AULAS SOBRE A CONFISSÃO - DONATO-1

131 Pages • 56,176 Words • PDF • 841.4 KB
Uploaded at 2021-09-24 06:53

This document was submitted by our user and they confirm that they have the consent to share it. Assuming that you are writer or own the copyright of this document, report to us by using this DMCA report button.


INDÍCE

1- NATUREZA DOS SACRAMENTOS 2- ELEMENTOS DA CONFISSÃO 3- PLENA ADVERTÊNCIA E PLENO CONSENTIMENTO 4- MATÉRIA GRAVE 5- HONRAR PAI E MÃE 6- NÃO MATAR 7- NATUREZA DA MORAL 8- NÃO PECAR CONTRA A CASTIDADE 9- NÃO ROUBAR 10- NÃO LEVANTAR FALSO TESTEMUNHO 11- OS TRÊS PRIMEIROS MANDAMENTOS 12- GUARDAR DOMINGOS E FESTAS

NATUREZA DOS SACRAMENTOS

Qual é a finalidade da vida cristã? A filiação divina, a santidade, a justiça, a intimidade com Deus, a comunhão com Deus, com os santos e com o próximo.

O ser humano, quando foi criado por Deus, não era este ser humano que nós conhecemos hoje: decaído, pecador, afastado de Deus, ateu. No início, o homem se encontrava num estado de graça. No paraíso terrestre, conversava face a face com Deus. Vivia num estado de inocência. E Deus não precisou sequer dar-lhe mandamentos. Adão e Eva em sua inocência evitavam o mal e buscavam o bem. Só foi-lhes pedido que não comessem do fruto da árvore do bem e do mal. Infelizmente nossos progenitores transgrediram esse preceito. E nós, hoje, por causa de sua queda, perdemos a intimidade com Deus, até o ponto de alguns acreditarem que Deus não existe, e mesmo os que acreditam que existe, concebê-lo como um Deus distante de suas vidas. Os homens hoje não procuram a santidade, a comunhão com Deus. Vivem uma vida desregrada, cheia de pecado. A maioria de nós não reconhece sequer a pecaminosidade e a culpabilidade dos próprios atos. Deus então envia Moisés, os profetas, Elias, Eliseu, para chamar o homem de volta a si. Todos esses enviados, na realidade, serviram para preparar a vinda do seu Filho encarnado, Jesus Cristo. E Cristo vem nos chamar a uma vida íntima com o Pai (“Que eles sejam um como tu e eu somos um.”).

Uma das coisas instituídas por Cristo para realizar a unidade entre o gênero humano e Deus são os Sacramentos. Há 7 sacramentos: o batismo, a confissão, a eucaristia, a crisma, o matrimônio, a ordem e a unção dos enfermos. O batismo, a crisma e a ordem são sacramentos que são recebidos uma só vez na vida. O matrimônio normalmente é recebido uma só vez, mas com o falecimento de um dos cônjuges, o outro pode casar-se novamente, recebendo o sacramento do matrimônio pela segunda vez. A unção dos enfermos pode ser recebida várias vezes, mas só no caso de doenças graves. Geralmente é recebida por pessoas próximas ao fim. Os sacramentos que normalmente podem ser e são de fato recebidos várias vezes são, então, a eucaristia e a penitência (ou confissão ou reconciliação).

Os 7 sacramentos foram instituídos por Jesus Cristo. A Igreja não tem autoridade para criar novos sacramentos ou abolir algum dos que já existem. O poder de ligar e desligar, dado à Igreja por Cristo, tem limites. A Igreja, por exemplo, não pode acrescentar novos livros ao cânone bíblico, nem retirar algum entre os que já existem.

Os sacramentos são símbolos que significam alguma coisa. Os símbolos humanos, porém, apenas significam alguma coisa. Os sacramentos, além de significar alguma coisa, produzem aquilo que significam.

Quando alguém, por exemplo, se forma, recebe um diploma. A cerimônia de formatura é um símbolo. Essa cerimônia não tem o poder de transformar alguém que nunca estudou medicina num médico. O beijo também é o símbolo humano do amor que uma pessoa tem por alguém. Mas o beijo não tem o poder de produzir o amor.

Ao contrário dos símbolos humanos, os sacramentos produzem aquilo que significam. Batizar em grego significa “lavar”. A cerimônia do Batismo de fato consiste em lavar alguém, derramando sobre sua cabeça água ou mergulhando-o numa piscina cheia de água. Ora, uma pessoa que é batizada realmente é lavada de seus pecados. Logo o Batismo produz aquilo que simboliza.

A Confissão simboliza um tribunal. Há um acusador, que é o próprio réu, isto é, a pessoa q ue se confessa e que se acusa de algum pecado. Há um juiz, que emite uma sentença. Ao contrário dos tribunais humanos, em que geralmente a sentença é condenatória, na confissão, quando realizada retamente, a sentença é sempre absolutória. A Confissão então é o símbolo de um julgamento e produz aquilo que simboliza, isto é, a absolvição. A Confissão realmente introduz a graça santificante na pessoa que recebe esse sacramento dignamente e apaga-lhe os pecados. A Eucaristia é um banquete, uma refeição. Há a parte sólida da refeição – o pão; e a parte líquida – o vinho. Há uma mesa – o altar. Falamos de mesa, porque é uma refeição; e falamos de altar, porque a Eucaristia é um sacrifício. A refeição da Eucaristia é o símbolo de uma refeição espiritual que ocorre realmente na alma humana que a recebe. Tomás de Aquino diz que a Eucaristia serve para produzir um crescimento na vida da graça e para restaurar as forças espirituais perdidas.

Assim todos os sacramentos não são ritos meramente simbólicos. São ritos que de fato produzem aquilo que significam. Todos os sacramentos produzem um aumento da graça em quem os recebe ou produzem a própria graça quando a pessoa não a tem.

Mas o que é a graça? A graça é uma qualidade sobrenatural, uma luz divina, que é infundida por Deus para que a pessoa possa participar da vida divina, para que o homem não seja apenas humano, biologicamente humano, membro da espécie humana, mas seja também filho de Deus. A graça tem a característica de crescer e se desenvolver, como um organismo

vivo, sobrenatural. E é justamente o crescimento da graça que produz a santidade dos santos. Os santos são capazes de atos virtuosos sobre-humanos. Qualquer um que tentasse imitá-los não conseguiria. A santidade, com efeito, está acima das forças humanas. No entanto, para os santos, os atos virtuosos são naturais. Isso acontece porque a conversão não é simplesmente uma mudança de opinião, como quando a gente entra num partido e passa a pensar diferente. A conversão ao cristianismo realmente insere no indivíduo uma graça sobrenatural, que, se a gente permitir que se desenvolva, vai provocar em nós a filiação divina.

O modo de crescer na graça é múltiplo. Os sacramentos, quando recebidos retamente, são um dos recursos que nos fazem crescer na graça. Os sacramentos são como a oficina de um carpinteiro. O carpinteiro pode praticar seu ofício com suas próprias mãos (colocar algo em determinado lugar, abaixar, separar pedaços de madeira etc.). Outras coisas, porém, ele faz usando ferramentas (serrote, martelo etc.). A maior parte de suas funções são exercidas mediante ferramentas. Deus não tem as limitações de um ser humano. Pode fazer tudo do jeito que ele quiser. Porém Deus resolveu usar certos instrumentos que podem veicular a sua graça. Esses instrumentos, porém, não o limitam. Se quiser, Deus pode infundir a sua graça de mil outras maneiras. Outra maneira de o homem crescer na graça, por exemplo, é através da oração. O maior instrumento de canalização da graça divina é a própria pessoa de Cristo. Deus se encarnou e se fez homem para usar da humanidade do cristo ressuscitado como instrumento dispensador de graças. E os 7 sacramentos são instrumentos da natureza humana de Cristo. Quando os sacramentos infundem a graça são instrumentos nas mãos de Cristo ressuscitado.

Podemos experimentar isso na prática da nossa vivência sacramental, principalmente na Confissão e na Eucaristia. Se a gente se aproxima devidamente desses sacramentos, toca existencialmente a graça que eles dispensam.

Jesus ressuscitou e ascendeu ao céu, mas não dissolveu sua natureza humana assumida na encarnação. Ele continua vivo com sua natureza humana. Em algum lugar físico do universo, está Cristo glorioso, ressuscitado, em carne e ossos. De lá, ele nos vê a todos, e com todos está unido. Esse Cristo, por meio dos 7 sacramentos, canaliza a sua graça a todos os batizados que se aproximam dos sacramentos da forma devida.

A Igreja foi criada por Cristo, entre outras coisas, para poder dispensar a graça divina por meio dos 7 sacramentos. Se não houvesse Igreja, não haveria oficina onde aceder às ferramentas da salvação e da santificação.

Se Deus é totalmente livre de infundir sua graça em nós do jeito que ele quer, por que não bastaria então um só sacramento? Por que 7 sacramentos? Para sanar essa dúvida, devemos lembrar que os sacramentos não produzem apenas a graça santificante, uma espécie de graça geral, mas também graças específicas.

A Confissão, por exemplo, além de infundir ou aumentar a graça, também fortalece o penitente contra a fraqueza do pecado. Então, quando a gente recorre regularmente à Confissão, percebe nitidamente que vai ficando mais forte na luta contra o pecado.

Quando a gente recebe a Eucaristia, no pão e no vinho estão regularmente presentes o corpo, o sangue, a alma e a divindade de Cristo (Pio XII, Mediator Dei, 115). A Eucaristia tem a aparência de pão, o gosto de pão, mas na verdade não é pão. É o corpo de Cristo. Ao comungarmos, Cristo permanece em nós apenas durante aquele lapso de tempo durante o qual nosso estômago consegue dissolver a aparência de pão. Quando a aparência de pão desaparece e é transformada em outra coisa, a presença de Cristo também desaparece, pois a presença de Cristo se encontra na aparência do pão. Enquanto o símbolo permanece, a realidade permanece. Quando o símbolo se desfaz, a realidade também se desfaz. Quando a gente comunga, Cristo permanece eucaristicamente dentro de nós por um tempo relativamente curto, geralmente de 5 a 10 minutos. Nesses 5 a 10 minutos, como efeito próprio da Eucaristia, além de receber a graça santificante, se a gente se recolhe para crer e amar a Cristo presente em nós, Cristo nos permite amar de uma maneira muito mais profunda do que se a gente tentasse amá-lo de qualquer outra maneira. Existe uma força que vem da Eucaristia para nos levar ao amor, e que depende do grau de fé e de amor com que a gente se aproxima do sacramento.

Alguém poderia dizer que então se alguém já se aproxima com fé e amor, não seria a Eucaristia a produzir o amor, mas a própria pessoa, devido à sua fé e ao seu amor. Com o tempo, porém, a gente percebe que o amor que se produz em nós por Cristo está além da preparação que a gente fez ao se aproximar da Eucaristia. Daí que a Eucaristia é o maior sacramento, pois o maior mandamento é o do amor.

Quando a gente comunga devidamente, a Eucaristia não somente multiplica nossa capacidade de amar, mas também permite que a gente ame de uma maneira totalmente diferente, sobrenatural.

Na Confissão o pecado não é apagado de uma forma contábil. Em primeiro lugar a Confissão infunde a graça e, consequentemente, apaga o pecado passado e nos fortalece contra as tentações futuras. Para a Confissão ser válida, nós tivemos de reconhecer o nosso pecado,

arrependermo-nos dele e formar o firme propósito de nunca voltar a cometê-lo. Depois da confissão, a gente percebe em nós uma força superior à força que teríamos apenas por ter feito nossos propósitos de nunca mais pecar. Isso não é subjetivo. É uma experiência concreta e objetiva de todos aqueles que recebem habitualmente a graça da confissão.

Com os sacramentos ocorre exatamente aquilo que acontece com Jesus e a hemorroíssa. Muita gente estava apertando Jesus e nada aconteceu com elas. Mas a hemorroíssa tocou-o com fé, uma força saiu de Jesus e a curou. A força em questão não é algo subjetivo, uma autossugestão da hemorroíssa. Pois também Jesus sentiu a mesma força se desprender dele.

Jesus, depois da ressurreição, não está tão interessado em curar as doenças das pessoas, porque de qualquer maneira as pessoas irão morrer. Ele está interessado em curar as pessoas espiritualmente. E os sacramentos foram feitos para fazer esses tipos de milagres espirituais. Quem tem uma reta vida sacramental, sabe que os sacramentos funcionam realmente.

Na Confissão, por exemplo, além de a gente saber e crer que os pecados foram realmente perdoados (não temos como ver ou sentir isso), sabemos, vemos e sentimos que a gente recebe uma força para resistir contra o pecado. Não é uma força natural decorrente do “arrependimento” ou do “propósito” ou de uma especial “meditação” ou de um “esforço pessoal”. Trata-se de uma força sobrenatural que vem de Deus através do sacramento.

Na Eucaristia, a gente percebe, embora no começo muito suavemente, que recebe uma força que nos ensina a amar. Essa força que a gente recebe é proporcional à fé e ao amor com que a gente se aproxima da Eucaristia. Mas, apesar de ser proporcional, o efeito gerado está muito além do que a gente esperaria apenas com base na nossa fé e no nosso amor.

ELEMENTOS DA CONFISSÃO

Os 7 sacramentos são instrumentos de que Cristo se vale para fazer-nos alcançar nosso objetivo maior, a saber, a santidade. Dito de outra maneira, a plena filiação divina, a intimidade ou comunhão com Deus, o reino de Deus, a graça do Espírito Santo.

A essência do Evangelho é a graça do Espírito Santo, que é dada àquele que crê em Cristo (Tomás de Aquino).

É importante entender não só como funcionam os sacramentos, mas também como funcionam dentro deste contexto maior.

O primeiro sacramento a ser recebido é o Batismo. Esse sacramento se recebe uma só vez, e sem ele todos os demais sacramentos não valem. Por isso o Batismo é considerado a porta de entrada da vida sacramental da Igreja. Pelo Batismo a gente se torna cristão, com o propósito de receber a graça do Espírito Santo e tornar-se filho de Deus, santo. Todos os demais sacramentos têm como premissa o fato de que, ao ser batizado, o cristão faz um acordo com Deus no sentido de ser por Ele santificado.

Os sacramentos, então, são ferramentas que Cristo usa para santificar-nos, embora não esgotem todas as possibilidades que Deus tem para santificar-nos. Da mesma maneira, a técnica de uso do martelo, do serrote e dos demais instrumentos é uma parte importante da carpintaria, mas não esgota tudo o que a carpintaria representa.

A pessoa que recebe o Batismo não precisa se confessar dos pecados passados. Deve fazer uma reflexão sobre os pecados da sua vida passada, deve reconhecer seus erros, deve formar o firme propósito de não voltar nunca mais a cometê-los, de mudar de vida e de começar a encaminhar-se em direção à santidade. O Batismo infunde a graça santificante e apaga todos os pecados passados, sem necessidade de que o batizando acuse seus pecados diante do sacerdote.

A Confissão existe para infundir a graça do Espírito Santo e, consequentemente, perdoar os pecados, principalmente os graves, cometidos depois do Batismo. Por isso, mesmo que a pessoa não tenha cometido um pecado grave, ainda assim, a Confissão não seria inútil, pois é dispensadora da graça divina. Exatamente por isso, é obrigatório que a gente se confesse quando cometemos um pecado grave. E é bom que a gente se confesse regularmente, mesmo sem ter cometido pecados graves. A Confissão apaga os pecados não de uma forma contábil: não é enviado um e-mail a um anjo contador, que, lá no céu, dá baixa aos pecados inscritos no livro negro de Deus. Os pecados são apagados por efeito da infusão da graça. E essa infusão da graça, não somente apaga os pecados, mas também produz um aumento da graça já existente e um fortalecimento contra a nossa fraqueza em relação ao pecado. Ao sair da Confissão e voltar à vida comum, o cristão percebe que é como se tivesse recebido uma vacina fortificante. É mais do que poderíamos conseguir por meios naturais, por meio, por exemplo, de um esforço pessoal. Essa ajuda sobrenatural, essa espécie de proteção contra o pecado não é definitiva, não é uma garantia de nunca mais pecar. Justamente por causa disso é bom que a gente se confesse regularmente, mesmo sem ter cometido pecados graves.

Quem mora num lugar onde há bons confessores, sempre disponíveis, pode confessar-se toda semana. Hoje em dia é um pouco difícil: faltam padres, a cidade é grande, os bons confessores têm pouco tempo e são de difícil acesso. Então a recomendação é que não se deixe passar mais de dois meses entre uma confissão e outra. Essa não é uma fórmula mágica ou uma receita a ser seguida mecanicamente. Para que a Confissão seja valiosa e de fato ajude no caminho da santidade, deve ser praticada segundo o espírito com que foi instituída por Jesus e regulamentada pela Igreja.

Segundo os catecismos da Igreja católica, a Confissão tem 5 elementos, que podem ser estendidos a 6.

1. Exame de consciência 2. Arrependimento 3. Propósito 4. Acusação 5. Penitência 6. (Absolvição) [Talvez este sexto elemento não seja citado pelos catecismos em virtude do fato que depende do padre, enquanto os primeiros 5 elementos dependem do penitente.]

O primeiro passo para uma boa confissão é o exame de consciência.

O penitente, antes de se confessar, deve examinar a sua consciência para se lembrar de todos os pecados cometidos desde a última confissão. Quando alguém ficou longe da Igreja por muitos anos, seu exame de consciência pode durar até alguns dias. Para quem se confessa regularmente, é uma questão de poucos minutos.

O batizando, mesmo que não precise confessar-se, deve realizar, antes do Batismo, o exame de consciência, para arrepender-se de todos os seus pecados e formar o firme propósito de nunca mais voltar a cometê-los.

No exame de consciência, não devem ser procuradas só as coisas que afligem a nossa consciência, mas, com muita mais atenção, as coisas que vão contra a lei de Deus objetivamente revelada.

Observe-se o seguinte exemplo. Uma mulher pratica um aborto. Após um tempo, a prática do aborto começa a pesar na consciência da pessoa. Aí, a mulher resolve ter outro filho, para compensar. Mas não adianta. O peso na consciência continua. Aí, faz um tratamento psicológico. Depois, faz uma viagem. Depois de 20 ou 30 anos, quando já não aguenta mais, procura um padre. Ao se confessar – lembremos que ficou afastada da Igreja por décadas –, só confessa a prática do aborto, isto é, aquilo que aflige a sua consciência. Essa pessoa está analisando sua vida moral apenas a partir do senso de culpa que tem, não objetivamente a partir da lei de Deus.

É bom que se levem em conta as aflições da consciência, pois geralmente, se a consciência aflige é porque a gente fez coisa errada. Mas o exame de consciência não deve concentrar-se principalmente nos sentimentos de culpa. Afligindo ou não, se um ato vai de encontro à lei de Deus, deve ser identificado pelo exame e confessado, após ter-se arrependido e formado o propósito firme de nunca mais cometê-lo.

Aprender a ser objetivo e deixar de ser subjetivo é de extrema importância para progredir no caminho da santidade. Essa atitude, inclusive, representa o primeiro passo a ser dado para se livrar de sentimentos de culpa injustificados. O sentimento de culpa, às vezes, é enganoso: acusa-nos de coisas de que a gente não teve culpa e deixa de culpar-nos de coisas de que temos culpa. As pessoas que mais sofrem com sentimentos de culpa são as que não se confessam.

O exercício de julgarmo-nos segundo regras objetivas, externas, conhecidas e estáveis, faz com que a gente comece a se conhecer verdadeiramente pelo que de fato somos.

O exame de consciência, então, deve ser conduzido de acordo com a moral cristã. É imprescindível, então, que todo cristão estude e aprenda a moral cristã.

Se o exame de consciência for longo, a gente pode anotar por escrito os próprios pecados, para não esquecer algo importante na hora de confessar-se. Mas isso não é obrigatório. E é bom que a gente não guarde aquilo que escreveu: logo após a confissão, é bom jogar fora o lembrete. É bom também escrever os próprios pecados só minutos antes de confessar-se.

A prática do exame de consciência nos permite um primeiro domínio e controle sobre nós mesmos. Às vezes, a gente peca por falta de reflexão. Ao realizar o exame de consciência, temos a oportunidade de refletir sobre o que fizemos ou deixamos de fazer e perceber nossas falhas. O segundo passo de uma boa confissão é o arrependimento.

No arrependimento, a gente reconhece que, no que diz respeito a determinados comportamentos, estamos errados. Devemos rejeitar, pelo menos racionalmente, nossos pecados.

No exame de consciência, identifico as leis de Deus que eu infringi. No arrependimento, reconheço que eu de fato infringi tais leis. É muito fácil que alguém reconheça ter infringido uma lei de Deus, mas que, nas suas circunstâncias particulares, ele deve ser desculpado.

Por exemplo, sei que não se pode bater na própria esposa. Eu bati, portanto fiz uma coisa errada. Porém, em consideração do que ela fez anteriormente, eu não tive escolha: tive que bater nela.

Outro exemplo. Sei que embebedar-se é errado. Mas, diante da vida que levo e das amarguras que padeço, não tenho outra escapatória a não ser embebedar-me. Não sou rico, não posso ir a festas, não posso viajar. O que me resta, então, é beber. Reconheço que a bebedeira é pecado. Reconheço que me embebedei. Mas, nas minhas circunstâncias, não me reconheço pecador e, portanto, não me arrependo, porque acho uma série de atenuantes, até o ponto de me desculpar completamente e de me achar absolutamente isento de qualquer culpa.

Mais um exemplo. Abortar é pecado. Eu abortei. Mas, na situação em que me encontrava, não tinha condições materiais nem psicológicas suficientes para levar à frente uma gravidez. Portanto não tinha outra escolha a não ser abortar.

Deus revela o que é pecado na Sagrada Escritura, no Magistério, na Igreja e na própria lei natural inscrita em nossos corações. Mesmo quando não entendemos a malícia das nossas ações, para haver um justo arrependimento, é suficiente que confiemos no que Deus revelou: mesmo que eu não entenda, se Deus diz que tal coisa é pecado, eu aceito. O bom seria que a gente compreendesse onde está o erro. Mas na falta dessa compreensão mais profunda, basta confiar em Deus e na Igreja.

Os índios brasileiros, por exemplo, tinham muita dificuldade para entender que o canibalismo era pecado. Muitos deles se confessavam, prometiam que não iam comer mais ninguém, mas no fundo só porque Deus estava mandando. Houve uma índia que, em ponto de morte, confessou-se com o pe. Anchieta. Este perguntou-lhe qual fosse seu último desejo. E a índia, mesmo sabendo que era pecado, respondeu que sonhava com uma saborosa sopa de dedinhos de crianças.

Estava endividado e resolvi assaltar um banco. Minhas dívidas não podem desculpar o assalto praticado.

Minha mulher xingou-me e eu bati nela. Os xingamentos não podem desculpar a surra.

Engravidei fora das circunstâncias ideais e abortei. As circunstâncias lamentáveis em que engravidei não desculpam o aborto praticado voluntariamente. Hitler matou 6 milhões de hebreus, “porque eles estavam fazendo um mal tão grande para a humanidade”.

Todo mundo pode inventar uma desculpa para qualquer tipo de ação.

O terceiro passo para uma boa confissão é o propósito.

Segundo a doutrina católica, o propósito deve ser total, definitivo e imediato, pelo menos em relação a todos os pecados graves.

Antes de se aproximar da Confissão, o penitente deve ter certeza de que está arrependido de todos os pecados graves cometidos. Não é obrigatório que isso se estenda também aos pecados leves, embora seja recomendável. É obrigatório também que o propósito firme de nunca mais pecar seja definitivo e imediato: para sempre e desde já. O penitente, para que a Confissão seja válida e eficaz, deve formar um firme propósito de abandonar todos os pecados graves em definitivo (para sempre) e imediatamente (desde já).

Portanto o propósito deve ser total, definitivo e imediato.

Se eu quero largar todos os meus pecados menos um, a Confissão não é válida. Se eu quero largar todos os meus pecados mas não para sempre, a Confissão não é válida. Se eu quero largar todos os meus pecados mas aos poucos, a Confissão não é válida.

Se a pessoa que manifestou o propósito de abandonar seus pecados de maneira total, definitiva e imediata, após confessar-se, voltou a cometer alguns desses pecados, deve arrepender-se e novamente manifestar o mesmo propósito total, definitivo e imediato.

Essa dinâmica é boa para o autoconhecimento. Ao avançar no caminho da santidade, os motivos naturais e sobrenaturais para não pecar (as consequências do pecado, a feiura do

pecado, o que a gente está perdendo ao pecar, como a vida teria sido melhor se a gente não tivesse pecado, o quanto ofendemos a Deus) prevalecerão sobre nossa concupiscência e fortalecerão a alma do cristão.

O quarto passo da Confissão é a acusação.

A acusação consiste em declarar os próprios pecados na frente do sacerdote. As leis da Igreja obrigam o padre a ter sigilo absoluto sobre tudo aquilo que ouve durante a confissão. O padre não está autorizado a revelar segredos de confissão em hipótese alguma, nem para salvar a própria vida ou a vida de um terceiro inocente.

Se João confessa ter matado Maria, e a polícia prende Mateus, o padre nada pode fazer. Novamente procurado por João, o padre pode exortá-lo a se entregar, mas caso João não queira, o padre não pode revelar a verdade.

Quem está ouvindo a confissão é o próprio Cristo. O sacerdote empresta seus ouvidos ao próprio Cristo.

Mas por que é necessário que o sacerdote empreste seus ouvidos a Cristo, se Cristo está ressuscitado e de fato está realmente ouvindo a confissão?

Porque é importante que o penitente se acuse dos seus pecados. Ao se acusar, o penitente entende melhor e com maior objetividade o erro cometido. Quando contamos a outros o que fizemos, reconhecemos nossos erros, muito mais do que quando não os contamos, guardando-os simplesmente na nossa consciência.

Durante os julgamentos de Nuremberg, após a segunda guerra mundial, os nazistas sobreviventes e capturados foram julgados por um tribunal. Houve um oficial nazista que exortava seus colegas de prisão a não esconder o que tinham feito, porque – segundo o que ele dizia – o nazismo tinha feito um grande bem para a humanidade. No dia do juízo, o oficial não só confirmou as acusações alegadas contra ele, mas contou inclusive aquilo que os juízes não sabiam. Durante a exposição, porém, seu tom ficou gradualmente mais reservado. No fim, quase gaguejava. No dia seguinte, quando os guardas foram retirá-lo da cela para reconduzi-lo à sala do tribunal, havia se enforcado. O oficial nazista não havia suportado o peso da sua confissão. No entanto, antes mesmo de confessá-lo, ele sabia muito bem tudo aquilo que havia praticado. O que aconteceu então com o oficial? Ao contar ao público o que ele tinha feito, aquilo que até então tinha ficado no segredo da sua consciência, percebeu pela primeira vez todo o horror dos seus atos.

Ao contarmos a outrem aquilo que fizemos, adquirimos um nível de consciência diferente e mais profundo. A doutrina da Igreja pede para que a gente se acuse como se fosse um promotor, não como quem está pedindo desculpa, mas com rigor e severidade.

Ao nos acusarmos, porém, não é necessário revelar todo e qualquer detalhe do que fizemos. Devemos nos acusar dizendo a espécie do pecado (o tipo de pecado com as eventuais agravantes) e o número de vezes que o cometemos. Não é preciso contar a história com todas as suas circunstâncias.

Por exemplo, no caso de um adultério, não precisa dizer que conhecemos uma pessoa, que era muito bonita, que tentamos seduzi-la, que a levamos a um motel, que passamos lá 4 horas etc. Se, no adultério, os dois eram casados, tratar-se-á de dois adultérios. Então esse detalhe é importante e deve ser dito. Se o penitente é padre, deve ser dito, pois, nesse caso, além do adultério, houve um sacrilégio contra o sacerdócio. Qualquer detalhe que ajude na tipificação do pecado deve ser colocado. Detalhes circunstanciais que não alteram em nada a espécie do pecado devem ser omitidos.

Bater uma pessoa é um pecado. Bater no próprio pai é um pecado mais grave, que ofende o 4º mandamento. Não adianta chegar e dizer “pequei 5 vezes”. Não adianta dizer “pequei contra a castidade”. Os pecados contra a castidade são de muitas espécies: adultério, fornicação, prostituição, masturbação, homossexualismo, bestialidade etc.

O número das vezes que se pecou, a princípio, deve ser exato. Porém, quando a gente entra na Igreja ou volta a ela após muitos anos de vida, é quase impossível dizer com exatidão quantas vezes a gente cometeu determinados pecados. Nesses casos, pode-se dizer: toda a semana, durante 7 anos, saí com 2 ou 3 mulheres. Ou: durante meus primeiros 20 anos de vida, nunca fui à Missa, a não ser em raras exceções.

Como se computa o número das vezes que se cometeu um pecado? Com um pouco de bom senso. Quando determinado tipo de pecado exige uma longa preparação e se conclui com uma ação só, como o assalto a um banco, todas as ações preparatórias e a ação final se computam como sendo uma ação só. Se, porém, antes de assaltar o banco, o assaltante se arrependeu e não efetivou o assalto, todas as ações individuais ilícitas que representaram o preparo do assalto passam a ser pecados separados.

Quando vários atos não convergem para um só, cada ato representa um pecado individual. Por exemplo, toda vez que você vê uma mulher, tem um mau pensamento. Após um tempo, você adultera com aquela mulher. Cada mau pensamento que teve representa um pecado diferente, desligado dos outros, porque você não tinha a intenção de adulterar, não estava planejando um adultério, estava só desejando aquela mulher.

Porém, se desde o começo planejou-se um adultério e os encontros contribuíram para alcançar o objetivo final, tudo representa um pecado só.

O quinto passo da Confissão é a penitência.

A penitência representa uma pena ou uma satisfação que se dá em troca da absolvição. A penitência é sempre simbólica, porque não existe algo que se pode dar a Deus em troca do perdão. Um pecado, diante de Deus, é uma ofensa tão gigantesca que nem a condenação ao inferno pode pagar o preço do pecado. Não existe reparação possível. A única reparação possível pelo pecado é a que Jesus Cristo levou a termo na Cruz.

É como se se tratasse de um contrato em que se quer doar algo e, então, se vende este algo por um preço irrisório. Porém, enquanto no contrato de compra e venda, mesmo se vendida por um preço simbólico, aquela coisa não passa para a outra pessoa sem que tenha sido pago o preço combinado, na Confissão, o penitente é perdoado mesmo antes de ter cumprido a penitência, a partir do momento em que recebe a absolvição. O penitente é obrigado a cumprir a penitência, mas de antemão já está perdoado. A menos que o padre estipule quando tem que cumprir a penitência, o penitente tem certa liberdade em cumpri-la. Inclusive tem a liberdade de receber a comunhão mesmo antes que tenha cumprido a penitência. O que o penitente não pode fazer é deixar passar muito tempo, correndo o risco de esquecer-se dela ou agindo como se tivesse se esquecido de cumpri-la.

Os efeitos dos sacramentos não são iguais para todo mundo. Dependem do grau de devoção, reverência, fé e caridade com que cada um se aproxima a eles. Na Confissão, os pecados são perdoados como efeito da infusão da graça. Dependendo do grau de fé e caridade com que se vive a Confissão, a graça é infundida num grau maior ou menor, e o efeito da preservação dos pecados futuros é também maior ou menor. Não é a devoção que produz uma graça maior ou menor: a graça é sobrenatural e é sempre derramada numa medida superabundante e extraordinariamente superior a qualquer disposição humana, mas há alguma relação entre as duas coisas.

Antes de se confessar, portanto, é bom procurar cultivar a fé e o amor com que se vai receber a absolvição. Assim como a hemorroíssa tinha a certeza de que não estava tocando um simples mortal, devemos cultivar a certeza de que, ao nos confessarmos, não estamos nos aproximando de um simples padre, mas do próprio Jesus Cristo.

A experiência nos indica que, durante a Confissão, no plano sensível, não acontece nada de extraordinário. Mas, se a Confissão for bem-feita, ao voltar à vida ordinária, percebemos uma ação extraordinária e sobrenatural que não depende de maneira nenhuma do nosso exame de consciência, do nosso arrependimento, do nosso propósito, da nossa acusação, da absolvição recebida ou da penitência realizada. Esse algo é bem diferente de um simples efeito psicológico. É suave e age poderosamente. A isso chamamos graça divina.

PLENA ADVERTÊNCIA E PLENO CONSENTIMENTO

É necessário falar de Moral cristã como um todo, porque, para se confessar, o cristão deve saber o que é e o que não é pecado, e qual é a diferença entre pecado grave e pecado leve.

No Catecismo, para um pecado ser grave, deve preencher 3 requisitos. Deve ter:

1. Matéria grave (a matéria do próprio ato que está sendo realizado); 2. Plena advertência (da inteligência de quem o pratica); 3. Pleno consentimento (da vontade de quem o pratica).

Ao cometer um pecado grave, perdemos a graça de Deus que tínhamos adquirido pelo Batismo ou pela confissão anterior ou por outros sacramentos. Perdemos todo o organismo sobrenatural que tínhamos, em virtude do qual participávamos da vida divina, aquele organismo que, ao se desenvolver, produz a santidade em nós. Por causa de um pecado grave, o homem perde completamente a graça. Os pecados leves, pelo contrário, não eliminam a graça.

Dizer que, para ser grave, um pecado deve ter a plena advertência da inteligência e o pleno consentimento da vontade, significa que, para que um ato seja gravemente pecaminoso, deve ser plenamente humano. Tomás de Aquino, na Suma Teológica, distingue entre “atos de homem” e “atos humanos”. “Atos de homem” são todos os atos exercidos por seres humanos. Porém nem todos os atos de homem são atos humanos. Um ato privado de razão e de vontade, embora exercido por um ser humano, não é “humano”, é apenas um ato de homem.

Por exemplo, se você se encostar a um fogão aceso sem saber que está aceso, antes mesmo de saber o que aconteceu e de pensar e querer algo, terá o ato reflexo de afastar-se do fogão. Esse ato reflexo é um “ato de homem” (porque praticado por um ser humano), mas não é “humano” na acepção de Tomás de Aquino (pois não envolve razão e vontade).

Outro exemplo: uma criança cruza uma rodovia no meio de uma densa neblina. Você está dirigindo. Quando enxerga a criança já é tarde demais. Apesar da sua tentativa de desviar da criança, atropela-a. Esse seu ato é “de homem”, não é “humano”. Ao ser realizado, não houve deliberação. Os “atos de homem”, obviamente, nunca são pecados graves. Se perdêssemos a amizade de Deus por causa desses atos, Deus seria injusto, porque estaria nos tratando como inimigos sem termos culpa alguma.

Agora, entre o totalmente involuntário e o absolutamente voluntário, existe uma região intermediária, onde a gente pode ter ou não ter culpa. Nessa faixa intermediária é que normalmente se inserem os pecados leves. O pecado leve pode ocorrer quando há matéria leve ou quando, havendo matéria grave, não há pleno consentimento (da vontade) ou plena advertência (da inteligência).

A plena advertência é um atributo do ato inteligente, isto é, do ato em que o homem se vale da sua inteligência. Um ato é plenamente advertido quando você sabe claramente o que está fazendo, ou melhor, quando você entende exatamente a malícia daquilo que você está fazendo.

O que é, do ponto de vista moral, entender a malícia de um ato, para que haja plena advertência? Plena advertência não significa que você deve ter sido informado formalmente de que tal coisa é pecado. Você não precisa saber por estudo ou por uma notícia formal que tal coisa é pecado. Se assim fosse, só os teólogos cometeriam pecados, e só os advogados cometeriam crimes. Na realidade, o homem comum, mesmo sem ter estudado teologia ou direto, pode cometer um pecado ou um crime.

Um ato é compreendido em sua malícia quando a pessoa de alguma maneira sabe que aquele ato é mau. Pode ser que a pessoa ainda tenha dúvidas em relação ao tipo de pecado (é um furto ou um roubo?). Mas basta que ela perceba, ainda que de maneira confusa, que está por fazer algo mau, para que se considere que houve plena advertência.

A falta de consciência da malícia de um ato não é desculpada quando ocorre em virtude de levar por muito tempo uma vida devassa, tendo perdido qualquer sensibilidade para condutas pecaminosas e culpáveis. Um criminoso que mata e estupra com frequência, ao chegar em casa, bate na mulher sem perceber que isto é um pecado grave. Essa falta de advertência, porém, não o isenta da culpa, pois é decorrente de todos os demais crimes que ele comete ordinariamente e que endureceram a sua consciência.

Disso decorre que a plena advertência, no campo do direito moral, só é exigida de uma pessoa que tenha uma consciência razoavelmente formada. Para pessoas que não possuam uma consciência devidamente formada, não há necessidade de plena consciência. Prova disso é o 1º capítulo da Epístola aos Romanos, em que São Paulo diz que Roma é uma terra dissoluta, onde as pessoas bebem, se entregam a orgias, praticam a homossexualidade, têm escravos, se deleitam com a morte dos gladiadores no Coliseu etc. Os romanos não tiveram ninguém que lhes explicasse que tudo isso é pecado. Os judeus tiveram os profetas. Os gregos tiveram os filósofos antigos, cuja moral ficou muito próxima da moral cristã. Mas os romanos não tiveram ninguém. Nem por isso, porém, são isentos de culpa, pois se encontram nesse estado lamentável por causa dos pecados anteriormente praticados que os tornaram absolutamente insensíveis perante as culpas presentes. No fundo eles sabem, mas sua conduta perversa é como se os tivesse tornado cegos. Ao se converterem a Cristo, os olhos abrir-se-ão e, de repente, terão clara diante de si a enormidade de seus pecados.

Repetimos: a falta de plena advertência só desculpa o pecado grave de uma consciência já formada. E, mesmo numa consciência plenamente formada, ainda existe o dever de os cristãos estudarem um mínimo de doutrina, aprofundando suas bases morais. Havendo negligência nesse sentido, não haverá desculpa no caso de uma falta de plena advertência. Quando uma pessoa se converte seriamente ao cristianismo, é raro haver negligência nas coisas de Deus. Em épocas anteriores, quando toda a sociedade era cristã, ocorria com mais facilidade de que alguns fossem cristãos como que por osmose. Estes poderiam descuidar até de deveres elementares. Hoje, porém, no mundo neo-pagão em que vivemos, quem é cristão, o é de verdade e com toda a profundida exigida.

Resumindo: se alguém vive uma vida dissoluta ou tem negligência crassa em aprender um mínimo de doutrina, compativelmente com seu estado (um médico ou um advogado, por exemplo, devem aprender mais doutrina cristã que um operário), pode se tornar culpado mesmo sem haver plena advertência.

O pleno consentimento se dá quando o ato é de tal maneira voluntário que se possa dizer com toda sinceridade que você fez tal coisa porque quis, e, se você não quisesse, não agiria de tal maneira.

Na prática, para a gente discernir se nossos atos tiveram plena advertência e pleno consentimento, temos algumas dificuldades. Essas dificuldades, no entanto, são boas porque nos permitem um melhor autoconhecimento e, para alguns, podem abrir o campo a estudos mais profundos sobre a Moral cristã.

Existem 2 paixões muito fortes no ser humano: as paixões concupiscíveis (que atentam ao reto exercício da virtude da castidade e que têm como alvo principal a busca do prazer) e as paixões irascíveis (que visam à autopreservação e que levam o homem a não perdoar nem aos outros nem a si mesmo, a irar-se, a aborrecer-se, a brigar etc.). Essas duas paixões tendem a dominar todas as demais.

Na maioria dos seres humanos, os pensamentos não surgem por livre e espontânea vontade. Os pensamentos voam. Você associa uma coisa com outra, e esta com outra, e com outra, e com outra etc. Estamos continuamente com o nosso pensamento em atividade. Quando a gente está para cometer um pecado por pensamento, geralmente, o pensamento pecaminoso não surgiu porque a gente quis. Originou-se de maneira automática. A gente não procurou pensar naquilo. Mormente numa pessoa que já tem uma boa consciência e que anda no temor de Deus dificilmente formará de maneira deliberada desde o início um mau pensamento. Esse tipo de pessoa raramente começa um mau pensamento de caso pensado, de forma premeditada. Quando o mau pensamento vem, a pessoa sequer adverte sua presença. Demora um tempo antes de a gente perceber que estamos pensando em determinado assunto. Quanto mais delicada é a consciência da pessoa, tanto mais rápido isso acontece. Após termos tomado consciência de que estamos pensando em determinado assunto, num segundo momento, percebemos que aquilo que estamos pensando é pecado.

Um cristão com uma consciência formada, se pensa em bater na mulher ou numa revista pornográfica, quase que imediatamente percebe a malícia do seu pensamento.

Às vezes, porém, as coisas não são tão fáceis. Pode acontecer de eu ver um objeto, gostar dele e pegá-lo. Só num segundo momento percebo que aquele objeto está à venda e não é um brinde. Mesmo sendo cristão, só depois que peguei o objeto e saí com ele percebi que aquilo não era uma amostra grátis, e que eu involuntariamente o estava roubando.

