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A Princesa e o Marinheiro Thursday’s Child
Nancy Elliott
Escondidos naquela ilha das Bahamas, Logan e Elise refugiaram-se na magia do amor... À tênue luminosidade do amanhecer, Logan rumou devagarinho para o cais da ilha, deixando o veleiro seguir o próprio impulso, um cenário paradisíaco descortinava-se a sua frente, a praia de areias muito claras protegida por majestosas palmeiras desfraldadas ao vento. Logan, maravilhado, correu os olhos pela paisagem e então avistou a delgada silhueta feminina que o esperava no ancoradouro. Ali estava ela, pensou, deliciado com a surpresa. Elise St. James, a Perigosa Jovem que deveria proteger, era a mulher mais linda que já vira na vida...
Disponibilização: Claudia Digitalização: Simone R Revisão: Carmita
Super Sabrina 111 - A Princesa e o Marinheiro - Nancy Elliott Título original: Thursday’s Child Copyright © by Nancy Elliott Publicado originalmente em 1989 pela Harlequin Enterprises Limited, Toronto, Canadá Tradução: Henrique Amat Rêgo Monteiro Copyright para a língua portuguesa: 1990 EDITORA NOVA CULTURAL LTDA. Av. Brigadeiro Faria Lima, 2000 — 3 andar CEP 01452 — São Paulo — SP — Brasil Caixa Postal 2372 Esta obra foi composta na Editora Nova Cultural Ltda. Impressa na Artes Gráficas Parâmetro Ltda.
CAPÍTULO I
— Ora, vamos, Sabitta, ande! Disposta a aproveitar ao máximo a escapada furtiva do palácio de seu pai, a princesa Melina Kaleer apressava a criada e inseparável companheira, enquanto caminhavam pelas ruas estreitas do bazar municipal de Suryat, a capital do pequeno reino independente de Mondária, no Leste Asiático. O calor estava insuportável naquele começo de tarde. Com o forte sol de verão refletindo-se nas paredes de argila pintadas de branco, mesmo sob o toldo das barracas o ar permanecia abafado, acentuando o aroma adocicado de especiarias, mel de abelhas silvestres e tâmaras maduras, os produtos típicos da região. — Ainda acho que não devíamos ter saído sem avisar, Melina — queixou-se a jovem, em voz torturada. — Se seu pai souber, vai punir a nós duas. Com um gesto desafiador de cabeça, Melina protegeu-se do sol escaldante, à sombra de uma barraca de melões. — Não seja boba, Sabitta. Se era para ficar com medo, por que veio, então? A fiel criada ofegava, no esforço de acompanhar a ama. Ambas eram igualmente altas e esguias, aparentavam a mesma idade, vinte e três anos, e quando saíam assim escondido do palácio, disfarçadas de mulheres comuns, era difícil distinguir uma da outra. Nessas ocasiões, ambas usavam um sarongue comprido com um bustiê leve
de algodão e sandálias, e traziam o longo cabelo negro preso numa única trança grossa às costas. Sabitta, porém, embaraçava-se quando as tomavam por irmãs gêmeas. Embora tivessem crescido juntas e fossem muito ligadas, havia uma diferença fundamental entre as duas: Melina era a princesa, filha do soberano de Mondária, o sultão Alexander Kaleer, e ela, Sabitta, apenas sua criada. — Não se esqueça, Melina — a criada lembrou, preocupada. — A amiga americana de seu pai deve chegar a qualquer momento. É melhor apressar-se, ou vão perceber que você saiu. — Voltaremos a tempo, Sabitta. Não se preocupe. Melina retomou o caminho, pensativa. Aquela visita não era propriamente um gesto de cortesia. Assim como a empresária americana Roxanne Fletcher, dona das Indústrias Fletcher, multinacional de produtos químicos, farmacêuticos, eletrônicos, entre outros, com sede em Boston, Estados Unidos, era mais que uma simples amiga de seu pai. Ainda que os visitasse com freqüência, em seu jatinho particular, desde que o sultão a autorizara a instalar uma subsidiária nos arredores de Suryat, daquela vez, porém, as circunstâncias eram diferentes. Pela conversa ao telefone que Melina ouvira por acaso na semana anterior, entre o pai e a empresária americana, a situação da subsidiária
da
Fletcher
ali,
embora
empregasse
centenas
de
mondarianos, estava por um fio. Um movimento local em favor da nacionalização de empresas estrangeiras, deflagrado pelo Bajurdi, agremiação
revolucionária
popular,
vinha
mobilizando
os
trabalhadores, com passeatas e greves. Apesar de o movimento ter sido encampado pelo Partido da Independência, mais moderado e
aberto a negociações pacíficas, o soberano temia violências e represálias. — Por favor, vamos voltar — suplicou Sabitta, olhando amedrontada ao redor. — E se alguém nos seguiu? — Ora, cale-se, Sabitta! Se quiser, vá na frente enquanto termino de fazer as compras sozinha. Ignorando os protestos da criada, Melina continuou passeando pelas barracas e lojas do bazar. No fundo, também não se sentia à vontade transgredindo as ordens do pai, que a proibira de ir sem escolta além das muralhas do palácio, enquanto durassem os distúrbios políticos. Mas seu senso de independência era mais forte que o temor de uma punição. Afinal, apesar de autoritário, o pai a amava demais e nunca ia além de um sermão, logo perdoando e esquecendo suas travessuras. Ainda assim, era uma sorte ele nunca ter desconfiado da existência da passagem secreta descoberta por Sabitta e que, desde crianças, lhes permitia fugir à vigilância das sentinelas do palácio. No bazar, vendia-se de tudo: desde frutas e legumes, cultivados nas férteis propriedades ao redor da capital, até sofisticadas mercadorias produzidas por artesãos locais, que compreendiam de roupas e tecidos finos a objetos de utilidade doméstica e jóias raras. Mesmo sem intenção de comprar, Melina não se cansava de admirar as magníficas bandejas ornamentais de prata e latão marchetadas e as jóias de ouro e platina, ricamente engastadas de rubis e safiras provenientes das jazidas nas montanhas do interior. O bazar estava repleto de vendedores apregoando suas mercadorias e compradores pechinchando no preço, mas ninguém a identificara. Também, não era para menos. Como ela raramente
comparecia a cerimônias oficiais e, mesmo quando isso acontecia, o protocolo a obrigava a manter-se em segundo plano, nunca era fotografada. Ainda bem, pois se os comerciantes a reconhecessem ficariam escandalizados. Pelo costume do país, apenas os empregados iam ao bazar, não as mulheres de sua classe, e muito menos a filha do soberano. Assim, já que ninguém a conhecia, Melina sentia-se livre para conversar com quem quisesse. Falava tanto em nereb, o dialeto mondariano, quanto em inglês, idioma adotado no país quando este pertencera à Comunidade Britânica. Experimentava até uma certa segurança, mesmo quando, junto com Sabitta, passava pelas barulhentas tavernas, aonde os estrangeiros iam para beber scanda, forte aguardente local, produzida à base de mel de abelhas silvestres. Os homens, na maioria aventureiros americanos, garimpeiros e mercadores de metais e pedras preciosas, abundantes no país, sentavam-se às mesinhas na calçada e flertavam com as mulheres que faziam compras. Ao passarem diante de uma dessas tavernas, repletas de americanos ruidosos, Melina observou a criada procurar ansiosamente entre os freqüentadores, como se esperasse encontrar um conhecido. Os americanos eram muito mais altos e fortes que os mon- darianos e estavam sempre sorrindo, exibindo os dentes perfeitos e muito brancos. — Uma vez, ao passar por aqui, um desses homens me ofereceu uma dose de scanda — segredou-lhe Sabitta, em tom confidencial. Melina riu. — Espero que não tenha aceitado. Lembra aquela vez que bebemos escondidas a scanda do cozinheiro? Você desatou a rir e caiu
no chão, não conseguindo mais se levantar. Sabitta escondeu o sorriso atrás dos pacotes que levava. — Naquela época eu tinha só doze anos — justificou. Eram quase duas horas da tarde quando as duas deixaram a ruela do bar e chegaram à avenida ladeada de palmeiras que ia dar no palácio. Estava ficando tarde, a maioria das lojas tinha fechado para o almoço. — Vamos voltar agora? — insistiu Sabitta, ansiosa. Melina concordou, com um suspiro. Não queria retornar, mas já era tarde. Apesar dos protestos da criada, fez questão de levar alguns dos pacotes que a jovem carregava, e começaram a fazer o caminho de volta. Estranhava não ter reconhecido sinais de tensão e mesmo de animosidade política entre as pessoas. Era verdade que, nos últimos dias, não houvera manifestações diante de repartições públicas, desde que o Parlamento começara a debater as concessões aos trabalhadores em greve. Mesmo assim, por causa da aparente calma, ela começava a acreditar que os boatos de revolução não passassem de exagero. — Está quente! — comentou Sabitta, abanando-se. Melina enxugou a testa com as costas da mão. Mesmo à sombra das árvores, o calor ao longo da avenida deserta era opressivo. Levaria algumas horas antes que a brisa do anoitecer, vinda do oceano, arejasse a cidade. As monções, os ventos variáveis que se alternavam nas estações, soprando do mar no verão e do continente no inverno, pareciam tardar naquele ano. — Pois é. Eu bem que gostaria que meu pai me deixasse aprender a dirigir ou andar de bicicleta — suspirou Melina. — Seria bem
melhor do que andar a pé. Transpirando, e sempre seguida pela criada, Melina tomou um atalho, desviando para uma viela que saía de uma praça e, depois de uma curva e uma leve subida, atingia uma rua lateral do palácio. Ia devagar porque, atrás dela, Sabitta fizera uma parada para retirar uma pedra da sandália. Um barulho de confusão, porém, obrigou-a a deter-se. E, antes que tivesse tempo de se voltar, foi acertada por um golpe que lhe tirou o ar dos pulmões. Só percebeu que havia caído ao bater com a cabeça no piso de tijolos. Por um momento, pontos luminosos passaram diante de seus olhos, e uma dor intensa bloqueou-lhe os sentidos. Quando deu por si, quis levantar-se, mas os braços e as pernas não obedeciam. O calçamento fumegante dava a sensação de querer tragá-la. Sabitta gritava o nome de um homem, mas o som parecia vir de muito longe. — Roger! Roger! — repetia a criada. — Atrás de você! A última palavra fora acompanhada de um gemido de dor. Em um estado de semi-inconsciência, Melina indagou-se com quem Sabitta falava. Seria um dos atacantes ou alguém que tentava ajudar? Diferentes vozes de homens, entremeadas de ruídos de pancadas e gemidos de dor, ecoavam entre os muros da viela. Alguns falavam inglês com sotaque americano, outros falavam nereb. Melina sentia-se estranhamente alheia à luta que se desenrolava ao redor, embora fosse um alvo fácil, mergulhada em total escuridão. Para
vencer
a
cegueira
momentânea,
forçando-se a ver o que estava acontecendo.
piscou
repetidas
vezes,
Aos poucos, a visão clareou e a cena que presenciou acelerou-lhe a respiração. Sabitta estava caída, longe demais para que pudesse alcançá-la, e gemia de olhos fechados. Ao lado dela, dois, não, três homens altos e fortes, sem dúvida americanos, usando jeans, camiseta e botas de vaqueiro, enfrentavam quatro mondarianos de túnica branca. Estavam engalfinhados de tal maneira que era difícil dizer quem levava vantagem. — Sabitta! — chamou o mais alto dos americanos. — Você pode... Ah, malditos! Ele ia se inclinando para a criada caída quando um homem raivoso, quase da metade de seu tamanho, alcançara-o com um porrete de madeira. Praguejando, o americano deu um giro de corpo e atingiu o mondariano no queixo com violência. O homem caiu inconsciente no chão, não muito longe de Sabitta. Os três mondarianos restantes, percebendo que o parceiro fora batido, saíram correndo ladeira abaixo, na direção do porto, abandonando o companheiro. — Não os sigam! — ordenou o americano alto, inclinando-se sobre Sabitta. — Temos de chegar ao palácio antes que voltem com reforços. — Roger, minha perna está doendo... — gemeu a jovem. O americano fez uma careta, — Droga, ela torceu o tornozelo! Já começou a inchar. Sabitta esfregou de leve a testa, onde um hematoma começava a se formar próximo à linha do cabelo. Sem dizer mais nada, fechou os olhos com um suspiro. — Ela desmaiou — observou Roger. Voltando-se para Melina,
indagou aos outros: — Como está a srta. Kaleer? Um dos homens correu os dedos à frente dos olhos dela. — Parece desacordada — comentou. — Teremos de carregar as duas. Dominada por uma irresistível sonolência, Melina não conseguiu manter as pálpebras abertas por muito tempo. Ainda pôde ouvir a voz dos homens, mas não entendia o que diziam. Então mergulhou no poço escuro da inconsciência, tragada por um vazio negro...
— Pois, como eu digo, Melina, agora não adianta se justificar. Já decidi: você vai para os Estados Unidos amanhã de manhã e não se fala mais nisso. Sentado na borda do luxuoso leito contornado por um alto dossel de cortinas de veludo vermelho, no quarto do palácio onde Melina se achava acamada, Alexander Kaleer advertia a filha. Era um homem alto e magro, de barba e cabelos grisalhos. — Mas, papai, eu não quero... — Melina! — interrompeu-a o pai, com energia incomum. — Você não disse que queria ser tratada como adulta? Só que não agiu como tal. Agora, vai fazer o que eu mandar. Melina não se atreveu a dizer mais nada. O pai parecia ter chegado ao limite da paciência com ela. Além do mais, estava preocupado com sua saúde precária. Já bastava o escândalo que ele fizera (soubera pelos criados) quando a vira chegar desacordada e sangrando, nos braços de três americanos desconhecidos, que a haviam salvado de um provável seqüestro.
— Felizmente as coisas vão se resolver logo, graças a Roxanne — continuou o pai, mais calmo, socando o fumo no cachimbo. — Quando ela soube o que lhe aconteceu, fez questão de providenciar tudo para sua saída do país. Em contraste com a calma do pai, Melina rilhava os dentes de indignação. Então planejavam livrar-se dela sem ao menos informála, sem nem sequer pedir sua opinião? Levando a mão à nuca, ajustou o curativo que lhe irritava a pele sensível.
Os
pontos
seriam
removidos
naquele
mesmo
dia,
permitindo-lhe enfim lavar e escovar os longos cabelos. Duas semanas depois do incidente, seus ouvidos ainda zuniam e ao menor barulho a cabeça latejava, como naquele momento. Ainda por cima, não podia queixar-se. Tudo ocorrera por culpa sua. Fora estúpida o suficiente para propiciar aos agitadores uma oportunidade para seqüestrá-la. Se não fosse Roger Avenel, o engenheiro de minas amigo de Sabitta, que as socorrera dos atacantes, àquela hora com certeza ela teria se tornado uma refém dos rebeldes. Com o pai à mercê dos revoltosos, o resultado seria a anarquia ou revolução, como haviam comentado com ela os criados, sua corriqueira fonte de informações. Uma nuvem de fumaça elevou-se do cachimbo do sultão, e ela voltou à carga, ainda que se arriscando a irritá-lo outra vez. — Por favor, pai, eu não quero ir... — Eu sei. Mas não há outra opção. — Alexander afagou-lhe a mão, conciliador. — Como saber se os agitadores não estão preparando outro atentado para capturá-la? Tirá-la do país por algumas semanas é a melhor solução. — Tenho ouvido tantas gritarias nas ruas... E Sabitta falou-me
de tumultos diante do Parlamento. Por que o senhor não me diz o que realmente está acontecendo? — Não devia dar ouvidos à conversa dos criados, filha. A situação não está tão ruim quanto você pensa. As Forças Armadas têm tudo sob controle. — O pai deu-lhe palmadinhas sensíveis na mão, para tranqüilizá-la, o que só a fez sentir-se mais manipulada. — Prometo que mandarei buscá-la, tão logo a situação volte a se normalizar. Melina suspirou, resignada. O pai não lhe contaria mais nada. — Quais são os planos, então? — capitulou. — Amanhã cedo, você e uma criada deixarão Suryat, no vôo semanal para Roma do avião de carga das Indústrias Fletcher. Apenas o piloto e o co-piloto saberão de sua presença a bordo. São homens de inteira confiança de Roxanne. — Não poderei levar mais ninguém comigo? Melina tentou controlar o tremor na voz. Uma coisa era planejar excursões para fora do palácio, outra bem diferente era viajar para algum lugar desconhecido nos Estados Unidos, do outro lado do mundo. Ela nunca saíra de Mondária. — Segundo Roxanne — continuou o pai —, o avião leva no máximo dois passageiros. Melhor você ter uma mulher para acompanhá-la. Não seria apropriado ir com um homem, mesmo que fosse Paul Roderi. Melina conteve uma risada sarcástica. Paul Roderi! Aquele pedante era a última pessoa que gostaria de levar. O pai vinha pressionando-a para que o escolhesse como marido. Mas como poderia, se não tinham a menor afinidade?
— E quanto a Sabitta, pai, o que acha? — arriscou, — Sabitta insiste em que já se recuperou e iria querer acompanhá-la, eu sei. Mas seu tornozelo ainda está inchado, e ela continua mancando. Acho que você deveria escolher outra. Melina achava difícil que Sabitta quisesse acompanhá-la e separar-se de Roger Avenel. A criada, deixando de lado a reserva habitual, acabara por confessar-lhe a forte atração que sentia pelo americano, desde que se conheceram no bazar dois meses antes. Após o atentado, ele acompanhara sua recuperação de perto, mandando-lhe presentes e recados todos os dias. — Decidirei mais tarde, então — optou. Alexander voltou o rosto para a janela, e a luz iluminou-lhe as feições cansadas. Melina notou que parecia abatido e respirava com dificuldade. Um ricto torcia-lhe o canto dos lábios, enquanto massageava o braço e ombros esquerdos. — Pai, está tudo bem com o senhor? — Sim, sim. Estou bem. — Ele suspirou. Mas Melina não se convenceu. Embora ali no quarto a temperatura estivesse agradável, o pai transpirava e em sua testa brilhavam gotículas de suor. Quando o médico viesse examiná-la, indagaria sobre a saúde dele. Alexander endireitou os ombros e enfiou a mão trêmula no bolso do paletó. — Agora, preste bem atenção, minha filha. De alguma maneira, e não me pergunte como, Roxanne providenciou um passaporte britânico para você, com o nome falso de Elise St. James. Eu mesmo o escolhi, e você não deve esquecê-lo.
Melina sorriu. Elise St. James era o apelido que usava quando criança. Tirara-o de um livro que sua mãe lia à noite para fazê-la dormir. Além de seus pais, apenas Sabitta o conhecia. — Mas por que mudar de nome? — indagou, intrigada. — Por causa dos rebeldes. Ninguém deve saber sua identidade nem seu destino, nos dois países estrangeiros por onde passar. Se meus inimigos descobrirem, será fácil seguir sua pista, mesmo fora do país. Melina engoliu em seco. Daquela vez não se tratava de uma inofensiva brincadeira de faz-de-conta. — Você fará uma primeira conexão em Roma — continuou o pai. — Lá, acompanhada de um funcionário de Roxanne, tomará outro avião de uma companhia aérea americana, para Miami. Então... — E por que não posso ir no avião de Roxanne até o fim da viagem? O soberano franziu o cenho, aborrecido com a interrupção. — Minha filha, o avião de Roxanne é de carga e não está preparado para levar passageiros em viagens longas. Além disso, só vai até Roma, levando produtos daqui e retornando para cá com suprimentos. — E quanto ao jatinho que ela usa para vir aqui? — Filha, entenda: estamos tentando tirar você do país sob sigilo absoluto. O avião particular de Roxanne é muito visado e poderia ser seguido. — O pai acariciou-lhe a pele aveludada do rosto. — Sei que essa volta toda lhe parece desnecessária, mas tanto Roxanne quanto eu acreditamos que seja o caminho mais seguro para você. Melina engoliu seus argumentos. Não era fácil fazer o pai mudar
de idéia. E, desde que ele e Roxanne haviam juntado forças, então, era praticamente impossível enfrentá-los. — Em Miami, você vai se encontrar com outro funcionário de Roxanne e embarcará no iate da companhia... — O quê? Um barco?! — exclamou Melina em pânico. A idéia de cruzar o oceano numa embarcação desconhecida, ainda que certamente se tratasse de um iate grande e luxuoso, como os que costumava ver nas revistas de turismo, a amedrontava mais do que dar meia volta ao mundo de avião. — Seu destino será a ilha Maximilliam, nas Bahamas. — Mas eu não ia para os Estados Unidos? — Você estará em território americano, e bem segura. A ilha, que pertence a Roxanne, é muito bem guardada e possui um sofisticado sistema de alarmes e comunicações. Quanto mais ouvia o plano, menos Melina o apreciava. — Mas, papai... — Não precisa se preocupar, filha. Ninguém vai saber que estará lá. E você nunca ficará sozinha. Além de Roxanne, que sempre que pode passa uns tempos na ilha, descansando, você terá a companhia de um casal de caseiros que trabalha para ela há anos. — Depois de uma pausa, concluiu: — E, além do mais, você contará com um homem encarregado de protegê-la. — Um homem? — Melina sentou-se tão bruscamente na cama que ficou tonta. — Quem? Que espécie de homem? — Um guarda-costas. Um americano de nome Logan Hunter, do Estado do Maine. Parece que ajudou Roxanne no passado. Ela deu tão boas referências dele que tenho certeza de que você ficará segura
na ilha. Alexander deixou o cachimbo sobre o criado-mudo e tirou um envelope do bolso do paletó. De dentro escapou uma fotografia colorida, que caiu no chão. Apanhando-a, ele a estendeu à filha. — Olhe — disse ele. — Este aqui é Logan Hunter. Melina arregalou os olhos muito azuis diante da imagem na foto. Destacado contra o azul profundo do céu, à frente do que com certeza era o mastro de um veleiro, encontrava-se o homem mais lindo que já vira na vida. Alto, sorridente, usava um calção justo azul e branco e uma camiseta de malha branca de decote canoa. Com os cabelos rebeldes agitados pelo vento, estava com uma das mãos estendida, como se convidasse alguém a subir a bordo. Estranhamente atraída, Melina considerou se aceitaria aquele convite. — Melina? — A voz do pai a trouxe de volta à realidade. — Aqui estão o passaporte e as passagens de avião que você vai precisar em Roma. Roxanne lembrou que seria bom levar estes cartões... — Ele lhe estendeu dois cartões de plástico. — Não que alguma coisa possa dar errado, trata-se apenas de uma precaução. Este aqui é um cartão de telefone, com o qual você poderá ligar para cá sem necessidade de moeda local. E este é seu cartão de crédito: embora eu tenha providenciado dinheiro italiano e americano para você levar, é bom têlo à mão. Com ele você poderá obter qualquer quantia em dinheiro ou fazer compras em qualquer lugar do mundo. Melina ficou olhando para os cartões. Não fazia a mínima idéia de como usá-los, mas sentiu vergonha de perguntar. Naquele exato momento, Sabitta entrou no quarto. A criada esforçava-se visivelmente para disfarçar que mancava. O hematoma da testa já começara a desaparecer.
— Desculpem-me, mas o médico está aí para examinar minha ama... — murmurou, e saiu em seguida. — Perfeito, eu já vou — anuiu Alexander, acrescentando em voz baixa para Melina: — Tenho um encontro com Philip Roderi, para discutir a promoção de Paul a tenente-coronel. Ele pegou o cachimbo, mas não fez menção de se levantar. — Enquanto você estiver na ilha Maximilliam, filha, quero que medite profundamente sobre o casamento com Paul. Se não o quiser, informe-me logo sobre quem escolheu. Restam poucos pretendentes de boa origem, entre os quais você deverá se decidir. Já a deixei esperar demais. — Ele olhou vagamente ao redor. — Eu... bem, não gostaria de perder a oportunidade de vê-la casada e me sentiria melhor se fosse logo. Melina sorriu, entendendo a preocupação do pai. Depois de casada, nunca mais faria loucuras como escapar do palácio disfarçada de criada. Alexander levantou-se e, inclinando-se, deu-lhe um beijo na testa. — Não se deixe abater, Elise St. James — tentou encorajá-la, dando um tom alegre à voz. — É hora de levantar-se e fazer as malas. Roxanne encomendou-lhe um guarda-roupa completo em estilo ocidental, que acabou de chegar de Roma. Ela também me disse que acrescentou alguns cosméticos, para que você se sentisse uma mulher moderna e sofisticada. — Olhando no fundo dos olhos da filha, acrescentou, sério: — Você me faz lembrar sua mãe. Se ela fosse viva, tudo seria diferente. — Então balançou a cabeça como para afastar a melancolia. — Gosto muito de você, filha. Tarde demais, porém, percebi que não devia tê-la mantido tão isolada e protegida. O
mundo que você vai enfrentar é cruel e estranho, e não sei se está preparada para encarar essa realidade. Melina estava pasma. Era inconcebível que Alexander Kaleer, que se considerava infalível, admitisse ter errado. Caminhando para a porta, ele se voltou ainda uma vez. — Falaremos mais tarde, certo? — Papai, por favor... — Não se preocupe. O plano de Roxanne não vai falhar. Nada poderá dar errado. Melina quis gritar que se recusava a aceitar aquele papel, mas concluiu que seria inútil. Uma vez que seu pai pusesse algo na cabeça, nada o levaria a mudar de idéia. Além do mais, ela fizera por merecer aquele destino. Afinal de contas, ser embarcada para uma ilha desconhecida, onde passaria semanas, talvez meses, vigiada como uma criança, era o castigo perfeito pela desobediência que colocara sua vida em perigo. Numa outra olhada para a foto de Logan Hunter, o desejo de embarcar naquele veleiro desapareceu. Não tinha a menor vontade de conhecer aquele homem, escolhido para ser seu protetor, seu guardacostas, seu carcereiro!
CAPÍTULO II
Roxanne Fletcher observou a lancha de apoio afastar-se de seu luxuoso iate fundeado ao largo da ilha Maximilliam. Melina Kaleer, ou melhor, Elise St. James, como se chamava agora a filha de Alexander Kaleer, vinha de pé no convés, muito empertigada, como se fizesse grande esforço para parecer à vontade. Enquanto o barco avançava lentamente pela água, Roxanne analisou a jovem. Ela vestia uma das roupas que encomendara pessoalmente a seu estilista exclusivo, Paulo, levando em conta as características pessoais da moça: Elise era alta, magra, com a pele cor de mel, e tinha uma vasta cabeleira negra. Naquele vestido justo, simples, de piquê branco decotado, poderia figurar tranqüilamente na capa de uma revista de moda. Suspirando, Roxanne desejou não ter de deixar a ilha antes de Logan chegar. Seria interessante observar a reação de ambos, quando se defrontassem pela primeira vez. Uma idéia de repente a fez sorrir: e se nascesse um romance entre eles? Antes de tudo, Logan era um homem atraente. Numa ilha isolada, e com uma mulher bonita... Eram os ingredientes perfeitos. Tornou a sorrir. Haveria vantagens bem definidas para as Indústrias Fletcher se seu sobrinho e a filha do soberano de Mondária se tornassem íntimos. Roxanne divertiu-se com a própria engenhosidade. Logan não fazia a menor idéia do que o esperava. Mas ela não tinha dúvida de que ele, como sempre, se sairia bem da situação. Desde muito tempo, contava com o talento do sobrinho para tirá-la de situações embaraçosas. Durante os anos sessenta e começo dos setenta, quando estivera envolvida em manifestações contra a guerra do Vietnã, fazendo piquetes em portas de fábricas de
armamentos militares, incluindo as indústrias químicas do próprio pai, era a ele que recorria para livrá-la de complicações com a polícia e o FBI. Na época, Logan ainda freqüentava o último ano da faculdade de direito, na universidade de Yale, mas nunca deixara de ir em seu socorro, assim como nunca comentara com ninguém da família sobre suas atividades. Ambos formavam uma dupla e tanto, até que Logan decidira casar-se. Argumentando que teria de se dedicar à esposa e ao último ano de faculdade, ele lhe sugerira que encontrasse outro para ajudála. Inconformada, ela o acusara de se render ao stablishment, de estar bloqueando sua criatividade e o espírito de aventura. Sorrindo, ele lhe lembrara que precisava cuidar da própria sobrevivência, e que não estava entre os herdeiros da fortuna Fletcher... No entanto, desde que ela assumira a direção do império multinacional Fletcher, sempre que precisara, pudera contar com o talento e a coragem do sobrinho. Como um ano antes, quando o enviara numa perigosa missão de resgate e proteção de um jornalista centro-americano exilado nos Estados Unidos. Logan saíra-se da tarefa com um desembaraço que poucos homens exibiriam em circunstâncias semelhantes. Apenas outro homem a impressionara tanto quanto o sobrinho. Um homem que conhecera recentemente, Soloman Giuseppe O’Reilly, cujo
nome
curioso
expressava
a
múltipla
combinação
de
nacionalidades de seus ancestrais. E Sol parecia ter herdado as melhores características dessa interessante ascendência americana, européia e oriental: era charmoso, arrojado e bonito... além de viúvo. Ao conhecê-lo, as dúvidas e incertezas quanto a encontrar o par ideal que começavam a perturbá-la desde quando completara quarenta anos, um mês antes, desapareceram como por encanto.
Seu primeiro impulso fora contratá-lo para trabalhar na Fletcher, e para tanto até pusera seus advogados para investigar-lhe os antecedentes profissionais. Tão logo regressasse a Boston, descobriria mais sobre aquele homem tímido e reservado, mas incrivelmente excitante. Talvez naquela noite mesmo conversassem por telefone, se sobrasse tempo entre a procura de um novo diretor para a problemática fábrica Fletcher em Luisiânia e uma centena de outros compromissos por resolver antes de retornar a Maximilliam no sábado. O sol do meio-dia estava quente. Impaciente ante a demora dá lancha em atingir o cais, Roxanne protegeu os olhos com a mão, enquanto com a outra brincava com o longo colar de pérolas que descia até o cós da saia verde. Tivera de atrasar sua partida para depois da chegada de Elise. Observando melhor a embarcação que avançava, compreendeu que havia algo errado. Onde estava... — E sua criada, por que não veio com você? Aconteceu alguma coisa? Elise sorriu, ante a apreensão exagerada da anfitriã. — Sabitta havia torcido o tornozelo no atentado. Na viagem, o pé dela inchou tanto que achei melhor mandá-la de volta para casa. Ela estava nervosa, insegura, pois nunca tinha saído de Mondária. — Sorriu de novo. — Havia também outra razão para ela querer ficar... Elise lançou-lhe um olhar significativo, e Roxanne riu, ao entender que os motivos eram amorosos. — Ah, sim, agora entendo. Mas onde foi que vocês se separaram? — Em Roma. Depois de duas horas de atraso do avião para Miami, primeiro dispensei o acompanhante que você nos mandou,
porque o coitado estava louco para ir embora, para não perder a festa de aniversário da filha. Depois, como o avião da companhia já tinha partido, comprei para Sabitta uma passagem de volta via Bombaim, índia, onde ela tem uns amigos. De lá, ela retornaria a Suryat. — Espero que não tenha se aborrecido por vir sozinha. Elise tornou a endireitar os ombros. Depois do longo vôo, dos contratempos nos aeroportos e da desgastante experiência da viagem do iate, resistiria a qualquer coisa. — Não sou como Sabitta. Não preciso de ninguém em quem me apoiar. — Oh, compreendo! — Roxanne sorriu, conduzindo-a pelo braço para fora do cais. Elise podia ser ingênua, mas tinha iniciativa. Logan que se cuidasse. — Venha, vamos para casa. Espero que aprecie sua estada na ilha. O clima e a vegetação lembram os de Mondária. Elise respirou fundo, olhando ao redor. — É tudo muito bonito aqui. Mas, honestamente, preferia ter ficado com meu pai. Só vim porque ele mandou, mas pretendo voltar assim que puder. De repente, Elise ficou ressentida com aquela mulher. Não fosse por ela, talvez continuasse em casa, com o pai. — Mas, Elise, você tem de entender. Seu pai temia por sua segurança. A situação em Mondária pode piorar. Pelo que fiquei sabendo, os rebeldes querem a abdicação de seu pai. Elise parou, atônita. — Mas eu não sabia! Agora, sim, preciso voltar. Por favor! — Calma, Elise. Não se assuste. — Roxanne arrependeu-se de ter falado. — Mas a realidade é essa. Mondária pode estar à beira de
uma revolução. E não sei se o Exército está em condições de vencê-la. Só quando o líder do Bajurdi for afastado será seguro para você voltar. A não ser que o Parlamento chegue a um acordo com o Partido da Independência... — Mas, se eu estivesse lá, poderia ajudar... — Pelo contrário. Sem ter de se preocupar com você, seu pai se concentrará melhor no trabalho. — Mas ele está doente, eu sei que está. Ainda que o médico da corte lhe tivesse assegurado que seu pai estava apenas cansado, Elise não se convencera. Sempre fora tão protegida da verdade em toda a vida que agora não sabia mais em quem acreditar. — Eu mesma falei com o médico, depois que você saiu de lá. Ele me garantiu que Alex está apenas cansado e não tem dormido direito, mas que além disso não tem nada. — Até quando acha que vou ter de ficar aqui? — Até que as coisas se acalmem em Suryat. Então, prometo tomar as providências necessárias para mandá-la de volta. Elise ia recomeçar seus protestos, quando os dois marinheiros de antes retornaram, com outra bagagem. Ela se voltou, surpresa. Roxanne consultava o próprio relógio. — Estarei pronta em quinze minutos — declarou aos homens quando passaram por elas. — Esperem-me aqui. — Sim, senhora — responderam os dois ao mesmo tempo. Elise não queria acreditar no que ouvira. — Você está indo embora, Roxanne?
— Tenho de resolver um problema da empresa em Boston, mas não se preocupe: estarei de volta no sábado. — Compreendo... — Elise não escondeu sèu desapontamento. — Ora, vamos, Elise, não desanime. Não há nada com que se preocupar. Você ficará segura aqui. Ao mesmo tempo que falava, com seu jeito desenvolto, Roxanne a conduzia apressada pelo caminho de areia e conchinhas trituradas, que rangiam sob seus passos. Elise tentava acompanhá-la o melhor que podia, sentindo-se desajeitada em cima dos sapatos de salto alto. Roxanne voltou-se. — Vou apresentá-la ao casal que toma conta daqui para mim, Francisca e Montoya Cristobal. Eles trabalham para minha família há muitos anos. — Depois de uma pequena pausa, acrescentou: — Logan ainda não chegou. Pegou ventos contrários e não deve aportar antes de amanhã cedo. Elise franziu a testa, intrigada. — De que modo ele vem vindo para cá? Nada do que Roxanne dissesse poderia surpreendê-la mais. — No veleiro, navegando desde a casa dele, no Maine. Ainda pensativa, Elise seguiu-a pelos vários lances de escadas que conduziam aos três terraços ajardinados que circundavam os três pavimentos da casa. Roxanne abriu a porta principal, de carvalho entalhado, afastando-se para o lado para que Elise entrasse primeiro no hall. Elise não pôde conter uma exclamação admirada. As janelas eram amplas, tomando toda a altura das paredes, e a decoração era ultramoderna, num contraste gritante com o conservadorismo no
palácio de Suryat. O piso, de mármore claro, brilhante, dava uma atmosfera agradável ao interior. — Oh, mas que casa adorável! Roxanne sorriu com modéstia. — Obrigada. Tivemos de reformá-la inteira quando viemos para cá. — Ela continuou, enquanto atravessavam o hall: — Ficou abandonada por muito tempo. Agora, está quase pronta, exceto por um detalhe. Por isso tenho de voltar a Boston. E imprescindível que uma certa pessoa comece a trabalhar para nós... — Como assim? Não estou entendendo, eu... Roxanne riu, sem graça. — Estou precisando de alguém em especial para dar um jeito no sistema de alarmes e comunicações. Embora o equipamento seja de minha fabricação, não há meio de funcionar direito. Toda vez que venho para cá, alguma coisa dá errado e... — Aquela era uma das razões para contratar Sol O’Reilly. Ele era um gênio da eletrônica e da informática. — Mas não se preocupe, estou tomando as devidas providências. Roxanne abriu um belo par de portas duplas, e saíram numa ampla sala de estar, que dava para um terraço ajardinado. Dali se avistava a enseada do cais e o azul a perder de vista do oceano. Num dos cantos da sala, Elise encontrou o que menos esperava: um enorme piano de cauda, todo branco e da melhor marca. Sem querer, olhou agradecida para Roxanne: pelo menos teria o que fazer durante aquele período de reclusão. O impulso de simpatia pela anfitriã esvaneceu-se de imediato ao recordar-se de que ela iria partir, deixando-a sozinha nas mãos de
estranhos. O que seu pai diria ao saber do retorno de Sabitta, que a deixara unicamente com aquele desconhecido contratado como seu guarda-costas? De qualquer maneira, o pai não podia fazer nada, a não ser mandar buscá-la, uma possibilidade pouco provável. — Sente-se, Elise — pediu Roxanne, passando à frente enquanto ela se acomodava no amplo sofá branco. — Como já disse, o telefone costuma dar defeito, e a maneira mais segura de comunicar-se com as outras ilhas ou com a capital, Nassau, na ilha New Providence, é pelo rádio. Sempre haverá alguém de minha confiança no escritório de Miami, a qualquer hora. Em caso de emergência, essa pessoa pode mandar um helicóptero para cá e avisar-me onde eu estiver. Montoya sabe como fazer. — Outra vez, Roxanne olhou o relógio. Seus quinze minutos estavam no fim. — Montoya vai regularmente a Nassau ou Miami, comprar mantimentos, pegar a correspondência e buscar jornais e revistas. Você não ficará totalmente isolada do mundo. Parando atrás do piano, Roxanne cruzou os braços. — Desculpe-me por não poder ficar para ajudá-la a instalar-se, Elise. São tantas coisas que tenho para lhe dizer e o tempo é tão curto. — Constrangeu-se um pouco ante a expressão desaprovadora de Elise, mas continuou: — Primeiro, quero que nunca se esqueça de sua nova identidade. Volto a dizer: aconteça o que acontecer, você é Elise St. James, de vinte e três anos, nascida em Londres, Inglaterra. Elise imaginou se Roxanne sabia que ela quase nascera mesmo na Inglaterra. Sua vida teria sido muito diferente se o pai não tivesse sido forçado a abandonar o curso de economia em Oxford e retornar a Mondária com a esposa grávida para ocupar o lugar do irmão morto. Assumir o comando do país fora um fardo que ele nunca quisera carregar, mas não tivera escolha.
Elise, percebendo que Roxanne a olhava fixamente, interrompeu o devaneio. — Outra coisa — a anfitriã acrescentou —, procure esquecer tudo sobre Melina Kaleer por uns tempos. Elise aquiesceu. — Está bem. Vou me esforçar para pensar em mim como Elise. Não se preocupe com isso. Roxanne aproximou-se. Agora vinha a parte mais difícil: dar a Logan um bom motivo para a vinda de Elise para a ilha. — Elise, é importante que tanto Logan quanto o casal Cristobal não saibam quem é você de verdade nem de onde vem. Não há motivo para comentar nada sobre Mondária nem sobre minha empresa lá. Logan não sabe quase nada sobre você nem sobre suas terríveis experiências, mas é muito sensível quanto aos sentimentos de outras pessoas e aceitará sua relutância em falar sobre o que lhe aconteceu. De repente, Elise sentiu-se atordoada. — Espere aí, Roxanne. Quer dizer que vou ficar nesta ilha com um estranho, um homem contratado para meu guarda-costas, sem poder revelar-lhe nada sobre mim? — Meneou a cabeça, assombrada. Estava cada vez mais confusa com o absurdo projeto de Roxanne. — Você não vê que está me colocando numa posição delicada? Vou ter de mentir para ele. Roxanne não esperava que Elise questionasse suas ordens. Julgava-a ingênua e influenciável, fácil de manobrar. — Não creio, Elise, que será necessário chegar a tal ponto — atalhou, em tom apaziguador. — Mas o que vou dizer a ele? Quando as pessoas se conhecem, é
normal que façam perguntas. Não sei se vou conseguir dizer que morei numa... caverna, sem nenhum contato humano por vinte e três anos. Me desculpe, mas não vejo como evitar informações tão pessoais. — Você não precisará ficar o tempo todo com Logan. Enquanto ele estiver ocupado com Montoya, você poderá estudar piano. — Depois de uma pausa, Roxanne concluiu: — Minha proposta pode parecer estranha, eu sei. Gostaria de discutir minhas razões com você, mas faremos isso no sábado, quando eu voltar, está certo? Por enquanto, posso contar com sua cooperação? Pensativa, Elise não respondeu de imediato. Mas Roxanne, quando a viu relutante, concluiu que tinha vencido. — Tudo bem, não vou dizer nada a Logan — Elise admitiu. — Promete? — Roxanne sabia que, entre os mondarianos, uma promessa era sagrada e jamais seria quebrada. Elise levantou a cabeça, irritada. Detestava aquela situação. Quem Roxanne pensava que era para tratá-la como criança? No sábado, exigiria respostas e faria pé firme em sua intenção de voltar para casa. — Sim, eu prometo. Roxanne sentou-se diante da mesinha do telefone, discou um número e falou: — Francisca? Você e Montoya poderiam vir até a sala um instante? — Levantando-se, lançou um olhar para Elise. — Desculpeme por um momento. Tenho de escrever um bilhete para Logan, contando sobre o sistema de segurança. Numa folha de papel, rabiscou rapidamente algumas palavras,
instruindo-o a não fazer perguntas pessoais a Elise, enfiou-a num envelope e pôs o nome dele na frente. Nesse momento, os Cristobal bateram na porta e entraram na sala. Após as apresentações, Roxanne explicou que a criada de Elise não viera, o que significaria que Francisca poderia ter tarefas adicionais. — Seja bem-vinda, senorita — falou Francisca num inglês carregado de sotaque, enquanto pegava na mão de Elise. Era uma mulher corpulenta, de seios fartos sob o avental salpicado de florezinhas amarelas. — É um prazer ajudá-la. Se precisar de alguma coisa, é só discar o número cinco no telefone. — Apontou para a mesinha. — Ele toca na cozinha e em nossas dependências... — Para me chamar, disque o um — interrompeu-a Montoya, um cinqüentão atarracado, de pele bronzeada e cabelos brancos. — Toca no exterior da-casa, mas posso ouvi-lo até da praia. — Ele sorriu, mostrando os dentes muito brancos e perfeitos. — Aqui é seguro, não se preocupe. Roxanne entregou o bilhete para Logan a Francisca e pediu-lhe para deixar junto com um outro que já escrevera, no quarto reservado para ele. Depois que o casal saiu, repetindo os votos de boas-vindas, pegou uma pasta volumosa na gaveta da mesa do telefone. — Você ocupará minha suíte, no segundo andar. Logan ficará no quarto de hóspedes, perto do seu. Francisca lhe mostrará depois. — Ela caminhou para a porta, abriu-a e voltou-se ainda uma vez. — Tenho certeza de que você gostará de Logan, Elise. Ele seria um bom páreo para Harrison Ford. — Harrison Ford? Quem é esse homem? E o que quer dizer com: “seria um bom páreo”?
Roxanne riu de sua. ingenuidade. — Esqueci o quanto você viveu longe de tudo, querida. Não se preocupe. Explico tudo no sábado. Tchau! — Saiu, fechando a porta atrás de si. Assim que se viu sozinha, Elise suspirou. Nunca se sentira tão abandonada em toda sua vida. Por ordem do pai, tivera de se submeter aos cuidados daquela mulher tirânica e ambiciosa, que, por sua vez, a entregara a um homem estranho, com quem teria de conviver sem se dar a conhecer. Pelo menos até sábado, quando exigiria que a mandassem de volta para casa.
