De Volta Para Casa (oficial)L.A.Casey

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Todos os direitos reservados Copyright © 2020 by AllBook Editora. Direção Editorial: Beatriz Soares Tradução: Débora Isidoro Preparação e Revisão: Clara Taveira Raphael Pelosi Pellegrini Projeto Gráfico e Diagramação: Cristiane Saavedra | Saavedra Edições Capa: Barbara Dameto

Todos os direitos reservados e protegidos pela lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros. Os direitos morais do autor foram declarados. Esta obra literária é ficção. Qualquer nome, lugares, personagens e incidentes são produto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, eventos ou estabelecimentos é mera coincidência.

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995) CIP - BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DA LIVROS, RJ LEANDRA FELIX DA CRUZ CANDIDO - BIBLIOTECÁRIA - CRB-7/6135 C332d 1.ed Casey, L. A., 1991De volta para casa [recurso eletrônico] / L. A. Casey ; tradução Débora Isidoro. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Allbook, 2020. Tradução de: Until Harry Modo de acesso: word wide web ISBN: 978-65-86624-21-2 (recurso eletrônico) 1. Romance americano. 2. Livros eletrônicos. I. Isidoro, Débora. II. Título. CDD: 813

CDU: 82-31(73)

DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À ALLBOOK EDITORA [email protected] ALLBOOKEDITORA.COM

A todos os meus anjos no céu – vejo vocês mais tarde.  

Capa Folha de Rosto Créditos Dedicatória Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo 10 Capítulo 11 Capítulo 12 Capítulo 13 Capítulo 14 Capítulo 15 Capítulo 16

Capítulo 17 Capítulo 18 Agradecimentos AllBook Editora

Lane: Estou escrevendo esta carta porque acho que existe uma chance maior de você abrir e ler, em vez de simplesmente deletar, como sei que faz com meus e-mails. Não vou dourar a pílula nem falar sobre amenidades. Vou direto ao ponto. Peço desculpas por dar a notícia em um pedaço de papel, mas tio Harry faleceu hoje de manhã. Você precisa vir e se despedir. Mamãe e Vovó não estão lidando bem com a morte dele. Nenhum de nós, na verdade. Sentimos muito sua falta, e, no momento, precisamos de você. Todos nós precisamos. O funeral é no

sábado. Por favor, vem para casa. Por favor. — Lochlan.

Empurrei os óculos para o alto do nariz enquanto relia a carta do meu irmão pela milionésima vez desde que a recebera, dois dias atrás. Ela estabelecia duas coisas. Primeira: meu tio tinha falecido. Meu padrinho e querido amigo havia partido. E segunda: eu precisava ir para casa. Nenhuma das duas coisas me fazia pular de alegria. Ergui os olhos do papel gasto em que Lochlan havia escrito e olhei pela janela do trem. A área rural de Yorkshire passava por mim, e em segundos me perdi em sua beleza verde. Infelizmente o glamour da interminável paisagem de sonho não era suficiente para disfarçar a dor em meu peito. A horrível aflição me trouxe rapidamente de volta ao presente, gritando que eu não podia fugir dele. Não desta vez, Lane, cochichou uma voz azeda em minha cabeça. Desta vez, não pode fugir. Nenhuma beleza a olho nu, nenhum conforto para o ouvido sensível poderia apagar a inevitável realidade que eu logo teria de enfrentar cara a cara. Mudei de posição no assento quando meu estômago protestou contra a ideia do que os próximos dias trariam. Por que isso tinha que acontecer?, pensei, deprimida. Eu me senti culpada por desejar momentaneamente estar em meu apartamento em Nova York, não em um trem a caminho da minha cidade, York, Inglaterra. Depois me senti envergonhada por questionar a morte do meu tio em um momento tão terrível para mim, quando devia estar questionando apenas por que Deus teve de levá-lo. Minhas prioridades, como sempre, estavam erradas.

Era difícil engolir o nó que se formou em minha garganta. Depois de respirar fundo algumas vezes para me acalmar, peguei o celular no bolso do casaco e abri meus e-mails. Meu lábio tremeu quando fui subindo a tela. Havia centenas e mais centenas de mensagens do meu tio Harry que nunca deletei, e fiquei feliz por isso. Ele era a única pessoa da família com quem eu falava diariamente. Na verdade, era a única pessoa da família com quem eu ainda falava. Consegui fugir de todos os outros, mas não do meu tio Harry. Ele era um pé no saco, mas eu não o trocaria por ninguém no mundo todo. Era meu amigo mais verdadeiro, em quem eu mais confiava, e agora ele havia partido. Estranhei quando não me mandou um e-mail na terçafeira de manhã. Tínhamos conversado pelo Skype na tarde anterior, e ele estava bem. Tínhamos uma rotina: eu acordava todos os dias com um e-mail dele, e trocávamos mensagens até que eu fosse falar com ele por Skype na minha hora do almoço, no trabalho. Quando eram duas da tarde em Nova York, eram sete da noite em York. Tio Harry ia para a cama por volta das nove da noite, e sempre conversávamos antes disso. Na terça de manhã, quando não recebi o e-mail, liguei imediatamente para sua casa, mas o telefone tocou até a secretária eletrônica atender. Deixei um recado rápido pedindo para ele me ligar assim que pudesse e fiquei apavorada quando não retornou a ligação. Fiquei apreensiva por não poder ligar para os meus pais para perguntar por ele, já que tinha apagado o número deles anos antes. O único número que sabia de cor era o do tio Harry, porque ele tinha o mesmo número desde que eu conseguia lembrar. Quando a manhã de quarta-feira chegou e ele ainda não tinha feito nenhum contato comigo, decidi procurar na internet o número do telefone do Lilly’s Café, na Pavement

Street. Minha avó era dona do estabelecimento, mas ela também estava na minha lista de pessoas com quem não falava, como meus pais e irmãos, por isso não éramos próximas. Não como éramos antes de eu sair da cidade. Como exceção desse detalhe, decidi que, se tinha de telefonar para alguém para saber do meu tio, precisava ser para minha avó. Ela era teimosa demais, mas era a única pessoa da família com quem se podia argumentar. E bem pouco. Não tinha internet no meu apartamento, o que era chocante, considerando que eu era editora freelancer, porque o sinal na minha região era muito ruim. Eu usava o Wi-Fi gratuito da loja local do Starbucks sempre que precisava de acesso. Naquela manhã de quarta-feira, me vesti com a intenção de ir até a Starbucks para entrar em contato com minha avó. Encontrei o carteiro no térreo do meu prédio quando estava saindo, e ele me entregou uma carta. Havia carimbos de urgente no envelope, bem como adesivos de entrega no dia seguinte. Tinha sido postado no dia anterior. O endereço do remetente era o do meu irmão, e eu abri a correspondência imediatamente. Li aquela carta desgraçada, e foi a segunda vez na vida em que meu coração se partiu em um milhão de pedaços. A devastação que habitava dentro de mim era uma emoção conhecida, mas dessa vez era causada por uma pessoa completamente diferente, relacionada a uma situação inteiramente diferente. Mais uma vez fui dominada pelo tipo de tristeza que penetra nos ossos, em vez de explodir em uma cascata de lágrimas. A tristeza que eu sentia me preenchia da cabeça aos pés, e eu não conseguia fugir dela. Mas tentei. Tentei pensar em outra coisa quando reservei o voo para Londres. Tentei pensar em outra coisa quando aterrissei no Aeroporto Heathrow e peguei o trem Heathrow

Express para a Estação Paddington. Tentei pensar em qualquer coisa que não fosse o rosto do meu tio Harry, e fui bem até pegar um táxi da Estação Paddington para a Estação King’s Cross e embarcar no último trem da jornada para York. Assim que pisei no Vagão B, o vagão silencioso, a voz do tio Harry explodiu em cada pensamento que eu criava para tentar encobri-lo. Sua voz estava presa em mim, e eu me sentia confortada e triste por isso. Fui arrancada dos meus pensamentos quando o trem parou de repente. Confusa, olhei pela janela. Não olhava mais para a área rural; agora estava olhando para a plataforma movimentada da minha última parada: York. Bem-vindo ao lar, Lane. Depois de respirar profundamente, levantei e, nervosa, guardei o celular no bolso do casaco, antes de pegar minha pequena mala no compartimento de bagagem sobre a cabeça. Alguns minutos mais tarde, estava andando sozinha pela plataforma, puxando a mala. Peguei um táxi da estação para o Holiday Inn, um hotelzinho que ficava a uns dez minutos da casa dos meus pais, me registrei na recepção e me instalei no quarto pequeno, mas aconchegante. Estava descansando da viagem, quando o celular apitou. Vi o nome do meu irmão e gemi. Lochlan queria a confirmação de que eu viria para casa para o funeral do meu tio. Não podia dizer que ele estava errado por tentar se certificar. Nunca respondi àquela carta. Só li e entrei em ação, reservando o primeiro voo disponível que decolasse de Nova York. Estou aqui. Onde está o corpo?

Engoli a bile que subia pela garganta enquanto esperava impacientemente pela resposta. Tinha muitas perguntas, mas não queria resposta nenhuma. Queria saber por que meu tio estava morto se sua saúde era perfeita. Queria saber por que ele estava vivo na noite de segunda-feira e morto na terça-feira de manhã. Mas se tivesse as respostas que minha mente buscava, seria como se aceitasse que

meu tio havia partido, e eu ainda não estava pronta para isso. Pulei de susto quando o celular apitou de novo, anunciando um novo e-mail. Na casa da mamãe e do papai. Estamos todos aqui.

Um nó se formou em minha garganta. Fazia sentido que meu tio estivesse na casa dos meus pais; meu tio adorava minha mãe, e ela tinha um enorme afeto por ele. Era sua irmã caçula, sua cúmplice e sua gêmea. Esfreguei os olhos quando eles começaram a arder. Chego aí em 20 minutos.

Peguei uma calça jeans justa, um par de botas, uma camiseta de manga comprida, todas pretas, e um blazer cinza. Vestida, parei na frente do espelho de corpo inteiro e me encarei. Continuava com a mesma aparência de sempre, mas percebi as diferenças sutis que outras pessoas veriam quando olhassem para mim. O cabelo castanhochocolate agora estava mais comprido, chegava quase na cintura. Os seios eram mais cheios, e o quadril estava um pouco mais largo, dando ao corpo uma curva que me anunciava como mulher, não mais como menina. Minha pele de porcelana tinha uma porção de sardas claras, e os olhos verdes ainda eram escondidos por óculos que repousavam no alto da ponte do nariz. Ajeitei o blazer e pisquei. Não sabia por que, mas não queria ir mal vestida ao primeiro encontro com minha família em seis anos. Queria parecer composta, embora estivesse destruída por dentro. Trancei o cabelo para mantê-lo afastado do rosto e nem perdi tempo com maquiagem, porque ver meu tio abriria uma comporta de emoções que estragaria tudo, de qualquer maneira. Peguei uma echarpe azul-claro em cima da cama e a coloquei no pescoço, antes de pegar o celular e a chave do quarto. A casa dos meus pais ficava perto dali, decidi ir a pé. Não estava chovendo, o que era raro, mas era meio de outubro,

e a noite já havia caído completamente às seis e começava a ficar realmente frio. Cruzei os braços e passei pela frente do café da minha avó de cabeça baixa. Estava fechado, como eu esperava. Não vi luzes pelo canto do olho, mas, por precaução, não olhei diretamente para lá. A caminhada até a casa dos meus pais foi mais silenciosa do que eu lembrava, e antes que pudesse perceber, estava diante da porta da casa onde cresci, onde passei a infância. Notei uma decoração discreta de Halloween, o que me fez lembrar do feriado próximo, mas, além disso, tudo era exatamente igual à última vez que a vi, há seis anos, como se nada tivesse mudado... ou acontecido. Você consegue, disse a mim mesma. Respondi o pensamento muitas vezes na cabeça enquanto erguia a mão e me preparava para bater na porta de madeira escura e envernizada. Não tive tempo, porém, porque a porta se abriu de repente, e duas mulheres de vinte e poucos anos surgiram do outro lado, saindo da casa. Eu não sabia quem eram e fiquei encarando as duas. — Ah, desculpa! — disse a loira platinada, deixando escapar um gritinho antes de se recompor. — Posso ajudar? Quem é ela? E por que está perguntando se pode me ajudar? — Não, obrigada — respondi com educação. — Posso passar? A mulher não saiu do lugar, e a morena ao lado dela cruzou os braços e chegou mais perto da amiga. Olhei para a loira, depois para a morena. Era como se elas estivessem tentando me manter fora da casa. — Quem é você? — perguntou a loira. Seu tom não era grosseiro, só curioso. Impaciente, batuquei com o pé no chão e contei até cinco antes de responder:

— Eu sou a Lane. Esta casa é dos meus pais. Será que pode me dar licença, por favor? — Lane?! — A loira exclamou. Ela falava como se me conhecesse, mas eu não a reconhecia. Balancei a cabeça em uma resposta afirmativa, e isso fez as duas mulheres arregalarem os olhos e se afastarem instantaneamente, formando um corredor entre elas. Agradeci, passei no meio das duas e entrei na casa dos meus pais. Nervosa, respirei fundo e segui pelo corredor em direção à sala. Olhei para trás quando a loira e a morena passaram por mim apressadas e foram em direção à cozinha. Depois olhei novamente para a porta da sala. Sabia que meu tio estava lá, naquela sala; foi onde tia Teresa ficou quando morreu, muitos anos atrás. Segurei a maçaneta da porta e, com delicadeza, a pressionei com a ponta dos dedos. O cheiro de jasmim invadiu as narinas e me envolveu como um cobertor. Inspirei e deixei o conforto do aroma familiar me cercar. Mantinha o olhar baixo, mas vi a base do apoio sobre o qual estava o caixão. Caminhei lentamente até lá e hesitei por um momento. Antes de paralisar completamente, dei a volta no caixão, parei à direita dele e senti que o ar me faltou quando levantei a cabeça e o vi. Cobri a boca com a mão quando um soluço escapou. Ele estava realmente ali — não era uma piada de mau gosto... O corpo estava morto, era verdade. Vê-lo trouxe de volta a lembrança de uma conversa que tivemos por Skype alguns anos atrás, e isso me abalou muito.

— Lane, querida, por favor, conversa comigo — meu tio havia suplicado. — Você não está feliz. Eu vejo. — Estou bem, tio Harry. — Suspirei. — Só está demorando mais do que eu esperava para me adaptar aqui. Meu tipo respondeu diretamente.

— Você se mudou para a cidade há quatro anos. — E daí? — resmunguei. — É outro país. Ainda tenho muita coisa com que me acostumar. — Tem certeza? — insistiu. — Talvez deva conversar com sua avó, ela é muito boa nessas situações em que as pessoas ficam tristes. Um alarme disparou na minha cabeça. — Ah, não, acho que não. Não quero falar com a Oprah Irlandesa. Ela vai ficar xeretando, e não quero isso. Você sabe que ela vai me convencer a entrar em um avião e ir para casa. Ela tem esse dom, e não vou deixar que ela me faça mudar de ideia. — Então me conta o que está acontecendo... por favor? — ele implorou. — Sinto que está com algum problema. Aconteceu alguma coisa? — Estou bem — garanti, mas decidi acabar com seu sofrimento. — Só tive um momento de fraqueza e pensei em fazer uma coisa boba, só isso. — Explica — meu tio quase grunhiu. — Agora. Mordi o lábio inferior e baixei a voz para não ser ouvida pelos outros clientes do Starbucks. — Tive um sonho ontem à noite e acordei suando frio. Por um segundo, por uma fração de segundo, pensei em tomar uns comprimidos. Antes de surtar e exigir que eu volte para casa, quero que saiba que tenho consciência de que foi um pensamento muito sério, então já marquei horário com uma terapeuta para conversar sobre isso. — Lane. — A voz do meu tio era firme. — Está tudo bem. Só quero conversar com um terapeuta sobre isso. Meu tio piscou. — Talvez te ajudasse conversar com Ka... — Não — interrompi. — Não posso. — Lane...

— Não, tio Harry. Não quero vê-lo e não quero falar com ele. Por favor. Não posso. Meu tio grunhiu. — Ok. Tudo bem. — Você faz isso uma vez por semana, pelo menos. Quando vai desistir de me convencer a falar com ele? — Quando estiver morto e enterrado. — Não fala assim. Você não vai a lugar nenhum.   — Tio Harry... — choraminguei ao sair da lembrança e voltar ao presente. Cheguei mais perto do caixão, e minha barriga tocou a madeira. — Eu... sinto muito por não estar aqui. O remorso me invadiu, e nesse momento fiquei muito brava comigo. Não estive a seu lado quando ele mais precisou. Pus minhas necessidades egoístas à frente de um homem que nunca fez nada além de me amar durante toda minha vida. Um gritinho abafado soou atrás de mim, e senti braços envolverem meu corpo. Não sabia quem estava me confortando. Senti o cheiro da loção pós-barba, que me envolvia como o abraço. Pus as mãos sobre aquelas em cima da minha barriga. — Tudo bem, meu amor. Papai. As lágrimas romperam a comporta, e eu me virei e enlacei sua cintura com os braços. Meu pai me abraçou e me embalou até os soluços se tornarem suspiros abafados. Depois de alguns minutos, virei e olhei para meu tio. Toquei sua cabeça, fechando os olhos com força ao sentir a pele gelada. Abri os olhos e olhei para o rosto bonito. — Sinto muito — repeti, antes de me inclinar e beijar a face fria. Depois encostei a testa na lateral de sua cabeça.

— Sinto muito mesmo. Deixei tudo sair e chorei, chorei e chorei. Tinha chorado ao ler a carta de Lochlan, mas nada se comparava à emoção de ver meu tio. Era quase como urrar de dor. Estava arrasada, e quanto mais olhava para esse tio maravilhoso, mais destruída e vazia me sentia. — Como foi o voo? — uma voz perguntou da porta da sala. Não precisei olhar para saber que era a voz de meu irmão Layton. Não a ouvia há quase um ano, mas ainda era a mesma. Só um pouquinho mais rouca, consequência do mau hábito de fumar, provavelmente. Mas não era surpreendente. Ele estava com vinte e nove anos e fumava desde que eu conseguia lembrar. — Longo — respondi para Layton sem desviar os olhos de meu tio. Meu pai continuava atrás de mim, me amparando. Eu sabia que o contato próximo mudaria, provavelmente, depois que meu tio fosse sepultado no cemitério no dia seguinte, mas não pensei nisso. Não me dava bem com meus pais, minha avó ou meus irmãos, mas naquele momento eu não pensava em nossas diferenças. Estava pensando no meu tio Harry. — Onde está sua mala? Fiquei um pouco tensa ao ouvir a voz de minha mãe, mas murmurei: — No Holiday Inn. Ouvi um rosnado. — Vai ficar no hotel em vez de ficar aqui? Suspirei, cansada. — Agora não, Lochlan. Por favor. Ele não ouviu. — Você não vai ficar em um hotel de segunda...

— Lochlan. — A voz firme de Layton interrompeu nosso irmão. — Falamos sobre isso mais tarde. Silêncio. Fechei os olhos ao ouvir os passos pesados de Lochlan se afastando pelo corredor em direção à sala de estar, cuja porta ele bateu. Não estava surpresa por ele ter se retirado. Lochlan podia ser o irmão temperamental, mas a palavra de Layton era a lei. Ele era a única pessoa que controlava Lochlan quando ele ultrapassava o limite. Tentei não deixar meu irmão, ou sua explosão, me incomodar e me concentrei inteiramente em meu tio. — Fiquei esperando seu e-mail — falei baixinho, e fiquei esperando a resposta que sabia que jamais teria. Meu pai me abraçou. — Foi de repente, meu bem. Eu me senti mal. — O que aconteceu? — fiz a pergunta que estava em minha cabeça desde o minuto em que li a carta de Lochlan, dois dias antes. — Infarto — meu pai suspirou. — Ele não sentiu dor. Estava dormindo. Infarto, repeti silenciosamente. Foi isso que levou meu tio. Mordi a boca enquanto analisava sua roupa. Não contive um sorriso ao identificar o macacão grosso de lã que eu havia tricotado para ele quando tinha dezesseis anos. Ele adorava, e por mais que tivesse repetido muitas vezes que devia jogar o macacão no lixo, ele se recusava. Dizia que era o melhor presente que já havia recebido, o que me fazia sentir mal por ele, porque o macacão era horrível. Se eu tivesse de tricotar algo a fim de salvar minha vida, morreria. Minha avó me impôs a tarefa árdua de tricotar no verão em que completei dezesseis anos. Eu era mais do que horrível nisso, mas vovó não se importava. Ela me obrigava a fazer tricô todos os fins de semana com ela e as amigas,

cujas idades somadas ultrapassavam a minha em trezentos anos. Se minha avó me ouvisse falar assim, me daria umas palmadas. Ri sozinha da piada silenciosa e balancei a cabeça. — Ele e esse macacão horrível — resmunguei. Risadas suaves invadiram a sala, e isso ajudou a aliviar a dor e a tensão por alguns momentos fugazes. Quando me senti preparada, respirei fundo e virei para encarar as pessoas que não via pessoalmente há seis anos. A primeira que vi foi minha mãe. Ela parecia ter mais do que seus cinquenta e quatro anos, mas com certeza a morte de meu tio tinha desenhado mais algumas linhas no rosto ainda bonito. Minha avó, que estava ao lado da minha mãe, ainda tinha a mesma aparência que vi um dia antes de ir embora. Meu segundo irmão estava diferente. Musculoso... muito musculoso. Ele estava gordo na última vez que o vi, mas agora não havia mais sobrepeso. — Caramba, Lay, alguém te matriculou em uma academia? — perguntei, perplexa. Meu pai gargalhou atrás de mim, enquanto minha mãe e minha avó cobriram a boca com a mão e tentavam sufocar as risadinhas. Meu irmão fez uma careta, mas seus olhos azuis brilhavam. — Eu não podia ser o gêmeo gordo para sempre, podia? — ele perguntou, vaidoso. Sorri para ele. — Acho que não. Você está ótimo. Layton piscou. — Você também, minha irmã. Meu lábio tremeu por um instante, antes de me virar e olhar para meu pai. Seu rosto bonito era o mesmo, só mais cheio e peludo. Todo o corpo estava mais cheio. Pisquei, espantada.

— Enquanto Layton vai à academia, você vai para o bar e come salgadinhos. É isso? Meu pai fingiu puxar minha orelha. — Pirralha atrevida. Pois saiba que umas camadas de gordura nunca fizeram mal a ninguém. Elas me mantêm quentinho nessas noites frias de inverno. — Estou brincando. — Ri e o abracei. Gostava dele assim, mais gordinho: mais pai para abraçar. Meu irmão, minha mãe e minha avó riam das minhas piadas e levaram alguns instantes para superar o momento de humor. Depois, minha avó se aproximou de mim e me abraçou. — Oi, minha querida — ela disse. Fechei os olhos e a apertei entre os braços, me perdendo em sua voz serena. Minha avó era de Crumlin, em Dublin, Irlanda. Seu sotaque era tão intenso quanto sempre foi, e embora morasse na Inglaterra há cinquenta anos, nunca perdeu o jeito irlandês, e eu amava isso nela. Sorri carinhosamente. — Oi, vovó. Quando ela me soltou, Layton estava ali, me envolvendo com seus braços musculosos. Dei um gritinho quando me tirou do chão e me segurou como se eu não pesasse nada. — Não consigo respirar — falei, debochada, fingindo falta de ar. Meu irmão me pôs no chão e riu. — Terroristinha. Fiz uma careta para ele, mas sorri quando minha mãe se aproximou de mim. Esperava que ela sorrisse e talvez até derramasse umas lágrimas, mas certamente não esperava que chorasse de soluçar enquanto me abraçava, e foi o que fez. — Bem-vinda, bebê — choramingou. — Senti muita saudade.

Abracei seu corpo delicado e a apertei. — Também senti saudade, mãe. Essa era a verdade mais honesta: senti falta dela. Não concordávamos sobre eu ter saído de casa, mas ela ainda era minha mãe, e eu a amava muito. Ela me abraçou por um bom tempo enquanto chorava. A todo instante recuava, olhava para o meu rosto, depois me apertava de novo com toda força. Era como se não conseguisse acreditar que eu estava ali, na frente dela. Isso me deixou feliz e triste ao mesmo tempo. Feliz por ela estar feliz em me ver, e triste porque era minha culpa ela raramente ter uma chance de me ver. Você tem seus motivos. — Está tudo bem, mãe — falei, correspondendo ao abraço. Não estava, mas senti que tinha de dizer aquilo. Quando nos separamos, finalmente olhei para meu tio e franzi a testa. — Acho que a única pessoa que ainda não cumprimentei é o Lochlan. Ouvi alguém tossir atrás de mim. — Não exatamente. Ah, não, supliquei em silêncio. Por favor, Deus, não. Senti meus olhos se abrirem quando sua voz me envolveu como um cobertor quente. Por mais que alguns anos tivessem passado, eu conheceria essa voz mesmo que fosse só em um sussurro. Virei devagar, mas parei ao vê-lo em pé na porta da sala, apoiado no batente, com as mãos nos bolsos da frente da calça jeans. Seus olhos. O que aconteceu com seus olhos? Eu amava muitas coisas naquele homem na minha frente, mas os olhos eram, de longe, minha parte favorita. Eram as primeiras coisas para as quais olhava sempre que o via. Havia sempre um brilho travesso nos olhos cor de uísque

que só eu podia ver, porque olhava com atenção. Era um brilho que me dizia que sua alma estava viva e prosperava, mas o que eu via agora me fez arrepiar. Não havia brilho, nenhum tipo de luz em seus olhos. Estavam mortos e refletiam o céu cinzento e nublado que sempre encobria York. Eram tão cativantes quanto assustadores. Embora eu tivesse me mudado para milhares de quilômetros longe dali a fim de fugir dele, todos os dias dos últimos seis anos acordei vendo aqueles olhos cor de âmbar e dormi ouvindo aquela voz relaxante. Não conseguia me livrar dele, independentemente de estar do outro lado do mundo ou na sala ao lado. Eu vivia e respirava Kale Hunt, e isso estava me matando. — Kale — consegui sussurrar enquanto olhava para o primeiro homem que partiu meu coração. Ele olhou para mim e, sem nenhum sinal de emoção, piscou automaticamente e acenou com a cabeça. — Bem-vinda, Laney Baby.

— Lane? Onde você está? Cobri as orelhas com as mãos, fechei os olhos com força e tentei conter os soluços, mas não consegui. Eles castigavam o corpo, porque minha cabeça doía muito. Massagem não fazia a dor ir embora e só piorava a vibração. Abri os olhos quando um braço passou por baixo dos meus joelhos e outro amparou minhas costas. Dei um gritinho quando erguida de repente, e, instintivamente, passei os braços em torno do pescoço da pessoa que me carregava. Olhei para aquele rosto, e quando brilhantes olhos cor de âmbar encontraram os meus, chorei. — Kale! Kale Hunt era meu melhor amigo no mundo todo. Se alguém podia me fazer sentir melhor quando eu enfrentava uma dor tão forte, essa pessoa era Kale. Era sempre ele quem secava minhas lágrimas e punha um sorriso em meu rosto. Enterrei o rosto na curva de seu pescoço e solucei como se meu mundo estivesse acabando. Kale se aproximou de

uma carteira em minha sala de aula. Ele me pôs sentada em seu colo e me abraçou. Ficou me embalando de um lado para o outro, até eu me acalmar o suficiente para me sentar direito, sem babar em tudo. Olhei para Kale quando ele me ofereceu um lenço que tirou do bolso. Depois de limpar o nariz e o rosto de lágrimas e ranho, assoei o nariz e funguei, antes de amassar o lenço usado. — O que aconteceu? — Kale perguntou com tom preocupado. Continuei fungando, mas silenciosamente. Não queria contar para ele, porque me meteria em encrenca séria, e ele gritaria comigo, provavelmente. E não queria ouvir gritos. — Lane? — Kale insistiu quando desviei o olhar. — O que aconteceu? Senti meu lábio inferior tremer, e ele suspirou. — Não estou bravo com você — ele afirmou com tom suave —, mas você precisa me contar o que aconteceu. Anna O’Leary foi me contar que você veio para cá correndo do pátio e que tinha acontecido alguma coisa. Por favor, me conta o que foi. — Eu... eu estava brincando de pular corda com Anna O’Leary e Ally Day, e o Jordan Hummings pegou nossa corda e saiu correndo. — Abaixei a cabeça até o queixo encostar no peito. — Corri atrás dele e tentei pegar a corda de volta, mas Jordan caiu e disse que era minha culpa, depois ele deu um soco na minha cabeça, e agora está doendo muito. Kale me segurou com mais força. — Jordan Hummings? — ele rosnou. — O menino da minha sala? Assenti devagar. Por isso eu estava com tanto medo; Jordan era um menino grande como Kale.

— Ele te bateu? — Kale perguntou com um grunhido. Comecei a chorar de novo quando a raiva de Kale se tornou evidente. Ele se livrou rapidamente da expressão furiosa e, com a mesma rapidez, me abraçou. Ele me acalmou, disse coisas doces e falou que ia fazer tudo ficar melhor. Acreditei nele. — Vem comigo — ele disse, levantou e depois me pôs em pé. — Meu recreio acaba em poucos minutos, tenho que ser rápido. Kale estava nas turmas dos meninos grandes, e eu não gostava disso. Mas ele precisava ficar na turma dos meninos grandes, porque tinha nove anos e devia aprender coisas de menino grande... como matemática. Ano que vem, quando eu começar as aulas do segundo ano, Kale e eu teremos o mesmo horário de recreio e vamos poder brincar juntos o tempo todo, ele me disse. — Aonde vamos? — perguntei quando Kale entrelaçou os dedos nos meus. Ele resmungou uma resposta e me levou para fora da sala, pelo longo corredor que levava ao playground. — Vou consertar o que aconteceu com você — ele disse ao abrir a porta e sair. Segurei sua mão com força e fomos andando entre muitas crianças que brincavam de pega-pega, amarelinha e pulavam corda. Paramos perto das meninas que estavam pulando corda no mesmo lugar onde eu estive um tempo atrás. — Ei, meninas, vocês viram o Jordan Hummings? — Kale perguntou. Eu não sabia quem elas eram, mas eram mais velhas que eu. Podiam ser da turma de Kale, porque sorriram quando ele fez a pergunta. Estreitei os olhos para elas e cheguei

mais perto de Kale. Não gostava de como elas olhavam para ele. Pareciam felizes demais por vê-lo. — Oi, Kale. — A menina de cabelo vermelho e rosto sardento se animou. — Eu vi. Ele foi lá para trás dos galpões com os amigos. Mas não sei por quê. Kale sorriu para a ruiva. — Obrigado, Drew. O sorriso de Drew tocava suas orelhas. Era largo assim. — De nada — ela respondeu, ajeitando o cabelo brilhante atrás da orelha e sorrindo toda charmosa. Não gostei da Drew; não gostei nada dela. Puxei a mão de Kale quando ele não saiu do lugar. Estava ali parado, olhando para essa garota, a Drew, com uma cara estranha, meio boba, e isso me deixou brava. — Kale! — gritei. Ele deu um pulinho, olhou para mim e fez cara de surpresa, como se tivesse esquecido que eu estava ali. — Ela é tão fofa... é sua irmã? Kale olhou novamente para Drew quando ela falou. — Lane? Ela é minha melhor amiga. Conheço os irmãos dela e a família. Ela é como minha irmã. O olhar de admiração de Drew para Kale me tirou do sério. — Uau. Isso é muito fofo, Kale — Kale respondeu, e levou a mão ao cabelo vermelho e brilhante, girando as pontas em torno dos dedos. Eu queria arrancar aquele cabelo de sua cabeça. Drew o tocava demais. — Ah... é? — Kale gaguejou, e teve que tossir para limpar a garganta, porque fez um ruído estranho. Drew assentiu. — É. Acho muito legal você cuidar dela. Kale mudou de atitude. Deu de ombros como se o que Drew dissesse não fosse importante, depois soltou minha mão para poder colocá-la sobre meu ombro.

— Bom, é assim. Alguém tem que cuidar dela. Ela tem seis anos, mas é pequena para a idade. É só uma criança. Olhei para Kale com a testa franzida e decidi que não gostava de como ele ficava diferente perto dessa garota, a Drew, e da amiga dela, uma loira que não fazia nada além de ficar ali parada olhando para ele desde o momento em que Kale perguntou por Jordan. Jordan. Ao lembrar do motivo para Kale estar falando com essas meninas, puxei sua mão para chamar sua atenção, e quando ele olhou para mim, falei: — Jordan. Kale fez cara de surpresa, depois balançou a cabeça como se organizasse as ideias e contraiu a mandíbula. E olhou para Drew. — Você disse que Jordan foi para trás dos pré-fabricados, não é? Drew balançou a cabeça para cima e para baixo. — Aham. Kale piscou. — Obrigado, linda. — Depois olhou para mim. — Fica aqui com a Drew. Já volto. Depois ele passou por mim e foi em direção aos galpões pré-fabricados. Eu estava quase chorando, porque ele tinha feito algo errado. Chamou Drew de linda, mas isso devia ter sido um engano, porque ele dizia que eu era a única menina linda no mundo. Só eu. Ele sempre repetia. — Ouviu isso — Drew gritou para a amiga enquanto batia palmas, como uma foca no zoológico. — Ele me chamou de linda. Linda! A amiga de Drew pulava no lugar e gritava. Resisti ao impulso de enfiar os dedos nas orelhas para bloquear o barulho horrível.

— Ouvi! — A amiga de Drew respondeu, aplaudindo como uma foca. — Eu ouvi. Ai, meu Deus! Ele gosta de você! Viu como ele não conseguia parar de te encarar? Você tem muita sorte, Drew... ele é lindo! Eu não queria ficar ali ouvindo Drew e a amiga suspirando por Kale, por isso corri atrás dele. Ouvi Drew me chamar, mas não olhei para trás para responder. Na verdade, mostrei a língua para ela em pensamento. Segura essa, Drew. Vi Kale quando ele desapareceu atrás dos galpões e corri atrás dele, corri tanto quanto podia. Cheguei à parte de trás dos pré-fabricados no mesmo instante em que uma mão agarrou meu ombro. — Pode parar. Kale disse para você ficar comigo. Olhei para trás e vi Drew, que olhava para mim séria. Seu peito subia e descia como o meu, e nós duas tentávamos recuperar o fôlego. Ela olhou para frente. Sua boca formou um O antes de Drew cobri-la com a mão e gritar. Pulei assustada e olhei para frente, mas também gritei quando vi o que Drew tinha visto. Kale estava brigando... com três meninos. — Kale! — gritei quando um dos três chutou um lado de sua barriga. Tentei correr para ele, mas braços me envolveram. — Para! — Drew cochichou no meu ouvido. — Você vai se machucar! Eu não me importava; tinha que ajudar Kale antes que ele se machucasse. — Solta ele! — gritei para o garoto. — Para com isso, por favor! O barulho de socos e tapas dominava meus ouvidos, e quando eu me preparava para gritar de novo, um dos garotos em cima de Kale uivou ao levar um chute entre as

pernas. Ele caiu de costas no chão e apertou entre as pernas com as duas mãos. Não levantou nem tentou bater em Kale de novo; ficou caído e começou a chorar de dor. Alguns segundos depois, outro menino caiu de cima de Kale segurando o nariz e começou a chorar, e como o outro ao lado dele, ficou no chão segurando o rosto, enquanto o sangue escorria por entre os dedos com que ele apertava o nariz. Eu não sabia por que, mas segurei com força os braços de Drew, que abaixou para me pegar. Ela me abraçou e tentou virar para eu não ver o que estava acontecendo, mas olhei para trás e vi que o último menino brigando com Kale era Jordan Hummings. O garoto que roubou minha corda e deu um soco na parte detrás da minha cabeça. Kale estava em cima de Jordan. Os dois estavam sujos de sangue, mas Jordan estava mais sujo que Kale, e estava chorando. Kale não chorava. Jordan levantou as mãos e tentou tirar Kale de cima, mas Kale empurrou suas mãos e o agarrou pela gola da blusa do uniforme, para segurá-lo. — Se algum dia — Kale gritou na cara dele — encostar na minha família de novo, eu te mato, porra! Sufoquei um gritinho. Kale tinha dito um palavrão, um palavrão de verdade. Quando seu pai e sua mãe descobrissem, ele estaria muito encrencado. — Eu não encostei em ninguém! — Jordan chorava, tentando desesperadamente escapar das mãos de Kale. — Mentira! — Kale berrou, agarrando a gola de Jordan com a outra mão. — Você bateu na Lane! Uma menina pequena. Ela só tem seis anos, e você deu um soco na cabeça dela! Drew deixou escapar uma exclamação surpresa ao ouvir a declaração e me abraçou com mais força, massageando minhas costas com uma das mãos. Eu odiava admitir que o gesto me confortava e ajudava a diminuir as lágrimas. Odiava estar abraçada a ela e odiava me sentir melhor com

isso. Não queria precisar da ajuda de Drew, porque Kale falou que ela era linda. — Drew, o que está fazendo aí... ei! — Quando a voz de um adulto gritou atrás de nós, me assustei e escondi o rosto no ombro de Drew. Estava paralisada de medo quando o homem passou correndo por nós e foi na direção de Kale e Jordan. Primeiro ele tirou Kale de cima do Jordan e o segurou de um lado, depois levantou Jordan. Jordan chorava, como seus dois amigos que continuavam no chão. Kale era o único que não estava chorando. Só olhava para Jordan de cara feia, com as mãos fechadas e o peito arfando. Agora que Kale estava em pé e de frente para mim, eu podia ver seu rosto, e não gostei do que vi. Tinha um pequeno corte em cima da sobrancelha. Um fio de sangue escorria do ferimento e parava na metade da bochecha. Os dois olhos estavam vermelhos, um pouco inchados, e os lábios estavam sujos do sangue, que se espalhava por sua boca. Vi que os dentes também estavam cobertos de sangue, porque ele respirava de boca aberta. Agora que não havia tanto barulho, Kale ouviu meu choro e virou a cabeça na minha direção, e toda sua atitude mudou. — Está tudo bem, Lane — ele garantiu com uma piscada para mim. — Estou bem, juro. — Mentiroso! — gritei. — Está sangrando! Olha todo esse sangue. Você deve estar morrendo! Pensar nisso revirou meu estômago. — Mas que merda aconteceu aqui? — perguntou, bravo, o homem que segurava Kale e Jordan. Deixei escapar uma exclamação de espanto. O homem também tinha dito um palavrão. — Ele deu um soco na cabeça da Lane! — Kale respondeu, jogando a acusação na cara de Jordan.

O homem olhou para mim, depois para Kale, Jordan e os dois meninos que ainda choravam no chão. Ele balançou a cabeça e começou a andar, puxando Kale e Jordan. — Todo mundo para a diretoria! — ordenou. — Agora! O medo que brotou dentro de mim era suficiente para me fazer querer desmaiar. Drew me pôs no chão e segurou minha mão, e começamos a andar na frente de Kale, Jordan e o homem que havia encerrado a briga. Ele mandou os outros dois garotos levantarem e seguirem o grupo, ou voltaria para buscá-los. — Sim, senhor — os dois responderam, ofegantes. Senhor. O homem era professor na escola e estava nos levando para a diretoria. A encrenca era séria. Os minutos seguintes foram confusos. Tive de ficar sentada na sala da espera da diretoria com Kale, Jordan e dois outros meninos, enquanto nossos pais eram chamados. Drew foi mandada para a sala de aula, porque não tinha nenhum envolvimento direto nos acontecimentos, só testemunhara a briga. Ela contou ao professor o que havia acontecido e foi dispensada. Fiquei de cabeça baixa, embora o “senhor” que acabou com a briga tivesse dito que eu não precisava me preocupar que não teria problemas. Isso me fez sentir melhor, mas ainda me sentia péssima, porque Kale ia ter problemas por minha causa. A sala de espera da diretoria estava em silêncio em um minuto e barulhenta no minuto seguinte, quando os pais chegaram. Ouvi meu pai e o pai de Kale discutindo com diversas vozes adultas e masculinas em algum lugar lá fora. Depois ouvi as vozes das mães tentando acalmar as coisas; outras vozes de mulheres faziam a mesma coisa. Corri para minha mãe quando ela entrou na sala de espera e solucei quando ela me pegou no colo. Senti a mão

pressionando minhas costas, os lábios tocando um lado da minha cabeça. — Lane? — meu pai murmurou. Olhei para ele com a visão embaçada pelas lágrimas. — Você está bem? — ele perguntou em um tom preocupado. Balancei a cabeça. — Jordan deu um soco na minha cabeça e está doendo muito. Meu pai contraiu a mandíbula e olhou para trás. — Cuida do seu filho, antes que eu cuide. A discussão recomeçou, e o professor que havia interrompido a briga entrou na sala de espera e teve de interferir para acalmar todo mundo. A mãe de Jordan estava ajoelhada diante dele, apontando um dedo para o garoto e fazendo um sermão. O pai estava em pé ao lado deles, olhando com os braços cruzados e cara de bravo para Jordan. Engoli em seco quando vi os pais de Kale. O pai estava ao lado dele, examinando seu rosto; a mãe, preocupada, também o cercava de cuidados, embora Kale dissesse estar bem. Ele não parecia bem; os olhos vermelhos e inchados começavam a ficar azuis por causa dos hematomas que se formavam. Tinha uma mancha escura crescendo em volta do corte sobre a sobrancelha e outra no lábio cortado. Aquilo devia doer, mas ele sorria e piscava para mim sempre que me via olhando para ele. Tive de entrar na sala da diretoria com meus pais e contar o que havia acontecido. Fiz exatamente isso, e quando terminei, tive de ficar sentada na sala de espera com meus pais, enquanto Kale, Jordan e os dois amigos entraram na sala da diretoria com os pais. Esperamos por muito tempo, e às vezes escutávamos vozes alteradas, ou alguém chorando. Eu sabia que não era Kale. Ele nunca chorava.

Nunca. Não chorou nem quando a avó morreu, no ano passado. Eu fazia o jogo do “Eu Espio” com meu pai, quando Kale e seus pais voltaram à sala de espera. Levantei e corri para Kale, o que o fez dar risada com os pais. Passei os braços em torno de sua cintura e apoiei a cabeça em sua barriga. Ele descansou a mão sobre meu ombro e afagou minha cabeça com a outra. — Você está bem? — ele me perguntou. Agora estou, disse a mim mesma. Olhei para ele e assenti. — Amo você — disse, o que fez minha mãe e a dele suspirarem e nossos pais darem risada. Kale riu. — Também te amo, Lane Baby. Apertei o rosto contra sua barriga e sorri. Ele era o melhor de todos os amigos. — O que o diretor disse? — meu pai perguntou ao de Kale quando saímos juntos da sala de espera e da escola. Minha mãe cochichou que podíamos todos ir para casa, e achei isso muito legal, porque não queria voltar para a sala de aula. — Ele entendeu que Kale ficou nervoso e sentiu que precisava defender Lane, mas violência não foi a melhor solução. Kale está suspenso por dois dias, mas Jordan e os amigos receberam uma semana. — Como assim “suspenso”? — perguntei. Kale riu e passou um braço sobre meus ombros. Ele se inclinou e sussurrou: — Isso quer dizer que vou ficar na cama o dia todo, enquanto você vai para a escola. O quê? — Não é justo! Quero ser suspensa também!

A gargalhada de Kale ecoou pelo corredor a caminho da saída, mas ele parou de rir quando uma porta se abriu e Drew apareceu com aquela porcaria de cabelo vermelho. Senti o braço de Kale tenso sobre meus ombros, mas ele sorriu quando Drew olhou em sua direção. — Kale! — Drew correu em sua direção. Ela realmente correu. Dei um passo para o lado quando ela o abraçou. Olhei feio para ela e recuei até minhas costas encontrarem as pernas do meu pai. Olhei para ele e vi que sorria para o pai de Kale, e os dois balançavam a cabeça. Nossas mães também sorriam e balançavam a cabeça olhando para Drew e Kale. Não entendi. Por que estão tão felizes? — Oi, Drew — Kale murmurou enquanto cheirava seu cabelo. Que nojo. Ele cheirou o cabelo dela. Eu vi! Drew encerrou o abraço. — Que bom que está bem, fiquei preocupada. — Ficou preocupada comigo? — Kale perguntou com tom incrédulo. — É claro. Você foi suspenso? Kale deu de ombros como se não se importasse. — Dois dias. — Por defender sua irmã? Isso é muito idiota. — Nem me fala. — Kale riu e coçou a nuca. Drew ficou vermelha ao notar meus pais e os de Kale ali, acompanhando a conversa. — Bom, eu anoto a matéria e passo tudo para você — ela disse, e ficou ainda mais vermelha, tanto que sua cabeça inteira ficou da cor de um tomate. — Posso levar para você todos os dias depois da aula, para não ficar atrasado. Kale também ficou vermelho, mas continuou em silêncio. Senti vontade de chutá-lo e dizer não para Drew no lugar

dele, mas não consegui. Não conseguia fazer nada. Estava muito brava, mas nem imaginava por quê. — Seria ótimo... Drew, não é? — A mãe de Kale interferiu. Drew olhou para a mãe de Kale e assentiu com um sorriso envergonhado. — Sim, meu nome é Drew. — Lindo nome. — Obrigada. — O rosto dela ficou ainda mais vermelho. Ela abaixou a cabeça e olhou para as próprias mãos. Só então percebi que Drew carregava uma folha de papel toda escrita. — Tenho que copiar isto aqui para a professora, preciso ir, mas vou guardar uma folha para você, Kale, e fazer as anotações. Levo tudo para você hoje, depois da aula... ok? — Drew perguntou esperançosa. — Sim — Kale respondeu imediatamente, depois pigarreou. — Sim, tudo bem, legal. O pai de Kale e o meu riram, e Kale ficou tenso. — Legal, então. Sei onde você mora, passo lá mais tarde. — Ela se aproximou e beijou o rosto de Kale. Beijou! Depois olhou para mim. — Espero que você também esteja bem, Lane. Drew se despediu de todos nós e seguiu pelo corredor. Kale não se moveu, e o pai dele o empurrou e riu. — Boa, filho. Bem legal. Kale ainda estava vermelho, mas empurrou o pai de volta para entrar na brincadeira. — Cala a boca — ele resmungou, sorrindo. Eu acompanhava tudo de cara feia, e minha mãe percebeu. Ela cutucou a mãe de Kale, e as duas olharam para mim e sorriram. Elas eram estranhas, sempre sorriam para mim quando eu estava olhando para Kale. Isso me

assustava, mas nunca falei nada, porque elas eram velhas, e eu queria que fossem felizes. — Kale — a mãe dele murmurou e inclinou a cabeça na minha direção. Kale olhou para mim e piscou quando viu minha cara. — Por que está brava? — perguntou, curioso. Eu não sabia por que estava brava, só sabia que Drew me irritava, mas não queria dizer isso a ele. — Minha cabeça está doendo — falei. Não era mentira; estava doendo, só não tanto quanto meu peito doía de repente. Kale se aproximou e passou o braço sobre meus ombros. — Podemos ver um filme com minha mãe e a sua e tomar sorvete em casa. Vai ficar melhor? Esqueci tudo. A dor de cabeça. A dor no peito. Drew. Kale chamando aquela garota de linda, sorrindo para ela e se comportando de um jeito diferente perto dela. Só pensei em brincar com Kale e ver filmes pelo restante do dia. Encostei nele e sorri, e todo mundo riu. Ele sabia que minha resposta era um sim silenciosamente animado. — Vamos embora, então. — Ele segurou minha mão. — Vamos ver uns filmes, Laney Baby. Segurei sua mão com força e sorri com alegria quando saímos da escola. Eu adorava passar o tempo com ele, adorava quando me chamava de Laney Baby. Adorava tudo em Kale, e sabia que seria sempre assim. Ele era meu melhor amigo, meu melhor irmão mais velho postiço e meu melhor protetor. Ele era meu melhor tudo. Ele era meu.

Meu coração batia acelerado, e as mãos estavam suadas. Ele me chamou de Laney Baby, minha cabeça sussurrava. Kale Hunt está na minha frente em carne e osso e me chamou de Laney Baby. Era como ser jogada de volta aos primeiros anos, quando tudo ia bem entre nós, quando as coisas não eram... difíceis. Empurrei essa ideia para o fundo da cabeça e tentei me acalmar. Recusava-me a parecer tão agitada e despreparada para esse encontro quanto realmente estava. Sabia que voltar para cá aumentava muito as chances de encontrar Kale; só não havia percebido que isso aconteceria dez minutos depois de entrar na casa dos meus pais. — Como vai? — perguntei com tom formal depois de um longo período de silêncio. Kale comprimiu os lábios, formando uma linha fina. — Bem, garota. E você? Garota. Eu queria grunhir que não era mais uma garota, mas consegui me controlar.

— Eu... — Olhei para o caixão do meu tio, depois para Kale de novo. — Já estive melhor. Ele assentiu em sinal de compreensão. — É bom ter você em casa. Mesmo?, uma voz em minha cabeça debochou. — Obrigada — respondi, depois menti: — É bom estar de volta. Não era bom estar de volta. Era uma tortura ter de agir como se não sentisse toda a dor de novo. Como se meu coração não disparasse só porque eu o via, como se minhas mãos não ardessem para tocá-lo, como se os joelhos não tremessem para não ceder ao impulso de me levar até ele, como se arrepios não subissem e descessem pelas costas depois de ouvir sua voz rouca, como se meus lábios não quisessem devorar os dele até não existir mais nada além de nós dois. É só por alguns dias, me lembrei rapidamente. Você consegue. Continuei em silêncio quando minha família sugeriu que fôssemos à sala de estar para “conversar”. Fui com eles, porque precisava ficar longe de meu tio por uns momentos para organizar as ideias. Estava arrasada com a morte dele, dilacerada com o reencontro com Kale, e se não saísse da sala logo e recuperasse o foco, temia sofrer um colapso nervoso. Fui a última a entrar na sala de estar, por isso sentei na poltrona diante de todos no enorme sofá de canto, onde Lochlan já estava olhando para mim de cara feia. Fingi não notar, apesar da intensa consciência daquele olhar em mim. Meus irmãos, como minha mãe e meu tio, eram gêmeos fraternos e tinham uma ligação próxima e semelhante, embora fossem opostos polares. Lochlan era temperamental, enquanto Layton era tranquilo; as diferenças os equilibravam. Eu agradecia muito pela

existência de Layton quando Lochlan ficava zangado comigo, porque o problema com meu irmão era que nunca conseguia ignorar quando ele ficava bravo comigo, principalmente porque nunca me dava sossego, e isso parecia ter nos seguido até a vida adulta. Todos estavam sentados no sofá com meu irmão furioso, exceto Layton. Ele se espremeu ao meu lado na poltrona e me abraçou. Sorri, porque ele era grande e musculoso, e espremer o corpo no espaço da poltrona era, na verdade, me espremer. Mas não reclamei. Adorava a proximidade. Tinha sentido falta disso, dele. Layton era o verdadeiro pacificador da família, e eu só não me dava perfeitamente com ele por causa das críticas à minha decisão de viver em outro país. Ele temia por minha segurança e me achava cruel por ignorar as preocupações da família comigo. Tinha deixado claro quanto sentiria minha falta quando eu estivesse longe e como odiava eu ter ido morar tão longe, mas, diferentemente de Lochlan, ele guardava na própria cabeça todas as queixas desde que deixei claro que não poderia voltar para casa. Layton sofria em silêncio, e levava esse silêncio a sério, motivo pelo qual nunca conversamos depois da minha partida, a menos que eu desejasse um feliz aniversário ou feliz Natal a um membro da família. As coisas agora iam bem porque eu estava em casa, e minha família estava feliz por me ver, mas ainda tínhamos problemas. Havia um motivo para eu só conversar com meu tio. Ele era o único que não me ameaçava nem me fazia sentir culpada para me convencer a voltar para casa; todos os outros recorriam a essas armas sem nenhum remorso. Não entendiam que eu precisava estar longe de casa. Sabiam por que eu precisava — só não entendiam. Minha decisão de partir repentinamente pôs fim à comunicação diária entre nós. Era horrível não conversar com eles. Eu sentia muitas saudades, mas era tão teimosa quanto todos

da família, e enfrentava a raiva e a mágoa de todos com minha raiva e minha mágoa. Isso criou uma barreira de silêncio que só a morte de meu tio conseguiu derrubar. Apoiei a cabeça no ombro de Layton e suspirei satisfeita quando a dele descansou sobre a minha. — Meu Deus — murmurei. — Que saudade de você, Lay. Ele beijou minha cabeça. — Também senti saudade de você, querida. Aninhada junto a ele, ouvi os outros conversando sobre coisas corriqueiras. Fazia questão de não olhar para Kale, que estava na outra ponta do sofá, bem longe de mim. Mas não precisava olhar para saber que ele estava lá. Podia sentir sua presença. Sempre sentia quando ele estava por perto; era como se meu corpo tivesse um sexto sentido projetado especificamente para ele. Olhei para a porta da sala de estar quando a loira e sua amiga morena, as duas que abriram a porta para mim quando cheguei à casa dos meus pais, saíram e a fecharam. — Quem são? — perguntei, achando bizarro que duas desconhecidas andassem pela casa como se ninguém tivesse nada com isso. Layton olhou para mim e disse: — A morena é Samantha Wright, a loira é Ally Day. Eu conhecia o segundo nome, tinha certeza disso. Pensei por um minuto, e então, como um estalar de dedos, o nome fez sentido. Pisquei e olhei em volta, atordoada. — Ally Day... Aquela Ally Day que tinha uma amiga cruel e me convenceu de que eu era gorda e feia? Essa Ally Day? Todo mundo parou e olhou para mim. — As pessoas mudam, Lane — Layton murmurou sem deixar de me abraçar, como se tivesse receio de que eu saísse correndo. — Ela não é mais aquela menina cruel. E isso devia ser reconfortante? Engoli o nó que se formou em minha garganta.

— Você não sofreu o que eu sofri por causa dela e de Anna O’Leary — respondi, tentando manter a compostura. — Fui insegura por muito tempo por causa dessas duas. Sabe quantas vezes quis ter uma aparência diferente, só para poder me sentir como uma menina comum? A resposta foi o silêncio, e eu cerrei os punhos numa reação de fúria. — O que ela estava fazendo aqui? — perguntei, irritada por terem deixado aquela garota entrar em casa depois de todo sofrimento causado. Minha avó suspirou. — Ela trabalha para mim no café. Perplexa a ponto de ficar sem fala, não conseguia superar a incredulidade com o que ouvia. — Lane — minha avó chamou quando fiquei olhando para ela sem reagir. — Tudo bem? Não consegui pensar em uma resposta que não me rendesse um tapa na cabeça. — Está recrutando seus funcionários nas forças do mal? — disparei com um olhar gelado. — Legal, vó, muito legal. Minha avó ficou em silêncio, carrancuda, e isso me deu tempo para pensar. Era inacreditável que eu não tivesse reconhecido Ally logo de cara. A última vez que a vira foi quando saímos do ensino médio, quase uma década atrás. Ouvi dizer que ela havia se mudado para Londres, mas era óbvio que estava novamente em York e trabalhando no café da minha avó! Eu adorava aquele café, e agora ele estaria eternamente arruinado para mim. — Eu conheço a morena? — perguntei, tensa. — Sim — Lochlan respondeu com um tom sarcástico. — Ela era da sua turma na escola, mas vocês nunca andaram juntas. Ela também trabalha no café da vovó. As duas são nossas amigas.

Eu não conseguia lembrar de nenhuma Samantha Wright, por isso não perdi tempo com ela; meu foco era Ally Day, a miserável. — Não acredito que todos vocês são amigos da Ally Day. Também convidam Anna O’Leary para tomar chá nos fins de semana? — perguntei com ironia. Meu pai riu. — Você parece criança, Lane. Ele estava certo; eu agia como uma criança mimada e rude. Era impróprio e desnecessário, mas eu estava magoada por eles terem esquecido o que Ally tinha feito comigo. Todos tinham visto o que passei por causa dela; não entendia como conseguiam simplesmente passar por cima disso. Olhei para ele. — Que bom que só tem que me aguentar por alguns dias, não é? Era um golpe baixo jogar minha partida na cara dele logo depois de chegar, mas não consegui me controlar. Falei antes de poder me conter. — Como assim, alguns dias? — minha mãe se irritou, falando pela primeira vez desde que nos abraçamos no salão. — Quando você vai embora? Evitei olhar diretamente para ela quando murmurei: — Domingo à noite. — Lane! — minha família protestou em coro. Acho que ultrapassamos o estágio das cortesias. — Eu tenho que voltar — falei, tentando me defender. — Tenho que trabalhar! — Você é editora freelancer — Lochlan grunhiu, praticamente incapaz de continuar sentado no sofá. — Pode trabalhar de qualquer lugar, se tiver acesso à internet! Não consegui pensar em nenhuma resposta, porque ele estava certo, então fiquei quieta.

— Lane — minha avó chamou. — Cozinha. Agora. Eu a vi ficar de pé e sair da sala de estar, vi seu corpo ficar mais tenso a cada passo. — Droga — resmunguei, mas me levantei e a segui de olhos baixos para a cozinha. Era como se eu fosse pequena de novo e esperasse uma bronca. Entrei na cozinha e vi que ela já estava sentada à mesa, por isso sentei diante dela. Juntei as mãos sobre a mesa e fiquei olhando para elas. — Você é minha neta, e amo você com todo meu coração — vovó começou —, mas às vezes queria bater com a vara do bom senso na sua cabeça. Minha avó era sempre direta. — Desculpa — respondi, esperando que isso servisse para acalmá-la. — Pedir desculpas não é suficiente. — Ela baixou a voz. — Meu filho morreu, Lane. Seu tio morreu... e você quer ir embora um dia depois do enterro? Essa não é minha neta... ela não faria isso. Sua neta morreu há muito tempo, provocou uma voz cruel em minha cabeça. Uma dor intensa encheu meu peito. Olhei para minha avó antes de desviar o olhar rapidamente de seu rosto envelhecido, mas ainda belo. Via meu tio Harry quando olhava para ela; os dois tinham os mesmos olhos azuis, faces altas e nariz arrebitado. Meus irmãos e eu herdamos os mesmos traços. — Não posso ficar aqui — murmurei e olhei de novo para ela. — Você sabe por quê. Minha avó balançou a cabeça, e vi o desapontamento em seu rosto. — Isso não é o bastante — ela comentou. — Precisa agir como a mulher de vinte e seis anos que é, deixar de lado suas dificuldades com Kale e se concentrar em Harry. Ele

não merece ser posto de lado, Lane. Você sabe disso melhor que ninguém. Assim que parei para pensar no que minha avó tinha dito, me senti muito mal. Merecia mesmo levar com a vara do bom senso na cabeça. Como eu podia ter pensado que ir embora imediatamente seria uma boa ideia para alguém? Minha família ficaria arrasada, e eu também. Não tinha como ficar e permanecer sã, mas também não podia ir embora sem perder a sanidade, não tão depressa depois do funeral de meu tio. Eu não ficaria bem de jeito nenhum, mas não partir preservaria minha consciência. — Eu vou... você tem razão — reconheci. — Tio Harry merece mais que uma visita rápida. Vou ficar por mais um dia. E vou ajudar no que for necessário. Prometo. Minha avó segurou minhas mãos, massageando meus dedos. — Pode ajudar a sua mãe e a mim a esvaziarmos a casa dele depois de encontrarmos o advogado de Harry na segunda-feira — ela sugeriu, suspirando. — Temos muito que organizar, mas antes vamos ouvir o testamento de Harry. Só depois começaremos a limpeza. — Tio Harry deixou um testamento? — Sim, todos nós temos um, boba. Eu, não, pensei. Minha avó riu da minha cara. — Quando falo “todos nós”, me refiro a Harry, seus pais e eu... porque somos velhos e podemos bater as botas a qualquer momento. — Vó! Não fala assim. Vocês não vão a lugar nenhum. Eu esperava que não, pelo menos. Meu coração não suportaria se mais alguém morresse. Minha avó sorriu, amorosa, e afagou minhas mãos mais uma vez. Ela sempre fazia isso quando eu era mais nova, e

o efeito ainda me acalmava como antes. Era bom saber que isso não havia mudado. Continuei em silêncio por alguns momentos, mas quando olhei para minha avó, vi que ela me encarava. — Que foi? — perguntei. — Quero você em casa em todos os Natais. Não era uma pergunta. Não era um pedido. Era uma ordem. — Vovó... — Sem desculpas — ela me interrompeu com tom sério. — Quero sua palavra de que vai vir para casa todo ano no Natal. Não vou suportar se minha neta morar do outro lado do mundo e eu nunca puder vê-la. Meu coração não suporta mais a dor e a saudade. Suspirei, desanimada. — Ai, vó! Seu coração vai bem? — perguntei, apavorada. — Meu coração está ótimo — ela garantiu —, mas não estará no futuro, a menos que você volte para casa todo ano no Natal. Olhei para minha avó por um momento, depois a encarei furiosa. — Está... me fazendo sentir culpa e tentando me obrigar a voltar para casa todo Natal insinuando que pode ter um infarto? Ela já havia tentando me fazer sentir culpada em relação à sua idade antes, quando quis que eu voltasse de Nova York, porém quando não deu certo, ela parou de falar comigo. Agora ela subia a aposta. Eu não sabia se ficava furiosa ou impressionada. Minha avó olhou para as próprias unhas e deu de ombros. — Eu não diria que a estou ameaçando, não exatamente. Só estou dizendo que, se continuar afastada de sua família e eu tiver um infarto e morrer, a culpa vai ser sua.

