417 Morrer Pelos Outros

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© 1983 – Antônio Vera Ramirez “Morir Per Otro” Tradução de Luiz Oswaldo Cunha Ilustração de Benicio Disponibilização: J.V.Silva ® 540520

CAPÍTULO PRIMEIRO Sempre um espião

— Meu Deus, como o tempo passa! Há uma semana, apenas, eu estava pensando em ir com Número Um para Villa Tartaruga e agora estou de volta à casa 1! Passei dias maravilhosos lá... Um belo sonho, como sempre, mas não, não foi apenas um sonho. Foi também uma linda realidade... Enquanto a senhorita Montfort, no voo de Roma a Paris pensava nisto, recostada em sua poltrona e com os olhos fechados, no corredor do avião a comissária de bordo a contemplava, com ar de dúvida. Nem de longe passava pela cabecinha da linda comissária da Air France que a senhorita Montfort não estava dormindo. Estava bem acordada, lembrando-se dos dias passados ao lado de Número Um, em Malta, na Villa Tartaruga. Um amor total. Um amor com risos e sexo, com música e silêncio. Ela não podia imaginar que a senhorita Montfort julgava achar-se ainda nos braços do homem a quem amava mais que sua própria vida e por quem era correspondida na mesma medida... Como era bonita a senhorita Montfort! Testa larga, pômulos bem marcados, boca bem desenhada, uma covinha encantadora no queixo. A cabeleira negra tinha reflexos azuis, de tão brilhante. Mas a comissária pensava, principalmente, nos olhos azuis, agora fechados, e encobertos pelas pálpebras macias e sedosas. Bonita e elegante. Além disso, tudo ela era uma pessoa com quem dava gosto manter relações. Amável, educada, simpática, nada a aborrecia e jamais fazia exigências. 1

Ver aventura anterior a esta: REINO DOS INFERNOS

Um suspiro profundo, quase um beijo, escapou dos lábios de Brigitte Montfort. De repente, abriu os olhos que se fixaram na comissária. Houve naqueles olhos, durante um instante brevíssimo, como que um brilho de alerta. Como o fulgurar de um perigo estranho. Em seguida, o sorriso apareceu nos seus lábios e a aeromoça julgou ter visto fantasmas onde nada existia de inquietante. Jamais saberia que o olhar azul, alerta e frio que a tonteara, não fora propriamente da gentil senhorita Montfort e sim da implacável espiã internacional “Baby”. — O que foi? — perguntou a divina, arqueando as sobrancelhas. — Não sabia se a despertava... Chegou um cabograma para a senhorita. — Já estou acordada — murmurou Brigitte, tornando a sorrir. — E aproveitando essa circunstância, gostaria de tomar uma taça de champanhe com cereja. É possível? — Claro. — Muito obrigada. Brigitte recebeu o cabograma das mãos da moça, que se afastou, para ir buscar a bebida. Os vizinhos de poltrona da senhorita Montfort, que não a perdiam de vista, ficaram ainda mais atordoados diante da beleza da passageira que tomara o avião em Fiumicino, com destino a Paris Ficaram satisfeitos pelo fato da belíssima passageira americana ter despertado. Assim, podiam continuar vendo seus olhos sensacionais. Mas que, naquele instante, liam o cabograma: Primo Johnny deseja vê-la em Paris Stop Beijos Stop Tio Charlie.

A senhorita Montfort imobilizou-se. Dobrou, depois, o papel e guardou-o. Seria impróprio de uma espiã da sua categoria, tê-lo rasgado em pedacinhos. Afinal, quem poderia interessar-se por um cabograma recebido com toda a naturalidade? Há muito tempo “Baby” deixara de lado as pantomimas dos maus espiões. A mensagem indicava, na realidade, que a CIA pedia-lhe para fazer um contato em Paris. Como é que tio Charlie descobriu que ela estava chegando a Paris? Muito simples: tio Charlie, isto é, Charles Alan Pitzer, seu chefe direto na CIA e chefe do Setor Nova Iorque daquela organização de espionagem, era um dos seus mais queridos amigos e sabia que ela se encontrava em Malta, com Número Um. Ligou para lá e recebeu a informação de que ela voava para Paris. — Sua taça, senhorita Montfort. A espiã mais perigosa do mundo olhou, sorridente, para a comissária e murmurou: — Obrigada. Devemos estar chegando a Orly, não é mesmo? — Em menos de vinte minutos estaremos pausando. O que poderia estar acontecendo na capital francesa, imaginou Brigitte, ao tomar o primeiro gole de champanhe. Algo importante, sem dúvida. Caso contrário, tio Charlie não enviaria aquele cabograma para “Baby”, em pleno voo. Só havia um pequeno inconveniente. Naquela viagem ela não levava material de espécie alguma. Nem armas, nem rádio, nem qualquer tipo de truques. Só uma bagagem comum; não levava, sequer, a maletinha vermelha. Podia usar o telefone, é claro, e pedir o que precisasse. Mas a ideia não lhe agradava. Preferia os contatos diretos, por meio do rádio. Se fosse preciso, compraria um rádio

comum em qualquer loja de Paris e faria a adaptação necessária. *** Não precisou ter o menor trabalho. Mal surgiu no vestíbulo do aeroporto de Orly, seguida pelo carregador com a bagagem, viu os dois homens esperando. Soube, no mesmo instante, quem eram eles. Eram dois Johnnies. Dois agentes da CIA enviados a Orly para receberem a agente “Baby”. Como podia ela saber de tudo isso? Muito simples: um deles, sorridente, tinha nas mãos um buquê de rosas vermelhas. — Conhecem tio Charlie? — perguntou Brigitte, dirigindo-se aos dois homens. — Muito. Ele mandou que viéssemos esperar nossa prima com um buquê de rosas vermelhas. Mas não a conhecemos. É a senhorita? — Espero que não se confundam. Qual é o nome dela? — Ignoramos. Sabemos, apenas que, em família, todos a chamam de “Baby”. — Não me diga que vocês são os primos Johnny e Johnny! — Somos, sim! — disse o das rosas. — E você é... Brigitte riu, recebendo o buquê de rosas. O carregador sorria. Acontecem coisas tão engraçadas nos aeroportos! Segundos depois, ele estava novamente livre, com uma gorjeta inacreditável, vendo a belíssima e generosa viajante retirar-se em companhia dos primos, que cuidaram da bagagem. Três minutos mais tarde, a bagagem estava no portamalas de um carro e Brigitte sentada no banco traseiro. Um dos agentes da CIA acomodou-se ao volante. O outro se sentou ao lado de Brigitte. E o carro partiu. O agente que se

sentara junto dela tirou do bolso um envelope e entregou-o à espiã, dizendo: — Johnny-Paris está em Estocolmo e por isso fomos encarregados de recebê-la. Esperamos poder informá-la adequadamente. — Tenho certeza que sim — murmurou Brigitte. Abriu o envelope e dele tirou as fotografias de dois homens, ambos jovens, de uns trinta e cinco anos. Muito atraentes. Um, especialmente, o mais louro e com óculos redondos. Não que fosse mais bonito que o outro, mas tinha um encanto suave e viril ao mesmo tempo. Usava os cabelos compridos e os olhos cinzentos tinham um ar repousado e gentil. O outro usava o cabelo muito curto. Talvez por isso, parecesse mais jovial e de feições mais duras. Os olhos eram escuros e o olhar direto. — Quem são? — perguntou Brigitte. — O de cabelo curto chama-se Igor Kevillan. Há algum tempo dispomos da fotografia dele. O de óculos chama-se Viktor Karlov e a foto foi batida ontem, em Roma. — Então, ambos são russos... — Têm mais uma coisa em comum: foram, há uns três anos, agentes do KGB russo. — Foram? — Demitiram-se. O KGB mostrou-se... amável para com os dois. Influenciado, sem dúvida, pelos bons serviços que Kevillan e Karlov prestaram. Igor Kevillan ficou na Rússia, trabalhando como jornalista e escrevendo roteiros informativos para a televisão. Costumava viajar bastante pelo interior do país. Viktor Karlov preferiu radicar-se no estrangeiro. Atualmente está em Roma, como adido cultural na embaixada soviética naquela cidade. — Abandonaram a atividade de espiões... Ou não?

— Sim, sim. Ao menos pensávamos assim, até três dias atrás. Um de nossos companheiros residente em Berlim recebeu um telefonema. De Igor Kevillan. Telefonou para oferecer algo muito importante que desejava ver chegar às mãos da CIA e da imprensa norte-americana. — Um momento! Algo que ele roubou na Rússia? — Evidentemente, porque estava sendo perseguido. Nosso companheiro não conseguiu, por isso, entrar em contato com Kevillan, que tornou a chamar ê pediu a meu amigo para ir à Roma, pois em Berlim as coisas estavam difíceis. Nosso agente em Berlim informou do assunto e teve autorização para se dirigir para lá. Enquanto isso, nós soubemos de algo que aconteceu na Rússia. Um agente do KGB chamado Mihail Nekoroff foi morto a balaços por Igor Kevillan e o KGB partiu atrás dele como uma matilha de lobos famintos. No momento, Kevillan não está em Berlim, nem chegou à Roma. Ignoramos seu paradeiro. — E os russos o estão procurando? — Naturalmente. Kevillan matou um agente soviético e fugiu da Rússia. — Sabemos o que ele estava oferecendo e por que desejava que chegasse à imprensa norte-americana? — Não. Não fazemos a menor ideia do que possa ser. — E o que queria Kevillan, em troca disso? Dinheiro? — Não mencionou dinheiro em momento algum. Nosso companheiro de Berlim garantiu quanto a esse ponto. — Esse agente alemão, a quem chamaremos de JohnnyBerlim, conhecia Kevillan pessoalmente? — Sim. Havia uma espécie de... boas relações entre ambos. Igor Kevillan é um bom rapaz. E digo isso sem ironia.

— Compreendi. E que me diz de Viktor Karlov? Onde aparece nisso tudo? — Karlov e Kevillan são excelentes amigos. Não são apenas ex-colegas de serviço. — Entendo. Como Kevillan informou que se dirigia a Roma, pensamos que tomou esse rumo precisamente porque Viktor Karlov está lá. Sem dúvida pensa recorrer ao amigo. — Pareceu-nos razoável. — De certo modo, é. Mas eu pergunto: os russos não terão pensado como nós? — Talvez, caso tenham descoberto que Igor Kevillan projetava ir para lá. Mas o pessoal do KGB não pode saber disso. Nós, em troca, temos certeza, pois ele informou ao nosso companheiro de Berlim. De qualquer modo, os russos podem lembra-se que Igor é amigo de Viktor Karlov. Aí, tomariam determinadas medidas. Vigiariam Karlov, certamente, esperando que Kevillan entrasse em contato com ele. Mas o pessoal do KGB não sabe que Kevillan foi para Roma e temos esperanças de que o campo esteja livre para podermos acompanhar Karlov sem complicações e sem precisarmos enfrentar o KGB. — Nossos companheiros de Roma estão vigiando Viktor Karlov? — Naturalmente. — Então... o que esperam que eu faça? — perguntou Brigitte, arqueando as sobrancelhas. — Para ser franco, estamos um pouco confusos sobre nosso companheiro Johnny-Roma, que dirige a vigilância de Karlov. Johnny-Roma não sabe o que fazer. Considerando que Kevillan é muito amigo de Karlov e que queria entregar algo para a CIA, Johnny-Roma pensou em ter uma entrevista

com Karlov para dizer-lhe que desejamos nos encontrar com seu amigo. — Que barbaridade! — exclamou Brigitte. — Se Karlov for mais amigo do KGB que de Kevillan, as coisa se complicariam muito. O próprio Johnny-Roma, por meio de Karlov, informaria o KGB que Kevillan pretendia ir à Roma. Além disso, se os russos já desconfiaram que ele pode ter ido para Roma e virem nosso agente com Karlov, surgirão mais complicações. — Uma série de complicações como essa levou a Central a recorrer a você. Como sempre, espera-se que encontre uma... uma via para a situação, partindo da base de que temos grande interesse em encontrar Igor Kevillan e saber o que ofereceu a Johnny-Berlim. — Sim, sim. Vejamos... por que demitiram Igor Kevillan e Viktor Karlov do KGB? — A CIA não tem a menor informação a esse respeito. — E o que se sabe sobre o agente morto por Kevillan? O tal Mihail Nekoroff... A que se dedicava ele? — Nosso pessoal de Moscou está trabalhando nisso, mas por ora, nada sabemos. Brigitte Montfort tornou a examinar as fotografias dos dois ex-agentes russos do KGB. Dedicou, em seguida, toda a sua atenção à Karlov. A coisa estava bem clara: A CIA queria encontrar Igor Kevillan. Como ele se achava em paradeiro ignorado e não pudera entrevistar-se com JohnnyBerlim, havia a possibilidade do soviético se ter metido em enormes dificuldades, como estar sendo perseguido pelo KGB. Sendo assim, Igor Kevillan só tinha um caminho a seguir: pedir ajuda a seu ex-companheiro de espionagem, Viktor Karlov... que estava em Roma, no momento, como adido cultural da embaixada soviética.

— Parece um rapaz simpático e inteligente — disse Brigitte, sorrindo. — Quem? — Viktor Karlov. Sabemos que tipo de vida ele leva em Roma? — Temos uma ligeira informação. Nossos companheiros a estão ampliando no momento. Amanhã cedo já teremos tudo que se puder obter com referência à vida e às atividades de Viktor Karlov em Roma. Brigitte “Baby” Montfort devolveu as fotografias ao Johnny, murmurando: — Jamais saberão todas as atividades de Viktor Karlov, porque ele foi um espião... E um espião é sempre um espião, Johnny. Esse tipo, precisamente, é o que mais me atrai... sempre.

CAPÍTULO SEGUNDO Encontro no museu

Viktor Karlov morava em Roma, na Via Mecenate, número 14, muito perto dos jardins de Colle Oppio, num pequeno apartamento que tinha uma vantagem pouco comum: um terraço do qual avistava, nada menos que o Coliseu. O Coliseu era, precisamente, uma das primeiras coisas que Viktor Karlov via todos os dias. Cada manhã, depois de tomar café, enquanto fumava um cigarro e punha a mente em dia, planejando suas atividades, ele contemplava, do terraço, o Coliseu e aquela parte de Roma. Gostava de Roma. Se pudesse ficaria ali para sempre. Por enquanto, levava uma vida muito independente, embora vinculado à embaixada. Não tinha a menor intenção de

afastar-se muito da embaixada porque se ela resolvesse que Viktor Karlov não servia mais para ela em Roma, ele seria devolvido a Moscou. E Viktor não queria ouvir falar nisso. Nada tinha contra a Rússia, claro. Era sua pátria e a amava. Mas Roma possuía um encanto especial. Principalmente, na primavera. Na realidade faltavam alguns dias para a chegada do verão. A temperatura já havia esquentado bastante. O que tinha ele para fazer, naquela manhã? Devia ir ao Museu Nacional Romano, na Via Marsala. Viktor Karlov adorava museus. Eram lugares silenciosos e repletos de pessoas interessantes e pitorescas, desde o erudito como ele, até os turistas, às vezes bem engraçados. O cigarro acabou. Dirigiu um último olhar ao Coliseu e entrou no apartamento. Este era pequeno, mas muito agradável, com persianas nas janelas, e vasos com flores no terraço e na sala. No meio da tarde a penumbra dava ao local um ar tranquilo e repousante, fora da realidade. Além da sala, ele dispunha de dois quartos, cozinha, banheiro e... jardins e Coliseu à vista. O que mais podia pedir? Eram, apenas, nove e meia da manhã, quando Viktor Karlov saiu de seu apartamento, levando uma pasta na mão. Seguiu a pé para o Museo Nazionale Romano. O que iria fazer em semelhante lugar? Ora essa! Cumprir sua obrigação de adido cultural da embaixada soviética. Viktor resolvera escrever um guia artístico de Roma, aprofundando alguns pontos até então pouco abordados. Não um guia para turistas, nada disso e sim, um para estudiosos da arte. Um trabalho de alto nível, capaz de merecer as honras de fazer parte da Grande Biblioteca Central de Moscou.