Um advogado está pensando em realizar determinada ação. Só mais tarde, quando já está encaminhando a ação, percebe que, no caso em questão, a ação é proibida.

Em todos esses casos, podemos distinguir 3 momentos:

1. Começo a fazer, sem perceber o que estou a fazer; 2. Percebo o que estou a fazer; 3. Percebo a malícia do que estou a fazer.

A partir desse terceiro momento, tenho a advertência plena. Daqui em diante, entra em cena o problema da vontade ou do consentimento. Então, agora o problema é: aceito ou não aceito levar a termo a ação ou o pensamento que comecei a realizar sem plena advertência, mas do qual agora adquiri plena advertência? Geralmente, temos 3 respostas possíveis:

1. Recusa (Alguém está me aborrecendo; sem perceber, penso que um cara destes mereceria morrer; ao perceber o pensamento malicioso, recuso-o e rezo pela pessoa que está a me aborrecer.); 2. Consentimento (Sim, o cara deve morrer mesmo!); 3. Nem recusa, nem consentimento. Isso equivale a um consentimento (Continuo pensando no automático, deixando-me levar por algo que já está aflorando gradualmente na minha consciência.)

Em outros casos, a vontade pode se envolver com o pensamento, antes mesmo que haja plena advertência. Às vezes, mal estamos entendendo a malícia do que estamos pensando, e já estamos consentindo. Logo depois, porém, percebemos com mais clareza a malícia do pensamento, e voltamos atrás quase que imediatamente. De certa maneira, porém, a princípio, houve um consentimento, mesmo que em algo de que não tínhamos plena advertência. Isso não é suficiente para haver um pecado grave. A coisa não estava clara: não tínhamos como não querer, porque ainda não tínhamos uma plena advertência daquilo que estávamos pensando.

Num cristão com temor de Deus, um ato ou um pensamento é examinado, e consentido ou recusado, com certa rapidez. Isso é bom e nos torna senhores de nós mesmos. Isso é bom para a vivência do maior dos mandamentos: o amor. Amar é doar-se a si mesmo. Se você não é dono de si mesmo, você não consegue doar-se por inteiro a Deus, à sua esposa, a seu filho, a seus pais.

Quando, apesar de tudo, subsiste alguma dúvida sobre a existência de consentimento em atos, palavras, pensamentos ou omissões, a regra é a seguinte: no caso de uma pessoa que pratica ordinariamente aquele pecado, se tem dúvida sobre o consentimento, presume-se que ela teve pleno consentimento; no caso de uma pessoa que não pratica ordinariamente aquele pecado, se tem dúvida sobre o consentimento, presume-se que não teve pleno consentimento.

E se houve engano? Isto é: se a pessoa acredita que não teve consentimento, e, contrariamente ao que acredita, teve consentimento? Ou, se pensou que teve, e não teve? Na hipótese em que fulano consentiu e, em toda honestidade, achou que não consentiu, e consequentemente não confessou determinado pecado, ao ser absolvido, será absolvido também do pecado que não confessou em boa fé.

Tudo isso pode parecer burocracia religiosa. Na verdade, faz um bem enorme e ajuda a gente a ter um crescente domínio de si e uma liberdade imensa, podendo dispor de si mesmo, de maneira mais clara e serena. Num casamento, por exemplo, a pessoa que se examina com tal grau de profundidade e de maturidade, não doa ao cônjuge apenas sua vida externa, mas é capaz de doar-se inteiramente, de corpo e alma. As pessoas que não dominam suas paixões são, cada vez mais, joguetes das próprias paixões.

MATÉRIA GRAVE

Para dar os primeiros passos da vida espiritual é necessário entender a diferença entre imperfeição, pecado leve e pecado grave.

De forma geral, todo e qualquer pecado equivale a uma transgressão da ordem. A ordem do universo, da natureza ou das coisas provém de Deus. Em última análise, então, quando nós transgredimos a ordem, estamos contrariando Deus.

A existência de uma ordem entre as coisas criadas é uma das 5 provas da existência de Deus elaboradas por Tomás de Aquino. Todo homem minimamente atento às coisas da natureza, observando a ordem do mundo, percebe dentro de si uma certeza intuitiva, lícita e justa, de que a ordem do universo não pode ser – como dizem alguns – casual, mas deve necessariamente ter um ordenador, que é Deus.

A rigor, nós não podemos ofender a Deus, pois ele é perfeito e inatingível. Mas podemos, de alguma maneira, ofendê-lo, ofendendo a ordem por ele estabelecida ou as criaturas por ele criadas.

Toda transgressão contra a ordem natural representa um pecado, que pode ser leve ou grave.

O pecado leve está entre a imperfeição e o pecado grave.

A imperfeição não é uma transgressão da ordem. A imperfeição ocorre quando o homem pode fazer algo de forma melhor e não o faz. Na imperfeição, porém, não é visível nenhuma transgressão da ordem natural das coisas.

Por exemplo, dois entregadores de pizza têm um contrato com seu patrão: recebem as pizzas, as levam a seu destino, recebem o dinheiro dos clientes e o levam de volta a seu patrão. Executam esse contrato de forma correta. Porém um deles o executa com extrema afabilidade e cortesia, enquanto o outro o executa de maneira seca e sem requintes. Nenhum deles transgride a ordem, mas o primeiro realiza o contrato de maneira mais perfeita, o segundo, de maneira menos perfeita. Se um dos dois entregasse a pizza fria, ou batesse nos clientes, ou roubasse o dinheiro, estaria pecando gravemente, por estar contrariando a ordem do negócio. Os comportamentos contra a ordem ou natureza do negócio afetariam a essência da pizzaria até tornarem o negócio inviável. Tratar-se-ia, então, de pecados, e não mais de simples imperfeições.

A imperfeição não é pecado. Porém, enquanto a gente não se emendar das imperfeições, enquanto a gente não aspirar à perfeição, resultará difícil progredir no caminho espiritual da santidade.

Pecado grave é algo de absolutamente intolerável na vida espiritual. Quem comete um pecado grave está fora da santidade, da intimidade com Deus. O pecado grave é chamado ‘mortal’, porque quem o comete está como morto para a vida da graça.

Vamos apresentar alguns exemplos de pecados graves. Um homem casado, de repente, durante uma discussão, espanca a esposa. A não ser que a esposa seja santa e o perdoe ou que se trate de um matrimônio de maloqueiros, num matrimônio comum, a mulher tem o direito de pedir separação na mesma hora. A mesma coisa vale para o caso de traição. A mesma gravidade tem o insulto de um embaixador ao chefe de Estado do país em que o embaixador exerce seu cargo. A ordem de cada uma dessas esferas (casamento, diplomacia)

foi quebrada em decorrência de uma falta grave, com a consequente ruptura dos laços inerentes à respectiva esfera de ação.

Quando há falta grave, em virtude da gravidade do ato que quebrou a ordem, não adianta pedir perdão. É questão de vida ou de morte: o entregador de pizzas bateu nos clientes? Ou ele é despedido ou a pizzaria fale. O marido espancou ou traiu a esposa? Ou a mulher se separa dele ou corre o risco de morrer ou de ter sua honra seriamente prejudicada. O diplomata ofendeu o presidente do país onde ele exerce seu cargo? Ou é removido ou as relações entre os dois países serão seriamente abaladas.

Aquilo que vai diretamente contra a essência da ordem, de modo a ferir e anular a própria ordem, constitui pecado grave ou mortal.

Qual é a ordem da vida espiritual? Qual é a essência do que Jesus veio fazer? Um dia foi perguntado a Jesus qual é o maior dos mandamentos. Para entendermos profundamente esse episódio, é necessário compreender que, quando Deus criou o homem, deu-lhe apenas uma ordem explícita. O primeiro homem tinha de cumprir a lei natural, a lei inscrita em sua natureza. Deus não revelou, por meio de um texto escrito, qual era essa ordem natural. Deixou que o próprio homem a enxergasse naturalmente. A única ordem que Deus lhe deu foi a de não comer o fruto proibido. Deus confiava que o homem entendesse a ordem natural e a cumprisse, sem ensiná-la expressamente. Porém a ordem de não comer o fruto proibido era mais difícil de entender. Por isso, Deus proibiu-lhe expressamente de comer do fruto do bem e do mal. Evidentemente, quem contrariasse essa ordem cometeria um pecado grave. Por isso, ao comer do fruto proibido, Adão e Eva foram expulsos do paraíso terrestre. Por algum motivo a nós desconhecido, o livro do Gênesis se expressa apenas de forma figurada: a gente não entende bem qual foi o conteúdo real dessa ordem dada por Deus a Adão (provavelmente não devia ser o fruto de uma árvore). Até hoje não temos uma interpretação clara e definitiva. Uma coisa é certa: Deus não queria que se rompesse ou que se transgredisse certa ordem. O homem desobedeceu e foi expulso do paraíso terrestre. Mas, mesmo após o pecado e a expulsão do paraíso terrestre, a lei natural continua a vigorar até hoje. Em virtude de a condição humana se corromper progressivamente, Deus começou a explicitar seus preceitos. Com Moisés, Deus deu a seu povo 10 mandamentos e mais de 600 preceitos. A esse conjunto de leis e preceitos, os hebreus chamaram de Lei Mosaica ou Torá. Quando o escriba pergunta a Jesus qual é o maior mandamento, está querendo saber qual é o maior preceito entre os 10 mandamentos dados a Moisés e os 600 preceitos incluídos na Torá.

Jesus responde: Amar a Deus de todo o coração, de toda a alma, com todo o entendimento e com todas as forças.

Depois, aproveita a oportunidade e, em vez de limitar-se a responder à pergunta do escriba, acrescenta um segundo mandamento: Amar o próximo como a si mesmo. E Jesus acrescenta ainda mais uma coisa: Nesses dois mandamentos consiste toda a Lei e todos os Profetas. Ao dizer ‘Lei’, Jesus está referindo-se aos 600 preceitos da Torá. Ao dizer ‘Profetas’, Jesus está referindo-se à Bíblia. Na tradição cristã, nós falamos de ‘Bíblia’, mas, na tradição judaica, se fala de ‘Lei, Profetas e outros escritos’ (Torah, Nevi’im, Ketuvim). De fato, toda a Bíblia resume-se em amar a Deus e ao próximo como a si mesmo. Toda a lei de Deus está armada em torno desses dois mandamentos. O amor a Deus e ao próximo é a essência, o cerne de toda a Lei de Deus.

Seguindo com o exemplo da pizzaria, a venda e a entrega de pizzas aos clientes são o cerne do negócio. Tudo o que impede essas duas coisas atenta diretamente contra a essência do negócio. Se se quer preservar o negócio, deve-se eliminar o que atenta contra ele. O que atrapalha o negócio, sem, porém, atentar contra a sua essência, incomoda, embora possa ser tolerado, e representa o pecado leve ou venial.

Na diplomacia, a essência é manter boas relações com os governos estrangeiros. Pode-se tolerar qualquer coisa por parte de um diplomático, menos algo que atenta contra as boas relações entre governos. Um diplomata que ofende gravemente um chefe de estado deve ser imediatamente removido, porque atenta diretamente contra a principal razão de ser da própria diplomacia, e representa o que nós entendemos por pecado grave ou mortal.

Em resumo: o que vai contra a ordem, destruindo-a, é pecado grave ou mortal. O que vai contra a ordem sem destruí-la é pecado leve ou venial.

Veremos agora o que vai contra a lei do amor a Deus e ao próximo, para entender mais detalhadamente quais são os pecados graves ou mortais.

PECADOS CONTRA O AMOR A DEUS

Contra Deus, praticamente, a gente não pode fazer nada. Deus é o todo-poderoso, inatingível, inacessível.

Porém as coisas que, de alguma maneira, ofendem a Deus são: ter raiva de Deus, odiar a Deus, blasfemar contra Deus, não crer em Deus. Além disso, são pecados graves contra Deus também os pecados contra a fé, contra a esperança e contra a caridade. Peca contra a esperança quem se desespera do próprio pecado, achando que não tem mais jeito. Peca gravemente contra Deus quem desrespeita as coisas sagradas enquanto tais. Dizer que uma igreja está suja não é pecado grave. Mas dizer com desprezo que a Igreja é podre constitui um pecado grave contra Deus. Também é pecado grave contra Deus colocar-se, indiretamente, contra Ele, dizendo que o mundo está todo errado (assim como aquele que fez o mundo).

PECADOS CONTRA O AMOR AO PRÓXIMO

Aqui as coisas ficam mais difíceis. Comete pecado grave quem ofende o corpo (cortando um membro, por exemplo) ou os bens do seu próximo (roubando ou destruindo algo, por exemplo).

Amar ao próximo, porém, é mais do que isso.

Jesus pede que se amem os inimigos. Mais ainda: Jesus pede para que nós rezemos pelos nossos inimigos e que os perdoemos 70 vezes 7, isto é, sempre.

Rezar só tem sentido se se pede a vida eterna. Quem reza quer o paraíso, quer estar próximo de Deus. Rezar pelos inimigos ou por qualquer um, então, só tem sentido se for pela salvação e pela vida eterna da pessoa pela qual se reza. A vida eterna é o maior dos bens. É muito maior que o reino da Inglaterra, que a presidência da república, que a fortuna de Bil Gates. O que há de melhor neste mundo e que poderia ser desejado a alguém é nada em comparação ao Céu. Um casamento feliz, uma família numerosa, rica, cheia de bens, bem-sucedida, nada são perto da vida eterna. Rezar pelos inimigos, então, significa querer para eles um bem imenso, o maior bem possível, isto é, a vida eterna. Rezar pelos inimigos é muito mais que desejar-lhes tudo de bom. Implica uma benevolência fora do comum. Para a pior das pessoas, Jesus nos convida a desejar o maior dos bens. No fundo, só pode amar ao próximo quem ama a Deus, pois amar ao próximo é querer seu bem. E o bem maior do homem é a vida eterna, a intimidade com o próprio Deus. Quem não ama a Deus não tem como estimar a vida eterna. Quem não ama a Deus não tem como desejar que os outros se encontrem com Deus. Quem não ama a Deus não pode desejar Deus para os outros. Quem não ama a Deus, no máximo, pode ter certa simpatia pelos outros. O amor ao próximo, então, está indissoluvelmente ligado ao amor a Deus. Tudo o que vai contra o amor ao próximo, contra a benevolência para com os outros é pecado grave.

Xingar é pecado mortal. Atenção para não confundirmos xingamentos com a avaliação de uma pessoa. Avaliar é, por exemplo, atestar que alguém não pode ser contratado para determinado ofício em virtude de não possuir determinada competência. Xingar é falar ao outro ou do outro com a intenção de machucar ou denegrir.

Por exemplo, um empresário quer contratar meu filho para um cargo importante. Eu, porém, aviso esse empresário de que meu filho não tem aptidão para o cargo. Nesse caso, não estou xingando ou agindo de maneira pecaminosa em prejuízo dele. Desejo o Céu para meu filho, mas digo a verdade ao empresário. Trata-se de uma avaliação técnica, e não de malevolência.

Jesus compara a atitude de quem xinga alguém à de quem mata, e diz que os dois são réus do inferno. O melhor texto para entender isso é o tratado Sobre o amor ao inimigo, de Santo Afonso de Liguori. Esse texto explica em que consiste a benevolência para com o próximo. Tudo o que nós fazemos suprimindo o amor e transmitindo sinais de inimizade é pecado grave.

Por exemplo, o filho que desrespeita o pai, ferindo-o com palavras, comete um pecado grave.

Se alguém briga com você, e você não o cumprimenta mais de caso pensado, você cometeu um pecado grave. É como se você lhe dissesse que ele está fora da lista dos seus amigos. Um dia, esse seu ‘inimigo’ pode converter-se e ir ao céu. Como será então o encontro de vocês dois lá no Céu? O céu é um lugar feliz, onde não há lugar para ressentimentos ou divisões. Aqui na terra, então, devemos nos tratar como se já estivéssemos no Céu.

Por outro lado, excluir alguém do próprio convívio, porque representa um perigo para a nossa segurança ou a segurança da nossa família, não constitui pecado grave. É lícito, necessário, e é mostra de grande prudência.

Há uma lista de colegas da escola. Você convida todos para seu aniversário, menos um que brigou com você. Isso é pecado grave. Você não pode excluir alguém por vingança, por rejeição ou malevolência. Se esse alguém, porém, na última festa quebrou todas as portas e janelas, você o está excluindo, porque não quer que destrua a sua casa. Nesse caso, a exclusão é lícita.

O roubo é pecado grave, porque provoca prejuízo material a alguém. Se alguém foi roubado, pode entrar na justiça para reaver as coisas roubadas, chegando a poder denunciar o autor

do roubo, para prevenir outros furtos. O que não pode fazer é alimentar um desejo de vingança em relação ao ladrão.

Se alguém estupra, você deve denunciá-lo, porque, caso contrário, ele vai estuprar outras pessoas. Porém não se deve ter raiva dele, pois há de se ter benevolência para com todos.

O juiz deve condenar o réu à pena justa, mas não por ódio ou por vingança, mas por justiça, por defender a sociedade contra a desordem e o crime.

A ira, em geral, só é pecado grave quando é dirigida contra Deus (na blasfémia, por exemplo) ou contra o próximo. Quando não é dirigida contra alguém, é apenas uma desordem. Por exemplo, você perdeu o emprego de maneira injusta. Você está arrasado, revoltado, não se conforma. Passou dois dias só pensando nisso. Não dormiu direito, não comeu direito. Na rua, chutou uma pedra. Tudo isso representa uma desordem. Se perdeu o emprego, já não há mais o que fazer, a não ser, sempre que possível, entrar na justiça para ter o emprego de volta. A psicologia do homem não foi feita para se revoltar ou pensar coisas ruins. A psicologia do homem foi criada para pensar e fazer o bem, para contemplar a Deus e falar bem dele. Dois dias passados na angústia são dois dias de vida perdidos. Mas ainda assim, não há nisso pecado grave. Se, porém, em determinado momento, você pensa ou diz que queria estrangular o fulano que o despediu, mesmo que não fosse verdade, já é pecado grave, porque, esse ato, ao ser plenamente advertido e consentido, foi contra a benevolência ao próximo.

Tomás de Aquino ensina, porém, que além dos pecados contra Deus e contra o próximo, há outro tipo de pecados graves ou mortais. São os pecados contra a sexualidade. Esse tipo de pecados não parece estar na lista de Jesus, o qual só fala de pecados contra Deus e contra o próximo. Tomás de Aquino diz que os pecados contra a sexualidade parecem não estar na lista de Jesus sobre os pecados graves, mas estão. A sexualidade, na realidade, está dentro do amor ao próximo. E os pecados contra a sexualidade são, portanto, pecados contra o próximo.

A vida que hoje levamos é tão desregrada que os pecados contra a sexualidade parecem não ter nada a ver com os pecados contra o próximo. No entanto não é assim. Apresentaremos a seguir os dois principais motivos pelos quais a sexualidade tem tudo a ver com o amor ao próximo.

1. A sexualidade envolve a vida humana. Fazer sexo não é como comer um bombom de chocolate ou como escutar uma música. Comer bombons e escutar música são atividades

que propiciam prazer em si. É evidente, porém, que usar da sexualidade própria e alheia envolve mexer com a vida, pois nossos órgãos reprodutores são feitos para gerar a vida. A geração da vida dos seres humanos, porém, não é como a dos demais animais, que, em muitos casos, logo após nascerem se tornam independentes dos pais. Antes de chegar à sua plena maturidade, o ser humano precisa ser mantido e formado numa família. E a família só existe onde houver sexualidade. A família é uma consequência natural do amor dos esposos (de sexos diferentes) e está vinculada à sua intimidade sexual. Todo amor e carinho que se tem pelos filhos depende do amor que se tem pelo cônjuge, que por sua vez depende da intimidade sexual. Então a sexualidade inclui a dignidade da vida humana. Isso porque a sexualidade é biologicamente necessária para gerar um ser humano. Diz Tomás de Aquino que a dignidade que a vida humana tem é em parte a mesma dignidade que a sexualidade tem. Se a vida humana tem uma dignidade que deve ser respeitada, a sexualidade humana, por conter a vida humana em potência, compartilha também da mesma dignidade. O mesmo respeito que devemos ao próximo o devemos também à sexualidade nossa e do próximo. Assim como não podemos usar as pessoas como se fossem objetos, também não podemos usar a sexualidade como se fosse um objeto.

2. Já vimos que uma criança, após gerada, precisa de uma família para ser conduzida até a sua plena maturidade. Sem uma vida sexual ordenada não há condições de manter uma família ordenada à formação de filhos.

Vamos falar agora mais detidamente de matrimônio, para entendermos a fundo a relação que passa entre sexualidade, matrimônio, família e educação dos filhos.

Após a vinda de Jesus, o matrimônio foi elevado a sacramento. Antes, porém, não havia matrimônio enquanto sacramento. Apenas existia o matrimônio de direito natural, instituído por Deus, na criação da humanidade. Portanto é necessário distinguirmos entre matrimôniosacramento e matrimônio de direito natural.

MATRIMÔNIO DE DIREITO NATURAL

Adão vivia no paraíso terrestre num grau de intimidade com Deus superior ao que nós temos hoje, embora não se tratasse ainda da visão face a face, própria só do paraíso celeste. Se Adão perseverasse até o fim, aproveitando as facilidades do paraíso terrestre (os chamados dons preternaturais), um dia, seria admitido à visão face a face de Deus, no paraíso celeste. No paraíso terrestre, porém, Adão não se sentia bem. Sentia falta de uma companheira. Deus deu-lhe então uma companheira e os uniu em matrimônio. Adão exclama: Essa é carne da minha carne, osso dos meus ossos. E Deus dirá: O homem e a mulher deixarão seus

respectivos pais e se unirão numa só carne. Dali em diante, os seres humanos, mesmo após a expulsão do paraíso terrestre, continuam a casar-se. A esse matrimônio, nós chamamos de matrimônio de direito natural.

Na ordem natural, o matrimônio é um contrato de direito natural entre duas pessoas, em virtude do qual os dois se dão reciprocamente o direito sobre os próprios corpos para a procriação da prole. Você é dono do seu corpo; sua esposa é dona do corpo dela. Você doa a ela o seu corpo; ela doa a você o corpo dela, para aqueles atos que, segundo a ordem natural, são atos que a natureza instituiu para gerar prole.

Todo ser humano sente falta de uma companheira. Com ela quer ter um relacionamento inclusive sexual, por meio do qual se gera prole.

Mas quais são as finalidades de um matrimônio de direito natural?

1. Geração de prole e formação de uma família.

2. Auxílio mútuo dos esposos. Uma pessoa que sabe que não pode ter filhos, desde que não exerça atos diferentes daqueles que a natureza instituiu para gerar prole, pode casar licitamente. Por isso, mesmo o idoso ou o estéril podem casar-se, mas não podem exercer atos sexuais contrários à natureza. O matrimônio de direito natural não compreende o coito anal, o coito oral, o coito interrompido e demais atividades anormais e contrárias à natureza. A anticoncepção (temporária ou definitiva), assim como as atividades sexuais contrárias à natureza, são violação do contrato matrimonial natural.

3. Remédio da concupiscência. Certas pessoas percebem que não conseguem ficar sem sexo. Se não casarem, vão fornicar, adulterar, sofrer pensamentos obsessivos ou viver desregradamente sua vida sexual. Casar para remediar à própria concupiscência não é ilícito ou incorreto, embora não seja o melhor motivo para alguém casar. O casamento de direito natural engloba os três objetivos, e dos três este último é o menos importante. No direito natural, a pessoa pode casar-se tendo um desses três motivos como principal. O ideal seria que o principal motivo fosse o de gerar prole e formar uma família. Apesar disso, porém, o fulano que, sem excluir o primeiro e o segundo motivo, casasse principalmente para pôr um remédio à sua concupiscência, não estaria errado.

Então, em síntese, o matrimônio de direito natural é isto: um indivíduo entrega a outra pessoa, de maneira única ou exclusiva (sem ter nem querer ter vários parceiros), indissolúvel (até a

morte de um dos dois cônjuges), o direito sobre o próprio corpo, naqueles atos que a natureza instituiu para produzir prole, com as finalidades de formar uma família, prestar-se auxílio mútuo e ser remédio da própria concupiscência.

Pessoas não religiosas, carecendo da graça sobrenatural, não seriam capazes de viverem, casta e fielmente, se não fosse pela união matrimonial como remédio à concupiscência. Pessoas religiosas, além da ajuda natural constituída pelo próprio matrimônio como remédio da concupiscência, têm a graça de Deus que lhes permite serem castas e fieis.

Entre os recursos naturais, o matrimônio de direito natural é o recurso que a natureza fornece para que uma pessoa que não vive na graça se mantenha casta e fiel a seu cônjuge.

A princípio, o matrimônio de direito natural, para que seja válido, não é obrigado a acontecer em cartório, igreja ou em cerimônia formal e pública. Para a Igreja, qualquer acordo sério vale. Se você quisesse casar com alguém, e, em segredo, os dois se jurassem amor eterno e manifestassem a intenção de formar uma família e de ser fiéis um ao outro, o casamento já aconteceria e os dois poderiam começar a viverem juntos. Hoje, porém, a Igreja, pelo Direito Canônico, exige que se faça acordo perante um padre e duas testemunhas, porque a natureza humana é tão fraca que a pessoa pode prometer e, depois, renegar ou desconhecer sua promessa.

Em todas as culturas, o matrimônio é uma prática tão séria que, mesmo não havendo obrigação de direito natural, é celebrado publicamente e com muitas honras.

O grande problema do matrimônio de direito natural, especialmente hoje, num cenário de avançada corrupção moral, é que impede o desenvolvimento espiritual. O matrimônio de direito natural, na maioria dos casos, é sufocado por ciúmes, feridas, traições, confusões, doenças de filhos, falta de emprego etc. Dentro da vida matrimonial e familiar, são escassas as oportunidades e ocasiões para rezar e crescer espiritualmente. Para uma pessoa casada por direito natural, já é tarefa árdua manter-se católica praticante. Pareceria, portanto, que a vida espiritual só estaria reservada aos celibatários.

Isso, porém, vai de encontro ao que Jesus de fato pregou. Jesus veio chamar todos à salvação. Os primeiros monges da história do cristianismo só apareceram 250 anos após Cristo. Os primeiros cristãos eram todos casados. Aos poucos, alguns consagraram-se e começaram a viver uma vida celibatária. Porém o evangelho se dirige a todos (solteiros, casados, consagrados, celibatários etc.). No capítulo 7 da 1ª carta aos coríntios, existe um

convite explícito a abraçar a castidade perfeita, isto é, o celibato. No entanto o evangelho como um todo é dirigido a todo homem.

Aparentemente, então, Jesus incorre numa contradição. Ou ele nos diz claramente que a santidade é só para os celibatários, e os casados ficam fora. Ou então Deus mentiu: chamou a todos, mas, na prática, os casados não têm como cultivar uma vida profundamente cristã.

Jesus resolve essa aparente contradição ELEVANDO O MATRIMÔNIO A SACRAMENTO.

Veremos agora o que é o matrimônio como sacramento.

Segundo a doutrina cristã, para que o matrimônio seja sacramento, basta que os que se unem por direito natural sejam batizados. É o batismo dos dois que faz com que o contrato natural se torne automaticamente um sacramento. Se por acaso os cônjuges se casaram por direito natural quando ainda eram pagãos, no momento em que o segundo cônjuge for batizado, o contrato natural deixa de ser um contrato natural ‘apenas’ e passa a ser ‘também’ um sacramento. O que faz com que um matrimônio de direito natural seja também um sacramento é o batismo, prévio ou posterior, ‘dos dois’.

O batismo não é apenas uma formalidade. Tampouco apenas apaga o pecado original. O batismo nos transforma em cristãos, em filhos de Deus. Supõe-se que uma pessoa batizada queira ser santa e entrar no paraíso celeste. Duas pessoas batizadas e casadas supõe-se que desejem a santidade. Todo sacramento é sinal eficaz que realiza aquilo que significa.

O batismo representa uma lavagem ou banho. Produz então a regeneração espiritual pela graça que ele confere.

A confissão representa um tribunal. E é realmente um tribunal, onde somos julgados e absolvidos, se houver arrependimento sincero e propósito firme de não voltar a pecar.

A eucaristia simboliza um sacrifício (presença do altar) e uma refeição (presença da mesa), e é realmente uma refeição espiritual para a alma, que nela adquire graça e amor.

O matrimônio representa a união entre Cristo e a Igreja, ou entre Jesus e os santos, que constituem seu corpo místico. Em virtude disso, o matrimônio realmente produz aquilo que significa: a união dos esposos. Por isso, na Carta aos Efésios, Paulo exorta os maridos a amarem suas esposas como Cristo ama a sua Igreja, e exorta as mulheres a amarem seus esposos como a Igreja ama a Cristo.

Isso quer dizer que Cristo acrescenta ao matrimônio uma quarta finalidade, que não existe no matrimônio de direito natural. A graça sacramental realmente dá aos esposos cristãos o auxílio sobrenatural para que eles se amem com o mesmo amor que existe entre Cristo e a Igreja. O marido deve amara a esposa como Cristo ama a Virgem Maria, ou São Francisco ou qualquer outro santo. A esposa deve amar o marido como São Francisco amou a Cristo ou como Nossa Senhora amou seu filho. A esposa deveria receber o marido que chega a casa como se estivesse recebendo a eucaristia. O marido deve sentar-se à mesa que a esposa preparou como se estivesse recebendo a hóstia sagrada ou como se a própria Virgem Maria estivesse aparecendo diante dele.

Então: no matrimônio de direito natural, casa-se para se ter uma família, uma companheira e como remédio à concupiscência. No matrimônio sacramental, casa-se, para se ter uma família, uma companheira e como remédio à concupiscência, e para aprender a amar a esposa com o mesmo amor que se deve a Deus. Treina-se com a esposa o mesmo amor que se deve a Deus na oração ou na eucaristia. Toda a vez que você está diante da sua esposa, é como se estivesse diante de Deus, praticando com ela o amor que deve a Deus.

Dessa maneira, o matrimônio sacramental, em vez de distrair da vida espiritual, vai concentrar e potencializar a vida espiritual. Para isso, o cristão casado, com o auxílio da graça de Deus, deve pôr em ato com a esposa as mesmas práticas usadas para aprender a amar a Deus.

O matrimônio sacramental pressupõe o matrimônio de direito natural. Tudo o que há no matrimônio de direito natural está no matrimônio sacramental. No matrimônio sacramental, porém, há mais. Se olharmos para o matrimônio sacramental sem compreender que nele há também o matrimônio de direito natural, não compreenderemos a fundo todo o seu alcance.

O matrimônio de direito natural pressupõe a sexualidade. Pode haver matrimônio sem atividade sexual, mas não pode haver matrimônio sem sexualidade. Caso contrário, poderia haver matrimônio entre homens ou entre mulheres. A sexualidade está sempre presente no matrimônio, mesmo quando não se pratica a atividade sexual, como no caso de José e Maria ou no caso de alguns casais de idosos.

Para a maioria esmagadora da população (haja vista que a maioria hoje em dia casa, e só uma exígua minoria escolhe a vida celibatária), o matrimônio sacramental é o caminho ordinário de santificação, a única chance de ser santo.

O matrimônio então é faca de dois gumes: ou é vivido como caminho privilegiado de santificação, ou se torna empecilho no caminho de santidade.

A sacramentalidade do matrimônio pressupõe uma vida sexual regrada. Se desregrarmos nossa vida sexual, acabamos com nossa única chance de santificação. Se a vida sexual de uma pessoa está desregrada, a graça de Deus não poderá permanecer nela.

A sexualidade então está ligada ao amor ao próximo. O casal só pode santificar-se por meio de um amor transcendente e exclusivo entre os dois. Não se pode dar esse tipo de amor a qualquer um, a um amigo, ou a outra pessoa do outro sexo. É um tipo de amor que só pode existir entre duas pessoas casadas sacramentalmente. A sexualidade faz parte do amor ao próximo, porque ela é parte essencial do contrato matrimonial de direito natural e do contrato matrimonial sacramental. Não existe caminho de santidade fora do matrimônio para alguém que está casado. O primeiro mandamento do amor ao próximo para uma pessoa casada é o amor ao esposo ou à esposa. Tal amor se dá também por intermédio da sexualidade.

A pessoa casada ou o solteiro que futuramente se casará, quando estragam sua sexualidade, estão estragando a única chance de se santificar.

Não existem pecados contra a castidade que possam ser considerados leves em si, quando plenamente advertidos e consentidos.

No sexto mandamento do Decálogo, Deus proibiu o adultério e, por extensão, todo pecado contra a castidade. Jesus afirma com toda seriedade que também quem olha uma mulher com desejo deve ser considerado adúltero. E Jesus tem a mesma atitude com relação ao quinto mandamento: quem diz cretino a um irmão deve ser considerado assassino. Um simples pensamento ou olhar devem ser equiparados aos piores pecados em Israel: o adultério e o assassínio. Mas por que, segundo Jesus, um simples pensamento ou olhar constituem pecado grave em matéria de castidade e sexualidade?

Tomemos o exemplo de uma imagem pornográfica. Que mal pode haver em olhar?

1. É algo que vicia. A pessoa que aprecia uma imagem pornográfica, mais tarde, vai querer ver outra e outra e outra, e com sempre mais ousadia.

2. Normalmente, na pornografia, se usam homens e mulheres bonitos. Quem usa pornografia tem encontros sexuais com homens e mulheres de alto padrão de beleza. E, se hoje se usou a imagem de uma mulher, amanhã vai se recorrer à imagem de uma mulher diferente. A

tendência é a levar esse comportamento para a vida real, transferindo para os relacionamentos reais a lógica de usar e descartar. Certo dia, você conhece alguém de quem gosta: namora, noiva e casa. Haverá muita chance de que o marido ou a mulher não estejam à altura da beleza dos modelos vistos na pornografia. Você prometeu ser fiel na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, até que a morte não os separe, mas sua sexualidade já está desregrada, seu corpo e sua mente foram sendo programados a se relacionarem de forma egoísta com belas mulheres, sempre diferentes, que vinham sendo descartadas após serem usadas. Os pecados sexuais, quando se instalam na pessoa, viram HÁBITOS difíceis de serem erradicados. Alguns homossexuais, quando ainda não eram homossexuais, foram colocados em contato com certas práticas, das quais no começo podem até não ter gostado. Depois, porém, acostumaram-se e passaram a gostar, e hoje não querem mais ter outro tipo de atividade sexual. Algumas crianças abusadas que entraram em contato com práticas sexuais depravadas, depois que casam, continuam sonhando e desejando tais práticas. Desvios da vida sexual, mesmo pequenos, grudam na pessoa e provocam um dano tremendo à sua vida espiritual. Hoje, muito mais, porque, além da liberalização sexual, se prega a licitude de outros relacionamentos sexuais, também no âmbito da educação infantil e juvenil, chegando a programar a mente e o corpo de crianças, adolescentes e jovens para modelos de relacionamento sexual que não têm nada a ver com o matrimônio.

Todo pecado contra a sexualidade é grave se for plenamente advertido e consentido. E deixa marcas terríveis inscritas no próprio corpo, colocando em sério perigo a vida futura de castidade e a possibilidade de santificação.

O entregador de pizza que surra o cliente normalmente tem uma percepção clara de que seu gesto é intolerável para a sobrevivência do negócio. Infelizmente, porém, a maioria dos que se envolvem com pecados sexuais nunca saboreou a vida da graça, nunca se encontro num processo de crescimento espiritual. Por causa disso, a maioria sequer consegue entender a relação existente entre pecado sexual e santificação, ou entre pecado sexual e amor ao próximo, ou entre pecado sexual e graça santificante. Só quem já se encontra num caminho de graça e santificação pode enxergar a condição miserável de quem cai no pecado, afugenta a graça e bloqueia a conversão.

Hoje a sociedade neopagã está fazendo de tudo para que solteiros e casados acabem com a única chance de santificar-se através do uso regrado da sexualidade dentro do matrimônio.

Pecado grave, então, é tudo o que vai contra o amor a Deus e o amor de Deus; contra a benevolência ao próximo; contra a castidade.

O que vai contra a ordem de Deus, porém sem ferir a Deus, ao próximo ou à castidade, é pecado leve ou venial. O que não vai contra a ordem de Deus, mas poderia ter sido feito melhor, não é pecado, mas imperfeição.

Tomás de Aquino entendeu que o homem tem paixões desordenadas, que podem ser unificadas em dois grandes grupos: paixões do concupiscível, como gula, alcoolismo e sexo; paixões do irascível, como raiva e ira.

As paixões impedem a inteligência de funcionar. Ao buscar a verdade, a inteligência precisa da ajuda da imaginação. As paixões podem exercer grande influência na imaginação. Ao ficar com raiva de alguém, posso imaginar-me batendo nele. Ao cobiçar algo, posso imaginar-me na posse do objeto de meus desejos. As paixões não deixam a imaginação em paz. Por isso, sob o efeito de uma paixão, não é possível um desenvolvimento normal da inteligência. Às vezes, as paixões sequestram a inteligência, pondo-a a seu próprio serviço. O fulano que se ama desordenadamente usa a própria inteligência, não para servir os outros, mas para se promover e alcançar sucesso e poder. A inteligência, sob o efeito das paixões, em vez de enxergar o mundo como ele é, enxerga o mundo como ela gostaria que fosse.

Jesus então simplificou a Lei Moral: resumiu 600 preceitos e 10 mandamentos em apenas dois preceitos: amar a Deus e amar ao próximo, de onde deriva também a obrigação de ser castos.

A pessoa que aprendeu a dominar a mais forte das paixões do concupiscível, o apetite sexual, controla todas as demais do concupiscível.

Entre as paixões do irascível, a mais difícil de ser dominada é o medo da morte iminente. É difícil o controle dessa paixão. Uma via para aprender a dominá-la é praticar o respeito ao próximo. A pessoa que, sinceramente, respeita o próximo, perdoando, sendo amável, não pensando mal dos outros, adquire o controle do irascível, e, na hora da morte, poderá ter a surpresa de saber morrer honradamente, sem excessivo descontrole.

A pessoa verdadeiramente paciente e casta começa a ter o gosto das coisas de Deus. Adquire liberdade interior e está livre para buscar as moradas interiores de Santa Tereza de Ávila.

Jesus, durante sua passagem neste mundo, ao sagrar Pedro como primeiro pontífice, disselhe que tudo o que ele ligará na terra seria ligado no céu. Deus deu a graça à Igreja e ao

Papa de, sem desrespeito da lei divina enquanto tal, e em benefício dos fiéis, poderem acrescentar alguns mandamentos.

A Igreja então promulgou cinco mandamentos. Estes mandamentos não versam sobre matéria grave, mas passam a constituir matéria grave, pois assim a Igreja o exige.

1. Deve-se assistir à Missa inteira nos domingos e dias santos, abstendo-se de trabalhar, sob a pena de incorrer em pecado grave.

SANTÍSSIMA MÃE DE DEUS (1º de janeiro) CORPUS CHRISTI IMACULADA CONCEIÇÃO (8 de dezembro) NATAL EPIFANIA (6 de janeiro) ASCENSÃO (quinta-feira após os quarenta dias após a Páscoa) PEDRO E PAULO (29 de junho) ASSUNÇÃO DE MARIA (15 DE AGOSTO) TODOS OS SANTOS (1º de novembro) SÃO JOSÉ (19 de março) DOMINGO DE RAMOS DOMINGO DE PÁSCOA DOMINGO DE PENTECOSTES SANTÍSSIMA TRINDADE

Deixar de assistir à Missa nos domingos e dias santos, a princípio, não deveria ser pecado grave, pois Jesus só pediu para assistir à Missa, sem dizer quando. Porém a Igreja entendeu por bem especificar que há uma obrigatoriedade nos domingos e dias santos. Considerando que Jesus deu à Igreja o poder de ligar e desligar, o mandamento do preceito dominical é então legítimo.

Faltar à missa dominical e em dias santos é pecado grave se a pessoa já foi batizada. A obrigação só começa a partir do batismo. Para as crianças já batizadas, a obrigação só começa a partir dos 7 anos de idade.

2. A Igreja determina também que todo cristão batizado deve confessar-se pelo menos uma vez ao ano. A princípio, Jesus previu que a confissão fosse obrigatória só para as pessoas que estão em pecado grave. Se alguém passar um, dois ou cinco anos sem cair num pecado

grave não deveria ser obrigado a confessar-se. Mas a Igreja entendeu para o bem dos fiéis que houvesse pelo menos uma confissão por ano.

3. Também todo cristão com batismo e primeira comunhão deve comungar pelo menos uma vez por ano, de preferência no tempo pascal, que vai da Páscoa até a Ascensão.