Ela está fazendo de novo, pensei. Essa coisa toda do convencimento. — Vovó! — Sei que é uma possibilidade horrível — ela disse, balançando a cabeça para cima e para baixo para enfatizar sua posição. Que velhinha perversa! — Não acredito — protestei, brava. — Não sei nem como responder a esse tipo de coisa. Minha avó sorriu, diabólica. — Diga que vem para casa todo ano no Natal. Sou parente de uma vigarista. Bufei. — Não pode estar falando sério. — Estou — ela insistiu, e todos os traços de humor sumiram de sua expressão. Nós nos encaramos por dez segundos, antes de eu levantar as duas mãos. — Tudo bem! — gemi, derrotada. — Eu volto para o Natal. — Todos os anos? — Todos os anos. — Promete? Rangi os dentes. — Prometo. Ela bateu palmas com alegria. — Que bom que tomou essa decisão. É. Tomei. — Tenho a sensação de ter sido coagida — resmunguei e balancei a cabeça. — Você é capaz de convencer o Diabo de que ele é Deus. — Quando olhei de novo para minha avó, os lábios dela tremiam. — O que é agora? Ela deu de ombros.

— Nada. Não era “nada”; ela estava sorrindo para mim, e isso queria dizer alguma coisa. — Tem certeza? — insisti. Minha avó assentiu, mas não disse nada. Que mulher difícil. Nós duas olhamos para a porta da cozinha quando meu pai, meus irmãos e Kale entraram falando em pedir comida de um restaurante do bairro, porque nenhum deles queria cozinhar. Só percebi como estava faminta quando ouvi a conversa sobre comida. Não conseguia nem lembrar quando havia comido pela última vez. Uma hora e meia mais tarde, estava sentada à mesa da cozinha, mas agora tinha a barriga cheia de frango, batatas e um litro de Coca, pelo menos. Tinha comido tanto, que sentia que ia explodir. Depois da refeição, fomos todos para a sala de estar e sentamos para digerir a refeição com conforto. — E aí, quando vai voltar para Nova York? — Lochlan me perguntou depois de alguns minutos de conversa amena. Percebi que ele falou “Nova York”, não “casa”. Não olhei para ele, nem para Layton ou Kale quando respondi: — Não sei ainda, mas não muito em breve. Vou ajudar a mamãe e a vovó a esvaziar a casa do Harry depois da leitura do testamento na segunda-feira. Não podia esquecer de reagendar os voos e prolongar as reservas no hotel. Lochlan não falou nada. Layton disse: — Ah, isso é ótimo. Sim. Ótimo. — É — concordei. Senti o olhar de Lochlan em mim.

— E quando for embora dessa vez, quando tempo vai passar longe? Dez anos? Vinte? Só vai voltar quando um de nós morrer? Eu não me abalei com a provocação. — Loch — Layton interferiu —, não começa. Hoje, não. Fala sério, ela acabou de voltar para casa. Eu era grata a Layton por ter contido Lochlan antes de ele ter tido uma chance de me atacar, mas olhei para a expressão intensa de meu irmão, e em vez de ficar quieta, disse: — Eu volto no fim do ano. Lochlan me olhou com os olhos muito abertos, evidentemente chocado com a resposta. Kale e Layton também olhavam para mim de boca aberta. Estavam surpresos. Notei que essa era a primeira emoção que eu via em Kale desde que cheguei. O antigo Kale costumava me contar uma história só com as emoções constantemente expostas em seu rosto, mas não esse Kale com ar de jogador de pôquer. O que aconteceu com você? — Para o Natal? — Layton murmurou depois de um momento sem piscar. Dei de ombros, tentando diminuir a importância que eles davam à decisão. Sim, era importante, mas eu não queria que eles agissem como se fosse. — Sim. Vovó me fez prometer vir para casa todos os anos no Natal. — Balancei a cabeça com irritação. — Ela disse que a saudade a estava empurrando para um infarto, e que se ela morresse, a culpa seria minha. O silêncio se estendeu por um momento, depois as gargalhadas masculinas encheram a sala de estar. Eu me concentrei em Kale enquanto ele ria, e me senti enganada quando o riso não alcançou seus olhos e pareceu forçado. Descartei tais observações e resmunguei:

— Não tem graça, ela me fez sentir muito culpada. Vamos enterrar Harry amanhã, e ela decide vir com essa para cima de mim? As risadas relaxadas continuaram, e eu tentei evitar o sorriso que puxava um canto de minha boca. — Foi genial, você tem que reconhecer — disse Kale. Eu odiava que ele falasse comigo; as coisas seriam bem mais fáceis se ele me deixasse em paz. Doeria, seria uma dor horrível, se ele me ignorasse, mas essa dor não seria nada comparada àquela que eu sentia no momento. Eu não entendia como ele podia falar comigo como se não tivesse me destruído. Tchau, Laney Baby, a voz ecoou em minha cabeça. Empurrei para longe a lembrança que tentava roubar minha atenção. Respondi sem olhar diretamente para ele. — Ela concordaria com você. Nesse momento, está bem satisfeita com o que fez. Kale riu baixinho, e me odiei por achar o som fofo. Engoli a dor que sentia e olhei para minha perna, que estava vibrando. Enfiei a mão no bolso frontal do jeans, peguei o iPhone, que estava tocando, e vi “Roman” iluminado no centro da tela. Merda, pensei. Eu esqueci Roman completamente, ele vai me matar. — Com licença, preciso de uns minutos — disse aos rapazes, depois levantei e fui para o corredor, fechando a porta da sala de estar ao sair. — Oi, Ro, e aí? — atendi, falando em voz baixa. A exclamação do outro lado foi dramática e esperada. — Oi, Ro, e aí?! Está falando sério, Lane? — gritou meu amigo difícil de lidar. — Só isso? Empurrei para trás algumas mechas de cabelo que escaparam da trança.

— Desculpa. Os últimos dias foram uma loucura. Eu devia ter avisado que ia passar uns dias fora. — Não fala comigo como se tivesse ido passar o fim de semana em Cali, Lane! Você está na Inglaterra. I-N-G-L-A-TE-R-R-A. Não consegui conter a risadinha. — Eu sei que estou na Inglaterra, e sei soletrar, Ro. Nasci aqui, sabe? — Lane! — ele grunhiu. — Estou surtando aqui. Estou maluco de preocupação com você. Você acorda e sai do país sem nem mandar uma mensagem para mim. Nenhum email. Nenhum bilhete. Nada. Você podia ter morrido! Eu não saberia de nada se o dono do seu apartamento não tivesse me contado para onde você foi. Já ia chamar a polícia e registrar uma ocorrência de desaparecimento! Fechei os olhos e franzi a testa quando a culpa me invadiu. Roman Grace era meu melhor... não, meu único amigo. Eu o conheci há cinco anos e meio em um café no centro de Manhattan, quando ele me viu lendo um romance apimentado, e nos conectamos imediatamente por causa do nosso amor pelo Sr. Grey. Eu morava em Nova York havia seis meses quando isso aconteceu, e fico constrangida por dizer que mal conhecia a cidade. Tornei-me uma pessoa fechada com a mudança, e não tive coragem para explorar. Gostava de Nova York, mas não diria que vivia enquanto morava lá; apenas existia em uma cidade que nunca dorme. Eu era uma sombra cinza em uma tela colorida. Roman ajudou a colorir as coisas para mim. Ele me deu um pouco de vida social por meio de sua vida, mas mesmo com sua personalidade vibrante, eu não estava feliz. Também não estava triste. Estava só... entorpecida. Estava contente por trabalhar e ler um livro atrás do outro nas horas vagas, mas depois que conheci Roman, ele fez questão de resolver esse problema. Roman me levou a

bares, boates e teatros. Ele até me apresentou ao seu clube do livro e fez de mim um membro oficial. É claro, eu era a única mulher hétero quando estava com Roman e seus amigos, mas era renovador. Ele era renovador. Trazia algo de novo à minha vida introvertida, e eu o adorava por isso. — Desculpa, Ro. Eu ia ligar para você quando as coisas estivessem menos caóticas, juro. Cheguei há algumas horas. Passar pelo aeroporto foi um pesadelo. Roman suspirou irritado. — Não quero saber do aeroporto, quero saber de você. Como você está, meu bem? Seu senhorio comentou que você teve que viajar às pressas. Sinto muito por seu tio. Sei quanto era próxima dele. Olhei para meus pés. — Estou bem — sussurrei. — Esse discurso pode funcionar com sua família, mas eu te conheço, sei que é mentira. Fiquei feliz quando uma risadinha saiu da minha boca. — Ok, não estou bem, mas também não estou desabando. Não agora, pelo menos. Roman ficou em silêncio por um momento. — Já o viu? Olhei para a porta fechada da sala onde minha mãe e minha avó velavam o corpo de meu tio. Encostei na parede do corredor e ouvi as duas conversando baixinho. Ajeitei os óculos, que escorregavam pelo nariz, e disse: — Sim, eu vi. Ele está ótimo. Como se estivesse dormindo. Roman bufou. — Estou falando de Kale. Parei ao ouvir o nome dele e olhei para a porta da sala de estar. Relaxei quando nada aconteceu. Ele continuava lá dentro com meus irmãos. Balancei a cabeça e xinguei Roman mentalmente por ter falado nele. Ele arrancou Kale e

nossa história de mim dois anos atrás, em uma noite de bebedeira. Sabe tudo que aconteceu entre nós. Cada coisinha. — Sim, eu vi Kale — respondi em voz baixa. Roman assobiou. — Como foi esse encontro? Suspirei. — Surpreendentemente civilizado. Ele está agindo como se nada tivesse acontecido. Me cumprimentou como uma velha amiga que não via há muito tempo. — Isso é ruim? Quero dizer, não vai querer uma situação constrangedora enquanto estiver aí revendo seu passado, vai? Vou, pensei e balancei a cabeça. Caramba, não, eu não conseguiria lidar com isso. É só um pouco... muito perturbador que ele esteja agindo como se não houvesse nada entre nós. Nem mesmo desconforto. Ele está completamente à vontade comigo, se comportando como antes de tudo azedar entre nós, o que é estranho, porque a última vez em que vi Kale... foi péssimo. Houve declarações de amor não correspondido, lágrimas e muita gritaria. — Lane? — A voz de Roman interrompeu meus pensamentos. — Ainda está aí? Pigarreei. — Hum, sim, estou, e não, não quero nenhum constrangimento. Roman ficou em silêncio por um momento e depois disse: — Ele continua igual? Ou engordou e ficou careca? Estou rezando por isso. Minha risada foi inesperada. — Infelizmente, ele continua igual. — Baixei a voz para cochichar. — Ele está maravilhoso, e agora frequenta a academia com meus irmãos. Eles estavam conversando à

mesa do jantar sobre mudar o treino, e depois me contaram que agora levam a sério essa coisa de saúde e exercícios. Kale sempre teve um porte saudável. Nunca teve braços enormes ou ombros largos, mas agora tinha tudo isso e mais. Seus braços pareciam esculpidos, como o peito, e até as coxas estavam mais grossas. Não vi o peito nu, mas podia imaginar o abdômen definido embaixo da camiseta e do suéter. — Droga, isso complica as coisas? — Roman perguntou. Suspirei e deixei os ombros caírem. — Sim e não. Seria igualmente difícil, mesmo com outra aparência, porque é o Kale. Mas o fato de ele ser mais gostoso do que consigo descrever está... dificultando tudo. Roman riu. — Coitadinha da sua vagina, deve estar tremendo. Cobri a boca com a mão para sufocar a gargalhada. Porra, Roman! — Vou te espancar quando eu voltar — avisei, mas continuava rindo. Era exatamente por isso que eu amava Roman: ele sempre conseguia me animar, por mais que as sombras tentassem me impedir de ver a luz da vida. Tinha conseguido ressuscitar meu antigo senso de humor, o que não era pouca coisa. Roman riu alegremente. — E quando isso vai acontecer? — Não sei — admiti. — Vou ficar aqui por um tempo, para ajudar a resolver tudo em relação às coisas do meu tio e para passar uns dias com a família. A tensão é grande, mas senti saudade deles. Não tinha percebido quanto até rever todo mundo. — É claro que sim, é sua família — Roman concordou com tom sereno. — Olha, vou deixar você voltar para suas coisas. Não vou te incomodar enquanto estiver com sua

família, mas se precisar de mim para qualquer coisa, é só ligar. Ok? Era por isso que eu o amava. Ele era uma das pessoas mais atenciosas e cheias de consideração que já conheci. — Tudo bem — respondi e balancei a cabeça para concordar, embora ele não pudesse me ver. — A gente se vê logo, meu bem. Vou te buscar no aeroporto; é só me mandar a data e o número do voo quando decidir voltar. — Combinado. — Assenti de novo. — Tchau, amorzinho. Aguenta firme! Te amo. Sorri e fechei os olhos. — Eu vou aguentar. Também te amo. Tchau. A ligação foi interrompida, e eu esperei um minuto antes de abrir os olhos. Depois fui até a cozinha, onde encontrei meu pai começando a lavar a louça do jantar. Imediatamente me senti indelicada por não ter cuidado da minha própria louça, por isso arregacei as mangas e me preparei para ajudar, mas quando me viu, meu pai balançou a cabeça. — Senta — ele disse e acenou com a cabeça na direção da mesa. — Nós cuidamos disso. E ele chamou meus irmãos e Kale para ajudar com a arrumação. Eles entraram na cozinha sem reclamar e começaram a trabalhar. Fiquei sentada à mesa, e minha avó entrou e sentou à minha frente. Ela me encarou, e eu mantive o contato visual. — Você tem namorado? — ela me perguntou do nada, levantando uma sobrancelha. Quis revirar os olhos quando meu pai e meus irmãos ficaram quietos perto da pia. Lochlan passava os pratos sujos para Layton, que os lavava e entregava para meu pai, que enxaguava e os entregava a Kale, o responsável por

secar tudo. Consegui ver a imobilidade, os músculos tensos, a atenção dirigida para a conversa entre mim e minha avó. — Não — respondi. — Não tenho tempo para namorar. Era mentira. Eu tinha muito tempo para um namorado. Só não tinha o namorado. Lochlan olhou para trás. — Quem é Roman, então? Os ombros de Kale ficaram tensos, e ele começou a secar os pratos com força e velocidade desnecessárias. Continuei olhando para Lochlan. — Como sabe que existe um Roman? — perguntei. Meu irmão deu de ombros. — Ouvi você falar o nome dele ao telefone no corredor. Também ouvi você dizer que o amava. Que bisbilhoteiro do inferno, resmunguei em pensamento. Queria olhar feio para ele, mas mantive a calma e respondi honestamente. — Roman é meu amigo, e antes que você pergunte, não, ele não é nada mais que isso. — Minha boca tremeu. — Ele joga no outro time. Minha avó suspirou, e os outros relaxaram. Balancei a cabeça para os quatro; estavam agindo como se eu tivesse dezesseis anos de novo e falasse sobre um garoto pela primeira vez. — Mas — acrescentei só para irritá-los — ele disse que seria pai do meu filho, se algum dia eu precisasse de esperma. Talvez eu aceite a oferta, porque ele é lindo. Pele cor de chocolate, queixo forte e olhos sempre brilhantes. Acho que faríamos um bebê muito fofo. Minha avó gargalhou, enquanto Layton balançou a cabeça e sorriu. Kale olhou para mim, e nesse momento eu quis saber o que ele estava pensando, porque me olhava com uma intensidade que me fez juntar os joelhos. Desviei o

olhar quando meu pai fez um barulhinho de estalo com a língua. Ele e Lochlan não gostavam do meu senso de humor. — Não tem graça, Lane — Lochlan resmungou. Apontei para nossa avó, que ainda ria. — Ela discorda. Minha avó gargalhou alto, e isso me fez sorrir. Lochlan virou de costas para mim e balançou a cabeça; não consegui evitar e fiz o mesmo gesto para ele. Lochlan era um pé no saco, mas só porque me amava muito. Ele se sentia responsável por mim por eu ser a caçula da família, e por isso era mais superprotetor que Layton. Às vezes, nem nosso pai era tão severo. Lochlan era o único motivo pelo qual nunca tive um namorado na adolescência. Ele nunca admitiu, mas eu sabia que havia ameaçado Blake Cunning, que me convidou para sair quando eu tinha dezesseis anos. No dia seguinte, Blake apareceu com um olho roxo e disse que não achava uma boa ideia sairmos juntos, depois se afastou de mim sem olhar para trás. — Lochlan? Ele olhou para mim. — Que é? Olhei diretamente para ele e disse: — Te amo. Ele me encarou por um momento antes de virar e continuar passando os pratos sujos para Layton. Layton olhou para nosso irmão, esperando que ele respondesse, e me surpreendi quando Kale se inclinou e disse: — Fala alguma coisa para ela. Agora. Fiquei ainda mais surpresa quando Lochlan obedeceu à ordem de Kale. — Também te amo — ele respondeu em voz baixa. Olhei para minha avó, que sorria para mim, e correspondi ao sorriso. Ela tirou um tricô de uma sacola ao lado da

mesa, e eu fiz uma careta. — Não acredito que continua tricotando. Ela sorriu, diabólica. — Quer me ajudar a fazer um...? — Não — interrompi, assustada. — De jeito nenhum. Tenho pesadelos com tricô até hoje. Já falei, prefiro morrer a pegar em agulhas e lã de novo. Todo mundo riu. Olhei em volta, e vi que o único rosto sorridente que faltava ali era o da minha mãe — e do meu tio, é claro. Suspirei e relaxei na cadeira. Tinha de deixar as coisas em paz com minha família. Tinha de fazer tudo voltar a ser como era antes de ir embora, antes de a vida ir para a sarjeta. Eles não mereciam ser bloqueados só porque as coisas com Kale não aconteceram como eu queria. Eles mereciam um tratamento melhor do que eu tinha dado nos últimos seis anos, e cabia a mim, é claro, melhorar a situação toda. Só esperava que os relacionamentos que abandonei ainda pudessem ser reparados. Todos eles.

— Kale — sussurrei e depois prendi o fôlego para reduzir o barulho todo ao mínimo. Não conseguia dormir. A semana inteira, desde que voltei de uma viagem de compras à Nova York com minha mãe e minha avó, tive dificuldades para dormir. Eu me acostumara rapidamente às luzes brilhantes e aos ruídos de uma cidade que nunca dorme, e descobri que o silêncio de York gritava mais alto do que qualquer barulho. Mas esta noite não era a quietude ensurdecedora ou o fuso horário que me mantinham acordada. Era algo muito diferente. Era o motivo para tentar ficar completamente quieta enquanto chamava Kale. Tinha muito medo de os monstros me ouvirem e virem me pegar antes de ele acordar. Continuava olhando para o meu guarda-roupa aberto enquanto abaixava o braço às cegas e empurrava o ombro de Kale com toda força que tinha. Ele dormia em seu colchão inflável no chão do meu quarto, como sempre fazia quando ficava em casa, e era como se o colchão fosse sua mobília dentro do meu quarto.

Provavelmente essa seria a última vez que ele teria permissão para dormir ali. Meu pai disse que, agora que tinha treze anos, Kale teria que ir dormir no quarto dos meus irmãos quando passasse a noite em casa, o que causou grande alegria aos rapazes. Soltei o ar com um suspiro frustrado quando ele resmungou dormindo, como se estivesse se recusando a acordar. — Kale! — insisti, e minha emoção transpareceu na voz. Ele gemeu e virou no colchão, tentando se afastar de mim. — Que é, Lane? Estou dormindo. A porta do guarda-roupa rangeu, e eu chorei baixinho. De repente Kale pulou do colchão para minha cama. — Que foi? — perguntou, completamente acordado. Eu o abracei. — O guarda-roupa... está aberto. Eles vão me pegar. Kale soltou o ar ofegante, mas continuou me abraçando. Pôs as mãos nas minhas costas e massageou para baixo e para cima. O gesto me acalmou um pouco, mas não o suficiente para largá-lo. — A tranca da porta está quebrada — Kale murmurou em voz baixa para me acalmar. — Por isso ela abre sozinha... você sabe. Já conversamos sobre isso, lembra? Eu me recusava a acreditar nessa história. Se fosse verdade, por que a porta só decidia abrir magicamente no meio da noite? Por que não durante o dia, quando estava claro e não era assustador? Eu vou dizer por quê: é porque não tem porcaria de tranca quebrada nenhuma. Eram os monstros horríveis que moravam dentro do meu guarda-roupa e abriam a porta à noite. Eles queriam me pegar. — São eles — murmurei no peito de Kale. — Eu sei que são.

Ele suspirou, mas riu baixinho. — Não vou discutir com você. Vai mais para lá, eu durmo em cima das cobertas. Se eles vierem, vão ter que brigar comigo para te pegar. Gemi, horrorizada. — Não! E se eles levarem você? Eles não conseguiriam tirar Kale de mim. Ninguém conseguiria. Eu não ia deixar. — Não vou a lugar nenhum. Agora vai mais para lá. É muito tarde, e eu preciso acordar cedo para o jogo de futebol amanhã. Fiz como Kale dizia. Fui para o outro lado da cama e estremeci, porque o lençol estava gelado. Kale deitou ao meu lado, e achei que ele virar de costas para mim para poder vigiar o guarda-roupa, mas não. Ele ficou deitado de barriga para cima e usou a mão esquerda para me puxar para perto. Eu estava de olhos bem abertos quando ele acomodou minha cabeça em seu ombro. Seu braço envolveu meu corpo, e a mão descansou no meu quadril. No. Quadril. Comecei a ofegar, e senti que ficava muito vermelha. Podia sentir o calor subindo pelo pescoço e se espalhando pelas bochechas como um incêndio. Que diabo estava acontecendo? — Tudo bem? — Kale murmurou e depois bocejou. Tossi para limpar a garganta. — Sim... só com medo dos monstros. Era mentira; os monstros não me incomodavam mais. Eu estava surtando por me sentir estranha deitada desse jeito com Kale. Ele estava na minha cama, e eu estava deitada em cima dele. E gostava disso. Muito. E isso era muito estranho, porque Kale era como meu irmão, mas eu não sentia a barriga formigar quando deitava com meus irmãos de verdade, então por que era assim com Kale?

Estou pegando uma gripe forte, pensei. Só pode ser isso. — Lane, tem certeza de que está bem? — Kale insistiu, preocupado. — Sua respiração está muito acelerada. — Sim, estou bem, como eu disse... só com medo dos monstros. Ele suspirou. — Monstros não existem, Lane. Falei para você não dar atenção para aqueles idiotas da sua sala na escola. Grunhi e sentei para poder olhar para Kale. Meu quarto estava escuro, mas a lâmpada noturna plugada à tomada ajudava a clarear um pouco o espaço. Era o suficiente para eu conseguir ver seu rosto. Olhei para os traços cansados, estudei sua expressão. — Mas e se eles estiverem certos? E se os monstros saírem do guarda-roupa à noite para me raptar? E se me comerem e cuspirem meus ossos? Isso seria horrível, Kale. Eu nunca sobreviveria. Franzi a testa quando risadas silenciosas o sacudiram. — Não estou brincando! — avisei. Ele riu mais ainda e teve de cobrir a boca com a mão para abafar o barulho. Eu o empurrei. — Você é horrível! Deitei e virei de costas para ele. Puxei o edredom e me cobri completamente, mas a escuridão me apavorava, e eu descobri a cabeça, deixando todo o restante coberto. Kale ainda ria quando virou para mim e me agarrou por cima da coberta. Bati nas mãos dele e chutei suas pernas, e ele achou tudo muito engraçado. Eu estava para explodir de raiva, quando Kale me segurou e puxou contra o corpo. Ele me abraçou e prendeu meus braços, imobilizando minhas pernas com as dele. Senti seu peito nu pressionado contra minhas costas e a respiração na minha nuca.

— Kale — murmurei. — O que está fazendo? Eu sentia alguma coisa e não sabia ao certo o que era. Tinha total consciência de que era Kale me abraçando, e tinha consciência de que gostava daquilo. Gostava de um jeito que não entendia bem. — Estou me protegendo. — Ele riu. — Você ia explodir e me bater. Ele estava me provocando, rindo de propósito, então. — Você é um idiota — resmunguei. — Talvez, mas sou um idiota que vai te proteger de todo mal. Especialmente dos monstros maus. Hã? — Como? — murmurei. Kale me soltou e saiu da cama. Fiquei chocada com quanto queria que ele ficasse, mas sentia que era errado, porque Kale era meu melhor amigo, como meu irmão, e eu sabia que não devia querer que ele me abraçasse... Não de um jeito que fazia minha pele se arrepiar e a barriga doer. Balancei a cabeça para afastar os pensamentos repentinos e estranhos e prestar atenção a Kale, que se aproximava do meu guarda-roupa. Assustada, agarrei o edredom. — Toma cuidado! — falei, aflita. Ele olhou para trás, sorriu para mim, e eu quase morri, porque ele era muito... fofo. Ai, meu Deus. Eu achava o Kale fofo. Meu Kale. K-A-L-E. — O que está fazendo? — perguntei, sentindo o coração bater acelerado. Ele virou e apontou o guarda-roupa. — Vou ficar de guarda até você dormir, ou até o sol nascer. O que acontecer primeiro. Não precisa se preocupar. Eu vou te proteger. Lambi os lábios, que de repente estavam secos.

— Você... faria isso de verdade? Por mim? Kale enfiou a mão no guarda-roupa e pegou meu taco de beisebol, depois fechou a porta, se apoiou nela e piscou para mim. — Só por você. Borboletas explodiram na minha barriga, e fiquei atordoada com a euforia. — Não sei o que... Obrigada, Kale — sussurrei, completamente fascinada por ele. Ele sorriu para mim mais uma vez e mostrou o taco de beisebol. — Não precisa agradecer. Não posso deixar os monstros te raptarem, posso? Puxei o edredom sobre o rosto para esconder meu sorriso. — Acho que não — murmurei. — Pode ter certeza. Agora vai dormir, Laney Baby. Eu vou te proteger. — Promete? — murmurei. — Prometo te proteger sempre, boba. Olhei para ele e lembrei de quando perguntei para o meu tio Harry como ele sabia que amava tia Teresa, e ele descreveu o que sentia. Borboletas na barriga, coração acelerado quando a via. Ele disse que ela fazia seu coração feliz, por isso batia tão depressa quando minha tia estava por perto, como se cantasse para ela. O que ele sentia era o que eu sentia naquele momento, quando olhava para Kale. Meu coração estava cantando para ele. Era um pensamento assustador, mas naquele instante eu entendi, sem nenhuma dúvida, embora não soubesse exatamente que emoção era de verdade, que tinha me apaixonado por Kale Hunt, e isso me deixou apavorada.

— O que está fazendo aqui, Lane? Dei um pulinho e olhei para trás quando a voz de meu pai interrompeu meus pensamentos, me trazendo de volta à sombria realidade. Não respondi imediatamente, virei e olhei novamente para o buraco cavado recentemente. — Precisava pensar, por isso decidi andar um pouco — falei. Quando ficou tarde e a casa dos meus pais ficou muito silenciosa, meus pensamentos se tornaram estridentes de repente, e eu decidi sair para caminhar. Meus pés me levaram ao túmulo de tia Teresa e ao futuro túmulo do tio Harry. Olhei para a cova que, no dia seguinte, acolheria meu tio até o fim dos tempos, e aquilo me deixou arrasada. — Você assustou todo mundo. As pessoas saíram para te procurar. Surpresa, olhei para meu pai quando ele parou ao meu lado. — Desculpa, não pensei em avisar ninguém que ia sair. Nunca preciso me preocupar com isso em Nova York. Acho

que esqueci. Meu pai mandou uma mensagem pelo celular, guardou o telefone, depois suspirou e apoiou um braço sobre meus ombros. — Que bom que está bem. Eu me sentia mal, mas como já havia me desculpado, fiquei quieta. — Já que estamos sozinhos, quero dizer uma coisa que devia ter falado há muito tempo. — Tudo bem — respondi, surpresa. — Quero pedir desculpas pelo que falei no dia em que você anunciou que ia embora. Eu nunca devia ter dito aquilo, falei sem pensar. Passei anos me arrependendo, mas fui teimoso demais para reconhecer. Não me surpreendi com o pedido de desculpas de meu pai. Sabia que ele estava movido por mágoa e raiva na época. — Tudo bem — respondi. — Desculpei assim que você falou. Os ombros de meu pai caíram um pouco. — Senti sua falta, meu amor. Engoli o nó que se formou na garganta. — Também senti sua falta, pai. Sei que não parece, mas senti. Eu só... É muito difícil estar aqui. — Eu sei, meu bem, eu sei. Sabia mesmo? — Sabe? — Olhei para ele. — É claro. Acha que Kale não teve nenhum problema por ter te convencido a sair do país? — Como assim? Do que está falando? — perguntei, curiosa. Meu pai sorriu.

— Estou falando de ter dado uma surra em um homem que é como um filho para mim. Não contive um gritinho alarmado. — Você não fez isso! Meu pai deu de ombros. — Fiz, mas parei antes de provocar consequências mais graves. Balancei a cabeça. — Bater no Kale é grave. — Você foi embora por causa dele, isso é muito mais grave. Olhei para a terra na minha frente. — É complicado, pai. — O amor sempre é. Forcei um sorriso. — Como se eu não soubesse. Meu pai afagou meu ombro. — Eu pedi desculpas a ele, não se preocupe. — Quando? — Hum... há umas seis semanas. Arregalei os olhos e cobri a boca com a mão. — Está falando sério? — Não. — Meu pai riu quando abaixei a mão. — Pedi desculpas uns seis meses depois. Foi muito difícil perdoá-lo. Você é minha filha, e saber que saiu de casa por causa dele, em parte, me magoou de verdade. Passei um bom tempo com ódio de Kale por causa disso. Meu riso secou, mas os olhos se encheram de lágrimas. — Não queria que ninguém odiasse ninguém — murmurei e passei a língua pelos lábios secos. Meu pai suspirou. — Eu sei, mas às vezes as emoções são incontroláveis, como você sabe.

Sabia muito bem, por isso assenti. — Ele foi muito compreensivo quando me desculpei — meu pai continuou. — Na verdade, ele me julgou por pedir desculpas. Disse que merecia a surra que levou, que foi pouco. Mais uma surpresa. — Então por que não bateu mais nesse dia? — perguntei. Meu pai ficou em silêncio por um momento, depois disse: — Porque ele fez um ótimo trabalho se castigando. Tudo na vida dele mudou depois que você foi embora. Fechei os olhos com força. — Eu vou querer saber? — Não — meu pai respondeu imediatamente. — Você não quer saber, mas vai ter que saber para poder entender como as coisas são com ele agora. Isso me assustou. — Não entendi — falei. Meu pai ficou em silêncio por um bom tempo, mas depois segurou meu braço e me levou para longe do túmulo de minha tia. — Vem comigo, meu bem — ele disse. — Quero te mostrar uma pessoa. Ele quer me mostrar alguém em um cemitério? Andamos devagar, passando por túmulos e mais túmulos, de mãos dadas. — Aonde estamos indo? — perguntei, olhando para o cemitério escuro, sentindo um arrepio nos braços. — Você vai ver — meu pai respondeu em um tom solene. Assenti e mordi o lábio num gesto nervoso. — Pode conversar comigo enquanto andamos? De repente, estou com medo de ficar aqui — admiti. Meu pai me abraçou com mais força. — Não tenha medo. Estou com você.

— Eu sei, mas quero ouvir você falar. Senti falta da sua voz. Meu pai riu baixinho. — Sua mãe daria risada disso. Ela me ofereceu cem pratas para calar a boca na semana passada. Fica enjoada de me ouvir falar. — Ela só finge que fica — respondi, sorrindo. — Nesse caso, ela é uma ótima atriz — meu pai resumiu. Minha gargalhada encheu o espaço escuro do cemitério, e parei de rir tão depressa quando tinha começado. Parecia errado rir tão alto em um lugar onde tantos descansavam. — Como é Nova York? — meu pai perguntou, me pegando completamente de surpresa. Olhei em volta. — Não é certo falar assim em um cemitério, mas é viva. Cheia de vida, dia e noite. Nunca para. Ele olhou para mim. — Parece animado. Não era. — Pode ser — murmurei. — Mas não saio muito, para ser franca. A atividade constante não é para mim. Gosto da paz que tenho em meu apartamento e nos meus livros. Nova York não é exatamente meu lugar ideal para morar, muito menos envelhecer. Eu sabia que não devia ter dado essa informação a meu pai, mas era bom finalmente falar em voz alta e saber que era a mais pura verdade, não uma mentira inventada para agradar aos outros. Roman achava que eu amava Nova York, mas só porque quando estava com ele, eu compartilhava de seu ânimo com a vida. Ele não sabia que, quando estava sozinha, às vezes eu ia dormir torcendo para não acordar. — Por que não escolhe outro lugar, então? — meu pai perguntou, estudando o entorno enquanto andávamos.

Ele não mencionou que eu devia voltar para York. Dei de ombros. — Acho que é inútil mudar para outro lugar, esse sentimento é tristeza, pai. O ambiente em que estou não muda o que sinto. Ele assentiu e disse: — Não, mas você pode mudar o que sente. Lá vamos nós, suspirei por dentro. Forcei um sorrisinho. — Não posso mudar o que sinto enquanto não entender por que sinto o que sinto. — Ah, entendo. — Meu pai também sorriu. — Nesse caso, quando volta para casa? Puxei a mão do meu pai para fazê-lo parar de andar. — O quê? — perguntei. Ele me olhou com as sobrancelhas erguidas. — Seu problema começou em casa. Não vai conseguir resolvê-lo em outro lugar, porque as raízes do seu problema estão aqui. Ele mora aqui. Gemi. — Por que não pode só me dizer para superar e esquecer Kale? — Para que repetir o que você já disse a si mesma um milhão de vezes? Isso não vai mudar o que você sente. Encarei meu pai. — Quando se tornou tão filosófico? — No dia em que você me deixou. A resposta instantânea acabou comigo. — Desculpa, pai — murmurei. — Tudo bem. Apoiei a cabeça em seu peito. — Estar aqui é muito difícil. Ele me abraçou e beijou minha cabeça.

— Eu sei, meu bem, mas você sabia que não poderia ficar longe para sempre. Suspirei e o imitei, passando os braços em torno dele. — Ficar longe... esse era o plano. — Antes do que aconteceu com Harry? Balancei a cabeça encostada em seu peito. — Antes do que aconteceu com Harry. — Ele sempre disse que faria você voltar para casa. Mal sabia que estava certo. Meus olhos ficaram cheios de lágrimas. — Ele entendia que o que eu sentia por Kale não era uma paixão boba. Sabia que fiquei arrasada quando as coisas terminaram daquele jeito entre nós. E aí, depois de Lavender... Ele entendeu que eu precisava ir embora, depois que ela foi de encontro à bomba que Kale jogou. Por isso ele me ajudou. Provavelmente eu teria começado a desmoronar de novo sem Lavender, enquanto Kale e Drew começavam uma família e eu assistia a tudo de fora. Afastei a lembrança de Lavender e a de Kale me dizendo que teria um filho com outra mulher, mas sabia que, quando estivesse sozinha, reviveria esse dia como havia feito um milhão de vezes antes. — Era sobre isso que eu queria conversar com você — meu pai murmurou. Recuei e olhei para ele. — Como assim? — Estamos quase chegando. Ele segurou minha mão e voltou a andar. — Lamento se isso te incomoda — meu pai disse quando parou diante de um túmulo. A plaquinha de mármore com o urso de pelúcia foi a primeira coisa que vi. Segundos depois, meus olhos registraram os brinquedos esculpidos em pedra e as flores artificiais. Meu coração doeu quando entendi onde estava.

— Quer me mostrar o túmulo de um bebê? — perguntei, irritada. — Por que eu ia querer ver isso, pai? É claro que me incomoda. Evitei olhar para a foto do anjinho na lápide, porque não queria ver o rosto lindo tirado cedo demais do mundo cruel por onde eu ainda vagava. — Porque quero que saiba por mim, antes de ouvir a história por outra pessoa — meu pai respondeu. — Do que está falando? O que você quer que eu saiba? Ele desviou o olhar do meu. — Mais ou menos um ano depois de você ter ido embora, uma coisa horrível aconteceu. Meu estômago começou a ferver imediatamente. — Como... como assim? — perguntei, tensa. Meu pai passou a mão livre no rosto. — Quando foi embora, você sabia que Drew estava grávida. O que não sabe é que ela teve um menino quatro meses depois de você ter partido para Nova York. Um bebê prematuro, ainda faltavam dois meses. De início, tudo correu bem. Embora fosse pequeno, ele era saudável e todo mundo ficou feliz. Mas aos dois meses de idade, ele foi diagnosticado com leucemia. A criança resistiu por um tempo, mas oito meses depois do diagnóstico, seu corpinho não suportou mais... — Pai. Por favor — eu o interrompi, não queria ouvir mais nada. Mas meu pai me ignorou e continuou: — Os médicos tentaram de tudo, mas ele... — Para — exigi. — Para com isso. — Ele morreu — meu pai concluiu. Choramingando, cobri a boca com a mão e dei um passo para longe de meu pai e do túmulo. — Pai, não — sussurrei. — Por favor, diz que é mentira. Seus traços expressavam a dor.

— Queria que fosse, meu bem, mas não é. Olhei para o túmulo e para a grama que o cobria. — Esse bebê... esse é... — Lane — meu pai anunciou com tristeza —, esse é o filho do Kale. Minha visão ficou turva, mas quando olhei para a lápide novamente, consegui ler uma frase que me destruiu completamente: “Com amor, em memória de Kaden Hunt”.

— Cadê o Kale? — tio Harry perguntou quando calcei minhas botas novas, que mamãe tinha comprado para mim pela metade do preço em River Island. Eram as botas mais lindas que eu já tinha visto e talvez fossem o item mais descolado do meu armário. — Lane... — Meu tio riu. — Está ouvindo? Levantei a cabeça depois de fechar o zíper das duas botas, e por um momento, olhei para meu tio. Depois de Kale, ele era minha pessoa favorita, com certeza. Era o tio mais legal com que eu poderia ter sido abençoada. Tio Harry era como um melhor amigo para mim... Não, nada disso, ele era um melhor amigo. Estávamos sempre juntos e fazíamos muitas coisas. Ele me levava para pescar — embora eu não gostasse; o tempo tranquilo com ele era o único motivo para ir —, e ao boliche, e a um milhão de lugares que não parecem divertidos, mas eram incríveis, porque meu tio era o único vivendo a experiência comigo. Tio Harry era irmão gêmeo da minha mãe; era cinco minutos mais velho do que ela, fato que gostava de lembrar com frequência. E o motivo para eu ser tão próxima dele era

a ligação entre ele e minha mãe. Os dois se viam todos os dias, e não é força de expressão. Meu pai até se tornou próximo do meu tio; eles também estavam sempre juntos. Ele morava a cinco minutos da nossa casa, e eu ia visitá-lo tanto quanto ele nos visitava. Fazia questão de ir até lá todos os dias, mesmo que fosse só para dar um oi, porque não queria que ele ficasse sozinho. Tio Harry tinha só quarenta e nove anos, mas foi obrigado a enfrentar uma das coisas mais difíceis que um homem tem de viver. No ano anterior, ele enterrou a esposa, minha tia Teresa. Ela teve câncer de mama e não pôde nem lutar, porque descobriu tarde demais. Não gostava de pensar nela, porque sentia saudade. Não éramos muito próximas, porque ela esteve em minha vida só por alguns anos antes de morrer, e na época eu era nova demais para me interessar por ela, mas sabia que tio Harry a amava muito, e isso me entristecia, porque eu sabia que ele se sentia perdido sem ela. Pessoalmente, eu achava que tio Harry era o homem mais corajoso que já andou sobre a Terra, porque eu amava Kale com toda a força do meu coração e nem era casada com ele. Se ele morresse, acho que eu morreria também, porque seria muito triste viver sem ele. Foi assim que soube que nunca poderia ser grande como meu tio — porque nunca seria forte como ele. Era preciso ter muita força para continuar vivendo sem alguém que você amava tanto quanto ele amava minha tia Teresa. Isso me fez idolatrá-lo. — Lane. — Sua voz interrompeu meus pensamentos. — Desculpa, o quê? Meu tio riu e balançou a cabeça. — Cadê o Kale? Revirou os olhos. — Onde acha que ele está? Meu tio pensou um pouco antes de dizer:

— Com seus irmãos. Quem me dera. Bufei. — Com a Drew. Ele está sempre com ela, não tem mais tempo para mim ou para os meus irmãos. Isso era mentira, ele ainda passava muito tempo com meus irmãos. Era para mim que não sobrava mais tempo. Só pensei que dizer que meus irmãos também não mereciam mais atenção me fazia parecer menos patética. A risada baixa do meu tio me irritou. Olhei para ele e cruzei os braços. — Não tem graça, tio Harry. Ele sorriu de modo amoroso. — Não estou rindo de você, meu bem, estou rindo da sua atitude. Você parece sua mãe quando tinha sua idade. Pareço? Eu me animei. — Ela também era fabulosa e mais inteligente que a maioria? Meu tio gargalhou alto, e isso me fez sorrir. Eu adorava sua risada. — Ela gostava de pensar que sim — disse, balançando a cabeça com bom humor. Senti meu sorriso se apagar quando suspirei. — Desculpa se fui grosseira. Estou só... aborrecida. — Por quê? Dei de ombros. — Não sei. Linhas finas surgiram no canto de seus olhos. — Sabe, querida, você sabe. Mordi o lábio inferior, olhei para meu tio e depois para os meus pés. Senti o estômago se contrair quando percebi o que ia dizer.

— Estou com ciúme — admiti, ainda de cabeça baixa. — Gosto do Kale. Gosto dele mais do que como amigo, e odeio isso, porque vou precisar estar sempre presa a seu lado, vendo-o com garotas mais velhas, mais bonitas. É horrível, tio Harry. É uma porcaria. Senti o calor invadir meu rosto quando o silêncio se prolongou entre nós. — Há quanto tempo sente isso? — ele perguntou depois de um momento. Suspirei, aliviada por ele não estar rindo de mim. Engoli a saliva. — Desde que eu tinha dez anos, mas agora está ficando pior, porque estou sempre incomodada com isso. Quando era mais nova, eu nem prestava muita atenção quando ele estava com outras meninas. Levantei a cabeça quando meu tio riu baixinho. — São seus hormônios, garota — ele declarou sem rodeios. — Você chegou à puberdade. De agora em diante, vai ser cada vez pior. Estava um pouco constrangida com essa conversa sobre hormônios e puberdade com meu tio, mas ri quando ele concluiu a frase, porque sua expressão era muito séria. Ele sorriu para mim. — Por que não fala com sua mãe sobre isso? Era brincadeira? Fiquei horrorizada com a sugestão. — Não posso — respondi. — Ela ama o Kale como se fosse mãe dele. Acho que me deserdaria. Meu tio levantou as sobrancelhas. — Que exagero! — Não — insisti. — Acho que é bem preciso. Os olhos de meu tio brilharam quando ele sorriu. — Seu vocabulário está aumentando. Empurrei para trás as mechas de cabelo que caíam na frente do rosto.

— Eu leio muito — falei e dei de ombros. — Alguns livros nem são para adolescentes. Meu tio arqueou uma sobrancelha. — Romances? Assenti. — Coisas para jovens adultos... nada explícito ou coisa parecida. — Nada muito explícito, pelo menos. — E aposto que esse tipo de livro deixa você mais aborrecida com o Kale — meu tio comentou. Franzi a testa. — Não exatamente. Bem, eles me fazem querer mais um namorado. Gosto de ler sobre pessoas que vivem felizes para sempre. Acho que seria legal alguém me amar. — Eu te amo — meu tio declarou apressado. Revirei os olhos. — Estou falando de amor de namorado. Amor de família é diferente. — Amor de família é tudo. Se você tem o amor da família, pode fazer qualquer coisa. Dei risada. — Falou, Oprah. — Garota atrevida. — Ele riu. — Falando sério, você está bem? Podemos deixar The X-Men para outro dia se você não quiser ver hoje. — De jeito nenhum, estou maluca para ver esse filme. — Tem certeza? Podemos fazer outra coisa, se preferir. Sorri da preocupação. — Eu vou ficar bem. Fico desse jeito sempre que ele me ignora, só isso. Acho que vou ter que me acostumar. Meu tio coçou a nuca. — Ou você pode, sei lá, contar para o Kale que gosta dele e...

— Ficou doido? — interrompi meu tio com um tom agudo e dramático. — Kale não pode saber que gosto dele, nunca. Isso seria o fim da minha vida! — Querida — meu tio reagiu, ameaçando rir. — Não! — Levantei o dedo e apontei para ele. — Você vai prometer que tudo que eu falar sobre o Kale vai ficar entre nós. Só entre nós. — Lane... — Promete, tio Harry. Meu tio ria tanto, que teve de enxugar as lágrimas dos olhos. — Você é exatamente igual à sua mãe — ele disse rindo. — Autoritária e exigente. Cruzei os braços. — Isso não é uma promessa. Meu tio ainda sorria quando balançou a cabeça para mim e disse: — Prometo que todas as coisas relacionadas ao Kale vão ficar estritamente entre nós dois. Olhei para ele, estendi a mão direita e levantei o dedo mindinho. — Tem que jurar. Faz o voto perpétuo — exigi com os olhos meio fechados. Meu tio riu de novo. — Eu sabia que ia me arrepender de comprar todos aqueles livros do Harry Potter para você. Como é que é?, protestei mentalmente. Essa podia ter sido a melhor decisão que ele já tomou; eu adorava aqueles livros. — Jura de dedinho — insisti. — É minha versão do voto perpétuo. Meu tio mordeu o lábio inferior por um momento, depois levantou a mão e enganchou o dedo mínimo no meu.

— Eu, Harry Larson, juro de dedinho para você, Lane Edwards, pela minha honra, que nunca vou divulgar conversas ou fragmentos sobre Kale Hunt para Kale ou qualquer outro ser humano vivo. Ignorei o tom obviamente debochado e me concentrei nas palavras. — Ótimo — aprovei. — Agora não preciso te matar. Os lábios do meu tio tremiam. — Uma garota protegendo o coração do amor possível... o que pode dar errado? — Nada — respondi. — Absolutamente nada pode dar errado, já pensei em tudo. — Tem certeza? — Meu tio perguntou sem disfarçar o ceticismo. — Sufocar sentimentos como esse que você tem só vai causar sofrimento com o passar do tempo. Não dei importância às preocupações do meu tio; sabia que contar a Kale que gostava dele doeria muito, porque tinha consciência de que ele não gostava de mim, não desse jeito. Baseada nesse conhecimento, tinha certeza de que não falar nada sobre meus sentimentos por ele era a melhor decisão. Fazia parte do meu plano de amar Kale de longe. — Confie em mim — falei para o meu tio. — Meu plano é infalível. — É. — Ele assentiu, contendo o riso. — Parece que é, mesmo. Eu o empurrei brincando. — Não quero mais falar sobre Kale. Quero falar sobre o café que a vovó acabou de comprar. Acha que ela me contrata para trabalhar lá no verão? Meu tio levantou as sobrancelhas. — Você tem treze anos. — E daí? — Franzi a testa. — Quero sair de casa, e trabalhar no café com a vovó é a solução perfeita para isso.

— Por que quer sair da sua casa? — Porque... — Suspirei, dramática. — Quando Kale não está com Drew, ele está com meus irmãos, e como ele é meu único amigo de verdade, não tenho outra coisa para fazer quando ele não está por perto. Só posso ler um livro de capa dura por semana, porque papai diz que eles são caros, e eu leio depressa, o que significa que a leitura só ocupa algumas horas do meu tempo. Minha mãe e meu pai nunca permitem que eu saia sozinha, e se por algum milagre eu puder sair, Lochlan se oferece para ficar de olho em mim, como se eu fosse fazer alguma coisa errada. Isso é muito irritante. — É só preocupação dos seus pais e dos seus irmãos. Você sabe, aquela pobre garota da área rural que foi estuprada e assassinada tinha sua idade. Ela morava a quarenta minutos daqui, e ainda não pegaram o filho da puta que fez isso com ela. Não pode criticar todo mundo que se preocupa com você. Não, não posso, mas ser sufocada por todo mundo também não é grande proteção. — Por que não convida aquelas garotas que estudam com você para vir aqui de vez em quando? — Anna e Ally? — eu ri. — Isso mesmo. — Meu tio estalou os dedos. — Essas duas parecem ser legais. Dei de ombros. — Podem ser, mas brigamos feio na escola há alguns dias e ainda não resolvemos esse problema. Eu não sabia se algum dia resolveríamos, porque Anna disse coisas bem horríveis sobre minha aparência. Ally não a impediu nem me defendeu, o que me fez concluir que ela concordava com Anna e pensava a mesma coisa de mim. Tentei não deixar tudo isso me incomodar, mas era difícil, porque Anna ficava o tempo todo repetindo as mesmas palavras.

Gorda. Feia. Nerd. Eram palavras simples, só algumas letras, mas me afetavam, mesmo que eu não quisesse ser afetada. — Amigos brigam, acontece, mas acredite: vocês vão se acertar. Assenti para agradar meu tio, ajeitei os óculos novos e falei: — Tudo bem. — É isso aí — ele concluiu, sorrindo. Encostei na cadeira e dei uma olhada em volta, analisando a cozinha da casa do meu tio. — Adoro esta casa. — Ah, é? — ele perguntou, surpreso. — Sim. É meu lugar favorito. Nunca falei isso antes? Ele negou balançando a cabeça. — Por que é seu lugar favorito? — Porque tenho milhões de lembranças legais de estar aqui com você. — Sorri, pensando em algumas. — Como aquela vez em que fizemos um forte com as almofadas do sofá na sala de estar, ou quando inundamos esta cozinha enchendo balões de água para jogarmos nos meus irmãos. Meu tio deu risada. — Sua tia Teresa ficou muito brava comigo por causa disso. Sorri. — Eu sei, mas, ainda assim, foi um dia ótimo. — Foi — ele concordou, sorrindo com ternura enquanto, sem dúvida, pensava em minha tia Teresa. — Adoro minha casa, é óbvio, mas, não sei, a sua parece perfeita. Eu me sinto muito segura quando estou aqui, como se nada pudesse me atingir. Acha que é estranho? — Não, isso não tem nada de estranho. Todo mundo deveria ter um lugar favorito, e fico feliz por saber que

minha casa é o seu, querida. Sorri. — Preparado para ver The X-Men? Meu tio levantou e inflou o peito. — Nasci pronto para isso. Balancei a cabeça, rindo quando saímos da casa fazendo piadas e brincando. Eu sabia que era uma garota de sorte: tinha uma família incrível, e apesar de Kale me aborrecer muito, ele ainda era o melhor amigo que eu poderia ter desejado. Sabia que jamais ficaria com ele do jeito que queria, mas mesmo que não pudesse ter isso, queria que fôssemos sempre próximos como éramos naquele momento. Espero que as coisas não mudem nunca, minha cabeça cochichou quando saí com meu tio para criar mais lembranças.

O bebê de Kale morreu. — Não — murmurei e cambaleei para trás. — Lamento que tenha descoberto desse jeito, meu bem — meu pai falou, olhando mais uma vez para o túmulo do filho de Kale. Levei as mãos ao rosto e cobri a boca, balançando a cabeça com aflição. Não podia ser verdade. — Pai — sussurrei sem saber o que mais dizer. Movi as mãos das orelhas para o pescoço e tive dificuldade para engolir a bile que ameaçava subir à garganta. Desci uma das mãos até a barriga, quando o estômago se contraiu, e fechei os olhos com força para tentar não chorar. — Sinto muito, Lane. Abri os olhos e encarei meu pai. — Kale... o filho dele morreu? A expressão de meu pai era de desolação quando assentiu. Eu me abracei e balancei o corpo de um lado para

o outro suavemente, enquanto a dor girava como uma espiral dentro de mim. Não conseguia imaginar como devia ter sido para Kale e Drew. O braço de meu pai envolveu meu corpo, e ele me puxou contra o peito em um abraço apertado. Não sei quanto tempo ficamos assim, mas quando nos afastamos, tudo que eu queria era estar nos braços dele de novo. — Não... consigo acreditar nisso — murmurei, balançando a cabeça com um misto de choque e tristeza. Meu pai passou a mão no rosto. — Eu sei, meu bem. Ainda é difícil para todo mundo aceitar. Pisquei, atordoada. — Como é possível aceitar uma coisa assim? — Eu me expressei mal. Devia ter dito que todo mundo ainda tem dificuldade para suportar tudo isso. Eu não me julgava capaz de suportar algo assim; não seria forte o bastante para sobreviver à perda de um filho. Mal conseguia sobreviver à perda de Kale e meu tio, imagine algo tão devastador quanto perder uma criança. — Fiquei tão concentrada em não prestar atenção nele, que não notei como está diferente — comentei, olhando para longe, ao lembrar de Kale quando estive com ele por pouco tempo. — Os olhos estão mais frios, mais sombrios, mais... vazios. Agora sei por quê. Kale não era mais Kale, como eu não era mais a Lane que ele conhecia. Agora éramos duas pessoas diferentes, e isso me entristecia. — Ele quase não ri ou sorri mais, a menos que alguém fale de você — meu pai contou. Olhei para ele sem esconder a surpresa. — De mim? — Sim. — Outro sorriso. — De você.

Eu não sabia o que dizer, por isso fiquei quieta. — Seu tio Harry sempre nos manteve informados sobre o que você estava fazendo, e quando ele contava uma dessas conversas com você, Kale sorria e ria. — Meu pai deu risada, pensando nessas ocasiões. — Nos primeiros meses depois da morte de Kaden, a mãe de Kale implorava para eu mandar Harry à casa dela quando Kale estava lá, só para ele poder falar sobre você e sorrir. Senti um frio na barriga, que logo deu lugar ao medo. — Isso foi há muito tempo — murmurei. — Agora ele deve me odiar. — Por que Kale te odiaria, querida? Engoli em seco. — Porque não estive disponível quando ele mais precisou de mim. É compreensível que ele me odeie. Meu pai riu. — Lane, você não poderia ter previsto o que aconteceu. Ninguém poderia. Isso não era desculpa para minha ausência. — Eu devia estar disponível para ele — insisti, séria. — Se não fosse tão teimosa e não tivesse proibido tio Harry de me contar o que acontecia por aqui, talvez ele... — Kale não queria que você soubesse — meu pai me interrompeu no meio da frase. — O... o quê? — gaguejei. — Quando Kaden morreu, uma das primeiras atitudes de Kale foi fazer Harry jurar que não contaria a você. Ele sabia que as coisas ainda estavam muito difíceis para você e não queria piorar tudo. Tive a sensação de que minha garganta ia fechar. — Ele achou que contar que o filho tinha morrido ia piorar a minha situação? — Cerrei os punhos. — Eu teria entrado no primeiro voo de volta para estar aqui com ele, ajudar em

tudo que fosse necessário, mesmo que fosse só para ir ao funeral ou estar na igreja. Teria feito qualquer coisa. — Ele sabia disso, Lane, mas no fundo acho que Kale não suportaria se você estivesse aqui. Tudo desmoronaria em cima dele. Meu coração doía. — Mas talvez eu pudesse ter ajudado — sussurrei. Meu pai me segurou pelos braços. — Escuta aqui — ele disse com firmeza. — Estivemos ao lado de Kale o tempo todo, mas a cabeça dele não estava lá. Ele precisou de todo esse tempo para conseguir conviver com a ausência de Kaden. Você não poderia ter ajudado; ele estava tão longe na época da morte de Kaden, que ninguém teria conseguido tocá-lo. Eu poderia ter tentado. No fundo, sabia que poderia. Pisquei, atordoada. — Drew não conseguiu ajudar? Meu pai balançou a cabeça. — Alguns meses antes da morte de Kaden, eles se separaram, romperam o noivado. A doença do bebê criou uma pressão entre eles, que os afastou de maneira irrecuperável. Eles moraram juntos por mais alguns meses depois da morte de Kaden, mas Kale acabou saindo de casa, e Drew continuou morando lá. Ela não quis se mudar, porque sentia que Kaden ainda estava lá em espírito. Hoje ela está com outra pessoa e parece feliz, mas Kale nunca mais namorou ninguém. Perder Kaden quase o matou, e todo dia é uma luta desesperada para ele. Houve um tempo em que eu sonhava com o dia em que Kale e Drew romperiam definitivamente e ela sairia da vida dele, mas quando aconteceu, me peguei querendo mais do que tudo que eles estivessem juntos de novo. Talvez ela pudesse ajudá-lo, e ele não estaria tão triste e sozinho. — Queria ter podido fazer alguma coisa — murmurei.

Meu pai beijou minha cabeça. — Todos nós queríamos, não é, meu bem? Inclinei a cabeça para trás e olhei para o céu estrelado, vendo minha respiração virar névoa quando exalava. Estava muito frio ao ar livre, mas eu não sentia nada. Meu corpo estava tão entorpecido quanto o coração. — Você pode fazer alguma coisa agora. Olhei para meu pai e respondi: — Tudo isso aconteceu há anos, o que posso fazer por ele? — Só estar disponível já vai ajudar. Você não tem ideia de quanto ele te idolatra, Lane. Passei a língua nos lábios secos. — Ele idolatra uma garota do passado, pai, mas eu não sou mais a mesma Lane que ele, você ou qualquer um aqui conheceu. Essa Lane foi embora — murmurei, emocionada. — Mudei tanto, que nem eu me reconheço mais. Meu pai passou os braços em torno dos meus ombros e me puxou para perto. — Você precisa estar aqui tanto quanto nós precisamos de você aqui, Lane. Vai poder se reencontrar e talvez ajudar Kale a encontrar paz. Respirei fundo e olhei para o rosto marcado de meu pai. — É muita coisa para tão pouco tempo. Ele piscou para mim. — Seu tio Harry acreditava que você realizaria coisas grandiosas. Confio no julgamento dele, e confio em você. Pode fazer qualquer coisa que decidir, meu amor. Um nó se formou em minha garganta. — Está dificultando demais minha intenção de fugir de novo. — Que bom — ele respondeu rapidamente. — O tempo de fugir acabou. Agora é hora de encarar as coisas de frente. Droga.

Suspirei. — Tenho a sensação de que você seria ótimo em qualquer situação que envolvesse discurso persuasivo. Meu pai riu. — Pode ser minha vocação, mas agora já me aposentei. Vou tentar na próxima encarnação. Dei risada e o abracei com força. — Amo você, pai. — Também amo você, meu bem — ele respondeu e beijou minha cabeça. Ficamos em silêncio por alguns momentos, depois nos separamos. — Quer visitar Lavender, já que estamos aqui? — meu pai perguntou em voz baixa. Você nunca vai ficar sem mim, Lane Edwards; seremos melhores amigas para sempre. Balancei a cabeça e silenciei sua voz. — Eu venho na segunda-feira, quando não tiver muita gente por aqui. Meu pai assentiu e estendeu a mão para mim. — Vamos para casa, querida. Com um nó na garganta, segurei sua mão e apertei com força, sabendo que, em algum momento, eu teria de soltála, por menos que quisesse. Juntos, entramos em casa pela porta da frente e fomos recebidos pelo silêncio. — Fica aqui esta noite. Hesitei antes de responder, e meu pai continuou: — Só hoje. Passe esta noite aqui com Harry e todos nós. Quando ele usou esse tipo de argumento, não havia a menor possibilidade de eu dormir em outro lugar. — Ainda tem uma cama no meu quarto? — perguntei. Meu pai arqueou uma sobrancelha.

