As Risas da Morte - Mary Higgins Clark

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AS ROSAS DA MORTE MARY HIGGINS CLARK

PUBLICAÇÕES Europa-América Título original: Let me call you sweetheart Tradução de Maria Teresa Pinto Pereira Tradução portuguesa © de P. E. A. Capa: estúdios P. E. A. Direitos reservados por Publicações Europa-América, Lda. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou por qualquer processo, electrónico, mecânico ou fotográfico, incluindo fotocópia, xerocópia ou gravação, sem autorização prévia e escrita do editor. Exceptua-se naturalmente a transcrição de pequenos textos ou passagens para apresentação ou crítica do livro. Esta excepção não deve de modo nenhum ser interpretada como sendo extensiva à transcrição de textos em recolhas antológicas ou similares donde resulte prejuízo para o interesse pela obra. Os transgressores são passíveis de procedimento judicial Editor: Francisco Lyon de Castro PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA. Apartado 8 2726 MEM MARTINS CODEX PORTUGAL Edição n.°: 106701/6641 Execução técnica: Gráfica Europam, Lda. Mira-Sintra Mem Martins Digitalização e arranjo: Fátima Chaves

Agradecimentos

Nenhum

homem é uma ilha e nenhum escritor, pelo menos este, escreve sozinho. Os meus sinceros agradecimentos aos meus editores, Michael V. Korda e Chuck Adams, que são sempre o sine qua non dos meus livros, da concepção à publicação. Particular e especialmente com este e neste momento, têm sido maravilhosos. Mil agradecimentos sempre a Eugene H. Winick, o meu agente literário, e a Lisl Cade, o meu agente publicitário. O seu apoio é incomensurável. O escritor necessita do conselho de especialistas. Este livro diz respeito à cirurgia plástica. A minha gratidão ao Dr. Bennett C. Rothenberg, do Hospital Saint Barnabas, de Livingston, em Nova Jérsia, pelas suas opiniões como médico especialista. Glória a Kim White, do Departamento de Correcções de Nova Jérsia, pela sua ajuda. E, uma vez mais, Ina Winick examinou os aspectos psicológicos da narrativa. Obrigada, Ina. Os meus filhos, os cinco, iam lendo a obra. Através deles recebi bons conselhos conselhos sobre jurisprudência: «Não se esqueça de sequestrar o júri...»; ou diálogo: «Ninguém da nossa idade diria isso. Escreva assim...» e sempre encorajamento. Obrigada, filhos. Por fim, a minha neta de 10 anos, Liz, que, em muitos aspectos, foi o modelo para Robin. Perguntava-lhe, «Liz, que dirias se isto acontecesse...?» As sugestões dela foram «terríveis». Amo-vos a todos, sem exceção.

Para as minhas colegas da Academia Villa Maria neste ano especial, com um cumprimento afetuoso em particular a Joan LaMotte Nye, June Langren Crabtree, Marjorie Lashley Quinlan, Joan Molloy Hoffman e em memória jubilosa de Dorothea Bible Davis.

Não empilhem neste túmulo rosas que ela tanto amava; Para quê confundi-la com rosas, que não pode ver nem cheirar?

Edna St.Vincent Millay, «Epitáfio»

Tanto

quanto era humanamente possível, ele tentou esquecer Suzanne. Por vezes, conseguia paz por algumas horas ou dormir toda a noite. Era o único modo de se mover, de viver cada dia. Ainda a amava ou apenas a odiava? Nunca podia ter a certeza. Era tão bela, com aqueles olhos brilhantes e trocistas, aquela nuvem de cabelo negro, aqueles lábios que eram capazes de sorrir tão acolhedoramente ou mostrar aborrecimento com tanta facilidade como uma criança a quem negaram um rebuçado. Ela estava sempre no seu espírito, tal como no último momento de vida, escarnecendo dele, virando-lhe depois as costas. E agora, quase onze anos mais tarde, Kerry McGrath não deixaria descansar Suzanne. Perguntas e mais perguntas! Era intolerável. Tinha de ser detida. «Deixai que os mortos enterrem os mortos. É o que diz o velho ditado», pensou ele, e ainda é correto. Ela seria detida, custasse o que custasse.

CAPÍTULO 1 Quarta-feira, 11 de Outubro

Kerry

alisou a saia do fato verde-escuro, endireitou o fio de ouro fino no pescoço e passou os dedos pelo cabelo loiro-escuro que lhe chegava à gola. A tarde fora uma correria louca, deixando o tribunal às duas e meia, indo buscar Robin à escola, conduzindo desde Hohokus no meio do trânsito intenso das Estradas 17 e 4, atravessando em seguida a Ponte George Washington em direção a Manhattan, estacionando finalmente o carro e chegando ao consultório do médico precisamente a tempo da consulta das quatro horas para Robin. Agora, depois de tanta agitação, Kerry só podia sentar-se e esperar que a chamassem à sala de exames, desejando que a deixassem ficar com Robin enquanto lhe tiravam os pontos. Mas a enfermeira fora inflexível: - Durante uma consulta, o Dr. Smith só permitirá na sala a enfermeira com um doente. - Mas ela só tem dez anos! protestara Kerry, e depois cerrara os lábios e fizera por não se esquecer de que deveria estar grata por terem chamado o Dr. Smith depois do acidente. As enfermeiras no St. Luke's-Roosevelt tinham-lhe garantido que era um excelente cirurgião plástico. O médico da sala de urgência até lhe chamara taumaturgo. Recordando esse dia, há uma semana atrás, Kerry apercebeu-se de que ainda não se recompusera do choque daquele telefonema. Estivera a trabalhar até tarde no seu gabinete no tribunal de Hackensack, a preparar-se para o caso de homicídio que iria querelar, tirando partido do fato de o pai de Robin, seu ex-marido, Bob Kinellen, ter convidado inesperadamente Robin para ir ver o Circo Big Apple da cidade de Nova Iorque e jantar em seguida. Às seis e meia, o telefone tocara. Era Bob. Tinha havido um acidente. Uma carrinha embatera no Jaguar quando saía da garagem. O rosto de Robin fora cortado por um vidro que saltara. Fora levada de imediato para o St. Luke's-Roosevelt e tinham mandado chamar um cirurgião plástico. Fora disso, ela parecia estar bem, embora estivesse a ser examinada para se detectar se havia lesões internas. Recordando aquela noite terrível, Kerry abanou a cabeça. Procurou afastar do pensamento a agonia da ida desenfreada para Nova Iorque, com

soluços secos a fazerem tremer o corpo, os lábios a formarem somente uma palavra, «por favor», o espírito a correr com o resto da prece: «Por favor, meu Deus, não a deixes morrer, é tudo o que possuo. Por favor, ela é apenas uma criancinha. Não a leves...» Robin já estava na cirurgia quando Kerry chegara ao hospital, por isso sentara-se na sala de espera com Bob ao lado dela com ele, mas sem ele. Tinha uma esposa e mais dois filhos. Kerry ainda sentia o enorme alívio que tivera quando o Dr. Smith aparecera, por fim, e dissera de um modo formal e estranhamente condescendente: - Felizmente, as lacerações não penetraram profundamente a derme. Robin não ficará com cicatrizes. Quero vê-la no meu consultório daqui a uma semana. Afinal, os cortes eram apenas superficiais, e Robin recuperara do acidente, perdendo somente dois dias de escola. Ela parecia um tanto orgulhosa das ligaduras. Foi apenas nesse dia, a caminho de Nova Iorque para a consulta, que dera a impressão de estar assustada, quando perguntou: - Eu vou ficar boa, não vou, mãezinha? A minha cara não ficará toda estragada? Com uns olhos grandes e azuis, o rosto oval, a testa alta e feições esculpidas, Robin era uma criança linda, a imagem do pai. Kerry tranquilizara-a com uma veemência que esperava que fosse sincera. Naquele momento, para se distrair, lançou um olhar pela sala de espera. Estava mobilada com gosto, com vários sofás e cadeiras forrados com um pequeno motivo floral. As luzes eram suaves, os tapetes magníficos. Uma mulher, que aparentava ter 40 anos, com uma ligadura no nariz, estava entre as pessoas que aguardavam a sua vez. Outra, que parecia um pouco ansiosa, confidenciava à companheira atraente: - Agora, que estou aqui, fico contente por me teres obrigado a vir. Estás com um aspecto fabuloso. Realmente estava, pensou Kerry quando, consciente de si mesma, meteu a mão no saco para tirar a caixa do pó-de-arroz. Abrindo-a, mirou-se no espelho, concluindo que naquele dia revelava os seus 36 anos. Sabia que muitas pessoas a consideravam atraente, mas, no entanto, continuava a ter consciência do seu bom aspecto. Passou a borla do pó-de-arroz na cana do nariz, tentando disfarçar as inúmeras e detestáveis sardas, examinou os olhos e concluiu que, sempre que estava cansada, como estava naquele dia, a cor de avelã deixava de ser esverdeada para se tornar castanho-escura. Puxou uma

madeixa de cabelo solto para detrás da orelha e em seguida, com um suspiro, fechou a caixa e afastou da testa a franja que precisava de ser cortada. Tomada de ansiedade, fixou o olhar na porta que dava para a sala das consultas. «Por que será que levam tanto tempo a tirar os pontos a Robin?», interrogou-se. Podia haver complicações? Pouco depois, a porta abriu-se. Kerry, expectante, levantou os olhos. Em vez de Robin, porém, apareceu uma jovem que parecia ter vinte e poucos anos, com uma nuvem de cabelo escuro a emoldurar-lhe a beleza petulante do rosto. «Será que ela teve sempre aquele aspecto?», pensou Kerry enquanto examinava os ossos salientes das faces, o nariz direito, os lábios bem delineados com uma expressão de enfado, os olhos brilhantes, as sobrancelhas arqueadas. Talvez sentindo o seu olhar, a jovem olhou ironicamente para Kerry quando esta passou por ela. Kerry sentiu um nó na garganta. «Eu conheço-a», pensou. «Mas donde?» Engoliu, ficando subitamente com a boca seca. «Aquele rosto... já a vi.» Assim que a mulher se foi embora, Kerry aproximou-se da recepcionista e explicou que pensava conhecer a senhora que saíra há instantes do gabinete do médico. «Quem era ela?» O nome Barbara Tompkins, contudo, não lhe dizia nada. Devia estar confundida. Todavia, quando se sentou de novo, uma esmagadora sensação de dèjá vu preenchia o seu espírito. O efeito era tão arrepiante que ela estremeceu. Kate Carpenter observava as pacientes na sala-de-espera do consultório médico com uma certa desconfiança. Trabalhara com o Dr. Charles Smith como enfermeira de cirurgia durante quatro anos, ajudando-o nas operações que realizava no consultório. Pura e simplesmente, considerava-o um génio. Ela nunca se sentira tentada a recorrer aos seus serviços. Com cerca de 50 anos, forte, com um rosto agradável e cabelo que começava a ficar cinzento, fazia a sua descrição aos amigos como sendo uma contrarevolucionária da cirurgia plástica: - Aquilo que vê é aquilo que há. Totalmente de acordo com os clientes que tinham problemas genuínos, sentia um certo desprezo pelos homens e mulheres que eram operados várias vezes, numa busca inexorável da perfeição física. Por outro lado como dizia ao marido, estão a pagar o meu salário.

De quando em quando, Kate Carpenter perguntava a si mesma por que razão ficara com o Dr. Smith. Ele era tão brusco com toda a gente, não só com os doentes mas também com o pessoal, que muitas vezes parecia inclemente. Raramente fazia elogios, mas nunca perdia uma oportunidade para chamar a atenção do mais pequeno erro com sarcasmo. Mas, uma vez mais, concluiu que o salário e os benefícios eram excelentes, e era uma verdadeira emoção ver o Dr. Smith a trabalhar. Só que nos últimos tempos notara que ele estava a ficar mais malhumorado. Novos e potenciais clientes, que a ele recorriam por causa da sua excelente reputação, sentiam-se ofendidos com os seus modos e cancelavam com maior frequência as operações marcadas. Parecia que as únicas pessoas que ele tratava com solicitude e lisonja eram as beneficiárias do «ar» especial, que era outra coisa que incomodava Carpenter. E, para além de ser irascível, nos últimos meses notara que o médico parecia indiferente, mesmo distante. Por vezes, quando falava com ele, olhava para ela sem expressão, como se o seu pensamento estivesse muito longe. Olhou rapidamente para o relógio. Como esperava, depois de concluir o exame a Barbara Tompkins, a última benefeciária do «ar», o médico fora para o gabinete particular e fechara a porta. Que fazia ele lá dentro?, interrogou-se. Tinha de se aperceber de que estava atrasado. Aquela menina, Robin, estava sentada sozinha na sala de exames há meia hora, e havia outros doentes na sala de espera. Mas reparara que, depois de ver uma das doentes especiais, o médico parecia precisar sempre de tempo para si mesmo. - Sra. Carpenter... Sobressaltada, a enfermeira levantou os olhos da secretária. O Dr. Smith olhava fixamente para ela. - Creio que fizemos que Robin Kinellen esperasse bastante tempo - disse ele com uma expressão acusadora. Por detrás dos óculos sem armações, o olhar era glacial. - Não gosto do Dr. Smith - disse Robin sem rodeios enquanto Kerry tirava o carro da garagem de estacionamento na Rua 9, no lado oposto à Quinta Avenida. Kerry olhou rapidamente para ela. - Por que não?

- É assustador. Quando vou ao Dr. Wilson, ele graceja sempre. O Dr. Smith nem sequer se ri. Comportou-se como se estivesse furioso comigo. Disse qualquer coisa acerca do modo como algumas pessoas são dotadas de beleza enquanto outras a compram, mas que em nenhum dos casos pode ser desperdiçada. Robin herdara a invulgar beleza do pai e era realmente muito formosa. «É verdade que isso um dia pode tornar-se um fardo, mas por que razão o médico diz uma coisa tão estranha a uma criança?»,interrogou-se Kerry. - Lamento ter-lhe dito que ainda não tinha apertado o cinto de segurança quando a carrinha embateu no carro do paizinho - acrescentou Robin. - Foi então que o Dr. Smith começou a pregar-me um sermão. Kerry lançou um olhar à filha. Robin apertava sempre o cinto. Se ela não fizera isso daquela vez foi porque Bob arrancara antes de ela ter oportunidade. Kerry esforçou-se por não deixar transparecer na voz a sua cólera quando disse: - O paizinho provavelmente saiu da garagem à pressa. - Não reparou que eu não tivera tempo de o apertar - disse Robin na defensiva, percebendo a irritação na voz da mãe. Kerry sentiu pena da filha. Bob Kinellen abandonara-as quando Robin era bebé. Agora estava casado com a filha do seu principal sócio e era pai de uma menina de 5 anos e de um rapaz de 3. Robin adorava o pai, que quando estava com ela ficava muito entusiasmado. Mas desapontara-a muitas vezes, telefonando à última hora para cancelar um encontro. Porque a segunda mulher não queria que lhe lembrassem que ele tinha outra filha, Robin nunca foi convidada para a casa dele. Em consequência disso, ela mal conhecia o meio-irmão e a meia-irmã. «Nas raras vezes em que aparece, e por fim a leva a sair, vejam o que acontece», pensou Kerry. Porém, procurou ocultar a cólera, decidindo pôr uma pedra sobre o assunto. Assim, disse: - Por que não tentas passar pelo sono até chegarmos a casa do tio Jonathan e da tia Grace? - Está bem. - Robin fechou os olhos. - Aposto que têm um presente para mim. Enquanto esperavam que Kerry e Robin chegassem para o jantar, Jonathan e Grace Hoover tomavam, como habitualmente, o seu martini do fim da tarde, na sala-de-estar da sua casa em Old Tappan, em frente do lago

Tappan. O sol-poente lançava longas sombras através da água tranquila. As árvores, cuidadosamente podadas, para não taparem a vista do lago, estavam cintilantes com folhas brilhantes que em breve se desprenderiam. Jonathan acendera pela primeira vez a lareira naquela estação do ano, e Grace comentara há pouco que se previa a primeira geada para aquela noite. Um casal encantador, com sessenta e poucos anos, estavam casados há cerca de quarenta anos, unidos por laços e necessidades que iam além da afeição e do hábito. Nesse tempo, parecia que se tinham tornado praticamente semelhantes: ambos tinham rostos patrícios, emoldurados por fartas cabeleiras, de branco-puro com ondas naturais, a dela curta e encaracolada, ainda salpicada com alguns fios castanhos. Havia, contudo, uma diferença notória nos seus corpos. Jonathan sentava-se, alto e direito, numa poltrona de costas altas, enquanto Grace se recostava num sofá em frente dele, com um afegão sobre as pernas inúteis, os dedos dobrados, inertes no regaço, uma cadeira-de-rodas ao lado. Há anos vítima de reumatismo articular crónico, tornara-se cada vez mais incapacitada. Jonathan continuara dedicado a ela durante todo aquele tormento. Sócio principal de uma firma de advogados de Nova Jérsia, especializada em processos civis importantes, exercera também as funções de senador durante cerca de vinte anos, mas recusara várias vezes candidatar-se a governador. «Posso fazer bem ou mal no senado», era o seu comentário, muitas vezes citado, «e, seja como for, não creio que saísse vencedor.» Quem o conhecesse bem não acreditava nos seus protestos. Sabiam que fora por causa de Grace que evitara todas as exigências da vida de um governador, e interiormente perguntavam a si mesmos se ele não guardava um ténue ressentimento por o seu estado físico o ter retido. Se assim era, porém, nunca o demonstrava. Naquele momento, Grace, enquanto bebia lentamente o seu martini, disse, suspirando: - Creio, sinceramente, que esta estação do ano é a minha predileta; é tão bela, não é? Um dia como este faz-me recordar de quando apanhava o comboio para Princeton, em Byrn Mawr, para os desafios de futebol. Assistia a eles na tua companhia, ia jantar à Nassau Inn... - E ficavas em casa da tua tia e ela esperava que chegasses sã e salva antes de se ir deitar. - Jonathan soltou um riso abafado. - Costumava rezar

para que o velho morcego adormecesse cedo pelo menos uma vez, mas detinha um recorde perfeito. Grace sorriu. - Assim que parávamos em frente da casa, a luz do alpendre começava a cintilar. - Nessa altura, ansiosa, lançou um olhar ao relógio que estava em cima da prateleira do fogão. - Não estão atrasadas? Nem quero pensar em Kerry e Robin no meio do trânsito da hora de ponta. Sobretudo depois daquilo que aconteceu na semana passada. - Kerry conduz bem - tranquilizou-a Jonathan. - Não te preocupes. Não tarda nada estão aí. - Eu sei. É que... - Não era preciso terminar a frase; Jonathan compreendia perfeitamente. Desde que Kerry, com 21 anos de idade, prestes a frequentar a faculdade de Direito, respondera ao anúncio para dama de companhia, acabaram por considerá-la como uma filha adotiva. Isso fora há quinze anos atrás, e durante esse tempo Jonathan ajudara frequentemente Kerry a orientar e a moldar a sua carreira, servindo-se mais recentemente da sua influência para que o nome dela fizesse parte da lista de candidatos a um cargo de juiz. Dez minutos depois, o som bem-vindo da campainha da porta anunciava a chegada de Kerry e Robin. Como Robin previra, havia um presente à espera dela, um livro e um jogo de perguntas e respostas para o computador. A seguir ao jantar, levou o livro para a biblioteca e enroscou-se numa cadeira enquanto os adultos bebiam calmamente o café. Sem que Robin pudesse ouvir, Grace perguntou discretamente: - Kerry, aquelas marcas no rosto de Robin vão desaparecer, não vão? - Fiz a mesma pergunta ao Dr. Smith quando as vi. Ele não só me garantiu o seu desaparecimento como também me fez sentir como se o tivesse insultado por expressar preocupação em relação a elas. Não posso deixar de lhes dizer que tenho o pressentimento de que o bom do médico tem um ego enorme. No entanto, na semana passada, no hospital, o médico da urgência garantiu-me que Smith é um excelente cirurgião plástico. Na realidade, disse que era um taumaturgo. Enquanto bebia lentamente o resto do café, Kerry lembrou-se da mulher que vira no consultório do Dr. Smith. Lançou um olhar a Jonathan e Grace no outro lado da mesa. - Aconteceu uma coisa estranha enquanto esperava por Robin. Estava

uma pessoa no consultório do Dr. Smith que parecia tão familiar... disse ela. Até perguntei à recepcionista como se chamava. Tenho a certeza de que não a conheço, mas fiquei com a sensação de que já nos tínhamos encontrado. Arrepiei-me toda. Não é estranho? - Como era ela? perguntou Grace. - Uma pessoa extraordinária, com um ar um tanto sensual, provocador explicou Kerry. Creio que eram os lábios que lhe davam aquele ar. Eram um pouco carnudos e tinham um trejeito. Eu sei! Talvez fosse uma das antigas namoradas de Bob, e eu tivesse recalcado essa recordação. Encolheu os ombros. Oh, isto vai apoquentar-me até descobrir. «Mudou a minha vida, Dr. Smith...» Foi o que Barbara Tompkins lhe dissera quando saiu do consultório nesse dia. E ele sabia que era verdade. Modificara-a e, consequentemente, modificara a sua vida. Transformara uma mulher vulgar, quase tímida, que parecia ter mais de 26 anos, numa beldade. Efetivamente, era mais do que uma beldade. Agora tinha personalidade. Não era a mesma mulher insegura que o procurara há um ano atrás. Na altura, trabalhava numa pequena firma de relações públicas em Albany. - Vi o que fez a uma das nossas clientes - dissera ela quando entrou no consultório no primeiro dia. - Herdei algum dinheiro da minha tia. Pode tornar-me bonita? Ele fizera mais do que isso transformara-a. Tornara-a bela. Barbara trabalhava numa grande e prestigiosa firma de Relações Públicas em Manhattan. Sempre fora inteligente, mas, combinando aquela inteligência com aquela beleza especial, alterara verdadeiramente a sua vida. O Dr. Smith viu o último paciente do dia às seis e meia. Em seguida, percorreu os três quarteirões na Quinta Avenida em direção à sua casa, uma carruagem reconvertida, em Washington Mews. Era seu hábito, todos os dias, ir para casa, descontrair-se enquanto bebia um bourbon com soda e via o noticiário da noite, e depois decidir onde queria jantar. Vivia só e quase nunca comia em casa. Naquela noite, uma inquietação invulgar dominava-o. De todas as mulheres, Barbara Tompkins era a mais parecida com ela. O fato de a ver foi uma experiência emocional, quase catártica. Ouvira por acaso Barbara a conversar com a Sra. Carpenter, contando-lhe que ia levar um cliente a jantar nessa noite na Oak Room no Plaza Hotel.

Levantou-se quase com relutância. O que aconteceria a seguir era inevitável. Iria ao Oak Bar, examinaria o restaurante, a Oak Room, veria se havia uma pequena mesa da qual pudesse observar Barbara enquanto jantava. Dificilmente ela daria pela sua presença. Mas, se desse, mesmo que ela o visse, limitar-se-ia a acenar-lhe com a mão. Não tinha motivo para pensar que ele a seguia. Depois de chegarem a casa a seguir ao jantar com Jonathan e Grace, e muito tempo depois de Robin adormecer, Kerry continuou a trabalhar. O escritório dela era no gabinete da casa para onde se mudara depois de Bob as deixar, e vendeu a casa que tinham comprado. Conseguira a casa nova a um bom preço, quando o mercado de bens imobiliários estava em baixa, e não se sentia arrependida adorava-a. Com 50 anos, era uma Cape Cod com duas janelas no sótão, situada num terreno muito arborizado com cerca de um hectare. A única época em que não gostava dela era quando as folhas começavam a cair, toneladas delas. «Em breve começaria», pensou ela, suspirando. No dia seguinte, iria interrogar o arguido num caso de homicídio em que fazia a acusação pública. Era um ótimo ator. Na barra do tribunal, a sua versão dos acontecimentos que conduziram à morte da sua chefe parecera inteiramente plausível. Declarou que a sua chefe o rebaixava constantemente, tanto que um dia a apanhou a jeito e a matou. O advogado ia alegar homicídio involuntário. Cabia a Kerry destruir a história do réu, para provar que era uma vingança cuidadosamente planeada e executada contra um superior que, com fundamento, não o promovera. Custara-lhe a vida. «Agora tem de pagar», pensou Kerry. Era uma da manhã e ainda lhe parecia que não formulara todas as perguntas que queria fazer, todos os pontos que queria salientar. Exausta, subiu a escadaria até ao primeiro andar. Lançou um olhar a Robin, que dormia serenamente, aconchegou-lhe mais a roupa e em seguida atravessou o vestíbulo, dirigindo-se ao quarto. Cinco minutos mais tarde, com o rosto lavado, os dentes escovados, envergando a camisa de dormir favorita, meteu-se na enorme cama de metal que comprara em promoção depois de Bob se ir embora. Trocara a mobília toda do quarto principal. Tornara-se impossível viver com as coisas antigas, olhar para o toucador dele, para a mesinha-de-cabeceira dele, ver a almofada

vazia no lado dele na cama. A persiana não estava completamente descida, e, com a luz fraca da lâmpada no poste junto à alameda, podia ver que começara a cair uma chuva constante. «Bem, o tempo bom não podia durar sempre», pensou, satisfeita por não estar tanto frio como tinham previsto, por a chuva não se transformar em saraiva. Fechou os olhos, desejosa de que o pensamento parasse, perguntando a si mesma por que se sentia tão inquieta. Acordou às cinco, depois conseguiu passar pelo sono até às seis. Foi a essa hora que teve aquele sonho pela primeira vez. Viu-se na sala de espera do consultório do médico. Estava uma mulher deitada no chão, com os olhos grandes, vidrados, fixos no vazio. Uma nuvem de cabelo escuro emoldurava a beleza petulante do seu rosto. Tinha uma corda atada à volta do pescoço com um nó. Então, quando Kerry observava, a mulher levantou-se, retirou a corda do pescoço e dirigiu-se à recepcionista para marcar uma consulta. Durante a noite, Robert Kinellen pensou telefonar para saber como Robin se portara no consultório do médico, mas o pensamento surgira e desaparecera sem ser posto em prática. O sogro e principal sócio da firma de advogados, Anthony Bartlett, resolvera aparecer, o que era raro, em casa de Kinellen depois do jantar para discutir estratégias no próximo julgamento de evasão aos impostos sobre rendimentos de James Forrest Weeks, o cliente da firma mais importante e mais controverso. Weeks, administrador de bens imobiliários no valor de muitos milhões de dólares e empresário, tornara-se praticamente uma figura pública em Nova Iorque e Nova Jérsia nas últimas três décadas. Um forte contribuinte de campanhas políticas, um proeminente doador de numerosas obras de beneficência, era também alvo de constantes rumores sobre negócios internos e troca de influência, e constava que tinha ligações com bandos de criminosos conhecidos. Há anos que o departamento do procurador-geral dos E. U. A. tentava inculpar Weeks, e coubera a Barlett e Kinellen a tarefa, financeiramente compensadora, de o representar durante as investigações. Até àquele momento, os agentes federais tinham conseguido sempre provas insuficientes para uma acusação consistente. Desta vez, Jimmy está numa situação muito complicada recordou

Anthony Bartlett ao genro quando estavam sentados em frente um do outro no gabinete da casa Kinellen em Englewood Cliffs. Bebia um brande lentamente. O que significa, claro, que vamos ter problemas graves com ele. Desde que Bob entrara para a firma, há dez anos, vira-a transformar-se praticamente num prolongamento da Empresa Weeks, tão ligados estavam. Na realidade, sem o imenso império comercial de Jimmy, teriam ficado apenas com um punhado de clientes de segunda ordem e com honorários que não dariam para manter as operações da firma. Ambos sabiam que, se Jimmy fosse considerado culpado, Bartlett e Kinellen, como firma de advogados viável, ficariam arrumados. - Barney é a única pessoa com a qual estou preocupado - disse Bob calmamente. Barney Haskell era o chefe da Contabilidade e coréu no caso corrente. Ambos tinham conhecimento da enorme pressão a que ele estava sujeito para testemunhar pelo Governo em troca de um acordo de apelação. Anthony Bartlett acenou com a cabeça. - Certo. - E por mais de um motivo - continuou Bob. - Falei-lhe do acidente em Nova Iorque? E que Robin foi tratada por um cirurgião plástico? - Sim. Como está ela? - Vai ficar boa, graças a Deus. Mas não lhe disse o nome do médico. É Charles Smith. - Charles Smith. - Anthony Bartlett franziu o sobrolho quando pensou no nome. Depois levantou as sobrancelhas e endireitou-se na cadeira. - Não é aquele que...? - Precisamente - respondeu-lhe Bob. - E a minha ex-mulher, a assistente do promotor de Justiça, leva a nossa filha a consultas regulares com ele. Conhecendo Kerry, é apenas uma questão de tempo até ela estabelecer a ligação. - Oh, meu Deus - disse Bartlett num tom lastimoso.

CAPÍTULO 2 Quinta-feira, 12 de Outubro

O gabinete

do promotor de Justiça do condado de Bergen ficava situado no segundo andar da ala oeste do Tribunal. Albergava trinta e cinco advogados do Ministério Público, setenta investigadores e vinte e cinco secretárias, além de Franklin Green, o promotor de Justiça. Não obstante a constante sobrecarga de trabalho e a natureza grave, muitas vezes macabra, dos casos, existia um espírito de camaradagem no departamento. Kerry adorava trabalhar lá. Recebia regularmente ofertas sedutoras de firmas de advogados, a pedir que fosse trabalhar com eles, mas, apesar das tentações de ordem financeira, optara por ficar e já era, à custa de muito trabalho, chefe de equipa para julgamentos. Nesse período ganhara reputação como sendo uma advogada astuta, inflexível e escrupulosa. Dois juizes, que tinham atingido os 70 anos, idade da aposentação, deixaram os lugares vazios, e naquela altura havia duas vagas. Como senador do Estado, Jonathan Hoover apresentara o nome de Kerry para um dos lugares. Nem queria admitir o quanto era importante para ela. As importantes firmas de advogados ofereciam muito mais dinheiro, mas um cargo de juiz representava o tipo de realização pessoal que nenhum dinheiro podia comprar. Kerry pensou no encontro possível nessa manhã, quando introduziu o código do fecho da porta exterior, e, ao ouvir o estalido, abriu a porta com um empurrão. Acenando à telefonista, dirigiu-se, com passos rápidos, ao gabinete reservado ao juiz de primeira instância. Em comparação com os cubículos sem janelas atribuídos aos novos assistentes, o gabinete era bastante espaçoso. A superfície da velha secretária de madeira estava tão cheia de pilhas de ficheiros que o seu estado praticamente não tinha importância. As cadeiras de costas direitas não condiziam, mas eram funcionais. Era necessário fazer muita força para abrir a primeira gaveta do arquivo, mas isso era um mal menor para Kerry. O gabinete tinha ventilação cruzada, janelas que deixavam entrar a luz e o ar. Ela personalizara o espaço com plantas verdes e viçosas, que guarneciam os peitoris, e com fotografias emolduradas que Robin tirara. Isso

proporcionara um conforto funcional, e Kerry estava muito satisfeita por ser o seu gabinete. A manhã trouxera a primeira geada da estação, obrigando Kerry a pegar no Burberry quando saiu de casa. Pendurou o casaco com cuidado. Comprara-o num saldo e queria que durasse muito tempo. Esforçou-se por apagar os últimos vestígios do inquietante sonho da noite anterior quando se sentou à secretária. A questão primordial era o julgamento que recomeçaria dentro de uma hora. A diretora assassinada tinha dois filhos adolescentes que criara sozinha. «Quem iria olhar por eles agora? E se me acontecesse alguma coisa?», pensou Kerry. «Para onde iria Robin? Certamente, não para junto do pai; ela não seria feliz, nem bem-vinda, na sua nova casa.» Mas Kerry também não imaginava a mãe e o padrasto, ambos já com mais de 70 anos e a viverem no Colorado, a criarem uma criança de 10 anos. «Deus queira que viva pelo menos até que Robin seja crescida», pensou quando concentrou a atenção no ficheiro à frente dela. Às nove horas menos dez o telefone tocou. Era Frank Green, o promotor de Justiça. - Kerry, sei que vai a caminho do Tribunal, mas espere só um minuto. - Claro. E só podia ser um minuto, pensou ela. «Frank sabe que o juiz Kafka tem um ataque quando o fazem esperar.» Deparou com o promotor Frank Green sentado à secretária. Com um rosto ossudo e uns olhos vivos, aos 52 anos conservara o físico forte que fizera dele uma estrela de futebol na faculdade. «O sorriso foi cordial mas pareceu estranho», pensou. «Será que lhe fixaram os dentes?», interrogou-se. «Se assim foi, é esperto. Têm bom aspecto, e ficarão bem nas fotografias quando for nomeado em Junho.» Não havia dúvida de que Green já se preparava para a campanha para o cargo de governador. A cobertura da imprensa revelava que estava a ser constituído o seu departamento, e a atenção que dava ao guarda-roupa era óbvia para toda a gente. Um editorial afirmara que, uma vez que o governador atual exercera tão bem o cargo durante dois mandatos e Green era o seu sucessor, cuidadosamente selecionado, parecia muito provável que ele fosse escolhido para liderar o Governo. Depois de aparecer esse editorial, Green passou a ser conhecido no seio do pessoal como «O Nosso Líder».

Kerry admirava a sua perícia e eficiência jurídicas. Ele governava um barco estanque, sólido. A sua reserva a respeito dele era que, várias vezes naqueles dez anos, deixara um assistente, que cometera um erro inocente, entregue à sua sorte. Em primeiro lugar, a lealdade de Green era consigo próprio. Sabia que a sua possível nomeação para um cargo de juiz aumentara o seu valor. - Parece que nós os dois estamos destinados a grandes feitos - disseralhe ele numa das raras explosões de exuberância e camaradagem. Disse-lhe então: - Entre, Kerry. Apenas queria saber por si como é que Robin tem passado. Quando tive conhecimento de que pedira ao juiz para suspender ontem o julgamento, fiquei preocupado. Ela falou-lhe, em poucas palavras, do exame médico, garantindo-lhe que estava tudo sob controlo. - Quando se deu o acidente, Robin estava com o pai, não estava? perguntou ele. - Sim. Bob conduzia o carro. - O seu ex talvez esteja sem sorte. Não creio que consiga livrar Weeks desta vez. Diz-se que o vão prender, e eu espero que o façam. É um trapaceiro, ou talvez pior que isso. - Fez um gesto de desprezo. - Folgo em saber que Robin está a reagir bem, e sei que você domina a situação. Vai interrogar hoje o réu, não vai? - Sim. - Conhecendo-a, chego a ter pena dele. Boa sorte.

CAPÍTULO 3 Segunda-feira, 23 de Outubro

Tinham

passado quase duas semanas, e Kerry ainda sentia satisfação pelo julgamento já concluído. Conseguira a condenação por homicídio. Pelo menos, os filhos da mulher assassinada não teriam de crescer e saber que o assassino da mãe andaria pelas ruas dali a cinco ou seis anos. Isso teria acontecido se o júri se tivesse deixado levar pelo homicídio involuntário da defesa. Um caso de homicídio obrigava ao cumprimento de uma pena de trinta anos, sem liberdade condicional. Uma vez mais, sentada na área de recepção do consultório do Dr. Smith, abriu a pasta, que trazia sempre, e tirou um jornal. Aquele era o segundo exame geral de Robin e deveria ser mera rotina, por isso podia descontrair-se. Além disso, estava ansiosa por ler as últimas notícias sobre o julgamento de Jimmy Weeks. Como Frank Green previra, o consenso era que não iria ser fácil para o arguido. Investigações por suborno, negócios ilícitos e branqueamento de dinheiro foram abandonadas por falta de provas suficientes. Mas desta vez dizia-se que o promotor tinha um caso sólido. Isto se chegasse a ser efetivamente indiciado. A seleção do júri decorria há várias semanas e não se antevia uma conclusão. «Certamente, isso agrada a Bartlett e a Kinellen», pensou ela, «pois podem cobrar honorários durante esse período.» Bob apresentara em tempos Jimmy Weeks a Kerry, quando os encontrara inesperadamente num restaurante. Naquele momento examinava a fotografia dele quando estava sentado com o ex-marido à mesa da defesa. «Se se puser de parte aquele fato feito por medida e o falso ar de sofisticação, por debaixo está um rufião», pensou. Na fotografia, o braço de Bob estava apoiado nas costas da cadeira de Week, num gesto protetor. As cabeças estavam juntas. Kerry recordou-se desse seu hábito. Passou rapidamente os olhos pelo artigo, depois guardou o jornal na pasta. Abanando a cabeça, lembrou-se de como ficara consternada quando, pouco tempo depois de Robin nascer, Bob lhe dissera que aceitara um emprego na firma Bartlett e Associados. - Todos os clientes têm um pé na prisão - protestara ela. - E o outro pé

devia lá estar. - E pagam as contas pontualmente - replicara Bob. - Kerry, continua no departamento do promotor, se é essa a tua vontade. Eu tenho outros planos. Um ano depois, anunciara que esses planos incluíam casar-se com Alice Bartlett. «Faz parte do passado», disse Kerry para si mesma enquanto lançava um olhar pela sala de espera. Nesse dia, os outros ocupantes eram um adolescente com aspecto atlético e uma ligadura de um lado ao outro do nariz e uma mulher mais idosa cuja pele muito enrugada indicava o motivo da sua presença. Kerry olhou rapidamente para o relógio. Robin contara-lhe que na semana anterior esperara meia hora na sala de observações. - Que pena não ter trazido um livro dissera ela. Desta vez, não se esquecera de trazer um. «Quem me dera que o Dr. Smith marcasse as consultas para horas decentes», pensou Kerry com irritação enquanto relanceava o olhar na direção das salas de observação. E a porta que dava para elas abriu-se nesse instante. Imediatamente, Kerry ficou imóvel e os olhos arregalaram-se. A mulher jovem, que apareceu, tinha um rosto emoldurado por uma nuvem de cabelo negro, um nariz estreito, lábios pequenos, olhos rasgados, sobrancelhas arqueadas. Kerry sentiu um nó na garganta. Não era a mesma mulher que vira da última vez mas parecia-se com ela. Podiam ter alguma relação de parentesco? Se eram pacientes, certamente o Dr. Smith não podia estar a tentar fazer que fossem parecidas, pensou. E por que razão aquele rosto lhe fazia lembrar com tanta clareza outra pessoa que surgira num pesadelo? Abanou a cabeça, incapaz de encontrar uma resposta. Olhou de novo para as outras pessoas na pequena sala-de-estar. Era óbvio que o rapaz sofrera um acidente e provavelmente fraturara o nariz. Mas a mulher mais idosa estava ali para fazer algo de rotina como um lifting, ou esperava ficar com um aspecto completamente diferente? - Como seria olhar para o espelho e deparar com um rosto estranho a fitar-nos também?, - interrogou-se Kerry. - Pode escolher-se o aspecto que se quer ter? Seria assim tão simples? - Menina McGrath. Kerry virou-se e viu a Sra. Carpenter, a enfermeira, a fazer-lhe sinal com

a mão para que entrasse na sala de observações. Kerry apressou-se a segui-la. Na última visita, fizera perguntas à recepcionista acerca da mulher que vira lá e esta dissera-lhe que se chamava Barbara Tompkins. Agora podia perguntar à enfermeira quem era aquela mulher. - Aquela mulher jovem que saiu há instantes, pareceu-me conhecida disse Kerry. - Como se chama? - Pamela Worth - disse a Sra. Carpenter laconicamente. - É aqui. Encontrou Robin sentada em frente da secretária do médico, com as mãos cruzadas no regaço, muito direita, o que não era habitual. Kerry viu a expressão de alívio no rosto da filha quando se virou e os seus olhos se encontraram. O médico acenou-lhe com a cabeça, e com um gesto sugeriu que se deveria sentar na cadeira ao lado de Robin. - Repeti a Robin todos os cuidados que deve ter para garantir que nada retarde o processo de cicatrização. Ela quer continuar a jogar futebol, mas tem de prometer que usará uma máscara durante o resto da temporada. Não podemos correr o risco de que haja a mínima possibilidade de essas lacerações se abrirem de novo. Espero que, ao fim de seis meses, já não sejam visíveis. A sua expressão tornou-se séria. - Já expliquei a Robin que muitas vezes vêm ter comigo em busca de uma beleza que a natureza lhe deu. É seu dever protegê-la. Vejo na ficha que é divorciada. Robin contou-me que o pai ia a conduzir o carro quando se deu o acidente. Peço-lhe que o avise para cuidar melhor da filha. Ela é insubstituível. A caminho de casa, a pedido de Robin, pararam para jantar no Valentino's em Park Ridge. - Gosto do camarão de lá - explicou Robin. Mas, quando estavam sentadas a uma mesa, olhou em redor e disse: - O paizinho trouxe-me aqui uma vez. Ele diz que é o melhor. O tom de voz era melancólico. «Então é por isso que este é o restaurante especial», pensou Kerry. Desde o acidente, Bob telefonara apenas uma vez a Robin, e fora durante o período de aulas. A mensagem no atendedor automático era de que supunha que ela estava na escola, e isso devia significar que se sentia bem. Não havia

nenhuma indicação para que ela lhe telefonasse. «Com franqueza», disse Kerry para com os seus botões. «Ouviu da minha boca no consultório, e ele sabe que o Dr. Smith disse que vai ficar boa. Mas isso foi há duas semanas. Desde então, silêncio.» O empregado chegou para anotar os pedidos. Quando estavam de novo a sós, Robin disse: - Mãezinha, não quero ir mais ao Dr. Smith. É assustador. - Kerry sentiu-se desanimada. Era precisamente aquilo em que estivera a pensar. E o pensamento seguinte foi que ele só lhe prometera que as linhas vermelhas no rosto de Robin desapareceriam. «Tenho de descobrir outra pessoa para a examinar», cogitou. Esforçando-se por parecer objetiva, disse: - Oh, suponho que o Dr. Smith é boa pessoa, mesmo que tenha a personalidade de um bobo. - Foi recompensada com um sorriso de Robin. - Mesmo assim - continuou, - ele não precisa de te examinar no próximo mês, e depois disso talvez nem precise, por isso não te preocupes com ele. Não tem culpa por ter nascido sem encanto. Robin soltou uma gargalhada. - Esqueça o encanto. Ele é um horror. Quando trouxeram a comida, provaram o que tinham escolhido e conversaram um bocado. Robin adorava fotografia e estava a tirar um curso básico de técnica. O seu trabalho era fotografar as folhas do Outono no período de transição. - Mostrei-lhe as excelentes fotografias que tirei no momento em que começaram a transformar-se, mãezinha. Sei que aquelas que tirei esta semana com as melhores cores estão espantosas. - Invisíveis? murmurou Kerry. - Hum-hum. Agora estou ansiosa que sequem e depois uma bela tempestade comece a espalhar tudo. Não seria ótimo? - Nada como uma bela tempestade para espalhar tudo - concordou Kerry. Resolveram não comer sobremesa. O empregado entregara há instantes o cartão de crédito de Kerry quando ouviu Robin arfar. - Que é, Rob? - O paizinho está aqui. Já nos viu. - Robin levantou-se de um salto. - Espera, Rob, deixa-o aproximar-se - disse Kerry calmamente. Virouse. Acompanhado por outro homem, Bob seguia o cozinheiro-chefe. Kerry arregalou os olhos. O outro homem era Jimmy Weeks.

Como sempre, estava assombroso. Mesmo um longo dia no Tribunal não deixava um sinal de fadiga no seu belo rosto. «Nem uma ruga, nem um vinco na roupa», pensou Kerry, consciente de que na presença de Bob tinha sempre o impulso de retocar a maquilhagem, alisar o cabelo, endireitar o casaco. Por outro lado, Robin parecia estática. Feliz, retribuiu o abraço de Bob. - Lamento ter perdido o seu telefonema, paizinho. «Oh, Robin», pensou Kerry. Então percebeu que Jimmy Weeks estava a fitá-la. - Conheci-a aqui há um ano - disse ele. - Estava a jantar com dois juizes. Tenho muito prazer em a rever, Sra. Kinellen. - Há muito tempo que não uso esse nome. Voltou a ser McGrath. Mas tem boa memória, Sr. Weeks. - O tom de Kerry era impessoal. Certamente não iria dizer que tinha prazer em ver o homem. - Pode crer que tenho boa memória. - O sorriso de Weeks fez que o comentário parecesse um dito jocoso. - Ajuda quando nos recordamos de uma mulher muito atraente. «Poupe-me», pensou Kerry, esboçando um sorriso. Deixou de olhar para ele quando Bob soltou Robin. Estendeu-lhe a mão. - Kerry, que agradável surpresa. - Geralmente, é uma surpresa quando te vemos, Bob. - Mãezinha - implorou Robin. Kerry mordeu o lábio. Detestava-se quando atacava Bob na frente da filha. Esforçou-se por sorrir. - Estamos de saída. Quando estavam sentados à mesa e registados os pedidos das bebidas, Jimmy Weeks comentou: - A sua ex-mulher não simpatiza lá muito consigo, Bobby. - Kinellen encolheu os ombros. - Kerry devia descontrair-se. Leva as coisas demasiado a sério. Casamos muito novos. Separamo-nos. Isso acontece todos os dias. Gostava que ela conhecesse outra pessoa. - Que aconteceu à cara da sua filha? - Vidro projetado resultante de um toque no guarda-lama. Vai ficar boa. - Arranjoulhe um bom cirurgião plástico? - Sim, falaram-me muito bem dele. Que lhe apetece comer, Jimmy?

- Como se chama o médico? Talvez seja o mesmo que a minha mulher consultou. Bob Kinellen ficou agitado interiormente. Amaldiçoou a hora em que encontrou Kerry e Robin e que Jimmy lhe fizesse perguntas sobre o acidente. - Chama-se Charles Smith - disse ele, por fim. - Charles Smith? - A voz de Weeks revelava surpresa. - Deve estar a brincar. - Quem me dera estar. - Bem, sei que se vai aposentar em breve. Tem problemas de saúde há muito tempo. Bob mostrou-se admirado. - Como sabe disso? Jimmy W. fitou-o com uma expressão de frieza. - Não o perco de vista. Deve calcular porquê. Não deve tardar muito. Nessa noite, o sonho voltou. De novo, Kerry estava no consultório de um médico. Uma mulher jovem jazia no chão com uma corda atada ao pescoço, o cabelo negro a emoldurar um rosto com uns olhos arregalados, fixos no vazio, uma boca aberta como se arquejasse, a ponta de uma língua rosada de fora. No sonho, Kerry tentou gritar, mas dos seus lábios saiu apenas um protesto gemido. Pouco depois, Robin acordava-a com um abanão. - Mãezinha, mãezinha, acorda. Que se passa? - Kerry abriu os olhos. - Oh, meu Deus, Rob, que pesadelo horrível. Obrigada. Mas, quando Robin fora outra vez para o seu quarto, Kerry ficou acordada, a pensar no sonho. Que o fazia despontar?, interrogou-se. Por que era diferente do da última vez? Daquela vez havia flores espalhadas sobre o corpo da mulher. Rosas. Rosas Sweetheart. Sentou-se bruscamente na cama. Era isso! Era isso que tentava recordar! O consultório do Dr. Smith nesse dia e a mulher há duas semanas atrás, aquelas que eram tão parecidas. Agora sabia por que pareciam conhecidas. Sabia com quem se pareciam. Suzanne Reardon, a vítima do Homicídio Sweetheart. Ela fora assassinada há cerca de onze anos pelo marido. Atraíra a atenção da imprensa: crime passional e rosas espalhadas sobre a formosa vítima. «O dia em que entrei para o departamento do promotor foi o dia em que

o júri declarou o marido culpado», pensou Kerry. «Os jornais estavam cheios de fotografias de Suzanne. Tenho a certeza absoluta», disse para si mesma. «Eu estava presente quando proferiram a sentença. Mas por que razão duas das pacientes do Dr. Smith se pareciam com uma vítima de homicídio?» Pamela Worth fora um erro. Este pensamento fez que o Dr. Charles Smith se mantivesse acordado praticamente durante toda a noite de segunda-feira. Nem mesmo a beleza do seu rosto há pouco tempo esculpido podia compensar a postura sem graça, a voz áspera, alta. «Devia ter percebido isso nesse instante», pensou ele. E, de fato, tivera consciência disso. Mas não fora capaz de se controlar. A estrutura óssea tornou-a numa candidata ridiculamente fácil a essa transformação. E, sentindo que essa transformação se operava sob os seus dedos, fez que fosse possível aliviar parte da excitação que se gerara na primeira vez. Que faria quando já não fosse possível operar?, perguntou a si mesmo. Esse momento aproximava-se rapidamente. O leve tremor da mão que irritava tornar-se-ia mais pronunciado. A irritação daria lugar à incapacidade. Acendeu a luz, não a que estava ao lado da cama, mas aquela que iluminava o retrato na parede à sua frente. Olhava para ele todas as noites antes de adormecer. Ela era tão bela. Mas, naquela hora, sem os óculos, a mulher do retrato ficou deformada e distorcida, como quando estava morta. - Suzanne - murmurou. Depois, quando a dor da recordação o dominou, colocou um braço sobre os olhos, tapando a imagem. Não suportava recordar como ela era nesse tempo, despojada da beleza, com os olhos salientes, a ponta da língua caída sobre o lábio inferior inerte e o maxilar pendente...

CAPÍTULO 4 Terça-feira, 24 de Outubro

A primeira

coisa que Kerry fez na segunda-feira de manhã, quando chegou ao gabinete, foi telefonar a Jonathan Hoover. Como sempre, foi reconfortante ouvir a voz dele. Foi direita ao assunto. - Jonathan, Robin fez o exame médico ontem em Nova Iorque, e parece que está tudo bem, mas ficaria muito mais descansada com uma segunda opinião, se outro cirurgião plástico desse o mesmo parecer do Dr. Smith, de que não ficarão cicatrizes. Conhece algum que seja bom? Pela voz de Jonathan, percebia-se que sorria. - Não por experiência pessoal. - Certamente, nunca precisou. - Obrigado, Kerry. Deixa-me investigar. Grace e eu pensámos que deverias saber a opinião de outro médico, mas não quisemos interferir. Aconteceu alguma coisa ontem que te levasse a tomar essa decisão? - Sim e não. Estou à espera de uma visita daqui a pouco. Conto-lhe quando nos virmos. - Comunico-te um nome hoje à tarde. - Obrigada, Jonathan. - De nada, Excelência. - Jonathan, não diga isso. Dá-me mau agouro. Quando desligava o telefone, ouviu-o soltar um riso abafado. O primeiro encontro dessa manhã era com Corinne Banks, a assistente a quem ela, como juíza de primeira instância, entregara um caso de homicídio veicular. O julgamento estava marcado para a segunda-feira seguinte e Corinne queria rever alguns aspectos da acusação que pretendia apresentar. Corinne, uma jovem negra de 27 anos, tinha os predicados necessários a uma advogada de primeira, pensou Kerry. Uma pancada leve na porta, e Corinne entrou, com uma enorme pasta de arquivo debaixo do braço. Estava radiante. - Adivinhe o que Joe - descobriu disse ela, satisfeita. Joe Palumbo era um dos melhores investigadores. Kerry sorriu. - Estou impaciente. - O nosso cândido arguido, que declarou que nunca esteve envolvido

noutro acidente, está com um problema grave. Com uma carta de condução falsificada, tem uma série de graves infrações das regras de trânsito, incluindo outra morte de automóvel há quinze anos atrás. Estou desejosa por ver aquele indivíduo na prisão, e agora estou confiante de que vamos conseguir. - Pousou a pasta e abriu-a. - De qualquer maneira, era sobre isto que queria falar... Vinte minutos mais tarde, depois de Corinne sair, Kerry pegou no telefone. O fato de Corinne mencionar o investigador fizera que tivesse uma ideia. Quando Joe Palumbo respondeu com o usual «Yup», Kerry perguntou: - Joe, tem planos para o almoço? - Nem um, Kerry. Quer levar-me a almoçar no Solari's? Kerry riu-se. - Adoraria, mas tenho outra coisa em mente. Há quanto tempo trabalha aqui? - Há vinte anos. - Esteve envolvido no homicídio Reardon há cerca de dez anos, aquele a que a imprensa chamou Homicídio Sweetheart? - Foi muito importante. Não, não trabalhei nele, mas, se bem me lembro, foi aberto e encerrado em beleza. O nosso líder ganhou fama com esse caso. Kerry sabia que Palumbo não morria de amores por Frank Green. - Não houve vários recursos? perguntou ela. - Oh, sim. Estavam sempre a apresentar teorias novas. Parece que se arrastou indefinidamente - replicou Palumbo. - Creio que o último recurso foi rejeitado há cerca de dois anos disse Kerry, mas aconteceu uma coisa que me despertou a curiosidade sobre esse caso. Seja como for, eis do que se trata, eu queria ir aos arquivos do The Record e examinar tudo o que publicaram sobre o caso. Podia imaginar Joe, bonacheirão, a revirar os olhos. - Para si, Kerry, com certeza. Qualquer coisa. Mas porquê? Esse caso já se deu há tanto tempo. - Pergunte-me mais tarde. O almoço de Kerry foi uma sanduíche e um café sentada à secretária. Joe chegou à uma e meia, trazendo um envelope muito cheio. - Como pediu. Kerry olhou para ele com ternura. Baixo, com cabelo quase cinzento, nove quilos de peso a mais e um sorriso sempre nos lábios, Joe tinha uma

expressão benevolente, que desarmava qualquer um e que não refletia a sua capacidade para reter instintivamente detalhes aparentemente insignificantes. Trabalhara com ele nalguns dos casos mais importantes. - Devo-lhe um favor - disse ela. - Esqueça, mas admito que estou curioso. Qual é o seu interesse no caso Reardon, Kerry? Ela hesitou. Naquela altura, não parecia correto falar sobre aquilo que o Dr. Smith fazia. Palumbo percebeu a relutância dela em responder. - Não faz mal. Conta-me quando puder. Até logo. Kerry tencionava levar o arquivo para casa e começar a lê-lo depois do jantar. Mas não resistiu a tirar a primeira parte. «Estou certa», pensou. «Foi há apenas dois anos.» Era um pequeno artigo na p. 32 do The Record, notando que o quinto recurso de Skip Reardon para um novo julgamento fora rejeitado pelo Supremo Tribunal de Nova Jérsia e que o advogado, Geoffrey Dorso, afirmara que encontraria um fundamento para outro recurso. A citação de Dorso era: «Continuarei a tentar tudo até que Skip Reardon saia ilibado daquela prisão. Ele é inocente.» «Claro», pensou ela, «todos os advogados dizem isso.» Pela segunda noite consecutiva, Bob Kinellen jantou com o cliente Jimmy Weeks. Não fora um bom dia no Tribunal. A seleção do júri ainda se arrastava. Tinham convocado oito dos jurados. Mas, cuidadosos como estavam a ser na escolha daquele júri, era evidente que o promotor federal tinha um caso sólido. Era quase certo que Haskell ia apanhar uma demanda judicial. Os dois homens jantaram com semblante carregado. - Mesmo que Haskell responda à acusação, penso que o posso destruir na barra das testemunhas - garantiu Kinellen a Jimmy. - Você pensa que o pode destruir. Isso não chega. - Veremos como tudo se desenrola. - Weeks sorriu, desconsolado. - Começo a ficar preocupado consigo, Bob. Já é tempo de arranjar um plano de defesa. Bob Kinellen decidiu deixar passar o comentário. Abriu a ementa. - Mais tarde, vou encontrar-me com Alice no Arnott's. Tencionava ir? - Claro que não. Não preciso mais das apresentações dele. Devia saber disso. Já me prejudicaram o suficiente. Kerry e Robin estavam sentadas em silêncio na sala comum. Por causa

da noite fria, resolveram acender a lareira pela primeira vez, o que, no seu caso, significava ligar o gás e em seguida primir o botão que lançava chamas por entre os cepos artificiais. Como Kerry explicava às visitas: - Sou alérgica ao fumo. Esta fogueira parece verdadeira e liberta calor. Na realidade, parece de tal maneira verdadeira que a minha empregada aspirou as cinzas falsas, e tive de sair para comprar mais. Robin espalhou as fotografias da mudança de estação em cima da mesa do café. - Que noite maravilhosa disse ela com satisfação fria e ventosa. Devia tirar o resto das fotografias sem demora. Árvores despidas, muitas folhas no chão. Kerry estava sentada na poltrona favorita, com os pés numa pequena almofada. Levantou os olhos. - Não me fales das folhas. Fico cansada. - Por que não compras uma ventoinha? - Dar-te-ei uma no Natal. - Engraçado. Que estás a ler, mãezinha? - Chega aqui, Rob. Kerry mostrou um recorte de jornal com uma fotografia de Suzanne Reardon. - Reconheces esta senhora? - Estava ontem no consultório do Dr. Smith. - Tens bom olho, mas não é a mesma pessoa. Kerry começara a ler há instantes o relato do assassínio de Suzanne Reardon. O corpo fora descoberto à meia-noite pelo marido, Skip Reardon, um famoso empreiteiro e milionário à sua própria custa. Encontrara-a deitada no soalho, no vestíbulo da luxuosa mansão em Alpine. Fora estrangulada. Havia rosas Sweetheart espalhadas sobre o corpo. «Devo ter lido a notícia nessa altura», pensou Kerry. «Certamente, deve ter-me impressionado, provocando aqueles sonhos.» Tinham passado vinte minutos quando leu o recorte que a sobressaltou. Skip Reardon fora acusado de homicídio depois de o sogro, o Dr. Charles Smith, ter contado à Polícia que a filha vivia receosa dos desvairados ataques de ciúmes do marido. «O Dr. Smith era o pai de Suzanne Reardon! Meu Deus!», pensou Kerry. «É por isso que dá o rosto dela a outras mulheres? Que estranho. A quantas terá feito isso? Foi por isso que fez aquele sermão a mim e a Robin para proteger a beleza?» - Qual é o problema, mãezinha? Estás com um ar

esquisito disse Robin. - Nada. Estou apenas interessada num caso. - Kerry olhou para o relógio em cima da prateleira do fogão. - Nove horas, Rob. É melhor acabares com isso. Eu subo num minuto para te dar as boas-noites. Enquanto Robin juntava as fotografias, Kerry deixou cair no regaço os jornais que tinha nas mãos. Ouvira falar de casos em que os pais não conseguiam refazer-se da morte de um filho, em que conservaram o quarto do filho tal como estava, as roupas guardadas no armário, tal como a criança as deixara. Mas para a «recriar» e fazê-lo vezes sem conta? Sem dúvida que isso ia além do pesar. Levantou-se devagar e seguiu Robin pelas escadas acima. Depois de dar um beijo de boas-noites à filha, entrou no seu quarto, vestiu o pijama e um roupão e depois voltou para o rés-do-chão, onde preparou uma chávena de cacau e continou a ler. O caso contra Skip Reardon parecia aberto e encerrado. Admitiu que ele e Suzanne tinham discutido ao pequeno-almoço na manhã da sua morte. De fato, admitiu que nos dias anteriores discutiam quase constantemente. Admitiu que chegara a casa às seis da tarde e a encontrara a arranjar uma jarra de rosas. Quando lhe perguntou donde tinham vindo, ela dissera-lhe que não era da sua conta quem as mandara. Afirmou que depois lhe dissera que quem quer que fosse que as tivesse enviado era bem acolhido por ela, que ele ia sair. Então declarou que voltara para o escritório, bebera um pouco, adormecera no sofá e regressara a casa à meia-noite, deparando com o cadáver. Não houvera ninguém, porém, que corroborasse o que disse. O arquivo continha parte da cópia do julgamento, incluindo o depoimento de Skip. O promotor atormentou-o até este ficar confuso e parecer estar a contradizer-se. Pelo menos, não dera um testemunho muito convincente. «Fora péssimo que o seu advogado o tivesse preparado para depor», pensou Kerry. Quanto a isso, ela não tinha dúvidas, com o caso sólido, circunstancial do promotor, era imperioso que Reardon fosse à barra das testemunhas para negar que matara Suzanne. Mas era óbvio que o interrogatório mordaz de Frank Green o desencorajara por completo. «Não há a menor dúvida», pensou Kerry, «de que Reardon ajudou a cavar a sua própria sepultura.» A leitura da sentença tivera lugar seis semanas depois de concluído o julgamento. Kerry fora, efetivamente, assistir. Então recordou

aquele dia. Lembrava-se de que Reardon era um homem alto e forte, belo, com cabelo ruivo, que parecia pouco à vontade com o fato listrado. Quando o juiz lhe perguntou se queria dizer alguma coisa antes de ser pronunciada a sentença, ele, uma vez mais, protestou a sua inocência. Geoff Dorso estivera com Reardon nesse dia, na qualidade de assistente do advogado de defesa de Reardon. Kerry conhecia-o mal. Desde então, naqueles dez anos, Geoff ganhara reputação como advogado de defesa de Direito Penal, embora não o conhecesse pessoalmente. Nunca se defrontara com ele em Tribunal. Chegou ao recorte do jornal sobre a sentença. Incluía uma citação direta de Skip Reardon: «Sou inocente na morte da minha mulher. Nunca lhe fiz mal. Nunca a ameacei. O pai dela, o Dr. Charles Smith, é um mentiroso. Perante Deus e este tribunal, juro que ele é um mentiroso.» Apesar do calor da lareira, ela sentiu calafrios. Todos sabiam, ou julgavam saber, que Jason Arnott possuía dinheiro de família. Vivera quinze anos em Alpine, e desde então comprara a antiga casa Halliday, uma mansão com vinte e um compartimentos numa colina com uma vista magnífica do Parque Interestadual de Palisades. Jason tinha cinquenta e poucos anos, estatura mediana, cabelo castanho e ralo, rugas nos cantos dos olhos e uma figura elegante. Viajava muito, falava vagamente de investimentos no Oriente e adorava objetos belos. A sua casa, com os requintados tapetes persas, mobílias antigas, quadros encantadores e delicadas obras de arte, era um regalo para a vista. Um anfitrião esplêndido, Jason recebia os convidados com prodigalidade e era, em troca, assediado com convites das pessoas importantes, das menos importantes e das quase ricas. Erudito e espirituoso, Jason afirmava ter uma relação vaga com os Astor de Inglaterra, embora muitos considerassem aquela afetação como uma ficção da sua imaginação. Sabiam que era exagerado e um pouco misterioso e muito cativante. O que não sabiam era que ele era um ladrão. Aquilo que ninguém jamais parecia associar era que, depois de um certo intervalo, praticamente todas as casas que visitara eram assaltadas por alguém com um método aparentemente infalível de iludir os sistemas de segurança. O único requisito de Jason era poder levar os saques das suas escapadas. Arte, escultura, joalharia e tapeçaria eram os seus favoritos. Somente algumas vezes na sua longa

carreira pilhara todo o recheio de uma herdade. Esses episódios envolveram um elaborado sistema de disfarces e o envio de renegados do estrangeiro para carregarem a carrinha que estava na garagem da habitação secreta numa zona remota nos Catskills. Lá tinha ainda outra identidade, tido pelos vizinhos muito afastados como um eremita que não se interessava pelo convívio social. Ninguém, à exceção da mulher da limpeza e de um homem que fazia consertos ocasionalmente, jamais fora convidado a entrar no seu refúgio no campo, e nem a mulher da limpeza nem o homem dos consertos faziam a menor ideia do valor do conteúdo. Se a casa em Alpine era requintada, a casa nos Catskills era deslumbrante, pois era lá que Jason guardava as peças das pilhagens das quais não se podia desfazer. Cada peça de mobiliário era um tesouro. Um Frederic Remington ocupava a parede da sala de jantar, mesmo por cima do bufete Sheraton, sobre o qual cintilava uma jarra Peachblow. Tudo em Alpine fora comprado com dinheiro recebido por bens roubados que Jason vendera. Não havia lá nada que atraísse a atenção de alguém com uma memória fotográfica de uma peça roubada. Jason podia dizer com à vontade e confiança: «Sim, é muito bonito, não é? Adquiri-o num leilão no Sotheby's no ano passado.» Ou: «Fui a Bucks County quando a herdade Parker estava a ser leiloada.» O único erro que Jason cometera fora há dez anos, quando a mulher, que fazia a limpeza à sexta-feira em Alpine, deixara cair o conteúdo da carteira. Quando o ia apanhar, dera pela falta da folha de papel que continha os códigos de segurança das quatro casas em Alpine. Jason registara-os, substituíra o papel antes que a mulher desse pelo desaparecimento e depois, deixando-se seduzir, assaltara as quatro casas dos Ellot, dos Ashton, dos Donnatelli. E dos Reardon. Jason ainda estremecia ao recordar-se da fuga precipitada naquela noite horrível. Mas isso tinha sido há anos atrás, e Skip Reardon estava preso, as possibilidades de recurso esgotaram-se. Naquela noite, a festa estava animada. Jason, sorridente, retribuiu os cumprimentos exuberantes de Alice Bartlett Kinellen. - Espero que Bob possa vir - disse-lhe Jason. - Oh, ele virá. É suficientemente atilado para não me desapontar. - Alice era uma mulher bela e loura como Grace Kelly. Lamentavelmente, não tinha o encanto nem a vivacidade da malograda princesa.