*** Às onze e pouco, Viktor viu pela primeira vez a moça, no interior do Museu. Ela estava a dez ou doze passos dele, diante de uma obra de arte digna do maior interesse. No entanto, olhava para ele. Olhava com ar apatetado, de boca aberta e olhos arregalados, por trás das lentes dos óculos de armação grossa. Não era feia e parecia ter um corpo apreciável. A Viktor, porém, ela lembrou um patinho contemplando um cisne. O que podia fazer? Fez o que era habitual nele: sorriu para a moça. Amável. Quase carinhoso. Era natural que ela o contemplasse daquele modo. Ele tinha um metro e oitenta e dois de altura, parecia um poeta-atleta ou um atleta-poeta, um tipo interessante com sua cabeleira muito atraente. Logo, a moça ficara perturbada ao vê-lo e isso era tudo. Viktor sorriu para ela e no segundo seguinte já a tinha esquecido. Lembrou-se novamente, vinte minutos mais tarde. Na realidade, quase se esbarraram em outro corredor do Museu. Deparou com ela à sua frente e precisou apertar o bloco de notas de encontro ao peito, para não perdê-lo no choque que quase aconteceu. — Perdoe-me — murmurou a moça, em italiano. Viktor a encarou. Desta vez viu melhor os olhos dela. Muito melhor. A moça esboçou um sorriso, mas ele não reparou nisso. Observou, apenas, o tom azul dos olhos, por trás das lentes dos óculos. — Não tem importância — disse Viktor, também em italiano. Seguiu seu caminho, mas voltou a cabeça, alguns passos adiante. A moça estava voltada para ele e levou um susto, ao vê-lo voltar a cabeça. Deu meia-volta e afastou-se. Tinha

bonitas pernas. Muito bonitas, mesmo. Não era um patinho feio, como imaginara à primeira vista. Mas... vestia-se e calçava-se de um modo impróprio para a idade. Parecia uma mulher bem mais velha do que era. Tinha um ar muito austero. — Não é italiana, aposto — pensou Viktor. Ao meio-dia e meia, aproximadamente, Viktor Karlov saiu do museu. Ouviu atrás dele passos precipitados e uma exclamação junto com o inconfundível barulho de diversos livros caindo no chão. Voltou-se e viu a moça dos óculos, parada a poucos passos, com os livros a seus pés. Ela desviou rapidamente o olhar e ajoelhou-se para apanhar os livros. Durante um instante, Viktor teve a sensação de que os olhos dela persistiam nos dele, como uma imagem inesquecível. Depois, seguindo um impulso natural, voltou atrás e ajoelhou-se também, dizendo com seu tom amável de costume: — Permita-me ajudá-la. — Não, não, obrigada — balbuciou a moça, assustada. — Não é necessário. — Não, é claro — murmurou Viktor, sorrindo. — Mas eu gostaria. — Não precisa... incomodar-se. — Não é incômodo nenhum. Viktor ajudou a moça a recolher os livros. Quando já estavam de pé, colocou o último sobre a pilha que ela segurava e afirmou: — Podem tornar a cair... Não tem uma pasta ou uma bolsa? — Não. — Pois é melhor tomar cuidado. — Bem, eu... deixei o carro estacionado perto daqui.

— Ah, tem carro. Então vou acompanhá-la até lá. Dê-me alguns livros para levar. — Não, não... — Se não quer, paciência — disse o russo, com ar de brincadeira. — Quer ou não quer? A moça o encarou fixamente e engoliu em seco. Viktor tornou a sorrir, sabendo perfeitamente que seu sorriso de bom rapaz causava estragos nas mulheres. Apanhou os livros que acabara de colocar na pilha que a moça tinha nas mãos e perguntou: — Para onde vamos? — Deixei o carro na Via Marsala, aqui pertinho. — Ótimo. Em que direção vai? — Já disse que deixei o carro... — Não, não. Perguntei para onde vai, quando estiver no carro. — Ah, bom, para o hotel, é claro. — Formidável. Vem mesmo a calhar. — O quê? — Teria a gentileza de me levar, hem? — Mas... o senhor não sabe em que hotel estou! — Seja qual for, vem mesmo a calhar — exclamou Viktor, rindo. — Combinado? Na realidade, estou querendo, apenas, proteger seus livros. Adoro livros e gostaria que os seus durassem muitos anos. Qual é o seu carro? — É um Talbot alugado... Cinzento. — Cinzento — repetiu ele. — Muito bem. Ah, eu sou Viktor Karlov. — E eu sou... Rachel Cowan. Americana. Viktor encarou-a fixamente, impenetrável. Em seguida, sorriu com seu modo habitual e murmurou:

— Americana... Que tal, hem? Eu sou russo. Não é formidável? Uma americana e um russo se conhecem falando italiano. Tem algo contra os russos? — Oh, não... de modo algum! — Para ser sincero, devo dizer que não acho os americanos muito engraçados. Mas a senhorita é diferente. — Eu? Por quê? — Porque é uma intelectual, como eu, e não uma turista igual a tantas outras. E professora de qualquer coisa nos Estados Unidos, aposto! — Como adivinhou? — exclamou Rachel Cowan, parando. — Sou esperto! — disse Viktor, sempre rindo. — Professora de quê? — De Arte Europeia no Renascimento. — É mesmo! — balbuciou ele, espantado. — Ah, aí está meu carro. — Um Talbot cinzento — repetiu o russo. — É este, sem dúvida. Quer que eu dirija? — Oh, não, não... — Então, se abrir a porta, podemos ajeitar os livros, sentarmo-nos comodamente e fumar um cigarrinho. Fuma, senhorita Cowan? — Sim. Não muito, mas fumo. — Isso significa que deve ter cigarros. — Claro, — Ótimo. Assim, terei o prazer de aceitar um dos seus. Rachel pestanejou. Em seguida, deu uma risadinha. Viktor tomou-lhe todos os livros. Ela abriu o carro e ele colocou os livros no banco traseiro. Depois, os dois ocuparam o banco da frente. Rachel tirou da bolsa o maço de

cigarros americanos e ofereceu a Viktor. O russo acendeu dois cigarros, entregou Um a americana e ficou com o outro. — Sou adido cultural da embaixada soviética — disse ele. — Interesso-me muito por arte, embora não seja especializado na Arte do Renascimento. Pretendo fazer uma espécie de guia artístico de certa envergadura. — Mas... isso levará muito tempo! — Sou jovem — murmurou Viktor. — Não tenho pressa para acabar o livro. Está de passagem por Roma, não é? — Sim. Pensei ficar quatro ou cinco semanas aqui. — Tempo demais para ficar num hotel. Estaria melhor num apartamento. E sairia mais barato... Oh, talvez não tenha problemas de dinheiro. — Não muito... — Em que hotel está? — No Imperial. — Viaja sozinha? — Sim. — Gostaria de convidá-la para almoçar. — A mim? — exclamou Rachel. — Por quê? — Para continuarmos conversando. Além do mais, adoro moças que ficam atordoadas olhando para mim. — Não estou olhando assim para o senhor. — Agora, não — disse Viktor, rindo. — Mas precisava ter-se visto, no museu, quando nos esbarramos. — O senhor é um pouco convencido. — De modo algum — protestou o russo, dando um tapinha no joelho da americana. — Sou um homem normal, atraente e nada hipócrita. Gosta dos hipócritas? — Não. — Então, eu lhe agrado, é evidente. Almoçamos juntos. Está decidido. Mas não no Imperial. Não sou pobre, mas

também não sou rico como a senhorita. Que tal um desses simpáticos restaurantes italianos, tipo pizzeria, que os filmes americanos tornaram tão populares-Aposto como o proprietário é gordo, simpático, adora os namorados e chama-se Mário ou Cario. Talvez Pietro. — O senhor está zombando de mim, senhor... senhor Karlov. — Adoraria enganar-me mas verifiquei que a vida oferece poucas situações realmente encantadoras. — O quê? — Esta bem pode ser uma deles — suspirou o russo. — Então? Almoçamos juntos, ou não? — Sim — respondeu a americana, desviando o olhar. — Eu gostaria bastante. — Mas será onde eu disser. — Está bem. Mas quero, antes, passar pelo hotel, para deixar os livros e uns apontamentos que tomei e mudar de vestido. — O que usa é muito bonito, mas talvez fosse bom colocar algo mais juvenil. Tem roupas desse tipo? — Não sou uma menina, senhor Karlov. Rachel disse isto, olhando para Viktor, ao mesmo tempo que freou diante de um sinal. Viktor arqueou as sobrancelhas, sorriu espontaneamente e aproximou seu rosto do da moça. Beijou-a nos lábios, sem que ela tivesse a menor reação e sussurrou: — Eu sou Viktor e você é Rachel. Combinado? — Sim — balbuciou a americana. — Combinado. — Bem... Bem... Podemos fazer uma coisa: vamos ao seu hotel, você deixa tudo isso, muda de roupa e, depois, vamos almoçar em qualquer lugar. Em seguida, iremos dar um passeio pela praia. Já esteve no Lido de Ostia?

— Conheço ligeiramente. — Pois vai conhecer melhor — murmurou Viktor, sorrindo mais uma vez. — Ou tem uma ideia melhor que a minha? — Não. Por mim, está bem. Ele continuou contemplando os olhos azuis de Rachel Cowan. Atrás do Talbot soou uma buzina. Rachel desviou o olhar para o sinal e o viu verde. Com um movimento brusco, deu a partida. Vinte minutos mais tarde os dois entraram no apartamento de Rachel no hotel Imperial. Viktor deixou os livros numa escrivaninha. As persianas estavam abaixadas. A iluminação era agradável e suave. — Vou tomar uma ducha e mudar de roupa — disse a americana. — Ótimo. — Talvez fosse melhor esperar-me... no vestíbulo. — Posso escolher sua roupa, enquanto toma -a ducha — propôs o russo. Viam-se bem na meia luz do quarto. Rachel observava Viktor atentamente. De repente, apontou o armário e murmurou: — Minhas roupas estão ali. Não desarrume, ouviu? Deixe em cima da cama o vestido que escolher. — Ou seja: insiste em que a espere lá embaixo? — É o correto. — Tem razão — concordou Viktor, sempre rindo. — É o correto, não há dúvida. — Até já — disse Rachel. Entrou no banheiro. O russo aproximou-se do armário e abriu-o. Deu uma olhadela geral. Não havia muita roupa. Pelo menos, não tanto quanto era de esperar numa viajante

americana de visita a Europa e que possivelmente estava dando a volta ao mundo. Uma maletinha chamou sua atenção. Uma maletinha forrada de veludo preto. Observou-a intrigado antes de decidir-se a abri-la. Quando o fez, teve uma decepção. Nada de dólares, de passaportes, de armas, de objetos sofisticados; continha, apenas, coisas que as mulheres sempre carregam em suas andanças: maquilagem, secador de cabelo, tesoura, pinça, escovas, etc. Fechou-a e recolocou-a onde a encontrara. Procurou o passaporte, mas não o encontrou. “Talvez ainda esteja na recepção do hotel” — pensou. Remexeu as roupas, os sapatos e foi examinar a escrivaninha. Ouvia o barulho do chuveiro. Balançou a cabeça, dizendo-se que nada encontraria. Voltou então para o armário, escolheu uma saia rodada e uma blusa de malha azul-claro. E um par de sapatos, é claro. Abriu a gaveta onde Rachel deveria ter posto a roupa íntima. Também não havia grande quantidade. Mas era de primeira qualidade. Procurou nas etiquetas para ver a procedência. Não havia indicação alguma. Isso, sim, era chocante. Escolheu um sutiã e uma calcinha, também azuis e foi deixar tudo em cima da cama. Menos os sapatos, naturalmente. Colocou-os no tapete. Ainda ouvia o barulho do chuveiro. De repente, cessou. Viktor ouviu os passos de Rachel. Possivelmente, estava enxugando-se. Silenciosamente, sentou-se na poltroninha perto da cama e esperou. Dois minutos mais tarde, ela saiu do banheiro, inteiramente nua, ainda enxugando a bela cabeleira negra e ondulada. Tinha um corpo espetacular e parecia feita de ouro e seda.

Ela parou bruscamente ao deparar com Viktor e o encarou. — Vê como é muito mais jovem do que parecia? — disse ele. — Pensei que tivesse descido. — Continuo aqui. Rachel não disse nada. Viktor levantou-se e aproximouse dela. Tirou-lhe a toalha das mãos. Meteu os dedos pelos cabelos úmidos da americana. Rachel Cowan não teve a menor reação. — Vamos esclarecer umas coisas — sussurrou o soviético. — Aquela história dos livros caindo no chão, lá no museu, não foi casual, hem? Você me seguiu e quando viu que eu ia embora, tentou o contato daquele modo. Se eu não tivesse ligado, pensaria em outra coisa. Talvez me seguisse no carro. Não é assim? — Sim — murmurou Rachel. — Muito bem. Com que objetivo? — Fiquei fascinada por você. — Ah, é? Ficou? Não está mais? — Claro que sim — respondeu ela, sorrindo. — Ótimo. E que mais? — Mais nada. — Isto é tudo? — grunhiu Viktor, enrugando a testa. — Só! — Só. — Uma flechada, hem? — Foi... — E o que espera de tudo isso? Rachel não respondeu. Viktor Karlov atraiu-a, beijou-a na boca e afastou-a suavemente. Abaixou as mãos até a cintura da jovem e puxou para si o corpo atraente e dourado.

Inclinou-se e beijou-lhe o bico de um dos seios. Depois, o outro. Sentiu em suas mãos a tensão do corpo da americana. Viktor afastou Rachel e começou a despir-se, sem deixar de contemplá-la. Ela não se mexeu. Quando ele acabou, ela continuava imóvel. Levou-a para a cama e deitou-a suavemente, sem fazer caso da roupa que ali colocara pouco antes. Sem maior transição, Viktor deitou-se sobre Rachel e murmurou: — É o que você quer? — Sim, mas não neste momento. — Por que não? — Para mim... as coisas devem ser feitas de outro modo, Viktor. — E se eu quiser fazer deste modo e agora? — Procurarei satisfazê-lo. Mas não vai ter o melhor de mim. Como poderia ter, no momento adequado. Viktor deixou seu peso cair sobre ela, mas não a possuiu, esperando, talvez, uma resposta para aquela situação. Permaneceram imóveis durante mais de um minuto. Finalmente, ele afastou-se de Rachel Cowan e ficou de pé ao lado da cama. Ela o fitou, com os olhos brilhantes e nada mais. Ou melhor, isso era o que se via a olho nu. De repente, ela sorriu e sussurrou: — Obrigada, Viktor. O ex-espião soviético recolheu sua roupa e vestiu-se. Rachel Cowan sentou-se na beira da cama e disse: — Vou vestir-me, também e iremos aonde você quiser. A tremenda bofetada atingiu Rachel, jogando-a de novo na cama. Ela recuperou rapidamente o equilíbrio e com os olhos cheios de lágrimas devido à dor, olhou para Viktor, cujos lábios contraídos se mexeram, apenas para rosnar:

— Escute bem, professora de Arte Europeia do Renascimento. Se gosta da brincadeira e de obedecer às ordens de agentes sem entranhas, está bem. Mas eu já deixei esse jogo há algum tempo, logo, você está agindo à toa. Compreendeu? — Não... Não sei a que se refere... Não entendo porque me bateu! Viktor agarrou-a pelos cabelos, forçando o pescoço da moça para o lado, com raiva e murmurou: — Quero, apenas, uma resposta e esqueceremos isso. O que se passa, agora? Por que vieram incomodar Viktor Karlov? — Está machucando... Não sei do que fala... A mão livre de Viktor ergueu-se, preparada para o golpe. Mas ficou imóvel no alto pois ele hesitou, resmungou qualquer coisa e abaixou a mão, soltando os cabelos de Rachel. Dirigiu-se para a porta do quarto. De lá voltou-se, contemplando a americana com uma expressão hostil. Apontou-lhe um dedo e acrescentou: — Não torne a cruzar meu caminho ou se lamentará. Na próxima vez, tenha a certeza de que Viktor Karlov não será tão... amável com você. E diga a seus amigos: se não me deixarem em paz, todos se lamentarão. Abriu a porta e saiu do quarto. Rachel Cowan permaneceu pensativa durante alguns minutos. Depois, voltou ao banheiro, ainda nua. Meio minuto mais tarde, quando se enxugava com uma toalha pequena, ouviu baterem a porta do quarto. A americana sorriu. Virou a cabeça num gesto gracioso e disse: — Estou aqui, Viktor.

