Penelope Williamson - Paixão-Proibida

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Paixão Proibida

Sinopse PAIXÃO PROIBIDA... Um amor proibido que desafia as convenções sociais de um mundo injusto. O mundo de Emma Tremayne é o do luxo das grandes mansões, as caçadas e os esplêndidos bailes. Nada se espera dela, exceto que se case com o rico proprietário de uma fábrica têxtil, em que os trabalhadores, irlandeses em sua maioria, trabalham em condições desumanas. Mas a vida de Emma sofrerá um giro inesperado com a aparição de Bria, uma jovem trabalhadora da fábrica, que interrompe a última caçada da temporada com um menino morto em seus braços. Sua amizade com Bria a conduzirá a Shay, antigo revolucionário fugido da Irlanda que, apesar de seu desprezo pelos ricos, não pode negar sua atração por Emma, uma mulher que necessita sua paixão tanto quanto ele necessita suas carícias. Pouco a pouco se desatará entre ambos um amor que desafiará o escândalo.

Para Candice Proctor. Irmã... E no fim, a melhor das amigas.

Capitulo Um Bristol, Rhode Island. Abril de 1890.

Emma Tremayne sentia seus olhares como bofetadas na pele nua. Era tão tímida que só que a olhassem era uma tortura, apesar de que já deveria estar acostumada. Depois de tudo, era uma Tremayne, uma dos indomáveis, perversos e escandalosamente ricos Tremayne. E era bonita, ou isso lhe haviam dito toda sua vida. Nunca tinha gostado de participar dos eventos sociais, mas sabia qual era seu dever e, geralmente, esforçava-se ao máximo em fazer o que devia. Tinha ido à última caçada da raposa da temporada porque era uma tradição entre a “Gente importante” de Bristol e os Tremayne tendiam a ter um cuidado especial com as tradições da “gente importante”. —Agora é nossa última esperança — lhe tinha recordado sua mãe aquela mesma manhã. Assim tinha ido, por sua mãe e pela família. Por isso e porque gostava da caça. Bom, não exatamente a caça; o que gostava era de cavalgar: galopar a rédea solta cruzando os campos lavrados, através da erva e dos bosques de bétulas e pinheiros; saltar por cima dos muros de pedra e das cercas cobertas de amoras, lançando-se de cabeça para esse instante no tempo em que o cavalo deixava de tocar o chão e ela se sentia tão livre como se carecesse de peso. Entretanto, naquele momento, aguentava erguida e firme na galeria da fazenda de seu primo. Olhava, com os olhos muito abertos, os inquietos cavalos,

os cães que gemiam a jaqueta vermelha do Caçador líder, as calças de montar, tudo de cor bege, os trajes negros e as cartolas de seda negra. Conhecia aquela gente de toda a vida, mas se sentia relutante a sair ao pátio e reunir-se com eles. Entretanto, quando pensava na desenfreada cavalgada que a esperava, sentia que a enchia uma onda de prazer, descarado e embriagador. Viu os irmãos Alcott em um canto do pátio, perto da grade, montando um par de baios castrados iguais. Tinha esquecido o muito que se pareciam os dois irmãos, com aqueles narizes longos e estreitos e as caras largas, coroadas por fartos cabelos castanhos claro. Geoffrey montava em seu cavalo com soltura, mas muito erguido, elegante com seu chapéu de feltro negro e sua gravata-borboleta branca pulcramente atada. Stuart estava sentado de qualquer maneira na sela, com um aspecto ao mesmo tempo galhardo e decadente. Mas Stuart sempre tinha sido assim. Levava fora de casa sete anos e se alegrou tanto de vê-lo que se imaginou recolhendo as saias e correndo escada abaixo até o pátio, gritando seu nome. Sete anos atrás possivelmente o teria feito, inclusive com todo mundo olhando, mas agora não seria apropriado. Não, nunca teria feito uma coisa assim, nem sequer quando era menina. A Emma Tremayne de suas fantasias sempre era muito mais valente e atrevida que a de verdade. Geoffrey levantou a mão, saudando-a, e ela sorriu, embora não respondeu à saudação. Geoffrey Alcott, a quem tinha visto na quarta-feira anterior e que todo mundo, pelo menos toda Bristol, pensava que era seu pretendente. O homem com quem se casaria salvo que ele ainda não se decidiu a pedir-lhe. Tinham dançado juntos, duas vezes, no baile de Natal e a meia-noite a tinha pego pelo braço e tinham saído ao balcão, para ver as estrelas, conforme disse ele. Quando ela pôs a mão no corrimão, ele a cobriu com a sua e ela acreditou notar o calor da palma através da seda de suas luvas de baile. O fôlego lhes envolvia as caras como se fosse um véu e se olhavam um ao outro, não às

estrelas. Pensava que o pediria então, mas não o fez. Mais tarde, não conseguiu decidir-se se sentia-se decepcionada ou aliviada. Agora Geoffrey a olhava com os lábios apertados e se perguntou o que tinha feito aquela manhã para merecer aquele cenho franzido. Recolheu a pesada e longa saia negra de kersey de seu traje de montar, para evitar que arrastasse, e desceu ao pátio. Um homem vestido com um jaquetão negro de marinheiro e um chapéu de feltro lhe trouxe o cavalo. O chapéu lhe ocultava a cara, sombreando-a, mas não importava porque, em realidade, não o olhou. Nem sequer quando aceitou que a impulsionasse ao lombo de sua nervosa égua ruana. Rodeou com a perna a sela e arrumou melhor a saia. A pele da sela estava fria e escorregadia. A égua corcoveou e soprou, sacudindo a cabeça e foi então quando o homem estendeu a mão e agarrou o tornozelo de Emma. Seus dedos apertaram com força a suave pele da bota. Encheu-a uma sensação de estranheza e algo que quase a impedia de respirar, algo muito próximo ao pânico. Ficou rígida, emitindo uma exclamação que era metade grito, metade ofego. —Está com a cilha solta — disse ele—. E por muito soberba dama que seja senhorita, se alguma alma amável como eu não a rodeia bem, aposto o cú que dará com o nariz contra a primeira cerca. Aquelas palavras grosseiras a assombraram menos que a aspereza da voz. Tinha uma cadência irlandesa, mas era bronca e áspera, quase um sussurro. Ameaçadora, de algum jeito. Já lhe tinha soltado o tornozelo para levantar a aba da sela e ajustar as correias da cilha. Suas mãos eram grandes, quadradas e maltratadas. Ficou olhando a parte superior do chapéu e a forma como o cabelo lhe pendurava comprido e desigual por cima do pescoço da jaqueta. Ele levantou, devagar, a cabeça. Ainda durante um momento, a asa do chapéu seguiu lhe ocultando o rosto e, logo, Emma encontrou o olhar de um par de extraordinários

olhos verdes. O rosto combinava com as mãos. Uma cicatriz branca, fina como o fio de uma navalha, que saía do olho direito, atravessava-lhe a bochecha. Tinha o nariz torcido, ligeiramente inclinado para a esquerda. Também tinha outra cicatriz no pescoço, um grosso vergão roxo. Esteve a ponto de dizer «sinto muito», e logo se deu conta de que teria soado estúpido, porque não havia nada que sentir. Se alguém devia lamentar algo, era ele, por tocá-la sem sua permissão. E por lhe falar, acusando-a de pensar que era «uma dama soberba». Mas ele já tinha dado meia volta e se afastava. Pensou que caminhava com ar arrogante e sentiu uma triste inveja de sua confiança. Aquele homem moreno, com seu rude aspecto irlandês. Foi diretamente até seu primo Aloysius, que como Caçador líder, aguardava montado em seu cavalo, em meio à matilha de cães, que grunhiam, ladravam e saltavam uns em cima dos outros, excitados, mas que se aquietaram assim que o homem se meteu entre eles. Como se sua mera presença impusesse obediência. Depois disso, não deixou de ser consciente de sua presença. Os irmãos Alcott se aproximaram dela e conseguiu sorrir a Geoffrey e brincar com ele e só se ruborizou um pouco, porque de todas as pessoas de seu mundo, Geoffrey era com quem se sentia mais confortável. Inclusive conseguiu dizer a Stu o muito que se alegrava de que tivesse voltado para casa depois de tanto tempo. Mas, constantemente, os olhos iam para aquele homem. Em uma ocasião, ele deve ter notado seu olhar porque se virou para olhála descaradamente. Ela voltou rapidamente o olhar para o outro lado, enquanto apertava com força o punho de seu chicote Whalebone. Seu primo Aloysius agarrou o chifre de cobre que lhe pendurava do pescoço e lançou um uivo lamentoso ao céu da manhã. O irlandês atuava como funcionário do canil de caça de seu primo, porque observou que tinha montado em um pangaré castanho e estava reunindo os cães. Então, todos saíram pela

grade com os chapéus subindo e descendo, o couro das selas rangendo e o caminho retumbando sob os cascos dos cavalos. Do chão se levantava a névoa daquela manhã de abril, fria e de uma cor azul pálida. A geada laminava a alta erva do prado. O irlandês deu um golpe na bota com uma vara de couro e a matilha se adiantou ao trote. E então deixou de estar ao alcance de sua vista. Era costume que o Clube de Caça de Bristol se reunisse para a última caçada da temporada na velha Fazenda Hope. Essa fazenda tinha pertencido aos Tremayne no passado, mas foi parar nas mãos de uma filha que fez um matrimônio imprudente e não era tão esplêndida como deveria ter sido. A maioria de seus campos de cebolas estavam em aro, cheios de maleza, e a própria casa tinha um ar decadente. Foi construída com uma exótica pedra mármore, amarela como os olhos de um gato e trazida do coração da África como lastro em um navio de escravos. Dizia-se que estava assombrada, embora ninguém nunca tinha visto nem ouvido nada mais sinistro que os morcegos do sótão. Tanto se aquele lugar estava infestado de fantasmas como se não, a caçada acontecia ali toda sexta-feira pela manhã desde novembro até a primeira semana de abril. A Fazenda Hope e as terras que a rodeavam não eram mais que uma série de velhos moinhos, pântanos e matagais, lacunas de água estancada e hera venenosa. Mas a primeira caçada tinha acontecido na Fazenda Hope mais de duzentos anos atrás e, após, o acontecimento se repetia a cada inverno, cada sexta-feira pela manhã. Todas as velhas famílias importantes de Bristol pertenciam ao clube. “Gente importante”, assim chamavam-se a si mesmos, essas velhas famílias ricas. Os proprietários das fábricas, os construtores de navios, os banqueiros e advogados e todos os seus filhos, filhas e netos, geração após geração. Talvez nem todos seguissem os cães a cada sexta-feira de inverno, mas todo mundo que era alguém ia à última caçada da temporada. Era uma tradição e as pessoas de

Bristol, seja grande ou pequena, não era do tipo que abandona uma tradição sem resistir. Também era uma tradição servir ponche antes dessa última caçada da temporada. Os cavalheiros e damas participantes, com suas botas bem lustradas, sentados escarranchados em suas lustrosas montarias, davam voltas pelo pátio, brindando por eles mesmos com ponche servido em taças de prata de lei gravadas com raposas correndo. Quando o Caçador líder tocava a trombeta, o Clube de Caça saía pela grade e percorria o caminho até a primeira curva, onde, com um sonoro hurra, todos lançavam as taças por cima da sebe de espinheiro. Era um gesto pensado para alardear a riqueza e o amalucado esbanjamento da “Gente Importante”. Mas todos sabiam que os serventes tinham instruções estritas de passar mais tarde para recolher todas as taças de prata, a fim de usá-las no ano seguinte. Nas taças dos cavalheiros sempre havia um pingo de uísque acrescentado. Só que nesta manhã em particular, Stuart Alcott tinha passado do ponche e bebia uísque puro de uma cigarreira que também era de prata, mas de uma prata maltratada e deslustrada. Aquilo não era nada apropriado, absolutamente. As pessoas não traziam sua própria cigarreira de uísque à caçada. Todo mundo o olhava, com o cenho franzido, e isto irritava a seu irmão Geoffrey enormemente. Geoffrey Alcott odiava a ideia de que pudessem apanhar em um ato impróprio alguém que levasse o nome de sua família. Quando saíram da estrada, Stu viu o olhar de seu irmão e assinalou com a cigarreira para Aloysius Carter. O Caçador líder e atual proprietário da Fazenda Hope abria caminho, transbordando-se na sela como um rebocador. Estava tão gordo que enchia o assento de um canto ao outro e levava mais de trinta anos ébrio. —Olha-o, mais bêbado que uma Cuba — disse Stu—, mas aposto contigo cinquenta peniques que o velho ainda consegue saltar todas as cercas e

muito na frente de todos nós. Geoffrey suspirou ao pensá-lo e bebeu um sorvo de sua taça, consolandose com seu doce calor. Sua taça, como a das senhoras, só continha ponche. Raramente bebia álcool e ele não ia galopar através dos campos e voar por cima das cercas meio atordoado pelo álcool. Levantou a vista e viu que seu irmão o estava observando. Os olhos de Stu faiscavam, cheios de uísque e risada zombadora. —Hoje correrão como o próprio diabo. Faz o frio justo — disse Geoffrey, a falta de algo melhor para dizer, e logo notou que se ruborizava. Depois de tantos anos seu irmão ainda conseguia com que se sentisse e atuasse como um estúpido. —Merda. A manhã está tão fria como a teta de uma bruxa, como se costuma dizer. —Stu tomou outro longo gole de sua cigarreira e fingiu um calafrio—. E essa é uma boa razão para que, em vez de me dedicar esse olhar fulminante, como se fosse um clérigo moralista, cada vez que bebo um trago, felicitasse-me por meu bom senso. Depois de tudo, não é fácil que o sangue de alguém se congele se for noventa por cento de álcool. Geoffrey pensou que isso não impediria que alguém partisse seu maldito pescoço de bêbado, mas guardou para si. Entretanto, seu irmão, que sempre era capaz de saber o que tinha na cabeça, sorriu e ergueu a cigarreira em um brinde zombador. Geoffrey apertou a mandíbula e olhou para o outro lado. Mas um momento depois seus olhos se voltaram para estudar seu irmão. Stu tinha um rosto atraente, com o nariz reto e as maçãs do rosto altas, boca grande que tinha um certo charme selvagem, inclusive agora que estava frouxa pela bebida. Geoffrey olhou aquela cara, tão familiar para ele como a sua própria e sentiu algo parecido ao medo lhe removendo a acidez no estômago. Era pela maneira como seu irmão tinha olhado para Emma. Não é que todos os outros não olhassem sempre para Emma. Tinha saído

à galeria da fazenda de pedra amarelada e todos os homens presente tinham deixado de falar e de mover-se. Inclusive os cavalos ficaram imóveis. Emma permanecia sozinha, emoldurada entre os pilares de madeira branca da galeria e sua presença era igual ao poder de um trovão em um dia claro. Geoffrey ouviu como seu irmão soltava o ar em um assobio baixo e lento e voltou à cabeça a tempo de captar a ligeira chama nos olhos azul pálido de Stu. —Céu Santo — disse Stu—, mas se for nossa pequena Emma, a menina cresceu. —É minha — disse Geoffrey, surpreendendo inclusive a si mesmo pela força de sua afirmação, tanta que, é obvio, ruborizou-se. Stu voltou à cabeça, afastando lentamente a vista da jovem na galeria e arqueou uma pálida sobrancelha olhando para seu irmão. —Ah, mas ela sabe que é tua? —Stu, maldição... Não pode simplesmente deixar de dar voltas pelo mundo todos estes anos e ao voltar supor que... Geoffrey fechou a boca, apertando a mandíbula com tanta força que lhe doíam os dentes. Stu pôs-se a rir. —Eu não estou supondo nada, meu irmão. Essa é a única qualidade que me salva. Geoffrey não pôde evitar rir também. —Deus, que descarado é. Inclusive tem a audácia de reconhecê-lo. —Está bem, está bem, então tenho duas qualidades que me salvam. Os irmãos compartilharam um sorriso e em seguida, como se tivessem combinado, seus olhares voltaram para a moça que estava na galeria. Era muito jovem e viçosa, mas sua beleza era, certamente, mais sugestiva que real algo saído dos sonhos de um homem. Porque estava muito longe para ver que, debaixo de sua cartola, de seda negra, seu cabelo brilhava como se fosse laca; que a gravata que usava rodeava um pescoço incrivelmente longo e branco; que

a violeta que levava em cima do peito estremecia devido a alguma intensa emoção que possivelmente fosse medo ou excitação. Estavam muito longe para lhe ver os olhos, que não eram nem cinzas, nem verdes, nem azuis, mas sim da cor da água marinha iluminada pelo sol nascente, brilhantes, luminosos e profundos. Só Geoffrey, que a amava, sabia que todo o desejo do mundo estava naqueles olhos e que uma vez que se olhava neles era impossível olhar para outro lado.

Capitulo Dois Primeiro a cheirou, um aroma penetrante e úmido. Em seguida a viu escondida no alto de um muro de pedra oculta e entrelaçada com velhas trepadeiras. Permanecia imóvel, como hipnotizada ao vê-la, esperando-a ali no caminho. Estava se movendo, sua pele avermelhada e brilhante, e a mandíbula manchada pelo sangue de alguma presa. Tinha os olhos negros e luminosos e a olhava fixamente, teve a estranha sensação de que aqueles olhos lhe suplicavam que não a delatasse. Os cavalos e seus cavaleiros se espalharam pela floresta, esperando que os cães se metessem na mata e assustassem as raposas. Emma e sua égua se afastaram sozinhas, até o lugar onde um muro de pedra separava os bosques de bétulas dos campos de um cultivador de cebolas que se esforçava por arrancar um pobre meio de vida das salobres restingas. A raposa se arrastou lentamente, saindo das sombras, com a barriga roçando as ásperas pedras do muro. Logo se imobilizou de novo e Emma viu que ela e a raposa não estavam tão sozinhas, depois de tudo. O irlandês e seu cavalo estavam entre os finos troncos de bétulas. Pensou que ele também devia ter visto a raposa e esperou que cumprisse com seu dever como caçador, que se erguesse sobre os estribos e lançasse o grito de avistamento. Mas não fez nada, como se tentasse dar à raposa a oportunidade de fugir. Emma e o irlandês ficaram olhando-se e a raposa olhava aos dois e era como se uma meada de algo brilhante e elétrico, como um relâmpago, tivesse se

enrolado em torno deles, segurando-os apertadamente. A raposa se moveu primeiro. Deu meia volta e saiu disparado pelo alto do muro, com a cauda longa e bonita flutuando atrás. Mas a cada passo que dava, as marcas de suas patas deixavam um rastro que a matilha seguiria. Emma e aquele homem seguiram presos um nos olhos do outro muito depois de que a raposa desaparecesse. Uma eternidade, ou possivelmente só um momento depois, os cães começaram a uivar, dizendo que tinham encontrado o rastro. Ouviu seu primo Aloysius lançando ao ar um agudo «Aí vai!», seguido de três vibrantes chamadas do corno de caça. Os sabujos corriam. Emma saltou por cima do muro, sem pensar, subindo, voando e aterrissando limpamente. Galopou através de um campo cheio de moitas, nem tanto perseguindo a raposa como simplesmente cavalgando, cavalgando. O vento lhe zumbia nos ouvidos. O forte lombo da égua se encolhia e alargava, encolhia-se e alargava, entre suas pernas. O céu, a terra e as árvores se deslizavam apressados pelo tempo e o espaço para alcançá-la. Ouviu um grito e o som de uns cascos que se aproximavam por trás. Era ele, estava segura, e esporeou a égua para que fosse mais rápida mais rápida. Agora fugia dele, não perseguia nada, e sua excitação se aprofundou, cheia de medo. Voaram por cima de uma cerca alta que dava a um prado salobre do outro lado. Ouviu uma exclamação de surpresa e, com o canto do olho, viu cair um cavalo. Era um baio puro-sangue, não um pangaré castanho. Quem tinha ido atrás dela todo o momento era o baio. Olhou para trás e viu como Stu Alcott se detinha para ajudar ao cavaleiro caído. Ela também freou seu próprio cavalo até pô-lo ao trote, chapinhando, levantando respingos de água, e em seguida ao passo. O ventre da égua se inchava contra as pernas de Emma como se fosse um fole e de seus narizes saíam brancos fios de fôlego. O ar deixou de zumbir e o mundo se acalmou.

Estavam em uma clareira cheia de ásteres que rodeava uma lagoa de água salgada. Junto à lagoa havia um moinho abandonado. Com os anos, as pás do moinho tinham escavado um profundo sulco nos pântanos açoitados pelo vento, que cheirava a turfa úmida. Perto do moinho havia um velho cemitério. Um pinheiro solitário se erguia através do derrubado telhado de uma cripta. Não havia nenhuma casa. Somente as ervas altas, o terreno pantanoso e os fantasmas dos índios. As nuvens se abriram e os raios do sol atravessavam através dos buracos no céu. Emma jogou a cabeça para trás e sentiu o calor do sol enchendo-a. Até aquele momento, parecia que a terra estava pressa no inverno para sempre, mas agora se notava o primeiro sopro da primavera. Para Emma a primavera sempre trazia consigo uma leve desilusão, como se esperasse que sua vida mudasse igual às estações, mas nada acontecia. Ouviu o estalo de um galho e se sobressaltou, dando meia volta bruscamente. Um cavalo entrou trotando na clareira, um baio cujo cavaleiro estava cheio de barro. Esperou que chegasse até ela, sentindo-se tímida, mas estranhamente cheia de energia. Quando ele esteve perto o suficiente, tirou um lenço de linho branco do bolso da sela e inclinou-se para limpar o barro da cara, atrevendo-se á gracejar um pouco. —Tinha ouvido falar de afundar o coração no barro —disse—, mas não a cabeça. Geoffrey Alcott riu, encolhendo os ombros. —Cavalga como se não existisse o amanhã, Emma. Um dia destes partirá o pescoço. Ou eu partirei o meu, tentando te alcançar. Ela se afastou, baixando o olhar para o lenço que agora apertava dentro do punho. Talvez o houvesse dito rindo, mas não tinha ignorado o leve tom de censura que havia em sua voz. Não era apropriado, sabia essa sua maneira de cavalgar.

Ouviu os confusos latidos dos cães, lá das profundezas da floresta. Soou o corno, dois toques longos, que significavam que, no momento, os cães tinham perdido o rastro, e se alegrou, porque esta vez queria que a raposa escapasse. —Emma... Ela continuou olhando as mãos, mas fez com que sua voz soasse calma e com um toque de paquera. Embora isso nunca lhe tinha saído muito bem. —Ai, céus, agora vais repreender-me por fazê-lo de parvo, saltando, sem necessidade, por cima dos muros, em vez de seguir os cães. —Te case comigo, Emma. Acreditou que o coração lhe tinha parado. E quando voltou a pulsar, fez-o dando sacudidas trêmulas. Levava meses esperando aquele momento e agora que tinha chegado, não sabia o que fazer. Arriscou-se a olhá-lo. Seus olhos eram cinza claro, como poças de gelo, seu cabelo castanho claro, como o chá macerado ao sol. Todos os que o conheciam o consideravam um homem bonito. Conhecia-o de toda a vida e não tinha nem ideia se o amava ou não. —Não tinha intenção de fazê-lo desta maneira —disse ele. —Quer retirá-lo? —Não! —disse com um sorriso triste. Quando sorria, não resultava tão atraente, porque tinha uns dentes longos e ligeiramente salientes. Entretanto, esse sorriso era o que Emma mais gostava dele. Tinha um toque docemente enigmático que a fazia sentir calor em seu interior, como se compartilhassem algo precioso. —Estou disposto a gritar dos telhados se tiver que fazê-lo —disse ele—, embora preferiria não ter a todo mundo escutando, no caso de me rechaçar. Mas a verdade é que não esperava que o rechaçasse. Podia vê-lo pela maneira como a olhava, com uma atitude possessiva, um ar espectador e algo mais. Algo selvagem e poderoso, parecido à fome, que a assustava e a excitava

ao mesmo tempo. Perguntou-se se lhe diria que a amava. Provavelmente, o momento em que ele podia dizer essas palavras, pela primeira vez, formava parte das regras que governavam suas vidas com tanta precisão. Possivelmente na noite de núpcias lhe permitisse proclamar sua devoção. Assim o esperava, porque lhe parecia que, com frequência, no mundo em que vivia, depois de um ou dois anos de matrimônio, ficava muito pouca devoção que proclamar. —Emma —disse ele, agora com impaciência. Já não podia seguir olhando-o, mas notava o intenso olhar dele em sua boca, como se, com sua vontade, pudesse fazer surgir às palavras desejadas. Geoffrey Alcott era bem conhecido por conseguir o que queria e, aparentemente, queria a ela. —Suponho que o apropriado teria sido pedir primeiro permissão a seu pai, mas dado que não está aqui... E como nos conhecemos de toda a vida e você já tem vinte e dois anos, e estamos no ano 1890, depois de tudo, e você é uma mulher moderna, pensei... Emma baixou a cabeça, para esconder seu sorriso. Geoffrey Alcott estava se confundindo, de verdade. Realmente pensava que ela era uma mulher moderna? E tinha vinte e dois anos, uma autêntica solteirona. Sua mãe estremeceria se o ouvisse expressar esses sentimentos em voz alta. —Emma, estou me torturando, esperando sua resposta — disse, mas em seguida pôs-se a rir para que ela soubesse que ele falava brincando. Geoffrey nunca se permitia atormentar-se por nada. Entretanto, quando ele estendeu o braço e lhe acariciou os lábios com a ponta do polegar, ela ficou sem respiração, de repente, igual lhe acontecia quando saltava por cima dos muros. Possivelmente o amasse, depois de tudo. —Sim —disse, surpreendida por como soava sua voz, uma coisa tão extraordinária— casarei-me contigo, Geoffrey Alcott. Levantou o rosto, olhando-o por fim e sorriu, sentindo-se feliz e

envergonhada. Pensou que possivelmente a beijasse e esperou o beijo, ainda sem ter recuperado o fôlego, de forma que se surpreendeu quando lhe pegou a mão. Lentamente, um por um, desabotoou-lhe os três pequenos botões de azeviche de sua luva de montar. Em seguida levou a mão aos lábios e a beijou na parte inferior do pulso, onde as veias azuis pulsavam com força e rapidez sob a pele.

A raposa tinha subido em um tronco, atingido por um raio, de um cedro abatido. Ficava afastado do chão e justo fora do alcance dos cães, mas estava apanhada. Os cães chegaram e começaram a saltar para ela, dando mordidas no ar. Aquele dia não lhes tinham dado de comer e sua fome acrescentava um fio selvagem a seus latidos. —Deixe aos cães! —uivou Aloysius Carter a seu funcionário do canil—. Disse que a deixe aos cães, maldita seja sua suja pele irlandesa! Mas Emma viu que o irlandês não escutava. Estalando o látego por cima da cabeça, tinha metido o cavalo no meio da matilha e tratava de obrigar os cães a retrocederem, afastando-os da árvore caída. Os cães, embora estivessem muito excitados e famintos, obedeceram, até o momento em que as garras da raposa escorregaram na madeira úmida do tronco podre. Durante um instante ficou suspensa no ar e em seguida caiu em meio de vinte mandíbulas que grunhiam e rasgavam. A raposa soltou um único grande grito quando os primeiros dentes se aferraram a seu pescoço. Durante um segundo, o único que se pôde ver dela foi à branca ponta da cauda, agitando-se no ar, e em seguida desapareceu debaixo dos cães. Soou o corno, uma só nota, longa e melancólica, apregoando a morte. Emma tinha afastado o olhar assim que a raposa caiu, mas seguia ouvindo seu primo Aloysius gritando aos cães: —Isso, meninos! Matem!

Geoffrey e ela permaneciam sentados, um ao lado do outro, em seus cavalos inquietos. Ele olhava como morria a raposa, mas por sua cara, não podia saber o que sentia a respeito. —Geoffrey, às vezes, não quereria que a raposa escapasse? Olhou-a como se lhe tivesse falado em chinês. —O que? —A raposa. Eu queria que escapasse. Um olhar terno lhe iluminou a cara. Inclinou-se e lhe deu uns tapinhas na manga bufante de seu traje de montar. —Meu pobre docinho — disse—. Que coraçãozinho tão terno o teu! Os olhos de Emma doeram como se estivesse a ponto de começar a chorar. Afastou o braço do contato com ele e fez o cavalo retroceder, afastandoo de Geoffrey, embora não sabia por que. Ele não era nem mais nem menos responsável pela morte da raposa que ela. Geoffrey viu seu irmão e o chamou. —Stu, a senhorita Tremayne acaba de me fazer à honra de aceitar converter-se em minha esposa. Stu soltou uma risada aguda. —Em uma caçada á raposa? Céu Santo, Geoff, que maravilhosa espontaneidade! Não te acreditava capaz. Emma cuidou para não voltar a olhar para aquele homem, mas ele a estava observando. Notava-o, assim como podia sentir seu próprio pulso pulsando com força na base do pescoço. —Quem é esse homem? —perguntou de repente. —Quem? —Geoffrey se virou na sela - O funcionário do canil? — disse, como se lhe surpreendesse que ela tivesse notado a presença de um servente. Geralmente eram invisíveis, nem sequer tinham um nome. Geoffrey o olhou fixamente, para que o homem baixasse o olhar, mas ele seguiu com os olhos fixos... Nela.

—Pelo que parece — disse Geoffrey, com uma careta de desprezo—, é um cavalariço que parece estar usando este dia para ocupar um lugar que não lhe corresponde. Já lhe direi um par de coisas; não tem direito a te olhar. Emma pensou que era uma coisa muito absurda de dizer, porque o homem tinha direito de olhar aonde quisesse. Além disso, era ela que o tinha estado olhando. No entanto, não disse nada porque esperava que Geoffrey falasse com ele. Queria que aquele homem... Não estava segura do que queria. Que não estivesse ali, para que ela não pudesse olhá-lo, supunha. Stuart Alcott se aproximou até ela. De uma mão elegantemente enluvada pendurava a cauda da raposa; um arbusto de pele-vermelha, ensanguentada e endurecida. Já não era nada bonita. —A mais bela do dia merece a cauda, não acha? —anunciou em voz bastante alta para que todo mundo o ouvisse e havia uma certa maldade em seu sorriso. Havia algo mais que ameaça no sorriso com que Geoffrey respondeu. — Merece o mundo. —E em vez dele, o que consegue é você —disse Stu. Mas Geoffrey se limitou a sorrir e agarrar a cauda da mão estendida de seu irmão. —Geoffrey, não a quero —disse ela. Mas seu prometido já estava enrolando a cauda em sua sela.

Uma mulher estava esperando-os junto à grade da Fazenda Hope. Levava um menino morto nos braços. Por mais de um século, uma gigantesca mandíbula de baleia montava guarda junto ao portão, colocada ali por um Tremayne de épocas passadas, que tinha sido capitão de navio. Com o tempo, a mandíbula tinha adquirido a cor cinza da madeira que o mar traz á praia e a mulher parecia erguer-se diante dela como um arbusto em chamas. Uma massa de cabelos longos de um vermelho

aceso lhe escurecia o rosto. Estava envolta em um casaco de cor abóbora que parecia acabado de sair do lixo, puído e desfiado nas bordas e muito grande para ela. A mulher era pequena e frágil e cambaleava sob o peso que levava nos braços. Não havia dúvida de que o menino estava morto porque estava destroçado. O braço tinha sido arrancado, com tanta violência que se via a omoplata, branca entre a carne sangrenta e, onde antes tinha estado o cabelo, agora havia uma brecha aberta e sangrando. O olhar escuro e atormentado da mulher foi de um dos irmãos Alcott ao outro. —Qual dos dois é o valente e elegante cavalheiro dono da fábrica da Rua Thames? —Por todo o fogo do inferno, não me olhe —disse Stu, arrastando a voz, no silêncio que seguiu às palavras da mulher. Assinalou com o polegar a seu irmão—. Eu só gasto o dinheiro. Ele é quem o faz. Alguns dos homens riram, mas suas risadas se cortaram bruscamente quando a mulher deu um único passo cambaleante para eles. —Assassinos! —gritou—. São todos uns assassinos! —Seu olhar indômito voltou bruscamente para Geoffrey Alcott—. Mas é a você especialmente a quem vim ver. Geoffrey ficou um pouco pálido, mas em seguida inclinou a cabeça, como se respondesse a uma apresentação em um salão. —A seu serviço, senhora. A mulher tentou levantar o corpo do menino para Geoffrey, como se o oferecesse como um presente. Por um momento, pareceu que ia cair para trás sob seu peso. As lágrimas brotavam como correntes de seus olhos escuros, mas agora suas palavras eram suaves e melodiosas, como se estivesse cantando uma canção de ninar.

—Caiu em uma de suas fiações circulares. Escorregou e saiu voando, caiu direto na fiação, enquanto corria com as bobinas, como o bom menino que era. Pensei que gostaria de ver o que essa enorme máquina negra e monstruosa fez antes que pudéssemos enterrá-lo. Emma não podia olhar para o menino morto, mas tampouco podia afastar o olhar. Os olhos ficaram fixos em um pé nu, magro, que estava negro de sujeira e graxa. —Ficou com o braço preso no fiandeiro. E lhe arrancou seus bonitos cachos loiros da cabeça. Arrancou-lhe os cabelos, como um desses índios de pele-vermelha. Geoffrey pigarreou. —Lamento profundamente sua perda, senhora —disse e Emma observou que sua voz tinha adotado aquele tom tranquilizador que, frequentemente, usava com ela—, mas tenho que lhe recordar que quando enviou o menino para trabalhar no moinho pôs sua marca em um documento aceitando não apresentar nenhuma reclamação por qualquer dano ou ferida que pudessem resultar de sua própria inexperiência e falta de cuidado. Um soluço esmigalhado saiu da garganta da mulher. —Vá, descuido, diz. E foi a falta de cuidado o que fez com que seus pés escorregassem no chão gordurento que, sem dúvida, não viu uma vassoura nem um pano de chão em todos os anos que essa fábrica é sua? Foi falta de cuidado por sua parte conduzir suas bobinas acima e abaixo horas e horas seguidas sem nenhum descanso nem esperanças de tê-lo, até que suas pobres pernas estivessem tão cansadas que já não o sustentassem? Talvez foi falta de cuidado por sua parte trabalhar como um escravo toda sua vida, pobrezinho, por uma miséria e depois morrer para que vocês, a rica “Gente Importante”, sejam mais ricos ainda. Com grande horror por parte de Emma, o olhar da mulher se deslocou agora a ela.

—A mhuire, olhem a sua bela dama sentada aí, em seu lindo cavalo, vestida com esse fino traje tecido com a dor das mortes de uns pobres garotinhos e não lhe importa o mínimo. Os olhos da mulher, toda sua cara, sangravam de dor. A cabeça de Emma se inclinou ante seu raivoso olhar. Baixou a vista e viu o sangue que gotejava da ensanguentada cauda da raposa e caía em cima da brilhante ponta de sua bota de montar. O resto dos caçadores se reuniu em um apertado grupo junto ao portão e a mandíbula da baleia, incapazes de ignorar a presença da mulher e entrar no pátio, mas inseguros de como fazer frente a essa espécie de incômodo que, de repente, tinha caído sobre eles, lhes estragando o dia. Ninguém falava nem se movia. Era como se estivessem todos ali, simplesmente esperando que a mulher se fosse e levasse com ela aquela coisa tão desagradável que sustentava nos braços. Sua indiferença silenciosa não derrotou a mulher; parecia que se alimentava dela. Ergueu a cabeça com orgulho. Seus olhos brilhavam com as lágrimas e um fogo interno. —Chamava-se Padraic — disse —, se por acaso algum de vocês se importa em sabê-lo. Lentamente, virou-se e se afastou. Cambaleava sob o peso que levava e uma vez tropeçou, embora não chegou a cair. —Que falta de modos — disse Aloysius Carter, quando ela desapareceu em uma curva do caminho. Sua enorme massa vacilou ligeiramente em cima da sela quando se inclinou para voltar a colocar o corno de bronze, com cuidado, dentro de sua capa de couro—. Trazer um menino morto à caçada. Stuart Alcott soltou uma gargalhada selvagem. —Tem toda a razão; os corpos mortos, de um em um, por favor. —Por todos os Santos, Stu —disse seu irmão. Emma fez a égua entrar ao interior do pátio. Tirou de um puxão o pé do

estribo e saltou ao chão sem sequer esperar, como era apropriado, que um braço de homem a ajudasse. Tinha muito frio. Tinha que entrar na casa e aproximar-se do fogo para esquentar-se. Não acreditava que pudesse voltar a sentir calor nunca mais. Só toda uma vida de rigoroso treinamento lhe impedia de pôr-se a correr através do pátio. Entretanto, caminhava com tanta rapidez que tinha que recolher a saia do traje por cima dos tornozelos. —Senhorita Tremayne. Seu nome, pronunciado pela voz áspera e rouca daquele homem, sobressaltou-a de tal maneira que quase tropeçou com seus próprios pés ao voltar-se para olhá-lo. Soltou um grito afogado ao ver o que tinha na mão, o que lhe estendia como se fosse um presente, igual à mulher tinha estendido o menino morto para Geoffrey. A cara do homem, enquanto a olhava, estava desprovida de expressão. Só seus olhos eram do mesmo verde assombroso que tinha observado a primeira vez. Estava acostumada a ver a admiração nos olhos dos homens, mas o que via nos daquele homem nunca o tinha visto antes. Agora tinha tanto frio que estava tremendo e tinha que apertar com força os dentes para evitar que tocassem castanholas. —É que se esqueceu do troféu, é isso — disse. O sorriso em seus lábios era mordaz, não era um sorriso —. E olhe que depois de todos os incômodos que enfrentou para consegui-lo. Emma disse que não com a cabeça e lhe escapou um gemido de entre os lábios. Antes já queria que Geoffrey agarrasse aquela coisa horrível ou a atirasse longe, mas não o havia dito por quê... Porque no mundo no qual ela vivia, rechaçar a honra da cauda da raposa era algo que não era apropriado, simplesmente, não se fazia. Entretanto, por covarde que tivesse sido ao não rechaçar antes, seria ainda mais covarde se não a aceitava agora.

Agarrou a cauda da mão estendida do homem, com cuidado de não deixar que seus dedos estivessem perto de tocar os dele e se obrigou a virar-se e cruzar lentamente o pátio até a casa, como se não lhe importasse. Quando esteve dentro, deixou a esmagada cauda da raposa com extremo cuidado em cima do suporte de mármore do armário do vestíbulo. Agarrou o lenço e tentou limpar o sangue de sua luva de montar, de pelica de cor crua, costurada à mão, que tinha vindo até ali diretamente da Maison Worth, de Paris. Mas embora esfregasse e esfregasse, as brilhantes manchas vermelhas se negavam a desaparecer. Aquela noite, quando foi guardar as luvas em sua caixa forrada de cetim, perguntou-se como era possível que tivesse nas mãos o sangue do pequeno irlandês das bobinas, quando não se aproximou dele para nada.

Capitulo Três Bethel Lane Tremayne apertou os lábios até deixá-los tão finos como uma casa de botão. Apressou-se pelo atalho que levava a antiga estufa e com cada golpe de seus saltos contra o cascalho seu aborrecimento aumentava. Que estorvo tinha como filha. Que... Que..., não lhe ocorria nenhuma palavra forte o bastante para descrever a cruz que tinha que suportar e que era sua filha Emma. Não gostava de sair para ir à estufa. Quando construíram o novo jardim de inverno, mais perto da casa, tinham deixado que o velho caísse em desuso. Emma tinha ficado e Bethel não gostava de pensar no que sua filha fazia ali, com seus cinzéis, marretas e pedras de arenito. O que fazia era impróprio. Era uma autêntica vergonha, mas não havia maneira de impedir-lhe. E não é que Bethel não tivesse tentado. Tinha trancado sua filha no porão com os ratos e as aranhas; em uma ocasião inclusive a tinha amarrado à cama para poder açoitá-la com uma bengala. Mas nenhum desses castigos tinha servido de nada. Em muitos sentidos, Emma sempre tinha sido tão manejável e obediente como uma filha devia ser, mas em outras coisas era uma Tremayne até a medula. Havia algo selvagem nela, algo indomável que assustava Bethel. Teve que deter-se porque, de repente, ficou sem fôlego, com umas fortes pontadas no peito. As baleias do espartilho lhe cravavam profundamente nas costelas. Faltava-lhe ar nos pulmões. Tudo era culpa de Emma, que ela tivesse que correr dessa maneira, quando teria que estar conservando forças para os dias difíceis, semanas e meses que viriam.

Primeiro teria que lidar com as visitas do prometido e logo o baile de compromisso; um acontecimento que pareceria uma ninharia se comparado com a glória e fúria do próprio casamento. Cada momento desses dias estaria repleto de uma série de impropriedades e desastres sociais, que teriam que capear-se com o máximo cuidado e atenção. «E tudo cairá sobre meus ombros», pensou Bethel. Porque ela, sozinha, era agora a guardiã do nome, da reputação e das tradições dos Tremayne. No momento em que chegou à empenada porta de madeira da estufa, tinha conseguido ficar em tal estado de nervos que puxou a maçaneta com tanta força que quebrou uma unha, deixando-a em carne viva. Soltou um grito afogado pela dor e logo outro quando a ponta de uma das baleias lhe cravou no ventre. Em seguida afogou outro grito como fazia sempre que via o interior da antiga estufa. Já não era um depósito de laranjeiras e orquídeas. Em realidade, agora, seu principal ocupante parecia ser um enorme guindaste com roldanas e guinchos que Bethel tinha a vaga ideia de que se usava para mover os pesados blocos de pedra e mármore que enchiam um canto da estadia. Em vez do suave perfume de flores exóticas, aquele lugar cheirava a argila úmida, pó de pedra e metal soldado. Antes, ali dentro, o ar era quente e úmido, mas não hoje, porque era um dia cinza e muitos dos cristais das paredes estavam rachados ou quebrados. E ali, envolta na pálida luz que entrava pelas janelas quebradas, estava sua filha Emma. A jovem se protegia do frio, vestindo um velho pulôver cinza e uma bata de pintor manchada. Olhava com ar absorto uma base de quatro pernas com um tabuleiro superior giratório. Em meio deste havia um montão de argila amarela, pressa por uma estrutura de ferro oxidado. «Não podia dedicar-se a pintar aquarelas, como as outras garotas»,

pensou Bethel. Ah, não. Em um mundo onde se supõe que as filhas têm que passar despercebidas, sua Emma imaginava-se uma escultora. —Emma! —disse, com voz alta e aguda. Mas poderia ter falado com um dos blocos de pedra. Toda a atenção da jovem estava centrada no montão de barro úmido, meio moldado em uma forma que a Bethel parecia vagamente humana. Exceto que não tinha cabeça. Bethel tentava imaginar exatamente o que se supunha que era aquela coisa, quando sua filha agarrou uma espátula de uma mesa lotada de trapos manchados e a passou pelo barro... Bethel se deu conta de repente de que era uma perna. A perna de um homem nu. Bethel soltou um chiado quando uma dor aguda lhe atravessou o peito. Umas luzes piscantes dançavam como vaga-lumes diante de seus olhos e, de repente, o chão começou a afundar-se e mover-se sob seus pés. A luz que entrava pelas janelas se apagava, apagava-se, apagava-se, até chegar a total escuridão.

Abriu os olhos, com Emma lhe colocando um pano úmido na testa. Sua filha estava ajoelhada ao lado dela e ela estava deitada em cima de algo... Uma lona suja e velha com listras verdes que estava ficando sem cor. Bethel tentou sentar-se, mas o mundo dava voltas como se estivesse louco. —O que...? —Desmaiaste mamãe. Fez Jewell apertar muito o espartilho outra vez. —Não é verdade. Bethel separou de um tapa as mãos de sua filha, umas mãos, observou manchadas de barro amarelo. Seu olhar voltou para o homem nu e sem cabeça. Mesmo pela metade e decapitado, não havia nenhuma dúvida do que era aquilo. Tão descaradamente... Masculino. Bethel fechou os olhos para apagar aquela visão indecente. Queria pedir a

Emma que o tampasse, mas não queria nem reconhecer sua existência em voz alta. —Vou afrouxar os cordões — ouviu Emma dizer—. Sopra mais que uma baleia encalhada na praia. Bethel afastou as mãos de sua filha mais uma vez. —Não vais fazer nada disso, porque não estão absolutamente apertados. Pelo menos, não estão mais apertados do que teriam que estar. E não sopro. Que coisa tão desagradável de se dizer a sua mamãe. Bethel notou como se intensificava o acento da Geórgia em sua voz, engrossando como se fosse creme muito grosso. Sempre piorava quando se agitava. E tinha a desagradável sensação de que estava montando uma cena. Não havia nada mais inadequado que uma cena. Respirou profundamente para acalmar-se e as baleias lhe cravaram de novo nas costelas. Pôs uma cara vulnerável e doída. —É que não tem nem ideia da tortura que sofro para aparecer ante o mundo como devo. Você sempre foste tão magra como as galinhas de um pobre. Note, sem meu espartilho, pareceria que acabei de engolir uma melancia, e seu pai não podia suportar as mulheres gordas. Não sabe quantas vezes lhe ouvi dizer essas mesmas palavras e me esforçava tanto por não engordar. Mas logo, chegaram vocês, meus filhos e... Sua filha se inclinou para trás, sentando-se nos calcanhares e a olhava com aqueles olhos inquisitivos. —Equivoca-te no que sugere mamãe, e, além disso, acredito que sabe. Papai não nos deixou porque teve filhos e sua barriga aumentou um pouco. Bethel jogou a mão para trás e esbofeteou a sua filha com tanta força que a cabeça da jovem se balançou sobre seu longo e esbelto pescoço. Mas foi Bethel que começou a chorar. —Por que me obrigaste a te fazer isso? —exclamou, porque não havia

nada pior que uma exibição de mau gênio—. Asseguro-te que há vezes em que me resulta odiosa. Todos os meus filhos me resultaram sempre odiosos. Emma levou uma mão trêmula ao rosto. —Mamãe, por favor, por favor, pare de mentir. Não minta para nós. Foi o que aconteceu a Willie o que empurrou papai a partir, o que nós... Fizemos. Bethel cobriu os ouvidos com as mãos. —Cale-se, cale-se! Não posso suportar falar daquela noite. Sabe que não posso. Olhe, só de ouvir seu nome é como se me cravassem uma adaga no coração. E nós não fizemos nada. Nada! Foi Willie, foi ele. Cobriu-se de vergonha e cobriu de vergonha à família. —Agarrou a sua filha pelos braços e a sacudiu com força—. E não me olhe assim, não te atreva a fazê-lo. Você acha que não choro por ele, mas sim o faço. Choro até adormecer todas as noites, só pensando em meu pobre filho e no que perdi. Emma tinha a cara branca, salvo pelo rastro avermelhado que havia em sua bochecha. —Eu também penso nele — disse em um tenso sussurro—. No que lhe fizemos aquela noite, em como o traímos e não posso suportá-lo. Se não fosse necessária mais coragem para morrer que para seguir vivendo, às vezes penso que... Aquela ameaça interrompida ficou suspensa, pulsando no ar, entre as duas. Carregada de acusação e recriminação e de um escuro segredo que só as duas compartilhavam. Bethel pensou que devia ser a tensão da iminente cerimônia o que trazia as lembranças daquela terrível noite, à tona, porque raramente falavam daquilo, não tinham falado sobre isso há anos. E este era o resultado. Isto era o que acontecia quando se mencionavam coisas que era melhor que ficassem envoltas no silêncio. —Não voltaremos a falar disto, nunca mais — disse Bethel. Emma a olhou fixamente com aqueles olhos impossíveis, insondáveis. —Não mamãe.

Assim era como se faziam as coisas em seu mundo e saber disso consolou Bethel. Assim era como deviam se fazer as coisas. Não prestar atenção ao desagradável, voltar à cara para o outro lado. Era melhor assim; seguir adiante como se nada de tudo aquilo tivesse acontecido. —Nunca voltaremos a falar disso — insistiu. —Não mamãe. Bethel fez um espetáculo ao olhar o relógio que levava preso à cintura. —Santo céu, mas olhe que horas são. Hoje recebemos e aqui está você com um aspecto que parece que foi criada na floresta como um javali. Não pode ser Emma. Vá pôr o traje de veludo bege. Emma ficou em pé. Bethel viu como o peito da jovem se elevava com um suspiro entrecortado, embora sem fazer ruído algum. —Sim, mamãe — disse, mas em vez de obedecer foi até uma enorme pilha de pedra e começou a acionar a bomba. —Neste mesmo instante, Emma. A alça da bomba chiou e a água caiu na pilha. —Sim, mamãe. Só deixa que envolva meu modelo com um pano úmido, se não se secará. Contra sua vontade, o olhar de Bethel se deslizou para o modelo de barro. Um homem nu... Estremeceu. Não toleraria aquela conduta. Era imprópria. De noite, quando sua filha se deitasse, voltaria, agarraria uma das marretas e faria pedaços daquela vergonha, tantos pedaços que nunca poderiam voltar a unir-se. Tinha crescido onde o suor se cortava na pele, em um lugar onde fazia tanto calor que o sol sangrava o céu até deixá-lo da cor dos ossos. Um lugar de pó vermelho e algodão amarelo e uma cabana de dois cômodos com uma varanda caindo aos pedaços. Quando chegou a guerra, a primeira coisa que se levou foi todos os homens e em seguida a mula que usavam para puxar o arado. Foi então quando a

mãe de Bethel lhe pôs a parte de trás de uma panela de estanho de fazer bolos diante do rosto e lhe disse: —É mais bonita que uma manhã de julho; é a garota mais bonita de toda Sparta. Pode chegar longe Bethel Lane. Pode chegar até a lua, se lhe propuser isso de verdade. Mazie vendeu o arado e uma das primeiras coisas que comprou com o dinheiro foi O manual de etiqueta prática de Beadle. Tal como Mazie o via, a guerra ia mudar as coisas, a abrir de repente as oportunidades. Inclusive para a filha de um produtor de algodão pobre como um rato, que vivia em uma cabana deteriorada pelo tempo, ao final de um caminho poeirento, no coração da Georgia. Em especial, se essa menina fosse dona de um rosto e um corpo que podiam fazer com que as ideias de um homem se afundassem até a fome que tinha entre as pernas. Mazie pôs mãos à obra para ensinar a sua filha todo o conhecimento que se podia encontrar no livro de Beadle. Bethel aprendeu a dizer: «Pode te calar, por favor?», em vez de «Cale a boca». Aprendeu a dobrar o dedo mindinho quando bebia uma xícara de chá, embora sempre se queixasse de que lhe dava cãibras. Aprendeu a manter os joelhos juntos em todo momento, inclusive quando estava sentada no buraco da privada, e a não arrotar quando engolia ar. No momento em que chegou à última página do livro de Beadle, a guerra tinha terminado e fazia tempo que Sparta tinha abandonado a gloriosa causa da independência sulina. E um ianque chamado Jonathan Alcott tinha chegado à cidade. Dizia-se que tinha toda uma frota de fábricas em algum lugar do norte e que tinha vindo para fomentar as plantações de algodão naquelas terras devastadas pela guerra. Para apresentar-se e para apresentar seus grandiosos planos, decidiu dar um baile e toda Sparta foi convidada à festa. As Lane elaboraram planos para o acontecimento, igual se tratasse de uma campanha militar. Mazie pegou o que restava do dinheiro do arado e foi a

uma loja de segunda mão, onde comprou um vestido de noiva de brocado branco que converteu em um traje de baile. Tirou umas plumas de marabú de um velho chapéu e as usou para enfeitar o decote, enquanto Bethel passava horas praticando reverências e dançando valsa com uma vassoura. A noite do baile, Mazie prendeu duas gardênias brancas perfeitas no cabelo de sua filha. —Ai senhor! Minha filha é tão bonita que faz com que me doa o coração — disse, e as lágrimas suavizaram seus olhos cansados e descoloridos, fazendo com que, por um momento, também parecesse jovem e bonita—. Vais ter a todos os homens a seus pés, já verá como tenho razão. Só recorde o que te disse sobre conservar os calções abotoados e os joelhos juntos até que tenha um anel no dedo. O baile se celebrou no velho grande hotel de Sparta e Bethel flutuou até ali dentro de uma nuvem de orgulho e prazer. Era tal como ela o tinha sonhado. Grandes lustres de cristal que brilhavam com o calor e a luz de cem sóis. Um quarteto de corda que tocava uma música melodiosa, tão doce como o canto de uma cotovia. Mesas com toalhas de rendas que rangiam sob o peso de tanta comida que Bethel se enjoou só olhando-a. Ah, sim, o baile era tudo o que tinha sonhado... Até que ouviu os murmúrios: —Pode acreditar na desfaçatez de Bethel Lane, apresentando-se aqui com esse vestido reformado? E essas plumas! Mas, olhe, parecem que foram arrancadas da parte traseira de um pato do pântano. —Isso acontece quando se convida qualquer um a sua festa. Mas, claro, ele é ianque, assim não pode esperar-se que tenha bom senso. —Se deixar que um lixo como Bethel Lane entre valseando pela porta, não me surpreenderia que convidasse também às pessoas de cor. —Por favor, inclusive um ianque tem mais bom senso. Bethel se sentou sozinha em uma cadeira junto à parede, sorrindo,

sorrindo e sorrindo até que as lágrimas que tragava sem parar foram crescendo como um tumor em sua garganta e os olhos brilharam enfebrecidos de angústia. E então o viu. Melhor dizendo, ele a viu. Era um amigo de infância de Jonathan Alcott e o acompanhava em sua viagem a Georgia como diversão, ou isso dizia. Mais tarde, Bethel compreendeu que a piedade e um coração terno lhe tinham feito cruzar o salão para inclinar-se sobre sua mão. Naquele momento, pensou que foi seus olhos da cor do céu azul e seus cachos loiros como o sol e aquele bonito rosto que tinha visto refletido na panela de estanho. Riu, redobrou seus encantos e dizia «Que exagerado» cada vez que ele a elogiava. Ao final de sua primeira dança, tinha descoberto que seu sangue da Nova Inglaterra era mais azul que a tinta e que tinha contas bancárias e carteiras cheias até arrebentar de bons e verdes dólares ianques. Teria se apaixonado por ele de todos os modos, inclusive sem suas relações sociais e todo aquele precioso dinheiro. Porque era alto, esbelto e tinha a pele dourada, bronzeada pelo sol e tinha um volumoso cabelo negro como a asa de um corvo. E quando a tocava, era igual ao ar no meio do mortal calor do verão, justo antes que se iniciasse uma tormenta. Crepitante e pesado, carregado ao mesmo tempo de promessas e perigos. Mas Mazie Lane tinha ensinado bem a sua filha. Não cabia nenhuma dúvida de que Bethel ia manter seus calções bem fechados e seus joelhos juntos até que tivesse um anel no dedo. Ele só tinha intenção de permanecer três dias em Sparta; ao fim de duas semanas o tinha tão desesperado por ela que se arrastava a seus pés. Entretanto, não lhe deu o que lhe suplicava, não até que fugiram a outro condado e despertaram um juiz para que a declarasse oficialmente à senhora William Tremayne. E assim foi como Bethel Lane, de Sparta, Georgia, foi viver em uma bonita mansão do norte, chamada As Bétulas, em Ponta Poppasquash, no estado

de Rhode Island. Assim foi como conseguiu formar parte de uma família conhecida como os «indômitos e perversos» Tremayne. Uma família que tinha feito a primeira de suas muitas fortunas com o tráfico de escravos, o rum e o pirateio e a que todos acreditavam amaldiçoada devido a isso. A tragédia, diziase, reclamava uma vítima dos Tremayne uma vez em cada geração, pelo menos. A Bethel, dentro de seu secreto coração confederado, divertiu-lhe descobrir que a orgulhosa e venerável família ianque de seu marido tinha construído os alicerces de sua enorme riqueza comercializando com carne negra; especialmente dado que os Lane nunca tinham sido donos de escravos, porque a maior parte dos anos eram muito pobres até para contar com um arado entre suas humildes posses, por não falar de uma mula para puxá-lo. Tampouco se alterou pelas histórias de uma velha maldição qualquer; ali de onde ela vinha, a má sorte era tão comum como as pulgas. E se a família foi, em outro tempo, arrojada e temerária e se, possivelmente, seu sangue seguisse manchado, tal como o via Bethel, os Tremayne já tinham dedicado uma boa quantidade de tempo e esforços em lavar-se e esfregar-se até ficar tão limpos como uns calções novos. Durante duzentos anos, tinham cultivado a respeitabilidade com tanta diligência e cuidado como cuidavam das flores da estufa que enchiam a casa ano após ano. Bethel se prometeu do momento em que se converteu em uma Tremayne, que nunca falharia à causa. Possivelmente os Lane nunca tivessem sido muita coisa, mas Bethel Lane Tremayne faria com que sua nova família se sentisse orgulhosa. Sem dúvida, não podia ter sonhado com um lugar como As Bétulas, com seus telhados, suas torres e suas galerias ao redor, com suas grades de ferro forjado e seus acres de bosques de bétulas e prados de veludo verde estendendose até a baía. Chegaram no elegante Coche novo de William, com todos aqueles dourados, veludo e couro, cruzando as enormes grades de ferro forjado e percorrendo um caminho tão branco e liso como a neve recém-caída. Mais tarde

se inteirou de que o caminho estava pavimentado com as conchas trituradas e calcadas de milhares de pequenos mariscos chamados quahogs, e tinha ficado sem palavras ante a absoluta maravilha de tudo aquilo. Sentia que ao ir ao norte, a aquele lugar, tinha ido, de verdade, até a parte oculta da lua. Para ela, aquele era um mundo de veleiros, lanches de mariscos fritos na praia e de gente com caras largas e uma maneira de falar, sem entonação, por seus longos narizes. Um mundo onde as velhas famílias ricas tinham a audácia de se chamar “Gente Importante” e logo punham mãos à obra para viver à altura desse nome. Um mundo definido e ordenado por uma enormidade de regras e tradições que não apareciam no livro de etiqueta de Beadle. Ali no norte, só William sabia que ela procedia de um barracão de dois cômodos, perdido no final de um caminho no meio do campo. Aquele mundo onde seu marido a havia trazido era um mundo de enfeites. Um mundo onde as aparências e a tradição eram tudo e o real nunca se mencionava nem se fazia; nem sequer se pensava nisso. Teve que esforçar-se tanto por encaixar-se e o fez com tal falta de piedade que esse empenho destruiu sua alma e, de noite, na silenciosa escuridão de sua cama, tremia de medo pensando que a descobririam, descobririam-na, descobririam-na... Um dia após o outro, um ano após o outro, foi eliminando as capas externas de si mesmo, como se, se esfregasse para eliminar de sua pele o pó vermelho da Georgia. Esfregou e esfregou até que quão único ficou de Bethel Lane foi seu acento sulino, doce como cana de açúcar, e o gosto pelo café preparado com chicória. Bethel aprendeu a ser um membro da “Gente Importante” observando como atuavam em suas vidas, tão cuidadosamente orquestradas. Aprendeu que qualquer desvio do que se esperava, apropriado, era castigado imediatamente. Viu o que aconteceu à filha do banqueiro, que pegaram beijando-se com o filho do peixeiro debaixo de um dos Piers da Rua Thames, em Quatro de Julho. Viu o que aconteceu com a jovem esposa que se apresentou na praia

privada do clube marítimo com um traje de banho que revelava muito de suas panturrilhas nuas. Viu o que aconteceu com a matrona que perdeu a compostura e brigou abertamente com a querida de seu marido no meio da Rua High uma chuvosa tarde de inverno. Bethel viu o que acontecia quando se desdenha as convenções e corteja o escândalo e gravou essas lições em seu coração. Aquele mundo de aparências era desumano com quem o desafiava. Uma vez que entrava nele, uma vez submetida a ele, não tinha mais remedeio que acatar suas regras. Ou ser condenado ao ostracismo para sempre. Entretanto, às vezes, Bethel despertava no meio da noite com o rosto úmido de lágrimas e uma dor surda, pesada, no peito. No silêncio daquelas negras horas, recordava os dias deslumbrantes, queimados pelo sol, quando chapinhava descalça em um riacho da cor do chá; recordava o aroma oleoso dos troncos dos algodoeiros gotejando sob o ar quente e um par de mãos amorosas lhe prendendo gardênias no cabelo. «Voltarei para te buscar, mamãe», tinha rabiscado em uma nota que deixou para Mazie à noite em que escapou com seu cavalheiro ianque. «Voltarei para te buscar, mamãe», prometeu-lhe. Mas nunca o fez.

Capitulo Quatro Bethel pensava que era estranho que seu coração estivesse tão cheio de lembranças de sua mãe esse dia. Ou possivelmente não tão estranho, tendo a cabeça tão cheia de planos para o casamento de sua própria filha. Casar-se era, considerando todas as coisas, o mais importante que aconteceria na vida de uma garota. Pelo menos Emma, com todas suas peculiaridades e aquela veia indômita dos Tremayne, tinha tido o bom senso de conseguir um partido esplêndido. Geoffrey Alcott... Bethel emitiu um suspiro de satisfação. Geoffrey Alcott, dos Alcott de Nova Iorque. A família vivia em Bristol há mais de cem anos, mas os conhecia como os Alcott de Nova Iorque porque os primeiros nasceram ali. As pessoas de Bristol sempre tinham tido uma boa memória e desconfiavam dos recém-chegados. Em qualquer caso, Geoffrey Alcott tinha um aspecto masculino, boas maneiras e era impecavelmente cortês com os mais velhos. Um autêntico cavalheiro, por sangue e nascimento. E fortuna, claro. Bom, talvez seu método de propor matrimônio deixasse um pouco a desejar: soltar a pergunta assim, no meio de uma caçada, nada menos. Bethel não aprovava esses atalhos nas convenções; punham-na nervosa, porque quem sabia que outras coisas, piores, podiam levar? Agora era sua responsabilidade garantir que o casamento compensasse a pequena infração da etiqueta e tradição cometida pelo noivo.

—Será o casamento do século — prometeu Bethel, e suas palavras ecoaram como uma ordem gritada no amplo vestíbulo de mármore branco e negro de As Bétulas. Tinha deixado à estufa e tinha voltado para a casa pela porta principal. Com frequência o fazia, embora só tivesse saído para dar uma volta pelo jardim; voltava a entrar pelas maciças portas de ébano artesonadas, como faria qualquer convidado. Dessa maneira podia sentir o pleno efeito da glória de As Bétulas. E lhe recordava o longe que tinha chegado e quão vigilante devia estar sempre para manter vivos o destino e a fortuna da velha grande família que tinha feito sua por matrimônio. Neste instante lhe ocorreu algo que a fez deter-se de repente no meio daquele vestíbulo enorme, ressonante, abovedado e forrado de mármore: «William virá para casa para o casamento.» Levou a parte de trás da mão à bochecha ardente. O coração lhe pulsava com tanta força que temeu que lhe partissem as costelas. Claro que sim, agora ele voltaria para casa. Teria que voltar para casa. Devia voltar. Escreveria-lhe... Não, não, faria com que Emma lhe escrevesse, escrevesse-lhe e lhe rogasse que viesse. Uma jovem necessitava que seu pai estivesse presente em seu casamento, para entregá-la. E, então, Bethel teria a oportunidade de falar com ele, de lhe explicar as coisas. Diria-lhe quão equivocado estava ao culpá-la pelo acontecido aquela noite. Explicaria-lhe que só tinha feito o que tinha que fazer-se, o que o mundo exigia que se fizesse, pela família, por todos eles. Era perverso, mesquinho e injusto, o que lhe havia dito o dia que se foi, isso de que ela não tinha um coração amoroso e compassivo. Esforçou-se tanto em ser a esposa perfeita e refinada que ele merecia e o queria muito, a ele e a seus filhos, de verdade que os queria. Era só que, às vezes, outros deveres tinham precedência. A família, em seu conjunto, tinha que estar em primeiro lugar, acima de qualquer um de seus membros. Sendo um Tremayne, ele teria

que havê-lo compreendido. Ela não era a criatura egoísta e cruel, obcecada por ninharias, que ele a tinha acusado de ser. Sabia o que era importante, sempre o tinha sabido. E seguia sendo tão bonita como sempre; afinal, só tinha quarenta e dois anos. Podia fazer reviver aquele olhar faminto e selvagem que brilhava com tanta intensidade nos olhos de William no baile de Sparta; quão único precisava era uma oportunidade. Quão único precisava era um pouco de tempo a sós com ele. Bethel sorria enquanto alisava, levando para trás, para limpar a testa, umas imaginárias mechas soltas. Sorria enquanto endireitava a rígida renda belga da cintura da saia. William ia voltar para casa e ela teria sua oportunidade. Mas isso teria que pensá-lo com atenção mais tarde, planejar sua estratégia mais tarde. Suas visitas da tarde não demorariam a chegar e não podiam encontrá-la no vestíbulo despenteada, com a cara ruborizada e com o salão ainda sem preparar. Simplesmente, isso não era apropriado. Acabou de cruzar o vestíbulo com um ar majestoso, passou entre as pesadas cortinas de damasco verde e entrou no salão. Tinha-o chamado à salinha em sua primeira semana ali, até que uma das faxineiras a corrigiu... E vá momento tão humilhante tinha sido. A estadia era uma mescla magnífica do exótico e tradicional. Duas cadeiras Chippendale, com o respaldo galonado, ladeava uma antiga arca chinesa de palisandro com pernas de garras de dragão. Um tapete de seda tecido por monges tibetanos jazia estendido em cima do belo chão de madeira de teca que se lavava toda semana com folhas de chá maceradas. Duas imensas terrinas de ouro, trazidas da Índia, decoravam ambos os lados do suporte de mármore de cor Siena, única em sua espécie. Todos os dias as terrinas se enchiam com rosas American Beauty, recém-cortadas, cultivadas na nova estufa. Bethel estava assegurando-se de que as rosas estavam recémcortadas quando observou uma donzela inclinada sobre o abajur do piano, de ônix e lápis-lazúli, recortando o pavio.