À tênue luminosidade do amanhecer, Logan só enxergava o contorno da porção de terra que acabava de circunavegar em seu veleiro, o Espírito do Vento. Dentro de poucos minutos, entraria no calmo lado de sotavento da ilha Maximilliam, atracando no pequeno cais indicado no mapa. Suspirou. Terminava de completar mais uma travessia por mar e não chegara à menor conclusão a respeito da própria vida. Ainda que, desde que deixara o Maine, não pensasse em outro assunto, a não ser nas razões que o levaram a abandonar o escritório de advocacia nas mãos do sócio, para atender a um novo chamado de Roxanne. Stanton McCarthy, que também fora sócio de seu pai, não entendera muito bem aquela partida precipitada. Desde a morte de Benjamin Hunter, no ano anterior, tinha como certo que Logan assumiria o lugar do pai. Ele, no entanto, apenas se limitara a despachar os casos mais simples, transferindo os restantes aos outros advogados da casa. Quando fora informado de que ele partiria
por tempo indefinido, Stan chamara-o de imaturo e inconseqüente. Contudo, nada nem ninguém faria Logan mudar de idéia. Depois de um ano inteiro dividido entre o divórcio e a doença do pai, precisava urgentemente de uma escapada. E então, ali estava ele, atendendo ao chamado de Roxanne, em mais uma daquelas aventuras em que entrava sem conhecer maiores detalhes, a não ser que seria o guarda-costas de uma moça numa ilha isolada ao norte das Bahamas. Desde a adolescência dava-se bem com a jovem tia. Os chamados de Roxanne na verdade o lisonjeavam. Ela jamais pediria sua ajuda caso não fosse absolutamente necessário, ou seja, não tivesse esgotado as tentativas com seu próprio pessoal. “Sempre que tiver uma tarefa difícil”, considerou ele com sarcasmo, “lembre-se de Logan Benjamin Hunter, advogado.” “Que ironia!”, sorriu ao lembrar-se da pomposa inscrição em letras douradas à entrada de sua sala. Contudo, a profissão de advogado, por mais nobre que fosse, o entediava. Não se dava bem naquele trabalho. Ao contrário, sentia-se como um burocrata, cobrando taxas por um serviço que fazia bem-feito, mas sem o menor entusiasmo. Não era à toa que, nos últimos quatro meses, não suportava mais aquela vida. Às vezes, imaginava se agira certo ao escolher a advocacia como profissão. Poderia se considerar como um cidadão honesto, honrado e consciente? Talvez seu destino fosse tornar-se uma espécie de mercenário, um pau para toda obra, um dom-quixote combatendo os moinhos de vento da vida. Se continuasse a fazer o jogo de Roxanne, acabaria se tornando as três coisas ao mesmo tempo. Ao contornar a restinga pedregosa que protegia a bela enseada
onde se situava o cais, fez uma promessa a si mesmo. Assim que terminasse aquela missão, decidiria de uma vez por todas o que faria pelo resto da vida. Rumou devagarinho para o cais, deixando o barco seguir o próprio impulso. Depois de baixar a vela mestra, prendeu-a em seguida, para que não se soltasse com o vento. Só então apreciou o cenário paradisíaco iluminado pelo sol nascente. A ilha Maximilliam era o pico de uma imensa montanha submersa, um isolado ponto de terra cercado pelo oceano Atlântico, a nordeste do arquipélago das Bahamas. A praia principal, uma comprida e estreita faixa de areia branca, se estendia por ambos os lados do píer de ancoragem. A água era funda e cristalina e no alto as palmeiras majestosas desfraldavam-se aos constantes ventos alísios. As encostas eram
cobertas por uma densa floresta tropical,
entremeada por manchas alegres de flores coloridas. Uma única clareira dominava aquele lado da ilha, e era ocupada pela mansão de Roxanne. Uma construção magnífica, mas que, apesar de imponente, era suficientemente discreta para harmonizar com o cenário. Toda em tons pastel, suas paredes bege atingiam o segundo pavimento. Deste, alteava-se a cobertura circular, formada pelas amplas janelas dos dormitórios principais. Naquele momento, as vidraças refletiam o brilho do sol. Logan baixou os olhos, para protegê-los da luz, piscando várias vezes, até acostumá-los com a claridade. Então ficou surpreso com o que viu. Próximo ao ancoradouro, encontrava-se uma belíssima garota morena, trajando uma camiseta vermelha justa e saia estampada de tecido leve. A camiseta modelava-lhe o busto altivo enquanto a fresca brisa da manhã colava-lhe a saia nas longas pernas, evidenciando-lhe as formas perfeitas. Era incrível: embora
não pudesse vê-la com clareza, ela parecia uma adolescente com o corpo de uma mulher madura. Logan encostou o barco no ancoradouro, sem desviar os olhos da garota. Ela, por sua vez, também continuava a observá-lo, segurando o vasto cabelo negro agitado pelo vento com uma das mãos, enquanto com a outra prendia a saia esvoaçante. Apesar de parecer muito jovem, era bem desenvolvida fisicamente. A cintura fina e os quadris bem-proporcionados harmonizavam-se com os seios redondos e firmes, não muito cheios mas perfeitos. O pescoço esguio e as pernas longas e bem torneadas eram como os de uma bailarina clássica. — Bom dia — gritou Logan em cumprimento, enquanto jogavalhe um cabo de amarração. — Poderia, por favor, passar este cabo por aquele poste? Teve de ensiná-la a enrolar o cabo, pois ela não fazia a mínima idéia de como lidar com aquilo. — Qual é o seu nome? — indagou ela com naturalidade, numa voz profunda e estranhamente rouca. — Logan Hunter. Não se barbeara desde que saíra do Maine e, com o short velho e sujo e a camiseta amassada, depois de ter dormido com aquelas roupas, não se considerava apresentável, especialmente diante de uma jovem tão perturbadora. Jogando outro cabo sobre o cais junto com a sacola de marinheiro, saltou do barco. Enquanto acabava de amarrar os cabos, olhou-a mais detidamente. À luz do sol nascente, com a silhueta recortada contra a vegetação luxuriante, ela lembrava uma exótica princesa árabe saída de uma lenda das Mil e uma noites . A vasta cabeleira solta parecia de
cetim negro. O rosto moreno era intrigante. Acima das maçãs suaves, os olhos grandes, rasgados e oblíquos, que não eram castanhos, como imaginara, mas de um azul profundo e estranhamente sombrio. Era evidente que não estava maquiada. Os cílios, a testa ampla e os lábios vermelhos, cheios e sensuais, dispensavam o mínimo retoque artificial. — Você deve ser Elise St. James, ou então terei chegado à ilha errada. Depois de um instante de hesitação, ela tocou timidamente a mão que Logan lhe estendera, então recuou apressada. — Sou Elise, sim. Você está na ilha certa. Intimidada com a presença de Logan, Elise continuava a fitá-lo como hipnotizada. Quando seus olhares se cruzaram, foi como se ela se esquecesse de tudo, arrebatada do tempo e do espaço, numa estranha euforia interior que jamais experimentara em toda sua vida. Aquele era o homem com quem passaria a maior parte do tempo nos próximos dias. Dormiriam em quartos vizinhos, tomariam as refeições juntos, conversariam sobre vários assuntos, enfim, teriam tempo de sobra para se conhecer melhor. Sobressaltou-se quando se deu conta de que permanecera tempo demais observando-o e quase entrou em pânico. Aqueles surpreendentes olhos castanhos, com um leve acento irônico, e o sorriso inteligente a desconcertavam, a ponto de quase tirar-lhe o fôlego. Um inexplicável calafrio percorreu-lhe a espinha, forçando-a a desviar o olhar. “Pare com isso!”, advertiu-se energicamente. Não podia deixar as emoções a dominarem daquela maneira. Devia colocar aquele relacionamento em bases formais. Durante o curto período em que
fosse permanecer na ilha, o contato entre eles deveria se restringir ao mínimo indispensável: em parte peia inesperada e perigosa vibração que ele lhe despertava, em parte pela promessa que fizera a Roxanne. Tornando a olhar para Logan, inevitavelmente perturbada pelo sorriso desconcertante, balbuciou a primeira idéia que lhe ocorreu: — Já tomou café? Ele jogou a sacola às costas. — Ainda não. E estou morrendo de fome. Cozinho tão mal que nem eu mesmo consigo comer a comida que preparo. Enquanto caminhava pelo píer, Logan voltou a observar aquela estranha mulher com jeito de menina que andava com tamanha graça. Apesar de examiná-lo com uma atenção ostensiva, avaliando-o e medindo-o, era como se tivesse pavor de externar suas emoções, tornando-se tímida, quase medrosa. Sem dúvida, Elise St. James era um enigma fascinante. A caminho da casa, passaram pela garagem de barcos, e só então Logan percebeu o quanto ela era alta. Quase tanto quanto ele, que media um metro e oitenta e cinco. Mas ela era também tão esguia, leve e delicada que o fazia sentir-se pesadão e desajeitado, caminhando a seu lado. Em parte, ele cambaleava mesmo, devido ao efeito produzido pela longa travessia no mar, entre o interminável balanço das ondas. Pelo silêncio que se prolongava, Logan concluiu que, se quisesse obter alguma informação, teria de dirigir-lhe perguntas diretas. Arriscou: — O que me diz do casal Cristobal? Ela respondeu de imediato:
— Oh, têm sido muito bons comigo. Montoya e Francisca são muito gentis e solícitos. Era agradável ouvir aquela voz profunda e meio rouca, embora pelo sotaque não fosse possível precisar sua origem. Em todo caso, cuidar de uma mulher jovem e educada seria uma tarefa bem diferente da missão na América Central, onde qualquer erro podia resultar em captura ou morte. Na situação presente, não parecia haver perigo, apenas prazer na companhia de uma mulher bonita. — Faz tempo que você chçgou? — Ontem à tarde. Vim de Miami no iate de Roxanne. Ela demonstrava uma frieza e uma indiferença inexplicáveis. Teria de empenhar todo seu charme, como se quisesse conquistar-lhe a confiança. — Talvez, a esta hora, Roxanne já tenha se levantado. Era estranho mesmo que a tia não fosse ao píer recebê-lo. — Mas Roxanne não está na ilha. — O quê? — Logan parou bruscamente. — Ah, desculpe. Essa me pegou desprevenido. Onde ela está, então? — Logo depois que cheguei, ela foi para Boston, isto é, pelo menos foi o que entendi. Disse que volta para cá no sábado. “Droga!”, praguejou Logan intimamente, enquanto subiam as escadas para o primeiro dos três terraços e passavam pela larga porta do hall de entrada. Roxanne devia tê-lo informado melhor sobre seus planos. — Você sabe se ela deixou algum recado para mim? — Deixou, sim. Está no seu quarto. — Elise pegou o telefone da
mesinha e discou o número cinco. — Vou chamar Francisca. — Depois de falar rapidamente ao aparelho, voltou-se para Logan. — Ela virá aqui num minuto para mostrar-lhe seu quarto. Enquanto esperavam, Logan olhou ao redor da ampla sala, avaliando a elegância discreta que só muito dinheiro podia comprar. — E o seu quarto, onde é? — Roxanne me alojou em sua própria suíte, na cobertura. — Elise enrubesceu. — Você vai ficar no quarto de hóspedes ao lado. Imaginou o que pensaria seu pai, se soubesse da filha dormindo a poucos passos do quarto de um homem. No castelo, em Mondária, homens e mulheres alojavam-se em alas diferentes e distantes. Francisca entrou, cumprimentando Logan. — Fez boa viagem? — perguntou com respeito, abaixando-se para pegar a sacola. — Ótima, obrigado. — Jovialmente, Logan tomou-lhe a sacola das mãos e pendurou-a no ombro. Francisca sorriu, embaraçada. — Lembro-me de sua mãe, uma mulher bonita. Esteve aqui com a senorita Fletcher no verão passado. Ela está bem? — Muito bem, obrigado. — Sentimos pelo que aconteceu a seu pai. A senorita disse que era um homem bom. — Obrigado, todos gostávamos dele. Pelo canto do olho, Logan percebeu que Elise acompanhava com interesse o diálogo. Ao notar que ele a observava, porém, desviou rapidamente o olhar.
— Senorita St. James, o café será servido no terraço da piscina — informou Francisca. — Está certo, obrigada. Depois de uma rápida olhada para Logan, Elise caminhou para a porta. Antes de sair, ainda ouviu-o falar com a governanta. — Só vou me trocar, Francisca, e desço em poucos minutos. Sirva o café para mim também, Certo? Enquanto seguia a governanta para os andares superiores, Logan sentiu-se levemente desamparado com a ausência de Elise. Seu perfume delicado ainda recendia no ar. Pensando bem, as próximas semanas ao lado da “rainha do gelo” talvez não fossem tão prazerosas quanto previra. Só que àquela altura era tarde para se arrepender. Estava irremediavelmente comprometido. Ao chegarem ao segundo andar, Francisca já explicara a Logan como funcionavam os telefones e informara que o marido o encontraria assim que terminasse a ronda pela praia. Apontando para uma porta de folhas duplas, com maçanetas em forma de dois golfinhos de latão, observou: — Esta é a suíte principal, ocupada pela senorita St. James. — Apontou para outras duas portas vizinhas. — Aqui fica o salão de ginástica e a sauna... e este é o seu quarto. Abrindo a última porta do corredor, entrou, esperando até que ele passasse. O quarto era bem iluminado e aconchegante. Nas paredes e na mobília de mogno claro envernizado, predominavam os tons azuis e amarelos. As janelas amplas tomavam toda a extensão frontal, que dava para a enseada do cais e para o imenso mar azul a perder de
vista. Um antigo telescópio de latão estava armado diante de uma das janelas, apontando para o cais, onde o Espírito do Vento balançava suavemente. — Aqui é o banheiro, e isto é para o senor. — Depois de apontar para a esquerda, a governanta estendeu-lhe dois envelopes que pegara de cima do criado-mudo. — Se precisar de mais alguma coisa, é só chamar. — Está ótimo. Obrigado, Francisca. Vou descer já, já. Depois que a mulher se foi, Logan sentou-se na beirada da cama e abriu um dos envelopes. Numa caligrafia rápida e inteligente, Roxanne desculpava-se por não ter ficado para recebê-lo. Voltaria, contudo, no sábado. Falava também das dificuldades com as comunicações e a falha eventual no sistema de alarme. Montoya iria desincumbir-se da maioria dos trabalhos, patrulhando a ilha e fazendo viagens a Nassau ou Miami, para buscar provisões ou o que fosse preciso. Ele próprio deveria concentrar-se em proporcionar a Elise entretenimento e distração. Só não explicava, considerou Logan, como entreter alguém que não demonstrava o mínimo interesse em sua companhia. O segundo bilhete, porém, foi mais preocupante. Logan começou a perguntar-se o que de fato estava acontecendo. “Logan, Em suas relações com Elise, há certas restrições que podem tornar sua tarefa mais difícil. Há pouco tempo, ela quase foi seqüestrada. Seu pai pediu-me que a protegesse de outro atentado. Por causa dessa traumática experiência, seria melhor se você evitasse fazer perguntas sobre o passado dela. Elise está aqui não só por uma questão de segurança, mas também para tentar superar os traumas
por que passou.” Logan releu o texto até aquele ponto, sem saber direito se entendera o significado. “Essa é boa!”, pensou. Se até então Elise o tratara com uma frieza que prometia transformar-se em inimizade declarada, não haveria como dobrá-la se não poderia fazer perguntas pessoais. O diálogo seria quase impossível. Terminou de ler o bilhete. “Não facilite em seu trabalho, Logan. A ilha é tão segura quanto qualquer outro lugar, mas é possível que haja outra tentativa de seqüestro. Portanto, mantenha Elise longe do perigo. No sábado, quando nos encontrarmos, explicarei tudo. Um beijo, Roxanne” Duas semanas antes, na carta em que lhe pedira ajuda, a tia explicara que o novo compromisso não seria tão arriscado quanto o caso do jornalista centro-americano. No entanto, assim que terminou a releitura do bilhete inteiro, Logan compreendeu que as aparências eram enganosas. Não fora à ilha Maximilliam propriamente a passeio ou divertimento. A missão poderia tornar-se perigosa, ainda mais porque não sabia com que tipo de inimigo estaria lidando. — Droga! — murmurou entre dentes. Fora um golpe baixo de Roxanne deixá-lo no escuro sobre o que enfrentaria. E a pior parte era não poder obter informações de Elise. — Maldição! Picando ambos os bilhetes em pedacinhos, atirou-os na lixeira do banheiro e despiu-se para tomar uma ducha. Depois de banhar-se, barbear-se e trocar de roupa, Logan foi encontrar Elise à beira da piscina, sentada a uma mesa de plástico sob um imenso guarda-sol amarelo e branco. Os ladrilhos brancos ao
redor da água azul-turquesa brilhavam, refletindo o sol àquela altura mais alto. Puxando uma cadeira, sentou-se ao lado dela. — Espero não tê-la deixado esperando, mas aproveitei para fazer também a barba enquanto me banhava. Elise mal o olhou, mas percebeu que tinha uma aparência bem mais saudável, com a camiseta listrada e o short branco. Depois de sentar-se, Logan pousou o guardanapo no colo, fitando de relance os olhos de Elise. Como duas turquesas, tinham a coloração do mar nos recifes de coral, num contraste alucinante com a pele morena. Antes que o silêncio se tornasse incômodo, os caseiros chegaram, empurrando o carrinho com a refeição. Montoya cumprimentou Logan com entusiasmo, parecendo honrado por ele ter levantado e apertado sua mão. — Gostaria de dar uma volta em torno da ilha — comentou Logan depois de voltar a sentar-se. — Você me acompanharia para mostrar o caminho? — Quando quiser, senor. Pode me encontrar no jardim. Montoya ainda perguntou da viagem, interessando-se pelo barco. Ganhou imediatamente a simpatia de Logan, que o achou forte e capaz, apesar de um tanto idoso. Depois que o casal os servira e se fora, Elise levantou o garfo várias vezes, fingindo saborear a comida desconhecida. Estranhara as tiras salgadas de carne, a que chamavam de bacon, mas apreciara uma fatia de melão e ovos mexidos. Não comera muito no jantar da noite anterior. Talvez o almoço consistisse de algo de que gostasse mais.
Erguendo os olhos, viu que Logan a observava. Precisava encontrar o que dizer, ou os breves períodos que passariam juntos se tornariam aborrecidos e incômodos. Ele parecia gostar de falar sobre o barco, então arriscou: — Você veio velejando desde o... Desculpe, esqueci o nome do lugar. — Maine. — Ele lhe sorriu, esperando provar que era de confiança e inofensivo. Os ovos mexidos com bacon estavam uma delícia, especialmente depois das rações do barco. — Saí de Cape Button, uma cidadezinha no litoral da Carolina do Norte, entre Portsmouth e Portland. — Lá costuma nevar? — Elise não se contivera. Sempre quisera conhecer a neve, andar num campo todo branco, sentindo a brisa gelada nas faces. Logan voltou a sorrir. — Uma neve dos diabos... Quero dizer, por cerca de cinco meses no ano, ocorrem lá terríveis tempestades, com neve. — Com camadas profundas de neve? — Naturalmente. — A súbita animação dela o surpreendia. Pensava que continuaria tratando-o à base de silêncios. — Nunca conheci a neve — confessou Elise, sonhadora. Então percebeu que dera um fora. Tinha de ser mais cuidadosa com o que dizia, ou iria se denunciar. Antes que Logan perguntasse algo, acrescentou depressa: — Como conseguiu fazer todo o trajeto sem tripulação? Não é perigoso? Se, durante o trajeto de Miami à ilha, no iate de Roxanne, em segurança e com todo o conforto, ela tremia só de pensar que estava
em mar aberto, que diria se tivesse de cruzar o oceano num barco tão pequeno quanto o de Logan? Ela amava a imensidão do mar, mas apenas quando vista da praia. Logan encolheu os ombros. — Não resta dúvida de que seria mais fácil se tivesse alguém para ajudar. E mais seguro também. Na verdade, em circunstâncias normais, teria trazido alguém comigo... — O que quer dizer com “circunstâncias normais”? — Bem, é que fui convocado pela boa Roxanne... — ele baixou a voz, olhando para os lados — ...para vir em segredo. Dei minha palavra quanto a isso. Só minha mãe sabia da viagem. Elise baixou os olhos. Seu pai dissera que os rebeldes estavam bem aparelhados e eram capazes de mandar agentes para fora do país a sua procura. Poderiam fazer alguma associação entre Roxanne e alguém numa pequena cidade no litoral americano? A despeito do calor que fazia, um calafrio obrigou-a a esfregar os braços arrepiados de um frio repentino. Logan recriminou-se pela indiscrição, ao vê-la tão perturbada. — Desculpe — falou em voz baixa. — Não queria aborrecê-la. Suspirando, Elise forçou-se a voltar a comer. Depois de outro longo silêncio, perguntou de repente: — Como você conheceu Roxanne? Logan levantou a cabeça, intrigado. — Como? Então você não sabe que ela é minha tia? — Sua tia? Os pensamentos dispararam na mente de Elise. Devia haver
uma ligação em tudo aquilo. Por que Roxanne não informara o próprio sobrinho sobre a pessoa que iria proteger? Logan limpou a garganta. — Minha mãe, Vanessa, é a única irmã de Roxanne. É dezesseis anos mais velha que ela. O caso o intrigava cada vez mais. Por que Roxanne não informara Elise sobre seu parentesco? A tia não costumava fazer isso. Ou será que estaria se divertindo à custa deles? De qualquer maneira, ninguém saberia o que andava planejando. Depois de beber todo o suco de laranja, Logan olhou para Elise. — Estou surpreso de que Roxanne não tenha lhe contado que sou seu sobrinho. — Ela é bem cuidadosa com o que diz, não é? Logan sorriu. — Você precisa conhecê-la melhor. Ela é uma pessoa bem interessante... — É verdade? Enquanto Logan servia-se de um segundo prato de ovos mexidos com bacon, Elise observou-o de soslaio, sem nada comentar. Na verdade, não gostava daquela mulher, ela lhe infundia um medo estranho. Ao ver que Logan a encarava, esperando que dissesse alguma coisa, indagou: — Sua mãe mora no Maine? Logan observou o trejeito lânguido com que ela afastava o cabelo do rosto ao falar. Era capaz de jurar que Elise não fazia a menor idéia do efeito que seus atributos físicos despertavam nos homens.
Percebendo que ela o olhava, desviou a atenção para a primavera que floria no terraço. — Minha mãe mora numa praia chamada Enseada dos Fletcher, no Maine, claro. Na casa que foi de minha avó. O terreno é cercado de roseiras, que durante o verão perfumam os quartos. Logan pensava na casa em estilo colonial americano, decorada com móveis e utensílios que mais pareciam peças de museu, quando o ruído do garfo de Elise chocando-se com o fundo do prato tirou-o do devaneio. Ela não comera quase nada, e a expressão de seus olhos era de cortar o coração. Parecia mergulhada em recordações antigas. — Minha mãe também morou numa casa com um jardim de rosas, na Inglaterra — confessou ela, em voz suave. Anne Kaleer tentara recriar o cenário nos jardins do palácio, mas as rosas nunca se deram bem com o calor asiático. Para deixá-la mais à vontade, Logan experimentou continuar falando de sua família, algo que raramente fazia com estranhos ou mesmo amigos. Talvez, conhecendo-o melhor, ela confiasse nele e se sentisse menos só. — Essa casa, que no princípio servia de residência de verão da família, foi tudo o que minha mãe recebeu como herança de uma das famílias mais ricas da América. — Ele sorriu. — A casa era chamada de “Capricho dos Fletcher”, pois quando foi construída, em 1830, não tinha nada por perto, e era preciso levar tudo de Boston, de barco ou em lombo de burro, por estradas improvisadas. Elise o ouvia com atenção. — E por que sua mãe herdou só essa casa? — Ah, é uma longa história. Em poucas palavras, porque os pais
dela, meus avós, nunca a perdoaram por apaixonar-se por meu pai, um imigrante judeu sem um tostão, que na época trabalhava como camareiro num dos navios de passageiros da companhia Fletcher. Por ela ser a mais velha, consideraram aquilo uma traição. — Logan deu um sorriso amargo. — E meu pai, por sua vez, nunca aceitou nada da família, a que chamava de “um bando de vagabundos depravados”. Depois de refletir um pouco, Elise perguntou: — E trabalhar para Roxanne não significa ir contra o que seu pai dizia? Logan sorriu, divertido. — A diferença de meu pai era com o velho Fletcher, meu avô, não com Roxanne. — E você não guarda rancor, pelo modo como trataram seu pai? — Não. Se bem que, além de Roxanne, nunca tive nada a ver com os outros. Depois de algum tempo em silêncio, Elise dirigiu-lhe os olhos cândidos. — Onde você mora? — Nos últimos tempos, enquanto reformava o barco, num apartamento pegado à casa de minha mãe. — Observou-lhe a reação e então continuou: — Quando meu pai adoeceu, no ano passado, eu tinha acabado de me divorciar. Sozinho, sem filhos, foi fácil deixar Nova York e ir morar em Cape Button. — Fora nessa época que Roxanne lhe pedira para proteger Luís Ortega, uma operação em que aproveitara para afogar as mágoas da separação e da doença do pai. — Então assumi o escritório de advocacia e concluí diversos casos pendentes antes da morte dele. Aí comprei o Espírito do Vento, que
passei quase um ano reformando, e aqui estou. — Desculpe se pareço intrometida. — Elise fixou-o com os grandes e meigos olhos azuis. — Além de advogado, você trabalha também como guarda-costas profissional? Logan, que terminava de pôr açúcar no café, não conteve uma risada. — Bem... quer dizer, acho que sou o que se poderia chamar de “agente free-lance”, no momento a serviço das empresas Fletcher. — Sei, sei... Elise correu os olhos pela enseada, demorando-se ao longe no oceano azul. Não sabia muito bem por quê, mas o fato de Logan ser sobrinho de Roxanne era estranhamente perturbador. Talvez, com o tempo, pudesse ver através das águas turvas e descobrir a verdade. Ou, no mínimo, as versões de Roxanne e Logan para a verdade...
CAPÍTULO IV
Ao perceber que Elise também terminara o desjejum, Logan dobrou o guardanapo e depositou-o ao lado do prato. — Vou procurar Montoya para fazer um reconhecimento da ilha. Quer ir junto? Seria bom conhecer a localização das praias em relação à casa e ao cais.
— É a isso que chama “fazer um reconhecimento”? — É. Elise pretendia passar a manhã estudando piano, como costumava fazer em casa, mas poderia deixar para a volta. Logan levantou-se e apressou-se a ajudá-la com a cadeira. Ela irradiava o frescor de um botão de rosa, prestes a desabrochar. O perfume de sua pele rivalizava com o aroma das flores silvestres trazido pela brisa. Desejou tocar aqueles cabelos sedosos e macios, como também devia ser a pele de pêssego. — Então estou pronta para fazer o reconhecimento da ilha — declarou ela, levantando-se. Andando lado a lado, desceram por um dos caminhos que serpeavam o jardim no primeiro terraço. Não encontraram Montoya, mas Logan decidiu ir assim mesmo. Por ora, fariam uma observação geral da ilha, vista do alto; depois ele iria com Montoya conhecê-la em detalhes. A ilha não passava do topo de uma montanha emergindo do mar. A mansão ficava num planalto, dominando a praia principal, onde se localizava o cais do qual subiam vários caminhos entre as árvores. Esse lado seria fácil de vigiar, pois as amplas janelas da casa permitiam uma ótima visão. Elise ia à frente de Logan pela trilha, enquanto ele analisava as características do local. Pensativa, ela concluiu que já não estava tão tensa como logo depois que ele chegara. Inspirou profundamente o aroma das flores, lembrando-se de Mondária. Acima deles, imensos cachos de flores de poinciana-régia pendiam dos galhos nodosos. Em seu país, era costume entre os pobres utilizar as compridas vagens de até sessenta centímetros como lenha para queimar.
Atrás dela, Logan pisou num galho e a fez voltar-se, lembrando a comparação que Roxanne fizera entre ele e Harrison Ford. Na noite anterior, pesquisara sem resultado em todos os livros da biblioteca. E se perguntasse ao próprio Logan? — Ei, você saberia me dizer... — ia falando sem pensar, mas se conteve. — Ah, desculpe, não foi nada, não. Ela fez menção de seguir em frente, mas Logan a deteve. — Não, espere. Fale o que ia perguntar. Depois de hesitar durante algum tempo, ela disse de chofre, encabulada: — Eu ia perguntar quem é Harrison Ford. Logan franziu o cenho, intrigado. Ela parecia arrependida de pronunciar aquele nome. — Harrison Ford é um astro do cinema... conhecido por enfrentar os aviões para salvar as donzelas em perigo. — Ele deu um sorriso largo. — E acabar conquistando o coração de tais donzelas. Embora rubra de vergonha, Elise decidiu ir até o fim. — E o que significa “ser um bom páreo”? — Bem, depende do contexto em que isso foi dito. Você pode me explicar? — Ah, foi só um comentário que Roxanne fez. Não é nada, deixa pra lá. Ela já ia retomar o caminho quando Logan a deteve outra vez. — Conte-me, Elise. Por favor... Elise correu o olhar para além da ilha, até o horizonte. Depois, em voz pausada, contou tudo. Quando terminou, Logan
deu uma risada. — Sinto-me lisonjeado. “Ser um bom páreo” significa estar à altura, competir em igualdade de condições. Significa que ela me considera uma espécie de herói como Ford, não apenas na aparência, mas fazendo as mesmas coisas arrojadas que ele faz. — Você costuma socorrer donzelas em perigo? — ela indagou de imediato, sem pensar, recriminando-se por isso. Nunca devia ter feito tal pergunta. — Bem... talvez não assim, exatamente. Apenas costumo protegê-las do perigo. Ao menos espero... Elise sorriu pela primeira vez, timidamente. — Tudo bem, entendi. — Ela tomou o caminho que levava à praia. — Obrigada por me contar. “Harrison Ford, hein?”, Logan sorriu intimamente. Talvez sua imagem como soldado da fortuna não estivesse tão desgastada assim. Elise seguiu a sua frente com as faces afogueadas. Mal haviam andado alguns metros quando, de uns galhos à beira do caminho, voaram três pássaros em meio a um estardalhaço de piados e rufiar de asas. Assustada, Elise deu um gritinho e parou logo à frente de Logan. Num gesto instintivo de proteção, ele a abraçou e puxou contra si. Não se enganara, a pele e o cabelo eram de fato macios como seda. A fragrância de seu perfume, suave como nunca sentira, quase o levou ao delírio. Inebriado de desejo, Logan continuou a envolvê-la, ignorando por quanto tempo permaneceram assim juntinhos, até que Elise pigarreou, encarando-o ironicamente.
— Oh, desculpe. — Ele soltou-a na hora. — Não tem de quê. Foi culpa minha. Suspirando, ela retomou o caminho, sob o olhar atônito de Logan. Nos poucos segundos em que estivera nos braços dele, experimentara uma explosão de sensações desconhecidas. Fora o contato mais íntimo que já tivera com um homem, considerou, caminhando abobalhada, ainda não inteiramente recuperada do impacto. Às vezes, fechada em seu quarto no castelo, ficava imaginando como seria ser acariciada por um homem. Mas nem sonhara que a emoção seria tão forte. Logan Hunter não adivinharia que a estava conduzindo aos caminhos do prazer... Precisava afastar tais idéias. Essa atitude só poderia lhe trazer problemas. E problemas era o que não lhe faltava, concluiu, virando o rosto em brasa para um lado que Logan não pudesse ver. Sobressaltada com uma rajada de vento que lhe insinuou a leve saia por entre as pernas, puxou o tecido para o lado e correu para a praia. “Que figurinha encantadora!”, pensou Logan, acompanhando-a com o olhar atento. Não podia descuidar de sua missão. Antes de pisar na areia, já mapeara mentalmente aquele lado da ilha: a linha da praia, os recifes de coral que fechavam a entrada, impedindo o acesso por mar. Enquanto Elise caminhava pela areia com as sandálias na mão, ele voltou-se em direção à mansão. Uma revoada de pássaros barulhentos passou gritando acima da arrebentação nos recifes, à procura de um refúgio sossegado. — Nenhum barco pode chegar a esta praia — comentou Logan.
— Ainda bem, porque da casa não se avista aqui. A barreira de recifes funciona como a parede de uma fortaleza. — Será que a ilha foi usada como esconderijo, antigamente? — Elise olhou para a espuma das ondas que subia com a graça de borboletas para o céu. — É bem provável que sim. Pelo que minha mãe me contou, a ilha pertence aos Fletcher desde o tempo em que os navios da família traziam para as colônias o rum fabricado em suas usinas de açúcar em Cuba. O cais que você viu devia servir de ponto de parada para os navios. Também piratas de várias nacionalidades deviam aportar aqui, em busca de água fresca ou mesmo para pilhar os barcos dos Fletcher. A ilha em si é vulnerável... — Olhando para a expressão que ela fez, arrependeu-se do comentário imprudente. Tocou-a de leve no braço. — Foi apenas uma brincadeira. Vamos ver do outro lado? Voltando para o meio das árvores, logo chegaram à outra face da ilha. Não encontraram praia nem enseada, apenas rocha abrupta mergulhando nas águas profundas. Iam seguir em frente em silêncio, quando Logan parou. — Espere. Parece que ouvi alguma coisa, um motor... Como não vissem nada por ali, seguiram adiante, na direção de onde ele pensava vir o som. Elise ia alguns passos atrás, os galhos prendendo na barra de seu vestido. Sem enxergar direito, ela pisava com cuidado. Depois de uma volta, pararam extasiados diante de uma cachoeira imensa, cuja água cascateava de vários metros de altura, formando uma piscina natural onde caía. Entre as pedras da margem, cresciam hibiscos em flor, de um perfume adorável. — Que lindo! — exclamou Elise, ficando arrepiada.
Sentaram-se em um silêncio reverente, subjugados pelo encanto simples da natureza. Logan passou os braços em volta dos joelhos e suspirou. — Nada que o homem faça se equipara à originalidade da natureza. A natureza é o melhor arquiteto. Então ele esticou o braço e colheu uma flor da cor dos olhos de Elise. — Ponha atrás da orelha — sugeriu, estendendo-lhe a flor. — Mas não me lembro em qual orelha significa que a mulher é solteira, segundo o costume nativo. Elise desviou o olhar da cachoeira para encará-lo. — E o que o faz supor que eu seja solteira ou disponível? — E não é? — Ele a olhou com malícia. Com um movimento gracioso, ela se levantou e caminhou de volta para a trilha que ia dar na praia. Logan a seguiu chateado, porque ela não lhe respondera. Aquela era justamente uma das peças mais importantes do quebra-cabeça que se impusera para descobrir o segredo de Elise St. James! Encontrou-a na praia, observando uma grande lancha pesqueira em mar aberto. Um dos homens a bordo, com uma vara de pesca numa das mãos, acenou para eles. Elise virou-se para esperá-lo, então ambos acenaram em resposta. — Que tipo de peixe será que eles estão pescando? — estranhou Elise. — Sei lá. — Logan franziu o cenho. — Com um barco desse tamanho, devem estar pescando, ou qualquer coisa que o valha. — Voltou-se para a trilha. — Melhor a gente ir andando.
Montoya deve estar me procurando. Em silêncio, retornaram à praia principal. Diante do cais, enquanto Elise calçava as sandálias, Logan olhou para o Espírito do Vento, que balançava mansamente no rebojo das ondas, junto ao píer. Mais tarde ele viria fazer uma faxina na cozinha, arejar os beliches e retomar a infindável rotina de remover a onipresente maresia. Talvez convidasse Elise para acompanhá-lo. Depois que Elise se calçou, retornaram por outro caminho, que ia dar em outro lado da casa. Foram sair diante de uma quadra de tênis superequipada. Montoya estava podando uns galhos de hera que subiam pelo cercado. — Você joga tênis? — Logan perguntou a Elise, apreciando a sorte de ter encontrado a quadra. — Mais ou menos. Um de seus professores particulares, uma inglesa, a ensinara a jogar. Mas ela não praticara muito. — Ótimo! — considerou Logan. — Vou ensinar-lhe alguns macetes, então. Antes de qualquer comentário da parte dela, ele acrescentou, deixando-a boquiaberta: — Vou perguntar a Montoya sobre o abastecimento de água e o sistema de alarme. Vai querer ouvir? Ele pretendia comentar também sobre a lancha misteriosa. — Se você não se importar, contento-me com um resumo da situação. Não entendo muito de equipamentos... — Perfeito.
Enquanto Logan se aproximava do caseiro, Elise debruçou-se sobre a balaustrada de pedra voltada para o mar, deixando-se encantar pela vastidão azul do oceano. A mesma brisa que encrespava a superfície da água refrescou-lhe as faces afogueadas. Nas últimas horas, seus sentimentos flutuaram como as ondas, ao sabor das reações que Logan lhe despertava. Precisava conter suas emoções, mesmo sabendo que no fundo tudo aquilo não passava de mera curiosidade. Durante a caminhada, fizera coisas que nunca imaginara. Deixara-se embriagar pelo fascínio que ele provocava; tivera de se esforçar para não demonstrá-lo, quando o observava com c canto dos olhos; admirara cada pedacinho daquele rosto anguloso, os cabelos castanhos dourados pelo sol, o nariz reto, os olhos inteligentes, até as orelhas bem-feitas e o queixo protuberante, que revelava um espírito determinado. Quando se encontraram pela primeira vez, ela se prometera que seria fria e indiferente com ele, dando a impressão de que não ligava a mínima para sua companhia. Mas bastara um café da manhã juntos e uma mera caminhada para render-se a seus encantos, derrotada na primeira batalha. E depois, pela maneira como ele a fitava, devorando-a com os olhos, era evidente que queria mais que se tornar um bom amigo. Teria de fazer um esforço sobre-humano para mantêlo a distância. Mas como, numa ilha tão pequena? — Elise? Ao som daquela voz, ela estremeceu, voltando-se. Logan estava bem atrás dela, perto demais para seu gosto. — Desculpe se a assustei. Você estava tão distante... Pensando na família?
Talvez, refletiu ele, se a pegasse desprevenida, ela revelasse algo sobre sua vida. — Não... — respondeu ela polidamente, parecendo bem controlada. — O que Montoya disse? — A água vem de lençóis freáticos subterrâneos. A luz é fornecida por um grande gerador. Mais tarde ele vai me mostrar como funciona o alarme, instalado por uma empresa de Roxanne. — Ele sorriu. — Montoya me garantiu que está funcionando, só que é meio temperamental, assim como o telefone. Enquanto subiam para o terraço da casa, ele continuou: — Exceto pela comida, a ilha é auto-suficiente. Durante o dia, Montoya vigia do jardim, para ver se não se aproximam barcos estranhos. Mas, segundo ele, não é época de movimento. — Montoya também vira aquela lancha, e iria investigá-la. — À noite, ele patrulha a praia em horas intercaladas. A única praia à qual dá para se chegar de barco é essa do cais mesmo. Embora a ilha esteja entre outras maiores, é pouco visitada, por causa dos recifes de coral. — Então você acredita que estamos seguros? — indagou Eli- se, esforçando-se ao máximo para conter a profusão de sentimentos que a dominava quando na presença dele. — Até onde pude ver, acho que sim. Elise passou à frente, quando chegaram à casa, e abriu as portas duplas da sala. — Montoya falou quando vai sair da ilha da próxima vez? Tenho umas cartas para pôr no correio. — Vou ver com ele. — Obrigada. Agora, com sua licença, vou para o meu quarto,
trocar de roupa. Logan olhou-a espantado com a mudança de tom. — Tudo bem — ironizou, imitando-a. — A gente se vê depois... O que havia com ela? Numa hora, eram amigos; noutra, tratavao como se nunca o tivesse conhecido. — Para o inferno com ela! — falou para si mesmo por entre os dentes. Sozinho na sala, examinou pela primeira vez o ambiente. Em frente às portas envidraçadas que davam para o terraço, havia uma discreta estante, ladeada pelo barzinho, que, ele pôde constatar, estava abastecido com todo o tipo de bebidas e por um sofisticado conjunto de som. Caminhando pelo aposento, chegou perto do piano. Por um momento pensou no trabalho para trazer toda aquela mobília de barco e por caminhos estreitos e íngremes. Era preciso muito dinheiro. Do salão, subia-se ao segundo pavimento, onde havia quatro quartos de hóspedes, saletas de visitas e respectivos banheiros e closets. Para não incomodar Elise, escolheria uma hora apropriada para conhecer o terceiro pavimento melhor. Por fim, no térreo, além da sala de jantar, cozinha, lavanderia, ficavam as dependências de empregados, onde moravam os Cristobal. Uma casa de luxo, não havia dúvida. Saindo para a praia, foi até o píer verificar as amarras do barco. Depois de folgá-las um pouco, pois a maré baixara, voltou à casa. Foi então que ouviu a música. A melodia suave dedilhada ao piano parecia flutuar como uma ondeante coluna de fumaça. Sempre
gostara de música, embora não seguisse a orientação da mãe, quando quisera inscrevê-lo no conservatório musical. Em todo caso, não reconheceu a melodia. Seria Beethoven? Não era música gravada. Seria Elise? Sim, era isso. Seguindo a melodia, entrou na casa, tomando cuidado para não fazer barulho com a porta. Elise estava sentada ao piano. Em vez da roupa esportiva de verão, usava um sofisticado vestido de noite, que lhe modelava o corpo deliciosamente. Era de um azul-acinzentado que combinava à perfeição com a cor de seus olhos. O cabelo, brilhante sob a luz, estava puxado para trás, preso com uma fivela, e caía-lhe em ondas cascateantes pelas costas. Não podia ver-lhe o rosto sem denunciar sua presença. Logan permaneceu em pé diante da porta fechada atrás de si, de braços cruzados, ouvindo-a tocar. A música ecoava no ambiente, ressoando nas paredes, em notas leves alternadas com outras cheias. Elise dominava com mestria o teclado. Enquanto ouvia, seus pensamentos voavam. Ela fazia mais que tocar o piano, parecia fazer amor com o instrumento. Acariciava as teclas com a delicadeza reservada à pele de seu amado. A música cresceu, mudou de ritmo, parecendo atingi-lo cada vez mais no íntimo. Naquele momento, começava a compreender melhor aquela mulher. Suas maneiras frias, reservadas, escondiam outra pessoa. Uma mulher apaixonada, quente, talvez à espera do homem capaz de despertá-la para sua verdadeira identidade. Quando tocou a última nota da melodia, Elise voltou-se, supreendendo-se por encontrar Logan ali. Não gostava de audiência.
Seu estudo era um ritual íntimo, que não lhe agradava repartir com ninguém. Logan sorriu. — Você foi maravilhosa! — Aproximou-se do piano. — Incrível! — Obrigada. Ela baixou os olhos para o teclado. Por que será que toda a vez que ele se aproximava assim seu coração disparava? —- Você conhece a Valsa do adeus, de Chopin? — É uma de minhas favoritas. Daquela vez, Logan permaneceu a seu lado, enquanto ela tocava. Observando-a de perto, confirmaram-se suas impressões a respeito dela. A música era menos dramática, uma valsa sem o ardor da primeira. Mesmo assim, a paixão consumia os olhos azuis com labaredas infernais. Ao final da peça, ele comentou: — Você é algum talento do piano que está aqui incógnito? — Não sou, não. Apenas pratico todo dia. Depois de mais um último estudo, rápido e curto, chegou o momento de informar a Logan que pretendia passar o mínimo de tempo com ele. Controlando-se, voltou-se, mas não teve coragem de encará-lo de frente. — Preciso lhe dizer que pratico piano todas as manhãs. E espero não perturbá-lo com isso. — Como me perturbar, com um hábito tão encantador? Percebendo a mudança na voz dela, Logan contraiu-se. “Droga!”, pensou. Quando ela pararia de representar a madame empertigada?
Estaria ofendida por ele inadvertidamente ter descoberto fatos de seu passado? Por que Roxanne o deixara ali sem saber o que estava acontecendo? Elise se levantou, e ele a encarou. Por mais fria que ela quisesse parecer, estava determinado a descobrir o motivo de tão estranho comportamento. — Como é — indagou —, depois do almoço, vamos jogar tênis? — Não, obrigada. Acho que vou manter minha rotina. De manhã, piano. Depois do almoço, leitura e natação. As refeições, vou fazer sempre em meu quarto. Ela andou sobre o carpete sem produzir o menor ruído. Chegando à porta, deteve-se ante as palavras de Logan. — Como você sabe, Elise, vamos ficar um bom tempo juntos. Talvez mude de idéia, desistindo da pose, e se torne mais humana. Com a mão na porta entreaberta, Elise voltou-se parcialmente, sem olhá-lo, falando para a janela: — Você sabe muito bem que não foi idéia minha vir para cá. Não queria estar aqui nem o escolhi como meu instrutor de tênis nem como meu guarda-costas free-lance. Pretendo ir embora assim que Roxanne voltar. E então ela se foi, fechando a porta silenciosamente atrás de si.
CAPÍTULO V
— Diabo de mulher! — murmurou Logan, enquanto terminava de varrer o estreito piso da cozinha do barco. Sob o sol da tarde, que entrava pela escotilha, recolheu os últimos resquícios de poeira e detritos e guardou a pazinha. Soltando um palavrão, mais de frustração do que de mágoa, subiu ao convés, na esperança de que a brisa fresca esfriasse sua raiva. Recostando-se numa almofada de lona, apoiou a cabeça e fechou os olhos. Desde a manhã, quando Elise o deixara plantado no meio da sala falando sozinho, estava de péssimo humor. Que direito tinha de tratá-lo daquele jeito? Seguindo as orientações de Roxanne, evitara fazer-lhe perguntas pessoais, procurara ser amigável, oferecendo distração, e o que ganhara? Elise o tratara com arrogância, como se fosse culpa dele ela estar na ilha. Talvez Elise St. James fosse uma refugiada política. Por que ela precisava de proteção ou se esconder de alguém? O que teria acontecido para obrigá-la a permanecer na ilha contra a vontade? E como Roxanne entrava na história, com que interesse? Deixando as questões de lado, concentrou-se em Elise, com sua personalidade instável. Durante o café da manhã, ela parecera verdadeiramente interessada, quando ele falara do barco e de seus pais. Já no passeio pela ilha, houvera momentos em que ela parecera estar adorando sua companhia. Quando se assustara com os pássaros e ele a tivera nos braços por mais tempo que o necessário, ela não reclamara nem ameaçara ir embora. Ele não era nenhum bobo, sabia que ela gostara de ficar em seus braços. Ao contrário, era
capaz de jurar que ela colara-se a ele, e só saíra correndo depois que se separaram. Depois, quando ele a encontrara tocando piano, ela se mostrara sinceramente agradecida com seus elogios. Então, a troco de nada, assumira aqueles ares altivos e declamara aquela lista insípida a que chamara de rotina. E não esquecera nem de dizer que queria ficar o menor tempo possível em sua companhia. “É bom para eu aprender”, concluiu, observando uma gaivota que acabara de pousar no topo do mastro. Cansado de sofrer por Elise, resolveu terminar a limpeza da cozinha. Não ia gastar mais seu tempo tentando entendê-la. No sábado, quando Roxanne chegasse, exigiria que lhe explicasse por que sua hóspede era mantida prisioneira, com ele como seu carcereiro. A limpeza estava quase no fim quando Montoya chegou. O jardineiro o ajudou a descer o mastro e rebocar o veleiro para o abrigo de barcos, numa carreta puxada a motor. — Se quiser usar a lanchinha, a chave está no contato — informou o homem, apontando para a lancha na carreta ao lado, em cuja proa estava o nome Voadora. — Dona Roxanne pensou que o senhor quisesse levar a senorita para um passeio ou ensiná-la a esquiar. — Obrigado, Montoya. Mas duvido que Elise tenha tempo para fazer alguma coisa comigo. Surpreso, o caseiro voltou para o jardim, conferindo se estava tudo sob controle ao longo da praia. Logan constatou, pela altura do sol, que devia faltar uma hora mais ou menos para o jantar. Elise iria acompanhá-lo ou continuaria pedindo a refeição no quarto, como uma criança mimada? Azar dela,
concluiu, irritado. De qualquer maneira, com ou sem ela, teria de jantar sozinho. Não queria mais saber do assunto. Antes de sair da orla da praia, deu uma olhada para o cais. O mar estava calmo, e o céu, azul, sem nuvens. A lancha misteriosa desaparecera. Enquanto subia para a casa, não pôde evitar de pensar mais uma vez nos motivos que teriam levado Elise para a ilha e as razões dela para querer ir embora. Quem tentara seqüestrá-la? Onde morava? No caminho para cima, decidiu dar um mergulho na piscina e esquecer tudo aquilo. Deitada em sua cama, Elise não se decidira sobre o que informar a Francisca sobre o jantar. Deveria ou não descer e tomar a refeição na companhia de Logan? Quando pedira o almoço no quarto, alegara uma forte dor de cabeça, mas não poderia continuar dando desculpas, ou preocuparia os caseiros desnecessariamente com sua saúde. Era isso: se eles se apavorassem com sua saúde, ligariam para Roxanne, que viria correndo em seu jatinho e a levaria de volta para Mondária. Imaginando a cena, concluiu que não era o caso. Não enganaria ninguém com um pretexto nem pediria a Francisca para servi-la no quarto. Iria se vestir e descer para jantar. Estranhamente, não a incomodava estar ao lado de Logan. Afinal, não podia acusá-lo por aceitar tomar conta dela: acima de tudo, ele estava cumprindo ordens, como um empregado qualquer. Fora gentil falando das próprias atividades e da família. Não perguntara nada sobre ela ou sobre sua vida, confirmando o comentário de Roxanne de que era muito discreto. Essa atitude até a ajudara a manter a promessa de silêncio que fizera a Roxanne.