CAPÍTULO TERCEIRO Convite para um passeio

Levantou-se do banquinho e deu um passo para a porta do banheiro. Mas parou bruscamente. Ouvia passos aproximando-se mas compreendeu que não eram os de Viktor Karlov. Naquele instante, o homem apareceu no umbral da porta e ficou olhando para a petrificada senhorita Cowan. — Não sou Viktor — disse o recém-chegado, num tom amável. O olhar de Rachel passou por cima do ombro do sujeito e viu o outro no quarto. Diante do armário para o qual olhava como imaginando por onde deveria começar. Ela voltou o olhar para o homem e perguntou com voz tensa: — O que significa isso? — O que prefere? — disse ele, tornando a sorrir. — Conversamos como pessoas inteligentes ou quer que nós a violentemos e depois lhe arranquemos a cabeça? Rachel apanhou o roupão que antes não utilizara e preparou-se para vesti-lo. O homem tomou-lhe o roupão das mãos e jogou-o a um canto. Rachel, imediatamente, colocou a toalhinha cobrindo seu sexo. Um sorriso de dentes brancos e fortes brilhou no rosto do desconhecido. — O que entregou a Viktor Karlov? — perguntou o visitante. — A que se refere? — Não à sua honra ou a seu sexo, é claro — exclamou o homem, rindo. — Transaram legal, bem sei. Duas vezes, talvez, pois tiveram tempo para isso. Mas não nos interessa esse detalhe. Por mim, vocês podem passar a vida gozando

as delícias sexuais. O sexo é agradável, hem? Gostaria que eu... estragasse sua fonte de prazer? — Ora... não entreguei nada. Não sei de que está falando. Bem, se entreguei, não me lembro. A que se refere? — Papéis, um microfilme, um cassete... Não sei o meio, mas algo você deixou com ele. — Não... Palavra... — Escute: há dias estamos vigiando Karlov e somos bastante espertos para não termos percebido suas manobras no Museu até conseguir contato com ele. Talvez ele tenha ido até lá para isso e montou aquela comédia, sugerindo esbarrões e outras coisas parecidas. Foi isso? Tinham marcado encontro lá? — Não... Até esta manhã eu jamais tinha visto Viktor. — Mas alguém falou nele e a enviou para entregar o pacote, não é isso? — Vamos começar a conversa de outro modo — disse o segundo homem, enrugando a testa. — Se eu perguntar... — Quero... quero vestir-me... — Está muito bem assim. Se formos obrigados a violá-la, será mais rápido. Embora com aves da sua espécie, isso de violação deve ser uma brincadeira, hem? Para você, fazer uso do sexo, há de ser como lavar as mãos, para uma pessoa normal. Não é? — Claro que não! — Mas você deu uma boa transada com Viktor Karlov, hem? — Não. Não é verdade. O outro sujeito pareceu perder o interesse pelo armário e aproximou-se da porta do banheiro, encostando-se ao umbral, ao lado do companheiro.

— Não está alongando demais a entrevista, hem? — perguntou sorrindo. — Viemos trabalhar e não fazer relações sociais. Pergunte onde ficou Kevillan. O outro assentiu e dirigiu-se a Rachel, falando, agora, em russo: — Não ouviu? Onde ficou Igor Kevillan? Rachel Cowan olhou para um e para o outro, com os olhos arregalados, como se fossem saltar das órbitas, e gaguejou: — O que... disse? — Não venha com essa de que não fala russo — rosnou o sujeito. — Não, não compreendo o que está dizendo... — Não entende russo? — perguntou o homem, em italiano. — Russo? — balbuciou Rachel, estremecendo. — Claro que não! Os dois homens a contemplaram friamente. O que começara com um tom simpático e formal estava começando a ficar irritado e Rachel percebeu isso. — Se não fala russo seria tolice nossa pensar que nasceu lá, não concorda? — Russa? Eu? Eu sou americana! — Americana — disse o que se interessara pelo armário. — Ou seja, nem é russa, nem sabe quem é Igor Kevillan, nem nunca o viu. — Não... Nunca... — Pelo jeito, você gosta de complicações. — Não entendo o que estão falando. O que se interessara pelo armário empurrou o companheiro para dentro do banheiro, entrou atrás dele e fechou a porta. A expressão de susto de Rachel Cowan quase

convenceu os dois sujeitos; um deles rosnou um palavrão em russo, aproximou-se dela e segurou-a pelos cabelos. Não teve tempo para mais nada. Recebeu nos testículos uma joelhada espantosa, que lhe arrancou um urro de dor, pulando para trás, com os olhos arregalados. O outro empalideceu de raiva. Meteu a mão direita sob a axila esquerda e começou a sacar a pistola. Rachel usou a toalhinha úmida para golpeá-lo no rosto, acertando-o nos olhos. Foi um ataque inesperado e muito mais doloroso do que seria de esperar. Uma das extremidades da toalha acertou em cheio no olho direito do homem. A dor foi tão intensa que ele gritou, deixando cair a pistola. Um murro, um direto de arrepiar, modelo tsuki da mais pura escola de karatê, atingiu-o no peito, jogando-o de costas contra a porta. E acabou de derrubá-lo, dominado pela dor, sem fôlego, como morto. O outro mal se mexia no chão, onde caíra de joelhos. Conseguiu virar a cabeça para o lado e olhava para Rachel com uma expressão de ódio e de impotência. Rachel aproximou-se dele e com o pé, golpeou-o no queixo, O sujeito pulou de novo, como se alguém tivesse querido arrancar-lhe a cabeça com um puxão. Em seguida, esparramou-se no chão e ficou de barriga para cima, com os olhos muito abertos. Ela contemplou os dois homens. Sentou-se na borda da banheira, fechou os olhos e respirou fundo. Relaxou durante meio minuto. Depois, acocorou-se junto ao mais simpático dos dois sujeitos e o revistou. Encontrou, apenas, coisas compradas em Roma. Estava sem documento algum. Os dois homens eram russos, é claro, mas Rachel sabia que não pertenciam ao KGB. E se não eram agentes do KGB, o que

eram? A que serviço pertenciam? A nenhum. Mas queriam o que Igor Kevillan tirara da Rússia e que podia ser um cassete, um filme ou alguns papéis. Rachel lembrou-se que estava nua. Seria melhor vestir-se e enfrentar a situação, da qual, certamente, não tiraria muito partido. Desinteressou-se de revistar o outro sujeito, que não devia trazer consigo nada revelador. Rachel Cowan foi até a porta do banheiro, abriu-a e passou para o quarto... A pistola com silenciador surgiu diante de seus olhos e uma voz de homem ordenou num russo perfeito: — Mãos em cima da cabeça, fera. Se fizer um movimento, meto-lhe uma bala em cada olho. *** Dizem que a beleza das pessoas está nos olhos. Viktor Karlov compreendeu, naquela tarde, o significado dessa frase. Por exemplo: considerava belo o Coliseu. No momento, porém, não o achava tão bonito como antes; o Coliseu era, aos olhos de Viktor Karlov, um monte de ruínas e nada mais. E que beleza podia ter aquele monte de pedras velhas? Entrou no apartamento, encostando a porta do terraço onde estivera e sentou-se numa poltrona. Acendeu um cigarro. Talvez tivesse sido duro demais com a moça. Talvez inclusive, fosse verdade que ela não soubesse do que ele estava falando. Este último pensamento o aborreceu. Podia significar que ele perdera suas faculdades. Só mesmo sendo muito ingênuo e tendo perdido todas as qualidades de bom espião, para acreditar no conto de fadas da linda americana, professora de Arte e tudo o mais! Qual professora, nem americana, nem Arte, nem...

A pergunta chave era: o que queriam dele? Por que lhe enviaram Rachel Cowan? O que estava acontecendo? Ele fizera alguma coisa que chamara a atenção dos russos ou dos americanos? Refletiu, refletiu e refletiu... Não. Não fizera nada de nada, desde seu pedido de baixa do KGB. Logo, não entendia... A batida na porta chegou como vinda de longe. Mas Viktor logo reagiu vivamente. Não costumava receber visitas em seu apartamento. Logo, algo acontecera. Algo mudara. Fosse o que fosse, ele estava metido naquilo. Foi até a porta e parou diante dela, vacilante. Não tinha mais armas. Era simplesmente um adido cultural da embaixada soviética. Ou não? Que mais ele era? O que estava acontecendo afinal? — Quem é? — perguntou, colocando-se a um lado da porta. — Sou eu — ressoou a voz de Rachel Cowan. O ex-agente do KGB pestanejou. Talvez tivesse chegado o momento das explicações; teria havido uma mudança de tática por parte da moça. Sem dúvida informara o que se passara no hotel e recebera novas instruções, a respeito de manter um relacionamento com ele. Sorrindo secamente, Viktor Karlov abriu a porta de seu apartamento... e pestanejou fortemente. Não prestou atenção, sequer, na pistola munida de silenciador que apareceu à sua direita. Seu olhar fixou-se no rosto de Rachel Cowan, no qual viu sinais de golpes. O lábio inferior estava partido e o nariz sangrava. — Sinto muito, Viktor — murmurou a moça. — Eles me matariam. De qualquer modo, sabiam onde encontrar você.

— Entre — sussurrou o russo. — É melhor limpar um pouco o rosto. — Você virá conosco, Karlov — disse o sujeito da pistola. Viktor Karlov o encarou, devagar, com seus inexpressivos olhos cinzentos. O sujeito sentiu um estranho desassossego. Como uma tensão fria nas costas. Em seguida, ele olhou para o outro homem, que estava à retaguarda de Rachel. Sem dúvida, encostando-lhe uma pistola nos rins. Os olhos de Karlov pareciam dois pedacinhos de gelo. — Muito bem — disse serenamente. — Irei com vocês. Mas depois de arrumarmos um pouco Rachel. Entre. — Escute, Karlov, estou dizendo... Ele tomou a olhar para o sujeito. Enrugou a testa e puxou Rachel pelo braço, levando-a para dentro do apartamento. Os dois homens entraram rapidamente atrás dela e o que ameaçara a moça, disse: — Se pensa que com essa atitude... — Cale-se — cortou Viktor secamente. Desinteressou-se dos desconhecidos, como se não existissem e levou Rachel para a sala, onde a deixou sentada. Quando foi ao banheiro, um dos sujeitos o seguiu, não merecendo, sequer, um olhar da parte de Viktor. O russo limitou-se a apanhar algumas coisas no armarinho e voltou para a sala. Sob o olhar duro dos dois vigilantes, que não se descuidavam, Viktor limpou o sangue do rosto de Rachel. De repente, um deles falou: — Ela entregou alguma coisa a você, Karlov. Seja o que for, queremos que nos dê. Viktor encarou o sujeito e balançou a cabeça negativamente, murmurando:

— Ela não me entregou nada. É, apenas, uma espiã americana fazendo papel de bobo. Ou melhor, a CIA está fazendo papel de bobo. Pelo visto, ignoram que não trabalho mais em espionagem. — Kevillan dizia o mesmo e já se viu — replicou o outro. Rachel olhava para os três homens. O que conversava com Viktor era o terceiro do grupo. O que a dominara com a pistola no quarto do hotel Imperial e que a mantivera sob controle, até os outros dois se refazerem e poderem voltar a agir. O que recebera o golpe com a toalha ficara no carro, pois o olho atingido inchara muito e seu aspecto era comprometedor demais. Os indivíduos observaram Viktor enquanto falavam. Rachel acompanhou o diálogo. O ex-agente permaneceu firme e sereno, cuidando do ferimento do lábio dela e limpando o sangue seco junto do nariz. Ao ouvir o nome de Kevillan, Viktor Karlov olhou para o sujeito, como uma flecha, exclamando: — Kevillan? O que tem Igor a ver com tudo isso? — Não sabe? — Olhe aqui, não sou idiota, ouviu? Logo, pare de falar comigo como se eu o fosse. Falemos claro. O que se passa? O que disse a respeito de Igor Kevillan e o que tem ele a ver com essa história? — Quem controla a situação sou eu — grunhiu o sujeito, mostrando a pistola. Viktor o encarou como se fosse um macaquinho vestido de marinheiro. Balançou a cabeça com um gesto de resignação e admitiu: — Está certo. Você controla a situação. E daí? — Há quanto tempo não vê Kevillan ou não tem notícias dele?

— Quase dois anos e meio. — Está mentindo! — Você é mesmo um imbecil — disse Viktor. E voltando-se para Rachel, perguntou: — Sente-se melhor? — Sim. Lamento me terem usado, mas... — Pare de pedir desculpas — cortou Viktor. — Eu teria feito o mesmo. Gostaria de saber se posso esperar de você uma explicação coerente, que me permita conversar com este cretino que controla a situação. O sujeito a quem Viktor xingou empalideceu ligeiramente. Apertou os lábios e dando um passo para o russo, golpeou-o com a pistola, num dos lados da cabeça. Viktor Karlov soltou um grunhido, caiu de joelhos e pousou as mãos no chão, para não bater com o rosto. Sacudiu a cabeça e lançou um olhar para o agressor. Isso foi tudo. — Os dois irão conosco — disse secamente o chefe do grupo — Tratemos de descer tranquilamente. Iremos para o carro e daremos um passeio. Já sei que você foi o valente Karlov, mas acredite em mim: será melhor portar-se como um bom e inofensivo rapaz, ou sua vida acaba. Entendeu? Viktor ficou de pé. Passou a mão pelo local atingido e olhou para os dedos avermelhados. Colocou uma compressa no ferimento, e a pressionou até estancar o sangue. Olhou, em seguida, para o sujeito e disse: — Para não cometer erros como o de chamá-lo de cretino, como devo chamá-lo? — Boris. — Boris, hem? Está bem, Boris. Vamos dar esse passeio.