Bethel não gritou, mas sua voz atravessou o ar, cortante, rápida e áspera. —Você! A garota virou de repente, levando uma mão ao coração e arregalando os olhos. —O que está fazendo nesta sala a estas horas do dia? —exigiu Bethel. Os serventes das casas administradas como é devido não mostram a cara em horas em que a família e os convidados possam ver-se obrigados a recordar que existem. A garota esticou o joelho e a cabeça fazendo uma reverência. —O abajur fumegava e eu... —Baixou os olhos para o chão e, com um gesto de impotência, deixou cair às mãos, que começaram a retorcer o engomado avental—. Perdoe-me, senhora. —É algo inaceitável. —Sim, senhora. A garota começou a dar um amplo rodeio para a porta, afastando-se de Bethel, mas logo se deteve e lhe lançou um olhar tímido. —Estivemos comentando, nós, os de baixo, que estamos muito felizes de saber sobre o compromisso da senhorita Emma com o senhor Alcott. Por um momento Bethel esteve a ponto de sorrir, embora isso não se fizesses; não se mostrava emoção de nenhuma classe ante um servente. —Ah, obrigado, Biddy — disse. Todas se chamavam Biddy, aquela multidão de garotas irlandesas que esfregavam os chãos e tiravam o pó e limpavam às casas da “Gente Importante”. Anos atrás, quando chegou em As Bétulas, Bethel se propôs a aprender de cor os nomes de todos os serventes, até que alguém lhe advertiu que era uma familiaridade que não era apropriada. —É tão bonito — dizia a garota—, bonito de verdade, o senhor Alcott e, ah! Todo um cavalheiro. —Assim é, todos concordam que é o solteiro mais cobiçado de toda a

Nova Inglaterra. Porque não só herdou uma fortuna de mais de três milhões de dólares, mas... Bethel se obrigou a calar-se, tão escandalizada que quase tremia. Falar de dinheiro e nada menos que com uma faxineira, era algo muito, muito vulgar. Não poderia sentir-se mais envergonhada de si mesmo que se, de repente, tivesse levantado as saias e mostrado os calções. Levou uma mão hesitante a renda do pescoço e notou que se ruborizava. «Isto é o que acontece —pensou—, quando afrouxa a vigilância, embora só seja um momento, quando perde de vista as aparências e recorda coisas, falas de coisas que não deveria.» —Isso é tudo — disse. —Sim senhora — murmurou a garota, com o olhar baixo, e se apressou a sair da sala. Um movimento através das janelas revestidas de brocado e veludo atraiu o olhar de Bethel. Sua filha menor, Madeleine, estava sentada em uma cadeira de rodas na varanda, entre os vasos de barro de samambaias e um par de velhas cadeiras de balanço de vime. Emma estava atrás dela, com as mãos apoiadas nos punhos da cadeira. Bethel franziu o cenho ao vê-las. Agora seria necessário chamar um servente para que ajudasse Maddie e sua cadeira a entrar no interior da casa, para o chá. Seria um problema que, certamente, não necessitavam em uma tarde como aquela. Quanto a Emma... Trocou-se, obediente, vestindo o traje de veludo bege, embora deva havê-lo posto apressadamente, para ter saído com tanta rapidez. E agora se arriscava que suas bochechas se avermelhassem e lhe frisasse o cabelo, ficando ali fora, com uma umidade como aquela. Enquanto Bethel as observava, Emma se virou para a janela. Estava rindo e lhe brilhava o rosto, opalescente, na aquosa penumbra da tarde cinza. O vento alvoroçava os suaves cachos de seu cabelo castanho escuro. Suas maçãs do rosto

eram como a curva da asa de um anjo. Bethel notou uma estranha pontada no peito. Pensou que não era justo que uma filha pudesse deixar a sua mãe sem respiração devido a sua beleza. O céu clareou justo então, convertendo as janelas em espelhos e lhe mostrando seu próprio reflexo no cristal. Levantou o braço e tocou a imagem como se pudesse fazê-la desaparecer, como se removesse a água quieta de um lago. Que velha parecia voltar-se a cada instante. «Sou ainda bonita, mamãe?», pensou. O cabelo dourado como o sol se apagou um pouco e tinha que aumentar sua espessura com apliques. Usava colarinhos altos de renda para esconder as rugas do pescoço e do queixo. Seus olhos seguiam tendo o azul dos jacintos silvestres, mas estavam rodeados de rugas que tinham permanecido ali muito depois de que deixasse de sorrir. Depois de que não tivesse nenhuma razão para sorrir. Um enorme vazio lhe apertou o estômago. Em algum lugar, lá no fundo, certamente vivia ainda aquela jovem que tinha ido a um baile com o cabelo enfeitado com gardênias e a esperança ardendo em seu coração. Uma rajada de vento golpeou a janela e Bethel fechou os olhos. Quando voltou a abri-los, tinha escurecido e já não podia ver seu reflexo, só a sua filha Emma, tão jovem e bela e com toda sua vida pela frente, como um caminho resplandecente, reto e seguro. E quando a cabeça de sua filha se inclinou novamente para trás, ao soltar uma risada que Bethel não podia ouvir, teve uma sensação muito estranha, de haver perdido algo importante. —Deve estar feliz, Emma. É maravilhoso que não tenha explodido, transbordando de felicidade. Como um pêssego suculento e amadurecido no verão. Sorrindo, Emma olhou o coque, em forma de concha, em que estava

preso o pálido cabelo de sua irmã. —Vá ideia mais pegajosa — disse, e seu sorriso se alargou, quando Maddie pôs-se a rir. Pôs a mão, dentro de sua luva de renda, no ombro de sua irmã e lhe deu um suave apertão—. E não me sinto feliz absolutamente quando penso que deixarei a mamãe e a ti. Ia deixar sua casa. Emma olhou além dos prados cansados do inverno até o espesso bosque de bétulas brancas que cercavam a parte traseira da casa. Umas nuvens baixas enganchavam a barriga nas copas das árvores e um vento com aroma de sal açoitava os ramos nus. Entretanto, a primavera seguia sendo uma promessa, porque chegava todos os anos. Emma podia notar a promessa da primavera chamando em seu coração. Maddie ergueu o braço e deu uns tapinhas na mão de sua irmã, meio voltando-se na cadeira. Tinha os olhos brilhantes e úmidos, mas Emma não sabia se por suas risadas anteriores ou por lágrimas contidas. Inclusive podia ser pelo vento frio. —Vá — disse Maddie—. Não seja tão tonta. Para começar, ainda faltam dois anos inteiros para o casamento e, além disso, só irá à casa da Rua Hope. Poderá seguir nos vendo todos os dias, se quiser, embora não me ocorre por que iria querer. É um sonho feito realidade; casar-te com o homem que quer. Emma olhou de novo para as bétulas para não ter que olhar a sua irmã nos olhos. Queria Geoffrey, de verdade. Só que lhe custava recordar se era seu próprio sonho ou o que alguém mais tinha sonhado por ela. —É que é tão bonita — dizia Maddie—. Poderia conseguir a qualquer homem que te propusesse. —Olhe agora quem fala como uma parva —disse Emma. Esforçava-se muito por fingir que sua beleza não existia, porque tinha um poder que queria, mas temia analisar—. Acontece que é Geoffrey a quem quero, não a qualquer outro.

—Não permita o céu que te converta na senhora de Qualquer Outro — disse Maddie, imitando o acento georgiano de sua mãe, e Emma pôs-se a rir. Maddie virou-se em sua cadeira e deixou cair às mãos na saia. Suspirou, embora não era um som particularmente triste. —Lembra-te de quando brigávamos por qual das duas se casaria com Stu? —Eu nunca fiz tal coisa. Maddie se pôs a rir divertida. —Claro que sim; sim que o fez. Recordo-o com total claridade. —Oh, Meu Deus, que vergonha tão grande. —Emma levou o dorso da mão à testa e fingiu estar a ponto de desmaiar—. Suponho que era jovem então e me impressionava mais o estilo que a substância. —Stu tem muita substância — protestou Maddie—. É só que sempre foi muito difícil para ele, com isso de que Geoffrey é o filho perfeito. Pobre Stu. Às vezes, preocupa-me. —Sua voz tornou-se mais baixa e um longínquo desejo apareceu em seus olhos—. Ainda. Emma engoliu para eliminar um súbito nó na garganta. Ainda não havia dito a sua irmã que Stu havia retornado, porque isso só lhe causaria dor. E horror ante o momento inevitável em que a veria pela primeira vez tal como estava agora. Sete anos atrás, quando Stu se foi, Madeleine Tremayne era uma alegre menina de doze anos, com um bocado de sardas no nariz e uma boca risonha, uma menina que sempre estava escapando para um lugar ou outro, para nadar, jogar tênis ou patinar. Não era esta criatura espectral com pernas atrofiadas e inválidas. Emma suspeitava que sua irmã tivesse estado apaixonada por Stu toda a vida. Para Maddie, casar-se com o extravagante e perversamente atraente segundo filho dos Alcott certamente tinha sido sempre algo mais que uma fantasia caprichosa e juvenil. Mas nunca tinha falado desses sentimentos em voz alta.

Mas também é verdade que nunca falavam nem dos horrores nem dos sonhos que tão poderosos e enormes eram para elas. E, de todos os modos, agora já não haveria casamento algum para Maddie. Nem com Stu Alcott nem com nenhum outro homem. Uma lembrança agitou-se nos mais profundos pensamentos de Emma, a lembrança de um dia em que todos eram crianças e estavam vadiando ali mesmo, na varanda sul, onde ela e Maddie estavam agora, entre os vasos de barro de samambaias. Junto a aquelas velhas cadeiras de balanço com suas almofadas cheias de balsamina, que estavam naquele mesmo lugar desde que seu pai era menino. Entretanto, era verão. Um desses estranhos dias queimados pelo sol, quando faz tanto calor que as folhas das bétulas se frisam e rangem. Recordou que estava descalça e recordou quão maravilhosa era aquela sensação; poder mover os dedos dos pés em cima das tábuas pintadas da galeria. Usavam trajes de banho porque acabavam de banhar-se na baía e a flanela negra e úmida as cobria do tornozelo ao pescoço e se grudava à pele suada, fazendo coceira. Eram tão jovens... Bem, ela e Maddie o eram. Os irmãos Alcott, com dezessete e quinze anos, já começavam a ser homens. De algum jeito, surgiu o tema do casamento e Stu afirmou que ia casar-se com uma garota de hula-hula. Maddie se pôs a rir e seguiu rindo como se fosse a coisa mais divertida que já tinha ouvido, embora só tivesse sete anos naquele momento e não podia ter nem a mais remota ideia do que era uma garota de hula-hula. Emma, para não ficar atrás, disse que escaparia e iria a Paris, viver em um sótão com um homem que usaria boina e fumaria cigarros e praticaria o amor livre, embora, com seus dez anos, só tivesse uma ideia muito vaga do que significava isso. E foi então quando Geoffrey disse: —Que pirralha mais parva é Emma Tremayne! Você se casará comigo.

Emma tentou lhe dar um murro no nariz por chamá-la de pirralha; mas ele se agachou e ela acertou o poste da varanda e fez um corte tão grande no abacaxi esculpido na madeira que tiveram que lhe dar três pontos. E agora aqui estava prometida em matrimônio a Geoffrey Alcott. Pensou que tinha sido inevitável e notou um lento e estranho rasgo no peito, um rasgão de medo. Tinha sido inevitável e agora era indissolúvel. Era muito tarde para mudar as coisas, inclusive se quisesse fazê-lo. Mas com seu irmão morto e sua irmã como estava, Emma era única que restava para casar-se, ter filhos e manter as tradições e a linhagem familiar. Se Willie... Mas não tinha direito a pensar em Willie, a pensar que se estivesse vivo, possivelmente a teria liberado. Maddie levava um momento silencioso. Emma se inclinou um pouco, o suficiente para ver o rastro de uma lágrima, que tinha deixado um rastro salgado na bochecha de sua irmã. Sentiu-se envergonhada por menosprezar todas suas benções, quando aí estava Maddie sentindo falta daquelas coisas que nunca teria. De repente, Emma desejou com desespero poder falar de Willie com sua irmã. Contar-lhe a verdade sobre como tinha morrido e sobre o vazio que tinha deixado em suas vidas. «Não voltaremos a falar disto”. Nunca mais.» Emma recordou que Willie também estava com eles aquele tórrido dia de verão, sentado, tão silenciosamente como de costume, em uma das velhas cadeiras de balanço. Zombou de Maddie por rir da garota hula-hula e foi ele quem envolveu com seu lenço a mão de Emma, que sangrava. Mas não havia dito muito aquele dia. De todos eles, Willie era o que melhor sabia guardar os segredos de seu coração. O vento açoitou as bétulas e o céu cinza começou a cuspir chuva. Atrás dela, Emma ouviu a risada baixa de um menino e o ranger da velha cadeira de balanço.

Mas quando se voltou, estava vazia.

Capitulo Cinco As irmãs Carter foram as primeiras a chegar. Entraram em As Bétulas pelos enormes portões de ferro forjado, em um antigo Coche, puxado por um par de cavalos castanhos, decorado com penas em vermelho, branco e azul. Atravessaram o vestíbulo de mármore branco e negro em meio de uma nuvem de pós e bolsinhas de violetas, cheias de rendas e chapéus emplumados que se remontavam a antes da guerra. As irmãs Carter eram as filhas ricas e solteiras de um barão da cerveja de Providence e o tempo, para elas, deteve-se trinta anos atrás. A senhorita Liluth, a mais jovem, estava, nas educadas palavras da “Gente Importante”, “um pouco desorientada”, embora, em geral, reconhecia-se que não tinha nascido assim. Mas o homem com quem estava prometida em matrimônio tinha sido morto em Antietam e ela nunca tinha superado essa morte. Ele tinha partido no trem da tarde de uma terça-feira para Providence e, de algum jeito, à senhorita Liluth tinha metido na cabeça que o mesmo trem que o tinha levado o traria de volta. Assim, desde o final da guerra, passava todas as tardes das terças-feiras na estação da Rua Franklin, esperando-o. —Valha-me Deus! Senhoras, devo ter sonhado que iam vir hoje — disse Bethel, quando acomodou às irmãs em um par de poltronas com tapeçaria de brocado—, porque mandei o nosso cozinheiro assar suas bolachas favoritas esta manhã, Liluth. E para ti, Annabelle querida, alguns daqueles deliciosos bolinhos

de creme que sei que você tanto gosta. E nem te atreva a me dizer que não vais pegar nenhum. Vá, se ultimamente estar mais magra que um fuso. Emma estremeceu interiormente ante a ardilosa crueldade de sua mãe, porque a mais velha das Carter era o que a “Gente Importante” chamava educadamente uma «mulher com carnes extras». Além disso, também era horrivelmente feia, com uns olhos pequenos e vesgos, que pareciam sementes de cabaça, e uma pálida marca de nascimento, como uma mancha de água, na bochecha. Além disso, todo mundo sabia que se apaixonou, violentamente e sem esperanças, por William Tremayne quando tinha dezesseis anos e tinha seguido apaixonada por ele ao longo de seu matrimônio com outra mulher e do nascimento de seus três filhos. —Quanto a mim, asseguro-lhes que não posso permitir que nem um bocado passe por meus lábios —dizia Bethel—, porque confesso que estou fazendo uma dieta que arrancaria lágrimas de dor a um camponês chinês. Mas sempre que noto que minha resolução vacila, recordo-me que uma das primeiras coisas que meu William observou em mim foi minha esbelta figura. Assinalou com um gesto de mão o serviço de chá de porcelana da China, azul e branco, que descansava em um carrinho de prata. —Emma, querida, por que você não serve o chá esta tarde? Emma sabia que o propósito daquele serviço era a exibição de seu anel de compromisso. Porque, embora uma jovem nunca devesse gabar-se de sua boa sorte, era permitido fazer uma leve ostentação. As Carter não puderam ignorar o anel, porque ele brilhava como fogo azul mesmo sob a luz fraca de um dia cinzento. O anel era uma enorme safira rodeada de uma dúzia de diamantes e Geoffrey o tinha posto no dedo justo no dia anterior. Depois, tinha-lhe virado à mão e lhe tinha beijado a palma e em seguida a parte inferior do pulso e depois, por fim, por fim, tinha-a beijado nos lábios.

Surpreendeu-a sensação de sua boca na sua, uma sensação tão estranha, doce e premente. E em seguida, quando ele se afastou, seus próprios lábios estavam inchados e quentes. Passou a língua por cima e sentiu seu gosto. As duas senhoras olharam o anel e soltaram exclamações de admiração. Emma sorriu com acanhamento à senhorita Liluth enquanto estendia uma xícara de chá sem leite, com dois torrões de açúcar. Liluth Carter tinha sido uma beleza reconhecida em seus tempos e seguia sendo bonita, com um cabelo sedoso como o milho, pálido e fino e olhos de cor violeta. Emma se perguntou se à senhorita Liluth teria beijado aquele jovem, antes de partir para morrer na guerra. Possivelmente inclusive tinham feito amor a noite anterior a sua partida. Emma achava terrivelmente excitante a ideia de cometer um pecado tão delicioso com o homem que amava; era como correr em um temporal. E perigoso também, correndo o risco de descobrimento e escândalo. Gostava de imaginar-se fazendo-o, embora, em seu coração, duvidava de encontrar a coragem necessária. Certamente, não podia nem imaginar Geoffrey propondo-lhe e muito menos fazendo-o. Mas em todos esses anos que conhecia a senhorita Liluth, Emma nunca tinha falado com ela do homem que amou e perdeu tão tragicamente. Um sentimento poderoso empurrava Liluth Carter a aquela estação de trem toda terça-feira para esperar a um homem que nunca voltaria. Entretanto, ninguém nunca reconhecia aqueles sentimentos em voz alta; assim, não existiam. Emma sabia que nunca averiguaria os segredos que seguiam vivos no coração da senhorita Liluth. Passaria a próxima hora em sua companhia, igual tinha passado centenas de horas antes e, certamente, a conversa não iria muito além do tempo. A uma dama se exigia que sempre, em todo momento, tivesse uma vasta gama de assuntos intrascendente na ponta da língua, em sua maior parte, sobre o tempo. Entretanto, com frequência, Emma se perguntava por que todas se preocupavam tanto com o tempo quando saíam se os experimentavam tão

poucas vezes. As senhoras de Bristol se interessavam mais pelo tempo que os próprios pescadores. —Ultimamente, o tempo — disse a senhorita Annabelle Carter, como se seu corpo já lhe tivesse avisado—, tem sido mais variável. —Nunca se estabiliza nesta época do ano —interveio Bethel. Parecia profundamente ofendida, como se o tempo se comportasse assim só para irritála—. Pelo menos, o inverno e o verão são estações estáveis. Sabe-se o que se pode esperar. Emma cruzou o olhar com sua irmã e compartilharam um sorriso divertido. —Eu acho este tempo instável muito desestabilizador —disse Emma—. Não te parece, Maddie? A cara de sua irmã se iluminou com uma risada silenciosa. —Certamente. Mas a verdade é que descobrir que, com o tempo em particular, tenho que manter uma opinião flexível. —Chovia o dia que meu Charles se foi á guerra —disse a senhorita Liluth—. Por este motivo sempre estou muito triste nos dias chuvosos. Talvez amanhã faça bom tempo. Bethel se inclinou e lhe deu uns tapinhas no braço. —Estou segura de que assim será, querida. Emma engoliu em seco para aliviar uma dor na garganta que se parecia muito às lágrimas. Ali estava à senhorita Liluth, esperando a um homem que levava quase trinta anos morto. E sua irmã, que vinha, semana após semana, ano após ano, à casa do homem que amava e que se casou com outra mulher. E a pobre mãe de Emma, abandonada por esse mesmo homem, morrendo de fome e estrangulando-se com ossos de baleia e atuando como se fosse vê-lo aquela mesma noite a hora do jantar. Mas ia contra todas as regras de seu mundo que alguma delas mencionasse sequer o que de verdade ocupava seus pensamentos e seus

corações. Emma se perguntou o que aconteceria se, por uma vez, alguém dissesse o inexprimível. —Um dos meninos das bobinas morreu na fábrica a semana passada — disse Emma. Suas palavras caíram na estadia como pedras ao fundo de um poço seco, repicando e ressonando no vazio. Então a senhorita Liluth suspirou com força e agitou a xícara no pires. —Ai, céus. Sua irmã sorveu tão forte que lhe tremeu o nariz. —Dizem que sua mãe o levou a última caçada do ano, nada menos. Desestabiliza pensá-lo. —Como o tempo — disse Emma. A senhorita Liluth arrancou à fita de renda que levava ao redor da garganta. —Ai, senhor; ai, senhor. Esta vez foi sua irmã a encarregada dos tapinhas. —Vamos, vamos, Liluth, não te desgoste. Eu comentava o mesmo esta manhã, verdade? É que já não se pode confiar que as classes baixas e medias saibam qual são seus lugares. Bethel estalou a língua, fazendo um gesto dúbio com a cabeça. —A sociedade está se desintegrando ante nossos próprios olhos. —«Desintegrando.» Que maneira tão hábil de expressá-lo, mamãe! — Emma notou a crescente histeria de sua voz, mas não parecia capaz de deterse—. Aquela máquina arrancou o couro cabeludo e um braço do menino. Sangrou até morrer. A cara que Bethel voltou para sua filha era inexpressiva, mas seu cenho franzido escurecia os profundos olhos azuis. —Certamente, querida. Mas não se fala de coisas desagradáveis à hora do chá.

Continuando, Bethel se voltou, sorrindo, para suas convidadas e disse: —Já devem saber das últimas notícias. O jovem Stuart Alcott retornou por fim para casa, com a cabeça encurvada, sem dúvida arruinado e, certamente, envergonhado. O olhar de Maddie saltou até Emma e logo se afastou de novo, enquanto duas brilhantes manchas apareciam em suas bochechas. Sua mão tremia de tal maneira que a xícara vacilou no prato e o chá lhe salpicou a manta que lhe cobria os joelhos. Bethel pegou a campainha de prata que havia no carrinho do chá, justo quando chegavam mais visitas. Um trio de matronas, pertencentes às pessoas importantes, que expressaram, com grandes exclamações, sua admiração ante a safira do anel de compromisso que Emma levava no dedo e que fingiram não dar-se conta da lividez de Maddie nem do tremor de suas mãos. Não falaram mais de meninos mortos nem de jovens descarados, mas sim do tempo e de um casamento que ainda demoraria dois anos em celebrar-se. As visitas partiram pontualmente as cinco, como estabelecia a norma. Um pesado silêncio se hospedou na estadia e Emma pensou que quase podia ver a ira de sua mãe, como uma mancha no ar. Sabia que pagaria caro por ter falado de coisas desagradáveis durante o chá. Mas foi sobre Maddie sobre quem Bethel desatou sua fúria. —É uma desgraça, Madeleine Tremayne —disse, com seu suave acento que, entretanto, resultava profundamente cortante. E embora fosse uma mulher pequena, parecia elevar-se como uma torre por cima da cadeira de rodas, de forma que, com cada palavra dela, Maddie se encolhia, mais e mais, no assento. —Aqui estão nossas amigas, que vieram ver a nossa Emma, e você te converte em um espetáculo; pior que uma atração de feira, isso é o que você é. Dado que parece que não pode te controlar quando há uma companhia educada, não posso permitir que siga aqui. —São as visitas de meu compromisso, mamãe — disse Emma e, embora

o tentou, não pôde evitar que lhe tremesse a voz—. Quero que Maddie esteja comigo. —Não é apropriado, Emma. Chama a atenção, sentada aí nesse artefato repulsivo, incapaz de compartilhar adequadamente o refresco e derramando o chá, além disso. Sua própria presença faz com que nossas convidadas se sintam incômodas. Não é apropriado. —Mas, mamãe... Sua mãe agarrou o queixo de Emma com força entre os dedos, lhe voltando à cara para a luz da janela. —E você não voltará a sair à varanda outra vez as tardes que recebemos. O vento te ruboriza as bochechas de uma forma muito pouco favorável. Não quero que as pessoas pensem que te deixo usar ruge como qualquer arpía da Rua Thames. As lágrimas ardiam nos olhos de Emma enquanto olhava como sua mãe saía da sala, com as costas rígidas dentro da armadura das baleias de seu espartilho. Mas foi ver a cara de sua irmã, pálida e angustiada, o que lhe rasgou o coração. —Maddie, sinto tanto... —ajoelhou-se junto à cadeira e lhe pegou as mãos. Estavam frias e tremiam, e as apertou entre as suas—. Mamãe está furiosa comigo e dessa maneira dela, tão estranha, sabe o que vai me fazer sentir absolutamente miserável e é você quem paga. —Vá, não se envergonha, Emmaline Tremayne? Já está ruborizada de novo — disse Maddie, arrastando as palavras, fingindo um acento sulino—. Não é apropriado. Maddie sorria, mas Emma viu quão tensa tinha a garganta ao engolir. O brilho das lágrimas permanecia contido em seus olhos. O olhar de Maddie caiu até sua saia. Liberou as mãos e em seguida puxou a manta com franjas que lhe cobria as pernas. —Emma, seja boazinha e convença a um dos serventes para que me leve

a meu quarto. Desejo estar sozinha um momento. —Mas, Maddie, não teríamos que...? —Não, não teríamos. Não quero falar dele, porque não há nada que dizer. Suponho que agora que voltou para casa, nossos caminhos acabarão cruzandose, momento no qual ele verá que me converti em uma inválida e então tudo estará terminado.

Emma não suportava estar na casa nem um momento mais do que o necessário para ver Maddie comodamente instalada na cama com um copo de leite quente e seu livro de poesias favorito. Emma estava decidida a ir dar um passeio embora só fosse para submeter suas bochechas aos estragos do frio e do vento até que estivessem mais vermelhas que um par de tomates. Suas botas de cano curto faziam ranger a erva quebradiça do inverno. A noite iminente lançava já suas negras sombras sobre o dia que morria. As nuvens, densas e baixas, prometiam mais chuva. Quando chegou ao outro lado do prado se voltou e olhou para trás. Seu antepassado, negociante de escravos, o primeiro William Tremayne, construiu o que chamou sua «casa na plantação» em 1685, com o estilo quadrado e sólido próprio da época. Mas seus herdeiros, piratas, baleeiros e comerciantes, embelezaram-na com varandas, saídas, torres e cúpulas. Ao longo de duzentos anos, o trabalho das tórridas brisas marinhas do verão, os furacões do outono e as tormentas de neve do inverno tinham batido o recobrimento das paredes até deixá-las de uma delicada cor cinza, a cor das bétulas que davam nome a casa. A maioria dos dias, As Bétulas parecia um lugar encantado, com seus telhados muito inclinados e suas varandas rodeando toda a casa como as saias de uma debutante ao fazer uma reverência. Mas aquele dia parecia que a casa se encolhia, amedrontada, sob o pesado céu. Uma mal-humorada fortaleza de normas, deveres e recriminações, de coisas que se devem fazer e coisas que não se devem fazer.

A luz a gás piscou na janela de sua irmã e em seguida se apagou. Sabia que assim que ela saísse do dormitório, Maddie agarraria a garrafa de hidrato de cloral da gaveta da mesinha de cabeceira. Seu tio, que era médico, a tinha receitado para a dor das costas e dos quadris, mas, em uma ocasião, Maddie lhe tinha confessado que tomava mais para a dor do coração. «Traz-me sonhos tão doces e amáveis», disse. «Ai, Maddie...» Emma virou as costas a casa e entrou no bosque de bétulas, pelo velho atalho indígena que, seguindo um velho muro de pedra, chegava até a baía. Os ramos, brancos e nus, gotejavam em cima de sua cabeça. O húmus de folhas do atalho emitia um aroma melancólico, como o das cartas esquecidas de um velho amor. O mundo tinha sido despojado de sua cor, agora tudo era branco, negro e cinza. Pensou que aquela parede de pedra, aquelas bétulas brancas eram testemunhas de toda sua vida. Elas sabiam, integralmente, quem era. Entretanto, ela mesma se considerava um mistério. Sentia-se como se sempre estivesse contendo uma parte de si mesmo, reservando-a, e tinha um medo horrível de acabar reservando-a para sempre. Temia morrer com partes completas sem usar. Quando saiu de entre as árvores e entrou na praia, o vento carregado de chuva que chegava até ali da baía lhe açoitou o rosto. Baixou a cabeça e isso fez com que não visse o homem que estava de pé no Cais até estar quase em cima dele. O Cais era parte de um galpão que entrava nas agitadas ondas. Era onde o pequeno saveiro de Emma, Icarus, passava aqueles primeiros dias da primavera, esperando a primeira saída da temporada. Emma ouvia o amortecido ranger do calcés e o tamborilar da água contra o casco. O navio de Willie também se guardava ali, mas, agora, sua doca estava vazia. E aquele homem, aquele irlandês tosco e fanfarrão da caçada, estava à beira do Cais. Seu Cais. Deve tê-la visto aproximar-se antes que ela o visse, porque havia se

voltado de frente para ela, dando as costas ao vento e à água. Com a escassa luz, não podia lhe ver a cara, mas sua mera presença fez com que se detivesse na metade do caminho. Uma ave marinha desenhou um círculo e chiou no alto. As espumosas ondas emitiam sons hiposos ao passar por cima das rochas cheias de cracas e calhaus salpicados. O vento lhe puxava o cabelo, soltando-o das forquilhas e fazendo com que se alvoroçasse ao redor da cabeça, convertendo-o em um véu úmido que a afogava e a cegava. Os dois, o homem e ela, permaneciam imóveis; podiam ter sido os únicos habitantes da terra. Ela quebrou o feitiço ao levantar o braço para recolher o cabelo. O enrolou, no pulso para poder ver melhor o homem. —Ia roubar-me o barco — disse acusadora, embora não tinha nenhuma prova disso, além de que ele estava em um lugar onde nunca devia ter estado. —Ah, Dhia — disse ele, com sua voz áspera cujo som era como o passar de uma serra através da madeira úmida—, roubar, diz. Essa é uma palavra muito forte. Emma suspeitou que exagerava no sotaque, vangloriando-se de sua condição de irlandês. Igual vangloriava-se de quão grande era. Elevava-se escuro e alto contra a água cinza, com os ombros para trás e as pernas bem abertas, absorvendo facilmente o balanço das tábuas, curtidas pela intempérie, sobre as ondas. Seu jaquetão negro de marinheiro se inchava escuro, ao vento. A fazia pensar em botes de piratas deslizando-se furtivos sobre as águas sem lua, em remos amortecidos com trapos e nas sombras silenciosas de homens perigosos. —Isto é uma propriedade privada —disse ela. Sua própria voz soava enferrujada, como se não a tivesse usado em cem anos—. Toda ponta de Poppasquash nos pertence, aos Tremayne, e você não tem nenhuma razão para pôr nem um pé aqui. Ele inclinou a cabeça para trás, teatralmente, erguendo os olhos,

implorantes, ao céu úmido e nebuloso, lá em cima. —Que Deus nos proteja. A próxima coisa que me dirá é que a “Gente Importante” é proprietária até do próprio ar que eu respiro. Sobressaltou-a ao mover-se de súbito, tão rapidamente que tinha abandonado o Cais e se aproximado dela antes que tivesse sequer tempo para pensar em sair correndo. Quanto mais se aproximava, maior e alarmante parecia; entretanto, ela seguia sem correr. Aproximou-se diretamente até ela, até que só os separava o espaço de uma mão. Sua cabeça se inclinou para trás ao querer olhá-lo. Havia algo impressionante em seu rosto, inclusive com as cicatrizes e o nariz torcido, ou possivelmente por causa deles. Tinha uns olhos valentes, mas quebrados de algum jeito, e eram muito bonitos; da cor de um cristal de garrafa pulimentada pelo mar e abrilhantada pelo sol. Olhou-a de cima e ela esperou, com o coração lhe pulsando com mais força que o ruído do romper das ondas, que ele fizesse Deus sabia o que. Mas ele se limitou a passar a seu lado, tão perto que lhe pareceu que a manga de sua jaqueta lhe tinha roçado a bochecha. Não olhou como partia. Em realidade, afastou-se dele, caminhando na direção contrária. Fingiu estar fascinada com as barbas de musgo verde e úmido que envolviam os pilares do Cais, enquanto escutava o roce de suas botas na areia branca. Quando o único que pôde ouvir foi o rugido e o pulsar do vento e do mar, virou-se. E viu que ele se deteve e a estava olhando. Notou que uma corrente crescia em seu interior; uma corrente de excitação e de medo; de expectativas só imaginadas pela metade. Deu meia volta rapidamente, lhe virando as costas e suspirou fundo, saboreando a água marinha. Quando olhou de novo, ele tinha desaparecido, mas podia ver, ainda, o lugar onde os passos dos dois se uniram, para separar-se em seguida. Escurecia e começava a fazer muito frio, mas ela esperou ali, na praia, até

que a maré penetrou o bastante na areia para apagar seus rastros por completo.

Capítulo Seis Era um dia azul, de vento ressonante. O primeiro dia de maio. Emma tirou Icarus à água pela primeira vez aquela primavera. E quando o vento alcançou a vela maior, inchando-a com um forte estalo, Emma Tremayne inclinou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada. Sentia-se tão distante e livre como o céu. Entrecerrou os olhos para olhar o reflexo deslumbrante onde a água se unia aos últimos rastros da névoa matutina. O sol acabava de sair e o mundo brilhava rosado, como o interior de uma concha. Orientou as velas e o saveiro se inclinou mais, com a proa cortando as brancas bordas das ondas e uma esteira espumosa esparramando-se a popa. Manteve uma mão no leme, enquanto com a outra sustentava um guarda-sol erguido. Firmou os pés contra a brazola e virou o rosto para os respingos de água salgada. E se entregou ao silêncio, estranho e veloz, de um navio rápido com as velas desdobradas. As jovens de Bristol aprendiam a navegar quase ao mesmo tempo em que a andar. Os Tremayne sempre tinham encontrado seu destino e feito suas fortunas com o mar e os navios; levavam-no no sangue. Se não fosse uma tradição tão venerada pelos Tremayne, sua mãe nunca lhe teria permitido que saísse para navegar sozinha. Era o único momento em que Emma se sentia livre de verdade, navegando com o vento em popa, em seu pequeno Saveiro de regatas.

No entanto, tinha que vestir-se adequadamente, com um traje de navegar desenhado por Monsieur Worth. E obvio, lhe exigia que colocasse um chapéu e que levasse um guarda-sol para que não lhe avermelhasse a cara nem, horror dos horrores, se bronzeasse. Manteve-se rodeada pelo vento até entrar uma boa distância na baía, dobrando o final de ponta Poppasquash e o farol da ilha Hog, e assim quando virasse o navio, poderia dar uma volta longa e contínua até a cidade e o porto. Levaria-lhe horas, mas não importava. Na água, o tempo não tinha limites nem horizontes. O mundo era somente mar e vento. Nunca tinha se aventurado a sair da baía e entrar no oceano, embora, muitas vezes, se imaginou fazendo-o. Em uma ocasião, olhou em um atlas para ver aonde iria parar se navegasse rumo ao leste desde Bristol. Acabaria em um porto marítimo de Portugal, chamado Viana de Castelo. Gostava de imaginar aquele lugar quando navegava. Imaginar casas com telhados vermelhos, ruas sinuosas pavimentadas de paralelepípedos, um porto banhado pelo sol e colinas onduladas cheias de oliveiras e vinhedos. Mas embora o desejasse com ânsia, sabia que nunca navegaria até ali. Não era o perigo e a solidão do mar aberto o que a assustava. Eram suas infinitas possibilidades. Quando finalmente virou, o sol estava muito alto no céu, lançando luminosos colares de renda à água. O esqueleto da cidade aparecia nu no horizonte, com árvores e telhados recortados contra o céu. Escolheu o campanário de San Miguel como ponto de referência, assim como muitos marinheiros de Bristol tinham feito antes dela, ao dirigir-se para casa. San Miguel, onde tinham sido batizados e enterrados todos os Tremayne nascidos nos últimos duzentos anos. Exceto aqueles que, como seu irmão, tinham sidos tragados pelo mar. O vento enchia cada canto das velas. O navio fendia as ondas, aproximando-se da costa. Passou junto a um bote, com uns homens que

pescavam enguias com longos tridentes. Agora já via as mansões da Rua Hope e o arqueado telhado da estação da ferrovia. E a fábrica de algodão, com suas janelas altas e estreitas e suas chaminés que vomitavam uma fumaça de vapor branco. A fábrica estava justo sobre o final do porto e tinha seu próprio Cais com atracadouros que penetravam como os dentes de um pente na água. Emma arriou a vela maior e deslizou até um poste próximo. O veloz silêncio do vento se espalhou em uma explosão de ruídos: o bater das asas da vela, o chiado de uma gaivota e um homem que cantava enquanto rastelava em busca de mariscos. E também aquele rumor forte e vibrante formado pelo constante zumbido de centenas de fusos no interior da fábrica. Amarrou o Saveiro, atando os cabos aos ganchos do cais com puxões rápidos e eficientes. Entretanto, não saltou a terra, ainda não. Durante muito tempo, durante toda sua vida, as coisas tinham acontecido, simplesmente, a Emma Tremayne sem que ela as buscasse, às vezes sem que as entendesse e, com frequência, sem que lhe importassem. Assim que lhe custou um momento compreender plenamente o que era que queria fazer. E ainda mais encontrar a coragem para realizá-lo. Lentamente, levantou os olhos até a arcada da entrada, de tijolo vermelho, da fábrica da Rua Thames. A fábrica de algodão onde tinha morrido o pequeno irlandês. Emma Tremayne tinha estado em todas as melhores casas de Bristol, mas nunca tinha posto nem sequer a fina ponta de sua lustrosa bota branca de pelica dentro da fábrica de algodão. Hesitou justo depois da pesada porta, com bandas de ferro, junto a um relógio registrador e muitas fileiras de pequenos cartões amarelos. A seu redor as paredes e o chão tremiam seguindo o ritmo cadencioso das máquinas. Um homem magro, com um lustroso traje negro, saiu de um cubículo de madeira que a Emma fez pensar na torre de guarda de uma prisão. Nunca o tinha

visto antes; entretanto nem lhe ocorreu pensar que ele pudesse não conhecê-la. Em Bristol, os Tremayne eram conhecidos, sempre, por todo mundo. Estendeu-lhe a mão, embora lhe tremesse um pouco. Sempre se imaginava valente, zarpando à conquista de outros mundos. Mas a verdade era que inclusive uma ocasião tão conhecida e singela como um chá social, com pessoas que conhecia de toda a vida, podia fazer com que o coração lhe desbocasse no peito. Sabia que seus temores eram irracionais —o medo a que a olhassem e a julgassem com severidade— mas não podia evitá-los. Assim como a olhava este homem, com os olhos muito abertos atrás de um par de óculos tão grossos como o vidro de uma garrafa de leite. Disse-lhe que queria visitar a fábrica e o homem engoliu em seco visivelmente por seu comprido e magro pescoço. Mas ao final, limitou-se a, assentir e acompanhá-la a um escritório no vestíbulo. Ali, entregou-a a um senhor, Thaddeus Stipple, um homem baixo com a gelatinosa redondez de uma morsa. O senhor Stipple tentou lhe dizer que, em realidade, ela não queria ver a fábrica, porque era suja e ruidosa e estava cheia de irlandeses. Não era, absolutamente, um panorama para uma dama criada com delicadeza, como ela. Emma enlaçou os dedos sobre a saia e se obrigou a lhe sorrir. Recordou-lhe quem era, como sua mãe teria feito, embora pensou que soava embaraçosamente presunçosa. Ele protestou de novo, sem muito entusiasmo, então suspirou e ficou de pé com muito esforço. Fez com que o seguisse de volta ao pátio, que subisse um lance de escadas revestidas de ferro e entrasse por uma porta forrada de estanho. Saíram a uma passarela com grades. Por cima de suas cabeças, o teto era uma massa emaranhada de correias, cabos, encanamentos, vigas e eixos. Mas Emma olhava para baixo, a uma sala enorme cheia de máquinas que chacoalhavam, giravam e estremeciam. O senhor Stipple lhe disse que aquela era a sala de fiar. Deu nomes às máquinas: Fiação giratória e Fiação intermitente. Mas tudo o que Emma via era um labirinto de polias e engrenagens, de aparelhos que

giravam e de bobinas que zumbiam. O metálico som do aço ao encaixar no aço lhe produzia dor de ouvidos. O azedo aroma de suor e vapores oleosos lhe tapava o nariz. O ar estava tão quente e tão cheio de fibras de algodão que mal podia respirar. Era um rugido infernal, um inferno cheio de crianças. Viu meninas com caras abatidas, costas encurvadas e seios apertados, com vestidos esfarrapados, algumas tão pequenas que tinham que subir em cima de tamboretes e caixas para fazer seu trabalho. Seus pálidos dedos dançavam entre as bobinas que giravam, apanhando e amarrando os fios quebrados antes que se enredassem. Viu um menino, com pernas tão brancas e magras como os ramos de uma bétula, arrastando-se por debaixo de um daqueles enormes monstros de ferro para pulverizar com uma lata de azeite a cremalheira de uma das afiadas máquinas de fiação que giravam sem cessar. Outro menino corria por debaixo, arrastando um balde cheio de bobinas por um chão escorregadio de graxa e saliva de tabaco. Imaginou seus pés nus escorregando naquele chão imundo, imaginou-o esticando o braço para agarrar-se e que, em vez de fazê-lo, apanhavam-no as engrenagens de uma máquina desprotegida. Perguntou-se qual das máquinas tinha sido a que matou o menino irlandês, Padraic. Emma nunca soube como pôde distinguir à mulher entre a multidão de máquinas e operários da fábrica. Talvez fosse aquele cabelo vermelho, que era como uma tocha chamejante inclusive sob a escassa luz daquela sala cavernosa. Ou porque era a única que não se ocupava de sua máquina, que tirava fios de algodão, esquisitamente longos e finos e os enrolava em dúzias de bobinas giratórias.

Os olhos escuros da mulher, brilhantes e febris, olhavam fixamente para Emma. Puxou o aceso cabelo para trás, amarrando-o com um pedaço de cordão,

mas algumas mechas ficaram coladas às suas bochechas suadas. Sua cara tinha um brilho pálido, como a cera de uma vela acesa. Desta vez não estava encolhida em um casaco e Emma viu que o simples vestido, cozido em alvejante, estava manchado de graxa e se esticava, apertadamente sobre uma enorme barriga de grávida. A mulher deu um passo em direção a Emma e levantou a cabeça, como se fosse chamá-la. Mas então lhe deu um ataque de tosse, uma tosse áspera e dilaceradora. Seus ombros caíram para frente e apertou o peito, com o punho, enquanto a atacavam os golpes de tosse, um atrás do outro, e todo seu corpo se sacudia. Rebuscou na manga do gasto vestido, tirou um lenço e tossiu dentro com força, quase afogando-se, como se o seguinte fôlego fosse o último. Um homem da seção, que devia ser o capataz, viu-a então e gritou algo que Emma não pôde ouvir. Enquanto voltava para sua máquina, a mulher guardou o lenço de novo na manga, mas Emma tinha visto que aquele farrapo de algodão estava manchado com fios de sangue. Emma a observou também, sem mover-se, quase sem respirar. Perguntou-se como seria ela, Emma Tremayne, nascida com tanta riqueza e privilégios, no lugar daquela mulher que ia perdendo a vida, tosse a tosse, em uma fábrica de fiação de algodão.

Capítulo Sete Não era sempre que um jovem de apenas vinte e oito anos tivesse tanta certeza em seu coração, em sua mente e em seu espírito do que fazia e aonde ia na vida, mas Geoffrey Alcott era um homem assim. Toda manhã bem cedo, exceto aos domingos, ia a seu escritório, no velho armazém onde estavam os escritórios centrais da Têxtil Alcott, e ali governava o negócio da família com uma mão firme ao leme e um olho penetrante fixo no futuro. Além das instalações na Rua Thames, era dono de outras oito fábricas, distribuídas por toda a Nova Inglaterra e poderia ter vivido bem sem pisar em nenhuma delas, mas esse não era seu estilo. Para ele, sempre tinha sido uma questão de amor próprio ser capaz de fazer ele mesmo qualquer tarefa pela qual pagava a outros. Quando tinha dez anos, convenceu a seu pai para que lhe deixasse trabalhar com as bobinas durante uma semana; ainda se via a cicatriz na mão direita, onde tinha se cortado com um fuso de aço. Podia desmontar e montar uma cardadora quase com a mesma rapidez que seu melhor maquinista. Um dia, no ano anterior, tinha permanecido todo um turno diante de uma fiação de anéis, desenredando e atando os fios quebrados, ao lado do mais baixo dos ratos da fábrica. E mais, com frequência os secretários e capatazes de Geoffrey queixavam-se de que tentava fazer muito. Se fosse por ele, teria examinado, pago e cobrado todas as faturas ele mesmo. A verdade era que insistia em levar,

pessoalmente, os livros da fábrica da Rua Thames, fazendo todas as notas com sua meticulosa letra. Todos os dias, exatamente dez minutos para as doze, Geoffrey Alcott saía de seu escritório no armazém e voltava para casa, com passo moderado, descendo pela Rua Burton para o porto, antes de virar para a Rua Hope, na parte alta da cidade. As pessoas diziam brincando que podia pôr o relógio em hora com Geoffrey Alcott. A maioria dos dias desfrutava do passeio. Pelas ruas que cruzava entre as casas e as fachadas dos armazéns, podia vislumbrar, o porto. Quando soprava o vento, como hoje, podia cheirar o pescado, o mar e à fumaça de sua fábrica de algodão. Era durante seus passeios quando mais se dedicava a sonhar. Geoffrey Alcott era bonito e rico, mas estas coisas tinha herdado de seu pai e de seu avô. Ele sempre tinha querido deixar seu próprio rastro. Assim, nos últimos cinco anos, depois da morte de seu pai, tinha convertido a Têxteis Alcott em uma das maiores empresas do estado. Às fábricas tinha acrescentado oficinas de branqueamento e tintura. Este ano ampliaria suas operações para incluir uma fundição a fim de construir as máquinas que alimentavam de energia suas fábricas. Aquela mesma semana, o Providence Evening Bulletin se referiu a ele chamando-o «O magnata têxtil de Rhode Island». Tinha recortado o artigo e o levava no bolso da jaqueta de seu elegante traje xadrez. De vez em quando, enquanto passeava, dava uns golpes no bolso, sorrindo para si ao ouvir o rangente som do papel de jornal. Quando cruzou a Rua Church, entrou em um caminho abovedado de bordos, olmos e castanheiras gigantes. Deixou para trás o ruído do tráfico comercial e se entregou à música da vida da alta burguesia. A vida da “Gente Importante”. Aqui as rodas das carruagens não rangiam, faziam ranger suavemente o pavimento de terra e cascalho. O carvão não caía ruidosamente

pelos dutos até os baldes; deslizava-se suavemente até eles. Ninguém gritava nem falava palavrões, as crianças não choravam; ao contrário, às vezes, podiamse ouvir risadas infantis atrás das grades de ferro forjado e as cercas de arbustos. Quando passou em frente da casa, coberta de hera, das irmãs Carter, ouviu o chiado de um balanço na varanda. Parou e saudou, com uma inclinação de cabeça às duas senhoras. Sorriu quando ouviu a risadinha da senhorita Liluth. Sua própria casa era a maior e mais importante das mansões da Rua Hope. Passou sob uma arcada de ferro e subiu por um atalho lajeado de mármore. Os tilos se alinhavam a ambos os lados do caminho e nos dias ensolarados da primavera, como aquele, seu perfume era doce e perturbador. Sempre lhe produzia uma certa tristeza, o aroma dos tílios na primavera, embora não sabia por que. Pôs o pé na varanda e deixou vagar o olhar lentamente para cima, seguindo as colunas coríntias com suas ranhuras, de dois pisos altos e as altas janelas palacianas. O orgulho dos Alcott estava encravado na casa e sempre sentia como ele também se enchia de orgulho ao contemplá-la. Pôs o pé, calçado com uma bota de cano longo, de pele de canguru, feito a medida, no primeiro degrau de mármore justo no momento em que soava o penetrante som da sirene da fábrica, o relógio da prefeitura deu as horas e o sino de San Miguel fez soar as doze. Quando o último eco se desvaneceu no vento, ele já tinha cruzado a porta da mansão da Rua Hope. Pendurou seu chapéu de feltro na estante do vestíbulo e deixou a bengala, com cabeça de javali, esculpida em marfim, no puno, no suporte feito com uma pata de elefante. Arrumou o paletó e alisou o cabelo para trás. Respirou fundo, enchendo a cabeça com o conhecido aroma da casa, que era ao mesmo tempo doce e almiscarado. Haveria quem diria que eram cem anos de polimento de cera de abelha que tinham penetrado nos painéis de madeira de oliveira. Mas Geoffrey Alcott sabia exatamente o que era: o aroma do dinheiro

velho. Como fazia todas as tardes, entrou primeiro no salãozinho da manhã, onde encontrou sua avó sentada em sua cadeira de balanço branca de vime entre suas camélias e samambaias. Duas vezes por semana fazia com que lhe trouxessem o Bristol Phoenix recém-saído das prensas para poder verificar os obituários e tripudiar com os conhecidos sobre quem tinha conseguido sobreviver um dia mais. Estava-o esperando e seus olhos brilharam no rosto cansado quando ele entrou. Brandiu o jornal com tanta força que as fitas de seu gorro se agitaram. —Amelia Attwater! —Gritou. Estava quase completamente surda e se comportava como se todos os outros também o estivessem—. Olhe, aqui está... Amelia Attwater, morta, no jornal. Diz que foi o enfraquecimento cerebral o que acabou com ela, mas é uma mentira descarada. Sempre teve um cérebro tão fresco como os tomates cozidos, assim por que ia aparecer essa doença de repente e matá-la, não é? Diga-me, anda. Geoffrey se inclinou e beijou o ar perto de sua bochecha de papel crepe, recebendo uma forte emanação de naftalina e tinta fresca de impressão. —Talvez fosse uma enfermidade progressiva — disse. —Sujeira. Foram os cálculos da vesícula que o fizeram. A última vez que a vi, no funeral de Olivia Wentworth (e aquilo sim foi lamentável: latão em vez de prata no caixão e mal havia casulos brancos entre as flores) notei que cada vez tinha uma cor mais horrivelmente amarelada. Refiro-me a Amelia, não a Olivia. Olivia parecia uma ameixa seca, sem osso, porque o encarregado da funerária se esqueceu de lhe pôr a dentadura postiça. Quanto a Amelia, estava tão amarela como pipi de vaca. Eram as pedras, digo-lhe, só que os Attwater não podiam reconhecer algo tão ordinário. Sempre dando-se ares, essa família. — Golpeou o jornal com um dedo retorcido, com um anel de opala—. Inventaram isso de enfraquecimento cerebral. A anciã soltou um suspiro tão prolongado que o peito lhe ressonou como

se tivesse uma matraca dentro. —Pobre Amelia ictérica. Morta no jornal. Cortada na flor da vida. Geoffrey se inclinou por cima do ombro de sua avó, coberto com um xale branco de renda, para olhar mais de perto o obituário. As mãos da anciã, trêmulas, faziam com que o papel oscilasse, mas conseguiu vislumbrar o que queria. —Aqui diz que tinha noventa e três anos. —Na flor da vida, pobrezinha. Mas é bem sabido que os Attwater morrem jovens. Essa família nunca foi uma rocha, salvo as pedras que há em suas vesículas. Fora, uma rajada de vento soprou através das tílias em flor. Um redemoinho de pálidas pétalas amarelas roçou os cristais das janelas. E Geoffrey sentiu que o enchia de novo aquela sensação de tristeza infinita, como um ponto frágil em seu coração. —Te prepare para a chuva esta tarde —lhe disse sua avó—. Sopra um vento muito forte do oeste e o vento do oeste sempre traz chuva. Geoffrey sorriu e lhe deu uns tapinhas no ombro. —Farei-o — disse, mas não o faria. Toda sua vida, sua avó procurava sinais no vento e nas nuvens e, sempre, via chuva. Deixou-a com seus obituários e se foi, como fazia todas as tardes, à biblioteca, para atender os assuntos da administração doméstica antes do almoço. A biblioteca era uma bonita sala, com pilares de pinheiro esculpidos e pintados para imitar o mármore negro com veias de ouro. E uma chaminé redonda, arqueada, com um suporte de autêntico mármore negro rodeado por tijolos de cristal da Tiffany. Geoffrey a considerava seu santuário. Por essa razão, irritou-o encontrar-se com alguém desabado em sua poltrona Morris, ante sua mesa de mogno e bronze dourado. Stuart Alcott se apoiou no respaldo da cadeira, inclinando-a para trás,

afastou o cabelo dos olhos e cruzou as botas em cima do mata-borrão de feltro verde, sobre a mesa. Na mão, embalava um copo de cristal esculpido de Waterford. —Céu Santo, Geoff — disse—. O que acontece? Parece que acaba de sair do inferno. Aquela afirmação desorientou Geoffrey, porque se encontrava muito bem. Exceto por aquele toque de melancolia causado pelas tílias em flor, tudo ia bem em seu mundo. A verdade era que nada podia ir melhor. Entretanto, seu irmão era outra história. Melhor dizendo, era a mesma velha história de sempre. —Está bêbado — disse Geoffrey—, e mal são doze horas. Stu levantou o copo para ele em um fingido brinde. Tentou sorrir, mas o sorriso lhe saiu azedo. —Genebra e suco de limão. Contra o escorbuto. Quando Stu tinha dezenove anos, seu pai fez com que o internassem no manicômio de Warren, para curar seu vício no álcool. Quando, nove meses depois, voltou a sair por aquelas portas de ferro negro, não voltou para casa, em Bristol. Não voltou para casa durante sete anos, nem sequer para ir ao funeral de seu pai. Geoffrey pensou que a estadia no asilo de Warren não tinha obtido com que seu irmão deixasse de beber, mas sim que parecia havê-lo curado de qualquer alegria de viver que alguma vez tivesse tido. Stu tirou um charuto cubano do humidificador sobre a mesa. Geoffrey observou como lhe tremiam as mãos enquanto despojava o charuto de seu envoltório de seda e cortava a ponta com a fina faca de prata que levava na corrente do relógio. Stu deu um impulso para se levantar da poltrona, cambaleou ligeiramente e tropeçou em uma mesa de xadrez com incrustações de marfim. Uma torre de prata de lei rodou para o chão. Sob a áspera luz que entrava pelas janelas da biblioteca, Geoffrey notou os olhos turvos de seu irmão, e o princípio de barba cor areia em seu queixo. A

gravata pendurada, como a corda de um enforcado, ao redor do pescoço. Tinha aberto o pescoço da camisa, manchado de suor e Geoffrey viu com escândalo e asco que as pontas estavam desfiadas. Na adolescência, Stu cultivou o amor pelos Iates rápidos e os cavalos mais rápidos ainda e a sede pelos coquetéis de champanha e brandy. O mundo em que viviam exigia, verdadeiramente, muito pouco dos jovens ricos, só que exibissem boas maneiras e se vestissem bem. Mas seu irmão já não conseguia nem isso. Entretanto, quando olhava a cara, cansada da vida, de Stu, Geoffrey via vestígios do rapaz encantador e de coração indômito que foi uma vez. O irmão mais jovem que admirou, invejou e amou. Stu aproximou-se, cambaleando, até o suporte da chaminé onde havia um recipiente de bronze com lascas para acender cigarros. Agarrou uma e então se deu conta que o fogo não estava aceso. Na mansão da Rua Hope, o fogo se apagava na Semana Santa e não se reacendia até depois do dia de Ação de Graças, fizesse o tempo que fizesse. Stu lançou a lasca dentro da lareira vazia. —Por Cristo, aqui nunca muda nada. É para voltar-se louco. —Há uma caixa com fósforos ali — disse Geoffrey, assinalando uma mesa de mogno com as pernas torneadas em que descansava, em seus pires de prata, uma série de pesadas garrafas de cristal antigo, com licores—. E, de passagem, poderia aproveitar para pegar um pouco mais de suco de limão. Houve uma autêntica epidemia de escorbuto em Bristol esta primavera. Geoffrey recuperou sua poltrona Morris, agora vazia, e se acomodou atrás de sua mesa de mogno com um pequeno suspiro de satisfação. Esfregou os rastros que as botas de seu irmão tinham deixado no feltro. Devolveu o abre cartas de madrepérola em seu lugar habitual entre o telefone e uma caixa de selos de correios de ônix. Quando voltou a levantar a vista, Stu lhe sorria com olhos cúmplices e,

erguendo o copo, oferecia-lhe um daqueles irritantes brindes zombador. Esta vez, a bebida se transbordou por cima do copo e salpicou o tapete rosado. —Salve, herói conquistador! —disse Stu, arrastando as palavras—. Todas as fofocas no clube marítimo e no restaurante estiveram dedicadas a seu cortejo e conquista da gloriosa Emma Tremayne. Geoffrey sorriu enquanto voltava a colocar o tinteiro de cristal esculpido no centro da mesa. Sempre sentia um fulgor quente no mais profundo do peito, seguido de um leve matiz de assombro, quando pensava que, agora, Emma era sua de verdade. Sua. Possivelmente a volta de seu irmão tivesse precipitado sua proposta a Emma. Tinha planejado pedir-lhe no verão, em Quatro de Julho, para ser exato. Mas a maneira como Stu a olhava no dia da caçada... Geoffrey se sacudiu mentalmente. Era ridículo, claro, pensar que seu irmão tivesse tido nem a mais remota possibilidade de lhe tirar Emma. Dos dois, Stu sempre tinha sido o mais bonito e o que tinha mais encanto, mas Geoffrey era o que tinha todo o dinheiro. Levantou os olhos e se encontrou com seu irmão olhando-o fixamente, com o copo suspenso no ar. —O que acontece?—disse Geoffrey. Stu abriu muito os olhos e cabeceou lentamente, como se o movesse uma absoluta estupefação. —Deus Santo! Se você pudesse ver sua cara faz um momento, quando a nomeei... Quase se poderia acreditar que a ama. Geoffrey secou o canto dos lábios. —Eu... —endireitou a gravata de seda marrom e nó corrediço—. Ela... Stu inclinou a cabeça para trás e soltou uma sonora gargalhada em direção ao teto artesonado. —Meu irmão Geoff segue contando as palavras com o mesmo cuidado de sempre. —Amo-a — disse Geoffrey, e se sobressaltou ao pronunciar essas

palavras—. A quis desde... —abriu as mãos, ruborizando-se— sempre. Uma estranha expressão apareceu no rosto de Stu. Geoffrey quase podia acreditar que o que acabava de ocorrer a seu irmão, afetava-lhe muito profundamente. —Nunca a fará feliz —disse Stu. —Mas é claro que a farei feliz. —Virou o humidificador para que sua águia de bronze de enfeite estivesse de novo olhando para a porta—. Por que razão não ia fazê-la feliz? —Porque nossa querida Emma sempre teve muita imaginação. Inclusive talvez tenha, de vez em quando, um vislumbre de que existe todo outro mundo, além de montar em uma carruagem dourada com almofadas de veludo, comer ostras e beber champanha, tudo isso vestida com um traje de baile da Maison Worth. E quando isso acontecer acabará fazendo algo que te aterrará e nosso mundo a destruirá por havê-lo feito. —Que fileira de tolices. O relógio do suporte começou a dar as horas, sendo acompanhado, imediatamente, pelo relógio de pé do vestíbulo. Geoffrey tirou seu relógio de ouro do bolso e assentiu, satisfeito que o tempo estivesse bem utilizado e sob controle. Voltou a deslizar o relógio no bolso do colete e levantou a vista. —Minha Emma não pode me dar mais que alegrias. —Naturalmente isso é o que você quer acreditar — disse Stu—, dado que não tem nem um pingo de imaginação. Geoffrey sentiu um golpe de irritação conhecido. Seu irmão sempre conseguia fazer com que ser sólido, confiável e responsável parecessem falhas de caráter. —E você —disse Geoffrey— sempre exibiste uma desgraçada tendência a pôr seus próprios pensamentos e emoções, tão exagerados, no coração e na mente dos outros. Só porque você sente esta compulsão para te rebelar contra

«nosso mundo», como você o chama, não quer dizer que o resto de nós alberguemos secretamente um desejo similar. A verdade é que acho bastante divertido que possa fazer tudo isso enquanto te embebeda bebendo álcool em um copo que vale mais do que um de meus operários ganhará em um ano. Stu sorriu de repente e bebeu outro bom gole de genebra. —Tem razão, certamente. A vida do rebelde só é romântica em abstrato e em um luxo que, provavelmente, não posso me permitir. O qual nos traz de novo e com bastante habilidade, se me permite dizê-lo, ao tema do dinheiro e de minha carência do mesmo... Geoffrey o interrompeu com um gesto. —Pensava que tinha deixado clara minha posição a respeito. Não posso estender outro cheque contra seu fideicomisso antes que acabe o trimestre. Como fiduciário, tenho certas obrigações para executar a letra, se não o espírito, da última vontade de nosso pai... Stu deu uma forte palmada na mesa. —Que se fodam suas obrigações! E você e ele juntos! Deus, você é pior do que nosso querido pai já foi! Mais estreito que a buceta de uma freira. — interrompeu-se, engolindo ar com tanta violência que estremeceu—. Não me faça suplicar, Geoff, pelos pregos de Cristo. Geoffrey estendeu o braço para endireitar o tinteiro que tinha sido deslocado pela ira de seu irmão. Não havia nenhuma necessidade de que Stu lhe jogasse na cabeça palavras sujas como se fossem esterco de vaca. Se seu irmão tivesse mostrado algumas daquelas falhas de caráter, como a confiabilidade e a firmeza, quando era mais jovem, possivelmente seu pai não tivesse amarrado sua herança com um nó mais apertado que a... Isso de uma freira. Acabava de levantar a cabeça para dizer tudo isso, quando a porta da biblioteca se abriu e apareceu Emma. De pé na entrada, parecia uma silhueta perfilada em luz prateada. Logo cruzou a soleira e levantou a cabeça. A rígida asa de verniz do gorro de

marinheiro que usava se inclinou para cima, deixando ver seu rosto, e o coração de Geoffrey deu um tombo de surpresa, como fazia sempre ao vê-la, desde que ele podia recordar. Estava vestida para navegar, com uma saia azul escuro rodeada com uma fita dourada e uma blusa com uma grande gola de marinheiro. Pensou que estava adorável. Ficou em pé de um salto e cruzou a sala para ir a seu encontro. Emma tinha as bochechas ruborizadas e ele confiou que fosse só devido ao vento e que seus inocentes ouvidos não se sujaram com a vulgaridade de seu irmão. Rodeou-lhe a cintura com o braço, acompanhando-a para um sofá de pele cor vinho. Apertou-lhe o lado com a palma da mão, justo por debaixo das costelas e notou como cedia a carne, como se movia, suavemente, ao ritmo de sua respiração. Pensou que aquilo lhe estava permitido. Agora que estavam prometidos tinha direito a tocá-la com mais frequência e mais intimamente. Mas tinha que ir com cuidado, porque a desejava com desespero. —Querida — disse e a voz lhe falhou um momento devido à força de seus sentimentos—. Que surpresa tão agradável. A cara que ela voltou para ele era tão translúcida como uma concha lavada pelo mar. —Acabo de estar em sua fábrica, Geoffrey. Era... Nem sequer consigo pensar no que te dizer. Todo o tempo tive medo de que as máquinas fossem ficar loucas a qualquer momento e devorar os meninos. Ficou estupefato de que tivesse ido à fábrica, porque não era lugar para uma Dama de tão terna delicadeza. Não era de surpreender que estivesse tão trêmula; só o ruído e os aromas deviam havê-la feito desfalecer. Tudo era culpa daquela estúpida mulher que levou seu filho morto à caçada fazia um mês. Sua pequena e querida Emma sempre havia sentido muita empatia por todas as criaturas de Deus, incluídos os irlandeses. Acomodou-se ao lado dela e aproximou a cabeça à sua. Cheirava a água

de lilás e a mar. Agarrou-lhe a mão, que tinha apoiada, fechada em um punho, na saia, e lhe abriu os dedos, um a um. —Nenhum menino vai ser devorado por nada. Está se deixando dominar por sua imaginação. Stu fez um ruído que estava a meio caminho entre um ronco e uma risada. Tinha ido apoiar-se, negligentemente, no suporte da chaminé, mas Geoffrey estava decidido a não lhe prestar atenção. Pelo contrário, tinha o olhar fixo no rosto de Emma, em seus olhos, que tinham mudado até adquirir a cor do mar quando reflete um céu fustigado de nuvens. Estava seguro de conhecê-la, mas, algumas vezes, parecia-lhe ver, no mais profundo dela, uma fina chama branca que a consumia de dentro para fora. Emma retirou, com brutalidade, a mão de entre as suas. —E depois tive uma conversa muito esclarecedora com o senhor Stipple. Disse-me que paga a esses pobres meninos um dólar e meio à semana. Não podem viver com uma soma tão miserável. É ridículo e cruel que alguém pense que podem. —Não é uma soma miserável para eles. Nasceram para arrumar-se com cascas de batata. Emma segurava o guarda-sol com tanta força que o osso do pulso se via branco, por cima da luva. Percorreu a sala com o olhar, com os olhos muito abertos, como se tivesse se encontrado de repente no lugar equivocado. Voltou a olhar para Geoffrey de novo e a chama que havia em seus olhos ardia mais brilhante e apaixonada. —Parece-me que desprezo este teu aspecto, Geoffrey Alcott. Stu bufou de novo. —Não só imaginação, além disso, também tem percepção. Uma combinação mortal, Geoff. Mortal. Geoffrey tentou voltar a lhe agarrar a mão, mas ela a afastou.

—Não acha que está me julgando injustamente, Emma? Essas pessoas vieram desde seu desventurado país, ignorantes e sem um penique, e eu lhes dou trabalho, um lugar onde podem aprender sólidas virtudes cristãs e o benefício de um trabalho honrado. —E a lei? O olhar de Geoffrey estava fascinado pela maneira como tremia o lábio inferior de Emma e o peito lhe subia e lhe descia devido à agitação de sua respiração. Tinha perdido o fio de seus pensamentos e das palavras dela. —Lei? Ela se levantou e se separou dele. Em seguida deu meia volta e voltou a sentar-se. —A lei que proíbe que crianças menores de doze anos trabalhem nas fábricas. Geoffrey se havia ali um menino que tivesse mais de doze anos, surpreender-me-ia. —Os pais estabelecem sua idade. Não é precisamente que cheguem aqui da Irlanda com suas certidões de nascimento presas no peito. Além disso, a maioria são, certamente, mais velhos do que parecem. —Sem dúvida, uma dieta de cascas de batata —disse Stu— tende a obstaculizar um pouco o crescimento. Geoffrey sentia a tentação de dizer a seu irmão que fechasse a boca, mas em vez de fazê-lo, agarrou de novo a mão de Emma, que esta vez o permitiu. Aquela mão tremia entre as suas como um pássaro com a asa quebrada. Os sentimentos de Emma cruzavam seu rosto como relâmpagos, quase muito rápido para que ele pudesse interpretá-los: culpa, lástima, dor. De repente reparou, bastante assustado, em que possivelmente nunca a tinha compreendido tão bem como pensava. Sempre lhe tinha parecido que ela estivesse esperando algo e até esse momento sempre tinha dado por certo que esse algo era ele. —Não me trate como se fosse estúpida — disse ela—. Aquele pequeno das bobinas, que morreu, não podia ter mais de seis anos. Geoffrey lhe cobriu a mão com a sua, aquietando-a.

—Por casualidade encarreguei que fizessem um relatório sobre meios para melhorar as condições nas fábricas — disse, e era verdade, embora o relatório tivesse que centrar-se no terreno da produtividade e na eficácia. Entretanto, não se opunha a ampliar este enfoque, se isso fazia Emma feliz. Passou-lhe o polegar ao longo da costura da luva. —Quando estiver acabado, possivelmente poderia ser tão amável de lê-lo e me oferecer suas sugestões. Da perspectiva de uma mulher. —Sorrindo, subiu a mão livre para percorrer o delicado traço de sua orelha—. Os compassivos olhos e ouvidos femininos conseguem ver e ouvir coisas que nós, homens rudes, não percebemos. —Se tivesse tomado o café da manhã — disse Stu—, faria tempo que teria ficado sem ele. —Está sendo sincero comigo, Geoffrey? —perguntou, estudando sua cara e algo mudou de novo atrás de seus olhos, fazendo-os mais cinzas e inflexíveis—. Porque já pensei um pouco, sobre as coisas que se podem fazer. Algo tão simples, como por exemplo, que entre mais luz, porque aquele lugar está mais escuro e sujo que um cárcere, só com aquelas janelas estreitas e imundas. —Querida... Acreditara-me quando te disser que não sou um monstro sem coração, que as vistas de meus trabalhadores já sou melhor, que a maioria? O que aconteceu com aquele menino foi um acidente; desventurado, terrível inclusive, mas um acidente. Emma soltou um suspiro longo e trêmulo. —Quero acreditar em ti, Geoffrey. —Seu olhar caiu nas mãos enlaçadas dos dois e lhe suavizaram os lábios, fazendo-se mais profundos nos cantos—. Assim poderei ser útil a você, Geoffrey, quando estivermos casados. —É obvio que sim — disse ele, sorrindo-lhe de novo com ternura. Estava seguro de que uma vez casados ela estaria muito ocupada sendo sua esposa para interessar-se pela dura situação dos operários irlandeses—. Bem, me diga, ficará

para almoçar conosco? Ela ficou em pé com graça e um rumor de anáguas de tafetá. —Obrigado por me convidar, mas tenho que ir para casa. Vim até aqui em meu Saveiro e já sabe que mamãe sempre se preocupa quando o faço. Geoffrey olhou para fora através das janelas. As folhas verde limão dos tílios tremiam e batiam as asas ao vento. —Acredito que se levantou um vento muito forte para que governe o navio você sozinha. Deixe que te leve As Bétulas no coche. Mas ela já ia se afastando dele. —Olhe, não comece agora você também a te inquietar por mim, Geoffrey. Se vim no navio até aqui, certamente que também posso voltar no navio até em casa. Acompanhou-a até a porta e ficou olhando-a enquanto percorria as lajes de mármore, entre as árvores, passando do sol à sombra e aquelas fragrantes pétalas amarelas se deslizavam pelo ar para lhe beijar as bochechas e o cabelo. Os olhos de Geoffrey se encheram de lágrimas. Não acreditava que fosse possível amá-la mais do que ele a amava naquele momento perfeito de um dia primaveril cheio de flores.