Ainda não conseguia entender por que a mulher não revelara nada ao próprio sobrinho. Talvez a imposição de silêncio se devesse às péssimas condições políticas em Mondária. Estavam em curso delicadas negociações entre os partidos. Os membros do governo deviam ter decidido proibir ingerências externas em seus assuntos. Roxanne talvez quisesse evitar a intervenção de nações mais poderosas sobre as decisões de Alexander. Enquanto caminhava até o telefone, considerou que, embora aquelas razões não fossem as mais confiáveis, eram as melhores possíveis. Iria descobrir a verdade, enfim, quando Roxanne regressasse. No momento em que ia pegar o fone, o aparelho tocou, assustando-a. Ela se apressou a atender. — Sim? — Sou eu, Logan. Inexplicavelmente, uma onda de excitação a dominou, ao ouvir aquela voz grave, adorável. — Sim, pode falar. Ao fundo, Elise percebeu o som de música. Ele devia estar próximo à cozinha, talvez. — Francisca quer saber se você vem jantar ou vai querer que a sirva aí no quarto. Logan falava secamente, como se houvesse mais alguém ouvindo a conversa. Ou teria sido idéia dele chamá-la? — Diga que vou descer — informou, lutando para não revelar a emoção na voz. — Você pretende ficar aqui embaixo?
Daquela vez ele baixara a voz, como se não quisesse que ninguém ouvisse. — Que diferença isso faz? — É que eu pensei... — Logan fez uma longa pausa. — É, não faz diferença. Eu só estava pensando, é isso. Elise sorriu. — Você tem alguma idéia especial para o jantar, que dependa da minha presença? — Minhas idéias não são rígidas, podem variar de acordo com as suas... O que ele estava querendo agora? Ela o pressionara, mas Logan dera uma volta, forçando-a a tomar uma posição acerca do que fazer depois do jantar. Antes que respondesse, ele se adiantou: — Eu faço o que você quiser, está bem? — Está bem, obrigada. — Ótimo. Vamos deixar como está, para ver como é que fica. Mais uma expressão que ela desconhecia! Junto com o passaporte, devia ter levado um dicionário de gíria. Mas entendeu muito bem o que ele estava querendo dizer. — O jantar será servido em meia hora — informou ele maquinalmente. — Nos veremos então. — Tudo bem — ela concordou, já sem muita convicção. “Sujeito estranho”, pensou. Nunca conhecera ninguém igual. Mas seu jeito diferente lhe conferia um charme especial. Às vezes era grosseiro; outras, jovial, confiante, cheio de si, arrebatado. Se o amigo americano de Sabitta, Roger Avenel, parecesse com Logan, ela
era uma garota de sorte. Quando a criada lhe contara sobre Roger, a intuição feminina lhe revelara o quanto ele a impressionara. Mas Sabitta sentiria o mesmo que ela quando estava com Logan? Seu coração disparava, o sangue fervia, enquanto os joelhos tremiam, as mãos gelavam, as faces ficavam em brasa? Seriam aqueles pensamentos normais em uma jovem solteira? Embaraçada, resolveu trocar de roupa e afastar aqueles loucos desvarios da mente. Depois de dez minutos para decidir-se sobre qual roupa usar, acabou escolhendo um vestido colante de cetim com decote em “V”, azul-noite, com sapatos de salto alto combinando. Se o pai ou seus conselheiros a vissem nesse novo guarda-roupa, ficariam chocados. Ela parecia mais madura, mais sofisticada, especialmente quando deixava os cabelos soltos assim, com mechas sensuais em torno do rosto. Aquela imagem diante dela no espelho não era nem de longe a da garota ingênua que saíra de Mondária três dias antes. Depois de uma última conferida diante do espelho, desfez uma prega do vestido e desceu para o salão, disposta a aproveitar o jantar. — Boa noite, Elise — cumprimentou-a Logan, apressando-se a ajudá-la a sentar-se à mesa. Candelabros e flores recém-colhidas enfeitavam o centro da mesa, num arranjo de bom gosto. Enquanto ele se sentava, Elise perguntava-se a que se devia tão elaborada acolhida. — Boa noite, Logan — ela respondeu no mesmo tom formal. Embora as roupas dele fossem esportivas, estavam muito bem passadas, por Francisca, sem dúvida. — Divertiu-se muito à tarde?
— Não me queixo. Ele podia lembrar-se de cada palavra que ela lhe dissera naquela manhã, depois da apoteose musical na sala. Agora, quando a chamara para jantar, parecera amigável, se não irônica. O que ela esperava? Droga, era terrível não saber que espécie de papel fazer! Roxanne ia ter de se explicar... Decidiu-se por ser amável. Sorriu. — E o seu dia, foi bom? Elise desviou o olhar. Se a noite continuasse naquele clima, sem que nenhum dos dois falasse nada sobre si, seria bem aborrecido, mas não tão desinteressante quanto previra. Era melhor que ele não lhe fizesse perguntas pessoais nem tentasse descobrir as razões por que decidira estabelecer os limites naquela manhã. — Escrevi algumás cartas e li um dos livros de Roxanne. — Qual era o... Logan interrompeu o que ia perguntar por causa da entrada de Francisca, que trazia duas taças enormes de coquetel de camarão numa bandeja. — A senorita sente-se melhor agora? — indagou gentilmente a empregada. — Estou bem, obrigada. — Bom! — Ela moveu energicamente a cabeça, como se desculpando pela indiscrição. — Quando terminarem, é só tocar o sininho. — Apontou para o utensílio à frente do prato de Elise. — Não há pressa. Depois que a mulher saiu, o silêncio voltou a instalar-se na sala.
Logan experimentou um camarão. — Roxanne tem uma biblioteca bem variada. Que livro você escolheu? Por que fora tocar naquele assunto?, recriminou-se Elise, constrangida, uma vez que ignorara as obras clássicas e sérias, muitas das quais já lera, em favor de uma história romântica. Aliás, o enredo de Love story lembrava-lhe a experiência de seus pais. Alexander nunca se recuperara da morte da esposa. . Mesmo que não estivesse disposta a discutir os méritos daquela obra com Logan, não mentiria. Ao ver a reação dele quando revelou o título, como se julgasse uma escolha imprópria, Elise baixou os olhos para a taça e concentrou-se no delicioso camarão. Estava faminta. Pelo canto do olho, Logan a observava. Não havia dúvida de que ela estava embaraçada por ler uma história de amor. E tal escolha revelava outra faceta de sua personalidade. Mas não se sentia disposto a discutir um romance com uma mulher que se obstinava em ocultar as emoções. Depois de saborearem os camarões, Elise tocou a sineta para chamar Francisca. Como Logan continuasse em silêncio, ela comentou: — Enquanto eu estava na piscina, vi você recolher o barco. Não pretende mais velejar? — Eu vou, se você for comigo. Elise sobressaltou-se. — Não, obrigada. Eu realmente não me sinto bem navegando em qualquer espécie de barco. Na vinda para cá foi difícil... — Você enjoa?
— Não é isso. É que não gosto de ir além de onde possa encostar o pé no fundo, entende? Logan deu uma risada. — Entendo perfeitamente. — Depois de pensar um momento, acrescentou: — Posso ensiná-la a mergulhar, com máscara snorkel, se quiser. Você vai ver a variedade incrível de vida marinha que habita os recifes de coral. Depois que a gente vai pela primeira vez, nunca mais esquece. — Não sei... — Ela se imaginou sozinha com ele num mundo que lhe era totalmente estranho. — Vou pensar, depois lhe dou a resposta. Francisca entrou com várias travessas no carrinho de chá. Os pratos pareciam cada um mais delicioso que o outro. Elise adiantou o prato para ser servida, com um apetite espantosamente desconhecido. Durante a refeição, eles não trocaram palavra, concentrados na comida. Depois do café e da sobremesa, uma compota de fruta especialmente preparada por Francisca, Elise pousou o guardanapo ao lado do prato, e Logan apressou-se outra vez a ajudá-la com a cadeira. Enquanto esperava que ela se levantasse, indagou-se como se comportaria a seguir. Dessa vez, não faria perguntas. Elise optou por ir até a sala de estar, em vez de recolher-se de imediato ao luxuoso apartamento de Roxanne. Logan gentilmente não fizera referência ao ríspido diálogo da manhã. Se ele continuasse assim, poderia ficar mais tempo em sua companhia. Mais um dia e seria sábado; e então Roxanne providenciaria sua volta para casa. Logan seguiu-a. Sem poder fazer qualquer pergunta mais pessoal, o restante de sua estada na ilha seria uma seqüência de si-
lêncios entremeados de comentários superficiais. No momento, importava saber como passariam as horas seguintes. Só esperava que ela não levasse a mal suas sugestões. — Sei que você não me quer como seu “diretor social”, mas gostaria de jogar alguma coisa, buraco, pôquer, monopólio? — Nunca joguei nada. Elise foi até o piano, mas não se sentou. Em vez disso, voltou- se para Logan, perguntando-se se deveria recolher-se. Apesar de a sala ser tão grande, ele estava perto demais. Ela quase podia sentir o calor do corpo másculo junto ao seu. Para fugir dele, caminhou até as janelas e parou, olhando o céu estrelado. Logan aproximou-se por trás, apreciando a silhueta esguia recortada contra a noite. Naquela roupa sensual e com o cabelo negro e farto sobre os ombros, dava-lhe a mesma sensação de quando a vira pela primeira vez. Embora ela não fosse tão jovem quanto imaginara, dava a impressão de ser ingênua e inocente. Parecia uma donzela medieval, desprotegida diante do mundo, transposta para uma ilha no oceano Atlântico em roupas modernas. Intrigado pelo mistério, esqueceu a raiva e desejou estar por muito mais tempo com ela do que seria possível. — Elise? — chamou. — Conheço um jogo do qual tenho certeza de que você vai gostar. Vai achar um desafio. Pela expressão que notou em seu rosto, Logan percebeu que acertara em cheio. Ela vacilava. “Tomara que não seja xadrez”, Elise pensou. Já bastava ter de jogar com o pai, de quem, aliás, sempre ganhava. Logan, que já verificara o sortimento de jogos da casa, pegou
uma caixa nova em folha de um famoso jogo americano de perguntas e
respostas,
uma
versão
simplificada
de
um
vestibular
de
conhecimentos gerais, no qual quem acertasse o maior número de questões ganhava. Elise acompanhou atentamente as explicações sobre as regras do jogo e começou bem motivada, acertando as duas primeiras perguntas. O assunto era história geral, que ela sempre dominara com facilidade, graças a uma professora egípcia. Depois de várias perguntas e respostas, eles estavam empatados, dependendo da última pergunta para se decidir o vencedor. Logan leu: — “Onde foram realizados os Jogos Olímpicos de 1900?” Sorriu. Tinha certeza de que Elise, tanto quanto ele, não fazia a menor idéia. — Em Paris, França — Elise respondeu de imediato. Logan conferiu. — Droga! Como é que você sabia? O sorriso que ela lhe deu provou que escolhera o jogo certo. Haviam encontrado algo em comum. Agora, o próximo passo seria se tornarem amigos... uma tarefa bem agradável. — Aprendi muito sobre você esta noite. — Elise guardou as peças do jogo na caixa. — Ah, é? O quê, por exemplo? — Além de um vasto conhecimento geral, você é agressivo e competitivo. Não sei se iria querer enfrentá-lo num tribunal. — É mesmo? E não gostaria que a defendesse perante o juiz?
Elise hesitou. — Bem, sim. Você acha que eu seria inocente ou culpada? “Inocente demais”, ele pensou. — Inocente, sem dúvida. — E você cobraria muito caro por seus serviços? — Bem, considerando que você está sob a proteção de Roxanne Bentley Fletcher, caríssimo. — E ainda cobraria, mesmo se eu fosse declarada culpada? Ele negou, e Elise sorriu. — Então acho que você se empenharia ao máximo para que eu saísse inocente. — Apenas pelo dinheiro? — Bem... deveria ser importante para você, eu acho. E, claro, você gostaria que a justiça fosse feita. Mas, mesmo sem ela, iria querer impressionar quem estivesse lhe pagando... Logan guardou o jogo no armário e a encarou. — Tudo bem, entendi o que você pensa de mim no caso. Agora, voltando à realidade, qual é a sua relação com Roxanne? Elise afundou na poltrona, pensando na promessa que fizera. Jamais poderia quebrá-la. — Elise... Olhando-o nos olhos, ela declarou apenas: — Roxanne é amiga de meu pai. Sofri uma tentativa de seqüestro, e ela me trouxe aqui para me proteger. Dando-lhe as costas, ela caminhou para a porta.
— Mas por que você quer sair da ilha? — Por favor! — ela falou sem se voltar. — Não quero falar sobre isso. Elise pôs a mão na maçaneta, mas, antes que a virasse, Logan estava ao lado dela. — Escute, Elise — ele disse com delicadeza. — Por que você não fala comigo? Pensa que sou seu inimigo? Elise o olhou desamparada, mas não respondeu. — Fale comigo! — Logan apertou-lhe o braço, mas arrependeuse. Ela poderia odiá-lo por isso. — Não, Logan, você não é meu inimigo — ela respondeu em voz sumida, olhando para a porta, pronta para fugir. — Então quero saber quem são seus inimigos. Por que você está aqui? Quem tentou seqüestrá-la? Naquele momento, Logan percebeu que era outra mulher que estava diante dele. A mesma que vira ao piano pela manhã. — Fazendo-me essas perguntas — Elise falou em voz pausada — , você está desobedecendo às ordens de Roxanne. — Mas são ordens malucas! Por que não podemos conversar? Estou recebendo uma fortuna para cuidar de você. E, pelo amor de Deus, é isso que pretendo fazer. Mas, por favor, preciso de informações. — Você pode me proteger como quiser, mas mantenha distância. Respeite minha privacidade e me esqueça! Sem perguntas! Logan pegou-lhe o queixo com delicadeza, forçando-a a encarálo.
— Roxanne escreveu no bilhete que você podia sofrer novo atentado. Seria imprescindível saber a quem recorrer, de sua família, em tal caso. — Você sabe tudo o que precisa saber. Elise avançou para a porta, pronta para sair. Mas Logan a deteve. — Você não está sendo razoável. Só me explique por que não pode me dizer quem é. — Isso não faz diferença. Desculpe a franqueza, mas não é da sua conta. Seu trabalho é cuidar para que nada dê errado comigo. Você e Montoya disseram que estava tudo sob controle. Ou não está mais? Logan suspirou. — Tudo bem, você venceu. Eu perdi. Desculpe se fui grosseiro. Não farei mais perguntas sobre sua vida. — Eu... Elise quase revelou a promessa que fizera a Roxanne, mas mesmo mencioná-la seria uma violação do pacto. — Obrigada por entender — disse simplesmente e fugiu pela porta entreaberta. — Mas eu não entendi... — Logan falou para a sala vazia.
CAPÍTULO VI
Sentada em seu sofisticado escritório na cobertura do Edifício Fletcher, em Boston, Roxanne descalçou os sapatos de salto alto. Com um suspiro, espreguiçou-se tentando relaxar os músculos das costas, tensos de cansaço. Numa olhada pela janela, percebeu que já anoitecera completamente. E nem se lembrava de ter visto o sol, sabia apenas que chovera. — Que dia! — murmurou para a sala fechada. Depois que voltara da ilha, tudo dera errado. Desde aquela manhã mesmo, tivera um compromisso atrás do outro e uma série de assuntos para resolver antes de ir para casa. Apenas uma hora antes conseguira encontrar um novo executivo para dirigir a fábrica de Baton Rouge, em dificuldades desde que o diretor efetivo sofrera um enfarte. O único consolo naquele mar de dificuldades era a lembrança da figura carismática de Sol O’Reilly, cuja imagem sensual aflorava em seus pensamentos cada vez com mais constância, desde que foram apresentados seis meses atrás. Encontraram-se apenas três vezes, mas fora o suficiente para ela nunca mais se esquecer de seu jeito de falar, de seu modo de vestir, da expressão do olhar, ora sério, ora irônico... Não entendia de onde vinha tal atração. Ele era o homem mais tímido que já conhecera, um detalhe que apenas lhe acentuava o charme. Sol estava com quarenta e cinco anos e enviuvara dez anos antes. Desde a morte da esposa, passara a dedicar-se exclusivamente ao trabalho, criando um sistema original de comunicações. Roxanne conhecia apenas parte de seu invento, relacionado a programação de
computadores em conexão com transmissão de informações por satélite. Sol era uma espécie de “eminência parda”, cujo trabalho beneficiara
toda
a
humanidade.
Seu
nome
era
praticamente
desconhecido fora do âmbito científico. Por seus conhecimentos altamente especializados, ele era muito requisitado na indústria e nos meios militares. Por alguns contatos, Roxanne soubera que ele pensava encontrar uma companhia que se dispusesse a financiar-lhe as pesquisas. Depois de muito insistir, conseguira convencê-lo a visitar a propriedade da família em Newport, no Estado de Rhode Island, na terça, depois que ela retornasse da ilha. A visita coincidiria com a reunião anual da cúpula da Corporação Fletcher, o que, além de retê-lo por dois dias, permitiria que ele conhecesse os principais executivos da empresa. Muito devotado ao trabalho, Sol dedicava pouco tempo à distração, em especial às de natureza romântica. Ainda que um romance não fosse sua principal prioridade com ele, refletiu Roxanne. O importante era convencê-lo a trabalhar na Eletrônica Fletcher, uma de suas companhias mais carentes de reorganização e novas idéias. Pretendia ocupá-lo na intercomunicação entre as empresas do grupo, incorporando seus conhecimentos na área da computação eletrônica. Outro plano era que ele resolvesse de uma vez por todas o sistema de alarme e comunicações da ilha Maximilliam, que os outros técnicos da empresa haviam negligenciado. No sábado, quando regressasse para lá, talvez o levasse com ela, se o convencesse a trabalhar ao lado de seus diretores. Olhando para o relógio sobre a escrivaninha, percebeu que levara tempo demais pensando em Sol, em vez de trabalhar. Assim, não
poderia ir à ilha sábado. Arrumando o maço de papéis diante de si, retomou a análise dos contratos, tomando notas abreviadas e fazendo apontamentos à margem do texto. Quando deram onze horas no relógio, ela se lembrou de ligar para a irmã. — Oi, Van — cumprimentou assim que a ligação se completou, indo direto ao assunto: — Preciso de um favor seu. — Vou bem, obrigada. E você, como tem passado? — ironizou a irmã de Logan. — Em que posso servi-la? — Queria que você me ajudasse com uma convenção. Para começar na terça à noite e terminar na quinta de manhã, na semana que vem. No Retiro. — Você não vendeu aquela monstruosidade ainda? Vai custar uma fortuna para pôr em ordem tudo aquilo lá. — Tudo bem, eu sei. Mas também ganho mais dinheiro do que consigo gastar. — É verdade. Mas por que justamente lá? — Vanessa intrigouse. — Sempre pensei que você odiasse aquele lugar! — Bem... Devo admitir que não guardo boas recordações de lá, mas penso em usá-lo para impressionar alguém em especial, enquanto o resto dos convidados se distrai... — Mas... e qual é o motivo? — É que vou promover a reunião anual dos principais executivos da Fletcher mundial, acompanhados das respectivas esposas ou maridos. Serão uns cem convidados, mas apenas quarenta passarão as noites de terça e quarta na casa. Por isso gostaria que você cuidasse de tudo, para que todos saíssem satisfeitos. — Depois de
uma pausa, ela acrescentou: — E ainda convidei um homem, acho que já lhe falei de Sol, um inventor... — É a ele que você quer impressionar, Roxanne? — Bem, mais ou menos. Queria convencê-lo a trabalhar para mim. — Sol? Será que o conheço? — Não. O nome dele é O’Reilly. Soloman Giuseppe O’Reilly — Roxanne pronunciou os nomes com ênfase. Vanessa riu. — Soloman Giuseppe O’Reilly? Você deve estar brincando... — Não é incrível? Ele é meio judeu, um tanto italiano e o resto irlandês. É um gênio, a pessoa mais original que já conheci, famoso no meio científico no mundo todo. — Roxanne acrescentou: — Tenho certeza de que você vai adorá-lo. Ele é tudo que um homem deve ser... — É casado? — Viúvo há dez anos. — Ah, ótimo... isto é, desculpe. Falei sem querer. — Van, meu interesse nele não é romântico — mentiu Roxanne. Talvez — e esse era seu maior medo — ele, sim, não se interessasse por ela. — Deixe-me ver — tornou Vanessa. — Eu ia a Montreal com a mãe de Stan McCarthy, mas não era importante... — Tem certeza de que não quer ir? — Eu gosto de Stan, mas nem tanto — observou Vanessa. — Agora me diga: quais são meus deveres de co-anfitriã?
— Você só tem de ir o quanto antes ao Retiro e providenciar os preparativos e a recepção aos convidados e acompanhantes. A maioria só vai embora na quinta de manhã. — Depois de uma pausa, Roxanne acrescentou: — E, por favor, não diga nada a ninguém sobre Elise St. James ou onde ela está nem sobre o que Logan está fazendo, entendeu? Vanessa só sabia que Logan estava com Elise na ilha, mais nada, mas não lhe interessava que o assunto fosse ventilado. Depois de acertarem outros detalhes sobre a recepção, as irmãs se despediram e desligaram o telefone. Roxanne ainda pensou em discar para Sol, mas concluiu que já era tarde. Na manhã seguinte sem falta pediria para Betsy, sua secretária, para fazer a ligação. De repente, correndo o olhar pelo imenso escritório vazio, refletiu sobre o quanto a vida de Roxanne Bentley Fletcher era solitária.
Logan terminou a corrida pela praia do cais e parou com as mãos na cintura, enquanto a respiração voltava ao normal. Depois enxugou o suor da testa com a camiseta, dando graças ao frescor da brisa marinha. O sol desaparecia no horizonte, entre nuvens vermelho-alaranjadas. O dia terminava mais cedo e, exceto pela corrida, não tivera nenhum trabalho, nem limpara o barco. Apenas errara ao redor da ilha, como uma alma penada. O único acontecimento notável do dia fora a reaparição da lancha misteriosa. Mas ela permanecera fora do alcance da vista, sem que pudesse identificar o nome inscrito na embarcação ou um de seus tripulantes. Se regressassem, ele pegaria a lanchinha e iria
verificar. Talvez fosse de algum americano rico, em férias nas Bahamas... mas mesmo assim era preciso ficar alerta. Além disso, nada mais acontecera. A continuar assim, nada justificava ter deixado o Maine. A não ser Elise. Ela, sim, era o problema. O dia todo passara escondida de propósito, na certa para evitar nova confrontação com ele. Pedira a Francisca o desjejum e o almoço no terraço do quarto. Enquanto ele estava fora, estudara piano na sala. Se ele patrulhava a ilha, ela saía ao jardim. Quando ele regressara à casa, ela se trancara no quarto. Não lhe dera uma chance de lhe dirigir a palavra. Seria cômico, se não fosse trágico. Ali estava ele, cuidando de uma pessoa que não queria seus serviços; e aparentemente não precisava deles. Elise não parecia correr perigo. E se tudo aquilo não passasse de um falso pretexto para permanecer na ilha? Eles eram pessoas tão agradáveis! Ali, naquele lugar paradisíaco, poderiam divertir-se juntos. Se ela fosse outra, poderiam se tornar amigos.
Talvez
quem
sabe
iniciar
um
namoro
sem
maiores
conseqüências. Mas, quando um não quer, dois não brigam. E não havia como levá-la a cooperar, a não ser à força, o que seria a última coisa que faria. Logan suspirou. Nunca se vira em tal posição. Até então, nenhuma mulher que conhecera resistira a seus encantos. Com Eli- se, ele perdera o controle da situação. Bem, agora era tarde para tentar convencê-la de qualquer coisa. O dia seguinte era sábado, Roxanne voltaria e Elise iria embora. E eles nunca mais se veriam. Dando meia-volta, subiu para a casa. Já era quase hora do jantar e aquela seria uma longa noite de solidão.
Uma hora mais tarde, Logan estava defronte ao bar da sala com um copo de uísque pela metade na mão. Ouvindo a porta abrir-se, virou-se e quase não acreditou ao ver Elise caminhar em sua direção. O longo vestido vermelho modelava-lhe as curvas sinuosas como uma segunda pele sobre o corpo. O cabelo caía em cachos ao redor do rosto oval. Não usava jóias, que aliás não faziam a menor falta. Na noite anterior, achara-a atordoante, mas, naquela, ela arrasava. Depois que a cor voltou a suas faces, Logan recuperou a voz. — Vai me desculpar por não estar de smoking nem de paletó... — Não se desculpe. — Ela o olhou de viés. — Eu também não devia estar vestida assim. Elise ainda não entendera por que resolvera descer para jantar ou a razão de ter escolhido aquele vestido. Talvez para ver a reação de Logan em sua última noite juntos. Naquele momento se arrependia por ele se sentir deslocado, de calça jeans e camiseta de decote canoa. — Me dê só um minuto para trocar de roupa. — Ela voltou- se para sair. Em
três
passadas
longas,
Logan
a
alcançou
na
porta,
segurando-a pelo cotovelo. — Não, por favor. Você está linda. Devagar, deslizou a mão pelo braço delicado até alcançar a mão trêmula. Elise lhe dera uma nova chance. Não podia arriscar-se a perdê-la. — Aceite uma bebida, antes que Francisca nos chame para jantar — falou suavemente, enquanto a conduzia até o sofá. — O que gostaria de beber?
Elise acompanhou-lhe os movimentos com o olhar, enquanto ele ia até o bar. Nunca bebera nada além do copo de scanda com Sabitta, aquela vez na cozinha do palácio, ou um ou outro golinho de champanhe nas recepções de seu pai. Mas não revelaria a verdade a Logan. Era uma mulher adulta, num mundo de adultos. — O que você escolher está bom — respondeu, procurando revelar segurança na voz. Logan esqueceu o copo de uísque do lado e optou por algo mais leve. — Vejamos o sortimento de champanhe de Roxanne. Sem esperar pela resposta, pegou a garrafa da geladeira, estourou a rolha e serviu o líquido ambarino e borbulhante em duas tulipas de cristal. — Proponho um brinde — sugeriu, erguendo a taça diante da que servira a Elise. Mas ficou sem saber o que dizer: “Aos bons tempos”, ou: “À paz entre adversários”? — Que tal um brinde à amizade? — sugeriu ela, imaginando se ele a interpretaria corretamente. Ou seja, que apenas queria redimirse da grosseria da noite anterior. — À amizade — repetiu Logan. O encontro das duas taças ecoou na sala silenciosa. Logan ainda não acreditava que Elise tivesse mudado de atitude. Depois do dia inteiro culpando-se pela explosão que ela tivera na noite anterior, era um alívio vê-la agindo como se nunca houvessem discutido. Sorrindo, deixou-se cair sobre a almofada do sofá, sentindo-se relaxado e feliz. Elise, em vez de saborear lentamente o champanhe, como de-
veria fazer, bebeu como se estivesse sedenta. Recostou-se no sofá e olhou para a noite estrelada. Não demoraria muito para sentir-se descontraída, o que desejava desesperadamente. A presença de Logan, tão próximo na sala mal iluminada, a perturbava. Durante o dia inteiro tentara convencer-se de que o interesse dele por ela era meramente profissional, e que as atitudes amáveis faziam parte de suas obrigações, só isso. Não havia a menor razão para se impacientar quando ele a encarava. Apenas não sabia como impedir o coração de se acelerar, a respiração de se tornar mais apressada ou a mente de imaginar como seria se ele a acariciasse. — Você não tem muito o que dizer, não é? — ele falou, tirando-a do devaneio. — Nem você — rebateu ela de pronto, forçando-se a beber mais devagar. Depois de descartar vários assuntos, arriscou o que parecia menos comprometedor: — O que você fez durante o dia? — Patrulhei a ilha, fui à piscina e nadei. — Ele deu um risinho irônico. — E tive minhas ilusões destruídas. — Como assim, “ilusões destruídas”? — Você se lembra de quando encontramos a cachoeira e eu comentei que nada que o homem fizesse se compararia à obra da natureza? Elise concordou, visualizando o cenário paradisíaco da quedad’água na piscina rodeada de hibiscos. — Montoya me contou que Roxanne gastou milhares de dólares para desviar a queda-d’água para a piscina escavada na rocha. A despeito da expressão séria de Logan, ela sorriu. — Prove que Roxanne não consegue o que quer, incluindo
aperfeiçoar a natureza. Francisca entrou na sala e pareceu tão impressionada que Elise não pôde deixar de notar. — Algum problema? — perguntou ela. — Não, não, nada, não. Fiquei feliz, foi só isso. — A empregada lançou um olhar auspicioso ao jovem casal. Andara alimentando esperanças acerca dos dois. — O jantar está pronto para ser servido no terraço da piscina. Andando até a saída para o terraço, abriu as portas e voltou, deixando a sala. Logan levantou-se, colocando as taças vazias sobre a mesinha lateral, e deu a mão a Elise para ajudá-la a se erguer. Não tinha certeza, mas ela parecia ter bebido além da conta. — Desde que vamos ser formais, vou fazer a minha parte. — Num gesto cerimonioso, estendeu o braço para ela. — Permite-me conduzi-la ao jantar, srta. St. James? Elise sorriu. — Sim, claro, sr. Hunter — replicou, no mesmo tom formal. O champanhe começava a fazer efeito, e ela sentia-se um tanto embriagada. Era um prazer poder apoiar-se no braço firme de Logan. No terraço, a mesa fora decorada com velas em bulbos transparentes de vidro e arranjos de flores recém-colhidas. A piscina estava toda iluminada. Logan ajudou-a a tomar assento e, depois de acomodar-se, pousou o guardanapo sobre as pernas. Na noite calma, sem vento, o ar estava impregnado de uma multiplicidade de fragrâncias florais da floresta vizinha. A lua cheia surgia no horizonte, subindo lentamente para o céu pontilhado de
estrelas. Com o rosto iluminado por tão suave claridade, Elise estava mais bela do que nunca, considerou Logan. Nenhuma outra mulher que conhecera possuía esse encanto misterioso que ele não conseguia definir.
Excitante
e
sedutora
de
um
modo
diferente
e
maravilhosamente exótica. Depois que Francisca serviu a entrada e se retirou, Elise comentou: — Nunca estive nos Estados Unidos. Tudo o que sei sobre sua terra veio-me por jornais e revistas. Por que você não me fala um pouco a respeito? Enquanto iam saboreando o jantar, Logan deu-lhe uma visão geral sobre o que achava do país, mostrando-lhe os lados bom e mau de se viver lá. Enquanto ele falava, Elise percebeu que Logan sentia a mesma paixão por seu país que ela pelo dela. Não deixava que ele se interrompesse, fazendo perguntas ocasionais para motivar o assunto. Depois de terminada a refeição, Francisca tirou a mesa e serviu o café, voltando pouco tempo depois com um bolo de três camadas com várias velas acesas em cima. Pousando-o diante de Elise, declarou: — A senorita Fletcher disse que hoje é seu aniversário. — Ah, bem, sim... — gaguejou Elise, embaraçada, calculando mentalmente. — É verdade, eu havia me esquecido. Vejam vocês. Francisca acendeu as vinte e três velinhas e, do bolso do avental, retirou um pacotinho que ofereceu a Elise. — “Com amor, de Roxanne” — ela disse muito compenetrada,
apesar do sorriso. — Feliz aniversário, senorita. Depois de arrumar os pratos e talheres de sobremesa, a empregada saiu do terraço. Elise olhava para as velas acesas, emocionada. Então as lágrimas toldaram-lhe a visão. Era muito que Roxanne tivesse se lembrado daquela data. — Você parece mais moça — observou Logan, contando as velinhas. — Faça um pedido e assopre. Mas não conte a ninguém o que pensou. Senão não se realiza... Elise aquiesceu. Sua mãe lhe falara daquele costume. Em silêncio, desejou retornar a Mondária o mais breve possível. E acrescentou um adendo: poder contar a Logan o que estava acontecendo em seu país e sua preocupação com o pai. Então, com um único sopro, apagou todas as velinhas de uma vez. Depois de saborearem o delicioso bolo de chocolate com caramelo, Elise desembrulhou o pacotinho, que continha uma pequena caixa, mas não a abriu. — Desculpe-me — Logan murmurou. — Se Roxanne me tivesse dito, eu teria trazido um presente para você. — Não precisa se desculpar. — Olhando encabulada para as mãos, ela comentou em voz baixa: — Ainda me lembro de quando fiz oito anos e meu pai me levou a um circo. Aos doze, ganhei um pônei de verdade... — Abra seu presente — sugeriu Logan. Elise levantou a tampa e deu um gritinho de admiração. Dentro da caixa havia um pingente de opala numa corrente de ouro. A pedra brilhava à luz da lua.
— É como um pingo de chuva! — murmurou, emocionada. — Deixe-me colocar em você. Logan sentiu quando ela se arrepiou ao tocá-la de leve na nuca. Voltando a seu lugar, comentou: — Você deve ter nascido numa segunda-feira. — Eu? Por que diz isso? — “A criança de segunda terá o rosto bonito” — ele recitou, analisando-lhe a reação. — É verdade. Ou será que você nasceu numa terça-feira? — Desculpe, mas não entendi, Logan. — São versos de uma canção infantil. — Ah, é? E como é que continua? — “A criança de terça será cheia de graça.” — E a de quarta? — “A criança de quarta será cheia de mágoa.” Elise sorriu. — Não nasci na quarta. E quanto aos outros dias? — “A criança de quinta irá longe.” “A criança de sexta terá amor para dar.” — Fitando-a por um momento, ele observou em voz baixa: — Você tem amor para dar? Ao perceber o significado sutil daquelas palavras, Elise sentiu as faces arderem. — Pelo meu comportamento nos últimos dois dias, dá para perceber que não é o caso. Logan deu um sorriso largo. Se ela era capaz de fazer autocrí-
tica, era sinal de que estava mudando e talvez pudessem começar a se entender. — Quais são os outros versos? — pediu ela. — Deixe-me ver... Ah, sim. “A criança de sábado terá de trabalhar para viver.” — Examinando-lhe a expressão e as roupas, ele balançou a cabeça. — Não, não parece ser o caso... — E quanto à de domingo? — “Mas a criança que nasce no dia de Sabá é formosa e sadia e boa e alegre.” Essa descrição parece se encaixar. Você é uma criança de domingo? — Não. Elise sabia em que dia nascera, pois seus pais lhe contaram sobre a tradição mondariana de comemorar o nascimento de um filho do soberano por cem horas. As festividades no caso dela haviam começado na hora do nascimento e terminado na segunda. — Então, em que dia da semana você nasceu? — “A criança de quinta vai longe” — ela sussurrou pausadamente, considerando o quanto o ditado era verdadeiro no que lhe dizia respeito. — Ah, então você é uma menina de quinta... — comentou Logan. — Melhor que o meu dia... sábado. Tenho de trabalhar para viver. Como Elise não respondesse, ele resolveu dizer qualquer coisa para tirá-la de seu mutismo sonhador. — Mas as pessoas que vão longe merecem mais do que um presente de aniversário, apenas. — Quando ela lhe volveu os olhos muito azuis, completou: — Se eu tivesse aqui comigo alguma coisa que pudesse lhe dar, o que você escolheria?
Elise enrubesceu. — Além de guarda-costas, você também é um posnad, ou seja, um gênio, um feiticeiro, ou algo assim? Parece que leu meus pensamentos... — Pode ser. Roxanne sempre achou que eu tinha poderes ocultos... Elise ficou em silêncio por um instante, depois confessou que não tinha coragem de pedir. — Ora, vamos, o que é isso? — animou-a Logan. — Vamos, pode falar. Relutante ainda, ela desviou o olhar para a sala. — Bem... eu gostaria de aprender — respirou profundamente — como se dança nos Estados Unidos. Em Mondária, só aprendera o balé clássico. As danças modernas ocidentais não eram praticadas no país. — E você não tem mais desejos, só esse? Um grande gênio como eu poderia satisfazer vários outros. Elise riu. — Depende. Se você satisfizer bem este, veremos... Logan levantou-se e foi até o aparelho de som. — Vamos ver que tipo de música Roxanne tem. Nas prateleiras de discos laser, encontrou gravações de todos os gêneros de música. Mas preferiu um álbum de seus tempos de faculdade. Quando a música começou, ele voltou para enlaçar Elise, que ficara no centro da sala esperando. — Vamos lá — convidou. — Siga meus passos. Em música
popular, a gente faz os movimentos que quer, apenas não pode sair do ritmo. Elise o seguia da melhor maneira possível, concentrada na música. Não queria falar para não perder a cadência. Depois de poucos passos, fechou os olhos, deixando Logan guiá-la. Logo estava longe, viajando na canção. — Você está indo bem — declarou Logan, ao final da música, enquanto ia até o aparelho colocar outra canção. — Desta vez, vamos experimentar um ritmo mais rápido. Elise dava de si o melhor que podia para aprender. Depois de mais algumas músicas, Logan declarou que ela já podia se considerar iniciada em dança americana popular. Mas já eram quase três horas da madrugada. Elise parecia cansada, mas o olhava com olhos sonhadores, como hipnotizada. — Vamos à última lição de hoje — anunciou Logan, colocando o disco e voltando para junto dela. — Qual o nome da música? — Someone to watch over me — informou ele com um sorriso matreiro. — Julguei apropriada... — Entendi o que você quis dizer. — Elise deu um meio sorriso. — “Alguém para cuidar de mim.” Assim que a música começou, Logan pousou a mão na cintura de Elise, guiando-a com delicadeza. Moviam-se como um corpo só, em sincronia perfeita. Era como se tivessem dançado juntos por anos a fio. Quando a música terminou, Logan continuou a envolvê-la entre os braços. Então, puxou-a de repente para si e a beijou. Foi um beijo
prolongado, profundo, que o deixou completamente excitado. Elise reagia acima de suas expectativas. Embora inocente, agia como uma mulher experiente, envolvendo-o pela nuca e atraindo-o para si. Então, como se ouvisse a campainha de um alarme, Logan retrocedeu, afastando os lábios com relutância. Elise ficou ali, olhandoo, embevecida. Ele a beijou de leve no nariz e encostou a testa na dela. Elise deu um longo suspiro. Pela primeira vez era tratada como uma mulher de carne e osso. Pensou em contar a Logan o que aquele beijo significava para ela, mas não pôde. Ficando na ponta dos pés, beijou-o ainda uma vez de leve nos lábios e sussurrou: — Obrigada pelo presente. Antes que Logan pudesse detê-la, ela já atravessara a sala em passos flutuantes. Na porta, voltou-se antes de sair. — Boa noite — murmurou, fechando-a atrás de si.
CAPÍTULO VII
Logan nadava ao lado de Elise, acompanhando o movimento gracioso de suas pernas esguias na água do mar. Próximo a eles, a lanchinha ancorada balançava de leve entre as ondas. Levando em conta o medo de Elise por barcos, haviam decidido mergulhar não muito longe da praia do cais, num local um tanto fundo mas cuja água clara permitia apreciar os recifes de coral em vasta extensão. Era surpreendente que Elise não demonstrasse temor ao aprender os rudimentos da técnica de mergulho livre, considerava Logan. Para alguém que declarava ter pavor de
barcos, ela estava
progredindo rápido. Haviam passado o dia todo no barco: mergulhando, almoçando, tomando banho de sol. Elise continuara a manter as conversas num nível formal. Mas a falta de assunto não significava que reparasse menos em Logan. Um entendimento implícito nascera entre ambos, como um campo magnético que os mantivesse constantemente excitados e encantados um com o outro. Era evidente que Elise sentia o mesmo que Logan. Em certos momentos, ficara claro que ela estava a ponto de entregar-se ao desejo que seus olhos revelavam, mas uma força interior a mantinha sob controle. Não fosse esse receio mútuo de não ultrapassar certas barreiras, tudo poderia acontecer. Logan nadou por sobre Elise. Mechas de cabelo negro ondulavam na água, e sua vasta cabeleira se assemelhava ao sargaço ondulante dos corais. Ao lado deles passavam cardumes de peixinhos multicoloridos que pareciam observá-los. Logan tocou-a de leve e sinalizou quando ela se voltou: — Seria melhor voltarmos. Elise concordou, nadando para a lanchinha em movimentos
graciosos. — Nem em sonhos eu imaginei que pudesse ser tão maravilhoso — comentou quando já estavam no convés da lancha e Logan lavava o equipamento com água doce. — Obrigada por ter me convidado. — Pena que não tenhamos mais tempo para continuar — Logan observou sorrindo, mas seu sorriso morreu ao ver a lancha misteriosa surgir por detrás da ilha. A lancha se encontrava a uns trezentos metros da ilha, mas de onde estavam dava para ler o nome inscrito na proa: La Paloma, de Nassau, Bahamas. No convés da embarcação havia apenas um homem, que os observava. Era um negro alto, de óculos espelhados, short florido e sem camisa. — Não é aquela lancha? — Elise comentou. Enquanto ela falava, o homem voltou-se e caminhou para a cabine de comando fechada, não permitindo que o vissem melhor. — Vou lá conversar com ele — decidiu Logan. Antes, porém, que pudesse puxar a âncora e ligar o motor, a lancha acelerou e afastou-se. Mesmo que tentasse segui-la, não a alcançariam com a lanchinha. Decepcionado, Logan praguejou. — Qual é o problema? Por que você quer falar com ele? — indagou Elise. — Faz parte do meu trabalho. Aquela lancha já circulou tempo demais por aqui. Elise deu de ombros. — Talvez esteja bom para pescar...
Logan correu os dedos pelos cabelos, de cenho franzido. — É isso mesmo, ele está pescando. Não se preocupe com sua segurança. Depois de uma última olhada para o local de onde a lancha se fora, ele recolheu a âncora e deu a partida no motor. — Vamos embora. Ainda temos muito trabalho antes de fazermos nossa refeição. Você já limpou peixe? Elise olhou para o balde com água pela metade, onde nadavam três garoupas que Logan havia pescado. — Nunca, nem pretendo aprender. Logan riu de sua expressão de nojo. — Nosso piquenique na praia depende da cooperação de cada um. Quem não trabalha não come. Elise deu mais uma olhada para o balde e concluiu que os peixes estariam mais apetitosos quando assados. — Ela vai cuidar do fogo. — E ela já fez isso alguma vez? — Não, mas ela aprende. Sentada junto a Logan, Elise pensou nas diversões que haviam tido juntos. Ficava tão bem ao lado dele que precisava esforçar- se para disfarçar a forte impressão que ele lhe causava. Logan fazia tudo com perfeição: dançar, manobrar o barco, nadar, pescar. Era um homem bem preparado para a vida, dando a impressão de que não havia o que não fosse capaz de fazer. Quanta diferença de Paul Roderi! Apesar de filho e neto de generais, não possuía a mesma têmpera para a carreira nem a in-
teligência e a imponência de seus ancestrais. Fora difícil levá-lo a sério. Mas, por suas relações familiares e pela lealdade dos Roderi ao governo de seu pai, tivera de considerá-lo como seu pretendente. Apesar de ele já ter vinte e sete anos, ainda era imaturo. Nem podia se comparar com um homem como Logan. Não sabia como convencer o pai, mas nem Paul Roderi nem outros possíveis candidatos a desposariam. — Você está sorrindo de quê? — interrompeu-a Logan. Elise sobressaltou-se. — N-Nada, não. Eu... eu estava pensando no jantar. Em que mais a gente poderia pensar? — A gente, eu não sei. — Ele reduziu a marcha, manobrando o barco em direção ao ponto de amarra. — Mas você não perde por esperar. — Adoro surpresas! Elise saltou no píer e amarrou o barco com o mesmo nó complicado que fizera quando se encontraram pela primeira vez. Logan meneou a cabeça. — É uma pena que você tenha de ir logo embora — comentou. — Senão eu teria tempo de transformá-la numa dançarina e marinheira de primeira. Enquanto caminhavam para a casa, Elise considerou que o tempo havia se transformado num inimigo. Em poucas horas, Roxanne estaria de volta e no dia seguinte ela tomaria o caminho de casa. Embora ainda estivesse ansiosa para rever o pai e saber notícias de seu país, já não tinha tanta pressa de partir. De repente, era tão agradável a companhia de Logan...
