talvez ele estivesse apenas fazendo propaganda do milagre de Jesus, em vez de dar verdadeiro testemunho do Senhor. 1:45 / em lugares desertos: mais uma vez, como em 1:12 e 1:35, Marcos coloca Jesus em áreas desabitadas. Vezes e vezes sem conta Marcos tenciona mostrar um Jesus que se retrai, evitando a glória da publicidade oca, e evitando suas tentações, para que pudesse concentrar-se na vontade de Deus para sua vida. Assim como as pessoas procuravam João Batista no “deserto” (1:4-5), elas vinham à procura de Jesus em lugares desertos (é a mesma palavra em grego, eremos.).

3. Blasfêmia e Más Companhias (Marcos 2:1-17)

2:1-12 / Até este ponto, M arcos nos apresentou Jesus, e nos deu am ostras de seu m inistério, m ostrando-nos o efeito de seus ensinos (1:21-22, 27), suas poderosas obras de exorcism o (1:23-28, 34) e cura (1:29-34, 40-45). No capítulo 2, tem os outros vislum bres do m inistério de Jesus, quanto a milagres e ensino; todavia, deveríam os de fato pensar em M arcos 2:1 -3:6 com o sendo unidade com pacta de narrativa, visto que cada incidente aí descrito envolve algum a controvérsia entre Jesus e vários críticos. Os incidentes de M arcos 1 indicam com o a fam a de Jesus cresceu (1:28, 32-34, 37-39, 45). As histórias de 2:1-3:6 m ostram com o Jesus enfrentou oposição; assim é que um a sombra sinistra aparece nesta seção da narrativa, culm inando nos eventos tristes m encionados em 3:6. Tem os, então, em M arcos 2:1-3:6, a descrição que o evangelista faz do conflito entre Jesus e m uitos dos líderes religiosos de seus dias. Ao m esm o tem po, visto que M arcos apóia Jesus com clareza contra seus inimigos, o evangelista retrata nesses eventos as afirm ações e o poder de Jesus, ensinando-nos mais a respeito da natureza de seu m inistério. N o prim eiro incidente, Jesus está de novo em C afarnaum , vila que com toda probabilidade serviu de quartel-general básico de seu m inisté­ rio na G aliléia (veja nota sobre 1:21). Enquanto Jesus está falando a um a m ultidão que se juntou, pelo que se deduz, dentro da casa que o hospeda e ao redor dela tam bém , um as pessoas lhe trazem um paralítico para ser curado. Determ inados a cham ar a atenção de Jesus, os am igos do paralítico fazem um buraco no forro da casa e através dele fazem descer o paralítico, em sua esteira, bem à frente de Jesu s! Nosso interesse cresce, e talvez cresça tam bém nossa surpresa, à m edida que vam os lendo com o esses am igos (anônim os) literalm ente sobrepujam a m ultidão e chegam a Jesus, por am or ao paralítico. E um a história cheia de cores. Im agine um a m ultidão — os habitantes da vila — recusando-se a dar passagem aos am igos que carregam aquele fardo hum ano. Im agine os quatro esgueirando-se telhado acim a, levan­ tando o paralítico em sua esteira, ou colchão, m ediante cordas, e m arte­ lando furiosam ente o forro para abrir nele um grande buraco (veja notas), suficiente para dar passagem ao am igo doente!

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(Marcos 2:1-17)

Os quatro am igos passam a ser o centro de atenções; é a fé desses hom ens que Jesus observa (v. 5). Todavia, tão cedo a obra e a fé dos quatro são m encionadas, eles desaparecem da narrativa. N ossa atenção volta-se para Jesus, para o paralítico, e alguns dos escribas que se escandalizam diante das palavras de Jesus. A audácia dos quatro amigos é superada pela estranheza da prim eira declaração de Jesus. Esperaríam os que ele curasse o paralítico, mas em vez disso, dá perdão ao hom em pelos seus pecados. Tal fato apresenta o que, para M arcos, constitui o verdadeiro valor dessa história. O que parece, de início, a história de um m ilagre com um colorido especial, evolui de repente e transform a-se em grande controvérsia a respeito da autoridade de Jesus para perdoar pecados. Não ficam os sabendo qual teria sido a reação do paralítico à palavra perdoadora de Jesus, mas alguns dos escribas (veja nota) consideram blasfêm ias as declarações de Jesus (v. 7), e a controvérsia com eça a ferver! Usualm ente a blasfêm ia é considerada o pior dos pecados entre pessoas religiosas, por isso esta questão de m odo algum é insignificante. O perdão direto dado aqui, por Jesus, em 2:6, é bem diferente do caso do Batista: “apareceu João batizando no deserto, e pregando o batism o de arrependim ento, para rem issão dos pecados” em 1:4, e suscita o clam or teológico desses m estres, em 2:7: Q uem pode perdoar pecados senão Deus? C onvém notar tam bém que a acusação de blasfêm ia antecipa a condenação de Jesus em 14:63-64; parece provável que nesta prim eira controvérsia em seu Evangelho, M arcos tenciona dar ao leitor um a am ostra da oposição final e da questão que conduziria à sentença de m orte de Jesus (veja nota no v. 7). A queles escribas eram devotados ao estudo e à aplicação da lei de M oisés em tudo na vida, e funcionam aqui, e por todo o Evangelho de M arcos, com o representantes das autoridades religiosas judaicas, os quais viam erros na conduta e no ensino de Jesus que consideravam im próprios e perigosos. Ei-los aqui defendendo a honra exclusiva de Deus, neste incidente, condenando até um a simples sugestão de que um m ero hom em pudesse perdoar pecados. A prim eira vista, parecem estar certos, visto que Deus é o único e verdadeiro juiz de nossa conduta; parece estranho realm ente que um ser hum ano conceda perdão com o se fora Deus. O perdão m encionado nesta passagem não é o perdão do pecado que alguém tenha com etido contra outrem, ou contra si mesm o,

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mas concessão de perdão integral, o afastam ento do julgam ento divino sobre todos os pecados da pessoa. Jesus lhes percebe os pensam entos, e faz com que se engajem num a controvérsia que visa justificar o que dissera. O ponto de partida na argum entação de Jesus é a im plicação do pensam ento dos escribas de que em bora Jesus fa le com o se pudesse perdoar pecados, na verdade só Deus pode, verdadeiram ente, conceder perdão (v. 7): Por que profere este assim blasfêm ias? Parece que Jesus estaria redargüindo: “Vocês acham que de m inha parte é só conversa à toa, e que é fácil alguém fingir que detém toda essa autoridade? E ntão me perm itam dem onstrar de m odo concreto a m inha autoridade” (2:8-11). A cura do paralítico não é, contudo, m era dem onstração de autoridade m as tam bém ilustração do perdão ao qual se relaciona. A quele hom em prisioneiro de sua paralisia, confinado à cama, é um quadro eloqüente da escravidão do pecado; a libertação dessa paralisia representa um a dram ática libertação do pecado e da culpa. E preciso, porém, observar que a palavra autoridade, que já m enciona­ mos ter muita importância em Marcos, reaparece nesta história (veja 1:21, 27, anteriorm ente, e os com entários desses versículos). Aqui, m ais um a vez, levanta-se a questão quanto a se Jesus tem o direito de agir com o age e, neste caso, a questão é que age com o Deus — m agna questão! N o v. 10 encontram os pela prim eira vez, em M arcos, o term o Filho do hom em , term o em pregado apenas por Jesus com o título autodescritivo e, na verdade, trata-se do título característico, autodescritivo, usado por Jesus no Evangelho (veja, porém , 9:41). Antes de prosseguir, deve­ mos observar que os eruditos bíblicos têm devotado esforços intensos na investigação deste termo, em num erosos artigos e livros, e até agora, pelo m enos, perm anece um considerável desacordo entre eles quanto ao significado exato do termo, com o é em pregado nos evangelhos. As evidências e os argumentos envolvidos nesta controvérsia erudita são com plexos dem ais, e exigem fam iliaridade com várias línguas antigas, e com num erosos docum entos não am plam ente conhecidos entre os leitores com uns da Bíblia (veja notas sobre o v. 10). N os parágrafos seguintes oferecerei um a perspectiva derivada de um estudo de evidên­ cias e argum entos mais seguros a que m e referi acim a; entretanto, na presente discussão, dedicarem os nossa atenção ao uso do term o com o o encontram os no Evangelho de M arcos.

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Com o será visto nas notas abaixo, o term o filh o do homem é em pre­ gado no A T de m odo característico com o sentido de “um ser hum ano” , ficando preem inente, segundo parece, na passagem diante de nós, um pouco desse significado básico. Dizem os escribas e m estres da lei que só Deus pode perdoar pecados (v. 7), m as Jesus deseja m ostrar que o Filho do hom em tem essa autoridade na terra (v. 10); o contraste entre Deus e o Filho do hom em é evidente e intencional. Ao m esm o tempo, ficam os com a im pressão de que o ponto central da história não é que qualquer ser hum ano pode exercer a autoridade divina, mas antes, que esse ser hum ano especial pode exercê-la. Parece que esse é o significado do artigo definido, o Filho do hom em , que funciona aqui quase à guisa de um pronom e dem onstrativo, “este” . Assim, a expressão é em pregada com o título de Jesus, parecendo carregar certo significado irônico. Este filho do hom em , este ser hum ano, não é apenas um m ero hom em , mas alguém que exerce autoridade divina. Esse uso do term o reflete a m ensagem integral de M arcos, a saber, que Jesus é na verdade o Filho de D eus (1:1; 15:39). Sem tentarm os tratar, aqui, de todas as questões concernentes à história do uso dessa expressão, podem os facilm ente concluir que seu uso em M arcos descreve Jesus com o ser hum ano não reconhecido pelo que e quem ele é na verdade. O term o o Filho do hom em é o título “externo”, ou “público”, que em si m esm o não expressa dignidade especial ou óbvia. Entretanto, pelo fato de já term os sido inform ados (1:1) do real significado de Jesus (é o Filho de Deus), percebem os a ironia daquele título. É título que transm ite o escândalo de Jesus, de que este mero hom em (aos olhos de seus ignorantes contem ­ porâneos) pudesse ensinar e agir com tal autoridade, tão chocante e radical. A reação da m ultidão é de espanto e o reconhecim ento de que algo está acontecendo. No todo, trata-se de reação positiva, mas ainda não se trata de fé integralm ente inteligente; tudo isso representa a ênfase per­ sistente de M arcos em que os m ilagres de Jesus produziam fam a, e interesse, não porém verdadeira fé e tam pouco reconhecim ento adequa­ do do verdadeiro significado de Jesus. (Veja nota sobre o v. 12). Parece que o ponto central da história é m ostrar a autoridade de Jesus e o criticism o e oposição que geram . As histórias que se seguem dão-nos m ais exem plos desse tema. 2:13-17 / M arcos apresenta-nos um segundo exem plo de conflito,

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nesta seção dedicada a histórias de conflito, m ediante este relato do cham ado de Jesus a um cobrador de im postos, e do relacionam ento de Jesus com pessoas desse tipo. H á dois incidentes m encionados aqui: o cham ado de Levi (vv. 13-14) e a refeição com “p ecadores” (ou m argi­ nais; vv. 15-16). A ligação entre esses incidentes é que m ostra Jesus associando-se intim am ente a pessoas consideradas inaceitáveis pelos santarrões religiosos do tem po do Senhor. No prim eiro caso tem os o cobrador de im postos, um funcionário do governo de H erodes Antipas, instalado e apoiado pelos rom anos, sendo convidado a tornar-se discípulo de Jesus. Pessoas desse tipo eram des­ prezadas por m uitos com o religiosam ente im undas, e até m esm o com o colaboradoras dos rom anos (veja nota). Ao cham ar Levi (veja nota) para o discipulado e m inistério pessoal, Jesus teria ofendido a m uitos, fazendo que surgissem perguntas em suas m entes a respeito da capacidade de julgam ento do Senhor, de sua lealdade e pureza. A cena seguinte nos m ostra Jesus e seus discípulos com endo com m uitos cobradores de im postos e pecadores (v. 15; veja nota). Estes “p ecadores” eram pessoas reconhecidas por todos pela incapacidade de viver segundo as leis do judaísm o, talvez no que concerne às m inúcias da lei. E preciso que entendam os bem que de m odo geral, nas terras do oriente próxim o antigo, participar de um a refeição era considerado contato social im portante, e até m esm o íntimo, capaz de estabelecer um elo entre os com ensais. Entre os antigos religiosos judeus, com er com um a pessoa im plicava aceitação religiosa dessa pessoa. H á m uita razão para que acreditem os que Jesus partilhava desse ponto de vista, de modo que o fato de ele tom ar refeições com tais “pecadores” tinha o objetivo de significar e com unicar a aceitação deles, e o perdão a eles, a rem issão de seus pecados. A resposta de Jesus à crítica de suas ações dem onstra que sua ligação com tais pecadores derivava de um propósito bem definido e estudado (v. 17). A m aioria dos eruditos crê que a prática prim itiva cristã de tom ar uma refeição com um , com o sím bolo principal de com unhão m útua (sobre a qual se baseia a santa ceia do Senhor, ou eucaristia de hoje) teve origem não apenas na últim a ceia (com o é descrita cm 14:12-26), m as tam bém na prática de Jesus de com er com os peca­ dores, com o sinal da aceitação deles. N esta narrativa, os escribas unem -se aos fariseus (veja nota); a queixa c que Jesus deu mau exemplo, com o hom em santificado, ao d ar boas

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vindas a pecadores notórios. N a mente desses críticos, Jesus deveria dissociar-se publicam ente de tais pecadores, exortando-os ao arrependi­ m ento e ao estudo da lei religiosa, com o condição prévia para qualquer tipo de aceitação social. Esses críticos, m ediante o castigo dos transgres­ sores, talvez desejassem , ou estabelecer um padrão de m oralidade, ou a sua reform a. A m issão de Jesus era a proclam ação da nova salvação e das boas vindas m isericordiosas da parte de Deus, que as concedia. É possível que esses críticos acreditassem que a obediência às leis religio­ sas seria pré-requisito para a vinda do reino de Deus. Jesus, com certeza própria de profeta, estava convencido de que o reino de Deus viria ao Israel pecador m ediante a iniciativa livre e graciosa de Deus, sendo Jesus o arauto da vinda desse reino divino. Na verdade, ele talvez considerasse seu próprio m inistério com o o acontecim ento de abertura, que traria aquela iniciativa divina. Qual seria o m elhor meio, na m ente de Jesus, para dem onstrar que o reino de Deus vem a nós m ediante a graça e iniciativa divinas, não aguardando um program a de reform a religiosa da parte de Israel, senão m ediante dirigir-se aos pecadores fam igerados e acolhê-los sob o divino favor? Entretanto, a convicção profética de Jesus de que a nova salvação da parte de Deus estava próxim a, e de que ele havia sido escolhido para dem onstrá-la, não era com partilhada pela m aioria das autoridades reli­ giosas. Por isso a conduta do Senhor gerava apenas escândalo e ofensa na m ente de seus adversários. Esta história e a que a precede, em 2:1 -12, estão ligadas de m odo que dem onstram com o as notáveis ações de Jesus suscitaram trem enda oposição. As ações a que nos referim os na verdade são bem sem elhantes: perdão de pecados e boas vindas a pecadores, e am bas se baseiam na convicção fundamental de Jesus a respeito da obra para a qual ele foi escolhido — dem onstrar que o reino de Deus já chegou. É provável que haja algum sarcasm o na declaração de Jesus, no v. 17; de outra forma, Jesus estaria falando com o um “beneficente” , ou com o um reform ador social. E provável que os críticos vissem a si m esm os com o sãos, cheios de saúde, não como doentes, necessitados de médico; com o justos e não com o pecadores. É com o se Jesus estivesse dizendo algo assim: “Se vocês não precisam da m isericórdia de Deus (sorriso reprim ido aqui), então tenham a bondade de desculpar-m e, preciso continuar meu trabalho!” Não há dúvida de que nas igrejas gentílicas, entre as quais M arcos

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circulou logo de início, este tipo de história era visto com o precedente para a conclam ação e o ajuntam ento dos gentios (os quais tam bém eram considerados pecadores/m arginais por muitas autoridades religiosas ju ­ daicas), e m ostrou que Jesus foi o pioneiro nas boas vindas às pessoas inaceitáveis do ponto de vista religioso.

Notas Adicionais # 3 2:1 / em casa: a frase em grego implica que Jesus utilizou uma residência em Cafarnaum para ser a sede ministerial doméstica, de onde saía em viagens. 2:2 / a palavra: é provável que esse termo signifique a mensagem descrita em 1:14-15; deveríamos entender que Jesus estava enunciando um resumo de sua mensagem. 2:4 / descobriram o telhado... fazendo um buraco, literalmente significa, “cavaram o telhado”, talvez referindo-se às casas pobres palestinas, cujas paredes e telhado eram feitos de barro seco ao sol. Lucas 5:19 descreve um teto feito de telhas, referindo-se a uma casa construída à semelhança de muitas casas em áreas do antigo Mediterrâneo. M ateus 9:1 -8 omite as referências ao fato de o paralítico ser descido através do teto. 2:6 / escribas: é tradução literal. Eram pessoas que estudavam as leis religiosas do judaísm o e tornavam-se peritas em opinar acerca da conduta apropriada. Aparecem várias vezes em Marcos, como críticos de Jesus, freqüen­ temente ao lado de pessoas chamadas de fariseus (veja 2:16; veja nota sobre este versículo), durante o ministério de Jesus na Galiléia, e em Jerusalém, com os sacerdotes, no templo judaico (veja 11:18, 27). Os escribas formavam uma classe profissional, não uma seita ou partido religioso (veja nota sobre 1:22). 2:7 / profere... blasfêmias?: A blasfêmia é mencionada em cinco passagens de Marcos. Aqui e em 14:64 Jesus é acusado de blasfêmia pelos escribas e pelo sumo sacerdote, respectivamente. Em 7:22, a blasfêmia (NIV — “difamação”) é uma das coisas más que vêm do coração humano. Em 3:28-29, Jesus adverte seus críticos acerca da blasfêmia “contra o Espírito Santo” (talvez referindo-se à rejeição da mensagem do evangelho — veja nota sobre esses versículos). E em 15:29, as pessoas blasfemaram [NIV — “atiraram insultos”] contra Jesus na cruz. Assim é que cabe ao leitor decidir quem é o culpado de blasfêmia — se Jesus (duas vezes acusado), se seus adversários (em 3:28-29 e 15:29). 2:10 / o Filho do homem: é extraordinário que esse seja o termo caracterís­ tico que Jesus aplica a si próprio em Marcos; no entanto, jam ais alguém o emprega ao referir-se a Jesus. O termo “filho do homem” ou “filhos dos homens” aparece no AT muitas vezes como um modo hebraico de expressar “seres humanos” (veja Salmo 8:4; 144:3; 145:12; às vezes traduzido por “homem” ou “homens” em NIV). Em Ezequiel, o termo “filho do homem” é empregado por Deus ao dirigir-se ao profeta (veja 2:1, 3, 6, 8). O hebraico iben adam ) não

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enfatiza a masculinidade do indivíduo assim descrito, mas antes o fato de a pessoa participar do gênero humano. Muitos eruditos têm argumentado que esse termo tornou-se título de uma personagem celestial que, segundo se esperava, apareceria no final da história a fim de julgar o mundo para glória de Deus; esses eruditos encontram traços desse uso supostamente pré-cristão no NT, em Marcos 8:38, por exemplo. Todavia, para outros eruditos escolásticos, inclusive o autor deste comentário, a ausência de qualquer evidência clara pré-cristã do uso desse termo como título, mais tudo quanto consideramos interpretação superior de seu emprego do NT, são fatores que se combinam para tornar inviável tal teoria. Em vez disso, consideramos o termo “Filho do homem” como tendo sido usado, talvez em primeiro lugar como título, por Jesus ou pelos cristãos primitivos, e entendemos que esse título é deliberadamente ambíguo em seu sentido. Segundo esta opinião, a frase significa algo como “este mero homem”, e expressava a posição de obediência e humildade diante de Deus e perante os olhos do mundo. Tem havido tentativas elaboradas para classificar as maneiras pelas quais esse termo teria sido usado em pronunciamentos atribuídos a Jesus, e tem havido intensas discussões sobre quantos e quais desses pronunciamentos seriam palavras autênticas de Jesus. A posição adotada neste comentário é que Jesus usou esse termo como uma espécie de autodescrição, embora as variações nos pronunciamentos evangélicos de Jesus, distribuídos entre “o Filho do homem” e “Eu”, demonstram que o termo poderia ter sido inserido em alguns pronunciamentos por escritores do Evangelho, em imitação do uso que o próprio Senhor fez da expressão (compare 8:27 com Mateus 16:13). (Quanto a um estudo recente e persuasivo desse termo, veja Barnabas Lindars, Jesus Son o f Man [Londres: SPCK, 1983]; cp. C. R. Donahue, “Recent Studies on the Origin of Son of Man’ in the Gospels”, Catholic Biblical Quarterly 48 [1986], pp. 484-98.) 2:12 / todos se admiraram: Marcos com freqüência descreve pessoas como ficando admiradas por causa dos milagres de Jesus, mas parece que o evangelista considera toda essa admiração longe do verdadeiro reconhecimento da pessoa de Jesus (veja 1:22, 27; 5:20,42). Nunca vimos tal coisa: palavras semelhantes aparecem no texto paralelo de Lucas 5:26, mas em Mateus 9:8 está registrado que a multidão “admirou-se e glorificou a Deus, que dera tal autoridade aos homens” . E provável que Mateus tivesse visto esta história como precedente e exemplo do ministério da igreja, que ele descreve como autorizada a “ligar” e a “desligar” (Mateus 16:19), isto é, assegurar julgamento ou perdão às pessoas, dependendo de sua reação ao Evangelho. Na passagem diante de nós, Marcos limita a questão à legitimidade de Jesus perdoar pecados. O efeito da exclamação da multidão é sublinhar uma autoridade sem precedente demonstrada por Jesus, tanto na cura de enfermida­ des como no perdão de pecados, de tal modo que o leitor é forçado a escolher entre ver Jesus como simplesmente um homem audacioso, ou entender que ele

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age mediante autoridade divina.

2:14 assentado na coletoria: os profissionais mencionados aqui e nos vv. 15-16 eram judeus que cobravam impostos para Herodes e para os romanos. Com freqüência eram acusados de usura e exploração, porquanto obtinham seus empregos ao apresentar uma proposta com cálculos de quanto dinheiro pode­ riam levantar; o salário deles era determinado pela sua própria diligência em espremer ao máximo o público pagante. Lucas 19:1-10 fala-nos de outro “publicano” , ou cobrador de impostos, dando indícios de que havia práticas ilegais, de extorsão, empregadas na cobrança de impostos (Lucas 19:8). Entre os zelosos judeus que procuravam libertar o país do jugo romano, estes coletores de impostos eram odiados e considerados traidores. Vemos um pouco da natureza explosiva da rejeição religiosa às cobranças de impostos por governos gentios em Marcos 12:13-17. Levi, filho de Alfeu: na passagem paralela de Lucas 5:27, este homem é chamado de Levi, apenas, mas a de Mateus 9:9 chama-o de Mateus. Este “Mateus, o cobrador de impostos” reaparece na lista dos doze apóstolos, em Mateus 10:3, porém embora tanto Marcos (3:18) quanto Lucas (6:15) mencio­ nem um Mateus em suas listas, ele não é chamado de cobrador de impostos. Sem a evidência do Evangelho de Mateus, não iríamos necessariamente ligar Levi (Marcos 2:14) ao Mateus da lista de apóstolos. Outro ponto de interesse é que Marcos descreve este Levi como filho de Alfeu (2:14), mas nenhum dos textos paralelos em Mateus e Lucas trazem esta informação. Na lista dos apóstolos (3:18; Mateus 10:3; Lucas 6:15), há um “Tiago, filho de Alfeu” , que levou alguns a supor que Levi (Mateus) e este Tiago fossem irmãos, entre os apóstolos. Um fato curioso é que Marcos não demonstra interesse nenhum em traçar conexões entre o Levi de 2:14 e o Mateus e Tiago de 3:18, de modo que ficamos sem base para nossas conclusões. E óbvio que Marcos tinha muito maior interesse em narrar a história de Jesus, em vez de tratar de tais pormenores. Todavia, na tradição da igreja, este Levi e o Mateus de 3:18 são a mesma pessoa (há outros apóstolos conhecidos por mais de um nome, veja Simão/Pedro/Celas); este é o apóstolo considerado tradicionalmente o autor do Evangelho de Mateus (no entanto o Evangelho é anônimo, e a maior parte dos eruditos duvida desta tradicional vindicação de autoria). 2:15 / casa de Levi: o texto grego traz literalmente “sua casa” , e pelo contexto tanto poderia ser a casa de Levi ou a de Jesus. O texto paralelo de Mateus 9:10 também é ambíguo, e descreve Jesus comendo “na casa”, mas o de Lucas 9:59 identifica a casa como sendo a de Levi. Marcos 2:1 parece implicar que Jesus tinha casa em Cafarnaum, pelo menos durante algum tempo, e alguns eruditos acreditam que Marcos entendeu que este jantar com os cobradores de impostos e marginais aconteceu na residência de Jesus. Se de fato Jesus foi o hospedeiro nesta refeição, fica dramatizado com mais força ainda que o convite foi para a salvação e comunhão com Jesus.

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(Marcos 2:1-17)

“Pecadores” com toda probabilidade eram pessoas notórias pelo fracasso na observância das práticas religiosas e, por isso, nas mentes dos fariseus (e do público judaico, em geral), eram tidas como irreligiosas e infelizes. O termo grego aqui usado reflete a causa da rejeição dessas pessoas pela nata religiosa judaica. Seus pecados deveriam incluir não só falta de observância de escrúpulos religiosos como também práticas dolosas como fraude e adultério, como se demonstra no caso de Zaqueu (Lucas 19:1-10) que, com toda probabilidade, era culpado de trapaça, e no caso da mulher mencionada em Lucas 7:36-50. 2:16 / fariseus: constituíam a seita mais bem conhecida do judaísmo antigo, de modo especial por causa de sua preeminência nos evangelhos. O historiador judeu do primeiro século, Josefo, conta-nos que essa seita tinha cerca de seis mil membros, todos muito respeitados pela sua devoção à lei religiosa. No NT aparecem com mais freqüência como adversários e críticos de Jesus, conquanto haja exceções. Nicodemos (João 3:1) recebe o crédito de haver ajudado a sepultar Jesus, em João 19:38-42, sendo considerado um seguidor secreto de Jesus. Atos 5:33-39 retrata um fariseu importante, Gamaliel, que batalha no sentido de dar tratamento suave e cuidadoso aos cristãos, pelo sinédrio judaico. E possível que a passagem que maior influência exerceu no uso do termo “fariseu” em nossos dias seja Mateus 23:1-26, em que os fariseus são acusados de hipocrisia. É preciso que reconheçamos a existência, sem dúvida alguma, de fariseus hipócritas e cheios de auto-retidão, havendo pessoas assim talvez em todos os grupos religiosos. Todavia, precisamos reconhecer também que a oposição a Jesus talvez não tenha contado com a unanimidade dos fariseus, e tampouco teria sido resultado das características indignas denunciadoras de muitos deles. Sem dúvida alguns fariseus, talvez a maioria deles, não conseguissem aceitar a autoridade impressionante exibida por Jesus, maior que a dos profetas, estando convencidos de que Israel de modo algum poderia salvar-se por outros meios exceto a estrita observância da lei religiosa. Portanto, tais fariseus teriam feito oposição a Jesus por princípios que para eles representavam os motivos mais elevados. Mais tarde, a oposição levantada contra o cristianismo por Saulo, o fariseu, que haveria de tomar-se o apóstolo Paulo (Atos 9:1-31; Filipenses 3:4-6; Gálatas 1:13-14), talvez tenha sido motivada por este tipo de convicção religiosa. Portanto, seria calúnia retratar todos os fariseus como hipócritas, e explicar a oposição que moviam contra Jesus na base de perversidade de caráter, fato que infelizmente tem acontecido em grande parte da tradição cristã. Os evangelhos nos fornecem a linguagem de um conflito religioso fervente, mas só nos mostram um dos lados desse conflito. A verdadeira tragédia do conflito entre Jesus e os fariseus só é reconhecida quando a pessoa compreende que o caso deles era o de um povo sincero e profundamente religioso, não constituído apenas de hipócritas. Do ponto de vista cristão, esse povo foi incapaz de submeter-se à nova mensagem de Deus, a da salvação graciosa, separada da observância da lei religiosa.

4. Mais Controvérsias (Marcos 2:18-3:6)

2:18-22 / O utra questão se levanta entre Jesus e seus críticos; neste caso, a questão se relaciona a por que seus discípulos não observam os jejuns, à sem elhança de outros grupos religiosos aqui nom eados. O jejum m encionado era um exercício sem anal (para os fariseus, às segundas e quartas-feiras), aparentem ente com a intenção de expressar tristeza por causa dos pecados de Israel, e porque não se m anifestara a salvação tão fortem ente esperada, segundo prom essa profética (quanto ao jejum em M arcos, veja nota). O fato de essa questão ter sido levantada indica que tais jejuns eram de conhecim ento público; é provável que objetivavam repreender os que viviam em pecado, em Israel, e serviam de lem brete sem anal para que todos participassem de um a reform a e arrependim ento nacionais. M ateus 6:16-18 critica a publicidade em torno de tais jejuns, colocan­ do-os sob a suspeita de tornar-se um a form a de auto-exaltação, em bora a intenção original com certeza fosse m ais nobre. Ficam os sabendo, m ediante tradições posteriores do judaísm o rabínico, que a opinião dom inante entre os herdeiros dos fariseus, era que o M essias e a salvação aguardada há tanto tem po viriam quando Israel se aprontasse e se tornasse digno, pela observância da lei religiosa. É certo que João B atista pregava com fervor o arrependim ento com o preparativo para o dia do julgam ento vindouro e da salvação; sem dúvida, o jejum praticado por seus seguidores e pelos fariseus relacionava-se, portanto, às esperanças desse dia. A perplexidade daqueles que questionavam Jesus quanto a este assun­ to devia-se ao fato de Jesus proclam ar a proxim idade da vinda do reino de Deus, o dia da salvação, mas sem dem onstrar aquilo que seus críticos consideravam o preparativo adequado; a m anifestação de tristeza pela dem ora. A resposta de Jesus (2; 19-22) indica que o Senhor não com par­ tilhava a opinião deles, de que o reino de Deus não haveria de vir enquanto Israel não estivesse pronto para recebê-lo, e tam pouco concor­ dava com eles em que o tem po presente deveria ser dedicado à lam enta­ ção pela ausência do reino. Jesus usa uma figura de linguagem , a do casam ento norm al, com convidados e o noivo, ocasião alegre e exube-

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rante no antigo Israel, para descrever aquele mom ento, o que indica que o Senhor via o reino de Deus já bem próxim o, e que a época era adequada para alegria e celebrações. Contudo, se o reino de Deus aproxim ou-se de um Israel cheio de pecado, e indigno, isso significa que o reino de Deus baseia-se no propósito gracioso de Deus de salvar até os indignos. Isto, por sua vez, explica por que os discípulos de Jesus não estão jejuando, a fim de fazer vir o reino, e por que Jesus dá boas vindas aos indignos, aos “pecadores”, ao lado do resto, com o na passagem precedente (2:13-17). A im agem usada em 2:21-22 tem a intenção de m ostrar com o as crenças e práticas do passado são inapropriadas agora, quando o reino de Deus se aproxima. As ilustrações são relativam ente fáceis de entender. O tecido novo (não pré-encolhido) quando lavado vai encolher m uito m ais do que o tecido velho, lavado tantas vezes, pelo que não é sábio fazer rem endo em pano velho usando pano novo. O vinho novo não está totalm ente ferm entado; se colocado em odres de pele usados, que já foram esticados pela ferm entação de outros vinhos, fará com que os odres se arrebentem , porque vai prosseguindo a ferm entação do vinho novo. As duas coisas com uns nesta im agem são o contraste entre novo e velho, e o fato que tanto o novo pano quanto o novo vinho possuem “vida” , isto é, dinam ism o ou poder. São símbolos adequados não só da novidade do m om ento presente, mas tam bém do efeito dinâm ico do reino de Deus sobre as estruturas da prática religiosa estabelecida. É difícil determ inar se o com entário de 2:20 deve ser entendido com o atribuível a Jesus, ou se se trata de um a observação editorial feita pelo autor. Seja com o for, significa que Jesus é o noivo, a causa im ediata de alegria; a declaração antecipa sua morte, que se aproxim a, bem com o a tristeza dos discípulos. Em outras palavras, essa declaração não deve ser tom ada com o referência ao jejum cristão de época posterior, m as antes com o nota de solenidade, que antecipa a crucificação de Jesus, fato muito im portante em Marcos. N ão se deve ignorar que, enquanto o centro de atenção nas duas\ prim eiras controvérsias (2:1-12, 13-17) é Jesus e suas ações, nas passa­ gens seguintes, inclusive esta, é o com portam ento dos discípulos de Jesus que está em discussão. Se for correta a opinião erudita, largam ente aceita, de que os autores dos evangelhos redigiram seus relatos tendo em vista as necessidades e atividades das igrejas às quais eles escreveram , estas controvérsias tinham o propósito de m ostrar um Jesus que defendia não

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apenas sua autoridade e m ensagem (com o em 2:1-17; 3:1-6), m as tam ­ bém o tipo de vida e práticas religiosas de seus discípulos, com os quais os leitores naturalm ente se identificariam . Assim, neste incidente atual e nos que se seguem, os prim eiros leitores veriam Jesus justificando práticas que, segundo achavam , eram precedentes ao com portam ento deles. Os gentios cristãos, para os quais este Evangelho talvez tenha sido escrito, não observavam as festividades judaicas, e tinham visto que Jesus e os doze deram origem a esses precedentes com boas razões teológicas, e não por lassidão religiosa. 2:23-28 / N esta passagem o autor conta uma quarta história envolven­ do conflito, desta vez tratando da questão da observância do sábado, que tam bém é o assunto da próxim a história (3:1 -6). Ao lerm os esta passagem devem os lem brar-nos de que a guarda do sábado, com o dia de descanso, livre de trabalho, é m andam ento do A T (na verdade, um dos dez m anda­ m entos, Êxodo 20:1 -17), que nos dias de Jesus seria talvez dem onstração suprem am ente im portante de lealdade a Deus e à sua nação da parte de um judeu. Alguns rabinos posteriores ensinariam que o M essias só viria se todo o Israel guardasse o sábado! Portanto, a questão da guarda do sábado de modo nenhum era de m enor im portância, pelo que a aparente quebra desse m andam ento por parte de Jesus era questão m uito séria. U m a vez m ais a controvérsia gira em torno principalm ente da conduta dos discípulos de Jesus; acontece que, é lógico, o Senhor está junto a seus discípulos, por isso todos se envolvem . Para entenderm os o que eles estavam fazendo de errado, aos olhos dos fariseus, precisam os entender prim eiro que o m andam ento sim ples de não executar trabalhos no dia de sábado havia se transform ado num corpo com plexo, m uito elaborado, de costum es religiosos. Num a coletânea posterior de discussões rabínicas sobre esse m andam ento (o tratado sobre o “ sábado” no Talm ude) há trinta e nove tipos de atividades discutidas e regulam entadas. A elabora­ ção m inuciosa (jurisprudência) do m andam ento sobre o sábado, pelos escribas, já estava bem adiantada na época de Jesus, tratando de coisas com o o trabalho regular e tam bém questiúnculas sobre viagens, prepa­ ração da com ida e alimentação. N o presente caso, Jesus e seus discípulos estão viajando (não estão dando um pequeno passeio), sem dúvida a cam inho de sua m issão itinerante pela G aliléia (1:38-39). Em m eio à viagem, penetram num a plantação de cereal com o objetivo de fazer um lanche rápido, com endo

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um as espigas de grão maduro. A palha seria arrancada da espiga, para que os grãos pudessem ser com idos (um lanche saboroso, com o poderiam atestar as pessoas que cresceram perto de campos de cultivo). Por um lado, a lei do AT permitia que os pobres e famintos fizessem isso (Levítico 19:9-10), e as instruções missionárias dadas por Jesus a seus discípulos em 6:7-11 podem refletir essa prática deles, significando que não teriam carregado consigo nenhum suprimento, estando em constante dependência da hospitalidade de outras pessoas, e da providência divina (cp. Mateus 10:5-15). Por outro lado, a compreensão farisaica do sábado era que quase tudo deveria ser sacrificado na observância desse mandamento (veja nota). Assim, na revolta judaica dos macabeus contra os sírios (168 a.C.), e em guerras subseqüentes, muitos judeus se recusaram a lutar no sábado, ainda que para salvar a própria vida. Do ponto de vista dos fariseus, Jesus e seus discípulos estavam quebrando o sábado ao viajar e ao colher frutos; não havia necessidade de tão mau exem plo de conduta irreligiosa, visto que a lei do sábado veio antes do desejo de viajar com o propósito de cuidar de negócios. Parece que a resposta de Jesus de início não tem relação com o sábado (2:25-26), ou talvez justifique a quebra do m andam ento m ediante a citação de um precedente de Davi, que violou outro m andam ento; contudo, a resposta do Senhor contém muito mais substância do que parece. A referência à ação de Davi entende-se m elhor se m antiverm os em m ente que as ações de Jesus e seus discípulos, em 2:23-24, devem ser consideradas no contexto de seu m inistério itinerante, no qual proclam avam com urgência profética a proxim idade do reino de Deus. Há, então, um a analogia válida entre a situação de Jesus e a de Davi, pois, em am bos os casos tem os um bando de hom ens que representam um “regim e” novo, não reconhecido por enquanto, em circunstâncias em ergenciais. O incidente com Davi (1 Sam uel 21:1-6) m encionado aqui faz parte da narrativa das peregrinações dele com um grupo de hom ens, que tentam evitar a ira de Saul, sendo o próprio fugitivo o legítim o futuro rei de Israel. N esse contexto, a quebra de um regula-J m ento religioso por Davi deveu-se à situação prem ente. N o caso de Jesus, o Senhor está afirm ando que a urgência de sua m issão exige que ele tam bém viole o costum e religioso, ao viajar e surripiar um as espigas no dia de sábado. A questão central é que as ações de Jesus e seus discípulos estão intim am ente relacionadas com sua m issão; a analogia

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com D avi diz respeito à situação, e não à conduta ética. Entretanto, tudo isso se resum e num a questão simples: acaso a m en­ sagem e a m issão de Jesus vêm antes da observância de um m andam ento tão im portante com o a guarda do sábado? Diz o AT que D avi havia sido escolhido a fim de substituir Saul com o rei legítim o; a descrição do ato de Davi, sem criticism o, em 1 Sam uel 21:1-6, im plica que a nom eação divina de Davi justificava suas ações. A referência que Jesus faz a este incidente, ao defender suas próprias ações, significa que os fariseus, e os leitores do Evangelho, são obrigados a decidir por si m esm os se Jesus tam bém teria um cham ado que justificasse suas ações. O contexto da controvérsia é a m issão de Jesus, e a verdadeira questão, da perspectiva de Jesus, é se ele detém autoridade para violar a convenção a respeito do sábado, em função de seu cham ado e sua obra. Em outras palavras, o texto nos coloca diante de um a decisão quanto à pessoa de Jesus. Isto explica por que, após fazer a declaração de 2:27 de que o sábado foi feito por causa do homem , M arcos prossegue até o ponto central que deseja enfatizar, de que Jesus tem autoridade sobre o sábado, em virtude de sua vocação: o Filho do hom em até do sábado é senhor (2:28). Dito de outra forma, o ponto enfático de M arcos não é um princípio geral tipo “as pessoas são m ais im portantes do que as leis” (algo que ressoa agradavelm ente conveniente aos ouvidos m odernos). Em vez disso, em virtude da autoridade de Jesus e da urgência de sua missão, ele nos é retratado com o livre para julgar a form a com o usará o dia do sábado no desem penho dessa missão; nessa obra, o Senhor anuncia a chegada do “bem ” últim o da hum anidade, sim bolizado na dádiva do descanso sabático. 3:1-6 / Esta é a últim a das cinco histórias que envolvem conflito, iniciadas em 2:1 e encerradas em 3:6. Esta narrativa tenciona ser o clím ax da série, encerrando-se com a referência à conspiração para m atar Jesus (3:6). A sem elhança da história anterior, esta se refere à regulam entação do sábado, e à autoridade de Jesus para violá-la no desem penho de seu m inistério. N a história precedente, foram as ações dos discípulos que suscitaram críticas. Aqui, são as ações de Jesus que estão no centro da controvérsia. O am biente da história é a sinagoga (veja nota); a declara­ ção de que outra vez entrou na sinagoga nos traz à m em ória a prim eira m enção de um a sinagoga em 1:21-27, a prim eira história acerca do m inistério de Jesus. A sinagoga — a instituição religiosa ju d a ic a m ais

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freqüentem ente encontrada tanto nos tem pos antigos com o nos nossos dias — é utilizada com o o am biente desta história. Eis o Senhor desa­ fiando a religião de seu tem po com suas afirmações, reivindicações e m ensagem . E sta história, que gira em torno de uma controvérsia, diz respeito a um hom em que tinha um a das m ãos ressequida (mão paralisada, veja nota). O relato m ostra a sim plicidade que caracterizava as curas de Jesus. A literatura do m undo antigo fornece num erosos exem plos de curandei­ ros e exorcistas que, em geral, em pregavam processos elaborados, in­ cluindo encantam entos, ruídos fortes, odores pungentes e outras “técni­ cas” de natureza sem i-m ágica. Aqui, Jesus de m odo simples m anda que o hom em estenda seu braço, pelo que sua mão fica restaurada; esse tipo de relato parece ter o propósito de dem onstrar a trem enda autoridade de Jesus que, à sem elhança de Deus, no relato da Criação, em Gênesis 1, só precisa falar a fim de produzir m ilagres. Todavia, o significado desta cura se vê com m aior am plitude se entender-se que, de acordo com a lei do A T (Levítico 21:16-24), os aleijados, deficientes físicos, leprosos e outros eram proibidos de entrar no tem plo e, por isso, não podiam participar de m odo integral da vida religiosa de seu povo. Portanto, curar um a pessoa nessas condições era conceder-lhe tanto saúde quanto acei­ tação religiosa e social. A principal questão nesta história, entretanto, é se Jesus estaria agindo com propriedade ao curar em dia de sábado. Este tipo de questionam ento pode parecer bem estranho ao hom em de nossos dias, acostum ado a tratar todos os dias da semana da m esm a forma; todavia, basta a m enção desse ponto para termos um indício claro de com o a observância escrupulosa do dia de sábado era im portantíssim a para os fariseus e outros judeus dedicados. A questão do que era absolutam ente necessário e que ativi­ dades eram legítim as, no sábado, já era um ponto que envolvia grande discussão. Parece que se havia chegado a um acordo, pelo qual a circuncisão dos meninos podia ser praticada no sábado, quando neces­ sário, a fim de cum prir-se o m andam ento que determ inava seu cum pri­ m ento no oitavo dia após o nascim ento do bebê (Levítico 12:1-3). Além disso, parece que os fariseus haviam perm itido que se pudesse salvar a vida de um a pessoa ou anim al, quando em perigo, no sábado (cp. M ateus 12:11-12 e Lucas 14:5), m as a com unidade judaica religiosa, que se nos tornou conhecida m ediante os assim cham ados rolos do m ar M orto,

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proibia até m esm o este tipo de atividade. Nas circunstâncias deste incidente, a vida daquele hom em não estava em perigo, de m odo que se apresenta a escrupulosa questão da legitim idade de curá-lo no sábado e, assim , quebrar o m andam ento sobre o dia de descanso. Precisam os estar alertas, de m odo que saibam os entender o desafio de Jesus aos críticos da sinagoga não com o simples levantam ento de um princípio abstrato (3:4). É certo que, com toda probabilidade, a pergunta feita por Jesus em erge parcialm ente do contexto das discussões descritas acima, referentes ao salvam ento de um ser hum ano, ou de um anim al, no sábado. Todavia, mais ainda do que isso, o m inistério e a m ensagem prem entes de Jesus, a respeito do reino de Deus que se aproxim a, constituem o contexto im ediato desta história. M arcos 3:1-2 dá a enten­ der que os críticos do Senhor já suspeitavam do que ele estava prestes a fazer (veja nota), e os evangelhos contêm outros relatos sobre as curas em dia de sábado, realizadas por Jesus (Lucas 14:1-6; 13:10-17; João 5:2-18: 7:22-24; 9:1-17), os quais nos induzem a suspeitar de que Jesus, de m odo deliberado, curou aos sábados, com o sinal da superior im por­ tância de suas palavras. Dito de outra forma, a cura que Jesus praticava aos sábados conectava seus m ilagres com um determ inado dia que sim bolizava, para os antigos judeus, o futuro reino de Deus, em que cessaria a escravidão, em que a alegria das celebrações m essiânicas se instalaria (veja nota). Portanto, as curas sabáticas de Jesus deveriam ser interpretadas com o am ostras, ou sinais sim bólicos do reino que o Senhor anunciava com m áxim a confiança. Acrescente-se ainda, é evidente, que o fato de Jesus curar no sábado forçava as pessoas a tom ar um a decisão quanto às suas obras e mensagem : se ele não houvesse sido cham ado por Deus a fim de anunciar a chegada do reino, e se ele não era o que suas curas sabáticas m anifestavam , com provando ser ele quem afirm ava ser, Jesus seria um violador do sábado. Fosse qual fosse a decisão, Jesus não poderia ser indiciado, ou fichado, com o outro reles curandeiro religioso, inofensivo. Esta alternativa o Senhor a elim inou, m ediante a form a como conduzia suas curas, transform ando-as em processo legal. N a verdade, de certo ponto de vista, tudo que Jesus estava fazendo resum ia-se em ajudar um hom em ; entretanto, o ponto nevrálgico para Jesus, em 3:4, não era que as pessoas devem ter liberdade para prestar auxílio m édico até m esm o nos dias religiosos santos. M uito m ais do que isso, a questão levantada pelo Senhor constitui um desafio a seu auditó­

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rio: que decida se o m odo com o ele tratava o sábado, com o dia próprio para cuidar de seu ministério, é bom ou mau. Essa é a razão por que seus críticos reagem com recusa mal hum orada em responder (3:4b-5). A verdadeira questão não é o princípio da ajuda hum anitária no sábado, mas a validade da m ensagem de Jesus, e das vindicações im plícitas sobre sua Pessoa. A referência de M arcos a seus críticos (3:5), à dureza do seu coração (veja nota) descreve-os em term os usados no AT, que sem pre têm conotação de desobediência à revelação de Deus. Assim, tanto o signi­ ficado do acontecim ento com o a reação deles se tom am mais claros. Não existe m ero desacordo, mas (a tradução é literal) “dureza de coração” contra a revelação de Deus, contra a voz profética divina que lhes vem m ediante Jesus. A conspiração assassina de 3:6 envolve um conluio entre fariseus e herodianos (veja nota), com binação bastante estranha. Pode referir-se a um a tram óia engendrada para que Herodes Antipas (governador da Galiléia) viesse a prender Jesus, com o envolvim ento dos fariseus, que acusariam Jesus. Isto nos parece um tanto estranho, entretanto, porque noutra passagem lemos que os fariseus advertiram Jesus quanto ao desejo de Herodes em prendê-lo (Lucas 13:31). Seja qual for a explicação histórica, a intriga funciona, nesta narrativa de M arcos, tanto com o indicação súbita da natureza severa da crise que Jesus trouxera ao judaísm o de seus dias, quanto com o previsão serena da crucificação que o aguardava. Nas cinco histórias de conflito, de 2:1-3:6, M arcos descreve os prin­ cipais pontos da controvérsia entre Jesus e seus adversários, e esses debates confirm am a im portância do Senhor. Ele é apresentado a seus leitores com o estando autorizado a perdoar pecados e a dar boas vindas até m esm o a grandes pecadores, recebendo-os à com unhão fraterna (2:1-17). Tanto ele quanto seus seguidores estão livres para desprezar convenções religiosas na execução da m issão que lhes foi proposta; a obediência ao seu com ando é m ais im portante do que a observância da lei religiosa judaica (2:18-3:6). Atentando para este ponto da narrativa, já ficam os sabendo que a m ensagem de Jesus exige decisão, nas questões de m aior im portância, e provoca um a crise que envolve todos os que o ouvem.

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Notas Adicionais # 4 2:18 / jejuando: esta prática é bem documentada no AT como expressão de tristeza e arrependimento (veja 2 Samuel 1:12; 12:21-23); não parece que se praticava segundo um esquema regular, demarcado, mas apenas quando a ocasião o exigia. No tempo de Jesus, fariseus e outras pessoas jejuavam com regularidade, como sinal de devoção religiosa à lei de Deus (veja Lucas 18:12). Há, também, ampla evidência da prática do jejum entre os primitivos cristãos (veja Atos 13:2-3; 14:23; 2 Coríntios 6:5; 11:27). Repetindo, não parece que jejuar era prática regular, planejada, mas algo que se fazia quando se considerava adequado. Em Marcos, além da passagem em pauta, há outra referência ao jejum em alguns manuscritos, em 9:29, onde as palavras “ e jejum” aparecem depois de “ oração” . Sem dúvida, trata-se de inserção posterior, razão por que só aparece em nota marginal, na tradução de NIV deste versículo. Portanto, a única referência genuína a cristãos que jejuam em Marcos é 2:20, que aparentemente se refere à tristeza dos discípulos ante a crucificação de Jesus. Deve-se entender o jejum no contexto da ênfase de Marcos em alimentos e no ato de comer. Nesse Evangelho, Jesus é retratado concedendo aos pecadores participação no reino de Deus mediante as refeições com o Senhor (2:15-17); “ pão” é símbolo do ministério de Jesus (7:27-28); dois milagres de multiplicação de pães são narrados (6:30-44; 8:1-10), e tudo isto sugere que o autor apresenta o ministério de Jesus como ocasião propícia para comer o “ pão” da salvação de Deus, e que ele usa o jejum como símbolo da esterilidade e da tristeza daqueles que deixam de reconhecer a aproximação do reino de Deus. Veja “ Fasting” , IDB, vol. 2, pp. 241-44). 2:19 / convidados para o casamento... com eles o noivo: esta imagem de festa de casamento pode ter raízes na descrição do AT do relacionamento de Israel com Deus, como se fora um casamento (veja Jeremias 3:1-14; Ezequiel 16:1-62; Oséias). Mantendo coerência com essa imagem, os pecados de Israel eram vistos pelos profetas como adultério, e o exílio na Babilônia (cerca de 586-450 a .C.) como o divórcio. Todavia, sustentaram a esperança de uma renovação das misericórdias de Deus e o restabelecimento da comunhão. Tal reconciliação foi realizada parcialmente, segundo se crê, na volta da nação do exílio (no quinto século antes de Cristo); todavia, na época de Jesus ainda estava fervendo a esperança de uma demonstração mais rica do poder de Deus em prol da nação. Quando Jesus utilizou a imagem de uma festa de casamento a fim de simbolizar seu ministério terreno, tal imagem poderia objetivar não só a alegria, mas de modo específico, representaria a esperança dos profetas sendo concreti­ zada. Essa imagem de festa de casamento ligada ao reino, também aparece em Mateus 22:1-14; 25:1-13. Em Apocalipse 19:7-9 a vitória final de Cristo, e sua união eterna com seus santos é assemelhada a uma festa nupcial, demonstrando como essa imagem do AT foi transferida para as esperanças cristãs. 2:23 / sábado: é o sétimo dia da semana. Segundo o método judaico de

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cálculo dos dias da semana, o dia se inicia com a aurora, de modo que o dia de descanso começa na sexta-feira ao pôr-do-sol e termina ao pôr-do-sol do sábado. O mandamento para que se guarde o sábado, mediante repouso de todo trabalho, faz parte dos dez mandamentos (Êxodo 20:8-11) e, à época de Jesus, tornara-se um dos símbolos mais importantes de obediência à lei de Deus, e de lealdade ao povo israelita. Uma punição severa estava prescrita para a violação do sábado — a pena de morte (Êxodo 31:12-17:35:1-3)! Conquanto a pena de morte pela quebra do sábado não se aplicasse nos dias de Jesus, a controvérsia em pauta não girava em torno de uma questiúncula, mas de um mandamento de crucial importância vindo de Deus. Para todos quantos reverenciam o AT, a ação de Jesus não pode ser aceita sem que se aceite também o significado do próprio Jesus, como o portador divino do reino de Deus e, portanto, Senhor do sábado. 2:25 / Davi: foi o grande rei do antigo Israel, e ascendente do rei ideal, tão esperado (o Messias), prenunciado pelo AT (veja Jeremias 22:4; Ezequiel 34:23-24; 37:24-25). Em Marcos 11:6-10 Jesus é louvado como o que restaura o reinado de Davi e em 10:46-48 é chamado “Filho de Davi”. Em 12:35-37, Jesus aparentemente questiona a validade, ou seja, a adequação do termo “filho de Davi”, como descrição do Messias; mas por todo o Evangelho de Marcos é Jesus apresentado como o Messias, ou o “Cristo” (1:1). Assim, a referência aqui a Davi talvez signifique não apenas que Jesus está numa situação semelhante à de Davi, mas também que Jesus deve ser visto como um novo e ainda maior “Davi”. Em suma, a referência a Davi é um indício da posição messiânica de Jesus. 2:26 / no tempo de Abiatar, sumo sacerdote: temos aqui um problema, porque 1 Samuel 21:1-6 diz que foi Abimeleque o sumo sacerdote que deu a Davi os pães sagrados. E possível que o relato de Marcos esteja confuso aqui, visto que não é fácil seguir o próprio AT em suas referências a Abiatar e Abimeleque. Em 1 Samuel 22:20, Abiatar é descrito como filho de Abimeleque, enquanto 2 Samuel 8:17 e 1 Crônicas 24:6 referem-se a um Abimeleque que é filho de Abiatar, e sacerdote sob Davi. Noutra passagem, Abiatar é mencionado como sacerdote de Davi ao lado de Zadoque (2 Samuel 15:16-29, 35-37; 20:23-26; cp. 1 Reis 2:26-27, 35). As passagens paralelas de Mateus 12:1-8 e Lucas 6:1-5 omitem essa referência a Abiatar, como também o fazem alguns poucos manuscritos de Marcos — neste caso, sem dúvida, porque sua menção parecia incorreta e embaraçadora, para alguns escribas. É possível que a frase grega traduzida aqui por no tempo de Abiatar, sumo sacerdote signifique apenas, “no tempo de Abiatar [posteriormente] sumo sacerdote”, e não que Abiatar fosse o sumo sacerdote à época do incidente. pães da proposição: é o pão sagrado (lit.: “pão da presença”) que devia ser preparado para o santuário e colocado numa mesa sagrada, constituindo alimen­ to aos sacerdotes, e só para eles (Êxodo 25:30; Números 4:7). deu também aos que com ele estavam: a analogia, aqui, estende-se além

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de Jesus e de Davi, de modo que inclui os discípulos do Senhor também. Noutras palavras, a questão inclui Jesus e também as ações de seus discípulos que lhe compartilham a missão, em seu nome. Aqui, Jesus lhes defende as ações ao dizer que ele, à semelhança de Davi, está autorizado a envolver seus seguidores em suas ações controvertidas. De novo precisamos presumir que esse fato era interpretado pelos primitivos cristãos como justificativa para o Senhor e seus discípulos desincumbir-se da missão, ainda que isso representasse violação do sábado. 2:28 / Filho do homem: é a segunda vez que essa expressão é empregada (cp. 2:10 e os comentários, e a nota sobre esse versículo). Aqui também esse termo deve ser interpretado como sendo contraste proposital com a autoridade da Pessoa a quem se refere. Este “mero ser humano” é Senhor até do sábado. Senhor: este termo, no hebraico, aramaico e no grego pode ser empregado com o sentido simples de “senhor, dono, patrão” e também como título de Deus. É certo que foi usado pelos primitivos cristãos como título de Jesus, com todas as conotações de reverência a um semi-deus, ou quase-deus (veja Romanos 10:9; 1 Coríntios 8:6; Filipenses 2:9-11; João 20:28). A questão agora é se devemos interpretar o termo em Marcos 2:28 no sentido completo da devoção cristã, ou no sentido mais genérico de “aquele que comanda”. O fato de a palavra ser grafada com inicial maiúscula, pelos tradutores, implica que a tomaram em seu sentido integral, o que com certeza está certo, no que concerne à interpretação que lhe davam os primitivos cristãos. Se devemos entender que o próprio Jesus é quem usa esse termo, desta maneira, sobre sua própria Pessoa, ou que toda a passagem de 2:28 deve ser interpretada como outro comentário editorial de Marcos (veja 3:30; 5:8; 7:3-4; 13:14b), objetivando ajudar o leitor a ver o significado das ações de Jesus. Estou inclinado a crer que esta última alternativa é a mais provável. 3:1 / na sinagoga: pode implicar a mesma sinagoga mencionada em 1:21, não porém necessariamente. Observe-se que o artigo defino a (em + a = na) não existe nos melhores manuscritos gregos, podendo ter sido introduzido pelos escribas. Dessa maneira, estariam fazendo ligação entre esta sinagoga e a de 1:21, embora o autor talvez não tenha pretendido tal conexão. (Quanto a sinagogas, veja nota sobre 1:21). uma das mãos ressequida: talvez signifique mão em que não há força, movimento, “vida”; “paralítica” (cp. GNB) seria boa tradução. Antes desse, há o relato do paralítico, em 2:1-12, que parece sofrer de uma paralisia pior. 3:2 / Quanto a sábado, veja a nota em 1:21. No paralelo de Mateus 12:10, os críticos interrogam a Jesus de modo direto, sobre a cura no sábado. 3:5 / com indignação, e condoendo-se: esta é a única referência direta a Jesus indignado, irado, embora haja indicações de que Marcos estivesse refe­ rindo-se à ira de Jesus em 1:41 (veja nota ali). Noutra passagem, Marcos se refere a Jesus admoestando seus discípulos (8:33), que também poderia indicar

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alguns sentimentos ferventes; e as palavras contundentes contra os fariseus (7:6-8; cp. Mateus 23:13-39) parecem também refletir fortes emoções. A frase traduzida por condoendo-se talvez signifique que o Senhor ficou triste, ou muito desapontado e magoado pela atitude maldosa daqueles homens. dureza do seu coração: Jesus estava perturbado à face da literal “dureza de coração” daqueles homens. E provável que esse termo tenha sido tomado de empréstimo de passagens como Êxodo 7:14,22; 8:19; 9:35, onde se empregam termos equivalentes a fim de descrever a resistência de Faraó à exigência de Moisés que Israel fosse libertado. Ao usar essa linguagem, Marcos faz que os críticos de Jesus se assemelhem ao Faraó. O termo reaparece em 6:52 e 8:17, para descrever os próprios discípulos, a quem faltou percepção para reconhecer Jesus. Termos semelhantes aparecem em 10:5 e 16:14 (veja comentários sobre estes versículos). O emprego desta expressão, influenciado pelo AT, demonstra que Marcos desejava descrever o desprezo devotado a Jèsus em termos bastante sérios, como desobediência à revelação de Deus, e não apenas como inocente incompreensão. 3:6 / Pouco se sabe a respeito desse grupo a que Marcos se refere com a designação de herodianos, além das referências do Evangelho. Noutra passa­ gem, reaparecem apenas reíacionados à questão cfe pagar-se impostos a César (12:13 e Mateus 22:16; veja também nota sobre Mai-cos 8:15); parece que apoiavam a dinastia herodiana, ou os membros da corte, ou os funcionários civis de Herodes Antipas. Dão a impressão de ser mais um grupo político do que uma agremiação religiosa.

5 . 0 Ministério Amplia-se (Marcos 3:7-19)

3:7-12 / Esta passagem do Evangelho relata um episódio do m inistério de Jesus perante um a m ultidão no lago da G aliléia (veja nota) e oferecenos um dos vários resumos do m inistério de Jesus nessa área (3:11-12; cp. 1:39; 4:33-34; 6:6,56). Esta passagem funciona com o transição entre a coleção precedente de histórias em que há conflito (2:1-3:6) e nova seção, da qual se poderia dizer que se estende até 6:6 (em que Jesus é rejeitado em Nazaré), ou m esm o até 8:30 (a confissão em C esaréia de Filipe). A seção 3:7-6:6 retrata Jesus ensinando (veja 4:1-34) e operando m ilagres em am biente gentio (5:1-20) e judeu (5:21-43), e term ina com a rejeição do Senhor pelo povo de N azaré (6:1-6). Parece que esta seção objetiva fornecer mais exemplos tirados do m inistério de Jesus, e mais indicações dos efeitos polarizantes que tal m inistério exercia sobre as pessoas que o testem unhavam . Antes (1:45), ficam os sabendo da fam a crescente de Jesus; agora, porém, M arcos pinta um quadro com cenas de pessoas de vários lugares (veja notas) a fim de m ostrar os resultados dessa fama. As obras de Jesus, sem dúvida prim ordialm ente seus m ilagres (3:8, quão grandes coisas Jesus fazia), m otivavam m uitas pessoas a virem ver o Senhor, incluindo os doentes (3:10). A cena teria sido plena de com oção e frenesi, com o podem facilm ente im aginar as pessoas que gostam de ver noticiários sobre agitações religiosas em países do oriente próximo. Considerando o Senhor com o um hom em santo, detentor de poderes de cura, os doentes lutavam por conseguir tocá-lo, na esperança de que um simples toque de tal pessoa pudesse curá-los. (Observe o caso bem conhecido da m ulher hem orrági­ ca, 5:25-34). A m enção de um barquinho em 3:9 é a prim eira de várias referências a um barco que Jesus usou, em seu m inistério (veja nota). O barco serve com o veículo para a retirada de Jesus e seus discípulos ou com o plata­ forma de segurança, de onde o Senhor podia dirigir-se à m ultidão frenética e perigosa, ou ambos. Esta m enção do perigo potencial da multidão (3:10) sugere que os resultados da crescente notoriedade de Jesus nem sem pre lhe foram benéficos (cp. 1:45; 3:20). A m ultidão é retratada com o estando mais interessada em satisfazer sua curiosidade e

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necessidades físicas; poucos são os que desejam tornar-se verdadeiros discípulos. A referência aos espíritos im undos (3:11-12) mais um a vez m ostra a autoridade de Jesus sobre esses dem ônios, e a recusa do Senhor em aceitar-lhes a aclam ação (cp. 1:23-25, 34). Portanto, tanto a m ultidão quanto os espíritos im undos atestam a im portância de Jesus, m as tam bém dem onstram reações inadequadas perante o Senhor. É bastante significativo o clam or dos demônios: Tu és o Filho de Deus. N outras passagens do Evangelho, só Deus (1:11; 9:7), outros dem ônios (5:7) e o centurião ao pé da cruz chamam Jesus por esse título (15:39). M arcos 1:1 m ais estas referências indicam que Filho de Deus é expressão-chave para explicar o significado de Jesus; entretanto, a passagem em foco m ostra que Jesus rejeita a aclam ação dem oníaca, visto que não provém de fidelidade e de discipulado. Esta ordem para que silenciem é um a dentre v árias ordens sem elhantes dadas a dem ônios (1:25,34), a um leproso (1:44), e aos discípulos (8:30, 9:9), refletindo um dos tem as im portantes de M arcos. Tem havido várias tentativas de interpretar essas ordens para que as pessoas se calem , inclusive a teoria de W. W rede de que se trata de incidentes fictícios, forjados por M arcos a fim de explicar por que Jesus (supostam ente) não teria sido reconhecido com o o M essias durante seu m inistério terreno. A teoria de W rede (“o segredo m essiânico”) não explica o fato de Jesus ter sido crucificado com o pretenso messias (“rei dos judeus”, 14:61-63; 15:2-31, dem onstrando que pelo menos seus inimigos o viram com o algo m ais que apenas um m estre!). Por esta e por outras razões, a presente teoria deve ser rejeitada. Em vez disso, a ênfase na discrição em M arcos liga-se à crucificação e ressurreição de Jesus (9:9; veja os com entários sobre este versículo), parecendo objetivar a dem onstração de que nenhu­ m a proclam ação de Jesus com o o Cristo seria adequada enquanto esses eventos tão decisivos não ocorressem , pois m anifestariam de m odo com pleto o significado da pessoa de Jesus e sua obra. 3:13-19 / Fica bem claro que um a das principais características do E vangelho de M arcos é seu interesse nos doze apóstolos e no tem a do discipulado. M arcos já nos falou do chamado de quatro discípulos (1:14-20) e da controvérsia em torno da conduta dos discípulos de Jesus (2:18-28). O evangelista retratou esses hom ens com o com panheiros íntim os de Jesus, em seu m inistério (1:21,29,36-38; 3:7). Aqui, M arcos

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descreve doze hom ens com o escolhidos por Jesus para um a função especial, pela qual recebem essencialm ente as m esm as atividades do próprio Jesus: pregação e expulsão de dem ônios (v. 15). À m edida que o Evangelho de M arcos prossegue, verem os que tais hom ens com fre­ qüência são retratados sob um a luz surpreendentem ente desfavorável (veja 4:10, 35-41; 6:45-52; 7:17-19; 8:14-21, 31-33). A lguns eruditos têm argum entado que M arcos apresenta os doze apenas com o exem plos de com o os discípulos ou os representantes dos cristãos não devem com portar-se. T al interpretação, contudo, não faz justiça a tudo quanto M arcos diz a respeito desses hom ens; e a fim de antecipar nosso estudo do resto do livro, parece-nos que ficarem os m ais próxim os da verdade se disserm os que M arcos nos apresenta os doze sob um a luz am bivalente, com o indivíduos que, a despeito de suas próprias fraquezas, foram escolhidos por Jesus a fim de serem os alicerces da igreja. (Estarem os dando atenção à questão de com o M arcos apresenta os discípulos, mais tarde, em certos pontos, à m edida que aparecerem no texto.) N a passagem em foco, Jesus é retratado subindo a um m onte (trad. lit.). É razoável adm itir que este am biente vem a propósito, com o indício de que a nom eação dos doze é um evento im portante, que revela algo a respeito da m issão de Jesus. Os autores dos evangelhos com freqüência utilizam um am biente m ontanhoso para certos eventos que constituem revelações im portantes (veja nota). A lém disso, o fato de serem doze os escolhidos parece ter com o explicação a im portância sim bólica desse núm ero no AT. H ouve doze filhos de Jacó que foram os pais das doze tribos que form aram o antigo Israel (veja Gênesis 35:22-26; 49:28; Êxodo 28:21), e noutra passagem (M ateus 19:28) o Senhor prom ete aos doze um a função de liderança no seio do futuro povo de D eus. A escolha de doze objetiva, portanto, retratar Jesus com o o fundador de um Israel reconstituído. Portanto, Jesus e os doze se distinguem com o algo mais do que apenas m ais um mestre e seus discípulos. Este evento é narrado, não m eram ente com o m inúcia histórica, mas com o passo im portante na preparação para a vinda do reino de Deus, no qual os discípulos escolhidos surgem com o príncipes potenciais. (A pergunta feita pelos discípulos em 10:35-37 torna-se m ais inteligível sob esta luz; cp. tam bém 10:28-31). Seja qual for a conclusão a que chegarm os, com respeito à apresenta­ ção que M arcos faz dos doze, fica bem claro que ele os via de modo coletivo, com o grupo especial da igreja prim itiva, em seu prim órdios

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(veja nota); M arcos dem onstra pelo menos que está fam iliarizado com esta tradição. A luz dessa im portância atribuída aos doze, é natural que se inclua um a lista de nom es, ainda que alguns desses nomes não venham a receber atenção especial noutras passagens deste Evangelho. As listas de nom es dos vários evangelhos (veja nota) apresentam variações curio­ sas (cp. M ateus 10:1-4; Lucas 6:12-16), mas algumas das pessoas indi­ cadas têm significado especial em todas as listas. Lugar de honra é o ocupado por Pedro, cujo nome prim itivo era Simão. A palavra grega petros, traduzida por Pedro aqui, significa “rocha” , sendo tradução de palavra aramaica, cephas (“rocha”), que foi a palavra usada por Jesus, retida noutras passagens do NT (cp. João 1:42; 1 Coríntios 1:12; 3:22; 9:5; 15:5; Gálatas 2:9). A fam osa declaração de M ateus 16:18 constitui um trocadilho com o sentido do nom e de Pedro. Em M arcos, com o nos dem ais evangelhos, Pedro é tratado com o o líder, ou porta-voz dos doze, sendo a personagem mais familiar, depois de Jesus, perante os leitores destas narrativas. Há m uitas outras coisas que direm os sobre Pedro, mais tarde. Tiago e João, os irm ãos, filhos de Zebedeu, tam bém são im portantes, e já foram m encionados antes (1:19-20); reaparecem num a espécie de círculo íntim o ao lado de Pedro (cp. 5:37; 9:2; 14:33, e nota sobre 3:16). Tam bém se diz deles que receberam um novo nom e (seria um apelido?) que Jesus lhes deu: Boanerges, que M arcos traduz com o filhos do trovão (o term o hebraico ou aram aico traduzido aqui ainda é assunto de controvérsia entre os eruditos). Infelizm ente, nenhum a explicação nos é dada para este term o intrigante, em bora isto não tenha im pedido os com entaristas de apresentarem suas especulações, com o a que inform a que esses dois possuíam um gênio forte. Tal sugestão deve ser conside­ rada com m uita cautela. É igualm ente possível que trovão seja sím bolo do surgim ento do reino de Deus (trovões, terrem otos, etc., são m encio­ nados no AT em conexão com as manifestações do poder de Deus, veja Ê xodo 19:16; 1 Samuel 7:10; Salmo 104:7; Isaías 29:6; tam bém A poca­ lipse 4:5; 8:5; 11:19). Se assim for, estes dois irm ãos estariam sendo descritos com o apoiadores ou participantes dos eventos do m inistério de Jesus, m inistério retratado com o m anifestação divina e antecipação do reino de Deus que está para chegar. Outro discípulo que aparece de modo preem inente no Evangelho é Judas Iscariotes, que o traiu (v. 19). M uitas perguntas surgem natural­

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mente pela sim ples m enção de seu nome. Para com eçar, não ficou bem claro o que significa Iscariotes: talvez fosse um a região geográfica ou outra coisa qualquer (veja nota). O fato m ais im portante que desejaría­ mos saber: por que um dos discípulos íntim os de Jesus o teria traído, não nos é esclarecido. N enhum a explicação nos é dada nem aqui, nem posteriorm ente, em M arcos, quando a traição é recontada (14:10-11, 43-45, e com entários destes versículos). A única coisa que M arcos deseja enfatizar aqui é esse fato que nos prende a atenção, essa traição horrenda, da parte de um hom em cham ado para ser discípulo, além da conspiração orquestrada pelos críticos de Jesus (3:6). M ediante essa referência a Judas, M arcos torna seu relato do m inistério de Jesus, e das reações que ele despertou, um a história m ais com plexa e arrebatadora. M arcos nos prepara para um a história que envolve não apenas um a divisão entre os que criticavam e os que apoiavam Jesus, mas tam bém um teste e um a crise para os que se tornaram seus seguidores. O resto da narrativa nos m ostrará de que modo M arcos enfatizará este últim o ponto.

Notas Adicionais # 5 3:7 / mar: (ou seja: mar da Galiléia). E um lago enorme, formado por águas que desciam das montanhas ao norte, como o monte Hermom. Esse lago mede cerca de 20 quilômetros de norte ao sul, e cerca de 10 quilômetros de leste a oeste, e está localizado numa bacia profunda, a cerca de 200 metros abaixo do nível do mar. O rio Jordão parte do lado sul, na direção do mar Morto. Há uma planície na praia ocidental que varia na largura, e rochedos imponentes no lado oriental. Nessa planície, no tempo de Jesus, havia cidades florescentes — Cafarnaum, Betsaida, Tiberíades — em algumas das quais Jesus ministrou com certa freqüência. Era um lago piscoso, rico em peixes, e sustentava um próspero comércio de exportação. (Veja IDB, vol. 2, pp. 348-50). Galiléia: era um distrito ao norte da Palestina, governado por Herodes Antipas, descendente de Herodes, o Grande, durante o ministério de Jesus. A Galiléia era e ainda é uma área rica para a agricultura. Judéia: era a parte sul da Palestina judaica, montanhosa e mais seca que a Galiléia e, por isso, menos adequada para fazendas. Sua principal cidade era Jerusalém. Era área sob o controle direto dos romanos, tendo um governador (procurador) nomeado por Roma, nos tempos de Jesus. 3:8 / Jerusalém: a cidade sagrada dos judeus e principal cidade da Palestina, onde se localizava o templo. (Veja Joachim Jeremias, Jerusalem in the Time of Jesus [Londres: SCM, 1969], quanto a um estudo minucioso desta cidade nos lempos antigos; IDB, vol. 2, pp. 843-66). Iduméia: esta área ficava ao sul da Judéia do primeiro século, incluindo

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muitos habitantes de ascendência não-judaica, que haviam emigrado de outra área conhecida no AT como Edom. A época da revolta dos judeus contra os selêucidas (168 a.C.-142 a.C.), Judas Macabeu e subseqüentes líderes judeus conduziram campanhas militares nesta área e em cerca de 126 a.C., João Hircano (governador judeu e descendente da família Macabeu) subjugou a área, colocando-a sob Antipater (o avô idumeu de Herodes, o Grande), como gover­ nador responsável perante Hircano, forçando os habitantes a converter-se à religião judaica. dalém do Jordão: esta referência vaga tal vez objetive a área conhecida como Peréia (a Jordânia de nossos dias), no tempo de Jesus, que corresponde grossei­ ramente à Gileade do AT. No início do século primeiro, esta área fazia parte do domínio de Herodes Antipas, sendo ocupada por judeus. de Tiro e de Sidom: ambas as cidades eram, originariamente, portos marí­ timos fenícios e permaneceram, em essência, cidades gentílicas, no tempo de Jesus, conquanto nelas morassem judeus também. A menção da região ao redor dessas cidades sugere que não-judeus vêm a Jesus e, noutra passagem (7:24-31), lemos a história de Jesus curando a filha de uma mulher gentílica, oriunda dessa área. Além disso, em Lucas 10:13-14 e Mateus 11:21-22, Jesus se refere a Tiro e a Sidom de modo favorável, ao compará-las a algumas cidades israelitas. Sem dúvida, estes povos foram vistos pelos primeiros leitores de Marcos como os precursores gentílicos cristãos, os que prefiguraram a recepção do Evangelho de Cristo pelos gentios na igreja. (Quanto a um contexto histórico, veja “Tyre”, IDB, vol.4, pp. 721-23). 3:9 / um barquinho: sem dúvida tratava-se de uma embarcação lacustre, para pesca, igual aos que pelo menos alguns discípulos estavam acostumados a manejar. Em vários pontos das seguintes narrativas aparece um barco: 4:1-2, 35-41; 5:1-2, 18-21; 6:30-36, 45-56; 8:10-15). O barco era um item tão carac­ terístico nas histórias de Jesus e seus discípulos que sua imagem tornou-se símbolo cristão predileto no começo da comunidade cristã. 3:13 / a um monte: o texto original grego diz “o monte” ou “a colina” (a palavra pode significar ambos). E uma construção gramatical estranha, porque nenhum monte havia sido mencionado antes, em Marcos. Montes ou colinas são locais bem conhecidos, relacionados a revelações divinas e eventos impor­ tantes, na Bíblia. Devemos notar a entrega da lei e da aliança a Israel, por Moisés, como um acontecimento de máxima importância (Êxodo 19:1-25; 20:18-20). Este cenário de Marcos talvez objetive significar que a escolha dos doze representa novo evento na história sagrada da redenção, como a constituição original de Israel, a nação escolhida por Deus. A passagem paralela de Lucas 6:12 descreve Jesus em oração, num monte, antes de escolher os doze; isso tenciona demonstrar com clareza que a escolha dos discípulos fazia parte do plano divino para o ministério de Jesus. Quanto a outros exemplos de aconteci­ mentos, nos evangelhos, relacionados a montes, anote 9:2-9, Mateus 17:1-8 e

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Lucas 9:28-36 (a transfiguração); 13:3-37 e Mateus 24:3-44 (o sermão sobre o futuro); Mateus 5:1 (o sermão do monte); e Mateus 28:16-20 (a grande comis­ são). 3:15 / poder: eis um termo importante em Marcos (cp. 1:22, 27; 2:10; 11:28-33, e comentários sobre esses versículos), pois, está bem claro que uma das ênfases deste Evangelho é que Jesus foi dotado de poder divino, a fim de executar sua obra. Aqui, o fato extraordinário notável é que Jesus confere esse poder aos doze, o que significa que são retratados como cooperadores do Senhor em suas obras, ainda que o poder dos discípulos derive de seu Mestre. Observe, além disso, que Marcos resume esse poder como sendo a autoridade divina sobre os demônios. Já havíamos notado que o primeiro milagre de Jesus, na história de Marcos, é um exorcismo (1:23-26), e que a expulsão de demônios aparece de modo proeminente nos resumos das obras de Jesus (1:34; 3:11). Parece que a derrota dos espíritos imundos significava para Marcos que a obra repre­ sentativa, capaz de sintetizar a autoridade de Jesus, é a natureza do reino de Deus em ação. Apóstolos: é termo que significa “ comissionados” ou “ enviados com uma comissão” . E empregado em Atos com referência aos doze (cp. Atos 1:15-26; 2:43), mas também é usado por Paulo, a fim de autodescrever-se (veja Romanos 1:1) e por outros (1 Coríntios 15:5-7). A partir desta referência, e de outras, ficamos com a impressão de que os apóstolos eram considerados líderes dotados de autoridade especial na igreja (veja 1 Coríntios 9:1-7). A designação dada aqui aos doze, de apóstolos, significa que eles devem ser considerados como tendo sido comissionados de modo especial por Jesus, a fim de operar em seu nome. (Veja “ Apostle” , NIDNTT, vol. 1, pp. 126-39; IDB, vol. 1, pp. 170-72). Observe-se que alguns manuscritos antigos de Marcos não incluem a frase traduzível por “ chamando-os de apóstolos” , que NIV traz em 3:14. E provável que tais palavras tenham sido acrescentadas em alguns manuscritos de Marcos por escribas influenciados pelo relato paralelo de Lucas 6:13. 3:16 / os doze: os quatro evangelhos referem-se ao grupo de doze discípulos como uma espécie de grupo medular. Em inúmeras referências, inclusive as mais antigas (1 Coríntios 15:5, datada de cerca de 51 d.C.), esses discípulos são chamados de “ os doze” (cp. Marcos 4:10; 6:7; 9:35; 10:32; 11:11; 14:10, 20, 43; Atos 6:2), indicando talvez que o grupo de modo coletivo detivesse lugar especial na igreja nascente, do primeiro século (apostólica). As listas paralelas de nomes (Mateus 10:1-4 e Lucas 6:12-16; cp. Atos 1:12-13) apresentam variações curiosas. Além das variações na ordem dos nomes, notamos que um Tadeu, relacionado em Marcos 3:18 e Mateus 10:3, não aparece em Lucas 6:14-16, e que “ Judas, filho de Tiago” desta última passagem, não é mencionado nas passagens paralelas de Marcos e Mateus. E evidente que há especulações em torno de tratar-se da mesma pessoa, mas não podemos ter certeza. O Mateus de 3:18 é descrito em Mateus 10:3 como “ cobrador de impostos” , e parece que

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(Marcos 3:7-19)

é retratado ali como o Mateus de Mateus 9:9, que é chamado de Levi em Marcos 2:14! Teríamos aqui mais um caso de um mesmo homem ter dois nomes diferentes? Alguns nomes são interessantes pelo significado. Bartolomeu significa “filho de Talmai” na língua aramaica (cp. Marcos 10:46, “Bartimeu, o cego, filho de Timeu”). Muitos o têm identificado com o Natanael de João 1:45-49; 21;2, que não é mencionado mais, em parte alguma! Tomé é de origem aramaica, derivado de uma palavra que significa “gêmeo” (João 11:16; 20:24; 21:2 empregam a tradução grega “Dídimo”), mas de quem ele era gêmeo não podemos dizer com certeza. Simão, o de 3:18, é chamado de o Zelote, tradução de uma palavra aramaica que foi transliterada em Marcos como “cananeu” (que não deve confundir-se com “cananita” !). A palavra traduzida por “Zelote” em Lucas 6:15 é tradução literal do termo aramaico para o grego. Este homem poderia ter sido membro de um grupo religioso de resistência, que como tal teria aparecido um pouco depois, lutando para libertar os judeus da tirania romana. Se assim foi, teria havido naquele grupo de discípulos um ex-cobrador de impostos (Mateus/Levi), que trabalhara em prol do governo títere de Roma, Herodes Antipas, e um ex-terrorista religioso, membro da resistência, dedicado a lutar contra esse mesmo governo. Também é possível que a palavra “zelote” seja simples referência à dedicação religiosa desse homem. O Levi de 2:14 é descrito como “filho de Alfeu”, fazendo comque alguns fiquem imaginando se este Levi e Tiago, filho de Alfeu (3:18) seriam irmãos. Entre os doze, Pedro e André (Mateus 10:2 e Lucas 6:14), Tiago e João, filhos de Zebedeu, e talvez Filipe e Bartolomeu (Natanael?), fossem outros pares de irmãos. E Tomé, o “gêmeo”? Seria ele irmão gêmeo de outro discípulo desse grupo dos doze? (No relato apócrifo conhecido como Ato de Tomé, esse apóstolo é descrito como irmão gêmeo de Jesus. Entretanto, a despeito da popularidade desse documento, até mesmo em círculos ortodoxos dos cristãos sírios, esta idéia deve ser considerada amostra peculiar de imaginação piedosa. Quanto a mais informações sobre esse documento, e uma tradução para o inglês, veja E. Hennecke, W. Schneemelcher, New Testament Apocrypha, trad. de R. McL. Wilson [Philadelphia: Westminster, 1965], vol. 2, pp. 425-531). Judas Iscariotes é chamado de filho de Simão Iscariotes, em João 6:71; 13:26, e muitos acham que Iscariotes é transliteração de um termo hebraico que significa “homem de Queriote”, nome de uma aldeia na área chamada Moabe (cp. Jeremias 48:24, 41; Amós 2:2), mas também é o nome de outra aldeia na antiga Iduméia, ao sul de Hebrom (Josué 15:25). (Veja também “Twelve, The”, IDB, vol. 4, p. 179).