Alice Kinellen era fria como o gelo. «Também enfadonha e possessiva», pensou Jason. «Como é que Kinellen a suporta?» - Ele está a jantar com Jimmy Weeks - segredou Alice enquanto bebia lentamente champanhe. - Está até aqui com aquele caso. - Fez um gesto com a mão como se fosse retalhar a garganta. - Bem, espero que Jimmy também venha - disse Jason com sinceridade. - Simpatizo com ele. - Mas sabia que Jimmy não viria. Weeks há anos que não frequentava as suas festas. Na realidade, evitara ir a Alpine desde o assassinato de Suzanne Reardon. Há onze anos, Jimmy Weeks conhecera Suzanne Reardon numa festa em casa de Jason Arnott.

CAPÍTULO 5 Quarta-feira, 25 de Outubro

Era evidente

que Frank Green estava irritado. O sorriso que fazia, sem esforço, para mostrar os dentes há pouco tempo branqueados não se via quando olhou do outro lado da secretária para Kerry. «Creio que é a reação com que contava», pensou ela. «Devia saber que, sobretudo Frank, não aceitaria que ninguém questionasse o caso que o celebrizara, e especialmente naquele momento, quando não se falava de outra coisa a não ser na sua candidatura a governador.» Depois de ler os recortes dos jornais sobre o Homicídio Sweetheart, Kerry fora para a cama tentando decidir o que deveria fazer em relação ao Dr. Smith. Devia defrontá-lo, perguntar-lhe à queima-roupa sobre a filha, perguntar-lhe por que a recriava no rosto de outras mulheres? O mais provável era que a expulsasse do consultório e negasse tudo. Skip Reardon acusara o médico de ter mentido quando prestou declarações sobre a filha. Se tivesse mentido, Smith certamente não admitiria isso perante Kerry, ao fim de tantos anos. E, mesmo que tivesse mentido, a pergunta mais importante era «porquê?». Quando Kerry conseguiu adormecer, decidira que o melhor era começar por fazer perguntas a Frank Green, uma vez que julgara o caso. Já que incluíra Green no motivo que a levava a inquirir sobre o caso Reardon, era óbvio que a pergunta «Pensa que existe alguma possibilidade de o Dr. Smith ter mentido quando depôs contra Skip Reardon?» não ia redundar numa resposta proveitosa nem amistosa. - Kerry - disse Green, - Skip Reardon matou a mulher. Sabia que ela flerteava. No próprio dia em que a matou, tinha chamado o seu contabilista para saber quanto lhe custaria um divórcio, e ficou desvairado quando lhe disse que isso implicaria muito dinheiro. Era um homem rico, e Suzanne desistira de uma lucrativa carreira como modelo para se tornar esposa a tempo inteiro. Teria de pagar um preço exorbitante. Por isso, questionar agora a veracidade do Dr. Smith parece um desperdício de tempo e dinheiro dos contribuintes. - Mas há qualquer coisa errada com o Dr. Smith disse - Kerry pausadamente. - Frank, não quero causar problemas, e ninguém mais do que

eu quer ver um assassino atrás das grades, mas juro-lhe que Smith é mais do que um pai dominado pela dor. Chega a parecer que está louco. Devia ter visto a expressão dele quando nos deu um sermão, a Robin e a mim, sobre a necessidade de preservar a beleza, e que algumas pessoas a possuem de graça e outras têm de a obter. Green olhou para o relógio. - Kerry, concluiu há pouco um caso importante. Está prestes a aceitar outro. Tem pendente um cargo de juiz. É deplorável que Robin tenha sido tratada pelo pai de Suzanne Reardon. Além do mais, não foi uma testemunha ideal na barra. Não havia nele nem um pouco de emoção quando falou da filha. Na realidade, foi tão frio, tão ríspido que me senti aliviado por o júri ter acreditado no seu testemunho. Faça um favor a si mesma, esqueça isso. Era claro que a reunião tinha terminado. Quando Kerry se levantou, disse: - O que tenciono fazer é pedir a outro cirurgião plástico que examine o trabalho que o Dr. Smith executou em Robin, um que Jonathan me arranjou. Quando estava de novo no seu gabinete, Kerry pediu à secretária que restringisse os telefonemas e ficou sentada durante muito tempo a olhar fixamente para o espaço. Podia compreender o alarme de Frank Green em face da ideia de ela levantar questões sobre a principal testemunha no Homicídio Sweetheart. Qualquer insinuação de que poderia ter havido um erro de justiça certamente resultaria em publicidade negativa e mancharia, sem dúvida, a imagem de Frank como potencial governador. «O Dr. Smith é provavelmente um pai obsessivamente desolado que é capaz de se servir da sua enorme perícia para recriar a filha», disse para com os seus botões, «e Skip Reardon é provavelmente um dos inúmeros assassinos que diz. Não fiz isso.» Mesmo assim, ela sabia que não podia deixar ficar tudo como estava. No sábado, quando levasse Robin à consulta do cirurgião plástico que Jonathan recomendara, perguntar-lhe-ia quantos cirurgiões da sua especialidade pensariam em dar o mesmo rosto a uma série de mulheres. Às seis e meia dessa tarde, Geoff Dorso olhou com relutância para a pilha de mensagens que tinham chegado enquanto estava no Tribunal. Depois afastou-se delas. Das janelas do gabinete em Newark, tinha uma vista magnífica da linha do horizonte da cidade de Nova Iorque, uma vista que, depois de um longo dia num julgamento, ainda era calmante.

Geoff era um rapaz da cidade. Nascido em Manhattan e criado lá até aos 11 anos, altura em que a família foi viver para Nova Jérsia, sentia que tinha um pé nos dois lados de Hudson, e agradava-lhe que fosse assim. Com 38 anos, Geoff era alto e magro, com um físico que não refletia o fato de ser lambareiro. O cabelo negro como azeviche e a pele cor de azeitona revelavam a sua ascendência italiana. Os olhos muito azuis eram como os da avó de ascendência irlandesa e inglesa. Embora fosse solteiro, Geoff não parecia. A seleção das gravatas era descuidada e as roupas geralmente estavam um pouco amarrotadas. Mas a pilha de mensagens era um indício da sua excelente reputação como advogado especializado em defesa penal e do respeito que granjeara na comunidade jurídica. Enquanto as folheava, tirava as importantes e punha de parte as outras. Levantou as sobrancelhas de repente. Havia um pedido para telefonar a Kerry McGrath. Deixara dois números, o do gabinete e o de casa. «Que será?», perguntou a si mesmo. Não tinha nenhum caso pendente em Bergen County, a área de jurisdição dela. Ao longo dos anos, encontrara Kerry em jantares da Ordem dos Advogados, e sabia que pretendia um cargo de juiz, mas não a conhecia. O telefonema intrigou-o. Era demasiado tarde para a apanhar no gabinete. Decidiu telefonar-lhe para casa. - Eu atendo - gritou Robin quando o telefone tocou. «Provavelmente é para ti», pensou Kerry enquanto provava o esparguete. «Suponha que a mania do telefone começa na adolescência», devaneou. Depois ouviu Robin a berrar para que atendesse. Atravessou a cozinha apressadamente em direção ao telefone de parede. Uma voz desconhecida disse: - Kerry. - Sim. - Fala Geoff Dorso. - Fora num impulso que lhe deixara o recado. Afinal, Kerry sentiu-se embaraçada por ter feito isso. Se Frank Green soubesse que ela contactava o advogado de Skip Reardon, tinha a certeza de que não seria tão delicado como fora anteriormente. Mas o dado estava lançado. - Geoff, isto talvez não seja relevante, mas... - A voz arrastou-se. «Desembucha», disse para si mesma. - Geoff, a minha filha sofreu um

acidente há pouco tempo e foi tratada pelo Dr. Charles Smith... - Charles Smith - atalhou Dorso,- o pai de Suzanne Reardon! - Sim. É essa a questão. Passa-se algo de estranho com ele. - Agora era mais fácil revelar tudo. Falou-lhe das duas mulheres que se pareciam com Suzanne. - Quer dizer que Smith está efetivamente a dar-lhes o rosto da filha? exclamou Dorso. - Que diabo vem a ser isso? - É isso que me preocupa. No sábado vou levar Robin a outro cirurgião plástico. Tenciono inquiri-lo sobre as implicações da reprodução de um rosto. Também vou tentar falar com o Dr. Smith, mas lembrei-me de que, se pudesse ler antes a transcrição completa do julgamento, ficaria a saber como lidar com ele. Sei que posso obter uma através do departamento, está em algum lugar no depósito, mas isso podia demorar e não quero que se saiba que ando à procura dela. - Farei que tenha uma cópia amanhã - prometeu Dorso. - Enviá-la-ei para o seu gabinete. - Não, é melhor enviá-la para aqui. Eu dou-lhe a morada. - Gostaria de a levar pessoalmente e de conversar consigo. Convém-lhe amanhã por volta das seis ou seis e meia? Não demorarei mais de meia hora, prometo. - Suponho que não há nenhum inconveniente. - Então até amanhã. E obrigado, Kerry. - O telefone deu um estalido. Kerry olhou para o auscultador. «Onde me fui meter?», interrogou-se. Apercebera-se do entusiasmo na voz de Dorso. «Não devia ter usado a palavra estranho», pensou. «Comecei uma coisa que talvez não possa concluir.» Um som vindo do fogão fê-la rodar sobre si própria. A água que fervia na panela do esparguete transbordara e caía em cima dos bicos do gás. Sem olhar, sabia que a al dente pasta se transformara numa massa glutinosa. O Dr. Charles Smith não dava consulta na quarta-feira à tarde. Era um tempo geralmente reservado a intervenções cirúrgicas ou a visitas ao hospital. Naquele dia, porém, o Dr. Smith cancelara tudo o que estava agendado. Enquanto descia a Rua 68, na parte oriental da cidade, em direção ao edifício de grés avermelhado onde ficava situada a firma de Relações Públicas para a qual trabalhava Barbara Tompkins, os olhos arregalaram-se com a sua boa sorte. Havia um lugar de estacionamento vago mesmo em frente da entrada do prédio; poderia esperar que ela saísse.

Quando, finalmente, apareceu na soleira da porta, ele sorriu involuntariamente. Concluiu que estava com um aspecto encantador. Como sugerira, ela trazia o cabelo solto, caído sobre o rosto; o melhor estilo, dissera-lhe, para emoldurar o rosto novo. Envergava um casaco vermelho, bem talhado, uma saia preta que chegava à barriga da perna e sapatos rasos. Ao longe, parecia esperta e bem-sucedida. Ele conhecia todos os pormenores do seu aspecto. Quando fez sinal a um táxi, ele ligou a ignição do Mercedes preto, com 12 anos, e foi no seu encalce. Embora fosse habitual o trânsito compacto em Park Avenue na hora de ponta, seguir o táxi não era difícil. Dirigiram-se ao sul, detendo-se o táxi, por fim, em frente do The Four Seasons, na Rua 52. «Barbara deve ir encontrar-se com alguém para tomar uma bebida», pensou ele. Naquela altura, o bar estava apinhado de gente. Não seria difícil entrar e passar despercebido. Abanando a cabeça, decidiu ir para casa. Vê-la de relance fora o suficiente. Fora demasiado, efetivamente. Por um instante acreditara, de fato, que era Suzanne. Naquele momento, apenas queria ficar só. Um soluço subiu na garganta. Enquanto o trânsito se escoava lentamente na Baixa da cidade, ele repetiu várias vezes: - Desculpa, Suzanne. Desculpa. Suzanne.

CAPÍTULO 6 Quinta-feira, 26 de Outubro

Se Jonathan

Hoover estivesse por acaso em Hackensack, tentava geralmente convencer Kerry a fazer-lhe companhia num almoço rápido. «Quantas malgas de sopa pode comer um ser humano?», era a pergunta irónica que ele lhe fazia. Nesse dia, enquanto comiam um hambúrguer no Solari's, o restaurante próximo do Tribunal, mesmo ao dobrar a esquina, Kerry deu-lhe informações sobre as mulheres parecidas com Suzanne Reardon e a conversa com Geoff Dorso. Também lhe falou da reação desfavorável do chefe à sugestão de que talvez fosse examinar o antigo caso de homicídio. Jonathan ficou muito preocupado. - Kerry, não me lembro muito bem desse caso, mas pensei que não havia dúvidas em relação à culpa do marido. Seja como for, penso que deveria esquecer isso, sobretudo se tivermos em conta o envolvimento de Frank Green... se bem me lembro, de uma forma muito notória... na obtenção da condenação. Olhe para as realidades. O governador Marshall é ainda um homem novo. Cumpriu dois mandatos e não se pode candidatar a um terceiro consecutivo, mas adora o seu trabalho. Quer que Frank Green tome o seu lugar. Entre nós, eles fizeram um acordo. Green será governador por um período de quatro anos, depois candidata-se ao senado com o apoio de Marshall. - E Marshall volta para Drumthwacket. - Exatamente. Adora viver na mansão do governador. Sendo assim, já se sabe de antemão que Green conseguirá a nomeação. Tem bom aspecto, fala bem. Tem uma excelente folha de serviços, incluindo o importante caso Reardon. E, por uma coincidência espantosa, ele é efetivamente astuto. Tenciona manter-se fiel à forma como Marshall tem governado o estado. Mas, se alguma coisa estragar os seus planos, pode ser derrotado nas primárias. Há alguns potenciais candidatos que anseiam pela nomeação. - Jonathan, eu falava apenas em examinar com o mínimo de cuidado o caso, para ver se a testemunha principal de um caso de homicídio teria prestado falso testemunho. Os pais sofrem quando os filhos morrem, mas o Dr. Smith foi além do pesar.

- Kerry, Frank Green ganhou reputação como advogado de acusação neste caso. Foi ele que atraiu a atenção dos meios de comunicação de que precisava. Quando Dukakis se candidatou a presidente, um importante fator na sua derrota foi a publicidade que insinuou que ele libertara um assassino que depois cometeu uma série de crimes. Sabe o que a imprensa faria se se sugerisse que Green mandou um inocente para a cadeia para o resto da vida? - Jonathan, está a antecipar-se a mim. Não vou avançar com essa suposição. Apenas sinto que Smith é um problema sério, e isso pode ter afetado o seu depoimento. Ele era a testemunha principal da acusação, e, se mentiu, ponho em dúvida se Reardon é culpado. O empregado estava ao lado deles, com uma cafeteira na mão. - Mais café, senador? perguntou ele. Jonathan acenou com a cabeça. Kerry colocou a mão sobre a chávena. - Eu estou bem. Jonathan sorriu inesperadamente. - Kerry, lembra-se de quando nos recebeu em sua casa e pensou que o paisagista não tinha posto o mesmo número de arbustos e moitas como fizera no esboço? Kerry parecia embaraçada. - Lembro. - Nesse mesmo dia, foi contá-los, achou que provara que tinha razão e censurou-o à frente do pessoal. Correto? Kerry olhou para o café. - Hum-hum. - Conte-me o que aconteceu. - Ele não estava satisfeito com o aspecto de alguns arbustos, telefonou a si e a Grace, para a Florida, depois arrancou-os com a intenção de os substituir. - Que mais? - Ele era o marido da prima de Grace. - Vê aonde quero chegar? - Os seus olhos brilharam. Depois a expressão tornou-se séria. - Kerry, se embaraçar Frank Green e puser em perigo a nomeação, corre o risco de perder o cargo de juiz. O seu nome ficará enterrado numa pilha em cima da secretária do governador Marshall, e pedirlhe-ão calmamente que ceda a vaga a outro candidato. Ele fez uma pausa, em seguida pegou na mão de Kerry. Pense bem antes de fazer o que quer que

seja. Sei que tomará a decisão certa. Nessa tarde, às seis e meia em ponto, a campainha da porta fez que Robin corresse para receber Geoff Dorso. Kerry dissera-lhe que ele vinha e que iam examinar um caso durante uma meia hora. Robin decidira comer mais cedo e prometera terminar os trabalhos da escola no quarto enquanto Kerry estivesse ocupada. Em troca, iria ter direito a ver televisão à noite uma vez por semana. Ela examinou Dorso com benevolência e conduziu-o à sala comum. - A minha mãe desce já - anunciou. - Chamo-me Robin. - O meu nome é Geoff Dorso. Qual é o aspecto do outro indivíduo? perguntou Geoff. Com um sorriso, apontou para as cicatrizes ainda visíveis no rosto. Robin sorriu. - Não o deixei abusar. Na realidade, foi um toque de pára-choques com vidro pelos ares. - Parece que está a cicatrizar bem. - O Dr. Smith, o cirurgião plástico, diz que sim. A mãezinha diz que o conhece. Eu acho-o arrepiante. - Robin! - Kerry descera nesse instante. - São coisas de criança - disse Dorso, sorrindo. - Kerry, é um prazer vêla. - É um prazer vê-lo, Geoff. - «Espero que sim», pensou Kerry quando olhou para a pasta bojuda debaixo do braço de Dorso. - Robin... - Eu sei. Os trabalhos da escola - concordou Robin, risonha. - Não sou a pessoa mais perfeita do mundo - explicou a Dorso. - O último boletim das informações tinha «precisa aperfeiçoar-se» mesmo por cima dos trabalhos de casa. «Aproveita bem o tempo» também estava assinalado recordou-lhe Kerry. - Isso é porque, quando termino um trabalho na escola, me esqueço e começo a conversar com uma das minhas amigas. Está bem. Acenando com a mão, Robin encaminhou-se para as escadas. Geoff Dorso sorriu-lhe. - Que criança simpática, Kerry, e é bonita. Daqui a cinco ou seis anos, terá de barricar a porta.

- Uma perspectiva assustadora. Geoff, café, uma bebida, um copo de vinho? - Nada, obrigado. Prometi não lhe roubar muito tempo. Colocou a pasta em cima da mesa do café. Quer passar uma vista de olhos por isto aqui? - Claro. - Sentou-se ao lado dele no sofá enquanto tirava dois volumes de papéis encadernados. - A cópia do julgamentodisse, com mil páginas. Se realmente quer perceber aquilo que aconteceu, sugeria que lesse com toda a atenção. Para ser franco, desde o princípio ao fim, tenho vergonha da defesa que montámos. Sei que Skip tinha de depor, mas não estava convenientemente preparado. As testemunhas do Estado não foram interrogadas com vigor. E nós só citámos duas pessoas como testemunhas a favor de Skip quando devíamos ter citado vinte. - Por que é que o caso seguiu esse rumo? - perguntou Kerry. - Eu era o advogado mais novo, contratado há pouco tempo por Farrell e Strauss. Sem dúvida, Farrell tinha sido um ótimo advogado de defesa. Mas, quando Skip Reardon o contratou, já estava em declínio. Não estava interessado em mais um caso de homicídio. Na minha opinião, Skip teria tido mais sorte com um advogado muito menos experiente e com mais ânimo. - Não podia ter preenchido essa lacuna? - Não, não podia. Saíra há pouco tempo da faculdade de Direito e tinha pouco a dizer sobre o que quer que fosse. Tive uma participação muito reduzida no julgamento. Basicamente, era o moço de fretes de Farrell. Inexperiente como era, porém, era óbvio para mim que o julgamento foi mal conduzido. - E Frank Green arrasou-o quando fez o interrogatório. - Como leu, levou Skip a admitir que ele e Suzanne tinham discutido naquela manhã, que falara com o contabilista para saber quanto custaria um divórcio, que regressara a casa às seis horas e discutira de novo com Suzanne. O magistrado distrital calculou a hora da morte entre as seis e as oito, por isso Skip podia, conforme declarou, estar no local do crime no momento em que terá ocorrido o homicídio. - Do relato que li, Skip Reardon declarou que voltou para o escritório, bebeu um pouco e adormeceu. É muito pouco - comentou Kerry. - É pouco, mas é verdadeiro. Skip criara uma empresa muito próspera, construindo, sobretudo, casas de qualidade, embora, nos últimos tempos,

tivesse alargado o âmbito da firma aos centros comerciais. A maior parte do tempo era passada no escritório, a tratar dos negócios, mas adorava vestir roupa de trabalho e passar o dia com o pessoal. Foi o que fizera naquele dia, antes de voltar ao escritório para trabalhar. O homem estava cansado. Ele abriu o primeiro volume. - Assinalei os depoimentos de Smith e de Skip. O ponto crucial da questão é que temos a certeza de que estava, envolvida outra pessoa, e temos motivos para crer que era outro homem. Na realidade, Skip estava convencido de que Suzanne tinha uma ligação com outro homem, talvez com mais de um. O que precipitou a segunda discussão, aquela que ocorreu quando ele regressou a casa às seis horas, foi ter dado com ela a arranjar um ramo de rosas vermelhas... rosas sweetheart, creio ser esse o nome que a imprensa lhes deu... que ele não lhe mandara. A acusação afirmou peremptoriamente que ele ficou furioso, a estrangulou, em seguida espalhou as rosas sobre o corpo. Ele, claro, jura que não foi ele, que, quando saiu, Suzanne ainda estava a arranjar as flores toda contente. - Alguém verificou nas floristas locais se tinham colocado um pedido de encomenda das rosas numa delas? Se Skip não as levou para casa, alguém as entregou. - Pelo menos, Farrell fez isso. Verificaram em todas as floristas no distrito de Bergen. Não descobriram nada. - Compreendo. Geoff Dorso levantou-se. - Kerry, sei que é pedir muito, mas gostava que lesse esta cópia com cuidado. Quero que dê particular atenção ao depoimento do Dr. Smith. Depois gostaria que permitisse que estivesse presente quando for falar com o Dr. Smith sobre a prática de dar o rosto da filha a outras mulheres. Ela acompanhou Geoff até à porta. - Telefono-lhe nos próximos dias prometeu. - Já à porta, parou, virou-se para Kerry. - Há mais uma coisa que gostaria que fizesse. Venha comigo à Prisão Estadual de Trenton. Converse com Skip. Juro, pela alma da minha avó, que ouvirá a verdade quando aquele pobre homem lhe contar o seu passado. Na Prisão Estadual de Trenton, Skip Reardon estava deitado na tarimba da sua cela, a ver o noticiário das seis. Viera e passara a hora do jantar com a ementa sempre igual. Como se tornara cada vez mais usual, ele estava

inquieto e irritável. Passados dez anos naquele lugar, conseguira, a maior parte das vezes, manter-se num estado intermédio. A princípio, flutuara entre uma esperança moderada quando um recurso estava pendente e um desespero esmagador quando era rejeitado. Agora o seu estado de espírito habitual era de resignação deprimente. Sabia que Geoff Dorso jamais deixaria de tentar encontrar novos motivos para um recurso, mas o clima no país estava a mudar. Nos noticiários havia cada vez mais críticas ao fato de recursos repetidos de criminosos condenados estarem a dificultar o trabalho dos tribunais, relatos que concluíam inevitavelmente que era preciso haver um corte. Se Geoff não conseguisse descobrir motivos para um recurso, um que desse efetivamente a liberdade a Skip, então isso significaria mais vinte anos naquele lugar. Nos momentos de maior desânimo, Skip deixava-se levar pelas recordações dos anos anteriores ao homicídio e compreendia então que fora um louco. Ele e Beth estavam praticamente noivos. E, então, devido à insistência de Beth, fora sozinho a uma festa que a irmã e o marido, cirurgião, davam. À última hora, Beth apanhou uma constipação, mas quisera que ele se divertisse. «Sim, que diversão», pensou Skip ironicamente, recordando aquela noite. Suzanne e o pai estavam lá. Mesmo agora, não conseguia esquecer-se do seu aspecto quando a viu pela primeira vez. Compreendeu imediatamente que ela lhe traria problemas, mas, como um idiota, cedera aos seus encantos. Cheio de impaciência, levantou-se da tarimba, desligou o televisor e olhou para a cópia do julgamento, que estava na prateleira por cima da sanita. Tinha a impressão de que seria capaz de a recitar de cor. «É o lugar dela, em cima da sanita», pensou, dominado pela amargura. «Como nunca beneficiarei com ela, devia rasgá-la e deitá-la no cano de esgoto.» Espreguiçou-se. Costumava manter o corpo em forma com uma combinação de exercício duro no local de trabalho e sessões regulares de ginástica. Agora executava com rigidez uma série de flexões todas as noites. O pequeno espelho de plástico preso à parede mostrava o cabelo ruivo raiado de cinzento, e o rosto, outrora rosado do trabalho ao ar livre, estava macilento. O devaneio a que se entregava era que, por milagre, teria liberdade para voltar a construir casas. O encarceramento opressivo e o barulho constante daquele lugar fizeram que tivesse visões de casas da classe média que estavam suficientemente isoladas de forma a garantir a privacidade, que

estavam repletas de janelas para deixarem entrar a luz e o ar. Possuía livros com folhas soltas cheias de esboços. Sempre que Beth o visitava, o que ele tentara desencorajar nos últimos tempos, mostrava-lhe os mais recentes, e conversavam sobre eles como se realmente um dia pudesse voltar ao trabalho que adorava, construir casas. Só que agora tinha de imaginar como estaria o mundo e como viveriam as pessoas quando finalmente saísse daquele lugar horrível? Kerry sabia que se iria deitar de novo a altas horas da noite. Começara a ler a cópia assim que Geoff saiu e continuara depois de Robin ir para a cama. Grace Hoover telefonou às nove e meia. - Jonathan foi a uma reunião. Estou sentada na cama e apeteceu-me conversar. É uma boa hora para ti? É sempre boa hora quando é Grace. Kerry falava a sério. Ao longo de quinze anos de convívio com Grace e Jonathan, presenciara o declínio físico de Grace. Começara por usar uma bengala, depois muletas, por fim uma cadeira-de-rodas, e, antes empenhada em atividades sociais, passara a estar praticamente confinada à casa. Ainda mantinha o contato com os amigos e oferecia jantares encomendados com frequência, mas, como disse a Kerry, «sair passou a ser um esforço excessivo». Kerry nunca ouvira Grace lamentar-se. - Faz-se o que se é obrigado a fazer - afirmara com um sorriso forçado quando Kerry lhe disse com ingenuidade que admirava muito a sua coragem. Mas, passados uns minutos de amena cavaqueira, tornou-se claro que naquela noite o telefonema de Grace tinha um objetivo. - Kerry, hoje almoçaste com Jonathan, e eu vou ser sincera. Ele está preocupado. Kerry ouviu enquanto Grace reiterou as preocupações de Jonathan, concluindo com: - Kerry, ao fim de vinte anos no Senado, Jonathan tem muito poder, mas não o bastante para fazer que o governador te nomeie para um cargo de juiz se embaraçares o sucessor escolhido. A propósito, Jonathan não sabe que te ia telefonar. «De certeza que desabafou com Grace», pensou Kerry. «Gostava de saber o que pensaria se pudesse ver o que estou a fazer neste momento.» Sentindo-se evasiva todo o tempo, Kerry fez o possível para tranquilizar Grace de que não tinha nenhuma intenção nem vontade de provocar brigas.» -

Mas, Grace, se se descobrir que o depoimento do Dr. Smith era falso, penso que Frank Green seria admirado e respeitado se recomendasse ao Tribunal que fosse concedido novo julgamento a Reardon. Não creio que o público o fosse acusar por ter, em boa-fé, confiado no depoimento do médico. Não tinha motivo para duvidar dele. E não esqueça - acrescentou - ... eu estou plenamente convencida de que se fez justiça no caso Reardon. É que, por coincidência, esbarrei com isto, e não fico bem com a minha consciência se não for até ao fim. Quando a conversa terminou, Kerry concentrou-se de novo na cópia. Quando finalmente a pousou, tinha páginas cheias de notas e perguntas. «As rosas sweetheart: Skip Reardon estava a mentir quando disse que não as trouxera nem as enviara? Se dizia a verdade, se não foi ele que as enviou, então quem fòi?» «Dolly Bowles, a baby-sitter, que estivera de serviço na casa no outro lado da rua, defronte da mansão Reardon, na noite do crime: afirmava ter visto um carro em frente da casa dos Reardon às nove da noite. Mas, nessa altura, os vizinhos ofereciam uma festa e alguns convidados tinham estacionado os veículos na rua. Dolly prestara um depoimento muito fraco em Tribunal. Frank Green chamara a atenção para o fato de ela ter dado parte na Polícia de pessoas com aspecto suspeito na vizinhança seis vezes nesse ano. Em cada um dos casos, veio a descobrir-se que o suspeito era um homem inocente que fazia a entrega de mercadorias. Daí que Dolly fosse considerada uma testemunha que não inspirava a menor confiança.» Kerry tinha a certeza de que o júri ignorara o seu depoimento. «Skip Reardon nunca tivera problemas com a justiça e era considerado um cidadão íntegro, no entanto, tinham sido convocadas apenas duas testemunhas de defesa: Porquê?» «Tinha havido uma série de assaltos em Alpine por altura da morte de Suzanne Reardon. Skip Reardon declarou que algumas das jóias que vira Suzanne usar tinham desaparecido, que o quarto principal tinha sido rebuscado. Mas foi descoberta uma bandeja com jóias valiosas no toucador, e a acusação convocara uma governanta em part-time que os Reardon tinham contratado, que afirmou peremptoriamente que Suzanne deixava sempre o quarto num estado caótico. Experimentava três ou quatro fatos, depois atirava-os para o chão se não lhe agradassem. Pó-dearroz espalhado no toucador, toalhas molhadas no chão. Muitas vezes tive vontade de me ir embora.» Nessa noite, enquanto se despia para se deitar, Kerry reviu aquilo que lera, e apercebeu-se de que havia duas coisas que

tinha de fazer: marcar um encontro para falar com o Dr. Smith e visitar Skip Reardon na Prisão Estadual de Trenton.

CAPÍTULO 7 Sexta-feira, 27de Outubro

Naqueles

nove anos, desde o divórcio, Kerry travara conhecimento com vários homens, mas nunca existira um especial. A amiga mais íntima era Margaret Mann, a companheira de quarto na Universidade de Boston. Marg era loura e delicada, e, na Faculdade, ela e Kerry tinham dado que falar. Agora banqueira no setor de investimento, com um apartamento na 86.Rua, na parte ocidental da cidade, Margaret era a confidente e a amiga. De vez em quando, à sexta-feira à noite, Kerry arranjava uma ama para tomar conta de Robin e ia para Manhattan de automóvel. Ela e Margaret jantavam e iam a um espetáculo da Broadway ou ao cinema ou ficavam horas a conversar depois da sobremesa. Na sexta-feira à noite, depois de Geoff Dorso ter deixado a cópia, Kerry chegou ao apartamento de Margaret e atirou-se para um sofá em frente de um prato com queijo e uvas. Margaret ofereceu-lhe um copo de vinho. - Ena! Estás com ótimo aspecto. Kerry envergava um fato de caçador, verde e novo, com um casaco comprido e uma saia que chegava à barriga da perna. Ela olhou e encolheu os ombros. - Obrigada. Finalmente, consegui comprar roupa nova e tenho-a usado toda a semana. Margaret riu-se. - Lembraste de como a tua mãe costumava pôr o baton e dizer: «Nunca se sabe onde paira o romance.» Ela tinha razão, não tinha? - Suponho que sim. Ela e Sam estão casados há quinze anos, e, sempre que vêm do Oeste ou Robin e eu os visitamos no Colorado, estão de mãos dadas. Margaret sorriu ironicamente. - Devíamos ter a mesma sorte. Depois a sua expressão tornou-se séria. Como está Robin? Espero que o rosto esteja a cicatrizar. - Parece estar bem. Amanhã vou levá-la a outro cirurgião plástico. É apenas uma consulta. Margaret hesitou e depois disse:

- Estava a tentar encontrar uma maneira de sugerir isso. Estava a falar do acidente no escritório e mencionei o nome do Dr. Smith. Um dos comerciantes, Stuart Grant, fez logo a ligação. Disse que a mulher consultou Smith. Queria fazer qualquer coisa por causa do inchaço por debaixo dos olhos, mas não voltou lá depois da primeira visita. Pareceu-lhe que havia algo de estranho nele. Kerry endireitou-se. - A que se referia ela? - O nome dela é Susan, mas o médico estava sempre a enganar-se e a chamar-lhe Suzanne. Depois disse-lhe que podia operá-la aos olhos, mas que preferia operá-la ao rosto, que tinha os predicados necessários a uma beldade e estava a desperdiçar a vida se não tirasse partido disso. - Há quanto tempo foi isso? - Creio que foi há três ou quatro anos. Oh!, outra coisa. Parece que Smith também fez um sermão a Susan, dizendo que a beleza acarreta responsabilidade e que algumas pessoas fazem mau uso dela e provocam ciúme e violência. - Calou-se, depois perguntou: - Kerry, que se passa? Estás com uma expressão estranha. - Marg, isto é importante. Tens a certeza de que Smith falou de mulheres que provocam ciúme e violência? - Tenho a certeza de que foi isso que Stuart me disse. - Tens o número do telefone de Stuart. Quero falar com a mulher dele. - No escritório. Vivem em Greenwich, mas sei, por acaso, que o número não consta da lista telefónica, por isso teremos de esperar até segunda-feira. Afinal, que vem a ser isto? - Conto-te durante o jantar - disse ela, desorientada. Kerry tinha a impressão de que a cópia do julgamento estava num Rolodex no seu cérebro. «O Dr. Smith jurou que a filha temia pela sua vida por causa dos ciúmes infundados de Skip Reardon. Estaria a mentir? Suzanne dera motivos a Skip para este sentir ciúmes? E, se assim fosse, ciúmes de quem?»

CAPÍTULO 8 Sábado, 28 de Outubro

Às oito

da manhã de sábado, Kerry recebeu um telefonema de Geoff Dorso. - Telefonei para o escritório e recebi o seu recado - disse-lhe ele. - Vou a Trenton hoje à tarde para visitar Skip. Pode ir? - Explicou que, para se inscreverem para a visita das três horas, deviam estar na prisão à uma e quarenta e cinco. Quase instintivamente, Kerry deu por si a dizer: - Claro que consigo. Terei de tratar de algumas coisas por causa de Robin, mas encontro-me consigo lá. Duas horas mais tarde, Kerry e uma Robin impaciente estavam em Livingstone, Nova Jérsia, no consultório do Dr. Ben Roth, um famoso cirurgião plástico. - Vou perder o desafio de futebol - disse Robin inquieta. - Chegarás um pouco atrasada, só isso - acalmou-a Kerry. - Não te preocupes. - Muito atrasada - protestou Robin. - Por que razão não me podia ver esta tarde depois do jogo? - Talvez se lhe tivesses mandado o teu horário... podia ter marcado para mais tarde - gracejou Kerry. - Oh, mãezinha. - Agora pode trazer Robin, Menina McGrath - anunciou a recepcionista. O Dr. Roth, com trinta e poucos anos, caloroso e afável, era, felizmente, muito diferente do Dr. Smith. Examinou cuidadosamente o rosto de Robin. - Provavelmente, as lacerações tinham mau aspecto depois do acidente, mas eram, como nós chamamos, superficiais. Não penetraram profundamente na derme. Não tem complicações. Robin parecia aliviada. - Ótimo. Obrigada, doutor. Vamos, mãezinha. - Espera na recepção, Robin. Eu não demoro nada. Desejo falar com o doutor. A voz de Kerry tinha aquilo a que Robin chamava «o tom». Queria dizer «e não ouvir mais argumentos». - Está bem - disse Robin com um suspiro exagerado quando saiu. - Sei que tem doentes à espera, por isso serei breve, doutor, mas tenho

de lhe perguntar uma coisa disse Kerry. - Tenho tempo. Que é, Menina McGrath? Kerry reduziu a poucas frases a descrição daquilo que vira no consultório do Dr. Smith. - Por isso, suponho que tenho duas perguntas concluiu. Pode refazer qualquer rosto de modo a parecer-se com o de outra pessoa ou tem de haver algum fator fundamental, como uma estrutura óssea semelhante? E, sabendo que é possível refazer alguns rostos para que sejam parecidos, é algo que os cirurgiões plásticos fazem, quero dizer transformar deliberadamente uma pessoa para se parecer com outra? Tinham passado vinte minutos quando Kerry foi ter com Robin e se dirigiram apressadamente ao campo de futebol. Ao contrário de Kerry, Robin não era uma atleta por natureza, e Kerry passara muitas horas a fazer exercícios com ela, porque, no íntimo, estava determinada a ser uma boa jogadora. Naquele momento, enquanto observava Robin, confiante, e dava um pontapé na bola, que passou a linha da baliza, Kerry ainda pensava na declaração franca do Dr. Roth: «É um fato que alguns cirurgiões dão a todas as pessoas o mesmo nariz, o mesmo queixo ou os mesmos olhos, mas considero muito invulgar que um cirurgião altere por completo os rostos dos seus pacientes.» Às onze e meia, Kerry chamou a atenção a Robin e despediu-se, acenando com a mão. Depois do jogo, Robin iria com a melhor amiga, Cassie, e passaria a tarde em casa dela. Uns minutos depois, Kerry seguia pela estrada em direção a Trenton. Visitara várias vezes a prisão estadual e achara sempre o aspecto sinistro do arame farpado e das torres de vigia uma visão sombria. Era um lugar que não desejava voltar a ver. Kerry encontrou Geoff à sua espera na área onde se registavam as visitas. - Estou muito contente por ter vindo - disse ele. Conversaram pouco enquanto aguardavam pelo encontro marcado. Geoff compreendeu que ela não queria informações naquele momento. Às três horas em ponto, um guarda abordou-os e pediu-lhes que o seguissem. Kerry não sabia qual seria o aspecto de Skip Reardon. Tinham passado dez anos desde que ela fora assistir à leitura da sentença. A imagem que tinha dele era a de um homem jovem, alto, bonito, largo de ombros com cabelo

ruivo e brilhante. Mas, mais do que o seu aspecto, fora o seu depoimento que ficara gravado na memória: «O Dr. Smith é um mentiroso. Perante Deus e perante este Tribunal,juro que ele é um mentiroso!» - O que disse a Skip Reardon a meu respeito? - perguntou a Geoff enquanto esperavam que trouxessem o preso para a área das visitas. - Apenas que teve interesse, sem carácter oficioso, pelo caso e que queria conhecê-lo. Garanto-lhe, Kerry, que disse «sem carácter oficioso». - Está bem. Confio em si. - Ei-lo. Skip Reardon apareceu, envergando um fato-macaco de sarja de algodão e uma camisa aberta no pescoço, fornecidos pela prisão. Havia fios cinzentos no cabelo ruivo, mas, excetuando as rugas à volta dos olhos, ainda se parecia muito com a imagem que Kerry guardara dele. Um sorriso iluminou o seu rosto quando Geoff o apresentou. «Um sorriso de esperança», percebeu Kerry, e, com o coração apertado, perguntou a si mesma se não deveria ter sido mais prudente, talvez esperando até conhecer melhor o caso, em vez de aceder tão prontamente àquela visita. Geoff foi direto ao assunto. - Skip, conforme lhe disse, a Sra. McGrath quer fazer-lhe algumas perguntas. - Compreendo. E, preste atenção, responderei a qualquer uma. - Ele falou com fervor, embora com alguma resignação. - Já ouviram o velho ditado, não tenho nada a esconder. Kerry sorriu, depois foi direita à pergunta que, para ela, era o ponto crucial daquele encontro. - No seu depoimento, o Dr. Smith jurou que a filha, sua esposa, tinha medo de si e que a ameaçara. O senhor afirmou que ele estava a mentir, mas que interesse teria em mentir em relação a isso? As mãos de Reardon estavam entrelaçadas sobre a mesa à frente dele. - Sra. McGrath, se tivesse alguma explicação para as ações do Dr. Smith, talvez não estivesse agora aqui. Suzanne e eu estivemos casados quatro anos, e durante esse tempo não vi Smith muitas vezes. Ela ia a Nova Iorque e jantava com ele de vez em quando, ou ia lá a casa, mas geralmente quando eu andava em viagem de negócios. Nessa altura, a minha empresa de construção estava a prosperar. Construía em todo o Estado e investia em terrenos na Pensilvânia para futuros empreendimentos. Ausentava-me

regularmente por alguns dias. Sempre que estava com o Dr. Smith, parecia não ter muita coisa para dizer, mas nunca agiu como se não simpatizasse comigo. E, sem dúvida, não agia como se considerasse que a vida da filha estivesse em perigo. - Quando estava com ele e Suzanne, que notava em relação à atitude dele para com ela? Reardon olhou para Dorso. - Você é o indivíduo que sabe palavras difíceis, Geoff. Como será a melhor forma de explicar? Espere um pouco. Eu digo-lhe. Quando andava na escola paroquial, as freiras ficavam furiosas conosco por falarmos na igreja e diziam-nos que devíamos respeitar um lugar sagrado e os objetos sagrados. Bem, era assim que ele a tratava. Smith mostrava «respeito» por Suzanne. «Que palavra estranha para descrever a atitude de um pai para com a filha», pensou Kerry. - E ele também a protegia - acrescentou Reardon. - Uma noite, íamos os três de carro a algum lugar para jantar e ele reparou que Suzanne não colocara o cinto de segurança. Por isso começou a fazer um sermão sobre a responsabilidade de ter cuidado com ela. Na realidade, ficou muito perturbado, talvez até um pouco zangado. «Parece o mesmo sermão que fez a Robin e a mim», pensou Kerry. Quase com relutância, admitiu que Skip Reardon dava a impressão de ser franco e honesto. - Como é que ela agia em relação a ele? - Sobretudo com respeito. Embora para o fim... antes de ser morta... nas últimas vezes que estive com eles, parecesse um pouco irritada com ele. Kerry, então, aventurou-se a outros aspectos do caso, perguntando-lhe sobre o depoimento sob juramento em que dizia que, antes do homicídio, ele notara que Suzanne trazia jóias caras que não lhe dera. - Sra. McGrath, gostava que falasse com a minha mãe. Ela podia contarlhe. Ela tem uma fotografia de Suzanne que circulou nos jornais da comunidade, tirada numa obra de caridade. Mostra-a com um alfinete de diamantes antigo na lapela do fato. A fotografia foi tirada duas semanas antes de ser assassinada. Juro-lhe que o alfinete e mais algumas jóias caras, nenhuma dada por mim, estavam no guarda-jóias naquela manhã. Lembro-me sobretudo porque era um dos motivos das nossas discussões. Essas peças estavam lá naquela manhã e no dia seguinte já lá não estavam.

- Quer dizer que alguém as tirou? Reardon parecia perturbado. - Não sei se alguém as tirou ou se ela as devolveu a alguém, mas garanto-lhe que na manhã seguinte tinham desaparecido jóias. Tentei dizer tudo isto aos polícias, para irem verificar, mas era óbvio, desde o início, que não acreditavam em mim. Pensaram que eu estava a tentar dar a impressão de que ela tinha sido roubada e morta por um intruso. - Mais uma coisa - prosseguiu ele. O meu pai esteve na segunda guerra mundial e ficou dois anos na Alemanha depois da guerra. Trouxe uma pequena moldura para fotografias, que deu à minha mãe quando ficaram noivos. A minha mãe deu essa moldura a Suzanne e a mim quando casamos. Suzanne colocou lá a fotografia dela, e que era a minha favorita, e tinha-a na mesinha-de-cabeceira no nosso quarto. Quando a minha mãe e eu separámos as coisas de Suzanne antes de ser preso, a minha mãe reparou que tinha desaparecido. Mas sei que estava lá naquela derradeira manhã. - Quer dizer que, na noite em que Suzanne morreu, alguém entrou e roubou algumas jóias e a moldura? - perguntou Kerry. - Estou a dizer-lhe que só sei que desapareceu. Não sei para onde a levaram, e, claro, não tenho a certeza se teve alguma coisa a ver com o assassínio de Suzanne. Apenas sei que esses objetos desapareceram de repente e que a Polícia não investigou. Kerry levantou os olhos dos apontamentos e fitou os olhos do homem que estava na sua frente. - Skip, como era a sua relação com a sua esposa? - Reardon suspirou. - Quando a conheci, caí como uma tonelada de tijolos. Era deslumbrante. Era sagaz. Era divertida. Era o tipo de mulher que faz que um homem se sinta pequeno. Depois de casarmos... - Fez uma pausa. - Era só ardor e nenhum afeto. Fui educado de modo a pensar que devemos fazer tudo pelo casamento, que o divórcio é o último recurso. E, evidentemente, que houve bons momentos. Mas alguma vez me senti feliz ou contente? Não, não senti. Mas estava tão ocupado a criar a minha companhia que passei cada vez mais tempo a trabalhar, e assim podia evitar aquela situação. - Em relação a Suzanne, parecia ter tudo o que queria. O dinheiro abundava. Construí-lhe a casa que dizia ter sonhado possuir. Estava todo o dia no clube, a jogar golfe ou ténis. Passou dois anos com um decorador, a mobilar a casa como ela queria. Há um indivíduo que vive em Alpine, Jason Arnott, que conhece antiguidades. Levava a Suzanne a leilões e dizia-lhe o

que devia comprar. Começou a tomar gosto por roupas de marca. Era como uma criança que queria que fosse Natal todos os dias. Da forma como eu trabalhava, ela tinha muito tempo livre para ir aonde lhe apetecesse. Adorava estar em reuniões que tivessem cobertura da imprensa, para que a sua fotografia aparecesse no jornal. Durante muito tempo, pensei que fosse feliz, mas agora, que recordo o passado, tenho a certeza de que ficou comigo porque não encontrara uma solução melhor. - Até que... - sugeriu Geoff. - Até que alguém que conhecera se tornou importante - continuou Reardon.- Isso foi quando reparei nas jóias que nunca vira. Algumas peças eram antigas, outras muito modernas. Ela declarou que tinha sido o pai a darlhas, mas sabia que mentia. Neste momento, tem todas as jóias dela, incluindo tudo aquilo que lhe dei. Quando o guarda lhe fez sinal de que o tempo expirara, Reardon levantou-se e olhou fixamente para Kerry. - Sra. McGrath, eu não devia estar aqui. O indivíduo que matou Suzanne anda por aí, em algum lugar. E deve haver alguma coisa em qualquer lado que pode provar isso. Geoff e Kerry foram juntos até ao parque de estacionamento. - Aposto que não teve tempo para almoçar - disse ele. - Por que não comemos uma refeição rápida? - Não posso, tenho de regressar, Geoff, preciso de lhe dizer que, por aquilo que ouvi hoje, não vejo nenhum motivo para que o Dr. Smith mentisse a respeito de Skip Reardon. Readon afirma que tinham uma relação mais ou menos cordial. Ouviu-o dizer que não acreditou em Suzanne quando esta lhe respondeu que o pai lhe dera algumas jóias. Se ele começasse a sentir ciúmes por causa daquelas peças, então... Não concluiu a frase.

CAPÍTULO 9 Domingo, 29 de Outubro

No domingo

de manhã, Robin ajudava à missa das dez horas. Quando Kerry via o préstito sair da sacristia e descer a nave lateral da igreja, recordava-se sempre do tempo de criança, em que desejara ser acólito e lhe diziam que era impossível, que só eram admitidos rapazes. «As coisas mudam», pensou. «Nunca imaginei que veria a minha filha no altar, nunca imaginei que me divorciaria, nunca imaginei que um dia seria juiz. Podia ser juiz», corrigiu-se. Sabia que Jonathan tinha razão. Embaraçar Frank Green naquela altura equivaleria a embaraçar o governador. Podia ser um golpe fatal para a sua nomeação. «A visita de ontem a Skip Reardon talvez tivesse sido um erro grave. Para quê dar cabo da vida outra vez? Fiz isso uma vez.» Tinha consciência de que sentira todo o tipo de emoções com Bob Kinellen, primeiro amando-o, depois ficando com o coração destroçado quando ele a deixara, depois furiosa com ele e com desdém de si própria por não ter visto que era oportunista. Agora o que sentia por ele era apenas indiferença, exceto naquilo que dizia respeito a Robin. Mesmo assim, observar casais na igreja, ou da idade dela, mais novos, mais velhos não tinha importância vê-los causava-lhe sempre uma profunda tristeza. «Se ao menos ele fosse a pessoa que eu pensava que era», pensou. «Se ao menos ele fosse a pessoa que ele julga que é.» Estariam casados há onze anos. Certamente, teria tido mais filhos. Desejara sempre ter três. Enquanto observava Robin, que levava o jarro da água e o lavabo para o altar em preparação para a consagração, a filha levantou os olhos e captou o olhar de Kerry. O sorriso breve comoveu Kerry. «Queixo-me de quê?», interrogou-se. «Aconteça o que acontecer, tenho-a a ela. E, com a crise que afeta os casamentos, pode não ter sido perfeito, mas pelo menos deu um bom fruto. Ninguém a não ser Bob Kinellen e eu podia ter esta filha maravilhosa», concluiu. Enquanto olhava, o pensamento saltou para outro pai e outra filha, o Dr. Smith e Suzanne. Ela tinha sido o resultado único dos genes dele e da primeira mulher. No seu depoimento, o Dr. Smith declarara que, depois do divórcio, a mulher fora viver para a Califórnia e casara de novo, e consentira

que Suzanne fosse adotada pelo segundo marido, pensando que era o melhor para ela. «Mas, depois de a mãe morrer, veio viver comigo, dissera ele. Precisava de mim.» Skip Reardon afirmara que a atitude do Dr. Smith para com a filha raiava a reverência. Ao ouvir aquilo, uma pergunta, que deixou Kerry sem fôlego, ocorreu-lhe subitamente. O Dr. Smith transformara outras mulheres para que se parecessem com a filha. Mas nunca ninguém perguntara se ele tinha ou não operado Suzanne. Kerry e Robin tinham acabado de almoçar quando Bob telefonou, perguntando se podia levar Robin a jantar fora nessa noite. Explicou que Alice fora passar uma semana com os filhos na Florida e que ia a Catskills para ver uma cabana que estavam interessados em comprar. Perguntou se Robin lhe queria fazer companhia. - Ainda lhe devo um jantar, e prometo trazê-la às nove. A resposta afirmativa e entusiástica de Robin fez que Bob a fosse buscar uma hora mais tarde. A tarde livre, inesperada, permitiu que Kerry consagrasse mais tempo ao estudo da cópia do julgamento. Ler apenas o depoimento fazia compreender muita coisa, mas sabia que havia uma grande diferença entre ler uma transcrição lacónica e observar as testemunhas enquanto prestavam declarações. Ela não vira os seus rostos, não ouvira as suas vozes nem vira as reações físicas às perguntas. Sabia que a avaliação do comportamento das testemunhas feita pelo júri pesara consideravelmente no veredito. Aquele júri observara e avaliara o Dr. Smith. E era óbvio que tinham acreditado nele. Geoff Dorso gostava muito de futebol e era um admirador entusiástico dos Giants. Não foi por essa razão que comprara um condomínio nos Meadowlands, mas, como admitia, era sem dúvida cómodo. Apesar disso, no domingo à tarde, sentado no Estádio dos Giants, o seu espírito estava menos concentrado no jogo desse dia com os Cowboys de Dalas do que na visita da véspera a Skip Reardon e na reação de Kerry McGrath a Skip Reardon e à cópia do julgamento. Dera-lhe a cópia na quinta-feira. «Já a leu?», perguntou a si mesmo. Esperava que ela a levasse enquanto esperavam pelo encontro com Skip, mas não a mencionara. Procurou convencer-se de que ela costumava ser cética, que a sua atitude aparentemente negativa depois da visita a Skip não significava necessariamente que abandonava o caso.

Quando os Giants soltaram gritos agudos com um gol inesperado no momento em que o quarto do jogo expirou, Geoff aplaudiu também energicamente, mas declinou a sugestão dos amigos para que fosse beber umas cervejas com eles. Em vez disso, foi para casa e telefonou a Kerry. Ficou exultante quando ela declarou que tinha lido a cópia e que tinha uma série de perguntas. - Gostaria que voltássemos a encontrar-nos - disse ele. Depois veio-lhe um pensamento ao espírito. «Ela vai recusar», concluiu quando perguntou: Por acaso está livre para jantar hoje à noite? Dolly Bowles tinha 60 anos quando se mudou com a filha para Alpine. Isso fora há doze anos, quando enviuvara pela primeira vez. Não quisera impor a sua vontade, mas a verdade era que se sentira sempre nervosa por ficar sozinha e não acreditava que seria capaz de continuar a viver na enorme casa que ela e o marido tinham partilhado. E, na realidade, havia um motivo, pelo menos psicológico, para o seu nervosismo. Há anos atrás, quando era ainda uma criança, abrira a porta a um homem que entregava mercadoria, mas que, afinal, era um ladrão. Ainda tinha pesadelos por causa do modo como ele a amarrara e à mãe e saqueara a casa. Por isso, tinha tendência para desconfiar de todos os desconhecidos, e várias vezes irritara o genro, premindo o botão do sistema de alarme quando ficava sozinha em casa e ouvia ruídos estranhos ou via um homem na rua que não reconhecia. A filha, Dorothy, e o genro, Lou, viajavam com frequência. Os filhos ainda estavam em casa quando Dolly foi viver com eles, e ajudara a tomar conta deles. Mas há vários anos que tinham partido para tratar da sua vida, e Dolly não tinha praticamente nada que fazer. Tentara trabalhar em casa, mas a governanta não queria a ajuda dela. Com tanto tempo livre, Dolly passara a ser a baby-sitter da vizinhança, uma situação que resultou. Ela gostava muito de crianças e era com todo o prazer que lhes lia um livro ou jogava um jogo à hora. Era estimada por quase toda a gente. As pessoas só se aborreciam quando ela fazia um daqueles telefonemas para a Polícia, com demasiada frequência, a comunicar a presença de pessoas com aspecto suspeito. E há dez anos que não fazia isso, desde que testemunhara no julgamento do homicídio Reardon. Estremecia sempre que se lembrava. O advogado de acusação ridicularizara-a. Dorothy e Lou tinham ficado envergonhados.

- Mãe, supliqueilhe que não chamasse a Polícia - ripostara ela na altura. Mas Dolly reconhecera que tinha obrigação de o fazer. Conhecera Skip Reardon, simpatizara com ele e sentira que devia procurar ajudá-lo. Além disso, ela vira de fato aquele carro, como Michael vira, o rapazinho de 5 anos com problemas de aprendizagem que ela tratara naquela noite. Ele também vira o carro, mas o advogado de Skip aconselhara-a a não falar nisso. - Isso só prejudicaria o nosso caso - disse o Sr. Farrell. - Apenas queremos que conte aquilo que viu, que era um Sedan escuro e estava estacionado em frente da casa dos Reardon às nove horas e se afastou uns minutos depois. Ela tinha a certeza de que vira um dos números e uma das letras, um 3 e um L. Mas, depois, o advogado de acusação mostrara uma placa de matrícula no fundo da sala do tribunal e ela não fora capaz de a ler. E levara-a a admitir que tinha muita simpatia por Skip Reardon porque ele lhe desenterrara o carro uma noite em que ela ficara atolada num monte de neve. Dolly sabia que só porque Skip fora simpático com ela não significava que não pudesse ser um assassino, mas, no fundo do coração, sabia que estava inocente e rezava por ele todas as noites. Às vezes, mesmo agora, quando tomava conta das crianças no outro lado da rua, em frente da casa dos Reardon, espreitava pela janela e pensava na noite em que Suzanne fora assassinada. E pensava no pequeno Michael; a família mudara de casa há vários anos, que teria já 15 anos, e no modo como apontara para o carro preto, desconhecido, e dissera: - O carro do papá. Dolly não imaginava que nessa mesma hora de domingo em que ela olhava através da janela para aquela que fora a casa dos Reardon, a uns dezasseis quilómetros de distância, na Villa Cesare em Hillsdale, Geoff Dorso e Kerry McGrath falavam dela. Por acordo tácito, Kerry e Geoff abstiveram-se de qualquer discussão do caso Reardon até ser servido o café. Durante a primeira parte da refeição, Geoff falou da sua juventude em Nova Iorque. - Pensava nos meus primos de Nova Jérsia, que viviam longe de tudo disse ele. Então, depois de sairmos de lá e crescer aqui, decidi ficar. Disse a Kerry que tinha quatro irmãs mais novas. - Invejo-o disse ela. Sou filha única, e adorava visitar as casas das minhas amigas onde havia uma família numerosa. Sempre pensei que seria

bom ter irmãos a andarilhar pela casa. O meu pai faleceu quando eu tinha dezanove anos e a minha mãe casou de novo quando tinha vinte e um e foi viver para o Colorado. Vejo-a duas vezes por ano. O olhar de Geoff ficou com uma expressão enternecida. - Assim, tem pouco apoio da família - disse. - Sim, penso que sim, mas Jonathan e Grace Hoover têm ajudado a preencher essa lacuna. Têm sido maravilhosos comigo, é quase como se fossem meus pais. Falaram da Faculdade de Direito, concordando que o primeiro ano fora terrível e que não gostariam de passar pelo mesmo outra vez. - Que o levou a ser advogado de defesa? perguntou Kerry. - Creio que tem a ver com a minha infância. Uma mulher no prédio de apartamentos, onde vivíamos, Anna Owens, era uma das pessoas mais simpáticas que conheci. Lembro-me de quando tinha cerca de oito anos e atravessei o vestíbulo a correr para apanhar o elevador, esbarrei com ela e atirei-a ao chão. Qualquer pessoa teria desatado aos gritos, mas ela pôs-se de pé e disse: «Geoff, o elevador volta.» Depois riu-se. Ela sabia que eu estava muito perturbado. - Isso não fez que viesse a ser advogado de defesa - disse Kerry, sorrindo. - Não. Mas, três meses mais tarde, quando o marido a abandonou, seguiu-o até ao apartamento da nova namorada e matou-o. Creio, sinceramente, que foi insanidade temporária, que foi a defesa que o advogado alegou, mas apanhou vinte anos de cadeia. Suponho que a expressão-chave é «circunstâncias atenuantes». Quando acredito que elas existem, ou quando acredito que o arguido está inocente, como Skip Reardon, aceito o caso. - Fez uma pausa. - E que foi que a levou a ser advogada de acusação? - A vítima e a família da vítima - disse ela simplesmente. - Com base na sua teoria, eu podia ter matado Bob Kinellen e alegado circunstâncias atenuantes. Os olhos de Dorso brilharam de irritação, depois ficaram com uma expressão alegre. - Seja como for, não a imagino a matar alguém, Kerry. - Eu também não, a menos que... - Kerry hesitou e depois continuou: - A menos que Robin estivesse em perigo. Então faria qualquer coisa para a salvar. Disso tenho a certeza.