Capítulo Oito —Não me diga que não faz um dia estupendo, tão azul e cheio de energia. Foi em um dia de maio como este, ou isso dizem, quando os irlandeses inventaram a dança. Bria McKenna recolheu as saias e tentou dançar uma giga, mas sua enorme barriga de grávida deslocava tanto seu peso para frente que começou a balançar como um peão a ponto de parar. Poderia ter caído se sua filha Noreen não a tivesse pegado, lhe rodeando as coxas com um braço magro, mas forte. —Mamãe! —A menina olhou para Bria com um ar implorante e a cara vermelha como um tomate e as palavras saindo com um murmúrio afogado—. Mamãe, o que está fazendo? Todo mundo está nos olhando. —E eu com isso? —disse Bria, rindo tanto que não podia respirar. No entanto, deixou de se fazer de tola porque recordou como era quando se tem dez anos e está segura de que o mundo inteiro não tem outra coisa a fazer que esperar o momento em que você e os teus banquem o palhaço. Alisou as saias. Recolheu os cachos que tinham escapado, tentando colocá-los no coque trançado que levava na nuca, mas voltaram a escapar. —Me olhe — disse—, sóbria como a esposa de um magistrado. —pôs-se a rir e deu uns tapinhas na protuberante barriga—. E o bastante enorme para fazer sombra a um elefante. Colocou as mãos na cintura e olhou para baixo, a suas filhas, que tinham a cara levantada para ela. A boca de Noreen estava tão lisa e fina que parecia

que a tinham costurado. A pequena Merry tampouco sorria, mas a verdade é que Merry já não sorria quase nunca. Entretanto, Bria viu com grande alegria que os olhos azuis da pequena, em geral muito grandes e tristes, faiscavam com uma risada silenciosa. Passou os dedos por entre os cachos avermelhados de sua filha menor. —Merry não se envergonha de sua pobre e tola mãe, verdade, m'eudail? Merry negou com a cabeça e cantarolou uma melodia suave que era como o arrulho de uma pomba triste. Noreen deu meia volta e se afastou delas para sair pela larga entrada da fábrica, com sua arcada de tijolo, com a marmita do almoço, de lata, lhe dando golpes contra a perna. Bria engoliu um suspiro. Queria agarrar Noreen pelos ombros e sacudi-la um pouco e fazer com que olhasse para cima, a enorme tigela vazia e azul do céu e a tudo o que havia para que o sol o iluminasse. Queria que sua filha absorvesse a alegria diretamente do dia, como faria com um refresco no quiosque de bebidas. Porque podiam ser tão raros, os dias como este, os momentos como este, e tão preciosos e nunca sabia quando voltaria a ver algo igual. Bondade divina, não acontecia frequentemente que as meninas pudessem nem sequer levantar a cara para sentir o calor do sol. Despertavam ao agudo assobio da sirene da fábrica e iam ao trabalho antes de amanhecer e não voltavam até depois de anoitecer. Só um sábado ao mês tinham meio-dia livre e pela primeira vez não nevava, nem chovia nem soprava um vento terrível. Notou que lhe puxavam a saia e olhou para baixo. Merry deslizou uma mão suarenta na sua e Bria sorriu através da súbita ardência das lágrimas. Cruzaram a grade da fábrica e desceram pela Rua Thames em direção a casa. Pelas portas abertas dos botequins do porto saíam risadas. A maré estava baixa e a brisa trazia com força o aroma dos bancos de mariscos. Merry começou a cantarolar um som longo e rítmico, como a gente faz

quando esqueceu a letra de uma canção. Bria só podia sorrir, assentir e dizer: —Claro querida. Tem toda a razão, tesouro. Antes, a menina era tão cheia de risadas e alegre falatório que começaram a chamá-la Merry, mas logo veio aquele dia terrível, o dia em que o magistrado residente e seus oficiais fizeram uma visita a pobre cabana de pedra dos McKenna e mudaram suas vidas para sempre. Aquele dia Bria tinha advertido a suas filhas que mantivessem a boca tão bem fechada que não saísse nem um pio, acontecesse o que acontecesse, e o que aconteceu foi horrível de verdade. E a pequena Merry McKenna não voltou a falar nunca mais. Agora todas as suas palavras eram como um zumbido e quão única podia entender um pouco o que dizia era sua irmã. Mas quem sabia se Noreen o entendia sempre bem? Porque, às vezes, a pequena soltava um longo discurso e em seguida sua irmã dizia algo do mais extravagante como, por exemplo: «Merry falou com os duendes que vivem na caixa de carvão e temos que lhes deixar um pedaço de pão toda noite». Embora, claro, a carinha solene de Merry assentia, como se aquilo fosse, de verdade, o que ela havia dito. Além disso, quem podia dizer o contrário? Bria pensou que o mundo estava cheio de milagres e mistérios, cheio de coisas assombrosas. Cheio de coisas alegres. Antes daquele dia... Antes daquele dia, Noreen era uma menina valente e insolente, com aqueles olhos dela que sempre lhe olhavam de cima abaixo e aquela língua desavergonhada. Ela sabia o que sabia e não lhe importava nem um pouco o que os outros dissessem ou pensassem. Teria dançado uma giga com sua mãe e riria alto. Antes daquele dia... O bebê deu um chute de repente e Bria grunhiu surpreendida. Apertou a palma da mão contra a barriga, notando como se movia a vida em seu interior, mas não sorriu. «antes daquele dia — pensou—, ela também era alguém

diferente.» Uma dor aguda lhe subiu pelo braço e soltou a mão de Merry para esfregá-lo e, já que estava fazendo isso, esfregou também as costas doloridas. Dia após dia trabalhando com a máquina de fiar cobrava seu preço, e, além disso, havia outra bênção acrescentada há aquele dia em particular. Quando aquela tarde foi bater o cartão do ponto, o senhor Stipple lhe disse que a tinham mandado embora. Por abandonar seu posto de trabalho, lhe tinha dito. Claro que ia perder seu posto de todos os modos dentro de pouco tempo, com aquela barriga enorme que parecia que tinha engolido, não uma cabaça, a não ser todo o maldito cabazal. O problema era que logo teriam outra boca a mais que alimentar e entrariam em casa três dólares menos à semana. Mas, naquele momento, tinha algumas moedas soando no bolso e, de repente, sentiu-se presa de uma audácia eufórica. Queria passar esse dia convencida de que, ao seguinte, choveriam lhe peniques do céu. Em uma esquina, viu uma garota que vendia espigas de milho, que tirava de um caldeirão de ferro fundido cheio de água fervendo. Chamou a suas filhas e comprou um par daquelas delícias fumegantes. —Vamos comê-las à beira da baía — disse—. Faremos um piquenique de verdade. Merry apertou fortemente sua espiga de milho com uma mão suja e pôsse a correr, rua abaixo, para a água. Noreen, depois de vacilar um momento, seguiu-a. Seus puídos vestidos lhes açoitavam as panturrilhas enquanto seus pés descalços evitavam habilmente os excrementos de ganso que sujavam o chão. Uma gaivota do porto voou em direção a Noreen, tentando lhe roubar o milho e, embora Bria pensasse que a menina se encolheria de medo, em realidade pôs-se a rir. Uma risada gloriosa, que parecia saída da barriga de uma rã e que fez com que os olhos de Bria se enchessem de lágrimas. As meninas se sentaram nas rochas para comer. Bria ficou de pé a seu lado, olhando aquelas duas cabeças inclinadas. O cabelo de Merry, ferozmente

encaracolado e avermelhado, tão parecido ao de sua mãe, seria uma maldição para ela quando crescesse. O de Noreen, mais escuro, castanho como as folhas, com só um pouco do vermelho e o cacho irlandês. Bria as olhou, a suas filhas queridas, e sentiu tanto amor por elas que lhe doeu. Piscou e levantou a vista, olhando para as ondas douradas. O ar ali embaixo tinha um vigor especial, cheio de sal e alfena e dos restos do pescado que se apodrecia, brilhando ao sol, nas terras lamacentas que a maré tinha deixado descobertas. Lá fora, na baía, um veleiro ia rumo à ponta Poppasquash e sua esteira riscava uma linha azul na água prateada. Bria notou a primeira tosse como um comichão no peito e tentou dominála esmagando-a com a respiração. Mas nunca havia maneira de pará-la, já não, e não podia deixar de respirar todo o momento. Quando abriu a boca para puxar o ar, os golpes de tosse jorraram de seu interior, como se lhe rasgassem e arrancassem o peito de dentro para fora. Tossiu e tossiu e tossiu, até que parecia como se o punho de um gigante lhe apertasse as costelas e lhe retorcesse todos os ossos. Levou uma mão ao peito, apertando, justo por debaixo do coração desbocado, enquanto com a outra agarrava uma pequena garrafa marrom, de vidro, e bebia um sorvo e, ao fim de um momento, parou de tossir. Ainda notava os pulmões grossos e úmidos, mas agora o peito ficaria tranquilo. Durante um momento estaria tranquilo. Aquele remédio era uma maravilha, sem dúvida, embora seu efeito só durasse uma hora, mais ou menos. De repente, Merry se levantou e começou a dançar, saltando de um pé ao outro, e seu cantarolar se voltou agudo e excitado. Assinalou com um dedo, sujo de suco de milho para ponta Poppasquash e a mansão de telhado cinza de piçarra que brilhava sob o sol. Bria olhou, entrecerrando os olhos para evitar o brilho cintilante da água. Com o brilho branco do céu e da baía, a casa parecia flutuar como uma nuvem prateada.

—Olhe, é igual a um castelo de contos de fadas —disse. Mas logo viu que Noreen olhava fixamente a sua irmã pequena com seus olhos castanhos tão grandes como rodas de carroça. —O que acontece? —perguntou Bria—. O que está dizendo? Noreen voltou seus olhos para sua mãe. —Diz... Diz que o anjo que veio à fábrica hoje vive naquela enorme casa prateada sobre a água e... Merry retomou seu cantarolar e moveu a cabeça com tanta força que os cachos se agitaram. —E que vai te levar, com ela, para aquela casa — acabou Noreen, apressadamente, ficando em pé de um salto—. Mamãe, não lhe deixe que o faça! Não deixe que o anjo a leve para longe de nós! —Mas que classe de tolice é esta? —Bria tentou rir, mas tinha um apertado nó na garganta. «Não vou deixá-las — queria lhes prometer—”. “Nunca, nunca lhes deixaria.» Mas as palavras se emaranharam com a mentira nelas contidas. —Que tolice — repetiu, no entanto, embora compreendia o que tinha levado a sua visionária filha pelo caminho de uma de suas desatadas imaginações. «Um anjo... “Sim, um anjo parecia àquela jovem, algo mágico e extraordinário, ali de pé, por cima de suas cabeças, na passarela, com o sol entrando pelas janelas, de forma que o mesmo ar a seu redor parecia estremecerse e tremer com a luz que a banhava.» Bria se ajoelhou na areia da praia para poder rodear com os braços a suas filhas. —A senhora que veio à fábrica hoje não é um anjo. Sem dúvida que é uma dama muito elegante e bonita. Mas não é um anjo. E estou segura que não vai ter nada a ver com gente como nós. Merry emitiu um cantarolar doce e quente como uma canção mágica. —Diz que não é medo o que temos que ter, porque o anjo fará com que

todos os nossos desejos se convertam em realidade. Noreen voltou seus olhos suplicantes para sua mãe. Bria pensou que era como ela, que queria um milagre, queria-o com desespero, mas era incapaz de não procurar sempre o lado negativo em algo bom. Enquanto Merry era como seu pai, com aqueles sonhos grandes e impossíveis dentro dela. —Venha, meus tesouros — disse Bria, com os braços estreitando-as mais apertadamente—. Temos que ir para casa. Entretanto, permaneceu onde estava, ajoelhada na areia fria e úmida. Pareciam-lhe tão pequenas e frágeis entre seus braços, suas filhas, e queria sustentá-las assim, junto a ela, a salvo contra seu peito, para sempre.

De caminho para casa cruzaram com os homens que trabalhavam nos campos de cebolas. Todos os trabalhadores levavam enxadas no ombro e réstias das apreciadas cebolas vermelhas de Bristol pendurando das mãos. Bria procurou seu homem entre eles, mas não estava ali. Quando passavam em frente ao salão Crow's Nest se deteve e, ficando nas pontas dos pés, olhou por cima das portas de tábuas procurando sua imagem grande e musculosa entre os rapazes ruidosos que estavam de pé, encostados no bar. Mas tampouco estava ali. Sua casa, uma cabana de tábuas com dois cômodos, construída sobre palafitas, levantava-se no lado do mar na Rua Thames. Tinha o telhado e as paredes de papel de piche e muros cheios de zostera marinha para manter dentro o calor contra os invernos da Nova Inglaterra. Muito diferente daquela casa em shibeen com o teto de palha em que tinha vivido toda sua vida antes disto. Alguns dias podia fechar os olhos e cada muro de pedra e cada pedaço de batata de seu lar na Irlanda surgiam, vívidos, em sua mente. Sentia então a perda de sua vida e dela mesma como algo enorme, abismal e definitivo. Então se obrigava a ter os olhos bem abertos e olhar a suas filhas e a seu homem, todos eles tão queridos para ela como o fôlego divino e se obrigava a

pensar neste país ao qual tinha vindo. Esta América, tão grande e importante, tão cheia até arrebentar de vida, sonhos e promessas. Och, podia quebrar seu coração com suas promessas, esta América. No momento em que entrou no caminho de terra, caminhava tão depressa que as meninas tinham que correr para manter-se a seu lado. Sentia a dor do cansaço nas pernas enquanto subia as escadas da varanda e abria a porta de repente. Mas a cozinha estava vazia e seu nome e o sorriso que sempre hasteava, só para ele, morreu em seus lábios. A casa cheirava a bacon e a couve que tinha preparado a noite anterior para jantar, assim deixou a porta aberta para que entrasse a brisa do mar. Enquanto as meninas se lavavam, Bria vestiu o avental e lhes preparou sanduíches de pão e bacon. —Aqui está — disse ao pôr os pratos cheios na mesa—. Vão ter que usar as mandíbulas para dar conta de tudo isto. Noreen lhe fez uma careta, porque dizia o mesmo todo sábado livre, quando lhes preparava sanduíches. Mas Bria riu. Inclinou-se e beijou a sua filha no cabelo, ali onde a raiz se destacava, branca entre o cabelo castanho. —Por que não vão lá fora e desfrutem do resto do dia, com todo esse sol que parece que vai explodir no céu? —Deu um suave apertão no ombro da menina—. Vá, vá, querida, e leve o jantar contigo. Noreen deu um olhar cheio de desejo pela porta aberta, mas um resto de medo lhe impedia de mover-se. Logo agarrou o sanduíche com as duas mãos e saiu correndo ao sol. Bria a seguiu até a porta, olhando-a e sorrindo. Mas quando olhou para Merry, um momento depois, viu que a menina se sentou à mesa e adormeceu antes de dar a primeira dentada no sanduíche. Às vezes, os pequenos dormiam de pé, diante das máquinas de fiação, de tão cansados que estavam. Bria a agarrou nos braços e a levou ao dormitório. Pesava tão pouco entre

seus braços, era tão leve como a seda mais fina. E lhe pesava tanto o coração ao olhar a carinha de sua queridíssima filha pequena, tão magra, cansada e pálida. Bria a deixou entre os lençóis feitos de tecido de saco, ásperos mas limpos. Alisou os brilhantes cachos de Merry e a beijou na testa. Prometeu-se que amanhã as levaria para fazer um piquenique de verdade na Town Beach. Comprar-lhes-ia uma bolacha cheia de geleia com um tratamento especial, embora lhe custasse toda uma moeda de cinco centavos. Amanhã... Sentiu que o desespero a golpeava como se fosse uma onda ao romper e tremeu sob sua força. Amanhã... Que palavra tão grande e triste! Tão cheia de esperança, maravilhas e promessas. Mas só se você estivesse segura de ter, de ter um manhã. Bria deu outro beijo, suave como um suspiro, em sua filha e voltou para a cozinha. Olhou o sanduíche, abandonado no prato de esmalte lascado e pensou que seria melhor que ela o comesse. Era só que agora sempre tinha tão pouca fome e, entretanto, o bebê crescia, grande e pesado, em seu ventre, enquanto que o resto de seu corpo parecia um molho de varas amarradas com uma corda. E agora, com ela sem trabalho e seu homem outra vez nos campos de cebolas, dentro de pouco tempo estariam vivendo de cenouras, nabos e maçãs meio podres. Mas até o aroma do bacon a punha doente. Envolveu o sanduíche em um pedaço de papel e o guardou na caixa de lata para depois. Pôs mãos à obra para preparar um novo lote de pão de soda, carregando o carvão do fogão de ferro negro. Na Irlanda cozinhava em um fogo aberto, cozendo as batatas e os nabos dentro de um grande caldeirão. Não tinha madeira nem carvão para fazer fogo, mas havia muita turfa para arrancar justo diante da porta de casa. Recordou com um suspiro que não havia aroma tão doce como o da turfa ao arder. Bria sacudiu a cabeça com força, tentando arrancar seus pensamentos de seu lar. Mais valia que seu coração o aceitasse; nunca voltaria a ver a Irlanda.

Ao esticar a mão para agarrar a lata de farinha, Bria olhou pela janela e viu sua filha, de cócoras, brincando sozinha. Um punhado de desarrumados meninos da fábrica se reuniu para olhá-la, com admiração silenciosa, enquanto ela lançava no ar quatro pedras e as recolhia todas no dorso da mão. Bria não pôde evitar sorrir ao vê-lo. Ninguém diria que sua Noreen, com aquela cara séria e bicuda e sua atitude mordaz, atrairia tanto aos meninos. —Que Deus nos proteja! —exclamou Bria em voz alta, porque um dos meninos acabava de oferecer a sua filha uma imersão de seu cigarro e, claro, aquele demônio de menina tinha aceitado a provocação—. Dentro de pouco tempo, seu pai terá que afugentá-los a golpes de shillelagh. —Está, possivelmente, falando com as fadas? Bria se virou com tanta rapidez que por pouco não joga ao chão a lata de farinha. —Donagh! Deixaste-me sem respiração de susto. O homem que estava na soleira lhe ofereceu um sorriso que deixava pálido o sol. Rindo, Bria correu até ele e ficou nas pontas dos pés para lhe plantar um sonoro beijo na bochecha. A senhora McKenna comportando-se com tanta falta de vergonha com o pároco de Santa Maria e não servia de desculpa que aquele galhardo e bonito rapaz fosse seu próprio irmão. Agarrou-o pelo braço e puxou-o fazendo-o entrar. —Sente-se. Acabo de pôr a chaleira no fogo. —Agarrou-lhe o chapéu e o pendurou em um gancho na parede e depois o observou sorrindo, enquanto acomodava todo seu comprimento em uma de suas cadeiras de encosto de escada—. Tem bom aspecto, mo bhriathair. O padre Donagh O'Reilly era um homem bonito de verdade, com o cabelo grosso, vermelho escuro, uns quentes olhos castanhos e aquela boca que sempre parecia estar a ponto de sorrir. O que Deus tinha ganhado tinha perdido alguma boa mulher, certamente. Justo naquele momento, a chaleira começou a assobiar e Bria foi tirá-la

do fogo, enquanto preparava o chá para pô-lo em infusão. —Alegrou-me verte na missa das cinco esta manhã —disse seu irmão por cima do assobio que se apagava. Bria lhe jogou um olhar por cima do ombro. —Então tem olhos na nuca, não é? Sorriu-lhe, mas em seguida ficou sério. —Talvez não na nuca, mas tenho olhos. E ouvidos. É muito fiel à missa diária, isso é verdade. Nem um só dia falhaste desde que está aqui. Mas nenhuma só vez ouvi sua voz no confessionário. Nenhuma só vez te pus a hóstia consagrada entre os lábios. Bria lhe voltou às costas, fingindo estar ocupada colocando as xícaras muito cuidadosamente nos pires. Enquanto isso se fazia um nó tão grande e triste no ventre que temia chegar a vomitar. —Bria, moça... Talvez seja o servo ungido de Deus na terra, mas antes disso, fui seu irmão mais velho e compreendo que... Suas palavras foram apagando-se e Bria imaginou que a estava olhando com toda a preocupação e a dor evidentes nos olhos. —Se for uma coisa que não pode me dizer, há um sacerdote em Warren e é um homem amável e compreensivo. Posso te levar ali na carroça, se quiser. Bria resistiu ao impulso de rodear com os braços a barriga inchada. —Não posso —disse quase gritando—. Não posso, não posso. Assim não me peça isso Donagh. Qualquer outra coisa, mas isso não. Ouviu-o levantar-se e um momento depois notou a pesada calidez de sua mão em cima do ombro. —Não há nenhum pecado que seja maior que a capacidade de Deus para perdoá-lo —disse com voz suave. Ela queria recostar-se no consolo que lhe oferecia, mas se manteve imóvel. Nunca iria ajoelhar-se naquela guarita de carvalho dourado para implorar o perdão por algo do qual não se arrependia.

Ele fez com que se voltasse, tentando lhe olhar a cara, mas ela se afastou, empurrando-o e desviando a cabeça, então a soltou. —Disseram-me que lhe mandaram embora da fábrica — disse, um momento depois. —Ah. —Queria que soasse em tom de brincadeira, mas a voz lhe estrangulou—. Suponho que te chegou à notícia antes que a sirene do turno tivesse acabado de soar. Ele esfregou a nuca e pigarreou. —Sim, bom, essa é a outra razão de que te importune com minha presença hoje. A senhora Daly (a que se encarrega da limpeza na reitoria) decidiu de repente que vai viver com sua filha, perto de Boston e que deixa a minha pobre pessoa sem ninguém que tire o pó dos corrimões nem me prepare às sapatilhas para a noite. —Deu-lhe um golpe brincalhão no queixo, com os nódulos dobrados—. Assim estou aqui para te dizer que essas tarefas são tuas, se as quiser. A única coisa é que não poderei te pagar quão mesmo ganhava na fábrica. Os soluços cresceram no peito de Bria e brotaram, violentos, de sua garganta, surpreendendo aos dois. Ele a rodeou com os braços e ela apertou a cara com força contra a lã áspera de sua batina e as lágrimas seguiam brotando, enquanto lhe acariciava as costas e lhe dizia: —Vamos, vamos... E ela se segurava a ele como se, ao soltá-lo, fosse afogar-se. Quando, por fim, tranquilizou-se, ele a afastou um pouco para poder olhá-la. Falou como se lhe doesse a garganta. —Está bem, menina? Ela assentiu, sorveu e esfregou o nariz com o dorso da mão. —E o que pensará as pessoas? Isso de arrumar trabalho assim a sua própria irmã... —Pensarão: «Melhor sua irmã que alguma bonita jovenzinha que tenha

posto os olhos em sua virtude sacerdotal». Bria se engasgou ao rir, e logo lhe deu um ataque de tosse que lhe rasgou o peito. Inclinou-se até quase dobrar-se sob a força dos espasmos, rebuscando no bolso para tirar o lenço e a garrafa de remédio. Bebeu um longo gole do elixir açucarado e lentamente a tosse foi se acalmando. Colocou a garrafa de novo no bolso e tentou enterrar ali também o lenço, antes que seu irmão o visse. Mas ele nunca tinha sido tolo. Agarrou-lhe o pulso, tirou-lhe o lenço de entre os dedos rígidos e viu as manchas, as antigas, de cor óxido escuro e as recentes, de cor vermelha brilhante. Bria não podia suportar olhá-lo nos olhos, mas ouviu tudo o que ele sentia na forma como disse seu nome. —Ai, Bria, Bria... Mas não disse mais nada; nem ela tampouco.

Capítulo Nove Ficaram imóveis, sem olhar-se, mas era como se estivessem amarrados um ao outro, com uma corda feita daquelas palavras não pronunciadas. Através da porta aberta, ouviu o rasgar do arco de um violino, embora compreendeu que a música devia estar soando fazia algum tempo. O corpo inteiro de Bria se sacudiu, como se pudesse liberar-se, por pura vontade física, dos pensamentos que o prendiam. —Ei, escuta! —disse—. Montaram um pouco de diversão irlandesa. Alguém toca «The Wind that shook the barley» e estou segura que estarão dançando. —Bria... Ele tentou agarrá-la de novo, mas ela escapou, deslizando-se para fora do alcance de sua mão estendida e saindo à rua, onde parecia que todos os habitantes do bairro das docas tinham começado a reunir-se. Ali estavam os operários irlandeses da fábrica, claro, porque era uma giga do seu país que tocava o violinista. Mas também vieram os Selvagens, os portugueses de Cabo Verde com sua pele de cor cobre e os trabalhadores da fábrica de borracha. Inclusive os ianques das restingas eram atraídos ao exterior pela alegre música; aqueles nativos de Bristol que dragavam a areia em busca de mariscos e trabalhavam em excesso nos campos de cebolas e eram, possivelmente, mais pobres até que os irlandeses. Os dedos do violinista voavam rápidos e ágeis pelas cordas, fazendo com que os pés de todo mundo sapateassem contra o chão. E quando Colin, o barbeiro, saiu de sua loja vestido com seu kilt azafranado e com sua gaita de fole irlandesa soando galharda e alegre, primeiro um casal e depois outro e outro

mais uniram os braços e formaram um quadrado, com os calcanhares e as pontas dos pés repicando forte e rápido. Bria notou o contato de uns lábios de homem na orelha. Sorria inclusive antes que o fôlego de suas palavras lhe roçasse a bochecha. —Terei uma dança e teu beijo, mo chridh, antes que acabe o dia. Seguia sorrindo quando se voltou e deixou que seu olhar subisse lentamente por toda a esplêndida estatura do homem que era Seamus McKenna. —O que terá de mim será uma boa porrada na orelha, pedaço de bobo fanfarrão —disse. Ele jogou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada e aquele som era tão essencial para Bria McKenna como o sangue que pulsava em suas veias. Noreen apareceu ao lado de seu pai e lhe agarrou a mão, muito grande, entre as duas delas. —Não dance com ela, papai. Está muito gorda e todos rirão. Bria tampou a boca com as mãos, fingindo sentir-se insultada. —Ah, então estou muito gorda, não é? Pois muito bem, então será você, jovenzinha, quem dança com este pobre homem. Não vê que os pés lhe fazem cócegas para começar a saltar? Shay não deu a sua filha oportunidade para protestar. Agarrou-a em seus braços e a colocou entre os bailarinos que giravam. Logo a cara da menina estava ruborizada e a boca sorridente e, ao olhá-los, os olhos de Bria ficaram imprecisos de tanto que os amava. Donagh olhava também, junto a ela, seguindo o ritmo com o pé e levantando uma nuvem de pó. —Ainda é muito hábil com os pés, seu Seamus. O bastante rápido para escapar dançando de qualquer problema que te possa ocorrer. Ela lançou um agudo olhar a seu irmão. —Que classe de problema teria que estar me contando, padre O'Reilly? Mas justo naquele momento a gaita de fole e o violino acabaram a giga

com um gemido e um floreio e os bailarinos se detiveram, rindo e sem respiração. O olhar de Shay se encontrou com o dela e seu sorriso, como o resto dele, era grande e descarado. Sem soltar a mão de Noreen, rodeou com o outro braço a cintura de Bria e, juntos, dirigiram-se para sua casa. Donagh ficou a seu lado. —Olhe para este homem? Sorrindo como o avaro junto a sua panela de ouro. —Melhor que o ouro é o que eu tenho — disse Shay—. Duas das garotas mais bonitas de toda Rhode Island e suas Plantações, uma em cada braço. Bria se apoiou contra ele, esfregando a cabeça contra seu ombro, chocando os quadris. —O que você tem é uma língua muito doce, senhor McKenna. Noreen soltou uma risadinha e olhou para cima, para seu pai, com olhos de adoração. Mas quando dobraram a esquina para entrar no caminho que levava a varanda, escapou para unir-se a uns meninos que brincavam de beisebol com uma bola de borracha dobrada e um pau de vassoura serrilhado. «Os meninos de novo — pensou Bria, suspirando para si mesmo—. “Seguramente que isso trará problemas.» Assim que cruzaram a porta da cabana, Shay colocou a mão no bolso de suas gastas calças de veludo cotelê e deu a sua mulher a totalidade de sua semanada, como fazia todos os sábados. Mas agora que tinha voltado para os campos de cebolas, só ganhava vinte e cinco centavos ao dia. As moedas pareciam poucas e pequenas na mão de Bria, apenas o suficiente para comprar comida, carvão e pagar o aluguel. Deixou-as cair dentro do bolso do avental e olhou para seu marido, sorrindo, mas ele não se deixou enganar. Uma mancha vermelha lhe cobriu as bochechas e se separou dela. Donagh deu uma forte palmada, esfregando as mãos. —Acho que iria bem algo molhado. É um trabalho que dá sede, Seamus,

te ver dançar. Shay foi ao armário da parede onde guardava a jarra de uísque e puxou a porta com tanta fúria que golpeou contra a parede. —Silêncio, vocês dois —disse Bria—. Nossa Merry está bem metida na cama, dormindo. A pobre criança estava tão esgotada que não pôde manter os olhos abertos o bastante para comer o jantar... As palavras de Bria caíram em um pesado silêncio. Lentamente, Shay levantou a cabeça e seu olhar, brilhante e duro, encontrou-se com o dela. Mas a ira, ela sabia, era só contra ele mesmo. Outros homens, os maridos de outras mulheres, enviavam seus filhos às fábricas de algodão e de borracha sem sequer pensar duas vezes, mas seu homem se encolerizava fazê-lo. Shay tinha um coração que sentia as coisas muito profunda e intensamente. Além disso, mais tarde, teria que aumentar sua carga e suas preocupações lhe dizendo que também a tinham despedido e que, embora ficaria como ama de chaves na reitoria, isso significava que entraria menos dinheiro. Ao virar-se, seu olhar caiu na mesa onde, de repente, tinha aparecido uma bolsa de malha cheia de maçãs. Com sua casca verde brilhante, pareciam feitas de cera de tão perfeitas que eram. —Ah, Shay — exclamou, com uma voz muito alta e alegre—, trouxeste maçãs. Como as conseguiste? Ao princípio, não lhe respondeu, ocupando-se em servir uísque em um par de xícaras de lata. Em seguida levantou a cara, voltou a olhá-la nos olhos e sua expressão se suavizou. —Passava em frente da casa da senhora Maguire, pensando em meus próprios assuntos, quando ela saiu correndo, dizendo que tinha comprado muitas e me perguntando se seria tão amável de pegar algumas de suas mãos e afirmando que não aceitaria um não como resposta. —Então não queria, não é, essa velha bruxa devoradora de homens? Que me crucifiquem se todas as solteironas e viúvas do condado não têm seu bonito

corpo medido e bem medido para um novo traje de casamento... Bria se interrompeu de novo assim que ouviu o que estava dizendo, mas não foi o bastante rápida. Agora não podia suportar olhar para Shay nem para seu irmão. A cozinha ficou tão silenciosa que podia ouvir o tic-tac do relógio e os pedaços de carvão que ardiam no fogão. E a alegre melodia do violino e da gaita de fole que chegava da rua. Pensou que certamente ficariam ali fora, dançando, toda a noite. Sentia uma vontade terrível de tossir outra vez, mas se conteve, embora o peito lhe ardia com raiva pelo esforço que tinha que fazer. Mas não podia soltar aquela tosse seca e cuspir sangue agora, depois do que acabava de dizer. Pegou a bolsa com as maçãs, uma bacia, uma faca e se sentou em sua cadeira de balanço com o assento de palha, junto ao fogão. Faria um bolo com as maçãs para o piquenique de amanhã. Isso era algo americano; um bolo de maçã. Shay e seu irmão se sentaram à mesa, com os cotovelos apoiados no gasto oleado marrom e as mãos ao redor de suas xícaras de uísque. Notava seus olhos fixos nela, notava seus dolorosos pensamentos e essa dor era, de longe, muito pior que a dor de seu peito. O gato de Shay, Precioso, entrou rebolando pela porta aberta e se lançou ao ar, para aterrissar com um pesado baque em cima de seus joelhos. Shay tinha assegurado que o animal o tinha seguido até em casa, mas Bria pensava que o mais provável era que ele o houvesse trazido nos braços até em casa. Estava morto de fome e puro osso, com uma pelagem pintalgada da cor do esterco. E embora tivesse engordado muito desde que o destino lhe enviou Shay McKenna, com seu terno coração, em seu resgate, seguia sendo o gato mais feio que Deus tinha criado. Quando teve certeza que Shay já não a olhava, levantou os olhos e deixou que seu olhar descansasse nele, em seu homem. Estava sentado com a coluna bem hospedada na cadeira, as pernas esticadas e os dedos acariciando sem

cessar a pelagem do gato. Naquela postura era, em tudo, o irlandês indomável, cauteloso e sombrio. O amor que sentia por ele repousava doce e grande em seu coração. Finalmente, ele se moveu, erguendo a xícara para seu irmão com um velho brinde gaélico. —Pelo amor a Irlanda e o ódio à Inglaterra, que Deus a condene. Donagh chocou sua xícara com a de Shay. —Pelo amor a Irlanda —disse, omitindo a maldição em deferência a batina de sacerdote que usava. Começaram a falar de política, como estavam acostumados a fazer. Bria escutava pela metade enquanto cortava e cortava as maçãs. As velhas, conhecidas palavras sobre os males da Irlanda. Tinham mamado um ódio ardente contra o domínio britânico como o leite de sua mãe e o nutriam agora com uísque irlandês, o poitín destilado ilegalmente nas adegas de Crow's Nest. Para Bria, aquele uísque cheirava como a turfa que queimava na lareira de sua cabana, em sua casa na Irlanda. Agora Shay estava falando do Clã-na-Gael. Então era ali onde tinha estado àquela tarde. Em outra reunião do clã, amaldiçoando os ingleses e cantando canções rebeldes. Planejando maneiras de arrecadar dinheiro para a grande e gloriosa «revolta» e não importavam os filhos das mães que morreriam por isso, não importavam as esposas que iriam chorar sobre as tumbas de seus homens. Esfregou os cansados pés contra o tapete tecido com farrapos, debaixo da cadeira e deixou que seus pensamentos vagassem até o piquenique do dia seguinte. Seria estupendo notar o calor do sol no cabelo e a orvalhada marinha no rosto. Estenderia uma manta na areia e se sentaria com a cabeça de Shay na saia e olharia como as meninas brincavam com as ondas e o coração lhe encheria até quase explodir de alegria por estar com eles. Faria com que fosse um dia para saborear, um dia para guardar em seus corações.

Mas enquanto isso, seguia sentada, escutando como os homens falavam e vendo como a brilhante pele das maçãs se enrolava por debaixo da faca de podar. Captou o final das palavras de Shay dizendo: —... Mas o melhor lugar seria o lado da baía em ponta Poppasquash. —Sim, é possível que sim — disse Donagh—, mas entrar ilegalmente nas propriedades dos ricos não é um crime menor aqui que na Irlanda, guri. —Isso me traz a cabeça uma coisa que aconteceu esta manhã — disse Bria e logo desejou não havê-lo feito. Sentia-se estranhamente receosa em falar da jovem, o anjo a tinha chamado Merry, que faria realidade todos os seus sonhos. Tinha ficado ali, na passarela, com ar de ser proprietária do mundo inteiro, e Bria havia se sentido, ao mesmo tempo, atraída por ela e convertida em pedra, impotente sob seus olhos. Então mudou de ideia e disse: —Essa família que vive lá na ponta, os Tremayne. Contavam histórias deles na fábrica. —E que histórias eram essas? —disse Donagh. Shay esfregava suavemente as orelhas do gato, mas havia dureza em sua boca e tensão ao redor de seus olhos. —Chamam-nos os indômitos e perversos Tremayne —disse Bria—. O primeiro de todos veio aqui desde Cornwall faz uns duzentos anos. Fugiu de Cornwall, com preço posto por sua cabeça por assassinato. Logo partiu e ficou rico com o comércio ilegal: os escravos e a pirataria. E é então quando se supõe que começou a maldição. —Já desconfiava que haveria uma maldição na história —disse Donagh—. Sempre há uma maldição. —Sim, bom à verdade é que a maldição lhes golpeou bem nestes últimos anos. Primeiro a filha pequena ficou inválida em um acidente com o trenó. E em

seguida o filho, que se sentia culpado, saiu ao mar em seu navio, em meio de uma tormenta e morreu afogado. Ou se afogou de propósito, conforme dizem alguns. Esticou a cabeça para olhar pela porta do dormitório e assegurar-se de que Merry seguisse dormindo. Aquela menina era capaz de ouvir crescer a erva. —Logo, pouco depois dessa tragédia — seguiu Bria, baixando a voz até convertê-la em um sussurro—, o pai partiu. Saiu ao mar em seu iate, e não houve nem rastro dele após isso. Mas não se perdeu no mar, não como o jovem senhor Tremayne. Dizem que está vivendo muito bem em sua plantação em Cuba com todas as suas queridas. A cabeça de Shay se levantou ao ouvir aquilo e Donagh lhe sorriu. —E diz que tem mais de uma querida? Ai meu Deus, que coisa tão estupenda é ser um homem rico. —E pensar — disse Shay, soltando um enorme suspiro fingido, enquanto servia mais uísque na xícara de Donagh— que seu pobre e casto corpo não está destinado a conhecê-lo nunca. Olhou de volta para Bria e agora uma risada profunda lhe iluminava os olhos. —Pois hoje vocês as garotas tagarelaram, enquanto fiavam. —Tagarelar, não é? E como chamas o que vocês, os meninos, estiveram fazendo esta tarde? Grandes discussões filosóficas suponho. Levantou-se da cadeira com a bacia cheia de maçãs cortadas, para lhes pôr açúcar, quando notou um estranho silêncio que agora parecia vir da mesa onde estavam os homens. E quando se voltou, viu que tinham umas caras estranhas, algo como caras de culpa. Melhor dizendo, seu irmão tinha cara de culpa. Quando os lábios de Shay pareciam de pedra, como agora, ela sabia que tinha chegado o momento de preocupar-se. —Em que maldade estão colocados vocês dois? —perguntou. A resposta de Shay foi descontraída e zombadora, mas havia tensão em seu sorriso.

—Certamente que se lhe disser isso, meu amor, dará-me uma boa porrada na orelha. Precioso escolheu aquele momento para soltar um ronrono forte e rouco enquanto cravava suas enormes e suaves patas na coxa de Shay. Este levantou a mão para lhe acariciar a cabeça e foi então quando Bria viu, pela primeira vez, os arranhões sangrentos e machucados que tinha nos nódulos. Deixou com cuidado a bacia de maçãs em cima do suporte e foi até ele. Não era próprio de Shay meter-se em uma briga de bar, mas só sabia de outra coisa que pudesse estragar assim os punhos de um homem; um saco cheio com trinta quilos de areia. Agarrou-lhe uma mão e ele deixou que o fizesse e ela pensou que teria que sentir-se furiosa, triste ou decepcionada, mas a única coisa que sentia era essa queimação azeda na boca do estômago, como se tivesse comido muita fruta verde. Apertou os lábios sobre a carne dolorida e ensanguentada de seu homem. Em seguida lhe lançou a mão contra os joelhos com tanta força que o gato saltou ao chão, soltando um chiado. —Jurou-me que nunca mais — disse ela—. Sobre a tumba de sua mãe, jurou-me isso. Ele levantou a cara e a olhou diretamente nos olhos, mas não disse nada. Ela o conhecia de toda a vida e sempre tinha tido um rigor enterrado nele, um lugar nele que ela nunca podia alcançar e onde ele tomava suas decisões, sozinho. Virou-se para assinalar com um rígido dedo a seu irmão. —E você, você tem parte neste... Este... O que seja. Não me diga que não, porque com essa expressão dos demônios que tem na cara... Donagh esticou o braço e a agarrou pelo pulso. —Bria, pelo amor de Deus. Quer controlar seu gênio e abrir as orelhas um pouquinho para escutar?

Ela se soltou com tanta força que deu um passo para trás, cambaleando. Cruzou os braços, apertadamente, debaixo dos seios. Não podia voltar a olhar para Shay. Não queria olhá-lo. —Está bem, Donagh, me conte sua história. Ele desabotoou a batina e, colocando a mão, tirou uma folha de notícias impressa em um papel tingido de cor rosada. —Ouviste falar deste jornaleco escandaloso, o Police Gazette? Bria assentiu muito tensa. Tinha ouvido falar dele e o tinha visto e, embora não soubesse ler, sabia do que falavam. A folha que seu irmão, o sacerdote, sustentava agora na mão, exibia uma corista peituda vestida só com malhas de lentejoulas e um sorriso vulgar. —Já, bom — disse Donagh, ruborizando-se um pouco quando se deu conta do que ela olhava. Dobrou o papel de forma que a escandalosa corista ficasse oculta à vista—. O editor, um senhor chamado Richard Fox, passou boa parte dos últimos dez anos procurando um rival que desafiasse e vencesse John L. Sullivan, o grande campeão americano de boxe. Inclusive ofereceu um prêmio para o homem que o consiga. Um cinturão feito completamente de ouro, prata e diamantes. —Vá. E para que alguém quereria uma coisa tão importante, para segurar um par de velhas e gastas calças de veludo cotelê? Os olhos de Donagh foram dela para Shay e os dois cruzaram um olhar carregado de algo que ela não compreendeu. Pensou que, às vezes, odiava aos homens, especialmente a aqueles dois ao qual queria mais que tudo. —Este senhor Fox —seguiu Donagh— tem um tipo que acredita que pode ganhar o prêmio; um ianque de sangue azul, que vai à Universidade de Harvard e usa calças de fina lã, mais adequadas, certamente, para um cinturão de diamantes. Mas antes que Sullivan aceite lutar contra ele, primeiro o ianque tem que demonstrar que é um pretendente sério alcançando o nível necessário contra um rival que valha a pena...

Sua voz foi se apagando e, de novo, voltou a olhar para Shay. Mas Bria não queria olhar para seu homem; possivelmente não voltaria a olhá-lo nunca mais. Cravou o olhar em seu irmão, com os olhos lançando faíscas. —Não é para ter lástima deste homem? Acabam-lhe todas essas palavras tão bonitas, justo quando a história começava a ficar interessante. —Bria —Donagh passou as mãos pelo rosto, suspirando—, o senhor Fox se inteirou de que alguém daqui —assinalou Shay com um gesto —, foi campeão de boxe sem luvas na Irlanda e lhe ocorreu a ideia de que Seamus e esse menino ianque podiam fazer um bom combate. Aconteceria aqui, em Bristol, durante a famosa celebração de Quatro de julho e isso é tudo... Bom, a maior parte. Donagh agarrou a jarra, esvaziou o uísque na xícara e o bebeu tudo de um gole. Afundou o queixo no peito, enquanto fingia estudar atentamente o fundo da taça e Bria compreendeu que isso era a única coisa que tiraria de seu irmão. Shay, claro, não lhe havia dito nada. Lentamente, voltou-se para olhá-lo á cara. Ele não se encolheu nem pareceu envergonhado ante ela e quaisquer que fossem seus pensamentos, não podia vê-los em seu rosto. Dobrou os braços mais apertadamente em torno de seu corpo. —Há alguma coisa que queira me dizer, Seamus McKenna? Ou é que vieram os duendes e lhe levaram a língua quando eu não olhava? Ele estendeu as mãos para agarrá-la pelos braços, descruzando-os, e atraindo-a para ele. Ela o odiou por tocá-la porque, que Deus a ajudasse, queriao muitíssimo. Soltou-lhe os braços e a agarrou pelos quadris com suas grandes mãos. Olhou-a e os olhos lhe brilhavam febris. Sempre lhe tinha doído saber que aquele fogo que prendia dentro não tinha nada a ver com ela. —Talvez você goste desta palavra, mulher: dólares. Cem dólares para

mim e mais cem para o clã por me patrocinar. E a única coisa que eu tenho que fazer é praticar com esse aspirante ianque, fazer um bom papel e me deixar cair à lona ao terceiro ou quarto assalto. Não sabia como, mas agora estava apertada contra suas coxas e suas mãos estavam entre o cabelo de Shay. Um cabelo que notava suave e quente entre seus dedos, como se tivesse capturado todo o brilho do sol daquele dia. —É um esporte fora da lei —disse ela, odiando o tremor que ouvia em sua voz. A rendição—. Poderiam te colocar no cárcere. —Vão dizer que é uma exibição da ciência do boxe sem luvas —disse Donagh atrás dela—. Que é algo legal. Esticaram-lhe os dedos no cabelo de Shay e empurrou para afastar-se dele. —Então lhe pagam para que perca para esse ianque aspirante. E de que honra poderá te orgulhar ao final de tudo? Sempre tinha sido capaz de mover-se rapidamente, apesar do grande que era. Estava já de pé junto à porta aberta e quão único ela tinha notado era o fôlego do ar que ele agitou ao passar a seu lado. Apoiou-se na ombreira, com as mãos muito afundadas nos bolsos de suas calças e os olhos no mundo, lá longe. O violino e a gaita de fole seguiam gemendo rápidos, vertiginosos. Deu-se conta de que as sombras do entardecer se estendiam, alongadas, através do pátio. A luz além da porta era da cor da calda do açúcar dourado, mas no interior de sua pequena casa já estava quase escuro. Pensou que deveria acender uma lanterna, mas não se moveu. Chegou-lhe sua voz, um murmúrio áspero, como a areia ao raspar em cima de uma pedra. —Há muitas coisas que um homem pode sofrer piores que a perda de sua honra. É necessário que as nomei para ti, Bria, querida? É necessário que te fale sobre cavar procurando batatas em um campo de restolhos e as tirar negras e podres, ver seus seres queridos com a boca manchada de verde pela erva que estão comendo ao lado do caminho? É necessário que te fale sobre viver em uma

choça de pedra com o telhado feito dos torrões herbosos de umas terras que nunca serão tuas, embora tenham se alimentado durante séculos com o sangue e os ossos dos que levaram seu nome antes de você? Separou-se da parede e se voltou para ela, ainda perdido entre as sombras que havia juntado à porta. Mas ela não precisava lhe ver a cara, porque o conhecia de toda a vida. Conhecia a necessidade que havia em seus olhos quando a tomava na cama, conhecia o contato de seus lábios, urgentes e ardentes sobre sua pele nua. Conhecia seu coração, tão valente e desafiante, tão cheio daquele sonho desesperado de encontrar o lugar perfeito, magnífico e fazê-lo seu. —É necessário que te fale —disse ele— da mulher que se ajoelha chorando, na terra, convertida em gradeio pelo sangue que se transborda das vísceras de seu homem? Ou da esposa que se vê obrigada a contemplar como seu marido morre estrangulado, pendurado pela corda de um magistrado? Ela levou o punho à boca e apertou com força, como se fosse chiar, mas não emitiu nenhum som. «Por favor, não.» —É necessário que lhe diga isso, Bria querida? Tampou as orelhas com as mãos e fechou com força os olhos. «Não, não, não.» Não soube que ele vinha para ela até que notou como seus dedos lhe agarravam os pulsos para lhe baixar as mãos e em seguida lhe rodeava o pescoço com os dedos, lhe acariciando as bochechas com os polegares, como se fosse beijá-la. Nunca tinha sido outra coisa que carinhoso com ela, com aquelas mãos. Inclinou-lhe a cabeça para trás, obrigando-a a lhe olhar nos olhos. —O que poderia importar a honra a um homem —disse—, quando pode vendê-la para colocar comida no estômago de sua mulher e seus filhos e armas nas mãos de seus irmãos irlandeses... Bria se arrancou de seus braços, gritando: —Ah, Dhia, Irlanda! É sempre pela Irlanda! —Sua voz baixou, rouca

agora com as lágrimas contidas—. Nunca houve nada para nós na Irlanda. Não há nada ali. Shay desenhou um amplo arco com o braço. —E este é um lugar magnífico, não? Acha que porque o rico tem gelo no verão e o pobre o tem no inverno, as coisas ficam igualadas entre os dois e todos somos iguais aqui, em sua América e aos olhos de seu Deus? Bria sentiu que sua ira se desvanecia e uma pesada tristeza ocupava seu lugar. Nunca tinha sido capaz de discutir com ele nem de persuadi-lo para que abandonasse nenhuma de suas grandes e gloriosas causas. Sempre tinha sabido que ele a amava, assim como sabia que nunca a amaria o suficiente. Seu irmão, o sacerdote, levantou-se lentamente, arrastando para trás a cadeira. Foi até Shay e sua mão caiu pesadamente no ombro do outro homem. —Também é seu Deus, Seamus. Shay lhe devolveu o olhar, duramente, não cedendo nada, esta vez nem sequer o fôlego. Quando Shay nasceu, o único de cinco filhos que saiu do seio materno respirando, sua mãe entregou a vida do menino a Deus. Dos dois amigos, seu irmão sempre foi o mais indomável nos primeiros anos e também mais tarde, andando com prostitutas e metendo-se em todo tipo de confusões. Inclusive quando menino, Shay era sério e intenso, um feroz fanático de sua fé. Ficava estudando latim junto ao sacerdote do povoado quando os outros meninos de clachan nem sequer sabiam escrever seus nomes. Mas logo a vida tinha caído em cima de Seamus McKenna. Ela, Bria, tinha-lhe caído em cima, um dia tormentoso em uma praia rochosa. Os guardas com suas armas e sua corda lhe tinham caído em cima. E Deus, como se não quisesse que o rechaçassem, tinha enviado Sua chamada a Donagh. Bria pensava, frequentemente, que era como se seu irmão não tivesse podido competir com Shay pela atenção de Deus. Donagh não tinha sido capaz de ver o que se esperava que fizesse até que Shay deixara livre o

caminho. Donagh suspirou agora e deu uma sacudida no ombro do outro homem antes de soltá-lo. Foi até o gancho da parede para pegar seu chapéu negro de sacerdote. Deteve-se com ele entre as mãos, virando-o, agarrando-o pela asa e em seguida se voltou para olhar para ela. Tinha a cara vermelha e a boca enviesada com um gesto pesaroso. Não podia decidir-se a olhá-la nos olhos. A voz de Bria tremia, cheia de uns sentimentos que não podia descrever nem sequer para ela mesma. —Não foi um milagre, padre, a maneira como esse homem do jornal chegou a inteirar-se de que nosso Seamus foi uma vez o campeão da Irlanda? Ou foi você, possivelmente, quem disse uma palavrinha ao ouvido? Disse-lhe que Shay McKenna não romperia uma promessa por si mesmo nem tampouco por sua mulher e suas pequenas, mas que pela Irlanda e o clã... Och, pela Irlanda o homem venderia sua própria alma? —Bria, não... —Donagh exalou um suspiro esmigalhado, cabeceando e estudando o chapéu que tinha nas mãos—. Estou pensando que deveria voltar para a reitoria antes que a senhora Daly perca sua querida paciência e me sirva às sapatilhas para jantar. Colocou o chapéu e se aproximou dela. Inclinou-se e a beijou na testa, em seguida a atraiu para ele e a estreitou entre os braços um momento. —Dia is maire dhuit —disse. Ela o rodeou com os braços e apertou a cara contra seu peito. A lã da batina era áspera sob sua bochecha e cheirava um pouco a incenso e a uísque. «Que Deus e Maria sejam também contigo, Donagh.» Foi com seu irmão até a porta, onde ele se deteve para fazer o sinal da cruz com a água benta da pequena pilha. Na rua, o folguedo se converteu em uma autêntica festa irlandesa, com jarras de poitín passando de mão em mão. Observou como Donagh abria caminho entre a multidão, detendo-se para administrar admoestações e benções em partes iguais. Mas não acreditou que o

sermão do dia seguinte tratasse dos males daquela beberagem do diabo, porque ele mesmo tinha bebido bastante aquela noite. Não ouviu como Shay se aproximava por trás, mas o percebeu. Embora Deus a tivesse deixado cega, teria sido capaz de encontrá-lo entre milhões. Ele a envolveu com seus braços, encaixando-os por debaixo de seus seios, de forma que repousavam em cima de sua enorme barriga. Seus seios estavam grandes e inchados para o bebê que viria e lhe doíam ligeiramente. —Peço-te que não me obrigue a manter minha promessa — disse. Ela não disse nada, mas não via como podia negar-se. Uma promessa feita a ela e quebrada não era nada comparada com o dano que lhe tinha feito os votos quebrados, o pecado cometido... Os pecados. Baixou os olhos até os braços que a rodeavam. Ele levava as mangas enroladas até os cotovelos. Sua pele era morena, com o escuro pelo esclarecido pelo sol até lhe dar a cor do ouro. As veias se sobressaíam, como cristas, por cima dos duros músculos e tendões. Levantou uma de suas mãos, comparando-a com a sua, pequena, e deixando que a mão dele a tragasse. Sempre lhe tinha maravilhado que suas mãos pudessem ser, ao mesmo tempo, tão ternas e, entretanto, tão brutais. Suas mãos de lutador. —Esqueceste —perguntou— o horrível pecado que cometeu com estas mãos? E os problemas que nos trouxeram? —Não — disse ele e não acrescentou nada mais. —Então, por que não luta de verdade? Por que não briga por esse cinturão de diamantes de que falou Donagh e conservas sua honra de passagem? —Porque não tenho nenhuma possibilidade de ganhar do grande John L. Nem tampouco a tem esse tipo ianque, mas isso é assunto dele. Permaneceram em silêncio, um silêncio que não era fácil nem difícil, só familiar. Seus lábios a tocaram em um lugar familiar, no oco de carne onde o

osso da mandíbula se unia à orelha. —Por que te deixo que me beije o pescoço —disse ela, e as palavras saíram agudas e ofegantes—, quando teria que estar te dando uma boa repreensão? O ar de sua risada deu, quente, contra sua pele. —Que Deus nos ajude. Se essa tua língua está se oxidando por falta de exercício. —A pressão de seus braços aumentou, estreitando-a com mais força contra ele—. Veem aqui, mo bhean.

Capítulo Dez Aquela noite sonhou que a tinham colocado viva dentro do sudário e o tinham costurado e que o áspero algodão lhe enchia a boca e o nariz, cheirando a morte, tendo sabor de desespero. Despertou com uma sacudida, engasgando-se, afogando-se no úmido pântano que vivia inchado, grosso e pesado dentro de seu peito. Recostou-se, lutando para respirar, suando e estremecendo ao mesmo tempo. Lentamente, sua respiração se aquietou, até que a única coisa que se ouvia era o vento que ofegava contra as janelas. Incorporou-se, apoiando-se no cotovelo e olhou o rosto de Shay. A luz da lua tirava brilhos de prata das lágrimas secas que havia em suas bochechas. Devia ter estado observando-a outra vez, enquanto ela dormia, cuidando-a enquanto ainda podia. E afligindo-se. Inclinou-se para ele e o beijou no oco da garganta, cheirando sua calidez, saboreando o sal de sua pele. Saiu devagar da cama, com cuidado para não despertá-lo. Em um canto de seu diminuto dormitório tinha feito um lugar para fazer suas orações e rezar o rosário. Donagh lhe tinha dado uma imagem benzida da Virgem Maria, impressa em ouro e gravada com uma borda de coroas de flores. Tinha-a pendurada na parede e, debaixo, tinha posto uma mesa de chá, velha e manca, que resgatou do lixo e cobriu com uma toalha que bordou ela mesma. Quando as encontrava, punha flores silvestres em cima da mesa e acendia uma vela benta quando podia permitir comprá-la.

Ali Bria se ajoelhava e erguia o olhar para o rosto da Santa Mãe, para aqueles olhos que sabiam tudo, perdoavam tudo e as palavras que saíam de seus lábios eram doces e desesperadas. Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte... Maria, mãe de Jesus, esposa de José, compreenderia até onde podia chegar uma mulher, quantos pecados podia cometer, pelos que amava. Bria pegou o rosário de cima da mesa e se ajoelhou. Inspirou para começar o Credo dos Apóstolos e tossiu, uma tosse dura, o peito lhe doía com a força da tosse, com aquele ruído profundo, dilacerador, espantoso até para seus próprios ouvidos. Tampou a boca com as mãos, com o peito ofegante e o sangue lhe pulsando quente e rápido nos ouvidos e em seguida, finalmente, depois de uma eternidade, a tosse se aquietou. Ficou em pé com esforço; a gravidez a fazia se sentir pesada e torpe. Foi à cozinha para ver suas filhas, que dormiam em um colchão estendido sobre a esteira, junto à estufa. Ajoelhou-se a seu lado e uniu as mãos, como se rezasse, embora não dissesse palavra alguma, nem a Deus nem a ela mesma. Tocou os rostos de suas filhas só com o olhar. Sentir sua pele cálida, viva, lhe teria doído muito. Não sabia quanto tempo tinha permanecido ali, mas quando a necessidade de tossir voltou a lhe queimar no peito saiu da casa para não despertar-los. As noites de primavera eram frias e levou seu velho casaco de cor abóbora. O pôs, mas não o abotoou; já não podia, estava muito gorda. Deu a volta na casa e desceu até a praia. Sentou-se entre as rochas. Um momento tudo era silêncio e quietude e, ao seguinte, levantava-se uma rajada de vento da água, trazendo o aroma de sal e algas. Tossiu e cuspiu fios de sangue no lenço. Bebeu mais de seu remédio, de sua falsa cura. De seu falso milagre. Rogai por nós, pecadores...

Pelas noites, quando não podia dormir, orava e rezava o rosário. Algumas noites, como esta, pensava. «Quando morre, suas lembranças se desvanecem junto com sua vida?”» Não podia suportar aquela ideia. Parecia que a totalidade dela, da mulher que era Bria McKenna, fosse feita de lembranças e a maioria dessas lembranças, tanto cruéis como doces, eram de Shay. Conhecia-o de toda a vida, mas não tinha compreendido como o amava até aquele dia de verão no baile da encruzilhada. Era sua primeira vez, a primeira que ia à festa da encruzilhada, um domingo de verão, pela tarde. Havia gaitas de fole e um violino, algo muito parecido a hoje, aqui na América, tão longe. Então ela e suas amigas dançavam quase sempre umas com outras. O sacerdote lhes punha uma forte penitencia se, se atreviam embora só fosse sorrir a um menino. Era difícil manter-se quieta, inclusive quando não dançava. Bria estava de pé à beira da estrada, com todo o corpo oscilando ao ritmo da música, quando, de repente, ali estava ele, Seamus McKenna, plantado diante dela e olhando-a tão fixamente e com tanta intensidade nos olhos que ela quis fugir. Shay McKenna, mais amigo de seu irmão que dela, um menino que sempre parecia não pertencer a nenhum lugar próximo a seu mundo de cabanas de pedra e campos de batatas empapados em chuva. Mas ali estava, tão perto dela que não lhe haveria custado nada apoiar a cabeça em seu peito e lhe rodear a cintura com seus braços; uma ideia que a assustou, intrigou-a e a fez estremecer. Parecia crescer cada vez que respirava, todo ombros largos e músculos largos e flexíveis inclusive então. E muito bonito para ser menino, claro, com seus lábios cheios e aquele cabelo da cor escura e brilhante de piçarra úmida. Além disso, a perturbava, com aquela maneira de olhá-la e tentou ocultálo atrás de palavras ásperas. —O que está fazendo aqui, Seamus McKenna? —disse, colocando as mãos na cintura e olhando-o de cima abaixo—. Não tem orações que rezar nem

livros sagrados que ler? Atos piedosos que fazer? A boca dele se suavizou, até quase sorrir. —Claro que sim, mas possivelmente quero me conceder um pouco de perversidade inútil dançando contigo. —Já. Como se eu fosse querer. Virou-se e tentou afastar-se, rebolando os quadris como tinha visto fazer às garotas mais velhas. Pôs-lhe a mão no braço com a força justa para detê-la e lhe disse: —Terei uma dança e teu beijo, mo chridh, antes que acabe o dia. Quase lhe deu tudo o que lhe pedia, e mais, ali mesmo na encruzilhada, tal era a maneira como suas palavras tinham penetrado como uma flecha, diretas da boca dele a seu coração. Porque uma das primeiras coisas de Shay McKenna em que se fixava, depois de se assombrar de seu grande tamanho, era sua voz. Inclusive quando suas palavras eram insolentes e arrogantes, dizendo a uma garota o que ia conseguir dela, soava como um arcanjo cantando. Não conseguiu o beijo aquela tarde, mas sim a dança. Simplesmente, foi até ela, pegou-a pela mão e a levou até o grupo que estava se formando e embora ela pudesse ter se soltado e se afastado dele em qualquer momento, não o fez. Percebeu que só podia lhe empurrar até certo ponto, que com ele, ela só conseguiria um determinado número de danças e um determinado número de oportunidades. Recordou que ele não havia dito uma palavra mais, nem ela tampouco. Mas o olhou, olhou a maneira como os fortes tendões do pescoço se sobressaíam tensos como cordas quando voltava à cabeça e como seu lábio inferior parecia abrandar-se e encher-se quando estava a ponto de sorrir. Também olhou a maneira como os olhos diminuíam nos cantos, como se estivesse acostumado a olhar mais à frente, a um lugar que outros não podiam ver. E pensou: «Quero-o para mim». Não, não foi totalmente assim como aconteceu. Não soube que o queria.

Só notou o desejo, como uma pressão no peito, como se lhe faltasse o fôlego. Um pânico que era como se algo gritasse em sua cabeça que se não podia estar com ele agora, naquele mesmo minuto e durante todos os minutos, para sempre, morreria. O pai de Shay nunca tinha trabalhado de forma continuada, porque tinha se dado à bebida muito jovem. Passava as horas nos pubs, seu favorito era o Three Hens, onde exercitava o cotovelo levantando copos de uísque e cerveja e a língua, tramando a rebelião. Tocava a Shay e a sua mãe trabalhar os escassos e tortuosos campos de batatas e a cevada do proprietário. Quando podia, Shay tirava o curragh para pescar bacalhau ao longo da rochosa costa. Bria estava na praia no dia seguinte, ao final da tarde, quando ele trouxe o bote de volta à costa. Era um dia pouco comum, magnífico, o céu tinha uma cor azul limpa, de ovo de pato e um vento contínuo e quente para inchar a vela. Ela entrou, chapinhando, na espuma para pegar o cabo de amarração que lhe lançou. Ajudou-o a amarrar o bote à boia e enrolar a vela e ele não a olhou até que terminaram a tarefa. —O que está fazendo aqui? —disse. Ela levantou a vista para ele, entrecerrando os olhos para evitar o fulgor do sol na água. Quase estremecendo ante a estranha beleza dele, sua cara, seu corpo, sua voz. Ele permanecia com os pés descalços, muito separados, no Cais e a brisa marinha lhe alvoroçava o cabelo. O casco de couro da curragh rangia com o ir e vir da maré. No alto, uma gaivota grasnou como se burlasse dela. —Esperava-te — disse ela. Ajudou-lhe a estender as redes de arrasto na areia para que se secassem e a pôr a pesca nas piçarras para que se curasse ao sol. Uma vez, encontrou-se tão perto dele que o vento o esbofeteou na boca com uma mecha de seu cabelo. Ele cheirava ligeiramente a bacalhau, mas sobre tudo a mar. Às vezes, recordava cada palavra que haviam dito aquele dia e todos os dias que lhe seguiram. Outras vezes, só se lembrava de como se sentia e de que o ar que os rodeava

estava a ponto de incendiar-se com um olhar, um contato, um suspiro. —Por que quer ser sacerdote? —perguntou-lhe. Ele se voltou para olhá-la e havia algo tão profundamente valente nele, ali de pé com os pés descalços e a roupa esfarrapada, em meio de uma rede cheia de peixes, mas com manchas de tinta nos dedos e calos nos joelhos que fariam honras a um esfregão, por todas àquelas horas de rezar no chão de pedra da igreja. —Quero fazer algo com minha vida — disse—. Fazer... —encolheu os ombros, ruborizando-se um pouco—. Fazer o bem. Recordava muito aquelas palavras que ele disse aquele dia, com sua voz de anjo, com aqueles lábios que queria beijar tão desesperadamente. Fazer o bem. —Acredito que será um sacerdote muito bom — disse ela. Obrigou-se a sorrir e se forçou para não lhe acariciar o lábio inferior com o dedo... ali, onde era mais cheio—. Um sacerdote magnífico. Ajudou-lhe com a pesca e as redes muitas noites antes que, finalmente, a beijasse. E só foi um suave roce dos lábios na bochecha, como se lhe murmurasse um segredo. Recordava que em seguida tinha olhado para cima, a um céu leitoso, com nuvens altas, e havia se sentido observada. Às vezes, antes de separar-se, passeavam pela praia juntos, subindo às rochas, explorando. Uma tarde, quando o pôr-do-sol pintava raivosas pinceladas no céu e o mar se voltava de prata, encontraram uma caverna. Ali, na suave e oca escuridão, seus beijos se fizeram mais fundos, mais longos e atrevidos. Um dia, sua boca deixou a dela e se deslizou para baixo para lhe beijar e lhe lamber a garganta. Outro dia, abriu-lhe o xale e lhe desabotoou o pescoço do vestido e lhe roçou com os lábios o oco entre a clavícula. E depois, de algum jeito, desfizeram-se mais laços e seus lábios e sua língua estavam nas colinas de seus seios e logo entre eles. Recordava ouvir o tamborilar do mar contra as rochas, por debaixo deles, e seus próprios dedos enredando-se entre o

cabelo dele, quente pelo sol, segurando-se a ele. —Bria —disse ele, com sua bonita voz de anjo, apenas seu nome e nada mais. Foi um dos muitos descobrimentos que ela fez aquele verão, que um menino, um homem, revelava ao máximo o que sentia pela forma como dizia seu nome. Recordava, também, como descobriu a ela mesma aquele verão, como aprendeu todos os lugares suaves, doces e macios de seu corpo. E os escuros, famintos e possessivos de seu coração. Porque chegou o dia inevitável em que ele tentou afastar-se dela e ela não teve a coragem nem a bondade para deixar que o fizesse. Quando ele se virou, afastando-se e deitando-se de costas a seu lado, tampando os olhos com o braço, com o peito ofegante e lhe disse: —Dhia — a palavra saindo rasgada dele, mais maldição que prece—. Não devemos chegar mais longe. Que Deus me ajude... vou ser sacerdote. A caverna cheirava, ao mesmo tempo, a mar e a cálida e margosa terra. Ela sempre se sentia a salvo na caverna. Fora da vista do céu, o lugar onde podia entrar nele e aconchegar-se em seu coração. Permaneceu deitada na escuridão com o corpo em chamas, cheia de desejo, tão, tão faminta. Escutava sua respiração e a água dançando e borbulhando ao redor das rochas, lá embaixo. Sentou-se, com a saia subida até a cintura, rodeada pelo aroma do mar, da terra e dele. Não soube que estava chorando até que o cobriu, com os seios nus sobre seu peito nu e notou que as lágrimas lhe salpicavam o dorso das mãos enquanto lhe agarrava as bochechas e apertava com força sua boca na sua. —Não, Bria, não o faça —disse ele, dentro de sua boca aberta, com o fôlego quente e áspero—. Não, por favor, não... Mas ela o fez, deliberadamente, sem pudor. Embora quando acabou ainda não era dele, ainda não. Não foi seu de verdade até a noite da tormenta. Mas, antes da tormenta, chegou o administrador das terras e trouxe os

oficiais com ele. Veio porque a cevada dos McKenna, destinada a seu proprietário inglês, tinha ido à destilação ilegal de poitín. A senhora McKenna, ajoelhada no pátio vazio, olhava como levavam tudo o que tinha, que era muito pouco: um tamborete, uma almofada de palha, uma velha panela de ferro. Os guardas acabavam de atear fogo ao telhado de palha quando chegou o senhor McKenna correndo, aceso, ele também, depois de uma tarde no Three Hens. Tentou atacar o administrador com um shillelagh e recebeu um disparo no ventre antes de dar dois passos com a bengala na mão. Seu sangue se derramou, formando um grosso atoleiro vermelho e empapando a saia de sua mulher, ali onde ela estava ajoelhada no chão. Nos campos que há por cima dos penhascos havia um lugar pagão feito de pedras antigas com caras esculpidas. Era todo olho fixo e boca redonda e aberta; Bria sempre tinha achado que parecia como se lhes tivessem roubado a alma. Dessa mesma maneira a olhou Shay quando os dois corpos, envoltos em sudários, eram baixados a tumbas escavadas na nua rocha da Irlanda. Não tinham conseguido madeira para fazer os caixões nem dinheiro para comprá-los. E tinham tido que escavar duas tumbas porque a noite anterior, sua mãe entrou no mar e, aquela manhã, o mar a havia devolvido. E se, se permitia olhar agora, Bria ainda podia ver, depois de tantos anos, aquele vazio, vivo no mais profundo dos olhos de Shay, ali onde uma vez esteve sua fé. Depois do enterro, saiu sozinho ao mar em seu curragh, embora o céu e o mar estavam negros e alvoroçados. Ela o esperou em sua praia, enquanto o vendaval uivava em torno dela e as nuvens desabavam em cima de sua cabeça. Tinha tanto medo de perdê-lo que quase não podia ver nada. Ele voltou para casa, para ela, sobre a branca espuma das ondas que se derrubavam. Pareceu como se aparecesse de repente, abatendo-se sobre ela na areia assolada pelo mar. As ondas rugiam e os golpeavam, lhe puxando o vestido... suas mãos lhe tiravam a roupa. Seu rosto se erguia por cima dela, com

os olhos despedaçados e selvagens como as ondas que rompiam em cima deles. Ele estremeceu e um áspero som lhe saiu da garganta. —Me abrace, Bria —disse. Baixou-se em cima dela e sua boca era dura na dela, desesperada e ardente. O mar respirava a seu redor, bronco e ofegante— . Abrace-me. Por favor, só me abrace. As mãos e os lábios dela se moveram por cima dele, procurando sua forma e seu sabor. Rodeou-o com seus braços, lhe cravando as unhas nas costas, na molhada jaqueta de pescador, abraçando-o com força. Mas sabia o que era o que, de verdade, pedia-lhe. —Shis, calma, Shis —recordava que dizia e a chuva lhe caía em cima da cara e dentro da boca aberta e ofegante—. Eu te sustento, meu amor. Sustentarei-te para sempre... —... para sempre. - Não se deu conta de que tinha falado em voz alta até que o eco lhe devolveu a palavra de longe, das águas do porto de Bristol, ainda quieto, negro e vazio na noite. Sentia que se afogava de desejo por ele, seu homem, embora dentro de um momento se levantaria e entraria para se deitar com ele. Curvaria seu corpo para acomodá-lo ao dele e apoiaria a cabeça em seu peito, para poder voltar a dormir escutando os batimentos de seu coração. Assim como fez aquela noite da tormenta, onze anos atrás, aquela noite em que lhe deu sua virgindade e lhe arrebatou sua inocência. Pensou que era estranho como as lembranças podiam empilhar-se pesadamente no coração, como pedras e, entretanto, ser tão quentes, familiares e reconfortantes, de todos os modos. Recuperaria-as de novo, todas suas lembranças. Todas e cada uma delas. Dobrou os pés, recolhendo-os debaixo dela, para empurrar-se para cima, torpe e com aquela enorme barriga, e o bebê lhe deu um chute. Foi um chute forte, cheio de vigor e de vida. Passou as mãos pelo ventre, esfregando a carne esticada e inchada. Os calos de seus dedos se engancharam na musselina da

camisola barata, mas não se deu conta, porque nunca tinha tido mãos de uma dama. Estava segura de que o bebê era um menino, porque a barriga era alta e para frente. Balançou a aliança de casamento, pendurada de um cordão de algodão por cima do ventre e o anel foi para a esquerda. Além disso, pensou, com um sorriso agridoce, Merry tinha cantarolado a Noreen, que o havia dito a ela, que as fadas tinham prometido que logo haveria um irmãozinho em casa. Um filho para Shay, seu presente para ele, e seria um presente magnífico, enquanto não descobrisse toda a verdade sobre sua concepção. Mas para ela, este último filho seria o castigo de Deus. A única coisa é que não estava segura de por qual pecado. Sabia também que era possível amar tanto o pecado como seu fruto. Ela amava já a aquele menino, tão profunda e intensamente como amava Shay e às meninas. Estavam em primeiro de maio; nasceria no fim do mês. Sustentaria-o entre seus braços e o balançaria, enquanto notava o doce puxão de sua boca lhe chupando o peito. Mas os dias chegariam, passariam e o mudariam. Igual à praia mudava com o fluxo e vazante da maré. Quando chegasse o próximo verão brincaria com suas irmãs de bater palmas e de esconder-se atrás das mãos. Já saberia comer seu mingau, embora provavelmente, a maior parte acabaria, no cabelo. Talvez inclusive começasse a andar, sempre que seu pai estivesse ali para agarrá-lo se caísse. Os dias teriam chegado e passado e ele estaria fazendo todas aquelas coisas, seu filho, de Shay e dela. Mas ela nunca o veria. Porque quando chegasse o verão, já estaria morta.