4. Todo cristão adulto deve também jejuar e abster-se de comer carne, na Quarta-Feira de Cinzas e na Sexta-Feira Santa. São dispensados da obrigatoriedade os cristãos com mais de 60 anos. Considera-se jejum um leve café da manhã, um almoço leve e um lanche da tarde leve. Quem desejar, pode fazer um jejum mais rigoroso.

5. Todo cristão é obrigado, conforme suas possibilidades, a ajudar a Igreja em suas necessidades. O dízimo não consiste necessariamente no 10%.

Resumindo, é pecado mortal ou grave contrariar o amor devido a Deus, contrariar a benevolência devida ao próximo, contrariar a castidade relativa ao estado de cada um (solteiro, casado, celibatário), contrariar os cinco mandamentos da Igreja.

Todas essas regras não visam a prender o homem, mas a libertá-lo. É como se alguém tivesse da fazer uma viagem longa e arriscada, e outro que o ama muito quisesse ajudá-lo, colocando ao longo do caminho várias placas, avisos e alarmes, para indicar-lhe a direção certa e alertá-lo sobre eventuais perigos. O viajante obviamente está livre para ignorar placas, avisos e alarmes. Está livre para pensar que todas essas coisas são expedientes para cercear e limitar sua liberdade. Pode então sair do caminho indicado e fazer suas próprias experiências. Depois, porém, não pode reclamar de não ter sido avisado.

QUARTO MANDAMENTO HONRAR PAI E MÃE

Antes de começarmos a falar sobre o Quarto mandamento do Decálogo, faremos um breve resumo das aulas anteriores.

Na 1ª aula, falamos sobre o que é um sacramento e sobre como devemos nos aproximar dos sacramentos, com fé e devoção, para que eles produzam em nós efeitos abundantes, apesar de que eles operam por si, se a pessoa tiver um mínimo de disposição.

Na 2ª aula, falamos sobre o sacramento da confissão. Dissemos que a confissão tem seis elementos: exame de consciência; arrependimento; propósito; acusação em espécie e número; absolvição; penitência.

Ao prepararmos uma boa confissão, devemos verificar se preenchemos os primeiros quatro requisitos. Antes de comparecermos diante do padre confessor, devemos fazer atento exame de consciência, reconhecendo nossos pecados; em seguida, devemos nos arrepender deles, pelo menos dos graves ou mortais; a seguir, devemos fazer o firme propósito de nunca mais voltarmos a cometê-los, mesmo tendo consciência da nossa fraqueza. Já diante do padre confessor, devemos acusar nossos pecados dizendo a espécie de cada um e o número de vezes que os cometemos. Não precisamos entrar em detalhes secundários. Só importam os detalhes que aumentam ou diminuem a gravidade do pecado. A confissão é um tribunal, não uma terapia. Nesse tribunal, quem se confessa desempenha o papel de acusador de si mesmo. O juiz é Deus. Se tudo der certo, Deus está sempre disposto a nos absolver, em nome da Santíssima Trindade e pelos méritos de Cristo. A penitência, embora possa consistir em outra coisa, normalmente, consiste numa oração. Na verdade, a penitência dada pelo padre é só simbólica, pois neste mundo não há penitência que possa obter-nos o perdão dos nossos pecados ou que a gente possa fazer em troca do pecado. Quem fez a verdadeira penitência foi Jesus na cruz. A nossa penitência de alguma maneira se une à verdadeira penitência de Jesus na cruz. Só assim é que adquire eficácia.

Na 3ª aula, falamos sobre a diferença entre pecado grave ou mortal e pecado leve ou venial. Para haver pecado grave, se requerem três requisitos: matéria grave; plena advertência; pleno consentimento.

Matéria grave é tudo o que atenta gravemente contra a lei de Deus. Algo imperdoável, que rompe, de maneira incompatível, a ordem estabelecida por Deus.

Plena advertência é a clara percepção da malícia que ocorreu ao se realizar determinado ato, mesmo que não se saiba explicar de que malícia se trata. A gente sabe que agiu com malícia, mas não sabe explicar que malícia é essa. Também pode acontecer de a gente não ter essa advertência, porque deixou negligentemente de estudar a doutrina ou porque conduziu vida tão desordenada que nos cegou ou nos corrompeu a tal ponto de perdermos essa consciência ou sensibilidade para advertirmos quando estamos praticando algum mal. Nesses dois casos, a gente peca, mesmo sem advertência.

Pleno consentimento é o exercício deliberado que se faz da própria liberdade e da própria vontade. Se o homem quisesse não pecar, conseguiria não pecar. Portanto, se pecou, é porque quis.

Na confissão, a gente é obrigado a arrepender-se de todos os pecados graves, sem exceção. É obrigado também a comprometer-se a não praticar mais nenhum pecado mortal. A confissão dos pecados veniais é facultativa. A doutrina admite que eu possa confessar-me sem acusar-me dos pecados leves cometidos e, inclusive, sem estar arrependido de ter cometido pecados leves.

Toda essa doutrina que está sendo aqui apresentada foi retirada pelo prof. Donato das Questões Disputadas sobre o Mal, de Tomás de Aquino.

Peca-se gravemente quando se odeia ou se rejeita conscientemente Deus e todos os dons que dele provêm.

Peca-se gravemente quando não se ama o próximo. Não amar o próximo significa não amá-lo como se ama a Deus (com todo o afeto, a alma, as forças). Não se trata apenas de não matar ou de não prejudicar os outros. Trata-se de ter benevolência para com todos, inclusive para com os inimigos. Odiar alguém, mesmo que inimigo, vai contra o 2º mandamento de Jesus. A gente só pode afastar-se de alguém para preservar-se, no caso de alguém que queira matarnos ou derrubar-nos ou prejudicar-nos.

Comemorar, por espírito de vingança ou de revanche, uma pena infligida a alguém, ainda que justamente, é pecado grave. Pode ser que o condenado tenha agido injustamente e que tenha merecido a pena. Pode ser que o juiz que cominou a pena tenha agido retamente, sem espírito de vingança. Mas qualquer um que tenha comemorado, por espírito de vingança, uma condenação à morte, ou detenção, ou prisão perpétua, ou de trinta anos, ou qualquer outra punição, comete pecado grave, porque desejou o mal a outra pessoa, sendo que, por mandamento divino, deveria ter-lhe desejado o bem.

Também xingar alguém, por raiva ou mesmo sem raiva mas com o intuito de humilhar, é pecado grave contra o mandamento do amor ao próximo.

A melhor explicação para isso está no texto de Santo Afonso de Liguori, O Amor ao Inimigo.

Por extensão do amor ao próximo, também os pecados contra a castidade são graves.

Em primeiro lugar, porque a sexualidade contém o ser humano em potência. Pecar contra a sexualidade equivale a pecar contra a vida em potência.

Em segundo lugar, porque, enquanto a sexualidade animal foi feita apenas para a reprodução, a sexualidade humana foi feita para criar uma família dentro da qual ocorre a concepção, gestação, geração e criação do ser humano. Se a família, além de natural, é também cristã, dentro dela, os seres humanos não apenas são gerados e criados, mas aprendem também a se amar do mesmo amor com que amam a Deus.

Além de haver pecado grave quando se ofende Deus, o próximo e, por extensão, a castidade, há pecado grave também quando se ferem alguns mandamentos estabelecidos pela Igreja, com base na autoridade a ela outorgada por Cristo, em virtude da qual tudo o que Pedro liga ou desliga na terra é ligado ou desligado também no céu.

Práticas adivinhadoras, magia negra, bruxaria e coisas do gênero também são consideradas pecados graves contra Deus. À primeira vista, parecem uma burrice. Normalmente, porém, essas práticas abrem portas de comunicação com espíritos maus.

A partir desta quinta aula até chegarmos à vigésima quarta aula, comentaremos os dez mandamentos de Deus, os cinco mandamentos da Igreja e algumas questões morais.

Os dez mandamentos que Deus confiou a Moisés compreendem três primeiros mandamentos que se referem ao amor a Deus mais sete mandamentos que se referem ao amor ao próximo. A Igreja, no Catecismo, nos ensina os mandamentos com algumas adaptações em relação à sua versão original. 1º mandamento – Amar a Deus sobre todas as coisas. Na versão original, se diz: Eu sou o Senhor teu Deus. Não terás outros deuses fora de mim. 2º mandamento – Não tomar o santo nome de Deus em vão. 3º mandamento – Guardar domingos e festas. Na versão original, se diz: Guardar o dia de Sábado. 4º mandamento – Honrar pai e mãe. 5º mandamento – Não matar.

6º mandamento – Não pecar contra a castidade. Na versão original, se diz: Não adulterar. Roubar a esposa ou o esposo de alguém é mais do que roubar-lhe um objeto. A esposa ou o esposo é algo que já faz parte da pessoa. 7º mandamento – Não roubar. 8º mandamento – Não levantar falso testemunho. É o roubo da fama. Dependendo das circunstâncias, perder a fama pode ser pior do que perder coisas, pois neste caso não se consegue mais viver em sociedade. 9º mandamento – Não desejar a mulher do próximo. 10º mandamento – Não desejar as coisas alheias.

Nesses dois últimos mandamentos, não se proíbe que se deseje algo igual ou semelhante ao que outra pessoa tem. Proíbe-se o desejo de roubar exatamente aquele bem que pertence a outra pessoa. Em definitiva, o que se proíbe são os MAUS DESEJOS, que mais lesam a própria pessoa que os acalenta do que o próximo.

Nos dez mandamentos, está contido de fato todo o Direito Natural.

Começaremos a comentar os mandamentos do quarto ao décimo (que se referem ao próximo), para, em seguida, comentar os mandamentos do primeiro ao terceiro (que se referem a Deus).

Os mandamentos estão em ordem decrescente de importância ou gravidade. Primeiro, devese amar a Deus sobre todas as coisas. Abaixo do amor a Deus está a obrigação de respeitar o nome de Deus. Depois, vem o respeito devido ao domingo e aos dias de festa, cuja celebração é um aspecto visível da vida espiritual. Celebrar a Missa e observar o descanso festivo são exigências para que o homem, além de trabalhar, possa dedicar-se às práticas que promovem o contato com Deus e o progresso em sua vida espiritual.

Com relação ao próximo, aqueles a quem devemos mais reverência e respeito são nosso pai e nossa mãe. Isso porque eles nos deram a vida e nos dedicaram inteiramente suas vidas. Mesmo nosso esposo ou esposa não nos deram tanto quanto nosso pai e nossa mãe. O respeito ao pai e à mãe, portanto, está num patamar superior ao respeito que devemos a uma pessoa comum.

Geralmente, as pessoas acham que o quarto mandamento proíbe desobedecer ao pai e à mãe. Porém, em momento nenhum, esse mandamento fala de obediência.

Na maior parte dos casos, a desobediência ao pai ou à mãe não é pecado grave, mas apenas uma desordem. Só chega a ser pecado grave quando, mesmo que não fosse dirigida aos pais, essa desobediência se configuraria como pecado grave. Exemplo – O pai mandou que o filho comprasse pão. O filho está jogando bola. Diz que vai, mas não vai. Não há nesse caso pecado grave. O filho está tão empolgado com o jogo que se esquece de ir. Mas não faz isso por malevolência, nem os pais vão por causa disso morrer de fome. Exemplo – A mãe pede que o filho chame uma ambulância, porque o pai acabou de ter um infarto. Mas o filho está jogando bola e não chama a ambulância. Isso já seria um pecado grave quando praticado em relação a qualquer pessoa. Muito mais grave aqui porque se trata do pai dele.

Por outro lado, desrespeitar os pais normalmente é pecado grave. Xingar, usar palavras próprias para magoar ou dizer coisas que objetivamente são próprias para magoar ainda que a intenção não seja a de magoar ou ainda que os pais já se tenham acostumado com tal atitude, tudo isso constitui matéria grave.

Mesmo que o filho tenha razão, não deve altercar, discutir ou se alterar com os pais.

A mesma coisa vale para os pais com relação aos filhos. Deve-se, porém, levar em conta que a missão dos pais para com os filhos difere da dos filhos para com os pais. Por causa disso, então, a regra é a mesma, ainda que aplicada com algumas diferenças.

Os pais devem educar os filhos e, para isso, às vezes, precisam recorrer a um castigo físico, especialmente quando o filho ainda não tem muitas condições de entender uma explicação racional. Hoje há leis que proíbem os pais de baterem nos filhos. Essas leis, porém, não são legítimas, pois visam a corromper a família. Porém há palmadas que se dão para corrigir e palmadas que se dão com raiva ou por vingança.

O pai pode bater no filho com moderação e apenas para corrigir. E o filho? Pode bater no pai? A princípio, não, pois não é ofício do filho corrigir o pai. Em casos extremos e mais teóricos do que práticos, poderíamos imaginar uma situação de extremo perigo de vida, em que o único jeito de salvar a vida do pai seja de socá-lo para retirá-lo de uma situação extremamente

perigosa. Mas, normalmente, mesmo numa situação extrema, ainda seria possível pensar numa solução alternativa que não preveja bater no próprio pai.

Em geral, os pais podem bater nos filhos, se o fizerem de maneira moderada, coerente com a finalidade de corrigir e com a atitude do amor, quando necessário e indispensável (isto é, se o mesmo resultado não pode ser alcançado por meio de uma boa conversa), sem espírito de vingança, sem sentimentos de raiva, ódio, apontando para o real sentido da correção, de maneira a que o próprio filho mais tarde possa compreender o sentido da correção.

O mesmo vale no caso de um pai que levanta a voz contra o filho. Essa atitude só pode ser tomada caso seja o único e último recurso para o filho entender algo, emendar-se de algo, ser ajudado em seu desenvolvimento educativo. Levantar a voz, porém, não significa xingar, insultar ou magoar.

Esses critérios valem para com todas as pessoas e valem também quando alguém por ofício tem o papel de autoridade, direção ou poder sobre alguém (como no caso, por exemplo, de professores, juízes, delegados, policiais, soldados, guardas carcerárias etc.). Exemplo – Um policial, ao perseguir e alcançar um bandido, não vai pedir-lhe por favor que ofereça seus pulsos para poder algemá-lo. Vai fazer isso com força, decisão e determinação. Se, porém, o policial, aproveitando sua posição, começa a xingar o bandido, já incorre em pecado grave. Exemplo – Um professor pode colocar fora da sala um aluno que está provocando desordem na turma. Porém não pode xingá-lo, não pode alterar-se, tomar a atitude do aluno como ofensa pessoal, pois se colocaria numa situação de inimizade e malevolência para com ele.

Em todos esses casos, a pessoa deve pedir desculpas. Se tem razão, deve pedir desculpas só pela forma raivosa e malevolente com que agiu ou falou, não pela atitude que tomou.

Os pais têm o direito de pedir obediência aos filhos, porém não pela vida inteira. Ao chegarem à maior idade, os filhos não são mais obrigados a obedecer aos pais. O pai não pode obrigar o filho a seguir determinada profissão, carreira, a viver sempre com ele, a não se casar com a pessoa que ama etc. A partir da maior idade, o filho tem o direito de fazer o que ele bem quiser, desde que não desrespeite o pai. Não é obrigado a permanecer na mesma cidade, pode viajar para o exterior e fazer, em geral, o que bem quiser da sua vida.

O dever da obediência fica restrito, então, ao período da menor idade, no que diz respeito a QUESTÕES MATERIAIS.

Em QUESTÕES ESPIRITUAIS, o dever da obediência cessa com a idade da razão (que em média se alcança por volta dos sete anos). Exemplo – O filho menor de idade deve obedecer ao pai que se opõe a um casamento, mas não é obrigado a obedecer caso queira converter-se ao cristianismo e o pai se oponha.

Existe o dever que não caduca nunca de os filhos socorrerem os pais em assuntos graves. A partir dos dezoito anos, o filho está livre do dever da obediência aos pais em questões materiais, mas não fica livre do dever de prestar socorro aos pais, em casos de pobreza extrema ou de doença. Esse dever o acompanha até a morte dos pais.

O mais grave dever, porém, fica por conta dos pais em relação a seus filhos. É o dever de dar instrução religiosa aos filhos. É o dever mais grave e, infelizmente, também o mais negligenciado.

Os pais não têm só o dever de alimentar, vestir e dar estudo a seus filhos. Também têm o dever de encaminhá-los na vida religiosa e na santidade. E não vale apenas colocar os filhos na catequese paroquial, que normalmente é fraca demais. Os pais deveriam educar os filhos pelo menos para ter uma certeza moral mínima de que eles consigam se manter em estado de graça até o fim da vida. É o mesmo requisito que a Igreja exige do bispo que admite alguém ao sacerdócio. O mínimo que se exige de um sacerdote, para ser ordenado, é que ele possa se manter em estado de graça de maneira habitual.

Essa condição mínima de graça habitual, o pai deveria inculcar a seus filhos: assistir à Missa aos domingos e dias santos, confessar-se habitualmente, evitar pecados graves, ter algum grau de vida de oração, interessar-se pela doutrina, se vier a casar-se ou a ingressar na vida religiosa ou sacerdotal ou se ficar num estado celibatário, que ele entenda profundamente o que esse estado significa e implica do ponto de vista religioso.

Além desse mínimo, o ideal é que esse filho buscasse o aprofundamento do caminho interior de espiritualidade, avançasse nas moradas de Santa Teresa de Ávila, subisse pela escada das bem-aventuranças, rumo à comunhão plena com Deus. O ideal seria que esse filho tivesse verdadeiramente vontade firme de estar em comunhão com Deus.

A essência do evangelho é a graça do Espírito Santo dada a quem crê em Cristo. Essa graça nos une cada vez mais a Deus. Se não conseguirmos infundi-la nos filhos, que pelo menos os pais tentem fazer de seus filhos bons católicos praticantes que não se desviem nunca do reto caminho.

Isso, infelizmente, não é o que se vê por aí. Na maior parte dos casos, sequer os pais são católicos praticantes. Muito menos têm algum ideal de espiritualidade mais profunda.

Quando os pais são católicos praticantes, levam os filhos à Missa, lhes ensinam a rezar, mas, quando os filhos chegam à adolescência, normalmente se afastam das práticas religiosas e da Igreja, não obedecem mais e se desencaminham. Não frequentam mais os sacramentos, começam a se envolver sexualmente com as namoradas, não se casam na Igreja, levam vida mundana. Não chegam sequer a ser católicos praticantes. Muito menos buscam a santidade.

Aí o que é que os pais dizem? Onde foi que eu errei?

Na maioria das vezes, a culpa é mesmo dos pais. E qual foi o problema? O problema é que eles quiseram ensinar os filhos pelo exemplo. Mas já São João Crisóstomo dizia que o exemplo serve apenas para pessoas que já estão bem encaminhadas. Para pessoas ruins ou sujeitas a más influências, o exemplo serve muito pouco. A criança vê o exemplo do pai e o segue. Mas, à medida que essa criança cresce, seus colegas, as outras famílias, a televisão, os livros, a escola dão exemplos diferentes e contrários ao dos pais. Qual é a conclusão que o jovem vai tirar? O pai pode até ser uma pessoa muito admirável, mas é um trouxa. O exemplo do pai não o convence mais. A única coisa que é capaz de educar uma criança e mantê-la firme na vida religiosa é a doutrina, o ensino não apenas pelo exemplo, mas oferecendo as razões, o porquê das coisas. Aí o resultado é absolutamente diferente. Quando você inculca a doutrina (junto ao exemplo), quando fornece, junto com a norma, a razão de ser dessa norma, quando fundamenta as coisas que ensina, quando você fornece uma síntese doutrinal coerente, fortalece a criança. No dia em que essa criança vira adolescente e se depara com a televisão e com os colegas falando outra língua e vivendo outros valores, ela sabe o porquê, está preparada, e sabe por qual motivo é melhor se comportar do jeito que aprendeu do pai. Por curiosidade pode até perguntar o porquê das atitudes diferentes, e vai descobrir que não há lógica, que o comportamento dos outros é absolutamente absurdo. Esse adolescente então vai dar graças a Deus por ter nascido numa família cristã. O mundo está louco. Mas seu pai é a pessoa mais sábia que existe. Essa pessoa nunca mais há de se perder. Está pronta para enfrentar o mundo, a carne, o diabo e o que for preciso.

O problema de se chegar a isso é que os pais devem estudar. Os pais não podem limitar-se a dar só o exemplo. Se os pais não estudarem, dificilmente vão santificar-se a si mesmos. Se tiverem sido bem encaminhados pelo menos podem perseverar até a morte na vida cristã de católico praticante. Porém não vão conseguir fazer com que os filhos façam a mesma coisa.

Se os pais querem obter para seus filhos pelo menos o mínimo dos mínimos (não a santidade, mas apenas a condição de católicos praticantes), devem estudar e ensinar doutrina. Os pais devem ser mais inteligentes do que o resto do mundo que está em volta de seus filhos. E seus filhos devem perceber isso.

Essa é a primeira e mais importante obrigação para um casal: a educação dos filhos. Os pais devem fazer tudo o que houver a seu alcance para educar seus filhos na vida religiosa. Isso implica que o casal que não estudar para passar a fé aos filhos está cometendo pecado grave. Alguns séculos atrás, para garantir as condições mínimas de salvação para os filhos, os pais talvez não precisassem estudar. Não havia telefone, rádio, televisão, internet. Os jornais eram escassos, os livros, de difícil acesso. Num mundo assim, era possível educar os filhos sem precisar estudar, simplesmente frequentando a igreja, promovendo a amizade com o padre, conduzindo-os à catequese paroquial etc. Hoje, porém, não é mais assim. Somente após ter explicado as razões profundas da existência de Deus e da criação do mundo, após seu filho ter comparado seus ensinamentos como os do mundo, e ter visto que o pai tem razão e os outros não, é que você ganhou seu filho e não vai perde-lo nunca mais para o mundo.

Hoje em dia, para a gente ser pai é obrigado a fazer isso. Caso contrário, o que vai acontecer é o que já está acontecendo. Você vê pais católicos praticantes que frequentam os sacramentos, rezam e cumprem os mandamentos. Se não tivessem filhos, isso seria o mínimo que eles poderiam fazer para se salvarem. Mas estão descuidando da educação dos filhos, que, quando tiverem quinze anos, vão sair da igreja, deixar de obedecer e se entregarem de corpo e alma ao mundo. O máximo que esses pais vão conseguir garantir é que seus filhos não sejam traficantes e marginais, mas não vão poder garantir o principal: que eles não vivam em pecado grave e que se salvem.

Dentro do quarto mandamento, o de honrar pai e mãe, então, a parte mais grave e pesada fica por conta dos pais em relação a seus filhos.

QUINTO MANDAMENTO NÃO MATAR

O quinto mandamento não proíbe apenas matar, mas também bater, judiar, agredir etc.

O mesmo mandamento exige que a gente perdoe, tenha benevolência, respeite etc.

Dentro da proibição de matar, está a mais específica de não abortar. É pecado grave não apenas praticar o aborto, mas também aconselhá-lo, ajudar a praticá-lo, induzir ou orientar alguém a praticá-lo.

Por exemplo, se um médico se recusa a praticar um aborto, mas fornece o telefone de um colega disposto a praticar o aborto, comete pecado grave como se ele mesmo o tivesse praticado.

Existem algumas práticas abortivas que comumente não são tidas como tais. Pílula do dia seguinte – É abortiva, porque interrompe a gravidez, após a realização de relação sexual sem uso de anticonceptivos. A bula diz que não ocorre gravidez em quem toma essa pílula nas 72 horas sucessivas à relação sexual sem proteção. Em mulheres que estão em seu pico de fertilidade, a gravidez pode ocorrer até no curto tempo de dez ou vinte minutos. Os espermatozoides do parceiro entram pela vagina, percorrem o útero e se encontram com o óvulo na trompa de Falópio. Durante o período fértil, o aparelho reprodutivo feminino oferece ambiente favorável a que isso aconteça. Como, então, a pílula do dia seguinte pode garantir, durante três dias após a relação sexual desprotegida, que não ocorra gravidez? Alterando o endométrio de maneira que o óvulo eventualmente fecundado não consiga aninhar-se no útero. Se o óvulo já fecundado é um ser humano, ao não conseguir se fixar no útero (por efeito da ação da pílula do dia seguinte), é abortado. Se a mulher que usa a pílula do dia seguinte não está grávida, não ocorre aborto. Se está grávida, ocorre aborto. Anticoncepcionais hormonais – Nos anos de 1960, esses anticoncepcionais tinham uma dosagem alta de hormônios que impediam a ovulação. Não havendo ovulação, não ocorria concepção. Esses hormônios, porém, provocam efeitos desagradáveis, como inchaços, dores de cabeça, náuseas, cânceres etc. Os laboratórios farmacêuticos, então, descobriram que, reduzindo tais hormônios abaixo do nível considerado seguro para não haver concepção, a maior parte das mulheres também não engravidava. Isso porque tais anticoncepcionais, além de impedir a ovulação, agem também no endométrio. Tomando, portanto, dosagens mais baixas de hormônios, em alguns ciclos as mulheres não ovulam, em outros ciclos, ovulam. Ao ovularem, porém, se o óvulo chegar a ser fecundado, no 7º dia, quando desce as trompas de Falópio e chega ao útero, não ocorre nidação, porque o endométrio ficou alterado de modo a

não mais oferecer condições favoráveis à gravidez. Nas bulas dos anticoncepcionais hormonais se diz que impedem a gravidez de três modos: impedindo a ovulação, dificultando a penetração dos espermatozoides e alterando o endométrio.

Anticoncepcionais hormonais feitos com um só hormônio impedem a ovulação em média nos 50% dos casos. No restante 50% dos casos, a ovulação acontece, mas, caso ocorra concepção, no 7º dia o blastocisto não consegue aninhar e é abortado. A mulher sequer percebe o aborto, pois, no 7º dia, não há praticamente diferença entre menstruação e aborto. Em meio ao sangue, lá se vai um pequeno ser humano do tamanho da metade de um grão de arroz.

Anticoncepcionais hormonais feitos com dois hormônios (estrógeno e progesterona) impedem a ovulação em média nos 10% dos casos. Se, dentro desses 10% de casos, houver ovulação, poderá haver fecundação e, consequentemente, aborto.

Demais anticoncepcionais químicos (injeções e implantes subcutâneos) também são abortivos por funcionarem seguindo o mesmo mecanismo da pílula. DIU (Dispositivo Intrauterino) – Na época em que foi inventado, o DIU era de plástico e era abortivo em 100% dos casos. O óvulo era fecundado, mas não se fixava ao endométrio por efeito do DIU. Mais tarde, inventaram o DIU de cobre, que, além de irritar a parede do útero, libera íons de cobre que têm efeito espermicida. Não há até hoje estudos que comprovem a eficácia espermicida absoluta do DIU. Resta, então, uma margem de possibilidade em que, se algum espermatozoide sobrevivente fecundar o óvulo, o DIU exercerá sua ação abortiva sobre este blastocisto. Um pesquisador de São Paulo realizou estudos para verificar a ação abortiva do DIU de plástico em macacas. Sabe-se que, se, antes da menstruação, não houver fecundação, o óvulo não fecundado não desce para o útero, mas é absorvido pelas paredes das trompas de Falópio. Se, porém, houver fecundação, o óvulo desce para o útero, de onde, se não houver nidação (como no caso em que o DIU impede a criação de condições favoráveis no endométrio), o óvulo é descartado por meio da menstruação. Analisando a menstruação de macacas que usam DIU, observa-se a presença de óvulos fecundados. O mesmo pesquisador iniciou novo estudo com macacas usando DIU de cobre, mas não conseguiu levá-lo até o fim. De toda maneira, é extremamente duvidosa uma eficiência total da ação espermicida do DIU de cobre. Fecundação artificial ou in vitro – A mulher toma um remédio para provocar hiper-ovulação. O médico recolhe os óvulos assim produzidos e os coloca numa plaquinha, chamada Placa de Petri, onde há substâncias nutritivas e onde são colocados também os espermatozoides do

marido ou doador. Esses espermatozoides fecundam os óvulos fruto da hiper-ovulação (por exemplo, vinte óvulos). Entre esses, o médico escolhe quatro ou cinco embriões, observando no microscópio aqueles que lhe parecem melhores. O médico poderia, desde o começo, pegar só quatro óvulos e fecundá-los. Mas, para procedimento tão caro e inseguro, é sempre melhor, do ponto de vista financeiro, trabalhar com mais óvulos dos que são efetivamente necessários. Os embriões não implantados são descartados ou congelados a 200 graus negativos. Se, no futuro a mãe quiser engravidar novamente, os embriões estão lá à sua espera. Caso contrário, após um tempo, vão para o lixo ou para ser usados em estudos sobre células-tronco ou estaminais.

Células-tronco ou estaminais são células retiradas de embriões. O embrião é desenvolvido até ter vinte células. Depois, é esquartejado para a retirada de cada célula, que, em determinadas condições de pH, temperatura e outros índices, desenvolve aptidão para a produção de tecidos neurológicos, cardíacos, epiteliais etc.

Os quatro melhores embriões são inseridos simultaneamente no útero da mãe estéril.

Na fecundação natural, dificilmente, se chega à produção de dois embriões. Porém, se isso vir a acontecer, normalmente, os dois são levados à frente.

Na fertilização artificial, a chance de sucesso dos quatro embriões é mínima. Por isso, implanta-se mais de um embrião.

Algumas considerações podem ajudar-nos a compreender as diferentes chances de sucesso entre fecundação natural e artificial.

1. A fecundação natural ocorre no útero. A fecundação artificial na Placa de Petri. Na fecundação natural, o homem introduz seus espermatozoides na vagina da mulher, que, nos dias férteis, é revestida por um muco que facilita a corrida até o óvulo, que aguarda nas trompas de Falópio. Há um bilhão de espermatozoides apostando corrida. O melhor, o mais forte, rápido e resistente é naturalmente selecionado ao alcançar e fecundar o óvulo. Não é à toa que a natureza envolveu um bilhão de espermatozoides. Por outro lado, na fecundação artificial, há vinte óvulos e os espermatozoides todos em volta deles. Não há corrida, não há seleção. O espermatozoide que cai mais perto fecunda o óvulo sem merecimento nenhum.

2. No momento da fecundação natural, imediatamente, há liberação de hormônios na trompa de Falópio, para avisar o corpo de que há em ato uma gravidez e que o endométrio deve ser preparado não para mais uma menstruação, mas para acolher o embrião, que, dali a poucos dias, chegará para se fixar nele. Na fecundação artificial, o processo inicial ocorre fora do corpo da mãe, na Placa de Petri. Não há descarga hormonal e, consequentemente, nenhum aviso de que haverá gravidez. O corpo da mãe está preparando-se, como sempre, para mais uma menstruação. Somente no 7º dia, quando o médico implanta os quatro embriões, é que estes começam a enviar uma mensagem contrária. Obviamente, esse processo não é tão eficiente quanto o natural.

Até aqui, do ponto de vista do 5º mandamento, não há problemas. Do ponto de vista do 6º mandamento, há problemas. Supondo que os embriões não seriam jogados fora nem usados em pesquisas com células estaminais, até aqui não há problema.

No caso de uma mulher sem chance alguma de engravidar naturalmente, é lícito recorrer a um método artificial? Se uma pessoa não pode nascer naturalmente, é lícito recorrer a um método menos eficiente mas com alguma chance de sucesso? O casal tem todo o direito de correr o risco.

Moralmente, é a mesma situação, porém invertida, de uma mulher que tem grandes chance de abortar. Essa mulher engravidou e abortou inúmeras vezes. Ela tem direito a engravidar mais uma vez, mesmo com grandes chances de mais uma vez abortar? Claro que sim, pois a vida é sagrada. Essas crianças que ela abortou involuntariamente viveram, mesmo que dois ou três meses. Dois ou três meses de vida é um dom muito maior que nunca terem vivido. Tendo alma, aliás, elas continuam vivendo, no céu, com Deus.

O problema que faz com que a fecundação artificial seja contrária ao 5º mandamento diz respeito à implantação dos quatro embriões. A chance de um embrião implantado sobreviver é de 10%. Com dois embriões, a chance de cada um sobreviver cai para 9%. Os dois embriões juntos, porém, garantem ao médico e ao casal desejos de ter um filho, 18% de chance de sucesso. Com três embriões, a chance de sobrevivência de cada um cai para 8%, mas juntos oferecem uma chance de sucesso de 24%. Com quatro embriões, em separado, a chance cai para 7%, mas, no conjunto, sobre para 28%.

Cada embrião já está então com uma chance reduzidíssima de sobrevivência. Em vez de ser ajudado, é posto num ambiente que, por conta da presença de outros embriões, oferece menos chances de sobrevida.

Seria o mesmo que colocar um bebê prematuro numa incubadora junto com mais três bebês.

Por que se faz isso com os embriões da fecundação in vitro? Por razões exclusivamente financeiras. Para reduzir o risco de fracassar e ter de repetir o tratamento.

O pecado da fecundação artificial contra o 5º mandamento é então o de REDUZIR ILEGITIMAMENTE AS CHANCES DE UMA VIDA HUMANA SOBREVIVER.

Outra coisa que está sendo feita dentro do procedimento de fecundação artificial é a chamada REDUÇÃO EMBRONÁRIA. O casal, por exemplo, quer só um filho. Mas três dos quatro embriões implantados vingaram. O médico então introduz uma agulha e injeta cloreto de potássio no coração dois outros dois embriões. No parto, um nenê nasce normalmente, os outros dois, calcificados.

Nada disso é explicado ao casal que se dispõe a submeter-se a uma fecundação artificial. Parece ser uma prática maravilhosa, porque está sendo gerada uma vida. Mas, para cada vida gerada, há outras vinte suprimidas: alguns embriões podem estar sendo descartados no lixo, outros podem estar sendo estraçalhados em experiências de laboratório e outros, enfim, podem nascer calcificados.

No mundo, há milhões de embriões congelados, e o número está em franco crescimento. Uma coisa boa é que o tempo de congelamento não danifica o embrião. Os momentos mais críticos são o congelamento e o descongelamento. Porém, uma vez que o embrião é conservado a 200 graus negativos, a cinética química é praticamente nula. Tanto faz ficar vinte anos congelados, como já ocorreu com embriões nos EUA, ou 2.000 anos, embora não tenhamos provas empíricas a respeito deste último período de congelamento. A experiência com descongelamento de embriões de vinte anos, nos EUA, mostra que, uma vez implantados no útero da mãe, eles se comportam tão bem quanto outros com tempos de congelamento menor. Nos EUA, existem irmãos gêmeos dos quais um está acabando a faculdade e o outro está acabando de nascer.

Então, o único caso em que a fecundação artificial poderia ser lícita, do ponto de vista do 5º mandamento, é o caso em que se utilizaria um único óvulo, fecundando-o, implantando-o em uma mulher sem chance alguma de engravidar naturalmente. Mas, mesmo nesse único caso em que não se contraria o 5º mandamento, estaria sendo infringido o 6º mandamento da castidade.

Esse único caso, ainda, é inverossímil, pois nenhum médico instalaria uma clínica de reprodução humana para agir dessa forma. Ele deveria cobrar muito caro, e as pacientes estarem dispostas a submeter-se a inúmeras tentativas, que, rapidamente, estaria derrotado pela concorrência de colegas que, usando mais embriões, podem cobrar mais barato e terem mais chances de sucesso com menor números de tentativas.

Logo a fertilização in vitro não é lícita em caso algum.

Existe algum caso em que o aborto provocado seja lícito? Nunca.

No caso de estupro, o criminoso é o estuprador. Este não vai ser morto. A criança, que não tem culpa alguma pelo crime, não pode receber pena de morte, que, inclusive, para o estuprador, seria desproporcional em relação ao crime praticado.

No caso de risco de vida, o aborto também é ilícito.

Via de regra, não posso matar outra pessoa para salvar minha vida. Exemplo 1 – Uma quadrilha quer matar um inocente, chamado Alberto. Propõe a um amigo do Alberto, chamado João, em troca de 1 milhão de dólares, que coloque na comida do Alberto um veneno, garantindo que nunca será descoberto pelo médico legista. Se João não colaborar, Alberto morrerá de toda maneira, e João morrerá com toda a sua família. É lícito aceitar uma proposta dessas? Não. Não se pode matar um inocente, nem mesmo para salvar a própria vida. Exemplo 2 – O funcionário de um banco entra com um colega no cofre da agência e fica preso. É sexta-feira. A agência só abre na próxima segunda. Só há ar para uma pessoa. Se os dois não fizerem nada, no sábado à tarde já estarão mortos. Só há chance de sobrevida para um deles, se o outro for morto ou resolver se suicidar. São lícitos, nesse caso, o homicídio ou o suicídio? Não. Da mesma maneira, uma mulher grávida não pode abortar para salvar a própria vida. Exemplo 3 – Dois funcionários de um banco entram no cofre da agência em que trabalham e, fatalmente, a porta se fecha, e os dois ficam presos no cofre. É sexta-feira. Os dois vão ficar presos no cofre até a reabertura da agência, na segunda de manhã. No cofre, só há ar para uma pessoa. Se os dois não tomarem nenhuma atitude, ao mais tardar, sábado à tarde estarão mortos. Se um matar o outro ou se suicidar, um dos dois se salvará. Seriam lícitos,

nesse caso, o homicídio ou o suicídio? Não. Da mesma maneira, uma mulher grávida não pode abortar para salvar a própria vida.

Graças a Deus, desde a segunda metade do século XX, não ocorrem mais ou são muito raros casos de aborto para salvar a vida da mãe. Mas nem sempre foi assim. Até a descoberta da penicilina, por exemplo, em 25% dos partos por cesariana, as mães morriam de infecção. Também ocorria com frequência de o feto posicionar-se atravessado, inviabilizando seja a cesariana seja o parto normal. Nesses casos, era necessário realizar craniotomia: com um fórceps esmagava-se a cabeça do feto, que, em seguida, era retirado já sem vida. Ou, como alternativa, fazia-se o nenê nascer com vida, sacrificando a vida da mãe. Hoje, isso não ocorre mais, mas, moralmente, não seria lícito matar o feto para salvar a mãe.

Até meados do século passado, era bastante comum que um católico comum, sem virtudes heroicas, entendesse e vivenciasse sem dificuldade esses princípios morais. Hoje em dia, a medicina fez avanços notáveis, e não se fazem mais necessárias escolhas morais desse tipo. No entanto a maior parte das pessoas e dos católicos tem sérias dificuldades em compreender e aceitar os princípios morais ligados a essas situação-problema. Aborto indireto – Há situações em que não se discute a possibilidade de matar o feto, mas a mãe deve submeter-se a tratamento médico ou intervenção cirúrgica (por exemplo, quimioterapia ou retirada do útero) que, indiretamente, podem provocar a morte do filho. Nesses casos, o feto morre, mas como efeito secundário, não como efeito principal, voluntário e diretamente visado. Objetivo primário é tratar a doença da mulher, estando ela grávida ou não. Num caso desses, o que é moralmente lícito? A Moral católica diz que, se realmente houver uma chance de salvar-se, a mãe pode fazer ou não o tratamento ou a cirurgia. Caso opte por realizar o tratamento, estaria optando por algo que ela faria estando ou não grávida. O tratamento, porém, pode ser realizado se não impedir que o feto receba o sacramento do batismo. Exemplo 1 – Um avião com 200 passageiros foi sequestrado por um terrorista, que vai se jogar contra um prédio com 2.000 pessoas. A única solução é destruir o avião antes que colida com o prédio. Se destruir o avião, morrerão os 200 passageiros junto ao terrorista. Caso contrário, morrerão os 200 passageiros, o terrorista e os 2.000 moradores do prédio alvo da ação terrorista. O que é lícito fazer nesse caso? Moralmente, não é lícito matar sequer um inocente mesmo com o objetivo de salvar centenas ou milhares de vidas inocentes. Porém, no caso em exame, a intenção primordial não é matar inocentes, e sim inviabilizar a ação terrorista. Se no avião houvesse só o sequestrador, sem a presença dos 200 passageiros, também se tentaria destruir o avião para evitar o impacto com o prédio. Trata-se

de um caso de legítima defesa. Ninguém quer matar os 200 passageiros, assim como ninguém quer matar o feto, no caso do aborto indireto. O alvo é, no primeiro caso, o sequestrador e, no segundo caso, o câncer da mãe. Exemplo 2 – Um submarino recebeu um torpedo na popa. Está entrando água e, em poucos minutos, toda a tripulação vai morrer. O comandante sabe que, se mandar fechar a escotilha do meio, poderá salvar a metade da tripulação que está na parte dianteira que não será inundada. Porém não há tempo a perder. O comandante não pode esperar que a tripulação que está na parte traseira se desloque para a frente. Então: ou fecha já a escotilha, salvando parte da tripulação e condenando a outra; ou espera que os marinheiros de trás venham para a frente, e todo mundo vai morrer. É lícito fechar já a escotilha do meio? É lícito, pois o comandante não está fazendo isso para matar os marinheiros de trás, mas para salvar os marinheiros da frente. Exemplo 3 – É lícito jogar uma bomba atômica? Os EUA jogaram duas, uma em Hiroshima e outra em Nagasaki. Justificaram-se dizendo que, se não procedessem assim, a guerra continuaria matando muitas mais vítimas. Hoje sabemos que não é assim: os EUA jogaram as bombas por razões geopolíticas de demonstração de força, pois o Japão já havia anunciado sua rendição. Supondo, porém, que o Japão não se renderia, seria lícita a alegação dos EUA (de que mais vale matar 10 mil civis inocentes que deixar que a guerra continue, matando um número maior de civis)? Não, porque o objetivo da bomba atômica foi o de matar milhares de inocentes. Se você pode soltar uma bomba sobre Hiroshima, também poderá realizar um aborto para salvar a vida da mãe. A lógica é a mesma: matar 100 mil inocentes japoneses, para salvar 1 milhão de inocentes americanos, que morreriam se a guerra continuasse; matar a vida inocente do feto, para salvar a vida inocente da mãe. A regra moral diz, porém, que não se podem matar inocentes para salvar a vida de alguém.