6. Críticos, Família e Seguidores (Marcos 3:20-35) 3:20-30 / C onquanto esta passagem esteja separada da passagem seguinte (3:31 -35) em NIV e em EC A, na verdade am bas devem ser lidas juntas, visto term os aqui o que nos parece o prim eiro exem plo da técnica de narrativa usada com freqüência por M arcos: ele inicia um a história e, em seguida, insere outra, antes de term inar a prim eira. Aqui, M arcos com eça contando-nos da fam ília de Jesus, em 3:21 (veja nota); interrom ­ pe a história para falar do conflito de Jesus com certos críticos, a respeito de seus exorcism os, em 3:22-30; e volta à história da fam ília de Jesus, em 3:31-35. (Outros exem plos desta técnica são 5:21-42; 6:7-32; 11:12­ 25). Q uando M arcos une duas histórias desta maneira, parece que ele as vê com o que inter-relacionadas de algum modo; talvez seja esse o caso, aqui. Resum indo-se tudo, há três grupos em 3:20-35: (1) a fam ília de Jesus, que parece não tê-lo entendido, e tenta levá-lo para casa, para um repouso forçado; (2) críticos, que acusam Jesus de ser um feiticeiro ligado a Satanás (Belzebu; veja nota); e (3) os que fazem a vontade de Deus, os quais são tratados de modo generoso, com o a verdadeira “fam ília” de Jesus (3:33-35). Este terceiro grupo não é identificado por nom es, m as a im pressão rem anescente é que com põe os discípulos de Jesus. Assim , o ponto central de 3:20-35 é o contraste entre estas três reações diante do m inistério de Jesus, e a dem onstração de que a terceira é a única correta. Esta terceira reação, que é dem onstrada pelos que se sentam aos pés do Senhor, com o seus discípulos (os que estavam assentados ju n to dele, 3:34) é a obediência à vontade de Deus (v. 35). E digno de nota que em 3:20, os discípulos aparecem ativos, traba­ lhando ao lado de Jesus, e experim entando o preço do m inistério com o Senhor (nem sequer podiam com er), sendo que isto é outra evidência de que Jesus está apontando para eles e afirmando serem sua nova fam ília, em M arcos 3:35. É preciso que nos lem brem os tam bém de que em 3:13-19 os doze nos foram apresentados com o os que com partilham o poder e o m inistério de Jesus. Os acontecim entos de 3:20-35 estão ligados à passagem anterior, às pessoas nom eadas em 3:13-19, com as quais os leitores cristãos de M arcos deveriam identificar-se, porque lhes foi atribuído um relacionam ento com Jesus que transcende e substitui os

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(Marcos 3:20-35)

laços terrenos do Senhor. Voltarem os a este assunto quando tratarm os de 3:31-35, na próxim a seção. Em 3:20-30, Jesus é retratado com seus discípulos sob o peso trem en­ do do m inistério. O local não ficou bem claro (veja nota). Em seguida, os parentes de Jesus (veja nota) vão à sua busca, para prendê-lo, preocu­ pados dem ais. O texto grego aqui não é tão preciso com o o da tradução de N IV ; não está bem claro se foi alguém da própria fam ília de Jesus ou outra pessoa que expressa dúvidas sobre sua sanidade m ental, em bora talvez se trate de sua família. Em anos recentes ouvim os histórias de outras fam ílias que tentaram dissuadir certos m em bros (em geral jovens) de seguir associações religiosas ou políticas de fervor incom um , às vezes à força, propondo o que popularm ente se cham a “desprogram ação”, sob a crença de que aqueles entes queridos passaram por um a “lavagem cerebral” e não são capazes de controlar a própria mente. A preciada sob esta luz, a passagem em foco faz ressoar um a particularidade hum ana com que estam os fam iliarizados. A interrupção desta história com o relato da acusação da parte de alguns escribas parece objetivar a dem onstração de que a atitude da fam ília de Jesus, em bora com preensível em certo sentido, deve ser tom ada com o reação sem elhante à dos críticos do Senhor. Em bora a acusação, “E stá fora de si” (3:21) seja talvez ligeiram ente menos m alévola do que a outra, está possesso de espírito im undo (3:30), M arcos apresenta am bas com o reações erradas diante de Jesus. A acusação feita contra Jesus em 3:22 é que ele é feiticeiro, cujos exorcism os são feitos pelo poder m aligno, acusação que se repete nos evangelhos e noutros textos (veja a nota sobre Belzebu). C ontesta-se, na verdade, o significado do poder e das obras de Jesus. N ão se nega a realidade do milagre, mas a acusação de que são diabólicos nega-os como sinais do poder soberano de Deus. A reação de Jesus é um a série de parábolas rápidas (veja nota) que dem onstram ser ilógico pensar que Satanás daria poderes a Jesus a fim de destruir o próprio Satanás, a saber, o seu reino (m anifestado no hom em possesso de dem ônio; 3:23-27). A últim a parábola (3:27), acerca de apoderar-se dos bens do valente, pode ser alusão a Isaías 49:24-25, em que Deus descreve a salvação futura com o m esm o tipo de im agem . O valente de 3:27 é Satanás, sem dúvida algum a, e o exorcism o feito por Jesus é o saque aos bens dele. Se for válida a alusão, o saque a Satanás tam bém deve ser entendido com o sinal

(Marcos 3:20-35)

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do futuro governo de Deus, prom etido pelos profetas, e sendo exibido agora. Essa conexão entre os exorcism os e o reino de Deus se torna m ais explícita nas passagens paralelas de M ateus 12:28 e Lucas 11:20, m as está em m ira aqui também. A declaração em 3:28-29 faz distinção entre blasfêm ias... contra o Espírito Santo e todos os dem ais pecados: não há perdão para a blasfê­ m ia contra o Espírito Santo. A idéia de um pecado im perdoável tem atorm entado a m ente de pessoas sensíveis por todos os séculos do cristianism o, mas toda essa ansiedade está mal orientada. C om o o contexto deixa bem claro, a advertência de Jesus dirige-se contra os que desprezam sua m ensagem ao cham á-la de satânica (veja esp. 3:30), um a obra bem específica. U m a pessoa que fizesse tal coisa nenhum a preocu­ pação teria a respeito do perdão de Cristo para seu pecado. Portanto, a ansiedade em si, resultante do tem or de que a pessoa tenha com etido algo que a cortou do perdão de Cristo é, ironicam ente, evidência de que a pessoa crê que Cristo foi enviado por Deus, e constitui, assim, prova de que tal pessoa não com eteu o pecado contra o qual o Senhor faz essa advertência. A referência ao Espírito Santo, em 3:29, faz-nos lem brar de que em 1:10 M arcos nos disse que Jesus recebera poder do Espírito Santo, para executar seu m inistério. O ponto central dessa declaração é que é o Espírito Santo, Deus, a fonte dos m ilagres de Jesus. 3:31-35 / Este episódio está diretam ente ligado ao que o precede (3:20-30), com o explicam os nos com entários dessa passagem , sendo tam bém parte de um a seção mais am pla que inclui o cham ado dos doze (3:13-19). Os doze que nos são apresentados em 3:13-19 e, em 3:20-35 ficam em contraste com os “m estres da lei” e com a fam ília de Jesus. Em bora os discípulos falhem de m uitas m aneiras, em episódios p o ste­ riores, aqui aparecem recebendo elogios de Jesus, por causa de su a prontidão em segui-lo. Com o m encionam os antes, os discípulos co n sti­ tuem caracteres grandiosos, em M arcos; o que se diz deles às vezes é positivo e às vezes negativo. Supõe-se que o leitor do Evangelho se identifique com os doze, e supõe-se ainda que aprenda, m ediante o q u e é dito a eles e a respeito deles: os elevados privilégios e deveres q u e desfrutam , e tam bém as dificuldades e tentações que sofrem no discipulado. N a presente passagem , Jesus diz a seus discípulos que eles se tornaram

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(Marcos 3:20-35)

sua verdadeira família. Em bora tenha ficado bem claro que o Senhor se referiu aos doze, a descrição genérica daqueles a quem Jesus elogia olhando em redor para os que estavam assentados ju n to dele (3:34) tem o efeito de deixar o círculo aberto para que outros entrem: portanto, qualquer que fizer a vontade de Deus, esse é m eu irm ão, irm ã e mãe (3:35). Os leitores cristãos devem identificar-se com aqueles que fazem a vontade de Deus, e assim se vêem incluídos entre os que desfrutam da intim idade de Jesus. N ão está declarado neste episódio o que a fam ília de Jesus desejava (3:31); todavia, com o parece que ela foi m encionada em 3:21 tentando buscá-lo, sua intenção aqui deve ser a m esma, sem dúvida. Em outras palavras, esta não é um a visita am istosa de parentes! Tal fato torna a rejeição frontal que Jesus lhes m ove,ao optar pelos seus discípulos, um pouco m ais fácil de ser entendida. H á outras evidências de que Jesus não usufruiu do apoio de sua própria fam ília, durante seu m inistério (veja João 7:1-9). H á a m enção da m ãe de Jesus no m om ento da crucificação, em João 19:25-27, mas pouco se diz que indique a posição pessoal dela, entre os discípulos. Atos 1:14 m enciona M aria, sua mãe, entre os discípulos, após a ressurreição do Senhor; Tiago, seu irmão, é m encio­ nado com o líder da igreja apostólica (veja 1 Coríntios 15:7; Gálatas 1:19; 2:9). N ão há esclarecim entos sobre com o a fam ília de Jesus deixou a incom preensão (e talvez a rejeição) contra Jesus, partindo para a fé e fidelidade. A luz dessa tensão entre Jesus e sua família, as fam osas palavras do Senhor, acerca do discipulado que envolve o custo da própria fam ília do discípulo (M ateus 10:34-39) podem ser vistas com o reflexo de sua própria experiência (veja tam bém Lucas 12:49-53). Em outras palavras, Jesus pode conclam ar as pessoas ao sacrifício porque ele próprio preci­ sou fazê-lo, para cum prir a vocação de Deus. É espantoso que este tratam ento um tanto negativo da fam ília de Jesus houvesse sobrevivido, em vista da veneração da mãe de Jesus, e o elevado respeito generalizado dirigido à sua família, na tradição da igreja, m ais tarde. N a Igreja Católica Rom ana há um a dificuldade especial com respeito às referências à fam ília de Jesus, por causa do dogm a oficial de que M aria perm anecera perpetuam ente virgem , e por isso não gerou outros filhos, além de Jesus (veja nota). É claro que esta inform ação sobre Jesus e sua fam ília não foi preservada por m era curiosidade, m as para

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dem onstrar, pelo exem plo dè Jesus, o alto custo do discipulado — e m ediante suas palavras em 3:35 — as recom pensas.

Notas Adicionais # 6 3:20 / numa casa: a frase em grego, aqui, pode significar que Jesus entrou “numa casa” ou que ele foi “para casa”. Se esta última tradução for a correta, não fica claro se o local onde a história ocorreu é Cafamaum, sede do ministério de Jesus na Galiléia (veja nota sobre 1:21), ou Nazaré, onde o Senhor cresceu e onde sua família talvez morasse. 3:21/ os seus: a frase em grego aqui poderia ser tomada como significando quaisquer pessoas ligadas a Jesus; mas no contexto de 3:31-35, com certeza é referência à família de Jesus. Alguns manuscritos gregos de Marcos contêm variações na redação desta passagem, cujo objetivo seria remover a idéia de que a família de Jesus, ou seus amigos, teriam tentado prendê-lo, julgando-o louco. Tal idéia sem dúvida foi embaraçante para alguns cristãos, durante séculos, quando a reverência pela família de Jesus foi-se tornando proeminente. (Veja também nota sobre seus irmãos e sua mãe, sob 3:31). 3:22 / Belzebu: (grego, Beelzeboul é nome de Satanás, nos evangelhos, talvez derivado de um substantivo antigo designativo de uma divindade cananita (Baalzebul), que significava “senhor do lugar alto”. 2 Reis 1:2-6, 16 faz referência a este deus, que nesta passagem é chamado de Baal-Zebube, que significa “deus das moscas”, talvez um trocadilho com o verdadeiro nome. O nome Belzebu aparece assim grafado nos evangelhos, em traduções para o português, derivado de antigos manuscritos redigidos em siríaco e latim. A acusação de que Jesus era feiticeiro ressoa nas passagens paralelas, em Mateus 12:24 e Lucas 11:15, como também em Mateus 9:34; João 7:20; 8:48, 52; 10:20. A idéia aparece também numa antiga tradição judaica, conhecida como Toledoth Jesu, como interpretação judaica amplamente divulgada de Jesus, até tempos modernos. Deve-se mencionar que no século vinte, de modo especial, tem havido esforços e algum apoio, entre os eruditos judeus, a fim de apresentar Jesus sob uma luz mais favorável. Posso mencionar aqui alguns exemplos, como Martin Buber, Joseph Klausner, G. Vermes, e Samuel Sandmel, dentre outros. 3:23 / Parábolas: esta palavra deriva-se de um termo grego (parabole que significa “comparação” ou “analogia”. Esses recursos de ensino eram bastante utilizados, de modo especial pelos mestres judaicos antigos, sendo característica do estilo didático de Jesus. Marcos 4:1-34 é devotado integralmente a coligir algumas parábolas de Jesus, havendo coletâneas semelhantes em Mateus 13:1­ 52 e Lucas 8:4-18; 10:25-37; 12:13-21; 13:6-30; 15:1-16:31. As parábolas de Jesus abrangem desde enunciados curtos até histórias longas, sendo que destas, algumas se tornaram famosas, com toda certeza como a parábola do bom

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samaritano (Lucas 10:25-37), e a do filho pródigo (Lucas 15:11-32). As pará­ bolas de Jesus geraram enorme esforço devotado a atividades escolásticas, nas últimas décadas. Não há espaço suficiente, aqui, para descrevê-las em minúcias, mas duas principais conclusões foram confirmadas com abundante evidência, por tais pesquisas, e tornaram-se vitais à compreensão das parábolas de Jesus. Primeira conclusão, as parábolas de Jesus estão todas ligadas ao tema central de que Deus iniciou o disparo de seu poder soberano contra o mal, e que o tempo prometido de salvação era chegado. Noutras palavras, as parábolas estão todas conectadas à proclamação de Jesus do reino de Deus (veja 1:14-15); não são meras ilustrações de verdades morais genéricas. Segunda conclusão, as parábolas de Jesus incorporam a própria natureza do ministério do Senhor, no sentido de não serem totalmente óbvias e transparentes, o que contraria a maior parte das ilustrações de sermões ou de aulas. Por isso, as parábolas exigem que o ouvinte ou leitor empregue esforços para chegar ao ponto central; entender seu significado envolve, na verdade, não só esforços mentais, mas também prontidão moral ou espiritual, a fim de aceitar a perspec­ tiva sobre Deus, e sobre o mundo, encarnada nas parábolas. Dizendo a mesma coisa de outra forma, as parábolas desafiam, e procuram provocar o leitor ou ouvinte, de modo que tenha uma reação de arrependimento, ou de rejeição. Por exemplo, as parábolas deste episódio apresentam a afirmação de que os exor­ cismos de Jesus representam o ataque fundamentado em Deus contra Satanás, e isto só pode significar que Jesus é, na realidade, a Pessoa mediante a qual se cumpre a promessa do reino de Deus, e não mais um exorcista ou mero trapaceiro. 3:28 / Na verdade: a frase grega aqui representa uma certeza solene que tem a força de um juramento (lit.: “verdadeiramente eu lhe digo”) e também aparece em 8:12; 9:1,41; 10:15,29; 11:23; 12:43; 13:30; 14:9,18,25,30, e muitas vezes mais nos outros evangelhos também. Normalmente, a palavra “verdadeiramen­ te” (hebraico, ámen) era usada por um judeu em resposta a alguém, para indicar assentimento. Parece que o modo de Jesus usá-la, à guisa de prefácio de alguma declaração importante, é singular, inusitado. (Veja “Amen”, NIDNTT, vol. 1, pp. 97-99). blasfêmias... blasfemarem: Em 2:7, os críticos de Jesus o acusam de blasfêmia, ao perdoar pecados, visto que consideram ser impróprio que um mero homem aja como se fora Deus (veja comentários sobre esta passagem). No relato do julgamento de Jesus (14:63-64), ele é acusado de blasfêmia e por essa razão é condenado à morte. E claro que, para Marcos, essa acusação contra Jesus é errônea; ele mostra aqui Jesus advertindo seus críticos: que não cometam o mesmo pecado de que o acusam, ao desprezar-lhe o poder como sendo demo­ níaco. Do ponto de vista de Marcos, a ironia é que os críticos de Jesus cometeram aquele mesmo pecado pelo qual Jesus foi injustamente condenado. 3:31 / seus irmãos e sua mãe: há referências explícitas às irmãs de Jesus em

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3:35, embora não sejam mencionadas em alguns manuscritos antigos de Marcos. O texto grego NA 6 também traz “irmãs” em 3:32. Marcos 6:1-3 menciona inquestionavelmente as irmãs de Jesus entre os membros de sua família, e dá os nomes de quatro irmãos: Tiago, José, Judas e Simão. A interpretação mais natural dessas referências é entendê-las assim: os pais de Jesus geraram vários filhos. Entretanto, o dogma católico romano e a tradição ortodoxa oriental incluem o ensino de que Maria, a mãe de Jesus, não só era virgem, quando da concepção de Jesus (doutrina aceita pela ala católica, oriental ortodoxa e protestante do cristianismo) como permaneceu virgem perpetuamente, jamais tendo relações sexuais com seu marido; portanto, jamais teve outros filhos além de Jesus. Esta tradição surgiu nos primeiros séculos do cristianismo, quando se desenvolveu a ênfase no ascetismo (celibato, pobreza, etc.) a ponto de constituir um movimento dentro da igreja e, séculos mais tarde, ensino oficial da igreja romana e da ortodoxa. De acordo com o ponto de vista da “virgindade perpétua” de Maria, os irmãos e irmãs de Jesus, nos evangelhos, são interpretados como sendo filhos de José, marido de Maria (Mateus 1:16, 18, e outras passagens), de outro casamento anterior; ou seriam primos de Jesus. Considerando-se de modo particular esta última interpretação, a força da passagem em que Jesus descreve seus seguidores como sua verdadeira família perde-se bastante, visto que comparar os discípulos com primos deixa de ter a mesma força, em comparação a irmãos e irmãs carnais. A decisão final sobre como interpretar as referências sobre a família natural de Jesus depende, é claro, de até que ponto a pessoa se sente constrangida a respeitar as tradições eclesiásticas particulares aqui mencionadas.

7. Ele Falou por Parábolas (Marcos 4:1-34)

4:1-9 / Esta passagem inicia uma longa seção, que vai até 4:34, e trata de parábolas. Entretanto, uma leitura cuidadosa dem onstra que esta passagem não diz respeito a parábolas, apenas, mas tam bém enfoca a necessidade de os doze as entenderem , e sua dificuldade na compreensão. O bserve que esta parábola recebe explicação em 4:13-20, o que não ocorre na m aioria das parábolas nos evangelhos. C onquanto M arcos afirm e (4:34) que Jesus explicou outras parábolas aos discípulos, esta é a única cuja explicação M arcos registrou. Isto, mais o fato que esta parábola é a prim eira da lista, sugere que a história tem significado especial e seja, talvez, a parábola principal representativa das demais para M arcos. Terem os a oportunidade de discutir com mais minúcias o significado desta parábola, quando estiverm os exam inando a explicação dada em 4:13-20. Aqui, basta que façam os apenas algumas observações prelim i­ nares, visto que, de fato, esta passagem precisa ser estudada junto com 4:10-20. Prim eiro, notam os que 4:1 coloca Jesus num cenário sem elhante ao de 3:7-12, em que Jesus ensina na praia do lago da Galiléia, estando o Senhor dentro de um barco. Como observam os antes, só a narrativa de M arcos preocupa-se em m encionar barcos, o que constitui um sim bolis­ mo da com unhão de Jesus com os doze, no m inistério galileu. Segundo, a ação de sem ear aqui é a da agricultura na antiga Palestina: o sem eador cam inha pelo campo, e vai atirando a sem ente ao chão, m anualm ente, sendo a terra em seguida revolvida a fim de enterrá-la. Isso explica por que as sem entes parecem cair por toda a parte. N ão era colocada em sulcos preparados cuidadosam ente, com o se faz na m oderna agricultura; assim, a sem ente que caiu no caminho (4:4), ou no solo rochoso (4:5), ou entre arbustos espinhosos (4:7) não foi colocada nesses locais de propósito, mas ali caiu no processo rudim entar de espalhá-la pela vastidão do campo. E claro, pois, que pouca semente, por com para­ ção, cairia em lugares tão inadequados. Portanto, ainda que m uito espaço seja dedicado ao relacionam ento desses locais problem áticos, isto não im plica que a m aior parte do trabalho do sem eador se tenha perdido.

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Terceiro, é im portante notar que não há na verdade quatro tipos de solo, com o poderia parecer de início, m as apenas dois. H á o solo im produtivo, do qual são m encionados três exem plos, e solo produtivo, do qual tam bém são dados três exem plos (4:8). Os núm eros trinta, sessenta e cem , referem -se a três exem plos de solo produtivo, e indicam a proporção de grãos colhidos em relação ao que foi sem eado no cam po. Estudos da produtividade dos cam pos palestinos, onde se usavam m éto­ dos agriculturais antigos, dem onstram que um a colheita em que o índice m ultiplicador fosse dez seria um a boa colheita, e que a m édia situava-se ao redor de sete e meio. Isto significa que os três núm eros referentes às colheitas, nesta parábola, tencionam m ostrar que houve colheitas sobre­ naturalm ente abundantes, m uito acim a do normal. Tal resultado vem em apoio ao fato estabelecido antes, de que a ênfase não está na quantidade de sem ente perdida, mas na abundante colheita que se obtém . Além disso, esses núm eros tam bém dão indícios de que a colheita sim boliza a atividade divina. Noutras palavras, a produtividade m ilagrosam ente elevada, a superabundância da colheita, está clam ando: “observe com cuidado, esta colheita descreve a obra de D eus” . A declaração final (4:9) confirm a o significado sim bólico da história, advertindo e encorajando os ouvintes a dar atenção séria ao que acabaram de ouvir. Tal declaração reaparece em 4:23, refletindo a ênfase da seção toda nas parábolas (na verdade, a ênfase total de M arcos): a pessoa deve exercer m áxim o cuidado a fim de entender Jesus de modo apropriado. 4:10-12 / Em bora esta passagem nos apresente Jesus dando a interpre­ tação da parábola precedente (4:13-20), M arcos retrata os discípulos interrogando Jesus acerca da parábola. Parece que M arcos tenciona que a declaração de Jesus em 4:11-12 seja um enunciado genérico sobre o em prego de parábolas, pelo Senhor, em seu m inistério. Segundo a declaração de Jesus, faz-se distinção nítida entre os que estão de fora e os discípulos, aos quais é dado saber os m istérios do reino de Deus (4:11). A m esm a divisão se reflete em 4:33-34, em que os discípulos, não o populacho, obtêm explicações. Já salientam os a nota de discrição no relato de M arcos sobre o m inistério de Jesus (veja 1:34, 43-45; 3:12); esta idéia de que os discípulos recebem ensino especial parece relacio­ nar-se a essa questão de segredo. Aos discípulos é dado saber os m istérios do reino de Deus (4:11), c isso parece referir-se não apenas à interpretação de algum as parábolas

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(veja nota), porém, com m aior profundidade, parece indicar que os discípulos foram escolhidos para participar da proclam ação e progresso do reino de Deus. Ficar conhecendo os m istérios não significa apenas receber algum as inform ações teológicas, mas participar da operação secreta da instalação do reino de Deus. O reino de Deus é um mistério não porque nada se diz a seu respeito, mas porque o verdadeiro signifi­ cado do que se diz e se faz em nom e do reino passa despercebido para m uitas pessoas. Nem os próprios discípulos aqui com preendem todo o significado das parábolas (4:10, 13) mas o segredo lhes é revelado. Fica então óbvio que conhecer o segredo corresponde, de modo grosseiro, a ser cham ado para seguir a Jesus e participar de seu ministério. Antes, em 3:33-35, Jesus descreve seus discípulos com o sua verdadeira família; aqui, ei-los que se apossam de outro privilégio positivo. Essa distinção entre os que estão de fora e os que recebem o segredo pode parecer ofensiva aos leitores m odernos, amantes da igualdade de condições para todos, e inim igos de qualquer favoritism o. É preciso que salientem os dois pontos. Prim eiro, a idéia de algum as pessoas serem escolhidas tem raízes na apresentação que o AT faz de Israel com o nação escolhida, e no ensino profético de que Deus escolheria um “rem anes­ cente” de Israel para futura salvação e restauração. Estes tem as do AT e o significado de os discípulos serem escolhidos de modo especial para com partilhar os m istérios, aqui, não quer dizer que algum as pessoas são favorecidas às custas de outras; Deus tenciona m ostrar que há pessoas que servirão de veículos para a execução de seus propósitos. O fato de os discípulos terem sido divinam ente capacitados para participar das atividades do reino de Deus tem o propósito de constituir boas novas e encorajam ento a todos. Ao m esm o tem po, o fato de os m istérios lhes terem sido revelados significa responsabilidades sagradas. Segundo, as palavras aparentem ente severas demais, de 4:12, que dariam a entender à prim eira vista que os que estão de fora foram deixados em confusão de propósito, na verdade não são tão cruéis. São um a alusão a Isaías 6:9-10, em que o profeta é cham ado a proclam ar a m ensagem de Deus ao Israel antigo; aí o profeta é lem brado por Deus de que, em bora sua m ensagem de advertência não seja ouvida e acatada, deve ele proclam á-la, seja com o for. Isaías 6:9-10 é indicação de sobe­ rania e presciência divinas, passagem que objetiva afirm ar que o aparente fracasso do m ensageiro não é com provação de que não foi cham ado por

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Deus. Trata-se de um a declaração com um a pincelada de ironia: o resultado líquido do m inistério do profeta parece ter sido planejado assim , o que não é verdade. Que M arcos 4:12 seja alusão a Isaías 6:9-10 sugere que aqui tam bém há ironia profética. Assim , descrevem -se as parábolas com o incapazes de produzir dis­ cernim ento profundo, visto que esse é o resultado previsto por profecia. D eclarar o resultado das parábolas deste modo irônico sugere que a falta de reação positiva, da parte do populacho, não é algo de que se possa derivar satisfação; ao contrário, é fato lam entável e triste, reflete frustra­ ção, nunca alegria. Vista sob essa luz, a palavra segundo a qual alguns receberam o segredo, é palavra de consolação e encorajam ento. Finalm ente, sem querer antecipar algum as passagens posteriores de M arcos, verem os que em bora o Senhor diga a respeito dos discípulos que receberam acesso especial aos propósitos de Deus, eles m esm os dem ons­ tram percepção pequenina do verdadeiro significado de Jesus, e habili­ dade insignificante para aceitar o que Jesus sabe ser sua trajetória pela rejeição e m orte, segundo a vontade de Deus. 4:13-20 / N esta passagem , Jesus explica a parábola contada em 4:1-9, esclarecendo que sua proclam ação diz respeito ao reino de Deus, e a form a com o é recebida pelos vários tipos de ouvintes. A ntes de dar a explicação da parábola, Jesus com enta a incapacidade dos discípulos em com preendê-la (4:13). Tal com entário é o prim eiro de vários outros em M arcos, que descrevem os próprios discípulos com o sendo lentos na com preensão do que Jesus quer dizer (cp. 4:40-41; 6:51-52; 7:17-19; 8:14-21,31-33; 9:30-32). E interessante o fato de não aparecer nenhum a declaração sem elhante a essa em M ateus 13:16-23 e Lucas 8:11-15, que são passagens paralelas (veja nota). Isso dem onstraria que M arcos parece descrever os discípulos de m aneira um pouco m ais crítica do que os dem ais evangelhos. Todavia, constitui erro tirar a conclusão (como alguns eruditos chegam a fazer) de que M arcos ataca os doze. Tudo quanto se escreveu a respeito dos doze, até este ponto, lhes é favorável, objetivando anim ar os leitores a identificar-se com esses discípulos, pois m ostra-os, digam os assim, com o sendo os prim eiros cristãos. Se M arcos mostra os fracassos desses prim eiros discípulos, é que ele deseja enfati­ zar que a m ensagem de Jesus constitui um trem endo desafio para qualquer pessoa que a ouça, até m esm o para seus seguidores. Parece que o propósito de M arcos é perguntar a seus leitores: “Você tem certeza de

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que entende verdadeiram ente o que você aceitou, a fé que você profes­ sa?” O que sem eia, sem eia a palavra, diz 4:14; entretanto, em 4:15-20 a sem ente sem eada é com parada a vários tipos de pessoas que ouvem a palavra. M arcos cham a a atenção para os vários tipos de solo, os quais sim bolizam as várias circunstâncias que influenciam as pessoas que ouvem a palavra. Alguns eruditos têm proposto que esta parábola seja intitulada parábola dos solos. A explicação do sentido dos vários solos é relativam ente clara. Alguns que recebem a m ensagem com alegria acabam perseguidos (4:16-17). O utros estão escravizados de tal form a a prioridades m ateriais que não conseguem render-se de verdade à m ensagem (4:18-19). O prim eiro grupo, o das pessoas de quem Satanás arrebata a m ensagem , talvez requeira uns com entários. Trata-se de pessoas que, com toda probabili­ dade, nem sequer com eçam a receber a m ensagem propriam ente dita, e já se voltam contra ela, ou a desprezam. A referência a Satanás reflete a opinião de que esta m ensagem a respeito do reino de Deus é ataque contra Satanás e o poder do mal, e que a rejeição da m ensagem é resultado da oposição inspirada por Satanás. Jesus já descreveu seu m inistério com o um ataque contra os dom ínios de Satanás (3:23-27); esta referência a Satanás reforça a idéia de que a batalha não visa apenas às forças terrenas, mas tam bém aos poderes espirituais. As duas principais causas terrenas de fracasso, entre os que não perseveram (4:16-19) são, primeira: perseguição e suas conseqüências e segunda, apego às riquezas e posses. Em vários pontos de M arcos aparecem reiteradas advertências para que estejam os preparados para a perseguição (veja 8:34-38; 10:35-40; 13:9-13), com o tam bém aparecem palavras fortes sobre os perigos do am or às riquezas (10:17-31). M arcos deixa bem claro que deseja advertir seus leitores que a m ensagem de Jesus não é um a pílula fácil de ingerir, nem aconselham ento suave capaz de reanim ar a alguém, m as verdadeira declaração de guerra contra os poderes do mal. Assim, com o ocorre em qualquer guerra, a participação exige que o soldado esteja preparado para enfrentar oposições e sacrifí­ cios. A ênfase na explicação da parábola apresenta duas facetas. Prim eira, há um a descrição das coisas que im pedem a obediência total à m ensagem de Jesus e, segunda, há um a certeza encorajadora de que alguns recebem

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a m ensagem e produzem um a “safra” abundante, vindoura. Isso significa que a parábola reflete de fato a situação do m inistério de Jesus, tendo surgido originalm ente da reflexão sobre com o as pessoas reagem à obra do Senhor. Contagia-nos a excitação do fervente m inistério de Jesus e dos doze, que ainda brilha ao longo dessa história e sua interpretação. 4:21-25 / N estes versículos tem os um a coleção de enunciados cujo tem a unificador seria, segundo parece, a exortação para que se com preen­ da com propriedade a presença de Deus no m inistério de Jesus (4:23,24). Esses enunciados reaparecem nos dem ais evangelhos, em várias passa­ gens, dando indicação de que M arcos talvez tenha redigido o capítulo 4 a partir de vários enunciados de Jesus (veja nota). O sentido de 4:21-23 está relacionado à nota de discrição que ressoa em 4:11, em que o reino de Deus é descrito com o um segredo não desvendado por alguns, com o aparece agora, no m inistério de Jesus. O ponto central desses enunciados é que essa form a atual, escondida, de declaração do reino dá lugar a uma abertura e clareza futuras que seria, talvez, uma referência ao tem po prom etido em que Deus m anifestará de m odo com pleto sua verdade e poder, e quando o m inistério de Jesus será reconhecido com o verdadei­ ram ente o prenúncio do reino de Deus. A tradução que NIV faz de 4:21 requer com entário (veja nota); entretanto, a idéia básica está clara. Assim com o a lâm pada não deve ser recoberta, tam pouco deveria o reino (difícil de ser visto por m uitos no m inistério de Jesus) ser escondido, m as trazido um dia à plena luz. À vista desta prom essa, os ouvintes são instados a entender a verdade contida na m ensagem de Jesus, agora (4:23). Os enunciados de 4:24-25 relacionam -se com reconhecer e receber o reino de Deus no m om ento em que surge no m inistério de Jesus. Assim, 4:24 cham a a atenção para as palavras de Jesus, advertindo que a desobediência e a rejeição de suas palavras induzem a pessoa a ser rejeitada por Deus. O enunciado sem elhante a um enigm a, de 4:25, significa que um a resposta positiva à presente m anifestação do reino, na pessoa de Jesus, capacita o crente a receber mais luz ainda, e as bênçãos da salvação futura, enquanto os que não dem onstram prontidão para reconhecer que Deus opera em Jesus, agora, hão de sofrer rejeição no julgam ento vindouro. 4:26-29 / E sta parábola m ais a seguinte (4:30-32) utilizam a im agem da sem ente e da agricultura, sendo, neste sentido, sem elhantes à parábola

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que abre este capítulo (4:1-9). Não há dúvida de que a palavra sem ente agiu com o recurso de m em ória para os cristãos prim itivos, capacitandoos a fazer um a conexão entre estas parábolas. Ao exam inarm os a parábola de 4:1-9, notam os que com toda proba­ bilidade ela é vista com o parábola de encorajam ento, com ênfase num a colheita incrivelm ente rica. C onquanto a m ultidão possa receber adver­ tência pelo exem plo dos solos m aus, os discípulos deveriam encontrar ânim o para cum prir sua m issão itinerante, sem nenhum atrativo, na certeza de grandes resultados. As parábolas de 4:26-32 de m odo sem e­ lhante têm forte im pacto positivo; talvez tenham sido pronunciadas aos discípulos, de início, para despertar-lhes o moral para a obra. Em 4:26-29, a ênfase está no contraste entre a ação insignificante do sem eador que m eram ente lança sem ente à terra (4:26) e o desenvolvi­ m ento da safra. A sem ente brota e cresce, quer o sem eador durm a, quer faça vigília (4:27), não sabendo ele com o. Um a antiga oração judaica diz: “B endito sejas tu, Senhor, rei do mundo, que trazes pão da terra” , e esta oração reflete a atitude básica de m aravilham ento pelo crescim ento das safras, sentido que está por trás desta parábola. O ponto central de Jesus é que o reino de Deus com eça com a ação aparentem ente insigni­ ficante de “sem eará a m ensagem , term inando, porém , com um a grandio­ sa colheita” . D eus, que propicia a colheita abundante, tam bém propiciará grandes resultados ao m inistério atual de Jesus e seus discípulos. Os leitores cristãos do Evangelho de M arcos, que ainda não viram por si m esm os a grande ceifa, deveriam aplicar a certeza de Jesus em suas próprias vidas e em sua m issão de proclam ar a m ensagem divina. A referência aos vários estágios de crescim ento (a e r v a ... a espiga... o grão cheio na espiga) não diz respeito a estágios no crescim ento da igreja mas apenas enfatiza a m aravilha do resultado m isterioso do trabalho do sem eador, propiciado por Deus. Podem os observar, por fim, que esta é um a das poucas passagens de M arcos que não aparecem nos dem ais evangelhos. 4:30-34 / E sta parábola conclui a lista com um a introdução bem elaborada (4:30). Além disso, há a declaração de conclusão (4:33-34) acerca das parábolas. Todavia, vamos dar um a olhada na própria pará­ bola, antes de estudar este enunciado. O ponto central da parábola é o contraste entre a insignificante sem ente de m ostarda e a planta plenam ente desenvolvida que dela

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resulta, e não o processo envolvido. Portanto, a lição não é que o reino de Deus advém m ediante crescim ento prolongado e quieto, m as antes, em bora m uitos possam pensar que a m anifestação do reino no m inistério de Jesus é insignificante, estão errados, conform e se com provará no dia em que ele surgir em sua plenitude. Os discípulos, para os quais a parábola foi narrada de propósito, deveriam ter confiança em que seu hum ilde m inistério haveria de produzir grandes resultados. A sem elhança de todas as parábolas de Jesus exam inadas neste capítulo, esta estabelece a esperança da futura vindicação do m inistério do Senhor. Com o notam os antes, é im portante entender que a m ensagem e a obra total de Jesus se centralizaram ao redor de sua convicção de que o tem po futuro da salvação divina já despontava em suas atividades, para todos quantos tivessem olhos para vê-la. Estas parábolas devem ser lidas tendo em m ente a excitação e a urgência desta idéia; de outra form a, elas se tornam , para o leitor m oderno, sim ples historietas exóticas com notáveis lições morais. E m 4:33-34, tem os um enunciado resum ido a respeito do uso que Jesus fazia de parábolas, que as descreve com o sua form a característica de ensinar, e que reafirm a o lugar especial ocupado pelos discípulos. As parábolas são definidas com o apropriadas para o nível de entendim ento da m ultidão, o que tende a confirm ar nossa sugestão de que 4:12 deve ser considerado ironia. N a verdade, as parábolas não objetivam confundir o povo, m as são form as veladas de com unicação que exigem ouvido atento, e em penho decidido para entendê-las. Um dos principais tem as de M arcos é que o significado e a im portância de Jesus não seriam realm ente entendidos com clareza, senão após sua crucificação e ressur­ reição. C onsideram -se as parábolas a form a apropriada de ensino durante o período em que o significado integral de Jesus ainda não havia sido dem onstrado e, na verdade, não podia ser dem onstrado.

Notas Adicionais # 7 4:9 / Quem tem ouvidos para ouvir: este enunciado tão parecido com uma fórmula reaparece em 4:23 e em Mateus 11:15; 13:9, 43; Lucas 8:8; 14:35, sendo, pois, uma característica distintiva do modo de Jesus ensinar. Além disso, podemos notar as declarações em 4:12 acerca de a pessoa deixar de ouvir e, por isso, não entender, e em 8:18, acerca de os discípulos terem ouvidos insensíveis. Há, também, dois relatos de Jesus curando surdos, em 7:31-37 e 9:14-29; para Marcos, estes eventos servem não apenas como boas histórias sobre milagres,

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mas também como relatos simbólicos que dramatizam nossa surdez espiritual, que precisa ser curada a fim de percebermos de modo apropriado a mensagem de Jesus. 4:11 / A vós vos é dado saber os mistérios do reino de Deus: uma comparação entre esta passagem e seus paralelos de Mateus 13:11 e Lucas 8:10 suscita algumas observações interessantes. Primeira, a passagem paralela de Mateus 13:11 traz “reino dos céus”, expressão sinônima muito empregada por Mateus. E fato mais importante que tanto Mateus quanto Lucas descrevem os discípulos como pessoas a quem foi dado “conhecer os mistérios do reino”. Noutras palavras, ambos os discípulos referem-se ao fato que os discípulos receberam o “conhecimento” dos “segredos”. Estas pequenas diferenças de vocabulário em relação a Marcos sugerem que Mateus e Lucas estão afirmando simplesmente que aos discípulos foram dadas explicações sobre as parábolas, enquanto que em Marcos, a expressão a vós vos é dado saber os mistérios do reino de Deus sugere uma noção mais ampla: os discípulos teriam participado das operações do reino. 4:12 / para que: esta expressão indica que as parábolas tinham o propósito deliberado de confundir a multidão. No entanto, sugerimos acima que o texto deve ser entendido como envolto em ironia. E expressão que também aparece na passagem paralela de Lucas 8:10, embora Mateus 13:13 dê a entender que as parábolas eram usadas por causa da pequena capacidade de percepção das pessoas. Em todas estas passagens vemos que as parábolas de Jesus não são meros auxílios didáticos, à semelhança de gráficos, diagramas e outros dispo­ sitivos de ensino. Embora as parábolas apresentem o reino de Deus mediante historietas, e como analogias, o reino de Deus que descrevem não se conforma com a expectativa geral, pois fazem que o reino apareça em “segredo”, no ministério de Jesus e seus discípulos. Desse modo, as parábolas são difíceis e desafiadoras porque incorporam uma realidade (de que também dão testemu­ nho) cuja integridade não se reconhece nem se recebe facilmente. 4:13 / não percebeis?: esta pergunta não aparece nas passagens paralelas de Mateus 13:16-23 e Lucas 8:11-15. Em vez disso, em Mateus 13:16-17 há uma expressão positiva a respeito dos privilégios dos discípulos, que também consta de Lucas 10:23-24, e que parece semelhante, em conteúdo, a Marcos 4:11 -12 e seus paralelos (Mateus 13:11 e Lucas 8:10). De modo geral, tanto Mateus como Lucas são menos severos no tratamento que dispensam aos doze. A razão talvez seja que, enquanto Marcos enfatiza o fracasso dos discípulos para que isso sirva de advertência aos seus leitores, os demais autores do Evangelho tinham outras ênfases e propósitos. E menos uma questão de desacordo e mais um caso de diferença nas ênfases editoriais. Todavia, um estudo elaborado dessas diferen­ ças requereria um espaço bem maior do que aquele de que dispomos aqui. 4:21-25 / Estes enunciados aparecem espalhados em várias passagens dos evangelhos (Mateus 5:15 e Lucas 11:33; Mateus 10:26 e Lucas 12:2; Mateus 7:2 e

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Lucas 6:38; Mateus 25:29 e Lucas 19:26; Mateus 13:12 e Lucas 8:16-18). Tudo isso evidencia que as palavras de Jesus foram entesouradas, e empregadas em várias circunstâncias e de várias maneiras, durante a apresentação de seu ministério, pela igreja primitiva. 4:21 / vem a candeia: o texto grego diz literalmente: “Vem alguma vez a candeia”, e visto que parece estranho que se fale de uma candeia que “vem”, NIV traduziu de modo diferente: “Trazeis vós a candeia...” Todavia, é possível que Marcos faça alusão a Jesus como “a candeia” que “vem”. Agora “vem a candeia” um tanto encoberta; mas haverá um dia em que se manifestará abertamente. A candeia usada aqui como figura de linguagem era uma lamparina de barro cujo combustível era o azeite. Tinha uns poucos centímetros de altura e por isso era colocada, em geral, num lugar alto (velador?) de modo que lançasse a luz o mais longe possível, para que tivesse máxima utilidade. debaixo do alqueire, ou da cama: a palavra traduzida por alqueire refere-se a um cesto usado como medida, cuja capacidade volumétrica era de oito litros, mais ou menos. Cama talvez fosse uma espécie de sofá, no qual as pessoas se reclinavam nos banquetes servidos no estilo introduzido pelos gregos. 4:24 / com a medida com que medirdes vos medirão a vós: como indicamos acima, o contexto demonstra que este ditado, enunciado sob a forma aparente de um enigma, é uma advertência para que sejamos cuidadosos e reajamos de modo apropriado à mensagem de Jesus, visto que colheremos as conseqüências. O mesmo enunciado aparece em Mateus 7:1; todavia, o contexto ali indica uma aplicação diferente (veja também Lucas 6:37-38). 4:31-32 / a mais pequena de todas as sementes... a maior de todas as hortaliças: A semente da mostarda freqüentemente era mencionada pelos antigos judeus como símbolo proverbial da pequenez. Há sementes menores ainda, no mundo, mas isso é irrelevante. As palavras de Jesus aqui não constituem lições de botânica, mas reflexos da fala popular. O termo hortaliças significa e engloba as plantas cultivadas, os vegetais em geral, mas a palavra grega não inclui árvores. as aves do céu podem aninhar-se à sua sombra: Tais palavras foram tiradas de passagens do AT (veja Ezequiel 17:23; 31:6; Daniel 4:12). No AT, grandes nações são descritas como grandes árvores; os ninhos dos pássaros em seus ramos são símbolos do desenvolvimento do controle imperial sobre muitos povos. Por causa dessa imagem do AT, alguns eruditos têm sugerido que as aves do céu referem-se à inclusão de muitas nações no futuro reino de Deus. Noutras palavras, a parábola pode ser interpretada como alusão a uma missão de âmbito mundial, e ao crescimento do Evangelho.

8. Poder Sobre o Mar e Sobre os Espíritos (Marcos 4:35-5:20)

4:35-41 / Depois da coleção de parábolas vem esta história que m ostra o poder de Jesus sobre o vento e o mar. A m udança do discurso didático relativam ente calm o para um a tem pestade violenta, e a dem onstração da trem enda autoridade de Jesus sobre as forças da natureza, sacode o leitor com a lem brança de que o Senhor é mais do que um simples m estre de religião. As parábolas constituem serm ões um tanto velados e Jesus falou da presença do reino de Deus nele próprio, com o sendo “m istérios” (4:11), algo “oculto” ou “encoberto” (4:22). N esta história, surge algo que traz o verdadeiro significado de Jesus, num relance rápido, revelando um pouco da grande luz que vai brilhar. E ste incidente tam bém dem onstra que os discípulos, conquanto te­ nham recebido “os mistérios do reino de D eus”, têm seus próprios problem as quanto à percepção clara de quem é Jesus. A pergunta cheia de espanto (4:41), Q u em é este? parece ecoar o espanto da m ultidão em 1:27 e deve ser exam inada ao lado das passagens em que os críticos de Jesus levantaram perguntas a respeito dele (veja 2:7; 3:22). Este tema, “quem é ele?” talvez seja o m aior interesse de M arcos por todo o livro. Só D eus e os dem ônios sabiam a verdade, até a crucificação e ressurrei­ ção. N em m esm o seus discípulos que lhe observam o poder de prim eira mão, conseguem chegar à verdade plena, senão depois desses eventos. M arcos conta a história de m odo que seus leitores possam enxergar o que os discípulos não enxergavam. As ações de Jesus e a linguagem utilizada para descrevê-las com toda certeza aludem a passagens do AT em que o poder de Deus sobre o m ar ficam evidentes (veja Salm o 65:7; 89:9; 106:9; 107:23-32). O ponto central dessas alusões é que Jesus age no poder e autoridade divinos. N a verdade, o Senhor age com o o AT descreve Deus em ação! A maior parte dessas referências ao A T descre­ vem Deus livrando Israel no m ar V erm elho em linguagem poética, ao retratar Deus dando ordens ao mar, com o se este fora um ser vivente (veja Salm o 106:9). Jesus faz o m esm o (4:39), o que sugere que a presença de Jesus é um evento significativo que deve ser entendido com o

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um novo “Ê xodo” , nova salvação e reconstituição do povo de Deus. Olhando para a frente, perceberíam os que este incidente é o prim eiro de outra série de histórias m aravilhosas que se estende até 5:43, seguida pela rejeição de Jesus de N azaré (6:1-6). Nessas histórias m iraculosas, Jesus de modo sucessivo trata dos poderes da natureza (4:35-41), dos dem oníacos (5:1-20), dos doentes (5:21-34) e da morte (5:35-43). C ada história, à sem elhança desta, revela algo a respeito de Jesus aos leitores de M arcòs, de m odo que a rejeição de 6:1-6 torna-se m ais trágica ainda. Devem os notar tam bém que este é um dos dois m ilagres no mar, relatados por M arcos, encontrando-se o segundo em 6:45-52. De m odo sem elhante, os discípulos acabam retratados falhando: não conseguem entender o significado desse milagre. 5:1-20 / As histórias de M arcos sobre as obras de Jesus objetivam não apenas relatar algo a respeito do que Jesus fez mas tam bém dram atizar ou sim bolizar questões de suma im portância. Para entenderm os essas histórias da form a que M arcos tenciona, devemos procurar o que elas sugerem com o sím bolos, o que envolve um a leitura cuidadosa, prestando atenção aos porm enores. A história em foco de modo particular parece sim bolizar verdades im portantes, e m erece atenção especial. A prim eira coisa a notar é onde ocorre esse evento. C onquanto haja algum as divergências nos relatos evangélicos, e em m anuscritos antigos, quanto ao nom e da cidade (Gerasa; à província dos gerasenos, em 5:1, mas veja nota), fica evidente que a história ocorreu na praia oriental do m ar da Galiléia, num a área cham ada D ecápolis (ou, “as D ez C idades” , 5:20 e nota). A im portância desta localidade é que se tratava de área habitada e controlada principalm ente por gentios, no tem po de Jesus. Assim , tem os aqui um a das raras ocasiões em M arcos, em que Jesus deixa as fronteiras de seu próprio país a fim de m inistrar a não-judeus (veja tam bém 7:24-30). Com o Jesus diz mais tarde em M arcos, que o Evan­ gelho deve ser pregado a todas as nações (13:10; 14:9), o interesse de M arcos, pelo m enos em parte é m ostrar Jesus estabelecendo um prece­ dente ao sair de terras judaicas e penetrar em chão gentílico. O utros fatores enquadram -se nesta observação e a corroboram . As referências a um a m anada de porcos (5:11-13) dão a entender que se trata de território gentio, visto que a carne de porco é alim ento proibido pela lei do AT (Levítico 11:1-8). O bserve-se tam bém que o nom e pelo qual o dem oníaco se refere a Deus (5:7), Deus Altíssim o, é em pregado em

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relatos veterotestam entários em que não-judeus se referem a Deus (veja Gênesis 14:17-24; Núm eros 24:16), em que se fala do Deus de Israel num contexto gentílico (com o em Daniel 4:17; 7:18, 22, 25, 27), e em que o Deus de Israel fica em contraste com os deuses de outras nações (veja Salm o 97:9). O utra faceta do relato torna-se mais clara quando presum im os a existência de um am biente gentio. Após ter sido liberto do poder dos espíritos m aus, o ex-dem oníaco recebe um a ordem: vai para tua casa, para os teus, e anuncia-lhes quão grandes coisas o Senhor te fez (5:19). Tal ordem contrasta com a advertência característica de Jesus para que as pessoas curadas fiquem em silêncio, a qual se encontra noutras passagens de M arcos (veja 1:43-44; 5:43; 7:36). Todavia, todas as ordens parà absoluto silêncio eram dirigidas a judeus. Este hom em é gentio, num a área gentia, e deve espalhar a boa-nova a respeito de Jesus. Não há dúvida de que M arcos viu nisto um prenúncio da m issão da igreja a todas as nações, na proclam ação do Evangelho. A história é contada com m uitos porm enores, dando a sugestão que M arcos desejava que seus leitores ponderassem bem no relato a fim de descobrir o que está sim bolizado nele. D escreve-se o pobre hom em com o sendo cativo dos poderes do mal, não podendo contar com nenhum a ajuda hum ana (5:2-4). Além disso, m ora entre sepulcros, “convive” com os m ortos, o que quase faz dele um m orto-vivo, um vegetal hum ano. Tam bém tende à autodestruição (5:5), vivendo em tormento. Tudo isso é um quadro poderoso em que o NT retrata a condição do hom em sem Cristo: m orto espiritualm ente e escravizado pelo maligno (veja Efésios 2:1-3). É claro que a condição de penúria e desam paro desse hom em , e o poderoso ferrolho dos dem ônios dem onstram a grandeza do poder e da autoridade de Jesus. A fantástica conversa entre Jesus e os dem ônios, que afirm am serem m uitos (5:9; veja nota), e o estranho relato da destruição da m anada de porcos sublinham o poder extraordinário contra o qual Jesus se insurgiu. É preciso deixar de lado as perguntas que certas facetas da história suscitam entre os m odernos leitores. O incidente deve ser entendido apenas segundo a intenção de M arcos: dem onstra de modo cabal a m agnitude da autoridade de Jesus. O clam or dos dem ônios, ante a aproxim ação de Jesus, saudando-o com o o Filho de Deus, é com o que um a resposta à pergunta dos

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discípulos, em 4:41: “quem é este?” T rata-se de exem plo de um a questão levantada por M arcos várias vezes: ainda que os seres hum anos não saibam o que fazer de Jesus, tanto a voz de Deus com o a dos dem ônios o dizem ao leitor (cp. 1:11, 24, 34; 3:11; 9:7). Observe tam bém com o 5:19-20 relaciona Jesus ao Senhor, e lhe atribui divina im portância. Resta cuidar da faceta faltante da história: a reação do povo em 5:14-17. Em 5:14, o povo vem ver o que havia acontecido. Prim eira­ mente, M arcos fala desse rapaz, fornecendo algum as m inúcias. Ei-lo vestido e em seu ju ízo perfeito, transform ado em poderosa testem unha do grande evento (5:15). A seguir, M arcos narra o m odo com o as testem unhas descreveram o milagre e, com o que num a reflexão tardia, assim escreve o evangelista: con taram -lh es... acerca dos porcos (5:16). A vista da m aravilhosa libertação desse moço, a destruição da m anada de porcos é apenas incidental, em M arcos, exceto com o indicação do poder destrutivo que Jesus acabara de aniquilar. Entretanto, as pessoas parecem mais aborrecidas (e aqui em erge de novo o hábito de M arcos pela ironia fina) pela perda dos porcos do que alegres pela recuperação do moço, e rogam a Jesus que se vá em bora (5:17). E assim é que o povo, que saíra a fim de ver o que havia acontecido, só viu a perda financeira da propriedade — porcos afogados — deixou de ver o m ilagre vital diante de seus olhos, o testem unho m ilagroso do poder de Jesus. A falta de percepção do povo tam bém se reflete no modo por que M arcos descreve a reação das pessoas à proclam ação do ex-dem oníaco sobre a obra de Jesus (5:20). Com o já observam os (veja os com entários sobre 1:22-27 e 2:12), M arcos descreve de modo característico a reação das pessoas ao m inistério de Jesus: ficam m aravilhadas. Entretanto, em bora esse term o descreva a im pressão que o m inistério de Jesus dava, é o m odo de M arcos descrever um a reação que fica bem longe da fé genuína em Jesus, da percepção real de sua Pessoa (veja nota). Finalm ente, esta história pode ligar-se de im ediato às duas outras que se lhe seguem (5:21-43). As três retratam Jesus m inistrando a pessoas que, de várias m aneiras, são consideradas religiosam ente “im undas” . A quele m oço com toda a probabilidade era gentio e m orava entre sepulturas; estas duas circunstâncias tornavam -no imundo. Na história seguinte, o Senhor é tocado por um a m ulher que sofre de algum tipo de desordem m enstrual, o que a tornava im unda, de acordo com as leis cerim oniais judaicas. Por fim, toca num a m enina m orta e a faz ressurgir.

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Os cadáveres eram considerados im undos e quem quer que neles tocasse tam bém ficava imundo. Em todos esses casos de pessoas “im undas”, Jesus sai triunfante, ao libertar tais pessoas de suas condições de escra­ vidão.

Notas Adicionais # 8 4:35 / tarde: pormenores desse tipo, como as referências a outros barqui­ nhos (4:36) e almofada (4:38), talvez sejam fragmentos remanescentes da primeira versão da história. De outra forma, é difícil ver a razão por que são mencionados. Não parecem ter algum significado simbólico. 4:37 / grande temporal: o mar da Galiléia é conhecido por tempestades súbitas que transtornam suas águas. Elas surgem pelo fato de esse mar jazer numa bacia profunda, tendo montanhas ao redor, o que causa ventanias traiçoei­ ras que lhe agitam a superfície. 4:39 / cala-te: literalmente, este verbo significa “amordaça-te!” retratando o mar como uma espécie de animal, ou força demoníaca que é subjugada ao reconhecer seu senhor. 4:40 / Ainda não tendes fé?: este é outro caso em que Marcos põe ênfase na fé (cp. 2:5; 5:34; 10:52; 11:22; também 5:36; 9:23). Compare Lucas 8:25 (“Onde está a vossa fé?”) com Mateus 8:26 (“Por que temeis, homens de pequena fé?”). 5:1 / à província dos gerasenos: (isto é, cidade de Gerasa). Manuscritos antigos dos evangelhos mostram variações quanto ao nome da cidade, não só aqui, mas também nos relatos paralelos de Mateus 8:28 e Lucas 8:26. O nome que aqui aparece refere-se a uma das cidades da área; as variações dizem respeito a outras localidades da mesma área. Outros nomes mencionados nos manuscri­ tos, como variantes, são Gadara e Gergesa. A área era denominada Decápolis, que significa “Dez Cidades” ou “Dez Aldeias” (veja 5:20). 5:3 / o qual morava: cp. Mateus 8:28, que menciona dois demoníacos. De modo semelhante, Mateus 20:30 menciona dois cegos, embora Marcos 10:46 fale apenas de Bartimeu. 5:9 / Legião: é termo referente a uma unidade militar romana com cerca de seis mil soldados. Essa palavra, legião, faz o cenário parecer campo de batalha entre o poder de Jesus e as forças do maligno. Jesus ali está em nome do reino de Deus. Trata-se de figura de linguagem intencional, visto que Jesus havia descrito seu exorcismo como assalto à fortaleza de Satanás (veja 3:23-27). 5:20 / em Decápolis: grande área a sudeste do mar da Galiléia, a qual continha dez cidades que estavam interligadas, em cerca de 1 d.C., por tratado comercial e defensivo. A maior parte da população era formada de gentios. (Veja “Decápolis”, IDB, vol. Lpp. 810-12.) E todos se maravilhavam: é característica de Marcos descrever as reações

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do povo em termos de maravilha ou surpresa (1:22-27; 2:12; 5:42; 7:37; 9:15; 12:17), porém isso não implica compreensão nem aceitação de Jesus. Até os que rejeitam Jesus são descritos como espantados diante dele (Nazaré, 6:2-4; Pilatos, 15:5, 44). O fato de os discípulos também estarem admirados pouco significa a seu favor (6:51); o fracasso deles, não entendendo Jesus de modo adequado, iguala-se ao fracasso da multidão!

9. Jesus, Procurado e Rejeitado (Marcos 5:21 -6:6a)

5:21-43 / Esta passagem constitui o segundo exem plo de dois inciden­ tes interligados por M arcos, tornando-se um a única história (veja ante­ riorm ente 3:20-35). Parece que M arcos faz isso porque, em cada caso, deseja que as duas partes da com posição sejam entendidas em conexão um a com a outra. Não é necessário que se questione se esses dois incidentes teriam acontecido sim ultaneam ente, em conexão mútua, com o M arcos os descreve. Todavia, visto que é evidente que M arcos não nos diz tudo que Jesus fez, é sempre im portante que exam inem os por que o autor registrou as histórias com o as registrou: uma encaixada na outra. A lgum as ligações entre os dois incidentes são óbvias. Por um lado, am bos dizem respeito a Jesus m inistrando a m ulheres: um a delas é adulta e a outra, um a criança. Am bas se encontram desamparadas, em estado desesperador. U m a delas aparentem ente sofre de doença incurável, enquanto a outra aparece, prim eiro em estado term inal e, logo depois, morta. Outro fato que liga ambos os incidentes é o núm ero doze. A m ulher sofre há doze anos (v. 25), a m enina tem doze anos de idade (v. 42). A conveniência de ligar-se as duas histórias inclui o im pacto duplo que hão de exercer ao dem onstrar o poder com passivo de Jesus. Talvez de m odo especial naqueles tem pos antigos, em que as m ulheres eram consideradas menos im portantes do que os hom ens, o interesse de Jesus pelo bem -estar dessas duas mulheres gravem ente necessitadas deveria ter sido entendido com o m uito significativo. À sem elhança do ex-dem o­ níaco (talvez um gentio) da passagem anterior, as mulheres deste relato representam grupos sociais considerados de segunda classe por muitas pessoas da antigüidade. Além disso, ambos os eventos enfatizam aqui a fé; parece que essa teria sido um a das preocupações de M arcos ao narrá-los. O bserve que esta m ulher acha, um tanto supersticiosamente, que lhe bastaria tocar apenas a roupa de um hom em e curador tão santo com o Jesus, para ficar curada. Conquanto a história, de início, pareça confirm ar esta idéia, de que ela na verdade foi curada por ter tocado Jesus, o fato de o Senhor parar a fim de conversar com ela (5:30-34) enfatiza que foi a fé da mulher

(Marcos 5:21 -6:6a)

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que a curou. N outras palavras, a m ulher foi curada porque depositou sua fé em Jesus e em seu poder, não porque o toque de um hom em santo produz cura autom ática. De m odo sem elhante, o pai da m enina roga a Jesus que a toque (e lhe im ponhas as mãos, v. 23), mas Jesus dá ênfase à fé (v. 36) com o a chave para a libertação. Esta ênfase na fé encontra-se noutras passagens de M arcos (veja 4:40; 6:6; 10:52; 11:22-25), pois é tem a genuíno e preem inente de M arcos. O evangelista apresenta o exercício de poderes m iraculosos, da parte de Jesus, do m odo m ais forte (cp. 6:53-56), porém não com o propósito de provocar interpretações cruas, m ágicas, sobre Jesus. A intenção de M arcos é outra: suas descri­ ções principais do poder de Jesus m ostram que Jesus não é apenas um m estre ou profeta. A apresentação que ele faz do m aravilhoso poder de Jesus liga-se à pessoa de Jesus, não prom ovendo nenhum interesse em forças e práticas mágicas. De fato, a descrição que M arcos faz da ressurreição da m enina parece objetivar o repúdio de qualquer indício de magia. M arcos cria um a im pressão de m istério ao dizer que som ente os pais da m enina e três dos discípulos tiveram perm issão para entrar no aposento onde o m ilagre se realizou. Parece que o evangelista sublinhou essa im pressão ao m encio­ nar as palavras de Jesus em aram aico; tais palavras estrangeiras ressoa­ riam com um toque de fórmula de bruxaria; mas em seguida ele dissipa essa atm osfera estranha ao traduzir a “fórm ula” , (coisa que não se faz nos círculos de prestidigitação!). A tradução esclarece que não se trata de fórm ula m ágica de encantam ento ou declaração solene, mas uma simples ordem plena de afeto, m enina, eu te ordeno, levanta-te (veja nota). A ordem para que não se divulgue (v. 43) não indica, é claro, que se trata de prática m ágica, secreta, mas apenas m ais um exem plo do tem a de discrição tão ao gosto de M arcos, conectado à ênfase mais am pla do evangelista segundo a qual só depois da crucificação e ressurreição será possível às pessoas entenderem quem é Jesus na realidade, e o significado de sua obra. A m bos os incidentes acontecem em território judeu. A m enina é filha do principal da sinagoga; 5:21 inform a-nos que Jesus havia regressado da praia oriental do m ar da Galiléia, área gentílica onde o dem oníaco fora curado. Os dois incidentes precedem a rejeição de Jesus em Nazaré, cidade natal do M estre, e parecem preparar o leitor para ver tal rejeição com o algo totalm ente injustificável. Todavia, esses m ilagres, m ais a

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rejeição, tam bém parecem prefigurar de modo sim bólico o repúdio final de Jesus que culm inaria em julgam ento e crucificação. Haveria algum significado no fato de a m ulher sofrer de um a doença havia doze anos, e que esse núm ero tem significado bíblico importante no sim bolism o de Israel? Já a menina, a filha de doze anos de um chefe da sinagoga, está duplam ente ligada a Israel. Noutras palavras, a seqüência de m ilagres no m eio de pessoas bem identificadas com Israel, seguidos pela rejeição na — x—

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ram a rápido da conclusão do m inistério de Jesus a Israel. Até a natureza dos m ilagres é significativa. A mulher, que de acordo com a lei religiosa israelita, seria considerada im unda e socialm ente inaceitável por causa de sua condição patológica (veja nota), é libert&dà de seu estado de desam paro a que a própria lei a condenou. E çjrtSj^ra as exigências rituais judaicas lhe proibissem tocar qualquer cífe^àagrada, ela se liberta precisam ente pelo fato de tocar em Jesus, o Filho de Deus! Será que M arcos teria tido aátircmago de drarm tizaO ) ênfase de que o m inistério de Jesus envolvia á’franscendência das definições ritualísticas do que é lim po e san^j (veiè 2:13-28; 7:1-23)? É provável que o segundo m ilagre tam bém ^èja^signíficativo por sér a ressurreição de uma pessoa, pois, sem dúvida' antecipa a própí@ ¥essurreição de Jesus. Então, a seqüência de 5:21-6:6 seria outro exem plo da ironia de M arcos. C on­ quanto JeSíiiíealizasse o h ^ íq u e dem onstravam sua verdadeira natureza e poder, o resultado final foi sua rejeição. 6 :l-6 a / Em bora não esteja declarado explicitam ente que este episódio aconteceu em Nazaré, a descrição do am biente com o sendo sua terra (6:1, oiíÇ%igar de residência”), m ais a m enção de que sua fam ília morava ali (6:3), dão-nos toda certeza de que se trata de Nazaré. Entretanto, este relato não é apenas a história da rejeição de Jesus em sua cidade natal: é l u m u ^ l l l ^llIll/U IU c.

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pelas autoridades religiosas judaicas. Conform e observam os anterior­ m ente, este episódio pode ser considerado com o fecho de uma seção que poderia incluir tudo, entre 3:7 e 6:6. Em 3:1-6 encontram os a primeira rejeição clara de Jesus, provendo um indício do choque vindouro (3:6). Aqui, de novo, Jesus m ais um a vez é rejeitado, no sábado, na sinagoga (cp. 3:1-2; 6:1-2). No prim eiro caso, a questão girava em torno de curas no dia de sábado. Aqui, a questão é a incapacidade de as pessoas crerem que aquele “rapaz da terra” é alguém importante. Entretanto, do ponto

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de vista de M arcos, os dois incidentes são, na verdade, exem plos da m á vontade das pessoas em reconhecer que Jesus é o portador celestial da salvação. A m atéria textual entre 3:1 -6 e o presente episódio, em 6:1-6, descreve vários aspectos do m inistério de Jesus: um relato geral (3:7-12), a escolha dos doze (3:13-19), o conflito com os críticos e a fam ília (3:20-35), parábolas (4:1-34), e uma série de m ilagres que tam bém servem com o revelações do significado de Jesus (4:35-5:43). A face desta narrativa, a presente rejeição de Jesus deve ser vista com o indefensável e trágica. E sta cena contém vários tem as já descobertos em M arcos. Jesus nos é retratado causando espanto e m aravilha, por causa de seu ensino e obras (6:2). No entanto, essa adm iração de modo algum significa que a m ulti­ dão tivesse visão da realidade, ou fé, mas algo m uito inferior (6:3-6). Jesus não retruca ao criticism o com a m anifestação direta de sua pessoa, m as de m odo indireto, m ediante um a declaração com aparência de provérbio (6:4). Ali está a ênfase na im portância da fé (6:6). Ali está tam bém um a segunda referência à fam ília de Jesus, pela qual parece que ela lhe faz oposição (veja tam bém 3:20-21, 31-35). A referência à fam ília de Jesus pelos habitantes da cidade (6:3) poderia im plicar que seus próprios parentes estariam contribuindo para a relu­ tância em reconhecê-lo com o enviado por Deus. A confirm ação desta suspeita estaria no pronunciam ento sem i-proverbial de Jesus, em 6:4, em que ele inclui os seus parentes, e na sua casa. Esta descrição da fam ília de Jesus em term os negativos talvez indique que o reconhecim ento de quem é Jesus na realidade não teria sido mais fácil para seus conterrâ­ neos, nem m esm o para seus próprios parentes, do que para os dem ais. Acontece que em M arcos, o reconhecim ento real de Jesus, que se evidencia na fé verdadeira, não se baseia na proxim idade do Senhor, quer quanto ao tem po quer quanto a laços fam iliares, mas na prontidão moral em receber a revelação vinda de Deus, e essa capacidade para recebê-la até certo ponto depende da ação de Deus sobre o indivíduo. As duas características do m inistério de Jesus que causam espanto são sua sabedoria e as m aravilhas (6:2), que exigem m aiores com entários. A expressão sabedoria detém herança rica, nas civilizações antigas, significando m uito m ais do que “bom senso” (que em inglês popular se costum a cham ar de “juízo cavalar”). No contexto judaico de Jesus, sabedoria tinha conotações do conhecim ento de Deus e seus propósitos,

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(Marcos 5:21-6:6a)

pelo que se relacionava de m odo específico ao ensino religioso; ocorre que tal ensino religioso poderia incluir quaisquer questões da vida hum ana. R etratar Jesus com o um mestre de sabedoria em 6:2 é o m esm o que descrevê-lo com o alguém que se entende ser capaz de revelar Deus. A reação da m ultidão im plica que não está disposta a tom ar o im pressio­ nante ensino de Jesus como evidência de seu mom entoso significado. As pessoas não conseguem superar as origens humildes e tão fam iliares de Jesus. M ais ainda: nem m esm o os milagres de Jesus conseguem produzir fé. A m ultidão reconhece que ele realiza milagres, mas parece que todos se m ostram incapazes de avaliar com exatidão o significado dessas obras. É difícil acom panhar o fraseado de M arcos, porque em 6:2 a m ultidão se refere aos milagres de Jesus, mas em 6:5-6 somos inform ados de que Jesus não pôde fazer ali obras m aravilhosas, som ente curou alguns poucos enferm os, im pondo-lhes as mãos. As perguntas se atropelam . Se Jesus não realizou m ilagres em Nazaré, a que m ilagres a m ultidão se refere em 6:2? Não é a cura de alguns poucos enferm os pelo toque de suas m ãos precisam ente o tipo de fato considerado m ilagre noutra passagem de M arcos (cp. 5:23, 28)? Que é então que M arcos quer dizer, ao afirm ar que Jesus não pôde fazer obras m aravilhosas? Não im porta quão estranha a linguagem de M arcos possa parecer-nos: é provável que ele estivesse dizendo-nos que assim com o a presença da fé exerce efeitos positivos (veja 5:34, 36), a ausência da fé tam bém frustra a m anifestação do poder salvífico de Deus. Noutras palavras, M arcos desejava retratar a falta de fé do povo em N azaré em termos bastante negativos, em contraste com o elogio da fé em 5:34. O verdadeiro propósito de M arcos não é afirm ar que a falta de fé am arra de modo com pleto as m ãos de Deus mas, antes, m ostrar que a receptividade a Deus e à fé recebe a recom pensa do m iraculoso poder de Deus, e que há conseqüências opostas na ausência de tal receptividade. (Veja com entários sobre 5:21-43). É interessante que Jesus fala de si m esm o com o sem elhante a um profeta, em 6:4, porquanto este é um dos rótulos que os observadores lhe atribuem , de acordo com M arcos (cp. 6:14-16; 8:27-30). Não há razões plausíveis para duvidarm os de que Jesus se tenha considerado sem elhan­ te a um profeta; entretanto, M arcos enfatiza que este rótulo, conquanto não fosse errado de todo, era inadequado. C om o já m encionamos, ao com entar 5:21-43, a rejeição de Jesus aqui

fMarcos 5:21-6:6a)

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parece um presságio da rejeição pelas autoridades judaicas, que culm i­ naria na crucificação. Em outras palavras, este repúdio da parte de seus conterrâneos e de sua fam ília prefigura a rejeição pelo círculo m ais am plo de seu próprio povo, sua nação.

Notas Adicionais # 9 5:22 / um dos principais da sinagoga: nos tempos de Jesus, as sinagogas eram lideradas por um pequeno grupo de leigos responsáveis pela direção do culto. Os oficiais eram escolhidos localmente, pelos membros da sinagoga. 5:25 / uma hemorragia: embora não esteja declarado de modo explícito, é bem provável que o problema dessa mulher fosse uma hemorragia uterina. Tal condição, de acordo com a lei do AT, fazia que a mulher se tornasse imunda, e qualquer pessoa ou coisa que ela tocasse ficaria igualmente contaminada (Levítico 15:25-30). Há discussões pormenorizadas desse tipo de sintomas, e possíveis tratamentos, no Talmude judaico, coletânea rabínica de ensinamentos. 5:26 / havia padecido muito à mão de vários médicos: o registro dos tratamentos prescritos para tais condições patológicas comprova que este enun­ ciado é expressão da verdade. O tratamento prescrito com freqüência incluía a necessidade de beber poções de sabor horripilante, e fazer outras coisas de mesmo teor, muitas das quais eram bem estranhas; mas nenhuma delas teria probabilidade de produzir algum resultado bom, à luz da medicina moderna. (Veja Lane, pp. 191-92). 5:28 / Se tão-somente tocar nas suas vestes: reflete o que poderia ter sido uma esperança oriunda do desespero, visto haver algumas referências no NT e em fontes não-cristãs a tais idéias e costumes (veja 6:56; Atos 5:15; 19:11-12). Os relatos neotestamentários não negam que às vezes as curas se efetuavam, mas enfatizam também que tais curas devem ser interpretadas no contexto da fé pessoal em Jesus, não como reles superstição ou bruxaria. Os relatos paralelos de Mateus 9:20 e Lucas 8:44 referem-se à “orla” do manto (ou da veste) de Jesus, dando a entender talvez a fímbria ou a fita presa nos cantos do vestuário, pelos antigos judeus, como símbolos de sua dedicação a Deus. 5:37 / Pedro, Tiago e João, irmão de Tiago: parecem estar presentes como uma espécie de círculo íntimo dentre os discípulos de Jesus (veia também 9:2; 13:3; 14:33). 5:39 / a menina não está morta: é provável que Jesus tenha falado em sentido figurado, dando a entender que nem tudo estava perdido, e que a criança morta poderia “ser despertada” para a vida. Há uma expressão semelhante, de sentido figurado, atribuída a Jesus, com respeito a Lázaro, em João 11:11-15. 5:41 / talita cumi: é expressão aramaica (língua de comunicação popular diária, na Palestina dos tempos de Jesus) que significa literalmente “levanta-te, ovelhinha”, refletindo afeição e ternura.

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6:1 / para sua terra: é literalmente “sua própria área/país”, mas nesse contexto é provável que signifique Nazaré. Em 1:9, fomos informados de que Nazaré era local de sua residência, e em 1:24; 10:47; 14:67; 16:6 ele é chamado de “Jesus de Nazaré”. 6:3 / o carpinteiro: a palavra grega utilizada aqui pode significar um trabalhador que usa madeira ou pedra, de acordo com fontes antigas. Em Mateus 13:55, Jesus é chamado de filho do carpinteiro, sugerindo que Jesus teria assumido o ofício de José, seu pai. E evidente que Jesus não iniciou seu ministério senão quando jovem adulto, pelo que deve ter sustentado a si próprio (e seus parentes?) pelo ofício escolhido, durante alguns anos, antes de dedicar-se ao ministério. filho de Maria: era bastante incomum, nos tempos judaicos antigos, a pessoa referir-se a alguém como filho de sua mãe. Muitos têm aventado a opinião de que essa expressão aqui seria uma nódoa sobre a legitimidade de sua concepção, atirada pelos moradores de Nazaré. É possível que tal difamação tivesse surgido se, como Mateus 1:18-25 sugere, tomou-se fato conhecido que Maria engravidara antes de casar-se com José. Conquanto a tradição cristã, de acordo com a Palavra de Deus, atribua a concepção de Jesus a um ato miraculoso de Deus, a tradição judaica antiga se refere a Jesus como criança ilegítima. Ambas as tradições concordam num ponto: houve algo irregular nessa concepção. No texto paralelo de Mateus 13:55, não aparece essa frase, filho de Maria, em lugar da qual há outra, menos ofensiva: “não se chama sua mãe Maria?” Tiago, José, Judas e Simão... as suas irmãs: esta passagem e a que lhe é paralela, em Mateus 13:55-56 dão-nos informações minuciosas sobre a identidade da família de Jesus. De acordo com a igreja católica romana e tradições ortodoxas orientais, Maria não gerou outros filhos, de modo que os indivíduos aqui mencio­ nados teriam outro parentesco, menos o de irmãos e irmãs legítimos de Jesus (veja nota sobre 3:31). Tiago, irmão de Jesus, é mencionado noutras passagens do NT como chefe da igreja primitiva (1 Coríntios 15:7; Gálatas 1:19; 2:9-12; Atos 12:17; 15:13; 21:18), e uma carta do NT é intitulada com seu nome (Tiago 1:1). Na tradição cristã do segundo século, e mais tarde, este Tiago veio a ficar famoso, como homem devoto, de estrita autodisciplina religiosa. Não se faz referência aos demais irmãos e irmãs de Jesus, noutra passagem escriturística (quanto a Tiago, o irmão de Jesus, veja IDB, vol. 2, pp. 791-94). 6:5 / Ele não pôde fazer ali obras maravilhosas: esta frase, que aparentemente conflita com o resto da sentença, aparece um tanto diferente no texto paralelo de Mateus 13:58- “não fez ali muitos milagres, por causa da incredulidade deles”. Esta redação explica e elimina a dificuldade da frase de Marcos. Trata-se de uma, dentre várias passagens, em que Mateus parece “mais claro, e mais limpo” do que Marcos, na maneira de empregar a linguagem, ao narrar o mesmo incidente. Este é o tipo de evidência que leva muitos eruditos a crerem que o autor de Mateus redigiu depois de Marcos, e utilizou o Evangelho de Marcos como fonte, introduzindo numero­ sas mudanças editoriais semelhantes à que acabamos de apreciar.

10 A Missão e Herodes (Marcos 6:6b-29)

6:6b-13 / A prim eira rejeição na sinagoga (3:1-6) é acom panhada pelo m inistério à m ultidão enorme e diversificada (3:7-12), e pela entrega de poder aos doze (3:13-19); aqui, de form a semelhante, M arcos tam bém nos dá um relato da outorga de poder aos doze, para que efetuem um m inistério itinerante, com o extensão do próprio trabalho de Jesus. De novo, aqui (6:7) com o antes (3:15), os discípulos recebem poder sobre os espíritos maus; esse termo, tão im portante na descrição que M arcos faz de Jesus (1 :22, 27; 2:10; 11:27-33), deve levar-nos a entender que os doze recebem uma extensão do próprio poder e m inistério de Jesus. Tem os aqui outro exem plo da m aneira com o os discípulos, descritos tão francam ente com o fracassos, em outros pontos da narrativa, tam bém são descritos em termos positivos, com o associados de modo íntim o a Jesus, em sua obra. Toda leitura de M arcos deve fazer justiça a am bos os aspectos quanto ao m odo como os discípulos são tratados (regra não seguida com fidelidade em certos estudos recentes), visto que só assim os discípulos cum prem o papel a eles atribuído na história, com respeito aos leitores, servindo-lhes de exem plo e de advertência. As instruções dadas aos doze visam basicam ente fazê-los depender da hospitalidade daqueles a quem vão pregar. Não deverão carregar provi­ sões (não deviam levar alforje nem pão nem dinheiro), e a proibição contra duas túnicas talvez diga respeito à capa, ou sobretudo, que com um ente era usada com o colcha de cama, nos tem pos antigos, pelos pobres, pelos pastores e pelos que não tinham pousada durante a noite (veja nota). Q uanto a alim ento e abrigo, dependeriam das pessoas de m odo total. Ao serem hospedados em algum a casa (6:10), não deveriam m udar para acom odações mais confortáveis se alguém mais rico da cidade lhes oferecessem . As instruções indicam que os discípulos não deveriam ser seduzidos pelo que as pessoas lhes dessem. Se fossem rejeitados num a cidade, deveriam realizar um ato sim bólico de advertên­ cia, libertando suas sandálias do pó daquela cidade, prefigurando a rejeição que Deus atiraria contra aquele povo pela sua desobediência. A bagagem dos discípulos, em M arcos, é um pouco diferente da que aparece nas instruções m encionadas em M ateus 10:9 (passagem parale-

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(Marcos 6:6b-29)

la), em que o bordão e as sandálias são proibidos. Essa diferença entre as duas passagens tem gerado m uita discussão sem que se chegue a um a solução aceitável (veja Lane, pp. 207-8). É interessante verificar que a descrição dos discípulos em 6:8-9, em que se m encionam sandálias e bordão pode ser alusão aos relatos da fuga dos israelitas do Egito (Êxodo 12:11), o que talvez assem elhasse o m inistério dos discípulos ao êxodo. Se virm os na história de Herodes, narrada a seguir (6:14-29) um rei perverso com o o Faraó da história do êxodo, ficaria bem viável im aginar que M arcos utilizou algum as im agens da libertação de Israel ao descre­ ver a m issão dos doze. Isto nos leva à observação de que esta história dos doze é interrom pida pelo relato da m orte de João Batista, em 6:14-29, term inando apenas em 6:30, dando-nos mais um exem plo da técnica de narração própria de M arcos: ju n tar duas histórias na m esm a passagem . Nesses casos, as duas histórias devem ser entendidas com o m utuam ente explicativas, uma jorrando luz no significado da outra. Este relato do m inistério dos doze ajuda a explicar com o a reputação de Jesus chegou aos ouvidos de Herodes, e descreve a autonegação e dedicação dos doze, ao engajar-se nessa m issão sagrada, fazendo poderoso contraste com a opulência e indulgente perversidade que surgem no relato seguinte, sobre a corte de Herodes. Por outro lado, a história sobre Herodes parece sugerir que o m inistério dos doze, e de Jesus, acabará envolvendo conflito e, por fim, a m orte de Jesus, prefigurada na m orte do Batista. 6:14-29 / É de surpreender que tanto espaço tenha sido atribuído à morte de João Batista, m ais do que nos demais evangelhos (cp. M ateus 14:1-12; Lucas 3:19-20; 9:7-9). Isso indica que tal acontecim ento teve significado especial para M arcos, com o veremos, prefigurando a morte de Jesus. Precisam os lem brar-nos de que em vários pontos de M arcos, Jesus e João estão intim am ente ligados. Jesus com eça seu m inistério após a prisão do B atista (1:14), e liga a m ensagem de João a seu próprio m inistério em 11:27-33. Além do mais, parece viável que a figura de Elias de que Jesus fala, em 9:10-13, é o próprio João Batista; nesta últim a passagem , a sina deste “Elias” está ligada à do “Filho do hom em ” , Jesus. Na verdade, 9:10-13 deve ser entendido com o com entário de 6:14-29. As sim ilaridades entre João Batista e Elias ajudam a explicar o modo por que a m orte do Batista é narrada por M arcos. Herodes, que sim ulta­ neam ente tem m edo e ressentim ento de João, fica parecido com Acabe,

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o rei de Israel, em sua atitude contra Elias; Herodias, que planeja a m orte do B atista, faz lem brar Jezabel, esposa de Acabe, que odiava Elias de modo especial (veja 1 Reis 16:29-19:3; 21:1-29, e as notas históricas sobre as personagens da presente narrativa). Desse modo, várias carac­ terísticas do relato de M arcos ajudam o leitor a ver que João é o profeta sem elhante a Elias, predito por M alaquias 4:5. Entretanto, M arcos não apenas insiste em que João é o “E lias” que anunciaria a vinda do M essias (Jesus) com o tam bém faz da m orte do B atista um prenúncio da morte de Jesus. A sem elhança de João, Jesus é executado pelo poder civil. A sem elhança de Pilatos, Herodes hesita em m altratar seu prisioneiro, mas finalm ente o m ata por m edo das conse­ qüências caso não o fizesse. A sem elhança dos sacerdotes, que m aqui­ naram e exigiram a morte de Jesus, H erodias finalm ente vê sua vontade satisfeita quanto a João. A sem elhança de José de Arim atéia, os segui­ dores de João sepultam seu líder. Este liam e entre a execução de João e a de Jesus sem dúvida é a razão por que M arcos colocou esta história aqui, no m eio do relato da m issão dos discípulos, pois o evangelista deseja que seus leitores se lem brem de que o m inistério de Jesus e seus discípulos precisa ser visto em relação à execução do Senhor; com esse relato, M arcos mais um a vez atira a som bra da cruz sobre a narrativa. Para M arcos, não é finalm ente o poder dos m ilagres, m as o sacrifício na cruz que com m aior clareza expõe o significado de Jesus. O relato da m orte de João abre-se com um a referência a várias opiniões populares acerca de Jesus (6:14-15), as quais são as m esm as m enciona­ das no diálogo entre Jesus e os doze (em 8:27-28), acerca de quem é o Senhor, realm ente. E claro que as três opiniões são erradas, segundo M arcos; entretanto, ele as m enciona não só para m ostrar que as pessoas estavam cegas, não podendo enxergar o significado verdadeiro de Jesus, mas tam bém que as pessoas viam em Jesus um tipo de característica especial, com o a dos profetas do AT. A idéia de que Jesus era João Batista que ressurgira dentre os m ortos (v. 14) pode ter sido assum ida literal ou figuradam ente; todavia, num ou noutro caso ficaria estabelecido que Jesus parecia estar proclam ando a m esm a m ensagem do reino de Deus vindouro, pregada por João, com prem ência profética, com m aior poder, com o o com provavam os m ilagres. M arcos, com seu pendor para a ironia, pode ter tencionado que seus leitores observassem quanta ironia im preg­ nava esta opinião de Jesus com o sendo João B atista ressurreto, à luz da

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ressurreição do próprio Jesus, um pouco adiante, em sua narrativa. O significado de cham ar Jesus de Elias se consegue ver à luz das expectativas judaicas antigas, acerca dos “últimos dias”, quando Deus haveria de enviar o M essias e estabeleceria o reino da justiça sobre a terra. Tais expectativas incluíam a aparição de um grande profeta final que prepararia Israel para a salvação prestes a chegar; tal profeta final às vezes era descrito com o alguém parecido com Elias, ou talvez o próprio Elias que teria voltado à terra (veja nota). Portanto, Jesus era considerado por alguns com o esse grande profeta, em bora M arcos dem onstre que João é quem devia receber tal honraria (9:10-13). M arcos 6:14-16 m ostra que o verdadeiro objetivo em narrar esta história da m orte de João não é entreter o leitor com um a narrativa em ocionante, mas ajudá-lo a entender m elhor Jesus. João, não Jesus, é o “Elias” , o grande profeta que anunciou a chegada do M essias, e seu m inistério foi preparar o cam inho para Jesus, que deve ser visto com o o M essias. Todavia, João fez mais do que apenas anunciar o M essias e sua obra: ao m orrer, João prefigurou a m orte do M essias, m ostrando que a obra m essiânica incluía tam bém sofrer a m orte e, desse modo, realizar a vontade de Deus. E sta narrativa, com a descrição da vida opulenta e corrupta da corte de Herodes, faz contraste violento com as exigências sobre os discípulos, em 6:7-13, e com o próxim o episódio, em que Jesus e os doze estão distantes em área deserta (6:31, 35). Este contraste dem onstra que o verdadeiro “rei” não era Herodes (6:14), e que os lugares de poder e riquezas terrenos, com suas costum eiras extravagâncias quanto a vindicações e m odo de vida, não constituem o veículo da salvação de Deus. Em vez disso, com o o próxim o episódio o dem onstra, foi no hum ilde m inistério de Jesus que Deus m anifestou sua provisão para Israel e para o mundo.

Notas Adicionais# 10 6:8 / não deviam levar alforje: na antiga Palestina, os mendigos constituíam um quadro comum, bem conhecido, e não tinham cerimônia para pedir esmolas. Os discípulos são proibidos de carregar bolsa, não devem pedir nada, porque não são mendigos, mas devem depender do que lhes é oferecido em conexão com o recebimento da mensagem que pregam. 6:9 / duas túnicas: literalmente, os discípulos são proibidos de usar “duas vestimentas”. Na antiga Palestina, o vestuário padrão era uma túnica interna e

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outra externa, semelhante a uma capa, que protegia contra o frio e umidade, nas épocas de condições atmosféricas desfavoráveis, e que à noite servia de coberta, de modo especial se a pessoa tivesse de dormir ao relento (Êxodo 22:25-27; Deuteronômio 24:10-13). A ordem dada aqui em Marcos proíbe que os discí­ pulos carreguem esta capa externa. (Quanto a informações adicionais sobre vestuário usado na antiga Palestina, veja “Dress and Ornaments”, IDB, vol. 1, pp. 869-71). 6:13 / ungiam muitos enfermos com óleo: o azeite era largamente empre­ gado como remédio, na antiga Palestina, tomado via oral ou aplicado em ferimentos e úlceras (veja Lucas 10:34). Também é mencionado como sendo aplicado aos doentes, em conexão às orações, na igreja primitiva (Tiago 5:14), talvez como ato simbólico; seria a aplicação descrita aqui. (Veja “Oil”, IDB, vol. 3, pp. 592-93). 6:14 / o rei Herodes: é Herodes Antipas, um dos filhos de Herodes, o Grande (mencionado na história da natividade, em Lucas 1:5; Mateus 2:1-19). Antipas fora nomeado tetrarca da Galiléia em 4 d.C. e governou até ser banido pelo imperador romano Calígula, em 39 d.C., com base em acusações de Herodes Agripa I, sobrinho de Antipas, que governou a Galiléia depois de Antipas. Antipas sempre almejou o título de “rei” e imaginava ser digno de uma posição de realeza. Mateus 14:1 e Lucas 9:7 o chamam pelo título correto, enquanto Marcos se refere a ele aqui como “rei”, com toda probabilidade com escárnio, mofando de sua vaidade jamais satisfeita. A história toda da família herodiana é um complexo de imoralidade e intriga (veja “Herod”, IDB, vol. 2, pp. 585-94). 6:15/Elias: imortalizado em 1 Reis 17-19; 21; 2 Reis 1:1-2:12, Elias é uma das grandes personagens do AT. Com base em Malaquias 4:5, alguns judeus antigos esperavam um profeta dos últimos dias semelhante a Elias, ou talvez o próprio Elias, a fim de preparar Israel para o julgamento e salvação de Deus. Faz-se alusão a tal expectativa em Marcos 9:10-13 (texto paralelo em Mateus 17:10-13), em Marcos 15:35-36 (Mateus 27:47-49), e em João 1:21-25. (Veja “Elias”, IDB, vol. 2, pp. 88-90). 6:17 / prender a João: Josefo, antigo historiador judeu, fala da prisão do Batista, atribuindo-a ao temor de Antipas de que o profeta incitasse o povo à revolta (Antiquities, 18.116-119). E certo que a denúncia do casamento de Antipas com Herodias teria sobretons políticos, visto que na antigüidade denun­ ciar o casamento de um governador era o mesmo que denunciar o próprio governador. Herodias: era fdha de Aristóbulo e sobrinha de Antipas; teria quase quarenta anos ao casar-se com Antipas. Josefo também menciona a ira suscitada por esse casamento, porque a lei religiosa judaica proibia que um homem se casasse com a esposa de seu irmão enquanto este vivesse (Levítico 18:16; 20:21). seu irmão Filipe: há desacordo quanto a quem teria sido o primeiro marido de Herodias, cujo nome é aquele mencionado aqui: Filipe. Josefo só menciona

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o nome de Herodes (cp. IDB, vol. 2, pp. 585-94; Lane, pp. 215-17). 6:22 / a filha de Herodias; é filha do primeiro casamento de Herodias, a quem Josefo atribui o nome de Salomé (Antiquities 18.136). Ela nos é apresen­ tada aqui como jovem, talvez ainda adolescente. A dança a que o texto se refere, num banquete de homens embriagados, teria sido um evento impressionante, sensual, e a excitação de Herodes (6:22) pode implicar desejo sexual pela enteada. Se assim foi, Herodias e Salomé nos são retratadas manipulando cinicamente a Herodes, por suas próprias fraquezas morais. Não há base histórica para os sete véus legendários relacionados à dança de Salomé. Esta dança não é mencionada por Josefo. 6:25 / num prato a cabeça de João Batista: o horrendo pedido mostra a filha acrescentando um toque de humor negro, perverso, à solicitação materna. A cabeça de João Batista numa bandeja transforma-a numa espécie de prato especial, uma refeição servida em banquete perverso.