Capítulo Onze Fazia muitíssimo tempo que Emma Tremayne sentia que sua vida foi se diluindo, gradualmente, até ficar como um pau, liso e reto. Ninguém faria entalhes nele, salvo os pequenos que ela esculpisse, vivendo um dia igual ao outro. Marcando o tempo. Na segunda-feira jogou whist com as irmãs Carter. Geoffrey estava ali e lhe olhou a boca, frequentemente, imaginando que sensação produziria seguir sua forma com a língua... ali onde subia e logo baixava e logo voltava a subir. Por duas vezes se esqueceu de que paus era trunfo. Na terça-feira pela manhã o viu de novo. No porão de San Miguel, onde os mais jovens se reuniram para fazer bandeiras de papel da China para a festa de trinta de maio. Enquanto outros fingiam não dar-se conta, os dois escaparam para dar um passeio, sozinhos, pelo cemitério. A lua derramava sua luz azul sobre as lápides e os olmos gemiam ao vento marinho, e esta vez notou uma brutalidade em seu beijo, um desespero que a surpreendeu tanto que se livrou de seus braços e retornou correndo para dentro. Na quarta-feira almoçou com seus primos na fazenda Hope. Comeram sopa de tartaruga, ostras e aspargos empanados e depois foi até os canis, embora estivesse chovendo. Mas era outro homem o que estava ali encarregando-se dos cães. Na quinta-feira á noite assistiu a uma conferência no Ateneu. Quando voltou para casa, foi à estufa e pensou na manhã em que tinha entrado ali e viu

que sua mãe tinha feito pedaços de seu último trabalho, ainda não acabado, seu Adão no Éden antes da queda; aquela manhã em que sentiu como se também a tivessem feito em pedaços. Estava tão segura de que com seu Adão estava por fim a beira de algo grande e real, e tudo para perdê-lo. Mas agora sabia que só tinha estado à beira da mediocridade. Alegrava-se de que tivessem destruído sua obra, porque não valia nada nem ia valer. Sentia tudo o que não conhecia da vida, tudo o que não chegaria a conhecer, como um vazio doloroso na alma. E se perguntava como alguém que não era um Deus, tinha a coragem de tentar criar verdade do barro. Prometeu-se que nunca mais voltaria a esculpir. Agora era domingo pela manhã e, como fazia todos os terceiros domingos de cada mês, ia levar cestas com comida aos pobres que viviam em Goree. Ficava nos subúrbios da cidade, um lugar afastado das brisas marinhas, com casas de madeira, em fileira, erva pisoteada e becos cheios de roupa estendida. Os dias que fazia calor, como hoje, a fumaça manchava o céu de amarelo e cheirava à borracha queimada da fábrica próxima. Alguém lhe disse uma vez que a fábrica produzia cinco mil pares de botas ao ano. Ao passar pela frente, em sua Calesa negra, lhe ocorreu que nunca tinha visto e muito menos sido proprietária de um par de botas feitas em Bristol. As cestas que entregou estavam cheias de almôndegas, pescado, pão moreno e feijões guisados em panelas de barro. O melaço transbordava por debaixo das tampas das panelas e as mulheres as seguravam com suas mãos escuras e calosas e a olhavam com seus olhos apagados. —Não, não, por favor, não é nada —dizia cada vez que lhe agradeciam. A comida procedia das cozinhas da igreja e ela nunca tomava parte em sua elaboração. O tempo estava muito quente para a primeira semana de maio. Quando Emma acabou de entregar as cestas, o sol caía sobre seus ombros, ardente e agudo. Tinha ficado com sua mãe em San Miguel para o último serviço, mas,

em vez de ir para ali, saiu da cidade e tomou a estrada de Ferry em direção ao bosque de Tanyard. Era mais fresco sob as árvores. Os emplumados ramos dos abetos teciam um caramanchão por cima de sua cabeça. As anêmonas se ruborizavam entre as folhagens das samambaias cor tabaco. As árvores tinham uma boa parte do tronco fundo entre as samambaias. Ao final da estrada, o bosque se abria e a baía brilhava azul. O Pier de ferry estava deserto. Um par de amarrações de ferro se levantavam junto às docas. Atou a Calesa e andou pela passarela de tábuas que cruzava as restingas. Deteve-se para olhar alguns Snipes que bicavam e escavavam no barro, com suas plumas com listras brancas relampejando ao sol. Uma rajada de vento fez bater as asas de seu chapéu de plumas, sobressaltando as aves que levantaram o voo. Ziguezaguearam através do horizonte azul, asa com asa, até que dois disparos de rifle explodiram através do ar, um quase como o eco do outro e os pássaros despencaram. Um homem saiu do bosque e atravessou as restingas. Soube quem era por seu tamanho e pela maneira arrogante e flexível com que se movia. Levava um rifle em uma mão e outro no ombro, pendurado por uma corrente. Quando chegou ao lugar onde tinham caído os pássaros, deteve-se. A verdade é que não pensou no fato de pôr um pé diante do outro, mas de repente, encontrou-se ali, diante dele. Levantou o rosto para olhar sua cara dura, com o nariz torcido, a cicatriz na bochecha e aqueles olhos extraordinários e logo baixou para olhar os pássaros mortos. As Snipes não eram muito comuns como comida, mas seu voo veloz, errático, com suas quedas livres, convertia-as no tipo de alvo que só um perito podia esperar alcançar. E ele lhes tinha dado na cabeça. O olhar de Emma passou, lentamente, de suas botas até sua cara,

percorrendo toda sua longa estatura. Ele sorriu e foi como um relâmpago, aquele sorriso, rápido e austero. —Se pudesse trazer esses pássaros conosco, eu e certos pequenos meus amigos, ficaríamos muito gratos —disse, com sua áspera voz, que era em parte grunhido e em parte sussurro. —O quê? Emma olhou desde suas mãos enluvadas aos pássaros mortos e logo depois de novo para ele. Mas ele já estava se afastando dela, cruzando de novo as restingas em direção aos bosques de onde tinha saído. Agarrou os pássaros pelas patas, os dois com uma só mão. Com a outra recolheu a saia de seu vestido de organdi amarelo e em seguida desceu da passarela e se meteu no barro. Só mais tarde, quando recordasse aquele momento, perguntaria que coragem indômita e estranha se apropriou dela. Seguiram um velho e ruinoso muro de pedra que seguia seu rumo irregular e solitário através do bosque. Os enormes carvalhos lançavam matagais de luz e sombra em seu caminho. Seus passos faziam ranger o musgo cinza. Chegaram em um córrego atapetado de dragão fétido. Ele o cruzou, chapinhando, sem deter-se. —Espere — gritou Emma, mas ele não diminuiu o passo nem olhou para trás. Emma levantou ainda mais a saia para atravessar o córrego. A água gelada penetrou através de seus sapatos de pelica, que eram brancos, mas agora eram da cor marrom cinzenta do barro salino. —Isto é uma loucura — exclamou em voz alta—. Está louco — lhe disse às costas do homem que se afastava dela, andando rapidamente pelo atalho—. Estou seguindo a um irlandês louco que arranca a cabeça dos pássaros com um disparo, estou-o seguindo Deus sabe aonde e nem sequer sei como se chama. Supõe-se que um cavalheiro, quando o apresentam a uma dama, inclinase sem lhe estender a mão. Ele não se inclinou ante ela; havia-lhe tocado o

tornozelo sem sequer pedir sua autorização e ainda burlou dela. Mas não se inclinou nem era um cavalheiro e não tinham sido apresentados e pensava que se alegrava de não saber seu nome. Pensar nele como alguém sem nome, um dom ninguém, fazia com que se sentisse a salvo. Ele se deteve a beira de um pequeno prado onde um pinheiro branco gigante crescia por cima de uma rocha. Virou-se e levou um dedo aos lábios. Deixou as escopetas no chão, ficou de cócoras atrás da rocha e lhe fez um gesto para que se aproximasse. Ela foi e se ajoelhou a seu lado e sua saia de organdi, já não tão rígida como pela manhã, ainda rangeu como papel de seda. —Que Deus nos proteja —disse ele entre dentes. Era uma clareira limpa e vazia pelo que ela podia ver. Havia algumas plantas, grupos de pimpinelas escarlate; cattails e ciperáceas que dançavam movidas pela caprichosa brisa. Algumas calmias cresciam unidas para formar um dossel por cima da entrada de uma velha toca de marmota. Agarrou-lhe os pássaros das mãos e os atirou, um depois do outro, no meio da clareira, a uns três metros da toca. Emma se perguntou por que o fazia, mas não disse nada. Sentia-se tão intensamente viva só estando onde estava naquele momento fora do tempo e não queria pensar tampouco no por que daquilo. Estavam muito perto um do outro; tão perto que parte de sua saia caía em uma suave dobra em cima da coxa dele e a sombra de seus ombros lhe cruzava o peito. Não sabia quanto tempo levavam ali ajoelhados, atrás da rocha, a beira da clareira. O tempo suficiente para que a umidade do chão a empapasse através da saia. O tempo suficiente para que um carvoeiro decidisse que eram parte da paisagem e se dedicasse a revoar de um ramo a outro por cima de suas cabeças. Escapou-lhe um suave ofego quando ele a agarrou pelo queixo e lhe fez virar o rosto ligeiramente, para que não olhasse ao outro lado da clareira, a não

ser a seu interior. A cabeça de uma raposa acabava de aparecer na boca da toca, com as orelhas alerta e o focinho trêmulo. A raposa era muito paciente; passou uma eternidade antes que se lançasse para fora da terra. De novo se deteve para escutar, com as orelhas muito rígidas e o nariz farejando o ar, em seguida trotou com elegância e leveza, a longa cauda flutuando orgulhosa, até onde estavam as aves, em cima da erva. Deu voltas a seu redor, as farejando, com a cabeça inclinada, deu voltas e farejou. A raposa ladrou e quatro cachorrinhos saíram saltando da toca, com patas desajeitadas e orelhas enormes. Todos se lançaram sobre os pássaros, gemendo e ganindo, rasgando a carne e as plumas com seus dentinhos afiados. Todos, exceto um, que se acreditava caçador e que se escondeu, com o corpo gordo e esponjoso estremecendo e retorcendo-se, e logo saltou. E Emma sorriu. Voltou à cabeça e viu que ele a estava olhando e achou estranho que, pela primeira vez, não lhe importasse. —Obrigado —disse—, por... isto. —Fez um gesto abrangendo o prado e as raposas e todo aquele mundo bonito e estranho que lhe estava ensinando, embora ele não podia saber... Como ia sabê-lo?—. Mas por que me trouxe aqui? Sustentou o olhar um pouco mais e depois olhou para outro lado. —Pois, quanto a isso, não estou seguro. Nunca fez algo sem ter uma razão?

—Não, nunca. Verá se não for uma tradição respaldada pela prática de, pelo menos, quatro gerações, é algo que, absolutamente, não se faz. Surpreendeu-a tornando a rir. As pessoas riam tão poucas vezes de suas pequenas piadas que tinha começado a acreditar que tinha um senso de humor retorcido. E, além disso, aquilo era tão estranho; de repente, sentia como se pudesse falar com ele, rir com ele, durante muito tempo. Mas assim que lhe entrou aquela ideia na cabeça foi incapaz de encontrar a primeira palavra para começar. Ele recolheu as escopetas e se levantou. Começou a andar, voltando pelo mesmo caminho pelo qual tinham vindo e sem olhar para trás para ver se ela o seguia. Depois de cruzar o Córrego, deteve-se em um lugar onde uma árvore caída jazia através de uma brecha no muro de pedra. Sentou-se em cima do tronco e acionou a alavanca de um de seus rifles, fazendo saltar o cartucho vazio. Abriu a arma e olhou na câmara. Emma não sabia se, se supunha que tinha que seguir seu caminho sozinha, agora que já não parecia ser de utilidade para ele ou se queria que ficasse... Ou se ela queria ficar. Era a primeira vez em sua vida que não conhecia nenhuma regra que lhe dissesse como tinha que comportar-se. As pedras caídas formavam uma espécie de assento. Acomodou-se em cima, com elegância, e cruzou as mãos sobre a saia, como se, de repente, encontrasse-se no melhor salão de alguém. Entretanto, a maneira como se sentia por dentro... era como o assombroso silêncio que precede a uma tormenta. Esse momento tenso, com o fôlego contido, justo antes que as nuvens se abram e caiam as primeiras gotas. Ele fechou a câmara de repente, martelou-a e apertou o gatilho. O percussor caiu na câmara vazia com um agudo clique. Fascinavam-lhe suas mãos e a forma como se moviam. A forma como os tendões se flexionavam e as veias e os ossos se destacavam em um limpo relevo contra sua pele.

—Por que —perguntou com a voz um pouco entrecortada— necessita tantas armas só para matar umas poucas aves aquáticas nativas? Ele levantou o rifle e comprovou a mira ao longo do canhão. —São só velhos rifles Spencer de repetição, sobras de sua grande guerra, que consegui reconstruir com peças e partes que recolhi aqui e ali. Estou-os provando, por assim dizer, para estar seguro de que não falhem mais a frente na mão do primeiro que os use. Emma fez um movimento brusco para trás, alarmada, e logo teve que rir dela mesma. —E isso não é muito perigoso? —disse—. O que acontece se falhar na mão de alguém e esta voe em pedaços? —Então será minha maldita culpa, não? —O que fará com eles? —disse—. Uns velhos rifles desprezados reconstruídos com partes daqui e dali. —Mandá-los contrabandeados a Irlanda. —Olhou-a de soslaio, com olhos desafiadores—, onde talvez os usem para matar a jovenzinhas britânicas ricas e mimadas que fazem muitas perguntas. Fez a sorrir pela forma de falar. —Talvez seja rica e mimada, mas me agrada lhe informar, senhor, de que não sou britânica. —Já. Os ares e afetações que vocês ianques de Rhode Island se dão espantariam até à velha rainha. Emma observou que seu acento se fazia mais ou menos marcado dependendo de seu humor e do tema. Mas tanto se exagerava o irlandês como se não, quando falava, sua voz sempre soava torturada, como se sua garganta estivesse fechada pela oxidação e tivesse que arrancar as palavras à força. Queria lhe perguntar do que era a cicatriz do pescoço, mas era muito. Inclusive para a nova e valente Emma em que se converteu. Baixou o olhar aos joelhos. Fez uma dobra na saia com os dedos e depois

a alisou com a palma da mão. —Essa... —Viu que tinha as luvas manchadas do sangue das aves; outro par arruinado—. Essa raposa e seus cachorrinhos eram da raposa que morreu. Não o disse como pergunta. Às vezes, quando se obrigava, podia dizer a verdade. —Ah, sim, mas aquela pobre raposa não morreu. Sua gente lhe caçou e a fez em pedaços — disse e ela soube então que essa era a verdadeira razão de que a tivesse levado ao prado. Ele apoiou o rifle no ombro e apertou o gatilho. Emma ouviu como o percussor caía na câmara vazia, uma vez e logo outra e estremeceu cada vez. —São companheiros por toda vida, as raposas — disse ele—. Perguntome, senhorita Tremayne, acredita que sentem amor? Ela se obrigou a levantar o rosto e olhá-lo nos olhos. —Não sei. —Encontrei-os alguns dias depois da caçada, a sua raposa e os cachorrinhos. Ela tinha rasgado a pele com seus próprios dentes até deixá-la em carne viva e tinha caminhado para cima e para baixo, em frente da toca até fazer um caminho de tanto passar, esperando que ele voltasse. Mas ele nunca ia voltar e também esteve a ponto de deixar de comer, beber e se deixar morrer também, só que tinha quatro cachorrinhos que cuidar e agora unicamente ela está sozinha para caçar para eles, assim tem que seguir adiante. Emma baixou a cabeça para que não visse que tinha os olhos cheios de lágrimas, porque sabia que ele pensaria que eram lágrimas fáceis. Desenhou círculos nas folhas mortas e nas agulhas de pinheiro com a ponta, manchada de barro, de seu sapato de verniz. Conseguiu que só caísse uma única lágrima, que deixou uma mancha escura, como se fosse outra gota de sangue, em sua saia de cor amarela limão. —Eu não queria... o que aconteceu. —Não o queria, isso diz, mas o macho da Raposa morreu mesmo assim e

sua perda não impediu que o vento siga soprando entre essas árvores nem o sol brilhando sobre o porto nem que seus cachorrinhos tenham que alimentar-se. E você estava ali, não é verdade? Emma levantou a cabeça, orgulhosa. —E você também. Além disso, nós, os Tremayne, sempre assistimos à última caçada da temporada. —Vá, isso fazem? —Não posso evitá-lo —disse ela—. Não posso evitar ser quem sou. Ele voltou a olhá-la, sem dizer nada. Na penumbra da sombra das árvores, seus olhos refulgiam como partes de cristal na praia. Ela virou a cara. Era grosseiro e odioso. Um contrabandista irlandês, ignorante, que arrancava a tiros a cabeça dos pássaros e depois tinha a desfaçatez de enrugar seu nariz torcido, criticando-a, por ter participado da caça da raposa. Ia levantar-se e deixá-lo ali, sem lhe dizer sequer adeus e isso lhe ensinaria... ensinaria-lhe... Viu um áster em flor entre o desmoronamento de pedras do muro e se inclinou para pegá-lo. Girou o caule e as pétalas douradas bateram as asas como um carrossel. —Por que não gosta de mim? —Se ilude, isso é o que faz, se acreditar que penso em você para qualquer coisa. —E mentir, é o que faz, senhor, se tenta me dizer o contrário —disse ela, tentando imitar o acento irlandês de suas palavras. Ele se pôs a rir. —Mentir, essa é uma boa palavra. Estou seguro que jamais lhe ocorreria dizer mentiras, verdade? Em especial, às pessoas como eu. Mas se passou toda sua jovem vida fugindo da verdade e está fazendo pedaços dessa pobre flor que tem na mão. Ela abriu o apertado punho e o áster caiu quebrado ao chão, entre as

folhas e as agulhas de pinheiro. —O outro dia —disse ela— quando estava na fazenda de meu primo, fui aos canis e um homem me disse que o tinham despedido. —Sim, tornei a trabalhar nos campos de cebolas. Um trabalho horrível, esse — disse arrastando a palavra com um florido e rindo dela com os olhos—. A enxada te faz sair ampolas nas mãos e parece que as costas vai te partir em dois. Vejamos, agrada-lhe escutar meus sofrimentos, senhorita Tremayne? —Se ilude, senhor, se acreditar que tenho algum sentimento por você. Na cara dele apareceu um sorriso e ela não pôde evitar sorrir também. Aquele momento pareceu durar eternamente e logo acabou bruscamente, quando ele ficou em pé. Agarrou-a pelo braço, ajudando-a a levantar-se. —É hora de que volte para casa, senhorita Tremayne —disse com sua voz áspera e rouca—. Antes que alguém pense que se perdeu. Ela se virou e se afastou dele. De repente, o vento virou entre as copas das árvores, orvalhando-a com um montão de agulhas de pinheiro com um aroma incrivelmente agradável. Pensou que se ficasse um pouco de orgulho, não olharia para trás para ver se ele a observava. Não ficava nenhum orgulho. Virou-se, mas o atalho estava vazio. O tronco caído seguia ali, igual à brecha na parede, mas ele se foi. Desvaneceu-se tão completamente que se sentiu impulsionada a voltar para trás para procurar alguma prova de que ele tinha estado ali. E, sim, o leito de folhas estava pisoteado, ali onde ele tinha plantado as botas. Um único cartucho brilhava ao sol e o ar cheirava ligeiramente a graxa de escopeta.

Durante o resto do dia teve um nó na garganta e o peito cheio de uma estranha e pesada tristeza, como se chorasse a perda de algo que nunca tinha visto. Algo que nem sequer existiu, que nunca foi imaginado.

Capítulo Doze Emma esqueceu que tinha decidido não voltar a esculpir. Depois daquele dia no bosque, passava horas na velha estufa. Moldava a argila, quebrava-a e voltava a moldá-la. Era já bem entrada a noite, à luz de uma lanterna de querosene, quando finalmente se deteve, ficou olhando o que tinha feito e suas mãos começaram a tremer. Porque pela primeira vez, compreendeu que havia uma artéria que ia desde seu coração até suas mãos e as coisas que criaria com elas. Soube que algum dia encontraria essa artéria e, quando o fizesse, abriria-a e sangraria e possivelmente morreria, mas teria feito algo real. Olhou-o fixamente, isso que tinha saído de suas próprias mãos e viu, não um modelo de argila, a não ser ossos e pele e tendões vivos. As mãos de um homem estendidas para o céu. As mãos dele. Tinha decidido acabar a escultura nos pulsos. Não queria nada mais dele, só suas mãos. O resto da vida de Emma se dissolvia em um carrossel de chás e bailes, de reuniões beneficentes e partidas de whist. Exceto uma memorável manhã, quando os trajes de baile que tinham encarregado o inverno anterior a Maison Worth chegaram de Paris. Quando chegou o pacote, as Tremayne estavam juntas na sala, preparando Ramos de flores para a sala infantil do hospital. Emma, cheia de emoção, lançou-se sobre a elegante caixa, forrada de seda, que proclamava ao mundo inteiro que era da Worth e que, por isso, seu conteúdo era caro, exclusivo

e bonito. —É como se fosse Natal em maio —disse Maddie, rindo feliz. —E será Natal antes que os vejamos, se não conseguir desfazer este desgraçado nó. Vou necessitar uma faca... não, já conseguir. —Emma jogou uma rápida olhada sob a tampa da caixa—. Acredito que o de cima é o teu, Maddie. Fecha os olhos enquanto o tiro. Emma levantou o rosto sorrindo, com as mãos imóveis, prolongando o momento. Maddie fechou os olhos, sorrindo também, cheia de alegre expectativa. Emma viu que inclusive na cara de sua mãe tinha aparecido um brilho de entusiasmo. Toda a manhã tinha estado irritável, encontrando defeitos em tudo o que faziam. Mas a verdade é que, ultimamente, tinha criado o hábito de banharse em água fria todo dia, ao levantar-se, para sossegar o apetite e afirmava que os banhos faziam com que lhe doessem os ossos e as articulações. Emma a olhou agora, ali de pé diante da mesa de metal branco e cristal, rodeada de tulipas e lírios, envolta em um vestido de manhã de moaré malva. A sala brilhava como o coração de uma rosa com o sol que entrava pela janela de cristal chumbado para dançar pelas paredes de seda rosa. Banhada naquela luz rosada, Bethel Tremayne parecia jovem, esbelta e bonita. —Está especialmente bonita esta manhã, mamãe —disse Emma. As bochechas de Bethel, pálidas e lisas se acenderam de prazer, embora fez um gesto negativo com a cabeça. —É muito amável pensando-o, querida, mas me resulta difícil de acreditar, porque me sinto decididamente esgotada. Se soubessem os sofrimentos que suportei. Só espero que seu pai... —A voz foi se apagando, enquanto se acentuava seu rubor—. Venha, vamos, abre a caixa de uma vez. Sua pobre irmã está a ponto de morrer de nervosismo. O vestido de baile sussurrou como um bando de pombas ao levantar voo quando Emma o tirou da caixa. Era feito com metros e mais metros de seda lamé

de cor magenta entretecida com fios de prata que cintilavam e titilavam como um arco íris na luz rosada. Maddie, incapaz de esperar mais, abriu os olhos e soltou uma afogada exclamação de prazer. —Oh, Meu Deus...! Emma segurou o vestido contra o peito com uma mão e desdobrou a saia com a outra. Fez uma pequena inclinação e um giro, cantarolando a melodia de uma valsa. Deu uma volta na sala, dançando e em seguida se deteve para deixar o traje, delicadamente, lentamente, em cima dos joelhos de sua irmã e Maddie suspirou cheia de felicidade. —É lindo. É precioso de verdade, não te parece, mamãe? —Oxalá se pudesse pôr isso para meu baile de compromisso —disse Emma, embora sabia que era uma vã esperança. Considerava-se que era extremamente pouco refinado vestir-se à última moda. A norma era, em geral, guardar os vestidos de Paris em um baú para que envelhecessem durante dois anos e os de Nova Iorque, um ano. —Entretanto, Maddie, é uma lástima tão grande que não possamos romper as normas só por esta vez —disse em voz alta—. A única coisa que Stuart Alcott necessita para perder a cabeça é verte com esse vestido. Maddie se pôs a rir, mas a áspera voz de sua mãe a cortou bruscamente. —Emmaline Tremayne! —exclamou, olhando a sua filha com seu cenho mais pronunciado—. Não permitirei essas... essas expressões de jargão em minha casa. Emma mordeu os lábios e baixou os olhos para o luxuoso tapete florido. —Sinto muito, mamãe —disse, mas ao fim de um momento, levantou a vista, olhou para Maddie e sorriram. —Além disso —estava dizendo sua mãe— e embora me dói ter que fazer isto, entretanto, não há mais remédio, terá que fazê-lo, porque não é apropriado. —Brincou com a rígida renda do pescoço. A cor desapareceu e apareceu de

novo em seu rosto—. Madeleine não assistirá a seu baile de compromisso. —Mamãe. —Emma se deixou cair lentamente em um tamborete de porcelana azul e verde—. Não é possível que seja tão mesquinha, tão cruel, tão desumana... Bethel agitou a mão no ar como se empunhando um leque de palmeira. —Olhe, deixe todas essas tolices melodramáticas, Emma. Por que todos os meus filhos insistem sempre em me matar de vergonha com essas exibições de sentimentos vulgares? Estou segura de que essa predileção deve ser um traço dos Tremayne, porque certamente não vem de minha família. Agarrou um dos lírios e depois o deixou de novo em cima da mesa. —Com minha decisão tento ser compassiva, tanto com Maddie como com nossos convidados. Que sentido tem deixá-la assistir a um acontecimento assim, se não pode dançar? Vê-la ali, sentada, como alguém a quem nunca tiram para dançar, uma dança atrás da outra, confinada em sua cadeira, seguramente que estragaria a noite de todo mundo. — Agarrou de novo o lírio e esta vez o cravou com força no meio de um ramo de tulipas de cor rubi—. O qual mostraria uma falta de delicadeza por nossa parte que eu não posso permitir. Emma se atreveu a olhar a sua irmã. Maddie estava acostumada a encolher-se na cadeira quando sua mãe atuava mesquinhamente, mas agora estava sentada firme e erguida, com a boca inclinada de uma forma estranha, torcida. Entretanto, o sangue lhe tinha desaparecido por completo da cara, como se lhe tivessem arrancado o coração. De repente, amassou e atirou o bonito vestido de baile que tinha nos joelhos. E começou a chorar, com uns soluços asfixiantes, dilaceradores. —Por que me compra estas coisas se nunca me permite ir a nenhum lugar? Não posso andar, não posso dançar e não posso suportá-lo. Não posso suportá-lo! Apertou o vestido com os punhos e enterrou a cara na rangente seda avermelhada.

—Quero morrer. Por favor, Meu deus, deixa que me mora... Emma correu ao lado de sua irmã e ajoelhando-se tentou rodeá-la com seus braços, mas Maddie apoiou a palma das mãos nos ombros de Emma e a empurrou, afastando-a. —Me deixe sozinha. Quero ficar sozinha, sozinha, sozinha! —gritou, golpeando as coxas com os punhos. Bethel foi até onde estava o cordão da campainha e puxou-o com força. Os soluços de Maddie morreram subitamente, como se alguém os tivesse cortado pela raiz. Balançava-se para frente e para trás, gemendo e apertando com força o vestido entre as mãos. Um momento depois entrou um servente e, sem que lhe dissessem nada, empurrou a cadeira de rodas de Maddie para fora da sala. Emma ficou onde estava, ajoelhada no chão. Havia um tremor tão selvagem em seu interior, que sentia como se um vento furioso e indomável soprasse através dela. Queria gritar, mas temia que se começasse, possivelmente não poderia parar e se voltaria como Maddie, rasgando coisas, tentando destruir seu mundo com as mãos nuas. —Por Deus! —estava dizendo sua mãe, que havia tornado a ocupar-se das flores, como se a interrupção tivesse sido uma trivialidade —. Às vezes, temo que o acidente danificou o cérebro de nossa pobre Maddie, além de suas pernas. Sei que é perturbador pensá-lo, mas possivelmente terei que falar com seu tio Stanton sobre ingressá-la durante um tempo no hospital psiquiátrico em Warden. Para curá-la desta histeria tão ilógica que parece possuí-la quando menos se espera isso. Emma mordeu o punho para afogar um grito e fechou os olhos para conter a ardente corrente de lágrimas. Era uma ameaça que sua mãe levava anos fazendo, desde que viu o velho senhor Alcott empregar esse castigo com seu filho Stu. E, além disso, podia arrumá-lo muito facilmente; quão único precisava era convencer ao tio Stanton, que era médico, para que declarasse que Maddie

sofria uma perda temporária da razão e em seguida fazer com que seu primo, que era juiz, assinasse os papéis de internamento. Emma tinha averiguado que uma jovem, uma mulher, podia ser internada em um manicômio, contra sua vontade, em qualquer momento por seu pai, seu marido ou seu tutor, inclusive por seu filho. O único que se precisava eram os documentos apropriados. —É compreensível que esteja desgostada —disse Emma, tentando fazer com que sua voz soasse calma e razoável—. Não temos feito mais que falar do baile de compromisso e agora lhe diz que não pode assistir, assim é inevitável que esteja terrivelmente decepcionada. Ficou rigidamente de pé e foi até onde estava sua mãe, diante de uma mesa cheia de lírios e tulipas e fitas vermelha. —Mamãe, por favor. Não faça isto a Maddie. Se o fizer, não poderei suportá-lo. Bethel não levantou o olhar da fita que estava atando ao redor de um vaso de cristal opaco. —Deve aprender a deixar de lado seus sentimentos pessoais nestes assuntos, Emma. A dignidade da família e as boas maneiras sempre devem vir primeiro. —Não, esta vez não —disse Emma, embora, mais tarde, perguntou-se de onde tinha tirado coragem. Possivelmente ser a única esperança da família levava consigo um certo poder—. Esta vez Maddie vem primeiro. Do contrário, farei... farei algo vergonhoso e lhe estragarei isso tudo, mamãe. Juro-te que o farei. Bethel deu um forte puxão na fita, estragando o laço. Suspirou profundamente, resignada. —Se não soubesse que não é assim, pensaria que vocês duas tinham se criado em um lixão. Mostram uma falta de delicadeza na criação que certamente não procede de minha família.

Virou-se bruscamente e se encaminhou para a porta, abandonando as flores para a beneficência, abandonando a discussão. —Disse-o a sério —afirmou Emma e a voz lhe tremeu só um pouquinho. Sua mãe fechou a porta depois de sair, sem dizer nenhuma palavra mais, mas Emma soube que tinha ganhado. Entretanto, quando foi ao quarto de sua irmã, encontrou-a jogada na cama, imersa em um sono febril e fedendo ao hidrato de cloral que impregnava o ar. Emma se sentou na cama e alisou o cabelo empapado de suor de sua irmã, afastando-o da testa avermelhada. Os lábios de Maddie estavam secos e rachados, mas sorria. —Olhe, Stu —murmurou Maddie, perdida, mas feliz, muito feliz em seus sonhos—. Estou dançando, dançando...

Em doze de maio deram um baile em As Bétulas para celebrar o anúncio oficial do compromisso de Emma com Geoffrey Alcott. O salão de baile estava decorado segundo o tema de um jardim inglês, com arbustos em vasos de barro, podados para lhes dar forma de animais, e rouxinóis de verdade soltos para que cantassem em roseiras douradas. Nem todo mundo estava convidado, só os que eram alguém em Bristol. Emma sentiu um prazer retorcido ao pensar que certo imigrante irlandês nunca seria convidado. Que a ninguém lhe passaria sequer pela cabeça lhe convidar. Dançou com Geoffrey e, às vezes, quando ele a olhava, a fazia se sentir bonita, frágil e sem fôlego. Uma vez, levou-a para fora do jardim do salão de baile, ao jardim de verdade, passando pelas portas duplas. O vento formava redemoinhos entre as bétulas e pôde cheirar o mar. Desceram a escada da varanda e saíram à grama e dançaram uma valsa seguindo uma música que mal podia ouvir por cima dos fortes batimentos de seu coração.

Mas quando entrou de novo, encontrou Maddie encolhida em sua cadeira no oco de debaixo das escadas. Seus olhos estavam muito abertos e vermelhos, da cor de um machucado e frágil pelo hidrato de coral que tinha tomado. —Não veio — dizia, repetidamente—. Nunca virá. Tinham permitido a Maddie assistir ao baile e Stu Alcott tinha sido convidado. Mas não tinha vindo. Seu irmão disse que tinha ido à Nova Iorque uma temporada, mas que voltaria quando lhe acabasse o dinheiro.

À manhã seguinte, a mãe de Emma lhe deu papel e pluma e lhe disse que escrevesse a seu pai para lhe rogar que viesse e ela o fez. Depois foi ao Cais, onde seu Saveiro balançava em sua amarração e onde o navio de Willie já não estava. Sentou-se nas tábuas cinza e curvadas e rodeou as pernas dobradas com os braços. Apertou os olhos com força contra os ossos dos joelhos, mas não conseguiu evitar o choro.

A noite seguinte ao baile, levantou-se um vento selvagem e tempestuoso e Emma despertou de repente, inquieta e excitada. O vento e a noite a atraíram para fora. As grades de ferro forjado desenhavam listras e curvas de sombra no caminho de conchas calcadas. Os escuros ramos das bétulas se agitavam contra o céu, as samambaias e as juncias estremeciam na escuridão. Havia mistério no ar, mas, de todos os modos, quando chegou à baía, sabia o que ia encontrar. Cheirou a água antes de vê-la e ouviu seu perpétuo suspirar. A lua aparecia pálida e branca por cima das espumosas ondas. Ao longe, onde a baía brilhava negra e oleosa na escuridão, viu as luzes contínuas de um barco de pesca. E afastando-se dela, um bote com as silhuetas de dois homens. Ali de pé, no ponto em que as bétulas chegavam à praia, esperando que ele chegasse, sentia-se como se fosse outra pessoa.

Ouviu o tamborilar dos remos e o roce da amurada ao tocar ligeiramente os postes. Um dos homens desceu do bote e depois o empurrou para fora. Era alto e seus ombros quase bloquearam a lua e a maioria das estrelas. O vento açoitou seu jaquetão negro, fazendo com que se inchasse, escuro. Andou rapidamente pelo Cais, logo desceu de um salto e foi diretamente até ela. A luz da lua convertia a cicatriz de sua bochecha em um corte prateado. Pensou, só por um instante, que podia lhe fazer mal. Mas não se pôs a correr nem emitiu nenhum som, nem sequer quando ele a agarrou pela mão e a fez meter-se entre as bétulas. A palma de sua mão era cálida e áspera, calejada pela enxada. Quando estiveram envoltos pela sombra das árvores, soltou-a. Meteu as mãos nos bolsos. Não podia lhe ver a cara. Só era outra sombra em uma noite cheia de sombras. —Por que —perguntou— se dedica a correr por estes bosques em meio da condenada noite vestida só com uma camisola? Ela baixou os olhos até seus pés descalços e logo voltou a olhá-lo. Rodeou-se com os braços e estremeceu, fingindo ter frio, embora a verdade é que se sentia em evidência e estava morta de calor. Ia envolta do pescoço até os tornozelos com metros de linho e renda, mas poderia ter estado nua. —Por todos os Santos — disse ele—, quantos anos tem? A pergunta a surpreendeu, como surgida do nada. —Vinte e dois. Não diga que sou muito jovem. Não o fez; não disse nada. Teria gostado de lhe ver a cara, mas, para ela mesma, preferia o anonimato da escuridão. Fazia-se sentir muito ousada e atrevida, embora só usasse camisola. —Quantos anos você tem? —perguntou. —Vinte e sete. —Pensava que era mais velho. —Os irlandeses nascem velhos. E pobres.

—E orgulhosos de sê-lo, ao que parece —disse, permitindo-se sorrir, dado que ele não poderia vê-lo na escuridão. —Senhorita Tremayne, senhorita Tremayne... O que vou fazer com você? —disse, quase cantando e ela pensou que possivelmente ele também estava sorrindo—. Aqui fora, onde não é seu lugar, vendo coisas que não deveria ver. —Poderia me assassinar, me arrancar o coração e me enterrar no mais profundo do bosque, onde ninguém jamais me encontraria. Ele pôs-se a rir, o que a fez sentir-se absurdamente contente consigo mesma, porque, aparentemente, tinha o talento para fazê-lo rir. —Mas, olhando bem — seguiu dizendo—, correria o risco de que meu fantasma o acossasse por toda a eternidade. Em qualquer lugar que fosse, eu o seguiria com a cabeça colocada debaixo do braço, gotejando sangue e uivando quando houvesse lua cheia. —Pensei que era o coração o que ia arrancar-lhe, não a cabeça. Dhia, que criatura tão horrível é você. —Se for ficar tímido e reticente à mínima menção de violência, poderia limitar-se a me arrancar a promessa de não falar com ninguém de suas atividades nefastas. —Ah, sim? E que atividades nefastas seriam essas? —Vá, pois o contrabando de armas, claro. —Embarque. Não se chama contrabando até que entrem na Irlanda, que Deus guarde. —Seja como for, eu não o delatarei, se você não me delatar. —E o que teria eu para delatar? —Que saio sozinha, depois de escurecer e sem a apropriada companhia de carabinas. —Ah, isso —disse ele. —Um delito abjeto. E em uma escala de maldade, abjeto deve ocupar um lugar mais alto que nefasto, seguramente.

Ele pôs-se a rir de novo e depois deu um passo veloz e súbito, que o levou junto a ela. —Não há nada a fazer — disse e havia um lento sorriso em sua voz—. Se formos ser sócios no delito, teremos que fazer um juramento de sangue. Tirou a mão do bolso e ela viu que sustentava uma navalha quando apertou uma mola no cabo e saiu à folha de repente. —Dê-me sua mão — disse. Estendeu-lhe a mão, como se a estivesse dando a um cavalheiro, para que a beijasse; só que lhe tremia um pouco. Ele apertou o fio da navalha contra a base de sua mão e depois contra a dela. Ela estremeceu, especialmente no pensamento, porque o corte era muito pequeno e não sentiu dor alguma. Seu sangue brotou brilhante e escuro. Ele apertou sua palma contra a dela, carne contra carne. Parecia como se o sangue dela fluísse dentro dele e o dele dentro dela. —Agora, juremos — disse ele. —O que... o que juramos? —Que nunca o diremos. «Não voltaremos a falar disto, nunca.» Perguntou-se se havia algum sentido em suas palavras, além do que estava acontecendo essa noite, mas se era assim, não tinha nenhuma esperança de compreendê-lo e, pela primeira vez, desfrutava de sua ignorância. Seus lábios formaram as palavras antes de pronunciá-las. —Juro-o — disseram os dois ao mesmo tempo e, esta vez, a voz dela soava tão rouca como a dele. Não recordava haver-se despedido dele. De repente, encontrou-se diante das grades de ferro de As Bétulas, olhando através delas às listras e curvas de sombras que se estendiam ao longe através da grama. A lua tinha saído e enchia a noite. Sentia-se crepitar por dentro, cheia de fogo, como se tivesse engolido um raio inteiro.

Capítulo Treze Os bristolinos adoravam contar histórias sobre eles mesmos e seu conservadorismo: tratava-se de um jovem que deixava seu lar para ir às jazidas de ouro da Califórnia no meio de um sermão dominical na Igreja Episcopal de San Miguel. Quando fez fortuna, voltou para Bristol, entrou em San Miguel outro domingo e retomou o sermão na mesma frase exata onde o tinha deixado tantos anos atrás. Emma pensou, com um suspiro, que, sem dúvida, nada tinha mudado nos anos transcorridos desde então. Bom, sim, o reitor tinha mudado, claro; o reverendo Shrewsbury tinha morrido de apoplexia fazia já um tempo. Agora era o reverendo Peele quem cuidava do rebanho. Em Bristol, era considerado um recém-chegado porque só levava quinze anos vivendo e pregando na cidade. O reitor, além de ter escolhido outro lugar para nascer, tinha o defeito de suas costeletas, que se separavam das bochechas de uma maneira um tanto indisciplinada. Suas bochechas, frouxas e caídas, balançavam quando pregava, pontuando suas palavras, cuja essência, neste domingo, parecia ser que Deus era episcopaliano. Emma não prestava atenção aos detalhes, porque já os tinha ouvido antes. Acabava de dar-se conta que seu vestido de domingo, de veludo de uma rica tonalidade de mirtilo, destoava das almofadas do genuflexório, de cor vermelha intensa. Não era próprio dela, absolutamente, não ter pensado aonde ia aquela

manhã, quando decidiu o que ia vestir. Entretanto, quanto mais o pensava, mais perversamente satisfeita se sentia de sua gafe. Via as mesmas pessoas, domingo após domingo, mês após mês, ano após ano. Além disso, passava a maior parte do tempo fazendo as mesmas coisas com as mesmas pessoas. Se nunca, nenhuma só vez, fizesse algo minimamente extraordinário e inesperado, então sua vida acabaria sendo tão reta e plana que não restaria nada dela. Olhou sua mão direita. A luva de ponto de seda com seu botão de pérola ficava liso e ajustado, ocultando o sinal que aquele homem lhe tinha feito na palma. Era um corte pequeno, só uma espetada, em realidade, e já tinha cicatrizado. Mas com frequência pensava que a notava, ali, como lhe pulsava o coração, forte e rápido, como se estivesse justo debaixo da pele e lutasse para sair. Fechou a mão em um punho e em seguida a abriu de novo. Esfregou a palma sobre o joelho e depois levantou o olhar para encontrar-se com as irmãs Carter que a estavam observando, então se obrigou a permanecer imóvel. Pelo menos, não havia ninguém sentado junto a ela no banco dos Tremayne, tomando nota das falhas em suas maneiras. Maddie não tinha saído de As Bétulas desde o acidente, nem sequer para ir à igreja, embora antes estava acostumada a cantar no coral. Mas sua aparição em San Miguel em sua cadeira de rodas teria chamado uma atenção indevida sobre ela e sua desventurada aflição e atraído à vergonha sobre a família, ou isso havia dito sua mãe, por isso não era apropriado. Essa manhã, sua mãe ficou na cama com uma terrível dor de cabeça. Na semana anterior tinham retornado os Wilbur Norton, depois de fazer um cruzeiro na Florida, cheios de histórias sobre William Tremayne e as festas que dava em seu iate, com sua última amante. No passado, sua mãe sempre enfrentou os pecadinhos de seu marido negando-se a reconhecer que existiam, mas esta última vergonha tinha sido muito para ela.

—Tem o dever de aparecer em nosso banco —disse a Emma no início da manhã, enquanto jazia na cama em meio de uma cascata de renda de Bruxelas, reclinada em travesseiros de seda e rodeada de garrafas de láudano e sais aromáticos—, Por uma questão de boas maneiras e a dignidade de nossa família. É nossa única esperança. «É nossa única esperança...» Quando Emma se casasse, sentaria-se com Geoffrey e sua avó no banco da família Alcott. Pensava que, pelo menos, a vista seria diferente do outro lado da nave, embora os sermões seguiriam sendo os mesmos. Lançou um olhar a seu prometido. Mantinha sua bonita cabeça erguida sobre os ombros e o brilho das velas que se refletia nos vitrais da catedral lhe davam um tom dourado ao rosto e ao cabelo. Tinha os olhos fixos no reitor, como se estivesse pendente de cada uma de suas palavras, mas possivelmente só lhe fascinassem aquelas bochechas que balançavam cada vez que falava. Geoffrey levava uma gardênia na lapela de seu casaco cinza, mas não era estranho porque sempre tinha sido um homem muito elegante. Provavelmente, nunca, em toda sua vida, tinha usado nada que desafinasse. Emma atravessou as envernizadas portas de San Miguel e respirou fundo o ar cinza e úmido. Abotoou seu longo casaco de pele de foca até o queixo e colocou as mãos em um manguito, pequeno e redondo, de pele de arminho. Depois de uma primavera temprana e cálida, o tempo havia ficado frio e irritante de novo. E assim, pensou com outro pequeno suspiro, proporcionava abundante pasto para as conversas da “Gente Importante”.

Geoffrey se aproximou dela, colocando o chapéu, como é devido, e ajustando os punhos de suas luvas cinza. Sorria de orelha a orelha, exibindo todos seus longos dentes. Antes pensava que gostava de seu sorriso... e ainda gostava. Sim, gostava. Era só que estava irritada com ele por alguma razão que

não conseguia entender. —Um sermão esplêndido o de hoje, não é verdade, querida? —disse—. Muito edificante. —É o mesmo sermão que prega todo ano nesta época. Emma sentia como se a estivessem asfixiando com uma manta de lã molhada. Ia ser seu marido e queria lhe perguntar o que tinha estado pensando, de verdade, durante a última hora. Mas as convenções sociais não lhes permitiam falar de coisas íntimas, como ideias e sentimentos. —Geoffrey —disse—, Crer em Deus? Ele a pegou pelo braço e seus dedos a agarraram pelo cotovelo, com um pouco de força, enquanto a levava para a porta lateral e a separava de ouvidos indiscretos. —Como te ocorre me perguntar isso justo ali, na escadaria de San Miguel, um domingo pela manhã? —Sim, tem razão. É obvio que crer; do contrário, não estaria aqui. Estou segura que não estaria aqui simplesmente porque aqui é onde está todo mundo, verdade que não, Geoffrey? Suponho que seria mais apropriado te perguntar: Como pode estar tão seguro de que “Ele” é episcopaliano? Uma rajada de vento percorreu a Rua Church, alvoroçando a hera que subia pelo muro de pedra a suas costas e trazendo com ela o som do cântico gregoriano, o arrastar de pés e o tanger dos sinos. Emma pensou que devia ser aquele domingo de maio em que as meninas católicas da Santa Maria se vestiam todas de branco e levavam em procissão uma estátua de gesso de sua Virgem ao redor da praça até a baía. Quando era pequena, Emma queria unir-se à procissão mas, é obvio, isso era algo impensável. San Miguel, não querendo ser menos, começou a fazer soar seu sino de cobre. Geoffrey pegou a corrente de ouro que lhe cruzava o estômago e tirou o relógio de bolso. Abriu a tampa e estudou a esfera um momento e em seguida voltou a levantar os olhos, olhando para Emma com expressão inocente.

—De quem fala que estou seguro de que é episcopaliano? —Deus. —É obvio que é episcopaliano —protestou Geoffrey, embora não sorrisse. A procissão dobrou a esquina e apareceu à vista. Um jovem sacerdote, extraordinariamente bonito, encabeçava a marcha, balançando um incensário e cantando frases em latim com uma bonita voz de tenor. Estava rodeado, a ambos os lados, por dois grupos de monjas com suas toucas brancas engomadas e seus rígidos hábitos negros. As saias se inchavam como a borda das campainhas que faziam soar seguindo o ritmo do canto do sacerdote. Seguiam seis homens, mais lentamente, vestidos de portadores e sustentando uma plataforma de madeira que sustentava à Virgem de gesso. A estátua estava rodeada de montões de lírios brancos e velas votivas acesas. Emma pensou que era muito bonito. A Virgem levava uma coroa feita de pequenos casulos de rosa, de cor rosa. Tinha uma boca rosada e sorridente que lhe dava um ar de misterioso encanto. Seu vestido pintado de azul só estava um pouco lascado na prega. As meninas iam atrás dela, com seus vestidos brancos com cinturões azuis. E com coroas na cabeça, como as da Virgem. Muitas levavam cestos de flores e algumas sustentavam grandes estandartes verdes e brancos enfeitados com harpas e trevos. Cantavam: «Oh, Maria, hoje lhe cobrimos de flores, Rainha dos Anjos, Rainha de Maio...». —Olhe —disse Emma, assinalando com a cabeça à procissão, já que fazê-lo com a mão era de má educação—, eles provavelmente pensam que “Ele” é católico e irlandês. —Emma! —exclamou Geoffrey, com um tom realmente escandalizado. Olhou ao redor para assegurar-se de que ninguém a tivesse ouvido. E Emma, uma vez conseguido, por fim, o que queria dele, agora, por alguma estranha razão, tinha vontade de chorar.

—Está te burlando de mim outra vez, verdade? —disse ele, mas agora não sorria. Aparentemente burlar-se muito de seu prometido tampouco era de boa educação. Emma piscou para conter as lágrimas. Olhou para cima, a um céu salpicado de nuvens, cinzas como o estanho. —Parece-me que vai chover hoje. As nuvens escuras sempre trazem um tempo úmido. Geoffrey emitiu um som que estava a meio caminho entre uma risada e um suspiro, mas claramente satisfeito de estar de novo em terreno familiar. —Começa a soar como minha avó —disse—, sempre prognosticando chuva. —Os céus limpos, por outro lado, tendem a significar que o sol brilhará. Claro que, em realidade, ele não a escutava. Com frequência não o fazia, sempre que falasse como devia e cuidasse de suas maneiras. —Falando de avó —disse—, ela foi ao cemitério, inspecionar, para ver que famílias cuidam de suas parcelas como é devido e quais se mostram tristemente negligentes. E se houver embora só seja uma folha perdida ou uma folha de erva murcha na última morada de vovô, não ficará mais remedeio que ouvi-la falar disso, com todo detalhe, durante todo o almoço. Voltou a agarrar Emma pelo braço para ajudá-la a descer a escada da igreja. —Seria um tesouro e a distrairia um momento, enquanto falo com meu banqueiro um segundo? Era verdade que a avó de Geoffrey andava entre as lápides e as criptas, esquadrinhando através de uns binóculos com aros de pérolas. Embora usasse bengala, não estava encurvada. Possivelmente fosse seu porte majestoso, embora diminuto e o casaco azul claro que usava, mas para Emma recordava a Virgem de gesso. Salvo que, em vez de uma coroa de flores, exibia um chapéu com uma

longa pluma negra que esfaqueava o céu. Emma sempre tinha procurado a companhia da avó de Geoffrey nas reuniões sociais, sobre tudo porque nunca se sentia analisada e julgada em presença da anciã. Eunice Alcott não se interessava por ninguém que tivesse menos de sessenta anos. —Bom dia, senhora —disse Emma, sorrindo com acanhamento ao chegar a seu lado— . Tem bom aspecto. A anciã respirou tão fundo que soltou um ronco. —Pois claro que tenho bom aspecto. Entretanto, não pode dizer o mesmo de Gladys Longworth. —A avó de Geoffrey tinha um nariz que se levantava para cima na ponta, como uma sapatilha e, com ele, assinalou a uma matrona que se apoiava pesadamente em um par de bengalas enquanto descia laboriosamente os degraus de granito de San Miguel—. Mas, olha-a. Fraca, só pele e ossos, verdade? Não fica nem o suficiente para fazer sombra. Já verá se não estará estendida em seu caixão, fria e enrugada como um bacalhau morto, antes que acabe o verão. —Só podemos esperar que não seja assim, senhora Alcott. —Você pode esperar que não, querida; eu, em troca, aprendi a me inclinar ante o inevitável. —Esticou o pescoço por cima do ombro de Emma para lançar um olhar fulminante ao homem robusto, de cabelo cinza, que acabava de oferecer o braço a vacilante senhora, para que se apoiasse—. E aí está esse menino de Gladys, acossando-a até a tumba para poder colocar as mãos em seu dinheiro e lhe deixa que o faça, essa parva de coração mole. Gladys nunca teve guelras suficientes nem para cuspir em um privada. A procissão católica passava em frente da igreja naquele momento. A fumaça do incenso formava redemoinhos e girava e seu exótico perfume seguia a direção do vento. A Virgem Maria parecia flutuar por cima das cabeças das pessoas, sobre uma nuvem de lírios e chamas de vela dançantes. Alguém começou a tocar a gaita de fole; uma música cheia de gemidos e saudade.

Geoffrey e seu banqueiro se dirigiam para elas e Emma ouviu o banqueiro dizer: —Os irlandeses são a escória da criação. A solução ao problema dos pobres dignos deste país é evidente: Animar a cada irlandês a matar a um negro e em seguida pendurá-lo por isso. O nariz arqueado de Geoffrey sorveu como se estivesse ofendido, mas Emma não estava segura de, se era pela procissão ou pelas palavras do outro homem. Justo então Emma viu a operária do cabelo aceso, com seu jaquetão de cor abóbora, entre a multidão que contemplava a procissão. Estava de pé no meio-fio, frente ao bazar de Pardon Hardy, saudando com um gesto de mão a uma das meninas com vestidos brancos e laços azuis. A mulher levava outra menina menor pela mão. Os cachos da pequena, brilhantes como um penique de cobre novo, dançavam e giravam em torno de seu rostinho ruborizado. Parecia excitada ou zangada por algo, porque justo no momento em que Emma olhava, soltou-se da mulher e correu para unir-se ao final do grupo das meninas maiores que seguiam à Virgem flutuante. A mulher tentou ir atrás dela, mas teve que deter-se e apoiar a mão no peito quando lhe deu um ataque de tosse. —Por favor, me perdoe, senhora Alcott —disse Emma, embora já estivesse se afastando dali—. Vi uma... amiga. Então ouviu que Geoffrey a chamava. Esteve a ponto de seguir caminhando, mas temeu que ele a seguisse, assim deu meia volta e retornou. Obrigou-se a sorrir, embora notava que o pulso lhe pulsava forte e rápido no pescoço. Não sabia o que a impulsionava a fazer aquilo. Era como se, de repente, converteu-se em outra pessoa. —Pensava ir visitar uma amiga doente esta tarde —disse a seu prometido— , mas não tem que preocupar-se, porque tenho minha carruagem e meu chofer para me levar para casa.

A boca de Geoffrey se esticou nos cantos. —Mas confiava que almoçaria com minha avó e comigo. Compreendo que não tenha lhe convidado formalmente, mas supunha... Levantou a mão e em seguida a deixou cair. —É muito amável por sua parte, Geoffrey. É só que minha amiga teve muito pouca companhia esta última semana. —Não será Judith Patterson, verdade? —disse franzindo profundamente o cenho—. Disseram-me que a atacou uma forma especialmente virulenta de sarampo. Está segura...? Inclinou-se para ele, deu-lhe uns tapinhas na lapela do casaco e depois a alisou, surpreendendo aos dois, porque nunca antes o havia tocado tão deliberada e intimamente. —Já tive sarampo, Geoffrey. Só pode se contagiar uma vez. Dedicou-lhe um de seus melancólicos sorrisos e, lhe agarrando a mão que ainda estava apoiada na jaqueta, a levou aos lábios. —É obvio que deve ir visitar sua amiga doente que, sem dúvida, sente-se sozinha. Esqueça meu abominável egoísmo. Haverá muitos almoços em nosso futuro. Depois de tudo, temos o resto de nossas vidas para passar juntos. A culpabilidade fez com que se ruborizasse violentamente e sua mão estremeceu dentro da dele. Perguntou-se que horrível classe de pessoa era, porque nunca havia sentido mais carinho por ele que naquele momento, quando o estava enganando. —Sim, temos, não é verdade... que temos o resto de nossas vidas? Geoffrey, eu... Obrigado —disse e partiu rapidamente, antes de dizer algo mais. Cortou através do cemitério, seguindo seu caminho entre os altos olmos e as velhas e ruinosas lápides. Tremia por dentro de medo e vergonha e de assombro ante ela mesma. Perguntava-se o que estava fazendo. «Por Deus, Emma Tremayne, o que está fazendo?» A procissão da Rainha de Maio já tinha passado, dobrando a esquina e

perdendo-se de vista pela Rua Thames. A maior parte da multidão a tinha seguido e Emma distinguiu facilmente à mulher na calçada, agora quase vazia. Permanecia de pé diante da cristaleira do bazar, com a testa apoiada contra o cristal, como se tentasse ler os anúncios de tabletes digestivos e tintura para o cabelo que havia ali. Mas então começou a tossir de novo, dobrando-se quase em duas, suas costas estremeciam como se estivessem lhe dando murros. Quando se endireitou, oscilava com força, quase a ponto de cair. Quando Emma chegou a seu lado, estava com o ombro apoiado contra a cristaleira da loja. A mulher se voltou para olhá-la e seus olhos escuros se arregalaram, como se tivesse medo. Logo lhe voltaram frágeis e se deslizou lentamente até o chão, um montão de lã laranja e cabelo indômito e chamejante. Emma se ajoelhou a seu lado. A cara da mulher estava brilhante de suor e tinha uma palidez sobrenatural. Sua respiração era entrecortada, superficial e encharcada. Na mão, sustentava um lenço manchado de sangue e segurava com força uma pequena garrafa marrom. —Mas quem está...? Emma olhou para trás dela. Havia um homem ali, um homem pequeno e rechonchudo com a cara gorducha como um pão-doce. Parecia-lhe conhecido, embora não podia lembrar seu nome. Não pertencia às pessoas Importante. —Por favor, senhor —disse—, seria tão amável de me ajudar? Parece que esta mulher tem... —Senhorita Tremayne! —exclamou o homem. Inclinou-se para ela, olhando-a intensamente o rosto, como se não pudesse acreditar no viam seus olhos—. Não tem que ocupar-se de uma dessas mulheres da fábrica, sem importância nenhuma. Ébria, isso é o que está. E em um domingo. Que vergonha! —Não está bêbada. Está doente. —Muito pior, então. Só Deus sabe que enfermidades infecciosas pode ter.

E, como se de repente se desse conta de sua própria mortalidade, o homem deu um passo atrás rapidamente, tirando um lenço para tampar a cara. Naquele momento o céu decidiu partir-se em dois e soltar mares de água. O homem gordo e os escassos passeantes que se detiveram para olhar se apressaram a partir sustentando guarda-chuvas e jornais em cima das cabeças. A mulher gemeu e reanimou e logo caiu em um profundo desmaio. A carruagem e o chofer de Emma a esperavam em San Miguel, mas não queria ir buscá-los e deixar à mulher ali sozinha, caída na calçada, com a chuva empapando-a como se só fosse um montão de lixo. A chuva as açoitava, caindo como uma cortina impulsionada pelo vento. A mulher tremia com tanta violência que os dentes batiam uns contra os outros, embora tivesse os olhos afundados na cara em um sono mortal. Emma lhe pôs o manguito de arminho debaixo da cabeça e em seguida tirou seu casaco de pele de foca e a cobriu com ele. A chuva caía, deslizando-se, pelo toldo do bazar, de forma que Emma via a rua através de uma cascata. Era estranho, mas lhe pareceu que ouvia um cantarolar. Algo se moveu além da cortina de água... a menina. Aproximou-se mais e Emma viu que estava sorrindo, embora agora seus cachos de cobre pareciam negros de tão empapados como estavam e estavam colados à cabeça e o gasto pulôver que usava, feito com uma mescla de lãs, jorrava água. A menina estendeu a mão e tocou a bochecha de Emma com sua mãozinha gelada. Em seguida se balançou de um pé a outro, cantarolando muito alto e forte, como se fosse um enxame de abelhas. Se não fosse pela respiração úmida e trêmula da mulher, Emma teria acreditado que estava morta. Tinha a carne branca e fria... a pouca que ficava. Estava penosamente magra, salvo por seu ventre enormemente inchado.

Emma a tinha banhado com toalhas muito quentes e depois a tinha

vestido com uma de suas próprias camisolas de fina lã e renda. Só depois de atender à mulher, Emma foi trocar seu próprio vestido, empapado, vestindo uma singela saia negra e uma blusa branca. Agora a mulher dormia na cama de Emma, entre lençóis de linho com bordados suíços, que tinham sido salpicadas com água de lavanda e Emma andava para cima e para baixo pelo quarto. As luzes tinham sido acesas há uma hora quando a mulher despertou por fim. Ficou na mais absoluta imobilidade, olhando fixamente o dossel de musselina engomada da cama. Emma, enquanto isso, observava-a da sombra, sentindo-se tímida e agitada. O brilhante cabelo da mulher sussurrou sobre a capa de seda dos travesseiros quando olhou ao redor do quarto, assimilando as luzes de gás com seus globos de cristal da Tiffany, a chaminé de mármore com o fogo de carvão ardendo com força. As paredes empapeladas de seda amarela e os vasos chineses cheios de rosas de estufa que derramavam seu enjoativo perfume pelo ar. —Oh, Deus...! —disse com um suave suspiro e Emma se sentiu envergonhada, como se a tivessem pego exibindo-se. Pigarreou e tentou sorrir enquanto se aproximava da cama. —Está em As Bétulas, se é isso que está se perguntando. Ficou doente durante a procissão da estátua da Virgem. —Engoliu em seco e respirou—. A vi porque eu... Mas, em realidade, não podia explicar, nem sequer explicar-se, que impulso a tinha levado a ir em busca daquela mulher. —Olhe —disse, em troca, e assinalou com um gesto nervoso e brusco para uma mesa Hepplewhite onde havia um serviço de chá de prata —. Conservei o chá quente para quando despertasse. A mulher tinha cravados nela seus olhos profundos, escuros e quietos como poços. —Você me trouxe aqui, para sua casa?