Eu posso, e em alguns casos até devo, arriscar minha vida para salvar a vida de outros. Exemplo 1 – Há uma usina nuclear com 200 funcionários prestes a explodir. Precisa-se de alguém que vá lá apertar o botão, para desligar os motores da usina. É lícito que alguém corra o risco de apertar o botão? Sim. O botão não foi feito para matar-me, mas para esconjurar a explosão. Minha morte representaria um efeito secundário. O resultado principal é parar a usina nuclear e evitar uma tragédia.

Em seu gênero, um pecado contra o direito natural é tanto mais grave quanto mais vai contra a natureza humana. Dizemos “em seu gênero”, porque, para determinar a real gravidade de

um pecado, é necessário também avaliar o grau de advertência (ou consciência) de quem o cometeu e o grau de consentimento dado durante a realização do ato. Em questão de gênero de pecado, matar uma pessoa é menos grave do que matar o próprio filho. Somos muito mais devedores a nossos pais do que a nossos filhos. Suicidar-se é mais grave do que matar pai ou mãe, pois é o que mais vai contra a natureza. Em alguns casos, porém, o suicídio pode ter uma gravidade menor, devido a um grau reduzido de advertência e ou de consentimento por parte de quem o pratica. No século XX, a humanidade tem decaído sempre mais. No começo do século, houve o holocausto nazista que matou em massa milhões de seres humanos. Depois, começou-se a legalizar o aborto. Com exceção de alguns lugares, como o Brasil, as nações estão cada vez mais a favor do aborto. A legislação, gradualmente, estendeu o direito de abortar até o 9º mês, como nos EUA. Agora, a eutanásia, por meio da qual se matam pais e mães, está sendo proposta e aprovada em nome de um suposto sentimento de misericórdia. Tudo deixa entender que estamos caminhando para o direito ao suicídio, como, por exemplo, já acontece na Suíça, onde há hotéis que oferecem serviços para suicídio assistido. Tudo isso não ocorre de maneira espontânea, natural ou casual. Existem grandes organizações internacionais que, deliberadamente, promovem tais transformações na sociedade. Há obviamente um propósito maléfico por trás de todas essas políticas de morte: aniquilar as bases dos princípios do direito natural dentro da comunidade humana. Alegam-se outros motivos ou razões, mas, na realidade, o que está em ato é uma verdadeira reestruturação social, para a qual é necessário confundir e destruir, no âmago das pessoas, a percepção dos valores e das normas naturais, a princípio inscritas na natureza de todo ser humano. Vamos agora tratar de um tema correlato aos mandamentos, a cooperação com o mal. Cooperar com o mal não significa propriamente fazer algo mau, mas ser obrigado por circunstâncias ou pessoas a ajudar na realização de algo mau. Por exemplo, alguém está roubando e exige que você, que viu o roubo, fique quieto. Ou alguém corrompeu-se e não quer que você o denuncie. Ou você está com a chave de uma casa alheia, e um terceiro exige que você lha entregue para ele assaltá-la. Precisamos, então, de critérios para saber quando podemos ou não colaborar com essas coisas. Se alguém pedisse para você fazer o mal, não haveria dúvida de que você não pode, em hipótese alguma, fazer o mal. A dúvida surge quando alguém pede para você ajudar outrem a praticar o mal. Na Moral, existem dois tipos de cooperação: a cooperação ‘formal’ e a cooperação ‘material’, a qual, por sua vez, divide-se em ‘necessária’ e ‘indiferente’. Ocorre cooperação formal quando a sua ajuda consiste em algo intrinsecamente mau, de tal forma que, mesmo que o mal principal, por alguma razão, não chegue a ser perpetrado, sua cooperação em si já é um mal.

Exemplo 1 – Alguém quer assaltar um banco e obriga você a matar o guarda. Matar o guarda é uma ação secundária que favorece a ação principal de assaltar o banco. Assaltar o banco é um mal. Matar o guarda é também em si um mal, ainda que o assalto malogre. Cooperação material é algo que, mesmo que ajude na prática de um mal, em si mesmo não representa algo mau. Exemplo 2 – Alguém quer assaltar um banco e obriga você a abrir a porta da agência. Abrir uma porta, em si, não constitui algo mau. Temos cooperação material necessária quando sem ela o mal não pode ser feito. Exemplo 3 – Só você tem a chave da porta do banco. Sem você, aquela porta não será aberta. Se você se recusar, o assalto não poderá ser levado a termo. Temos cooperação material indiferente quando com ela ou sem ela o mal será realizado. Exemplo 4 – Se você não abrir a porta do banco, há outras pessoas que dispõem da mesma chave, ou o próprio assaltante se encarrega da tarefa, explodindo a porta. Para realizar um discernimento justo em todos os casos complexos da convivência social, é necessário, em primeiro lugar, analisar se há cooperação formal ou material. Caso a cooperação seja material, é necessário discernir se é necessária ou indiferente. Feitas tais distinções, a Moral afirma o seguinte: 1. Quando a cooperação é formal, você não pode aceitar cooperar em hipótese alguma. Se tiver que morrer por não ter aceitado cooperar, tem que enfrentar a morte. 2. Quando a cooperação é material e necessária, se o mal que você vai sofrer, por não cooperar, é maior do mal que você evitaria, você pode cooperar ou não; se é igual, você pode cooperar ou não; se é menor, você não pode cooperar. 3. Quando a cooperação é material e indiferente, qualquer motivo razoável e proporcional serve para você poder cooperar. Cooperar por cooperar, sem motivo razoável e proporcional, está errado. Exemplo 1 – Uma quadrilha vai assaltar um banco e obriga você a matar o guarda. Você se recusa. A quadrilha diz que, mesmo assim, vai matar o guarda e, depois, vai matar você. Trata-se de COOPERAÇÃO FORMAL. Em hipótese nenhuma, você pode cooperar. O fim (salvar a própria vida) não justifica o meio (matar o guarda). Exemplo 2 – Uma quadrilha vai assaltar um banco e obriga você a abrir a porta, caso contrário você morrer. Só você pode abrir aquela porta. Trata-se de COOPERAÇÃO MATERIAL E NECESSÁRIA. O mal que você sofreria por não colaborar, a perda da sua vida, é maior do mal que você evitaria, o roubo do dinheiro do banco. Sua vida vale muito mais do que todo o dinheiro do banco. Você pode cooperar sem escrúpulos. E se a quadrilha entrar no banco e matar alguém? Pode acontecer, mas não é certeza. Pode ser que a quadrilha só roube o dinheiro e não mate ninguém. Você não só pode como deve abrir a porta, a fim de preservar um bem muito mais valioso do que todo o dinheiro do mundo.

Exemplo 3 – Uma quadrilha vai assaltar um banco e obriga você a abrir a porta da agência. Caso você não abra, a quadrilha vai xingá-lo e ficar de mal com você. Trata-se de COOPERAÇÃO MATERIAL NECESSÁRIA. Nesse caso, os xingamentos e a mágoa são um mal menor em relação ao assalto. Você não deverá cooperar. Exemplo 4 – Uma quadrilha vai matar alguém no banco. Você é obrigado a abrir a porta. Caso contrário, leva uma surra. Trata-se de COOPERAÇÃO MATERIAL NECESSÁRIA. A surra é um mal infinitamente menor em relação à vida do homem que vai ser morto pela quadrilha. Você não deve abrir a porta. Exemplo 5 – Uma quadrilha vai dar uma surra em alguém dentro de uma agência bancária. Você é obrigado a abrir a porta. Caso contrário, vão matá-lo. Trata-se de COOPERAÇÃO MATERIAL NECESSÁRIA. Você pode abrir a porta, pois sua vida vale muito mais que a surra que o outro vai levar. Exemplo 6 – Você é refém de terroristas junto a outras pessoas. Você recebe uma arma e a ordem de matar um dos presentes. Trata-se de COOPERAÇÃO FORMAL. Em hipótese alguma, pode matar. Exemplo 7 - Você é refém de terroristas junto a outras pessoas. Você recebe uma arma. Mais tarde, o terrorista pede para que você lhe entregue a arma, porque ele vai usá-la para matar alguém. Você sabe que com aquela arma ou com outra o terrorista vai sem falta matar o fulano. E ainda, se você não entregar a arma, provavelmente o terrorista vai ficar aborrecido e matar você também. Trata-se de COOPERAÇÃO MATERIAL INDIFERENTE. De um lado, temos a perspectiva de o fulano morrer; de outro lado, a perspectiva de você e o fulano morrerem. Nesse caso, pode entregar a arma, pois existe um motivo razoável e proporcional. Exemplo 8 – Você vende armas dentro da legislação do seu país. Armas não servem apenas para matar, mas também para treinar tiro ao alvo e para se defender. Na Suíça, por exemplo, parece haver uma relação entre o baixo índice de assaltos e homicídios e o fato de a maior parte da população treinar tiro ao alvo e possuir armas e munições para proteção pessoal e patrimonial. Se você, vendedor de armas, sabe que alguém está comprando uma sua arma para matar, está dentro da COOPERAÇÃO MATERIAL. Se a cooperação material é necessária, isto é, se você é dono da única loja de armas, não pode vender a arma, pois o mal que você vai evitar (a morte de um ser humano) é infinitamente maior de qualquer mal que você possa vir a sofrer (não há dinheiro que pague a vida de um homem). Se a cooperação material é indiferente, o lucro que você pode deixar de ter não é motivo razoável e proporcional frente à vida do homem ameaçado de morte. A única coisa que justificaria a entrega da arma seria a ameaça de morte. Nesse caso, seria a vida do vendedor contra a vida da vítima predestinada. Inclusive, você perderia a sua vida agora; e o outro poderia ainda salvar-se. Exemplo 9 – Devemos pagar impostos a um governo injusto, corrupto, que constrói e vende armas? Não se trata de cooperação formal, pois o imposto é devido. Trata-se de

COOPERAÇÃO MATERIAL E INDIFERENTE, pois, caso você se recuse a pagar o imposto, provavelmente o governo não vai deixar de produzir e comercializar armas. Num tal tipo de cooperação, qualquer motivo razoável e proporcional serve para cooperar. É razoável pagar imposto para não ser preso ou sofrer outros tipos de sanções. Num regime democrático, também existem outros tipos de protestos que forcem os governos a mudar sua política. Exemplo 10 – Os EUA decidiram lançar uma bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki, ordenando a duas tripulações que levassem os artefatos até seu destino. Os pilotos poderiam ter se recusado licitamente? Soltar a bomba representa COOPERAÇÃO FORMAL. Conduzir o avião até o destino é COOPERAÇÃO MATERIAL (se, na última hora, chegar a ordem de não soltar a bomba, o piloto volta, e nenhum mal terá sido feito). Nenhum soldado, em hipótese alguma, pode obedecer à ordem de soltar a bomba. Caso o avião possa ser pilotado apenas por um aviador ou por uma equipe restrita de aviadores (COOPERAÇÃO MATERIAL NECESSÁRIA), tampouco se deveria obedecer à ordem de pilotar o avião até o alvo escolhido, pois, caso houvesse uma recusa de todos, se evitaria o mal da explosão da bomba sobre a cidade. O mal que o aviador enfrentaria ao desobedecer (ser julgado pela corte marcial e condenado à morte) seria menor do mal gerado ao obedecer (a morte de milhares de civis inocentes). O piloto deve aceitar a própria morte a fim de evitar a morte de milhares de pessoas. Se, ao contrário, qualquer um pode pilotar o avião, a cooperação material daquele piloto particular se torna INDIFERENTE. Nesse caso, para justificar sua colaboração, o piloto só precisa de um motivo razoável e proporcional, que, no caso em questão, poderia ser a própria condenação à morte por insubordinação. Esse piloto, então, pode decidir pilotar o avião até o alvo pretendido. Mas em hipótese alguma pode soltar a bomba. Se a sanção por não pilotar o avião não é a morte, o piloto não tem mais um motivo razoável e proporcional para cooperar. Nesse caso, deve recusar-se a obedecer. Exemplo 11 – Motorista de táxi que trabalha em determinadas regiões da cidade sabe que seus clientes podem estar se dirigindo a um local de prostituição ou a uma clínica de abortos clandestinos ou a outro lugar de atividades ilícitas. Nesse caso, pode levar o cliente ou deve recusar-se a prestar tal tipo de serviço? Em geral, se o motorista se recusa, vai perder seu ganho, e outro taxista vai prestar o mesmo serviço. Tratar-se-ia, portanto, de COOPERAÇÃO MATERIAL INDIFERENTE. Sendo assim, o motivo razoável e proporcional para que ele coopere é não perder o ganho da corrida, que, de toda forma, ocorrerá com ou sem ele. Apesar disso, o motorista pode sempre recusar-se. Isso, quando o motivo da recusa fica claro, pode até sinalizar uma virtude e representar para as pessoas uma lição moral. Exemplo 12 – Se o motorista tem certeza que seu cliente está se dirigindo a uma clínica abortiva, o lucro da corrida deixa de ser um motivo proporcional, pois, nesse caso, a vida do feto que vai ser abortado é infinitamente superior a qualquer soma de dinheiro que venha a ser lucrada.

Exemplo 13 – Você trabalha numa clínica ou hospital, onde se praticam inúmeras atividades ilícitas (abortos, esterilizações, reduções embrionárias, fecundações artificiais, laqueaduras etc.). Você é médico anestesista. Portanto não é o direto executor das intervenções médicas. Mesmo assim, com a sua assistência ou cooperação, está ajudando o sistema a operar ilicitamente. É lícito trabalhar em tais condições? Médico anestesista, geralmente, não tem consultório próprio. Só atende em hospitais e clínicas auxiliando médicos de outras especialidades. Se ele se recusar a trabalhar nesse hospital, provavelmente, vai ter que se recusar a trabalhar em qualquer outro hospital. Além disso, qualquer outro anestesista poderá assumir seu lugar e fazer aquilo que ele se recusou a fazer. Sua cooperação então é MATERIAL E INDIFERENTE. Nesse caso, são motivos razoáveis e proporcionais para cooperar a sua sobrevivência e a manutenção de um médico com princípios éticos num lugar em que a ética é constantemente vilipendiada. Fica claro que, em hipótese alguma, poderá realizar intervenções intrinsecamente ilícitas. Exemplo 14 – A mesma coisa vale para um médico que está cumprindo seu período de residência durante a sua especialização. Pode esse médico participar de uma laqueadura ou de um aborto? Tal médico não pode realizar em primeira pessoa tal tipo de intervenção, mesmo que receba ameaça de ser expulso e de não poder levar a termo a especialização. Caso consinta, está incorrendo em COOPERAÇÃO FORMAL, isto é, está realizando um mal em si. Porém, se o médico for requisitado para instrumentar a mesa do aborto (passar os instrumentos para o aborteiro, durante o procedimento), num país onde o aborto é legalizado (isto é, numa situação em que ele não esteja praticando algo ilegal), quando isso representa uma conditio sine qua non para a obtenção do diploma de especialização, configura-se uma COOPERAÇÃO MATERIAL INDIFERENTE. Nesse caso, o mal que adviria ao médico (perder a especialização) seria motivo razoável para ele instrumentar a mesa cirúrgica. Ele não está realizando diretamente o mal. Se ele não participar, qualquer outro residente o fará. O caso seria diferente se, naquele dia, não há nenhum outro residente para instrumentar a mesa do aborto. Nesse caso, a recusa do único médico disponível inviabilizará o aborto e salvará uma vida humana. Nesse caso, então, a recusa é obrigatória. Exemplo 15 – Jornaleiros, comumente, vendem revistas pornográficas. Um jornaleiro resolve ser cristão e não mais vender pornografia em sua banca. Leve-se em considerações que existem revistas intrinsecamente pornográficas (feitas só de pornografia) e revistas que, além de trazer conteúdo pornográfico, apresentam outros conteúdos. Surge então para ele um dilema: se ele não compra mais revistas pornográficas, a editora que também lhe vende outros tipos de revistas não está mais disposta a vender-lhe nem estas nem aquelas. Só com a venda dos jornais diários, o jornaleiro não consegue sobreviver. Vender revistas exclusivamente pornográficas resulta em COOPERAÇÃO FORMAL. Portanto, em hipótese alguma, o jornaleiro pode vender tal tipo de revistas. Outra coisa é vender revistas que não são intrinsecamente pornográficas. Nesse caso, a cooperação é MATERIAL e INDIFERENTE

(se ele não vende, o colega vende). Caso o jornaleiro não consiga sobreviver apenas com a venda dessas revistas e dos jornais diários, infelizmente, deve abandonar a profissão e procurar outro sustento. O único caso em que o jornaleiro poderia entregar licitamente uma revista intrinsecamente pornográfica é sob ameaça de morte. Exemplo

16



Nas

farmácias,

vendem-se

corriqueiramente

abortivos,

pílulas

anticoncepcionais e pílulas do dia seguinte, estas últimas também substâncias abortivas. O farmacêutico pode vender tais substâncias? Em hipótese alguma, pois seria COOPERAÇÃO FORMAL. Algumas pessoas utilizam a pílula anticoncepcional em terapias de regulação hormonal. Se a mulher não mantém relações sexuais (porque solteira, celibatária ou casada em abstenção), a pílula não poderá gerar seu efeito abortivo, e seu uso então será lícito. Os demais anticoncepcionais, como, por exemplo, os preservativos, também são recursos intrinsecamente maus, contrários ao 6º mandamento (o que proíbe pecar contra a castidade), e por isso não podem ser comercializados por farmacêuticos cristãos, sob pena de incorrer em COOPERAÇÃO FORMAL. O dono de farmácia, independentemente do prejuízo financeiro sofrido,

não

pode

comercializar

em

seu

estabelecimento

remédios

abortivos

ou

anticonceptivos. A mesma regra vale para o funcionário da farmácia, com a diferença que este arca com um risco maior, o de ser despedido com sua atitude. As alegações de que, se o dono não vende, outra farmácia vende, ou de que, se o funcionário não vende, outro vende, não cabem aqui por se tratar de cooperação formal. O único caso em que se perde a formalidade da cooperação é quando o dono ou o funcionário são obrigados a entregar abortivos ou anticonceptivos a assaltantes sob ameaça de morte. Exemplo 17 – Você é funcionário de uma firma e descobre que seu chefe está fraudando a firma. Você deve denunciá-lo ou não? Nesses casos, em países muito corruptos, como o Brasil, é comum, após a denúncia, o culpado não ser condenado, por falta de provas, e ainda haver uma retaliação sobre o funcionário que encaminhou a denúncia. Trata-se de COOPERAÇÃO MATERIAL INDIFERENTE. Se houver, então, uma boa margem de probabilidade de a denúncia não parar a fraude e gerar perseguição do denunciante, não há culpa em não denunciar. O funcionário pode fazer a denúncia se ele quiser, mas não tem a obrigação de denunciar. Se o funcionário, porém, tem certeza de que, se denunciar, a denúncia vai dar certo, deve denunciar, tratando-se de COOPERAÇÃO MATERIAL NECESSÁRIA. Se a fraude envolve muito dinheiro e o denunciante corre risco de vida, não é obrigado a denunciar, pois a vida vale mais do que qualquer quantia de dinheiro. Exemplo 18 – Você descobriu a existência de um atentado terrorista que vai matar centenas de pessoas. Se você denuncia, salva as pessoas, mas coloca em risco a sua vida. Deve denunciar? Sim, porque proporcionalmente as vidas dos possíveis alvos valem mais do que a sua vida, e ainda você poderá fugir, procurar a ajuda da polícia etc. Exemplo 19 – Há um mafioso que está sendo julgado. Você é a única testemunha. Se você depõe, ele vai preso. Caso contrário, ele é solto. Seu depoimento, porém, vai ser motivo de

vingança, e você vai ser morto. O mafioso já matou cinco pessoas. Ninguém sabe se ele vai continuar a matar. Você é obrigado a depor contra esse mafioso? Trata-se de um caso de COOPERAÇÃO MATERIAL NECESSÁRIA. O que está em jogo. De um lado, de você ser morto por vingança contra a possibilidade de o mafioso matar mais pessoas se for inocentado. Existe aqui uma desproporção relativamente grande entre esses dois pratos da balança. O bem que você defende (sua própria vida) é de longe maior ao bem que se pretende alcançar (a prisão do mafioso e o freio às suas eventuais ações criminosas). Você pode tranquilamente recusar-se a testemunhar. Exemplo 20 – Fulano está sendo perseguido por um bando de assassinos. Ele é inocente. Entra, então, numa cidade e pede proteção ao prefeito. O bando chega e cerca a cidade. Tem artefatos bélicos suficientes para destruir a cidade. A cidade não tem chance alguma de se defender. A exigência do bando para poupar a cidade é que o João seja entregue morto. Caso contrário, João morre e com ele toda a cidade. A cidade pode matar João? Em hipótese alguma. Seria COOPERAÇÃO FORMAL. Não se pode matar um inocente, mesmo para salvar milhares de pessoas. Diferente seria o caso em que o bando exigisse que lhe fosse entregue João vivo. Num caso desses, a cidade poderia entregar João e, até, seria obrigação do próprio João o entregar-se para salvar quem o protegeu até agora. Ao entregar João vivo, a cooperação da cidade seria MATERIAL. Se é certo que o bando vai matar João e todos os da cidade, então, é razoável que se sacrifique o João para salvar os demais. Se a cidade puder resistir, então, não deve entregar João. Além do que dissemos sobre o 5º mandamento e sobre a cooperação, há mais observações a respeito da ‘ordem da caridade’. Quais são os casos em que temos a obrigação de fazer o bem, apesar dos prejuízos que podem advir? Existem três tipos de necessidade: necessidade extrema, necessidade grave e necessidade leve. NECESSIDADE EXTREMA ocorre quando alguém não é capaz de sair sozinho de um problema. Alguém foi condenado à morte injustamente e não tem como fugir. Um preso foi condenado à morte por seus companheiros de cela e não tem chance alguma de sobreviver. Alguém está inconsciente ou em coma e precisa de outra pessoa que o leve ao hospital. Alguém tem um nível altíssimo de hipoglicemia e não tem dinheiro para comprar insulina. NECESSIDADE GRAVE ocorre quando alguém vai tentar resolver por si só, mas, se não conseguir, vai arcar com prejuízos altíssimos (sua família vai ser destruída; vai perder o emprego, numa situação em que não há mais emprego; vai perder todo seu patrimônio ou toda a sua honra; vai ser cassado o registro de um médico ou de um advogado; trabalhou a vida inteira para ter uma casa e agora a casa vai pegar fogo). NECESSIDADE LEVE ocorre quando alguém vai ter um prejuízo facilmente administrável (vai perder o emprego, mas logo vai encontrar outro; vão roubar seu carro, mas o seguro vai lhe

dar outro carro novo; vai perder o vestibular, mas em seguida vai haver outro; vai ficar um dia sem almoço). Se não é pai, empregador, advogado, médico ou guarda-costas dessas pessoas, se não recebe rendimentos para cuidar delas (isto é, se não há da sua parte um dever de ofício para cuidar dessas pessoas), você tem obrigação de socorrê-las em suas necessidades? Para responder, devemos olhar duas coisas: de um lado, qual é o tipo de necessidade (extrema, grave ou leve); de outro, qual é o prejuízo de quem vai socorrer. Em casos de necessidade extrema, se, ao socorrer, entro também numa situação de necessidade extrema, eu não sou obrigado a socorrer. Socorro se eu quiser. Se o fizer, inclusive, farei algo louvável, mas não sou moralmente obrigado a fazê-lo. Se, para socorrer alguém que está numa necessidade extrema, eu incorro numa necessidade grave, sou obrigado moralmente a socorrer. Em casos de necessidade grave, se, ao socorrer, entro também numa situação de necessidade grave, não sou obrigado a socorrer. Se, porém, incorro numa situação de necessidade leve, sou obrigado a socorrer. Em casos de necessidade leve, se, ao socorrer, incorro numa situação de necessidade leve, não sou obrigado a socorrer. Caso não incorra em nenhum tipo de necessidade, a princípio, teria a obrigação de socorrer. Exemplo 1 – Alguém está afogando e pede socorro. Você não sabe nadar, mas é o único que pode intervir. Se entrar na água, provavelmente vai afogar. Então, ou você morre e o outro também, ou você morre e o outro se salva. Se você tentar, é lícito e louvável. Porém não há alguma obrigação moral para isso: ninguém é obrigado a entrar numa necessidade extrema para socorrer alguém que está numa necessidade extrema. Exemplo 2 – Você vê um idoso sendo assaltado e correndo perigo de morte. São as quatro da madrugada e a rua está deserta. Se você intervir, pode até salvar o idoso, mas provavelmente o assaltante vai descontar em você matando-o. Você pode tentar, mas não é moralmente obrigado a fazê-lo. Exemplo 3 – Você é advogado. Chega a uma penitenciária. Casualmente, um preso que não é seu cliente confia-lhe que os companheiros de cela o condenaram à morte. Pede-lhe então um habeas corpus para poder ser retirado daquela cela e ter a vida salva. No mesmo dia, porém, você tem uma audiência em que representará um seu cliente numa causa que é a mais importante da sua vida. Ou você salva o preso ou você representa o seu cliente. O preso é um marginal, mas vai morrer injustamente. A vida de um homem contra a sua carreira e os interesses do seu cliente. O que deve prevalecer. Obviamente a vida do preso ou de qualquer ser humano. O preso encontra-se numa necessidade extrema. Para socorrê-lo, você vai se meter numa necessidade grave. Exemplo 4 – Você é médico de um hospital onde recebeu a orientação de não atender pacientes não conveniados. Aparece um paciente com derrame ou infarto (necessidade

extrema). Não é conveniado e não tem dinheiro para pagar o tratamento. Não há tempo para transferi-lo para outro hospital. Se você o atender, será despedido (necessidade grave). Deve atendê-lo? Sim. Trata-se de uma necessidade extrema contra uma grave. Exemplo 5 – Numa farmácia entra alguém que necessita urgentemente de insulina, mas que não tem dinheiro para pagar. Você é o funcionário. Se se apresentarem três situações dessas num mês, lá se foi todo o seu salário. Num caso desses, não importa se você vai ser despedido ou se você vai ficar sem salário. Você ou o dono da farmácia têm a obrigação de fornecer a insulina de graça. Na realidade, devido à sua necessidade extrema, aquela insulina já é dele, e, se ele resolvesse roubá-la, não poderia nem deveria ser preso. Exemplo 6 – Um psicólogo, durante a festa de quinze anos da filha, recebe o telefonema de um cliente que está tentando suicidar-se. Não há como adiar o encontro para o dia seguinte nem como delegar o caso para um colega. O cliente exige a presença daquele psicólogo agora. A sua filha, porém, já está cansada de o pai atender clientes fora de hora e em ocasiões especiais. Atender o paciente (necessidade extrema) ou ficar no aniversário da filha (necessidade leve)?

NATUREZA DA MORAL

Em princípio, a Confissão, quando a fazemos pela primeira vez, é para definitivamente abandonarmos tudo o que a Igreja ensina que é pecado grave. Pecado grave é tudo aquilo que, em uma empresa, em uma comunidade, em um contrato, em uma convivência é equivalente a fazer algo que torna a vida incompatível com aquela empresa, comunidade, contrato ou convivência. Exemplos: se você vai entregar pizza, se desentende com o freguês e esfrega a pizza na cara dele, você é despedido e nunca mais vai entregar pizza; se você é um comandante de avião e resolve se apresentar e comandar o avião de shorts ou de maneira que as pessoas possam ter alguma dúvida se o comandante está em seu perfeito juízo, você nunca mais vai comandar um avião na vida. Há coisas que, dependendo do acordo, são absolutamente imperdoáveis, ou seja, a própria natureza da coisa não comporta uma pessoa desse tipo. Uma pessoa que é um criminoso assassino, um assassino em série, dificilmente será aceito para estudar medicina.

São Paulo diz que, quando a gente se torna cristão, a gente é aceito na casa de Deus, na família de Deus. Na convivência da família de Deus, há certas coisas que são a quebra, a ruptura completa. Deus mesmo diz qual é o critério de quem faz parte da sua família: Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. O preceito da castidade está incluído no segundo mandamento do amor ao próximo.

O 1º passo para ser cristão é romper definitivamente com o pecado grave. Por isso, é preciso compreender o que é o pecado grave, é preciso explicar em miúdos. Mas não é só isso. Além de evitar o pecado grave, além de evitar essas rupturas é preciso cultivar as virtudes.

Exemplo: quem casa com uma moça deve entender que tem de voltar para a casa todos os dias, tem que morar junto com a moça, tem que ser fiel na alegria e na doença. Se não entender essas coisas, não dá pra casar. Não dá pra casar e viver uma situação dessas: - Aonde você vai? - Vou pra minha casa. - Como assim pra sua casa? Agora você está morando comigo. - Que é isso? Agora você vai exigir que eu vá todos os dias para a sua casa? - Não! Não é a minha casa, é a nossa casa. - Não. Não estou sabendo nada disso! Quer dizer que agora vou viver como escravo, vou ter que voltar todo dia pra lá, e ainda por cima vou ter que dormir com você? O que é isso? - Não é só isso. Você vai ter que ser fiel, e eu também.

Não dá pra casar se a pessoa não entender primeiro que ela vai repartir a vida com outra e doar a vida para essa outra pessoa. Se a gente casa sem antes entender essas coisas, o casamento será destruído.

O mesmo acontece no trabalho. Há exigências que são inegociáveis. Caso contrário, o emprego se torna inviável.

As virtudes são qualidades que a gente adquire para praticar certos atos coerentemente com a natureza humana. Precisamos desenvolver essas virtudes por vários motivos. Isso significa que estudamos essas coisas não só para evitar o pecado grave, mas também para desenvolver em nós certos hábitos que são chamados virtudes.

Algumas virtudes estão relacionadas às paixões. As paixões básicas da alma humana são de dois tipos: paixões irascíveis e paixões concupiscíveis. São paixões irascíveis a raiva, a violência, a explosão de cólera, a vingança, o desejo de retribuir o mal com o mal, o ódio. São paixões concupiscíveis a sexualidade desenfreada, o desejo de gula, de sexo, de prazer, os vícios de álcool, de drogas de jogos de cavalos, de cassino, de cartas etc.

Via de regra, as paixões humanas são ou concupiscíveis ou irascíveis. O ser humano comum, o ser humano na sua natureza decaída deixa essas paixões se desenvolverem como se fossem uma erva daninha. O resultado é tremendamente deletério para a sua inteligência.

Uma pessoa que deixou o concupiscível e o irascível se desenvolver não é mais capaz de pensar corretamente, não só no sentido de fazer cálculos ou operações de lógica. Essa pessoa não consegue mais pensar claramente na própria vida, na organização da própria vida, em questões de justiça, em questões do que ela deve realmente aos seus semelhantes, aos seus patrões e do que ela deve a si próprio.

É preciso, então, ordenar as paixões por meio das virtudes. A experiência mostra que a prática da castidade e a prática da paciência (do respeito ao próximo) tem um efeito absolutamente fulminante no desempenho do trabalho da mente. A mente fica mais limpa, mais clara, pensa melhor não só nas coisas mais profundas, mas inclusive nas coisas mais elementares. É muito comum que jovens irascíveis ou concupiscíveis que abandonam seus vícios e paixões a partir de uma confissão bem feita tenham seu rendimento escolar nas matérias triviais subir da noite para o dia. Isso se for uma conversão sincera. Isso tem um efeito na vida espiritual fora do comum. Essa é uma das coisas que explicamos quando preparamos as pessoas para a confissão, pois isso não é o fim da vida espiritual e sim seu começo.

É preciso ter bem claro o que é o concupiscível e o irascível para que sejamos absolutamente radicais em romper com essas paixões. O Evangelho exige uma conversão em relação a isso. Jesus era severo com essas duas coisas. No Sermão da montanha, em Mateus 5, Jesus se refere a dois mandamentos em especial: 1) Não matar; 2) Não cometer adultério. Vocês ouviram o que está escrito: “Não matarás”, mas eu lhes digo que aquele que xingar, insultar o seu irmão chamando‐o de cretino (obviamente ele não está falando de uma avaliação psiquiátrica onde o médico afirma que o QI do sujeito é baixo; ele está se referindo àquele que deseja magoar, insultar, desprezar ou humilhar uma pessoa) é réu de condenação. Jesus compara esse ato de insultar a um assassinato.

Logo depois Jesus faz a mesma coisa com o concupiscível: Vocês ouviram falar que não se deve adulterar, está na lei de Deus, mas eu lhes digo que aquele que olhar com mau desejo no coração para uma mulher já cometeu adultério. Na tradição judaica e no início da tradição cristã – até hoje é assim, mas as pessoas não sentem mais assim – o adultério é coisa gravíssima. No judaísmo, o adultério era condenado com apedrejamento. No início do Cristianismo, o adultério, tanto do homem quanto da mulher, era impensável. Quem adulterasse precisava pedir perdão à Igreja. Não se admitia uma simples confissão, como se faz hoje. O indivíduo tinha que fazer penitência durante vários anos antes de ser readmitido

na Igreja. E havia uma única chance. Se ele cometesse um segundo adultério, ele não voltava mais à Igreja. Tinha que se resolver sozinho com Deus. Não estava perdido, Deus poderia perdoá‐lo, mas ele tinha que se resolver sozinho com Deus. Hoje em dia, a gravidade do adultério não diminuiu, mas a disciplina eclesiástica é mais simples: a gente se arrepende, confessa e precisa mostrar para o padre que está disposto a nunca mais cometê‐lo. A gravidade não é menor.

Jesus pega dois pecados gravíssimos que as pessoas entendiam claramente: assassinato e adultério. Jesus diz: assassinato não é somente matar uma pessoa; xingar uma pessoa para humilhá‐la já é assassinato; adultério não é só dormir com a mulher do vizinho casado; olhar uma mulher com mau desejo já é adultério. Jesus tem essa rigidez especificamente com esses dois tipos de pecado. Ele está atingindo o irascível e o concupiscível.

Uma das coisas que precisamos aprender preparando-nos para a Confissão não é apenas que existem certas regras fundamentais que quebramos pela raiz se não as seguirmos, mas que existem duas coisas que precisamos desenvolver: a virtude da pureza e a virtude da mansidão. Para sermos mais exatos, a virtude do respeito ao próximo, dessa benevolência capaz de você, humildemente, rezar pelo bem dos outros e desejar o bem dos seus inimigos, daqueles que o odeiam, daqueles que lhe fazem o mal. Ter isso para com todos. Em nenhum momento deve ofender, humilhar, desprezar as pessoas. Mesmo que, em certas ocasiões, dependendo do seu ofício, você tenha que tomar certas atitudes enérgicas, como um juiz ou um policial, por exemplo, essas atitudes devem ser tomadas dentro dos limites do razoável e dentro dos limites do seu ofício. Desenvolver as virtudes da castidade e do respeito ao próximo é indispensável para o seguinte desenvolvimento espiritual. Isso abre a mente e faz de nós outras pessoas.

Há outro motivo para se praticar as virtudes da castidade e da benevolência. A finalidade da vida humana é alcançar a comunhão pessoal com Cristo que se dá dentro de uma vida de oração e de profunda espiritualidade. Isso se faz através da vida contemplativa. Não significa que precisamos nos entregar a uma vida puramente contemplativa, como num mosteiro. Significa que precisamos ter vida interior, independentemente do gênero de vida que tenhamos. Nessa vida interior se dá o encontro verdadeiro, íntimo e pessoal com Deus. Isso se vê claramente na passagem de Marta e Maria. Marta ficava na cozinha, preocupada com muitas coisas. Maria ficava aos pés de Jesus, ouvindo‐o falar. Quando Marta reclama que Maria não a estava ajudando na cozinha, ao invés de receber um elogio, recebe uma repreensão. Jesus diz que, na verdade, uma única coisa é necessária, e Maria escolheu a melhor parte que não lhe será tirada.

Jesus mostra que o miolo da vida cristã está na contemplação, na intimidade com Deus. Ora, a experiência mostra que a contemplação exige como preparação mais do que a prática da castidade e da mansidão. A contemplação, além da castidade e da mansidão, exige a prática de um apostolado efetivo, o que se chama vida ativa. Trata-se de uma espécie de justiça: dar aos outros o que lhes é devido. Àqueles que passam fome, dar comida; àquelas pessoas que estão na ignorância do Evangelho, dar a Palavra; àquelas pessoas que são como mortas, levar a ressurreição de Cristo. Isso é mais trabalhoso do que a castidade e o respeito ao próximo, pois a castidade e a benevolência no fundo consistem em não fazer algumas coisas. No apostolado, a justiça consiste em levar às pessoas aquilo que lhes é devido. Para isso, você precisa se esquecer de você mesmo. Você poderia estar na sua casa fazendo algo por você. Percebe, porém, quantas pessoas estão precisando da sua ajuda, e você começa a cair na realidade do que é o mundo. Começa a perceber que não existe mais espaço para você. Ou você se doa ou se tranca. Jesus diz que não se pode ser seu discípulo se, além de romper com o pecado, não se renuncia a si próprio e o único modo de renunciar a si próprio é através do apostolado, do apostolado sério, não aquele que a gente faz nas horas vagas, no momento em que a gente quer, para satisfazer uma inclinação pessoal como visitar um asilo de velhinhos num certo horário, só naquele. Existem obras de misericórdia que precisam ser feitas e que produzem o efeito de renunciarmos ao egoísmo, pois, quando fazemos essas coisas, não temos mais tempo de pensar em nós, precisamos pensar no outro.

Essa vida ativa é ordinariamente pressuposto para a contemplação. A contemplação é, na verdade, a intimidade com Deus, em que a gente se doa a Deus e Deus efetivamente se doa a nós. Ele entra em contato pessoal conosco, cada vez mais profundamente. Isso exige não só que a pessoa esteja livre das paixões e do pecado grave, mas exige também um desprendimento, uma doação, uma ausência de egoísmo que só ocorrem por meio da vida ativa. Não apenas praticar as virtudes, evitando o pecado, mas aprender a doar‐se ao próximo, através das obras de justiça ou de misericórdia.

Assim, compreendemos a grande função desse aprendizado da Moral: tudo isso serve, em última análise, para o encontro com Deus através da vida espiritual. Tudo deve ter uma ordenação para a finalidade última, que é o encontro com Deus.

Há uma virtude que é responsável por fazer a ordenação, e que nos permite entender o sentido de todas as coisas. Existe uma virtude que é capaz de ordenar as outras virtudes e dosar cada uma delas para que possamos, em função do fim último, fazer tudo com equilíbrio e justiça. Essa virtude é a prudência. É a grande virtude da moral humana. Prudência é aquela virtude da inteligência prática pela qual a gente consegue coordenar todas as demais

virtudes para uma determinada finalidade. A prudência age especificamente no momento presente quando você tem que fazer uma coisa direito. Por exemplo, você tem que praticar uma boa ação. Para que ela chegue ao seu bom termo, você deve escolher as palavras certas; não pode deixar a sua cólera aflorar e botar tudo a perder; não pode deixar que seu amor próprio e sua inclinação pelas coisas o desviem; você sabe pesar exatamente cada coisa, entender o que você quer e fazer a coisa na medida certa. A prudência serve para você ser sábio em uma determinada circunstância, mas serve sobretudo para ordenar toda a sua vida à finalidade última, que é aquela que Jesus diz a Maria. Maria escolheu a melhor parte que não lhe será tirada. O problema de Marta é muito simples: ela tem paixão pela casa; Marta chega à cozinha e não conseguia sair de lá. Seu problema é passional. Supondo que a pessoa se livre das paixões, ela tem que se livrar do egoísmo. Supondo que a pessoa já seja suficientemente desprendida de si e não seja dominada pelas paixões, ela ainda assim tem que aprender a coordenar as coisas, ela tem que ser um bom administrador. Ela não será um bom administrador se tiver paixões e egoísmo, e, mesmo que não os tenha, ainda tem que aprender os critérios pelos quais se administra. Quem ensina esses critérios, uma vez que se tenham desenvolvido essas virtudes, é outra virtude que se chama prudência e que se aprende através da Moral.