— Seu quarto continua exatamente como era quando você foi embora. Fiquei surpresa. — Sério? Meu pai inclinou a cabeça para um lado e me estudou com atenção. — Por que não? — ele perguntou. Dei de ombros. — Pensei que podiam ter transformado o quarto em outra coisa. — No que, por exemplo? Olhei para sua barriga. — Não foi em sala de ginástica, isso é óbvio. Ele me pegou pela orelha, me fazendo dar risada. — Garota atrevida. — Riu. Sorri e respondi com tom suave: — É brincadeira. Mas pensei que pudesse ter usado o espaço como um depósito, ou alguma coisa assim. Meu pai balançou a cabeça. — Nós nunca faríamos isso. O quarto dos seus irmãos ainda é como sempre foi. Os dois sempre aparecem e acabam dormindo por aqui. Deixamos o seu do mesmo jeito pelo mesmo motivo. Eles esperavam que eu aparecesse e dormisse lá. Pensei em quanto tempo minha mãe e meu pai passaram rezando por isso. Antes de começar a chorar de novo, abracei meu pai pela última vez antes de ir para a sala, onde encontrei minha mãe e minha avó dormindo no sofá, na frente do corpo de Harry. Olhei para as duas mulheres mais importantes da minha vida e, em silêncio, jurei estar sempre ao lado delas para tudo, custe o que custar. Elas perderam um filho e um irmão, eu não acrescentaria uma filha e uma neta à essa lista.

Peguei o cobertor do encosto do sofá e cobri as duas, beijando a testa de cada uma. — Amo muito vocês — sussurrei. Levantei e olhei para meu tio Harry, e as lágrimas transbordaram dos meus olhos sem hesitação. — Amanhã vai ser o pior dia da minha vida — murmurei para ele. — Pensei que o pior dia tivesse acontecido anos atrás, mas sua partida faz tudo aquilo ficar pequeno. Como antes, esperava uma resposta, e quando ela não veio, meu coração doeu. — Boa noite, tio Harry — chorei. — Te vejo amanhã. Ignorei a voz que sussurrou cruelmente em minha cabeça: Pela última vez. Beijei a testa de meu tio e, silenciosa, saí da sala e subi a escada para meu antigo quarto. Segurei o corrimão lixado e pintado recentemente, sentindo a superfície lisa da madeira envernizada. Balancei a cabeça quando cheguei ao corredor e a tábua na porta do banheiro rangeu alto. Essa tábua é uma praga, pensei. Ela me delatava quando eu era mais nova e descia escondida no meio da noite para fazer um lanchinho. Passei pelo banheiro e pelo escritório de meu pai antes de chegar à conhecida porta do meu antigo quarto. Estendi a mão e toquei a placa que havia pendurado toda orgulhosa quando tinha treze anos.

Eu era encrenqueira demais. Dei risada e segurei a maçaneta, e ri ainda mais quando empurrei a porta e ouvi o estalo alto. Balancei a cabeça. Tanta coisa foi consertada nessa casa, e ninguém pensou em dar um jeito na porta do meu quarto depois de todos esses anos? Estendi a mão, tateei a parede à esquerda da porta procurando o interruptor e acendi a luz. Pisquei diante da luminosidade repentina, mas meus olhos se adaptaram depressa e começaram a fazer uma varredura no espaço. Era o mesmo, e era um pouco diferente. Eu nunca tinha visto os lençóis que cobriam a cama, e as cortinas eram novas, com certeza. Mas, com exceção desses detalhes, todo o restante parecia ter permanecido intocado. Minha mãe devia ter devolvido tudo aos lugares de origem depois da faxina, mas era como se eu nunca tivesse ido embora, exceto por ser um quarto muito mais limpo do que era quando eu morava aqui. Olhei para as roupas que usava e franzi a testa. Minha mala estava no hotel, e nela estava meu único pijama e as roupas íntimas limpas. Olhei para a cômoda e me aproximei,

curiosa. Abri a primeira gaveta. Não sabia por que, mas não me surpreendi quando encontrei embalagens de calcinhas novas lá dentro. Abri as outras gavetas e achei camisetas simples, jeans, leggings, suéteres... tudo. As gavetas estavam cheias. Minha mãe não podia ter tido tempo para fazer esse tipo de compra nos últimos dias, o que significava que ela tinha passado anos comprando roupas novas para mim. Ou esperava que eu voltasse para casa, ou sabia que eu voltaria. As roupas nunca foram usadas, é claro, mas era evidente que foram lavadas algumas vezes e até passadas, o que me fez sentir ainda pior. Lavas as roupas, limpar e conservar meu quarto era o jeito dela de lidar com minha ausência. Abri uma embalagem de calcinhas e peguei uma branca e simples antes de abrir a quarta gaveta e pegar um pijama tamanho adulto com estampa de Pokémon, o que me fez rir. Eu sempre tive uma obsessão constrangedora por Pokémon que só minha mãe entendia; seu senso de humor em relação a esse assunto parecia ter se mantido. Rindo, saí do quarto e fui para o banheiro, onde tomei banho, lavei o cabelo e esfreguei e raspei cada centímetro do corpo antes de voltar ao quarto enrolada em uma toalha. Depois de me enxugar, vestir a calcinha limpa e o pijama, comecei a secar o cabelo. Quando finalmente fui para a cama e tudo ficou silencioso e escuro, minha cabeça começou a gritar preocupações. O funeral do tio Harry aconteceria no dia seguinte. O filho de Kale morreu, e Kale estava sozinho e vazio por dentro. Expulsei os pensamentos da cabeça e olhei para cima, sorrindo ao ver o brilho dos adesivos do sistema solar iluminando o teto do quarto. — Não acredito que eles ainda brilham — murmurei para mim mesma.

Forcei os olhos a permanecerem abertos e torci para não dormir porque, pela primeira vez, não queria que a manhã chegasse. Quando amanhecesse, enterraríamos meu tio. Quando amanhecesse, o adeus seria para sempre.

— Lane, seu amigo é muiiiito fofo — Anna O’Leary falou ao levantar os olhos do celular. — Ele acabou de postar uma selfie com seu irmão Lochlan, que também é extremamente fofo, aliás, e está lindo. Eu não precisava perguntar de que amigo fofo Anna estava falando. Eu só tinha um amigo, e ele era fofo mesmo. — Ele é ok, acho — resmunguei, disfarçando o fato de também achar Kale fofo, e muito mais que isso. Anna riu de novo. — Ele tem namorada, por acaso? Namorada? Olhei para Anna e dei a ela toda minha atenção. — Por quê? Ela foi direta. — Porque quero apresentar para ele uma garota que acho que ficaria muito feliz por sair com ele e dar uns beijos. Em outras palavras, eu mesma. Pisquei, confusa.

Anna quer sair com o Kale e dar uns beijos nele? Não gosto disso. — Você tem quinze anos — falei, estabelecendo o óbvio. Anna levantou as sobrancelhas. — Vou fazer dezesseis no mês que vem. Mas e daí? — Como assim “e daí”? Você vai fazer dezesseis anos no mês que vem, e Kale faz dezenove no mês que vem — respondi com uma sobrancelha arqueada. Ela não percebia que a diferença de idade era grande? Eu sabia que eram só três anos, mas ainda éramos meninas... não? Tínhamos só quinze anos. Ally Day, que estudava conosco, riu, e Anna fez uma careta. — Exatamente, sempre quis um namorado mais velho. Não sabia o que sentia. — Kale não serve para você, Anna. Ele é muito homem. Ela suspirou com ar sonhador. — Eu sei. Por isso quero tanto o Kale. Ally continuava rindo, e deduzi que concordava com Anna. Continuei olhando para ela com uma expressão chocada. — Você é muito idiota — falei com um tom meio estridente. Resisti ao impulso de cobrir a boca com a mão, porque não pretendia dizer isso em voz alta. Anna saiu do transe de obsessão por Kale e cravou os olhos verdes em mim. — Não sou idiota. Não fica com ciúme de mim só porque o cara mais gostoso que a gente conhece te colocou na friendzone. Senti o rosto esquentar quando Ally deu risada. Não sabia por que ela ria do que Anna tinha dito; ela era minha amiga, não era? — Kale não me pôs na friendzone — reagi, me defendendo. — Nós sempre fomos amigos, só isso. Nunca

teve nada disso entre nós. Queria que fosse assim, mas não era. — Dã — Anna respondeu e olhou para mim com desprezo. — Como se ele quisesse alguma coisa com alguém com a sua cara. Oi, alerta de feiura. Odeio quando ela faz isso, sussurrou uma voz em minha cabeça. Ela me xinga e me irrita sempre que fica brava comigo, e Ally não faz nada! Anna riu. — E por que acha que isso acontece, Lane? Você parece ter oito anos, não quinze. Não tem peitos, ainda usa aparelho nos dentes, usa óculos, tem acne e é gorda. Tem sorte por ele ainda lembrar que você existe, sua vaca feia! — É — Ally concordou e cruzou os braços. — Não acredito que perdemos tempo andando com você. Que derrotada. Meu estômago revirou, e o coração disparou. — Tenho que ir para casa — cochichei e peguei rapidamente os livros para guardar na mochila. Sem dizer nada e sem olhar na direção de Anna ou Ally, virei e saí correndo do quarto de Anna. Desci a escada correndo, abri a porta da frente e corri para o jardim, depois pela rua até minha casa. Não parei até chegar lá, subir a escada e ir para o banheiro, onde vomitei tudo que tinha no estômago. Só parei de vomitar quando os espasmos não encontravam mais nada para pôr para fora. Limpei a boca com lenço de papel, que joguei no vaso antes de dar a descarga. Depois lavei as mãos na pia, uni as mãos e lavei o rosto. Escovei os dentes e fiz um bochecho com um pouco de enxaguante bucal para tirar o gosto azedo da boca. Quando terminei, enxuguei as mãos e o rosto com a toalha de rosto. Vi meu reflexo no espelho e o encarei. Meu estômago se contraiu de novo quando vi todos os defeitos. Cada vez que Anna e eu discutíamos ao longo dos anos, ela

repetia as mesmas coisas horríveis. Era impossível não ver o que ela sempre havia apontado. Os óculos de nerd, o aparelho de metal, a acne, o queixo duplo. Olhei para baixo, para o peito reto, depois para a barriga gorducha e de novo para o rosto. Anna e Ally estavam certas: eu era uma vaca feia. Desgostosa comigo mesma, saí do banheiro e corri para o meu quarto, mas em vez de escapar de tudo, acabei batendo de frente no peito do meu pai, que saía do escritório. — Oi, amor — ele falou, animado. — Voltou cedo da casa da Anna. Terminaram de estudar? Não respondi, o que fez meu pai desviar o olhar da calculadora em sua mão para estudar meu rosto. Quando viu minhas bochechas molhadas e os olhos vermelhos, ele largou a calculadora no chão e se ajoelhou na minha frente, com as mãos nos meus ombros. — Que foi? — perguntou em um tom preocupado. Olhei para a calculadora e suspirei aliviada ao ver que ela estava na capa protetora. Meu pai teria ficado furioso mais tarde se ela tivesse quebrado na queda. Olhei para sua expressão perplexa. — Está... tudo errado — respondi com a voz embargada. Ele me sacudiu de leve. — Quem te deixou assim? Fala. Abri a boca ao mesmo tempo em que minha mãe gritou: — O jantar está pronto. A ideia de comer fez meu estômago revirar. — Não quero jantar. Nunca mais vou comer nada — resmunguei e corri para o quarto, cuja porta bati e tranquei. Mergulhei na cama e enterrei o rosto no travesseiro enquanto soluçava. Meu peito doía com a descoberta recente da minha aparência. O rosto ardia de vergonha, o coração apertava de dor.

Como eu não sabia que sou gorda e feia? Como não vi isso? Tinha um espelho, um espelho de corpo inteiro, mas nunca vi o que Anna e Ally viam, embora Anna tivesse apontado meus defeitos várias vezes nos últimos anos. Quando fazíamos as pazes, ela dizia que só falava aquelas coisas horríveis para me magoar, não por pensar que eram verdade, e eu, idiota, acreditava nela. Achava que tinha a aparência de uma adolescente normal. Nunca pensei que me enquadrasse na categoria gorda ou feia. Meu pai sempre disse que eu era bonita. Kale também. Eles mentiram. Kale mentiu. — Lane! Abre essa porta agora! — meu pai mandou, batendo na porta com o punho. Ouvi minha mãe gritar e subir a escada correndo, depois meus irmãos, que ouviram a gritaria do jardim do fundo da casa e entraram correndo. — Não. Você mentiu para mim! — berrei. Meu pai ficou em silêncio por um momento, antes de perguntar: — Eu menti sobre o quê? Como se ele não soubesse! — Você disse que eu era bonita — gritei. — Disse que eu era perfeita. Você mentiu para mim, pai. Sou gorda e feia, e todo mundo sabe disso! Todo mundo! Eu soluçava tanto, que quase vomitei de novo. — Lane! — Lochlan gritou. — Abre a porta ou vou arrombar! — Lochlan, para com isso! — meu pai interferiu, nervoso. — Não, ninguém sabe o que ela está fazendo lá dentro — ele argumentou. — E se ela estiver se machucando? Minha mãe gritou para eu abrir a porta, mas me recusei a cumprir a ordem. Nem respondi. Estava ocupada demais

reprisando em minha cabeça o que Anna e Ally disseram. Oi, alerta de feiura. — Lane? — Layton gritou de repente. Fechei os olhos e abracei o travesseiro. Todo mundo tinha mentido para mim, cada um deles. Gritei quando um estrondo e um barulho de destruição me assustaram. Sentei na cama e olhei para a porta... que agora estava aberta. — Você... arrombou a porta do meu quarto! — gaguejei, olhando para meu pai, que se aproximava da cama. Recuei, me arrastando até as costas encontrarem a parede. — Não toca em mim! — berrei, envolvendo o corpo com os braços. Meus irmãos se colocaram um de cada lado do meu pai, enquanto minha mãe engatinhava pela cama para chegar mais perto de mim. Ela me encarava. — O que aconteceu? — perguntou com voz trêmula. Olhei para ela por um momento, antes de desmoronar. Soluçando, me joguei em seus braços abertos e chorei em seu peito. Ela me abraçou e chorou comigo, embora nem imaginasse qual era o problema. Só viu seu bebê sofrendo, e isso a fez sofrer também. — Anna... e Al... Ally — solucei. — Estávamos na casa da Anna, elas me chamaram de feia e gorda; e elas estão certas. Eu sou nojenta. Minha mãe choramingou. — Não é. Você é bon... — Não — gritei. — Não mente para mim. Eu uso ap... aparelho, uso oc... óculos, tenho acne e sou gorda. Sou tudo que elas disseram que sou. Sou uma vaca feia. Quero morrer! — Lochlan! — meu pai gritou quando meu irmão saiu do quarto. — Aonde vai?

— Buscar aquelas vadiazinhas para consertar isso! — Lochlan respondeu aos berros. — Ai, merda. Ele vai na casa dos O’Leary — Layton cochichou e saiu correndo para ir atrás do nosso irmão. — Droga. Cuida dela, já volto. — Meu pai saiu do quarto atrás dos meus irmãos. Quando todos foram embora, virei nos braços de minha mãe e me encolhi junto a ela. Abracei-a enquanto meu corpo tremia. Eu me sentia muito mal e não sabia como lidar com isso. Nunca tinha me preocupado muito com minha aparência, mas Anna estava certa: se quisesse ter um namorado algum dia, teria de “melhorar muito”. O único problema era que eu não tinha ideia do que isso significava. — Por que Ally e Anna disseram essas coisas cruéis e mentirosas para você? — minha perguntou enquanto me embalava. Eu funguei. — Anna, ela falou que Kale era fo-fofo e que queria que ele fosse na-namorado dela. Falei que não era uma boa iideia, porque ele é mais velho. Disse que ele é quase um homem, e n-nós ainda somos meninas. Ela não ligou, e eu... chamei ela de idiota — contei e acrescentei apressada: — Desculpa, não queria, mas es-escapou. — Tudo bem, ela é idiota, ou não teria dito essas coisas a você — minha mãe afirmou. — Vai ficar tudo bem. Ela continuou me abraçando, e antes que eu percebesse, fechei os olhos e mergulhei em um sono agitado. Acordei algum tempo mais tarde embaixo do cobertor e sem óculos. Estendi a mão para a mesinha de cabeceira, peguei os óculos e os coloquei. Estava cansada e não entendia porque havia acordado, mas quando ouvi vozes lá embaixo; percebei que devia ter escutado a voz dele enquanto dormia, e meu corpo reagiu despertando. Sentei e acendi a luminária. Estava escuro lá fora. Olhei para o relógio na parede e gemi. Eram mais de oito da

noite, eu havia dormido durante horas, o que significava que passaria a noite acordada e estaria destruída quando levantasse para ir à escola de manhã. Pensar na escola, em Anna e Ally na minha sala, me deixou enjoada. Nesse momento, decidi que não iria; convenceria meus pais a me deixarem faltar, já que era sexta-feira. Precisava do fim de semana para decidir o que faria com minha aparência. Precisava pensar. Olhei para a porta quando ouvi passos subindo a escada. Inclinei a cabeça de lado e me concentrei na porta. Estava fechada e parecia inteira, mas o painel em torno da fechadura havia desaparecido. Meu pai o tinha arrancado com um chute. — Lane? — minha mãe chamou em voz baixa ao bater na porta. — Meu bem, Kale está aqui. Ele quer te ver. — Por quê? — gritei para a porta fechada. — Por que ele ia querer olhar para mim? Segundos passaram antes de eu ouvir a voz dele. — Posso entrar, Lane? Nunca. — Não, nunca mais quero te ver ou falar com você, Kale Hunt! Você é um mentiroso! — gritei e virei para o outro lado, de costas para a porta. Estava magoada, envergonhada e furiosa. Furiosa por Kale nunca ter falado que eu era gorda e feia. Ele era meu melhor amigo. Falávamos tudo um para o outro. Por que ele nunca me disse algo tão importante? Por que mentiu pra mim? Sentei na cama e fiquei quieta até ouvir os passos se afastando do meu quarto e descendo a escada. Esperei mais uns cinco minutos antes de levantar da cama. Não queria sair do quarto, mas precisava ir ao banheiro. Andei até a saída em silêncio e puxei a porta com cuidado,

mas as dobradiças danificadas rangeram. Hesitei, depois a abri bem depressa, esperando que o barulho fosse mínimo. Eu estava certa: a porta não fez muito barulho, mas não fazia diferença; ele teria ouvido de qualquer maneira. Sentado ao lado do meu quarto, com as costas apoiadas à parede do corredor, dificilmente ele teria deixado de ouvir alguma coisa. — Vai embora, Kale — falei e passei por cima de suas pernas para ir ao banheiro. Ele não respondeu, não fez nenhum barulho, e isso me incomodou. Fui ao banheiro, e enquanto lavava as mãos na pia, fiz questão de não olhar para o espelho. Não queria ver o que todo mundo era obrigado a olhar. Saí do banheiro e voltei para o quarto. Olhei para Kale, que continuava com a bunda plantada no chão bem ao lado da porta. Balancei a cabeça ao passar por cima de suas pernas, entrei no quarto e fechei a porta. De novo, ele não disse nada; não fez nenhum ruído. Cara teimoso. Passei uma hora ocupada com o dever de casa e leituras. Mas não consegui me concentrar em nenhum dos dois. As palavras cruéis de Anna e a risada estridente de Ally ficavam ecoando em minha cabeça infinitamente. Olhei para a porta do quarto e, depois de um momento, levantei e fui até lá. Segurei a maçaneta, e depois de alguns segundos de hesitação, abri a porta. Ele ainda estava lá. Continuava sentado do lado do quarto, esperando que eu o deixasse entrar. Recuei e abri a porta o máximo possível. Não falei nada, mas Kale sabia o que eu estava propondo. Ele levantou e entrou no quarto. Fechei a porta e virei de frente para ele. Kale estava parado no meio do quarto, com as mãos nos bolsos da

frente do jeans, olhando para mim. Ele me olhava com aqueles olhos cor de âmbar e tristes. Minha intenção era explodir de raiva, mas quando ele abriu os braços para mim, desabei. Senti um nó na garganta quando entrei naquele abraço. Enlacei sua cintura e apoiei a cabeça em seu peito. Seus braços me envolviam; ele até massageava minhas costas com a mão direita para me acalmar, como costumava fazer quando eu estava triste. Droga. Por que ele sempre torna tão difícil ficar brava? Não sei quanto tempo ficamos ali abraçados, mas quando me acalmei o suficiente para falar, recuei e olhei para ele. Ele sorriu para mim, mas as covinhas quase nem apareceram. — Oi, Laney Baby — murmurou. Explodi em lágrimas e o abracei de novo. Ele vibrou suavemente quando riu e me abraçou de volta. Recuei novamente. — Estou triste, Kale. Ele olhou para mim com muita aflição. — Se tenho que te convencer de que Anna O’Leary e Ally Day têm inveja de você, então não é tão esperta quanto sei que é. Resmunguei e me afastei dele, fui para a frente do espelho e olhei de cara feia para minha aparência. — Mas elas estavam certas — respondi, olhando para os horríveis defeitos que Anna tinha apontado com crueldade. — Olha para mim. Sou repulsiva. Kale parou atrás de mim e olhou nos meus olhos; ele era mais que uma cabeça mais alto que eu, o que facilitava tudo. — Fala o que você vê quando olha para o seu reflexo no espelho — disse. Senti o calor se espalhar pelo rosto.

— Uma vaca gorda e feia. Ele balançou a cabeça. — Quer saber o que eu vejo? — Não, não quero — respondi. Ele me ignorou e continuou: — Vejo uma garota bonita cujo sorriso ilumina tudo. Vejo uma garota bonita cujos olhos são tão cheios de afeto e acolhida, que fazem as pessoas se sentirem à vontade à primeira vista. Vejo uma garota bonita que se preocupa com os outros e ama, ama tanto, que é impossível não a amar com a mesma intensidade. Vejo uma garota bonita que é tão estonteante, que vai partir o coração do pai e dos irmãos quando perceber o quanto é incrível e decidir dar seu coração a outro homem. Vejo uma garota bonita que só não vê o quanto é realmente bonita. Era isso; eu estava chorando de novo. — Droga, Kale Hunt — falei, chorando, e virei para abraçálo outra vez. Ele me abraçou e beijou minha cabeça. — Não tem um fio de cabelo em você que não seja bonito, Laney Baby. Tudo em você é bonito; sei disso desde que te vi pela primeira vez. Era surpreendente, mas ri em meio às lágrimas. — Você me viu pela primeira vez quando eu tinha dois anos. Provavelmente eu parecia uma ameixa murcha. — Parecia — Kale concordou —, mas era uma linda ameixa murcha. Eu o empurrei, ele riu, e eu também ri. Depois me afastei dele e andei até minha cama. — Como consegue lembrar de coisas tão antigas? Você tinha só três anos quando eu nasci. — Sentei na cama e olhei para Kale, que sentou na cadeira na frente da escrivaninha.

— Lembro de tudo desde o dia em que te vi pela primeira vez, Lane. Foi a primeira vez que vi um anjo em carne e osso. Cobri o rosto quente. — Cala a boca. Você só fala bobagem! Ele riu. — Reconhece... você sabe que é meu anjo. Por dentro, eu ronronava de alegria; por fora, diminuí a importância do comentário revirando os olhos. — Bom, é isso, o anjo vai passar por muitas mudanças — avisei e empurrei o cabelo castanho, comprido e sem graça por cima do ombro. Kale levantou as sobrancelhas. — Mudanças? O que isso significa exatamente? Dei de ombros. — Vou cortar o cabelo, comprar maquiagem e roupas que não sejam da seção infantil. Ele piscou. — Lane, você não precisa mudar sua aparência para ter a aprovação de gente que não tem importância. Balancei a cabeça. — Não é por Anna e Ally, é por mim. Quero ser uma garota que os meninos notem. Estou bem cansada de ser a “amiga” de todo mundo. O comentário era dirigido a Kale, mas ele não precisava saber. Ele ficou me encarando por um longo momento, depois lambeu os lábios e tirou o celular do bolso quando ouviu o toque. Atendeu a ligação, que foi breve, depois balançou a cabeça e olhou para mim. — Que foi? — perguntei. — Só a Drew sendo a Drew. Nada que mereça muita atenção. Drew Summers era a namorada dele.

Eu não gostava dela. Nunca gostei. Não gostava de nenhuma das namoradas que Kale teve, mas Drew era diferente, porque ela sempre voltava, sempre aparecia de novo. Ela e Kale passavam um tempo juntos, terminavam, passavam um tempo afastados, depois voltavam. Iam e voltavam como se fossem uma lâmpada controlada por um interruptor. Era irritante demais ela não desaparecer de uma vez, ficar longe. — Tem certeza? — perguntei, tentando ser um ombro disponível, caso ele precisasse chorar. Kale assentiu. — Sim, ela vai acabar superando, seja qual for o espinho na bunda da vez. Eu ri. — Sempre delicado. Kale apontou para si mesmo. — Mas é claro. Sorri e olhei para meus dedos, tirando a sujeira que via embaixo das unhas. — Posso dormir aqui hoje? — Kale perguntou. Levantei a cabeça e arqueei uma sobrancelha. — É quinta-feira. Você só dorme aqui nos fins de semana. — Eu sei, mas sua mãe disse que eu podia ficar, já que você não está se sentindo tão boa... ah, bem, eu quis dizer. Merda. Não queria associar nada à aparência... Interrompei o soluço mental de Kale com uma gargalhada. — Eu entendi, tonto. Ele relaxou. — Que bom. Olhei para a porta do quarto, depois para ele de novo. — Os meninos toparam? Não reclamaram de você ficar? Ele riu baixinho. — Fala sério. Seus irmãos me amam.

Todo mundo em minha casa amava Kale; ele era parte da nossa família. Kale nunca olhou para mim como mais do que uma irmã, e embora eu odiasse isso, reconhecia o respeito que ele demonstrava por mim. Kale não se importava por ter de dormir no quarto dos meus irmãos, e meus irmãos também não reclamavam. Eu era a única pessoa que queria que ele dormisse no meu quarto, comigo, aparentemente, mas não contava isso a ninguém. Não contava nada do que realmente sentia por Kale... a menos que tio Harry estivesse por perto para que eu pudesse desabafar. — E aí, posso ficar? — ele insistiu. Olhei para ele e fiquei vesga, o que o fez rir. Também sorri. — Como se precisasse perguntar. Ele pensou nisso por um segundo, depois disse: — Verdade. O telefone tocou de novo, e em vez de atender à ligação, a ignorou e desligou o aparelho. — Vou pedir para sua mãe ligar para a minha e avisar que não vou para casa. Volto já, vamos falar sobre garotos e fazer as unhas. Caí de lado na cama, gargalhando. — Você é completamente maluco. Kale sorriu para mim. — Se isso te fizer sorrir, vou ser o maior maluco que esse mundo já viu. Continuei rindo. — Não vai precisar se esforçar muito. Ele levou a mão ao peito. — Suas palavras me magoam profundamente. — Vai avisar sua mãe! — gritei, rindo.

Kale saiu do meu quarto dando risada, e eu fiquei sorrindo, nem um pouco surpresa por me sentir tão feliz com sua companhia depois de ter estado tão triste sem ele.

No dia seguinte, Kale me ajudou a convencer meus pais a me deixar faltar na escola. Ele teve uma semana de folga da faculdade, e prometeu aos meus pais que sairia comigo e ajudaria a me animar. Meu pai quis saber o que isso significava, e Kale teve de explicar meu plano de mudanças físicas. Meu pai não gostou da ideia, mas minha mãe concordou imediatamente. Ela deu dinheiro da caixinha de economia da casa e disse a Kale para me ajudar a tomar boas decisões. — Vem também, senhora Edwards. Você sabe mais sobre moda e cabelo do que eu jamais saberei — Kale falou para minha mãe. Ela bateu em seu ombro e disse: — Acho que a opinião de um garoto é mais necessária que a da mãe, nesse caso, porque eu acho a Lane bonita como ela é. — Então também não adianta nada eu ir, porque concordo inteiramente com o que diz. — Meu Deus — resmunguei, sentindo o rosto esquentar de vergonha. Depois de um tempo saímos de casa, sem minha mãe, e fomos ao centro da cidade rindo e brincando durante todo o trajeto de ônibus. Quando descemos do ônibus, estávamos no paraíso das compras. Havia lojas de roupas, manicures e salões de beleza em todas as direções. Eu nunca tinha ido àquela região da cidade, e a quantidade de gente me deixou nervosa.

— Estou aqui. — Kale segurou minha mão e entrelaçou os dedos nos meus. — Não solta, você é pequena, vai acabar se perdendo na multidão. Ai, meu Deus. Eu poderia ter morrido, poderia ter morrido bem ali, no meio do distrito comercial. Kale segurava minha mão e me protegia como um namorado teria feito com sua namorada. Eu sabia que éramos só amigos, e ele só queria evitar que eu me perdesse, mas me permiti fingir que era real e ele estava mesmo passeando comigo, sua garota. — E aí, o que quer fazer primeiro? Cabelo, unhas, ou vamos escolher as roupas primeiro? — Kale perguntou, se inclinando e aproximando a boca da minha orelha para eu conseguir ouvi-lo em meio ao barulho à nossa volta. Tremi e senti arrepios subindo e descendo pelas costas. — Cabelo — respondi com um tom estridente e tossi para limpar a garganta. — Primeiro o cabelo. — Vamos lá, cabelo primeiro. — Ele nos guiou em meio ao mar de pessoas até entrarmos em um salão: Toni and Guy. Passei um longo momento olhando para todas as fotos em preto e branco nas paredes, retratos de diferentes estilos e cortes, e quando Kale me puxou pela mão, quase gritei de susto. Ele riu, e a mulher atrás do balcão também riu. — Vem comigo — ela falou, animado, depois de espalhar um pouco de gel branco atrás da minha orelha, um teste de alergia para futuras visitas que envolvessem coloração. Desta vez, eu não queria mudar a cor do cabelo; só queria um estilo diferente, mas fiz o teste assim mesmo. Engoli em seco, olhei para Kale e o encontrei sentado atrás de mim, na minúscula área de espera ao lado da porta. — Vou ficar aqui, de onde consigo te ver. Vai em frente... vai dar tudo certo — ele disse e acrescentou depois de um instante de hesitação: — Só não corta muito, ok?

Sorri e assenti, depois me aproximei de uma cadeira e fui apresentada a Kevin, o cabeleireiro. Kevin tinha vinte e poucos anos e cabelos curtos, espetados e com as cores do arco-íris. Também tinha piercings no rosto e nas orelhas, e eram tantos, que perdi as contas depois de quinze. Mas ele era um amor, e estava muito animado por ser o primeiro a me dar um corte de cabelo com estilo em... Bem, o primeiro. — O que está pensando? — ele me perguntou com tom alegre. Suspirei. — Então, não gosto desse cabelo sem graça. Gosto da cor, porque é castanho-escuro, mas tem umas luzes cor de vinho quando estou no sol. Estou pensando em tirar uns dez centímetros do comprimento e fazer uma franja cheia, como naquela foto ali. E algumas camadas também. Kevin estalou os dedos desenhando um “Z” no ar. — Meu bem, seu gato ali não vai conseguir parar de olhar para você quando eu terminar seu cabelo. Eu sabia que Kevin estava falando sobre Kale, mas não o corrigi, porque era bom saber que alguém não considerava essa ideia tão maluca quanto eu achava que era. Meia hora passou, e depois de lavar, cortar, secar e acertar as pontas, eu estava pronta. Kevin me virou para o espelho e disse para eu abrir os olhos. Eu me assustei quando me vi no espelho. Eu estava... bonita! Não linda, nada disso, mas bonitinha, e fiquei feliz com isso. — Ai, meu Deus! — exclamei. — Amei. Amei mesmo! A intenção não era tentar parecer mais velha, mas eu passaria tranquilamente por uma menina de dezesseis anos, e achava isso mais do que incrível. — Eu falei — Kevin comentou, radiante, ajeitando o cabelo dos dois lados da minha cabeça.

Ele tirou os fios soltos da minha roupa com uma escova e me levou de volta ao balcão, onde eu pagaria a conta. Kale continuava sentado na área de espera. Estava largado na cadeira, com as pernas longas meio dobradas, folheando uma revista. Havia duas garotas sentadas na frente dele, olhando para ele com evidente interesse. Senti vontade de revirar os olhos. Ele atraía esse tipo de atenção em todos os lugares e nem percebia. — Kale — chamei ao me aproximar. Ele olhou para mim quando o alcancei e arregalou os olhos. A mudança imediata de expressão me deixou muito nervosa. — O que achou? — perguntei com um fio de voz. Ele deixou a revista de lado e ficou em pé, o que me fez dar um passo para trás para conseguir encará-lo. Kale agora era muito mais alto que eu. Ao longo dos últimos dois anos, ele tinha crescido muito e me deixado para trás. — Acho — ele disse, levantando uma das mãos para deslizar os dedos por minha franja — que você ficou tão bonita quanto eu sabia que ficaria. — Ai, meu Deus — uma das meninas falou em voz alta, enquanto a amiga dela olhava para nós completamente fascinada. Senti o calor subir por meu pescoço e se espalhar pelo rosto. — Kale! — cochichei, constrangida, e virei para Kevin, que sorria radiante para mim. — Eu disse que ele não ia conseguir parar de olhar para você, não disse? — comentou, satisfeito. — Identifico um bom namorado a um quilômetro de distância. Ai. Meu. Deus. Quero morrer. Quero morrer agora, por favor. Olhei para o chão e fiquei tensa quando Kale se aproximou de mim e pagou o corte com o dinheiro que

minha mãe tinha dado a ele. Agradeci a Kevin quando saíamos do salão e engoli em seco quando senti a mão de Kale na parte inferior das minhas costas. — Ele pensa que sou seu namorado? — Kale murmurou no meu ouvido. Merda. — É, desculpa — respondi, rindo de nervoso. — Ele só presumiu. Ele segurou meu braço e me virou para ficarmos frente a frente. — Por que está se desculpando? — perguntou, curioso. Dei de ombros. — Porque não quero que fique constrangido se as pessoas pensarem que estamos juntos. Ele franziu a testa. — Por que isso me deixaria constrangido? — Porque não sou Drew. Não tenho a aparência dela, nem os amigos que ela tem. Não sou idiota, Kale. Sei que, comparada a ela, sou simplória. Isso não é novidade para mim. Ele me olhou de cima com a cara fechada, mas não falou nada. Olhei para trás e vi uma loja da River Island. — Vamos lá. Kale segurou minha mão, o que me provocou mais arrepios, e me levou à River Island sem dizer nada, nem uma palavra. Ele se comportava de um jeito muito estranho. Kale me seguiu pela loja enquanto eu escolhia diferentes peças de roupa. Encontrei um jeans skinny preto de que gostei muito, mas não sabia se combinava com esse tipo de visual. — Acha que vai ficar bem em mim? — perguntei e joguei a calça na direção de Kale. Ele olhou para o jeans e assentiu:

— É claro que sim, por que não? — Porque é um jeans skinny — respondi, como se fosse óbvio. Kale piscou. — Não sei bem o que é isso. Garotos. Revirei os olhos, e ele riu. Depois me seguiu até a área dos provadores e esperou do lado de fora, enquanto eu experimentava todas as roupas. Alguns vestidos de modelos diferentes e camisetas depois, decidi tirar o jeans do caminho. A calça era tamanho 46 e entrou sem grandes problemas; até abotoou bem. Ficou ótima; eu achei que ficou, pelo menos. Virei e estudei meu reflexo de todos os ângulos, para ver se o traseiro também estava bem. Virei de frente e grunhi para minha barriga; era rechonchuda, mas não era flácida. Queria que fosse chapada e definida. — O que está experimentando? — Kale perguntou do lado de fora do provador. — O jeans — respondi. — Posso ver? Ou não quer minha opinião? Eu queria sua opinião. Só não queria que ele me visse na calça jeans, se é que isso fazia sentido. Ia vestir uma camiseta para esconder a barriga, mas decidi que não era importante, porque em pouco tempo ia precisar de sua ajuda para experimentar um determinado vestido, o que significava que ele veria minha barriga de qualquer jeito. Além do mais, Kale não se importaria se visse meu sutiã ou minha barriga gorducha. Provavelmente, nem notaria. Ele nunca notava nada em mim. Abri a porta do provador e apontei o jeans. — O que acha? Kale arregalou os olhos e entrou rapidamente no provador e fechou a porta.

— Kale! — reagi, assustada, enquanto recuava. — O que está fazendo? Ele olhou para mim e grunhiu: — Você está de sutiã! Os olhos demoraram alguns segundos em meu peito, antes de ele os desviar como se queimassem. Olhei para mim mesma e depois para ele. — E daí? Só você pode me ver. — Não — ele me desmentiu, olhando dentro dos meus olhos. — Tem dois garotos perto da porta esperando alguém, não vou deixar que eles te vejam pelada. Pelada? — Ah, dá um tempo. — Revirei os olhos, virei de costas e perguntei: — Minha bunda ficou achatada com essa calça? Pelo espelho, vi Kale baixar os olhos para a região em questão. — Que tipo de pergunta é essa? — ele quis saber, olhando para minha bunda sem piscar enquanto falava. — Uma pergunta boa — argumentei. — Não quero ficar com bunda de panqueca. Estou fazendo agachamentos com minha mãe, parece que funciona. Virei e olhei para minha parte de trás por cima do ombro, e para ser franca, fiquei bem satisfeita com o que vi. Eu tinha quinze anos — não esperava ter a bunda da Beyoncé, mas estava contente com o que tinha. Bem, tão contente quanto era possível, depois da descoberta recente sobre minha aparência. — Acho que não... — ele começou devagar. — Acho que seu pai, e seus irmãos também, na verdade, não deixariam você usar isso em público. Ele falava como se eu estivesse nua. Ri, peguei uma camiseta regata e a vesti. — Vou usar a calça com uma camiseta, não só com o sutiã. Dã.

— Sim, eu sei... Mas o jeans... é muito justo. — O que acha que significa jeans skinny? — perguntei. Kale grunhiu. — Não pensei que estivesse falando desses que parecem colados. — Bom, estava. Ficou bom em mim? — quis saber e franzi a testa. — Seja honesto. Ele olhou para a calça e depois me encarou. — Ficou, mas você é muito nova para isso. Senti meu queixo cair. — Kale, fala sério. Ele balançou a cabeça. — É sério. Você só tem quinze... — Dezesseis daqui a dois meses — interrompi com tom irritado. — E eu vou fazer dezenove no mês que vem. Se eu noto você nessa calça, os outros caras da minha idade também vão notar. Não gosto disso. Não quero que você atraia esse tipo de atenção masculina. Não é legal. — Por que não? — estranhei. Kale abriu a boa, mas a fechou depois de um momento. — Eu não... Não sei por que exatamente. Acho que me sinto protetor em relação a você. Sei que perderia a cabeça se pegasse um cara olhando para você por muito tempo, Lane. Sei o que passa pela cabeça de um homem e não quero que você seja o centro desses pensamentos. Você tem quinze anos. Eu sabia quantos anos tinha e isso me irritava demais. — Vai ter que aceitar que estou ficando mais velha e que logo vou começar a namorar. Eu não sabia se isso realmente ia acontecer, porque, para namorar, os garotos precisavam se interessar por mim primeiro.

— Vou aceitar quando você tiver cinquenta — Kale respondeu, sorrindo. Ri e balancei a cabeça. — Você é pior que o Lochlan. Ele riu e virou, enquanto eu tirava a calça jeans e a colocava na pilha das peças aprovadas. Vesti algumas leggings de cores diferentes com camisetas compridas e não precisei pedir a opinião de Kale sobre elas. Eram bonitinhas, casuais, algo que ficava bom em todo mundo, independentemente do tamanho. Experimentei um vestido azul e fresco que tinha botões nas costas. Subi o vestido e encaixei os braços nas cavas, segurando o tecido contra o peito para que não caísse. — Pode virar e abotoar isso para mim? — pedi a Kale. Vi quando ele virou e olhou para as minhas costas como se fosse um objeto não identificado. Depois se aproximou e começou a abotoar o vestido. Ele parou algumas vezes quando os dedos tocaram minha pele, mas acabou fechando todos os botões. Todavia parecia ter feito um esforço incrível para isso. Dei uma voltinha para mostrar o vestido e sorri. — Adorei. E era verdade. Sem procurar os defeitos que certamente encontraria, analisei apenas o vestido e decidi que estava até bonitinha nele. — Eu também — Kale murmurou. Dei um gritinho de felicidade ao ouvir a declaração. — Sério? Não está dizendo isso só porque é meu amigo? — Não — Kale respondeu. — Definitivamente, não estou dizendo isso só porque sou seu amigo. Pode acreditar em mim. Levantei a mão para um high five, que Kale entregou sem muito entusiasmo. Franzi a testa.

— Está tudo bem? Ele assentiu. — Tudo bem? Por quê? — Porque você está esquisito. — Esquisito? — ele repetiu e cruzou os braços. — Não estou esquisito, é você que está. Como é que eu estou esquisito? É, sem dúvida nenhuma, ele está esquisito. Balancei a cabeça e ri. — O que está acontecendo com você? — Não faço a menor ideia — ele resmungou e esfregou as mãos no rosto. — Meu estômago está doendo. Pode ser fome. Imediatamente, me senti mal por mantê-lo fora de casa por tanto tempo sem alimentá-lo. — Vou terminar aqui, depois vamos comer, ok? Ele assentiu. — Ok. Dez minutos depois, estávamos na fila para pagar pelas roupas, e só quando chegamos ao caixa percebi que meu jeans não estava nas mãos de Kale. — O jeans — murmurei, procurando a peça entre as roupas penduradas nos braços de Kale. Olhei para ele, mas percebi que Kale não me encarava. Levantei a cabeça. — Onde você pôs a calça? Ele gemeu. — Não quero que compre aquilo. Senti vontade de bater na cabeça dele. Olhei para Kale com ar ameaçador. — Você é inacreditável, Kale Hunt. Nem me dei o trabalho de ir procurar a calça, porque sabia que ele a havia escondido. Em vez disso, fui até a

arara onde encontrei o jeans, peguei outro tamanho quarenta e seis e voltei para onde Kale continuava esperando, no caixa. — Não antecipei essa parte — ele reconheceu ao ver o jeans nas minhas mãos. O homem atrás do balcão ria da nossa interação. — Não subestime as mulheres, parceiro. Elas sempre surpreendem... — E olhou para mim. — Seja qual for a idade. Olhei para Kale e descobri que ele continuava olhando para mim quando respondeu: — Estou começando a acreditar nisso. Eu me senti confiante quando deixei a caixa em cima do balcão e vi o atendente fazer a leitura da etiqueta. Tossi e olhei para as outras peças nos braços de Kale, e ele suspirou e as deixou em cima do balcão. Depois recuou, cruzou os braços e ficou vendo o homem no caixa ler a etiqueta de cada peça e guardar uma por uma em sacolas. Quando terminamos na River Island, fomos ao McDonald’s, e Kale não falou comigo até sentarmos e ele comer metade do que havia pedido. Eu estava faminta, mas não queria fast-food. Queria comida saudável para não engordar mais. Decidi conversar com minha mãe sobre isso quando chegasse em casa. — De quem você gosta? — ele perguntou aleatoriamente. Quase engasguei, mas bebi um pouco da água que Kale me deu. — Quê? — perguntei num tom estridente, limpando a boca com o dorso da mão. — Quem você acha interessante? — ele esclareceu. Fiquei olhando para ele por um momento, depois disse: — Ninguém... por quê? Ele levantou as sobrancelhas.

— Não tem nenhum cara na escola que você acha interessante? Bom, meu coração cantou, tem você. Cocei o pescoço e respondi: — Não. — Não acredito nisso — ele declarou sem rodeios. Franzi a testa e brinquei com os dedos. — Por que não? — Porque não olha para mim quando diz isso, e está brincando com os dedos. As duas coisas que faz quando está mentindo. Juntei as mãos. — Podemos mudar de assunto? — pedi. — Tudo bem — Kale concordou com um tom seco. Ótimo. Agora estava bravo. Olhei para ele e inclinei a cabeça. — Por que quer saber se gosto de alguém? — Não quero — ele respondeu. Mentira. — Por que perguntou, então? — pressionei. Ele deu de ombros. — Só para conversar, passar o tempo. Ele estava mentindo. — E quando foi que já começou uma conversa como essa? — insisti. Kale mergulhou o hambúrguer no molho. — Nunca, por isso toquei no assunto agora. Tipo... você gosta de meninos, não gosta? — Como assim? Ai, meu Deus! — reagi apressada ao entender a pergunta. — Não sou gay. Ele mordeu o sanduíche e falou com a boca cheia: — Não teria problema nenhum se fosse. Quero dizer, não tem nada de errado nisso.

Meu estômago ferveu. — Eu sei que não tem, mas não sou gay. Para ser bem honesta, estou bem brava por ter deduzido que sou gay só porque não curto nenhum garoto da escola. Levantei, peguei minhas sacolas, e eram muitas, e saí do McDonald’s. — Lane! — Kale gritou. — Merda. Espera. Desculpa. Ele pensava que eu era gay? Meu Deus, isso era constrangedor. A pessoa por quem eu era apaixonada acreditava que eu jogava no outro time. Era muito embaraçoso e completamente doloroso. Sem mencionar que era totalmente devastador para minha autoestima já tão destruída. Kale me alcançou do lado de fora do McDonald’s e pulou na minha frente com as mãos levantadas. Só então notei que ele carregava o que restava do hambúrguer em uma das mãos e o pacote de fritas na outra. Tinha trazido a comida? — Você é um porco — comentei. — Sua mãe pagou por isso... não vou deixar ir para o lixo — ele argumentou com a testa franzida. E disse isso com uma expressão tão séria, que me fez rir. — Tem alguma coisa errada com você — falei e balancei a cabeça. Ele olhou nos meus olhos. — É... você. Eu ri. — Você me ama. Kale balançou as sobrancelhas. — Essa é a única razão para eu te aguentar. Suspirei. — Você é um pé no saco. — No saco ou na bunda achatada? — ele perguntou, rindo.

Não respondi, e ele continuou: — Você me desculpa, não é? Suspirei. — Alguma vez fiquei brava com você por muito tempo? — Não — ele anunciou, orgulhoso. — Esse é meu superpoder... esse e minha incrível beleza. Fiquei vermelha e dei um tapinha de brincadeira em seu braço, o que o fez sorrir. Eu também sorria quando viramos e nos misturamos à multidão que caminhava para as lojas de roupas porque tinha mais dinheiro para gastar. Odiava isso, mas no fundo sabia que nenhuma quantia, nenhum dinheiro poderia mudar como eu me sentia agora em relação ao meu corpo e minha aparência geral. As palavras de Anna e Ally estavam gravadas em meu cérebro, e eu não conseguiria esquecê-las. Kale só poderia me distrair da realidade por algum tempo, mas eu faria de tudo para que esse tempo com ele não fosse desperdiçado.

Chegou a hora. Encostei a testa na porta de carvalho do meu antigo quarto, torcendo para o tempo, de algum jeito, voltar atrás e me dar mais alguns dias com meu tio. Não estava pronta para deixá-lo dois metros abaixo do chão e cobri-lo com terra. Sabia que, em alguma medida, eu nunca estaria pronta para me despedir de uma pessoa amada, mas tinha a sensação de que, em relação a meu tio, essa impossibilidade era física. Não estava preparada para dizer adeus a ele. Simplesmente não me sentia capaz disso. — Lane? — Ouvi uma voz suave do outro lado da porta, chamando minha atenção. Pisquei e percebi que era minha avó. — Não consigo, vovó. Recuei quando a maçaneta da porta se moveu, desceu completamente e a porta se abriu. Minha avó estava parada na soleira, vestida com um elegante terninho preto. Ela

amassava um lenço em uma das mãos, e seus olhos estavam vermelhos e inchados de chorar. — Baby — ela choramingou. — Você consegue. Meus olhos se encheram de lágrimas. — Não estou pronta para isso. Ela sorriu para mim, as lágrimas descendo pelo rosto marcado por linhas de expressão. — Nunca estaremos prontas, benzinho, mas a morte não espera ninguém. Assenti e funguei quando as lágrimas caíram dos meus olhos e molharam meu rosto e vestido. Olhei para o tecido preto, admirando por um momento as mangas de renda preta. Minha mãe havia saído e comprado a peça, as meias e os sapatos que eu usava, porque não havia nada em minha mala que fosse apropriado para um funeral. Quando li o bilhete de Lochlan, joguei dentro da mala as primeiras peças de roupa que vi em meu apartamento em Nova York. Um traje para o funeral nem passou pela cabeça. Naquela hora, isso nem parecia real. Eu tentava assimilar o fato; tentava entender. Ainda não parecia real, e duvido que algum dia pareça. Eu estaria sempre esperando o habitual telefonema, a chamada de Skype e o e-mail diário de Harry, e sabia com toda certeza que meu coração se partiria cada vez que eu percebesse que eles nunca chegariam. — Você é a última pessoa que vai se despedir dele, baby — minha avó sussurrou, interrompendo meus pensamentos e me trazendo de volta à assombrosa realidade. — A funerária vai chegar em breve para fechar o caixão e levá-lo até a igreja para a missa fúnebre. Quero que você tenha um tempo com ele antes disso. Assenti mais uma vez, sentindo o coração disparar e o estômago queimar.

Minha avó me levou para fora do quarto e para a escada. Ouvi várias vozes quando estava descendo. Depois vi um numeroso grupo de pessoas dentro da casa e outro grupo lá fora, no jardim, além da porta aberta. Todo mundo ficou quieto quando cheguei ao último degrau, mas evitei olhar para aqueles rostos. Não queria falar com ninguém. Só queria estar com meu tio, e minha avó sentiu essa necessidade. Ela me levou até o salão, me deu um abraço longo e cheio de afeto, olhou para o caixão pela última vez, depois virou e saiu da sala. Quando a porta do salão foi fechada e fiquei sozinha com meu tio, o silêncio se tornou ensurdecedor. Com as pernas trêmulas, caminhei até parar ao lado do caixão de meu tio e então ergui o olhar. Com a visão turva, estudei cada centímetro de seu rosto bonito, garantindo que nunca o esqueceria. Pus as mãos trêmulas sobre as dele, frias. — Este é o pior dia da minha vida, de verdade — falei, lembrando o que tinha dito a ele na noite anterior. — Eu achava que o dia em que fui embora tivesse sido o que destruiu minha alma, mas enterrar você está me matando. Não sabia por que, mas como antes, esperava que meu tio respondesse e garantisse que tudo ia ficar bem, mas quando a única resposta foi o silêncio, sua morte se tornou mais real. Quanto isso era idiota? Eu estava em pé ao lado de seu corpo sem vida e só senti que sua morte era real quando ele não respondeu para mim. — Eu não... não estou preparada para deixar você ir — murmurei. Comecei a soluçar quando ouvi um carro parar do lado de fora. Olhei para a janela e, através da cortina de renda, vi o carro funerário. O veículo levaria meu tio da casa dos meus pais até a igreja onde seria realizada a missa fúnebre, depois o transportaria até a sepultura no cemitério. Comecei a entrar em pânico. Não tinha muito tempo.

— Amo você com todo meu coração. Você foi o melhor ttio e am-migo que uma garota poderia ter pedido. Quero que sa-saiba que sempre adorei você e que sinto muito por ter ido embora. Desculpa, tio Harry. Por favor, me perdoa. Debrucei sobre o caixão e apoiei a cabeça sobre seu peito duro e frio, enquanto os soluços sacudiam meu corpo. Odiava saber que chorava alto o bastante para, em um dado momento, minha mãe, minha avó e amigos da família também se emocionarem do lado de fora da sala. Não queria entristecê-los mais do que já estavam tristes, mas não conseguia controlar a emoção que me invadia. Não sei por quanto tempo chorei no peito e meu tio, mas quanto senti as mãos em meu quadril, perdi completamente o controle. — Não! — gritei e me levantei ao lado do caixão. — Preciciso de mais alguns mi-minutos. Senti a testa pressionar a parte de trás de minha cabeça, e as mãos apertarem meus braços com firmeza. — Vem, Laney Baby. Kale. — Não consigo, Kale — chorei. — Não consigo deixar meu tio. Não posso. — Não podia nem parar e pensar que as mãos de Kale estavam me tocando; estava abalada demais com a despedida de meu querido tio. Olhei para a porta da sala, quando alguém a abriu, e vi os homens vestidos de preto entrando. Os agentes. — Kale, por favor — chorei e me virei nos braços dele. — Não deixa lev-varem meu tio, por favor. Olhei para Kale, e vi seus olhos cor de uísque, vermelhos de chorar, olhando para mim. — Sinto muito — ele sussurrou. — Por favor! — gritei. — Não posso ficar s-sem ele. Por ffavor.

Kale fechou os olhos e vi a angústia estampada em seu rosto. — Quem vai estar presente para o fechamento? — uma voz masculina murmurou. — Eu — meu pai respondeu. Virei, olhei para meu tio mais uma vez e sussurrei: — Adeus, tio Harry. Sabia que era hora de sair, mas não conseguia comandar as pernas, que estavam paralisadas. Não me importava, porque não queria sair dali mesmo, mas isso não tinha a ver com o que eu queria. Isso tinha a ver com meu tio e a melhor despedida que ele pudesse ter. Mas, mesmo sabendo de tudo isso, não conseguia sair da sala. Kale sabia disso, porque, sem aviso, meus pés foram tirados do chão, e por um momento, tentei resistir enquanto ele me tirava da sala, mas quando chegamos ao corredor, do lado de fora, me agarrei a ele e chorei até não ter mais nenhuma lágrima em meu corpo. Em silêncio, ele me segurou o tempo todo, beijou minha cabeça e me embalou até meus soluços virarem apenas suspiros. — Desculpa — murmurei, me sentindo péssima por usá-lo como um ombro para chorar, um amparo, quando não tinha o direito de pedir isso a ele. Não tinha o direito de pedir nada a ele. Kale me apertou com mais força. — Estou aqui para te ajudar, Lane. Sempre. Mais lágrimas surgiram, e o remorso envolveu minha tristeza e me empurrou mais fundo nesse poço de desespero. Mais do que tudo, queria ter podido estar disponível quando ele precisou de mim, como ele estava naquele momento, mas essa era a diferença entre mim e Kale. Ele era altruísta, eu era egoísta. — Chegou a hora, meu bem — ele murmurou.

Sem dizer nada, virei e caminhei para a frente da casa, onde descobri que o jardim e a rua estavam cheios de gente. Isso me fez chorar mais. Meus irmãos me encontraram com Kale, e os dois me abraçaram quando viram em que estado eu estava. Fomos nos juntar a minha avó, minha mãe e meu pai, que não estava mais com meu tio, o que significava que o caixão havia sido fechado definitivamente. Segurei a mão de Kale e a apertei com força enquanto o caixão com o corpo de meu tio era tirado da casa de meus pais e colocado no carro fúnebre. Minha família e Kale entraram no veículo preto que seguiria o carro com o corpo. Sentei ao lado de Kale, o que não era surpreendente, considerando que não soltei sua mão desde que ele a ofereceu. Apoiei a cabeça em seu ombro no caminho para a igreja em que aconteceria a missa fúnebre. A jornada foi mais rápida do que eu teria gostado. Quando saímos do carro, Kale me soltou para poder se juntar ao meu pai e meus irmãos e, com os agentes funerários, carregar o caixão para o interior da igreja. Segurei a mão da minha avó e a de minha mãe, e choramos juntas enquanto caminhávamos lentamente atrás do caixão para dentro da igreja. Vi quando o esquife foi transferido dos ombros dos homens para um apoio na frente do altar, junto com muitas coroas de flores, ramalhetes com nomes e uma bela fotografia de meu tio sorrindo feliz. Ocupei meu lugar no banco na frente da igreja e me encolhi ao lado de meu pai, depois escorreguei para o lado quando Kale sentou ao meu lado, pôs um braço sobre meus ombros e me aninhou junto a si. Ouvi murmúrios e movimento quando o padre se preparou para começar o ritual. Olhei por cima do ombro de Kale e vi um mar de gente. Não me surpreendi ao ver a igreja tão cheia. Meu tio Harry era único, e as centenas de pessoas que estavam ali

para se despedir dele eram só um testemunho de como era incrível. Eu sentia uma grande gratidão por Kale. Ele não precisava me dar seu tempo, mas estava ali sentado ao meu lado e segurou minha mão durante toda a missa. Kale me abraçou quando meus irmãos leram suas preces e me embalou enquanto eu chorava ouvindo o louvor de meu pai. As pessoas riram ouvindo sobre o lado maluco de meu tio, mas também choraram muito por saber que a cidade havia perdido um morador tão especial. Enquanto o padre lia uma das preces finais, lembrei da última conversa que tive com meu tio pelo Skype, e essa lembrança me trouxe conforto e tristeza.

— Você não vai acreditar no dia que eu tive — falei quando vi o rosto do meu tio na tela do laptop. Ele riu. — Oi para você também, querida. Sorri e ajeitei o fone de ouvido para ouvi-lo com clareza. — Desculpa... Oi, como vai? — Ótimo, agora que estamos conversando. — Ele piscou e depois acenou. — Continua: me conta sobre o dia que teve e que não vou acreditar. — Engraçadinho — reagi e o fiz rir. — Tudo bem — comecei. — Sabe aquela série de horror que estou editando para a K. T. Boone? — Aquela em que o assassino é a garotinha? — meu tio perguntou, desconfiado. Ele sentiu medo lendo a série. — Isso — confirmei assentindo. — O que tem ela? — ele perguntou.

Tive de sufocar o grito, porque mesmo estando sentada no fundo da loja da Starbucks do meu bairro, eu ainda chamaria atenção. — O último livro da série chegou ao número um da lista do New York Times! — contei, eufórica. — Tio Harry, um livro que eu editei, ajudei a dar forma, é um best-seller! Ele aplaudiu e gritou. — Eu sabia! Sabia que seu trabalho seria brilhante. Estou muito orgulhoso de você. Pela primeira vez, eu sentia alguma coisa parecida com felicidade. — Obrigada — respondi. — Não consigo acreditar nisso. Meu nome está associado a essa obra, e por causa disso recebi três e-mails de editoras diferentes... Editoras grandes, preciso dizer, que querem me contratar para trabalhar com alguns de seus clientes. Dá para acreditar nisso? — Querida — meu tio falou com um sorriso radiante —, não estou nem um pouco surpreso. Ri baixinho. — Quer dizer que sabia que isso ia acontecer? — Sabia que seria muito bem-sucedida no que faz, então, sim, sabia. Você está dominando essa cidade. Dei risada. — Estou nas nuvens. Finalmente alguma coisa boa aconteceu comigo. — Vai continuar como freelancer? — meu tio quis saber. — É claro — confirmei, balançando a cabeça com entusiasmo. — Autores indie são superestrelas, e é por causa de um deles que estou recebendo essas propostas de trabalho. — Que bom, querida. Estou muito orgulhoso de você, e seus pais vão ficar encantados com a notícia. Murchei um pouquinho.

— Você acha? — Lane, é claro que sim. Eles se orgulham muito de todos os livros e artigos que você editou. Já contei que seu pai e eu lemos tudo em que você trabalha. Isso tocou meu coração de um jeito que eu não poderia descrever. — Consigo imaginar vocês dois juntos à mesa da cozinha discutindo os livros — confessei, rindo. — Temos que sentar na sala. Agora sua avó e as amigas dela tricotam na cozinha. Isso me fez rir ainda mais. — Devia ligar para seus irmãos e contar essa excelente notícia para eles. — Acho que não — resmunguei. — Liguei no aniversário deles, e quando disse para o Lochlan parar de pedir que eu volte para casa, ele falou para eu não telefonar mais. Só estou respeitando sua vontade. Meu tio balançou a cabeça. — Você é exatamente como seus irmãos: de uma teimosia incomparável. Sorri. — Como se você não fosse teimoso. — Eu sou — ele concordou. — Mas não como você e seus irmãos. Gemi baixinho. — Não quero discutir com você. — Não estou discutindo. Estou só falando algo que você não gosta de ouvir. Revirei os olhos. — O que fez hoje? Ele pensou um pouco, depois disse: — Fui levar flores ao túmulo da sua tia. Também levei algumas ao túmulo da sua amiga.

Minha voz foi tomada pela emoção. — Obrigada, tio Harry. Você é demais. — Você que é, querida.