Durante o jantar, Kerry começou a falar da morte do pai. - Andava no segundo ano na Universidade de Boston. Tinha sido comandante da Pan Am, e, mais tarde, entrou para os quadros da companhia e foi nomeado vice-presidente executivo. Desde que eu tinha três anos que me levava, e à minha mãe, a viajar por toda a parte. Para mim, era o melhor homem do mundo. - Reprimiu um soluço.- E, então, num fim-de-semana que fui passar a casa, disse que não se sentia bem. Mas não se deu ao trabalho de ir ao médico porque fizera há pouco tempo o exame anual. Disse que de manhã estaria bom. Mas, na manhã seguinte, não acordou. - E a sua mãe voltou a casar dois anos depois? - perguntou Geoff com brandura. - Sim, pouco tempo antes de me licenciar. Sam era viúvo e amigo do meu pai. Estava para ir viver para Vail quando o meu pai morreu. Tem uma bela casa. Foi bom para os dois. - Qual seria a opinião do seu pai em relação a Bob Kinellen? - Kerry riuse. - É muito perspicaz, Geoff Dorso. Penso que teria ficado decepcionado. Finalmente, enquanto tomavam o café, discutiram o caso Reardon. Kerry começou por dizer sem rodeios: - Eu assisti à leitura da sentença há dez anos, e a expressão do seu rosto e aquilo que ele disse ficaram-me gravados na memória. Ouvi muitas pessoas jurar que estavam inocentes... que tinham a perder?... mas havia qualquer coisa no seu depoimento que me confundiu. - Porque ele estava a dizer a verdade. - Kerry fitou-o. - Aviso-o, Geoff, de que tenciono desempenhar o papel de advogado-dodiabo, e, embora a leitura daquela cópia faça que tenha muitas dúvidas, não me convence de modo nenhum de que Reardon é inocente. Nem me convenceu a visita de ontem. Ou é ele que mente ou o Dr. Smith. Skip Reardon tem um motivo muito forte para mentir. Smith não tem. Ainda penso ser prejudicial o fato de, no dia em que Suzanne morreu, Reardon ter falado em divórcio e ficado, aparentemente, desnorteado quando soube o que isso lhe poderia custar. - Kerry, Skip Reardon era um homem que se elevou devido ao seu próprio esforço. Saiu da pobreza e tornou-se um homem bem-sucedido na vida. Suzanne já lhe custara uma fortuna. Você ouviu-o. Era uma esbanjadora e comprava tudo o que lhe apetecia. - Calou-se. - Não. Estar irritado e

expressar essa irritação é uma coisa. Mas existe uma grande diferença entre desabafar e matar. Além do mais, mesmo que um divórcio fosse dispendioso, sentiu-se aliviado por pôr termo a um casamento de fachada e poder levar a sua vida por diante. Falaram das rosas Sweetheart. - Estou plenamente convencido de que Skip não as levou nem as enviou - disse Geoff enquanto bebia lentamente o espresso. - Portanto, se aceitarmos isso, temos de considerar a existência de outra pessoa. Enquanto Geoff pagava a conta, ambos concordaram que o depoimento do Dr. Smith foi vital para a condenação de Skip Reardon. - Faça esta pergunta - instou Geoff. - O Dr. Smith declarou que Suzanne tinha medo de Skip e dos seus acessos de ciúme. Mas, se ela tinha assim tanto medo dele, como foi capaz de ficar lá e arranjar calmamente as flores que outro homem lhe mandara, e não só arranjá-las como também ostentá-las, pelo menos segundo disse Skip. Isso faz sentido? - Se Skip estivesse a dizer a verdade... mas não temos a certeza, pois não? disse Kerry. - Bem, quanto a mim, acredito mesmo nele disse - Geoff com ardor. Além disso, nenhuma testemunha corroborou o depoimento do Dr. Smith. Os Reardon eram um casal muito conhecido. Certamente, se a maltratasse, alguém se teria apresentado para o confirmar. - Talvez - admitiu Kerry, - mas então por que razão não houve testemunhas da defesa para afirmarem que não estava doido de ciúmes? Por que foram convocadas apenas duas testemunhas para rebater o depoimento do Dr. Smith? Não, Geoff, receio que o júri, com base nas informações que recebera, não tinha nenhum motivo para não confiar no Dr. Smith e acreditar nele. Além disso, de um modo geral, não estamos condicionados a confiar num médico? Mantiveram-se calados quando regressavam a casa. Quando Geoff acompanhou Kerry até à porta, pediu-lhe a chave. - A minha mãe dizia que se devia abrir sempre a porta a uma dama. Espero que não seja demasiado machista. - Não, não é. Pelo menos, para mim. Mas talvez seja antiquada. - O céu estava com uma cor preta, azulada e resplandecente de estrelas. Soprava um vento forte, e Kerry tiritava de frio. Geoff apercebeu-se e rodou rapidamente a chave. Em seguida, abriu a

porta com um empurrão. - Não traz uma roupa suficientemente quente para o ar da noite. É melhor entrar. Quando transpôs a soleira da porta, ele ficou no alpendre, sem se mover, para indicar que esperava que o convidasse a entrar. Mas disse: - Antes de me ir embora, tenho de perguntar: a partir de agora qual é o passo seguinte? - Vou visitar o Dr. Smith assim que ele me puder receber. Mas é melhor ir sozinha. - Então conversaremos daqui por alguns dias disse Geoff. Sorriu e desceu os degraus do alpendre. Kerry fechou a porta e dirigiu-se à sala de estar, mas não acendeu logo as luzes. Apercebeu-se de que ainda saboreava o momento em que Geoff lhe tirara a chave da mão e lhe abrira a porta. Em seguida, aproximou-se da janela e ficou a olhar enquanto ele tirava o carro da alameda de marcha atrás e descia a rua, desaparecendo. «O paizinho é tão divertido», pensou Robin quando se sentava com satisfação ao lado dele no Jaguar. Tinham examinado a cabana que Bob Kinellen tencionava comprar. Ela achou-a ótima, mas ele disse que foi uma desilusão. - Quero uma num local onde possamos ir de esqui até à porta - dissera, e depois rira. - Vamos continuar a procurar. Robin trouxera a máquina fotográfica, e o pai esperou enquanto ela tirava dois rolos de película. Embora houvesse pouca neve nos picos, a luz nas montanhas pareceu-lhe magnífica. Captou os últimos raios do sol-poente e depois regressaram. O pai disse que conhecia um restaurante ótimo onde podiam comer um camarão excelente. Robin sabia que a mãe estava furiosa com o pai porque não falara com ela depois do acidente, mas tinha deixado um recado. E era verdade, ela via-o poucas vezes, mas, quando estavam juntos, era fantástico. Às seis e meia pararam em frente do restaurante. Conversaram enquanto comiam camarão e castanholas. Prometeu que nesse mesmo ano iriam fazer esqui, só os dois. - Um dia em que a mãezinha tenha um encontro marcado. - Ele pestanejou. - Oh, a mãezinha sai pouco - disse-lhe ela. - Simpatizei com uma pessoa que a levou a sair algumas vezes durante o Verão, mas ela disse que ele era

maçador. - Que fazia ele? - Era engenheiro, suponho. - Bem, quando a mãezinha for juíza, provavelmente acabará por sair com outro juiz. Estará rodeada deles. - No outro dia à noite foi lá a casa um advogado - disse Robin. - Era simpático. Mas creio que foi para tratar de outros assuntos. Bob Kinellen estivera apenas parcialmente envolvido na conversa. Mas naquele momento prestava atenção. - Como se chamava? - Geoff Dorso. Levou um ficheiro grande para a mãezinha ler. - Quando o pai ficou repentinamente muito calado, Robin sentiu-se culpada por ter falado talvez demais, talvez estivesse zangado com ela. Quando entraram no carro, ela dormiu durante o resto da viagem, e, quando o pai a deixou às nove e meia, ficou contente por estar em casa.

CAPÍTULO 10 Segunda-feira, 30 de Outubro

O senado

e a assembleia do Estado de Nova Jérsia registavam uma queda significativa. As duas sessões semanais tinham uma assistência de quase cem por cento, e por um motivo muito forte: a eleição do governador, embora ainda faltasse um ano, provocava uma agitação nos bastidores que contaminava a atmosfera das duas câmaras. O fato de o governador Marshall parecer decidido a apoiar o promotor Frank Green como seu sucessor não agradou a alguns possíveis candidatos do seu partido. Jonathan Hoover sabia muito bem que qualquer falha na capacidade potencial de Green para ser eleito seria bem acolhida pelos outros contendores. Aproveitar-se-iam dela e provocariam o máximo de diversão possível. Se se fizesse muito alarde, poderia abalar facilmente a nomeação de Green. Como presidente do senado, Hoover tinha um enorme poder nos partidos políticos. Uma das razões por que fora eleito cinco vezes para mandados de quatro anos era a sua capacidade para proceder com discernimento quando se tomavam decisões ou se lançavam os votos. Os constituintes apreciavam isso. Nos dias em que o senado se reunia, por vezes ficava em Trenton e jantava com os amigos. Nessa noite jantaria com o governador. A seguir à sessão da tarde, Jonathan regressava ao gabinete, pedia à secretária que recebesse mensagens e fechasse a porta. Depois ficava sentado uma hora à secretária, com as mãos entrelaçadas sob o queixo. Era a postura a que Grace chamava «Jonathan a rezar». Quando se levantava, aproximava-se da janela para olhar fixamente para o céu, que escurecia. Tomara uma decisão importante. O fato de Kerry McGrath andar a investigar o caso do homicídio Reardon levantara um sério problema. Era exatamente o tipo de coisa que a imprensa aproveitaria, tentando transformá-la numa notícia sensacional. Mesmo que acabasse em nada, o que Jonathan esperava que acontecesse, criaria uma imagem negativa de Frank Green e faria descarrilar a sua candidatura. Certamente que Kerry abandonaria o caso antes que fosse longe de mais esperava sinceramente que ela o fizesse, para bem de todos. No entanto,

Jonathan sabia que era seu dever informar o governador da investigação e sugerir que, por enquanto, o seu nome não deveria ser apresentado ao senado para aprovação do cargo de juiz. Tinha consciência de que seria embaraçoso para o governador ter um dos potenciais nomeados a trabalhar efetivamente contra ele. Na segunda-feira de manhã, Kerry encontrou um embrulho no gabinete, e lá dentro estava uma estatueta Royal Doulton de porcelana, que se chamava «Brisas de Outono». Havia também um bilhete: Cara Sra. McGrath, A casa da mãe está vendida e tirámos todas as nossas coisas. Vamos viver com a nossa tia e o nosso tio na Pensilvânia. A mãe conservou-a sempre em cima do toucador. Pertencera à mãe dela. Dizia que ficava feliz ao olhar para ela. Fez que nos sentíssemos tão felizes quando garantiu que o homem que matou a nossa mãe pagaria pelo crime que queremos que fique com ela. É a nossa forma de lhe agradecermos. A carta estava assinada por Chris e Ken, os filhos adolescentes da diretora que fora assassinada pelo assistente. Kerry reprimiu as lágrimas enquanto segurava o belo objeto. Chamou a secretária e ditou uma pequena carta: Por lei, não posso aceitar presentes, mas, Chris e Ken, garanto-vos, se não fosse assim, seria um objeto que eu estimaria. Por favor, fiquem com ele, por mim e pela vossa mãe. Enquanto assinava a carta pensou na ligação evidente entre aqueles irmãos, e entre eles e a mãe. «Que seria de Robin se me acontecesse alguma coisa?», perguntou a si mesma. Depois abanou a cabeça. «Não se ganha nada quando se é pessimista», pensou. Além disso, havia que investigar uma outra relação pai/filha muito mais urgente. Chegara o momento de fazer uma visita ao Dr. Charles Smith. Quando telefonou para o consultório, foi o serviço de atendimento que recebeu a chamada. - Hoje só virão às onze horas. Quer deixar recado? Pouco tempo antes do meio-dia, Kerry recebeu um telefonema da Sra. Carpenter. - Queria marcar uma hora para falar com o doutor o mais cedo possível disse Kerry. - É importante. - E sobre que assunto, Menina McGrath? - Kerry decidiu arriscar.

- Diga ao doutor que está relacionado com Suzanne. Ela esperou cerca de cinco minutos, depois ouviu a voz seca e lacónica do Dr. Smith. - Que deseja, Sra. McGrath? - perguntou. - Desejo conversar consigo sobre o seu depoimento no julgamento de Skip Reardon, doutor, e gostaria que fosse o mais breve possível. Quando desligou, ele tinha concordado em recebê-la no consultório às sete e meia da manhã seguinte. Pensou que isso significava que teria de sair de casa por volta das seis e meia. E isso significava que teria de pedir a um vizinho que telefonasse a Robin para garantir que não voltaria a adormecer depois de Kerry ter saído. Fora disso, Robin não teria problemas. Ia sempre a pé para a escola com duas amigas, e Kerry sabia que tinha idade suficiente para preparar uma malga de cereais. Em seguida, telefonou para o escritório da amiga Margaret e obteve o número de telefone da casa de Stuart Grant. - Falei a Stuart de ti e das perguntas sobre o tal cirurgião plástico, e ele disse que a mulher ficará em casa durante toda a manhã - disse-lhe Margaret. Susan Grant atendeu ao primeiro toque. Repetiu exatamente aquilo que Margaret contara. - Juro, Kerry, foi assustador. Só queria que me tirasse os papos dos olhos. Mas o Dr. Smith foi tão enérgico. Não parava de me chamar Suzanne, e eu sei que se tivesse deixado fazer aquilo que ele queria, o meu aspecto deixaria de ser o mesmo. Antes do almoço, Kerry pediu a Joe Palumbo que passasse pelo seu gabinete. - Preciso que me ajude numa situação extra-curricular - disse-lhe quando este se deixou cair numa cadeira em frente da secretária. - O caso Reardon. A expressão irónica de Joe exigia uma resposta. Falou-lhe das sósias de Suzanne Reardon e do Dr. Smith. Com alguma hesitação, admitiu que também visitara Reardon na prisão e que, embora tudo o que fazia não tivesse carácter oficial, começava a ter dúvidas sobre a forma como o caso fora conduzido. Palumbo assobiou. - E, Joe, agradecia que isto ficasse só entre nós. Frank Green não está satisfeito com o meu interesse pelo caso.

- Imagino porquê - murmurou Palumbo. - A questão é que o próprio Green me disse no outro dia que o Dr. Smith foi uma testemunha imperturbável. É estranho para o pai de uma vítima de homicídio, não lhe parece? Na barra das testemunhas, o Dr. Smith declarou que ele e a mulher se separaram quando Suzanne era um bebé e que alguns anos depois permitiu que fosse adotada pelo padrasto, um homem de nome Wayne Stevens, e que cresceu em Oakland, na Califórnia. Gostava que localizasse Stevens. Teria muito interesse em saber por ele que género de rapariga era Suzanne, e, sobretudo, quero ver uma fotografia dela tirada na época em que era adolescente. Tirara várias páginas da cópia do Julgamento Reardon. Passou-as a Palumbo, empurrando-as por sobre a secretária. - Está aí o depoimento de uma baby-sitter que estava no outro lado da rua na noite do homicídio e afirma que viu um carro em frente da casa dos Reardon por volta das nove horas. Ela vive... ou vivia... com a filha e o genro em Alpine. Verifique, está bem? - Os olhos de Palumbo refletiam um enorme interesse. - Será um prazer, Kerry. Está a fazer-me um favor. Adoraria ver o Nosso Líder na cadeira elétrica, para variar. - Olhe, Joe, Frank Green é uma ótima pessoa - protestou Kerry. - Não estou interessada em lhe complicar a vida. Só acho que ficaram muitas perguntas sem resposta no caso, e, para ser sincera, o fato de ter conhecido o Dr. Smith e de ter visto as pacientes semelhantes tornou-se uma obsessão. Se, por acaso, está na prisão o homem errado, sinto que é meu dever investigar. Mas só farei isso se tiver a certeza. - Compreendo perfeitamente - disse Palumbo. - E não me interprete mal. Em muitos aspectos concordo consigo quando diz que é uma ótima pessoa. É que eu prefiro alguém que não corra a esconder-se sempre que uma pessoa do seu departamento bate o ferro enquanto está quente. Quando o Dr. Charles Smith pousou o telefone depois de falar com Kerry McGrath, percebeu que o ligeiro tremor que aparecia e desaparecia na mão direita começava de novo. Fechou a mão esquerda sobre ela, mas, mesmo assim, sentia as vibrações nas pontas dos dedos. Sabia que a Sra. Carpenter olhara para ele com curiosidade quando esta lhe falou do telefonema da Sra. McGrath. O nome de Suzanne não significara nada para Carpenter, o que, sem dúvida, fizera que se interrogasse sobre o

teor do telefonema. Naquele momento, ele abria a ficha de Robin Kinellen e examinava-a. Lembrava-se de que os pais estavam divorciados, mas não prestara atenção aos dados pessoais que Kerry McGrath apresentara com a história médica de Robin. Dizia que era advogada do Ministério Público, de Bergen County. Parou por instantes. Não se lembrava de a ter visto no julgamento... Ouviu-se uma pancada leve na porta. A Sra. Carpenter espreitou para dentro do gabinete para lhe recordar que tinha uma paciente na sala de observações. Eu sei disse ele com brusquidão, fazendo-lhe sinal com a mão para que se fosse embora. Voltou de novo à ficha de Robin. Viera fazer exames de rotina nos dias 11 e 23. Barbara Tompkins estivera lá para um exame de rotina no dia 11 e Pamela Worth no dia 23. «Dias malfadados», pensou. Kerry McGrath provavelmente vira as duas, e, de certo modo, isso fez que se recordasse de Suzanne. Ficou sentado à secretária longos minutos. «Que significava realmente o telefonema dela? Que interesse teria no caso? Nada podia ter mudado. Os fatos ainda eram os mesmos. Skip Reardon ainda estava na prisão, e lá continuaria.» Smith tinha consciência de que o seu depoimento ajudara a atirá-lo para lá. «E não mudarei uma só palavra», pensou com mordacidade. «Nem uma só palavra.» Comprimido entre os dois advogados, Robert Kinellen e Anthony Bartlett, Jimmy Weeks estava no tribunal do distrito federal enquanto o processo, aparentemente interminável, de seleção do júri para o julgamento de fuga aos impostos sobre os rendimentos se arrastava. Ao fim de três semanas, apenas seis jurados tinham sido considerados aceitáveis tanto para a acusação como para a defesa. A mulher que estava a ser interrogada era o tipo de pessoa que ele mais temia. Afetada e hipócrita, exemplo do pilar da comunidade. Presidente do Clube Feminino Westdale, como declarara; o marido, diretor de uma firma de engenharia; dois filhos em Yale. Jimmy observou-a enquanto prosseguia o interrogatório e ela se tornava cada vez mais condescendente. Certamente que foi satisfatória para a acusação, não havia dúvida. Mas percebeu pelo olhar desdenhoso que lançou na sua direção que ela o considerava vulgar. Quando o juiz concluiu o interrogatório à mulher, Jimmy Weeks encostou-se a Kinellen e disse:

- Aceite-a. - Está louco? - ripostou Bob, incrédulo. - Bobby, confie em mim. - Jimmy baixou o tom de voz. - Com esta vai ser fácil. - Depois Jimmy lançou um olhar irado da mesa da defesa para o lugar onde estava um impassível Barney Haskell a examinar o processo com o seu advogado. Se Haskell rompesse um acordo com a acusação e se tornasse testemunha deles, Kinellen asseverava que poderia destruir Barney na barra das testemunhas. - Talvez sim. e talvez não. - Jimmy Weeks não tinha assim tanta certeza, e ele era um homem que gostava sempre das coisas certas. Dominava pelo menos um jurado por completo. Agora talvez dominasse dois. Até àquele momento apenas se mencionara que a ex-mulher de Kinellen estava a investigar o caso do homicídio Reardon, pensou Weeks, mas, se se descobrisse alguma coisa, sabia que poderia ficar numa situação delicada. Sobretudo se Haskell suspeitasse disso. Talvez lhe ocorresse que teria outro modo de amenizar qualquer acordo que tentasse fazer com a acusação. Ao fim da tarde, a secretária de Geoff Dorso contatou-o pelo intercomunicador. - A Sra. Taylor está aqui - disse ela. - Disse-lhe que tinha a certeza de que não a podia atender sem marcar uma entrevista. Respondeu que demoraria apenas uns minutos e que era importante. «Para Beth Taylor aparecer sem telefonar primeiro, deve ser algo importante.» - Está bem - disse Geoff. - Mande-a entrar. A pulsação tornou-se mais rápida enquanto esperava. Rezou para que ela não tivesse ido lá para lhe dizer que acontecera alguma coisa à mãe de Skip Reardon. A Sra. Reardon tivera um ataque cardíaco pouco tempo depois da condenação de Skip e outro há cinco anos atrás. Conseguira recuperar dos dois, afirmando que não havia nada no mundo que a matasse enquanto o filho estivesse preso por um crime que não cometera. Ela escrevia a Skip todos os dias cartas animadas, alegres, cheias de planos para o futuro. Numa visita recente à prisão, Geoff prestara atenção enquanto Skip lhe lia um excerto de uma que recebera nesse dia: «Esta manhã na missa, recordei a Deus que, embora atendesse os pedidos daquele que espera, nós tínhamos esperado o tempo suficiente. E, sabes?, tive uma sensação maravilhosa. Foi quase como se ouvisse uma voz no meu espírito a dizer: Já falta pouco.» Skip riu-se com desalento.

- Sabe, Geoff, quando li isto, quase acreditei. Quando a secretária acompanhou Beth ao gabinete, Geoff contornou a mesa de trabalho e beijou-a com ternura. Sempre que a via, ocorria-lhe o mesmo pensamento: como teria sido diferente a vida de Skip Reardon se tivesse casado com Beth Taylor e nunca tivesse conhecido Suzanne. Beth era da mesma idade de Skip, já quase com 40, 1,52 m de altura, usando roupas n.912, com cabelo castanho, curto e ondulado, olhos castanhos e brilhantes e um rosto que irradiava inteligência e vivacidade. Era professora quando ela e Skip namoravam, há quinze anos. Desde essa altura tirara a licenciatura e trabalhava como conselheira pedagógica numa escola próxima, A avaliar pela expressão do seu rosto naquele dia, era evidente que estava muito perturbada. Apontando para umas cadeiras confortáveis no fundo da sala, Geoff disse: - Sei que fizeram uma cafeteira de café há meia hora. É servida? - O sorriso apareceu e desapareceu. - Sim. Ele estudou a sua expressão enquanto cavaqueavam e serviu café para os dois. Parecia mais preocupada do que dominada pela dor. Naquele momento, teve a certeza de que não acontecera nada à Sra. Reardon. Depois ocorreu-lhe outra possibilidade. «Meu Deus Beth conheceu uma pessoa em que está interessada e não sabe como há-de contar a Skip?» Sabia que isso podia acontecer talvez devesse acontecer mas sabia que seria penoso para Skip. Assim que se acomodaram, Beth foi direita ao assunto. - Geoff, ontem à noite falei com Skip pelo telefone. Parece tão deprimido. Estou deveras preocupada. Sabe como se fala da anulação dos recursos para os condenados por homicídio. Skip tem-se mantido vivo praticamente na esperança de que um dia um dos recursos seja aprovado. Se alguma vez deixar de ter essa esperança... eu conheço-o, preferirá morrer. Falou-me da advogada do Ministério Público que o foi visitar. Tem a certeza de que não acredita nele. - Pensa que está a ficar com tendência para o suicídio? - apressou-se Geoff a perguntar. - Se assim for, temos de fazer alguma coisa. Como prisioneiro exemplar, tem mais privilégios. Devia avisar o diretor da prisão. - Não, não! Nem pense em comunicar isso! - gritou Beth. - Não quero dizer que fará uma coisa dessas neste momento. Sabe que também mataria a mãe. É que... - Estendeu as mãos num gesto de desalento. Geoff exclamou, -

posso dar-lhe alguma esperança? Ou talvez esteja a perguntar se de uma maneira realista crê que encontrará fundamento para apresentar um novo recurso. «Se tivesse sido há uma semana...», pensou Geoff, «teria de lhe dizer que examinei minuciosamente o caso e que não descobri um só indício de um novo fundamento. O telefonema de Kerry McGrath, contudo, tornou tudo diferente.» - Com cuidado, para não parecer demasiado encorajador, - falou a Beth das duas mulheres que Kerry McGrath vira no consultório e do interesse crescente de Kerry no caso. Enquanto via a esperança radiante aumentar no rosto de Beth, rezou para que não estivesse a conduzi-la e a Skip por um caminho que poderia ser outro beco sem saída. Os olhos de Beth estavam rasos de água. - Então Kerry McGrath ainda está a estudar o caso? - Precisamente. É uma pessoa extraordinária, Beth. - Quando Geoff se apercebeu das palavras que pronunciara, estava a visualizar Kerry; o jeito com que metia uma madeixa de cabelo louro por detrás da orelha quando se concentrava, a expressão melancólica dos olhos quando falava do pai, o corpo esbelto, o sorriso triste, reprovador quando vinha à baila o nome de Bob Kinellen, o orgulho e a alegria que irradiava quando falava da filha. Ele ouvia a sua voz um pouco rouca e via o sorriso quase tímido que lhe fizera quando lhe tirara a chave e lhe abrira a porta. Era óbvio para ele que, depois da morte do pai, ninguém tomara conta de Kerry. - Geoff, se houve um fundamento para um recurso, pensa que cometemos um erro da última vez por não lhe falarmos de mim? A pergunta de Beth fê-lo regressar ao presente. Ela referia-se a um aspecto do caso que nunca fora abordado no tribunal. Pouco tempo antes da morte de Suzanne Reardon, Skip e Beth tinham voltado a encontrar-se. Umas semanas antes, encontraram-se inesperadamente, e Skip insistira em levá-la a almoçar. Acabaram por conversar durante horas, e ele confessara-lhe que era muito infeliz e lamentava a sua separação. - Cometi um erro imperdoável - dissera-lhe, - mas, sem qualquer garantia, não vai durar muito mais tempo. Estou casado com Suzanne há quatro anos, e, pelo menos, durante três, tenho perguntado a mim mesmo por que te deixei ir. Na noite em que Suzanne morreu, Beth e Skip tinham combinado jantar juntos. Ela tivera de o cancelar à última hora, porém, e foi nessa altura que

Skip fora para casa e encontrara Suzanne a arranjar as rosas. Por ocasião do julgamento, Geoff concordara com o advogado de Skip, Tim Farrell, em que levar Beth à barra das testemunhas era uma espada de dois gumes. Com toda a certeza, o advogado de acusação tentaria fazer que parecesse que, para além de querer evitar a despesa de um divórcio, Skip Reardon tinha outro forte motivo para matar a mulher. Por outro lado, o depoimento de Beth podia ter sido útil para dissipar o argumento do Dr. Smith de que Skip tinha um ciúme doentio de Suzanne. Até ao momento em que Kerry lhe falou do Dr. Smith e das sósias, Geoff estava certo de que tinham tomado a decisão certa. Agora estava menos certo. Olhou fixamente para Beth. - Ainda não falei de si a Kerry. Mas agora quero que ela a conheça, e ouça a sua história. Se tivermos alguma hipótese de conseguir um novo e frutuoso recurso, têm de se pôr as cartas na mesa.

CAPÍTULO 11 Terça-feira, 31 de Outubro

Quando

estava para sair de casa para o encontro da manhã com o Dr. Smith, Kerry acordou de repente uma Robin que protestou. - Vá lá, - Rob insistiu. - Estás sempre a dizer-me que te trato como se fosses um bebé. - E tratas - resmungou Robin. - Está bem. Vou dar-te uma oportunidade para provares a tua independência. Quero que te levantes já e te vistas. Caso contrário, voltas a adormecer. A Sra. Weiser telefonará às sete para verificar se não adormeceste de novo. Deixei cereais e sumo. Não te esqueças de fechar a porta à chave quando fores para a escola. - Robin bocejou e fechou os olhos. - Rob, por favor. - Está bem. - Com um suspiro, Robin pôs as pernas fora da cama. O cabelo caiu-lhe para a cara enquanto esfregava os olhos. Kerry puxouo para trás. - Posso confiar em ti? Robin levantou os olhos com um sorriso lento, ensonado. - Hum-hum. - Está bem. - Kerry deu-lhe um beijo na testa. - Não te esqueças, as mesmas regras de todos os dias. Não abras a porta a ninguém. Vou ligar o alarme. Só o desligas quando estiveres para sair, depois voltas a ligá-lo. Não aceites boleia de ninguém a não ser que estejas com Cassie e Courney e seja um dos pais delas. - Eu sei. Eu sei. - Robin suspirou de um modo dramático. Kerry sorriu. - Sei que te faço o mesmo sermão umas mil vezes. Até logo à noite. Alison estará aqui às três horas. Alison era a estudante universitária que ficava com Robin depois das aulas até Kerry chegar a casa. Kerry pensara pedir-lhe que viesse nessa manhã para acompanhar Robin, mas cedera ao protesto vigoroso da filha de que não era um bebé e podia ir sozinha para a escola. - Até logo, mãezinha. Robin ouviu os passos de Kerry pela escada abaixo, depois aproximouse da janela para ver o carro a sair da alameda.

O quarto estava gelado. Às sete horas, quando se costumava levantar, a casa estava muito quente. «Só mais um minuto», pensou Robin quando se enfiou de novo na cama. «Vou ficar deitada mais um minuto.» Às sete horas, depois de o telefone ter tocado seis vezes, sentou-se e atendeu. - Oh, obrigada, Sra. Weis. Sim, claro que estou levantada. - «Estou agora», pensou enquanto saltava da cama. Embora fosse cedo, o trânsito em direção a Manhattan era intenso. Mas pelo menos movia-se com uma velocidade razoável, pensou Kerry. Todavia, levou uma hora desde Nova Jérsia, descendo aquilo que restava da West Side Highway e atravessando a cidade até ao consultório do Dr. Smith, que ficava situado na 5.B Avenida. Chegou três minutos atrasada. Foi o médico que lhe abriu a porta. Mesmo a cortesia mínima que mostrara nas duas consultas de Robin não se revelou nessa manhã. Não a cumprimentou, dizendo apenas: - Posso conceder-lhe vinte minutos, Sra. McGrath, e nem mais um segundo. - Conduziu-a ao gabinete. «Se é assim que vamos proceder», pensou Kerry, «então está bem.» Quando estava sentada na cadeira em frente dele, disse: - Dr. Smith, depois de ver duas mulheres a sair deste consultório, que se pareciam extraordinariamente com a sua filha assassinada, Suzanne, fiquei com curiosidade em conhecer as circunstâncias da sua morte, ao ponto de arranjar tempo, na semana passada, para ler a cópia do julgamento de Skip Reardon. Não lhe passou despercebida a expressão de ódio que surgiu no rosto do Dr. Smith quando mencionou o nome de Reardon. Os olhos estreitaram-se, os lábios cerraram-se, apareceram rugas fundas na testa e nas faces, de cima a baixo. Olhou fixamente para ele. - Dr. Smith, quero que saiba que lamento imenso que tenha perdido a sua filha. Era um pai divorciado. Eu sou uma mãe divorciada. Como o senhor, tenho só um filho, uma menina. Sabendo o que eu sofri quando recebi o telefonema a dizer-me que Robin tivera um acidente, posso calcular como se sentiu quando lhe comunicaram o que sucedera a Suzanne. Smith fitou-a com firmeza, os dedos entrelaçados. Kerry teve a sensação de que existia uma barreira intransponível entre eles. Se assim fosse, o resto da conversa era inteiramente previsível. Ouvi-la-ia, faria uma declaração

sobre amor e perda, e depois acompanhá-la-ia à porta. Como poderia transpor aquela barreira? Ela inclinou-se para a frente. - Dr. Smith, Skip Reardon está na prisão devido ao seu depoimento. Disse que tinha ciúme doentio, que a sua filha o temia. Ele jura que nunca ameaçou Suzanne. - Mente. - A voz era monocórdica, fria. - Era verdade que tinha um ciúme doentio dela. Como disse, era a minha única filha. Amava-a loucamente. Alcançara o sucesso suficiente para lhe dar o tipo de coisas que nunca lhe pude dar em criança. Sentia prazer, de tempos a tempos, em comprar-lhe uma jóia delicada. No entanto, mesmo quando falei com Reardon, recusou-se a acreditar que eram presentes meus. Estava sempre a acusá-la de se encontrar com outros homens. «Será possível?», interrogou-se Kerry. - Mas, se Suzanne temia pela sua vida, por que ficou com Skip Reardon? - perguntou. O sol da manhã entrava a jorros na sala, refletindo-se nos óculos sem armações do Dr. Smith, impedindo Kerry de ver os olhos dele. «Serão tão frios como a voz sem expressão?», pensou ela. - Porque, ao contrário da mãe, a minha primeira mulher, Suzanne tinha um profundo respeito pelo casamento - respondeu ele depois de uma pausa. O grave erro da sua vida foi apaixonar-se por Reardon. E um erro ainda mais grave foi não ter levado as ameaças dele a sério. Kerry apercebeu-se de que não ia a lado nenhum. Chegara a hora de formular a pergunta que lhe ocorrera anteriormente, mas talvez tivesse implicações que não sabia se seria capaz de enfrentar. - Dr. Smith, submeteu alguma vez a sua filha a algum tipo de operação cirúrgica? Tornou-se evidente que a pergunta o ofendeu. - Sra. McGrath, por acaso pertenço à classe de médicos que jamais, exceto em caso de emergência extrema, trataria um membro da família. Além disso, a pergunta é ofensiva. Suzanne tinha uma beleza natural. - Fez que pelo menos duas mulheres se parecessem extraordinariamente com ela. Porquê? O Dr. Smith olhou para o relógio. - Responderei a essa última pergunta, e depois terá de me desculpar, Sra.

McGrath. Não sei que conhecimentos tem sobre cirurgia plástica. Há cinquenta anos, em comparação com os nossos dias, era muito primitiva. Depois de as pessoas serem operadas ao nariz, tinham de viver com narinas bojudas. O trabalho de reconstrução em vítimas com deformidades congénitas, como por exemplo um lábioleporino, era muitas vezes um processo imperfeito. Agora é muito sofisticado, e os resultados são muito satisfatórios. Aprendemos muito. A cirurgia plástica já não é apenas para os ricos e famosos. É para toda a gente que precisar, ou simplesmente quiser. Tirou os ôculos e esfregou a testa como se estivesse com uma dor de cabeça. Os pais trazem adolescentes, rapazes e raparigas, que têm tanta consciência de um defeito visível que não conseguem viver assim. Ontem operei um rapaz de quinze anos cujas orelhas eram tão salientes que eram a única coisa que se via quando se olhava para ele. Quando se tirarem as ligaduras, todas as outras características agradáveis, que tinham sido obscurecidas pelo problema chocante, serão aquilo que as pessoas verão quando olharem para ele. »Opero mulheres que se olham no espelho e vêem pele descaída ou olhos papudos, mulheres que foram raparigas bonitas na juventude. Levanto e fixo a testa por debaixo do couro cabeludo, estico a pele e puxo-a para detrás das orelhas. Ficam com vinte anos a menos de aspecto, mas mais do que isso, transformo o desprezo em amor-próprio. O tom de voz subiu. - Podia mostrar-lhe fotografias anteriores e posteriores de vítimas de acidente que eu ajudei. Pergunta-me por que várias pacientes se parecem com a minha filha. Eu explico-lhe. Porque, nestes dez anos, algumas mulheres jovens, vulgares e infelizes entraram neste consultório e eu pude dar-lhes o seu tipo de beleza. Kerry sabia que se preparava para a mandar sair. À pressa, perguntou: - Então por que razão, há vários anos atrás, disse a uma potencial paciente, Susan Grant, que às vezes se faz mau uso da beleza, e o resultado é o ciúme e a violência? Não se referia a Suzanne? Não é um fato que Skip Reardon pudesse ter motivos para sentir ciúme? Talvez o senhor lhe tenha comprado todas as jóias que Skip não reconhecia, mas ele jura que não mandou as rosas que Suzanne recebeu no dia em que morreu. O Dr. Smith pôs-se de pé.

- Sra. McGrath, supunha que na sua profissão devia saber que os assassinos quase inevitavelmente declaram estar inocentes. E, agora, a conversa chegou ao fim. Kerry não podia fazer mais nada a não ser sair da sala atrás dele. Enquanto o seguia, reparou que apertava a mão direita contra a ilharga. Era um tremor na mão? Sim, era. Disse à porta: - Sra. McGrath, deve compreender que ouvir pronunciar o nome de Skip Reardon me indispõe. Por favor, telefone à Sra. Carpenter e dê-lhe o nome de outro médico para o qual ela possa enviar a ficha de Robin. Não quero ouvir falar de si nem voltar a vê-la, nem a si nem à sua filha. Estava tão próximo dela que Kerry recuou instintivamente. Havia algo de assustador naquele homem. Os olhos, cheios de cólera e ódio, pareciam trespassar-lhe o corpo. «Se tivesse uma arma na mão neste momento, aposto que a usaria», pensou ela. Depois de fechar a porta à chave e começar a descer os degraus, Robin reparou no carro pequeno e escuro estacionado no outro lado da rua. Carros estranhos não eram habituais naquela rua, sobretudo àquela hora, mas não sabia por que razão aquele lhe provocara uma sensação estranha. Estava frio. Mudou os livros para o braço esquerdo e puxou o fecho do casaco até ao pescoço. Depois acelerou o passo. Ia encontrar-se com Cassie e Courtney na esquina a um quarteirão de distância e sabia que estavam provavelmente já à espera. Estava uns minutos atrasada. Era uma rua sossegada. As folhas tinham já desaparecido quase por completo, as árvores estavam despidas e tinham um aspecto hostil. Robin arrependeu-se de não ter trazido as luvas. Quando chegou ao passeio, olhou rapidamente para o outro lado da rua. A janela do condutor no carro desconhecido abria-se lentamente, parando depois de ter descido alguns centímetros. Olhou fixamente para ela o mais que pôde, na esperança de ver lá dentro um rosto conhecido, mas o sol brilhante da manhã refletia-se de tal forma que ela não conseguia ver nada. Então viu uma mão estendida, apontando para qualquer coisa nela. Tomada de pânico, Robin começou a correr. Com um estrondo, o carro atravessou a rua a grande velocidade, aparentemente em direção a ela. Precisamente no momento em que pensava que surgiria na curva e iria contra ela, este fez um pião e depois precipitou-se pelo quarteirão abaixo.

A soluçar, Robin atravessou a correr o relvado da casa dos vizinhos e tocou freneticamente à campainha da porta. Quando Joe Palumbo concluiu a investigação de um assalto em Cresskill, reparou que eram apenas nove e meia. Uma vez que estava a escassos minutos de Alpine, pareceu-lhe uma ótima oportunidade para visitar Dolly Bowles, a baby-sitter que testemunhara no julgamento do homicídio Reardon. Felizmente, também tinha por acaso o número do telefone. A princípio, Dolly pareceu um pouco cautelosa quando Palumbo explicou que era investigador do departamento do promotor de justiça de Bergen County. Mas, depois de lhe dizer que uma das advogadas do Ministério Público, Kerry McGrath, desejava muito obter informações sobre o carro que Dolly vira em frente da casa dos Reardon na noite do homicídio, ela declarou que acompanhara o julgamento que Kerry McGrath querelara recentemente e que estava muito contente pelo fato de o homem que matou a diretora ter sido condenado. Falou a Palumbo do tempo em que ela e a mãe tinham sido amarradas em casa por um intruso. - Portanto - concluiu ela, - se o senhor e Kerry McGrath quiserem conversar comigo, não há problema. - Bem, efetivamente- disse-lhe Joe um tanto constrangido, - gostaria de a visitar e falar consigo agora. Talvez Kerry fale com a senhora mais tarde. Fez-se silêncio. Palumbo não podia adivinhar que Dolly recordava a expressão irónica no rosto do promotor Green quando a interrogou no julgamento. Por fim, falou. - Creio - disse ela, - com dignidade que me sentiria mais à vontade para falar daquela noite com Kerry McGrath. Penso que será melhor esperarmos até ela dispor de tempo. Eram 9:45 e Kerry ainda não tinha chegado ao tribunal... Muito mais tarde do que era habitual. Prevendo a possibilidade de receber uma reprimenda, telefonara a dizer que tinha um assunto a tratar e ia chegar tarde. Frank Green estava sempre sentado à secretária às sete horas em ponto. Era motivo de chacota, mas era óbvio que considerava que o seu pessoal devia entrar ao serviço ao mesmo tempo que ele. Kerry sabia que ele teria um ataque de cólera se descobrisse que o assunto era a visita ao Dr. Charles Smith. Quando marcou o código que lhe permitia o acesso ao gabinete do

advogado do Ministério Público, a telefonista olhou para cima e disse: - Kerry, vá já ao gabinete do Sr. Green. Ele está à sua espera. - «Meu Deus», pensou Kerry. Assim que entrou no gabinete de Green, viu que não estava zangado. Conhecia-o bastante bem para adivinhar o seu estado de espírito. Falou sem preâmbulos, como sempre. - Kerry, Robin está bem. Está com a sua vizinha, a Sra. Weiser. Ela frisou que está bem. Kerry sentiu um nó na garganta. - Então qual é o problema? - Não sabemos ao certo, e pode não ser nada. Segundo Robin, você saiu de casa às seis e meia. Havia um laivo de curiosidade nos olhos de Green. - Sim, saí. - Quando Robin saía de casa, algum tempo depois, disse que reparou num carro desconhecido estacionado no outro lado da rua. Quando chegou ao passeio, a janela da porta, no lado do condutor, abriu-se um pouco, e viu uma mão que segurava um objeto. Ela não sabia o que era e não pôde ver o rosto do condutor. Depois o carro arrancou e atravessou-se na rua tão de repente que pensou que transporia o passeio e a atropelaria, mas fez um pião e desapareceu a toda a velocidade. Robin fugiu para a casa da vizinha. Kerry deixou-se cair numa cadeira. - Está lá agora? - Está. Pode telefonar-lhe ou ir para casa se isso a tranquiliza. A minha preocupação é se Robin tem uma imaginação demasiado ativa ou se é possível que alguém esteja a tentar assustá-la e, em última análise, a tentar assustá-la a si. - Por que é que alguém quereria meter medo a Robin e a mim? - Já aconteceu isso antes neste departamento depois de um caso importante. Concluiu há pouco um caso que atraiu as atenções dos meios de comunicação. O indivíduo que você condenou por homicídio era nitidamente um crápula e ainda tem parentes e amigos. - Sim, mas todos os que conheci me pareceram pessoas muito decentes disse Kerry. - E, para responder à sua primeira pergunta, Robin é uma criança equilibrada. Não iria imaginar uma coisa dessas. Hesitou. Foi a primeira vez que a deixei sair sozinha de casa, e bombardeei-a com conselhos sobre aquilo que devia e não devia fazer.

- Telefone-lhe daqui - sugeriu Green. Robin atendeu o telefone da Sra. Weis ao primeiro toque. - Eu sabia que telefonaria, mãezinha. Agora estou bem. Quero ir à escola. A Sra. Weis disse que me levava. E, mãezinha, ainda tenho de sair esta tarde. É o Dia das Bruxas. Kerry pensou sem hesitar. Robin estava melhor na escola do que sentada em casa todo o dia, a magicar no incidente. - Está bem, mas irei buscar-te à escola às três menos um quarto. Não quero que vás para casa a pé. - «E eu estarei contigo quando andares de porta em porta», pensou. - Agora deixa-me falar com a Sra. Weiser, Rob - disse ela. Quando desligou, disse: - Frank, não há problema se eu sair cedo hoje? - O sorriso era sincero. - Claro que não há, Kerry, não preciso de lhe recomendar que interrogue Robin com cuidado. Temos de saber se existe alguma possibilidade de alguém a andar a vigiar. Quando Kerry ia a sair, ele acrescentou: - Mas Robin não é um pouco nova para ir para a escola sozinha? - Kerry sabia que ele procurava descobrir o que fora tão importante que a levara a deixar Robin sozinha em casa às seis e meia da manhã. - Sim, é concordou. Não voltará a acontecer. Mais tarde, nessa mesma manhã, Joe Palumbo passou pelo gabinete de Kerry e falou-lhe do telefonema a Dolly Bowles. - Ela não quer falar comigo, mas, mesmo assim, gostaria de ir consigo quando a visitar. - Deixe-me telefonar-lhe agora. - A saudação de seis palavras: - Viva, Sra. Bowles. Sou Kerry McGrath. - Levou a um monólogo de dez minutos no outro lado da linha. Palumbo cruzou as pernas e recostou-se na cadeira enquanto observava, divertido, Kerry a tentar interpor uma palavra ou pergunta. Depois ficou irritado quando, depois de Kerry ter tido finalmente uma oportunidade de dizer que gostaria de levar também o investigador, Joe Palumbo, se tornou evidente que a resposta fora negativa. Por fim, desligou. - Dolly Bowles não gostou nada da maneira como este departamento a tratou há dez anos. Esse foi o tema da conversa. Além disso, a filha e o genro

não querem que ela fale mais do homicídio nem daquilo que viu, e regressam amanhã de uma viagem. Se quiser visitá-la, terá de ser hoje às cinco horas. Isso vai implicar fazer alguns malabarismos. Disse-lhe que a informava. - Consegue sair daqui a horas? - perguntou Joe. - Seja como for, tenho uns encontros marcados que vou cancelar. - Falou a Palumbo de Robin e do incidente dessa manhã. O investigador pôs-se de pé e tentou fechar o casaco que era mais pequeno do que o tamanho médio, que devia usar. - Vou ter consigo a sua casa às cinco - sugeriu ele. - Enquanto está com a Sra. Bowles, deixe-me levar Robin a comer um hamburguer. Gostaria de conversar com ela sobre esta manhã. - Viu a expressão de desaprovação no rosto de Kerry e apressou-se a falar antes que ela pudesse protestar. - Kerry, você é esperta, mas não vai ser objetiva em relação a isto. Não faça o meu trabalho por mim. Kerry observou Joe, pensativa. O seu aspecto era sempre um pouco desalinhado, mas era praticamente o melhor no seu setor. Kerry vira-o interrogar crianças com tanta habilidade que não se apercebiam de que cada palavra que proferiam estava a ser analisada. Seria muito útil ter a colaboração de Joe. - Está bem - concordou ela. Na terça-feira de manhã, Jason Arnott foi de carro de Alpine à zona remota próxima de Ellenville, nos Catskills, onde a enorme casa de campo, ocultada pelo maciço montanhoso circundante, encerrava os tesouros roubados de valor incalculável. Sabia que a casa era uma paixão, uma extensão do impulso, por vezes incontrolável, que o levava a roubar os objetos belos que via nas casas das pessoas suas conhecidas. Porque era a beleza, afinal, que o obrigava a fazer aquelas coisas. Adorava a beleza, adorava vê-la, senti-la. Às vezes, o desejo de segurar uma coisa, de a acariciar, era tão forte que se tornava quase opressivo. Era um dom, e, como tal, uma bênção e uma maldição. Um dia iria causar-lhe problemas. Como já estivera prestes a acontecer. Ficava impaciente quando as visitas admiravam tapetes, peças de mobiliário, quadros ou objetos de arte na casa de Alpine. Frequentemente, divertia-se ao imaginar como ficariam chocadas se ele dissesse abruptamente: «Na minha opinião, esta casa é vulgar.» Mas, evidentemente, nunca diria isso, pois não desejava partilhar a sua coleção particular com ninguém. Era só dele. E tinha

de ser bem guardada. «Hoje é o Dia das Bruxas», pensou com indiferença enquanto subia a Estrada 17 a alta velocidade. Estava contente por se ir embora. Não desejava ser vítima de crianças a tocarem ininterruptamente à campainha da porta. Estava exausto. Durante o fim-de-semana ficara hospedado num hotel em Bethesda, Maryland, e aproveitara o tempo para assaltar uma casa Chevy Chase onde assistira a uma festa há alguns meses. Nessa reunião, a anfitriã, Myra Hamilton, alardeara o próximo casamento do filho, que se realizaria em 28 de Outubro em Chicago, dizendo a toda a gente que a casa ficaria deserta nessa data. A casa Hamilton não era grande, mas era luxuosa, repleta de objetos preciosos que os Hamilton tinham colecionado ao longo dos anos. Jason ficar a fascinado com o sinete de escrivaninha Fabergé, azul-safira com um punho de ouro em forma de ovo. Isso e um Aubusson de 91 cm por 1,50 m, com uma rosácea central que usavam como tapeçaria, eram as duas coisas que mais queria sacar-lhes. Agora os dois objetos estavam no porta-bagagens do carro, a caminho do seu refúgio. Inconscientemente, Jason franziu o sobrolho. Não tinha a mesma sensação de triunfo por ter alcançado o seu objetivo. Uma preocupação vaga, indefinível, importunava-o. Reviu mentalmente o modus operandi da entrada na casa Hamilton, recapitulando-o passo a passo. O alarme estava ligado, mas foi fácil de desligar. A casa estava deserta, como previra. Por instantes, sentira-se tentado a examinar rapidamente a casa, em busca de alguma coisa de grande valor que lhe tivesse escapado durante a festa. Em vez disso, manteve o plano original, tirando apenas os objetos que lhe tinham chamado a atenção. Embrenhara-se há instantes no trânsito da Estrada 240, quando dois carros da Polícia, com as sirenes a silvar e as luzes a cintilar, passaram por ele a grande velocidade e viraram à esquerda para a rua donde saíra. Era óbvio que se dirigiam à casa Hamilton. O que, sem dúvida, significava que ele acionara um alarme silencioso que funcionava independentemente do sistema central. - Que outro tipo de segurança tinham os Hamilton? -, perguntou a si mesmo. Era fácil ocultar câmaras. Usara a meia que colocava sempre quando entrava numa das casas que decidira honrar com a sua atenção, mas, a certa

altura, nessa noite, tirara-a para examinar uma estatueta de bronze, uma imprudência que se revelara não ter um valor significativo. «É praticamente impossível que uma câmera tenha captado o meu rosto», tranquilizou-se Jason. Poria de lado as apreensões e prosseguiria a sua vida, embora com mais prudência, durante algum tempo. O sol da tarde quase desaparecera atrás das montanhas quando entrou na alameda. Finalmente, sentiu um pouco de ânimo. O vizinho mais próximo vivia a vários quilómetros de distância. Maddie, a empregada da limpeza semanal, era uma mulher forte, calma, desprovida de imaginação e argúcia devia lá ter estado na véspera. Tudo estaria a cintilar. Sabia que não diferenciava um Aubusson de um retalho de carpete a dez dólares o metro, mas era uma das raras criaturas que se orgulhava do seu trabalho e apenas ficava satisfeita com a perfeição. Em dez anos, nem uma chávena quebrara. Jason sorriu interiormente, a pensar na reação de Maddie quando deparasse com o Aubusson pendurado no vestíbulo e o sinete de escrivaninha Fabergé no quarto principal. «Ele não tem coisas suficientes para limpar o pó?», perguntaria a si mesma, e continuaria a fazer o seu trabalho. Estacionou o carro junto à porta lateral e, com o ímpeto da expectativa que sempre o tomava quando lá chegava, entrou em casa e levou a mão ao interruptor. Uma vez mais, a visão de tantos objetos belos humedeceu-lhe os lábios e as mãos de prazer. Uns minutos mais tarde, depois do seu caso noturno, de um saco com artigos de mercearia e dos novos tesouros estarem a salvo no interior da casa, fechou a porta à chave e correu o ferrolho. A noite começara. A primeira tarefa era levar o sinete Fabergé para o primeiro andar e colocá-lo no toucador antigo. Uma vez no seu lugar, recuou para o contemplar. Depois debruçou-se para o comparar com a pequena moldura que estava há dez anos na mesinha-de-cabeceira. A moldura representava uma das raras vezes que fora enganado. Era uma cópia Fabergé perfeita, mas não o original. Naquele momento, esse fato parecia mais evidente. O esmalte azul tinha um aspecto baço quando comparado com a cor escura do sinete de escrivaninha. A cercadura dourada engastada de pérolas em nada se assemelhava a uma peça Fabergé genuína. Mas, do interior da moldura, o rosto de Suzanne sorria-lhe. Não gostava de recordar aquela noite, há quase onze anos. Entrara pela

janela aberta da sala de estar da suite principal. Sabia que a casa devia estar deserta. Nesse mesmo dia, Suzanne falara-lhe no compromisso para o jantar e que Skip não estaria em casa. Tinha o código de segurança, mas, quando lá chegou, viu que a janela estava aberta de par em par. Quando entrou no primeiro andar, estava tudo às escuras. Divisou no quarto a pequena moldura que vira antes; estava em cima da mesinha-de-cabeceira. Do outro lado do quarto, parecia autêntica. Examinava-a atentamente no momento em que ouviu uma voz alterada. Suzanne! Tomado de pânico, metera à pressa a moldura no bolso e escondera-se num armário. Jason olhava para a moldura. Ao longo dos anos, interrogara-se às vezes sobre a razão perversa que o impedia de retirar a fotografia de Suzanne ou de se livrar de tudo. Afinal, a moldura não passava de uma cópia. Mas, enquanto olhava fixamente para ela, compreendeu pela primeira vez por que deixara intactas a fotografia e a moldura. Porque era mais fácil para ele apagar a recordação do rosto horrível e desfigurado de Suzanne quando fugiu. - Bem, temos a lista dos jurados, e é boa - disse Bob Kinellen ao cliente com uma vivacidade que não sentia. Jimmy Weeks lançou-lhe um olhar irado. - Bobby, com algumas exceções, acho o júri nojento. - Confie em mim. Anthony Bartlett apoiou o genro. - Bob tem razão, Jimmy. Confie nele. - Depois os olhos de Bartlett fixaram-se no lado oposto da mesa da defesa onde estava Barney Haskell, com uma expressão taciturna, a cabeça apoiada nas mãos. Viu que Bob também olhava para Haskell e percebeu o que Bob estava a pensar. «Haskell é diabético. Não quererá arriscar-se a anos na prisão. Possui datas, fatos e números que demoraremos a contradizer... Ele sabia tudo a respeito de Suzanne.» Os argumentos da abertura começariam na manhã seguinte. Quando saiu do tribunal, Jimmy Weeks dirigiu-se ao carro. Enquanto o motorista segurava a porta, entrou para o banco traseiro sem se despedir, como de costume. Kinellen e Bartlett ficaram a olhar para o carro, que se afastou. - Volto para o escritório - disse Kinellen ao sogro. - Tenho que fazer. Bartlett acenou com a cabeça. - Creio que sim. - Havia um tom impessoal na sua voz. - Até amanhã de

manhã, Bob. «Com certeza», pensou Kinellen enquanto se encaminhava para a garagem. «Estás a afastar-te de mim para, caso eu fique com as mãos sujas, não teres nada com isso.» Ele sabia que Bartlett tinha milhões arrecadados. Mesmo que Weeks fosse condenado e a firma de advogados sucumbisse, ficaria bem. Talvez passasse mais tempo em Palm Beach com a mulher, Alice Sénior. «Corro todos os riscos», pensou Bob Kinellen enquanto entregava o bilhete ao caixa. «Eu é que corro o risco de me afundar. Tinha de haver um motivo para Jimmy insistir em deixar ficar a Sra. Wagner no júri. Qual era?» Geoff Dorso telefonou a Kerry quando se preparava para sair do gabinete. - Estive com o Dr. Smith esta manhã - disse-lhe ela apressadamente, - e vou visitar Dolly Bowles por volta das cinco horas. Agora não posso falar. Vou buscar Robin à escola. - Kerry, estou ansioso por saber o que aconteceu com o Dr. Smith e aquilo que soube a respeito de Dolly Bowles. Podemos jantar? - Hoje não quero sair à noite, mas se não se importar de comer uma salada e pasta... - Sou italiano, não se lembra? - Por volta das sete e meia? - Lá estarei. Quando foi buscar Robin à escola, Kerry percebeu que o pensamento da filha estava mais concentrado nas comemorações do Dia das Bruxas do que no incidente de manhã cedo. Na realidade, Robin parecia embaraçada por causa disso. Compreendendo a filha, não falou mais no assunto, pelo menos naquele momento. Quando chegaram a casa, dispensou a ama adolescente de Robin durante a tarde. «É assim que as outras mães vivem», pensou, enquanto, com muitas outras, seguia um grupo de crianças que andavam de porta em porta. Ela e Robin regressaram a casa a tempo de receber Joe Palumbo, que chegara nesse instante. Trazia uma pasta muito cheia, na qual bateu com um sorriso de satisfação. - Os registos do departamento de investigação do caso Reardon - disselhe ele. - Conterão o depoimento original de Dolly Bowles. Vejamos se se assemelha àquilo que ela tem para lhe dizer.

Olhou para Robin, que envergava um fato de bruxa. - Que belo fato, Rob. - Só podia escolher este ou ser um cadáver - disse-lhe Robin. Kerry não se apercebera de que estremecera até ver a expressão de compreensão nos olhos de Palumbo. - É melhor ir andando - disse ela apressadamente. Durante o trajeto de vinte minutos até Alpine, Kerry percebeu que tinha os nervos à flor da pele. Conseguira finalmente que Robin resumisse o incidente daquela manhã. Nessa altura, Robin esforçara-se por não dar muita importância ao ocorrido. Kerry queria acreditar que Robin exagerara o que sucedera. Queria concluir que alguém parara para saber uma morada e depois dera conta de que estava no quarteirão errado. Mas Kerry sabia que a filha não exagerara nem imaginara o incidente. Kerry notou que Dolly Bowles estivera à espera dela. Assim que estacionou o carro na alameda da enorme casa Tudor, a porta abriu-se. Dolly era uma mulher baixa, com cabelo cinzento e ralo e um rosto estreito com uma expressão inquisitiva. Já estava a falar quando Kerry se aproximou dela: - ... tal qual como a fotografia no The Record. Lamento tanto estar tão ocupada a tomar conta das crianças e não ter podido assistir ao julgamento daquele homem horrível que matou a diretora. Conduziu Kerry a um vestíbulo cavernoso e apontou para uma pequena sala de estar à esquerda. - Entremos para aqui. Aquela sala de estar é grande de mais para o meu gosto. Digo à minha filha que a minha voz faz eco lá dentro, mas ela gosta muito dela porque é grande para festas. Dorothy adora dar festas. Isto é, quando estão cá. Agora que Lewis se reformou, nunca param num sítio; andam de cá para lá. Não sei por que têm uma empregada permanente. Por que não vem alguém uma vez por semana? Para poupar dinheiro. Claro, eu não gosto de ficar sozinha durante a noite, e penso que tem a ver com aquilo. Por outro lado... «Oh meu Deus», pensou Kerry, «é uma mulher encantadora, mas não estou com disposição para isto.» Escolheu uma cadeira de costas direitas enquanto a Sra. Bowles se acomodava num sofá forrado a chintz. - Sra. Bowles, não lhe quero roubar muito tempo e tenho uma pessoa a tomar conta da minha filha, por isso não me posso demorar.