A função da Moral é desenvolver no cristão aquela virtude que a gente chama de prudência. São os critérios pelos quais a gente deve saber agir corretamente e, em última análise, esses critérios devem ser capazes de nos levar à contemplação, devem ser capazes de nos ensinar a usar o desenvolvimento das virtudes para nos dirigirmos a uma vida de comunhão com Deus.

Supondo que você tenha se livrado do pecado grave, supondo que você tenha desenvolvido as virtudes e supondo que você não seja um preguiçoso e que, além de evitar o pecado, você tenha o desprendimento de saber-se doar, de vencer a preguiça e ser uma pessoa perseverante (que, diante de uma dificuldade, você não diga, depois de uma semana, que você já fez a sua parte e que agora os outros têm de fazer a deles), se você realmente é capaz de entender o sofrimento do outro a partir da perspectiva dele e não da sua, você ainda precisa de uma virtude que se chama prudência. A prudência julga corretamente como desenvolver todas as ações humanas, tanto as pequenas em uma situação concreta, como a maior de todas que é coordenar todas as virtudes em direção à contemplação. Então, a verdadeira finalidade disso que nós estamos aprendendo que é a teologia moral dirigida à primeira confissão, é o desenvolvimento da virtude da prudência.

Aqui não estamos preocupados em dar uma tabela do que é pecado grave e do que não é, mas estamos desenvolvendo critérios pelos quais a gente pode aprender e analisar como é

que se age. Esses critérios devem ser aprendidos, refletidos durante a vida e aprofundados. É importante que a gente aprenda essa capacidade de saber encontrar o modo certo, ético e moral de fazer as coisas. O maior desafio da prudência é, porém, ordenar não só cada uma das pequenas ações, mas o conjunto da vida humana à vida do espírito. O homem que sabe fazer direito todas as coisas, o homem que sabe fazer de uma maneira ética todas as suas atividades, mas não consegue ordenar o conjunto para a verdadeira finalidade da vida humana, que é a vida do espírito, qualquer que seja o estado em que ele se encontra, não é um homem prudente, não soube ordenar os meios em direção ao fim. Ele soube ordenar meios pequenos em relação a fins imediatos, mas aqueles fins imediatos eram, por sua vez, meios para o fim geral da vida humana, e o fim geral da vida humana é a união com Cristo, como o próprio Cristo diz no Evangelho: “Eu quero que todas essas pessoas sejam um só comigo, assim como eu sou um só com o Pai”.

Isso não se alcança praticando apenas a castidade, o respeito ao próximo, a justiça ou a vida ativa. Alcança-se pela prática das virtudes teologais numa vida profunda de oração. Só que nós não estamos no Céu, nós estamos neste mundo, onde várias atividades nos solicitam. Nós temos que cozinhar, acudir os outros, trabalhar, estudar, alguns têm que casar, acudir os filhos, cuidar da casa, dormir, pagar contas, resolver problemas profissionais etc. E devemos ter uma sabedoria para saber ordenar tudo isso e não nos perdermos na cozinha como Marta. Temos que levar tudo isso como meio para uma vida profunda de oração. Isso daí é a prudência que faz. E não existe prudência nas coisas grandes, se não existe também nas coisas pequenas. O meio básico de desenvolver a prudência é através da Moral. No fundo, essa preparação à confissão é uma Moral aplicada, para nos desvencilharmos do pecado grave, para nos libertar da desordem das paixões que ofuscam a mente humana, para aprender a trabalhar pelos outros e esquecermo-nos de nós mesmos e, enfim, desenvolvermos em nós a virtude da prudência.

O miolo da Moral é o desenvolvimento de uma virtude especial da inteligência prática que tem a habilidade de coordenar todas as demais virtudes para uma vida virtuosa. É preciso entender a circunstância e ver a dose certa de aplicar cada coisa, cada palavra, cada virtude, cada parte da alma humana naquela situação concreta. Se você vai consolar um aflito é preciso ter a certa medida para isso. Todas as coisas têm a sua medida, e a prudência tem os seus critérios para avaliar e julgar as coisas.

A prudência julga o modo correto de desempenhar as virtudes. Para que a prudência se desenvolva bem ela precisa do desenvolvimento prévio das outras virtudes, especialmente das virtudes relacionadas às paixões irascíveis e concupiscíveis – castidade e respeito ao próximo ‐ e ao senso de justiça que dificilmente será desenvolvido sem um autêntico trabalho

de apostolado, sem uma doação em um trabalho de misericórdia movido não por gosto, mas por um sentimento de justiça para com a necessidade do próximo. Se não houver isso, dificilmente a justiça será desenvolvida. Você pode usar os critérios que quiser, mas se você for um viciado em sexo e uma pessoa que desrespeita os outros e não tem senso de justiça, não será possível que a prudência que se desenvolva. Ela precisa dessas coisas. Supondo que essas coisas existam, a prudência precisa ser aprendida mediante a reflexão sobre nossa vida moral: sobre o que é certo, o que é errado, o que foi além, o que foi a menos. Isso pode receber uma grande ajuda pelo estudo da Moral.

Estou dizendo tudo isso para que o que estamos estudando não pareça uma série de regras caóticas ou matemáticas. Não há prudência onde não há virtudes. A prudência coordena as virtudes. Como num jogo de futebol, não existe técnico sem jogadores. Se não há jogadores, não adianta trazer o melhor técnico. Para se ter um técnico, precisamos de jogadores. Também não adianta ter os melhores jogadores sem o técnico. A prudência é o técnico que ensina como se fazem boas jogadas para a vitória. A vitória final no jogo é a intimidade divina a que Deus nos chama através da vida interior. Os passes, as boas jogadas são as práticas das pequenas virtudes. Um técnico que só saiba bolar boas jogadas, mas não sabe coordená‐las para a vitória não serve para nada, ou serve para muito pouco.

A educação, o aprendizado da prudência envolve o desenvolvimento de critérios e pressupõe que existam as virtudes. A função da Moral é também desenvolver as virtudes. Sem essas virtudes, não é possível desenvolver a prudência, da mesma forma que não adianta contratar o melhor técnico se os jogadores são ruins. Estaria se jogando dinheiro fora.

Ao demonstrarmos a importância de desenvolver essas virtudes, estamos indo além do necessário para a primeira confissão, estamos imaginando um trabalho de ascese. Isso nos ajuda a refletir sobre o jogo inteiro e sobre como ganhar o campeonato, ou seja, a nossa santificação. Eu estou dizendo isso para que a gente não confunda essa preparação para a confissão com um amontoado de regras que a gente tem que aprender porque parece que tem uma tabela com um monte de regras que, se eu cumprir, vou para o Céu.

A prudência é uma virtude que a maioria das pessoas costuma chamar de sabedoria. Na tradição cristã, sabedoria é uma coisa mais alta do que isso, mas, no conceito comum das pessoas de hoje, você chama de homem sábio aquele indivíduo a que você chega com um problema insolúvel e ele diz exatamente o que você precisa fazer, sem paixões, sem injustiças, dosando exatamente as coisas e com um entendimento claríssimo do que se deve fazer pra solucionar esse problema. Você faz, e a coisa se resolve. Essas pessoas a que, na

hora da dificuldade, você recorre são reconhecidas como pessoas sábias. Na verdade, esse não é o homem sábio, e sim prudente. No sentido comum de hoje, prudente é a pessoa que não se mete em confusão. É aquele que, na dúvida, fica quieto. Não é essa a prudência de que estamos falando. Esse é o conceito moderno da palavra.

Você tem que, aos poucos, desenvolver moralmente a virtude da prudência. E não basta que você desenvolva essa prudência para resolver um aperto. Você tem que aplicar essa prudência para planejar toda a sua vida e ela ser um sucesso no final das contas. E o sucesso no final das contas é alcançar o reino dos Céus, a filiação divina, a união com Cristo, a intimidade com Cristo, a perfeição da vida espiritual, aquela única coisa necessária que jamais será tirada. Muitas pessoas que tem prudência para as pequenas coisas, não tem prudência nenhuma para a única coisa necessária. No fundo, essas pessoas não tinham de fato uma grande prudência para as pequenas coisas, elas tinham alguma esperteza.

Normalmente, quando a gente desenvolve corretamente a virtude da prudência começa a enxergar não só o pequeno, mas o grande. A gente começa a entender a vida toda e começa a buscar aquilo que é o verdadeiro miolo.

Hoje, quando alguém diz que o outro é prudente se refere àquela pessoa que não se mete em frias, não se mete em confusão, não se mete em aventuras, que tem cautela e não dá murro em ponta de faca. Mas a prudência não é isso. Ela é, no conceito de hoje, o homem sábio. A gente deveria desenvolver isso para que nós mesmos. Pouco a pouco, adquirir os critérios do homem sábio. E uma das finalidades da Moral é justamente essa, não só essa, não só desenvolver a prudência, mas desenvolver também a justiça, as virtudes. A primeira tarefa da Moral é ensinar a evitar o pecado grave que é a maior tragédia, o rompimento total da vida espiritual.

Quais são os motivos e os objetivos do estudo da Moral cristã?

1) O primeiro motivo para estudar Moral é aprender a evitar o pecado grave.

Em tudo o que a gente faz, sempre há coisas que podem nos levar à ruptura com aquilo que estamos fazendo. Não só no campo religioso, mas em todos os campos do agir humano, há “pecados mortais”.

Recentemente houve um desastre aéreo em que parece que o piloto quis suicidar-se e jogou o avião lotado de passageiros na encosta de uma montanha. Se alguém tem problemas

psiquiátricos, não pode ser piloto de avião. Se for, isso pode ser fatal para ele e para outras pessoas que dependem dele. Uma companhia aérea não pode em hipótese alguma aceitar um piloto com tendências suicidas. Esse indivíduo pode servir para outra profissão, mas certamente não como piloto da aeronáutica. Em todo tipo de atividade, existem atos ou atitudes permitidos e proibidos.

No campo espiritual, são pecados mortais aqueles que vão contra a essência do evangelho, rompendo a amizade com Deus.

Quando a gente começa uma nova atividade, há sempre alguém incumbido de explicar-nos aquilo que devemos e aquilo que não devemos fazer.

Um diplomata, por exemplo, deve ser sempre polido, educado e gentil. Não pode externar seus sentimentos negativos. Não pode xingar o chefe do Estado em que exerce seu cargo. Em outra profissão, externar os próprios sentimentos pode ser irrelevante ou até necessário. Na diplomacia, nunca. Isso deve ficar claro para um diplomata.

Num matrimônio natural (isto é, não sacramental), a infidelidade pode ser considerada um “pecado mortal”. Quem casa deve entender que, agora, vai ter que se dedicar com exclusividade ao companheiro ou companheira. A infidelidade rompe gravemente o vínculo matrimonial natural.

O estudo da Moral implica, então, o aprendizado de regras de etiqueta espiritual que nos permitem construir uma amizade com Deus sem incorrer em rupturas.

2) O segundo motivo para estudar Moral é aprender a desenvolver as virtudes (prudência, castidade, benevolência para com o próximo, justiça, fortaleça, temperança, generosidade, diligência, paciência, humildade). A finalidade do cristianismo é alcançar a amizade, a comunhão, a intimidade com Deus, participar da natureza divina, ser um com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Para chegar a isso, primeiro, é necessário ordenar a nossa psicologia, as nossas paixões, os nossos maus hábitos. Essa ordenação se faz por meio da prática das virtudes, que ordenam a nossa psicologia. Algumas virtudes são particularmente importantes na ordenação da psicologia humana: a castidade ordena as paixões concupiscíveis; a benevolência para com o próximo ordena as paixões irascíveis; a justiça ordena a vontade, faz-nos tomar consciência da existência do outro enquanto outro diferente de mim e funciona como antídoto ao egoísmo. Quando uma pessoa nasce, tem uma consciência bem limitada da existência do outro fora de si. Para chegar a reconhecer o direito alheio como algo autônomo, exige-se uma virtude específica, que é a justiça.

No mundo, há pessoas até razoavelmente boas que não conseguem enxergar normas de justiça elementares, como aquelas inerentes ao 7º mandamento. Há pessoas boas que dão salários injustos, podendo pagar o justo. Não conseguem se colocar no lugar do outro, compreender a necessidade do outro. Isso revela uma desordem interior que não permite o desenvolvimento de uma espiritualidade profunda.

A castidade não é só questão de proibir ou evitar determinados comportamentos, mas é sobretudo uma virtude a ser cultivada e que abre a mente para o conhecimento da verdade, libera a inteligência e a vontade da tirania das paixões.

A benevolência para com o próximo também permite dominar as paixões: normalmente, as pessoas que se irritam têm uma mente estreita e dificilmente vão entender o que é orientar-se a uma vida que busque a contemplação.

A pessoa que não consegue enxergar o que é justo dar ao próximo (em termos de salário justo ou de supérfluo, por exemplo) tampouco enxerga sua própria situação de extrema necessidade espiritual.

Então o crescimento das virtudes humanas é essencial para dispor-se a alcançar a verdadeira razão do nosso viver: contemplar a Deus. Isso é o que Jesus nos ensina no evangelho de Marta e Maria. “Marta, Marta, você se preocupa com muitas coisas, mas uma só é necessária, e Maria escolheu a melhor parte.” Essa “uma só coisa é necessária” é o resultado de uma vida dedicada à espiritualidade, para alcançar a comunhão com Deus, por meio da fé, da esperança e da caridade.

Na prática, porém, isso é muito mais complicado do que parece. Todos nós, com efeito, somos psicologicamente desestabilizados. A raiz dessa desordem é a falta das três virtudes básicas que ordenam nosso equilíbrio emocional ou psicológico: a castidade, a benevolência e a justiça.

3) O terceiro motivo para estudar Moral é o desenvolvimento da prudência. Quando temos virtudes, ao agirmos, usamos as virtudes que temos. Numa orquestra há músicos e diretor. Há muitos instrumentos que devem ser tocados por músicos virtuosos. Porém não basta que os músicos sejam virtuosos. É necessário um maestro que os dirija. O maestro deve ter uma virtude diferenciada da virtude dos músicos: a virtude de ordenar a performance de todos os instrumentos e de todos os músicos em direção à harmonia da música que está sendo executada. Também na vida moral ou espiritual existe um maestro: trata-se da virtude da

prudência, que reside na inteligência e que permite ao homem resolver pequenos ou grandes problemas.

A execução de uma ação virtuosa não envolve apenas uma ou mais virtudes, mas envolve também a virtude ordenadora das demais virtudes, a saber, a prudência. Não basta ser uma pessoa virtuosa para fazer as coisas direto. O homem prudente sabe exatamente como fazer cada coisa para que tenha sucesso pleno. Não se trata de cautela. O homem cauteloso põe cautela em tudo. Às vezes acerta, outras vezes, não. O homem cauteloso na verdade é um cego que sempre usa de cautela com medo que as coisas não deem certo. A prudência, diferentemente, nem sempre é cautelosa, podendo, às vezes, tomar atitudes destemidas.

A virtude da prudência é parte da inteligência prática (não da inteligência especulativa) e pode ser desenvolvida. Por outro lado, a castidade é parte do concupiscível; a benevolência para com o próximo é parte do irascível; a justiça é parte da vontade.

O desenvolvimento da prudência está vinculado ao desenvolvimento da inteligência prática e se dá pela REFLEXÃO, pelo ESTUDO e pela APLICAÇÃO PRÁTICA de seus princípios à vida. Dessa mesma forma se constrói um bom diretor de orquestra, o qual deve, primeiro, estudar a teoria para, depois, aplicar de fato os princípios estudados na direção de uma orquestra concreta. Cada maestro tem seus músicos concretos que deve aprender a dirigir. Nunca será um bom maestro sem passar pela direção concreta de uma orquestra.

4) O quarto e principal motivo para estudar Moral é orientar a própria vida à contemplação e à intimidade com Deus.

A mesma prudência que nos permite obter sucesso nos desafios do dia a dia (um conflito entre nações, uma briga de casal, uma estratégia empresarial etc.) é a que é capaz de ordenar toda a nossa vida para seu fim último. A vida humana não é uma sequência casual de acontecimentos soltos e dispersos sem sentido. A existência humana é um todo coerente que tem uma meta final, para qual tendem todas as contingências cotidianas. As pequenas ações, as pequenas metas se ordenam gradualmente a ações e metas maiores, até chegarem ao objetivo maior de toda vida humana: a contemplação e a comunhão com Deus.

É o que Jesus diz a Marta e Maria: Maria escolheu para si a melhor parte, isto é, a contemplação da verdade na intimidade com Cristo.

O que normalmente impede a comunhão com Deus, suposto que a pessoa esteja em estado de graça (sem pecado mortal) e queira essa comunhão, é a DESORDEM PSICOLÓGICA.

Estamos inseridos numa sociedade que não ajuda a adquirir essa comunhão. E mesmo que a sociedade favorecesse esse encontro com Deus, nossa harmonia interior, nosso equilíbrio emocional não são suficientes para nos permitir essa comunhão. Vivemos enrolados, envolvidos com muitas coisas, feitos Marta na cozinha. Maria sabia arrumar a cozinha, mas colocava em primeiro lugar o estar na presença do Filho de Deus. Marta, pelo contrário, perto de uma cozinha já perde a cabeça. Nós também perdemos o controle diante das coisas que nos envolvem e nos escravizam. Isso ocorre porque nos falta o maestro, o diretor da orquestra, a prudência.

A maior tarefa da virtude da prudência é ordenar nossa existência à contemplação, independentemente do nosso estado de vida (bispo, advogado, monge, faxineira, casado, padre, solteiro etc.). Se a gente não se voltar para a contemplação, tudo o que realizamos será vão.

A prática da prudência nas pequenas coisas nos ajudará a orientar nossa existência para seu fim último. Para ordenar tudo em vista da comunhão com Deus, devemos, então, primeiro aprender a agir com prudência na vida familiar, paroquial, profissional etc.

A vida contemplativa também depende de outras virtudes além da castidade, da benevolência, da justiça e da prudência. A contemplação depende basicamente do exercício profundo e constante das três virtudes teologais: fé, esperança e caridade. Isso não no céu, mas aqui na terra, no meio das nossas atividades diárias. As virtudes humanas, portanto, nos ajudam a organizar nossa vida de maneira a desenvolver a fé, a esperança e a caridade em vista da comunhão com Deus.

A prudência orquestra as demais virtudes e realiza aquele equilíbrio psicológico e espiritual que permite ao homem desenvolver fé, esperança e caridade, concentrando-se no que “mais importa”, a comunhão com Deus. Sem virtudes humanas, você nunca vai achar tempo, nunca será sistemático. Simplesmente se perderá como Marta no meio dos afazeres do mundo.

Para uma pessoa superficial, tudo isso poderá PARECER burocrático e entediante. Ou será algo bom talvez para monges, para pessoas absolutamente afastados da lida diária do mundo, ou para sacerdotes que se preparam a ouvir confissões.

De fato, porém, isso permite-nos desenvolver a prudência, que comanda as demais virtudes humanas, permitindo-nos o equilíbrio necessário para buscar a fé, a esperança e a caridade, que são as três virtudes teologais que nos levam à comunhão com Deus. No meio do mundo,

com seus roubos, desrespeitos, tentações, ameaças e atropelos contínuos, para não enlouquecer como Marta, precisamos ser extraordinariamente prudentes para organizar a nossa existência coerentemente com os ensinamentos de Cristo, o qual nos assegura de que existe apenas uma coisa necessária que nunca nos será tirada: a comunhão com ele.

Resumindo, então, são quatro os motivos para estudar a Moral cristã:

1) Evitar o pecado grave; 2) Desenvolver as virtudes humanas que ordenam a psicologia humana (em especial, a castidade, a benevolência para com o próximo, a justiça); 3) Desenvolver a prudência, virtude que ordena as demais virtudes humanas; 4) Orientar a própria vida para seu fim último: a comunhão com Deus.

SEXTO MANDAMENTO NÃO PECAR CONTRA A CASTIDADE

O sexto mandamento condena todos os pecados contra a dignidade da sexualidade. De uma maneira mais precisa, podemos afirmar que o sexto mandamento proíbe o uso do prazer venéreo fora do matrimônio legitimo.

O prazer venéreo difere, do ponto de vista técnico, do uso da sexualidade. Sexualidade é um conceito mais amplo que prazer venéreo.

Normalmente, por exemplo, as linhas aéreas preferem uma atendente do sexo feminino porque é mais agradável ser atendido por uma moça do que ser atendido por um homem. Em certas circunstâncias isso é verdade: na recepção de um hotel, no atendimento telefônico. Via de regra, é muito mais agradável que você seja atendido por uma moça, principalmente se os clientes são homens. Ao que se deve isso? À sexualidade. E isso não representa um pecado contra a castidade. Isso é consequência normal da sexualidade. Então, também é consequência da sexualidade que, se você quer casar, você vai dar preferencia para uma moça e sentir uma alegria no dia do noivado em que está pedindo a mão dela em casamento. Coisa que você não sentiria se fosse um homem, supondo que quem esteja pedindo seja um homem. É óbvio que esse prazer tem uma origem sexual. E não é o que se chama de prazer venéreo.

Devido a um componente sexual, a emoção de estar pedindo uma moça em casamento é muito maior do que a de estar recebendo um diploma. Você vai preferir ser atendido por

moças bonitas do que por velhas. Isso é de origem sexual. Então a sexualidade está além do prazer venéreo.

O prazer venéreo diz respeito à própria relação sexual ou às coisas que excitam ou preparam para a relação sexual. Então, neste sentido, por exemplo, é prazer venéreo ver um filme erótico, ter um pensamento erótico, mesmo que ele não leve a uma relação sexual, pois ele excita e começa a produzir um movimento que, se levado adiante, dará lugar a uma relação sexual. Então, qualquer prazer venéreo livremente consentido e advertido fora do matrimônio legítimo é pecado grave. Isso se deve a duas coisas. De uma maneira muito genérica, não é que o sexo seja uma coisa suja. É justamente o contrário: o sexo é uma coisa sagrada.

De modo geral, as coisas sagradas não podem ser usadas a torto e a direito. Por exemplo, a Missa é uma coisa extremamente sagrada. Não se pode presidir a celebração da Missa sem ser ordenado padre. Não se pode ser ordenado padre sem uma longa preparação para que você possa adquirir a dignidade compatível com a presidência da celebração de uma Missa. A própria Missa não pode ser celebrada em qualquer lugar. Ordinariamente, a Missa é celebrada num lugar sagrado. Então, proíbe-se que as pessoas presidam a celebração da Missa sem serem sacerdotes do mesmo jeito que se proíbe que as pessoas tenham relações sexuais sem terem contraído um matrimônio. Por ser uma coisa sagrada e não uma coisa suja, a Missa deve ser celebrada com a devida dignidade, com os devidos paramentos, com as devidas cerimônias litúrgicas e nos devidos lugares. Caso contrário, comete-se um sacrilégio. Assim, quem mantiver uma relação sexual fora das circunstâncias devidas comete um adultério ou um pecado gravíssimo contra a castidade.

O motivo por que existem os pecados contra a castidade não é porque a sexualidade é uma coisa sórdida e baixa; é o contrário: é porque a sexualidade é uma coisa elevada. E é uma coisa sagrada que merece o devido respeito.

E por que a sexualidade tem essa dignidade? Segundo Tomás de Aquino, porque ela está incluída no segundo mandamento de amar ao próximo. E qual o motivo de ela estar incluída no segundo mandamento? Um dos motivos é porque a finalidade da sexualidade é constituir uma família e gerar a vida. Obviamente isto é consequência do amor. É por amor que você vai constituir uma família e é por amor que você vai gerar vida. A sexualidade, por causa disso, carrega dentro de si a mesma dignidade própria da vida humana. A sexualidade já é a vida humana em potência. Então, ela participa da dignidade do segundo mandamento, que é o do amor ao próximo. Para a grande maioria das pessoas, a única chance de entender o que é doação e amor é a circunstância de apaixonar-se por uma pessoa e resolver constituir uma família. As pessoas

apaixonadas começam a ter um outro sentido na vida, que não elas mesmas. Sem isso, se as pessoas nascessem por clonagem, por produção em série, sem nunca ouvir falar em família, sexualidade e amor, a vida seria um vazio absurdo. E o número de suicídios seria altíssimo com toda a certeza. Seria um verdadeiro caos.

Então, a sexualidade não é apenas prazer; sua finalidade última está relacionada com o amor e a doação. Não só em relação a uma esposa ou a um esposo, mas para com uma família. Então você tem mais um motivo de a sexualidade estar vinculada ao segundo mandamento.

Do ponto de vista da doutrina cristã, existem dois tipos de matrimônios. Existe o matrimônio de direito natural e o matrimônio que é também sacramento, além de ser de direito natural.

Duas pessoas batizadas que se casam na igreja não estão realizando apenas um matrimônio de direito natural. Elas estão realizando, além de uma união de direito natural, um sacramento.

Onde está a diferença? A diferença não está no fato de que estão se casando numa cerimônia religiosa. Porque inclusive essa cerimônia religiosa só se tornou obrigatória por um decreto da Igreja emitido pelo Concílio de Trento por volta de 1580. Nesse decreto, a Igreja estabeleceu que se duas pessoas são batizadas o matrimonio só será valido se for contraído diante de um sacerdote e com testemunhas. Então, a partir daí, as pessoas batizadas na Igreja Católica foram obrigadas, para que seu matrimônio fosse válido, a se casarem numa cerimônia religiosa. Mas, antes disso, qualquer cerimônia valia, desde que fosse séria. Antes disso, você poderia casar no cartório, fazer uma festa em casa, realizar qualquer manifestação séria de que você queria unir a sua vida com uma mulher e que os dois estavam fazendo isso de comum acordo e queriam constituir uma família. Isso seria um matrimônio válido. E era um sacramento, caso os dois cônjuges fossem batizados. Então, o que faz o matrimônio ser sacramento é os dois nubentes serem batizados. A cerimônia religiosa para validade só se tornou obrigatória nos últimos 500 anos por um decreto da Igreja, que a própria Igreja, teoricamente, poderia inclusive revogar, embora imaginemos que jamais o fará, porque o decreto teve uma grande utilidade. De fato, se não me engano, é possível, em certos casos, usar o regime anterior. O direito canônico diz que, quando as pessoas moram num lugar onde não existe sacerdote e onde o sacerdote só passa uma vez a cada dois ou três anos, as pessoas podem fazer uma cerimônia e se casarem validamente e legitimamente.

Se os dois são batizados a união tem o valor de sacramento. Se nenhum dos dois é batizado, a união tem valor civil. Se um dos dois é batizado e o outro não, ainda não é sacramento, mas tem valor civil.

Então, o que se requer para que haja o sacramento do matrimônio? A exigência da cerimônia pública com padre e duas testemunhas – já vimos – é uma exigência acrescentada posteriormente e não é parte essencial. A exigência verdadeira é que os cônjuges sejam batizados e tenham a vontade livre de se unirem em matrimônio.

O matrimônio de direito natural é uma união com três finalidades somente. A primeira é a educação dos filhos. A segunda é a felicidade do casal, o apoio mútuo entre os dois. A terceira é a própria vida sexual.

O grande problema é que esse tipo de casamento é extremamente ruim para uma vida espiritual. Na prática, um casamento de direito natural é uma associação que envolve paixões, aflições, preocupações com os filhos, com doenças, com o emprego, o trabalho. Do ponto de vista espiritual, o matrimônio não compensa. Espiritualmente falando, é muito melhor ser monge do que você ter um casamento desses. Espiritualmente falando, esse casamento é uma armadilha. Ele não permite uma vida espiritual profunda. A vida espiritual profunda exig e uma vida intensa e profunda de oração, desprendimento das coisas do mundo. E esse tipo de casamento não somente traz preocupações, mas provoca paixões demasiadamente envolventes. Você não tem tempo para estudar, para rezar, para se dedicar a Deus, para ter uma vida espiritual. E mesmo que tivesse esse tempo, as aflições, as preocupações e as paixões com que você lida o tirariam do foco principal. Dificilmente as pessoas se santificariam num casamento desses. No entanto, a maioria das pessoas casa. Se as pessoas não casassem, a humanidade pereceria.

Jesus, quando veio ao mundo, quis trazer a vida espiritual e o reino de Deus a todos. Então, Jesus resolveu a coisa de uma maneira extraordinária: elevou o matrimônio a sacramento. E como todo sacramento contém e realiza aquilo que simboliza ou significa, o matrimônio, como sacramento, simboliza o amor entre Cristo e a Igreja, e realmente produz esse amor. No matrimônio sacramental, as pessoas batizadas recebem uma graça especial para poderem se amarem como Cristo amou a Igreja. Então os cristãos casados têm como meta do matrimônio não apenas as finalidades do matrimônio de direito natural (a educação dos filhos, o amparo mútuo e a vida sexual). O cristão ama a sua esposa, e vice-versa, como se fosse o próprio Cristo ou como se fosse a própria Virgem Maria. Isso significa aprender a tratar uma pessoa quase como se ela fosse divina, sagrada. Você tem que aprender a amar a sua esposa ou o

seu esposo como você iria amar a Cristo. Você recebe a sua esposa ou o seu esposo como recebe a Eucaristia.

Então, na verdade, através do matrimônio, a gente vive, o tempo todo, a própria comunhão com Deus. Você vai se relacionar com a sua esposa do modo como você, depois, na oração, vai se relacionar diretamente com o próprio Cristo com o qual você é convidado à comunhão. Nessas circunstâncias, não existe incompatibilidade radical entre a vida do matrimônio e a vida espiritual.

Então, não se entende dentro de um matrimônio sacramental nem sequer uma briga entre cônjuges, não se entende nem sequer um desconforto. O verdadeiro matrimônio sacramental deveria tender a que a vida matrimonial não tivesse uma grande diferença da própria vida de oração. Num caso desses, o matrimônio não vai atrapalhar a vida espiritual, mas só vai ajudar. Isso é uma coisa simplesmente grandiosa e fora do comum.

Você vê isso na Epístola aos Efésios, em que se diz que o marido deve amar a esposa como Cristo amou a Igreja. No Velho Testamento, está escrito que, quando o homem se torna adulto, deve abandonar a casa do pai e da mãe e se unir a uma esposa e os dois serão uma só carne. São Paulo diz assim: muito bom, o que significa uma só carne? Significa que ninguém odeia a própria carne, mas cuida dela e a alimenta, assim como Cristo faz com a Igreja. Então ele diz aí que, justamente porque o matrimônio contém o amor entre Cristo e a Igreja, e o homem e a mulher são uma só carne, nós temos que alimentar a própria carne, quer dizer, a própria esposa, como Cristo faz com a própria Igreja. E como Cristo faz com a própria Igreja? A gente vê isso nas outras cartas de São Paulo. Principalmente em Colossenses, que é uma carta que foi escrita na mesma época de Efésios. Ele faz isso através da graça. Ele faz isso iluminando e convidando as pessoas através da graça a se unirem consigo. Isso acontece quando a gente principalmente está em oração e pratica as virtudes da fé, esperança e caridade, que nos unem ao Cristo. Então é neste momento que Cristo nos alimenta com sua graça. Quando nós estamos unidos a Cristo em oração, somos alimentados com a sua graça. E São Paulo está dizendo que a gente deve amar a própria esposa e alimentá-la como Cristo alimenta a própria Igreja. Ou seja, ele está querendo dizer que a gente deve procurar alimentar a própria esposa e obviamente a própria família através do crescimento da graça. Nós não temos condições de infundir a graça nas pessoas. A graça é dada por Deus. Mas o que podemos fazer é iluminar a esposa e os filhos pela Palavra, pelo ensinamento, pelo exemplo. Essa é justamente a finalidade de uma família. A verdadeira família surge não quando as pessoas estão vivendo juntas, mas quando uma pessoa muito sábia e muito virtuosa se dispõe a ensinar e consegue reunir em volta de si pessoas desejosas de aprender. Isso pode acontecer quando um homem muito santo se junta a

discípulos e aceita viver com eles para educá-los no caminho da perfeição. Isso também deveria acontecer no caso da família cristã. A verdadeira família cristã é constituída por um homem que se associa a uma mulher, e os dois procuram juntos a virtude e a sabedoria, para transmiti-las aos filhos e a outros. Os seus filhos, desde a primeira infância, serão dóceis aos pais, e vão continuar dóceis se eles realmente forem santos e virtuosos. Os pais, então, têm a oportunidade de ensinarem e fazerem crescer os seus filhos dentro da vida espiritual, assim como faz Cristo quando a gente está unido a ele.

Então, nesse sentido, o matrimônio cristão é a culminância do amor de Deus, é a culminância do amor ao próximo. Exige um amor e um carinho com a esposa de tal maneira que a relação entre os dois impulsione a vida espiritual. E exige também a disposição de você doar abundantemente essa vida espiritual para a sua família como Cristo amou a Igreja.

Obviamente isso é um ideal que no matrimônio de direito natural as pessoas não têm. Esse ideal extraordinário foi trazido pelo cristianismo para fazer com que a família biológica não fosse um empecilho para a vida sobrenatural. No estado de homem decaído, a família biológica é uma atrapalhação na vida espiritual. A família sacramental não deveria sê-lo mais.

Voltamos, agora, ao sexto mandamento. O fato é que não existe matrimônio sem vida sexual. Esse amor que estou descrevendo nunca vai se dar entre dois homens ou entre duas mulheres. Hoje as coisas estão todas desviadas, então as pessoas até acham que entre dois homens pode existir, mas a verdade é que por mais que você queira bem a um amigo, nunca você vai ter esse tipo de amor que pode ser sublimado a este ponto com a ajuda da graça dentro do casamento. Então, apesar de a sexualidade não fazer parte da essência da família, ele é um componente indispensável. Quer dizer, é um componente integrante da coisa. Você poderia até casar e não ter relações sexuais, mas você não poderia casar se não houvesse sexualidade. Você pode, por exemplo, casar com uma pessoa, ela ser estéril e vocês renunciarem a ter vida Sexual. Nesse caso, o matrimônio continuaria sendo possível. Mas não dá para ter isso sem a base da sexualidade. Então, esse nível de vivência do amor ao próximo que está implicado nesse desejo profundo de alcançar a sabedoria e a virtude para transmiti-la a outros, e de você amar alguém como algo sagrado, como Cristo amou a Igreja, não é ordinariamente possível sem a sexualidade.

Portanto, a esmagadora maioria das pessoas no mundo nunca será monge nem sacerdote. Sacerdotes, monges, bispos e consagrados sempre serão uma minoria. É para ser assim. A esmagadora maioria das pessoas só conseguirão se santificar dentro do matrimônio. E o

matrimônio é impossível sem a sexualidade. Portanto, a sexualidade está destinada, ainda que não diretamente, ao desenvolvimento de uma vida de amor ao próximo nesse nível. O indivíduo que, ao invés de orientar a sexualidade para isso, orienta a sexualidade para todos os absurdos que vemos hoje (pornografia, masturbação, prazer descompromissado), na verdade está adulterando a própria sexualidade de tal maneira que, ao casar, não mais vai ter sua sexualidade orientada para as finalidades do sacramento. Esse homem acabou com a única chance que ele realmente tinha de se santificar profundamente. Ele só tinha essa chance e a destruiu pela raiz.

O fulano que vê pornografia na verdade o que ele faz? Ele está pegando fotografias das mulheres mais lindas do mundo e está tendo um princípio de uma relação sexual com elas durante 30 segundos. Depois ele joga fora aquela pornografia e pega outra. Vai para a página seguinte, ou para o filme seguinte, e pega outra entre as mulheres mais lindas do mundo que são escolhidas exatamente por isso, e tem 30 segundos de uma relação com essa pessoa que ele não conhece, com quem não conversou, com quem não se compromissou, a quem não se doou, a usa por trinta segundos e aí pega outra, e outra, e mais outra, e mais outra e mais outra. Então esse homem, com o passar dos anos, se torna um indivíduo que acostumou a pegar as mulheres mais lindas do mundo, usá-las por trinta segundos e jogá-las fora.

Um dia, ele vai casar. Provavelmente, a mulher dele não vai estar entre as mulheres mais lindas do mundo, é o que acontece normalmente. Ainda que estivesse, se fosse uma das mulheres mais lindas do mundo, vai continuar linda por alguns anos, depois vai ficar feia. Muitas das grandes artistas mais lindas do mundo que agora estão velhas são verdadeiros monstros; você não acredita que esta é a fulana que quando a gente era criança todo mundo dizia que era a mulher mais linda do mundo. E ainda que ela se mantivesse sempre linda, ele acostumou a usar as mulheres por apenas 30 segundos sem compromisso nenhum. Então, isso vai criando hábitos. Um dos grandes problemas da vida sexual é que os hábitos que a gente constrói vão enraizando-se e, depois, fica difícil corrigi-los. Então, ainda que fosse a mulher mais linda do mundo com que ele tivesse casando e que ela permanecesse linda até que a morte os separasse, ele acostumou-se a usar as mulheres por 30 segundos, jogá-las fora e pegar outra. Na prática, não vai acontecer isso. Nem ela vai continuar linda durante muitos anos, e provavelmente ele vai se casar com uma que não está entre as mais lindas do mundo. E provavelmente ele já acostumou, pela pornografia, a ter relações com outras muito mais lindas do que aquela que ele escolheu.

Então, uma pessoa que vai casar assim nunca vai conseguir entender a diferença entre um matrimônio sacramental e a prostituição. Você vê isso nos livros de Marx e Engels. Existe um livro escrito por Marx, mas publicado póstumo por Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, em que se diz que uma prostituta é muito mais digna do que uma esposa, porque uma prostituta vende seu corpo durante uma hora e cobra, enquanto a esposa vende seu corpo durante a vida inteira e não cobra nada, faz de graça. Então, a prostituição é muito mais digna para a mulher do que o matrimônio. Parece inacreditável, mas quem escreve isso é um dos grandes filósofos e pensadores da modernidade.

O que significa isso? Marx e Engels não estão vendo nenhuma diferença essencial entre pornografia e matrimônio. E o fulano que afunda na pornografia vai fazer isso. A única chance de alcançar uma vida espiritual para a esmagadora maioria das pessoas entenderem o que é doação, o que é o amor divino, o que é sabedoria, o que é ensinar aos próprios filhos de que maneira Cristo ama a Igreja, foi simplesmente destruída, prematuramente, para sempre. Para corrigir isso, vai precisar de uma conversão gigantesca.

E as pessoas que estão incentivando pornografia, masturbação, todo tipo de coisas que vemos nos dias de hoje, estão contribuindo para o desastre. Estão trancando a porta da vida espiritual da humanidade inteira.

Isso é uma verdadeira tragédia. A sexualidade humana possibilita a forma mais elevada e extraordinária de amor ao próximo que existe fora da consagração religiosa. Mas a sexualidade desenfreada e desregulada destrói para sempre a única chance que o fulano tinha, que Deus tinha preparado para ele.

Deus procurou educar o povo judeu num respeito ao matrimônio de uma maneira tão profunda e, depois, para o próprio benefício da humanidade, ele elevou esse matrimônio ao nível de sacramento. E aí vêm esses idiotas e puxam o tapete. É um dano gravíssimo.

Os pecados contra a castidade, por sua natureza, são graves. Todo uso advertido e deliberado do prazer venéreo fora do matrimônio legítimo é matéria grave, é pecado grave. Então, nesse sentido, é pecado grave você assistir a filmes pornográficos, assistir a comerciais pornográficos, assistir inclusive a um pedaço ainda que pequeno de um filme pornográfico desde que seja advertido e consentido. Se a gente assiste inadvertidamente e, quando percebe, se distrai, já deixa de ser pecado grave. Se, porém, você adverte e consente deliberadamente, mesmo que por poucos momentos ou por um momento, com plena deliberação, isso já é grave. Isso já exigiria confissão.

Masturbação é pecado grave, tocar-se a si mesmo para sentir excitação sexual é pecado grave, tocar outras pessoas mesmo que seja a namorada com carícias avançadas para que a gente sinta excitação do prazer sexual isto é pecado grave. É pecado grave até mesmo o beijo na boca, se não for uma mera demonstração de afeto, o que é praticamente impossível entre dois jovens, quer dizer, normalmente as relações começam com um beijo na boca, então aquilo já é um começo. As pessoas se beijam na boca para se excitarem, não é apenas uma manifestação de carinho. Se fosse, como pode ser um beijo comum, não haveria problema nenhum. Não é o problema de ser um beijo na boca, não é o problema do lugar, o problema é que as pessoas fazem de propósito para se excitarem sexualmente. Isso já é matéria grave. Isto daí não é lícito antes do matrimônio legítimo. A lógica é evidente. As pessoas, ao ouvirem isso acham um exagero, mas, só pelo fato disso chocar as pessoas, não podemos ocultar a verdade das coisas.

Também os pensamentos eróticos são pecados contra a castidade, desde que advertidos e consentidos. Eles costumam vir com frequência nas pessoas. Quando as pessoas os advertem, devem se distrair. Se, ao contrário, elas consentem e continuam pensando, isso é pecado grave e matéria de confissão.