Roxanne olhou para a secretária, que aguardava de bloco de anotações e lápis na mão. — Sol O’Reilly ligou, Betsy? No dia anterior, de manhã à noite, tentara em vão localizá-lo. A secretária respondeu que não. — Liguei para o serviço de recados às oito, logo que cheguei, e o operador me prometeu que responderia dentro de uma hora. — Ela olhou para o relógio. — Já passa das onze! Roxanne sabia que horas eram. Desde que entrara no escritório, olhava para o relógio de cinco em cinco minutos. Por que será que Sol a evitava? Teria arranjado outro emprego? Aborrecida, virou a cadeira para a janela e fitou a cidade a seus pés, tentando se controlar. Não era só uma resposta sobre o trabalho que esperava dele. Queria ouvirlhe a voz, embora soubesse que era uma tolice deixar o coração dominar seus atos. Mas que diabo, não podia negar os próprios sentimentos! Inalando profundamente, voltou-se para a secretária. Tinha muito trabalho pela frente para ficar sonhando com Sol O’Reilly. — Já recebeu o relatório de Frank Barnes? Desde que o Parlamento de Mondária impusera restrições à transmissão de informações por telefone e telégrafo para fora do país, estava ficando cada vez mais difícil receber notícias da subsidiária em Suryat. Era preciso esperar pelo malote, que ia de avião para Roma e era depois transmitido por telefone de lá. — O relatório chegou há uma hora. — Está bem, vou lê-lo mais tarde. Dê-me um rápido resumo da situação.
— As coisas estão piorando por lá. Tem havido passeatas, comícios, bandeiras agitadas e guerras de pedradas nas ruas. Algumas propriedades do governo foram atacadas, mas sem mortes até o momento. Estudantes e trabalhadores fizeram piquetes em frente da fábrica, com cartazes contra a permanência de americanos no país. O Parlamento nada pôde fazer, como sempre. Kaleer foi à televisão, tentando acalmar os ânimos, mas a situação é tão tensa que não se esperam negociações para as próximas horas. É aguardar para ver. — Tudo bem, obrigada. — Roxanne anotou na agenda um lembrete para ler o relatório e então tentar entrar em contato com Alexander tendo de ir outra vez a Mondária ver a situação com seus próprios olhos. — Betsy, você me ligaria com a ilha agora? — Miami vai fazer contato por rádio. — A secretária pegou o fone e discou. — Não sei por que está tão difícil falar com a ilha por telefone. — Essa é uma das razões por que Sol é necessário aqui. — Francisca? É a secretária da srta. Fletcher. Você está me ouvindo bem? — Betsy afastou o fone do ouvido por um momento. — Está com muita estática. Alô? Francisca? Você pode... Oh, droga! Ah, espere um momento. — Ela passou o fone para Roxanne. — Apesar do ruído, acho que dá para entender. — Aqui é Roxanne. — A senhora está em Miami? — indagou Francisca. — Chega a tempo para o almoço? — Não, ainda estou em Boston. Não vou para aí antes da terça. — Terça? — gritou Francisca ao ouvido de Roxanne. — Algum problema aí?
— Não, está tudo bem. — A empregada falava em tom confidencial, como se tivesse outras informações para dar. — Como é que Elise e Logan estão se entendendo? — Bem. — A estática retornou, obrigando Francisca a gritar ao aparelho. — No início, eles se estranharam, mas agora estão juntos... faz tempo bom. — Onde eles estão? Posso falar com Logan? — Foram pescar de barco para fazer o jantar na praia. Um piquenique na areia, à noite. Roxanne surpreendeu-se por Elise ter concordado em sair de barco. Um dos tripulantes do iate comentara que ela não se sentira bem na viagem para a ilha. No mínimo, Logan usara de seus encantos para persuadi-la. — No início, eles pareciam não se entender — continuou a empregada —, mas, depois de ontem à noite, as brigas acabaram. Roxanne deu um pulo na cadeira. Não era possível que tivesse havido algo entre eles. Sua idéia de uni-los não passara de uma brincadeira. Ainda que fosse sério, não deveria ocorrer daquela maneira. Além do mais, Alexander tinha planos de casar Elise com o filho de um de seus generais. Se ela perdesse a virgindade, o soberano teria um ataque. — O que aconteceu na noite passada? — quase gritou. — O senor Logan ensinou a senorita a dançar música americana. Ela estava muito bonita, no vestido vermelho... — Mas foi só isso, dança? — Ah, sim. Eu fui até a sala, depois que terminaram, para apagar as luzes, e o senor Logan estava sozinho no terraço, olhando
para a lua e o mar. — E ele não falou nada? — Ele sorriu. Montoya me contou que o senor caminhou pela praia ainda por um bom tempo. Roxanne relaxou. Logan devia ter se frustrado em seus intentos. Ela lhe devia essa. — E Elise, ficou surpresa com o presente? — Ficou. Ela não se lembrava do aniversário. O pingente ficou lindo nela. Hoje cedo, ela ia sair com ele, mas o senor Logan falou que não, que poderia perdê-lo na água. — Alegra-me que estejam se divertindo. Gostaria de estar aí. — A senorita virá... hã... na terça? — Pois é, não poderei ir antes. Tenho muito trabalho para fazer. Se surgir algum problema, vocês me ligam. — E o que digo ao senor Logan? — Por favor, diga a ambos que eu peço desculpas por não poder ir. Diga a Logan para agir de acordo com minhas instruções. — Sí, senorita. Entendi. — Então, até logo, Francisca. E obrigada. Nos veremos na terça de manhã. — Desligando o aparelho, Roxanne voltou-se para a secretária. — Tente de novo ligar para Sol. Diga ao serviço de recados que vou cuidar de encontrá-lo pessoalmente, se não responderem dentro de uma hora. Betsy franziu a testa, descontente com a atitude da chefe. — Faça o que mandei — Roxanne ordenou. — Que se dane, encontre-o onde ele estiver!
Betsy era pessoa de extrema confiança, companheira dos antigos protestos contra a guerra. O relacionamento de ambas ia além de patroa e empregada. Além do mais, pagava-lhe um salário muito acima do de seus diretores, como prova de reconhecimento. Roxanne tornou a virar a cadeira para a janela. Era quase verão. A primavera viera e passara sem que ela se desse conta. Ao fundo, Betsy falava em voz baixa ao telefone. Pensou em Logan e Elise na ilha. Estariam mesmo começando um romance? Pensou igualmente nela e Sol. Depois de um contato inicial, sentira-se muito atraída e suspeitava que ele também. Não seria muito difícil passarem ao estágio seguinte... se conseguisse encontrálo. — Ele foi escalar montanhas — informou Betsy. Roxanne voltou-se num ímpeto. — O quê? — Depois que eu fiz a ameaça que você mandou, transferiramme para a secretária dele, em casa. Ela admitiu que Sol foi para o Alasca. — Betsy baixou o olhar para o bloco de anotações. — Está tudo aqui: ele está estudando geleiras e lagos formados no período Pleistoceno, ou, como nós chamamos, a Era do Gelo. Está procurando fósseis para sua coleção particular. Só deve voltar segunda à noite. Mas a secretária me garantiu que ele irá ao Retiro na terça à noite. Roxanne sorriu, compreendendo que se preocupara à toa. Suas únicas rivais eram as geleiras e as pedras. O telefone tocou à cabeceira da cama de Elise, que se sentou na cama esfregando os olhos. No relógio ainda não eram sete horas da
noite. Depois que retomara com Logan do passeio de barco, ela fora para o quarto tomar um banho e descansar um pouco. Já fazia mais de duas horas que rolava entre os lençóis, tentando pegar no sono. Atendeu, e a voz de Logan soou do outro lado da linha. — Oi — ele falou docemente. — Alô. — Acordei você? — Não. — Ela afastou o cabelo do rosto, adorando ouvir a voz quente e sensual de Logan. — Eu estava levantando agora. — Pensando na maneira de acender o fogo, eu espero. — Você acha que não vou conseguir. É só esfregar dois pauzinhos e... Logan deu uma risada. — Não deixa de ser uma boa idéia, mas muito primitiva. Existem métodos mais modernos: carvão, combustível, fósforos. O carvão já está aceso. Está tudo pronto, incluindo o peixe. Só falta você chegar. A gente se encontra na praia, certo? Antes que ele desligasse, Elise perguntou: — Você sabe a que horas Roxanne vai chegar? Logan não respondeu de imediato. — Ela não virá esta noite. — O quê?! — De um salto, Elise alcançou a calça no pé da cama. — Como você soube? — Levantando-se, com o fone entre o ombro e a orelha, começou a se vestir. — Ela ligou? Quando ela vai chegar? — Ela falou com Francisca, quando saímos de barco. Só vai chegar na terça.
— Mas são três dias de atraso! Ela não falou nada sobre meu pai ou sobre o que está acontecendo em... — Elise deteve-se a tempo. Roxanne não diria nada sobre Mondária nem sobre seu pai a Francisca. E, se houvesse algum problema, teria ligado novamente, para falar-lhe pessoalmente. — Sinto muito se você se aborreceu — volveu Logan. — Se quiser, podemos ligar para o escritório em Miami e mandar uma mensagem. Ela disse que estaria fora da cidade, mas nós... — Não, não precisa. Foi só a surpresa. Tudo bem. — Muito desapontada por não poder sair já da ilha, como tinha planejado? Elise não soube o que responder. Finalmente aceitara Logan pelo que ele era e não guardava ressentimento. Tinham se tornado amigos. Por tudo isso, gostaria de ficar. Mas havia outras razões a considerar, como a saúde de seu pai, por exemplo. — Elise? Você está aí? — Estou, tudo bem. Vou esperar Roxanne chegar antes de planejar ir embora. — Bom. Está com muita fome? — Morrendo. Encontro você na praia em cinco minutos. Depois de desligar o aparelho, Elise considerou por um instante o que faria nos próximos três dias em face de seu relacionamento com Logan. Não havia dúvida de que começava a gostar dele, concluiu, pensando se não teria sido melhor conservar o plano original de mantê-lo afastado. Logo estaria à mercê dos sentimentos. De qualquer maneira, o melhor que tinha a fazer seria aproveitar ao máximo cada momento.
Deitada de bruços sobre a larga esteira de vime, Elise contemplava as faíscas que escapavam da fogueira, davam uma pirueta no céu escuro e desapareciam. Ali perto, o som ritmado das ondas quebrando na areia era como uma carícia para os ouvidos. Em paz consigo mesma e satisfeita, depois dos deliciosos peixes assados com batatas nas brasas, ela ainda bebericava o vinho branco gelado. Talvez tivesse bebido além da conta, refletiu, sentindo- se flutuar como num tapete mágico. E nem se deu conta de que uma de suas longas pernas estava completamente exposta pela fenda lateral da túnica comprida, única vestimenta que trouxera de Mondária, como um cordão umbilical que não quisesse romper. Olhando para Logan, cujo perfil se recortava contra o fogo a seu lado, ela considerou que tinha duas opções: ou ir dormir, agora que a refeição terminara, ou ficar e arcar com as conseqüências. — Você não tem muito o que dizer, não é? — provocou-o em voz baixa. Reconhecendo suas mesmas palavras da noite anterior, Logan estirou-se ao lado dela, na mesma posição. — Existem outros meios de comunicação, além da linguagem. Tomada de forte emoção, Elise fez o máximo para se controlar. Se não o fizesse agora, depois não poderia parar. — Elise? — Logan murmurou. — O que é? — respondeu ela com voz profunda. Cruzara os braços sob o queixo e o apoiava neles. — Você é casada? — Não — falou sem pensar. — Divorciada?
— Não. — Viúva? — Também não. — À medida que respondia, ela ficava cada vez mais séria. — Eu sei que você nunca esteve... — ele fez uma pausa para respirar — numa situação como esta antes. — O que você quer dizer com “situação”? — Bem... deitada com um homem. — Ele olhou de relance para aquele corpo feminino, iluminado pela fogueira. — Vestida desta maneira... A longa túnica lilás e a vasta cabeleira negra conferiam a Elise um ar de princesa oriental. — Pois pode ter certeza de que é o primeiro homem com quem estive assim sozinha. — E você não vai me contar por que uma garota linda como você nunca teve um relacionamento com um homem? — Eu não posso lhe contar. Apesar de Elise preparar-se para outra bateria de perguntas, Logan surpreendeu-a com esta: — Você quer que eu a acompanhe até a casa? — Não — continuava falando sem pensar. Roçou o braço com os dedos e a pele ficou toda arrepiada. — Então você não se importaria se eu a beijasse. Era agora ou nunca. Elise dividia-se entre ir e ficar. Uma vozinha diabólica em seu íntimo a instigava a ficar. — Seu silêncio diz tudo. — Logan começou a aproximar-se.
— Espere... por favor. Você não entendeu. Eu não tenho certeza do que falar ou fazer. Melina Kaleer era agora uma vaga lembrança. Uma nova mulher, chamada Elise St. James, estava ali deitada, sentindo o contato das pernas de Logan, captando a emanação de calor ao longo de seu corpo. — Você quer dizer... — Logan olhou-a dentro dos olhos como se quisesse apoderar-se de seus pensamentos — que quer que eu a beije? — Acho que sim... — Bom — Logan falou, chegando o rosto bem perto do dela. Quando suas bocas se uniram, foi como se a realidade deixasse de existir. Logan a envolveu com os braços fortes, e ela o imitou, puxando-o para si. Elise quase não acreditava no que estava lhe acontecendo. Pela primeira vez sentia-se viva,' intensamente desperta. Talvez o contato mágico daquele corpo de homem a estivesse transformando de menina em mulher. Logan avançava de acordo com as reações de Elise. Timidamente a princípio, depois com um ardor incóntrolável, acariciou- lhe os seios, primeiro um, depois o outro. Elise gemia, arqueando o corpo em oferecimento. Ele aprofundou ás carícias, deslizando a mão para a cintura estreita e o abdome liso. Apesar de ultrafeminino, o corpo dela era forte e excitante. Voltou então aos seios, acariciou-os ainda uma vez, deleitando-se com as reações ardentes que despertava, então beijou-a mais suavemente, até que ambos se acalmassem. — Sabe, Elise — falou ainda ofegante. — Há uma pergunta que eu gostaria de lhe fazer.
— E qual é? — indagou ela, temerosa. — Quando a ouvi tocando piano, percebi que por trás da pessoa controlada que você aparenta ser há uma mulher de profunda sensualidade. Eu me pergunto se haveria como trazê-la à tona. Elise suspirou, relaxando dos momentos de paixão. — Uma estranha é o que ela é. E isso me assusta. — Como assim? — Logan desvencilhou-se dela, sentando-se. Elise rolou para o lado, apoiando o rosto num dos braços para encará-lo. Não podia revelar os sentimentos sem provocar outra onda daquelas odiosas perguntas. — Desculpe, mais uma vez. — Logan correu a ponta dos dedos pela espinha de Elise. Ela arquejou, arrepiada. Sentando-se, trêmula, passou os braços ao redor da cintura de Logan. — Você acertou. Sou uma inocente, tão fora da realidade que pareço de um outro mundo. Apesar de falar quatro idiomas, tocar vários instrumentos musicais, conhecer arte e literatura modernas, vivi reclusa como uma freira. Nunca fiz nada simples como preencher um cheque, andar de bicicleta, dirigir um carro. Esta foi a primeira vez que saí sozinha. Se tivesse de deixar este lugar e enfrentar o mundo, eu me perderia. Pensando que ela estava chorando, Logan passou um braço em torno dos ombros de Elise, mas ela apenas tremia. — Você sabe o que está fazendo, não? — indagou ele. — Sei, claro. Mas agora você deve ter mais perguntas: por que Elise St. James está sob proteção? Onde ela mora? Por que está fugindo? Só que eu não posso responder nem lhe explicar por quê. —
Ela desvencilhou-se do abraço. — E isso tem algo a ver com Roxanne? — Tem. Mas é tudo o que posso dizer. Virando-se para a fogueira, Elise revoltou-se. Maldita Roxanne! Será que ela sabia o quanto seria difícil manter aquela promessa? Logan pegou-a pelo queixo e forçou-a a encará-lo. — Eu já lhe disse que não faria perguntas que você não quisesse responder. E é verdade. Abraçando-a de novo, apertou-a até que relaxasse. — Bem, aqui estamos nós: você, uma criancinha perdida na floresta, e eu... Não sei como você me classificaria. — Como assim? Logan pensou um pouco antes de responder: — Na época da faculdade, ajudei Roxanne por causa do envolvimento dela em manifestações contra a guerra do Vietnã. Tirei-a várias vezes de situações embaraçosas. Mas eu mesmo, embora ajudasse outras pessoas, não tinha convicções. Elise quis perguntar sobre o que ele estava falando, mas não ousou interrompê-lo. — Por seis anos, pertenci à classe dirigente, disposto a me tornar o maior advogado do Estado de Nova York. Mas conheci a mulher errada. Karen casou comigo pensando em me convencer a entrar para a Corporação Fletcher. Ela queria ser a esposa de um executivo importante... — Logan fez uma pausa, imaginando se ela conseguira seu intento. — Por favor, continue — pediu Elise em voz baixa. Logan
brincava com a mão em seu braço, deixando-a excitada. — Quando meu casamento acabou, rejeitei aquela forma de vida. Por uma série de razões, queria ir a um lugar onde me sentisse bem. — Depois de uma pausa, ele completou: — Isso já faz um ano. Surpreso, ele percebeu que nunca falara tanto de si mesmo a outra pessoa. Um pedaço de carvão na fogueira estalou, liberando uma explosão de faíscas. O ronco da ressaca nas pedras aumentara. A maré estava subindo. — Por que você não quis trabalhar na Fletcher? — Elise quase perguntou por que ele estava trabalhando para Roxanne, mas não o fez. — Naquela época, meu avô dirigia a companhia. Por causa de sua atitude em relação a meus pais, achei desleal colaborar com a família. Minha decisão custou-me o casamento, mas a longo prazo acho que fiz a escolha correta. Mesmo depois que Roxanne assumiu o controle e me fez várias propostas, continuei recusando, mais porque Karen gostaria que eu as aceitasse. — E por que você aceitou vir para cá? Logan levantou-se e ficou olhando para a fogueira. — Aceitei porque achei que era hora de voltar à realidade. — Ele olhou em volta. — Se é possível chamar esta ilha de mundo real. Elise levantou-se e parou ao lado de Logan junto ao fogo. Ainda estava trêmula, como resultado de seus abraços. Daquela noite em diante, o relacionamento entre eles seria diferente. Mas aonde os levaria ela não sabia. Olhando para a praia, viu uma sombra entre os coqueiros e soltou uma exclamação apontando para lá.
Em questão de segundos, Montoya apareceu junto a eles. — Perdón, senorita. Estava patrulhando a praia. Logan adiantou-se. — Você viu alguma luz no mar? — Não. Por qué? — Imaginei se aquele barco teria voltado. — Eu o vi hoje à tarde. Mas ele foi para o sul, rumo a Nas- sau, parece. — Certo. Assim que Montoya passou por eles, Elise abaixou-se para recolher a esteira. Era hora de ir, antes de cair em tentação outra vez. — Vamos dar um mergulho na piscina — convidou Logan. — Oh, mas... — Por favor! Pegando-a pela mão, conduziu-a no caminho do terraço. Elise não ofereceu resistência. Aquela noite possuía um encanto mágico que nenhuma força no mundo poderia vencer.
CAPÍTULO VIII
Depois de escovar o longo cabelo negro, Elise enrolou-o num coque e prendeu-o no alto da cabeça com grampos. A claridade intensa da manhã de sol entrava pelas janelas abertas e refletia-se no espelho do quarto, produzindo cores iridescentes na opala que pendia da correntinha a seu pescoço. Imaginando que estivesse quente, Elise tocou-a,
sorrindo
em
seguida
da
própria
ingenuidade.
Então
levantou-se, examinando suas roupas. Por baixo do conjunto de saia e blusa, usava um shortinho, para o caso de sentir calor durante a viagem a Nassau. Na noite anterior, Logan propusera irem no veleiro até a capital. Eles haviam passado o dia todo juntos, nadando, jogando tênis, fazendo exercícios na sala de ginástica do terceiro pavimento da casa. Durante a tarde, realizaram outra excursão pela ilha, colhendo conchas para a coleção dela. Não restara o menor sinal da animosidade inicial; Elise nem sequer lembrava como pudera resistir a Logan. A felicidade que experimentava ao lado dele apagara os últimos vestígios de hesitação. Enquanto estavam no terraço, depois de outro jantar na praia e de um mergulho noturno, Logan fizera a proposta de surpresa. A princípio, Elise se opusera a sair em mar aberto, mas Logan acabara por convencê-la com seus argumentos. Além de descansarem da ilha por um tempo, poderiam trazer suprimentos para Francisca e comprar revistas e jornais, além de saborear a autêntica culinária das Bahamas, regada a irresistíveis coquetéis de frutas com rum. Mas fora a referência às publicações que a convencera finalmente. A medida que descia as escadas, já pronta para a excursão, Elise sentia a excitação crescer. Ao entrar na sala de estar, encontrou Logan à escrivaninha de Roxanne, manuseando talões de cheques e cartões de crédito. Respirando fundo, aproximou-se.
— Bom dia — cumprimentou. Logan levantou a cabeça para ela e sorriu. — Bom dia. Venha até aqui que eu vou lhe mostrar umas coisas. Em poucos minutos, explicou-lhe como se procedia com os cartões e os talões de cheques, e então estavam prontos para partir. — Vamos então? — Elise deu um sorriso que deixou Logan morrendo de vontade de abraçá-la. — Escute — ele falou, enquanto a conduzia para a porta pelo braço —, eu nunca acreditei que você gostasse de barco, sabia? — Estou mudando... Só depois das duas horas da travessia, quando pisava já em terra firme, no cais da ilha New Providence, Elise percebeu o quanto estivera tensa. Afinal, não tivera tempo de mudar tão radicalmente. Tomando fôlego, inspirou fundo o perfume da morna brisa tropical. O cais e o mercado na orla do mar, com suas barracas abertas, lembrava-lhe Suryat. Eram semelhantes até o burburinho e os pregões dos artesãos e peixeiros, floristas e mercadores de esponjas, anunciando em altos brados a excelência de seus produtos. Aquilo lhe produziu uma onda de nostalgia que lhe fez brotar água nos olhos, obrigando-a a piscar seguidas vezes e engolir em seco para sufocar a dor em seu peito. — Vamos — chamou Logan, que percebera sua emoção. Se a cena lhe lembrava o lar, então talvez ela fosse da Inglaterra, considerou. — Temos de passar na Polícia Marítima e na inspetoria da alfândega, para dar entrada na ilha. Quem sabe também encontrassem a lancha misteriosa e eliminassem de vez aquela situação de suspeita.
Depois de passarem pelas autoridades, deixaram o barco na marina e caminharam pela cidade. Tomando a rampa da praça Rawson, seguiram para a praça do Parlamento, admirando a estátua da jovem rainha Vitória no trono, ladeada por dois canhões. Elise reconheceu naquilo parte de sua própria história, lembrando- se de fatos longínquos que sua mãe lhe contava. Pensou em comentar com Logan que o avô materno fora ministro da rainha, mas conteve-se a tempo. Era frustrante não poder fazer-lhe a menor confidência. Seguiram em frente, com Logan apresentando as principais edificações: o prédio cor-de-rosa da Câmara e da Assembléia, a Biblioteca
Pública,
uma
construção
octogonal
que
abrigara
originalmente a prisão da ilha. Elise prestava atenção em tudo, mas não deixava de excitar-se com a presença de Logan. — Lá estão os hotéis e o cassino — informou ele, apontando uma fileira de prédios atrás de uma faixa de água. — Você costuma jogar? — Elise indagou. — Não, esses lugares não me inspiram confiança. Basta dizer que o próprio governo das Bahamas proíbe os cidadãos das ilhas de jogar. — Ah, é? No fundo, Elise tinha vontade de conhecer um cassino. Aquela era uma das experiências que mais a fascinavam. — Está com fome? — quis saber Logan. — Estou. Aonde a gente poderia ir? — Francisca recomendou uma cantina na rua do Banco, mas eu gostaria de experimentar a comida típica da ilha: pombo assado com ervilha-de-cheiro e arroz, torta de tartaruga-verde e empadões de
mariscos. Elise ficou em dúvida. — Você já experimentou algum desses pratos? — Não, mas os Cristobal disseram que a comida nativa é deliciosa. — Tudo bem — Elise concordou sem grande convicção. Depois de algum tempo procurando um restaurante autêntico, encontraram uma casa pequena, decorada com artesanato de palha, animais empalhados, crustáceos secos e telas de folhas de palmeira. O cardápio era escrito numa ventarola. A um canto, um grupo de músicos executava melodias no sensual ritmo das ilhas. A cadência pulsante provocou em Elise uma comoção que a fez lembrar-se dos abraços ternos de Logan na praia. — Aqui eles chamam esse ritmo de goombay — explicou Logan. — Cada ilha tem o seu: calipso, reggae, limbo. Esse é o som das Bahamas. Pena que não tenha pista de dança. Nós poderíamos tentar alguns passos. O ritmo pulsava em Elise, que ficou imaginando-se nos braços de Logan, embalando-se naquele som. Seus pensamentos foram interrompidos pela chegada da refeição. Concentrando-se nas porções apetitosas, logo se convenceu de que suas dúvidas eram infundadas. A comida era deliciosa, especialmente o empadão de mariscos: carne de mexilhão com especiarias picantes, farinha de trigo e ovos, refogada em óleo. Para acompanhar, beberam um aperitivo chamado Bahama Mammas, feito de suco de laranja e água de coco com rum, que fez Elise sentir calafrios. Só que ela já aprendera a lição com o champanhe e bebeu
em golinhos prudentes. Foi um almoço inesquecível. À saída do restaurante, Elise teve uma idéia. Se pudesse afastar-se, por um mínimo de tempo que fosse, de Logan, talvez pudesse ligar para seu pai. Enquanto desciam a rua, ela apontou para o prédio do banco. — Acho que vou experimentar tirar algum dinheiro com meu cartão. — Quando Logan concordou, ela impôs uma condição: — Mas quero fazer isso sozinha, para ver como me saio. Ele arqueou as sobrancelhas, preocupado, mas entendeu seu desejo de independência. — Tem certeza de que não precisa de mim? — Tenho. Não se preocupe. Volto logo. — Tudo bem. Enquanto espero, vou tomar um cafezinho naquele bar. — Ele apontou para um café próximo. Antes que Logan mudasse de idéia, Elise atravessou a rua e entrou no banco. Lá dentro, olhou ao redor, sem saber para onde se dirigir. Por trás dos balcões, vários homens e mulheres pareciam ocupados no trabalho. Ela não viu nenhum aparelho telefônico disponível. À direita, entre algumas portas de vidro, destacava-se uma com a inscrição: “Thackery W. Follett, Gerente”. Infundindo-se confiança, ensaiou uma postura afetada e entrou na sala. O homem por trás da escrivaninha interrompeu surpreso o que estava fazendo e encarou-a com a caneta parada no ar. Elise imediatamente percebeu seu erro, mas estava disposta a ir até o fim, a menos que ele a pusesse para fora.
— Perdão, madame, mas a senho... — o homem não conseguiu completar a frase, interrompido por Elise. — Sr. Follett, preciso de sua ajuda — falou ela com o sorriso que reservava para quando ia pedir alguma coisa ao pai. — Mas, madame, eu não estou aqui para... Elise brandia diante dele o cartão de crédito. — Meu nome é Elise St. James. Represento a Companhia Fletcher e estou na ilha Maximilliam como convidada da srta. Roxanne Fletcher. O senhor a conhece, claro. O homem a olhava como se estivesse sonhando. — Conheço, sem dúvida. Ela tem conta conosco desde que reformou a ilha. — Ele continuou depois de uma pausa: — Uma mulher encantadora, a meu ver, com certeza a mandou... Ahn, isto é, por que não se senta? Ele se levantou para ajudá-la a acomodar-se e voltou ao lugar depois. — E em que posso ser útil, diga-me? Pela mudança de tratamento, Elise compreendeu o peso do nome Fletcher. — Bem, é que eu precisava de algum dinheiro e... uns mil dólares, a serem debitados do meu cartão de crédito. Pela surpresa do homem, Elise julgou que era uma quantia elevada. Mas, antes que dissesse alguma coisa, ele se adiantou: — Estou certo de que não haverá nenhum problema. — Aqui tem meu passaporte, para identificação. Enquanto o senhor providencia o dinheiro, eu poderia usar seu telefone?
— Oh, mas claro, srta. St. James. Quer o dinheiro em notas graúdas ou miúdas? Em dinheiro americano mesmo ou em notas das Bahamas? — Bem, deixe ver... Notas miúdas e... qual a diferença entre o dinheiro das Bahamas e o americano? — Valem a mesma coisa, apenas o dólar das Bahamas só é aceito nas ilhas. — Então, em notas americanas, por favor. Assim que o gerente saiu, Elise pegou o telefone e pediu a ligação para a telefonista. Segundos depois, a mesma voz feminina informava não ser possível completar a chamada. Tentou outra vez, sem sucesso. Dessa vez, a telefonista informou que havia problemas com a linha de Suryat e, até ordem contrária, as comunicações com Mondária estavam interrompidas. Nesse momento, o gerente do banco retornou à sala, com um envelope na mão, além do passaporte dela e do cartão de crédito. — Está tudo arranjado, srta. St. James — informou. — Aqui estão seus documentos e o dinheiro. Depois que Elise pegou suas coisas e agradeceu, ele completou: — E volte sempre. Dê lembranças à srta. Fletcher. Já na rua, Elise olhou para os lados com o coração batendo em disparada. — Bem, como se saiu? Virando-se para o lado, ela deu de cara com Logan. — Eu... eu... não vi você. — Teve algum problema?
Enquanto conversavam, Logan pensou ter visto o homem da lancha do outro lado da rua. No instante seguinte, ele havia desaparecido. — Foi tudo bem. — Elise notou que Logan parecia prestar atenção em outra coisa. — O gerente foi muito gentil. Logan voltou-se para ela, surpreso. — Você foi direto ao gerente? — Fui. — Pois não precisava incomodar o presidente do banco só para tirar algum dinheiro — disse ele, rindo. — Qual é o problema? Logan não respondeu, pois acabara de ver de novo o homem atravessando a rua mais à frente. — Logan, qual é o problema? — insistiu Elise. — Vamos. — Pegando-a pelo braço, ele a obrigou a seguir rua abaixo. — Para onde você está me levando? — Vamos fazer umas comprinhas. Seguiram para a rua da Baía. Enquanto Elise dava uma olhada nas lojas de suvenires, ele observava se não havia ninguém conhecido por perto. Chegou mesmo a pensar que estava imaginando coisas. Elise entrou numa das lojas, e ele a acompanhou. Enquanto ela olhava os artigos, Logan resolveu comprar algo para levar para a mãe. Acabou por decidir-se por um lindo vaso de porcelana para ela colocar as rosas do jardim. Então lembrou-se do presente de Elise, embora nada ali lhe houvesse chamado a atenção. Pelo canto do olho, viu-a
conversando com um vendedor. Ao notar que ele a olhava, Elise deu-lhe um sorriso. Sentia-se tão bem na companhia de Logan! Com o tempo, ia aprendendo a reconhecer as sensações intensas que ele lhe despertava. Havia muitos níveis no relacionamento que ainda não haviam sido explorados. Antes de Roxanne chegar, ela pretendia analisar a profundidade de seus sentimentos por ele. Meia hora mais tarde, Elise havia escolhido seus presentes e dirigiu-se à caixa para fazer as contas. — Vão ficar lindos em você — comentou a vendedora, observando o conteúdo das caixas. — Não são para mim — informou Elise. — São presentes para amigos. Escolhera um par de brincos de coral para Francisca e um bracelete de ouro para Sabitta. — E o cachimbo de espuma-do-mar e o canivete suíço, são para você? — indagou Logan atrás dela. — O canivete é para Montoya. E o cachimbo é para um colecionador meu conhecido. — Ela exibiu um chapéu e uma bolsa de palha e um par de óculos escuros. — Estes são meus. — Só isso você vai comprar para si mesma? — Logan dera uma olhada no polpudo maço de notas de cinqüenta dólares com que Elise saíra do banco. — Parecem pouco práticos. — Não encontrei nada que me agradasse. — Ela observou os dois pacotes que ele levava. — E você, o que comprou? — Um vaso para minha mãe. E o outro, uma surpresa. Saindo da loja, encaminharam-se para as barracas do mercado,
onde compraram os suprimentos da lista de Francisca. De volta à marina, Elise parou subitamente junto ao barco. — Qual o problema? — indagou Logan. — Esquecemos os jornais e revistas. — Ela olhou ao redor à procura de alguma banca. — Está ficando um pouco tarde. A gente compra noutro dia. — Por favor. Não vamos demorar para achar. Logan olhou para o céu da tarde, imaginando que seria quase noite quando chegassem à ilha. — Está bem. Temos cinco minutos. Depois, encontrando ou não uma banca, vamos embora. Trinta minutos depois, eles retornaram ao barco com London Times e o New York Times. Se Elise sentira alguma perturbação, mesmo uma pontada de medo, quando cruzaram o mar aberto durante a calma manhã, que diria agora, quando as ondas imensas se agigantavam na proa do barco e as rajadas enlouquecidas de vento ameaçavam virar a frágil embarcação? — Não vejo a hora de isto tudo acabar — gritou ela para Logan na porta da cabine, onde tentavam se proteger da fúria do vento e dos respingos da água salgada. A meio caminho da ilha, surgiram imensas nuvens negras ao sul do horizonte. Logan pedira a Elise para segurar o leme enquanto tentava ouvir o boletim meteorológico no rádio. Mesmo a Guarda Costeira fora pega de surpresa pela rapidez e a intensidade da tempestade, de ventos de até cem quilômetros por hora. Não seria de admirar se a situação piorasse nas próximas horas. Seria uma sorte
se ela tomasse o rumo leste e fosse para o meio do Atlântico. Logan tentava compensar com o leme o esforço das velas sob o efeito do vento. — Quando eu pedi o boletim do tempo, pela manhã, a tempestade não foi mencionada. Se eu soubesse, não teria voltado. Teria sido melhor ficarmos em Nassau. Uma forte rajada fez as velas estalarem, obrigando Logan a afrouxar um pouco a pressão no leme. Se a chuva se tornasse forte, seria difícil enxergar a própria proa do barco. Por um momento, arrependeu-se de ter ido a Nassau. Não tinha dúvida de que chegariam bem a Maximilliam, mas não sabia se Elise confiava nessa previsão, com o medo que sentia. Se não tivessem perdido aquele precioso tempo com os jornais, estariam chegando na ilha antes da pior parte da tempestade. Olhando para a bússola por um momento, Logan mudou suavemente de curso. Elise voltou-se para ele, sorriu e tornou a concentrar-se na bomba de água manual, movimentando a alavanca tão rápido quanto a força de seus braços permitia. Ambos usavam coletes salva-vidas. Elise estava só de camiseta e short, que tinha encharcado, mas era bem mais confortável que a saia. Apesar do medo incontrolável, tinha completa confiança em Logan. — Como está indo? — ele gritou para Elise. Apesar da chuva morna e do vento surpreendentemente quente e úmido que soprava em todas as direções, ela sentia arrepios de frio. — Falta muito? Um raio cortou o céu, seguido imediatamente por uma trovoada, impedindo Logan de responder na hora.
— Não muito. Uns quinze minutos, se o vento continuar na mesma direção. Elise concordou, olhando-o preocupada. Ele arrumou-lhe delicadamente uma mecha do cabelo. — Não se preocupe. Nunca perdi nenhum barco ou passageiro até agora. — Isso me deixa mais confiante. — Ela forçou-se a sorrir. Nesse momento, uma onda descontrolada sacudiu o barco pela proa, desequilibrando a ambos, que se agarraram como puderam. — Tudo bem com você? — indagou Logan. Elise concordou, batendo os dentes. — Por que você não entra na cabine? Lá é mais confortável. Elise tentou falar, mas as palavras não saíram da garganta estrangulada pelo medo. Suas mãos crisparam-se no cabo da bomba de água. Um gemido surdo escapou-lhe dos lábios, e as lágrimas misturaram-se com as gotas de chuva em seu rosto. — Elise! — chamou Logan. Ela o olhou desesperada. Logan largou por um instante o leme e aproximou-se dela. Pegando-a carinhosamente pelos ombros, puxou-a para si. — Elise, não chore. Venha aqui comigo. Levando-a para junto de si no leme, Logan a envolveu num abraço. Seus corpos permaneciam unidos e moviam-se em harmonia com o barco, ao sabor das ondas. A fúria da tempestade parecia ter diminuído até. Elise sentia-se segura. Nada mais poderia atingi-la á partir daquele momento...
—- Olhe! — exclamou Logan retesando-se, enquanto apontava para algo à frente do barco. — Eu acho que... Por um momento, pensara ter visto luzes adiante, mas elas haviam desaparecido antes que ele pudesse ter certeza. Elise ficou na ponta dos pés, observando através da chuva. — Sim, estou vendo agora. — Montoya acendeu a ilha inteira. Estamos quase em casa. Desde que reformara o barco, Logan não o testara em tais condições de tempo. Agora, ele, o Espírito do Vento e Elise também haviam resistido ao teste. Dos três, a reação de Elise ao perigo era o que mais o enchia de orgulho. Sua confiança nela passara dos limites. Ela era um deles. Enquanto entravam na enseada da ilha, o vento diminuía de intensidade, mas as ondas continuavam altas, quebrando contra o píer. A chuva intensa impedia a visão. — Lá está Montoya — gritou Elise, apontando. — Vou ter de lançar âncora por aqui. Não vai ser possível recolher o barco, e as ondas estão muito altas no píer. Nem sei como levá-la até lá, pois o motor não vai vencer a força das ondas. — E como é que nós vamos chegar à praia? Enquanto ela falava, viu Montoya tirar a lanchinha da garagem dos barcos, colocando-a na água com todo sacrifício. Elise percebeu o que teriam de fazer: passar de um barco para o outro em pleno mar, então ficou arrepiada. Encontravam-se a uns trinta metros da praia, mas as ondas eram altas. Não seria fácil nadar até lá. — Prefiro nadar a pular no outro barco — falou para Logan.
— Poderíamos esperar até a tempestade passar. — Ele riu. — Quer dizer que não temos outra opção? — Apenas duas: ficar aqui ou ir para a lanchinha. — Ela o olhava com olhos dilatados de medo. — Vai acabar tudo bem, acredite em mim. Naquele momento, Montoya aproximava-se deles com a lanchinha. Jogou dois cabos a Logan, que os amarrou em cada extremidade
do
veleiro,
restando
um
espaço
de
uns
sessenta
centímetros entre os barcos. — Você terá de pular para lá, mas vou tentar segurá-la. — Logan teve de gritar por causa do vento. — Você só tem de esperar o momento certo. Montoya vai segurá-la. Quando eu disser “Pule”, você pula. Entendeu? Elise concordou. Montoya estava a sua frente. Logan ajudou-a a firmar-se na amurada, segurando-a pela cintura. Quando achou que chegara o momento, ele gritou: — Pule! Elise hesitou por um longo momento. Os dois barcos deram um puxão, afastando-se, no momento em que ela saltava. Então, em vez das mãos de Montoya, foi a água que a recebeu, fechando-se sobre ela, fria e inacreditavelmente escura.
CAPÍTULO IX
Mesmo antes de subir à tona, Elise instintivamente nadou para sair de entre os barcos. Quando se assegurou de não haver perigo de ser esmagada pelos cascos, parou e olhou em torno de si. Montoya lançava um poderoso facho de luz em sua direção. Os barcos erguiam-se como duas torres a sua frente. Seria impossível içar-se a bordo com aquelas ondas, o jeito era tentar nadar até a praia. — Elise! — chamava Logan da borda do veleiro com as mãos em concha em volta da boca. — Você está bem? Ela mal podia ouvir a voz dele em meio aos uivos do vento. Voltou-se para a terra, calculando o quanto teria de nadar. O vento levantava as ondas, que a encobriam, enchendo-lhe a boca de água salgada. Tossindo e engasgando com a água engolida, ela decidiu pôrse em marcha, ou perderia o controle e jamais se salvaria. Concentrando-se, pôs toda a força possível nos movimentos, mas o colete salva-vidas a impedia de nadar direito. Uma onda a encobriu, impedindo-a de ver as luzes na praia. Era difícil calcular a distância, mas estimou-a em vinte metros. Talvez as ondas a empurrassem para lá. Enquanto nadava, perdera a noção do tempo, mas parecia fazer horas que caíra do barco. Nem todos os anos de exercícios e natação a haviam preparado para aquela provação. Nunca em toda sua vida tivera de lutar pelo mínimo que fosse. Outra vez uma onda a atingiu, e ela engoliu água. Antes que pudesse se recuperar dos espasmos, outra ainda a submergiu. A muito custo, ela voltou à tona para respirar e olhou para a praia. Por um breve momento, pareceu-lhe ter visto luzes no píer. Arfando de
surpresa, desanimou. Apesar de seus esforços, a terra estava muito longe... longe demais. A cada cavado de onda, ela submergia, então retornava à superfície de um golpe, flutuando como uma rolha. Pensou ter vislumbrado as luzes dos barcos a seu lado e considerou nadar até eles, mas descartou a hipótese, pois seria tolice. Concentrando-se, obrigouse a nadar sempre em frente, devagar e suavemente, em direção à praia. Mas avançava pouco, pois estava muito cansada. Começava a perder o controle dos braços. Suas pernas pesavam como se tivessem chumbo amarrado nelas. Pela primeira vez, Elise duvidou de suas chances. Sua mente foi dominada pelo pânico, e ela não conseguiu mais se controlar. Ia afundar. Toneladas de água empurravam-na para baixo até ela começar a sentir-se tonta. Pontos de luz deformados dançavam à frente de seus olhos. Depois de um longo tempo, voltou à superfície, e mais uma vez forçou-se a mover os braços. Mas ela só queria pensar na sensação agradável de afundar-se na água, onde era tão calmo... Enquanto nadava na direção de Elise, Logan a viu afundar, então ele próprio foi sugado para baixo. Quando finalmente emergiu à superfície, procurou-a freneticamente, mas não conseguiu encontrála. Só avistava a água negra e encrespada, agitada pela ventania enlouquecida. Seu coração disparou de pânico e medo, bombando adrenalina pelo corpo. “Elise vai se safar”, repetia a si mesmo. Ele a vira nadar na piscina e depois durante as aulas de mergulho nos recifes de coral. Ela era capaz de permanecer por longos períodos de tempo sem precisar tomar fôlego. Ela se sairia dessa.