Pisquei algumas vezes quando Kale se mexeu ao meu lado. Olhei em volta e descobri que a missa havia acabado. O padre se aproximou de minha família e apertou a mão de cada um de nós, oferecendo condolências. Não consegui responder, mas Kale falou por mim. — Obrigado, Padre — ele disse. Segurei novamente a mão de minha avó e de minha mãe, enquanto Kale, meus irmãos, meu pai e dois agentes funerários erguiam o caixão de meu tio e o carregavam para fora da igreja, com todos os presentes seguindo o cortejo lentamente. Assim que meu tio foi posto no carro fúnebre, voltamos ao veículo preto e acompanhamos a última jornada de tio Harry. Doía demais. Senti que rasgava por dentro quando passamos pela casa dele, a caminho de sua última morada, o Cemitério York. A essa altura, tudo parecia passar voando. Um piscar de olhos, e estávamos ao lado da sepultura, enquanto o caixão de meu tio era baixado à cova e o padre fazia suas orações. Uma amiga de minha mãe entregou uma rosa vermelha a cada membro da minha família e a Kale, para jogarmos sobre o caixão de meu tio. Eu fui a última pessoa a jogar a rosa, mas antes de soltá-la, beijei as pétalas e murmurei: — Vou sentir sua falta para sempre. Tive a impressão de que a rosa caiu em câmera lenta e aterrissou na placa onde o nome de meu tio havia sido gravado com nitidez espantosa. O padre falou mais um

pouco sobre como meu tio havia sido amado e quantas vidas tinha tocado. Pouco depois, Time to Say Goodbye, de Andrea Bocelli e Sarah Brightman, começou a tocar enquanto o padre fazia as preces finais. Consegui me segurar durante o primeiro minuto da canção, mas assim que o refrão começou e ouvi as palavras “hora de dizer adeus”, desmoronei. Braços me envolveram vindos de trás, e um rosto tocou um lado do meu. — Ele vai estar sempre com você — sussurrou a voz áspera de Kale. Solucei e virei para esconder o rosto em seu peito, agarrando-me a ele e chorando todo a dor que me inundava. Não sei por quanto tempo chorei, mas logo senti o abraço de meus pais; choramos juntos por meu tio. A canção terminou, marcando o fim do funeral, e as pessoas começaram a ir embora. Olhei para o grupo que se dispersava e encontrei Kale. Ele estava diante do túmulo de Kaden, separado do de meu tio por umas trinta sepulturas, mais ou menos. Olhava para a lápide com as mãos nos bolsos da calça social. Estava me preparando para ir ampará-lo, como ele havia me amparado, mas fiquei paralisada quando, do nada, vi Drew caminhando na direção de Kale. Usei esse tempo para estudá-la, notando que, apesar de ainda parecer a mesma de antes, o rosto exibia sinais da perda. Não era mais vibrante como eu lembrava. Não sei se ela falou com Kale quando parou a seu lado, mas ele olhou para ela, e tirando a mão esquerda do bolso, passou um braço sobre seus ombros, abraçando-a enquanto, juntos, olhavam para a lápide do filho que tiveram. O ciúme era como um turbilhão em meu estômago, quis me espancar por causa disso. Por que ainda tinha esse sentimento ao vê-los juntos, quando era óbvio que a única

ligação entre eles agora era a lembrança do filho que perderam? Desviei o olhar para que eles pudessem ter um momento de privacidade com o filho, em vez de suportarem minha curiosidade. Transferi o foco para minha avó, que abraçava os pais de Kale. Não os via há anos, mas eles continuavam como eu lembrava; tinham apenas algumas linhas a mais em torno dos olhos e um andar menos saltitante. Perder o neto e ver o filho enfrentar um período tão difícil tinha esse tipo de efeito, sem dúvida. Quando me aproximei deles, a senhora Hunt foi a primeira que me viu. — Lane — ela falou com entusiasmo. — Ah, minha menina, é muito bom te ver. Sorri quando ela correu para mim e me abraçou, me apertando tanto, que tive medo de quebrar. — Solta a pobre da moça, Helen... vai esmagar a garota — comentou senhor Hunt, e notei que seu sotaque regional continuava forte. Sempre me surpreendi por Kale não ter assimilado nem um pouquinho do sotaque do pai. O acento de Newscatle era forte, mas servia para mostrar que ele era um garoto de Yorkshire em sua essência. Ri quando a senhora Hunt me soltou, só para me abraçar de novo. Quando ela finalmente se afastou um pouco, seu marido se aproximou rapidamente, antes que ela tivesse tempo de me envolver novamente com os braços. — É fabuloso te ver de novo, querida — ele disse, sorrindo para mim antes de beijar minha testa como havia feito tantas vezes antes quando eu era mais nova. — Igualmente, senhor, vejo que está ótimo. E estava: havia emagrecido muito e tinha uma excelente aparência. Senhor Hunt piscou.

— Kale e seus irmãos se encarregaram da minha dieta e me obrigaram a adotar uma alimentação saudável. Sério, prefiro ir ao bar com seu pai e comer peixe com batatas algumas noites por semana, em vez de contar as calorias que como. Ri, animada. — Pelo jeito, meu pai tem comido e bebido por vocês dois. Ele riu, e vi um sorriso autêntico no rosto de meu pai. — Então — perguntou depois de uns instantes —, como vai a vida na Grande Maçã? Meu sorriso sumiu. — Vai... bem. Senhor Hunt entortou a boca, mas não disse mais nada. Olhei na direção de um casal que me chamou pelo nome. Eram amigos de meus pais, e eu pedi licença aos Hunts para ir cumprimentar aquelas pessoas e algumas outras que me abordavam para oferecer condolências. Não sei como consegui me controlar, mas consegui, e me sentia moderadamente feliz por isso. Sabia que lágrimas provocariam solidariedade, e solidariedade provocaria mais lágrimas. E meu Deus, eu não queria mais chorar. Quando terminei de cumprimentar e agradecer às pessoas, fui para o carro que tinha me levado ao cemitério e encontrei minha mãe no caminho. — Você vai ao pub? — ela perguntou. Balancei a cabeça. — Só quero voltar para casa e dormir. Se eu for ao pub, vou ficar chorando em cima das pessoas, mãe. Minha mãe assentiu compreensiva. — Eu sei, querida. Também não vou ficar lá por muito tempo. Só quero ir e agradecer a todos pela presença. — Agradeça por mim também, ok? Ah, e se despeça do Kale. Não tive uma chance de dar tchau para ele. Minha mãe assentiu de novo e beijou meu rosto.

— Pode deixar. Vai para casa e dorme. Eu passo no seu quarto quando chegar. Pede ao motorista do carro preto para te levar. Ally e Samantha estão de carro, vamos pegar carona com elas até a igreja. Não voltei a ver nenhuma das duas desde que cheguei à casa dos meus pais, na noite anterior, o que não era surpreendente, considerando o número de pessoas que compareceram à missa e ao funeral. Abracei minha mãe com força, antes de seguir em direção ao carro preto. O motorista fumava um cigarro, mas o jogou no chão e apagou no sapato rapidamente quando me aproximei. — Oi, senhorita — ele disse, inclinando a cabeça ao me cumprimentar. — Oi. Pode me levar para casa, por favor? — Não quer ir ao local da reunião? Balancei a cabeça. — Não estou com disposição, hoje, não. Ele franziu a testa. — Meus pêsames. Fiquei triste ao pensar que, com o trabalho que tinha, ele devia repetir essas mesmas palavras com muita frequência. — Obrigada, senhor. Ele abriu a porta atrás do banco do banco do motorista e me convidou a entrar. — Em poucos minutos, estará em casa — prometeu com uma piscada. Em um minuto, eu estava no interior do automóvel atravessando a cidade, no outro, subia a escada da casa dos meus pais. Queria ir para a cama e me encolher em posição fetal, mas precisava tomar um banho e tentar lavar esse dia do corpo. Depois da ducha, peguei uma toalha grande da prateleira, me enrolei e saí do banheiro, fui para o meu quarto, onde

um vento gelado me envolveu e provocou um arrepio. Sorri e balancei a cabeça ao ver outro pijama de estampa de Pokémon, o que só fez crescer o amor por minha mãe. Ela era muito atenciosa. Vestida, calcei meias felpudas e os chinelos novos, antes de secar o cabelo. Não alisei os fios, só sequei, depois prendi o cabelo seco em um coque bagunçado no alto da cabeça. Eu me sentia relaxada. Quando eu me preparava para deitar e me entregar ao silêncio e à escuridão, ouvi a campainha. Fechei os olhos, suspirei e, por um momento, pensei em ignorar o barulho, mas desisti ao lembrar de todas as pessoas que tinham aparecido desde a minha chegada para trazer condolências pela morte de meu tio. Saí do quarto e desci a escada para abrir a porta. Meu tio merecia o respeito e as condolências de todos, e eu as aceitaria com prazer, mesmo que isso me matasse. Abri a porta, e meus olhos inchados encontraram um rosto muito conhecido. — Kale! — falei, surpresa. — O que está fazendo aqui? Sua boca se distendeu quando ele olhou para o meu pijama, antes de me encarar. — Sua mãe disse que você veio para casa porque não ia conseguir lidar com todo mundo no pub, e eu vim te fazer companhia. Não quero que fique sozinha nesse momento. Murmurei: — Mas eu não mereço seu conforto, não mereço nada de você. Kale franziu a testa. — Por que não? Dei de ombros. — Porque compliquei tudo para você, depois fui embora e passei seis anos sem falar com você.

Ele comprimiu os lábios. — Vamos para a sala, podemos ver um filme ou alguma coisa assim. Não vou falar sobre isso hoje, nem amanhã ou depois de amanhã. Quando a morte de seu tio não for tão recente, nós vamos conversar, mas, por enquanto, vamos deixar isso para lá. Arregalei os olhos por um momento, mas assenti depressa, me virei e fui para a sala de estar, enquanto Kale fechava a porta. Que bom que tive alguns segundos sozinha, porque me sentia à beira de um surto. Sabia que Kale e eu teríamos de conversar — e que teríamos de falar sobre tudo —, mas ouvir isso dele me deixou muito nervosa. Era pavoroso pensar em como essa conversa poderia ser. — Você está bem? — Kale perguntou. Sua voz me assustou. Assenti, atordoada. — Estou ótima. Ele arqueou uma sobrancelha. — Não pode mentir para mim, Lane. E não é verdade? — Tudo bem, não estou ótima, mas também não estou destruída. Agora não, pelo menos. Ele apontou o sofá. — Senta e escolhe alguma coisa para ver. Volto em um minuto. Estranhei. — Onde vai? — Fazer chá para nós, é claro. Fiquei surpresa com minha risada rouca, e ainda mais surpresa quando isso o fez sorrir. — Uma xícara de chá seria perfeito. Ele riu e virou para a cozinha. — Três cubos de açúcar e muito leite. Vou providenciar.

Meu queixo caiu. — Você lembra como eu costumo tomar chá? — perguntei, e o choque ficou evidente em minha voz. Ele parou na porta da sala e, sem virar para trás, disse: — Acha que eu esqueceria? Não falei nada, e Kale seguiu em frente, saiu da sala e continuou pelo corredor até a cozinha. Por alguns momentos, olhei para o espaço que ele deixara vazio, depois sentei no sofá e fiquei olhando para a tela apagada da televisão. Ele lembrava de como eu gostava do chá. Eu não sabia se isso era só um dado armazenado, porque Kale havia preparado muitas xícaras de chá para mim durante toda minha vida, ou se era uma informação a que se apegou depois da minha partida, e isso me matava, porque eu não podia perguntar. Seria desconfortável. Eu não podia perguntar nada que tivesse relação aos sentimentos entre nós. Sabia como tinha sido essa conversa, e não foi bonito. Além do mais, uma conversa sobre nosso passado seria nos termos de Kale; eu devia isso a ele. Liguei a televisão e fui mudando de canal até encontrar The Big Bang Theory. Escolha segura. Era uma série de comédia, e a probabilidade de eu desandar a chorar enquanto víamos o programa era baixa. Alguns minutos passaram antes de Kale voltar à sala com duas xícaras de chá nas mãos. Ele deixou as xícaras sobre os aparadores na mesinha de centro, na frente do sofá. Ele sentou ao meu lado, a poucos centímetros de distância, com o braço sobre o encosto do sofá e as pernas afastadas enquanto assistia ao programa. Eu não conseguia me concentrar em nada, só no quanto Kale estava perto de mim. Tão perto, que eu sentia seu cheiro delicioso, e isso era uma tortura, uma súplica para enterrar o rosto em seu pescoço e inalar. Segura a onda, minha cabeça avisou.

Mordi as bochechas por dentro, depois me inclinei para frente e peguei a xícara mais próxima, soprei de leve e bebi um golinho do líquido quente. Deixei escapar um gemido audível quando a mistura açucarada desceu pela garganta até o estômago vazio. — Ai, meu Deus — murmurei. — Você ainda faz o melhor chá que já experimentei. Kale não respondeu, e quando olhei para ele, descobri que seus olhos estavam grudados em minha boca, e meu coração disparou. Depois de um ou dois momentos, seus olhos encontraram os meus, e ele sorriu. — Fico feliz por ainda ser dono do título de “Melhor do Mundo em Preparo de Chá”. Dei risada ao lembrar da época em que tinha conferido a ele esse título. Eu tinha quatorze anos, estava menstruada e com cólicas horríveis. Kale fez chá para mim pela primeira vez, e aquilo mudou tudo. Absolutamente tudo. Daquele momento em diante, sempre que estávamos juntos, o chá era responsabilidade dele. Fiquei feliz por ver que essa era uma tradição que não tinha se perdido. Ficamos sentados em um silêncio confortável por alguns minutos, antes de eu me sentir tensa. Queria oferecer minhas condolências por Kaden, reconhecer a existência dele, mas não sabia como me expressar. Tinha muito medo de estragar tudo e não parecer completamente sincera. Também temia que isso perturbasse Kale, e essa era a última coisa que eu queria. Decidi que era melhor não falar nada, em vez de correr o risco de dizer alguma coisa que aborreceria um de nós, eu, mais provavelmente. — Acho que vou para a cama, antes de dormir aqui. Era mentira. Estava pilhada demais com sua companhia, e isso me deixava muito nervosa. — Vai. Eu fico aqui até seus pais e irmãos chegarem.

O que fiz para merecer tanta generosidade?, pensei e franzi a testa quando minha cabeça rosnou: Nada. Levantei e fiquei ali parada, meio insegura. — Obrigada, Kale. Ele olhou para mim. — Não precisa agradecer, Laney Baby, estou do seu lado. Meu coração deu um tranco, e me surpreendi por ele ainda estar funcionando. — Laney Baby... — murmurei. — Isso não vai mudar nunca, vai? Kale sorriu, balançou a cabeça e respondeu: — As coisas não mudaram por aqui, garota. Olhei em volta e estranhei. — Tem certeza? Porque daqui tudo está diferente. — Eu sou o mesmo — ele respondeu e lambeu os lábios. — Praticamente o mesmo, pelo menos. Olhei para ele, olhei de verdade, e vi que ele me encarava de volta, cravando os olhos cor de âmbar nos meus. — Todo mundo muda, Kale. Nada fica igual para sempre. Ele franziu a testa. — Você mudou? Era como se ter de fazer essa pergunta o fizesse sofrer. Assenti relutante. — Não sou mais a mesma Lane que você conheceu, Bichinho. Foi uma surpresa quando minha resposta desenhou um sorriso glorioso no rosto dele. O tipo de sorriso que provocava frio na barriga, coração disparado e falta de ar. Era uma coisa linda. — Minha Lane ainda está aí em algum lugar — ele disse com um tom objetivo. — Só ela me chamaria de “Bichinho”. Sempre o chamei assim porque ele tinha aqueles olhos grandes de filhotinho de cachorro, e essa era uma coisa que

nunca mudaria. O brilho neles havia mudado, mas não o tamanho. Eu não sabia o que dizer, por isso só sorri e me despedi. Quando entrei no meu quarto, fechei a porta, me encostei nela, escorreguei até o chão e fiquei olhando para a escuridão. Ele disse minha. Kale falou que eu era sua Lane. Balancei a cabeça ao pensar nisso, porque não era verdade. Não é possível pertencer a alguém sem ter também uma parte dessa pessoa, e aprendi do jeito mais difícil que nunca tive nada de Kale. Tinha uma lembrança de como era tê-lo, mas era isso. E essa memória ia desaparecendo aos poucos. Rapidamente.

Meus irmãos iam me matar. Layton podia ser razoável, mas não Lochlan, ele viria para cima de mim como um touro bravo. Até Kale me atacaria quando soubesse como menti para meus pais e fugi para ir a uma festa, em vez de ficar na casa da minha amiga, como tinha dito que faria. O plano era infalível, isto é, até meus irmãos, Kale e os amigos deles entrarem na tal festa. — Eu vou morrer — cochichei para mim mesma no banheiro do andar de cima, onde estava sentada sobre a tampa do vaso sanitário. Estava em uma casa enorme no limite da cidade, onde uma grande festa acontecia algumas vezes por ano. Durante os últimos dois anos, ouvi as meninas mais velhas da escola falando sobre essas festas, e eram sempre um sucesso. O casal dono da casa viajava constantemente a trabalho, e o filho deles fazia esse tipo de evento para não se sentir entediado.

Eu me arrependia de ter concordado em vir, embora estivesse me divertindo antes de meus irmãos e Kale aparecerem. No entanto, nem toda diversão do mundo compensava ter de lidar com eles quando ficavam bravos comigo. — Lane? — uma voz conhecida sussurrou do outro lado da porta. Ouvi três batidas na madeira. Era Lavender. Lavender Grey — sim, esse era seu verdadeiro nome — era minha amiga. Tinha se mudado para minha rua quase dois anos antes, e ficamos amigas instantaneamente. Ela apareceu na minha vida pouco depois de tudo ter azedado com Anna e Ally. Fiquei muito feliz quando Lavender não se deu bem com elas, nem com nenhuma outra garota cruel do nosso ano no colégio; ela as viu como realmente eram, sem eu ter de avisar do que eram capazes. Passávamos muito tempo juntas todos os dias e ficamos amigas rapidamente. Ela era diferente de qualquer outra pessoa que eu conhecia. Era honesta, direta e não tolerava besteira. No dia em que a conheci, eu estava brava com Kale por ele ter me avisado no último minuto que não poderíamos fazer o que tínhamos combinado, e literalmente tropecei nela no supermercado onde Kale deveria me encontrar. Resmunguei um pedido de desculpas, e ela disse que, se era para me desculpar, que fosse sincero. De início, pensei que fosse mais uma cretina, mas logo descobri que ela era honesta e falava o que pensava, e gostei disso. Gostava de como ela era diferente de mim. Não guardava as cosias como eu; era um livro aberto. Ela não apenas me distraía da ausência de Kale em minha vida, mas me ajudava a ser mais independente com sua atitude de quem não precisa de um homem para ser feliz. Acabei adotando um pouco dessa atitude — não muito, porque ainda era obcecada por Kale, mas o suficiente para não pensar nele todos os segundos do dia.

Nesse ponto da vida, Kale e meus irmãos só voltavam para casa, da universidade em Londres, nos fins de semana, e às vezes pulavam uma ou outra semana. Eu ainda era próxima deles, mas não era mais a mesma coisa com Kale. Depois do nosso dia de compras, as coisas mudaram entre nós. Eu tinha a sensação de que o perdia. Ele rompia com Drew constantemente e fazia Deus sabe o que com Deus sabe quem em Londres, enquanto eu continuava presa em York com meus pais, meu tio e minha avó. Não fosse pela entrada de Lavender em minha vida, talvez eu tivesse morrido de solidão e tédio. — Lane — Lavender sussurrou. — Me deixa entrar. Levantei, destranquei a porta e dei um passo para o lado para ela poder entrar. Depois tranquei a porta de novo, o que aborreceu os convidados que esperavam lá fora para usar as instalações. — Vai logo! — uma voz gritou, e um punho bateu na porta. — Mais um minuto! — respondi. Olhei para Lavender, e quando vi que ela estava de mãos vazias, não disfarcei o desânimo. — Desculpa — Lavender gemeu ao ver minha expressão. — Tentei encontrar alguma coisa para você vestir, mas só tem um garoto aqui, e as roupas de menina que achei no quarto dele, que devem ser de alguma namorada, são número trinta e quatro. — Merda — gemi e escondi o rosto entre as mãos, antes de abaixá-las e olhar para o meu traje. Eu vestia uma minissaia de jeans desbotado e um cropped preto com a palavra PROVOCA estampada no peito em letras de forma branca. Foi uma decisão idiota vestir roupas tão reveladoras. Não gostei dos olhares nem dos avanços de desconhecidos na festa, e a culpa era toda minha. Eles não teriam olhado duas vezes para mim se eu estivesse com minhas roupas habituais e os óculos de

armação grossa. Ao pensar nos óculos, levei as mãos aos olhos e os esfreguei de leve, sentindo o ardor. Eu usava as lentes de contato que meus pais tinham comprado recentemente, mas as odiava. Era muito desconfortável. — Eu não devia ter vestido essas roupas — resmunguei ao sentar novamente sobre a tampa do vaso. Lavender usava uma roupa bem parecida com a minha, mas em vez da minissaia, vestia um short curto. Ela se abaixou ao meu lado e pôs a mão sobre minhas coxas nuas. — Você está linda e queria experimentar alguma coisa diferente, não tem mal nenhum nisso. Não precisa usar roupas como essas nunca mais, nem ir a outra festa, mas agora sabe que fez alguma coisa adolescentística na sua vida de garota estudiosa. Levantei uma sobrancelha. — Adolescentística nem existe, Lav. — Eu sei que não. — Ela bufou. — E não é isso que importa aqui, Traça de Livro. Traça de Livro: era assim que ela me chamava. Dei risada. — Eu sei que não é, ouvi o que você disse. E concordo com você, mas meus irmãos e Kale não vão concordar. Ela grunhiu. — Seus irmãos eu entendo, mas Kale não pode brigar com você por causa disso. — Você não conhece o Kale. Ela levantou e estendeu a mão para mim quando alguém bateu na porta do banheiro e gritou: — Vai logo! Segurei a mão de Lavender e suspirei quando ela me pôs em pé. — Desmancha essa cara de pânico, talvez a gente consiga sair daqui sem ninguém notar — Lavender comentou com uma piscada.

Assenti e tentei me manter otimista. — Fica perto de mim e não levanta a cabeça. Usei a mão livre para bater continência para Lavender, depois a segui para fora do banheiro quando ela abriu a porta. Reclamei baixo quando dois caras passaram apressados por duas garotas que esperavam na fila do banheiro e me atropelaram. — Babacas! — Lavender disse a eles e me puxou para perto dela. Fomos passando no meio do mar de gente que lotava o corredor, até chegarmos ao topo da escada. Soltei o ar numa reação de nervosismo, e Lavender apertou minha mão para me acalmar, antes de começar a descer os degraus. Quando chegamos ao pé da escada, ela parou de repente, e eu bati em suas costas. Meu rosto se chocou contra a parte de trás de sua cabeça, e gritei de dor. Instintivamente, soltei a mão de Lavender e levei as minhas ao nariz, que latejava. — O que está fazendo aqui? — Lavender perguntou com tom alterado a alguém. Ouvi uma risada de homem. — Estou me divertindo. E você também, considerando a roupa que está usando, bebezinha. — Não fala assim comigo! — Lavender rosnou. Olhei além da minha amiga para ver quem era a pessoa que estava pronta para atacar e suspirei: Daven Eanes. O namorado vai e volta de Lavender. Nesse momento, eles estavam separados. — Para com isso, Lav. É brincadeira. Ela grunhiu. — Sei. Normalmente, ela adorava o apelido, mas como estavam separados, era doloroso, para ela, ser chamada pelo

apelido. Lavender tinha me contado. — Olha só — Dave começou, chegando mais perto da minha amiga —, a gente pode conversar em algum lugar com um pouco de privacidade? Estou com saudade, bebezinha. Precisamos resolver isso. A gente nasceu para estar um com o outro. Amo você. Não cai nessa, Lavender, torci. — Tenho que ir embora com a Lane — Lavender respondeu para Daven, em vez de sugerir que ele sumisse, como teria feito, normalmente. Daven piscou os grandes olhos verdes, depois olhou para mim. E levantou as sobrancelhas quando Lavender deu um passo para o lado, me expondo completamente. Tive a sensação de que precisava de um banho quando os olhos de Daven passearam lentamente por meu corpo, da cabeça aos pés e de volta para a cabeça. Aquilo me fez sentir suja, bem suja. — Lane? — Daven falou, e o choque ficou evidente em sua voz. — Caramba, você está uma delícia! Estou? Sim, Lavender falou que eu estava linda, mas não acreditei nela. — Que palhaçada é essa, porra? — Lavender se irritou e se colocou na minha frente de novo. Graças a Deus. — Não nesse sentido — Daven se corrigiu, apressado. — Só quis dizer que ela está diferente, só isso... Você está maravilhosa, bebezinha. Ah, fala sério. — Não pode estar caindo nessa babaquice, Lav — resmunguei para Lavender, que ficou tensa. Daven me ouviu e encarou com os olhos meio fechados, enquanto segurava a mão de Lavender. Depois olhou para ela de novo e sorriu aquele sorriso de tirar o fôlego, que sempre conquistava minha pobre amiga apaixonada. Eu não

podia dizer que não era um sorriso arrasador, porque era. Um sorriso que fazia você parar e olhar, e ele sabia disso. Daven Eanes era um filho da mãe que usava sua beleza para acabar com minha amiga de vez em quando, muitas vezes. Estávamos sempre discutindo por causa da falta de respeito dele por ela, e Lavender ficava maluca por ter de ouvir nossas brigas. — Só preciso de cinco minutos, bebezinha — ele pediu. — Preciso falar com você. Balancei a cabeça quando ouvi Lavender suspirar, indicando que já estava cedendo antes mesmo de responder. Ela virou para mim, implorando com os olhos para eu não causar uma cena. Ignorei o jeito como Daven olhou para a bunda dela e me concentrei em minha melhor amiga. Revirei os olhos. — Amanhã você vai chorar por ele, mas se quer conversar, vai lá. Eu espero. O alívio a invadiu, e um sorriso enorme iluminou seu rosto. — Te devo essa, Traça de Livro. — Se meus irmãos me pegaram, vai ficar me devendo mais que essa — resmunguei quando Daven puxou Lavender pela mão e a levou para longe de mim. Assim que Lavender sumiu, o espaço vazio foi ocupado por um cara alto e bêbado que olhava descaradamente para os meus peitos, enquanto cambaleava de um lado para o outro. — Precisa de alguma coisa? — perguntei, furiosa. Os olhos vermelhos e pesados encontraram os meus, e um sorriso nojento distendeu sua boca quando ele assentiu. Recuei e disse: — Não vai rolar, parceiro, não nessa encarnação.

Minha intenção era mostrar o dedo do meio, mas minhas costas bateram em alguma coisa dura, e mãos seguraram minha cintura, me fazendo parar. — Vai com calma, benzinho — disse a voz dele. A vida não podia ser tão cruel comigo. — Desculpa — pedi com uma voz que não era a minha, torcendo para Kale não perceber que a garota que tinha batido a bunda em seu corpo era eu. — Não se preocupa com isso... Ei, tudo bem? Por que diabo ele tinha de se importar com todo mundo? Por que não podia ser um cara comum e só cuidar da própria vida? Não precisei pensar na resposta para essas perguntas, eu já sabia qual era. Porque Kale era atencioso, um ser humano perfeito... por isso. Em uma última e frágil tentativa de esconder minha identidade, cobri o rosto com as mãos quando Kale me virou. — Tem certeza de que... espera aí. Abaixa as mãos. Ele sabia. Ouvi sua voz mudar quando a mente registrou alguma coisa familiar em mim. — Por quê? — resmunguei com as mãos sobre a boca. — Acho bom eu estar enganado — ele grunhiu. — É bom você não ser quem estou pensando que é. Gemi e abaixei as mãos. — Lane? Ai, droga. Eu devia ter mantido o rosto coberto; assim teria evitado a tortura de olhar para Kale enquanto ele parecia um deus grego. Ele usava jeans escuro de botões e uma camisa azul com as mangas dobradas até os cotovelos. Nunca pensei que mangas dobradas pudessem ser tão atraentes em um homem, mas droga, elas eram. Kale usava uma touca que combinava com o tom da calça jeans. Juro por Deus, olhar

para ele provocava reações profanas em minhas partes femininas. Mas que delícia! Olhei para ele com os olhos arregalados e descobri que não podia responder, porque minha garganta estava fechada, entupida de propostas indecentes. Limpei rapidamente o pecado da garganta, e levantando uma das mãos, cocei o pescoço com desconforto. — Oi, Kale. Ele cravou os olhos vermelhos nos meus. — Oi, Lane — rosnou. Sorri de um jeito inocente. — Não esperava te ver aqui. — É — ele respondeu com um tom perigosamente baixo. — Quem poderia imaginar. Abaixei a mão e franzi a testa. — Não vai contar aos meus irmãos que estou aqui, vai? Ele não respondeu, e eu fiquei nervosa e olhei em volta, querendo ter certeza de que eles não estavam por perto. — Kale, você é meu melhor amigo, não pode me jogar na fogueira desse jeito — pedi. — Você sabe que o Lochlan vai perder a cabeça e me fazer passar vergonha. Layton só ficaria desapontado e me daria um sermão sobre os perigos de frequentar festas, beber e me aproximar dos garotos. Lochlan, por outro lado, ficaria maluco, e se Layton não estivesse ao meu lado para controlar a situação, eu estaria frita. Kale resmungou para si mesmo e depois disse: — Você não devia estar aqui. — Ele baixou os olhos para o meu corpo e engoliu em seco. — Principalmente vestida desse jeito. Fiquei um pouco atordoada quando seus olhos demoraram um pouco mais que o necessário em minha barriga e nas pernas.

— Fala sério, é só uma saia e um cropped — respondi, diminuindo suas preocupações. Ele umedeceu os lábios. — Suas pernas sempre foram tão longas? Olhei para elas, depois de novo para o Kale e arqueei uma sobrancelha. — Tenho um metro e cinquenta e três desde os doze anos. Elas continuam curtas e roliças. Seus olhos não desviavam das pernas em questão. — Não parecem roliças. Parecem mais longas. Ri e balancei a cabeça. — Você está ficando maluco. — Acho que sim, porque estou achando suas pernas muito bonitas nesse momento... como todo o restante de você. Desde quando se veste desse jeito? — ele perguntou e balançou um pouco. — Você bebeu? — Segurei seus braços. — Está bêbado? — Estou bem, só um pouco alegrinho. — Ele deu de ombros. — Tomei só duas latas de cerveja, mais umas doses de Jack Daniel’s logo que chegamos. Acho que foram umas três. Ou será que foram quatro? Uísque?, pensei, gemendo por dentro. Ótimo. Meu tio Harry adorava Jack Daniel’s, mas ele sempre dizia que havia um motivo para essa ser uma bebida de homem adulto, e ver Kale se esforçando para não perder o equilíbrio foi a prova de que eu precisava para aceitar essa teoria. Ele não falava enrolado nem tinha perdido a capacidade de raciocínio, mas estava começando a perder a briga com o álcool. Abri a boca para perguntar se Kale queria que eu fosse buscar um copo de água, mas de repente duas garotas apareceram do nada, se aproximaram e encostaram o corpo no dele sem nenhum constrangimento, rindo.

— Oi, Kale — ronronou a ruiva à sua esquerda. — Lembra de mim? — E de mim? — murmurou a loira amiga dela. Olhei para as duas sentindo raiva e ciúme formarem um turbilhão dentro de mim. — Se precisam perguntar, talvez nenhuma das duas seja muito impressionante. Fechei a boca quando percebi que tinha falado alto, enquanto Kale, por outro lado, ria. As duas garotas o ignoraram e me encararam, ameaçaram avançar, mas Kale as impediu de se aproximarem de mim, graças a Deus. Ele deu um passo à frente e me protegeu com o corpo. — Acho que não, mocinhas. Ouvi queixas irritadas e ameaças, mas em vez de ficar zangado com as evidentes ex-parceiras de cama que rejeitava, ele as dispensou com educação e com votos de que tivessem uma noite excelente e segura. Mesmo meio bêbado ele era quase perfeito, e isso me irritava muito. Ele virou para me encarar e sorriu. — Recolheu as garras, gatinha? Fingi não saber do que ele estava falando. — Quer que eu pegue água para você? — ofereci. Ele riu e segurou minha mão, provocando correntes elétricas que subiam e desciam por minhas costas. — Vem comigo. Quero te levar a algum lugar onde eu consiga te ouvir direito. Eu o segui e fiquei surpresa ao perceber que Kale me levava para a escada que Lavender e eu tínhamos descido pouco antes. Fiquei tensa ao pensar em minha amiga. — Merda, Lavender — resmunguei e olhei para trás, mas não vi nem sinal dela. Devia estar com Daven, o babaca. — Para onde está me levando? — gritei para Kale me ouvir em meio à música alta.

— Para algum lugar menos barulhento — ele respondeu e continuou por um longo corredor, virou à direita e abriu a primeira porta à esquerda. Entramos em um quarto branco iluminado por um abajur em um canto. — De quem é esse quarto, Bichinho? — perguntei. Ouvi a porta fechar. — É um quarto de hóspedes. Surpresa, virei para ele e o vi encostado na porta fechada. — Como sabe que é um quarto de hóspedes? — perguntei. Ele riu. — Já estive aqui em várias outras festas. Revirei os olhos. Não queria saber com quantas garotas ele havia ficado nessa casa, nesse quarto. — Se traz garotas aqui para fazer sexo, não quero ficar nesse quarto. Ele levantou as sobrancelhas. — Eu nunca fiz sexo com ninguém aqui. Só sei que é um quarto de hóspedes. Olhei para ele, e ao ver a verdade em seus olhos meio fechados, assenti. — Vem cá — ele disse. — Por quê? — estranhei. Ele deu de ombros. — Porque eu quero que venha. — Tudo bem — respondi, curiosa, e me aproximei dele, parando a alguns centímetros. — Não respondeu à pergunta que fiz lá embaixo — ele resmungou e estendeu as mãos para me segurar pelo quadril. Arregalei os olhos. Ouvi as batidas do meu coração.

— Que pergunta? — Não lembrava de nada do que ele tinha dito, porque agora suas mãos estavam em mim. Kale riu. — Perguntei desde quando você se veste desse jeito. Engoli em seco. — Desde hoje à noite. As roupas são da Lavender. Só peguei emprestadas. Ele mordeu o lábio inferior e me examinou mais uma vez sem pressa. Olhava para mim como se gostasse do que via. Olhava para mim como se eu não fosse uma menina, ou sua melhor amiga. Olhava para mim como se... me desejasse. — Desde quando você olha para mim desse jeito? — perguntei, sentindo um pouco de falta de ar. Os olhos de Kale brilhavam como fogo quando ele sorriu para mim. — Desde que te vi com essa minissaia, desde que te vi de sutiã dois meses antes de você fazer dezesseis anos. Comecei a te ver mais como mulher do que como uma garotinha. Quase caí. Ele me notou naquele dia? Revirei os olhos como se o comentário não me afetasse. — São meus peitos, não são? — perguntei com tom de provocação. Estava fazendo um esforço enorme para parecer descolada. Kale olhou diretamente para o meu peito. — Sempre são os peitos, Lane. Não consegui segurar o riso. — Seu pervertido. — Ei. — Ele sorriu, e os olhos cor de uísque encontraram os meus. — Você perguntou. Eu o empurrei de brincadeira.

— Se já terminou de rir da minha cara, podemos voltar lá para baixo. Ele não se mexeu. — Quem disse que estou rindo? — murmurou. Tossi para limpar a garganta. — Eu sei que está. — Por quê? Ele queria uma lista? — Porque sou sua melhor amiga, sou como sua irmã e ainda não tenho dezoito anos — respondi. — Três coisas de que sempre me lembra quando falamos sobre qualquer coisa que tem a ver com sexo. Kale passou a língua pelos lábios, e isso chamou minha atenção. — Eu falo essas coisas para o seu bem, não meu. — Como assim? — perguntei com a testa franzida. Ele piscou e desviou o olhar. — Merda. Deixa para lá. Esquece o que eu disse... — Ah, não, nem vem — cortei e agarrei sua camisa quando ele tentou se afastar. Kale resmungou, mas não resistiu ao contato. — Explica isso. Agora — exigi. Ele olhou para o teto, depois de novo para mim, e disse: — O que quer que eu diga, Lane? — Quero que explique o que disse. A mandíbula se contraiu. — Tem certeza de que quer ouvir isso? — Eu perguntei, não? Ele umedeceu os lábios e disse: — Eu sei... sei que você... gosta de mim. Senti meu coração disparado cair dentro do estômago. Fica fria. — O... o quê? — gaguejei.

Fica fria, porra! Pigarreei. — Pode repetir? Ele olhou para mim. — Faz anos que sei que gosta de mim daquele jeito. Eu não entendia o que estava acontecendo. — Por que pensa assim? — perguntei, tentando não parecer tão atordoada quanto me sentia. — Fala sério, Lane — ele disse com um sorrisinho contido. — Já notei como olha para mim, como reage quando falo de Drew e das outras garotas... E vi o que escreve nas páginas da agenda da escola. Ele não fez isso. Reagi, horrorizada. — O quê? — Lane ama Kale. — Agora o sorriso era largo. — Minha favorita é Sra. Lane Hunt. Isso não estava acontecendo. — Ai, meu Deus — sussurrei e tentei passar por ele. Kale riu e balançou um pouco quando me segurou. — Não fica com vergonha. Com vergonha?, minha cabeça berrou. Estou mortificada, porra. — Me solta — pedi. — Meu Deus, não consigo nem olhar para você de novo. Kale continuou rindo enquanto eu tentava me soltar, e isso me fez perder a cabeça. — Para de rir de mim! — gritei. Ele colou o rosto em meu cabelo, e isso me paralisou. — Não estou rindo de você, só da sua reação por eu saber que gosta de mim. Meu rosto era como uma bola de fogo. — Cala a boca, Kale!

— Ah, desisto. — Ele riu de novo. — Se é para você se sentir melhor, também gosto de você. Tudo parou. Meu coração. Minha respiração. O tempo. — Está brincando — sussurrei depois de um silêncio prolongado. Ele pressionou o rosto contra minha cabeça. — Olha para mim. Olhei. Levantei a cabeça até ver seu rosto hipnotizante. — Não é brincadeira. Eu gosto de você — Kale falou olhando dentro dos meus olhos, e seus olhos também falavam comigo. Ele estava dizendo a verdade. Meu queixo caiu. — Desde quando? — perguntei aturdida. Ele sorriu, acanhado. — Já falei. Notei tudo em você uns dois meses antes do seu aniversário de dezesseis anos. Você estava com raiva de Anna O’Leary e Ally Day e enfiou na cabeça que queria mudar de aparência. Antes daquele dia, eu já havia notado que você estava, hum, encorpando, mas quando cortou o cabelo e comprou roupas novas, a mudança realçou tudo que eu achava atraente em você. Foi como levar uma injeção de tesão direto no pau. Passei a maior parte daquele dia, e muitos outros dias depois daquele, tentando esconder minha ereção por você. Eu não conseguia fazer nada além de encará-lo com os olhos arregalados enquanto pensava: Ele está falando tudo isso porque bebeu demais? — Eu sei — Kale continuou, notando minha reação. — Essa confissão é repentina e saiu do nada, mas, porra, você está insanamente gostosa hoje, e quando olhou para mim lá

embaixo com aquela cara de vontade e ficou toda irritada com as garotas por minha causa, tive que fazer um esforço enorme para não te beijar, te tocar. Levei a mão esquerda ao braço direito e me belisquei. Gemi ao sentir a dor, e Kale franziu a testa. — Por que fez isso? — Só queria ter certeza de que não estou sonhando — expliquei. Ele olhou para mim por um momento, depois um sorriso de tirar o fôlego distendeu seus lábios. Também sorri, mas o segurei pelos braços de novo quando ele balançou. — Merda — ele resmungou, balançando a cabeça para tentar clarear as ideias. — O uísque está batendo na pior hora. Ri baixinho. — Estou com vontade de fazer uma piadinha sobre sua incapacidade de aguentar o tranco da bebida. — Experimenta beber cerveja depois de várias doses de Jack Daniel’s, quero ver quanto tempo consegue ficar em pé. Fiz uma careta debochada. — Dez paus como aguento mais tempo que você. Kale lambeu os lábios e olhou para minha boca. — Eu topo. — Para de olhar para mim como se quisesse me comer. — Ri. — Mas eu quero. Meu momento de humor passou. — E como seria isso, exatamente? Kale gemeu. — Mas ela está atrevida demais hoje. Sorri provocante.

— Sempre sonhei ter esse tipo de conversa com você. Vamos dizer que estou pronta para a experiência na vida real. Ele mordeu o lábio inferior, olhou para o meu corpo e deu um passo para trás. — Quero olhar para você. Arqueei uma sobrancelha. — Está olhando. Ele sorriu, levantou uma das mãos, apontou o dedo indicador e o girou descrevendo um movimento circular. Queria que eu desse uma volta. Balancei a cabeça de um jeito bem-humorado, sorrindo enquanto girava devagar, balançando o quadril de um lado para o outro enquanto executava o movimento. — Caramba, Laney Baby — Kale murmurou com voz rouca. Pisquei, surpresa, enquanto via seus olhos descerem lentamente do meu rosto para os seios, que finalmente haviam decidido se desenvolver no último ano e meio. Ele lambeu os lábios lendo a palavra estampada na frente do meu cropped e riu, depois continuou baixando o olhar. — Você pôs um piercing no umbigo — ele murmurou, mais para si mesmo do que para mim e depois me encarou e perguntou: — Onde mais? Umedeci os lábios e me senti esquentar por dentro. — Não tem outro, mas... — Mas? — Kale insistiu. — Tenho uma tatuagem na parte interna da coxa — contei, apressada. — Fiz há uns dois meses com a Lavender, foi um presente de pré-aniversário pelos dezoito anos no mês seguinte. Só Lavender sabia da tatuagem, e agora Kale. Se meus pais ou meus irmãos soubessem, ficariam furiosos, e não

queria nem pensar no que aconteceria se soubessem que tipo de tatuagem eu tinha feito. A expressão de Kale endureceu. — O que você tatuou? Ele parecia atormentado. — Só uma palavra — sussurrei. Ele chegou mais perto de mim. — Que palavra? — Saboreia. A inspiração forçada de Kale fez minhas pernas tremerem. — Você é perfeita. Meu coração batia tão forte, que o peito doía. — E você é o rei do xaveco — murmurei. Kale tocou meu rosto, segurou a bochecha e deslizou o dedo pela área embaixo do olho esquerdo. — Para onde foi minha menina? — ele murmurou. Fiquei séria. — Estou bem aqui. Ele balançou a cabeça de leve. — Não, minha menina usa óculos e tem pavor da ideia de ser vista com pouca roupa. Tinha pavor. Lavender ajudou a construir minha autoestima quando percebeu o quanto ela era baixa. Havia me observado muito durante as primeiras semanas da nossa amizade, e esperou um pouco antes de apontar que eu “me escondia atrás dos livros”. No início ela pensou que eu fosse apenas quieta, mas quando contei como Anna e Ally me fizeram sentir em relação a mim mesma, ficou furiosa. Perdeu a paciência e jurou que seria sempre completamente honesta comigo, disse que eu era bonita e que não devia me esconder atrás dos livros que amava tanto, porque o mundo real era muito melhor que a ficção.

Lavender começou a me elogiar todos os dias. Dizia várias vezes que eu tinha uma letra linda e que queria ter orelhas e boca como as minhas. Coisas bobas que muita gente nem notava. Os elogios foram só o começo; ela também me levava para viver novas aventuras. Ela era ousada e acreditava que a maioria das coisas devia ser experimentada uma vez, pelo menos, e me levava com ela nessas descobertas. Lavender alargou minha percepção do mundo e de mim mesma, e com o tempo, acabei ficando satisfeita com quem eu era. Não era uma esquisita ou uma nerd por gostar de ler, e não era gorda ou feia por não corresponder à versão de beleza defendida pela sociedade. Lavender me fez reconhecer a beleza que eu tinha. Eu não entendia o que ela via em mim, porque sentia que não oferecia nada grandioso à nossa amizade, mas ela disse que o jeito como eu me importava com ela era suficiente. Disse que notava quando eu me importava com alguém; eu tratava essas pessoas como parte dos meus livros preferidos. Amava-as e tinha carinho por elas. E, Lavender disse, isso era especial em mim. — Estou crescendo — falei, séria. — Isso é você crescendo? — Kale perguntou, sem deixar de deslizar o dedo pela área embaixo do meu olho, enquanto os dele ficavam mais vermelhos a cada minuto. Assenti. — Essa sou eu me divertindo, Kale. Quis vir a uma festa e descobrir por que todo mundo gosta tanto disso; cansei de ler sobre elas nos livros. Queria viver, sentir de verdade como é uma festa. Ele gemeu, e o som me fez passar a língua pelos lábios e dar um pulinho, provocado pelo raio de excitação que subiu por minhas costas. — Queria experimentar uma festa vestida desse jeito? — Kale perguntou, transtornado. Defendi minha posição.

— Vou fazer dezoito anos no mês que vem, posso me vestir assim... e ficar com quem eu quiser, se quiser. Kale parou de respirar por um segundo e abaixou a mão. — Não ficou com ninguém... ficou? Senti meu rosto esquentar. — Por que quer saber? Sufoquei um gritinho quando senti as costas empurradas contra a parede atrás de mim e vi Kale na minha frente, com o corpo colado ao meu. Senti meu centro pulsar. — Você já fez sexo? — ele perguntou, me encarando sem piscar. Eu era muito maluca por achar esse cara tão sexy quando ficava bravo. — O que vai fazer se eu disser que sim? Ele apoiou as mãos dos dois lados da minha cabeça e disse: — Vou arrancar o pau do filho da mãe. Minhas pálpebras tremeram, e não consegui segurar o riso. — E se eu disser que não, o que vai fazer? Ele baixou os olhos vermelhos para minha boca, e meu coração quase parou completamente. — Responde, e eu te mostro. Mostra. Não diz. — Não — murmurei. — Não fiz sexo com ninguém. Kale aproximou o rosto do meu, até nossos lábios estarem a centímetros de distância. — Eu bebi demais. — Ele soluçou. — Portanto pode chutar meu saco se eu te beijar e não for legal. Mordi o lábio, e o gesto o fez gemer de novo. Senti a ereção me tocando. Porra. Merda. Estava acontecendo. Finalmente.

— Vou chutar seu saco se você não me beijar. Kale encostou a testa na minha e disse: — Não quero fazer nada que estrague as coisas. — Tarde demais — respondi, morrendo de medo de ele mudar de ideia. — Você quer me beijar, e eu quero muito te beijar. — Não vamos mais ser amigos depois disso — ele cochichou, balançando na minha frente. — Nunca mais vamos poder ser amigos. Levantei as mãos e o agarrei pela camisa. — Não quero ser só sua amiga. Ele piscou. — Você me quer mesmo? — Porra. Eu quero. Um fogo iluminou seus olhos, e ele aumentou a pressão do corpo contra o meu. — Pensa bem — disse com firmeza, gemendo quando me mexi e rocei o quadril em sua ereção. É, ele está de pau duro. Por mim. Engoli em seco. — Não parei de pensar nisso nos últimos dois anos. Kale grunhiu. — Está me deixando desse jeito. Não contive um sorriso. — Acho que é esse o objetivo. Ele olhou para mim sem esconder o desejo. — Última chance para desistir e fugir de mim. De jeito nenhum. — Eu nunca fugiria de você. Kale aproximou ainda mais o rosto do meu. — Jura? — Juro — murmurei e o puxei para mim pela camisa.

Ele não protestou; na verdade, quase deslizou comigo para o outro lado do quarto, mas parou e disse: — A porta. Eu o soltei, e ele foi trancar a porta. Quando virou para me encarar, comecei a ficar nervosa. Muito nervosa. Continuei recuando até a parte detrás das minhas pernas tocar a cama. — Tem certeza? — Kale perguntou, cambaleando em minha direção. Eu o segurei quando ele tropeçou no próprio pé. — Eu tenho, mas e você? — perguntei. — Sei que bebeu demais, e não quero tirar proveito... — Pode parar por aí — ele me interrompeu, rindo. — Não está se aproveitando de mim, Laney Baby... pode acreditar. Eu acreditava, mas ele não estava exatamente lúcido, e eu não queria que essa fosse uma noite muito boa que se tornaria algo muito ruim na manhã seguinte. — Ok — sussurrei. Kale olhou para mim e lambeu a boca. — Deita, benzinho. Merda. Sim, estava realmente acontecendo. Sentei na cama e deitei como Kale pediu. Olhei para ele e o vi encostar os joelhos nos meus, tirar a touca e jogar no chão. Seu cabelo estava todo despenteado, o que só compunha o visual de deus grego. Os olhos inflamados continuaram cravados em mim enquanto ele tirava os sapatos e começava a desabotoar a camisa. Aiii, meu Deus. Lambi a boca quando a camisa deixou seu corpo e caiu no chão. Acompanhei a peça com os olhos até ela desaparecer, e então olhei instintivamente para o que Kale estava me oferecendo. Suas mãos estavam no cinto, abrindo a fivela. As minhas imploravam para ajudar, e eu sentei e segurei

suas mãos, olhando para ele com uma pergunta atrevida e silenciosa no olhar. Kale soltou a fivela e segurou meu rosto, sorrindo para mim. Tomada por uma onda de coragem, abri o cinto e o botão da calça jeans. Desci o zíper e puxei a calça para baixo, até ela cair no chão. Não disfarcei o espanto quando vi que ele estava realmente ereto, e olhei para aquela parte que tinha imaginado durante anos. Uma parte que correspondia às minhas expectativas. Pode acreditar. — Porra — murmurei. Kale riu, tocou meu cabelo e deslizou as unhas por minha cabeça. A sensação me fez aproximar a boca de seu corpo, mas ele reagiu depressa e projetou o corpo para trás. — Que foi? — perguntei, intrigada. Kale se aproximou de novo. — Não tem nada que eu queira mais do que sentir sua boca em mim, mas não agora. Não tenho controle para isso. Entendi o que ele queria dizer, e meu rosto ficou quente. — Tão linda — Kale murmurou, deslizando o polegar por meu rosto. Fui invadida pela confiança, mas o nervosismo se impôs de novo quando ele me deitou na cama e disse: — Quero que isso seja muito bom para você. Hesitei, confusa. — Não entendi. Ele levantou minhas pernas e tirou os sapatos de salto dos meus pés. — Kale — insisti. — Como assim quer fazer isso ser muito bom para mim? Ele passou para a saia, e arregalei os olhos quando o vi abrir o botão e enganchar os dedos nos passantes do cinto. Kale puxou a saia, e sem pensar, levantei o quadril para ajudar.

De repente, ele estava de joelhos, com as mãos em minhas coxas. Demorei um segundo, mas quando entendi o que ele pretendia fazer, fiquei chocada. — Não! — reagi. Ele sorriu cheio de malícia. — Ah, sim, é o que estou planejando. O pulsar que era lento e constante entre minhas coxas ganhou vida e força quando pensei no que Kale planejava fazer comigo... lá. — Kale — murmurei. — Hummm? — Me beija primeiro? — Engoli em seco. — Antes de, sabe, isso que vai fazer. Olhei para ele esperando uma reação, e quando vi o desejo em seus olhos cor de âmbar, não contive uma exclamação de espanto. Seu toque era como fogo quando ele deslizou por meu corpo até aproximar o rosto do meu. — Faz meses que quero ouvir você me fazendo esse pedido — ele murmurou. — Sério? Ele assentiu. — Repete, mas, dessa vez, manda. Meu coração disparou. — Me beija, Kale — sussurrei. — Agora. — Sim, senhora. Seus lábios tocaram os meus, e a magia aconteceu. Depois de todos os anos que passei admirando Kale, eu achava que sabia tudo que havia para saber sobre seus lábios, mas nada que imaginei sobre beijar essa boca se aproximou da realidade. Minha pele se arrepiou quando uma corrente elétrica subiu e desceu por minhas costas, antes de ser rapidamente substituída pelo calor que se espalhava por todo meu corpo.

Ele tinha sabor de uísque, e eu sabia que nunca seria capaz de separá-lo desse gosto e cheiro. Era ele, simplesmente. Entreabri os lábios quando a língua de Kale os tocou, pedindo para entrar. O pulsar entre minhas coxas latejava a cada contato da língua com a minha. Eu imitava seus movimentos, e encontramos rapidamente um ritmo no beijo, expressando uma voracidade que era mais urgente que a próxima respiração. Sua boca era quente, e a carícia dos lábios era mais suave do que eu jamais poderia ter imaginado. Abri a boca com um gemido baixo quando Kale gravou seu sabor em meus lábios. Os beijos se sobrepunham a todos os pensamentos. Ávida, enchi os pulmões de ar quando a boca se afastou da minha minutos mais tarde. Ele pressionou a testa à minha, e com o peito subindo e descendo depressa, respirou fundo e gemeu baixinho. — Eu sabia que seria assim — murmurou. — Sabia que nós dois juntos seríamos como fogo. A necessidade que eu sentia por ele me consumia. — Kale, por favor — implorei. — Me toca. Ele fez um ruído que parecia um grunhido quando abaixou o rosto e cheirou meu pescoço. Engoli em seco quando ele foi beijando meu corpo dali para baixo, parando na parte inferior da barriga ao ouvir minha reação chocada. Kale olhou para mim e sorriu preguiçoso. — Você vai adorar, meu bem, prometo. Eu não duvidava disso, mas e se ele não adorasse? — E se você não gostar... porque vai sentir o gosto... Ai, meu Deus. — Cobri o rosto com as mãos quando Kale começou a rir. — Laney Baby, sua inocência está acabando comigo. Sei, e a vergonha acabava comigo.

— Só me deixa morrer aqui e... Kale! Tirei as mãos do rosto e agarrei o lençol quando uma sensação de puro prazer atacou o centro do meu corpo na forma de uma língua sacana. Eu conhecia a sensação que experimentava — já me satisfiz em várias ocasiões —, mas meus dedos não chegavam nem perto da língua de Kale. — Meu Deus! — gemi e mordi o lábio inferior. Levantei a cabeça e olhei para Kale, que me beijava e lambia através do tecido fino da calcinha de renda. A imagem era tão boa quanto a sensação, talvez melhor. Não conseguia desviar os olhos dele, mas no momento em que Kale puxou o tecido para o lado e aproximou a boca de minha pele nua, fui forçada a deixar de olhar. Revirei os olhos, e a cabeça caiu para trás, sobre o colchão. Ouvi os gritos, as súplicas e os gemidos ecoando pelo quarto, mas estava tão atordoada com o que a boca de Kale fazia comigo, que levei alguns minutos para perceber que os sons eram produzidos por mim. — Lane — ele gemeu com a boca em mim —, você tem gosto de paraíso. Kale chupou meu clitóris e esfregou os lábios no feixe de nervos, até eu derreter em suas mãos competentes. — Ai, caramba — gemi. — Kale, por favor. Ele passou os braços por baixo das minhas coxas e em volta do quadril, e eles se encontraram sobre a parte inferior da minha barriga. Com as mãos unidas, ele me fez ficar parada e me atacou com a boca. Gritei quando a sensação se tornou mais do que eu poderia aguentar. Percebei que o quadril subia involuntariamente, tentando encontrar o rosto de Kale, enquanto o restante do corpo tentava se afastar dele. — É d... demais! — supliquei. Kale não parou, pelo contrário, chupou com mais força, fazendo minhas costas arquearem para longe da cama,

enquanto pontinhos brancos se espalhavam por meu campo de visão. Parei de respirar por um momento, quando uma onda de puro êxtase explodiu em meu corpo na forma de impulsos deliciosos que latejavam entre minhas coxas. Isso durou só uns dez segundos, mais ou menos, mas durante esse tempo tão curto, vivi a glória completa. Abri os olhos quando senti o colchão ceder e vi Kale subir na cama e se debruçar sobre mim. Ele sorria enquanto aproximava a cabeça da minha. — Quero você todo dia no café da manhã. Senti o rosto esquentar, e achei que era muito infantil ficar envergonhada, considerando o orgasmo que ele tinha acabado de me dar, mas não consegui controlar o rubor. — Tem certeza? — perguntei, e meu corpo tremeu. — Comer a mesma coisa todo dia pode ser chato. — Essa refeição não vai ficar chata — Kale murmurou e cobriu minha boca com a dele. Eu tinha plena consciência de onde aquela boca tinha estado, e sentir meu gosto em sua língua e nos lábios era tão erótico, que o latejar que Kale havia acalmado entre minhas coxas pouco antes voltou com força total. — Kale — gemi em sua boca. Ele respondeu com um gemido, depois afastou os lábios dos meus e me pôs sentada. Fiquei confusa com o que ele queria, até que senti meus braços sendo erguidos e o cropped subindo em direção à cabeça, arrancando de mim uma exclamação de surpresa. Kale riu ao me envolver com os braços e abrir o sutiã. As alças deslizaram por meus braços, e meus seios ficaram expostos quando ele removeu a peça completamente. Eu estava nua, não só fisicamente, mas de coração. Respira, só respira, minha mente me acalmava. Você quer isso. Não, você precisa disso.

Repeti o pensamento muitas vezes enquanto Kale me deitava novamente e se debruçava sobre meu corpo. — Lane — ele murmurou. Engoli em seco e o encarei. — Não consigo distinguir o que é real do que não é nesse momento — ele murmurou. — Então, se não quer o que está acontecendo, fala agora em alto e bom som. Meu coração quase explodiu de amor por Kale; sua consideração por mim era muito importante. — Eu quero — garanti. — Pode acreditar em mim. — Minha Lane — ele sussurrou, roçando o nariz no meu. Senti o cheiro de uísque em seu hálito, e a necessidade de provar o gosto daquela boca de novo me consumia. Levantei os braços e me agarrei aos dele. — Por favor, não para. Kale olhou para mim com os olhos turvos de desejo. — Isso é real? — cochichou e levantou a mão. Tocou meu rosto com o indicador para ter certeza de que eu realmente estava ali. Assenti, e meus olhos se encheram de lágrimas. — É, Bichinho. É real. Ele começou a tremer. — Você... quer mesmo? — Kale insistiu, trêmulo, e se colocou entre minhas pernas. Também comecei a tremer, mas porque antecipava o que ia viver. — Sim — sussurrei e abri mais as pernas. — Isso... isso é o que eu quero. Você é o que eu quero, o que eu sempre quis. Eu não conseguia acreditar que tinha admitido em voz alta. — Lane — ele sussurrou de novo e aproximou o rosto do meu. — Posso ter você? Meu coração esquentou, a barriga ficou gelada.

— Inteira — murmurei. — Você me tem inteira. Sempre teve, cochichou uma voz dentro de minha cabeça. Kale gemeu e deslizou um dedo por minha abertura, sentindo que eu estava pronta para ele, depois se posicionou e, antes de me penetrar, cochichou: — Desculpa. Não sabia por que ele estava pedindo desculpas, até sentir uma dor aguda me rasgar quando ele invadiu meu corpo. Sufoquei um grito, fechei os olhos e as mãos. Tentei respirar em meio à dor repentina, mas não esperava que ardesse tanto. — Jesus Cristo — Kale falou baixinho e aproximou o rosto do meu. Ele deixou os lábios pairarem sobre minha boca por alguns segundos, antes de beijá-la de um jeito suave. Abri a boca e, nervosa, escorreguei a língua para dentro de Kale, procurando sua língua. Essa foi a primeira vez que tomei a inciativa de beijá-lo, e tinha muito medo de fazer tudo errado, mas felizmente Kale assumiu o controle, e eu me deixei levar, satisfeita. O beijo foi bom, porque me distraiu da dor entre as pernas, do ardor provocado por cada movimento de Kale. Estava quase jogando a toalha, quando, de repente, gemi dentro de sua boca e senti o ardor começar a diminuir, dando espaço para a pulsação que eu já conhecia começar a dominar meus sentidos. Isso, pensei quando a dor desapareceu e o prazer aumentou. Movia a boca em sintonia com a de Kale e empurrava o quadril para cima, e o beijo e a fricção do membro de Kale fez o latejar crescente entre minhas pernas se tornar mais intenso. Cruzei os tornozelos atrás dos joelhos dele e o agarrei pelos ombros, sentindo seu peso aumentar sobre mim. Ele

afastou a boca da minha e deslizou os lábios até meu queixo, onde foi deixando uma trilha de beijos que descia até o pescoço. — Você é... Porra. Ele falava como se estivesse nas nuvens. Eu queria responder, mas sentia cócegas, e ele respirava no meu pescoço; comecei a me contorcer tentando escapar da boca pressionada contra minha pele. Estava quase pedindo para ele parar, mas quando abri a boca, só produzi um gemido alto. Ele chupou meu pescoço com mais força, e a sensação me fez arquear as costas, enquanto arrepios se espalhavam por todo meu corpo. — Meu Deus — arfei e revirei os olhos quando o orgasmo me consumiu, atingindo meu corpo como um trem. Fiquei de olhos fechados enquanto as ondas de êxtase se sucediam, me varrendo como se eu fosse só sensação, mais nada. Kale gemeu no meu pescoço quando desci das nuvens, depois saiu de dentro de mim. — Lane... não consigo esperar. Abri os olhos e o vi. Por inteiro. E amei o que vi. — Não espera — respondi. Seus olhos mergulharam nos meus, e havia algo diferente neles. Eu me senti incrivelmente bonita naquele momento e soube que me lembraria até o fim da vida da necessidade que via nos olhos de Kale, necessidade por mim. Não era desejo. Era necessidade. — Não tenho camisinha, mas eu tiro antes. Prometo. Camisinha. Eu não tinha nem pensado em camisinha. A “conversa” da minha mãe no ano passado voltou à minha cabeça. Ela me fez jurar que eu nunca faria sexo sem proteção, mas a promessa de Kale era proteção suficiente, para mim. Confiava nele de todas as maneiras possíveis. — Confio em você.