CAPÍTULO QUARTO A casa na praia

O passeio terminou quase uma hora mais tarde, num chalé na praia de Lido di Ostia, diante do qual o automóvel se deteve. Os outros dois sujeitos receberam os nomes de Anton e Ivan. Como o de Boris, não eram nomes originais mas serviam para o momento. Ivan, o do olho inchado, viajou no banco traseiro, com Rachel e com Viktor, de pistola na mão. Anton dirigiu o carro, tendo a seu lado, também de arma em punho, Boris, que passou a viagem praticamente voltado para os prisioneiros, vigiando-os após ter mandado que se mantivessem em silêncio e que ordenassem as ideias, pois iam ser interrogados por alguém melhor que ele. Antou saiu do carro e abriu a portinhola traseira da esquerda, fazendo um gesto a Rachel, que viajara daquele lado. — Espere que eu a pegue de jeito — rosnou com rancor. Rachel saiu sem se preocupar com a ameaça. Viktor saiu depois dela. Boris foi abrir a porta do chalé. Entrou e demorou quase um minuto para reaparecer. Enquanto isso, Anton e Ivan, de pistola na mão, ameaçavam o casal. — Venham — grunhiu Boris. — Entrem todos. Entrou na frente. Os prisioneiros atrás dele. Anton e Ivan fecharam a marcha. Chegaram à sala do chalé onde um homem estava sentado numa poltrona. Viktor e Rachel tiveram uma surpresa. O homem vestia-se corretamente mas usava um capuz com furos para os olhos e luvas. Não devia sentir-se muito bem, pois a temperatura estava elevada.

— Vou fazer uma proposta, Karlov — disse o mascarado, sem preâmbulo algum, mantendo os olhos fixos em Viktor. — Se aceitar e se sua interferência no caso ainda não foi decisiva, eu os deixarei irem embora, vivos. A você e a moça. Combinado? — Combinado — respondeu Viktor. — Sentem-se — convidou ele, indicando o sofá colocado diante da poltrona onde se encontrava. — Falemos de Igor Kevillan. Não o vê há mais de dois anos, hem? É verdade? — Sim — murmurou Viktor. — Mas devem ter estado em contato, de algum modo, não é? — Não. De modo algum. — Você e Kevillan eram grandes amigos. Companheiros do KGB... Ambos pediram demissão praticamente ao mesmo tempo e depois deixaram de ver-se ou de manter relações? Devo acreditar nisso? — Deve — disse Viktor, sem se alterar. — Em resumo, você nada sabe sobre Igor Kevillan, há mais de dois anos. — Não sei quantas vezes precisarei repetir isso — rosnou Viktor. O encapuzado balançou a cabeça afirmativamente e seu olhar passou para Rachel, que o contemplava inexpressivamente. Apontou-lhe um dedo e disse: — Ela não é americana. É russa. — Não diga tolices — atalhou Viktor. — Chama-se Rachel Cowan e é da CIA, evidentemente. Embora tenha negado. Pelo jeito, todos ao meu redor se tornaram idiotas. A começar pela CIA. Como puderam imaginar que eu não sentiria logo o cheiro de espiã desta colega? O que não entendo, francamente, é que diabo querem vocês e a CIA de

mim. Todos sabem que há tempos abandonei minhas atividades. — De você não desejamos nada. Queremos o que Igor Kevillan tirou da Rússia. — E o que ele tirou de lá? O olhar do encapuzado voltou para Rachel e perguntou: — O que foi, senhorita Cowan? — Ignoramos — murmurou Rachel. — Sabemos que é algo importante, porque fez uma proposta a um dos nossos homens de Berlim. Mas não temos ideia de que se trata. — Vocês também perderam o rastro de Igor Kevillan, naturalmente... por isso, como nós, dedicaram-se a vigiar o amigo dele, o bom Viktor Karlov... à espera de que Kevillan, de um modo ou de outro, entrasse em contato com ele ou o chamasse pedindo ajuda... Enfim, qualquer coisa parecida. — Sim. Mas nos impacientamos e recebi ordem de procurar Viktor, tornar-me íntima dele, vigiá-lo mais de perto e completamente. — Esperavam enganá-lo assim, mesmo sabendo que está fora da espionagem há três anos? — Precisávamos fazer qualquer coisa — disse Rachel, dando de ombros. — Ou seja: você é americana, de verdade. — Sim. Não entendo porque pensaram que eu fosse russa. — Passou pela nossa mente que podia ser uma amiga de Igor Kevillan e que o tivesse ajudado na Rússia. Fugiu com ele e, nas circunstâncias atuais, enquanto ele espera escondido em algum lugar, você veio trazer algo para Karlov... — Não foi assim. — Bem, bem, bem...

O homem do capuz imobilizou-se, silencioso, com o olhar perdido. Certamente, pensava, tirava conclusões... Mas estas não o agradaram muito, porque estalou a língua numa demonstração de aborrecimento e tornou a voltar-se para Viktor Karlov, murmurando: — É uma situação muito desagradável... Serei obrigado a eliminar vocês dois, Karlov. — Por que devo morrer? — perguntou Viktor. — E eu? — acrescentou Rachel. O encapuzado olhou para ela e disse: — Meus homens informaram-se que é uma mulher perigosa, senhorita Cowan. — Não havia de querer que uma agente da CIA saísse pelo mundo afora sem saber se defender — exclamou ela, surpresa. — Claro. Mas a senhorita é eficiente demais. Aparenta ser uma jovem de nível elevado, com um bom estilo de vida. Poderíamos fazer um trato. — Algo capaz de me permitir conservar a vida? — Evidentemente. Se nos facilitar uma informação fidedigna sobre um problema, apenas, estudaremos sua sobrevivência. E a informação é a seguinte: a CIA não sabe, realmente, o que Kevillan tirou da Rússia? — Não. Sabe, apenas, que, na fuga, Kevillan foi obrigado a matar um agente do KGB chamado Mihail Nekoroff. É tudo o que sabemos. Pelo menos, é tudo quanto me disseram; não sou uma pessoa importante na CIA, senhor... senhor... — Sergei — disse ele, rindo. — Vamos, não banque a ingênua. Não esperaria que eu lhe desse meu verdadeiro nome, hem? — Não perdi nada, tentando — murmurou Rachel, sorrindo.

— Exceto o tempo. — Prefiro perder tempo fazendo perguntas tolas a aproveitá-lo, morrendo. O senhor não é um profissional da espionagem... não é um espião. — Não? O que sou? — Creio que é militar. Sergei ergueu-se vivamente e seus olhos faiscavam. Ivan, Anton e Boris olharam para Rachel, assustados. Viktor dirigiu a moça um olhar de reprovação, não pouco hostil. Em seguida, uma expressão de decepção surgiu no rosto dele. Um agente secreto que mostra as cartas de um modo tão bobo, não podia ser de grande categoria, certamente. — Por que pensou isso? — sussurrou Sergei, finalmente. — Não sei... Pensei e pronto. Intuição. Então, é certo, hem? O senhor é um militar russo? — Não pode ficar de boca fechada? — grunhiu Viktor. — O que espera conseguir com isso? Se tem esperanças de sair bem deste caso, esqueça-se de tudo. — Você também percebeu que ele é militar? — perguntou Rachel. Viktor bufou. Aquela criatura seria uma idiota? Por que semelhante provocação? Antes, quando Sergei se considerava no anonimato total, talvez os deixasse com vida. Mas agora, tendo certeza que eles sabiam ser ele um militar soviético, a vida dos dois perdera todo o valor. De qualquer modo, Viktor Karlov resolveu jogar sua última carta e disse: — Tenho uma proposta para você, Sergei. O encapuzado olhou para o ex-espião e rosnou: — Pelo jeito, todos nós temos propostas. Qual é a sua, Karlov?

— Se não entendi errado, vocês e o KGB procuram Igor Kevillan, que fugiu da Rússia com algo que interessa tanto aos militares, quanto ao KGB. Conheço bem Igor Kevillan e posso assegurar-lhes que não conseguirão caçá-lo. Os do KGB, talvez. Mas não vocês. Meta isso na cabeça. — E qual é a sua proposta? — Talvez eu possa encontrá-lo. — Em Berlim? — perguntou num tom zombeteiro. — Onde for. É provável que tenha conseguido fugir de lá e esteja se aproximando de Roma, para pedir-me ajuda. É possível, mesmo, que neste momento, Igor esteja ligando para o meu apartamento, de qualquer localidade nas imediações de Roma. — Não — atalhou Sergei. — Kevillan está ferido e encurralado em Berlim. Não poderá escapar de lá. Mas, certamente, encontrar um homem como ele, não é tarefa muito fácil. — Poderia ser para mim. — Onde acha que ele possa estar, em Berlim? — Preciso ir até lá, dar uns telefonemas, fazer umas consultas... Não é tão fácil assim... — Ou seja: você deveria procurá-lo. — Não há outro modo. E você nada perderia com isso. Olhe, a americana e eu já sabemos que é militar. E daí? Acaso o KGB, com quem compete nessa jogada, não sabe também? — Sim — murmurou o encapuzado, com um tom sombrio. — O KGB sabe de tudo isso, naturalmente. — Claro — atalhou Viktor. — Não foi em vão que ela perdeu Mihail Nekoroff nas mãos de Igor. Logo, o KGB e você procuram algo que Igor roubou. O prejuízo para os

militares seria grande se o KGB encontrasse Kevillan. Não é assim? — Exato — admitiu o oficial, de má vontade. — Pois façamos um trato definitivo: eu vou a Berlim procurar Igor, acompanhado pela americana e... — Nada disso. Ela fica aqui. — Não vejo por quê. Ela poderia ajudar-me a passar por alguns controles. — Deixe de tolices, Karlov. Você não precisa da ajuda de ninguém para essas coisas, mesmo tendo passado três anos dedicando-se à bobagem de visitar museus. Ela fica. E não insista ou acabarei imaginando que, além dos bons momentos passados com ela na cama, você se apaixonou. — Que tolice! — exclamou Viktor, rindo. — Sim, que tolice! — repetiu Sergei com ironia. — Vejamos o que lhe parece isso: eu fico aqui com a americana e com Ivan, pois ele não está em condições de sair por aí com o olho inchado. Você, Anton e Boris, vão para Berlim, encontram Kevillan, tomam dele o que roubou e trazem para mim. Depois poderão ir embora. Amigos do mesmo modo. E aqui nada se passou de extraordinário. — Feito. Mas preciso telefonar a um amigo da embaixada para justificar minha ausência. — Seria bobagem tentar algum truque, Karlov. — É um simples telefonema, avisando que estarei fora de Roma durante quatro ou cinco dias. Se não o fizer, as coisas podem ficar complicadas. Pelo visto, você não pensou num ponto: o KGB, evidentemente, não está perto de mim, agora. Mas se eu desaparecesse, logo se lembrariam de minha amizade com Igor e meia dúzia de homens se interessariam por mim e por meus movimentos atuais. Não demorariam muito a localizá-lo também, Sergei.

— Está bem. Mas não mencione que vai a Berlim. Viktor levantou-se e foi para o aparelho. Sob o olhar atento dos militares soviéticos, fez a ligação e falou em russo com um homem chamado Andrei. A conversa desenvolveuse em termos que mereceram a aprovação de Sergei. Quando Viktor desligou, Sergei disse em voz firme: — Muito bem, Karlov. Fez jogo limpo, sem dúvida. Ao menos quanto ao telefonema. Conversemos, agora, sobre essa viagem a Berlim. Como pensa ir para lá? — Só podemos cuidar deste caso, viajando de avião — respondeu ele, surpreso. — De outro modo perderíamos tempo demais. Não me parece inteligente, nas atuais circunstâncias. Seus amigos podem viajar normalmente? Apontou Anton e Boris com a cabeça. Os dois não pareciam muito satisfeitos com a perspectiva. Mas Sergei era o chefe e afirmou que ambos podiam viajar sem o menor problema. Viktor disse que precisava passar por seu apartamento, para apanhar o passaporte diplomático. Sergei também não fez objeção quanto a isso. Após mais alguns comentários, o encapuzado considerou conveniente uma última advertência: — Talvez você esteja pensando em atacar Anton e Boris e fugir, Karlov. Não seria impossível ter bom resultado. Mas reflita sobre as consequências. Em primeiro lugar, mataríamos sua bela amiga americana. Depois, saberíamos encontrá-lo... E tudo seria mais penoso, compreende? Viktor encarou-o. Deu de ombros e aproximou-se de Rachel. Ergueu-lhe o rosto, segurando-o pelo queixo e sussurrou: — Porte-se bem, americana. E cuide-se muito, ouviu? Voltarei depressa.

Beijou-a na boca e encaminhou-se para a saída. Anton e Boris seguiram atrás dele. Segundos depois a porta da casa bateu e um motor de automóvel roncou. E o silêncio tornou a cercar o chalé. Os olhos de Sergei voltaram-se lentamente para a espiã americana. Ela sustentou o olhar sem se alterar. — Jamais gostei dos americanos — murmurou ele. — Talvez esteja esperando ouvir de mim, que jamais gostei dos russos — disse Rachel Cowan, sorrindo. — Mas engana-se. Para ser franca, sempre simpatizei com eles... exceto em determinadas circunstâncias. — Eu, por exemplo — exclamou Sergei, rindo. — Não é? Não lhe agrado, confesse. — Não, nem um pouco. Mas não por ser russo ou militar. Isso nada tem a ver com o caso. Não me agrada, simplesmente porque é um canalha, camarada. — E você cheira a morte — tornou a exclamar o encapuzado, rindo. — Mate-a, Ivan! O olho bom do russo brilhou com uma expressão satânica. Olhou para Rachel e meteu a mão no interior do paletó, em busca da pistola. Mas, enquanto isso acontecia, a pantera pulou sobre ele. Ivan deu um grito e acabou de sacar a arma munida de silenciador... mas a espiã estava a um passo dele. Não teve tempo, sequer, de apontar a pistola para ela. Rachel segurou a sua mão direita, usando sua mão esquerda. Afastou-lhe a mão para fora e com a direita, assestou o golpe lateral, bem na fronte. Foi um atemi perfeito. Ivan emitiu um ronco, seu olho são revirou-se e ele rodopiou, já morto, deixando a pistola entre os dedos de Rachel Cowan. A americana segurou a arma pelo cano, girou-a no ar e agarrou-a pela culatra, deixando-se cair de joelhos. Ouviu à

retaguarda, o bufar de alarme de Sergei. Quando ficou de frente para ele, o viu de arma em punho, apontando para ela. A americana atirou primeiro. A cada tiro abafado, ele pulava na poltrona, como um boneco estraçalhado. Ficou sentado, com os olhos arregalados e fixos no teto. Em seu peito, surgiram três pequenas flores de sangue. Rachel aproximou-se do encapuzado e o contemplou um instante. Retirou o capuz. O rosto de Sergei estava crispado e a boca retorcida. Viu as sobrancelhas grisalhas e o nariz grande, com uma verruga do lado. A americana deixou a pistola no sofá e revistou suas roupas; não pensou em fazer o mesmo com Ivan, pois sabia que o russo estava sem documentos. Mas Sergei talvez fosse diferente. Talvez tivesse vida legal na Itália, e carregasse sua própria documentação. O êxito da busca espantou Rachel. Ficou olhando, incredulamente, para o passaporte soviético com o nome.de Basili Ukonov. Não constava no documento que fosse militar. O passaporte tinha a fotografia de Basili Ukonov. E havia o chalé. Partindo desses dados, não seria difícil iniciar uma investigação para apurar quais os homens, militares ou não, amigos de Ukonov, que entraram em contato com ele ultimamente. A americana tinha um ouvido apuradíssimo. Captou o ruído provindo do exterior. Olhou para a pistola com silenciador que deixara no sofá. *** Viktor Karlov não acreditou, por um instante sequer, que aqueles homens fossem fazer jogo limpo com ele. Muito menos com Rachel Cowan. Tratariam de matá-la, quando deixasse de ser útil. E Rachel deixava de ser útil quando ele se afastasse. Não serviria mais de isca para enganá-lo. Sim, a