- Tem uma filha. Que bem. Quantos anos tem? - Dez. Sra. Bowles, gostaria de saber... - Parece que não tem idade para ter uma filha de dez anos. - Obrigada. Posso garantir-lhe que me sinto bastante velha. - Kerry tinha a impressão de que metera o carro numa vala e talvez nunca saísse de lá. Sra. Bowles, falemos da noite em que Suzanne Reardon morreu. Quinze minutos mais tarde, depois de ouvir tudo sobre a profissão de Dolly em frente da casa dos Reardon, e que Michael, o rapazinho de que ela tomava conta nessa noite, tinha problemas de desenvolvimento graves, conseguiu separar algumas informações. - Diz que tem a certeza de que o carro, que viu estacionado em frente da casa dos Reardon, não pertencia a nenhum dos convidados da festa dos vizinhos. Por que tem assim tanta certeza? - Porque eu mesma falei com essas pessoas. Tinham convidado mais três casais. Disseram-me quem eram os convidados. Eram todos de Alpine, e depois de o Sr. Green me ter feito sentir como uma idiota na barra das testemunhas, telefonei a cada um deles. E sabe que mais? Nenhum daqueles convidados conduzia o carro do Poppa. - O carro do Poppa? - exclamou Kerry, incrédula. - Era assim que Michael lhe chamava. Compreende?, ele tinha um problema com as cores. Indicava-se um carro e perguntava-se-lhe de que cor era, e ele não sabia. Mas, independentemente do número de carros que estivessem na redondeza, conseguia descobrir um que lhe era familiar, ou um que lhe parecia familiar. Quando disse «o carro do Poppa» naquela noite, devia estar a apontar para o sedan Mercedes preto com quatro portas. Compreende?, ele chamava Poppa ao avô e adorava andar de carro com ele... o sedan Mercedes preto com quatro portas. Estava escuro, mas a lâmpada no fundo da alameda dos Reardon estava acesa, e por isso ele via sem dificuldade. - Sra. Bowles, declarou que vira o carro. - Sim, embora já lá não estivesse às sete e meia quando cheguei a casa de Michael, e quando ele o indicou este já se ia embora, por isso não o vi bem. No entanto, pareceu-me ver um 3 e um L na chapa da matrícula. - Dolly Bowles curvou-se muito para a frente, e por detrás dos óculos redondos os olhos arregalaram-se. - Sra. McGrath, tentei contar isto ao advogado de defesa de Skip Reardon. Chamava-se Farrer... não, Farrell. Ele disse-me que

uma prova com base naquilo que se ouviu dizer geralmente não é admissível e, mesmo que fosse, uma prova dessas da parte de uma criança com distúrbios de desenvolvimento apenas enfraqueceria o meu depoimento em como vira o carro. Mas ele estava errado. Não percebo por que razão não pude dizer ao júri que Michael ficou excitado quando pensou que vira o carro do avô. Creio que teria ajudado. A voz perdeu o ligeiro tremor. - Sra. McGrath, alguns minutos depois das nove daquela noite, um sedan Mercedes preto com quatro portas afastou-se da casa dos Reardon. Eu sei isso de certeza. Absolutamente. Jonathan Hoover não desfrutava o martini que tomava antes do jantar naquela noite. Habitualmente, apreciava aquela hora do dia, bebendo lentamente o gim suave diluído com apenas três gotas de vermute e enfeitado com duas azeitonas, sentado na poltrona de orelhas junto à lareira, conversando com Grace sobre o dia. Naquela noite, para além das suas preocupações naturais, era óbvio que alguma coisa preocupava Grace. Se as dores fossem mais fortes do que o habitual, sabia que ela jamais se queixaria. Nunca falavam do seu estado de saúde. Há muito tempo que aprendera a perguntar apenas: - Como te sentes, querida? A resposta era, inevitavelmente: - Menos mal. O ataque crescente de reumatismo ao corpo não impedia que Grace se vestisse com a elegância natural. Passara a usar mangas compridas e largas para encobrir os pulsos inchados, e à noite, mesmo que estivessem sós, escolhia vestidos de cerimónia soltos que escondiam a deformidade progressiva das pernas e dos pés. Sentada como estava, meio deitada no sofá, a curvatura na coluna vertebral não se via, e os olhos cinzentos e brilhantes ficavam mais lindos na pele branca como o alabastro. Somente as mãos, com os dedos nodosos e deformados, eram os indicadores visíveis da doença devastadora. Uma vez que Grace ficava sempre na cama até ao meio da manhã e Jonathan se levantava cedo, a noite era o período em que conversavam e tagarelavam. Naquele momento, Grace sorriu-lhe, com lassidão. - Sinto-me como se estivesse a mirar-me num espelho, Jon. Também estás preocupado com alguma coisa, e aposto que é o que te incomodava

antes, por isso deixa-me falar primeiro. Conversei com Kerry. Jonathan levantou as sobrancelhas. - E? - Receio que ela não tencione abandonar o caso Reardon. - Que foi que ela te disse? - É aquilo que ela não me disse. Foi evasiva. Ouviu-me, depois disse que tinha motivos para crer que o depoimento do Dr. Smith era falso. Reconheceu que não tinha um motivo concreto para crer que Reardon não era o assassino, mas sentia que tinha a obrigação de explorar a possibilidade de ter havido um erro judicial. O rosto de Jonathan enrubesceu, ficando vermelho-escuro da irritação. - Grace, há um ponto em que o sentido de justiça de Kerry raia o ridículo. Ontem à noite, consegui convencer o governador a adiar a apresentação ao senado dos nomes de candidatos à nomeação para a magistratura. Ele concordou. - Jonathan! - Era a única coisa que podia fazer, para não lhe pedir que retirasse a nomeação de Kerry por agora. Não tive outra alternativa. Grace, Prescott Marshall tem sido um governador de relevo. Sabes disso. Trabalhando com ele, tenho conseguido que o senado introduza as reformas necessárias à jurisprudência, reveja a estrutura dos impostos, atraia negócios para o Estado, na reforma da segurança social, o que não significa privar os pobres enquanto se procuram fraudes neste setor. Quero Marshall de volta daqui a quatro anos. Não sou grande admirador de Frank Green, mas, como governador, será um excelente apoiante dos juizes e não destruirá aquilo que Marshall e eu realizámos. Por outro lado, se Green falhar, e se o outro partido vencer, então tudo aquilo que realizámos será destruído. Repentinamente, a intensidade que a irritação provocara desapareceu do rosto, e Grace achou-o apenas muito cansado e marcado pelos seus 62 anos. - Convidarei Kerry e Robin para virem jantar no domingo - disse Grace. - Isso dar-te-á outra oportunidade para a chamares à razão. Não creio que o futuro de uma pessoa deva ser sacrificado por causa desse Reardon. - Vou telefonar-lhe hoje à noite - disse-lhe Jonathan. Geoff Dorso tocou à campainha da porta às sete e meia em ponto e foi recebido uma vez mais por Robin. Ainda trazia o fato de bruxa e a maquilhagem. As sobrancelhas estavam cheias de carvão. Pó branco cobria-

lhe a pele, exceto nos sítios em que as lacerações marcavam o queixo e a face. Uma peruca preta caía-lhe nos ombros. Geoff saltou para trás. - Assustaste-me. - Ótimo - disse Robin entusiasticamente. - Obrigada por ter chegado a horas. Esperam-me numa festa. Está agora a começar, e há um prémio para o traje mais assustador. Tenho de ir andando. - Vais ganhar de certeza - disse-lhe Geoff quando entrou no vestíbulo. Depois aspirou. - Há alguma coisa que cheira bem. - A mãezinha está a fazer pão de alho - explicou Robin, e depois gritou: - Mãezinha, o Sr. Dorso está aqui. A cozinha ficava na parte traseira da casa. Geoff sorriu quando a porta se abriu e Kerry apareceu, secando as mãos a uma toalha. Trazia umas calças verdes e uma camisola verde com capuz. Geoff não pôde deixar de reparar como a luz acentuava os fios doirados no seu cabelo e as sardas no nariz. «Parece ter vinte e três anos», pensou, e depois apercebeu-se de que o sorriso caloroso não disfarçava a preocupação no olhar. - Geoff, que prazer em vê-lo. Entre e ponha-se à vontade. Tenho de acompanhar Robin a uma festa ao fundo do quarteirão. - Por que não me deixa fazer isso? - Sugeriu Geoff. - Ainda tenho o casaco vestido. - Então está bem - disse Kerry devagar, analisando a situação, - mas deixe-a lá dentro, está bem? Quero dizer, não a deixe na alameda. - Mãezinha - protestou Robin, - já não tenho medo. A sério. - Mas eu tenho. «Que será?», interrogou-se Geoff. Disse: - Kerry, todas as minhas irmãs são mais novas que eu. Até ir para a faculdade, estava sempre a levá-las e a ir buscá-las, e Deus é testemunha de que as acompanhava até estarem em segurança para onde quer que fossem. Vai buscar a tua vassoura, Robin. Imagino que tenhas uma. Enquanto caminhavam ao longo da rua sossegada, Robin falou-lhe do carro que a assustara. - A mãezinha reage a tudo com calma, mas aposto que está a fingir confidenciou. Preocupa-se de mais comigo. Já estou arrependida de lhe ter contado. Geoff parou bruscamente e olhou para ela.

- Robin, presta atenção àquilo que te digo. É muito pior não contares à tua mãe quando uma coisa como essa acontecer. Promete-me que não cometerás esse erro. - Prometo. Já prometi à mãezinha. - Os lábios, exageradamente pintados, abriram-se num sorriso irónico. - Sou mesmo boa a manter promessas, exceto quando se trata de me levantar a horas. Detesto sair da cama. - Também eu - concordou Geoff com vivacidade. Passados cinco minutos, quando estava sentado num banco alto na cozinha a ver Kerry a fazer uma salada, Geoff decidiu tentar uma abordagem direta. - Robin contou-me o que aconteceu hoje de manhã disse. Há motivo para preocupação? Kerry partia alface, lavada há pouco, para dentro da taça da salada. - Um dos nossos investigadores, Joe Palumbo, conversou com Robin esta tarde. Está preocupado. Pensa que um carro que faz um pião a escassos metros do local por onde passa uma pessoa podia assustar qualquer um, mas Robin foi tão peremptória ao afirmar que uma janela se abriu e que depois surgiu uma mão com uma coisa apontada a ela... Joe sugeriu que alguém talvez lhe tivesse tirado uma fotografia. Geoff percebeu o tremor na voz de Kerry. - Mas porquê? - Não sei. Frank Green pensa que podia estar relacionado com aquele caso que querelei há pouco tempo. Não concordo. Podia ter pesadelos sem saber se um doido viu Robin e ficou com uma obsessão. Essa é outra possibilidade. Começou a partir a alface com fúria. - O problema é saber o que hei-de fazer. Como a protejo? - É muito duro ter essa preocupação sem a partilhar com alguém - disse Geoff calmamente. - Quer dizer, por ser divorciada? Por não haver aqui um homem que olhe por ela? Viu o rosto dela. Aquilo aconteceu quando estava com o pai. O cinto de segurança não estava apertado, e ele é o tipo de condutor que carrega a fundo no acelerador e depois faz paragens bruscas. Não me interessa se é coisa de machista ou se Bob Kinellen gosta de correr riscos. No caso dele, Robin e eu estamos melhor sozinhas. Cortou o último pedaço de alface, depois disse à guisa de desculpa: - Desculpe. Creio que escolheu a noite errada para comer pasta nesta

casa, Geoff. Não sou boa companhia. Mas isso não tem importância. Importantes são os meus encontros com o Dr. Smith e Dolly Bowles. Enquanto comiam a salada e o pão de alho, descreveu-lhe o encontro com o Dr. Smith. - Ele odeia Skip Reardon - disse. - É um tipo de ódio diferente. Notando a expressão de confusão no rosto de Geoff, acrescentou: - O que quero dizer é que, geralmente, quando lido com parentes de vítimas, a maior parte deles despreza o assassino e quer que seja punido. Aquilo que expressam é cólera tão impregnada de sofrimento que ambas as emoções se libertam. Os pais mostram, com frequência, fotografias da filha assassinada, quando era bebé, e fotografias da licenciatura, depois dizem que gênero de rapariga era e se ganhou um concurso de ortografia na oitava classe. Depois sucumbem e choram, o seu sofrimento é tão esmagador, e um deles, habitualmente o pai, diz que quer ficar cinco minutos a sós com o assassino, ou diz que gostaria de carregar no botão. Mas não vi nada disto em Smith. Nele só vi ódio. - Para si, que significa isso? - perguntou Geoff. - Significa que ou Skip Reardon é um assassino que mente ou que precisamos de descobrir se a profunda animosidade de Smith para com Skip Reardon é anterior à morte de Suzanne. Como parte da última circunstância, temos também de saber ao certo qual era a relação de Smith com Suzanne. Não se esqueça de que, segundo o depoimento dele, não a via desde o tempo em que era criança, apenas a viu quando tinha quase vinte anos. Então, um dia apareceu no consultório e apresentou-se. Pelas fotografias, vê-se que era uma mulher extraordinariamente atraente. - Ela levantou-se. - - Pense nisso enquanto misturo a pasta. Depois quero falar-lhe de Dolly Bowles e do «carro do Poppa». Geoff mal se apercebeu do sabor delicioso do linguine com molho de castanhola enquanto escutava o relato de Kerry sobre a visita a Dolly Bowles. - O ponto principal é este - concluiu ela -, a avaliar por aquilo que Dolly Bowles me diz, que tanto o nosso departamento como a sua gente ignoraram pura e simplesmente a possibilidade de o pequeno Michael se revelar uma testemunha de confiança. - Tim Farrell interrogou pessoalmente Dolly Bowles - recordou Geoff. Parece que me lembro de uma referência a uma criança de cinco anos com problemas de desenvolvimento ter visto um carro, mas não liguei.

- Não vai ser fácil provar - disse Kerry -, mas Joe Palumbo, o investigador de que lhe falei e que conversou com Robin, trouxe o Arquivo Reardon hoje à tarde. Quero examiná-lo para ver se aparecem alguns nomes... de homens com quem Suzanne pudesse ter alguma intimidade. Não deve ser muito difícil verificar na Divisão de Veículos Motorizados para ver se algum dos citados possuía um sedan Mercedes preto há dez anos atrás. Evidentemente que é possível que o carro estivesse registado no nome de outra pessoa, ou até que fosse alugado, e, nesse caso, não chegaremos a lado nenhum. Ela olhou para o relógio por cima do fogão da cozinha. - Ainda falta muito tempo - disse. Geoff sabia que falava em ir buscar Robin. - A que horas termina a festa? - Às nove. Geralmente, não há festas à noite durante a semana, mas o Dia das Bruxas é realmente uma noite especial para as crianças, não é? E que tal um espresso ou um café normal? Tenciono comprar uma máquina para cappucino, mas parece que nunca arranjo tempo. - Um espresso é ótimo. E, enquanto o tomamos, vou falar-lhe de Skip Reardon e Beth Taylor. Quando concluiu o relato do passado da relação de Beth com Skip, Kerry disse pausadamente: - Compreendo por que Tim Farrell teve medo de usar Taylor como testemunha, mas, se Skip Reardon estava apaixonado por ela na altura do crime, isso tende a tirar alguma credibilidade ao depoimento do Dr. Smith. - Exatamente. O comportamento de Skip ao ver Suzanne a arranjar flores que lhe tinham sido oferecidas por outro homem pode resumir-se em duas palavras: «Excelente libertação.» O telefone de parede tocou e Geoff olhou para o relógio. - Disse que Robin vinha às nove horas, não disse? Vou buscá-la enquanto está ao telefone. - Obrigada. - Kerry pegou no auscultador. - Está lá? - Ela ouviu, depois disse cordialmente: - Oh, Jonathan, ia telefonar-lhe. Geoff levantou-se e foi buscar o casaco ao armário. Enquanto regressavam a casa, Robin disse que se divertira muito na festa, apesar de não ter ganho o primeiro prémio pelo traje.

- A prima de Cassie estava lá - explicou ela. - Tinha um fato com um esqueleto, mas a mãe coseu-lhe ossos da sopa por todo ele. Creio que o tornou especial. Seja como for, obrigada por me acompanhar, Sr. Dorso. - Ganham uns, perdem outros, Robin. E por que não me chamas Geoff? No momento em que Kerry lhes abriu a porta, Geoff viu que havia algo de errado. Era óbvio que ela se esforçava por manter um sorriso e atenção enquanto ouvia a descrição entusiástica da festa que Robin fazia. Por fim, Kerry disse: - Muito bem, Robin, já passa das nove e prometes-te... - Eu sei. Já para a cama e sem arrastar os pés. - Robin beijou Kerry à pressa. - Adoro-te, mãezinha. Boa noite, Geoff. - Correu pelas escadas acima. Geoff olhava quando a boca de Kerry começou a tremer. Pegou-lhe no braço, levou-a para a cozinha e fechou a porta. - Qual é o problema? Ela tentou manter a voz firme. - O governador devia apresentar três nomes ao senado para serem aprovados para cargos judiciais. O meu era um deles. Jonathan pediu ao governador que adiasse por enquanto o processo, por minha causa. - O senador fez-lhe isso?! - exclamou Geoff. - Pensava que era o seu melhor amigo. - Em seguida, fitoua. - Espere um pouco. Isto tem alguma coisa a ver com o caso Reardon e Frank Green? Não precisava do aceno de cabeça para saber que estava certo. - Kerry, isso é horrível. Lamento muito. Mas você disse «adiado» e não «retirado». - Jonathan jamais retiraria a minha nomeação. Tenho a certeza. - A voz de Kerry já estava a ficar mais firme. - Mas também sei que não posso esperar que se comprometa publicamente por minha causa. Contei a Jonathan que estive hoje com o Dr. Smith e Dolly Bowles. - Qual foi a reação dele? - Não ficou impressionado. Pensa que se reabrir este caso estou a pôr em causa, desnecessariamente, a capacidade e a credibilidade de Frank Green e que me exponho às críticas por desperdiçar o dinheiro dos contribuintes num caso que foi resolvido há dez anos atrás. Salientou que cinco tribunais de última instância confirmaram a culpa de Reardon. Ela abanou a cabeça, como se tentasse libertar-se daqueles pensamentos. Em seguida, afastou-se de Geoff.

- Lamento que tenha desperdiçado o seu tempo desta maneira, Geoff, mas creio que cheguei à conclusão de que Jonathan tem razão. Um assassino está na prisão, por decisão de um grupo de jurados, e os tribunais têm estado de acordo com a manutenção da condenação. Por que razão penso que sei algo que eles não sabem? Kerry virou-se e olhou para ele. - O assassino está na prisão e terei de pôr isto de lado - disse ela com o máximo de convicção de que foi capaz. O rosto de Geoff contraiu-se de raiva e frustração contidas. - Muito bem, então. Adeus, Excelência - disse. - Obrigado pela pasta.

CAPÍTULO 12 Quarta-feira, 1 de Novembro

No laboratório

da sede do FBI em Quântico, quatro agentes observavam o ecrã do computador que formava o perfil do ladrão que assaltara a casa dos Hamilton em Chevy Chase durante o fim-de-semana. Ele puxara para cima a meia para poder olhar melhor para uma estatueta. A princípio, a imagem tirada pela câmara escondida parecera muito toldada, mas, depois de um aumento electrónico, ficaram visíveis alguns detalhes do rosto. «Provavelmente, não vai fazer nenhuma diferença», pensou Si Morgan, o agente mais antigo. «Ainda é muito difícil ver muito mais do que o nariz e o contorno da boca. Não obstante, era tudo o que tinham, e talvez espicace a memória de alguém.» - Tirem uma centena de cópias e façam-nas circular pelas famílias cujas casas foram assaltadas para ver se coincidem com o perfil do caso Hamilton. É pouco, mas, pelo menos, agora temos uma hipótese de apanhar aquele desgraçado. O rosto de Morgan tornou-se sério. - E só espero que, quando o apanharmos, possamos comparar a impressão digital do polegar com aquela que encontrámos na noite em que a mãe do congressista Peale perdeu a vida porque cancelara os planos para passar o fim-de-semana fora. Ainda era manhã cedo e já Wayne Stevens lia o jornal na sala comum da sua confortável casa em estilo espanhol, em Oakland, Califórnia. Aposentado há dois anos da sua companhia de seguros razoavelmente próspera, parecia um homem satisfeito. Mesmo em repouso, o seu rosto conservava uma expressão jovial. O exercício regular mantinha o corpo em forma. As duas filhas casadas e as famílias viviam a uma distância que se percorria em menos de meia hora. Estava casado com a terceira mulher, Catherine, há quase oito anos, e nesse tempo compreendera que os dois primeiros casamentos tinham deixado muito a desejar. Foi por isso que, quando o telefone tocou, não teve nenhum pressentimento de que a pessoa que telefonava ia evocar recordações desagradáveis. A voz tinha um sotaque acentuado da Costa Oriental.

- Sr. Stevens, sou Joe Palumbo, investigador do Departamento do Ministério Público de Bergen County, Nova Jérsia. A sua enteada era Suzanne Reardon, não era? - Suzanne Reardon? Não conheço ninguém com esse nome. Espere um pouco disse. Não está a falar de Susie, pois não? - Era assim que chamava a Suzanne? - Tive uma enteada que chamávamos Susie, mas o nome dela era Sue Ellen, não Suzanne. - Então percebeu que o inspector usara o pretérito «era». - Aconteceu-lhe alguma coisa? A cinco mil quilómetros de distância, Joe Palumbo agarrou o telefone com firmeza. - Não sabe que Suzanne, ou Susie, como o senhor lhe chama, foi assassinada há dez anos? - Carregou no botão que gravaria a conversa. - Meu Deus. A voz de Wayne Stevens tornou-se muito baixa. Não, claro que não sabia. Mando-lhe um cartão todos os anos pelo Natal ao cuidado do pai, o Dr. Charles Smith, mas há anos que não tenho notícias dela. - Quando foi a última vez que a viu? - Há dezoito anos, pouco depois de a minha segunda mulher, Jean, a mãe dela, ter morrido. Susie foi sempre uma rapariga inquieta, infeliz e, para falar com franqueza, difícil. Era viúvo quando a mãe dela e eu casámos. Eu tinha duas filhas jovens e adotei Susie. Jean e eu criámos as três. Então, depois de Jean morrer, Susie recebeu o dinheiro de uma apólice de seguro e anunciou que ia viver para Nova Iorque. Na altura, tinha dezanove anos. Uns meses mais tarde, recebi um bilhete bastante mordaz em que dizia que fora infeliz enquanto viveu aqui e não queria saber de nenhum de nós. Afirmava que ia viver com o pai verdadeiro. Bem, telefonei imediatamente ao Dr. Smith, mas ele foi extremamente rude. Disse-me que cometera um grave erro ao permitir que eu adotasse a filha. - Então Suzanne, quero dizer, Susie, nunca mais falou com o senhor? perguntou Joe Palumbo sem demora. - Nunca. Parecia que não havia nada a fazer se não deixar tudo como estava. Esperei que um dia aparecesse. Que lhe aconteceu? - Há dez anos, o marido foi acusado de a matar num acesso de ciúme... e condenado. Correram imagens na mente de Wayne Stevens. Susie, uma criança berrona, uma adolescente rechonchuda, mal-humorada, que se dedicou ao

golfe e ao ténis para se divertir mas que parecia não tirar prazer do seu próprio valor em nenhum dos desportos. Susie a ouvir o ruído que indicava que os telefonemas nunca eram para ela, a mostrar má cara às meias-irmãs quando os namorados as iam buscar, a bater com as portas quando andava no primeiro andar. - Com ciúmes por ela estar envolvida com outro homem? - perguntou ele devagar. - Sim. - Joe Palumbo percebeu a desorientação na voz do outro homem e compreendeu que o instinto de Kerry estava certo quando lhe pediu que investigasse o passado de Suzanne. - Sr. Stevens, não se importa de descrever o aspecto físico da sua enteada? - Sue era... - Stevens hesitou. - Não era uma rapariga bonita - disse rapidamente. - Tem fotografias dela que me pudesse enviar? - perguntou Palumbo. Refiro-me às que foram tiradas antes de ela vir para a Costa Oriental. - Claro. Mas, se isso aconteceu há dez anos, por que remexe nisso agora? - Porque uma das nossas advogadas pensa que há mais alguma coisa no caso do que aquilo que surgiu no julgamento. «Caramba, o pressentimento de Kerry tinha fundamento!», pensou Joe quando desligou o telefone depois de ter garantida a promessa de Wayne Stevens de enviar as fotografias de Susie no correio da noite. Kerry mal se acomodara no gabinete na quarta-feira de manhã quando a secretária lhe disse que Frank Green queria falar com ela. Ele não desperdiçou palavras. - Que aconteceu, Kerry? Disseram-me que o governador adiou a apresentação das nomeações para a magistratura. A indicação foi que estava a ter um problema com a sua inclusão. Há alguma coisa que não está bem? Posso fazer alguma coisa? «Bem, sim, de fato, há, Frank», pensou Kerry. «Pode dizer ao governador que aceite qualquer investigação que talvez revele um grave erro judiciário, mesmo que apanhe com um ovo na cara. Podia ser uma pessoa firme, Frank.» Em vez disso, afirmou: - Oh, tenho a certeza de que tudo se resolverá dentro de pouco tempo. - Não está de mal com o senador Hoover, pois não? - É um dos meus melhores amigos. - Quando se virou para sair, o

promotor disse: - Kerry, custa ficar na expectativa, à espera dessas nomeações. Olhe, a minha nomeação vem aí. Certo? Tenho pesadelos, desejando que não surja nenhum entrave. Ela acenou com a cabeça e deixou-o. De novo no gabinete, tentou desesperadamente concentrar-se no plano do julgamento. O grande júri condenara há pouco um suspeito num assalto a um posto de fornecimento de gasolina. A acusação foi tentativa de homicídio e assalto à mão-armada. O empregado fora alvejado e continuava nos Cuidados Intensivos. Se não sobrevivesse, a acusação passaria a ser de homicídio. Na véspera, o tribunal de última instância destruíra o veredito de culpada a uma mulher condenada por homicídio involuntário. Esse fora um caso importante, mas a decisão do tribunal de última instância, alegando que a defesa fora incompetente, pelo menos não se refletiu negativamente no advogado de acusação. Tinham planeado que Robin empunharia a Bíblia enquanto ela prestava juramento. Jonathan e Grace insistiram que comprariam as togas, duas para todos os dias e uma especial para as ocasiões cerimoniais. Margaret lembrava-lhe a toda a hora que ela, como a melhor amiga, seria autorizada a segurar a toga e a ajudá-la a vestir. «Eu, Kerry McGrath, juro solenemente que...» As lágrimas faziam-lhe arder os olhos quando ouviu de novo a voz impaciente de Jonathan. «Kerry, cinco tribunais de última instância consideraram Reardon culpado. Que se passa contigo?» Bem, ele tinha razão. Ao fim da manhã, telefonar-lhe-ia para lhe dizer que abandonara o caso. Ela apercebeu-se de que tinham batido à porta várias vezes. Com impaciência, passou as costas das mãos pelos olhos e exclamou: - Entre. Era Joe Palumbo. - É uma senhora esperta, Kerry. - Não tenho assim tanta certeza. Que se passa? - Disse que lhe veio ao espírito que o Dr. Smith poderia ter operado a filha. - Ele negou tudo, Joe. Eu contei-lhe. - Eu sei que contou, e também me pediu que investigasse o passado de Suzanne. Então, preste atenção.

Com um gesto floreado, Joe colocou um gravador em cima da secretária. - É a maior parte do meu telefonema ao Sr. Wayne Stevens, o padrasto de Suzanne Reardon. - Carregou no botão. Enquanto Kerry escutava, sentiu uma nova onda de confusão e emoções contraditórias. «Smith é um mentiroso», peitou ao recordar-se da sua fúria com a simples insinuação de que submetera a filha a uma intervenção cirúrgica. Era um mentiroso e um excelente ator. Quando terminou a conversa gravada, Palumbo sorriu na expectativa. - E agora, Kerry? - Não sei - disse ela devagar. - Não sabe? - Smith mente. - Ainda não sabemos. Esperemos por essas fotografias de Stevens antes de ficarmos demasiado entusiasmados. Muitas adolescentes desabrocham de repente depois de um bom corte de cabelo e um tratamento num salão de beleza. Palumbo, incrédulo, olhou para ela. - Claro que sim. E os porcos têm asas. Deidre Reardon percebera o desânimo na voz do filho quando falou com ele no domingo e na terça-feira, e foi por isso que decidiu, na quarta-feira, fazer a longa viagem de auto-carro, barco e de novo de auto-carro até à prisão de Trenton para o ver. Uma mulher baixa, que transmitira ao filho o cabelo ruivo e brilhante, os olhos azuis meigos e a compleição céltica, Deidre tinha agora o aspecto que os anos, que em breve seriam 70, lhe conferiam. O corpo forte dava sinais de fragilidade e o passo perdera parte da energia. O estado de saúde forçara-a a desistir do emprego de vendedora na AS, e agora completava o cheque da segurança social realizando algumas atividades clericais no setor paroquial. O dinheiro, que poupara durante os anos em que Skip era um homem de sucesso e era tão generoso com ela, já desaparecera, a maior parte gasto nas custas do tribunal dos recursos rejeitados. Ela chegou à prisão a meio da tarde. Porque era um dia da semana, apenas podia comunicar pelo telefone, com uma janela no meio deles. Desde o momento em que trouxeram Skip e viu a expressão do seu rosto, Deidre percebeu que o que mais temia acontecera. Skip perdera a esperança. Geralmente, quando estava muito desanimado, ela tentava distraí-lo falando da vizinhança e da paróquia, o tipo de bisbilhotice que alguém que

estava longe, mas que esperava voltar a casa em breve e queria manter-se a par das novidades, apreciaria. Naquele dia, sabia que essa conversa banal era inútil. - Skip, qual é o problema? - perguntou ela. - Mãezinha, Geoff telefonou ontem à noite. Aquela advogada do Ministério Público que me veio visitar... ela não vai continuar a trabalhar. Não se quer comprometer por minha causa. Fiz que Geoff fosse franco e não me enganasse. - Como se chamava ela, Skip? - perguntou Deidre, esforçando-se por parecer positiva. Conhecia o filho suficientemente bem para evitar lugarescomuns. - McGrath. Kerry McGrath. Parece que vai em breve ocupar um cargo de juiz. Com a sorte que tenho, vão colocá-la no tribunal de última instância, e, se Geoff alguma vez descobrir outro motivo para apresentar um recurso, ela lá estará para o rejeitar. - Não demoram muito tempo a colocar juizes nos tribunais de última instância? - perguntou Deidre. - Que importância tem isso? Não temos nada a não ser tempo, não é, mãezinha? - Depois Skip contou-lhe que se recusara a atender o telefonema de Beth nesse mesmo dia. - Mãezinha, Beth tem de continuar a viver. Jamais o conseguirá se passar a vida toda a preocupar-se comigo. - Skip, Beth ama-te. - Ela que ame outra pessoa. Eu fiz isso, não fiz? - Oh, Skip. - Deidre Reardon sentiu a falta de ar que precedia sempre o entorpecimento no braço e a dor aguda no peito. O médico avisara-a de que precisaria de outra operação para implantação do bypass se a angioplastia da semana seguinte não resultasse. Ainda não contara a Skip. Nem contaria naquele momento. Deidre reprimiu as lágrimas quando viu o sofrimento nos olhos do filho. Fora sempre um rapaz tão atilado. Nunca tivera o mínimo problema com ele quando crescia. Mesmo quando era bebé, quando estava cansado, nunca ficava rezingão. Uma das histórias de que mais gostava relacionadas com ele passara-se no dia em que gatinhara da sala de estar do apartamento até ao quarto e puxara o cobertor de proteção através das grades do berço, se embrulhara nele e adormecera no chão por debaixo do berço. Ela deixara-o sozinho na sala de estar enquanto preparava a ceia, e,

como não o encontrou a correr pelo pequeno apartamento, chamou o seu nome em voz alta, apavorada por pensar que pudesse ter saído de casa, ter-se perdido. Deidre teve a mesma sensação. De um modo diferente, Skip estava a perder-se. Involuntariamente, ela estendeu a mão e tocou no vidro. Queria abraçálo, aquele homem magnífico, bondoso, que era o seu filho. Queria dizer-lhe que não se preocupasse, que tudo se resolveria, tal como fizera há anos atrás quando algo o magoou. Naquele momento, sabia o que devia dizer. - Skip, não te quero ouvir falar assim. Não podes decidir que Beth vai deixar de te amar, porque ela ama-te. E eu vou falar com essa senhora, Kerry McGrath. Tem de existir um motivo para te ter visitado. Os advogados do Ministério Público não abandonam assim, sem mais nem menos, pessoas condenadas. Vou descobrir por que se interessou por ti e agora te abandona. Mas tens de colaborar; não te atrevas a desiludir-me, falando assim. A hora da visita chegara ao fim demasiado depressa. Deidre só chorou depois de o guarda levar Skip. Em seguida, esfregou os olhos com energia. A boca formou uma linha de determinação, levantou-se, esperou que a pontada no peito passasse e saiu com vivacidade. «Parece Novembro», pensou Barbara Tompkins enquanto percorria os dez quarteirões desde o escritório no cruzamento da Rua 68 com a Avenida Madison até ao seu apartamento na esquina da 61 com a 3.- Avenida. «Devia ter trazido um casaco mais forte. Mas que importância tinha andar uns quarteirões se se sentia tão bem?» Não havia um dia em que não se deleitasse com o milagre que o Dr. Smith lhe fizera. Parecia impossível que há menos de dois anos estivesse a trabalhar como escrava numa empresa de relações públicas em Albany, destacada para obter referências em revistas para insignificantes clientes de cosméticos. Nancy Pierce fora uma das poucas clientes com quem simpatizara. Nancy gracejava sempre, dizendo que era a Jane Recatada com um enorme complexo de inferioridade porque trabalhava com modelos deslumbrantes. A certa altura, Nancy fez umas férias prolongadas e voltou com o aspecto de um milhão de dólares. Publicamente, mesmo com orgulho, contou a toda a gente que fizera uma operação plástica. - Olhe - dissera ela. - A minha irmã tem cara de Miss América, mas está sempre a combater o peso. Diz que dentro dela existe uma rapariga magra a tentar sair a todo o custo. Eu sempre disse que dentro de mim existia uma

rapariga muito bonita que tentava sair a todo o custo. A minha irmã foi ao Golden Door. Eu fui ao Dr. Smith. Olhando para ela, para a descontração e confiança, Barbara prometera a si mesma: «Se um dia conseguir dinheiro, também irei àquele médico.» E, então, a querida e idosa tia Betty amealhara como recompensa pelos seus 87 anos e deixara 35 000 dólares a Barbara, com instruções para que saltasse de alegria e se divertisse com ele. Barbara lembrava-se da primeira visita ao Dr. Smith. Entrara na sala onde ela estava sentada na beira da mesa de observações. Os seus modos eram frios, quase assustadores. - Que deseja? - resmungara ele. - Desejo saber se me pode tornar bonita - dissera-lhe Barbara, com alguma hesitação. Depois, ganhando coragem, corrigira-se: - Muito bonita. Mudo, ficou em frente dela, virou um projetor, segurou-lhe no queixo, passou os dedos pelos contornos do rosto, examinou os malares e a testa e observou-a durante longos minutos. Em seguida recuou. - Porquê? Ela falou-lhe da mulher bonita que tentava sair da casca. Disse-lhe que sabia que não se devia preocupar tanto e, depois, exclamou: - Mas eu preocupo-me mesmo. Inesperadamente, ele sorrira, não era um sorriso rasgado, alegre, mas, não obstante, era um sorriso natural. - Se não se preocupasse, não me incomodaria - dissera-lhe. O processo que estabelecera fora incrivelmente complicado. As operações deram-lhe um queixo, reduziram-lhe as orelhas e tiraram-lhe os círculos negros por debaixo dos olhos e as pálpebras pesadas, para que se tornassem largas e luminosas. A cirurgia tornou os lábios carnudos e provocadores, removeu as cicatrizes do acne nas faces, estreitou o nariz e levantou as sobrancelhas. Chegou a haver um processo para lhe esculpir o corpo. Em seguida, o médico mandou-a ir a um salão de beleza para que lhe mudassem o cabelo castanho-cor-de-rato para castanho-escuro como o carvão, um tom que realçava a tez aveludada que ele conseguira por meio de descamação da epiderme com ácido. Outra especialista no salão ensinou-lhe as subtilezas da aplicação da maquilhagem.

Por fim, o médico disse-lhe que investisse o que restava da herança inesperada em roupas e mandou-a com uma compradora especial aos ateliers de um estilista na 7.B Avenida. Com a orientação da compradora, acumulou o primeiro guarda-roupa sofisticado que tivera na vida. O Dr. Smith persuadiu-a a ir viver para Nova Iorque, disse-lhe onde devia procurar um apartamento e até mostrou interesse em examinar o que ela encontrara. Então, insistiu para que fosse fazer exames de três em três meses. Tinha sido um ano vertiginoso desde que se mudara para Manhattan e começara a trabalhar em Price e Vellone. Vertiginoso mas excitante. Barbara divertia-se imenso. Mas, enquanto percorria o último quarteirão antes do seu apartamento, olhou com nervosismo por cima do ombro. Na noite anterior, jantara com uns clientes no The Mark Hotel. Quando saíam, vira o Dr. Smith sentado a uma pequena mesa junto à parede, sozinho. Na semana anterior, vira-o de relance no Oak Room, no Plaza. Nessa altura não ligara, mas uma noite no mês anterior, quando se encontrou com clientes nas Quatro Estações, tivera a impressão de que alguém a vigiava do interior de um carro no outro lado da rua quando chamou um táxi. Barbara sentiu uma onda de alívio quando o porteiro a saudou e lhe abriu a porta. Então, uma vez mais, olhou por cima do ombro. Um Mercedes preto estava parado no meio do trânsito mesmo em frente do edifício de apartamentos. Não havia possibilidade de confundir o condutor, embora o rosto estivesse parcialmente virado como se ele olhasse para o outro lado da rua. «O Dr. Smith». - Sente-se bem, Sra. Tompkins? - perguntou o porteiro. - Está com aspecto de quem não se sente lá muito bem. - Não. Obrigada. Estou bem. - Barbara entrou rapidamente no vestíbulo. Enquanto esperava pelo elevador, pensou: «Ele está a seguir-me. Mas que é que eu posso fazer?» Embora Kerry tivesse preparado a Robin uma das suas refeições favoritas peitos de galinha cozidos, batatas cozidas, feijão verde, salada de legumes e biscoitos, comeram praticamente em silêncio. Desde o momento em que Kerry chegou a casa e Alison, a baby-sitter que frequentava a faculdade, segredara: «Parece que Robin está aborrecida», Kerry dispensara-a.

Enquanto preparava o jantar, Robin sentou-se ao balcão a fazer os trabalhos da escola. Kerry esperara por uma oportunidade para falar com ela, em busca de um indício, mas Robin parecia muito ocupada com os deveres. Kerry, mesmo assim, ainda perguntou: - Tens a certeza de que já terminaste, Rob?... - antes de pôr o jantar na mesa. Depois de começar a comer, Robin ficou manifestamente mais descontraída. - Hoje ao almoço comeste tudo? - perguntou Kerry, quebrando finalmente o silêncio, tentando parecer indiferente. - Pareces estar com fome. - Claro, mãezinha. Quase tudo. - Percebo. Kerry pensou: «Ela é tão parecida comigo. Se está ofendida, resolve tudo sem ajuda. Que pessoa tão reservada.» Então, Robin disse: - Gosto de Geoff. É bem-disposto. «Geoff.» Kerry baixou os olhos e concentrou-se a cortar a galinha. Não se queria lembrar do comentário irónico, que desarmava qualquer pessoa, quando saía naquele dia. «Boa noite, Excelência.» «Hum-hum», respondeu ela, na esperança de comunicar o fato de que Geoff não tinha importância nas suas vidas. - Quando é que ele volta? - perguntou Robin. Era a vez de Kerry ser evasiva. - Oh, não sei. Na realidade, ele só veio por causa de um caso em que está a trabalhar. Robin parecia confusa. - Acho que não devia ter contado ao paizinho. - De que estás a falar? - Bem, ele dizia que quando fores juíza, provavelmente, conhecerás muitos juizes e acabarás por casar com um. Não tencionava falar-lhe de ti, mas disse que um advogado com quem simpatizo tinha vindo cá a casa à noite para tratar de um assunto, e o paizinho perguntou quem era. - E tu disseste-lhe que era Geoff Dorso. Não há nada de mal nisso. - Não sei. Pareceu-me que o paizinho ficou aborrecido comigo. Tínhamo-nos divertido, depois ficou calado e disse-me para acabar o camarão. Estava na hora de regressarmos. - Rob, o paizinho não tem interesse em saber com quem eu saio, e

certamente Geoff Dorso não tem nenhuma relação pessoal com ele nem com nenhum dos clientes dele. Neste momento, o paizinho está envolvido num caso muito difícil. Talvez o tenhas distraído por algum tempo, e depois, quase no fim do jantar, recomeçou a pensar nele. - Julgas que sim? - perguntou Robin, esperançada, enquanto os olhos ficavam brilhantes. - Julgo que sim - disse Kerry com firmeza. - Já me viste quando confundo tudo porque estou num julgamento. - Robin começou a rir. - Oh, se vi! Às nove horas, Kerry foi espreitar Robin, que estava sentada na cama a ler. - Apagar as luzes - disse com determinação quando se aproximou para lhe aconchegar a roupa. - Está bem - disse ela com relutância. Enquanto se enfiava debaixo da roupa, disse: - Mãezinha, estava a pensar. Lá porque Geoff veio cá em trabalho, não quer dizer que não possamos convidá-lo, pois não? Ele simpatiza contigo. Aposto. - Oh, Rob, ele é apenas um desses indivíduos que gosta das pessoas, mas certamente não está interessado em mim. - Cassie e Courtney viram-no quando me foi buscar. Acham-no bonito. «Eu também acho», pensou Kerry quando apagou a luz. Desceu as escadas, planejando fazer um balanço do livro de cheques. Mas, quando se aproximou da secretária, fitou durante um longo minuto o ficheiro Reardon que Joe Palumbo lhe dera na véspera. Depois abanou a cabeça. «Esquece», disse para com os seus botões. «Mantém-te afastada disso.» «Mas não faria mal dar-lhe apenas uma vista de olhos», concluiu. Pegou nele, levou-o para a sua cadeira favorita, colocou o ficheiro na pequena almofada a seus pés, abriu-o e escolheu o primeiro maço de papéis. O relatório revelava que a chamada fora recebida às 12:20. Skip Reardon ligara para a telefonista e gritara com ela para que o pusesse em contato com a Polícia de Alpine. «A minha mulher está morta, a minha mulher está morta», repetira várias vezes. A Polícia comunicou que dera com ele ajoelhado ao lado dela, a chorar. Contou à Polícia que, assim que entrou em casa, percebera que estava morta e não lhe tocara. A jarra onde tinham estado as rosas sweeheart estava derrubada. As rosas estavam espalhadas sobre o corpo.

Na manhã seguinte, quando a mãe estava com ele, Skip Reardon declarara que tinha a certeza de que desaparecera um alfinete com diamantes. Disse que se lembrava dele em particular porque era uma das peças que ele não lhe dera, que tinha a certeza de que devia ter sido outro homem que lho oferecera. Jurou também que uma pequena moldura com a fotografia de Suzanne, que estava lá naquela manhã, desaparecera. Às onze horas, Kerry chegou ao depoimento de Dolly Bowles. Era essencialmente a mesma história que narrara quando Kerry a visitou. Os olhos de Kerry ficaram mais estreitos quando verificou que um tal Jason Arnott fora interrogado no decorrer da investigação. No seu depoimento, Arnott descrevia-se como um perito em antiguidades, que, por uma comissão, acompanhava mulheres a leilões em lugares como a Sotheby's e a Christie's e as aconselhava a fazer lançes sobre determinados objetos. Afirmou que gostava de receber convidados e que Suzanne ia frequentemente aos cocktails e jantares, por vezes na companhia de Skip, mas habitualmente sozinha. A nota do investigador revelava que se informara junto de amigos mútuos de Suzanne e Arnott e que não havia nenhum indício de um interesse romântico entre eles. Na realidade, um amigo comentou que Suzanne gostava de flertar e se ria de Arnott, chamando-lhe «Jason, o Assexuado». «Até aqui nada de novo», concluiu Kerry quando terminou a primeira metade do ficheiro. A investigação foi minuciosa. Através da janela aberta, o leitor dos parquímetros do Serviço Público ouvira Skip gritar com Suzanne ao pequeno-almoço. «Caramba, como grita aquele tipo», foi o comentário dele. «Lamento, Geoff», pensou Kerry quando se preparava para fechar a pasta. Os olhos ardiam-lhe. Veria superficialmente o resto no dia seguinte e devolvê-lo-ia. Depois olhou de relance para o relatório seguinte. Era a entrevista com o ajudante do Clube de Ténis de Palisades, de que eram membros Suzanne e Skip. Um nome atraiu a atenção de Kerry, e pegou no outro maço de papéis, e a ideia de se ir deitar desapareceu repentinamente. O nome do ajudante era Michael Vitti, e sabia tudo a respeito de Suzanne Reardon. «Toda a gente gostava de ir apanhar as bolas para ela. Era simpática. Gracejava com os ajudantes e dava boas gorjetas. Jogava com muitos homens. Era boa, mesmo boa. Muitas mulheres casadas irritavam-se porque todos os homens gostavam dela.» Tinham perguntado a Vitti se

achava que Suzanne tinha uma relação com algum dos homens. «Oh, não sei», dissera. «Nunca a vi a sós com ninguém. Os dois pares voltavam sempre juntos para o restaurante, percebe o que quero dizer?» Mas, quando pressionado, disse que talvez houvesse alguma coisa entre Suzanne e Jimmy Weeks. Foi o nome de Jimmy Weeks que surpreendeu Kerry. Segundo as notas do investigador, o comentário de Vitti não fora tomado a sério porque, embora se soubesse que Weeks era um mulherengo, quando o interrogaram sobre Suzanne, negou peremptoriamente que tivesse estado com ela fora do clube e declarou que tinha uma relação muito séria com outra mulher naquela altura, e, além disso, tinha um álibi muito forte para a noite do homicídio. Em seguida, Kerry leu a última parte da entrevista do ajudante. Admitiu que o Sr. Weeks tratava todas as mulheres praticamente do mesmo modo e chamava à maior parte delas coisas como Doçura, Querida e Amor. Perguntaram ao ajudante se Weeks tinha um nome especial para Suzanne. A resposta: «Bem, algumas vezes ouvi-o chamar-lhe Sweetheart.» Kerry deixou cair os papéis no regaço. Jimmy Weeks. O cliente de Bob. «Fora por isso que o seu comportamento mudara tão de repente quando Robin lhe disse que Geoff Dorso a visitara para tratar de um assunto sério?» Sabia-se perfeitamente que Geoff Dorso representava Skip Reardon e que tentava persistentemente, mas sem êxito, há dez anos, um novo julgamento para ele. «Algumas vezes ouvi-o chamar-lhe Sweetheart.» As palavras não saíam do pensamento de Kerry. Profundamente perturbada, fechou a pasta e foi-se deitar. O ajudante do campo de ténis não fora chamado a depor. Nem Jimmy Weeks. «A equipa da defesa interrogara alguma vez o ajudante? Se não, deviam ter feito isso», pensou ela. «Falaram com Jason Arnott sobre qualquer outro homem pelo qual Suzanne se pudesse ter mostrado interessada nas suas festas?» «Esperarei que cheguem as fotografias enviadas pelo padrasto de Suzanne», disse para consigo mesma. «Provavelmente não é nada, ou pelo menos nada mais do que contei hoje a Joe. Talvez Suzanne tivesse feito uma operação plástica quando veio para Nova Iorque. Tinha dinheiro da apólice do seguro da mãe. E o Dr. Smith negou, de fato, ter submetido Suzanne a qualquer tipo de intervenção cirúrgica.» «Espera e verás», disse para si mesma. Um bom conselho, uma vez que de momento era tudo o que podia fazer.

CAPÍTULO 13 Quinta-feira, 2 de Novembro

Na quinta-feira

de manhã, Kate Carpenter chegou ao consultório às nove menos um quarto. Não havia operações agendadas, e a primeira paciente só chegaria às dez horas, por isso o Dr. Smith ainda não tinha vindo. A recepcionista estava sentada à secretária, com uma expressão de preocupação no rosto. - Kate, Barbara Tompkins quer que lhe telefone, e pediu que não falassem do telefonema ao Dr. Smith. Diz que é muito importante. - Ela não está com problemas por causa da cirurgia? - perguntou Kate, alarmada. - Já foi há um ano. - Não disse nada a esse respeito. Informei-a de que não demoraria. Está em casa à espera do seu telefonema. Sem parar para despir o casaco, Kate entrou no gabinete do tamanho de um armário que o contabilista utilizava, fechou a porta e marcou o número de Tompkins. Cada vez mais assustada, escutou enquanto Barbara lhe comunicava que tinha a certeza absoluta de que o Dr. Smith a seguia de um modo obsessivo. - Não sei que fazer - disse ela. - Estou-lhe muito grata. Sabe disso, Sra. Carpenter. Mas começo a ficar apavorada. - Nunca a abordou? - Não. - Então deixe-me pensar nisso e falar com algumas pessoas. Suplico-lhe que não comente isto com ninguém. O Dr. Smith tem uma excelente reputação. Seria lamentável destruí-la. - Jamais poderei pagar ao Dr. Smith aquilo que fez por mim - disse Barbara Tompkins serenamente. - Mas, por favor, volte a telefonar-me sem demora. Às onze horas, Grace Hoover telefonou a Kerry e convidou-a, e a Robin, para jantar no domingo. - Ultimamente, quase não nos temos visto - disse-lhe Grace. - Espero que possam vir. Célia vai esmerar-se, prometo. Célia era a empregada dos fins-de-semana e melhor cozinheira do que a

empregada de segunda a sexta-feira. Quando sabia que Robin vinha, Célia fazia biscoitos e bolachas com raspa de chocolate para ela levar para casa. - Claro que iremos - disse Kerry com cordialidade. «O domingo é o dia da família», pensou quando desligou o telefone. A maior parte das tardes de domingo procurava fazer algo de especial com Robin, como ir a um museu ou a um cinema ou ocasionalmente a um espetáculo da Broadway. «Se ao menos o pai fosse vivo», pensou. «Ele e a mãe estariam a viver aqui perto quase todo o ano. E se Bob Kinellen fosse o homem que eu pensava que ele era...» Mentalmente, tentou livrar-se daqueles pensamentos. «Robin e eu somos umas felizardas por termos Jonathan e Grace», recordouse. «Estão sempre dispostos a ajudar-nos.» Janet, a secretária, entrou e fechou a porta. - Kerry, marcou algum encontro com uma tal Sra. Deidre Reardon e esqueceu-se de me dizer? - Deidre Reardon? Não, não marquei. - Ela está na sala de espera e diz que vai lá ficar até que a receba. Quer que chame o segurança? «Meu Deus», pensou Kerry. «A mãe de Skip Reardon! Que quererá?» Não. Diga-lhe que entre, Janet. - Deidre Reardon foi direita ao assunto. - Não costumo forçar a entrada nos gabinetes das pessoas, Sra. McGrath, mas isto é demasiado importante. Foi visitar o meu filho à prisão. Algo lhe fez pensar se não teria havido um erro judicial. Eu sei que houve. Conheço o meu filho e sei que está inocente. Mas por que razão, depois de falar com Skip, não o quis ajudar? Sobretudo tendo em conta o que se descobriu acerca do Dr. Smith. - Não é que não quisesse ajudá-lo, Sra. Reardon. É que eu não posso ajudá-lo. Não há provas novas. É estranho que o Dr. Smith tenha dado a outras mulheres o rosto da filha, mas não é ilegal, e talvez seja um modo de suportar a perda. A expressão de ansiedade de Deidre Reardon transformou-se em cólera. - Sra. McGrath, o Dr. Smith não conhece o significado da palavra «perda». Vi-o poucas vezes nos quatro anos em que Suzanne e Skip estiveram casados. Não queria. Havia qualquer coisa absolutamente doentia na atitude dele para com a filha. Lembro-me de um dia, por exemplo, em que Suzanne tinha uma mancha na face. O Dr. Smith aproximou-se e limpou-a. Parecia que estava a limpar o pó a uma estátua, a avaliar pela forma como

examinava o rosto dela para se certificar de que tirara tudo. Tinha orgulho nela. Garanto-lhe. Mas afeto? Não. Geoff falara no comportamento imperturbável de Smith quando estava na barra das testemunhas, pensou Kerry. «Mas isso não prova nada.» - Sra. Reardon, compreendo como se deve sentir - começou ela. - Não, desculpe, mas não compreende - interrompeu Deidre Reardon. O meu filho é incapaz de um ato de violência. Nem tiraria deliberadamente o cordão da cintura de Suzanne e lho enrolaria ao pescoço e a estrangularia, tal como nem a senhora nem eu seríamos capazes de uma coisa dessas. Pense no tipo de pessoa que poderia cometer um crime como aquele. Que tipo de monstro é ele? Porque esse monstro, capaz de matar outro ser humano de uma forma tão depravada, estava na casa de Skip naquela noite. Agora pense em Skip. Os olhos de Deidre Reardon estavam rasos de água quando exclamou: - Captou a sua natureza, a sua bondade? É cega e surda, Sra. McGrath? Parece-lhe que o meu filho tem o aspecto e fala como um assassino? - Sra. Reardon, examinei este caso apenas por causa da minha preocupação com a obsessão do Dr. Smith com o rosto da filha, não porque pensava que o seu filho era inocente. Isso competia aos tribunais decidir, e foi o que fizeram. Ele apresentou uma série de recursos. Não há nada que eu possa fazer. - Sra. McGrath, suponho que tem uma filha, não tem? - Sim, tenho. - Então tente imaginá-la presa dez anos, enfrentando mais vinte anos naquela cadeia por um crime que ela não cometeu. Pensa que um dia a sua filha seria capaz de matar? - Não, não penso. - Nem o meu filho. Por favor, Sra. McGrath, está em posição de ajudar Skip. Não o abandone. Não sei por que razão o Dr. Smith mentiu acerca de Skip, mas creio que já compreendo. Tinha ciúmes dele porque Skip era casado com Suzanne, com tudo o que isso implica. - Sra. Reardon, como mãe, compreendo que tenha o coração destroçado - disse Kerry serenamente enquanto observava o rosto marcado pelo tempo e ansioso. Deidre Reardon levantou-se. - Vejo que rejeita tudo o que lhe estou a dizer, Sra. McGrath. Geoff

disse que vai ser juíza. Deus ajude aqueles que se lhe apresentem a implorar justiça. Então, enquanto Kerry olhava, a tez da mulher ficou com um terrível tom cinzento. - Sra. Reardon, que se passa? - exclamou ela. Com as mãos trémulas, a mulher abriu a bolsa, tirou um pequeno frasco e sacudiuo até cair um comprimido na palma. Meteu-o debaixo da língua, virou-se e saiu em silêncio do gabinete. Durante longos minutos, Kerry ficou a olhar fixamente para a porta fechada. Em seguida pegou numa folha de papel. Nela escreveu: 1. O Dr. Smith mentiu quando disse que não operou Suzanne? 2. O pequeno Michael viu um sedan Mercedes preto de quatro portas em frente da casa dos Reardon quando Dolly Bowles tomava conta dele naquela noite? E os números da matrícula que Dolly afirma ter visto? 3. Jimmy Weeks estaria envolvido com Suzanne, e, se era verdade, será que Bob sabe alguma coisa e receia que venha a saber-se? Examinou a lista enquanto a imagem do rosto sincero e aflito de Deidre Reardon a atormentava acusadoramente. Geoff Dorso estivera a participar num caso no tribunal em Newark. No último instante conseguira um acordo para o seu cliente, um rapaz de 18 anos que andava a divertir-se com amigos no carro do pai quando colidiu com um caminhão cujo motorista sofrera fraturas no braço e na perna. Mas não estava em causa consumo de bebidas alcoólicas e o rapaz era ajuizado e estava sinceramente arrependido. Segundo o estabelecido pelo acordo, apanhou a suspensão por dois anos da carta de condução e foi obrigado a cumprir cem horas de serviço comunitário. Geoff ficou satisfeito; mandá-lo para a cadeia em vez da faculdade teria sido um erro grave. Agora, na quinta-feira à tarde, Geoff podia dar-se ao luxo de não ter nada programado, o que era invulgar, e decidiu ir assistir ao julgamento de Jimmy Weeks. Queria ouvir os argumentos de abertura. Também estava ansioso por ver Bob Kinellen em ação, admitiu para si próprio. Sentou-se no fundo da sala do tribunal. Reparou que estavam presentes muitos representantes da comunicação social. Jimmy Weeks conseguira evitar o requisitório tantas vezes que tinham passado a chamar-lhe «Teflon Jimmy», uma paródia sobre o membro da Mafia que fora conhecido como «Teflon Don», atualmente a cumprir uma pena de prisão perpétua.

Kinellen iniciava a declaração de abertura. «É calmo», pensou Geoff. «Sabe como lidar com o júri, sabe quando deve parecer indignado, depois ofendido, sabe como pôr a ridículo as acusações. Também tem um aspecto impecável», pensou Geoff, tentando imaginar Kerry casada com aquele indivíduo. Mas não foi capaz. Ou talvez não quisesse, admitiu para consigo mesmo. «Pelo menos», pensou, sentindo algum consolo, «ela não parece estar muito dependente de Kinellen.» - Mas que importância tinha isso?, interrogou-se quando o juiz declarou um intervalo. Foi abordado por Nick Klein no corredor, um jornalista do Star-Ledger. Trocaram cumprimentos, depois Geoff comentou: - Há muita gente vossa aqui, não há? - Espera-se fogo-de-artifício - disse-lhe Nick. - Tenho um informante no departamento do procurador-geral. Barney Haskell está a tentar fazer um acordo. Aquilo que lhe oferecem não é suficientemente bom. Agora insinua que pode associar Jimmy a um homicídio pelo qual outra pessoa está a cumprir pena de prisão. - Quem me dera ter uma testemunha como essa para um dos meus clientes - comentou Geoff. Às quatro horas, Joe Palumbo recebeu uma encomenda por correio expresso com o remetente de Wayne Stevens em Oakland, Califórnia. Abriua imediatamente e retirou com impaciência os dois maços de instantâneos presos com elásticos. Um deles trazia um bilhete. Dizia: Caro Sr. Palumbo, O choque com a morte de Susie só me atingiu na sua plenitude quando comecei ajuntar estas fotografias para si. Tenho muita pena. Susie foi uma criança difícil de criar. Creio que estas fotografias contam a história. As minhas filhas eram muito bonitas desde o tempo em que eram bebés. Susie não era. À medida que as raparigas iam crescendo, da parte de Susie começou a haver uma enorme inveja e infelicidade. A mãe de Susie, a minha mulher, tinha grande dificuldade em ver as enteadas a desfrutarem a adolescência enquanto a sua filha era tão desesperadamente insegura e praticamente não tinha amigos. Receio que a situação tenha provocado uma série de conflitos em casa. Creio que sempre tive esperança de que surgiria um dia à porta uma Susie madura, bem adaptada, e que teríamos uma reunião maravilhosa. Ela tinha muitos dons que não apreciava.

Mas, por agora, espero que as fotografias ajudem. Atenciosamente, Wayne Stevens Passados vinte minutos, Joe entrava no gabinete de Kerry. Deixou cair os instantâneos em cima da secretária. - Só para o caso de pensar que Susie... desculpe, quero dizer Suzanne... se tornou uma beldade por causa de um novo corte de cabelo - comentou. Kerry telefonou às cinco horas para o consultório do Dr. Smith. Já tinha saído. Prevendo isso, perguntou a seguir: - A Sra. Carpenter está? Quando Kate Carpenter atendeu o telefone, Kerry disse: - Sra. Carpenter, há quanto tempo trabalha com o Dr. Smith? - Quatro anos, Sra. McGrath. Por que pergunta? - Bem, por causa de uma coisa que disse, fiquei com a ideia de que trabalhava com ele há mais tempo. - Não. - Porque queria saber se estava aí quando o Dr. Smith operou a filha, Suzanne, ou se foi um colega dele que a operou. Posso dizer-lhe como era. No seu consultório, vi duas pacientes e perguntei o nome delas. Barbara Tompkins e Pamela Worth são o retrato vivo da filha do Dr. Smith, pelo menos como ela parecia depois de uma extensa cirurgia plástica, não como quando nasceu. Ela ouviu a mulher a arfar. - Não sabia que o Dr. Smith tinha uma filha - disse a Sra. Carpenter. - Ela faleceu há cerca de onze anos, assassinada, como o júri concluiu, pelo marido. Ele ainda está na prisão e continua a declarar a sua inocência. O Dr. Smith foi a principal testemunha contra ele. - Sra. McGrath - disse a Sra. Carpenter, - sinto que estou a ser muito desleal para com o Dr. Smith, mas penso que é muito importante que fale imediatamente com Barbara Tompkins. Eu dou-lhe o número. Depois, a enfermeira falou do telefonema da mulher assustada. - O Dr. Smith anda a perseguir Barbara Tompkins! - disse Kerry, enquanto lhe vinham ao espírito os motivos que levariam àquele comportamento. - Bem, seja como for, anda a segui-la - disse a Sra. Carpenter na defensiva. - Tenho os dois números, de casa e do escritório. Kerry anotou-os. - Sra. Carpenter, tenho de falar com o Dr. Smith, mas duvido que

concorde em receber-me. Ele vai aí amanhã? - Sim, mas tem a agenda cheia. Só estará livre depois das quatro. - Então, estarei aí, mas não lhe diga que vou. - Kerry lembrou-se de uma pergunta. - O Dr. Smith tem carro? - Oh, sim. A casa dele fica em Washington Mews. Vive numa carruagem convertida em casa e tem uma garagem, por isso para ele é fácil ter um. - Que tipo de carro conduz? - O mesmo que sempre tem conduzido. Um sedan Mercedes de quatro portas. Kerry agarrou o telefone com mais força. - De que cor é? - Preto. - Diz «sempre tem conduzido». Quer dizer que ele escolhe sempre um sedan Mercedes preto? - Quero dizer que conduz o mesmo carro há pelo menos doze anos. Sei porque o ouvi falar dele a uma das pacientes que, por acaso, é administradora da Mercedes. - Obrigada, Sra. Carpenter. - Quando Kerry pousou o auscultador, Joe Palumbo reapareceu. - Eia, Kerry, a mãe de Skip Reardon esteve aqui para falar consigo. - Esteve. - O nosso líder viu-a e reconheceu-a. Ia a correr para uma reunião com o governador. Quer saber que diabo estava ela a fazer aqui a perguntar por si. Quando Geoff Dorso chegou a casa na quinta-feira à noite, ficou parado junto à janela do condomínio e a fitar a linha do horizonte de Nova Iorque. A recordação da forma sarcástica como chamara a Kerry «Excelência» atormentara-o todo o dia, mas afastara isso resolutamente do espírito. Sozinho naquele momento, e no fim do dia, tinha de enfrentar o fato. «Que atrevimento o meu», pensou. «Kerry era suficientemente correta para me telefonar a pedir que lesse a cópia. Foi correta quando falou com o Dr. Smith e Dolly Bowles. Fez a viagem para Trenton para se encontrar com Skip Reardon. Por que não devia preocupar-se com a perda do cargo de juiz, sobretudo se, honestamente, não acredita que Skip esteja inocente? Não tinha o direito de falar com ela daquele modo, e devo-lhe uma desculpa», pensou, «se bem que não a culpe se me desligar o telefone. Enfrenta isso», disse para

consigo próprio. «Estavas convencido de que quanto mais ela examinasse o homicídio Sweetheart mais facilmente acreditaria que Skip estava inocente. Mas por que teria assim tanta certeza? Ela tinha o direito de concordar com o júri e com o tribunal de última instância, e foi indecente insinuar que ela estava a ser egoísta.» Meteu as mãos nos bolsos. Era 2 de Novembro. Dentro de três semanas seria o Dia de Ação de Graças. Outro Dia de Ação de Graças na prisão para Skip Reardon. E, nessa altura, a Sra. Reardon iria fazer outra angioplastia. Dez anos à espera de um milagre que deixara marcas nela. «Uma coisa, porém, resultou de tudo isto», recordou. «Kerry podia não acreditar na inocência de Skip, mas abrira dois processos de investigação que Geoff seguiria. A história de Dolly Bowles do carro do Poppa, um sedan Mercedes preto de quatro portas, era um, e o outro era a estranha necessidade do Dr. Smith de repetir o rosto de Suzanne noutras mulheres. Pelo menos, eram duas novas perspectivas daquilo que se tornara uma história muito familiar.» O toque do telefone interrompeu os pensamentos. Sentiu vontade de não atender, mas anos a ouvir a mãe a dizer com ironia: «Como és capaz de não atender o telefone, Geoff? Se tu sabes que são notícias sobre um pote de ouro» levou-o a pegar nele. Era Deidre Reardon que telefonava para lhe falar da visita a Skip e depois a Kerry McGrath. - Deidre, não disse isso a Kerry!? - perguntou Geoff. Não fez esforço para esconder o quanto ficara aborrecido com o que ela fizera. - Sim, disse. E não estou arrependida - disse-lhe a Sra. Reardon. - Geoff, a única coisa que mantém Skip vivo é a esperança. Aquela mulher, sozinha, apagou aquela esperança. - Deidre, graças a Kerry tenho novas pistas que vou seguir. Podem ser muito importantes. - Ela foi visitar o meu filho, olhou para a cara dele, interrogouo e concluiu que era um assassino - disse a Sra. Reardon. - Lamento, Geoff, creio que estou a ficar velha, cansada e amarga. Não me arrependo de uma só palavra daquilo que disse a Kerry McGrath. Desligou sem se despedir. Geoff respirou fundo e marcou o número de Kerry. Quando Kerry chegou a casa e a ama se tinha ido embora, Robin olhou para ela com uma expressão inquiridora. - Pareces desorientada, mãezinha.