Kale estremeceu. — Eu... meu Deus, faz tanto tempo que quero isso com você. Ele queria? Arregalei os olhos até quase expulsá-los das órbitas, mas consegui manter a calma. — Eu também — respondi, sentindo o coração bater forte no peito. — Sempre quis você. Kale fechou os olhos e gemeu uma resposta. Não contive um gemido quando ele segurou o membro e esfregou a ponta no meu feixe de nervos. Estava quase pedindo para ele fazer isso de novo, mas Kale parecia saber o que eu queria, porque fez sem eu pedir. Gemi outra vez. Kale me observou por um momento, depois me penetrou fundo. Ele abaixou a cabeça e me beijou. Um beijo longo e profundo, e quando entrei no ritmo desse beijo, ele saiu de mim e me penetrou de novo em seguida. — Ah! — gemi. Kale grunhiu e me penetrou mais forte, aumentando o prazer e o som dos meus gemidos. O prazer suave se tornou magia quente. Todo meu corpo estava vivo, cantando de prazer. — Lane — Kale quase rugiu. — Desculpa. Não consigo mais me segurar... é muito bom. Eu o abracei. — Tudo bem. Mais algumas penetrações rápidas, e Kale saiu do meu corpo, gemendo alto quando jatos de líquido quente molharam o lençol ao meu lado. Depois da explosão, ele olhou para mim por alguns momentos, antes de deixar o corpo cair sobre o meu. Seu peso não me sufocava; eu ainda conseguia respirar, mas não era exatamente confortável. Mas eu não me incomodava. Essa era minha versão do paraíso, e eu não queria que nada nela mudasse.

Continuei embaixo de Kale por alguns minutos, até seu peso começar a me machucar. — Kale — murmurei. Silêncio. Franzi a testa. — Kale? Silêncio de novo. — Kale? A resposta foi um ronco. Impossível. Ele não podia estar dormindo, ainda estava em cima de mim, pelo amor de Deus! — Kale Hunt — disse com tom firme, a ponto de perder a paciência. — Acho bom você responder. Ele gemeu no meu peito, depois rolou para o lado. Olhei para a esquerda e o vi deitado de barriga para cima, apagado. Não entendia como ele conseguiu dormir tão depressa. Ele continuava nu como no dia em que nasceu! Eu também estava pelada, e via a evidência do alívio de Kale em meu corpo. Olhei para ele e vi os mesmos sinais. Quando desabou em cima de mim, sua perna descansou sobre o lençol justamente onde estava o líquido, e foi assim que ele espalhou o resultado da nossa transa na própria pele, antes de transferir para mim. Apesar de ser só um pouco em nós dois, fiz uma careta. Não era uma puritana. A ideia do gozo de um homem não era algo que me incomodava, e o gozo de Kale definitivamente não me incomodava, mas mesmo sendo o amor da minha vida, não ia deixar aquilo na minha pele, ou na dele, por mais tempo que era necessário. Levantei da cama e corri para a porta aberta do banheiro da suíte. Peguei uns lenços de papel, molhei com água e limpei a coxa, depois, com cuidado, a região entre as pernas.

Fiquei um pouco assustada quando vi sangue no papel enquanto me limpava, mas lembrei que algum sangramento era normal depois da primeira vez. Não era muito, então não preocupei mais. Depois que terminei de me limpar, peguei mais lenços umedecidos e voltei ao quarto para limpar Kale, que não movera um músculo. Ele roncava alto, e eu não sabia o porquê, mas estava um pouco brava com ele. Não sabia o que esperar de Kale quando o encontrei mais cedo, mas terminar em um quarto, declarando que gostávamos um do outro e transando com ele não estava entre as alternativas, com toda certeza. Porém esperava que ele ficasse acordado, conversasse e me abraçasse depois. Dormir imediatamente depois do sexo não fazia parte do plano, não para mim, pelo menos. Depois que o limpei, deitei embaixo das cobertas e o cobri também. Deitei de lado, perto dele, e fiquei quieta por uma ou duas horas, só olhando para Kale, fascinada. Não conseguia acreditar que finalmente tinha o que quis durante toda minha vida. Meu Kale. Eu o tinha, e nunca mais queria soltá-lo. Cheguei mais perto, tomando cuidado para não o acordar. Hesitei por um momento, mas decidi superar o medo e deitar em seu peito. Com um enorme sorriso no rosto, fechei os olhos, bloqueei o barulho da festa lá embaixo e fiquei ouvindo a respiração de Kale. Não contava com isso, mas seus roncos me ajudaram a relaxar, e pouco tempo depois, mergulhei na escuridão com o coração cheio e feliz. Não queria que esse momento acabasse nunca.

Abri os olhos quando ouvi a batida de uma porta, e me encolhi quando gritos seguiram gargalhadas altas. Estava

escuro, e por um breve momento, não tive ideia de onde estava, até olhar para o lado esquerdo. Kale. Imagens dos beijos, das carícias e do sexo voltaram à minha cabeça, colocando um sorriso instantâneo em meu rosto. Relaxei ao lado dele e descobri que Kale estava deitado de lado, virado para mim. Olhei para a perfeição na minha frente. Não era um sonho. Eu realmente tinha transado e dormido em uma cama com Kale. Ai, meu Deus. Meu coração estava tão feliz, que eu poderia cantar. A barriga parecia flutuar, o corpo vibrava. A adrenalina corria pelas veias, e tudo porque acordei ao lado de Kale. Ele me dava uma euforia como nenhuma outra, e eu adorava isso. Adorava ele. Olhei por cima do corpo de Kale, para o relógio em cima da mesinha de cabeceira, ao lado da cama, e vi que eram mais de cinco da manhã. Tentei ouvir a música, mas não havia mais nada. Conseguia escutar risadas e vozes distantes, o que sugeria que a festa continuava animada. Não gostava da escuridão no quarto, agora que estava acordada, por isso acendi o abajur sobre a mesinha do meu lado e relaxei, me ajeitando melhor no travesseiro. Fechei os olhos e suspirei, mas voltei a abri-los quando ouvi um gemido ao meu lado. — Minha cabeça está explodindo — Kale resmungou e levou as mãos ao rosto para cobri-lo completamente. Ri baixinho. — Castigo para quem se entope de Jack. Todo seu corpo ficou tenso quando eu falei, e ele abaixou as mãos devagar para descobrir o rosto e olhar para mim. — Bom dia — eu disse radiante. — Lane? — Kale murmurou, depois esfregou os olhos e piscou algumas vezes.

Ele quase sufocou quando olhou para o meu peito nu, depois arregalou os olhos. Levantou as cobertas e olhou para baixo, para o próprio corpo nu. — Ai, Jesus. — Pânico. — Ai, Cristo. Estranhei a reação. — Que foi? Ele olhou para mim. — Que foi? Está falando sério, porra? Fui pega de surpresa pela raiva repentina. — Não sei por que está tão bravo — respondi, sentindo que minha disposição se igualava rapidamente à dele. — Você estava bem há algumas horas! Ele balançou a cabeça com desespero. — Eu estava bêbado há algumas horas, Lane. Senti o estômago revirar e o coração ficar apertado. — O q... o que você está dizendo? — murmurei, sem querer ouvir a resposta para minha pergunta. Kale olhou para mim de novo e franziu a testa. — Desculpa. Por favor, me perdoa. Perdoar? — Por quê? — perguntei com os olhos cheios de lágrimas. Ele resmungou: — Você sabe porquê... Nós transamos, Lane. Ver o arrependimento no rosto de Kale teve o mesmo efeito de um soco no estômago. — Está... se desculpando porque transamos? — perguntei, fazendo o possível para não deixar a voz tremer. Ele segurou a cabeça com as duas mãos. — É claro que estou. Você é minha melhor amiga, só tem dezessete anos, e eu nem me lembro de ter dormido com você. Ai, porra, o que foi que eu fiz? Eu te machuquei? Usei camisinha? Eu não conseguia falar.

Não conseguia me mexer. Não conseguia pensar. — Lane — Kale murmurou, e virou para mim, ainda com as cobertas sobre a metade inferior do corpo. — Por favor, me desculpa. Estou implorando. Desculpa se te machuquei. — Você não tinha camisinha, mas prometeu que ia tirar, e tirou. — Olhei para ele e pisquei. — E não me machucou. Só me destruiu. Kale fechou os olhos. — Eu sou um cretino. Sim. Sim, ele era. — Você lembra de alguma coisa? — perguntei depois de um silêncio prolongado. Ele olhava para mim, mas virou para o outro lado antes de responder: — Não. Como isso era possível? — Kale, você não estava tão bêbado — argumentei. — Alegrinho, no máximo. Ele se afastou quando tentei tocá-lo, e isso me magoou de verdade. — Não sei o que dizer, Lane. Eu estava bêbado. Acho que não sou um bêbado muito encrenqueiro, mas isso não significa que lembro de merda alguma. Ele precisava falar desse jeito, com essas palavras? Engoli a saliva. — Você não estava nem falando enrolado, embora... — Não lembro, ok? — Kale berrou. Eu não esperava que ele gritasse comigo, e o susto me fez dar um pulo. — Desculpa — ele disse ao perceber que tinha me assustado. — Desculpa, sinto muito por tudo isso. A culpa é toda minha.

Eu estava muito confusa. — Você disse que gostava de mim — sussurrei. — Se eu disse isso, não menti. Eu gosto de você... juro que gosto. Você é linda, mas sempre senti que tinha que cuidar de você, porque é como se fosse minha irmã, e por muito tempo você foi, Lane. Ele realmente me via como sua irmã? Ai, meu Deus. Estava ficando enjoada. — Tudo bem — murmurei, engolindo a bile que ameaçava subir pela garganta. — Vamos esquecer tudo isso. Não é nenhum grande problema. Era um grande problema, era uma porra de um problema enorme. — Lane. Eu me recusava a olhar para ele; se eu olhasse, as lágrimas que estavam em meus olhos iam cair. — Não, Kale, sério, tudo bem — falei e puxei os lençóis para cobrir meu corpo. — Você tem razão... isso foi um erro. Quase morri para conseguir dizer a maior mentira da minha vida. — Desculpa se eu te magoei — ele pediu, evidentemente perturbado. — Eu me odeio por ter deixado você aborrecida. Para. De. Falar. — Estou bem, de verdade — garanti. Não estava nada bem. — Eu não fui... não fui o primeiro, fui? Olhei para ele e vi o horror em sua expressão. Ele realmente não lembrava de nada, nem da conversa que tivemos antes. Isso machucou fundo. — Não — menti. — Não, já tinha feito sexo antes.

O queixo dele caiu, antes de sua cabeça subir e descer em uma resposta afirmativa. — Pode... pode virar para eu me vestir? — pedi, sentindo o rosto e o pescoço quente, resultado do rubor de vergonha. Não era timidez: eu estava simplesmente mortificada por ter de fazer uma revisão degradante da noite anterior, depois me afastar envergonhada de alguém de quem nunca deveria ter que me afastar. Levantei depressa da cama e andei pelo quarto recolhendo minha roupa de baixo e as roupas que Lavender tinha me emprestado, me vestindo em tempo recorde. Quando calcei os sapatos de salto e constatei que o celular e a chave de casa continuavam nos bolsos traseiros da saia, caminhei de cabeça baixa para a porta. — Lane? — ele murmurou. Parei na porta do quarto. — Que é, Kale? — Lágrimas lavavam meu rosto. — Você é muito importante para mim, e sabe que eu nunca seria horrível com você nem diria alguma coisa dolorosa, a menos que fosse para o seu bem, não sabe? Minha cabeça latejava, e eu não fazia a menor ideia do que ele estava falando. Não conseguia entender nada. — Tenho que ir, Kale. Ele ficou em silêncio por um momento, depois disse: — Só... não me odeie. Por favor. Esse era o problema. Eu queria odiar, mas não conseguia, amava Kale demais para sentir qualquer outra coisa por ele, e odiava isso. — Eu não te odeio — sussurrei. Ouvi o suspiro aliviado. — Tem como voltar para casa? — ele perguntou, preocupado. Assenti.

— Está tudo bem. — Olha só, vou te ver nas férias de fim de ano, e juro que vamos rir muito disso. Eu duvidava muito. — Sim — menti. — Vai ser hilário. — Leva meu casaco; deixei aqui quando cheguei na festa, algumas horas atrás. Por favor... leva. Vai morrer de frio vestida desse jeito. Hesitei. — Lane, por favor — ele insistiu. — Não quero que fique doente. Engoli a mágoa e o orgulho e virei para olhar para ele. Tomei o cuidado de não o encarar quando me aproximei da cama e peguei o casaco do chão. Vesti o agasalho rapidamente e voltei para perto da porta. Kale ficou em silêncio por um momento, antes de dizer: — A gente se vê, Laney Baby. Fechei os olhos, mas os abri antes de segurar a maçaneta. Destranquei a porta, saí e, sem olhar para trás, disse: — Tchau, Kale. — E fechei a porta. Fiquei ali parada por um momento antes de forçar minhas pernas a se moverem. Comecei a andar pelo corredor, e pouco antes de virar e seguir em direção à escada, ouvi a voz de Kale retumbar: — Merda! Merda! MERDA! — ele gritava dentro do quarto onde eu tinha me entregado de corpo e alma. Então desmoronei. Ele realmente se arrependia de ter dormido comigo. Se arrependia de mim, e estava furioso com ele mesmo por isso. Eu não suportava a dor que crescia dentro de mim. Segui apressada pelo corredor, pulei por cima de um corpo adormecido aqui e ali, até chegar à escada e descer pulando os degraus. Quando cheguei lá embaixo, olhei em volta e fiquei chocada com o estado da bela casa onde tinha entrado na noite passada.

Parecia ter sido destruída por uma bomba, e tive pena das pessoas que teriam de limpar tudo. Olhei para o grande relógio ao lado da escada e vi que eram quase cinco e meia da manhã. Não podia voltar para a casa de Lavender, porque ela falou para os pais que ia dormir na minha casa, mas como não estava comigo, eu tinha uma boa ideia de com quem ela estava. Peguei o celular no bolso de trás da saia e liguei para ela. — Atende, atende, atende — repetia em voz baixa. — Alô? — Lavender atendeu com voz rouca. — Sou eu. Onde você está? — perguntei, suspirando aliviada por ela estar bem. Lavender disse alguma coisa a alguém, depois falou comigo. — Na casa do Daven. A mãe dele tinha plantão no hospital, e ele me trouxe para cá quando não consegui te encontrar. Eu era uma amiga de merda; ela devia ter morrido de preocupação comigo. — Desculpa, eu dei uma pirada. — Tudo bem. O amigo do Daven disse que viu o Kale te levando para cima, e eu vim embora com o Daven porque sabia que, com ele, você estava segura. Segura. Sim. — É — murmurei. — Eu estava com o Kale. — Espera — ela disse, e de repente a voz soou mais alerta. — Estava com o Kale? Tipo com ele? — É — confirmei, e comecei a chorar. — Ah, baby, não — Lavender sussurrou. — Foi perfeito — contei, chorando —, mas ele acordou e surtou comigo. Disse que não lembrava de termos transado e que ele me via como irmã. Ele se arrependeu de ter transado comigo, Lav. Se arrependeu de mim. — Onde você está? Estou me vestindo e indo para aí.

Enxuguei o rosto e respirei fundo algumas vezes para me acalmar. — Não, é muito cedo — funguei. — Fica com o Daven, eu vou para c... casa. Meu pai já vai ter saído para ir trabalhar e minha mãe está dormindo. Eu entro escondida e vou para a cama, e quando ela acordar, eu digo que voltei cedo da sua casa. — Tem certeza? — Lavender perguntou. — Não ligo para a hora. Vou te encontrar, se estiver precisando de mim. Ouvi uma voz resmungar: — Tudo bem? Ela precisa que eu vá buscar? Fiquei surpresa com a preocupação de Daven; normalmente, ele nunca demonstrava nenhum tipo de sentimento por mim. Ou brigávamos por causa das brigas dele com Lavender, ou nos ignorávamos. Não tinha meiotermo para nós. — Ela está bem... pode dormir. Virei a cabeça quando ouvi uma movimentação na casa, lá em cima, e tive medo de que Kale estivesse descendo para ir embora. Eu não queria vê-lo, por isso me concentrei na ligação. — Tenho que ir, Lav. — Eu passo na sua casa antes de ir para a minha, daqui a algumas horas. — Ok — concordei. — Te amo, bebê. Aguenta firme — disse Lavender. Choraminguei. — Vou aguentar. Também te amo. Desliguei e guardei o celular no bolso. Odiava usar o casaco de lã do Kale, mas me encolhi dentro dele, deixando que me aquecesse ao abrir a porta da casa e sair para a manhã gelada. Essa roupa tinha sido uma péssima ideia, realmente.

Bati os dentes enquanto descia pela interminável alameda da casa até a rua e seguia em direção ao centro. Minha casa ficava a quinze minutos dali, e como andei depressa o tempo todo, cheguei rapidamente. Tirei os sapatos de salto alto de Lavender e os carreguei até a porta. Peguei minha chave no bolso e prendi a respiração. Encaixei a chave na fechadura, girei e empurrei a porta com delicadeza. Entrei em silêncio, fechei a porta com cuidado, tranquei e pendurei minha chave no rack. Digitei rapidamente o código do sistema de alarme quando ouvi o apito de alerta. Depois, subi a escada e xinguei até Deus quando aquela porcaria de tábua solta perto da porta do meu quarto rangeu. Fiquei paralisada por um minuto, e quando não ouvi nenhum movimento no quarto dos meus pais, saí de cima da droga de tábua barulhenta e fugi para a segurança do meu quarto, cuja porta fechei com cuidado. Caminhei na ponta dos pés até a cômoda, abri a primeira gaveta e enfiei os sapatos de Lavender lá dentro. Despi as roupas dela e o casaco de Kale e enfiei tudo na mesma gaveta. Lavei o rosto para tirar a maquiagem, escovei e trancei os cabelos. Fui para a cama, onde fiquei por muito tempo, olhando para os adesivos brilhantes no teto, me perguntando se minha noite inteira havia sido um sonho... ou um pesadelo.

— Lane, querida? — ouvi minha mãe gritar mais tarde, quando saía do banho. Tinha me esfregado com força, tentando remover um pouco da dor que sentia trocando-a por uma dor física. Minha mãe havia entrado no quarto às dez da manhã para pegar a roupa suja no cesto, e tomou um susto enorme quando me viu dormindo em minha cama. Seu grito me

acordou e quase me fez ter um infarto. Expliquei que tinha voltado para casa às nove da manhã, mas como ela ainda estava dormindo, também fui dormir mais um pouco. Ela não desconfiou de nada; estava mais preocupada com o fato de não ter me ouvindo entrar. Abri a porta e respondi em voz alta: — Que foi? — Pode vir aqui embaixo? Encostei a testa na porta do quarto e suspirei. — Posso. Só preciso de um segundo para me vestir. Entrei no quarto, me enxuguei e me vesti, depois desci. — Que foi? — perguntei. — Nada — minha mãe respondeu. — Só queria perguntar o que jantar hoje à noite. — O que você fizer. — Pizza e chips, então. Olhei para ela, depois sentei em uma das cadeiras perto da mesa. Fiquei em silêncio por um momento, e de repente senti vontade de conversar com ela, porque estava muito deprimida. — Mãe — murmurei, empurrando o cabelo molhado para longe do rosto. Ela olhou para trás por um instante, para mim, depois voltou às louças. — Que foi? Fala, pensei. — Eu gosto do Kale — disparei. Prendi a respiração assim que as palavras saíram da minha boca. Minha mãe interrompeu os movimentos e olhou para mim. — Eu sei. Ela sabe? — Sabe?

Ela assentiu. — Sempre soube que era meio apaixonada por ele. Se meu amor por ele era descrito como “meio apaixonada”, então, sim, eu tinha uma paixão maluca pelo Kale. — Por que nunca falou nada? — perguntei, me sentindo em desvantagem. Primeiro Kale sabia que eu gostava dele, e agora minha mãe? Quem mais tinha notado meus sentimentos claramente óbvios por ele? Ela deu de ombros e virou de frente para mim, enxugando as mãos em um pano de prato. — Não quis te deixar constrangida. — Mas falou comigo quando fiquei a fim do Blake, antes do Lochlan afastar ele daqui. — Foi diferente. — Ela riu. — Eu não conhecia o Blake. Ele não é um filho para mim, como o Kale. Senti o coração apertado. — Sente mesmo que Kale é como um filho? — Sim, e seu pai também. Até seu tio Harry e a vovó o tratam como alguém da família. Ela não estava me fazendo sentir melhor. Pelo contrário, eu estava piorando. Cocei o pescoço. — Seria esquisito se nós... sabe, se a gente acabasse ficando juntos, então? — perguntei, rindo para diminuir o constrangimento. Minha mãe deu risada. — É, seria, porque todo mundo te vê como a irmãzinha dele. Desviei o olhar para minha mãe não ver a dor em meus olhos. — É, tem razão. Só gostei dele porque ele estava por perto.

Fiquei surpresa com como era fácil mentir sobre alguma coisa, alguém, tão importante para mim. — Por isso, e porque Lochlan nunca deixou você se aproximar de um garoto, por mais que eu dissesse para ele não interferir. — Minha mãe balançou a cabeça, depois virou de costas para mim e continuou lavando a louça. — Você conhece o Lochlan — eu disse. — Ele só quer me proteger. — Layton e Kale também. — Ela riu. — É o que os irmãos fazem. Nunca pensei em Kale como irmão ou parente, nunca, desde que eu era pequena. — É — respondi, e me levantei. — Lavender vai chegar logo. Ouvi o sorriso na voz de minha mãe quando ela disse: — Fico feliz por você ter uma amiga. Precisa viver um pouco fora desse círculo que só tem o Kale. Eu odiava admitir, mas precisava viver a vida longe de Kale, agora mais do que nunca. Precisava falar com meu tio Harry, porque ele me entendia, sempre me entendeu com muita facilidade. Ele não precisava saber que eu tinha feito sexo com o Kale, mas podia saber que alguma coisa séria aconteceu entre nós, e que o desfecho da história partiu meu coração. Minha mãe estava falando, mas eu não conseguia ouvir nada em meio aos meus pensamentos. Assenti, embora ela não pudesse ver o gesto, depois saí da cozinha, subi a escada e fui para o quarto. Sentei na cama e pus as mãos no peito quando a dor se espalhou por ele. Limpei o nariz com o dorso de uma das mãos e olhei para a mesa de cabeceira, onde o celular vibrava. Enxuguei os olhos com os cantos da toalha, peguei o telefone e vi a mensagem de Kale. Meu coração parou.

Espero que esteja bem. Dscp, não me odeia. Te amo e dscp se estraguei tudo.

Rangi os dentes ao ler a mensagem; odiava quando ele não escrevia direito, mas deixei esse incômodo de lado quando digitei a resposta. Para com isso. Estou bem. Foi um erro. Eu sei disso, você sabe disso. Você ainda é meu melhor amigo. Nada nunca vai mudar isso. Você não estragou nada. Ainda é meu parceiro. As coisas não mudaram. Garanto. :)

Mentira. Mentira. Mentira. Não contei, mas suspeitava de que as coisas nunca mais seriam como antes entre nós, e acho que Kale também sabia disso.

— Lane? Pisquei para apagar a lembrança que tinha se apoderado de mim e virei a cabeça na direção da voz que disse que meu nome, e quando descobri que a pessoa que me chamava era Ally Day, meu olhar endureceu. Era domingo, um dia depois do funeral de meu tio, e a família, os amigos da família e mais algumas pessoas tinham aparecido na casa dos meus pais, alguns para falar sobre os bons tempos com meu tio, enquanto outros bebiam. Fiz questão de ficar bem longe do álcool. Não tocava em bebida alcoólica há sete anos, e embora me sentisse no auge da depressão, cumpria o juramento pessoal de nunca mais usar a bebida para mascarar a dor. Tinha recorrido a esse artifício frequentemente nos últimos anos da adolescência, e nunca mais queria voltar àquele estado de espírito. — O que você quer, Ally? — perguntei, empurrando algumas mechas de cabelo para longe do rosto. — Não

estou com disposição para ser diminuída. Caso não tenha notado, tive um fim de semana de merda. Ally pareceu se encolher. — Eu mereço isso. — Será? — perguntei, sarcástica. Ela mexia na barra do cardigã quando disse: — Lane, desculpa. Virei de frente para ela. — Por quê? Ela engoliu a saliva antes de responder: — Por ter sido horrível com você quando éramos mais novas. Não tenho justificativa para isso. Fui cruel, péssima e totalmente maldosa com você por nenhum motivo. Queria poder desfazer tudo isso. Inclinei a cabeça sem deixar de encará-la. — Eu quis a mesma coisa muitas vezes — contei. — Depois daquele dia na casa de Anna, todas as noites eu queria poder voltar no tempo e não ir lá. Entende o impacto que aquelas palavras tiveram em mim? Eu quis morrer, porque me sentia muito mal comigo. Foi esse tipo de papel que você teve em minha vida. Os olhos de Ally ficaram cheios de lágrimas. — Sinto muito, de verdade. Não tinha ideia da dor que causei. Eu não movi um músculo. — É claro que não. Estava colada demais em Anna para ver qualquer outra coisa, inclusive o impacto que suas palavras e atitudes causavam em outras pessoas. As lágrimas transbordaram e rolaram por seu rosto, agora vermelho. — Eu me odeio por como me comportei no colégio. Nunca quis ser essa pessoa, Lane. Era cruel para ter a aprovação da Anna, só isso. Não sei por que precisava ser amiga dela,

porque ela era horrível comigo, pior ainda do que era com você. Franzi a testa. — Acha que devo sentir pena de você, Ally? — Não. Não estou tentando me colocar no centro de tudo. Só queria que soubesse porque eu era daquele jeito. Fiz coisas horríveis para preservar uma amizade tóxica com alguém que não merecia, e magoei você e muitas outras pessoas. Vou me arrepender para sempre pelas coisas que disse. Eu não sabia se aceitava ou não o pedido de desculpas, embora seu arrependimento fosse evidente. A adolescente magoada em mim queria vê-la chorar e se sentir muito mal pelo que tinha feito comigo, mas calei essa minha versão. Se a deixasse agir, não seria melhor que Ally ou Anna haviam sido naquele dia. — Dá para ver que está arrependida — comentei. — Estou — ela choramingou. — Juro. Respirei fundo. — Não sei o que você quer que eu diga, Ally. Não consigo simplesmente desligar a antipatia que sinto por você. Você fez parte do que tornou minha adolescência mais difícil do que precisava ser. — Eu desfaria tudo, se pudesse. — Por que agora? — Hã? — Ela soluçou. — Por que está me dizendo isso agora? Ally deu de ombros. — Passei anos querendo pedir desculpas, mas você estava nos Estados Unidos, e eu não quis te achar no Facebook e falar tudo que tinha para dizer em uma mensagem de texto. Qualquer coisa menor que o pedido de desculpas que estou fazendo agora não teria sido suficiente, não para mim. Isso me surpreendeu.

— Você mudou desde a última vez que a vi — comentei depois de um momento de silêncio. Não me referia à aparência, e Ally sabia disso. — Mudei — ela confirmou. — Cresci, e vou ter que conviver com as coisas que fiz e disse, mas tudo que posso fazer agora é pedir desculpas e provar que sou uma pessoa melhor. O instinto me dizia que o pedido era sincero. — Não... acredito que estou dizendo e falando sério, mas está desculpada, Ally — declarei depois de mais uma pausa. — Não vamos ser amigas tão cedo, mas acredito que se arrependeu pelo que fez e aceito suas desculpas. Não precisamos mais falar sobre isso; acabou, vai ficar no passado. Ally continuou chorando e chorava cada vez mais, até soluçar tanto, que nem conseguia falar. Eu não sabia o que fazer, então fiquei parada, olhando para ela. E me senti mal quando me coloquei em seu lugar. É assim que eu fico quando choro? As pessoas se sentem tão impotentes quanto eu me sentia ali? — O que está acontecendo? — A voz de Lochlan retumbou de repente do meu lado direito. Olhei para ele no mesmo instante em que ele olhou para Ally, que ainda chorava, e resisti ao impulso de revirar os olhos quando Lochlan me encarou com uma expressão dura. Se olhares pudessem matar, eu estaria morta aos pés do meu irmão. — O que foi que você fez? — ele grunhiu. Lá vamos nós. — Qual é a sua? — devolvi. — Eu não fiz nada. Ele levantou as mãos e gesticulou para mostrar Ally. — Por que ela está nesse estado, então? Olhei para Ally, que tentava falar, mas continuava soluçando e não conseguia articular uma palavra sequer.

— Ela não está chorando por minha causa... É por causa dela mesma. Lochlan continuava bravo. — Nunca a vi chorar desse jeito, e de repente, depois de uns minutos sozinha com você, ela está se desmanchando em lágrimas. Por que ele está tão incomodado? — É melhor fechar sua boca, virar e sair daqui, antes que diga alguma coisa de que vai se arrepender — avisei. — Não tenho culpa de nada aqui. Ela está se desculpando pela merda que fez comigo quando éramos adolescentes. Está chorando porque se sente mal com o que fez. Estamos conversando sobre isso. Ponto. Parte da tensão desapareceu do corpo de Lochlan. Ele olhou para Ally e perguntou: — Isso é verdade? Fiquei furiosa por ele não aceitar minha palavra sem precisar de uma confirmação. Ally fungou e balançou a cabeça numa resposta afirmativa. — Ah — ele disse, e tossiu para limpar a garganta. — Eu não sabia. — E como poderia saber? — perguntei. — Não me deu uma chance de explicar. Entrou aqui apontando esse seu dedo estúpido e gordo e tirando conclusões precipitadas. Tipicamente Lochlan. A tensão que havia deixado seu corpo voltou dez vezes maior. — Conheço você, Lane, sei como sempre arruma encrenca do nada — ele me acusou com hostilidade. Se tivesse chutado meu rosto, teria doído menos. — Engano seu, querido irmão — debochei. — Você não me conhece; faz muito tempo que não sabe nada de mim. — E de quem é a culpa por isso? — ele gritou de repente.

Ally pulou assustada, mas eu nem me abalei. Lochlan não me amedrontava. Estava acostumada com suas explosões. — Desculpa, Ally — ele murmurou, adotando um tom incrivelmente manso. — Pode me dar um minuto com minha irmã? Ele falou a palavra “irmã” como se dissesse “câncer”. Ally assentiu, tocou o braço de Lochlan com ternura, depois saiu da sala e fechou a porta. Olhei para Lochlan, e meu rosto se iluminou quando somei dois mais dois. — Eu sou muito burra — falei, rindo. — Agora entendi porque a defendeu ontem na sala de estar e agora há pouco: está enrolado com ela. — Não fala sobre o que não sabe. Ri de novo. — Acertei, não é? Ele me encarou, e seu silêncio gritava um sim retumbante. Balancei a cabeça. — Durante anos você nunca permitiu que os meninos mais velhos chegassem perto de mim, e agora está enrolado com alguém da minha idade? Da mesma idade que sua irmãzinha, Lochlan. Que maravilha. — Você não sabe do que está falando — ele rosnou. Eu o ignorei. — Talvez eu deva seguir seu modo de agir e fazer Ally fugir de medo. Funcionou bem quando fez isso comigo no passado. O olhar de Lochlan se tornou ainda mais duro. — É diferente. Não somos mais crianças. — Desde quando maturidade teve alguma importância entre irmãos? — Não se mete com a Ally. Levantei as mãos como se me defendesse.

— Não tem problema, meu irmão. Não vou ficar aqui por tempo suficiente para atrapalhar sua foda. Pode ter certeza, na primeira oportunidade que tiver, eu caio fora daqui. Toda a atitude de Lochlan endureceu. — Para de ameaçar a gente com isso. Desviei o olhar. — Você sabe que vou embora quando todas as coisas do tio Harry estiverem resolvidas. Não é ameaça, é a verdade. Ele se aproximou de mim. — Pode ficar aqui, se quiser. Você sabe que pode. — Tio Harry partiu — respondi, olhando pela janela da cozinha. — O que sobrou para mim aqui? — Eu! — Lochlan rugiu. Eu me assustei com o grito. Olhei para ele e me apoiei no balcão da cozinha ao ver a tensão em seu rosto. Nunca tinha visto meu irmão tão furioso antes. — Eu estou aqui. Layton está aqui. Mamãe, papai e vovó, todo mundo está aqui para você. Kale também está aqui, não que você dê a mínima para ele. Foi a minha vez de gritar. — O que está falando? — berrei, sentindo a raiva correr nas veias. — Fui embora por causa do Kale! Para ele poder ficar com a Drew, para eles poderem ter o bebê. Não queria ser um lembrete do inferno que ele enfrentava cada vez que me via, e não queria ser um problema para o relacionamento deles, porque sabia que Drew não gostava de me ver perto dele. Fui embora para poder ser feliz, então, porra, não se atreva a dizer que não dou a mínima para ele. Amei Kale com toda força que havia em mim, seu cuzão! Abandonei minha vida inteira por ele! Não disse que também fui embora porque não suportava ver a vida de Kale com outra pessoa acontecendo diante dos meus olhos, mas Lochlan não precisava saber disso. Ele me encarou com os olhos bem abertos.

Balancei a cabeça. — Amo você, Lochlan, mas às vezes você me faz te odiar. Ele engoliu em seco, e a tensão desapareceu de seu rosto. — Não quero ser tão duro, mas você não deixou só Kale ou tio Harry quando foi embora. Você também me deixou. Meu coração doeu por ele. — E eu lamento se magoei vocês, mas não sabia o que mais podia fazer, na época. Não consegui ficar aqui. Era muito difícil. — E agora? — Agora não sei o que sinto. Sou um amontoado de emoções por tudo que está acontecendo. Só preciso me controlar e pensar um pouco. — Ally e eu estamos juntos há quatro anos. Eu esperava meu irmão dizer muitas coisas, mas essa não era uma delas. — Quê? Quatro anos? — Estamos noivos. Ainda bem que estava perto do balcão, porque tinha certeza de que teria caído sem ele. — Não é só uma foda, como você disse. Eu amo a Ally, e ela me ama. Pisquei atordoada. — Estamos de casamento marcado para junho, e eu... nós queremos que você esteja presente. Desviei o olhar, mas meu irmão mudou de lugar e se colocou na minha frente. — Não faz isso! Não vira a cara para mim. Se não vem para o meu casamento, fala na minha cara. Fiquei chocada ao ver as lágrimas nos olhos do meu irmão, lágrimas de verdade. — Acabei de perdoar a Ally por tudo que ela me fez quando éramos mais novas, mas não gosto dela, Lochlan.

Como posso ficar na igreja fingindo que gosto? — perguntei, olhando dentro dos olhos dele. Sua expressão perdeu um pouco da intensidade, e os lábios tremeram. — Pode sentar no fundo, se achar melhor. Fiquei surpresa quando deixei escapar uma gargalhada. Lochlan também riu. Depois, sem aviso prévio, ele me abraçou. — Você ainda é o maior pé no meu saco, irmãzinha, mas sempre foi minha garota preferida. Sabe disso, não é? Amo você, senti muito sua falta. Lágrimas escaparam dos meus olhos quando o abracei. — Desculpa — pedi. — Desculpa por ter te deixado. Lochlan me apertava com força. — Parabéns — falei em seguida, e recuei do abraço. — Sério. Estou feliz por você. Lochlan piscou para mim. — Valeu, garota. Sorri com ar de provocação. — Pelo jeito, vou ter que dividir o título de garota preferida do Lochlan. Seu sorriso ficou mais largo. — É, parece que sim. — Se algum dia ela te fizer sofrer — falei, repentinamente séria —, você me conta, e eu acabo com ela. Lochlan quase perdeu o ar de tanto rir, e isso me fez sorrir. — É bom saber que está se divertindo, mas é sério. Ele riu mais ainda. — E vou acabar com você também, se não segurar a onda. Lochlan tentou se recompor.

— Desculpa, Rambo — ele debochou. — Vou lembrar da sua oferta. E torcer para a Ally nunca me fazer sofrer. Revirei os olhos e sorri antes de abraçar meu irmão de novo. — Você vem para o casamento, então? — ele perguntou. Assenti com a cabeça em seu peito. — Acha que a mamãe e o papai iam me deixar perder essa? Ele recuou, pensou um pouco e fez uma careta. — Eles iriam pessoalmente à Nova York e te enfiariam no avião de volta para casa. Exatamente. O que ele dizia era a mais pura verdade. Fingi pavor. — Não quero nem imaginar. Lochlan sorriu para mim, depois beijou minha testa. Fechei os olhos e, ao reabri-los, olhei para ele. — Tudo certo? Ele me encarou por um momento e respondeu: — Sim, Lane, tudo certo. Estou cansado de ficar bravo com você. Sei que é porque sinto sua falta e me preocupo, mas se quer viver em outro país, eu vou ter que lidar com isso. As coisas não vão mudar entre nós, prometo. Ele me abraçou de novo, e a tensão entre mim e Lochlan desapareceu. Era uma sensação muito boa. Interrompi o abraço quando ouvi alguém tossindo, e fiquei paralisada ao ver Kale parado na porta aberta da cozinha, com as mãos nos bolsos da calça. Seus olhos sem vida estavam cravados em mim. — Lane? — ele falou em voz baixa. — Ai, Deus. — Quanto... quanto tempo faz que está aí? — perguntei, quase sussurrando. Ele umedeceu o lábio inferior.

— O suficiente. Ele ouviu tudo que eu disse? Entrei em pânico. Merda. Fechei os olhos. — Tenho que ir. Precisava me afastar de todo mundo e ficar sozinha. Eu me afastei de Lochlan e praticamente atropelei Kale, mas fui obrigada a parar perto da sala de estar quando um corpo surgiu na minha frente. — Não vai a lugar nenhum! — Era a voz do meu pai. Eu me recusava a olhar para as pessoas. — Estava dizendo que vou até o hotel. Prometi à mamãe e à vovó que ficaria para ajudar com a casa e as coisas do tio Harry. Não vou fugir da cidade. Só quero um tempo para mim. Meu pai não se moveu. — Pode ficar sozinha no seu quarto, não precisa... — Meu bem, deixe-a ir — minha mãe interferiu com tom manso. Não fiquei surpresa quando a ouvir dizer isso. Levantei a cabeça e a vi na porta do salão, me observando com os olhos exaustos. — Vejo você amanhã? — ela me perguntou. Balancei a cabeça para dizer que sim. — Então vai para o seu hotel e dorme, querida. Eu me aproximei de minha mãe, a abracei e beijei seu rosto. — Amo você. Sabe disso, não sabe? — cochichei em seu ouvido. Ela assentiu e me abraçou com força. — Também amo você, querida. Depois disso, virei e me dirigi à porta da casa dos meus pais, mas parei ao ouvir a voz dele. — Eu te levo.

Fechei os olhos. — Não precisa. — Senti sua presença atrás de mim. — Não perguntei, Lane. Ai, droga. Umedeci os lábios. — Não posso ficar sozinha com você agora. Kale passou por mim e invadiu meu espaço, sem se importar com toda a família atrás de nós, assistindo a tudo. — Problema seu. Dá um jeito. Como? Queria gritar. Como posso dar um jeito em alguma coisa que tem a ver com você? Respirei fundo. — Kale... — Lane. Levantei o queixo e olhei para ele. — Por que tem que ser tão difícil? Ele deu de ombros. — Funciona quando o assunto é com você. Que diabo ele quer dizer com isso? Franzi a testa. Balancei a cabeça. — Está se comportando como um babaca. Sabe disso, não é? — Sim, eu sei. Ignorei as risadinhas atrás de nós. O olhar de Kale anunciava que ele não recuaria da intenção de me acompanhar ao hotel, e eu balancei a cabeça, passei por ele e abri a porta. — Se é para vir, vem logo, então — resmunguei. Ouvi o sorriso em sua voz quando ele respondeu: — Sim, senhora. E ouvi as risadinhas abafadas quando saí da casa dos meus pais e desci a alameda com passos apressados até sair do jardim. Ele me seguia de perto, corria ao meu lado e

acompanhava meus passos com facilidade, porque suas pernas eram muito mais longas que as minhas. — Vai acabar com falta de ar, se continuar correndo — ele comentou. — Ou ando depressa, ou te bato por... — Por quê? — ele me interrompeu. — Garantir que vai chegar segura ao hotel? Acha que vou correr riscos em relação à sua segurança? Suspirei e diminuí a velocidade. — Está me tirando o direito de decidir se vai ou não me acompanhar até o hotel. Kale riu. — Faz anos que tirei alguma coisa de você. Vamos dizer que é pelos velhos tempos, estamos revivendo bons momentos. Revirei os olhos. — Você não existe. — É — ele riu —, eu sei. Contive um sorriso. Andamos em um silêncio estranhamente confortável por alguns minutos, e quando nos aproximamos do hotel, alguma coisa encaixou dentro de mim. Na casa dos meus pais, tive o impulso de fugir porque era boa nisso, mas agora entendia... Nada tinha sido resolvido quando os deixei, quando deixei Kale, quando saí de York. Durante seis anos, tinha me sentido exatamente como no dia em que parti de York, se não pior. Tinha me deixado cegar pelos medos. Tinha deixado os “e se” me vencerem. E se eu não suportasse ver Kale feliz com uma família? E se eu voltasse para casa e mergulhasse ainda mais fundo na depressão? E se? E se? E se? — Que foi? — Kale perguntou, certamente estranhando a parada repentina.

Olhei para ele e pisquei como se saísse de um transe. — Eu só... acabei de perceber uma coisa. Ele lambeu os lábios. — O quê? — Não quero ficar no hotel; não quero ficar longe da minha família — respondi, e balancei a cabeça como se me livrasse de uma nuvem de confusão. — Tenho passado tanto tempo sozinha, que senti que precisava sair de lá e me afastar deles, mas não é disso que preciso. Preciso do amor e do apoio deles, e acho que eles também precisam do meu. Um sorriso iluminou o rosto de Kale. — Então vamos pegar suas coisas no hotel, fazer o checkout e voltar para a casa dos seus pais. As coisas podiam ser realmente tão simples? Assenti. — É... sim, vamos lá. Seguimos para o Holiday Inn, e antes de subir ao meu quarto, informei à recepcionista que estava saindo. Tinha passado a hora do checkout, e eu não sabia se ela me cobraria uma diária, mas a moça disse que ia providenciar o checkout, e Kale e eu subimos. Ele ficou perto da porta enquanto eu andava pelo quarto e punha a mala em cima da cama. — Essa é sua mala? Assenti. — Saí da cidade tão apressada, que só peguei o que vi pela frente e corri para o aeroporto. Kale ficou em silêncio por um momento, antes de dizer: — Lamento que esteja passando por isso, Lane. Ele ainda era uma pessoa muito doce e atenciosa, mesmo vazio por dentro como estava. Não respondi, e Kale me disse para pegar tudo que era meu no banheiro enquanto guardaria meus utensílios de

cabelo, o laptop e os carregadores. Eu planejava fazer exatamente o que ele dizia, mas o silêncio entre nós gritava comigo. Não entendia por que ele me tratava tão bem. Entendi a gentileza durante o funeral de meu tio, mas por que ele não dava nem sinais de estar bravo? Eu tinha partido em circunstâncias muito ruins, e não havia estado a seu lado quando Kaden morreu. Criei coragem e perguntei? — Por que não me odeia? Ele parou de enrolar o fio do meu secador de cabelo e o deixou em cima da mesa. — Não vou fazer isso em um quarto de hotel, Lane. Engoli o medo. — E não vai sair daqui enquanto não responder à minha pergunta — devolvi. — Não quero ter aquela nossa conversa agora, só quero saber por que não me odeia, se te dei todas as razões para isso. Os músculos nas costas de Kale se contraíram antes de ele virar de frente para mim e cravar os olhos cor de âmbar nos meus. — Nunca te odiei, nunca vou te odiar — disse com simplicidade, dando de ombros. — Você significa mais para mim do que qualquer pessoa viva nesse planeta, e se acha que, depois de passar seis anos sem ter você na minha vida, vou só te ignorar e fazer um jogo idiota, pode esquecer, garota. Senti meu olho tremer. — Não sou mais uma garota, Kale. Os olhos que eu tanto amava abaixaram até meu peito, continuaram descendo enquanto ele me sorvia sem pressa. Isso me enfraqueceu; um olhar daqueles olhos cor de uísque, e eu estava perdida. — Dá para ver — Kale murmurou.

Engoli em seco e senti que era o momento certo para dizer o que eu guardava comigo desde a noite anterior. — Kale, eu sinto muito pelo Kaden. Ele ficou em silêncio por muito tempo. — Quem te contou? — perguntou depois do silêncio ensurdecedor. Olhei para o chão. — Meu pai. Eu estava no túmulo da tia Teresa e do tio Harry uma noite antes do funeral, e ele me mostrou... onde Kaden foi sepultado. Vi você e Drew ontem na sepultura, depois do enterro do meu tio, e quis ir falar com você, mas achei melhor não interromper. — Olha para mim — Kale disse depois de um momento. Soltei o ar antes de o fazer, odiando ver que sua expressão era de tristeza. — Obrigado pelas condolências por meu filho. Fechei os olhos. Não queria ser formal... não a respeito disso. — Vi a foto dele na lápide... lindo — sussurrei, ainda de olhos fechados. — Tinha seu nariz e seus lábios; tinha até seu sinal de nascença no pescoço. Kale respirava mais depressa, e eu me odiei. Abri os olhos, mas continuei de cabeça baixa. — Desculpa, Kale. Estou piorando as coisas. Vou terminar de arrumar as coisas... Virei para entrar no banheiro, mas Kale atravessou o quarto correndo e segurou meu braço. — Não. Virei a cabeça e olhei para ele. — Não o quê? Ele me fitou com aqueles olhos de filhotinho. — Não me deixa. Não estou bravo, só estava lembrando do meu filho. Você teria adorado o Kaden. Ele era a criatura

mais perfeita que já vi, Lane. Ele era... tudo. Um sorriso lindo distendeu meus lábios. — Não tenho dúvida disso. Era seu filho, Kale. Não podia ser menos que perfeito. — Acha que ele era parecido comigo? — Kale perguntou, surpreso. — Eu acho que ele era mais parecido com a mãe. Sorri, radiante. — Alguns homens enxergam a beleza da mãe no rosto dos filhos. Ele era a mistura perfeita de vocês dois. Você e Drew criaram algo impressionante. Os olhos de Kale mergulharam nos meus. — Obrigado. — Por nada. — Quer ver um vídeo dele? — Kale perguntou de repente, e o orgulho iluminou seus olhos. — Tenho toneladas de vídeos e fotos dele. — Como se precisasse perguntar. Mostra. Ele sorriu e tirou o celular do bolso. — Só tenho alguns vídeos e fotos no telefone, mas tenho muito mais em drives e sites de armazenamento, posso mostrar, se quiser. Um pai protegendo as lembranças físicas de seu orgulho e sua alegria. Era doloroso que ele só tivesse as lembranças. — Tenho tempo para ver cada segundo dele, Kale — garanti. Ele então fez uma coisa que me chocou: estendeu os braços e me abraçou. Não era um abraço de pesar e tristeza, como os que ele me deu nos últimos dois dias; era um abraço de promessa. Eu não sabia o que ele prometia, mas sentia a promessa nos ossos, qualquer que fosse. — Senti tanta saudade — ele murmurou no meu cabelo. Demorei um segundo, mas levantei os braços e o abracei com força. — Eu também, Kale, mais do que você imagina.

Ficamos daquele jeito, abraçados, até Kale recuar e olhar para mim. — Sei que isso pode parecer idiota, mas não consigo acreditar que está aqui de verdade. Quando te vi no salão na sexta-feira, quis estar no lugar do seu pai, te tocando, só pra poder ter certeza de que era de verdade. Sonhei tantas vezes com você aqui de novo, que achei que podia estar alucinando. A declaração me surpreendeu. — Kale — sussurrei. — É bobo — ele me interrompeu com o rosto vermelho. — Eu sei. — Não é. Quando estou no meu apartamento em Nova York, quase pegando no sono à noite, ouço sua voz em minha cabeça. Às vezes, isso me impede de dormir, porque sinto muita saudade. Não tinha vergonha de admitir algo tão íntimo; sentia que era certo contar para ele. Kale engoliu o ar. — Você ainda é minha melhor amiga. — Eu sei, Bichinho, e você é o meu. Ele desviou o olhar. — Não acredito em como nossa vida mudou. Tudo é muito diferente de quando éramos crianças. Suspirei. — Nem me fala. Muitas vezes quis ter uma máquina do tempo para voltar e mudar algumas coisas. Kale olhou para mim. — O que quer mudar no seu passado? Foi minha vez de fugir do contato visual. — Você disse que não queria ter essa conversa aqui. — Não quero... Desculpa, acho que só estou usando cada segundo que tenho para conversar com você, e acabo falando a primeira coisa que aparece na minha cabeça.

Olhei para ele e toquei seu braço. — Sei que vai ser difícil acreditar nisso, considerando que já fugi antes, mas não vou fugir. Vou ficar aqui, em York, e resolver tudo com minha família e com você antes mesmo de pensar em outra coisa. Era o que Harry ia querer que eu fizesse. Era verdade. Ele disse isso muitas vezes ao longo dos anos. — E você? — Kale perguntou. — O que você quer? — Muitas coisas — respondi com o coração pesado. Ele bateu duas vezes na tela, depois levantou o braço e virou o celular para mim. — Esse é o Kaden. Deixei exclamar uma exclamação de espanto e peguei o telefone da mão dele. Kale riu. — Ai, meu Deus — murmurei, olhando para o recémnascido na foto. — Que lindo, Kale. Ele... ai, meu Deus. Ele era perfeito. Eu sabia que seu bebê era lindo, mas ele era realmente perfeito. Kale assentiu. — Ele era tudo. — Anjinho — sussurrei, e passei o dedo mínimo no rostinho lindo de Kaden. Kale observava com alegria enquanto eu conhecia seu filho. — Lamento não ter estado aqui — falei enquanto ia vendo as fotos e os vídeos de Kaden em vários estágios de sua vida breve. Kale ficou em silêncio por um bom tempo, mas acabou dizendo: — Você estava comigo, só não estava pessoalmente. Levantei a cabeça e vi que ele olhava para mim. Tinha me encurralado contra a parede e mantinha as mãos nos bolsos

do jeans. Era como se adotasse essa posição sempre que estava comigo. — Por que não me queria aqui? — perguntei. — Você pediu para o Harry não me contar sobre a morte do Kaden. Por quê? Eu teria vindo para casa. Juro que teria. Ele se ajoelhou na minha frente e tocou minhas coxas, e meu estômago deu cambalhotas. — Eu sei que teria vindo para casa. Pode acreditar, Lane, nem Deus a teria impedido de vir... e, meu bem, eu sei disso. — Então por que não me queria aqui? — Porque você teria abandonado tudo por mim. Não queria te machucar de novo, porque, no fundo, sabia que estaria te usando para mascarar a dor de perder o Kaden, e você não merecia isso. Não quis tirar vantagem dos seus sentimentos por mim, e provavelmente teria feito qualquer coisa para me sentir melhor na época. — Entendo. — Mesmo? Entende quanto doeu precisar de você, mas não poder ter você? Ele me encarava com os olhos inundados de diferentes emoções. — Sinto muito por ter te machucado — ele murmurou. Sorri. — Eu me machuquei, Kale. Você não fez nada de errado. — Fiz. Podia ter ido atrás de você e trazido de volta para casa. — Isso não teria mudado nada, e você sabe disso. Ele franziu a testa e ficou em pé, atravessou o quarto e voltou a arrumar minhas coisas. Ficou em silêncio por um ou dois minutos, depois disse: — Eu sei, mas às vezes queria que tivesse sido simples assim. — Eu também, Bichinho. — Engoli o choro. — Eu também.

— Lane? — Lavender chamou do outro lado da porta do meu quarto. — Está viva aí dentro? Gemi no travesseiro quando a voz dela retumbou na minha cabeça latejante. — Para de gritar comigo — respondi com voz rouca. Ouvi sua risada e o rangido da porta. Tinha sido consertada anos atrás, mas nunca mais parou de ranger depois que meu pai a arrombou com um chute. — Acho que perguntar como você está seria idiota. Gemi e continuei de olhos fechados. — Seria uma pergunta realmente idiota. Ouvi Lavender rir baixinho enquanto atravessava o quarto, pisando de leve nas tábuas do assoalho. Por um momento, quis saber o que ela estava fazendo e abri os olhos, mas voltei a fechá-los imediatamente quando a luz ofuscante criou o caos em minhas retinas. — Caramba, Lav — choraminguei e tirei o travesseiro de trás da cabeça para cobrir o rosto, devolvendo aos sentidos o conforto da escuridão.

— Só para você se sentir melhor, o cara que você pegou ontem à noite é o maior gato que já vi, apesar de ser um pouco esquisito. Apesar de não perdoar a visita matinal, tinha de concordar com seu comentário sobre a aventura da noite anterior. Sorri contra o travesseiro. — Era meio gato, acho. Decidi ignorar o trecho sobre ele ser meio esquisito, porque não conseguia me lembrar tanto assim do que havia acontecido para tecer comentários. — Você é muito convencida — Lavender riu, e sentou no pé da cama. Sorri e levantei o travesseiro do rosto, mas me encolhi quando vi a luz do sol que inundava o quarto. Depois de alguns momentos para me ajustar, senti que a visão ficava mais nítida e alonguei os membros. — Usou proteção? — Lavender perguntou com um tom muito maternal. Levantei a cabeça e olhei para ela com as sobrancelhas arqueadas. — Não uso sempre? Ela não fez rodeios. — Essa resposta dá a impressão de que você é uma piranha. Sorri, maliciosa. — Dormi com dez caras diferentes no último ano e meio. Acho que isso significa que eu sou uma piranha. — Claro que não. Nós duas sabemos que você só fica bêbada e pega o primeiro que parece porque ainda se sente rejeitada e magoada com o Kale... ainda. Meu peito doeu, e o estômago se contraiu quando ouvi o nome dele.

— Agora não, Lav — gemi, e deitei de novo. — Essa conversa não combina com o tamanho da minha ressaca. — Apesar — minha suposta amiga cantarolou, batendo com as mãos nos meus dois pés — de estar ficando cansada de dizer a mesma coisa, mas vamos lá. Não importa com quantas pessoas você transa, nunca vai apagar aquela noite com Kale. Não pode substituir a pessoa que quer em sua vida por alguém que quer por uma noite. Rosnei para Lavender. — Tenho dezenove anos e estou na universidade — argumentei. — Não foi você quem disse para eu entrar no jogo? — Entrar no jogo? Sim. Trepar com todo homem que aparece? Não. Não consegui segurar a risada. — Para com isso. Não tem graça, e você sabe que não tem — ela resmungou. — Não quer ser essa garota, quer? A mulher que se degrada com sexo insignificante e se perde por causa da tristeza? Eu odiava quando ela ia fundo desse jeito, principalmente quando me sentia uma merda. — Não estou triste. — Gata — ela franziu a testa —, sim, está. Olhei para o teto e grunhi. — Sabia que não devia ter vindo para casa este fim de semana. Lavender riu. — Estudamos na mesma universidade e dividimos um apartamento. Não tem como fugir de mim. Essa era a verdade repulsiva. Nós duas estudávamos na Universidade de York e morávamos em um apartamento para estudantes perto do campus. Eu estudava inglês, e Lavender, ensino de língua inglesa. Depois do bacharelado em Artes, quis ser editora

literária, e Lavender decidiu que queria lecionar para crianças. Os cursos tinham a mesma duração, três anos, e ela precisava de um diploma de bacharel em educação para dar o primeiro passo em direção ao emprego dos sonhos, e eu estava feliz por caminhar bem ao lado dela. Estávamos no primeiro ano de vida nessa universidade e amávamos cada segundo. Revirei os olhos para ela. — Conta alguma coisa que eu não sei. Lavender sorriu. — Ok, Kale e seus irmãos estão lá embaixo. Sentei com um movimento brusco e, imediatamente, segurei a cabeça, porque o quarto rodou. Fechei os olhos, contei até dez e, quando tive certeza de que não ia vomitar ou desmaiar, abri os olhos e os estreitei até virarem frestas. — Mentira! — reagi. Lavender levantou as duas mãos diante do peito. — Não é... Eles estão lá embaixo, comendo. Também não sabiam que você estaria em casa neste fim de semana. Isso não podia estar acontecendo. — Não posso lidar com meus irmãos com essa ressaca, e não posso ver o Kale depois do que fiz ontem à noite com um desconhecido. Lavender levantou uma sobrancelha. — Por quê? Pensei que não se importasse mais com ele desse jeito. Rangi os dentes. — Não me importo. — Desce e prova, então — ela desafiou. Eu a odiava. — Tudo bem. — Joguei as cobertas longe. Lavender cobriu os olhos, fingindo horror.

— Sou sua melhor amiga e moro com você, mas não preciso ver tanto assim de você. Olhei para baixo e vi que minha blusa de dormir revelava um seio, e a calcinha deixava uma parte de mim do lado de fora. Ajeitei as peças, depois ri e levantei da cama. Peguei roupas de baixo limpas na gaveta da cômoda, uma calça confortável e uma regata preta. Fui ao banheiro e me lavei depressa antes de vestir as roupas limpas. Lavei o rosto para tirar o resto de maquiagem da noite anterior, prendi o cabelo em um coque frouxo e alto e pus os óculos. Desci atrás de Lavender. — Acordou ela, Lavender? — Layton perguntou quando a viu entrar na cozinha. — Mais ou menos. — Lavender riu. — Acho que ela continua bêbada. — Que ótimo — Lochlan resmungou, me fazendo sorrir. Entrei na cozinha e pigarreei. — Aí está ela — Kale anunciou, radiante ao levantar da cadeira. Gemi e pus uma das mãos na cabeça. — Mais baixo — gemi. Ele riu ao se aproximar de mim. — Desculpa — sussurrou, e me abraçou e puxou contra o corpo quente. Senti falta desse abraço, e o odiei por isso. — Chega — murmurei. Kale me soltou e voltou à cadeira, enquanto minha mãe me dava um abraço e um beijo de bom dia, como era hábito. Quando eu era mais nova, ela fazia isso com frequência, mas agora que eu estava longe, na faculdade, ela fazia questão de repetir o cumprimento sempre que eu estava em casa e descia para tomar café da manhã. — Ouvi você vomitando hoje cedo — ela comentou, séria. — Bebeu muito ontem à noite?

Hum. — Fala, irmãzinha — Lochlan interferiu. — Quanto você bebeu ontem à noite? Olhei para seu rosto sorridente e o encarei de um jeito ameaçador, antes de olhar novamente para minha mãe. — Não muito. Acho que dancei demais e fiquei enjoada. Lavender tentou segurar a risada, mas ela saiu pelo nariz. Minha mão ardia de vontade de esbofeteá-la. — Que horas você chegou? — minha mãe perguntou quando me aproximei da mesa da cozinha e sentei na única cadeira disponível, entre Lavender e Kale. — Não olhei para o relógio quando ouvi você no banheiro. Não tinha uma resposta para essa pergunta e olhei para Lavender, que riu. — Passei aqui de táxi para deixá-la às sete e meia — disse, e balançou a cabeça. Tão tarde? Dava para entender a dor de cabeça. Além da ressaca, eu tinha dormido pouco, quase nada. — Seus irmãos nunca chegaram tão tarde — minha mãe comentou. Revirei os olhos. — Meus irmãos nunca foram descolados como eu. Os dois riram. Fiz uma careta quando minha mãe pôs um prato de comida na minha frente. Levei a mão ao estômago e decidi esperar uns minutos, antes de tentar comer alguma coisa; tinha medo de enjoar de novo. — O que fez ontem à noite? — Kale perguntou, comendo, satisfeito, o café da manhã preparado por minha mãe. — Com quem ela fez ontem à noite, essa é a pergunta — Lavender resmungou e pegou o suco de laranja. Ela falou alto o bastante para Kale e meus irmãos escutarem. Naturalmente, os três olharam para mim de cara

feia, o que me fez rir. — Ela está brincando — eu disse, e chutei Lavender por baixo da mesa. Três pares de olhos se voltaram para ela, que se encolheu com a dor do chute, mas forçou um sorriso inocente e convincente. — É claro que estou brincando. Meus irmãos olharam para ela por mais alguns segundos, antes de se darem por satisfeitos e voltarem à refeição. Suspirei, aliviada, depois encarei Lavender com um olhar crítico. — Desculpa — ela pediu, movendo os lábios sem emitir nenhum som, mas estava sorrindo. Idiota do mal. Desviei o olhar e me assustei quando descobri que Kale me observava. Ele havia acompanhado minha interação com Lavender, e percebi que ele achava o sorriso e o pedido de desculpas uma grande bobagem. Parecia um pouco bravo, mas não tinha o direito de estar. Kale não era meu namorado, e ao longo dos últimos dois anos, mal foi meu amigo, o que significava que não devia se importar com isso, com quem eu fazia sexo. Eu quase não o via mais, e só conversávamos por telefone ou mensagem de texto muito de vez em quando. Eu sabia que isso era esperado, já que ele morava em Londres, mas no fundo também sabia que o afastamento era consequência de termos transado, e ele ainda se sentia envergonhado, constrangido, ou as duas coisas. — Dane-se — murmurei, e olhei para a comida que ainda nem havia experimentado. Empurrei o prato e suspirei. — Sem fome? — Lavender perguntou, comendo com apetite. Balancei a cabeça.