—Não sabia que outra coisa podia fazer. Meu tio Stanton Albertson é médico. Quando você desmaiou na rua e sua pequena foi procurar minha carruagem e o chofer, levei-a diretamente a sua casa, mas estava fora atendendo outra chamada e sua ama de chaves armava tanto escândalo porque era domingo, como se esperasse que alguém escolhesse um dia mais conveniente e apropriado da semana para cair doente... Enlaçou as mãos com força à altura da cintura e logo as soltou de novo. Deu-se conta de que tinha esquecido de servir o chá depois de fazer tanto estardalhaço a respeito, entretanto seguiu de pé, ali no meio do tapete Aubusson. A mulher estava fazendo uns esforços desesperados para erguer-se sobre o montão de travesseiros que havia a suas costas. —Por favor, não tem que... —Tossiu, com o peito agitado—. Não preciso ver um médico. É só uma enfermidade da primavera o que tenho. O olhar de Emma foi até a mesinha de cabeceira, onde havia um lenço enrugado e manchado de sangue e uma garrafa marrom em cuja etiqueta dizia: O

NOVO

DESCOBRIMENTO

DO

DOUTOR

KING

PARA

A

TURBECULOSE. A mulher viu o que olhava Emma e se deixou cair de novo sobre os travesseiros. Sua respiração raspava crua e áspera em sua garganta. —Dhia, por favor, por favor, não diga nada de mim a nenhum médico. Mandarão-me de volta a Irlanda, me arrancando de meus seres queridos e me enviando longe para morrer sozinha. Ou me farão beber da garrafa negra e morrerei antes que chegue minha hora. —Fechou os olhos, mas as lágrimas escaparam por debaixo das pálpebras apertadas, caindo pelas bochechas e afundando-se em seus cabelos—. Não quero morrer sozinha. Não quero morrer... Sua voz foi apagando-se. A forte chuva matraqueava como se jogassem punhados de pedras contra as janelas. O vento chiava e gemia. Emma tinha ouvido rumores da «garrafa negra», com cujo conteúdo se

supunha que os médicos administravam o coup de grâce aos tísicos desenganados. E tinha uma tia que morreu da enfermidade, a irmã menor de seu pai. Mas a morte de Charlotte Tremayne não tinha vindo de uma garrafa; aconteceu em um sanatório particular perto de Providence. Só a tinham ido visitar uma vez. Emma recordava as janelas sem cortinas e as paredes brancas e nuas e as singelas camas de ferro. «São as flores mais bonitas —disse sua mãe, enquanto secava uma única e perfeita lágrima com o lenço—, as que são cortadas em plena flor.» Mas Emma tinha pensado que sua tia não se parecia em nada a um casulo, mas sim estava pálida e cansada e muito sozinha. Só os ricos podiam se permitir morrer no nu isolamento de um sanatório. Os pobres ficavam em casa e contagiavam seus seres queridos com a enfermidade. O relâmpago brilhou, azul, e Emma notou que esperava o trovão, que chegou muito mais tarde. Um baixo e lento rumor. —Não... não chamarei o médico —disse finalmente—. Nem o direi a ninguém. Prometo-o. O peito da mulher se ergueu e caiu com um suspiro silencioso. —Não sei... —A voz de Emma falhou e teve que começar de novo—. Não sei onde estão minhas maneiras. Nem sequer me apresentei. Sou Emma Tremayne. A mulher abriu os olhos e a olhou tão fixamente e por tanto tempo que Emma se ruborizou. —Sim, já sei —disse, mas em seguida lhe tremeu o canto dos lábios, rendendo-se em algo parecido a um sorriso—. Mas estou encantada de conhecêla como é devido, senhorita Tremayne. Meu nome é Bria, Bria McKenna. —O sorriso se alargou, convertendo-se em algo real, que lhe iluminou os olhos—. Deveria dizer senhora McKenna e com duas pequenas já meio crescidas e outro a caminho. Pôs-se a rir, mas a risada se converteu em tosse. Levou o punho à boca,

com os ombros estremecendo violentamente. Por fim, Emma conseguiu mover as pernas, embora as notasse rígidas como postes. —Deixe que sirva o chá. É trevo vermelho. Fiz com que a cozinheira lhe pusesse azeite de linhaça e mel. Supõe-se que acalma a quem sofre de tub... de catarro da primavera. Encheu uma xícara de Sèvres, com um desenho de rosas, com a infusão. Mas quando se voltou para a mulher na cama, Emma viu que tinha os olhos mais abertos e ainda mais escuros. O olhar foi da xícara de porcelana até o dossel que se estendia, delicado e transparente, como as asas de um anjo, por cima de sua cabeça e em seguida voltou para o rosto de Emma. As mãos, que descansavam planas e pequenas no cobertor de seda, tremiam. E Emma soube o que pensava, porque ela tinha pensado o mesmo muitas vezes. Era como se, de repente, atravessasse o espelho e não só seu mundo não fosse como devia ser, mas sim tampouco você o era. Sentia-se incômoda até com o batimento de seu próprio coração. Emma notou que seus lábios sorriam e, entretanto, havia um vazio em seu interior, um desejo de algo que não podia nomear. Talvez simplesmente quisesse dizer a aquela mulher: «Sei», e que em seguida lhe dissesse as mesmas palavras. —Posso lhe sustentar a xícara e o prato — disse, em troca—, se quiser. A mulher engoliu em seco, assentiu e depois deixou que lhe fechassem os olhos. Emma se sentou na cama. Sua saia de tafetá negro rangeu e o colchão, cheio de plumas de ganso, suspirou suavemente. A mulher, Bria McKenna, passava a mão uma e outra vez por cima do inchado ventre. Emma sabia muito pouco de bebês e de dar a luz, mas pensou que aquele não demoraria a chegar. Pareceu-lhe uma tristeza muito pesada de suportar. Trazer um menino a este mundo sabendo que você logo o deixaria e perderia todos esses

maravilhosos anos de vê-lo crescer. E sabendo que estava destinado a nunca ter quão único mais necessitaria... a ti. Possivelmente a única dor pior fosse vê-lo crescer o suficiente para que o engolisse uma monstruosa máquina de fiar e em seguida vê-lo morrer, sangrando entre seus braços. A garganta de Emma doía e lhe ardiam os olhos e estava envergonhada de seus sentimentos. Não tinha ganhado o direito de sentir lástima. Estendeu a mão para tocar a de Bria McKenna, em seguida a retirou e finalmente o fez. Seus dedos se entrelaçaram como os fios de uma corda e Emma notou a fragilidade dos ossos da mulher debaixo de sua pele branca e fina. —Sinto pelo seu filho — disse Emma, tão baixo que era quase um sussurro. Os olhos da mulher se abriram de repente e seu rosto ficou tão pálido que parecia transparente. —Mas como... como pode saber dele? —Trouxe-nos e estava morto. Padraic, disse que se chamava... para que o... soubéssemos. —Och, não, não, aquele não era meu. Pobre senhora Cartwright, enviuvar e perder um filho, tudo em um ano, e não estava em condições de se encarregar do velório e do enterro. Embora pudesse havê-lo sido facilmente. Quero dizer que, facilmente, podia ter sido uma de minhas filhas. Levou as mãos enlaçadas ao peito e se esforçou para incorporar-se. Uma veia azul lhe pulsava violentamente na têmpora. —A mulher que levou o corpo do pobrezinho Padraic à caçada... não era eu. Foi uma loucura passageira, nascida do desespero, compreende? Não era... —Cravou o olhar em Emma, examinando-a—. Não era eu mesma que fez aquilo. —Não, não o era — disse Emma—. O compreendo. Eu... («Sei»).

Bria McKenna se deixou cair para trás, com uma respiração dura e superficial e soltou a mão de Emma. —Eu gostaria de tomar esse chá agora, se fosse tão amável. Emma não estava segura de por que sorriu naquele momento, mas o fez e, quando Bria McKenna lhe devolveu o sorriso, sua calidez se estendeu, lhe penetrando até o mais fundo. —Minha mãe passou todo um verão me ensinando a servir o chá como é devido — disse—, e agora não parece que possa fazê-lo, quando mais se necessita. Entretanto, surpreendeu-se de sua própria eficiência e da comodidade que sentia em seu interior, a falta de acanhamento, enquanto amontoava os travesseiros sob as costas da mulher. Passou-lhe pela cabeça que se supunha que aquela enfermidade era contagiosa, mas não resultava fácil atuar como se o fosse e atuar educadamente. E as boas maneiras, sua mãe tinha ensinado, era o mais valioso em todas as circunstâncias. Emma serviu outra xícara de chá, sustentando-a de maneira que fosse possível bebê-la só inclinando um pouco a cabeça. Bria McKenna tomou um sorvo pequeno e cuidadoso; em seguida levantou o olhar para fixá-lo em Emma por um longo tempo, com uns olhos que pareciam ao mesmo tempo doces e tristes. E Emma lhe sustentou o olhar. Pela primeira vez em sua vida, sustentou o olhar. —De verdade que sinto o que lhe disse aquele dia —disse Bria finalmente—. Estava muito equivocada, porque tem bondade em seu coração. Trazer-me aqui e cuidar de mim como o teria feito... Emma se ruborizou um pouco e baixou os olhos à saia. —Vi-a cair, assim não podia deixá-la jogada ali. Além disso, parte do mérito é de sua filhinha. Eu estava decidida a levá-la até o médico em Warren, mas ela insistiu em que tinha que trazê-la para casa comigo... a minha casa de prata, chamou-a. Disse que as fadas queriam que o fizesse assim.

—Onde...? —Bria tossiu e todo o corpo foi presa de umas violentas sacudidas. Um fio de sangue lhe caía do canto da boca—. Ela... —Não está aqui conosco, sua filhinha —disse Emma, enquanto deixava em seu lugar a xícara e o prato. Deu um lenço limpo a Bria e a ajudou a recostar-se de novo nos travesseiros—. Mas não tem que preocupar-se com ela. Disse que tinha que ir dizer a seu pai onde eu a havia trazido e saiu correndo para buscá-lo, suponho. Bria suspirou. Baixou pesadamente as pálpebras e logo os fechou. Emma pensou que tinha adormecido. Mas então levantou a mão, embora o fez tão lentamente e com tanto esforço como se suportasse o peso de todo um mundo. —Outra vez as fadas. —Emitiu um som que começou como uma risada e acabou como outra tosse que lhe rasgava o peito—. Imagina a nossa Noreen dizendo e fazendo uma coisa assim. Emma se levantou, alisando o lençol, arrumando os travesseiros, desejando afastar o brilhante cabelo da testa de Bria McKenna, mas sem atreverse a fazê-lo, porque era o tipo de coisas que se faz para uma amiga, não para uma estranha. —Uma menina muito bonita, com cachos acobreados? Disse-me que se chamava Merry. —Não podia ser nossa Merry, seguramente. —Os olhos de Bria se abriram, escuros e turvos e logo voltaram a fechar—. Merry não fala. Emma observou como dormia a mulher. Bria McKenna... Gostava do nome, porque tinha um som valente e vibrante. Brilhava, como seu cabelo. Bria McKenna. As sobrancelhas, de cor vermelha escura, eram grossas e decididas. A boca era grande e os lábios muitos cheios. Não era bonita, mas tinha um rosto muito atrativo. Eram os ossos, o que se via nos ossos... pura força, moderada pelo sofrimento. Os dedos de Emma tremiam com a necessidade de esculpir aqueles ossos.

Primeiro faria um modelo em barro, só a parte frontal da cabeça. Depois, quando o tivesse conseguido, fundiria só a cara em uma folha muito fina de cobre, como uma máscara, para que os ossos ficassem ocultos, para sempre, à vista, mas se sentissem com o coração. Mas, enquanto isso, quando Bria McKenna voltasse a despertar necessitaria algo mais substancioso que o chá. Supunha-se que a sopa de frango era boa. Emma recordou que no jantar do dia anterior tinham tomado sopa de faisão... havia uma sopeira cheia. Pensou que possivelmente a sopa não tivesse que ser exatamente de frango. Possivelmente servisse qualquer tipo de ave. Foi tocar a campainha para chamar uma criada, mas logo decidiu ir ela mesma à cozinha para procurar a sopa. O vestíbulo estava escuro, iluminado só por um par de lâmpadas de gás que rodeavam o enorme espelho ondulado, com o marco dourado que pendurava na parede do fundo. Anos atrás, no século passado, a imponente escadaria dupla de carvalho era iluminada por centenas de velas acesas. Uma noite, uma Tremayne tropeçou e caiu em cima das velas, ateando-se fogo. A armação de aço, na moda então, que usava debaixo das saias de seda crua impediu que seu desesperado pai apagasse as chamas e a jovem morreu queimada. Não foi a primeira nem a última em somar-se à lenda de uma maldição contra os Tremayne e se dizia que seu fantasma ainda rondava pelo grande vestíbulo. Mas ninguém, que Emma recordasse, afirmava havê-la visto. Emma tinha chegado até o patamar intermediário da escadaria quando se deteve. A casa tinha algo estranho àquela noite. Mais que cheia de fantasmas, parecia vazia, abandonada. Como se não ficasse nenhuma migalha das almas de todos os indômitos, malvados e malditos Tremayne que tinham vivido e morrido ali para seguir rondando por aquele lugar. Nem sequer a lembrança do que foram. Emma balançou a cabeça. Estava imaginando coisas só porque era uma noite tormentosa, todos os serventes estavam abaixo e tanto sua mãe como sua

irmã dormiam, perdidas em seus sonos de láudano. Seus sapatos de pelica se moviam silenciosamente, descendo os envernizados degraus de carvalho. As sombras envolviam o oco da escada. Os relâmpagos iluminavam o céu e explodiam em um milhão de fragmentos ao refletir-se nos cristais em forma de leque de cima da porta de entrada. Emma se deteve de novo, com a mão agarrando com força o corrimão, esperando. Mas mal teve tempo de respirar uma vez antes que o trovão rompesse a noite, retumbando e retumbando e retumbando como se fosse durar para sempre. E então Emma compreendeu que não era o trovão o que ouvia, a não ser alguém que levantava e deixava cair o trinco, que representava uma cabeça de leão de bronze, contra os grossos painéis de ébano da porta. Desceu outro degrau. As portas se abriram bruscamente, golpeando contra as paredes de mármore. O ruído ricocheteou por todo o teto abovedado, mais forte que qualquer trovão. O vento entrou, em rajadas, no vestíbulo. A luz de gás das lâmpadas tremeu e se debilitou, quase se apagando. Mas não antes que ela visse seu reflexo no espelho. Usava o jaquetão negro aberto, o chapéu de feltro e os cabelos jorravam água. Atrás dele, sob o brilho dos faróis da varanda, a chuva golpeava como se fossem facas de prata. Deve ter visto o reflexo de sua blusa branca no espelho, porque seus olhos foram primeiro ali e se encontraram com os dela. Ficaram olhando-se fixamente através de um mundo de mármore e cristal e de luz de gás fragmentada. «veio», pensou. Tinha vindo. Para procurá-la. Queria-a, assim tinha vindo para procurála. Era sua possibilidade infinita e tinha vindo para arrancar sua vida pela raiz e esta vez ela deixaria que acontecesse.

Ele deu um passo para ela e ela gemeu. Um gemido cheio de temor, estremecimento e desejo. —Vim — disse ele— procurar a minha mulher.

Capítulo Catorze Emma Tremayne estava sentada no assento de pele marrom de sua calesa negra. Estava vestida adequadamente para fazer uma visita matutina, com um vestido francês de passeio, de tafetá de muaré, com as cores da asa de uma pomba, enfeitado com uma cascata de renda belga no pescoço e uma larga fita de cetim branco na cintura. Seus acessórios também eram os apropriados: luvas de pele de veado, um guarda-sol de tafetá e renda e um chapéu de palha de reseda, enfeitado com rosas de cetim e um penacho de plumas de avestruz. Entretanto, não podia destacar-se mais nem estar mais fora de lugar. Não estava acostumada a ir a este lado da Rua Thames. Além disso, não recordava ter passado sequer por ali de carruagem, e muito menos aproximar-se do castigado assoalhado para deter a carruagem entre pilhas fumegantes de excrementos de cavalo debaixo de um poste torto. Não havia muita gente na rua a essas horas da manhã, sendo como era um bairro operário, mas as duas pessoas que havia —um pescador sentado à entrada de sua casa, consertando uma armadilha para lagostas e um trapero que voltava para casa, do lixeiro, empurrando sua carroça— pararam para olhá-la com a boca aberta. Estava à vista de todos, já que tinha retirado à coberta da calesa, porque do contrário não teria cabido tudo dentro. No assento, a seu lado, havia uma cesta de piquenique cheia de sanduíches, delicados filés de boi, patê de foie gras e peru defumado. Embutidas na parte de trás havia bolsas e caixas cheias de roupa que nunca usou. E junto a seus pés havia um baú com bonecas e outros

brinquedos que tinha encontrado no sótão de As Bétulas, mas com os quais não recordava ter brincado. Em realidade, a calesa estava tão cheia que teve que ficar de pé para poder ver melhor a casa que ia visitar, uma diminuta cabana de tábuas de madeira que repousava sobre postes, a beira de uma praia de pedras cinza. Emma desceu da calesa e foi até a casa por um caminho que, em realidade, não era mais que um atalho aberto pelo passo entre a vegetação. A cada passo que dava, a coragem estava a ponto de lhe falhar. Nunca tinha feito algo assim antes, nunca tinha procurado a companhia de outra pessoa. Sempre tinham sido os outros que a cortejavam. A porta da entrada se abriu e Bria McKenna saiu ao alto degrau da entrada, secando as mãos no avental. Seu olhar foi de Emma até a rua, onde esperava a calesa, cheia com a cesta de piquenique, as caixas e o baú. A cólera se acendeu profunda e brilhante nos olhos da mulher. Emma soube imediatamente que se equivocou. —Bom dia! —exclamou, com a voz entrecortada, como se tivesse engolindo muito ar—. Estava — disse, assinalando com a mão para a carregada carruagem—. Estava indo deixar algumas doações de caridade em San Miguel e pensei em passar por aqui primeiro para ver como estava. A cara de Bria se ruborizou lentamente. Assentiu rigidamente e ficou de lado da porta de tábuas de carvalho. —Não quer entrar, senhorita Tremayne? Estava a ponto de pôr a chaleira no fogo. Emma recolheu a saia e subiu os altos degraus com pernas que lhe tremiam tanto que quase tropeçou. A cozinha cheirava maravilhosamente, a pão recém-assado e a ranúnculos silvestres que enchiam uma lata de tomate colocada no meio da mesa. Talvez o papel das paredes, com seu estampado de aves do paraíso, estivesse opaco e mostrasse rastros de umidade, mas suas flores laranja e azuis lhe davam um ar alegre à sala. O chão de linóleo rachado, que já

foi marrom escuro, descoloriu até converter-se quase em branco, de tanto esfregá-lo, e estava coberto em um canto com um tapete tecido com retalhos coloridos. Emma ficou no meio da sala, sem saber o que fazer. —É pura sorte que tenha me encontrado em casa —disse Bria, enquanto punha no fogo uma velha chaleira de cobre—. Supõe-se que tenho que cuidar da casa de meu irmão na reitoria... É o sacerdote da paróquia de Santa Maria. Mas não sei por que me deu o trabalho, visto que não me deixa fazer nada. Passo mais tempo aqui, em minha própria cozinha, que na sua. Virou-se, com um amplo sorriso nos lábios. —Por que não se senta e...? Ei, fora daí gato preguiçoso! —Agitou os braços, aproximando-se de uma das cadeiras com o respaldo de escada cujo assento estava ocupado por uma enorme e andrajosa criatura marrom—. Você... fora daqui, Precioso. Vá caçar ratos, que é o que se supõe que deve fazer! O gato saltou ao chão com um miado, mas em seguida partiu, andando lenta, muito lentamente, até sair pela porta. Emma ficou olhando fixamente aquela criatura. Tinha as orelhas mordidas nas pontas, a cauda dobrada em três lugares como se fosse um sacarolha e parecia estar em época de muda. —Precioso? Bria riu, surpreendendo a Emma porque sua risada estava cheia de canela e especiarias e não encaixava com aqueles olhos tão solenes. —Shay o chamou assim porque é tão feio. Eu o teria chamado Brilhante, porque, pelo que eu sei, não tem inteligência nem para se coçar. Bria se pôs a rir de novo e voltou para o fogão, rapidamente, para tirar a chaleira. Hoje não tossia. A vida florescia tingindo suas bochechas de um tom intensamente rosado, como o das rosas de final do verão. Emma se sentou na cadeira, que Precioso tinha deixado quente. Era uma sensação estranha, mas muito agradável estar fazendo aquilo. Como se fosse

uma vizinha... não, uma amiga, que tinha vindo, sem avisar, para compartilhar uma xícara de chá e algumas fofocas. Depois do mal-estar inicial, agora Bria McKenna parecia totalmente cômoda com sua inesperada visita. Emma desejava estar igualmente cômoda, porque tinha a língua colada na boca e notava as palmas das mãos cada vez mais quentes e úmidas dentro de suas luvas. No entanto, Bria ficou em silêncio enquanto preparava o chá. Emma procurou não notar que o desenho das xícaras de barro não combinavam com o dos pratos nem que as colheres eram de lata e que o leite estava também em uma lata e que adoçariam o chá com melaço, em vez de açúcar. No instante em que Bria serviu o chá e pôs um prato com fatias de pão moreno, um pote com margarina e se sentou frente a ela, Emma sentia uma obrigação tão urgente de dizer algo, algo, que quase se afogava. —Hoje não há nenhuma só nuvem no céu —disse— e o sol já esquenta bastante. Talvez, por fim, tenha chegado à primavera. —Vá, sim é verdade — disse Bria. Esticou o pescoço para olhar pela porta aberta, como se o sol que brilhava no espaçoso céu azul merecesse uma olhada—. Muito diferente, certamente, que o último domingo, quando me comportei como uma parva, desmaiando diante do bazar de Pardon Hardy. Emma colocou o guardanapo de algodão, com quadradinhos azuis, nos joelhos e bebeu um sorvo do chá. Partiu uma fatia de pão em quatro pedaços iguais, mas não os comeu. Quando se deu conta de que estava riscando um desenho no oleado marrom que cobria a mesa, obrigou-se a deter-se e respirou fundo. —Hoje faz exatamente seis anos —disse— houve outra tormenta terrível com raios e trovões. Meu irmão, Willie, saiu com seu Saveiro e não voltou. Ouviu a brusca inspiração de Bria e levou os dedos a seus próprios lábios, como se quisesse afogar um grito. As palavras lhe tinham jorrado da boca, explodindo como a cortiça de uma garrafa de champanha. Pensou que aquelas palavras deviam estar ali, presas em sua garganta, por anos,

fermentando, esperando a oportunidade de explodir. No entanto, não iam falar disso, nem sequer entre elas, nem sequer a seus próprios e tristes corações... da morte de Willie. Era algo tão embaraçoso para a família, um escândalo. Algo muito desagradável para trazê-lo á tona no momento do chá. Mas ela queria falar disso... tinha que fazê-lo ou ficaria louca. «Um ato nascido da loucura e do desespero.» Notou que Bria se movia, ouviu o apagado som das xícaras de barro e em seguida os dedos das duas se uniram, descansando um momento em cima do oleado marrom e brilhante da mesa. —Ah, senhorita Tremayne. Sinto muito. —São coisas que acontecem —disse Emma, para o interior da cozinha com seu papel descolorido e seu linóleo rachado— e deixam um poço de dor que chega muito fundo dentro de você, dentro até onde está o coração, suponho. Um poço que parece tão tremendamente vazio. E sempre que alguma outra coisa ruim te acontece, inclusive coisas que só doem um pouco, sempre parecem que vá diretamente a esse poço que está ali esperando. Emma pensou que, provavelmente, o que dizia não tinha muito sentido, mas não ia calar-se até que chegasse ao final de tudo. —Durante muito, muito tempo depois do que aconteceu, estava acostumada a pensar: «Se ele não estiver aqui, então por que tenho que viver, que importância tenho eu? Que importância tem alguma coisa?». Durante todo o momento que levava falando, não tinha sido capaz de olhar para Bria, mas agora o fez. Os olhos desta estavam tão cheios de dor que brilhavam e Emma se sentiu envergonhada. —Me perdoe — disse—, não deveria lhe falar destas coisas. —Por que não? Porque eu também estou morrendo? —Oh, não, não... Só queria dizer que não se fala dessas coisas. Não é apropriado. Pelo menos em meu mundo não se faz.

—Tampouco se faz muito aqui embaixo, na Rua Thames. O que compartilharam então não foi um sorriso, porque o que diziam doía muito dentro. Era um entendimento tranquilo e profundo: «Sei». —Morrer — disse Bria de forma direta e simples e Emma pensou que era uma palavra com a qual vivia há algum tempo— é uma viagem que, quando chega o momento, cada um tem que fazer sozinho e vá se não nos deixa parvos de medo. Talvez seja porque passamos toda a vida fazendo todo o possível para não estar sozinhos. Embora seja estranho que sintamos dessa maneira, porque assim é como estamos desde nosso primeiro suspiro... sozinhos. —Acredito que não havia ninguém mais com Willie aquele dia em que se lançou ao mar em meio á tormenta. Bria respirou e o som foi como um suspiro, só que mais profundo. —A maioria das vezes é pior, acredito, para os que ficam para trás. Os que ficam sozinhos para suportar a vida sem a pessoa que queremos mais que a todas as demais. Pela primeira vez desde que cruzou a porta para entrar nesta cozinha com seu papel florido nas paredes e os aromas do pão assado e os ranúnculos, Emma se permitiu pensar nele, no marido de Bria McKenna. Aquela noite, aquela noite, aquela noite... Esperando-o ali nas escadas, tinha pensado que tinha vindo para levar-lhe a uma vida de perigos e aventuras. Mas o que tinha acontecido era que se deixou levar por sua imaginação desenfreada. Aquela noite, ele tinha passado a seu lado, escada acima, sem lhe dizer nenhuma palavra mais. E ela ficou onde estava, presa dentro do silêncio sepulcral do vestíbulo. Também suas ideias tinham ficado presas. Presas ainda na delirante fantasia de que ele tinha vindo por ela, quando, em troca, tinha vindo procurar... para procurar... Tinha esperado, imóvel. Quando, por fim, ele saiu de entre a escuridão da parte alta da casa, Emma se sobressaltou, como se fosse pôr-se a correr. Mas era

muito tarde para fazê-lo e, além disso, parecia que ela não estava ali, porque ele não pareceu vê-la. Seus olhos, cheios de amor e angústia, estavam cravados na mulher que levava nos braços. Mas ao pé das escadas, deteve-se e olhou para cima. A cabeça de Bria McKenna se moveu contra seu peito e seus braços a apertaram com mais força, embora ela não despertou. Seus olhos brilharam sobre Emma, como fragmentos de estrelas caídas e partidas em pedaços. —É minha mulher — disse—. E vou levá-la para casa. Aquela noite, aquela noite havia se sentido tão estúpida. Entretanto, não podia culpá-lo, porque ela tinha feito tudo sozinha. Nem sequer tinha se incomodado em averiguar seu nome, e muito menos outros simples detalhes de sua vida, como, por exemplo, se estava casado. Ele a tinha tratado de forma diferente de como a tratava o resto das pessoas. Riu com ela e tinha sido um pouco cruel com ela. Tinha-a tratado como a uma pessoa, não como a um frágil manequim que teria que se separar da vida, e guardá-lo a salvo em uma redoma de vidro. Ela tinha se interessado por ele, assim tinha dado por certo que ele também a achava interessante. E tinha querido que seguisse sendo um estranho, porque assim havia menos perigo. Entretanto, é provável que ele não tivesse pensado nela desde um de seus encontros ao outro. Só tinha querido entretê-la, como se faz com uma criança, possivelmente cativá-la um pouco, para poder usar seu cais para seu tráfico de armas sem que o prendessem por invadir uma propriedade alheia. E aquela vez no prado, aquilo só foi um capricho; ele mesmo o havia dito. Uma oportunidade para ensinar a uma menina rica e mimada que as raposas têm famílias. Uma menina. Uma menina rica e mimada. Assim era como ele a via, como pensava nela, se é que pensava nela. Quanto ao que ela tinha querido dele... isso não podia formulá-lo nem sequer no pensamento e muito menos expressá-lo em palavras para descrevê-lo como algo real. O real era o que viu

em sua cara aquela noite quando passou a seu lado, descendo as escadas, levando Bria McKenna nos braços. Viu o olhar de um homem que observa como sua amada esposa morre diante de seus olhos, lentamente, com cada fôlego.

Emma estava de pé entre as plantas do pátio, com o gato Precioso esfregando-se contra as pernas. —Obrigado por me convidar a sua casa — disse a Bria McKenna. Mas quando lhe estendeu a mão, a outra mulher não a agarrou. —Essas coisas de seu carro — disse Bria—. Sei que tinha intenção de nos dar isso. Tinha intenção de trazê-las aqui como um ato de caridade para nós. Emma deixou cair à mão e o calor lhe subiu pelo pescoço. —Não tinha intenção de insultá-la, de verdade. Só pensei... —A boca lhe crispou um pouco—. Parece-me que não o pensei. Bria a observou atentamente até que Emma sentiu vontade de afastar o olhar, mas não o fez. —Sou consciente da amabilidade de seu oferecimento, compreende? —Não tem que me dar nenhuma explicação — disse Emma, com um gesto e avermelhando mais profundamente. —É por meu Shay. Doeria-lhe muito se pensasse que não confio em que ele pode sustentar a mim e minhas filhas. —É obvio. Quero dizer, entendo-o. —Mas não quero que pense que é por orgulho, meu e o dele. Ele consegue nos sustentar. É só que o dinheiro e Shay nem sempre foram bons amigos. Sim que se assegura de cuidar de mim e das meninas quando os xelins e os peniques entram em abundância, mas sempre dá uma boa parte para os outros. À igreja, a obras de caridade, órfãos e viúvas e quase a todos os que o necessitam mais que nós. E, é obvio, também o dá à causa. É irlandês até a medula e não está contente a menos que siga ajudando de uma ou outra maneira

à rebelião. —deteve-se para respirar—. Não quero que pense mal dele, de meu Shay. Ao dizer o nome de seu homem, os lábios de Bria se suavizaram e uma luz lhe iluminou a cara, como se, de repente, acenderam-se mil velas atrás de seus olhos. Emma se surpreendeu ao pensar que Bria o amava, amava-o com desespero. E não sabia por que isso tinha que assombrá-la tanto. É que tinha dado por certo que uma mulher que trabalhava em uma fábrica de algodão e vivia em uma cabana de madeira não conhecia o amor? A cabana estava no lado do mar da Rua Thames. Mais à frente se estendia a baía, brilhante, lisa e prateada como uma bandeja de estanho sob o sol do meio-dia. Emma ficou olhando-a um momento e em seguida voltou à vista para Bria. —Senhora McKenna... seria um abuso que voltasse para visitá-la? Viu aparecer à surpresa nos olhos da outra mulher e uma certa desconfiança. —Será bem-vinda —disse Bria, depois de um momento, embora guardou para si o que pensava: «Mas por que teria que querer vir?». —Quero fazê-lo —disse Emma, sorrindo de repente sem pensá-lo e sem sentir-se inibida—. Quero fazê-lo e o farei.

E o fez. Não esperou até uma semana depois, como era o apropriado, mas sim voltou no dia seguinte. Essa vez encontrou Bria de joelhos ao pé do degrau de entrada, cravando uma pá na terra. Bria tinha arrancado os ásteres e estava plantando violetas. Inclinou a cabeça para trás, entrecerrando os olhos para proteger-se do sol, quando Emma se aproximou dela pelo caminho. —Agora tenho tempo de fazê-lo —disse, como se não lhe surpreendesse nem um pouco ver a senhorita Emma Tremayne chegando para visitá-la de novo, e tão cedo—. Agora que já não tenho um trabalho na fábrica e a ideia que

meu irmão tem de que leve sua casa parece ser me dar uns tapinhas na cabeça e me dizer que vá me sentar com os pés para cima. Essa manhã Emma usava um vestido de tafetá rosa com renda, mas não lhe dedicou nem um pensamento quando se ajoelhou junto à Bria na terra. —O que posso fazer? —perguntou. Bria assinalou uma moita de erva. Uma profunda risada lhe iluminou os olhos. —Poderia rodear com suas mãos aquele jovem gordo que há ali e lhe dar um bom puxão. Arrancá-lo pela raiz. Emma olhou o arbusto como se temesse que fosse mordê-la. —Muito bem —disse—, lá vou. Mas antes de fazê-lo tirou as luvas e colocou as mãos no canteiro de flores recém cavado. O contato, quente e úmido a entusiasmou. Conservou essa sensação até bem entrada à tarde, quando estava em seu quarto de banho, com suas paredes de azulejos e seus acessórios de prata de lei, esfregando as unhas para eliminar a terra que lhe tinha encravado debaixo. Pensou que era quase como se tivesse feito algo perverso, uma travessura, colocando as mãos nuas dentro da cálida e úmida terra. Quando saiu do quarto de banho a seu dormitório se sobressaltou ao encontrar a sua mãe de pé diante do biombo de laca azul. Sobressaltou-se e se assustou um pouco, como se a tivessem surpreendido em um ato perverso. —Onde estiveste? —perguntou-lhe sua mãe com um acento lento e marcado. Esperavam-nas para tomar o chá em casa da senhora Hamilton dentro de menos de uma hora e Bethel já estava vestida com um traje de brocado de cetim de cor azul noite encravado com milhares de pequenas e brilhantes pérolas de azeviche. Emma se sentou no tamborete de veludo diante a penteadeira. A bata de seda vermelha, estilo quimono, lhe abriu e a fechou rapidamente. Sentia-se

estranhamente vulnerável, como se estivessem a ponto de lhe arrancar a roupa e deixá-la nua. Bethel se aproximou por trás com um frufru de rígido cetim e, durante um momento, o olhar de Emma se encontrou com o de sua mãe no espelho, logo o afastou. —Teria a gentileza de me responder —disse Bethel. Emma agarrou sua escova de prata, mas a mão lhe tremia e a deixou cair na saia. Olhou a toalha de mesa de linho da penteadeira, com seu bordado de diminutas flores. —Fui visitar uma nova amiga... a senhora McKenna. Não se surpreendeu ao ouvir a contida exclamação de assombro de sua mãe ante aquele nome tão irlandês. Eram considerados uma forma de vida inferior, os irlandeses. Bêbados violentos e patifes preguiçosos. Contratava-lhes para esfregar os chãos e para tirar o esterco dos estábulos. Não lhes visitava nem lhes chamavam de amigos. —É a mulher que cuidei aqui quando ficou doente durante a procissão da Rainha de Maio —se apressou a dizer Emma frente ao silêncio escandalizado de sua mãe—. Já sabe, no domingo passado, quando você também te encontrava muito indisposta e não havia maneira de encontrar ao tio Stanton em nenhuma parte. Seguramente Carrews lhe disse isso. Carrews era o mordomo e contava tudo a Bethel, embora ela, às vezes, fingia não ouvi-lo. Bethel deixou de lado a explicação com um gesto de sua mão coberta com uma luva branca. —Está me dizendo que foste visitar aquela... aquela...? —Bom, já sabe... —disse Emma com tom alegre, enquanto seguia o E na escova com uma unha limpa—. Vemos as mesmas pessoas um dia atrás do outro e pode chegar a ser muito aborrecido. É entretido passar um tempo, de vez em quando, com alguém que não é de nossa classe.

Sentia o estômago pesado e revolto, como se de repente tivesse vontade de devolver o que tinha comido. Sabia que se sua mãe lhe proibisse de voltar a visitar Bria McKenna, desafiaria-a e iria de todos os modos. —Tivemos uma agradável conversa, enquanto tomávamos o chá, a senhora McKenna e eu. Falou-me do tempo na Irlanda. Chove muito. —Agarrou bruscamente a escova e começou a passá-la pelo cabelo—. Bastante horroroso, diria eu, mas, pelo menos, não acontece muitas surpresas. Sua mãe foi do biombo até a chaminé de mármore, golpeando a saia com a ponta de cetim de seus sapatos. —Às vezes tem umas ideias muito estranhas. Asseguro-lhe que devem ter te trocado por outra ao nascer, porque não é possível que seja minha filha. Uma mulher desmaia na rua e você para para atendê-la e isso é uma coisa... embora, por que...? Mas, contudo... Mas é algo totalmente diferente iniciar uma amizade com a mesma mulher. Aos pobres de Goree, levamo-lhes cestas, como caridade, cada terceiro domingo, mas nunca lhes ocorreria te convidar a sua casa. É algo que não se faz. —Por que não se faz? Bethel se virou, com uma expressão estranhamente acossada na cara. —Não se faz —disse finalmente—, porque as raças inferiores aprenderam a manter-se a uma humilde distancia de nós, a “Gente Importante”, e lhes convém fazê-lo. —Possivelmente não se faz porque acreditam que somos um bando de esnobes aborrecidos e têm razão ao supô-lo. Mas a senhora McKenna me convidou amavelmente a sua casa duas vezes e eu aceitei. É uma respeitável mulher casada... —Respeitável! Mas se é irlandesa. Emma deixou a escova e abriu uma caixa de forquilhas de tartaruga marinha. Recolheu o cabelo e começou a arrumá-lo em um coque liso, estilo concha. Mas tremia tanto em seu interior que o solto sutiã do quimono

estremecia também. —Perguntarei a Geoffrey o que opina —disse, apoiando-se uma vez mais naquele novo poder que tinha como prometida de Geoffrey Alcott e como a única esperança, que logo se faria realidade, da família—. Ele, pelo menos, parece aprovar as coisas que faço. Entretanto, aquilo não aconteceria. Embora às vezes lhe parecia que apenas o conhecia, isso sabia. Geoffrey tinha uma opinião muito firme sobre o lugar que alguém ocupa no mundo e sobre à justa ordem das coisas e não gostava que as pusessem em dúvida nem as alterassem. Emma se atreveu a olhar a sua mãe através do espelho. Bethel tinha enredado os dedos no colar de azeviche e tinha o olhar fixo nas rosas do tapete. Falou como para si mesmo: —Falações... voltará a haver falações, como no baile. E se nos descobrem? Não podem nos descobrir. —Como diz? Descobrir o que? —Emma nunca tinha visto sua mãe tão transtornada, mas também é verdade que ultimamente lhe tinha dado de tomar doses não só de láudano mas também do hidrato de cloral de Maddie. Assegurava que lhe acalmava o apetite—. Mamãe! Está... encontra-te bem? Bethel se sobressaltou e deu meia volta. —Sim, olhe, não preste atenção no que digo —disse agitando uma mão trêmula no ar—, não dê importância. Emma soltou um suspiro profundo e trêmulo. Não estava segura de até que ponto a tinha intimidado, mas não teria como averiguá-lo ainda, porque sua mãe não ia pôr em evidência. Bethel jogou os ombros para trás e foi, decidida, até sua filha. —Por Deus Bendito, deixa, já o faço eu —disse, tirando as forquilhas de tartaruga marinha da mão de Emma—. Está fazendo um absoluto desastre. Não sabe quão afortunada é de ter um cabelo tão longo e grosso, quando as demais têm que se arrumar com apliques.

Cravou as forquilhas com tanta força no cabelo de Emma que lhe cravou o couro cabeludo. —Talvez o pobre senhor Alcott esteja embevecido contigo no momento, mas não se pode esperar que tolere suas excentricidades de forma indefinida e tampouco o fará a sociedade. Digo-te, Emma, que sempre foi um grande esforço fazer com que te conduzisse da forma apropriada a sua posição na vida. Vai navegar sozinha, durante horas e horas, e não importa que seja bristoliana e uma Tremayne, segue tendo uma atitude de Maria-macho para uma jovem de vinte e dois anos. E o que faz na velha estufa... não o chamarei arte porque, sem dúvida nenhuma, não o é. Uma desonra, isso é o que é. Mas isto... te fazer amiga dessa dona ninguém... uma irlandesa. É tão... tão pouco digno. —É amabilidade —disse Emma, e sentiu uma pontada de vergonha. Porque se alguém estava sendo amável e indulgente, essa era Bria McKenna—. A senhora McKenna é nova em Bristol, assim tem poucos amigos. Além disso, não pode sair muito, porque está delicada. —Soa mais vulgar que o barro. —Bethel deixou cair às mãos nos ombros de Emma e os apertou com força, fazendo virar a jovem no tamborete—. Por que faz isto comigo? É pelo que aconteceu aquela noite, verdade? Está tentando me castigar igual a seu pai está me castigando. As palavras de sua mãe assombraram tanto a Emma que, durante um momento, não pôde falar. —Não estou tentando te castigar, mamãe —disse finalmente, com voz emocionada, porque possivelmente quisesse sim que sua mãe recebesse um castigo e ela também—. Você... você disse que não devíamos falar disso. Os dedos de sua mãe lhe cravaram, com força, nos ombros, e em seguida se afastou. Levou o dorso da mão à testa. —Não sei como vou sobreviver estes meses que restam até que esteja casada e bem casada. —Se de verdade quisesse ser uma prova para ti, poderia me converter em

uma dessas «novas mulheres» de que tanto falam os jornais e as revistas. Poderia começar a fumar cigarros e montar em bicicleta. Também poderia organizar uma equipe de beisebol feminino aqui, em Bristol, e todas poderíamos usar calças. Acha que monsieur Worth me desenharia um par? Bethel estremeceu e o rosto que voltou para sua filha estava branco e amarelo como a cera. Emma se sentiu mesquinha por fazer aquilo, por atormentar a sua mãe com palavras, embora não as dissesse a sério. Sua mãe sempre tinha tanto medo do escândalo como as pessoas estavam acostumadas a ter de pegar a varíola. Emma baixou o olhar aos dedos que tinha fortemente apertados na saia. —Só brincava, mamãe. —Não a acho nada divertida quando está desse humor, Emma. —Bethel se virou e saiu muito erguida pela porta—. Apresse-se e acabe de te vestir. Emma olhou como se fechava a porta atrás de sua mãe. Era uma confusão de sentimentos: culpa, temor e uma espécie de desejo desenfreado. Possivelmente não fosse uma nova mulher, mas sim que se sentia como uma nova Emma. Ouviu o roce e o clique da cadeira de rodas de Maddie e se virou para encontrar-se com uma donzela que empurrava a sua irmã através da porta, da salinha que compartilhavam. A donzela guiou a cadeira até lhe deixar em cima do macio tapete e junto à enorme cama com dossel. Maddie despediu a donzela com um gesto e um baixo «obrigado» e, em seguida, inclinou a cabeça, fingindo estudar a sua irmã atentamente. —É um paradoxo, Emma Tremayne. Vi-te ficar de todas as cores quando alguém que conhece há vinte anos te dá bom dia. Entretanto, acaba de enfrentar a nossa formidável mamãe sem mover uma pestana. —Isso é devido a que tinha as pestanas muito congeladas de medo para que se movessem —disse Emma.

Trocaram um sorriso, embora os lábios de Emma tremessem. Perguntou-se quanto teria ouvido Maddie e se teria compreendido o que queria dizer sua mãe ao falar de castigo. Willie e o que aconteceu a noite que se afogou era um tema que ela e sua irmã nunca tinham abordado. Maddie nunca falava de Willie, nunca, porque ele foi o responsável pelo acidente que a tinha confinado a uma cadeira de rodas. Emma pensava que inclusive depois de morto, Maddie ainda não o tinha perdoado. Maddie se inclinou para acariciar o peitilho de renda branca do vestido de tarde, de musselina lilás que estava estendido em cima da cama, junto com um conjunto limpo de roupa interior de seda e renda. —Mamãe e você vão sair? —Para tomar chá na casa da senhora Hamilton. Emma se levantou e foi sentar-se na cama, diante da cadeira de sua irmã. Pegou uma meia de linho da Escócia e se inclinou para trás para vesti-la. —Eu gostaria muitíssimo de não ir. Servirá-nos massas de ontem, embora seja bastante rica para comprar o conteúdo de uma dúzia de confeitarias. E nos entreterá, como faz sempre, tocando o mesmo interlúdio de Chopin em um piano que não se afinou em quarenta anos. Veremos as mesmas pessoas que vimos ontem e anteontem. —Emma enrolou a parte superior da meia em uma liga de seda rosa—. O odiaria, Maddie. Ante o silêncio que seguiu a sua afirmação, Emma levantou os olhos. Embora Maddie houvesse virado a cara para o outro lado, Emma acreditou ver o brilho das lágrimas nos olhos de sua irmã. —Não, não é verdade —disse, em voz baixa. Emma baixou o olhar até sua saia. Formou uma dobra no quimono e em seguida o alisou de novo. —Não, provavelmente não. —Soltou um pequeno suspiro—. Suponho que sou só eu, atuando como uma parva. E piorou desde que me comprometi com Geoffrey. Sinto como se me exibisse em todas as partes aonde vou, como

se fosse uma mariposa presa em um alfinete. Todo mundo me olha tão fixamente e já sabe o quanto detesto isso. —Olham-lhe porque é bonita, Emma, e parece que ficou ainda mais bonita desde que você e Geoffrey proclamaram seu afeto ante o mundo. Pode deixar sem fôlego a qualquer um quando, ao levantar a vista, te pegam em certas poses... —Mas eu não poso —protestou Emma, com as bochechas acesas. —Talvez não seja conscientemente, mas faça o que faça, todos os seus membros parecem colocar-se da maneira mais cheia de graça possível. Além disso, tem um rosto muito expressivo; é como se as pessoas observassem como uma rosa floresce de repente, passando de casulo a flor aberta e maravilhosa em um instante. —A boca de Maddie se curvou em um sorriso maroto—. Uma vez dito isto, agora espero que vá à casa da senhora Hamilton e te comporte de uma maneira perfeitamente correta toda à tarde. Emma não pôde evitar sorrir também, embora ainda lhe ardia à cara de vergonha. —Possivelmente faça algo audaz e escandaloso, para mudar —disse—. Ou melhor peço à senhora Hamilton um pouco de creme para acompanhar meu pão-doce rançoso. Puseram-se a rir por um tempo, mas Maddie foi a primeira a ficar calada. —Está mudando, Em. Estou segura de que deve ser por estar tão apaixonada. A ideia sobressaltou Emma... que Geoffrey lhe tivesse feito isto, que seus sentimentos por ele fossem tão poderosos que mudassem o que estava dentro dela. —Eu gostaria de saber como é estar apaixonada —disse—. Há momentos em que me sinto muito alegre e louca e sorrio sem razão e quero girar e girar até me enjoar, salvo que já estou enjoada. Logo há outros momentos em que sinto uma dor raivosa e solitária no peito e me encontro sentindo falta de coisas que

nem sequer posso nomear e desejando coisas que parecem loucas, delirantes e impossíveis... Inclinou-se para frente e agarrou as mãos de Maddie, que estavam enlaçadas em cima da manta que lhe cobria as pernas. —Me diga, Maddie, acha que isso é o amor? O olhar de Maddie se separou de Emma. Olhou os dedos entrelaçados das duas, ocultando seus pensamentos. —Sim —disse—, acredito.

Para estabelecer seu privilégio a fazê-lo, Emma voltou a visitar a casa da Rua Thames no dia seguinte, o terceiro seguido. Mas esta vez, Bria não estava em casa. Como era costume, Emma abriu sua pequena bolsa negra de pele de lagarto e tirou um de seus cartões gravados, com a borda dourada. Foi só ao olhar ao redor em busca de um lugar onde deixá-lo quando teve que rir de si mesmo. Como se fosse haver uma bandeja de prata no degrau da porta de Bria McKenna onde se pudesse deixar um pedaço de cartão como prova de suas intenções. Entretanto, voltou no final daquela mesma tarde, ao retornar a casa depois de passar algumas horas com Geoffrey, assistindo a um documentário no ateneu sobre as maravilhas da Indonésia. Não se deu conta de que era um dos sábados livres, quando o turno de dia acabava cedo na fábrica, até que se abriu a porta ao chamar e se encontrou olhando para baixo a uma cara brilhante e sorridente rodeada de cachos laranja. —Vá, olá, Merry —disse Emma—, voltamos a nos encontrar. O sorriso da pequena se alargou e lhe apareceram duas covinhas redondas, do tamanho de um penique, nas bochechas. Cantarolou com muita força e girou em círculo sobre um pé. Um pouco alarmada ante aquela atitude estranha, Emma olhava para

dentro para ver se Bria estava quando outra menina, maior, foi à porta. Tinha uns membros magros e desajeitados que pareciam todo cotovelos e joelhos e levava o cabelo castanho penteado em umas tranças tão apertadas que se sobressaíam dos lados da cara como se fossem asas de uma jarra. —Por que vem por aqui toda hora? —perguntou. —Noreen! —Bria apareceu na porta, deixando cair às mãos nos ombros da menina—. Não te envergonha, criatura? —disse, brigando e lhe dando uma pequena sacudida—. Mostre à senhorita Tremayne que lhe ensinaram boas maneiras. A menina fez uma rígida reverência, mas em seguida lançou seu queixo bicudo para frente e olhou para Emma com cara de poucos amigos, como se a desafiasse a encontrar algo minimamente agradável nela. Emma reagiu adorando-a imediatamente. —Como está, Noreen? —disse Emma, lhe dedicando seu mais brilhante sorriso. A menina se voltou para sua mãe e Emma viu o cintilar das lágrimas que enchiam seus olhos. —Merry disse que hoje viria o anjo. Bria colocou umas mechas de cabelo soltos em uma das tranças de sua filha. As duas meninas estavam cobertas da sujeira e penugens da fábrica de algodão. —Isso disse, é? —perguntou Bria—. E suponho que foram as fadas que o disseram. Merry cantarolou em voz alta, sacudindo a cabeça com tanta força que os cachos ricochetearam. Noreen observou a cara de sua irmã atentamente, escutando. Voltou-se de novo para sua mãe e encolheu os ombros. —Ela sabe. Bria cruzou o olhar com Emma e também encolheu os ombros.

—Acreditam que você é um anjo. —Vamos, certamente que não —protestou Emma, ruborizando-se. —Suponho que isso é melhor que se a confundissem com o diabo —disse Bria e seus olhos se entrecerraram com uma risada tão zombadora que Emma não pôde deixar de sorrir. Bria lhe devolveu o sorriso e em seguida deu uma pequena cotovelada em Noreen. —Andem meninas, vão se lavar. —Enlaçou seu braço no de Emma e a fez entrar na cozinha—. Estou preparando colcannon para jantar. É um prato irlandês muito bom e, é obvio, é o favorito de meu Shay. É feito com purê de batata e repolho, refogado em leite e manteiga e um pouquinho de noz moscada acrescentada. Por que não fica para jantar e o prova? De repente, Emma ficou sem respiração nem controle sobre a curiosa aceleração de seu coração. Era o sábado livre, que significava turnos mais curtos nas fábricas e nos campos de cebolas e isso queria dizer que as famílias se reuniriam para compartilhar o jantar e isso significava que... —Obrigado —disse—, estou segura de que é delicioso, mas, em realidade, não deveria ficar. Sem dúvida seu... o senhor McKenna chegará logo e eu... Não queria ver-se frente a frente com o marido de Bria e não é que pensasse muito nele. Tinha decidido que não podia haver-se encaprichado daquele homem, porque ia casar-se com Geoffrey. Estava apaixonada por Geoffrey, todo mundo o dizia. O viam na cara. E quanto ao irlandês; podia admitir que o que tinha sentido por ele foi um certo interesse. O que passava era só que seguia sentindo muita vergonha quando se lembrava das ideias que lhe tinham ocorrido àquela noite. Nunca teria ido com ele em meio da tormenta, nem sequer se tivesse sido ela a quem ele tivesse ido procurar. Nunca tinha sido a valente Emma de suas fantasias.

—Ah, hoje Shay não voltará até muito depois do pôr do sol porque estão chegando as lubinas —dizia Bria. Tinha soltado o braço de Emma e estava remexendo um pote que havia no fogo—. Acaba de comprar um barco de pesca com dinheiro que lhe emprestou o senhor Delaney, o dono do Crow's Nest. Não gosta de estar em dívida com o proprietário de um bar, assim é Shay, mas estava muito desesperado para sair dos campos de cebolas. E certamente que nenhum banco ianque ia jogar dinheiro à cabeça de um irlandês... Bria deixou cair à chaleira dentro do pote, salpicando molho, e levou as mãos às acesas bochechas. —Dhia, o que disse? —virou-se e olhou para Emma com olhos assustados—. Por favor, senhorita Tremayne, não me diga que o banqueiro é um tio seu ou algo assim. Emma mordeu o interior do lábio inferior para dissimular um sorriso. —Bom é um primo, de segundo grau. E lhe custa bastante jogar dinheiro à cabeça de alguém, temo-me. Meu pai o acusou em uma ocasião de sentar-se em cima de seus investimentos e tentar incubar-los como se fosse uma galinha poedeira. Bria soltou uma risadinha. —Och, mas mesmo assim tinha que ter vigiado minha língua. — Assinalou com um dedo esticado a suas filhas, que seguiam justo ao lado da porta de entrada, com os olhos cravados em Emma—. Ei, vocês, não lhes disse que fizessem algo? Merry correu até Emma e lhe estendeu as mãos, cantarolando uma melodia doce e suplicante. Emma olhou para Noreen, que parecia ser a intérprete do estranho meio de comunicação de sua irmã. Na cara de Noreen seguia havendo uma expressão de desconfiança. Seguia de pé, firme, com as mãos fechadas em punho aos lados, como se esperasse uma briga. Emma pensou que não se deixaria ganhar facilmente e a quis mais por isso.

Enquanto isso, o cantarolar de Merry tinha alcançado um chiado agudo. —Nory —disse Bria—, tenha piedade de nossos ouvidos e nos diga o que quer sua irmã, por favor. Os olhos de Noreen se iluminaram com um desafio, ao mesmo tempo em que olhava para Emma, mas respondeu a sua mãe com bastante rapidez. —Diz que quer que a senhora lhe lave as mãos. —Eu? —Emma olhou atrás dela, como se alguém mais acabasse de entrar na cozinha. Merry cantarolou e assentiu e girou de novo sobre um pé. Emma descobriu que o barraco não tinha uma sala de banho nem uma privada; não tinha encanamentos de água quente. O que sim tinha era um lavabo com cortinas de cretone florido, uma bacia e um cântaro de esmalte branco lascado. Enquanto Bria enchia a bacia, Emma agarrou as mãos da pequena entre as suas e as inundou na água. Agarrou uma pastilha de sabão entre as palmas e, muito delicadamente, ensaboou aquelas mãos, tão pequenas entre as suas. Merry cantarolava, uma canção de ninar suave que vibrou até converter-se em um gorjeio brilhante e cheio de desejos. A água estava fria. O sabão, áspero pela pedra-pome e o alvejante, causava ardência na delicada pele de Emma. A toalha que Bria lhe deu era áspera e rígida por haver-se secado diante da estufa e cheirava a pó de carvão, mas a única coisa que Emma notava era uma sensação de assombro porque uma coisa tão insignificante como lavar as mãos de uma garotinha pudesse fazê-la sentir tão cheia de felicidade por dentro.

Capítulo Quinze Maravilhava-se de si mesmo quando estava na casa da Rua Thames. E quando partia e voltava para sua outra vida, sua vida entre a “Gente Importante”, levava com ela uma persistente sensação de desconforto, uma tênue convicção de que tinha sabido, durante um tempo, como era ser outra pessoa. Levava pequenos presentes às meninas, caramelos de limão e fitas para o cabelo. Para Bria levou uma caixa de lenços bordados petit point e uma litografia de Currier e Ives que mostrava um povoado com telhados de palha, situado em meio de verdes colinas. Titulava-se Vida no velho país e a expressão de autêntico gozo que apareceu na cara de Bria quando o agarrou entre as mãos fez com que Emma se sentisse como se tivesse dado a sua amiga o mundo inteiro. Sua amiga. Emma não estava segura de quando também isso se tornou algo real. Possivelmente sempre tinha sido assim e só tinham necessitado coragem para descobrir uma à outra. Aquela semana foi à sua casa todos os dias, entre festas e chás da “Gente Importante” no jardim e as tardes dentro das casas. A maioria das vezes, ia abertamente, mas outras estava na casa da Rua Thames quando sua mãe pensava que estava navegando ou esculpindo na antiga estufa. No domingo estava sentada à mesa da cozinha com seu papel de flores nas paredes e seu linóleo bem esfregado no chão, olhando como Bria penteava Merry com querosene para eliminar os piolhos. A cozinha cheirava a vapor e sabão, porque Bria tinha fervido um caldeirão cheio de roupa branca. —Pegam-nos na fábrica — disse Bria, enrugando o nariz e franzindo a boca com asco—. Não importa o muito que lhes esfrego a cabeça. —Assinalou

para Emma com o cabo do pente—. Vocês os americanos, sempre alardeando de sua terra de leite e mel. Seria melhor que a chamassem a terra da enea e dos piolhos. Emma baixou os olhos para o desenho que estava riscando no oleado marrom para que Bria não pudesse vê-la sorrir. —Não há piolhos na Irlanda? —Piolhos na Irlanda? Vamos! Merry cantarolou uma melodia longa e grave que subia de tom ao final, como se fosse uma pergunta. Mas Noreen não estava ali para lhes explicar o que havia dito. Antes, Bria tinha acreditado que a pequena Merry não havia dito uma palavra em quase três anos, desde «certos problemas» que houve lá na Irlanda. Mas Emma sabia que não tinha imaginado que a menina disse palavras de verdade aquele dia diante da loja de Pardon Hardy. No entanto, o guardou para ela. Compreendia que uma menina precisava guardar algumas coisas em segredo, inclusive daqueles a quem queria. Assim enquanto Merry cantarolava, Emma se inclinou para arrumar as flores da lata de tomate que havia no meio da mesa. Esta vez eram margaridas brancas e íris silvestres. —Parece-me que tenta dizer algo sobre a Irlanda. Faz muito tempo que partiram dali? Bria deu uns tapinhas no protuberante ventre. —Claro e poderei recordar sempre o dia que pus o pé na América, com este a ponto de aparecer, nove meses depois —disse, mas logo o sorriso que tinha começado a lhe esticar os lábios pareceu congelar-se, torcendo-lhe a boca. Umas sombras se moveram, como nuvens, por seus olhos. Depois daquilo ficou calada e Emma pensou que quase podia ver as lembranças que a enchiam e se pousavam dentro dela. —Quer me contar algo de sua vida ali? —perguntou—. Pode suportá-lo?

Bria encolheu ligeiramente os ombros, para tirar de cima o peso de alguma tristeza. —A mhuire. Poderia encher seus ouvidos com as histórias do ould país —disse, e o acento irlandês lhe enrolou, pesado, na língua—. Meu próprio nascimento, note-se, não foi considerado uma bênção em minha família, sobre tudo porque meu pai tinha morrido três semanas antes da enfermidade do suor. Depois disso, só ficamos os três: minha mãe, meu irmão e eu. Trabalhávamos para o senhor Varney, qualquer trabalho que nos desse, mas sobre tudo quebrar os torrões dos campos de batatas com uma pá. Deixou de pentear a sua filha e olhou ao redor, com a boca curvando-se em um seco sorriso. —E nossa shibeen, olhe, faria com que esta casa parecesse um palácio. Só quatro paredes de pedra, cobertas com palha, com um buraco no meio como chaminé e nenhuma janela, assim sempre estava escuro. Durante um tempo tivemos um porco e vivia na casa conosco. Emma reprimiu uma risada de surpresa com a mão. —Não pode ser. —Sim, e comia melhor que nós, além disso. Mamãe não parava de dizer que aquele porco era muito melhor que Donagh e eu, porque a nós não podiam nos matar para fazer bacon. Emma riu de novo e, esta vez, Bria riu com ela. E também Merry, com um cantarolo que se converteu em chiados de alegria. riram juntas, fortes gargalhadas que encheram a cozinha e as fizeram sentir-se bem. Bria acabou sua risada com um suave suspiro e Emma pensou que agora estava presa de lembranças mais doces. Bria levantou os olhos e seu olhar foi até a litografia que Emma lhe tinha dado, ali onde pendurava em uma posição de honra em cima da pilha de água benta. —O lugar de onde vem —disse Emma—, parece-se com esse? —É igualmente verde, claro. Mas é uma terra mais selvagem. Nosso

povoado, ou clachan, como nós o chamamos, chama-se Gortadoo, que significa «campos negros» em inglês. Está na ponta do condado de Kerry, onde a terra cede caminho ao mar. Embora a pesca não é tão boa como poderia pensar, tampouco morrerá de fome enquanto tenha uma barco e uma rede. A terra em si é pobre, rochosa e empapada de chuva e boa para pouco mais que cultivar algumas batatas. Mas, sim, é tão verde... Todos os tons de verde, desde escuro ao claro. Um arco íris verde... Os ombros de Bria estremeceram, como se, de repente, despertar-se de um profundo sono. —Pois vá maneira de descrever aquele lugar. Alguém se perguntaria por que chorei tanto quando o deixei. —Por que partiu? Passou um momento antes que Emma se desse conta de que sua pergunta tinha sido respondida com o silêncio, que Merry, de pé entre os joelhos de sua mãe, com o cabelo gotejando querosene, ficou totalmente imóvel, com essa classe de quietude que brota de algum lugar muito dentro e que a cara de Bria estava pálida e tinha um brilho de suor. Então Bria tossiu, com uma tosse áspera e rasgada. Tirou o lenço e tossiu de novo, tampando a cara por completo com o tecido e Emma pensou que, possivelmente, também estava ocultando as lágrimas. Emma olhou para o outro lado. —Me perdoe por me intrometer em seus problemas. Bria embutiu o lenço dentro da manga de sua blusa de cor amarelada. —Intrometer-se? Que Deus nos ajude —disse com uma expulsão do fôlego que se aproximava de uma gargalhada—. Ninguém pode falar tanto como nós os irlandeses, e os problemas são o tema que nós mais gostamos. Emma voltou a olhar para Bria e compartilharam um sorriso. Um sorriso que se afundou, mudou e se converteu em algo mais. Converteu-se em uma compreensão que Emma sentiu, com tanta segurança como se tivessem

estendido as mãos através da mesa e as tivessem unido. —Que Deus nos ajude — disse Bria de novo, depois que se produzira um longo e tenro silêncio entre elas—. Tenho que lavar a cabeça desta menina. Levantou-se e virou Merry, agarrando-a pelos ombros, para levá-la ao lavabo. —Importaria-se de mexer esses lençóis? Ao fim de um momento, Emma se deu conta, com um sobressalto, de que Bria tinha falado com ela. Nem sequer tentou conter o sorriso que lhe iluminou a cara enquanto se levantava da mesa e ia até o fogão. Se Bria podia lhe pedir que compartilhasse suas tarefas, então devia ser que estavam se convertendo em amigas de verdade. No entanto, Emma sentia certo temor enquanto afastava a tampa do fumegante caldeirão de cobre, porque nunca tinha feito nada parecido. Agarrou a paleta de madeira e começou a remexer; melhor dizendo, tentou-o. Surpreendeu-se por quão difícil era; a roupa empapada de água pesava muito e virá-los era uma árdua tarefa. Entrecerrando os olhos para proteger-se dos vapores do alvejante que lhe faziam arder os olhos, levantou a vista e olhou pela janela... e viu como Shay McKenna entrava no pátio. Aparecia correndo no pátio, onde se deteve, com o peito palpitante. Não levava camisa e, inclusive de onde ela estava, ali na cozinha, podia ver que o suor brilhava em sua pele nua. Tinha o peito e os ombros torrados pelo sol e muito musculosos. Afastou o olhar e as mãos que agarravam a paleta ficaram imóveis. Sentia-se muito estranha, com a pele esticada, muito pequena para seu corpo. Disse-se que era a lembrança daquela noite, de seu segredo e suas insensatas fantasias. Fazia com que se sentisse incômoda com ela mesma. Notou que Bria se aproximava por trás e ficou, também, olhando pela janela. —Esteve correndo —disse Bria.

Ele tinha ficado ali, com as mãos nos quadris, olhando para a rua, enquanto recuperava a respiração, mas agora se voltou e olhou para a casa. Emma se separou da vista, com um movimento brusco, ocultando-se atrás das cortinas de algodão de quadradinhos amarelos, com as bochechas lhe ardendo. —Mas por que corre? Do que quer escapar? —Só corre em círculos para não chegar a nenhuma parte. Típico dos homens. Bria se aproximou mais à janela e tocou o cristal. Tocou-o delicadamente com os dedos, como tocaria ao homem e Emma se surpreendeu da mudança que se produziu na cara de sua amiga. O amor brilhava nela, tão cegador como o branco sol do deserto. Perguntou-se se alguma vez ela tinha olhado Geoffrey daquela maneira. Duvidava-o, porque já sabia que nunca na vida seu coração havia sentido algo tão profundo. —Está treinando, como ele o chama — disse Bria—, fortalecendo sua respiração para uma exibição da ciência do boxe sem luvas. Fará-a aqui, em Bristol em Quatro de Julho. —Mas por quê? —exclamou Emma, horrorizada só de pensá-lo. Sabia que era um esporte bárbaro, violento e sem leis e só frequentado pela escória da sociedade. —Pelo dinheiro do prêmio, certamente. Ou isso o diz. —Bria afastou os dedos do cristal. Fechou a mão em um punho antes de deixá-la cair de novo—. Sempre brigando contra algo, esse é Seamus McKenna, de uma maneira ou de outra. Às vezes me pergunto se os homens só lutam por amor à luta. Voltou-se para o lavabo onde esperava a pequena Merry, ainda apanhada naquela estranha quietude, agora jorrando água, em vez de querosene. Bria lhe envolveu a cabeça com uma toalha, esfregando para lhe secar o cabelo. Emma sentiu o impulso de olhar de novo pela janela, ao homem do pátio.