matariam e deixariam que ele fosse a Berlim em busca de Igor. Quando o encontrasse, chegaria sua vez de morrer. Tudo isso estava tão claro na mente do ex-agente do KGB, que não hesitou nem teve piedade. Mal ficaram fora do alcance visual do chalé, olhou afavelmente para Boris que se sentara a seu lado no banco traseiro. Boris olhou para Viktor e viu a expressão amável no rosto do prisioneiro. Não teve tempo para mais nada. Recebeu um murro em pleno estômago e seu corpo estremeceu, sob o impacto violento. Ficou paralisado pela dor. Viktor segurou-o pelos cabelos, com a mão direita, e utilizou a esquerda para tirar-lhe a pistola do coldre sob a axila. Anton estava ao volante e ouviu o suspiro do companheiro. Ao olhar pelo espelho retrovisor, viu Boris pálido como um morto. Viu também Viktor segurando Boris pelos cabelos. Anton estremeceu e pisou no freio. Voltouse... ouviu o plop e morreu instantaneamente com um balaço na testa. Isso foi tudo para Anton. No banco traseiro, Boris viu o companheiro morrer e isso o obrigou a reagir, sobrepondo-se às náuseas e a dor. Conseguiu erguer os braços e girar o torso. Suas mãos grandes agarraram o pescoço de Viktor Karlov. O ex-agente, porém, sacudiu a cabeça, libertando-se e pousou o cano da arma no peito de Boris. Puxou o gatilho e o adversário emitiu um grito abafado. Pulou para trás e caiu de costas, batendo na portinhola. Dali, caiu no fundo do carro encolhido. Alguns automóveis passaram pela estrada, nas duas direções. Anton freara de qualquer modo. Logo, era preciso tirar o carro dali. Viktor saiu do carro, empurrou Anton para o outro lado do banco da frente e acomodou-se ao volante. Dirigiu até o

começo do bosque e deixou-o entre os pinheiros. Carregou os cadáveres para o porta-malas e iniciou a volta. Deixou o carro a uma distância conveniente do chalé, ao qual chegou a pé e de pistola na mão. Tudo parecia estar na mesma. Normal e tranquilo. O ex-espião soviético contemplou a casa, durante alguns segundos. De repente, sorriu e encaminhou-se tranquilamente para lá. Empurrou a porta e tornou a sorrir ao vê-la apenas encostada. Entrou, guardando a pistola e dizendo: — Ei, americana! Sou eu, Viktor Karlov. A americana apareceu no vestíbulo, vindo do fundo do chalé. Usava um avental e trazia na mão uma frigideira. — Estou preparando o jantar. Entre, russo. Viktor fechou a porta e murmurou: — Eu tinha certeza que você conseguiria. — O quê? Fazer o jantar? — perguntou ela, arqueando as sobrancelhas. — Não — balbuciou Viktor, rindo. — Matar Sergei e Ivan. Sabia que você daria um jeito de livrar-se deles mas queria certificar-me de que estava bem. — Estou ótima. Liquidou os seus? — Não tive outro remédio. Não ia deixar que eles me matassem, depois de encontrar Igor. Você também sabia que pretendiam matá-la, não é verdade? — Sim — suspirou ela. — Quando se brinca com esse tipo de gente, é preciso agir com muito cuidado. Não passam de escória. Não têm ideias para resolver as situações. Solucionam tudo, matando as pessoas. — Hum, o cheirinho está bom — murmurou ele, apontando a frigideira. — Podemos dividir — respondeu a americana, sorrindo e revirando os olhos. — Dou metade do jantar a você em troca

de uma única pergunta: acha mesmo que poderá encontrar Igor Kevillan em Berlim? — Acho. — Então, está convidado para o jantar. — E depois? — sussurrou o russo. — Café. — Não me refiro a isso. Perguntei se vamos para Berlim esta noite, ou amanhã de manhã. Juntos ou separados. Como amigos ou como inimigos... Enfim, gostaria de passar a noite com você. — Fazendo o quê? — Entre outras coisas, amor. — Para ser sincera não tenho uma lembrança muito agradável com você, a esse respeito. — Esta noite poderia ser diferente. — Não. E responderei às suas perguntas. Vou sair esta noite para Berlim, de qualquer jeito, depois de passar pelo meu hotel e deixar as coisas preparadas para ninguém se alarmar com a minha ausência, nem me procurar. Já tive complicações suficientes. Quanto a irmos juntos ou separados, como amigos ou como inimigos... Olhe, eu gostaria que fôssemos juntos, como amigos, e que você me levasse a Igor Kevillan. Mas também posso fazer as coisas sem sua ajuda. — Com mais dificuldades e, principalmente, perdendo mais tempo. — Isso, sim. Mas faria. Tenho certeza de conseguir passagem num voo noturno para esta noite mesmo. Chegarei a Berlim amanhã cedo. No mais tardar, ao meio-dia. Uma vez lá, posso complicar minha vida, tanto como você a sua. Se eu avisar que Viktor Karlov vai chegar a Berlim para fazer contato com Igor Kevillan, você não daria um passo

sem que a CIA me informasse. Estaria metido numa rede, da qual não poderia sair. — A CIA, hem? — grunhiu Karlov. — O que mais esperava? — perguntou a americana, sorrindo. Viktor a encarou fixamente durante algum tempo. Finalmente, deu de ombros e disse: — Última proposta de Viktor Karlov: vamos juntos para Berlim, mas ninguém mais se meterá neste caso. Ao menos, por enquanto, e diretamente.

CAPÍTULO QUINTO Visita a Berlim

Eram onze e vinte da manhã, quando um dos aviões da Lufthansa, procedente de Bonn, pousou no aeroporto de Berlim. Entre outros passageiros, desceram do aparelho a senhorita Rachel Cowan e o diplomata soviético Viktor Karlov, que tinham viajado juntos, mas como se não se conhecessem. Nada mudou até chegarem ao vestíbulo. A americana dirigiu-se ao balcão de aluguel de automóveis e o russo encaminhou-se para a saída. Quinze minutos mais tarde, Rachel apareceu na saída do aeroporto, dirigindo um Mercedes 22. Viktor ficou na beira da calçada e fez sinal, pedindo carona. Ela deteve o carro e ele sentou-se, resmungando: — Que noite, hem? — Não foi fácil combinar os voos para estarmos aqui ao meio-dia — concordou Rachel, sorrindo. — Não me diga que está cansado!

— Um pouco. Há muito tempo deixei esse tipo de atividade neurótica... É preciso ser louco, para ser espião profissional. — Tem razão — concordou a americana. — Pode me dizer a verdade sobre sua demissão do KGB, Viktor? Viktor reagiu como se não tivesse ouvido a pergunta. Mas Rachel insistiu, pois tal revelação poderia ter alguma importância. — De certo modo, Igor teve culpa no meu pedido de demissão. — Tinha tanta influência assim sobre você? — Influência? — espantou-se Viktor. — Não. Nenhuma. Ele teve um problema sério e resolveu demitir-se. Éramos amigos e eu comecei a pensar... Se Igor passou por isso, eu também posso... — Acontece com todos nós — admitiu Rachel. — Foi o que eu pensei. — O que houve com Igor Kevillan? Pode dizer-me confidencialmente. Não informarei à CIA, se prefere que não o faça. — Nem à CIA, nem a ninguém — atalhou Viktor, furioso. — Sim, talvez seja bom lhe dizer. Igor estava apaixonado por uma moça na Alemanha Ocidental. — Da mesma profissão? — Não, não. Uma garota que trabalhava como modelo, numa loja de modas em Hannover. Era muito bonita... Bonita de verdade. Dessas magrinhas, mas com seios e pernas espetaculares. Igor estava louco por ela e teria pedido demissão, mesmo se não tivesse acontecido aquilo. — O que aconteceu? — Bem, usaram a moça como isca; ele havia marcado encontro com ela em circunstâncias um pouco difíceis, pois

não podia vê-la sempre que desejava. De qualquer modo, ela deu um jeito de fazer chegar a Igor uma mensagem, dizendo que precisava falar com ele com urgência. — Eram amantes? — Claro. Faziam amor como loucos. Mais de uma vez encontrei-o caindo pelas tabelas. Nós ríamos e ele dizia que se eu encontrasse uma garota igual a Hilda, também deixaria a pele nos encontros de amor. Ela também estava louca por ele... — Você a conhecia? — Sim. Ora, sentimentalismos bobos... Igor apresentoume a ela em certa ocasião. Já me tinha mostrado fotos dela, vestida e nua. Era uma criatura... maravilhosa, doce, simpática e culta. E olhava para Igor como se ele fosse a própria vida. Fiquei com inveja dele, confesso. Já tive mulheres muito bonitas, é evidente, até mais bonitas que Hilda... Ela, porém, era especial. Tão doce, tão alegre, tão sexy e, ao mesmo tempo, tão suave e terna... — Mas acabou preparando uma armadilha para Kevillan? — Não — espantou-se Viktor. — Ou não expliquei direito ou você não entendeu. Não foi ela quem preparou a armadilha para Igor. Usaram Hilda. Obrigaram-na a marcar um encontro em determinado lugar e quando ele chegou, encontrou-a estendida na cama, violada brutalmente e degolada... — Santo Deus... Viktor engoliu em seco e passou a língua pelos lábios, prosseguindo: — Seis homens fechavam a armadilha preparada para Igor. Ele matou os seis. Nunca entendi como conseguiu, mas matou-os e fugiu, sem querer receber a mais ninguém. Nem a mim. O KGB precisou ter paciência com ele, porque

sempre fora um dos melhores agentes. Lembraram a Igor que numa das primeiras lições, nos disseram que não nos devíamos apaixonar, principalmente fora da Rússia. Ele teve uma entrevista com alguns chefes do Diretório e aceitaram sua demissão. Passou seis meses sem procurar pessoa alguma. Um dia, finalmente, ligou para mim e perguntou se eu ainda estava vivo. Fiquei muito contente. Ele também. E me disse: vejo que aprendeu a lição, rapaz. Enquanto estiver metido nisso, nada de paixões. Disse que qualquer pessoa relacionada comigo, correria perigo de morte. Concordei com ele... — Por isso pediu sua demissão? — Em parte, sim. O que me decidiu, realmente, após muita reflexão, foi a certeza de que a espionagem é uma estupidez e que a Arte e a Ciência são muito melhores. — Concordo com você quanto a esse ponto, mas... por que chegou à conclusão de que a espionagem é uma insensatez? — Sabe por que prepararam a armadilha para Igor, por que violentaram e degolaram Hilda...? Porque sete ou oito semanas antes, em Estocolmo, Igor quebrara o braço de um chinês que andava atrás do mesmo que ele. Ele ganhou a partida e podia ter liquidado o sujeito. Em vez de matá-lo, quebrou-lhe um braço. E o desgraçado contratou assassinos alheios à profissão para vingar-se, esquecendo-se que Igor lhe poupara a vida! Rachel Cowan encarou Viktor um instante e o viu alterado por causa da recordação. Não disse nada. Durante dois minutos os dois permaneceram em silêncio. Viktor, finalmente, murmurou: — Já sabe, agora, porque larguei essa droga chamada espionagem. Convenci-me de que era um homem normal e,

por isso, ainda estou vivo. Mas, como vê, não é fácil deixarem um sujeito em paz. — Um espião é sempre um espião — balbuciou Rachel. — O quê? — São coisas que acontecem. Certamente ninguém acreditou que tivesse deixado a profissão. A começar pela CIA. Acho normal, portanto, que me tivessem enviado para fazer contato com você, com a intenção de descobrir o que está tramando, e se tem algo a ver com o que fez Igor Kevillan na Rússia. Viktor Karlov dirigiu outro olhar furioso à americana. Não respondeu. Novo silêncio formou-se entre eles, enquanto Rachel dirigia com atenção. De repente, Viktor tocou o braço dela e disse: — Pare. A partir de agora, eu dirijo. — Vamos para o lugar onde você espera encontrar Kevillan? — Sim. — Pode ser perigoso, em pleno dia... — Sim, mas talvez ele esteja precisando de ajuda. Você é bastante esperta para perceber se alguém nos segue? — Sim. Acredito que sim. — Ótimo. Estavam na Postdamer Strasse e Viktor dirigiu para a Kemperplatz, seguindo depois pela Tiergartenstrasse, pela qual continuava, sempre sem pressa. Desviou-se para a esquerda, numa manobra proibida nas sinalizações e meteuse por ruas mais estreitas. Rachel Cowan conhecia bem a cidade de Berlim mas custou um pouco para orientar-se. Apesar disso, não fez comentários.

Nem quando, finalmente, Viktor freou, depois de ter encostado o carro à calçada e desligou o motor. Voltou a cabeça para ela e sorriu, perguntando: — Alguém nos seguiu? — Não. — Tem certeza? — Absoluta. — Bem, então, vamos ver Igor. Saiu do carro. Rachel o imitou. Era uma rua pouco movimentada e calma. Ela viu apenas duas lojas pequenas. Não eram das mais prósperas de Berlim Oeste, sem dúvida. Um automóvel passou pela rua, silenciosamente, dirigido por uma loura. Viktor e Rachel a observaram. Entreolharam-se e sorriram. Uma coisa era desconfiar e vigiar. E outra, ver fantasmas por toda a parte. Viktor tomou Rachel pelo braço e dirigiu-se a um edifício, onde entraram. Ela prestou atenção ao número do prédio, é evidente. Era o trinta e dois daquela ruazinha sossegada. Viktor levou-a para o fundo do vestíbulo deserto, passando pelo lance de escadas. Dois metros antes de chegarem ao fundo, ele parou. Girou para a direita e ficou de frente para uma porta pequena. Abriu-a, meteu a mão e acionou um interruptor. A luz acendeu-se no espaço reduzido onde ficavam os relógios de luz de todo o prédio. À esquerda e à direita dos contadores de luz havia paredes de tijolos. Viktor empurrou com a mão a da esquerda. Uma segunda pressão, mais forte, deslocou para dentro a parede de tijolos. O russo voltou-se para a americana, sorrindo com ironia. Ela, porém, não demonstrou surpresa alguma. — Rápido — murmurou Viktor.

Os dois entraram, depois dele apagar a luz do compartimento dos marcadores de luz e de ter fechado a porta do vestíbulo. Ficaram mergulhados numa escuridão total. Do espaço reduzidíssimo onde se encontravam, partia um lance de degraus. — Onde imagina que está? — perguntou Viktor na escuridão. — Num dos muitos esconderijos usados pelos judeus durante a Segunda Guerra Mundial — respondeu Rachel, sem hesitar. — Você é uma americana espertíssima, hem? Tem alguma luz? — Sim. — Pois acenda-a. Rachel abriu a maletinha e encontrou, às apalpadelas, a caneta-lanterna. Um foco de luz minúsculo e fino perfurou as trevas, permitindo que vissem onde andavam. A escada era muito estreita e só dava para uma pessoa descer de cada vez. Viktor foi na frente. Até chegarem a uma porta maciça e enferrujada que mais parecia a escotilha de um submarino. Viktor segurou as argolas com as duas mãos e abriu a porta. Uma luz sinistra e amarelada apareceu como uma facada úmida na escuridão. — Igor? — chamou Viktor, em voz baixa. Uma armadilha parecia engolir sua voz. A entrada dava apenas para uma pessoa e o russo passou por ela, abaixandose diante da porta. Ao lado ficava o interruptor da luz. Do teto baixo e sujo pendia uma lâmpada empoeirada que dava luzes e sombras ao recinto miserável. Igor Kevillan estava ali. Viktor o viu em seguida, sentado na cama feita com sacos. Encostado à parede. Igor tinha um olhar aparentemente tranquilo. Em seus lábios, em toda a sua

fisionomia, havia um ar de doçura. Um sorriso delicado, congelado pela morte. Viktor ficou imóvel, contemplando o camarada morto. Não se ouvia ruído algum ali dentro. O silêncio era realmente sepulcral. Igor Kevillan tinha uma das mãos apertadas contra o corpo. Mão que parecia feita de barro amassado. Não se mexeu, sequer, quando Rachel colocou-se a seu lado. Nem quando a americana se movimentou pelo cubículo. Só reagiu quando, segundos depois, à sua mente chegou a compreensão do que ela estava fazendo. Estava tocando seu camarada morto. Viktor pestanejou, passou a língua pelos lábios e respirou fundo, sussurrando: — O que está fazendo? — Revistando-o. — Não toque nele. — Talvez ele tenha o que procuramos, Viktor. — Não toque nele, já disse! — Escute... o pessoal do KGB matou-o. Não fui eu. Quero, apenas... — Eu a mato, se tocar nele! Rachel ficou parada, olhando-o e finalmente sentou-se no chão, tranquilamente. Viktor Karlov tornou a suspirar fundo, devagar, e foi sentar-se diante do camarada, cujos olhos abertos e risonhos começavam a cobrir-se de uma camada de pó, como uma neblina. Um minuto se passou. Dois. Cinco. Rachel observou o espião soviético. — Viktor — balbuciou ela. — Não podemos ficar muito tempo aqui. Se encurralaram Igor, talvez nos tenham visto chegar a esta zona.... e é bem possível que tenham reconhecido você.