— Ainda estou meio enjoada. — Eu falei para não fazer vira-vira de Sambuca — ela comentou, rindo. — Eu sei que disse, obrigada. Lavender se divertia com sua forma pervertida de tortura. — Ainda bem que recusou as doses de Jack Daniel’s — ela murmurou. — Se gostasse disso, eu provavelmente teria que te carregar para casa toda vez que saíssemos. Engoli em seco. — Não bebo Jack Daniel’s. — Por que não? — Layton quis saber. — Não é tão ruim. É a bebida preferida do Kale. — Exatamente — resmunguei. O cheiro e o gosto de Jack Daniel’s me lembravam tanto aquela noite com Kale, e Kale de maneira geral, que decidi evitar a bebida. Fiquei feliz quando o celular de Lavender tocou, desviando o foco para ela. Lav tirou o telefone do bolso com movimentos apressados. — Desculpem, pensei que estivesse no silencioso. Ah, Lane, está ligando para mim? Levantei as sobrancelhas em uma reação surpresa. — Não. Meu celular está lá em cima, na bolsa. Lavender virou o telefone dela para mim, e vi meu nome aceso na tela. Sem pensar, peguei o celular dela e atendi. — Alô? — Lavender? — perguntou uma voz masculina. — Não. É Lane. Quem é você, e como pegou meu celular? A voz riu. — Você deixou no meu apartamento ontem à noite. Não entendi nada. — Seu apartamento? Não estive em apartamento nenhum ontem à noite...

— Sim — Lavender cochichou. — Esteve. Olhei para ela, intrigada. — Tem certeza? — Tenho — ela murmurou. — Eu, você, Daven e o gato que você arrastou para casa, depois que a boate fechou, para continuar bebendo. Pensei na noite anterior e comecei a lembrar do que Lavender estava falando. — Merda — resmunguei, e afastei o telefone da boca. — Como era o nome dele mesmo? Lavender olhou na direção de Kale e disse: — Jensen. Consegui sentir os olhares dos homens em volta da mesa, e senti a decepção emanando de minha mãe em ondas. Ignorei todos eles e me concentrei na conversa pelo telefone. — Pode devolver meu celular, Jensen? — pedi com educação. Ele riu de novo. — É claro, liguei para a Lavender do seu aparelho porque não tinha seu número, quero devolver seu aparelho. Era muita... gentileza. — Manda seu endereço, e eu... — É só mandar seus dados por mensagem para o celular da Lavender, eu vou buscar mais tarde. — Quando me sentir humana de novo. — Tudo bem, gata — Jensen arrulhou. Horrível. — Ok, tchau. — Tchau. Desliguei e devolvi o celular de Lavender. Ela olhava para todo mundo na cozinha, depois olhou para mim como se achasse que iam me matar, o que me fez rir.

— Acha isso engraçado? — Lochlan rosnou. — Esteve com um cara ontem à noite, bêbada, não lembra de nada, e está rindo disso? Fechei a boca e dei de ombros, porque não sabia o que dizer. — Isso é coisa de vagabunda — ele criticou. — O que está acontecendo com você? — Parceiro — Kale olhou feio para ele. — Não fala com ela desse jeito, porra! Troquei um olhar surpreso com Lavender, porque Kale parecia a um passo de atacar meu irmão por ter dito o que disse, mas fiquei ainda mais surpresa quando Layton berrou: — Lochlan! Lochlan olhou para nosso irmão. — Vai aceitar essa merda? — Não — Layton respondeu —, mas não vou chamar a atenção dela na frente de todo mundo. Não seja babaca e guarda sua opinião para você. Ela não é mais criança. Vi o arrependimento na expressão de Lochlan quando, como sempre, Layton conseguiu abrir seus olhos. Mas ele era teimoso demais para me pedir desculpas, e apesar de ser grata pelo apoio de meu irmão, eu ainda me sentia humilhada. Pedi licença para sair da mesa e subi correndo para o quarto. Tentei fechar a porta, mas Lavender me seguiu e impediu. — Está tudo bem — sussurrei. Ela não disse nada, só me abraçou enquanto eu chorava. — Ele não falou sério. — Lavender me apertou entre os braços. — É que nenhum irmão ia querer saber de uma coisa como essa. Ele ficou bravo, só isso. Assenti. Não culpava Lochlan por dizer coisas horríveis sobre mim. Eu pensava a mesma coisa a meu respeito. — Mas não mentiu — murmurei.

Lavender recuou e olhou para mim com uma expressão séria. — Você não é vagabunda. Está ouvindo? — Mas... — Não tem mas — ela interrompeu com tom firme. — Ninguém é perfeito. Você cometeu alguns erros, mas não se tornou uma pessoa ruim por causa disso. Engoli o choro. — Obrigada, Lav. — É sério — ela insistiu. — Acredita em mim. Suspirei. — Eu acredito, mas os erros que mencionou, eu não quero mais repetir. — Então é bom cortar a origem desses erros. Levantei as sobrancelhas. — E qual é a origem? — Bebida. A resposta me surpreendeu. — É, nunca saiu nada de bom das minhas bebedeiras. — Você usa o álcool para afogar as mágoas, mas vamos encontrar outro jeito para extravasar. — Lavender beijou meu rosto e me deu outro abraço. — Vamos resolver isso juntas. Estou aqui com você; se cair, eu te ajudo. — Amo você, Lav — respondi, e a abracei com força. Lavender retribuiu. — Também amo você, mesmo que seja um pé no meu saco. Dei risada, e a tensão desapareceu do quarto, simples assim. Ela estava certa: eu acabaria encontrando um novo jeito de lidar com o esforço para superar Kale, e dessa vez não seria só um paliativo para me livrar da dor por algumas horas.

— Quer que eu vá com você? — Lavender perguntou ao me deixar na porta do prédio de apartamentos onde eu me lembrava vagamente de ter estado na noite anterior. Balancei a cabeça. — Só vou pegar o celular, depois volto para casa. Não vou ficar para bater papo. Essa ressaca não me deixa falar muito. Lavender riu. — Está bem, eu telefono quando sair do trabalho. Nós duas trabalhávamos em regime de meio período no café da minha avó, assim evitávamos recorrer ao financiamento estudantil até que fosse absolutamente necessário. Já devíamos a vida, e não precisávamos transformar gastos pessoais em mais um problema, por isso trabalhávamos para ter um dinheiro extra. — Te amo! — ela gritou. Fechei o olho quando o grito penetrou nos meus ouvidos e murmurei: — Também te amo. Fechei a porta do carro de Lavender e acenei quando ela partiu. Assim que o carro desapareceu, virei para o prédio e, sem pensar duas vezes, subi a escada e li os nomes ao lado do número dos apartamentos no painel. Quando vi o de Jensen, apertei o botão ao lado do nome dele. Alguns segundos depois, uma voz cansada falou pelo interfone. — Oi? Tosse para limpar a garganta. — Oi, é, hã, Lane Edwards. Vim buscar meu celular com o Jensen. — Eu sou o Jensen... sobe. — A voz se animou de repente. — Terceiro andar, apartamento três zero três.

Tive um mau pressentimento assim que a porta do abriu, mas ignorei e entrei. Tinha de pegar o telefone, e para isso precisava entrar. Chupa essa manga, disse a mim mesma. Subi pela escada até o terceiro andar, em vez de pegar o elevador; era muito pequeno e fez um barulho esquisito quando as portas abriram. Eu me imaginei presa nele, e pensar nisso me fez escolher a escada cinco segundos mais tarde. Quando cheguei ao terceiro andar e encontrei o apartamento três zero três, bati na porta e esperei. A porta foi aberta em seguida, e o cara do outro lado sorriu para mim como se estivesse muito feliz por me ver. Eu me encolhi por dentro, porque sabia qual era o motivo dessa alegria. Tive lampejos do meu corpo rolando colado ao dele nas primeiras horas da manhã, e isso me fez sentir repulsa por mim mesma. — Oi. — Forcei um sorriso. — Preciso pegar o telefone e ir embora. Estou atrasada para ir trabalhar. Era meu dia de folga, mas Jensen não precisava saber disso. — Ah, é claro. — Ele sorriu. — Entra. Vou pegar para você. Hesitei por um ou dois segundos, mas contrariei o bom senso e entrei no apartamento de Jensen. Ele fechou a porta. — Quem um chá? — ofereceu, já a caminho do corredor que, eu sabia, levava ao quarto. Eu me arrepiei. — Não, obrigada. Só quero pegar meu telefone e ir embora. — Pronto — Jensen anunciou um ou dois minutos mais tarde.

Olhei para ele e respirei aliviada ao ver que, de fato, Jensen segurava meu celular. Estendi a mão para pegá-lo, mas ele levantou o braço, tirando o aparelho do meu alcance. — Tenho que ir trabalhar, Jensen... me dá o telefone — falei com tom firme. — Não pode faltar? — ele perguntou, esperançoso. Era piada? Forcei uma risadinha. — Não, não posso, desculpa. Ele franziu a testa. — Mas você se divertiu ontem à noite. Com toda certeza, mas isso não queria dizer que eu ficaria para a segunda rodada. Senti o rosto esquentar. — Só consigo lembrar de trechos de ontem à noite. Bebi demais. Ele deu um passo em minha direção e sorriu. — Vai ser um prazer te ajudar a lembrar do que não lembra. Alarmes começaram a soar na minha cabeça. — Não, obrigada — respondi, e olhei para a porta do apartamento. Jensen riu para mim como se estivéssemos brincando de gato e rato, e eu era o rato, sem dúvida nenhuma. — Vem — ele provocou. — Quero ouvir você gritar quando gozar para mim de novo. Engoli a bile. Não gostava de ouvir alguém que eu mal conhecia falando comigo desse jeito. — Estou indo embora — anunciei com firmeza. Ele agiu rápido e, antes que eu pudesse chegar à porta, bloqueou o caminho.

— Jensen — avisei, apesar do medo que brotava dos meus poros —, quero ir embora, por favor. Ele levantou uma sobrancelha. — Por que toda essa timidez? Não ficou acanhada ontem à noite quando meu pau estava na sua boca. — E piscou. — Melhor chupeta da minha vida, aliás. Meu estômago se contraiu quando tentei passar por ele. — Fica com a porra do telefone — falei. — Vou embora. Corri para a porta, mas ele me puxou para trás pelos ombros. Caí deitada de costas no chão. Gritei de dor, mas o medo provocou uma reação rápida, e eu sentei. Jensen estava em cima de mim antes de eu concluir o movimento, e me empurrou de volta com a força de um prédio caindo. — Sai de cima de mim! — gritei, e virei o braço, acertando um soco no rosto dele. A cabeça de Jensen virou para a direita, e ele xingou alto. — Vadia de merda! — gritou, e agarrou meu cabelo, puxando minha boca para a dele. — Só um beijo — grunhiu, e colou os lábios aos meus. — Como ontem à noite. Reagi com os dentes, o que o fez recuar e urrar: — Piranha da porra! Vi o movimento da mão tarde demais, mas senti quando ela encontrou meu rosto. Gritei, e pontinhos brancos dominaram meu campo de visão quando a dor explodiu. Levantei as mãos para proteger o rosto, porque a mordida tirou Jensen do sério, e ele começou a me dar socos. Tentei me defender, mas ele conseguia acertar cada murro. Senti gosto de metal, e o sangue inundou minha boca. Tentei gritar, mas só consegui produzir um gorgolejo nojento e sufocado pelo sangue que jorrava do nariz e descia pela garganta. Notei que Jensen tinha parado de me bater, mas só porque ele dizia para eu fazer alguma coisa. — Abre as pernas, ou vou te cortar — ele rosnou.

Cortar? Estava tonta, tinha a impressão de que a voz dele vinha de todas as direções. Olhei para ele e o vi claro como o dia, debruçado sobre mim, respirando rapidamente e com a testa coberta de suor. Isso me confundiu, porque meu rosto, braços e peitos pulsavam como se ele ainda me batesse. A dor era imensa. — Por favor — gorgolejei. — Por favor... não. Ele balançou a cabeça. — É tarde demais para isso. Você só precisava ter me beijado. Mas me obrigou a te bater, me obrigou! Vi que ele começava a desabotoar o jeans, e vi a ereção. Aquilo me assustou o suficiente para eu gritar como louca. — Socorro! — berrei, e lutei contra Jensen quando ele tentou cobrir minha boca com a mão. Ouvi uma voz feminina gritar do lado de fora do apartamento, e isso me encheu de esperança. — Socorro! — gritei de novo. — Socorro! — Cala a boca, porra! — Jensen berrou, mas pulou assustado quando alguém bateu com força na porta. Uma, duas, e na terceira batida, a porta abriu com um estrondo. Não consegui ver quem era, mas ouvi uma voz feminina gritar quando um corpo avançou para Jensen. Senti o peso do corpo dele sair de cima de mim, e me senti muito grata por isso. — Ai, meu Deus — a mulher berrou. — Ela está morta? Fiz um barulho para avisar que não, porque não queria que ela me deixasse ali. A mulher caiu de joelhos ao meu lado e afastou o cabelo do meu rosto. Depois, pôs alguma coisa em cima da minha testa e fez pressão, o que me fez gritar de dor. — Tenho que estancar o sangramento — ela gaguejou, depois repetiu: — Ai, meu Deus — várias vezes.

— Drew — uma voz de homem chamou. — Chama uma ambulância agora. Drew? Tentei abrir os olhos, mas não consegui. — Drew? — falei com dificuldade. Ela ficou em silêncio por um segundo enquanto um pedaço de pano deslizava por meu rosto, depois ouvi um gemido estrangulado. — Lane? — ela gritou. — Meu Deus! Lane, o que ele fez com você? Queria responder, mas era como se minhas cordas vocais não servissem para nada. — Conhece a garota? — uma voz de homem perguntou. Drew choramingou. — Ela é a melhor amiga do meu namorado. Melhor amiga quando era conveniente para ele. Ao pensar em Kale, me forcei a abrir a boca e falar. — Não — gemi. Ela segurou minha mão e disse: — Não fecha os olhos. Está ouvindo, Lane? Estava, mas meu corpo não queria ouvir. Queria dormir. Pisquei algumas vezes. — Drew, não conta ao Kale. Eu não sabia por que, mas não queria que ele soubesse o que tinha acontecido comigo. Ela me ignorou e deu a informação para a pessoa com quem falava pelo telefone. Ficou brava e disse a essa pessoa para parar de fazer tantas perguntas e mandar a polícia e uma ambulância, porque achava que eu estava morrendo. Eu me sentia flutuar, não entendia de onde ela tirou essa ideia tão ridícula. Seu tom então mudou, e eu a ouvi gritar: — Kale!

Não sei como, mas ouvi a voz dele, alterada e em pânico, em meio àquela nuvem de tontura. — Estou bem — ela gritou. — É Lane. Ai, meu Deus, Kale, tem muito sangue. Kale praticamente gritava pelo celular. — Jensen Sanders — Drew gritou. — Ele estava batendo nela, mas chegamos antes de... antes de alguma realmente grave acontecer. Ela está machucada, e não consigo estancar o sangue do ferimento na cabeça. Respirei fundo e admiti a derrota, enquanto Drew contava a Kale tudo que eu não queria que ela contasse. Fechei os olhos, porque precisava estar descansada quando chegasse a hora de explicar a Kale e minha família o que aconteceu. Ignorei as súplicas de Drew para eu continuar acordada e mergulhei em um sono surpreendentemente tranquilo.

Quando acordei, havia tanta atividade e tanto barulho que a dor de cabeça aumentou. — Lane? — chamou uma voz familiar. Gemi. Vai embora, uma voz sibilou dentro de minha cabeça. — Está me ouvindo, Lane? — Era um homem falando comigo, e ele falava muito alto. — Para de gritar — falei, e a resposta foi um grande suspiro de alívio. — Graças a Deus — murmurou uma voz conhecida. Tentei abrir os olhos, mas só a pálpebra esquerda obedeceu, o que me deixou apavorada. — Meu olho — arfei. Porque não consigo abrir o olho direito? Senti mãos suaves pressionando meus ombros, e meu olho bom registrou a presença de um homem de pele

escura debruçado sobre mim. Ele sorriu e, surpreendentemente, isso me fez relaxar. — Qual é seu nome, meu bem? — ele perguntou com um tom profundo que me deixou mais calma. Gemi de dor, mas respondi: — Lane Edwards. Ele assentiu, ainda sorrindo. — Qual é sua data de nascimento? Tive que pensar por um segundo, mas lembrei a data correta e disse: — Dia cinco de fevereiro de noventa e nove. — Última pergunta — avisou o homem, sorridente. — Quem é nosso primeiro ministro? — David Cameron, infelizmente. — Muito bom, Lane — ele concluiu, rindo. — Onde estou? — perguntei, confusa. — Meu nome é Jacob, sou seu paramédico. Você está na ambulância, e estamos a caminho do Hospital York para ser avaliada e internada por um médico. Deu um susto na gente, mas agora parece melhor. Está acordada e falando, e é isso que eu gosto de ver. Que diabo significa isso? — O que aconteceu? — perguntei. Jacob olhou para mim com a testa franzida. — Consegue lembrar alguma coisa, Lane? Fechei o olho e pensei no que poderia ter acontecido para eu estar em uma ambulância, a caminho do hospital. Por uns dois minutos, não me ocorreu nada, e depois, com o impacto de um trem, tudo voltou. — Jensen! — gritei. — Ele me machucou, tentou... ele tentou... — Shhh — Jacob me acalmou. — Tudo bem. Ele foi preso em flagrante e não vai mais te machucar. Escuta o que

estou dizendo, benzinho, ele não pode mais te machucar. Eu continuava em pânico, e Jacob pareceu perturbado. — Sua amiga Drew está aqui — ele disse, e isso chamou minha atenção. — Drew? — chamei. Ouvi um movimento, e de repente ela estava ao meu lado, debruçada sobre mim. — Estou aqui — disse. Seus olhos estavam inchados e vermelhos, obviamente de chorar. — Minha família... Kale... — Estão a caminho do hospital. Fechei os olhos e engoli em seco. — Tive que ligar para eles, Lane — Drew choramingou. — Você precisa entender que foi assustador te ver daquele... desse jeito. Tentei assentir, mas o aparelho que imobilizava o pescoço e os ombros me impediu. — Eu sei — reconheci. — Obrigada, Drew. Você... você me salvou. Os olhos dela se encheram de lágrimas. — Ouvi você gritar. Não sabia que era você, mas sabia que quem gritava estava correndo perigo. Graças a Deus ela ouviu meus gritos. — O que estava fazendo naquele prédio? — perguntei. — Minha amiga Carey mora no terceiro andar — ela explicou. — Eu estava saindo do apartamento dela, quando ouvi os gritos no de Jensen e chamei o Jack, namorado da Carey, que arrombou a porta no chute. A emoção bloqueou minha garganta, e eu pisquei para indicar que tinha escutado. — Drew — disse Jacob —, pode voltar ao seu lugar e sentar, por favor?

Drew desapareceu, e gritei quando a ambulância sacudiu. — Desculpa, Lane — Jacob falou. — Estamos entrando no hospital, você vai chegar ao pronto-socorro em um ou dois minutos. Fechei os olhos e gritei de dor quando a maca em que estava foi tirada da ambulância e empurrada para dentro do hospital. Olhei para o teto, vi lâmpada após lâmpada passando. Era um pouco difícil ficar acordada, e eu fechei os olhos para descansar por uns segundos. — Quarto quatro, por favor — uma voz feminina falou, e Jacob me empurrou na direção determinada. — É aqui que eu saio de cena, Lane — Jacob avisou, se inclinando sobre mim. — Aguenta firme, meu bem. — Vou aguentar — respondi. — Obrigada. Jacob se saiu para ir falar com a enfermeira que ficaria encarregada por mim, e Drew surgiu ao meu lado. — Drew? Ouvi minha mãe gritar com a voz alterada. Drew suspirou aliviada e correu para fora do quarto, para o corredor, e eu fechei os olhos. — Ela está bem — Drew relatou. — Está acordada e falando. — Lane! — ouvi minha mãe gritar, dessa vez mais perto, e depois uma sombra caiu sobre mim. — Ah, meu bebê. Sentia suas mãos em mim, e a perturbou ainda mais o fato de eu me encolher de dor ao menor contato. — Meu Deus. — A voz de Lochlan estava estrangulada. — Lane. — Lochlan! — meu pai gritou. — Em que quarto ela está...? Lane! — Não — Lochlan respondeu. — Não vai querer ver isso. — Sai da minha frente! — meu pai berrou, e ouvi um embate, depois um grito masculino. — Baby... — meu pai choramingou. — Ah, minha menina.

Acorda! Forcei o olho esquerdo a abrir, e quando minha visão se ajustou, os rostos perturbados ganharam foco. — Estou... bem — falei. Isso fez meus pais chorarem, acho que de alívio. — Estou bem — repeti mais alto. Minha mãe se inclinou e beijou cada parte do meu rosto, e eu deixei, apesar da dor. — Meu olho — falei para ela. — Não consigo abrir. Lágrimas molhavam seu rosto. — Porque está muito inchado — ela falou, chorando. Sério? — Melhor que perder a visão. — Ri, tentando fazê-la parar de chorar, mas me encolhi de dor quando isso fez meu peito doer. — Dói — contei com lágrimas nos olhos. Ela pediu para um médico, ou alguém, vir me ajudar. Fechei os olhos, porque o quarto onde estava era muito iluminado, e sentia as pálpebras muito pesadas. — Lane — chamou uma nova voz masculina. — Lane, está me ouvindo? Eu estava muito cansada, e minha resposta foi um gemido. — Lane, consegue abrir os olhos para mim? — o homem perguntou. Abri o olho esquerdo, mas só por um segundo, antes de a pálpebra cair de novo. — Ela está bem? — meu pai perguntou. — Por que não consegue ficar acordada? — Só tenho informações parciais sobre o que aconteceu, ainda estamos reunindo dados, mas é evidente que ela sofreu vários traumas na cabeça. Espero que sejam superficiais e que não tenha havido nenhum dano cerebral. Vamos fazer uma RM e outros exames depois de limpar e suturar os ferimentos.

Preciso de pontos? Queria fazer a pergunta que estava em minha cabeça, mas só consegui gemer. — Sei que está com dor, Lane — disse o homem que deduzi ser o médico. — Uma enfermeira vai administrar morfina intravenosa para você se sentir mais confortável. A ideia era brilhante. Ouvi as diferentes vozes de minha família falando comigo e fazendo perguntas ao médico, mas uma delas se destacou, uma voz bem alta. — Lochlan? — Kale gritou. — Ela está aqui! — Lochlan respondeu no mesmo tom. — Silêncio, por favor — uma voz pediu. — Vim o mais depressa que pude... Meu Deus — Kale murmurou. — Lane. Ai, amorzinho. Estou aqui, pensei. — Vou matar aquele desgraçado de merda — ele rosnou. — Drew, o que aconteceu? — meu pai perguntou. Meu cérebro escolheu esse momento para desligar, e agradeci por isso, porque ouvir Drew explicar o que tinha visto não era algo que eu quisesse fazer. Viver a situação já foi mais que suficiente.

Quatro dias mais tarde, eu continuava no hospital, mas acordada e alerta. Nos primeiros três dias de internação, me deixaram na UTI, porque não recuperei a consciência depois de apagar no pronto-socorro. O médico explicou à minha família que o quadro era causado por um pequeno edema no cérebro, e o repouso ajudaria meu corpo a começar o processo de cura. A ressonância magnética e outros exames não mostraram nada mais grave, o que era uma boa notícia. Todos os ferimentos eram superficiais, e havia também duas

costelas quebradas, o que causava a maior dor que já senti. Respirar era doloroso. O olho direito continuava fechado pelo inchaço, e havia um corte feio em cima da sobrancelha direita, agora fechado por seis pontos, e outro na bochecha esquerda, onde levei três pontos. No geral, esperava-se total recuperação, com uma ou duas cicatrizes para contar a história. Foi o que o médico disse, pelo menos. Mas ele estava enganado. O que Jensen fez comigo era muito mais profundo que cicatrizes físicas. O que ele fez me acompanharia pelo resto da vida. — Lane? Virei a cabeça quando ouvi minha avó me chamar. — Hum? — Murmurei. — Perguntei se você está bem, querida. — Estou, vovó — garanti, e olhei para a porta quando meu tio entrou no quarto. Ele parecia péssimo. Era a primeira vez que eu o via em três semanas, ele tinha viajado à Ásia a trabalho, e deveria ter ficado lá por mais uma semana, no mínimo. Ele olhou para mim, e seu rosto ficou vermelho. — Eu vou matar o cara — rosnou. Meus irmãos, meu pai e Kale, que estavam no quarto comigo, minha mãe e avó, todo mundo concordou. Nunca tinha visto meu tio tão bravo antes, por isso me limitei a encará-lo com as sobrancelhas erguidas. Ele se aproximou da cama e suspirou diante do que via. — Minha querida. Pisquei com o olho bom. — Estou bem. Tinha que ver como o outro cara ficou. Meu tio gostou da reação bem-humorada e riu, mas ninguém mais na sala o acompanhou. Ninguém tinha dado um sorriso sequer desde que acordei hoje de manhã. Isso começava a mexer com meus nervos. Eu sabia que o que

havia acontecido era muito sério, e sabia que, definitivamente, não era motivo de piada, mas estava bem. Ia me recuperar dos ferimentos, e o traste que os causou estava preso. Jacob estava certo quando disse que Jensen não poderia mais me machucar. — Falou com a polícia? — meu tio perguntou depois de beijar minha testa. Assenti. — Eles estiveram aqui há algumas horas. Vieram depois que acordei. Drew e Jack, o amigo dela, já tinham ido depor e contaram o que viram alguns dias atrás no apartamento de Jensen. Dei meu depoimento no começo da tarde. Foi constrangedor e vergonhoso, mas tive de contar como conheci Jensen. Meu pai temia que a defesa de Jensen usasse esse argumento para livrá-lo, mas os policiais garantiram que os depoimentos das testemunhas oculares e o estado em que fui encontrada eram suficientes para condená-lo. A polícia informou que foi indiciado por agressão, tentativa de estupro e tentativa de homicídio. O pedido de fiança foi recusado, e não haveria julgamento formal, porque as evidências contra ele eram muito grandes. Além disso, ele foi preso em flagrante. Jack, amigo da Drew, segurou Jensen até a chegada da polícia. A única ida de Jensen ao tribunal seria para ouvir a sentença. Ele não podia negar o que fez... bem, podia, mas isso não o ajudaria em nada. Seria preso pelo que fez comigo, e a pena não seria pequena. Eu estava muito feliz por isso. Meu pai contou ao meu tio sobre a parte da polícia, e tio Harry ficou satisfeito por saber que Jensen seria submetido à justiça, mas arrasado por não poder quebrar cada membro de seu corpo antes de ele ser detido. Palavras dele, não minhas.

— Como foi a viagem? — perguntei, mudando de assunto para evitar que todo mundo acabasse com o estômago embrulhado. Meu tio sorriu. — Foi ótima, mas não vai haver outra. Estou ficando velho demais para esses voos longos. Concordei com um movimento de cabeça. — Não sei como aguentou viajar tanto. Mal consigo ficar sentada por tempo suficiente para assistir a um programa na televisão. Todo mundo riu, o que me causou um grande alívio. O senso do humor das pessoas não tinha desaparecido, afinal! — Recebeu muitas visitas? — meu tio perguntou quando sentou ao meu lado. Assenti. — Os pais de Kale vieram me ver hoje. Lavender e o namorado dela, Daven, também vieram. Ela está se culpando, porque me deixou na porta do prédio e foi embora, mas eu disse que era bobagem. Se tivesse entrado comigo, sabe Deus o que ele teria feito com as duas. Os homens no quarto pareciam ferver der raiva. Mudei de posição na cama e gemi ao sentir a dor se espalhar por todo lado esquerdo da caixa torácica. — Merda, merda, merda — choraminguei. Minha mãe e minha avó se aproximaram depressa, uma de cada lado da cama, e me ajudaram a encontrar uma posição. Vi a emoção no rosto delas quando as lágrimas caíram dos meus olhos. Fiz um esforço enorme para não chorar, mas a dor era forte demais. — Mãe — gemi. Ela se inclinou e me deu um beijo. — Vou apertar o botão da morfina, e você vai sentir o alívio imediato, está bem? Sim.

— Por favor — gemi de dor. Minha mãe apertou o botão que a enfermeira havia mostrado como usar, e em menos de dez segundos, a dor começou a desaparecer. — Devia experimentar esse remédio, tio Harry — falei meio enrolado, sentindo o olho bom fechar. — Não ia mais passar o tempo todo reclamando de dor nas costas. — Garota atrevida — meu tio respondeu rindo. Ouvi as risadas da família e depois, sem aviso prévio, mergulhei naquele sono induzido que era muito bom. Morfina era a onda.

Fazia seis semanas que Jensen me atacou e mandou para o hospital, e três semanas desde que ele foi condenado à prisão perpétua sem possibilidade de condicional. Eu estava mais que pronta para deixar Jensen e o ataque no passado. Estava cansada de todo mundo falando e lendo sobre isso nos jornais. Não daria a ele o poder de me fazer viver com medo. Nas primeiras duas semanas depois da alta do hospital, temia ficar sozinha, sair de casa e fazer qualquer coisa por causa dele, mas não mais. Não permitiria que ele me controlasse. Nunca. E foi por isso que, perto do aniversário de tio Harry, quando minha mãe sugeriu que organizássemos uma festinha, agarrei a oportunidade. Não ia beber, mas teria a companhia da família, dos amigos, conversaria e me divertiria com as pessoas. Fizemos a festa na noite de sexta-feira e, como previsto, tudo correu muito bem, e me senti viva pela primeira vez em semanas. Como meu rosto e corpo estavam curados do estrago que Jensen havia provocado, ninguém — além dos

meus pais — tocava no assunto, e eu estava muito satisfeita com isso. Estava me divertindo, até Kale aparecer com a Drew. Eu me saía relativamente bem no esforço para superar o Kale, mas ainda doía vê-lo com Drew. Eles pareciam muito felizes. — Lane! — Kale sorriu ao me ver no salão. Também sorri e levantei para ir abraçá-lo, e cumprimentei Drew com um abraço por educação. — Como vai? — ela perguntou. — Tudo bem, e você? — Melhor que nunca. Drew olhou para Kale com ar cúmplice e sorriu, enquanto ele, aparentemente desconfortável, lançava olhares rápidos na minha direção. Kale tossiu e chamou Lochlan quando o viu. Parecia aliviado por não ter que passar mais tempo comigo e Drew. Pedi licença e fui para o fundo da sala, subitamente azeda. Queria que Lavender estivesse ali, mas ela tinha ido embora uma hora antes para esperar em casa por Daven, que agora morava com ela no nosso antigo apartamento. Depois do ataque, eu tinha voltado para casa e pensado em abandonar a faculdade. Não queria todo mundo no campus olhando para mim, cochichando ou, pior, com pena. Meu pai e meu tio se reuniram com o orientador da universidade, e tive permissão para continuar o curso à distância, on-line, o que significava que poderia concluir os dois anos que faltavam para obter meu diploma. Acho que abracei meu pai e meu tio cada vez que os encontrei durante uma semana inteira depois dessa boa notícia. — Lane? Virei ao ouvir a voz de meu tio. Sorrindo, me aproximei dele.

— E aí, aniversariante? Ele riu. — Não parece muito feliz. Está tudo bem? Não queria estragar a noite dele, por isso forcei um sorriso e respondi: — Sim, só estou muito cansada. Acho que não vou conseguir acompanhar vocês, velhinhos animados. Meu tio deu uma gargalhada antes de ser chamado por outro grupo, o que me fez sentir grata. Virei e, como sempre, meus olhos encontraram Kale. Ele abraçava Drew e ria. Eu não queria ficar olhando para eles, por isso fui para o quarto e vesti o pijama. Fui ao banheiro lavar o rosto e prender o cabelo. Quando saí do banheiro, dei de cara com Drew Summers. — Quero falar com você — ela anunciou em um tom firme. Hum. — Não pode ser outra hora? Estava indo dormir. — Não. Quero falar com você agora. Mostrei a porta do meu quarto. Entramos, eu fechei a porta e cruzei os braços, parada na frente dela. — Que foi? — perguntei. — Você me odeia — ela declarou com segurança. — Como é que é? — Você me odeia. Eu sei. Cocei o corte cicatrizado em cima da sobrancelha. — Não estou entendendo do que isso se trata. — Vi você lá embaixo, olhando para Kale e para mim, e parecia estar com raiva. Era mais tristeza que raiva, mas tentei diminuir a importância da coisa e disse: — Estou cansada, só isso... — Não minta. Você me odeia. Admita. Ela quer mesmo ter essa conversa? Muito bem.

— Não odeio, mas também não gosto de você. — Era uma mentirinha branca. Eu odiava Drew. — Por quê? Nunca te fiz nada. Era verdade. — Eu sei que não, Drew. — Suspirei. — Então por que não gosta de mim? Porque eu liguei para o Kale depois que você foi atacada? — Não, sei que estava tentando ajudar naquele dia, Drew. Mas, sim, uma parte de mim preferia que não tivesse contado para ele. — Por que não? — ela perguntou, irritada. — Não queria que Kale, ou qualquer outra pessoa, me olhasse ou tratasse de maneira diferente. Mas agora é isso que acontece. Todo mundo me trata como se eu fosse uma boneca de porcelana. Isso me deixava furiosa. Drew franziu a testa e cruzou os braços. — Preferia que Jensen tivesse escapado? Ele não conseguiu concluir o estupro, mas outra garota poderia não ter a mesma sorte. O nó na garganta me impediu de responder. — Pensa bem, vai ver que Jensen preso é a melhor coisa que poderia ter acontecido. — Não preciso pensar, eu sei que é, e já encerrei essa história. Você fez o que era certo. — Então por que me odeia? É por causa do Kale? Ela deve ter lido alguma coisa na minha expressão, porque seu rosto se transfigurou. — Eu sabia! Sabia que você gostava dele. Sempre desconfiei, mas Kale garantiu que vocês eram só melhores amigos. — Nós somos só melhores amigos — confirmei. O olhar de Drew não desviava do meu.

— Mas você quer ser mais? Massageei as têmporas, que começavam a latejar. — Por que isso é importante? Ele namora você, não eu. Você. — Não quero mais você perto dele. Não vou admitir que estrague tudo para nós. Pisquei. — Só pode estar brincando comigo. Não vou fazer nada para estragar seu relacionamento. Se fosse esse o caso, já teria feito alguma coisa há anos. Não sou tão amarga. — Tem certeza? — Ela levantou as sobrancelhas. Franzi a testa. — Sim, eu tenho. — Bom, eu não tenho. Não confio em você perto dele. Ah, pelo amor de Deus. — Você é a versão humana de uma manhã de segundafeira na minha vida diária, espero que saiba disso. Drew me encarou surpresa. — Dizer claramente que me odeia teria sido menos doloroso. Odiava toda essa gentileza. Era a primeira vez que ela ficava brava comigo, e mesmo assim, não era nem a metade de quanto eu estaria furiosa se os papéis fossem invertidos. — Desculpa — pedi, e revirei os olhos. Eu sabia que estava sendo horrível, mas não conseguia me controlar. Meus sentimentos por Drew eram mesquinhos, infantis e completamente sem propósito, porque ela era, talvez, o melhor ser humano do planeta, mas as coisas eram assim. Ela salvou minha vida; qualquer pessoa boa seria extremamente legal com ela, mas eu era uma idiota infeliz que não conseguia superar o fato de ela ser namorada do Kale.

Meu comportamento era amargo e completamente patético, e saber disso só me fazia sentir ainda pior. — Fica longe do Kale, ouviu bem, Lane? — Ou o quê? — reagi. — Você vai preferir não saber o que posso fazer — ela ameaçou por entre os dentes. Ah, que merda. Drew parecia realmente capaz de acabar comigo, se eu desse motivos para isso. — Ok — respondi, porque não tinha certeza de que ela não perderia a cabeça se eu dissesse alguma coisa para desafiá-la. Drew me encarou por um minuto, antes de virar, sair do quarto e fechar a porta. Balancei a cabeça, apaguei a luz e fui para a cama. Fiquei deitada olhando para os adesivos no teto. Depois de um tempo, ouvi mais vozes animando a festa lá embaixo, e todo mundo fazia muito barulho. — Inferno — resmunguei. Virei de lado e cobri a cabeça com o travesseiro. Minha noite certamente não foi como eu queria, lamentei em silêncio.

Devo ter dormido, porque acordei assustada com um barulho. Sentei na cama e esfreguei os olhos sonolentos. Olhei para a escuridão, e quase tive uma coisa quando um estalo alto fez a vidraça tremer. Fui na ponta dos pés até a janela do quarto e olhei para fora. Tinha alguém no jardim, bem embaixo da janela. Por alguns segundos, meu medo foi real, até eu olhar com mais atenção e perceber quem era a pessoa. Abri a janela e cochichei: — Kale, o que está fazendo? Ele uniu as mãos em torno da boca e respondeu:

— Quero falar com vocêêê. Estava bêbado. — Droga, Kale, é tarde. — Só preciso de dois segundos — ele insistiu, e levantou cinco dedos. Meu Deus. Balancei a cabeça. — Espera aí. Vou descer já. Fechei a janela e, com cuidado, saí do quarto e desci a escada, depois desliguei o alarme da casa antes de abrir a porta. Arrepiada de frio, andei descalça até o jardim. — Vou te matar por isso — avisei Kale com um tom duro quando parei na sua frente. Esfreguei as mãos nos braços para tentar diminuir o frio. — Tudo bem. — Kale riu. — Sei que está brava, mas isso é muito importante. Aposto que é. Suspirei. — Então fala. Ele abriu a boca para falar, mas olhou para minha sobrancelha, depois para a bochecha esquerda, para as cicatrizes que marcavam meu rosto. Eu sabia em que ele estava pensando, e isso me irritava muito. — Estou bem — falei por entre os dentes. — Por favor, para de me tratar como vítima. Ele não me estuprou. Só me bateu. — Lane... — Não teve estupro, Kale — insisti, fazendo o possível para ser forte. — Ele tentou, mas eu resisti. Garanto que resisti. Ele me abraçou. — Eu sei que sim, Laney Baby. Você foi ótima. Enlacei sua cintura com os braços.

— Desculpa. Devia ter levado você ou um dos meus irmãos... — Não faz isso — Kale me interrompeu e recuou, me segurando com os braços esticados e olhando para mim com os olhos vermelhos. — Não se culpa. Jensen é um merda que queria te machucar, e machucou, e a culpa não é sua. É dele. Sua voz estava furiosa. — Eu sei, mas ainda acho que devia ter pensado melhor. — Repete nessa sua cabecinha: você não é e nunca vai ser responsável pelas atitudes de outra pessoa. As pessoas tomam as próprias decisões, qualquer que seja a situação. Se fazem alguma coisa, é porque elas decidiram fazer. Não é sua culpa. Escondi o rosto na curva do pescoço dele. — Estou com você, Lane — ele disse com a boca em meu cabelo. — Estou com você. Senti cheiro de uísque nele, e era forte. O aroma despertou meus sentidos e meu corpo pela primeira vez em semanas. — Não devia estar aqui — murmurei, tentando afastar a urgência de me deixar consumir por aquele cheiro. — Drew vai me matar. — Ela me contou sobre a conversa que teve com você, e é bom ignorar tudo. Ela não vai fazer nada. Só estava de mau humor. Aham. — Bebeu demais? — perguntei, me afastando dele. Ele assentiu. Vi seus olhos vermelhos. — Comecei o aniversário do seu tio com uns goles de Jack... ou muitos goles de Jack. Ele precisava ir embora. — Todo mundo foi dormir, é melhor você ir para casa... — Te amo — ele me interrompeu.

— Como é que é? — Eu disse — ele riu — que te amo. Amo muito. — Para com isso. Você está bêbado. E quando bebe demais, você diz e faz coisas que não quer. — Eu, não. — Sim, você, sim. E meu coração partido é prova disso. — Pensei muito hoje — ele disse, sorrindo. — Pensou? Isso é sempre perigoso. Kale riu. — Ha, ha, ha. Balancei a cabeça e sorri. — Kale, vai para casa. Você precisa dormir. — Não. Preciso conversar com você. Eu não conseguia lidar com ele nesse estado. — Tudo bem, fala depressa, não quero que meus pais desçam e vejam você bêbado no jardim. Kale levou um dedo aos lábios e sussurrou: — Vou falar baixo. Por que ele tem que ser tão lindo? Mordi o lábio. — Então fala, mas não faz barulho. — Ok. — Ele suspirou, depois balançou a cabeça como se tentasse ficar acordado. — Quero falar com você sobre quando transamos... — Opa, opa — interrompi, sentindo o rosto esquentar de repente. — É melhor não conversar sobre isso, está bem? Era menos avassalador não falar sobre o assunto em voz alta. Pensar já doía muito. — Por que não? — Ele inclinou a cabeça e quase caiu com o movimento, mas eu o segurei. Kale estava completamente bêbado. Resmunguei, irritada.

— Porque não. — Ok. — Ele piscou bem devagar. — Não vou falar sobre isso, mas quero conversar sobre o que significou... — Kale, por favor, não posso fazer isso com você. Sério, não posso. — Será que eu posso terminar? — ele insistiu, sério, balançando de um lado para o outro. Revirei os olhos e gesticulei para ele continuar. — Estou tentando dizer — soluço — que pensei muito — soluço — e quero que você — soluço — fique comigo, por favor e obrigado. — Ele pensou no que tinha falado e riu de si mesmo, riu muito. Eu o encarava incrédula. — O que é isso, Kale? — Te amo muito — ele falou com a voz pastosa. — Fica comigo. — Está se ouvindo? — perguntei, furiosa. Ele encostou o dedo do meu rosto e disse: — Não, mas sei o que você está dizendo, ou o que eu estou dizendo. Estava machucando minha testa. — Amo você. — Ele sorriu. — Fica comigo. — Não! — explodi, e o empurrei para longe. — Você não me ama... você ama a Drew. Dor e consciência surgiram em seu rosto. — Amo vocês duas. Minha risada era amarga. — Não é um cara de sorte? Duas garotas à disposição. Kale olhou para mim com a testa franzida e cambaleou para a esquerda. — Para com isso. Não precisa me machucar. — É você quem está machucando! — respondi. — O que está fazendo é maldade, não vou mais aceitar isso de você.

— Te amo — ele repetiu, como se eu não tivesse falado nada. — Fica comigo. Amanhã ele vai acordar sóbrio e vai se arrepender de tudo que disse, como se arrependeu depois do sexo. Engoli em seco. — Não, Kale. Ele me encarou, irritado. — Não? — Não. Kale engoliu em seco, e vi o músculo da mandíbula se contrair. — Tudo bem — disse em voz baixa. — Ok. Eu só estava protegendo meu coração, e o protegia de precisar desmentir tudo isso na manhã seguinte, mas nem por isso era menos doloroso. — Somos melhores amigos — sussurrei. — Sou como sua irmã mais nova. As palavras eram como vinagre em minha boca. Kale assentiu com um olhar duro. — Ok — repetiu. Deu um passo em sua direção, mas ele recuou. — Vou para a casa dos meus pais — disse. — A gente se vê, Lane. Ele virou e começou a se afastar, e cada passo aumentava em mim a vontade de correr atrás dele, mas me obriguei a entrar em casa. Parei no topo da escada e olhei para a porta do meu quarto. Não queria dormir sozinha. Não hoje. Não depois do que tinha acabado de acontecer. Sem pensar muito, continuei andando e abri a porta do quarto dos meus pais. — Mãe? — sussurrei. Ela sentou na cama. — Estou acordada... Tudo bem?

Hesitei um pouco antes de falar e balancei a cabeça. — Posso dormir com você? — murmurei. — Eu durmo no seu quarto — meu pai avisou, e se levantou. — Deita aqui com a sua mãe, querida. Ele se afastou para o lado, e eu fui para a cama, deitei e abracei minha mãe. Odiava o que estava fazendo com eles. Dormi com minha mãe muitas vezes desde que saí do hospital, porque tinha pesadelos, e sabia que os dois estavam com dificuldades para dormir porque se preocupavam comigo. — Estou me sentindo destruída — murmurei contra o peito de minha mãe. — Você vai ficar bem, bebê — ele murmurou e beijou minha cabeça. — Prometo. Meu pai saiu do quarto, e segundos depois ouvi um estrondo, como se ele tivesse socado alguma coisa. — Quer conversar comigo, ou com alguém, sobre o que aconteceu? — ela perguntou. Pisquei algumas vezes na escuridão. Minha mãe achava que eu estava ali com ela por Jensen e o que ele fez comigo, mas não era isso. Eu ainda estava em estado de choque em relação a isso, mas sentia que o único dano causado por aquela noite eram as pequenas marcas físicas deixadas por ele, e, quando desaparecessem, ele não teria nenhum poder sobre mim. Jensen tinha me deixado com medo; eu nunca mais me comportaria como antes, nunca mais me colocaria em uma situação como aquela. Jurei para mim mesma. O que minha mãe não sabia era que a pessoa que me fazia sentir tão destruída e vulnerável era alguém que ela considerava um filho. Não sabia que ele era o motivo para eu ter começado a beber e me envolver com vários caras diferentes. Ela não sabia que dei a ele minha virgindade e ele não lembrava de nada. Não sabia que eu era

apaixonada por ele desde os dez anos de idade, e certamente não sabia que eu abriria mão de tudo para ser dele. Minha mãe não sabia que tinha criado uma completa idiota, e não saberia, se dependesse de mim. Eu ia mudar. Tudo ia mudar.

— Lane, está pronta? Pulei assustada quando ouvi a voz de Layton. — Desculpa. — Ele riu atrás de mim. — Não queria te assustar. Levantei da cadeira na cozinha e virei para encará-lo. — Não me assustou. Meu irmão riu. — Ah, por isso quase bateu a cabeça no teto? Torci o nariz, e ele riu mais. — Vamos? — perguntei. Ele assentiu. — Vovó foi ao banheiro. Saímos em seguida. — Entra e fecha a porta, então. Quero falar com você. Layton me olhou, desconfiado. — Sobre o quê? Eu não sabia exatamente. Só sabia que precisava falar com ele para ter certeza estava tudo bem entre nós. Resolvi todas as diferenças com minha avó, Lochlan, meus pais, e

agora só faltavam Layton e Kale para encerrar todos os problemas que ainda pudessem existir. — Senta aí, medroso, e eu explico — falei, rindo. Layton não gostou do deboche, mas fez como eu dizia e sentou à minha frente, do outro lado da mesa. — Você está bem, não está? — ele perguntou com evidente preocupação. Seus olhos demoraram um pouco mais sobre minha sobrancelha direita, depois na bochecha esquerda, e por uma fração de segundo, me perguntei se ele estava lembrando daquela ocasião em que ganhei as cicatrizes. Esperava que não, porque eu não lembrava mais disso, e não queria que ele se recordasse. Sorri. — Sim, só quero ter certeza de que estamos bem. Layton levantou as sobrancelhas. — Por que não estaríamos? — Porque nos últimos anos, só conversamos quando eu telefonei no Natal e no aniversário de vocês dois. Não vou te culpar se me odiar. — Opa, espera aí — ele falou em um tom brusco. — Nunca te odiei e nunca vou te odiar, Lane. Você é minha irmãzinha. Vou te amar para sempre. Senti a garganta contraída pela emoção. — Acho... acho que pensei que estivesse ressentido comigo porque as coisas azedaram entre nós antes de eu ir embora, e nunca conversamos sobre isso. — Se não conversamos, a culpa também é minha. — Layton suspirou. — É que odeio pensar em você morando tão longe. Uma coisa horrível aconteceu com você aqui perto, Lane. E se algo ruim acontecesse na América, e você estivesse sem nós? Não aceitei e não concordei com sua decisão, e acabei me afastando. Odiei sua decisão, não você.

— Desculpa, Lay. Foi horrível eu ter me mudado para tão longe. Mas, na época, não pensei em nada disso. Ele assentiu. — Eu sei, mas eu pensei muito. Como o papai, Lochlan, Kale, até o tio Harry, que Deus o tenha. — Sinto muito. Layton se inclinou para frente. — Sei que ainda tem seus problemas com Kale, mas não pode pensar em voltar para casa, ou se mudar para algum lugar mais perto de nós? O fato de estar considerando essa hipótese apontava com veemência o que eu tinha de fazer. Assenti, nervosa. — Cada vez fica mais claro que Nova York não está me fazendo bem. Não está me ajudando a melhorar, mas voltar para casa talvez me ajude, de algum jeito. Os olhos de Layton se iluminaram. — Isso me deixa muito feliz, irmã. Dei risada quando ele me levantou, me abraçou e quase me deixou sem ar. — Ainda não decidi nada, mas é uma opção. Não conta para ninguém, por enquanto. Tenho que pensar em muitas coisas. Meu irmão recuou e piscou para mim. — Combinado. Relaxei. — Tive uma conversa parecida com Lochlan, e ele me contou que está noivo da Ally Day. Vai me dizer que está namorando a Anna O’Leary? Layton riu com alegria. — Não, não estou namorando ninguém, mas estou saindo com a Samantha Wright. Você conheceu na sexta, quando chegou em casa. Gosto dela, saímos uma vez antes de o tio

Harry morrer. Espero sair com ela de novo em breve. Samantha é incrível. — Fico feliz por você, Lay. Quero conhecê-la melhor. — Vai conhecer. Abracei meu irmão de novo, explodindo de alegria por tudo estar bem entre nós. — Layton? Lane? — Lochlan chamou. — Vamos, estamos saindo. Íamos ao escritório do advogado da família para ouvir a leitura do testamento de meu tio. Ainda não havíamos ido à casa do meu tio para começar a organizar e tirar as coisas dele de lá, e não podíamos cuidar disso antes da leitura do testamento. Ele podia ter deixado ordens para que seus pertences fossem doados a algum lugar específico, para que os objetos fossem vendidos, e o valor arrecadado fosse doado para caridade. Estaríamos de mãos atadas enquanto não soubéssemos que destino ele queria dar a seus bens. Fui de carro com Lochlan e Layton até a cidade, e meus pais e minha avó chegaram lá no mesmo momento em que nós chegamos. Tínhamos hora marcada e não precisamos ficar na sala de espera, porque fomos recebidos imediatamente. Meus irmãos e meu pai deixaram as cadeiras para as mulheres e sentaram no parapeito da janela atrás de nós. — Bom te ver de novo, Jeffery — meu pai falou para o advogado assim que entramos na sala. Trocamos apertos de mão, e eu fui apresentada. Ele já conhecia todos, menos eu. — Obrigado por terem vindo. À luz dos eventos recentes, quero oferecer meus mais profundos sentimentos à família. Harry era mais que um cliente; ele era um amigo, e vou sentir muita falta dele. Espero que depois de hoje vocês consigam ter um pouco de paz.

Jeffery olhou diretamente para mim quando terminou de falar, e não consegui responder, por isso minha avó falou por mim. — Obrigada, senhor Twomey — disse com um sorriso afetuoso. — Ainda estamos em choque e perdidos, mas apreciamos suas palavras gentis. Jeffery inclinou a cabeça e sorriu, antes de dar a volta na mesa e sentar atrás dela. Ele pegou uma pasta marrom e fina com o nome do meu tio estampado na capa em tinta preta. — O testamento de Harry é muito simples — começou. — O mais simples que já redigi para um cliente. — Isso é bom, não é? — perguntei. — Menos papelada para enfrentarmos. Jeffery riu. — Acho que falamos a mesma coisa quando redigi o testamento. Sorri. — Tio Harry era assim. Jeffery abriu a pasta. — Sei que vieram à cidade só para esta reunião, mas ela será rápida. O conteúdo do testamento do Sr. Harry Larson é o seguinte: a casa e todos os bens, tudo que era dele e estava em seu nome, foram deixados para a Srta. Lane Edwards, sua sobrinha. Ele recitou meu endereço e outras informações legais precisas, mas minha cabeça parou de funcionar depois que ele disse meu nome. Eu olhava para Jeffery com as sobrancelhas arqueadas, em choque. — Desculpa, acho que entendi errado. Pode repetir, por favor? Jeffery uniu as mãos. — Tudo que era de Harry foi deixado para você, Lane. Dinheiro, casa, tudo, mas tem uma condição.

Tentei processar a informação. — Que condição? — perguntei. — Ele a explicou em uma carta escrita para você. Assenti, porque não sabia o que dizer. — E também tem um adendo. Se algum membro da família contestar o testamento, ou se Lane deixar de cumprir a condição, todo o conteúdo do testamento deverá ser liquidado, e o valor arrecadado será doado para o Liverpool, o time de futebol. Todos na sala reagiram horrorizados. Éramos uma família que sangrava pelo Manchester United, e qualquer menção ao Liverpool era proibida em nossa casa. A pena para quem desrespeitava essa regra podia ser a exclusão da herança ou até a morte. Tio Harry não quis correr riscos. — Filho da mãe diabólico! — minha avó gritou de repente, rompendo o véu de silêncio que tinha caído sobre a sala. Olhei para ela e quase pude ver a fumaça saindo de suas orelhas. As mãos estavam cerradas, os lábios, comprimidos pela raiva. Olhei para ela por mais alguns momentos, depois ri. Cobri a boca com as mãos e gargalhei até ela bater no meu braço. — Não tem graça! Onde ele estava com a cabeça quando fez essa palhaçada? Ele devia queimar no inferno só por ter pensado em fazer uma coisa assim para aquela desgraça de time. E isso mudou tudo. Meu pai e meus irmãos caíram na gargalhada, e tenho de reconhecer que era muito bom rir, e rir com eles. — Ele só queria garantir que a condição seria cumprida — Jeffery comentou, sorrindo, dando sinais de que se esforçava para não gargalhar também. — Só isso. Meu tio era único. Balancei a cabeça.

— Não estou surpresa por ele ter pensado nisso. — Seu tio foi muito cuidadoso quando fez o testamento — o advogado contou. — E se divertiu muito quando pensou nessa ameaça e antecipou a reação de vocês. Minha avó resmungou: — Que peste. Eu ri, e meus irmãos também. — Podemos discutir os detalhes assim que você decidir se vai ou não cumprir a condição, Lane — Jeffery avisou. — É um pouco complexo, porque Harry me orientou a aceitar sua palavra e confiar na sua resposta. Não precisei nem pensar antes de responder: — Eu aceito a condição. Meu tio era um homem sensato, e sei que ele jamais desejaria para mim algo que não fosse certo. Confio nele. Jeffery se animou. — Ótimo. Vou cuidar da documentação para transferir a casa para seu nome, e você decide o que vai fazer com o que tem dentro dela. Preciso dos seus dados bancários para fazer a transferência do dinheiro que era de seu tio para sua conta. Isso era surreal. — Eu mando os dados por e-mail. — Perfeito — Jeffery concordou sorridente. Saí do ar por um ou dois minutos, tempo suficiente para compreender a magnitude do que tinha herdado. Voltei a mim quando Jeffery explicava para minha avó: — ... me pediu para redigir o documento depois que descobriu o problema cardíaco. — Espera aí — interferi. — Que problema cardíaco? Olhei para os membros da família. — Ele não te contou? — Minha mãe estava surpresa. — Acha que eu teria ficado fora se soubesse que ele era cardíaco? Sério, mãe? Acredita que sou mesquinha a ponto

de ter tão pouca consideração com alguém que amo tanto? — Não, é claro que não. Só não consigo acreditar nisso. Como ele pôde não ter falado nada? E olhou para meu pai como se ele tivesse a resposta. — Não é óbvio? — Lochlan se manifestou. — Não para mim — eu disse. — Por que Kale proibiu todo mundo de contar para você sobre a morte do Kaden? Engoli em seco. — Porque ele não queria que eu viesse, a menos que a decisão fosse minha. Lochlan assentiu. — Tio Harry pensava como Kale, é óbvio. Ele te conhecia melhor que ninguém, sabia que você não estava pronta para voltar para casa, por isso não te contou sobre o problema cardíaco. Fiquei furiosa. — Por que todo mundo acha que sabe o que é melhor para mim? — explodi. Meu pai suspirou. — Porque você não sabe, querida. Se pisamos nos seus calos, é porque queremos ajudar. Eu sabia que era verdade, mas nem por isso me sentia menos frustrada. — O que ele tinha? — perguntei com o coração disparado. Minha mãe respondeu: — Doença arterial coronariana. — Vocês... sabiam que ele ia morrer? Se dissessem que sim, e mesmo assim não me contaram nada, eu não sabia o que ia fazer. — Não — Layton respondeu. — Não sabíamos. Só descobrimos sobre a doença há alguns meses, porque ele começou a ter dor no peito, de vez em quando. Mudou a

dieta, começou a tomar um remédio para reduzir o risco de infarto, mas nada disso funcionou. Ele se recusava a aceitar a cirurgia para remover parte da placa, porque não queria ficar preso no hospital. Sabe como ele odiava hospitais. — Não consigo acreditar — murmurei. — Eu nem imaginava. — É muita informação ao mesmo tempo, Lane. Vai processando devagar — Layton sugeriu. Minha avó pôs a mão sobre a minha. — A questão do testamento está encerrada. Você já disse que aceita a condição para ficar com tudo. Não precisa se estressar com isso. Podemos ir limpar tudo qualquer hora. Não tem pressa. — A menos que pretenda vender tudo e voltar para a América — disse Lochlan. Não era indelicadeza. Ele só estava colocando uma das minhas opções. — Todos vocês acham que Nova York é o melhor lugar para mim? — perguntei, suplicando por honestidade com o olhar. Precisava de alguma orientação, e as duas pessoas a quem costumava recorrer para isso, meu melhor amigo e meu tio, não estavam mais comigo. — Eu acho que não é — minha mãe entrou na conversa. — E não estou falando porque quero que volte para casa, mas você morou lá durante seis anos, e quando olhou para Kale no salão na noite em que chegou em casa, vi que nada tinha mudado. Não sei o que esperava resolver quando foi morar na América, mas não deu certo. Você ainda o ama. Ela tem razão, pensei. Ainda o amo. — Estou muito confusa, não sei o que fazer — admiti. — Você está certa, mãe. Ainda amo o Kale, mas as coisas agora são ainda piores que antes. Ele perdeu Kaden e Drew, e também me perdeu, de certa forma. Eu mudei, ele

também mudou. Não quero causar mais sofrimento. E se minha presença aqui piorar tudo? — E se não piorar? — Layton perguntou. Deixei os ombros caírem. — É um “se” bem grande, Lay. — É, mas o que você tem a perder? — Nada — respondi. — Exatamente. Se nada der certo entre você e Kale, pelo menos estaremos todos aqui para te apoiar. Não vai estar sozinha de novo, e nunca mais vai ter que ir dormir se perguntando se fez a coisa certa. Você tentou se afastar, não deu certo. É hora de ficar e pagar para ver. Layton estava certo. Mas eu suportaria voltar para casa e ser só amiga do Kale? Não tinha a resposta. — Estou com medo — murmurei. Meu pai se abaixou na minha frente e afastou o cabelo do meu rosto. — Precisa ser corajosa, garota. Assenti. — Consegue se imaginar voltando para Nova York, sabendo tudo que sabe agora? — minha avó perguntou. Eu me imaginei novamente em Nova York, de volta à minha velha rotina, enquanto Kale continuava aqui e precisava de apoio. Pensei em como nunca mais receberia um telefonema, e-mail, ou uma chamada de Skype do meu tio, e como estaria sozinha sempre que sentisse saudade dele. Pensei em só falar com minha família pelo telefone ou pelo Skype, quando me sentia tão amada e apoiada junto deles. E fiz a mim mesma uma pergunta muito importante: Seria capaz de voltar a me sentir vazia e entorpecida? — Não — falei, respondendo à pergunta de minha avó e à minha. Minha família olhava para mim, e vi a esperança nos olhos deles.