Pôs-se uma camisa azul, de cambraia que estava muito desgastada pelas repetidas lavagens. Já a tinha transpassado de suor, de forma que lhe colava as costas e aos ombros. Pensou que a verdade é que tinha corpo de lutador, endurecido, golpeado... brutal. —Boxeador profissional — disse em voz alta—. Imagina que coisa. —Foi campeão de boxe sem luvas na Irlanda, meu Shay —disse Bria, com o orgulho lhe animando um pouco a voz. Sentou-se na cadeira de balanço para pôr Merry entre os joelhos abertos e pentear os cachos úmidos e enredados. Mas a menina escapuliu e saiu correndo pela porta, fechando-a de uma portada atrás dela. Bria ficou olhando fixamente a porta fechada, mas Emma pensou que via mais à frente, via o homem que estava fora. —Uma manhã, por brincadeira, na feira de cavalos perto de Shannon, meteu-se no ring para um assalto com um tipo que diziam que era o campeão de Dublin. Shay o derrubou no segundo murro e quando se deu conta lhe estavam pagando umas boas moedas para enfrentar a qualquer um dos aspirantes ou a todos. Baixou o olhar ao pente que seguia tendo na mão, apertando-o com tanta força que os dentes lhe cravavam na carne. —Pagavam-lhe para que o esmurrassem cada tarde de domingo, todo o verão — suspirando, deixou cair o pente no bolso do avental e ficou de pé, pesadamente—. Mas, como dizia o próprio Shay, um campeão é só o pobre slieveen que fica em pé ao final de tudo. Bria voltou para a janela. Olhou para ele, seu homem, e o acariciou, ligeiramente, com os olhos do mesmo modo como havia tocado o cristal pouco antes. —Brigou em cada feira e em cada dia de corridas, por toda a Irlanda, até que aquele dia desgraçado em que matou a um homem com esses punhos. Emma quase deu um grito afogado. Seus olhos, como se tivessem

vontade própria, procuraram Shay McKenna no pátio, mas já tinha partido. —Seguia levantando-se, uma e outra vez, sabe? —seguiu dizendo Bria, embora sua voz tinha, agora, um tom apagado, como se lesse as palavras em um jornal—. Shay o derrubava e ele voltava a levantar-se, assim Shay o golpeava de novo, o machucava muito e ele voltava a cair e voltava a levantar-se, de novo e de novo, até que Shay o golpeou uma vez mais ou uma vez muito forte e então não voltou a levantar-se. E embora possa que Shay não tivesse intenção de matálo, o certo é que, ao final, aquele pobre estúpido estava morto. Voltou-se para olhar para Emma e a dor de seus olhos parecia haver engolido o mundo inteiro. —Todos somos ao mesmo tempo luz e escuridão, não lhe parece senhorita Tremayne? Desejamos de coração fazer o bem e somos capazes de fazer o mal. E o mesmo acontece com o que escolhemos, seguramente, o que faz com que sejamos o que somos... A última palavra de Bria se partiu quando um forte e violento golpe de tosse lhe rasgou o peito e logo outro e outro e outro. Emma lhe rodeou a cintura com o braço, sustentando seu peso enquanto os ombros de Bria se sacudiam e tremiam. Quando por fim a tosse se acalmou, afastou-lhe o cabelo, úmido pela febre, da testa e a abraçou com mais força. A porta se abriu e as duas se separaram lentamente. Shay McKenna estava na soleira com Merry em um braço, com as pernas em torno dos quadris de seu pai. Noreen o segurava forte pela outra mão, com a cara levantada para ele, olhando-o como se acabasse de lhe dar a lua e as estrelas. Merry cantarolou uma pequena e alegre melodia. Puxou seu pai pela orelha, lhe fazendo voltar à cara para poder lhe plantar um sonoro beijo na bochecha. —Olhe a quem encontrei sem fazer nada no pátio, mamãe —disse

Noreen, com os escuros olhos brilhando, cheios de risada—. Diz que tem tanta fome que comeria um urso, com dentes, garras e cabelo. Bria colocou, apressadamente, o lenço manchado de sangue no bolso do avental, mas não antes que seu marido o visse. A cara de Shay pareceu voltar-se mais e mais escura e seus olhos se escureceram. Bria voltou à cara para o outro lado, como se não pudesse suportar o olhar daqueles olhos. E Emma, ali de pé, olhando-os, perguntou-se como podiam suportá-lo. —Ai, Deus — disse Bria, tentando segurar os cachos soltos dentro do grosso coque que levava na nuca—. Pegaram-me com a chaleira fervendo, em vez do chá. —Não deixe que isso te importe — disse Shay McKenna, adotando seu teatral acento irlandês. Acabou de entrar, deixando a porta aberta. Deixou Merry no chão e empurrou às duas meninas para o lavabo—. Vão esfregar-se bem e em seguida se sentem e eu vou ver se posso pôr as mãos ao redor da chaleira sem queimar meus dez polegares. As duas meninas riram e ele lhes lançou um sorriso. Logo voltou para olhar a sua esposa e lhe sorriu também. Emma viu como lhe ardiam os olhos com amor e uma doce ternura. Perguntou-se se, alguma vez, Geoffrey a teria olhado assim. Pensou que daria tudo o que tinha no mundo por ter um homem que a olhasse assim. Ele passou junto à Emma de caminho ao fogão. —Bom dia, senhorita Tremayne —disse. Emma se deu conta de que ainda não a tinha olhado e tampouco o fez então. —Boa tarde, senhor McKenna —disse, com seu tom de salão, embora lhe resultou estranho pronunciar seu nome. Não era mais que um homem comum, agora sabia. Um pescador imigrante, com uma esposa e duas filhas pequenas e outro filho a caminho. Sabia exatamente o que era e não podia compreender por que o coração lhe

pulsava de uma maneira tão louca, como se ele tivesse voltado para ela desde suas próprias e delirantes fantasias. —Eu... eu tenho que partir —disse Emma. Bria a agarrou pelo braço, puxando-a para a mesa. —Não, não tem que partir. Vai tomar o chá conosco. Todos nós. Emma pensaria nisso, muitas vezes, nos dias seguintes. Enquanto jogava tênis com Geoffrey em sua pista na mansão da Rua Hope e na terça-feira enquanto acompanhava à senhorita Liluth a esperar o trem que ia a Providence. Enquanto jantava sozinha em As Bétulas com a única companhia do tinido da prata de lei contra a fina porcelana... Pensava naquela hora que tinha tomado o chá com a família McKenna. Com todos os McKenna. Sentou-se à mesa, com Bria e as meninas olhando como ele punha a chaleira no fogo. Ao trazer um pão moreno à mesa, deteve-se para alvoroçar os dourados cachos de Merry. Ao colocar as xícaras e os pratos se deteve para apertar o ombro de sua mulher e, inclinando-se, lhe murmurar algo ao ouvido que a fez sorrir. Disse brincando a Noreen que ia dar uma boa porrada no nariz de um menino chamado Roy e depois deu no nariz da menina um murro brincalhão enquanto os dois riam ao mesmo tempo. Emma nunca tinha conhecido a nenhum homem, não tinha conhecido a ninguém que risse, brincasse e acariciasse da maneira que ele o fazia. Perguntou-se se Geoffrey atuaria alguma vez daquela maneira com ela ou com seus filhos; mas, é obvio, não o faria. Era algo que não se fazia... exibir seus sentimentos tão abertamente ante o mundo. Nem sequer a seu próprio coração estava permitido conhecer os segredos de seus profundos afetos e vãs esperanças. De seus escuros desejos. Esforçou-se para recordar se havia sentido alguma vez o contato da mão de seu próprio pai no cabelo. Quando fechava os olhos, só via um homem alto com uma elegante levita negra e uma cartola. Emma, sempre achou que os olhos de seu pai contemplavam fixamente exóticas distâncias que ninguém mais podia

ver, sonhos que ninguém mais podia compartilhar. Exceto... exceto aquele verão mágico, quando lhe ensinou a navegar. Só então pareceu deste mundo e ela esteve ali com ele. Aqueles estranhos dias azuis no pequeno Saveiro de corridas, que ele tinha construído especialmente para ela, correndo ante o vento. Foram felizes juntos, naqueles momentos, os dois. Isso o recordava. E seu próprio pai nunca a tinha enviado para trabalhar em uma fábrica. Olhou para Shay McKenna, olhou sua cara maltratada e cheia de cicatrizes, seus olhos tão assombrosos por sua intensidade. Seguia tendo o aspecto do escuro predador de suas desenfreadas fantasias, mas ele não era esse homem. Agora o compreendia. Era um homem que tinha que ver como sua mulher ia morrendo com cada fôlego e como suas filhas iam trabalhar na fábrica de malhas e, entretanto, seguia dando a aqueles que acreditava que o necessitavam mais. Um rebelde que seguia lutando por uma terra, um lugar cheio de rochas negras e terrenos pantanosos e barracos com tetos de palha que, provavelmente, não voltaria a ver nunca. Um homem violento que, em uma ocasião, tinha matado com suas mãos nuas, as mesmas mãos que acariciavam com tanta ternura o cabelo de sua filha. Este homem que tinha chegado a conhecer através dos olhos de Bria, das palavras de Bria: «Eu estava louca por aquele menino e ele sempre com o nariz metido em um livro e o amor de todas as garotas colado a sua camisa.» «Assim era como ganhava dinheiro para que vivêssemos, ali na Irlanda, com uma barco e uma rede.» «Não está contente, para nada, se não viver com o coração na garganta e essas palavras descontroladas sempre na ponta da língua.» «Tem uns punhos do tamanho de pães, mas nunca os levantou contra mim nem contra as meninas. Nem sequer quando bebe.» «A pata do cão estava presa, sem remédio, nas rochas e o senhor Varney estava decidido a matá-lo com um tiro, quando meu Shay abre a boca e quando

me dou conta temos um cachorro com três patas ocupando o lugar mais quente diante do fogo.» «Podia haver perdoado a Deus a morte de seu pai, mas não a dela. Às vezes, tenho medo de que quando a pôs naquele buraco negro, enterrou sua fé ali, com ela.» Só um homem comum. Mas não para Bria. Naqueles

últimos

dias,

tantas

horas

e

momentos

falando

e

compartilhando e Emma não o tinha compreendido até agora. Como o amor de Bria por seu homem, sua necessidade dele, bombeavam uma espécie de sangue vital por todo seu corpo; elementar, essencial, eterna. Shay McKenna era o sol de seu mundo. E quando falava dele, sua cara se iluminava como uma flor. Emma se perguntava que aspecto tinha sua própria cara quando falava de Geoffrey. Mas logo pensou que nunca tinha falado dele naquela casa. Nenhuma só vez tinha falado a Bria do homem com o qual se casaria e da vida que teriam juntos e dos sonhos que compartilhariam e agora se perguntava por que não o tinha feito. O chá caiu na xícara que tinha diante, soltando um acre vapor que lhe banhou a cara. Perdida em seus pensamentos, levantou o olhar e se encontrou com a cara de Shay McKenna. Durante o tempo que dura um suspiro, lhe sorriu. —Ob... obrigado —disse ela—. Pelo chá, quero dizer — acrescentou, ruborizando-se. —Não tem por que agradecer — disse ele—. Pelo chá. Ela afastou o olhar do dele e o dirigiu ao guardanapo azul que tinha sobre os joelhos. Seu sorriso a tinha perturbado. Não podia avaliar seu significado nem sua própria reação a ela. Tinha-a acalmado e assustado, ao mesmo tempo. Shay se sentou à mesa, em que tinha disposto uma singela comida de pão moreno, cabeça de javali e chourice, aquela salsicha enganosa que os Bravas vendiam em suas lojas, mal iluminadas, que cheiravam a azeite de oliva.

A cozinha ficou um momento em silêncio e logo o cantarolar de Merry tilintou, alegre, como campainhas de prata. Noreen tampou a boca com a mão, contendo a risada. —Diz que papai esteve boxeando com as sombras. O pai se inclinou através da mesa para fingir um golpe à cara de Merry, com os nódulos roçando seu nariz tão delicadamente como um beijo e a pequena se remexeu na cadeira e cantarolou encantada. —É uma coisa que se chama fazer sombra, Nory —disse. —E quem é o melhor lutador, senhor McKenna; você ou sua sombra? — perguntou Emma. Viu que ficava imóvel apenas um segundo, como se lhe surpreendesse que fosse ela quem tinha falado. Logo se recostou na cadeira e colocou os polegares nos bolsos de suas calças de veludo cotelê e ela soube que ia adotar o ar irlandês inclusive antes que abrisse a boca. —O melhor lutador, senhorita Tremayne? Vá, pois eu mesmo, claro, e o que estou é mortalmente ofendido de que suspeite de outra coisa. Seguramente que dava a essa minha sombra uma boa surra, e muito lhe custou sair coxeando pela porta diante de mim. —Ora — exclamou Bria, enrugando o nariz—. O que eu estou é surpreendida de que conseguisse encontrar a porta, Shay McKenna. Vá, com essa cabeça que tem e que é outra das maravilhas do mundo de quão grande é. Shay levou as mãos ao peito, como se estivesse ferido de morte e sua esposa e suas filhas puseram-se a rir. Inclusive Emma teve que sorrir, embora justo estava recuperando o fôlego; tão atônita ficou por seu próprio atrevimento. Seu comentário tinha sido a classe de conversa banal que sempre imaginava ter quando estava em companhia, mas nunca chegava a atrever-se. Mas também é verdade que fazia muito tempo que não sentia o suplício do acanhamento na cozinha de Bria. Agora era um lugar familiar para ela, um lugar seguro. Do mesmo modo que o bosque de bétulas perto de sua casa e as

paredes de cristal da velha estufa e as águas da baía a mantinham a salvo. Percorreu com o olhar a cozinha com seu descolorido papel nas paredes e seu gasto linóleo no chão. Com aqueles toques peculiares de Bria: a lata de tomate, sempre cheia de flores silvestres, o tapete e a cadeira de balanço, com seu assento de vime a pilha de água benta junto à porta. Emma compreendeu com uma pequena sensação de assombro que tinha sido feliz ali e pensá-lo a fez sorrir. —Não o faça. Não faça isso, senhorita Tremayne. Seu nome pronunciado com tanta aspereza com aquela voz rouca, lhe deslizou pela pele e lhe ardeu. Voltou à cabeça de novo para ele e se encontrou com o brilho furioso de seus olhos. —O que... o que? —disse—. Que não faça o que? —Olhar a cozinha de minha Bria por cima do ombro, com desprezo. É muito mimada e se aborrece e acredita que brincar de ser amável é uma forma divertida de passar à tarde grátis. Dá-lhe a oportunidade de exibir sua superioridade, claro, e praticar suas finas maneiras, como a arrogante senhorita que é, mas... —Shay! Bria tinha interrompido suas palavras, detendo-o, mas seus olhos seguiram olhando a Emma com dureza. Ela queria lhe dizer que estava equivocado com respeito a ela, mas as palavras lhe entupiram em algum lugar da garganta, porque apesar de que agora não era verdade, sim que tinha havido uma parte de verdade, ao princípio, no mais profundo. E ele a olhava como se soubesse. —Oh, Shay — exclamou Bria de novo, arrancando seu nome dela com uma tosse entrecortada—. Como pode dizer algo assim, quando a senhorita Tremayne é uma convidada em nossa casa? —Nossa casa, sim. —Pôs as mãos espalmadas em cima da mesa, como se fosse apoiar-se para levantar-se, embora seguiu sentado e com o olhar fixo em

Emma—. Se poderia dizer isso, já que pagamos o aluguel. Também se poderia dizer que é uma convidada na casa do senhor Geoffrey Alcott, já que é seu o título de propriedade. E como logo será a esposa do senhor Alcott, isso quase nos converte em seus convidados, não? Emma não sabia que Geoffrey fosse o dono da casa, embora compreendeu que teria que havê-lo sabido. Provavelmente, Têxteis Alcott eram os proprietários de quase todas as propriedades que rodeavam a fábrica; igual aos Tremayne eram donos da maioria de choças e casas de Goree. —E você — dizia Bria a seu homem, com a voz rouca pela tosse e o aborrecimento— te comporta como se a senhorita Tremayne fosse alguém a quem deveríamos desprezar, só por ser quem é. Que Deus nos ajude, já não estamos na Irlanda. —Os latifundiários são iguais em todo mundo, não é assim, senhorita Tremayne? Só que aqui na América acrescentaram uma nova maneira para sangrar a seus arrendatários; cobrar o aluguel de uma família segundo o número de crianças que envia para trabalhar como escravos na fábrica. Quantos mais crianças, mais baixo é o aluguel. Não é assim como funciona, senhorita Tremayne? Ela negou com a cabeça, afastando o olhar do dele. Aquilo tampouco sabia. —É uma prática cruel, não diria que o é, senhorita Tremayne? Obrigar a um homem a escolher entre colocar a suas filhas na sala de fiações ou ver como morrem de fome na sarjeta. Seus olhos a olhavam com dureza, julgando-a. Emma sentia quão mesmo todas as vezes que tinha estado perto dele, que a estava pondo a prova com regras de um mundo que não conhecia. Bria se levou um lenço enrugado à boca, afogando outro ataque de tosse. Agarrou o braço de seu homem, fincando os dedos na carne que a manga arregaçada deixava descoberto.

—Tem intenção de ensinar a suas filhas umas maneiras de carreteiro com seu próprio mau exemplo, Seamus McKenna? Não importa quem seja o dono desta casa; a senhorita Tremayne segue sendo uma convidada a nossa mesa e agora mesmo lhe dirá que o sente. Ele deixou passar um longo e tenso momento antes de dizer: —Se a verdade a ofender, senhorita Tremayne, então lhe peço humildemente perdão. Emma levantou a cabeça, fazendo frente diretamente a seu olhar. —Tem uma estranha habilidade, senhor McKenna para inserir insultos em suas desculpas. Viu como lhe esticava um pouco o canto dos olhos e logo os lábios se separaram em algo que não era do todo um sorriso. Pensou que ia dizer algo mais, quando Merry explodiu em um cantarolar agudo e excitado. Noreen tinha estado observando seu pai todo o tempo, com um rictus de preocupação na cara. Mas agora prestou atenção a sua irmã e lhe torceram os lábios como se não soubesse se ria ou chorava. —Merry diz que não há necessidade de armar tanta animação — assinalou Emma, enquanto as bochechas lhe cobriam de um intenso rubor—, porque ela nos vai comprar uma casa completamente nova um dia. Merry diz que tem montões e montões de dinheiro. —Seu olhar foi de Emma a seu pai e logo voltou outra vez a Emma e seus olhos pareciam cheios de desconfiança—. Vamos ver, quanto dinheiro tem exatamente? Emma ficou desconcertada. Não era a classe de pergunta que alguém de sua classe se atrevia a fazer. Entretanto, todos, as meninas, o senhor McKenna e Bria, estavam-na olhando como se esperassem uma resposta. Levantou o queixo. Esperavam orgulho; pois muito bem, mostraria-lhes orgulho. —Tem a fortuna dos Tremayne, claro, que irá a Maddie e a mim quando meu pai morrer. Em sua maior parte, está posta a títulos de juros com direito a

dividendos, embora não tenho nem a mais remota ideia de quanto seja. E depois eu tenho um fundo fiduciário que receberei quando me casar ou quando fizer vinte e cinco anos. É somente de um milhão. —Mãe de Deus — exclamou Shay McKenna, pondo os olhos em branco com um assombro exagerado—. «Só um milhão», diz ela. —Com um amplo movimento do braço assinalou ao redor da cozinha—. Quantas flores acredita que há no papel de nossas paredes? Diria que chegam a mil? —Agarrou o pequeno saleiro azul, cheio de sal Morton que sempre estava no meio da mesa, junto à lata de flores silvestres—. Quantos grãos de sal haverá aqui dentro? Cem mil? Mas nossa querida senhorita Tremayne tem isso que chama um fundo fiduciário e só há um milhão de dólares nele e fala disso como se fosse uma coisa tão sem importância. —Venha, Shay —disse Bria, com um prolongado suspiro. Emma dobrou cuidadosamente o guardanapo e o colocou junto à xícara e o pires de chá. —Por favor, me perdoem — disse com sua voz mais amável—, mas temo que tenho que partir já. Ficou de pé com elegância com apenas um frufrú de suas anáguas de seda. Se ele a acusava de vir a sua casa para praticar suas elegantes maneiras, então os praticaria. —Obrigado por sua generosa hospitalidade —disse, com um pequeno, mas elegante movimento de cabeça—. Bom dia, senhor McKenna. Noreen, Merry. —Quase titubeou ao ver o afligido olhar que escurecia os olhos de Bria—. Senhora McKenna —disse, com voz um pouco entrecortada. Saiu ao exterior e desceu os altos degraus que levavam a Rua Thames, onde a esperava seu pequeno carro, no poste de amarração, junto à passarela de madeira. Acabava de desenganchar as rédeas da argola de ferro quando ouviu como se fechava a porta de repente. —Senhorita Tremayne. Quero lhe dizer algo mais.

Lentamente, voltou-se e o esperou. Ele percorreu o caminho para ela, aquele caminho rodeado com as flores azuis e violetas que ela tinha ajudado a plantar. Ele se aproximou até ela. Deteve-se o bastante perto para que ela visse como lhe formava uma gota de suor debaixo da orelha e caía seguindo a veia do pescoço, que pulsava. Turvava-a, com aquela maneira de olhá-la, com a intensidade e fixidez de seu olhar. Tinha um nó tão grande na garganta que mal podia falar. —Deseja me reprovar algo mais, senhor McKenna? Ou possivelmente quer proibir a minha mimada pessoa que volte a pôr os pés em sua casa? Ele negou com a cabeça. —Não, não vou fazer isso. Só lhe peço que... —Durante um milésimo de segundo, viu vulnerabilidade em seus olhos, como se uma dura carapaça se quebrasse, revelando uma parte de sua alma—. Não lhes faça mal — disse. O ar saiu com violência de sua boca, ao exclamar: —Nunca o faria! Ele esquadrinhou seu rosto, como se sopesasse a verdade que havia em suas palavras. Tinha os olhos duros e frios de novo e a boca implacável. —Não o entende —disse ela—. Bria é minha amiga. —Sua amiga, ah, sim? E o que vai acontecer quando seus outros «amigos» se inteirem de suas visitas aqui? Quando esse homem que lhe deu o anel que tem posto e com o qual vai compartilhar a vida, souber? Posso-lhe dar uma garantia ianque de que não vão gostar e que, dentro de pouco, não gostarão de você por fazê-lo. E não pode me dizer que você não se importará. —Isso não me importará — disse ela, embora até ela podia ouvir a mentira que havia em suas palavras. Não queria que lhe importasse, mas nunca antes tinha desafiado a censura de toda a sociedade. E sabia que essa censura podia ser brutal. —Seria-lhe mais fácil tirar um peixe da baía e lhe pedir que vivesse em

terra — disse ele, ecoando seus pensamentos não desejados— que estender uma ponte entre nossos dois mundos. —Eu só... Deteve-se, incapaz de seguir. Não queria estender nenhuma ponte. Só queria ser amiga de Bria McKenna. Ele inspirou profundamente e depois foi soltando o ar lentamente. Ela pensou que seus lábios pareciam haver-se suavizado um pouco, embora seus olhos seguiam tendo uma expressão dura. —A vida que levou até agora, Emma Tremayne, foi tão grandiosa... Nunca teve que prever o final das coisas nem seu custo. Ela tentou obrigar-se a sorrir, mas tinha os lábios muito rígidos. —Sem dúvida, está exagerando. Pode ser incomum, mas não pode dizerse que seja uma ofensa contra Deus ou contra os homens que uma mulher ianque, de sangue azul e uma imigrante irlandesa compartilhem um pouco de amizade. —Vá, assim agora já ficou reduzida a «um pouco» de amizade, não? — inclinou-se para ela e sua voz se voltou inclusive mais áspera—. Minha Bria não dá seu coração facilmente, assim é algo muito frágil. Enquanto que você... Dhia, os de sua classe quebram corações com a mesma facilidade que a maioria das pessoas partem o pão. Suas palavras doíam, surpreendentemente. Notava um apertado nó na garganta e lágrimas ardentes lhe queimavam os olhos. Ia começar a chorar diante dele, a qualquer momento e não acreditava poder suportá-lo. —Despreza-me de verdade, não é assim? Sua risada brotou baixa e rasgada. —Bravo, assim é como são as Grandes Famílias, sempre olhando o mundo segundo o lado delas. Aqui estou eu, quase de joelhos, lhe suplicando que economize a minha esposa da dor que sei que lhe vai causar e quão único lhe importa é que possivelmente eu não a tenha na grande estima que você

acredita que merece por direito próprio. Emma esticou toda a cara para conter as lágrimas. Levantou a cabeça e lhe deu as costas, afastando-se dele para subir à carruagem com toda a dignidade que pôde reunir, apoiando-se em duzentos anos de criação em uma Grande Família. Mas então ouviu sua voz crispada que a seguia enquanto ela se afastava. —Eu não a desprezo — disse Shay. Não a desprezava. Olhou-a como se afastava pela estrada, com as rodas da carruagem estralando no chão calcado e oleoso. A ampla asa de seu chapéu de palha lhe sombreava o rosto e a série de rendas batia as asas com a brisa da baía. Tinha um aspecto altivo, inabordável e caro e ele tinha pensado que era todas essas coisas a primeira vez que a viu, o dia da caçada da raposa. Mais tarde, pensou que era uma menina valente, sedenta de aventuras. Um ser inocente, esmigalhado entre seu próprio e doloroso acanhamento e uma indomável ousadia. Não a desprezava. Que Deus o ajudasse, mas se ela não fosse quem era, poderia ter chegado a gostar dela. A verdade é que sentia algo por ela, embora não poderia explicar o que era nem que sua vida dependesse disso. Estranhamente, a palavra que lhe veio à mente foi admiração. Talvez aquilo fosse o que lhe tinha impulsionado A... Bom não é que a tivesse procurado exatamente. Entreteve-se com ela um momento, quando se apresentou a oportunidade e agora, sem dúvida nenhuma, quereria não havê-lo feito. Porque, embora sua cabeça lhe dizia que ela não se aproximou de sua Bria por nada que ele tivesse feito, seu coração seguia insistindo em que tudo era culpa dele. Não a queria em sua vida, em suas vidas. E apesar de tudo, apesar de tudo... havia algo nela, algo que o fazia querer jogar um olhar mais profundo em seu coração. E nisso estava atuando tão bobamente como tinha acusado a ela; sem compreender que essas olhadas

dentro do coração humano se conseguiam a custo muito alto. Observou-a até que uma carreta de cerveja e uma ambulância puxada por cavalos entraram na rua atrás dela e tudo, salvo as brancas plumas de avestruz de seu chapéu, que subiam e desciam, desapareceu de sua vista. Mas inclusive depois de um momento que se foi, sua imagem permanecia em seus olhos, como manchas solares. No ar ficava o mais tênue aroma de água de colônia de lilás. Voltou para casa, subiu os degraus da varanda e empurrou a porta. Sua esposa estava junto a pia com os fragmentos de um pires de chá quebrado em uma mão e na outra um lenço manchado de sangue que apertava contra a boca para afogar a tosse úmida e dilaceradora que a estava matando. Olhou-a, olhou sua cabeça inclinada e seus ombros magros e trêmulos e o coração lhe partiu pela milésima vez. —Bria —disse. Ela tossiu, com um último golpe de tosse, áspero e entrecortado. Baixou o olhar até a parte de louça que tinha na mão e depois o deixou cair no lixo e se voltou. Estendeu a mão, mas não para ele. —Nory, veem aqui —disse em voz baixa. Suas filhas seguiam sentadas à mesa, presas na tensão que pulsava no ar, silenciosas em seu medo. A cara de Noreen ficou ainda mais pálida quando ficou em pé bruscamente e foi até sua mãe. —Mamãe —disse. Bria colocou um par de peniques na mão da menina. —Leve sua irmã à loja de Pardon Hardy e compre uns doces de hortelã para as duas. Noreen lançou um olhar cheio de pânico a seu pai, mas não disse nada mais. Foi até a mesa e agarrou Merry pela mão. Shay esperou até que a porta se fechou atrás delas. —Vai me dá uma boa reprimenda? —disse esforçando-se por sorrir, sem obtê-lo.

Ela ficou olhando-o fixamente durante um tempo interminável e logo pareceu como se sua cara se desmoronasse, como se toda ela se desmoronasse e rodeou seu ventre com os braços, abraçando-se a ela e ao bebê. —Não voltará aqui nunca mais —disse e os ombros lhe tremiam tanto que Shay pensou que estava tossindo outra vez, mas logo compreendeu que estava chorando. —Bria, querida... Foi até ela e a atraiu para ele. Ela tentou aconchegar-se contra ele, enterrar a cara em seu peito, mas o bebê o impedia. —Nunca tinha tido uma amiga antes — a ouviu dizer entre soluços—. Não o entende... É algo muito estranho chegar a alguém e que alguém te chegue dessa maneira. Ele compreendeu e essa compreensão lhe causou tanta dor que foi como se tivesse tentado engolir uma faca e lhe tivesse ficado presa na garganta. Tinha querido acreditar que ele era tudo o que ela necessitava, quão único necessitaria. E antes, possivelmente fosse verdade. Mas teria que responder a essa necessidade, satisfazê-la e ele sempre tinha sabido, em um pequeno canto escuro e profundo de seu coração, que lhe tinha falhado nesse aspecto. Que por muito que a amava, não a amava o suficiente. Passou-lhe as mãos por cima da inclinada curva das costas, uma e outra vez. Já mal restava carne, só uns ossos frágeis e fracos e ele não podia suportálo. «Deus, Deus, estava morrendo. Estava-a perdendo, perdendo... tinha-a perdido.» —Essa Emma Tremayne não é nenhuma covarde — disse, salvando o obstáculo da ferida, da faca de sua garganta—, assim voltará, se quiser. E então saberá, com segurança, até que ponto quer ser uma verdadeira amiga tua. Ela se inclinou para trás, sem sair do círculo de seus braços, para olhá-lo à cara. Suas bochechas tinham as rosas da morte e seus olhos eram negros lagos de dor e perda... Perdia-a, estava-a perdendo.

—Não acha que vá sair nada bom disto, verdade? —perguntou ela. Alisou-lhe o cabelo, afastando-os da cara molhada. Sempre tinha tido o cabelo mais bonito que todas as mulheres que tinha conhecido. Um cabelo irlandês, aceso e temperamental e tão vermelho como o sol quando saía por cima dos telhados de palha de Gortadoo. Baixou a cabeça e falou afundando a cara em seus cabelos, roçando sua suavidade com os lábios. —Nada bom absolutamente. Mas talvez seja porque sempre entendi que os milagres vêm de Deus, enquanto que você, meu amor, entende que vêm de nós mesmos.

Capítulo Dezesseis O céu de finais de maio se voltou mais azul e a erva das restingas crescia grossa e verde e Emma Tremayne voltou para a casa da Rua Thames. Não sabia se era o orgulho o que a empurrava a voltar ou a falta de orgulho o que impedia que se mantivesse afastada dali. Voltou porque parecia que não tinha outra escolha ou porque podia escolher algo que quisesse. Não pôde decidi-lo. Escolha. A ideia de poder escolher tinha, agora, um enorme interesse para ela. A forma como as pessoas viviam e o que escolhiam e por que. Estavam às coisas que não se faziam e as coisas que um fazia de todos os modos. Estava começando a compreender que o coração humano não o regia nada. Só ele mesmo. Uma noite, na casa dos Patterson, disse a Geoffrey: —Por que você contrata principalmente crianças pequenas para que trabalhem em suas fábricas? Ele ficou desconcertado — Emma supunha que pelo fato de que tirasse uma coisa desagradável enquanto tomavam seus coquetéis de champanha e brandy—, mas lhe respondeu com bastante rapidez. —Porque têm dedos menores e podem apanhar os fios que se afrouxam com mais rapidez. Uma vez trabalhei todo um turno em uma fiação circular. Não é tão fácil de dirigir como a gente poderia pensar. Não sabia que tivesse feito uma coisa assim; encarregar-se, embora só fosse por um único dia, das tarefas de um de seus operários mais humildes. Pensou que isso mostrava que deviam lhe importar e pensá-lo quase lhe impediu de dizer o que ia dizer.

—Mas, não é obrigado a pagar uma criança tanto como pagaria a um homem adulto, não é assim, Geoffrey? Seu sorriso se apagou um pouco, aquele sorriso que ela pensava que gostava. —Há coisas como as perdas, lucros e os resultados finais, minha adorada Emma. Tenho que ganhar a vida. Nossa vida. —Mas eles também. E... —Emma. —A voz de sua mãe atravessou toda a longitude do salão—. A senhora Patterson quer saber se você e o senhor Alcott estão planejando passar a lua de mel em Paris ou em Viena. Mais tarde, quando estavam de volta em As Bétulas, sua mãe disse: —Tornaste-te muito atrevida com suas perguntas, Emma. Quantas vezes mais tenho que te recordar que é melhor não dizer nada absolutamente que dizer algo equivocado? E o olhar acossado e preocupado que viu oculto no mais profundo dos olhos de sua mãe recordou a Emma que viviam em um mundo que desalentava as perguntas e as escolhas de todo tipo.

À tarde seguinte, enquanto jogava whist com as irmãs Carter, a senhorita Carter disse: —Não veremos nossa querida senhora Oliver em sociedade durante um bom tempo. —Por que não? —perguntou Emma, já esquecendo que lhe haviam dito que não fizesse perguntas tão atrevidas. A senhora Oliver estava recém-casada e Emma também tinha interesse nos recém-casados. —Porque vai estar indisposta — disse a senhorita Carter. —Durante sete meses — disse a senhorita Liluth com uma risadinha apagada. —Liluth! —exclamou a senhorita Carter—. Que vergonha!

—Emma — lhe disse sua mãe—, esqueceste-te que os corações são trunfos? Quando a partida de whist terminou, Emma disse a sua mãe que ia navegar no Saveiro, mas foi à casa da Rua Thames. Bria tinha a porta aberta, para que entrasse o sol de maio e Emma a encontrou sentada na cadeira de balanço, cerzindo uma das enormes meias três quartos de seu homem. Suas mãos descansavam em cima de seu ventre redondo e protuberante enquanto trabalhava. Emma pensou que Bria McKenna ia a todas as partes —embora possivelmente não aos melhores lugares— com sua gravidez bem à vista. Levava ao menino em seu seio como uma carga, não de vergonha, mas sim de glória. Bria levantou o olhar quando a sombra de Emma interrompeu a luz. Seus lábios, que começavam a sorrir, abriram-se mais com um pequeno gemido de assombro. Olhou seu ventre. Emma podia ver, inclusive da porta, que dançava, literalmente, pela força dos chutes do bebê. —Ai! Fará sua aparição neste mundo qualquer dia, mas não no momento — disse Bria e as palavras lhe saíam da boca entrecortadas e alegres—. E é filho de seu pai, tão seguro quanto estou sentada aqui sofrendo suas surras. Emma se aproximou e se ajoelhou a seus pés. Estendeu a mão e a deixou imóvel por cima da trêmula barriga de Bria. —Posso?—disse. Sorrindo e ofegando ao mesmo tempo, Bria lhe agarrou a mão e a pôs sobre aquele batimento do coração cheio de vida que havia dentro dela. —Meu Deus! —exclamou Emma—. É muito forte. —Claro, um rapazinho irlandês valente e musculoso, isso será. Mas então um soluço se rompeu na garganta de Bria e começou a chorar com tanta força que Emma mal entendia o que estava dizendo. Só que não era provável que seu valente e musculoso rapazinho irlandês pusesse os olhos,

verdes como o trevo, nas verdes colinas da Irlanda, varridas pela chuva. —Olhe, não preste atenção em mim — disse Bria, enquanto engolia um último soluço e esfregava a cara com a manga da blusa—. Quando tenho medo, ponho-me a chorar. —Não tenha medo — disse Emma—. O pequeno ficará bem. Não disse que ela também ficaria bem, porque aquilo era uma mentira muito óbvia. Talvez também o outro fosse mentira. Perguntou-se se um bebê podia contagiar-se da enfermidade de sua mãe durante a gravidez. Antes, Emma se perguntava se ela também podia contagiar-se indo a aquela casa, pensava-o tanto que tinha medo, embora se negasse a deixar que isso lhe impedisse de ir. Agora, nem sequer pensou nisso quando se inclinou para Bria e lhe rodeou a cintura com os braços e Bria se inclinou para frente na cadeira de balanço e apoiou o queixo na cabeça de Emma. Era uma postura incômoda, mas de algum jeito reconfortava às duas. —Por que partiu da Irlanda, se a amava tanto? — perguntou e notou como Bria ficava rígida sob suas mãos. Sentou-se sobre os calcanhares e levantou a vista. O sol que entrava pela porta aberta incendiava o cabelo de Bria. —Me perdoe — disse Emma—. Já o perguntei outra vez. Não é que queira ser indiscreta. Mas sim que queria sê-lo. Queria abrir o mundo que havia dentro daquela cozinha, aquela cabana em cima da água, abrir o mundo de Bria, como se fosse à casca de uma noz e provar a carne que havia dentro. Bria tinha pegado a meia três quartos que estava cerzindo e agora a esfregava nervosamente entre as palmas das mãos. —Na Irlanda, as garotas não são tão modernas como aqui, que se casam quando tem vontade. Na Irlanda, temos casamenteiros e estava claro que ninguém ia me querer, sendo como era que não tinha nenhum dote nem esperanças de tê-lo. —Bria respirou fundo, com um fôlego entrecortado,

enquanto seu olhar voava ao passado—. Mas eu queria Shay McKenna, sabe? Estava louca por ele. Então me propus consegui-lo da maneira que todas as garotas que quiseram um menino o conseguiram desde que o mundo é mundo. Ele ia ser sacerdote e, em troca, aos dezesseis se encontra com uma esposa e um menino a caminho e só um barco e algumas redes para ganhar a vida. Sacerdote pensou Emma. Aquele homem, aquele homem... aquele homem esteve a ponto de ser sacerdote e, ao pensá-lo, quase se pôs a rir. Mas logo algo lhe encolheu o coração, algo que doía e lhe produzia uma curiosa sensação de desfeita. —Queria ser sacerdote — dizia Bria—, e eu o roubei de Deus, o que é um pecado mortal, certamente. Mas não chega a ser um pecado tão horrível como roubar-lhe a ele mesmo, lhe roubar o que podia ter sido. —Bria... —Emma estendeu a mão para tocar a sua, retirou-a e logo o fez, depois de tudo. Bria soltou a meia e seus dedos se curvaram, enlaçando-se—. Não conheço o senhor McKenna muito bem —disse Emma—, mas um completo estranho veria em um instante que a ama com desespero. Os olhos de Bria se encheram de lágrimas e os lábios lhe tremeram com um sorriso triste. —Sempre tinha tido uns sonhos tão grandes, inclusive quando menino. Enquanto que os meus eram pequenos, coisas comuns: um homem que pudesse chamar de meu, filhos que criar alegres e fortes, possivelmente uma casa e uns campos de batatas. Sempre que chegavam os problemas, eu não queria lutar contra eles. Só queria que se acabassem. Emma lhe apertou a mão, compreensiva e Bria ficou silenciosa e logo engoliu saliva como se estivesse engolindo uma rocha. —Direi-lhe o que aconteceu — disse—. Dentro de um momento. —Não há necessidade, Bria. Nenhuma necessidade, de verdade. —Sim há, estou segura. Como você, eu também sinto o impulso de contar a alguém ha muito tempo.

O rosto que Bria voltou para Emma estava tingido, ao mesmo tempo, de uma força inquietante e uma terna inocência. —Já lhe contei que a mãe de Shay morreu e que a fé morreu em seu coração o dia que a enterrou. O que não lhe disse é que, quando a fé desapareceu, um enorme ódio chegou para ocupar seu lugar... Depois daquilo se uniu aos Land Leaguers, e aos fenianos, um grupo de rebeldes violentos que acossavam e aterrorizavam aos proprietários de terras e a seus agentes, chegando a matá-los quando se apresentava a ocasião. Durante oito anos esperou a oportunidade de acabar com o administrador que tinha empurrado a sua mãe para afogar-se. Ao menos, eu acredito que foi Shay quem cometeu aquele assassinato a sangue frio. Ele nunca o admitiu e essa é uma das coisas que nunca lhe perguntarei. Mas, de todos os modos, o magistrado tinha uma ordem que dizia que ele o tinha feito. Agarrava com tanta força a mão de Emma que lhe afundava a carne até o osso, mas Emma não dizia nada. Mal podia respirar, devido às dolorosas e violentas sacudidas de seu coração. - Shay estava fora no barco quando o magistrado foi buscá-lo. Sir Michael Barnes tinha entrado em Gortadoo montado em seu cavalo puro sangue baio, vestido com a casaca escarlate de chefe da caçada, como se só tivesse feito uma pausa naquela atividade mais importante para deter um vulgar criminoso irlandês. Entretanto, ia acompanhado por um destacamento dos Royal Irish Constabulary, com seus elegantes trajes verdes. Tinham advertido Bria um pouco antes, o tempo suficiente para esconder às meninas. Meteu-as na pocilga e as cobriu com o esterco úmido e fedorento. Fez-lhes jurar que, acontecesse o que acontecesse, ficariam escondidas e caladas. —O magistrado disse que Shay tinha que entregar-se e para assegurar-se de que recebesse a mensagem, o magistrado, ele... ele me violou. Deitou-me em cima do muro de pedra e me tomou como um cão, ali fora, onde todos os

vizinhos o pudessem ver... onde minhas filhas o pudessem ver. E seguramente que contariam a Shay. —Deus Santo, não —murmurou Emma. —Só que não tiveram que contar - seguiu dizendo Bria. Agora estava chorando, com umas lágrimas enormes e silenciosas que lhe caíam pelas bochechas—, porque chegou em casa a tempo de vê-lo, de ver o final. Tentou matar o homem que a murros e o teria feito se não tivessem estado ali os policiais para arrancar-lhe de cima. Supunha-se que o iriam levar a prisão de Kilmainham para julgá-lo, mas decidiram pendurá-lo ali mesmo, em Gortadoo, por tentar matar a um oficial da Coroa, disseram. Era a única árvore que havia em vinte milhas. Um teixo. —Oh, Bria... Emma notava a umidade das lágrimas em sua própria cara. Incorporouse, ajoelhando-se e rodeou as costas de Bria com o braço livre, sem lhe soltar a outra mão. Porque não ia deixar Bria; nunca a deixaria. —Obrigaram-me a presenciá-lo —disse Bria—. E às meninas... também lhes fizeram olhá-lo. Emma gemeu e a abraçou mais estreitamente. —Demorou muito tempo em morrer, meu Shay, estrangulando-se na corda. Quando meu irmão Donagh, baixou-o, cortando a corda, tinha a cara negra e a queimadura da maldita corda do enforcado ao redor do pescoço. Mas ainda ficava um fio de fôlego, só que eu então não sabia. Emma tentou sossegar o ruído de seu próprio pranto, apertando os lábios contra o ombro de Bria, mas não pôde e não tinha importância. Choraram juntas um momento e logo, lentamente, foram acalmando-se. —Não sei como o suportou — disse Emma, no meio do suave silêncio da cozinha. Bria encolheu os ombros e secou as bochechas com o dorso da mão livre. A outra seguia agarrada com força a de Emma. Tinha uma respiração difícil e

superficial, que era quase um ofego. —Suportei-o da única maneira que podia. Fiz-lhe um velório e o enterrei e não foi até que ele já estava em um navio rumo à América que meu irmão me disse que tinha enterrado um ataúde cheio de pedras em vez de meu homem. Donagh disse que tinham medo de que me notassem, de que não parecesse o bastante triste. —Uma risada rouca rasgou o peito de Bria—. Sofri durante três dias pensando que estava morto e chorei mares de tristeza para afogar o mundo inteiro e pode estar segura de que nunca o perdoarei a nenhum dos dois. — Respirou fundo, como se não houvesse suficiente ar no mundo—. Quando pensei que estava morto... ai, senhorita Tremayne, quando pensei que estava morto, quando o coloquei clandestinamente... não sabia que o coração e a alma pudessem doer assim e agora sou eu quem o está fazendo a ele. Agora será ele quem me enterra. Emma ficou com Bria até que as sombras que entravam pela porta aberta se estenderam e se voltaram púrpuras e as meninas voltaram da fábrica. E então foram todos aos subúrbios da cidade para pegar framboesas das matas que cresciam, silvestres, ao longo da estrada de Ferry. O sol começou a afundar-se na baía, convertendo-a em ouro fundido. A brisa trazia uma leveza flutuante, como de plumas. Bria cantava em voz baixa, enquanto ia pegando a fruta, se detendo de vez em quando para meter uma framboesa na boca. —«Se as donzelas soubessem cantar como os melros e os tordos...”. Quantos jovens se esconderiam nos arbustos...?» Sua canção foi apagando-se e olhou a seu redor. —Aonde foram essas meninas? Viu-as? Emma não respondeu, porque estava absorta olhando o rosto de Bria. Olhando a curva acentuada da maçã do rosto, a elevação da testa, o orgulhoso avanço do queixo. Tinha feito muitos esboços daquele rosto. Queria, com desespero, com avidez, tentar moldar aquela cara em barro, mas também tinha

medo de fazê-lo. Como se, no instante em que tentasse criá-la, tivesse que perdê-la. —Somos amigas, Bria? —perguntou, enquanto estavam ajoelhadas juntas ao lado da poeirenta estrada, entre fileiras de varas de ouro e cenouras silvestres, segurando as cestas entre as pernas e com o ácido sabor das framboesas vivo nos lábios. Bria se voltou para olhá-la. Emma viu que tinha a boca manchada de suco vermelho. —Se não somos amigas depois de tudo o que aconteceu entre nós, então, como nos chamaria? —Quero —disse Emma— inventar outro nome para o que somos. — Afastou o olhar e o dirigiu para a estrada que, cruzando o bosque, levava até ferry, onde sabia por experiência que os Snipes bicam pelas restingas e, às vezes, morrem—. Há muitas pessoas às que chamo amigos, mas sei que não o são. Estou começando a pensar que nada em minha vida é real. —O vestido esse que usa é realmente bonito, certamente. E realmente caro, também; não tenho nenhuma dúvida. O suspiro de Emma estava matizado de risada. —Estou atuando de uma maneira tola? —Sim. E também um pouco orgulhosa. —Justo, vê-o? Por isso a necessito em minha vida; para me manter humilde e sensata. Compartilharam um sorriso. Bria pegou uma framboesa do ramo e a aproximou dos lábios de Emma, que abriu a boca e a comeu. O fruto lhe explodiu na língua, quente e doce. —Sou sua amiga Emma — disse Bria, usando seu primeiro nome pela primeira vez, desde que tinham se conhecido. A cor de suas bochechas era intenso, lhes dando vida. Seu sorriso era real—. cheguei a querê-la de verdade. Emma sabia que sua cara revelava a força de tudo o que sentia.

—Eu sempre pensava que quando encontrasse uma amiga, uma verdadeira amiga, seria como descobrir a metade de mim mesma que faltava, mas estava equivocada. Uma verdadeira amiga não é sua outra metade, é toda você, toda sua alma. É o reflexo que vê no espelho. Emma levantou a mão, com a palma para cima e Bria fez o mesmo. Tocaram-se as pontas dos dedos, da mesma maneira como tocariam sua imagem em uma lâmina de cristal prateada. Então as duas piscaram e afastaram o olhar, como se, de repente, o reflexo do espelho as tivesse cegado. E as duas se deram conta de que as meninas vinham correndo para elas, como se algo as perseguissem. Merry cantarolava com tanta fúria que podiam ouvi-la de onde estavam, cantarolava com tanta força que parecia o zumbido das asas de um colibri. Então Noreen começou a gritar. —Papai está brigando!

As portas batentes do salão Crow's Nest se fecharam de repente a suas costas. No interior, era como uma cova, escuro, frio e úmido, carregado do aroma de cerveja e o penetrante aroma do uísque. Uma nuvem de fumaça de tabaco flutuava no ar, irritando os olhos de Emma. Nunca tinha estado dentro de um lugar onde se vendesse a beberagem do diabo. Alguns anos atrás, algumas filhas das Grandes Famílias se uniram à Sociedade Antialcoólica de Mulheres. Ajoelhavam-se no barro, sob a chuva, diante do Crow's Nest, suplicando, em voz muito alta, a Deus para que levasse a luz aos bêbados e repartindo fitas brancas como objetos de pureza contra as bebidas alcoólicas. É obvio, a Emma não tinham permitido tomar parte. Sua mãe desaprovava as exibições públicas de qualquer tipo, inclusive as que estavam justificadas. Emma não estava segura do que esperava, mas o primeiro que viu foi decepcionante por quão comum era. Um áspero balcão de madeira descansava em cima de uns barris empilhados e o chão estava coberto de serragem úmida e

gordurenta. No meio do balcão havia um caldeirão cheio de sopa de pescado, mas o salão não tinha mesas nem cadeiras, só gavetas e tamboretes e uns poucos bancos apoiados contra as ásperas paredes cheias de buracos. Nada de tudo aquilo parecia ter sido limpo desde tempos imemoriais. Havia alguns homens, bebendo de copos de lata e latas de tomate. Na parede, no fundo do bar, havia um letreiro que oferecia cerveja por três centavos, toda a que pudesse beber sem respirar. Emma leu o letreiro duas vezes, sem conseguir entender o que queria dizer, até que viu um homem deitado no chão debaixo de um dos barris, com uma mangueira de borracha que ia do barril até sua boca. O peito subia e baixava e sua garganta trabalhava a todo vapor, enquanto outro homem, com um longo avental de couro, permanecia junto a ele, com a mão na torneira do barril. Preparado para fechá-la, sem dúvida, assim que seu cliente respirasse. Quanto a Bria, mal tinha dedicado um olhar ao bar nem ao que oferecia. Dirigia-se para uma sala nos fundos. Gritos e assobios se transbordavam de trás de uma cortina de contas de vidro que cobria a entrada. E o ruído de golpes que soavam como uma lâmina de açougueiro cortando carne. Bloqueando o caminho, com suas longas pernas e largos ombros, estava um homem que usava o traje e o pescoço de um sacerdote. A Emma não tiveram que lhe dizer quem era. Os altivos ossos que davam força à cara de Bria convertiam seu irmão em um homem extraordinariamente bonito. Seu olhar foi de Bria para Emma e seus olhos se arregalaram. —Bria, no santo nome de Deus, o que... —... Está fazendo aqui, padre O'Reilly? —replicou-lhe Bria. Percorreu-o de cima abaixo com um olhar longo e furioso—. Que os Santos me protejam; por que não me surpreende? Não me diga que vieste ao Crow's Nest para dar ao poitín sua bênção e convertê-lo em água benta. —Venha, Bria. —Estendeu a mão e lhe afastou os cachos que sempre lhe grudavam no rosto—. Só está fazendo um pouco de treinamento. O saco de areia

está bem e serve, mas não devolve os golpes. O guri precisa suar um pouco. Bria lhe afastou a mão com brutalidade. —O guri necessita que lhe esquentem as orelhas e você também. — Empurrou-o dirigindo-se para a cortina de contas—. Se souber o que te convém, Donagh, saia do meu caminho. Na sala de trás, duas lanternas circulares lançavam arcos de uma luz fantasmal e vacilante através de uma grossa névoa azul de fumaça de tabaco. Um aglomerado de homens toscos e barulhentos e algumas mulheres empurravam e davam cotoveladas para conseguir um lugar junto a uma área que tinha sido rodeada com cordas para delimitar um quadrilátero ao redor de dois homens musculosos e ofegantes: Shay McKenna e um homem de orelhas avultadas e sobrancelhas escuras e grossas que se sobressaíam através de sua testa como, se, se tratasse de um ouriço. Os dois homens estavam nus até a cintura e sua carne mostrava os rastros de sua violência. O peito e os ombros tinham ampolas e estavam cruzados por vergões vermelhos levantados pelos golpes com os nódulos nus. O sangue brotava de um corte por cima do olho de Shay. O nariz de seu competidor estava torcido e de cor púrpura, como se fosse uma ameixa muito amadurecida. Emma afogou uma exclamação, tampando a boca com as mãos, mas Bria não emitiu nenhum som. Olhava a seu homem e sua cara, como sempre, mostrava seu amor por ele. Mas seus olhos estavam nublados com lembranças aterradoras. O preço que se pagava por amar a alguém, como Emma tinha compreendido aquele mesmo dia, podia ser terrível. Shay deve ter notado a súbita presença de sua mulher, porque lançou um rápido olhar para ela. Baixou a guarda um instante e o homem das sobrancelhas de ouriço lhe lançou um terrível golpe contra a mandíbula. A cabeça de Shay foi de repente para trás, com um estrondo que se ouviu enquanto cambaleava e caía sobre um joelho. Emma soltou um pequeno grito e tentou avançar, como se pudesse ajudá-

lo. Foi Bria quem a deteve, agarrando-a pelo braço. Mas Emma sentiu um leve tremor dentro da outra mulher. Recordou a dor na voz de Bria e em sua cara quando falou de ver como o golpeavam, até deixá-lo coberto de sangue, cada domingo do verão e voltou a pensar que amar a um homem, amar a alguns homens, podia ser muito duro. O homem que parecia atuar como árbitro se interpôs entre os combatentes, agitando um sino. O homem das sobrancelhas de ouriço retrocedeu até um canto do ringue e se sentou em um barril. Shay ficou ajoelhado um momento, com um braço apoiado na coxa e o peito tremendo, agitado, enquanto sacudia a cabeça e tragava ar a baforadas. Em seguida ficou em pé e foi ao seu próprio canto. O irmão de Bria estava ali para lhe dar uma toalha úmida. O sacerdote massageou os poderosos músculos das costas de Shay enquanto lhe murmurava palavras de ânimo à orelha. As narinas de Shay tremiam e o peito subia e descia com sua trabalhosa respiração. Tinha a pele coberta de suor e manchada de sangue. Tinha o olhar cravado em seu rival, ao outro lado do ringue, com os olhos lançando chamas. Pareceu que passava menos de um minuto antes que o árbitro aparecesse e fizesse soar o sino de novo, enquanto assinalava uma linha desenhada com giz no meio do ringue. Durante um momento, houve o suficiente silêncio para ouvir o rangido dos sapatos dos dois homens sobre o chão envernizado enquanto se aproximavam, lutando e cada um lançando rápidos golpes às costelas e ao estômago um do outro. Logo um enorme rugido brotou da massa, quando Shay lançou um tremendo golpe, furioso, contra a boca do homem das sobrancelhas de ouriço, que o enviou voando contra as cordas. O homem voltou a ficar de pé, sacudindo a cabeça, cuspindo saliva e sangue. Seus lábios, convertidos em mingau, abriram-se para soltar um grunhido enquanto se lançava contra Shay, sacudindo os punhos furiosamente. Mas Shay

o esquivou e escapou, evitando facilmente os golpes que o outro lançava ao azar. Shay lançou-lhe outro murro demolidor à boca. Brotou o sangue e a multidão gritou. Os músculos das costas e os ombros de Shay se flexionavam e inchavam enquanto enterrava uma série rápida de golpes no estômago de seu rival. Outro golpe, duro e forte, esta vez à orelha, e o homem cambaleou, com os braços débeis, e os joelhos dobrando-se. Os punhos de Shay martelavam agora como se fosse um ferreiro forjando uma peça de ferro. Martelavam e martelavam e martelavam, com os músculos impulsionando-os, golpeava, soprando, respirando com a boca aberta, com um ofego rápido e entrecortado. Lentamente, como se toda a força das pernas lhe tivesse abandonado, o homem caiu de joelhos. Pôs os olhos em branco e girou para um lado para cair no chão como se estivesse dormindo. Inclusive começou a roncar. E de pé, por cima do homem a quem tinha golpeado com tanta violência, Shay McKenna pareceu ficar completamente imóvel de repente. Moveu a cabeça, afastando o cabelo e o suor dos olhos. Procurou Bria com o olhar e lançou um sorriso branco e cheio de confiança para ela e, então, sua expressão se suavizou. E seus olhos, ao olhar a sua mulher, pareciam refulgir com um fogo interno que era desejo, necessidade e amor. Emma permaneceu imóvel, esperando que ele a visse, olhasse-a e então o fez e em sua cara não havia nada, absolutamente nada, mas não importava, não importava, por que... «Amava-o.» Fazia um instante que o mundo era muito brilhante e agudo, cheio de gritos e chiados e o penetrante aroma de suor e de sangue. Logo tudo se voltou distante, estranho e silencioso. Emma estava com as costas apoiada com força contra a rugosa parede de pinheiro, na sala dos fundos do salão Crow's Nest e não podia afastar os olhos dele. Bria, chorando, beijava as mãos machucadas, inchadas e cheias de sangue

de seu homem. O padre O'Reilly lhe esfregava o cabelo com uma toalha. Debaixo do corte, o olho começava a fechar-se pelo inchaço. Uma contusão lhe tingia de arroxeado a ponta do nariz. O homem do avental de couro ficou de pé em cima de um dos barris e anunciou que as bebidas corriam a cargo de Seamus McKenna, o grande campeão irlandês do boxe sem luvas. A sala começou a esvaziar-se, mas Emma não podia afastar-se da parede. Sentia os braços e as pernas pesados e fracos. Notava a garganta irritada, em sangue vivo, como se tivesse estado gritando, só que não tinha emitido nem um som. Apoiou as palmas das mãos na parede, como se pudesse empurrar-se para fora, empurrar-se fora de seu corpo. Queria estar longe dali, longe dela mesma, longe do pensamento que não deixava de dar voltas por seu interior, por cada parte de seu corpo. «Amava-o.» Olhou o bar, através da oscilante cortina de contas de vidro. Um homem tocava a gaita de fole. Outro dançava uma giga enquanto mantinha uma jarra de cerveja em equilíbrio sobre a cabeça. Por fim, deu um passo e logo outro e foi um alívio tremendo poder fazêlo. Passou através da cortina, fazendo tilintar as contas, e entrou no bar lotado. Um cotovelo lhe atingiu no estômago e alguém a pisou com uma bota com tachinhas. Um cuspe de tabaco passou lhe roçando a cara de caminho ao chão. Irritou-lhe vagamente que fosse tão difícil chegar aonde queria chegar. Mas ao chegar ali, às portas batentes de persiana que levavam a Rua Thames, deteve-se. Não tinha intenção de olhar ao redor para ver onde estava ele. A quem procurava era Bria. Mas Bria estava com ele. Claro, tinham que estar juntos. Estava sentado em um tamborete no meio do bar e o padre O'Reilly se sentava em um barril posto ao contrário, diante dele, rindo, excitado, golpeando o ar com seus punhos, revivendo o combate. Merry estava sentada escarranchada sobre o joelho de seu pai e Noreen se apoiava contra seu lado, dentro do círculo formado por seu braço direito. E Bria...

«Bria, Bria, sinto-o muito”. Não sabia que ia acontecer, nunca tive intenção de que acontecesse. Mas farei com que desapareça, não se preocupe. Dentro de um tempo, farei com que desapareça.» Bria estava de pé, atrás dele e ele se recostava contra ela, esfregando a cabeça contra a curva de seu ventre e ela tinha as mãos em seu cabelo. Emma afastou o olhar deles e olhou para o céu do entardecer, com farrapos de nuvens de uma intensa cor púrpura e se assombrou ao descobrir que o tempo não tinha deixado de avançar, que o mundo não tinha chegado a seu final. Pensou que para abandonar aquele lugar só tinha que sair pela porta. Mas abandonar o Crow's Nest, abandonar a cidade, abandonar o mundo não tinha nada a ver com o que tinha que abandonar. «Amava-o.»

Capítulo Dezessete Em seus sonhos, Maddie Tremayne estava sempre correndo. Sempre era verão em seus sonhos. Verão em uma praia de areia branca salpicada de ondas e espumas. Ah, como corria, corria a toda velocidade, esticando as pernas ao máximo, forçando os pulmões. Corria, corria e corria com o vento lhe alvoroçando o cabelo, os joelhos muito altos, impulsionando-a, a areia gotejando ao redor de seus tornozelos e as ondas rompendo em seus calcanhares. Corria até que pensava que possivelmente não tocava a praia, mas sim voava por cima dela. Mas, por muito que durassem seus sonhos, ao final, sempre se acabavam. E quando despertava, não importava a estação que fosse, sempre era inverno. Era inverno o dia que teve o acidente. Uma tormenta de granizo tinha soprado durante toda a noite, enchendo as bétulas com milhões de gotinhas de gelo, de forma que seus ramos tilintavam ao tocar-se, como se fossem pérolas que o vento movia. O porto estava congelado com ondas grossas e amarelas. E Willie se ofereceu para levá-la para andar de trenó. Sempre competiam por sua atenção, Emma e ela. Seu adorável e brincalhão irmão mais velho, com seus risonhos olhos azuis e suas vontades de brincar. Então, naquele dia de inverno, quando para desprezar Emma, porque tinham estado brigando por uma partida de xadrez, havia-o dito a Maddie: «Vamos, linda. “Pega o trenó e te empurrarei colina abaixo», ela pensou que acabavam de lhe oferecer o mundo. As campainhas das correntes soavam enquanto o trenó rangia na neve

quando subiram o Fort Hill. Uma vez, Lafayette tinha lutado contra as tropas inglesas ali. Agora as crianças de Bristol se deslizavam por suas ladeiras lisas e levantadas, rápidos como o vento sobre os patins do trenó, de madeira bem encerada, com as borlas de seus gorros de malha voando atrás deles. Mas aquele dia a neve da colina estava escorregadia, com uma casca de gelo e esculpida em montes de neves em alguns lugares. Havia sombras azuis e púrpuras nos terrenos baixos. Um sol invernal, aquoso, despertava reflexos nos carvalhos, brancos de geada, que rodeavam a pista dos trenós. Maddie olhou para baixo, à longa e pendente pista e sentiu um calafrio de medo. Willie tinha pensado que era um presente e agora ela não o queria. Mas não sabia como dizer-lhe. As palavras nunca saiam com facilidade, não entre nenhum deles. Rangeram-lhe os joelhos quando se sentou no trenó. Embora os levasse bem embutidos nas luvas de lã, notava os dedos rígidos e gelados. De repente, levantou-se uma rajada de vento. Os cristais de gelo giraram, cintilaram e brilharam no ar. Voltou á cabeça para trás para olhar seu irmão. Seu fôlego se deslocava através de nuvens finas em seu rosto e seu olhar estava perdido em algum lugar que só ele podia ver. Era algo que Willie estava acostumado a fazer; partia de qualquer lugar que estivesse e ia a algum lugar onde ninguém pudesse encontrálo. Teve que repetir seu nome duas vezes, teve que gritá-lo, antes que ele piscasse e a olhasse. —O que acontece? —perguntou impaciente com ela agora. Os dentes de Maddie tremiam e tinha os lábios tão azuis de frio que quase não podia falar. —Eu, não... não quero fazê-lo. A neve está muito dura e gelada. —Venha, não seja tão medrosa — disse com um gesto de desprezo nos lábios, com aquela atitude um pouco mesquinha, que às vezes tinha. Inclinou-se

e agarrou as tábuas laterais—. Vá, darei um bom empurrão e já verá como voa. —Nãooo! —uivou Maddie, mas ele já a tinha empurrado. Os patins de madeira saíram disparados pela neve gelada. Maddie chiou e procurou a corda para governar o trenó, mas não a encontrou. O vento lhe lançava agudas agulhas de gelo contra a cara e os olhos. O trenó baixava e oscilava por cima de sulcos e cristas, saindo da pista. Inclinou-se, tentando agarrar a barra do leme, mas lhe escorregaram as luvas pela polida madeira. Olhou para cima e viu árvores e rochas que surgiam de um torvelinho de brancura e se aproximavam voando em sua direção. Mas não chegou a ver a rocha contra a qual golpeou. Um instante voava através do mundo em um trenó e ao seguinte a parte frontal do trenó golpeava contra algo duro. O trenó saiu disparado para cima, catapultando-a como da ponta de um balancim. Deu voltas e mais voltas no ar e caiu de costas contra as rochas. Ficou ali, olhando o céu azul, cravejado de gelo, sem sentir nada. O vento soprava, fazendo soar os pedaços de gelo nas árvores. Observou como um se partia em pedaços e caía como lágrimas estreladas na neve. Logo as árvores se apagaram na névoa branca e esponjosa de um sonho. E em seus sonhos sempre estava correndo.