11. Revelando Maravilhas (Marcos 6:30-56)

6:30-44 / Desde os prim órdios dos tem pos os relatos sobre banquetes têm atraído grande atenção, o que é fácil de entender-se; envidam -se grandes esforços e erudição, continuam ente, na tentativa de entendê-los melhor. H á dois relatos sobre pessoas alim entando-se, em M arcos: este, e o de 8:1-10, em que quatro mil hom ens são alim entados — e tam bém dois relatos em M ateus (14:13-21; 15:32-39). Lucas (9:10-17) e João (6:1-15) relatam apenas a alim entação de cinco mil hom ens. Em tem pos m odernos, muito esforço erudito tem sido investido nas fontes desses relatos de pessoas que receberam alim entos, e em outras questões histó­ ricas com plexas; contudo, nosso interesse aqui se concentra de m odo especial na tentativa de entender os relatos de M arcos e discernir o que ele esperava que seus leitores entendessem . (Temos aqui um bocado de trabalho!). D evem os iniciar nossa investigação observando que há fortes indícios de que os relatos sobre alim entação cobrem acontecim entos de grande im portância para M arcos. N ote-se que no episódio seguinte (6:45-52), M arcos afirm a a respeito dos discípulos que deixaram de perceber algo crucial na m ultiplicação dos pães para os cinco mil hom ens, pelo que reagem erroneam ente durante o m ilagre em pleno m ar (cp. M ateus 14:22-33). M ais enfaticam ente ainda, 8:14-21, apesar de seu m istério indica que as duas m ultiplicações de pão revelam algo de m agna im por­ tância, visto que os discípulos são repreendidos com severidade por não com preenderem o significado desses m ilagres. Além disso, até o fato de M arcos apresentar dois relatos de pão que Jesus m ultiplicou para o povo é evidência de que o evangelista considerava os dois m ilagres eventos im portantíssim os, cujos relatos querem com unicar algo m ais do que a idéia de que Jesus tem poder sobrenatural. B astaria um relato para com provar essa realidade. Note-se m ais ainda, pois é significativo: M arcos devota m uito mais espaço a este m ilagre do pão m ultiplicado (o prim eiro que ele relata) do que M ateus e Lucas (só João devota m ais ou m enos o m esm o espaço). Talvez M arcos quisesse dar a entender, m e­ diante m aior abundância de porm enores, que a passagem constitui um evento de prim ordial im portância na história de Jesus.

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Em essência, os quatro relatos da m ultiplicação de pão para os cinco mil homens apresentam Jesus alim entando suficientem ente o povo, em bora com ece com apenas cinco pãezinhos (veja nota). M as, de início, o milagre era considerado algo de grande significado espiritual. Por exemplo, em João 6:22-59, após o relato do milagre da alim entação do povo, a discussão entre Jesus e esse povo im plica que o m ilagre se assemelha ao de M oisés suprindo o “m aná” no deserto, às tribos de Israel. Exam inem os com maior cuidado o relato de M arcos, a fim de verificar qual seria o ponto nevrálgico que o evangelista queria enfatizar, ao narrar sua versão do milagre. A fim de discernirmos o que a m ultiplicação dos pães para cinco mil homens está ensinando em M arcos, é bom que anotem os os elem entos de seu relato que não se encontram nas passagens paralelas (outros evangelhos), nem nas que relatam o evento que envolveu quatro mil homens (8:1-10). Em prim eiro lugar, esta passagem em foco enfatiza o fato de o milagre ter acontecido nu ma área deserta, fato m encionado três vezes (6:31, 32, 35). Se isto foi intencional, M arcos teria tencionado traçar um paralelo entre este m ilagre alim entício e o suprim ento do m aná aos israelitas no deserto, sob a liderança de M oisés (Êxodo 16). Esta ligação entre o milagre dos pães de Jesus com o de M oisés fica mais fortalecida ainda pela referência ao povo com o ovelhas que não têm pastor (6:34), aparente alusão a N úm eros 27:17, em que M oisés ora a Deus para que o Senhor envie um líder que o suceda, e desempenhe suas funções. Essa descrição do povo tam bém traz à m em ória Ezequiel 34:1-31, em que Deus promete alim entar seu “rebanho” ao enviar-lhe um rei semelhante a Davi, que lhes sirva de pastor (esp. Ezequiel 34:23). Noutras palavras, esta alusão de M arcos a algum as passagens do AT sugere ao leitor que Jesus está aqui desem penhando o papel do tão esperado rei de Israel, o M essias, que à sem elhança de M oisés ensina (6:34) e alim enta o povo. Até a pequena observação de que o povo foi dividido em grupos de cem em cem , e de cinqüenta em cinqüenta (6:40), pode ser alusão ao fato de M oisés ter organizado o povo israelita de m odo semelhante, durante a m archa pelo deserto (Êxodo 18:21; veja nota). O objetivo destas características, não encontradas nas passagens paralelas, nem no relato da m ultiplicação dos pães para os quatro mil hom ens (8:1-10), é demonstrar que o acontecim ento aqui narrado não deve ser visto com o milagre grandioso apenas, mas tam bém como sinal

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profético de particular im portância. O m odo pelo qual o evento é descrito retrata Jesus com o o M essias, enviado a Israel da parte do próprio Deus, em cum prim ento de profecias veterotestam entárias sobre a salvação futura. A ação de Jesus aqui se “reveste” de im agens do A T a fim de enfatizar o ponto central do evangelista. C olocada logo depois do episó­ dio sobre o “rei” Herodes, esta narrativa sugere que Jesus é o rei cheio de justiça, o verdadeiro guia de Israel, e não o perverso Herodes. U m a característica encontrada em todos os evangelhos sinóticos quando narram este m ilagre do pão m ultiplicado é o diálogo entre Jesus e os doze, sobre com o alim entar a m ultidão. Jesus ordena aos discípulos que assum am essa responsabilidade, mas eles protestam (6:35-38; M a­ teus 14:15-17; Lucas 9:12-13). O protesto dos discípulos em M arcos parece m ais veem ente, com a pergunta perplexa deles: irem os nós, e com prarem os duzentos denários de pão para lhes dar de com er, (grego, “duzentos denarii”, ou o salário de oito meses de um trabalhador) para adquirir o pão necessário? Assim , nos três sinóticos os discípulos fracassam , não ficando à altura da ocasião, mas em M arcos esse fracasso é delineado com m aior nitidez. Esse porm enor adapta-se bem à m aneira de M arcos enfatizar o fato que nem m esm o os doze conseguiram enten­ der Jesus adequadam ente, pois falharam . Fica salientada em particular, noutras passagens de M arcos (6:52; 8:14-21) a incapacidade dos doze de entender o significado dos m ilagres da m ultiplicação dos pães, uma ênfase que não existe nos dem ais evangelhos. Se a cegueira espiritual dos discípulos é apresentada ao leitor com o advertência, com o parece provável, M arcos desejaria, nesse caso, que o leitor prestasse atenção especial a esses relatos sobre o pão m ultiplicado, exam inando com toda seriedade os indícios que ele vai dando (e que já discutim os) a respeito do significado do povo sendo alimentado. O utra característica de todos os relatos sobre o pão m ultiplicado são os núm eros; com m uita freqüência surge a questão de se eles representam ou não algum a coisa, com o símbolos. Por exemplo, há algum significado im portante no fato de haver aqui, neste milagre, cinco mil pessoas, e quatro m il na outra passagem , em 8:1-10? Os cinco pães representariam algo m ais além do pequeno volume de pão? Que diríam os dos doze cestos cheios de sobras, ou dos duzentos denários? É certo que alguns núm eros tinham significado especial, em tem pos antigos, com o no caso dos doze apóstolos, em que observam os que esse núm ero nos faz lem brar as doze

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tribos de Israel. A possibilidade de esses números sim bolizarem algo especial se poderia deduzir talvez de 8:17-21, em que os núm eros em pregados em ambos os m ilagres dos pães vêm à baila. C onquanto seja m uito real o perigo de colocar-se dem asiada ênfase em detalhes desse porte, poderíam os concluir que alguns núm eros em pregados no presente relato podem indicar um significado mais amplo para os m ilagres da alim entação do povo. Tom em os o caso dos cinco pães, por exemplo. Já m encionam os a alusão de M arcos a Números 27:17 (6:34), que m ostra Jesus desem pe­ nhando um a função semelhante à de M oisés. Além disso, 6:34 enfatiza que Jesus ensinava à multidão — outra form a de assem elhar Jesus a M oisés — enquanto as passagens paralelas incluem referências a curas (M ateus 14:14; Lucas 9:11). Tendo tais coisas em mente, é possível que com cinco pães M arcos esteja lem brando-nos de que o ensino de M oisés era tradicionalm ente identificado com o uma coletânea de cinco livros (os cinco prim eiros do AT). D esse modo, o fato de Jesus alim entar o povo com cinco pães pode ter sido utilizado por M arcos para ajudar o leitor a ver com m aior clareza a analogia entre Jesus e Moisés. Os doze cestos cheios de sobras de pães (6:43) resgatados depois da refeição dem onstram não apenas que a m ultiplicação do alim ento foi obra m aravilhosa, miraculosa, em prol do povo, m as que o núm ero pode ser sim bólico. Como indicamos antes, doze é núm ero freqüentem ente relacionado a Israel tanto na tradição judaica quanto no AT. Então, à vista das evidências acumuladas que favorecem a opinião de que este relato do pão m ultiplicado nos apresenta Jesus com o o cum pridor das funções de M oisés e de Davi, e que M arcos em prega linguagem do AT para m ostrar a m ultidão como retratando Israel em grave necessidade de liderança divina (6:34, ovelhas que não têm pastor), parece bem viável que os doze cestos cheios de pedaços de pão e peixe ajudem o leitor a ver em Jesus aquele que supre Israel, dando-lhe os suprim entos divinos prom etidos no AT. Os dem ais núm eros (duzentas m oedas, cinco mil hom ens, dois peixes) não são viáveis com o símbolos propositais, principalm ente porque pa­ rece que não tiveram o mesmo tipo de uso sim bólico antes, na vida judaica, à sem elhança dos números doze e cinco. Quando estivermos estudando o próxim o relato sobre alim entação m iraculosa, envolvendo nova m ultiplicação de pães (8:1-10), exam inarem os os seus números

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tam bém , a fim de averiguar se alguns deles objetivam o descortínio de algo relacionado ao significado do m ilagre. (Veja “N um ber” , “Seven”, e “Tw elve” , IDB, vol. 3, pp. 561-67; vol. 4, pp. 294-95, 719). O que estivem os observando aqui sobre o relato da m ultiplicação dos pães resum e-se num a indicação clara de que M arcos tenciona que seus leitores vejam o acontecim ento não apenas com o Jesus m ostrando seu poder m iraculoso, mas tam bém a revelação do segredo sobre sua pessoa e seu significado. Noutras palavras, a m ultiplicação dos pães é na verdade um a história, m ais sobre Jesus que sobre pão e, com o tudo m ais em M arcos, pressiona o leitor para que considere quem é Jesus, o Filho do hom em . Quando, mais tarde, M arcos afirm a a respeito dos discípulos que falharam , não com preendendo a lição da m ultiplicação do pão (6:52; 8:17-21), coisa peculiar ao Evangelho de M arcos, o evangelista quer dizer com isso que os discípulos deixaram de ver que Jesus é o Filho de Deus, que se m anifestou nesses m ilagres. 6:45-52 / M arcos estabelece um elo forte entre este incidente e o que o precede (alim entação de cinco mil hom ens) ao notar em 6:52 que o grande tem or dos discípulos, aqui, foi ocasionado por não terem com ­ preendido que o m ilagre da m ultiplicação dos pães revelou o verdadeiro significado e poder de Jesus. Visto que M arcos liga assim estes dois incidentes, é provável que deseje que seus leitores os entendam com o revelações com plem entares de Jesus. Isto significaria, então, que este m ilagre no m ar seria outra m anifestação do divino significado da pessoa de Jesus, e não apenas m ais um a história de milagre. Este é o segundo m ilagre no mar, narrado por M arcos (veja tam bém 4:35-41); em nossos com entários sobre o m ilagre anterior, observam os que o poder exercido por Jesus sobre o m ar é descrito de m odo tal que o Senhor dem onstra o poder do próprio Deus sobre a natureza. A m esm a realidade se apresenta aqui: o Senhor não só acalm a o m ar (6:51), mas cam inha por cim a das ondas. Os leitores fam iliarizados com o AT reconhecem a sim ilaridade da descrição de Deus (veja nota), com a descrição daquele que cam inha por sobre as águas, dem onstrando dom í­ nio sobre o mar. Ora, tudo isso sugere que o m ilagre do m ar retrata alguém que alim entou a m ultidão, no relato precedente, alguém m uito superior a um novo M oisés ou a um novo rei-pastor com o Davi: Jesus possui poder divino. Já observam os que o título predileto de M arcos para Jesus é “o

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Filho de D eus” , e que para o evangelista esse term o significa que Jesus tem um relacionam ento com Deus m uito mais direto do que im plica o em prego desse termo, quando aplicado a seres hum anos, na tradição judaica ou no AT. M arcos relaciona este milagre no m ar com o m ais um a evidência de que Jesus não é apenas hum ano, mas possui caráter sobre­ natural, um significado divino. Até o m odo como Jesus se dirige aos discípulos, Sou Eu, im plica sua divindade. O term o aparece no A T quase com o título ou fórm ula de autom anifestação divina (veja Isaías 43:25; 48:12; 51:12; veja nota); é provável que os leitores de M arcos devessem apanhar a alusão a essas passagens do AT nas palavras em pregadas por Jesus. A intenção seria que os discípulos entendessem que Jesus falava do m odo com o o próprio Deus falava. O encontro se dá no m om ento em que Jesus queria passar à frente deles (6:48). Essa frase dá a entender que ele tencionava fazer-se visível aos discípulos, de m odo que o tem or deles de aliviasse, e vissem seu poder. No que concerne à com preensão de Sou Eu por parte dos discípulos, a intenção de Jesus fica frustrada, visto que ao avistá-lo tornam -se m ais aterrorizados ainda, supondo tratar-se de um dem ônio m arítim o (6:49, um fantasma; veja nota). Quando o Senhor lhes m ostra quem é, os discípulos continuam atônitos, e não com preendem o que está acontecendo (6:51-52); certam ente, não se espera que o leitor com eta o m esm o erro. Em vez disso, espera-se que o leitor reaja com reverência inteligente, e santa adm iração, diante desta revelação sobre a pessoa de Jesus. 6:53-56 / Tem os aqui m ais um resum o do m inistério de Jesus (sem e­ lhante a outros resumos em 1:39; 3:7-12); a diferença é que neste não há referência ao ensino de Jesus, nem ao exorcism o de dem ônios, mas concentra-se em suas curas. Esta passagem enfatiza o fato que as pessoas vinham a Jesus; na verdade, a m ultidão invasora chegava e apinhava-se ao redor de Jesus, de tal modo que m ais uma vez ficamos com a im pressão de que Jesus e seus discípulos eram assediados e perturbados por todos os lugares aonde iam (cp. 1:37, 45; 2:1-4; 3:7-11; 3:20; 6:30-32). A atitude das pessoas é quase de reverência supersticiosa por Jesus, com o operador de m ilagres, com a idéia de que até sua roupa continha poderes curativos (6:56; cp. 5:28). M arcos registra esta inform ação sem com en­ tá-la; é provável que ele quisesse apenas com plem entar a passagem precedente (6:30-52), na qual apresenta outros exem plos da poderosa

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Ul

força operante em Jesus. A passagem sum ária em foco não representa novo cenário de revelação, à sem elhança da m ultiplicação dos pães ou do m ilagre no mar, mas ilustra mais um a vez a realidade do poder de Deus agindo em Jesus. Como já observam os, a atitude de M arcos perante a fam a e popularidade de Jesus, com o operador de m aravilhas era esta: Jesus na verdade operou m aravilhas, porém a percepção do povo a respeito do Senhor era superficial dem ais, e incom pleta, segundo os padrões do Evangelho cristão.

Notas Adicionais # 11 6:30 / Os apóstolos: os doze são chamados pelo seu nome oficial, aqui, nome que indica que haviam sido autorizados e enviados por Jesus. Regressam da missão descrita em 6:7-13, e este versículo completa a história da missão interrompida pela narrativa do martírio de João, em 6:14-29. 6:31 / não tinham tempo para comer: esta é a segunda vez que Marcos se refere a tal fato (veja 3:20). E mais notável ainda esta circunstância, em vista de Jesus e os doze alimentarem a multidão após esta referência à dificuldade em satisfazerem suas próprias necessidades. 6:32 / um lugar solitário: os termos empregados aqui e em 6:31 e 6:35, referem-se a áreas não habitadas; trazem-nos à memória o deserto, como cenário da proteção e provisão de Deus para o antigo Israel, no tempo de Moisés. 6:33 / para lá: não há indicação, em Marcos, do local onde ocorreu a multiplicação dos pães. É notoriamente sabida a dificuldade para tentar ordenar as viagens e ações de Jesus, num itinerário claro no Evangelho de Marcos. As muitas tentativas apenas ilustram os desacordos entre os pesquisadores do texto. Se Marcos não menciona o local, é provável que ele o tenha considerado sem importância. O relato paralelo de Lucas (9:10) localiza o evento perto de Betsaida (veja nota sobre 6:45). 6:37 / duzentos denários: é tradução literal de um termo que em NIV é traduzido assim: “oito meses de salário de um homem”. Um denário era equivalente ao salário de um dia de trabalho de um peão de fazenda (veja Mateus 20:1-16), de modo que duzentos denários representariam quase o salário anual de um trabalhador. E provável que esse número apenas represente a grande quantia de dinheiro que deveria ser despendida a fim de comprar pão para a multidão. A referência a essa importância também aparece no relato de João (6:7), não, porém, nos outros sinóticos. 6:38 / cinco [pães] e dois peixes: é provável que fossem pães de cevada, matéria prima muito usada pelo povo . Seriam talvez pães de preparo rápido, achatados, de forma circular, semelhantes aos que as pessoas carregavam como provisão numa viagem (veja “Bread”, IDB, vol. 1, pp. 46-64). O relato enfatiza o pão (6:37 e 6:44, lit., “os que comeram os pães eram cinco mil homens”),

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enquanto os dois peixes aparentemente não têm significado simbólico, seme­ lhante ao que sugerimos quanto aos pães e pedaços de pão que sobraram. Os peixes talvez fossem secos, salgados, e por isso podiam ser levados numa viagem, como alimento. Havia uma grande indústria de pesca nas praias do mar da Galiléia (veja “ Fish” , IDB, vol. 2, pp. 272-73). 6:39 / relva verde: em linguagem bíblica, “ deserto” não é, necessariamente, uma área árida, mas apenas desabitada. 6:40 / de cem em cem, e de cinqüenta em cinqüenta: no AT, grupos desses tamanhos eram organizações padrão de pessoas, de modo especial para propó­ sitos militares (veja Êxodo 18:21; Deuteronômio 1:15; 1 Samuel 8:12). Isso poderia sugerir que Marcos está tentando descrever Jesus no processo de organizar as pessoas à maneira de um rei que ordena seus súditos. Documentos antigos de seitas religiosas judaicas em Qumran (rolos do mar Morto), descre­ vem a organização dos eleitos para a salvação final em termos semelhantes (veja T. H. Gaster, The Dead Sea Scriptures, 3a. ed. [Garden City, N.Y.: Anchor, 1976], pp. 47, 86). 6:41 / [Jesus] ... os abençoou ... e, partindo os pães: muitos intérpretes chamam a atenção para a similaridade de ações aqui e na última ceia, em 14:22, sugerindo que Marcos teve a intenção de fazer que seus leitores vissem este milagre como uma espécie de eucaristia (ou santa ceia do Senhor). É certo que os leitores cristãos de Marcos teriam visto tais semelhanças; a arte e liturgia primitivas mostram que os cristãos perceberam alguma conexão. Deveríamos salientar, entretanto, que as ações de orar, partir o pão e distribuí-lo às pessoas são ações padrão nas refeições religiosas judaicas dos tempos antigos. Aben­ çoou aqui é literalmente: “ ele bendisse (Deus)” , que é o que significa o termo hebraico para a oração de graças antes das refeições. No outro relato de multiplicação de pães, entretanto (8:1-10), Marcos emprega o verbo que signi­ fica literalmente “ agradecer” , a mesma usada em 14:23, eucharisteo, da qual provém nossa palavra eucaristia. A descrição do povo sendo alimentado em 6:30-44 contém mais o toque judaico do AT, enquanto a alimentação de 8:1-10 apresenta mais conexões eucarísticas cristãs. 6:45 / [Jesus] obrigou os seus discípulos a subir para o barco: não há explicações sobre por que Jesus mandou embora seus discípulos, bem como a multidão (6:46). Alguns apontam para a passagem paralela de João 6:14-15, em que a multidão (e os discípulos?) está prestes a obrigar Jesus a chefiar uma revolta messiânica, o que se evita mediante o estratagema de abandonar a multidão de repente. Sob este ângulo, Jesus vai orar (Marcos 6:46), a fim de obter forças para resistir à tentação de ceder à excitação do povo e dos discípulos, ocasionada pela provisão miraculosa de pão, em pleno deserto. (Veja Lane, pp. 234-35). Betsaida: é nome que significa “ casa do pescador” . A cidade ficava na praia norte do mar da Galiléia, e possuía um porto natural muito usado pelos

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pescadores. (Quanto à cidade, veja IDB, vol. 1, pp. 396-97 e MBA, 232). 6:48 / por volta da quarta vigília da noite: refere-se à divisão militar da noite, nos tempos dos romanos. andando por sobre o mar: no AT, Deus é retratado caminhando por sobre as ondas do mar, o que significa controle divino da natureza, de modo especial controle sobre o mar, como símbolo de caos e desgoverno (veja Jó 9:8 e Salmo 77:19). 6:49 / cuidaram que era um fantasma, o termo fantasma em grego pode significar qualquer tipo de espectro amedrontador; visto que os antigos com freqüência consideravam o mar agitado como habitação de demônios marítimos, é provável que este seja o sentido do termo, aqui. 6:50 / Sou Eu: a frase grega aqui pode ser apenas um modo de auto-identificação. Todavia, é empregada no AT (veja Isaías 43:25; 48:12; 51:12) com força especial, como termo designativo e descritivo de Deus, assemelhando-se ao termo empregado em Êxodo 3:14, em que Deus primeiramente se revela a Moisés. Observe de modo especial como a passagem toda de Isaías 51:9-16 forma um contexto interessantíssimo para o milagre no mar aqui relatado. Em Marcos, a mesma frase reaparece nos lábios de Jesus no momento de seu julgamento (14:62); ali, também, o Senhor talvez estivesse aludindo àquelas passagens do AT. Também em 13:6 Jesus adverte os discípulos a respeito de impostores que haveriam de vir, fazendo a mesma declaração (divina?) sobre si mesmos. (Veja “I am”, NIDNTT, vol. 2, pp. 278-83). 6:52 / não tinham entendido o milagre dos pães: Marcos se refere ao milagre da multiplicação dos pães. Talvez o evangelista desejasse chamar a atenção para o significado simbólico dos cinco pães e doze cestos cheios de pedaços. o coração deles estava endurecido: é condição indicativa de falta de fé, à semelhança dos adversários de 3:5 (veja nota sobre esse versículo). Em 8:17, os discípulos são descritos de modo semelhante (veja nota sobre esse versículo). A idéia de coração ... endurecido vem do AT (Êxodo 14:8; Salmo 95:8), significando uma condição séria de incredulidade e até mesmo desobediência. Desse modo, os discípulos são descritos aqui em termos bastante negativos. 6:53 / Genesaré: pode referir-se à pequena planície na praia noroeste do mar da Galiléia, ou à cidade localizada na planície (cp., veja Lane, p. 239, no. 127; “Galiléia, Mar da”, IDB, vol. 2, pp. 348-50; MBA, 231). Marcos não explica por que aportaram aqui se, como diz ele, saíram para Betsaida (6:45); imagina-se com freqüência que a terrível tempestade de 6:48-51 teria arremessado o barco na direção oeste, até chegar a este local. 6:55 / os enfermos em leitos: isto nos faz lembrar o homem doente de 2:1 -12. 6:56 / na orla da sua veste: isto nos faz lembrar a mulher de 5:25-28 (veja comentários sobre esses versículos).

12. Limpos e Imundos (Marcos 7:1-23)

7:1-13 / Em bora NIV apresente 7:1-13 com o unidade separada, é im portante notar que a discussão a respeito das idéias tradicionais judaicas do que é “lim po” e do que é “im undo” , iniciada em 7:1-13, prossegue em 7:14-23. Além do mais, este tópico m onta o palco para o episódio de 7:24-30, em que Jesus atende ao pedido de um a m ulher estrangeira, relacionado com seu m inistério. Assim, a passagem resum i­ da precedente (6:53-56) é ponto de transição; no capítulo 7 deveríam os perceber o início de nova seção, na história de Marcos. Fariseus (m encionados pela últim a vez em 3:6) e alguns escribas (m estres da lei, m encionados pela últim a vez em 3:22) reaparecem aqui com o críticos do com portam ento dos discípulos de Jesus. Isto nos faz lem brar de 2:18-28, em que os discípulos de Jesus tam bém sofreram críticas por haverem violado as práticas religiosas dos fariseus. A afir­ m ativa de que tais críticas dizem respeito aos discípulos alm eja capacitar os leitores cristãos a identificar-se mais intim am ente com a narrativa e seu ensino. Os prim itivos cristãos gentios teriam visto nessa discussão das práticas religiosas judaicas ensinos im portantes para suas próprias vidas e crenças, de m odo especial na igreja do prim eiro século, em que ainda estava bastante viva a questão de se os cristãos não-judeus estariam obrigados a observar os tabus judaicos (veja nota sobre im puras). O fato de haver aqui um a explicação sobre os costum es judaicos (7:3-4) de­ m onstra que os leitores de M arcos talvez fossem cristãos gentios. Conquanto a queixa dos fariseus e escribas relaciona-se à observância de costum es alim entares religiosos que objetivavam m anter a pureza cerim onial, em essência a m esm a questão tratada em 7:14-23, a resposta de Jesus constitui uma crítica am pla à base de seus adversários, na qual alicerçam a tradição de seus ancestrais (7:3,5). A questão levantada pelos críticos de Jesus é a prática prescrita da lavagem ritualística das mãos, antes das refeições, prática que fazia parte da tentativa farisaica genérica de viver num perpétuo estado de pureza (veja nota). O bservar tais costum es dem onstrava que a pessoa praticante se dedicava a Deus, e desejava distinguir-se e separar-se das m assas de pecadores e de judeus menos escrupulosos. A resposta de Jesus não parece, à prim eira vista,

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relacionar-se de m odo direto à questão da lavagem cerim onial; em vez disso, ele retruca com um a contra-acusação (7:6-8) e, em seguida, com um a ilustração de que o Senhor considera com o perverso o acúm ulo das tradições judaicas (vv. 9-13). Só em 7:14-23 é que a questão original do “lim po/im undo” , que está im plícito na base da prática de lavar as mãos, recebe tratam ento da parte de Jesus. Entretanto, as palavras de Jesus em 7:6-13 na verdade são relevantes para o criticism o farisaico dos discípu­ los (7:1-5), visto que o Senhor ataca a base da crença dos fariseus. De fato, 7:1-13 (e 7:14-23) form am excelente exem plo da natureza do conflito entre Jesus e os fariseus, conflito que já discutim os em conexão com 2:13-28 (veja com entários acerca destes versículos). A ntes de discutirm os esta passagem em m aior profundidade, lem brem o-nos do contexto do conflito. Jesus e seus discípulos estavam engajados num m inistério itinerante, proclam ando a chegada im inente do reino de Deus, e tom ando refeições onde estas lhes eram oferecidas, ju n to com seus hospedeiros. Para Jesus, o interesse central era este m inistério, baseado na convicção fundam ental de que o reino de Deus não dependia de preparo ritualístico (sem elhante ao que se encarnava no m odo de viver dos fariseus) mas, da vontade de Deus quanto a efetivar a vinda do reino. Conseqüentem ente, era m uito m ais im portante reconhecer a chegada próxim a do reino e dem onstrar estar pronto para nele entrar, m ediante um a radical reorganização da própria vida (veja 8:34-38; 9:33-37,42-50; 10:1-12, 17-31; 12:28-34), do que conform ar-se com as práticas dos fariseus, tão interessados em rituais cerim oniais, tendentes a produzir um elitism o tem perado de religiosidade. N a presente passagem , Jesus rejeita o criticism o dos fariseus, com seus sobretons elitistas, e lhes retruca com um a acusação que fere o próprio cerne das intenções farisaicas. Supunha-se que a intenção dos m uitos regulam entos dos fariseus era fazer que a lei de D eus se tornasse aplicável a todas as áreas da vida e, tam bém , assegurar que a lei fosse acatada, dando-lhe um caráter m ais preciso do que o A T m ostrava. Tudo isso poderia parecer elogiável, na intenção, mas na prática os resultados ficavam a desejar. Além dos sentim entos de superioridade já m enciona­ dos, em qualquer program a parecido com esse dos fariseus, subsiste o perigo de aplicar-se de m odo particular a lei de Deus com o se fora um a obrigação sacrossanta, que poderia, no fim, perder seu sentido e valor originais, à m edida que passam o tem po e as circunstâncias. Pior ainda:

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num viver religioso que enfatize a observância de um a m ultiplicidade de m andam entos, com o meio de atingir respeitabilidade religiosa e social, pode surgir a obrigação da prática de determ inados regulam entos em particular, de tal m odo que violente as pessoas (há abundância de exem plos nos círculos cristãos também!). É esse tipo de erro que Jesus ataca em 7:6-13. O bservem os os termos que Jesus em prega nessa passagem , a fim de criticar os fariseus. Em 7:3 e 5 a prática farisaica é considerada tradição oriunda dos antigos, referindo-se a tradições sagradas vindas de m estres estim ados, do passado, cham ados aqui de antigos. A o replicar-lhes, Jesus m enciona um a passagem do AT que se refere à tradição dos hom ens (7:8), em contraste com o m andam ento de Deus. Em 7:9, o Senhor afirm a que a tradição deles não passa de a vossa própria tradição, assim a despoja de qualquer validade. Jesus rejeita a tradição dos fariseus porque, afirm a o Senhor, ela não representa a vontade de Deus, m as pode ser utilizada a fim de legitim ar a quebra da lei de Deus. O exem plo que Jesus escolhe relaciona-se com o procedim ento de a pessoa dedicar suas posses a D eus, pondo um im pedim ento, assim, ao uso delas por parte de outras pessoas. Se um filho fizesse tal voto dedicatório, a lei farisaica antiga dos judeus deter­ m inava que esse voto não podia ser cancelado, nem m esm o com o objetivo de sustentar os pais de quem fez o voto, com aquelas posses. (Veja nota abaixo, sobre 7:12, nada mais lhe deixais fazer por seu pai ou por sua mãe). A ssim é que Jesus acusa os fariseus e escribas de sobrepor um a lei (acerca de a pessoa ser obrigada a m anter seu voto a Deus) a outra (o sustento dos pais dessa pessoa). N outras palavras, Jesus vai além, ao replicar contra o costum e farisaico em particular de lavar as mãos, e rejeita a base toda do criticism o que os adversários lançam contra seus discípulos, a tradição de fariseus e escribas, afirm ando que ela não tem força para tentar representar a vontade de Deus. E ste ponto fundam ental é bastante importante para as passagens seguintes, e nele se baseia Jesus para rejeitar a tentativa farisaica de definir a pureza religiosa. Além disso, esse ponto central prepara o leitor para o incidente que envolve um a m ulher gentílica. Os prim itivos cris­ tãos gentílicos teriam visto nas palavras de Jesus a base de seu próprio direito de desprezar muitos dos escrúpulos do judaísm o e, ao m esm o tem po, afirm ar que obedecem à vontade de Deus.

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7:14-23 / Nestes versículos Jesus volta à questão da pureza cerim onial, introduzida em 7:1-5 e, com efeito, descarta a idéia de que certos objetos ou alim entos tornam a pessoa religiosam ente imunda, ou incapacitada para participar do culto, ou da com unhão humana. Jesus faz um jo g o de palavras, com o contraste entre o que entrando no hom em , o possa contam inar, e o que sai dele, ao falar perante a m ultidão (7:14-15); num a ação tipicam ente de M arcos, os discípulos se aproxim am do Senhor, em particular, para que ele lhes explique o que acabou de dizer (7:17; cp. 4:10, 34; 9:9, 28, 30-31; 10:10, 23-31; 13:3-4), dando ocasião para o ensino de 7:18-23. Enquanto os discípulos fazem essa pergunta são um a vez mais repreendidos pela incapacidade de entender Jesus. Com o de outras vezes, os leitores de M arcos aprendem pelo erro dos doze. O efeito do ensino de Jesus parece resum ir-se no abandono da idéia de que certos alim entos são “im undos” . As m inuciosas práticas judaicas baseavam -se todas na lei do AT, que fazia distinção entre alim ento lim po e alim ento imundo. Segundo o AT, a pessoa podia tornar-se cerim onialm ente im unda ao com er certos alim entos e até ao tocar objetos conside­ rados im undos; grandes extensões da lei do AT dedicam -se aos m anda­ m entos concernentes a estas questões (veja nota). Isto significa que o ensino de Jesus não só trata de um a característica im portante dos costu­ mes religiosos judaicos tradicionais, m as tam bém rescinde grande parte do conteúdo legalístico do AT, que trata de tais leis cerim oniais. É certo que o efeito prático desse ensino do Senhor, entre os prim itivos leitores gentios de M arcos, foi a legitim ação do desprezo que passaram a votar às leis cerim oniais judaicas. Este fato se depreende de um a nota editorial de M arcos, no final de 7:19 (veja nota). Entretanto, o significado mais profundo das palavras de Jesus não estava apenas no cancelam ento das práticas judaicas, mas na ênfase do risco que a observância dessas práticas religiosas ritualísticas corre de levar ao desprezo o principal: a raiz do pecado e da verdadeira im undícia está no âm ago das intenções e pensam entos hum anos. No contexto da narrativa, o ensino de Jesus significa que o julgam ento lançado contra seus discípulos, pelos fariseus, não levou em conta esta questão m ais importante. E sta crítica da confiança na observância ritualística externa não se originou com Jesus, pois encontra-se nos profetas do AT (veja Am ós 5:21-27; Isaías 1:10-20); a tradição judaica rabínica tinha seus porta-vo-

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zes que levantavam esses m esm os pontos. Portanto, o ensino de Jesus não era, na verdade, um discurso anti-judaico e tam pouco rejeição total do AT. Em vez disso, considerada sua situação, seu ensino era uma defesa contra a crítica dos que não lhe toleravam a indisposição para acatar regulam entos ritualísticos de m odo escrupuloso; na situação da igreja prim itiva, o ensino do Senhor era um a defesa da liberdade cristã, contra as obrigações cerim oniais judaicas. Noutras passagens do NT, há evidências à questão de que se todos os cristãos estão sob as leis ritualísticas do AT, este constitui, então, um problem a delicado (Gálatas 2:1-21; Rom anos 14:1-23; Atos 15:1-29; observe a visão de Pedro acerca de alim entos “im undos”, em Atos 10:1-44). N a verdade, até hoje, em nossa era, ergue-se de vez em quando essa questão, da parte de alguns grupos de cristãos escrupulosos (e com freqüência surge da parte dos jovens). Pelas palavras de Jesus, bem com o pelo ensino do resto do NT, os cristãos encontram a base da vida de santidade e devoção ao Deus revelado no Antigo Testam ento, que não envolve as práticas ritualísticas do judaísm o tradicional. No contexto im ediato de M arcos 7, este ensino não só resolve o problem a levantado em 7:1-5 com o tam bém prepara o leitor para o próxim o incidente, em que Jesus m inistra a alguém considerado imundo, segundo os padrões da legislação cerim onial do judaísm o.

Notas Adicionais # 12 7:2 / impuras: a palavra grega aqui é koinos, com o sentido literal de “comum”; todavia, aqui ela parece representar a palavra hebraica que descreve as mãos “impuras” de alguém, isto é, mãos inadequadas religiosamente para tomar uma refeição (que no judaísmo antigo sempre constituía um ritual religioso), a menos que antes fossem lavadas como cerimônia. (Quanto aos termos técnicos das leis judaicas, veja Lane, pp. 242-43, e a literatura ali mencionada). O AT (Êxodo 30:19; 40:12) exigia que os sacerdotes judeus se lavassem ritualmente antes de servir perante o altar. Alguns leigos judeus, como os fariseus, estabeleceram para si mesmos o alvo de viver segundo os padrões sacerdotais mais exigentes, pelo que, seguindo as prescrições cerimoniais, lavavam as mãos antes das orações diárias matinais, e antes das refeições, como se seus alimentos fossem sacerdotais. (Veja também os comentários e notas sobre 7:14-23). 7:4 / muitas outras coisas: são palavras de crítica àquilo que Marcos considera massa complicada de regulamentos e normas. camas: NIV traz “sofás para refeições” . É palavra ausente em muitos

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manuscritos antigos importantes. Os eruditos dividem-se quanto a se foi omitida de modo deliberado, ou por acidente, por alguns copistas (talvez porque lavar camas parece um tanto estranho), ou se foi acrescentada por alguns escribas familiarizados com Levítico 15, com suas exigências quanto à purificação cerimonial das pessoas, e das roupas das pessoas que entrassem em contato com uma cama imunda. 7:6 / hipócritas: é a única ocorrência dessa palavra em Marcos, embora apareça várias vezes em Mateus (veja 6:2, 5, 16; 23:13, 15, 25, 27, 29) e em Lucas (6:42; 12:56; 13:15). O termo em grego significa fingido, ou mesmo trapaceiro, dando indicação aqui de que os críticos estão sendo acusados de afirmar serem diligentes cumpridores da vontade de Deus quando, na verdade, estão mostrando apenas uma aparência de piedade. este povo: inicia uma citação de Isaías 29:13. A versão de Marcos lembra mais de perto a tradução antiga do AT para o grego, conhecida como Septuagé­ sima não sendo exatamente como a do texto hebraico de Isaías, conquanto a substância seja a mesma. 7:10 / Moisés disse: introduz citações de Êxodo 20:12 (paralelismo em Deuteronômio 5:16) e de Êxodo 21:17 (paralelismo em Levítico 20:9). Para Jesus, esses mandamentos incluem a obrigação de os filhos adultos serem responsáveis pelo atendimento das necessidades de seus pais. 7:11 / Corbã: era o termo hebraico empregado para descrever objetos e até mesmo pessoas dedicados exclusivamente a Deus. Declarar que alguma coisa é Corbã seria o mesmo que fazer um voto concernente a essa coisa, voto que não era fácil de cancelar-se (veja nota seguinte). Quanto a alguns mandamentos do AT com respeito a votos, veja Deuteronômio 23:21-23; Números 30:1-16. O voto a que o Senhor se refere aqui seria voto religioso em que a pessoa dedicou a Deus temerariamente tudo quanto tinha, sem calcular primeiro as necessidades de seus pais; a declaração do Senhor poderia também referir-se a um voto intempestivo, feito por um filho em momento de ira, por causa dos pais, de modo que, no que se referisse a eles, todos os bens desse filho eram Corbã, a saber, proibidos de serem utilizados em benefício dos pais. (Cp. Lane, pp. 249-52; Nineham, pp. 195-96). 7:12 / nada mais lhe deixais fazer por seu pai ou por sua mãe. há evidências de antigas regras dos escribas, que não permitiam a um filho renunciar ao voto pronunciado, ainda que as conseqüências desse voto fossem graves privações para seus pais. (Veja Lane, p. 251, para discussão e referências à literatura antiga). 7:15 / contaminar: o verbo grego significa “tornar cerimonialmente imun­ do”. NIV traduziu com um adjetivo: “imundo”. As práticas ritualísticas do judaísmo antigo baseavam-se em passagens do AT como Levítico 11:1-47 e Deuteronômio 14:1-20, tendo sido elaboradas por autoridades na função de escribas, em tempos remotos, continuando pelas eras passadas até o tempo atual,

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quando assumiram formas mais tradicionais de judaísmo. Alimentos “kosher” são cerimonialmente “limpos”, próprios para serem comidos pelos judeus mais escrupulosos. (Quanto a referências a literatura técnica sobre a questão do que é limpo e do que é imundo no judaísmo, veja Lane, pp. 249-58; veja também “Clean and Unclean”, IDB, vol. 1, pp. 641-48). 7:19 / e é lançado fora?: literalmente: “e em seguida vai para a latrina”. Ao dizer isto, Jesus considerou puros todos os alimentos, a maioria dos tradutores e comentaristas modernos entende que a frase grega deve ser tradu­ zida desse modo. No grego, essa frase é um período gerúndio que se traduziria literalmente: “purificando todos os alimentos”. E frase que se considera comen­ tário do próprio Marcos; o particípio é tomado como dependente do “Ele lhes disse”, do v. 18. Tal frase também poderia entender-se como dependente do período que a antecede de imediato, assim: “e é lançado fora [do corpo] purificando todos os alimentos”, significando que todos os alimentos acabam no mesmo lugar! KJV traduz a frase literalmente. Se a opinião popular sobre o sentido da frase (que se reflete na tradução apresentada por NIV) estiver correta, a intenção de Marcos teria sido que essa frase explicasse bem a aplicação do ensino de Jesus a seus leitores. Há outros exemplos de tais comentários editoriais em Marcos (veja 3:30; 5:8; 7:3-4; 13:14).

13. Ministério em Território Gentio (Marcos 7:24-37)

7:24-30 / O título que NIV dá a esta história enfatiza o ponto central da passagem : “ a fé que teve um a m ulher siro-fenícia” , fé operante de um a m ulher gentílica. Em bora o criticism o de Jesus contra as tradições dos escribas, em 7:1-13 e sua rejeição do interesse pela pureza ritual, em 7:14-23, possam ser explicados no contexto de seu próprio m inistério histórico, seus ensinos aqui tam bém foram relevantes à igreja, m ais tarde, com o observam os em nossos com entários sobre essas passagens. Na passagem em foco, a relevância para a igreja prim itiva de tudo quanto Jesus declarou em M arcos 7 torna-se ainda mais cristalinam ente claro. Se o efeito lógico do ensino de Jesus é legitim ar as pessoas que não seguem os costum es cerim oniais dos fariseus, tais com o os crentes gentios, este incidente provê um precedente real para que nos aproxim e­ mos dos gentios, e os incluam os no círculo daqueles a quem chegam os benefícios do reino de Deus. Cristãos gentios prim itivos, conscientes de não fazerem parte da nação escolhida de Israel, ter-se-iam espelhado na m ulher, e encontrado grande ânim o em sua história. E isto exatam ente que M arcos objetiva. E sta passagem é excelente ilustração de com o os autores do E van­ gelho tentaram to rn ar os ensinos e ações históricos de Jesus da m áxim a relev ân cia p ara os leitores de seus próprios dias e, sim ulta­ neam ente, tentaram descrever o m inistério do Senhor com o a tradição o retratou. A ssim é que, na presente história, Jesus de início declara que não é m ero operador de m ilagres, e que seu cham ado foi para atender a Israel, os filhos (7:27) da aliança do AT com D eus, aos quais o reino de D eus d ev ia ser proclam ado em prim eiro lugar (veja nota sobre deixa prim eiro saciar os filh os). T ais palavras com binam m uito bem com o que o Jesus “ histórico” teria dito. M arcos não reform a esse Jesus “ h istó rico ” , transform ando-no num m issionário cosm opo­ lita que p rega a todas as nações. E ntretanto, dois itens dessa história ju stific am a m issão p o sterior da igreja por todo o m undo. P rim eira­ m ente, há o sim ples fato que Jesus satisfaz a necessidade dessa m ulher, dando-lhe parabéns pela petição determ inada e reverente. A lição de M arcos é que os gentios que dem onstram o m esm o tipo de

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pro ntidão em reconhecer suas necessidades e confiar em Jesus, podem salvar-se. E m segundo lugar (tem os aqui um a característica distintiva de M arcos, não encontrada no relato paralelo de M ateus 15:21-28) há a declaração de 7:27, deixa prim eiro saciar os filhos. Esta declaração parece que está antecipando a possibilidade de um a alim entação “ pos­ terior” de outras pessoas, à sem elhança dessa mulher, e teria sido em pregada por M arcos a fim de salientar que a restrição do próprio m inistério de Jesus a Israel era, ao m esm o tem po, adequado e sem exclusão de um a futura m issão aos gentios. Podem os ver, nesta frase, um reflexo da ênfase do apóstolo Paulo, segundo o qual a vontade de Deus era que a salvação fosse anunciada prim eiro aos judeus e, depois, a todo o m undo (veja Rom anos 1:16; 2:9-11; cp. Atos 3:26; 13:26-48). A o exam inar esta passagem de m odo adequado, no contexto de M arcos, devem os observar com o o assunto de alim entos aparece em vários pontos da narrativa, perto do incidente. Em 7:1-5, há a questão de a pessoa com er, estando cerim onialm ente imunda. Em 7:14-23, Jesus fala sobre com ida, se alguns alim entos são “ im undos” ou não. Agora, há a referência a um alim ento (pão) com o sím bolo das bênçãos do reino de Deus. N a verdade, há outra passagem em que M arcos em prega o alim ento com o sím bolo dessas bênçãos. De modo especial, as duas m ultiplicações de pão são im portantes; a prim eira, em 6:30-44, retrata Jesus trazendo as prom etidas bênçãos da salvação a Israel, e a segunda, em 8:1-10, com o veremos, pode ser considerada com o com plem ento da prim eira, pois, dá a entender que o “ pão” de Jesus deverá ser distribuído aos gentios tam bém no futuro. Se por um instante considerarm os que há, de fato, um relacionam ento entre esses dois m ilagres da m ultiplicação do pão, conform e sugerim os, todo o m aterial de M arcos 7 e, de modo especial, o presente incidente de 7:24-30 pode ser tom ado com o o esforço do evangelista para m ostrar ao leitor que o m inistério de Jesus a Israel foi preparatório, e base para a m ais am pla proclam ação posterior do evangelho. E m períodos subseqüentes da igreja, quando a questão da base da m issão aos povos gentílicos já havia deixado de ser assunto debatível, esta história ainda constituía exem plo inspirador à fé dos crentes no poder e na prontidão de Cristo para ouvir-lhes as petições. 7:31-37 / E ste incidente singular em M arcos, parece não ser apenas mais um exem plo dos m ilagres de cura de Jesus, mas revela o significado

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mais am plo do m inistério do Senhor, ao fazer alusão à esperança profé­ tica do AT. A lgum as características dessa passagem indicam isso. Pri­ m eiram ente, a descrição da condição desse hom em (7:32) em prega um term o raro (veja nota) que significa “falar com grande dificuldade, ou com im pedim ento da fala” . É palavra que ocorre na tradução grega do AT, em Isaías 35:5-6, dando a entender que M arcos tinha em m ente fazer um a ligação com essa passagem , em que se prom ete um a época em que Deus concederia bênçãos à sem elhança de curas m iraculosas ao seu povo. Em segundo lugar, a reação do povo (7:37) tam bém parece aludir àquela passagem , dando a entender que o cum prim ento de suas prom es­ sas havia chegado no m inistério de Jesus. De fato, Isaías 35 constitui leitura básica prelim inar interessante para M arcos 7 (veja notas). E possível que o evangelista tenha tido a intenção de levar seus leitores a lem brar-se da passagem toda, por suas alusões a ela. A inda que seus prim eiros leitores fossem talvez cristãos gentios, possivelm ente estives­ sem fam iliarizados com o AT grego, de modo que pudessem captar a conexão. A lém disso, esta história, ao lado da que a precede, parece apoiar a rejeição que Jesus aplica às críticas dos fariseus, em 7:1-23, ao contrastar seu criticism o com estes incidentes, exibindo provas de que o Senhor, de fato, é portador da salvação de Deus. H á um a conexão com a história precedente, talvez na localização do incidente, aparentem ente em terri­ tório gentílico (Decápolis, veja nota). Portanto, ambos os m ilagres ocorrem em território considerado não-santo, ou im undo, segundo os padrões judaicos, o que representa uma observação especialm ente m ar­ cante, à luz da controvérsia acerca da legitim idade das distinções entre puro e im undo de 7:1-23. E sta história de cura proporciona um a descrição m inuciosa das ações de Jesus em prol de pessoas necessitadas (7:33-34; cp. 8:22-25). As ações de Jesus podem ser exam inadas de duas m aneiras pelo m enos. P rim eira­ m ente, as ações poderiam ser vistas apenas com o um a espécie de lingua­ gem sim bólica cujo objetivo seria m ostrar à pessoa o que Jesus quer fazer em seu benefício, talvez anim ar-lhe a fé. Assim , o toque nos olhos e na língua do hom em poderia significar que Jesus pretende atender-lhe as necessidades nessas áreas. A saliva (pelo menos a saliva de certas pessoas) aparentem ente era considerada por muitos com o possuindo poderes curativos, tanto em círculos judaicos como pagãos (veja nota),

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pelo que a saliva de Jesus aqui poderia significar a esse hom em que Jesus tinha a intenção de curá-lo (cp. 8:23; João 9:6). A ação de olhar para o céu e o suspiro (suspirou, 7:34) teriam sido sinais de oração a Deus. Entretanto, tam bém é possível tom ar essas ações no contexto das histó­ rias de curandeiros e m ilagreiros judeus e pagãos, de tem pos antigos, cujas técnicas m ágicas, segundo relatos, seriam parecidas às ações de Jesus (veja nota). Não é difícil pensarm os que Jesus poderia ter em pre­ gado gestos, em suas curas e exorcism os, que se pareciam com os de outros que tentavam realizar m ilagres sem elhantes; há, entretanto, dis­ tinções im portantes a serem feitas no m inistério de Jesus, diferenciandoo dos exorcistas e praticantes mágicos profissionais do m undo antigo. O fato mais im portante é que as obras de Jesus faziam parte de sua proclam ação do reino de Deus, representando sinais do progresso desse reino; Jesus não parece interessado em usufruir vantagens pessoais da fam a resultante de seu m inistério, mas dem onstra certo constrangim ento diante de sua própria notoriedade, quando desacom panhada da aceitação de sua m ensagem principal.

Notas Adicionais# 13 7:24 / para as terras de Tiro: literalmente, o texto diz: “para as fronteiras de Tiro”, querendo referir-se à área sob jurisdição de Tiro, estendendo-se de norte ao sul, ao longo da costa, alguns quilômetros para o interior montanhoso, perto da cidade. Não sabemos onde este incidente ocorreu, em território tão amplo. (Veja MBA, 232). mas não pôde ocultar-se: mais uma vez encontramos um tema típico de Marcos, o da discrição do Senhor. Jesus tentava, sem sucesso, restringir a divulgação de sua fama (cp. 1:44-45; 5:42-43). 7:25 / espírito imundo: descrevem-se as condições de outras pessoas afli­ gidas pelo mesmo mal, veja em 5:1-5; 9:17-21. 7:26 / Esta mulher era grega: isto quer dizer que a mulher era natural da área fenícia, de língua grega. Essa área se convertera à língua e cultura gregas no quarto século a.C., depois de Alexandre, o Grande. A Fenícia ficava na área onde hoje está o Líbano. (Veja “Phoenicia”, IDB, vol. 3, pp. 800-805). 7:27 / Deixa primeiro saciar os filhos: a idéia de que os israelitas, de modo especial, eram filhos de Deus, encontra-se no AT (veja Êxodo 4:22; Deutero­ nômio 32:6; Isaías 1; Oséias 11:1). Não ficou claro se a imagem de Jesus sobre filhos/cachorrinhos se refere a esta idéia do AT, sobre Israel, ou se se trata de simples analogia baseada na vida doméstica cotidiana da época: primeiro come a família, depois os animais domésticos. cachorrinhos: é verdade que a tradição judaica às vezes se refere aos gentios

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como “ cães” , mas isto talvez não seja relevante, aqui. O termo grego empregado por Marcos parece referir-se a cães domésticos, enquanto modo pejorativo “ cães” , refere-se a cães selvagens, ou cães de rua, comedores de lixo. 7:28 / os cachorrinhos comem, debaixo da mesa, as migalhas dos filhos: a resposta da mulher confirma que a palavra cachorrinhos aqui refere-se a animaizinhos domésticos debaixo da mesa. A mulher salienta a Jesus, inteli­ gentemente, que embora os filhos comam primeiro, os cachorrinhos podem apanhar as migalhas que caem da mesa sem perturbar a refeição. Na verdade, o que a mulher está dizendo é o seguinte: “ o senhor não precisa atrapalhar-se no preparo do almoço; eu só estou pedindo as sobras da mesa” . Essa tenacidade e humildade, que admitem o ministério de Jesus, conquanto a própria mulher não o perceba, induzem Jesus a abençoá-la. O Senhor não podia transformar-se em mero milagreiro itinerante, visto que fora chamado para proclamar o cumpri­ mento das esperanças proféticas de Israel; todavia, o Senhor podia atender a esta necessidade particular, visto que a mulher cria que Jesus podia curar-lhe a filha de onde estivesse mediante uma simples ordem. (Quanto a uma discussão erudita do ministério de Jesus a Israel e seu relacionamento com os gentios, veja T. W. Manson, Only to the House o f Israel [Filadélfia: Fortress, 1964]; J. Jeremias, Jesus’ Promise to the Nations [Filadélfia: Fortress, 1982]). 7:31 / terras de Tiro e de Sidom ... território de Decápolis: Quanto a Tiro, veja nota sobre 7:24. Sidom aqui pode significar o território próximo da cidade (cp. Mateus 15:21), ao norte de Tiro, na área do moderno país Líbano, antiga Fenícia (veja MBA, 232; “ Sidom” , IDB, vol. 4, pp. 343-45). Quanto a Decá­ polis, veja nota sobre 5:20. Embora houvesse judeus que habitavam essas áreas, suas populações eram predominantemente gentílicas; seu caráter gentílico é o que une essas áreas, na narrativa de Marcos. As viagens de Jesus por tais regiões prefiguram, para Marcos, a missão aos gentios realizada pela igreja, depois de Jesus. 7:32 / gago: é tradução de um termo grego que aparece só aqui, em todo o NT; e na Bíblia (AT) em grego, dos leitores de Marcos, só em Isaías 35:6; isso significaria que a alusão em Marcos é deliberada. E provável que o evangelista tenha em vista uma gagueira severa, ou outro impedimento sério da fala (NIV traduz: “ falava com tremenda dificuldade” ). Veja também nota sobre 7:37. 7:33 / tirando-o ... à parte: parece em 8:23, que Jesus conduz o cego para longe da cidade antes de curá-lo. Parece que esse procedimento do Senhor faz parte da ênfase que Marcos imprime na aversão de Jesus pelo palavrório do povo excitado (também 7:36). pôs-lhe os dedos nos ouvidos... tocou-lhe a língua com saliva ... Efatá: como já indicamos acima, alguns eruditos vêem similaridades entre estas ações e as práticas de curandeiros e milagreiros antigos. Quanto a uma discussão do assunto e material básico, veja “ Miracle-workers” , IDSup, pp. 598-99, e as demais referências ali mencionadas. Os eruditos discordam quanto a se efatá é

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evidência de Jesus ter falado o aramaico, ou hebraico, aqui, embora a maioria deles ache que se trata do aramaico. (As duas línguas são relacionadas entre si e ambas foram usadas pelos judeus na Palestina antiga). Uma das características comuns dos antigos mágicos e exorcistas era o uso de encantamentos compostos de palavras estrangeiras e até mesmo de sílabas desconexas; todavia, como que para fazer distinção saliente entre Jesus e tais embusteiros, Marcos traduz o termo de modo que signifique uma ordem simples, do conhecimento geral (cp. 5:41; 15:34). Quanto ao emprego de saliva na antigüidade, em conexão com curas, veja “ Spit” , IDB, vol. 4, p. 437. 7:35 / Abriram-se-lhe os ouvidos, e logo o impedimento da língua se desfez: esta descrição vívida da cura retrata o homem como se estivera dominado por um poder perverso. A cura é descrita em termos tais que fazem lembrar um exorcismo; entretanto, essa similaridade de linguagem pode significar que, como os exorcismos, essa cura foi um sinal do reino de Deus manifestando-se pelo poder de Jesus. 7:36 / Jesus lhes ordenou que a ninguém o dissessem: temos aqui mais uma ordem para que fizessem silêncio, nota bastante freqüente em Marcos (cp. 1:44-45; 5:43; 8:26). É significativo que Marcos diz que essa ordem de silêncio não foi obedecida, e que tanto aqui como em 1:45 ele emprega certa palavra, para descrever o anúncio da cura, que se encontra noutras passagens do NT para a pregação do Evangelho. Isso transforma a ingênua proclamação dos milagres de Jesus em representação da proclamação (mais inteligente) que a igreja faria de Jesus. 7:37 / Faz ouvir os surdos e falar os mudos: parece retratar Jesus como trazendo as bênçãos relacionadas ao tempo da graça de Deus, prometida nas profecias do AT, como Isaías 35. E interessante imaginar que Marcos teve a intenção de que seus leitores se lembrassem exatamente dessa passagem do AT, com sua referência ao Líbano (Isaías 35:1-2; é a mesma área onde ficavam Tiro e Sidom), a promessa de milagres de cura (35:5-6), e a perspectiva de Deus juntar seu povo para que todos o sigam em verdadeira santidade (35:8-10); todos estes são temas que se refletem na narrativa de Marcos, capítulo 7.

14. Alimentando 4.000 Homens e Seu Significado (Marcos 8:1-21)

8:1-10 / Este é o relato da segunda m ultiplicação de pães em M arcos (cp. 6:30-44). A repetição desse m esm o tipo de m ilagre num a narrativa tão com pacta com o a de M arcos, e as sem elhanças entre as duas, provocaram m uita pesquisa erudita. V isto que nosso objetivo aqui é tentar com preender o que é que M arcos tencionava, ao incluir os dois relatos em seu Evangelho, não discutirem os as várias sugestões a respeito das fontes orais e escritas que M arcos poderia ter utilizado ao com por essas histórias. M arcos 8:14-21 deixa bem evidente que o autor considerou que essas duas m ultiplicações de pães eram revelações im portantes do significado de Jesus. O fato de o evangelista devotar espaço para as duas narrativas, cujo escopo é o m esm o tipo de milagre, indica que cada um a tinha um significado im portante para ele, e que nenhum a delas podia ser om itida sem grave prejuízo para a outra. Prestando atenção à discussão anterior sobre o prim eiro m ilagre dos pães m ultiplicados, tem os que tentar descobrir qual é o significado particular da alim entação de quatro mil pessoas nesta narrativa de M arcos. Para este propósito, será útil tentar isolar as características mais im portantes da presente narrativa. A prim eira coisa que devemos notar é onde este relato aparece em M arcos. Esta m ultiplicação de pães é m encionada logo após a redefinição do que é lim po e do que é imundo em 7:1-23, e as duas histórias de m ilagres em am biente gentílico em 7:24-37, sendo a últim a história alusão a Isaías 35 com sua esperança profética quanto a um tem po de salvação vindo de Deus. Im ediatam ente após o relato da alim entação m iraculosa em 8:1-10, há a rejeição da exigência dos fariseus de um sinal que autenticasse Jesus (8:11-13), um a advertência contra a atitude errô­ nea das autoridades judaicas (8:14-17), outra história de cura (8:22-26) e, m uitíssim o im portante, um a conversa entre Jesus e os doze, dem ons­ trando com o todos (inclusive os doze) o entendiam de modo tão im per­ feito (8:27-30). Estas passagens nos conduzem à prim eira predição de Jesus quanto à sua execução pelas autoridades judaicas, e a advertência

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do Senhor de que todos quantos o seguirem precisam estar preparados para um destino sem elhante (8:31-38). N outras palavras, a narrativa m aior em que este relato da alim entação m iraculosa se enquadra está cheia de um a tensão crescente entre Jesus e o sistem a religioso judeu. Tam bém contém ensinos e eventos que justificam uma proclam ação do Evangelho além das fronteiras judaicas. Em contraste, nosso estudo do contexto do prim eiro m ilagre da m ultiplicação de pães dá a entender que esse apresenta Jesus m anifestando-se a Israel. A segunda observação concerne aos porm enores do relato deste segundo m ilagre em confronto com os do primeiro. Aqui não existe nenhum a alusão à esperança do AT quanto a um pastor sem elhante a M oisés, ou D avi, com o em 6:34,40 (veja com entários e notas sobre esses versículos). Tam bém , em bora 6:34 enfatize que a com paixão de Jesus o tenha levado a ensinar as m ultidões, em 8:2 o interesse do Senhor concentra-se tão som ente na fo m e física das pessoas. Noutras palavras, este segundo milagre diz respeito a um Jesus que provê miraculosamente um sustento para o povo. Notam os mais um a vez, com o em 6:32, 35, a descrição da área com o sendo um deserto, ou lugar não-habitado (8:4, veja nota). Certam ente, trata-se de alusão a passagens do AT que falam da salvação vindoura da parte de Deus com o um novo m ilagre no “deserto”, sem elhante à preservação de Israel no deserto, sob a direção de M oisés (veja Isaías 43:19-20), e que descrevem a época prom etida por Deus de novas bênçãos, envolvendo abundância m iraculosa em lugares desérticos (veja Isaías 35:1, 6; 51:3). O utro detalhe im portante é a declaração de que algum as pessoas da m ultidão cam inharam muito, porque alguns vieram de longe. Esta expressão traduz um term o usado com freqüência no AT grego para descrever áreas longínquas (gentílicas), e nas prom essas do AT quanto a um ajuntam ento do povo de Deus a partir de terras tão distantes (veja Isaías 6 0 :4 ,9 ; Jerem ias 46:27; e passagens encontradas apenas na versão grega de Jerem ias, 26:27; 38:10). E bem possível que M arcos tivesse a intenção de que essa expressão funcionasse com o alusão àquelas passa­ gens, m ediante a qual os leitores do Evangelho haveriam de entender, que este m ilagre da m ultiplicação de pães seria um sinal de que a reunião do povo de Deus se cum priria com o resultado do m inistério de Jesus. É im portante reconhecer que, em bora os oráculos proféticos originais aparentem ente teriam apontado prim ordialm ente para o retorno de exi­

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lados judeus, vindos de terras distantes, os prim itivos cristãos tom aram essas passagens com o previsão da reunião de povos não-judaicos na igreja. D esse m odo, o fato de Jesus alim entar um a m ultidão porque alguns vieram de longe prefigura a expansão do povo de D eus de m odo que inclua os gentios. Estas observações acerca do contexto narrativo deste relato sobre a m ultiplicação de pães e seus porm enores perm item -nos ver o propósito por detrás de dois m ilagres sem elhantes, em M arcos: alim entar 5.000 dem onstrou que Jesus trouxe a salvação a Israel; alim entar 4.000 ante­ cipou a salvação que atingiria outros povos (gentílicos) além dos judeus. Com o apoio adicional à idéia de que a característica distintiva do presente m ilagre da m ultiplicação de pães em M arcos é que esse m ilagre antecipa com m aior clareza a igreja em penhada em sua m issão m undial. Tem os o porm enor, já observado, sobre a linguagem em pregada pelo evangelista, a fim de descrever as ações cerim oniais de Jesus ao cuidar do pão. Enquanto a oração de graças do Senhor, pelo pão, em 6:41, é descrita em term os que lem bram o ritual judaico de agradecim ento pela refeição (“ os abençoou” , trad. lit.), o term o em pregado em 8:6 expressa a idéia tradicional cristã (gentílica) de dar graças à hora d a refeição (“ tendo dado graças” ) e, m ais im portante ainda, é a expressão relacio­ nada com a cerimônia eclesiástica da comunhão, eucaristia, ou santa ceia do Senhor (eucharisteo). Esta variação de termos entre os dois relatos pode representar m ais um indício que nos ajudará a perceber o significado sim bólico que M arcos viu nos m ilagres. N outras palavras, o segundo m ilagre da alim entação do povo é uma antecipação da eucaristia cristã. D uas outras questões exigem com entário. Prim eiro, a im paciência dos discípulos para com Jesus em 6:35-37 parece estar bastante dim inuída nesta passagem , em bora eles ainda não tenham conseguido perceber a intenção de Jesus em 8:4. U m dos tem as de M arcos, a obtusidade dos doze, reflete-se em am bas as passagens; todavia esse não é o principal ponto dessas duas histórias. Segundo, há variação nos núm eros. Tem havido várias tentativas de enxergar-se cada núm ero de am bas as narrativas com o possuindo signi­ ficado sim bólico im portante, m as alguns eruditos m ostram -se céticos quanto a qualquer significado especial que algum desses núm eros possa ter (veja Lane, p. 274). Com o sugerim os anteriorm ente, quando tratam os de 6:30-44, parece-nos difícil deixar de relacionar o nú m ero doze com

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Israel. Haveria, porém, algum significado nos sete pães e sete cestos cheios de sobras de pão? V ale a pena considerar duas possibilidades. Há, por um lado, o uso do núm ero sete para representar algo com pleto, a perfeição divina. Por outro lado, há a associação do sete (e setenta) com os gentios (veja nota e referências). E bem possível que M arcos tenha tencionado que seus leitores se lem brassem dessas duas conexões num é­ ricas. Entretanto, à vista da evidência com entada acim a de que os dois m ilagres representam , respectivam ente, a m issão a Israel, e ao mundo, talvez fosse m ais provável que os sete pães e sete cestos de sobras tam bém fossem indícios de que esta alim entação m iraculosa prefigure a proclam ação da salvação de Deus ao m undo todo. 8:11-13 / Tendo descrito os eventos m ilagrosos com o sinais de que Jesus foi enviado por Deus, M arcos retrata agora os fariseus exigindo que Jesus dê algum a prova de sua im portância! A conseqüência é que a hostilidade e a cegueira espiritual dos fariseus parecem m aiores ainda. M arcos havia contado os m ilagres antecedentes fazendo alusões a pas­ sagens veterotestam entárias, com o objetivo de esclarecer o significado dos acontecim entos atuais; agora, do AT narra o presente incidente de m aneira sem elhante. Os fariseus pedem um sinal do céu. O term o sinal, não em pregado com m uita freqüência por M arcos (veja nota), é m uito em pregado no AT a fim de referir-se a obras m iraculosas de Deus executadas no livram ento de Israel, para dem onstrar seu amor e poder dedicados ao bem -estar de seu povo (veja Êxodo 7:3; 10:1; Deuteronôm io 6:22). “Sinais” tam bém é a palavra que descreve os eventos autenticadores, que poderiam m arcar a obra dos que se anunciassem com o profetas (D euteronôm io 13:1-5). Não obstante, Israel é advertido a que não siga tais profetas, ainda que estes se façam acom panhar de sinais trazendo um a m ensagem que possa conduzir Israel ao erro, ficando extraviado de Deus. É possível que os fariseus tenham pedido um sinal de Jesus por terem dúvidas reais a respeito da validade de seu m inistério; afinal, Jesus havia assum ido posições contrárias àquelas que os fariseus consideravam norm as bem estabelecidas que os crentes fiéis deveriam acatar e por elas viver. Entretanto, M arcos apresenta o pedido dos fariseus com o ato de desobe­ diência e desacato à m ensagem de Jesus, e aos indícios m iraculosos do favor divino já dispensados. Assim , M arcos m enciona a exigência feita pelos fariseus, dizendo que foi feita para o tentarem .

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Literalm ente, o texto grego diz que eles procuravam “ testá-lo” ou “ tentá-lo” e a palavra em pregada aqui parece fazer alusão a m uitas passagens do AT que falam de Israel “ tentando” a Deus ao duvidar de suas obras previam ente dem onstradas e exigindo novas obras (veja Salm o 95:9-10; 78:17-20, 40-43, 56; 106:13-14; N úm eros 14:1-10, 20-25). A resposta de Jesus, um a recusa à exigência deles de um sinal, tam bém é alusão a passagens do AT sem elhantes às que acabam os de m encionar. A palavra geração alude a passagens do AT com o D euteronôm io 1:35 e Salm o 95:10, onde os israelitas rebeldes exigiram mais sinais do poder de Deus e são cham ados de “ geração m á” . Em suma, M arcos utiliza esse vocabulário a fim de retratar o pedido dos fariseus de mais provas da autoridade de Jesus, com o ato de desobe­ diência, sem elhante à desobediência de Israel no deserto, à época de M oisés. Essa desobediência da parte dos fariseus contrasta violentam en­ te com a fé que teve a m ulher gentia de 7:24-30, ou com a aclam ação da m ultidão em 7:37, pois salientam o fato de o pedido dos fariseus ser clara recusa: não querem ver o que não querem reconhecer. Esta caracterização dos fariseus prepara o leitor para a próxim a passagem (8:14-21), em que os fariseus são m encionados sob luz negativa, com o exem plos que os discípulos não devem seguir. A recusa de Jesus em dar um sinal aos fariseus (8:12) deve, é claro, ser entendida à luz da narrativa de M arcos, que está cheia de indicações m iraculosas da graça de Deus operando em Jesus. Portanto, do ponto de vista de M arcos, a recusa de Jesus é pura ironia. Jesus se recusa a dar-lhes exatam ente aquilo que Deus tem estado oferecendo m ediante Jesus, o tem po todo, e que eles, por serem cegos, não conseguem ver. 8:14-21 / Esta é um a das passagens m ais difíceis de M arcos. Entre­ tanto, é tam bém um a das m ais im portantes, visto estar relacionada a outras passagens (o m ilagre da m ultiplicação de pães) e em face das declarações solenes de Jesus a respeito da com preensão dos versículos 17-21. As passagens paralelas de M ateus 16:5-12 e Lucas 12:1 dem ons­ tram que as palavras de Jesus foram relem bradas de várias m aneiras, o que significa que teriam sido im portantes e um tanto am bíguas no sentido (quanto às passagens paralelas, veja notas). N a verdade, a fim de verifi­ carm os o que M arcos tencionava nessa passagem , será útil anotar as m aneiras pelas quais seu relato deste incidente difere das passagens paralelas.

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A prim eira coisa a exam inar é a declaração sobre o ferm ento dos fariseus e de Herodes (8:14-15). É declaração ligada im ediatam ente ao incidente que o antecede, em que os fariseus exigem uma prova externa da autoridade de Jesus, exigência que M arcos considera desobediência e rebelião (8:11-13, com com entários e notas). A colocação bem próxim a dessa declaração logo após o incidente com os fariseus sugere um significado para o term o ferm ento, contra o qual os discípulos são advertidos. Ferm ento (com freqüência traduzido em algum as versões por “ levedo” ) era um antigo sím bolo judaico e cristão do mal (veja 1 Coríntios 5:6-8), falso ensino (Gálatas 5:9; M ateus 16:12), e hipocrisia (passagem paralela de Lucas 12:1). Em M arcos, os fariseus (às vezes com os m estres da lei) são retratados não basicam ente com o falsos m estres, m as com o pessoas que se recusam a reconhecer que Jesus foi enviado por Deus, tendo autoridade para falar e agir em nom e de Deus (veja 2:1-3:6; 3:22-30), sendo que essa rejeição de Jesus às vezes atinge o ponto de hostilidade aberta (3:6). H erodes tam bém é m encionado com o nutrindo forte hostilidade contra Jesus (6:14-16), pois vê no S enhor apenas m ais um a fonte de perturbações, à sem elhança de João B atista. E assim é que tanto os fariseus quanto H erodes (veja notas sob re tex to s d iv e rsific a d o s) ap a rec em em M arcos com o re p re ­ sentantes da um a cegueira espiritual que vai além de m era rejeição da luz, pois chega a odiar a luz. Sem dúvida, foi esse tipo de atitude e de ação que M arcos tinha em m ente, ao escrever estas palavras acerca do ferm ento que os discípulos deveriam evitar. Os relatos paralelos de M ateus e M arcos m ostram estes evangelistas transm itindo esta decla­ ração de Jesus, aplicando-lhe sua própria ênfase pessoal; todavia, não devem os p erm itir que as interpretações dos outros evangelistas nos im peçam de perceber o sentido particular que M arcos atribuiu a tal declaração. A referência de Jesus ao ferm ento dispara o diálogo sobre pão, em 8:16-21. Antes de estudarm os esta parte da passagem , devem os notar que a tradução de N IV (e tam bém de ECA) do versículo 16 infelizm ente está errada. U m a tradução m ais correta seria a seguinte: “ Eles discutiam entre si o fato de não terem pão” , significando que os discípulos não conseguiam enxergar por que Jesus estaria interessado em que eles tivessem ferm ento, quando não tinham pão, e a única m aneira de eles terem ferm ento seria tê-lo no pão (veja nota). Essa incapacidade de

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perceber que Jesus não estava falando de ferm ento literal m ostra que os próprios discípulos eram obtusos, de com preensão difícil, o que atraiu severa advertência da parte de Jesus, em 8:17-18. Este em prego da palavra ferm ento com o sím bolo de algo, m ais a repreensão aos discípu­ los, alertam os leitores tam bém pois deverão entender com m áxim a acuidade o assunto que está sendo discutido. Esta repreensão é o com entário mais severo sobre o m arasm o espiri­ tual dos discípulos, até este m om ento (cp. 4:13, 40; 6:52) e descreve-os em linguagem tom ada de em préstim o do AT, em que o rebelde Israel é condenado pela sua desobediência a Deus e indisposição para ouvir-lhe a palavra profética (veja Salmo 95:8; Isaías 63:17, “dureza de coração”). M arcos 8:18 na verdade é citação de Jerem ias 5:21, um a condenação profética de Israel, constituindo um a leitura que conduz a m áxim o discernim ento espiritual, ao lado da presente passagem , pois prediz o julgam ento de Deus sobre Israel pela sua incapacidade de reconhecer o Senhor Deus, referindo-se tam bém a seus líderes perversos (sem elhantes aos fariseus de M arcos?). (Ao citar aquela profecia, M arcos talvez tivesse intenção que seus leitores se encam inhassem a Jerem ias 5:20-31, a fim de entender o que o evangelista estava tentando dizer sobre a im portância do m inistério de Jesus e a seriedade de ele ser rejeitado). A aspereza da repreensão deve significar que os discípulos não deveriam esperar ver nela algo sem im portância, insignificante, algum a verdade genérica com o, por exemplo, que Jesus sem pre teria o poder de arranjar pão. M ais do que isso, a linguagem de M arcos indica que os discípulos corriam o grave risco de perder o ponto central acerca de Jesus, o segredo de quem é realm ente o Senhor. Tendo isso em m ente vamos acom panhar o restante da passagem , os versículos 19-21. D entre as muitas formas de entender-se 8:19-21, há três consideradas principais. Prim eira, a interpretação segundo a qual o principal objetivo das palavras de Jesus sobre os m ilagres da m ultiplicação dos pães seria sim plesm ente este: os discípulos não deveriam preocupar-se pelo fato de não terem trazido alimento, porque Jesus já lhes havia m ostrado que podia suprir o que estivesse em falta, com o de fato ele fez ao dar suficiente pão para duas multidões. Segundo esta interpretação, não há m istério acerca do que os discípulos deveriam ter percebido; este é o único ponto em foco — o poder de Jesus. Entretanto, no interesse de tentar esclarecer essa passagem , esta interpretação parece perder as

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indicações de que os discípulos deveriam ter entendido algo mais pro­ fundo do que apenas a realidade do poder de Jesus para arranjar-lhes com ida sem pre que houvesse necessidade. A passagem paralela de M ateus 16:8-10 poderia com m aior facilidade ser tom ada dessa maneira; todavia, o fato de M arcos questionar sobre a exatidão de quantos cestos de sobras foram levantados, depois de cada milagre, indica que esses porm enores têm im portância especial. A segunda linha interpretativa consiste em ver a razão do questiona­ m ento sobre as quantidades das sobras de pão com o dem onstração de que, em bora os discípulos conheçam esses porm enores, desconhecem , todavia, o sentido mais profundo dos m ilagres da m ultiplicação dos pães, sendo esse sentido o seguinte: Jesus é o M essias e o Senhor (veja Lane, pp. 282-83). Noutras palavras, os núm eros desse relato na verdade não são im portantes, não tendo qualquer significado misterioso; apenas dem onstram que os discípulos conseguem lem brar-se de fatos externos, relacionados aos eventos, sem ter, contudo, uma percepção da verdade para a qual os milagres apontam. A terceira form a interpretativa é sem elhante à anterior, em que os relatos sobre a alim entação m iraculosa das m ultidões são vistos com o reveladores da verdade sobre a pessoa de Jesus, sendo o m arasm o espiritual dos discípulos considerado incapacidade de enxergar essa verdade. Contudo, segundo esta perspectiva, o interrogatório acerca dos núm eros é entendido com o tendo o objetivo de indicar o significado dos m ilagres da m ultiplicação dos pães. Noutras palavras, os núm eros refe­ rentes aos cestos de sobras de pão, em cada incidente m iraculoso, são vistos com o indicações simbólicas de quem é Jesus. Em nossa discussão desses dois relatos dos m ilagres (em 6:30-44 e em 8:1-10), dissem os que os núm eros m encionados nesses relatos incluem os sentidos sim bólicos, por isso esta terceira interpretação é a que apoiam os, aqui. Do m esm o m odo que o ferm ento de 8:14-15 é símbolo com sentido interno, os m ilagres dos pães multiplicados nos ensinam o significado oculto que Jesus espera seja entendido por seus discípulos, a saber, o significado sugerido pelos números doze e sete, respectivam ente. N ão é de estranhar que M arcos tenha visto um sentido sim bólico nos incidentes m iraculosos dos pães multiplicados, e que tal sentido seja em essência o segredo da pessoa de Jesus, visto que uma das características de M arcos é enfatizar a natureza misteriosa, secreta, da m ensagem de Jesus (cp.

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4:10-13, 33-34; 6:52). A incapacidade dos discípulos, já observada anteriorm ente para entender o segredo da prim eira m ultiplicação dos pães (6:52), é responsável tam bém pela falha deles em não reconhecerem quem é realm ente Jesus no m ilagre do m ar em 6:45-52. M arcos pretende ensinar que Jesus é capaz de operar m uito m ais que m ilagres, ou conse­ guir bastante com ida m ultiplicando de um pequeno bocado. M arcos quer que seus leitores cheguem à m adura com preensão de que Jesus não é apenas um profeta, ou um m ilagreiro, mas o Filho de Deus, cujo m inis­ tério não só trouxe o cum prim ento da esperança profética de Israel mas constituiu, tam bém , a base da pregação da salvação ao m undo todo. Os fariseus representam os que continuam ente pedem mais e m ais provas, tendo incapacidade ou disposição para perceber o que lhes é m anifestado. Os discípulos, com quem os leitores devem identificar-se, dem onstram um a percepção m enos hostil, mas igual e seriam ente superficial da pessoa de Jesus. A intenção de M arcos, ao apresentar-nos esses dois grupos, é m ostrar a seus leitores que o olho que vê as ações de Jesus não enxerga tudo. As alusões do evangelista ao AT, e o uso que ele faz de núm eros sim bólicos, devem ajudar os leitores a ver em profundidade, não só com os olhos carnais. No próxim o incidente (8:22-26), M arcos relata um m ilagre de cura que dram atiza esta percepção mais clara que ele exorta seus leitores a buscar.

Notas Adicionais# 14 8:3 / vieram de longe: como foi mencionado na seção de comentários, estas palavras são a tradução de uma palavra (makrothen,), parecendo ser alusão a passagens do AT que falam de Deus reunindo seu povo “de longe”. Marcos não menciona o local onde se realizou esse milagre, embora muitos eruditos locali­ zem o evento perto de Decápolis, onde ocorreu o milagre anterior (7:31 -37), isto é, a parte sudeste da praia do mar da Galiléia. Se o milagre ocorreu nessa área, a multidão deveria constituir-se de gentios e judeus, embora isto seja irrelevante. Marcos não salienta de que grupo étnico é a multidão; prefere fazer uma alusão bíblica (mencionada acima) dando a entender que a reunião era importante. 8:4 / neste deserto: (NIV, “neste lugar remoto”) significa apenas uma área desabitada e não, necessariamente, algo parecido com um deserto africano. E termo que também traz à memória algumas passagens do AT (veja comentários), nas quais a salvação vindoura de Deus trará abundância ao deserto, as quais fazem alusão à promessa de Deus de uma nova salvação, semelhante à do Êxodo, em que Deus supriu Israel de alimento em pleno deserto. Marcos emprega esse termo a fim de esclarecer mais o significado do milagre e não, primordialmente,

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para fixar determinada localidade onde ele ocorreu. 8:5 / Quantos pães tendes?: Aqui, uma vez mais, a ênfase está no pão como em 6:38; parece que o peixe não tem tanta importância como veículo de significado simbólico. Isto se torna evidente no comentário de 6:52, “ não tinham compreendido o milagre dos pães” (veja nota sobre 6:52). Na discussão dos milagres de 8:14-21, as questões dizem respeito ao pão e seu significado. Sete: Observe também que são sete os cestos de sobras recolhidas, em 8:8 (veja nota). Parece que o número sete tem sentido simbólico na Bíblia, relacio­ nado à perfeição, a algo completo, inteiro, veja sete dias da criação (Gênesis 1), perdoar sete vezes (Mateus 18:21). Mas também parece que sete e setenta estão relacionados aos gentios. Assim, na tradição judaica as nações gentílicas chegam a setenta (com base na lista de Gênesis 10:1-32). Ainda segundo a tradição judaica, os gentios, que não têm parte na aliança de Israel com Deus, estariam sob a aliança feita entre Deus e Noé (Gênesis 9:1-17), que teria segundo se diz, sete mandamentos (veja G. F. Moore, Judaism in the First Centuries of the Christian Era, reprint [Nova York: Schocken, 1971], vol. 1, p. 274-75). Também se observou que houve sete líderes entre os cristãos de fala grega, em Atos 6:1-7, e que tais líderes eram de áreas gentílicas, e que o número sete foi escolhido para representar esse fato de algum modo. Assim, na passagem em apreço, o estu­ dioso deve tentar determinar se o número de pães e de cestos cheios de sobras de pão objetiva tornar-se um símbolo e, se esse for o caso, qual é seu significado. Na seção de comentários, observamos algumas razões por que o número sete aqui poderia ser tomado como símbolo do escopo mundial da mensagem de Jesus. (Quanto a referências amplas sobre números na Bíblia, especialmente o número sete, veja “ Numbers” , IDB, vol. 3, pp. 561-67; “ Seven” , IDB, vol. 4, pp. 294-95). 8:6 / tendo dado graças: este termo é familiar no grego, em conexão com a cerimônia cristã da eucaristia, veja 1 Coríntios 11:24. Em 14:22-25, Marcos emprega essa expressão com o sentido de “ abençoar” , para descrever a oração de Jesus antes de tomar o pão (14:22; cp. 6:41), e o termo para “ dar graças” (eucharisteo, 14:23) para descrever sua oração antes de tomar o cálice (é a mesma palavra empregada aqui). Este último termo é que possuía maiores conexões cristãs para os leitores de Marcos, em relação à santa ceia do Senhor (eucaristia). 8:8 / dos pedaços restantes ... doze cestos: Cp. 6:43 (doze cestos). Nos primórdios dos tempos dos primeiros cristãos o levantamento das sobras era vista como prenúncio da reunião do povo de Deus numa comunidade única, a igreja (veja a oração antes da santa ceia, no texto cristão primitivo conhecido como Didache [9], acessível em edições eruditas de inúmeros volumes, como J. B. Lightfoot, The Apostolic Fathers, reimpressão [Peabody, Mass.: Hendrickson, 1989; 1 vol. Grand Rapids: Baker, 1965] e K. Lake, The Apostolic Fathers [Loeb Classical Library, Cambridge: Harvard University Press, 1912]). O tem o cestos é

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tradução de uma palavra diferente, no grego, da que consta em 6:43. O cesto é pequenino em 6:43, relacionado mais com a vida judaica antiga. Na presente passagem, trata-se de um cesto bem maior, mais utilizado na época de Jesus. 8:10 / Dalmanuta: O texto paralelo de Mateus 15:39 traz “Magadã”, e manuscritos mais antigos de Marcos incluem palavras diversificadas aqui, como “Mageda”, ou “Magdala”. Não há uma localidade identificada como Dalma­ nuta; alguns acham que é apenas outro nome para Magdala (veja Lane, p. 275; MBA, 231), cidade no lado ocidental da praia do mar da Galiléia, a que ficou associado o nome de Maria Madalena (Lucas 8:2-3). (Quanto ao local, “Mag­ dala”, veja IDBSup. p. 561). 8:11 / começaram a discutir com ele: o termo empregado aqui significa que os fariseus começaram a disputar com Jesus, sem dúvida acerca do tipo de questões que já mencionamos, como pontos de conflito entre eles (cp., veja 2:6-12, 16-17, 18-22, 23-28; 7:1-23). Surge, portanto, a exigência de um sinal dentro de um contexto de forte desentendimento a respeito da vontade de Deus. Na tradição judaica rabínica há exemplos de rabis que apelam para um sinal, da parte de Deus, a fim de autenticar seu ponto de vista numa disputa em torno da interpretação das leis religiosas. Um sinal: Talvez estivessem exigindo algo mais espetacular do que meras curas e exorcismos, o mesmo tipo de coisas que outros haviam feito, segundo se alegava, no mundo antigo. Em 13:21-23, Jesus adverte seus discípulos a respeito de impostores que haveriam de vir operando “sinais” com o objetivo de extraviar a igreja. E possível que a recusa de Marcos em usar o termo sinal para descrever as obras de Jesus tenha origem no desejo de evitar comparações superficiais, irracionais, entre Jesus e eventuais milagreiros da época, que tentavam impressionar as pessoas com seus poderes. Noutro sentido, entretanto, fica evidente para Marcos que os milagres de Jesus eram sinais da graça de Deus, e indícios de que o reino de Deus invadia a vida humana mediante o ministério de Jesus. 8:12 / suspirou profundamente: o termo grego reflete cansaço e talvez impaciência diante das disputas dos fariseus. E interessante comparar as várias referências às emoções de Jesus, em Marcos, veja 1:41 (e a nota corresponden­ te); 3:5; 6:6; 10:14; 14:34. Em verdade: a frase grega empregada aqui tem muita força, equivalendo a um juramento solene. E certo que isto deve indicar o grau de calor da discussão e a força com que Marcos condena a exigência dos fariseus. As passagens paralelas de Mateus 16:4; 12:39; Lucas 11:29, afirmam que nenhum sinal lhes seria dado senão “o sinal de Jonas”, que em Mateus 12:40 se explica como alusão à morte, sepultamento e ressurreição de Jesus. 8:13 / para o outro lado: como já mencionamos antes, é muito difícil demarcar o itinerário das viagens de Jesus, no relato de Marcos, e esta dificuldade fica maior, de modo especial, quando se tenta desvendar as refe­

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rências de Marcos a travessias do lago. Quando Marcos não se concentra na localidade onde algum evento ocorreu, talvez indique que esse pormenor geográfico é destituído de importância para a narrativa. 8:14 / pão ... um só: alguns eruditos vêem alguma confusão nesta narrativa; este versículo menciona um pão, no barco, enquanto em 8:16 dizem os discípu­ los que não têm pão. Ainda que o texto pareça esquisito, é provável que Marcos esteja querendo dizer que os discípulos haviam esquecido de trazer consigo um suprimento de pão para o grupo todo, dispondo de apenas um pãozinho no barco, o que no máximo seria bastante para uma pessoa. Muitos eruditos têm sugerido que essa minúcia de um único pão teria valor simbólico, também: Jesus seria o pão ... um só, o único pão suficiente para todas as necessidades deles. Mais ainda, sugere-se que este pão tencione despertar associações espirituais com a eucaristia cristã, a qual era celebrada mediante compartilhamento de um pão comum que simbolizava Cristo, a fonte de sua vida e unidade. João 6:35-40 é uma indicação de que os primitivos cristãos retratavam Jesus como o “pão da vida”, e consideravam o milagre da multiplicação dos pães como dramatização material dessa realidade espiritual. 1 Coríntios 10:15-17 também demonstra o significado simbólico do pão comum sendo empregado nas cerimônias cristãs primitivas. (Quanto à Eucaristia no NT, veja “Lord’s Supper”, NIDNTT, vol. 2, pp. 520-38.) 8:15 / do fermento dos fariseus e do fermento de Herodes: como ficou explícito nos comentários, o fermento era empregado com freqüência nos tempos antigos como símbolo do mal. O AT exigia dos judeus que celebrassem um período anual, iniciado na páscoa, durante o qual não se deveria encontrar fermento nas casas judaicas; todo pão deveria ser comido sem fermento, ou massa levedada (veja Êxodo 12:14-20). Noutras ocasiões, o fermento se man­ tinha ativo mediante uma pequena porção de massa levedada, guardada em casa; quando esse pequeno pedaço levedado fosse colocado numa batelada de massa, esta ficaria toda levedada e pronta para ir ao forno (veja Mateus 13:33). A passagem paralela de Mateus 16:22 refere-se ao fermento dos fariseus e saduceus, que seria o ensino deles. Lucas 12:1 menciona apenas os fariseus, salien­ tando sua hipocrisia. Em alguns antigos manuscritos de Marcos, nesta passagem há um texto diferente que menciona fariseus e herodianos, talvez por causa da referência em 3:6 ao acordo celebrado entre fariseus e herodianos, o que teria levado alguns escribas a pensar que a menção de Herodes teria sido um engano; julgaram talvez que Marcos tivesse em mente o acordo de hostilidade a que 3:6 se refere.