Logan voltou a nadar, pondo mais energia em seus movimentos. Se ele estava começando a ficar exausto, podia imaginar a experiência por que Elise passava. Ainda não podia vê-la. Sua única opção era continuar nadando na direção de onde a avistara pela última vez e esperar que, quando a encontrasse, os dois não estivessem cansados demais para nadar até a praia. Continuou nadando na água revolta. O tempo não fazia mais sentido. Não fazia a mínima idéia de quanto havia progredido. Numa fração de segundo, imaginou tê-la visto. Sim, lá estava ela, a uns seis metros da praia. Ela procurava nadar, mas os movimentos de seus braços e pernas eram lentos. Nadando o mais rápido que pôde, Logan alcançou-a e segurou-lhe a mão. Por um momento, ela tentou resistir a ele. — Pare com isso — ele gritou. Quando ela percebeu que era Logan a seu lado, jogou-se sobre ele, abraçando-o, tornando impossível a ambos manter-se à tona. Então eles afundaram. Assim que voltaram à superfície, ele ordenou: — Comece a nadar! Ela concordou, mas estava tão fraca que não conseguia fazer movimento algum. Logan agarrou-a por trás, enlaçando-a com firmeza, e começou a arrastá-la. Ela não ofereceu a menor resistência, mesmo quando uma onda os obrigou a afundar outra vez. Mas os movimentos estavam cada vez mais difíceis. À medida que se aproximavam da praia, as ondas ficavam mais violentas. Era cada vez mais difícil manter-se à superfície. Todo o otimismo de Logan parecia ser em vão. Eles iam se
afogar... Naquele momento, ele sentiu o fundo sob seus pés. Depois da luta insana para se manter à tona, enfim conseguiu puxar Elise para o raso. Permaneceram ainda por muito tempo deitados na areia, até que a respiração voltasse ao normal e suas forças estivessem parcialmente recuperadas. A chuva açoitava-lhes as costas, espetando-os como pontas de agulhas. Por fim, Logan pôde inalar o ar sem sentir uma dor aguda no peito. Sentia-se eufórico por terem se safado, ainda que exaustos. — Tudo bem com você? — indagou a Elise. Ela concordou, lágrimas misturadas com água salgada deslizando pela face. O cabelo caía-lhe pelas costas, tão pesado que lhe dificultava mexer a cabeça. — E você, Logan? Ela tentou tirar o colete salva-vidas, mas os dedos fracos não obedeceram. Foi preciso que Logan a ajudasse. — Eu estou bem — afirmou ele, puxando-a para seus braços. Ela estava trêmula e poderia entrar em choque. Precisava levá-la o quanto antes à casa. Ajudando-a a se levantar, deu ainda uma última olhada para a enseada. Sob a chuva que se tornara mais intensa, Montoya levava o barco para a praia, para recolhê-lo ao abrigo. O caseiro os seguira até vê-los a salvo. Por fim, Logan e Elise caminharam devagar de volta à casa, ajudando-se mutuamente. Deitada na cama, com a camisola de rendas que Roxanne lhe dera, Elise acabava de tomar o chocolate com canela e torradas que Francisca lhe preparara. “Um santo remédio”, garantira a empregada,
capaz de curar uma série não especificada de achaques e mal-estares, como cansaço, resfriado e até mesmo as conseqüências de uma nadada no vento. A bebida a fez sentir-se reaquecida e bem-disposta. Só parecia um pouco excitada, o que atribuiu à movimentada experiência por que acabava de passar. Todo ano, Elise presenciava as monções passarem por Mondária. Apesar de sentir-se tocada pela força dos elementos, não ignorava os danos provocados pelas tempestades nem a vulnerabilidade da terra e das pessoas que estivessem em seu caminho. Embora se sentisse em conforto sob o acolchoado, mudou de posição para acomodar o braço machucado. Não mostrara a contusão avermelhada a Francisca. A mulher teria feito um escândalo e a obrigaria a suportar uma compressa de gelo, a última coisa que ela desejaria sobre a pele. Deu uma olhada no relógio. Quase meia-noite. Devia apagar a luz, mas não estava com sono. A claridade dos relâmpagos e o barulho da trovoada a impediam de dormir. Sentia-se grata a Logan, embora soubesse que, se lhe acontecesse alguma coisa, ele seria responsabilizado. Roxanne o culparia, se a mulher deixada a seus cuidados saísse ferida ou morresse. Ele estaria arriscando sua carreira na Fletcher, se era o que tinha em mente quando deixara Cape Button. Elise repreendeu-se pelo cinismo de seus pensamentos. Logan salvara sua vida. O vínculo mais forte de amizade que podia existir. A despeito do que viesse a acontecer no futuro, o que se passara naquela noite os unia para sempre. Ouvindo uma leve batida, sentou-se na cama, mas voltou a se deitar, pensando que fosse chuva no telhado. Ouviu o ruído outra vez,
agora mais forte. — Sim? — respondeu, sentando-se apoiada na cabeceira da cama e puxando o lençol para cobrir os seios, que o tecido fino da camisola revelava. Logan entrou, deixando a porta aberta. Havia tomado banho e trocado de roupa. Os cabelos castanhos estavam úmidos e despenteados. — Francisca disse que você estava bem, mas eu quis verificar pessoalmente. Você está bem, Elise? — Ótima. Ao notar as alças finas da camisola que ela usava, Logan reparou no braço machucado. — Como está sentindo o braço, Elise? — Ele não está mal, e você, como se sente? — Bem. Você comeu alguma coisa? — Ele olhou para a xícara vazia na bandeja. — Chocolate quente e torradas. — Olhando para Logan tão sério a sua frente, Elise imaginou como quebraria o gelo. — Gostei muito de você ter-me salvado. — Você não precisava ser salva. Ele deu a volta na cama e sentou na beirada. Apoiando um braço no joelho, com as pernas cruzadas, tocou o tornozelo, enquanto a observava. — Você está mais para Harrison Ford do que pensava, hein, Logan? Ele deu uma risada. Depois de um silêncio embaraçado, acres-
centou: — Você está diferente, Elise, sabia? — Eu? Diferente como? — Está mais tranqüila, mais segura de si mesma. — Ele falava suavemente, como se pensasse em voz alta. — Apesar de altiva, quando cheguei, você se assustava comigo e com tudo o que acontecia aqui. Ele interrompeu-se para olhar de relance para a janela, iluminada a intervalos por relâmpagos. Em seguida ficaram em silêncio. Elise aprendera a usar o silêncio a seu favor. Se permanecesse calada, obrigaria Logan a falar, revelando mais sobre sua personalidade. — Foi bom o dia com você — ele confessou, percebendo-lhe o olhar prevenido. — Obrigada. Eu também adorei. Eles tinham se tornado distantes, refugiando-se no comportamento discreto e frio, como se se preparassem para uma nova etapa no relacionamento. — Será que a tempestade dura até amanhã? — indagou Elise. Ele deu de ombros. — Às vezes, pode durar dias. — Isso significa que Roxanne não poderá vir, não é? — Acho que não poderá, não. — Ele voltou-se e fitou-a longamente. — Você deve estar desapontada. — E você, não? — Enquanto falava, ela recostou-se na cabeceira da cama. O lençol escorregou para baixo, mas foi logo puxado de
volta. — Quando ela chegar, eu vou embora da ilha, e você ficará livre de sua obrigação. Acho que você não iria querer cuidar de mim nunca mais... Para sua surpresa, Logan riu. — Esse foi um cumprimento de despedida que ninguém me deu até hoje. Está tentando me dizer outra vez que meus serviços não são necessários nem desejados? — Pois eu estava justamente pensando se você não teria se arrependido de aceitar o encargo de Roxanne. — Exceto pelo que nos aconteceu hoje, até que não foi mau. — Se ele não saísse dali o quanto antes, não sabia o que poderia acontecer. Mas, em vez de ir para a porta, Logan aproximou-se da cabeceira da cama e inclinou-se, pàra beijá-la de leve, apenas roçando-lhe os lábios com os seus. — Queira ou não, Elise, eu vou cuidar de você. Aconteça o que acontecer. Com as mãos circundando-lhe as faces e os dedos afundados na cabeleira vasta, beijou-a profundamente e saiu. Elise ficou desamparada na cama, com uma tempestade interna de sentimentos comparável à tormenta que rugia lá forã. Embora não tivesse experiência, sabia que quisera fazer amor com ele. Não havia dúvida
de
que
amaria
aquele
homem
complicado,
valente,
maravilhoso e que a perturbava tanto. Ao mesmo tempo, tinha de voltar para Mondária e ficar ao lado do pai; mas como poderia deixar Logan? Elise tocava piano como uma grande concertista, produzindo harmoniosos acordes que ecoavam pela casa, em contraste com o lamento do vento que não diminuíra na manhã nublada. A chuva caía
com um ruído constante, fazendo um contraponto com o ritmo da música. Logan entrou na sala e sentou-se em silêncio, observando-a. Se a maneira com que tocava fosse um indício, ela também tentava relaxar a tensão. Até ouvi-la começar ele andava de um lado para outro no quarto. Ao fim da música, aproximou-se do piano. — Talvez você não conheça, Elise, mas há outros gêneros de música interessantes para se tocar ao piano, além dos clássicos. Deixe-me mostrar-lhe algo mais leve que Beethoven. Elise franziu a testa, desconfiada. — Vamos começar com o ragtime, passando ao jazz e ao blues. E então veremos até onde vai dar... Elise abaixou um pouco o banco, para Logan poder acomodar as longas pernas. Afastando-se para o lado, indagou: — Está fazendo de tudo para me converter numa mulher moderna, não? — Você não tem muito mais que aprender. Mais algumas lições e estará perfeita. — E isso é bom? — ela ironizou. — Talvez fosse melhor eu continuar como uma menininha inocente... — Como assim? — Ah, deixa pra lá. Era melhor não se expor. Passara a noite sem dormir, com um furacão de desejos e emoções dentro de si. Até de madrugada, quando clareara, tinha se revirado na cafna, na dúvida entre ir ou não bater
no quarto de Logan. Ficara se debatendo entre as inúmeras complicações que um gesto impulsivo de tal natureza traria para si mesma e para ele. Queria fazer amor com Logan. Antes de conhecê-lo, nunca tivera fantasias sexuais de tal natureza. Corava só de pensar no assunto. Agora sua preocupação era até quando resistiria à tentação de realizá-las. — Ainda falta muito para eu me tornar um modelo de mulher — falou em voz baixa. — Agora, vamos, toque! Logan tentou ler seus pensamentos, mas não havia como penetrar aqueles insondáveis olhos azuis. Ainda mais quando ela os entrefechava, desviando o olhar para longe. Desde a primeira vez que se abraçaram na praia, ele não sabia mais como interpretá-la; ora ela parecia dizer: “Aceite-me sem restrições”, ora: “Ensine-me, mas deixe-me encontrar meu próprio caminho”, ou ainda: “Toque-me, mas não me aprisione”. Elise continuava a ser um enigma que ele pretendia desvendar antes que aquela missão acabasse.
CAPÍTULO X
Ao voltar a ver Alexander Kaleer nos aposentos privativos no palácio, Roxanne ficou tão chocada com sua aparência que não
encontrou nada para dizer. Apenas não conseguiu desviar o olhar daquele rosto abatido. — Não precisa contar o que pensou. — Ele sorriu, levando a mão trêmula aos olhos vermelhos. — Sei bem o que pareço. Como vocês dizem na América: “um gato esfolado”, não é mais ou menos isso? — Não posso negar que você assusta — comentou Roxanne, beijando-lhe a face emaciada. Sempre admirara Alex por sua coragem de enfrentar todas as situações, mesmo as mais desagradáveis. Ele já passara por profundas privações na vida, desde ter de deixar sua amada Inglaterra para assumir o poder no lugar do irmão morto até a perda da jovem e encantadora esposa. Agora estava diante da ameaça de ruína do país. E apesar de tudo tornara-se forte, se não fisicamente, ao menos moralmente. Mostrava-se à altura dos acontecimentos e dos novos desafios, embora as pressões tivessem se tornado pesadas demais. Ela própria não saberia até quando ele seria capaz de suportá-las. — Sei que você deve andar muito ocupada — observou ele, conduzindo-a pela sala de visitas. — Por isso sou grato por ter vindo. — Bem, não esqueça que estou cuidando de meus interesses também. Estou aqui para ver as condições de minha fábrica. E, como não poderia deixar de ser, para levar a Elise notícias suas. Ela tem andado muito preocupada com você. Alexander e Roxanne sentaram-se em poltronas com mesinhas ao lado, um de frente para o outro. Ele fez sinal para um criado servir champanhe. Quando ficaram sozinhos, perguntou: — E Melina, como é que ela está? Tenho sentido tanta falta de minha filha!
— Bem, não conversamos diretamente, mas minha empregada disse que ela está bem. Na última vez em que falei com a ilha, Elise tinha saído de barco para mergulhar nos corais. — Não acredito! Ela sempre gostou de nadar, mas por nenhum motivo no mundo sairia navegando em qualquer tipo de barco. — Eu imagino que Logan Hunter deve ter sabido persuadi-la. Roxanne provou o champanhe, sua bebida favorita. Alexander sempre lhe servia o que tinha de melhor em sua suntuosa adega. — Então tudo está correndo bem. Eu pensei que ela fosse ficar com saudade de casa, principalmente depois que a criada voltou. — Não precisa se preocupar com sua filha, Alex. Ela tem sua força e a coragem da mãe. — Roxanne pousou a taça de cristal na mesinha que se apoiava num rico tamborete decorado com incrustações de marfim. — Eu havia planejado ir à ilha, mas os negócios me impediram, e depois veio aquela tempestade, por isso estou aqui, em vez de lá. Vou passar por lá a caminho de casa. — Um furacão, você quis dizer? — indagou Alexander, assombrado. — Não, Alex. Não chegou a tal ponto. Não passou de um vento forte que não causou danos à terra. Segundo as autoridades de Nassau, não há problemas registrados com a ilha Maximilliam. Na minha opinião, Melina está mais segura lá do que aqui, você não concorda? Alexander aquiesceu. — Não há dúvida. Mas eu sinto mais a falta dela do que imaginava. — Pois espero que não seja por muito tempo — atalhou Ro-
xanne, torcendo para que fosse verdade. Desde que seu jato pousara no país, só recebera notícias ruins. Seu piloto lhe dissera que todos os estrangeiros estavam sob severa vigilância. Na cidade, o clima era de guerra civil. Ela não via a hora de ir embora. Encostando no espaldar da poltrona, cruzou as pernas e arrumou a barra da saia cuidadosamente. — Bem, Alex, agora me conte o que está acontecendo com os rebeldes e quais as reivindicações que vêm fazendo. Alexander meneou a cabeça. — Ah, Roxanne, nem sei por onde começar. A cada dia que passa a situação piora, e não tenho certeza sobre aonde tudo isso vai nos levar... Duas horas mais tarde, Roxanne saía do palácio, ainda perturbada com as coisas que Alexander lhe contara. Pelo que entendera, ele estava de pés e mãos atados, pois o Parlamento, dominado por conselheiros conservadores e antiquados, recusava-se a admitir a necessidade de modernizar o país. E, nos dois últimos anos, todo o poder se concentrava nas mãos daqueles homens que de fato e de direito controlavam o país. Nenhum deles queria perder seus privilégios.
Segundo
Alex,
os
trabalhadores,
em
especial
os
integrantes do Partido da Independência, tinham reivindicações legítimas, fundadas em uma tradição de muitos anos. O que preocupava era o Bajurdi, que a cada dia se tornava mais forte, mais violento e fora de controle por parte do aparelho estatal. Roxanne concluiu que chegara o momento de proteger sua companhia e Kaleer, o que a obrigaria a endurecer posições. Uma vez que o soberano recusara qualquer tipo de auxílio externo, ela seria
obrigada a passar por cima dele, negociando direto com Paul Roderi e, por meio dele, oferecer apoio financeiro e material às Forças Armadas. Quase
diariamente,
seus
aviões
de
carga
levavam
produtos
farmacêuticos de Mondária para os depósitos em Roma. Dali por diante, os aviões retornariam a Mondária carregados de armas e suprimentos militares, que seriam estocados em seus arsenais. Por um momento, considerou sobre a legalidade de tal procedimento, mas ignorou tais pensamentos. Só lhe interessava proteger as indústrias Fletcher de uma possível encampação pelo Bajurdi. Se Alexander recusava-se a armar seus exércitos, ela os armaria por ele. Depois de fazer contatos com Roderi e providenciar a aquisição e a estocagem dos artefatos em seus depósitos, ela regressou ao jatinho. No caminho de casa, seus pensamentos deram uma guinada, dos problemas com o minúsculo país no Leste Asiático para o encanto de Sol O’Reilly. Ele deveria estar de volta a Boston na quinta à noite. Ela só teria de esperar mais dois dias. Mas primeiro precisava fazer uma parada em Miami, de onde iria até a ilha Maximilliam para dar uma olhada em como estavam indo as coisas naquele cenário...
Logan e Montoya tiraram as botas e os casacos de chuva, respingando de água o piso de lajota da cozinha. Tinham acabado de guardar o Espírito do Vento no abrigo de barcos, verificando em seguida se não sofrera nenhum dano. Durante toda a terça, a tempestade continuara a açoitar a ilha.
Então, à noite, o vento acalmara um pouco, embora a chuva continuasse a cair, como se não fosse parar nunca. — Daria para você tentar ligar para Miami, Montoya? — pediu Logan, arrumando sobre a mesa os suprimentos de Nassau que haviam recuperado no barco. Por causa de Elise, ele queria saber quando Roxanne chegaria. — Certo, vou tentar. Depois de comer um pedaço de torta que Francisca servira numa bandeja, o caseiro foi para a sala do rádio, que mais parecia o compartimento de radar de um submarino, com tantos equipamentos complicados, fios e luzes. — Vamos jantar em uma hora — informou Francisca, passando a bandeja para Logan. — Obrigado — ele falou de boca cheia, voltando-se para as coisas que estivera arrumando. — Como estamos de suprimentos? — Com o que vocês trouxeram, estamos bem. — Se Montoya não conseguir falar com Miami, acho que vou com a lanchinha até Nassau amanhã para ligar ao escritório de Roxanne em Boston. Posso trazer o que você quiser. — Tudo bem. Vou fazer a lista. De fato, Montoya não conseguiu fazer contato com Miami. — Desculpe, senor — ele falou antes que Logan saísse. — Eles também foram atingidos pela tempestade. — Tudo bem, obrigado. Juntando os jornais e os pacotes que trouxera do barco, Logan foi para a porta. De lá, antes de sair, pediu, virando-se para o caseiro:
— Continue tentando, Montoya, por favor. Ao passar pela porta do quarto de Elise, parou, pensando em algo para dizer a ela. Em dúvida, continuou até seu próprio quarto. Desde que haviam regressado de Nassau, Elise parecia cada vez mais tensa. A princípio, ele pensara que fosse por causa da tempestade. Agora compreendia que tal inquietação se devia à demora de Roxanne. Imaginou se Elise devia estar esperando notícias de alguém da família, talvez do pai que mencionara. Por isso insistira tanto em comprar os jornais em Nassau: para saber notícias de casa. No chuveiro, enquanto a água corria por seu corpo, encarou a situação. Sem dúvida o motivo da tensão de Elise era o mesmo que o dele: a profunda atração entre ambos. Eles estiveram juntos a maior parte do tempo, nos últimos dias. A cada minuto, sua excitação aumentava. Ficava fácil controlar-se quando estavam brigados ou separados. Então, sentindo-se injustiçado pela pouca confiança que ela depositava nele, mais e mais excitava-se ao pensar em como ela era diabolicamente atraente. As sessões ao piano, os jogos que disputaram no dia anterior e uma segunda sessão de dança após o jantar na última noite, todas essas atividades contribuíram para aumentar a intimidade. Ele compreendeu que estavam usando as lições de dança e os jogos como um disfarce de normalidade para uma atmosfera que estava a cada momento mais explosiva. Talvez devesse ir a Nassau sozinho, na manhã seguinte. Uma separação faria bem a ambos. Ainda que, não a vendo, nem a seus cintilantes olhos azuis, nem ouvindo sua voz rouca e sensual, sofresse como um condenado. Perguntaria se ela queria ir junto. Depois do jantar, Elise entregou os presentes a Montoya e
Francisca. Ambos agradeceram muito pelo fato de a senorita ter-se lembrado deles. Tão logo o casal saiu da sala, Logan entregou a Elise o presente que comprara para ela em Nassau. — Seu presente de aniversário atrasado — anunciou. Elise agradeceu, encabulada. — Ora, Logan. Não era preciso, você sabe. Já tem sido tão generoso dedicando-me seu tempo e seus conhecimentos... Nunca me esquecerei de tudo o qué fez por mim. — Abra-o — ordenou ele, servindo mais vinho em seus copos. Logan recostou-se na cadeira, observando-a tirar com cuidado a fita adesiva e o papel, descobrindo uma caixa branca. Elise teve um sobressalto quando viu o que tinha dentro. Notara aquelas estatuetas numa das lojas que visitaram, mas não lhes dera importância. Aquela era a figura de uma jovem com uma vasta cabeleira negra, olhos azuis imensos, com uma blusa de mangas bufantes. Na cabeça levava um chapéu de palha e do ombro pendia uma bolsinha também de palha. Emocionada, Elise ficou pensativa, com o objeto nas mãos. — Olhe atrás — sugeriu Logan. Obedecendo, ela virou a estatueta, aproximando-a do candelabro para poder decifrar a minúscula inscrição no verso. — “Menina da quinta-feira” — leu em voz entrecortada. Lágrimas escorriam dos belos olhos azuis. — Eu... eu não sei o que dizer. Você encontrou o presente exato, Logan. Muito obrigada. — Considerando todas as mudanças por que você tem passado desde seu aniversário, eu me perguntava se acertaria...
— Não. Está ótimo. Sempre que olhá-la eu me lembrarei de como me senti no dia em que tive de deixar Suryat... — Ela se interrompeu antes de completar a frase e levantou-se de um impulso. — A-Acho que vou para o meu quarto. Não dormi bem a última noite. Obrigada pelo presente. Boa noite. — Boa noite... — respondeu Logan, surpreso pela saída precipitada. Inclinou-se para pegar o copo e tomou um gole de vinho. Elise mencionara um nome... Surriate? Não, Sur-e-aht era mais próximo. Uma cidade? Um refúgio de família? O nome de alguém... talvez do pai dela? Levantando-se da cadeira, foi até a sala de estar. Ao fim de uma pesquisa, caminhou até o terraço, refletindo sobre a descoberta que fizera. Elise dormia, acordava, voltava a dormir, levantava-se na cama, tentando identificar os ruídos que a incomodavam. O aposento permanecia às escuras. De repente, ela percebeu. Havia mais alguém em seu quarto. Virando a cabeça, olhou para uma réstia de luz que penetrava pela janela. Ao lado uma sombra caminhava em sua direção, uma silhueta alta e forte recortada pela luz da lua... — Logan? — sussurrou. Sem ouvir resposta, chamou mais alto. Então percebeu. Não era Logan! Num impulso, rolou para o lado, tentando sair da imensa cama e atingir a porta. Gritou por Logan com todas as forças. Nesse momento, dedos de aço taparam sua boca, quase impedindo-a de respirar. Ela tentou endireitar-se para escapar. Mas seus braços e pernas continuavam presos. Era inútil lutar contra
uma força bem mais poderosa. Onde estava Logan? Por que ele não aparecia? Será que não a ouvira gritar? Acontecera alguma coisa com Logan! Sem se importar com o medo terrível pela própria segurança, ficou cega de raiva pelo que pudessem ter feito a ele. Renovando os esforços, tentou reagir, mas o homem era mais forte e prendia-lhe os braços, sentando sobre seu estômago para controlá-la melhor. Tudo o que ela podia fazer era espernear a esmo. A maneira como o homem apertava sua boca a impedia de respirar direito. Precisava fazer um esforço a cada respiração, o que a deixava mais apavorada ainda. Finalmente, Elise conseguiu soltar uma das mãos e cravou as unhas no rosto do homem. O gemido de dor que provocou renovou suas forças. Antes que ele pudesse prender-lhe a mão, virou-se e atirou o abajur longe do criado-mudo. Por causa do barulho, o homem parou por um momento, esperando para ver o que acontecia. Se Logan estivesse livre, sentado na sala como Elise esperava, teria ouvido o barulho. Sim, ele vinha vindo... Ela sabia que ele viria. O homem continuou aguardando, obviamente esperando ouvir passos. Aproveitando-se de sua distração, Elise afastou os dedos dele da boca e gritou a plenos pulmões. O homem prendeu-lhe os braços sob um joelho e tapou-lhe a boca outra vez. Não fazia nenhum ruído, controlando-a com facilidade. Por fim, fechou os dedos em torno de seu queixo. “Ele vai me estrangular!”, concluiu Elise, apavorada. Pela primeira vez, sentia a proximidade da morte. Não, disse para si mesma,
não podia estar acontecendo com ela. Logan ia aparecer num segundo. Ou estaria morto?... Os dedos do homem faziam uma pressão tão forte abaixo de seus ouvidos que ela chegou a chorar de dor. A pulsação martelava em sua cabeça como um tambor. Sentia-se cada vez mais fraca, incapaz de controlar os músculos. Uma pontada aguda, como a ferroada de uma abelha, atingiu-lhe o braço. Ela tentou afastar o inseto. Talvez não fosse uma abelha. Estava sob a água escura outra vez. Diante de seus olhos, passavam estrelas luminosas como peixes velozes. Ela não sentia mais dor, nem mesmo tinha consciência de nada, exceto da beleza daquele mundo submerso...
CAPÍTULO XI
Logan caminhava descalço ao longo da praia, ainda muito agitado para dormir. O luar e as nuvens intercalavam-se no céu, produzindo manchas claras e escuras que lembravam um tabuleiro de xadrez. Sem querer, desviou o olhar para uma árvore semi- destruída sobre as pedras batidas pelas ondas. Antes que a lua fosse engolida outra vez pelas nuvens rápidas levadas pelo vendo, olhou o relógio. Quase uma da madrugada. Montoya costumava fazer a ronda naquele horário, mas nem sinal dele. Quando terminasse o passeio, iria até as
dependências dos caseiros para ver se não havia nada errado. Continuando em seu caminho, refletiu sobre o que descobrira sobre Melina Kaleer e Suryat, em Mondária — nomes que encontrara na enciclopédia e no atlas da sala de estar. Entre as várias informações que obtivera nos livros, muitas coincidiam com Elise. O sotaque seguramente inglês. Os olhos azuis, que poderiam pertencer a um descendente de anglo-saxões. A esposa de Alexander, lady Anne Shelby, herdeira de um antigo império têxtil. Os cabelos negros e a pele dourada poderiam representar o lado mondariano da família. Sua idade era a mesma da filha de Alexander Kaleer. Além disso, Mondária ficava isolada por quilômetros de oceano e, de acordo com o artigo de 1980 da enciclopédia que consultara, o país ainda não se atualizara em relação ao século XX, daí a educação clássica de Elise e a ausência de sofisticação moderna. Ele não tinha dúvida de que ela era a Melina Kaleer de Mondária. No entanto, saber quem era ela despertava outras indagações. Por que a haviam trazido à ilha Maximilliam? Que segredo a impedia de falar-lhe sobre seu passado? E, mais importante ainda, o que tudo aquilo lhes pressagiava para o futuro? Nos últimos dois dias, imaginara como seria se se casassem, indo morar em Boston ou Nova York, onde ele trabalharia como advogado. Mas tal sonho estava longe da realidade. Ela devia ter obrigações para com o pai e com seu país que a impediam de partir para outro lugar. Ou talvez fizessem restrições a que se casasse com um estrangeiro. Por vários motivos, ele desejou não ter sabido quem ela era. As coisas tornavam-se então muito mais complicadas. Suspirando, deu a volta na praia e caminhou mais alguns passos na direção da cachoeira. Quando estava pronto para voltar para
casa, parou bruscamente. A sombra que viu recortada contra o horizonte foi de tirar a respiração. A lancha misteriosa estava lá outra vez. Apesar da iluminação escassa, podia identificá-la pelo perfil. Elise! Eles iam pegá-la! Começou a correr pela praia. “Eles vão matá-la! Eles vão matá-la!” O pensamento não lhe saía da mente enquanto corria. Não havia dúvida de que estavam querendo seqüestrá-la, se não por dinheiro, por motivos politicos. Mas, se os seqüestradores fossem ameaçados ou encurralados, não havia dúvida de que ela seria eliminada. Tomou o caminho que levava ao terraço e correu ao longo das escadas, procurando não fazer barulho. Circundou a casa e nem sinal de Montoya. Teria sido atacado e deixado em algum lugar, morto ou ferido? Tomara que estivesse enganado. Em dois tempos chegou ao terraço do segundo andar, pronto para alcançar o quarto de Elise. Ao ouvir um ruído, imobilizou- se. Sem fazer barulho, encostando-se à parede, deslizou para o canto da casa. No pátio abaixo, distinguiu a forma de um homem alto carregando nos ombros um volume envolvido num cobertor escuro. Elise já havia sido capturada! Logan ia partir para cima do homem, mas se conteve. Estava desarmado. Montoya tinha uma arma na cozinha, no andar térreo, mas ele não podia perder tempo. Quanto mais hesitante, mais longe o homem iria. Avançando para a área da piscina, o homem progredia rapidamente, apesar do peso que carregava. Por certo ia para a praia dos corais, onde com um bote poderia alcançar a lancha sem ser afetado pelos recifes. Logan começou a segui-lo, mas por um momento o perdeu.
Fazendo uma parada, ficou alerta, prestando atenção ao menor ruído. “Não entre em pânico”, ordenou a si mesmo. O homem não poderia ter ido muito longe. Um galho estalou a sua esquerda, perto da quadra de tênis. Ali havia um terreno aberto, propício para atacar de surpresa o seqüestrador. E ainda tinham um bom trecho até a praia. Os barulhos que porventura fizessem não seriam ouvidos lá. Andando na ponta dos pés, antes que o homem chegasse à passagem no sopé da colina, Logan diminuiu a distância entre eles. Como que de propósito, a lua saiu de trás de uma nuvem, iluminando o caminho. Logan parou. A seus pés encontrou um grosso galho de pinheiro arrancado pela tempestade. Pegando-o como a um bastão, escondeuse numa depressão do terreno. O homem havia parado para mudar Elise de ombro, sem desconfiar de sua presença. Com toda a força possível, Logan desferiu um golpe com o bastão na nuca do sujeito. O homem deu um grito e foi ao chão, largando o pesado fardo. Sem perda de tempo, Logan apossou-se de Elise antes mesmo que ela tocasse o solo. Como um peso morto, ela abandonou-se em seus braços. Depois de ganhar uma boa distância do seqüestrador, pousou-a numa clareira, tomando o cuidado de esconder a ambos com a folhagem dos arbustos vizinhos. Ela não se movia, apenas respirava profundamente como se estivesse dormindo. Logan esperou um pouco e levantou-se, olhando na direção de onde o homem caíra. Ele não estava mais lá. No mínimo fugira para o bote que deixara na praia e naquele momento se preparava para deixar a ilha. No entanto, Logan não podia deixar Elise para persegui-
lo. Primeiro a levaria para casa e depois iniciaria a perseguição aos invasores. Abrindo completamente o cobertor que envolvia Elise, verificou se ela apresentava algum ferimento. Um das alças de sua camisola estava rasgada, mas não havia sangue em lugar nenhum. Ela dormia pesado, como se tivesse sido drogada. Pondo-a nas costas, começou a subida em direção à casa. Em poucos minutos, esbaforido, chegava à cozinha, chamando os caseiros. A porta estava trancada. Francisca apareceu, amarrando o robe na cintura. — Senor! — exclamou a mulher ao ver Elise. — Ela está morta? — Não, Francisca. Felizmente. Onde está Montoya? — Foi fazer a ronda. O senhor não o viu? Sem responder, Logan carregou Elise para um quarto do térreo. — Vou deixá-la aqui — informou, depositando-a na cama. Elise ainda não movera um músculo nem fizera o menor ruído. Logan sufocava de raiva. Estava encarregado de protegê-la e, quando ela mais precisara dele, estava passeando pela praia. Ela devia ter passado por momentos terríveis, e com certeza o chamara... e ele não se encontrava lá para socorrê-la. Se tivesse sido um pouco mais cuidadoso, nada daquilo teria acontecido. Deixara-se distrair por seu interesse por ela e suas misteriosas origens. Francisca estendeu-lhe uma compressa úmida, que ele passou na testa de Elise. — Que será que aconteceu com ela? — Deram-lhe uma injeção, para deixá-la desacordada, mas acho
que vai ficar logo boa. Vou atrás de Montoya. Fique aqui com ela, por favor. — Sí, senor. — De uma gaveta, a empregada tirou um par de pistolas idênticas. — Leve uma. A outra eu sei como usar. Logan pegou a arma. A última vez que andara armado fora quando protegera o jornalista Ortega. Enquanto se dirigia à porta, foi examinando a pistola, para familiarizar-se com seu funcionamento. Virou-se ainda uma vez para Francisca. — Vou dar uma olhada na casa, antes de ir atrás de Montoya. Não se preocupe, esses homens não vieram para matar. Ao sair do quarto, considerou se os invasores tinham desligado os alarmes ou se estes é que não tinham funcionado. O equipamento sofisticado dava-lhes uma falsa impressão de segurança. Passando pela porta da frente, que deixou aberta, começou a procurar Montoya, tomando cuidado e aproveitando-se da luz do luar. Era bem provável que houvesse mais de um invasor na operação. Ou será que pensavam estar lidando com amadores e tinham absoluta certeza do sucesso? Vasculhou a quadra de tênis, e nada. De repente, pensou ter ouvido um ruído e parou, escutando. — Madre de Dios! Reconhecendo a voz de Montoya, Logan afastou alguns arbustos e encoritrou-o, tentando se levantar. — Montoya! Tudo bem com você? — Sí, senor. Minha cabeça... — Levando a mão à nuca, o caseiro soltou um gemido. — Você pode andar?
— A-Acho que sim... Logan amparou-o até chegarem à cozinha. Francisca, informando que Elise ainda dormia, encarregou-se do marido. Em seguida Logan deixou a casa, determinado a dar uma busca geral na ilha à procura de invasores remanescentes. Duas horas mais tarde, molhado, cansado e faminto, Logan retornou de mãos vazias à cozinha. Encontrou Montoya à mesa, com uma bandagem na cabeça. — Como está se sentindo? — indagou ao caseiro. Montoya deu um sorriso amarelo, passando a mão no pescoço. — Como se tivesse exagerado na tequila. — Quer que o leve ao médico em Nassau? — Não! Não precisa. — O homem deu outro sorrisinho embaraçado. — Encontrou o hombre? — Não. A lancha foi embora, acho que o sujeito foi junto. — Logan tirou a camisa amassada e molhada, entregando-a a Francisca. — E Elise? — Está acordando. Diz que a cabeça dói. — É por causa da injeção. De manhã terá passado. — Logan voltou-se para Montoya. — Como acha que o sujeito entrou? — Ele quebrou uma vidraça nos fundos da casa. Francisca não ouviu nada, porque dorme pesado. Enquanto eu patrulhava a ilha, vi o bote de borracha na praia. Mas não tive tempo de fazer nada, pois recebi a pancada na cabeça. — E os alarmes não estavam funcionando? O caseiro baixou a cabeça.
— Já não funcionavam direito. Com os raios, então, ficam pior ainda. Não tive tempo de verificá-los depois da tempestade. — Sua expressão revelava o quanto se sentia culpado. — Desculpe. — Se há alguém culpado aqui, sou eu — Logan disse para o caseiro. — Eu devia tê-lo lembrado. Não fique aborrecido com isso. — Levantando-se para ir até o quarto, indagou: — E agora, eles estão funcionando? Montoya endireitou-se na cadeira. — Sí, senor! — Vou dar uma olhada em Elise. Por que você não vai dormir um pouco? Não há nada a fazer até de manhã. — Não, senor, vou guardar a casa. Sabendo que não faria o caseiro mudar de idéia, Logan foi até o quarto onde Elise repousava. Ao vê-la, compreendeu o trauma por que passara. — Vou levá-la para cima — avisou. Ao pé da cama havia um robe, que ele passou pelos ombros de Elise, começando a levantá-la. — Eu posso andar — murmurou ela, e tentou se erguer, mas estava trêmula e fraca. Sem palavras, Logan passou o braço sob os joelhos dela e pegoua no colo, deliciando-se com o contato suave de seu corpo feminino, apesar das circunstâncias trágicas. Na suíte, deixou-a na cama, fechou as cortinas e acendeu a luz da cabeceira. Só então viu o abajur no chão. A cúpula estava amassada, e a lâmpada, queimada.
— Logan? — Elise chamou, tentando sentar-se na cama. — Não se mexa, ou sentirá dores de cabeça — observou ele, forçando-a a permanecer deitada. Elise exibia um hematoma no pulso e marca de dedos ao lado do queixo. Logan tocou-lhe o pescoço com delicadeza, deslizando a mão para seu ombro machucado. — Você tem passado por maus momentos, hein? Primeiro, quase se afogou, e agora isso. — Mas o que me aconteceu? A última coisa de que me lembro é de que gritei por você e... Em poucas palavras, Logan inteirou-a dos fatos. — Você acha que o homem foi embora? — ela perguntou, com voz trêmula. Logan deu de ombros. — Sei lá. Depois que o acertei, ele fugiu. Ainda não entendi como pôde se recuperar tão depressa. Bati forte... — Como ele chegou aqui? — Num bote de borracha. Montoya o viu na praia, perto da cachoeira. Acho que ele o usou para voltar à lancha. — Logan adaptou uma luminária na cabeceira da cama, enquanto ela protegia os olhos da luz. Ele afastou-lhe a mão e examinou-lhe o rosto. — Como você está se sentindo, Elise? — Pior do que quando me bateram na cabeça no último... Logan interrompeu-a, antes que continuasse: — Chega, Elise. Não quero mais saber de mentiras comigo. Você ia falar do último atentado?
— É... — E agora eles a encontraram de novo. Quem era aquele homem? Elise balançou a cabeça, arrependendo-se na hora do movimento. — Acho... que é um membro de um grupo chamado Bajurdi. Ela teve um acesso de náusea. — E que diabo são eles? — Por favor, Logan. — Ela o fitou com olhos suplicantes. — Não me force agora. Minha cabeça está doendo, tudo roda à minha volta, sinto enjôo. Prometo que amanhã cedo lhe conto tudo que quiser saber. Logan acariciou-lhe a face com as costas da mão. A pele estava gelada, e as pupilas ainda não tinham voltado ao tamanho normal. — Tudo bem, vou esperar. Mas de manhã vai me contar quem são aqueles homens e por que estão atrás de você. — Apenas para testar a reação dela, acrescentou: — E quero saber também sobre Melina e Alexander Kaleer, e sobre Mondária. Elise teve um sobressalto. — Como você descobriu... Mas lembrou-se logo. Cometera o erro estúpido de mencionar o nome Suryat, na noite anterior. — A gente se fala de manhã — cortou Logan, puxando as cobertas sobre os ombros dela e apagando a luz. — Vou deixar a porta de nossos quartos abertas. Se precisar de alguma coisa, é só chamar. Elise concordou, virando-se de lado. Sentia-se pior agora do que
quando recobrara a consciência. Não podia dormir enquanto não pensasse num meio de escapar dali. Mas como? Poderia contar com Logan ou deveria tentar tudo sozinha? Os rebeldes de Mondária queriam mesmo capturá-la. Mesmo que não quisesse envolver Logan, o único jeito de sair dali era com a ajuda dele. Fechando os olhos, chegou à conclusão de que era melhor pensar em alguma coisa quando se sentisse melhor. De manhã, a situação iria se resolver,.. Francisca serviu a Logan uma caneca de café no terraço do quarto de Elise. O sol despontava no horizonte. Ele se virou para evitar a claridade. — E Montoya, melhorou? — Ficou fora a noite inteira. — A empregada balançou a cabeça. — Loco. Está dormindo agora. — Bom. É o que ele mais precisa. Logan imaginou o que fazer com a própria dor de cabeça. Depois que deixara Elise na cama, ficara sentado em seu quarto e só cochilara um pouco de madrugada. — A senorita Fletcher ligou — informou a empregada. — Eu falei que ia acordá-lo, mas ela não deixou. — Ela disse quando virá? — Ela pediu desculpas, mas não poderá vir antes de domingo à noite. — Pelo amor de Deus! O que está acontecendo? Por que ela não vem? — Ela está com muitos problemas. — Francisca balançou a cabeça. — Tem muitas reuniões esta semana.
— Você contou o que aconteceu na noite passada? — Eu tentei, mas a linha caiu. Acho que não deu para ela ouvir. — Droga! — Logan devolveu a caneca à empregada. — Vou dar uma volta pela ilha. Com certeza o homem fugira durante a noite, mas ele precisava ter certeza. — Você ficaria aqui com Elise? Ela ainda não acordou. — Sí, senor. Ele viu a arma na cintura de Francisca. A outra, que ela lhe dera, estava no cós de seu short. A empregada entrou no quarto e ficou ao lado da cama. Enquanto caminhava pelos jardins ao redor da casa, Logan imaginava que tipo de negócios teria ligado Roxanne àquele caso. Quais
seriam
seus
verdadeiros
motivos?
Ela
agia
como
um
manipulador de marionetes, controlando os bonecos pelos cordéis. Quando não precisasse mais dos bonecos, os abandonaria em qualquer canto, até que voltasse a precisar deles. Pois ele estava cansado daquele jogo. Pegaria Elise e a levaria para Boston. Sabia muito bem o que dizer à tia quando a encontrasse da próxima vez. Depois de verificar os jardins, desceu para a praia. A partir do píer, vasculhou toda a área, mas a praia estava vazia. As pegadas que tivessem ficado na areia com a fuga foram apagadas pela maré. Logan prosseguiu pela costa até os rochedos na área posterior à casa. Parou à beira do penhasco, sem esperança nenhuma de encontrar algo. As andorinhas faziam um verdadeiro estardalhaço sobre as pedras, como se tivessem encontrado um cardume inteiro
para se alimentar. Ele parou, pensando ter visto algo. Preso a uma pedra abaixo do precipício, avistou um pedaço de tecido estampado com flores coloridas. O homem estava de bruços por entre as pedras. As ondas o arrastavam, subindo e descendo, de encontro aos recifes. Não havia a menor dúvida de que estava morto.
CAPÍTULO XII
Roxanne e Sol encontravam-se na estrebaria do Retiro, cada um ao lado de um imenso cavalo selado. — Você consegue acreditar que eu nunca montei a cavalo? — Sol observava a égua que lhe fora destinada. Perto dele, o garanhão de Roxanne resfolegava, raspando a terra com o casco. — Mas você é um explorador de geleiras e cavernas nas montanhas — observou ela. — É diferente. Ali dependo apenas dos meus pés. — Bem, você vai ver que não há dificuldades, eu prometo. Deixe tudo por conta do animal. — Ela acariciou o focinho da égua, para provar que o animal era manso. — E eu escolhi esta sela para você por ser mais segura e confortável.
— Mas eu não sei se, a quase dois metros do chão, vou conseguir equilibrar meu traseiro sem cair. Roxanne riu. Durante o dia e meio que passara com Sol no Retiro, sentira-se alegre e risonha. Não mais a incomodavam as tristes recordações da infância que sempre a deprimiam toda vez que voltava ao casarão em estilo vitoriano da família. Ainda não participara do encontro anual entre os executivos da empresa e seus respectivos acompanhantes, pois aborrecia-se logo. Mas devia se apresentar. Principalmente porque pretendia que Sol ficasse conhecido do pessoal especializado na área de eletrônica, onde ele iria atuar. Por enquanto, porém, queria esquecer todas aquelas pessoas e concentrar a atenção no homem forte a seu lado. Como ele estava sexy de calça justa e camisa aberta no peito, exibindo toda a sua masculinidade! Na verdade, nenhum outro a excitara tanto. Sol virou-se para ela. — Você tem certeza de que é mesmo costume levar os visitantes da primeira vez para andar a cavalo? — Como sua nova patroa, eu lhe diria que é um teste para o seu desempenho, mas não é obrigatório. Se você não quiser ir, podemos andar pela praia ou... — Não, eu vou. Além do mais, não gostaria de desapontar os cavalos, que estão prontos. Meu seguro está pago? — Claro — garantiu ela, sorrindo, enquanto ele montava meio desajeitadamente. — Pareço o Gary Cooper — comentou ele, triunfante. Antes que Sol mudasse de idéia e desistisse, Roxanne montou seu garanhão.
— Vou na frente, e sua égua vai me seguir. Você vai ver que é fácil. — Para você pode parecer — retrucou ele, segurando a sela com uma das mãos e os arreios com a outra. Depois de alguns metros, Roxanne voltou-se para ver como ele estava se saindo. A expressão séria e compenetrada de Sol provava que não era bem divertimento que ele encontrava no passeio. — Relaxe — ela aconselhou. — Só vamos até o riacho e depois voltamos. Não levaremos mais que meia hora, no máximo. Chegaram enfim ao riacho, cercado de flores silvestres e árvores frondosas. Roxanne desmontou primeiro e segurou o cabresto de Ginger para Sol apear. Depois de alguma hesitação, ele pisou no solo e esperou enquanto Roxanne amarrava os animais ao tronco de uma árvore. Agora que estavam totalmente sozinhos, sem o pessoal do estábulo e os demais convidados por perto, Roxanne sentiu-se estranha, um pouco insegura com a presença dele. Seria por causa da diferença de posições que ocupavam, ela como presidente da companhia e ele como seu empregado? Sol não tinha motivos para sentir-se inferior a ela, agora que se tornara um dos mais importantes e bem remunerados
executivos
do
recém-instalado
departamento
da
empresa. Ou talvez houvesse outra razão para tal estranhamento. Embora achasse Sol extremamente atraente, ainda não sabia das intenções dele a seu respeito. Caminharam algum tempo em silêncio ao longo do riacho que serpenteava por entre rochas cobertas de musgo. O sol do final da tarde, irradiando-se pelas copas das árvores, criava um colorido quente em volta de onde estavam.
Em dúvida se tomava a iniciativa das ações, o que lhe custara caro em outros relacionamentos no passado, Roxanne decidiu ir devagar. Um homem como Sol, que estivera casado durante tanto tempo com uma esposa que adorava, precisava de tempo para se acostumar com a nova situação. — Gostei de sua irmã — comentou ele de repente. — Vocês são tão diferentes! — Então coçou o lóbulo da orelha, parecendo embaraçado. — Quer dizer, não foi bem isso que eu quis falar... — Eu sei. — Num impulso, Roxanne deu a volta e parou bem à frente dele, impedindo-o de continuar. — Você gostaria de passar dois dias comigo em minha ilha nas Bahamas? Sol engoliu em seco. — Bem... não sei se... — Teríamos tempo para nos conhecer melhor. — Ela sorriu. — E você poderia dar uma olhada nos equipamentos eletrônicos de comunicação e alarme que tenho lá. — Eu... — Ele se apoiou numa cerca vizinha. — Senhorita, isto é, Roxanne, não sou muito bom em relações sociais, especialmente quando preciso tratar com mulheres... do seu tipo, quero dizer. Droga, não estou conseguindo me expressar. — Virando-se, olhou para o campo. — Não sei, não consigo achar as palavras... Roxanne deu seu melhor sorriso. — Fique à vontade. Não temos pressa. — Bem, quase não aceitei esse emprego — ele contou em voz baixa. — Ah, é? E por quê?
— Por sua causa. A conversa não tomara o rumo que Roxanne esperava ao tirá-lo de perto dos outros. — E você acha que eu... o intimido? Sol virou-se para ela. — Sim. Não. Isto é... — Ele lançou um olhar magoado para ela. — Oh, inferno! Pousando as mãos na cintura dela, atraiu-a para si e beijou-a longamente nos lábios. Roxanne ficou um tanto atordoada a princípio, depois relaxou e entregou-se ao beijo. Não lhe interessava mais quem era, onde estava ou se tinha compromissos importantes para cumprir logo mais. Sol O’Reilly a estava beijando, e era tudo o que a fazia feliz. Sol por fim afastou-se e fitou-a longamente. — Não vou pedir desculpas. Desejei fazer isso desde o primeiro instante em que a vi. — Como ela não respondesse, continuou: — Se você não me despedir, prometo que volto ao estábulo montado em Ginger sem reclamar. A gargalhada que Roxanne deu assustou os passarinhos, que fugiram para outra árvore. — Você é importante demais para mim para eu pensar em despedi-lo, Sol. — Depois de outro longo beijo, ela acrescentou: — Mas devo admitir que nunca me encontrei em situação semelhante a esta antes. — Você quer dizer, confraternizando com um empregado? Roxanne pressionou o corpo no dele.