- Filha, estou desorientada. - Um dia duro? - Dir-se-ia que sim. - O Sr. Green não te larga? - Não vai largar. Mas não falemos disso. Creio que é melhor esquecer isso por agora. Como foi o teu dia? - Ótimo. Acho que Andrew gosta de mim. - A sério? - Kerry sabia que Andrew era considerado o rapaz mais fixe do quinto ano. - Como sabes? - Ele disse a Tommy que, mesmo com a cara cheia de ligaduras, sou mais bonita que a maioria das raparigas da minha turma. Kerry sorriu. - Isso é o que eu chamo um elogio. - Foi o que pensei. Que vamos comer ao jantar? - Passei pelo supermercado. Que tal um cheeseburger? - Perfeito. - Não, não é, mas tento. Oh, suponho que nunca terás muitos motivos para te gabares dos cozinhados caseiros da tua mãe, Rob. O telefone tocou e Robin pegou nele. Era para ela. Atirou o auscultador a Kerry. - Espera um pouco, está bem? Vou atender lá em cima. É Cassie. Quando ouviu a voz exuberante de Robin a dizer: - Estou a escutar. - Kerry colocou o auscultador de novo no lugar, levou o correio para a cozinha, pousou-o no balcão e começou a seleccioná-lo. Um envelope branco, simples, com o nome e a morada em letra de imprensa, chamou-lhe a atenção. Abriu-o, retirou um instantâneo, olhou para ele e ficou gelada. Era uma Polaroid colorida de Robin a caminhar pelo passeio em frente da casa. Os braços estavam cheios de livros. Trazia umas calças azul-escuras que vestira na terça-feira, no dia em que se assustara com o carro que pensou que a ia atropelar. Kerry sentiu os lábios grossos como borracha. Curvou-se um pouco, como se lhe tivessem dado um pontapé no estômago. A respiração tornou-se ofegante. «Quem fez isto? Quem iria tirar a fotografia de Robin, virar um carro em direção a ela, depois enviar-lhe a fotografia?», perguntou a si mesma, tonta e confusa.

Ouviu Robin a descer ruidosamente as escadas. Meteu rapidamente a fotografia no bolso. - Mãezinha, Cassie lembrou-me que tenho de ver agora o Discovery Channel. O programa é sobre a matéria que andamos a estudar em Ciências. Não é considerado diversão, pois não? - Não, claro que não. Vai ver. O telefone tocou de novo quando Kerry se deixou cair numa cadeira. Era Geoff Dorso. Ela interrompeu os pedidos de desculpa. - Geoff, abri há instantes o correio. - Falou-lhe da fotografia. - Robin tinha razão sussurrou. Estava uma pessoa a vigiá-la no interior daquele carro. Meu Deus, e se ele a tivesse puxado lá para dentro? Teria desaparecido, tal como aquelas crianças na zona norte do Estado de Nova Iorque há dois anos. Oh, meu Deus. Geoff percebeu o medo e o desespero na voz dela. - Kerry, não diga mais nada. Não deixe que Robin veja essa fotografia ou dê conta de que está perturbada. Vou já para aí. Estou aí dentro de meia hora. O Dr. Smith percebera algo de errado no comportamente de Kate Carpenter em relação a ele durante todo o dia. Surpreendera-a várias vezes a fitá-lo com um olhar inquiridor. «Porquê?», interrogou-se. Enquanto estava sentado na biblioteca nessa noite, na cadeira do costume, a saborear o cocktail como habitualmente fazia depois de chegar do consultório, pensou nos motivos possíveis para o estranho comportamento. Tinha a certeza de que Carpenter se apercebera do leve tremor na mão quando realizava a rinoplastia, certo dia, mas isso não explicava os olhares que lhe lançara. Fosse o que fosse que tivesse em mente, estava certo de que era algo muito mais perturbador. Fora um erro terrível seguir Barbara Tompkins na noite anterior. Quando o carro ficou bloqueado no trânsito em frente do prédio de apartamentos, virara-se o mais possível, mas, mesmo assim, pensava que talvez o tivesse visto. Por outro lado, a Baixa de Manhattan era uma zona onde as pessoas viam frequentemente, de relance, outras que conheciam. Por isso, o fato de lá se encontrar não era realmente deveras invulgar. Mas um vislumbre fortuito não era suficiente. Queria ver Barbara de novo. Vê-la. Falar com ela. Ela só devia fazer um exame geral dali a dois

meses. Precisava de a ver antes. Não podia esperar tanto tempo para ver os olhos, tão luminosos sem as pálpebras pesadas que ocultavam a sua beleza, que sorriam para ele do outro lado da mesa. Ela não era Suzanne. Ninguém podia ser. Mas parecida com Suzanne, e, quanto mais Barbara se acostumava à beleza mais a sua personalidade a realçava. Recordou a criatura soturna, vulgar que aparecera pela primeira vez no consultório; cerca de um ano após a operação, Suzanne realçara a transformação com uma mudança total da personalidade. Smith esboçou um sorriso, lembrando-se da linguagem corporal provocadora de Suzanne, dos movimentos subtis que faziam que todos os homens se virassem para olhar para ela. Depois começara a dar uma ligeira inclinação à cabeça, para que desse à pessoa com quem falava a impressão de ser a única no universo. Ela até baixara o tom da voz até ficar rouca, íntima. Por graça, podia passar a ponta de um dedo na mão do homem e era sempre um homem que conversava com ela. Quando comentara a transformação da personalidade que ela sofrera, dissera: - Tive duas boas professoras, as minhas meias-irmãs. Invertemos o conto de fadas. Elas eram as beldades e eu era a feia Cinderela. Só que, em vez de uma fada-madrinha, tive o senhor. Nos últimos tempos, porém, a sua fantasia de Pigmaleão começara a tornar-se um pesadelo. O respeito e o afeto que parecia ter por ele começaram a dissipar-se. Parecia não estar mais disposta a escutar os seus conselhos. Para o fim, passara os limites de um simples flerte. Avisara-a muitas vezes de que estava a brincar com o fogo, que Skip Reardon seria capaz de cometer homicídio se descobrisse o modo como se comportava. «Qualquer marido de uma mulher tão desejável seria capaz de matar», pensou o Dr. Smith. Com um movimento brusco, olhou furioso para o copo vazio. Agora não haveria outra oportunidade de atingir a perfeição que alcançara em Suzanne.Teria de desistir da cirurgia antes que acontecesse um desastre. Era tarde de mais. Sabia que estava na fase inicial da doença de Parkinson. Se Barbara não era Suzanne, era, de todas as pacientes vivas, o exemplo mais surpreendente do seu génio. Pegou no telefone. «Certamente aquilo não era tensão na voz dela», pensou quando pegou

no telefone e perguntou quem era.» - Barbara, minha cara, passa-se alguma coisa? Fala o Dr. Smith. - A respiração ofegante ouvia-se, mas depois disse rapidamente: - Oh, não, claro que não. Como está, doutor? - Estou bem, mas creio que me podia fazer um favor. Vou ao Hospital Lenox por instantes para visitar um velho amigo que é um doente terminal, e sei que ficarei um pouco abatido. Teria pena de mim e far-me-ia companhia ao jantar? Podia ir buscá-la por volta das sete e meia. - Eu, eu não sei... - Por favor, Barbara. - Esforçou-se por parecer brincalhão. - Disse que me devia uma vida nova. Por que não me dispensa duas horas? - Certamente. - Ótimo. Então às sete e meia. - Muito bem, doutor. Quando Smith desligou, levantou as sobrancelhas. Seria um sinal de resignação na voz de Barbara?, interrogou-se. Chegara a dar a impressão de que a tinha forçado a encontrar-se com ele. Se assim fosse, era mais um dos aspectos em que começava a assemelhar-se com Suzanne. Jason Arnott não se conseguia livrar da sensação de que algo estava errado. Passara o dia em Nova Iorque com Vera Shelby Todd, de 52 anos de idade, a segui-la enquanto o levava numa procura interminável de tapetes persas. Vera telefonara-lhe nessa manhã e perguntara se estava livre durante o dia. Uma Shelby de Rhode Island, vivia numa das mansões mais belas de Tukedo Park e servia-se dela para se isolar. Depois de o primeiro marido morrer, casara com Stuart Todd, mas decidiu conservar a casa de Tukedo Park. Utilizando o livro de cheques de Todd, que parecia não ter limite, Vera aproveitava-se do olho infalível de Jason para achados raros e pechinchas. Jason não conhecera Vera em Nova Jérsia, mas numa gala que os Shelby deram em Newport. Os primos dela apresentaram-nos, e, quando Vera percebeu que ele vivia tão próximo da mansão de Tuxedo Park, começara a convidá-lo para as festas e também a aceitar avidamente os convites dele para as reuniões sociais. Jason divertia-se sempre quando se lembrava que Vera lhe contara todos

os pormenores da investigação policial ao roubo de Newport que perpetrara há anos. - A minha prima Judith estava tão perturbada - confidenciara ela. - Não conseguia perceber por que razão alguém roubou o Picasso e o Gainsborough e deixou ficar o Van Eyck. Por isso mandou vir um perito em arte, e ele disse que tinha sido um criminoso com discernimento: O Van Eyck é uma cópia. Judith ficou furiosa, mas para nós, que tínhamos de a ouvir gabar os conhecimentos inigualáveis dos grandes mestres, passou a ser uma piada de família. Nesse dia, depois de ter examinado exaustivamente tapetes absurdamente caros, desde a Turkomans a Safavids, com Vera, que achava que nenhum deles era aquilo que tinha em mente, Jason estava desesperado para chegar a casa e ver-se livre dela. Mas, antes disso, por insistência dela, almoçaram já tarde nas Quatro Estações, e esse interlúdio agradável animou Jason consideravelmente. Pelo menos até ao momento em que Vera, enquanto terminava o espresso, dissera: - Oh, não lhe contei? Lembra-se de há cinco anos a casa da minha prima Judith em Rhode Island ser assaltada? Jason fez beicinho. - Sim, claro que me lembro. Uma experiência terrível. - Vera acenou com a cabeça. - Sou da mesma opinião. Mas ontem Judith recebeu uma fotografia do FBI. Houve um assalto há pouco tempo em Chevy Chase e uma câmara escondida apanhou o ladrão. O FBI pensa que pode ser a mesma pessoa que assaltou a casa da Judith e dúzias de outras. Jason sentira vibrar cada nervo do corpo. Encontrara-se com Judith somente algumas vezes e não a vira praticamente em cinco anos. Obviamente, não o reconhecera. Até àquele momento. - Era uma fotografia nítida? - perguntou ele com indiferença. Vera riuse. - Não, de modo nenhum. Por aquilo que Judith diz, está de perfil e a luz é fraca, e uma meia, que servia de máscara, estava enrolada na testa mas ainda lhe tapava a cabeça. Ela disse que quase conseguia descobrir alguma coisa a partir do nariz e da boca. Deitou-a fora. Jason reprimiu um suspiro de alívio, embora soubesse que não tinha nada para celebrar. Se a fotografia foi parar às mãos dos Shelby, também iria

para dúzias de outras casas que ele assaltara. - Mas suponho que Judith já esqueceu o incidente com o Van Eyck prosseguiu Vera. - Segundo a informação que acompanhava a fotografia, aquele homem é considerado perigoso. É procurado para ser interrogado por causa do homicídio da mãe do membro do Congresso, Peale. Parece que o surpreendeu durante um roubo à casa dela. Judith esteve para ir mais cedo para casa na noite em que foi assaltada. Imagine o que poderia ter acontecido se o encontrasse lá. Jason comprimiu nervosamente os lábios. Tinham-no associado à morte de Peale! Quando saíram d'As Quatro Estações, partilharam um táxi até à garagem na Rua 57 onde ambos tinham estacionado os carros. Depois de uma despedida efusiva e da promessa estridente de Vera, «Continuaremos a procurar. O tapete ideal para mim está por aí, em algum lugar», Jason ia finalmente a caminho de casa em Alpine. - Seria pouco nítida a fotografia que a câmara escondida lhe tirara? -, interrogou-se enquanto conduzia em marcha regular no trânsito da tarde que subia a Avenida Henry Hudson. - Alguém teria olhado para ela e descoberto que lhe fazia lembrar Jason Arnott? - Deveria fugir apressadamente? -, perguntou a si mesmo quando atravessou a ponte George Washington e seguiu pela Avenida Palisades. Ninguém sabia da existência da casa nos Catskills. Possuía-a sob um nome falso. Sob outras identidades alternadas, tinha muito dinheiro em títulos de crédito negociáveis. Até tinha um passaporte falso. Talvez devesse sair imediatamente do país. Por outro lado, se a fotografia era tão pouco nítida como a considerara Judith Shelby, mesmo que algumas pessoas vissem uma semelhança com ele, concluiriam que seria um absurdo associá-lo a um roubo. No momento em que Jason entrou na estrada para Alpine, já tomara uma decisão. Com exceção daquela fotografia, tinha quase a certeza de que não deixara pegadas nem impressões digitais. Fora extremamente prudente, e a sua prudência compensara. Não podia abandonar simplesmente o excelente estilo de vida só por causa do que poderia acontecer. Nunca fora um homem medroso. Se tivesse sido, certamente não viveria assim durante tantos anos. Não, não entraria em pânico. Manter-se-ia firme. Mas não faria assaltos durante uma temporada, prometeu a si mesmo. Não precisava do dinheiro, e

aquilo foi um aviso. Chegou a casa às quatro menos um quarto e verificou o correio. Um envelope chamoulhe a atenção e abriu-o, tirou o conteúdo, uma folha de papel, examinou-o e desatou a rir. Certamente, ninguém estabeleceria a ligação entre ele e aquela figura quase cómica com a meia puxada para cima e a caricatura granulosa de um perfil a centímetros da cópia da estatueta de Rodin. - Vive lê ferro-velho - exclamou Jason. Acomodou-se no refúgio para dormir uma sesta. A verborreia de Vera tinha-o fatigado. Quando despertou, estava quase na hora do noticiário das seis. Pegou no controlo remoto e ligou o aparelho. A notícia principal era que constava que o co-arguido de Jimmy Weeks, Barney Haskell, ia tentar um acordo com o procurador-geral. «Nada como o acordo que eu faria», pensou Jason. Era um lembrete reconfortante. Mas, evidentemente, isso nunca aconteceria. Robin desligou o programa de Ciências precisamente no momento em que a campainha da porta soou. Ficou contente ao ouvir a voz de Geoff Dorso no vestíbulo e veio a correr cumprimentá-lo. Viu que tanto o rosto dele como o da mãe estavam sérios. «Talvez tenham tido uma discussão», pensou, «e queiram fazer as pazes.» Durante a refeição, Robin notou que a mãe estava invulgarmente sossegada, enquanto Geoff gracejava, contando histórias das irmãs. «Geoff é tão simpático», pensou Robin. Fazia-lhe lembrar Jimmy Stewart naquele filme que via com a mãe no Natal todos os anos, It's a Wonderful Life. Tinha o mesmo sorriso tímido, terno, e a voz hesitante, e o tipo de cabelo que parecia que jamais ficaria no lugar. Mas Robin reparou que a mãe parecia quase alheada das histórias de Geoff. Era óbvio que havia qualquer coisa entre eles e que precisavam de conversar sem ela na sala. Por isso, decidiu fazer o grande sacrifício e trabalhar no projecto de Ciências no seu quarto. Depois de ajudar a levantar a mesa, anunciou os seus planos e surpreendeu a expressão de alívio nos olhos da mãe. «Ela quer conversar a sós com Geoff», pensou Robin, contente. «Talvez seja um bom sinal.» Geoff pôs-se à escuta no fundo das escadas. Quando ouviu o estalido da porta do quarto de Robin ao fechar-se, voltou para a cozinha. - Vejamos a fotografia.

Kerry meteu a mão no bolso, tiroua e entregoulha. Geoff examinou-a cuidadosamente. - Parece-me que Robin estava certa quando contou o que aconteceu disse ele. Aquele carro devia estar estacionado mesmo em frente, no outro lado da rua. Alguém a apanhou quando saía de casa. - Então tinha razão quando disse que o carro vinha contra ela - disse Kerry. - E se não tivesse feito um pião? Mas, Geoff, porquê? - Não sei, Kerry. O que sei é que isto tem de ser levado a sério. Que tenciona fazer? - Mostrar isto a Frank Green de manhã. Pedir que investiguem se algum tarado sexual apareceu na zona. Levar Robin à escola quando for para o trabalho. Não permitir que venha a pé para casa com outras crianças, mas que a ama a vá buscar. Comunicar à escola para que saibam que alguém pode andar atrás dela. - E se contasse a Robin? - Não sei bem... Pelo menos, por enquanto. - Já informou Bob Kinellen? - Meu Deus, nunca me passou isso pela cabeça. Claro que Bob tem de saber disto. - Se fosse minha filha, gostaria de saber - concordou Geoff. - Por que não lhe telefona e me deixa encher duas chávenas de café? - Bob não estava em casa. - Alice foi friamente cortês com Kerry. - Ainda está no escritório - disse ela. - Ultimamente, vive praticamente lá. Há algum recado que lhe possa dar? «Apenas que a filha mais velha corre perigo», pensou Kerry, «e não tem a vantagem de ter em casa um casal que a proteja quando a mãe está a trabalhar.» - Telefono para o escritório e falo com Bob. Adeus, Alice. Bob Kinellen atendeu o telefone ao primeiro toque. Empalideceu quando ouviu Kerry a recontar aquilo que acontecera a Robin. Ele sabia quem tirara a fotografia. Tinha a assinatura de Jimmy Weeks. Era assim que ele trabalhava. Desencadear uma guerra de nervos, depois levá-la por diante. Na semana seguinte, haveria outra fotografia, tirada de longe. Nunca uma ameaça. Nenhum bilhete. Somente uma fotografia. Uma situação provocadora e terrível. Kinellen não precisou de se esforçar para parecer preocupado e concordar com Kerry em que seria melhor levar Robin à escola e ir buscá-la

durante algum tempo. Quando pousou o telefone, bateu com o punho na secretária. Jimmy estava a perder o controlo. Ambos sabiam que tudo terminaria se Haskell concluísse o acordo com o procurador-geral. «Weeks calculou que Kerry talvez me telefonasse por causa da fotografia», pensou Bob. «E é a forma de me dizer que a advirta de que deve abandonar o caso Reardon. E é a forma de me dizer que será melhor que eu descubra um meio de o livrar da acusação de evasão fiscal ou então... Mas o que Weeks não sabe», disse para si mesmo, «é que Kerry não fica desorientada. Na realidade, se percebeu que a fotografia foi um aviso, foi como acenar uma bandeira vermelha em frente de um touro. Mas Kerry não percebe que, quando Jimmy Weeks se vira contra alguém, é o fim dessa pessoa», pensou. O pensamento de Bob recuou até ao dia, há quase onze anos, em que Kerry, grávida de três meses, olhara para ele com uma expressão de surpresa e raiva. «Vais deixar o gabinete do promotor de Justiça para ires trabalhar nessa firma de advogados? Estás louco? Todos os clientes têm um pé na prisão. E o outro pé também devia lá estar», dissera. Tiveram uma discussão acalorada que terminou com o aviso desdenhoso de Kerry: «Lembra-te disto, Bob. Há um velho ditado que diz: Deita-te com cães e acordarás com pulgas.» O Dr. Smith levou Barbara Tompkins ao Lê Cirque, um restaurante muito elegante, muito caro, na Baixa de Manhattan. - Algumas mulheres apreciam restaurantes pequenos e sossegados, mas desconfio de que gosta de lugares requintados onde uma pessoa possa ver e ser vista - disse ele à bela e jovem mulher. Fora buscá-la ao apartamento e apercebeu-se de que ela já estava pronta para sair sem demora. O casaco estava numa cadeira no pequeno vestíbulo, a bolsa na mesa ao lado dela. Não lhe ofereceu um aperitivo. «Ela não quer ficar a sós comigo», pensara. Mas, no restaurante, com tantas pessoas em redor deles e com o chefede-mesa a rondar por perto, Barbara descontraiu-se nitidamente; - É muito diferente de Albany - disse ela. - Ainda me sinto como uma criança que tem uma festa de aniversário todos os dias. Por instantes, ficou surpreendido com as palavras dela. Tão parecida com Suzanne, que se comparara a uma criança sempre com uma árvore de Natal e presentes à espera de que os abrissem. Mas, para além de ser uma

criança encantada, Suzanne transformara-se numa adulta ingrata. «Exigia-lhe tão pouco», pensou. Um artista não podia tirar prazer da sua criação? Por que deveria a criação ser desperdiçada no meio das escórias lúbricas da humanidade enquanto o artista mal a vê de relance? Sentiu-se excitado quando notou que naquela sala cheia de mulheres atraentes, elegantes, olhares de soslaio se fixavam em Barbara. Chamou-lhe a atenção. Ela abanou levemente a cabeça como se não ligasse importância à insinuação. - É verdade - insistiu Smith. Os olhos tornaram-se frios. - Não tomes isso como certo, Suzanne. Isso seria um insulto para mim. Foi apenas mais tarde, depois de terminada a refeição tranquila e a ter acompanhado ao apartamento, que perguntou a si próprio se lhe chamara Suzanne. E, se assim foi, quantas vezes teria cometido esse deslize? Ele suspirou e recostou-se, fechando os olhos. Enquanto o táxi descia lentamente a parte baixa da cidade, Charles Smith pensou como fora fácil passar de carro pela casa de Suzanne quando ansiava por a ver de relance. Quando não ia jogar golfe, sentava-se sempre em frente da televisão e nunca se dava ao trabalho de correr as cortinas da enorme janela panorâmica da sala de recreio. Via-a enroscada na sua cadeira favorita, ou, às vezes, era obrigado a vêla sentada lado a lado no sofá com Skip Reardon, com os ombros a tocaremse, as pernas estendidas e apoiadas na mesa das bebidas, numa intimidade que não podia partilhar. Barbara não era casada. Tanto quanto sabia, não havia ninguém especial na sua vida. Nessa noite, pedira-lhe para o tratar por Charles. Pensou na bracelete que Suzanne usava quando morreu. Devia dá-la a Barbara? Isso faria que ela o estimasse? Dera a Suzanne várias jóias. Jóias finas. Mas depois começara a aceitar outras peças de outros homens, exigindo que mentisse a seu favor. Smith sentiu dissipar-se o ardor de estar com Barbara. Pouco depois, percebeu que a voz de impaciência do motorista do táxi dizia pela segunda vez: - Eia, senhor, está a dormir? Chegou a casa. Geoff não se demorou depois de Kerry ter telefonado a Kinellen. - Bob concorda comigo - disse-lhe enquanto bebia lentamente o café.

- Mais nenhuma sugestão? - Não, claro que não. É o costume: «Tu tratas disso, Kerry. O que decidires está bem.» Ela pousou a chávena. - Não estou a ser justa. Bob parecia mesmo preocupado, e não sei que outra coisa poderia sugerir. Estavam sentados na cozinha. Desligara a luz do teto, a pensar que levariam o café para a sala de estar. A única iluminação no compartimento vinha de uma lâmpada fraca fixa na parede. Geoff examinou o rosto sério no outro lado da mesa na sua frente, consciente da sombra de tristeza nos olhos cor de amêndoa de Kerry, da determinação na expressão da boca generosa e no queixo delicadamente esculpido, da vulnerabilidade da sua postura geral. Quis abraçá-la, dizer-lhe que se apoiasse nele. Mas sabia que ela não queria. Kerry McGrath não contava nem queria apoiar-se em ninguém. Tentou de novo desculpar-se pelo comentário lacónico que lhe fizera na outra noite, insinuando que estava a ser egoísta, e pela visita inoportuna de Deidre Reardon ao seu gabinete. - Fui muito atrevido - disse ele. - Sei que, se acreditasse sinceramente que Skip Reardon estava inocente, não hesitaria em tentar ajudá-lo. McGrath, é uma pessoa às direitas. «Serei?», interrogou-se Kerry. Não era o momento oportuno para partilhar com Geoff a informação que descobrira no ficheiro do promotor de Justiça a respeito de Jimmy Weeks. Contar-lhe-ia, mas primeiro queria voltar a encontrar-se com o Dr. Smith. Furioso, negara que tocara cirurgicamente em Suzanne, mas nunca dissera que não a mandara a outra pessoa. Isso significava que, tecnicamente, era um mentiroso. Quando Geoff se preparava para se ir embora, uns minutos depois, ficaram por um instante no vestíbulo. - Gosto de estar consigo - disse-lhe ele -, e não tem nada a ver com o caso Reardon. E que tal se fôssemos jantar no sábado à noite e levássemos Robin? Ela adoraria. Quando Geoff abriu a porta, baixou-se e passou-lhe os lábios pela face. - Sei que é desnecessário dizer-lhe que feche bem a porta à chave e que ligue o alarme, mas sugiro que não pense muito naquela fotografia quando for para a cama.

Quando ele se foi embora, Kerry foi espreitar Robin. Estava a trabalhar no relatório de Ciências e não ouviu a mãe entrar. Da soleira da porta, Kerry observou a filha. Robin estava de costas para ela, com o cabelo castanhoescuro caído sobre os ombros, a cabeça inclinada, concentrando-se, as pernas dobradas em volta das travessas da cadeira. «Ela é a vítima inocente de quem tirou aquela fotografia», pensou Kerry. «Robin é como eu. Independente. Vai detestar que a levem à escola e a vão buscar, vai detestar não poder ir a pé sozinha para casa de Cassie.» E então recordou-se uma vez mais da voz suplicante de Deidre Reardon a implorarlhe que perguntasse a si mesma se gostaria de ver a filha presa dez anos por um crime que não cometeu.

CAPÍTULO 14 Sexta-feira, 3 de Novembro

A negociação

do apelo não estava a correr bem para Barney Haskell. Às 7:00 horas da manhã de sexta-feira encontrou-se com o advogado Mark Young no seu elegante gabinete em Summit, a mais de meia hora do tribunal federal na parte baixa de Newark. Jovem, chefe da equipa de defesa de Barney, tinha quase a mesma idade que ele, 55, mas a semelhança terminava aí, pensou Barney com azedume. Young estava impecável mesmo àquela hora, envergando o fato listrado de advogado que parecia ajustar-se como uma segunda pele. Mas Barney sabia que, quando despisse o casaco, aqueles ombros impressionantes desapareciam. Recentemente, o Star-Ledger fizera um rasgado elogio ao famoso adovogado, incluindo o fato de que usava fatos de mil dólares. Barney comprava os fatos no pronto a vestir. Jimmy Weeks nunca lhe pagara o suficiente para lhe permitir fazer de outro modo. Agora enfrentava anos na prisão se ficasse com Jimmy. Até àquele momento, os federais mantinham-se firmes. Apenas falavam em pena suspensa, não num passeio de graça, se lhes entregasse Jimmy. Pensavam que podiam condenar Weeks sem Barney. «Talvez sim. Talvez não», pensou Barney. Imaginava que estavam a fazer bluff. Já vira advogados de Jimmy livrarem-no. Kinellen e Bartlett eram competentes, e tinham conseguido sempre que ele passasse pelas investigações sem danos de maior. Desta vez, porém, a avaliar pela declaração de abertura do procuradorgeral, os federais possuíam provas comprometedoras. No entanto, deviam estar com medo de que Jimmy tirasse outro coelho da cartola. Barney passou a mão pela face carnuda. Sabia que tinha o ar inocente de um empregado bancário pateta, um aspecto que fora sempre vantajoso. As pessoas tinham tendência para não reparar nele nem se lembrar dele. Nem mesmo os indivíduos mais íntimos de Weeks lhe prestavam muita atenção. Consideravam-no um paumandado. Nenhum deles compreendera que era ele que convertia o dinheiro ilegal em investimentos e tratava das contas bancárias em todo o mundo. - Podemos colocá-lo no programa de proteção às testemunhas - dizia

Young. - Mas somente depois de cumprir uma pena mínima de cinco anos. - É de mais - resmungou Barney. - Olhe, tem insinuado que pode associar Jimmy a um homicídio - disse Young enquanto examinava uma unha rachada no polegar. - Barney, espremi isto o mais que pude. Ou você fala ou se cala. Eles adorariam condenar Weeks por homicídio. Assim jamais teriam de lidar com ele outra vez. Se for condenado a prisão perpétua, a organização provavelmente ruirá. É isso que eles pretendem. - Posso associá-lo a um. Depois terão de provar que foi ele. Não se fala que o procurador-geral está a pensar candidatar-se a governador contra Frank Green? - Se cada um conseguir a nomeação do partido - comentou Young enquanto procurava uma lima na gaveta da secretária. - Barney, receio que tenha de deixar de falar com rodeios. Será melhor revelar-me aquilo que anda a insinuar. Caso contrário, não o poderei ajudar a fazer uma escolha inteligente. Uma ruga atravessou momentaneamente o rosto querubínico de Barney. Depois a testa alisou e ele disse: - Está bem. Eu conto-lhe. Lembra-se do Homicídio Sweetheart, aquele que envolveu aquela mulher sexy que foi encontrada morta com rosas espalhadas pelo corpo? Foi há dez anos, mas foi o caso que deu reputação a Frank Green. Young acenou com a cabeça. - Lembro-me. Ele conseguiu a condenação do marido. Efetivamente, não foi muito difícil, mas o caso teve muita publicidade e fez vender muitos jornais. - Os olhos ficaram mais estreitos. - E que é que tem? Está a dizer que Weeks esteve ligado a esse caso, não está? - Recorda-se de que o marido declarou que não ofereceu aquelas rosas à esposa, que deviam ter sido mandadas por um homem com o qual ela estava envolvida? - Como Young acenou com a cabeça, Haskell continuou: - Jimmy Weeks mandou aquelas rosas a Suzanne Reardon. Eu tinha de saber. Levei-as a casa às seis menos vinte na noite em que ela morreu. Nelas havia um bilhete que ele mesmo escreveu. Eu mostro-lhe o que lá estava escrito. Dê-me um pedaço de papel. Young atirou-lhe o bloco das mensagens telefónicas. Barney pegou na caneta. Pouco depois, entregava de novo o bloco.

- Jimmy chamava a Suzanne «Sweetheart» - explicou ele. - Tinha marcado um encontro com ela para aquela noite. Preencheu assim o bilhete. Young examinou o papel que Barney lhe devolvera. Tinha seis notas de música na clave de C, com cinco palavras escritas por debaixo: «Estou apaixonado por ti.» Estava assinado «J». Young trauteou as notas, em seguida olhou para Barney. A frase de abertura da canção Let Me Call You Sweetheart' - disse ele. - Hum-hum. Seguida do resto do primeiro verso da canção: Estou apaixonado por ti. - Onde está esse cartão? - Esse é o problema. Ninguém disse que estava na casa quando o corpo foi encontrado. E as rosas estavam espalhadas por cima do corpo. Eu apenas as entreguei, depois pus-me a andar. Ia a caminho da Pensilvânia para me encontrar com Jimmy. Mas depois ouvi os outros a falarem. Jimmy estava louco por aquela mulher e ficava desvairado por ela adular sempre os outros tipos. Quando lhe mandou aquelas flores, já lhe dera um ultimato para que obtivesse o divórcio... e se afastasse de outros homens. - Qual foi a reação dela? - Oh, ela gostava de lhe fazer ciúmes. Parecia dar-lhe prazer. Sei que um dos nossos tentou avisá-la de que Jimmy podia ser perigoso, mas ela limitouse a rir. Suponho que naquela noite ela foi longe de mais. Lançar aquelas flores sobre o corpo é o tipo de coisa que Jimmy faria. - E o cartão desapareceu? - Barney encolheu os ombros. - Não ouviu nada acerca dele no julgamento. Ordenaram-me que não abrisse a boca para falar dela. Sei que ela fez esperar Jimmy ou não lhe apareceu naquela noite. Uns tipos contaram-me que ele ficou furioso e disse que a mataria. Conhece o temperamento do Jimmy. E havia mais uma coisa. Jimmy comprara-lhe umas jóias caras. Sei, porque paguei e guardei uma cópia dos recibos. Falou-se muito em jóias no julgamento, objetos que o marido afirmava não lhe ter dado, mas tudo o que encontraram, o pai jurou que foi ele que lhe deu. Young arrancou a folha de papel que Barney usara da agenda, dobrou-a e meteu-a no bolso da lapela. - Barney, creio que vai desfrutar de uma nova e maravilhosa vida em Oaio. Tem consciência de que deu ao procurador-geral uma oportunidade

para prender Jimmy por homicídio e também aniquilar Frank Green por condenar um homem inocente. Sorriram um para o outro por cima da secretária. - Diga-lhes que não quero viver em Oaio - gracejou Barney. Saíram juntos do escritório e caminharam ao longo do corredor até aos elevadores. Quando um chegou e as portas se começaram a abrir, Barney pressentiu imediatamente que havia algo errado. Não havia luz no interior. O instinto fêlo virar-se para fugir. Era tarde de mais. Morreu imediatamente, momentos antes de Mark Young sentir a primeira bala a trespassar a lapela do fato de mil dólares. Kerry ouviu a notícia do duplo homicídio na Rádio WCBS quando ia a caminho do trabalho. Os corpos tinham sido encontrados pela secretária particular de Mark Young. O comunicado dizia que Young e o seu cliente Barney Haskell tinham combinado encontrar-se no parque de estacionamento às 7:00 da manhã, e presumia-se que Young desligara o sistema de alarme quando abriu a porta do rés-do-chão do pequeno edifício. O segurança só entrava ao serviço às oito horas. A porta da rua não estava fechada à chave quando a secretária chegou às 7:45, mas pensava que Young se tivesse simplesmente esquecido de a trancar de novo, como ela comunicou que fizera frequentemente no passado. Depois apanhara o elevador para o primeiro andar e fizera a descoberta. O comunicado terminava com um depoimento de Mike Murkowski, o promotor de justiça de Essex County. Ele afirmou que parecia que os dois homens tinham sido assaltados. Talvez tivessem sido seguidos até ao interior do edifício por presumíveis assaltantes e depois mortos quando tentavam resistir. Barney Haskell fora baleado na nuca e no pescoço. O repórter da CBS perguntou se o fato de Barney Haskell estar envolvido no processo de negociação de um apelo no caso Jimmy Weeks, e constar que se preparava para associar Weeks a um homicídio, estava a ser considerado como um móbil possível para a dupla chacina. «Parece um acerto da populaça», pensou Kerry quando desligou o rádio. «E Bob representa Jimmy Weeks. Uau, que trapalhada!» Como esperava, havia um recado de Frank Green à espera dela em cima da secretária. Era muito breve. «Venha falar comigo.» Atirou com o casaco e atravessou o vestíbulo principal, dirigindo-se ao gabinete dele. Ele não desperdiçou palavras.

- Por que é que a mãe de Reardon veio cá a exigir que a deixassem falar consigo? Kerry escolheu cuidadosamente as palavras. - Ela veio porque fui à prisão ver Skip Reardon e ele percebeu perfeitamente que eu não vi nada de novo que justificasse um recurso. Viu desaparecer as rugas em redor da boca de Green, mas era evidente que estava irritado. - Eu podia-lhe ter dito isso. Kerry, há dez anos, se eu pensasse que existia a menor prova que sugerisse a inocência de Skip Reardon, teria revolvido tudo. Não havia. Sabe o que a imprensa faria se soubesse que o meu departamento estava a investigar este caso agora? Adorariam retratar Skip Reardon como vítima. Faz vender jornais... e é o tipo de publicidade negativa que gostam de imprimir sobre candidatos políticos. Os olhos estreitaram, e bateu com os dedos na secretária para ser mais enfático. - Lamento muito que não trabalhasse no departamento quando investigávamos aquele homicídio. Lamento que não tenha visto aquela bela mulher estrangulada tão brutalmente que os olhos quase saíram. Skip Reardon gritara tanto e tão alto com ela nessa manhã que o empregado que faz a leitura dos parquímetros os ouviu sem saber se devia chamar a Polícia antes que acontecesse alguma coisa. Esse foi o seu depoimento sob juramento na barra das testemunhas. Por acaso, penso que dará um excelente juiz, Kerry, se tiver essa oportunidade, mas um bom juiz faz juízos. E neste momento considero que o seu é muito mau. «Se tiver essa oportunidade...» Era uma advertência?, - perguntou a si mesma. - Frank, desculpe se o aborreci. Se não se importa, passemos a outro assunto. - Tirou a fotografia de Robin do bolso do casaco e entregou-lha. Esta veio num envelope branco no correio de ontem. Robin traz aquilo que vestia na terça-feira de manhã quando disse que viu um carro desconhecido parado no outro lado da rua e pensou que alguém podia estar a segui-la. Ela tinha razão. A cólera desapareceu do rosto de Green. - Falemos da sua proteção. Concordou com o plano de Kerry em notificar a escola e levar Robin e ir buscá-la.

- Descobrirei se libertaram há pouco tempo algum tarado sexual ou se foi detectado algum na zona. Ainda penso que aquele desgraçado que condenou na semana passada pode ter amigos que queiram vingar-se de si. Pediremos à Polícia de Hohokus que vigie a sua casa. Tem um extintor de incêndios? - Um sistema de extintores. - Arranje dois extintores para prevenir. - Refere-se a uma bomba incendiária? - Sabe-se que isso acontece. Não a quero assustar, mas devem ser tomadas medidas de precaução. Foi só quando se virou para sair que ele mencionou o homicídio em Summit. Jimmy Weeks trabalhou depressa, mas o seu ex ainda vai demorar muito tempo para o livrar, mesmo sem o acordo de apelo de Haskell. - Frank, fala como se já se soubesse de antemão que se tratou de uma vingança! - Toda a gente sabe que foi, Kerry. O que admira é Jimmy ter esperado tanto tempo para apanhar Haskell. Ainda bem que se livrou do porta-voz de Weeks. Bob Kinellen não ouvira as notícias sobre Barney Haskell e Mark Young até entrar no tribunal às nove menos dez e a imprensa se precipitar sobre ele. Assim que soube o que acontecera, percebeu que contara com isso. «Como é que Haskell pôde ser tão estúpido ao ponto de pensar que Jimmy o deixaria vivo para depor contra ele?» Ele conseguiu parecer chocado, como era apropriado, e convincente quando, em resposta a uma pergunta, disse que a morte de Haskell não alteraria de modo nenhum a estratégia de defesa do Sr. Weeks. - James Forrest Weeks é inocente de todas as acusações - disse. - Fosse qual fosse o acordo que o Sr. Haskell estava a tentar fazer com o procuradorgeral, teria sido exposto em tribunal como egoísta e desonesto. Lamento profundamente a morte do Sr. Haskell e do meu colega e amigo Mark Young. Conseguiu meter-se num elevador e passar por outros representantes da imprensa no segundo andar. Jimmy já estava na sala de audiências. - Soube de Haskell? - Sim, soube, Jimmy. - Ninguém está seguro. Estes assaltantes estão por toda a parte.

- Creio que sim, Jimmy. - Pareceu nivelar o campo de ação, não lhe parece, Bobby? - Sim, diria que sim. - Mas não gosto de um campo de ação nivelado. - Eu sei, Jimmy. - Até isso sabe. Bob falou com prudência. - Jimmy, alguém mandou à minha ex-mulher uma fotografia da nossa filhinha, Robin. Foi tirada quando saía para a escola na terça-feira pela mesma pessoa que estava num carro que fez um pião mesmo à frente dela. Robin pensou que ia subir o passeio e atropelá-la. - Estão sempre a dizer piadas a respeito dos condutores de Nova Jérsia, Bobby. - Jimmy, é bom que não aconteça nada à minha filha. - Bobby, não sei do que está a falar. Quando é que nomeiam a sua exmulher juiz e a tiram do departamento do promotor? Não devia meter o nariz na vida dos outros. Bob sabia que a pergunta dele fora formulada e respondida. Um dos homens de Jimmy tirara a fotografia de Robin. Ele, Bob, teria de obrigar Kerry a abandonar a investigação do caso Reardon. E era bom que ilibasse Jimmy daquela vez. - Bom dia, Jimmy. Bom dia, Bob. Bob levantou os olhos e viu o sogro, Anthony Bartlett, a sentar-se devagar na cadeira ao lado de Jimmy. - Muito triste o que aconteceu a Haskell e Young murmurou - Bartlett. - Trágico - disse Jimmy. Nesse momento, o agente do xerife fez sinal ao promotor, a Bob e Bartlett para entrarem no gabinete do juiz. O juiz Benton, com ar grave, levantou os olhos da secretária. - Suponho que tiveram conhecimento da tragédia que envolveu o Sr. Haskell e o Sr. Young. Os advogados acenaram serenamente com a cabeça. Por difícil que seja, creio que, em virtude dos dois meses já investidos neste julgamento, ele deveria prosseguir. Felizmente, o júri está isolado e não será exposto a estas notícias, incluindo a especulação de que o Sr. Weeks possa estar implicado. Dir-lhes-ei apenas que a ausência do Sr. Haskell e do Sr. Young significa que não têm de julgar o caso do Sr. Haskell.

- Pedir-lhes-ei que não especulem sobre aquilo que aconteceu e não deixem que isso afete o julgamento do caso do Sr. Weeks. - Muito bem... prossigamos. O júri apresentou-se e sentou-se nos seus lugares. Bob via as expressões irónicas quando olharam para as cadeiras vazias de Haskell e Young. Quando o juiz os instruiu para que não especulassem sobre aquilo que acontecera, Bob compreendeu que era precisamente o que estava a fazer. «Julgam que ele se confessou culpado», pensou Bob. «Isto não nos vai ajudar.» Enquanto Bob refletia sobre a gravidade da situação de Weeks, os seus olhos fixaram-se no jurado n.2 10, Lilian Wagner. Sabia que Wagner, distinta na comunidade, tão orgulhosa do marido e dos filhos pertencerem à Liga Hera tão consciente da sua posição e estatuto social, constituía um problema. Tinha de haver um motivo para que Jimmy lhe pedisse que a aceitasse. Mas o que Bob não sabia era que um «sócio» de Jimmy Weeks abordara discretamente Alfred Wight, o jurado n.9 2, pouco tempo antes de o júri ficar isolado. Weeks ouvira dizer que Wight tinha a mulher doente, em fase terminal, e estava quase falido com as despesas médicas. O desesperado Sr. Wight concordara em aceitar 100 000 dólares em troca de uma garantia de que o seu voto seria «Inocente».! Kerry olhou com desânimo para a rima de ficheiros em cima da mesa de trabalho ao lado da secretária. Sabia que teria de lhes pegar em breve; estava na altura de atribuir casos novos. Além disso, havia alguns apelos que tinha de discutir com Frank ou Carmen, a primeira-assistente. Havia tanto trabalho a realizar, e ela devia concentrar-se. Em vez disso, pediu à secretária que tentasse entrar em contato com o Dr. Craig Riker, o psiquiatra a que recorria algumas vezes como testemunha da acusação em julgamentos de homicídio. Riker era um médico experiente, frontal, cuja filosofia ela partilhava. Ele acreditava que, embora a vida dê duros golpes, uma pessoa tem de lamber as feridas e ir em frente. O mais importante, porém, era que tinha um modo de destruir a gíria psiquiátrica confusa falada continuamente pelos psiquiatras que os advogados de defesa apresentavam. Ela adorava-o sobretudo quando lhe perguntavam se considerava o arguido demente. Ele respondia: «Creio que é tolo, mas não demente. Sabia perfeitamente o que fazia quando entrou na casa da tia e a matou. Ele lera o testamento.» - O Dr. Riker está com um paciente - informou a secretária de

Kerry. - Telefona-lhe às onze menos dez. E não faltou ao prometido, às onze menos dez em ponto Janet avisou que o Dr. Riker estava ao telefone. - Que se passa, Kerry? Contou-lhe que o Dr. Smith dava a outras mulheres o rosto da filha. Negou peremptoriamente que submetera Suzanne a uma operação explicou ela, o que poderia ser verdade. Pode tê-la mandado para um colega. Mas fazer que outras mulheres se pareçam com Suzanne é uma forma de sofrimento? - É uma forma muito doentia de sofrimento - disse-lhe Riker. - Você disse que ele não a via desde o tempo em que era bebé? - Exatamente. - E depois ela apareceu no consultório dele? - Sim. - Que tipo de homem é esse Smith? - Muito assustador. - Um solitário? - Não me surpreenderia. - Kerry, preciso de saber mais e gostaria de saber se ele operou ou não a filha, pediu a um colega para realizar o trabalho ou se ela fez uma cirurgia antes de ir ter com ele. - Não tinha pensado na última possibilidade. - Mas se, e eu friso a palavra se, ele se encontrou com Suzanne passados todos esses anos, viu uma jovem simples ou mesmo rústica, a operou, criou uma beldade e depois ficou encantado com aquilo que fizera, creio que teremos de procurar erotomania. - Que é isso? - perguntou Kerry. - Abrange uma área muito vasta. Mas, se um médico, que é um solitário, encontra a filha tantos anos mais tarde, a transforma numa beldade e depois tem a sensação de ter feito algo magnífico, podíamos concluir que se encaixa nesta categoria. É possessivo em relação a ela, até estar apaixonado por ela. É uma desordem alucinatória que se aplica frequentemente a caçadores furtivos, por exemplo. Kerry lembrou-se que Deidre Reardon lhe dissera que o Dr. Smith tratava Suzanne como um objeto. Contou ao Dr. Riker que Smith limpara uma mancha na face de Suzanne e depois lhe fizera um sermão sobre a

preservação da beleza. Também lhe falou da conversa de Kate Carpenter com Barbara Tompkins e o receio da última de que Smith a seguia. Fez-se silêncio. - Kerry, o doente a seguir deve estar a entrar. Mantenha-me a par de tudo, está bem? É um caso que adorava seguir. Kerry tencionava sair cedo do gabinete para poder estar no consultório do Dr. Smith mesmo depois da última consulta. Porém, mudara de ideia, apercebendo-se de que seria melhor esperar até ter uma melhor perspectiva da relação do Dr. Smith com a filha. Também queria estar em casa com Robin. «A Sra. Reardon acredita que a atitude de Smith para com Suzanne era doentia», pensou. E Frank Green comentara que Smith ficara imperturbável na barra das testemunhas. Skip Reardon dissera que o sogro ia poucas vezes lá a casa, que, quando Suzanne o via, geralmente se encontravam a sós. «Preciso de falar com alguém que conhecesse estas pessoas e não tenha interesses pessoais a defender», pensou Kerry. «Também gostava de conversar de novo com a Sra. Reardon, com mais calma. Mas que lhe posso dizer? Que um mafioso, que por acaso está a ser julgado agora, costumava chamar Sweetheart a Suzanne quando jogava golfe com ela? Que um ajudante do campo pressentiu que podia haver alguma coisa entre eles?» Aquelas revelações podiam apenas cravar mais um prego no caixão de Skip Reardon, concluiu ela. «Como advogada do Ministério Público, podia argumentar que, mesmo se Skip quisesse o divórcio para poder voltar para Beth, teria ficado furioso se soubesse que Suzanne andava com um multimilionário enquanto lhe pedia dinheiro para fatos Saint-Laurent de três mil dólares. Às cinco horas preparava-se para sair do gabinete quando Bob telefonou. Percebeu tensão na sua voz. - Kerry, tenho de te fazer uma visita de uns minutos. Estarás em casa daqui a uma hora mais ou menos? - Sim. - Então até já - disse ele, e desligou. - Que levava Bob lá a casa?, - interrogou-se. - Preocupação com a fotografia de Robin que ela recebera? Ou teria tido um dia inesperadamente

difícil no tribunal? «Isso é muito possível», disse para si mesma, recordandose do modo como Frank Green comentara que, mesmo sem o depoimento de Haskell, o Governo poderia condenar Jimmy Weeks. Pegou no casaco e pôs o saco a tiracolo, lembrando-se com consternação de que, durante o ano e meio de casamento, corria alegremente para casa depois do trabalho para passar a noite com Bob Kinellen. Quando chegou a casa, Robin olhou para ela com uma expressão acusadora. - Mãezinha, por que é que Alison me foi buscar à escola e me trouxe de carro para casa? Ela não me deu uma explicação, e eu senti-me como uma idiota. Kerry olhou para a ama. - Pode ir, Alison. Obrigada. Quando ficaram a sós, examinou o rosto indignado de Robin. - Aquele carro que te assustou no outro dia... - começou. Quando terminou, Robin ficou muito quieta. - É assustador, não é, mãezinha? - Sim, é. - Foi por isso que quando chegaste a casa ontem à noite estavas com um aspecto cansado e abatido? - Não me apercebi de que estava com um aspecto tão mau, mas, sim, estava muito desolada. - E foi por isso que Geoff veio a correr para cá? - Sim, foi. - Preferia que me tivesses contado ontem à noite. - Não sabia como havia de te contar, Rob. Eu também estava demasiado tensa. - Então que fazemos agora? - Tomamos uma série de medidas de precaução que podem ser um absurdo até descobrirmos quem estava no outro lado da rua na terça-feira passada e por que estava lá. - Pensas que, se ele voltar, desta vez me atropelará? Kerry sentiu vontade de gritar: «Não, não penso.» Em vez disso, aproximou-se do sofá onde Robin estava sentada e abraçou-a. Robin pousou a cabeça no ombro da mãe. - Por outras palavras, se o carro vier outra vez contra mim, desvio-me.

- É por isso que o carro não vai ter essa oportunidade, Rob. - O paizinho sabe disto? - Telefonei-lhe ontem à noite. Ele deve estar a chegar. - Robin endireitou-se. - Porque está preocupado comigo? «Ela está contente», pensou Kerry, «como se Bob lhe esteja a fazer um favor.» - Claro, está preocupado contigo. - Ótimo. Mãezinha, posso contar isto a Cassie? - Não, agora não. Tens de prometer, Robin. Até sabermos quem está a fazer isto... - E o algemarem - exclamou Robin. - Exatamente. Quando isto tiver terminado, então podes contar. - Está bem. Que vamos fazer esta noite? - Nada de especial. Encomendamos uma pizza. Parei no caminho e aluguei dois filmes. A expressão traquina que Kerry adorava reapareceu no rosto de Robin. - De longa metragem, espero. «Está a tentar fazer que me sinta melhor», pensou Kerry. «Ela não vai deixar que eu perceba como está assustada». Às seis menos dez, Bob chegou. Kerry ficou a olhar enquanto Robin, com um grito de alegria, se atirava aos braços dele. - Que pensa do fato de eu correr perigo? - perguntou ela. - Vou deixar-vos a conversar enquanto mudo de roupa - anunciou Kerry. Bob soltou Robin. - Kerry, não te demores - disse ele apressadamente. - Só posso ficar uns minutos. Kerry viu o sofrimento imediato no rosto de Robin e sentiu vontade de estrangular Kinellen. «Atira-lhe um TLC para variar», pensou, furiosa. Esforçando-se para manter o mesmo tom de voz, respondeu: - Desço num minuto. Vestiu rapidamente umas calças e uma camisola, mas esperou deliberadamente dez minutos. Em seguida, quando se preparava para descer, ouviu uma pancada na porta, e Robin chamou: - Mãezinha. - Entra. - Kerry começou por dizer: - Estou pronta... - quando viu a expressão do rosto de Robin. - Qual é o problema?

- Não é nada. O paizinho pediu-me que esperasse cá em cima enquanto fala contigo. - Compreendo. Bob estava parado no meio do gabinete, obviamente constrangido, obviamente desejoso por se ir embora. «Nem se deu ao trabalho de despir o casaco», pensou Kerry. «E que fez para perturbar Robin? Provavelmente, passou o tempo todo a dizer-lhe que estava cheio de pressa.» Virou-se quando ouviu os passos. - Kerry, tenho de voltar para o escritório. Tenho muito trabalho para fazer para a sessão de amanhã. Mas há uma coisa muito importante que tenho de te contar. Tirou uma pequena folha de papel do bolso. - Tiveste conhecimento do que aconteceu a Barney Haskell e a Mark Young? - Obviamente. - Kerry, Jimmy Weeks tem um meio de obter informações. Não sei bem como, mas tem. Por exemplo, ele sabe que foste visitar Reardon à prisão no sábado. - Sabe? - Kerry fitou o ex-marido. - Que importância tinha isso para ele? - Kerry, não brinques. Estou preocupado. Jimmy está desesperado. Acabei de te dizer que tem uma forma de descobrir coisas. Vê isto. Kinellen entregou-lhe aquilo que parecia ser uma cópia de um bilhete escrito numa folha de quinze por vinte e três centímetros arrancada de uma agenda. Nela estavam seis notas musicais na clave de C, e por debaixo as palavras: «Estou apaixonado por ti.» Estava assinado «J». - Que vem a ser isto? - perguntou Kerry, mesmo quando trauteava mentalmente as notas que lia. Depois, sem que Bob pudesse responder, ela compreendeu, e o sangue gelou. Eram as notas de abertura da canção Let Me Call You Sweetheart. - Onde encontraste isso e que significa? - disse ela com brusquidão. - Encontraram o original no bolso da lapela de Mark Young quando examinaram as roupas na morgue. Era a letra de Haskell, e numa folha de papel arrancada da agenda ao lado do telefone de Young. A secretária lembra-se de que colocou uma agenda nova ontem à noite, por isso Haskell deve ter registado isto esta manhã, entre as sete e as sete e meia. - Uns minutos antes de morrer?

- Exatamente. Kerry, tenho a certeza de que está relacionado com as negociações de apelo que Haskell estava a tentar fazer. - A negociação de apelo? Queres dizer que ele insinuava que podia associar Jimmy Weeks a um homicídio e que era o caso do homicídio Sweetheart? - Kerry não acreditava naquilo que ouvia. - Jimmy estava envolvido com Suzanne Reardon, não estava? Bob, estás a dizer-me que a pessoa que tirou a fotografia de Robin, e por pouco não a atropelou, trabalha para Jimmy Weeks, e esta é a forma de me intimidar? - Kerry, apenas te estou a dizer que não faças nada. Por Robin, não faças nada. - Weeks sabe que estás aqui? - Ele sabe que te avisaria para o bem de Robin. - Espera um pouco. - Kerry olhou para o ex-marido com incredulidade. Vamos ver se percebo. Estás aqui para me dissuadires, porque o teu cliente, o mafioso e o assassino que tu representas, te fez uma ameaça, velada ou não, para me transmitires. Meu Deus, Bob, como desceste tanto. - Kerry, estou a tentar salvar a vida da minha filha. - A tua filha? De repente, ela é assim tão importante para ti? Sabes quantas vezes a desiludiste quando não aparecias para a ver? É um insulto. Agora sai. Quando ele se virou, ela arrancoulhe o papel da mão. - Mas ficarei com isto. - Dá-me isso. - Kinellen prendeu-lhe a mão, abrindo os dedos à força e tirando-lhe o papel. - Paizinho, largue a mãezinha! Ambos rodaram e viram Robin na soleira da porta, com as cicatrizes, quase desvanecidas, brilhantes de novo na palidez do rosto. O Dr. Smith saíra do consultório às 4:20, apenas mais ou menos um minuto depois de a última paciente um exame após uma cirurgia à barriga se ter ido embora. Kate Carpenter ficou satisfeita por vê-lo ir. Ultimamente, tornara-se perturbador estar perto dele. Notara o tremor na mão uma vez nesse dia quando removia os pontos no crânio da Sra. Pryce, que fora submetida a uma operação para levantamento das sobrancelhas. Porém, a preocupação da enfermeira ultrapassava o plano físico; tinha a certeza de que mentalmente havia algo radicalmente errado com o médico.

O mais frustrante para Kate, todavia, era não saber para onde se virar. Charles Smith era ou fora, pelo menos um brilhante cirurgião. Não o queria ver desacreditado ou expulso da carreira. Se as circunstâncias fossem diferentes, ela teria falado com a esposa ou com o melhor amigo. Mas, no caso do Dr. Smith, não podia fazer isso a esposa há muito que morrera, e parecia não ter amigos. A irmã de Kate, Jean, era assistente social. Jean provavelmente compreenderia o problema e poderia aconselhá-la a quem devia recorrer para obter a ajuda de que o Dr. Smith obviamente precisava. Mas Jean estava de férias no Arizona, e Kate, mesmo que quisesse, não sabia como entrar em contato com ela. Barbara Tompkins telefonou às quatro e meia. - Sra. Carpenter, aconteceu. Ontem à noite, o Dr. Smith telefonou-me e exigiu praticamente que fosse jantar com ele. Mas estava constantemente a chamar-me Suzanne. E quer que o trate por Charles. Perguntou se tinha um namorado a sério. Lamento, devo-lhe muito, mas acho-o de fato assustador, e começo a ficar assustada. Tenho a sensação de que mesmo no trabalho olho por cima do ombro, à espera de o ver em algum lugar à espreita. Não aguento. Isto não pode continuar. Kate Carpenter sabia que não podia protelar por mais tempo. A única pessoa possível que lhe ocorreu e em quem podia confiar foi a mãe de Robin Kinellen, Kerry McGrath. Kate sabia que era advogada, assistente do promotor de Nova Jérsia, mas também era uma mãe muito grata ao Dr. Smith por ter tratado a filha numa emergência. Também tinha consciência de que Kerry McGrath sabia mais do passado pessoal do Dr. Smith do que ela ou qualquer pessoa que trabalhava para ele. Não sabia ao certo por que razão Kerry andara a tirar informações sobre o médico, mas Kate sentia que não era com um objetivo nocivo. Kerry partilhara com ela a informação de que Smith não só era divorciado como também era pai de uma mulher que fora assassinada. Sentindo-se como Judas Iscariotes, a Sra. Kate Carpenter deu a Barbara Tompkins o número do telefone de casa da assistente do promotor de Bergen County, Kerry McGrath. Muito depois de Bob Kinellen sair, Kerry e Robin ficaram sentadas no sofá, em silêncio, com os ombros encostados, as pernas esticadas sobre a mesa do café.

Então, escolhendo cuidadosamente as palavras, Kerry disse: - O que quer que eu tenha dito ou a cena a que acabaste de assistir possa sugerir, o paizinho gosta muito de ti, Robin. A preocupação dele é contigo. Não admiro as situações críticas em que se mete, mas respeito os sentimentos dele por ti mesmo quando fiquei tão furiosa que o mandei sair. - Ficou furiosa com ele quando disse que estava preocupado comigo. - Oh, isso não, foram apenas palavras. Às vezes, irrita-me tanto. Seja como for, sei que não vais ser o tipo de pessoa que se deixa envolver em problemas que são óbvios para toda a gente e depois alega ética circunstancial... que quer dizer: «isto pode estar errado mas é necessário». - É isso que o paizinho faz? - Eu penso que sim. - Ele sabe quem me tirou a fotografia? - Ele suspeita que sabe. Tem a ver com o caso em que Geoff Dorso tem estado a trabalhar e em que tentou que eu lhe desse uma ajuda. Ele procura tirar da prisão um homem de cuja inocência está convencido. - Estás a ajudá-lo? - Efetivamente, tinha decidido que, se me envolvesse, estaria a provocar escusadamente uma série de inimigos. Agora começo a pensar que talvez estivesse errada, que há bons motivos para considerar que o cliente de Geoff pode ter sido de fato injustamente condenado. Mas, por outro lado, não vou de modo nenhum pôr a tua vida em risco para o provar. Eu prometo-te. Robin olhou em frente por instantes e depois virou-se para a mãe. - Mãezinha, isso não faz sentido. É muito injusto. Censuras o paizinho por causa de uma coisa, e depois fazes o mesmo. Isso não ajuda Geoff, se pensas que o cliente dele não devia estar na prisão com base em «ética circunstancial»? - Robin! - Estou a falar a sério. Pensa nisso. Agora podemos encomendar a pizza? Estou cheia de fome. Chocada, Kerry ficou a olhar enquanto a filha se levantava e pegava no saco com os filmes de vídeo que planeavam ver. Robin examinou os títulos, escolheu um e colocou-o no aparelho. Pouco antes de o ligar, disse: - Mãezinha, penso que aquele homem no carro no outro dia tentou apenas assustar-me. Não creio que me fosse atropelar. Não me importo que me leves à escola e Alison me vá buscar. Qual é a diferença?