O soviético olhou para ela, pestanejou e balançou a cabeça afirmativamente, dizendo: — Tem razão... tem razão... em tudo. Revistou suavemente Igor Kevillan, quase sem mexer nas roupas. Com todo o cuidado. Como se o camarada ainda estivesse vivo e um movimento brusco pudesse acordá-lo a qualquer momento. Ou machucá-lo. Encontrou nos bolsos alguns marcos alemães, dólares, selos do correio, dois envelopes vazios, um lenço e os documentos, sujos de sangue. Não havia chaves, nem qualquer outra coisa capaz de ter um significado. Pelo menos, à primeira vista. Havia também uma esferográfica e um rolinho de adesivo transparente. Ficou olhando para os objetos, tão atordoado quanto Rachel, que não perdia um só dos movimentos dele. — Abra a maletinha — pediu Viktor. Rachel obedeceu e ele guardou o que havia encontrado nos bolsos de Igor Kevillan. Ela contemplava o sorriso do morto, enquanto Viktor arrumava os objetos na maletinha. — Gostaria de saber por que morreu sorrindo — sussurrou Rachel. — O que teria pensado ou de que se teria lembrado... Desviou o olhar para Viktor que a observava inexpressivamente. Ele olhou ao redor, o pouco que havia para olhar. Rachel reparou nos sapatos de Kevillan, sujos de barro escuro, como limo petrificado. Esse detalhe deixou-a pensativa. Pouco depois, descobriu o alçapão. — Viktor, veja — disse ela. — Já sei disso — respondeu ele, desinteressado. — Devemos procurar aqui o que Igor tirou da Rússia. Ele não era um imbecil. Não perderia a vida em vão. Se procurarmos bem, tenho certeza...

— Psst! Cale-se. Viktor Karlov permaneceu em silêncio. Rachel Cowan aproximou-se da porta metálica que ela mesma fechara ao entrar e ouviu atentamente, durante um instante, antes de sussurrar: — Estão descendo... Não tardarão a localizar a porta de tijolos no compartimento dos contadores de luz. Talvez, antes de procurarem lá, tenham dado busca nos apartamentos do prédio... Viram quando chegamos e reconheceram você... — Muito bem — disse Viktor de um modo estranho. — O que pretende fazer? — Eu? — balbuciou ela, surpresa. — O que posso fazer? Sou uma agente americana. Se me agarrarem metida nisso o pior que me pode acontecer será passar o resto da vida na Sibéria. Jamais me trocariam, porque não teriam certeza se cheguei a conhecer a verdade sobre Kevillan e sobre o que ele tirou da Rússia... Você fez uma pergunta realmente curiosa, Viktor... O que posso fazer? — Está disposta a fugir comigo? — Ora, que pergunta! Naturalmente! — Podia optar por entregar-se ao KGB. — Está louco? — exclamou Rachel, arregalando os olhos. — Não estou com vontade de discutir. Muito menos de pilheriar. Muito bem, continuemos jogando o jogo. Apague a luz.. Apontou o interruptor junto à porta metálica. Rachel torceu-o e o cubículo ficou às escuras. Houve uns segundos de silêncio total. Os ruídos do outro lado da porta metálica se destacaram. No cubículo, Rachel captou sons metálicos. Em seguida, o som mudou, chegando ali como bafos de umidade.

— Venha — disse Viktor. Aproximou-se dele, guiada pela voz. No momento em que sua mão livre tocou o braço do soviético, sentiu o cheiro desagradável dos esgotos. Naquele instante, ouviu barulho junto à porta metálica. Em seguida, batidas. Compreenderam que vários homens armados acabavam de chegar. E eles não tinham arma alguma. Nem sequer pensaram em carregar a dos soviéticos, conseguidas em Roma, pois durante o voo seria difícil ocultá-las. As batidas se repetiram. Depois, ecoou uma voz em russo, como procedente de outro mundo, dizendo: — Karlov! Sabemos que está aí. Entregue-se! — Vamos — balbuciou Viktor. — Precisamos andar depressa. Não tardarão a encontrar um modo de abrir a porta. Rachel Cowan deslizou para aquela sinistra escuridão úmida e malcheirosa, cheia de ruídos desconhecidos para ela.

CAPÍTULO SEXTO Os esgotos da cidade

Chegaram primeiro ao canal superior. Depois, deslizaram pela rampa da zona inferior. Os ratos fugiam à luz da lanterna de Rachel que, ali em baixo, parecia mais forte e espalhava mais claridade. Os passos ecoavam de um modo lúgubre. Não falavam, nem mesmo para se consultarem a respeito do caminho a seguir. Só quem podia fazer escolhas, ali, era Viktor Karlov. Rachel limitou-se, portanto, a acompanhá-lo. Por um instante ouviram o som de passos e umas pragas à retaguarda. Depois, julgaram ouvir passos na vanguarda. Mais tarde, outros sons, vindos de um desvio.

— Trazem rádios de bolso e se comunicam entre si — sussurrou Viktor, apurando o ouvido. — Vêm em nosso encalço. Sua lanterna vai ajudá-los a nos localizar e a nos encurralar. Rachel apagou a lanterna. Perdidos naquele mundo de trevas, captavam todos os ruídos. Passos ora distantes, ora mais perto, vozes, exclamações, raspar de unha na parede úmida e o escorrer de líquidos nauseantes. As palavras, poucas, eram em russo e consistiam em indicações para irem fechando o cerco em torno dos fugitivos. Pisadas fortes ressoaram diante deles. Rachel e Viktor compreenderam que os homens caminhavam para eles. A claridade de uma luz amarelada passou pela parede e pelas águas. Os passos foram ficando abafados até se perderem. — Esses homens não são do KGB — sussurrou Viktor. — Não, não são — concordou Rachel, usando o mesmo tom de voz. — Então... devem ser do mesmo grupo de Roma. — É o mais provável. Francamente, creio que o KGB faria tudo melhor. A armadilha teria funcionado de tal modo, que não estaríamos aqui em baixo, soltos e com probabilidade de escapar. Falo assim, supondo que você conheça o caminho para entrar e sair desse labirinto. — Claro. Conheço, sim. Igor também conhecia. Por enquanto, precisamos ficar aqui. Não nos podemos mexer. — Está bem. Ficaram quietos e silenciosos. Continuavam ouvindo os diferentes ruídos ao redor. A luz de uma lanterna apareceu e desapareceu. Os passos fortes de dois homens ecoaram, correndo junto às águas sujas. Desta vez, não se desviaram, nem se desorientaram. Viktor e Rachel não viam os dois homens. Viam, apenas, as

luzes, aproximando-se e ouviam os passos inseguros e os escorregões. No mesmo instante em que os passos se detiveram, os dois fugitivos compreenderam que tinham sido vistos. As luzes apontaram para eles e a voz soou como um estrondo de mil ecos nos esgotos: — Estão aqui! — Vão fugir — gritou o outro homem, ao captar o movimento de Rachel e de Viktor. — Quietos! Parem ou atiramos! A americana e o ex-espião soviético saíram correndo, sem darem a menor importância à ordem. Atrás deles ecoou o som de um tiro dado sem silenciador. Em seguida, uma praga. Mais dois tiros. Agora, dados com silenciador. O eco espalhou-se por todos os lados. Rachel e Viktor continuaram correndo na escuridão, guiando-se pela claridade projetada pelas lanternas ao longe. Passaram por um túnel e Viktor meteu-se nele, puxando Rachel pela mão. Deixaram, assim, inteiramente vazia a calçada do canal geral. Os passos ressoaram com mais força. Outras luzes se aproximavam. Viktor colocou-se junto à abertura do túnel, mas fora do alcance dos perseguidores. Um deles passou, de lanterna na mão, deixando um raio à sua frente. O outro seguia o companheiro e não esperava pelo que aconteceu. Todos sabem que a espionagem é um jogo de imprevistos. Bruscamente, para o homem, o vulto de Viktor Karlov se interpôs entre ele e o companheiro. O espanto foi tamanho que o homem ficou sem ação. Caiu nos braços de Viktor que o agarrou pelo pulso direito, desviando a arma. Sem perder tempo, o soviético enterrou o punho no estômago do adversário. O homem não pôde nem gemer: Ficou sem

fôlego, como se de repente seu organismo tivesse parado de funcionar. Viktor jogou-o no chão do túnel, como um boneco. Rachel, enquanto isso, tirou a pistola da mão do sujeito e saiu para a calçada do canal geral. O homem da lanterna compreendeu que algo estava acontecendo à sua retaguarda e voltou-se, resmungando: — Eristow, o que. A americana foi apanhada pelo facho de luz. Estava na linha de tiro do perseguidor. Tudo se resumia numa questão de reflexos, de rapidez, de sobrevivência. A americana foi muito mais rápida que o inimigo russo. Esticou o braço e atirou, fazendo pontaria um pouco para a direita da luz. Os dois tiros de pistola ecoaram como canhonadas. A lanterna pulou para o teto do canal e caiu nas águas sujas, desaparecendo num redemoinho. O corpo do homem desabou, batendo no chão de cimento. — Venha — ordenou Viktor. Desprezando a ordem do companheiro de fuga, Rachel avançou pelo canal, em busca da pistola do homem abatido, que era munida de silenciador. Tateou pelo chão e conseguiu encontrá-la. Empurrou o cadáver do russo para o canal e ouviu quando ele mergulhou nas águas. Rachel voltou para o túnel, murmurando: — Sou eu, Rachel. Tenho as duas pistolas. — Suba pela rampa — disse Viktor num fio de voz. A rampa tinha uma inclinação de quarenta graus, no mínimo, e foi difícil subir por ela. Ela perdeu um sapato e foi obrigada a livrar-se do outro. Desistiu de tentar a escalada sem o auxílio das mãos, ocupadas com as pistolas e a maletinha. Meteu as armas na maletinha e pendurou-a numa mecha de cabelos, que amarrou firme. Usando as duas mãos, apoiou-se na rampa para poder subir. Pouco depois

encontrou a mão de Viktor estendida e ele ajudou-a a chegar ao alto. — Não se mexa daí, aconteça o que acontecer — recomendou o soviético. Rachel estava sentada no cimento duro, sem ver absolutamente nada. Cruzou as pernas e relaxou. Captou o ruído de água escorrendo ao lado de seus joelhos. Calculou que as águas do prédio iam lançar-se no canal. Alguém puxara a válvula de uma privada, sem a menor dúvida. Luzes começaram a aparecer lá em baixo, no canal geral. Alguns homens pararam ao pé da rampa. As luzes de duas lanternas chegaram ao alto, agressivas, delatoras. Passaram por Rachel Cowan e iluminaram a saída de resíduos do edifício. Diante de Rachel, sentado como ela naquela espécie de nicho que os deixava fora da vista de quem estivesse no canal, estava Viktor. Ele abraçava com força o russo golpeado antes, a quem tapava a boca com a mão para impedi-lo de gritar. A luz das lanternas afastou-se, deixando a rampa novamente mergulhada na escuridão. Rachel soltou a mecha de cabelos à qual havia prendido a maletinha. Abriu-a e apanhou as duas pistolas. — Viktor — sussurrou em seguida. — O que foi? Não pode ficar calada? — Claro. Quer uma pistola? — Já tenho muito trabalho, tentando controlar este camarada. Encarregue-se das armas, Ss algo acontecer. — Feito. Os minutos foram passando. Não ouviam mais nenhum rumor. Os perseguidores, sem dúvida, haviam dado uma batida em regra nos esgotos e chegaram à conclusão de que Viktor Karlov conhecia muito bem aquele esconderijo e

sabia como podia escapar por ele. Quem poderia imaginar quantos judeus haviam fugido pelo mesmo caminho, quarenta anos atrás! — Tem uma corda aí ou algo com que eu possa amarrar este sujeito? — perguntou Viktor. — Tenho esparadrapo. — Serve. Acenda sua lanterna. Rachel obedeceu. Pousou-a sobre a maletinha, depois de ter apanhado nela o rolo de esparadrapo. Passou para o outro lado e foi ajudar Viktor a amarrar o prisioneiro. O homem tinha desmaiado novamente, mas logo se recuperou. À luz minúscula da lanterna viram os olhos brilhantes do adversário. Viktor agarrou-o pelas mãos, sem considerações e quebrou-lhe os dedos, como se fossem palitos. O prisioneiro deu um grito e quis mexer-se, mas um murro deixou-o sem fôlego. — Preste atenção — disse o adido cultural soviético em Roma. — Gostaria de fazer picadinho com você e de jogá-lo para os ratos ali em baixo, mas vou privar-me desse prazer, se você me proporcionar outro. Entendeu? O homem conseguiu recuperar o fôlego e balançou a cabeça negativamente, arquejando um Não, inaudível. — Não? — rosnou Viktor, arqueando as sobrancelhas. — Bem, direi com mais clareza: para mim seria um prazer obter essa informação, logo, eu me mostraria menos zangado. Entendeu agora? — Sim... sim... — Explicarei também o que significa estar zangado: tenho intenções de arrancar suas orelhas, seus olhos, a língua e os testículos. Quero deixá-lo metido nesta latrina, com as pernas quebradas, para ver como você se diverte. Tudo isso,

caso não me dê a informação. Se der, as coisas correrão muito melhor. Alguma pergunta? O homem não respondeu. Era um sujeito forte, mas vulgar e olhava para Viktor Karlov como se ele, de repente, se tivesse transformado num monstro gigantesco e terrível. — Conhece o sujeito que dirigia o grupo de Roma, um tal Basili Ukonov? — Não... — E o que dirige o caso em Berlim? O homem não respondeu. Via-se nitidamente sua hesitação. Olhou para Rachel e para Viktor. O espião sorriu entre divertido e incrédulo. O prisioneiro tornou a olhar para Rachel e não soube qual dos dois lhe parecia mais perigoso, mais glacial. — Sim — balbuciou, finalmente. — Sei quem está no comando, aqui em Berlim. — Quem? — Dimitri Senimef. — Muito bem. E sabe de quem Senimef recebe ordens? — Não. — Quem é Senimef? Militar? O espanto estampou-se na fisionomia do prisioneiro. Em seguida, grunhiu: — Claro que não. — Do KGB, então? — Não — tornou a grunhir o prisioneiro. — Então, o que é Senimef? O que são vocês todos? — Bem... fazemos coisas que os outros não podem ou não se atrevem a fazer. Pagam bem por isso. — Foi Dimitri Senimef quem encurralou e dirigiu a perseguição e a caça de Igor Kevillan? — perguntou Viktor. — Claro.