15. Percepção Física e Espiritual (Marcos 8:22-9:1) 8:22-26 / Logo depois da discussão de 8:14-21, com a referência aos ouvidos surdos e olhos cegos dos discípulos (8:18), surge esta cura de um hom em cego. Esta história é quase universalm ente reconhecida pelos com entaristas com o dram atização da dificuldade espiritual que entorpe­ cia os discípulos. Tem os aqui o fenôm eno sem paralelo de um a cura que ocorreu em dois estágios, os quais ligam a história não só à passagem precedente, mas tam bém às que se lhe seguem (8:27-38), nas quais os discípulos dem onstram ter necessidade de um reavivam ento sem elhante, em dois estágios, um a revitalização que os livre do m arasm o espiritual. C ertam ente esta história deve ligar-se ao relato da cura do hom em surdo em 7:31-37, visto que am bas as histórias têm sim ilaridades de vocabulário e parecem aludir a Isaías 35:5-6. Em ambos os relatos umas pessoas levam o doente a Jesus, rogando-lhe que o toque (7:32; 8:22). Nas duas histórias Jesus tom a a pessoa necessitada e a leva para longe das pessoas que a trouxeram (7:33; 8:23). Estas duas histórias são as únicas em M arcos que m encionam Jesus utilizando saliva em suas curas (7:33; 8:23). E evidente que a cura da surdez e da cegueira são exatam ente as duas coisas m encionadas em Isaías 35:5-6 com o o tipo de m ilagres que acom panharão a salvação final da parte de Deus. Q uando percebe­ mos, além disso, que essas duas histórias são exclusivas de M arcos, esse fato acrescenta novo peso ao ponto de vista de que M arcos utilizou esses eventos com o com ponentes im portantíssim os de sua narrativa. L evar os doentes para longe da m ultidão, fato com um aos dois relatos, não encontra paralelo noutro relato de m ilagre em M arcos, exceto a ressurreição da filha de Jairo (5:21-43), em que Jesus m anda sair a m ultidão incrédula e escarnecedora (5:40). M as, em 7:31-37 e 8:22-26, não há m enção de a m ultidão ser hostil. N a verdade é a m ultidão que traz os dois doentes para que Jesus os cure! É bem possível que M arcos m encione esta rem oção dos doentes para longe da m ultidão, com o parte da ênfase especial que o evangelista põe na discrição com que Jesus encam inha seu m inistério. Mas tam bém é possível que a localização das duas histórias nos dê um a pista para o significado que M arcos viu nesse porm enor. Com o foi indicado em com entários anteriores, em M arcos 7-8

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há ênfase na tensão entre Jesus e a liderança judaica e o presságio da divulgação do Evangelho entre os gentios. Tendo isto em mente, é possível ver que para M arcos a rem oção dos dois hom ens para longe da m ultidão da cidade, de certo modo significava a separação do passado deles, exigida pela m ensagem de Jesus. No relato, com que o contexto está fortem ente relacionado, em que Jesus recebe aclam ação com o o M essias, da parte de seus discípulos, o Senhor prediz sua própria execu­ ção pelos líderes judaicos, e adverte seus seguidores de que devem estar preparados para o m esm o destino (8:31-38). Quanto à natureza das condições do hom em em 8:22-26, parece que o doente teve visão no passado, mas foi ficando progressivam ente cego, pois quando se viu curado em parte dem onstrou reconhecer com o seriam as árvores (v. 24). No prim eiro estágio de sua cura, o hom em parece sofrer de forte miopia, porque os objetos a qualquer distância ele os via em baçados. Por fim, o cego ficou com pletam ente curado (8:25); a redação de M arcos parece indicar certos aspectos dos acontecim entos, com o a do hom em a fixar os olhos com firm eza (8:25) e em seguida, de súbito, capacitado a enxergar tudo com clareza. Nas duas seções seguintes deste capítulo, vemos com o esta história provê um a introdução adequada ao relato da percepção lim itada dos discípulos, e a necessidade que tinham de uma com preensão mais com pleta do significado da m issão de Jesus. 8:27-30 / N a verdade esta passagem deveria ser lida em conexão com a seguinte (8:31-9:1), a que NIV dá um título separado. Juntas, as duas seções nos fornecem a aclam ação pública de Jesus com o o M essias, e a prim eira de três predições da morte de Jesus, a qual faz disparar a repreensão da parte de Pedro, o que revela que sua aclam ação de Jesus não se baseara na com preensão profunda dos propósitos e atividades do Senhor. As respostas dadas à prim eira pergunta de Jesus nos fazem lem brar a lista de opiniões sem elhantes, fornecida em 6:14-15; a repetição destes rótulos diversificados acerca da pessoa de Jesus intensifica a im pressão de que a questão da identidade verdadeira de Jesus deveria ter im portân­ cia vital para M arcos, (Quanto ao significado de cada um desses rótulos, m encionados em 8:28, veja discussão e notas sobre 6:14-15). M arcos já nos deu exem plos de pessoas que ficam im aginando que títulos atribui­ riam a Jesus. H á as m ultidões de 1:27 e 2:12 que ficaram atônitas perante

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suas obras audaciosas. Há os escribas, m estres da lei, de 3:22, que afirm am ser ele um feiticeiro (opini ão que não se repete em 6:14-15, nem aqui em 8:28). H á o povo de N azaré que vê em Jesus tão som ente o aldeão, o moço bem conhecido de todos (6:2-3). H á os discípulos tam bém , que até o presente m om ento têm dem onstrado m aravilham ento e espanto perante Jesus (4:41; 6:52). Som ente a voz vinda do céu (1:11) e os dem ônios (1:24, 34; 3:12; 5:7) conseguem determ inar a verdadeira identidade de Jesus! C ontrastando com as várias identificações im pingidas pelos outros, Pedro responde pelos doze e aclama Jesus com o o Cristo (ou o M essias, veja notas; 8:29), o m esm o título atribuído a Jesus no com eço de M arcos (1:1). Isso indica que, para M arcos, esse título é correto, e que o uso que dele faz Pedro m ostra algum reconhecim ento do verdadeiro significado de Jesus. O uso subseqüente desse título em M arcos dem onstra que, em bora Jesus seja o Cristo, não é todavia o Cristo da expectativa popular. Por exem plo, em 9:41, Jesus fala de seus seguidores com o os que “pertencem a C risto” . Em 13:21-22, Jesus faz previsão de im postores que afirm arão ser o Cristo, e cham a-os de falsos profetas e “falsos C ristos” , de m odo que se eles são falsos, Jesus deve ser o verdadeiro. N a cena do julgam ento, em 14:61-62, pergunta-se a Jesus se ele é o Cristo, a que ele responde de m odo afirmativo. Entretanto, esta cena indica tam bém que essa resposta não é aceita pela liderança do povo judaico, os sacerdotes e sinédrio, pois retrucam -lhe que tal afirm ação constitui blasfêm ia (14:63-64). Além disso, na cena da crucificação, os circuns­ tantes de modo escarnecedor saúdam a Jesus com o o “Cristo, o Rei de Israel” . A exigência da turba que ele desça da cruz com prova que sua definição do C risto (do M essias) não envolve o sofrim ento e m orte vergonhosa. (A passagem difícil de 12:35-37, onde aparece o term o Cristo, tam bém m ostra ao leitor que as noções populares acerca do M essias eram inadequadas. Veja com entários desta passagem ). A prim eira vista, pareceria que finalm ente Pedro e os doze haviam rom pido a própria obtusidade espiritual, sendo capazes agora de entender quem é Jesus, na realidade, mas logo o leitor vê que não é esse o caso. N a passagem seguinte, Pedro é repreendido por estar ainda sob a influên­ cia do pensam ento hum ano incorreto. Por isso, a confissão de 8:29 deve ser lida em seu contexto, em que se percebe que o discernim ento sobre a pessoa de Jesus só era correta parcialm ente, assem elhando-se à visão

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distorcida do pobre cego, na história precedente, em seu prim eiro estágio de cura. A m aior parte dos estudiosos de M arcos concorda em que esta passagem constitui im portante divisor de águas, pois introduz nova seção, ampla, que atinge 10:52, em sua m aior parte dedicada a Jesus, que segue ensinando seus discípulos a respeito de sua morte iminente, e da verdadeira natureza do discipulado para o qual foram vocacionados — inclusive os leitores. C aracteriza-se ainda esta seção por algum as refe­ rências ao fato de Jesus ensinar seus discípulos em particular (veja 9:9-10, 30-31; 10:32), e quando nos lem bramos de que a intenção de M arcos é que seus leitores se identifiquem de m odo especial com os discípulos, torna-se claro que esta seção não é apenas um registro de Jesus e dos doze, mas um com pêndio de ensinam entos aos leitores. Assim é que a presente passagem traz a público o em prego do term o C risto (M essias), com o título confessional adequado a ser aplicado a Jesus. Entretanto, o m aterial seguinte dem onstra que essa expressão só pode ser em pregada de m odo adequado quando envolta na genuína com preensão do que significa ser o Cristo de Deus. Essa é a razão por que em 8:30 Jesus pede aos doze que não divulguem às dem ais pessoas sua confissão de fé em Jesus com o o Cristo. O caso não era apenas que as pessoas não entenderiam o significado de Cristo; é que nem mesmo os doze discípulos sabiam o que estavam dizendo! 8:31-9:1 / Esta passagem com pleta a cena iniciada em 8:27-30, propicia-nos a prim eira de três predições de Jesus quanto ao seu sofri­ m ento e à sua morte im inentes (cp. 9:30-32; 10:32-34), e determ ina os term os e condições do discipulado, que se resum em em segui-lo até à morte. Precisam os entender que no antigo judaísm o não existia esse conceito de que o M essias deveria sofrer aquele destino horroroso descrito por Jesus em 8:31. É por isso que a reação de Pedro, em 8:32, em certo sentido é perfeitam ente com preensível. Todas as definições da natureza e função do M essias precisam subordinar-se à realidade de que o Cristo de Deus, Jesus, foi obediente, e suportou am argo sofrim ento e a m orte de acordo com o plano de Deus. Desprezar este fato, ou m inim izá-lo, é o m esm o que tom ar o lado errado, hum ano, e postar-se contra a vontade de Deus. N a verdade, é o m esm o que pôr-se sob a influência de Satanás, ainda que sem sabê-lo (8:33). M arcos 10:35-37 dá-nos algum a indicação sobre o tipo de expectati­

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vas gloriosas que deviam encher a m ente dos discípulos, frente à espe­ rança que alim entavam quanto a Jesus ter sido escolhido com o o Cristo de Deus, o rei de um novo reino de justiça divina, cheio de bênçãos. É possível que os leitores de M arcos, à sua própria m aneira, estivessem correndo o risco de não perceber a im portância central do sofrim ento e m orte de Jesus, com o a base e o padrão de suas próprias vidas. Se assim é, isto explica porque M arcos enfatiza esse ponto com tanta força. Conform e já indicam os, no estudo da passagem precedente, virtualm ente o texto todo de 8:31-10:52 é devotado a enfatizar duas coisas: a necessi­ dade da m orte de Jesus (m ediante a tripla repetição da predição) e a definição de discipulado com o o ato de seguir a Jesus pelo cam inho do serviço e da hum ilhação. M arcos descreve o sofrim ento previsto para Jesus com o oriundo de sua rejeição pelas autoridades judaicas, os anciãos, os principais sacer­ dotes e os escribas, ou m estres da lei (veja notas sobre esses term os). Já discutim os a respeito da hostilidade dos escribas; os dem ais não são m encionados fora dessas predições enquanto Jesus não chega a Jerusa­ lém (caps. 11-15). A m enção de tais pessoas significa que a rejeição de Jesus é descrita em term os de um a decisão formal a respeito do Senhor, visto que aqueles hom ens form avam o concílio judaico, ou sinédrio, a mais elevada corte religiosa dos judeus nos tem pos de Jesus. Em 3:6 M arcos nos fala de um estratagem a que objetiva m atar Jesus, envolvendo fariseus e herodianos; porém, não são m encionados no relato de M arcos sobre o julgam ento e execução do Senhor. E ssa rejeição form al de Jesus significaria para Pedro e os doze que a m issão do Senhor teria sido fracasso com pleto. A razão por que Pedro leva o Senhor para um lado a fim de repreendê-lo é que sua convicção a respeito de ele ser o M essias, significa que Deus está com ele e, por isso, Jesus não podia falhar. Eis aqui a ironia da repreensão de Pedro a Jesus; Pedro pensa que Jesus, sendo o escolhido de Deus, está em contradição com a predição som bria do Senhor, não percebendo o apóstolo que a escolha de Jesus, feita por Deus, significava que im portava que o Filho do hom em sofresse m uitas coisas (8:31), conform e predissera. Pedro exorta a Jesus em nom e de Deus, m as assum e um a posição que Jesus considera dem oníaca (8:33)! D epois de Jesus repreender (m esm a palavra) a Pedro (8:33), estipula o que significa o cham ado para o discipulado, e adverte quanto ao seu

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custo (8:34-9:1). Por causa da época e da freqüente espiritualização desta passagem , é necessário enfatizar que estas palavras devem ser tomadas de modo literal, se quiserm os entendê-las da forma com o M arcos teve em mira. Q uando os prim eiros leitores de M arcos leram estas palavras, puderam com preendê-las tão som ente com o um a advertência de que o discipulado poderia significar execução, visto que no tem po deles a cruz era instrum ento bem conhecido de execução à moda rom ana, usada para escravos foragidos, rebeldes e outros crim inosos de classe inferior (veja nota). Para sermos mais precisos, no tem po de M arcos a cruz não era apenas m era indicação de possível morte para os discípulos, mas adver­ tência de execução pelas autoridades estatais. Desse modo, assim como o m inistério de Jesus o levou a um a colisão com as autoridades judaicas e tam bém com as rom anas, os discípulos (e leitores) ficam advertidos de que devem estar preparados para o m esm o tipo de perseguição. Essa advertência fica mais clara ainda m ediante as palavras de Jesus a respeito de a pessoa tentar salvar a própria vida ao negá-lo. A situação retratada em 8:35 é a de um julgam ento em que um a pessoa recebe ordem de renunciar a Jesus, a fim de poder continuar vivendo. Somente M arcos traz esta frase e do Evangelho, que m ostra que o alerta de Jesus deve ser aplicado à situação da igreja prim itiva e sua m issão de pregar o Evange­ lho, a despeito da hostilidade e da perseguição (veja nota sobre E vange­ lho). N a predição de Jesus acerca de seus sofrim entos, ele em prega o term o o Filho do hom em (8:31), term o já encontrado em M arcos (2:10, 28; veja com entários e notas sobre esses versículos), e que aparece várias vezes m ais tarde (nas outras duas predições da morte de Jesus, 9:31; 10:33, e outras passagens, 8:38; 9:9, 12; 10:45; 13:26; 14:21, 41, 62). Com o m encionam os antes, quando do exam e de 2:10, é im possível tentar criticar todas as opiniões a respeito do significado e origem desse termo, e seria questionável o proveito disso. A posição assum ida neste com en­ tário é que Jesus usou esse term o a fim de autodescrever-se (algo com o “este m ero hom em ”). E im portante notar que há dois usos desse term o na presente passagem , aqui em 8:31, e de novo em 8:38. Na prim eira, o filho do hom em sofre rejeição, mas na segunda, voltará em glória e se m anifestará contra ou a favor de cada pessoa, dependendo de com o tal pessoa reagiu perante o Senhor. Assim, para M arcos, o term o o filho do hom em é um m odo irônico de referir-se a Jesus, com o alguém que parece

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ser m ero hom em agora, aos olhos de m uitos, mas que reaparecerá um dia exaltado por Deus com o o M essias e o Filho de Deus. É possível tam bém que o term o o filho do hom em seja alusão a D aniel 7:13-14, que m enciona um a personagem descrita nestas palavras: “ um com o o filho do hom em ” (traduzidas de modo apropriado pela GNB assim: “ parecido com um ser hum ano” , que é o sentido da frase aram aica). Se Jesus (e tam bém M arcos, por sua própria conta) pretendia que essa expressão fosse alusão à passagem de Daniel, o significado do term o filho do hom em seria o de um a personagem que sofre julgam ento e hum ilhação agora, sendo exaltada mais tarde. M arcos deseja que percebam os que chegam os a um a nova seção dessa narrativa, visto que nos dá sinais disso m ediante a frase de 8:32: ele dizia abertam ente estas palavras. Noutras palavras, deixa de existir parábola e ensino codificado; agora Jesus se declara de modo franco. Todavia, Jesus não som ente fala com franqueza a respeito de sua rejeição e m orte im inentes; ele prom ete tam bém fazer a apologia de si m esm o e de seus seguidores (8:38-9:1). Pela prim eira vez em M arcos, há referência à glória que Jesus vai receber; entretanto, é glória obtida m ediante obe­ diência à vontade de Deus (veja nota sobre im portava, em 8:31). O últim o versículo desta passagem (9:1) é um dos m ais difíceis de M arcos, tendo sido objeto de m uitas opiniões diferentes. A chave para a com preensão desse versículo é entender o que significa: reino de Deus que virá com poder — a saber, as últim as palavras do versículo. Essa declaração poderia ser entendida com o significando que o novo reino da ju stiça de Deus sobre toda a terra seria estabelecido antes que a geração do tem po de Jesus se esgotasse. Se entendida dessa m aneira, significaria que Jesus errou ao predizer algo que, na verdade, não aconteceu (veja N ineham , pp. 231-32). U m dos problem as dessa interpretação de 9:1 é que não p arece provável que M arcos tenha entendido a idéia dessa m aneira, visto h aver redigido seu E vangelho uns quarenta anos ou m ais depois da cru cificação de Jesus, quase no final da estrutura tem p o ral d escrita (veja nota sobre dos que aq ui estão, algun s há que não p rovarão a m orte); o evangelista teria percebido que essa tran s­ form ação rad ical do m undo ainda estava por acontecer. A m esm a d eclaração, em palavras ligeiram ente diferentes, encontra-se tam bém em M ateus (16:28) e em Lucas (9:27), em bora se ju lg u e que tenham redigido suas obras ainda m ais tarde do que M arcos. P arece-nos

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im provável que os autores dos evangelhos teriam registrado um a decla­ ração de Jesus que eles próprios e seus leitores teriam considerado erro flagrante. Isto significa que os autores dos evangelhos teriam com preen­ dido a declaração de Jesus de m odo diferente da interpretação m encio­ nada acima. Um indício im portante, que nos levaria à m aneira de os evangelistas entenderem essa declaração de Jesus, é o fato de eles colocarem logo a seguir o relato da transfiguração de Jesus perante um pequeno grupo de discípulos (M arcos 9:2-13; M ateus 17:1-13; Lucas 9:28-36). Este liam e im ediato entre a declaração de Jesus em 9:1 e sua transfiguração sugere que todos os evangelistas entenderam a profecia com o tendo sido cum ­ prida. E mais: que a transfiguração significava e prefigurava (veja com entários sobre 9:2-13) a ressurreição de Jesus com o Senhor e com o o Cristo. Isto quer dizer que M arcos e os dem ais autores dos evangelhos devem ter entendido a predição de Jesus, com o a encontram os em 9:1, com o prom essa da ressurreição e exaltação de Jesus para estar “ à mão direita” de Deus (veja 14:62), que eles entenderam com o sendo a gloriosa vinda do reino de Deus e o estabelecim ento do governo de Cristo com o rei (veja 1 Coríntios 15:20-28). Então, para M arcos, 9:1 significa que os próprios contem porâneos de Jesus, os que duvidavam dele (seus inim igos) e os que o com preendiam de m odo im perfeito (seus discípu­ los), não haveriam de m orrer antes que sua m ensagem e ministério fossem validados, o que de fato se dem onstrou e se confirm ou de modo poderoso na ressurreição de Jesus, prefigurada no episódio de 9:2-13, o da transfiguração. D epois desta passagem (8:31-9:1), que enfatiza a necessidade do sofrim ento de Jesus, e convoca os discípulos a um com prom isso sem e­ lhante ao de Jesus, na esperança do reconhecim ento final diante do Filho do hom em , M arcos narra um a história que objetiva dem onstrar a valida­ de de tudo que foi declarado aqui: o episódio da transfiguração que se segue (9:2-13). Há, assim, certa conexão entre os dois relatos que equilibra a predição da glória do Cristo que voltará com ênfase na hum ilhação e obediência.

Notas Adicionais# 15 8:22 / Betsaida: Quanto à localização desta cidade, veja nota de 6:45. Em alguns manuscritos antigos lemos “ Betânia” , no lugar de Betsaida; todavia, isto

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não deve ser levado em consideração à vista do forte apoio que favorece Betsaida. Marcos diz que o lugar é uma aldeia (vv. 23, 26), mas devemos imaginar que se trata de uma cidade com alguns milhares de pessoas na época de Jesus. 8:23 / cuspindo-lhe nos olhos: Quanto ao significado antigo da saliva como elemento de cura, veja nota sobre 7:33. 8:26 / Não entres na aldeia: Em vários manuscritos antigos, logo depois desta frase há a inclusão de outra ordem para que ele não diga nada a ninguém (veja nota marginal de NIV), mas essa adição talvez teria sido feita pelos copistas, que a tomaram do relato do homem surdo, de 7:36, devendo ser omitida aqui. 8:27 / Cesaréia de Filipe: localizava-se perto da praia norte do mar da Galiléia, formando uma paisagem linda. Herodes Filipe governava a cidade no tempo de Jesus, como parte de seu território, tendo ampliado e embelezado as estruturas da cidade. O nome era homenagem a César (Tibério) e a Filipe. A população era na maior parte gentílica, o que corresponde à localização feita por Marcos de outras manifestações de Jesus em território estrangeiro (veja 7:24-37). (Veja IDB, vol. 1, p. 480). 8:29 / Tu és o Cristo (ou o Messias): O termo “Messias” é tradução do termo grego christos, de que deriva nosso título “Cristo”. “Messias” é derivado de uma palavra hebraica equivalente a christos, masiah, sendo que ambas as palavras significam literalmente “ungido”. É termo empregado muitas vezes no AT como adjetivo, para qualificar pessoas escolhidas por Deus para funções especiais, como o rei de Israel (veja Salmo 2:2; 1 Samuel 2:10, 35; 2 Samuel 1:14, 16), mas na vida judaica, na época de Jesus, o termo chegara a adquirir um sentido especial do Profeta esperado, aquele que Deus haveria de enviar a fim de livrar Israel, e estabelecer o governo de justiça divina sobre a terra. (Quanto ao termo, veja em maior profundidade NIDNTT, vol. 2, pp. 334-43). As passagens paralelas desta passagem constituem um estudo interessante. Em Lucas 9:20, Pedro chama Jesus de “o Cristo de Deus”, que em essência é a mesma afirmação de Marcos. É o paralelismo de Mateus 16:13-20 que vale a pena examinar mais de perto. Aparecem duas diferenças essenciais. Primeira, a confissão de Pedro é mais completa: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. Segunda, há a famosa declaração gratulatória de Jesus a Pedro (16:17-19), pela qual o Senhor diz que Pedro recebeu iluminação de Deus. No todo, ainda que Pedro posteriormente seja repreendido no relato de Mateus (16:21-23), parece que este evangelista dá maior reconhecimento a Pedro do que Marcos. Isto ilustra o modo mais suave com que os discípulos são tratados, em Mateus. 8:31 / o Filho do homem: Veja comentários e notas sobre 2:10, quanto ao significado do termo como título, em Marcos. Quanto ao contexto do uso dessa expressão, e uma discussão de seu emprego mais amplo, veja “Son of Man” NIDNTT, vol. 3, pp. 613-34.

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importava: a palavra grega aqui sugere necessidade baseada na vontade divina. E termo que faz alusão ao conceito de que Deus planejou todo o programa da redenção, o que é comprovado pelos livros proféticos do AT e nos escritos judaicos apocalípticos posteriores. (Veja “Apocalypticism”, IDB, vol. 1, pp. 157-61; IBDSup, pp. 28-34). pelos anciãos, pelos principais sacerdotes e pelos escribas: já nos encon­ tramos com os escribas (ou mestres da lei, veja comentários e notas sobre 2:6). Os anciãos eram líderes respeitados da comunidade judaica, encarregados de decidir sobre assuntos de lei religiosa e civil. Tais líderes estavam presentes em cada comunidade judaica; um grupo deles tomava assento também no concílio mais elevado, o sinédrio (veja comentários e notas sobre 14:55), que se reunia em Jerusalém. O termo principais sacerdotes aqui talvez signifique não apenas o sumo sacerdote como também os que antes haviam exercido essa função e os membros das famílias desses homens. O termo no plural é empregado de modo semelhante por Josefo, o historiador judeu. Estes três grupos (anciãos, princi­ pais sacerdotes e escribas) coletivamente formavam o concílio regente men­ cionado em 14:55, e que deliberou contra Jesus. depois de três dias: este é o sentido literal da frase grega que pode significar apenas “depois de um curto período de tempo”. As passagens paralelas de Mateus 16:21 e Lucas 9:22 empregam a frase “no terceiro dia”, refletindo a tradição cristã de que a ressurreição de Cristo ocorreu no terceiro dia após a crucificação (veja 1 Coríntios 15:4). ressurgisse: o significado é que Deus ressuscitaria a Jesus dentre os mortos; os textos paralelos de Mateus 16:21 e Lucas 9:22 usam uma palavra grega que esclarece melhor este ponto. 8:33 / Para trás de mim, Satanás!: linguagem forte que reflete o modo como Jesus considera a repreensão de Pedro. É possível que as palavras de Jesus indiquem que a tentativa de Pedro de dissuadi-lo, e levá-lo a deixar o caminho da humilhação, constituíssem verdadeira tentação que precisava ser rejeitada com toda a força. 8:34 / negue-se a si mesmo: significa que o discípulo deve estar disposto a abandonar tudo a fim de seguir a Cristo. tome a sua cruz: refere-se à prática de obrigar o condenado a carregar a haste horizontal da cruz à qual seria amarrado ou pregado no local da execução. A morte por crucificação era método romano de execução pelas autoridades. Os judeus antigos o conheciam bem, por causa dos muitos rebeldes judeus presos e executados. (Quanto à prática da crucificação e suas implicações nos tempos da Roma antiga, veja Martin Hengel, Crucifixion [Filadélfia: Fortress, 1977]; “Crucifixion”, IDB, vol. 1, pp. 746-47). 8:35 / por causa de mim e do Evangelho: está implícito aqui um julgamento perante autoridades religiosas ou estatais, em que a questão em juízo é o fato de a pessoa professar fé em Cristo. Perder a vida por causa de mim (de Cristo),

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significa a pessoa recusar-se a renunciar a Cristo nessa situação, ainda que a punição seja a morte. E do Evangelho implica que a pessoa acusada chamou a atenção das autoridades por causa da pregação da mensagem cristã. Evangelho neste sentido absoluto, com uma única exceção, só é usado em Marcos e em Paulo (veja 1:15; 10;29; 13:10; Atos 15:7; Romanos 10:16; 11:28; 1 Coríntios 4:15; 9:14, 18, 23, 2 Coríntios 8:18). Esse termo significa não só a mensagem mas a atividade de divulgá-la; esta pequena frase (singular em Marcos, cp. Mateus 16:25; Lucas 9:24) deve indicar que Marcos desejava que seus leitores conhecessem a importância da missão da igreja. (Quanto ao termo “Evangelho”, veja NIDNTT, vol. 2, pp. 107-15). 8:38 / quando vier: com toda probabilidade refere-se à volta de Cristo em glória, como os cristãos primitivos o aguardavam, continuando a ser a esperança de todos os crentes tradicionais de hoje. Anjos deverão acompanhá-lo. Veja 1 Tessalonicenses 4:13-5:11; 2 Tessalonicenses 1:6-10. 9:1 / Em verdade vos digo: é literalmente “em verdade [amen] eu vos digo”, uma afirmação solene, semelhante a um juramento. Veja nota sobre 3:28. dos que aqui estão, alguns há que não provarão a morte: Esta frase pode significar que alguns poderiam morrer antes que tais eventos acontecessem, mas é difícil saber se esta teria sido a intenção do evangelista. Se tais palavras realmente querem dizer que alguns morrerão antes, o tempo aproximado seria cerca de uma geração, uns quarenta anos mais ou menos. Todavia, como indicamos em nossos comentários, Marcos emprega essa afirmação a fim de referir-se à ressurreição de Jesus, segundo parece, de modo que essa frase deveria ser entendida com o sentido de que esse evento vai ocorrer com toda certeza, e que os ouvintes de Jesus estariam vivos, e o enxergariam. sem que vejam ter chegado o reino de Deus: é semelhante à afirmação solene, com a garantia dada por Jesus durante seu julgamento (14:62), de que os que o condenavam haveriam de ver o Filho do homem glorificado. Quanto ao sentido desta declaração veja comentários e notas sobre esta passagem. Em ambos os casos, as palavras de Jesus imprimem certeza máxima sobre a promessa feita.

16. Glória no Topo do Monte e a Descida (Marcos 9:2-29)

9:2-13 / A natureza franca e direta do ensino de Jesus, concernente à sua m orte próxim a, em 8:31-32, encontra seu equivalente aqui nesta m anifestação poderosa do verdadeiro significado do Senhor com o Filho de Deus. A descrição do evento está cheia de alusões a passagens e temas do AT, sendo necessário exam iná-las a fim de apreciar o que M arcos desejava com unicar a seus leitores m ediante sua história. A colocação deste relato logo após a prom essa de Jesus a respeito de seu retorno glorioso, no futuro (8:38-9:1) m ostra ao leitor um vislum bre dessa glória. A conexão direta desse evento com as afirm ações de 8:38-9:1 salienta-se pela nota seis dias depois em 9:2, significando seis dias após as afirm ações de 8:38-9:1 (cp. Lucas 9:28, “cerca de oito dias”). A m enção de seis dias pode ser uma alusão a Exodo 24:15, em que depois de seis dias M oisés é convocado para o topo da m ontanha e ali recebe um a revelação de Deus. Vim os tam bém com o M arcos faz alusão ao AT a fim de elucidar o significado de acontecim entos que ele reconta. Aqui, o ponto central da alusão é alertar o leitor de que o que está prestes a acontecer é nova m anifestação de Deus (teofania), sem elhante àquela m encionada em Êxodo 24:15-18, e que esta revelação agora ultrapassa a que fora dada a M oisés. H á outra alusão ainda m ais óbvia ao AT na m enção de M oisés e Elias (9:4). E m M oisés tem os o grande fundador da religião de Israel, aquele a quem Deus outorgou a lei, a m aior das grandes personalidades do AT. É m uito im portante notar que a prom essa de M oisés de um profeta a quem D eus enviaria quando ele houvesse partido (D euteronôm io 18:15) era interpretada por alguns judeus da antigüidade e por cristãos da igreja prim itiva com o significando que Deus enviaria um grande profeta da estatura de M oisés, no fim dos tempos, antes da chegada do reino de Deus. Entre os prim itivos cristãos, a declaração de M oisés era interpre­ tada com o prom essa profética de Jesus (veja Atos 3:22-26; 7:35-37). A vinda de M oisés na transfiguração, com o foi testem unhada pelos discí­ pulos, significava que ele endossava Jesus com o aquele que ele prom e­ tera, o profeta que traria toda a autoridade de M oisés ao falar em nom e de Deus. Com o apoio desta interpretação há a alusão direta a Deutero-

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nôm io 18:15, em 9:7, a ele ouvi, citação da parte final da declaração de M oisés. Quanto à m enção de Elias (9:4), tam bém é indicação de que o prom etido tem po de salvação havia chegado. Os leitores de M arcos sabiam (veja com entários e notas sobre 6:14-15) da expectativa judaica antiga de um a personagem sem elhante a Elias que haveria de aparecer um pouco antes da presente era, a fim de anunciar o reino de D eus e preparar o povo. Na verdade, é essa expectativa que se discute em 9:11-13. O aparecim ento de Elias ao lado de Jesus na transfiguração significava que o profeta endossava a Jesus com o o M essias (o Cristo), aquele que haveria de trazer o reino de Deus. Os discípulos percebem que é isso que a visão significa, mas estão confusos porque a figura de Elias deveria aparecer, segundo se supunha, na terra, a fim de anunciar o reino, antes do aparecim ento do M essias (9:11). A resposta de Jesus (9:12-13) indica que Elias já havia vindo e, do m odo com o M arcos descreve João B atista (veja com entários sobre 1:1-8; 6:14-29), parece que o leitor deve entender que Jesus se referia a João B atista (no texto paralelo de M ateus 17:10-13, esta identificação é bastante explícita). A ssim , várias características do relato testem unham que Jesus é o M essias, e que sua presença é o cum prim ento das esperanças da salvação vinda de Deus. Entretanto, essa passagem m ostra que Jesus é algo m ais do que isso. Inform ações adicionais na narrativa nos m ostram o que é esse “algo m ais” . Prim eiro, há a descrição da aparência transform ada de Jesus em 9:2-3. A referência às roupas resplandecentes, em extrem o brancas com o a neve (v. 3) é alusão a Daniel 7:9, que descreve um a visão de Deus. Tal alusão sugere que a experiência dos discípulos em 9:2-13 é um a divina m anifestação, à sem elhança das visões dos profetas do AT (além de Daniel 7:9-14, veja tam bém Isaías 6:1-13; Ezequiel 1:4-28; 8:1-4). Todavia, isto significa que a “transfiguração” de Jesus o m ostra n a form a de Deus, o que quer dizer que ele não é apenas o M essias, um ser hum ano piedoso de m odo especial, escolhido para governar em nom e de Deus: ele próprio está revestido da glória divina. Segundo, a voz vinda dos céus em 9:7 confirm a este significado transcendental de Jesus, ao aclam á-lo m eu Filho amado. Essa frase é exatam ente a m esm a pronunciada na prim eira parte de um a declaração vinda dos céus por ocasião do batism o de Jesus (1:11) e, à sem elhança desta declaração, confere a Jesus uma posição inigualável. “Filho am a­

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do” significa que, de todos quantos têm sido chamados de filhos de Deus (no AT, Israel, o rei de Israel, na literatura posterior, o hom em justo), Jesus é superior a todos. Aliada à aparência transfigurada de Jesus, esta declaração dem onstra que repousa sobre o Senhor um a glória e um divino favor que nunca tiveram paralelo. A nuvem (9:7), relem brando os relatos do AT em que a presença e a glória de Deus eram representadas por uma nuvem que cobria o lugar onde Deus se m anifestava a alguém (veja Êxodo 16:10; 19:9; 24:15-18; 34:5; 40:34-38), significa que a voz não identificada vinda da nuvem era a voz do próprio Deus. Entretanto, em bora esta seja m anifestação da glória de Cristo, Pedro, com o porta-voz dos demais discípulos, reage com m aravilham ento e confusão ao m esm o tem po (9:5-6), sugerindo que se ergam tendas para Jesus e os visitantes celestiais, sem dúvida com a intenção de prolongar a gloriosa experiência. A sugestão de Pedro poderia im plicar que ele julgava ser aquela experiência o reino, em sua integralidade, que chegara, que o fim havia chegado, e que Deus estava prestes a fazer cum prir todas as esperanças do novo reino de justiça na terra. Nisto ele estava errado, não percebendo até então a necessidade de Cristo vir a sofrer, conform e 8:31. Sem o sofrim ento e morte de Cristo o reino não poderia vir de m odo integral. T am pouco entende Pedro a necessidade da m issão mundial da igreja (sobre que M arcos nos falará m ais adiante, veja nota sobre 13:10). Em vez disso, tão gloriosa experiência era apenas um antegosto e garantia prelim inar da verdadeira glória de Jesus. O encerram ento da visão em 9:8, que os deixa outra vez de volta às condições terrenas, sem a com panhia de ninguém , não vendo a ninguém , senão só a Jesus, é prova disto. A voz vinda do céu não só reconhece que Jesus é o Filho de Deus, com o tam bém ordena aos discípulos que prestem atenção ao que o Senhor lhes está ensinando a respeito da tarefa e do sofrim ento que jazem logo adiante, tanto para Jesus quanto para eles. A ordem em 9:9 para que não falem da glória de Jesus, senão após a ressurreição significa que só à luz da crucificação e da ressurreição é que a verdadeira pessoa de Jesus pode ser com preendida, visto que ele não é m ero visitante celestial m aravilhoso, nem um hom em especialm ente dotado, a que se atribuiu glória mística, mas alguém cham ado a fim de “dar a sua vida em resgate por m uitos” (10:45). Jesus só pode ser adorado de m odo inteligente quando considerado o Redentor a nós enviado por Deus. Só então é que fica bem claro quem é na verdade este filho do

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hom em . É significativo que Jesus continue a usar esse título de seu m inistério terreno, até m esm o depois desta experiência, pois sua filiação divina ainda não pode ser entendida. A confusão contínua dos discípulos, m encionada em 9:10, dem onstra que não poderia haver com preensão do verdadeiro propósito de Jesus enquanto os eventos que constituem o cerne da m ensagem do Evangelho, a m orte e a ressurreição, não houves­ sem ocorrido. A lição para o leitor é que nenhum a conversa racional a respeito da glória de Jesus pode ser encetada sem que haja ênfase na m orte e na ressurreição; outra lição é que toda prédica e todo culto que não forem centralizados no significado destes dois eventos são superfi­ ciais e confusos. 9:14-29 / E possível que a prim eira coisa que se deveria perguntar a respeito desta história fosse por que está colocada neste lugar determ i­ nado no Evangelho de M arcos. A resposta a tal pergunta está na obser­ vação feita antes, que virtualm ente toda a passagem de 8:27-10:52 gira em torno de dois tem as, o do sofrim ento próxim o de Jesus e o da natureza do díscipulado. Esta é a razão por que os discípulos ocupam lugar tão destacado nesta história; estão discutindo com os escribas, em 9:14-15, sendo retratados com o incapazes de curar o m enino possesso de dem ônio em 9:18, e ficando bem cientes da causa de seu fracasso no exorcism o em 9:28-29. Esta não é apenas mais um a história sobre m ilagres, nem outro exem plo do poder de Jesus sobre os dem ônios; o relato tam bém objetiva instruir os leitores de M arcos (a igreja) a respeito da tarefa que lhes com pete executar — a de prosseguir na obra de Jesus. De m odo m ais específico, esta história segue-se de im ediato à da transfiguração no topo do monte, em todos os três sinóticos, talvez porque os evangelistas tencionassem um a analogia entre este incidente e o de Êxodo 32, em que M oisés volta de seu encontro com D eus e encontra infidelidade em Israel. Noutras palavras, o leitor se vê perante dois tipos de exemplos: de um lado, os escribas incrédulos e m urm uradores (que representam a rejeição de Jesus pelo sistem a religioso ju d ai­ co), ao lado de discípulos destituídos de poder (que tam bém revelam falta de fé) e, por outro lado, Jesus, que satisfaz as necessidades que vai encontrando, e convoca seus seguidores a lhe prestarem m aior obediên­ cia e fidelidade. A oposição dos escribas (singular em M arcos) é asse­ m elhada à rebelião dos israelitas no tem po de M oisés, mas os discípulos (digam o-lo de novo: com quem os leitores devem identificar-se) são

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retratados correndo o risco da m esm a cegueira espiritual, a qual transpa­ rece na incapacidade de resolver o problem a que enfrentam . A linguagem que Jesus em prega para repreendê-los em 9:19 (veja nota), Ó geração incrédula! é sem elhante, de propósito, à linguagem que ele em pregara a fim de descrever os fariseus incrédulos de 8:12, e os perseguidores de Jesus em 8:38, m ostrando que este episódio exorta com força os leitores a que sigam a Jesus de m odo com pleto e deixem de lado a incredulidade que caracterizava os escribas. Esta história está colocada logo depois da que prefigura a ressurreição de Cristo (a transfiguração), e representa tam bém o am biente da igreja prim itiva depois de o Senhor ter ressurgido, quando os cristãos foram convocados para m inistrar no nom e e no poder de Jesus, com o o foram os doze. Isto se confirm a pelas palavras de Jesus em 9:19 (Até quando estarei convosco?) que antecipam o tem po em que Jesus não m ais estaria com seus seguidores, os quais deveriam dar continuidade à fé. Fica im plícito no relato que os seguidores de Jesus deveriam exercer fé integral em seu poder, ainda que o Senhor não esteja entre eles como esteve entre os doze, e que deverão dar prosseguim ento ao m inistério de Jesus nesse m esm o poder que ele manifestou. O diálogo entre Jesus e o pai do m enino endem oninhado, em 9:23-24, provê um a lição objetiva para os leitores de M arcos sobre a im portância de exercerm os fé robusta em Jesus. Tal função é confirm ada pela palavra final, culm inante de 9:29, m ediante a qual o Senhor declara que é pela oração que os seguidores de Jesus obtêm fé e recursos espirituais a fim de desem penhar a m issão que deles se exige. O relato de M arcos é bem m ais longo do que os paralelos de M ateus 17:14-21 e Lucas 9:37-43, por causa do espaço devotado ao diálogo entre Jesus e o pai do menino. Essa conversa tam bém trata da exortação à fé e de alguns porm enores a respeito das condições do m enino que têm o propósito de dem onstrar com clareza que suas necessidades eram desesperadoras, e que o poder do mal agia verdadeiramente. Todavia, o ponto central dessas m inúcias é a constatação de que mesmo num caso tão desesperador, espera-se dos seguidores de Jesus que confiem em que o Senhor resolva o problem a com o ele o fez. Um porm enor final, exclusivo do relato de M arcos dessa história, é digno de ser salientado. Em 9:27, diz M arcos que as convulsões deixaram o m enino num a condição tal que parecia morto, e que Jesus o ergueu, e

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ele se levantou. Esse m ilagre de Jesus é sím bolo de sua própria vitória sobre a m orte, em sua ressurreição, e tam bém sim boliza seu poder para dar vida. (Veja nota sobre 9:27). E ste incidente nos traz, a todos, de volta lá de cim a, das gloriosas alturas da experiência da transfiguração, para o vale terreno onde nos aguarda o poder do mal, e onde a incredulidade é perigo constante. D a m esm a form a que os discípulos são trazidos de volta à m issão terrena de Jesus, após o evento da transfiguração, que prefigura e sim boliza a ressurreição do Senhor, os leitores de M arcos devem entender que tam bém foram convocados, após a ressurreição de Cristo, para a m issão terrena da fé e da proclam ação do Evangelho, contra as forças do mal. Esse exorcism o, o últim o registrado por M arcos, dem onstra o poder de Jesus (retratado na transfiguração) agindo em plenitude, em term os práticos, e significa que é num m inistério assim (e não em experiências visionárias) que o poder e a glória de Cristo devem ser adequadam ente m anifestados na vida de seus seguidores.

Notas Adicionais# 16 9:2 / um alto monte: Marcos não dá a localização desse monte, e tampouco o indicam os demais evangelistas. A tradição mais antiga diz que o evento ocorreu no monte Tabor, local de proeminência na Galiléia, a sudoeste do mar da Galiléia, mas é impossível comprovar isso. (Veja MBA, 233). Pedro, Tiago e João: estes três acompanharam Jesus na ressurreição da filha de Jairo (5:37), e no local da última oração, no Getsêmani (14:33). Pedro é personagem preeminente em Marcos (como também nos demais evangelhos), sendo objeto de deferência especial no anúncio da ressurreição (16:7). A tradição cristã primitiva retrata Pedro como líder entre os apóstolos. Ao lado de Tiago e de João, é a principal personagem na igreja de Jerusalém, a “ igreja mãe” do movimento cristão do primeiro século (veja Gálatas 1:18-19; 2:9). (Quanto ao lugar especial ocupado por Pedro no cristianismo primitivo, veja Peter in the New Testament, ed. R. E. Brown, K. P. Donfried, e J. Reumann [Minneapolis: Augsburg, 1973.]). 9:3 / As suas vestes tornaram-se resplandecentes, em extremo brancas: além das referências e informações fornecidas no comentário acima, anote Apocalipse 1:9-18, em que Jesus ressuscitado e glorificado é descrito em termos semelhantes. Quanto às experiências do AT e do NT denominadas teofanias, veja IDB, vol. 4, pp. 619-20; IDBSup, pp. 869-900. 9:4 / Elias com Moisés: quanto à expectativa judaica de uma personagem tipo Elias, que viria no final dos tempos, veja discussão e notas sobre 6:14-16, e “ Elias” , em IDB, vol. 2, pp. 88-90; Lane, pp. 324-25.

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9:12 / está escrito: sem dúvida, isto se refere a predições do AT, sobre a morte do Filho do homem. Não se mencionam passagens particulares do AT, o que toma difícil ter-se certeza de quais delas estariam em mira aqui, mas Isaías 53:3 é probabilidade muito viável. Esta referência a profecias do AT confirma que o “importava” de 8:31 se refere a profecias, e faz que a morte do Filho do homem se confirme como parte essencial do plano de redenção traçado por Deus. 9:13 / Elias já veio: como indicamos acima, na discussão, esta é uma referência velada a João Batista, e constitui um comentário sobre sua execução, narrada em 6:14-29. Chamar João de “Elias” significa que ele era considerado por Jesus o prometido precursor do Messias, e que seu ministério e morte não foram vãos. 9:14 / alguns escribas que discutiam com eles: Marcos não nos diz qual era a natureza da discussão porque esta ficou implícita. Como noutras passagens, os escribas se opõem a Jesus e negam a validade de seu ministério (cp. 2:6-7,16; 3:22; 7:1-2). 9:15 / Assim que a multidão viu a Jesus, tomada de surpresa: não está declarada a razão exata da surpresa. O termo empregado aqui significa maravilharse; trata-se de termo semelhante a outros empregados várias vezes por Marcos, a fim de comunicar admiração não-abrangente do povo diante do poder e do ensino de Jesus. (Cp., veja 1:27; 10:24, 32; 5:20). 9 : 1 9 /0 geração incrédula! O termo equivalente a “geração” foi empregado em 8:12 e 8:38 referindo-se aos que negam e se opõem a Jesus. 9:24 / Eu creio; ajuda-me a vencer a minha falta de fé: Este grito, tão significativo para os cristãos que passam por grandes tribulações, ao longo da história, sem dúvida foi usado por Marcos a fim de retratar a necessidade que têm seus leitores de confiar em Cristo com mais confiança e mais inteligência. As palavras tudo e é possível de 9:23 não significam que a fé produzirá de modo mágico qualquer milagre que a pessoa possa desejar; significam, antes, que o poder de Jesus está disponível pela fé para atender às necessidades que surgem no decurso do ministério efetuado em seu nome. 9:27 / o ergueu, e ele se levantou: literalmente é “levantou-o”, o mesmo termo usado para descrever a ação de Deus em ressuscitar Jesus de entre os mortos, veja Marcos 14:28; Atos 3:15; 4:10; 5:30. 9:28 / os seus discípulos lhes perguntaram em particular: temos aqui de novo o tema de Marcos sobre as instruções especiais entregues aos doze. Cp., veja 4:10-12, 33-34; 7:17. 9:29 / só pode sair por meio de oração: em alguns manuscritos há a adição de “e jejum”, depois destas palavras; entretanto, esta redação aumentada parece resultar do fato de alguns copistas inserirem uma referência à prática de jejuar, numa época em que isso já constituía costume cristão bastante comum.

17. Morte de Jesus e Discipulado (Marcos 9:30-50) 9:30-32 / Esta passagem nos dá a segunda de três predições de Jesus, a respeito de sua m orte (cp. 8:31; 10:32-34). O novo elem ento nesta predição é a m enção de que o Filho do hom em será entregue nas m ãos dos hom ens. O verbo empregado aqui no texto grego tem significado m uito interessante no NT. Pode significar “ trair alguém ” , e é nesse sentido que se em prega para descrever a traição de Judas, em 14:41-42. Todavia, o m esm o verbo é em pregado para designar a ação de Deus, quando então carrega a conotação de alguém que é entregue (ou aban­ donado) para ser julgado ou punido (veja Rom anos 1:24, 26, 28); este sentido inclui, de modo muito significativo, a idéia de que D eus “ entre­ gou” Jesus ao sofrim ento em prol dos que haveriam de ser redim idos (veja Rom anos 8:32). Aqui em 9:30 o term o talvez se refira à traição de Jesus por Judas, m as visto que Jesus prediz esse evento com o fazendo parte do plano divino, num sentido m ais profundo é Deus, na verdade, quem entrega seu Filho ao julgam ento de tribunais hum anos hostis (lit., nas m ãos dos h o m en s, veja nota). Este ensino é m encionado com o estando reservado com exclusividade para os discípulos do Senhor (9:30), m as ficamos sabendo que os discípulos não entenderam o que o Senhor estava dizendo, e ficaram am edrontados, sem coragem de continuar a questão (9:32). Perm anece intacto o m arasm o dos discípulos, que M arcos com insistência enfatiza, e que causou um a ruptura entre Jesus e Pedro, em 8:32-33. Os discípulos talvez estivessem preocupados pelo fato de Jesus parecer dem asiada­ m ente pessim ista, sendo o Senhor aquele a quem consideravam o M es­ sias enviado por Deus. Tanto em 9:33-34 quanto em 10:35-37, encontra­ m os os discípulos ainda presum indo que logo estarian ocupando cargos de chefia ao lado de Jesus no reino. Entretanto, com base na repreensão a Pedro, em 8:32-33, os discípulos ficam am edrontados, sem coragem de inquirir sobre as som brias predições que Jesus faz. N ão conseguem entender o que lhes parece um a preocupação m órbida de Jesus, não percebendo que eles é que estão erroneam ente preocupados demais. A m ensagem que M arcos desejava com unicar, m ediante esses porm e­ nores sobre as reações dos discípulos, não era que Jesus escolheu

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discípulos particularm ente estúpidos, mas antes, que o abism o entre Jesus e os doze, aqui mostrado, é um abism o que separa meras idéias hum anas acerca do que é o reino de Deus, e com o poderia vir a nós (a expectativa judaica m essiânica da antigüidade é apenas um exemplo disso) seguindo o plano traçado por Deus. M arcos deseja ensinar-nos que o abism o existente entre Jesus e os doze não estava fechado, nem poderia fechar-se, enquanto os eventos da crucificação e da ressurreição não trouxessem aos discípulos o entendim ento da realidade do m étodo divino de estabelecim ento de seu reino neste mundo, e de seu significado. A repetição da predição de Jesus acerca de sua m orte é mais preem i­ nente no relato de M arcos. É profecia que tam bém introduz nova passa­ gem em que, m ais um a vez, com o fez o Senhor após a prim eira predição de sua m orte, ele instrui os discípulos quanto à verdadeira natureza do discipulado. 9:33-37 / Estes versículos devem ser vistos com o parte de uma coletânea de palavras de Jesus incluídas no bloco de 9:33-50, o qual diz respeito ao discipulado. Um estudo cuidadoso das passagens paralelas nos dem ais evangelhos sinóticos dem onstrará que aparecem em contex­ tos e form atos variados, o que indicaria que M arcos reuniu tais palavras num bloco textual que ele m esm o editou. Nessa forma típica de M arcos, o texto todo parece tratar dos relacionam entos entre os discípulos, com o verem os ao exam inar essas palavras do Senhor. Algum as das declarações de Jesus, no final do capítulo (9:42-50), ficaram associadas entre si pelo fato de conterem palavras que suscitam esse elo (veja com entários e notas sobre estes versículos). O agrupam ento que M arcos faz de toda essa m atéria de 9:33-50, ao redor do tem a das atitudes e relacionam entos apropriados entre os seguidores de Jesus fica indicado pelo em prego de um expediente literário cham ado inclusio, m ediante o qual o tópico inicial de um segm ento tam bém é em pregado com o conclusão. Assim, 9:33 abre a seção m ostrando os discípulos discutindo entre si, e 9:50 conclui este segm ento exortando os discípulos a terem “paz uns com os outros” . Isso significa que toda a m atéria textual encaixada aí deve ser entendido com o ensinam ento acerca de “com o viver em com unidade” . D everem os notar tam bém que após cada uma das três profecias de Jesus, acerca de sua própria morte, há correção dos discípulos e ensino quanto às exigências a respeito dos que querem seguir a Jesus. Em todos os casos o ensino é um cham ado a que a pessoa sacrifique seus próprios

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interesses e faça reversão de valores tipicam ente m undanos. A ssim , em 8:34-38 Jesus diz que a tentativa de a pessoa preservar a própria vida redunda em sua perda. Em 10:35-45, Jesus corrige as am bições de Tiago e João, m ostrando que entre seus seguidores o m aior é o que se faz servo de todos. Ensino sem elhante em 9:33-37 (esp. 9:35) corta as am bições dos discípulos quanto à chefia pela raiz. Alguns poderiam julgar estranho que hom ens adultos ficassem discu­ tindo quem seria o m aior dentre eles (veja Nineham , p. 252). Entretanto, no contexto de grupos desse tipo, com o o da seita religiosa de Qum ran (cujos escritos são popularm ente conhecidos com o “rolos do m ar M or­ to”), em que a com unidade toda passa por um a classificação anual, segundo os m éritos individuais, deixa de parecer estranho que os m em ­ bros do grupo de Jesus alim entassem idéias sem elhantes. N a verdade, as palavras de Jesus possuem força particularm ente pertinente e contem po­ rânea, provendo poderoso contraste quando exam inadas em com paração aos grupos contem porâneos do Senhor, com o o de Qumran. Todavia, as palavras de Jesus não eram apenas relevantes, é lógico, no am biente judaico antigo; elas desafiam todos os desejos hum anos de transform ar coisas sagradas em oportunidade para a autoprom oção. Poderíam os afirm ar que a igreja ainda precisa aprender o significado das palavras de Jesus. O relacionam ento que M arcos viu entre a exortação para que se assum a o papel de servo (v. 35, e veja nota sobre 10:44) e a declaração no v. 37, é que a criança funciona com o sím bolo do com panheiro de discipulado; o uso de uma criança é, assim, um a parábola dram atizada. D ar boas-vindas a um a criança com o esta significa, no contexto, tratar com honradez os dem ais discípulos, assum indo o papel de servo perante eles. A criança não está sendo usada com o exem plo de hum ildade (como no caso de 10:13-16), visto que a questão no v. 37 não é a im itação da criança, mas o tratam ento de uma criança com o esta. A lógica de em pregar-se um a criança com o sím bolo de nosso com panheiro de disci­ pulado se vê no fato que no aram aico (talvez a língua em pregada por Jesus no ensino a seus discípulos) e no grego (a língua em que M arcos escreveu) o term o “criança” tam bém pode significar “servo” . Desse m odo, a declaração exortatória para que todos os discípulos sejam com o um servo, no v. 35, é seguida de algo que se poderia cham ar de trocadilho com a palavra criança, conclam ando todos os seguidores de Jesus a

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tratarem bem quaisquer “crianças/servos” (v. 37). As palavras em meu nom e no v. 37 significam algo com o “porque me pertencem ” ou “por am or de m im ”, e deixam claro que as crianças de que Jesus está falando são seus seguidores. Estes deverão ser bem recebidos, não por serem aparentem ente “grandes”, segundo os padrões m undanos, mas porque pertencem a Cristo. A forte identificação entre Jesus e seus seguidores, expressa em 9:37, nos adm oesta em que até o mais insignificante seguidor de Jesus deve ser tratado com o m aior respeito. Este pensam ento nos deixa preparados para a passagem seguinte, 9:38-41, que parece devotada a tratar da questão de com o reconhecer um seguidor de Jesus a quem devem os tanto respeito. 9:38-41 / A passagem precedente (9:33-37) nos exorta a estarm os prontos a servir ao nosso próxim o, em vez de nutrirmos interesse por grandezas; além disso, a passagem produz o mais forte tipo de identifi­ cação entre Jesus e seus seguidores. O texto que diz respeito ao trata­ m ento a ser dispensado a uma pessoa que está usando o nom e de Jesus em exorcism os, sem pertencer, todavia, ao grupo dos doze — texto que trata da questão de com o reconhecer um seguidor de Jesus. É uma questão que se levanta de m odo natural, a partir da discussão anterior, pois, se a pessoa deve servir aos dem ais seguidores de Jesus, e dispen­ sar-lhes o m esm o tratam ento que daria ao próprio Jesus (9:37), tal pessoa precisa saber quem são os seguidores de Jesus. Visto que toda a m atéria textual contida nos evangelhos foi preservada porque a igreja a considerou útil no estudo de questões doutrinárias e práticas da vida cristã, a presença deste incidente na tradição registrada do m inistério de Jesus pode indicar que no próprio tem po de M arcos havia questões concernentes à legitim idade de alguns crentes, ou de seus líderes. A carta de Paulo aos gálatas m ostra um exem plo desse tipo de questionam ento, ao tratar do apostolado de Paulo e da legitim idade de sua m ensagem ; e pode ter havido outras controvérsias, em função das quais este incidente teria sido considerado relevante. Não sabemos se esta pessoa anônim a seria apenas um exorcista peram bulante que tom ou o nom e de Jesus para usá-lo em seu ofício, da m aneira que m uitos exorcistas e m ágicos aparentem ente faziam , ao usar com liberdade qualquer nom e que pudesse ter poder para expulsar dem ônios e obrigá-los a obedecer, ou se essa pessoa era um seguidor de

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Jesus, conquanto não pertencesse aos doze. H á um caso do uso m ágico do nom e de Jesus em Atos 19:11-20, em que tal prática é condenada, im plicando que só os genuínos seguidores de Jesus podem usar seu nom e com poder. Parece que esta pessoa, m encionada em M arcos, é um seguidor de Jesus e não simples curioso que tenta usar o nom e do Senhor em fórm ulas m ágicas, visto que noutra passagem M arcos rejeita a perspectiva do uso mágico do poder do Senhor (veja notas e com entários sobre 5:25-33; 6:5-6; 7:34). Além disso, a questão não é tanto a prática do exorcism o, m as se alguém não pertencente ao grupo dos doze pode ser considerado verdadeiro seguidor de Jesus, tendo o direito de m inistrar em seu nome. A grande ênfase da resposta de Jesus, nos versículos 39-41, é que qualquer indivíduo que declare ser discípulo de Jesus deve ser recebido com o tal, a m enos que dê razões para que se pense o contrário. M arcos 9:40 em particular dá o benefício da dúvida ao discípulo desconhecido. É interessante observar que esta declaração (v. 40) aparece na passagem paralela de Lucas 9:50, e tam bém em M ateus 9:41 e Lucas 11:23, em roupagem e contexto diferentes. Essas palavras com toda probabilidade não foram cunhadas por Jesus, m as talvez constituíssem um ditado popular bem conhecido (veja nota), usado aqui a fim de propor um princípio de fraternidade cristã. M arcos 9:41 reforça essa idéia, ao garantir que a hospitalidade aos que clam am pelo nom e de Jesus será recom pensada (veja nota sobre 9:41). 9 :4 2 -5 0 / Nestes versículos parece que tem os uma coletânea de ditados reunidos de m odo um tanto artificial, m ediante palavras especiais que associam tais dizeres entre si. Todavia, esses provérbios devem ser entendidos juntos, no contexto em que se encaixam , que se relaciona com o discipulado, de m odo especial as obrigações m útuas dos discípulos. A m enção de pequeninos em 9:42 é um a referência aos seguidores de Jesus que nos leva de volta ao v. 37, em que Jesus se refere a seus seguidores sob o sím bolo de “um a criança com o esta” . O grego revela que tal expressão diz respeito aos discípulos, e não a crianças; a tradução literal é: “estes pequeninos que crêem em m im ” . A palavra traduzida aqui por “escandalizar” literalm ente significa “fazer cair”, e refere-se a al­ guém causar a queda de outrem na descrença, em pecado grave ou em ensino falso. Essa advertência contrabalança a segurança positiva do v. 37: a bondade para com os discípulos de Jesus teria seu galardão.

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A expressão traduzida por “causar a queda em pecado” é “palavrachave” que reaparece em 9:43-47 e explica a razão de ser desses pronun­ ciam entos de Jesus. Nesses versículos, o foco muda m om entaneam ente saindo de “causar a queda” de outros para “causar a própria queda” da pessoa, e tais ditados expressam a vivacidade do linguajar semítico. A hipérbole desses enunciados não deve ser tom ada de m odo literal; todavia, não se deve perder o ponto enfático de que a participação no reino de Deus é digna de qualquer sacrifício. As partes do corpo humano m encionadas aqui na verdade funcionam com o sím bolos de atividades variadas, com o por exemplo, a mão que segura coisas que não devia segurar, o pé que vai aonde não devia ir, ou o olho que deseja o que não devia desejar. M arcos 9:48 é alusão a Isaías 66:24, que fala do julgam en­ to eterno sobre os que se rebelam contra Deus. É versículo introduzido com o com entário da palavra inferno (v. 47), indicando que o que se tem em m ira é o julgam ento final de Deus a ser pronunciado no fim dos séculos. A referência a fogo no v. 48 é a palavra-chave que introduz o v. 49; o fogo deste ultim o versículo não representa o julgam ento eterno, mas com toda probabilidade sim boliza o fogo da tribulação e da provação na vida do crente, visto que este fogo purifica. Esta declaração lem bra a prática antiga de salpicar os sacrifícios com sal, nos altares judaicos (segundo m andam ento de Levítico 2:13), e essa referência introduz os dois enun­ ciados seguintes em que aparece a palavra “sal” . O sal a que o versículo 50 se refere com toda probabilidade à hum ildade e dedicação, que se fortalecem m ediante a provação e a tribulação. Se o crente vier a perder esse sal, ele não passa por uma renovação fácil (v. 50a); todavia, ao m anter esse sal, os seguidores de Jesus conseguem m anter com m aior facilidade a paz uns com os outros (v. 50b). A simples pureza da dedicação a Jesus, que não busca suas próprias vantagens, capacita o crente a tornar-se servo de seus irmãos em Cristo, com panheiros na fé e, assim, há prom oção da paz. De início, estes ditados são difíceis, e a decisão de Marcos de colocá-los aqui, juntos, usando palavras-chaves, pode espantar-nos pela estranheza. Entretanto, o objetivo do evangelista foi colecionar ditados de Jesus que poderiam ser empregados de modo que ficasse enfatizado o seguinte: os seguidores de Jesus devem levar m uito a sério sua responsabilidade de evitar atos que afastariam outros discípulos do círculo do discipulado.

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Notas Adicionais# 17 9:30 / Partiram dali: Observe mais uma vez as referências geográficas vagas, sempre que a identificação exata do lugar se torna impossível para Marcos, ou talvez, quando isso é irrelevante para seu propósito. 9:31 / será entregue nas mãos dos homens: é tradução literal; nas mãos dos homens implica hostilidade contra Jesus; cp. 2 Samuel 24:14; Jeremias 26:24, em que ocorre fraseado semelhante em contextos que implicam hostili­ dade contra alguém. 9:33 / Cafarnaum: quanto à localização desta cidade, veja nota sobre 1:21. Esta cidade é mencionada com freqüência como se nela funcionasse a residência-sede de Jesus, durante seu ministério na Galiléia. em casa: este termo poderia implicar uma casa pertencente a Jesus, ou usada com regularidade pelo Senhor e seus discípulos. Pedro morava em Cafarnaum, como também outros dentre os doze; cp. 1:29-30. 9:37 / Qualquer que... receber...: este enunciado tem seu paralelo quase idêntico em Lucas 9:48. Há diversos outros lugares nos evangelhos em que aparecem declarações muito semelhantes a esta, todavia em contextos variados, veja Mateus 10:40; João 12:44-45; 13:20. 9:38 / João é João, filho de Zebedeu (veja notas sobre 1:14-20), um dos três discípulos íntimos a quem Marcos dá atenção especial (veja também 5:37; 9:2; 13:3; 14:33). E interessante que após cada uma das três predições da morte de Jesus, um ou outro membro deste círculo íntimo recebe repreensão da parte do Senhor (cp. 8:32-33; 10:35-40). 9:40 / quem não é contra nós, é por nós: este ditado, que combina expressão mais inclusiva e outra mais restritiva, aparece no discurso de Cícero, em defesa dos adeptos de Pompeu. Num antigo manuscrito conhecido como Papiro Oxyrrinco 1224 há uma variante que diz: “Quem não está contra você lhe é favorável. Quem hoje está longe de você, amanhã poderá estar perto de você”. (Quanto a referências, veja Lane, p. 344). 9:41 / Em verdade vos digo: esta fórmula semelhante ajuramento é peculiar à fala de Jesus, nos evangelhos. Veja nota sobre 3:28. um copo de água: Observe a forma variante deste enunciado em Mateus 10:42, que aparece no contexto do envio dos doze. Um copo de água talvez seja referência simbólica da hospitalidade, de que a água de fato é símbolo no antigo oriente próximo. por serdes discípulos de Cristo: parece inegável que para Marcos “Cristo” significa Jesus. Esta é mais uma indicação (ao lado de 1:1; 8:29; 14:61; 15:32) que Jesus é o Messias (em grego, christos, o Cristo). 9:42 / uma grande pedra de moinho: os moinhos usados para moer cereais na antiga Palestina compunham-se de duas pedras circulares montadas sobre um eixo vertical, ou pivô. A pedra superior girava sobre a inferior, de modo que o cereal despejado entre ambas era moído transformando-se em farinha. A

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grande pedra aqui, era a superior, pertencente ao moinho comunitário, que exigia o trabalho de várias pessoas ou de um animal para funcionar. (Veja IDB, vol. 3, pp. 380-81). 9:43ss. / inferno: a palavra grega aqui é gehenna, que deriva do termo hebraico que originalmente designava um desfiladeiro ao sul de Jerusalém (.ge-hinnom). A época de Jesus, esse termo havia adquirido um sentido e uso metafóricos, que denotavam o tremendo julgamento final a ser infligido sobre os ímpios no fim dos tempos. (Veja IDB, vol. 2, pp. 361-62; “Hell”, NIDNTT, vol. 2, pp. 206-10). corta-a: além da passagem paralela de Mateus 18:6-9, veja também Mateus 5:29-30, em que se registra, noutro contexto, um enunciado que parece ser o mesmo. 9:50 / tornar-se insípido: Outros antigos autores testemunham que o sal não-refinado obtido do mar Morto, que vem misturado com impurezas, poderia ficar com um sabor rançoso ou insípido. E evidente que o sal refinado não perde o sabor; todavia, o sal não-refinado conhecido na antiga Palestina podia tornarse insípido. (Cp. Lucas 14:34-35; Mateus 5:13; Colossenses 4:6 quanto a outros usos simbólicos do sal, no NT; e IDB, vol. 4, p. 167).

18. Casamento, Filhos e Posses (Marcos 10:1-31)

10:1-12 / Esta passagem contém o ensino de Jesus sobre o divórcio e insere-se no bloco de textos devotado ao ensino sobre discipulado (8:27-10:52), visto que trata de um a das áreas de m aior im portância quanto à responsabilidade dos discípulos (ou de qualquer pessoa) no que concerne ao casam ento. E possível que esta passagem esteja colocada im ediatam ente depois do texto que a precede, que nos exorta a ter paz com nossos com panheiros de discipulado (9:50), porque o casam ento constitui um a das áreas que com mais facilidade é atingida pelo conflito, conquanto se deve observar que 10:1 é declaração transitória, indicando que nova seção textual está sendo apresentada. De outra perspectiva, 10:1-31 pode associar-se aos propósitos de M arcos, porque é texto que trata, em sucessão, de casam ento (vv. 1-12), filhos (13-16) e posses (17-31), que para os discípulos constituem laços terrenos. A questão colocada perante Jesus nesta passagem deve ser vista em seu antigo contexto, a fim de ser avaliada de m odo integral. N o antigo judaísm o, o divórcio era privilégio legal apenas dos m aridos; as esposas eram legalm ente propriedade de seus m aridos, não tinham o direito de desfazer o casam ento. Além disso, jam ais se questionou o fato de um hom em estar livre para pôr um fim em seu casam ento, m ediante o divórcio, havendo apenas um a preocupação que se reflete na tradição antiga rabínica, segundo a qual o m arido deve entregar um certificado oficial de divórcio à sua esposa. H avia diferenças de opinião entre as duas m aiores escolas de pensam ento dos antigos rabis, quanto ao que constituía causas legítim as para um hom em divorciar-se de sua mulher. Um a escola de pensam ento insistia em que havia uma única razão válida, que era a im pureza sexual da parte da mulher; a outra escola argum entava que a m ulher poderia ser repudiada se o m arido se enjoasse ou se cansasse dela. E sta últim a opinião era dom inante, sem dúvida porque era a mais conveniente ao marido. O relato paralelo de M ateus 19:1-12 reflete com m ais porm enores o am biente judaico (veja notas), e a versão de M arcos parece m ais adaptada a um am biente gentílico, em que tanto o hom em com o a m ulher tinham o direito legal ao divórcio (cp. 10:11-12; M ateus 19:9).

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M erece m enção um porm enor com um a am bas as versões desse incidente, a de M arcos e a de M ateus: as pessoas que se aproxim aram de Jesus tinham o propósito de “testá-lo” (tentando-o, 10:2). A explicação m ais provável para isto encontra-se na descrição do conflito entre João B atista e Herodes Antipas, a respeito do divórcio entre H erodias e seu ex-m arido, com o objetivo de casar-se com Antipas (6:14-29). Noutras palavras, a intenção dos adversários de Jesus aqui poderia ter sido uma tentativa de apanhar o Senhor num a armadilha; se ele dissesse algo sobre o divórcio que se refletisse de m odo desfavorável acerca do casam ento de Herodes com Herodias, isto possibilitaria que os inimigos do Senhor o denunciassem ao tirano. Herodes tom ou a crítica do Batista contra seu casam ento com o incitação potencial à revolta, sendo provável que a situação política na G aliléia explique m elhor a razão original pela qual Jesus foi interrogado a respeito do divórcio. N a discussão do assunto apresentado a Jesus, há referências ao m an­ dam ento de M oisés com respeito ao divórcio, que se encontra em Deuteronôm io 24:1-4. Essa é uma passagem que na verdade apenas pressupõe o divórcio e concentra-se de modo especial em proibir que uma m ulher divorciada, e casada pela segunda vez, volte a casar-se com seu prim eiro marido. Entretanto, essa passagem foi interpretada pelos antigos rabis com o aprovação do divórcio, constituindo a base de grande discussão judaica da antigüidade, sobre todos os aspectos desse assunto. A luz deste contexto histórico, a declaração de Jesus de que esta passa­ gem de M oisés não reflete a vontade de Deus, mas antes reflete a teim osia dos israelitas (v. 5) ressoa de modo espantoso e singular. Para m uitos judeus antigos esta declaração do Senhor pareceria um ataque à santidade e à perfeição da lei do AT; é certo que se trata de um ataque ao uso desta passagem do AT a fim de justificar a repúdio das esposas sem pre que os m aridos o desejassem . As passagens do AT que Jesus m enciona dizem respeito ao relato da criação (v. 6, de Gênesis 1:27; vv. 7-8, de Gênesis 2:24), sendo que o em prego que o Senhor faz desses textos produz dois efeitos. Prim eira­ mente, constitui desafio ao ponto de vista de que a lei de M oisés era a perfeita e últim a projeção da vontade de Deus, ao afirm ar que a lei se adaptara à natureza hum ana decaída e teimosa. Ao citar os relatos da criação, Jesus deixa im plícito que a vontade de Deus original, edênica, concernente ao casam ento, é superior à lei de M oisés e continua a ser a

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orientação adequada para a condução do casam ento. Esta reflexão a respeito da lei de M oisés, que estaria sendo usada a fim de justificar uma conduta contrária à vontade de Deus, é sem elhante ao argum ento de Jesus de que a tradição dos anciãos às vezes justificava o em prego das leis do AT para que se desobedecesse à vontade de Deus (7:1-13). Em segundo lugar, ambas as passagens que Jesus cita asseveram a im portância da m ulher no casam ento. N a prim eira declaração, de G êne­ sis 1:27, tanto o m acho com o a fêm ea são enfatizados com o criação de Deus, com a im plicação de que ambos devem ser respeitados; na verdade, a idéia é que am bos são parceiros iguais. A lém disso, a segunda passagem (Gênesis 2:24) reafirm a esta doutrina com m aior ênfase sobre o hom em abandonando outras pessoas, por am or à sua m ulher, e sobre a referência à união que se form a pelo casam ento (um a só carne, v. 8). N o contexto social e econôm ico da antiga Palestina, o direito absoluto do m arido de poder divorciar-se às vezes significava grande tribulação para as esposas abandonadas que, se não fossem acusadas de falta de castidade, poderiam quando m uito receber um a certa porção de bens m ateriais, uma única vez. Tal som a financeira, entretanto, não seria superior ao dote trazido pela m ulher por ocasião do casam ento (veja notas), o qual poderia ser bem pequeno, no caso de a m ulher ter tido pais m uito pobres. A conseqüência da posição assum ida por Jesus, a de proibir o divórcio, foi a rejeição da idéia de que a m ulher era propriedade do m arido, e a insistência no reconhecim ento dos direitos da m ulher no casam ento, baseados no padrão original da criação divina. Esta ênfase sobre os direitos da m ulher no casam ento fica m ais evidente na palavra de Jesus a seus discípulos, nos vv. 10-12, em que o Senhor afirm a que o hom em que se divorciar de sua mulher, trocando-a por outra, com ete adultério contra ela. Esta concepção aparentem ente não tem paralelo no antigo judaísm o, em que o adultério era entendido com o ofensa que se com etia contra outro hom em , quer m ediante a sedução da filha de um cidadão, privando-o de um a filha que pudesse fazer um bom acordo de casam ento, quer m ediante a violação dos direitos exclusivos de ordem sexual de um hom em em relação à sua esposa. A ênfase em que é Deus quem une m arido e m ulher (v. 9) refere-se ao plano da criação de Deus, a que ficam obrigados todos os casam entos, significando que à sem elhança dos profetas do AT (veja M alaquias 2:10-16) Jesus define o casam ento com o um relacionam ento em que

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tanto o m arido com o a m ulher são responsáveis, um perante o outro, e ambos perante Deus na m anutenção de sua santidade. Para os leitores de M arcos, isto significa que, m ais um a vez, à sem elhança da questão dos costum es alim entícios (7:1-23), ou de jejum (2:18-22), ou de obediência à le i do sábado (2:23-3:6), a conduta deles não deveria ser regulam entada pelos costum es judaicos, mas pelas exigências específicas que o próprio Jesus lançava sobre seus seguidores. 10:13-16 / O surgim ento desta passagem que trata de crianças, logo após a que trata do casam ento, poderia ter sido proposital, devido ao fato de am bos os assuntos estarem ligados de m odo natural na vida. H avia certas pessoas na igreja antiga para quem o casam ento era mau, porque consideravam o intercurso sexual com o poluição carnal (parece que Paulo corrige este desvio doutrinário em 1 Coríntios 7:1-40; com toda certeza esse desvio viria a ser instituído entre alguns hereges m ais tarde, dentre os cham ados gnósticos). Essas m esm as pessoas criam tam bém que a procriação de filhos era um mal; é possível que este incidente em que Jesus recebe as crianças teve a intenção, da parte de M arcos, de corrigir essa atitude errada (veja nota). Q uer seja correta esta avaliação, quer não, a declaração do Senhor no presente contexto constitui um elo que a une ao tem a geral do discipulado em M arcos 8-10. A intenção dos que trouxeram as crianças a^Jesus era que o Senhor lhes dispensasse algum a bênção, visto que M arcos descreve o toque de Jesus, noutra passagem , com o sendo considerado pelas pessoas toque portador de bênçãos de saúde (veja 1:41; 3:10; 5:28,41; 6:56; 7:32; 8:22). Talvez seja m ais com preensível a im paciência dos discípulos (v. 13), em função das exigências aparentem ente incessantes do povo sobre Jesus e sobre os doze, e dada a atitude geral da época, segundo a qual as crianças, conquanto im portantes e amadas por seus pais, sem dúvida algum a “eram para ser vistas, não para ser ouvidas” . (Observe o contraste de Paulo entre um simples m enino que “em nada difere do escravo” , e um adulto, em Gálatas 4:1-3). Por outro lado, o fato de Jesus dar boas-vindas às crianças (v. 16) constitui outro exem plo de sua atitude positiva para com as pessoas que não tinham posição social im portante, com o os cobradores de im postos (2:13-17) ou as m ulheres (10:1-12). O contexto da declaração de Jesus, no v. 15, de que a pessoa deve receber o reino de Deus com o criança visa m ostrar a situação social das criancinhas. Tal declaração não se refere a nenhuma suposta inocência

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ou hum ildade, ou quaisquer outras virtudes im agináveis das crianças (que no final das contas são noções rom ânticas, e nada mais), m as antes refere-se à situação cultural dos tem pos de Jesus, em que as crianças dependiam totalm ente da vontade dos adultos, destituídas que eram de todo valor, sem peso legal ou social e, por isso, im possibilitadas de reivindicar tratam ento condigno. O que Jesus tem em m ente é essa posição objetivam ente hum ilde na sociedade, e o Senhor afirm a que a pessoa deve assum ir essa posição com o criança, a qual é incapaz de lutar por exigências, mas depende da boa vontade de Deus. O adulto que im agina ser digno, desta ou daquela m aneira, do favor de D eus, e que entrará no reino de Deus em decorrência de sua posição social ou religiosa na verdade jam ais participará do reino anunciado por Jesus. A ssim é que esta passagem enquadra-se na ênfase de 9:33-37 em que os discípulos devem estar dispostos a colocar-se na posição de servos (a palavra “criança” no aram aico e no grego tam bém pode significar “servo” , e reflete a idéia prevalecente de que as crianças deveriam portar-se com o servos de seus pais), desem penhando papéis que o m undo poderia considerar aviltantes. Esta ênfase constitui o contexto do próxi­ mo episódio em que um hom em rico aspira o discipulado cristão, mas acha que as exigências são grandes dem ais. 10:17-31 / Talvez seja este um dos incidentes m ais fam osos do m inistério de Jesus, encontrado nos três sinóticos. Cada um a das três versões da história contém variações interessantes. Por exem plo, só Lucas (18:18) diz que o hom em é “hom em de posição” , e só M ateus (19:20) afirm a ser ele “jovem ” . Há outras características individuais dos três relatos (veja notas), tendo M arcos seus próprios traços distintos; todavia, as três versões da história salientam o m esm o ponto: as riquezas tornam m ais difícil o ingresso no discipulado cristão, e é possível que o Senhor exija do candidato o sacrifício total de seus bens e posição social. O texto didático que se segue ao relato do encontro com o m oço rico (10:23-31) am plifica esta doutrina, e dá-nos a certeza de que Deus honra esse sacrifício. A passagem foi colocada em M arcos 8-10 porque contribui para a ênfase geral desse passo escriturístico sobre a natureza do discipulado cristão. O m oço rico, dono de tantos bens e direitos, dos quais deve abrir mão, constitui excelente e muito oportuno contraste com as criancinhas da passagem anterior, cuja posição social Jesus tom a e apresenta com o

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exem plo para seus seguidores (v. 15). O fato de esse ricaço recusar o desafio de Jesus, e deixar de tornar-se seguidor e discípulo, dá m aior efetividade à ênfase sobre os perigos das riquezas. Esta história não apresenta um final feliz, pois a dura realidade da advertência do Senhor ali se concretiza. Há, tam bém , algo parecido com um contraste entre o moço rico e os doze, os quais afirm am ter abandonado tudo a fim de seguir a Jesus (v. 28). O Senhor não nega isso, mas sua declaração nos vv. 29-31 contém duas coisas: a certeza do favor de Deus em prol dos que efetuam tal sacrifício, e a advertência de que haverá mais algum as provações no futuro a serem enfrentadas, antes do julgam ento final da parte de Deus. Paralelam ente às provisões que Deus enviará, para atender às necessida­ des diárias dos discípulos (v. 30), haverá perseguições tam bém . No mundo por vir haverá a vida eterna; todavia, ocorrerá grande reversão de posições terrenas quando chegar o julgam ento divino (v. 31). A história do m oço rico propicia o texto didático dos vv. 23-31 e toda essa m atéria doutrinária fez parte da intenção de M arcos de que tudo isso seja lido com m áxim a atenção pelos que se consideram discípulos de Jesus. Essa passagem toda presum e que o leitor está fam iliarizado com o conceito ju daico antigo de que esta era terá um fim, sobrevindo nova era de que só participarão os que forem aceitáveis perante Deus. A todos quantos entrarem na era vindoura lhes será dada vida eterna. E isto que form a a base da pergunta do ricaço, no v. 27, à vista de sua pretensa (v. 20) obediência aos m andam entos divinos. Todavia, quando o Senhor lhe diz o que deve fazer o m ilionário se recusa a atendê-lo, e aí reside a ironia da história. O Senhor lhe diz que deve abrir mão dos bens desta vida, visto que parece tão interessado nos bens da vida vindoura — mas o hom em desiste, não vai obedecer. O interesse dele pelo m undo futuro não é tão sincero que o capacite a despreocupar-se com este m undo atual (vv. 21-22). O breve diálogo travado com o hom em a respeito de seu modo de dirigir-se a Jesus (vv. 17-18) não constitui mero sofism a a respeito do que é adequado em religião. O cum prim ento do moço rico, bom M estre, pode ter sido m ero cum prim ento, ou simples elogio inofensivo. Entre­ tanto, Jesus rejeita o elogio, e insiste em que o hom em reconsidere com m áxim a seriedade sua própria pergunta. O diálogo a respeito da guarda dos m andam entos, nos vv. 19-20,

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indica que se tratava de um hom em decente, honesto, inculpável de quebra da lei de Deus. O Senhor não lhe questiona a afirm ação de total obediência à lei; na verdade, só M arcos apresenta a pequena observação de que Jesus sentiu afeição pelo hom em (v. 21), dando a entender mais ainda que se tratava de um a pessoa sincera. Tudo isso significa que a única coisa que entravava o cam inho entre o ricaço e Jesus era o am or pelos bens m ateriais (v. 22). N outras palavras, a descrição da vida desse hom em , bastante elogiável noutros aspectos, revela que seu problem a estava na posse de riqueza. Nos tem pos antigos, e tam bém em nossa época, a opinião popular afirm a que as riquezas em si m esm as não constituem problem a; só quando o rico se engaja em práticas ím pias é que ele corre riscos espirituais. Entretanto, a ênfase poderosa desta passagem bíblica é que as riquezas em si mesm as são im pedim ento contra a pessoa, quanto à participação no reino de Deus; o m ero acúm ulo de riquezas e o conseqüente apego às posses m ateriais podem im pedir que a pessoa siga a Cristo. E sta doutrina é reiterada em term os m ais fortes ainda nos vv. 23-25, em que Jesus em prega um a variante de ditado, que talvez fosse um meio popular de descrever algo com o sendo praticam ente im possível: “um cam elo passar pelo fundo de um a agulha” (veja nota). V ez ou outra ainda se ouve a sugestão mal inform ada de que tal declaração de Jesus se referia a um buraco ou portinhola no m uro de Jerusalém , a que todos davam o apelido de “fundo de agulha” . M as esta é um a invenção fantasiosa. O am plo em prego de expressões sem elhantes na tradição judaica antiga dem onstra que estes term os (“cam elo” e “fundo de uma agulha”) devem ser tom ados em seu sentido normal. A força total dessa figura de linguagem reflete-se na reação dos discípulos (v. 26), que se surpreen­ dem ao saber que milionários e pessoas de bem , sem elhantes àquele moço, não entrarão no reino de Deus. A réplica de Jesus, de que só Deus pode atribuir às pessoas a capacidade de abrir mão de suas posses m ateriais por am or ao reino de Deus (v. 27), reforça o que o Senhor havia dito acerca da dificuldade trem enda que o rico enfrenta para obedecer ao seu chamado. Todavia, o hom em é chamado, não à pobreza por am or à própria pobreza, m as ao discipulado (v. 21, vem , e segue-me). Noutras palavras, esta não é apenas um a história que critica a riqueza; ela tam bém ensina que nem m esm o a obediência à lei do AT, som ada à elevada posição

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sócio-econômica, substitui a obediência ao chamado de Jesus. A questão proposta àquele homem foi se ele seguiria a Jesus mesmo que isso signifi­ casse que teria de abrir mão de suas posses materiais. As riquezas dele eram armadilha e pedra de tropeço. Entrar no reino de Deus (v. 23) era-lhe difícil demais precisamente porque suas riquezas o impediam de atender à convo­ cação de Jesus para segui-lo. Assim, conquanto a história do homem e do diálogo que se seguiu entre Jesus e os doze representem horrenda advertên­ cia sobre o perigo das riquezas, não existe aqui nenhuma defesa de programa social que envolva a redistribuição de riquezas, nem o louvor romantizado da opção da pobreza. A questão toda resume-se em Jesus, aquele que assegura participação no reino de Deus; o ponto central é que seguir a Jesus e aderir à missão significam colocar o Senhor acima de todos os demais interesses. O diálogo final entre Pedro e Jesus (vv. 28-31) confirma que o ponto nevrálgico da questão é seguir a Jesus, e que não só as posses materiais mas até os relacionamentos poderão ter de ser sacrificados. A redação de Marcos do v. 29, por am or de mim e do Evangelho também confirma que o motivo por que o crente abandona suas posses é essa mesma: a participação efetiva ao lado de Jesus na atividade de proclamar sua mensagem. M ais uma vez percebemos a evidência de que para Marcos a participação na missão da igreja é parte vital do processo de seguir a Jesus (veja nota). As palavras de Jesus, no v. 30, sobre o crente receber cem vezes tanto, a saber, receber o que ele sacrificou multiplicado por cem, nos parecem salpicadas de ironia e até mesmo de humor. É evidente que elas não significam, na verdade, que o discipulado cristão, o seguir a Jesus, seja “um esquema fácil e prático para você enriquecer” . Em vez disso, a abundância descrita pelo Senhor com toda probabilidade refere-se ao fato de as pessoas que abandonaram a tranqüilidade de uma vida normal, a fim de seguirem a Jesus em determinada missão, deverão relacionar-se com inúmeros irmãos, irmãs, mães, filhos em inúmeras casas, e receber sustento proveniente de inúmeros campos, ainda que nada disso na verdade lhes pertence. A frase peculiar a Marcos, com perseguições, deixa bem clara a realidade entra­ nhada na linguagem — que nesta era não se promete lucro material. Promete-se ao discípulo, todavia, vida eterna no mundo por vir; o ensino de que os ricos e os poderosos terão maior dificuldade para entrar no reino ilustra o que o Senhor quer dizer com a reversão descrita no v. 31.