Kerry fitou a filha por um momento, depois abanou a cabeça. - A diferença é que tenho orgulho de ti e vergonha de mim. - Abraçou Robin rapidamente, em seguida soltou-a e foi para a cozinha. Passados alguns minutos, quando tirava os pratos para a pizza, o telefone tocou e uma voz hesitante disse: - Sra. McGrath, sou Barbara Tompkins. Peço desculpa pelo incómodo, mas a Sra. Carpenter, do consultório do Dr. Smith, sugeriu que lhe telefonasse. Enquanto ouvia, Kerry pegou numa caneta e começou a tomar notas no bloco dos recados. O Dr. Smith foi consultado por Barbara... Ele mostrou-lhe uma fotografia... Perguntou-lhe se queria ficar parecida com aquela mulher... Operou-a... Começou a aconselhá-la... Ajudou-a a escolher um apartamento... Mandou-a a um comprador pessoal... Agora chama-lhe «Suzanne» e seguea... Por fim, Tompkins disse: - Sra. McGrath, estou muito grata ao Dr. Smith. Ele virou a minha vida por completo. Não quero dar parte dele na Polícia e pedir uma ordem de prisão. Não quero fazer-lhe mal de modo nenhum. Mas não posso permitir que isto continue. - Alguma vez se sentiu fisicamente ameaçada por ele? - perguntou Kerry. Houve uma breve hesitação antes de Tompkins responder devagar: - Não, de fato. Quero dizer que nunca tentou forçar-me fisicamente. Tem sido efetivamente muito solícito, tratando-me como se eu fosse, de certa forma, frágil... como uma boneca de porcelana. Mas, de vez em quando, pressinto nele uma raiva terrível, refreada, e que poderia soltar-se facilmente, talvez recair sobre mim. Por exemplo, quando apareceu para me ir buscar para jantar, ontem à noite, jurava que não ficou satisfeito por estar pronta para sair imediatamente do apartamento. E, por instantes, pensei que pudesse atacar. É que não queria ficar a sós com ele. E agora sinto que, se me recusasse abertamente a recebê-lo, ele podia ficar muito, muito irritado. Mas, como lhe contei, ele tem sido bom para mim. E sei que uma ordem de prisão poderia afetar gravemente a sua reputação. - Barbara, vou visitar o Dr. Smith na segunda-feira. Ele não sabe, mas vou. Penso, de acordo com o que diz, que ele sofre de qualquer tipo de esgotamento. Espero que se deixe convencer de que deve procurar ajuda. Mas

não a posso aconselhar a não falar com a Polícia de Nova Iorque se está assustada. Na realidade, penso que o deveria fazer. - Por enquanto não. Vou fazer uma viagem de negócios no próximo mês, mas posso alterar os meus planos e viajar na próxima semana. - Gostaria de conversar de novo consigo quando regressar; depois decidirei o que devo fazer. Quando desligou, Kerry deixou-se cair pesadamente numa cadeira da cozinha, com as notas da conversa em frente dela. «A situação estava a tornar-se muito mais complicada. O Dr. Smith andara a seguir Barbara Tompkins. Seguira também a própria filha? Sendo assim, era muito provável que fosse o Mercedes dele que Dolly Bowles e o pequeno Michael tinham visto estacionado em frente da casa dos Reardon na noite do crime.» Ela lembrou-se de parte dos números da matrícula que Bowles afirmava ter visto. Joe Palumbo teria conseguido compará-los com os do carro de Smith? Mas, se o Dr. Smith se virara contra Suzanne, como Barbara Tompkins receava que ele se pudesse virar contra ela, se ele era o responsável pela sua morte, então por que razão Jimmy Weeks tinha tanto medo de que o associassem ao homicídio de Suzanne Reardon? «Preciso de saber mais sobre a relação de Smith com Suzanne antes de falar com ele, antes de saber quais as perguntas que lhe devo fazer», pensou Kerry. Aquele negociante de antiguidades, Jason Arnott... devia ser a pessoa indicada. De acordo com as notas que encontrara no ficheiro, não passava de um amigo mas ia frequentemente a Nova Iorque com Suzanne a leilões e a coisas do género. «Talvez o Dr. Smith os encontrasse algumas vezes.» Fez uma chamada a Arnott, deixando uma mensagem a pedir que lhe telefonasse. Depois hesitou em fazer outra. Seria para Geoff, pedindo-lhe que marcasse um segundo encontro com Skip Reardon na prisão. Só que dessa vez queria que estivessem também presentes a mãe e a namorada, Beth Taylor. Jason Arnott planeara ficar calmamente em casa na sexta-feira à noite e preparar um jantar simples. Com isso em mente, mandara a mulher da limpeza, que vinha duas vezes por semana, às compras, e ela voltara com o filé de solha, agrião, vagens e pão de fantasia torrado que encomendara. Mas, quando Amanda Coble telefonou a convidá-lo para jantar no Clube de Ténis de Ridgewood com Richard e ela, aceitara de bom grado.

Os Coble eram o tipo de pessoas que apreciava muito ricas mas maravilhosamente despretensiosas; divertidas; muito, muito astutas. Richard era um banqueiro internacional e Amanda uma decoradora de interiores. Jason tratava com sucesso dos seus bens e gostava muito de conversar com Richard sobre mercadorias e mercados estrangeiros. Sabia que Richard respeitava as suas opiniões e Amanda apreciava os seus conhecimentos de antiguidades. Concluiu que seriam uma diversão agradável depois do tempo inquietante que passara em Nova Iorque, na véspera, com Vera Todd. E, além disso, conhecera uma série de pessoas interessantes por intermédio dos Coble. Na realidade, a sua apresentação levara a uma pilhagem muito bem sucedida em Palm Springs há três anos atrás. Conduzia o carro até à porta principal do clube no momento em que os Coble entregavam o carro ao empregado do estacionamento. Ia ligeiramente atrás deles quando transpuseram a entrada principal, depois esperou enquanto eles cumprimentavam um casal com ar distinto que estava de saída. Reconheceu imediatamente o homem. O senador Jonathan Hoover. Estivera nalguns jantares políticos a que Hoover comparecera, mas nunca se encontraram frente a frente. A mulher estava numa cadeira-de-rodas mas ainda conseguia ter um ar magnificente, num fato azul-escuro com uma saia que chegava às biqueiras dos sapatos subidos atados com cordões. Ouvira dizer que a Sra. Hoover estava inválida, mas nunca a vira. Com um olhar que captou instantaneamente o mais pequeno pormenor, reparou na posição das mãos, entrelaçadas, escondendo parcialmente as articulações inchadas dos dedos. «Devia ser um espanto quando era nova, e antes de isto suceder», pensou ele enquanto examinava o rosto ainda belíssimo no qual sobressaíam uns olhos azul-safira. Amanda Coble levantou os olhos e viu-o. - Jason, está aqui. - fez-lhe sinal para que se aproximasse e apresentouos. - Estamos a falar daqueles homicídios horríveis desta manhã em Summit. Tanto o senador Hoover como Richard conheciam o advogado, Mark Young. - É evidente que foi uma vingança - disse Richard Coble, furioso. - Concordo - disse Jonathan Hoover. - E o governador também. Todos sabemos como tem reprimido o crime nestes oito anos, e agora precisamos

que Frank Green continue com o excelente trabalho. Uma coisa posso afirmar: se Weeks estivesse a ser julgado num tribunal estatal, podem crer que o procurador-geral teria concluído o acordo de apelo e conseguido o depoimento de Haskell, e estes homicídios jamais se teriam dado. E agora Royce, o homem que estragou toda esta operação, quer ser governador. Por mim, não será! - Jonathan - murmurou Grace Hoover com uma expressão de censura. Bem se pode dizer que estamos em ano de eleições, não lhe parece, Amanda? - Como todos sorriram, acrescentou: - Agora não devemos retê-los por mais tempo. - A minha mulher tem-me mantido na linha desde que nos conhecemos no tempo de calouros na Faculdade - explicou Jonathan Hoover a Jason. Gostei de o ver de novo, Sr. Arnott. - Sr. Arnott, não nos conhecemos já? - perguntou Grace Hoover repentinamente. Jason sentiu o sistema de alarme interno acionado. Emitia um sinal forte. - Não creio respondeu pausadamente. - «Ter-me-ia lembrado de certeza», pensou. «Por isso, que a faz pensar que nos conhecemos?» - Não sei porquê, mas sinto como se o conhecesse. Bem, com certeza estou enganada. Adeus. Apesar de os Coble serem as pessoas interessantes do costume e o jantar estar delicioso, Jason passou a noite a arrepender-se de não ter ficado em casa sozinho e cozinhado o filé de solha. Quando regressou a casa às dez e meia, o dia ficou ainda mais estragado quando ouviu a mensagem do atendedor automático. Era de Kerry McGrath, que se apresentou como assistente do promotor de Bergen County, deu o número de telefone, pediu-lhe que lhe telefonasse para casa até às onze horas dessa noite ou de manhã cedo. Explicou que desejava falar com ele a título particular sobre a vizinha e amiga falecida, a vítima de homicídio, Suzanne Reardon. Na sexta-feira à noite, Geoff Dorso foi jantar a casa dos pais em Essex Fells. Era uma ocasião especial. Inesperadamente, a irmã. Marian, o marido, Don, e os dois gêmeos de 2 anos vieram de Boston para passar o fim-desemana. A mãe procurou imediatamente reunir os outros quatro filhos, as esposas e filhos, para darem as boas-vindas aos visitantes. Sexta-feira era a única noite em que todos os outros podiam ir, por isso teve de ser sexta-feira.

- Então adiarás os outros planos, não é, Geoff? - quase lhe suplicara a mãe, quase lhe ordenara quando lhe telefonara nessa tarde. Geoff não tinha planos, mas, com esperança de arranjar motivos para outro convite, procurou não se comprometer. - Não tenho a certeza, mãezinha. Terei de reformular uma coisa, mas... Arrependeu-se logo de ter escolhido aquela linha de ação. A voz da mãe mudou para um tom de vivo interesse quando interrompeu: - Oh, tens um encontro, Geoff! Conheceste uma pessoa simpática? Não canceles. Trá-la também. Adoraria conhecê-la! Geoff resmungou interiormente. - Efetivamente, mãezinha, estava apenas a brincar. Não tenho um encontro. Estarei aí por volta das seis horas. - Está bem, querido. - Era evidente que o prazer da mãe na sua cedência foi temperado pelo fato de não ir ser apresentada a uma possível nora. Quando desligou o telefone, Geoff admitiu para si mesmo que, se fosse na noite do dia seguinte, se sentiria tentado a sugerir a Kerry que ela e Robin talvez gostassem de jantar em casa dos pais. «Provavelmente, fugiria para as colinas», pensou ele. Subitamente, achou inquietante ter consciência de que várias vezes durante o dia pensara que a mãe gostaria muito, mesmo muito, de Kerry. Às seis horas chegava à bela casa de construção irregular em estilo Tudor que os pais tinham comprado há vinte e sete anos por um décimo do seu valor atual. «Era uma casa de família ideal quando estávamos a crescer», pensou, «e é uma casa de família ideal com todos os netos cá dentro.» Estacionou em frente da antiga casa das carruagens, que era agora a residência da irmã mais nova e ainda solteira. Todos tinham tido oportunidade de usar o apartamento da casa das carruagens depois de concluírem a Faculdade ou o Liceu. Ele ficara lá quando andava na Faculdade de Direito de Columbia, e ainda mais dois anos. «Passámos bons tempos», reconheceu quando inspirava o ar frio de Novembro e antecipava o calor da casa acolhedora e profusamente iluminada. Os seus pensamentos viraram-se para Kerry. «Ainda bem que não sou filho único», disse para com os seus botões, «estou grato por o pai não ter morrido quando estava na Faculdade e a mãe não se ter casado de novo e ido viver a uns milhares de quilómetros de distância. Não devia ter sido fácil para Kerry.» «Devia ter-lhe telefonado hoje», pensou. «Por que não o fiz? Sei que

não gosta que ninguém ande de volta dela, mas, por outro lado, ela não tem ninguém com quem partilhar as preocupações. Ela não pode proteger Robin do modo como esta família podia proteger uma das nossas crianças se houvesse uma ameaça.» Subiu o passeio e penetrou na atmosfera quente e barulhenta, tão típica quando três gerações do clã Dorso se reuniam. Depois de saudações calorosas à família de Boston e um viva casual aos irmãos que via com regularidade, Geoff conseguiu esgueirar-se para o gabinete com o pai. Repleto de filas de livros de Direito e primeiras edições assinadas, era o único compartimento interditado aos jovens curiosos. Edward Dorso encheu dois copos com uísque escocês, um para o filho e outro para ele. Com 70 anos, era um advogado aposentado que se especializara em Direito Comercial e Cooperativo e em tempos contara entre os seus clientes 500 companhias prósperas. Edward conhecera e simpatizara com Mark Young e estava ansioso por saber informações novas que Geoff podia ter recolhido no Tribunal sobre o seu assassinato. - Pai, não lhe posso contar muita coisa - disse Geoff. - É difícil acreditar na coincidência de um assaltante ou assaltantes estarem a fazer um roubo e matarem Young, precisamente no momento em que a outra vítima, Haskell, estava a negociar um apelo em troca de um depoimento contra Jimmy Weeks. - Concordo. Por falar nisso, hoje almocei em Trenton com Summer French. Surgiu uma coisa que talvez interesse. Têm a certeza de que um membro da comissão de planejamento em Filadélfia deu informações secretas a Weeks há dez anos, sobre uma nova auto-estrada que ia ser construída entre Philly e Lancaster. Weeks apanhou umas propriedades valiosas e teve um enorme lucro ao vendê-las aos empresários quando os planos para a autoestrada foram tornados públicos. - Os subornos não são novidade - comentou Geoff. - É uma realidade e praticamente impossível de fiscalizar. E frequentemente difícil de provar, acrescentaria. - Falei neste caso por um motivo. Deduzo que Weeks comprou algumas dessas propriedades quase de graça, porque o indivíduo que tinha opções nelas, estava necessitado de dinheiro. - Alguém que eu conheça? - O teu cliente favorito, Skip Reardon. - Geoff encolheu os ombros.

- O pai sabe que andamos em círculos próximos. Foi apenas mais uma forma de afundar Skip Reardon. Lembro-me de Tim Farrell dizer, na altura, que Skip estava a liquidar tudo para a sua defesa. No papel, a situação financeira de Skip parecia excelente, mas tinha opções em muitos terrenos, uma elevada hipoteca de construção sobre uma casa extravagante e uma mulher que parecia pensar que estava casada com o rei Midas. Se Skip não tivesse ido para a prisão, hoje seria um homem rico, porque é um excelente homem de negócios. Mas recordo-me de que ele vendeu todas as opções ao preço justo do mercado. - Mercado justo não, se o comprador tiver informações privilegiadas disse o pai com acrimónia. - Um dos boatos que ouvi é que Haskell, que era o contabilista de Weeks nessa época, também sabia dessa transação. De qualquer modo, é daquelas informações que podem ser úteis de alguma forma, um dia. Antes que Geoff pudesse fazer um comentário, um coro de vozes no lado de fora do gabinete gritou: - Avô, tio Geoff, o jantar está pronto. - E chegou a intimação, amável... - citou Edward Dorso quando se levantou e espreguiçou. - Vá indo, pai, irei já a seguir. Quero verificar as mensagens. Quando ouviu a voz rouca e baixa de Kerry no gravador do atendedor automático, encostou o auscultador à orelha. - Kerry dizia mesmo que queria ir à prisão falar de novo com Skip? Que queria que lá estivessem a mãe dele e Beth Taylor? - Aleluia! - disse em voz alta. Agarrando Justin, o sobrinho que tinham mandado para o ir buscar, Geoff dirigiu-se à sala de jantar, onde a mãe esperava impacientemente que todos se sentassem para se fazer a oração de ação de graças. Quando o pai terminou a oração, a mãe acrescentou: E estamos muito agradecidos por termos conosco Marian e Don e os gêmeos. - Mãe, parece que vivemos no pólo Norte - protestou Marian, piscando o olho a Geoff. - Boston fica a três horas e meia de viagem. - Se fosse como a vossa mãe quer, teríamos um complexo familiar comentou o pai com um sorriso divertido. - E estariam todos aqui, sob o seu olhar atento.

- Podem fazer troça de mim - disse a mãe, - mas adoro ver a família toda reunida. É maravilhoso ter as três filhas casadas e Vickey com um namorado firme e tão simpático como Kevin. Geoff ficou a olhar enquanto ela sorria ao casal. - Agora, se conseguisse que o nosso único filho encontrasse a rapariga certa... - A voz arrastou-se enquanto todos se viravam para Geoff com um sorriso complacente. Geoff fez um esgar, depois sorriu também, lembrando-se do tempo em que a mãe não governava a casa. Era uma mulher muito interessante que ensinara Literatura Medieval na Universidade de Drew durante vinte anos. Na realidade, tinham-lhe dado o nome Geoffrey pela sua grande admiração por Chaucer. Entre dois pratos, Geoff esgueirou-se para o gabinete e telefonou a Kerry. Ficou entusiasmado ao constatar que ela parecia contente por ter notícias dele. - Kerry, pode ir visitar Skip amanhã? Sei que a mãe e Beth largarão tudo para estarem lá quando chegar. - Quero, Geoff, mas não sei se posso. Custar-me-ia muito deixar Robin, mesmo em casa de Cassie. As crianças andam sempre cá fora, e fica mesmo numa esquina exposta. Geoff não sabia que tinha a solução até se aperceber que dizia: - Então tenho uma ideia melhor. Vou buscar-vos, e podemos deixar Robin aqui com a minha família enquanto nos ausentamos. A minha irmã e o marido e os filhos estão aqui. E, por causa deles, os outros netos também virão. Robin terá muita companhia, e, se não for suficiente, o meu cunhado é comandante da Polícia estatal de Massachusetts. Acredite em mim, ficará em segurança. Jason Arnott ficou acordado quase toda a noite, esforçando-se por tomar uma decisão em relação ao telefonema da assistente do promotor, Kerry McGrath, mesmo, como ela delicadamente dissera, a título «particular». Por volta das 7:00 da manhã, tomara uma decisão. Retribuiria o telefonema e, num tom cortês, delicado, mas distante, comunicar-lhe-ia que teria muito prazer em se encontrar com ela, desde que não demorasse muito tempo. A desculpa seria que estava de partida em viagem de negócios. «Para os Catskills», prometeu Jason a si mesmo. «Escondo-me na casa. Lá ninguém me descobrirá. Entretanto, tudo isto terá acabado. Mas não posso

deixar transparecer que tenho motivos para estar preocupado.» Tomada a decisão, caiu finalmente num sono profundo, aquele sono que o regalava depois de ter concluído com êxito uma missão e saber que estava a salvo em casa. Telefonou a Kerry McGrath assim que acordou às nove e meia. Ela atendeu ao primeiro toque. Ficou aliviado ao ouvir aquilo que lhe parecia ser uma gratidão sincera no tom de voz. - Sr. Arnott, agradeço muito ter telefonado, e garanto-lhe que é a título particular - disse ela. - O seu nome surgiu como tendo sido amigo e conselheiro de Suzanne Reardon na qualidade de perito em antiguidades há anos atrás. Descobriu-se algo relacionado com esse caso, e gostaria de ter uma oportunidade para conversar com o senhor sobre a sua opinião relativamente à relação entre Suzanne e o pai, o Dr. Charles Smith. Prometo que tomarei apenas uns minutos do seu tempo. Ela falava a sério. Jason reconhecia uma imitação, fizera disso uma carreira, e ela não era falsa. Não seria difícil falar de Suzanne, disse para si mesmo. Fora com frequência às compras com ela como fizera na véspera com Vera Shelby Todd. Estivera presente em muitas das suas festas, mas também dúzias de outras pessoas. Ninguém podia desconfiar de nada. Jason foi receptivo à explicação de Kerry de que tinha um compromisso inadiável e que a iam buscar à uma e ficaria muito grata se pudesse visitá-lo antes dessa hora. Kerry decidiu levar Robin quando fosse a casa de Jason Arnott. Sabia que perturbara Robin vê-la lutar com Bob na noite anterior por causa da cópia do bilhete de Haskell, e concluiu que o passeio até Alpine lhes daria meia hora para conversar. Culpava-se pela cena com Bob. Devia ter compreendido que era impossível que a deixasse ficar com o bilhete. De qualquer modo, sabia o que estava lá escrito. Anotara assim que o vira para o poder mostrar mais tarde a Geoff. Estava um dia de sol, seco, «um dia», pensou, «que retempera o espírito». Agora que tinha consciência de que precisava de examinar o caso Reardon e de o levar até ao fim, estava determinada a fazê-lo sem demora. Robin concordara de bom grado em dar o passeio, embora frisasse que queria estar de volta ao meio-dia. Queria convidar Cassie para almoçar. Kerry falou-lhe então que tinha planejado que ela visitasse a família de Geoff enquanto ela ia a Trenton em trabalho.

- Porque estás preocupada comigo - disse Robin sem rodeios. - Sim - admitiu Kerry. - Quero-te num lugar onde eu saiba que ficarás bem, e sei que ficarás bem com os Dorso. Segunda-feira, depois de te deixar na escola, terei uma conversa com Frank Green sobre tudo isto. Agora, Rob, quando chegarmos à casa do Sr. Arnott, entras comigo, mas sabes que tenho de falar a sós com ele. Trouxeste um livro? - Hum-hum. Gostava de saber quantas sobrinhas e quantos sobrinhos de Geoff estarão lá hoje. Vejamos, ele tem quatro irmãs. A mais nova não é casada. A irmã a seguir a Geoff tem três filhos, um rapaz que tem nove... é o que tem quase a minha idade... e uma rapariga que tem sete e um rapaz que tem quatro. A segunda irmã de Geoff tem quatro filhos, mas ainda são pequenos... creio que o mais velho tem seis. Depois há aquela que tem gêmeos de dois anos. - Robin, por amor de Deus, quando soubeste tudo isso? - perguntou Kerry. - Naquela noite ao jantar. Geoff falava deles. Penso que estavas meio distraída. Era capaz de apostar que não prestavas atenção. Seja como for, acho que vai ser ótimo ir para lá. Diz que a mãe é uma excelente cozinheira. Quando saíam de Closter e entravam em Alpine, Kerry olhou rapidamente para as instruções. - Já falta pouco. Passados cinco minutos, subiam uma rua sinuosa que ia dar à mansão de Jason Arnott em belo estilo europeu. O sol brilhante refletia-se na estrutura, uma combinação espantosa de pedra, estuque, tijolo e madeira, com janelas muito altas e caixilhos de chumbo. - Uau! - exclamou Robin. - Faz-nos pensar na modéstia em que nós vivemos - concordou Kerry quando estacionou na alameda semicircular. Jason Arnott abriu-lhes a porta antes de descobrirem a campainha. A saudação foi cordial. - Sra. McGrath... e esta é a sua assistente? - Disse-lhe que seria uma visita particular, Sr. Arnott - disse Kerry quando apresentou Robin. - Talvez ela possa esperar aqui enquanto conversamos. Ela apontou para uma cadeira próxima de uma escultura de dois cavaleiros em combate, de tamanho natural e bronze. - Oh, não. Estará muito mais confortável no pequeno gabinete. - Arnott

indicou um compartimento à esquerda do vestíbulo. - Nós podemos ir para a biblioteca. É logo a seguir ao gabinete. «Esta casa parece um museu», pensou Kerry enquanto seguia Arnott. Teria adorado poder parar e admirar as belas tapeçarias, a elegante mobília, os quadros, a total harmonia do interior. «Concentra-te naquilo que estás a fazer», advertiu-se interiormente. «Prometeste-lhe que só te demorarias meia hora.» Quando ela e Arnott estavam sentados frente a frente em maravilhosas poltronas de Marrocos, disse: - Sr. Arnott, Robin sofreu uns ferimentos faciais num acidente há várias semanas e foi tratada pelo Dr. Charles Smith. Arnott levantou as sobrancelhas. - O Dr. Charles Smith que era o pai de Suzanne Reardon? - Exatamente. Numa das duas consultas que se seguiram, vi uma paciente no consultório que se parecia extraordinariamente com Suzanne Reardon. Arnott olhou fixamente para ela. - Por coincidência, espero. Certamente, não está a dizer que ele recria deliberadamente Suzanne? - Uma interessante seleção de palavras, Sr. Arnott. Estou aqui porque, conforme lhe disse pelo telefone, preciso de conhecer melhor Suzanne. Preciso de saber como era de fato a sua relação com o pai e, tanto quanto souber, com o marido. Arnott recostou-se, olhou para o teto e entrelaçou os dedos por debaixo do queixo. «Mas que pose», pensou Kerry. «Está a fazer aquilo para me impressionar. Porquê?» - Deixe-me começar por quando conheci Suzanne. Deve ter sido há uns doze anos. Um dia, chegou e tocou à campainha. Devo dizer-lhe que era uma rapariga muitíssimo bela. Apresentou-se e explicou que ela e o marido andavam a construir uma casa nas redondezas e que queria mobilá-la com antiguidades e que soubera que eu ajudava os amigos a fazerem os lanços em leilões. disse-lhe que era verdade, mas que não me considerava um decorador de interiores nem tencionava ser considerado um conselheiro a tempo inteiro. - Cobrava pelos seus serviços? - No princípio não. Mas depois, quando compreendi que me divertia muito a acompanhar pessoas agradáveis naqueles passeios, prevenindo-as dos

maus negócios, ajudando-as a obter objetos belos a preços excelentes, estabeleci uma taxa justa de comissão. No começo não estava interessado em me envolver com Suzanne. Sabe, ela era um pouco asfixiante. - Mas envolveu-se mesmo? - Arnott encolheu os ombros. - Sra. McGrath, quando Suzanne queria uma coisa, conseguia-a. Efetivamente, quando percebeu que flertear descaradamente comigo era apenas um modo de me aborrecer, exercia o seu charme de uma maneira diferente. Podia ser muito divertida. Acabámos por nos tornar muito bons amigos; na realidade, ainda sinto muitas saudades dela. Melhorava muito as minhas festas. - Skip vinha com ela? - Raramente. Aborrecia-se, e, sinceramente, os meus convidados não o consideravam simpático. Agora não me interprete mal. Era um homem jovem, educado e inteligente, mas era diferente da maioria das pessoas que conheço. Era uma pessoa que se levantava cedo, trabalhava muito e não se interessava por conversa frívola... como disse publicamente Suzanne numa noite em que ele saiu daqui e foi para casa. - Ela tinha o seu próprio carro nessa noite? - Arnott sorriu. - Suzanne nunca teve problemas em arranjar boleia. - Como considerava a relação entre Suzanne e Skip? - Clara. Conheci-os nos dois últimos anos de casados. A princípio, pareciam gostar muito um do outro, mas por fim tornou-se evidente que se aborrecia com ele. Para o fim, quase nunca andavam juntos. - O Dr. Smith disse que Skip tinha muitos ciúmes de Suzanne e que a ameaçava. - Se o fazia, ela não me revelou isso. - Conhece bem o Dr. Smith? - Conheço tão bem como qualquer um dos amigos dela, suponho. Se eu ia a Nova Iorque com Suzanne em dias em que o consultório estava fechado, muitas vezes aparecia e fazia-nos companhia. Por fim, contudo, a atenção dele parecia aborrecê-la. Dizia coisas como: «Satisfaz-me dizer-lhe que vínhamos hoje aqui.» - Ela mostrava que ele a aborrecia? - Tal como manifestava em público a indiferença para com Skip, não se esforçava por esconder a impaciência com o Dr. Smith. - Sabia que ela foi criada pela mãe e por um padrasto? - Sabia. Contou-me que esses primeiros anos foram terríveis. As meias-

irmãs tinham inveja da sua boa aparência. Uma vez disse: «Por falar na Cinderella... em muitos aspectos tive a vida dela.» «Isso responde à minha próxima pergunta», pensou Kerry. «Obviamente, Suzanne não revelara a Arnott que crescera com o nome Susie, como se fosse filha do casal.» De repente, ocorreu-lhe uma pergunta: - Como é que chamava ao Dr. Smith? - Arnott fez uma pausa. - Ou doutor ou Charles - disse ele passado um momento. - Pai, não. - Nunca. Pelo menos que eu me lembre. - Arnott olhou fixamente para o relógio. - Sei que prometi não lhe tomar muito tempo, mas há mais uma coisa que preciso de saber. Suzanne estava envolvida com outro homem? Especificamente, encontrava-se com Jimmy Weeks? Arnott deu a impressão de estar a refletir antes de responder. - Apresentei-a a Jimmy Weeks nesta sala. Foi a única vez que aqui esteve. Simpatizavam muito um com o outro. Como deve saber, Weeks inspirava uma extraordinária sensação de poder, e isso atraiu imediatamente Suzanne. E, claro, Jimmy sempre teve atração por uma mulher bonita. Suzanne vangloriava-se de que, depois de se conhecerem, ele começou a aparecer com frequência no Clube de Ténis de Palisades, onde ela passava a maior parte do tempo. E penso que Jimmy também já era membro do clube. Kerry pensou no depoimento do ajudante do campo quando perguntou: - Ela gostava? - Oh, muito. Embora não pense que deixasse que Jimmy soubesse. Ela sabia que tinha uma série de namoradas, e gostava de lhe fazer ciúmes. Lembra-se de uma das primeiras cenas de E Tudo o Vento Levou, aquela em que Scarlett atrai os namorados de todas as outras mulheres? - Sim, lembro. - Essa é a nossa Suzanne. Até parece que ela teria ultrapassado isso. Afinal, é uma brincadeira de adolescente, não é? Mas não havia um homem que Suzanne não tentasse deslumbrar. Isso fazia que as mulheres não gostassem muito dela. - E a reação do Dr. Smith aos namoricos dela? - Eu diria... indignado. Creio que, se tivesse sido possível, Smith teria levantado uma proteção em volta dela para manter os outros longe, quase como nos museus em que colocam gradeamentos à volta dos objetos mais

valiosos. «Nem sabe como está perto do alvo», pensou Kerry. Recordou-se daquilo que Deidre Reardon dissera acerca da relação de Smith com Suzanne, que a tratava como um objeto. - Se a teoria está correta, Sr. Arnott, isso não seria um motivo para o Dr. Smith ter ressentimento contra Skip Reardon? - Ressentimento contra ele? Creio que era algo mais forte do que isso. Creio que o odiava. - Sr. Arnott, tem alguma razão para pensar que Suzanne recebia jóias de outro homem que não o marido e o pai? - Se recebia, eu não tinha conhecimento disso. Suzanne tinha umas peças muito belas, isso eu sei. Skip comprava-lhe uma série de coisas todos os anos pelo aniversário, e no Natal, sempre depois de ela dizer exatamente aquilo que queria. Também possuía várias peças Cartier um pouco mais antigas, que suponho que foi o pai que lhas deu. - «Ou foi o que ele disse», pensou Kerry. Levantou-se. - Sr. Arnott, pensa que Skip Reardon matou Suzanne? - Ele pôs-se de pé. - Sra. McGrath, considero-me um conhecedor de arte antiga e mobiliário. Sou menos bom a julgar pessoas. Mas não é verdade que o amor e o dinheiro são os melhores motivos para matar? Lamento dizer que, neste caso, estes dois motivos parecem aplicar-se a Skip. Não concorda? De uma janela, Jason viu o carro de Kerry desaparecer na alameda. Refletindo sobre a breve conversa, tinha consciência de que fora suficientemente específico, de forma a parecer prestável, suficientemente vago para que ela, tal como a acusação e a defesa há dez anos atrás, concluísse que não valia a pena fazer-lhe mais perguntas. «Se penso que Skip Reardon matou Suzanne? Não, não penso, Sra. McGrath», pensou ele. «Penso que, tal como muitos homens, Skip seria capaz de assassinar a esposa. Só que naquela noite alguém lhe levou a melhor.» Skip Reardon suportara aquela que era indiscutivelmente uma das piores semanas da sua vida. Ver o ceticismo nos olhos da assistente do promotor quando o fora visitar completara o trabalho que as notícias sobre a possível recusa de mais apelos iniciaram. Era como se um coro grego entoasse as palavras continuamente no interior da cabeça: «Mais vinte anos, mesmo antes da possibilidade de liberdade condicional.» Repetidas vezes. Toda a semana, em vez de ler ou ver

televisão à noite, Skip fitara as fotografias emolduradas nas paredes da cela. Beth e a mãe estavam na maior parte delas. Algumas das fotografias tinham dezassete anos, quando ele contava 23 anos e começara a namorar com Beth. Ela iniciara há pouco a carreira de professora e ele criara a Companhia de Construção Reardon. Nesses dez anos em que estivera encarcerado, Skip passara muitas horas a olhar para aquelas fotografias e a interrogar-se por que tudo correra tão mal. Se não tivesse conhecido Suzanne naquela noite, naquele momento ele e Beth estariam casados há catorze ou quinze anos. Provavelmente, teriam tido dois ou três filhos. Como seria ter um filho ou uma filha?, perguntou a si mesmo. Teria construído uma casa para Beth, que teriam planejado juntos não aquela louca moderna e enorme ficção da imaginação de um arquiteto que Suzanne exigira e que ele acabara por detestar. Suportara todos aqueles anos na prisão com a consciência da sua inocência, a sua confiança no sistema judicial americano e a crença de que um dia o pesadelo desapareceria. Na sua imaginação, o Tribunal de última instância concordaria que o Dr. Smith era um mentiroso, e Geoff viria à prisão e diria: «Vamos, Skip. É um homem livre.» De acordo com os regulamentos da prisão, Skip tinha direito a dois telefonemas por dia. Geralmente, telefonava à mãe e a Beth duas vezes por semana. Pelo menos uma vinha visitá-lo no sábado ou no domingo. Naquela semana, Skip não telefonara a nenhuma delas. Decidira. Não permitiria que Beth o visitasse. Ela tinha de continuar a viver a sua vida. «Vai fazer quarenta anos», pensou. «Deveria conhecer outro homem, casar-se, ter filhos. Adora crianças. Foi por isso que escolheu o professorado e depois o cargo de conselheira como carreira.» E Skip tomara outra decisão: não iria perder mais tempo a projetar compartimentos e casas com o sonho de um dia os poder construir. Quando saísse da prisão se alguma vez saísse, estaria com 60. Seria tarde de mais para recomeçar. Além disso, não haveria ninguém que se importasse. Foi por isso que no sábado de manhã, quando comunicaram a Skip que o advogado lhe telefonara, ele recebeu a chamada com a firme intenção de dizer a Geoff para o esquecer. Ele também tinha de tratar de outros assuntos. A notícia de que Kerry McGrath o ia visitar, assim como a mãe e Beth, irritou-o. - Que é que a McGrath quer fazer, Geoff? - perguntou. «Mostrar à mãe e

a Beth precisamente por que estão a perder tempo na tentativa de me tirarem daqui? Mostrar-lhes que cada argumento a meu favor é um argumento contra mim?» - Diga a McGrath que não preciso de ouvir tudo outra vez. O tribunal teve imenso trabalho para me convencer. - Cale-se, Skip - ripostou Geoff com voz firme. - Kerry está interessada em si, e este caso de homicídio tem-lhe causado muitos problemas, inclusive uma ameaça de que podia acontecer alguma coisa à filha de dez anos se ela não desistir. - Uma ameaça? De quem? - Skip olhou para o auscultador que segurava como se se tivesse tornado de repente um objeto estranho. Era impossível compreender que a filha de Kerry McGrath fora ameaçada por causa dele. - Não só quem mas também porquê? Temos a certeza de que Jimmy Weeks é o «quem». O «porquê» é que, por alguma razão, tem medo de que reatem a investigação. Agora preste atenção: Kerry quer analisar todos os pormenores deste caso consigo, com a sua mãe e Beth. Tem uma série de perguntas para todos vós. Também tem muito que contar sobre o Dr. Smith. Não preciso de lhe recordar o que lhe fez o depoimento dele. Estaremos aí no último período de visita, por isso pense em colaborar. Esta é a melhor oportunidade que tivemos de o tirar daí. Também pode ser a última. Skip ouviu o estalido no ouvido. Um guarda levou-o de novo para a cela. Sentou-se na tarimba e enterrou o rosto nas mãos. Não queria que acontecesse, mas, apesar do seu esforço, a centelha de esperança que julgava ter conseguido extinguir voltara a acender-se e inflamava todo o seu ser. Geoff foi buscar Kerry e Robin à uma hora. Quando chegaram a Essex Fells, Geoff conduziu Kerry e Robin ao interior da casa e apresentou-as. No final do jantar em família, na noite anterior, explicara resumidamente aos adultos as circunstâncias que o levavam a trazer Robin para uma visita. Imediatamente, os instintos da mãe concentraram-se no fato de que aquela mulher que Geoff insistia em chamar «a mãe de Robin» podia ter um significado especial para o filho. - Claro, traz Robin para passar a tarde - dissera ela. - Pobre criança, como é que alguém podia sequer pensar em lhe fazer mal. E, Geoff, depois de tu e a mãe dela... Kerry, foi este o nome que disseste?... voltarem de Trenton, ficam e jantam conosco. Geoff sabia que o seu vago «Veremos» não surtiria efeito. «O mais provável, a menos que alguma coisa desagradável aconteça, é comermos à

mesa da minha mãe esta noite», disse para si mesmo. Num instante, detectou aprovação nos olhos da mãe quando esta apreciou o aspecto de Kerry. Kerry envergava um casaco de pele de camelo com cinto, por cima de umas calças a condizer. Uma camisola à caçador, verde e de gola alta, acentuava os tons verdes nos olhos cor de avelã. O cabelo caía solto sobre a gola. A única maquilhagem para além do baton parecia ser um toque de sombra nas pálpebras. Em seguida, notou que a mãe ficou satisfeita com a gratidão sincera, mas não efusiva, por receber Robin. «A mãe sempre frisou que as vozes deviam ser bem modeladas», pensou ele. Robin ficou encantada quando soube que os nove netos estavam em algum lugar na casa. - Don vai levá-la e aos dois mais velhos ao Sports World - disse-lhe a Sra. Dorso. Kerry abanou a cabeça e murmurou: - Não sei... - Don é o cunhado que é comandante na Polícia estatal de Massachusetts - disse-lhe Geoff calmamente. - Ficará preso aos miúdos como cola. Era evidente que Robin esperava divertir-se. Ela ficou a olhar enquanto os dois gêmeos de 2 anos, perseguidos pelo primo de 4, passavam atabalhoadamente por eles. - Parece que agora é a hora da criançada - comentou, feliz. - Até logo, mãezinha. No carro, Kerry reclinou-se no banco e soltou um suspiro profundo. - Não está preocupada, pois não? - perguntou Geoff sem demora. - Não, de modo nenhum. Foi uma expressão de alívio. E agora deixe-me informá-lo daquilo que ainda não lhe contei. - Como por exemplo? - Como foi a adolescência de Suzanne, e aquilo que via quando se mirava no espelho nesse tempo. Como o Dr. Smith está interessado por uma das pacientes a quem deu o rosto de Suzanne. E aquilo que fiquei a saber por Jason Arnott hoje de manhã. Deidre Reardon e Beth Taylor já estavam na sala de recepção das visitas na prisão. Depois de Geoff e Kerry se registarem na secretária, foram ter com elas, e Geoff apresentou Kerry a Beth. Enquanto esperavam que os chamassem, Kerry manteve a conversa

deliberadamente impessoal. Sabia do que queria falar quando estivessem com Skip, mas queria aguardar até essa altura. Não queria perder a espontaneidade de ter os três a estimular a memória de cada um enquanto ela abordava os diversos aspectos. Compreendendo a saudação moderada da Sra. Reardon, concentrou-se a conversar com Beth Taylor, com quem simpatizou imediatamente. Às três horas em ponto, foram conduzidos à área onde os membros da família e os amigos podiam contactar com os detidos. Estava mais cheia do que estivera quando Kerry fizera a visita na semana anterior. Consternada, Kerry percebeu que talvez tivesse sido melhor pedir oficialmente uma sala de conferências privada das que havia disponíveis para quando os advogados de acusação e defesa solicitassem uma visita conjunta. Mas isso implicaria ter de declarar que era assistente do promotor de Bergen County em visita a um assassino condenado, uma coisa para a qual ainda não estava preparada. Conseguiram arranjar uma mesa num canto, cuja localização abafava um pouco do ruído de fundo. Quando Skip entrou escoltado, Deidre Reardon e Beth levantaram-se dum salto. Depois de o guarda retirar as algemas de Skip, Beth ficou para trás enquanto Deidre abraçava o filho. Então Kerry reparou como Beth e Skip se olhavam. As expressões nos seus rostos e a sobriedade do beijo dizia mais daquilo que os unia do que teriam exprimido os abraços mais ardentes e expansivos. Naquele momento, Kerry reviveu intensamente a recordação daquele dia no Tribunal, quando vira o sofrimento no rosto de Skip Reardon ao ser condenado a um mínimo de trinta anos de prisão e ouvira o seu protesto dilacerante de que o Dr. Smith era um mentiroso. Recordando isso, compreendeu que, conhecendo muito pouco do caso na altura, mesmo assim sentira ter ouvido o tom da verdade na voz de Skip Reardon naquele dia. Ela trouxera um bloco amarelo onde escrevera uma série de perguntas, deixando espaço debaixo de cada uma para tomar nota das suas respostas. Resumidamente, contou-lhes tudo aquilo que a levara a fazer aquela segunda visita. A história de Dolly Bowles sobre a presença do Mercedes na noite em que Suzanne morreu; o fato de Suzanne não possuir qualquer beleza especial quando atingiu a adolescência; a recriação estranha do seu rosto por parte do Dr. Smith quando operava outras pacientes; a atração de Smith por Barbara Tompkins; o fato de ter surgido o nome de Jimmy Weeks no decurso da investigação; e, por fim, a ameaça a Robin.

Kerry sentiu que foi um sinal de confiança dos três, depois do choque inicial ao ouvirem as revelações, não terem perdido tempo a reagir entre eles. Beth Taylor pegou na mão de Skip quando perguntou: - Que podemos fazer agora? - Em primeiro lugar, tornemos o ambiente mais leve dizendo que agora tenho sérias dúvidas se Skip é culpado, e, se desvendarmos tudo aquilo que espero encontrar, farei tudo para ajudar Geoff a conseguir que o veredito seja alterado. É assim que eu vejo as coisas - disse-lhes Kerry. - Há uma semana, Skip, você supôs, depois de conversarmos, que eu não acreditava em si. Isso realmente não é correto. O que senti, e o que pensei, foi que não havia nada que tivesse ouvido que não pudesse ser interpretado de duas maneiras... a seu favor ou contra si. Certamente, nada daquilo que ouvi justificava um novo recurso. Não é assim, Geoff? Geoff acenou com a cabeça. - O depoimento do Dr. Smith é o principal motivo da sua condenação, Skip. A única esperança é desacreditar esse depoimento. E o único meio que vejo para fazer isso é pô-lo entre a espada e a parede revelando algumas das mentiras e obrigando-o a enfrentá-las. Não esperou que nenhum deles falasse. - Já tenho a resposta à primeira pergunta que tencionava colocar... Suzanne nunca lhe disse que tinha feito uma operação plástica. E, a propósito, acabemos com as formalidades. Chamo-me Kerry. Durante a hora e quinze minutos que ainda lhes restava para terminar a visita, fez-lhes perguntas sem parar. - Antes de mais, Skip, Suzanne mencionou alguma vez Jimmy Weeks? - Apenas casualmente - disse ele. - Sabia que era membro do clube e que ela às vezes jogava com ele. Costumava vangloriar-se dos pontos que marcava. Mas, quando percebeu que começava a desconfiar de que estava envolvida com alguém, passou a mencionar apenas os nomes das mulheres com quem jogava. - Weeks não é o homem que está a ser julgado por evasão fiscal? perguntou Deidre Reardon. Kerry acenou com a cabeça. - É incrível. Achei que era terrível que o Governo o estivesse a molestar. No ano passado, trabalhei como voluntária na campanha contra o cancro, e ele permitiu que a realizássemos nos terrenos da sua propriedade em Peapack.

Ele subscreveu tudo e depois fez um enorme donativo. E está a dizer que estava envolvido com Suzanne e que ameaça a sua filhinha! - Jimmy Weeks garantiu que a sua imagem pública como boa pessoa fosse cuidadosamente alimentada - disse-lhe Kerry. - Não é a única pessoa que pensa que ele é uma vítima de perseguição por parte do Governo. Mas confie em mim... nada podia estar mais longe da verdade. - Virou-se para Skip. - Quero que me descreva as jóias que julga que Suzanne recebeu de outro homem. - Uma peça era uma bracelete de ouro com figuras de Zodíaco gravadas em prata, à exceção do símbolo do Capricórnio. Essa era a peça do centro, e tudo incrustado de diamantes. Suzanne era Capricórnio. Era, obviamente, uma peça muito valiosa. Quando perguntei, disse-lhe que o pai lha dera. Quando voltei a estar com ele, agradeci-lhe a generosidade para com ela, e, tal como eu esperava, não sabia do que estava a falar. - É um artigo que talvez possamos investigar. Podemos publicar uma brochura para joalheiros em Nova Jérsia e Manhattan com as peças principais - disse Kerry. - É surpreendente como muitos deles conseguem ou identificar uma peça que venderam há anos ou reconhecer o estilo de uma pessoa quando é um modelo único. Skip falou-lhe de um anel com esmeraldas e diamantes que parecia uma fita de casamento. Os diamantes alternavam com as esmeraldas e estavam fixos numa delicada fita rosa-dourada. - Outra que afirmava que o pai lhe dera? - Sim. Ela contava que ele a compensava dos anos em que não lhe dera nada. Dizia que algumas das peças eram jóias de família pertencentes à mãe. Era mais fácil acreditar nisso. Também possuía um alfinete em forma de flor que era obviamente muito antigo. - Lembro-me desse - disse Deidre Reardon. - Tinha preso por um fio de prata um alfinete mais pequeno em forma de botão. Ainda tenho uma fotografia que recortei de um dos jornais locais em que aparecia Suzanne com ele numa espécie de angariação de fundos. Outra peça de família era a bracelete de diamantes que Suzanne trazia quando morreu, Skip. - Nessa noite, onde estavam as jóias de Suzanne? - perguntou Kerry. - Excetuando a que trazia, na caixa das jóias em cima do toucador - disse Skip. - Ela devia guardá-las no cofre no quarto de vestir, mas geralmente não se dava a esse trabalho.

- Skip, segundo o seu depoimento no julgamento, tinham desaparecido do quarto várias peças naquela noite. - Tenho a certeza de que desapareceram duas coisas. Uma foi o alfinete em forma de flor. O problema é que não posso jurar que estava na caixa das jóias naquele dia. Mas posso jurar que a pequena moldura que estava na mesinha-de-cabeceira desapareceu. - Descreva-ma - disse Kerry. - Deixa-me ser eu, Skip - interrompeu Deidre Reardon. - Compreende, Kerry, aquela pequena moldura era muito requintada. Diziam que tinha sido feita por um assistente do joalheiro Fabergé. O meu marido fez parte do exército de ocupação depois da guerra e comprou-a na Alemanha. Era uma oval de charão azul com uma cercadura dourada que estava incrustada de pérolas. Foi o meu presente de casamento para Skip e Suzanne. - Suzanne colocou lá uma fotografia dela - explicou Skip. Kerry viu o guarda junto à porta a olhar para o relógio. - Temos apenas uns minutos - disse ela apressadamente. - Quando foi a última vez que viu essa moldura, Skip? - Estava lá naquela manhã, quando me vesti. Lembro-me perfeitamente, porque olhei para ela quando mudava as coisas dos bolsos para o fato que acabara de vestir. Naquela noite, quando os detetives me disseram que me iam levar para ser interrogado, um deles subiu ao quarto comigo enquanto ia buscar uma camisola de lã. A moldura tinha desaparecido. - Se Suzanne estivesse envolvida com outra pessoa, é possível que tivesse dado aquela fotografia dela a alguém naquele dia? - Não. Era uma das suas melhores fotografias, e gostava de olhar para ela. E nem sequer me passa pela cabeça que ela tivesse tido a coragem de dar o presente de casamento da minha mãe. - E nunca apareceu? - perguntou Kerry. - Nunca. Mas, quando tentei dizer que talvez tivesse sido roubada, a acusação argumentou que, se lá tivesse estado um ladrão, todas as jóias teriam desaparecido. A campainha assinalou o fim das horas das visitas. Desta vez, quando Skip se levantou, cingiu a mãe com um braço, Beth com o outro e puxou-as para si. Por cima das cabeças, olhou para Kerry e Geoff. O sorriso fez que parecesse dez anos mais novo. - Kerry, descubra um meio de me tirar deste lugar e construir-lhe-ei uma

casa que jamais quererá deixar. - Depois, subitamente, riu-se. - Meu Deus disse -, nem quero crer que proferi estas palavras neste sítio. No outro lado da sala, o condenado Will Toth estava sentado com a namorada, mas concentrou sobretudo a sua atenção no grupo de Skip Reardon. Vira muitas vezes a mãe de Skip, o advogado e a namorada. Mas na semana anterior reconhecera Kerry McGrath quando esta visitou Skip. Era capaz de a conhecer em qualquer parte. McGrath era a razão pela qual passaria os quinze anos seguintes naquele buraco infernal. Ela tinha sido a advogada de acusação no seu julgamento. Era evidente que naquele dia estava a ser muito afável com Reardon; reparara que passara o tempo todo a escrever o que ele lhe dizia. Will e a namorada levantaram-se quando se ouviu o sinal de que as horas das visitas tinham terminado. Quando se despediu dela com um beijo, segredou: - Assim que chegues a casa telefona ao teu irmão e diz-lhe que passe a informação de que McGrath esteve aqui hoje de novo e tomou muitas notas. Sir Morgan, o agente mais antigo do FBI encarregado de investigar o roubo Hamilton, estava no seu gabinete em Quântico no sábado à tarde, a examinar as imagens do computador relacionadas com o caso e as outras que se supunha estarem relacionadas. Tinham pedido aos Hamilton, e às outras vítimas de roubo em casos semelhantes, que fornecessem os nomes de todos os convidados que frequentaram uma reunião ou festa nas suas casas durante os vários meses que precederam os roubos. O computador criara um ficheiro básico e depois uma lista separada dos nomes que apareciam com frequência. «O problema», pensou Si, «é que muitas destas pessoas frequentam os mesmos círculos, pelo que não é invulgar ver certas pessoas incluídas regularmente, sobretudo em grandes reuniões mundanas.» Todavia, havia uma dúzia de nomes que surgiam regularmente. Sir examinou cuidadosamente a lista por ordem alfabética. - O primeiro era Arnott, Jason. «Aqui nada», pensou Sir. Arnott fora investigado discretamente há dois anos e não havia nada a imputar-lhe. Tinha ações, e as contas pessoais não revelaram as entradas súbitas de dinheiro associado a roubos. O seu rendimento também era compatível com o estilo de vida. A declaração do imposto sobre rendimentos refletia com exatidão as transações no mercado de

valores. Era igualmente respeitado como perito em arte e antiguidades. Dava festas com frequência e gostavam muito dele. Se havia alguma coisa de notório no seu perfil, era o fato de Arnott ser talvez um pouco perfeito de mais. Isso e o seu profundo conhecimento de antiguidades e arte eram compatíveis com a escolha seletiva do ladrão dos objetos apenas de primeira ordem das vítimas. «Talvez não seja pior voltar a investigá-lo se não aparecer mais nada», pensou Sir. Mas ele estava muito mais interessado noutro nome na lista, Sheldon Landi, um homem que possuía uma firma de relações públicas. «Não há dúvida de que Landi parece conviver com pessoas bonitas», devaneou Sir. «Não ganha muito dinheiro, no entanto, tem um elevado padrão de vida. Landi também se enquadrava no perfil geral do homem que o computador lhes disse que procurassem: «de meia-idade; solteiro; com educação superior; trabalhador por conta própria». Tinham enviado seiscentos folhetos com a fotografia tirada pela câmara de segurança aos nomes escolhidos nas listas de convidados. Até àquele momento, tinham recebido trinta palpites. Um deles veio de uma mulher que telefonara a dizer que pensava que o culpado talvez fosse o ex-marido. «Roubou-me às escondidas durante o tempo em que estivemos casados e fez um grande negócio, mentindo, quando nos divorciámos, e tem assim o queixo pontiagudo como vejo na fotografia», explicara com impaciência. «Se fosse ao senhor, investigava.» Quando se reclinou da cadeira da secretária, Sir pensou no telefonema e sorriu. O ex-marido de que falava a mulher era um senador dos Estados Unidos.

CAPÍTULO 15 Domingo, 5 de Novembro

Jonathan

e Grace Hoover contavam com Kerry e Robin por volta da uma hora. Ambos julgavam que uma refeição calma numa tarde de domingo era um costume civilizado e repousante. Infelizmente, a luminosidade de sábado não durara. O domingo despontara cinzento e frio, mas ao meio-dia o aroma forte e agradável do cordeiro assado enchia a casa. A lareira estava acesa no compartimento favorito, a biblioteca, e eles estavam lá confortavelmente instalados enquanto esperavam pelos convidados. Grace estava ocupada com o puzzle de palavras-cruzadas do Times e Jonathan lia atentamente a seção de «Artes e Lazer» do jornal. Levantou os olhos quando ouviu Grace murmurar de aborrecimento e reparou que a caneta lhe escorregara dos dedos e caíra na carpete. Viu-a iniciar laboriosamente o processo de se curvar para a recuperar. - Grace - disse ele num tom de censura quando se levantou à pressa para lha apanhar. Suspirou quando ele lhe deu a caneta. - Sinceramente, Jonathan, que faria sem ti? - Nunca terás de experimentar, querida. E posso dizer que o sentimento é mútuo. Por um instante, segurou a mão dele junto ao rosto. - Eu sei que é, querido. E podes crer que é uma das coisas que me dá força para continuar a viver. A caminho da casa dos Hoover, Kerry e Robin conversaram sobre a noite anterior. - Foi muito mais divertido jantar em casa dos Dorso do que ir a um restaurante - exclamou Robin. - Mãezinha, gosto deles. - Eu também - admitiu Kerry com relutância. - A Sra. Dorso disse-me que não é difícil ser uma boa cozinheira. - Concordo. Receio ter-te desapontado. - Oh, mãezinha. - O tom de Robin era reprovador. Cruzou os braços e olhou em frente para a estrada que se tornava mais estreita e indicava que se aproximavam de Riverdale. - Fazes uma pasta ótima - disse na defensiva.

- Faço, mas é só isso. - Robin mudou de assunto. - Mãezinha, a mãe de Geoff pensa que ele gosta de ti. Eu também acho. Conversamos sobre isso. - Quê? - A Sra. Dorso disse que Geoff nunca, mas nunca, leva uma namorada lá a casa. Contou-me que é a primeira desde o tempo dos bailes de estudantes. Disse que era porque as irmãs mais novas pregavam partidas às namoradas e ele é tímido. - Provavelmente - disse Kerry espontaneamente. Afastou do pensamento o fato de, ao regressar da prisão, se sentir tão cansada que fechara os olhos apenas um minuto e acordara mais tarde, com a cabeça apoiada no ombro de Geoff. E fora uma sensação tão natural, tão agradável. A visita a Grace e Jonathan Hoover foi, como habitualmente, muito agradável. Kerry sabia que a qualquer momento acabariam por discutir o caso Reardon, mas não seria antes de servirem o café. Foi quando Robin foi autorizada a sair da mesa para ler ou experimentar um dos novos jogos de computador que Jonathan tinha sempre à espera dela. Enquanto comiam, Jonathan entreteve-as conversando sobre as sessões legislativas e o orçamento que o Governo tentava que fosse aprovado. - Estás a ver, Robin? - explicou ele -, a política é como um jogo de futebol. O governador é o treinador que orienta as jogadas e os chefes do partido no senado e na assembleia são os que orientam a equipa. - Como o senhor, não é? - interrompeu Robin. - No senado, sim, creio que podes dizer que é essa a minha função concordou Jonathan. - O resto da nossa equipe protege aquele que leva a bola. - E os outros? - Os da outra equipe fazem tudo para estragar o jogo. - Jonathan - disse Grace serenamente. - Desculpa, querida. Mas tem havido mais benesses políticas esta semana do que vi em muitos anos. - Que é isso? - perguntou Robin. - Benesse política é um costume antigo mas não necessariamente digno em que os legisladores acrescentam despesas desnecessárias ao orçamento para ganharem votos no seu distrito. Algumas pessoas fazem disso uma arte. Kerry sorriu.

- Robin, espero que percebas que tens muita sorte em aprender o funcionamento do Governo com uma pessoa como o tio Jonathan. - É só egoísmo - garantiu-lhes Jonathan. - Quando Kerry prestar juramento para ingressar no Supremo Tribunal em Washington, conseguiremos que Robin seja eleita para a legislatura e siga também a sua carreira. «Estamos para ver», pensou Kerry. - Rob, se já comeste, podes ver o que está no computador. - Há lá uma coisa de que vais gostar, Robin - disse-lhe Jonathan. - Garanto. A governanta andava a servir o café. Kerry tinha a certeza de que precisaria da segunda chávena. «A partir daqui, é sempre a descer», pensou. Não esperou que Jonathan a inquirisse sobre o caso Reardon. Revelou tudo exatamente como sabia, a ele e a Grace, e concluiu dizendo: - É evidente que o Dr. Smith estava a mentir. A questão é saber até que ponto mentiu! Também é claro que Jimmy Weeks tem um motivo muito forte para não querer que o caso seja reaberto. Caso contrário, por que razão iria ele ou um dos seus envolver Robin? - Kinellen ameaçou, efetivamente, que algo podia acontecer a Robin? O tom de Grace foi de frio desprezo. - Avisou, creio que é a palavra mais correta. - Kerry virou-se, apelando a Jonathan. - Tem de compreender que não pretendo causar problemas a Frank Green. Daria um ótimo governador, e sei que estava a dirigir-se a mim quando explicava a Robin o que se passa na legislatura. Ele levaria a cabo as políticas de Marshall. E, Jonathan, com franqueza, quero ser juíza. Sei que posso ser uma boa juíza. Sei que posso ser justa, sem ser pusilânime ou complacente. Mas que tipo de juiz seria se, como promotora da justiça, virasse as costas a uma coisa que cada vez mais parece ser um flagrante erro judicial? Apercebeu-se de que o tom de voz subira um pouco. - Desculpem - disse ela, - entusiasmei-me. - Suponho que fazemos aquilo que devemos fazer disse - Grace calmamente. - Creio que estou a tentar descer a Main Street montada num cavalo e a acenar à multidão. Se alguma coisa está errada, gostaria de descobrir o que é e depois deixar que Geoff Dorso leve a bola. Vou visitar o Dr. Smith amanhã

à tarde. A solução é desacreditar o depoimento dele. Penso sinceramente que está à beira de um colapso nervoso. Perseguir uma pessoa é um crime. Se conseguir pressioná-lo até ceder e admitir que mentiu na barra das testemunhas, que não deu aquelas jóias a Suzanne, que outra pessoa pode estar também implicada, então temos um novo jogo de bola. Geoff Dorso podia tomar conta do caso e apresentar uma petição para um novo julgamento. Levará alguns meses a ser convenientemente apresentado e ouvido. Nessa altura, Frank Green talvez já seja governador. - Mas tu, minha cara, podes não ser membro da magistratura. Jonathan abanou a cabeça. - És muito persuasiva, Kerry, e admiro-te mesmo quando me preocupo com o quanto isto te pode custar. Antes de mais nada, porém, está Robin. Pode não passar de uma ameaça, mas tens de levar isso a sério. - Eu levo isto a sério, Jonathan. Exceto quando esteve com a família de Geoff Dorso, nunca a perdi de vista durante o fim-de-semana. Não ficará sozinha um minuto. - Kerry, quando pressentires que a tua casa não é segura, deixa-a aqui insistiu Grace. - A nossa segurança é excelente e manteremos fechado o portão exterior. Tem um alarme, por isso saberemos se alguém tentar entrar. Arranjaremos um polícia reformado para a trazer e levar à escola. Kerry colocou uma mão nos dedos de Grace e apertou-os levemente. - Adoro os dois - disse ela simplesmente. - Jonathan, por favor, não fique desapontado por eu ter de fazer isto. - Sinto-me orgulhoso de ti, suponho - disse Jonathan. - Farei tudo para que o teu nome se mantenha para a nomeação, mas... - Mas não conto com isso. Eu sei - disse Kerry devagar. - As hipóteses são muito poucas, não são? - Creio que é melhor mudarmos de assunto - disse Jonathan com vivacidade. - Mas mantém-me informado, Kerry. - Certamente. - Como a ocasião era de maior felicidade, Grace sentiu-se bastante bem para ir jantar fora na noite passada - disse ele. - Oh, Grace, fico tão contente - disse Kerry com sinceridade. - Encontramos uma pessoa que não me sai do pensamento simplesmente porque não me consigo lembrar de onde já o vi - disse Grace. - Um tal Jason Arnott.

Kerry não pensara que fosse necessário falar de Jason Arnott. De momento, decidiu não dizer nada a não ser: - Por que pensa que o conhece? - Não sei - disse Grace. - Mas tenho a certeza de que ou o encontrei antes ou vi a fotografia dele no jornal. Encolheu os ombros. - Acabarei por me lembrar. É sempre assim.