— E você chama a isto “confraternizar”? — Em todo o sentido da palavra. — E isso não o preocupa? — Nem um pouco. — Ele afastou os lábios e beijou-a no pescoço. — Eu prefiro o que estamos fazendo. Roxanne odiou ter de interromper aquele momento romântico, mas era preciso voltar. — Acho que precisamos ir para casa. O jantar vai ser servido em uma hora. — Pode parecer desleal o que vou dizer, mas acho que não precisamos sair daqui. Roxanne riu. — Você não está sendo desleal. Está sendo esperto. Mas nós precisamos estar lá. O que é que vão dizer, se a anfitriã e o convidado de honra não aparecerem? Ele pegou-a pela cintura e puxou-a outra vez para si. — Vão dizer que o convidado de honra tem uma sorte danada. — Você falou com a polícia de Nassau? — indagou Montoya a Logan, enquanto o ajudava a carregar o homem morto numa vela de barco usada. — O sargento disse que estão cuidando dos estragos causados pela tempestade e só poderiam vir aqui depois de uns dois dias. Nós vamos ter de levá-lo para lá. — O que você comentou sobre a morte dele? — Eu disse que pensava ser o tripulante de um barco de pesca que caiu ao mar com a tempestade e se afogou, sendo jogado na praia
pelas ondas. Parece que engoliram a história. — O que você acha que aconteceu? Acabavam de pousar o corpo no píer. — Ele deve ter ficado confuso com a pancada que lhe dei e pegado o caminho errado. — Logan olhou os arranhões na face do homem e imaginou em que circunstâncias Elise tinha feito aquilo. — É, eu também acho que aconteceu isso. Agora vou levá-lo até Nassau — comentou Montoya. Logan odiava ter de pedir a Montoya para ir. Suas forças ficariam divididas ao meio, o que o obrigaria a vigiar com atenção redobrada. Mas, enquanto Montoya ia, ele tinha tempo para preparar o equipamento e o barco para deixar a ilha, em direção a Boston. Enquanto colocavam o corpo do homem na lanchinha, Logan encontrou em seu pescoço um medalhão preso a uma corrente. Nele havia inscrições numa língua estranha, parecida com o árabe. — Vou perguntar a Elise se ela sabe o que significa — Logan falou. Depois, quando Montoya dava partida na lancha, acrescentou: — Tem certeza de que pode ir sozinho? Montoya concordou, tocando o ferimento, e partiu. Logan voltou pensativo para casa. Tinha muitos fatos a esclarecer com Elise. Logan encontrou Elise sentada ao piano, correndo os dedos sobre o teclado, mas sem entoar nenhuma melodia. Os cabelos caíam-lhe em abundância sobre os ombros. Vestida com um elegante conjunto de calça e blusa de seda discretamente estampada e sandálias de salto baixo, parecia pronta para ser fotografada para a capa de uma grande revista de moda. — Como vai a cabeça? — ele perguntou ao chegar ao lado dela.
— Melhor, obrigada. Indo até o bar, ela abriu uma garrafa de refrigerante. Não sabia o que aconteceria. A despeito de sua promessa a Roxanne, odiava suportar o interrogatório de Logan. Por ela, quebrar a promessa feita a Roxanne era ainda uma questão a se pensar, embora devesse considerar os acontecimentos das últimas doze horas. Além do mais, a promessa fora feita sob falso juízo. E aquilo mudava muito a situação. O mais importante era sair da ilha, o que não podia fazer sem a ajuda de Logan. E, pelo que conhecia dele, Logan não a ajudaria antes que ela lhe contasse todos os fatos. — Quer beber alguma coisa? — perguntou quando ele chegou perto do bar. — Não, obrigado. — Logan ficou observando seus movimentos. Ela caminhou para o sofá, sentindo-se vigiada. — O homem fugiu? — Não. Nós o achamos... morto, nos recifes. Elise levou a mão à boca, sobressaltada. — Achamos isto com ele. — Logan estendeu-lhe o medalhão. — É de Mondária, não é? Depois de uma rápida olhada, Elise reconheceu o medalhão de uma seita de seu país, cujo objetivo seria proteger quem o usasse. Ironicamente, não funcionara. — Que aconteceu com ele? — quis saber. — Não sei. Deve ter sofrido um acidente. Você sabe quem era? — Sentado no outro lado do sofá, Logan cruzou as pernas. Ao
ver que ela hesitava em falar, acrescentou: — Roxanne ligou de novo. Não virá antes de domingo. Elise ficou pálida de ódio, mas apenas virou o rosto para as janelas e não disse nada. — Roxanne não merece sua lealdade, Elise. Ela nos colocou numa encrenca. Assim que não interessarmos mais para os planos dela, vai se livrar de nós. — Logan ficou estudando a reação de Elise a suas palavras. — Roxanne trata todo mundo da mesma maneira, sem dar explicações para o que faz. — Então, resolveu dar a cartada final: — No domingo, quando ela chegar, será tarde demais. Vamos sair da ilha e ir para algum lugar, enquanto decidimos o que fazer. Elise não entendeu a atitude de Logan. Ele a estava ajudando. Por quê? Sentia-se responsável por ela? Ou agia movido pelos sentimentos que cresciam entre ambos? De qualquer maneira, aquele seria o preço por quebrar a promessa a Roxanne. No tempo em que estivera sozinha, elaborara uma história para contar, mas agora não conseguia falar. A boca estava seca, a garganta, apertada. Como se intuísse sua dificuldade, Francisca entrou na sala com uma jarra de limonada fresca. — Almoço em quinze minutos — avisou, deixando a bandeja sobre a mesinha de centro. Assim que ficaram sozinhos outra vez, Logan perguntou: — Por que diabo você não se abriu comigo anteontem à noite, Elise? — Roxanne me fez prometer que não falaria. Não sei por quê. — Ela desviou os olhos vermelhos. A dor de cabeça voltava.
Logan pousou o copo vazio na mesinha. — Acho que sei o que está por trás disso. Roxanne não queria que eu soubesse da ingerência dela na política de outro país, por que sabe que sou contra. — Mas eu não entendo por quê... — Num outro trabalho que fiz para ela, também havia interesse econômico. Mas ela negou, até que não teve como esconder que apenas estava protegendo seus investimentos no país em questão. No seu caso, Elise, está acontecendo o mesmo. — É... Faz sentido. — E como você acha que o Bajurdi achou você aqui? Elise contou-lhe sobre Sabitta e o hábito de conversar entre criados, o que poderia ter deixado vazar a informação. — Você acha que ela delatou você? — Não, somos amigas praticamente desde que nascemos. Ela deve ter falado sem querer. — De repente, Elise teve um sobressalto. — Oh, ela deve ter caído prisioneira, e a fizeram confessar sob tortura e... — Ora, Elise, não adianta se preocupar agora, ou você vai acabar ficando louca. Temos primeiro de resolver nossa situação. — Depois de algum tempo, ele acrescentou: — Elise? Ou eu poderia chamá-la de Melina? Elise o encarou. — Até eu voltar a Mondária, quero ser chamada de Elise. Sorrindo, ele se levantou. — Então vamos almoçar.
Elise se levantou também e aceitou a mão que ele lhe estendia, pronta a seguir-lhe os passos. Mas, quando menos esperava, estava sendo abraçada e beijada. — Você tem sido uma garota corajosa — Logan falou assim que se separaram. Ela ergueu o rosto e forçou-se a sorrir. — É porque você me dá coragem. Sem você... Logan calou suas palavras com um longo beijo.
CAPÍTULO XIII
— Elise! — chamou Logan em voz baixa, odiando-se por ter de acordá-la. Encolhida a um canto da cama, ela dormia com a cabeça escondida entre os braços, os cabelos espalhados ao redor, de modo que ele não podia ver-lhe o rosto. Durante a tarde, enquanto Montoya vigiava para ver se a lancha não voltava, ela e Francisca o haviam ajudado a carregar o veleiro. O Espírito do Vento, agora pronto para zarpar, levava bastante água doce e combustível para o motor auxiliar, além de alimento em quantidade superior à necessária a uma travessia a algum porto na costa leste americana. Partiriam tão logo escurecesse, para não serem
vistos por algum eventual observador ao deixarem a ilha. Montoya, que retornara de Nassau depois do almoço, garantira ter visto a lancha por lá, e era capaz de jurar que fora seguido até a delegacia de polícia. Sem dúvida, os mesmos interessados deviam ter procurado se assegurar de que Elise não o acompanhara. O que era bom, pois pelo menos sabia-se que os monda- rianos vigiavam Nassau, em vez da ilha. Elise, quando percebera que iriam no veleiro para os Estados Unidos, protestara. Fora preciso que Logan a convencesse, explicando que a lanchinha, embora mais rápida, não possuía nem autonomia nem acomodações para travessias mais longas. O veleiro, mais espaçoso e dotado de cozinha e beliches, fora projetado para duas pessoas viverem a bordo por meses. Com ele, poderiam cobrir grandes distâncias sem gastar outro combustível que não um bom vento. Além disso, acrescentara afinal, indo de barco não precisavam passar pelo aeroporto
de
Nassau,
ponto
natural
de
fuga,
onde
seriam
reconhecidos e seguidos. Como não tivesse plano melhor, Elise acabara concordando. Mas deixara bem claro que não gostava da idéia, por causa de seu medo do mar aberto. Pela janela, Logan viu os últimos raios do sol cobrirem as árvores de dourado. Era uma pena não poder desfrutar aquele paraíso, considerou com um suspiro, mas pelo menos levava Elise consigo. Duas horas antes, quando terminaram de arrumar todas as bagagens, ele quase sugerira um mergulho relaxante a Elise. Mas arrependera-se no ato, pois seria um risco desnecessário afastar-se da proteção da casa.
Após o jantar, ela preferira passar suas últimas horas na ilha repousando no quarto. Agora estava deitada com a roupa que escolhera para a viagem: a parte de cima do biquíni preto e o sarongue que usava no dia da chegada de Logan. A generosa fenda lateral revelava o bronzeado das pernas esguias. Dominado por um acesso de ternura, Logan correu os dedos pelo veludo de um braço cor de ouro escuro. — Elise! — repetiu um pouco mais alto. Ela virou o rosto e pronunciou palavras desconexas, mas não abriu os olhos. Logan teve um impulso de beijá-la nos olhos, até que os abrisse, e então provar outra vez o sabor daqueles lábios encantados. Mas apenas correu a mão pelos cabelos sedosos. — Levante-se, Elise. — Quase acrescentara “minha querida”, mas concluiu que ainda era cedo para revelar seus sentimentos. Quando estivessem longe de qualquer perigo, no mar, então ele lhe falaria de amor. — Já chegou a hora? — Ela espreguiçou-se languidamente. — Chegou. Vamos nos despedir dos Cristobal e partir. Ainda sem se mover, ela perguntou: — Você acha que eles vão poder nos seguir? — Duvido! O oceano é imenso... Elise sentou-se abruptamente na cama. Logan imediatamente arrependeu-se de suas palavras. — Eu quis dizer que é difícil um barco seguir o mesmo curso de outro. Uma mínima variação no rumo produz uma diferença tão
grande que mesmo marinheiros muito experientes não conseguem seguir outro barco. Elise estava encantadora com os raios do poente dourando-lhe a pele. Mas agia como se não tomasse consciência de sua beleza. Ela projetava uma sensualidade sem artifícios. — Me esqueci de lhe perguntar. Montoya teve algum problema com o... — ela fez uma pausa para limpar a garganta — ...o homem morto, em Nassau? — Não. Eles engoliram a história. O mais interessante é que o homem não havia sido dado como desaparecido. Seus amigos não quiseram envolver-se com a burocracia... Depois de olhar ainda uma vez o relógio, ele completou: — Vamos, Elise. Agora temos de partir. Mas nenhum dos dois se moveu, como se enfeitiçados pela magia do momento. O sol acabara de se pôr, deixando-os muito próximos pela recente penumbra. Como que podiam sentir o calor emanado por sua pele, o aroma dos corpos, o arfar da respiração ansiosa. No instante seguinte Logan tinha Elise entre os braços, sem saber qual dos dois tomara a iniciativa. Permaneceram abraçados, apertando-se um ao encontro do outro. Com a mão na nuca de Elise, Logan a olhou dentro dos olhos, um segundo antes do beijo. — Logan? — ela falou, como se apenas quisesse entreabrir os lábios para ele. — Estou aqui. — Ele correu as mãos pelas costas macias, percebendo que ela estava tensa. — A-Acho... isto é, agora, antes de nós sairmos da ilha, eu
queria que nós... Durante o dia inteiro, Elise pensara no que dizer a ele. Agora que chegara o momento, não conseguia expressar seus pensamentos sem parecer uma tola. Além disso, era a primeira vez que se viam a sós em completa intimidade. — Gostaria de ler seus pensamentos, Elise, mas não posso. Elise tentou se sentar, mas Logan a manteve presa. Suspirando, ela relaxou. Decidida a terminar o que havia começado, aspirou profundamente e falou o mais rápido que pôde: — Eu acho que não deveria haver qualquer tipo de intimidade física entre nós. De propósito, escolhera palavras formais, que aprendera nos livros da biblioteca do palácio. — O que você quer dizer com “intimidade física”? — Ele pressionou os lábios nos dela, num beijo ousado em que suas línguas se encontraram. Elise tentou recuar, mas Logan a reteve. Dominada por aquela onda de sensações, era impossível explicar que não queria fazer amor com ele. Seu corpo implorava por carícias, por beijos, por que ele a possuísse. Quando ia se render, ele parou. — Ou será que você quis dizer isso... Logan segurou-lhe um seio, acariciando o mamilo entre os dedos. Quase levou Elise ao delírio, ao cobrir o bico intumescido com os lábios quentes e úmidos. — Ou isso... — murmurou, continuando a sorver o mamilo dolorido. Num gesto ousado, avançou a mão de suas costas para o meio
das pernas, acariciando-lhe o sexo latejante. Elise arquejava, movendo os quadris, já totalmente entregue aos instintos febris. Mas ele se deteve, consciente de que chegaria o momento certo de se amarem. Uma pálida lua nascia no horizonte, inundando o quarto de um brilho esmaecido que expôs o rosto brilhante de Elise. Ela perdera completamente o controle das emoções. — Acho que entendi o que você quis dizer — declarou Logan, levantando-se para sair do quarto. — Vamos partir em cinco minutos. No domingo à noite, com Sol a seu lado, Roxanne andava feito uma leoa enjaulada pela sala de estar de sua casa na ilha Maximilliam. Com as mãos na cintura, tamborilando as unhas pintadas de vermelho sobre o cinto de couro largo, olhava impaciente para Francisca e Montoya, que pareciam pouco à vontade junto ao piano. — E os alarmes não funcionaram? — Não, senorita, por causa da tempestade. Desculpe. — Por favor, não pensem que estou culpando vocês. A situação toda foi criada por mim. Eu devia ter vindo quando avisei que vinha, não depois de toda essa confusão. — Ela deu um longo suspiro, tentando relaxar. — Não entendo como descobriram o paradeiro de Elise, os danados. — Olhando para Montoya, em quem confiava havia anos, percebeu o quanto o caseiro estava aborrecido. — Você tem certeza de que não sabe para onde Logan foi? — Eles não sabiam, senorita — respondeu o empregado. — O senor Logan disse que iria o mais possível para o norte. — E será que não foram seguidos? — Para despistar, fui com Francisca a Nassau na lanchinha,
enquanto o senor Logan e a senorita iam no veleiro. Tenho quase certeza de que não foram seguidos. — Pois gostaria de não me preocupar mais com isso. — Roxanne foi sentar-se ao lado de Sol no sofá, descalçando as sandálias e repousando a cabeça no encosto. — Logan agiu bem. Espero que saiba o que está fazendo. O silêncio pesado que se instalou em seguida foi quebrado por Francisca. — Posso servir o jantar? — Sim, por favor. Nos sirva uma refeição leve. Almoçamos tarde. O casal de empregados retirou-se apressado, deixando Roxanne a sós com Sol. Voltando-se para ele, ela surpreendeu-se com sua expressão de desagrado. Sol levantou-se e caminhou até a janela ampla, onde ficou contemplando o cais. — Se você quiser, eu posso explicar. — Roxanne seguiu-o, parando ao lado dele. — Não precisa, não. — Acho que precisa, sim. Ou você vai acabar tirando conclusões erradas se não conhecer todos os fatos. Em poucas palavras, deu-lhe um resumo dos acontecimentos, mencionando a fábrica de Mondária, mas sem comentar sobre sua ajuda a Kaleer. Apenas disse que Alexander era um velho amigo e associado em negócios que precisava de um lugar seguro para esconder a filha por uns tempos. — Pelo que entendi, ela ainda não está em segurança — concluiu Sol assim que Roxanne terminou de falar. — Tem razão, querido. Mas não posso fazer mais nada. Quem
sabe se falasse com Boston, para ver se Logan me procurou... mas, da última vez que liguei para cá, a ligação estava péssima, cheia de estática. — Deixe eu dar uma olhada no equipamento, Roxanne. Roxanne sentiu-se mais relaxada. Até que enfim alguém repartia com ela a carga de problemas. Depois do jantar, Sol caminhava ao lado de Roxanne à beira da água na praia. Levava as toalhas penduradas no braço e uma lanterna com que iluminava o caminho na noite sem lua. — Francamente, Roxanne, aquele seu equipamento me deixou perplexo — comentou ele de repente. — Pois foi por isso que eu quis que você revisasse tudo, não só aqui na ilha, mas na companhia inteira. Quero que o sistema permita que, de qualquer lugar, um funcionário meu possa falar com qualquer ponto do mundo. — Muito ambiciosa. Mas você só poderá obter essa cobertura usando um satélite de comunicações, caso contrário... Roxanne enlaçou-o possessivamente pela cintura. — Não me venha com detalhes técnicos que eu não entendo, querido. Apenas descubra qual é o melhor sistema e me apresente uma avaliação de custos. Ou, melhor ainda, decida por sua conta. Mas ponha essa droga para funcionar o quanto antes. Sol deu uma risada. — Você faz parecer simples... Roxanne pegou-o pela mão e levou-o até a piscina natural sob a cachoeira. Ali, no ar tépido da noite, entre o pipilar dos grilos e o canto das aves noturnas, eles apreciaram o encanto da paisagem
entre as rochas. Quando mandara reformar a queda- d’água, já previra passar momentos agradáveis com um homem naquele local, mas não encontrara ninguém que julgasse digno de dividir com ela o cenário romântico. Agora, tudo se completava. Sol estendeu as toalhas e sentou-se. — As rochas ainda estão quentes do sol — comentou enfiando as pernas na água. — A água está uma delícia. Roxanne mergulhou, emergindo e nadando até ele. Afastando o cabelo dos olhos, pousou as mãos ao lado dele. Teve vontade de tocálo, mas se conteve. — Em que você está pensando? Não em satélites de comunicações, espero. Sol deu um sorriso, balançando a cabeça. — Desculpe. Quando estou com um problema, só consigo parar de pensar nele depois que o resolvo. — Nada lisonjeiro. — Roxanne nadou para o meio da piscina natural. — Qual é o seu problema? Sol entrou na água perto da margem. — Trata-se de uma pergunta que eu devia ter feito a você no Retiro, antes de assinar o contrato. — Ah, é? — Ela concluiu que não gostaria de ouvir o que viria a seguir. Puxando o lóbulo da orelha, ele ficou sério. — Antes de falar, vou lhe contar uma coisa. Depois do jantar, no sábado, conversei com dois executivos, um homem e uma mulher. — Ele levantou a mão. — Não me pergunte o nome deles ou onde
trabalham, porque prometi não revelar. Roxanne concordou. — Tudo bem, não vou perguntar. O que eles disseram? Sol deu um sorrisinho sem graça. — A mulher recomendou-me cuidado com Roxanne Fletcher. Ela nadou até ele. — Por quê? — Ela disse que a chefona quer controlar tudo, que você às vezes impõe severas restrições às pessoas sob sua confiança. O homem corroborou o que ela disse, lembrando no entanto que você já se tornou bem mais avançada que seu pai. — Entendo. — O que diziam era verdade, ela aperfeiçoara o sistema de trabalho na empresa que herdara. E às vezes precisava agir com rigor para atingir seus objetivos. — Mas em que ponto você quer chegar? — É que eu sempre trabalhei sozinho, sem patrão. E não gostaria de interferências no meu setor, ou então não vou conseguir realizar nada. E, pela amostra dos equipamentos que vi aqui na ilha, vou ter muito o que fazer. O que você acha? Roxanne pensou durante algum tempo. Embora nunca nenhum empregado tivesse falado daquele modo com ela, estranhamente, não se sentia ofendida. Os argumentos dele pareceram-lhe válidos. — Tudo bem, entendi seu recado. Vamos fazer um trato: se alguma vez eu passar dos limites, terá toda liberdade de me chamar a atenção. Mas sempre se dirija direto a mim, de acordo? — Claro.
Depois de estender-lhe a mão para selar o pacto, Sol nadou até a cachoeira, permanecendo um tempo sob a queda-d’água e então seguindo para a margem. Roxanne o acompanhou em silêncio, feliz por terem superado aquele problema. De repente, Sol voltou-se para ela. — Como novo diretor da Eletrônica Fletcher, terei obrigação de comparecer aos encontros anuais? — Sim, por quê? Não o agrada? — Devo admitir que me sinto meio deslocado naquele ambiente sofisticado. Prefiro situações mais à vontade, onde possa usar jeans e camisetas, e não smoking. Roxanne mediu-o de cima a baixo, gulosamente. — E calção de banho... Sol deu-lhe um de seus sorrisos de embaraço. — Até que para uma chefona você não é tão má... O mundo cessou de existir para Roxanne quando Sol tomou-a nos braços com seu ímpeto costumeiro. O beijo que trocaram foi carregado de desejos e promessas secretas.
CAPÍTULO XIV
Elise descansava no beliche do Espírito do Vento, ouvindo as ondas passarem suavemente sob o casco do barco. Velejando desde as primeiras luzes da manhã, após quatro dias de singradura em mar aberto, acabavam de lançar âncora numa prainha no litoral da Carolina do Sul, na costa leste americana. Passava das dez da noite quando resolvera descansar. Logan entrara na cabine uma hora mais tarde, e ela o ficou observando. Sem descalçar as botas impermeáveis, ele se deitou no beliche ao lado dela, tão próximo que poderia tocá-lo se quisesse. Por mais que tentasse, não conseguia ignorar sua presença. Era um sofrimento manter o acordo de evitar qualquer contato físico, a ponto de haver-se arrependido de tê-lo proposto. Não havia como evitar a proximidade num espaço tão exíguo, ainda mais que viviam se tocando, ao fazerem a comida, trocarem as velas ou mesmo passando no interior da minúscula cabine. Mesmo a divisão de horas de sono deixava-lhes pouco tempo de isolamento, e não só ela como Logan também — tinha quase certeza — estava cada vez mais tenso com a situação. À noite era pior. Por mais que tentasse relaxar, seus músculos pareciam recusar-se a obedecer. Logan se mexeu, interrompendo seu devaneio. Elise mudou de posição, de modo que pudesse vê-lo deitado sobre o beliche. Era possível imaginar cada um de seus músculos sob a pele bronzeada. Ele cobrira os olhos com um braço e sua respiração era profunda e regular. Logan nunca parecia ter a menor dificuldade para pegar no
sono. Perturbada com a visão daquele corpo másculo a seu lado, Elise voltou-se para a portinhola de entrada. O brilho da lua cheia dava ao mar o perfil de uma chapa metálica sem fim. Outras emoções, além da descoberta de seus impulsos sexuais, a perturbavam. A começar pela atitude machista de Logan, ao decidir a forma de fuga sem consultá-la. Durante toda a vida fora vítima de pessoas que lhe impunham um modo de pensar e agir: primeiro sua mãe, depois os professores, seu pai e conselheiros, e agora Roxanne e Logan. Estava cansada de ser guiada, queria mostrar que era capaz de agir por conta própria. Sem ninguém para protegê-la. Bem que já suspeitava que Logan pretendia acompanhá-la até Mondária. Embora no fundo desejasse que ele fosse, sabia que isso seria uma tolice. Impraticável, concluiu, com uma pontada de dor. Deveria ir sozinha. Em casa, faria de tudo para auxiliar o pai em sua tarefa, nem que fosse apenas para escutar-lhe as queixas. A presença de Logan complicaria tudo, além de distraí-la de seus objetivos, como no momento. Sentindo um calor repentino, afastou o lençol. Em vez dos vestidos sofisticados de seda, estava usando uma camiseta que tomara emprestada de Logan. Embora lhe chegasse até os joelhos, quando se deitava, deixava exposto mais do que gostaria de mostrar. Gostava de roupas leves para dormir e, enquanto Logan continuasse adormecido, não fazia diferença. Virou o travesseiro do outro lado, buscando refrescar-se. A noite estava quente e abafada. Suspirou. — Não consegue dormir, Elise? Ela se voltou abruptamente ao ouvir a voz de Logan.
— Não, eu... Ele sentou-se e correu os olhos por seu perfil delicado. — Em que estava pensando? — Eu... — Pega de surpresa, Elise externou o primeiro pensamento que lhe ocorreu: — Estava pensando no modo como Roxanne manipulou a mim e a você. Ela e meu pai me tiraram de casa sem nem ao menos me consultar e... — Respirando fundo continuou: — Você também, de certa maneira, nem me perguntou se era assim que eu queria fugir... — Logan fez menção de falar, mas ela completou: — Não sei se deveria agradecer pela ajuda, mas Montoya podia ter me deixado em Nassau, onde eu daria um jeito de chegar a Mondária por minha própria conta. No silêncio pesado que se instalou, Elise cruzou os braços para esconder o tremor das mãos. De um impulso, Logan sentou-se no beliche dela, obrigando-a a encolher as pernas ou ele sentaria em cima e a puxar a camiseta rápido para baixo. — Sua pirralha ingrata! — exclamou ele, enraivecido. — Você me impressiona. Nunca conheci ninguém tão inconseqüente. Coloca-se numa situação de perigo e depois culpa seu pai por mandá-la para um lugar seguro? — Perturbado, Logan correu os dedos pelos cabelos. — A despeito dos interesses que tenha em mente, Roxanne se preocupou com você. Ela teve de trabalhar para me contratar e fazer os acertos para levá-la à ilha. E ainda por cima tem o desplante de se queixar de mim por trazê-la em meu barco? Caso você não se lembre, o único motivo de estarmos aqui é seu seqüestro. Depois de uma pausa para examiná-la ele continuou, num tom menos exaltado: — Você não percebe que, se tivesse ido a Nassau, comigo ou
sozinha, poderia ter sido seguida? Elise não podia negar que Logan tinha razão. Mas ele não estava levando seus sentimentos em conta. Recusava-se até a aceitar seus motivos. Como ela poderia se tornar uma pessoa independente e adulta
se
não
tomasse
suas
próprias
decisões? Certo,
seria
imprudência ter ido a Nassau, mas queria ter sido consultada sobre o plano de fuga, não ser levada como uma bagagem extra. Bem que gostaria de expressar seus pensamentos, mas não podia fazê-lo daquela maneira. Precisava sair daquela cabine apertada, cujas paredes a aprisionavam. Logan estava perto demais, e a presença dele a intimidava. Mas não havia modo de sair dali sem passar por cima dele. Logan resolveu o problema levantando-se. — Desde que a vi pela primeira vez, você amadureceu bastante, Elise — comentou ele. — Talvez mais do que você mesma tenha percebido. Mas ainda tem um longo caminho pela frente. E eu deveria sentir pena de você. Apanhando o travesseiro e uma manta, subiu pela escadinha, e Elise ficou ouvindo os passos dele ecoarem sobre o convés. Podia visualizar a cena: sentado, com os braços envolvendo os joelhos encolhidos, Logan devia estar olhando para o mar e tecendo os piores comentários a seu respeito. Depois que o ânimo serenou, Elise sentiu-se derrotada e sem graça. Só perdera com seus comentários estúpidos. Até a manhã, quando voltariam a se ver, ela decidiria se pediria desculpas ou deixaria as coisas como estavam. Aquela situação, afinal, abafava a paixão que ela não conseguia controlar. Estirando-se no beliche, sentiu as faces arderem.
— Droga! — suspirou, sentindo-se miserável. Pela manhã, ao subir ao convés, Elise encontrou Logan exatamente na posição que imaginara. O sol despontava no horizonte, mas não soprava a mínima brisa para refrescar a atmosfera quente e úmida. Ela parou na frente dele, mas o reflexo do sol na água a impediu de ver-lhe os olhos. — Já fiz café. Se quiser, posso servir o desjejum Elise nunca preparara nenhuma refeição sozinha até ali. Ele sempre fora o cozinheiro, e ela, a ajudante. — Ótimo. — Posso fazer ovos mexidos. Se você quiser de outra maneira, terá de preparar. — Mexidos está bom. — Logan voltou a cabeça, e ela notou- lhe as profundas olheiras. — Me chame quando estiver pronto. Meia hora mais tarde tomavam o café na cabine. Elise deixara queimar as torradas, mas tivera o cuidado de raspar as áreas enegrecidas. Logan nada comentou, mastigando-as ruidosamente. Pelo menos os ovos estavam razoáveis, quase por milagre, concluiu Elise. — Quando você acha que poderemos ir até a praia? — indagou, quebrando o silêncio incômodo. — Devemos parar mais uma vez, para conseguir suprimentos, talvez na Virgínia, se a comida e o combustível derem até lá. Então vamos para Cape Button. — Direto para o Maine? Por quê? Ela pensara que assim que estivessem na costa americana dei-
xariam o barco num porto seguro e pegariam um avião até uma cidade grande, onde ela embarcaria para Suryat. Àquela altura, os perseguidores não mais os encontrariam. — Não quero deixar o barco em qualquer marina pelo caminho. O Espírito do Vento é uma das poucas coisas que tenho. Não quero que aconteça nada a ele. — Entendo... — falou Elise em voz gelada. — E não lhe ocorreu que poderia me deixar em terra, para que eu possa voltar a meu país por meus próprios meios? — Oh, claro, não pensei noutra coisa, depois da cena da noite passada. Assim que puder, vou levá-la ao aeroporto mais próximo. — Então por que não faz isso agora? Você poderia me deixar lá e seguir seu alegre caminho. Logan não respondeu, e Elise não conseguiu decidir se saía da mesa ou encontrava algo mais para dizer. A tensão no ar era quase palpável. Ela olhou para a costa, onde as gaivotas voavam em busca de alimento, mergulhavam e voltavam a voar. — Nós não sabemos como está a situação em Mondária — Logan disse por fim. — Deve estar sendo difícil obter notícias de lá. Enquanto isso, vamos continuar com meu plano original. Se eu não puder falar com Roxanne, iremos até meu sócio em Boston, ver se conseguimos
algo
com
seus
contatos
no
Congresso
e
no
Departamento de Estado. Elise levantou-se indignada, quase puxando a toalha com o movimento brusco. — Não me interessa o que está acontecendo em Mondária. Tenho de voltar o quanto antes.
— E como pretende fazer isso? — Bem, eu... — Tudo bem, você dará um jeito de ir para Suryat. E, quando chegar lá, o que vai fazer? No seu país não verificam os passaportes? Se aqueles sujeitos conseguiram achá-la na ilha, que dirá em seu próprio país. Estarão esperando Elise St. James de braços abertos... Elise engoliu em seco, aborrecida. Não pensara naquela possibilidade. — Os militares são leais a meu pai. Quando eu chegar, eles vão me reconhecer no aeroporto. Logan pensou por um momento. — É, pode ser. Quando formos a terra, vamos tentar ligar para Suryat. — Ele se levantou e ficou olhando-a dentro dos olhos. — Mas, enquanto não tivermos certeza de sua segurança, você vai fazer o que eu mandar. Primeiro, vai limpar a cozinha e arrumar as camas, enquanto eu cuido do convés. Rilhando os dentes, Elise pronunciou uma palavra em nereb que Sabitta lhe ensinara: — Sarkeen! — Que foi que você disse? — Logan a deteve quando ela começava a tirar a mesa. — Não ficaria bem para uma donzela traduzir. Logan sorria ao sair para o convés. Ao pôr-do-sol, encontraram outra enseada tranqüila para passar a noite. O vento fora favorável todo o dia, soprando constante do sul. O Espírito do Vento parecia voar sobre as ondas, respondendo com
docilidade às manobras. Pena que Elise não. fosse tão maleável como o barco, considerou Logan com amargor. Sentado no convés dianteiro com um copo de uísque na mão, observava o belíssimo poente nas montanhas de terra, ou pelo menos fingia olhar. Na verdade, não conseguia desviar os olhos do corpo esguio de Elise, que pendurava roupas num fio que ele estendera na popa para essa finalidade. Como acontecera durante todo o dia, continuavam sem falar, procurando manter-se ocupados e, tanto quanto possível, sem o menor contato físico. Logan deu mais um gole no uísque e suspirou. Elise o excitava cada vez mais, a ponto de não saber até quando poderia se controlar. E o pior era que ela parecia não ter a menor idéia do que estava fazendo com ele. Seria tudo tão mais fácil se não reagisse a seus beijos, ou se não o deixasse tocá-la intimamente, acariciar- lhe os seios, memorizando cada curva daquele corpo fresco. Em mais de uma ocasião, percebera a mulher ardente que se escondia por trás daquela fachada de indiferença e ingenuidade. Como naquele momento, em que ela acabava de estender uma de suas camisas que lavara, iluminada pelas chamas do crepúsculo. Com as coxas bronzeadas expostas pelo short minúsculo e os seios revelados pelo vão da camisa semidesabotoada, ela parecia a estátua de uma deusa. O vento pressionava o tecido fino da camisa sobre a pele aveludada, evidenciando os contornos dos mamilos. Depois de prender a peça de roupa, Elise voltou o rosto na direção dele como se tivesse captado seus pensamentos. Os olhos azuis lançaram-lhe dardos flamejantes antes de ela descer para a cabine e abrir a torneira da pia da cozinha para lavar a louça do jantar. Logan pensou em oferecer-se para ajudar, mas voltou atrás. Naquela noite
em especial, não resistiria a tomá-la entre os braços. Virando-se para o mar, Logan bebericou novamente o uísque. Ainda não conseguira digerir a explosão da noite anterior. Tinham se tornado tão camaradas, nos primeiros dias da viagem. Como ela pudera falar-lhe tudo aquilo? Era verdade que, à medida que os dias se passavam, Elise se tornava cada vez mais tensa. Então, naquela noite, ela estourara... No momento em que a lua crescente despontou no horizonte, Logan começou a entender as verdadeiras razões daquele estranho comportamento de Elise. Só podia ser isso. Assim como ele, também ela começara a sentir os efeitos traiçoeiros da atração física. Devia estar sobressaltada com os mesmos desejos, as mesmas fantasias, a mesma fervilhante perturbação que lhe tirava o sono e o arrancava do leito, transformando-o numa fera enjaulada sacudida por anseios sufocantes. A gargalhada que Logan deu de repente desalojou de seu refúgio uma ave da praia, a qual saiu voando entre gritos de indignação. Da cabine não subiam mais ruídos. Talvez Elise tivesse ido se deitar, concluiu Logan. Depois daquele dia de trabalho intenso, bem que ela merecia repousar. As estrelas brilhavam no céu escuro com a lua apenas despontando. Quando Logan pensou em descer para chamar Elise, ela subiu para o convés e sentou-se diante dele, de costas para a lua. Naquela posição, ele não podia distinguir-lhe a expressão. — Obrigado por ter lavado a louça — falou baixo. — De nada. — Finalmente ele resolvera falar, considerou Elise. Talvez a tivesse perdoado pela explosão da noite anterior. — Que calor, não? Lá dentro está abafado.
— Vou trazer os colchões para a gente dormir aqui fora. Sem esperar por sua opinião, Logan levantou-se, derramou o resto do uísque no mar e entrou na cabine. Depois de duas viagens em silêncio, os colchões estavam estendidos no convés, um de cada lado do leme. Ainda uma vez, ele retornou à cabine, e Elise ouviu a estática do rádio e em seguida a voz do locutor: — Boa noite, senhoras e senhores. Aqui é a rádio WBOT, de Raleigh, Carolina do Norte. Dando prosseguimento à nossa programação, ouviremos Glenn Miller e sua orquestra... A melodia sensual preencheu o silêncio da noite, e Elise pôs-se em guarda. A música com certeza era mais que uma trégua repousante para ajudá-los a dormir. No mínimo Logan a convidaria para dançar, a envolveria nos braços fortes, e ela não saberia como resistir. Mesmo sabendo que a dança levaria a maior intimidade... Logan retornou e parou diante dela. — Em sinal de reconciliação, você aceita dançar comigo? — sugeriu, exatamente como Elise previra, pegando-a pela mão e puxando-a para si. Antes que ele a abraçasse, Elise parou a uma distância segura. — Só que preciso dizer uma coisa antes. — O que é? — Eu nunca devia ter falado aquelas coisas horríveis para você, ontem à noite. Não sei como me desculpar pelo meu comportamento. — Antes que ele respondesse, ela acrescentou: — Desde que o conheci, nunca me senti tão envergonhada... — Não precisa se desculpar. Você foi posta numa situação para a qual não estava preparada, só isso.
— Mas você não entende... — Eu a entendo melhor do que pensa. Desde que deixou Suryat, sua vida sofreu muitas transformações, e você não teve tempo suficiente para se adaptar. — Mas isso não explica... — Chega de conversa. Vamos dançar. Sorrindo, Elise passou os braços sobre os ombros dele e seguiulhe os passos. Dançarem juntos já estava se tornando uma rotina, e ela o acompanhava sem o menor esforço. Era só seguir a cadência da música e entregar-se àqueles braços experientes, que a conduziam com segurança. Ao sentir o perturbador contato das pernas grossas junto às suas, Elise pensou em manter-se afastada, mas desde os primeiros passos seu corpo moldara-se instintivamente ao dele. A música terminou, mas outra encadeou-se a seguir, e eles continuaram embalados no estreito espaço do convés, sob o céu estrelado. Os pensamentos rodopiavam na mente de Elise. Desde que a oportunidade de regressar a Mondária se aproximava, o ultimato de seu pai quanto ao casamento mais a preocupava. De acordo com a situação do país, assim que retornasse, era quase certo que tivesse de desposar Paul Roderi, ou outro pretendente qualquer determinado por seu pai. Só havia uma única maneira de impedir que tal matrimônio se realizasse, pelas leis de Mondária, considerou Elise com um sorriso. Mas logo seu sorriso esmoreceu. De que maneira seduziria Logan Hunter para levar adiante seu plano secreto? Bem, pensou, talvez ao embalo daquelas canções românticas encontrasse inspiração...
As músicas continuaram por um bom tempo mais, até que o locutor voltou para anunciar o final da programação, desejando uma boa noite a todos os ouvintes. — Obrigado, meu velho — sussurrou Logan ao ouvido de Elise. — E boa noite para você também. Elise deu uma risada, e Logan viu-se de repente desejando ardentemente possuí-la naquela noite. Tentou falar alguma coisa, mas as palavras se estrangularam em sua garganta. Apesar do armistício dos últimos momentos, ele não sabia no que ela estava pensando. Talvez ainda estivesse ressentida. — Vou desligar o rádio — informou por fim, descendo rapidamente para a cabine. Elise ficou ali parada, olhando para a terra, com o olhar vagando pelo horizonte. Na escuridão, não podia distinguir as árvores nem as ondas na praia, apenas ouvia a ressaca e sentia o frescor do vento na pele. Nas últimas horas, tentara encontrar palavras para levar adiante seu plano de sedução, mas não achara o que dizer a Logan. Nenhum de seus professores, nem outras mulheres com que tivera contato desde a morte da mãe, nem mesmo seu pai, ninguém a ensinara como proceder em tais circunstâncias. Também, era altamente improvável que se encontrasse assim sozinha com um homem, um estranho que conhecera havia menos de duas semanas e com quem já pensava em fazer amor. No palácio, ela fora mais protegida que as jóias da Coroa. Mas agora ela estava muito longe das tradições de seu país. Desde que deixara Logan beijá-la e tocá-la com tanta intimidade, tornarase dona de seus próprios sentimentos. Sabia que o desejava e, no
íntimo, começava a desconfiar que ele também a queria com a mesma intensidade. Ouvindo-o retornar, ela se voltou. Logan estava só de calção e aproximou-se do colchão, olhando para ela. — Estou pronto para ir para a cama. — Sorriu. — Esquentei um pouco de água. Se você quiser se lavar... Elise inspirou profundamente, olhando aquele corpo másculo. Embora não entendesse de regras de sedução, de uma coisa estava certa: não iria ficar parada como uma estátua na frente dele, se as coisas continuassem correndo daquele modo. O banho não a acalmou. A água escorrendo-lhe pelas costas abaixo só lhe aumentou a excitação. Em seu íntimo pulsava uma tensão estranha, que chegava a doer. Um calor febril lançava-lhe calafrios através da espinha, até o âmago de sua feminilidade. Depois de se enxugar, parou diante das roupas, trêmula e indecisa: usaria a camisa de Logan, com a qual costumava dormir, ou mudaria para a camisola? Enquanto vestia a camisola pela cabeça, um suor frio a excitava ainda mais. Depois de escovar os cabelos com movimentos nervosos, subiu para o convés e sentou-se no colchão com as pernas dobradas para um lado. Parecia estranhamente calma. Elevou os olhos para Logan, esperando que ele a imitasse. Sem perda de tempo, Logan tomou assento ao lado dela. Enlaçando-a carinhosamente, beijou-a com paixão. Já ia deitá-la sob seu corpo quando ela o deteve. — Logan, espere. Ele a olhou ansiosamente.
— Quero ser honesta com você. Quando me beijou, lá na praia, eu correspondi, mas apenas porque estava me testando, conhecendo algo novo. Aquele tipo de intimidade era algo que eu jamais... — Depois de uma pausa ela acrescentou com voz rouca: — Eu jamais havia experimentado. Veja, eu não sabia o que estava fazendo... e ainda não sei. Logan emocionou-se. Ela estava trêmula, com lágrimas nos olhos, mais vulnerável que qualquer garota americana de doze anos de idade. — Minha querida, eu sei bem do que está falando. — Enlaçou-a carinhosamente. — Caso não queira, não vai acontecer nada. Tudo depende de você. Depois de um momento de hesitação, Elise deitou-se ao lado dele e, surpreendendo-o, beijou-o longamente. Mas estava tensa, bem diferente do que se mostrara na praia. — Elise, você está preocupada porque estamos no barco? Ela negou. — Quer ir para a cabine? — Não. Logan impacientou-se. Aquela conversa não daria em nada. Felizmente, uma nuvem cobriu a lua por uns instantes. A escuridão lhes daria maior intimidade. — Venha, toque meu corpo — pediu ele, conduzindo a mão trêmula. — Não há nada de excepcional nisso... Se preferir, feche os olhos. A princípio timidamente, depois com mais confiança, Elise correu os dedos pelo peito peludo, acariciou os mamilos masculinos e
deslizou a mão ágil pelo estômago liso, que se agitava pela respiração ofegante. — Logan? — chamou ela, com voz rouca. — Tire o calção. — Tire você. Enquanto ela movia os dedos, Logan arqueou o corpo para ajudá-la a despi-lo. Não vestia nada embaixo. Sem saber o que ela faria, Logan ficou na expectativa. Depois de um instante de hesitação, Elise empunhou o sexo latejante com sofreguidão, arrancando-lhe um gemido. — Oh, Elise, assim... Assustada, ela o largou, embaraçada. — Me desculpe. Eu não sabia... Logan beijou-lhe a palma da mão. — Não se preocupe. Você não fez nada de errado. Na verdade, foi bem demais. — Eu sabia muito pouco sobre como... hã, fazer amor, mas... — Ela limpou a garganta antes de prosseguir: — Não imaginava como iria me sentir. — Se soubesse, compreenderia melhor suas emoções? — Não. É que eu não sei o que fazer. — Quer parar por aqui? — Não. Depois de um longo tempo de silêncio, Logan sugeriu: — E por que não tira a camisola? — Tire você — ela o imitou, sentindo uma tempestade de emo-
ções interiormente. Sorrindo, Logan obedeceu. Assim que ela ficou totalmente nua à frente dele, a lua reapareceu, deixando-o sem ação, deslumbrado com aquela nudez imponente. Por fim, inclinando-se, colou os lábios aos dela, ao mesmo tempo que a ia deitando sobre o colchão. — Tudo bem com você? Ela concordou. — Quer que eu explique... — Não. — Se quiser que eu pare... — Não, não quero. Embora não tivesse experiência, Elise possuía uma sensibilidade instintiva para o amor. E não precisava fazer nada para excitá-lo. Bastava para isso o toque de seus lábios rosados, a carícia dos dedos delicados e suaves, o roçar dos cabelos densos e perfumados. Além disso, ele podia sentir, pela reação dela a suas carícias, que estava pronta para recebê-lo. Sua única expectativa era de que não sentisse dor. Então ele a penetrou. No mesmo instante, a consciência de sua virgindade o atingiu como um raio e o fez interromper o movimento. — Elise, você disse que nunca esteve com outro homem... A resposta saiu com um gemido. — E era verdade.