Notas Adicionais# 18 10:1 / Judeia: era uma província romana ao sul da Palestina, de que a principal cidade era Jerusalém. A Judéia era administrada de modo direto por um governador romano durante o tempo do ministério de Jesus, enquanto a Galiléia era administrada por Herodes Antipas, governador títere nomeado por Roma. O rio Jordão, que corre para o sul, partindo do lago da Galiléia, até o mar Morto, fazia o contorno leste da Galiléia e da Judéia. A fim de evitar a travessia de Samaria (que ficava entre a Galiléia e a Judéia), os judeus do tempo de Jesus atravessavam uma região até a margem oriental do Jordão, dirigiam-se para o sul, tornavam a atravessar o Jordão, e entravam na Judéia de novo, perto de Jericó, uns poucos quilômetros ao norte do mar Morto. Ao mudar a localidade de sua narrativa para a Judéia, Marcos alerta seus leitores de que Jesus caminha na direção de Jerusalém, e que estamos nos aproximando do estágio final do ministério do Senhor naquela cidade. (Para mais informações, veja “Judéia”, 1DB, vol. 2, pp. 1011-12; “Jordan”, IDB, vol. 2, pp. 973-78; MBA, 235). 10:2 / alguns fariseus: é altamente provável, porém não certo de modo absoluto, que o texto original de Marcos continha esta referência aos fariseus (estas palavras estão faltando em alguns manuscritos antigos, em que os críticos permanecem anônimos). tentando-o: é tradução de um verbo que também pode significar “testar”. A mesma palavra aparece também em 8:11 e 12:15, em que outras perguntas hostis são dirigidas a Jesus. E lícito ao marido repudiar sua mulher?: Não pode haver dúvida quanto a isto, à vista de Deuteronômio 24:1-4; o texto paralelo de Mateus 19:3 parece refletir com precisão a natureza da controvérsia judaica entre as escolas de Hillel e de Shammai, acerca da causa legítima conducente ao divórcio. Parece que Marcos reflete uma adaptação do problema dirigida a leitores gentílicos, na qual é bem maior o contraste entre o que a lei do AT permite e o que Jesus ordena. Segundo os costumes judaicos antigos, quando uma jovem se casava, o pai dela dava um dote que poderia consistir de dinheiro, escravos ou outras propriedades, dependendo da riqueza do pai. Esse dote permanecia propriedade da moça (a única propriedade legítima que ela possuiria) no casamento; caso houvesse divórcio, o dote deveria ser-lhe devolvido pelo marido, a menos que ela comprovadamente fosse culpada de má conduta sexual. O marido deveria providenciar uma carta de divórcio que seria devidamente entregue à mulher, na qual ele declararia que a ex-esposa estava inteiramente livre daquele casa­ mento, podendo casar-se de novo com quem a família escolhesse. Não havia processo em tribunal; a ação processual parecia mais a moderna prática de vender um pedaço de propriedade, um carro, ou uma casa, em que um docu­ mento adequado de venda, ou seu equivalente, é única exigência. (Veja com maior profundidade, “Marriage”, IDB, vol. 3, pp. 278-87; “Divorce”, IDB, vol. 1, p. 859).

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10:5 / Por causa da dureza do vosso coração: a “dureza do coração” refere-se a uma atitude teimosa, determinada (veja Deuteronômio 10:16). Esta não é a mesma expressão grega usada na descrição da obtusidade dos discípulos em 8:17, mas poderão ser sinônimas. 10:7-8 / e unir-se-á à sua mulher: é expressão ausente em alguns manuscritos antigos importantes (veja nota marginal de NIV); os eruditos não têm certeza se estava no texto original de Marcos, ou se foi inserida por algum copista, a fim de harmonizar esta passagem com Mateus 19:5 (texto paralelo), e com Gênesis 2:24, aqui mencio­ nada. Estas palavras, com o termo uma só carne, referem-se à união mediante intercurso sexual, segundo a qual dois parceiros conjugais unem-se fisicamente num elo que se não deve dissolver. 10:10 / tornaram os discípulos a interrogá-lo acerca deste assunto: como noutras passagens de Marcos, aqui os discípulos se aproximam de Jesus em particular para pedir-lhe explicações a respeito de pronunciamentos públicos. Cp. veja 4:10-12, 33-34; 7:17-23;9:28-29. 10:11 / Quem repudiar a sua mulher: a situação em foco neste texto é a de um homem que se divorcia de sua mulher, a fim de estar livre e casar-se com outra, ou uma mulher (v. 12) que fizesse o mesmo para com seu marido. Como vimos acima, na discussão do caso de Herodes e Herodias, este casal abandonou cada um seu respectivo cônjuge a fim de casar-se, constituindo exemplo da atitude que Jesus condena aqui. O relato de Mateus 19:9, paralelo de 10:11-12, difere deste de três maneiras diferentes. Traz um período (traduzido por “não sendo por causa de prostituição”) que aparece como exceção à regra contra o divórcio, em casos de má conduta sexual (embora alguns eruditos interpretem este período como referindo-se à dissolução de casamentos realizados de modo impróprio). Em segundo lugar, em Mateus 19:9 não há referência a uma mulher que se divorcie de seu marido (ação não permitida de acordo com a lei judaica da época). O modo como a linguagem está exposta em Marcos 10:11-12 parece ter a intenção de referir-se ao caso de Herodes com Herodias (quando ambos se divorciaram de seus respectivos cônjuges), e seria aplicável mais prontamente às praticas legalísticas do mundo gentílico da época, que permitiam que maridos e esposas tomassem a iniciativa num divórcio. Em terceiro lugar, a frase de 10:11 contra aquela não aparece em Mateus 19:9; a forma que Marcos empresta ao enunciado de Jesus, sobre o marido que se divorcia para casar-se com outra, dá-lhe caráter de ofensa cometida contra a esposa rejeitada. Quanto a outros textos paralelos sobre o ensino concernente ao divórcio veja também Mateus 5:32 e Lucas 16:18. E interessante notar como esse ensino de Jesus é usado pelo apóstolo Paulo em 1 Coríntios7:10-11 para responder a certas perguntas da igreja sobre os cristãos que se estão divorciando. 10:13 / os discípulos os repreendiam: o verbo empregado aqui é o mesmo de 4:39, em que Jesus repreende o vento, e de 8:32-33, em que Pedro e Jesus entram em acirrado conflito. Implica ação enérgica e mais uma vez retrata Jesus em desacordo grave com os doze. Isto também se evidencia no v. 14, em que Jesus “indignou-se”.

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10:14 / deixai vir a mim as criancinhas: conforme discutimos acima, a atitude positiva de Jesus para com as crianças poderá ter sido usada por Marcos, em parte para dar certeza quanto ao lugar legítimo das crianças na comunidade cristã. Cp. 1 Coríntios 7:14, em que Paulo assegura a seus leitores que os filhos provenientes de um casamento entre um cristão e um pagão são “santos”. Pelo menos entre alguns gnósticos tanto o casamento como a procriação eram considerados maus; todavia, deve-se salientar que as evidências dos cristãos gnósticos vieram depois da época de Marcos. Cp. Mateus 19:13-15; Lucas 18:15-17; Mateus 18:3. Veja também “Family”, IDB, vol. 2, pp. 238-41. 10:15 / em verdade vos digo: é a fórmula peculiar de Jesus com aparência de juramento nos evangelhos. Veja nota em 3:28. 10:16 / tomando-as nos braços: Cp. 9:36 em que há um gesto semelhante de afeto. 10:17 / um homem: pouco nos diz Marcos a respeito desse homem, senão que era rico e detentor de longo currículo de observância religiosa. Só Mateus 19:20 informa ser ele jovem, e só Lucas 18:18 o descreve como líder da comunidade judaica. ajoelhando-se: só Marcos registra este gesto de reverência, constituindo talvez um contraste com o desinteresse final quanto a obedecer a Jesus. Bom Mestre: esta saudação é indício de grande respeito, sendo difícil encontrar paralelos na literatura judaica da época, embora haja exemplos de saudações semelhantes dirigidas a pessoas respeitáveis nos escritos gentílicos. (Veja exemplos em Lane, p. 365). 10:18 / ninguém é bom senão um só, que é Deus: este enunciado reflete a idéia tipicamente judaica de que Deus é santo de forma exclusiva, singular. Tenciona ser ligeira repreensão à saudação floreada do homem. Cp. Mateus 19:16-17, que apresenta uma forma um tanto diferente de repreensão. Tais palavras de Jesus nenhuma relevância têm para a doutrina cristã da divindade de Cristo, o que talvez seja esclarecido pela redação de Mateus. 10:19 / sabes os mandamentos: os mandamentos sob referência evidente­ mente são os da lei do AT; todos os mencionados pertencem aos dez manda­ mentos de Êxodo 20:12-16 e Deuteronômio 5:16-20, exceto não defraudarás a ninguém, que pode ser referência a Siraque 4:1 (também conhecido como Eclesiástico, livro relacionado entre os apócrifos). Os textos paralelos de Mateus 19:19 e Lucas 18:19 não contêm este mandamento, porém, Mateus inclui o mandamento de amar ao próximo, tirado de Levítico 19:18. 10:21 / Jesus, olhando para ele, o amou: este pormenor é peculiar à versão de Marcos, dessa história, e poderia ter o objetivo de tornar mais trágica a recusa do homem. 10:22 / mas ele, contrariado com esta palavra, literalmente, “chocado” pelas palavras de Jesus. Esse detalhe também é peculiar a Marcos. 10:25 / passar um camelo pelo fundo de uma agulha: há expressões

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semelhantes, com respeito a algo muito difícil, nos textos rabínicos do judaísmo antigo, que se referem a um elefante passar pelo orifício de uma agulha. (Quanto a referências, veja Lane, pp. 369-70). 10:29 / casa, ou irmãos, etc.: alguns antigos manuscritos de Marcos acres­ centam “ou esposa”, depois de ou pai, o que talvez tenha sido tomado de empréstimo do texto paralelo de Lucas 18:29, que inclui “esposa” na lista dos relacionamentos que poderiam perder-se. por amor de mim e do Evangelho: Cp. Mateus 19:29, “por causa do meu nome”, e Lucas 18:29, “pelo reino de Deus”. A forma do enunciado de Marcos é como o de 8:35 (cp. nota sobre este versículo). Aqui, como nas outras passagens, a adição de e do Evangelho significa que o sacrifício é feito por amor ã participação na missão de Jesus e (no contexto de Marcos) da igreja. 10:31 / muitos primeiros serão derradeiros, e os derradeiros, primeiros: este enunciado, com ligeiras variações, aparece em vários pontos dos evange­ lhos. Cp. a passagem paralela de Mateus 19:30 e também Mateus 20:16; Lucas 13:30. Trata-se de bom exemplo de uma declaração de Jesus que “flutua” ao longo de incidentes e ensinos atribuídos ao Senhor, anexados a vários contextos, talvez porque expressa de forma muito concisa o caráter revolucionário da sua mensagem. Também é possível, sem dúvida, que Jesus tenha utilizado esta frase vigorosa, com tanta freqüência, à guisa de “slogan” ou lema. No contexto dos acontecimentos que cercavam Jesus, esse lema expressava a realidade de que, os que se julgavam dignos de modo especial do favor de Deus, não o encontra­ riam, e os que eram considerados por muitos como os derradeiros (pecadores, cobradores de impostos, etc.) receberiam o favor de Deus.

19. Jerusalém Sobressai-se à Frente (Marcos 10:32-52)

10:32-34 / E sta terceira predição da morte de Jesus constitui o clím ax profético da série. Cada elem ento da passagem contribui para isso. A observação de ordem geográfica estavam a cam inho, subindo para Jerusalém (v. 32) m ostra que o m inistério de Jesus está conduzindo-o à cidade de seu destino. A descrição da atitude dos discípulos, eles se m aravilhavam ... atem orizados (v. 32), aum enta a tensão. N a própria predição está a descrição mais específica jam ais feita dos eventos da prisão e execução de Jesus. Pela prim eira vez há a m enção do envolvi­ m ento de gentios (v. 33), seguindo-se um a lista de vilezas (v. 34) que form am um crescendo de crueldade. C om a predição da morte de Jesus, aproxim am o-nos do final desta grande seção didática (8:27-10:52) e do com eço dos acontecim entos que constituem o encerram ento do m inistério de Jesus. Esta terceira predição, bem porm enorizada, tem com o efeito enfatizar o significado central da m orte de Jesus. A passagem seguinte (10:35-45) é a terceira correção das noções obstinadam ente erradas dos discípulos sobre o m inistério de Jesus, e sobre seu próprio cam inho de discipulado; esta terceira e últim a predição estabelece violento contraste entre o que vai acontecer ao Filho do hom em e o que os discípulos esperavam que lhe acontecesse, e acontecesse a eles com o discípulos. 10:35-45 / A pós cada predição da m orte de Jesus, há um a discussão entre o Senhor e seus discípulos, em que ele lhes corrige a visão de sua obra e do papel que desem penharão com o discípulos (cp. 8:32-9:1; 9:33-50); esta passagem constitui o exem plo final. Tendo acabado de predizer com algum as m inúcias o destino ignom inioso que o aguarda em Jerusalém , Jesus é procurado por dois de seus discípulos m ais íntimos (veja nota), cujos olhos estão voltados som ente para a glória que im agi­ nam para o Senhor e para si m esm os (vv. 35-37). A ênfase da resposta de Jesus, nos versículos 41-45, é m uito sem elhante à de seu ensino em 9:33-37, pois o Senhor salienta a im agem do servo; entretanto, há outras características que de certo modo distinguem esta passagem . A questão proposta por Tiago e João (vv. 35-37) dá-nos a prim eira

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indicação explícita do tipo de expectativa m essiânica que os discípulos alim entavam . Em erge, de um lado, a am bição hum ana com preensível, e um a esperança que se enquadra na expectativa, nossa conhecida, sonhada pelo antigo Israel a respeito do governo do M essias; por outro lado, podem os ver que esse sonho difere seriam ente da realidade que o leitor sabe, agora, que m arcará o destino im ediato de Jesus, e o ensino dele a respeito do papel adequado talhado para seus seguidores. Tem os aqui, pois, mais um retrato que M arcos faz dos doze: discípulos atrapalhados, falhos, que servem de advertência aos leitores, que deverão ter certeza de que com preendem o ensino de Jesus e a ele obedecem. Em certo sentido, o leitor havia ficado preparado para esse tipo de pedido, quanto a lugares especiais com Jesus, da parte desses discípulos, visto que em várias passagens do Evangelho de M arcos, observam os Tiago, João e Pedro com pondo um círculo íntim o dentre os doze (cp. 1:14-20; 5:37; 9:2; 13:3; 14:33-34). A resposta de Jesus, entretanto, im plica que a liderança que esses exerciam entre os doze significaria que eles teriam sido chamados para unir-se ao Senhor em suas tribulações e sofrim entos, sem garantia de lugares especiais no reino vindouro (vv. 38-40). Vale a pena notar as im agens desse diálogo. Os discípulos pedem “tronos” proem inentes, a saber, posições de destaque, logo abaixo de Jesus. O Senhor fala de um cálice e de um batism o, o sofrim ento que o aguarda. Talvez os discípulos pensem que cálice e batism o referem -se apenas à com unhão com o Senhor, ao fato de segui-lo, não percebendo que Jesus usa essas im agens, com um sentido tom ado de em préstim o do AT, em que tais termos, ou “cálice” e “dilúvio”, com freqüência são em pregados com o imagens do julgam ento divino (veja notas). Noutras palavras, Jesus se refere ao seu sofrim ento próxim o em term os que o descrevem com o destino que lhe foi determ inado por Deus m esm o, exatam ente com o suas predições davam a entender (cp. de m odo especial nota sobre 8:31). A confiante réplica dos dois irmãos (Podem os, v. 39) está cheia de ironia. Acham que sabem que é que estão prom etendo quando, na realidade, nada sabem. De certo m odo, a pergunta de Jesus no v. 38 é retórica, visto que os discípulos são incapazes de com partilhar de modo com pleto os sofrim en­ tos determ inados para Cristo, os quais resultarão na redenção do m undo (v. 45). Entretanto, noutro sentido, a pergunta de Jesus e seu com entário seguinte, no v. 39, im plica que eles participarão de seu próprio sofrim en­

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to, e sofrerão sua própria cota de dores por causa do Senhor (com o suas predições de 13:9-13 dão a entender). Todavia, o fato de que eles participarão dos sofrim entos do Senhor não resolve a questão da posição que ocuparão no reino de Deus. Jesus insiste que esta é um a questão que com pete a D eus, e só a D eus (v. 40) resolver; ficam os com a im pressão de que isto já pode ter sido decidido segundo o plano soberano de D eus. A conversa entre Jesus e os dois irm ãos precipita um a controvérsia m ais am pla que envolve os doze (v. 41), indicativa de que a atitude por detrás do pedido de Tiago e João era partilhada por todos os discípulos. Isto prepara o cenário para as últim as palavras da passagem (vv. 42-45), em que Jesus reitera basicam ente o ensino dado em 9:33-37, fazendo contraste entre os padrões de vida entre os gentios (lit., “ as nações” , tam bém no v. 33) com o padrão que seus discípulos devem seguir. Entretanto, o Senhor acrescenta um a nova declaração (v. 45) que aum en­ ta ainda m ais a ênfase anterior na im portância dos sofrim entos do próprio Jesus. A prim eira predição da m orte de Jesus, em 8:31, descreve-a com o um a realidade “ inescapável” , im plicando necessidade divina. M arcos 10:45 explica as razões dessa “ necessidade” divina. A hum ilde senda de serviço de Jesus e seus sofrim entos que culm inarão em sua m orte são exem plos para seus seguidores (vv. 43-45a) e redenção para eles (v. 45b). A linguagem m etafórica em pregada no v. 45, resgate (ou redenção) por m uitos, é tirada da vida econôm ica antiga (veja nota) em que um escravo prisioneiro ou pedaço de terreno confiscado, ou outra proprie­ dade qualquer alienada, poderia passar pela liberação m ediante o paga­ m ento do preço de compra. A m etáfora apresenta a m orte de Jesus com o sendo o preço da liberação dos m uitos. Essa declaração tem paralelo em M ateus 20:28; noutras passagens o N T em prega linguagem sem elhante, com o por exem plo, 1 Pedro 1:18; H ebreus 9:12; Tito 2:14. Noutras passagens a linguagem varia, perm anecendo, todavia, a idéia central de que a m orte de Jesus constituiu evento redentor; na verdade, trata-se do evento redentor básico da salvação oferecida no Evangelho (veja R om a­ nos 3:21-26; 4:25; 5:6; Hebreus 1:3). Tudo isto significa que na descrição da m orte de Jesus fornecida por M arcos 10:45, o evangelista reflete o ensino básico do prim itivo cristianism o. A colocação desta explicação da m orte de Jesus após a terceira profecia de seus sofrim entos e m orte enfatiza a idéia de que se tem aqui

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um clím ax, nesta passagem central de M arcos (8:27-10:52); ela nos prepara para a narrativa dos eventos finais do m inistério de Jesus, conducente à sua rejeição pelas autoridades judaicas, e m orte na cruz. M arcos 10:45 nos m ostra que o sacrifício de Jesus é obra feita em prol da hum anidade, e dá-nos um poderoso contraste com o pedido mal conduzido dos dois discípulos, que abre a passagem. 10:46-52 / Se om itirm os a história da figueira am aldiçoada (11:12-14, 20-25) que na verdade não é um a história de m ilagre sem elhante às dem ais de M arcos, este incidente registrado em 10:46-52 é a história do últim o m ilagre do relato desse evangelista. Seria, nesse caso, um milagre conducente a um clím ax e, por isso, m erecedor de toda atenção. C onsti­ tui, além disso, o encerram ento de um a longa seção (8:27-10:52), na qual o Senhor nos ensina a respeito de seus sofrim entos próxim os e da senda do discipulado; M arcos usa esse m ilagre com o veículo im portante para com unicação dessas lições sobre Jesus. Tam bém é digno de nota que a seção encerrada por um m ilagre a respeito de olhos (8:27-10:52), tam bém se inicia com outro portento, o da cura de outro hom em cego (8:22-26). Esses dois m ilagres sobre cura de cegueira funcionam com o dois suportes de livros num a prateleira, um em cada ponta, a fim de suportar os livros. E com o são apropriados esses m ilagres, com o símbolos! E que esta seção central de M arcos é devotada ao descortínio do destino de Jesus em Jerusalém , o verdadeiro significa­ do de sua missão, e a tentativa de ilum inar os discípulos (e seus leitores) quanto à pessoa de Jesus, e o papel que devem desem penhar seus seguidores. As três versões dessa história (cp. M ateus 20:29-34; Lucas 18:35-43) ligam o incidente com a cidade de Jericó, o que alerta o leitor para o fato que Jesus está aproxim ando-se de Jerusalém ; Jericó era o ponto onde os peregrinos oriundos da G aliléia atravessavam o Jordão para entrar na Judéia. Ficam os im aginando tam bém se esta cidadezinha teria im portân­ cia sim bólica. Jericó foi a prim eira cidade a ser capturada por outro “Jesus” , o soldado Josué (cujo nom e em hebraico e em grego corresponde ao de Jesus), no desem penho da tarefa que Deus lhe ordenara de con­ quistar a terra da Palestina para Israel (cp. Josué 1:1-9; 6:1-27). Portanto, aqui está outro “Josué” a cam inho de Jerusalém , a fim de conquistar a redenção para o povo que Deus vai salvar. É possível que o porm enor dessa história que recebeu m ais atenção

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em anos recentes por parte dos eruditos é o título pelo qual o m endigo cego cham a Jesus: Filho de Davi; de fato, trata-se de um título que exige nosso exam e m inucioso (veja nota). Este é o único lugar em M arcos em que alguém cham a Jesus de Filho de Davi, um dos poucos lugares em que a pessoa de Davi é m encionada (cp. 2:25; 11:10; 12:35-37). Os títulos prediletos de M arcos para Jesus são “C risto” (veja 1:1; 8:29; 9:41, veja nota sobre este versículo; 14:61; 15:32) e “Filho de D eus” (veja 1:1, 11; 3:11; 5:7; 9:7; 14:61; 15:39). (O term o “Filho do hom em ” evidentem ente foi em pregado com freqüência por Jesus, para si m esm o, porém não parece ter sido considerado por M arcos com o título que expressa a fé cristã, pois, o evangelista nunca o em prega da m aneira com o em prega aqueles outros dois títulos). Tem os aqui basicam ente duas perguntas: Prim eira, teria M arcos aprovado o título de “filho de D avi”, julgando que o m esm o expressaria algum a coisa verdadeira a respeito de Jesus, ou teria o evangelista rejeitado esse título, por julgá-lo inadequado, sem nenhum a esperança? Em segundo lugar, no entendim ento de M arcos, que é que esse título significaria? Nossos esforços no sentido de responder a estas duas perguntas poderiam ter m aiores probabilidades de êxito se lhes invertêssem os a ordem. N a tentativa de determ inar com o esse título deveria ser entendido, os eruditos têm estudado o em prego desta expressão, e de outras sem e­ lhantes na literatura judaica antiga, num a investigação incessante. T oda­ via de duas coisas já se tem certeza. Prim eira: há evidências de que o título filho de D avi era um a designação do M essias (veja no texto judaico conhecido com o Salmos de Salom ão, 17; e em M arcos 12:35) na época de Jesus. Segunda: noutras passagens do NT vindica-se ascendência davídica para Jesus, e tal ascendência é apresentada com o parte da com provação de que Jesus é o M essias (veja Rom anos 1:1-4; M ateus 1:1; 12:23; 2 Tim óteo 2:8; A pocalipse 3:7; 22:16). Conquanto haja algum a evidência de que o term o filho (ou descendente) de Davi poderia representar outras coisas (como por exem plo poderes exorcistas ou de cura), o peso m aior das evidências favorece a idéia de que para M arcos, o term o seria um a designação do M essias de Israel. Se isto for correto, deveríam os então perguntar se M arcos teria apro­ vado o term o com o é aplicado a Jesus. A resposta a esta pergunta talvez seja um pouco m ais complexa. Não há a m enor dúvida de que M arcos considerava Jesus com o o M essias (o Cristo), com o no-lo revelam 1:1;

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8:29; 14:61-62. Entretanto, sem dúvida algum a M arcos estava ciente de que o term o “M essias” em si m esm o não com unicava de modo cabal o significado verdadeiro de Jesus, se tal título fosse tom ado no sentido com um judaico, de um grande líder dotado do espírito de justiça enviado por D eus a fim de governar Israel e restaurar a nação, dando-lhe proe­ m inência espiritual e física (veja a discussão de 12:35-37 e de 15:32). De m odo sem elhante, parece que M arcos entendeu que o term o filho de D avi seria inadequado para descrever a verdadeira pessoa de Jesus, com o o indica 12:35-37 (em bora a discussão desta passagem dem onstre que alguns eruditos a interpretam de m aneiras diferentes). N outras palavras, a expressão filho de Davi, na óptica de M arcos, era apropriada para aplicar-se a Jesus apesar de incom pleta, não lhe descrevendo o sentido total. N a presente passagem , portanto, talvez seja correto entender-se o clam or do cego de m odo sem elhante. Ele proclam a Jesus com o o filho de Davi, o que reflete o fato de Jesus ser o M essias que chega à cidade de Davi, com o o rei de direito. Entretanto, esse título tam bém reflete a percepção de um Jesus que ainda não passou pela cruz e pela ressurrei­ ção, não consciente de ser ele na realidade o Filho de Deus, cuja obra m essiânica de estabelecer o reino de justiça deve ser executada m ediante a entrega de sua própria vida com o o preço da redenção. Isto significa que o título filho de Davi é um a aclam ação m essiânica que reflete ainda o am biente judaico, não a com preensão cristã mais com pleta da messianidade de Jesus. À sem elhança da proclam ação de Pedro em 8:29, o clam or do cego deve ser corretam ente com preendido apenas à luz dos acontecim entos que se darão em Jerusalém . Portanto, os leitores de M arcos deverão entender, à m edida que vão lendo e discernindo esta passagem , que o título filho de Davi apenas com eça a dar indícios da verdadeira glória de Jesus. É evidente então, uma vez que Jesus não repreende o hom em , mas dá-lhe boas-vindas e o cura com um elogio (v. 52), que tem os aqui um a prova da adequação do título que o cego lhe atribui. E um clam or que representa um a reação positiva ao m inistério de Jesus. Além do mais, diz M arcos que o hom em pôs-se a seguir a Jesus, com o se fosse um discípulo. Outros tentaram silenciá-lo (v. 48) m as Jesus o cham ou para dar-lhe uma bênção. Esta versão da história contém um toque peculiar a M arcos: o povo anim a o cego (v. 49), que de modo dram ático atira longe a velha

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capa (v. 50), a fim de atender ao cham ado de Jesus. Sem pre que M arcos inclui porm enores assim vívidos em suas histórias, tem os indicações de que ele deseja tornar os relatos preem inentes e eficazes, no sentido de im prim ir na m ente do leitor o retrato que ele traça de Jesus. Este relato, conquanto simples, tem grande dram aticidade e dem onstra o poder m isericordioso de Jesus; os leitores sem dúvida deverão ver sua própria ilum inação e salvação prefiguradas na cura desse homem.

Notas Adicionais # 19 10:32 / Jesus ia adiante deles: Este pormenor, peculiar à história de Marcos (cp. Mateus 20:17; Lucas 18:31), pinta um retrato verbal da incompreensão dos discípulos quanto aos eventos para os quais Jesus os preparava, e outro do abismo conseqüente que se aprofundava entre ele e esses homens. As referências aos discípulos, que se maravilhavam, e que estavam atemorizados (v. 32) também são peculiares ao modo de Marcos ver os incidentes. E eles... seguiam-no: é provável que Marcos se refira aos doze, não a outro grupo qualquer. 10:33 / aos gentios: esta é a primeira indicação no relato de Marcos de que outro povo, além das autoridades judaicas, se envolverá na morte de Jesus. E claro que esta referência diz respeito a Pilatos, o governador romano, como representante do estado romano e seu domínio sobre a vida judaica nesta época. O termo grego empregado aqui (lit., “nações”) é tradução do termo hebraico usado comumente para designar todos os povos não-judaicos (ha gâyim), e reflete o ponto de vista judeu (que Jesus certamente conhecia e partilhava), de que o mundo se compunha de Israel e das demais nações. (Veja “Nations”, IDB, vol. 3, pp. 515-23). 10:34 / escarnecerão dele, o açoitarão, cuspirão nele e o matarão: estes pormenores antecipam a narrativa registrada no interrogatório e morte de Jesus; cp. 14:65; 15:15. Há aqui também, talvez, uma alusão a Isaías 50:6 que, ao lado de outras passagens, foi vista como profecia a respeito do sofrimen­ to, ressurreição e vindicação de Jesus. 10:35 / Tiago e João: o texto paralelo de Mateus 20:20 diz que o pedido veio da parte da mãe deles, talvez como versão da história que tencionava poupar os discípulos da responsabilidade total do pedido. 10:37 / tua glória: Jesus falava do reino de Deus, mas as antigas expectativas dos judeus com freqüência envolviam a idéia que o Messias, que de modo característico é retratado como um rei, semelhante ao grande rei Davi da antigüidade, levaria a cabo o governo de Deus sobre a terra, como seu repre­ sentante escolhido (veja “Messiah, Jewish”, IDB, vol. 3, pp. 360-65). O pedido implica que os discípulos esperavam que Jesus haveria de receber essa posição honorífica. É possível que as esperanças dos discípulos crescessem, e se tornas­

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sem mais ferventes, frente à situação do ministério de Jesus naquele momento, e à medida que Jesus se aproximava de Jerusalém naquela viagem que haveria de ser a última. um à tua direita, e o outro à tua esquerda: nas cortes antigas das realezas, as pessoas escolhidas para sentar-se nessas posições, perto do rei, eram as mais poderosas do reino. Os dois discípulos pedem essas posições de destaque no reino de Jesus.

10:38 / o cálice que eu bebo, ou ... o batismo com que eu sou batizado: O cálice aqui representa o sofrimento por que Jesus passará. No AT, o cálice de vinho com freqüência é imagem da ira e do julgam ento de Deus sobre os pecadores, veja Salmo 75:8; Isaías 51:17-22; Jeremias 25:15-28; 49:12; 51:7; Lamentações 4:21; Ezequiel 23:31-34. Embora na literatura hebraica a imagem de um cálice sirva também para simbolizar o destino de uma pessoa nesta vida (Salmo 11:6; 16:5), ou a salvação de Deus (Salmo 116:13), aqui talvez repre­ sente o modo de Jesus referir-se a seus sofrimentos vindouros (cp. 14:36), indicando que eles viriam da parte de Deus em prol da humanidade. A imagem do dilúvio ou de uma inundação é empregada no AT a fim de descrever o desastre ou a tribulação que derrota uma pessoa ou nação, veja Salmo 42:7; 69:2,15; Jó 22:11; Isaías 4 3 :2; esta linguagem pode estar por detrás da imagem de batismo no v. 38 (cp. Lucas 12:49-50). O texto paralelo de Mateus 20:23 não menciona esta imagem, contendo apenas a referência ao “cálice” de Jesus. Além disso, deve-se notar que nas duas imagens, a do cálice e a do batismo, temos dois elementos familiares nos rituais eclesiásticos, o da eucaristia e o do batismo para os leitores cristãos de Marcos. Isto quer dizer que Marcos deveria saber que seus leitores haveriam de associar o cálice e o batismo aos rituais cristãos que praticavam, de modo especial pelo fato de só este evangelista fazer referências a ambos — ao cálice e ao batismo. E possível que o propósito de Marcos aqui fosse esclarecer para seus leitores que beber do cálice de Jesus e ser batizado com o seu batismo verdadeiramente significava muito mais que participar dos sacramentos: significava também participar da missão de Jesus, e dos sofrimentos inerentes. Os dois discípulos desta história acham que entenderam a pergunta levantada por Jesus e lhe respondem sem nenhuma hesitação (v. 39). Talvez Marcos estivesse bastante preocupado com que seus leitores entendessem que os dois discípulos não sabiam o que significava ser cristão, na realidade a compreensão deles era bem superficial. 10:43 / o que vos sirva: é expressão bem semelhante à de 9:35, constituindo sem dúvida, nova ênfase no ensino de Jesus. Além das parábolas de Mateus 20:26-27 e Lucas 22:24-27, cp. também Mateus 23:11-12; Lucas 14:11; 18:14, quanto a idéias semelhantes. Aparece aqui no original grego a palavra “servo”, (diakonos) a mesma palavra empregada noutras partes do NT para referir-se a vários tipos de ministérios eclesiásticos; de fato, é a palavra mais comum para

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referir-se aos líderes e obreiros eclesiásticos no NT. Nossa palavra diácono é derivada desse termo grego. No v. 44 a palavra servo (doulos ) é usada como sinônimo, embora se refira a alguém que está preso em escravidão, enquanto o “ diácono” é qualquer pessoa que executa uma obra para alguém. 10:45 / dar a sua vida em resgate por muitos: como indicamos na discussão acima, a idéia da morte de Cristo ser redenção para muitos é ensino comum do NT. (Quanto a este conceito, veja NIDNTT, vol. 3, pp. 189-205). Muitos é um termo equivalente à palavra hebraica empregada na literatura rabínica e nos escritos de Qumran das cavernas do mar Morto, como termo técnico referente à comunidade escolhida para a salvação — os que hão de herdar o futuro reino de Deus (quanto a referências, veja Lane, p. 384). 10:46 / Jerícó: Herodes, o Grande, havia reconstruído e embelezado esta cidade, fazendo dela sua estância de veraneio. Nos dias de Jesus, ainda era uma cidade atraente, bem construída, numa região agradável da Palestina. (Quanto à localização e história, veja IDB, vol. 2, pp. 835-39; IDBSup, pp. 472-73). Tanto Mateus 20:29 quanto Marcos 10:46 concordam entre si ao descrever a cura como tendo ocorrido quando Jesus saía de Jericó, embora Lucas 18:35 afirme que o milagre se deu quando Jesus se aproximava da cidade. A Jericó do NT localiza­ va-se um pouco ao sul do local dessa cidade no AT, a alguns quilômetros apenas ao norte da extremidade setentrional do mar Morto. Bartimeu, o cego ... mendigando: Lucas 18:35 não lhe atribui nome, enquanto M ateus 20:30 menciona dois cegos (cp. os dois endemoninhados em Mateus 8:28, com apenas um em Marcos 5:1-2). Bartimeu significa “ filho de Timeu” em aramaico, explicação que Marcos nos oferece. 10:47 / Jesus, filho de Davi: este é o único caso em que esse título é empregado no Evangelho de Marcos, embora a ascendência davídica do Messias seja mencionada em 12:35-37, e a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém seja saudada pela multidão com expressões que incluem o nome de Davi (11:10). Além disso, há a referência a certos atos de Davi que Jesus faz na defesa de seus discípulos em 2:25 (veja comentários e notas). Em contraste, Mateus (1:1) e Lucas (2:4) afirmam que Jesus tem ascendência davídica, e Mateus, em particu­ lar, emprega “ filho de Davi” com freqüência, dando a entender que o evangelista via muita importância nesse título de Jesus (9:27; 12:23; 15:22; 20:30; 21:9,15; 22:42-45). Há algumas evidências de que Salomão, rei do AT e filho de Davi, teria sido respeitado, na época de Jesus, como grande exorcista e operador de curas, e que o termo “ filho de Davi” lhe era aplicado como título. Assim, o clamor filho de Davi aqui, pode conter alguns matizes de poder curativo, na situação original do ministério de Jesus. Em Marcos, entretanto, é certo que essa expressão envolve significado messiânico. (Veja também NIDNTT, vol. 3, pp. 648-53). 10:50 / lançando de si a capa, etc.: este gesto e outros pormenores do acontecimento, segundo a narrativa de Marcos, ajudam-nos a retratar melhor a

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cena, pois tornam-na mais poderosa como relato. Essa capa era também a esteira onde esse mendigo miserável dormia; atirá-la longe sugere que o homem acreditava que não precisaria mais dela, que ficaria curado. 10:51/Rabi: o termo aramaico usado aqui, “rabbouni”, era título respeitoso, apropriado para alguém dirigir-se aos rabis dignos de respeito, no tempo de Jesus. 10:52 / atua fé te salvou: o mesmo elogio é feito à mulher em 5:34; em 2:5, Marcos menciona a fé demonstrada pelos amigos do paralítico. Estas são as únicas pessoas cuja fé é elogiada em Marcos, mas cp. 7:29.

20. Jesus Entra em Jerusalém e no Templo (Marcos 11:1-25)

11:1-11 / D esde aqui, até o fim do capítulo 16, a ação ocorre em Jerusalém ou bem perto dela; grande parte dos acontecim entos se dá na área do tem plo. N a passagem diante de nós, Jesus entra em Jerusalém pelo leste (tendo vindo de Jericó, a cerca de 29 quilôm etros de distância) acom panhado de uma m ultidão de peregrinos que se dirigem à cidade santa para um a celebração religiosa, talvez a páscoa. A cena da entrada, cheia de alegria, é retratada por M arcos com o a chegada do M essias, Jesus, vindo para seu m inistério final em Jerusalém e no tem plo sagrado. A busca do jum ento em que Jesus m ontaria traz à lem brança dos leitores do A T que aquelas passagens seriam entendidas com o predições sobre o M essias. A alusão mais direta é a Zacarias 9:9, cuja profecia fala do futuro rei de Israel que chega a Jerusalém m ontado num jum ento. No texto paralelo de M ateus 2 1 :4-5, esta profecia é m encionada. A lém disso, há um a possível alusão a Gênesis 49:11 no porm enor a respeito do jum entinho que se encontrou preso (v. 4). Gênesis 49:8-12 foi tom ado por m uitos judeus e cristãos da antigüidade com o uma profecia m essiâ­ nica; um a alusão a esta passagem , bem com o Zacarias 9:9 seria um indício para o leitor sobre com o interpretar o que acontece em 11:1-11. O s peregrinos que chegavam a Jerusalém para tais ocasiões com o a páscoa, costum eiram ente entravam na cidade a pé; a entrada de Jesus cavalgando um jum entinho assinala uma dignidade especial que a ele se atribui. Isto tam bém fica mais claro pela descrição da m ultidão que espalha suas vestes na estrada, diante de Jesus (v. 8), um gesto de grande respeito, m uito apropriado para honrar os reis (cp. 2 Reis 9:12-13), ou alguém com o Jesus que muitos consideravam profeta. A cenar com galhos verdes e gritar lemas religiosos, com o o povo fez nos versículos 9-10, eram ações típicas de alegria da parte de peregrinos que chegavam à cidade santa, mas M arcos tenciona que seus leitores vejam essas m inúcias com o indícios adicionais de que a entrada de Jesus constitui o cum prim ento de todas as esperanças do antigo judaísm o. O clam or sobre o reino que vem , o reino de nosso pai D avi sem dúvida é referência à

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antiga oração judaica para que Deus enviasse o M essias, o filho de Davi, que haveria de restaurar o reino de Israel, com o ocorreu no tem po de Davi (veja nota). É im portante que notem os que a entrada não diz respeito a Jerusalém apenas, mas ao próprio tem plo, sede religiosa de m agna im portância da cidade. Esta referência ao tem plo prepara o leitor para os incidentes que se seguem no capítulo 11, mas tam bém tem o objetivo de m ostrar Jesus com o o m estre que chega à casa que de direito lhe pertence a fim de inspecioná-la (talvez alusão a M alaquias 3:1-2). Na situação original do m inistério de Jesus seria im provável que a entrada de Jesus fosse reconhecida com o a chegada do M essias, senão por m ais do que uns poucos discípulos, quanto muito. O entusiasm o da m ultidão era fruto tanto da reverência perante um profeta respeitável, com o o povo considerava Jesus, com o da alegria em torno da festividade religiosa que estavam celebrando. E claro, porém, que M arcos tenciona aqui, com o noutras passagens, que seus leitores vejam o verdadeiro significado do evento, que percebam algo mais profundo, além de meras personagens hum anas num a história. 11:12-14 / N esta passagem tem os o com eço de m ais um exem plo da peculiaridade de M arcos, que gosta de entrosar duas histórias, unindo uma à outra, a fim de m ostrar que se relacionam mutuam ente. N este caso, M arcos com eça a história da figueira estéril em 11:12-14 e interrom pe-a a fim de relatar a história de Jesus purificando o tem plo, em 11:15-19, term inando a da figueira em 11:20-26. Isto significa que o incidente da figueira estéril interpreta a purificação do templo, e este incidente, por sua vez, é interpretado pela figueira seca. O desapontam ento de Jesus perante a figueira estéril assem elha-se ao seu desapontam ento perante Israel e o tem plo, o principal lugar de culto do povo. O julgam ento que o Senhor pronunciou contra a árvore assem elha-se à am eaça do ju lg a­ m ento de Deus que logo haverá de sobrevir à cidade de Jerusalém , prefigurado nas palavras e ações de Jesus, nos versículos 15-19. A m aldição da figueira (v. 14) é conhecida com o ato sim bólico com que os leitores do AT estão fam iliarizados, um ato pelo qual um profeta dram atizaria através de um sinal, ou simbolismo, a m ensagem de que é portador (veja Isaías 20:1-6; Jerem ias 13:1-11; 19:1-13; Ezequiel 4:1­ 15). Assim , tal ato não deve ser interpretado com o simples acesso im petuoso de ira, mas com o palavra profética solene pronunciada em

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prol dos discípulos (e dos leitores). Os figos verdes norm alm ente apare­ cem na figueira no início da prim avera, antes das folhas. Se a figueira apresenta folhas e nenhum figo, isto significa que não vai produzir frutos. A nota do v. 13, não era tem po de figos, significa que de fato Jesus não p o d ia esp erar figos m aduros naquela figueira, que lhe satisfizes­ sem a fom e, m as suas palavras no v. 14 não constituem ato de vingança. E m vez disso, entenda-se que as folhas da figueira p ro m e­ tem figos, m as a ausência do fruto verde significa que essa aparência é enganadora. E esse o sím bolo que Jesus utiliza para rep resen tar o tem plo: aparentem ente os adoradores m ostram dedicação a D eus, mas no íntim o deixam de fazer a sua vontade (11:15-17). A lguns eruditos vêem nessa h istó ria um a alusão a tais passagens com o Jerem ias 8:8-17 ou M iquéias 7:1-6, que prevêem a destruição de Jerusalém e o ju lg a ­ m ento sobre Israel, por causa do fracasso de suas autoridades em dem onstrar fid elid ad e a Deus. A nota de M arcos de que os discípulos ouviram o que Jesus dissera (v. 14) destina-se a preparar-nos para a discussão em 11:20-26, em que se registra a súbita secagem da figueira, e form a a base da exortação de Jesus a respeito da fé. 11:15-19 / C ertam ente este é um dos m ais fam osos incidentes do m inistério de Jesus, sendo relatado em todos os evangelhos (cp. M ateus 21:12-13; Lucas 19:45-48; João 2:13-17). É o único relato dos evange­ lhos em que Jesus se envolve num certo tipo de ação violenta contra pessoas, em bora não haja indícios de que ele tenha tencionado ferir alguém; talvez o Senhor tenha objetivado apenas forçar a paralização das atividades com erciais duvidosas que im punem ente se realizavam no recinto sagrado do tem plo. D eve-se notar que esse ato incitou os sacer­ dotes a planejar a m orte de Jesus (v. 18), e que na narrativa do julgam ento do Senhor (14:53-63) haveria acusações (talvez derivadas desse inciden­ te) contra Jesus, que teria falado contra o tem plo (14:57-59). A discussão em 11:27-33 relaciona-se à ação de Jesus aqui, significando que não foi tom ada com o coisa corriqueira pelas autoridades que cuidavam do templo. A fim de entender o significado dessa ação de Jesus, a pessoa precisa apreciar a im portância do tem plo na vida judaica antiga, e conhecer algo sobre a planta do tem plo. Em essência, a área do tem plo se com punha do santuário, no qual só os sacerdotes poderiam penetrar, do átrio de

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Israel, no qual todos os varões israelitas podiam entrar para oferecer sacrifícios a Deus, e o átrio dos gentios, além do qual nenhum gentio podia cam inhar, a menos que já fosse convertido ao judaísm o. A ação de Jesus ocorreu nesta área dedicada aos gentios, onde o sum o sacerdote havia recentem ente perm itido a instalação de barracas para venda de anim ais próprios, do ponto de vista cerim onial, para o sacrifício (veja nota). Esses negociantes, com seus estoques de pom bos (aves mais usadas pelos pobres) e talvez outros anim ais, ao lado de cam bistas que faziam troca de várias moedas estrangeiras pela que fosse aceitável no tem plo, com o pagam ento da taxa do tem plo (Êxodo 30:13-16), teriam transform ado o átrio dos gentios em bazar oriental, o que im possibilitava o seu uso segundo o fim a que se destinava: oração ou devoção séria a Deus. N a situação original, o procedim ento de Jesus com toda probabi­ lidade teria recebido apoio de m uitos que consideravam ofensivo o fato de os sacerdotes haverem perm itido que o recinto sagrado do tem plo se transform asse em zona de mercado. C om freqüência o tem plo se tornava lugar de distúrbios relacionados com questões religiosas. Na m ente do antigo judeu típico, o tem plo constituía o lugar mais sagrado da terra; qualquer coisa que causasse desonra ao tem plo produzia reações intensas, e às vezes violentas, da parte do povo. Antigos relatos inform am -nos sobre distúrbios causados pela m aneira por que os sacerdotes celebravam os rituais relacionados com as cerim ônias públicas do tem plo, de modo que o com portam ento de Jesus não fica sem paralelos, com o exem plo de protesto repentino contra as autoridades religiosas. E possível que para Jesus a presença daqueles com erciantes em plena atividade no tem plo constituísse a gota d ’água que fez transbordar o cálice da indignação, indicativa, na m ente do Senhor, da tendência m aligna das autoridades religiosas de Israel sem nenhum traço de espiritualidade, o que o levou àquela ação dram ática. A citação de Jerem ias 7:11, no versículo 17, que acusa os sacerdotes de haverem transform ado o tem plo em covil de ladrões, não era apenas uso de linguagem severa, em pregada para descrever a queixa de Jesus, m as constituía tam bém alusão à predição do profeta Jerem ias, segundo o qual o pecado das autoridades sacerdotais de seus dias atrairia o julgam ento de Deus (veja Jerem ias 7:1-15). Tudo isso dá a entender que Jesus estaria advertindo a respeito de um a destruição sem elhante do tem plo e da própria nação que poderia ocorrer em breve. A sim patia do povo pela

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ação de Jesus reflete-se no versículo 18. O ensino de Jesus pelo qual a m ultidão estava adm irada talvez referia-se ao procedim ento drástico de Jesus, que forçou os negociantes a sair dali, e condenou os sacerdotes pelo sacrilégio. A instalação daquelas barracas de vendas não era, todavia, apenas um sacrilégio genérico, mas verdadeira tribulação para os gentios que vi­ nham ao tem plo a fim de aprender sobre Deus, e adorá-lo com o o Deus de Israel. O relato de M arcos desse incidente parece enfatizar este aspecto, pela m aneira com o o evangelista cita a Escritura (v. 17) mais am plam ente do que os dem ais evangelistas, ao m encionar Isaías 56:7, incluindo as palavras para todas as nações, que os outros om item . E claro que esse fato teria sido observado pelos leitores de M arcos, os quais teriam visto na ação e na declaração de Jesus o presságio bendito de que seriam bem -vindos à adoração do Deus de Israel — o convite que lhes foi estendido pelo Evangelho cristão. M arcos encaixou este incidente dentro da história da figueira estéril, a fim de ajudar o leitor a entender que o tem plo era sem elhante à figueira que se secou. Externam ente, o tem plo era um a instituição im pressionan­ te, capaz de sugerir grande devoção a Deus. Entretanto, a inspeção do tem plo feita por Jesus dem onstrou que se tratava de um espetáculo vazio; as autoridades sacerdotais estavam m ais interessadas em lucros pecuniá­ rios provenientes dos m ercadores, do que na reverência a Deus. Para os leitores do Evangelho de M arcos, a bancarrota espiritual das autoridades religiosas sacerdotais de Israel ficou com pletam ente revelada na reação que opuseram à ação de Jesus: tram aram o plano para m atá-lo, num presságio dos acontecim entos dos últim os capítulos. T odavia, talvez haja algo mais nesse incidente; os leitores de M arcos poderiam ter sido preparados para detectar esse algo m ais m ediante o ensino cristão. H á evidência de que desde os prim órdios do cristianism o a igreja tem sido vista com o o novo tem plo de Deus (o povo cristão, e não determ inado edifício; cp. veja 1 Coríntios 3:16-17). Tal noção poderia vir ligada à idéia de que o corpo ressurreto de Jesus seria o novo tem plo (João 2:13-23) e que a igreja, que era seu “ corpo” num sentido espiritual (veja 1 Coríntios 12:27), tornou-se o novo tem plo m ediante união com o Cristo ressurreto. Em suma, os leitores de M arcos poderiam ter visto naquele ataque de Jesus ao tem plo de Jerusalém um a prefigura­ ção da crença cristã de que a santidade e o significado im portante do

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tem plo já pertenciam ao passado, segundo Jesus e sua igreja. A inclusão, na narrativa do julgam ento (14:53-64), da acusação de que Jesus havia am eaçado destruir o tem plo e em três dias levantar um novo, “não feito por mãos hum anas” (14:57-59), é referência à ressurreição do Senhor. M arcos acusa tais testem unhas de serem falsas; todavia, o evangelista poderia estar apenas afirmando que tais pessoas acusavam Jesus de proferir am eaças físicas contra o tem plo, quando na verdade as palavras de Jesus eram bem mais profundas. Tem grande im portância o fato de M arcos afirmar que no m om ento da morte de Jesus o grande véu que separava o santuário interno dos átrios externos rasgou-se em duas partes, de alto a baixo (15:38), dram atizando a perda da im portância do tem plo, com o lugar onde as pessoas poderiam aproxim ar-se de Deus, num sentido especial, dando a entender que Jesus se havia tornado o novo acesso a Deus (o único M ediador). Noutras palavras, se quiserm os entender a história das ações de Jesus em 11:15-19, com o M arcos tencionou que a entendêssem os, ela deve ser lida segundo a óptica interpretativa do Evangelho cristão, quanto a Jesus e sua igreja. 11:20-25 / Esta passagem encerra a história da figueira estéril, iniciada em 11:12-14, incluindo enunciados sobre a fé e a oração que aparecem em vários pontos dos evangelhos sinóticos, e que são agrupados aqui por M arcos. No relato paralelo sobre a figueira, de M ateus 21:18-22, a figueira m urcha de vez; todavia, M arcos introduziu no incidente da figueira a condenação do tem plo, em 11:15-19, a fim de ter certeza de que am bos os incidentes sejam entendidos juntos. Em 11:12-14 a figueira é “am aldiçoada” por causa de sua esterilidade, e nos versículos 20-21 tem os o resultado, o ressecam ento da árvore, ensejando um m om ento propício para os com entários de Jesus sobre o poder da fé. O prim eiro enunciado no v. 23 refere-se à fé que pode m ovim entar um monte; parece que é versão de um pronunciam ento encontrado noutra passagem , em M ateus 17:20 (cp. tam bém Lucas 17:6). A parente­ m ente só diz respeito a um a grande fé, mas alguns eruditos dizem que esse enunciado pode ser alusão a Zacarias 14:4, que m enciona a rem oção do m onte das Oliveiras, no dia da prom etida salvação de Deus no futuro para Israel. N outras palavras, a declaração de Jesus pode originalm ente ter tido o objetivo de increm entar a fé na salvação vindoura de Deus, não sendo m ero enunciado a respeito de fé no poder de Deus para operar milagres. A declaração final, no v. 25, encontra eco em M ateus 6:14,

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ficando anexa ao v. 24, porque ambos tratam da oração. (O que aparecia com o v. 26, em certas traduções antigas, talvez foi inserção introduzida em alguns m anuscritos, por copistas fam iliarizados com o texto paralelo de M ateus 6:14-15, não sendo considerado parte integrante do texto original de M arcos; veja a nota m arginal de NIV). N outras passagens de M arcos há forte ênfase na im portância da fé (cp. 2:5; 4:40; 5:34; 9:23-24; 10:52); o tem a da fé é um dos prediletos do evangelista. Aqui, M arcos 3í)resentci Jesus com o exem plo de fé* seus leitores não só devem sdmircir a fé que Jesus possuía, mas im itá-la também . Todavia, este tem a não deve separar-se do contexto. Em síntese, M arcos ensina que os crentes devem seguir o m inistério de Jesus, com o já observam os, e isto significa que a fé deve ser entendida comeKrç exigida no decurso da missão, e não com o fé qtíe procura obt r o 'isas para o benefício da própria pessoa, nem' fé que persegue obras m iracu­ losas só pela excitação que elas.prodüzem . M arcos deseja que seus leitores entendam que, assim com o Jesüs conduziu seu m inistério depon­ do fé total em Deus, que honrasse seu m inistério m ^ â n t e o poder divino, da m esm a form a os crentes devem confiar em Deus na execução do m inistério que receberam , em nom e de Jesus. Esta ênfase no m inistério de Jesus, com o-o anlbiente do milagre"e da fé, evidencia-se mais ainda na passagem que se segue ( l M r a 3 ) , em que os adversários de Jesus o interrogam a respeito da autoridade que lhe envolve as obras.

Notas Adicionais # 20 11:1 / Jerusalém : sem dúvida era a mais importante cidade da Palestina, o centro religioso do judaísmo antigo, onde o templo se localizava (veja “Jerusalém’ÀJDB, vol. 2, pp. 843-66). Não ficou claro onde ficava com exatidão a cidade de Betfagé, mas cria-se tradicionalmente que ficava quase a oeste de Betânia, na encosta oriental do monte das Oliveiras, a cerca de 1.600 metros da

__ ________________________ _ referência a uma espécie de figos que surgem tardiamente, no fim da estação própria, e nunca parecem maduros, ainda que prontos para serem comidos (veja “Bethphage”, IDB, vol. 1, p. 396). Betânia (de significado incerto) ficava a cerca de três quilômetros de Jerusalém, na encosta oriental do monte das Oliveiras. Parece que foi ali que Jesus pernoitou ao visitar Jerusalém, talvez porque alguém lhe ofereceu hospitalidade ali. E a cidade onde ficava o lar de Maria, Marta e Lázaro, conforme João 14:1-44, e onde ocorreu a ceia, na casa de Simão (14:3-9). (Veja “Bethany” , IDB, vol. 1, p. 387-88). O monte das Oliveiras é uma elevação que se estende por cerca de 5 quilômetros, ao longo

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de um pequeno vale. Do topo dessa elevação (com cerca de 900 metros de altura), a pessoa pode enxergar a cidade toda. Jesus fala da destruição do templo e da cidade desse ponto, em 13:1-4 (veja “Olives, Mount o f ’, IDB, VOL. 3, Pp. 596-99). Veja também MBA, 235-36. 11:2 / a aldeia: não ficamos sabendo que aldeia. Poderia ter sido Betfagé ou Betânia. preso um jumentinho, no qual ainda ninguém montou: o termo jumentinho em grego significa apenas um filhote de algumas espécies de animais, como o elefante, o camelo, o burro, a gazela ou o cavalo. E provável que aqui signifique o filhote de jumento. A passagem paralela de Mateus 21:2 refere-se a “uma jum enta presa, e com ela um jum entinho”, talvez por causa da menção de ambos os animais na versão grega de Zacarias 9:9. A menção de o animal jam ais ter sido utilizado como montaria é importante, à luz da antiga lei segundo a qual somente animais que não houvessem sido submetidos a uso comum seriam apropriados para propósitos sagrados (cp. Números 19:2; Deuteronômio 21:3; 1 Samuel 6:7). 1 1 :3 /0 Senhor: os comentaristas diferem entre si sobre o que Marcos quer dizer aqui. Para alguns, o termo é referência ao próprio Jesus. Se isto for correto, é preciso chegar a uma conclusão quanto a se a palavra usada aqui, em grego (kyrios) conserva seu significado mundano, comum, de “dono”, “senhor”, ou seu significado religioso, aplicável a Deus. E certo que os leitores de Marcos teriam entendido esse termo em seu sentido religioso. Durante o ministério de Jesus, quando o termo lhe era aplicado, com toda probabilidade tinha o sentido de designá-lo apenas como o líder de um grupo. Lane (pp. 391-92) sugere que a referência se faz ao dono do jumentinho, que talvez estivesse na companhia de Jesus e seu grupo de discípulos. 11:8 / outros cortavam ramos das árvores: o termo empregado aqui denota folhas, galhos cheios de folhas, ou juncos. João 12:13 menciona “ramos de palmeiras”, mas palmeiras não crescem em Jerusalém, e precisariam ser levadas de Jericó. A referência a tais galhos verdes é tomada por alguns como indicação de que a entrada triunfal em Jerusalém ocorreu durante a festa dos tabernáculos, no outono desse ano, quando as cerimônias dos peregrinos envolviam acenos com tais ramos. Segundo essa opinião, Jesus havia vindo a Jerusalém no outono, e esteve ministrando na cidade de Jerusalém ou perto dela até sua prisão e execução na primavera, durante a páscoa (veja Lane, pp. 390-91). 11:9 / Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor!: O termo “Hosana”, que vem de uma expressão hebraica que significa “Salva agora”, tornou-se brado de aclamação usado pelos peregrinos que chegavam à cidade santa para as festivi­ dades. Essa expressão e as demais palavras que a acompanham constam do Salmo 118:25, uma passagem de Hillel (Salmo 113:118), que era entoada liturgicamente durante as festas dos tabernáculos e da páscoa. (Veja “Hosana”, IDB, vol. 2, pp. 648). Quanto a informações sobre estas festas, veja “Booths, Feast o f ’,

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IDB, vol. 1, pp. 455-58; “Passover”, IDB, vol. 3, pp. 663-68. 11:10 / o reino que vem, o reino de nosso pai Davi: nos tempos antigos, o Salmo 118:21-27 era interpretado como referência a Davi e ao Messias, sendo que este restauraria o reino daquele. A antiga oração judaica conhecida como as Dezoito Bem-aventuranças contém uma petição a Deus, para que o Senhor restaure o reino de Davi, o que refletia a esperança mencionada aqui. 11:12/ quando saíram de Betânia: Parece que Jesus pernoitava em Betânia, e dirigia-se a Jerusalém de dia. A distância é de cerca de três quilômetros, o que fazia de Betânia um subúrbio de Jerusalém. 11:13 / uma figueira: trata-se da Ficus caricus, uma árvore comum na Palestina. Os figos verdes normalmente aparecem no início da primavera, seguindo-se folhas que cobrem os galhos. O fruto amadurece em junho. A visita de Jesus a Jerusalém teria ocorrido, segundo crença geral, por ocasião da páscoa, durante o mês de abril. E a isto que Marcos se refere ao observar que não era ainda tempo de figos. (Veja “Fig Tree”, IDB, vol. 2, p. 267). 11:15 / no templo: no período de tempo coberto pela Bíblia, houve três templos diferentes localizados em Jerusalém, em sucessão e sempre no mesmo local. Primeiro, houve o templo de Salomão, construído no século X a.C., e destruído na queda de Jerusalém, em 586 a.C., em ataque dos babilônios. O segundo templo foi o de Zorobabel, uma estrutura bem menor do que a do templo anterior, e construído no século VI a.C., quando os exilados judeus receberam permissão para regressar a Jerusalém. Finalmente, no tempo de Jesus, havia o templo de Herodes, o Grande, uma estrutura magnificente que fora iniciada em 20 a.C., e que talvez ainda não estivesse terminada à época em que foi destruída pelo exército romano, durante a revolta dos judeus (70 d.C.). O templo era o único lugar legítimo onde se podiam oferecer sacrifícios a Deus, sendo admi­ nistrado pelo sumo sacerdote e seus auxiliares. Todos os adultos judeus do sexo masculino deviam estar presentes no templo em três festividades anuais princi­ pais, relacionadas à religião judaica: páscoa (no fim da primavera), tabernáculos ou tendas (outono), e semanas (início do verão). (Veja “Temple, Jerusalem”, IDB, vol. 4, pp. 534-60). Quanto a informações sobre o uso de figuras de linguagem sobre o templo, no NT, veja NIDNTT, vol. 3, pp. 781-94. os que ali vendiam e compravam: há indícios antigos, dentre os judeus, de que tinha havido mercados em que se compravam animais destinados ao sacrifício cultual no monte das Oliveiras de onde se via o templo, durante algum tempo, sob ajurisdição do concílio judaico, ou sinédrio. Cerca de 30 d.C. o sumo sacerdote aparentemente autorizou a montagem de casas comerciais no recinto do templo, sendo contra isso com certeza, que Jesus protestou. (Veja Lane, pp. 403-4, quanto a referências). cambistas: o AT prescrevia o pagamento de um imposto anual do templo por todos os homens judeus adultos (Êxodo 30:13-16) e exigia o pagamento na moeda própria. No tempo de Jesus havia cambistas que trocavam a moeda

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comum, corrente, pela moeda chamada “shekel”, de Tiro, a que mais se aproximava do “shekel” do AT. Tais cambistas tinham permissão para instalar suas mesas no templo apenas cinco dias antes do prazo estipulado para o pagamento do imposto, pelo que a ação de Jesus talvez houvesse ocorrido nesses cinco dias, cerca de duas semanas antes da páscoa. (Veja Lane, p. 405, e “Moneychanger”, IDB, vol. 3, pp. 435-36). O fato desses cambistas estarem no templo nesse período não era nenhuma novidade, então o protesto do Senhor contra eles pode ter-se baseado em estarem cobrando taxas de câmbio elevadas demais. dos que vendiam pombas: pombas ou pombos eram animais permitidos, no sacrifício cultual, para os pobres que não podiam comprar animais de grande porte como as ovelhas. Essas aves eram oferecidas em sacrifício segundo grande variedade de propósitos, tais como o rito de purificação das mulheres após o parto (Levítico 12:6), o rito purificador de ex-leprosos (Levítico 14:22), e outros (Levítico 15:14, 29).

11:16 / Não consentia que alguém carregasse qualquer mercadoria pelo templo: esta atitude parece refletir a elevada consideração de Jesus quanto à santidade da área do templo, estando de acordo com a injunção dos fariseus (no Talmude), que proíbe que se utilize a área do templo como caminho para quaisquer traficantes e negociantes. 11:19 / caindo a tarde, saíram da cidade: é possível que Jesus não tivesse pernoitado em Jerusalém porque ali não havia segurança para ele; o Senhor teria ido para Betânia porque ali não seria surpreendido e preso pelos sacerdotes. 11:20 / pela manhã: Marcos apresenta este debate como tendo acontecido quando o grupo estava voltando a Jerusalém, tendo saído de Betânia, onde Jesus e seus discípulos passaram a noite (v. 19). 11:21 / a figueira que amaldiçoaste: Pedro toma as palavras de Jesus em 11:14 como maldição. Alguns têm ensinado que as palavras de Jesus teriam sido mera profecia de que a figueira estéril haveria de secar; o fato espantoso é que a profecia cumpriu-se com grande rapidez. 11:23 / Em verdade vos digo: é a fórmula semelhante a um juram ento que só se encontra nos lábios de Jesus. Veja nota sobre 3:28. se alguém disser a este monte: Ergue-te... este monte: pode ser referência ao monte das Oliveiras que atravessavam nesse momento. De seu topo pode-se ver o mar Morto a leste, sendo este talvez o mar que Jesus menciona. Talvez haja alusão a este enunciado em 1 Coríntios 13:2, em que Paulo descreve uma grande fé. 11:25 / quando estiverdes orando... perdoai: a postura padrão para a oração entre os antigos j udeus era de pé. As palavras de Jesus acerca do perdão a outrem em oração, faz lembrar a oração dominical (cp. Mateus 6:12 e Lucas 11:4).

21. Controvérsia no Templo (Marcos 11:27-12:27)

11:27-33 / Com este incidente penetram os num a passagem m ais longa, que trata do conflito de Jesus com as autoridades de Jerusalém (11:27-12:44). A liderança judaica exige que seja declarada a natureza da autoridade pela qual Jesus executa suas obras (vv. 27-28). E stas coisas do v. 28, acerca das quais Jesus é interrogado, sem dúvida referem -se ao seu ataque à m ercantilização no templo; a condenação do Senhor pelas autoridades religiosas sacerdotais está descrita em 11:15-19. Do ponto de vista das autoridades judaicas, é preciso repreender esse galileu arrogante que se atreve a criticar a posição augusta do sum o sacerdote. D o ponto de vista de M arcos, trata-se de mais um exem plo de pessoas que se chocam contra a autoridade de Jesus, estando incapacitadas (ou indispostas) para perceber a verdadeira natureza da m issão do Senhor. A autoridade de Jesus é um dos principais tem as de M arcos (cp. 1:22, 27; 2:10; 3:15; 6:7); na verdade, é outro m odo de M arcos referir-se a quem é Jesus de fato. Entretanto, a exigência das a u to rid a d e s judaicas de 11:28 não é sincera; trata-se apenas de tentativa de intim idação contra Jesus. E sta é a razão por que ele se recusa a discutir com eles essa exigência. Ao deixar de reconhecer o cham am ento profético de Deus para o arrependim ento, m ediante o m inistério de João B atista (v. 31), fracassaram e dem onstraram que não desejavam ser confrontados com a revelação divina. N a exigência de Jesus que as autoridades judaicas assum issem posição definida quanto a João Batista, temos um a explicação sobre a razão de o Evangelho de M arcos iniciar-se com o m inistério de João B atista (1:1 -8). João era considerado por Jesus e por M arcos o arauto profético da salvação e do julgam ento próxim os, que haveriam de chegar pelo m inis­ tério de Jesus a Israel e ao m undo todo. Esta ligação entre João e Jesus tam bém se reflete na declaração concernente a Elias, em 9:10-13, que identifica João com o o arauto do tem po da redenção, ligando a execução do B atista à de Jesus. N a parábola que se segue de im ediato, Jesus assem elha Israel a um a vinha entregue ao cuidado de vinhateiros; a história diz respeito aos servos de Deus enviados ao seu povo, os quais são m altratados e

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rejeitados. Com o verificaremos na discussão dessa parábola, aqueles servos devem ser interpretados como sendo os profetas do AT, dentre os quais o Batista se enquadra (11:32). Este confronto entre Jesus e as autoridades judaicas é, em outras palavras, um exemplo vívido da rejeição que as caracteriza, hostilizando os profetas de Deus, e é essa rejeição que Jesus condena em 12:1-12. A partir desse ponto da narrativa, a tensão entre Jesus e as autoridades judaicas só faz crescer, levando-o por fim à prisão, julgam ento e execução. Para os leitores de M arcos, este incidente dem onstra que a razão da rejeição de Jesus foi a cegueira espiritual, não apenas diante de Jesus, mas diante do Batista e de todos os demais servos enviados por Deus, a fim de preparar Israel para encontrar-se com Jesus. 12:1-12 / A parábola dos lavradores homicidas na vinha é descrição transparente das autoridades de Israel, indispostas a receber a palavra de Deus a eles enviada pelos profetas, com o o dem onstra o v. 12. Na passagem precedente (11:27-33), tais autoridades m ostraram sua rejeição a João Batista e oposição a Jesus. Ensina a parábola que m ediante essas ações, tais autoridades ficavam culpadas de rejeitar os servos que Deus lhes enviara, sendo iguais a seus ancestrais que haviam rejeitado o m inistério dos profetas anteriores (veja notas). Contudo, esta parábola não apenas interpreta o encontro anterior entre Jesus e os líderes judeus, mas tam bém provê o contexto para os incidentes que se seguem. Logo a seguir, representantes da liderança religiosa estarão debatendo com Jesus, na tentativa de apanhá-lo num a armadilha feita de declarações incriminadoras (12:13-34); mas Jesus os condena (12:35-44). A figura de linguagem e o tem a da parábola apóiam -se num a rica tradição do AT. A descrição introdutória da vinha, no v. 1, parece aludir a Isaías 5:1-7, em que o profeta descreve Israel com o um a vinha que não atende às expectativas de seu dono (D eus). A lém disso, o A T com freqüência descreve os profetas com o sendo servos de D eus (veja Jerem ias 7:25-26; 25:3-7; Am ós 3:7; Zacarias 1:6) e retrata Israel com o desobediente à palavra deles (veja Jerem ias 25:3-7; 2 Reis 17:7-32). A referência à pedra (vv. 10-11) que, em bora rejeitada de início, torna-se cab eça de esq u in a do edifício, é citação do Salm o 118:22-23; a palavra de Jesus no v. 9, am eaçando com destruição os lavradores perversos, parece alusão a Isaías 5:5, exceto que na pará­ bola de Jesus os lavradores é que estão em falta, e não a vinha, e sobre eles é que recai o ju lg a m e n to do dono da vinha.

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N a verdade, a diferença sutil, m as im portante, entre a parábola de Jesus e a parábola sem elhante, de Isaías 5:1-7, é que a ênfase recai sobre os lavradores, que com toda clareza são as autoridades religiosas de Israel a quem Deus confiou a nação. A ssim é que há aqui um a acusação contra a liderança religiosa de Israel, e não contra a nação com o um todo, exceto no ponto em que a nação é conduzida à desobediência pelas autoridades que aqui são denunciadas. Isto talvez seja especialm ente im portante à luz da história trágica dos sentim entos antijudaicos que caracterizaram m uitos períodos do cristianism o. M arcos vai longe, ao ponto de retratar a m ultidão com o estando favorável a Jesus, o que dificulta ao sistem a religioso situacionista tom ar ação drástica contra o Senhor (v. 12). C onquanto M arcos aprovasse inteiram ente que o Evan­ gelho fosse pregado aos gentios (veja 13:10), e criticasse as práticas religiosas do judaísm o (veja 7:1-4), esse evangelista não era anti-sionis­ ta; é provável que sua intenção quanto a seus leitores fosse que eles atribuíssem a rejeição de Jesus por Israel à cegueira teim osa das autori­ dades judaicas (os lavradores), e não ao povo com o um todo. ^ N a m udança que ocorre, do servo para o seu filho am ado (v. 6) vemos um indício da ênfase de M arcos na verdadeira identidade de Jesus (cp. 1:1,11; 9:7) com o o Filho de Deus. M ais ainda, o envio do filho é descrito com o a tentativa final do dono (v. 6, restava-lhe ainda um... por últim o), o que reflete a crença cristã de que Jesus é o últim o e m ais im portante m ensageiro de Deus (veja nota). Na situação original do m inistério de Jesus, o significado total da im agem do filho não teria sido percebido, m as os leitores de M arcos não poderiam ter evitado esse term o no contexto da veneração cristã de Jesus. 12:13-17 / E sta passagem trata da prim eira das três questões que os críticos de Jesus lhe lançam , em 12:13-14. O propósito da pergunta é fazê-lo cair num a arm adilha (lit., “ apanhá-lo num laço” ). Entretanto, o estratagem a não funciona e os adversários ficam m aravilhados, num diálogo m arcado pela hostilidade contra Jesus. A fim de entenderm os o significado da questão levantada e com o objetivava ser arm adilha contra Jesus, é necessário que conheçam os a situação política da época. A terra da Palestina estava sob o governo rom ano, sendo os judeus em essência cativos em seu próprio país. Alguns judeus concordavam com essa situação de boa vontade e, em conseqüên­ cia, podiam auferir lucros consideráveis. Entre tais pessoas contavam -se

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os cobradores de im postos que trabalhavam para os rom anos, e seus governantes títeres (os Herodes), bem com o outros judeus, particular­ m ente os das classes mais elevadas, que (como ocorre no caso da m aioria dos ricos) beneficiavam -se de um governo forte e estável. Os herodianos (v. 13) com certeza representavam estes judeus que se aproveitavam da habilidade dos rom anos de governar a Palestina com grande sucesso. Outros judeus sofriam de forte irritação por causa do jugo rom ano, não apenas devido ao sentim entos com uns de orgulho nacional, e à pesada taxação de im postos exigidos, a fim de fazer funcionar o sistem a imperial rom ano, mas tam bém por causa de crenças religiosas profundas. Esses judeus consideravam os rom anos idólatras e perversos; o governo deles seria grave ofensa contra Deus, que era o único verdadeiro governo sobre Israel. Para tais judeus não deveria haver, talvez, um aspecto do governo rom ano m ais aviltante do que o im posto anual que todos deviam pagar na m oeda de prata com a efígie do im perador (Tibério), na qual havia tam bém um a inscrição que o descrevia com o Tibério C ésar Augusto, Filho do Divino Augusto, isto é, um ser semidivino. Noutras palavras, o im posto não constituía apenas um fardo econôm i­ co; para m uitos judeus, m ais im portante do que tudo não era pagar esse tributo (e para alguns, tocar com as mãos nesse dinheiro), mas concordar com as vindicações blasfem as do im perador romano. Desde a época em que essa taxa tributária com eçou a ser cobrada na Palestina, em 6 d.C., sérios distúrbios ocorreram (veja notas). A situação prosseguiu fervendo até que, deteriorada por outras queixas, chegou à revolta total dos judeus contra Rom a em 66 d.C. Os judeus que se opunham com violência ao pagam ento desse im posto form avam um grupo conhecido com o Zelotes, que não é m encionado nom inalm ente no NT (mas veja nota em 3:16), e que se tornou mais visível durante o tem po de Jesus. Contudo, muitos outros judeus nutriam ressentim entos em silêncio; os fariseus talvez os representassem . O retrato de fariseus e herodianos cooperando juntos contra Jesus (de m odo sem elhante a 3:6) dão-nos, assim, um exem plo extraordinário de conspiração. As palavras iniciais dos interrogadores (v. 14) com toda certeza são insinceras, com o o indicam os versículos 13 e 15 (veja nota sobre o v. 13). O propósito dessas pessoas é colocar Jesus num dilema. Se o Senhor apoiar o pagam ento desse im posto, os fariseus poderão acusá-lo de com prom etim ento religioso, de hipocrisia, visto que, apesar de falar

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tanto acerca do reino de Deus, apóia o blasfem o sistem a rom ano. Se o Senhor condenar esse tributo, os herodianos poderão acusá-lo de sedição contra o estado, crim e punível com a morte. Havia pouquíssim o espaço para Jesus m ovimentar-se! Entretanto, a resposta de Jesus dem onstrou inteligência e profundida­ de. Ao pedir uma m oeda (v. 15), deixou patente que ele pessoalm ente não carregava o dinheiro blasfemo; seus interrogadores é que deveriam m ostrar a moeda, o que indica que não estavam preocupados dem ais com esse problem a com o fingiam estar. A questão (v. 16) sobre a efígie (lit., “im agem ”) e a inscrição reflete a preocupação do judeu devoto quanto à afirm ação imperial ostentada pela moeda, sendo o ponto central do assunto talvez o seguinte: “Se você não está suficientem ente perturbado pela moeda, e pelo que ela representa, de m odo que você a carrega e a usa, é certo, então, que você não pode objetar contra o pagam ento do im posto” . Entretanto, as palavras finais de Jesus, no v. 17, significam duas coisas im portantes, e isto é de grande profundidade. Prim eira, parece que Jesus atribui certa m edida de legitim idade ao governo, não tom ando o partido com os que advogam ação violenta a fim de im plantar um a teocracia em Israel. Segunda, e m ais im portante ainda no m undo antigo romano: as palavras de Jesus estabeleciam lim ite à legitim idade do estado, ao colocar este abaixo de Deus e distinguindo-os um do outro. Em suma, Jesus perm ite o pagam ento do imposto, mas ao traçar uma distinção entre Deus e César, im plicitam ente nega a vindicação de suprem acia divina do im perador inscrita na moeda. Jesus desarm a o laço preparado por seus adversários e lhes expõe a insinceridade; todavia, o Senhor tam bém os força a encarar a séria responsabilidade de dedicar ao estado apenas um a lim itada legitim idade, colocando a lealdade a Deus acim a de tudo. É esta im plicação m ais profunda da resposta de Jesus que explica o m aravilham ento dos ouvintes, no v. 17. Sendo palavra dirigida aos prim eiros leitores de M arcos, essa passa­ gem precisa ser exam inada de dois pontos de vista. Prim eiro, nesse contexto, ela é outro exem plo da am arga oposição que Jesus enfrentou dentro do “sistem a” judaico; a coalizão entre fariseus e herodianos (norm alm ente em posições opostas, em muitos assuntos) enfatiza este ponto. D evem os notar que em 11:27-33, um grupo chefiado pelos principais sacerdotes opõe-se a Jesus; m ais tarde, na narrativa, saduceus (12:18-27) e “escribas” (12:28-40) entram em conflito com o Senhor.

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Assim , um a um, os principais grupos judaicos do tem po de Jesus fazem oposição ao Senhor, conform e M arcos nos mostra, enquanto sua narra­ tiva avança, num crescendo, na direção do clímax, a cena do julgam ento e execução nos capítulos 14-15. Segundo, o assunto específico de que tratamos aqui, impostos devidos a Rom a, ainda era questão que preocupava os cristãos do tem po de M arcos (veja notas). A resposta de Jesus deve ter funcionado com o uma espécie de orientação para estabelecer-se um relacionam ento próprio com o governo pagão, e ao m esm o tem po os crentes deveriam ser leais a Deus acim a de todas as coisas. N a verdade, sem pre que os cristãos dem onstram consciência quanto a suas obrigações para com Deus, tornam -se sensíveis a respeito das exigências do estado. As palavras de Jesus no v. 17 têm funcionado com o alerta: que haja lealdade crítica, que perm ite e garante o lugar do estado, sem que este tenha primazia. 12:18-27 / M arcos apresenta a segunda pergunta da série dirigida a Jesus, esta proveniente desta vez de um grupo não m encionado até o m om ento, os saduceus. Parece que o propósito da pergunta deles acerca da ressurreição dos m ortos é sim plesm ente tentar m ostrar que Jesus é um tolo, e que a doutrina da ressurreição não passa de tolice. A sem elhança dos interrogadores de antes (12:13-17), estes críticos não são sinceros em sua investigação (v. 23), visto que não acreditam que haverá ressur­ reição (v. 18). Todavia, m ais um a vez Jesus vence seus adversários; a resposta do Senhor conclui com um pronunciam ento conciso (v. 27), com o no incidente anterior (v. 17). Os saduceus só são m encionados em M arcos aqui e em bora haja outras referências a eles noutras passagens do NT, e em outras fontes históricas antigas (veja nota), o que sabemos com certeza sobre esse grupo é pouquíssim o. Talvez tenha sido um grupo sacerdotal de pessoas das principais fam ílias do sacerdócio, bem posicionadas financeiram ente e m uito conservadoras, no que concerne a assuntos religiosos. Parte desse conservadorism o se m anifestava na indisposição para aceitar o surgi­ m ento de um a “lei oral”, o corpo de interpretações religiosas desenvol­ vido pelos fariseus. Tanto o NT quanto o antigo historiador judeu Josefo afirm am que os saduceus rejeitavam a doutrina da ressurreição dos m ortos, que constituía um im portante ponto de controvérsia entre sadu­ ceus e fariseus (veja Atos 23:6-8). Os fariseus e m uitos outros judeus não pertencentes ao seu círculo partilhavam a crença de que no fim deste

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m undo Deus devolveria a vida aos m ortos (ou pelo m enos aos m ortos crentes, os justos) m ediante a ressurreição; não há a m ínim a dúvida de que Jesus partilhava desse conceito com um . O propósito dos saduceus no presente relato é tentar dem onstrar que essa crença é ridícula. O problem a que apresentam a Jesus não reflete um desejo sério de conhecer a solução, mas tenciona apenas escarnecer da idéia da ressurreição. A pergunta form ulada pelos saduceus pressupõe a vigência da lei do A T pela qual um hom em cujo irmão m orresse sem deixar filhos tinha a obrigação de casar-se com a viúva e dela gerar filhos em nom e do irmão falecido (v. 19; cp. Deuteronôm io 25:5-10). O caso especial descrito pelos saduceus (vv. 20-23) parece ser variante de um a história que se encontra em Tobias (da coleção conhecida com o livros apócrifos, veja Tobias 3:8, 15; 6:13; 7:11). Ao responder, Jesus acusa os saduceus de não conhecerem nem as Escrituras, nem o poder de D eus (v. 24). E prossegue o Senhor descrevendo a ressurreição do corpo com o transfor­ mação, em que partim os para um novo tipo de existência, onde serem os com o os anjos nos céus; e cita um a passagem bem conhecida do AT (Êxodo 3:6), em que se descreve o prim eiro encontro entre Deus e M oisés. Se quiserm os entender a lógica da resposta de Jesus precisare­ mos exam iná-la, prim eiro, com muito cuidado. A definição de Jesus da ressurreição com o a concessão de um a vida aos crentes sem elhante à dos anjos (v. 25) é im portante por duas razões. Prim eiram ente, havia um a diferença de opinião entre os antigos judeus quanto à natureza da vida após a ressurreição; alguns m antinham a crença sem elhante à de Jesus e outros esperavam que aos m ortos ressurgidos lhes seriam restaurados os relacionam entos terrestres. O enunciado de Jesus no v. 25 não significa que o corpo ressurreto será com o um espírito destituído de algum tipo de corpo, m as que as pessoas, em seus corpos ressurretos, não renovarão seus relacionam entos terrenos, com o o casa­ m ento e a geração de filhos. Em segundo lugar, ao assem elhar as pessoas ressurretas a anjos, é possível que Jesus tenha escolhido deliberadam ente um a analogia que provocaria os saduceus, que não criam em anjos (leia Atos 23:8), e salientaria que sua incapacidade para entender a ressurrei­ ção relacionava-se à m á vontade deles em aceitar doutrinas tais com o a existência de anjos. O texto do AT citado por Jesus com o prova da ressurreição (v. 26) não parece, à prim eira vista, apoiar bem sua conclusão; todavia, um

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pouco de reflexão cuidadosa revela o raciocínio do Senhor. N a passagem citada (Êxodo 3:6) Deus declara a M oisés que prom ova o livram ento de Israel da escravidão do faraó do Egito; a frase citada no v. 26 aparece não só neste prim eiro encontro entre Deus e M oisés, mas tam bém em outras passagens (Êxodo 3:15, 16; 4:5), em que Deus dá certeza ao povo de seu poder para libertá-lo. Jesus argum enta que se Abraão, Isaque e Jacó já partiram para a terra do esquecim ento (como criam os saduceus que acontece a todos os que m orrem), a descrição que Deus faz de si m esm o, com o o Deus desses patriarcas da antigüidade nada consegue transm itir acerca de seu poder para salvar seu povo; na verdade esse título seria um escárnio; a esperança de que Deus m erece a confiança de seus seguidores torna-se um a farsa. Abraão, Isaque e Jacó receberam uma prom essa de Deus, em “aliança” (um acordo sem elhante a um tratado, ou um contrato) de que seriam abençoados, de que o Senhor seria o Salvador e Provedor deles (veja Gênesis 12:1-3; 15:1-18; 17:1-8). É a esta aliança da prom essa que Jesus parece aludir ao argum entar; o ponto central do Senhor seria que a aliança de Deus não tem sentido, se for cancelada pela morte. A palavra final no v. 27 sugere que se a m orte encerra de modo perm anente o relacionam ento de aliança entre Deus e seu povo, a proclam ação feita a M oisés, citada no versículo 26, nada m ais é do que gélido epitáfio para os patriarcas, e confissão da incapacidade de Deus à face desse inimigo. Entretanto, as coisas não são assim, de m odo que o anúncio dirigido a M oisés deve ser tom ado com o proclam ação de Deus de que o Senhor não se esqueceu de seu relacionam ento com aqueles patriarcas, e que eles e todos os dem ais justos que m orreram gozarão dessa graça. (O texto paralelo de Lucas 20:38, “para ele todos vivem ”, parece tentativa de enfatizar este ponto, e dar-lhe mais clareza ainda). Assim é que M arcos nos mostra Jesus sobrepujando seus adversários noutra questão, e dem onstrando que o elogio insincero dos fariseus em 12:14 (“és hom em de verdade”) na verdade representa um a descrição apropriada do Senhor. Entretanto, há um significado especial nesta questão de ressurreição, visto que o Evangelho cristão baseia-se no fato que Deus ressuscitou a Jesus, que se tornou as prim ícias e Senhor da ressurreição (veja 1 Coríntios 15:1-8, 20-23). A réplica vitoriosa de Jesus, que vem im ediatam ente antes de sua execução e ressurreição, nos capítulos 15-16, com toda certeza esteve no objetivo de M arcos, a fim

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de o evangelista poder m ostrar a seus leitores que a fé que tinham na ressurreição de Jesus (mais a bendita esperança em seus corações), baseava-se nas Escrituras e no próprio caráter de Deus.