A primeira coisa que Maddie viu foi sua sombra, estendendo-se longa e magra sobre o brilhante chão de parquet. Estava na biblioteca, ela e sua cadeira, metidas no amplo mirante oval que dava ao jardim. Em uma tarde cálida de princípios do verão como aquela, quase podia imaginar que estava fora de verdade, nos extensos prados, correndo como um cervo selvagem entre as estátuas gregas e os vasos de pedra cheios de gerânios. As pesadas portas de nogueira da biblioteca se abriram com um fraco clique e ali estava ele, alto e esbelto, elegante em um fraque preto, com quatro botões e forrado de seda. A luz das luminárias, com suas telas de seda amarela,

davam um tom dourado a seu cabelo e projetavam sua sombra, alongada, diante dele. Maddie se encolheu na cadeira, esperando que não a visse escondida entre os livros e as cortinas de veludo de cor vinho. Desejou com todas as suas forças poder correr ainda. Mas ele sempre tinha tido muito boa visão. Seus olhos cinza como a água. —Por que te esconde aí dentro? —perguntou. Aproximou-se dela, movendo-se com a elegância de um predador que sempre tinha sido seu estilo. Voltava para casa, de vez em quando, desde a última caçada da temporada; entretanto, esta era a primeira visita que fazia As Bétulas. Maddie tinha estado desejando que viesse e desejando que não viesse e agora estava ali. Esperou que ele dissesse algo sobre a cadeira, sobre seu corpo inválido e sua vida destroçada, mas não o fez. A última vez que o tinha visto foi em uma festa no jardim da mansão da Rua Hope. Ela tinha doze anos naquele tempo e ainda podia correr. Também era filha de Bethel Tremayne e capaz de reconhecer uma cena vergonhosa quando a criavam diante de seus olhos. Stu Alcott, ébrio de brandy e coquetéis de champanha, tinha levado a escultura de gelo —um bote em forma de cisne, aquele verão— através da grama e em seguida a tinha jogado e se lançou dentro da fonte. Seu pai e seu irmão não disseram uma palavra; em realidade, atuaram como se não se dessem conta de suas más maneiras. Porque era melhor não fazer caso daquelas infrações da etiqueta, já que era melhor não prestar atenção às coisas desagradáveis. As recriminações chegariam mais tarde, em privado. Stu ficou no meio da fonte, com a água lhe lambendo as abas da levita e as calças xadrez. Com o cabelo jorrando, a cara branca e uma estranha expressão nos olhos que, pela primeira vez, tinha fixos nela. —Maddie —disse, e havia um tom desesperado em sua voz—, está

zangada comigo, verdade, Maddie? —Pois claro que estou zangada contigo Stuart Alcott —lhe gritou ela, sem compreender por que lhe perguntava uma coisa assim, por que parecia querer sua desaprovação—. É malvado e desagradável e te odeio. Os olhos lhe ardiam com lágrimas de vergonha, de vergonha e decepção. Sentia vergonha por ele, por sua conduta e decepção com ela mesma. Porque uma parte dela compreendia já que a classe de garota que ele um dia chegaria a amar se colocou na fonte com ele e Maddie Tremayne nunca ia ser essa classe de garota. Ao dia seguinte, o pai de Stuart fazia com que o levassem a força ao manicômio de Warren e esteve internado ali durante quase um ano. E quando o soltaram, não voltou para casa. Tinha dezenove anos, o ano em que caiu em desgraça. Então ela o considerava um homem, mas agora compreendia que, em muitos sentidos, era só um menino. Um menino pedindo a gritos que lhe prestassem atenção, tão desesperado para que alguém lhe desse atenção que inclusive procurava essa atenção em uma menina de doze anos. Agora levantou o olhar para ele. Era mais alto do que recordava, tinha o peito mais amplo e os ombros mais largos. O interesse tinha desaparecido de sua estreita cara, junto com a risada, mas o cinismo seguia ali. Deu-se conta de que não só o estava olhando fixamente, como também lhe devolvia o elogio. Baixou a vista à saia, onde enlaçou as mãos em um apertado punho. Sabia que agora ele a estava olhando por inteiro, a suas pernas mortas e à cadeira, mas não dizia nada. Quando, por fim, atreveu-se a olhá-lo de novo, não viu piedade em seus olhos. Só cansaço e uma terna cautela, que parecia esforçar-se muito em ocultar. —Bom, eu o estou fazendo — disse Maddie—, mas você também. Um sorriso deslumbrante lhe iluminou a cara. —De verdade? —Levantou as abas do fraque e se sentou no assento da

janela. Inclinando-se para trás, apoiou um braço no parapeito da janela e cruzou as pernas—. Esclareça-me, querida menina. Exatamente, o que estamos fazendo? E, por favor, me diga que nos diverte fazê-lo. —Escondemo-nos aqui. Ele fingiu sentir-se decepcionado. —Ah, isso... A questão é que parece que cometi os imperdoáveis pecados, não só de chegar tarde, a não ser, além disso, sem as luvas de cor cinza pérola exigida para assistir a um jantar. Levantou as mãos para lhe mostrar que não usava luvas. Mas, embora possivelmente as tivesse deixado de propósito, só para comportar-se mau, Maddie duvidava que as tivesse esquecido. —Geoffrey me olhava com uma expressão tão furiosa —seguiu dizendo— que não só estava pondo em perigo seus belos traços, mas sim meus ternos sentimentos também se sentiam feridos, assim... —Dedicou-lhe outro sorriso, cheio de maldade juvenil—. Aqui estou. —Aqui está — repetiu ela como um eco, tentando soar alegre e corajosa, tentando sorrir e sem dúvida lhe dando a impressão de que era uma parva patética. Assim aqui estava ele e aqui estava ela e aqui estavam todos juntos de novo. De todos eles, ela era a que mais tinha mudado. E Willie. Willie tinha mudado desaparecendo por completo. E quanto a Stu e Geoffrey... Desde meninos nunca se deram bem e não era provável que as coisas melhorassem entre eles agora que eram homens e que seu pai tinha deixado todo o dinheiro a Geoffrey. Tinha ouvido dizer que Stu não vivia na mansão da Rua Hope, a não ser no hotel Belvedere. O que Maddie recordava daquele lugar eram uns degraus de tijolo a ponto de derrubar-se e um par de portas verdes, envernizadas, que se curvavam, descascavam e cheiravam a cerveja passada. Mas possivelmente não o recordava bem. Agora nunca saía de casa. Ao princípio, não lhe permitiam

sair. Ainda não o permitiam, mas agora ela já não queria. —Bem — disse ele —, já tem satisfeito sua vulgar curiosidade. Agora é a minha vez. Ela se sobressaltou na cadeira, como se ele a tivesse despertado a bofetadas. Tinha deixado vagar seus pensamentos. Era algo que ultimamente parecia lhe acontecer cada vez com maior frequência. A branca gaze de seus sonhos se deslizava sobre seus olhos, às vezes, inclusive quando estava acordada. Deu-se conta de que o olhava fixamente, com os olhos muito abertos e piscando, como uma coruja apanhada em um feixe de luz. —Por que está aqui, escondida na biblioteca? —repetiu ele. Maddie agarrou as bordas da manta que lhe cobria as pernas. —Mamãe diz que minha cadeira de rodas chama a atenção, de uma forma indevida, sobre mim e minha desventurada aflição e envergonha a toda a família. —Levantou uma mão da saia e em seguida a deixou cair de novo, impotente—. Devido a isso, os convidados se sentem incômodos... Por ser parte de nosso próprio mal-estar, suponho. Em qualquer caso, não é aceitável. Stu parecia estranhamente tenso e calado e Maddie compreendeu que tinha cometido um erro social ao mencionar sua desventurada aflição. —Não é aceitável? —disse ele, e também sua voz estava tensa. O peitilho engomado da camisa rangeu quando se tornou para trás, para observá-la melhor—. Entretanto, eu não tive nenhum problema em receber um convite. Não cabe dúvida, então, de que, esta noite, terei que pôr a prova os limites de sua comodidade; e mais, agora se converteu em minha autêntica obrigação. Parece-me que me embebedarei como uma cuba, vomitarei no ponche e urinarei no piano. —E depois? —Depois o que? —Depois de que arruíne o jantar de mamãe fazendo com que seus

convidados se sintam incômodos, voltará a partir para longe? —Assim que possa tirar mais dinheiro de meu mesquinho irmão, claro que partirei. —Fez um gesto com a mão, agitando-a como se fosse à asa de um pássaro—. Longe, muito longe. Um movimento ao outro lado das janelas chamou a atenção de Maddie. Emma e Geoffrey passeavam juntos pelo atalho lajeado do jardim, agarrados pelo braço. A luz das portas da sala lhes iluminavam, como se fosse um banho de ouro. Em seguida, enquanto Maddie os olhava. Geoffrey agarrou a mão de Emma, desenlaçando-a de seu braço e se voltou, de forma que agora estavam cara a cara e ele sustentava a mão dela entre as suas. Tinha a cabeça inclinada para baixo, olhando-a e ela levantava a cara para ele e, embora o único que Maddie podia ver era o rosto oval branco de sua irmã, estava segura de que estava cheio de adoração. E, como sempre, estava incrivelmente bela. Uma ardente inveja encheu Maddie, corroendo-a como se fosse ácido. Queria, queria, queria... queria o rosto e as pernas de Emma. Sobre tudo as pernas de Emma, que podiam seguir passeando com um homem pelo jardim, em uma noite de verão, seguir dançando com ele no baile de compromisso e seguir percorrendo o corredor da igreja para reunir-se com ele no altar, o dia de seu casamento. Queria a vida que Emma teria; a mansão da Rua Hope, o marido muito amante e rico, a sociedade sem fôlego pela admiração e prostrada a seus pés. Não importava que quisesse muito a sua irmã, e a amava, de verdade. Mas seu carinho não impedia aquela inveja ardente, que a consumia. Queria tudo o que Emma tinha e não podia ter nada. Stu também havia virado a cara para olhá-los, a Emma e a seu irmão. Maddie se perguntou o que sentia ao vê-los juntos, tão cheios de felicidade em suas vidas perfeitas, se sentia inveja, resignação ou agrado. Mas então ele deixou de prestar atenção ao apaixonado casal e se voltou

para ela e, de repente, Maddie teve medo de que pudesse lhe ler seu coração, tão amargurado e enfermo. —Parecem feitos um para o outro, verdade? —disse, em voz um pouco alta, de forma que ressonou na sala forrada de madeira. Ele abriu os olhos, fingindo maravilhar-se. —Ah, mas estão loucos um pelo outro? —Querem-se, sem dúvida. —Ele a quer, ou isso diz, e pela primeira vez acredito. —Esta vez seu sorriso tinha um tom de nostalgia juvenil e os olhos de Maddie se encheram de lágrimas—. Em realidade, seu amor parece ser da variedade enlouquecedora, tão literal como figuradamente. Ficou calado um momento e em seguida encolheu os ombros com um gesto elegante. —E ela, ama-o desesperadamente, e apaixonadamente? Porque se não poder inspirar paixão na mulher pela qual está louco, então é mortal para os dois. Maddie pensou que não era tão mortal como possuir um corpo atrofiado e imprestável que quão único podia inspirar ao homem que amava era piedade. Ou possivelmente, se alguma vez lhe tinha importado, um pouco de pesar. Amontoaram-lhe as lágrimas nos olhos. Ocultou a cara e baixou o olhar até as pontas de suas sapatilhas de pelica que apareciam por debaixo da manta. Notou como aquela fina rede de bruma branca se fixava de novo em sua mente e esta vez se alegrou disso. Voltou a si com outro sobressalto quando ele se inclinou para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos, aproximando-se muito dela, de forma que suas caras quase se tocavam. —Usou algo? —perguntou. —Como diz? —Seus olhos não são mais que dois buracos negros, como se os tivessem

tragado. E não deixa de cabecear e te adormece. Inclinou-se ainda mais para ela, até estar tão perto que seu cabelo lhe roçou a cara. Cheirou. —Deus Santo, é hidrato de cloral. Suponho que esse curandeiro de seu tio Stanton lhe dá isso como se fossem caramelos. Maddie tentou afastar-se dele, mas estava imobilizada contra o respaldo da cadeira. —É o medicamento que tomo para a dor das pernas —disse, com voz fraca—. Faz com que soe como se... Não é nada mal. Ele cabeceou repetidamente. —Sei tudo sobre o hidrato de cloral, pequena Maddie. Davam-me isso quando estava no manicômio. —afastou-se um pouco dela, mas seguiu mantendo-a imobilizada com seu olhar afiado—. E é tal sua natureza que quando deixei aquele lugar me licenciei em sonhos mais finos e doces. Possivelmente a próxima vez que voltar a te visitar, trarei minha pipa e poderemos nos evadir, flutuando juntos, sobre nuvens de branco gozo. Maddie não estava segura do que falava, salvo que era, sem dúvida, algo perverso. Olhou-o, assustada, apaixonada. E então, só por um instante, viu um espaço nas sombras que se abatiam dentro do pálido cinza, inexpressivo, de seus olhos, e seu próprio coração se rasgou, mais uma vez, ao ver o que vivia dentro de Stu Alcott. A dor, o vazio e a derrota. Era o mesmo olhar que tinha visto nos olhos de Willie antes que se matasse, antes que ela o empurrasse ao suicídio. Porque nunca tinham podido falar em voz alta do que aconteceu aquele gelado dia de inverno tão horrível. Porque, embora nunca tivessem falado disso, Willie deve ter olhado dentro do coração de sua irmã e ver a feia verdade; que ela não podia lhe perdoar o que lhe tinha feito. Willie tinha partido, tinha-o perdido para sempre, mas Stu estava o bastante perto para tocá-lo e isso fez. Pôs-lhe a mão na coxa. Notou a dureza de

sua carne e seu calor masculino através do fino tecido da calça. —Por que é assim? O que aconteceu, Stu? —disse, sem estar segura do que lhe perguntava, duvidando se, realmente, não estava lhe perguntando o que tinha acontecido a ela, o que tinha acontecido a todos eles. Stu lhe cobriu a mão com a sua. Maddie notou que lhe tremia a mão, como se fosse algo que ela não pudesse controlar. Deu-lhe um suave apertão. —Caí, Maddie, igual a você. Caí e me machuquei, muito, muito. —Você... —As lágrimas chegaram por fim. Notava-as, como cálidas gotas de uma chuva de verão, rolando por suas bochechas—. Mas você poderia tentar fazer voltar atrás. Stu se levantou e começou a andar, passando por seu lado, mas se deteve junto à cadeira. Sua mão vacilou em cima de sua cabeça um momento, como se quisesse lhe tocar o cabelo e logo baixou e lhe roçou levemente, muito levemente, a bochecha com as pontas dos dedos. —Alguns de nós não podemos fazer voltar atrás — disse, tão baixo que ela mal o ouviu—. Alguns de nós não voltaremos a andar nunca.

O jantar daquela noite em As Bétulas era um acontecimento solene. Na mesa havia ponche romano, um centro feito com rosas jacqueminot e culantrillo e havia caramelos em cestas de prata entre os candelabros Jorge III. As surpresas da festa eram rosas de prata de lei da Tiffany. O cardápio estava impresso com letras douradas, dois serviços para cada prato. E aqueles aprimoramentos — ostras, perdiz, lagosta, frango assado com molho de alcaparras e soufflés de doze ovos— ia acompanhado de champanha White Seal e vinho engarrafado antes da Revolução Francesa. O festim se apresentava em uma mesa de banquete que pertenceu a um rei Tudor inglês, em uma sala com paredes de seda e colunas estriadas, embelezadas com pão de ouro. Uma enorme aranha de bronze pendurava de um teto enfeitado como um bolo de casamento.

A sala tinha uma única peculiaridade que todos os hóspedes, por deferência a anfitriã e as boas maneiras, tinham o cuidado de não mencionar. Em cima do suporte de nogueira negra pendurava um óleo que representava a casa da plantação que a família tinha em Cuba... a mesma casa onde agora vivia William Tremayne com sua amante Du jour. Isso quando não estava dando festas selvagens em seu iate. Poderiam ter substituído o quadro pela mulher nua de um bar que Geoffrey Alcott não teria se dado conta. Só tinha olhos para a mulher que ia ser sua esposa. Sua Emma nunca lhe tinha parecido tão bela nem distinguida como aquela noite e o enchia uma cálida sensação de propriedade enquanto observava como os olhares de outros homens a buscavam insistentemente. Esta noite estava especialmente bonita com seu vestido verde pálido, todo seda e renda, que deixava descoberto o pescoço e os ombros... e possivelmente um pouco mais dos seios do que ele teria permitido como marido. As outras mulheres da mesa foram carregadas de joias, mas ela só usava o anel de compromisso que lhe tinha dado. Cintilava em seu dedo, brilhante como uma estrela fugaz. Emma levou a taça de vinho aos lábios e ele observou como bebia. Contemplou-a enquanto inclinava para trás a cabeça, deixando descoberto seu pescoço, branco e impossivelmente longo, e os contornos nus de seus seios se elevavam enquanto engolia. Desejava-a. Deus, como a desejava. Com tanto desespero que, às vezes se esquecia de si mesmo quando estava sozinho com ela. Sempre parecia estar a ponto de assustá-la com seus beijos, mas isso era de esperar. Um homem devia saber que o desejo e a paixão de sua esposa nunca seriam tão fortes como os dele. Olhou-a de novo, a sua Emma, e esta vez seus olhares se encontraram através da mesa. Geoffrey notou como seu sorriso se esticava um pouco. Os olhos de Emma pareciam mais insondáveis que nunca, esta noite, como mares

escuros e agitados. Sempre lhe preocupava quando ela estava assim, porque então não podia saber no que estava pensando. Não podia predizer o que faria ou diria, e por isso sempre sentia como se estivesse em desarmonia com ela, pensando negro quando ela queria dizer branco, ouvindo sim quando ela havia dito não. Amava-a tanto; não queria nada mais que fazê-la feliz. Mas ultimamente... ultimamente, tinha a terrível sensação de que sempre a decepcionava. Emma olhou como seu futuro esposo tomava seu consommé doublé do prato fundo de porcelana branca de Sèvres. Observava como se abriam seus lábios, franzindo-se um pouco, exatamente igual a quando a beijava. Tinha-a beijado antes, quando foram passear pelo jardim. Quando lhe rodeou a cintura com o braço e a estreitou com força contra ele e lhe cobriu os lábios com os seus e ela quis deixar de respirar, quis render-se. Queria acreditar, desesperadamente, que tinha tudo o que queria, que ele podia ser tudo o que ela queria. Que ele podia ser... outra pessoa. Shay. E Bria. Nunca deveria ter deixado que se separassem em sua mente, porque agora também estavam separados em seu coração. E agora estava destroçada e se sentia doente e afundada, cheia de um enorme desejo e uma culpa horrível, horrível. «Amo-o.» «Não o amarei.» Não podia permitir esse amor; era impossível e estava errado; trair assim à pessoa que mais lhe importava no mundo. Teria que permanecer longe, longe dele e então ninguém saberia. Seria seu segredo, outra dessas coisas das quais não podia falar nem pensar. Nem sequer sentir. Tinha passado quase uma semana desde que esteve na casa da Rua Thames. Nunca poderia voltar ali. Bria se sentiria ferida só por isso, mas, com o

tempo, decidiria que, ao final, Emma Trernayne se cansou de brincar de ser agradável. Porque como podia ir a Bria e lhe dizer: «Não posso estar perto de ti nunca mais, minha mais querida, minha única amiga, porque onde você está, também está Shay e me apaixonei por ele. “Estou apaixonada por seu marido»? Olhou de novo para Geoffrey Alcott, seu prometido. Esta noite estava impecavelmente vestido, como sempre. Seu fraque negro conseguia, de algum jeito, parecer singelo e, entretanto, evidentemente caro. As abotoaduras de pérolas negras do colete, combinando com os botões da camisa e a agulha da gravata era elegante, mas não atraíam uma atenção indevida. Fazia poucos minutos, tinha ouvido como sua mãe dizia a seu tio, o médico, que Geoffrey era tão sólido como os tijolos das fábricas que lhe pertenciam. Mas estava atuando injustamente, sabia, culpando Geoffrey por ser exatamente a classe de homem que se supunha que tinha que ser. Emma agarrou o vinho, viu o cenho de sua mãe e voltou a deixar a taça na mesa. As boas maneiras ditavam que tomasse dois sorvos por prato e só dois sorvos e era evidente que esta noite sua mãe os estava contando. Bethel estava tão incrustada de diamantes que refulgia branca como a Via Láctea. Anéis de diamantes, braceletes de diamantes, um broche tachonado de diamantes, uma tiara de diamantes. E o mais cintilante de tudo, um colar de diamantes de doze voltas que lhe caíam em cascata por cima do peito. Emma pensou com um matiz de cansada tristeza que possivelmente sua mãe confiava que todo aquele brilho deslumbrante ocultasse quão vazios tinham deixado na família os que tinham fugido. Ou os que se viram forçados a ficar longe. Mas sua mãe sempre cumpriria com seu dever, por muito que lhe doesse, por muito que lhe custasse. Emma tinha ouvido como a avó de Geoffrey sussurrava à senhora Longworth que o dever estava conservando Bethel Tremayne, como se fosse uma cavala em sal e que o mais provável é que os sobrevivesse a todos.

Emma sabia que seu próprio dever era casar-se bem, casar-se com alguém de dinheiro, para ser a classe de esposa que um cavalheiro sólido como os tijolos, como Geoffrey Alcott, sente-se orgulhoso de levar pelo braço. Para ter com ele a classe de vida que se esperava que tivesse. Agora ouvia como Geoffrey dizia, com sua voz grave e baixa, ao homem sentado a seu lado, que passaria o verão em Maine, construindo uma fundição. O havia dito? Não se lembrava. Ao longo da primavera, tinha descoberto que podiam estar na mesma sala durante horas e horas, ela e Geoffrey, sem trocar uma palavra. É obvio, em sociedade, ninguém fala com seu prometido nem com seu marido. É como rir de suas próprias piadas ou bocejar na igreja ou olhar fixamente aos estranhos... Simplesmente, não se faz. Viveriam na mesma casa, ela e Geoffrey. Iriam a jantares e festas nos jardins e à igreja cada domingo e nunca falariam das coisas que realmente importavam. Ela o observaria atentamente, mas em silêncio, para ver que opções tomava, porque o que ele escolhesse decidiria a totalidade de sua vida. Ele daria por certo que ela estaria satisfeita com o que ele escolhesse, enquanto a mantivesse adequadamente enfeitada com trajes da Worth e joias de Fabergé. E assim ela estaria em um carrossel resplandecente, dando voltas e mais voltas, incapaz de baixar-se e, entretanto, não indo a nenhuma parte e, entretanto sabendo, sempre, aonde iria sua vida. Ninguém esperaria que estivessem apaixonadamente apaixonados, ela e Geoffrey. Isso, simplesmente, não se fazia.

Capítulo Dezoito Os sapatos de Bria fizeram ranger a areia pizarrosa enquanto caminhava pela praia. Era uma agradável noite de maio e soprava uma brisa suave e cálida. Mas não era o bastante forte para afogar sua própria e trabalhosa respiração. Levava uma hora caminhando, acima e abaixo, por sua pequena parte do mundo. De vez em quando, detinha-se e olhava, através do porto, para ponta Poppasquash. Esta noite, a casa dourada resplandecia, brilhantemente iluminada. Parecia-lhe incrível pensar que Emma estava naquele lugar, dançando em um salão de baile dourado, com diamantes em seu cabelo. A Emma que ela conhecia, a que tinha cozido os lençóis com ela e pego framboesas. A que tinha falado de reflexos do coração e lhe havia segurado a mão enquanto chorava. Não a via há uma semana e se perguntava por que razão. Mas, claro, Emma tinha outra vida, sua vida real, como gostava de chamá-la. Uma vida de deveres e obrigações sociais. De bailes em salões dourados, com diamantes no cabelo. Era só que... que gostaria que Emma estivesse ali, com ela, naquele momento. Para segurar sua mão se começasse a chorar. Logo que pensou isto, as dores voltaram de novo, apoderando-se da parte inferior das costas e estendendo-se ao ventre. Deteve-se com a respiração ofegante. Chegaria essa noite, seu filho. Este filho. Bria pensou em quão estranho era que o ato de amor e da paixão, da violação e da prostituição, todos eles, pudessem acabar igual, com um

bebê que crescia grande e cheio de vida em seu ventre. Depois que o magistrado a violou como um cão, dobrada contra um muro de pedra, foi em peregrinação à capela da Slea Head. Ali bebeu água do poço sagrado e rezou, suplicando a Deus que a fizesse sangrar. Fez-o durante três dias e, ao terceiro, sangrou e assim soube que não haveria nenhuma criança, produto da violação. Aquela vez. Agora, três anos depois, rezava, pedindo outra coisa. Rogava a Deus que desse a esse menino que levava em seu seio, o cabelo negro e os olhos verdes de seu pai... que possivelmente não era seu pai. Seu pai —o homem que possivelmente era seu pai— tinha o cabelo loiro e os olhos cinza. Isso o recordava, mas nada do resto da cara. Sempre que tentava imaginar sua cara, quão único via era o rosto de um palhaço, com seus lábios brancos sorridentes. A cara de um palhaço, pendurada de uma porta do Castle Garden. Castle Garden, o lugar por onde os imigrantes entravam em Nova Iorque, na América. Que sopa de aromas. As especiarias do embutido de alho que saía da bolsa de malha de uma anciã. O doce aroma do leite de uma mãe que dava o peito a seu filho. A peste de um menino pequeno com as fraldas sujas. E que tumulto de ruídos. Timbre, apitos e buzinas. Gritos de raiva, de medo, de alegria, tudo em uma Babel de línguas. Tudo atravessando as vigas abertas do enorme forte redondo, de pedra. E por toda parte, havia homens com trajes de sarja azul, empurrando-os e fazendo-os formar filas. Tantas filas e tantas perguntas. De onde é? Aonde vai? Tem família aqui? Tem trabalho aqui? Ela se sentia confiante porque tinha todas as respostas corretas. Tinha um marido e um irmão que já eram americanos e uma casa esperando-a em um lugar chamado Bristol, Rhode Island. Durante dois anos seu marido trabalhou nos campos de cebolas e logo, fazia um mês, enviou-lhe um bilhete americano, um papel com uma águia que era o mesmo que o dinheiro e ela o usou para pagar a

passagem de navio, para ela e suas duas filhas, e agora estavam aqui. Na América. Bria começava a sentir-se segura com todas suas respostas corretas, até que ficou na fila para o exame médico. Os médicos davam pequenos golpes no peito das pessoas e lhes escutavam o peito com uns instrumentos que tinham umas pequenas trompetas de metal que metiam na orelha e uns tubos de borracha. Faziam com que as mulheres abrissem os xales e os vestidos e, embora algumas mulheres se sentiam coibidas e outras mortificadas, a todas as obrigavam a fazê-lo. A fila era longa como a eternidade. Estavam todos parados, de pé, arrastavam os pés, um pouco, para diante e logo se detinham outra vez. Noreen ia agarrada a mão de Bria, apertando-lhe tão forte que lhe doía até o osso. Merry tinha o punho obstinado à saia de sua mãe. Cantarolava constantemente, com um zumbido agudo, cheio de inquietação. Finalmente, aproximaram-se o suficiente ao princípio da fila para ver melhor o que acontecia. Os médicos estavam examinando a uma família que alguém disse que vinha da Rússia. As mulheres estavam envoltas em longos xales com franjas e levavam lenços atados à cabeça. Os homens vestiam coletes adornados com tranças e grampeados com enormes alamares. A uma das mulheres lhe escreveram um E com giz no ombro. Parecia ter chamado à atenção de um dos médicos. De repente, a mulher soltou um forte gemido e começou a chorar, retorcendo as mãos e puxando sua roupa. Uns sussurros horrorizados percorreram a fila, em uma voragem de línguas. «Estão rechaçando-a...”. É cega... “É uma indesejável...» O medo lhe oprimiu o estômago com tanta força que quase lhe fez vomitar. Escutariam-lhe o peito e ouviriam o pântano que havia dentro de seus pulmões e a rechaçariam, declarariam-na indesejável. Arrancariam a suas filhas dos braços e voltariam a metê-la em um navio, de volta a Irlanda, ela e Shay

ficariam separados para sempre e ela morreria sozinha. Estava enjoada e meio cega de medo, quando lhe chegou à vez. Quando um dos médicos lhe examinou os olhos para ver se tinha alguma enfermidade, lhe voltando às pálpebras do reverso —algo que doía horrivelmente— Bria estava segura de que diria: «Rechaçada, rechaçada...». E então ele agarrou aquele instrumento para escutar o peito. —Desabotoe o sutiã. A camisa, a anágua e o espartilho, se o levar - disse com a voz mais gelada que ela já tinha ouvido. Às outras mulheres não tinham pedido que abrissem a roupa interior e pensou que isso significava que já suspeitavam que tinha a enfermidade que a consome. Da mesma maneira que tinham suspeitado que a outra mulher era cega. As mãos de Bria tremiam tanto que mal conseguia desfazer os colchetes e as cintas. Mas o homem não lhe pôs o instrumento no peito, pôs-lhe a mão. Passou os nódulos por debaixo das luas redondas e inclinadas de seus seios, seguindo sua forma. Bria levantou o olhar e viu o que ele queria, inclusive antes que falasse. —É verdade o que dizem de vocês, as garotas irlandesas — disse. O instrumento para escutar o peito lhe pendurava da outra mão, com a trompeta oscilando como um pêndulo, para frente e para trás, para frente e para trás —, que têm um fogo no ventre igual ao fogo de sua cabeça? Bria ouvia sua própria respiração, estralando, úmida e espessa em sua garganta. Tossiu, com uma tosse forte e convulsiva, que soou horrível inclusive a seus próprios ouvidos. A trompeta de metal voltou a oscilar, para frente e para trás —Tem tuberculose? Disse-o em tom de pergunta, mas era uma acusação. Bria desabotoou outro botão da camisa e se voltou ligeiramente para que o peito enchesse a totalidade da palma da mão do médico. Mas quando o

mamilo se esticou e endureceu ao contato com seus dedos, estremeceu e se separou dele. Ele suspirou e deixou cair à mão junto ao flanco. —A tísica é uma enfermidade contagiosa — disse—. Espera-se que se faça relatório de todos os casos de enfermidades contagiosas ao Departamento de Sanidade. É provável que a deportem. —Mas o que...? —A voz lhe quebrou, violentamente, enquanto lhe agarrava a mão e a punha de novo sobre o peito—. O que aconteceria se não informasse? —Veem comigo — disse ele, só isso, nada mais. Mas era tudo o que precisava dizer. —Minhas filhas — conseguiu lhe sussurrar, tão afogada de medo e vergonha que mal podia respirar. O médico se voltou para uma mulher que estava atrás de um mostrador, anotando coisas em um enorme registro de pele negra. Bria, com os olhos fixos no chão, só via os sapatos negros abotoados da mulher e a borda de sua saia de sarja azul marinho. —Senhorita Spencer — disse o médico—, esta mulher necessita um exame mais a fundo. Dê a suas duas pequenas irlandesas um pirulito de caramelo de hortelã e ocupe-se de que não se movam daqui. Bria o seguiu a uma pequena estadia lotada de mesas e gavetas de madeira, mas sem ninguém. Voltou-se e olhou a porta aberta, desejando sair correndo e sabendo que não ia fazê-lo. Olhou para fora, à fila onde penteavam, procurando piolhos. Uma mulher, com o cabelo barbeado quase até o rosado couro cabeludo, com a cara vermelha de vergonha, esperava, tremendo com os olhos fechados e, enquanto Bria olhava, um homem levantou um balde de água sulfurosa e a verteu na cabeça da mulher. Uma mão tocou a nuca de Bria.

—Espero que se contagie — disse—. Espero que se apodreça com a enfermidade. Ele se pôs a rir. —Moça, o único com que pode me contagiar ao fodê-la é a sífilis. Riu outra vez e empurrou a porta, que se fechou com um fraco clique e a cara da imigrante foi substituída pela de um sorridente palhaço de lábios brancos que havia em um calendário de vodevil. Quando Bria saiu de novo por aquela porta, sabia que nunca falaria do que lhe tinham feito, por que ela tinha permitido que lhe fizessem. Nunca o diria a Shay, que já estava a ponto de desmoronar-se sob a carga da vergonha que sentia por tudo o que lhe tinha feito passar. E tampouco a Deus, cujo mandamento tinha desobedecido. Que uma mulher se deitasse com um homem que não era seu marido, fosse por dinheiro ou por um documento de imigração, aos olhos da Mãe Igreja era o mesmo. Bria McKenna representava o papel de uma puta. Bria segurava com força o documento quando ela e as meninas atravessaram a enorme entrada com colunas do Castle Garden e saíram às ruas, um formigueiro de gente, carrinhos de mão e carretas. Não sabia como ia encontrar Shay em meio daquela multidão e, de repente, pensou que tudo tinha sido para nada, seu pecado e sua vergonha. Que a espada do castigo de Deus, rápida e terrível, manteria-os afastados para sempre e não a deixariam que o encontrasse nesta América que tanto fez para entrar. Deu voltas, uma e outra vez, em círculos, enjoando-se, desejando chiar. Todo o tempo acreditava ouvir que alguém gritava seu nome, mas cada vez que se voltava naquela direção, quão único via eram caras de desconhecidos. Ao final, viu Donagh, com sua batina negra, destacando-se na colorida multidão. E de repente, também Shay estava ali e ela estava entre seus braços e o ouvia pronunciar seu nome, só seu nome, mas não soava a ele. A soga lhe tinha roubado sua bonita voz.

Sua boca se apertou com força contra a dela e, por um horrível momento, pensou que ia vomitar. Mas logo se agarrou a ele, com desespero e continuou agarrada a ele toda aquela primeira noite que passavam juntos depois de tanto tempo separados, como se nunca fosse deixá-lo ir. O contato com o médico tinha sido grosseiro, brusco e possessivo, enquanto que Shay era terno e generoso. Mas o final tinha sido os mesmo, ambos os homens tinham derramado sua semente dentro dela. E concebeu um filho o primeiro dia de sua chegada a América. Um filho que logo daria seu primeiro suspiro, ali na América. Bria reteve seu próprio fôlego quando outra dor lhe envolveu as costas e o ventre, apertando com força. Mas as dores não eram tão fortes como seriam mais tarde e ainda não seguiam uma pausa frequente. Ainda demoraria um pouco em nascer, o filho de Shay e dela. Entretanto, as dores eram o bastante fortes para obrigá-la a deter-se e apoiar-se contra um pilar do cais. Fechou os olhos, esfregando a região baixa das costas. Quando voltou a abrir os olhos, tinha diante a cara pálida de seu marido. —Shay —disse, ofegando um pouco—. O bebê já vem. —Sim, já vejo —sorriu e só havia um ligeiro tremor em seu sorriso—. Pensava, possivelmente, em me dizer isso dentro de pouco tempo? —Ora, ainda faltam horas. Passou-lhe o braço ao redor da cintura, suportando seu peso e começou a levá-la para casa. —Talvez sim, mas meu coração pulsaria com mais tranquilidade se estivesse dentro e segura em sua cama. Talvez seja o filho de um pescador, mas deixar cair ao pequenino aqui, na praia, é levar as coisas um pouco muito longe, não acha? O filho de um pescador. —Shay. —Agarrou-o com força pelo braço, puxando-o para que a

olhasse—. Prometa-me que quererá a este menino aconteça o que acontecer. —Bria... Pronunciou seu nome quase como um soluço, mas se controlou. Agarroulhe a cara com sua enorme mão, lhe roçando os lábios com os seus, com doçura, com ternura. Ela se apoiou nele, aconchegando a cara na curva de seu pescoço. Respirou junto a sua cálida pele, que cheirava a mar, sal e a esse aroma de homem que era exclusivamente dele. —Prometa-me - insistiu. Ele subiu a mão, enredando os dedos em seu cabelo, lhe jogando a cabeça para trás para que visse a promessa em seus olhos. —Quererei ao menino. Já o quero. —E fará outra coisa por mim? Ele inclinou a cabeça até apoiar a testa contra a dela, roçando o nariz com o seu. —É fantástica, de verdade que o é, acumulando todos os seus pedidos e logo os soltando como se não fosse nada, justo quando eu criaria asas de anjo e sairia voando até o céu para te trazer a lua, se me pedisse isso. —Pois vá, que aspecto teria com asas de anjo, Seamus McKenna; tem muito do diabo dentro de ti. Além disso, o que eu faria com a lua? Ele voltou a rir e a beijá-la com força na boca. —Quero-te, minha mulher. Começou a andar de novo, agarrando-a pelo braço, lentamente, porque estava tão enorme e torpe agora e a areia pizarrosa, úmida pela maré, deslizavase escorregadia debaixo de seus pés. Bria notou que chegava outra contração, uma espiral de dor que saía de algum lugar dentro, muito dentro, dela. —Então, irás procurar à senhorita Tremayne —disse— e a trará aqui para que esteja comigo no parto? O braço dele se esticou em torno de sua cintura e para surpresa dela, a

dor cedeu. —Não é um pouco muito importante para isso? —disse—. Para que te serviria? Não, a dor voltava, depois de tudo, e seria pior que antes. —É uma amiga muito especial. Esta noite, este é seu lugar, aqui, comigo. —Já... uma amiga tão especial que segue chamando-a senhorita Tremayne. A dor voltou, saindo dela, atravessando-a, forte e violenta como um furacão. Queria que Emma lhe sustentasse a mão, para poder conter as lágrimas. —Traga-a, Shay. Por favor... necessito-a.

Emma Tremayne saiu da sala de jantar sentindo que se afogava; como se acabasse de passar a noite trancada em um armário de roupa, asfixiada por metros e metros de seda, cetim e tafetá, que cheiravam tão forte a perfume rançoso e bolas de cânfora. Tinham deixado aos homens com seus charutos e seu brandy. As mulheres se retiravam à sala, onde seguiriam com suas conversações e Emma não acreditava poder suportá-lo mais. Mais tarde, quando os homens voltassem a reunir-se com elas, esperavase que ela tocasse o piano e cantasse um dueto amoroso com Geoffrey, embora ela não estava especialmente dotada para tocar nem para cantar; além disso, todo mundo a estaria olhando, todo o tempo, e tampouco acreditava poder suportá-lo. Emma se deteve, de repente, justo quando acabava de entrar na sala, incapaz de dar um passo mais, de respirar uma vez mais. Agarrou-se a saia de chiffon com tanta força que começou a tremer e as mãos se tornaram apertados punhos. —Emma, o que te passa? - A cara de sua mãe oscilava diante dela. Emma fechou os olhos e levou a mão à cara. —Sinto-me enjoada —disse, tentando soar débil e trêmula. Supunha-se

que as damas se sentiam enjoadas, em algumas ocasiões; evidenciava uma certa delicadeza de sua parte e animava aos homens a sentir-se protetores. Sua mãe sempre estava desmaiando—. Eu... parece-me que terei que me deitar um pouco. —Está bem, se não houver mais remédio. Não pode se arriscar a fazer uma cena —disse Bethel. Soava mal-humorada, mas, para alívio de Emma, não incrédula—. Desculparei-me em seu nome. —Obrigado, mamãe — disse Emma, permitindo que sua voz fosse se apagando, até converter-se em um suspiro. Deu meia volta e se obrigou a atravessar, lentamente, a porta, com seu marco forrado de veludo. Mas o que queria era pôr-se a correr. Estava na metade das escadas de carvalho quando começaram os golpes na porta. Girou sobre si mesmo, a ponto de cair. Agarrou-se, fortemente, ao corrimão com sua mão enluvada. Não tinha nenhuma razão para acreditar que fosse ele e, entretanto, sabia, sabia. Voltou a descer as escadas, mas lentamente, porque sentia as pernas tão rígidas como couro velho e o coração lhe pulsava, desbocado. Ficou olhando fixamente as enormes portas de ébano, um longo tempo, antes de abri-las de um puxão e então se encontrou olhando-o à cara, aos olhos, olhando-o a ele. Ao princípio, ele não disse nada e logo sua voz destroçada surgiu em um sussurro. —Minha mulher. —As palavras eram tão parecidas com um eco da outra noite, que quase ficou atônita ao ver, atrás dele, um céu espaçoso, cheio de estrelas—. Bria está em trabalho de parto e pediu que vá. Uma carga tão enorme de sentimentos inundou a Emma, que não podia mover-se nem pensar. Bria ia ter o menino. Bria tinha pedido que fosse, que ela fosse. Não importava que em altares da honra tivesse decidido manter-se afastada. Se Bria a necessitava, então iria. Aquela noite iria. Emma ouviu vozes procedentes da sala. Deu um passo para ele, fechando a porta atrás dela. A temperada brisa do mar lhe acariciou a pele nua. Ouviu

como o mar lambia as rochas da costa. O peito de Shay subia e baixava, ofegante. Cheirava forte a suor. —Meu Deus, está acontecendo agora? Veio correndo todo o caminho? —Claro o que estaria pensando eu, desgastando meus pobres sapatos, quando poderia ter vindo até aqui em meu carro com seus quatro baios iguais puxando-o e com a coroa dourada gravada nas portas? —arrancou o chapéu e afastou o cabelo com os dedos—. As piores dores acabam de começar, mas não está acostumado a levar muito tempo, assim, vem ou não? —Mas não teríamos que...? Meu tio está aqui. É médico e... Ele a agarrou pelo braço, justo por cima da borda da luva, com seu adorno de pérolas. Como se fosse para lhe impedir que desse a volta e voltasse para dentro, embora ela não se moveu. Sua mão era áspera e calosa. —Não, nada de médico — disse—. Bria tem um medo mortal dos médicos e não lhe convém desgostar-se. Não acreditará que eu teria vindo para procurá-la, se não fosse por isso, verdade, se não fosse para fazê-la feliz? — Soltou-a e deu um passo atrás—. Mas se não quiser incomodar-se em vir, então diga-o e partirei em seguida. —Espera que percorra correndo essas três milhas com você ou podemos pegar o carro? Entretanto, não tem uma coroa gravada, assim terá que descer de categoria. Pareceu-lhe que quase lhe sorria, que pensava em sorrir. —Ai, Dhia, que senhorita mais estranha que é você! Justo quando acredito que... — deteve-se e cabeceou—. Não vim correndo até aqui. Pedi a carroça de leite de Paddy O'Donahue. Espera-nos além das portas de seu castelo, senhorita Tremayne —disse e lhe ofereceu a mão. Ela pôs sua mão dentro da dele e desceram juntos os degraus da varanda. Não sabia que pudesse ser algo tão íntimo, ir agarrados pelas mãos. Que pudesse lhe fazer tremer e que seu coração pulsasse muito depressa e que perdesse por completo o fôlego.

Ao pé da escadaria, disse: —Poderá dar uma pequena corrida, apesar de tudo? E então começaram a correr, agarrados pela mão, pelo caminho de conchas calcadas e através da grade de ferro, até onde os esperava a carroça do leite. Cheirava a leite azedo e estava cheia de garrafas que estralavam dentro das caixas de metal, conforme avançavam, dando botes pela estrada. Shay conduzia de uma maneira temerária, desenfreada. Na escura intimidade da caminhonete, respirava seu aroma, embora tomava cuidado de não roçá-lo nem tocá-lo em modo algum. Pensava que ele devia ouvir que seu coração pulsava por ele, mas podia lhe ocultar todo o resto. Sua vida a tinha feito professora na arte de ocultar coisas. A carroça deu uma inclinação brusca ao dobrar a esquina para entrar na Rua Hope muito rápido. Emma se agarrou com força ao assento e o volumoso chiffon da saia de seu traje de noite sussurrou como a erva seca sob o vento. Perguntou-se o que normalmente precisava para ajudar em um parto. Alisou a saia, fazendo com que sussurrasse outra vez. Cruzou os braços sobre o peito, agarrando os cotovelos, sentindo frio, de repente. Ele se voltou para olhá-la e sua cara foi um raio branco ao passar junto à luz de uma luz. —Não terá que fazer nada, sabe? A parteira estará ali. A caminhonete bamboleou, as garrafas do leite tintilaram e o marido de Bria disse: —Durante duas semanas veio vê-la quase todo dia, tão regular como o cuco de um relógio. E logo desaparece. Acredita que ela não o notou? Emma voltou a tragar saliva e voltou a respirar. —Estive ocupada. —Vá, então esteve ocupada? Bria também esteve ocupada. Ocupada morrendo.

As lágrimas fluíram, ardentes e salgadas aos olhos de Emma. Voltou à cara, para ocultar-lhe, para a escuridão da noite. Mas quando ele se deteve frente à casa da Rua Thames, debaixo da luz torcida, estendeu o braço e lhe agarrou o queixo, lhe voltando à cara para a branca luz que saía de debaixo do globo quebrado da luz. Ela notava as lágrimas, úmidas nas bochechas; não tinha conseguido contê-las. Entretanto, ele não disse nada; só a olhou e logo a soltou e desceu de um salto da carroça. Ajudou-a a descer, sustentando-a pelo cotovelo, deu meia volta e se afastou dela pelo caminho, sem esperar para ver se o seguia. Noreen estava sentada na varanda, rodeando as pernas com os braços e os ombros encurvados. Ao ver seu pai, ficou em pé de um salto e, adiantando-se entrou correndo na casa, pela porta aberta. Emma ficou onde estava, entre as violetas que ela e Bria tinham plantado. Sentia-se desarticulada por toda parte, como uma marionete pendurando, flácida, de seus fios. Ouviu um forte cantarolo que vinha de detrás da caminhonete e se voltou. Merry saiu engatinhando de entre as grandes rodas traseiras. Ficou sob a luz, dentro do círculo de sua crua luz, com o olhar cravado em Emma e os olhos muito abertos e solenes. —Mamãe precisa de você — disse, e Emma custou uns segundos a dar-se conta de que a menina tinha pronunciado, de verdade, aquelas palavras reais. Emma recolheu a saia de seda de chiffon de seu traje de noite e se ajoelhou, reclinando-se para trás sobre os calcanhares, para que estivessem à mesma altura. Notava a língua espessa e insegura. Acabava de passar umas longas horas dedicada a um bate-papo insustancial. E agora, quando importava tanto, parecia haver ficado sem palavras, inclusive sem fôlego para dizê-las. Toda sua vida tinha tido tantas dificuldades com as palavras; as encontrando e as perdendo; fazendo provisão delas e as desperdiçando. —Por isso estou aqui — disse, finalmente—; embora não sei se vou

servir de muita ajuda. Poderia colocar tudo o que sei de dar a luz em um dedal e ainda ficaria lugar para o dedo. A risada de Merry soou alegre e pura. Aproximou-se saltando até Emma e a agarrou pela mão. —Agora temos que entrar em casa, porque o bebê está a ponto de chegar. Noreen diz que as fadas vão trazê-lo, mas é uma tolice. Sairá da barriga de mamãe, de entre suas pernas. Puxou a mão de Emma, ajudando-a a levantar-se e, quando esteve de pé, agarrou-lhe as mãos entre as suas e começou a balançar os braços para frente e para trás. Tinha as mãos suadas e pegajosas, necessitadas de uma boa lavagem. Emma se disse: «Posso fazer isso, posso lavar as mãos de uma menina pequena». Ao pensá-lo, inundou-a uma sensação cálida, fugaz; era algo que lhe resultava pouco familiar. Uma sensação de prazer, de ser necessária. Merry deixou de balançar os braços e levantou os olhos para ela. —Não deve nos deixar nunca mais. Emma não sabia que estava chorando até que notou a umidade das lágrimas nas pálpebras. —Não, eu... não o farei. Merry lhe soltou a mão e pôs-se a correr pelo atalho. Saltou á varanda com os pés juntos, como um coelho e logo olhou para Emma, esperando. —Merry —disse Emma, em voz baixa e entrecortada—. Pode falar. A menina se balançou uma vez, trocando o peso de um pé a outro. Cantarolou uma nota longa e grave que podia significar algo e logo desapareceu no interior da casa. Havia muita luz na cozinha, com todos os abajures de querosene acesos. Mas estava vazia. Emma entrou lentamente no dormitório, como tinha entrado em muitas habitações durante sua vida, sentindo-se tímida, coibida e insegura. Bria estava em uma cama de ferro branco, com os joelhos levantados,

dobrados e muito abertos sob um lençol, o braço esticado por cima da cabeça e a mão obstinada aos barrotes. Tinha as costas arqueada e tensa e estava tão empapada em suor que sua camisola de algodão se pegava, molhada, a sua consumida carne. Sua respiração soava dura, entrando e saindo da boca aberta, lhe provocando um ruído áspero e úmido no peito. Shay estava junto ao lavabo. Tirou a jaqueta, tinha subido as mangas e estava lavando as mãos em uma bacia de esmalte salpicada de azul. Emma se deteve justo depois de entrar e ele se voltou para olhá-la. Umas rugas tensas, brancas, emolduravam-lhe a boca e lhe pulsava um músculo na bochecha, junto à cicatriz. —A parteira não veio —disse. —Tem medo de que mamãe lhe contagie com a tísica —disse Noreen—. Já ninguém deve ver mamãe, porque todos têm medo de que lhes passe a enfermidade. A menina estava junto à porta, com as costas e as mãos apoiadas na parede, como um soldado em posição de continência. Merry estava a seu lado, muda e imóvel. Mas Bria havia virado a cara ao ouvir suas vozes. Parecia que não ficava carne na cara, só a pele, pálida e fina, esticada em cima dos ossos, bonitos e fortes da cabeça. —Emma, mo bhanacharaid —inspirou de novo, uma inspiração superficial e ruidosa—. Tinha tanto medo de que... não viesse. —Como não ia vir e perder o primeiro bendito acontecimento da temporada? Um som estranho saiu da apertada garganta de Emma, um som que era ao mesmo tempo risada e soluço. Era uma dor tão doce, o carinho que sentia por aquela mulher, sua amiga. Tinham aproximado uma das cadeiras da cozinha à cama. Emma foi até ela e se sentou com a saia sussurrando.

—Tenho que mencionar, senhora McKenna — enunciou, exagerando o tom de conversação de salão das Grandes Famílias—, que escolheu uma bonita noite, porque não há nenhuma nuvem no céu. Não obstante, o vento vem do sudoeste e isso sempre traz tempo úmido pela manhã. Os apertados lábios de Bria se abriram com um sorriso e logo todo seu corpo se agitou com uma brusca cãibra e a boca se abriu ainda mais com um grito silencioso. A dor pareceu durar eternamente e quando terminou, deixou Bria exausta e trêmula. Os lábios azulados tinham agora um rastro branco onde tinha parecido os dentes. Mas seus escuros olhos ardiam com uma vida raivosa e valente ao olhar para Emma. —Pode-me agarrar... a mão? —disse. Emma tirou as luvas e as deixou cair ao chão. Agarrou a mão de Bria de onde estava, sem força sobre o lençol. Nunca havia sentido nada tão frio como aquela mão. Era como se toda a vida tivesse abandonado seu corpo para viver só em seus extraordinários olhos. —Esteve... dançando —disse Bria. Emma sorriu. —E vá se foi algo lamentável e aborrecido. O violinista se esqueceu do arco e teve que dedilhar as cordas com o nariz, o cello não parava de perder sua entrada e eu não fazia mais que pisar ao senhor Alcott. Bria soltou uma risada, mas logo sofreu outra forte contração, estremecedora, devastadora e se perdeu na dilacerante dor. Quando passou, disse, entre ofegos, tentando recuperar o fôlego: —Talvez tenha que... agarrar-me um pouco mais forte... de vez em quando. Emma afastou o cabelo úmido da testa de Bria, com a outra mão. —Não se preocupe. Para isso servem as amigas, para dar uma mão quando é necessário. Shay apareceu do outro lado da cama, com trapos e uma bacia cheia de

água nas mãos e Emma sentiu um estremecimento ao compreender, de repente, todo o alcance das palavras: «A parteira não veio». —Já tenho um pouco de prática nisto — disse a Emma, como se lhe lesse o pensamento—. A última vez, nossa Merry chegou tão rápido que não houve tempo nem de respirar e muito menos de enviar procurar alguém. Inclinou-se e disse algo a sua mulher em gaélico e, embora pronunciou as palavras com sua voz áspera e rasgada, Emma sabia que eram ternas, porque seu amor era, como sempre, como algo vivo na habitação. Com uma assombrosa suavidade por ter mãos tão grandes, afastou o lençol dos joelhos abertos de sua esposa. A camisola de Bria estava enrugada ao redor da cintura e o suor corria a jorros pelas pernas. Seu inchado ventre tremia e saltava e logo se contraía, de repente, como se o espremesse um punho enorme. Enquanto Shay lavava a sua mulher entre as pernas, Emma olhou a seu redor, observando sua limpa pobreza. Havia poucos móveis, só a cama, com um crucifixo pendurado na parede, o lavabo e uma pequena mesa de escritório com o verniz saltado. E algo que parecia ser um altar, colocado debaixo de um postal da Virgem Maria. Logo caiu na conta de que, em algum momento, Shay devia ter enviado às meninas de volta à cozinha e se perguntou se isso significava que o que quer que fosse acontecer, aconteceria logo. O que ia acontecer... Sua própria ignorância a aterrava. Podia recitar todas as regras de etiqueta para apresentar um jantar formal para trinta e quatro pessoas. Mas uma menina de sete anos sabia mais que ela de uma parte tão elementar da vida como dar a luz. Mas a verdade é que não aconteceu logo, depois de tudo... o que tivesse que acontecer. Bria se agarrava à mão de Emma, apertando-a com força, esmagando a carne e o osso, enquanto as dolorosas cãibras iam e vinham, iam e vinham, uma e outra vez, durante as longas horas da noite. Os jornais que tinham posto

debaixo dos quadris de Bria e os lençóis estavam empapados de um sangue aquoso e seu aroma enchia a estadia, azedo como fruta podre, mas o pequeno não chegava. E esperar que acabasse e temer que acabasse mal se converteram como um grito na mente de Emma. Logo por fim, por fim, ouviu que Shay dizia: —Se pudesse empurrar só um pouquinho mais, carinho. Já se vê a cabeça. Soprando e ofegando, Bria tentava incorporar-se sobre os cotovelos, como se fosse olhar entre suas pernas para ver o que acontecia. —Emma, me diga, de que cor tem o cabelo? Emma olhou entre as pernas de Bria. A cabeça do bebê estava emergindo do ventre de Bria. Uma verdadeira cabeça de bebê, com cabelo, pele e veias, suja de mucosidade e sangue, movendo-se, cheio de vida. Emma nunca tinha visto algo tão assombroso, aterrador e bonito. —Parece-me que vermelho. Vermelho e encaracolado e tem muito... Ah, Bria, terá seu cabelo. Bria se deixou cair nos travesseiros, rindo e ofegando. —Och, o pobrezinho... vir a este mundo com uma aflição assim. Emma contemplou, maravilhada, como o bebê nascia do corpo de sua mãe, primeiro a cabeça e logo um ombro e um braço e logo todo ele estava ali, embalado entre as mãos espectadores de seu pai, enquanto Emma ria e chorava e os olhava com uma alegria cheia de angústia e o novo filho de Bria chiava ao tomar o primeiro fôlego de sua vida. Bria jazia na cama de ferro branco, tão exausta que parecia haver-se encolhido. Tinha o cabelo colado à cabeça, em mechas úmidas e pegajosas, e a cara cansada e impossivelmente pálida. Mas enquanto estava ali, olhando a seu marido e a seu filho, ainda tinha todo aquele fogo, toda aquela vida em seus olhos escuros. —Tem tudo o que tem que ter, Shay? —perguntou, com uma voz que

estava à altura do que havia em seus olhos. O sorriso de Shay era como um sol ardente, estendendo-se por toda a cara. E embora não estivesse destinado a ela, tocou a alma de Emma e abriu seu coração. —É a própria perfeição, querida. Deste-me um filho esplêndido. —Me deixe vê-lo, me deixe ver... Não, espera. Primeiro dá-lo a Emma. —Ai, não, não deveria... poderia deixá-lo cair —disse Emma, mas Shay já estava pondo o pequeno nos seus braços. Estava molhado com o sangue do parto, tinha a pele enrugada e rosada e a carinha encolhida, como um punho fechado—. Oh, Meu Deus — sussurrou Emma e as lágrimas se mesclaram ao seu sorriso. Tremiam-lhe os braços enquanto deixava, com muito, muitíssimo cuidado, ao pequeno em cima do peito de sua mãe. Os lábios de Bria se abriram com um sorriso que foi de seu homem a Emma e logo se alargou para abranger o mundo inteiro. —É bonito — disse. Shay McKenna se deixou cair de joelhos junto à cama. Dobrou as costas e baixou a cabeça enquanto apertava a cara contra o peito de sua mulher, junto a seu filho que já reanimava. —Querida, querida... Lentamente, Emma se levantou da cadeira e os deixou sozinhos com seu filho e com seu amor. As meninas estavam sentadas, juntas, na varanda. Merry tinha adormecido com a cabeça apoiada na saia de sua irmã e não despertou quando Emma abriu a porta. Noreen levantou o olhar, com o medo e a esperança lutando em seus olhos. —Tem um novo irmãozinho e sua mamãe está bem —disse Emma. Sua voz soava estranha a ela mesma, muito rígida e cerimoniosa. Tratou de fazer com que seus lábios sorrissem —. Mas terá que esperar uns minutos antes de

entrar para vê-los. Seu papai o está pondo bonito. A seguir as deixou e seguiu o caminho até a rua, mas quando viu a carroça do leite, compreendeu que não tinha meios para retornar, assim rodeou a casa e desceu à praia pizarrosa. A luz da lua sobre a baía enfraquecia. A maré dormia, apanhada entre a velha noite e o novo dia. Ficou, sozinha, a beira da água. Havia tanto silêncio que quão único ouvia eram os sons oceânicos de seu próprio coração. A alvorada estava começando a filtrar a escuridão do céu quando ouviu o roce de um sapato nas rochas, atrás dela. Voltou-se e olhou como se aproximava. Deteve-se junto a ela e examinou atentamente sua cara e ela a dele. —Está dormindo —disse, finalmente—. Os dois dormem, ela e o menino. Tinha tantas coisas que lhe dizer... Tinha uma vida inteira de coisas que lhe dizer e eram tão poucas as permitidas. E gostaria que fossem menos ainda. —Mais tarde — disse ele—, quando despertar, quererá lhe agradecer. —Mas eu não fiz nada. Ele a agarrou pelo pulso, lhe levantando a mão. Inclusive cedo aquela pálida luz, eram visíveis as marcas e os arranhões. —Veio —disse. Soltou-a e a mão caiu, lânguida, até seu flanco, como se não pesasse nada. Era como se, de repente, já não fosse parte dela absolutamente, a não ser algo sem relação alguma com ela. Ele afastou o olhar dela, dirigindo-o a baía. O sol nascente estava dando pinceladas de aquarela vermelhas e amarelas no céu. —Às vezes, pode ser algo glorioso ver sair o sol em um novo dia. Seu olhar voltou para encontrar-se com o dela e um sorriso, mais brilhante que qualquer sol, iluminou-lhe a cara—. Não diria o mesmo, senhorita Tremayne?

Reconheceu seu sorriso como o presente que era, nada mais e nada menos e o devolveu. —Diria, senhor McKenna, que um novo dia pode ser a coisa mais gloriosa do mundo.

O sol se elevava dourado e voluptuoso por cima dos telhados de As Bétulas quando Emma subiu os degraus da galeria e atravessou as artesonadas portas de ébano. A casa estava silenciosa, com a quietude das primeiras horas da manhã e o vestíbulo de mármore estava cinza e frio como um mausoléu. Emma fechou as pesadas portas com cuidado atrás dela e, atravessando o vestíbulo, dirigiu-se, com passos leves, para a escadaria de carvalho. Mas ao passar o grande espelho, viu o reflexo de um pálido espectro flutuando junto ao poste, de jade branco, de onde arrancava a escada, ali onde uma filha dos Tremayne tinha ardido até morrer, muitos anos atrás. —Mamãe? —disse Emma, e o medo fez com que lhe falhasse a voz. Preferia enfrentar a uma dúzia de fantasmas a que sua mãe a pilhasse em um comportamento impróprio. —Como pudeste, Emma? Como pudeste me fazer isto? Os passos de Emma tinham titubeado ao ver sua mãe, mas agora se obrigou a continuar, até chegar ao pé das escadas. Pensou que já não era uma menina, que não podiam lhe bater nem trancá-la no porão e que, esta vez, dentro de seu coração, sabia que não tinha feito nada errado. —Não te disse que mantivesse sua roupa interior bem grampeada e os joelhos juntos até depois de ter um anel no dedo? —dizia sua mãe, com o acento da Georgia tão forte que Emma mal podia entendê-la. —Mamãe, você alguma vez... O que está dizendo? —Está acabada, desonrada. A família inteira está acabada. Foste e lhe deste o que queria, não é assim? Agora nunca se casará contigo. Você... — De repente, a cara de Bethel ficou branca e cansada—. Deus do céu, forçou-te?

Emma baixou os olhos e se olhou, seguindo a direção do olhar horrorizado de sua mãe. A parte dianteira de seu vestido de noite de chiffon de seda verde estava manchada de um vermelho oxidado com sangue seco. Por um momento, não soube como podia ter se manchado com o sangue de Bria e logo recordou que tinha sustentado o bebê em seus braços justo depois de nascer. —Oh! —exclamou Emma, com a cara vermelha e ardente, quando se deu conta, por fim, pelo que implicavam as palavras de sua mãe—. Não é o que você pensa, absolutamente. A senhora McKenna teve um menino esta noite. Estive com ela, não com o Geoffrey. Sua mãe vacilou, inclinando-se para frente, e logo cambaleou e se desabou no amplo degrau inferior da ampla escadaria. Abraçou-se os joelhos e se balançou uma vez, duas vezes. Quando voltou a olhar para Emma, as lágrimas brilhavam, como gotas de prata, em suas bochechas. Emma viu que o azul de seus olhos tinha sido quase absorvido pelos negros centros. —Não é o que eu penso, não é o que eu penso... Que outra coisa podia pensar? —disse Bethel, com voz trêmula—. Descubro sua cama vazia no meio da noite e não te encontro em nenhuma parte. Diz que se sente enjoada e deixa a festa cedo e logo o senhor Alcott descobre, de repente, que tem que encarregarse de uns assuntos urgentes e também deve partir e, naturalmente, a primeira ideia que vem a minha mente é... Olhe, esta tarde, toda a sociedade estará falando de seu pequeno «desvanecimento». Correrão rumores e indiretas maliciosas durante semanas. Observarão-nos atentamente, ah, sim, observarão a todos. E não se acabará, nem sequer quando for evidente que suas piores suspeita não vão fazer-se realidade. Não se farão realidade, verdade, Emma? —Não, mamãe —disse Emma, avermelhando de novo, porque, certamente, aquela era uma dessas coisas das quais não se devia falar, nunca. Também é verdade que nunca tinha visto sua mãe assim. Parecia uma menina que acabava de despertar de um pesadelo; tremia, abraçava-se e se balançava para frente e para trás, envolta em uma bata branca, acolchoada, com

o cabelo recolhido com grampos. Tinha os olhos muito abertos, fixos e negros. Emma se sentou nas escadas a seu lado. Esteve a ponto de lhe rodear os ombros com o braço, mas ao final não o fez. Tinha muito medo que seu gesto não fosse bem recebido. Entretanto, estava sentada o bastante perto para sentir o tremor que agitava a sua mãe por dentro. —Mamãe, estiveste tomando o remédio de Maddie? Bethel estremeceu violentamente e se agarrou os joelhos com mais força. —Ultimamente, tenho os nervos destroçados. Não pode entender como é, esta constante vigilância... Sempre tive uma constituição delicada, você sabe, e, entretanto, é cruel comigo... deste-me um susto terrível. Todos os meus filhos foram sempre muito cruéis comigo. —Sinto muito, mamãe. Haveria-te dito aonde ia, mas... —disse, embora pensou: «Teria tratado de me deter e teria tido que te desafiar e teríamos tido uma dessas cenas que tanto pavor lhe produzem»—. Mas não havia tempo — concluiu. Bethel levantou a cabeça e endireitou os ombros, voltando a ser, por um momento, a de antes. —Essa mulher é uma má influência para ti, Emma. Já sabia que nada de bom podia sair dessa relação. —Foi tudo minha culpa; teria que haver lhe dito... Veem, deixe que te ajude a voltar ao seu quarto —disse Emma, mas vacilou um momento antes de rodear com o braço os ombros de sua mãe, meio levantando-a para pô-la de pé. Começaram a subir as escadas lentamente. Sua mãe se apoiou nela os dois primeiros degraus e logo começou a afastar-se. —Quer que envie a Jewell com um pouco de café da manhã? —disse Emma—. Tem que comer algo. Com todos aqueles pratos deliciosos que havia no jantar de ontem à noite e não tomou mais que um bocado de algum deles. Bethel negou com a cabeça, com tanta violência que todo seu corpo se estremeceu.

—Não, não. Nada de comer. Estou muito gorda e já sabe que seu pai não pode suportar as mulheres gordas. Virá para casa para suas bodas e, para então, já terei recuperado minha figura esbelta. Verá que mudei e então ficará. Já verá, como fica. —Sim, mamãe — disse Emma, tratando de reprimir uma súbita necessidade de começar a chorar. Lágrimas; parecia-lhe que tinha derramado muitas ultimamente, tanto felizes como tristes e, entretanto, o poço não parecia esvaziar-se. Sua mãe a olhava, com uma viva esperança lhe ardendo na cara, iluminando-a como se fosse o brilho das velas. —Ama-me, Emma — disse—, é só que o esqueceu. Mas quando me vir recordará-o. Será como a noite do baile em Sparta e me quererá de novo. E esta vez me quererá para sempre. Já verá como me amará para sempre.