Você reprimir-se dessas coisas sem ser por virtude pode ser que isso faça mal à pessoa. Mas, quando é por virtude, quando é por amor à vida espiritual, quando é por amor à castidade, isso não causa mal nenhum. Muito ao contrário, isso costuma abrir a mente e ordena as paixões. Isso nunca fez mal, muito pelo contrário, é experiência comum que as pessoas que praticam a castidade por virtude, não por obrigação e coação externa, tiram vantagem disso. O rendimento escolar sobe, o aproveitamento aumenta. As pessoas, quando se casam depois de terem vivido castas, sua vida sexual é muito mais prazerosa, serena e gratificante do que a das pessoas que não fizeram assim.

Sobre isso existe um pesquisa de uma universidade norte-americana que analisou a vida sexual de pessoas que não tinham religião comparando-a com a de pessoas que eram católicas, ortodoxas ou protestantes. Eles descobriram que a vida sexual das pessoas religiosas era muito menos tumultuada do que a das pessoas não religiosas, muito mais gratificante e elas tinham muito menos medo de perder o cônjuge, muito menos problemas de ciúmes, de fobias, era uma vida tranquila. Enquanto que as outras tinham medo de perder o cônjuge, sentimento de posse doentia pelo outro, ciúmes e não era uma coisa que tinha aquela serenidade, aquele prazer ordenado das pessoas religiosas. Essas pessoas religiosas,

pelo fato de terem praticado a castidade antes ou pelo menos não serem tão promíscuas quantos as outras, tinham um maior desempenho e prazer sexual.

Tomás de Aquino, na Suma Teológica, pergunta se havia prazer sexual no paraíso terrestre antes da queda humana. Começa a questão dizendo que há pessoas que dizem que, como no paraíso terrestre o ser humano não havia decaído, havia obviamente atividade sexual, porque deveria haver procriação, mas sem prazer nenhum. Tomás diz que certamente deveria haver prazer, o prazer porque faz parte da natureza humana e devia ser muito mais sublime e gratificante do que o que nós temos hoje, porque eram pessoas mais puras. Isso está exatamente de acordo com esta pesquisa.

Então, a prática de procurarmos a castidade e acusar-nos em confissão com o propósito de não voltar a cairmos e com a intenção de receber uma graça para permanecer mais firmes na castidade, não é algo repressivo de maneira alguma. Pelo contrário, isso promove a natureza humana, quer você vá ter uma vida consagrada, quer você vá ter uma vida matrimonial. Então, quando a gente for se confessar, não basta dizer que pecou contra a castidade. Temos que especificar o tipo de pecado e as vezes que a gente pecou. Dizer que se pecou contra a castidade cometendo adultério, tendo relação sexual com uma pessoa solteira. É preciso que quem se confessa diga se é casado ou solteiro, porque se você for casado você já está cometendo adultério mesmo que esteja se relacionando com pessoa solteira. Se um casado trai a mulher com outra casada são dois adultérios. Tem que dizer se foi por pensamento, se foi por desejo, e assim por diante.

Como normalmente não dá para dizer o número de vezes, em vez de contar os números, tem que dizer que durante a vida toda, de tal ano a tal ano, desde criança até hoje, sempre se cultivoyu o hábito de ter pensamentos eróticos, e isso, por exemplo, com uma média de 30 vezes por dia, todos os dias, ou duas ou três vezes todo dia. Então, já se entende mais ou menos o número. E isto é o suficiente para a confissão.

Agora, dentro do casamento, o que ocorre? A atividade sexual é lícita dentro do matrimônio, mas obviamente é apenas aquela que diz respeito à vida matrimonial. Então, dentro do matrimônio obviamente não é lícito ver pornografia, ter pensamentos eróticos com as artistas de cinema. Só é lícito o ato sexual normal.

O que é o ato sexual normal? É o ato sexual que a natureza instituiu como sendo o ato sexual capaz de produzir a prole. Veja, não é o ato sexual que produzirá a prole, mas o ato sexual que segundo a natureza é capaz de produzir a prole. Se não fosse assim, se fosse somente

aquele que vai produzir a prole, você não poderia casar com uma pessoa estéril e você não poderia ter relação sexual nos dias inférteis.

Você sabe que há dias inférteis no ciclo menstrual da mulher. Você sabe que naqueles dias não vai haver prole. Mas o ato sexual normal é aquele instituído pela natureza como sendo o capaz de produzir a prole. Quer dizer, é aquele que na sua estrutura é o que produz prole, mas que por uma circunstância – por infertilidade definitiva ou por causa do dia do ciclo - ele não de fato não vai produzir a prole.

Então, quais são os atos sexuais que não são lícitos? O sexo oral e o sexo anal.

O sexo anal, além disso, biologicamente falando, pelo que se sabe, é uma verdadeira tragédia, pois além de não produzir a prole, o que os biólogos e médicos falam, se você procurar se informar sobre isso, é um negócio de ficar com cabelo em pé. O intestino tem muito menos camadas de recobrimento interno do que o colo do útero. Então, se você tiver uma relação sexual anal, a probabilidade de você ter um pequeno corte no intestino através do atrito do pênis é muito alta. Acontece que as fezes vão diretamente para o sangue e também as bactérias que porventura podem estar contaminando seu órgão sexual que você está inoculando no parceiro. Uma das consequências da prática do sexo anal é justamente uma doença que dá no coração, cujas veias entopem por causa de bactérias (endocardite bacteriana, inflamação nas válvulas cardíacas que impede o perfeito fluxo de sangue; causada pelo acúmulo de bactérias no endocárdio, tecido que envolve internamente o coração). Quando começou a epidemia da Aids, viu-se que todos os doentes terminais precisavam de um tratamento cardiológico, porque suas veias do coração estavam cheias de bactérias. No começo, achava-se que era por causa da baixa imunológica. Só que os que haviam adoecido de Aids por causa de transfusão de sangue e outros pacientes imunodeprimidos não eram acometidos por endocardite bacteriana. Somente aidéticos que tinham tido relação sexual anal. Então isso não era consequência da Aids, mas da prática do sexo anal, mesmo em casos em que o indivíduo que tivesse praticando o sexo anal com o outro não tivesse sido infectado com Aids.

Pelo mesmo motivo, o coito interrompido, no qual, no momento de terminar a relação sexual, a gente ejacula fora, também não é o ato sexual que a natureza instituiu. Esse também não pertence ao matrimônio legítimo. Igualmente não é lícito você alterar o funcionamento do corpo humano para impedir a prole, isto é, transformar o ato sexual num ato sexual que seja incapaz de produzir a prole. Então, por exemplo, fazendo laqueadura, usando preservativo, usando diafragma, ou esterilizando o órgão masculino. Ao fazer isso, você não está mais utilizando a relação sexual que a natureza instituiu para constituir a prole, você está alterando

de propósito. Então, isso vai contra o mandamento. E vai contra a natureza do sexto mandamento.

Um caso diferente ocorre quando você casa com uma pessoa que de repente descobre ser estéril. Nesse caso, não há prole, não porque vocês alteraram o ato sexual instituído por Deus e pela natureza. O ato sexual, nesse caso, não está produzindo prole por um defeito involuntário. Então, nesse caso, a relação sexual é lícita.

Também é lícita se você é obrigado a alterar o corpo da mulher ou do homem por um problema de saúde que não seja a esterilização voluntária. Por exemplo, se uma mulher tem um câncer de ovário ou um câncer de útero e arranca o útero, obviamente não pode mais ter filhos, mas a relação sexual que ela pratica é aquela que a natureza instituiu para poder produzir a prole. A esterilidade, desde que não seja provocada para impedir a prole, não impede o ato sexual.

Se uma pessoa se esterilizar, os atos sexuais que ela tiver serão ilícitos da mesma maneiras como os coitos anais que ela teria seriam ilícitos porque não são legítimos. Então todas as relações sexuais que uma pessoa que se esteriliza voluntariamente tem dentro do seu matrimônio serão ilegítimas. Isso só deixa de ser ilegítimo se a pessoa se arrepende e faz o possível para reverter a esterilização. Então, se uma pessoa que se esterilizou quer voltar a ser cristã, tem que se arrepender verdadeiramente de ter se esterilizado e, se ela puder, deve reverter, assim que for possível, a cirurgia que a esterilizou. Caso a reversão seja absolutamente impossível, é suficiente o sincero arrependimento para que suas relações sexuais voltem a ser lícitas ou legítimas.

Se os parceiros são dois e um se esterilizou contra a vontade do outro, ocorre uma coisa curiosa. Para quem não quis aquela esterilidade, a relação sexual é lícita. Para quem se esterilizou porque quis, a relação sexual é ilegítima. Então a mesma relação sexual é pecado por parte de um e não é pecado por parte do outro.

Então, por exemplo, se, num casal cristão, repentinamente a mulher quis se esterilizar e ela diz para o marido "eu me esterilizei", ele tem direito a ter relação sexual, mas a esposa não, ela deveria se arrepender disto e, se puder, reverter a esterilização. Se não puder, basta que ela realmente tenha o desejo sincero disto.

Outra coisa também importante que ocorre nas situações de matrimônio é sobre os pensamentos eróticos. O que se deveria julgar sobre uma marido que está em viagem e tem um pensamento erótico com a própria esposa. Aí a questão é a seguinte: é óbvio que a

relação sexual é precedida de muitos outros atos que nem sempre são a própria relação sexual. Um abraço, um beijo, um pensamento. Todos esses atos, na medida em que se ordenam a uma relação sexual, obviamente são parte preparatória da relação. Então, se os atos se ordenam a uma relação sexual com a própria esposa, não importa que eles sejam distantes ou próximos no tempo, eles são sempre lícitos. É lícito pensar no que é lícito fazer. Obviamente não é lícito você pensar numa imagem erótica de uma terceira pessoa para você se excitar a fazer sexo com a sua esposa, isso seria pecado. Não é lícito você ter uma relação sexual com a sua esposa imaginando que você está tendo relação sexual com uma modelo de cinema. Isso seria um adultério. Num caso desses, você estaria tendo relação, espiritualmente, com outra pessoa e, materialmente, com a sua esposa. Os pensamentos que se dirigem a uma relação com a própria esposa não podem ser considerados ilícitos, porque estão dentro da lógica matrimonial. Pensamentos eróticos com outros parceiros que não a própria esposa são ilícitos sempre. Não importa que se dirijam à relação com a própria companheira.

Agora, pensamentos eróticos mesmo que sejam com a própria esposa que não se ordenem a uma relação sexual com a própria esposa são ilícitos. Por exemplo, se o marido está viajando num congresso e ele sabe que, se ele tiver pensamentos eróticos mesmo que seja com a própria esposa, vai acabar se masturbando antes que ele volte ao convívio com a própria esposa. Isso é gravemente pecaminoso porque não se dirige à sua finalidade natural.

Existe ainda um último assunto intimamente relacionado a isso e que se refere ao métodos naturais e artificiais de controle e regulação de fertilidade. Os métodos naturais de controle de fertilidade são aqueles que apontam quais são os dias do ciclo menstrual da mulher que são férteis ou inférteis sem alterar o ciclo.

O primeiro que surgiu foi o método Ogino-Knaus nos anos 40 do século XX. Ogino e Knaus perceberam que a ovulação ocorre 14 dias antes da próxima menstruação. Então, se você pode prever a próxima menstruação, porque a mulher tem um ciclo regular, e voltar 14 dias, esse é o dia da ovulação. Os dias imediatamente anteriores e posteriores ao dia da ovulação são os dias férteis. Os outros são inférteis. O problema é que a maioria das mulheres não é absolutamente regular, consequentemente não dá para prever com exatidão qual é o dia da ovulação.

Mais tarde, surgiram outros métodos. Surgiu o método do termômetro. No dia da ovulação a temperatura sobe. Então, medindo a temperatura basal, você consegue saber qual é o dia da ovulação.

Depois, surgiu outro melhor, o método Billings. O método Billings descobriu que, quando o organismo está se preparando para ovular, começa a escorrer um muco pela vagina. Esse muco vai se tornando mais líquido, menos viscoso. No dia de sua máxima fluidez, ocorre a ovulação. Após a ovulação, o muco se torna gradualmente mais espesso. A eficácia do método Billings não depende de um ciclo menstrual regular. Muitas mulheres com a prática conseguem inclusive identificar o momento da ovulação, porque existe uma pequena dor no momento em que a mulher ovula. Essa dor normalmente passa despercebida. Mas se a mulher sabe qual é seu dia fértil e presta atenção, aprende a perceber a dor. Inclusive pode identificar se o ovário que ovulou é o esquerdo ou o direito.

O problema é que o fato de o método ser natural não torna só por isso lícito você recorrer a esse método. Por exemplo, se você vai casar com alguém e você tem condições de ter filhos, não é lícito fazer uma pacto com a companheira e dizer: nós vamos casar, mas nós não vamos ter filhos nunca e nós vamos usar o método natural. Se acontecer que a gente erre, tudo bem, nós aceitamos, não vamos abortá-lo, porém vamos fazer todo o possível para a gente nunca ter um filho. Somente pode ser posto um impedimento natural para não ter filhos por motivos graves, como miséria, problemas de saúde, risco de morte durante o parto etc. Se o casal pode ter filhos e tem condições de ter filhos, não é lícito que o casal não queira ter filhos.

Não é lícito você usar os métodos naturais se você casou e não quer ter filhos. Só é lícito usar os métodos naturais se houver razões suficientes para você ter que adiar o nascimento de seus filhos. Normalmente estas razões são do seguinte tipo: se a esposa corre risco de morrer no parto; se há um risco fundado de que os filhos possam nascer com deformidades graves. Também podem-se admitir razões psicológicas que normalmente são unilaterais. Por exemplo, se a esposa ameaça de divórcio o marido se ela engravidar de novo, sendo que eles podem ter filhos normalmente sem problema nenhum. Ocorreu algum problema com a esposa que disse "se eu tiver mais um filho, abandono o lar". A esposa não teria direito de fazer isso. Porém, o marido tem o direito de aceitar a condição por amor à família. O marido poderia aceitar que ela usasse o método natural, mas ela não. E vice-versa: se o marido disser "se você engravidar mais uma vez, eu deixo você sozinha e as crianças". Então ela pode aceitar usar o método natural que é ilícito para o marido fazer uma exigência dessas, mas é lícito para a esposa aceitar uma exigência dessas por amor à família.

O normal de um casal cristão é que queira ter o maior número de filhos possível.

Isso não causa mal nenhuma à humanidade. Isso não é superpopulação. Esses filhos assim desejados e tidos vão ser todas pessoas muito bem educadas, santas e sábias.

A superpopulação lamentável é aquela superpopulação desordenada, quando você gera filhos, não cuida deles, não os educa, os solta no mundo, eles se tornam marginais e, no fim, acabam perdendo a própria alma.

A superpopulação de pessoas virtuosas só edifica a sociedade.

E, em relação ao número absoluto de pessoas, a Terra está muito longe de ser superpovoada. Vamos examinar isto em termos concretos. A população do mundo consiste em 7 bilhões de habitantes. Se colocássemos cada um desses 7 bilhões de habitantes da Terra em 1 m 2 de terreno, precisaríamos de apenas 7.000 Km 2.

Ora, quanto é 7.000 Km²? O Uruguai é o menor país da América Latina e tem 200.000 Km 2. Toda a população da Terra cabe então em pouco mais da trigésima parte do menor país da América Latina. Sergipe, com seus 21.000 Km 2 é o menos Estado brasileiro. A população mundial caberia na terceira parte de Sergipe. Se dividíssemos o estado de São Paulo (com seus 248.000 Km 2) em lotes de 150 m² e déssemos cada lote de 150 m² a cada família de quatro pessoas dos 7 bilhões de habitantes da Terra inteira, o estado de São Paulo abrigaria a Terra inteira e ainda sobraria um pouco espaço. O resto do Brasil ficaria vazio e o resto do mundo deserto.

Se a gente passar para o estado do Amazonas que é, sem dúvida, o maior Estado do Brasil (com seus 1.570.000 Km 2), poderíamos atribuir lotes de quase um 1 Km² a cada família de quatro pessoas , e o Amazonas abrigaria os 7 bilhões da população da Terra. Os outros 26 Estados da Federação Brasileira ficariam totalmente vazios e a Terra inteira totalmente deserta.

Então, a única conclusão que podemos chegar é que o conto da superpopulação absoluta do planeta terra não passa de um mito. É uma realidade inexistente.

Por que esse mito foi contado é uma outra história que não diz respeito a essas disposições que são sobre moral e confissão. Para se fundar esse mito, existem interesses de

organizações internacionais, interesses geopolíticos, interesses de grandes fundações. Foi muito importante ter abordado isso aqui, porque a anticoncepção foi introduzida principalmente com o argumento da superpopulação mundial. Esta foi a desculpa historicamente colocada. É o controle populacional. O verdadeiro motivo da anticoncepção foi, porém, provocar propositalmente uma revolução sexual no mundo, desencadear uma revolução sexual. Isso foi planejado e foi apresentado debaixo das vestimentas de uma superpopulação. O motivo de fazer uma revolução sexual não foi a revolução sexual em si. Estava sendo planejado, desde o final da primeira guerra mundial, um programa de modificação estrutural do tecido social da sociedade humana, das instituições básicas da sociedade humana para poder permitir uma reestruturação geopolítica internacional conforme o interesse de vários grupos que estavam trabalhando com essa mesma estratégia. Esses grupos variados tinham metas diferentes, mas todos eles descobriram que, sociologicamente, o caminho era esse, e a revolução sexual era um dos componentes dessa reestruturação do tecido social. Quando isso será alcançado, se chegar a ser alcançado, esses vários grupos vão acabar lutando entre si para verem qual é o tipo de sociedade que vão montar em cima daquela que foi desmontada e reconstruída.

O mito da superpopulação é para que você gere filhos e, não mais existindo a família no sentido sacramental, para que você os jogue no mundo de qualquer jeito, sem educá-los para a Terra e para o Céu. Se você as educar, na verdade quanto mais pessoas nascerem, mais aumenta o mercado de trabalho, mais aumenta o número de mãos para produzir, mais aumenta o mercado interno, mais aumenta a possibilidade de ter empresas diferentes.

E, por razões mais altas, um casal cristão que realmente procura a santidade, só casa e vive de forma sacramental, para que isso possa ajudá-lo a ser santo. O casal cristão não pode delegar a educação dos filhos à escola nem muito menos ao governo. Ele é o responsável. Ele está lá para isto.

Uma última coisa que é interessante colocar para entender a lógica de tudo é o que acontece depois do casamento, quando a pessoa se torna viúva ou viúvo. O casamento dura até que a morte os separe. Ao contrário da ordem sacerdotal: quem é ordenado sacerdote é sacerdote por toda a eternidade. Ele continua sacerdote no Céu. Obviamente ele não vai celebrar Missa no Céu, mas ele uma vez sacerdote é sacerdote eternamente. A pessoa casada só é casada até a morte do cônjuge. Tanto é assim que, depois da morte do cônjuge, ela pode casar outra vez. E quando o viúvo morrer, ele não é mais marido de nenhuma das duas. Eles vão se encontrar no Céu, vão saber e ter um carinho especial entre eles, porque viveram juntos na terra, mas ele não é marido nem da primeira e nem da segunda. E nem da única que ele teve,

caso os dois se encontrem de novo lá. Então, o matrimônio termina com a morte do cônjuge. Portanto, isso significa que após a morte do cônjuge, o viúvo ou a viúva tem que voltar a praticar a castidade na sua integralidade. Todo uso do prazer venéreo fora do matrimônio legítimo é matéria grave contra a castidade. Portanto ao viúvo que permanece na terra não é lícito cultivar pensamentos eróticos nem com o próprio cônjuge, pois já não teria mais sentido, sendo que ficou impossível haver uma relação sexual. O pensamento erótico dentro do matrimônio se ordena à relação sexual. Depois de o matrimônio ter acabado, não se ordena mais a nada.

Essas coisas chocam quando ditas sem explicações ao homem comum. As pessoas ficam horrorizadas, mas é justamente porque foram submetidas a uma propaganda erótica monumental. Assim como existem fundações e organizações que estão incentivando o aborto e a eutanásia no mundo de hoje para tentar quebrar os pilares do direito natural, desmontar a estrutura social que nós temos e construir uma outra, estas pessoas também investem na banalização da sexualidade, numa educação sexual ilegítima que não se destina à formação de uma família. Você vê nos livros de educação sexual que estão sendo publicados no final do século XX e começo do XXI: se descrevem todos os tipos de sexualidade que existem. todas as formas de fazer sexo, mas nenhum deles tem uma única referência a uma instituição chamada família. Parece que a vida sexual não se ordene à constituição da família, parece ter finalidade em si mesma. Trata-se de uma educação sexual propositalmente elaborada para ser desvinculada da família. Porque, por outro lado, existe um trabalho gigantesco justamente para eliminar a instituição familiar da estrutura social. Então, essas pessoas, às vezes, ficam chocadas, porque não entendem que a sexualidade está ordenada à família, a família está ordenada à sacramentalidade, a sacramentalidade está ordenada à vida espiritual, a vida espiritual está ordenada à comunhão com Deus.

A gente também não pode esconder a verdade das coisas só porque as pessoas vão ficar chocadas. Precisamos explicar muito bem explicado. Por isso que esta explicação é tão grande. Poderíamos dizer simplesmente que não pode isso, não pode aquilo. Mas aí a coisa não faria sentido algum. Ademais, a finalidade não é essa. A finalidade da Moral não é dizer que não pode isso, não pode aquilo. A finalidade da Moral é em primeiro lugar afastar a gente do pecado grave, que é o que destrói o relacionamento com Deus.

Assim como você precisa avisar o empregado que vai entrar numa firma sobre aquelas coisas que ele não pode fazer em hipótese alguma, porque, caso contrário, ele se torna tão incompatível com o serviço que ele vai ser mandado embora mesmo que ele peça desculpas.

A segunda finalidade da Moral é a gente entender quais são as virtudes básicas que devem ser desenvolvidas. As virtudes que ordenam as paixões e aquelas relacionadas com a justiça que fazem com que a gente renuncie ao próprio egoísmo.

A terceira finalidade da Moral é o desenvolvimento da prudência. Supondo que haja já as demais virtudes, que possa se desenvolver a prudência dentro do indivíduo. Possa se desenvolver a prudência, que coordene o trabalho das outras virtudes. As virtudes não trabalham sozinhas. Elas precisam de uma coordenação da inteligência prática. Essa coordenação é uma virtude por si mesma que tem que ser desenvolvida.

Então, não apenas regras e regulamentos. Primeiro precisamos afastar-nos de certas condições objetivas de pecado mortal, para poder iniciar uma vida cristã; depois, precisamos conhecer as virtudes básicas para, com a graça de Deus e o nosso esforço, poder desenvolvê-las. Em terceiro lugar, deve surgir uma virtude – a prudência – que pressupõe já a existência das outras. A prudência vai coordenar todas as demais virtudes. A prudência, à medida que ela vai aprendendo a ordenar a vida prática do indivíduo, deve expandir-se de tal maneira que ela chegue a abarcar o conteúdo inteiro da vida humana e o fim último da vida humana. Quer dizer, ela tem que ser capaz de coordenar todas as boas ações, todas as ações virtuosas, para que o indivíduo possa alcançar a vida espiritual que vai promover a união com o próprio Deus. Uma vida de intimidade com Deus que depende da vivência de uma espiritualidade profunda. É aquilo que Jesus falava para Marta e Maria.

Não basta, então, ter virtudes ou praticar as virtudes. Na verdade você tem que ser capaz de tomar conta de toda a orquestra da sua vida e ordená-la para a santidade. Se você não tiver uma virtude para isso, você não faz isso. A Marta vai sempre se enrolar na cozinha, vai faltar a prudência.

A naturalidade e a racionalidade do sexto mandamento hoje estão sendo tremendamente atacadas e postas em dúvida. Por trás dessa cultura permissivista em matéria sexual, desde o último conflito mundial, existe o empenho e o investimento maciço de grandes organizações internacionais interessadas em mudanças culturais e de hábitos sociais. Há grupos diferentes que estão perseguindo esse mesmo objetivo, porém, com finalidades diferentes. Ultimamente, esses grupos estão se unindo para ganharem força e desmanchar, mais rapidamente, a ordem vigente.

Uma das coisas necessárias para o desmantelamento da ordem social é atacar as concepções e os padrões sexuais. Por meio disso, ataca-se a instituição familiar. Esses

grupos estão esperando ansiosamente que apareça uma nova tecnologia, chamada ‘clonagem’, que (após o sucesso já alcançado por outros meios, como, por exemplo, a fecundação artificial, a mudança de sexo, o aborto, a esterilização, o divórcio, a anticoncepção, a ideologia de gênero etc.) permitirá de maneira muito mais rápida a dissolução da família.

A sexualidade existe para que pais, que anteriormente buscaram a SABEDORIA, o CONHECIMENTO e a VIRTUDE, formem uma família e passem sabedoria, conhecimento e virtude aos próprios filhos. Esse plano divino é origem de felicidade, harmonia e paz das pessoas individualmente e da sociedade como um todo. É justamente esse plano que hoje está sendo atacado e fragilizado.

Na Carta aos Efésios, São Paulo diz que a família humana reflete as relações existentes entre os anjos e na própria família originária que é a Santíssima Trindade. Jesus diz: assim como o Pai me ama e eu amo o pai, quero que vocês se amem e permaneçam nesse amor. Jesus quer que, através da vida espiritual, nós experimentemos o amor que ele tem por nós. Esse amor é o mesmo que existe dentro da Santíssima Trindade, entre as três pessoas divinas. E Jesus quer que transmitamos esse amor e essa vida espiritual aos outros e, de forma particular, a nossos filhos. A concepção cristã de família se baseia num amor que existe na família trinitária, da qual procede toda família. Isso tudo, aqui na terra, só pode existir onde houver sexualidade. A sexualidade, então, seja em sua forma reta de ser utilizada (na família cristã), seja na renúncia que se faz dela (no celibato), é o meio pelo qual pode se dar na terra o amor de Deus entre os homens. É na família (na família biológica espiritualizada ou na família espiritual) que se aprende o que é o amor de Deus. É para isso que a família existe. Os esposos deveriam ser pessoas que experimentam o amor de Deus, tornando-o presente para os filhos que geram. E sua sexualidade oferece a base biológica para a realização desse plano divino.

É evidente como hoje tudo isso está sendo detonado, quer no plano filosófico, quer no plano pragmático. Existem ideologias muito bem elaboradas que visam a aniquilar o plano de Deus dentro da elite intelectual da sociedade. Isso, depois, reflete-se em programas pragmáticos que promovem a revolução sexual como estamos observando hoje em dia. Essas ideologias aliadas às inovações tecnológicas no campo da contracepção fazem parecer a moral cristã uma idiotice. Essas ideologias, contrariamente ao que elas proclamam, não têm nada a ver com a libertação da mulher ou com a emancipação e a felicidade do ser humano. Têm a ver com a criação de uma nova civilização sobre bases que, em última análise, não apresentam algum fundamento. Em todo esse esforço, a única coisa que tem lógica (apesar de não ser uma lógica correta) é o processo pelo qual estão destruindo a civilização existente. O que

eles vão construir depois é algo absolutamente incerto, inclusive, para eles. Todas as propostas revolucionária só têm em comum uma coisa: a vontade ferrenha de desmantelar a ordem vigente. O que vão colocar no lugar nem eles sabem.

Devemos amar a Deus e ao nosso próximo. O lugar onde se aprende a fazer isso é a família. Pode ser uma família biológica espiritualizada pelo sacramento do matrimônio. Pode ser uma família espiritual.

A maioria das famílias hoje não são famílias puramente espirituais. São famílias biológicas espiritualizadas pelo sacramento do matrimônio. Essas não podem subsistir sem uma concepção clara de sexualidade. Se você detona a concepção cristã de sexualidade, você detona as possibilidades reais de as pessoas vivenciarem o que é o amor a Deus e ao próximo. O mal que essas pessoas estão fazendo ao propagar a ‘liberação sexual’ é incalculável e de uma gravidade enorme.

Anteriormente, falamos sobre o significado da castidade antes, durante e depois do matrimônio. Como orientação geral, dissemos que pecado grave é o que vai diretamente contra o amor a Deus, ao próximo, contra a castidade ou contra um dos cinco mandamentos da Igreja. Devemos evitar a todo custo que constitui pecado grave. Um dos sentidos da confissão é justamente isto: afastar-se definitivamente do pecado grave. O ideal seria que, após a primeira confissão, não se voltasse nunca mais a pecar gravemente. Infelizmente a natureza humana é tão fraca que nem sempre isso é possível.

Cometer um pecado grave é tão sério que a simples exposição a uma ocasião próxima de pecado grave já é pecado grave em si. Quem se expõe conscientemente a uma ocasião em que corre o risco de cair num pecado grave está sendo o pior inimigo de si mesmo. Peca contra a benevolência que deve a si mesmo. Não está querendo o seu próprio bem. Está se condenando deliberadamente ao inferno.

Onde acontece isso com mais frequência? Quais são as situações em que a gente se expõe mais ao pecado grave? Normalmente, são situações relacionadas com a sexualidade, que é a dimensão em que a maioria tem mais fraquezas.

Se você sabe, por exemplo, que, indo a determinado lugar ou falando com determinada pessoa, vai acabar cometendo um adultério, mas, mesmo assim, vai ao lugar ou fala com a pessoa, você está sendo extremamente temerário. No mínimo, está pecando contra si mesmo. Está colocando sua salvação em sério perigo. Isso, obviamente, não vale apenas para a castidade, mas também para os demais pecados graves. No campo da sexualidade, a

gente costuma ser mais fraco e acaba correndo mais perigos. Expor-se ao perigo próximo de cometer pecado grave, sem um motivo razoável e proporcionalmente grave, já é intrinsecamente pecado grave, mesmo que, depois, não se cometa de fato aquele pecado ao qual se ficou exposto.

Falamos aqui de perigos próximos. Perigos remotos são impossíveis de serem evitados e existem a todo momento. A qualquer momento, alguém nos pode seduzir ou subornar; a qualquer momento podemos nos embriagar. Isso não significa, porém, que, a partir de agora, não vamos mais sair de casa, entrar numa banca de jornais ou tomas um copo de vinho.

Como a gente sabe que o perigo está próximo? Pela própria experiência e pelo autoconhecimento. O fulano que gosta de beber sabe que, se entra num bar, vai acabar se embriagando. Seria temerário pensar que vai se controlar. Via de regra, então, só devemos nos expor a um perigo próximo de pecado grave se temos um motivo, razoável e proporcionalmente, grave para isso. E esse motivo é extremamente difícil de se encontrar. Ademais, a experiência mostra que, quando há um motivo grave, a atração do pecado desaparece. Um bombeiro, por exemplo, tem dificuldade em controlar seus impulsos sexuais e ser casto. Um prostíbulo está pegando fogo e a sua equipe foi chamada para apagar o incêndio. No meio da tensão de dever salvar vidas e apagar o fogo, o perigo de cair em tentação e pecar gravemente desaparece.

Essas situações, porém, são raríssimas. Normalmente, então, deve-se fugir qualquer situação que coloque em risco a nossa salvação.

Além de evitar as ocasiões que podem nos levar a pecar, devemos com a mesma força evitar as situações pelas quais podemos levar outros a pecarem. É o que se chama de ESCÂNDALO, quando eu, voluntária ou involuntariamente, coloco uma pedra de tropeço para que alguém caia. Hoje a gente chama de escândalo um acontecimento forte que choca e impressiona as pessoas, uma informação midiaticamente fascinante que se propaga com extrema força e rapidez. Originariamente, porém, escândalo é outra coisa. Etimologicamente, escandalizar equivale a colocar uma pedra no caminho de alguém para que caia.

Na prática, uma das ocasiões mais comuns de escândalo é o vestuário das pessoas, em especial das mulheres. A mulher, normalmente, não percebe o quanto seus trajes podem provocar os homens, porque, sendo mulher, se excita de outra maneira.

Não devemos induzir ao pecado nem a nós mesmos nem aos outros. Por isso, devemos cuidar para que nossos trajes sejam honestos e não provocativos. Um equilíbrio é difícil de

ser encontrado, pois os costumes e as propensões humanas mudam. A decência nas vestes pode mudar de lugar para lugar. Aquilo que para uma tribo indígena é indiferente, para um ocidental pode ser extremamente provocativo. Só quem realmente vive em profundidade a castidade, só quem é sábio, prudente e pratica a virtude é que pode escolher seus trajes honestamente.

Um traje feminino decente requer que a saia não esteja acima dos joelhos, que a camisa não seja sem mangas, que não haja decotes e transparências. No caso das calças, que não sejam justas, para não mostrar as curvas do corpo. Tudo o que se distancia disso pode levar os outros a pecarem. Mesmo que a pessoa use um decote ou uma transparência sem malícia, quem desenhou aquela roupa o fez para estimular a lascívia. A pessoa pode não ter uma intenção maliciosa, mas a roupa em si a tem.

A respeito dos trajes de banho, é claro que esses trajes sempre serão menores. Frequentar a praia não é algo que seja intrinsecamente mau. Todos nós somos obrigados a estar na rua, na escola, no mercado, na igreja, no trabalho etc. Nesses lugares, deparar-se com trajes mínimos é perigo remoto, que não podemos evitar. Ninguém, porém, é obrigado a estar na praia, onde é natural que se vistam trajes mínimos. Portanto, se alguém conhece sua fraqueza, pode ou deve resolver não frequentar praias ou determinadas praias. Entre os trajes de banho a pessoa casta deveria sempre escolher os mais conservadores, para não correr o risco de escandalizar alguém. Na medida do possível, também seria oportuno evitar grandes aglomerações, em que supostamente há mais chance de cair em tentação.

Em piscinas ou clubes, normalmente o espaço é mais angusto, oferecendo mais perigos de pecado grave. Em alguns desses lugares, é praticamente inevitável que as pessoas pequem. Bons cristãos que frequentam esses lugares normalmente ficam assediados por maus pensamentos. Isso pode ser até bom para que esses bons cristãos enxerguem a inconveniência desses lugares e tomem a firme decisão de não frequentá-los.

SÉTIMO MANDAMENTO NÃO ROUBAR

O roubo nem sempre constitui matéria grave. Pode haver roubos que sejam pecados leves. Muitas vezes, o roubo não cai contra o amor ao próximo, sendo apenas uma desordem. Quando o roubo é pequeno e realizado entre amigos, pode não ser entendido e vivenciado pelos interessados como tal. Por exemplo, você vai na casa de um amigo e tira uma bala sem pedir-lhe licença. Roubou a bala. Seu amigo, porém, não vai achar ruim. Se você tivesse

pedido, ele teria dado. Nesse caso, sequer se trata de matéria leve. Você só não teve a oportunidade de pedir a bala.

Outras vezes, você pode roubar algo sem muito valor (uma moeda, por exemplo). O dono do objeto não gostou do que você fez. Mesmo assim, não se incomodou, devido ao escasso valor do bem roubado. Você também não roubou por raiva, desejo de vingança ou inimizade. Foi um pecado leve. Você não se aguentou e ficou com a moeda.

Segundo os manuais clássicos de Moral, para que o roubo chegue a ser matéria grave, deve ser um ato considerado como injúria ou inimizade. O valor do objeto roubado deve ser equivalente a uma jornada de trabalho de um trabalhador braçal (um salário mínimo dividido por 30): algo em torno de 30 ou 35 reais. Exemplo 1 – Você pode tirar 10 reais do bolso de um amigo sem pedir autorização. Quando ele descobrir, vai se zangar. Porém não por ter sido injuriado, mas porque com aquele dinheiro ia comprar um café e, agora, por efeito do roubo, ficou sem café. Ao mesmo tempo, pode haver um mendigo que, ao ser defraudado de 10 reais, leva isso muito a sério e fica profundamente ofendido. Nos dois casos, a quantia roubada está abaixo dos 30/35 reais, mas, no primeiro caso, o roubo não constitui matéria grave, enquanto, no segundo caso, sim.

Constitui pecado grave contra o sétimo mandamento atrasar propositalmente o salário dos trabalhadores.

Na época da inflação alta, no Brasil, havia uma aplicação financeira chamada overnight, para proteger o dinheiro da inflação diária. Essa aplicação era acessível aos bancos e a quem dispusesse de uma quantia mínima de 100 mil reais. Fazia-se um empréstimo de um dia aos bancos, para que esses cobrissem suas dívidas e recebia-se o juro equivalente à inflação daquele dia. Para os cidadãos comuns, o único meio de proteger o salário da desvalorização diária era usar tudo comprando mercadorias. O overnight acabou em 1991, três anos antes da estabilização monetária de 1994. Hoje só os bancos podem emprestar dinheiro um para o outro com prazo de 24 horas, para cobrir operações financeiras que porventura deixaram seus caixas descobertos.

Nesse contexto de grandes perdas diárias do valor da moeda, era frequente as firmas atrasarem o pagamento dos funcionários para aplicar o dinheiro no overnight. Quando os trabalhadores reclamavam demais, as firmas pagavam, mas ficavam com os juros assim acumulados. Nesses casos, ocorriam dois roubos: primeiro, o atraso voluntário e proposital do salário, que, a partir do dia estipulado para o pagamento, já pertencia aos trabalhadores;

segundo, a retenção dos juros ganhos no overnight, com base num dinheiro que – como já dissemos – pertencia aos trabalhadores.

Também é roubo atrasar o aluguel ou dar cheques sem fundo de caso pensado. Atrasar propositalmente o aluguel para uma pessoa que está contando ou poderia estar contando com aquele dinheiro para sobreviver é matéria grave.

Por outro lado, não parece ser matéria grave atrasar as contas (água, energia, telefone, IPTU, IPVA etc.). O atraso não é tomado pelas prefeituras ou pelas empresas fornecedoras como injúria ou malevolência. Em geral, elas até contam com esses atrasos. Os atrasos não deveriam ser feitos, pois de qualquer forma são uma irregularidade, mas não constituem matéria grave.

Os impostos em geral são devidos. Quando corretamente estabelecidos, seu pagamento é obrigatório. Graças a eles, os governos municipais, estaduais ou federais prestam (ou deveriam prestar) serviços importantes aos cidadãos.

Se, porém, o imposto não foi corretamente determinado, o cidadão não tem a obrigação de pagá-lo. Não temos a obrigação de pagar impostos manifestamente abusivos ou injustos. Trata-se de impostos não apenas exagerados, mas totalmente fora da realidade. Exemplo 1 – Cobrar imposto de renda de alguém que ganha um salário mínimo e tem cinco filhos. Se uma pessoa nessas condições recebe uma cobrança de imposto, ao não pagar não comete pecado algum. Exemplo 2 – Cobrar IPTU equivalente a 25% do valor do imóvel é abusivo. Seria melhor a prefeitura tomar logo o imóvel do legítimo dono. Pois, por meio desse imposto abusivo, a cada quatro anos, ela fica com o valor total do imóvel. Nesse caso, o proprietário pode legitimamente recusar-se a pagar. Exemplo 3 – Em países muito corruptos, como o Brasil, o Estado cobra 50 para o contribuinte pagar 25. Nesse caso, o Estado sabe que está fazendo uma cobrança abusiva e não espera receber o que está cobrando. Só espera receber a metade. Assim, se o contribuinte paga 25, o Estado nada faz para cobrar a outra metade que não foi paga. Se um empresário honesto resolve pagar os 50, sendo que os demais concorrentes só pagam 25, vê-se forçado a vender o seu produto mais caro que o dos concorrentes. Consequentemente, ninguém vai comprar seu produto, e o empresário honesto vai à falência. Vê-se obrigado a demitir seus funcionários, cujas famílias vão passar fome. É evidente que esse empresário não precisava

ser tão honesto. Um imposto que, se pago, obriga o contribuinte à falência, é injusto e abusivo. Se todos o pagassem, poderia até ser pago. Todos repassariam esse custo para o valor do produto e estariam no mesmo patamar de concorrência. Num certo sentido, porém, só um empresário pagar esse imposto, nas condições descritas acima, poderia até ser considerado um pecado, pois, ao ser pago, introduziria no sistema produtivo uma desordem, causando prejuízos às famílias dos funcionário e à do próprio empresário.

Num regime democrático, teoricamente, poderia-se cogitar o pagamento do imposto escorchante e, paralelamente, sensibilizar os representantes do povo (prefeito, vereadores, governador, deputados estaduais, presidente, senadores, deputados federais) a mudar as regras, demonstrando-lhes a injustiça do imposto. De fato, sabemos que isso é na maioria das vezes inviável.

Além disso, sabemos que na prática há outros fatores em jogo, como a estratégia de tomada do poder por parte dos regimes socialistas.

O pensamento originário de Karl Marx era de se chegar naturalmente a uma revolução violenta por iniciativa da classe operária, que tomaria consciência do seu estado de opressão, se revoltaria contra a burguesia e o empresariado, tomaria à força os meios de produção e toda forma de propriedade privada, adquiriria o poder e procederia ao gradual desmantelamento da ordem social e do Estado.