Notas Adicionais #21 11:27 / os principais sacerdotes, os escribas e os anciãos: Trata-se das mesmas personagens mencionadas por Jesus em sua predição da própria morte, em 8:31 (cp. 9:31; 10:33). Tais pessoas constituíam os principais grupos representados no concílio maior dos judeus (o sinédrio). 11:28 / Com que autoridade: o termo autoridade aqui e nos versículos 29-33 também se encontra em 1:22, 27; 2:10; 3:15; 6:7 (veja também 13:34). O uso freqüente desta palavra, em Marcos, transforma-a em termo teológico importante. 11:32 / Se, porém, dissermos: Dos homens... : Marcos não completa a sentença. Em vez disso, oferece-nos um comentário (última parte do v. 32), que dá a razão por que nada dizem. 11:33 / Não sabemos: nos é apresentado como mentira. A resposta de Jesus deixa isto bem claro. Não é o caso de eles não saberem; não querem reconhecer a possibilidade de haver Deus autorizado João a convocar toda a nação e seus líderes ao arrependimento. 12:1 / Plantou uma vinha... arrendou-a a uns lavradores: Esta parábola de Jesus reflete a experiência galiléia familiar da fazenda de arrendamento, cujo dono é um rico fazendeiro que a arrenda a outros, que trabalharão na terra e lhe pagarão uma porcentagem da produção. (Quanto à prática da agricultura, veja “Agriculture”, IDB, vol. 1, pp. 56-60). 12:5 / Ele enviou muitos outros: Em acréscimo à tradição do AT que enfatiza a desobediência de Israel aos profetas (veja Jeremias 25:3-7; Amós 2:11 -12), os evangelhos nos proporcionam outros pronunciamentos de Jesus em que o Senhor lamenta este mesmo pecado (Mateus 23:37; Lucas 13:34). 12:6 / o seu filho amado: Esta descrição do filho é literal; é a mesma expressão empregada por Deus ao saudar seu filho, no batismo (1:11) e na transfiguração (9:7). E expressão que também aparece no texto paralelo de Lucas 20:13, estando ausente em Mateus 21:37. 12:7 / a herança será nossa: uma lei antiga estabelecia que os arrendatários poderiam assenhorear-se da terra se não houvesse herdeiro que a reclamasse. Ao matar o herdeiro do proprietário, esperavam poder tomar posse da terra. (Veja Lane, pp. 416-19, quanto a referências e discussão). 12:9 / Que fará, pois, o senhor da vinha?: No texto paralelo de Mateus 21:40-41, esta pergunta é respondida por outros, enquanto aqui é o próprio Jesus quem responde sua própria pergunta (também em Lucas 20:15-16). O termo grego para senhor é kyrios, termo que pode significar apenas “dono” , como o

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proprietário de uma fazenda, mas também era usado em grego como título de Deus (Senhor). Portanto, no emprego desta expressão há um indício deliberado de que o “ senhor” da fazenda representa Deus. 12:10 / a pedra que os edificadores rejeitaram: 12:10-11 contém uma citação do Salmo 118:22-23, que se refere a uma pedra considerada sem valor pelos construtores, e que depois se torna cabeça da esquina. A referência original seria talvez ao rei de Israel, ou à própria nação, ou a ambos. Nas discussões rabínicas, esta passagem era entendida de várias maneiras, como referindo-se a Abraão, Davi ou ao Messias; mas, aqui a pedra inquestionavel­ mente é Jesus que, embora não reconhecido pelos edificadores (as autoridades judaicas), tornar-se-á o Rei-Messias supremo. 12:12 / procuravam prendê-lo... temiam...: Marcos tem em mente as autoridades judaicas, que nos foram apresentadas em 11:27-33. O temor desses homens era que se tentassem prender Jesus abertamente, na área do templo, onde esta parábola havia sido narrada, poderia surgir daí uma rebelião popular, o que os faria parecer maus aos olhos do governo romano, perante quem eram responsáveis quanto à manutenção da ordem no recinto do templo. 12:13 / para que o apanhassem nalguma palavra: A palavra traduzida por “ apanhassem” é empregada no NT somente nesta passagem, e significa “ pegar em armadilha” , como quando se quer capturar um animal. É a mesma palavra empregada na tradução grega do AT, em Provérbios 5:22; 6:25. Nalguma palavra literalmente é “ numa declaração” e significa que esses homens espe­ ravam poder usar contra o Senhor alguma declaração que fizesse. 12:14 / tributo a César: O termo tributo refere-se ao imposto pago ao imperador, baseado num censo semelhante ao que fora feito em 6 d.C., na Judéia. Tai censo causou uma revolta popular sob a liderança de Judas Galileu, que viu nessa iniciativa e na taxação que dela adviria não apenas uma afronta à lealdade devida somente a Deus, mas um sinal da escravidão de Israel a Roma. Conquanto Judas fosse executado, a questão sobreviveu e afinal irrompeu na revolta judaica de 66-70. (Quanto à natureza da insatisfação judaica nessa época, a respeito do im posto e de outros assuntos, veja David M. Rhoads, Israel in Revolution 6-74 C.E. [Filadélfia: Fortress, 1976]). O César dessa época era Tibério (14-37 d.C.). 12:15 / Jesus, conhecendo a hipocrisia deles: O termo hipocrisia é usado somente aqui em Marcos, e o termo “ hipócritas” somente em 7:6. Ambos os termos dizem respeito à representação teatral, ou fingimento; no Evangelho, significam insinceridade e fingimento religioso. uma moeda: era moeda romana, que o imperador mandava cunhar, e considerada sua propriedade ainda quando em circulação. Era a única moeda (no sentido de dinheiro, excluindo portanto a moeda estrangeira) com que o imposto podia ser pago. (Veja “ M oney” , IDB, vol. 3, pp. 423-35, em que há um desenho da moeda em questão, na p. 433).

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12:16 / De quem é esta efígie e inscrição?: é tradução literal. O termo “efígie” é o mesmo usado na tradução grega de Gênesis 1:27, para descrever o homem feito à imagem de Deus. Alguns eruditos sugerem que Jesus teria a intenção de aludir a esta passagem, querendo dizer com isso que se a moeda trazia a imagem de César, ela lhe pertencia, e desde que os seres humanos trazem a imagem de Deus, todos lhe pertencem, de modo igual e por inteiro. Sabemos que houve judeus piedosos que se recusaram a pôr as mãos nesse tipo de moeda, porque ela trazia o que se considerava uma afirmação blasfema dirigida à pessoa do imperador. O fato de Jesus ter pedido uma moeda pode indicar que ele também evitava segurar esse dinheiro pela mesma razão. 12:17 / maravilharam-se: É bastante óbvio que Marcos esteja querendo dizer que os adversários de Jesus ainda lhe eram hostis, e que nenhum maravilhamento da parte deles podia diminuir seu desejo de livrar-se do Senhor. Cp. Lucas 20:26. 12:18/saduceus: Este grupo também é mencionado no NT noutras passagens (Mateus 3:7; 16:1, 6, 11-12; 22:23,34; Lucas 20:27; Atos 4:1; 5:17; 23:6-8) e em outras fontes antigas judaicas (Josefo e a literatura rabínica; veja referências e discussões em IDB, vol. 4, pp. 160-63). Houve várias tentativas eruditas no sentido de descrevê-los e seu ambiente cultural, mas muita coisa é vaga. Parece que eles apoiavam o direito dos descendentes dos macabeus de exercerem poderes de realeza e de sacerdócio na Judéia; a origem dos saduceus poderia datar mais ou menos do segundo século antes de Cristo. Depois da guerra de 66-70 d.C., em que suas fileiras foram dizimadas, foram eles tratados como hereges pelos rabinos que vieram a controlar o judaísmo. Não se dispõe de textos produzidos pelos saduceus, de modo que tudo quanto sabemos deles chegou-nos de fontes cristãs ou rabínicas, nas quais são retratados sob um ângulo desfavorá­ vel. 12:19 / Moisés nos escreveu: a lei a que se faz referência aqui é conhecida como a lei do levirato, no casamento (Deuteronômio 25:5-10). O livro de Rute nos fornece um exemplo desta lei posta em prática (3:1-4:12; veja Gênesis 38:1-26). (Veja também “Levirate Law”, IDB, vol. 3, p. 116; “Marriage”, IDB, vol. 3, p. 282). 12:20 / sete irmãos: a ilustração usada aqui parece variação da mulher, em Tobias, que se casou com sete homens, sucessivamente, os quais iam morrendo sem deixar filhos; entretanto, em Tobias, esses homens não eram irmãos. 12:25 / Quando ressurgirem dentre os mortos: quanto à doutrina judaica a respeito da ressurreição dos mortos, veja “Ressurreição”, IDB, vol. 3, pp. 39-43. Quanto ao significado desse conceito no NT, veja “Ressurreição no NT”, IDB, vol. 4, pp. 43-53. 12:26 / livro de Moisés: a referência se faz a Êxodo 3:6. Os cinco primeiros livros do AT (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) eram tradicionalmente atribuídos a Moisés como autor. Os saduceus consideravam

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esses escritos como possuindo autoridade escriturística superior à dos demais livros do AT, pelo que a escolha que Jesus fez de um texto desse corpo literário pode ter sido motivado pelo desejo de refutar-lhes a má doutrina com base nos escritos cuja autoridade não contestariam. o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó: em acréscimo às passagens do AT já mencionadas no estudo acima, esta frase e outras semelhan­ tes ocorrem também em muitos escritos judaicos antigos (veja Lane, p. 429, quanto a referências).

22. Encerra-se a Controvérsia (Marcos 12:28-44)

12:28-34 / Com o indicam as palavras finais do versículo 34, temos aqui a últim a de um a série de perguntas dirigidas a Jesus por repre­ sentantes de vários grupos proem inentes do judaísm o antigo. Esta per­ gunta é feita por um m em bro do grupo dos “escribas” , os quais eram treinados a fim de interpretar a lei do AT no que tangia a vida do povo. Essa pergunta havia sido discutida em antigas fontes judaicas. V isto que se aceitava em geral que a lei do A T com punha-se de 613 m andam entos, é com preensível que houvesse um desejo de tentar organizar esse corpo de preceitos legais ao redor de um m andam ento básico, de modo que se pudesse prover um a prem issa fundam ental à qual ficassem dependentes todos os dem ais m andam entos individuais. Por exem plo, o grande mestre judeu Hillel, cuja carreira transcorreu nas décadas im ediatam ente ante­ riores ao m inistério de Jesus, é m encionado com o tendo dado a seguinte resposta a um gentio que lhe pediu um resum o bem conciso da lei judaica: “N ão faça ao próxim o o que você detesta; esta é a lei toda, o resto é com entário. A prenda-a” . Hillel não quis dizer que todos os dem ais m andam entos eram irrelevantes e podiam ser desprezados, mas que seu resum o da lei continha o peso geral e o caráter da lei toda. Com certeza o escriba da história que exam inam os não tinha a intenção de dar a entender, m ediante sua pergunta, que achava que alguns m andam entos podiam ser desprezados se outros mais im portantes fossem observados. Em vez disso, ele estaria, talvez, perguntando a Jesus qual era a opinião do Senhor quanto ao propósito fundam ental e quanto ao caráter da lei do AT. A tradução apresentada por NIV, para o v. 28, “de todos... o mais im portante”, deveria ter sido traduzido m ais corretam ente, à sem elhança de ECA: o principal de todos os m andam entos, significando o m anda­ m ento ao qual todos os dem ais estavam subordinados. C om parando o texto de M arcos, do registro desse incidente, com os textos paralelos de M ateus 22:34-40 e Lucas 10:25-28, é m uito interes­ sante observar que a linguagem usada por M arcos é singular. Em M ateus 22:34, a pergunta do escriba parece apenas m ais um a tentativa de em purrar Jesus a um a discussão, e em Lucas 10:25, não só a pergunta em si é bem diferente, com o a intenção do escriba é hostil. Todavia, aqui

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em M arcos 12:28 o escriba nos é apresentado com o tendo ficado bem im pressionado com a resposta anterior de Jesus; só M arcos põe elogios ao escriba nos lábios de Jesus, para quem este hom em não está longe do reino de Deus (v. 34). Assim é que M arcos no-lo apresenta sob um ângulo favorável — contrastando com os demais grupos que interrogam a Jesus, em 11 -.27-12:27 — ainda que o evangelista registre a condenação que Jesus pronuncia contra os escribas com o um grupo em 12:38-40. Tudo isso faz que ressalte m uito o m odo positivo pelo qual o escriba é tratado, justificando que se pergunte, então, por que razão M arcos o descreve assim, e à sua pergunta. E provável que a resposta correta seja que M arcos desejava m ostrar que o conflito entre Jesus e as autoridades judaicas não se fundam entava na rejeição do AT, nem num total despres­ tígio da lei, por parte de Jesus, mas em vez disso, a raiz do conflito estava na recusa das autoridades judaicas em aceitar Jesus com o o intérprete final da lei do AT. E evidente que, com o salienta M arcos, o poder de Jesus para interpretar a lei, com o Senhor m essiânico, envolvia conside­ rável reavaliação do que se im aginava que a lei estipulava em certas questões com o o sábado (veja 2:23-3:6), e o que seria puro ou impuro (7:1-23); entretanto, o ponto central dessa passagem parece-nos ser este: m ostrar que o criticism o de Jesus sobre as tradições dos escribas não equivalia a um a rejeição da validade da lei do AT com o revelação de Deus. Antes, a resposta de Jesus ao escriba, em 12:29-31, mostra que Jesus entendia qual era o verdadeiro ponto central da lei. Todavia, é preciso que adm itam os que nem M arcos nem seus leitores interpretavam as palavras de Jesus com o significando que a absoluta devoção a Deus (v. 30) devia envolver o cum prim ento de todas as regulam entações impostas pela tradição dos escribas. M ais ainda, parece que a própria m aneira de Jesus viver era vista, pelo menos por algumas autoridades religiosas judaicas (como fariseus e escribas) com o sendo insuficiente; o Senhor desobedecia a preceitos que esses hom ens consi­ deravam obrigatórios, com o a guarda do sábado e certos rituais cerim o­ niais. Noutras palavras, a diferença entre Jesus e as autoridades repre­ sentadas pelos escribas, do ponto de vista de ambos os lados era muito séria, mas M arcos utiliza esta passagem a fim de m ostrar que Jesus não deveria ser considerado um herege judeu, e que a form a de o Senhor encarar o que a lei representava tinha verdadeiram ente grande profundi­ dade. A fim de m artelar bem esta tecla, M arcos faz que o escriba reaja

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de m odo favorável à resposta de Jesus à sua pergunta (vv. 32-33), e retrata Jesus fazendo um com entário favorável à reação do escriba (v. 34). No fim perm anecem as diferenças entre Jesus e o escriba, visto que deste últim o não se diz que se tornou seguidor de Jesus, mas am bos reconhe­ cem que não estão totalm ente alienados entre si. A ssim é que M arcos deixa a im pressão de que Jesus é rejeitado pelas autoridades judaicas m ais por causa da m á vontade, e da cegueira espiritual de tais hom ens, do que por um a heresia da parte de Jesus, ou por declaração contra o Senhor que se pudesse justificar. Talvez seja significativo que no com entário que o escriba faz sobre a resposta de Jesus (vv. 32-33), o am or a Deus e ao próxim o coloca-se acim a do ritual do tem plo e, de certa forma, fica-lhe em contraste. Tal com entário, peculiar ao estilo de M arcos, pode explicar-se tendo em vista que em M arcos 11-16 de vez em quando vem à superfície a afirm ação de que, de certa forma, Jesus substitui o tem plo com o o lugar central onde D eus se m anifesta. No início do capítulo 11, Jesus entra na cidade e dirige-se de im ediato ao tem plo, sublinhando o .fato de o tem plo ser objeto de sua atenção. A seguir, vem a história subdividida em duas partes, da figueira estéril, em que se encaixou o episódio da purificação do tem plo (11:12-26), e na qual Jesus declara que o tem plo foi profanado pelo próprio sacerdócio dom inante (v. 17). Em seguida, tem os um a série de encontros entre Jesus e as autoridades judaicas (11:27-12:27), com a im plicação de que tudo isso ocorre na área do tem plo (11:27). Que estão todos no tem plo fica tam bém indicado na passagem seguinte (12:35), e de novo em 12:41. Logo a seguir, há a predição da destruição do tem plo em 13:1-2. Finalm ente, podem os observar que no m om ento da crucifi­ cação de Jesus, o véu do tem plo rasga-se em duas partes (15:38), dando-nos a indicação conclusiva de que o m inistério de Jesus de fato pôs um fim à validade do tem plo e seus rituais, deixando de ser, portanto, o lugar e o modo prescritos para o hom em encontrar-se com Deus. Voltem os à passagem que vimos analisando: a declaração desse escriba de que o am or a Deus e ao próxim o é mais im portante do que as cerim ônias do tem plo (v. 33) enquadra-se com perfeição no tem a geral de M arcos concernente à substituição do templo. Os leitores de M arcos teriam percebido que aquele escriba antecipou as crenças a que eles próprios haveriam de aderir, quanto aos rituais do tem plo estarem esgotados, por terem im portância secundária em relação às m ais elevadas

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obrigações que se refletem nos dois m andam entos m encionados. O elogio que Jesus lhe confere parece sublinhar essa posição. 12:35-37 / Depois de responder às perguntas de seus adversários, Jesus pergunta a seus próprios discípulos algo sobre a expectativa m essiânica popular entre os judeus. Em 8:27, Jesus havia perguntado a seus discí­ pulos com o os outros o consideravam e, em seguida, com o eles o consideravam (8:29). Os discípulos respondem a esta últim a pergunta dizendo que acreditavam ser ele o M essias (8:29b). O texto que se segue a essas perguntas dem onstra que Jesus desejava corrigir o que ele considerava ser noções eiradas acerca do M essias (8:31-33), afirm ando a necessidade de o M essias sofrer e ser rejeitado pelos líderes judeus. O relato da transfiguração (9:2-13) dem onstra que Jesus não só é o M essias, mas é tam bém o Filho de Deus (9:7), im plicando um a posição para Jesus bem acim a da com preensão popular a respeito do M essias. A pergunta que Jesus lhes faz em 12:35-37 tam bém corrige ou suplem enta as noções contem porâneas a respeito do M essias. A fim de apanharm os o significado da pergunta, devem os reconhecer a im portância da identificação do M essias com o o Filho de D avi (v. 35). Davi é retratado no AT com o o grande rei herói de Israel, e vários profetas prom etem outro rei que não só seria descendente legítim o de Davi, com o exibiria a devoção e o sucesso com o governante, características pelas quais Davi era lem brado (veja Isaías 9:6-7; 16:5; Jerem ias 23:5; 30:8-9; Ezequiel 34:23-24; 37:24; Oséias 3:5; Amós 9:11). No tem po de Jesus, esta esperança quanto a um rei sem elhante a Davi constituía caracterís­ tica bem conhecida da vida religiosa judaica, e tinha algo a ver com Israel sobrepujando seus inimigos, liberto do jugo da ocupação gentílica e colhendo o favor de Deus. Noutras palavras, em bora o M essias não fosse im aginado com o sendo puram ente um líder militar, ou herói nacional, seria correto pensar, no entanto, que sua aparência estivesse bastante relacionada com a esperança de livram ento da nação das m ãos de hom ens perversos, opressores do povo. N a presente passagem , a pergunta de Jesus im plica que a definição de M essias com o o filho de Davi é inadequada, sendo dupla a natureza da inadequação im plícita. Prim eiram ente, descrever o M essias com o o filho de D avi significa que o Davi de sagrada m em ória é o m odelo para a obra e pessoa do M essias; entretanto, a citação que Jesus faz do Salm o 110:1 com o referência ao M essias m ostra um Davi que se lhe dirige cham an­

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do-o de m eu Senhor, im plicando que Davi não é um m odelo totalm ente adequado, e que o M essias é, na realidade, m aior do que Davi. À luz da visão de M arcos de Jesus com o o M essias (o Cristo), o leitor pode verificar que a pergunta de Jesus dá a entender que o M essias, entendido de m odo adequado (Jesus), na verdade é o Filho de Deus, cujo poder e significado transcendentais ultrapassam todo cálculo hum ano. Em se­ gundo lugar, se o M essias é sim plesm ente o grande herdeiro do trono de Davi, a natureza do governo do M essias é, então, diferente do governo de Davi, e maior. A expectativa popular judaica ligava o M essias à libertação nacional, ou pelo m enos libertação para os judeus justos; todavia, no retrato que M arcos pinta de Jesus, a pergunta nos vv. 35-37 im plica que a obra do M essias deveria ser muito m aior do que a de Davi. Ela envolve a redenção de todos os povos, não apenas de Israel. Noutras palavras, a pergunta a respeito do relacionam ento do M essias com Davi não se restringe à linha de ascendência familiar. Em vez disso, o lugar de D avi com o m odelo e im agem do M essias fica sob desafio. C onquanto M arcos não esteja discutindo a questão de se Jesus seria ou não da linhagem de D avi, o testem unho am plo de todo o N T acerca da fam ília de Jesus assegura que ele descendia de Davi (cp. Rom anos 1:1-3; M ateus 1:1; Lucas 2:4; 2 Tim óteo 2:8). Portanto, seria altam ente im provável que M arcos teria entendido que essa passagem estaria pondo em dúvida a ascendência de Jesus. Antes, essa passagem indica que o significado total de Jesus com o o M essias não pode ser avaliado m ediante o relaciona­ m ento de Jesus com Davi. Davi, inspirado por Deus, é citado fazendo conexão entre o M essias e o trono de Deus (à m inha direita, v. 36), sugerindo que o verdadeiro M essias deve ser entendido com o portador de im portância divina e não apenas davídica. Essa passagem nos adverte de que os conceitos judaicos m essiânicos do tem po de Jesus eram opiniões inadequadas sobre as funções e a pessoa do M essias, e sobre a abrangência total do plano redentor de Deus. Quando muito, aqueles conceitos inadequados apenas davam um indício do escopo do signifi­ cado do M essias. Em bora a pergunta no v. 37 fique sem resposta, os leitores de M arcos saberiam onde encontrá-la. Sabem que a ressurreição declara que Jesus, o M essias, é Senhor de Davi, visto que Jesus foi exaltado à m inha direita, isto é, à direita de Deus, de onde ele reina com poder divino. 12:38-40 / H avendo acabado de dem onstrar a inadequação do conceito

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popular do M essias entre os escribas, ou m estres da lei, M arcos agora m ostra Jesus apresentando um a crítica generalizada sobre os escribas com o um grupo, por causa do abuso que com etem na posição de respeito que ocupam na sociedade judaica. A passagem seguinte (12:41-44) concernente a uma pobre viúva, deve ser lida juntam ente com esta passagem , visto que faz contraste com o retrato dos escribas, dem asiado preocupados com suas próprias vantagens. A seção de M arcos em que Jesus está ensinando no tem plo (11:15-12:44) inicia-se com Jesus con­ denando as autoridades sacerdotais, acusando-as de profanação do tem ­ plo. A condenação do Senhor deriva do interesse dos sacerdotes no lucro que recebiam dos vendilhões de anim ais, cujas atividades com erciais no tem plo tinham seu consentim ento m ediante o pagam ento de um a taxa (11:17). Perto da conclusão dessa seção, os escribas recebem crítica por causa de seu orgulho e seu interesse em ganhar dinheiro. No tem po de Jesus, parece que era proibido aos escribas pedir dinheiro em pagam ento pelo exercício de sua especialidade na lei, e deviam obter sustento por si mesmos, ou ser sustentados pela generosidade alheia. A grande erudição lhes granjeava im enso respeito da parte dos judeus, e com o acontece com m uita freqüência quando se dá a líderes religiosos tão em inente deferência, alguns escribas não achavam que estavam abusando dessa influência. Com o símbolo de sua devoção à lei e do lugar especial que ocupavam na vida judaica, os escribas vestiam túnicas brancas, de linho, que lhes chegavam aos pés. Quando se aproxim avam de um grupo, os judeus se levantavam em sinal de respeito, e saudavam nos com títulos de honra, com o “senhor” ou “pai” . Nos banquetes, os escribas com freqüência recebiam lugares especiais, de honra, e eram publicam ente reconhecidos. Nas sinagogas, ocupavam eles os lugares na frente, ficando de face voltada para a congregação. E possível que o escriba perm itisse que um tratam ento tão honroso se tornasse im portante dem ais; as palavras de Jesus condenam alguns escribas judeus antigos em razão disso. No caso deles, a devoção à lei de Deus, que supostam ente representavam , ficava obscurecida pela atitude pomposa; a honraria que recebiam tornava-se mais im portante do que a honra devida só a Deus. Textos rabínicos derivados da tradição dos escribas tam bém contêm advertências contra o tipo de abuso de que Jesus fala aqui, indicando que a condenação do Senhor era bem m erecida por alguns deles (veja nota). A referência a escribas que roubam viúvas, tirando-lhes as casas (v.

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40), talvez se relacione aos que esfolam pessoas devotas que se sentem na obrigação de sustentá-los, com o representantes que são da lei de Deus. N aquela época, tanto quanto hoje, tem os exem plos de líderes religiosos judeus e cristãos que, sem nenhum escrúpulo, pedem sustento a pessoas sim ples, vulneráveis, levadas a crer que estão sustentando de fato a obra de D eus, sem poderem , contudo, despender tanto dinheiro com o o fazem , sob a pressão das solicitações. As críticas aos escribas aparecem em vários pontos dos evangelhos (cp. M ateus 23:1-36; Lucas 20:45-47; 11:42-52) e de m odos variados, indicando que a condenação atual foi colocada neste contexto por M ar­ cos, e deve ser encarada com o parte do grande conflito que envolve Jesus e as autoridades religiosas judaicas, o qual é descrito com ênfase m ode­ rada nos capítulos 11-12. Com o nos ensina a passagem de 12:28-34, nem todos os escribas eram culpados dos crim es m encionados nos vv. 38-40; as palavras de Jesus devem ser entendidas com o crítica dos abusos na prática e na m otivação, os quais constituíam verdadeira tentação à classe dos escribas. O pronunciam ento sob discussão teve seu lugar original na oposição m ovida pelos escribas contra Jesus, na tentativa deles de afastar de seu cam inho o Senhor, que constituía verdadeira am eaça ao conceito que faziam da religião judaica. Esse pronunciam ento era lem brado, e aparece aqui na tradição do Evangelho, porque a oposição dos escribas, segundo se pensava, contribuiu para a rejeição e execução de Jesus; é claro que para os cristãos tudo isso constitui obra m onum entalm ente errada. Essa declaração do Senhor m ostra que entre os que condenaram Jesus estavam pessoas não m erecedoras das honrarias e deferências que recebiam . A lém disso, a rejeição de Jesus foi m otivada, pelo m enos em parte, por pessoas interessadas na m anutenção do “ status quo” . E ram pessoas que não julgavam conveniente consentir que Jesus proclam asse um novo reino de Deus que, à sem elhança do vinho novo, não podia ser colocado em velhos “ odres” (cp. 2:18-22). É certo que M arcos teve a intenção de fazer que seus leitores vissem nas palavras de Jesus não apenas a condenação dos abusos praticados pelos m estres judaicos, mas tam bém um a advertência contra o desenvol­ vim ento de abusos sem elhantes nos círculos cristãos, da m esm a form a que o com portam ento exigido dos discípulos deveria distinguir-se do com portam ento verificado entre os líderes gentílicos (10:41-45), assim

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tam bém aqui os líderes religiosos judaicos expõem -se à crítica com o exem plo negativo. 12:41-44 / Este episódio conclui a seção em que Jesus ensina e debate na área do tem plo (11:15-12:44). Está ligado ao parágrafo anterior (12:38-40) pela m enção às viúvas. A lém disso, a piedade simples da viúva form a contraste poderoso com a am bição egoística pela qual os escribas foram condenados na passagem anterior. Com o antes, aos discípulos havia sido dado o exem plo da criança (9:35-36; 10:13-16), com o sím bolo de circunstâncias hum ildes, aqui tam bém temos outro tipo de pessoa destituída de posição social que nos serve de exemplo. Além disso, o contraste entre a pobre viúva e os ricos, que dão somas im pres­ sionantes para o sustento do tem plo, lem bra-nos da advertência de Jesus acerca de com o as riquezas constituem obstáculo ao discipulado, e à obediência a Deus (10:17-31). A virtude da oferta da viúva está no fato de essa m ulher dar tudo o que tinha (v. 44), ilustrando perante os discípulos a fidelidade no com prom isso total para o qual Jesus os havia cham ado (veja 8:34-9:1; 10:28-31). O gesto dessa m ulher exem plifica a devoção com pleta des­ crita em 12:28-34, em que fica im plícito que a fidelidade a Deus não deve ser m edida segundo a im pressionante m agnitude da oferta sacrifi­ cial que alguém pode apresentar (v. 33). A elevação dessa m ulher simples a um lugar exem plar tão alto contém a essência das palavras de Jesus, que, de acordo com o julgam ento de Deus, “ m uitos prim eiros serão derradeiros, e os derradeiros, prim eiros” (10:31). Em suma, é fácil ver que a intenção de Marcos era que essa passagem fosse interpretada como agrupamento de vários temas dos ensinos de Jesus, e que ele pretendia que seus leitores se identificassem com essa mulher, personagem humilde, protótipo do “ João-Ninguém” , em contraposição aos vários representantes do sistema judaico atuante, mencionados na narrativa anterior (11:27-12:40). Na passagem seguinte, os discípulos ficam extasia­ dos diante do esplendor dos edifícios do templo (13:1-2), mas Jesus não se deixa impressionar, e prediz o julgamento de Deus sobre a instituição toda. Só essa pobre viúva, em sua simplicidade e pobreza, é quem Jesus menciona como digna da atenção de seus seguidores.

Notas Adicionais #22 12:28 / lhes havia respondido bem: é provável que Marcos tivesse em mente

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o fato de Jesus haver respondido bem aos fariseus e herodianos, em 12:13-17, e também aos saduceus. Qual é o principal de todos os mandamentos?: literalmente, “qual é o primeiro mandamento dentre todos?” A pergunta do escriba talvez não tencio­ nasse classificar os mandamentos, dando a entender que alguns seriam menos importantes do que outros, mas, antes, qual seria o mandamento fundamental que explicaria todos os demais. Mateus 22:36 traz literalmente: “Qual é o grande mandamento na lei?”, enquanto Lucas 10:25 põe esta pergunta nos lábios de um escriba: “Que farei para herdar a vida eterna?” A história narrada por Lucas é bem diferente, não havendo absoluta certeza de tratar-se de texto paralelo da presente história de Marcos. 12:29 / Ouve, ó Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor: é citação de Deuteronômio 6:4, constituindo a primeira parte do que se chama Shema, entre os judeus (referindo-se à primeira palavra da sentença em hebraico), formado por Deuteronômio 6:4-9; 11:13-21; Números 15:23-31. Tem sido a característica central da devoção religiosa judaica durante muitos séculos; o fato de Jesus referir-se à Shema aqui demonstra que talvez fosse recitado pelo povo de seu tempo. A segunda frase é literalmente: “o Senhor nosso Deus é um”, e ao recitar a Shema, a ênfase deve recair sobre a última palavra, “um”, que afirma a crença de não existir outro deus senão o Deus de Israel. O Shema é o enunciado que mais se parece com um credo no judaísm o antigo, constituindo uma expressão concisa do ensino fundamental do AT.

12:30 / Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração... alma... entendimento... forças: é citação de Deuteronômio 6:5, embora a passagem do AT mencione apenas o coração, a alma e as forças. Entendimento talvez seja adição feita por Marcos ou algum copista a fim de esclarecer que o termo

coração inclui as energias mentais e emocionais. 12:31 / Amarás o teu próximo como a ti mesmo: é citação de Levítico 19:18. No ambiente original do AT, o próximo seria especialmente um compa­ nheiro israelita; há evidências de que no tempo de Jesus alguns judeus punham em prática um tratamento distintivo, aquele que sentiam ser obrigação para com um companheiro israelita, e outro tratamento, que teriam liberdade de usar para com um gentio. No relato de Lucas 10:25-29, um escriba pergunta a Jesus qual é a definição de próximo, e assim introduz a famosa narrativa do bom samaritano. Textos judaicos antigos mostram que outras pessoas, além de Jesus, já haviam feito essa combinação de dois mandamentos acerca do amor a Deus e do amor ao próximo (veja referências em Lane, p. 422, no. 49). 12:33 / todos os holocaustos e sacrifícios: em grego,a referência é a “ofertas queimadas e sacrifícios integrais”, duas categorias básicas de atos sacrificiais do AT. O primeiro termo designa sacrifícios em que a vítima toda era queimada sobre o altar (após execução ritualística). O segundo termo, (“sacrifícios”) refere-se a ofertas em que apenas uma parte era queimada no altar, parte era

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dada ao sacerdote e outra parte consumida pelo adorador. (Quanto ao sistema sacrificial do AT, veja “Sacrifices and Offering, OT”,IDB, vol. 4, pp. 147-59). 12:34 / Não estás longe do reino de Deus: o escriba demonstrou mediante sua resposta a Jesus que era sincero, e que não era culpado de praticar manipu­ lação de tradições religiosas, de que alguns escribas são acusados por Jesus noutras passagens (12:38-40; 7:1-13). Está separado do reino de Deus por deixar de tornar-se seguidor de Jesus. Marcos não nos diz o que aconteceu ao homem, o que torna esse incidente mais intrigante ainda. E já ninguém mais ousava perguntar-lhe nada: isto indica ao leitor que esta série de debates entre Jesus e os vários grupos judaicos (11:27-12:34) chegou ao final. 12:35 / ensinava no templo: note de novo a ênfase no templo, como local de ensino (cp. 11:11,15,27; 12:41; 13:1). Segundo a antiga expectativa judaica, entendia-se às vezes que o Messias viria reconstruindo ou reformando o templo, a fim de torná-lo sede de seu reino. De 11:1 em diante, Marcos nos mostra Jesus no templo, ensinando e manifestando-se no papel do Messias; a diferença entre a visão de Marcos e a visão popular era que a chegada de Jesus significou o fim da validade do templo, em vez de sua exaltação (cp. 11:17; J3.-1-2; 15:38). filho de Davi. era um título que nos dias de Jesus passara a ser atribuído ao Messias (veja nota sobre 10:47). 12:36 / O próprio Davi, falando pelo Espírito Santo: entre judeus religio­ sos e cristãos primitivos, o AT era considerado inspirado por Deus, o que significava que embora a personalidade humana tivesse influenciado, o resul­ tado era um corpo de textos autenticados em seus ensinos pela autoridade de Deus. Disse o Senhor ao meu Senhor: a palavra Senhor é tradução de duas palavras diferentes do original hebraico, do salmo aqui mencionado (110:1). O primeiro Senhor é o nome hebraico de Deus (usualmente pronunciado Iavé, embora entre os judeus piedosos esse nome não seja pronunciado); o segundo Senhor é tradução de Adonai, equivalendo mais ou menos à expressão de reverência “sir”, do inglês, “senhor”, em português, ou kyrios, em grego. (Veja “God, names o f \ IDB, vol. 2, pp. 407-17). O Salmo 110 é o mais freqüente­ mente usado no NT, sendo mencionado ou citado em Mateus 22:44; 26:64; Marcos 12:36; 14:62; 16:19; Lucas 20:42; 22:69; Atos 2:34; Romanos 2:5; 8:34; 11:29; 1 Coríntios 15:25; Efésios 1:20; Colossenses 3:1; Hebreus 1:3, 13; 5:6, 10; 6:20; 7:3, 11, 15, 17, 21; 8:1; 10:12. As evidências judaicas disponíveis não indicam que o Salmo 110 fosse predição messiânica. Esses indícios vieram, porém, muito depois dos textos do AT, e essa passagem de Marcos poderia ser entendida como prova de que esse Salmo teria sido aceito como messiânico nos dias de Jesus, ou que fosse essa a sua interpretação original. Assenta-te à minha direita: o convite é para que se sente ao lado direito do trono de Deus. Nas cortes reais antigas, o lado direito do trono do rei era

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reservado à pessoa escolhida para agir com poder executivo, em nome do soberano. Este convite encerra, pois, o direito de governar em nome de Deus. os teus inimigos debaixo dos teus pés: segundo as regras antigas de guerra, o rei vencido era obrigado a colocar o pescoço sob o pé do rei vencedor, confessando assim sua derrota e subjugação, debaixo do governo vitorioso. 12:37 / Como, pois, pode [o Messias] ser seu filho?: O ponto central desta pergunta não é a paternidade do Messias, mas sua posição e categoria, em relação a Davi. Nos tempos antigos, entre os orientais, os filhos deveriam obedecer a seus pais, e considerá-los seus superiores. O ponto central desta questão é, então, que uma vez que Davi chama o Messias de “meu Senhor”, o Messias deve ser maior do que Davi, e não alguém semelhante a ele. 12:38 / vestidos compridos ... saudações nas praças.: A túnica branca de linho era sinal de liderança religiosa, no antigo Israel, sendo usada por sacerdo­ tes e escribas. Com freqüência tinham franjas compridas nos cantos, como símbolo de grande erudição e devoção à lei de Deus (veja “Fringe”, IDB, vol. 2, pp. 325-26). Segundo a educação rabínica, todos os judeus deveriam levan­ tar-se à aproximação de um escriba, sendo a única exceção o trabalhador empenhado em seu serviço (quanto a referências básicas, veja Lane, pp. 439-40). Os abusos aqui mencionados eram reais, e apesar disso eram reconhecidos pelos rabis virtuosos; cp., veja G. F. Moore, Judaism in the First Centuries o f the Christian Era (Nova York: Schocken, 1971), vol. 2, pp. 190-94, 245-46. 273-75. 12:41 / Estando Jesus assentado diante do gazofilácio: segundo antiga tradição judaica (a Misna), havia treze receptáculos com o formato de trombeta, onde as pessoas depositavam suas dádivas para o templo, e localizavam-se no átrio das mulheres (além do qual estas não podiam ir). 12:42 / duas pequenas moedas, correspondentes a um quadrante: essas duas moedas da viúva eram leptons, as menores moedas em circulação na época. As duas moedinhas somadas equivaliam a um centavo (grego, kodrantes), um quadrante, quantia monetária insignificante. (Veja “Money”, IDB, vol. 3, pp. 423-35, esp. p. 428). Se esta importância significava todo o sustento econômico da viúva (tudo o que tinha, v. 44), ela era pobre mesmo!

23. Destruições e Perseguições Vindouras (Marcos 13:1-23)

13:1-2 / O capítulo 13 de M arcos constitui uma das duas grandes seções de material didático não-interrom pido por outras coisas; a outra seção é a das parábolas narradas no capítulo 4. O sermão em foco inicia-se com Jesus profetizando que o tem plo de Jerusalém será destruí­ do (13:1-2). Isto conduz a narrativa a um a cena típica de M arcos, em que os discípulos interrogam Jesus, em particular, sobre o significado dessa declaração (13:3-4); Jesus lhes dá um a resposta extensa (13:5-37). O fato de uns textos do capítulo 13 e de passagens paralelas (M ateus 24:1-51 e Lucas 21:5-36) aparecerem noutras passagens (cp. M ateus 10:17-22; Lucas 12:11-12; 17:20-21, 31) dá a entender que a atual form a desse serm ão é com posição de vários pronunciam entos de Jesus, em endados entre si, com pilados por M arcos ou pelas pessoas de quem ele tom ou em prestado esses textos. Além disso, as variações detectadas entre os três principais relatos paralelos dem onstram que cada evangelista deu form a própria ao corpo de material didático de seu Evangelho, tendo em m ente as necessidades de seus próprios leitores. Entretanto, tudo isto significa, é lógico, que esse m aterial era considerado m uito im portante e instrutivo na igreja prim itiva, sendo usado e reusado no m agistério e na pregação. Portanto, nós devem os prestar m áxim a atenção a esse m aterial, tanto por causa de sua im portância óbvia em todos os sinóticos, com o por causa da longa história, às vezes lam entável, do interesse pelas coisas concernentes ao fim do m undo e retorno de Cristo. Ao iniciarm os nosso exam e do capítulo 13, duas coisas precisam ser enfatizadas. Prim eira, com o os versículos 1-4 indicam, os pronuncia­ m entos de Jesus estão todos ligados à predição da destruição de Jerusa­ lém, que ocorreu em 70 d.C., sendo experiência traum ática para os judeus e, segundo parece, tam bém para os cristãos judeus. Em segundo lugar, os enunciados de Jesus aqui registrados foram entendidos com o sendo relevantes para a vida da igreja no tempo de M arcos, pelo que deveríam os perguntar que pensava a igreja prim itiva, antes de m ergulharm os com dem asiada pressa na questão da im portância atual dessas declarações.

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N outras palavras, a fim de fazer justiça às declarações de Jesus, devem os ter paciência e subm etê-las a um a inquisição histórica, e devem os ficar alertas quanto ao fato de o m elhor contexto delas não ser a im prensa m oderna, m as as fontes judaicas e cristãs antigas. Se olharm os esse capítulo com o um todo, por um m om ento, é possível dividi-lo, de modo grosseiro, com o segue: Após a introdução, que diz respeito à destruição de Jerusalém (13:1-4), há a resposta de Jesus à pergunta dos discípulos, concernente de início a tribulações gerais e, depois, a outras m ais específicas, por que passarão (13:5-13). A seguir, há um a referência a um evento cham ado “a abom inação que causa a assolação” , que há de trazer grande sofrim ento e possíveis enganos (13:14-23); a certeza a respeito do aparecim ento do Filho do hom em (13:24-27); um a parábola que trata da proxim idade dos eventos profeti­ zados (13:28-31); e finalm ente, uma série de exortações gerais visando à vigilância (13:32-37). Nas páginas seguintes exam inarem os parágrafos individuais com seus porm enores; entretanto, é útil observar aqui que o tem a dom inante da passagem toda é um a advertência contra o perigo do engano pelas declarações falsas sobre o fim que estaria próxim o, e pelos indivíduos que tentarão passar por profetas — e mais ainda (vv. 6, 21). Esta última observação a respeito do tema principal do texto fornece-nos a pista mais importante para chegarmos às razões de Marcos para incluí-lo. E possível que o evangelista estivesse muito preocupado com o fato de seus leitores ficarem demasiadamente perturbados pelos acontecimentos narra­ dos no texto, e serem enganados pelos falsos mestres, com respeito à esperança do regresso de Cristo. Assim, o propósito primordial de Marcos nunca foi o de inflamar as especulações a respeito do tempo do fim do mundo, mas antes exortar para que haja prudência e sabedoria. Ele se preocupou mais com o bem estar de seus leitores, não prom ovendo o interesse em calcular até às minúcias os planos futuros de Deus. M arcos 13:1-2, com seu interesse voltado para a destruição do tem plo, não apenas constitui a introdução do sermão, com o tam bém a conclusão da seção anterior (11:1-12:44), em que o tem plo funcionou com o o local e, às vezes, o próprio assunto do texto. No início daquela seção (11:1-11), Jesus se dirige ao tem plo, inspeciona-o e declara-o profanado pelas autoridades sacerdotais (11:15-19). Jesus anuncia o julgam ento divino que recairá sobre o tem plo. E a profanação do tem plo, condenada antes, que explica a razão dessa severa profecia em 13:2.

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Essa predição já tivera precedente nas profecias de Jerem ias (veja 7:1-15), m as no tem po de Jerem ias e no de Jesus, a grande m assa de pessoas acreditava que tais coisas não poderiam acontecer, visto que Deus não perm itiria que sua honra fosse maculada, nem que seu povo sofresse tal golpe. Foi esse sentim ento a respeito da santidade do tem plo que serviu de com bustível alim entador do interrogatório fervente dirigi­ do a Jesus pelos seus discípulos (13:3), acerca do significado da profecia. Os eruditos não concordam entre si quanto a se M arcos foi escrito antes ou depois do cum prim ento da profecia de Jesus; todavia, quer os eventos ainda estivessem por acontecer, quer já houvessem acontecido quando M arcos foi escrito, os leitores desse Evangelho com toda certeza teriam visto nesses fatos a com provação do julgam ento de Deus sobre a nação e seus líderes, por causa da rejeição do “Filho am ado” , julgam ento insinuado na parábola de Jesus de 12:1-12 (esp. v. 9). 13:3-13 / R eagindo à espantosa declaração de Jesus de que o grandioso tem plo de Jerusalém seria destruído, vários dos discípulos chegam -se ao Senhor a fim de inteirar-se dos porm enores. Isto funciona com o introdu­ ção ao ensino de Jesus, o qual prossegue até o final do capítulo 13. Em bora os discípulos perguntem de m odo específico, quando a predição da destruição do tem plo ocorrerá (v. 4), Jesus não lhes dá um a data, nem um sinal específico m ediante o qual possam calcular a data. Tem os a im pressão até de que Jesus não lhes ouviu bem a pergunta, visto que aparentem ente o Senhor a despreza, fornecendo, antes, num erosas ad­ vertências sobre o perigo de o discípulo envolver-se nos eventos que se assem elham ao fim do m undo (vv. 5-23). De fato, as perguntas dos discípulos nos vv. 3-4 não recebem respostas diretas, senão nos vv. 28-37, m as antecipando nossa discussão daquela passagem , nem m esm o aqui a resposta do Senhor é específica, mas concentra-se, em vez disso, em advertências para que estejam alertas continuamente. Fica, então, bem claro, que M arcos objetivava que seus leitores (que naturalm ente haveriam de identificar-se com os discípulos), vissem que a preocupação deles acerca da época da segunda vinda de Jesus fosse corrigida pelas declarações de Jesus. Observe as refutações da idéia de que os acontecim entos m encionados nesta passagem e em posteriores, sejam sinais do fim: o v. 7, quando ouvirdes de guerras e rum ores de guerras, não vos perturbeis; v. 8, terrem otos e fom es são apenas o princípio das dores; v. 10, o Evangelho precisa ser pregado a todas as

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nações antes do fim; v. 13, precisa-se de perseverança até o fim (cp. vv. 21-23, e com entários sobre o texto). N outras palavras, as perguntas dos discípulos nos versículos 3-4 na verdade não nos induzem a saber qual é o ensino de Jesus aqui; em vez disso, tais perguntas ilustram o tipo de excitação que Jesus (e M arcos!) deseja elim inar, substituindo-a por um a vida sóbria e disciplinada, necessária durante os tem pos de tribulação vindouros. N os vv. 5-13, as repetidas advertências (cuidai, v. 5; n ão vos perturbeis, v. 7; deveis estar de sob reaviso, v. 9; não vos p reocu ­ peis, v. 11) prim ordialm ente referem -se a problem as genéricos com o guerras, terrem otos e fom es (vv. 5-8), e depois a perseguições contra os seguidores de Jesus (vv. 9-13). Os eventos m encionados nos vv. 5-8 constituem o tipo de perturbações que se esperariam no fim do m undo (cp., veja A pocalipse 6:1-8; 2 T im óteo 3:1-5). T ais eventos são confirm ados com o coisas que devem acontecer; todavia, Jesus nega que indiquem a chegada repentina do fim do m undo (v. 7). A sem elhança do p rin cíp io de dores (v. 8), tais coisas assinalam que algo m uito im portante está chegando, não indicando porém quão longa será a espera. Em sum a, Jesus confirm a que acontecim entos do tipo aqui descritos fazem parte do plano de D eus, e não indicam a interrupção desse plano; pelo contrário, m ostram a sua execução. D eclara o S enhor, ao m esm o tem po, que tais coisas não revelam a época em que o plano divino para o m undo será consum ado. Nos vv. 9-13 m uda-se o foco de atenção, saindo dos eventos padroni­ zados conhecidos com o expectativas apocalípticas, as quais se refletem nos antigos textos judaicos e cristãos, e fixando-se nas agruras específi­ cas que os discípulos de Jesus deverão sofrer no decurso de sua m issão neste mundo. As coisas aqui descritas são todas ações form ais m ovidas legalm ente contra os discípulos; noutras passagens do N T tem os alguns registros de tais perseguições (veja Atos 4:1-23; 5:17-42; 6:8-7:60; 12:1-5; 16:19-40; 18:12-17; 22:30-23:10; 24:1-27; 25:1-22). As perse­ guições m encionadas nos vv. 9-10 envolvem tanto judeus (sinagogas) com o gentios (governadores e reis). A oposição contra os seguidores de Jesus virá até da parte de seus parentes (v. 12), e parece que todos a apoiarão (v. 13); eis um quadro verdadeiram ente assustador. No entanto, em m eio à perseguição e aparente abandono da parte de todos, os discípulos, segundo prom essa, recebem poder para falar com toda cora­

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gem. O Espírito Santo lhes dará inspiração profética (v. 11). E certo que os textos do NT indicam que os doze apóstolos originais experim entaram este tipo de perseguição aqui descrito; todavia, as tribulações não se acabaram de m odo algum no tem po de M arcos; seus leitores poderiam verificar que as palavras de Jesus aplicavam -se de m odo direto a eles próprios, em sua situação. Judeus cristãos (com o o apóstolo Paulo, 2 Coríntios 11:22-25) às vezes encontraram intensa oposição da parte de outros judeus; em bora não haja evidências de perseguição sistem ática pelo império rom ano no prim eiro século, em certas áreas definidas (inclusive em Rom a, sob Nero, nos anos sessenta d.C.), a tribulação às vezes era severa (cp. Apocalipse 2:8-13; 1 Pedro 4:12-19). A lém de diluir e assim enfraquecer a idéia de que o fim pode ser calculado m ediante a ocorrência de acontecim entos com o os m enciona­ dos nos versículos 5-13, esta passagem tam bém enfatiza a im portância da m issão a que os discípulos deverão entregar-se. Em vez de descrever certos acontecim entos com o indicadores do fim, Jesus cham a a atenção à pregação de âm bito mundial do Evangelho (v. 10). Assim com o aos doze foi entregue a autoridade e o poder de Jesus para operarem suas obras (3:13-15; 6:7-13), aqui seus seguidores recebem a prom essa da ajuda divina em sua missão, de tal modo que falarão à sem elhança de Jesus e dos profetas do AT, no poder do Espírito Santo. D a m esm a m aneira que os leitores sabiam que Jesus foi perseguido, julgado e injustam ente condenado (14:53-65; 15:1-37), tam bém são advertidos que seus seguidores deverão esperar o m esm o tipo de provação. Assim, esta passagem tam bém reflete a preocupação típica de M arcos com respeito ao discipulado; e mais um a vez, o padrão do discipulado se m odela segundo a própria m issão de Jesus e suas conseqüências (cp., veja 10:38-45). 13:14-23 / Depois de descrever várias aflições que sobrevirão aos discípulos, Jesus se volta para um a perseguição particular que ele des­ creve de tal m aneira que a torna o clím ax das provações por que passarão. Com o o dem onstrarão nossos com entários e notas, o que o Senhor descreve aqui é o m esm o acontecim ento predito em 13:1-2, que precipi­ tou as perguntas dos discípulos a respeito do futuro, a saber, a destruição de Jerusalém e de seu tem plo, que haveria de ocorrer na revolta de 66-70. As opiniões dos eruditos dividem -se quanto a se M arcos escreveu seu

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Evangelho um pouco antes ou um pouco depois do cerco de Jerusalém , mas neste ou naquele caso os prim eiros leitores de M arcos não teriam achado nesta discussão um interesse m uito especial. A expressão que M arcos em prega em 13:14, a abom inação que causa a assolação (RSV, “o sacrilégio desolador” ; KJV, “a abom inação da desolação”), é tirada do livro de Daniel, no AT (veja 9:27; 11:31; 12:11), que descreve grandes tribulações e aflições para Israel, incluindo um assalto final contra sua religião com o parte das provações do final dos tem pos, antes do últim o livram ento de Deus. Esse term o constitui uma espécie de palavra de código, e alusão àquelas passagens de Daniel, com o o indica a nota editorial do v. 14. Teria parecido aos discípulos, sem dúvida, que a predição feita por Jesus sobre a destruição do tem plo só seria cum prível com o parte dos acontecim entos que m arcariam o fim dos tem pos, visto que não seriam capazes de entender com o D eus perm itiria que tão horrorosa calam idade acontecesse ao tem plo do Senhor. Parece que isso se refletiu na atitude dos discípulos, descrita em 13:1, e nas perguntas cheias de agitação de 13:3-4. Entretanto, o sentido das decla­ rações de Jesus nos vv. 14-23 é que nem m esm o a queda de Jerusalém (que os discípulos considerariam “a abom inação que causa a assolação”) assinala o final dos tem pos. Em vez de encorajar a m ania de calcular o fim do m undo m ediante tais eventos, Jesus continua a exortar no sentido da prudência nas ações (vv. 14b-20), e ceticism o contra quaisquer falsos profetas e suas afirm ações (vv. 21-23). Com o nos versículos anteriores (5-13) esta linguagem reflete a vida na Palestina do prim eiro século. As advertências dirigem -se contra os que m oram na Judéia (v. 14b); são advertidos a que fujam para os montes, abandonando Jerusalém , em vez de nela procurar refúgio. São aconse­ lhados a fugir depressa, à aproxim ação do exército inimigo (vv. 15-16); e há um a nota tocante, a respeito das m ulheres grávidas ou que estiverem am am entando naqueles dias (v. 17), e com o será mais difícil a fuga se ela ocorrer no inverno (v. 18). Além de cham ar a destruição de Jerusalém , prestes a acontecer, pelo term o profético a abom inação que causa a desolação, essa calam idade é cham ada de desastre sem paralelo (vv. 19-20), só aliviada pela mão m isericordiosa de Deus (v. 20). Porém , ainda não é chegado o fim; os discípulos deverão vigiar, alertas contra falsas esperanças e declarações enganadoras (vv. 21-23). O propósito de Jesus, ao predizer esse desastre,

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não é revelar o tempo do fim, mas preparar seus discípulos para o evento, de modo que não sejam enganados pelos apelos excitados de pessoas mal orientadas (v. 23). Na verdade, Jesus faz uma revisão na idéia judaica tão popular, segundo a qual o fim do mundo seguir-se-ia imediatamente à abominação que causa a desolação, fazendo dela, em vez disso, a maior provação dentre todas que seus seguidores hão de sofrer. E o Senhor a localiza num período de tempo indefinido, durante o qual os discípulos deverão executar suas responsabilidades na missão, sobreviver da melhor maneira que lhes for possível e evitar serem iludidos pelos falsos mestres (vv. 13, 15-16, 21-23). Quando a revolta judaica estourou e tomou-se evidente que o exército romano varreria toda a resistência judaica da parte principal da Palestina, muitos judeus fugiram para dentro de Jerusalém à procura de segurança, presumindo talvez que Deus não permitisse que a cidade santa fosse de novo saqueada pelos pagãos. Josefo, o antigo historiador judeu, conta-nos que durante o cerco de Jerusalém vários grupos rivais, chefiados por homens que se declaravam enviados por Deus para livrar o povo, lutaram entre si a fim de assumir o controle da cidade; parece que muitos acreditavam que Deus operaria maravilhas, de modo que as forças inferiorizadas dos judeus derro­ tariam os romanos. Aquela revolta chegara motivada por sentimentos religio­ sos profundos da parte dos judeus; à luz dos acontecimentos da guerra, as ordens de Jesus assumem significado mais claro aqui. Basicamente, são ordens para que os discípulos não se envolvam na guerra, reconhecendo que Deus não vai defender a cidade, mas ao contrário, permitirá que seja destruída. E Jesus adverte: essa destruição não é prelúdio para o imediato fim do mundo, e início de novos tempos. Quer os leitores de Marcos ainda aguardassem a queda de Jerusalém, quer a vissem em retrospecto, foram orientados a entender que essa desgraça representava o julgamento de Deus sobre o templo, e sobre a liderança religiosa do judaísmo, por causa de sua desobediência à Palavra de Deus — de modo especial por causa da rejeição de seu Filho Jesus. Esses leitores de Marcos deveriam entender que não seria mais o templo que deveria ser considerado o centro das atenções de Deus, mas antes, os seguidores de Jesus, os eleitos mencionados nos versículos 20 e 22. Deveriam entender, ainda, que a chegada do fim não estava relacionada ao templo judaico nem às cerimônias religiosas que representava, mas, em vez disso, o fim estaria ligado à realização bem sucedida da pregação evangelística mencionada em 13:10.

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Notas Adicionais #23 13:1 / que pedras, que edifícios!: Conquanto Herodes, o Grande, não fosse amado entre os judeus, o templo que ele planejara e iniciara constituía motivo de orgulho entre os judeus religiosos, naquela época que antecedeu sua destrui­ ção. As descrições dele que encontramos em Josefo, e em textos rabínicos, não nos levam a uma conclusão concorde; todavia, segundo todos os relatos era um templo magnificente em tamanho e em aparência. (Veja “Temple, Jerusalem”, IDB, vol. 4, pp. 550-60). Para mencionar apenas um pormenor: as pedras empregadas mediam mais de 8 metros de comprimento, por 3 de largura, por 4 de altura; os átrios eram rodeados de colunas imensas; havia decorações de cores brilhantes, feitas de pedras preciosas. 13:3 / monte das Oliveiras: fica a leste da área do templo, acima da cidade. Veja nota de 11:1. Pedro, Tiago, João e André: mais uma vez notamos o círculo íntimo mencionado por Marcos noutra passagem, usualmente sem André (cp. 1:16-20; 5:37; 9:2; 10:35-37; 14:33). Verificamos também aqui o padrão de estilo de Marcos de apresentar um pronunciamento de Jesus seguido de um pedido dos discípulos de explicação (cp. 4:10; 7:17; 9:28). 13:4 / que sinal haverá quando todas elas estiverem para cumprir-se: esta pergunta pressupõe a idéia de que Deus mostrará algum acontecimento como sinal prenunciador do fim do mundo. 13:5 / cuidai para que ninguém vos engane: o verbo empregado aqui para “enganar” também aparece no v. 6, e no 22, numa forma mais intensa, no grego, denotando que o interesse a respeito de não se deixar enganar é a maior ênfase dessa passagem. 13:6 / em meu nome: pode descrever alguém que é seguidor de Jesus (cp. construção idêntica, ou semelhante, em 9:37-41; 13:13); todavia, das pessoas a quem o presente versículo se refere, afirma o Senhor que declararão: sou eu, isto é, “eu sou ele”, implicando talvez que afirmassem ser o Cristo. Também é possível que a afirmação de tais pessoas seja alusão ao nome sagrado de Deus (cp. comentário e notas sobre 6:50), e sumariza sua declaração de serem o próprio Deus! 13:7 / Tais coisas devem acontecer: a palavra devem é a mesma usada em 8:31, sendo que nestes textos em geral é entendida como contendo a idéia de que os acontecimentos em foco devem acontecer porque fazem parte do plano divino previsto para a época. Esta noção forma o cerne da perspectiva religiosa conhecida como “era apocalíptica”, partilhada de modo comum, amplo, entre os judeus do tempo de Jesus, e entre os cristãos posteriores (veja “Apocalypse, Genre”, e “Apocalypticism”, IDBSup, pp. 27-34). o fim: é referência ao fim do mundo, ao fim dos tempos. A pergunta dos discípulos talvez fosse motivada pela pressuposição de que a destruição do templo só poderia ocorrer no fim do mundo, e como parte da instalação da vida

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vindoura, em que se daria o estabelecimento consumado do reino de Deus, com cessação do mal. O ensino de Jesus nos vv. 5-23 tem o efeito de salientar que os acontecimentos calamitosos descritos aqui não indicam o fim do mundo, e a tribulação deve ser suportada com perseverança até que, segundo a época determinada por Deus, chegará o fim (cp. v. 13). 13:8 / o princípio de dores: parece que as tribulações deste mundo, antes do aparecimento da vida futura, comparadas às dores de um parto, seria imagem bastante familiar no pensamento judaico e cristão da antigüidade; cp., veja Romanos 8:18-23. 13:9 / Sereis entregues aos tribunais, e sereis açoitados nas sinagogas: o termo grego para tribunais aqui é synedria, e refere-se aos concílios judaicos de cidades onde se poderia mover ações disciplinares contra judeus. Açoitados nas sinagogas é referência à punição com açoites que se podia administrar a judeus julgados e condenados por falta grave, ou sérios delitos de conduta. A punição pelo açoite consistia de trinta e nove chibatadas nas costas, com base em Deuteronômio 25:1-3 (que menciona quarenta chibatadas; trinta e nove era o número praticado, para evitar que se excedesse o número prescrito); o apóstolo Paulo menciona haver recebido tal punição cinco vezes (2 Coríntios 11:24). Tais punições só poderiam ser administradas a judeus que estivessem dispostos a submeter-se ao castigo, a fim de continuar mantendo comunhão com a comu­ nidade judaica. para lhes servir de testemunho: literalmente: “para testemunho a [ou contra] eles” ; cp. 6:11, em que as palavras “em testemunho contra eles” é tradução da mesma frase grega. 13:10 / primeiro: o sentido aqui é que o Evangelho deve ser pregado a todas as nações “primeiro”, antes de sobrevir o fim. A todas as nações ou “a todos os gentios”, reflete a perspectiva judaica a respeito do mundo, que consiste de judeus e de nações, ou gentios. 13:11 / o que vos for dado naquela hora, isso falai: o sentido desta frase é explicado no período seguinte, acerca do Espírito Santo inspirando os discípu­ los, dando-lhes capacidade para falar. E óbvio que isso significa que numa situação de sofrimento os discípulos não devem estar preocupados primordial­ mente com sua própria defesa, mas com a proclamação da fé. Esta é, em Marcos, a única referência ao Espírito Santo dado aos discípulos (cp. João 14-15; 20:19-23; Lucas 24:49; Atos 1:8). 13:12 / entregará à morte: parece que as cortes judaicas não detinham o poder, em geral, para executar sentenças de morte, mas podiam encaminhar um condenado perante os poderes civis romanos, para que se lhe aplicassem a pena de morte. Há o exemplo de Estêvão, em Atos 7:54-60, embora aqui pareça ter havido a ação do populacho, e ausência da aprovação romana. Atos 12:1-2 menciona a morte de Tiago, filho de Zebedeu, às mãos de Herodes Agripa (governador da Judéia, 41-44 d.C., que era títere dos romanos).

(Marcos 13:1-23)

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13:14 / a abominação que causa e assolação, situada no lugar onde não deve estar: no grego, o termo abominação é neutro, não sendo claro se Marcos tinha em mente uma pessoa ou um evento. A expressão abominação que causa a assolação (de Daniel 9:27; 11:31; 12:11) era usada para representar a atitude judaica para com a idéia da destruição ou profanação do templo, atitude sem dúvida compartilhada pelos doze, mas com a qual os leitores não estariam tão familiarizados; daí a nota para que o leitor entenda o termo de modo adequado (cp. Apocalipse 13:18, quanto a uma nota como que marginal, referente a um termo codificado). O texto paralelo de Mateus 24:15 traz “está no lugar santo” em lugar de “situada no lugar onde não deve estar”, e o de Lucas 21:20 deixa de lado de vez o termo codificado e refere-se de modo aberto e menciona “quando virdes Jerusalém cercada de exércitos”, descrevendo o cerco como “é chegada a sua desolação”, profetizada pelo AT. (Quanto a uma discussão profunda da resistência judaica ao governo romano, no primeiro século, veja David M Rhoads, Israel in Revolution 6-74 C.E. [Filadélfia: Fortress, 1976], e R. A. Horsley, Jesus and the Spirit o f Violence [San Francisco: Harper & Row, 1987], os que estiverem na Judéia fujam para os montes: há uma tradição primitiva, relatada pelo antigo autor Eusébio (Ecclesiastical History, iii, 5.3; cerca de 300 d.C.) segundo a qual os cristãos que moravam em Jerusalém fugiram desta cidade para um lugarejo chamado Pella, a leste do rio Jordão, e que esta ação foi executada em resposta a um oráculo de Deus que lhes fora concedido antes da guerra. Todavia, a acuidade total dessa tradição está sob disputa, sendo bastante difícil, em todo caso, relacioná-la com 13:14. (Quanto a uma discussão da igreja de Jerusalém no primeiro século, veja F. F. Bruce, New Testament History [Nova York: Doubleday, 1971 ], caps. 16 e 28). 13:19 / naqueles dias haverá uma aflição tal: à luz de acontecimentos atuais, tais como a segunda guerra mundial, o genocídio de judeus e a perspec­ tiva da guerra nuclear, a descrição da queda de Jerusalém parece um tanto exagerada, mas devemos lembrar-nos de que estas palavras foram escritas para pessoas que aguardavam esta tribulação, pela qual sabiam que passariam (ou que recentemente a haviam sofrido); para tais pessoas teria sido a pior coisa que poderiam experimentar e imaginar. Na verdade, foi uma guerra de custo eleva­ díssimo. Diz Josefo que tantos judeus foram crucificados que as colinas ficaram despidas de suas árvores, para que se fizessem as cruzes necessárias! 13:20 / mas por causa dos eleitos... abreviou aqueles dias: os eleitos no AT são Israel (veja 1 Crônicas 16:13; Salmo 105:43; Isaías 65:9, 15), mas no NT são a igreja (veja 1 Pedro 1:1; 2 Timóteo 2:10; Romanos 8:33; Colossenses 3:12; etc.). Quanto à idéia de Deus escolher pessoas, veja “Elect”, NIDNTT, vol. 1, pp. 536-43. “Abreviou” aqueles dias significa limitou sua duração, de tal modo que a destruição não seja tão grande a ponto de eliminar o povo de Deus e, assim, destruir a missão que ele deve cumprir. A idéia que está por detrás

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dessa declaração de Jesus é que Deus, como causa última, controla a história, e não permitirá que o mal ultrapasse os limites que ele determinou. 13:22 / farão sinais e prodígios: a idéia de que profetas falsos tanto quanto verdadeiros podem operar milagres aparece em Deuteronômio 13:1-5, sendo esta passagem, talvez, uma alusão à do AT. (Cp. 1 João 4:1 -3; 2 Tessalonicenses 2:1-12; Apocalipse 13:11-18).

24. A Volta do Filho do Homem (Marcos 13:24-37)

13:24-27 / Havendo descrito as tribulações vindouras que seus discípulos deverão vencer, inclusive a destruição de Jerusalém, Jesus trata agora da volta do Filho do homem, em glória, e em que se resume a consumação do reino de Deus. Os eventos precedentes (vv. 5-23) são o resultado do mal no mundo, que envolve sofrimento para o povo de Deus; agora, todavia, chegamos a um acontecimento que é a manifestação direta de Deus, que significará vindicação e salvação. O Filho do homem aqui deve ser entendido como Jesus, aparecendo abertamente na glória divina; a descrição dele é semelhante à de 8:38. Como já mencionamos, o uso do título Filho do homem indica que aquela Pessoa que agora parece mero ser humano, um dia será exaltada a uma posição de glória para a qual não existe paralelo, agindo nas funções de Deus. Em Daniel 7:13-14, um a personagem descrita “como o filho do hom em ” é trazida perante o trono de Deus e recebe grande poder e domínio; é a esta passagem que M arcos 13:26 se refere. Todavia, em Marcos a vitória do filho do homem é, talvez, maior ainda do que a descrita em Daniel 7. Ele é descrito como vindo nas nuvens, com grande poder e glória, de forma muito parecida como o próprio Deus é descrito no AT (veja Salmo 104:3; Isaías 19:1; Êxodo 16:10; 19:9; 34:5). Ele envia seus anjos (v. 27) e reúne o povo escolhido, age com o o Deus do AT (veja Deuteronômio 30:3; Salmo 50:3-5; Isaías 45:6; 66:18-21; Jeremias 32:37; Ezequiel 34:11-16; 36:24; Zacarias 2:6,10). Nas profecias do AT sobre as manifestações da glória de Deus, nos últimos dias, seu povo espalhado pelas nações é reunido em Jerusalém e para o próprio Deus; aqui, todavia, esse povo é reunido ao redor do Filho do homem, que dá ordens aos anjos de Deus como se lhe pertencessem. Nesta profecia temos uma afirmação sobre o lugar central que Jesus, o Filho do homem, tem nas expectativas dos cristãos, reflexo das funções divinas que ele deve exercer, segundo se crê. Os vv. 24-27 derivam de vocabulário utilizado em várias passagens do AT. É preciso que se reconheça a natureza tradicionalista da linguagem, visto que a descrição dos eventos não objetiva ser indicação literal e específica de sua aparência. Antes, tais alusões ao AT (que se presumia serem entendidas pelos leitores) indicam o sentido desses acontecim en-

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(Marcos 13:24-37)

tos. As perturbações cósm icas descritas nos vv. 24-25 são parecidas com algum as descrições do AT de m anifestações do julgam ento de Deus sobre a história de Israel (cp. Joel 2:10; 3:15; Isaías 13:10; 34:4; Ezequiel 32:7-8; Am ós 8:9). Essa linguagem originou-se em tem pos antigos dos israelitas, quando se julgava que o sol, a lua e as estrelas representavam deidades que controlavam as questões deste mundo. Israel cria que quando Deus agia, estes corpos celestes se perturbavam . Os poderes que, segundo criam outras nações, controlavam a história, ficariam despres­ tigiados, im potentes, sob o poder de Deus. É claro que, nos dias de M arcos, a crença no poder dos corpos celestes ainda era bastante forte (e ainda parece ter grande força, dada a popularidade das colunas de astrologia dos jornais m odernos), assim o significado das declarações não se perderia entre os leitores. A fraca conexão cronológica entre o aparecim ento do Filho do homem e os acontecim entos anteriores dos vv. 5-23 é algo digno de nota. M arcos nos diz sim plesm ente que naqueles dias, depois daquela aflição (v. 24), virá a vitória final, sem indicações sobre quanto tem po depois. Isto significa que os acontecim entos de 5:23, que os próprios seguidores de Jesus experim entaram , são descritos com o fazendo parte do plano de Deus, são degraus do drama, que conduzem à m anifestação final do governo de Deus; todavia, não são precursores im ediatos do fim. Os discípulos haveriam de contem plar, através dos dias sombrios que os aguardavam , a gloriosa e brilhante vinda do Filho do hom em , em triunfo, ao lado de outros seguidores, conquanto não lhes seja dito quando, em que tem po. Portanto, os leitores de M arcos são lem brados da esperança, plena de segurança, descrita nos vv. 24-27; eles também devem trabalhar e esperar confiantes, sem conhecer épocas e períodos cronológicos. 13:28-31 / N a encosta leste do m onte das Oliveiras de antigam ente, as figueiras eram um a característica proem inente, bem conhecida (cp. 11:12-14), de modo que a referência às características desta árvore, no contexto do serm ão que o Senhor pregou nesse m onte (13:3), é bastante natural. Ali, as folhas das figueiras com eçam a despontar bem tarde, no final da prim avera, indicando ao observador que o verão está muito próxim o. A figueira brotando constitui uma parábola (term o literal no grego), sim bolizando o m odo com o os eventos dos vv. 5-23 (estas coisas, v. 29) devem ser entendidos pelos seguidores de Jesus. Em bora tais eventos sejam aflições, os discípulos deverão reagir com fé, tomando-os

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como sinais indicativos não de que Deus perdeu o controle da história, mas de que o Senhor a conduzirá ao objetivo que ele mesmo predeterminou. É importante que anotemos com máximo cuidado a redação dos versícu­ los 29-30, pois, de outro modo a pessoa pode interpretar mal as palavras de Jesus. A expressão estas coisas do v. 29 refere-se com clareza a “essas coisas” do v. 4 e do v. 8, como também a “tudo” (no grego, “todas as coisas”) do v. 23, a saber, as aflições que seus discípulos deverão aguardar, inclusive a destruição de Jerusalém. É lógico que se os vv. 24-27 descrevem o fim, tais versículos não podem referir-se a estas coisas, que nos asseguram que o fim vai chegar! Assim, estas coisas do v. 30 devem referir-se também, não ao fim mesmo, mas às aflições descritas nos vv. 5-23. Estas coisas acontecerão no decorrer da vida dos doze (v. 30); todavia, isso não significa que o fim ocorrerá dentro de um período de tempo tão curto. Tam bém somos afiançados, no v. 29, de que os acontecimentos dos vv. 5-23 são sinais de que o tempo está perto, às portas. Diz o texto grego, literalmente: “ele está perto, às portas”, referindo-se talvez à consumação descrita nos vv. 24-27. Noutras palavras, as aflições descritas nos vv. 5-23 devem ser entendidas como provas de que de fato a consumação se aproxima. Todavia, isso não significa que as aflições devem ser tomadas como indícios de que o fim acontecerá de imediato, visto que o ponto central dos vv. 5-23 é a frustração de qualquer tentativa de calcular a data do fim, com base em tais acontecimentos (veja comentários sobre esses versículos). M ais ainda, os vv. 32-37 negam de modo categórico que alguém, exceto Deus, possa saber quando virá o fim, e exortam-nos, como discípulos que somos, a que estejamos preparados sempre. Assim, as palavras do v. 29: “está perto, às portas”, devem ser entendidas como significando que o fim é certo — tão certo como o verão vem depois da primavera; não significam que o tempo do fim pode ser calculado cronologicamente, com base nos eventos mencionados. O v. 31 apóia a idéia de que a ênfase está na certeza; ele assemelha a certeza das palavras de Jesus à certeza da palavra de Deus (cp. Salmo 102:25-27; Isaías 40:6-8; 51:6). 13:32-37 / Finalmente, nestes versículos, Jesus chega à questão concer­ nente ao tempo em que virá o fim; todavia, a resposta do Senhor talvez decepcionasse quem desejasse calcular a época do fim, coisa tão ao gosto de peritos em profecia da antigüidade e de nossos dias. Nos versículos precedentes (28-31), Jesus assegurou a seus discípulos, com termos m uito fortes, que a profecia acerca da queda de Jerusalém (que acionou

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(Marcos 13:24-37)

toda essa discussão), e as aflições acompanhantes mencionadas nos vv. 5-13, seriam cumpridas dentro de uma geração (v. 30). Entretanto, ao falar aqui sobre o fim, Jesus se recusou a marcar um tempo (v. 32); antes, enfatizou a vigilância constante. A razão principal para não indicar a data do fim é que Jesus não a sabia (v. 32), visto ser segredo do conhecimento exclusivo do Pai. Aquele dia (v. 32) ficou indefinido; todavia, eis uma expressão com que os leitores estão familiarizados, pois tê-lo-iam reconhecido em muitos contextos proféticos do AT, onde é empregado como termo técnico para a futura manifestação de Deus (veja Amós 8:3, 9, 13; 9:11; Miquéias 4:6; 5:10; 7:12; Sofonias 1:9-10; 3:11, 16; Joel 3:18; Zacarias 9:16). Nestas passagens do AT o que se tem em mira é o chamado dia do Senhor, um tempo futuro em que Deus obrará maravilhas a fim de livrar seu povo e implantar a justiça na terra (veja Amós 5:18-20; Isaías 2:12-19; Sofonias 1:7, 14-16; 2:2-3; 3:8-11). Assim é que o dia da vitória de Deus é retratado à feição do Apocalipse: uma época determinada por Deus, que pertence aos mistérios de Deus. Quando os discípulos são advertidos, vigiai (vv. 35-37), o que Jesus tem em vista é que eles devem estar sempre alertas, executando seu trabalho, e não que fiquem aguardando sinais simbólicos indicativos da chegada do fim. As palavras traduzidas por vigiai (veja notas), e o exemplo dos servos a quem foi confiado um trabalho para executar, enquanto o senhor está ausente (vv. 34-36), mostram que este é o sentido da advertência. A atitude contrastante expressa-se no gerúndio dormindo (v. 36), o que representa o fracasso, o não cumprimento das obrigações pessoais, a falha em não encarar com seriedade a advertência sobre a volta do senhor. Não se espera dos servos que fiquem fiscalizando o horizonte, à espreita do senhor, para correr, em seguida, em pânico, ao vê-lo que chega; ao contrário, os servos deverão executar seus deveres normalmente. Assim, as palavras de Jesus nos vv. 32-37 significam que seus seguidores deverão dar prosseguim ento à missão que receberam, pregando o Evangelho e vivendo o Evangelho, sempre prontos para o retorno do Senhor a qualquer tempo, de m odo que o Senhor os encontre “na obra” . A palavra final do versículo 37 estende a exortação para além dos doze (o que vos digo) para incluir os leitores de Marcos (digo a todos), demonstrando mais uma vez que as palavras de Jesus foram transmitidas pelos evangelistas com a intenção de serem aplicadas a seus próprios leitores. Quer a queda de Jerusalém houvesse ocorrido, quer não, à época em que Marcos escreveu seu

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Evangelho, seus leitores deveriam aprender m ediante as predições de Jesus, que as aflições e perseguições que porventura viessem a enfrentar form avam parte do dram a cujo desenrolar cam inhava para o final dos tem pos; os discípulos deveriam receber inspiração daí, e da exortação de Jesus sobre perm anecer alerta na execução da obra, de m odo que conti­ nuassem avançando destem idos na necessária proclam ação a todas as nações (13:10). O longo sermão (capítulo 13) sobre coisas futuras encerra-se com esta exortação final. Já se anunciou o destino triste de Jerusalém , e já se advertiu discípulos (e leitores) sobre o que os aguarda, após o Senhor ter sido tomado. Feito isso, M arcos volta ao relato dos eventos que conduzi­ ram à morte e ressurreição de Jesus (capítulos 14-16). Em 12:1-12, fomos inform ados do que as autoridades religiosas fariam a Jesus, o “Filho”, e a narrativa dos capítulos 14-16 dá-nos os acontecim entos reais. C hega ao final a seção relacionada ao tem plo de Jerusalém (11:1-13:37). O tem plo fora profanado (11:15-19) e exposta a bancarrota do sistem a religioso judaico (11:27-12:44). No capítulo 13 é predita a destruição do tem plo (13:1-2, 14-23). T al evento encaixa-se no contexto de nova atividade religiosa, a saber, a pregação do Evangelho (13:9-13, 32-37), que subs­ titui o ritual do tem plo com o ponto central da atividade de Deus. Nos capítulos seguintes, M arcos nos proporciona os eventos que constituem a base final da pregação evangélica: a morte e a ressurreição de Jesus.

Notas Adicionais #24 13:24 / Mas, naqueles dias, depois daquela aflição: A palavra mas em grego tem conotação de forte contraste, sugerindo que estamos mudando de um tipo de evento (eventos históricos, como a queda de Jerusalém), para outro tipo (o fim da história). “Naqueles dias” é frase estereotipada tomada de empréstimo de várias passagens proféticas (veja Jeremias 3:16, 18; 31:29; 33:15-16; Joel 3:1; Zacarias 8:23), sendo usada com referência a eventos ligados ao plano de Deus, sem, contudo, conexão cronológica específica. (Veja Lane, p. 474). Aflição talvez se refira ao período todo da missão e da tribulação descrita nos w . 5-23. 13:24-25 / O sol... a lua... as estrelas... os corpos celestes: a última frase do v. 25 deve ser traduzida assim: “os poderes no céu serão abalados”, referindo-se aos corpos celestiais de modo coletivo, como “poderes” (ou “deuses”), como eram considerados por muitos povos no mundo antigo. Essas declarações a respeito do mundo celestial formam como que uma quadra de quatro versos, lembrando uma estrofe hebraica poética em que a última linha (os corpos celestes...) resumem as três primeiras (o sol... a lua... as estrelas). (Quanto à natureza da

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poesia hebraica, veja “Poetry, Hebrew”, IDB, vol. 3, pp. 829-38). 13:26 / e glória: no AT, glória é atributo de Deus; a descrição do Filho do homem com esta palavra reveste-o de divindade. Cp. 8:38; “Glory”, IDB, vol. 2, pp. 401-3; NIDNTT, vol. 2, pp. 44-48. 13:27 / dos quatro ventos, da extremidade da terra: o termo dos quatro ventos é empregado no AT para referir-se à dimensão mundial (veja Ezequiel 37:9; Daniel 7:2; 8:8; 11:4), e em Zacarias 2:6 para descrever a dispersão de Israel por todo o mundo. Da extremidade da terra (literalmente a expressão grega significa: da extremidade da terra até à extremidade do céu) é provável alusão a Deuteronômio 30:4, que promete que Deus reunirá Israel de novo, depois da dispersão em julgamento. Nessa passagem a reunião de Israel passa por revisão, a fim de significar o ajuntamento dos povos na igreja. 13:28 / a parábola: é a última parábola mencionada em Marcos (cp. 4:1 -34; 12 : 1- 12 ). 13:30 / Na verdade vos digo: esta frase grega tem conotação de declaração solene de segurança, como se fosse juramento (veja nota sobre 3:28). não passará esta geração sem que todas estas coisas aconteçam: o termo geração é empregado noutras passagens de Marcos para referir-se aos que não aceitaram a Jesus, e ao período de tempo em que os discípulos devem manter-se fiéis a ele (cp. 8:12, 38; 9:19), mas talvez seja empregada aqui com outro significado: os eventos dos vv. 5-23 (estas coisas) acontecerão durante o tempo de vida dos contemporâneos de Jesus (cp. 9:1). 13:32 / daquele dia e hora: quanto ao contexto do termo “dia do Senhor”, veja IDB, vol. 1, pp. 784-85. No NT é termo que com freqüência se refere a Cristo (veja 1 Coríntios 1:8; 5:5; 1 Tessalonicenses 5:2-3; 2 Tessalonicenses 2 :l-2 ;2 P e d ro 3 :1 0 ;2 C o rín tio s 1:14; Filipenses 1:6,10,2:16); além disso, veja “Day of Christ”, IDB, vol. 1, p. 783). nem o Filho: esta frase evidentem ente causou alguns problem as teológi­ cos para alguns copistas, visto que essas palavras são omitidas em alguns m anuscritos. O mesmo se diga a respeito do texto paralelo de M ateus 24:36, onde as mesm as palavras se encontram . Tais palavras indicam que, não importando o fato de M arcos ver Jesus como a Pessoa que exerceu prerro­ gativas divinas, esse evangelista (como todos os demais autores do NT) não fez confusão entre Jesus e Deus, o Pai. 13:33 / Estai de sobreaviso! Vigiai!: Aqui e nos versículos seguintes encontramos três palavras gregas usadas para indicar vigilância, relacionada com guardas, ou servos cujos deveres devem ser executados até mesmo de noite. 13:35 / à tarde... à meia-noite... ao cantar do galo... pela manhã: estes term os representam as quatro vigílias m ilitares da noite, de acordo com a m arcação rom ana do tempo. Pelo sistema judaico, havia três vigílias noturnas, de m odo que M arcos talvez tenha adaptado as expressões, usando palavras fam iliares a seus leitores.