Logan começou a retroceder. — Por favor, não — ela implorou. — Sei o que estou fazendo. — Você sabe as implicações do que está acontecendo? Ambos estavam trêmulos e ansiosos. Elise começava a se enraivecer com a atitude protecionista dele. — Pare com isso, Logan. Posso não ter agido como uma pessoa adulta até agora, mas já está na hora de você tratar-me como tal. Beijando-a carinhosamente, Logan retomou o impulso para penetrá-la, enquanto ela ajudava-o com suaves movimentos de quadril. Logo estavam ambos à beira do orgasmo, excitados a um ponto em que não podiam retroceder. Mesmo assim, exigindo de si um esforço supremo, Logan interrompeu-se, no limite extremo da penetração final. — Talvez possa doer — gemeu, junto ao ouvido dela. Elise arquejava, aspirando o ar em soluços. — Nada do que você... faça... me provocará... dor! De um impulso, empurrou os quadris de encontro a ele e gemeu alto,
rindo,
chorando,
beijando-o
por
entre
as
lágrimas,
impulsionando-se de encontro a ele cada vez com mais vigor. Logan não pôde se conter mais e entregou-se ao prazer, unindose aos gemidos dela. Nunca experimentara uma alegria tão profunda em toda sua vida. Enquanto seus corações batiam furiosamente, eles se abandonaram um nos braços do outro, fundindo-se em seus suores e num mesmo ritmo respiratório. Por um momento, Elise pensou que seus corações batiam como um só.
— Não sei o que dizer numa situação dessas. — Ela riu, beijando-o. — Deveria agradecer? — Não precisa falar nada. Seus gestos contam mais que as palavras. Depois de um beijo interminável, Logan pousou dois dedos sobre os lábios dela e afastou-se um pouco. — Me diga uma coisa, Elise. E seu país, ou na religião de seus pais, existem restrições contra o que fizemos? Elise não respondeu de imediato. Pelas leis de Mondária, ela acabara de se tornar inapta para o casamento. Por seus planos, aquele era um presente que ele lhe dera, mas não podia revelar-lhe nada, pelo menos por enquanto. — Talvez eu não tenha me explicado direito — insistiu Logan. — Você entendeu o que eu perguntei? — Entendi. — Ela esperou mais um tempo antes de prosseguir: — Por que você quer saber? — Ouça, não quero sentir remorsos por induzi-la a fazer algo que não queria. Você queria, não? Elise acariciou-lhe as faces com a ponta dos dedos. — Nunca me prepararam para esta situação, mas pode ter certeza de que não vou me envergonhar pelo que nos aconteceu nesta noite. Não precisa se preocupar. — Em seu país, você não poderá mais se casar, por não ser mais virgem? Logan tocara o cerne da questão. Elise não sabia como responder sem mentir para ele.
— Tomei uma decisão consciente e não me arrependo. Por favor, não vá estragar tudo... — Espere, eu preciso saber se sua decisão prejudicou... — Logan, pare! Logan olhou-a, compreendendo que ela começara a se irritar. Mas ele precisava saber a verdade. Antes que pudesse perguntar outra vez, ela explicou: — Quando a gente estava na praia, você me perguntou se eu era casada, noiva ou divorciada. Eu disseque não. Agora no entanto vejo que devo me explicar. Em Mondária, existe o costume de o pai prometer a filha em casamento a um homem. E eu fui prometida ao filho de uma família que provou sua lealdade a meu pai há várias gerações. O nome dele é Paul Roderi, e é filho de um general ligado a meu pai. — Minha nossa, Elise... Logan ameaçou levantar-se, mas ela o deteve. — Espere. Mesmo antes de conhecer você, eu já tinha decidi do que não me casaria com Paul nem com qualquer outro homem se não fosse por amor. Depois de um longo silêncio, Logan falou, olhando para o mar:. — E você me usou para garantir que isso fosse possível. — Não tenho como negar. Mas há outras razões... — Cite uma, então. — E-Eu... sei, você quer que eu confesse meus sentimentos, mas simplesmente não posso. Não sei como me sinto de verdade em relação a você... é tudo tão novo para mim...
Logan sorriu intimamente. Não tinha mais dúvida de que ela o amava. As palavras e compromissos viriam com o tempo. Levantandose, puxou-a pela mão — Venha. Vamos nadar. Vamos ter uma longa travessia amanhã. Elise olhou admirada para a própria nudez. — Mas... assim? — Você não vai ficar com vergonha de mim agora, vai? Ainda mais depois do que passamos juntos. Antes que ela pudesse responder, já estavam na água tépida, beijando-se e rindo como duas crianças despreocupadas.
CAPÍTULO XV
— Aqui já é a costa do Maine — informou Logan a Elise. — Estamos quase em casa. Mal acabara de falar, ouviram o ronco de um motor acima de suas cabeças, e surgiu um Piper Cub, antigo avião de dois lugares, voando estranhamente baixo.
O primeiro pensamento de Logan foi de que se tratava de uma missão de reconhecimento, mas logo descartou a idéia. Para os integrantes do Bajurdi os espionarem de avião, precisavam saber a localização do Espírito do Vento e seu horário de chegada, o que significava que os teriam seguido. Mas então teria sido mais fácil capturá-los em mar aberto. Aqueles homens não seriam tão estúpidos a ponto de perder uma oportunidade dessas... ou será que estariam justamente esperando uma ocasião mais propícia? Não, não poderia ser verdade. — Deve ser algum louco se exercitando — concluiu em voz alta, para tranqüilizar Elise. Como para confirmar suas palavras, o avião deu mais uma volta e desapareceu por trás das montanhas. — Eu gostaria tanto de voar num aviãozinho desses um dia... — Elise suspirou. — Num jato a gente não aproveita nada do passeio. Eu queria voar assim, próximo da terra... Logan sorriu. Se ela ficava nervosa num barco, que diria então num avião pequeno fazendo acrobacias? — Sabe que eu pilotava aviões antes de interessar-me por barcos? Elise aproximou-se, aninhando-se entre seus braços e o leme, como fizera durante a tempestade. — Qualquer um pode sair por aí de barco. Mas voar! Puxa, é quase um milagre! Logan apertou-a entre os braços e beijou-a suavemente na nuca. A pele aveludada exalava um aroma misto de sol, sal, flores silvestres e ar fresco.
— Eu te amo, Elise — sussurrou ele, ainda com os lábios roçando-lhe a nuca. — Hum-hum... — fez ela, aconchegando-se entre aqueles braços protetores. Ainda não era hora de revelar os sentimentos. Se confessasse seu amor, não o convenceria a deixá-la retornar sozinha a Mondária. Aquele, afinal de contas, era seu único trunfo. Uma hora mais tarde, Logan chamou-a na cabine. — Estamos nos aproximando da Enseada dos Fletcher. Venha cá, Elise. Quero que você veja. — Já vou. Só estou terminando de lavar a louça e subo em seguida. Logan manobrou o barco em direção da terra. Havia feito um tempo excelente, com bons ventos e o barco rendendo o máximo. Ele até gostaria que tivessem demorado mais. Depois que chegassem ao Maine, os momentos de sonho se desmanchariam, e teriam de encarar a realidade. Por um instante, sentiu-se em dúvida quanto a ter a decisão acertada, mas Elise já se aproximava, sentando-se a seu lado junto ao leme. — A sua criada... hã... Sabitta sabia meu nome e endereço? Recordando-se das conversas na viagem até Roma, Elise arrependeu-se de ter mostrado a foto de Logan à criada e comentado os detalhes que conhecia a respeito dele. Mas na ocasião ainda não sabia que ela voltaria a Mondária. — Eu disse a ela quem você era e o nome de seu Estado, mas não sabíamos o nome da cidade. Você acha que os homens do Bajurdi
estão nos esperando em sua casa? — Acho. Elise estremeceu. — Mas e sua mãe, acha que ela está lá? — Isso é o que eu não sei, Elise. Logan examinou preocupado o céu, que começava a escurecer. Planejara guardar o barco e usar a casa da mãe como base de operações, para tomar conhecimento da situação em Mondária e comunicar-se com Roxanne. Mas agora teria de mudar os planos. O sol acabava de se pôr a oeste, deixando-os na escuridão. A lua demoraria para aparecer. As primeiras estrelas brilhavam. De repente, eles pareciam menores e indefesos do que quando haviam deixado a ilha Maximilliam, ou talvez mais deprimidos, com a escuridão. Se tivesse acontecido alguma coisa com sua mãe... Acendendo todas as luzes do veleiro, Logan aproveitou a brisa para manobrar em direção à praia. Pelo binóculo, esquadrinhou a casa de sua mãe, que estava com todas as luzes acesas, pronta para recepcioná-los. Uma sombra à janela deixou-o sobressaltado. Havia gente na casa, mas alguém muito mais alto que sua mãe. Um caseiro, quem sabe. A pessoa saiu da casa e caminhou até o apartamento que Logan ocupara no ano anterior. Pelo modo de andar, ficou evidente que não era mesmo sua mãe. O homem parecia vigiar o pequeno cais. Quando passou debaixo de uma luz, Logan pôde constatar que tinha a compleição de um jogador de basquete. E portava uma arma, num coldre na axila! — Droga! — Logan suspirou, afastando o binóculo.
— Você viu alguém na casa? — Não sei, mas parece que foi invadida. Logan moveu o leme, e o barco mudou de rumo prontamente. — Para onde vamos agora? — Procurar um telefone. — Não dá para usar o rádio? — Eles poderiam captar a ligação. — Alô? Aqui é da casa dos Hunter — respondeu um homem, numa voz carregada de sotaque, como se recitasse uma mensagem lida num papel. Era evidente que se esforçava para imitar o sotaque da Carolina do Norte. — Quem está falando? — indagou Logan. — Quem quer falar? Logan
precisou
fazer
um
esforço
para
se
controlar.
Encontravam-se numa marina meio deserta ao sul de Cape Button. Elise o esperava no barco, amarrado ao cais, com um olhar preocupado. — Quero falar com a sra. Hunter — Logan disse pausadamente, recitando as palavras, como se falasse a uma criança. — Ela não se encontra no momento. — Para onde ela foi? — Não estou autorizado a informar. — Mais uma vez, parecia que o homem recitava uma mensagem lida. — Vou repetir: quem diabos é você e o que está fazendo na casa dos Hunter?
— Olhe, senhor. Estou cumprindo ordens. Ou o senhor me diz quem é, ou não posso dar informação... Logan desligou o aparelho, discando em seguida para Maurice Plus, chefe de polícia de Cape Button, um velho conhecido. Em poucas palavras, resumiu a situação, expressando sua preocupação pela segurança da mãe. — E você tem idéia de quem se trata? — quis saber o chefe de polícia. — Talvez estrangeiros, de um país chamado Mondária, mas não tenho certeza. — E que mais? — Não dá para explicar agora, Maurice. Telefono para você mais tarde, contando tudo. — Certo. Verei o que posso fazer. — O chefe desligou. Logan ligou em seguida para seu sócio, Stan McCarthy. Depois de umas doze chamadas sem ninguém atender, desistiu. Restava então Roxanne. Mesmo considerando que recorrer a ela seria admitir a derrota, tinha de pensar no melhor para Elise. Precisavam ter notícias de Mondária. Roxanne também não estava em casa. O recepcionista do prédio indicou o telefone da secretária particular dela. Betsy, depois de saber quem ele era, informou que Vanessa, depois da recepção no Retiro, fora para o Canadá com Stan McCarthy. Talvez ficasse mais de uma semana fora. Logan suspirou, aliviado. Sua mãe estava salva. E agora tinha explicação para a ausência de Stan.
— E você tem idéia de quem estaria na casa dela? — quis saber da secretária. — Quer dizer no Maine? — Betsy pareceu indecisa. — Bem, Roxanne não me falou nada a respeito. Aconteceu alguma coisa? — Onde está Roxanne? — Está fora do país... saiu hoje bem cedinho. — Para onde ela foi? Quero a verdade, não alguma história que ela mandou você contar... — Ela... ela foi para Suryat, em Mondária. É um país... — Sei onde fica. Tem algum jeito de eu falar com ela? — As comunicações com o país foram cortadas, mas posso tentar uma ligação especial, se for de fato uma emergência. Mas não vai demorar menos de vinte e quatro horas. — O que está havendo em Mondária? — Voltando-se, ele olhou para Elise, que ouvia a conversa, ao lado do telefone. Abraçou-a e puxou-a mais para perto Betsy tinha falado alguma coisa que ele não ouvira. — O que foi que aconteceu? — Alexander Kaleer está muito doente. Minhas informações dizem que teve um ataque do coração, mas não sei de que gravidade. Por causa dos distúrbios, ele está recluso no palácio, protegido pela força militar. Roxanne foi lá tentar ajudá-lo. Logan balançou a cabeça, adivinhando as intenções da tia. — Fale mais o que sabe dos distúrbios no país. — Segundo o diretor da subsidiária de lá, está cada vez mais difícil a pacificação ou um acordo entre as facções opostas. O Bajurdi
tem promovido manifestações contra a presença americana no país. Até agora não se tem notícia de mortes. O apoio dos militares ao soberano é o que tem evitado o colapso total. — E você tem idéia da causa da rebelião? — Bem... cá entre nós, acho que é porque um número cada vez maior de americanos tem competido ilegalmente no mercado de trabalho com os mondarianos, nos últimos seis meses. — E Roxanne foi lá mais para salvar a fábrica, não é? A secretária pensou um pouco antes de responder: — Bem, mas também não interessa a ela um conflito armado, você compreende? Logan correu a mão pelos cabelos. A situação parecia completamente fora de controle, e ele não podia fazer nada. A seu lado, Elise parecia ansiosa para saber o conteúdo das respostas sobre a situação de Mondária. — Tente entrar em contato com Roxanne — pediu ainda Logan, ao telefone. — Diga-lhe que Elise está segura e que avisaremos sobre nossos planos assim que decidirmos o que fazer. — Vou tentar agora mesmo. — Obrigado, Betsy. — Desligando o aparelho, Logan pegou Elise pelo braço. — Vamos. No caminho conto-lhe o que ela me falou. Elise recebeu as informações em silêncio e ficou chocada com o estado de saúde do pai. Logan não tinha dúvida de que ela queria voltar a seu país o quanto antes. Mas primeiro precisavam obter roupas mondarianas, para não serem reconhecidos e seguidos. Por ora, teriam de decidir o que fazer até o amanhecer. O quê, Logan ainda não tinha a menor idéia.
Depois de algumas tentativas frustradas de encontrar um local para passarem a noite, acabaram encontrando um quarto próximo a uma marina, na qual Logan julgou seguro deixar o barco. Ele calculou que estava ao sul de um lugarejo próximo a Cape Button, mas não tinha tempo a perder consultando o mapa. O hotel não era dos mais recomendáveis, mas pelo menos parecia limpo e possuía um bom banheiro, com chuveiro. Jantaram mais cedo que de costume, numa lanchonete ao lado do hotel. Não conversaram até que, após o café, Logan pegou Elise pelo braço e informou que era hora para descansar. Além de exausta e abatida, ela parecia no limite da tensão. De volta ao quarto, Elise deitou-se em silêncio num dos lados da antiga cama de casal e dobrou as pernas, como se sentisse dor. Logan deixou-a em paz, ciente de que não poderia fazer nada por enquanto. Depois de quase uma hora naquela posição, ela foi ao banheiro e voltou de rosto lavado e cabelo penteado. Logan pegou-a pela mão e a fez sentar-se na borda da cama. Seus olhos haviam perdido o brilho desde que recebera as notícias sobre a saúde do pai. Parecia ausente, concentrada nos próprios pensamentos. — Vou ao banheiro, Elise. — Logan beijou-a na testa, apagou a luz e fechou a porta do banheiro. Elise recostou-se na cama, olhando para o teto. Nas últimas horas, uma idéia fixara-se em sua mente. O pai precisava dela. Milhares de quilômetros de distância os separavam, porém, e ela não podia ir ao encontro dele sem correr o risco de ser capturada e colocar a nação em perigo. Seria o desastre... E ainda havia Logan. Não poderia levá-lo com ela. Os estran-
geiros, em especial americanos, estavam sendo perseguidos lá. Ele não poderia ir com ela! Nunca se perdoaria se acontecesse algo a ele. Então, o que fazer? Não sabia. Ao ouvir a porta do banheiro ser aberta, fechou os olhos como se estivesse dormindo. Não pediria consolo a Logan, nem queria a compaixão dele. Tinha de ser forte. Logan verificou a fechadura da porta e as janelas; só então deitou-se ao lado dela. Sem poder se conter, Elise atirou-se em seus braços, soluçando. — Oh, Logan! No momento, o conforto daquele abraço era mais importante que o desejo de independência. Deixaria para ser forte mais tarde, quando se sentisse mais capaz. Elise acordou sobressaltada no meio da noite, incapaz de relaxar. Logan ressonava suavemente a seu lado, com um braço envolvendo-lhe a cintura. Mesmo descansando, ele a protegia. — Eu te amo, Logan Benjamin Hunter — sussurrou ela, de repente. Como se respondesse a suas palavras, ele estreitou o abraço, aconchegando-a junto ao peito largo. Elise queria ver as horas, mas poderia acordá-lo ao tentar alcançar o relógio, então ficou quieta, vendo-o dormir. De repente, as idéias sobre a fuga tornaram-se claras em sua mente. Havia um meio de escapar sem Logan. Ela podia usar o cartão de crédito. A maior parte dos dólares americanos que retirara em Nassau ainda estava em sua bagagem. Só havia um problema, considerou
frustrada:
como
entraria
em
Mondária
sem
ser
reconhecida? — Elise? Elise sobressaltou-se com a voz de Logan. Teria ele ouvido o que lhe segredara momentos antes? — Não quis assustar você. — Ele levantou-se nos cotovelos, apoiando-se na guarda da cama. Elise aconchegou-se a ele, grata por tê-la tirado daqueles planos sem futuro. Logan beijou-a na testa. — Estava pensando num modo de irmos para Mondária. Vamos surpreender minha tia em seu próprio jogo. — Como? — estranhou Elise. — No ano passado, Roxanne pediu minha ajuda para salvar um jornalista que corria perigo de vida no país dele. Sem a minha atuação, ele poderia ser morto ou torturado, se caísse nas mãos da junta militar que governava a região. Elise voltou-se para ele bruscamente. — Então esta não é sua primeira missão para Roxanne? — Não. Mas com certeza será a última. Voltando-se, ele olhou o relógio: passava das quatro da madrugada. — E por que você está me contando isso? — Na ocasião, Roxanne me mandou falar com um tal de sr. Smith, a quem me apresentei como Jones. Em poucas horas ele providenciou um passaporte para o jornalista. O sujeito é de uma eficiência incrível... — Será que estou entendendo o que você está tentando me
dizer? — Está, sim. Nós vamos procurar o tal de Smith e providenciar um passaporte com nome falso para você. Elise recostou-se em Logan e suspirou. Agora percebia como Roxanne conseguira seu passaporte e tudo o mais... — Amanhã cedo — declarou Logan — nós vamos de barco até Nova York. — É muito cedo para ir agora? — Elise animou-se, entrevendo um meio de realizar seu plano. — É, sim. Nesse ínterim... Logan puxou-a para junto de si, calando-lhe os protestos com um beijo.
CAPÍTULO XVI
— Queria falar com o sr. Smith. É. Meu nome é Jones, da parte de Roxanne Fletcher. No escritório extravagantemente decorado de cor-de-rosa do sr. Monte, proprietário do salão de beleza recomendado como um dos melhores da cidade pela recepção do hotel em Nova York, Logan esperava completar sua ligação com o falsificador de passaportes enquanto Elise, no andar de cima, cortava e penteava o cabelo.
Assim que Smith entrou na linha, Logan ignorou os cumprimentos e requisitou logo os passaportes canadenses em nome de Benjamin Sheldon e Jean Kent, com vistos para todos os lugares do mundo para onde um cidadão canadense pudesse ir. Logan definiu-se como engenheiro, e Elise, sua secretária. — Mando a conta para a srta. Fletcher? — quis saber Smith. Logan deu uma risada. — Mas claro! E, em atenção a seus ótimos serviços, acrescente uma boa gorjeta. — Obrigado, sr. Jones. É bom trabalhar para quem entende as nossas dificuldades. — Agora, quanto às fotos, devo tê-las às duas da tarde. — Enviarei um portador para pegá-las com o senhor. — Certo. Então eu volto a ligar para indicar o local onde ele poderá apanhar. Quando ficam prontos os passaportes? — Às oito e meia, amanhã cedo. O mesmo portador irá entregálos ao senhor. — Não será necessário. Poderei ir buscá-los aí pessoalmente. Logan planejara ir à agência de viagens providenciar as passagens dele e de Elise para Mondária no dia seguinte à tarde. Daquela maneira, poderiam ir direto ao aeroporto e embarcar no primeiro vôo. — Ah, desculpe, sr. Jones — interpôs Smith. — Mas eu preferiria mandar alguém entregar. O senhor entende... — Ah, é verdade. — Da primeira vez, tinham feito tudo sem o menor contato pessoal. — Então mande o portador ao meu hotel, às oito e meia.
Depois de se despedirem, Logan ligou para a polícia de Cape Button. Maurice Plus atendeu. — E então? — Logan quis saber. — O que houve em minha casa? — Bem, parece que sua mãe não está lá — informou Maurice. — É, depois que eu falei com você, soube que ela foi para o Canadá. — Assim disseram aqueles caras. Afirmaram que são seguranças contratados pela Fletcher de Boston, mas não tinham identificação para prová-lo. Na dúvida, eu os “tranquei”. — Ah, é? — Logan sorriu. — E algum deles falava com um sotaque arcaico? — Não. Eram todos americanos. Comprovei pelas licenças de motorista. — E você acreditou na história deles? — Logan, o que está acontecendo? Logan também não sabia. Só teria certeza depois de falar com Roxanne. — Ligue para Betsy Harcourt, na Fletcher. Ela confirmará se Roxanne contratou os guardas. Em dúvida, mantenha-os presos, Maurice. — Você me deve uma cerveja e uma explicação. — Tudo bem, falo com você mais tarde. Logan desligou, percebendo a ironia da situação. Se os homens trabalhavam mesmo para a Fletcher, era tudo muito engraçado. Ele podia imaginar a cena da prisão em sua casa.
Voltando ao salão, chegou no momento em que o sr. Monte preparava-se para cortar o cabelo de Elise. A medida que as longas mechas caíam ao chão, Logan tentava não rir da expressão de Elise ao olhar-se no espelho. — Não fique tão triste, eles voltam a crescer. Depois, é mais fácil cuidar do cabelo curto. Elise lançou-lhe um olhar de ódio. Ele não tinha o direito de divertir-se à sua custa. Depois de terminado o trabalho, os cabelos tinham sido cortados curtos e penteados num estilo conservador. Enquanto o sr. Monte afastava-se para admirar sua obra, Elise olhava-se no espelho, suspirando e com uma expressão amuada. — Você disse que queria parecer diferente — justificou-se o cabeleireiro com um trejeito afetado. — Veja, dei-lhe um novo rosto! Enquanto o cabeleireiro fornecia-lhe um sortimento de cosméticos para a maquiagem e o cuidado com os cabelos, Elise sentia a garganta apertada. O que diria seu pai diante de tudo aquilo? Mais uma vez, precisou esforçar-se para não perder o controle e permanecer firme. Depois que Logan pagou a conta, saíram para a barulhenta e movimentada Quinta Avenida. Elise impressionou-se ao andar a pé por ali. Nova York era muito maior e excitante do que esperava. No entanto, a cidade a desagradava: além de suja e caótica, tinha automóveis demais, prédios demais, e as pessoas agitavam-se numa pressa frenética. O contraste com Suryat era gritante. Ao passar pela imensa vitrine de um grande magazine, Elise admirou-se no reflexo do vidro. Tocando de leve a nuca exposta, sentiu-se como uma das árvores do palácio que eram metodicamente
podadas na primavera. Os cabelos levariam tempo para crescer outra vez, ao contrário do que Logan dissera. Sofrera uma mudança radical. O nome, a personalidade e agora a aparência, toda a sua vida, enfim, tinha se transformado. Tomara que a metamorfose fosse para melhor. O mais importante de tudo, porém, fora a descoberta do amor, nos braços de Logan. Toda vez que recordava os bons momentos que passara ao lado dele, no mar, sob as estrelas, um assomo de paixão a dominava e fazia seu rosto corar. — Você está tão calada... — Logan pegou-lhe a mão. — Alguma coisa errada? — Não. Estava pensando na vida, na nova mulher em que me transformei. Às vezes não reconheço a mim mesma. — Bem, você não precisa ter essa aparência para sempre. — É, mas sinto-me tão estranha... Às vezes acho que vou ficar louca. — Imagine! — Logan imitou os trejeitos do cabeleireiro. Se não fosse a multidão que os olhava, ele a beijaria ali mesmo. — Você está encantadora! Elise chamava a atenção dos passantes por seu porte esbelto e roupas sofisticadas. Usava uma blusa de seda lilás e uma saia comprida de linho bege, com uma fenda lateral que deixava entrever as pernas longas e bronzeadas. Em Nassau também, apesar da simplicidade dos trajes, ela fazia homens e mulheres voltarem-se ao passar. Ela possuía um carisma natural irresistível, que transcendia a própria belezá ou a elegância das roupas. No estúdio fotográfico, Elise foi a primeira a posar. As fotos,
reveladas no mesmo instante, comprovaram a mudança radical de sua aparência. Logan, ao contrário, não tomara a menor precaução quanto a isso, na certa considerando que não fora identificado pelos rebeldes, pensou Elise. Mas, se dependesse dela, ele jamais usaria aquele passaporte. Elise suspirou. Cada vez que pensava em partir sem Logan sentia-se desanimada. Talvez não tivesse sido uma boa idéia ter feito amor com ele. Nunca imaginara que a separação pudesse ser tão dolorosa. Depois de combinar com o sr. Smith o local para o portador buscar as fotos, Logan levou Elise para ver a cidade do alto do World Trade Center, o imponente conjunto de edifícios gêmeos com cento e dez andares cada um, na época de sua construção, na década de setenta, considerados os mais altos do inundo. Lá do alto, Elise deslumbrou-se com a visão da Estátua da Liberdade, dominando o porto de Nova York. — Mas é maravilhoso! — exclamou, contemplando a vista até o horizonte, com as águas do rio Manhattan douradas pelo sol poente. Logan recordou-se do avião que os sobrevoara a caminho da Enseada dos Fletcher. Recusara-se a acreditar que o aparelho pudesse ter sido usado pelos rebeldes mondarianos. No entanto, tinha um pressentimento de que alguma coisa estava errada. Várias vezes pegou-se olhando preocupado ao redor, temendo reencontrar os homens da lancha de Nassau. Enquanto caminhavam pelas ruas apinhadas, ele se sentia cada vez mais inquieto. E se tivessem sido seguidos na viagem de Massachusetts até Nova York? Embora não quisesse acreditar, não conseguia descartar a possibilidade.
— Acho que é melhor voltarmos para o hotel — falou para Elise quando passavam em frente ao famoso magazine Bloomingdale’s. Era hora do fim do expediente nos escritórios. As pessoas retornavam apressadas para suas casas. — Lembra-se dos desejos que você me prometeu satisfazer? — Elise encarou-o, sonhadora. — Pois agora recordei-me de um deles: gostaria de conhecer a neve. Logan tornou a olhar ao redor. O ar estava úmido e quente. Sua maior preocupação no momento era achar um meio de chegar ao hotel o mais rápido possível. — Vou pensar no seu caso. De repente, a oportunidade de saírem dali apresentou-se. Do outro lado da rua, um táxi descarregava três passageiros. Antes que alguém pensasse em tomar uma iniciativa, Logan já se adiantara, puxando Elise pela mão e estendendo uma nota para o motorista. — Isto é uma emergência. Estamos com muita pressa. Pegando a nota de sua mão, sem uma palavra, o motorista ganhou o trânsito e com manobras incríveis afastou-se das ruas movimentadas. — O que aconteceu? — Elise parecia assustada. — Nada. — Logan sorriu. — Só usei uma prática comum em Nova York. Num minuto estaremos no hotel. Ao contrário do que Logan esperava, no entanto, o trânsito intenso do horário do rush atrasou-os, e chegaram quase uma hora depois ao hotel, onde naquela manhã haviam se registrado como Benjamin Sheldon e Jean Kent, de Calgary, na província canadense de Alberta. Para evitar confusão, Logan pagara a diária em dinheiro
vivo. A noite seguinte, se tudo corresse bem, passariam em Mondária. No quarto, com a porta trancada, Logan suspirou mais aliviado. Pelo menos ali estavam em segurança. Elise parou junto à janela, contemplando o trânsito lá embaixo. — Dá para ver todo o Central Park daqui. Puxa, é bem maior do que eu pensava! Logan tirou o paletó e a gravata, enrolou as mangas da camisa e ligou o ar-condicionado. — Não precisamos descer para jantar — falou ao lado de Elise. — Podemos pedir que nos sirvam aqui no quarto. — Eles servem a refeição inteira aqui em cima? — admirou-se Elise. Tudo para ela era novidade. — O cardápio está sobre a mesa-de-cabeceira. Escolha o que vai querer, e então eu ligo lá para baixo. Como uma criança que recebesse um presente inesperado, Elise correu os olhos fascinados pelo cardápio. Depois de alguma indecisão, finalmente escolheu o prato, além de uma taça de vinho branco. Logan pediu o mesmo para ele, só que com um copo de uísque. Depois da refeição, quando o camareiro já levara o carrinho para o corredor, Logan ligou a televisão, sentando-se numa das poltronas laterais. Elise ficou olhando de uma das camas gêmeas, na esperança de ouvir alguma notícia sobre seu país. Durante o almoço, folheara avidamente o New York Times e não encontrara uma linha sequer acerca da situação em Mondá- ria. Havia uma infinidade de outros assuntos mais importantes para a grande imprensa que uma revolução num pequeno país no Leste Asiático. Era como se a região não existisse para o resto do mundo.
Até mesmo suas próprias recordações pareciam tão distantes... Outros fatos mais recentes tomavam lugar em sua mente. Logan voltou-se para comentar algo com Elise, mas, vendo-a de olhos fechados, calou-se. Esquecera-se do quanto ela devia estar exausta. Não dormira direito na noite anterior, e depois haviam viajado por quilômetros com aquele calor. Dando o último gole no uísque, considerou se devia acordá-la para se trocar, mas desistiu da idéia. Despindo-se, deitou na cama ao lado e, tomando a mão dela na sua, tentou dormir.
CAPÍTULO XVII
Elise contemplava o amanhecer em Nova York da janela do hotel. Mesmo no trigésimo andar, dava para ouvir o barulho crescente do trânsito na rua abaixo. Às quatro da madrugada, acordara com o ruído dos caminhões de limpeza, vestira a camisola, mas não conseguira mais pegar no sono. Por um longo tempo permanecera deitada do lado de Logan, sem querer acordá-lo. Chegara enfim o momento. Em algumas horas, ela estaria a caminho de Mondária. Mas não queria desperdiçar aqueles últimos minutos juntos torturando-se com dúvidas sobre se devia partir sem Logan. Será que ele correria mesmo perigo indo com ela? Não sabia, porém não queria enfrentar o risco. Por isso, era melhor ir sozinha.
Ele iria depois, talvez. No pouco tempo que lhes restava, ela queria ficar juntinho dele. — Logan? — chamou em voz baixa. Espreguiçando-se, ele virou-se e abraçou-a. — Logan — dessa vez ela chamou em voz alta, fazendo-lhe cócegas na palma da mão. — Pare com isso — ordenou ele, sem abrir os olhos. — Parar por quê? — Porque assim está despertando outras coisas em mim. Elise balançou a cabeça, divertida. — Vocês, americanos, sempre falando por meio de generalidades. O que quer dizer com “outras coisas”, Logan? — Ah, é? Pois vou mostrar a você. Afastando o lençol, Logan correu a mão pela camisola dela, aproximando-se e afastando-se dos seios eriçados. Nos últimos dias juntos, ambos haviam aprendido o que os excitava. Elise revelava-se cada vez mais a mulher ideal que ele julgara nunca encontrar na vida. Afastando a mão, acariciou-lhe o cabelo, agora curto e levemente encaracolado. — Odeio admitir isso, Elise. Mas sinto falta de seu cabelo comprido. Elise tocou a nuca, repentinamente amuada. Logo quando já ia esquecendo, Logan precisava lembrá-la? — Sinto muito, se você não gosta do gênero... — Não é isso. É que sinto saudade de quando, no barco, eu soltava seu cabelo e ficava acariciando-o. Nunca mais vou me es-
quecer. Elise sorriu. Logan não fora o único a se excitar. Também ela costumava olhá-lo em seus movimentos másculos, expondo os músculos sob a pele bronzeada. Quando ele estava perto, seu corpo todo vibrava em sintonia com o dele. Exatamente como no presente momento. Num impulso repentino ela correu os dedos pelo peito largo de Logan, que suspirou, igualmente perturbado. — Você não devia fazer isso... Aprisionando-lhe a mão atrevida, Logan puxou Elise de encontro ao peito. — Como é, você já sabe o que sente por mim? — Ainda estou pensando. Depois de um longo momento de silêncio, ele a chamou: — Você dormiu? — Sabe, Logan, de uma coisa eu tenho certeza: nunca me senti assim antes... — O tom profundo de sua voz o deixou de sobreaviso. — Não estou certa de que o que estou sentindo seja mesmo amor. Logan preferiu não interromper, deixando-a falar. — Desde que o conheci, não penso em outra coisa a não ser em você. Basta você me olhar, e eu tenho vontade de me atirar em seus braços. Se são esses os sintomas do amor, então acho que estou amando. Inclinando-se, Logan forçou-a a erguer o rosto. Ia dizer qualquer coisa, mas ela o deteve. — Espere. Você deve estar se perguntando sobre como ficaremos
daqui por diante. Talvez esteja pensando num compromisso... — Ela aspirou profundamente. — Mas não posso prometer nada. Pelo menos por enquanto. — Por causa do estado de saúde de seu pai. — É, mas também por causa do que está acontecendo em Mondária. — Ela o encarou. — Você me perguntou se ao fazermos amor eu estava abrindo mão de um compromisso em meu país. E eu concordei. Mas é mais que isso. A partir do momento em que cheguei à ilha, passei a ser encarada como uma mulher de verdade, e não como uma criança indefesa que tem de ser conduzida. Mondária ainda é bastante arcaico. Lá, se eu tivesse nascido homem, seria tudo muito diferente. Mas, do jeito que está, não me seduz nem um pouco. E você me deu a chave da liberdade. — Então deixe-me dar a você um futuro. Case... Elise pousou os dedos sobre os lábios dele. — Por favor, não vamos falar em compromissos. Seja compreensivo. Em instantes, os dois estavam nus, rolando sobre o carpete. Mais uma vez, Elise pensou que ele fosse um mago. — Pelo que você disse, Elise, agora não tenho dúvidas de que me ama. O resto é uma questão de tempo... Elise comprovou o que ele afirmara com as carícias insinuantes e beijos apaixonados. Logo ambos se encontravam à beira do delírio, entregues aos desígnios da paixão. No auge da excitação, Elise não se conteve e suspirou ao ouvido dele: — Te amo, Logan.
Logan repetiu as mesmas palavras no ouvido dela. Pronto para descer e encontrar o portador com os passaportes no saguão do hotel, Logan consultou mais uma vez o relógio com impaciência. Faltavam ainda cinco minutos para a hora combinada. Para piorar as coisas, uma tempestade de verão ameaçava desabar a qualquer momento. Os trovões sacudiam o prédio, e o céu escurecera como se fosse noite. Naquelas condições de tempo seria praticamente impossível encontrar um táxi. Não haveria jeito, ele teria de ir a pé até a agência de viagens. — Tem certeza de que não quer que eu vá com você? — indagou Elise. — Seria bobagem irmos os dois. Por que você não pede o café da manhã e aproveita para relaxar? — Tudo bem. É uma boa idéia. — Ela escondeu as mãos para que ele não visse que estavam tremendo. Quando Logan se inclinou para beijá-la de leve na testa, em despedida,
Elise
surpreendeu-o,
envolvendo-o
pelo
pescoço
e
abraçando-o com força. Depois, beijou-o apaixonadamente, como se quisesse levá-lo para a cama outra vez. — Puxa, toda essa despedida para quem vai voltar em tão pouco tempo? — admirou-se Logan. — Nunca lhe agradecerei o suficiente pelo que você tem feito por mim. — Elise beijou-o ainda uma vez com ardor. Olhando de novo para o relógio, Logan afastou-se a contragosto. — Preciso ir. — Da porta, acrescentou: — Não saia do quarto, entendeu? E ponha a trava de segurança na porta. Elise obedeceu, permanecendo junto à porta, para o caso de ele
voltar por qualquer motivo. Quando se assegurou de que não voltaria, correu para o telefone e abriu a lista de classificados na página que havia marcado. Enquanto Logan estava no banheiro, ela procurara o número de uma agência de viagens. Depois de discar o número, pediu uma passagem de ida para Mondária, deu o número do cartão de crédito e esperou um tempo interminável enquanto o agente de viagens tentava localizar o país e descobrir a melhor rota para lá. Naquele instante, com violência, a chuva desabou. Com o aparelho na mão, ela foi até a janela, mas era quase impossível ver alguma coisa através daquele verdadeiro dilúvio. Por fim, o agente retornou, informando que estava tudo certo e ela poderia pegar a passagem no balcão da companhia aérea no saguão do Aeroporto Kennedy. Depois de ser informada de outros detalhes sobre embarque e bagagens, ela desligou, surpresa com o próprio desembaraço. Alguns dias antes, não sabia nem como usar o cartão de crédito, e agora agia como se o fizesse há anos. No banheiro, depois de uma rápida ducha morna, tentou repetir a maquiagem recomendada no salão e vestiu a mesma roupa com que aparecia na foto do passaporte. Por fim, colocou o pingente que ganhara de aniversário no pescoço e conferiu sua imagem no espelho. A garota daquela noite do aniversário não existia mais. Sentia-se uma mulher madura, capaz de amar um homem e ser amada por alguém como Logan Hunter. Aliás, ninguém mais carinhoso do que ele para iniciá-la nos mistérios do amor. Voltando à realidade, preocupou-se com o que devia fazer depois de desembarcar em Suryat. A primeira coisa, sem dúvida, seria remover toda aquela maquiagem e tentar parecer ao máximo uma
mulher mondariana, vestindo o sarongue, a blusa de algodão e as sandálias. Apanhando o sarongue, envolveu com ele a estatueta de Menina da Quinta-feira e colocou-a no fundo da bolsa de palha que comprara em Nassau. Em cima, arrumou os presentes que comprara para seu pai e Sabitta, além da foto de Logan que levara de Mondária. O restante de suas coisas guardou numa maleta que pretendia deixar no quarto do hotel. Não queria levar consigo nada além do que pudesse carregar com facilidade. Depois de um último retoque no cabelo, agora fácil de pentear, uma das vantagens do novo corte, sentou-se para escrever um bilhete a Logan. Depois de algumas tentativas, enfim conseguiu colocar no papel suas preocupações quanto à segurança dele, o risco que corria como americano em Mondária, os problemas que teria de enfrentar com o pai, e terminou prometendo mandar notícias para a casa da mãe dele, em Cape Button. No pé da página, escreveu: “Eu te amo. Elise”. Enquanto esperava pela volta de Logan, resolveu ligar a televisão para tentar outra vez ouvir alguma notícia de Mondária. Mal havia sentado na poltrona, entretanto, o telefone tocou. E então, pensou, atendia ou não? Resolveu atender. — Sim? — falou ao aparelho. — Alô? — Uma voz feminina soou do outro lado da linha. — É a srta. Kent? — Não. Quer dizer... — Elise confundiu-se. — Sim, é ela mesma que está falando. — Aqui é do laboratório fotográfico. A senhorita e o sr. Sheldon
estiveram aqui ontem. — Aconteceu alguma coisa? Elise sabia que as fotos estavam em ordem, caso contrário teriam sido alertados pelo sr. Smith. — Bem, eu devia ter ligado ontem, mas precisei sair mais cedo para um compromisso e... — Há algum problema? Fazia quase uma hora que Logan deixara o hotel. Deveria estar de volta a qualquer momento. — Um pouco depois que vocês saíram, entraram dois homens no laboratório, fazendo perguntas a seu respeito. Falavam inglês, mas com um sotaque muito forte... — Como eram eles? O que queriam? — Eram morenos, de cabelos escuros. Disseram que tinham um encontro com vocês, mas haviam perdido seu endereço. Então eu respondi apenas que seu hotel ficava próximo ao Central Park, mas não falei qual era. — Ótimo. E os homens sabiam nossos nomes? — Bem, veja, é por isso que estou ligando. Eles a chamaram de srta. St. James, e, quando eu mostrei as fotos e falei que seu nome era Jean Kent, eles se desculparam, dizendo que tinha sido engano. — A garota tomou fôlego. — Passei toda a noite preocupada e não via a hora de ligar para vocês. — Muito obrigada. — Elise tentava aparentar calma, apesar do pânico que a tornava trêmula. — Não há por que se preocupar. Sem dúvida foi um mal-entendido.
— Oh, ainda bem. — A garota suspirou. — Bem, agora com licença, vou voltar ao trabalho. — Tudo bem. Mais uma vez, obrigada. Elise mal desligara, bateram à porta. — Elise! — Era a voz de Logan. — Abra logo. Estou encharcado. Com as mãos tremendo, ela teve dificuldade em abrir a trava da porta. Logan entrou praguejando. — Que dia miserável! — Apesar de trajar uma capa descartável e empunhar um guarda-chuva, ele estava completamente ensopado. Sem perda de tempo, foi direto ao banheiro. — Comprei isso lá na esquina, mas já era tarde demais. Você comeu? — Não. Fiquei me arrumando e fazendo as malas. — Tudo bem. Depois que me enxugar, vamos até o restaurante. — Jogando um gordo envelope pardo sobre a cama, ele entrou no banheiro. — Saio num minuto. Assim que a porta do banheiro se fechou, Elise pegou o bilhete que escrevera e acrescentou: “Tenha cuidado. Os homens do Bajurdi estão por perto e talvez tenham nos encontrado no hotel. Peça proteção a Roxanne e não me siga. Eu te amo”. Deixando o bilhete no pé da cama, pegou o envelope pardo, guardou-o sem abrir na sacola e saiu do quarto, fechando silenciosamente a porta atrás de si. No elevador, desceu contando com impaciência os andares. Acabou descendo no segundo e fazendo o resto do percurso pela
escada, tomando todo o cuidado de certificar-se de que não estava sendo seguida. Ao chegar ao saguão, avistou dois homens suspeitos junto ao balcão da recepção. O mais alto falava com o funcionário, e suas características físicas coincidiam com a descrição feita pela moça do laboratório fotográfico. Não havia dúvida de que se tratava de mondarianos. Elise procurou confundir-se com as pessoas que entravam e saíam do hotel. Chegando à calçada, não teve dificuldade de encontrar um táxi, parado junto ao meio-fio. — Srta. Kaleer! — ela ouviu um homem gritar, saindo do hotel no momento em que entrava no táxi. — Espere. Queremos ajudá-la. Sem se voltar, Elise apressou-se a fechar a porta do táxi. — Por favor! — dirigiu-se ao motorista. — Saia logo daqui. Esse homem é meu marido e não quero falar com ele. O táxi afastou-se devagar, permitindo que o mais alto dos dois mondarianos se aproximasse da janela. Seus olhos faiscavam quando se fixaram em Elise. — Srta. Kaleer, pare! — gritou ele. Apavorada, Elise inclinou-se para o motorista. — Vamos, corra! O homem olhou-a de soslaio. — A senhora é quem manda, dona. Num piscar de olhos, o homem estava voando entre os carros, costurando em meio ao trânsito movimentado, e logo estavam longe da porta do hotel.
— Para onde vamos? — quis saber o motorista. — Aeroporto Kennedy — informou Elise assim que recuperou o fôlego. Lembrando-se do modo como Logan tratara o motorista no dia anterior, acrescentou: — Dou-lhe cem dólares extras se chegar ao aeroporto o mais rápido possível e sem ter sido seguido. — Dona, a senhora pegou o carro certo. Nunca ninguém seguiu meu rastro. — Você já fez algo assim antes? — Claro. Isso aqui é Nova York, não sabia? Fervendo de raiva, Logan sentou-se à beirada da cama, com o bilhete de Elise na mão. Nem tentara segui-la, pois ela tivera tempo para se aprontar antes dele e, àquela altura, estaria chegando ao aeroporto, com os dois passaportes e as passagens que ele providenciara. Devia ter previsto aquela situação, mas nunca esperara que ela fosse capaz de fazer aquilo com ele. Sempre achara que ela queria que a acompanhasse. O jeito agora seria conseguir novo passaporte e outra passagem, mas aquilo tomaria tempo. O bilhete de Elise, especialmente as últimas linhas, confirmava suas suspeitas quanto a estarem sendo seguidos. Os danados haviam perdido sua pista, mas de alguma forma a reencontraram. — Droga! — exclamou ele para o quarto vazio. Os filhos da mãe estavam um passo a sua frente o tempo todo. O avião sem dúvida devia fazer parte do plano. Seguir um veleiro tão visível e evidente quanto o Espírito do Vento fora uma moleza para sujeitos espertos como aqueles. Muito mais espertos que o homem a
quem foram mandados para perseguir, disso não tinha dúvida. Levantando-se de um salto, amassou o bilhete e jogou-o no chão; então pegou o telefone.
CAPÍTULO XVIII
Elise seguia no banco traseiro do empoeirado e malcuidado táxi, o único que conseguira arranjar no aeroporto de Suryat. Depois de ter passado pela alfândega e deixado para trás a multidão, em meio à qual não conseguira se livrar da sensação de estar sendo seguida, sentia-se enfim mais relaxada. Atravessavam agora a região das pequenas chácaras que formavam
um
verdadeiro
cinturão
verde
em
torno
da
capital.
Aproximando-se da janela, Elise inalou o ar inconfundível de sua terra: uma mistura de mato, fumaça, flores e animais. Fechando os olhos, recordou-se de como fora fácil executar seu plano, sem encontrar obstáculos na alfândega nem para trocar os dólares americanos por libras mondarianas. Durante toda a viagem, temera que os homens de Nova York ligassem para seus comparsas em Suryat para denunciá-la. Mas o bloqueio das comunicações agira a seu favor daquela vez. O único problema fora conseguir um táxi. Os motoristas, por alguma razão, recusavam-se a seguir para o centro da cidade.