CAPÍTULO 16 Segunda-feira, 6 de Novembro

O júri

isolado no julgamento de Jimmy Weeks não sabia do assassinato de Barney Haskell e Mark Young, mas a imprensa garantia que todas as outras pessoas soubessem. Durante o fim-de-semana, muitas colunas dos jornais tinham sido dedicadas à investigação, e todos os programas informativos da televisão fizeram uma cobertura aparentemente interminável do local do crime. Uma testemunha assustada, cuja identidade não foi revelada, telefonara finalmente à Polícia. Preparava-se para levantar dinheiro de uma caixa automática e vira um Toyota azul-escuro entrar no parque de estacionamento do pequeno edifício onde se situava o gabinete do advogado Mark Young. Isso ocorrera às 7:10. O pneu dianteiro do lado direito do carro da testemunha oscilara, e ele encostara ao passeio para o examinar. Estava acocorado quando viu abrir-se de novo a porta do edifício de escritórios e um homem com cerca de 30 anos a correr para o Toyota. O rosto estava pouco visível, mas trazia o que parecia ser uma arma com tamanho fora do normal. A testemunha tirara parte do número da matrícula do Toyota, que não pertencia àquele Estado. O excelente trabalho da Polícia localizou o carro e identificouo como tendo sido roubado na quinta-feira à noite em Filadélfia. Na sexta-feira foi descoberta a carcaça carbonizada em Newark. Mesmo a possibilidade remota de Haskell e Young terem sido vítimas de um ataque fortuito desaparecia face àquela prova. Tratava-se obviamente de uma vingança, e não havia dúvida de que fora ordenada por Jimmy Weeks. Mas a Polícia não sabia ao certo como o provar. A testemunha não podia identificar o salteador armado. O carro desaparecera. As balas que tinham matado as vítimas eram seguramente de uma arma sem licença que devia estar no fundo de um rio ou seria trocada por um brinquedo no Natal sem que se fizessem quaisquer perguntas. Na segunda-feira, Geoff Dorso passou de novo algumas horas no julgamento de Jimmy Weeks. O Governo estava a construir o caso minuciosamente, com provas sólidas, aparentemente irrefutáveis. Royce, o advogado do Ministério Público, que parecia determinado em ser o candidato a governador em oposição a Frank Green, resistia ao impulso de se exibir.

Homem de aspecto erudito com cabelo raro e óculos com armações de aço, a sua estratégia era ser totalmente plausível, impedir quaisquer explicações alternativas para os negócios e transferências de dinheiro escandalosamente complicados das empresas Weeks. Tinha gráficos aos quais se referia com a ajuda de um longo ponteiro, do tipo que Geoff se recordava que as freiras usavam quando andava na Escola Secundária. Geoff concluiu que Royce era um mestre na forma como simplificava os negócios de Weeks para que os jurados percebessem. Não era preciso ser um génio da matemática ou um contabilista diplomado para seguir as suas explicações. Royce tinha na barra das testemunhas o piloto particular de Jimmy Weeks e atacava-o sem dó nem piedade. Com que frequência preenchia a papelada apropriada para o jacto da empresa?... Com que frequência o Sr. Weeks o utilizava apenas para as festas privadas?... Com que frequência o emprestava aos amigos para se divertirem?... Não era faturado à companhia sempre que ligavam os motores daquele jato?... Todas as deduções de impostos que dizia serem despesas de negócios eram realmente para os passeios particulares, não eram? Quando chegou a vez de Bob Kinellen fazer o interrogatório, Geoff notou que fez tudo para levar o piloto a contradizer-se, tentando confundi-lo com datas, com o objetivo das viagens. Uma vez mais, Geoff considerou que Kinellen era bom, mas provavelmente não o suficiente. Sabia que era impossível ter a certeza daquilo que se passava nas mentes dos jurados, mas Geoff achou que não estava a acreditar. Examinou o rosto impassível de Jimmy Weeks. Vinha sempre para a sala de audiências com um fato de homem de negócios, sóbrio, camisa branca e gravata. Tentava desempenhar o seu papel um empresário de 50 anos com uma série de companhias, que era a vítima de perseguição da cobrança de impostos. Naquele dia, Geoff observava-o sob o ponto de vista da ligação que tivera com Suzanne Reardon. «Que seria?», interrogou-se. «Foi uma coisa séria? Foi Weeks que lhe deu as jóias?» Soubera do papel encontrado no corpo do advogado de Haskell, que podia ser o texto do bilhete que acompanhava as rosas dadas a Suzanne Reardon no dia em que morreu, mas, com a morte de Haskell e o bilhete ainda desaparecido, seria impossível provar qualquer ligação com Weeks.

«As jóias, porém, podem fornecer um aspecto interessante», compreendeu Geoff, «e que mereça ser investigado. Será que ele vai a qualquer lado comprar ninharias para as namoradas?», perguntou a si mesmo. «Com quem namorei há uns anos que me disse que saíra com Weeks?», interrogou-se. O nome não lhe ocorria ao espírito, mas verificaria nos recados diários de há dois e três anos. Tinha a certeza de que anotara em qualquer lugar. Quando o juiz anunciou um intervalo, Geoff esgueirou-se da sala de audiências. Ia a meio do corredor quando ouviu alguém proferir o seu nome. Era Bob Kinellen. Esperou que chegasse ao pé dele. - Não está a interessar-se muito pelo meu cliente? - perguntou Kinellen calmamente. - Nesta fase, interesse geral - replicou Geoff. - É por isso que se encontra com Kerry? - Bob, não me parece que tenha qualquer direito a fazer essa pergunta. Todavia, responderei. Tive o prazer de estar lá para a ajudar depois de você lançar a bomba de que o seu ilustre cliente está a ameaçar a filha dela. Alguém já o nomeou para Pai do Ano? Caso contrário, não perca tempo à espera de que o telefone toque. Seja como for, não creio que fosse eleito. Na segunda-feira de manhã, Grace Hoover ficou na cama mais tempo do que era costume. Embora a casa estivesse confortavelmente quente, o frio do Inverno parecia encontrar um meio de penetrar nos ossos e nas articulações. Tinha dores muito intensas nas mãos e nos dedos, nas pernas e nos joelhos e nos tornozelos. Depois que a legislatura completasse a primeira sessão, ela e Jonathan iriam para a sua casa no Novo México. Lembrava-se de que seria melhor lá, que o clima quente e seco sempre ajudava o seu estado. Há anos atrás, no começo da doença, Grace decidira que jamais cederia à autocompaixão. Para ela, era a mais triste de todas as emoções. Mesmo assim, nos dias mais sombrios, admitia para consigo mesma que, para além da dor que aumentava constantemente, fora devastador ter de diminuir as suas atividades. Fora uma das poucas esposas que apreciava realmente ir às inúmeras cerimónias que um político como Jonathan tinha de frequentar. Deus sabia que não lhe agradava passar horas nelas, mas sentia prazer nos elogios que Jonathan recebia. Tinha tanto orgulho nele. Devia ter sido governador. Ela tinha consciência disso.

Mas, depois de Jonathan comparecer nessas cerimónias obrigatórias, apreciavam um jantar tranquilo pela noite dentro, ou decidiam, sob o impulso do momento, ir passar o fim-de-semana em qualquer lugar. Grace sorriu interiormente, recordando que, depois de vinte anos de casados, alguém com quem conversavam numa estância do Arizona comentara que tinham o aspecto de um casal em lua-de-mel. Agora o incómodo da cadeira-de-rodas, e a necessidade de levar uma auxiliar de enfermagem para a ajudar a tomar banho e vestir-se tornavam uma estada num hotel um pesadelo para Grace. Não permitia que Jonathan lhe desse esse tipo de assistência, e ficava melhor em casa, aonde ia diariamente uma enfermeira experiente. Gostara de ir jantar no clube naquela noite. Foi a primeira vez que saíra em muitas semanas. «Mas aquele Jason Arnott... não é estranho que não consiga deixar de pensar nele?», pensou enquanto tentava dobrar os dedos com impaciência. Fizera de novo perguntas a Jonathan a respeito dele, mas apenas argumentara que talvez o tivesse visto numa angariação de fundos onde Arnott pudesse estar presente. Há uma dúzia de anos que Grace não ia a nenhum desses eventos importantes. Nessa altura, andava de muletas e não apreciava os empurrões da multidão. Não, ela sabia que era outra coisa que despertara a recordação que tinha dele. «Oh, bem», disse de si para consigo, «virá na devida altura.» A governanta, Carrie, entrou no quarto com um tabuleiro. - Pensei que já estaria preparada para uma segunda chávena de chá disse ela prazenteira. - Estou, Carrie. Obrigada. Carrie pousou o tabuleiro e arranjou as almofadas. - Ora veja. Já está melhor. Meteu a mão no bolso e tirou uma folha de papel dobrada. Oh, Sra. Hoover, isto estava no cesto dos papéis no gabinete do senador. Sei que o senador ia deitar isto fora, mas quero perguntar se não faz mal que eu fique com isto. O meu neto Billy não se cansa de dizer que um dia quer ser agente do FBI. Ficaria todo entusiasmado se visse um folheto autêntico que eles puseram em circulação. - Desdobrou-o e entregou-o a Grace. Grace deu uma vista de olhos por ela e preparou-se para a devolver, depois deteve-se. Jonathan mostrara-lhe aquilo na sexta-feira à tarde, gracejando: «Alguém que conheças?» A carta que acompanhava explicava

que o folheto estava a ser enviado a todas as pessoas que tinham sido convidadas para reuniões nas casas que tinham sido assaltadas pouco tempo depois. A fotografia granulosa, quase imperceptível, era de um criminoso no processo de roubo. Supunha-se que era responsável por muitos assaltos semelhantes, a maioria a seguir a uma festa ou a uma reunião social. Uma teoria era que ele podia ser um convidado. A carta terminava com a promessa de que qualquer informação seria confidencial. - Sei que a casa dos Peale em Washington foi assaltada há uns anos dissera Jonathan. - Uma tragédia. Tinha lá estado para festejar a vitória de Jocks. Duas semanas depois, a mãe dele veio mais cedo de umas férias com a família e deve ter deparado com o ladrão. Foi encontrada no fundo das escadas com o pescoço partido, e o quadro de John White Alexander tinha desaparecido. «Foi talvez por conhecer os Peale que prestei tanta atenção a esta fotografia», pensou Grace enquanto segurava o folheto. «A câmara devia estar por debaixo dele, a avaliar pelo ângulo do rosto.» Examinou cuidadosamente a imagem toldada, o pescoço estreito, o nariz afilado na ponta, os lábios enrugados. «Não era aquilo em que se repara quando se olha de frente para o rosto de uma pessoa», pensou. «Mas, quando se olha para ele de uma cadeira-de-rodas, vê-se deste ângulo. Era capaz de jurar que se parece com aquele homem que conheci no clube naquela noite, Jason Arnott», pensou Grace. «Será possível?» - Carrie, passe-me o telefone, por favor. Pouco tempo depois, Grace falava com Amanda Coble, que a apresentara a Jason Arnott no clube. Depois dos cumprimentos usuais, fez que a conversa girasse em torno dele. Confessou que ainda tinha a impressão de que o vira antes. - Onde vive? - perguntou ela. - Que faz? Quando desligou, Grace bebeu lentamente o chá que já arrefecera e examinou de novo a fotografia. Segundo Amanda, Arnott era perito em arte e antiguidades e frequentava os melhores círculos sociais de Washington a Newport. Grace telefonou a Jonathan para o seu gabinete em Trenton. Na altura não estava, mas, quando lhe telefonou às três e meia da tarde, ela contou-lhe o que julgava ter descoberto, que Jason Arnott era o ladrão que o FBI procurava.

- É uma acusação grave, querida - disse Jonathan cautelosamente. - Tenho bons olhos, Jonathan. Tu sabes disso. - Sim, eu sei - concordou serenamente. - E, francamente, se não fosses tu, hesitaria em dar o nome ao FBI. Não quero nada por escrito, mas dá-me o número confidencial que está no folheto. Faço um telefonema. - Não - disse Grace. - Se concordas que não há problema em falar com o FBI, eu faço o telefonema. Se estiver enganada, não ficas envolvido nisto. Se estiver certa, eu pelo menos ficarei com a sensação de que finalmente fiz alguma coisa útil. Eu gostei muito da mãe de Jock Peale quando a conheci há anos. Adoraria ser a pessoa que descobriu o seu assassino. Ninguém deverá escapar sem castigo. O Dr. Charles Smith estava muito maldisposto. Passara um fim-desemana solitário, tornado ainda mais frustrantemente solitário pelo fato de não conseguir contactar Barbara Tompkins. Sábado estivera um dia magnífico e pensara que ela talvez gostasse de dar um passeio por Westchester, com uma paragem para um almoço antecipado numa das pequenas estalagens ao longo do Hudson. Ouviu o atendedor automático dela; porém, se estava em casa, não lhe telefonou. O domingo não foi melhor. Geralmente, ao domingo Smith procurava com constrangimento na seção «Artes e Lazer» do Times uma peça de teatro fora da Broadway, um recital ou um acontecimento no Centro Lincoln a que pudesse assistir. Mas naquele dia não tinha ânimo para nada. Passou a maior parte de domingo deitado na cama, todo vestido, a olhar para a fotografia de Suzanne na parede. «Aquilo que alcancei foi tão incrível», disse para consigo mesmo. Aquela filha tão dolorosamente vulgar, mal-humorada, de pais tão perfeitos recebera de novo o seu património e muito mais do que isso. Ele dera-lhe uma beleza tão natural, tão assombrosa, que inspirava pavor naqueles que a enfrentavam. Na segunda-feira de manhã, tentou telefonar para o escritório de Barbara e disseram-lhe que fora para a Califórnia numa viagem de negócios, que só regressaria dali a duas semanas. Ficou de fato irritado. Sabia que era mentira. No decurso da conversa, ao jantar de quinta-feira à noite, Barbara mencionara vagamente que estava ansiosa por um almoço de negócios em La Grenouille na quarta-feira seguinte. Lembrava-se porque ela dissera que nunca tinha ido

àquele restaurante e esperava por ele com antecipado prazer. Ao longo de segunda-feira, Smith teve dificuldade em se concentrar nas pacientes. Não que tivesse uma agenda muito cheia. Parecia ter cada vez menos doentes, e os que iam para a consulta inicial raramente voltavam. Não que ele se preocupasse muito poucos tinham potencial para uma beleza genuína. E, uma vez mais, sentiu os olhos de Carpenter a segui-lo. Ela era muito eficiente, mas concluíra que talvez estivesse na hora de a deixar ir embora. Notara isso um dia, durante a rinoplastia, em que o observara como uma mãe ansiosa, na esperança de que o filho desempenhe o seu papel na peça da escola sem cometer deslizes. Uma vez que a consulta das três e meia foi cancelada, decidiu ir mais cedo para casa. Iria buscar o carro e passaria pelo escritório de Barbara e estacionaria no outro lado da rua. Geralmente, saía uns minutos depois das cinco, mas queria estar lá mais cedo, para o que desse e viesse. Pensar que ela poderia estar a evitá-lo deliberadamente era intolerável. Se soubesse que era verdade... Saíra nesse instante do vestíbulo do prédio para a Quinta Avenida quando viu Kerry aproximar-se. Olhou rapidamente à volta para encontrar uma forma de a evitar, mas foi impossível. Ela bloqueava-lhe o caminho. - Dr. Smith, ainda bem que o apanhei - disse Kerry. É muito importante que fale com o senhor. - Sra. McGrath, a Sra. Carpenter e a recepcionista ainda estão no consultório. Se precisar de alguma ajuda, elas podem tratar disso. Virou-se e tentou afastar-se dela. Começou a andar ao lado dele. - Dr. Smith, a Sra. Carpenter e a recepcionista não podem falar da sua filha comigo, e nenhuma delas é responsável pela prisão de um homem inocente. Charles Smith reagiu como se ela lhe tivesse deitado alcatrão quente em cima. - Como se atreve? - Parou e agarrou-a pelo braço. Kerry compreendeu subitamente que estava prestes a atacá-la. O rosto estava deformado da fúria, a boca contorcida, soltando um estranho ruído. Sentiu o tremor da mão quando os seus dedos se enterraram no pulso. Um transeunte olhou para eles com curiosidade e parou.

- Está bem, menina? - perguntou. - Estou bem, doutor? - perguntou Kerry com voz calma. Smith soltou o braço. - Claro. Claro. - Começou a descer a Quinta Avenida com rapidez. Kerry continuou a segui-lo. - Dr. Smith, sabe que acabará por ter de falar comigo. E creio que seria muito melhor escutar-me antes que a situação fique fora de controlo e se torne muito desagradável. Ele não respondeu. Pôs-se ao lado dele. Ela notou que a respiração era ofegante. - Dr. Smith, não me afeta que caminhe depressa. Posso passar-lhe à frente. Voltamos para o consultório ou há algum lugar aqui perto onde possamos tomar uma chávena de café? Temos de conversar. Caso contrário, receio que seja preso e acusado de seguir furtivamente uma pessoa. - Acusado... de... quê? - Smith rodou de novo para a fitar. - Assustou Barbara Tompkins com a sua atenção. Também assustou Suzanne, doutor? Estava lá na noite em que ela morreu, não estava? Duas pessoas, uma mulher e um rapazinho, viram um Mercedes preto em frente da casa. A mulher lembra-se de parte da matrícula, um 3 e um L. Hoje soube que a sua matrícula tem um 8 e um L. Eu diria que é bastante semelhante. Então, onde vamos conversar? Ele continuou a fitá-la durante algum tempo, a raiva ainda cintilando nos olhos. Viu quando a resignação tomou gradualmente o seu lugar, quando o corpo pareceu tornar-se bambo. - Vivo no fundo desta - rua disse ele, já sem olhar para ela. Estavam perto da esquina, e ele apontou para a esquerda. Kerry entendeu as palavras como sendo um convite. «Estarei a cometer um erro se entrar com ele?», perguntou a si mesma. «Ele parece estar com um esgotamento nervoso. Haverá uma governanta?» Mas concluiu que, quer estivesse a sós com Smith ou não, talvez não tivesse outra oportunidade como aquela. A intensidade do choque daquilo que lhe dissera podia ter afetado a sua psique. Ela tinha a certeza de que o Dr. Smith não se importava de ver outro homem na prisão, mas não lhe agradaria a perspectiva de ter de enfrentar o Tribunal como arguido. Estavam perto do nº 28 de Washington Mews. Smith pegou na chave e, com um gesto preciso, introduziu-a na fechadura, rodou-a e abriu a porta.

- Já que insiste, entre, Sra. McGrath - disse. As informações de pessoas que tinham sido convidadas para uma ou mais das casas assaltadas continuavam a chegar ao FBI. Já tinham doze pistas possíveis, mas Sir Morgan pensou que acertara quando na segunda-feira à tarde o principal suspeito, Sheldon Landi, admitiu que a sua firma de relações públicas era uma fachada da sua verdadeira atividade. Landi fora chamado a depor, e por breves instantes Sir pensou que estava prestes a ouvir uma confissão. Então Landi, com suor na testa, torcendo as mãos, murmurou: - Já leu alguma vez Tell All? - É o folheto de um supermercado, não é? - perguntou Sir. - Sim. Um dos mais importantes. Quatro milhões de exemplares por semana. - Por um momento, o tom de voz de Landi tornou-se jocoso. Depois a voz baixou quase ao ponto de não se ouvir quando disse: - Isto não deve sair desta sala, mas sou o autor principal de Tell All. Se alguma vez se vier a saber, serei abandonado por todos os meus amigos. «Tanta coisa para aquilo», pensou Sir, depois de Landi sair. «Aquela cobra não passa de um mexeriqueiro; não teria coragem para levar a cabo aqueles assaltos.» Às quatro menos um quarto, entrou um dos investigadores. - Sir, está uma pessoa na linha confidencial do caso Hamilton com quem deveria falar, na minha opinião. Chama-se Grace Hoover. O marido é o senador Hoover do Estado de Nova Jérsia, e ela pensa que viu o indivíduo que procuramos numa noite destas. É um dos pássaros cujo nome já apareceu, Jason Arnott. - Arnott! - Sir pegou no telefone. - Sra. Hoover. Sou Sir Morgan. Obrigado por ter telefonado. Enquanto escutava, concluiu que Grace era o tipo de testemunha que os agentes da lei desejam encontrar. O seu raciocínio tinha lógica, foi clara na apresentação e precisa quando explicou que, olhando da cadeira-de-rodas, os seus olhos estavam provavelmente no mesmo ângulo das lentes da câmara de vigilância na casa dos Hamilton. - Olhando de frente para o Sr. Arnott, julgar-se-ia que o rosto dele era mais largo do que parece quando se olha para ele de baixo para cima explicou ela. - Também quando lhe perguntei se nos conhecíamos, cerrou muito os lábios. Creio que deve ser um hábito que tem quando se concentra. Veja como estão cerrados na vossa fotografia. Eu tenho a impressão de que,

no momento em que a câmara o apanhou, se estava a concentrar naquela estatueta. Eu diria que estava a ver se era autêntica ou não. A minha amiga diz-me que é um especialista em antiguidades. - Sim, é. - Sir Morgan estava entusiasmado. Finalmente, acertara! - Sra. Hoover, não sei como lhe agradecer este telefonema. Sabe que, se isto levar a uma condenação, há uma recompensa substancial, cerca de cem mil dólares. - Oh, isso não me interessa - disse Grace Hoover. - Enviava-o simplesmente a uma instituição de caridade. Quando Sir desligou, pensou nas faturas das despesas de ensino dos filhos que teria de pagar no semestre da Primavera. Abanando a cabeça, ligou o intercomunicador e mandou chamar os três investigadores que trabalhavam no caso Hamilton. Disse-lhes que queria que seguissem Arnott dia e noite. A avaliar pela investigação que tinham efetuado há dois anos, se fosse o ladrão, fizera um excelente trabalho, pois não deixara sinais. Seria melhor segui-lo durante algum tempo. Talvez os conduzisse ao local onde guardava os objetos roubados. - Se não for outra pista falsa e conseguirmos provas de que ele fez os assaltos - disse Sir -, a tarefa seguinte é acusá-lo do assassínio Peale. O chefe quer esse caso desvendado. A mãe do presidente costumava jogar brídege com a Sra. Peale. O gabinete do Dr. Smith estava arrumado, mas Kerry notou que tinha o aspecto pobre de um aposento que suportara anos de abandono. Os quebraluzes de seda cor de marfim, do tipo que ela se recordava de ter visto em casa da avó, estavam escurecidos pelo tempo. Um deles tinha sido queimado numa parte, e a seda em volta da marca estava rasgada. As cadeiras de veludo demasiado acolchoadas eram muito baixas e parecia que rangiam. Era um compartimento com teto alto que devia ter sido belo, mas Kerry ficou com a impressão de que parara no tempo, como se fosse o cenário de um filme a preto e branco realizado nos anos 40. Despira o impermeável, mas o Dr. Smith não tentou tirar-lho das mãos. A simples falta de cortesia parecia indicar que ela não iria ficar muito tempo para ele se dar a esse incómodo. Dobrou o casaco e colocou-o no braço da cadeira em que estava sentada. Smith sentou-se muito direito numa cadeira de costas altas que ela estava certa que nunca teria escolhido se estivesse sozinho.

- Que quer, Sra. McGrath? - Os óculos sem armações tornavam maiores os olhos que gelavam enquanto sondavam com hostilidade. - Quero a verdade - disse Kerry sem vacilar. - Quero saber por que razão afirmou que foi o senhor que deu as jóias a Suzanne quando, na realidade, lhe foram dadas por outro homem. Quero saber por que mentiu a respeito de Skip Reardon. Ele nunca ameaçou Suzanne. Pode ter perdido a paciência com ela; pode ter-se irritado com ela. Mas nunca a ameaçou, pois não? Que motivo poderia ter para jurar que ele fez isso? - Skip Reardon matou a minha filha. Estrangulou-a. Estrangulou-a de uma forma tão perversa que os olhos sofreram uma hemorragia, com tamanha violência que as veias no pescoço rebentaram, tinha a língua de fora como um animal... - A voz arrastou-se. O que começara como uma explosão de raiva acabara quase num soluço. - Compreendo que tenha sido muito penoso para si ver aquelas fotografias, Dr. Smith. - Kerry falou com serenidade. Os olhos ficaram mais estreitos quando viu Smith desviar os olhos dela. - Mas por que culpou sempre Skip pela tragédia? - Era o marido dela. Era ciumento, doentiamente ciumento. Isso era um fato. Toda a gente via. - Fez uma pausa. - Agora, Sra. McGrath, não quero falar mais disso. Exijo saber o que pretende quando me acusa de seguir Barbara Tompkins. - Espere. Primeiro falemos de Reardon, doutor. Está enganado. Skip não tinha um ciúme doentio de Suzanne. Sabia que ela se encontrava com outro homem. - Kerry esperou. - Mas ele também se encontrava com outra mulher. A cabeça de Smith fez um movimento brusco, como se ela o tivesse esbofeteado. - Isso é impossível. Ele estava casado com uma mulher requintada e adorava-a. - O senhor adorava-a, doutor. - Kerry não contava dizer aquilo, mas, quando o fez, viu que era verdade. - Colocou-se no lugar dele, não foi? Se fosse o marido de Suzanne e tivesse descoberto que estava envolvida com outro homem, teria sido capaz de matar, não teria? - Olhou fixamente para ele. Ele nem pestanejou. - Como se atreve! Suzanne era minha filha! - disse ele friamente. Agora, ponha-se daqui para fora. - Levantou-se e encaminhou-se para ela

como se fosse agarrá-la para a expulsar. Kerry pôs-se de pé rapidamente, segurando o casaco, e afastou-se dele, recuando. Num relance, viu se podia alcançar a porta da rua sem se aproximar dele, caso fosse necessário. - Não, doutor. - disse - Susie Stevens era a sua filha. Suzanne era uma criação sua. E pensou que ela lhe pertencia, tal como acredita que Barbara Tompkins lhe pertence. O senhor estava em Alpine na noite em que Suzanne morreu. Matou-a? - Matar Suzanne? Está louca? - Mas estava lá. - Não estava! - Oh, estava sim, e nós vamos provar. Garanto-lhe. Vamos reabrir o caso e tirar da prisão um homem inocente que o senhor condenou. Tinha ciúmes dele, Dr. Smith. Puniu-o porque tinha acesso constante a Suzanne e o senhor não. Mas como se esforçou! Na realidade, esforçou-se tanto que ela se fartou das suas exigências para que lhe desse atenção. - Não é verdade. - As palavras escaparam por entre os dentes. Kerry viu que a mão de Smith tremia violentamente. Ela baixou o tom de voz, falou num tom mais conciliatório. - Dr. Smith, se não matou a sua filha, alguém foi certamente. Mas não foi Skip Reardon. Creio que amava Suzanne à sua maneira. Acredito que quisesse que o assassino fosse punido. Mas tem consciência daquilo que fez? Deixou em liberdade o assassino de Suzanne. - Anda por aí a rir-se de si, a vangloriar-se por o ter encoberto. Se soubessemos quais as jóias que Skip assevera que não foi o senhor que deu a Suzanne, podíamos tentar encontrá-las. Poderíamos descobrir quem lhas deu. Skip tem a certeza de que falta uma peça e que talvez tenha sido roubada naquela noite. - Ele está a mentir. - Não, não está. É o que tem afirmado desde o princípio. E foi roubada outra coisa naquela noite... um retrato da Suzanne numa pequena moldura. Estava na mesinha-de-cabeceira. Tirou-a? - Eu não estava naquela casa na noite em que Suzanne morreu! - Então a quem emprestou o seu Mercedes naquela noite? - Rua! - gritou Smith num tom gutural. Kerry percebeu que era melhor não ficar por mais tempo. Deu uma volta

por detrás dele, mas junto à porta virou-se de novo. - Dr. Smith, Barbara Tompkins falou comigo. Está apavorada. Arranjou uma viagem de negócios só para fugir de si. Quando ela voltar, daqui a dez dias, vou acompanhá-la pessoalmente à delegacia de Nova Iorque para apresentar uma queixa contra o senhor. Ela abriu a porta da antiga carruagem convertida em casa, e uma rajada de vento frio entrou no vestíbulo. - A não ser que - acrescentou - ... reconheça o fato de que precisa de tratamento físico e psicológico. E a não ser que me garanta que disse toda a verdade sobre aquilo que aconteceu na noite em que Suzanne morreu. E a não ser que me dê as jóias que suspeita que lhe tenham sido dadas por outro homem que não o senhor nem o marido. Quando Kerry levantou a gola e enfiou as mãos nos bolsos para percorrer os três quarteirões até ao carro, não se apercebeu dos olhos atentos de Smith, que a observavam por detrás da grade da janela do gabinete, nem do desconhecido dentro de um carro estacionado na Quinta Avenida que pegou no telefone celular e informou sobre a sua visita em Washington Mews. O procurador-geral, em colaboração com os departamentos do promotor de Middlessex e Ocean County, conseguiu um mandado de busca tanto à residência permanente como à casa de Verão do falecido Barney Haskell. Vivendo separado da mulher a maior parte do tempo, Barney residia numa casa agradável com vários níveis numa rua sossegada em Edison, uma cidade atraente com uma população com rendimento médio. Os vizinhos disseram à imprensa que nunca ligara a ninguém, mas que era delicado se dessem de caras com ele. A outra casa, uma estrutura moderna de dois pisos, virada para o oceano em Long Island Beach, era onde vivia a mulher todo o ano. Os vizinhos de lá contaram aos investigadores que, durante o Verão, Barney ia lá muitas vezes, passava parte do tempo a pescar no seu Chris-Craft, e que o outro passatempo era a carpintaria. A oficina ficava situada na garagem. Alguns vizinhos disseram que a mulher os convidara para verem a enorme caixa de carvalho-branco que Barney fizera no ano anterior como centro de diversão. Parecia ser o seu orgulho. Os investigadores sabiam que Barney tinha de ter provas sólidas contra Jimmy Weeks que apoiassem o acordo de apelo. Também sabiam que, se não

as descobrissem sem demora, os homens de Jimmy Weeks iriam descobri-las e destruí-las. Apesar dos protestos veementes da viúva, que clamava que Barney era uma vítima e que aquela era a sua casa, embora estivesse no nome do pobre Haskell, e que não tinham direito de a destruir, desfizeram tudo, incluindo a caixa de carvalho que estava pregada à parede na sala da televisão. Quando arrancaram a madeira do estuque, depararam com um cofre suficientemente grande para albergar os registos de uma pequena firma. Enquanto a imprensa se juntava no exterior, as câmaras de televisão registaram a chegada ao local de um arrombador de cofres reformado e que fazia parte da lista de pagamentos do Governo dos Estados Unidos. Quinze minutos depois, o cofre estava aberto, e passado pouco tempo, às 4:15 dessa tarde, o procurador-geral Royce recebia um telefonema de Lês Howard. - Fora encontrada uma segunda série de livros das empresas Week, assim como livros datados de há quinze anos atrás, nos quais Barney registara os encontros de Jimmy, com algumas anotações feitas por ele sobre o objetivo dos encontros e os assuntos que eram discutidos. Disseram a Royce, que estava radiante, que também havia caixas de sapatos com cópias de recibos de artigos de luxo, incluindo peles, jóias e carros para as diversas namoradas de Jimmy, que Barney assinalara com «NÃO FOI PAGO IMPOSTO DE TRANSAÇÃO». - É um filão, um achado - garantiu Howard a Royce. - De certeza que Barney conhecia o velho ditado: «Trata o teu amigo como se fosse um potencial inimigo.» Devia estar a preparar tudo desde o primeiro dia para se livrar da prisão, entregando-nos Jimmy se viessem a ser condenados. O juiz adiara o julgamento para a manhã seguinte, em vez de começar com uma nova testemunha às quatro horas. «Outro intervalo», pensou Royce. Depois de desligar o telefone, um sorriso ainda lhe bailava nos lábios enquanto saboreava as esplêndidas novidades. Disse em voz alta: - Obrigado, Barney, sempre soube que conseguirias. - Depois ficou em silêncio enquanto pensava no passo seguinte. Martha Luce, a guarda-livros particular de Jimmy, ia prestar depoimento como testemunha de defesa. Já tinham a sua declaração, sob juramento, de que os registos que fizera eram totalmente precisos e a única série que existia. Dada a possibilidade de apresentar uma testemunha do Governo em troca de imunidade contra uma longa sentença na prisão, Royce concluiu que não

deveria ser muito difícil convencer a Sra. Luce daquilo que seria mais vantajoso para ela. Jason Arnott acordara tarde no domingo de manhã, com sintomas semelhantes aos da gripe, e decidira não ir para a casa em Catskills como planejara. Por isso passou o dia na cama, levantando-se apenas o tempo suficiente para preparar uma comida leve. Era em ocasiões como aquela que se arrependia de não ter uma governanta permanente. Por outro lado, apreciava muito a privacidade de ter a casa só para ele sem ninguém no caminho. Levou livros e jornais para o quarto e passou o dia a ler, fazendo umas pausas para bebericar sumo de laranja ou dormitar. A toda a hora, porém, pegava compulsivamente no folheto do FBI para se assegurar de que ninguém poderia associá-lo àquela caricatura granulosa de uma fotografia. Na segunda-feira à tardinha, sentia-se muito melhor e convencera-se plenamente de que o folheto não constituía uma ameaça. Lembrou-se de que, mesmo que um agente do FBI batesse à sua porta para o submeter a um interrogatório de rotina por ter sido um dos convidados numa festa dos Hamilton, jamais seriam capazes de o ligar ao roubo. Não com aquela fotografia. Não com as gravações dos telefonemas. Nem com uma única antiguidade ou quadro naquela casa. Nem com o exame mais minucioso das finanças. Nem mesmo com a reserva do hotel em Washington no fim-de-semana do roubo na casa dos Hamilton, uma vez que usara uma das identidades falsas quando lá chegara. Não havia qualquer dúvida. Não corria perigo. Prometeu a si mesmo que no dia seguinte, ou talvez na quarta-feira, iria até Catskills e passaria alguns dias a apreciar os seus tesouros. Jason não sabia que os agentes do FBI já tinham obtido uma ordem do tribunal com permissão para colocarem uma escuta no telefone e vigiavam discretamente a casa. Não sabia que, a partir daquele momento, não daria um só passo sem que estivesse a ser observado e seguido. Dirigindo-se para o norte, saindo de Greenwich Village para Manhattan, Kerry foi apanhada na primeira vaga de trânsito na hora de ponta. Eram 4:40 quando tirou o carro da garagem na Rua 12. Eram 6:05 quando entrou na alameda e viu Geoff parado em frente da outra porta da garagem para dois carros. Ligara para casa do telefone do carro quando saía da garagem e ficara em parte tranquila a falar com Robin e Alison, a ama. Avisara-as para que

não saíssem em circunstância alguma e que não abrissem a porta a ninguém até ela chegar a casa. Ao ver o carro de Geoff, percebeu que o carro de Alison não estava lá. «Geoff teria vindo por causa de algum problema?» Kerry desligou o motor e os faróis, saiu do carro, bateu com a porta e correu para casa. Era óbvio que Robin estivera à espera dela. A porta da rua abriu-se enquanto ela subia os degraus a correr. - Rob, há algum problema? - Não, mãezinha, estamos bem. Quando Geoff chegou aqui, disse a Alison que podia ir para casa, que ele esperaria por ti. - O rosto de Robin ficou com uma expressão de preocupação. - Não fiz mal, pois não? Quero dizer, deixar entrar Geoff. - Claro. - Kerry abraçou Robin. - Onde é que ele está? - Aqui - disse Geoff quando apareceu na soleira da porta da cozinha. Pensei que, uma vez que comeram uma refeição Dorso preparada em casa no sábado à noite, podiam comer carne outra vez. Uma ementa muito simples. Costeletas de cordeiro, uma salada de verduras e batatas cozidas. Kerry apercebeu-se de que estava tensa e esfomeada. - Parece ótimo - disse ela, suspirando enquanto desabotoava o casaco. Geoff apressou-se a tirar-lho. Pareceu natural que, quando o colocou num braço, a cingisse com o outro braço e lhe desse um beijo na face. - Um dia difícil na fábrica? Por um breve instante, deixou o rosto apoiado no lugar quente por debaixo do pescoço dele. - Já tive dias mais fáceis. - Robin disse: - Mãezinha, vou lá para cima terminar os trabalhos da escola, mas penso que, visto que sou eu quem corre perigo, deveria saber exatamente o que está a acontecer. Que disse o Dr. Smith quando o foi visitar? - Termina os trabalhos da escola e deixa-me descontrair durante uns minutos. Prometo um relato completo para mais tarde. - Está bem. Geoff ligara a lareira a gás na sala comum. Trouxera xerez e tinha copos preparados ao lado da garrafa em cima da mesa do café. - Espero que não me tenha posto demasiado à vontade - desculpou-se. Kerry deixou-se cair no sofá e descalçou os sapatos. Abanou a cabeça e sorriu.

- Não, não pôs. Tenho novidades para si, mas primeiro conte as suas. Fale-me de Smith. Primeiro gostaria de lhe falar de Frank Green. Disse-lhe que hoje à tarde ia sair cedo do gabinete e expliquei-lhe o motivo. Que disse ele? - O que ele não disse é que ficou no ar. Mas, por lealdade para com ele, embora pense que estava a refrear as palavras, disse-me que esperava que eu não pensasse que preferia ver um homem inocente na prisão do que ter dificuldades a nível político. - Ela encolheu os ombros. - A questão é que eu queria poder acreditar nele. - Talvez possa. E quanto a Smith? - Sei que o impressionei, Geoff. Tenho a certeza. O homem está com um esgotamento nervoso. Se não começar a dizer a verdade, o meu passo seguinte é conseguir que Barbara Tompkins apresente uma queixa contra ele por andar a segui-la. Apostava que essa perspectiva o abalou da cabeça aos pés. Mas creio que é melhor não correr o risco de que isso aconteça; ele irá recompor-se e obteremos algumas respostas. Ela olhou fixamente para a lareira, observando as chamas que tocavam levemente nos cepos artificiais. Em seguida, acrescentou devagar: - Geoff, disse a Smith que tínhamos duas testemunhas que viram o carro dele naquela noite. Atirei-lhe à cara que talvez a razão por que estava tão ansioso por ver Skip condenado fosse por que tinha sido ele que matara Suzanne. Geoff, creio que estava apaixonado por ela, não como filha, talvez nem como mulher, mas como uma criação. - Virou-se para ele - .. Pense neste enredo. Suzanne está farta de ter sempre o pai perto dela, de ele aparecer onde quer que vá. Jason Arnott contou-me tudo isto, e acredito nele. Assim, na noite do homicídio, o Dr. Smith sai de carro para a ir ver. Skip entrou e saiu, como ele declarou. Suzanne está no vestíbulo, a arranjar flores enviadas por outro homem. Não se esqueça, nunca se encontrou o cartão. Smith está furioso, ofendido e, cheio de ciúmes. Ele não tem apenas de lutar contra Skip mas também contra Jimmy Weeks. Num acesso de raiva, estrangula Suzanne, e,.porque sempre odiou Skip, tira o cartão, inventa a história de Suzanne ter medo de Skip e torna-se a principal testemunha da acusação. Assim, Skip, o seu rival que solicitava a atenção de Suzanne, não só é condenado a passar pelo menos trinta anos na prisão como também a Polícia não procura um suspeito em qualquer outra parte. - Faz sentido - disse Geoff devagar. - Mas então por que razão Jimmy

estava tão preocupado por você reabrir o caso? - Também pensei nisso. E, na realidade, podia apresentar um argumento igualmente aceitável de que ele estava envolvido com Suzanne. Que discutiram naquela noite e ele a assassinou. Outro cenário é que Suzanne lhe falou no terreno na Pensilvânia sobre o qual Skip tinha opção. Será que Jimmy lhe falou inadvertidamente na estrada que ia passar por lá e depois a matou para a impedir de contar a Skip? Ele apanhou aquelas opções por quase nada, suponho. - Hoje pensou muito, minha senhora - disse Geoff. - E elaborou um excelente caso para os dois enredos. Por acaso, ouviu o noticiário quando vinha para casa? - O meu cérebro precisava de descanso. Sintonizei a estação com os êxitos musicais do passado. Caso contrário, teria enlouquecido naquele trânsito. - Optou melhor. Mas, se tivesse ouvido o noticiário, ficaria a saber que o material que Barney Haskell planejava trocar por um acordo está agora nas mãos do procurador-geral. Parece que Barney conservava registos como nunca ninguém fez. Amanhã, se Frank Green for esperto, em vez de oferecer resistência à sua investigação, solicitará acesso a qualquer registo que possam encontrar de jóias que Weeks comprou nos meses anteriores à morte de Suzanne. Se o pudermos associar a objetos como a bracelete do Zodíaco, teremos a prova de que Smith mentiu. Levantou-se. Eu diria, Kerry McGrath, que merece a ceia por ter cantado tão bem. Espere aqui. Digo-lhe quando estiver pronta. Kerry enroscou-se no sofá e bebeu lentamente o xerez, mas, mesmo com a lareira acesa, a sala parecia menos confortável. Pouco tempo depois, levantou-se e entrou na cozinha. - Não faz mal que o veja a trabalhar, chefe? Aqui está mais quente. Geoff foi-se embora às nove horas. Quando a porta se fechou, Robin disse: - Mãezinha, tenho de perguntar. Esse homem que o paizinho defende...? Por aquilo que me disse, o paizinho não vai ganhar o caso. É isso? - Não, se todas as provas que pensamos ter descoberto forem aquilo que julgamos. - Isso será mau para ele? - Ninguém gosta de perder um caso, mas não, Robin, penso que o

melhor que podia acontecer ao teu pai é que Jimmy seja condenado. - Tens a certeza de que é Weeks que está a tentar assustar-me? - Sim, tenho tanta quanta é possível ter. É por isso que quanto mais cedo descobrirmos a ligação dele a Suzanne Reardon melhor, porque não terá motivos para tentar assustar-nos. - Geoff é o advogado de defesa, não é? - Sim, é. - Geoff alguma vez defenderia um homem como Jimmy Weeks? - Não, Robin. Tenho a certeza absoluta de que ele não faria isso. - Eu também acho. Às nove e meia, Kerry lembrou-se de que prometera informar Jonathan e Grace sobre o encontro com o Dr. Smith. - Pensas que ele pode ceder e admitir que mentiu? - perguntou Jonathan quando entrou em contato com ele. - Penso que sim. Grace estava na outra extensão. -Vamos dar a novidade a Kerry, Jonathan. Kerry, hoje ou fui uma excelente detetive ou fiz figura de idiota. Kerry não pensara que fosse importante mencionar o nome de Arnott no domingo quando falou a Jonathan e a Grace do Dr. Smith e de Jimmy Weeks. Quando ouviu o que Grace tinha para dizer acerca dele, ficou contente por nenhum deles poder ver a expressão do seu rosto. Jason Arnott! O amigo que estava constantemente com Suzanne Reardon. Que, apesar da aparente sinceridade, fez que Kerry o considerasse demasiado afetado para ser verdadeiro. Se era um ladrão, segundo o folheto do FBI que Grace descreveu, e também um suspeito de homicídio, onde se encaixava ele no mistério que envolvia o Caso Sweetheart? O Dr. Charles Smith ficou sentado longas horas depois de forçar Kerry a sair. «Perseguidor!», «Assassino!», «Mentiroso!». As acusações que lhe lançara fizeram-no tremer de revolta. Era a mesma revolta que sentia quando olhava para um rosto mutilado, cheio de cicatrizes ou feio. Sentia o corpo todo a tremer com a necessidade de o alterar, de o recuperar, de pôr tudo em ordem. Encontrar para ele a beleza que as mãos destras podiam arrancar do osso, do músculo e da carne. Nesses momentos, a ira que sentia virara-se contra o fogo ou o acidente ou a combinação injusta de genes que tinham provocado a aberração. Agora a

sua ira era canalizada para a jovem que se sentara ali para o julgar. «Perseguidor!» Chamar-lhe perseguidor porque um vislumbre da perfeição quase total que criara lhe dava prazer! Desejava ter previsto o futuro e sabido que era assim que Barbara Tompkins expressaria a sua gratidão. Ter-lhe-ia dado um rosto - um rosto com pele que ficaria cheia de rugas, olhos descaídos, narinas largas. «E se McGrath levasse Tompkins à Polícia para apresentar aquela queixa?» Dissera que o faria, e Smith sabia que ela estava a falar a sério. Chamara-lhe assassino. Assassino! Pensaria realmente que ele poderia ter feito aquilo a Suzanne? Uma angústia ardente apoderou-se dele quando reviveu o momento em que tocara à campainha, repetidas vezes, depois rodara o puxador e constatara que a porta não estava fechada à chave. E Suzanne lá, no vestíbulo, quase aos seus pés. Suzanne mas não Suzanne. Aquela criatura desfigurada com os olhos salientes e cheios de sangue, a boca aberta e a língua caída - aquela não era a criatura delicada que moldara. Até o corpo, dobrado como estava, parecia mal jeitoso e sem encantos, a perna esquerda torcida por debaixo da direita, o salto do sapato esquerdo enterrado na barriga da perna direita, aquelas rosas vermelhas e viçosas espalhadas sobre ela, uma homenagem à morte escarnecedora. Smith lembrou-se do modo como ficara perto dela, apenas com um pensamento incongruente - seria assim que Miguel Angelo se teria sentido se tivesse visto a sua Pietò partida e desfigurada pelo lunático que a atacou há anos na Catedral de S. Pedro. Lembrou-se de como amaldiçoara Suzanne, a amaldiçoara por não ter prestado atenção aos seus avisos. Casara com Reardon contra a sua vontade. «Espera», insistira com ela. «Ele não é suficientemente bom para ti.» «Na sua opinião, jamais ninguém será suficientemente bom para mim, gritara ela. Suportara o modo como olhavam um para o outro, o modo como entrelaçavam as mãos por cima da mesa, o modo como se sentavam juntos, lado a lado no sofá, como os vira quando espreitara através da janela à noite. Suportar tudo aquilo fora difícil, mas foi muito mais difícil quando Suzanne se tornou impaciente e começou a encontrar-se com outros homens, nenhum deles digno dela, e depois vinha ter com ele, pedindo favores, dizendo «Charles, tem de fazer que Skip pense que me comprou isto... e isto... e isto...» Ou então dizia, «Doutor, por que está tão aborrecido? Disse-

me que havia de ter a vida boa que perdi. Então, estou a vivê-la. Skip trabalha demasiado. Não é divertido. Você corre riscos quando opera. Sou como o senhor. Também corro riscos. Agora não se esqueça, Dr. Charles, é um paizinho generoso.» O beijo impudente, flertando com ele, segura do seu poder, da tolerância dele. «Assassino! Não, Skip era o assassino.» Enquanto estava de pé junto ao corpo de Suzanne, Smith compreendera perfeitamente o que tinha acontecido. O marido boçal chegara a casa e encontrara Suzanne com flores oferecidas por outro homem, e explodira. «Tal como eu teria explodido», pensara Smith quando viu o cartão meio encoberto pelo corpo de Suzanne. E então, parado junto dela, um enredo fora representado na sua mente. Skip, o marido ciumento - um júri podia ser clemente com um homem que matou a mulher num momento de paixão. Ele podia sair com uma sentença leve. Ou talvez sem nenhuma sentença. «Não permitirei que isso aconteça», jurara ele. Smith recordou-se de que tinha fechado os olhos, apagando o rosto feio, desfigurado, na sua frente e vendo Suzanne em toda a sua beleza. «Suzanne, eu prometi-te isto!» Não fora difícil manter a promessa. Tudo o que tinha a fazer era tirar o cartão que viera com as flores, depois ir para casa e esperar pelo telefonema inevitável que o informaria de que Suzanne, a sua filha, morrera. Quando a Polícia o interrogara, dissera-lhes que Skip tinha um ciúme doentio, que Suzanne temia pela sua vida, e, obedecendo ao último pedido que ela lhe fizera, declarou que lhe dera todas as jóias que Skip contestara. «Não; que a Sra. McGrath diga tudo o que quiser. O assassino estava na prisão. E lá continuará.» Eram quase dez horas quando Charles Smith se levantou. Estava tudo acabado. Não podia operar mais. Já não queria ver Barbara Tompkins. Causava-lhe repugnância. Entrou no quarto, abriu o pequeno cofre que estava no armário e tirou uma arma. Seria tão fácil. Para onde iria?, interrogou-se. Ele acreditava que o espírito não morria. Reincarnação? Talvez. Talvez dessa vez renascesse como par de Suzanne. Talvez se apaixonassem. Um sorriso bailou nos seus lábios. Mas, quando se preparava para abrir o cofre, olhou para a caixa das jóias de Suzanne. Talvez McGrath tivesse razão. Talvez não tivesse sido Skip que tirara a vida de Suzanne, mas outra pessoa. McGrath dissera que essa pessoa se estaria a rir naquele momento, trocista, grata pelo depoimento que condenara

Skip. Havia um meio de retificar isso. Se Reardon não era o assassino, então McGrath teria tudo o que precisava para encontrar o homem que matara Suzanne. Smith pegou na caixa das jóias, colocou a arma em cima dela e levou-as para a secretária no gabinete. Em seguida, com movimentos precisos, tirou uma folha de carta e desatarraxou a tampa da caneta. Quando acabou de escrever, embrulhou a caixa das jóias juntamente com o bilhete e conseguiu metê-los numa das várias embalagens do Correio Expresso Federal que guardava em casa por conveniência. Endereçou o pacote à assistente do promotor, Kerry McGrath, para o Departamento do Promotor de Bergen County, Hackensack, Nova Jérsia. Era uma morada de que se lembrava bem. Vestiu o casaco e pôs o cachecol e percorreu oito quarteirões até à caixa do Correio Expresso Federal que utilizava ocasionalmente. Eram quase 11 horas quando chegou a casa. Despiu o casaco, pegou na arma, voltou para o quarto e estendeu-se na cama, ainda todo vestido. Apagou as luzes todas, exceto a que iluminava o retrato de Suzanne. Acabaria nesse dia com ela e começaria uma nova vida quando soasse a meia-noite. Tomada a decisão, sentiu-se calmo, até feliz. Às 11:30, a campainha da porta começou a tocar. «Quem?», interrogouse. Furioso, tentou ignorá-la, mas um dedo persistente premia-a. Tinha a certeza de que sabia o que era. Uma vez tinha-se dado um acidente na esquina, e um vizinho fora chamá-lo em busca de ajuda. Afinal, era médico. Se tivesse havido um acidente, poderia empregar só mais uma vez a sua perícia. O Dr. Charles Smith abriu a porta com a chave, depois caiu para trás, embatendo nela, quando uma bala o atingiu no meio dos olhos.

CAPÍTULO 18 Terça-feira, 7 de Novembro

Na terça-feira

de manhã, Deidre Reardon e Beth Taylor já estavam na sala de recepção do gabinete de Geoff Dorso quando ele chegou às nove horas. Beth pediu desculpa pelas duas. - Geoff, peço imensa desculpa por virmos sem telefonar primeiro - disse ela, - mas Deidre tem de dar entrada no hospital para fazer a angioplastia amanhã de manhã. Sei que a tranquilizará se tiver uma possibilidade de conversar consigo alguns minutos e de lhe dar aquela fotografia de Suzanne de que falámos no outro dia. Deidre Reardon olhava para ele cheia de ansiedade. - Oh, venha daí, Deidre - disse Geoff cordialmente, - sabe que não tem de dar explicações para me visitar. Não é a mãe do meu cliente famoso? - Claro. São todas aquelas horas em que cobra honorários - murmurou Deidre Reardon com um sorriso de alívio quando Geoff lhe pegou nas mãos. - É que me sinto tão embaraçada pela forma rude como entrei no gabinete da adorável Kerry McGrath na semana passada e a tratei tão mal. E depois soube que a própria filha tem sido ameaçada porque Kerry está a tentar ajudar o meu filho. - Kerry percebeu como se sentia naquele dia. Voltemos para o meu gabinete, tenho a certeza de que a cafeteira está ligada. - Ficaremos apenas cinco minutos prometeu Beth - quando Geoff colocou uma caneca de café à frente dela. - E não o faremos perder tempo a dizer que sentimos uma enorme alegria ao pensar que finalmente há mesmo esperança verdadeira para Skip. Sabe o que sentimos, e sabe o quanto lhe estamos gratos por tudo aquilo que tem feito. - Kerry esteve ontem com o Dr. Smith ao fim da tarde - disse Geoff. Pensa que o apanhou. Mas também há outras novidades. Falou-lhes dos registros de Barney Haskell. - Talvez tenhamos finalmente uma oportunidade de descobrir a proveniência das jóias que supomos que Weeks deu a Suzanne. - É um dos motivos por que estamos aqui - disse-lhe Deidre Reardon. Recorda-se de que eu disse que tinha uma fotografia em que se via Suzanne

com o conjunto de alfinetes antigos e com diamantes, que tinha desaparecido? Assim que cheguei a casa depois de vir da prisão, no sábado à noite, fui para a tirar da pasta e não consegui encontrá-la. Passei o domingo inteiro e ontem a esquadrinhar o apartamento à procura dela. Claro que não estava lá. Foi uma estupidez, esquecera-me de que um dia lhe pus um daqueles revestimentos de plástico e a coloquei no meio dos meus documentos pessoais. Seja como for, por fim, encontrei-a. Com aquela conversa toda sobre as jóias, no outro dia, pensei que fosse importante darlha. Entregou-lhe um envelope de papel grosso de tamanho normal. Ele retirou uma página dobrada do Palisades Community Life, um jornal semanal mas com uma dimensão mais reduzida. Quando a abriu, Geoff reparou na data, 24 de Abril, cerca de onze anos e praticamente um mês antes da morte de Suzanne Reardon. A fotografia em grupo do Clube de Ténis de Palisades abrangia o espaço de quatro colunas. Geoff reconheceu Suzanne imediatamente. A sua surpreendente beleza sobressaía na página. Estava ligeiramente virada, e a câmara apanhara nitidamente os diamantes cintilantes na lapela do casaco. - Esse é o alfinete duplo que desapareceu - explicou Deidre, apontando. - Mas Skip não se lembra da última vez que viu Suzanne com ele. - Fico satisfeito por ter isto - disse Geoff. - Quando pudermos ter uma cópia de alguns daqueles registos que Haskell fazia, talvez consigamos localizar o alfinete. Era quase doloroso ver a esperança e a impaciência nos rostos das duas. «Não deixeis que as desaponte», rezou enquanto as acompanhava à sala de recepção. Junto à porta, abraçou Deidre. - Agora não se esqueça, vai fazer essa angioplastia e começa a sentir-se melhor. Não queremos que esteja doente quando abrirmos a porta a Skip. - Geoff, não atravessei o Inferno descalça durante todo este tempo para sucumbir agora. Depois de tratar de uma série de telefonemas de clientes e interrogatórios, Geoff decidiu telefonar a Kerry. «Talvez queira ter um fax da fotografia que Deidre trouxera. Ou talvez seja apenas porque quero falar com ela», admitiu para si mesmo. Quando a secretária lhe passou a ligação, a voz assustada de Kerry fez arrepiar Geoff.

- Acabei de abrir uma encomenda do Expresso Federal que o Dr. Smith me enviou. Lá dentro estava um bilhete e a caixa das jóias de Suzanne e o cartão que devia vir a acompanhar as rosas sweetheart. Geoff, ele admite que mentiu acerca de Skip e das jóias. Disse-me que no momento em que lesse isto se teria suicidado. - Meu Deus, Kerry, ele... - Não, não é isso. Ele não se suicidou, Geoff. A Sra. Carpenter telefonou-me há instantes do consultório. Uma vez que o Dr. Smith não apareceu para a primeira consulta e não atendeu o telefone, foi a casa dele. A porta estava entreaberta e ela entrou. Deparou com o corpo estendido no vestíbulo. Tinha sido alvejado e a casa rebuscada. Geoff, seria porque alguém não queria que o Dr. Smith alterasse o depoimento e procurava as jóias? Geoff, quem fará estas coisas? Robin será a próxima vítima? Às nove e meia dessa manhã, Jason Arnott olhou pela janela, viu o céu carregado de nuvens e sentiu-se um pouco deprimido. Para além de sentir ainda algumas dores nas pernas e nas costas, dominara o germe ou vírus que o deixara num estado de prostração durante o fim-de-semana. Mas não conseguia dominar a sensação de inquietação que lhe dava o fato de saber que qualquer coisa estava errada. Era o maldito folheto do FBI, claro. Mas sentira o mesmo depois daquela noite na casa do senador Peale. Alguns dos candeeiros do rés-dochão, que estavam ligados a um interruptor automático, encontravam-se acesos quando lá chegou, mas os quartos no primeiro andar estavam todos às escuras. Vinha no corredor, transportando o quadro e o cofre que retirara da parede, quando ouviu passos pelas escadas acima. Mal tivera tempo de segurar o quadro na frente do rosto quando a luz iluminou o corredor. Então ouvira uma voz trémula, «Oh, meu Deus», e percebeu que era a mãe do senador. Não tivera intenção de lhe fazer mal. Instintivamente, correra em direção a ela, empunhando o quadro como um escudo, tendo em mente derrubá-la e tirar-lhe os óculos para poder fugir. Passara muito tempo a conversar com ela na festa inaugural de Peale, e sabia que era cega como um morcego sem eles. Mas a moldura pesada do quadro atingiu-a na parte lateral da cabeça com mais força do que queria, e ela caíra pelas escadas abaixo. Percebeu, pelo último murmúrio que soltou antes de ficar imóvel, que estava morta. Depois disso, olhara por cima do ombro durante meses, à espera de ver

alguém a encaminhar-se para ele com algemas. Naquele momento, por mais que tentasse convencer-se do contrário, o folheto do FBI provocava-lhe o mesmo nervosismo. Depois do caso Peale, a sua única consolação tinha sido regalar os olhos na obra-prima de John White Alexander, At Rest, que roubara naquela noite. Guardava-o no quarto principal da casa de Catskills tal como Peale o guardara no quarto principal. Era tão divertido saber que milhares de pessoas entravam em grupo no Metropolitan Museum of Art para contemplar a outra peça do conjunto, Repose. Das duas, preferia At Rest. O corpo reclinado da formosa mulher possuía as mesmas linhas sinuosas de Repose, mas os olhos fechados, a expressão no rosto sensual faziam-lhe lembrar Suzanne. A pequena moldura com o retrato dela estava em cima da mesinha-decabeceira, e divertia-o ter as duas peças no quarto, apesar de a moldura, uma imitação de Fabergé, não ser digna da gloriosa companhia que tinha. A mesinha-de-cabeceira era dourada e de mármore, um exemplo requintado do gótico renascentista, e fora o resultado de um importante assalto quando alugara uma carrinha e esvaziara quase por completo a casa Merriman. Telefonaria antes de ir. Gostava de chegar lá e encontrar o aquecimento ligado e o frigorífico abastecido. Em vez de utilizar o telefone de casa, porém, ligaria à governanta do telefone celular que estava registado num dos nomes falsos. No interior do que parecia ser uma carrinha de reparações do Serviço Público de Gás e Electricidade, surgiu o sinal de que Arnott estava a fazer uma chamada telefónica. Enquanto os agentes escutavam, sorriram triunfantes um para o outro. - Penso que estamos prestes a seguir o astuto Sr. Arnott até ao covil comentou o agente mais velho de serviço. - Ouviram quando Jason terminou a conversa, dizendo: - Obrigado, Maddie. Sairei daqui dentro de uma hora e devo estar aí por volta da uma. A resposta de Maddie num tom monótono foi: - Terei tudo preparado para o senhor. Pode confiar em mim. Frank Green estava a julgar um caso, e era meio-dia, sem que Kerry tivesse podido informá-lo do homicídio de Smith e da encomenda que ele lhe enviara e que ela recebera ao fim da manhã. Já se acalmara e interrogava-se sobre como tinha sido capaz de se descontrolar quando Geoff telefonara. Mas

as emoções eram algo que exploraria mais tarde. Naquele momento, saber que Joe Palumbo estava parado em frente da escola de Robin à espera para a acompanhar a casa e depois ficar de guarda à casa até Kerry chegar era o bastante para ajudar a diminuir os receios imediatos. Green examinou cuidadosamente o conteúdo da caixa das jóias, comparando cada peça com as que Smith mencionara na carta que colocara na encomenda para Kerry. Bracelete do Zodíaco leu. Está aqui. Relógio com algarismos em ouro, mostrador de marfim, pulseira de diamantes e ouro. Certo. Aqui está. Anel de esmeraldas e diamantes incrustados em ouro rosado, aqui está. Bracelete de diamantes antiga. Três fiadas de diamantes unidas por broches de diamantes. Segurou-o. É uma maravilha. »Sim. Talvez se recorde de que Suzanne usava essa bracelete quando foi assassinada. Havia mais uma peça, um alfinete antigo com diamantes ou alfinete duplo, que Skip descrevera. O Dr. Smith não o mencionou, e, aparentemente, não o tinha em seu poder, mas Geoff mandou-me agora mesmo um fax da fotografia de um jornal local em que se via Suzanne com aquele alfinete algumas semanas antes de morrer. Não se encontrava entre as peças descobertas em casa. Pode ver que é muito semelhante à bracelete e obviamente antigo. As outras peças são lindas, mas com um design muito moderno. Kerry olhou atentamente para a reprodução pouco nítida e compreendeu por que Deidre Reardon o descrevera como uma reprodução da imagem da mãe com o filho. Como ela explicara, o alfinete parecia ser composto por duas partes, a maior era uma flor, a mais pequena um botão. Estavam ligadas por um fio. Examinou-o por instantes, perplexa porque parecia estranhamente familiar. - Guardaremos este alfinete para ver se é mencionado nos recibos de Haskell - prometeu Green. - Agora vamos lá ver se nos entendemos. Tanto quanto sabe, tudo o que o médico mencionou, excluindo este alfinete, são as jóias todas que Suzanne pediu ao médico que dissesse a Skip que tinha sido ele que lhas dera? - Segundo o que Smith escreveu na carta, coincide com aquilo que Skip Reardon me contou no sábado. Green pousou a carta de Smith. - Kerry, pensa ter sido seguida quando foi visitar Smith ontem?