25. Devoção e Traição (Marcos 14:1-11)

14:1-2 / Estes versículos servem de intróito aos eventos da prisão, julgam ento e execução de Jesus, fazendo lem brar indícios anteriores de intenções hostis contra Jesus (cp. 3:6; 12:12). Em bora os fariseus sejam antes m encionados fazendo críticas e oposição a Jesus (veja 2:16-3:6; 7:1-5; 8:11; 10:1-2; 12:13), não estão ligados nom inalm ente na prisão e m orte de Jesus, em M arcos (cp. M ateus 27:62; João 18:3). Em vez de fariseus, os escribas e sacerdotes é que aqui são m encionados. O texto de 14:1-15:47 é cham ado de relato da paixão, pelos eruditos (“paixão” vem de um term o grego que significa “sofrim ento”). O Evangelho de M arcos tem sido cham ado de relato da paixão com um a longa introdução; em bora isto seja exagero, é correto assinalar a porção crucial que esta parte do Evangelho ocupa no plano total, e na ênfase do livro. As três predições da execução (8:31; 9:30-32; 10:32-34) na parte central de M arcos, dem onstram que esse evento foi predestinado por Deus com o essencial para o térm ino da m issão de Jesus. Noutras passagens do NT, os eventos da m orte e ressurreição de Jesus são descritos com o esboço fundam ental da m ensagem do Evangelho cristão (1 C oríntios 15:1-6); e o relato porm enorizado da prisão, do julgam ento e da m orte do Senhor, em todos os evangelhos, confirm a que este material textual é parte muito im portante da tradição sagrada sobre Jesus. A razão para que se m encione que as autoridades de início não intencionavam m ovim entar-se em hostilidade durante os festejos (v. 2), mas acabaram prendendo Jesus nesses dias, seria talvez para m ostrar que o esquem a cronológico estava nas m ãos de Deus, e não, realm ente, nas m ãos dos inim igos de Cristo. Isto se enquadra na perspectiva bíblica da execução de Jesus, considerada obra maligna, pela qual os agentes hum anos são totalm ente responsáveis; entretanto, tudo foi previsto por Deus, e todas as ações aconteceram a fim de cum prir-se um propósito superior, divino. 14:3-9 / E sta narrativa da devoção de um a m ulher para com Jesus não é m encionada no relato de Lucas sobre a paixão, que nos fala do acordo feito por Judas para trair a Jesus, im ediatam ente após o relato da

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conspiração da parte das autoridades (cp. Lucas 22:1-6). Esta “ interrup­ ção” na tram a das autoridades com Judas, m ediante a história narrada por M arcos e M ateus (26:6-13) parece objetivar que se apresentasse um contraste trem endo entre a generosidade am orosa dessa m ulher e a perversa traição de Judas. N a verdade, essa m ulher constitui contraste com os doze, aos quais se refira, talvez, a expressão os presentes no v. 4, alguns dos quais criticaram a m ulher pela sua extravagância. E la foi elogiada por Jesus por ter executado aquele ato preparatório que anteci­ pou sua m orte vindoura (v. 8), enquanto os doze foram descritos várias vezes com o sendo incapazes de entender esse acontecim ento, em bora Jesus o houvesse m encionado profeticam ente (cp. 8:31-33; 9:32; 10:35­ 38). O solene voto de Jesus (veja notas) no v. 9, prom etendo que ela seria lem brada onde quer que o Evangelho fosse pregado, cum pre-se m ediante a inclusão da história na narrativa dos evangelistas. Essa m ulher repre­ senta outro exem plo de dedicação total a Jesus, a qual é exigida de todos os discípulos (cp. veja 8:34-38; 10:29-31). É extraordinário que a obra dela, e não seu nome, é que haveria de ser lembrado. Todavia, o anonim ato dela focaliza a nossa atenção de modo m ais agudo na devoção e na generosidade fie l dessa m ulher (mas, veja notas). O perfum e que essa m ulher derram ou é descrito com o feito de nardo, um óleo arom ático extraído de um a raiz encontrada na índia. Estava num frasco selado de alabastro, a fim de ser preservado, sendo necessário quebrar o frasco para que o perfum e pudesse ser utilizado. A m enção do valor da essência (mais de trezentos denários, tradução literal do grego) dá a entender que essa preciosidade poderia ser herança de fam ília, algo que poderia ser vendido em época de aperto financeiro. Se assim foi, o ato dessa m ulher equivaleria a desprendim ento total em relação às econom ias que ela fizera. Era costum e ungir-se a cabeça de um hóspede honroso, durante um a refeição, mas o ato dessa m ulher foi além da cortesia norm al, não sendo de adm irar que causasse a reação de surpresa m encionada no v. 4. D evem os entender que é Jesus quem interpreta o ato dessa m ulher com o antecipação de sua morte, que se aproxim a; não há m uita razão para que se pense que a m ulher teria tido a intenção de oferecer um a dádiva que se transform asse em unção do corpo de Jesus para seu sepultam ento próximo. Aquele ato para ela representava apenas seu grande am or e devoção; entretanto, Jesus, consciente da violência que

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enfrentaria logo mais, m ediante antecipação profética interpreta a oferta dessa m ulher no contexto dos fatos que em breve acontecerão. N ão foi a presciência dela, a respeito da morte im inente de Jesus, mas sua total atenção ao Senhor, que se tornou a base do elogio que o Senhor lhe dirigiu. Enquanto os doze estavam preocupados com seus deveres concernentes à festa, um dos quais seria a esm ola destinada aos pobres (v. 5), dem onstrando preocupação com suas próprias recom pensas (veja 9:28; 10:35-45), a m ulher só se preocupa com ho n rara Jesus. Os leitores devem im itar essa atenção e fidelidade totais ao Senhor. 14:10-11 / Este relato do acordo que Judas fez com as autoridades para que traísse a Jesus é notavelm ente restrito, se com parado com os textos paralelos que narram alguns porm enores com o o preço da traição (M a­ teus 26:15), a influência satânica (Lucas 22:3; João 13:2, 27) e inform a­ ções que Judas podia dar (Lucas 22:6) sobre os m ovim entos de Jesus. Parece que o único propósito de M arcos teria sido colocar seu relato da traição ao lado do relato precedente da devoção integral da m ulher anônim a (vv. 3-9). A o fazê-lo, M arcos nos fornece o indício m ais notável possível de com o se havia alargado o abism o entre Jesus e o grupo dos doze. A nteriorm ente, tivem os casos com provantes da insensibilidade dos doze face ao ensino de Jesus (veja 4:10-13; 6:36-37,51-52; 8:14-21, 31-33; 9:32-37; 10:13-16); todavia, com o plano de Judas para trair a Jesus, vemos o com eço do colapso total deles, descrito em 14:50, 66-72. M uitos têm especulado acerca das razões da traição de Judas contra Jesus; todavia, nenhum dos evangelhos acrescenta algo mais, além de afirm ar ter sido um ato iníquo, praticado por um Judas influenciado por Satanás. E possível que Judas se tenha desiludido com Jesus, tendo-se desviado por causa das acusações contra o Senhor, concordando de que seria violador da lei e blasfemo. Os evangelistas não se interessaram pelas razões da ação praticada por Judas. N arram a traição de Judas principalm ente com o objetivo de dar aos leitores um exem plo e uma advertência: deverão distinguir-se por devoção e lealdade integrais a Jesus.

Notas Adicionais #25 14:1 / a páscoa e a festa dos pães asmos: de acordo com o AT, a páscoa (que comemora o livramento de Israel, sob a liderança de Moisés, da escravidão no Egito) devia ser observada no décimo quarto dia do mês de nisã (na

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primavera), e a festa dos pães asmos deveria iniciar-se no dia seguinte, durando sete dias. Desde tempos antigos as duas festividades vinham interligadas, e seus nomes podiam referir-se a essa combinação de períodos de tempo. A descrição e regulamentação do AT a respeito dessas duas festas encontra-se em Êxodo 12:1-20; Deuteronômio 16:1-8 (veja também “Passover and Feast of Unleave­ ned Bread” , IDB, vol. 3, pp. 663-68). A páscoa e pães asmos eram uma festa, dentre três festas de peregrinos, de que todo adulto judeu do sexo masculino deveria participar, ficando em Jerusalém; entretanto, depois da destruição do templo, em 70 d.C., os rabis relaxaram a observância desta regra. os principais sacerdotes e os escribas: o Evangelho de João descreve uma reunião das autoridades, antes da festa, a fim de discutir a forma de prender Jesus (11:47-53, e cp. também Mateus 26:1-5). O desejo desses homens de prender Jesus em segredo era motivado pelo medo de um levante, o que indica que Jesus era amado entre os peregrinos da cidade, muitos dos quais sem dúvida teriam vindo da Galiléia, onde Jesus havia ministrado durante algum tempo. Esse desejo deles se satisfez com a ajuda de Judas Iscariotes, um dos doze, que lhes revelou onde Jesus poderia ser encontrado à noite, e praticamente a sós (cp. vv. 10-11,43-50). 14:3 / em casa de Simão, o leproso: nada mais sabemos a respeito desse homem. João 12:1-8 descreve um evento festivo muito parecido, mas fica a impressão de que a ceia se dera na casa de Lázaro, Maria e Marta; a mulher que unge Jesus, nesse relato, é Maria. João (12:5) menciona o nardo como valendo trezentos denários (“o salário de um ano de trabalho”, NIV); há a discussão a respeito dos pobres (12:6-8), com ênfase em que a reclamação havia partido de Judas Iscariotes. Em Lucas 7:36-50, há um relato semelhante, a respeito de uma mulher pecadora que penetra na casa de um fariseu chamado Simão e, depois de lavar os pés de Jesus, com suas lágrimas, unge-o com ungiiento envasado em alabastro. É bem possível que no decurso das narrativas, duas histórias diferen­ tes tenham sido mutuamente influenciadas, de modo que minúcias de uma acabaram inseridas na outra.

veio uma mulher trazendo um vaso de alabastro com perfume de nardo puro: como regra geral, as mulheres não entravam num local onde homens estivessem tomando uma refeição formal, exceto para servi-los. A entrada dessa mulher teria ocasionado o franzir de muitos sobrolhos, por desrespeito aos costumes sociais. Quanto ao ungiiento que ela usou, veja “Nard”, IDB, vol. 3, p. 510. Quanto a exemplos da unção da cabeça de hóspedes, numa refeição, veja Salmo 23:5; 141:5; Lucas 7:46. 14:4 / Alguns dos presentes: É provável que Marcos quisesse referir-se aos discípulos de Jesus. Cp. João 12:4-5; Mateus 26:8. 14:5 / por mais de trezentos denários: (tradução literal do grego). A moeda mencionada (denário) era o salário básico de um dia de trabalho de um operário comum (veja Mateus 20:2); é a moeda mencionada em 6:37.

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e ser dado aos pobres: segundo o costume judaico, era dever cuidar dos pobres de modo especial na época da páscoa (cp. João 13:27-29). Quanto às referências à tradição judaica, veja Lane, p. 493. 14:7 / Sempre tendes os pobres convosco: o contraste se faz entre a oportunidade perpétua de ajudar aos pobres e a situação imediata da morte de Jesus que se aproxima. Conquanto certas pessoas tenham tentado transformar a declaração de Jesus em justificação e peipetuação da pobreza e do sofrimento dos menos favorecidos, sem dúvida isso representa violenta torção do sentido de suas palavras. Na verdade, o v. 7 é alusão a Deuteronômio 15:11, que nos ordena máxima generosidade para com os pobres. 14:9 / Em verdade vos digo: mais uma vez temos aqui um pronunciamento em forma de juramento, peculiar a Jesus no NT. Veja nota sobre 3:28. 14:10/ Judas Iscariotes: quanto ao significado do nome Iscariotes, veja nota sobre 3:19. 14:11 / uma oportunidade para o entregar: as autoridades desejam infor­ mações sobre onde poderiam encontrar Jesus a sós, ou pelo menos longe das multidões de peregrinos entre as quais o Senhor tinha tanta popularidade, e que poderiam, portanto, impedir sua prisão. Judas podia contar aos sacerdotes onde haveriam de encontrar Jesus (talvez em segredo), na noite da páscoa com seus discípulos, e além disso podia identificá-lo muito bem. João 11:57 sugere que o sumo sacerdote poderia ter feito circular uma recompensa por informações que conduzissem à prisão de Jesus.

26. A Última Ceia (Marcos 14:12-26)

14:12-21 / Estes versículos nos relatam a entrada de Jesus em Jerusa­ lém a fim de celebrar a páscoa com seus discípulos, e a presciência do Senhor acerca da traição de Judas. O propósito geral da narrativa é dram atizar o fato de que aquele que trairia Jesus seria um dos discípulos, pessoa que com partilhava a com panhia do Senhor e com ia com ele à mesa. É provável que M arcos tenha visto nesse fato um a ligação com o Salm o 41:9-10 (citado de m odo específico em João 13:18). V isto que aos discípulos não havia sido dado nome, nem endereço, de modo que atendessem ao pedido de Jesus, mas foram enviados à procura de um hom em que se enquadrava num a descrição específica (vv. 12-16, veja nota), tem os aí um a sugestão de que tudo havia sido previam ente planejado em segredo. Era preciso m anter segredo porque Jesus sabia que as autoridades aguardavam a oportunidade de prendê-lo longe das grandes m ultidões. Nas noites anteriores, Jesus tinha pernoitado em Betânia, mas na noite da páscoa, exigia-se dos hom ens judeus que com essem a ceia na cidade de Jerusalém ; isto significava que Jesus precisaria ficar sob a jurisdição das autoridades sacerdotais até bem tarde, naquela noite (a páscoa em geral era com em orada por volta da m eia noite). A nota de intriga recebe m aior ênfase na advertência feita por Jesus de que seria traído por alguém de dentro de seu próprio círculo (vv. 18-20). O resultado é que Jesus é retratado com o estando m ais isolado ainda, alienado não só pelas autoridades judaicas, m as até por seus próprios seguidores. Assim é que o Senhor parece solitário de vez, em bora cercado por várias pessoas. A traição contra Jesus não é o único exem plo de fracasso proveniente dos doze; mais tarde (vv. 27-31), Jesus faria a predição de que todos o abandonariam . A ironia é dram ática e com pleta. Ali está Jesus ceando, ao lado de seus seguidores íntim os, tom ando m áxim o cuidado para evitar ser visto; no entanto, ele sabe que tudo é em vão, e que entre esses m esmos, com quem com partilha sua intim idade, há um traidor e desertores que fugirão à face da provação. N a passagem seguinte (vv. 22-26), as palavras de Jesus na consagra­ ção do pão e do cálice, fazem daquela ceia um sím bolo prefigurado da

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cerim ônia cristã da com unhão, ceia do Senhor ou eucaristia. Os leitores de M arcos deveriam ler e entender este relato do fracasso dos discípulos e verificar que a obediência de Jesus à ordem em anada do Pai, para que ele desse a vida em resgate de “m uitos” (10:45), seria posta em prática sem a ajuda e o encorajam ento de seres hum anos. Além disso, o fracasso de Judas e do resto dos doze deveria prom over nos leitores um a fidelidade solene, o com prom isso de que, após com erem de modo sem elhante à m esa do Senhor, não deveriam desapontá-lo nos m om entos de provação, com o o desapontaram aqueles doze. 14:22-26 / O relato de M arcos sobre a últim a ceia é um dos quatro do NT, sendo que cada um apresenta características específicas indicativas de que o registro desta ceia de Jesus com os doze foi form alizada pela contínua celebração da cerim ônia eucarística ou ceia do Senhor, na ireja prim itiva (veja M ateus 26:26-29; Lucas 22:15-20; 1 Coríntios 11:23-25). Os eruditos diferem entre si quanto a várias questões, na tentativa de reconstituir a form a original das palavras de Jesus na consagração do pão e do vinho e diferem , tam bém , em suas opiniões quanto a qual desses quatro relatos nos dá a versão m ais antiga desse evento. N ão poderíam os discutir aqui todas essas questões; em vez disso, nosso objetivo será entender o relato de M arcos, em bora façam os algum as referências a outros relatos nas notas. A ceia da páscoa era cheia de sim bolism os, envolvendo o uso de elem entos presentes sobre a m esa com o lições objetivas para o ensino do significado dessa ocasião; por isso, o uso que Jesus faz do pão e do vinho com o sím bolos enquadra-se na atm osfera da celebração pascal. A grande diferença, logicam ente, é que as palavras de Jesus não nos conduzem para trás no tempo, para o êxodo do Egito, com o se ensinava na páscoa, mas levam -nos para a frente, para a m orte do Senhor, apre­ sentada aqui com o o alicerce de nova aliança (v. 24). Tam bém isto é bastante apropriado, visto que a páscoa com em orava a prim eira aliança de D eus celebrada com Israel, baseada no livram ento que o Senhor trouxera à nação, libertando-a da escravidão no Egito, aliança ratificada no m onte Sinai. No decurso da história cristã, certas controvérsias concernentes à m aneira adequada de celebrar a eucaristia e à adequada interpretação da cerim ônia têm dilacerado a igreja, e continuam a dividir grandes grupos de cristãos (veja católicos rom anos e protestantes). Cada perspectiva da

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eucaristia reveste-se da certeza de basear-se em passagens do NT; a pessoa que em itir sua opinião sobre tais textos corre o risco de ofender este ou aquele grupo de cristãos. Contudo, todos os tipos de interpreta­ ções cristãs da eucaristia se beneficiam do exam e dessas passagens neotestam entárias, feitas de modo estrito, dentro do contexto histórico de cada interpretação, e sem levar em conta as práticas posteriores das várias denom inações cristãs. Conquanto seja mais fácil dizer e defender isso do que praticá-lo, esse é o objetivo do com entário que se segue. N a situação original de Jesus, ao lado dos doze, a referência do Senhor ao pão e ao cálice com o sendo meu corpo... meu sangue (vv. 22-24) teria sido reconhecida de im ediato com o simbólica. O em prego de sim bolism o já era característica da ceia pascal. Noutras palavras, não podia haver dúvida quanto a se o pão e o vinho seriam de fato o corpo e o sangue de Jesus, porque Jesus estava ali, bem vivo diante deles. Assim, se considerarm os a últim a ceia com o tendo acontecido de fato, não sendo pura ficção (com o alguns sugerem), a interpretação de seu significado deve levar em conta com seriedade, a situação original. É certo que M arcos e seus leitores acreditavam que a últim a ceia acontecera de fato, assim nós buscam os aqui a m aneira com o eles a interpretaram. D evem os iniciar lem brando-nos da natureza séria no m undo antigo, de tom ar-se um a refeição com outras pessoas, coisa que já discutimos antes, em conexão com o fato de Jesus com er com pecadores (veja com entários sobre 2:13-17). C om partilhar uma refeição significava es­ tabelecer ou perpetuar um relacionam ento, tornar-se um com os demais com ensais à mesa. Assim é que quase qualquer refeição possuía uma espécie de significado sagrado, sendo fácil verificar por que as refeições constituíam um a parte com um dos rituais de muitos grupos religiosos do mundo antigo. Jesus liderou aquela ceia, identificou-se com o pão e o vinho, com o representando sua própria pessoa e obra, e isso fez da ceia, de modo especial, um a com unhão mais íntim a com o Senhor, a partici­ pação de sua pessoa. O com partilham ento do pão partido, com as palavras isto é o m eu corpo (v. 22), significava “isto é a m inha pessoa” , e participar desse pão queria dizer unir-se a Jesus e ao seu destino. Devem os entender que os discípulos ainda não haviam percebido o que aquelas palavras de Jesus prefiguravam, concernente ao destino que o aguardava, m as os leitores podem com preender as coisas melhor. Ao celebrar continuadam ente esta ceia, deveriam reconhecer que sua parti­

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cipação do pão deve denotar com partilham ento mútuo, e íntim a com u­ nhão com Jesus. Isto envolve participar não apenas do ritual da eucaristia, mas de toda a vida e m issão de Jesus. Partilhar do pão não é dram atização em que se consom e Jesus de algum a form a mística, m as é sím bolo da m ais íntim a das uniões com o Senhor e com os irmãos m utuam ente (cp. 1 Coríntios 10:16-17). A referência ao cálice de vinho rubro com o m eu sangue... que é derram ado por m uitos (v. 24) não significa que o vinho de algum a form a torna-se m isticam ente o sangue de Jesus, porque a m enção de sangue derram ado é a m aneira sem ítica de descrever uma m orte violenta (cp. G ênesis 4:10-11; 9:6; D euteronôm io 19:10; 2 Reis 21:16; Salm o 106:38; Jerem ias 7:6; M ateus 23:35). Assim é que o cálice representa a m orte de Jesus, que as Escrituras afirm am ter ocorrido em prol de m uitos, pois é o sangue (ou m orte) sacrificial que estabelece nova aliança. Partilhar desse cálice é incluir-se o crente entre esses m uitos (v. 24), pelos quais Jesus morreu. Portanto, não tem os dois elem entos (pão e vinho), cada um com seu significado distinto, mas antes, dois elem entos ligados pelo m esm o significado único. C om partilhar desses elem entos significa que o crente se inclui num a com unidade redim ida pela morte de Jesus, a qual é cham ada para segui-lo. N a situação original de Jesus e os doze, com par­ tilhar do pão e do vinho era antecipar a m orte de Jesus; porém os leitores de M arcos com partilhavam da ceia do Senhor olhando para trás, no tem po, para a m orte de Jesus que já havia ocorrido. Entretanto, para esses leitores, com partilhar da santa ceia significava incluir-se na com unidade de seguidores de Jesus, iniciada com os doze, e que ainda era a ceia do Senhor. N outras palavras, entendia-se que Jesus estava presente de modo espiritual na participação do pão e do vinho, o que tornava a com unhão dos discípulos não um a simples com em oração de quando o Senhor havia estado presente no passado, mas um a experiência real da presença contínua dele entre os discípulos. O pão e o cálice, m ediante associação com aquela últim a ceia, aqui registrada, constituem evidência tangível aos leitores de sua participação na salvação possibilitada pela morte sacrificial de Jesus. A lém disso, o registro de M arcos da últim a ceia reflete um a associação dessa refeição à esperança de que o reino de Deus se tornará realidade (v. 25). O voto de Jesus, no v. 25, de que ele não mais beberia vinho até

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que viesse o reino, transform a a últim a ceia e todas as subseqüentes celebrações dela, por ocasião das cerim ônias eucarísticas cristãs, em antecipações da com unhão fraterna futura dos redim idos com seu Senhor no reino de Deus. As celebrações da igreja prim itiva não só olhavam para trás, para a m orte sacrificial de Jesus, mas tam bém olhavam para a frente, para a alegria vindoura (cp. 1 C oríntios 11:26, “anunciais a m orte do Senhor, até que ele venha”). As m ais antigas tradições do cristianism o indicam que a ceia do Senhor constituía parte regular do culto na igreja, e que a m em ória de uma últim a ceia que Jesus havia tom ado na com panhia dos doze fazia parte da história do Senhor. O relato de M arcos contém várias indicações m inuciosas acerca de suas conexões com os prim eiros estágios do cristianism o, desem penhando papel muito im portante na narrativa total da paixão. A história dem onstra que a com unhão cristã, representada pela celebração da santa ceia do Senhor, tem raízes nesse evento do m inistério de Jesus e, com efeito, apresenta esta “últim a ceia” com o a prim eira celebração da santa ceia do Senhor, em que os elem entos em pregados (pão e vinho) adquiriram associação específica à sua m orte sacrificial. As palavras consagradoras do pão e do vinho (vv. 22-24) interpretam a m orte próxim a de Jesus, ao fazê-la base constitutiva da nova aliança de Deus em que se fundam enta a igreja. À sem elhança da palavra em 10:45 (veja com entário), estas palavras de consagração confirm am que a morte de Jesus teria significado poderoso, e nos proveria um exem plo da teologia prim itiva da igreja. Por fim, esta passagem liga a celebração da ceia à esperança do reino de Deus, m ostrando-nos com o a igreja prim i­ tiva unia a perspectiva da morte de Cristo, sua com unhão eucarística contínua e a expectativa fervorosa da consum ação do reino de Deus.

Notas Adicionais # 26 14:12 / No primeiro dia dos pães asmos: a festa dos pães asmos a rigor não começava senão no dia seguinte à noite da páscoa; todavia, há indícios de que às vezes o dia em que os cordeiros pascais eram sacrificados era chamado livremente de primeiro dia dos pães asmos (referências em Lane, p. 497). A referência ao sacrifício [dos cordeiros] da páscoa,no v. 12, confirma que se trata do dia anterior à noite da páscoa. 14:13 / um homem, que leva um cântaro d’água: na antiga Palestina, as mulheres comumente carregavam água em cântaros na cabeça, enquanto os homens transportavam água pela mão, em recipientes de pele. Assim, seria fácil

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localizar este homem na multidão. O comportamento desse homem talvez tivesse sido um sinal combinado antes, de modo que os discípulos o reconhe­ cessem; deveriam segui-lo sem proferir palavra. E provável que esse homem sabia estar metendo-se num relacionamento perigoso, sendo talvez um discípulo de Jesus. E possível que também houvesse arranjado um cordeiro para a ceia, porque os sacerdotes ter-se-iam recusado a permitir que Jesus (a quem conside­ ravam herege) participasse da morte cerimonial dos cordeiros, que deveria ocorrer no templo, e sob supervisão deles. Supostamente esse homem deve saber quem é o Mestre (v. 14), o que confirma que deve participar de um plano para que se mantenha em segredo o paradeiro de Jesus. 14:16 / a páscoa: é problema notoriamente difícil o fato de o Evangelho de João afirmar que a crucificação de Jesus aconteceu no dia em que se deveria sacrificar o cordeiro pascal (18:28; 19:14, 31, 42), não descrevendo a última ceia de Jesus com os doze como a ceia da páscoa (13:1). E possível que as razões da versão de João quanto à ceia, e quanto às aparentes diferenças na cronologia da morte de Jesus não nos sejam resgatáveis, mas poderão basear-se na ênfase teológica joanina, e no uso joanino do simbolismo, que faz da morte do Senhor um novo sacrifício pascal, substituindo o cordeiro tradicional (coerente com o uso que faz do título “Cordeiro de Deus”, para Jesus, 1:29,36). O procedimento quanto à ceia pascal exigiam que se comesse um cordeiro assado, sacrificado no templo, ervas amargas, pasta de frutas, pães asmos e vinho tinto. Os participantes deviam reclinar-se durante a ceia, demonstrando a liberdade que obtiveram pelo êxodo do Egito. Um dos comensais (Jesus, neste caso) agia como hospedeiro e liderava as cerimônias, que incluíam perguntas preestabelecidas da parte de outro membro do grupo, acerca das razões por que esta refeição era diferente de todas as outras. O hospedeiro respondia e apontava os itens sobre a mesa, explicando seu significado simbólico (veja as ervas amargas, que simbolizavam a escravidão amarga de Israel no Egito). A refeição não devia ser feita às pressas, pois envolvia muita discussão e tomava longo tempo, mas devia terminar antes da meia noite. Quanto a uma descrição das cerimônias antigas da páscoa, veja Lane, pp. 500-502; NIDNNT, vol. 2, p. 522. 14:18 / estavam reclinados à mesa, a comer: cena que obedece à prática judaica que data dos tempos helenísticos, em que as pessoas, durante a ceia da páscoa, deviam reclinar-se em sofás ou tapetes no chão (segundo o antigo costume grego nos banquetes), a fim de demonstrar a liberdade de que gozavam. Em verdade vos digo: de novo a frase solene indicativa da força de juramento da declaração. Veja nota sobre 3:28. um de vós, que come comigo: isto enfatiza a natureza da traição, vinda de dentro do círculo íntimo dos seguidores de Jesus, como provável alusão ao Salmo 41:9. Esta idéia repete-se no v. 20, em que o traidor é especificamente descrito como um dos doze, o que mete comigo a mão no prato (refletindo o costume palestino antigo à mesa de refeições, quando se usava o pão não

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levedado como utensílio [à guisa de garfo] para apanhar o alimento). 14:21 / o Filho do homem vai, como dele está escrito: nenhuma referência ao AT é mencionada, sendo provável que o Senhor não se referisse a uma passagem específica. Antes, é possível que essas palavras signifiquem simples­ mente que os sofrimentos do Filho do homem fazem parte do plano de Deus (veja nota sobre 9:12), estando indicados em várias passagens, tais como Isaías 53:1-6; Salmo 41:9-13. Melhor lhe fora não haver nascido: embora a morte do Filho do homem faça parte do plano de Deus, o traidor é culpado todavia de grande crime. Marcos não menciona nenhum acontecimento que marque o destino trágico de Judas (mas cp. Mateus 27:3-5; Atos 1:18-19); em vez disso, essa declaração simples­ mente enfatiza que Judas será julgado pelo seu ato. 14:22 / Pão: pode referir-se esta palavra ao costume, durante a páscoa, em que o líder do grupo inicia a refeição pronunciando uma bênção sobre o pão, distribuindo-o em seguida aos demais participantes. É provável que o pão e o vinho do v. 23 estivessem separados, durante a refeição pascal, e que Marcos nos esteja dando um relato condensado em que menciona apenas os atos e elementos da ceia mais importantes para a tradição cristã. abençoando-o, partiu-o: esse verbo, abençoando-o, é tradução de verbo grego que significa “ele abençoou (Deus)”, referindo-se à prática judaica de dar graças pelo pão numa refeição, dizendo-se: “Bem-aventurado és tu, Senhor, nosso Deus, que da terra tiras o pão”. Segundo costume judaico de tempos antigos, quanto a refeições, considerava-se irreverente cortar o pão com uma faca, visto ser o pão dádiva de Deus, pelo que o pão devia ser “partido” ou quebrado com as mãos. Isto é o meu corpo: o sentido original da frase em aramaico, língua que Jesus costumeiramente falava com seus discípulos, teria sido o seguinte: “isto sou eu mesmo”, visto que o equivalente aramaico mais viável da expressão grega traduzida por corpo, aqui, significaria a “pessoa”, o “eu”, de modo que a palavra grega deveria ser traduzida tendo isto em mente. 14:23 / o cálice: na páscoa, refeição demorada, prescreviam-se quatro cálices de vinho rubro. O cálice aqui mencionado pode ter sido o cálice final que encerra a ceia. Assim, como sugerimos na nota sobre o pão, acima (v. 22), Marcos preservou-nos as palavras de Jesus ao partir o pão no início da refeição, e as que pronunciou sobre o cálice no encerramento. (Uma opinião alternativa é que se tratava do terceiro cálice da ceia pascal, e que o v. 25 refere-se ao [quarto] cálice final, do qual Jesus não bebeu, fazendo voto de completa obediência à vontade de Deus, antes de beber de novo do fruto da vida. Veja nota sobre este versículo). De modo semelhante, crê-se que as primitivas celebrações da ceia do Senhor pela igreja começavam com a participação ritual do pão, que incluía a repetição das palavras de Jesus (isto é o meu corpo); a seguir vinha uma refeição completa, e depois servia-se um cálice de vinho acerca do qual se pronunciavam

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as palavras isto é o meu sangue, etc. O que sobreviveu, pois, nas celebrações posteriores da igreja cristã da santa ceia do Senhor, foi a parte inicial e a final de uma refeição completa. (Quanto a informações sobre um estudo erudito da Ceia do Senhor na igreja primitiva, veja “Lord’s Supper”, NIDNNT, vol. 2, pp. 520-38; IDB, vol. 3, pp. 158-62; e I.H. Marshall, Last Supper and L o rd ’s Supper [Grand Rapids: Eerdmans, 1980]). abençoando-o: este é o termo grego do qual originou-se a palavra “eucaris­ tia” (eucharisteo ), que significa “dar graças” , refletindo a natureza alegre das primitivas celebrações da ceia do Senhor (cp. nota sobre o v. 22, e discussão e notas sobre 6:41; 8:6-7). 14:24 / isto é o meu sangue, o sangue da [nova] aliança, que é derramado por muitos: na antiga Palestina, falar de derramar sangue era falar de morte violenta (veja referências nos comentários); a referência aqui se faz ao aconte­ cimento, e não ao sangue em si mesmo. Noutras palavras, Jesus estava de novo ensinando a seus discípulos que deveria enfrentar a morte em breve, e que sua morte seria em favor de muitos. A expressão muitos refere-se aos que haveriam de participar da aliança que sua morte criaria (quanto a muitos, veja nota sobre 10:45). Quanto a informações concernentes aos vários relatos da santa ceia do Senhor no NT, e às variações na linguagem da bênção sobre o pão e o cálice, veja NIDNNT, vol. 2, pp. 524-26. o meu sangue, o sangue da [nova] aliança: uma aliança era um tratado, ou acordo celebrado entre duas partes, dois governos, ou dois indivíduos. No AT, o relacionamento entre Israel e Deus era chamado de aliança, sendo a lei entendida como parte desse acordo, e a aliança implicava obrigações para Israel. Em Jeremias 31:31-34, o profeta promete uma “nova aliança”, descrevendo a antiga (dada através de Moisés no monte Sinai, depois do êxodo do Egito) como tendo sido quebrada pela desobediência de Israel. Os registros de celebrações de alianças no AT demonstram que os sacrifícios de animais eram um elemento vital no ato de “selar” o acordo, como Êxodo 24:1-8. As palavras de Jesus fazem alusão a esta passagem, transformando sua morte num sacrifício que traz à existência uma nova aliança. Alguns manuscritos antigos acrescentam “nova” antes de “aliança”, aludindo a Jeremias 31:31. Mateus 26:28 acrescenta “para remissão de pecados” logo depois de “por muitos”. A redação que descreve a cena no texto paralelo de Lucas 22:14-20 é diferente noutros aspectos; os eruditos discordam quanto ao texto original do relato de Lucas visto que os manuscritos trazem variações sérias. (Quanto a um contexto amplo do signifi­ cado do termo, veja “Covenant”, IDB, vol. 1, pp. 714-23; IDBSup, pp. 188-97, 623-25; NIDNNT, vol. 1, pp. 365-76). 14:25 / Em verdade vos digo: é a mesma fórmula solene utilizada noutras passagens por Jesus com a força de um juramento. Veja nota sobre 3:28. não beberei mais do fruto da vide, até àquele dia...: fruto da vide é expressão semítica que significa “vinho”. Jesus está fazendo um voto de

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abstinência, prometendo que não mais participará de outro cálice de vinho festivo enquanto não houver completado a execução da vontade de Deus, tendo participado com os discípulos da alegria do reino de Deus consumado. No texto da tradução, até àquele dia em que o beber de novo, a palavra novo refere-se à situação jubilosa do reino de Deus que no futuro se realizará de modo completo. 14:26 / Tendo cantado um hino, saíram para o monte das Oliveiras: a páscoa se encerrava usualmente mediante o cântico da segunda parte de Hallel (Salmo 113-118), sendo este talvez o hino mencionado aqui. Saíram na direção de um jardim tranqüilo fora do muro da cidade (14:32), onde o ambiente seria mais fresco, propício à oração contínua. (Veja “Hallel”, IDB, vol. 2, p. 314).

27. A Prisão e o Abandono de Jesus (Marcos 14:27-52)

14:27-31 / Esta discussão vem após o relato da ceia, tanto em M arcos quanto no texto paralelo de M ateus 26:31-35. Lucas 22:31-34 é tradição variante deste diálogo. A passagem em foco m ostra Jesus antecipando o colapso de seus seguidores, descrito em 14:50 e 14:66-72. Entretanto, é texto que vai além desse colapso, e chega à ressurreição de Jesus (v. 28), e ao reagrupam ento e reafirm ação dos discípulos, referidos em 16:7. N outras palavras, o efeito e a intenção dessa passagem em seu atual contexto parecem ser os seguintes: m ostrar que Jesus teria previsto o fracasso de seus discípulos, sendo entendido com o objeto de profecia (v. 27) no AT. Isto significa que o fracasso deles não era falha no plano de D eus, ainda que assim pareça à prim eira vista. M ais ainda, essa passagem antecipa o fato de a atividade dos discípulos, com o líderes entre os cristãos, depois da crucificação de Jesus, basear-se na graça do Senhor ressurreto, que os restaurou e os recolocou no discipulado, e lhes deu posições de liderança; suas atividades no reino não se baseavam em algum tipo de coragem ou virtude que eles próprios tivessem . Pedro, o líder tradicional dos doze, salienta-se na narrativa de modo especial, tanto aqui com o depois, na parte final do capítulo, onde ele cum pre a predição de que negaria a Cristo (14:66-72). A bazófia de Pedro, colocada ao lado de sua posterior covardia, sim plesm ente enfatiza m ais perante os leitores de M arcos, o ponto central de que a vida e a m issão da igreja repousam em Cristo, e só nele, jam ais na liderança hum ana. 14:32-42 / E sta é apenas um a das muitas cenas bem conhecidas dos evangelhos, assunto de quadros e de incontáveis sermões e m editações. A tradição segundo a qual Jesus orou fervorosam ente antes de ser preso preserva-se de várias formas, em João 17:1-18, e em Hebreus 5:7, bem com o nos relatos paralelos desta passagem , M ateus 26:36-46 e Lucas 22:40-46. Com o preparação final, antes da onda im petuosa de aconteci­ m entos violentos que se sucederão, Jesus se retira para um a área próxim a tranqüila, fora do m uro oriental de Jerusalém , para orar. Duas grandes realidades que dom inam essa passagem são a obediência de Jesus perante

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(Marcos 14:27-52)

Deus, a despeito de saber o que o aguarda, e o fracasso persistente dos discípulos, incapazes de perceber a im portância daquele m om ento. A sugestão sentim ental segundo a qual Jesus procurou algum conforto da parte de seus discípulos, frente à tem pestade que se aproxim ava, não encontra base no texto, pois Jesus volta-se para Deus e não para eles. Em vez disso, as repetidas exortações para que perm aneçam vigilantes e orem refletem seu interesse em que estejam preparados para enfrentar os perigos físicos e espirituais que os aguardam . As repetidas referências à obtusidade dos doze prepararam os leitores de M arcos para com preender que os discípulos estavam incapacitados de dar a Jesus algum a coisa. A sonolência terrível deles é outro exem plo de insensibilidade que dem ons­ tram diante do que Jesus lhes diz concernente à sua m orte violenta, já próxim a. É espantosa a referência repetida três vezes a não serem capazes de orar (vv. 37-41). A descrição da aflição de Jesus (vv. 32-33) e sua oração fervorosa para que se possível fosse poupado da tribulação que se aproxim ava (v. 35), seguida de sua obediente aceitação do que sabe ser o plano de D eus (v. 36), dão-nos a perspectiva m ais m em orável da hum anidade de Jesus. Os leitores de M arcos, que foram advertidos m ediante a palavra de Jesus dirigida aos doze (veja 8:34-38; 10:39-39; 13:9-13), de que eles próprios tam bém poderiam ter de enfrentar provações e até m esm o a m orte por am or ao Senhor, com toda certeza deveriam entender que a oração de Jesus constitui poderoso exem plo para eles de plena subm issão à vontade de Deus, o qual deveriam imitar, quando lhes chegasse o m om ento de provação. N outras palavras, o relato de M arcos não é m otivado por um desejo de traçar um retrato sentim ental da pessoa de Jesus, mas objetiva apresentar a seus leitores um m odelo de obediência a ser copiado. Reflete, pois, um interesse prático na capacidade dos discípulos de perm anecer firm es nas provações da fé. A oração de Jesus, que nos descreve o que está prestes a acontecer com o sendo a vontade de Deus (v. 36), ensina aos leitores de M arcos que a entrega do Filho do hom em aos pecadores (v. 41) era, em seu sentido mais profundo, algo que o próprio Deus é que estava fazendo, e não Judas. Assim , a prisão e execução de Jesus que poderiam ser considera­ das desastres trágicos, m ais um a vez são apresentadas com o parte do plano deliberado de Deus. 14:43-52 / O ato de traição iniciado em 14:10-11 prossegue. Liderado

(Marcos 14:27-52)

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por Judas, o grupo enviado pelos principais sacerdotes chega a fim de prender Jesus m ediante força; deste ponto em diante tem início o sofri­ m ento m aior, a provação terrível de Jesus. Em bora M arcos se refira à prisão feita por um a grande m ultidão (v. 43), deveríam os talvez pensar em term os de um a pequena m ilícia constituída por doze ou mais pessoas, visto que o objetivo era prender Jesus sem criar grande com oção, e num lugar onde Jesus deveria estar quase a sós, tendo ao lado apenas seus seguidores m ais íntim os — os onze. Judas cooperou com os planos dos sacerdotes, dando-lhes inform ações acerca dos m ovim entos de Jesus, e de com o seria m ais fácil capturá-lo. Sem esse tipo de inform ação, a prisão seria m uito m ais difícil, pois Jesus, de m odo característico, só entrava na cidade acom panhado da m ultidão de peregrinos, e deixava-a antes do anoitecer, indo para Betânia, fora da jurisdição da força policial do sumo sacerdote (11:11). C ada porm enor da narrativa desem penha função específica. De Judas se diz que era um dos doze, o que piora bastante seu ato traiçoeiro (v. 43). O grupo bem arm ado (v. 43) que chega para prender Jesus contrasta violentam ente com a hum ilde subm issão de Jesus, m encionada na pas­ sagem precedente (v. 36). O sinal com binado, para identificação de Jesus, o beijo de Judas (vv. 44-45), e sua respeitosa saudação, Rabi! com binam -se para tornar a traição de Judas m ais vil ainda. O único golpe desferido em defesa de Jesus (v. 47) é tão fútil que chega a ser cômico, e a reação dos discípulos em fuga (v. 50) torna esse sím bolo de resistência m ais deplorável ainda. A fascinante referência (peculiar a M arcos) a certo jovem que foge nu (vv. 51-52) do cenário da prisão propiciou o surgim ento de várias teorias sobre as razões por que é apresentada aqui. Sugerem alguns que o jovem anônim o deve ser identificado com o João M arcos, o tradicional autor deste Evangelho, e que o que tem os aqui é um retalho das memórias do autor que adm ite sua própria covardia. Entretanto, à parte o fato que não é bem certo que o autor do Evangelho deve ser identificado com João M arcos (veja Introdução), há razões para que pensem os que a descrição do ato daquele jovem aqui não se trata de m ero traço autobiográfico. Prim eiram ente, parece possível que o autor tencionasse aludir a Amós 2:16, em sua descrição de um a época de crise em que “o m ais corajoso dos guerreiros fugirá nu naquele dia” (veja nota quanto a esta alusão), sendo o ponto central de tal conexão o desejo de dem onstrar que os atos

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(Marcos 14:27-52)

dos seguidores de Jesus foram todos previstos, com o o dem onstrara Jesus, anteriorm ente, citando Zacarias 13:7 (em 14:27). Indo um pouco além , seria interessante com parar esta cena da fuga do jovem , que corre logo no início dos acontecim entos que culm inam na execução de Jesus, com duas outras cenas posteriores. Em 15:46, o cadáver desnudado de Jesus (suas roupas lhe foram arrebatadas pelos soldados, 15:24) é envolto num “lençol de linho”, antes de ser sepultado; temos aqui o m esm o term o grego (sindon) em pregado para descrever o lençol que recobria o corpo do jovem em 14:51-52. Assim, aquele jovem nesta cena inconsciente­ m ente antecipa o sepultam ento de Jesus; o jovem foge, deixando atrás de si o lençol de linho, enquanto Jesus cam inha para a morte e sepulta­ m ento, envolto num lençol sem elhante, constituindo talvez um a parábola dram ática da natureza vicária, substitutiva, da morte de Jesus. Também, em 16:5, no túm ulo, na m anhã da prim eira páscoa, outro “jovem ” (que sem dúvida algum a deve ser entendido com o anjo, veja nota), anuncia que Jesus ressurgiu dentre os mortos. É possível que M arcos tivesse a intenção de m ostrar a seus leitores tam bém esta outra conexão (só M arcos descreve o anjo com o “um jovem ”); um rapaz foge, abandonan­ do Jesus à m orte certa, mas outro moço, um esplêndido “jovem ” envolto num “m anto branco” (16:5) proclam a o triunfo de Jesus. Seja com o for, a possível alusão a Am ós 2:16, com binada à descrição de Jesus de sua própria prisão com o cum prim ento de profecias (14:49), seria o ponto central da história: a prisão de Jesus, conquanto tivesse causa im ediata na traição hum ana, na verdade era parte do plano redentor de Deus.

Notas Adicionais #27 14:27 / todos vós esta noite vos escandalizareis: literalmente, “vos ofende­ reis” ou “tropeçareis”. A mesma palavra é empregada no v. 29, em 9:42-47 (veja notas), 6:3 (“e escandalizavam-se nele”) e 4:17 (“imediatamente se escandali­ zam”). está escrito: a citação é de Zacarias 13:7; a passagem toda de Zacarias 13:1-9 constitui leitura interessante, como contexto do relato da paixão, porque se refere a uma época em que Deus proverá nova purificação do pecado (13:1), e menciona um golpe “contra o meu Pastor... que é o meu companheiro” (lit., “que está perto de mim”), como parte de um processo que induz à criação de um novo povo de Deus (13:7-9). 14:28 / irei adiante de vós para a Galiléia: esta promessa é mencionada

(Marcos 14:27-52)

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pelo anjo em 16:7 e parece profecia do aparecimento do Jesus ressurreto, na Galiléia. Os evangelhos contêm tradições de aparições de Jesus ressurreto na Galiléia (Mateus 28:16: João 21:1 -23) e em Jerusalém e adjacências (Lucas 24:13-52; João 20:11-29; cp. 1 Coríntios 15:5-8). 14:30 / em verdade te digo: este é o último exemplo em Marcos da fórmula solene que comunica a certeza de um quase-juramento. Veja nota sobre 3:28. 14:31 / de modo nenhum te negarei: a frase grega aqui, “de modo nenhum”, é negação muito forte, significando “estou determinado a jamais...” o que dá à promessa de Pedro um tom mais irônico ainda, à luz de seu fracasso posterior. 14:32 / Getsêmani: significa, em hebraico, “prensa de azeitonas”, sendo talvez um pomar de oliveiras em que havia uma prensa para extração do azeite, a qual deu nome ao lugar. Fica no vale do Cedrom, perto dali, fora do muro oriental de Jerusalém e abaixo do monte das Oliveiras. 14:33 / Pedro, Tiago e João: mais uma vez vemos o círculo íntimo dentre os doze, mencionado também em 5:37; 9:2; 13:3. Parece que Jesus os tomou à parte, separando-os dos demais. 14:34 / a minha alma está profundamente triste até à morte: é alusão ao Salmo 42:6. Este salmo provê comentário interessante da cena de angústia e oração de Jesus. 14:35 / se possível, passasse dele aquela hora: aqui e no v. 41, hora é expressão figurada para a ocasião enfrentada por Jesus, envolvendo os sofrimentos que o aguardavam. 14:36 / Aba, Pai: o termo aramaico Aba parece ter conotações de carinho ou afeição em família, pois era a palavra usada pelas crianças ao dirigir-se ao pai; não era a palavra aramaica formal para pai. O mesmo termo aramaico aparece também em Romanos 8:15 e em Gálatas 4:6, sugerindo que a igreja cristã o havia preservado logo de início, até mesmo nas igrejas de fala grega, como elemento de tradição sagrada derivado do hábito de oração de Jesus. Parece que o Senhor usava a palavra Aba com freqüência ao falar a seu Pai, em oração, ainda que aparentemente o costume judaico na oração requeria que se usassem títulos mais formais para Deus (veja NIDNNT, vol. 1, pp. 614-15). este cálice: significa a provação prestes a iniciar-se. Cp. o uso de “cálice” como símbolo, em 10:38-39 e o comentário. 14:37 / Simão: seria o prenome primitivo de Pedro. Depois, Jesus lhe teria dado o nome de Pedro (cp. 1:16,29-36; 3:16, e comentários). 14:38 / tentação: a palavra empregada aqui pode significar “teste”, “provação”, e a preocupação de Jesus é que os discípulos orem pedindo forças para vencer o sofrimento. As palavras para que não entreis, aqui, podem ser traduzidas por “para que não caiais”, fazendo-nos lembrar a linguagem na oração dominical, em Mateus 6:13; Lucas 11:4, que traz uma petição para que o crente seja poupado do sofrimento que poderia advir pela queda na fé, talvez em referência à perseguição. O espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca: é alusão ao Salmo

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51:12; o sentido nada tem de ver com o espírito humano em relação à carne humana. Antes, o contraste envolve o Espírito de Deus, que está disposto a suprir forças, a fim de dar apoio à fraqueza humana. A fim de deixar isto mais claro, algumas traduções grafam “Espírito”, aqui, com inicial maiúscula. 14:41 / nas mãos dos pecadores: “pecadores” era termo empregado para designar os judeus que não viviam de acordo com a vontade de Deus, e os gentios, vistos coletivamente pelos judeus como “pecadores”, pelo fato de não viverem de acordo com a lei do AT. É provável que esse termo aqui se refira às autoridades religiosas, retratadas assim como desobedientes a Deus e ao gover­ nador romano (Pilatos), responsável pela morte de Jesus. 14:43 / uma grande multidão com espadas e cacetes: talvez fosse um pequeno contingente de policiais do templo, que operavam sob as ordens do sumo sacerdote, e cujas funções eram manter a ordem na área do templo. Tinham armas próprias, mediante permissão do governador romano, que delegava alguma responsabilidade pelo templo ao sumo sacerdote. João 18:3 diz que a turba que foi efetuar a prisão incluía “uma escolta” de soldados, dando a entender que Pilatos havia dado sua colaboração à prisão. principais sacerdotes, escribas e anciãos: são as mesmas personagens mencionadas na predição da paixão, em 8:31 (cp. 10:33). 14:44 / Aquele a quem eu beijar: o beijo era saudação normal dos discípulos a seu mestre, na antiga Palestina (veja referências em Lane, p. 525; e “Kiss”, IDB, vol. 3, pp. 39-40). 14:47 / Então, um dos circunstantes: Marcos se refere a um dos discípulos de Jesus. João 18:10 identifica-o como sendo Pedro. Cp. Lucas 22:35-38, em que se menciona que alguns discípulos estavam armados. 14:48 / Saístes com espadas e cacetes: a observação de Jesus é uma queixa sobre o fato de ele ser tratado como um criminoso comum, e sobre a prisão secreta; o Senhor exige que lhe digam por que não tiveram a coragem de prendê-lo publicamente, se houvesse queixas e acusações contra ele. O v. 49 faz referência a um longo ministério de ensino na área do templo, descrito resumi­ damente em 11:1-12:44. 14:50 / deixando-o, todos fugiram: isto cumpre o que Jesus havia predito em 14:27. Pedro segue a Jesus, bem como a multidão que o prendera, à casa do sumo sacerdote, conforme narração nos vv. 54, 66-72. 14:51 / certo jovem: como mencionamos no comentário acima, a fuga do jovem desnudado talvez seja alusão a Amós 2:16. Alguns têm apontado para Gênesis 39:12, em que José foge da tentativa de sedução empreendida pela esposa de Potifar, deixando para trás seu manto; todavia, é difícil concatenar um raciocínio no significado de tal alusão que, com toda probabilidade, deve ser rejeitada.

28. Julgamento e Negação (Marcos 14:53-72) 14:53-65 / Os quatro evangelhos dão-nos relatos do julgam ento de Jesus perante as autoridades judaicas e rom anas; todavia, as variações de cada relato em relação aos demais dificultam a reconstrução de um quadro com pleto, bem detalhado, de todos os eventos. Além dessa variação dos quatro evangelhos, entre si, tam bém há algum as questões relativas à natureza das fontes de inform ações a que os cristãos prim itivos tiveram acesso, visto que obviam ente nenhum cristão presenciou os julgam entos. Não vam os poder tratar dessas questões em toda sua profundidade, aqui, porque o objetivo prim ordial deste com entário é com preender o texto de M arcos com o ele se nos apresenta hoje, e não tentar reconstruir m inuciosam ente a seqüência histórica dos eventos que deram origem ao texto, e tam bém porque não haveria espaço suficiente para discutir as raízes históricas desses julgam entos, as quais têm sido objeto de num erosos artigos em periódicos eruditos e vários livros. Nós nos lim itarem os a algum as observações m ais im portantes, concernentes a essas questões, nas notas adicionais; todavia, nosso m aior interesse será acom panhar o que M arcos tencionou que seus leitores entendessem , ao exam inar-lhe o relato (quanto a um a discussão resumida, m as cuidadosa, dessas questões históricas, veja “Trial o f Jesus”, IDBSup, pp. 917-19, e a literatura ali m encionada). Segundo o relato de M arcos, Jesus é levado à casa do sum o sacerdote (v. 53), e Pedro segue-o à distância (v. 54). D esenrola-se ali um a espécie de audiência perante autoridades judaicas (vv. 55-64), registrando-se alguns atos indignos com etidos contra Jesus (v. 65). O ponto central da acusação contra o Senhor é “falso testem unho” (vv. 55-60), e blasfêm ia, pois Jesus alega ser Filho de Deus (vv. 61-64). Em seguida, o relato de M arcos da audiência perante tais autoridades judaicas recebe uma inser­ ção: encaixa-se ali a história do “julgam ento” de Pedro perante o popu­ lacho no trio (vv. 54, 66-72). A junção de am bas as histórias sugere que aqui, com o ocorreu em outras passagens, tem os um exem plo do em prego de um a técnica especial por M arcos (veja 3:20-35; 5:21-43; 6:7-30; 11:12-21); o propósito do evangelista seria que um a história interpretasse a outra. O principal objetivo de M arcos não seria proporcionar-nos uma

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(Marcos 14:53-72)

descrição cronológica dos acontecim entos após a prisão de Jesus, mas antes, ensinar-nos algumas noções teológicas sobre o significado do julgam ento de Jesus. Basicam ente, o relato do julgam ento de Jesus em M arcos parece objetivar (com o o Evangelho todo objetiva) m ostrar quem é na realidade Jesus e apresentá-lo (de m odo mais específico, aqui) com o exem plo m áxim o de coragem e fidelidade no com portam ento, que seus leitores deverão im itar, quando se virem enfrentando o m esm o tipo de julgam en­ to (e já foram advertidos antes que deverão aguardar tais experiências angustiantes; cp. 8:34-38; 13:9-13). As autoridades tentam com provar a culpa de Jesus, que teria am eaçado destruir o tem plo (vv. 57-59), mas o evangelista deixa bem claro que Jesus não poderia ser culpado de crim e algum, e essa tentativa de incrim inar o Senhor foi infrutífera (vv. 55-59, e notas). Entretanto, na apresentação dos depoim entos das falsas teste­ m unhas (“m uitos testificavam falsam ente” , v. 56), tem os m ais um exem ­ plo da ironia de M arcos, visto que tais testem unhas sem sabê-lo dão indícios da verdade do Evangelho ao testem unharem . Conquanto Jesus não houvesse, pelo que consta, am eaçado destruir o tem plo (cp. 13:1-2), parece que profetizou sua destruição em futuro próxim o, e que tal destruição cum priria a vontade de Deus, com o julgam ento sobre as autoridades judaicas que rejeitaram a m ensagem divina (cp. tam bém 12:1-12). Com o observam os em nossos com entários de 11:1-12:44, M arcos nos apresenta um Jesus que substitui o tem plo, com o meio de acesso a Deus (veja tam bém 15:38 e com entários), e o evangelista interpreta a m orte de Jesus com o o novo sacrifício que torna inútil todo o ritualism o do templo. Portanto, quando aquelas testem unhas falsas afirm am que Jesus teria prom etido a edificação de um novo tem plo, não reconheceram que, num sentido m uitíssim o profundo, é precisam ente isso que o Senhor fará. Aqueles hom ens estavam enganados ao acusarem Jesus de am eaçar o tem plo de pedra, e pensarem que o Senhor edificaria novo tem plo de pedra; todavia, os leitores deverão entender que a m orte de Jesus é o fim do tem plo judaico, e a ressurreição do Senhor é o levantam ento de um novo “tem plo” . O significado m ais profundo das falsas acusações contra Jesus se deduz da referência à nova estrutura que surgiria em três dias (v. 58), alusão óbvia à ressurreição do Senhor (cp. 8:31; 9:31; 10:34). Além disso, as caracterizações contrastantes do tem plo judaico com o novo

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tem plo, a saber, este tem plo, edificado por m ãos hum anas, com parado a outro, não feito por m ãos hum anas, dão indícios e subsídios ao leitor para que perceba, aqui, uma predição da ressurreição de Jesus. A descri­ ção do novo tem plo reflete o uso de term os iguais ou sem elhantes, noutras passagens do NT, contrastando a qualidade superior da redenção que se encontra em Jesus Cristo, com as estruturas da religião judaica (veja notas); M arcos redigiu a acusação de tal m aneira que seus leitores pudessem ver a verdade disso (e a ironia tam bém ). Entretanto, se a acusação levantada pelas falsas testem unhas apenas provessem um m ero indício do verdadeiro significado de Jesus, o diálogo entre o Senhor e o sum o sacerdote (vv. 60-64) explica este ponto m uito bem. Revela-se, afinal, o segredo: Jesus responde abertam ente à pergunta do sacerdote, afirm ando que é o C risto, o Filho do D eus Bendito, advertindo que voltará na glória divina (v. 62). A pergunta do sacerdote (v. 61) em prega os m esmos títulos que M arcos já havia apresentado com o sendo os que m elhor descreviam a realidade da pessoa de Jesus. Desde as prim eiras palavras (1:1) de seu Evangelho, M arcos diz ao leitor que este “Filho do hom em ” na verdade é o Cristo (o M essias), e tam bém o Filho de Deus (cp. 1:11, 24; 3:11; 5:7; 8:29-30; 9:7; 10:47; 12:6, 35-37; 13:32; 15:39). Em bora, até este ponto da narrativa, Jesus tenha im posto silêncio aos que a ele se dirigiram cham ando-o por esses títulos, agora o Senhor os aceita abertam ente. A resposta dele é vista pelas autoridades judaicas com o blasfêm ia, porém , o leitor sabe que ali está a verdade, e vê este incidente com o revelação divina. M ais um a vez M arcos em prega ironia, visto que o grito do sumo sacerdote, blasfêm ia!, é sum am ente iníquo e errado, constituindo em si m esm o verdadeira blasfêm ia, pois equivale à rejeição evidentíssim a de Alguém que (com o o leitor sabe m uito bem ) o próprio Deus reconheceu (1:11; 9:7)! M arcos escreveu esta passagem não só para declarar de m odo franco quem é Jesus, m as tam bém para dar a seus leitores um exem plo edificante de com o deverão proceder, quando atirados num a provação assim por causa de sua fé em Jesus. As falsas testem unhas m ostram que se trata de fato de um a provação baseada apenas na afirm ação de que Jesus é o Filho de Deus; esse julgam ento nada tem que ver com algum a ilegalidade que Jesus houvesse com etido. N esta passagem , os leitores recebem instru­ ções no sentido de terem certeza sem pre de que qualquer provação que venham a passar terá com o causa sua fé no Senhor, e não algum erro que

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(Marcos 14:53-72)

tenham com etido (cp. 1 Pedro 3:13-16; 4:12-16). A reiteração direta de Jesus de suas afirm ações (Eu sou, v. 62) exem plifica a coragem que os leitores deverão dem onstrar ao confessar sua fé em Jesus com o o Filho de Deus — sem a m ínim a hesitação. Finalm ente, o reconhecim ento de que Jesus está sendo apresentado aqui com o nosso modelo, explica a razão de M arcos ter acoplado o relato do julgam ento de Jesus ao relato da negação de Jesus por Pedro. São dois relatos que nos m ostram dois exem plos antagônicos de reações que as pessoas podem ter, quando sob o fogo da provação. Jesus representa o que significa “dar testem unho” da verdade, ou “confessar” a verdade, e sofrer execução imediata; Pedro (vv. 66-72) falha vergonhosam ente, quando subm etido a “interrogató­ rio” por um a criadinha hum ilde (vv. 66-70) e por circunstantes anônim os (vv. 66-71). O fracasso horroroso de Pedro (de que tratamos com mais m inúcias na seção de com entário do texto), apenas ressalta o admirável com portam ento de Jesus. N o restante da passagem da paixão, M arcos m ostra-nos Jesus perante Pilatos, a autoridade rom ana, e descreve-nos a execução do Senhor (15:1-47). N ote-se, todavia, que o julgam ento perante Pilatos é descrito com poucas palavras, porque M arcos se interessa, aqui, em m ostrar-nos um Jesus que afirm a sua posição de autoridade, enfrentando corajosa­ m ente seus acusadores. Pensam alguns eruditos que a ênfase de M arcos no julgam ento judeu (em vez de no julgam ento rom ano), revela um desvio anti-sem ítico de M arcos; todavia, tal pensam ento perde a razão mais profunda dessa ênfase. Jesus afirm a ser o M essias, o Filho do Deus de Israel, o cum prim ento das prom essas do AT; esta é a razão por que M arcos m ostra Jesus num confronto final com as autoridades judaicas, com a interpretação alternativa que os judeus dão ao AT, e com o conjunto diferente de enunciados religiosos que representam. Exatam en­ te porque deseja enfatizar que Jesus é o verdadeiro M essias de Israel, M arcos salienta o grave erro que com etem as autoridades religiosas ao rejeitá-lo. Não há m eio de negar-se que essa posição tom ada por M arcos significa crítica severíssim a à rejeição dos judeus à pessoa de Jesus; é verdade (e lam entavelm ente triste) que esse tipo de polêm ica teológica seria usada, séculos m ais tarde, com o justificativa para as perseguições (injustificáveis, altam ente repreensíveis) contra os judeus, infligidas por líderes religiosos e políticos que se autoproclam avam cristãos. Todavia, tentar entrever no Evangelho de M arcos esse pervertido zelo religioso,

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que só haveria de surgir muito mais tarde, não só é incorreto historica­ m ente, com o equivale a atribuir a Marcos uma ética inqualificável e inim aginável. O relato de M arcos sobre o julgam ento de Jesus apresen­ ta-nos de m odo vívido a im portância de Jesus à luz da verdade revelada no A T dos judeus, e à luz do relacionam ento de Deus com o povo judeu. O m odelo daí resultante m ostra aos discípulos como se deve testem unhar de Jesus. 14:66-72 / Com o m encionam os antes, M arcos (e M ateus, em seu relato paralelo, em 26:57-75) liga duas narrativas, a da audiência de Jesus perante os líderes judaicos, e a da negação de Jesus, por Pedro, perante um grupo de circunstantes; o objetivo seria traçar um contraste m ais forte entre a coragem e fidelidade de Jesus e a covardia de Pedro. Em 14:54, M arcos diz que Pedro seguiu a Jesus e ao grupo que o havia prendido à casa do sum o sacerdote, e juntou-se à m ultidão no átrio, para ver o que haveria de acontecer a Jesus. O porm enor concernente à criadinha (vv. 66, 69) parece que salienta mais ainda a covardia de Pedro. Enquanto Jesus perm anece firm e perante as mais altas autoridades religiosas do judaísm o, Pedro sucum be diante de uma jovem que não passava de criada (cp. a versão de Lucas, que prim eiro m enciona um a criada e, depois, um hom em , que interrogam Pedro; Lucas 22:56-58). Nas três versões sinóticas dessa história, Pedro nega a Jesus três vezes, o que sublinha o fracasso total do discípulo. Nas versões de M arcos e de M ateus, a negação final de Pedro é descrita com certa veem ência, incluindo ju ra ­ m entos e pragas, o que faz a terceira negação atingir o clím ax da covardia (cp. 14:71; M ateus 26:74; Lucas 22:60). A crescente-se a esta pequena variação outras peculiaridades interessantes, próprias de cada versão do incidente. Som ente Lucas se refere a Jesus voltando-se para contem plar P edro (22:61), no m om ento da terceira negação. Só M ateus (26:73) especifica que foi o sotaque de Pedro que indicou ser ele galileu, enquanto M arcos (14:70) sim plesm ente declara, sem dar mais explica­ ções, que aquelas pessoas puderam discernir a origem de Pedro. Todavia, há outro detalhe (e esse é exclusivo de M arcos) que atrai interesse maior, porque parece que viria a ocasionar problem as para os copistas, m ais tarde. Em 14:30, Jesus prediz que Pedro o negaria antes que o galo cantasse duas vezes, sendo essa predição citada retrospectivam ente, em 14:72. Agora, em 14:72a, M arcos diz que o galo cantou pela segunda vez, logo

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depois da terceira negativa de Pedro; contudo, os m anuscritos antigos dividem -se em dois grupos: há os que m encionam que houve um prim ei­ ro canto e os que o omitem. As evidências estão divididas a tal ponto que fica difícil ter-se certeza de que a referência a este prim eiro canto de galo apareceu originariam ente em 14:68; é provável que de início houvesse a m enção, que m ais tarde teria sido om itida por alguns copistas que procuravam reconciliar o relato de M arcos com os relatos paralelos de M ateus e de Lucas, os quais m encionam apenas um canto de galo. Talvez o raciocínio para descrever-se as negações de Pedro com o tendo ocorrido antes do segundo canto do galo objetivasse insinuar que as negações ocorreram num curto período de tem po (veja notas), m ostrando que a infidelidade de Pedro m anifestou-se não ao longo de um interrogatório prolongado, mas diante de apenas umas poucas perguntas em baraçantes que algum as pessoas fizeram no átrio. N esta passagem , Pedro, o representante e porta-voz dos doze naufra­ ga, e atinge o ponto mais baixo de seu discipulado, dando um exem plo quase tão pernicioso quanto o da traição de Judas. Na verdade, é digno de nota que a tradição da negação de Pedro esteja registrada nos quatro evangelhos (veja João 18:15-18, 25-27). Alguém poderia im aginar que a leitura do relato desse fracasso da parte de um líder tão preem inente do cristianism o prim itivo causasse em baraço. Talvez essa unanim idade de inform ação dem onstrasse apenas com o os relatos dos evangelhos não foram produzidos com o objetivo de prom over a reputação de líderes cristãos prim itivos, mas para enfatizar a im portância absoluta de Jesus. Os prim eiros leitores dos evangelhos com toda certeza perceberam que Pedro se havia tornado líder im portante da igreja, não havendo razão para crerm os que este ou aquele Evangelho teria sido escrito a fim de im pug­ nar tal reputação. Em vez disso, a história da negação talvez dem onstras­ se que até m esm o os respeitáveis líderes da igreja estavam totalm ente dependentes do perdão m isericordioso de Jesus para poderem participar da com unhão cristã, da com unidade que levaria seu próprio nome. D essa m aneira, Jesus é m agnificado; todos os demais, até m esm o os líderes fam osos com o Pedro, são colocados no nível de m eros discípulos hum a­ nos. N ão há dúvida de que os leitores de M arcos, por exem plo, haveriam de ficar m uito anim ados ao saber que esse discípulo faltoso foi restaurado pelo Jesus ressurreto, readquirindo com pleta com unhão com o Senhor, restauração que fora antecipada em 16:7, em que “um jovem ”, vestido

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“com um m anto branco”, prom ete que o Jesus ressurreto aparecerá aos discípulos e de novo os convocará para que o sigam. Todavia, os leitores de M arcos tam bém leriam esse relato com o sendo uma lição sobre com o não reagir, se porventura viessem a ser interroga­ dos quanto à fé que professam . Tendo sido advertidos de que sofreriam perseguições e julgam entos (13:9-13), recebem , através da história de Pedro, um a advertência quanto à vergonha de negar-se o Senhor. As lágrim as de Pedro (14:72b) denotam essa vergonha; o Pedro desfeito em lágrim as constitui exem plo do que significa negar a fé em Cristo. Finalm ente o leitor fica, m ediante esse incidente, a sós com Jesus; os discípulos fogem , e seu porta-voz (Pedro) falha m iseravelm ente. D urante os eventos seguintes, a seus sofrim entos, Jesus fica sozinho para cum prir a vontade de Deus. Apresenta-se dessa form a a m ensagem da salvação através da obra de Jesus, que ele obteve para nós, ele e mais ninguém , e sem a ajuda de qualquer instrum ento hum ano.

Notas Adicionais #28 14:53 / O sumo sacerdote: Mateus 26:57 e Lucas 22:54 concordam que este foi o primeiro local que Jesus foi após sua prisão. João 18:13-14, 19-24, 28 descreve os movimentos de modo um tanto diferente, mas devemos reconhecer que nenhum dos relatos isoladamente constitui uma descrição completa dos eventos. Não é necessário presumir-se tampouco que o interrogatório de 14:55­ 64 ocorreu na casa do sumo sacerdote, pois, poderia ter havido mudança nalgum ponto, não mencionada por Marcos (cp. Lucas 22:66). Por fim, não se deve presumir que a audiência descrita nos vv. 55-64 ocorreu à noite (de novo, cp. Lucas 22:66). A ligação que Marcos estabelece entre o julgamento de Jesus e a negação de Pedro, ele a faz com o propósito de contrastar os dois acontecimen­ tos, e não com o objetivo de colocá-los em ordem cronológica. E possível que Jesus tenha sido interrogado também na casa do sumo sacerdote, e que o julgamento ou um tipo de audiência semi-formal tenha ocorrido bem cedo, pela manhã, como sugere o relato de Lucas. Os principais sacerdotes, os anciãos e os escribas: mais uma vez verifica­ mos a presença das personagens mencionadas na predição da paixão, em 8:31 (cp. 14:43). Estes grupos constituíam o sinédrio judaico, o conselho mais alto do judaísmo antigo (veja “Sanhedrin”, IDB, vol. 4, pp. 214-18; IDBSup, pp. 784-86). Veja também 14:55 e notas. 14:55 / todo o Sinédrio: Sinédrio aqui é a tradução de synedrion, um grupo de setenta e um líderes dentre os judeus, composto dos principais sacerdotes e homens de respeito, que agiam com permissão dos romanos em casos que concerniam à lei judaica. A afirmação de João 18:31 de que esse concílio, nessa

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época, não possuía poderes para condenar alguém à pena capital é contestada por alguns eruditos, mas há razões para crermos que essa declaração é verda­ deira (veja IDBSup, pp. 917-19). 14:56 / Muitos testificavam falsamente: literalmente: “muitos davam falso testemunho”, em alusão a Êxodo 20:16, o mandamento que proíbe que se dê falso testemunho. Aqui as testemunhas estão quebrando a lei. A lei judaica exigia que qualquer acusação fosse apoiada pelos menos por duas testemunhas, e seus testemunhos precisavam harmonizar-se. É a isso que se alude no comen­ tário muitos testificavam falsamente. 14:58 / este templo, edificado por mãos humanas... outro, não feito por mãos humanas: a frase por mãos humanas (lit., “feito por mãos”) é tradução de uma expressão usada na tradução grega do AT para descrever os “ídolos” das nações gentílicas (veja Levítico 26:1, 30; Isaías 2:18; 10:11; 19:1; 21:9; 31:7). Assim, o templo é descrito como objeto humano que não tem maior valor do que as imagens pagãs. A mesma expressão aparece em Atos 7:48; 17:24; Efésios 2:11; Hebreus 9:11,24, com referência a templos e rituais considerados sem valor, ou muito inferiores à redenção concedida por Cristo. O termo traduzido não feito por mãos humanas (lit., “não feito por mãos”) é outra expressão não encontrada (por enquanto) fora do NT (2 Coríntios 5:1; Colossenses 2:11), dando conotação de idéia de validade ou aprovação de Deus, para qualquer coisa que o termo esteja designando. O texto paralelo de Mateus 26:60-61 não emprega esta expressão feita ao descrever a acusação assacada contra Jesus, o que demonstra que Marcos redigiu a acusação com muito cuidado a fim de salientar seu ponto central nessa discussão. Lucas não se refere a esta acusação em seu relato. João 2:18-22 atribui uma palavra semelhante a Jesus, mas com toda clareza esse evangelista faz que tal palavra se refira à ressurreição de Jesus. Pode haver aí também uma alusão a Isaías 66:1 -2, que critica o templo como sendo a morada de Deus. No relato da crucificação, as pessoas zombam de Jesus, atirando-lhe a mesma acusação (15:29-30), e em 15:38, Marcos nos fala de um sinal segundo o qual o templo judaico tornou-se destituído de valor pela morte de Jesus. (Veja também a discussão de 11:15-19). 14:61 / o Cristo, o Filho do Deus Bendito: adjetivos como esse, bendito, eram usados no judaísmo antigo como substitutos de referências diretas a Deus, pela reverência dedicada ao Senhor. A colocação das duas designações, o Cristo, e o Filho do Deus Bendito juntas, demonstra que Marcos as considerava de algum modo sinônimas (cp. 1:1). 14:62 / Eu sou: talvez deva ser tomado como afirmação direta, em resposta à pergunta do sumo sacerdote, e alusão à autodesignação de Deus com que os leitores do AT em grego estavam familiarizados (veja nota sobre 6:50). Assim, os leitores de Marcos podem verificar que a resposta de Jesus fica num nível mais profundo, como afirmativa de sua posição divina! Cp. as respostas regis­ tradas em Mateus 26:64 e Lucas 22:67-70; as diferenças sugerem que a versão

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de Lucas tem o objetivo determinado de enfatizar o ponto aqui sugerido. O Filho do homem assentado à direita do Todo-poderoso, e vindo sobre as nuvens do céu: o termo Todo-poderoso é tradução da palavra grega para “poder”, sendo outro sinônimo reverente para Deus (Lane, p. 537). A descrição da exaltação futura do Filho do homem ecoa Daniel 7:13-14 (em que “um como o Filho do homem” recebe poder de governo da parte de Deus), e Salmo 110:1 (em que alguém descrito como “meu Senhor” recebe cetro de autoridade à mão direita [lugar em que se assenta] de Deus). Essas mesmas passagens do AT são mencionadas em passagens anteriores de Marcos, em que há indícios da futura glória de Jesus (8:38; 13:26; 12:35-37; e notas sobre estes versículos). É duvidoso que Marcos tenha tomado as palavras e vereis (v. 62) como signifi­ cando que o retorno glorioso de Cristo aconteceria no período de vida dos membros do concílio judaico. Em vez disso, Marcos talvez tenha tomado essas palavras como certeza inabalável de que essa profecia se cumpriria, e que os que agora condenavam Jesus verificariam, no dia do julgamento final, como estavam errados. 14:63 / rasgou as suas vestes: não é provável que o sumo sacerdote estivesse usando o vestuário sacerdotal especial, dos dias santificados, porque era guar­ dado pelo governador romano e emprestado ao sumo sacerdote somente nesses dias — para que se indicasse quem estava ocupando o cargo. Rasgar as próprias roupas era um sinal de grande tristeza (veja 2 Reis 19:1), indicativa de que o sumo sacerdote julgou a resposta de Jesus ultrajante demais. 14:64 / a blasfêmia: mais tarde, a lei rabír.ica restringiria a definição de blasfêmia à pronúncia explícita do nome de Deus (Iavé) de modo irreverente (com base em Levítico 24:15-16); todavia, não se deve presumir que tão estreita definição desse sacrilégio estivesse em vigor nos dias de Jesus. Tem sido afirmado inúmeras vezes que não existe evidência de que o fato de alguém afirmar ser o Messias constituísse blasfêmia, e muitos eruditos não conseguem ver crime aqui. A solução pode estar numa combinação de fatores a respeito da resposta e do ministério de Jesus. Primeiramente, a descrição da futura exaltação do Filho do homem (v. 62) atribui a esta personagem uma posição próxima ao próprio Deus; pode ser que esta vindicação de posição quase divina feita por Jesus constituísse pelo menos parte da ofensa (cp. também comentários sobre 13:26-27). Em segundo lugar, há razões suficientes para acreditar-se que o ministério de Jesus envolvia ensinos e ações considerados, pelos líderes judaicos escrupulosos, como quebra da lei de Deus e incentivo a que outros viessem a fazer o mesmo (veja 2:1-3:6; 11:15-19; e comentários desses versículos). Se Jesus declarasse ter vindo da parte de Deus a fim de fazer e ensinar essas coisas, não é de surpreender que alguns líderes judeus achassem ser ele culpado de “desviar” o povo (Deuteronômio 13:1 -5) e de trazer ignomínia ao nome de Deus (Levítico 24:15-16). Se Jesus admitisse ser o Messias (como no v. 62) ou desse a entender que era o Messias, poderia ter sido considerado

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alguém que vindicava justificação divina para ações tidas como injuriosas, a saber, violações da lei de Deus. O termo blasfêmia, portanto, talvez seja equivalente, aqui, à zombaria contra Deus. (Veja “Blasphemy”, IDB, vol. 1, p. 445; Lane, pp. 538-39). Obviamente, trata-se de um termo importante em Marcos; seu emprego aqui reflete o gosto de Marcos pela ironia. Em 2:7, Jesus é acusado de blasfêmia ao perdoar os pecados de um homem, visto ser o perdão uma prerrogativa de Deus e de ninguém mais. Todavia, os acusadores não entendem que Jesus tem essa autoridade, sendo eles próprios, em realidade, os verdadeiros culpados de “blasfêmia”, ao aplicar tratamento tão aviltante ao Filho de Deus. Em 3:8, Jesus adverte-nos solenemente contra a blasfêmia contra o Espírito Santo (veja comentário). Repetidamente os críticos de Jesus o acusam de pecados que eles próprios vêm cometendo, ao recusar-se a reconhecer a exatidão e justeza das vindicações de Jesus! Finalmente em 15:29, Marcos transcreve os insultos dos circunstantes, chamando-os de blasfemadores (a NIV obscurece este fato; veja nota sobre este versículo), confirmando que não é Jesus, mas seus adversários que são culpados deste pecado. 14:65 / profetiza: com este verbo, as autoridades e guardas judaicos escar­ necem de Jesus e da idéia de ter ele sido enviado por Deus, tendo poderes proféticos. Este escárnio judaico deve ser visto ao lado do registro posterior do escárnio romano, em 15:16-20 (veja comentário sobre esta passagem). 14:68 / Não o conheço, nem sei o que dizes: tais palavras implicam que Pedro não sabe absolutamente nada do que lhe é perguntado, o que, na realidade, é mentira deslavada! “e o galo cantou:” esta frase não se encontra em alguns manuscritos antigos de Marcos; é possível que tenha sido inserida por alguns copistas, a fim de dar sentido ao v. 72, onde se lê que houve um segundo canto do galo. Todavia, é mais provável que tenha sido omitido pelos copistas, desejosos de harmonizar o relato com as passagens paralelas de Mateus (26:69­ 75) e Lucas (22:56-62) que mencionam um único canto de galo. 14:70 / ele o negou outra vez: o verbo “negar” é a palavra empregada por Jesus ao profetizar o fracasso de Pedro, em 14:30-31. O termo ocorre aqui e no v. 68. Nestes versículos, Pedro nega a acusação que lhe faz uma criada, mas ao fazê-lo, nega a Jesus. és galileu: Mateus 26:73 diz que o sotaque de Pedro indicava ser ele do norte da Palestina, e não da Judéia. Esta ligação de Jesus e os doze com a Galiléia indica que Jesus era popularmente conhecido nessas áreas, e identificado de modo íntimo com a Judéia. A Galiléia foi a área de onde surgiram vários líderes da rebelião judaica contra Roma na época de Jesus. 14:72 / imediatamente o galo cantou segunda vez: relatórios sobre os hábitos de os galos cantarem na Palestina indicam que o primeiro canto ocorre cerca de meia-noite e meia; o segundo canto, cerca de 1:30 da madrugada e o terceiro canto cerca de uma hora depois do segundo. O período da madrugada

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conhecido como “cântico do galo” estendia-se da meia-noite até cerca de 3 horas nas vigílias da noite observadas pelos antigos militares na Palestina. Assim, o tempo decorrido entre a primeira negação de Pedro e a última é calculado em uma hora, no máximo. (Veja Lane, p. 543, quanto a referências de literatura).

29. Entregue aos Gentios (Marcos 15:1 -20)

15:1-5 / N esta passagem , os líderes judaicos reúnem -se a fim de tom ar um a decisão form al acerca de Jesus (v .l); entregam -no a Pilatos, o governador rom ano, cujo interrogatório a que subm ete Jesus é narrado com brevidade (vv. 2-5). Os três sinóticos registram uma reunião m atu­ tina do sinédrio para tratar da questão de Jesus (cp. M ateus 27:1; Lucas 22:66), o que constitui evidência adicional de que qualquer audiência durante a noite deve ter sido para interrogatório, ou algum tipo de audiência anterior ao julgam ento, e não um julgam ento formal. De outra forma, não seria necessária um a reunião adicional pela manhã. Os sinóticos não nos dão as razões por que Jesus foi levado a Pilatos, mas em João 18:31 somos inform ados de que o sinédrio não tinha o direito de m andar executar crim inosos. Alguns eruditos têm objetado contra isso; tam bém há razões suficientes para que se aceite a tradição com o sendo correta (veja “Trial o f Jesus”, IDBSup, pp. 917-19). É interessante notar, todavia, que em bora as acusações contra Jesus, no julgam ento perante as autoridades judaicas, têm natureza religiosa (am eaças contra o tem plo, 14:57-58; “blasfêm ia”, 14:64), a pergunta de Pilatos em 15:2 sugere que ao levar Jesus perante o tribunal rom ano, as autoridades judaicas o acusaram de sedição, porque se alguém afirm asse ser rei, naquelas circunstâncias, seria culpado de sedição. M arcos 15:3-4 refere-se sim plesm ente a m uitas coisas, sem especificar as acusações, mas Lucas 23:2 é mais específico, relacionando as acusações segundo as quais Jesus advogava a sonegação dos im postos devidos a Rom a, e afirm ava ser o M essias, o rei dos judeus. E certo que há muitas razões para que creiam os que pelo m enos esta últim a acusação tenha sido atirada contra o Senhor, visto que tem os não só a tradição, representada pelos evangelhos, mas tam bém o fato da crucificação de Jesus, m eio de execução destinada pelos rom anos aos crim inosos considerados rebeldes (veja Dr. Hengel, Crucifixion [Filadélfia: Fortress, 1977]). Assim , seja o que for que ocupe nosso pensam ento a respeito da natureza da com ­ preensão que o próprio Jesus tinha de sua missão, e de sua Pessoa, as evidências nos dão a entender que as autoridades julgaram adequado considerar que Jesus constituía grave perigo que precisava ser elim inado.