— O que isso significa, Lane? — meu pai quis saber. — Seja direta. — Não posso voltar... não quero voltar — falei, consciente de que essa era a verdade. — Lane — minha mãe murmurou, e lágrimas inundaram seus olhos azuis. Continuei antes de ser dominada pela emoção da decisão. — Vou ficar aqui — anunciei, e senti o peso do mundo sair de cima dos meus ombros. — A casa de Harry será minha casa. Vou me mudar para lá. Cansei de viver longe de vocês. A morte do tio Harry me mostrou que aqui é meu lugar. Com vocês. Meu lugar é aqui, em casa. Vários braços me cercaram, e ouvi um chorinho de alegria e alívio que sabia ser de minha mãe. Abracei cada um deles e garanti que estava falando sério. Eu estava voltando para casa. Puta merda. Roman. Seu rosto bonito foi o primeiro a aparecer na minha cabeça. Não sabia por que a necessidade de falar com ele era tão grande, mas era. Tinha muito o que contar para ele, e de repente não podia mais esperar por essa conversa. — Roman — falei quando minha família me soltou. — É muita coisa em que pensar, preciso conversar com meu amigo. — Pode usar a sala ao lado — Jeffery ofereceu, já se levantando atrás da mesa. Agradeci e fui para a sala adjacente, onde havia algumas caixas empilhadas. Não perdi tempo, peguei o celular e liguei para meu amigo. Ele atendeu no quinto toque. — Alô? — Sua voz era mais rouca que de costume, e só então lembrei que era muito cedo em Nova York.

— Desculpa, Ro. Esqueci a diferença de horário. Não queria te acordar. — Tudo bem — ele garantiu depois de um longo bocejo. — Que bom que ligou. Tudo bem? — Eu ia responder, mas ele mudou de tom de repente. — Merda, desculpa. Você acabou de enterrar seu tio. É claro que não está tudo bem. Sentei na única cadeira ao lado da janela, do outro lado da sala. — Estou bem, na medida do possível, mas não liguei para falar sobre isso, porque esse assunto me faz chorar, e estou cansada de chorar. — Por que ligou, então? — Não sei por onde começar. — Pelo começo? — Roman sugeriu. — É sempre o melhor lugar para começar. — O filho do Kale, Kaden. Morreu aos dez meses de idade. Câncer. — Meu Deus. — Pois é. — Engoli o nó que se formou na garganta. — E Kale fez questão de esconder isso porque não queria que eu voltasse para casa, a menos que fosse uma escolha minha. — Puta merda! — Não é? E acabei de descobrir que meu tio morreu por causa de uma cardiopatia que escondeu de mim. Acabei de saber disso. Como Kale, ele não queria que eu voltasse, a menos que fosse escolha minha. — Lane, caramba, isso é insano! Pensei que minha família fosse a única com segredos sombrios e profundos, mas você leva o prêmio. Concordei balançando a cabeça. — Por outro lado... — Garota, o quê? — Roman ficou aflito. — Lochlan está noivo! Roman respirou fundo.

— Estou arrasado para cacete! Dei risada. Roman anunciou a atração por meus irmãos quando viu uma foto deles no meu celular e declarou que era meu amigo, por isso podia conhecer os dois, um dia. — Calma, tem mais — avisei. — A noiva é Ally Day. Silêncio. — Por favor, me diz que tem mais de uma Ally Day na sua cidade. — Não que eu saiba. — Cara! — Pois é — falei balançando a cabeça. — Ela pediu desculpas por todas as coisas cruéis que me disse. Eu desculpei, mas vai demorar muito para eu conseguir me dar bem com ela, sabe? — Sei — Roman falou depressa. — Estou orgulhoso de você por ter perdoado. Sei quanto ela e aquela Anna vadia mexeram com sua autoestima. — Fiquei feliz por Layton não estar namorando Anna em segredo. Eu teria explodido. Roman riu, o que me fez sorrir. — Como vão as coisas com sua família? — ele perguntou. — Tudo bem. Esclareci tudo. Consegui me entender com todos eles. — Fico muito feliz por você, baby. Sei quanto eles são importantes para você e como sofria por só conversarem raramente. — É, isso era horrível. — A situação melhorou com Kale? — Sim e não. — Amiga, explica — Roman exigiu. — Quero saber tudo. — Ele não me odeia, como eu temia. Conversou comigo, brincou e cuidou de mim no dia do funeral do meu tio. Foi atencioso, como sempre, mas agora tem algo vazio nele,

Ro. Vejo nos olhos. Sei que parece maluco, mas consigo ver a diferença nos olhos dele. — Ele perdeu um filho. Acho que esse tipo de dor não desaparece nunca; só fica mais fácil de suportar com o passar do tempo. Passei a mão livre no rosto. — Tenho a sensação de que voltei para casa há anos, não há quatro dias. Aprendi muito, e isso é exaustivo. — Está se sentindo melhor com as coisas novas que descobriu? — Sim e não. Foi doloroso saber sobre Kaden e a doença do meu tio, mas se não tivessem me deixado no escuro sobre isso, acho que não teria tomado a decisão que tomei. — Que decisão? Conta para ele, minha mente ordenou. — Vou ficar, Ro. Ele pigarreou. — Eu tinha um pressentimento de que isso aconteceria. Afastei o telefone da orelha e olhei para ele. Ro nunca insinuou que achava que eu ia voltar para York, por isso eu estava tão surpresa. — Como é que é? — perguntei chocada quando devolvi o celular à orelha. Roman deu risada. — Você passou seis anos longe de casa, e embora se ache ótima nessa coisa de esconder os sentimentos, eu vejo quanto sente saudade da sua família, vejo quando fala deles. E agora, depois da morte do seu tio e do filho do seu melhor amigo... não vai deixar sua família, nem o Kale. De jeito nenhum. Você está em casa. A emoção contraía minha garganta. — Só quero que saiba que estou perdida sem você. Te amo com todo meu coração... bom, com o que sobrou dele, pelo menos.

Roman choramingou. — Cala a boca. Para de falar como se a gente nunca mais fosse se ver. Vamos conversar o tempo todo por telefone e Skype. Assenti, embora ele não pudesse me ver. — Vai ficar na casa dos seus pais? — Roman perguntou. O testamento do tio Harry, lembrei. — Na verdade — ri —, meu tio resolveu essa questão da moradia para mim. — Não! Você ficou com a casa dele? — Ele deixou tudo para mim. A casa, o dinheiro, os bens. Tudo. — Ai, meu Deus. Amo seu tio por ter cuidado de você. — Ele ainda está cuidando de mim. — E sempre vai estar — Roman declarou. — Mas ele é ardiloso. Herdei tudo, mas tenho que cumprir uma condição que ele estabeleceu em uma carta para mim. Ainda não li, mas posso imaginar o que ele quer que eu faça. — Lane, você está em York há quatro dias! Como tudo isso pode ter acontecido em quatro dias? — Sabe de uma coisa, Ro? Tenho me perguntado a mesma coisa. Roman e eu rimos e conversamos por mais alguns minutos. Ele garantiu que encaixotaria minhas coisas e me lembraria de mandar um e-mail para o proprietário do apartamento informando que eu entregaria o imóvel. Quando chegou a hora da despedida, eu me sentia muito melhor em relação a tudo. Roman era um verdadeiro amigo e seria a única coisa de Nova York de que eu sentiria saudade. Desligamos, e voltei à sala de Jeffery. Minha família e o advogado conversavam, mas quando me viu, meu pai atravessou a sala e parou na minha frente.

— Tudo bem? — perguntou. Assenti e o abracei. — Tudo bem, pai, obrigada. Jeffery me chamou, e me afastei de meu pai para olhar em sua direção. Ele segurava um envelope pardo. — Aqui está a carta do seu tio. Peguei a carta com a mão trêmula e agradeci. Olhei para o envelope, pedi licença e saí da sala para ir ao banheiro. De repente me sentia um pouco enjoada, reflexo de toda agitação, e queria estar perto de um vaso sanitário, caso acabasse vomitando. Depois de lavar o rosto e respirar fundo algumas vezes, entrei em um dos reservados e sentei sobre a tampa do vaso. Ainda tremendo, abri o envelope. Respirei fundo mais algumas vezes antes de começar a ler.

Lane: Se está lendo esta carta, significa que estou com minha Teresa. Por favor, não fique triste por mim. Saiba que me livrei da dor e estou com meu amor. Estou feliz. Peço desculpas por não ter contado nada sobre a doença. Não queria que se preocupasse ou que voltasse para casa por minha causa. Não sei exatamente quando vou perder essa briga, mas meu corpo tem dado sinais de que não vai demorar muito. Estar a milhares de quilômetros daqui não resolveu nada. Você precisa voltar para casa e encerrar algumas coisas.

Mas sei que é teimosa, e só um acontecimento drástico a trará para casa. Acho que será meu funeral. Observei Kale durante os últimos anos, e só vou dizer uma coisa: o homem te ama, garota. O rosto dele se ilumina quando falo de você e conto o que tem feito em Nova York. Você muda o dia dele, mesmo quando não está aqui. Sei bem que ainda o ama; não estaria fugindo, se fosse diferente. Chega de desculpas, meu amor. Cuidei de tudo para que, quando eu partir, você não precise de nada. Só vai ter que vir para casa e resolver as coisas com Kale. Não sei como isso vai acabar, não sei se a história vai ser como vocês dois querem, mas vocês precisam conversar. Você sabe de que conversa estou falando. Cuide-se, confie em si mesma, se ame tanto quanto eu a amo e seja feliz. Você merece, querida. A gente se vê depois. Todo meu amor, Tio Harry.

Lágrimas turvavam minha visão quando reli várias vezes a carta do meu tio. Sentia tanta falta dele que doía, mas

também queria bater na cabeça dele por essa armação. Eu ria e chorava. Dobrei a carta e a guardei na bolsa. Saí do reservado e lavei o rosto novamente com mais água fria. Depois de me enxugar, olhei para o espelho. Quando vi a mulher no reflexo, fiquei feliz por descobrir que começava a reconhecê-la de novo. Não era mais uma estranha para mim mesma. Saí do banheiro me sentindo esgotada, mas bem. Com uma só atitude, meu tio havia garantido meu futuro financeiro e me dado uma linda casa. Era uma verdadeira bênção. Voltei ao escritório de Jeffery e descobri que minha família tinha ido embora. Assinei os papéis para começar o processo de liberação da herança. — Ei — Lochlan me chamou quando eu estava no corredor do prédio, a caminho da saída. — Todo mundo foi para a casa da mamãe e do papai. Eu disse que você iria comigo. Tudo bem? — Estou bem, só... me sinto esgotada. Ele deixou tudo para mim com a condição de Kale e eu conversarmos. — Sério? — Lochlan riu. — Que armador filho da puta. Dei risada. — Concordo inteiramente. — Vamos? — meu irmão perguntou. Assenti, mas toquei o braço de meu irmão. — Pode me deixar em um lugar no caminho? — É claro. Onde? — Preciso esvaziar a cabeça. É muita coisa para processar. — E onde vai fazer isso? Sorri e olhei para o céu quando saímos do prédio. — Vou visitar a Lavender, é claro.

— Lane — meu pai gritou da escada —, pode descer aqui um minuto? Suspirei e olhei para o teto. — Dá para esperar? — perguntei, irritada por ele estar me interrompendo. — Vou encontrar a Lavender no cinema em vinte minutos, e ainda não estou pronta. Ela me mata se eu atrasar. Acho que ela sabia que eu me atrasaria. Provavelmente por isso estava ignorando minhas ligações e mensagens. Queria brigar comigo pessoalmente. Ri sozinha, parei de rir quando meu pai respondeu. — Precisamos conversar. Agora. Aconteceu alguma cosia, eu podia ouvir no tom de voz dele. Sem pensar duas vezes, saí do quarto e desci a escada até a sala de estar, onde encontrei meus pais. Foi uma surpresa ver meus irmãos e Kale ali também. Estava todo mundo em pé, olhando para mim, e havia uma forte tensão no ar. — É a vovó? — perguntei com o coração na garganta.

Minha mãe balançou a cabeça. — Não, querida. — Tio Harry? — insisti, notando que ele também não estava na sala. Minha mãe balançou a cabeça de novo, mas dessa vez seus olhos se encheram de lágrimas. — Fala — quase gritei, tomada pelo pânico. Minha mãe começou a chorar e não conseguiu falar em meio aos soluços, e eu olhei para o meu pai, que me olhava muito sério. — Senta, meu bem. — Não quero sentar — respondi. Kale, que estava atrás do meu pai, se aproximou de mim e tocou minhas costas, me levando para o sofá, onde acabei sentando. — Pronto, estou sentada. Agora fala, o que aconteceu? Meu pai suspirou de um jeito triste. — É a Lavender — disse, olhando diretamente para mim. Minha cabeça esvaziou, e toda forma lógica de pensamento saiu pela janela. — O que tem a Lavender? Meu pai estava arrasado. — Ela estava voltando para casa do trabalho hoje — começou com mais um suspiro de pesar — e sofreu um acidente. Senti o estômago revirar. — Lavender sofreu um acidente de carro? — perguntei com um tom surpreendentemente calmo. Era como se minha voz brotasse de uma máquina, porque de repente parecia robótica e lenta, como se eu estivesse chapada e ouvisse coisas. — Sim, querida, isso mesmo — meu pai respondeu, olhando para mim como todos na sala.

Ouvi as batidas do meu coração. — Precisamos ir para o hospital — falei, e tentei me levantar, mas Kale, que continuava ao meu lado, tocou meu joelho, interrompendo o movimento. Olhei para a mão dele como se meus olhos pudessem abrir buracos nela. Era a primeira vez que ele me tocava de um jeito diferente, que não era um abraço de um amigo ou um empurrão de brincadeira, desde a noite em que ficamos juntos. Isso me fez olhar para ele com medo do que ia ouvir. O desespero que vi em seus olhos me rasgou ao meio. — Não — disse a ele com um olhar penetrante. — Ela está bem. Os músculos em seu rosto se contraíram, e ele olhou para mim. — Sinto muito. — Não! — falei mais alto. — Ela está bem, só foi para o hospital... — O pai dela ligou para sua mãe, Lane — Kale me interrompeu, e vi a dor estampada em seu rosto. Tomei consciência de tudo. As batidas do meu coração. O ardor no estômago. O suor na palma das mãos. — Laney Baby — ele murmurou e tocou meu rosto. — Sinto muito mesmo. Cala a boca, minha cabeça gritou. — Não é verdade — insisti balançando a cabeça. — Ela morreu, garota — Kale murmurou. — Os ferimentos foram graves demais, ela não resistiu. Segurei a barriga quando meu estômago se contraiu. — Vou vomitar — murmurei. Senti os braços dele me envolverem. Em um segundo eu estava na sala com minha família, no outro, subia a escada correndo com Kale logo atrás de mim. Consegui chegar ao

banheiro a tempo de vomitar no vaso sanitário. Kale segurava meu cabelo com uma das mãos e massageava minhas costas com a outra. Quando terminei, fiquei agachada, sentada sobre os calcanhares, e aceitei o lenço de papel que ele me oferecia. Limpei a boca, joguei o lenço no vaso e dei a descarga. Depois fiquei quieta, apenas repetindo mentalmente o que Kale tinha dito. Ela morreu, garota. — Preciso ir ao hospital — anunciei, sem olhar para ele. — Tenho que ver a Lavender. Kale me ajudou a levantar e segurou meu braço com firmeza enquanto descíamos a escada. Segui diretamente para a porta da frente e a abri, causando uma comoção atrás de mim. — Onde ela vai? — minha mãe perguntou com um tom um pouco mais agudo. Kale suspirou. — Ela quer ir ao hospital. Minha mãe começou a chorar de novo, e eu não sabia o porquê, mas aquilo estava me irritando, por isso saí e fui esperar ao lado do carro do meu irmão. Lochlan chegou e destravou as portas, eu entrei, sentei no banco de trás e prendi o cinto de segurança. Meus dois irmãos e Kale entraram no carro, e nenhum deles falou nada. Lochlan dirigiu até o hospital. Foi o trajeto de carro mais longo da minha vida, mas, na verdade, foram só uns minutos. Quando chegamos lá, Kale entrou no hospital comigo e tratou de tudo na recepção, enquanto eu só olhava para a mulher que fazia perguntas idiotas. Ele conseguiu a autorização para irmos à sala onde a família estava reunida, no fundo do hospital, perto do necrotério, e caminhamos juntos e em silêncio. — Fala alguma coisa, Lane — ele pediu.

Engoli o ar. — Preciso ver Lav. Chegamos à porta identificada com as palavras “Reservado às Famílias”, e Kale bateu de leve. Alguns segundos depois, um homem abriu a porta, um homem de olhos vermelhos e inchados, um homem que era o pai de Lavender. — Senhor Grey — murmurei quando entrei na sala. A senhora Grey, que estava sentada no centro da sala cercada por outras mulheres, levantou a cabeça quando entrei, e chorou copiosamente ao ficar em pé. Imediatamente, me aproximei dela e a abracei, apertando seu corpo contra o meu. — Ela foi embora, Lane — a mulher chorava em meu peito. Meu coração estava apertado de dor, mas, por alguma razão, as lágrimas não vinham. Nenhuma lágrima. — Sinto muito — sussurrei, e a embalei suavemente de um lado para o outro. Sentei ao lado da senhora Grey e outras pessoas da família, enquanto Kale permanecia ao lado da porta, me observando com uma expressão triste. Desviei o foco dele para a família de Lavender, e ouvi o que eles contaram sobre o que havia acontecido com ela. Lavender voltava do trabalho para casa, e um motorista bêbado ultrapassou um sinal vermelho e bateu na lateral do carro dela. O impacto na têmpora a matou instantaneamente. Meu estômago ameaçou se rebelar novamente enquanto eu ouvia os detalhes que a polícia tinha dado à família de Lavender, e eu tentei bloquear as vozes. — Senhora Grey — chamei. Ela olhou para mim.

— Posso vê-la? — pedi, torcendo para ela não dizer não. Seu lábio tremeu quando ela assentiu. — Já a vimos, ela nem parece estar machucada. Levantei e perguntei: — Onde devo ir? Kale pigarreou. — Eu te levo. Vi uma placa indicando o necrotério. Abracei os pais de Lavender, me despedi da família dela e saí da sala com Kale. Seguimos as indicações para o necrotério e, quando chegamos lá, expliquei ao homem que guardava a porta que tinha permissão para ver Lavender. Dei a ele meu nome completo, e ele transmitiu a informação para o funcionário que estava lá dentro. Ele me disse para esperar alguns minutos, e depois me deixou entrar. Agradeci e ainda esperei alguns segundos do lado de fora com Kale. — Tem certeza de que quer fazer isso? — ele me perguntou. Nunca tive mais certeza de nada na vida. — Preciso vê-la — respondi. Ele ficou em silêncio por um ou dois minutos, e quando se preparava para falar alguma coisa, a porta se abriu e fui informada de que podia ir ver Lavender. — Espera — Kale me chamou quando comecei a andar. Ele segurou minha mão. — Não quer vê-la desse jeito, Lane. Você acha que quer, mas não quer. Soltei minha mão. — Você não sabe nada sobre o que eu quero, Kale. Nunca soube. Virei e passei pela porta do necrotério. Acenei com a cabeça para o homem que me deixou entrar e segui outro funcionário vestido com um longo jaleco branco para o interior de uma sala muito fria. Hesitei por alguns segundos na entrada da sala, mas passei pela porta. Quando vi minha

amiga deitada sobre uma cama de aço, toquei o estômago e fiz uma prece silenciosa para ele não se revoltar. Caminhei lentamente na direção de Lavender, mantendo os olhos fixos em seu rosto bonito, evitando o lençol branco que cobria seu corpo. Parei ao lado dela e toquei sua face com o dorso dos dedos, e meu coração se contraiu de dor quando a senti fria. Lavender estava morta há poucas horas, mas todo calor já havia deixado seu corpo, e isso era insuportável, porque eu sabia quanto ela odiava sentir frio. — Como você veio parar aqui, Lav? — murmurei. Ela não respondeu, e meu lábio tremeu. Vi a região da têmpora onde ela foi atingida. Havia um hematoma e uma depressão, como se alguma coisa tivesse se chocado contra aquele lado do crânio. Era reconfortante saber que Lavender não sentiu dor, e ela parecia estar dormindo, mas eu sabia que não estava. A pele estava pálida como eu nunca tinha visto, e os lábios não eram mais rosados; estavam brancos. O hematoma na testa e no resto do rosto não era muito escuro, mas, logicamente, eu sabia que era porque ela estava morta, e isso significava que o corpo tinha parado de funcionar. O coração não bombeava mais sangue para dar uma cor diferente à pele. Eu não sabia quanto tempo passei com ela, mas quando a beijei e saí da sala, estava tremendo de frio. Kale, que estava sentado no chão onde eu o havia deixado, do lado de fora do necrotério, levantou apressado ao me ver. — Você está bem? — perguntou. Balancei a cabeça, mas não disse nada. — Querida — ele murmurou. — Ela está morta de verdade — sussurrei. — Toquei nela. Ela está fria, pálida, não tem batimentos cardíacos. Não se mov... move, está parada... só deitada ali embaixo de um lençol branco.

— Lane... — Kale suspirou, e me abraçou. Era um pensamento estranho, mas me perguntei o que Drew faria se soubesse que Kale estava comigo. Provavelmente, me deixaria deitada no necrotério ao lado da Lavender. — Meu bem, você está me assustando — ele murmurou. — Nunca te vi tão retraída. Olhei para Kale, pisquei algumas vezes e disse: — Não sinto nada. O que está acontecendo comigo? Ele franziu a testa. — É choque, só isso. Eu me sentia entorpecida, e não gostava de não sentir nada. Olhei para Kale e decidi que precisava sentir alguma coisa. Sem aviso, levantei o rosto e beijei sua boca de leve. Por um momento, ele correspondeu, mas depois recuou. — Não posso, Lane — sussurrou ao se afastar de mim. — Estou com a Drew. Foi como levar um chute no estômago, e meu peito doeu. Consegui o que queria. Não estava mais entorpecida. — Eu sei. — Abaixei a cabeça, reconhecendo que tinha tentado fazer uma coisa horrível. Sabia que ele tinha compromisso com outra pessoa. — Desculpa. — Tudo bem — ele respondeu em voz baixa. — Quer ir para casa? Neguei com um movimento de cabeça. — Quero ir ver meu tio. Kale assentiu e saiu do hospital comigo. A caminho da saída, ele ligou para o Lochlan e pediu para vir nos buscar. Esperamos do lado de fora em silêncio. Kale olhou para mim algumas vezes como se fosse falar, mas não disse nada. Isso acabou com a pouca paciência que eu ainda tinha, e na sexta vez que ele fez isso, eu disse: — Fala de uma vez. — Drew está... ela está grávida — Kale disparou. Parei de respirar.

— Ela vai ter um filho meu. — Deu para ouvir o barulho da garganta dele engolindo. — Vou ser pai, Lane. Senti todo o sangue abandonar meu rosto, e nesse momento me senti grata por já ter vomitado, ou isso estaria acontecendo agora, em cima dos sapatos dele. — Lane? — ele me chamou. — Fala alguma coisa, por favor. Disse a única coisa aceitável em que consegui pensar: — Parabéns. Kale deu um passo em minha direção. — Não queria te contar justamente hoje, mas... mas depois do que aconteceu agora há pouco entre nós, achei que você precisava saber. Esperei até assimilar a informação e, depois de um momento, levantei a cabeça e olhei para Kale. — Há quanto tempo sabe que Drew está grávida? Ele empalideceu. — Há algumas semanas. Recuei um passo. — Algumas semanas? Ele tentou reduzir a distância entre nós, mas levantei a mão aberta diante de seu peito. — Não — avisei com um tom que era quase um rosnado. — Não toca em mim. — Desculpa. Sei o que sente por mim, ou sentia, e sei que não era isso que queria ouvir. A última coisa que eu queria era te magoar. Senti que devia estar chorando, mas as lágrimas não apareciam. Um novo torpor se instalou dentro de mim. — Parece que tudo que você faz é me magoar, Kale — respondi com tom solene. — É sem querer — ele sussurrou. Olhei para o chão.

— Preciso ir. — Lane, por favor... — Kale — interrompi, subindo um pouco o tom —, preciso ir. Não quero ficar perto de você agora, por favor, me deixa ir. — Não posso — ele respondeu, angustiado. Não sabia como interpretar essa resposta, mas naquele momento, não me importava com Kale ou com o que ele tinha a dizer. — Diz para a Drew que eu mandei parabéns. Kale respirava mais depressa. — Lane, por favor, me deixa... — Não tem nada para explicar. Você e Drew namoram, vivem rompendo e reatando há anos, não é surpresa que tenham finalmente decidido ficar juntos e começar uma família. Não devia ser surpresa, mas era. — Não foi planejado — Kale anunciou. Não tinha importância. Drew estava esperando um filho de Kale e, quisessem eles ou não, isso era um fato. Outro fato era que eu precisava me afastar. Precisava ir para longe, muito longe. — Vou a pé para a casa do meu tio — avisei e me virei de costas para ele. — Preciso andar. — Lane! — Kale me chamou, e ouvi a dor em sua voz quando me afastei dele. Felizmente, ele não me seguiu, mas senti que olhos me seguiam enquanto eu andava do hospital para a casa do meu tio, e soube que Kale e Lochlan me acompanhavam de carro para ter certeza de que eu chegaria bem. Não me surpreendi com isso. Lavender morreu, uma voz cruel me lembrou em pensamento.

Minha melhor amiga, a única pessoa que sabia cada um dos meus segredos, se foi. Minha confidente e cúmplice não existia mais. Ela era a única pessoa no mundo com quem eu podia falar sobre tudo. Podia agir de qualquer maneira perto dela, e nunca era julgada. Lavender só ria e participava de qualquer loucura que eu fizesse. Nunca soube quanto a amava, até ver seu corpo sem vida em cima daquela cama de aço. Não sabia nem se ela sabia quanto eu a amava e reconhecia sua importância, e que sem ela teria perdido ainda mais o rumo, mais do que já perdi. Tirei o celular do bolso e, sem saber por quê, liguei para o número dela e aproximei o aparelho da orelha. Não tocou várias vezes; em vez disso, a chamada foi encaminhada para a caixa de mensagens. — Oi, aqui é a Lavender, e é bem provável que eu tenha visto sua ligação e deixado cair na caixa de mensagens, porque odeio falar pelo telefone. O que você tem que fazer agora é mandar uma mensagem de texto. Não tem essa de deixe seu nome e telefone... manda uma mensagem de texto, e eu respondo na hora. Até maiiis! Ri ao ouvir o bipe indicando que minha mensagem seria gravada. — Juro que sua mensagem ainda é a coisa mais idiota que já ouvi, mas adoro, e amo você, Lav. — Engoli em seco. — Sabe de onde estou saindo? Do necrotério, fui te ver em cima de uma cama em uma sala gelada. Espero que mande uma mensagem para mim dizendo que acabou de fazer a brincadeira mais cruel e maluca de todos os tempos. Espero mesmo, porque não quero que tenha ido embora. Não pode ter ido embora, está ouvindo? Temos muita coisa para fazer. Temos que terminar a faculdade e ir para Ibiza, lembra? Combinamos que iríamos para lá quando terminássemos os estudos, iríamos nos divertir. Não pode ter ido embora, temos planos, e você não pode ignorar planos como esses.

Simplesmente não pode... Por favor, manda uma mensagem para mim, Lav. Não vou nem ficar brava com essa brincadeira horrorosa. Juro pela minha vida que não vou gritar com você. Prometo. Estava chegando na casa do meu tio e franzi a testa ao apertar o telefone. — Manda uma mensagem mais tarde, te amo. Desliguei ao chegar na casa do meu tio e usei a chave que ele me deu anos atrás para entrar. Fiquei parada no hall de entrada, e apesar de uma coisa horrível ter acabado de acontecer, me senti segura. — Tio Harry? — chamei. — Na cozinha, querida — ele respondeu. Fui até lá e o encontrei sentado à mesa, com uma xícara de café diante dele e outra esperando por mim. — Seu irmão ligou — ele explicou, respondendo à pergunta que não fiz. Assenti e sentei, depois bebi um gole de chá. — Sinto muito por Lavender, Lane. Demorei muito para responder e, quando falei, foi como se eu também estivesse morrendo. — Nunca tinha perdido ninguém tão importante — sussurrei. — Sei que tia Teresa morreu, e fico triste por ela não estar aqui, mas eu tinha só doze anos quando isso aconteceu. Não entendi na época, mas agora entendo. Lavender foi embora mesmo, tio Harry, e não vai voltar. Desmoronei quando senti os braços dele me envolvendo. Chorei as lágrimas que não tinham surgido no hospital quando vi Lavender ou a família dela, ou quando Kale me contou que Drew esperava um filho dele. — Kale — falei, chorando. — Ele vai ser pai. Ele e Drew vão ter um bebê. — Puta que pariu. — Ouvi meu tio resmungar. Isso refletia exatamente minha opinião.

— O que está pensando? — meu tio perguntou. — Quero ir embora daqui — sussurrei. Meu tio olhou para mim, preocupado. — Querida, não acho que ir embora é a melhor coisa... — Minha melhor amiga acabou de morrer, e Kale e Drew vão ter um bebê — interrompi. — Não posso ficar para vê-lo construir uma família com outra pessoa. Não tenho a Lavender para me ajudar a passar por isso. Preciso me afastar daqui, dele. Acho que a distância vai me ajudar a superar. — Lane... — Não posso mais ficar aqui, tio Harry! — gritei. — Não posso mais. Senti o olhar dele em mim. — Quer mesmo ir embora? Assenti. — Dói muito estar aqui, isso está me matando. — Então faça o que acha que é certo para você, querida — ele opinou depois de um silêncio prolongado. Não me surpreendi com seu apoio. Sabia que o teria. — Estou com medo — choraminguei. — Tudo isso é novo e desconhecido; é assustador, sim, mas não significa que é impossível. Pessoas se mudam o tempo todo. Você não é a primeira e não vai ser a última. Limpei o rosto com o dorso das mãos. — Todo mundo vai pensar que fiquei maluca. Meu tio suspirou. — Eles vão ficar magoados e vão dizer coisas em que não acreditam por preocupação, mas não vão te odiar. Você é importante para todos nós, Lane. Eu esperava que ele estivesse certo. — Não sei por onde começar ou começar a mudança. — Para onde está pensando ir?

Para longe, bem longe. — Já estive em Nova York com a mamãe e a vovó. Achei bem legal. Meu tio me encarou. — América, Lane? Sério? — Preciso de distância — sussurrei. — Preciso. Ele assentiu e me abraçou mais uma vez. E começamos a cuidar de tudo. Com a ajuda de meu tio, encontrei em Nova York um apartamento para alugar que, pelas fotos, parecia ser excelente pelo preço que eu podia pagar. Podia terminar o curso on-line de qualquer lugar do mundo, o que era um ponto a meu favor. Tentei recusar o dinheiro que meu tio ofereceu, mas ele me deu o suficiente para os primeiros seis meses de aluguel, e também comprou a passagem de avião para Nova York. Ele me fez prometer que eu começaria a aceitar trabalhos editoriais porque, embora ainda não pudesse me dizer editora, ele me achava boa o bastante para editar qualquer coisa que me dessem. Disse que sempre soube que eu trabalharia com literatura por causa do meu amor pelos livros e afirmou que eu seria muito boa na minha profissão. Até prometeu criar um site para mim, porque editores freelancers precisam de uma ferramenta profissional para conquistar clientes. Assim que concordei, ele me inscreveu no programa eletrônico de isenção de vistos, o ESTA; assim eu poderia ficar nos Estados Unidos por noventa dias antes de ter que sair. Mas assim que chegasse lá, pediria imediatamente o visto de trabalho para prolongar a estadia. Três horas depois de ter decidido me mudar, providenciamos tudo e marcamos meu voo para depois do funeral de Lavender. Quando estava com a família dela no hospital, ouvi que a cerimônia aconteceria em quatro dias, o que me deixava praticamente sem tempo para avisar minha família que eu estava indo embora. Sabia que a conversa

seria péssima, mas estava decidida. Precisava partir. Ficar em York não era algo que eu podia fazer.

Eu me preparava para contar à família que estava me mudando, e apesar de ter o apoio de meu tio, ainda estava morrendo de medo. Encostei no balcão da cozinha, enquanto a família se reunia em volta da mesa. Meu tio estava apoiado à parede na minha frente, de braços cruzados. Todos esperavam que eu começasse a falar. — Lavender se foi e não vai mais voltar para mim. — Abaixei a cabeça. — E ainda nem comecei a entender isso direito. Ela morreu há três dias, e nada parece muito real para mim. Fico esperando Lav mandar uma mensagem ou entrar no meu quarto. — Querida... — minha avó murmurou. Mordi o lábio. — Quero que todos escutem bem o que tenho para dizer. É importante, está bem? Levantei a cabeça e vi que todo mundo assentia. — Eu amo o Kale — falei em voz baixa. Meus irmãos se olharam, e meus pais também, antes de todos olharem de novo para mim. — Você ama o Kale? — meu pai estranhou. — Sempre amei — confirmei. Minha mãe brincava com os dedos. — Está apaixonada por ele? — ela perguntou. — Estou. Meu pai projetou o queixo. — E ele? Ele te ama? Balancei a cabeça.

— Não do mesmo jeito. Ele nem sabe sobre o que eu sinto. Nunca falei nada. — Por que não? — Layton perguntou. Por onde eu começo? — Porque todo mundo sempre repetiu que somos como irmãos, e eu nunca pensei nele desse jeito. Nunca, desde que eu era pequena. Minha mãe empalideceu. — Eu não... não sabia que era amor — ela disse. — Pensei que fosse uma paixãozinha. — Não é sua culpa, mãe. Eu escondi o que sentia pelo Kale. Só Lavender e tio Harry sabiam dos meus verdadeiros sentimentos, mas fiz os dois jurarem segredo. Meu pai olhou para meu tio de um jeito ameaçador, duro. Fiquei surpresa, porque nunca tinha visto os dois discordarem. — Para, pai — mandei. — Eu exigi que ele guardasse segredo. Meu pai olhou para mim. — Tem alguma coisa acontecendo aqui, algo maior que Lavender e Kale. O que é? Fala de uma vez. Caramba. Tem alguma coisa que ele não perceba? Passei as mãos no rosto. — Não posso mais ficar aqui — anunciei, nervosa. — Lavender se foi, e Kale... ele e Drew vão ter um filho. — O quê? — meus irmãos reagiram juntos. — Drew está grávida? — Lochlan perguntou. Assenti. — Ai, meu bem... — minha avó murmurou. — Não posso ficar aqui e ver os dois formando uma família. Não posso ficar aqui sem Lavender. Preciso me afastar. Meu pai continuava carrancudo.

— Vai tirar férias? — Não, pai, não vou sair de férias. Houve um momento de silêncio, antes de Layton deduzir: — Quer se mudar? Confirmei com um movimento de cabeça. — Para onde? — ele perguntou. É agora ou nunca. — Nova York. Silêncio. — Pode repetir? — meu pai pediu com um tom perigosamente baixo. Engoli em seco. — Vou morar em Nova York. Meu pai ficou vermelho como eu nunca tinha visto antes. Depois encarou meu tio. — Que merda é essa? Meu tio deixou os ombros caírem. — Ela não consegue mais ficar aqui, Tom. Precisa se afastar e clarear as ideias. — Ótimo, vá passar um fim de semana no spa, no campo, sei lá! — meu pai berrou olhando de novo para mim. — Você não vai se mudar para os Estados Unidos, nem fodendo. Belisquei a ponte do nariz. — Tenho vinte anos, pais. Não preciso da sua permissão. — Não joga isso na cara dele — Layton se irritou comigo. — Você não está raciocinando direito; não pode... — Eu nunca consigo raciocinar direito aqui, Layton — interrompi meu irmão. — Preciso ir embora e me entender. — Esqueceu o que aconteceu com você no ano passado? — ele perguntou, furioso. — Podia ter morrido, e agora quer ir embora do país sozinha? Isso é muito egoísta. Não pode fazer isso com a gente. Afastei o cabelo do rosto.

— Não quero ferir ninguém, Layton, mas essa decisão é minha. — É uma merda de decisão! — ele berrou, surpreendendo todo mundo. Layton nunca brigava; normalmente, ele era o pacificador, mas não hoje. Hoje ele estava furioso, e eu era o alvo. — Lamento que pense assim — respondi, calma. Lochlan grunhiu: — Você não vai morar na América. Levantei o queixo. — Sim, eu vou. Já providenciei tudo. — Quê? — minha mãe sussurrou. Olhei para ela e odiei ver lágrimas em seus olhos. — Parto amanhã à tarde, depois do funeral da Lavender. — O quê? — todo mundo gritou. Pulei de susto e tentei pensar em alguma coisa para acalmá-los, mas não havia nada que eu pudesse dizer para mudar a situação. — Lane! — minha avó gritou, chamando minha atenção. — Não pode simplesmente ir embora do país. Está abalada com a morte de Lavender e a família que Kale está começando, mas essa não é a atitude correta, meu bem. — Ficar aqui não é uma opção — respondi. — Preciso de distância. Preciso de espaço. Preciso de tempo. — Está ouvindo essa bobagem? — Lochlan se irritou com nosso tio. — Como pode ficar aí tão calmo, enquanto ela fala de sair do país sozinha nesse estado? Meu tio encarou Lochlan. — A primeira coisa que fiz quando soube disso foi tentar convencê-la a desistir, mas vi nos olhos dela que ela iria embora, independentemente da nossa vontade. É aceitar e ajudá-la ou... — Ou coisa nenhuma! — Lochlan explodiu. — Se ela for embora, acabou para mim. Não vou ficar me consumindo de

preocupação com ela. Passei a vida toda assim. — Como é que é? — reagi. — Nunca pedi para você se preocupar comigo. Nunca pedi isso a ninguém, mas todos vocês se preocuparam, e sei que é porque me amam, mas não podem me proteger de tudo. Eu tenho que ir. — Por quê? — meu pai gritou. — Por que tem que ir embora? Meus ombros caíram. — É muito difícil. — Vai superar essa paixão pelo Kale... — Não é paixão, eu amo o Kale! — berrei. Meu pai estreitou os olhos. — Você tem vinte anos e nunca namorou. O que sabe sobre o amor? As palavras dele me feriram profundamente. — Sei que ver o Kale com outra pessoa está me matando, consegue entender isso? — perguntei com a voz embargada. — Isso está me matando! — Ela está abalada por causa da Lavender e... — Vó, para — eu a interrompi. — Não fiquei cega. Estou enxergando tudo claramente e preciso sair daqui. — Se for embora, Lane — meu pai avisou com frieza —, não volte mais! Ele saiu da cozinha, me deixou ali parada com o medo inundando meu estômago. Olhei para Lochlan e Layton quando eles ficaram em pé. — Por favor — pedi —, não quero ir embora brigando. — Então fica, e aí não vai ter problema nenhum — Layton respondeu. — Não posso. — Nesse caso, não tenho mais nada para falar. Layton saiu, e eu olhei para Lochlan, que me encarava com uma mágoa que eu não conseguia entender.

— Se você for embora e causar uma separação entre todos nós, acabou para mim. Acabou, porra. Meu lábio tremeu quando minha mãe e minha avó se levantaram e saíram sem me dizer nada. Nem uma palavra, palavrão ou despedida. Nada. — Meu Deus — murmurei. — Eles me odeiam. Senti os braços de meu tio me envolverem. — Não te odeiam. Estão feridos e com medo por você. Já falei, você é muito importante para todos nós. Abracei meu tio com força. — Eles não me entendem. — Vão entender, dá um tempo para eles. Assenti e inspirei o cheiro do meu tio, lembrando tudo que havia para lembrar sobre ele naquele momento, porque não sabia quando poderia abraçá-lo de novo daquele jeito.

Eu odeio tudo? Era o que me perguntava ao olhar para a sala de estar da casa dos meus pais pela milésima vez. Hoje partiria para a América para começar uma vida nova, e estava à beira de um surto. Muito emotiva. Dar a notícia à minha família havia sido um completo desastre. Eu não podia mentir: doía que eles não quisessem nem se despedir de mim, mas eu sabia quanto todos estavam abalados e preocupados comigo. Simplesmente não conseguiam aceitar, e a teimosia característica dos Edwards mostrou sua cara feia quando me recusei a mudar de ideia para fazer a vontade deles. Para piorar, eu tinha enterrado minha doce Lavender poucas horas atrás e sentia uma dor que nunca havia sentido, até ver o caixão descer naquela cova. Mas a viagem era uma grande distração, e mergulhei nela, em vez de pensar em minha amiga.

— Dinheiro — resmunguei para mim mesma, e verifiquei meus pertences mais uma vez. Tio Harry chegaria em breve para me levar ao aeroporto e me ajudaria a fazer a verificação final. Ele havia viajado centenas de vezes e perceberia, se eu tivesse esquecido alguma coisa. — Lane? Era a voz de Kale. Ai, cacete. Eu me apavorei. Que porra ele está fazendo aqui? Virei e, de olhos arregalados, o vi entrar na sala. Ele notou as duas malas grandes ao meu lado. Olhou para elas por um instante, antes de me encarar. — Para que isso? — perguntou com a testa franzida. Por favor, supliquei em silêncio, vai embora. — O que está fazendo aqui? — devolvi, me esquivando de responder. Ele cravou em mim os olhos cor de uísque que eu amava tanto. — Lochlan ligou para mim, disse que você precisava conversar comigo, e eu tive que vir imediatamente. A raiva me invadiu. — Lochlan é um filho da mãe de merda! — grunhi. Como ele teve coragem?, minha mente reagiu, furiosa. Kale olhou de novo para as malas. — Lane, para que isso? — repetiu. Merda. — Eu... tenho que ir embora. Ele não se moveu. — Não entendi — disse depois de alguns momentos. — Ou melhor, entendi o que parece, o que é, mas por quê? Desviei o olhar. — Você sabe porquê.

Ele inspirou mais forte. — Por favor, me diz que isso não é por causa de... nós. Alguma vez existiu um “nós”? — Estou indo embora porque preciso de espaço, muito espaço para clarear as ideias. Minha cabeça está atrapalhada com você há anos, e preciso tirar você dela. Lavender também foi embora, e não posso ficar aqui sem ela. Hoje eu a enterrei, e agora está caindo a ficha de que ela partiu para sempre. Preciso sair daqui. Vi o músculo da mandíbula de Kale se contrair quando ele perguntou: — Para onde você vai? — Nova York. Encontrei um apartamento em um bairro bom com um aluguel barato. Vi que ele tentava entender minhas palavras. — América? — sussurrou. — Está indo para a América? Assenti. — Desculpa, mas preciso ir. — E eu só descubro agora? Quando já está saindo de casa e do país, só então decide me contar? Raiva era bom; raiva era algo que eu podia enfrentar de igual para igual. — Isso aí, como você sabia sobre a gravidez de Drew há semanas, mas só me contou horas depois de eu saber que minha melhor amiga estava morta. Kale recuou como se eu tivesse batido nele. — É diferente — disse. — Como? — Eu estava tentando encontrar um jeito de te contar sem te machucar. Isso ia doer para sempre. Para sempre. — Você vai ter um filho com outra pessoa. Como isso poderia não me machucar?

Kale umedeceu os lábios e, em vez de responder, disse: — Isso tudo é foda. Finalmente, alguma coisa em que estávamos de acordo. — Sim — falei. — É foda. Ele permaneceu em silêncio na porta da sala, me impedindo de sair. Empurrei os óculos para cima e olhei meu relógio de pulso. Quando vi a hora, resmunguei um palavrão. — Tenho que sair agora, ou vou perder o avião — disse a Kale. — Preciso fazer o check-in e passar pela emigração, e meu embarque começa em uma hora. Ele continuou imóvel. — Kale — falei impaciente. — Dá licença. — Não — ele respondeu com firmeza. — Não vou sair daqui. A gente pode resolver tudo isso. Não precisa sair do país, Lane. Eu não queria ouvir nada disso, por isso peguei as malas, as puxei para a porta e tentei passar pelo corpo esguio. Empurrei seu peito com raiva quando ele não saiu do lugar. — Sai! — implorei. — Lane! — Ele me segurou pelos braços. — O que você quer de mim? Nada que eu faço é bom o bastante para você. Que porra você quer? Fala, porque eu não sei. Baixei a guarda e pus para fora os sentimentos que tinha sufocado durante anos. — Você, Kale! — berrei. — Só quero você! Kale recuou um passo ou dois, como se minhas palavras o atropelassem com a força de um trem. Quando recuperou o equilíbrio, ficou olhando para mim sem se mover. O silêncio entre nós era ensurdecedor, mas o usei para tirar do peito tudo que quis dizer durante anos. Precisava falar o que sentia, mesmo que isso significasse o fim de tudo. — Sempre quis você, mas não pude ter. — Chorei, deixando cair as lágrimas pesadas que transbordavam dos

meus olhos inchados. — Tenho que ir embora. Ver você feliz com outra pessoa está acabando comigo. Quero que seja feliz, juro que quero, mas dói muito não ser a mulher que te faz feliz. Estou cansada de estar triste, Kale. Ele não falava nada, só continuava olhando para mim. — Amo você. Sempre amei... mas não como você me ama. — Olhei dentro dos olhos dele. — Sou apaixonada por você. Sempre fui. Kale abriu a boca para falar, mas voltou a fechá-la sem dizer nada. Levantei a mão. — Não precisa falar nada. Não precisa nem sentir nada em relação a isso. Não é problema seu; é meu. Kale piscou algumas vezes. — Você me ama? — sussurrou com um olhar distante, perplexo. — Amo. Mais algumas piscadas para recuperar o foco, e ele me encarou. — Mas... mas você disse que não era assim com a gente... você disse que não era. Eu perguntei, e você me disse não. Você disse não. Meu coração despedaçou outra vez. — Eu tinha medo de que esse sentimento fosse errado. Passei anos me torturando, me achando suja por amar uma pessoa que todo mundo considerava meu irmão. — Abaixei a cabeça para tentar segurar o choro; se não olhasse para ele, talvez não doesse tanto. — Estamos perto um do outro desde o dia em que nasci. Você foi o primeiro homem que me segurou, depois do meu pai. Sei que também era pequeno, e que naquela época o que havia era amizade, mas isso mudou para mim, Kale. Amo você desde aquela noite em que eu tinha dez anos e você passou a noite na frente do guarda-roupa, dormiu com um taco de beisebol

em mãos para espantar os monstros. Só não percebi que, quando você espantou aqueles monstros, outros acordaram dentro de mim. Vi o choque em seu rosto. Ele não conseguiria pensar no peso das minhas palavras até ter um tempo para pensar no que eu estava dizendo. Precisava de espaço, e eu daria isso a ele. — Você me disse não... — ele sussurrou. Solucei quando os olhos dele se encheram de lágrimas. — Você me disse não. Eu quis você, e você disse não. Doeu quando me negou seu coração, Deus sabe. — Ele enxugou as lágrimas que rolavam por seu rosto. — Doeu muito, Lane, mas aprendi a viver com isso. Aprendi que nunca haveria Kale e Lane juntos como eu queria. Aprendi a te amar sem precisar de você. Aprendi a te superar. Não imaginava que poderia sentir uma dor maior do que já sentia, mas ouvir Kale dizer a palavra “superar” me destroçou em milhões de pedaços. Queria que o chão se abrisse e me engolisse inteira. — Estou com a Drew, e a amo. Ela é uma mulher incrível, alguém que está do meu lado desde que consigo lembrar. — Levantei a cabeça enquanto ele falava, embora isso estivesse me matando. — Vou ter um bebê com ela, um dia vou casar com ela. Mas acho que nunca vou conseguir olhar para ela e sentir o que você me fez sentir. “Fez”, não “faz” Passado. — Kale, sinto muito — murmurei, e segurei o braço do sofá ao meu lado para não cair de joelhos. — Eu também sinto muito — ele respondeu. — Você nem imagina o quanto. Ele deu um passo para trás, e outro, mais um, até voltar ao corredor. — Se cuida, ok? — disse, engolindo em seco. — Vou estar sempre aqui, se precisar de mim.

Depois virou e saiu da minha vida, destruindo o que restava do meu coração. Antes do estalo do trinco da porta, ouvi Kale dizer três palavras que atormentariam meus sonhos todas as noites durante os próximos seis anos. — Tchau, Laney Baby.

— Oi, Lav — falei, sorrindo para a foto da minha velha amiga na frente de sua lápide de mármore cinza. Estendi a mão e deslizei o polegar pela imagem, depois sentei na grama fria do túmulo e cruzei as pernas. Deixei o buquê de lírios que tinha levado na frente dos ornamentos da sepultura e fiquei ali sentada, só olhando para a fotografia. — Desculpa, sei que é só a segunda vez que venho te visitar — comecei, e parei quando a culpa me atacou. — Depois do seu funeral, as coisas desandaram completamente. Podia praticamente ouvir a voz dela na minha cabeça: Não brinca, Sherlock! Isso me fez sorrir. — As coisas com Kale se complicaram muito, Lav, e foi pior ainda com minha família quando peguei minhas coisas e caí fora daqui. — Engoli o choro e olhei para minhas mãos. — Fugi, passei seis anos longe. Suspirei e balancei a cabeça.

— Fiquei arrasada quando soube da sua morte, e depois, naquele mesmo dia, fiquei sabendo que Drew estava grávida do Kale. Foi demais, e decidi que, se estivesse a milhares de quilômetros de distância, isso me ajudaria, de algum jeito, mas não ajudou. Minha cabeça é meu pior inimigo. Não via mais o Kale, mas o imaginava com Drew e o bebê o tempo todo, e isso me matava. — Sabia que havia uma linha profunda em minha testa. — Quando não estava pensando neles, estava pensando em você e no que teria acontecido se não tivesse morrido. Não teria me deixado partir... eu nem teria pensado nisso se você ainda estivesse aqui. Perder você me levou ao limite, Lav. Umedeci os lábios e olhei de novo para a lápide de Lavender. — Mas tudo acabou sendo um pesadelo. As coisas ficaram ainda piores do que eu jamais poderia ter imaginado. O bebê do Kale morreu, e agora ele está sozinho. Consigo sentir a mudança nele. Vejo em seus olhos. Ele agora é como eu, está só existindo, e odeio isso. Não quero que ele se sinta desse jeito, porque sei como é essa sensação de vazio e frio. Peguei algumas folhas de grama do chão e as rasguei com os dedos. — Também penso em você o tempo todo, Lav — continuei, só para o caso de ela achar que não. — Você saberia o que fazer se estivesse aqui; sempre tinha o melhor conselho para dar. Olhei em volta para ver se havia mais alguém ali, perto de mim. Fiquei feliz quando constatei que não tinha ninguém, me senti melhor por saber que a conversa com Lavender era privada. Falar com ela me fazia sentir melhor. Mesmo que não respondesse, eu sabia que ela estava me ouvindo. Podia senti-la. — Você está com meu tio? — perguntei, sussurrando. — Se estiver, pode falar para ele que sinto muita saudade? —

Sorri quando uma brisa fria soprou à minha volta. — Acho que ainda estou em estado de choque, porque há momentos em que esqueço completamente que ele se foi, depois lembro, e meu coração se parte outra vez. Cocei o nariz com o dorso da mão. — Pensei que enterrar você fosse a coisa mais difícil que jamais tive que fazer, mas a morte do tio Harry dói em outro nível. Ele era tudo que eu tinha de casa depois que fui embora, e agora não está mais aqui. Esfreguei os olhos. — Resolvi tudo com minha família. Ficar longe deles, daqui, não estava resolvendo nada. Só me causava mais sofrimento desnecessário. E depois de toda aquela merda com o Jensen quando eu era adolescente, nem devia ter saído do país. Layton me falou como eles ficariam preocupados comigo, mas não liguei para isso. Porém, agora estou em casa, e consertei tudo. Suspirei e afastei algumas mechas de cabelo do rosto. — Ainda preciso ter aquela conversa de verdade com o Kale e, honestamente, estou morrendo de medo disso. Não tenho a menor ideia do que vai acontecer depois que conversarmos, e esse não saber é aterrorizante, mas o que quer que aconteça, temos que esclarecer tudo. Ele precisa saber o que ainda sinto, e precisa entender por que não pude continuar aqui. Fiquei em silêncio por um bom tempo depois disso. Continuei sentada como uma estátua, enquanto sentia a magnitude da perda. Era uma parte da vida, mas uma parte horrível. Eu me sentia grata por finalmente estar vendo a luz no fim do túnel. Precisava da minha família naquele momento — entendia perfeitamente. O amor e a preocupação deles por mim não eram mais sufocantes. Agora isso era um conforto. Não ficaria para agradar outra pessoa, ficaria por mim, e não contive um sorriso ao pensar na mão ardilosa do meu

tio nessa história. Faria o certo por ele. Conversaria com Kale porque essa conversa era necessária para mim, não pela herança. Ao pensar em Kale, olhei na direção do túmulo de Kaden e congelei ao ver quem estava lá. Drew. Olhei para ela por um momento e, antes de me dar conta, estava em pé e caminhando em sua direção. Não sabia o que ia dizer, mas precisava dizer alguma coisa. Qualquer coisa. Caminhei até ela com o cascalho rangendo embaixo dos pés. Parei a alguns passos dela e respirei fundo. — Oi, Drew — falei baixinho. Ela se assustou, porque deu um pulo e olhou para mim com cara de surpresa. — Lane? — disse, ofegante, levando a mão ao peito. — Você me assustou. — Desculpa. Pensei que tivesse ouvido meus passos. Ela balançou a cabeça. — Estava mergulhada em mundo só meu. Pus as mãos nos bolsos do casaco. — Estava visitando o túmulo de Lavender e vi você aqui. Senti vontade de vir dar um oi. Ela olhou rapidamente por cima do meu ombro, antes de me encarar novamente. — Nunca tive oportunidade de dizer isso, mas sinto muito por sua amiga. Kale me contou como você ficou arrasada quando ela morreu. Ele disse que te perdeu naquele dia, no hospital. Fiquei surpresa com o que ela revelava. — Ele disse isso? — perguntei. Drew assentiu. — Ele costumava ter pesadelos com isso. Sentava na cama no meio da noite, pedia desculpas e tentava te

consolar, depois acordava e percebia que você não estava ali. Meu estômago queimou por dentro; eu sabia que ele se preocupava com pedidos de desculpas e conforto porque foi nesse dia que ele me contou sobre o bebê que teria com Drew. — Sinto muito — respondi. Drew me olhou, confusa. — Por quê? — Por ter estado na cabeça dele quando ele estava com você. Drew sorriu, e não pude deixar de notar como ela era bonita. Agora era mais velha, mas também guardava ainda a menina de nove anos que conheci no playground da escola tanto tempo atrás. — Lane, você sempre esteve na cabeça do Kale. Ele falava de você sem perceber o que estava fazendo. Estávamos assistindo a um filme, ou conversando sobre qualquer coisa, e você aparecia na cabeça dele, e tudo passava a ter a ver com você. A vergonha me invadiu. — Sinto muito, de verdade. Ela riu. — Por quê? Não precisa se desculpas, não podia impedir que ele pensasse em você. Eu sabia disso, mas ainda me sentia culpada. — Eu te devo um enorme pedido de desculpas, Drew — insisti, olhando diretamente para ela. Vi a surpresa em seus olhos verdes. — Por quê? Engoli em seco. — Por como te tratei quando éramos mais novas, quando você só me tratava com carinho. Fui mesquinha, infantil e completamente horrível com você, e o único motivo para

isso era que você tinha o Kale. Não tinha o direito de ser grosseira com você, devia ter me comportado melhor. Sinto muito, espero que possa me perdoar. Drew olhou para mim por um momento, depois algumas linhas surgiram no canto dos olhos quando ela sorriu. — Não precisa se desculpar. Reagi com espanto, boquiaberta, e isso a fez rir. — Como assim? — perguntei. — É claro que preciso. Fui péssima com você. — Eu te perdoei há anos. — Ela deu de ombros. — Você estava sofrendo, e agora sei que as pessoas fazem coisas que não conseguem controlar quando estão arrasadas. Olhei para a foto de Kaden. — Ele era lindo, Drew. Você e Kale criaram uma pessoa incrível, e lamento muito que ele tenha morrido. — Ele continua com a gente. — Drew também olhou para a foto na lápide de Kaden, depois sorriu. — Ele era uma graça... você teria adorado o Kaden. — Teria — confirmei, apressada. Ela suspirou. — Sinto saudade dele todos os dias. Se estivesse vivo, hoje ele teria quase seis anos. — Seis — murmurei. — Ele era uma miniatura do Kale — Drew comentou. Sorri. — Kale me mostrou fotos e vídeos, e eu falei que Kaden era uma cópia dele, mas ele afirmou que o bebê era parecido com você. Isso fez Drew dar risada, depois o silêncio se estendeu por alguns momentos, antes de ela olhar para mim e dizer: — Você precisa ajudá-lo. Não entendi. — Como é que é?

— Kale — ela explicou. — Você tem que ajudá-lo. Passei vários anos tentando ajudar o Kale a encontrar a paz em relação à perda do Kaden, mas ele ficou preso no tempo. Todos os dias, é como se revivesse o dia em que nosso filho morreu. Demorou, mas agora revivo as outras lembranças que construímos com nosso menino. Lembro dos bons tempos. Quando penso nele, a felicidade me preenche, mas sei que, quando Kale pensa nele, a emoção que o invade é tristeza. — Não sei como ajudar — admiti. — Ele não é mais o mesmo Kale que conheci. Muita coisa mudou entre nós. Para minha surpresa, Drew tocou meu ombro e disse: — Vocês são dois lados do mesmo espelho. Você é a mesma, mas reflete coisas diferentes. Você conhece o Kale, Lane, melhor que ninguém. Se tem alguém que pode ajudálo, esse alguém é você. Eu não sabia se toda essa confiança em mim era justificada. — Eu sempre vou amar o Kale, Lane — ela continuou —, mas ele nunca foi meu. Minhas mãos começaram a tremer. — É claro que foi. Ela balançou a cabeça. — Ele era seu. Só não sabia disso. Mas eu sabia, e lutei com unhas e dentes para tê-lo, quando entendia que devia ter deixado o Kale livre para ficar com você. Ele te escolheu, não a mim, e sei que, se não tivesse ficado grávida do Kaden, ele não teria ficado comigo por tanto tempo. Kaden nos prendeu, mas nosso filho nunca nos manteria juntos. A gente se amava, mas ele te amava mais. — Drew... — Na noite da festa de aniversário do seu tio, quando ameacei você para ficar longe dele, eu segui o Kale quando

ele voltou à sua casa, e ouvi quando ele disse que te amava e queria ficar com você. O choque me abalou. — Ouviu? — sussurrei. Ela confirmou balançando a cabeça. — Em vez de ficar brava com ele, comecei a te odiar como você me odiava. Odiei porque você tinha o coração dele, e eu jamais poderia tê-lo, e você me odiava porque eu tinha o corpo e a atenção dele. Não sabia o que dizer, por isso olhei para a lápide de Kaden. — Não consigo acreditar que as coisas terminaram desse jeito — falei depois de alguns minutos de silêncio. Drew sufocou uma risadinha. — Pensei nisso durante anos, pode acreditar. — Mas fico feliz por estar conversando sobre isso. Fui para os Estados Unidos para escapar desse tipo de conversa. — E qual foi o resultado? — ela quis saber, adotando um tom carregado de sarcasmo. Eu ri. — Não adiantou nada. Ainda sinto as mesmas coisas que sentia há seis anos. — Diz isso ao Kale, então, Lane — ela insistiu. — Não deixa nada nas mãos no acaso. Ninguém sabe o que o futuro reserva para alguém. Você pode estar aqui agora, e, no minuto seguinte, não estar mais. Balancei a cabeça para concordar com ela. — Acredito totalmente nisso — respondi. — Sinto muito por seu tio — Drew declarou, como se sentisse que eu pensava em Harry. — Ele era um amor, e era ótimo com o Kaden quando Kale o levava para vê-lo. — Não tenho nenhuma dúvida. — Sorri. — Ele era brilhante comigo e com meus irmãos quando éramos

pequenos. Acho que mimava a gente porque nunca teve filhos. Drew me deu o braço. — Quero ser sua amiga. Quero conhecer a Lane de quem Kale vivia falando, porque ela parecia ser muito legal. Meio maluca, mas muito legal, mesmo assim. Dei risada, virei para ela e a abracei. Quando nos afastamos, Drew se aproximou da lápide e beijou a foto de Kaden. — A gente se vê, amorzinho. — Depois virou para mim e piscou. — Aparece. — Vou aparecer — eu disse. — Vamos nos ver mais, prometo. Drew foi embora, e eu quase desabei com a intensidade do alívio, sem aquele peso no peito. Nunca, nem em um milhão de anos, eu teria imaginado que uma conversa com ela poderia acabar desse jeito, mas agradeço a Deus por ter sido assim, porque não havia percebido quanto precisava resolver as coisas com ela. Olhei mais uma vez para alinda foto de Kaden, antes de virar e voltar ao túmulo de Lavender, onde sentei novamente na grama. — Cara — murmurei —, acabei de fazer as pazes com Drew Summers. — Balancei a cabeça com incredulidade. — Ela quer ser minha amiga e quer me conhecer. E também quer me ajudar com o Kale... Dá para acreditar? Respirei fundo, porque eu ainda não conseguia acreditar nisso. — Lane, é você? Olhei para trás quando ouvi uma voz masculina me chamar. Fiquei em pé e limpei as folhas de grama da roupa quando vi um rosto familiar vindo em minha direção. — É você — ele disse com um sorriso largo, os olhos brilhando.