- Agora julgo que talvez tenha sido. É por isso que estou tão preocupada com a segurança de Robin. - Manteremos um carro-patrulha em frente da sua casa esta noite, mas preferia que você e Robin saíssem de lá e fossem para um lugar mais seguro... com toda esta crise. Jimmy Weeks é um animal encurralado. Royce talvez possa incriminá-lo por fraude fiscal, mas, com aquilo que descobriu, talvez possamos acusá-lo de homicídio. - Por causa do bilhete que Jimmy mandou com as rosas sweetheart? O bilhete já estava a ser analisado por peritos em caligrafia, e Kerry lembrara a Green o papel encontrado no bolso do advogado de Haskell depois de ambos os homens terem sido assassinados. - Exatamente. Nenhum empregado de uma casa onde se vendem flores desenhou aquelas notas musicais. Imagine que uma inscrição como aquela foi ditada pelo telefone. Disseram-me que Weeks é um músico amador bastante bom. É a vida e alma do grupo quando se senta ao piano. Desse género. Com aquele cartão... e se a jóia estiver naqueles recibos... o caso Reardon é um jogo novo. - E, se concederem um novo julgamento a Skip, terá direito a ser solto sob caução até ao julgamento... ou até que retirem as acusações - disse Kerry calmamente. - Recomendarei isso, se tudo apontar nesse sentido - concordou Green. - Frank, tenho de levantar outra questão - disse Kerry. - Sabemos que Jimmy Weeks está a tentar afastarnos desta investigação, intimidando-nos. Mas pode ser por um motivo que desconhecemos. Soube que Weeks apanhou as opções de Skip Reardon sobre propriedades valiosas na Pensilvânia quando Skip teve de se desfazer delas. Parece que obteve informações confidenciais, portanto é muito provável que a transação fosse ilegal. Não é certamente um crime tão grave como o homicídio... e ainda não sabemos, claro; ele pode ter sido o assassino de Suzanne... mas se o IRS tivesse essa informação, para além das acusações de evasão fiscal e outras coisas, mesmo assim Weeks podia ficar preso durante muito tempo. - E julga que ele está preocupado por você andar a investigar o caso do homicídio Reardon e poder vir a revelar esses negócios antigos? - perguntou Green. - Sim, é muito possível. - Mas acredita que é o bastante para o levar a ameaçá-la através de

Robin? Isso parece-me um pouco exagerado. - Green abanou a cabeça. - Frank, a avaliar por aquilo que o meu ex-marido me contou, Weeks é implacável ao ponto de fazer qualquer coisa para se proteger, e não faria qualquer diferença fosse qual fosse a acusação... podia ser por homicídio ou podia ser por roubar um jornal. Mas, pondo tudo isto de lado, ainda existe a possibilidade de não se conseguir provar o caso de homicídio, mesmo que possamos associar Weeks a Suzanne - disse Kerry. Depois começou a informá-lo sobre a ligação entre Jason Arnott e Suzanne e a teoria de Grace Hoover de que era um ladrão profissional. - Mesmo que seja, está a associá-lo ao homicídio de Suzanne Reardon? perguntou Green. - Não tenho a certeza - disse Kerry devagar. - Tudo depende de ele estar ou não implicado nesses roubos. - Espere. Podemos obter de imediato esse folheto em fax do FBI ordenou Green enquanto carregava no intercomunicador. - Descobriremos quem dirige a investigação. Ainda não tinham passado cinco minutos quando a secretária trouxe o fax. Green mostrou o número confidencial. - Diga-lhes para me porem em contato com o chefe. - Sessenta segundos mais tarde, Green falava ao telefone com Sir Morgan. Virou o auscultador para que Kerry também pudesse ouvir. - Está por pouco - disse-lhe Morgan. - Arnott tem outra casa, nos Catskills. Resolvemos tocar à campainha e ver se a governanta fala conosco. Mantê-lo-emos informado. Kerry agarrou com firmeza os braços da cadeira e virou a cabeça na direção da voz distante que saía do telefone. - Sr. Morgan, isto é muito importante. Se ainda puder contactar o seu agente, peça-lhe para indagar sobre uma pequena moldura oval de retrato. É de esmalte azul com pérolas muito pequenas a contornar o vidro. Pode ter ou não uma fotografia de uma mulher bonita com cabelo castanho. Se lá estiver, poderemos associar Jason Arnott a um caso de homicídio. - Ainda posso contactá-lo. Dir-lhe-ei para perguntar por ela e depois informo-o - prometeu ele. - Que conversa era essa? - perguntou Green quando desligou o intercomunicador com brusquidão. - Skip Reardon declarou sempre que uma pequena moldura, que era uma

cópia de Fabergé, desapareceu do quarto principal no dia em que Suzanne morreu. Isso e o alfinete antigo são os dois objetos dos quais não podemos dar conta de momento. Kerry inclinou-se para a frente e pegou na bracelete de diamantes. - Veja isto. É muito diferente das outras jóias. - Segurou na fotografia de Suzanne que trazia o alfinete antigo. - Não é estranho? Tenho a impressão de que já vi um alfinete como este, refiro-me ao alfinete pequeno ligado ao maior. Talvez seja por ter sido referido repetidas vezes em declarações de Skip e da mãe no decurso da investigação. Li aquele ficheiro até ficar tonta. Colocou a bracelete de novo na caixa. - Jason Arnott passava muito tempo com Suzanne. Talvez não fosse tão neutro como tentava aparentar. Pense nisto sob esta perspectiva, Frank. Digamos que ele também se enamorou de Suzanne. Ofereceu-lhe o alfinete antigo e a bracelete. É exatamente o tipo de jóia que escolheria. Depois apercebeu-se de que ela andava a divertir-se com Jimmy Weeks. Talvez tenha entrado naquela noite e visto as rosas sweetheart e o cartão que supomos que Jimmy enviou. - Quer dizer que ele a matou e recuperou o alfinete? - E o retrato dela. Por aquilo que a Sra. Reardon me diz, é uma moldura linda. - Por que não a bracelete? - Enquanto esperava que chegasse esta manhã, dei uma vista de olhos às fotografias tiradas ao corpo antes de ser removido. Suzanne tinha uma bracelete de ouro com elos na mão esquerda. Vê-se na fotografia. A pulseira de diamantes, que estava no outro braço, não aparece. Verifiquei os registos. Estava no meio do braço por debaixo da manga da blusa, por isso não era visível. Segundo o relatório do investigador de Medicina, tinha um fecho de segurança novo e muito apertado. Ela deve ter escondido a bracelete porque resolvera não a trazer e não conseguira tirá-la, ou talvez se tenha apercebido de que o atacante viera para a reaver, provavelmente porque era um presente dele, e ela podia estar a escondê-la. Fosse qual fosse a razão, deu resultado, porque ele não a descobriu. Enquanto esperavam que Morgan voltasse a telefonar, Green e Kerry trabalharam na elaboração de um folheto com fotografias das jóias em questão, que seria distribuído aos joalheiros de Nova Jérsia. A certa altura, Frank comentou:

- Kerry, já se deu conta de que, se a suspeita da Sra. Hoover tiver fundamento, significa que a informação da esposa do nosso senador terá contribuído para apanhar o assassino da mãe do membro do Congresso, o Sr. Peale. Se Arnott estiver ligado ao caso Reardon... «Frank Green, candidato a governador», pensou Kerry. «Já está a imaginar como há-de tornar as coisas mais suaves por ter condenado um homem inocente! Bem, creio que a política é assim», disse para si mesma. Maddie Platt não se apercebera do carro que a seguia quando parou no mercado e fez as compras, escolhendo cuidadosamente todos os artigos que lhe mandaram comprar. Nem reparou que a continuou a seguir quando se afastou de Ellenville, desceu ruas estreitas, sinuosas, até à casa de campo, de construção irregular, propriedade do homem que ela conhecia pelo nome de Nigel Grey. Entrou e, passados dez minutos, ficou surpreendida quando soou a campainha da porta. Nunca ninguém lá tinha ido. Além do mais, o Sr. Grey dera-lhe ordens rigorosas para nunca deixar entrar ninguém. Não ia abrir a porta sem saber quem era. Quando espreitou pela janela lateral, viu o homem vestido com simplicidade e elegância parado no último degrau. Ele viu-a e mostrou um distintivo que o identificava como agente do FBI. - FBI, minha senhora. Pode fazer o favor de abrir a porta para que possa falar consigo? Cheia de nervosismo, Maddie abriu a porta. Ela ficou a alguns centímetros do distintivo com o sinal inequívoco do FBI e a fotografia de identificação do agente. - Boa tarde, minha senhora. Sou Milton Rose, agente do FBI. Não pretendo assustá-la nem incomodá-la, mas é muito importante que fale consigo a respeito do Sr. Jason Arnott. A senhora é a governanta, não é? - Senhor, não conheço nenhum Sr. Arnott. Esta casa pertence ao Sr. Nigel Grey, e trabalho para ele há muitos anos. Deve chegar hoje à tarde, na realidade, deve estar a chegar. E posso dizer agora... tenho ordens rigorosas para nunca deixar entrar ninguém nesta casa sem a sua permissão. - Minha senhora, não estou a pedir que me deixe entrar. Não tenho mandado de busca domiciliária. Mas, no entanto, preciso de falar consigo. O seu patrão, o Sr. Grey, é de fato Jason Arnott, que suspeitamos que seja responsável por dúzias de roubos que envolvem objetos de arte e de valor.

Talvez seja responsável pelo homicídio da mãe idosa de um membro do Congresso, que o deve ter surpreendido durante o assalto à sua casa. - Oh, meu Deus - disse Maddie, ofegando. Sem dúvida, o Sr. Grey estivera sempre só naquela casa, mas ela pensara que a casa de Catskills era para onde se escapava para ter privacidade e descansar. Compreendeu naquele momento que podia estar a «escapar-se» para ali por razões muito diferentes. O agente Rose continuou a descrever-lhe muitas das obras de arte e de outros objetos roubados, que tinham desaparecido das casas que Arnott frequentara como convidado de reuniões sociais. Pesarosamente, ela confirmou que praticamente todos aqueles objetos estavam lá em casa. E também a pequena moldura oval, azul, incrustada com pequenas pérolas, com o retrato de uma mulher, que estava em cima da mesinha-de-cabeceira. - Minha senhora, sabemos que ele chegará dentro em breve. Tenho de lhe pedir que venha conosco. Tenho a certeza de que não tinha conhecimento daquilo que se passava, e não vai ter problemas. Mas vamos solicitar pelo telefone um mandado de busca domiciliária para podermos revistar a casa do Sr. Arnott e prendê-lo. Com brandura, o agente Rose conduziu a desnorteada Maddie ao carro, que estava à espera. - Nem posso crer - exclamou ela. - Não sabia de nada. Às 12:30, uma Martha Luce assustada, que era governanta de James Forrest Weeks ká vinte anos, estava sentada a torcer um lenço úmido enquanto se encolhia toda no gabinete do procurador-geral, Brandon Royce. O depoimento sob juramento que prestara a Royce há meses tinha-lhe sido lido há instantes. - Confirma aquilo que nos contou naquele dia? - perguntou Royce enquanto batia levemente nos papéis que tinha nas mãos. - Contei-lhe a verdade... tanto quanto sabia que era verdade - disse-lhe Martha, quase sussurrando. Lançou um olhar nervoso, de lado, para o estenógrafo e depois para o sobrinho, um jovem advogado, que chamara, tomada de pânico quando soubera da busca bem sucedida à casa de Barney Haskell. Royce inclinou-se para a frente. - Sra. Luce, não posso minimizar a gravidade da sua situação. Se continuar a cometer perjúrio, a responsabilidade é sua. Temos o suficiente

para enterrar Jimmy Weeks. Porei as minhas cartas na mesa. Uma vez que Barney Haskell nos deixou de uma forma tão deplorável e súbita, será útil têla como testemunha viva - ele deu ênfase à palavra «viva» -, para confirmar a exatidão dos registos dele. Se o não fizer, condenaremos na mesma Jimmy Weeks. Mas depois, Sra. Luce, concentraremos toda a nossa atenção em si. O perjúrio é um crime muito grave. A obstrução à justiça é um crime muito grave. Ser cúmplice de evasão aos impostos sobre rendimentos é um crime muito grave. O rosto sempre tímido de Martha Luce contorceu-se. Começou a soluçar. As lágrimas que logo tornaram vermelhos os olhos azul-claros brotaram e caíram-lhe pela cara abaixo. - O Sr. Weeks pagou todas as contas quando a minha mãe esteve muito tempo doente. - Que simpático - disse Royce. - Mas fez isso com o dinheiro dos contribuintes. - A minha cliente tem o direito de não responder - disse o sobrinho/advogado. Royce lançou-lhe um olhar fulminante. - Já estabelecemos isso, advogado. Também podia comunicar à sua cliente que não gostamos de meter na prisão mulheres de meia-idade com lealdades mal orientadas. Estamos dispostos, desta vez... e só desta vez... a conceder imunidade total à sua cliente em troca de cooperação incondicional. Depois disso, fica por sua conta. Mas recorde à sua cliente - a voz de Royce estava carregada de sarcasmo - que Barney Haskell esperou tanto tempo para aceitar uma oferta de acordo que não chegou a tê-lo. - Imunidade total? - perguntou o sobrinho/advogado. - Total, e vamos decretar imediatamente a prisão preventiva da Sra. Luce. Não queremos que lhe aconteça nada. - Tia Martha... - começou por dizer o jovem, com voz trémula. Ela deixou de fungar. - Eu sei, querido. Sr. Royce, talvez eu sempre desconfiasse de que o Sr. Weeks... A notícia de que tinha sido descoberto um cofre num esconderijo na casa de Verão de Barney Haskell foi, para Bob Kinellen, o dobre a finados de qualquer esperança para conseguir que Jimmy Weeks fosse ilibado. Até o sogro de Kinellen, o sempre calmo Anthony Bartlett, começava nitidamente a

admitir o inevitável. Na terça-feira de manhã, o procurador-geral Royce solicitara, e isso fora-lhe concedido, que o intervalo para o almoço fosse alargado a uma hora. Bob desconfiava do significado da manobra. Martha Luce, uma testemunha da defesa, e uma das mais credíveis por causa do seu comportamento tímido e sério, estava a ser pressionada. Se Haskell fizera uma cópia dos livros que guardara, o depoimento de Luce, atestando sob juramento a exatidão dos registos de Jimmy, provavelmente seria como uma arma apontada à sua cabeça. Se Martha Luce se tornasse testemunha da acusação, em troca de imunidade, estaria tudo perdido. Bob Kinellen estava sentado em silêncio a olhar para tudo o que havia na sala em vez de se virar para o seu cliente. Sentia um enorme cansaço, como se tivesse um peso em cima dele, e perguntou a si mesmo em que altura se apossara dele. Recordando os últimos dias, compreendeu subitamente. «Foi quando entreguei uma ameaça contra a minha própria filha», disse para si mesmo. Durante onze anos fora capaz de se manter fiel à lei. Jimmy tinha direito a uma defesa, e a sua tarefa era evitar que Jimmy fosse acusado. Fê-lo por meios legais. Se outros meios estavam a ser usados, ele não sabia nem queria saber. Mas, naquele julgamento, passara a fazer parte do processo de tornear a lei. Weeks dissera-lhe há pouco qual o motivo que o levara a insistir na presença da Sra. Wagner no júri: ela tinha o pai na prisão, na Califórnia. Há vinte anos assassinara uma família inteira de campistas no Parque Nacional de Yosemite. Sabia que ele tencionava reter a informação de que a jurada Wagner tinha o pai na prisão e incluíra esse fato no apelo de Weeks. Sabia, também, que era imoral. Nunca mais se meteria em terreno escorregadio. Tinha ultrapassado tudo isso. A vergonha profunda que sentira ao ouvir o grito de aflição de Robin quando lutava com Kerry ainda o dilacerava. «Como é que Kerry explicara aquilo a Robin? O teu pai entregava uma ameaça do cliente contra ti? O cliente do teu pai foi o homem que ordenou a um vadio que te aterrorizasse na semana passada?» Jimmy Weeks tinha pavor da prisão. A perspectiva de ser preso era-lhe insuportável. Faria qualquer coisa para o evitar. Era óbvio que Jimmy estava muito perturbado. Almoçaram na sala privada de um restaurante a alguns metros da sala de audiências. Depois de

fazer os pedidos, Jimmy disse abruptamente: - Não quero que nenhum dos dois fale em acordo. Entendem? - Bartlett e Kinellen esperaram sem responder. - Na sala do júri, não creio que possamos contar com o fato de a esposa doente se manter firme. Podia ter-lhe dito isso, pensou Bob. «Não queria falar mais disso. Se o seu cliente subornara aquele jurado, fora sem o seu conhecimento», tranquilizou-se. «E Haskell foi a vítima de um ataque», zombou uma voz interior. - Bob, os meus informadores dizem-me que o agente do xerife encarregado do júri lhe deve um favor - disse Weeks. - De que está a falar, Jimmy? - Bob Kinellen brincava com a faca da salada. - Sabe do que estou a falar. Livrou o filho dele de um grande sarilho. Ele está grato. - E...? - Bob, penso que o agente do xerife tem de dizer àquela dama, a Wagner com cara de ameixa seca, toda nervosa, que o paizinho dela, o assassino, vai dar belos cabeçalhos nos jornais a menos que ela apresente uma dúvida razoável quando este caso for analisado pelo júri. «Deita-te com cães e acordarás com pulgas», dissera-lhe Kerry antes de Robin nascer.» - Jimmy, já temos motivos para um novo julgamento - porque ela não revelou o fato. - É o nosso trunfo. Não precisamos de levar isto mais longe. - Bob lançou um olhar ao sogro. - Anthony e eu estamos a fazer tudo para não comunicar isso ao Tribunal no ponto em que as coisas estão. Podemos alegar que apenas nos apercebemos depois de terminado o julgamento. Mesmo que seja condenado, sairá sob caução, e depois vamos adiando. - Não basta, Bobby. Desta vez tem de se arriscar. Tenha uma conversa amigável com o agente do xerife. Ele escutará. Falará com a senhora que já está numa situação difícil por ter mentido durante o interrogatório. Depois ficamos com um júri perturbado, se não se pronunciar pela absolvição. E então vamos adiando enquanto vocês os dois pensam numa forma de garantir que para a próxima vez conseguiremos a ilibação. O empregado voltou com os aperitivos. Bob Kinellen pedira caracóis, uma especialidade da casa que muito apreciava. Foi apenas quando terminou

e o empregado tirava o prato que se apercebeu que não saboreara nada. «Jimmy não é o único que está a ser encurralado», pensou. «Eu estou com ele.» Kerry voltou para o gabinete depois de receberem o telefonema de Sir Morgan. Agora estava convencida de que Arnott tinha aprendido irrevogavelmente alguma ligação com a morte de Suzanne Reardon. Mesmo assim, porém, teria de aguardar que ele estivesse sob a custódia do FBI e ela e Frank Green tivessem oportunidade de o interrogar. Havia um monte de recados em cima da secretária, um dos quais, de Jonathan, estava assinalado com «URGENTE». Deixara o número privado do gabinete. Telefonou-lhe imediatamente. - Obrigado por teres ligado, Kerry. Tenho de ir a Hackensack e quero falar contigo. Posso oferecer-te o almoço? Há algumas semanas, começara a conversa com «Posso oferecer-lhe o almoço, juíza?» Kerry percebeu que a omissão nesse dia não era acidental. Jonathan não era pessoa para rodeios. Se o fracasso político da sua investigação custasse a Frank Green a nomeação, bem podia esquecer um cargo de juiz, por mais justificações que tivesse. Aquilo era a política, e, além disso, havia muitas outras pessoas altamente qualificadas que ansiavam pela colocação. - Certamente, Jonathan. - No Solari's, à uma e meia. Tinha a certeza de que sabia qual era o motivo do telefonema. Soubera do Dr. Smith e estava preocupado com ela e com Robin. Marcou o número do gabinete de Geoff. Estava a comer uma sanduíche sentado à secretária. - Ainda bem que estou sentado - disse-lhe ele quando lhe deu informações relacionadas com Arnott. - O FBI tirará fotografias e catalogará tudo o que encontrarem na casa de Catskills. Morgan disse que ainda não tinham decidido se levariam tudo para um armazém ou se convidariam todas as pessoas que foram roubadas para irem identificar os objetos no local. Todavia, fazem isso, quando Green e eu formos falar com Arnott, queremos que a Sra. Reardon vá também para identificar a moldura. - Pedir-lhe-ei que adie a angioplastia por uns dias. Kerry, um dos nossos sócios esteve esta manhã no Tribunal Federal. Diz-me que Royce solicitou mais uma hora para o intervalo do almoço. Consta que talvez ofereça

imunidade à contabilista de Jimmy Weeks. Não vai correr o risco de perder outra testemunha fundamental fazendo jogo duro. - Então está no ponto mais alto? - Precisamente. - Telefonou a Skip por causa da carta de Smith. - Logo depois de ter falado consigo. - Qual foi a reação dele? - Começou a chorar. - A voz de Geoff ficou rouca. - Eu também. Ele vai sair, Kerry, e tudo graças a si. - Não, engana-se. Graças a si e a Robin. Estava prestes a abandoná-lo. - Falaremos disso noutra ocasião. Kerry. Deidre Reardon está no outro telefone. Tenho tentado entrar em contato com ela. Falarei consigo mais tarde. Não quero que fiquem sozinhas em casa esta noite, você e Robin. Antes de Kerry sair para se ir encontrar com Jonathan, marcou o número do telefone celular de Joe Palumbo. Atendeu ao primeiro toque. - Palumbo. - Fala Kerry, Joe. - O intervalo terminou. Robin já entrou. Estou parado em frente da entrada principal, que é a única porta que não está fechada à chave. Levo-a de carro para casa e fico com ela e a ama. - Fez uma pausa. - Não se preocupe, mamãe, tomarei conta do seu bebé. - Eu sei. Obrigada, Joe. Estava na hora de se encontrar com Jonathan. Quando saiu apressadamente para o corredor e correu para a porta do elevador que estava prestes a fechar-se, Kerry continuou a pensar no alfinete desaparecido. Tinha qualquer coisa de tão familiar. As duas partes. A flor e o botão, como uma mãe e um filho. Uma mãe e um bebé... por que razão parecia recordar-lhe alguma coisa?, interrogou-se. Jonathan já estava sentado à mesa, a beber lentamente uma água gasosa. Levantou-se quando a viu entrar. O abraço rápido, familiar, foi tranquilizador. - Minha jovem, pareces muito cansada disse. Ou será muito tensa? Sempre que lhe falava assim, Kerry sentia e recordava o calor do tempo em que o pai era vivo, e sentiu uma enorme gratidão por Jonathan ter sido durante muitos anos, para ela, um substituto do pai. - Até agora, tem sido um dia em cheio - disse ela quando se sentou. -

Soube o que aconteceu ao Dr. Smith? - Grace telefonou-me. Ouviu a notícia quando tomava o pequenoalmoço às dez horas. Parece mais uma obra de Weeks. Estamos muito preocupados com Robin. - Também eu. Mas Joe Palumbo, um dos nossos investigadores, está em frente da escola. Ficará com ela até eu chegar a casa. O empregado estava próximo da mesa. - Vamos pedir - sugeriu Kerry -, e depois dou-lhe as novidades. Ambos escolheram sopa de cebola, que trouxeram quase de imediato. Enquanto comiam, falou-lhe da encomenda do Expresso Federal com as jóias e a carta do Dr. Smith. - Fazes-me sentir envergonhado por ter procurado convencer-te a abandonar a investigação, Kerry - disse Jonathan calmamente. - Farei o que puder, mas, se o governador concluir que a nomeação de Green está em perigo, é muito provável que te responsabilize. - Bem, pelo menos há esperança - disse Kerry. - E podemos agradecer a Grace a informação que deu ao FBI. - Contou-lhe o que soubera acerca de Jason Arnott. - Já estou a ver Frank Green a planejar apagar a publicidade negativa sobre Skip Reardon ter sido injustamente processado. Está morto por anunciar que o ladrão que escala paredes e assassinou a mãe de Peale, membro do Congresso, foi capturado por causa de uma informação da esposa do senador Hoover. Vai sair disto como o seu melhor amigo, e quem o pode censurar? Deus sabe que é, provavelmente, o político mais respeitado em Nova Jérsia. Jonathan sorriu. - Podemos sempre exagerar a verdade e dizer que Grace consultou primeiro Green e este insistiu para que fizesse o telefonema. Depois o sorriso desapareceu. - Kerry, em que medida a possível culpabilidade de Arnott no caso Reardon afeta Robin? Há a possibilidade de Arnott ser a pessoa que lhe tirou a fotografia e te enviou? - Impossível. O pai de Robin fez o aviso e, no fundo, admitiu que Jimmy Weeks mandara tirar aquela fotografia. - Qual é o passo seguinte? - Talvez Frank Green e eu levemos Deidre Reardon a Catskills amanhã de manhã, bem cedo, para identificar aquela moldura. Arnott deve estar quase a ser algemado. Por agora, vão mantê-lo na prisão local. Depois, assim que

comecem a associar os objetos roubados a cada um dos assaltos, processá-loão em juízo em diferentes localidades. Suponho que estão ansiosos por julgálo em primeiro lugar pelo assassínio da mãe de Peale, o membro do Congresso. E, claro, se foi responsável pela morte de Suzanne Reardon, vamos querer julgá-lo aqui. - Supõe que ele não fala? - Estamos a mandar folhetos a todos os joalheiros de Nova Jérsia, naturalmente com incidência em Bergen County, visto que tanto Weeks como Arnott vivem aqui. Creio que um desses joalheiros reconhecerá as jóias mais recentes e as relacionará com Weeks e que a bracelete antiga deverá ser de Arnott. Quando foi descoberta no braço de Suzanne, tinha obviamente um fecho novo, e a bracelete é tão fora do vulgar que qualquer joalheiro se lembraria dela. Quanto mais coisas conseguirmos descobrir para defrontar Arnott mais fácil será obrigá-lo a tentar fazer um acordo. - Então tencionas partir de manhã cedo para os Catskills? - Sim. Não volto a deixar Robin sozinha em casa de manhã, mas se, por acaso, Frank quiser ir muito cedo, verei se a ama fica lá em casa. - Tenho uma ideia melhor. Deixa que Robin passe esta noite conosco. Levo-a à escola de manhã, ou, se quiseres, pedes a esse tal Palumbo que a vá buscar. A nossa casa tem um sofisticado sistema de segurança. Tu sabes disso. Eu estarei lá, claro, e não sei se te apercebeste de que até Grace tem uma arma na gaveta da mesinha-de-cabeceira. Ensinei-a a usá-la há anos. Além disso, creio que seria bom para Grace a visita de Robin. Ultimamente, tem andado bastante abatida, e Robin é tão divertida. Kerry sorriu. - Sim, é. - Refletiu por instantes. - Jonathan, isso podia resultar realmente. Tenho de trabalhar noutro caso que vou julgar, e depois quero passar o ficheiro Reardon a pente fino para ver se descubro mais alguma coisa que seja útil quando interrogarmos Arnott. Telefono a Robin quando tiver chegado da escola e falo-lhe do plano. Ela ficará encantada. É perdida por si e por Grace e adora o quarto dos hóspedes cor-de-rosa. - Antes era o teu, lembras-te? - Claro. Como podia esquecer-me? Foi na altura em que disse ao primo de Grace, o paisagista, que era um intrujão. Terminado o intervalo alargado, o procurador Royce regressou ao Tribunal para a sessão da tarde do julgamento dos Estados Unidos contra

James Forrest Weeks. Tinha a convicção de que, por detrás daquela fachada tímida, simples, Martha Luce possuía a memória de um computador. A prova condenatória que apanharia finalmente Jimmy Weeks brotava dela enquanto respondia ao interrogatório suave dos dois assistentes de Royce. «O sobrinho/advogado de Luce», admitiu Royce para consigo mesmo, «tem possibilidades.» Ele insistia que, antes de Martha começar a cantar, o acordo que fez teve de ser assinado e testemunhado. Em troca da cooperação franca, que não cancelaria mais tarde, não seria apresentada contra ela nenhuma acusação civil ou federal, nem naquele momento nem no futuro. O testemunho de Martha Luce, porém, viria mais tarde. O caso da acusação desenrolou-se naturalmente. Nesse dia, a testemunha era um restaurador que, em troca da renovação do arrendamento, admitiu que pagara um bónus de cinco mil dólares por mês ao cobrador de Jimmy. Quando chegou a vez de a defesa fazer o interrogatório, Royce levantava-se constantemente com objeções enquanto Bob Kinellen atacava a testemunha, apanhando-a em pequenos deslizes, forçando-a a admitir que nunca vira efetivamente Weeks tocar no dinheiro, que não podia ter a certeza de que o cobrador não agira por conta própria. «Kinellen é bom», pensou Royce, «é lamentável que desperdice o talento com esta escumalha.» Royce não podia imaginar que Robert Kinellen partilhava o mesmo pensamento no momento em que se dirigia a um júri receptivo. Jason Arnott sentiu que algo errado se passava assim que transpôs a porta da casa de Catskills e se apercebeu de que Maddie não estava lá. «Se Maddie não está aqui e não deixou um bilhete, então está a acontecer alguma coisa. Está tudo acabado», pensou. Quanto tempo faltaria para o apanharem? Pouco tempo, tinha a certeza. De repente, sentiu fome. Precipitou-se para o frigorífico e tirou o salmão fumado que pedira a Maddie que comprasse. Em seguida, pegou nas alcaparras, no queijo amanteigado e na embalagem das tostas. Tinha uma garrafa de Pouilly-Fuissé a arrefecer. Preparou um prato de salmão e encheu um copo de vinho. Levando-os com ele, começou a andar pela casa. «Uma espécie de passeio final», pensou, enquanto avaliava as riquezas em seu redor. A tapeçaria na sala de jantar requintada. OAubusson na sala de estar um privilégio caminhar por cima de tamanha beleza. A escultura de bronze de Chaim Gross, de um corpo esguio segurando uma criança na palma da mão. Gross adorava o tema da mãe com

o menino. Arnott lembrou-se de que a mãe e a irmã de Gross tinham perecido no Holocausto. Precisaria de um bom advogado, claro. Um bom advogado. Mas quem? Um sorriso entortou-lhe os lábios. Conhecia o certo: Geoffrey Dorso, que, durante dez anos, trabalhara tão afincadamente para Skip Reardon. Dorso tinha boa reputação e talvez estivesse ansioso por arranjar um novo cliente, sobretudo um que lhe podia dar provas que o ajudariam a libertar o pobre Reardon. Soou a campainha da porta da rua. Ignorou-a. Soou de novo, depois continuou persistentemente. Arnott mastigou a última tosta, apreciando o sabor delicado do salmão, o sabor acre das alcaparras. Naquele momento, soou a campainha da porta das traseiras. «Cercado», pensou. «Ah, muito bem.» Sabia que um dia aquilo aconteceria. Se tivesse seguido os seus instintos na semana anterior e saído do país... Jason bebeu o último golo de vinho, concluiu que outro copo lhe saberia bem e voltou à cozinha. Lá havia caras em todas as janelas, caras com a expressão agressiva e presumida de homens que têm o direito de exercer o poder. Arnott acenou-lhes com a cabeça e levantou o copo num brinde trocista. Enquanto bebia lentamente, encaminhou-se para a porta das traseiras, abriu-a, depois afastou-se para o lado quando eles entraram de roldão. - FBI, Sr. Arnott - gritaram. - Temos um mandado para revistar a sua casa. - Cavalheiros, cavalheiros - murmurou -, suplico-lhes que tenham cuidado. Aqui há muitos objetos belos, mesmo de valor incalculável. Podem não estar habituados a eles, mas respeitem-nos, por favor. Os vossos pés têm lama? Kerry telefonou a Robin às três e meia. Ela e Alison estavam no computador, disse-lhe Robin, a brincar com um dos jogos que o tio Jonathan e a tia Grace lhe tinham dado. Kerry falou-lhe do plano: - Hoje à noite tenho de trabalhar até tarde e partir às sete amanhã. Jonathan e Grace gostariam que ficasses com eles, e eu fico descansada por saber que estás lá. - Por que é que o Sr. Palumbo estacionou o carro em frente da escola e me trouxe a casa e está lá fora agora? É porque corro mesmo perigo? Kerry tentou parecer positiva. - Detesto desapontar-te, Rob, mas é apenas uma precaução. O caso está

quase concluído. - Ótimo. Gosto do Sr. Palumbo, e, está bem, fico com a tia Grace e o tio Jonathan. Também gosto deles. E a mãe? O Sr. Palumbo ficará em frente da casa por tua causa? - Chegarei tarde a casa, e, quando lá chegar, os polícias locais passarão por aí de quinze em quinze minutos. É tudo o que preciso. - Tem cuidado, mãezinha. - Por instantes, a fanfarronice de Robin desapareceu, e falou como uma menina assustada. - Tem também cuidado, querida. Faz os trabalhos da escola. - Faço. E vou pedir à tia Grace se posso ver de novo os álbuns de fotografias antigas. Adoro olhar para aquelas roupas e aqueles penteados antigos, e, se bem me lembro, estão dispostas pela ordem em que foram tiradas. Pensei que talvez pudesse tirar algumas ideias, uma vez que o nosso próximo trabalho na aula de fotografia é criar um álbum de família de forma que conte realmente uma história. - Sim, há umas fotografias excelentes. Antes gostava imenso de folhear aqueles álbuns, quando tomava conta da casa recordou Kerry. Costumava contar para saber quantos criados diferentes tiveram desde que a tia Grace e o tio Jonathan eram crianças. Ainda penso nelas às vezes, quando empurro o aspirador ou dobro a roupa lavada. Robin soltou um riso abafado. - Bem, não te modifiques. Um dia talvez ganhes a lotaria. Adoro-te, mãezinha. Às cinco e meia, Geoff telefonou do carro. - Não adivinha onde estou. - Não esperou por uma resposta. - Estive no Tribunal esta tarde. Jason Arnott tem tentado contactar-me. Deixou um recado. - Jason Arnott! - exclamou Kerry. - Sim. Quando lhe telefonei há alguns minutos, disse que precisava falar comigo sem demora. Quer que eu aceite o caso. - Representá-lo-ia? - Não poderia porque ele está ligado ao caso Reardon, e não o faria mesmo que pudesse. disse-lhe isso, mas mesmo assim insiste em falar comigo. - Geoff! Não o deixe contar-lhe nada que seja prerrogativa de advogado/cliente.

Geoff riu-se por entre os dentes. - Obrigado, Kerry. Jamais me lembraria de tal coisa. Kerry riu-se também, depois explicou o plano que concebera para Robin passar a noite. - Vou ficar aqui a trabalhar até altas horas da noite. Quando sair de casa, informo a Polícia de Hohokus de que vou a caminho. Está tudo preparado. - Agora tenha cuidado. - O tom de voz tornou-se firme. - Quanto mais penso na sua ida a casa de Smith ontem à noite mais me convenço de que foi uma péssima ideia. Podia estar lá no momento em que o mataram, tal como Mark Young foi abatido ao mesmo tempo que Haskell. Geoff desligou depois de ter prometido telefonar para dar notícias a Kerry sobre o seu encontro com Arnott. Eram oito horas e Kerry não tinha terminado o trabalho que precisava de fazer com vista à preparação de um caso que tinha a seguir. Depois, uma vez mais, pegou no volumoso ficheiro Reardon. Olhou atentamente para as fotografias do local do crime. Na carta, o Dr. Smith declarara ter entrado na casa e deparado com o corpo de Suzanne. Kerry fechou os olhos só de pensar que um dia podia encontrar Robin naquele estado. Smith disse que tirara deliberadamente o cartão «Let Me Call You Sweetheart» porque estava certo de que Skip matara Suzanne num acesso de raiva e ciúme e não queria que ele escapasse à sentença máxima, que saísse com uma sentença reduzida. Acreditara naquilo que Smith escrevera «a maioria das pessoas não mente quando tenciona suicidar-se», pensou. «E aquilo que o Dr. Smith escrevera também corrobora a história de Skip Reardon. Por isso agora», refletiu Kerry, «o assassino é a pessoa que visitou aquela casa no espaço de tempo em que Skip saiu, por volta das seis e meia, e o médico chegou, por volta das nove horas.» «Jason Arnott? Jimmy Weeks? Qual deles matara Suzanne?», perguntou a si mesma. Às 9:30, Kerry fechou o ficheiro. Não encontrara nenhuma perspectiva nova no plano para interrogar Arnott no dia seguinte. «Se estivesse no lugar dele», pensou, «afirmaria que Suzanne me dera a moldura naquele dia porque lhe parecia que umas pérolas estavam a soltar-se e queria que eu a mandasse arranjar. Depois, quando foi encontrada morta, não queria ser implicado numa investigação de um homicídio, por isso guardei a moldura.» Uma história como aquela podia ser sustentada com facilidade no julgamento

porque era completamente plausível. As jóias, porém, eram uma história diferente. Tudo ia dar às jóias. Se ela pudesse provar que Arnott tinha dado a Suzanne aquelas peças antigas e valiosas, era-lhe impossível afirmar que era um presente de pura amizade. Às dez horas, saiu do gabinete já silencioso e dirigiu-se ao parque de estacionamento. Apercebendo-se de repente de que estava esfomeada, foi de carro até ao restaurante Arena, mesmo ao virar da esquina, e comeu um hambúrguer com batatas fritas e bebeu um café. «Substituindo o café por uma coca-cola, teríamos a refeição favorita de Robin», pensou, suspirando interiormente. «A mãe e o menino... A mãe e o menino...» - Por que é que aquela frase monótona não parava de ecoar na sua cabeça?, interrogou-se. Parecia que havia algo de errado, de muito errado. Mas que era? Ela devia ter telefonado e dado as boas-noites a Robin antes de sair do gabinete, apercebeu-se subitamente. Por que não o fizera? Kerry comeu à pressa e meteu-se no carro. Eram 10:40, tarde de mais para telefonar. Saía naquele momento do parque de estacionamento quando tocou o telefone do carro. Era Jonathan. - Kerry - disse, com voz baixa e tensa -, Robin está com Grace. Ela não sabe que estou a telefonar. Não queria que eu te preocupasse. Mas, depois de adormecer, teve um pesadelo horrível. Creio que devias vir. Tem sucedido muita coisa. Ela precisa de ti. - Vou já para aí. - Kerry mudou o piscapisca da direita para a esquerda, carregou com o pé no acelerador para ir ter o mais rapidamente com a filha. Foi uma viagem longa e penosa de Nova Jérsia até aos Catskills. Começou a cair uma chuva gelada perto de Middletown e o trânsito movia-se muito devagar. O reboque virado de um trator que bloqueou todas as vias acrescentou mais uma hora ao trajeto já sinuoso. Eram 9:45 quando Geoff Dorso, exausto e esfomeado, chegou à esquadra de Ellenville, onde Jason Arnott estava detido. Uma equipa de agentes do FBI esperava para interrogar Arnott assim que tivesse tido oportunidade de falar com Geoff. - Estão a desperdiçar o vosso tempo à minha espera - dissera-lhes Geoff. Eu não posso ser o advogado dele. Ele não lhes disse? Arnott, algemado, foi escoltado até à sala de conferência. Geoff não vira o homem nos cerca de onze anos que se tinham seguido à morte de Suzanne.

Nessa altura, constara que mantinha uma relação com Suzanne que combinava amizade e negócios. Ninguém, incluindo Skip, jamais suspeitara de que tivesse outro interesse por ela. Geoff observou atentamente o homem. Arnott tinha um rosto mais cheio do que Geoff recordava, mas ainda tinha a mesma expressão polida, cansada da vida. As rugas em volta dos olhos indicavam uma grande fadiga, mas a camisa de gola alta, de caxemira, ainda parecia bem debaixo do casaco de tweed. «Fidalgo rural, conhecedor», pensou Geoff. «Mesmo nestas circunstâncias, conserva a pose.» - Ainda bem que veio, Geoff - disse Arnott com boa disposição. - Realmente, não sei por que estou aqui replicou Geoff. - Como o preveni pelo telefone, agora está ligado ao caso Reardon. O meu cliente é Skip Reardon. Posso informá-lo de que nada do que me diga é comunicação privilegiada. Já lhe leram os seus direitos. Não sou seu advogado. Repetirei tudo o que disser ao promotor, porque tenciono tentar colocá-lo na casa dos Reardon na noite da morte de Suzanne. - Oh, estive lá. Foi por isso que o mandei chamar. Não se preocupe. Não é informação privilegiada. Tenciono admitir isso. Pedi-lhe que viesse porque posso testemunhar a favor de Skip. Mas, em troca, assim que ele for ilibado, quero que me represente. Nessa altura, não haverá conflito de interesses. - Olhe, não o vou representar - disse Geoff peremptoriamente. - Passei dez anos da minha vida a representar um homem inocente que foi para a cadeia. Se matou Suzanne ou sabe quem foi, e deixou Skip a apodrecer naquela cela todo este tempo, preferia morrer queimado no Inferno do que levantar um dedo para o ajudar. - Está a ver?, é esse tipo de determinação que quero contratar. - Arnott suspirou. - Muito bem. Tentemos desta maneira. É advogado de defesa de Direito Criminal. Sabe quem são os bons, quer sejam de Nova Jérsia ou de qualquer outro lugar. Prometa-me que descobre o melhor advogado que o dinheiro possa comprar, e eu digo-lhe o que sei sobre a morte de Suzanne Reardon... pela qual, por acaso, não sou responsável. Geoff fitou o homem por instantes, considerando a proposta. - Está bem, mas, antes de dizermos o que quer que seja, quero uma declaração assinada e testemunhada de que qualquer informação que me dê não será privilegiada e de que a posso usar do modo que achar adequado para ajudar Skip Reardon. - Certamente.

Os agentes do FBI tinham uma estenógrafa. Ela registou a curta declaração de Arnott. Depois de ele e duas testemunhas a terem assinado, disse: - É tarde e foi um dia muito longo. Tem estado a pensar no advogado que devo ter? - Sim - disse Geoff. - George Symonds, de Trenton. É um excelente advogado em julgamentos e um ótimo negociador. - Vão tentar condenar-me por homicídio deliberado no caso da morte da Sra. Peale. Juro que foi um acidente. - Se houver uma forma de o reduzir para assassínio durante um assalto, ele descobre-a. Pelo menos, não enfrentaria a pena de morte. - Telefone-lhe agora. Geoff sabia que Symonds vivia em Princeton, tendo sido convidado uma vez para jantar em sua casa. Lembrava-se também de que o telefone de Symonds estava registado no nome da mulher. Usando o telefone celular, fez a chamada na presença de Arnott. Eram dez e meia. Passados dez minutos, Geoff guardou o telefone. - Muito bem, tem um advogado de primeira. Agora fale. - Tive o azar de estar na casa dos Reardon na altura em que Suzanne morreu - disse Arnott, subitamente com uma expressão séria. - Suzanne era tão descuidada com as jóias, e algumas eram belas, que a tentação foi demasiada. Sabia que Skip devia estar na Pensilvânia a tratar de negócios, e Suzanne dissera-me que tinha um encontro com Jimmy Weeks nessa noite. Por estranho que pareça, ela gostava mesmo dele. - Ele estava na casa enquanto lá esteve? - Arnott abanou a cabeça. - Não, combinaram que ela iria de carro ao centro comercial em Pearl River, deixaria lá o carro e encontrar-se-ia com ele na limusina. Percebi que ela se ia encontrar com Jimmy ao princípio da noite. Obviamente, estava enganado. Havia algumas luzes acesas no rés-do-chão quando cheguei à casa de Suzanne, mas era normal. Acendiam-se automaticamente. Das traseiras consegui ver que as janelas do quarto principal estavam abertas de par em par. Era fácil trepar, uma vez que o telhado do segundo andar daquela casa muito moderna tem uma inclinação, chegando quase ao solo. - A que horas foi? - Às oito em ponto. Ia para um jantar em Cresskill; uma das razões para a minha longa e bem sucedida carreira é que, quase sempre, conseguia

arranjar uma série impecável de testemunhas para atestarem o meu paradeiro em determinadas noites. - Entrou na casa... - instigou Geoff. - Sim. Não se ouvia nada, por isso concluí que tinham saído conforme o planejado. Não fazia a menor ideia de que Suzanne ainda estava no rés-dochão. Atravessei a sala de estar da suite, depois entrei no quarto e aproximeime da mesinha-de-cabeceira. Quando passei, só tinha visto a moldura com o retrato e não sabia ao certo se era uma peça Fabergé autêntica; obviamente, nunca quisera mostrar demasiado interesse por ela. Peguei nela e examinavaa quando ouvi a voz da Suzanne. Gritava com alguém. Foi muito desconcertante. - Que dizia? - Qualquer coisa do género: «Tu deste-mas e são minhas. Agora vai-te embora. Enfadas-me.» «Tu deste-mas e são minhas. As jóias», pensou Geoff. - Então Jimmy Weeks deve ter alterado o plano e foi buscá-la na casa concluiu ele. - Oh, não. Ouvi um homem gritar: «Preciso delas», mas era uma voz muito fina para ser Jimmy Weeks, e certamente não era o pobre Skip. Arnott suspirou. - Nessa altura, meti a moldura no bolso, quase inconscientemente. Vim a descobrir que era uma cópia horrível, mas o retrato de Suzanne era um regalo, por isso deu-me prazer ficar com ela. Era tão comunicativa. Sinto saudades dela. - Meteu a moldura no bolso - insistiu Geoff. - E, repentinamente, percebi que alguém subia as escadas. Eu estava no quarto, lembra-se?, por isso saltei para dentro do armário de Suzanne e procurei esconder-me atrás dos vestidos compridos. Não fechara a porta por completo. - Viu quem entrou? - Não, o rosto não. - Que fez essa pessoa? - Foi direita à caixa das jóias, remexeu as bugigangas de Suzanne e tirou uma coisa. Depois, aparentemente, não encontrando tudo o que queria, começou a vasculhar todas as gavetas. Parecia frenético. Uns minutos depois, ou encontrou aquilo que procurava ou desistiu. Felizmente, não esquadrinhou o armário. Esperei tanto quanto pude, e, em seguida, sabendo que algo terrível estava a passar-se, desci sorrateiramente as escadas. Foi quando a vi.

- Havia muitas jóias naquela caixa. Que levou o assassino de Suzanne? - Segundo aquilo que ouvi no julgamento, tenho a certeza de que deve ter sido a flor e o botão... o alfinete antigo com diamantes, você sabe. É realmente uma bela peça: uma peça única. - Quem deu a Suzanne esse alfinete também lhe deu a bracelete antiga? - Oh, sim. Na verdade, penso que talvez andasse também à procura da bracelete. - Sabe quem deu a bracelete e o alfinete a Suzanne? - Claro que sei. Suzanne contava-me quase tudo. Agora, preste atenção, não posso jurar que ele estava em casa naquela noite, mas faz sentido, não faz? Percebe aonde quero chegar? O meu depoimento ajudará a apanhar o verdadeiro assassino. É por isso que devia ter alguma consideração, não concorda? - Sr. Arnott, quem deu a bracelete e o alfinete a Suzanne? - Arnott sorriu, divertido. - Não vai acreditar em mim quando lhe disser. Kerry demorou vinte e cinco minutos até Old Tappan. Cada rotação do volante parecia interminável. Robin, a corajosa e pequenina Robin, que tentava sempre esconder como ficava desapontada quando Bob se libertava dela, como conseguira esconder o pavor que sentia acabara por ser demais para ela. «Nunca a devia ter deixado», pensou Kerry. «Nem mesmo com Jonathan e Grace.» Jonathan parecia tão estranho no telefone, pensou Kerry. «A partir de agora, eu tomarei conta da minha filha», jurou Kerry. «A mãe e o menino»... lá estava ela outra vez, aquela frase presa no espírito. Entrava em Old Tappan. Faltavam apenas mais alguns minutos. Robin tinha parecido tão satisfeita com a perspectiva de ficar com Grace e Jonathan e folhear os álbuns de fotografias. Os álbuns de fotografias. O alfinete com a flor e o botão. Ela já o vira. Em Grace. Há anos, quando Kerry começou a trabalhar para Jonathan. Grace costumava usar a jóia nessa altura. Muitas fotografias no álbum mostravamna com ela. Grace gracejara quando Kerry admirava aquele alfinete. Chamava-lhe «a mãe e o menino».

Suzanne Reardon usava o alfinete de Grace naquela fotografia no jornal! Isso significava... Jonathan? Teria sido capaz de lho dar? Lembrou-se então de que Grace lhe dissera que pedira a Jonathan que colocasse todas as suas jóias no cofre. «Não o posso pôr sem ajuda, e não o posso tirar sem ajuda, e ficaria preocupada se ainda estivesse cá em casa.» «Eu disse a Jonathan que ia visitar o Dr. Smith», compreendeu Kerry. «Ontem à noite, depois de chegar a casa, disse a Jonathan que pensava que Smith ia ter um colapso nervoso», disse para si mesma. «Oh, meu Deus! Ele deve ter matado Smith.» Kerry parou o carro. Estava em frente da bela residência de pedra calcária. Abriu a porta do lado do condutor e correu pelos degraus acima. Robin estava com um assassino. Kerry não ouviu o toque fraco do telefone no carro quando carregou com o dedo na campainha da porta. Geoff tentou telefonar para a casa de Kerry. Como ninguém atendeu, tentou ligar para o telefone no carro. Onde estava ela?, interrogou-se com inquietação. Marcava o número do telefone do gabinete de Frank Green quando o guarda levou Arnott. O gabinete do promotor está fechado. Se for uma emergência, marque... Geoff praguejou enquanto marcava o número de emergência. Robin estava com os Hoover. Onde estava Kerry? Por fim, alguém respondeu na linha de emergência. - Fala Geoff Dorso. Tenho de contactar com Frank Green. Diz respeito a um caso de homicídio desvendado há pouco. Dê-me o número de casa. - Posso dizer-lhe que não está lá. Foi chamado por causa de um homicídio em Oradell, senhor. - Pode pôr-me em contato com ele? - Posso. Espere um pouco. - Passaram três minutos até Green estar em linha. - Geoff, estou a tratar de um assunto. É bom que seja uma coisa importante. - É. Muito importante. Está relacionado com o caso Reardon, Frank. Robin Kinellen vai passar a noite em casa de Jonathan Hoover. - Kerry contou-me. - Frank, soube há instantes que Jonathan Hoover deu aquela jóia antiga a Suzanne Reardon. Tinha uma relação com ela. Penso que é o nosso assassino,

e Robin está com ele. Seguiu-se uma longa pausa. Depois, numa voz calma, Frank Green disse: - Estou em casa de um homem de idade que se especializou no restauro de joalharia antiga. Foi assassinado à tardinha. Não há sinais de roubo, mas o filho diz-me que o Rolodex com os nomes dos clientes desapareceu. Vou mandar já a Polícia local para a casa dos Hoover. Jonathan abriu a porta a Kerry. A casa estava pouco iluminada e muito silenciosa. - Ela acalmou - disse ele. - Está tudo bem. Os punhos de Kerry estavam escondidos nos bolsos do casaco, cerrados do medo e da raiva. No entanto, conseguiu sorrir. - Oh, Jonathan, é um incómodo para si e para Grace. Devia ter calculado que Robin ficaria assustada. Onde está? - Agora está de novo no quarto dela. A dormir profundamente. «Estou louca?», interrogou-se Kerry enquanto seguia Jonathan pelas escadas acima. «Será que a minha imaginação ficou descontrolada? Ele parece tão normal.» Aproximaram-se da porta do quarto de hóspedes, o quarto cor-de-rosa, como Robin lhe chamava, por causa das paredes, das cortinas e da colcha rosaclaro. Kerry abriu a porta. Com a luz de um pequeno candeeiro na mesinha-decabeceira, pôde ver Robin deitada de lado, na posição fetal habitual, o comprido cabelo castanho solto na almofada. Com dois passos, Kerry pôs-se ao lado da cama. A face de Robin estava na palma da mão em concha. Respirava calmamente. Kerry levantou os olhos para Jonathan. Ele estava aos pés da cama, a fitá-la. - Estava tão perturbada. Depois de chegares aqui, decidiste levá-la para casa - disse ele. - Vês?, o saco com a roupa da escola e os livros está arrumado. Eu levo-to. - Jonathan, não houve nenhum pesadelo. Ela não acordou, pois não? disse Kerry num tom uniforme. - Não - disse ele com indiferença. - E seria mais fácil para ela se não acordasse agora. Na luz fraca do candeeiro, Kerry viu que empunhava uma arma.

- Jonathan, que está a fazer? Onde está Grace? - Grace dorme profundamente. Achei que seria melhor assim. Às vezes, digo que é necessário um dos sedativos mais fortes para ajudar a aliviar a dor. Dissolvo-o em cacau quente que lhe levo à cama todos os dias. - Jonathan, que quer? - Quero continuar a viver como vivemos até agora. Quero ser presidente do senado e amigo do governador. Quero passar os anos que me restam com a minha mulher, que ainda amo de verdade. Às vezes, os homens extraviamse, Kerry. Fazem coisas insensatas. Deixam que mulheres jovens e belas os adulem. Talvez fosse susceptível por causa do problema de Grace. Sabia que era uma loucura da minha parte; sabia que era um erro. Depois só quis recuperar a jóia que dera sem pensar àquela rapariga vulgar, Reardon, mas não queria desfazer-se dela. Brandiu o revólver. - Ou acordas Robin ou pega nela. Já não há tempo. - Jonathan, que vai fazer? - Apenas aquilo que devo fazer, e com muito pesar. Kerry, Kerry, por que pensaste que tinhas de esgrimir contra moinhos de vento? Que importância tinha que Skip estivesse na prisão? Que importância tinha que o pai de Suzanne afirmasse que a bracelete era um presente dele que me podia ter prejudicado terrivelmente? Tudo tinha de ser assim. Eu devia continuar a servir o Estado que amo e a viver com a mulher que amo. Já bastava a penitência de saber que Grace tinha descoberto com tanta facilidade a minha traição. Jonathan sorriu. - É maravilhosa. Mostrou-me aquela fotografia e disse: «Não te faz lembrar o meu alfinete da flor e do botão? Gostava de o voltar a usar. Por favor, vai buscá-lo ao cofre, querido.» Ela sabia, e eu sabia que ela sabia, Kerry. E, subitamente, além de ser um idiota romântico de meia-idade... senti-me aviltado. - E matou Suzanne. - Mas apenas porque não só se recusou a devolver as jóias da minha mulher como também teve o descaramento de me dizer que tinha um novo e interessante namorado, Jimmy Weeks. Meu Deus, o homem é um rufia. Um vigarista. Kerry, acorda Robin ou leva-a enquanto dorme. - Mãezinha. - Robin despertava. Os olhos abriram-se. Sentou-se. -

Mãezinha. - Sorriu. - Por que estás aqui? - Sai da cama, Rob. Vamos embora. «Ele vai matar-nos», pensou Kerry. «Vai dizer que Robin teve um pesadelo e que a vim buscar.» Abraçou Robin. Pressentindo que se passava algo de errado, Robin encolheu-se contra o corpo dela. - Mãezinha? - Está tudo bem. - Tio Jonathan? - Robin vira a arma. - Não digas mais nada, Robin - disse Kerry calmamente. «Que posso fazer?», pensou. «Está louco. Está descontrolado. Se Geoff não tivesse ido encontrar-se com Jason Arnott. Geoff teria ajudado. Geoff teria ajudado de qualquer maneira.» Enquanto desciam as escadas, Jonathan disse serenamente: - Dá-me as chaves do teu carro, Kerry. Acompanho-as até lá fora, e depois tu e Robin entram para a mala. «Oh, meu Deus», pensou Kerry. «Vai matar-nos e levar-nos para algum lugar e abandonar o carro... e parecerá um ataque. Weeks será responsabilizado.» Jonathan falou de novo enquanto atravessavam o vestíbulo: - Lamento muito, Robin. Agora abre a porta devagar, Kerry. - Kerry inclinou-se para beijar Robin. - Rob, quando eu me virar, foge - sussurrou. - Corre para a porta mais próxima e não pares de gritar. - A porta, Kerry insistiu. Ela abriu-a lentamente. Ele apagara as luzes da varanda para que a iluminação fosse apenas a luz fraca projetada pela torchere no fundo da alameda. - A minha chave está no bolso - disse. Virou-se devagar, depois gritou: Corre, Robin! Nesse mesmo instante, precipitou-se para o vestíbulo, na direção de Jonathan. Ouviu a arma a disparar quando se lançou contra ele, depois sentiu uma dor intensa na fronte, seguida por ondas de tontura. O pavimento de mármore do vestíbulo subiu repentinamente para a receber. Apercebeu-se de uma cacofonia de sons em redor dela: outro disparo. Robin gritava por socorro, a voz dissipou-se ao longe. Sirenas aproximaram-se. Depois, subitamente, apenas as sirenas e o grito de Grace:

- Desculpa, Jonathan. Desculpa. Não podia permitir que fizesses isto disse ela. - Isto não. Não a Kerry e a Robin. Kerry conseguira levantar-se e comprimiu a fronte com a mão. Corrialhe sangue pela cara abaixo, mas a tontura abrandava. Quando olhou para cima, viu Grace deslizar da cadeira-de-rodas e postar-se no chão, os dedos inchados deixando cair a pistola. Estreitou o corpo do marido nos braços. Terça-feira, 6 de Fevereiro A sala de audiências estava cheia para a cerimónia de juramento da assistente do promotor, Kerry McGrath, para ingresso na magistratura. O sussurro festivo de vozes baixou até ficar um silêncio absoluto quando a porta dos aposentos do juiz se abriram e um cortejo solene de juizes com togas pretas entrou para acolher a nova colega. Kerry afastou-se calmamente do lado da câmara e tomou o seu lugar à direita do banco enquanto os juizes se encaminhavam para as cadeiras reservadas para eles à frente dos convidados. Olhou para a assembleia. A mãe e Sam tinham vindo de avião para a cerimónia. Estavam sentados com Robin, que estava muito direita na beira da cadeira, com os olhos muito abertos da excitação. Quase não havia vestígios das lacerações que as tinham levado àquele encontro fatídico com o Dr. Smith. Geoff estava na fila a seguir, com a mãe e o pai. Kerry recordou quando ele fora a correr ter com ela ao hospital no helicóptero do FBI. Fora ele que reconfortara uma Robin histérica e depois a levara para casa da família quando o médico insistiu para que Kerry passasse lá a noite. Reprimiu as lágrimas quando viu a expressão do seu rosto quando ele lhe sorriu. Margaret, a velha amiga, a melhor amiga, estava lá, cumprindo a promessa de que faria parte daquele dia. Kerry pensou em Jonathan e Grace. Planejavam estar presentes também. Grace enviara um bilhete: Vou para a Carolina do Sul viver com a minha irmã. Culpo-me por tudo o que aconteceu. Sabia que Jonathan estava envolvido com outra mulher. Também sabia que não duraria muito. Se ao menos tivesse ignorado aquela fotografia em que ela trazia o meu alfinete, nada disto teria sucedido. Não queria saber da jóia. Foi a minha forma de avisar Jonathan para a deixar. Não queria que a carreira dele fosse destruída por um escândalo. Por favor, perdoa-me e perdoa Jonathan se puderes. «Posso?», interrogou-se Kerry. «Grace salvou-me a vida, mas Jonathan

ter-me-ia matado, e a Robin, para se salvar. Grace sabia que ele tivera uma relação com Suzanne e talvez a tivesse assassinado, no entanto deixou Skip a apodrecer na prisão todos aqueles anos.» Skip, a mãe e Beth estavam em algum lugar no meio da multidão. Skip e Beth iam casar-se na semana seguinte; Geoff acompanharia o noivo. Era usual alguns amigos íntimos ou colegas fazerem pequenos discursos antes do juramento. Frank Green foi o primeiro. - Procurando na memória, não consigo lembrar-me de nenhuma pessoa... homem ou mulher... que seja mais qualificada para assumir este alto cargo do que Kerry McGrath. O seu sentido de justiça levou-a a pedir-me que reabrisse um caso de homicídio. Juntos enfrentámos o fato terrível de que um pai vingativo condenara à prisão o marido da filha, enquanto o verdadeiro assassino gozava a liberdade. Nós... «Esta é a pessoa que eu conheço», pensou Kerry. «Limonada de limões.» Mas, no fim, Frank ficara do seu lado. Encontrara-se pessoalmente com o governador e insistira para que o seu nome fosse apresentado ao senado para a confirmação. Frank fora a pessoa que desvendara a ligação entre Jimmy Weeks e Suzanne Reardon. Um dos seus informadores, um valdevinos que fora um pau mandado de Jimmy, deu a resposta. Suzanne estivera de fato envolvida com Jimmy, e ele dera-lhe jóias. Também lhe mandara as rosas naquela noite e devia encontrar-se com ela para o jantar. Como ela não apareceu, ficou furioso e, dominado pela raiva, dissera mesmo que a mataria. Uma vez que Weeks geralmente não fazia ameaças em vão, alguns dos seus homens pensaram que era ele o assassino. Ele sempre receara que, se a sua ligação com ela fosse descoberta, a morte dela lhe seria imputada. Naquele momento, o juiz da sessão, Robert McDonough, discursava; falava do tempo em que Kerry entrou pela primeira vez na sala de audiências, há onze anos, como assistente estagiária do promotor. Parecia tão nova que pensou que era uma universitária com um trabalho nas férias de Verão. «Também era noiva», pensou Kerry com amargura. «Bob era na altura assistente do promotor. Só espero que tenha cabeça para se manter afastado de Jimmy Weeks e da sua gente a partir de agora», devaneou. Weeks fora declarado culpado de todas as acusações. Agora enfrentava outro julgamento por subornar um jurado. Tentara atribuir a responsabilidade a Bob, mas não conseguira provar nada. Mas Bob também escapou por pouco a uma indição.

E Weeks não iria a lado nenhum se se queixasse do jurado cujo pai estivera encarcerado. Ele soube disso durante o julgamento e podia ter pedido, nessa altura, que fosse substituída por outro. Talvez tudo aquilo assustasse Bob antes que fosse tarde de mais. Ela assim esperava. O juiz McDonough sorria-lhe. - Bem, Kerry, creio que chegou o momento - disse ele. Robin aproximou-se, com a pesada Bíblia na mão. Margaret levantou-se e seguiu-a, com a toga preta no braço, à espera para a entregar a Kerry depois do juramento. Kerry ergueu a mão direita, colocou a mão esquerda sobre a Bíblia e começou a repetir as palavras proferidas pelo juiz McDonough:

Eu, Kerry McGrath, juro solenemente... FIM
As Risas da Morte - Mary Higgins Clark

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