Os socialistas, porém, perceberam que a revolução almejada por Marx não ocorreria. Os leninistas perceberam o mesmo e resolveram provocá-la por meio das armas.

No começo do século XX, então, a esquerda dividiu-se em duas frentes: de um lado, os leninistas que, ao entender que a revolução nunca deflagraria naturalmente, provocaram -na à força; de outro lado, os socialistas, que não queriam uma revolução violenta, nem deflagrada naturalmente como preconizavam os marxistas ortodoxos, nem deflagrada à força pelo uso das armas, como preconizavam os leninistas. Os socialistas acreditavam num outro tipo de revolução: uma revolução silenciosa e lenta: ganhavam-se as eleições, tomava-se o poder e gradualmente aumentavam-se os impostos, até se chagar a um patamar de 50 ou 60% da renda nacional. A partir disso, o Estado socialista passaria a comprar pouco a pouco todas as grandes empresas até que não houvesse mais capital privado industrial ou produtivo. Só haveria pequena propriedade privada (carros, casas etc.). Tudo isso ocorreria de forma silenciosa, indolor e despercebida. Isso vai contra os princípios da Doutrina Social da Igreja, que diz claramente que o princípio que deve reger a estrutura social e econômica de um país

é o da SUBSIDARIEDADE: o Estado só deve fazer aquilo que a iniciativa privada não sabe fazer; o Estado de forma alguma deve assumir a iniciativa de tudo.

Os projetos de intervencionismo exagerado do Estado na vida social e econômica de um país forçam o aparecimento e o advento do neoliberalismo ou capitalismo selvagem, que também fere os princípios da Doutrina Social da Igreja. Os capitalistas ficam preocupados e aplicam uma receita especularmente oposta: o governo não deve fazer nada ou o mínimo indispensável (pode tomar conta da administração da justiça e de algum outro serviço que não pode gerar lucro); o resto deve estar nas mãos da iniciativa privada. Dentro de uma sociedade neoliberal, se alguém fica desprotegido, nada pode ser feito para socorrê-lo. O tempo consertará eventuais desvios, perdas, injustiças ou erros. As pessoas que ficam prejudicadas não podem ser socorridas pelo Estado.

Temos aí, então, dois males que se desenvolvem sinergicamente. Vivemos hoje nesse fogo cruzado entre neoliberalismo e socialismo.

Os impostos hoje são altos não porque a corrupção é grande, e o Estado é obrigado a aumentar a arrecadação, mas porque existe um projeto de aquisição gradual de toda a grande propriedade privada.

Então, se o imposto não é apenas exagerado, mas propositalmente abusivo, em decorrência de um projeto de progressiva tomada de poder, o cidadão não é obrigado a pagá-lo.

Do ponto de vista moral, o mais correto seria pagar o imposto e levar ao conhecimento da população esse projeto, para se exigir do Estado uma política tributária honesta. Para que isso se torne possível, exige-se muito trabalho e persistência.

Em relação à moral individual, deve ficar claro que o pagamento dos impostos é um dever que obriga de modo geral, sob pena de cometer pecado grave. Porém não se pode afirmar que toda sonegação de impostos seja necessariamente matéria grave. Para estar em paz com a própria consciência, seria preferível que, lá onde não haja um imposto clamorosamente abusivo, o imposto cobrado seja devidamente pago.

No roubo, não basta que a pessoa se arrependa. Deve haver, quando possível, a disposição a restituir o que foi roubado. Caso contrário, não poderá haver absolvição. A obrigação é de devolver o objeto do roubo, não de revelar em público a prática do roubo. Você deve cumprir com a justiça. Se você roubou o carro de alguém, deve devolver-lhe o carro roubado ou outro igual. Você não precisa dizer que foi você quem o roubou.

Quando não é possível identificar a pessoa ou entidade que foi roubada ou ela não existe mais, ainda assim existe a obrigação de devolver o que foi roubado. Devolve-se a uma pessoa ou a uma entidade que esteja numa condição semelhante à pessoa ou entidade defraudada.

Se não houver disposição a devolver a coisa roubada, o sacerdote não pode absolver.

Se, após a absolvição, não acontece a devolução, a absolvição se torna inválida.

Em alguns casos, o ladrão não tem condições de devolver aquilo que roubou. Exemplo 1 – Um político roubou durante toda a sua vida. Certo dia, se arrepende e se converte, mas já não dispõe mais do montante roubado. Ele deve se dispor a devolver o dinheiro roubado dentro das suas possibilidades, até o fim da sua vida. Se falecer antes de ter completado a devolução, ele fez o que lhe era humanamente possível.

Se você roubou casas, prédios, sítios etc., não pode passá-los em herança a seus herdeiros, nem eles podem aceitá-los, posto que conheçam sua procedência. Mesmo que os herdeiros não conheçam os legítimos proprietários dos bens roubados e herdados, devem repassá-los a alguém que se encontre em condições análogas às dos donos autênticos.

Se um ladrão bateu a carteira de alguém no ônibus, ao arrepender-se, pode devolver o que roubou a uma instituição beneficente.

No caso de impostos não pagos, há leis que dizem que, após determinado tempo, o Estado não pode mais cobrar tais impostos. A lei não diz que o fulano foi perdoado, pois não se preocupa com o foro interno. O que interessa ao Estado é se a dívida é EXECUTÁVEL. De fato, porém, tal dispositivo legal equivale a um perdão tácito da dívida. Quando o Estado diz que, após tantos anos, não pode mais executar a dívida, a obrigação interna do devedor também desaparece. Exemplo 1 – Se você roubou dinheiro de um homem rico, se arrepende, pede desculpas e, ao querer restituir-lhe o dinheiro, o homem rico recusa o dinheiro, cessa também a obrigação de restituição. O mesmo ocorre entre o cidadão e o Estado. Quando o Estado decide não mais perseguir judicialmente o cidadão por um imposto não pago, implicitamente está perdoando sua dívida. Automaticamente, cessa também a obrigação moral de o cidadão pagar aquele imposto, salvo circunstâncias particulares em que se deve entender o contrário.

No contexto do 7º mandamento, existe a questão do SALÁRIO JUSTO. O trabalhador tem direito a receber um salário justo. Salário justo não é o salário de mercado, que pode estar abaixo ou acima do justo, dependendo das condições do mercado de trabalho. Salário justo é aquele que permite a uma pessoa, embora sendo solteira, manter dignamente a si mesma e a uma família. O nosso salário mínimo, portanto, na maioria das circunstâncias, não é salário justo.

Frequentemente, nós não conseguimos pagar para nossos empregados um salário justo. Para fazer isso, às vezes, deveríamos nos desfazer de tudo o que ganhamos e, mesmo assim, ainda correríamos o risco de não estar pagando o justo.

O que fazer, então, nesses casos?

Há determinados ramos do mercado de trabalho em que, se quiséssemos pagar o justo, não pagaríamos ninguém. Assim, muitos morreriam de fome, porque não achariam trabalho. Dificilmente, uma pessoa comum consegue pagar um salário justo à sua empregada. Deixar então essa pessoa sem emprego? Ela poderia estar preferindo trabalhar por um salário mais baixo do que ficar sem trabalho.

Aqui o problema não é do empregador, mas das leis de mercado que causam essas iniquidades.

Na construção civil, não é possível pagar salários justos. Os imóveis ficariam caros demais, até o ponto de ninguém mais poder adquiri-los, com a consequente estagnação do mercado.

Os bancos, pelo contrário, poderiam pagar seus bancários ou suas faxineiras muito melhor, mas não o fazem.

O que fazer em casos como esses?

Faz-se o óbvio: paga-se aquilo que em consciência se pode pagar. Ofereço aquilo que, honesta e generosamente, consigo pagar. Se a pessoa quiser, aceita. Caso contrário, ela trabalhará para alguém que oferece mais.

Nessa questão de justiça, também vale o contrário. Certas profissões são supervalorizadas e recebem salários muito acima do justo. Você não é obrigado a pagar tais valores. Na prática,

porém, pode acontecer que, ao oferecer um salário justo mas abaixo do valor de mercado, ninguém queira trabalhar para você.

Nos casos em que há obrigação de pagar um salário justo, se você não paga e, depois, se arrepende e se confessa, a partir disso, você é obrigado a pagar o salário justo. O sacerdote não pode absolvê-lo sem a disposição a querer pagar, dali em diante, o justo. Você não é obrigado a restituir o que no passado deixou de pagar segundo justiça. Se você pagou o que tinha sido combinado, a justiça moral foi cumprida. A justiça moral não obriga o empregador a pagar retroativamente ao arrependimento o que não foi pago segundo justiça, desde que tenha sido cumprido o acordo entre empregado e empregador.

Se você, porém, fraudou o salário combinado, é obrigado a devolvê-lo. Aquele empregador, por exemplo, que na época do overnight, ficou com o lucro da operação financeira, mesmo após muito tempo, é obrigado a devolver o lucro realizado com o atraso proposital do pagamento.

No âmbito do 7º mandamento, ainda existe outra questão relativa à desigualdade de renda que há no mundo entre as pessoas. Em geral, a renda de uma pessoa física ou jurídica pode ser dividida em três partes: o necessário, o digno e o supérfluo. Não é fácil determinar essas três partes. Quem pode fazer isso melhor é o próprio titular da renda, se for uma pessoa honesta e virtuosa.

Chama-se NECESSÁRIA a renda sem a qual a pessoa não consegue viver ou sem a qual a pessoa é obrigada a rebaixar seu nível de vida ou sua posição social. Por exemplo, para uma faxineira não é absolutamente necessário ter um carro. Para um médico, é. Se um médico ganha tão pouco que não consegue ter um carro ou um consultório ou não consegue comprar livros de medicina, mesmo que tenha o suficiente para sobreviver, não tem o necessário para exercer sua profissão de médico. Para ele, então, a renda que lhe permite ter carro, consultório e livros de medicina é uma renda necessária.

Chama-se DIGNA a renda de que uma pessoa precisa para ter as coisas que o cargo dela exige. Para um médico, por exemplo, é digno ter um bom consultório, bem aparelhado, participar de congressos para atualizar-se, fazer uma pós-graduação. Uma vida digna de médico é aquela que permite coisas às quais, numa situação de aperto, o médico poderia renunciar sem por isso deixar de ser médico, embora essas coisas comumente façam parte da vida normal de um médico.

Chama-se SUPÉRFLUA a renda que permite fazer coisas absolutamente inúteis. Gastos que, se você deixa de fazer, não lhe impedem de sobreviver nem o rebaixam de nível nem lhe impedem de ter uma existência digna.

A Moral cristã diz que as pessoas têm direito ao necessário e ao digno. O que elas conseguem na faixa do supérfluo, ainda que seja delas, não pode ser gasto à toa, mas deve ser repassado para quem está numa situação de extrema necessidade. Ninguém pode pegar de você o supérfluo. O supérfluo é seu, mas você não pode usá-lo em benefício próprio, comprando mais um iate ou mais um apartamento. Você deve procurar pessoas que estão morrendo de fome, passando por necessidades graves e dar-lhes seu supérfluo. O supérfluo não deve ser dado ao padre, ao pastor, à igreja ou a instituições beneficentes de cuja honestidade não se tem certeza. Esse supérfluo é fruto de leis de mercado impessoais que tiraram a renda de quem está passando fome e a colocaram em suas mãos. A justiça moral exige, portanto, que de alguma forma você “devolva” esse supérfluo a quem é “devido”. Só você pode fazer isso, pois você é o único dono do seu supérfluo. Ninguém pode tirá-lo de você à força. Se, porém, você fica com o supérfluo, viajando, por exemplo, para Las Vegas, deixa morrer alguém a quem era destinado o seu supérfluo.

Portanto, se no nosso orçamento, existe uma renda supérflua, devemos fazê-la chegar nas mãos de quem está passando necessidade extrema. O destinatário da nossa renda supérflua é quem está passando fome.

É obrigação de cada um procurar tais pessoas necessitadas.

Dependendo do volume da nossa renda supérflua, é obrigação também contratar pessoas que procurem os necessitados e garantir que estes não vão morrer em razão de nós termos ficado com o dinheiro deles.

O supérfluo é seu. O uso desse supérfluo é que não é seu. É você que vai decidir para onde vai o supérfluo. Você não pode ignorar essa obrigação, pegar seu supérfluo e entregá-lo ao primeiro que passa. Quem garante que esse padre, pastor ou instituição de fato vai cuidar de alguém realmente necessitado? Você simplesmente declinou da sua responsabilidade. Só se pode entregar o próprio supérfluo para uma instituição de cuja honestidade se tem absoluta certeza.

Se você é um grande bilionário, deve utilizar parte do seu supérfluo para criar uma fundação e pagar funcionários que garantam a aplicação do supérfluo no socorro aos verdadeiros necessitados.

Hoje no mundo há muitas pessoas que concentram em suas mãos mais do que precisam para suas necessidades. O mercado é impessoal e, às vezes, permite que alguém fique sem o que comer, enquanto outro tem cem vezes a mais do que lhe é necessário.

O supérfluo não existe só na renda dos bilionários. Qualquer um pode ter em sua renda uma parte supérflua. O difícil é discernir entre o necessário, o digno e o supérfluo. Isso requer honestidade e virtude.

Também pode acontecer que algo pareça a estranhos supérfluo, mas na verdade é necessário. Por exemplo, certos grandes negócios só se fazem em grandes eventos, em festas luxuosas, onde se convidam pessoas da elite empresarial. Essas festas não podem ser baratas. Nesses casos, o que parece supérfluo pode não sê-lo. Quem pode discernir isso são as pessoas envolvidas, desde que honestas e virtuosas. Um sacerdote honesto e virtuoso pode ajudar no discernimento, mas a última palavra é sempre do direito envolvido.

O supérfluo não tem nada a ver como o dízimo. No Brasil, o dízimo é voluntário e, apesar do nome, não corresponde necessariamente à décima parte do que se ganha. O destino que se deve dar ao supérfluo, por outro lado, não é simplesmente voluntário, mas obrigatório, e deve ter como beneficiários exclusivamente pessoas que se encontrem em necessidade extrema.

Alguém que nunca deu seu supérfluo, um dia, se converte, se confessa e quer mudar de vida. A partir desse dia, essa pessoa é obrigada a dar o seu supérfluo. Mas essa obrigação não retroage ao passado. O supérfluo é uma obrigação de caridade, não é uma obrigação de justiça.

OBRIGAÇÃO DE JUSTIÇA é a que deriva de um ofício ou de um contrato. O que você estipulou como salário a ser pago a seu empregado é uma obrigação de justiça. Se você, no passado, deixou de pagar, tem a obrigação de pagar, mesmo que tenha passado muito tempo.

O salário justo e a devolução do supérfluo são obrigações de caridade. Para elas não vale a lei da retroatividade.

O fulano que não pagou o salário estipulado (obrigação de justiça), depois de converter-se, é obrigado a devolver o que não pagou.

O fulano que, tendo a possibilidade, não pagou o salário justo (obrigação de caridade) é obrigado a pagar o salário justo só a partir da conversão, mas não é obrigado a devolver os salários justos que não pagou no passado.

O fulano que não deu o supérfluo (obrigação de caridade) é obrigado a dá-lo só a partir da conversão, mas não é obrigado a devolver todo o supérfluo que não pagou no passado.

O político corrupto que roubou a vida inteira é obrigado a devolver tudo o que roubou. Se, no entanto, ficou pobre, é obrigado a devolver o que roubou dentro das suas possibilidades atuais.

Existe um último caso: quando uma pessoa ganha dinheiro com operações ilícitas que não constituem roubo. Por exemplo, um médico que pratica abortos, uma prostituta que vende seu corpo ou um traficante que vende droga. Todos eles ficaram ricos. No entanto seus proventos não se originam de roubos. A droga vendida era de boa qualidade, o peso era o combinado e o preço praticado era o de mercado. A prestação da prostituta e o valor eram os combinados entre a prostituta e o cliente. O aborto foi praticado de maneira tecnicam ente certa, o valor da operação foi o de mercado. Haveria roubo se a prostituta tivesse ficado com o dinheiro sem prestar o serviço; se o traficante não tivesse entregue a droga pela qual foi pago; se o médico não tivesse praticado o aborto pelo qual já foi pago. O ilícito não está no roubo, mas na droga, na prostituição e no aborto.

Se essas pessoas ficaram ricas e, depois, se arrependem e pedem sinceramente o perdão de seus pecados, não são obrigadas a devolver o dinheiro ganho ilicitamente, pois esse dinheiro não é fruto de roubo.

Obviamente, após arrependerem-se, essas pessoas deveriam por caridade procurar sanar os prejuízos causados com seus pecados. Em alguns casos, isso é possível, em outros, não.

No caso do aborto, não há como sanar o prejuízo da morte do nascituro. A vítima morreu e não tem herdeiros. Não há mais o que fazer.

No caso das drogas, poderia pagar-se o tratamento de alguém que é dependente e que está querendo sair do vício.

No caso da prostituta, não há remédio.

Não há obrigação de devolução do dinheiro ganho com prostituição, prática abortos ou venda de drogas. Porém, para remediar a vida de pecado, essas pessoas podem utilizar (sem serem obrigadas a isso) a fortuna acumulada para fazer o bem. Por exemplo, o doutor Bernard Nathanson produziu vários vídeos contra a prática do aborto.

A não obrigação de devolver o dinheiro ganho ilicitamente é tão certa que, se a prostituta prestou um serviço e o cliente não pagou, ela tem o direito, mesmo após sua conversão, de cobrar pelo serviço não pago. O mesmo vale no caso do traficante e do aborteiro.

Também o matador de aluguel pode cobrar a dívida não paga. Mesmo após sua conversão, mesmo preso na cadeia. O bom seria que essas pessoas não usassem o dinheiro em benefício próprio. Se o matador prejudicou a família do assassinado, deixando-a desamparada, deve dar o dinheiro ganhou como forma de compensação. Nesse caso, ele é obrigado até a dar do próprio dinheiro para amparar tal família, a menos que ele não seja também um pobre coitado.

OITAVO MANDAMENTO NÃO LEVANTAR FALSO TESTEMUNHO

Frequentemente, nos livros de Moral, o 8º mandamento é comparado por semelhança ao 7º mandamento. No roubo, se tira a propriedade alheia. No 8º, a fama alheia. Em alguns casos, tirar a fama alheia pode ser até mais grave do que tirar as posses de alguém. Se você tem boa fama na sociedade, e alguém lhe rouba tudo, você arruma um emprego e compra tudo de novo. Perder as posses não é perder tudo. Perder a fama, em alguns casos, pode ser perder tudo: você não tem mais lugar na sociedade, fica desacreditado, sem crédito, ninguém mais confia em você. “Fama”, no sentido moral, não significa “ser famoso”, mas “ser conhecido e apreciado”. Ser considerado pessoa honesta, de respeito, virtuosa, confiável. Alguém pode ter boa fama e ser um exímio desconhecido. Outro pode ser famoso e não ter fama nenhuma. A fama no sentido moral permite a vida em sociedade e a confiança mútua. Alguém socialmente bem conceituado consegue empréstimos, doações, bons contratos, pois as pessoas confiam em você, no seu trabalho. Sempre haverá pessoas dispostas a ajudá-lo. Quem tem péssima fama, pelo contrário, não consegue fazer nada. Ninguém está disposto a ajudá-lo. Perdeu a coisa mais preciosa neste mundo: a boa reputação. É por isso que mutios ex-presidiários, mesmo sendo pessoas profissionalmente competentes, não conseguem refazer suas vidas, após saírem da cadeia.

Assim como o 4º (honrar pai e mãe) e o 5º mandamento (não matar) se relacionam por envolverem o respeito e a benevolência para com o próximo e controlarem as paixões do irascível; assim como o 6º mandamento (não pecar contra a castidade) salvaguarda a virtude da castidade e controla as paixões do concupiscível; o 7º (não roubar) e o 8º mandamento (não levantar falso testemunho) permitem o desenvolvimento da virtude da justiça.

Assim como o roubo exige a devolução do bem roubado, o falso testemunho exige, quando possível, a reintegração da fama manchada. Por exemplo, no caso de uma calúnia, não basta se arrepender, se confessar e pedir perdão à pessoa caluniada. É necessário desfazer a calúnia.

Qual é a diferença entre as virtudes da paciência, da castidade e da justiça? A paciência e a castidade

ordenam

a psicologia humana em

relação

a si

mesmo (não irar-se

descontroladamente com os outros e dominar os próprios desejos). Trata-se de uma ordenação interna da pessoa. A justiça ordena a psicologia humana em suas relações com o mundo externo, com os outros. A justiça exige um nível de consciência maior. Além de sermos donos de nós mesmos, para sermos justos, precisamos ter a consciência do JUSTO VALOR DO OUTRO. A pagar o salário justo a nossos empregados ou ao dar o nosso supérfluo aos necessitados extremos, ao falar sempre bem dos outros, por exemplo, estamos aprendendo a sermos sensíveis em relação às necessidades dos seres humanos que nos rodeiam.

Normalmente, não temos uma consciência tão desenvolvida. Por isso, falar mal dos outros é um dos pecados mais comuns. Dispor-se a não causar dano aos outros por uma questão de justiça é um bom treinamento para cumprir o mandamento divino do amor ao próximo. Quem não tem um sentimento de justiça está longe de amar o próximo como a si mesmo.

Os três principais aspectos do 8º mandamento, em ordem decrescente de gravidade, são:

1. A calúnia, que consiste em divulgar um defeito ou pecado grave alheio que não corresponde à verdade; 2. A divulgação, sem justo motivo, de um defeito ou pecado grave alheio que corresponde à verdade; 3. O julgamento temerário.

1) A calúnia é o ato pelo qual atribuímos a uma pessoa uma culpa que ela não tem. Você acusa alguém de ter cometido um pecado grave que na verdade ele não cometeu. Ao nos

arrepender, não podemos obter o perdão sacramental, se não nos comprometemos a desfazer a calúnia, tanto quanto nos for possível. Se você acusou falsamente num jornal que alguém é ladrão, você deverá publicar no mesmo jornal um esclarecimento de que a informação não era verdadeira.

Você só é obrigado a desfazer o dano causado a alguém. Não importa que você declare sua má fé. Não interessa que se declarem as intenções de quem caluniou, se foi em boa ou máfé. Você, então, não é obrigado a dizer o porquê caluniou. Você pode simplesmente dizer que houve um engano. Se a calúnia se propagou apenas num âmbito local, a retratação deve ocorrer localmente. Se a calúnia assumiu um vulto maior, a retratação, tanto quanto possível, deve assumir um alcance maior.

Se você pensou em caluniar alguém, escreveu um texto, o enviou a um jornal, mas o jornal não o publicou, num segundo momento, pode acontecer de você se arrepender, ir ao jornal e verificar que o envelope sequer foi aberto. Nesse caso, não precisa dar ulteriores explicações, você pode pegar o envelope e levá-lo embora. Ninguém ficou sabendo, portanto não houve dano algum.

2) O segundo aspecto do 8º mandamento é a divulgação, sem justo motivo, de um defeito ou pecado grave alheio que corresponde à verdade. Exemplo 1 – Uma esposa boa e dedicada, não sendo bem tratada pelo marido, num momento de depressão, acaba traindo o marido. Ninguém soube do acontecido, e, depois, a mulher se arrependeu amargamente e nunca mais voltou a trair. Ninguém soube do adultério a não ser você. Um belo dia, no meio de uma janta, você revela o fato a seu amigo que é também marido da mulher. Você cotou a verdade, não mentiu. Porém a sua verdade está causando um prejuízo gigantesco ao casal. Não há motivo que justifique a sua iniciativa. Isso deveria ter ficado enterrado para sempre, a não ser que interviesse um motivo justo para revelá-lo. Essa divulgação injustificada de um pecado alheio é evidentemente um pecado grave e vai contra a benevolência ao próximo. Com certeza essa mulher odiou você por ter revelado seu segredo. Você tirou dela sem motivo a fama merecida, pois no fundo ela teve apenas uma queda num momento difícil. Provavelmente você acabou com o casamento dela, bem mais valioso do que qualquer outro bem material.

O que seria um motivo justo para divulgar um defeito ou pecado alheio desconhecido? Há duas razões que podem justificar tal divulgação:

1. Evitar um mal maior ou proporcional;

2. Explicar um fato em que o defeito ou pecado grave é parte essencial para entender o ocorrido. Exemplo 1 – Fulano é viciado em drogas. Ninguém sabe. Se isso não está prejudicando ninguém, não é justo você revelar esse defeito. Por enquanto o problema é só dele. O que você pode e deve fazer é conversar com Fulano e aconselhá-lo a abandonar as drogas. Porém, se Fulano é noivo, está para casar com uma moça de boa família que não sabe do vício e pretende formar uma família cristã, você deve contar a verdade à moça. E, se ela não entende ou não acredita, você deve falar com seus familiares. Exemplo 2 – Um homem roubou a vida inteira e agora se candidata a prefeito. Ninguém sabe dos seus roubos. Só você sabe. Inclusive você sabe que ele quer ser prefeito para ter a chance de roubar mais. Nesse caso, é justo escrever uma matéria no jornal para desmascarálo e para que não seja eleito. Exemplo 3 – Sicrano tem um passado turbulento e desonesto, mas ninguém sabe. De repente lhe pede para trabalhar com ele na repartição onde ele se encontra. Você não sabe se aceita: o trabalho é honesto, mas Sicrano não é. O único jeito de você tomar uma decisão é pedir conselho a alguém que já trabalha na mesma repartição. Essa pessoa jamais entenderá seu problema se você não lhe falar da desonestidade de quem o convidou a trabalhar junto. Esse caso, de fato, é análogo ao anterior, pois você está querendo evitar um mal maior ou proporcional. Se você está pedindo conselho, não para um delegado de polícia que pode prender Sicrano nem para um jornalista que pode publicar uma matéria no jornal, mas para alguém que vai manter a devida reserva, então isso é um motivo justo. Obviamente aqui estamos nos referindo ao caso de alguém que pode ter roubado no passado, mas que no presente não está ameaçando diretamente ninguém.

Também não é considerado pecado grave divulgar defeito ou pecado grave alheio quando todo mundo sabe o que o Fulano fez. No Brasil, por exemplo, há muitas pessoas corruptas, cujos malfeitos são de notoriedade pública. Se alguém fala ou escreve sobre isso, não comete pecado grave, pois o erro seria roubar a fama de alguém sem motivo justo. Ora um ladrão conhecido por todos já tem sua fama manchada. Falar dele é falar de alguém já conhecido por todos. Não há nada que você possa tirar dele que ele já não tenha perdido. Todo mundo sabe que Hitler mandou matar 6 milhões de judeus nos campos de concentração. Se você comentar isso, não representa erro algum, pois Hitler perdeu a fama dele desde há muito tempo até o juízo final.

Também não é erro moral quando alguém fez uma grande maldade contra você que ninguém está sabendo, e você, em sua grande angústia, desabafa com seu melhor amigo ou com um familiar, e isso vai ficar circunscrito àquela pessoa e àquele ambiente. Você objetivamente não precisava contar isso: o seu chefe fez um grande erro moral, mas a coisa está resolvida, não vai se repetir mais, e objetivamente não vai adiantar nada falar disso com sua esposa ou com quer que seja. Mas o abalo foi tão grande que você sentiu uma grande necessidade de desabafar. Se a conversa foi reservada, não é considerada um pecado grave. Mais ainda se o confidente é uma pessoa discreta e não tiver convivência com o outro, pois, nesse caso, você não está subtraindo muita coisa da fama do outro. Você sofrer uma ofensa relativamente grande e ser obrigado a não contar isso a ninguém seria uma exigência desumana.

As condições para que isso não represente pecado grave são que a confidência seja feita a alguém íntimo, discreto e que possivelmente não faça parte do convívio do terceiro, e que a confidência seja feita por motivo de consolo ou desabafo.

Se a confidência é feita por motivo de ÓDIO, já constitui pecado por si mesma. TAMBÉM QUANDO SE DIVULGA ALGO NOTÓRIO POR MOTIVO DE ÓDIO, O FATO CONSTITUI PECADO GRAVE POR SI MESMO. Trata-se nesse caso de maledicência.

Via de regra, então, a gente deve ter um respeito muito grande pela fama do outro, mesmo quando o outro é realmente culpado de algo grave. De fato, muitas vezes, uma pessoa culpada de algo pode estar num processo gradual de arrependimento, e a injúria que nós fazemos pode adquirir por isso uma conotação mais grave ainda, pois eventualmente poderíamos estar bloqueando, por nossa atitude imprudente, o processo de conversão (e, consequentemente, de salvação) de alguém. Exemplo 1 – Imagine uma mulher que vivia no mundo da prostituição e das drogas e que, de repente, se arrepende e consegue sair desse submundo. Torna-se uma secretária executiva de altíssimo padrão, absolutamente honesta e exemplar. Um belo dia, você chega no escritório dela e diz para ela na frente de todos: - Nossa, você por aqui, como você mudou. Olhem, essa mulher é um exemplo. Vocês não imaginam o mundo de que ela saiu. Eu a conheci quando ela era uma prostituta, viciada em drogas, e agora ela está tão bem. Ela é muito melhor do que todos nós juntos. Nós nascemos em berço de ouro. Ela não. Ela estava no fundo do poço e conseguiu se reerguer. O que você fez? Acabou com a vida dessa mulher! E tudo o que você disse, no entanto, era tudo verdade. Mas não é justo agir dessa maneira.

3) Um último aspecto do 8º mandamento é o julgamento temerário. Trata-se de um julgamento íntimo sobre a conduta má de alguém, sem ter a prova dessa conduta má. Mesmo que isso não cause a perda da fama de alguém, julgar intimamente uma pessoa, sem ter provas contundentes e mesmo que sem manifestar isso a alguém, é pecado grave, porque denota uma profunda ausência de justiça para com o próximo. Exemplo 1 – Um caso típico de julgamento temerário é aquele que acontece em lugares de muito racismo: houve um roubo na loja e, na ausência de um flagrante, considera-se que quem realizou o roubo foi o funcionário negro. No seu íntimo, você julga que foi ele. Não o diz abertamente para não ser acusado de racismo, mas você tem certeza íntima de que foi ele. Isso é pecado grave.

Outra coisa seria se você formulasse uma mera hipótese sujeita a verificação. Mas você tem certeza de que foi o funcionário negro. Você só pode atribuir em seu íntimo uma culpa grave a alguém só quando tem uma prova real. Normalmente, porém, as pessoas acham que tudo representa uma prova evidente. Se o cara é negro, isso já prova que é o culpado. Você não pegou ninguém em flagrante. Então só pode ser ele. Intimamente você atribui a outras pessoas intenções maléficas que elas não têm. Levantar a hipótese está certo. Se houve um roubo no Vaticano, você inclusive pode levantar a hipótese de que tenha sido o próprio Papa. É uma hipótese remota. Como mera hipótese de trabalho, se você é um detetive e foi chamado para desvendar o caso, é válida e lícita. Porém uma coisa é uma hipótese, outra coisa é uma convicção sem comprovação alguma.

Quando uma pessoa é realmente boa e virtuosa pode enganar em boa-fé a si mesma. Acha, por exemplo, que os indícios são suficientes, quando na realidade não são. Ou então a pessoa não percebe que está dando como certo algo que ela acha que está dando como hipótese.

Por outro lado, há alguns que têm quase que uma tendência natural ao julgamento temerário: qualquer coisa que aconteça, sempre a intenção é a pior possível.

Se você começa a ter um pouco desse julgamento temerário e não se corrige logo, em poucos anos essa tendência vira um vício possivelmente irreversível.

O pecado do juízo temerário inclusive dificulta e, por vezes, até impossibilita a convivência. É difícil conviver, trabalhar ou ter um convívio normal com pessoas viciadas em juízos temerários. Qualquer coisa que aconteça, o temerário vai sempre enxergar da pior maneira e, consequentemente, vai tomar decisões sempre erradas. O temerário simplesmente vive num

mundo fantástico em que interpreta tudo de maneira injusta. No fundo, o temerário não desenvolveu o senso de justiça, que é indispensável para o exercício da prudência. Não há condições de ser prudente se, primeiro, não se é casto, benevolente e justo. O mestre de orquestra nada pode fazer sem músicos. O mestre é a prudência, e os músicos são as demais virtudes.

Uma pessoa que não é casta, que não tem benevolência para com os outros e que não é justa nunca poderá agir com prudência, sempre tomará a decisão errada. Sua vida será uma sequência contínua de erros e de decisões mal tomadas. Essa pessoa vai colocar em determinada repartição a mulher mais sensual, em lugar de escolher a mais competente. A toda a hora está julgando todo mundo, inventando intenções que os outros realmente não têm, construindo um mundo fantástico. Suas decisões serão tomadas em função desse mundo de fantasia, nunca em relação ao mundo real. E, se sua prudência não se desenvolve nas questões corriqueiras do dia a dia, quem diria da sua vida como um todo, para poder chegar ao fim último que é a contemplação e a intimidade com Deus. Então a existência do temerário se torna uma tragédia, na qual ele se perde e torna vão todo o seu viver.

A pessoa que está certa em todo o resto, mas que tem o vício do julgamento temerário, simplesmente não sabe o que é senso de justiça. Ela pode observar externamente as regras de justiça, mas internamente não sabe o que é justiça. Tem na vontade uma desordem radical, que põe todo o resto a perder, inclusive as coisas boas que ela tem.

Temos um exemplo fantástico do oposto ao julgamento temerário na vida de Tomás de Aquino. Quando ele era estudante universitário, foi transferido da Itália para a Alemanha. Ao chegar na Alemanha, foi se integrar num ambiente que não o conhecia e ia assistir às aulas em silêncio sem muito dizer. Aí, os colegas estranhavam que ele não dizia nada e acharam que ele era um débil mental. Um dia então fizeram uma brincadeira com Tomás. Vamos dizer a ele que há uma vaca voando no céu. Querem ver que ele vai à janela ver a vaca? E assim fizeram. E de fato Tomás foi à janela ver a vaca voando. O pior é que, ao voltar, Tomás estava contrariado por não ter visto nenhuma vaca voando. Os colegas então perguntaram para ele onde que ele algum dia havia visto uma vaca voando. Vacas não voam, Tomás. A resposta de Tomás surpreendeu todos: - Então vocês mentiram? Na verdade, quando vocês falaram de vaca voando, eu achei estranho. Só que entre pensar que seminaristas estavam mentindo e pensar que uma vaca pudesse voar, preferi ficar com a segunda hipótese, e fui à janela comprovar essa segunda hipótese, porque nunca poderia imaginar que seminarista pudessem mentir. Essa atitude de Tomás de Aquino é o oposto do julgamento temerário. Isso também reflete um senso de justiça tremendamente enorme. Graças a esse enorme senso de justiça, quando escreveu a Summa Theologica, fez tudo absolutamente equilibrado e perfeito.

Isso porque ele foi olhar a vaca. Se ele não tivesse verificado se a vaca de fato estava voando, teria acabado fazendo julgamentos temerários em sua obra, coisa que não fez. Seu senso de justiça era tão grande que se refletiu em toda a sua existência e em tudo o que ele fez. Por isso, a gente deve fazer questão de cultivar mesmo a virtude da justiça, até porque os grandes erros começam nas pequenas coisas.

OS TRÊS PRIMEIROS MANDAMENTOS

O nono e o décimo mandamentos dizem que não se deve desejar a mulher do próximo e não se devem cobiçar as coisas alheias. Esses dois mandamentos estão no fim do Decálogo para nos ensinar que não apenas não devemos adulterar, como também não devemos desejar adulterar; não somente não devemos roubar, como também não devemos desejar roubar. Então esses dois mandamentos nos ensinam que não é lícito desejar aquilo que não é lícito fazer.

Passamos agora aos três primeiros mandamentos.

Esses três primeiros mandamentos se referem ao amor a Deus e às coisas sagradas, enquanto os demais sete se referem ao amor ao próximo. Os três primeiros mandamentos do Decálogo são a essência do cristianismo e resumem o que de mais importante existe dentro da Moral cristã.

Já dissemos que a Moral serve para evitar o pecado grave, desenvolver as virtudes, desenvolver a prudência, que é a mestra das virtudes, chegar a contemplar Deus e ter comunhão com ele, o que é a razão de toda a existência humana.

Os três primeiros mandamentos se referem exatamente a este último objetivo: a união com Deus.

Na epístola aos Colossenses, São Paulo nos exorta a não pensar nas coisas desta terra, mas a voltar-nos às coisas do alto, porque a nossa vida está escondida junto de Deus com Cristo. Essa vida de que fala São Paulo coincide com a vivência dos três primeiros mandamentos.

Uma das maneiras mais fácil e extraordinária para entender isso é a história de Santo Agostinho. Sua vida teve três etapas, que nos ajudam a entender o sentido dos três primeiros mandamentos do decálogo.

1) Na primeira etapa, Agostinho era um homem mundano que queria o sucesso do mundo. Na época, não havia rádio, televisão, internet, cinema, efeitos especiais, jornais ou revistas. Quem sabia falar bem e com elegância ganhava muito dinheiro. Era contratado para falar às multidões. Reis e senhores da época contratavam os retóricos para dizerem de maneira agradável aquilo que se queria que o povo ouvisse. Outras vezes, o fulano usava a Retórica para si mesmo; tornava-se um grande advogado. O conhecimento das leis passava em segundo plano, e o mais importante era que ele soubesse defender bem uma causa. A Retórica auxiliava também na própria carreira política, sendo em geral caminho seguro para quem quisesse ter sucesso na vida.

2) Já famoso, Agostinho lê um livro de filosofia, em que um grande retórico do passado escreve que a Retórica é pura vaidade e que existe uma coisa muito mais nobre que, porém, não dá dinheiro: a vida de filósofo. Os filósofos eram pessoas que abandonavam tudo para ir em busca da verdade. Então quem queria sucesso ia para a Retórica; quem buscava o sentido das coisas consagrava sua vida à Filosofia. Envergonhado ao ver que havia pessoas mais nobres que ele, Agostinho abandonou tudo para procurar a verdade. Começou então a estudar e tentar compreender se realmente há uma verdade absoluta no mundo. Quando criança, a mãe explicava-lhe as coisas a partir da Bíblia. Já adulto, Agostinho havia desprezado os ensinamentos religiosos maternos.

3) Então resolve comprar uma Bíblia e fica surpreso de encontrar tudo o que já havia descoberto na Bíblia, além de muitas outras coisas que ele ignorava. Agostinho fica surpreso os escritores tão rudes e simples do Velho e Novo Testamento, que, apesar de tão longínquos da erudição dele, conseguem ter profundidade e não cometer erro algum. Na medida em que ele avança no estudo da Bíblia, começa a suspeitar que, para a Bíblia ser tão perfeita, deve ser de natureza divina. E de fato é assim. A Bíblia é de uma profundidade assombrosa. Não existe em toda a literatura livro mais profundo do que a Bíblia. Chegou uma hora então em que Agostinho teve que aceitar a evidência: Deus existe.

Um dado curioso na biografia de Agostinho é que sua conversão começa com um ato de fé em Deus. O argumento para crer em Deus é a própria Bíblia. Para crer que Deus existe, segundo Agostinho, basta ler a Bíblia. O jeito melhor de conhecer a Deus é através da Sagrada Escritura. Quem a lê começa a perceber que não se trata de um livro humano, mas de uma obra que tem procedência sobrenatural. Jesus afirma isso no Evangelho: as palavras que vos falo não são minhas, mas do Pai que me enviou; tudo o que eu ouvi do Pai eu vos dei a conhecer. Se a gente, então, examinasse a Bíblia com atenção, chegaria à conclusão de que Deus existe. O mais fantástico aconteceu depois que ele creu que Jesus existe e que foi

enviado por Deus Pai para dizer as coisas que ouviu do Pai. Agostinho percebeu que, depois de crer que Jesus era Deus, ao voltar cada vez de novo a ler as Escrituras, a mente dele ficava gradativamente sempre mais clara. Depois que ele creu, começou a entender tudo com uma clareza muito maior do que antes. A maior parte das pessoas se convertem por causa de uma experiência moral. Fulano roubou, Beltrano adulterou, Sicrano assassinou, se corrom peu ou viu o sentido da vida desvanecer. Após cometer uma série de erros, cada um deles cansou de sua vida desregrada e começou a apreciar a vida do virtuoso. Viu que as pessoas que creem são diferentes e quis ser assim. Viu que Deus age nas pessoas. Então Agostinho se converte, para que Deus aja na vida dele também. No seu caso, a conversão foi efeito de uma experiência intelectual. É difícil encontrar alguém que leva a sério a busca da verdade e, de tanto buscar a verdade, de repente, se depara com uma verdade maior. Agostinho percebe então que Deus existe, pois o que ele encontra é extraordinariamente maior de tudo o que ele descobriu em sua vida inteira. Quando começa a crer que Deus existe, que Jesus é o Filho de Deus (no Evangelho está escrito: Não se perturbe o vosso coração, credes no Pai e credes também em mim) e se converte, Agostinho percebe que ele começa a entender, de maneira muito mais rápida, clara e luminosa, todas aquelas coisas em que estava trabalhando há anos e que não entendia.