— Quem atirou em Kevillan? — O próprio Senimef. — Onde ele está hospedado, aqui em Berlim? Em alguma casa particular? — Não. Está no Hotel Bauer, com o nome de Karl Stiebach. Hospedou-se lá, há dias, e estávamos pensando em levantar acampamento, quando vocês apareceram. — A quem conheciam? A ela ou a mim? — A você, naturalmente. — Se não são militares, nem do KGB, como dispunham de recursos para saberem quem sou e que recursos são esses? — Sei, apenas, que Senimef recebeu informação a respeito. Chegou uma foto sua e uma nota advertindo que talvez Kevillan recebesse ajuda de sua parte. A ideia inicial era controlar você em Roma, para o caso de Kevillan fugir e ir pedir auxílio. — Sabiam que éramos amigos, hem? Quem os informou sobre isso? — Não sei. — É fácil de compreender — interferiu Rachel. — Ukonov pode não ser o único militar metido nisso. Na certa há mais. E têm acesso às informações procedentes do KGB. Talvez Mihail Nekoroff, o agente do KGB morto por Kevillan, fosse um desses homens que proporcionava informações aos militares. Quando Kevillan fugiu, informaram Ukonov e seu grupo de tudo referente a ele... sem se esquecerem da existência em Roma de seu querido amigo Viktor Karlov. — Suas palavras parecem perfeitas — concordou Viktor, com ironia. — Mas pensei que não entendesse russo. — Oh! — exclamou a americana, sorrindo.

— Oh, digo eu! Ficou tão interessada pela conversa que se esqueceu de fingir que não entendia o idioma russo. — Na verdade, sei um pouquinho — admitiu Rachel. — Um pouquinho. Sim. E alemão? — Um pouquinho, também. — Ótimo! Um pouquinho daqui, um pouquinho dali e dá para se entender em quatro ou cinco idiomas, hem? — Sete — corrigiu Rachel. — Falemos a sério. Poderia expressar-se em alemão sem chamar a atenção como estrangeira, em qualquer hotel? — Para ser franca, falo correntemente esse idioma — informou Rachel. — Já imaginava. Não estou certo é da sua coragem. Mas estou tendo uma ideia para testá-la. — Ninguém precisa testar-me, quanto à coragem. Ninguém pode dar-me lições a esse respeito. — Então, vou fazer uma proposta, americana esperta. Você me ajuda a vingar Igor e eu lhe entrego o que ele tirou da Rússia. — Não pode entregar-me uma coisa que não tem — disse Rachel, encarando-o fixamente. — Minha proposta é boa e sincera. — Não duvido. Mas se não tem o que Kevillan... — Pegue ou largue. Você me ajuda e eu a ajudo. — Como posso ajudá-lo? — Fazendo o que eu disser. E aviso-a: se aceitar vai se arriscar, americana esperta. — Mas me entregará o que Igor Kevillan tirou da Rússia. — Sim. — Então, de acordo. Aceito.

CAPÍTULO SÉTIMO O militar

— Pode ter a gentileza de avisar Herr Stiebach que vou subir para falar com ele? Diga que Frau Lebnitz está aqui. — Herr Stiebach não se encontra no hotel no momento — informou o recepcionista. — Oh! — lamentou-se Frau Lebnitz. — Sabe se vai demorar muito? — Não sei dizer. É imprevisível. — Marcou encontro comigo aqui, ontem, para hoje a esta hora. Sua ausência me surpreende... Certamente não deve tardar a aparecer. Incomoda-se se eu esperar ali sentada? — perguntou Frau Lebnitz, indicando as poltronas a um canto do vestíbulo do Hotel Bauer. — De modo algum. Esteja à vontade. Frau Lebnitz sorriu e encaminhou-se para a saleta de espera. O recepcionista acompanhou-a com um olhar indiferente. Conhecia bem aquele tipo de mulheraça alemã, para sentir o menor interesse por ela. Alta, maciça, loura, de óculos grossos, séria como uma múmia... mas eficientíssima como secretária de confiança. Karl Stiebach voltou para o hotel vinte minutos mais tarde. Frau Lebnitz o viu chegar. Isto é, viu um homem atlético, de trinta e poucos anos, apressado e teve certeza de que aquele era o homem a quem ela esperava. Mas não se mexeu. Quis, primeiro, ter certeza. O homem chegou à recepção e pediu a chave. O recepcionista entregou-lhe e apontou Frau Lebnitz, murmurando umas palavras em voz baixa. Karl Stiebach voltou e observou a mulherona loura. Hesitou e finalmente dirigiu-se a ela, perguntando:

— Perguntou por mim? Sou Karl Stiebach. Frau Lebnitz sorriu e disse num russo perfeito: — Claro que não é. O senhor é Dimitri Senimef. Pode chamar-me de Paulova. É um bonito nome, não acha camarada Dimitri? Senimef empalideceu. Seu olhar circulou velozmente em todas as direções. Quando tornou a olhar para Paulova ela continuava sorrindo mas havia em seus olhos uma expressão gelada. — É do KGB? — sussurrou Senimef. — Claro. — Já imaginava — suspirou, sentando-se diante de Paulova. — Mais cedo ou mais tarde eles encontrariam esta parte da pista. Certamente estavam perto do lugar onde encontramos Igor Kevillan, não é assim? — Exato. Neste momento, seus homens estão sob controle. Especialmente um deles que teve a gentileza de nos dizer onde poderíamos encontrá-lo. Não estou sozinha aqui, naturalmente. Logo, se tentar algo contra mim, é um homem morto, camarada Senimef. — Já sei — balbuciou, olhando furtivamente ao redor. — Podemos conversar. — Já estamos conversando — exclamou Paulova, com ironia. — O que se passou, exatamente, com Igor Kevillan? — Nós o encontramos morto. Apareceu Viktor Karlov com uma jovem e entrou num edifício com ela. Demoramos um pouco para encontrar o caminho para um esquisito porão que, por sua vez, comunica-se com os esgotos. Kevillan estava lá. Karlov e a companheira fugiram pelos esgotos. Haviam recolhido tudo que Kevillan levava nos bolsos. Levaram, portanto, as listas, também. Para recuperá-las, devemos, agora, perseguir Karlov.

— A que listas se refere? — Não sabe? — perguntou Senimef, com uma súbita desconfiança. — Não, não sei. Sei, apenas, que Igor Kevillan matou um de meus camaradas de serviço, Mihail Nekoroff. Se há algo mais, meus superiores não me disseram. — Claro. Sim, é lógico. Bem, Mihail Nekoroff trabalhava para nós. Foi ele quem percebeu que Igor Kevillan havia conseguido as listas e foi matá-lo. Kevillan foi mais esperto. Não sabiam que Nekoroff estava traindo o KGB, trabalhando para nós? — Não, não sabíamos. Eu, pelo menos, não sabia. Bem, Kevillan levou as listas, depois de matar Nekoroff, hem? E saiu da Rússia porque compreendeu que não só o KGB o perseguiria, pela morte de Nekoroff, como porque vocês o matariam, pois recebiam informações de agentes traidores como Nekoroff e teriam interesse em silenciar a descoberta de Kevillan. Comecemos pelas listas. Listas de nomes, sem dúvida. — Sim. — Que tipo de nomes? A que se dedicam essas pessoas relacionadas? — São soldados soviéticos. — Soldados soviéticos — pestanejou Paulova. — Organizaram tudo isso por causa de listas com nomes de soldados soviéticos? Soldados, apenas, e não oficiais, ou chefes comuns, ou do Estado-Maior? — Simplesmente soldados, que eu saiba. — Muito bem. E o que se passa? Por que essas listas são importantes?

— Não sei. De verdade. Disseram-me que devia recuperá-las e me indicaram o conteúdo, mas não me informaram sobre o significado. — De onde Igor Kevillan tirou essas listas? — Roubou-as de um coronel do Exército Vermelho, em Gorlovka. — Qual é o nome desse coronel? — Coronel Ukonov. Não me lembro do primeiro nome. — Basili Ukonov? — Sim, Basili. É isso. Como sabe? — Digamos que o coronel Ukonov foi devidamente controlado. Ele cometeu o erro de trasladar-se secretamente a Roma a fim de dirigir a vigilância sobre Viktor Karlov. O coronel Ukonov e o senhor fazem parte do mesmo grupo, não é assim? — Exato. Não nos conhecíamos pessoalmente. Minha tarefa era dispor sempre de homens adequados para solucionarem casos de emergência. De preferência russos. Se não fossem russos, serviam de outras nacionalidades. — Dei um nome alemão ao empregado do hotel e não vamos desmentir sua nacionalidade — disse Paulova. — Logo, continuemos com a farsa. Quanto menos mencionarmos a Rússia, aqui, melhor. Espero que compreenda isso, Senimef. E agora, falemos sobre o seu grupo. Dessas pessoas a quem se refere, quando diz: “nós”. Quem são? — Gente como o coronel Ukonov e eu. — Como o senhor? Então, também é militar? — Fui. Reformei-me para cuidar das necessidades do nosso grupo. — A que se dedica esse grupo?

— Julga-me uma pessoa importante para saber de tudo isso, hem? Mas não sou. Obedeço ordens. Não pense que sou um dos chefes. — Conhece algum deles? — Claro — respondeu Dimitri Senimef, após uma leve hesitação. — Não sei se são os de maior categoria, mas conheço alguns. Alguém há de me transmitir as ordens, não é mesmo? — Naturalmente. Continuemos conversando com desembaraço, como se eu estivesse recebendo instruções suas... Escreva-me os nomes desses chefes a quem conhece. — Há necessidade de escrever? — grunhiu Senimef. — Dizer já seria o suficiente, não lhe parece? — Prefiro que esses nomes não sejam pronunciados. Escreva. — Não tenho com que escrever. Frau Lebnitz, isto é, Paulova, isto é, Rachel Cowan, pousou nos joelhos sua maletinha. Ergueu a tampa dando um jeito de Dimitri Senimef ver perfeitamente a pistola com silenciador que tinha a seu alcance. Tirou um bloco com uma esferográfica de ouro e o estendeu para o russo. Ele recebeu o bloco, em silêncio. Escreveu alguns nomes. Paulova leu a relação de cinco nomes, balançou a cabeça afirmativamente, arrancou a folha e dobrou-a, guardando-a no decote. Em seguida, guardou o bloco e disse: — Igor Kevillan matou Mihail Nekoroff, um companheiro do KGB, em atividade. Embora saiba que Nekoroff era um traidor, o fato é que um agente do KGB foi agredido e morto. E isso deve ser sancionado devidamente. Não podemos deixar espalhar-se a notícia de que alguém mata um agente nosso e sobrevive a esse ato. Kevillan já está

morto, é certo. Também é certo que ainda não foi vingado o homem do KGB que ele matou. Outra pessoa eliminou Kevillan. — E daí? — murmurou Senimef. — Não é o mesmo. O senhor o matou, hem? — Por que pergunta? — balbuciou ele, alarmado. — Porque poderíamos fazer um trato que lhe traria certas vantagens. Se matou Kevillan, mas não mencionar o fato e permitir que o KGB assuma a autoria da morte dele, ganhará uma boa parte da nossa simpatia. O senhor o matou? — Sim — respondeu Senimef, sorrindo. — Se deixar que essa morte seja imputada a vocês, se isso me traz benefícios, não vejo inconveniente algum em concordar. — Ótimo. Agora, vamos sair daqui. Não se preocupe com a bagagem, nem com a conta do hotel. Cuidaremos de tudo isso. Venha comigo. — Para onde? — Quero que repita o que disse diante de meu chefe de Berlim, para não haver a menor dúvida a respeito de minha atuação e de meu relatório. — O que quer dizer? — Que correm ventos ruins no KGB e não quero que esses ventos me alcancem. Além disso, camarada Senimef, deve ter compreendido que há alguns minutos é nosso prisioneiro. Ou ainda não tinha compreendido? — Sim... Claro... — Então, não façamos coisas espetaculares em Berlim. Se resistir a acompanhar-me, meus companheiros serão obrigados a interferir e tudo se complicará, principalmente para o senhor. Escolha entre acompanhar-me ou ficar nessa poltrona com duas balas na nuca. O que prefere?

Senimef ficou de pé, dando uma resposta sem palavras. Paulova também se levantou. Ajeitou os óculos, sorriu e disse suavemente: — Vamos sair juntos, como dois bons amigos. Quando chegarmos à rua eu irei para a esquerda e o senhor para a direita. A uns vinte e cinco metros está estacionado um Mercedes cor de bronze. Entre no banco traseiro. Ao volante há um homem encarregado de levá-lo a seu destino. Entendido? — Sim. — Então até logo. Mas não nos despediremos aqui. Sairemos juntos. Encaminharam-se para a saída, atravessando o vestíbulo. Nenhuma das pessoas presentes deu atenção ao casal que se afastava. Dimitri Senimef, porém, sabia que os homens do KGB o vigiavam atentamente. Qualquer uma daquelas pessoas espalhadas pelo vestíbulo podia ser um agente de Moscou. Observou disfarçadamente Paulova. Era quase da altura dele. Tinha um caminhar elegante, felino, que não combinava com seu aspecto de matrona. De repente ele teve a suspeita de que Frau Lebnitz era mais magra e mais jovem que parecia. Chegaram à rua e Frau Lebnitz murmurou: — Até à vista, Senimef. Ela afastou-se para a esquerda e ele encaminhou-se para a direita. Viu o Mercedes cor de bronze. De boa vontade teria saído correndo, mas sabia que com o KGB não se brinca. Esperando que sua colaboração voluntária o ajudasse e servisse de atenuante, aproximou-se do carro, abriu a porta direita de trás e acomodou-se no banco. — Vim a mando de Paulova — murmurou em russo. — Sou Dimitri Senimef.

O homem sentado ao volante do automóvel voltou-se e seu olhar cinzento e frio como o aço, pousou nos olhos do recém-chegado. Este empalideceu ainda mais e teve a sensação de que duas cargas de gelo acabavam de penetrar em seu corpo, paralisando-o. Pôde, apenas, contemplar aquele rosto atraente e viril, a boca contraída numa expressão dura, e os cabelos brilhantes e revoltos. Diante de Dimitri surgiu a pistola munida de silenciador. Três tiros ecoaram suavemente. Uma atrás da outra, as balas cravaram-se no coração de Dimitri Senimef, provocando três convulsões, três estremeções fortes, impacto após impacto. Ficou sentado um instante, com os olhos fora das órbitas, o rosto crispado por uma careta de medo, de dor e de raiva. Em seu peito surgiu o sangue, empapando a roupa. De repente, relaxou, como se todo ele se desarticulasse, se enrugasse, se afrouxasse. Escorregou pelo banco e ficou caído no chão do automóvel. Viktor Karlov guardou a pistola e saiu do Mercedes roubado, deixando as chaves no lugar. Ficou parado junto ao carro. Um Opel aproximou-se dele e parou. Karlov abriu a portinhola da direita e sentou-se ao lado da motorista, a volumosa e míope Fran Lebnitz que já não usava os óculos. O Opel arrancou e perdeu-se logo entre o trânsito de Berlim. Viktor Karlov gastou quase um minuto observando Frau Lebnitz e murmurou: — Obrigado. — Foi um prazer, confesso. — De qualquer modo, obrigado. Frau Lebnitz deu de ombros. Tirou do decote a folhinha de bloco e entregou-a, dizendo: — Conhece algum desses nomes?