(Marcos 15:1-20)

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Por outro lado, essas evidências dão a entender que não im portando até que ponto Jesus tinha sido indireto em sua m aneira de anunciar uma perspectiva sobre sua própria Pessoa, teria havido algo, em seu m inisté­ rio, que representou razão suficiente para que as autoridades religiosas judaicas o crucificassem com o falso pretendente ao m essianism o. Assim, a afirm ação da igreja prim itiva de que Jesus é o M essias (o Cristo) não parece estar ligada àquele tipo de m inistério praticado pelo Jesus histó­ rico; a crucificação é evidência sólida de que a idéia de que Jesus seria o M essias não foi inventada pela igreja após a execução do Senhor. N o relato de M arcos do julgam ento perante as autoridades judaicas, Jesus perm anece silencioso à face de todas aquelas acusações (14:55-61), até que se lhe perguntam de modo direto se ele é o M essias (14:61). Aí, 0 Senhor confessa abertam ente quem é (14:62). No julgam ento perante Pilatos, Jesus perm anece em silêncio de novo, e desta vez nada diz (15:3-5), exceto quanto a um a resposta cautelosa, no v. 2 (tu o dizes). E ste silêncio de Jesus parece servir a dois propósitos. Prim eiro, dá aos leitores um bom exem plo de um a pessoa que se recusa a defender-se num julgam ento religioso, em obediência às instruções dadas em 13:1, para que o cristão não se ponha a planejar defesas, mas confie em que o Espírito Santo lhe dará um bom testem unho do Evangelho (cp. tam bém 1 Tim óteo 6:13). Segundo, o silêncio de Jesus parece ligar-se às falsas acusações por parte das testem unhas do tribunal judaico, e às acusações dos principais sacerdotes, em 15:3, as quais tam bém devem ser entendidas com o “falsas”. O silêncio de Jesus dá a entender aos leitores que há algum a coisa errada nas acusações, que elas não representam de modo ju sto o que Jesus verdadeiram ente é, num sentido sério. Por exemplo, as falsas testem unhas de 14:55-60 acusaram Jesus de am eaçar o tem plo com destruição. Com o dem onstra nosso com entário dessa passagem , tal acusação foi considerada “falso testem unho” por M arcos, porque o que ficou registrado com o palavras de Jesus foi a predição da destruição do tem plo. A acusação de 15:3 e a pergunta de Pilatos em 15:2 dão a entender que Jesus cham ava a si próprio de rei, opondo-se ao im perador. Do ponto de vista de M arcos, essa declaração sobre Jesus tam bém é incorreta, sendo, pois, outra acusação falsa. Entretanto, m ais coisas poderiam ser ditas, além de essas acusações serem falsas. A ssim com o as falsas testem unhas no julgam ento judaico

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inconscientem ente dão indícios do verdadeiro significado de Jesus, com o alguém que veio substituir o tem plo (veja com entário sobre 14:55-60), a acusação de que Jesus procurava ser rei dá mostras, de modo bastante irônico, de algo que M arcos considera verdadeiro a respeito de Jesus. A inda que Jesus não seja m ero pretendente ao trono dos judeus, um rebelde revolucionário que procura desestabilizar os rom anos na Pales­ tina, à sem elhança de outros revolucionários dessa época (talvez com o B arrabás? 15:6-15), M arcos considera Jesus com o o Cristo e, portanto, o verdadeiro rei de Israel (1:1; 8:29; 14:61-62). Assim, as autoridades judaicas, inclusive Pilatos, de certo m odo procuram o verdadeiro sentido da pessoa de Jesus sem percebê-lo, tencionando dizer algo diferente; e isso dem onstra a cegueira deles, a incapacidade de ver a verdade. Essa nota de ironia que reaparece em 15:1-5 aparentem ente controla o resto do relato da execução de Jesus, com o verem os no com entário da narrativa seguinte. E o significado cheio de ironia do term o “rei dos judeus”, e sua form a alternativa, “rei de Israel” , que explica a razão de tal título aparecer seis vezes só neste capítulo (cp. quatro vezes em M ateus 27 e quatro em Lucas 23). Pilatos e as autoridades judaicas têm em mente um rei terreno, e atiram esse term o à face de Jesus, ridicularizando-o em sua aparente incapacidade de defesa estando entregue em suas mãos. Todavia, os leitores de M arcos sabem que, pelo fato indiscutível de Jesus ser real­ m ente o Filho de Deus, o portador da essência divina (1:1,11; 9:7), Jesus é de fato o rei de Israel. 15:6-15 / Todos os quatro evangelhos fazem conexão entre a sentença de m orte aplicada a Jesus e à libertação de Barrabás (cp. M ateus 2 7 :15­ 26; Lucas 23:18-25; João 18:38-40). Essa tradição m ostra duas coisas. Prim eira: o clam or da turba em prol de Barrabás, o crim inoso, dem onstra a total cegueira de Israel ao pedir que o culpado seja solto e o inocente (Jesus), executado. Segunda: parece haver um a reflexão sobre o signifi­ cado teológico mais profundo da morte de Jesus, vista pelos cristãos prim itivos, que interpretaram a morte de Jesus com o “resgate” substitu­ tivo, em benefício dos pecadores (cp. M arcos 10:45). A libertação de Barrabás talvez tenha dram atizado para os prim eiros cristãos o livram en­ to que eles próprios receberam , a saber, o perdão da culpa de seus pecados em virtude da m orte vicária de Cristo. Em M arcos, a libertação de Barrabás tam bém se enquadra bem no contexto geral de ironia que cercou a execução de Jesus. O Senhor foi

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acusado de ser revolucionário rebelde, um usurpador pretensioso do reinado sobre os judeus (15:2-3), o que constitui falsa acusação na perspectiva de M arcos (veja com entário de 15:1-5). Barrabás, que é taxado de revolucionário (15:7) e assassino é solto, ao passo que Jesus é executado com base nas acusações falsas que lhe lançam , as quais seriam apropriadas ao crim inoso que acaba ganhando a liberdade. O costum e m encionado em 15:6 de soltar-se um prisioneiro durante a páscoa não é m encionado de m odo específico noutras fontes históricas dessa época (veja Josefo), sendo considerado por alguns eruditos com o invencionice lendária. Todavia, este é um argum ento que parte do silêncio. Visto que os quatro evangelhos o m encionam , deveria ser costum e bem entranhado na tradição com um da antigüidade, com parti­ lhada por todos os cristãos. Não se deve desconsiderar um a tradição que havia recebido tão grande apoio. Além disso, há indícios da prática de soltar-se um prisioneiro por ocasião da páscoa na antiga codificação do ensino rabínico, cham ada M isna (veja Lane, pp. 552-53, quanto a um a discussão do assunto e referências literárias). Pilatos pressente que Jesus talvez fosse inofensivo no que concerne a Roma, e que os esforços das autoridades religiosas sacerdotais no sentido de condená-lo tivesse raízes na inveja (15:10). Contudo, isso não signi­ fica que Pilatos era basicam ente hom em justo, nem que seu desejo de libertar Jesus tinha m otivações nobres. É provável que, tendo ficado satisfeito por Jesus não ser um revolucionário, Pilatos concluísse tam bém que o Senhor constituía apenas um espinho na ilharga dos líderes judeus. A questão perturbadora entre eles era m ais um a controvérsia religiosa, daquelas que Pilatos considerava estúpidas, e que estavam sem pre afli­ gindo os judeus. V isto que aparentem ente Pilatos dem onstrasse pouco interesse pela sensibilidade judaica acerca de questões religiosas, e tivesse tido problem as com o sacerdócio judaico em várias ocasiões (veja nota), talvez ele tenha encontrado aqui excelente oportunidade para irritá-los ao m áxim o ao libertar alguém a quem eles queriam elim inar a qualquer custo. A m otivação de Pilatos, que lhe im pelia o desejo de soltar a Jesus, talvez fosse o desejo de dificultar ao m áxim o a vida daqueles tolos religiosos, de m odo que deixassem de ter tem po para vir perturbálo. Fosse qual fosse a natureza de sua m otivação, Pilatos finalm ente concorda com a exigência do populacho e entrega-lhe Jesus para que seja

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supliciado. A ssim , em bora a tradição dos evangelhos retrate os líderes judaicos com o os grandes responsáveis pela execução de Jesus, ficou bem claro que foi a autoridade rom ana que, na verdade, condenou e executou Jesus. A tendência muito infeliz e lam entável de m uitos cris­ tãos, ao longo da história, de jo g ar a responsabilidade pela m orte de Jesus única e exclusivam ente nas costas das autoridades judaicas (e de m odo indireto, sobre todo o povo judeu, com o um todo), representa distorção forte da tradição do Evangelho, devendo ser rejeitada tanto por razões históricas quanto religiosas. C onquanto seja verdade que os escritores do Evangelho acusam as autoridades judaicas de cegueira e intenções diabólicas ao levar Jesus a Pilatos, não tinham o desejo de justificar as atitudes anti-sem íticas de gerações futuras. Antes, desejavam enfatizar que a rejeição de Jesus pelas autoridades judaicas era a rejeição do Cristo de Deus, que encarnou e cum priu as antigas esperanças m essiânicas dos antigos judeus quanto à salvação. Ao m esm o tempo, todos os evangelhos concordam que a execução de Jesus foi controlada por autoridades políticas, os gentios (romanos), e por isso colocam a culpa da m orte de Jesus tanto sobre os representantes dos judeus quanto sobre os dos gentios. Isto fica indicado em M arcos, por exemplo, pelo uso do m esm o verbo “entregar” para descrever as ações dos sacerdotes (v. 10) e as de Pilatos (v. 15), verbo que, em M arcos, tem significado teológico bem definido (veja notas). 15:16-20 / Com o vimos no com entário da passagem anterior (15:6­ 15), o m étodo rom ano de execução de crim inosos por crucificação exigia m uito m ais do que sim plesm ente pendurar a vítim a num a cruz até à morte. A m orte na cruz com preendia a degradação com pleta da vítima, e torturas sem limites. Isto fazia da crucificação o sistem a punitivo m ais tem ido do m undo antigo. Nestes versículos, tem os a descrição abreviada das crueldades infligidas a Jesus. Entretanto, o propósito de M arcos não era enfatizar o sofrim ento físico suportado por Jesus, m as antes, as vilezas que sofreu a despeito de ser quem era. Assim, M arcos nada diz, virtualm ente, a respeito das reações de Jesus às indignidades que lhe atiraram ; as ações dos soldados nos são apresentadas com o exem plos de escárnio criados em torno da idéia de Jesus ser um rei. O uso zom beteiro que Pilatos faz do título rei dos ju d eu s se repete (v. 18), o m anto de púrpura, a coroa de espinhos, a adoração de joelhos diante de Jesus, tudo isso acom panhado de pancadas e cusparadas no Senhor, são as brinca­

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deiras jocosas e cruéis dos soldados que escarnecem de Jesus com o rei. Com o antes, o propósito de M arcos aqui é salientar a ironia dessas farsas, visto que Jesus é na realidade o rei de Israel. Tam bém é interessante com parar a descrição da zom baria contra Jesus pelos soldados rom anos, com a descrição anterior da zom baria infligida a Jesus pelas autoridades e guardas judaicos (14:65). Há sim ilaridades; em am bas as cenas, Jesus é espancado, cuspido e ridicularizado. Todavia, existe um a diferença notável. No relato do escarnecim ento da parte dos judeus, o que eles ridicularizavam era a idéia de Jesus ser profeta, ou alguém dotado de poderes divinos (“profetiza” , 14:65; veja nota sobre este versículo). N este relato, é a pretensa realeza de Jesus que está sendo ridicularizada. A diferença é com preensível: as acusações contra Jesus na audiência judaica eram de natureza religiosa, enquanto que as acusa­ ções perante Pilatos eram políticas. D eve-se notar tam bém , à luz da tendência posterior da parte de um a ala de cristãos de enfatizar a responsabilidade judaica pela m orte de Jesus, que M arcos apresenta uma zom baria contra Jesus produzida pelos judeus, e outra produzida pelos rom anos, dem onstrando, assim, que de m aneira algum a os rom anos executaram Jesus contra sua vontade. A o contrário, deliciaram -se cruel­ m ente ao supliciar o Senhor.

Notas Adicionais #29 15:1 / e o entregaram: é termo que ocorre várias vezes em Marcos (cp. 1:14, prisão de João Batista; 3:19; 14:10, 11, 18, 21, 41-44, traição de Judas contra Jesus, 9:31; 10:33, predições da morte de Jesus; 13:9-12, prisão e traição contra os discípulos; 15:10, 15, ações dos sacerdotes e de Pilatos, ao condenar Jesus) e quase sempre há uma conotação sinistra, descrevendo várias traições e a prisão de João Batista, de Jesus ou de seus discípulos. Tanto os líderes judaicos aqui e em 15:10, e Pilatos em 15:15, entregaram Jesus, pelo que compartilham juntos a culpa da iniqüidade de assassinar Jesus. Pôncio Pilatos foi o governador romano da Judéia de 26 a 36 d.C., e dele afirmam Josefo e Filo (autores judeus antigos) que manteve um relacionamento tempestuoso com o povo judeu por causa de seu estilo malicioso e cruel de governar. Por fim, foi deposto e enviado a Roma, por causa de queixas que os judeus apresentaram contra ele. Nos relatos dos evangelhos sobre a execução de Jesus, as referências a Pilatos concordam em geral com esse retrato; todavia, lendas cristãs posteriores às vezes o transformam em herói, e até mesmo em convertido a Cristo! Entretanto, tais circunvoluções lendárias devem ser consi­ deradas mentirosas e desencaminhadoras; o leitor deve evitar as noções roman-

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tizadas a respeito de um Pilatos travestido de nobreza, um personagem justo, forçado a cometer um crime contra suas convicções. A referência de Mateus 27:19 à esposa de Pilatos, e a de Mateus 27:24-25, a Pilatos lavando as mãos, não são mencionadas em Marcos, e poderiam ter contribuído para o primeiro estágio do desenvolvimento das lendas que culminaram transformando Pilatos em santo (de fato, Pilatos é um santo da igreja copta do Egito). Lucas 23:6-16 faz referência a uma audiência perante Herodes Antipas, bem como a um julgamento perante Pilatos, mas tal relato é exclusivo de Lucas (cp. “ Pilate, Pontius” , IDB, vol. 3, pp. 811-13; e IDBSup, p. 668). 15:5 / Pilatos se maravilhava: a reação de Pilatos, aqui, perante Jesus, é semelhante à reação de outras personagens em Marcos; todavia, o maravilhar-se é sempre posto em drástico contraste à compreensão completa e à fé (cp. 1:27; 5:20; 10:24, 32; 15:44). 15:6 / no dia da festa: refere-se à páscoa e aos sete dias dos pães asmos. 15:7 / Barrabás: significa “ filho de Aba [pai]” , nome de inúmeras pessoas, inclusive alguns rabis (veja Lane, p. 554). Esse nome pode indicar que se tratava do filho de um personagem judaico preeminente naquela época. Consta que Barrabás teria cometido um assassinato na revolta, termo usado com freqüência a fim de designar uma rebelião, o que levou alguns a achar que ele teria sido um revolucionário à maneira dos zelotes. Em alguns manuscritos de Mateus, é chamado Jesus Barrabás, em Mateus 27:16-17; todavia, tais manuscritos não são as melhores testemunhas do texto original grego dos evangelhos. No entanto, é possível que esse fosse de fato seu nome completo, visto que Jesus era nome comum entre os judeus da época (trata-se simplesmente de corruptela do nome de Josué, o grande herói da conquista da Palestina, no livro do AT que leva seu nome). Veja “ Barabbas” , IDB, vol. 1, p. 353; Lane, p. 554. 15:9 / o rei dos judeus: é a segunda vez que Pilatos emprega esse título (cp. v. 2); em ambos os casos ele talvez o usasse por zombaria contra Jesus e tudo que fosse judeu. Noutras palavras, Pilatos via naquele Jesus desamparado, de pé à sua frente, um exemplo hilário das vãs esperanças dos judeus, frente à poderosa Roma imperial. Cp. também v. 12, em que Pilatos emprega o mesmo título de novo. E título usado várias vezes de propósito pelos romanos em 15:18, em que os soldados escarnecem de Jesus, e em 15:26, em que o título envolto em zombaria é colocado acima da cabeça de Jesus crucificado. Em contraste, quando as autoridades judaicas falam, empregam o termo “ rei de Israel” , (v. 32). 15:10 / por inveja: é provável que Marcos tencionasse caracterizar assim os principais sacerdotes, cheios de ressentimento por causa do apelo popular do ministério de Jesus, em Jerusalém, como na Galiléia (veja 12:12, 37b). O fato de Jesus haver condenado a liderança sacerdotal, ao expulsar os vendilhões do templo (os quais tinham consentimento formal para instalar suas tendas ali,

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autorização dada pelo sumo sacerdote) teria sido a gota d’água que fez trans­ bordar o cálice, a saber, isso obrigou as autoridades religiosas a tomar providên­ cias contra aquela Pessoa que lhes ameaçava o controle das massas populares. 15:15 / tendo mandado açoitar a Jesus: a palavra grega usada aqui designa a chibata romana, que se constituía de um açoite de tiras de couro a que se prendiam pedaços de osso e metal, ao jeito de corrente. Esse instrumento podia provocar esfolamento, e até dilaceramento da carne, de tal modo que os ossos e entranhas da vítima ficavam à vista, o que ocasionava a morte de alguns condenados sob esse suplício. Não havia regulamentação sobre o número máximo de golpes que o condenado podia receber; o objetivo do castigo, especialmente quando relacionado à crucificação, era infligir o máximo de dor e sofrimento. Os soldados romanos eram incentivados a usar a imaginação ao aplicar a arte da crueldade, de modo que os vv. 16-20 nos dão uma pálida idéia das torturas terríveis que inventavam nesses casos. (Veja Lane, p. 557, quanto a referências às punições, em fontes antigas). 15:16 / para dentro do palácio: literalmente, “para dentro do átrio, que é o pretório”. Há algum desacordo entre os eruditos quanto a se “palácio” é referência à fortaleza romana (Antônia), localizada na área do templo, ou ao palácio de Herodes, que era usado como residência do governador romano em suas visitas a Jerusalém. A tradução NIV parece optar por esta última alternativa, havendo evidências de peso em prol dessa opção. (Veja “Praetorium”, IDB, vol. 3, p. 856; Lane, p. 548). todo o destacamento: implica que Jesus se havia tornado joguete lúdico de toda a tropa de soldados que acompanhavam o governador em Jerusalém. O pelotão destacado para crucificações em geral compunha-se de quatro soldados para cada condenado, sob o comando de um oficial. 15:17 / Vestiram-no de púrpura: a tintura antiga de púrpura era obtida de um crustáceo marítimo, extremamente valioso, do mar Mediterrâneo. Associa­ va-se à realeza, pelo que o vestir Jesus dessa cor significava vil zombaria à declaração de Jesus de que era rei. (Veja “Purple”, IDB, vol. 3, pp. 969-70). uma coroa de espinhos: o objetivo principal desta brincadeira torturante não foi infligir dor física, mas escarnecer do rei palhaço, Jesus. Imagens antigas de coroas reais com freqüência mostravam pontas radiantes, simbólicas da glória que emanava da cabeça do rei. Os cardos e galhos espinhudos assemelhavam-se a tais pontas radiantes das coroas, sendo materiais de fácil acesso, arbustos de acanto, ou palmas. (Veja “Crown”, IDB, vol. 1, pp. 745-46; “Thistle, Thorn”, IDB, vol. 4, pp. 630-31). 15:18 / Salve, rei dos judeus: talvez estas palavras representem a versão grega da saudação romana ao imperador, que aqui é dirigida a Jesus por zombaria. 15:20 / e o vestiram com as suas próprias vestes: Jesus teria sido desnudado a fim de receber a flagelação mencionada no v. 15; depois, o prisioneiro nu teria

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sido enrolado num manto de púrpura como escárnio adicional. Antes de ser conduzido ao lugar da execução, tornaram a vestir Jesus com suas roupas. Depois, no v. 24, o Senhor é desnudado de novo, sendo suas roupas distribuídas entre os soldados encarregados da execução.

30. Crucificado, Morto e Sepultado (Marcos 15:21 -47)

15:21-32 / É notável que o acontecim ento central na história da obediência de Jesus à vontade de Deus seja narrada com extraordinária sim plicidade e econom ia de palavras (com pare a versão de Lucas, em 23:26-43). A m enção de Simão, o judeu cireneu (v. 21), pessoa incluída em todos os relatos sinóticos sobre a crucificação (cp. M ateus 27:32; Lucas 23:26), parece um eco de tradição anterior. Em M arcos, há a referência distintiva a dois filhos desse hom em (Alexandre e Rufo, v. 21), indicando talvez que estes fossem conhecidos dos prim eiros leitores. Tam bém há os detalhes do oferecim ento de vinho m isturado com drogas a Jesus (v. 23), e do jogo de dados para ver quem ganharia a túnica de Jesus (v. 24). A ênfase da passagem , todavia, recai com força e clareza na zom baria cruel dos circunstantes (vv. 25-32), que dão prosseguim ento ao escárnio iniciado na audiência perante as autoridades judaicas (14:65). Esse escarnecim ento de Jesus com pleta o quadro em que ele aparen­ tem ente está indefeso, desam parado de todo, o que se reflete nas refe­ rências à flagelação (15:15), à ridicularização pelos soldados (15:16-20), à exigência de buscar-se alguém que lhe carregasse a haste horizontal da cruz (15:21), ao furto de suas vestes (15:24), e ao cartaz de zom baria pregado à cruz (15:26). A intenção de M arcos ao relatar-nos a execução do Senhor em term os crus é colocar diante do leitor a realidade brutal da hum ilhação de Jesus. Entretanto, no contexto da teologia de M arcos, o leitor deve entender que é exatam ente nessa brutal hum ilhação de Jesus que o propósito redentor de Deus chega a expressar-se. Q uem foi hum ilhado de fato é o servo obediente de Deus, o Filho de Deus, cujo sofrim ento estava no plano e vontade de Deus; o Senhor sofreu “por m uitos” (cp. 10:45). É provável que vários porm enores dessa passagem façam alusão aos sofrim entos de Jesus. Por exem plo, o vinho m isturado com m irra (15:23) pode ser alusão ao Salmo 69:21 (veja notas). A distribuição das vestes de Jesus entre os soldados (15:24) pode ser eco do Salm o 22:18; e a referência aos crim inosos crucificados ao lado de Jesus pode ser alusão a Isaías 53:12, em que o servo de Deus é rejeitado e contado entre “ím pios” e “pecadores” .

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A acusação de que Jesus ameaçou destruir o tem plo e edificar outro, novo, em três dias, é escárnio e eco de outra acusação contra o Senhor, no interrogatório perante as autoridades judaicas em 14:57-59. M as, à sem elhança daquela acusação, o escárnio é, ao m esm o tem po, afirm ação enganosa e predição irônica de algo que, insiste M arcos, a m orte de Jesus significa na realidade. C onform e observam os ao com entar o relato do interrogatório judaico, a acusação acerca do tem plo não reproduz com exatidão o que Jesus havia dito. Todavia, a referência de M arcos, posteriorm ente, na narrativa da crucificação (15:37-38), ao véu do tem ­ plo que se rasga, dá a entender que num sentido mais profundo, m ediante sua m orte Jesus pôs um ponto final na validade do tem plo e, m ediante sua ressurreição “em três dias” , instituiu novo meio de acesso a Deus, um novo tem plo, que é seu corpo ressurreto. O toque final de ironia é o escárnio dos circunstantes, e das autoridades judaicas, o desafio para que Jesus tentasse salvar-se (15:30, 31) e descesse da cruz (15:32) para que cressem que ele é o M essias. Esse desafio sarcástico revela a noção distorcida que tinham sobre o que constituía de fato a obra do servo de Deus, o M essias, e aponta para o cerne da obra de Jesus. Esses escarnecedores lhe dizem: “salvou os outros, m as não pode salvar-se a si m esm o!” e inconscientem ente declaram a verdade da crucificação. A m orte de Jesus é “em resgate por m uitos” (10:45), e precisam ente para salvar esses muitos, Jesus não deve e não pode salvar-se a si mesmo! Já notam os com o M arcos gosta de em pregar ironia, mas tem os aqui o ponto mais alto da ironia em butida em seu texto de todo o Evangelho: os inimigos de Jesus, na sua ignorân­ cia, declaram a verdade central do Evangelho de Cristo. Em seu escárnio, os adversários de Jesus zom beteiram ente se referem a ele com o este Cristo, o rei de Israel; esta expressão indica que os dois term os, C risto e rei de Israel equivalem a sinônimos aqui, e refletem a zom baria judaica com o equivalente da zom baria romana, registrada no alto da cruz de Jesus: o rei dos judeus (v. 26; veja notas). Se entenderm os a ironia de M arcos aqui entenderem os que o evangelista deseja que seus leitores percebam que Jesus é, de fato, o rei de Israel, o M essias de Deus, ainda que a crucificação pareça contradizer todas as formas conhecidas de expectativa judaica sobre qual seria o cam inho que o M essias percorreria quando viesse. A m esm a noção é verdadeira tam bém para os leitores não-judeus. A idéia de que o Filho de Deus seria crucificado era repug­

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nante, difícil de ser aceita (veja a discussão de Paulo sobre as atitudes de judeus e de não-judeus perante a m ensagem do Cristo crucificado, em 1 Coríntios 1:18-25). 15:33-41 / Esta parte da narrativa da execução de Jesus está cheia de eventos dram áticos, incluindo a escuridão do m eio-dia até às 15 horas (hora nona rom ana, v. 33), o brado de Jesus para Deus (v. 34), seu último brado (v. 37), o rasgo do véu do tem plo (v. 38), e a declaração do oficial rom ano (v. 39). Alguns destes eventos, pelo m enos, dão indícios do significado da m orte de Jesus. Por exem plo, a escuridão não só sugere que algo m om entoso estava acontecendo, mas tam bém pode ser alusão a A m ós 8:9 (“N aquele dia, diz o Senhor, farei que o sol se ponha ao m eio-dia, e cobrirei a terra de trevas em pleno dia”), e talvez à praga das trevas (Êxodo 10:21-22) atirada contra o Egito no tempo de M oisés. Se a intenção do evangelista aqui é aludir à praga do Egito, a escuridão (à sem elhança da passagem de Am ós 8:9) seria sinal de julgam ento divino sobre os que rejeitaram a Jesus. O brado de Jesus no v. 34, as únicas palavras proferidas pelo Senhor, na cruz, registradas por M arcos, parecem tam bém ser alusão agora ao Salm o 22:1, a que já fizemos referência em versículos anteriores. Segun­ do alguns eruditos, devem os entender que Jesus estivesse serenamente recitando todo o Salm o 22, que é a oração do justo sob o ataque de seus inim igos. Esse brado não indicaria, então, um a consciência de abandono e desesperança da parte de Jesus. Outros acham que o brado deve ser entendido de form a literal, pois Jesus experim entou em sua m orte tanto o abandono da parte de Deus com o o torm ento dos pecadores pelos quais o Senhor m orreu (assim entende Lane, pp. 572-73). Entretanto, aceitar um a perspectiva e desprezar a outra equivaleria a perder parte do objetivo de M arcos nesta passagem . C ertam ente M arcos tenciona que seus leito­ res com preendam que a m orte de Jesus envolveu sofrim ento e vergonha genuínos, de m odo que qualquer idéia sobre a serenidade de Jesus na cruz não faz justiça ao que sabem os a respeito de crucificação, nem ao relato de M arcos. Entretanto, a citação deste brado de Jesus na cruz tam bém m ostra que a m orte de Jesus foi o cum prim ento do sofrimento do hom em justo, retratado no Salm o 22, significando que Jesus era verdadeiram ente inocente, e que sua m orte estava nos planos de Deus, conform e profecias do AT. A alusão ao Salm o 22:1 não objetivava prover algum a introspecção na psicologia de Jesus, m as revelar o significado

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desse acontecimento. Grande parte da discussão acerca das palavras de Jesus aqui vai além do texto, porque são debates motivados por interesses psicológicos ou doutrinários que não faziam parte do propósito de Marcos. (Quanto aos problemas a respeito de palavras semíticas mencionadas aqui, veja notas). As palavras com que Jesus se dirige a Deus, Eloí, Eloí, são mal interpre­ tadas por alguns circunstantes ao redor da cruz, como se fora um apelo dirigido ao profeta Elias, mencionado em antiga tradição judaica em cone­ xão com o surgimento final do reino de Deus (veja notas). Esta má compreensão demonstra de novo quão longe da verdade estavam aqueles circunstantes, pois, não só interpretam mal as palavras de Jesus, como também cometem no erro de presumir que Jesus está suplicando para ser liberto da cruz (v. 36). Todavia, Marcos já mostrou a seus leitores que o “Elias” já viera na pessoa de João Batista, e que esse Elias não viera com o objetivo de introduzir de imediato o reino vitorioso de Deus, com aparência externa, mas convocar Israel ao arrependimento (1:4-5), e preparar o caminho para Jesus, o Messias (1:1-3, 9-11). Marcos também mostrou a seus leitores que esse “Elias” havia preparado o caminho para a obra de Jesus, de modo específico, ao ser rejeitado e condenado a morte violenta (6:14-29; 9:11-13). E irônico que esses circunstantes esperem para ver se Elias virá salvar Jesus da cruz, quando na realidade “Elias” já havia chegado, e já havia sido executado, prefigurando a própria morte de Jesus. Os circunstantes falam de Elias, nada sabendo dele, da mesma form a que escarnecem de Jesus como sendo um falso Messias (v. 32), mas na verdade não entendem as palavras que usam. Contrastando com a curiosidade mal orientada dos circunstantes, Marcos relata a seguir um evento que significa que na verdade Jesus é o M essias, e que sua morte não representa derrota, mas vitória. O “grande brado” de Jesus no momento de sua morte (v. 37) se faz acompanhar do rasgar do véu do templo (v. 38, veja notas), significando ao que parece que a morte de Jesus provê nova base para termos acesso a Deus, a saber, um novo “tem plo”. O templo de Jerusalém (e tudo quanto ele representava) fica substituído. Assim é que o templo, a principal instituição da tradição judaica, que rejeitou a Jesus, agora nada mais vale. Uma antiga tradição judaica dizia que o M essias haveria de restaurar o templo, ou reconstruí-lo. Parece, todavia, que M arcos está modificando essa tradição ao afirmar que mediante a morte de Jesus, o Messias, o velho tem plo se tornava obsoleto. Este incidente, ao

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lado do m odo com o M arcos retrata a acusação contra Jesus, de que o Senhor havia am eaçado destruir o tem plo e construir outro “em três dias” , tam bém nos dá a entender que este M essias de fato constrói um novo tem plo, porém de tipo diferente, “não feito por m ãos hum anas” : seu corpo ressurreto (veja com entários sobre 14:58). Talvez m ais notável que qualquer outra declaração hum ana daqueles instantes, entretanto, seja a que saiu dos lábios do soldado rom ano ao pé da cruz: V erdadeiram ente este hom em era o Filho de Deus! C onquan­ to tal declaração pronunciada por um soldado rom ano tenha sentido diferente, como: “Este hom em com portou-se com o um herói divino”, assem elhando Jesus aos ideais da tradição popular helenística concer­ nente à religião, M arcos orienta seus leitores de m odo que interpretem essa declaração com o confissão cheia de ironia do verdadeiro significado de Jesus. A declaração é irônica porque esse gentio que participou da execução de Jesus é o único caráter hum ano em M arcos, que em prega o título Filho de Deus para Jesus. N outra passagem , o term o é em pregado por Deus no batism o de Jesus (1:11), e na transfiguração (9:7), e por dem ônios em diversas situações (3:11; 5:7; cp. 1:2 4 ,34). Nunca, todavia, por um ser hum ano (os dem oníacos são retratados com o instrum entos usados pelos dem ônios, a quem serviam de porta-vozes). (Em 1:1, M arcos dá a Jesus o título de “Filho de D eus” bem com o de “C risto” , com o descrições adequadas de seu significado). C om parando-se as passagens paralelas de M ateus 27:54 e Lucas 23:47, vemos que, em bora M ateus diga que o soldado fez a m esm a declaração, Lucas relata-o de m odo um tanto diferente (“N a verdade este hom em era ju sto ”), dando a entender que a forma de M arcos relatar talvez tenha sido deliberada, objetivando cham ar a atenção. Tal pronunciam en­ to nos lábios de um soldado rom ano m ostra, de modo irônico, que o soldado está proclam ando o verdadeiro significado de Jesus, em contras­ te com a zom baria mal orientada dos dem ais circunstantes. Talvez prefigurasse a proclam ação do evangelho a todas as nações, m ediante a qual muito gentios viriam confessar Jesus com o o Filho de D eus, o Cristo. M arcos não dá a entender que o soldado sabia o significado de seu pronunciam ento (veja notas), mas, antes, que a declaração dele teria significado bem m aior do que ele poderia imaginar. Ao colocar essa declaração nesse contexto, M arcos ajuda seus leitores a perceber esse significado m ais profundo.

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O últim o item nessa passagem é a referência a diversas m ulheres que testem unharam a crucificação (vv. 40-41). Essas m esm as m ulheres são m encionadas em 16:1 a cam inho do túm ulo em que Jesus havia sido sepultado, encontrando-se lá com “ um jovem ” que lhes anuncia que Jesus ressuscitou dentre os mortos (16:5-8). A m enção dessas mulheres atinge dois objetivos. Prim eiro, há o contraste óbvio entre os discípulos — os apóstolos escolhidos — que fugiram, negando a Jesus, e as m ulhe­ res que perm aneceram fielm ente ao lado de Jesus. Tais mulheres exibem a coragem e a devoção que esperaríam os encontrar nos apóstolos. M ostrar m ulheres com o personagens que m odelam o discipulado cristão faz parte do gosto de M arcos pela ironia; é que no m undo antigo (e, infelizm ente, ainda hoje) as mulheres eram consideradas sím bolo da fraqueza. Em outras palavras, M arcos inverte os estereótipos sobre a m ulher, ao afirm ar que estas m ulheres foram as únicas que tiveram coragem suficiente para seguir a Jesus até à cruz, as únicas no relato da paixão de Cristo que não negaram a Jesus, nem o ridicularizaram . Em segundo lugar, a m enção aqui dessas m ulheres, torna-as elos hum anos entre a crucificação de Jesus e sua ressurreição. Em 15:47, duas delas são m encionadas com o tendo visto onde Jesus havia sido sepultado, e em 16:1-8, retornam ao túm ulo a fim de cuidar do corpo de Jesus, e tornar-se as prim eiras testem unhas da ressurreição. Assim, em cada estágio crucial dos principais eventos do Evangelho, a crucificação, o sepultam ento e a ressurreição (cp. 1 C oríntios 15:1-4), essas m ulheres são m encionadas dando grande destaque a tais eventos, sendo elas testem unhas e garantias do que aconteceu. As m esm as m ulheres que viram Jesus ser crucificado foram as prim eiras a verem o túm ulo vazio, as prim eiras a ouvirem as boas novas do Senhor ressurreto. E bem possível que houvesse um forte desejo de enfatizar-se a realidade de todos os eventos, ao enfatizar a presença dessas m ulheres perante tais eventos. É óbvio que, à luz da m arginalização das m ulheres na prática cristã subseqüente, o fato de M arcos as retratar assim, sugere que a elas estaria reservado um papel m uito mais positivo nas com unidades cristãs prim itivas. 15:42-47 / Segundo o costum e rom ano, um crim inoso que fosse executado por traição (acusação lançada contra Jesus) norm alm ente não recebia sepultura; seria abandonado na cruz a fim de o cadáver ser devorado pelas feras e abutres. Só m ediante perm issão especial do

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m agistrado rom ano poderia tal crim inoso receber sepultura com um ; todavia, ainda assim era proibido lam entar-lhe a morte. Em contraste, o costum e judeu determ inava que até os crim inosos deveriam receber sepultura, no m esm o dia em que m orressem se possível. D eixar de pôr em prática esse costum e era vilipendiar a terra, de m odo que os judeus piedosos sentiam -se obrigados a conceder sepultura até m esm o a seus inim igos (veja D euteronôm io 2 1 :22-23, a base bíblica do costum e ju d ai­ co). É preciso ver os atos de José de A rim atéia à luz deste contexto religioso. José procura sepultar Jesus porque a lei judaica proibia que um cadáver fosse deixado exposto após o dia da morte, e tam bém porque ao p ôr do sol desse dia iniciava-se o sábado (v. 42). Assim, a vergonha de o corpo de Jesus ser abandonado na cruz seria m aior ainda, aviltando o dia sagrado da semana. Visto que Jesus havia sido executado por traição contra Rom a, som ente Pilatos podia conceder perm issão para o sepultam ento (v. 43). É possível que Pilatos tenha atendido ao pedido por julgar que a crucificação de Jesus havia posto fim eficaz a quaisquer tendências revolucionárias da parte do crucificado e de seus seguidores, ou que talvez ele quisesse evitar distúrbios, pois estes poderiam surgir caso não honrasse a sensibilidade judaica a respeito de sepultam em to de cadáve­ res. Pela única vez em M arcos aparece José, num a descrição breve que dele faz o evangelista. Era ilustre m em bro do Sinédrio (v. 43), é o que dele se diz, não ficando certo, porém, se se tratava do sinédrio de Jerusalém ou de outro concílio (veja notas). M ateus 27:57 afirm a que ele era rico, e que era discípulo de Jesus, em bora João 19:38 afirm e ter sido ele um discípulo secreto, por medo das autoridades judaicas. Lucas 23:50-51 cham a-o de “hom em bom e ju sto ” , dando apoio à descrição que dele faz M arcos, de que tam bém esperava o reino de Deus, o que quer dizer sim plesm ente que ele (e muitos judeus piedosos da época) apega­ va-se à esperança da salvação de Israel e ao aparecim ento da era m essiâ­ nica. Seja qual for sua atitude exata quanto a Jesus, é notável que a tradição evangélica confirm e que ele, e não um m em bro da fam ília de Jesus, ou um dos doze, tenha ido pedir a necessária perm issão para tirar o corpo de Jesus da cruz. De ordinário, um parente próxim o é quem iria pedir perm issão para levar o cadáver do crim inoso. Assim , define-se m ais ainda o quadro do abandono de Jesus, de modo que José assum e o

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papel que teria cabido a outros. N aquela situação talvez fosse prudente que os doze perm anecessem escondidos, porque teria havido algum interesse inicial entre as autoridades em prendê-los tam bém. Todavia, no contexto da descrição que M arcos faz dos discípulos de Jesus, como tendo abandonado seu M estre (14:50), podem os concluir que a falha deles em não reclam ar o corpo de Jesus é exem plo de covardia, ou quem sabe de prudência exagerada. A surpresa de Pilatos ao saber que Jesus já havia m orrido (v. 44) explica-se pelo fato de que os crim inosos crucificados, segundo se dizia, ficavam m oribundos durante alguns dias na cruz, até sobrevir a morte. O oficial rom ano dos vv. 44-45 talvez seja o m esm o m encionado no v. 39, que havia observado os últim os instantes de Jesus, e que era o responsável pela execução. O porm enor do lençol fino (v. 46), encontrado em todos os relatos sinóticos (cp. M ateus 27:59; Lucas 23:53; João 19:40, em que a redação é diferente), assum e significado especial em M arcos, talvez por causa da cena exclusiva de M arcos (14:51), em que um jovem foge de ser preso deixando “um lençol” (m esm a expressão no grego). Ali, “um jovem ” posto em m ortalha para o túm ulo, foge, deixando Jesus a enfrentar a m orte e o túm ulo a sós, segundo a perspectiva de M arcos, a favor daquele jovem e de todos quantos ele representa. A descrição do lugar onde Jesus foi sepultado sugere que o Senhor desceu ao túm ulo cercado do m áxim o respeito, às mãos de um hom em rico (veja notas), e tam bém pode indicar que o local da sepultura de Jesus era conhecido, preparando o leitor para a cena seguinte, na qual as m ulheres m encionadas no v. 47 dirigem -se ao m esm o túm ulo e o encontram m iraculosam ente vazio (16:1-8). Os eruditos observam , mui­ to adequadam ente, que a convicção dos prim itivos cristãos quanto à ressurreição de Jesus dentre os mortos baseava-se de modo prim ordial nas aparições do Senhor ressurreto (cp. 1 Coríntios 15:1-9; Atos 1:3), mas parece evidente que M arcos e os outros evangelistas tam bém enfatizam a tradição do túm ulo vazio com o evidência da ressurreição. As m inúcias sobre o local do sepultam ento dem onstram que esta tradição não surgiu de algum a confusão acerca do local onde Jesus havia sido enterrado. Em todos os relatos evangélicos, m encionam -se algum as m ulheres seguidoras de Jesus, que foram as prim eiras a verificar o local do sepultam ento (v. 47), o que as torna elem entos im portantes da tradição

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cristã, ainda que a prática legal judaica não reconhecesse o testem unho fem inino com o evidência aceitável num tribunal. Parece que esta cena encerra a tragédia do m inistério de Jesus. O herói morreu. Seus discípulos fugiram. O herói só é sepultado graças à piedade e generosidade desse José. Algum as m ulheres ficam olhando, desam pa­ radas. Todavia, os leitores de M arcos sabem, e a cena seguinte o procla­ m a com clareza, que o m inistério de Jesus não é um a história de tragédia, e esta cena não é a última, não é o fim. Todavia, o leitor não deveria passar depressa dem ais à cena da ressurreição; antes, deve dem orar-se um pouco m ais diante desse relato da m orte e sepultam ento de Jesus, absorvendo toda a força daí proveniente, de tal m aneira que a força m aior ainda do evento da ressurreição seja experim entada integralm ente. E o Jesus crucificado e abandonado que ressurge vencendo a m orte, a ver­ gonha, essa aparente tragédia. Assim, o fato de Deus ressuscitar a Jesus tornou-se a vindicação daquele que foi aviltado, com o se fosse um falso M essias, um reles crim inoso. O significado integral da ressurreição de Jesus pode ser visto som ente quando a glória da páscoa, em contraste, se coloca ao lado da escuridão da noite de sexta-feira.

Notas Adicionais #30 15:21 / Simão Cireneu...por ali passava, vindo do campo: nada sabemos sobre as atividades de Simão, se era peregrino em Jerusalém, durante a páscoa, se era residente ali. Os dois filhos de Simão, aqui mencionados, Alexandre e Rufo, teriam sido conhecidos dos leitores de Marcos. Em Romanos 16:13, menciona-se um certo Rufo. Isto, mais a possibilidade de o Evangelho de Marcos ter sido preparado para a igreja de Roma, tem levado algumas pessoas a especularem que esse Rufo pode bem ser o que foi mencionado por Marcos; todavia, isso não pode ser comprovado. Simão foi constrangido a carregar a haste horizontal da cruz, em lugar de Jesus. Com freqüência o condenado carregava sua própria cruz até o lugar da execução; neste caso, porém, o interrogatório prolongado, a flagelação cruel e o espancamento devem ter enfraquecido demais o Senhor para que suportasse essa provação. 15:22 / Gólgota, que quer dizer, Lugar da Caveira: o termo Gólgota é transliteração de palavra aramaica que significa caveira. Não sabemos por que o lugar recebeu tal nome, mas alguns têm sugerido que o local deve ter sido uma colina perto da cidade, com o formato de uma caveira. Há dois locais propostos para a crucificação; um é demarcado pela Igreja do Santo Sepulcro, e o outro é chamado Gordon’s Calvary (recebeu esse nome por causa do general Charles Gordon), perto do qual há um lugar conhecido por Túmulo do Jardim, sendo um

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dos locais em que se pensa que ficou o túmulo de Jesus. Veja “Golgotha”, IDB, vol. 2, p. 439; “Holy Sepulcher, Church o f \ IDBSup, pp. 413-14. 15:23 / vinho misturado com mirra: uma tradição judaica antiga faz referência a algumas mulheres piedosas de Jerusalém que teriam o costume de dar uma bebida narcotizante aos condenados à morte, com menção de Provér­ bios 31:6-7 como base desse hábito. E certo que o vinho adormeceria um pouco os sentidos, se tomado em quantidade significativa é claro, mas também há evidências de que a mirra seria conhecida pelas suas propriedades narcotizantes, sendo misturada com o vinho a fim de aumentar a capacidade do vinho de mitigar a dor intensa (veja Lane, p. 564, quanto a referências; e “Myrrh”, IDB, vol. 3, pp. 478-79). O fato de Jesus recusar-se a beber esse anestésico significa que o Senhor decidiu permanecer alerta durante a execução. A referência ao vinho misturado com drogas pode ser alusão ao Salmo 69:21, “na minha sede me deram a beber vinagre”, objetivando mostrar que o sofrimento de Jesus foi em cumprimento de passagens do AT, que os cristãos primitivos aceitaram como predições do ministério de Jesus. 15:24 / e o crucificaram: parece que a crucificação era, de todas as formas de execução, a mais temida no mundo antigo, sendo considerada tão vergonhosa e dolorosa que os cidadãos romanos estavam livres dessa pena (os criminosos romanos eram decapitados). M. Hengel, Crucifixion (Filadélfia: Fortress, 1977), é a mais completa discussão da prática, e das atitudes sociais diante dessa forma de execução. Não havia uma única forma de crucificação e tampouco uma única forma de cruz; às vezes, usava-se uma estaca vertical, às vezes uma cruz com o formato de um X, com freqüência o instrumento tinha o formato de um T, como talvez teria sido a cruz de Cristo, visto que o texto se refere a uma haste horizontal que foi carregada até o local da execução (15:20-21). A vítima era amarrada com cordas a essa haste horizontal, e às vezes mediante grandes pregos enfiados nos antebraços; a seguir essa haste era levantada e montada na haste vertical previamente fincada no chão. Pelo estudo do esqueleto de um homem crucificado no primeiro século d.C. sabemos que os tornozelos da vítima, além de cravados no madeiro, eram mantidos unidos por um grande cravo que os atravessava de lado. (Veja uma descrição mais completa e ilustrações em IDBSup, pp. 199-200). Repartindo entre si as vestes dele, lançaram sorte, para ver o que cada um levaria: este pormenor faz aumentar mais ainda a vergonha atirada sobre Jesus, e também a indiferença desumana dos executores da sentença de morte. Deve ser alusão ao Salmo 22:18, “repartem entre si as minhas vestes, e lançam sortes sobre a minha túnica”. Este Salmo tem sido considerado um retrato integral, especial, dos sofrimentos e da execução de Jesus, ao qual se faz referência de novo no v. 29 (cp. Salmo 22:7) e no v. 34 (cp. Salmo 22:1). 15:25 / Era a hora terceira: (cerca de 9 horas da manhã). Temos aí um problema, porque João 19:14 diz que a decisão de Pilatos de crucificar Jesus foi

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“quase à hora sexta” (meio-dia), e também porque parece cedo demais para que tantas coisas tivessem acontecido. Não é impossível que esse horário esteja certo, mas é preciso que reconheçamos as dificuldades inerentes a essa referên­ cia horária. Pode ser significativo verificar que a narrativa de Marcos traz referências horárias com intervalos de três horas (cp. 15:33, “hora sexta” [meio-dia]; 15:34, “hora nona” [15 horas]; 15:42, “ao cair da tarde”, [cerca de 18 horas]). É possível que Marcos tenha dividido o dia da crucificação segundo este esquema, para propósitos didáticos (talvez como auxílio mnemónico; os leitores se lembrariam melhor dos eventos da narrativa), ou até mesmo a fim de refletir práticas litúrgicas da igreja nascente (da qual, entretanto, pouco sabe­ mos!). Lane (pp. 566-67) argumenta que esse esquema de horas é inserção primitiva de algum escriba, e não estava originalmente no Evangelho de Marcos; todavia, admite ele que não há base documental em manuscritos mediante a qual possamos omitir as referências horárias. 15:26 / estava escrita a sua acusação: os condenados carregavam até o lugar da execução uma placa de madeira em que se escrevia o crime pelo qual haveriam de morrer. Durante a execução, o cartaz era pregado à cruz, com o objetivo de desestimular as pessoas que poderiam estar pensando em cometer o mesmo crime. O cartaz pregado à cruz de Jesus expressava ao mesmo tempo desprezo pelas aspirações judaicas quanto à libertação do jugo de Roma e assinalava o crime pelo qual Jesus estava sendo condenado: subversão política contra o governo romano. 15:27 / dois ladrões: estes criminosos podem ter sido considerados subver­ sivos pelo governador, visto que o termo “ladrão” ou “bandido” é usado com freqüência por Josefo, o antigo historiador judeu, para referir-se a rebeldes judeus. Só Lucas (23:39-43) registra o diálogo entre os dois criminosos, em que um repreende o outro por estar insultando a Jesus, sendo-lhe prometido um lugar com Jesus no paraíso. Os primitivos cristãos viam a execução de Jesus ao lado de outros criminosos como cumprimento de Isaías 53:12, “derramou a sua alma na morte, e foi contado com os transgressores”, o que explicita esta alusão. A numeração dos versículos do NT foi feita há muito tempo, empregando-se manuscritos que continham essa declaração; por isso, versões modernas que utilizam manuscritos mais antigos, melhores, omitem o v. 28. 15:29 / os que passavam, blasfemavam dele, meneando a cabeça: parece que isto faz alusão ao Salmo 22:7, “todos os que me vêem zombam de mim, estendem os lábios e meneiam a cabeça”. Os insultos dos circunstantes são parecidos com os dos inimigos do Salmo 22:8, que ridicularizam a esperança de vindicação da parte de Deus, que está no coração do justo. 15:32 / para que vejamos e acreditemos: os circunstantes propõem que hão de crer que Jesus é o Messias se ele demonstrar o tipo de vitória que descrevem. O ponto central de Marcos é que a fé em Jesus reconhece precisamente isso: Jesus cumpriu a obra do Messias em sua crucificação.

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15:33 / chegada a hora sexta: a saber, a sexta hora a partir do nascer do sol, ou meio-dia. Veja nota sobre 15:25 quanto a uma discussão do esquema horário de Marcos no registro da crucificação. até à hora nona: a saber, até cerca das 15 horas. A mesma expressão é empregada no início do v. 34. 15:34 / EIoí, EIoí, lamá sabactâni: é tradução aramaica do texto hebraico de Salmo 22:1. Mateus 27:46 e alguns manuscritos de Marcos registram o brado assim: “Eli, Eli, lemá sabactâni”, em que as duas primeiras palavras, “Deus meu, Deus meu”, estão em hebraico, e as últimas duas em aramaico. Se de fato Jesus dirigiu-se a Deus usando palavras hebraicas, “Eli, Eli", isso explicaria melhor a razão por que os circunstantes entenderam mal suas palavras, como se o Senhor estivesse apelando a Elias, visto que aquelas palavras hebraicas ressoam de modo parecido com o nome de Elias; todavia, é impossível saber com certeza o que foi que Jesus disse e em que língua, visto que cada relato do Evangelho está primordialmente interessado em dar-nos o significado da cruci­ ficação, e não um documentário e uma descrição integral. Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?: É tradução da frase aramaica e alusão ao Salmo 22:1. Conforme indicamos anteriormente, é peri­ goso tentar transformar essa declaração em base doutrinária ou opinativa do que Jesus teria sentido na cruz. O propósito de Marcos ao dar-nos esse registro é fazer alusão ao Salmo 22:1, de modo que ficasse retratado um Jesus que é sofredor inocente, justo, perseguido injustamente por seus inimigos, e que apela a Deus. Tal alusão revela o verdadeiro caráter de Jesus à face do ridículo, e das falsas acusações partidas dos lábios dos circunstantes. E interessante notar que o brado de Jesus não aparece no registro paralelo de Lucas (23:44-46). 15:35 / Elias: quanto à antiga expectativa judaica acerca da aparição de Elias, o profeta do AT, ou de alguém parecido com ele, nos últimos dias antecedentes à vinda do reino de Deus, veja comentários e notas sobre 6:15 e 9:11-13. 15:36 / em vinagre: era o vinho barato do povo e dos soldados, incapazes de poder adquirir um vinho melhor. Por isso, os circunstantes oferecem a Jesus o que eles próprios estavam bebendo; a intenção deles, todavia, era mantê-lo vivo durante mais algum tempo, apenas para ter um divertimento prolongado. O vinagre foi oferecido a Jesus mediante uma esponja presa à extremidade de uma vara, talvez porque a cruz do Senhor o mantivesse numa altura que dificultasse o acesso. 15:37 / A frase um grande brado implica um grito forte, não algo parecido com o desvanecido último suspiro de alguém que sofreu horrorosa tortura, como Jesus; é provável que o leitor deva considerar esse brado como um sinal da vitória sobre a cruz. Cp. Lucas 23:46 e João 19:30, que apresentam versões diferentes desse último brado do Senhor. 15:38 / O véu do templo: poderia significar a cortina que separava o átrio onde ficava o altar das ofertas queimadas, do santuário em si; poderia significar

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o véu que separava as duas áreas do santuário, uma das quais se chamava lugar santo, e a outra, lugar santíssimo, ou santo dos santos. Uma tradição judaica antiga também se refere a acontecimentos notáveis à entrada do santuário, cerca de quarenta anos antes da destruição de Jerusalém, em 70 d.C., mais ou menos no mesmo ano em que Jesus foi executado! (Veja Lane, pp. 564-75, quanto a referências; quanto à planta do templo de Jerusalém, veja “Temple, Jerusalem” , IDB, vol. 4, pp. 534-60). 15:39 / o centurião: oficial romano que comandava cem soldados de infan­ taria. Veja “ Centurion” , IDB, vol. 1, pp. 547-48. O oficial pronuncia esse comentário depois que viu como expirara, significando que admirava a força e coragem exibidas por Jesus. 15:40 / Algumas mulheres: é a primeira menção de Marcos a estas mulheres, mas há referências a elas, discípulas de Jesus, noutros relatos do Evangelho, veja Lucas 8:1-3; Mateus 27:56. Maria Madalena era da cidade de Magdala; em Lucas 8:2 Jesus a liberta de possessão demoníaca. Nada mais sabemos a respeito da segunda Maria, senão que era mãe de dois rapazes, Tiago e José, talvez bem conhecidos na igreja de Marcos. De modo semelhante, nada mais sabemos sobre Salomé, a menos que se trate da mesma mulher mencionada em Mateus 27:56, que é a mãe dos irmãos João e Tiago, filhos de Zebedeu, que faziam parte dos Doze. Desenvolveu-se estupenda especulação do tipo romântico acerca de Maria Madalena e seu relacionamento com Jesus; contudo, nada absolutamente baseiase em alguma referência dos evangelhos, nos quais ela aparece apenas como uma entre as muitas mulheres ajudadas por Jesus. Elas se tornaram devotadas seguidoras do Senhor. Veja “ Mary” , IDB, vol. 3, pp. 288-89, parág. 2. Ao lado de muitas outras mulheres (v. 41) que eram discípulas de Jesus, Lucas 8:3 menciona uma Joana e uma Susana. Acrescente-se ainda duas irmãs, Maria e Marta, mencionadas em João 11:1-37; 12:1-8, e mais outras que permaneceram anônimas. 15:42-43 / dia da preparação... Ao cair da tarde: segundo o sistema judeu, o dia começa ao pôr-do-sol; por isso, o sábado começa na noite de sexta-feira. Judeus piedosos prepararam com pressa na sexta-feira o alimento que será comido no sábado (visto que não se pode cozinhar neste dia). Marcos 15:34 descreve a morte de Jesus como tendo ocorrido no final da tarde, pelo que José precisava mover-se depressa a fim de sepultar Jesus antes do cair da noite, em obediência à lei contida em Deuteronômio 21:22-23. José de Arimatéia: é provável que Arimatéia seja o nome grego de uma cidadezinha conhecida por Ramataim, em hebraico, localizada cerca de 33 quilômetros a leste de Jope (veja “ Arimathea” , IDB, vol. 1, p. 219). Parece que José era natural dessa aldeia, e que a certa altura havia estabelecido residência em Jerusalém. João 19:39 menciona Nicodemos como seu ajudante no sepultamento, não sendo mencionado nos sinóticos. Se José era homem de posses, talvez tivesse servos que o ajudassem no enterro, assim não seria impossível

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que o preparo do corpo de Jesus para a sepultura e o próprio sepultamento fossem realizados naquelas poucas horas que antecederam o pôr-do-sol. (Veja “Joseph of Arimathea”, IDB, vol. 2, pp. 980-81). Ilustre membro do sinédrio é tradução de frase grega (literalmente: “respeitável membro de um concílio”), não especificando o concílio a que se refere, conquanto tradicionalmente se presuma que Marcos tem em mente o principal concílio, mencionado em 14:55, o sinédrio. o reino de Deus era o tema da pregação de Jesus, e também a esperança dos judeus piedosos, daquela época. Isto fica indicado pelas orações judaicas desse período (que ainda fazem parte da liturgia judaica); os judeus oravam a Deus pedindo-lhe que estabelecesse seu reino, querendo referir-se ao reino de justiça com freqüência associado ao Messias. (Veja comentário sobre 1:14-15). ousadamente: visto que Jesus havia sido executado por crime de traição, qualquer pessoa que pedisse seu corpo poderia tornar-se suspeito de nutrir simpatias pela sua causa. Por isso, José correu um risco pessoal ao pedir que lhe fosse permitido sepultar Jesus. Todavia, as atitudes judaicas quanto à necessi­ dade de enterrar os mortos eram fortes demais (veja Lane, p. 578, quanto a referências a fontes antigas), e ensinava-se que quem ministrasse tal serviço em prol dos mortos praticava um ato de extrema piedade. 15:45 / o corpo: aqui e no v. 43, os manuscritos gregos dividem-se quanto aos termos empregados; todavia, a maior parte dos eruditos conclui que foi a palavra “corpo” que se usou no v. 43, e que aqui se empregou originalmente “cadáver”. Ainda que o termo grego para “cadáver”, empregado aqui, seja do gênero neutro, Marcos repetidamente emprega o pronome masculino, no v. 46. Assim, a tradução de NIV no v. 46 usa um pronome neutro (“envolveu-o; o depositou; em inglês it), mas no grego literal é pronome masculino. 15:46 / um lençol fino: antes de envolver o corpo de Jesus no lençol, as pessoas talvez o tivessem lavado às pressas. João 19:39-40 diz que normalmente se empregavam especiarias na preparação de cadáveres para a sepultura, mas Marcos 16:1 afirma que as mulheres dirigiram-se ao túmulo após o sábado, levando “aromas”, a fim de completar os deveres piedosos dedicados aos mortos. em um sepulcro: o lugar da sepultura talvez fosse uma pedreira abandonada e transformada em cemitério. Os túmulos dos ricos em geral eram projetados para acomodar uma família, de modo que havia lugares para vários cadáveres. Esta sepultura ainda não havia sido ocupada, de acordo com Mateus 27:60 e João 19:41 (quanto ao esboço dos túmulos da antigüidade, na Palestina, veja “Tomb”, IDBSup, pp. 905-8). A pedra colocada à entrada objetivava impedir a profanação por animais e intrusos; poderia ter sido uma pedra chata, redonda, ao jeito de uma roda que deslizava sobre uma ranhura no chão, à entrada. A ranhura apresentaria um ligeiro declive, de tal modo que a pedra pudesse ser rolada com maior facilidade para o lugar apropriado, exigindo porém o esforço

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de várias pessoas para removê-la. Daí a preocupação das mulheres mencionadas em 16:3. A descrição do túmulo aqui pode ser indício da riqueza de José, o que talvez trouxesse à lembrança dos leitores a passagem de Isaías 53:9, em que do servo do Senhor ficou declarado que esteve “com o rico na sua morte”. Há muitas evidências de que a figura do servo de Isaías 53 era interpretada pelos cristãos primitivos como profecia sobre Jesus. 15:47 / Maria Madalena e Maria, mãe de José: são duas das mulheres mencionadas também nos vv. 40-41, e em 16:1-8. Veja notas sobre esses versículos.

31. No Terceiro Dia, Ele Ressurgiu (Marcos 16:1-8)

1 6 :1 -8 / A ressurreição de Jesus foi o evento singular mais im portante na form ação da fé cristã na igreja prim itiva. A ressurreição não só transtornou os efeitos da crucificação, produzindo vida onde reinava a morte, com o tam bém , mais im portante, a ressurreição significou que Deus realizou a apologia de seu Filho, Jesus, tornando-o príncipe e autor da salvação concedida a todos quantos cressem nele. Em 1 C oríntios 15:12-28, Paulo nos dá uma descrição concisa do significado da ressur­ reição de Jesus, retratando o Senhor ressurreto como a base e esperança dos crentes, no que concerne à sua própria salvação, e com o o Senhor entronizado, que fará que todas as coisas lhe sejam subm etidas, para a glória de Deus Pai. Esta passagem é apenas um a dentre muitas do NT, que nos dem onstram com o a ressurreição de Jesus ocupava posição central na proclam ação da igreja prim itiva (cp., veja Atos 2:22-36; Rom anos 1:3-4). Assim, para M arcos, esta história não constitui um epílogo para seu relato do m inistério de Jesus; em vez disso, é uma revelação culm inante que dá autoridade plena ao credo cristão, e com ­ pleta o verdadeiro significado de Jesus. Ao estudar o relato de M arcos sobre a ressurreição, enfrentam os algum as dificuldades específicas não encontradas nos dem ais evange­ lhos. C ada Evangelho apresenta um relato distintivo da ressurreição de Jesus, que os torna diferentes entre si: M ateus conta a história da descida de um anjo (28:16-20); Lucas relata a aparição de Jesus a dois discípulos no cam inho de Em aús (24:13-35); João relem bra a aparição de Jesus a M aria M adalena (20:11-18), a história de Tom é (20:24-29), e o relato da aparição aos discípulos no evento da pescaria (21:1-24). Estes episódios variados podem ser considerados com o dificuldades — para a pessoa que tentar organizar um a narrativa única, harm ônica, dos acontecim entos posteriores à prim eira páscoa cristã — ou com o evidências da riqueza da tradição cristã prim itiva, envolvendo os eventos dessa prim eira pás­ coa. Todavia, no que concerne a M arcos, em face das variações nos m anuscritos, tem os o problem a especial de precisar determ inar de que form a ele encerrou de fato seu Evangelho. Os leitores da B íblia na versão A lm eida, em nossa língua (de que ECA

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é aperfeiçoamento), estão familiarizados com a passagem designada pelos versículos 9-20 de Marcos 16. Contudo, os leitores de traduções modernas poderão verificar que estes versículos talvez estejam demarcados, com o que separados do restante do texto de Marcos, mediante nota editorial segundo a qual tais versículos não se encontram em alguns dos melhores manuscritos desse Evangelho. NIV, por exemplo, põe esse passo bíblico em evidência mediante uma linha separadora, sob a qual vem uma nota explicativa que diz: “os dois manuscritos primitivos de Marcos, mais confiáveis, não contêm Marcos 16:9-20” . Além desses versículos, há evidências, em antigos manuscritos, de outros textos que poderiam ter feito parte de algumas edições do Evangelho, a saber, dois outros tipos de encerramentos de Marcos. Discutiremos todos esses textos com maior amplitude na próxima seção deste comentário, mas aqui, desejamos concentrar-nos apenas no passo de 16:1-8, cuja autenticidade não é questionada. Talvez a primeira coisa que devamos notar a respeito de 16:1-8 seja o fato de que essa passagem não nos dá, propriamente, um relato da ressur­ reição de Jesus, mas antes, conta-nos da chegada de algumas mulheres ao túmulo de Jesus, após sua ressurreição. Elas encontram um jovem que lhes diz que Jesus ressuscitou (vv. 5-7). N a verdade, nenhum dos evangelhos tenta descrever o evento da ressurreição propriamente dito, em bora mais tarde, na tradição cristã, alguém tentaria suprir umas descrições do aconte­ cimento (veja notas). Em certo sentido, isso contribui para o prestígio dos autores dos evangelhos, isto é, eles restringiram seus relatos basicamente às tradições a respeito dos fatos vivenciados pelos primeiros discípulos, tais com o o encontro com os anjos (como aqui em Marcos), e com Jesus ressurrcto (como o temos em outros evangelhos, e no texto de Marcos 16:9-20). Os evangelistas ficam sob luz favorável porque todos os indícios são no sentido de a tradição cristã mais antiga, a respeito da ressurreição de Jesus, relacionar-se apenas à aparição pós-ressurreição de anjos que anun­ ciaram o evento, e às aparições do próprio Jesus ressurreto; por isso é que nos evangelhos canônicos temos um respeito pela forma mais antiga (e portanto, mais confiável) da tradição pascal. N a passagem em tela, as mulheres que se vêem no cenário da execução de Jesus (15:41) e na do sepultamento (15:47) dirigem-se ao túmulo a fim de lamentar-lhe a morte, e oferecer seu último gesto de amor pelo Jesus morto. Os “aromas” mencionados em 16:1 não se destinavam ao em balsam am ento (que nessa época não constituía costum e judaico no sepulta-

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m ento dos m ortos), mas objetivavam perfum ar o cadáver, gesto de am or e respeito. Escavações de sepulcros judaicos antigos trouxeram à luz frascos de perfum e que continham substâncias aromáticas. O intento daquelas m ulheres era ungir o corpo (v. 1), o que talvez signifique que desejavam derram ar óleos perfum ados sobre o mestre morto. Tais essên­ cias eram caras, e esse ato envolvia, portanto, sacrifício financeiro. A com pra desses “arom as” , e o desejo de cum prir esse rito no sepultam ento, significa que as m i " res não aum entavam a esperança a ressurreição de Jesus. A guardaram a passagem do sábado, e foram bem cedo, na m adrugada do dom ingo (v. 2), visto que as regras severascda observância do sábado tornavam im próprio o cum prim ento de tais ritos naquele drá santificado. Sob o calor reinante em Jerusalém durante o final da p r i m a ­ vera (que foi quando se executou e se sepüw itfce^enhor), os ç-ftctólyeres se decom põem com rapidez, pelo quç-as mulheres deveriam êstàr prepa­ radas para um a experiência desconfortável na sepultura. Entretanto, o leitor sabe qtitjium pouco antes Jesus havia recebido um ato devocional de um a mulhètSBm B etânia (14r3-9), com o unção de seu corpo para a sepultura, de modo que o leitor já entendeu que esse ato sincero da parte das.fntiiheres é ironicamente fútil. O leitor sabe o que as m ulheres desta história não podem 'saber: esta m anhã de dom ingo não será o c a a ã p tle tristeza e chcpx^c tam pouco de ritos fúnebres intem pes­ tivos,'m as será ocasião de notícias surpreendentes: o Jesus m orto está ’Vol'M arcos intensifica o “suspense” da narrativa m ediante a descrição do diálogo e r ç t^ a s m ulheres, que discutem entre si o problem a da rem oção tia pedra da sepultura, para que possam cuidar de seu m estre m orto (vv. 3-4). O problem a que as preocupa estava resolvido — encontram a pedra rem ovida (v. 4), não, porém, para terem acesso a um Jesus morto, m as para que se lhes dem onstre a realidade da ressurreição UW kJ^lll 1VI .

A descrição da personagem que encontram na sepultura prolonga o “suspense” até o últim o instante. M arcos não diz que se tratava de um anjo (o leitor sabe que se trata de um anjo), com o faz M ateus (28:5), mas m enciona um jovem (cp. Lucas 24:4, e notas) vestido com uni m anto branco. As m ulheres reagem alarm adas (v. 5), o que indica que ainda não suspeitam que as notícias são gloriosas. Só quando “o jovem ” diz algo é que as m ulheres com eçam a perceber o que havia acontecido. A declaração angélica destituída de qualquer am bigüidade m ostra ao leitor

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que a convicção de que Jesus havia ressuscitado não se baseia em suposições ou conjeturas, mas num anúncio m uito claro. Entretanto, tem os aqui m ais do que um sim ples anúncio; “o jovem ” ordena às m ulheres que digam aos discípulos, e que lhes lem brem a prom essa de Jesus, de que se encontraria com eles de novo, na G aliléia — num a alusão à declaração do Senhor em 14:28. N esta ordem angelical, temos o prim eiro elo de uma corrente de ações envolvendo a alegre proclam ação da m ensagem da páscoa cristã, prim eiram ente ao cerne dos discípulos e, depois, aos cristãos que adviriam , inclusive os leitores de M arcos, e os cristãos das gerações futuras. Noutras palavras, a ordem representa um com ando divino posto sobre os om bros dos prim itivos cristãos, para que partilhassem as boas novas do Jesus ressurreto; é ordem que prefigura a m issão subseqüente que os cristãos cum pririam por todo o mundo. A versão de M arcos da ordem do anjo inclui a referência à G aliléia com o o lugar onde o vereis (v. 7). M ateus (28:7) traz um enunciado sem elhante, mas Lucas (24:6-7) apenas m enciona a G aliléia com o o lugar onde pela prim eira vez o Senhor prom eteu que haveria de ressurgir. Isto está coerente com o fato de que os relatos de Lucas sobre as aparições do Senhor ressurreto só fazem referência à Judéia. M ateus m enciona uma breve aparição às m ulheres, perto da sepultura (28:9-10), mas põe ênfase num encontro na G aliléia (28:16-20). Q uanto a M arcos, a questão é a seguinte: que tipo de aparição pós-ressurreição, se houve algum a, carac­ teriza sua narrativa? O texto dos vv. 9-20 descreve aparições de Jesus a M aria M adalena (v. 9), a dois discípulos (vv. 12-13), e aos “onze” , talvez em Jerusalém (vv. 14-20), mas a m aioria dos eruditos não crê que esses versículos form em a conclusão original de M arcos. U m a das razões desse ponto de vista é que esses versículos não m encionam um a aparição na Galiléia, em bora o anúncio no v. 7 m enciona de m odo específico esta área com o o local onde o Senhor ressurreto seria encontrado. A ordem dada no v. 7 leva o leitor a esperar um a descrição do encontro na Galiléia, se há algum a aparição ali a ser relatada; entretanto, nenhum a das con­ clusões alternativas de M arcos cum pre a expectativa desse versículo. Alguns eruditos têm argum entado que a G aliléia do v. 7 é m ais um sím bolo do discipulado cristão do que um território geográfico com esse nome. O bservam que, em M arcos, a G aliléia é o lugar onde Jesus conduziu os doze ao ministério, e a Judéia é o lugar onde ele foi rejeitado e

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executado. Assim, de acordo com esta perspectiva, na narrativa de Marcos a Galiléia representa o discipulado em conexão a essa área. Assim, no v. 7, M arcos quer dizer apenas que os discípulos se encontra­ riam com Jesus quando voltassem à missão; e Marcos tencionava que seus leitores entendessem que “veriam” Jesus também, de modo espiri­ tual, na sua “Galiléia” do discipulado e serviço. Esta interpretação não recebeu aceitação generalizada entre os eruditos, devendo ser tratada como eminentemente especulativa. Parece que houve tradições primitivas cristãs segundo as quais houve aparições de Jesus ressurreto tanto na Galiléia como na Judéia, sendo que em ambos os locais esses encontros com Jesus incluem um comissionamen­ to dos discípulos (cp. Mateus 28:16-20; Lucas 24:36-49; João 20:19-22; 21:1-19). Por isso, a declaração de 16:7 pode refletir apenas a tradição cristã primitiva segundo a qual o Jesus ressurreto apareceu a seus seguidores na Galiléia. Visto, porém, que nenhuma das conclusões propostas para Marcos menciona uma aparição na Galiléia, resta-nos imaginar se o texto original de Marcos conteria tal relato. O elemento final da passagem é a reação das mulheres à ordem do “jovem ” (16:8). As mulheres é ordenado que se dirijam aos discípulos e lhes relatem o que disse o anjo (v. 7). Em vez disso, lemos que as mulheres fugiram em grande agitação e temor, e nada disseram a ninguém. E extraordinário que os textos paralelos de Mateus 28:8 e Lucas 24:8-9 dizem o oposto, descrevendo as mulheres como obedientes à ordem dada pelo anjo na sepultura, pois anunciam aos discípulos as boas novas da ressurreição de Jesus. Essa diferença levou alguns eruditos a sugerir que a conclusão original de M arcos continha um relato segundo o qual as mulheres teriam vencido seu temor e falado aos discípulos. Algo parecido está relatado no texto dos vv. 9-20; todavia, quase todos os eruditos duvidam de que esse texto faça parte do Evangelho original de Marcos. Esta conclusão, denom i­ nada “conclusão longa”, relata uma aparição de Jesus a M aria M adalena, porém, não resolve a questão do que fizeram as mulheres mencionadas no v. 8; este silêncio é indício adicional de que esse texto não fazia parte de Marcos, originalmente. E assim é que ficamos imaginando o que teria vindo a seguir, após o v. 8, no texto original. A idéia de que o texto original se perdeu, porque a parte final sofreu algum dano, constitui apenas uma sugestão interessante, mas destituída de comprovação. Em anos recentes, alguns eruditos têm afirm ado que originalm ente

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M arcos term inava no v. 8, e que nenhum tipo de texto viria a seguir, (veja Lane, pp. 590-92). Segundo esta perspectiva, M arcos não colocou um final em seu Evangelho com um relato de um a aparição pós-ressurreição de Jesus, seguida de um com issionam ento dos doze; em vez disso, M arcos queria confrontar seus leitores com um a história da ressurreição de Jesus que fosse, de certo modo, aberta e não-conclusiva. Esta inter­ pretação argum enta que M arcos queria que seus leitores ficassem com a ordem de ir à G aliléia (v. 7) para ver Jesus, e o evangelista desejava que seus leitores de algum a forma obedecessem a essa ordem. D esejava ele que seus leitores fossem à G aliléia e ali aguardassem o Senhor, que lhes apareceria na glória de sua ressurreição, com o alguns têm sugerido? Ou teria M arcos usado a palavra “G aliléia” de modo sim bólico (como m encionam os antes), com a intenção de que seus leitores entendessem que deveriam seguir a Jesus, e os doze, no discipulado cristão, em sua própria “G aliléia” , crendo que na época devida Jesus lhes apareceria em glória? Se M arcos de fato encerrou seu Evangelho assim, teria utilizado um expediente excepcionalm ente m aroto e m uito sutil; na verdade, tão m aroto e sutil que talvez ninguém tivesse com preendido seu intento senão agora, em tem pos bem recentes, quando a pesquisa m oderna lhe desvendou a sutileza! (Veja com entários de Nineham , p. 442). P or outro lado, se M arcos de fato encerrou seu Evangelho em 16:8, esse estranho m odo de concluir com certeza explicaria o surgim ento de diversas outras conclusões que aparecem na tradição dos m anuscritos: todas elas teriam sido tentativas de prover um a conclusão m ais adequada. D eve-se salien­ tar, todavia, que essas diversas tentativas nos m anuscritos antigos para prover um a conclusão de M arcos tam bém poderiam ter surgido, caso a conclusão original, legítim a, se tivesse perdido após o livro ter sido redigido. A questão sobre se M arcos term inou seu livro em 16:8, ou se a conclusão original se perdeu, perm anece pom o de discórdia entre os eruditos, e assunto de pesquisa. Na ausência de evidências ou argum entos conclusivos, o leitor é aconselhado a ficar alerta quanto a essa questão, e reconhecer que em 16:8 encerra-se o texto legítim o de M arcos, passan­ do o leitor, a seguir, a percorrer terreno de incerteza quanto ao que teria sido escrito, se é que algo foi escrito. (D iscutirem os as várias conclusões na tradição dos m anuscritos, na próxim a seção). As dificuldades a respeito da natureza do texto que se segue a 16:8 não devem obscurecer a m ensagem do Evangelho. Em 16:1-8, o Jesus

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que havia sido abandonado pelos seus seguidores e havia enfrentado a sentença de morte sozinho, que sofrera o escárnio vil e vergonhoso da parte das autoridades judaicas e romanas, e que fora sepultado pela caridade de José de Arimatéia, é proclamado vitorioso, poderosamente vivo, elevado por Deus acima de toda calúnia e acusação. Muito importante também é o fato de o Jesus ressurreto estar convocando os mesmos discípulos que o abandonaram e o negaram (Pedro) a renovar seu discipulado e tomar-se de novo seus seguidores. Assim é que esta primeira forma de proclamação do Evangelho em Marcos, as boas novas do Jesus ressurreto, não só anunciam a vitória de Jesus sobre a morte como também proclamam e encarnam o perdão que faz parte da mensagem evangélica. Os discípulos, que agiram de modo tão covarde, recebem perdão implícito pela covardia nas palavras do “jovem ”, de modo que esse grupo de discípulos perdoados transforma-se no alicerce em que se fundamentaria a comunidade cristã, formada por todos quantos sabem que foram igualmente perdoados. Não importa qual tenha sido a intenção de Marcos com respeito às mulheres que, pelo menos de início, ficaram assustadas demais e fugiram do túmulo, incapazes de atender àquela ordem; é certo que o leitor recebeu as boas novas da ressurreição de Jesus e foi convocado para seguir ao Jesus ressurreto, proclamando a vitória e o perdão encontrados no Evangelho.

Notas Adicionais #31 16:1 / o corpo de Jesus: o texto grego diz literalmente: “ungi-lo”, mas o sentido é claramente o cadáver de Jesus, que as mulheres esperam encontrar no túmulo. 16:3-4 / a pedra... já estava revolvida: Mateus 28:2-4 descreve um anjo que rola a pedra, o que não é mencionado em Marcos, nem nos relatos dos demais evangelhos. Um antigo manuscrito em latim (Codex Bobiensis) traz uma declaração que vem em seguida à pergunta das mulheres, no v. 3, segundo a qual anjos desceram dos céus e para lá subiram de volta, para Deus, ao lado de Jesus “na terceira hora do dia” (veja tradução dessa passagem em Lane, p. 582). No documento apócrifo chamado Evangelho de Pedro, que talvez tenha surgido cedo, no segundo século, há uma tentativa mais elaborada de descrever a ressurrei­ ção, cujas complicadas minúcias contrastam com a simplicidade dos relatos canô­ nicos. O Evangelho de Pedro descreve os céus abrindo-se e dois anjos que descem, com grande brilho, até a sepultura de Jesus. A pedra rola por si mesma e os anjos entram. Os guardas à entrada do túmulo (idéia tirada de Mateus 27:62-66; 28:4) ficam amedrontados diante disso e, enquanto relatam esses eventos a seu líder e aos anciãos judaicos (que supostamente também estão ali), vêem três persona­ gens emergindo do túmulo, duas das quais apóiam a terceira, havendo uma cruz

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que os acompanha. Os dois (anjos) são tão altos que atingem os céus, mas a terceira personagem (Jesus) é descrita como sendo mais alta ainda, “ultrapas­ sando os céus”. Ao saírem da sepultura, uma voz vinda do céu menciona Jesus como tendo pregado aos mortos, ouve-se a cruz respondendo “sim” (esse texto foi traduzido para o inglês, sendo encontrado em E. Hennecke, W. Schneemel­ cher, New Testament Apocrypha, trád. de R. McL. Wilson [Filadélfia: Wes­ tminster, 1963], vol. 1, pp. 185-86). Fica evidente que os evangelhos canônicos são bastante reservados, e colo­ cam toda ênfase na declaração de que Jesus ressuscitou, não tentando descrever o evento em si, o que contrasta com os textos apócrifos que tentam descrever como ocorreu a ressurreição do Senhor. 16:5 / um jovem: Parece que Marcos está empregando aqui a linguagem das aparências, registrando a primeira impressão das mulheres, ou fazendo de propósito uma descrição vaga. O manto branco que ele vestia devia ser fulgurante, indicando tratar-se de uma personagem celestial (cp. a descrição das roupas de Jesus, na cena da transfiguração, em 9:2-3). Mateus 28:5 descreve a personagem como sendo um anjo, e Lucas 24:4 se refere a “dois homens, com vestes resplandecentes”. 16:6 / Já ressurgiu!: a palavra grega é a forma passiva do verbo “ressurgirá, ou seja, literalmente, “já foi ressurgido”. Foi Deus quem ressuscitou Jesus, pelo que a ressurreição não é ato de poder de Jesus, mas uma vindicação que Deus faz por Jesus. (Quanto a uma discussão do lugar da ressurreição no NT, e seu significado hoje, veja G. E. Ladd, I Believe in íhe Resurrection o f Jesus [Grand Rapids: Eerdmans, 1975]; quanto a uma crítica das opiniões eruditas recentes sobre esse assunto, veja G. 0 ’Collins, The Resurrection of Jesus Christ [Valtey Forge, Penn.: Judson, 1973]; “The Resurrection in Contemporary Theology”, NIDNTT, vol. 3, pp. 281-309). 16:7 / a seus discípulos, e a Pedro: Perderemos, aqui, toda a força dessas palavras, caso não nos lembremos de que em Marcos, de modo especial, os doze são apresentados como seguidores de Jesus de compreensão fraca, os quais falharam no momento da provação. Assim, os que são convocados para seguir a Jesus de novo são os mesmos que o abandonaram e negaram. Isto só pode significar que fica implícita nessa convocação uma palavra de renovação e de perdão a todos. A menção especial do nome de Pedro sobreleva esse perdão, à luz da história de Marcos da tríplice negação de Pedro, contra Jesus, em 16:66-72. Em 1 Coríntios 15:3-8, Paulo relaciona os primeiros discípulos a quem o Cristo ressurreto apareceu, e salienta o caso de Pedro com menção especial (15:5), da mesma forma como procede aqui o “jovem”. 16:8/ Tremendo e assombradas... porque temiam: linguagem semelhante, noutras passagens de Marcos, descreve a reação humana perante um evento maravilhoso, um milagre ou uma revelação do poder de Deus, veja 2:12; 5:42; 4:41; 5:15, 33; 9:6.

32. Duas Antigas Conclusões de Marcos (Marcos 16:9-20)

16:9-20 / Com o m encionam os no com entário de 16:1-8, quase todos os eruditos na B íblia acreditam que o texto designado com o 16:9-20 não faz parte do texto original de M arcos (e que o m esm o se pode dizer quanto a outras conclusões diferentes, alternativas, anexadas a M arcos em alguns m anuscritos antigos). Entretanto, visto que durante m uitos sécu­ los o form ato de M arcos conhecido pela m aioria dos leitores incluía 16:9-20, discutirem os esse texto de m odo breve. Parece que esses ver­ sículos surgiram com o tentativa de dar a M arcos uma conclusão conve­ niente (adequada ao gosto do autor do texto!). Aparentem ente form am um a coleção de incidentes e referências de outras passagens do NT, am arrada de m aneira um tanto desajeitada a 16:8, visto que não faz m enção ao grupo de m ulheres de 16:8 nem à aparição de Jesus na Galiléia, prom etida em 16:7. Em vez disso, o versículo 9 inicia um a série de aparições do Jesus ressurreto (talvez com base nos outros relatos canônicos dos evangelhos e outras tradições), relatando um a aparição a M aria M adalena, talvez adaptada de João 20:11 -18. Segue-se um encon­ tro com dois discípulos (talvez adaptado de Lucas 24:13-35), e uma cena de ascensão (adaptada de Lucas 24:50-53). A única característica distin­ tiva deste m aterial é sua ênfase sobre os sinais que hão de acom panhar a pregação dos discípulos à m edida que saírem pelo m undo em missão. A inda que os relatos das aparições relacionadas à ressurreição nos dem ais evangelhos não m encionam tais coisas, as tradições da igreja prim itiva com certeza enfatizam os sinais m iraculosos com o parte da atividade de prédica dos apóstolos e dem ais obreiros (cp. Atos 2:43; 4:30; 5:12; Hebreus 2:4). Assim é que o autor desses versículos estava fam i­ liarizado com essa tradição básica e com m ilagres específicos a que aparentem ente ele faz alusão (cp. v. 17, falarão novas línguas, com Atos 2:4; v. 18, pegarão em serpentes, com Atos 28:1-6). Quase todos os eruditôs acham que os versículos 9-20 com eçaram a ser anexados a M arcos nalgum tem po, no segundo século d.C., ou mais tarde, por escribas que tentavam fazer que M arcos ficasse mais seme-

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lhante aos dem ais evangelhos. No decurso do tem po, tais versículos se tornaram a conclusão de M arcos em grande núm ero de m anuscritos gregos, e passaram a ser popularm ente reconhecidos com o parte genuína do Evangelho. Os m elhores e m ais antigos m anuscritos gregos não contêm , todavia, tais versículos, e o testem unho dos prim eiros “pais” da igreja (nos prim eiros quatro séculos) indica que esses versículos só estavam registrados em algum as cópias de M arcos, não sendo conside­ rados originais e pertencentes ao Evangelho. D iversos m anuscritos gregos e outros docum entos testem unhais anti­ gos inserem um pequeno bloco de texto, depois de 16:8, com freqüência seguido dos vv. 9-20. A NIV não incluiu esse outro texto (cp. R SV ou GN B), m as as notas m arginais contêm breve discussão sobre o assunto. Acrescente-se que um m anuscrito grego do quinto século (C odex W) apresenta outro pequeno bloco de texto em que descreve um diálogo entre Jesus e os onze discípulos a respeito do decurso da presente era, e a aparição do reino de justiça (veja notas e a discussão desse texto em Lane, pp. 606-11). Esse texto, de modo sem elhante, parece representar a evidência de ter havido várias tentativas de arranjar-se um a conclusão para M arcos, de m odo que o final abrupto de 16:8 fosse m elhorado. Sem dúvida algum a, a m aioria dos leitores ficaria insatisfeita hoje se 16:8 fosse a conclusão de M arcos, e m uitos se entristeceriam ao entender que há desacordo entre os eruditos quanto a qual teria sido o final genuíno, original do Evangelho de M arcos. Dois fatos precisam ser m antidos em mente. Prim eiro, M arcos 16:1-8 apresenta com clareza a ressurreição de Jesus — ela aconteceu de verdade. O túm ulo vazio (16:6) significa que a ressurreição de Jesus não foi considerada um evento na m ente dos discípulos, m as um acontecim ento real, concreto. De modo sem elhante, 16:1-8 dem onstra que M arcos conheceu e aprovou a tradição segundo a qual Jesus, após a ressurreição, aparecera a seus discípulos, quer tenha registrado essas aparições, quer não. Assim , o ponto essencial de que Jesus ressurgiu e está vivo, e é de novo o Senhor de seus seguidores, estando agora em glória transcendental, é apresentado de form a não am bígua nesta passagem , sobre a qual inexiste qualquer incerteza textual. Segundo fato, a incerteza quanto à conclusão de M arcos dem onstra com o as Escrituras Sagradas de fato fazem parte da história do mundo, tendo sido redigidas por seres hum anos, aqui na terra, copiadas e trans­

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m itidas ao longo dos séculos, da m esm a form a que qualquer docum ento de tem pos antigos, sujeitas aos mesm os perigos de m utilações, a métodos inseguros de copiar e a mudanças introduzidas pelos escribas. O volum e e a antigüidade dos m anuscritos do NT possibilitam que se detectem essas influências sobre o texto sagrado e se preparem edições do NT grego, e se façam traduções m odernas, baseadas nessas edições gregas, à sem elhança da NIV, que podem ser recebidas com grande confiança. Estes m anuscritos dem onstram que tais coisas como m udanças aciden­ tais, cópias defeituosas e até m udanças deliberadas pelos escribas de fato aconteceram . Contudo, poderia porventura a realidade ter sido diferente? O cristão que considera a Bíblia com o Palavra de Deus, ao m esm o tem po reconhece que essa Palavra foi transm itida ao longo do tem po por agentes hum anos que, não sendo perfeitos em seu trabalho, colocaram dúvidas em todos os estudantes subseqüentes da Bíblia. Nós não estam os num a posição de poder reclam ar do trabalho que realizaram , visto que somos totalm ente dependentes deles quanto a qualquer contato direto com docum entos bíblicos, e a esses cristãos da antigüidade devem os nossa gratidão pelo trabalho que fizeram.

Notas Adicionais # 32 16:9 / sete demônios: Em Lucas 8:2, esta Maria é descrita como uma das mulheres a quem Jesus curou de várias moléstias e possessão demoníaca. É também ali que aparece a referência a “sete demônios”, sendo talvez a fonte desta declaração em 16:9. 16:11 / não acreditaram: este tema de não se acreditar em testemunhas também aparece nos vv. 13-14, em que os discípulos se recusam a crer no relatório dos dois discípulos a quem Jesus aparecera. Esse tema se reflete em Lucas 24:22-27, 37-39. 16:17 / E estes sinais hão de seguir os que crerem: a frase enfatiza os milagres como sinais do favor de Deus, acompanhando a mensagem dos discípulos. 16:18 / pegarão em serpentes; e quando beberem alguma coisa mortífe­ ra: os leitores talvez conheçam os “seguradores de serpentes” dos Apalaches, pequeno grupo de cristãos que acreditam que a espiritualidade se demonstra mediante o ato de segurar nas mãos cascavéis em seus cultos públicos, tendo este versículo como base de seu costume. Tòdavia, parece que o autor dessa passagem tem em mente um incidente semelhante ao descrito em Atos 28:1-6, no qual Paulo é acidentalmente picado por uma víbora e sobrevive, impressio­ nando seus hospedeiros, que o julgam detentor de poderes divinos.

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imporão as mãos sobre enfermos: os relatos dos evangelhos registram as pessoas implorando a Jesus que lhes toque os doentes (veja Marcos 7:32), e o NT indica que isso fazia parte do ministério da igreja primitiva, com muita freqüência (cp. Tiago 5:14-15). 16:9-20 / Conclusão Alternativa de Marcos: Além do texto designado como 16:9-20, há ainda dois blocos de texto que formam conclusões diferentes, para Marcos. Em alguns manuscritos e versões antigas, depois do v. 8 vem o seguinte enunciado: Mas relataram a Pedro e aos demais que com ele estavam, com brevidade, o que lhes havia sido dito. Depois disso, o próprio Jesus enviou, por meio deles, do oriente para o ocidente, a proclamação sagrada, imperecível, da salvação eterna (RSV). Com freqüência, esse texto é seguido dos vv. 9-20; todavia, parece viável que este texto breve aqui transcrito iniciou sua vida como conclusão inde­ pendente de Marcos com o objetivo de abrandar o desfecho abrupto de 16:8. Daí, alguns escribas familiarizados com as conclusões de manuscritos em que este texto aparecia, e com outros manuscritos encerrados com 9-20, prepararam novos manuscritos que contivessem ambas as conclusões, numa narrativa contínua e única. Outra variação interessante para a conclusão de Marcos, mencionada breve­ mente na discussão acima (encontrada apenas no manuscrito dos evangelhos de Washington) aparece no manuscrito de Washington, depois de 16:4, traduzida como segue: “E se desculparam, afirmando: esta era sem lei, cheia de increduli­ dade, está sob o domínio de Satanás, que não permite que a verdade e o poder de Deus prevaleçam sobre as coisas imundas dos espíritos. Portanto, revelai agora a vossa justiça” — assim disseram a Jesus. E Cristo lhes respondeu: “o prazo de anos para a autoridade de Satanás cumpriu-se, mas outras coisas terríveis se aproximam. Pelos que pecaram fui eu entregue à morte, para que possam voltar à verdade e não pecar mais; para que possam herdar a glória espiritual, incorruptível, da justiça que está no céu”. Quanto a uma discussão da provável origem e significado deste texto, veja Lane, pp. 606-11.
2- MARCOS-LARRY-W-HURTADO

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