A maioria das pessoas que se convertem e que não vêm de uma vida intelectual não percebe isso. Ao converterem-se, percebem que a vida tem mais sentido, que eles são mais alegres, mas não percebem que a mente deles começa a funcionar melhor. No entanto, Agostinho, cuja mente já estava funcionando a todo vapor, viu que, a partir do momento em que creu, houve nele, intelectualmente falando, uma catapultagem. Agostinho achou o fato curioso e tentou entendê-lo. Procurando na Sagrada Escritura, achou a explicação no começo do Evangelho de São João, onde se diz: No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus... Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz brilhou nas trevas, mas as trevas não o apreenderam.

Segundo Agostinho, as trevas são o pecado. A luz só pode ser a luz da inteligência, a luz da verdade. Essa luz – diz Agostinho – brilhou na minha vida. Só que eu estava imerso no pecado e não a enxerguei. Essa luz é o próprio Cristo. Aqueles que o aceitam recebem o poder de se tornar filhos de Deus. Então foi isto que aconteceu: na hora em que eu cri, surgiu uma luz dentro de mim. Em virtude dessa luz, estou enxergando as coisas de maneira melhor. Essa luz é o próprio Cristo ressuscitado. Eu encontrei dentro de mim o próprio Cristo ressuscitado.

Esse é um ponto central para nós entendermos os três primeiros mandamentos. A tradição cristã ensina que quando você crê em Deus, você não faz isso só porque você quer, mas porque uma luz, a luz da graça, está iluminando-o. E você não consegue crer novamente se essa luz não o iluminar de novo. Isso é semelhante a uma pessoa que enxerga normalmente, mas que está num lugar escuro. Os olhos podem enxergar perfeitamente, mas, se alguém não acender a luz, os olhos de fato não enxergam ao redor. Ainda que você creia e tenha o hábito de crer, não consegue enxergar uma verdade sobrenatural em ato se naquele momento uma luz sobrenatural não o ilumina. Essa luz é a luz da graça, é o que a gente chama de graça. Ela age no momento em que nós cremos e faz com que nós enxerguemos algo que antes permanecia oculto. É por isso que alguns creem, e outros não creem. Na crucifixão, dois ladrões foram crucificados com Cristo: um sabe que Cristo vá para o reino dos céus e gostaria de ter parte com ele; outro só acha que daí a poucas horas vão estar todos mortos e enterrados para sempre. O primeiro é iluminado pela graça e a aceita; o segundo ou não é iluminado ou, sendo iluminado, rejeita a graça e permanece nas trevas. Todas as vezes em que a gente crê verdadeiramente, há uma força do alto, uma graça, uma luz que age dentro de nós.

Que luz é essa? É uma graça que vem de Deus. Depois que Cristo ressuscita e vive eternamente, essa luz nos vem da humanidade de Cristo. Ele morreu, ressuscitou e subiu ao céu justamente para isso. Recebeu o Espírito Santo que soprou sobre os discípulos. Quando a gente crê em Cristo, nós estamos em contato com Cristo. São Paulo diz que os santos vivem da fé. O Novo Testamento fala constantemente da necessidade de ter fé. Tomás de Aquino diz, na Summa Theologica, que quando nós cremos, entramos em contato espiritual com o próprio Cristo e que é por causa desse contato que nos é dada a graça. Então a coisa mais importante que existe para que nós possamos nos relacionar com Deus é crer. Crer nas coisas que ele revela. A Sagrada Escritura revela coisas de Deus que a gente jamais conseguiria deduzir por raciocínio lógico, embora elas sejam perfeitamente lógicas e razoáveis. As verdades reveladas são apreciadas por sua lógica e coerência, mas com a ajuda dessa luz sobrenatural que é o próprio Cristo. Toda a vez que a gente crê, pode ter certeza de que está em contato com o próprio Cristo.

O contato com Cristo ressuscitado que vem pela fé deve ser aprofundado por duas outras virtudes: esperança e caridade.

A virtude da caridade é uma amizade que existe entre Deus e o homem. É o primeiro mandamento: amar a Deus com toda a própria alma, coração, entendimento e forças. Só que para amar uma pessoa, primeiro é necessário conhecê-la e estar em contato com ela. Dificilmente pode-se amar verdadeiramente alguém que não esteja próximo. Se você se

apaixonar por uma moça, tem que conviver com ela, tomar café junto, ir ao restaurante, ao cinema, sair aos domingos etc. Só daí é que pode nascer uma intimidade que leve ao amor. O amor pressupõe intimidade. Espiritualmente a intimidade vem do ato de fé. Quando a gente é capaz de exercitar o ato de crer, pouco a pouco, a gente experimenta uma força maior que age dentro de nós. Essa força é o próprio Deus. Não existe contato mais íntimo com Deus do que o contato pela fé.

Como é possível explicar que, todas as vezes que a gente pratica um ato de fé, a graça de Deus está nos iluminando? Como ocorre essa mágica? Deus está nos vigiando o tempo todo? Na verdade, Deus está muito mais perto de nós do que a gente imagina. Deus não pode criar as coisas e deixar que elas existam por inércia. Ao criar as coisas, Deus deve continuar a sustentá-las no ser. A criação não é um movimento: as coisas não são criadas do nada aos pouquinhos: primeiro um pouquinho, depois mais um pouquinho e assim vai. Entre o nada e o existente não há gradação. Não existe um movimento de criar as coisas. Deus, ao criar as coisas, está dando o ser. Esse ser precisa da intervenção divina. E o primeiro momento da criação não é diferente dos momentos sucessivos à coisa criada. Se algo ou alguém precisa de uma intervenção divina para entrar na existência, precisa da mesma intervenção divina para continuar existindo. Deus então ao criar as coisas deve continuar sustentando-as no ser. Caso contrário, elas voltariam ao nada.

Se fosse possível a criaturas finitas como nós criar algo do nada, seriam um pesadelo, pois, se nós criássemos algo do nada, deveríamos nos concentrar nele o tempo todo para mantê-lo no ser e não permitir-lhe que regrida ao nada. Ao primeiro esquecimento, a coisa sumiria.

Só Deus portanto pode criar as coisas e mantê-las em existência sem enlouquecer, porque ele é onipotente, onisciente e para ele não existem tempo e espaço. Deus pode sustentar as coisas no ser indefinidamente, se ele quiser. No ato criador, Deus tirou o universo do nada, e as coisas continuam existindo. No caso nosso, porém, é diferente. A alma humana imaterial que se une ao óvulo fecundado não tem origem material. Ela é criada por Deus no ato da fecundação. No caso dos humanos, Deus deve intervir com seu ato criador, toda vez que um novo ser humano é gerado. Assim como deve sustentar o ser de tudo o que criou, também deve continuar sustentando cada ser humano, para que este continue existindo. O ato criador com o qual ele mantém os homens existindo é diferente do ato criador com o qual criou o universo em seu conjunto. Cada um de nós foi criados por um ato de Deus distinto daquele que criou o universo como um todo. E Deus deve continuar sustentando cada alma no ser que lhe deu. Justamente para isso, Deus não somente está presente em todas as coisas, mas também em cada um de nós desde que fomos concebidos.

Deus está em nós não porque nós o contemos, mas porque ele nos sustenta no ser.

Deus tem que sustentar no ser, de maneira especial, a nossa alma. Por isso está intimamente presente dentro de nós, muito mais próximo do que a gente imagina. A graça que Deus nos envia não precisa percorrer o universo ou brotar do chão. A graça vem diretamente da nossa alma, onde Deus reside. Deus na verdade está constantemente nos enviando essa graça para que nós creiamos e comecemos a nos relacionar intimamente com ele. Quando Agostinho percebeu que, ao crer, começava a enxergar as coisas de maneira mais clara, é porque ele tinha se conectado com essa graça que Deus lhe enviava o tempo todo chamando-o de dentro dele. Deus estava tão perto dele, e ele não sabia. Então o primeiro passo para a gente ter um contato com Deus é abrir-se a essa luz que está dentro de nós e que está nos convidando a enxergar os sinais que presentes ao nosso redor, o tempo todo. A natureza fala de Deus. Mas, para a gente poder enxergar Deus na natureza, precisamos da luz da graça. Como a gente decaiu pelo pecado original, tornou-se difícil enxergar Deus na natureza. Então Deus deu-nos uma lei escrita, a Revelação, a Escritura. Mas, para a gente compreender as Escrituras, precisamos da luz da graça. No momento em que a gente aceita a luz da graça e crê, a gente começa a entender, e as coisas começam a fazer sentido. Nós estabelecemos o contato com Deus. É por isso que a Bíblia diz que Deus deu àqueles que creem o poder de se tornarem filhos de Deus. Por isso a Sagrada Escritura insiste tanto em que a gente creia. Na verdade cremos em algo a que Deus já nos chamou para crer.

Isso é o primeiro contato. Para que a gente possa realmente crescer nessa relação com Deus, ele nos ensina que devemos amá-lo. A gente deve amá-lo, supondo que a gente reconheça a sua presença, que o tenha encontrado. O encontramos pela fé e nos unimos a ele pela caridade. Ao fazer isso, ao crer e amar a Deus, estamos em comunhão com Cristo em sua humanidade. Por meio de Cristo, pela sua humanidade, pouco a pouco, Jesus vai construindo dentro de nós um organismo espiritual que vai se desenvolvendo. Deus começa então a se manifestar de uma maneira mais evidente. Isso acontece na santificação, quando começa a se manifestar em nós uma santidade mais explícita. Era por isso que Jesus dizia, no episódio de Marta e Maria, que a coisa mais importante era a que Maria estava fazendo: sentada aos pés do Senhor, Maria ouvia a sua palavra. Hoje, depois da ressurreição de Cristo, podemos estar sentados aos pés de Cristo por meio da fé. Quando nós cremos, estamos sentados aos pés do Senhor, estamos em contato com ele, de uma maneira física, ontológica, real. Quando a gente não só o reconhece em sua presença, mas também o ama, como o próprio Cristo diz, o Pai, o Filho e o Espírito Santo o amarão, irão a ele e construirão nele a sua morada.

Cristo também nos diz que devemos permanecer no seu amor: Quem permanece em mim produz muito fruto; quem não permanece em mi será jogado fora. Quem não permanece em Cristo não produz fruto espiritual algum. Pode produzir fruto no sentido de montar uma empresa, ser um grande político, mas depois morre, e tudo isso acaba. Os frutos espirituais vêm através da vivência, na oração, da fé e da caridade.

Além da fé e da caridade, existe uma terceira virtude teologal: a esperança. A esperança é a virtude teologal que faz com que a gente tenha pressa. Quem tem esperança quer alcançar alguma coisa. Uma pessoa que tem esperança em algo, não vê a hora de alguma coisa chegar. A esperança é que faz a fé se juntar à caridade. A gente sabe que está correndo em direção à perfeição espiritual, a um estado adulto em Cristo, sabe que essas coisas são verdadeiras e reais, então não se dedica a isso uma hora ou outra, mas constantemente, para alcançar a meta, desejando-a.

Os primeiros mandamentos, que falam de amar a Deus sobre todas as coisas, santificar o seu nome, os domingos e os dias de guarda, se referem ao nosso relacionamento com Deus, que se dá principalmente através da oração, na medida em que, na oração, a gente consegue unir fé, esperança e caridade.

Então, na verdade, para cumprir o primeiro mandamento, a gente precisa aprender a rezar. Só que aí vem a dificuldade, porque esta maneira de rezar de que estamos falando aqui é simples se a gente sabe praticá-la e se a gente já tiver certa experiência das coisas de Deus, se a gente já experimentou que pela fé existe uma força que age em nós, se a gente percebe que, quando a gente crê, brota em nós uma graça divina, se a gente reconhece que isso que não vemos é o próprio Deus em nós, que nós amamos de maneira extraordinária. Isso tudo é difícil de ser vivido na prática, quando a gente só ouve os outros dizerem essas coisas, que nós achamos bonitas, mas que não sabemos pôr em prática.

Agostinho teve uma grande vantagem: desde o início ele viu isso. Ele levou uma vida de busca da verdade e, quando creu, percebeu nele uma incrível melhora na sua compreensão intelectual das coisas, tão grande e repentina que percebeu que aquilo que estava agindo nele não era qualquer coisa. Ele percebeu que era o Cristo, que estava agindo pela fé. Toda a vez que a gente crê, Cristo age em nós pela fé. Porém, no começo da vida espiritual, apesar de você perceber sinais de que é assim, parece uma coisa muito abstrata.

Então a gente precisa de um remédio para isso. E Jesus inventou um remédio absolutamente extraordinário. Jesus inventou a Eucaristia. Graças à Eucaristia, abre-se uma porta para a vida espiritual até para as pessoas mais primitivas, porque, na Eucaristia, cremos, em razão

da Sagrada Escritura e do testemunho dos primeiros cristãos, que, quando um sacerdote devidamente ordenado consagra o pão e o vinho, aquilo se transforma no corpo e sangue de Cristo. Quando nós dizemos que o pão e o vinho se transformam no corpo e sangue de Cristo, na verdade, o que está presente ali não é apenas o corpo de Cristo. Trata-se do corpo de Cristo ressuscitado. Jesus ressuscitou e está vivo fisicamente em algum lugar do universo. Ele ressuscitou em carne e osso. Ele tem três dimensões e portanto ocupa um espaço até hoje. Ele está sentado à direita de Deus Pai, no sentido de que ele é o primeiro ministro de Deus que, com sua humanidade, dispensa graça sobre graça aos homens. Ele está fisicamente em algum lugar. Quando se consagra o pão, este não perde a aparência de pão, mas se transforma no corpo de Cristo. Não se trata de uma cópia do corpo de Cristo. O corpo de Cristo passa a estar lá, dentro daquele pão que se consagrou. Esse corpo não está dissociado do sangue, da alma e da divindade de Cristo. Na hóstia consagrada então está o Cristo inteiro, em corpo, sangue, alma e divindade. O vinho consagrado, pelo mesmo motivo, não é uma cópia do verdadeiro sangue de Cristo, mas é o verdadeiro e único sangue de Cristo, junto ao corpo, à alma e à divindade de Cristo. No vinho consagrado também está o Cristo inteiro, em corpo, alma e divindade. Quando a gente comunga, Cristo ressuscitado está presente dentro de nós, de maneira especial, sacramental, enquanto as espécies continuam visíveis (enquanto a aparência do pão e do vinho continua tal dentro de nós). Essa presença sacramental de Cristo ressuscitado dentro de nós cessa no momento em que o pão e o vinho se desfazem completamente. Durante aproximativamente dez minutos, Cristo está realmente dentro de nós. O motivo de ser instituído esse rito, em que Cristo se dá como alimento para nós, é que durante esses dez minutos em que Cristo está em nós possamos aprender a amálo o quanto possível. Essa é a finalidade da Eucaristia: ter durante dez minutos uma experiência de amor. O mesmo acontece com a mulher que sofre de um fluxo de sangue: quando toca Cristo, em razão da fé que tem, ela percebe que uma força sai de Cristo e entra nela para curá-la. Na Eucaristia também se dá essa força, não para curar uma doença, mas para que a gente aprenda a amar. Normalmente, quem comunga com frequência, vai percebendo a transformação que a Eucaristia realiza em nós: as virtudes ficam mais fáceis, a castidade fica mais leve, a paciência fica mais profunda, a devoção vai crescendo, a gente vai mudando realmente, se a gente se aproximar da Eucaristia como aquela mulher que sofria de um fluxo de sangue se aproximou de Cristo. Não é sugestão, pois, se a gente tenta fazer isso com qualquer outra coisa (com o terço, com a Bíblia, com um retiro espiritual), a gente não consegue reproduzir o mesmo efeito. Quando você se aproxima da Eucaristia, em primeiro lugar tem que crer que Jesus está lá. Você tem que ter a consciência de que está se aproximando de Jesus ressuscitado. Como fazer esse ato de fé? Na oração isso é mais complicado. Quando você faz um ato de fé realmente entra em contato com Jesus ressuscitado. Ele está lá, pois SEMPRE Deus está dentro de nós e SEMPRE tenta entrar em contato conosco. Então, ao fazermos um ato de fé, nos conectamos com alguém que

constantemente tenta entrar em contato conosco. Deus SEMPRE faz a sua parte. Permitimos, com nosso ato de fé, que a comunicação se estabeleça, que a tentativa feita por Deus desta vez dê certo, ao respondermos ao seu chamado. Deus já estava em contato conosco. SEMPRE está em contato conosco. Quando a gente crê, entramos nós também em contato com ele, já que ele sempre está em contato conosco. Mas podem surgir também um monte de dúvidas: como saber se a gente crê, se a gente não crê, se a gente crê direito ou de maneira errada; e em que devemos crer? Crer é a coisa mais simples do mundo, mas só quando a gente já consegue fazê-lo. Na Eucaristia, não existe essa dúvida. É muito simples: Jesus está lá, e está mesmo. E vai ficar dez minutos com você. Ou você crê nisso ou não tem sentido você comungar. Crer na Eucaristia então é muito simples. Só precisamos aprender a crer com mais atenção, dignidade, profundidade, reverência, devoção, com a devida preparação da alma, atendendo a exigência de estarmos em estado de graça. Depois de receber Cristo no sacramento do pão e do vinho consagrados, sabemos a quem devemos dirigir o nosso amor. É o próprio Cristo que está lá na Eucaristia que você recebeu. Quando a gente reza e faz um ato de fé, sabe que está em contato com Cristo, mas a dificuldade é maior: onde será que ele está? Na Eucaristia não existe essa dificuldade, porque Cristo está fisicamente dentro de nós por dez minutos. Você crê que Jesus está na hóstia ou no pão e vinho consagrados. De fato ele está. Você sabe que durante dez minutos, até ele se dissolver dentro de você e perder a aparência do pão e do vinho, você deve adorá-lo, agradecê-lo e esperar que ele também manifeste seu amor por você. Você sabe que ele está lá e que ele está dentro de você. Dessa forma até uma criança é capaz de ter uma experiência profunda de comunhão, de união de fé e caridade na Eucaristia. E é uma das experiências mais extraordinárias que a gente pode ter.

Então na verdade para a gente aprender a rezar, primeiro precisa aprender a comungar bem. Fazer uma boa confissão, se desfazer de todo pecado grave como condição indispensável sem a qual a Eucaristia seria um sacrilégio. E na hora em que a gente aprende a comungar, deve aprender a voltar a comungar nos dias seguintes, com frequência, até a gente aprender a apreciar o encontro íntimo com Cristo na Eucaristia. Quando a gente começa a fazer isso, começa a perceber que realmente, na Eucaristia, existe uma força (pois para quem comunga corretamente, os efeitos da Eucaristia costumam ser quase que imediatos e visíveis). Independentemente de tudo isso, a Eucaristia tem um valor insubstituível, pois na Eucaristia Deus está muito mais presente do que em qualquer outra oração. Na oração, Deus está presente pela graça; na Eucaristia, Deus está presente, além que pela graça, também e sobretudo pelo sacramento.

A Eucaristia então funciona como uma espécie de muleta para aprender a andar sozinho. Só que, quando a gente começa a andar sozinho, percebe que a muleta é muito mais valiosa do

que o próprio andar sozinho. É como se fosse uma muleta de um trilhão de dólares. Você usa a muleta, mas, quando você aprende a andar sem muleta, não quer deixar a muleta. Essa muleta vale um trilhão de dólares. Em toda a minha vida nunca vou conseguir ganhar um trilhão de dólares. Então não deixo esta muleta por nada neste mundo. Quero continuar com esta muleta. Esta, eu não largo nunca mais.

Vamos resumir. O trabalho de evangelização que Cristo instituiu, e pelo qual ele quer que a salvação chegue a todos os homens, consiste em a gente alcançar o maior grau possível de comunhão com Deus através da oração e da vida espiritual. Só que, para fazer isso, a gente precisa primeiro crer em Deus. Para crer em Deus, precisamos das Sagradas Escrituras, precisamos conhecer, como nos indica Santo Agostinho, a Revelação em que o próprio Deus se deu a conhecer. Esse é o caminho ordinário.

Você pode conhecer a Deus simplesmente admirando a natureza. Mas isso valia no paraíso terrestre. Na prática do homem decaído após o pecado original, as pessoas olham a natureza e compram uma passagem para ir à Disneylândia. As pessoas não enxergam Deus, só são capazes de enxergar Disneylândia nos Estados Unidos, Bariloche na Argentina, os Alpes na Itália. Já foi a época em que os homens podiam ordinariamente ver a Deus olhando para a natureza. Ainda dá. Teoricamente não é impossível. Mas na prática é muito difícil e raro. O meio ordinário para enxergar Deus, porém, também não é estudar metafísica. O meio ordinário de ver e crer em Deus é este apontado por Santo Agostinho: estudar e meditar a Sagrada Escritura até a gente perceber que a Sagrada Escritura não pode vir de outro lugar a não ser de Deus.

Então o anúncio da Palavra é o começo da salvação.

O segundo passo então, depois do anúncio da Palavra, é a construção da Igreja.

A Palavra é anunciada para que seja possível construir a Igreja. A Igreja é necessária porque normalmente as pessoas não vão ter vida espiritual a não ser por meio da Eucaristia. Por isso são necessários o Papa, cardeais, bispos e padres. A gente tem que anunciar a Palavra para que as pessoas aceitem a Igreja e possam começar seu caminho espiritual através dos sacramentos, principalmente através da Eucaristia. É na Eucaristia que as pessoas aprendem pela primeira vez a ter uma experiência de comunhão com Deus. É para isso que a Eucaristia existe. Na medida em que, através da correção das virtudes, por meio da Confissão (a primeira vez a gente se confessa para sair do pecado grave; depois, a não ser que caia novamente num pecado grave, a gente continua se confessando para aperfeiçoar o caminho espiritual por meio do crescimento nas virtudes), da renúncia a si mesmo e da intimidade com

Cristo na Eucaristia, a gente deve pouco a pouco tentar voar com as próprias asas, montar a própria vida espiritual alicerçada na oração. Uma busca de intimidade com Deus semelhante à que se vive na Eucaristia, mas que a gente não consegue mais do que dez minutos por dia, porque a gente não pode comungar mais do que uma vez por dia. Até algum tempo atrás, existia a proibição de comungar mais do que uma vez por dia. De uns trinta anos para cá, a Igreja permite que a pessoa possa comungar duas vezes por dia se, na segunda vez, assiste à Missa por completo. Normalmente, as pessoas comungam uma vez por dia ou algumas vezes na semana. De toda maneira, ainda que se comungue todos os dias, trata-se apenas de uma intimidade de poucos minutos. O que Deus quer é que essa comunhão se aprofunde através da fé, da caridade e da esperança 24 horas por dia, por meio da oração. Para poder realmente produzir um fruto grande em nós (o desenvolvimento de todas as virtudes interiores até a própria estatura do Filho de Deus), os grandes santos dizem que precisaríamos de pelo menos 2 horas de oração profunda por dia todos os dias. Poderia ser 24 horas por dia, como São Francisco, que durante uma Quaresma ficou em oração por quarenta dias no Monte Alverne. Mas não necessariamente. Também não é uma Ave Maria de vez em quando. Normalmente, para que a gente possa realmente alcançar uma profunda comunhão com Deus, objetivo de toda vida cristã, estabelecido no próprio evangelho de São João (Eu quero que estes que me destes sejam um comigo como eu sou um contigo, ó Pai), se a gente não conseguir organizar uma vida com umas duas horas de oração profunda por dia, experiência profunda de fé, esperança e caridade, dificilmente a gente consegue entrar mais a fundo. Experiência profunda de oração não é leitura da Sagrada Escritura ou do Breviário ou participação em liturgias ou oração do Terço. Justamente por não ser Bíblia, Breviário, Liturgia, Terço etc., por se tratar de uma experiência profunda de comunhão íntima com Deus, a gente não alcança uma coisa dessas de repente, de maneira fácil. Tem que começar pelo começo: na Eucaristia, aqueles dez minutos de comunhão com Deus devem ser uma experiência intensa. Com esse fruto da Eucaristia, durante o dia, a gente procura, depois, alguns minutos intensos em que tenta alcançar aquela mesma fé, comunhão e devoção que Deus nos permitiu na Eucaristia. Enquanto a gente não alcançar uma devoção desse tipo, não adianta rezar uma hora ou duas. Vai ser aflição e desespero, que talvez inclusive acabem fazendo a gente desistir de rezar. Pouco a pouco, porém, devemos nos esforçar para ter uma vida de oração em que possamos ter essa experiência de comunhão íntima e profunda com Deus. Na vida da maioria dos santos, encontramos esse tipo de prática de intensa comunhão com Deus. Dificilmente, alguém se santificou sem ter tido uma vida de oração assim. Para a gente fazer isso, precisa da experiência da Eucaristia, que não é uma experiência passageira. A experiência da Eucaristia, mesmo depois dos dez minutos em que Cristo ressuscitado permaneceu em corpo, alma e divindade no nosso corpo, continua e se estende ao longo de todo o dia.

Para haver Eucaristia, deve haver Igreja; para haver Igreja, deve haver o anúncio da Palavra. De modo geral, esse é o esquema da evangelização. E esse esquema nunca apareceu de forma tão clara na história da Igreja como no Concílio Vaticano II. Isso foi debatido durante o Concílio Vaticano II, e Paulo VI acabou colocando-o bem claro na Exortação Apostólica Evangelium Nuntiandi, encerrando um debate teológico paralelo ao Concílio sobre qual fosse a finalidade da evangelização: anunciar a Palavra ou construir a Igreja?

Aí Paulo VI disse que a finalidade da evangelização não é anunciar a Palavra, mas construir a Igreja. A gente anuncia a Palavra para poder construir a Igreja. E a gente constrói a Igreja para que as pessoas possam se aproximar da Eucaristia. E a gente se aproxima da Eucaristia para desencadear a vida espiritual, que é a própria experiência da comunhão íntima com Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo.

Por que estamos dizendo isso? Porque temos que analisar os primeiros três mandamentos do Decálogo. Esses três mandamentos se referem ao amor a Deus. Devido à profundidade do tema, precisamos então aprofundar um pouco em que consiste o amor a Deus, a intimidade com Deus. Como chegar a isso?

Estamos aqui analisando os mandamentos à luz de um preparo para a Confissão, para nos livrar do pecado grave e em seguida aprender a evitar o pecado grave. Mas, ao mesmo tempo, ao analisar esses três primeiros mandamentos nos deparamos com o nível máximo da vida cristã. Então os três primeiros mandamentos do Decálogo não podem representar aqui para nós apenas um meio para nos prepararmos à Confissão. Devem ser colocados em seu justo lugar: são o própria fim de toda vida cristã. A própria virtude da prudência deve ser capaz não só de dirigir as virtudes realizando uma música harmônica e especial em cada situação concreta da nossa vida, mas também a sinfonia inteira da nossa vida, que consiste em ordenar todas as coisas de tal maneira que a gente possa abrir espaço para a contemplação. Abrir espaço para a contemplação, que é o modo pelo qual a gente se une a Deus, é justamente a função dos três primeiros mandamentos, é a função das três virtudes teologais (fé, esperança e caridade). Então os três primeiros mandamentos estão no nível máximo disso tudo. Não poderíamos ter feito uma análise só em função da Confissão. Tudo isso não é uma burocracia do que é certo e do que é errado. Se você faz certo ganha um ponto, se fizer errado perde um; de repente pisou na bola e está fora.

TERCEIRO MANDAMENTO GUARDAR DOMINGOS E FESTAS

O terceiro mandamento da tábua original de Moisés dizia o seguinte: Lembra-te de santificar o dia de Sábado; trabalharás durante seis dias e farás nele todas as tuas obras; o sétimo dia, porém, é o Sábado do Senhor teu Deus; não farás nele obra alguma, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu servo, nem tua serva, nem teu gado, nem o peregrino que está dentro de tuas portas, porque o Senhor fez em seis dias o céu e a terra, e o mar e tudo o que nele está, e descansou ao sétimo dia. Por isso o Senhor abençoou o dia de Sábado e o santificou.

Neste mandamento, Deus, no dia de Sábado, que é o sétimo dia da semana, não quer que as pessoas façam obra alguma e quer que a gente descanse para santificar esse dia. Os cristãos entendem que, ao ter Cristo morrido, ressuscitado e subido aos céus, revogou esse mandamento, como muitos outros da lei judaica que eram rituais ou judiciais. De qualquer maneira, o sentido delas não mudou, continua válido. Aqui diz que é para o homem descansar, porque nele Deus também descansou. Na Suma Teológica, Tomás de Aquino diz que um dos sentidos desse mandamento é comemorar a criação do universo. Deus criou o universo do nada e não tinha necessidade alguma para criá-lo. Ele poderia, em sua perfeição infinita, permanecer único. O único ser existente. Mas ele quis compartilhar isso com todos nós. Então criou o universo espiritual e físico: os anjos, os homens e todas as criaturas do céu e da terra. Isso é dito, na linguagem da Bíblia, com a expressão de que Deus criou o céu e a terra. Dentro da criação material, a ação de Deus foi progredindo até o surgimento do homem, imagem e semelhança de Deus. Então Deus instituiu esse dia de Sábado, em primeiro lugar, para que a gente se desse conta da grandiosidade da sua obra e pudesse agradecê-lo por isso: Deus, em vez de desfrutar sozinho da sua felicidade, quis compartilhá-la conosco, criando-nos e tornando-nos senhores da criação. O homem envolvido no trabalho do dia a dia e afligido por inúmeras preocupações esquece a grandiosidade do plano de Deus. Precisa então de uma pausa e voltar-se para o projeto de Deus. O sétimo dia é para isso. Depois disso, porém, veio Jesus, que nasceu, viveu, morreu, ressuscitou, subiu aos céus e sentou-se à direita do Pai, para que pudéssemos ter novamente acesso ao Pai, redimindo-nos do pecado. São Paulo diz que, em Cristo, Deus recapitulou todas as coisas, fez uma nova criação. Através da graça, Deus nos permite participar da filiação divina, nos torna filhos (adotivos) de Deus Pai, irmãos de Deus Filho. A adoção a filhos ultrapassa de maneira extraordinária toda a obra da criação. Perto do que Jesus fez no Domingo (em que ressuscitou), a criação (celebrada no Sábado) se torna algo menor, apesar de toda a sua importância. Os cristãos entenderam então que, a partir da obra de Cristo, há muitas mais razões para comemorar o Domingo e não o Sábado. Agradece-se então a Deus pela REDENÇÃO (Domingo), além de agradecê-lo pela CRIAÇÃO (Sábado). Desde a origem do cristianismo, os cristãos começaram a cultuar como dia do Senhor o Domingo, e não mais o Sábado. Os primeiros cristãos faziam vigília no sábado à noite e aguardavam o do Domingo amanhecer como sinal da ressurreição de Cristo. Começou-se assim a cultuar o Domingo.

Sempre se entendeu que esse culto do Domingo não era um substituto da lei do Sábado. Na realidade, as leis cerimoniais judaicas do AT, com o advento de Cristo e o começo da Igreja primitiva, foram todas abolidas. A lei do Sábado não foi transformada na lei do Domingo. Esse agradecimento que antes se fazia a Deus pela criação, sem trocar de uma lei para a outra, passou a se fazer no Domingo de uma maneira espontânea. Só muito tempo depois, é que a Igreja, usando seu poder de ligar e desligar, conferido pelo próprio Cristo, passou a exigir dos fiéis que, em todos os Domingos, assistissem à Missa. Então a lei que obriga os cristãos a assistir à Missa todos os Domingos é uma lei eclesiástica e começou só muito tempo depois do cristianismo primitivo (aproximativamente uns 300 anos depois de Cristo). O costume de celebrar o Domingo começou imediatamente depois da ressurreição de Cristo. Jesus nunca preceituou a participação obrigatória na Missa dominical, mas deu à Igreja o poder de ligar e desligar. Indiretamente, portanto, Jesus apoia e ratifica tudo o que a Igreja estabelece de maneira legítima. Na última ceia, quando instituiu a Eucaristia, Jesus disse: Fazei isso em minha memória. Porém não disse quando.

Por causa dessas nuance, portanto, o mandamento original passou a ser concebido no Catecismo da Igreja Católica como “guardar domingos e festas”. Esse mandamento tinha no AT um sentido mais profundo. Você vê no AT que os três primeiros mandamentos se referem a Deus, enquanto os outros sete, ao próximo. Além disso, os dez mandamentos estão numa ordem decrescente de importância. Nesse sentido, olhando no AT, apesar de o terceiro mandamento pedir para nós descansarmos, não fazer trabalho algum e cultuar a Deus, há duas passagens do profeta Isaías em que se percebe que esse mandamento está relacionado com a vida espiritual. Nos cap. 57 e 58 de Isaías, o profeta diz que aquelas pessoas que observarem os Sábados vão ter um efeito espiritual em suas vidas absolutamente extraordinário. Isaías se refere aqui à própria santidade. É óbvio também que não é só porque alguém descansa no Sábado que vai se tornar santo. Senão, os que descansam a semana inteira então seriam ainda mais santos. O profeta está sugerindo que esse descanso é para que a pessoa se dedique à vida espiritual, à vida de oração.

No AT, Deus encontra no meio do povo judaico homens extremamente rudes, que quer converter à sua vontade de maneira lenta e gradativa. Às vezes, então, Deus diz as coisas pela metade. Por exemplo, diz: Olho por olho e dente por dente. Hoje, lendo isso, parece que Deus está legitimando a vingança. Mas, se a gente remonta à época de Moisés, vê que Deus está estabelecendo outro princípio. Na época de Moisés, se alguém arrancava teu olho, você podia arrancar o olho dele e dos membros de toda a sua família, até a sétima e oitava geração. Agora, Deus dá um basta e diz: Se alguém arranca teu olho, você pode arrancar apenas UM olho dele. E chega. A justiça está cumprida. Aqui Deus, na realidade, está querendo moderar as paixões das pessoas. No AT, Moisés proíbe a cobrança de juros dos

judeus, autorizando só os juros que se cobram a estrangeiros. Mais tarde, os profetas dizem que não se deve cobrar juro nem dos estrangeiros nem dos israelitas. Mais tarde, Jesus sinaliza uma época de perdão absoluto. Quando Deus pediu para que o povo judeu descansasse no Sábado, foi para eles aprenderem a parar de trabalhar. Na verdade, ele queria que eles rezassem, que se dedicassem à vida espiritual. Não dava para Deus dizer isso logo de cara. Teve de recorrer a uma pedagogia. Deu pequenos passos até se chegar à plenitude dos tempos com Cristo e com os cristãos.

Em Isaias 58,13, Deus diz: Se tu afastares o teu pé do sábado, para não fazeres a tua vontade no meu dia santo e chamares o sábado de delicioso e dia santo do Senhor, e o solenizares, não seguindo os teus caminhos, não fazendo a tua vontade, não dizendo palavras vãs, então te deleitarás no Senhor, e eu te elevarei acima das alturas da terra e alimentar-te-ei com a herança de Jacó teu pai, porque a boca do Senhor falou.

Quem observa o Sábado, se deleita com o Senhor, tem intimidade com Deus. Essa é uma promessa que cabe a quem tem vida profunda de oração. Não simplesmente para quem descansa.

Em Isaías 56,4, Deus diz: Aqueles que guardarem meus Sábados, praticarem o que eu quero e abraçarem minha aliança, darei um lugar em minha casa, em minhas muralhas adentro, e um nome ainda melhor do que filhos e filhas, dar-lhes-ei um nome eterno, que não perecerá jamais. E aos filhos estrangeiros que se unem ao Senhor para honrar e amar o seu nome, a todos os que guardarem o Sábado para não profaná-lo e abraçar a minha aliança, conduzilos-ei ao meu santo monte e os alegrarei na minha casa de oração. Os seus holocaustos e as suas vítimas ser-me-ão agradáveis sobre o altar. Minha casa será chamada casa de oração para todos os povos.

São promessas incompreensíveis se o terceiro mandamento se esgotasse apenas na exigência do repouso. Repouso por repouso, há pessoas que repousam a semana inteira, com sombra e água de coco, e não merecem essas promessas. Pelo contrário, mereceriam umas boas chibatadas, em razão de seu pecado da preguiça. Então, na verdade, o terceiro mandamento quer ensinar a gente a levar uma vida espiritual. O primeiro dever para com Deus é levar uma vida de oração. Como, no NT, as formalidade judiciais e cerimoniais do AT foram abolidas, a essência do terceiro mandamento não é a de santificar propriamente o Sábado ou o Domingo, mas a de se dedicar a uma vida de oração, e não só no Sábado ou no Domingo, mas sempre.

Em síntese, então, o terceiro mandamento fala da necessidade de se dedicar a uma vida de oração. O verdadeiro culto a Deus começa com a oração. A Igreja acrescentou a isso algumas exigências mínimas com sua prerrogativa de ligar e desligar, dada por Cristo.

A oração enquanto tal tem que ser livre, consequência do amor. Por isso a gente não pode colocar requisitos mínimos obrigatórios. Mas a gente pode, como a Igreja faz a respeito do culto a Deus, colocar algumas exigências que, para o bem dos fiéis, fazem com que eles não se afastem. Dentro do terceiro mandamento, então, a Igreja preceituou duas coisas, sob pena de pecado grave: 1) que nos Domingos e nos dias de festa, a gente assista à Missa; 2) que nos Domingos e nos dias de festa, a gente se abstenha de determinados tipos de trabalho. Então, no terceiro mandamento, temos três coisas: 1) sua verdadeira e mais profunda natureza, que é o início do relacionamento com Deus; 2) os dois preceitos da Igreja.

Para entender corretamente o terceiro mandamento, falaremos então dessas duas coisas.

1) O que seria a oração a partir desse terceiro mandamento? A oração, no nível mais baixo, correspondente ao terceiro mandamento, é uma elevação da mente a Deus para pedir-lhe as coisas necessárias à nossa vida espiritual. A primeira coisa necessária à vida espiritual é a graça da fé (em Hebreus 11, se diz que sem fé é impossível agradar a Deus, porque para aproximar-se de Deus é necessário que primeiro creiamos que ele existe e que ele recompensa aqueles que dele se aproximam). Sem isso, não pode haver vida espiritual. O que é a graça da fé? O que significa fé? Quem explicou o sentido da fé de maneira mais brilhante foi Tomás de Aquino, na Suma Teológica, em que ele diz que a fé é um ato da inteligência. Um ato da inteligência sempre tem por objeto a verdade. Lembrar de uma notícia no jornal, apesar de parecer, não é um ato da inteligência. O contar uma história não necessariamente é um ato da inteligência. Pode ser resultado da imaginação. Um ato da inteligência para ser realmente tal deve ter como objeto a verdade. Para você enxergar uma verdade, ou essa verdade é um princípio evidente que não precisa demonstrar, como os princípios do ser (por exemplo, uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo), ou então é alguma conclusão a que se chega mediante um argumento ou um princípio autoevidente. No caso da fé, o objeto é constituído pelas verdades que Deus revela (Deus é misericordioso; Deus nos ama; Deus nos concede a graça; Existe paraíso; Jesus era o próprio Deus encarnado; Jesus fundou a Igreja; os sacramento têm eficácia por causa dos méritos da ressurreição de Cristo etc.). Os mistérios da fé, porém, não podem ser deduzidos pela mente humana. Não existe argumento humano que faça a gente enxergar esses critérios como verdade. É diferente um teorema de matemática. Considerado que as verdades da fé são reveladas por Deus, eu não posso deduzi-las por si mesmas. Minha vontade pode dobrar minha inteligência a aceitar as verdades reveladas por Deus como sendo verdade. Existe,

porém, outro problema: para você aceitar algo como verdade, porque você quer assim, você também deve ter algum motivo razoável. O médico lhe impõe tomar todo dia tal remédio. Você aceita, senão morre. Às vezes você não tem um nível de instrução suficiente para entender ou verificar se a informação do médico é exata.
AULAS SOBRE A CONFISSÃO - DONATO-1

Related documents

131 Pages • 56,176 Words • PDF • 841.4 KB

119 Pages • 29,676 Words • PDF • 1 MB

3 Pages • 4,208 Words • PDF • 180.5 KB

14 Pages • 3,888 Words • PDF • 1.2 MB

6 Pages • 1,260 Words • PDF • 273.4 KB

5 Pages • 592 Words • PDF • 214.9 KB

10 Pages • 415 Words • PDF • 3.7 MB

1 Pages • 507 Words • PDF • 44.7 KB

97 Pages • 5,383 Words • PDF • 3 MB

76 Pages • 48,230 Words • PDF • 3.3 MB

282 Pages • 97,900 Words • PDF • 2.9 MB

3 Pages • 307 Words • PDF • 155.2 KB