Ele pegou a folha, abriu-a e leu os nomes. Ficou pensativo, com o olhar perdido. Paulova voltou a cabeça para ele. Viktor ao perceber o gesto dela, encarou-a e disse num fio de voz: — Conheço um deles. O General Jurev Mikelov. — Pois com os outros, ele faz parte do grupo das listas. — Que listas? — A de soldados soviéticos. Segundo Senimef, essa é origem de todo o problema. Enquanto dirigia, Rachel Cowan explicou a Viktor o que se passara no hotel. Viktor ouviu-a em silêncio. O silêncio do russo durou tanto, que Rachel olhou para ele, intrigada, e disse: — Bem... cumpri o trato feito com você. Logo, me entregue as listas. Disse que tinha o que Kevillan trouxe da Rússia e o que ele tirou de lá foram as listas com os nomes de soldados soviéticos. Quero-as agora, Viktor. — O que faria com uma simples relação de soldados soviéticos uma garota americana tão esperta? — perguntou ele laconicamente. — Entregaria à CIA. Teria feito meu trabalho e pronto. — Não gostaria de obter um... triunfo estrondoso nessa maravilhosa carreira de espiã que está levando? — Que tipo de triunfo? — murmurou a americana, com uma ponta de ironia. — Suponhamos que eu entregue as listas. De que serviriam a vocês, se não sabem qual é o significado? Não gostaria de saber por que Igor arriscou a vida por causa delas, por que o coronel Ukonov saiu disparado da Rússia e foi para Roma, encapuzado, e o que representa um general russo no caso? Não gostaria de saber tudo isso?

— Naturalmente. Mas não creio que você esteja disposto a me dizer. Logo, conformo-me com as listas. — Vejamos... A americana esperta consegue os nomes de soldados soviéticos. Como, além do mais, tem uma memória de elefante, informará os cinco nomes da lista dada por Dimitri Senimef. A CIA levará algumas horas para saber mais coisas que eu, desses cinco personagens. Há a possibilidade de lhes enviar um recadinho advertindo-os de que o KGB anda atrás deles e que talvez consiga alcançá-los. Como a CIA conseguiu. Tudo isso, levando em conta que você é da CIA... Acha lógico e razoável? — Claro. — Muito bem. Perfeito. Eu lhe ofereço ação direta e pessoal. Um sucesso particular. Uma promoção fabulosa dentro da CIA. Vai recusar minha proposta e ficar com um sucesso mínimo de informar que Igor Kevillan tirou da Rússia umas listas de soldados russos ou prefere aceitar minha proposta e dentro em breve entregar à CIA um informe completíssimo sobre todo o caso? Rachel Cowan viu uma vaga entre os carros. Estacionou o Opel e ficou olhando para Viktor. — O que deseja de mim, agora? — sussurrou finalmente. — Sua ajuda de novo. Tenho algo a fazer e não quero que ninguém interfira. Ninguém, entendeu? — O que tem a fazer? — Só direi se concordar em ajudar-me. Uma ajuda muito simples. Continue possibilitando que eu me mova à vontade, sem ser incomodado. Sei que você pode conseguir isso. — Não está me supervalorizando? — Não. Se agiu assim até agora, poderá continuar agindo. Se confia em mim, pode acompanhar-me. — Aonde?

— Que tal Atenas? — O que há em Atenas? — perguntou Rachel Cowan, surpresa. — Consegui deixá-la intrigada, hem? — murmurou Karlov, sorrindo. — Bem, se quiser saber o que há por lá, venha comigo. Aposto como você pode conseguir qualquer documentação necessária para trasladar-se a qualquer parte do mundo, a qualquer momento... Então, americana esperta? — Vou a Atenas com você — respondeu ela, contendo o riso.

CAPÍTULO OITAVO O general

Incógnito e fazendo duas conexões velocíssimas, o general Jurev Mikelov chegou finalmente ao aeroporto de Atenas, num dos aviões da Olympic. Utilizando o passaporte especial falso que já usara em outras ocasiões, foi admitido sem maiores complicações no país. Como bagagem levava, apenas, uma mala pequena. Passou para o vestíbulo do aeroporto, onde deveria encontrar-se com o coronel Ukonov, a quem haviam dado como desaparecido dias antes. O telegrama era claro e dizia: Dentro de quarenta e oito horas no aeroporto de Atenas. Assunto urgentíssimo a respeito das listas. Ukonov. Mas Ukonov não estava no vestíbulo do aeroporto. O general Mikelov começou a sentir um vago mal estar no estômago. — General Mikelov?

O general voltou-se para a mulher que o interpelara. Era alta, loura, de óculos grossos. Por um momento pensou em fingir que não havia entendido. Mas compreendeu que seria tolice de sua parte. — Sim — murmurou. — Sou eu. — Meu nome é Paulova. Tenha a bondade de seguir-me, general. A pessoa que lhe enviou o telegrama está à sua espera. Mikelov respirou fundo. Sem dúvida Ukonov enviara Paulova. Ela devia trabalhar para ele fora da Rússia. Acompanhou-a até o carro que ela indicou. Ela abriu a porta da direita e convidou Mikelov a entrar. Quando o fez, o motorista saiu do carro e sentou-se no banco traseiro quase ao mesmo tempo em que o general. Mikelov ficou lívido ao ver junto do dele o rosto de Viktor Karlov. — Bom-dia, general — disse Viktor. — Obrigado por ter vindo. — Karlov — balbuciou Mikelov, num fio de voz. Percebeu que Paulova acomodou-se ao volante e deu a partida. — É muita gentileza sua, lembrar-se de mim — murmurou Viktor. — Mas... o que significa isso? — Peço-lhe desculpas pelo incômodo, mas queria ter uma entrevista com o senhor. Uma entrevista particular. O coronel Ukonov está morto. Eu tive a ideia de lhe enviar o telegrama assinado com o nome dele. Tudo isso se relaciona com as listas de soldados soviéticos. Gostaria que o senhor me esclarecesse. — Tem as listas? — exclamou Mikelov. — Sim. — Vai devolvê-las a mim?

— Talvez. De qualquer modo, só depois que o senhor explicar qual o significado delas. — Não sei como interpretar seu tom, Karlov. Esquece-se que sou um general do Exército russo e que você, como diplomata no estrangeiro... — Sabe tudo a meu respeito? Ora, mas não sou tão importante assim, para um general se interessar por mim... — Ouvi comentários... — Não percamos tempo — cortou Viktor. — Vamos direto ao assunto. — Naturalmente os soldados soviéticos relacionados nas listas que Igor Kevillan conseguiu são os que estão ou estiveram combatendo no Afeganistão. Não é isso? — disse Paulova, olhando pelo espelho retrovisor. — Quem é ela? — perguntou Mikelov, enrugando a testa. — Não importa — cortou Viktor. — Fale. Queremos saber tudo, general. — Está bem. As listas que Kevillan conseguiu são de soldados que morreram por outros, na Rússia. Nessas listas constam seus nomes e as unidades de combate. E uma simples comprovação seria suficiente para verificarem que para o Afeganistão foram os que não deveriam ter ido. — Então, foram uns soldados em lugar de outros? Por quê? — Os que não foram pagaram por isso. — Explique-se — exclamou Viktor, intrigado. — Sim. O plano foi organizado por alguns militares que podiam fazer os manejos necessários. Depois, homens como Basili Ukonov cuidavam da parte direta. Isto é, faziam as propostas às famílias dos soldados que deviam ir para o Afeganistão. Em troca de uma soma elevada, os rapazes livravam-se de ir para lá e outros, menos afortunados, iam no

lugar deles. As famílias naturalmente faziam o impossível para obterem a quantia exigida... livrando-os dessa guerra idiota. — Conhece alguma guerra que não o seja? — perguntou Paulova, do volante. — Não. Mas esta e, especialmente, por muito que o Kremlin se esforce em convencer o povo russo de que o conflito no Afeganistão é vital parada Rússia, de que é preciso a qualquer custo impedirmos que o regime imperialista se estabeleça em nossas fronteiras, como aconteceria no Afeganistão. É tudo uma estupidez e alguns de nós se aproveitam disso. Paulova deteve o carro e voltou-se para encarar Mikelov. Parecia fascinada. Viktor estava com a fisionomia transtornada. — O que aconteceu? — balbuciou Mikelov. — Miserável — rosnou Karlov, no fim de um segundo. — Está zombando da Rússia. Está ridicularizando e desprezando centenas ou milhares de mortos, de jovens, de soldados, e pergunta o que aconteceu? Direi o que se passa: vou arrancar sua cabeça com minhas próprias mãos! — Acalme-se, Viktor — pediu Paulova. — Acalmar-me? Como? Este criminoso envia rapazes russos para a guerra. Rapazes que podiam estar vivos! E em troca de dinheiro! Morrer na guerra é sempre cruel... Imagine, agora, morrer, porque não se tem dinheiro para pagar a liberdade de não combater... Pense nas mãos que esse desgraçado fez sofrer. Malditas sejam suas entranhas, porco! A pistola com silenciador apareceu na mão direita de Viktor Karlov. Jurev Mikelov, viu, acima da arma, os olhos do adido cultural da embaixada soviética em Roma. Um

impacto brutal arrebentou a testa do general russo. Parte da massa encefálica espalhou-se pelo carro, salpicando inclusive, Paulova e Viktor. O camarada general foi empurrado contra a janelinha. Bateu nela e começou a cair de frente. Viktor, com o cano da pistola, desviou-lhe a trajetória, fazendo-o cair entre os dois bancos. Imediatamente, apontou a arma para Paulova que não se mexera um milímetro sequer, depois de ter freado o carro. — Fique quieta onde está — grunhiu Viktor. — Estou quieta — sussurrou a americana. A pistola ficou a poucos centímetros do rosto de Paulova. Nos olhos de Viktor Karlov, o amável diplomata, havia, agora, um inferno de fúria e de ódio. Suas feições não pareciam as mesmas do simpático e atraente cavalheiro que apanhara os livros da moça atordoada, no museu de Roma. — Com quem pensa que está brincando, hem? — sussurrou finalmente Viktor. — Quem julga que é e quem julga que sou? — Já disse quem eu julgo que você seja, Viktor. Lembrase? Um espião é sempre um espião. É o que você é. E é o que eu sou. Só falta saber que classe de espiões nós somos. Da escória da espionagem ou da elite? — Pensa que não sei quem você é? — exclamou Viktor. — Tentou enganar-me o tempo todo. Mas sei que é “Baby”! — De acordo. Sou. E daí? Você é Viktor Karlov e eu não o acuso de ser você. Você jogou, eu joguei... Estivemos sozinhos durante esse tempo todo. A CIA, porque assim eu o exigi, não interferiu, exceto em pequenas ajudas que nada alteraram. O KGB, por ter perdido a pista de Igor Kevillan, também não podia interferir. Você e eu fizemos algo. E nos resta algo a fazer. Denunciar o que se passa. Essa triste

história de um morrer pelo outro. Viktor, sou obrigada a denunciar essa barbaridade, caso você não o faça. Talvez as pessoas pensem que tanto faz morrer um soldado ou outro. Mas eu não penso assim. Em primeiro lugar, em minha opinião, as guerras não deveriam existir. Mas se existem, não abusemos ainda mais do pobre e fraco soldado, enviando-o para a morte, em lugar do rico. Meu Deus! Não podemos fazer isso, Viktor! — Sei muito bem o que tenho que fazer. Não preciso de suas indicações e de seus conselhos. — Muito bem. Eu diria que terminamos nosso trabalho... e, portanto, adeus, Viktor Karlov, camarada espião. — Deve estar louca... Ou acha que o louco sou eu? Pensa, mesmo, que vou deixar escapar a agente “Baby”? — Não sei se vai deixar-me escapar ou não. De qualquer modo, digo adeus a você porque só morta conseguirá levarme para Moscou. Vou descer deste automóvel, com intenções de regressar aos Estados Unidos. Se resolver levarme morta para a Rússia, basta atirar. É uma questão de ética, de categoria. Você é elite ou escória? Decida você mesmo. Adeus. Paulova saiu do carro, apanhou sua maletinha e fechou a porta. Voltou-se e olhou para o mar. Sorriu. Sorriu porque adorava o mar. Sorriu também porque devia escolher entre sorrir ou chorar pelos mortos e pelos vivos. Sorriu porque já havia chorado demais pelos vivos e pelos mortos e agora queria viver. Viver e sem pranto, num mundo onde cada qual morresse por si mesmo e não em lugar de outro. Onde cada qual morresse, principalmente, quando chegasse sua hora e não na hora decidida por pessoas que iniciavam guerras e massacres.

Quando com aquele sorriso no rosto maquilado, que em nada se parecia com o de Brigitte “Baby” Montfort, voltouse, como Paulova, para contemplar Viktor Karlov, ele viu o sorriso no rosto dela. A mão que empunhava a pistola apontada antes para as costas de “Baby” tremeu com violência. De repente, ele soltou a arma. Diante dele, fora do carro, Paulova tirou a peruca loura e as lentes de contato. Os olhos azuis voltaram a sorrir para Viktor Karlov que sentiu uma descarga elétrica em todo o corpo. Depois, com a maior tranquilidade do mundo, Brigitte afastou-se, caminhando à beira da estrada, olhando o mar e sorrindo. Sorriu porque se não o fizesse, mais uma vez, teria morrido de angústia e de nojo. Nojo das pessoas que ainda não haviam compreendido o que é a vida.

ESTE É O FINAL Arriscando a vida

— Mas... aquele homem podia ter matado você! — exclamou Frankie Minello, quando Brigitte acabou de contar tudo. — Sim. Poderia. Meus Johnnies estavam por perto, esperando um chamado meu pelo rádio, para recolher-me com um helicóptero. Mas Viktor Karlov podia ter metido uma bala na minha nuca, é claro. — Você se arriscou demais. Era um russo! — Frankie... ainda não entendeu? Tanto faz que fosse russo ou não. Ele precisava demonstrar a si próprio se era da elite da espionagem ou um simples oportunista. Precisava

demonstrar, principalmente, se era um ser humano de primeira qualidade ou não. E ele entendeu isso. — Entendeu o quê? — Que existem pessoas que merecem viver e outras que devem ser exterminadas. E eu, por muito “Baby” que fosse, não merecia ser exterminada. — De qualquer modo, você arriscou-se demais — interferiu Miky Grogan. — E não vamos publicar tudo isso! — Claro — exclamou a divina. — Se publicarmos, eu me delato como “Baby”. Não podemos abusar, querido. Eu não fui a Roma recolher as listas, mas não era necessário. Viktor se encarregará de denunciar o caso. — Recolher as listas? — balbuciou Frankie Minello. — Mas... você sabia onde estavam? — Lógico. Viktor e eu compreendemos logo, depois que encontramos Igor Kevillan. Estava com os sapatos sujos de lodo dos esgotos e nos bolsos tinha envelopes, selos e uma esferográfica. Preciso dizer mais, Frankie? — Ele meteu as listas num envelope e saiu dos esgotos o tempo exato de pôr tudo numa caixa de correio num envelope dirigido a Viktor Karlov, em Roma? — Exatamente. E pensar que ainda há quem ache você um tolo, querido! — Aqui só há uma tola — grunhiu Frankie. — É você. — Eu? — perguntou a divina espiã, arregalando os olhos. — Acha, sinceramente, que sou tola? — Não é? Só uma tola estaria disposta a morrer tantas vezes pelos outros. Depois disso, continuará igual, tenho certeza. Continuará arriscando sua vida por outras pessoas! — Só pelos que merecem — murmurou a espiã mais perigosa do mundo, sorrindo. — Sirva-me outra tacinha de champanhe, sim?
417 Morrer Pelos Outros

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