Recostando-se no assento do carro, fechou os olhos para proteger-se do forte reflexo do sol. Em nenhum momento da viagem deixara de pensar em Logan. Nunca imaginara que fosse sentir tanta falta dele, de suas palavras carinhosas, de todas as sensações que lhe despertava. Doía profundamente tê-lo deixado daquela maneira no quarto do hotel. Mesmo sabendo que seria melhor para eles, não fora fácil abandoná-lo ali. Na primeira oportunidade, entraria em contato com ele para provar-lhe seu amor. Quando o táxi entrou na região central da cidade, o movimento chamou sua atenção. Grupos ruidosos de pessoas, na maioria homens, embora houvesse algumas mulheres jovens pelo meio, formavam uma passeata que tomava toda a extensão da avenida e seguia em direção às docas do porto. A multidão tornou-se tão densa que o táxi foi obrigado a parar. — O que está acontecendo? — indagou Elise ao motorista. — Quem são todas essas pessoas? O homem bateu com a palma da mão na buzina antes de responder: — São manifestações de estudantes e trabalhadores do cais. Estão pregando a união dos trabalhadores. Agora ela entendia por que os motoristas não queriam ir para a cidade. — Ontem, viraram um carro no meio da rua e puseram fogo. — O homem estava obviamente nervoso, olhando para os lados enquanto falava. — Está cada vez mais difícil trabalhar aqui. Por isso eu estava voltando para o sítio da minha mãe, nas montanhas.
Olhando para a fúria dos manifestantes, Elise não pôde culpar o homem por tentar fugir. — E o Parlamento... ou o soberano... não fazem nada? O barulho na rua chegara a um nível tão alto que precisavam gritar no interior do carro para serem ouvidos. O motorista não respondeu, concentrado na direção. Depois de inúteis manobras que lhes renderam um avanço de apenas alguns metros, o homem voltouse para Elise. — Perdão, senhorita, mas se incomodaria de percorrer o resto do caminho até o palácio a pé? Não está muito longe... Sem alternativa, Elise pagou a corrida e saiu, batendo a porta. Estava difícil até para caminhar na rua atulhada de manifestantes. Deixando a avenida principal, pegou o mesmo atalho onde sofrera o atentado com Sabitta. As ruelas vizinhas à avenida estavam tomadas por tropas e veículos militares, cuja concentração aumentava nas imediações do palácio. Baixando a cabeça, procurou aparentar a naturalidade de uma mulher que tivesse ido às compras. Se fosse bloqueada e reconhecida, não saberia o que poderia lhe acontecer. Não podia confiar em mais ninguém àquela altura. Chegando ao lado mais escondido do palácio, estacou. Também ali havia tropas aglomeradas. Um soldado estava em pé justamente à frente do arbusto que ocultava a entrada secreta. Todos os soldados a olharam, quando passou, fitando-a em silêncio. O jeito seria tentar a entrada de serviço, onde poderia mandar chamar Sabitta. Depois de tocar o sino que servia de campainha, o postigo gradeado não tardou a se abrir. — Ishay? — indagou uma vozinha tímida em nereb.
— Sou uma amiga de Sabitta — respondeu Elise em inglês, imprimindo à voz um tom de urgência. — Preciso falar com ela imediatamente. É uma emergência na família dela. — Um momento, por favor. — A portinhola foi fechada e trancada. Depois de um longo tempo, o postigo foi aberto outra vez, e o rosto de Sabitta apareceu entre as grades. — Irmãzinha, sou eu, Melina. Por favor, deixe-me entrar. — Elise tirou o lenço que usava na cabeça para que a criada lhe visse o rosto. — Não pode ser... — Sabitta recuou. — Ama? É você de verdade? — Sou. No instante seguinte, Elise caminhava por aquela parte do palácio a que raramente ia. A seu lado, Sabitta continuava a encará-la, incrédula. Era um alívio saber que a amiga não fora capturada pelos rebeldes. Mas como eles descobriram onde ela se escondera e também a casa de Logan? — Desculpe, Sabitta. Não queria perturbá-la. — É você mesma? Não é um pos... — a criada engasgou, então limpou a garganta — um posnad, um fantasma? Sorrindo, Elise garantiu-lhe que não. Mas só depois que se deram as mãos a criada pareceu acreditar que era ela em carne e osso. — Leve-me aos meus aposentos — pediu Elise. — Mas não quero que ninguém saiba que voltei. Evitando os criados, tomaram um caminho pouco usado, passando pelos fundos do palácio, até um corredor que ia dar no quarto de Elise. Ela estava ansiosa, esperando que tivesse mudado alguma coisa, mas o apartamento continuava do jeito que deixara ao partir: a
cama com dossel, as cortinas de veludo nas janelas e a penteadeira em estilo vitoriano que herdara da mãe. Quantas e quantas vezes sentara-se diante do espelho lapidado de cristal, sonhando com o príncipe encantado enquanto escovava os cabelos... Voltou-se de repente para Sabitta. — E meu pai, onde está? — Oh, ama, ele está tão doente... Ele teve... — Mas onde ele está, Sabitta? — Nos aposentos dele. Elise saiu do quarto e tomou o corredor para a ala oeste do palácio. Numerosos homens, vários em uniformes militares, formavam grupos até a saleta de recepção dos aposentos do soberano. O general Roderi liderava um grupo pequeno, com o filho do lado. Quando a viram, Paul fez menção de abordá-la, mas foi contido pelo pai. — Com licença. — Elise passou, cumprimentando-os com um gesto altivo de cabeça. — Srta. Kaleer? — O general olhava-a em dúvida. — É você mesma? — Sou. Quero ver meu pai. — Melina, por favor, espere. — Paul tentou segui-la, mas, a uma ordem do pai, retrocedeu. Elise passou pela saleta de recepção e, encontrando a porta do quarto do soberano entreaberta, entrou sem bater. Seu pai estava deitado numa cama de hospital, cercado de aparelhos e tubos de sonda. O médico encontrava-se à cabeceira, de costas para ela, impedindo-a de ver o rosto do soberano.
Com o barulho da porta, o médico se voltou, permitindo ser reconhecido: era o mesmo que sempre cuidara da família. — Melina! — exclamou o velhote, surpreso. Mas ela já se aproximara da cabeceira do pai. — Minha filha! O que você está fazendo aqui? — A voz de Alexander Kaleer estava rouca e fraca. Antes que Elise respondesse, ele continuou: — Você está diferente. O cabelo... ficou bonito assim. Que aconteceu com você? Emocionada, Elise segurou-lhe a mão, incapaz de falar. Só então notou Roxanne, em pé do outro lado da cama, com os braços cruzados. Voltou a encarar o pai. — Tive de vir, pai. Como está se sentindo? O que lhe aconteceu? — Seu pai sofreu um enfarte — explicou Roxanne em voz baixa. — Sua chegada inesperada poderá agravar o estado dele. Elise não desviou os olhos do pai, aborrecida com as palavras da americana. Que direito tinha aquela mulher de falar-lhe naquele tom? — Desculpe se o estou perturbando, pai. Quando soube de sua doença, não pensei em outra coisa a não ser ficar a seu lado. Alexander alisou-lhe o cabelo curto. — Minha filha, estou contente de que tenha voltado. Você está bem? Num impulso, Elise quase lhe contou toda a história: o contato com Logan, a longa viagem de barco ao Maine, a fuga dos perseguidores. Mas deteve-se a tempo, para não preocupá-lo. — Estou bem — disse simplesmente. — Tenho muitas coisas
para lhe contar, depois. — Srta. Kaleer — interveio o médico. — Seu pai precisa repousar agora. Alexander olhou-o e deu um suspiro de resignação. — Vamos jantar juntos, querida. — Tudo bem, pai. Voltarei mais tarde. — Beijando a testa do pai, Elise saiu do quarto, mas Roxanne a seguiu. Assim que chegou a seus aposentos, Elise voltou-se e as duas começaram a falar ao mesmo tempo, mas Elise se impôs: — Como está a saúde de meu pai? — Melina... — Me chame de Elise. Eu prefiro. Roxanne enrubesceu, mas não fez comentários. — Pelo que soube, Alexander teve um ataque do coração na semana passada. Foi bem forte, mas o médico garante que seu estado se estabilizou. Acho que, se não fosse pela situação do país, ele estaria bem melhor. — E essas manifestações? Tive de vir a pé ao palácio, porque a multidão não permitia a passagem de carros na avenida. — Os militares controlam a situação. Fizeram um acordo com o Partido da Independência para evitar tumultos e depredações, mas o Bajurdi é imprevisível. Os fanáticos não vão descansar enquanto não depuserem o governo. Não foi à toa que tentaram seqüestrá-la na ilha. Elise queria fazer inúmeras perguntas, mas Roxanne não a deixou falar. — E Logan, o que aconteceu que ele não veio?
— Nos separamos em Nova York. A esta altura, ele deve estar indo para Cape Button. — Mas o que aconteceu? — Não era um pedido, mas uma ordem. Elise irritou-se ainda mais. — Por que você não voltou à ilha, conforme o combinado? Roxanne levou o dedo aos lábios, como se lhe pedisse silêncio. — Não deu para ir. Mas isso não importa. O que importa é que não gosto que minhas ordens sejam desobedecidas. Era para você ficar na ilha com Logan até eu voltar. O quanto antes, como eu disse. Mas você fugiu... Elise começou a falar, mas Roxanne a interrompeu: — Eu soube da tentativa de seqüestro e da morte do agressor. Você entrou em pânico e obrigou Logan a tirá-la de lá, apenas para expor a ambos a mais riscos. Você teria feito melhor permanecendo em Maximilliam. Elise quase riu. Roxanne não percebia que sua avaliação da situação podia estar errada e que a fuga da ilha tornara-se a única opção. Ao menos dessa maneira ela pudera regressar a Mondária e Logan ao Maine. Irritado, mas em segurança. — Só tenho a agradecer-lhe, em meu nome e de meu pai, pelas providências que tomou, incluindo o guarda-costas para manter-me segura na ilha. Mas não concordo nem um pouco com o modo como nos tratou, a mim e a seu sobrinho. — Depois de uma pausa enfática, continuou: — Tenho certeza de que meu pai não sabe de suas maquinações. Logan e eu fomos meros peões to jogo do xadrez em que você está decidindo o futuro de Mondária, não é, Roxanne? Foi por
isso que não falei com ele sobre nada, porque acho que você está tramando coisas aqui que não quer que ninguém descubra. Mas pretendo saber de todos os detalhes e então contarei tudo a meu pai. — Espere, espere um minuto. Não vejo como pode acusar... Elise ergueu a mão para interrompê-la. — Até que você prove que estou enganada, recuso-me a discutir o que quer que seja. Não se esqueça de que não sou um dos seus empregados. Não preciso seguir suas ordens. — Elise aproximou-se da cama. — Agora, espero que me dê licença. Preciso tomar um banho e descansar, antes de ir jantar com meu pai... sozinha. Como se esperasse pela deixa, Sabitta entrou no quarto. Era bem provável que tivesse escutado a conversa do lado de fora. Sem uma palavra, seguiu a ama e fechou a porta do banheiro. — Bem, que se dane, então! — pensou Roxanne em voz alta. Não podia acreditar que tivesse sido tão mal recebida. A garotinha tímida e maleável que deixara ha ilha dera lugar a uma mulher esperta e consciente. Gostaria de saber até que ponto aquilo fora obra de Logan. Talvez a autoconfiança de Elise fosse fruto de um relacionamento amoroso com ele. Mas, se haviam se tornado amantes, por que Logan não a acompanhara? Devia ter acontecido alguma coisa em Nova York. Logan não era de abrir mão de suas responsabilidades. Enquanto isso, o retorno de Elise poderia trazer complicações para a empresa dela. Se a determinada filha de Alexander descobrisse seu envolvimento com o tenente-coronel Paul Roderi e outros militares, sem dúvida informaria o pai. E Kaleer não devia saber que os depósitos da Fletcher estavam lotados de suprimentos militares e armamentos.
Paul, que apoiava Kaleer mas não o Parlamento, garantira-lhe que o equipamento bélico só seria usado caso fosse necessário sufocar uma guerra civil. Mas tudo seria possível, se a guerra estourasse. O objetivo do militar era promover uma eleição que pacificasse os recalcitrantes membros do Parlamento e confirmasse Kaleer no poder. Ao contrário de sua atitude neutra no início das agitações, ela agora poderia tomar partido ativo nos destinos do país. E tudo acabaria bem, a não ser por Elise... Já ia saindo do quarto para relatar a situação a Paul Roderi quando um criado bateu e entrou. — Srta. Fletcher, um cavalheiro americano deseja vê-la na sala de recepção do primeiro andar. — Você sabe o nome dele? — Roxanne indagou, imaginando que fosse alguém da fábrica. O criado inclinou-se para o cartão que trazia na mão e leu: — O nome dele é Soloman Giuseppe O’Reilly. — Sr. Sheldon, hein? Ou devo chamá-lo sr. Logan Hunter? — O homem alto e bronzeado meneou a cabeça. — Absolutamente. Ainda nem acredito em minha sorte. O homem que o encontrou no setor de passaportes da alfândega será bem recompensado. A última vez que vira o arrogante mondariano que o interrogava fora em Nassau, recordou-se Logan, sentado numa cadeira rústica num pequeno escritório no aeroporto de Suryat. Passara sem problemas pela alfândega e já ia entrar no táxi quando fora abordado pelo grupo de homens, que se aproximaram como velhos conhecidos. Um deles pegou-lhe a maleta, enquanto outros o conduziram pelo
braço. Sem dificuldade o escoltaram para aquela saleta obscura, onde o prenderam, deixando dois homens de guarda na porta. — Quem é você? — quis saber Logan. O homem fez uma reverência palaciana, que destoou de suas vestimentas, folgadas e amassadas. — Desculpe-me por não ter me apresentado. Sou Kir Atrel, líder do Bajurdi e o próximo soberano de Mondária, tão logo a descendente daquela porca inglesa se case. Para não aumentar a agitação do homem, Logan tentou mudar de assunto. — E onde se encontra a srta. Kaleer? — A esta altura, no palácio, protegida pelos partidários de Kaleer. — Ele suspirou. — Foi mesmo uma pena ela ter conseguido escapar em Nova York, enquanto a perseguíamos até o Aeroporto Kennedy. — Ela foi mais esperta que nós dois juntos. — É, mas sabemos como ela se sente a seu respeito. E sua chegada aqui foi providencial. Logan não demorou para perceber que seria usado pelos rebeldes para atrair Elise até eles. E o pior era que não poderia fazer nada para impedir. — Vocês seguiram meu barco desde a ilha? — Não foi preciso. Sabíamos áonde vocês iriam chegar. Como um pombinho domesticado, você voltaria para a casa da mamãe. O único imprevisto foram os homens armados que encontramos na Enseada dos Fletcher. Tivemos de ficar escondidos enquanto os vigiávamos.
— Então eram mesmo vocês, no avião? — Claro. O avião prestou-nos uma grande ajuda. Mas mesmo assim meus homens o perderam, os incompetentes. — Kir Atrel deu um sorriso amargo. — Mas os deuses estão do nosso lado, e nós os seguimos até Nova York. O mais difícil foi localizar o hotel com as informações que aquela idiotazinha nos deu no estúdio fotográfico. Voltando-se para a porta, bateu palmas e lançou um olhar sugestivo para Logan. — Agora, sr. Hunter, vamos mandá-lo para seu esconderijo final. De costas para a porta, Logan ouviu-a ser aberta. Dois homens aproximaram-se dele, um dos quais segurou-lhe os braços. Então sentiu a picada aguda e tudo se converteu em escuridão profunda... Logan acordou com a cabeça latejando e a boca seca. Estava numa cama estreita, e o menor movimento lhe provocava náusea. Eram os mesmos sintomas que Elise relatara quando fora drogada na ilha. Olhando ao redor, percebeu que estava num quartinho apertado, com uma única janela estreita no alto, fechada com grades de ferro. Sentia-se tonto. Respirando fundo, fechou os olhos, esperando os sentidos se recuperarem. O ar morno que entrava pela janela trazia o odor de especiarias e peixe misturados com o de água salgada. Pelos ruídos que lhe chegavam, compreendeu que devia se achar próximo a um porto. Riu com amargor ao recordar-se de que Roxanne o comparara a Harrison Ford. Qualquer semelhança era uma coincidência lamentável. A porta abriu-se com violência, fazendo-o levantar-se de um
salto, para voltar a deitar gemendo e com a cabeça estourando. Via raios luminosos à frente dos olhos. — Você deve obedecer às ordens de nosso líder, Kir Atrel — declarou um homem de uniforme cáqui, colocando uma mesinha com caneta e papel à frente dele. Num instante, Atrel entrou no quartinho. — Que bom que acordou, sr. Hunter! — falou com ironia. — Quero que escreva um bilhete para a srta. Kaleer. Para que ela tenha certeza de que é autêntico, deverá tratá-la por um apelido íntimo, que só vocês conheçam... não terá dificuldade, espero. — Preciso de um copo de água. Como se seu pedido fosse esperado, o mesmo homem depositou sobre a mesinha uma moringa e um copo. Logan bebeu sofregamente. Um outro homem trouxe uma cadeira para Atrel, que se sentou e esperou Logan terminar de beber. — Agora, escreva, sr. Hunter. Estou esperando.
CAPÍTULO XIX
Sentada à cabeceira do pai, Elise observava os raios de sol da manhã que entravam no quarto pela janela entreaberta. Enquanto
esperava que ele terminasse de falar ao telefone, recordava-se do jantar da noite anterior. Não fora uma das melhores ocasiões que passaram juntos. Embora tivesse decidido não comentar nada sobre Logan, ou sobre a tentativa de seqüestro na ilha, ou sobre sua opinião a respeito de Roxanne, o pai parecia não ouvi-la, nem mesmo quando discorrera sobre as passagens pitorescas das Bahamas e Nova York. Acima dela e de seus interesses, a única preocupação dele parecia ser a situação de Mondária. Quando tentara tocar no assunto do casamento, o pai não fizera comentários. Talvez fosse melhor assim, ela ainda não se sentia suficientemente segura para argumentar a respeito. A única ocasião em que Alexander mostrara-se um pouco animado fora ao comentar sobre seu presente de aniversário: prometeralhe um carro esportivo e um instrutor para ensiná-la a dirigir. Sinal de que começava a considerá-la como adulta. De volta ao próprio quarto, passara horas conversando com Sabitta. A criada contara-lhe do desaparecimento do cozinheiro, que com certeza fora quem as delatara para o Bajurdi, e lamentara-lhe mais do que devia. — Melina... — chamou-a o pai ao desligar o telefone. Mas não teve chance de continuar, pois batiam à porta. — Quem é? Um criado entrou, seguido por Roxanne e um homem muito atraente e musculoso, que pareceu a Elise um gladiador romano. — Perdoe-me a intromissão — adiantou-se Roxanne. — Mas eu queria apresentá-lo e a Elise a Soloman O’Reilly. Elise percebeu que devia ter acontecido alguma coisa. Era a primeira vez que via Roxanne insegura, sem saber onde pôr as mãos e com a voz trêmula.
Depois dos cumprimentos, Roxanne e seu acompanhante sentaram-se, recusaram o café que lhes foi oferecido e permaneceram um instante em um silêncio embaraçoso. Enfim, Roxanne trocou um olhar com Soloman, que a encorajou a falar. — Alex, eu... eu tenho algumas coisas para lhe falar que talvez sejam difíceis para você ouvir. Mas quero que compreenda que tudo o que fiz foi no seu melhor interesse. — Ela baixou os olhos para as mãos que não parava de contorcer. Depois de uns instantes de silêncio, Alexander encorajou-a a prosseguir: — Fale-me então, Roxanne. Só assim terei condições de julgar o que você fez. — Acho melhor eu explicar, sr. Kaleer — interveio Sol, numa voz poderosa que ecoou pelo quarto. — Vim a Suryat para encontrar-me com Roxanne, e ela confessou-me que... Bem, o que lhe interessa saber é que ela tem usado os depósitos de sua fábrica para estocar armamentos e suprimentos militares... — O quê?! O grito de Alexander fez Elise saltar na cadeira. As suspeitas de Logan a respeito da tia se confirmavam. Bem que ela podia ter contado tudo ao pai na noite anterior, em vez de se conter por considerações sentimentais. — Isso mesmo. Os depósitos estão repletos — continuou Sol. — E os suprimentos seriam para reforçar o equipamento das Forças Armadas, caso fosse necessário reprimir uma guerra civil. O senhor sempre procurou controlar o poderio bélico dos militares, esperando uma negociação pacífica, com o que também concordo.
Mas não acredito que isso seria possível agora. Pelo que vi na cidade, parece que estamos à beira de um conflito... Embora Sol fizesse uma pausa, para permitir ao soberano intervir, este continuava a encarar Roxanne boquiaberto. Elise tremia de ódio por aquela mulher, que traíra a confiança de seu pai. — Exijo explicações — declarou Alexander por fim. — E quero saber tudo! A princípio embaraçada, depois recobrando a confiança, Roxanne terminou de expor os fatos em voz pausada. Depois de vários minutos de explanação, fez uma pausa para um copo de água, e então Alexander interveio: — E com qual de meus militares você acertou tudo? — Paul Roderi. — Lamento que tenha sido ele. Paul trabalha para o Bajurdi. Há duas semanas o estamos seguindo. Veja bem, Roxanne: você forneceu armas aos nossos piores inimigos. Depois que o soberano terminou de falar, abateu-se um silêncio de morte no quarto. Podia-se ouvir uma mosca voando. — Vou mandar prender Paul Roderi — declarou por fim Alexander. — Vamos confiscar as armas e colocá-las sob a guarda de homens leais. — Balançando a cabeça, ele suspirou. — Vai começar a matança. Convoque o general Roderi. Ele me é fiel, apesar do filho que tem. Elise voltou a seus aposentos, incapaz de sentir qualquer emoção. Era como se toda sua energia se esgotasse nas últimas horas. Mesmo
assim,
acontecimentos.
forçou-se
a
raciocinar
sobre
os
próximos
O general Roderi declarara que não poderia confiar em mais ninguém. Então requisitara a Alexander os guardas do palácio para confiscar as armas, pois eram os únicos homens com que poderia contar. Arrasada, Roxanne oferecera-se para permanecer no palácio até que tudo se resolvesse e seu destino fosse decidido. Sol pediu permissão para ficar com ela. Elise simpatizara com ele. Mesmo contrário às atitudes de Roxanne, ele permanecia solidário. Não havia dúvida de que estava apaixonado por ela. — Ama? — chamou Sabitta, entrando no quarto. — O que é? — Começara a tirar a blusa para tomar banho. — Mandaram-me entregar-lhe isto. Elise voltou-se para pegar o bilhete na mão da criada. Sentandose no sofá, abriu depressa o pequeno envelope. “Querida Menina da Quinta-feira.” Elise soltou um gemido ao ler. Apenas Logan conhecia aquele apelido. E o resto do bilhete fora escrito com a caligrafia dele. Continuou a leitura com as mãos trêmulas. “Meus seqüestradores prometeram não fazer-lhe mal, se você seguir as instruções deles. “Você deve se apresentar à meia-noite de hoje, usando roupas escuras, no último cais do porto. De lá você será conduzida para o local onde me encontro. “Se quer que eu continue vivo, não conte nada a respeito a ninguém. A ninguém, entendeu? Elise, não...” A última palavra terminava num risco, como se o papel tivesse
sido puxado das mãos dele. Elise sentiu-se invadida pelo pânico. Tinha de salvar Logan, mas como? Não sabiam quem eram os conspiradores fiéis a Paul Roderi. Os guardas do palácio seriam usados para atacar os depósitos com armamentos, na fábrica de Roxanne. Quem poderia ajudá-la? Recordou-se da presença de Sabitta. — Sabitta, será que daria para eu me avistar com Roger Avenel? Ele foi tão eficiente ao nos salvar dos seqüestradores daquela vez... — Claro, ama. Posso falar com ele. — Então vá chamá-lo. Preciso muito da ajuda dele. Mas, Sabitta, não conte para ninguém, entendido? Com um gesto de acordo, a criada saiu apressada do quarto. — Vim assim que recebi seu recado, srta. Kaleer. — No quarto de Elise, Roger Avenel estava sentado ao lado de Sabitta. — Em que posso ajudá-la? Enquanto explicava a situação, Elise observou que Roger era tão forte quanto Logan, com a diferença de que seus cabelos eram mais claros. Ao terminar, não pôde evitar a pergunta em que traduzia toda a sua apreensão. — Você acha que eles seriam capazes de matá-lo? — Tudo é possível. Mas por enquanto não vão fazer-lhe mal, pois ele é um meio de atingi-la. Ficaram os três pensativos, enquanto Sabitta pegava a mão de Roger. — E o que vamos fazer? — indagou Roger a Elise. — Achar um meio de resgatá-lo sem que ele morra.
— Não nos resta muito tempo, mas acho que tenho uma idéia — sugeriu Roger. — Estou aceitando qualquer sugestão. — Bem, não há dúvida de que você terá de ir ao cais à meianoite, como pede o bilhete. Vou pensar nos detalhes e depois digo o que iremos fazer. Você não terá de ir sozinha. — Posso ir no seu lugar — ofereceu-se Sabitta. — Temos a mesma aparência. Elise sorriu, balançando a cabeça. — Não, Sabitta. Isso tem de ser feito por mim. — Um calafrio de medo correu-lhe pela espinha. — Mas eu sou mais resistente que você — protestou a criada. — Posso correr mais depressa e... Elise voltou a sorrir. — E o seu tornozelo? Vi você mancando na noite passada. Pensa que não sei que ainda dói quando você fica muito tempo de pé? — Sabitta ia tentar refutar os argumentos, mas Elisa não deixou. — Eu lhe agradeço, Sabitta, mas não vai dar. Não é que eu esteja querendo provar o quanto sou corajosa, não. Mas acontece que Logan foi capturado por culpa minha. E esse assunto só a mim diz respeito. — Ele salvou sua vida, não foi? — Salvou. Mas trata-se de mais do que isso. É que estou apaixonada por ele. — Sabitta olhou-a completamente chocada. — É isso, Sabitta. Sei o que você está pensando. Mas meu pai terá de entender que não vou casar com mondariano nenhum. E muito menos com Paul Roderi.
Elise levantou-se e foi seguida pelos dois. — Confio em seu plano, seja ele qual for — acrescentou ela, estendendo a mão a Roger Avenel. Durante o dia inteiro, Logan observou os movimentos dos guardas, na esperança de encontrar uma chance de escapar. O pior fora ter um dos braços quebrados por um dos guardas, que o deixara coberto de hematomas, além de um lábio partido, por causa de um comentário ofensivo que lançara ao rosto de seu líder. O homem era sem dúvida um amador, mas deixara-o prostrado de dor no leito e incapaz de falar por algumas horas. O braço já não doía, a não ser quando tentava mexê-lo. Não havia como escapar. A única esperança era que Elise não aparecesse. Sinceramente, ele não achava que fossem capazes de matá-lo. Pelo menos até verem esgotadas todas as tentativas de usálo como isca. Havia muito o sol se pusera. Por seus cálculos, já devia ser quase meia-noite. Gradualmente, os sons exteriores foram se extinguindo, até deixá-lo mergulhado numa angustiante sensação de isolamento. Tentou levantar-se, mas a dor no braço o impediu. Depois de muito sacrifício, conseguiu tirar a camisa e rasgá-la em tiras, improvisando uma tipóia. Aquilo contribuiu para aliviar consideravelmente a dor. Devagar e sem fazer o menor ruído, empurrou a cama pelo quarto até debaixo da janela. Então, pôs a cadeira em cima da cama, para tentar ver o que passava lá fora. Talvez pudesse quebrar o vidro e pedir socorro a algum transeunte. No momento em que ia subir na cadeira, a única luz no teto do
quarto foi apagada. Logan imobilizou-se, aguardando os olhos adaptarem-se à falta de claridade, mas o quarto permaneceu em total escuridão. Depois de muito refletir, concluiu que não teria nada a perder por tentar escapar. Cair no escuro não seria menos doloroso que no claro. Elise tomou o caminho do porto, deprimida pelo céu de nuvens baixas, sem estrelas. Talvez fosse melhor se houvesse luar, mas desde cedo o dia amanhecera nublado, prenunciando as chuvas periódicas das monções. Caminhava de olhos bem abertos, tendo à esquerda as construções do porto e à direita o marulho das ondas de encontro às estacas dos molhes. Ao longo do porto, a iluminação era escassa, com poucos postes iluminados, aumentando-lhe a impressão de um lugar assustador. Nunca estivera ali e não fazia a menor idéia do que encontraria pela frente, a despeito de Roger ter-lhe feito um mapa sucinto do local. O coração batia forte em seu peito, quase impedindo-a de ouvir o ruído dos próprios passos. Apenas a certeza de que Logan encontrava-se por perto a impelia a continuar. Não sabia por quê, mas sentia a presença dele. Talvez fosse resultado da descoberta de que o amava. A consciência de sua presença independente da razão. Até Logan entrar em sua vida, ela levava uma existência individualista, centrada em si mesma. Enfim, encontrara alguém por quem se sentir responsável. Aquilo lhe dava forças para prosseguir. A medida que avançava, perguntava-se se não fora tolice sair sem levar uma arma ou um homem armado consigo. O plano de Roger, que iria com uns amigos americanos para ajudar a salvar Logan, lhe parecera bom. Mas ainda lhe dava medo. Mesmo sabendo
que muitos daqueles americanos tinham lutado entre os fuzileiros navais, temia pela segurança de Logan. Enquanto caminhava, repassava mentalmente sua parte na encenação que discutira com Roger. E se não tivesse coragem na hora e lhe desse um branco? Seu medo era perder o controle e cair, ela também, prisioneira dos rebeldes. Ouviu passos atrás de si, mas forçou-se a continuar andando normalmente. Talvez fossem os homens de Roger. Resistiu até mesmo à tentação de voltar-se, quando sentiu os passos se aproximando, e continuou em frente. Precisava levar o plano adiante: ela seria a isca para determinar a posição dos rebeldes para o ataque de Roger. Se o plano de Roger fracassasse, ela cairia em poder dos rebeldes e seu pai capitularia... “Afaste esses pensamentos”, ordenou-se, quando os passos já estavam muito próximos. Aproximava-se o contorno do cais, que ela reconheceu pelo desenho de Roger. Podia ver os guindastes, mas não havia nenhum navio nas imediações. Talvez não houvesse navios por causa das restrições políticas... “Droga! Concentre-se no plano”, recriminou-se, quando uma voz masculina a interrompeu: — Srta. Kaleer? Elise quase gritou de susto e ia voltar-se quando o homem ordenou: — Continue andando. O homem a seguia tão de perto que ela podia ouvir-lhe a respiração.
— Por favor, não se apavore. Está indo muito bem. A voz de barítono tinha o sotaque de alguém educado na Inglaterra, ou na Universidade de Mondária, que seguia o sistema educacional inglês. Ele agarrou-lhe o braço, assustando-a. — Quando eu mandar, vire à esquerda devagar. Mas não faça nenhum movimento em falso. Tenho homens apontando armas em sua direção, e eles podem pensar que está tentando escapar... Chegaram a um edifício alto, em frente a um guindaste. — Num momento, você encontrará seu amante — avisou o homem numa voz dura. No momento em que chegavam a uma porta lateral, uma sucessão de clarões iluminou a área e ouviram-se disparos de armas automáticas. O homem a seu lado foi arremessado ao chão, gemendo e levando as mãos ao peito. Enquanto prosseguiam os disparos, a escuridão retornou ao pátio do cais. O passo seguinte, segundo o plano de Roger, seria ela correr até a borda do cais, onde um barco a apanharia. Mas como enxergar no meio daquela escuridão? No momento em que se aproximava da borda, Elise gritou, ao ser agarrada por duas mãos fortes. — Calma, moça — avisou uma voz masculina com sotaque americano. — Eu estou do seu lado. Em poucos segundos, Elise estava dentro de um bote de borracha, onde o homem remava cadenciadamente. — O que aconteceu? — quis saber Elise.
— Não fale — ordenou o homem, continuando a remar. Mais rajadas interromperam o curto diálogo, e novos clarões iluminaram o céu e aquela região do porto. O homem continuou remando, passando sob guindastes gigantescos, que pareciam imensos animais pré-históricos. Por fim, o bote acostou num outro ponto do cais. — Você terá de subir nesta escada. Acha que consegue? — indagou o homem, segurando o bote junto à borda. — Claro. — Elise procurou manter-se o mais calma possível. — Lá em cima, há um homem esperando-a com um caminhão. Mas, até encontrá-lo, não entre em pânico, certo? — Certo. Subindo ao cais, Elise logo avistou o caminhão, em cuja lona da carroceria havia a inscrição “Exército Mondariano”, em ne- reb. Como será que Roger o conseguira?, pensou. — Por aqui — um homem a chamou. Na traseira do caminhão, outro homem ajudou-a a subir. O caminhão arrancou e percorreu um interminável trajeto por inúmeros caminhos, a ponto de Elise chegar a pegar no sono, deitada num dos estreitos bancos laterais. Por fim, pararam num local escuro, e um dos homens assomou na carroceria. — Fim da jornada, dona — informou. — Cá estamos. — Onde? — Elise pulou para o chão, olhando ao redor. O local, embora mal iluminado, era sem dúvida nas imediações da fábrica de Roxanne, num bairro onde concentravam-se os americanos residentes na cidade. Viam-se vários sobrados.
O homem indicou-lhe uma das casas. — Entre e procure não acender as luzes. Roger virá assim que puder. Enquanto Elise obedecia, pensando se Logan estaria bem, o homem subiu no caminhão e partiu. Sentado no chão, Logan estava louco para saber o que se passava lá fora. No momento em que ia subir na cadeira para olhar pela janela, o tiroteio começara. Exausto demais para retornar a cama ao local original, sentara-se no chão perto da porta, concluindo que pelo menos ali estaria mais seguro que do outro lado da parede. Com as costas da mão, enxugou o suor da testa. Nunca encontrara-se numa situação tão perigosa: em poder do inimigo, ferido, sem poder se defender em meio ao que suspeitava ser o início de uma guerra civil. Seu maior temor era por Elise. Tomara que ela não tivesse aparecido no cais, e continuasse em segurança no palácio ou em qualquer outro lugar. Uma explosão sacudiu o prédio, e ele imaginou que um dos guardas fosse entrar a qualquer momento para matá-lo. A espera e a incerteza o angustiavam. Naquele exato momento a porta foi arrombada, e um homem loiro irrompeu no quartinho, parando a sua frente. — Logan Hunter? — gritou ele. — Eu mesmo. E você, quem é? — Roger Avenel. Estendendo a mão, Roger puxou-o para ajudá-lo a levantar- se. Logan rilhou os dentes para não gritar de dor. — Melina Kaleer me mandou aqui para soltá-lo.
— Onde ela está? — Não se preocupe. Ela está segura. — E Kir Atrel? — Morto. — Roger começou a voltar-se, quando lhe percebeu o ferimento. — O que aconteceu com você? — Quebraram meu braço, mas isso não vai me impedir de sair daqui. — Tudo bem, então vamos. Mais um minuto e o inferno cairá sobre nossas cabeças. “Parece que já ouvi isso antes”, pensou Logan, seguindo os passos de seu salvador. Roger dirigia o jipe do Exército mondariano através de um caminho tortuoso pela zona portuária, certificando-se a cada instante, pelo retrovisor, de que não eram seguidos. — Para onde estamos indo? — quis saber Logan, esperando que fossem encontrar-se com Elise. — Para minha casa. Não podemos atravessar a cidade esta noite. — Mas o que está acontecendo? — Talvez esta noite, ou ao amanhecer, os guardas de Kaleer invadirão a fábrica Fletcher. — É mesmo? E por quê? — Parece que a srta. Fletcher andou se intrometendo em assuntos internos mondarianos. As palavras de Roger não surpreenderam Logan. — E o que foi que ela fez?
— Oh, quase nada. Apenas usou seus aviões de carga para trazer armas para fortalecer o Exército. Só que não sabia que o homem que estava ajudando era comparsa de Kir Atrel. Assim, passaram a existir dois exércitos e dois governos no país, um dos lados liderados por Roderi e Atrel. — Santo Deus! — exclamou Logan. — Seu resgate foi organizado pela srta. Kaleer. Ela estava ao lado de Atrel, quando ele foi atingido. Depois de uma curva, Roger entrou numa avenida larga. Não havia luar. Debaixo das fileiras de árvores estava escuro como breu. — Vá indo — disse ele em voz baixa, parando em frente a um sobrado. — Vou estacionar o jipe e dar uma olhada em volta. Logan procurou o caminho, tropeçando no escuro. Depois de dar um encontrão num carro parado na entrada, que o fez ver estrelas, chegou até a porta. Pareceu-lhe ver uma luzinha no fundo da janela. O braço latejava e estava quente. No que pensou ser uma pequena varanda, seu coração disparou ao sentir um aroma floral inesquecível. Elise estava por perto. Bateu de leve na porta, e esta imediatamente se abriu. Elise estava diante dele. Quase sufocando de alegria, ela se atirou em seus braços, mas recuou ao ouvir-lhe o gemido de dor. — Logan, o que aconteceu? Você foi ferido? — Não daria para acender a luz? — pediu ele, assim que a dor amainou. — Não sei se Roger está seguro de que não foram seguidos. Conte para mim, o que aconteceu?
— Quebraram meu braço. Você está bem? — Ele deu um passo atrás para olhá-la. — Por que você foi trazida para cá? Tem certeza de que é seguro? O que aconteceu? Conte-me. As perguntas seguidas atordoaram Elise, a ponto de ela não conseguir entendê-las. — Venha, vamos até a cozinha. Lá poderemos nos sentar e conversar calmamente. Ao chegarem ao aposento iluminado, Elise soltou um gemido ao ver o rosto de Logan. — Logan, o que eles fizeram com você? — Acariciou-lhe os lábios e o hematoma sob o olho esquerdo com a ponta dos dedos. Logan beijou-lhe a palma da mão, ignorando a dor que aquilo lhe causava. — É, mas você precisa ver como os caras ficaram! — Logan! — Ela empurrou-lhe a mão, irritada. — Este não é o momento para brincadeiras. Você poderia estar morto! Por que não me avisou que viria? — E você pode me deixar, mas me condena por tomar uma atitude igualmente estúpida, não é? A palidez de Elise tornou-lhe os olhos mais azuis. Percebendo o quanto ela estava abatida, Logan se conteve. — Eu estava tentando protegê-lo, Logan. Depois do que aconteceu ontem à noite, então, a vida dos americanos aqui está por um fio. Logan deu de ombros. — Enfim, estou aqui. É o que ganho por amar uma mulher
impetuosa e independente. — Você fala como se eu fosse uma criança que não sabe o que está fazendo. Mas saí de Nova York para evitar que você corresse novos riscos. Fiz o que julguei ser o melhor para nós dois! — Pois devia ter imaginado que eu a seguiria. Afinal, droga, estou apaixonado por você! — Mas meu plano teria sido tão perfeito se... — Mas não foi. Por isso mesmo. — Ele sorriu. — Mas o meu plano também falhou. Nós dois não pensamos nas conseqüências de nossos planos. Logan pegou-lhe a mão, emocionado por ver lágrimas nos olhos azuis. Ela correra muitos riscos naquela noite, e um homem fora morto a seu lado. Aquele não era o tipo de reencontro que imaginara. — Venha cá. — Puxou-a, obrigando-a a sentar-se em seu colo. Tentou ignorar a dor quando ela se colou ao seu corpo e envolveu-lhe o pescoço com os braços. — Elise St. James ou Melina Kaleer, ou seja lá quem você seja no momento, eu te amo. E, antes que aconteça mais alguma coisa, quero saber se também me ama e quer me seguir a meu país para casar-se comigo. As lágrimas corriam pelo rosto de Elise. — Você não se importa se eu sou impetuoso, independente ou... O beijo de Logan cortou-lhe as palavras. Ao longe, Elise ouviu o som das metralhadoras em algum ponto da cidade. A guarda do palácio devia estar atacando os depósitos, pensou. Não, com certeza aquilo era apenas um conto de fada. A realidade estava nos braços de Logan.
CAPÍTULO XX
— Veja, Logan! Está nevando! Elise puxou as portas duplas com tanta violência que quase bateram no nariz de Logan. Do lado de fora, parou, imaginando se ele estava de casaco. Àquela altitude, nos Alpes suíços, a temperatura andava abaixo de zero grau centígrado. Elise nunca sentira tanto frio em toda a sua vida. Descendo as escadas da Clínica Cardiológica Fletcher, ela correu, de braços levantados, entre os flocos levíssimos, como se recebesse e colhesse uma oferenda lançada pelos deuses. — A neve começou a cair no momento em que sou informada de que meu pai está fora de perigo. Não é maravilhoso? — Se é — concordou Logan, batendo os dentes. — Agora vamos voltar para dentro. — Ora, Logan! — Ela ergueu o rosto para o céu. — Você não imagina o que isso significa para mim. Claro que ele sabia. Ela ficara esperando dias seguidos por aquele acontecimento. Ela continuou olhando a neve em silêncio, então exclamou de repente: — Logan! Estou vendo minha respiração. Nunca me aconteceu isso antes.
Tentou produzir o fenômeno outra vez, assoprando o ar. — Então me diga, Elise. Vou ficar aqui fora se você me contar o que o general Roderi lhe falou sobre o que está acontecendo em Mondária. A neve começara a cair no momento em que ela desligara o telefone. Mas ela se recusava a falar em outra coisa a não ser nos flocos brancos e gelados. — De acordo. — Pegando o braço dele e passando sobre seus ombros, Elise levou-o entre os flocos cadentes. — Ora, vamos, Elise. Vá falando. Inalando o ar frio, ela tomou alento. — Depois que eu informei o estado de meu pai, o general me relatou os fatos. Paul saiu do país, e ninguém sabe para onde foi. O general, tendo confirmada a atuação do filho, ficou tão consternado que pediu para ser reformado. O que é uma pena, depois de se tornar um herói nacional, pela invasão da fábrica. — Sinto muito por ele — concluiu Logan. — Tudo com que sonhava se perdeu. O contrário se deu com seu pai, que ficou aliviado por abdicar e deixar o país. — É verdade, ele nunca quis realmente o poder. Papai irá me agradecer quando eu lhe contar que a paz foi restaurada e o novo Parlamento governa com o apoio popular. Os problemas de Mondária chegaram ao fim. Logan ia sorrir, mas ao ver o olhar crítico de Elise se conteve. — Estava pensando em Roxanne. Os problemas dela apenas começaram. Com a subsidiária confiscada pelo novo governo, ela perdeu justamente o que queria conservar.
— Mesmo que eu pareça indelicada, acho que ela teve o que mereceu. — Elise o encarou. — Posso parecer ingrata, depois de tudo o que ela fez por mim e por meu pai, mas é assim que me sinto. Mas simpatizei com Sol O’Reilly. Imagino se ele se arrependeu da troca que fez com ela. Ao descobrir o que Roxanne fizera em Mondária, Sol tentara se demitir da Fletcher. Por fim, Roxanne o persuadira a ficar por mais um ano, depois de aceitar as condições dele: não falariam um com o outro a não ser de negócios. — Não tenho dúvida de que Sol se arrepende do trato — comentou Logan. — Para ele será fácil integrar toda a companhia num sistema único e mundial de comunicações. Mas quero ver ele conviver diariamente com Roxanne e resistir às investidas dela. — Pobre Sol! — Na semana passada, quando me encontrei com Roxanne, ela me crivou de perguntas sobre ele. — Logan sorriu. — E, quando encontrei Sol, ele me fez um interrogatório sobre ela, embora ficasse embaraçado depois. Os dois estão perdidamente apaixonados um pelo outro, e nos próximos meses vão viver num verdadeiro inferno... — Mas são suficientemente cabeçudos para manterem o trato, não é? — Você poderia aprender com Roxanne algumas técnicas contra a teimosia... — Não faço a mínima idéia do que você está falando. — Quero dizer que está na hora de entrar. — Não, senhor. A neve pode acabar. Não quero perder um minuto deste espetáculo. — Ela afastou-se de seu abraço. — Quero
andar e ver minhas pegadas na neve. E quero descobrir dois flocos idênticos, também. — Mas isso é impossível. — Como você sabe? — Ficando na ponta dos pés, ela beijou- o de leve nos lábios e correu pelo campo afora. Logan deu-se por vencido. Elise não mudaria nunca. Depois de mostrar-se forte para resistir à operação do pai, ela voltava a ser a Menina da Quinta-feira. Na semana seguinte, ela se tornaria a sra. Logan Hunter, e ele, o vice-presidente superintendente da Fletcher no exterior, residindo em Londres... pelo menos inicialmente. Aquela era uma das vantagens de trabalhar numa companhia tão grande quanto a Fletcher: ele e Elise poderiam viver no país em que quisessem. Talvez até pudessem visitar Roger Avenel e sua esposa, Sabitta. Os dois haviam se mudado para a Austrália, à procura de opalas e ouro. — Logan. Corra. Veja isso. — Elise olhava para dois flocos na manga do casaco. — Encontrei dois flocos exatamente iguais! — Como pode afirmar que são mesmo iguais? — Logan falou, aproximando-se dela. — Oh, eles derreteram! — desapontou-se ela. — Justo agora que eu estava olhando! Logan deu uma risada. Tomara que Elise nunca perdesse a capacidade de admirar-se nem o gosto do desconhecido ou o cego amor por seu inepto guarda-costas, que pretendia passar o resto da vida cuidando dela... FIM