Abri a boca numa reação de puro choque. No momento em que o vi sorrir, soube exatamente quem ele era. Porque só havia uma pessoa, além de Kale, cujo sorriso eu considerava estonteante, e esse homem estava bem ali. — Daven? — perguntei. — Daven Eanes? Ele apontou para si mesmo segurando um grande buquê de flores. — Em carne e osso — respondeu. Foi uma coisa muito estranha, mas senti vontade de abraçá-lo, e foi exatamente o que fiz. Cheguei perto dele, abri os braços e apertei contra o peito. Por alguns momentos ele não fez nada, depois também me abraçou, e riu quando me afastei com os olhos arregalados. — Parece que viu um fantasma — ele comentou como se achasse graça. — É a sensação que eu tenho. Não te vejo desde... — Parei e franzi a testa. Daven sorriu triste. — Desde o funeral da nossa menina? Nossa menina. Isso me fez sorrir. — É, desde esse dia — concordei. — Faz muito tempo. Como você está? Parece ótimo. Era verdade. Daven era um jovem esguio de vinte anos quando fui embora, mas agora era um homem esguio de vinte e seis. — Obrigado, você também está muito bem — ele respondeu com uma piscada brincalhona. — Estou ótimo. Casei e tenho dois filhos... gêmeos. Minha esposa está esperando o terceiro. — Você tem uma família? — exclamei. Ele riu. — Parece surpresa. Merda.

— É que é muito adulto. — Ri, torcendo para não ter ofendido Daven. Ele sorriu, como se meu espanto não o incomodasse. — Amadureci muito depois que perdi a Lavender. Depois que ela morreu, refleti muito e descobri que não gostava da pessoa que eu era. Fui um tremendo babaca, não tratei Lavender como ela merecia. Graças a Deus por ela ter aturado minhas besteiras durante todos aqueles anos. Guardo com carinho a lembrança de cada um que tive com ela. Senti o coração aquecido. — Ela amava você — falei com um sorriso. — Pode acreditar, ninguém defendeu com mais insistência que eu a teoria de que você era um babaca, mas ela conhecia sua essência e amava o que via. — Obrigado, Lane — Daven respondeu com uma nota de emoção, que baniu da voz com uma tosse forçada. — É verdade... ela te amava muito. — Eu sei. Também a amo. Vou amar para sempre. Presente. Ele ainda amava minha amiga maravilhosa, e eu não o culpava por isso. Ela era uma garota incrível. — Também a amo. — Sorri com tristeza. — Sinto falta dela todos os dias. Ainda não consigo acreditar que ela partiu. Não parece real, e acho que nunca vou sentir que é real. Daven assentiu, concordando comigo, depois virou, olhou para o túmulo de Lavender por um momento e deixou o buquê ao lado das flores que eu tinha levado para ela. Com um sorriso pálido, ele se abaixou, beijou a foto e murmurou: — Oi, gatinha. Isso me emocionou. — Quer saber de uma coisa? — perguntei. Ele se levantou e olhou para mim. — O quê? Minhas lágrimas caíam.

— Chorei até desidratar várias vezes desde que cheguei aqui, na sexta-feira passada. Daven riu e pegou um pacotinho de lenços de papel do bolso de trás da calça. Tirou um lenço da embalagem e me deu. Aceitei e arqueei uma sobrancelha, e isso o fez dar risada. — Tenho dois filhos, preciso de lenços de papel e lenços umedecidos o tempo todo. Também ri, e limpei o rosto e os olhos. — Chegou na sexta-feira, então? — Daven perguntou. — Sim, mas parece que estou aqui já muito mais tempo. Acho que o motivo da volta mexeu muito comigo. — Sinto muito por seu tio, Lane — Daven falou e afagou meu ombro. — Às vezes, eu encontrava Harry no bar depois do trabalho. Ele era um grande homem. Fui ao funeral, mas não falei com você porque, naquele dia, havia sempre muita gente à sua volta. Kale parecia seu guarda-costas. Não quis me aproximar. Por algum motivo, ele não gosta muito de mim. Ri enquanto ainda limpava os olhos lacrimejantes. — Ele sabia que eu não gostava de você e, como meu melhor amigo, automaticamente passou a não gostar também. Parece que ele não superou essa antipatia. Daven riu. — Vou te contar, às vezes, quando estamos na mesma loja, ou alguma situação parecida, ele me encara até eu ter certeza de que ele vai partir para a agressão. Dei risada. — Ele nunca te agrediria... Kale não é assim. Não era, pelo menos. — Espero que esteja certa — Daven murmurou e se afastou um pouco. Continuei sorrindo. — Ele só é protetor, acho.

— Depois de todos esses anos, se ele ainda é assim com você, parece que tem algum sentimento aí. Senti o rosto esquentar. — Deixa para lá. Daven riu do meu constrangimento com a brincadeira. — Vai ficar por muito tempo? — ele perguntou, depois ficou sério. — Desculpa, não quis ser invasivo. Não precisa responder, não é da minha conta. — Tudo bem, não se preocupe com isso. Vou ficar. Decidi voltar para cá. Outro sorriso estonteante transformou o rosto de Daven. — Sabe o que isso significa? — ele perguntou. — O quê? — Vamos ter que conviver e ser amigos de verdade, como Lavender sempre quis que fôssemos. Meu sorriso era carregado de afeto. — Ela ficava furiosa quando a gente brigava. Daven riu e olhou para a foto dela. — Ela era perfeita, não era? — Era. O coração era o que mais me impressionava. Ela era maravilhosa. Daven sorriu novamente, depois olhou para mim. — Você precisa conhecer minha esposa e os meninos... Eles vão adorar você. Já ouviram seu nome muitas vezes nas histórias que conto sobre Lavender, vão querer te conhecer. Daven conseguiu entrar no meu coração com essa frase. — Falou com eles sobre a Lav? — É claro. Foi minha esposa quem me tirou da depressão e me ajudou a voltar a viver. Eu a amo muito, e sei que tenho muita sorte por tê-la comigo. Meus filhos viram algumas fotos da Lavender, e a conhecem como minha grande amiga que está no céu.

Levei a mão ao peito. — Daven, vou acabar chorando de novo. É emocionante saber que mantém a memória dela viva, mesmo sem precisar. Ele sorriu com tristeza. — Fui um idiota quando era mais novo, mas eu a amava muito, Lane. Ela era meu mundo, e quando morreu, eu quis morrer também. — Eu também — murmurei. De repente, Daven riu e limpou os olhos. — Se estivesse aqui agora, ela estaria morrendo de rir. — E eu não sei? — Limpei o rosto mais uma vez. Daven levantou a cabeça e disse: — Lá vem seu Kale, acabou de passar pelo portão. Meu Kale. Senti o rosto corar, mas não corrigi Daven. Virei e vi que ele estava certo. Kale andava pela alameda à esquerda da entrada, a caminho da área onde estavam enterrados Kaden, meu tio e minha tia. — É muito triste o que aconteceu com o filho dele. Não consigo nem imaginar o que ele deve estar passando. Gostei de ele ter dito “estar passando”, em vez de “passou”. Daven sabia que perder alguém não era um sentimento específico que durava um certo tempo; era algo que se passava a sentir pelo resto da vida. Desviei o olhar de Kale para Daven quando ele tossiu. — Me dá seu telefone — ele pediu, sorrindo. — Vamos marcar alguma coisa, as crianças vão gostar de brincar. Ri e recitei meu número, que ele salvou nos contatos do celular. Depois, Daven piscou para mim e beijou a foto de Lavender mais uma vez. Ouvi quando ele murmurou: — Até outra hora, gatinha. Quando levantou, ele me mostrou o celular. — A gente se fala em breve.

— Vou ficar esperando — respondi. Daven foi embora; enquanto ele se afastava em direção ao portão do cemitério, olhei para Kale. Ele estava ao lado da sepultura de Kaden, com as mãos nos bolsos e olhando para a lápide. Queria ir até lá, mas temia ser invasiva. Então, sentei novamente no túmulo de Lavender e sorri para a fotografia dela. — Está cuidando do Daven, pelo jeito. — Balancei a cabeça. — Desculpa, nunca vi o que você via, mas agora o enxergo, e você estava certa: ele é maravilhoso. Fiquei sentada em silêncio por algum tempo, arrancando folhas de grama do chão e rasgando com as unhas. Estava me preparando para conversar mais com Lavender, quando uma sombra caiu sobre mim. Levantei a cabeça, e Kale estava ali. — Oi — falei, sorrindo, depois fiquei em pé e limpei a calça jeans. Ele acenou com a cabeça e olhou para o túmulo de Lavender. Séria, continuei olhando para a fotografia da minha linda amiga que que partiu tão cedo. — Vi Daven Eanes aqui com você — Kale comentou depois de um momento. — Ele te incomodou? Sei que nunca se deu muito bem com ele. Ri baixinho. — Não, foi tudo bem. Acho que acabamos de virar amigos, na verdade. Ele veio visitar o túmulo da Lav e me encontrou aqui. — Eu sempre o vejo aqui. Ele traz flores para ela toda semana. Às vezes, a esposa e os filhos também vêm, e eles limpam a lápide e a grama na sepultura e em volta dela. O Daven também é bem próximo dos pais dela. Isso me deu um grande conforto. — É insano pensar que ele é casado e tem filhos. Muitas pessoas com quem frequentei a escola estão vivendo e

fazendo coisas normais que as pessoas fazem quando crescem. Elas se apaixonam, casam e têm filhos. Eu me sinto estagnada no tempo. Agora mesmo, é como se eu tivesse vinte anos de novo e tivesse acabado de enterrar a Lavender. — Eu me sinto assim todo dia, garota. — Kale suspirou. — Faz cinco anos que meu Kaden morreu, e ainda me sinto como se tivesse acabado de enterrá-lo. Meu coração doeu por ele. — Espero que fique mais fácil para você, Kale. De verdade. Ele não respondeu, mas olhou para a foto de Lavender. — Ela foi uma das melhores pessoas do mundo — comentei, sorrindo. — Entrou na minha vida exatamente quando eu precisava dela; era como se fosse meu anjo da guarda. Ela ajudou a me salvar de mim mesma. Eu me arrepiei quando senti o braço de Kale envolver minha cintura. — Serei eternamente grato a ela por isso — ele murmurou. Olhei para ele e sorri com tristeza. — Isso dói. — Eu sei, querida. — Antes de alguém que eu conhecia morrer, houve um tempo em que vinha aqui com meu pai — contei. — Cortávamos caminho pelo cemitério para chegar ao campinho além da cerca, e lembro de pensar, mesmo sendo pequena, que não ia gostar de me despedir de alguém que amasse. Agora minha tia, meu tio, minha amiga e o filho do meu melhor amigo estão enterrados aqui. Ainda não acredito que Lavender se foi, e duvido que um dia assimile a morte do meu tio e de Kaden. Kale beijou o topo da minha cabeça.

— A vida surpreende a gente, Laney Baby. Sempre vai acontecer alguma coisa inesperada. Temos que recolher os pedaços que sobram e tentar colar. Franzi a testa. — Não sou forte como você, Kale. Ele virou para me encarar. — Está brincando? Balancei a cabeça. — Sou covarde. — Nunca mais fala assim de você mesma. Depois de toda merda que enfrentou, ainda está aqui, e isso quer dizer alguma coisa, Lane. Olhei para ele e me senti fascinada por, finalmente, ver alguma emoção. — Encontrei a Drew quando estava chegando e ela, saindo. Ela me contou que vocês conversaram — Kale continuou. — Sim, pedi desculpas por ter sido horrível, mas ela disse que eu não tinha nada de que me desculpar. Drew é incrível. — Ela é. Olhei para ele. — Ela me contou que você falava muito sobre mim, e que tinha pesadelos sobre... — O dia em que te perdi. — Kale, não faz isso com você. Ele tentou sorrir, mas os lábios não desenharam a curva completa. — Não consigo evitar. — Ei — murmurei. Os olhos cor de uísque estudaram meu rosto. — Que foi? Umedeci os lábios e disse:

— Acho que chegou a hora de termos aquela nossa conversa.

— Explica isso mais uma vez — Kale pediu quando entramos no apartamento dele. — Seu tio deixou tudo que tinha para você, com a condição de nós dois... conversarmos? Eu entendi direito? Que bom que mais alguém achava isso insano. — Sim, é isso mesmo, estava escrito, preto no branco. Se não conversarmos, e nós dois sabemos de que conversa ele estava falando, e vou repetir agora exatamente o que ele determinou por escrito, todo o conteúdo do testamento deverá ser liquidado, e o valor arrecadado será doado para... o Liverpool, o time de futebol. Kale não conteve uma exclamação de puro horror. — Filho da mãe manipulador — ele disse com expressão carrancuda. Não segurei a risada. Kale, como toda minha família, era torcedor fanático do Manchester United. — Não acredito que ele tenha decidido que precisava tomar medidas tão drásticas. Odeio ter feito Harry pensar que não tinha outra opção. Provavelmente, ele achou que

seria eliminado da minha vida como todos os outros se me pedisse para conversar com você. Meu lábio tremeu quando a vergonha me invadiu. Kale se aproximou e pôs as mãos sobre meus ombros. — Ei, ei. Ele sabia que você o amava, mas também sabia que precisava entender tudo sozinha, por conta própria. Todos nós precisávamos. Seus irmãos e seus pais levaram a pior porque ficaram no meio do fogo cruzado de perder você. Balancei a cabeça concordando com ele. — Eu sei. Mas minhas decisões não ajudaram em nada. — Todo mundo comete erros, Lane. Aprendemos com eles e crescemos. Olhei para ele. — Quando se tornou tão sábio? Seus lábios se distenderam um pouco, e por um momento pensei ter visto o brilho familiar que um dia morou em seus lindos olhos. — Pensei muito nisso durante esses anos. Eu não tinha dúvida disso. Também havia pensado muito. Tinha uma linda estante no canto da sala de estar, e antes que eu percebesse, me peguei deslizando os dedos pelo dorso dos livros como se os cumprimentasse. Eu amava livros, e amava saber que Kale ainda lia. Estava quase dando as costas para a estante, quando o nome de um autor chamou minha atenção: K. T. Boone. Era uma autora com quem trabalhei. Olhei os outros livros e fiquei chocada. — Kale... — murmurei. Senti que ele estava atrás de mim. — Você... comprou todos os livros que editei — sussurrei enquanto lia os títulos conhecidos. Kale tossiu. — É claro que acompanhei seu trabalho. Você é minha melhor amiga, e seu trabalho é excelente. Li todos os livros.

Comecei a organizar um clube de livros com seu pai e tio Harry. — Ele riu. — Você é brilhante no que faz. Não consegui encontrar defeito em nenhum deles. Adoro ler seu nome nos agradecimentos do autor. Estou muito orgulhoso, garota. Não chora, disse a mim mesma. Não se atreva a chorar. — Isso é muito doce, Kale — respondi, tossindo para não deixar a voz embargar. — Falando em doçura, quer uma xícara de chá? — Kale perguntou depois de um momento. Agarrei a chance de mudar de assunto. — Ainda precisa perguntar? Ele sorriu para mim e foi para a cozinha preparar o chá. Fui atrás dele, olhando tudo por onde passava, notando como as coisas ali eram simples. Não havia fotos de Kaden em lugar nenhum, mas eu tinha medo de perguntar sobre isso, não queria aborrecer Kale. Passei por ele e me dirigi à janela sobre o balcão da cozinha. — A vista da catedral é linda — comentei. Kale riu. — Por que acha que comprei o apartamento? Pelo tamanho dos cômodos? Notei o sarcasmo e fiz uma careta. — Eu gosto, é aconchegante — opinei. — Não dá para comparar com sua casa nova. Harry tinha cinco quartos. — Kale assobiou. — O que vai fazer com tanto espaço? Se quiser vender, vai conseguir um bom preço. Não me surpreendi por ele supor que eu venderia a casa que foi de meu tio. Eu estava ameaçando ir embora desde que cheguei. — Não vou vender a casa — disse com tom casual, ainda olhando pela janela e admirando a beleza da cidade. Senti o olhar de Kale.

— O que isso significa? — ele perguntou em voz baixa. Dei de ombros. — Significa que não vou vender. É minha casa, não quero vender para outra pessoa. Kale engoliu com esforço. — Vai alugar? — perguntou, arriscando mais um palpite. — O aluguel pode ser um valor mensal bem razoável. Balancei a cabeça. — Não, se fizesse isso, teria que morar na casa dos meus pais para sempre, e apesar de amar os dois loucamente, não quero morar lá. Senti as mãos nos meus ombros, depois meu corpo sendo virado. — Não brinca comigo, Lane — Kale avisou, olhando para mim com firmeza. Sustentei o olhar penetrante. — Não estou brincando. Estou dizendo a verdade. A surpresa era evidente em seu rosto. — Esta... voltando... — Para casa — terminei por ele. — Estou voltando para casa. Ele arregalou os olhos e não disse nada, só ficou olhando para mim. Contive um gemido quando o brilho que pensei ter visto minutos atrás iluminou seus olhos, e dessa vez não sumiu. Meu Kale, minha cabeça murmurou. Procurei alguma coisa para me distrair, me impedir de fazer alguma bobagem. Vi as paredes vazias e franzi a testa. — Por que não tem fotos aqui? Kale mordeu a boca por dentro. — De Kaden? Balancei a cabeça para dizer que sim.

— Porque são uma lembrança de que ele partiu. Inclinei a cabeça. — Não podem ser uma lembrança de que ele esteve aqui? Mesmo que por pouco tempo? Kale desviou o olhar. — Não sei se quero falar sobre ele. Dói. — Eu sei. — Uma ruga marcou minha testa. — Queria que um dia a gente acordasse e a morte dele fosse só um pesadelo. Kale agarrou o balcão, depois segurou minha mão e me levou para a sala de estar, onde sentamos no sofá confortável. Ficamos sentados em silêncio por alguns minutos. — Sinto saudade do meu filho, Lane — ele sussurrou. — Sinto saudade da risada, do choro, dos gritos, até das conversas sérias que ele tinha com os dedos gordinhos dos pés. Sinto falta de tudo. Fiquei em silêncio enquanto ele falava. — Isso acaba comigo todo dia, porque sei que não vou vêlo de novo. Nunca mais vou segurá-lo. Saber que você nunca vai conhecer o Kaden me mata. Perdi você, depois ele. Deus me odeia. Eu me odeio. Levantei do sofá, ajoelhei na frente dele e segurei seu rosto entre as mãos, forçando-o a olhar para mim. — Você é a pessoa mais corajosa que já conheci. É forte, amoroso, uma pessoa boa demais. Coisas horríveis aconteceram com você por nenhum motivo, porque nenhum motivo é bom o bastante para alguém perder um filho. O porquê nunca pode ser explicado, e nada vai amenizar a dor que você sente, mas acredito realmente que um dia você não vai sentir pesar ou tristeza quando pensar em Kaden. Vai pensar em felicidade e amor, porque sei, tenho certeza de que ele foi pura luz. Você vai ver o Kaden de novo.

Os olhos cor de uísque de Kale estavam cheios de lágrimas, e quando ele piscou, elas caíram e desceram por seu rosto. Sem pensar ou hesitar, me inclinei e beijei os pingos salgados. Encostei a testa na dele e olhei dentro de seus lindos olhos. — Eu não estava aqui para te apoiar quando perdeu o Kaden, mas vou estar aqui com você agora e em cada momento depois deste. Não me interessa o que aconteceu entre nós no passado. Antes de ser minha paixão, você era meu melhor amigo. Você ainda é meu melhor amigo, e me recuso a te perder de novo. — Você... você não vai mesmo voltar para os Estados Unidos? — ele perguntou, e a esperança em sua voz quase acabou comigo. Balancei a cabeça. — Não, querido, seja qual for o resultado desta conversa, não vou a lugar nenhum. Vou ficar bem aqui, no meu lugar, com minha família e com você, aconteça o que acontecer. Você é meu melhor amigo. Desisto de tudo antes de perder isso, antes de perder você outra vez. Mal terminei de falar antes de sua boca cobrir a minha, antes de ele me beijar. — Kale, não — eu disse, e me afastei dele. — Está me beijando porque está triste. — Não. — Seus olhos eram penetrantes. — Estou te beijando porque, se não beijar, vou acabar enlouquecendo. Sentei sobre os calcanhares. — Não sabe o que... — Não me diz o que estou sentindo ou pensando — ele reagiu, irritado, me interrompendo. — Estou cansado de todo mundo pensar que sabe o que é melhor para mim. Eu sei o que é melhor para mim. Tive um momento de déjà vu quando ele repetiu o que eu havia falado para minha família.

— E o que é melhor para você? — perguntei. — Você — ele respondeu com voz rouca. A raiva dele me confundia. — Está bravo comigo — apontei, declarando o óbvio. — Não estou bravo com você, Lane — Kale me corrigiu com um tom calmo. — Estou puto da vida com você. Levantei e senti que a briga era quase inevitável. Kale também sentiu, porque ficou em pé ao mesmo tempo que eu. — Por que está bravo? — perguntei, confusa. — Porque quando penso em como as coisas terminaram entre nós antes de você me deixar, fico furioso. Que porra é essa? Apontei um dedo para ele. — Você se afastou de mim, Kale. — E você fez questão de me afastar, não foi, benzinho? — ele berrou, me surpreendendo com o tom de voz. — Disse tudo que eu queria ouvir, mas com um ano de atraso. Tarde demais. — Não queria que você olhasse para mim nunca mais como naquela manhã depois que fizemos sexo, por isso, quando disse que me amava, eu te afastei para me proteger. — Está falando sério? — ele gritou. — Lane, está falando sério, porra? Kale tremia, e eu recuei para me afastar dele. Sua raiva era incontrolável. — Não! — ele rosnou, e se aproximou de repente. Eu não pretendia ir embora, mas ele garantia que eu não poderia sair se quisesse. — Não vai mais fugir — disse. — Vamos resolver isso tudo agora. — Eu tive que fugir! — gritei e empurrei seu peito. — Não dava para ficar aqui vendo você brincar de família feliz com

ela. Não consegui! — Não me deu tempo depois daquela confissão. Um dia depois de você ter ido embora, percebi que era você quem eu queria, não a Drew, mas você não estava mais aqui, e eu tinha uma responsabilidade com ela. — Exatamente — enfatizei. — Você teve... agradeça por isso, pelo menos! — Como assim? — Se eu dissesse que te amava, você não teria tido o Kaden! Kale recuou como se eu tivesse acertado um soco nele. — Nunca mais... nunca mais justifique sua decisão de me deixar usando meu filho, está ouvindo? — Não estou justificando nada, Kale — argumentei com a voz tensa, carregada de emoção —, mas é verdade. Se eu dissesse que te amava, se te pressionasse para sair da zona de conforto, Kaden nunca teria existido. Ele me encarou, transtornado. — Você não sabe. — Sim, eu sei. — Como? — Porque você nunca teria voltado para a Drew, se me tivesse... — sussurrei. — Agora eu percebo isso. Kale fazia um esforço enorme para não perder o controle. — Então devo ficar feliz por você ter me deixado? Devo ficar feliz por ter sido privado de seis anos com você? Balancei a cabeça. — Não, deveria estar feliz por eu ter tomado uma decisão que levou você a ter Kaden, mesmo que tenha sido só por pouco tempo, porque estou aprendendo que ter alguém tão especial na vida vale cada segundo com essa pessoa. Pensa nisso, pensa no tempo que teve com Kaden, e vai ficar feliz por ter tido essa criança na sua vida.

Ouvir minhas palavras me fez lembrar uma coisa que meu pai me disse na noite anterior ao funeral do meu tio. Ele disse: Vai poder se reencontrar e talvez ajudar o Kale a encontrar paz. — Estou percebendo isso para mim também, Kale — falei depois de ofegar por uns instantes. — A morte de meu tio está acabando comigo, mas guardo com carinho todo o tempo que tive com ele, cada lembrança, cada risada e cada briga. Com Lavender também. Eu não seria a pessoa que sou hoje sem ela, e sinto saudade dela todos os dias, mas só porque a amei muito. Olhei para os olhos brilhantes de Kale. — Guardo com carinho cada minuto da nossa amizade antes de eu ter ido embora e perdido você. — Engoli o choro. — Mas mesmo que as coisas sejam dolorosas, Kale, se prestarmos atenção nos bons momentos, o amor que temos por essas pessoas queridas vai superar a dor que sentimos quando pensamos nelas. Acredito completamente nisso. — Acha mesmo que um dia vou poder me sentir feliz quando pensar no Kaden? — Kale perguntou com o corpo ainda tenso. — Sim, e vou te ajudar em cada passo desse caminho, prometo. — Meus ombros caíram. — Devia ficar feliz por eu não ter ficado no caminho do Kaden, Kale. Ele piscou algumas vezes olhando para mim. — Você ficou no caminho de tudo, Lane. Franzi a testa. — Não entendi. — Não consigo ver nada além de você — ele explicou e balançou a cabeça. — Nunca consegui enxergar além de você. Esperei Kale ser mais claro.

— Quando Kaden nasceu, tudo que eu queria era que você fosse a mãe dele para poder sentir comigo como ele era brilhante. Quanto isso faz de mim uma pessoa horrível? Querer que Drew fosse você? Quando o perdi, quis você ali comigo para tornar a perda mais fácil. Quando ficava com Drew, queria que ela fosse você. Cada decisão que tomava, grande ou insignificante, sempre era acompanhada por algum pensamento sobre você. Eu te incluo em tudo sem querer. Você é minha vida. Sempre foi. Kale me olhava com atenção enquanto eu processava o que tinha acabado de ouvir. — Quer ou queria? — sussurrei. Ele levantou as sobrancelhas. — Q... quê? — Você me queria, ou você me quer? — perguntei, me agarrando a cada fiapo de coragem que havia em mim. Kale se afastou da parede em que estava encostado. — Não me pergunta isso, a menos que... — A menos que o quê? — interrompi. — A menos que esteja completamente preparada para ouvir a resposta.

A preocupação era grande, mas eu não me importava, precisava da resposta. Endireitei as costas e disse: — Kale, você me queria ou você me quer? Não estou mais fugindo de você. Nunca mais vou fugir de nada, por maior que seja o medo. Ele começou a se aproximar de mim. — E aí? — insisti de cabeça erguida. — Porque para mim, em relação a você, sempre foi “quero”. — Não quero você, Lane — Kale grunhiu ao chegar perto de mim. — Eu preciso de você, porra. O corpo enorme e esculpido se chocou contra o meu. Quase gemi quando o contato que eu desejava com desespero invadiu meus sentidos. Kale se apossou da minha boca e me beijou com tanta força, que era quase doloroso. As mãos estavam no meu rosto, me segurando, e a testa tocava a minha, e ele me beijava com uma fome que eu também sentia. Senti nos ossos a paixão que ele demonstrava.

Gemi em sua boca quando as mãos escorregaram por meu corpo, encontraram minha cintura e desceram até o traseiro, que ele apertou. Kale dobrou um pouco os joelhos e, sem aviso prévio, me tirou do chão. — Me envolve com as pernas — ele disse antes de me beijar de novo, e me tornei prisioneira por vontade própria. Fiz como ele pedia e envolvi sua cintura com as pernas, enlaçando o pescoço com os braços. Gemi em sua boca enquanto nos beijávamos. Mexi a pélvis contra seu corpo, e ele grunhiu na minha boca, provocando uma onda de excitação que me percorreu como um raio. Agarrei seu cabelo e puxei, e ele suspirou enquanto me beijava. Sorri com a boca colada à dele, e Kale me apertou com mais força, me fazendo gemer baixinho de dor. Foi sua vez sorrir, e entendi rapidamente que tudo que eu fizesse, ele faria comigo com intensidade dez vezes maior. Talvez não seja tão ruim, minha mente ronronou. — Quarto — arfei com os lábios roçando os dele. — Agora. Preciso disso agora. Precisava dele mais que do ar que respirava. Ainda me carregando, Kale saiu da sala de estar para o corredor. No fim desse corredor, ele empurrou uma porta e entrou no quarto. Gritei quando minha boca foi afastada da dele e meu corpo foi projetado no ar, antes de aterrissar no colchão. Levei as mãos ao peito e senti o coração batendo forte lá dentro. Kale riu, e eu balancei a cabeça. — Filho da mãe — reagi, rindo. — Quase me matou de susto. — Ergui o corpo sobre os cotovelos, enquanto Kale segurava a parte de trás da gola da camiseta e a puxava para cima, despia e jogava para trás. Olhei fascinada para seu corpo. — Puta merda... — murmurei. — Kale, você tem um tanquinho, e esse músculo em V vai me fazer esquecer até meu nome.

— Oblíquos, o nome desses músculos é oblíquos. — Ele riu baixinho e veio para a cama, abrindo caminho entre minhas pernas. — Malhei muito enquanto você estava longe — disse, e aproximou a boca do meu pescoço. Toquei suas costas definidas, e os músculos se moveram embaixo das minhas mãos. O pulsar entre minhas coxas se tornava insuportavelmente dolorido, e a culpa disso era do corpo estonteante de Kale. — Você é muito gostoso — murmurei. Kale respondeu em voz baixa, rouca: — E você é uma delícia. Senti o rosto esquentar. — Não tenho mais o mesmo corpo de quando saí daqui. Devo ter engordado uns oito ou nove quilos, e pareço ter envelhecido uns quarenta anos, enquanto você se encheu de músculos e ficou ainda mais lindo. É um péssimo negócio para você. Kale parou de beijar meu pescoço e me encarou. — Você é linda. Meu coração disparou. — Obrigada — murmurei. Ele continuava olhando para mim de um jeito penetrante. — Lembra quando tinha quinze anos, e eu parei atrás de você diante de um espelho, e fiz uma lista de tudo que achava bonito em você? Eu nunca me esqueceria disso. Assenti, ofegante. — Todas aquelas coisas que apontei naquele dia agora são mil vezes maiores — ele anunciou com um sorriso. — Você é perfeita, Laney Baby. Simplesmente perfeita. Minha voz era carregada de emoção, mas eu me recusava a chorar. — Vem — supliquei. — Agora.

Os olhos de Kale brilharam como fogo quando ele me segurou e pôs sentada. Em poucos segundos, ele tirou meu casaco, a camiseta e o sutiã, jogando tudo sei lá onde. Deitei e agarrei o lençol embaixo de mim, enquanto ele ia me beijando e descendo até a barriga, usando os dentes para abrir o botão do jeans. — Meu Deus — murmurei quando ele desceu o zíper, e senti seu hálito quente na pele. Botas, jeans e meias foram tirados de mim em seguida. Kale segurou minha calcinha e, lentamente, a puxou para baixo até eu quase gritar para ele a arrancar do meu corpo. — Por favor — ofeguei. Ele jogou a calcinha para trás por cima do ombro, aproximou a boca do meu centro e inalou. As mãos agarraram minhas coxas, e ele gemeu. — Porra — disse com a voz estrangulada. — Seu cheiro é melhor do que eu lembrava. Vermelho. Essa era a cor do meu rosto e do pescoço, eu tinha certeza disso. — Kale — implorei. — Dentro de mim. Agora. — E se eu quiser ir bem devagar? — ele perguntou em voz baixa e rouca. Choraminguei. — Eu vou morrer, só isso. Gritei quando, de repente, Kale colocou o rosto entre minhas pernas e passou a língua inteira em mim, me lambendo como se eu fosse seu doce preferido. Comecei a me mexer e, como na primeira vez, ele passou os braços em torno das minhas pernas e uniu as mãos em cima do meu monte. Ele me imobilizou enquanto lambia e chupava aquele escorregadio feixe de nervos. — Muito perto! — gritei quando senti o calor delicioso da lambida no meu centro, acendendo um fogo dentro de mim que eu pensava ter morrido muito tempo atrás.

Bem aí, minha mente gritava. Bem aí. — Kale! — gritei. Inspirei profundamente e prendi o ar quando a primeira onda de êxtase quebrou em mim, seguida por outra e mais uma. Cada contração de prazer se espalhava por todas as terminações nervosas, e me tornei pura sensação. Levei o ar aos pulmões com desespero quando eles começaram a arder, lembrando que eu não estava respirando. — Não dá para esperar — Kale gemeu, invadindo minha nuvem. Pisquei para recuperar o foco e o vi tirando a roupa e se posicionando em cima de mim, seu membro duro, grosso e arroxeado pulsando com a antecipação. — Mais tarde — ele prometeu. — Mais tarde eu vou mais devagar, exploro cada centímetro do seu corpo, mas agora eu preciso de você, tem que ser rápido. Eu também precisava disso. — Sim — pedi. — Isso, por favor. Kale segurou a base do membro e esfregou a extremidade na minha abertura molhada, fazendo todo meu corpo se contrair com a sensação. Ele aproximou a cabeça da abertura e, bem devagar, dolorosamente devagar, foi entrando em mim. Gritei quando senti minhas paredes internas se distendendo para receber a espessura de Kale. — Cristo. — Ele estremeceu, e seu rosto expressou uma emoção que era quase dor. — Você é... impossível. Não é mais virgem. Como pode ser tão apertada? — Não fico com ninguém há seis anos. — Ofeguei. — Queria você, precisava de você. Nunca teve outra pessoa. Kale me penetrou completamente e baixou o corpo, usando os cotovelos como apoio. Abri a boca quando ele aproximou os lábios dos meus, gemendo ao morder de leve o lábio inferior.

— O que você faz comigo, Laney Baby — ele murmurou, e começou a se mexer, entrando e saindo de mim com desespero. — Faz anos... tanto tempo, não vou me segurar. Gritei na boca de Kale, e ele engoliu meu grito. Moveu as mãos até encontrar meu cabelo, puxando enquanto amava meu corpo com o dele. Senti meu interior se contrair enquanto Kale aumentava a velocidade e a intensidade dos movimentos, me dominando de corpo e alma a cada penetração. — Vou gozar — ele gemeu. — Você é muito gostosa. — Quero sentir você perdendo o controle — pedi. Enterrei as unhas em suas costas, o que o fez prender o ar antes de jogar a cabeça para trás e gemer meu nome enquanto chegava ao orgasmo, projetando o quadril para frente enquanto o corpo buscava o tão necessário alívio. Esgotado, ele caiu para frente e descansou o rosto em meu pescoço. Ofeguei enquanto Kale permanecia deitado em meu peito. Sua respiração era rápida, como a minha. Reuni toda a energia que restava em meu corpo e bati de leve em suas costas. A resposta foi um murmúrio. — Se dormir em cima de mim de novo — avisei, debochada —, arranco seu pau na mordida. Kale deu um pulinho, depois riu. — Vou dormir do seu lado, abraçando esse seu corpinho sexy. Melhor? Senti um arrepio quando ele saiu de cima de mim e rolou para o lado; cheguei mais perto dele, usando o bíceps como travesseiro. — Foi incrível — cochichei, sorrindo. Kale sorriu, preguiçoso. — Foi, querida. Também sorri, mas em seguida fiquei séria. — Não usamos camisinha. De novo.

Kale arregalou os olhos, depois os fechou e resmungou um palavrão. — Desculpa, Lane. Nem pensei nisso. Parece que não raciocino quando estou perto de você. Não consegui segurar a risada. — Tudo bem. Só fiquei brava porque eu também não lembrei de usar, mas não se preocupe. Eu tomo anticoncepcional e sou saudável. Está tudo bem. Kale assentiu. — Também sou saudável, e é um alívio saber que toma pílula. Quero ter você só para mim por um bom tempo antes de você ficar grávida. Senti o coração despencar do peito o estômago. — Kale — sussurrei —, não brinca com isso. Ele olhou para mim com aqueles olhos de filhotinho de cachorro feliz e perguntou: — Parece que estou brincando? Não parecia. Não disfarcei o choque. — Quer ter um bebê comigo? — Quero tudo com você — ele respondeu imediatamente. Isso é real? Não me sentia capaz de falar, por isso, a única coisa que fiz foi chegar mais perto dele, o máximo que podia, para mostrar que um dia também ia querer tudo com ele. Fechei os olhos, prometendo a mim mesma que ia só descansar por um momento e recuperar o fôlego. Ouvi Kale me chamar algumas vezes minutos mais tarde, mas a voz dele parecia estar muito distante. Não respondi, e senti que ele olhava para mim e ria. — Quem é que vai dormir agora, garota? Ouvi sua risada quando ele puxou o cobertor sobre nós e se ajeitou ao meu lado, envolvendo meu corpo com o dele.

Murmurei de satisfação, e pouco antes de mergulhar no sono mais tranquilo que teria em anos, ouvi o eco de um último pensamento. Por favor, rezei, não permita que isso se transforme em outro pesadelo.

Acordei algum tempo mais tarde e descobri que o quarto de Kale ainda era banhado pela luz que vinha de fora, e isso indicava que ainda era dia, o que achei estranho, porque tinha a sensação de ter dormido, de estar descansada. Tomei cuidado para não acordar Kale quando acomodei o corpo contra o dele. Passei uma hora ou mais vendo ele dormir, memorizando cada centímetro dele. Poderia ter ficado ali para sempre, olhando para ele, mas, quando meu estômago roncou, saí da cama silenciosamente e vesti sua camiseta branca, sorrindo ao ver que ela me cobria até a metade da coxa. Saí do quarto na ponta dos pés, cheguei ao corredor e fiz uma parada no cômodo que descobri ser o banheiro. Limpa, fui à cozinha e coloquei água para ferver na chaleira, depois olhei o que tinha na geladeira. Comecei a preparar sanduíches. Sabia que ele acordaria com fome, e queria fazer alguma coisa legal por ele. Alimentá-lo foi minha escolha. — Lane! Eu me assustei com o grito de Kale e larguei a faca que havia usado para cortar os sanduíches ao meio. Depois, em uma resposta automática, corri para o quarto ao ouvir um estrondo. Estendi a mão para a maçaneta, mas a porta do quarto foi aberta antes que eu pudesse tocá-la, e colidi com o peito nu de Kale. — Que foi? — perguntei em pânico. — O que aconteceu?

Kale respirou fundo e segurou meu rosto com as duas mãos, colando a testa à minha. — Você não estava na cama — ele disse, apavorado. — Acordei e não te vi lá. Pensei... pensei... — Shhh, amorzinho — tentei acalmá-lo, envolvendo seu corpo com os braços. Sabia exatamente o que ele pensou: Kale achou que eu havia fugido de novo. — Estou aqui, Kale — murmurei e beijei seu peito. — Nunca mais vou te deixar, prometo. Ele me abraçou tão forte, tão apertado, que tive medo de desmaiar. Depois de um minuto, me soltou, me segurou pelos braços e examinou meu corpo, antes de me abraçar de novo e apertar contra o peito. — Parece que tem um monstro dentro de mim cochichando em meu ouvido que isso não é de verdade. Deslizei as mãos por suas costas, subindo e descendo. — Todos nós temos monstros que mentem, dizem que não podemos ter o que está bem na nossa frente. O meu falou a mesma coisa sobre você, mas, por enquanto, nossos monstros parecem estar se entendendo. Ele beijou minha cabeça. — Parece que sim. Continuei abraçada nele. — Estava com fome e imaginei que você também estaria quando acordasse. Fui fazer uns sanduíches para nós. Ele suspirou. — Desculpa, querida. Não te vi do meu lado e reagi, só isso. Senti um frio na barriga. Inclinei o corpo para trás e sorri para ele. — Vou voltar para sua cama, bem do seu lado, assim que a gente comer. — Acho ótimo — ele disse com um sorriso.

Depois beijou meu nariz, me virou de costas e deu um tapinha na minha bunda, indicando que eu devia andar. Dei um gritinho, e Kale riu. — Minhas roupas ficam ótimas em você — ele murmurou quando comecei a andar para a cozinha. Eu ri. — Está dizendo isso só porque não vesti nada por baixo. Braços enlaçaram minha cintura enquanto eu terminava de preparar os sanduíches, e Kale tocou meus seios através da camiseta, me fazendo gemer quando os mamilos enrijeceram. — Não vai vestir outra coisa quando estiver aqui — ele avisou. — Essa é a minha condição. Dei risada. — Agora todo mundo quer impor alguma condição que eu tenho que cumprir por aqui? Kale riu e beijou a parte de trás de minha cabeça, deslizando as mãos até meu quadril. — É o que parece. Encostei a cabeça em seu peito e sorri. — Sorte que essas condições são toleráveis. A risada mansa fez seu peito vibrar. Um silêncio confortável caiu sobre nós enquanto comíamos os sanduíches, encostados ao balcão da cozinha, Kale me segurando com um braço e comendo o sanduíche com a outra mão. — Acha que dissemos tudo que precisava ser dito? — perguntei quando terminamos o lanche. Kale balançou a cabeça e foi sentar à mesa da cozinha. — Você explicou por que fez o que fez, e embora eu não me sinta feliz com isso, entendo. Sei que precisa ouvir minha parte nisso tudo, minha explicação, mas antes quero que saiba uma coisa que é a mais pura verdade. Umedeci os lábios.

— Tudo bem. — Laney Baby — ele sussurrou quando sentei em seu colo e passei os braços em torno de seu pescoço. — Nunca te falei isso sóbrio, mas sou apaixonado por você. Faz muito tempo, e lamento não ter dito isso antes. As palavras que por tanto tempo sonhei ouvir pareciam, de repente, difíceis demais. — Bichinho — sussurrei, e minha boca tremeu. — Fica comigo — ele insistiu. — Seja minha namorada, minha noiva, minha esposa. Por favor, diz que vai ser meu tudo, porque, para mim, você já é. Ele está me pedindo em casamento? Minha cabeça girou de emoção, e fui invadida pela incredulidade. — Não é cedo demais? — perguntei, sentindo como se vivesse uma experiência fora do corpo. — Faz só quatro dias que voltamos para a vida um do outro... — Demorou demais, querida — Kale me interrompeu. — Eu devia ter pedido você em casamento há anos. Engoli em seco. — Não quero apressar nada de que você se arrependa depois. Ele segurou meu rosto entre as mãos e disse: — Eu nunca, nunca vou me arrepender de nada com você. Você é o amor da minha vida, e só me arrependendo de não ter percebido isso mais cedo. Desculpa se te deixei pensar que tinha me arrependido de você; naquela hora, foi o único jeito em que consegui pensar para te afastar de mim. Quase caí do colo dele, e Kale me segurou com mais força para impedir o tombo. — Como assim? — perguntei com o coração disparado. Ele afastou meu cabelo do rosto e olhou dentro dos meus olhos. — Lembro tudo daquela noite em que você se entregou para mim — ele disse, e eu fiquei chocada. — Você estava

certa; eu não estava tão bêbado. A bebida só me deu coragem para estar com você como eu queria. Fui ríspido e grosso para te deixar brava comigo, para que você não quisesse mais nada comigo daquele jeito. Queria que você acreditasse que tinha me arrependido de fazer amor com você. Eu estava confusa. — Não entendi. Então ele não se arrependeu de verdade por termos ficado juntos? — Tive medo de... do que seus pais, meus pais, seu tio e seus irmãos iam pensar de mim. — Ele balançou a cabeça com raiva. — Não queria afastar sua família da minha, e achei que eles iam me odiar se ficássemos juntos. Você contou que se achava suja por ter sentimentos românticos por mim, porque éramos muito próximos, e eu sentia a mesma coisa. Era como se estivesse tirando proveito da sua paixão. Minha paixão. — Não era só paixão, Kale — sussurrei. — Eu te amava. Ele engoliu em seco. — Continua falando no passado? Fala para ele. Balancei a cabeça. — Nunca deixei de te amar. Você está entranhado em mim, nos meus ossos. Nunca amaria outra pessoa como amo você, do jeito que amo você. — Que jeito é esse? — ele perguntou, nervoso, mordendo a boca. — Não é como se ama um irmão. Kale olhou para nossos corpos, relaxados depois do amor, e riu. O som aqueceu meu coração. — Casa comigo, Lane — ele quase implorou. — Prometo amar, respeitar e cuidar de você até meu último suspiro. Por

favor, fica comigo. Ele me olhava como se eu ainda precisasse pensar na proposta. — Sim — respondi, tremendo. — Sim, eu caso com você. Nós nos beijamos, e interrompi o beijo para rir. — Qual é a graça? — Kale perguntou, sorrindo. Balancei a cabeça. — Só estava imaginando o que meus irmãos e todo mundo vão pensar disso. Ei, olha só! Kale e eu vamos casar... surpresa! Não que eu me importasse com as reações que provocaríamos, mas ainda estava intrigada. — Lane — Kale riu —, faz anos que seus irmãos sabem que eu te amo. Meu queixo caiu. — É — ele confirmou, rindo da minha cara. — Contei para eles alguns meses depois da morte do Kaden. Contei o que aconteceu entre nós, disse a eles o que falei para você, o que fiz para te magoar e afastar de mim. — E o que eles disseram? — perguntei, completamente surpresa. Kale riu baixinho. — Disseram que eu era um idiota da porra, o que é verdade, por ter pensado que eles me dariam as costas. E que dariam o braço esquerdo para você ficar com alguém como eu, porque sabiam que eu nunca te trataria mal, e que te amaria mais do que a própria vida. Eles disseram que ficariam felizes se a gente ficasse junto. — Ah, é? Uau. Kale assentiu. — Apesar de saberem que eu te amava, eles duvidavam de que um dia você voltaria para casa, por isso insistiam para eu voltar a sair com outras pessoas, mas eu não quis. Olhei diretamente para ele.

— Está me dizendo que não ficou com ninguém desde que se separou da Drew? Se ele dissesse que sim, seriam anos sozinho. — Por quê? — perguntei quando ele fez um movimento afirmativo com a cabeça. — Decidi esperar você voltar para casa — ele murmurou. — Por quê? — insisti. Kale lambeu a boca tentadora. — Para poder fazer minha apresentação para você e tentar reconquistar seu coração, porque eu sou o legítimo dono dele. Ele estava acabando comigo. — Não acredito no que estou ouvindo. Kale segurou minhas mãos. — É verdade, querida. Passei os últimos cinco anos te esperando. E esperaria mais cinquenta, se fosse preciso. — Isso parece um sonho — comentei, balançando a cabeça. — Está me dizendo tudo que eu sempre quis ouvir. Ele sorriu. — Agora podemos ter tudo que sempre quisemos ter juntos. Comecei a tremer. — Isso é verdade? — perguntei, tomada pela mais pura alegria. — Vamos ficar juntos de verdade? — Até meu último suspiro — Kale jurou. Meu coração não sabia o que fazer; pela primeira vez, sentia que não se partia e estava muito perto de parar. Encostei a testa na dele. — No dia em que você foi embora, levei dois segundos para perceber que morreria por você — ele murmurou. Oh. Com um suspiro trêmulo, eu disse:

— Estive morrendo aos poucos esperando por você, e não é força de expressão. Literalmente, não consigo viver sem você. — Nem vai — Kale jurou com a testa encostada à minha. — Vou ficar com você até o dia em que meu coração bater pela última vez. Você é tudo para mim. Entende? Tudo. Lágrimas transbordaram dos meus olhos e correram pelo rosto. — Te amo muito. O sorriso de Kale era largo. — Também amo você, Laney Baby. Devemos toda nossa gratidão ao seu tio, por causa dele estamos juntos. — Ele roçou o nariz no meu. Sorri com carinho. — Sinto muita saudade dele. — Eu sei, amorzinho, mas vamos ver seu tio de novo. Vamos ver sua tia Teresa, Lavender e Kaden também. — Ele roçou o nariz em meu pescoço. — Temos muita coisa para esperar enquanto envelhecemos, meu bem. Eu ia envelhecer com Kale. Meu Kale. Sorri com alegria. — Temos, sim. — As coisas teriam sido muito diferentes se você nunca mais voltasse para casa — ele murmurou, e seu braço me enlaçou mais apertado. — Eu sei. — Aconcheguei o corpo ao dele. — As coisas nunca teriam mudado. — Sem a ajuda do Harry? — Kale murmurou beijando meu ombro. — Sim. — Sorri com afeto novamente, fechei os olhos e me deixei envolver pelo amor que meu futuro marido me dava. — Sem a ajuda do Harry.

Ficamos em silêncio saboreando o contato, o toque do outro. — Logo você vai a senhora Kale Hunt — Kale murmurou. Não sabia o porquê, mas caí na gargalhada quando pensei em todas as vezes que escrevi exatamente esse nome nos cadernos e nas agendas da escola, querendo que um dia elas se tornassem verdade. Mal sabia que esse dia ia chegar. Não seria fácil, mas ele chegaria, e eu seria feliz. Mais nada, só muito, muito feliz. E sabe de uma coisa? Meu tio Harry estava certo. Eu merecia.

— Vovó? — chamei ao percorrer a alameda do Cemitério York mais tarde, naquele dia tão glorioso que mudou minha vida, e vi minha avó em pé diante do túmulo da minha tia e do meu tio. Ela olhou para trás e sorriu. — Oi, minha querida. Enlacei sua cintura com um braço e a apertei de leve, antes de me posicionar a seu lado. — Você está bem? — perguntei. Ela deu de ombros. — Tão bem quanto é possível estar. Inclinei o corpo para o lado e beijei sua têmpora antes de encostar a cabeça na dela. Ficamos assim por alguns minutos, até minha avó falar. — Lane — ela começou —, sinto saudade do meu filho — contou com tristeza —, e estou triste por ele ter partido, mas também estou muito feliz por você ter voltado para casa, para nós. Sei que Harry teria ficado muito feliz com sua decisão, meu bem.

Mais um afago. — Só lamento ter demorado tanto. Ainda não consegui entender e resolver tudo, mas estou chegando lá. Mas queria que as coisas não tivessem demorado tanto para passar. Vou ser eternamente grata por isso. Minha avó me virou de frente para ela. — Escuta aqui, Lane Edwards: você fez o que foi preciso fazer naquele momento por você. Não é uma máquina, é humana, e não é melhor que todos nós nessa coisa de entender a vida. — Ela segurou minha mão e afagou meus dedos com os polegares, me fazendo relaxar imediatamente. — Sinto muito por como todos nós reagimos quando você avisou que ia embora. Queria poder voltar no tempo e mudar tudo aquilo, mas você estava decidida a partir, e nós decidimos brigar com você por isso. Tudo que aconteceu, as coisas, as coisas ruins, as coisas absolutamente horríveis, tudo trouxe a esse momento. Tinha que ser assim, querida. O destino é uma coisa engraçada, e ninguém tem controle sobre ele. Não se pode nem explicar o destino. — A gente só embarca nessa jornada que é a vida e vê onde ela vai levar? — perguntei, repetindo suas próprias palavras. Um lindo sorriso surgiu em seu rosto. — Exatamente, e quanto mais cedo entendemos que é assim, mais depressa as coisas sem importância e pequenas ficam em segundo plano, cedem espaço para o que realmente importa. Família. Amigos. As coisas sem as quais ninguém deveria ter que viver. Você não sabe o que a vida reserva para o seu futuro, meu bem. Harry é um ótimo exemplo de que é preciso viver o agora, parar de viver no passado. As pessoas criam a própria felicidade, mas também criam sua destruição. Viva a vida que você quer ter.

— Acha mesmo que as pessoas têm todo esse controle sobre a própria vida? — questionei. Minha avó inclinou um pouco a cabeça. — Não, ninguém tem controle sobre quanto tempo vai viver... Está além do nosso controle. Mas podemos administrar como nos sentimos durante essa jornada. Você só precisa querer o suficiente, ou a felicidade vai passar direto por você, e sua vida também. Sua família está do seu lado, pronta para ajudar a cada passo nesse caminho. Não precisa mais fugir. Pode ficar e encarar tudo de frente, e nós estaremos com você. Não precisa mais fugir. Repeti essa frase em particular muitas vezes em pensamento. Sempre soube que, quando saí de casa e me mudei para longe, estava realmente fugindo, mas naquela época não era forte o bastante para fazer outra coisa. Ficar não era uma opção, depois de a vida ter virado um inferno com Kale... com tudo. Meu coração doía cada vez que eu o via, e imaginei que, se estivesse longe dos meus olhos, ele também ficaria longe do meu coração. Cara, como eu estava errada, pensei com um suspiro silencioso. Entre todas as coisas que deram errado em minha vida, a que eu mais odiava era meu tio ter morrido, mas não poderia ir mais longe nesse caminho de desespero que tinha criado para mim. Se quisesse sentir alguma coisa além de torpor, e às vezes tristeza, teria de seguir os conselhos da minha avó e criar minha felicidade. Teria de estar presente para mim. Cuidar de mim. Ser minha rocha, meu impulso. Estar com Kale e ter tudo que sempre quis me dava um propósito, mas eu me recusava a deixar que ele, ou nosso novo relacionamento, fosse meu único motivo para viver. Não podia me tornar tão dependente de outra pessoa; no

passado, as pessoas foram embora, e eu fiquei arrasada, destruída. Pisquei duas vezes, interrompei essa cadeia de pensamentos e descobri que minha avó estava olhando para mim. — Parece que tomou alguma decisão — ela comentou. Engoli a saliva antes de responder. — Sim, tomei. Decidi criar minha própria felicidade. O sorriso de minha avó era radiante. — Eu sabia que faria isso. Respirei fundo. — Alguns minutos em sua presença, Yoda, e você já transformou toda minha vida. — Sua vida toda, você transforma — ela disse, fazendo sua melhor imitação do Yoda e arrancando um sorriso de mim. — Só dei o chutinho na bunda de que você precisava. Sorri de novo. — Sempre pensei que eu não era forte, mas estou começando a ver o que tio Harry e todos vocês viam em mim. Do meu jeito, sou uma lutadora. — Seu tio conversava muito comigo sobre você. Ele me contou sobre a terapia e outras coisas que você começou na cidade, e sim, você é forte. Decidiu agir quando teve aqueles pensamentos. Procurou ajuda. Decidiu mudar de vida e parar com a loucura das festas quando foi atacada. Tomou a decisão de se ajudar e lidar com a perda da Lavender e do Kale. E agora tomou a decisão de voltar pra casa e enfrentar tudo. Você é a pessoa mais forte que já conheci, meu bem. Pensei nas palavras da minha avó e sorri ao entender que ela repetia o que Kale tinha falado mais cedo. Eles estavam certos. Eu era forte. Eu era forte!

Sem falar nada, olhei para o túmulo dos meus tios, depois para minha avó, quando ela tocou meu braço e disse: — Seu pai vem me buscar. Vamos esperar por você no estacionamento. Fique o tempo que for necessário aqui com seu tio. Imagino que tenha algumas coisas a dizer para esse trapaceiro cheio de artimanhas. Dei risada e fiquei olhando minha avó se afastar, antes de olhar novamente para a terra diante de mim. — Sabia que as coisas aconteceriam desse jeito, não é, tio Harry? — Mentalmente, vi o rosto sorridente de meu tio, e isso me fez rir baixinho. — Devo tudo isso a você — declarei, balançando a cabeça com firmeza. — Você mudou toda minha vida, e serei eternamente grata por isso. Meu lábio tremeu. — Não vou mentir; estou magoada e brava por não ter me contado sobre o problema no coração. — Limpei uma lágrima que caiu do olho. — Teria vindo para casa mais cedo. Teria te ajudado. Teria estado aqui para te apoiar. Funguei. — Sei que teve seus motivos, e embora possa não conhecer todos esses ou mesmo entendê-los, tenho certeza de que você sentia que ainda não era hora de eu voltar para cá. Você sempre foi o mais sensato da família, e agora que partiu, todos nós estamos fadados a tomar decisões bem arriscadas, mas espero que fique com a gente e ajude a nos guiar na direção certa sempre que precisarmos de um empurrãozinho. Senti uma brisa fria me envolver, e quase perdi o fôlego. — Definitivamente, você é um dos amores da minha vida, e vou sentir saudade para sempre. — Sorri com tristeza. — Espera por mim aí, está bem? Quando chegar minha hora, seu rosto é o primeiro que vou querer ver. Nesse momento, me senti em paz com meu tio, e foi um dos melhores sentimentos que já tive. Quando virei e

comecei a me afastar do túmulo de meu tio, eu sorria. Amava-o e sentia mais saudade dele do que conseguia aguentar, e embora fosse desejar para sempre poder abraçá-lo só mais uma vez, sabia que um dia teria essa chance. Olhei para trás enquanto me afastava, e o que vi não podia ser explicado. Talvez fosse minha cabeça criando coisas para me enganar. Vi meu tio sentado em cima da lápide de sua sepultura, com os braços em torno da cintura de tia Teresa, e a cabeça dela sobre seu ombro, enquanto ela ria feliz. Atrás do meu tio, vi Lavender dançando pela grama, no meio das flores, com uma criança pequena no colo, uma criança exatamente igual ao Kaden. Ele ria com alegria enquanto era girado no ar várias vezes. Parei e olhei por um segundo, e quando o olhar do meu tio encontrou o meu, ele piscou, e senti um arrepio nas costas. Então eles sumiram, tia Teresa, Kaden, depois Lavender. Meu tio ficou um pouco mais, como se quisesse esperar para me ver sair em segurança, e isso me fez sorrir. Decidi que não queria vê-lo desaparecer, porque sabia que ele nunca partiria realmente; eu o levaria em meu coração para sempre. Sorri para ele mais uma vez, depois me virei e comecei a me afastar, e a cada passo, me sentia mais leve. Completa. — A gente se vê, tio Harry.

FIM

Não acredito que estou escrevendo os agradecimentos de mais um livro, mas este livro – esta é uma história realmente especial para mim e ocupa um lugar muito querido no meu coração. Ri e chorei enquanto escrevia a jornada de Lane, e espero ter feito justiça a ela, Kale e Tio Harry, como eles merecem. Não teria conseguido nada disso sem um importante grupo de pessoas que define a palavra “brilhante”. Minha filha – te amo muito, e depois de escrever este livro, vou fazer questão de olhar para você um pouco mais, te abraçar um pouco mais apertado e te amar muito mais intensamente. Você é meu mundo, minha bebê. Minha irmã – o que posso dizer sobre você, sua maluca? É bem simples, na verdade; amo cada pedacinho seu. Sou mais próxima de você do que de qualquer outra pessoa em minha vida, e não há mais ninguém que eu prefira ter como cúmplice. Yessi Smith – quando conversamos pela primeira vez pelo Facebook, nunca imaginei que, dois anos mais tarde,

seríamos melhores amigas. Conversamos todos os dias sobre qualquer coisa e tudo, e sempre nos apoiamos. Sua ajuda em minhas histórias tem minha eterna gratidão. Obrigada por me ajudar a transformar meus bebês em uma leitura ainda melhor. Você é muito importante para mim e te amo muito. Mary Johnson – Você começou como fã dos meus livros e se tornou uma amiga sem a qual eu não poderia viver, quase literalmente. Sua amizade e o apoio que dá ao meu trabalho e a mim são inigualáveis, e é uma bênção ter você em minha vida. Te amo. Mark Gottlieb – Obrigada por se doar tanto a mim e às minhas histórias. Eu não poderia ter escolhido agente literário melhor para me representar nesse louco mundo literário. Melody Guy – Trabalhar com você tem sido uma experiência incrível. Seu conhecimento e estilo de edição me ajudaram a crescer como escritora. Aprendi muito com você. Obrigada por amar Lane, Kale e Tio Harry tanto quanto eu os amo. Sammia e equipe da Montlake Publishing – obrigada por darem uma chance a De volta para casa. Vocês leram uma sinopse bruta de quarenta páginas e me ofereceram um contrato baseado em algo que escrevi sem dar muita importância, na época. Sou muito grata e feliz por vocês terem dado essa importância. Vocês, os leitores – espero que tenham gostado de ler De volta para casa. Este livro é completamente diferente de qualquer coisa que eu poderia ter escrito, e espero que se apaixonem por um grupo de personagens que mandam no meu coração. Obrigada por apostarem em mim, e por terem transformado minha paixão em trabalho. Vocês são todos brilhantes!

 

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Table of Contents Folha de Rosto Créditos Dedicatória Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo 10 Capítulo 11 Capítulo 12 Capítulo 13 Capítulo 14 Capítulo 15 Capítulo 16 Capítulo 17 Capítulo 18 Agradecimentos AllBook Editora
De Volta Para Casa (oficial)L.A.Casey

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