Capítulo Dezenove O dia começou com um sol alto e um vento vivo. Um dia perfeito para navegar ou isso lhe havia dito Emma. Tinha sido ideia de Bria ir a um piquenique na praia, sua primeira saída desde o nascimento de Jacko. Entretanto, foi Emma quem sugeriu que levassem o Saveiro até Town Beach, que estava perto de ferry, na costa oeste da baía de Mount Hope. —O padre O'Reilly pode trazer o pequeno e às meninas na charrete e reunir-se conosco ali —disse Emma—. Pensa só em quão divertido será, só nós duas. Podemos fingir que somos damas piratas, navegando pelos mares. —Por todos os Santos — disse Bria—, tem uma ideia estranha sobre o que é divertido, Emma Tremayne. Emma riu, com uma risada feliz. —Por favor, diga que sim Bria. Será uma viagem curta; com este vento, só uma meia hora, no máximo. E não perderemos a costa de vista em nenhum momento. —Hum — disse Bria, contendo um sorriso—, é alivio o que sinto ao saber que poderei contemplar um bonito panorama enquanto me afogo. Embora nascida e criada ao alcance de uma maré alta, Bria nunca tinha subido em um navio em toda sua vida, salvo no grande vapor que a trouxe para a América. A pesca era trabalho de homens e, seguramente, ninguém em Gortadoo navegaria em um pequeno Saveiro de corridas só por diversão. Este Saveiro em particular se chamava Icarus, como um grego amalucado que tinha voado muito perto do sol com asas feitas de cera, ou isso

lhe tinha contado Emma. E, enquanto subia a bordo, com pernas trêmulas, Bria pensou que não era algo para inspirar confiança em um marinheiro de água doce como ela. Assim que se separaram da costa, Bria desejou voltar. O vento inchava as velas e o navio balançava tanto que o corrimão da ponte cortava a água. O coração de Bria palpitava no peito como um peixe dentro da rede e recitou duas dúzias de ave-marias antes de acreditar nas palavras de uma risonha Emma, lhe prometendo que o Saveiro não derrubaria e as lançaria a água. Entretanto, gostava da música da navegação. O ataque do vento, empurrando as velas, o ruído das salpicaduras da água no casco. Jogou a cabeça para trás e o sol lhe banhou a cara como se fosse mel silvestre. Lambeu os lábios, desfrutando do sabor do sal. Sorriu ao escutar Emma, que lhe explicava como funcionavam as velas com o vento para fazer com que o navio sulcasse a água tão velozmente, embora mal a entendesse. Sentia-se cheia de felicidade em seu interior e o dia teria sido perfeito se Shay tivesse estado ali. Mas parecia que, ultimamente, tratasse de pescar todos os peixes do mar, para poder devolver o dinheiro que devia pelo barco. Seguiram à costa de Town Beach e Bria viu como a branca extensão de areia aumentava, cintilando ao sol. As velas se afrouxaram e começaram a ondular quando costearam até um embarcadouro tachonado de mariscos. Emma pegou uma soga de amarração e levantou as saias, mas em vez de saltar ao cais, ficou absolutamente imóvel, como se acabassem de lhe cortar a respiração. —O que acontece? —disse Bria, ficando de pé, com pernas trêmulas, porque o navio não parecia totalmente firme sob seus pés. Não entendia como Emma conseguia, especialmente com saias, movendo-se por toda parte para ajustar esta ou aquela corda ou «decota», como insistia em que se chamavam. —Não é nada —disse Emma—, só que, ao final, o senhor McKenna veio. —Shay? —A cara de Bria se iluminou com um brilhante sorriso quando

descobriu a charrete que acabava de entrar no caminho da praia. Agitou os braços com tanta força que o navio balançou e teve que agarrar-se a botavara para não cair. —Mãe de Deus, quase me atiro à água! —exclamou, rindo dela mesma. Mas quando olhou para Emma, viu que a outra mulher seguia imóvel, com a corda de amarração entre as mãos e a cara pálida e tensa. Bria sabia que tudo aquilo tinha a ver com o Shay. Emma nunca tinha estado cômoda em sua companhia e fazia tudo o que podia, salvo ser abertamente mal educada, para evitá-lo e Bria supunha que não podia culpá-la. Não depois de todas aquelas coisas tão desagradáveis que lhe disse aquele dia. Bria nunca o haveria dito a Emma, porque não queria ferir seus sentimentos, mas se sentiu feliz de pisar em terra firme. Notou uma sensação estranha nas pernas, durante um momento, como se tudo seguisse balançando-se debaixo dela. Mas então chegaram as meninas, correndo pela branca areia e Merry estava tão cheia de canturreos excitados que quase vibrava. Rindo, Bria olhou ao redor. Era um bonito lugar para assar os mariscos. Os pequenos prados marinhos que tinham invadido a praia arenosa estavam cheios de flores silvestres e rodeados de abetos de cor negra cinzenta e majestosos olmos e arces. —Onde está esse patife de meu irmão? —perguntou ao Shay, ficando nas pontas dos pés para beijá-lo nos lábios. Shay levava ao pequeno Jacko, envolto como se estivesse dentro de um casulo, em uma cesta de palha. Bria retirou a borda da manta e viu que o pequeno estava dormido. Shay levantou a mão para saudar a Emma, mas ela estava no navio, pregando as velas e não o viu. —O bom padre recebeu uma chamada de seu bispo esta manhã —dizia Shay— e parece que «Passarei mais tarde» não era uma resposta aceitável. —Och, pobrezinho. Com certeza já volta a ter problemas. Seu irmão não era dos que obedecem todas as regras e nem sequer o

sacerdócio o tinha curado por completo de seu instinto revolucionário. Shay soltou uma risada enquanto lhe dava o bebê. —Bom, como me disse o próprio Donagh: «Seguramente que não me pediria que fosse para poder me rodear a cabeça com um halo». Enquanto Shay e as meninas recolhiam lenha que o mar tinha trazido à praia, para assar os mariscos e o pequeno Jacko seguia dormindo na cesta, Bria ajudou Emma a estender uma manta e tirar as coisas da cesta que havia trazido. —É só algo para mordiscar — havia dito Emma—, enquanto esperamos que se abram os mariscos. A ideia que Emma tinha de algo para mordiscar eram ovos cozidos com molho picante, sanduiches de lagosta, champanha, pêssegos e merengues de coco. Inclusive havia trazido pratos e talheres de prata para comer aquelas coisinhas, como descobriu Bria quando vasculhou mais para dentro da cesta. Uns pratos tão finos que se podia ver a mão através deles. E quatro classes diferentes de garfos. Levantou um dos garfos para podê-lo ver melhor; era uma coisa pequena, fina, com duas puas que parecia tão útil como uma mula com três patas. —Para que serve isto? —perguntou. Os lábios de Emma se curvaram em um de seus tímidos sorrisos. —É um garfo para ostras. No caso de... —No caso de o que? Emma encolheu os ombros com elegância. —No caso de encontramos ostras e nos decidimos comê-las. Justo naquele momento uma gaivota passou voando para deixar cair uma ostra contra umas rochas próximas. A ostra se partiu e a ave se lançou sobre a concha quebrada, bicando aquela delícia tão suculenta. —Creio — disse Bria—, acredito que teríamos que dar ao pássaro um de seus garfos. Emma conteve uma gargalhada com a mão e logo se pôs a rir sem

dissimulação, a grandes gargalhadas, de forma que Bria logo estava rindo com ela, embora ainda estava um pouco dolorida do parto. Achava hilariante que as Grandes Famílias necessitassem garfos especiais para comer ostras e as gaivotas não. Entretanto, alegrava-se de saber que, neste estranho e maravilhoso mundo, existia algo como um garfo para ostras. —E o que há no dia de hoje que as fazem rir desta maneira? — perguntou Shay, quando ele e as meninas chegaram e deixaram cair braçadas de lenha na areia. Mas quando Bria tentou explicar-lhe, Shay a olhou como se levasse muito tempo ao sol. Enquanto isso, Noreen e Merry trocaram sorrisos em segredo. Emma pôs um pêssego na palma da mão de Bria. —Tome um destes — disse e estava cheia de risadas, em sua boca e em seus olhos—. O único problema é que talvez se veja obrigada a ir parti-lo contra aquelas rochas lá embaixo... Porque me esqueci das facas para a fruta. E essas palavras fizeram com que soltassem de novo gargalhadas. Quando Bria deixou de segurar o dolorido ventre e secar as lágrimas das bochechas, olhou para Shay e viu que também sorria, no mais profundo de seus olhos. Bria riu de novo e mordeu o pêssego. O suco lhe escapou pelo canto dos lábios, lhe gotejando pelo queixo e era tão delicioso que se estremeceu, maravilhada. Voltou-se para dizer a Emma e se assombrou, como lhe acontecia tantas vezes, inclusive depois de todo o tempo que a conhecia, ante a impressionante beleza da jovem. Parecia estar posando para um retrato, com um vestido branco de uma espécie de tecido sedoso e recém-engomado, com um estampado de rosas e folhas e um chapéu de palha, com a asa adornada com margaridas. Parecia que toda a luz do mundo se reuniu em torno dela, espessa como o creme. O pequeno Jacko começou a mover-se naquele momento e Bria o tirou da

cesta para lhe dar o peito. Shay começou a contar uma história às meninas enquanto preparava o fogo, colocando umas pedras para formar um círculo e pondo lenha pequena em cima. —Havia uma vez dois príncipes, um irlandês e outro escocês, que queriam dominar a mesma grande ilha, que era uma grande maravilha do mundo... Merry começou a girar, com os vermelhos cachos voando, cantarolando com força. —Quer saber —disse Noreen—, como se chamava o príncipe irlandês e se era bonito. —Seu nome era Ivor o Bravo e seguramente que era um dos homens mais bonitos nascidos de mulher, já que era irlandês e um McKenna pelo lado de seu avô materno. Bria soltou um bufido. —O mais provável é que também fora um grande mentiroso, sendo irlandês e um McKenna. —E não era também uma grande sorte —disse Shay—, que o homem não tivesse uma esposa sempre disposta e decidida a lhe assinalar suas falhas? Pois olhem, como ia dizendo, os dois príncipes fizeram uma corrida de navios e acordaram que o primeiro dos dois que tocasse a ilha, levaria a coroa todos os dias, até o final dos tempos. E o príncipe irlandês, quando viu que estava perdendo a corrida, agarrou a espada, cortou-se a mão e a lançou à ilha... Merry voltou a cantarolar e saltar acima e abaixo. —Quer saber —disse Noreen— por que cortou toda a mão. Por que não cortou um único dedo? —Bom, verão —Shay mordeu a bochecha e passou os dedos pelo cabelo—, é que... é que não podia lançar um dedo tão longe. Necessitava algo mais pesado. Necessitava toda a mão. —Vá —disse Bria—, escutem a este homem, que sempre tem as palavras

prontas e dispostas na ponta da língua e, além disso, soam bem, claro que sim, até que se dá conta de que nada do que diz tem nenhum sentido. —Tem sentido, se todas vocês me deixarem que acabe a história... Em sua pressa por reclamar seus direitos à ilha, o príncipe irlandês esqueceu que necessitaria suas duas fortes mãos para protegê-la. Se arrumou bem com uma só mão para construir sua casa e plantar seus campos de batatas, mas então chegaram os ladrões ingleses e, é obvio, o príncipe viu como tudo passava a suas mãos ambiciosas; a casa, os campos e a própria ilha. Merry cantarolou uma melodia triste. —Quer saber —disse Noreen— se a senhorita Emma poderia comprar a ilha dos ladrões ingleses e devolvê-la ao príncipe para que pudesse viver feliz ali para sempre. Shay suspirou e negou com a cabeça. —Uma ilha como aquela só se pode comprar com o sangue de um guerreiro valente ou com um coração grande e sincero. E há dúvidas de que, quando abre o coração de um ianque da Nova Inglaterra, vás encontrar um coração ou só uma pedra negra e enrugada. —Seamus McKenna, que vergonha! Bria olhou para Emma, temendo que a tivessem ferido de novo, embora esta vez Shay só estava brincando. Entretanto, Emma lhe estava devolvendo o olhar, com uma expressão pícara no rosto. Emma estendeu o braço para ele. A renda se separou da manga, deixando descoberto um pulso pálido, sulcado de veias azuis e na mão, um pêssego perfeito, redondo e rosado. Com sua voz mais altiva de membro de uma das Grandes Famílias disse: —Gostaria de dar uma dentada no meu pêssego, senhor McKenna? Só que, por favor, tome cuidado com o osso, porque é muito fácil partir os dentes ao mordê-lo, não é verdade? Os lábios de Shay se entreabriram com um sorriso relaxado. Olhou para

onde o Saveiro se balançava em sua amarração e logo voltou a olhar para Emma. —Tem uma língua perversa, menina. —E uma carruagem da Nova Inglaterra mais rápida que a tua, seguramente — disse Bria. O pequeno Jacko tinha acabado de mamar. Descansava na curva de seu braço com os punhos fechados a cada lado das gordas bochechas e a boca aberta tragando ar—. Anda, pegue seu filho e faça com que arrote e, se for contar mais histórias, deixa o sangue e a política de fora. Shay agarrou ao pequeno e o apoiou sobre seu largo ombro. Sustentoulhe o bumbum com uma enorme mão, enquanto com a outra lhe dava suaves tapinhas nas costas. O amor por seu filho suavizava a boca daquele homem tão duro e fazia com que os olhos se voltassem escuros e com pálpebras pesadas. Não foi por nenhuma razão em particular que Bria se voltou, naquele momento, a olhar para Emma. Mas depois de fazê-lo, ficou imóvel como uma rocha e sem ar, como se lhe tivessem dado uma patada no peito. Porque Emma estava olhando ao Shay e, em sua bonita cara, havia um desejo nu e puro. Depois daquilo, observou-os; não podia evitá-lo. Sentada na manta, com o pequeno Jacko dormindo entre seus braços, observava-os enquanto rastelavam a areia, tirando mariscos e os colocando nos baldes. Via que Emma fazia tantos esforços, esforçava-se tanto por fingir, mas então Shay ria ou dizia qualquer tolice, brincando com as meninas e ela o olhava. Olhava-o só um momento, mas Bria captava aquela súbita explosão de desejo em sua cara, como um raio de luz sob a pele. Observava para ver se Shay devolvia aquelas olhadas. Quando Emma se sentou em uma rocha para tirar os sapatos e as meias, lhe disse: —Tem pés ianques; compridos e estreitos. —E você tem pés irlandeses — lhe replicou ela, com rapidez—. E

sempre os coloca onde não deve. Até Bria teve que sorrir ao ouvi-lo. Mas pensou também que a voz de Emma soava diferente quando falava com ele, como se lhe faltasse o fôlego para impulsionar as palavras para fora. Uma vez, o vento levantou a asa do chapéu de Emma, torcendo-o e ela fez algo muito simples, algo muito feminino; levantou os braços para tirar o chapéu e voltar a colocá-lo. A ampla renda de suas mangas caiu para trás, revelando seus brancos braços nus e seus seios se ergueram com um ranger de seda. E logo inclinou a cabeça só um pouquinho, enquanto voltava a cravar as forquilhas através da palha. Foi algo muito simples, mas a cara de Shay mudou ao olhá-la. Só um pequeno eco, um mínimo eco de um eco, mas mudou. E Bria sentiu como se lhe abrisse um buraco no coração. Seguiu sentada, imóvel como uma rocha, incapaz de pensar, incapaz de respirar. O vento brincava com seu cabelo e com as agulhas dos pinheiros e as folhas dos arces. O céu estava azul e a água da baía mais azul e o sol brilhava, quente, sobre a areia branca. E Bria não via nada de tudo aquilo, nem sentia nada. Sobressaltou-se quando algo pesado lhe caiu em cima da saia. Olhou para cima e viu a cara de Noreen, viu que os lábios de Noreen se moviam, mas era como se toda vida tivesse desaparecido do mundo. Logo as palavras de Noreen chegaram apressadamente, como se as trouxesse o vento. —Mamãe, olhe o que encontrei enterrado na areia. Bria agarrou o que havia em sua saia. —Vá, é uma espécie de pipa, parece-me. —É uma pipa Indígena — disse Emma. Sua querida amiga Emma, que olhava para Shay McKenna com tanta fome nos olhos. Bria sabia bem o que era, como era sentir aquele desenfreio por ele, dentro de seu coração, aquele fogo. Sabia o que era sentir que sua vontade

se dissolvia quando o olhava. —Essa pipa pôde ter pertencido ao próprio grande Rei Philip —dizia Emma—. Philip foi o grande chefe dos Wampanoag e eram donos de todas estas terras antes que chegassem os colonos e as tirassem. —E não é isso o que sempre acontece? —disse Shay. Esta vez Emma o olhou abertamente e sorriu. —Dá a casualidade de que o rei Philip caiu em uma emboscada e morreu às mãos de um membro de sua própria raça. É uma história que gostará, senhor McKenna, porque há sangue e política nela. Então, Emma contou a história de como este rei Philip foi morto por outro índio a cujo irmão o rei tinha matado com um tomahawk e, como recompensa, cortou a mão de Philip e a levava a todas as partes em um barril de rum. A estranha Noreen, a quem gostava que a deixassem parva de medo com histórias assustadoras, escutava com os olhos muito abertos e pequenos estremecimentos de excitação. Enquanto isso, Merry cantarolava perguntas mais rápido do que Noreen podia respondê-las. Bria olhou às meninas e viu quão pequenas eram e o pouco que sabiam. E pensou no só que ficariam suas filhas, órfãs de mãe dentro de pouco e sentiu desejos de começar a chorar. Apoiou a cara contra a cabeça do bebê, notando seu cabelo, tão suave, na bochecha. Não tinha passado tanto tempo desde seu nascimento para que não recordasse a violenta dor do parto, esse preço que uma mulher pagava por dar a vida, e aquele horrível, glorioso momento quando o separaram de seu corpo e deixou de ser só dela. Ia ficar muito perdido sem ela, este novo filho dele, sem ter sequer uma lembrança dela nem o amor de sua mãe para reconfortá-lo durante os tempos ruins e vazios. Olhou para Shay, seu homem, e o amor e a dor se entrelaçaram em seu interior, da garganta até a boca do estômago. Certa que só tinha sido um

momento de apreciação masculina o que tinha visto em seus olhos, nada mais. Emma era muito bela, sem dúvida mais bela do que um homem podia sonhar, e Shay era todo um homem. Mas e se, e se...? Não «E se tivesse sido algo mais?”.», mas sim «E se pudesse chegar a ser algo mais?». Esperou até que recolheram todos os mariscos e o fogo se consumiu até ficar somente brasas e varreram as pedras com um ramo de abeto e jogaram os baldes de mariscos nas pedras e os cobriram com algas para reter o vapor. Esperou até que tudo isso terminasse e então disse: —É um dia magnífico, de verdade, para sair para navegar, com o vento que sopra. Importaria-lhe, Emma, levar o Shay para dar uma volta no navio, enquanto se fazem os mariscos? Apesar de todos os navios em que esteve, duvido que algum fora tão magnífico como seu Saveiro. Suas palavras pareceram ressonar no pequeno silêncio que seguiu. As bochechas de Emma se cobriram de rubor, vermelho como as rosas e Bria viu como lhe custava engolir. Mas é obvio, não podia negar-se a um pedido feito daquela maneira por sua queridíssima amiga. Emma Tremayne tinha maneiras impecáveis. O olhar de Bria foi de Emma a Shay. Uma expressão de desejo e fome tinha aparecido em sua cara, mas olhava o Saveiro. Bria os observou enquanto iam juntos até o pequeno cais onde estava atracado o navio. Andavam o bastante perto para que o vento movesse a saia de Emma e a lançasse contra as pernas de Shay. Mas os dois olhavam fixamente para diante, como se todas as respostas do mundo se pudessem encontrar naquela fina linha branca onde a salgada água azul se encontrava com um céu ainda mais azul. Se, se disseram algo enquanto içavam as velas e soltavam às amarras, Bria não sabia. Enterrou a cara entre a roupa que envolvia ao menino que tinha nos braços, cheirou seu quente fôlego e lhe roçou a bochecha com o nariz.

Quando voltou a levantar a vista, o único que se via do Saveiro eram suas velas brancas, agitando-se como asas de mariposa em cima da água azul da baía.

Shay puxou com força o foque quando o Saveiro deu a volta, segurando o cabo como um perito. O vento soprava forte e constante e navegavam rodeando com as velas bem ajustadas. O Icarus era música em seus ouvidos, como o bem afinado instrumento que era. O ranger do casco, o tamborilar dos obenques contra o mastro, o bater as asas da relinga da vela maior quando se atia muito ao vento. Jogou a cabeça para trás e fechou os olhos, notando como o sol lhe queimava com força nas pálpebras. Notava a inclinação e a sacudida de cabeça da coberta sob seus pés, ouvia o sorver e salpicar da água por cima da proa e viveu um momento de felicidade, pura e simples. Abriu os olhos, voltou à cabeça e viu como Emma afastava rapidamente a vista, como se não quisesse que a pilhassem olhando-o. Estava sentada na ponte, com a mão na barra. Os tendões e os ossos de seu pulso se destacavam limpamente contra a pele. Necessitava-se força, ele sabia, para manter firme o leme com aquele vento. —É um barquinho muito atrevido, senhorita Tremayne — disse. E o era. Além disso, nunca teria comeduras de sal no bronze nem manchas na brilhante coberta de teca. Também custava mais do que ele podia inclusive sonhar—. E é você muito hábil dirigindo-o. Um sorriso apareceu na cara de Emma, embora mantivesse, cuidadosamente, a cara volta para outro lado. Tinha tido que tirar o chapéu devido ao vento e a maior parte do cabelo lhe tinha soltado e voava em torno de sua cara, desatado e livre. —Nós, os Tremayne, gostamos de afirmar que temos água salgada nas veias —respondeu—. Meu pai me ensinou a navegar. Levou-me a água assim que soube andar e, aos seis anos, já me tinha feito manejar meu primeiro navio,

um otimista. Possuo a distinção de ser a Tremayne mais jovem que tenha provocado e sobrevivido a seu próprio naufrágio. Shay não teve mais remedeio que rir. Às vezes, Emma o surpreendia, pelas coisas que dizia. —Nisso ganho, senhorita Tremayne. Dá a casualidade que minha mãe saiu um dia para navegar sozinha, para pescar sardinhas, mas no lugar de sardinhas, voltou comigo. Tinha descoberto que ela tinha um costume. Se o fazia uma covinha na boca, só em um canto, quando estava a ponto de fazer ou dizer algo que pensava que era algo atrevido. —Suponho que agora me dirá que as fadas o entregaram a seus pais em um bote de juncos, como se fosse um Moisés irlandês. —Não foi algo tão milagroso — disse, negando com a cabeça e sorrindo—. Minha mãe tirou o barco ela sozinha, meu velho tinha bebido até cair debaixo da mesa à noite anterior. Eu vim antes do tempo e de repente, ou isso me disseram. Minha mãe estava muito longe para dar meia volta e, por isso, só tinha ela para cuidar dela mesma e logo eu. Então ela o olhou. Shay não tinha conseguido decidir de que cor eram seus olhos, se cinzas, azuis ou verdes. Mudavam como troca o mar em um dia instável. —Deve ter sido uma mulher muito valente —disse Emma. —Não recordo que fora valente; mas era... —encolheu os ombros—. Desesperada — acabou e logo se perguntou de onde lhe teria vindo àquela revelação. Não estava acostumado a admitir essas ideias, nem sequer para seus adentros. Afastou o olhar dela, daqueles olhos e foi quase como se arrancasse algo físico, embora não teria sabido dizer por que. Estudou as velas, esperando que fosse necessário orientá-las, mas não era assim. De repente, não sabia o que fazer com as mãos.

—Suponho que os mariscos já estarão quase prontos —a ouviu dizer—. Quereria tomar o comando e levá-lo de volta à praia, senhor McKenna? Quadrou-se, fingindo uma saudação. —Às ordens, meu capitão. Estendeu a mão para agarrar o leme justo quando os alcançou uma forte rajada de vento e o navio escorou com força. Emma que estava trocando de lugar, voltou a agarrar o leme, para recuperar o equilíbrio e sua mão caiu em cima da dele. Ele deixou que sua mão notasse a dela, só um momento. E logo a tirou, suavemente, e isso foi tudo. Disse-se que não era desejo. Não podia imaginar-se tombando-a e tomando-a da maneira que um homem toma à mulher que deseja, com força, brutalidade e fome. E não era amor, disso estava seguro. Amor era o que sentia por Bria. Era rir, dançar, trabalhar, preocupar-se, brigar e reconciliar-se e fazer filhos. Não era isto... fosse o que fosse.

Capítulo Vinte —Fica mais um pouquinho — disse Bria—, antes do desfile. Por que não passamos pelo ginásio para ver se Shay quer vir conosco? Fingiu não ver a consternação que passou pela cara de Emma. Em troca, inclinou-se sobre o coche do pequeno Jacko e fingiu arrumar as mantas. O coche de junco laqueado estava estofado com felpa de seda azul e forrado com cilhas de cana trançada. Estava coberto com um guarda-sol forrado de cetim, com franjas de seda e rodava magnificamente sobre moles de níquel e rodas de aço. Tinha sido um presente de batismo de Emma e, com segurança, nenhum bebê de Gortadoo tinha desfilado pelo mundo com tanto estilo. —Não é apropriado — disse Emma, depois de um momento de silêncio—, que uma senhora seja vista entrando nesse lugar. Bria lhe lançou um sorriso zombador. —Suponho que têm medo, de que ver uns quantos homens suarentos, sem fôlego e barrigões nos converta em um par de jezabeles, de olhos exagerados, babando e enlouquecidas de luxúria. —Oh, Bria... —Emma conseguiu rir, embora foi uma risada um pouco vacilante—. É só que... Bria pensou: «É só que cada vez te resulta mais e mais difícil, mo bhanacbaraid, estar perto dele, estar ao alcance de sua vista e seu contato”“. Estar a uma distância amorosa dele e, entretanto, não poder te permitir amá-lo». Bria se endireitou e pôs a mão no braço de Emma. Pôs uns olhos ternos e suplicantes, embora, por dentro, sentia-se tão mal que não podia dizer o que queria. Parecia-lhe algo tão malicioso o que estava fazendo, e era difícil. Era

muito difícil. Mas então Noreen, que Deus a benza, disse: —Por favor, vamos procurar papai, senhorita Emma. E Merry se uniu com um cantarolo que era como um miado. Emma mordeu o lábio e baixou o olhar às mãos que tinha entrelaçadas na cintura. —Bom... Bria soltou um longo e trêmulo suspiro e enlaçou o braço com o de Emma. —Então, decidido. Noreen, querida, quer empurrar o coche por mim? Veem Merry, me dê à mão. E desceram juntas pelo atalho rodeado de violetas da casa da Rua Thames e se dirigiram para a cidade. Tinha passado uma semana desde o piquenique na praia, uma semana desde que Bria os esperou na praia, com os pés metidos na areia, firmada contra o impulso do vento. Assustou-se quando o vento começou a soprar com tanta força. Via o Saveiro, tinha-o estado olhando todo o tempo. Mas, de repente, inclinou-se tanto que parecia que as velas se deslizavam por cima da água coroada de branco. Bria havia sustentado tão apertado ao pequeno Jacko que este começou a chorar e Merry estava ao seu lado, cantarolando como louca. Noreen estava no cais, saltando acima e abaixo e agitando os braços enquanto o Saveiro arriava as velas e se deixava levar para o cais. —Papai! —gritava e sua voz se elevava, aguda, por cima do vento—. Estivemos vendo como navegava. Que rápido iam quando se levantou o vento! Mas mamãe disse que não havia ninguém que fosse melhor marinheiro que você. —E não o há —lhe ouviu dizer Bria—. Salvo possivelmente a senhorita Tremayne, que tem água do mar em lugar de sangue e ao vento por apaixonado.

Bria olhou como Shay saltava a terra e amarrava o navio, ouviu o chiado de uma polia e o golpe de uma corda contra a lona. Emma estava na coberta, agarrando-se ao obenque. Tinha as bochechas ruborizadas, mas isso podia ser devido ao vento. Shay saiu do cais e foi até Bria e a beijou na boca, beijou-a com força e desejo. —A que vem isto? —disse, lhe passando os dedos pelas bochechas, como se quisesse recolher todas as suas lágrimas para guardá-las. —Começou a fazer tanto vento que tinha medo. Tinha medo de lhes perder, aos dois. Pareceu-lhe que tinha visto que algo mudava no mais profundo de seus olhos, mas foi só um momento tão rápido que soube que nunca estaria segura. —Bom, pois não nos perdeu. Não nos perdeste. —Não, não lhes perdi, verdade? Conhecia-o tão bem; conhecia-os os dois tão bem. Quando os enviou a navegar juntos e a sós sabia que não aconteceria nada. E que algum dia, podia acontecer tudo.

O ginásio tinha sido um lugar de reunião dos Quakers até pouco tempo. Mas no lugar de louvores cantados ao Senhor, aquele domingo pela tarde, o sólido teto de vigas cruzadas ressonava com o impacto de um punho que golpeava contra o couro, o tamborilar de uma corda de saltar contra o chão, o estrépito das barras de halterofilismo ao deixa-las cair ao chão. A enorme, tenebrosa e antiga sala de reuniões estava brumosa pela fumaça dos charutos e cheirava a suor masculino. Encontraram ao Shay trabalhando com o saco de areia, movendo agilmente os pés, baixando os ombros, ziguezagueando, flexionando e esticando os músculos. Seus punhos martelavam como pistões, mais rápido do que o olho podia perceber, fazendo um som de zap-zap que imitava o batimento do coração

da vida. —Não é barrigão —disse Bria. —Não —disse Emma, mas não o olhava. Shay acabou seu exercício e agarrou o saco com as mãos envoltas em couro para que deixasse de oscilar. Respirava forte e fundo e Bria pensou que era igual, às vezes, quando faziam amor. O suor brilhava sobre sua pele, condensando o escuro cabelo do peito, convertendo-o em cachos em torno dos bicos do peito e correndo em lentos riachos pelo ventre que vibrava para desaparecer na zona úmida do cinturão dos calções. —Bria, querida — disse. Tinha estado olhando com uma feia ferocidade ao saco de areia, como se fosse um inimigo que tivesse que submeter a murros, mas agora lhe iluminou a cara e sorriu—. O que está fazendo aqui? Devolveu-lhe o sorriso, embora os olhos a surpreenderam, enchendo-se com as lágrimas. Era só que o amava tanto, tanto. —Pois olhe, é que me converti em uma Jezabel enlouquecida de desejo que vai te violar. Embora, depois, levaremo-lhe conosco ao desfile. —Me violar? —Avançou para ela, pondo uma expressão particularmente lasciva e libidinosa—. Melhor me beije. Bria cobriu o rosto com as mãos e fingiu retroceder horrorizada. —Por Deus, fará com que todos pensem que estou apaixonada por este homem. Shay se voltou para suas filhas, as afogando com um abraço suarento que as fizeram chiar e rir. E foi então quando Emma o olhou. Olhou-o só um momento. Mas nesse único momento, escreveu uma canção de amor com os olhos. E então foi Bria quem teve que olhar para outro lado. A dor, Dhia, era como colocar a mão no fogo, quase por uma aposta, para ver se podia senti-lo, para ver se podia suportá-lo. Logo pensou que devia ser duro também para Emma. Pobre coração da Emma, ter ficado apanhado neste

amor não solicitado. Quanto ao Shay, sentisse o que sentisse, Bria duvidava de chegar a sabêlo, não com segurança. Seus mais profundos sentimentos tinham vivido sempre ocultos atrás da dureza que tinha enterrada dentro dele, esse lugar que ela nunca tinha alcançado. Às vezes, punha muito cuidado, igual fazia Emma com ele, para não olhar, mantendo a cabeça rígida, como fazia pela manhã, quando a noite antes tinha bebido muito poitín. Mas outras vezes, era amistoso e brincalhão, tratando-a como se fosse uma de suas filhas ou sua irmã favorita. Entretanto, nunca a tocava, nem sequer de forma inocente. Assim Bria pensava que, enquanto ela vivesse, aplicaria sua enorme força de vontade a não sentir absolutamente nada. Mas logo... Ai, era pensar nesse logo, no que poderia chegar a acontecer, o que sempre lhe dava tantas esperanças e tanta dor. —Se apresse papai — disse Noreen—. Vamos perder o desfile. Shay pôs a mão na cabeça de sua filha e Bria viu que estava muito machucada. —Por que não se adiantam e o esperam e eu lhes apanharei assim que tenha me lavado? —Agarrou uma toalha de uma cadeira dobradiça, de madeira, e a jogou por cima dos ombros nus—. E que tenha boa tarde você também, senhorita Tremayne — disse com um sorriso e logo partiu, com seus quadris magros e aquele andar lento, e elas ficaram olhando como se ia. Inclusive Emma o olhava e era como se sua própria beleza se convertesse em mármore. Voltaram a sair à Rua Thames, porque o desfile tinha que passar por ali, depois de sair das garagens da ferrovia. Já podiam ouvir música de violinos e gaitas de fole e o rápido e rítmico repico de talão e ponta do claque irlandês. O sol se punha ardente, sobre a baía, convertendo-a em vapor e o calor subia feito ondas quentes do chão. Um homem empurrava um carrinho entre a multidão, vendendo amendoins salgados e pipocas de milho e enchendo o ar de maravilhosos aromas.

O desfile acabava de aparecer à vista quando Shay se reuniu com elas. Ia com as mangas da camisa dobradas, com a jaqueta lhe pendurando de um ombro, mas tinha posto gravata em honra de que era domingo. Tinha as pontas do cabelo úmidas e as bochechas brilhavam avermelhadas pelo recente barbeado. Estava tão bonito quando ficou ao seu lado e lhe rodeou a cintura com o braço que Bria sentiu desejos de deixar de respirar, de fazer com que o mundo inteiro deixasse de mover-se. O desfile era pouco mais que uma maneira de que os Primrose Minstrels — que iam atuar no prado do município ao dia seguinte, durante a celebração de Quatro de Julho— exibissem suas habilidades na dança. E vá se as exibiram: claqueteando todo o caminho rua abaixo com as caras pintadas de negro com milho queimado, com as pontas metálicas da ponteira e o salto de seus sapatos marcando um ritmo que agitava o sangue dos irlandeses. Assim, aos poucos, os irlandeses que havia entre a multidão se uniram à atuação irlandesa, dançando ao som das gaitas de fole e dos violinos e Shay deu a jaqueta a Bria e se uniu a eles. Mantinha as costas reta e imóvel, com os braços colados aos lados, enquanto movia os pés como um raio, alto e rápido, golpeando com a ponta e o salto, a ponta e o salto, fazendo uma música sapateada que era tão velha como a própria Irlanda. Os olhos de Noreen faiscavam de entusiasmo ao vê-lo, Merry cantarolava e tentava dançar uma giga, e o pequeno Jacko gorjeava e levantava as pernas ao ar. Logo, os Minstrels tinham seguido seu baile rua abaixo e Shay se deteve, rindo e sem fôlego. Todos riam, incluída Emma. A multidão começou a meter-se no meio-fio, seguindo aos bailarinos. Toda a cidade já estava adotando o ambiente da festa do dia seguinte. Parecia que os habitantes de Bristol tinham começado a celebrar o dia da Independência, antes inclusive de que ganhasse lá em 1777, e se orgulhavam de organizar o mais esplêndido Quatro de Julho do país. Bria ouviu como muita gente dizia que

o desfile do dia seguinte seria o espetáculo mais impressionante que viam em sua vida. De algum jeito, encontraram-se passeando pelo campo, seguindo a estrada de Ferry. Shay empurrava o coche e Bria lhe rodeava a cintura com o braço, notando o movimento de seus quadris enquanto andava a seu lado. Gostava desse costume da Nova Inglaterra, de dar esses longos passeios aos domingos pela tarde. Na Irlanda, uma mulher e seu homem só passeavam juntos uma vez, para ir à igreja no dia de suas bodas. O sol caía sobre suas cabeças de um céu brumoso. O ar era espesso e quieto e os poucos veleiros que havia na baía subiam e desciam como se fossem cortiças de pescar. Emma andava na frente deles, com uma menina a cada lado. Parecia um bolo de caramelo fiado, com seu vestido branco com enormes surripia acampanadas e um grande pescoço de renda de agulha de crochê. O chapéu de palha estava adornado com plumas vermelhas, brancas e azuis e dele penduravam longas fitas azuis. O guarda-sol de renda branca lhe salpicava as costas e os ombros com pontos de luz e sombra. Bria estava a ponto de dizer a Shay quão linda estava sua amiga quando ele estendeu o braço e a agarrou pela nuca e suavemente, com doçura, acaricioulhe o lóbulo da orelha com o polegar. —Disse-lhe —perguntou— quão bonita está hoje, Bria McKenna? Como um campo de urze em flor. Bria se perguntou se aquele homem era bruxo e sabia, de algum jeito, que tinha o coração terno e ferido. Ou se, de verdade, só tinha olhos para ela. A verdade é que se sentia bonita, com seu novo vestido de musselina lilás. Mas também é verdade que seu irmão Donagh estava acostumado a dizer que Shay tinha tanta lábia que podia negociar com Deus e levar a melhor parte. Bria ouvia o falatório de Noreen e o alegre cantarolo de Merry e sorriu ao pensar o cômodas que, agora, estavam às meninas com Emma. A jovem parecia

ter um dom, uma maneira especial de escutar, que fazia com que se sentissem especiais e escolhidas. Justo naquele momento, Noreen agarrou a mão de Emma e assinalou para o bosque de olmos e bétulas que rodeavam a estrada. —Olhe, senhorita Emma, há um anel de cogumelos. Venha, vamos ver se apanharmos um leprechaun. —Se apanharem um —lhes gritou Bria—, não o deixem escapar até que lhes ensine seu tesouro. Emma tinha começado a seguir Noreen para as árvores, mas se voltou, com uma mão recolhendo a saia e a outra inclinando para trás o guarda-sol festoneado de renda para deixar descoberto sua cara sorridente. —Temo-me que é mais fácil que apanhe um caso grave de hera venenosa — disse, com uma risada tão doce que a Bria lhe encolheu o coração. Emma seguiu às meninas dentro do bosque, inclinando-se para observar enquanto Noreen olhava debaixo de cada cogumelo. Noreen fez, também, alarde de uma boa dose de lábia, falando dos costumes dos leprechauns. Merry mantinha a boca fechada, como de costume, mas a felicidade fazia com que seus lábios se curvassem em um sorriso. «Se apanharem um leprechaun...» Mas Emma Tremayne tinha já tantos tesouros, para que ia querer outro? Era quando recordava o dinheiro de Emma, quando recordava sua posição entre as Grandes Famílias, quando Bria compreendia quão desatinado eram seus sonhos. Os insensatos que eram aqueles sonhos que se escondiam e pulsavam em seu coração. O sonho de que Emma se casasse com Shay e o fizesse feliz, da maneira que uma mulher que ama a um homem, desesperadamente e exclusivamente, pode fazê-lo feliz. O sonho de que Emma fosse uma mãe para suas filhas, que as tirasse da fábrica e as enviasse à escola, vestisse-as de renda e cetim e encontrasse homens decentes que se casassem com elas. O sonho de que Emma criasse ao pequeno Jacko, em seu lugar, que o educasse para ser um cavalheiro,

com todos os costumes e maneiras de um cavalheiro e todas as vantagens de um cavalheiro no mundo. O sonho de que Emma se casasse com Shay e fosse uma mãe para suas filhas, para seu filho... Mas, para Emma Tremayne, casar-se com um pescador irlandês seria algo tão vergonhoso como teria sido para Bria O'Reilly casar-se com um cigano. Para Emma significaria a perda de todo seu mundo. Seria necessário um amor muito forte para suportar um custo tão alto para fazê-lo realidade. Mas Emma tinha esse amor, Bria estava segura. Tinha-o visto em seus olhos. Que Emma se casasse com Shay... Doía-lhe pensá-lo, como podia ser de outra maneira? Mas o único que Bria tinha que fazer era pensar nele, em seus filhos, e um amor feroz e terrível lhe inundava o coração. Um amor tão forte e tão velho como o próprio mundo, um amor que perduraria até muito depois de que sua morte fosse um fato consumado. Às vezes, era duro, muito duro, pensar neles, vivendo sem ela. Mas para saber que algum dia todos poderiam encontrar a felicidade de novo, para ter essa segurança, faria algo, suportaria qualquer coisa. Levavam caminhando um bom tempo e a Bria custava cada vez mais dissimular o fraco que se sentia de repente, o difícil e ofegante que se tornou sua respiração. As lobelias vermelhas que resplandeciam entre as árvores se voltavam imprecisas a seus olhos. Shay lhe assinalou um porco-espinho negro com suas puas com a ponta branca, que estava deitado sobre uma rocha, aproveitando o sol ao máximo, e Bria assentiu e sorriu, apertando os dentes para que não tocassem castanholas. Via o sol, brilhando ao vermelho vivo sobre a água e sabia que fazia calor, mas ela sentia frio, muito frio. A tosse brotou lhe rasgando o peito e lhe saindo pela boca; uma tosse úmida, gorgoteante, mesclada com sangue. Dobrou-se em duas sob sua força, tentando detê-la com o lenço. Quando o obteve, levantou a vista e viu aqueles

que amava olhando-a com medo e dor gravados a fogo em suas caras. Shay e Emma estavam um ao lado do outro, muito separados para tocarse. Enquanto ela vivesse, sempre se manteriam a parte, mas se estava morrendo, logo estaria morta e se necessitariam mutuamente para poder superá-lo. Na Irlanda se dizia que um bardo moribundo podia passar a outro o dom de sua música. Mas só a um amigo muito querido.

Uma turma de meninos andrajosos e bagunceiros cruzaram correndo a erva queimada pelo sol do Terreno Comunal de Bristol, fazendo soar chifres de pesca e búzios. Um deles lançou um petardo aceso debaixo do quiosque dos músicos. Explodiu com um ruído forte e fumegante, rasgando o tecido vermelho, branco e azul da bandeira. O ruído fez com que Emma levasse um susto e logo risse de si mesma. —Meu pobre carinho — disse Geoffrey, lhe dando um tapinha solícito na mão que ela tinha apoiada em seu braço—. Assustaste-te muito? Olhou, furioso, à bandeira rasgada. A julgar pela condição em que estava, aquele petardo não era o único ataque que tinha sofrido aquele dia. —Esses endemoninhados ratos de fábrica; isto é o que acontece lhes dar o dia livre. Teria que haver uma lei que proibisse acender petardos nos lugares onde possam danificar a propriedade pública e assustar as senhoras. —Mas, Geoffrey, assim estragaria toda a diversão. —Emma se pôs a rir de novo, enquanto inclinava a cabeça para trás para olhar um globo vermelho que flutuava em um céu de bronze e se enredava entre os ramos de um enorme e altivo olmo—. Compra-me um desses petardos que parecem canhões, por favor? Eu gostaria de fazê-lo explodir durante o discurso do prefeito; quando chega a essa parte que diz que os canhões da liberdade trovejam ao longo dos tempos... Seria um momento perfeito, não acha? —Já está tirando sarro de mim outra vez — disse Geoffrey, depois de um momento de silêncio.

—Sim, Geoffrey. Inclinou-se para ele para lhe endireitar a gravata branca e azul, embora aquele acessório nunca se atrevesse a torcer-se, enquanto rodeasse o pescoço de Geoffrey Alcott. Sorriu ante a ideia e lhe teria dado um beijo na bochecha, mas ele desaprovava as amostras de afeto em público. —Geoffrey, está passando bem? —perguntou—. Está bem de verdade? —Claro que estou passando bem. É Quatro de Julho bristoliano... Por que não ia estar bem? —Realmente, é um autêntico dever para qualquer bristoliano desfrutar de seu Quatro de Julho e você, meu queridíssimo Geoffrey, nunca fugiria ao seu dever — disse, sorrindo para que visse que falava em brincadeira. Depois de tudo, fez todo o caminho da nova fundição do Maine, só para estar com ela aquele dia. Perguntou-se se desfrutava mais da companhia de Geoffrey agora que não o via há tanto tempo. Não era um pensamento cômodo. Mas também havia outras vezes em que conseguia convencer-se de que seriam felizes, Geoffrey e ela, como marido e mulher. Agora já sabia o que podia esperar dele e, por isso, seria o bastante sensata para não esperar que fosse o que não era. Porque a classe de homem que ela desejava, a classe de homem que podia amar com todo seu coração, em lugar de com só uma parte... esse homem não existia em seu mundo. Porque esse homem, o homem que amava, era Seamus McKenna e nunca poderia ser dele. Bom, já estava dito, dito com total claridade, com tudo o que tinha de injusto. Amava-o, embora não queria, embora tinha feito o impossível por não amá-lo. Mas querer e esforçar-se não tinham mudado o que sentia. E às vezes, temia o dano que esse amor secreto, embora estivesse profundamente guardado, faria um dia a seu matrimônio com Geoffrey. Geoffrey voltou a lhe pôr a mão em seu braço e reataram o passeio,

detendo-se, de vez em quando, para saudar gente que acabavam de ver, fazia só um momento, enquanto olhavam o desfile. Todo Quatro de Julho, desde que se recordava, os Alcott tinham aberto sua casa ao público durante o desfile, embora ninguém, salvo as Grandes Famílias, teria se atrevido a entrar sem ser convidado. Todos saíam à rua, com copos de ponche e partes de bolo de laranja na mão para ver desfilar as bandas de música, os veteranos da guerra e os carros de bombeiros. Todos voltavam a entrar para falar do que tinham visto e do tempo que fazia enquanto o estavam vendo. Igual à última caçada da raposa da temporada, na fazenda Hope, ver o desfile de Quatro de Julho da varanda de mármore da mansão dos Alcott na Rua Hope, era uma tradição das Grandes Famílias. E o tempo proporcionava um interesse maior do que o usual para as conversações, porque fazia tanto calor que parecia que o ar rangesse. Durante toda a manhã o sol tinha batido com força o terreno comunal e agora se levantava um pó amarelado que se pousava nas mesas carregadas com feijões guisados, sopa de mariscos, tortas de bacalhau, bolo de milho e bolo de maçã. Enquanto passeava de braço dado com Geoffrey, Emma pensava que, quando está apaixonada por um homem, vê-o por toda parte. Vê-o em um par de ombros largos que se afastam. No cabelo que cai negro e muito comprido, de debaixo de um gorro irlandês de tweed. No brilho de uns dentes brancos em um sorriso descarado. Aquele dia pensou que o via sair de uma loja de listras amarelas, com um cartucho de sorvete na mão. Pensou que o via entre a multidão que animava a um menino que tentava agarrar um porco coberto de graxa. Pensou que o via levando uma cesta de ostras ao concurso de abrir ostras. E cada vez que o via, um momento em que ficava sem respiração, antes de dar-se conta de que não era ele, depois de tudo, o rubor lhe cobria a cara e parecia que o coração ficava de manteiga, quente e pesado, no peito.

E então o viu, viu-o de verdade. Estava subindo Merry em cima de um dragão, um dragão de carrossel, com escamas verdes e jogando fogo laranja pelo nariz. Noreen já estava montada em um camelo meio doido com um pelo vermelho. Enquanto Emma o olhava, ele agarrou uma barra e pôs em marcha a plataforma, rindo. A música brotou do realejo de vapor e o carrossel começou a girar e a cabeça de Emma começou a lhe dar voltas, enquanto umas bolinhas de sol dançavam diante de seus olhos. Procurou Bria e a encontrou, sustentando ao pequeno Jacko com um braço e fazendo adeus com o outro a aquela coleção de animais que davam voltas. Mas Bria deve ter notado sua presença, porque se voltou e seus olhos se encontraram e o sorriso de alegria e boas-vindas que enviou a Emma saía do coração. Emma nunca teria se aproximado de Shay, se tivesse estado sozinho, por muitas razões, mas com Bria ali, não lhe ocorreu não ir. Nunca poderia deixar de lado a sua amiga, não diante de Geoffrey, não diante do mundo. Emma deslizou a mão pelo braço de Geoffrey para lhe agarrar a mão e levá-lo com ela. —Geoffrey, está aqui a senhora McKenna, de quem te falei, minha amiga, a que teve um menino, lembra-te? É hora de que lhes conheçam, não acha? Geoffrey olhou ao redor, com evidente desconcerto, antes de ver a mulher com o bebê, que sorria e estendia a mão a Emma. E aquele homem gigante com gastas calças de veludo cotelê, que acabava de lhe rodear a cintura com o braço. —Esta é sua amiga? —disse Geoffrey—. Não sei, mas tinha pensado... Não acabou, mas Emma sabia o que tinha pensado; que a senhora McKenna da que tinha ouvido falar era uma irlandesa de classe alta, não das que viviam nos barracos.

—Minha queridíssima, minha melhor amiga do mundo — disse Emma, enquanto agarrava Bria pela mão e seus dedos se entrelaçavam. Inclinou-se para diante para juntar sua cara com a de Bria e beijar ao bebê na bochecha. Os escuros olhos de Bria brilhavam e riam. Brilhavam-lhe as bochechas como rosas beijadas pelo rocio, mas Emma sabia que eram as flores de uma falsa saúde. No dia anterior Shay tinha tido que levá-la nos braços ao voltar do passeio. Nunca antes a tinham visto tossir tanto sangue. —Bria — disse Emma, lhe dando um suave apertão na mão—, eu gostaria que conhecesse meu prometido, Geoffrey Alcott. Geoffrey, estes são os McKenna, Bria e seu marido, Seamus. E este — continuou, afastando a manta da cara do bebê, para que pudesse vê-lo melhor— é o pequeno Jacko, que já tem mais de um mês e é uma maravilha. —É um prazer conhecê-la, senhora —disse Geoffrey, inclinando a cabeça em direção a Bria. Se a reconheceu como a operária da fábrica que tinha levado um menino morto à última caçada da raposa da temporada, não o demonstrou—. Senhor — disse a Shay—. E pequeno senhor — disse, dedicando um pequeno sorriso ao adormecido Jacko. —Encantada, senhor Alcott —disse Bria, olhando-o atentamente, a sua vez, com aberta curiosidade. De repente, Emma se sentiu um pouco incômoda por seu futuro esposo, embora não teria podido dizer por que. Apresentava uma elegante figura, como sempre, com seu traje de linho branco e o chapéu de palha. Sua conduta era, como sempre, um compêndio das boas maneiras das Grandes Famílias. —Faz bastante calor hoje, não é certo? —disse Geoffrey, para encher o silêncio que se produziu depois das apresentações. —Um calor terrível — disse Shay, com seu acento irlandês de teatro, mais denso que um prato de roupa velha—, mas seria estranho que não o fizesse, vá, com este sol brilhando em um céu espaçoso e nenhuma pingo de vento, nem por acaso.

Tinha uma cara muito séria, mas por um muito breve momento seu olhar se encontrou com o de Emma e esta viu a risada escondida dentro. —McKenna, McKenna — ouviu dizer Geoffrey—. Ah, sim. Você é o irlandês que vai brigar contra James Parker, nosso campeão de Harvard, esta noite. —Pois sim, esse sou eu. —Shay colocou o polegar no bolso em uma pose masculina—. Espero fazer um combate decente. Os lábios de Geoffrey se afastaram em um sorriso de dentes longos. —Acredito que ganhou uns quantos combates profissionais em seu momento de apogeu, faz já tempo. —Olhou para Shay de cima abaixo, lentamente, como se fizesse tempo que o irlandês estivesse em decadência—. Mas terá muito trabalho com nosso campeão de Harvard. É o capitão da equipe de futebol e rema com o número sete da tripulação. É uma questão de estirpe racial e criação, sabe? Uma questão de quem tem a vista mais aguda, a mão mais firme, tanto se cavalgar como se dispara ou boxeia, o que faça. O homem de pura estirpe ianque é simplesmente o animal melhor. —Och, o melhor animal, diz? —Bria tinha posto em jarras a mão que não estava ocupada com o bebê e punha uns olhos muito redondos de fingida surpresa—. Tola de mim, que tinha a ideia de que ter uma alma é o que nos fazia a todos, sem importar a criação, ser superiores às bestas. E agora me diz que somos só nós, os irlandeses, os que fomos bentos com esse dom. O realejo do carrossel ficou silencioso, um silêncio quebrado com o estrondo de uma série de petardos. Passou um homem, carregado com um enorme balde, com uma chaleira no centro e meia dúzia de taças de lata penduradas da borda, anunciando aos gritos: —Limonada fria, feita à sombra, mexida com um pau por uma solteirona feia. —A senhora McKenna —disse Shay— sempre foi partidária de ter a língua aguda e firme.

—Certamente — disse Geoffrey, forçando um sorriso que fez com que os cantos dos lábios lhe pusessem pálidos. Inclinou-se e saudou Bria, levantando o chapéu—. Por desgraça, esperam-nos, de um momento a outro, na loja do prefeito, assim temos que lhes desejar que passem um bom dia e um feliz Quatro de Julho. Mais tarde, Emma se perguntaria por que não tinha feito nada, dito nada, por que não tinha sido nada. Tinha deixado, simplesmente, que Geoffrey a levasse dali. Sentia-se tão vazia como se, em seu interior, tivesse explodido um enorme espaço, cheio de ar. E a tivesse feito saltar pelos ares.

O sol se escondeu atrás das bétulas de ponta Poppasquash quando o árbitro riscou uma listra com giz no centro do ring e chamou os pugilistas que iam competir na Primeira Exibição Anual de Boxe Profissional de Quatro de Julho, em Bristol. Uma nuvem de fumaça procedente das tochas acesas, empapadas em petróleo, espessava o ar por cima do ring, que tinham levantado no meio do terreno comunal. Era feito de estacas destruídas dos pinheiros dos bosques de Tanyard e cordas dos arranjos de um navio. Em cima da erva, tinham estendido e esticado, um chão de lona, feito com velas velhas costuradas. Os boxeadores já tinham jogado os chapéus dentro do ring e jogado uma moeda para sortear os cantos e agora Shay estava de pé em seu canto, sacudindo braços e pernas para afrouxar os músculos e respirando profundamente para alargar os pulmões. E procurando a sua mulher com os olhos, dentro da movediça multidão, sem estar seguro de encontrá-la. Embora não tinham falado muito disso, sabia que tinha uma certa amargura em seu coração pelo que ele estava a ponto de fazer. Por romper a promessa que lhe fez uma vez e por romper a promessa que um homem tinha que fazer-se constantemente: atuar de forma honorável em todas as coisas. Ali, tinha-a encontrado, depois de tudo, de pé junto ao quiosque de

música, com a bandeira feita migalhas. Assim, tinha vindo, mas estava sozinha. Disse-lhe que ia pedir a sua vizinha, a viúva senhora Vai, que era uma ianque das restingas, mas uma boa mulher, apesar de tudo, que ajudasse às meninas a cuidar do pequeno, ali na casa da Rua Thames. Disse-lhe, cortante, que não permitiria que suas filhas vissem a exibição de boxe. —Não seria nenhuma vergonha para elas ou para ti —disse— que lhe vissem perder um combate brigado limpamente. Mas ver que seu pai vende sua honra por dinheiro, isso não vou permitir. —É pelas crianças que faço isto — lhe tinha respondido ele. Por um momento, acreditou que ia lhe bater, tão furiosa ficou. —Não minta para mim, Seamus McKenna — disse e suas palavras eram mais cortantes porque as havia dito em voz baixa, não a gritos—. O faz pela Irlanda e o que é a Irlanda para seu filho que nem sequer nasceu ali ou para suas filhas que mal a recordam? Irlanda é só um lugar no mapa para elas. Quando vais colocá-los á frente da Irlanda, Shay? Quando vais pôr-me em primeiro lugar? Possivelmente pense nisso, por fim, quando já estiver morta? Ele a rodeou com seus braços, tratando de abraçá-la muito forte. —Bria, Por Deus, não diga isso. Sabe que te quero mais que a nenhuma outra coisa. Ela se manteve rígida um momento mais, antes de abraçar-se a ele e lhe apoiar a cabeça no peito, lhe oferecendo o doce consolo de seu corpo, como sempre fazia. —Eu não disse que não me quisesse. Sentiu uma enorme vergonha ao ouvir aquelas palavras e ainda sentia. Vergonha e pesar ao saber o profundamente que a decepcionava. A honra era tudo para Bria. Talvez a única coisa que valorava mais que a honra era o amor que sentia por ele e por seus filhos. Embora naquele momento, seu olhar não era muito amoroso. Podia intimidar a maioria dos homens, só com seu tamanho, mas sua esposa sempre

lhe enfrentava, estava a sua altura em atos e palavras. Bria O'Reilly McKenna sentia temor de Deus, mas Shay duvidava que sentisse qualquer outro temor. Assim quando seus olhares se encontraram, sorriu-lhe; com o sorriso que estava acostumado a usar com ela quando, de repente, tinha vontade de deitar-se com ela e ela estava ocupada com essas intermináveis tarefas das mulheres e não estava de humor..., até que ele a alcançava com aquele sorriso dele, que era como um murro redondo. Mas possivelmente esta vez seu sorriso não funcionasse. Então, enquanto a olhava, todo o corpo de Bria pareceu abrandar-se. Embora não podia vê-la muito bem, com todo o espaço e a gente que os separava, pensou que em seus olhos estaria aparecendo uma calidez, a calidez que oferece um fogo bem alimentado em uma noite gelada. Pensou que um sorriso estaria lhe curvando o canto dos lábios, a classe de sorriso que um homem quereria capturar com um beijo. Pensou que sua cara teria a expressão de uma mulher que seguia amando e perdoando a seu homem embora soubesse que não deveria fazê-lo. E, de repente, Shay notou um áspero nó na garganta, igual a quando era menino e precisava chorar, mas sabia que era muito grande para fazê-lo. Fazia muito tempo que não pensava naqueles primeiros dias nas praias de Gortadoo. Mas agora pensou neles. Pensou em como admirava a força que encontrava nela, inclusive antes que chegasse a conhecer a profundidade dessa força. Admirava o movimento dos músculos em suas costas enquanto estendia as pesadas redes em cima das rochas, à maneira como separava bem os pés e os enterrava profundamente na areia plantando-os. Toda ela, sempre plantava com firmeza, não apanhada em sonhos insensatos, como ele fazia. Pensou nas sensações de seu corpo, na fome de seu corpo, de pé com o peito contra as costas dela e as mãos enlaçadas debaixo de seus seios, enquanto olhavam como se escondia o sol, lentamente, no mar púrpuro e o vento empurrava o cabelo de Bria contra sua cara e ele o cheirava e seu coração perdia seu sentido de direção e se esquecia de pulsar.

Pensou na expressão da cara de Bria flutuando por cima da sua na caverna, escura e secreta, de seus desejos, enquanto lhe aprisionava os quadris com suas coxas e apertava seus seios contra seu peito e o sabor de suas lágrimas, salgadas e cálidas, caindo nas bochechas e em que lhe dizia: «vou ser sacerdote». Inclusive então lhe mentia. Uma mão lhe deu uma forte palmada nas costas, arrancando seu olhar e seus pensamentos de sua esposa com uma dor que era física. E se encontrou olhando a cara carrancuda de seu cunhado. —Não sei —dizia Donagh— por quais caminhos vagavam seus pensamentos, guri. Mas será melhor que lhes assobie para que voltem ou te encontrará caído de cú aos dez segundos do primeiro assalto. —Cuide de suas coisas Padre — disse Shay—, e deixa que eu me encarregue das minhas. Donagh levantou o queixo. —Já tenho todas as minhas esponjas empapando-se bem no balde e minhas toalhas à mão e eu estou me fazendo de segundo de um homem que se esqueceu de como ser o campeão que é. Shay notou que a cara lhe punha vermelha e quente. —Ai, Dhia, Donagh, o que teria que haver dito é que é um bom homem para estar no canto de um tipo como eu. E o que estou é agradecido de te ter ali. Donagh suspirou, e encolheu os ombros, ruborizando-se um pouco. —Bom, bem... Temos que agradecer ao bispo, homem sábio que é. O bispo do padre O'Reilly não ficou muito contente ao inteirar-se de que um de seus sacerdotes ia atuar de segundo em uma exibição de boxe, até que soube que uma parte nada pequena do dinheiro do prêmio acabaria na caixa das esmolas da Santa Maria. Naquele momento, o árbitro chamou os combatentes ao centro do ring para que se estreitassem as mãos. Os dois lutariam nus até a cintura e levariam calções brancos, ajustados, até o tornozelo e sapatos de couro. Mas o campeão

de Harvard trotou até a metade do ring envolto em um penhoar turco azul, de seda, que provocou um comentário muito pouco sacerdotal na boca do padre O'Reilly. Shay olhou a seu rival diretamente à cara pela primeira vez. James Parker era um homem jovem, de bonitos ossos, olhos grandes e muito separados e um desses narizes, longos e estreitos, típicos dos ianques. O nariz era um pouco muito reto naquela cara mimada, cheia de confiança, e Shay se prometeu naquele mesmo instante que faria ao moço o favor de quebrá-lhe antes que ele mesmo caísse pela Irlanda, que Deus a benza, no quarto assalto. Logo, enquanto se estreitavam as mãos, Shay olhou a seu rival ao mais profundo dos olhos e viu seu medo. Sempre havia medo no ring. Um medo que se podia saborear, tão amargo e corrosivo como ácido na língua. Um medo que podia cheirar, rançoso, em seu próprio suor. O segredo para ganhar era te lançar contra o medo. Odiar o medo que encontrava dentro de ti mais do que odiava ao homem que via o outro lado do ring. O árbitro separou as mãos enlaçadas e os dois voltaram para seus cantos respectivos. Shay estendeu as mãos a Donagh para que o sacerdote apertasse os cordões das finas luvas de treinamento que lhe cobriam os nódulos. Levavam as luvas para obedecer, na aparência, a lei que exigia que as usasse inclusive em brigas de exibição e combates de treinamento em público. Na Irlanda tinha brigado com os punhos nus, que tinha empapado em suco de nozes. Naqueles dias suas mãos eram tão resistentes e duras como nós da madeira. Não estavam nessas condições agora e sabia que, inclusive com as luvas, ao final da noite, suas mãos seriam uma massa torcida e esfolada. Donagh atou o último cordão e o olhou. —Tem um plano, verdade? —disse, em voz baixa— sobre como vais fazê-lo. —Sim.

Shay brigaria duro durante três assaltos para oferecer ao público a exibição que esperavam. Iam brigar segundo as regras do Marquês de Queensberry, que desqualificavam a qualquer boxeador que caísse sem que o golpeassem, inclusive se escorregava. Para o quarto assalto, a lona estaria tão molhada de suor e sangue que Shay poderia fazer com que um «escorregão» parecesse convincente. —Farei com que seja... «Convincente» estava a ponto de dizer. Salvo que nunca chegou a dizê-lo porque entre a massa de assistentes à velada que rodeavam o ring, acabava de ver Emma. Estava de pé, com uma mão no braço de seu futuro marido, o arrumado e rico Geoffrey Alcott, mas inclusive desde aquela distância, podia ver que seus olhos estavam cravados no ring e se perguntou o que veria. Se veria o Shay McKenna como o briguento irlandês que conquistava aos homens com seus punhos ou como o cavalheiro andante que ele preferia pensar que era. Perguntou-se se lhe importaria que lutasse sujo ou limpo ou que atirasse sua honra ao lixo para conseguir o dinheiro para comprar armas para a Irlanda e o levantamento. Deus do céu... Já era bastante difícil ter que suportar a amarga verdade de que sua mulher pensava mal dele pelo que estava a ponto de fazer, sem ter que preocupar-se com o que podia pensar a senhorita Tremayne. Entretanto, deu-se conta, com grande surpresa, que isso lhe importava. Não gostava de pensar que ia degradar-se e degradar sua honra, diante dela. Donagh o sobressaltou ao lhe colocar, sem olhares, um protetor de couro entre os dentes. —Estaria bem, Seamus, guri, que te concentrasse no assunto que tem entre mãos — disse e lhe deu uma dolorosa palmada nas costas e um empurrão para enviá-lo ao meio do ring para pisar, com o menino de Harvard, a linha de começo.

A multidão foi ficando ansiosamente silenciosa e logo explodiu em um clamor, mais forte que qualquer petardo quando Shay enviou um veloz golpe cruzado de direita ao pescoço do Parker, lhe dando justo atrás da orelha e lançando-o com tanta força contra as cordas que o cânhamo lhe arrancou a pele das costas. Os dois lutaram, equilibrados, durante sete minutos brutais, antes que Shay soltasse um muito direito demolidor que aterrissou justo no meio da cara de Parker. O homem caiu sobre um joelho, justo quando soava o sino, pondo fim ao assalto. Shay se permitiu um sorriso, porque tinha partido o perfeito nariz do campeão de Harvard. Mas Shay também tinha recebido seu castigo. Tinha o lábio partido e a parte superior do peito tinha machucados e vergões. Donagh lhe deu uns toques no lábio com uma esponja e fez uma careta ao olhar ao canto contrário. O segundo do Parker estava aspirando sangue do nariz esmagado e cuspindo-o a lona. —Por todos os Santos —disse Donagh, fazendo um gesto negativo com a cabeça—. Já sabe que te quero muito, Seamus, guri, mas não acredito que eu fosse capaz de fazer isso. Além disso, com essa buzina que tem por nariz e que é um alvo que pede uma boa surra. A risada de Shay se viu interrompida pelo sino. —Mantén a guarda fechada e os cotovelos perto das costelas — lhe gritou Donagh, quando ele saltava fora de seu canto, saltitando. Parker saiu igualmente rápido, mas Shay viu desde o primeiro minuto que os golpes de seu rival careciam de força e ritmo e que começava a encolher-se inclusive ante golpes que não o alcançavam. Um homem briga tanto com a cabeça como com as mãos. Porque, embora o medo sempre o acompanha, não pode deixá-lo sair. Não pode permitir-se reconhecer o medo de que lhe façam mal, porque assim que o

reconhece, farão-lhe mal. E perderá. James Parker cheirava sua própria derrota no suor de seu medo, assim começou a jogar sujo. Começou a mover-se, agitando os braços com movimentos rápidos, por todo o ring, tentando desnortear ao Shay para fazê-lo cair. Lançou dois golpes baixos que levantaram vaias entre o público. Shay começava a pensar que ia ter que começar a dar-se murros ele mesmo, do contrário não conseguiria que o combate durasse até o quarto assalto. Então Parker fintou e lançou um golpe de esquerda que Shay esquivou facilmente, mas escorregou sobre um coágulo de sangue e, embora não caiu então, baixou a guarda o tempo suficiente para receber um murro no pescoço. As pernas pareciam tão ágeis como macarrão italiano enquanto ficava em pé cambaleando-se e o único que pôde fazer foi seguir inclinando-se, ziguezagueando e esquivando os golpes até que soou o sino. —Acredito que — disse Donagh, enquanto colocava um tubo entre os maltratados lábios de Shay para lhe dar água—, eu não gosto desse tipo. O que eu acredito é que necessita que lhe deem uma lição. Shay sorriu e logo fez, uma careta de dor, ao abrir-se o corte do lábio. —E o que acontece com a caixa dos pobres da Santa Maria? Donagh lhe devolveu o sorriso. —Deus, que é, ele próprio, um tipo tão bom para dar a cada homem o que merece, compreenderia. —E as armas do clã? —O clã, formado como o está de orgulhosos lutadores irlandeses também o compreenderia. Soou o sino e Shay ficou em pé de um salto, mas não deixou em seguida seu canto. —Olhou a sua mulher e pensou que o que estava a ponto de fazer, provavelmente, dentro de seu coração, tinha tido intenção de fazê-lo todo o tempo. Por ela... Sempre o fazia melhor do que era, sua Bria. Um homem briga com o coração, tanto como com a cabeça e as mãos.

Briga com o ódio e o fogo que leva no coração. Para bater em outro homem até fazê-lo cair ao chão com os punhos nus é necessário lutar sem nenhuma piedade nem compaixão. E para fazer isso, é necessário odiar. Shay lançou um tremendo curto de direita que partiu em pedaços o que ficava do nariz de Parker, mas ele não via o homem a quem golpeava. Via o corpo de sua mãe, golpeado pelas ondas, quebrado em uma praia rochosa. Via o corpo branco e magro de sua esposa debaixo de um bode no cio, que vestia uma casaca tão vermelha como o sangue que havia entre as coxas de Bria. Shay cortava a cara do homem com golpes curtos e precisos e atirava murros demolidores em seu peito e estômago, lançando-o através do ring, contra as cordas. Parker mantinha os braços levantados diante dele em uma vã tentativa de desviar os golpes de Shay. Inclusive deixou de tentar devolvê-los, salvo por um aturdido intento de chegar à cara de Shay com uma esquerda vacilante. Shay lançou vários tiros de esquerda à cara do outro, logo fintou para aplicar um muito direito à mandíbula. Parker se encolheu, levantando de novo os braços e Shay moveu todo seu considerável peso, avançando o pé direito e dando um golpe com o punho direito contra o coração de Parker e outro com o esquerdo contra seu estômago. Shay ouviu e notou como lhe deslocava o polegar no mesmo instante em que via que a luz se apagava nos olhos de Parker e o campeão de Harvard caía na lona, inconsciente. O segundo agarrou uma esponja do balde de água e a atirou no meio do ring, enquanto a multidão chiava: Knockout! Knockout! E se equilibrava para as cordas. Shay procurou a sua esposa e a encontrou. Abria caminho para ele entre a massa de gente e sorria. Pensou que parecia tão jovem e bonita, com as bochechas rosadas e as tochas prendendo fogo a seu maravilhoso cabelo. Mas então tossiu com força e levou o punho ao peito e ele pensou que quase podia ver como seu coração lhe encabritava como um cavalo selvagem

dentro do peito. Bria abriu a boca e ele pensou que ouvia como o chamava. E logo o sangue brotou a fervuras de sua boca, de uma cor vermelha brilhante e tanto, tanto sangue, caindo pelo peito, como se lhe tivessem cortado a garganta. —Bria! —gritou, lançando-se para diante, empurrando, saltando por cima das cordas para chegar até ela, enquanto, de repente, os foguetes saíam disparados e do céu choviam estrelas.

Capítulo Vinte e Um Bria voltou à cabeça para um lado e olhou seu próprio cabelo estendido por cima do travesseiro, apagado, murcho e oxidado, como sangue velho. E sua mão, entrecerrada junto à bochecha, pálida como a cor dos ossos que levam muito tempo secos. Por cima do pulso se transbordava a renda mais bonita que pudesse imaginar. Notava a luxuosa suavidade da camisola que usava, acariciando o que ficava de carne. Pensou que Emma, a querida Emma, devia havê-la vestido com um de seus bonitos objetos. Teria-lhe gostado de ver que aspecto tinha com ela, mas provavelmente, mais valia não fazê-lo. Já não era mais que um montão de ossos, que pareciam presos com uma corda. Pela primeira vez, estava sozinha. As outras vezes, ao despertar sempre havia alguém no quarto com ela. Em geral, Emma durante o dia e Shay de noite e, às vezes, os dois juntos. As meninas, de vez em quando, com aqueles olhos assustados e sábios que sempre lhe partiam o coração. Seu irmão, Donagh, com sua estola sacramental, para lhe administrar os últimos sacramentos, que logo necessitaria. E em uma ocasião à senhora Vai trouxe o pequeno Jacko para que o visse, embora já não tivesse forças para amamentá-lo, nem sequer para agarrá-lo nos braços. Inclusive respirar lhe exigia mais força do que tinha. Parecia como se, com cada fôlego, pusessem-lhe uma pedra em cima do peito, uma por cada vez que respirava, uma por cada difícil e esmagadora vez que respirava. Logo

chegaria o dia em que haveria uma pedra em demasia e esse fôlego seria o último. Pobres Shay e Emma, sempre com o sorriso na cara e com suas palavras de consolo e suaves carícias. Mas às vezes... Às vezes despertava antes que eles se dessem conta e os pilhava despreparados e via em suas caras que lhes estava partindo o coração. Ouviu passos na cozinha e o assobio da chaleira. Ouviu vozes, Shay e Emma falando. Pensou que já se estavam ajudando a passar por isso, consolando-se mutuamente, apesar de que nem sequer sabiam, ainda. E enquanto deixava que suas pesadas pálpebras se fechassem e se esforçava por respirar, com uma respiração lamacenta, uma vez mais, Bria McKenna planejava como se despediria. Começou com seu irmão. Cada vez que vinha, perguntava-lhe se lamentava seus pecados e lhe respondia, com aquela voz que se tornou tão fina, lenta e estranha a seus próprios ouvidos: — Todos menos um e esse um não o confessarei a nenhum homem nem sacerdote, Donagh, assim não me peça isso. Mas, ao final, não podia suportar pensar que seu irmão se atormentaria, quando ela se fosse, preocupando-se com sua alma imortal e sentindo que, como sacerdote dela, tinha-lhe falhado e tinha falhado a Deus. Assim, a seguinte vez que veio, falou-lhe daquele dia no Castle Garden e lhe fez acreditar que lhe confessava o pecado de sua vergonha, embora em seu coração nunca sentisse arrependimento por esse pecado. Entretanto, quando viu que a delicada mão de seu irmão fazia o sinal da cruz em cima de sua cara e lhe ouviu dizer as palavras Ego te absolvo... no mais profundo de sua alma, Bria se sentiu perdoada. Donagh chorava enquanto lhe colocava a sagrada hóstia, seca e doce, na língua, devolvendo sua alma a um estado de graça. Mas justo antes de partir, inclinou-se para ela e lhe murmurou ao ouvido:·.

— Acaso Deus não compreende melhor os pecados nascidos do amor?

Foi algo terrível dizer adeus a suas filhas.·. Se tivesse sido mais parecida com o Shay — sempre lendo seus livros e ponderando o significado das coisas— possivelmente teria adquirido a suficiente sabedoria para transmitir a elas com o propósito de que as acompanhasse durante seus anos de orfandade. Mas sabia que, ao final, pouca de sua sabedoria teria importância. Teriam que aprender da vida ou não aprender absolutamente. Queria lhes dizer algo que fizesse com que nunca a esquecessem. Mas temia que se demorasse muito tempo ou punha muito esforço, o que mais recordariam dela seria sua agonia e isso não podia suportá-lo. Também tinha seu pobre Jacko, que não teria nenhuma lembrança dela. Assim ao final, cada vez que via as meninas, limitava-se a lhes pedir que se deitassem a seu lado para poder rodeá-las com seus braços, estreitá-las e lhes dizer que as amava. Pelo menos, teriam isso dela; em seu coração, saberiam que eram amadas. A Emma, sua querida amiga, sua alma gêmea, disse-lhe: —Deste-me uma de suas lindas camisolas, quando eu não estava olhando. Viu como a garganta de Emma se esforçava por tragar; viu o difícil que lhe resultava sorrir. —Sempre quis te dar muitas coisas —disse Emma— e você nunca me deixaste. —Deste-me mais do que pode chegar a imaginar. E agora também pode me dar algo; a promessa de que, quando eu tiver ido, seguirá vendo às meninas e ao Shay. Viu como os olhos de Emma se abriam, surpreendidos ou, possivelmente, assustados. Não estava segura do perto que qualquer dos dois estaria de admitir,

dentro de seu próprio coração, que estavam se apaixonando. Mas tinha a certeza de que nunca, nenhuma só vez tinha chegado a reconhecer-lhe mutuamente. Porque os dois a amavam muito e nunca quereriam lhe fazer mal. Mas quando se fosse, estaria mais à frente da dor. Não poderiam sujar o amor que tinham por ela, por querer um ao outro. Entretanto, não podia falar disto com muita claridade, não com Emma, não como o faria com o Shay. As palavras assustavam a Emma. A jovem que vivia na casa de prata e dançava em salões dourados, com diamantes no cabelo, sempre se mostrava incômoda quando olhava seu coração muito de perto. Assim Bria disse: —Me prometa que virá pelo bem das meninas. Chegaram a te querer muito. Perder também a ti seria mais do que o corpo e a alma deveriam ter que suportar. E Emma disse, contendo as lágrimas, com voz entrecortada: —É obvio que virei. Virei enquanto queiram que venha. Logo, uma vez que tinha conseguido sua promessa, Bria passou as horas em que estava acordada e tinha forças falando de seu homem e de que de nenhum guerreiro irlandês se cantaram tais canções como de Seamus McKenna. Uma vez disse: —A verdade é que acredito que gosta de viver com a alma em suspense, assim é meu Shay. Mas talvez os homens se sintam mais cômodos assim, vivendo e querendo o momento. Nós, as mulheres, tendemos a viver mais no ontem e o amanhã. E Emma perguntou: —Mas, quando vive em seu ontem, Bria, pergunta-te alguma vez como teria sido sua vida se não tivesse ido à praia para esperá-lo, aquele dia depois do baile? Pensaste alguma vez que poderia ter feito outra escolha? E Bria respondeu: —Sim, possivelmente poderia ter escolhido de forma diferente; escolhido

não amá-lo ou escolhido procurar mais dentro de mim essa classe de amor valente que o teria deixado ir. Mas logo, quando penso em meu amanhã, vejo que amá-lo haverá valido a pena, sem importar como acabo.

Aquele dia acabou com Bria expectorando tanto sangue e com tanta violência que salpicou por toda parte; as paredes e o chão, inclusive o postal da Virgem Maria. E Emma, com suas mãos senhoriais e sua roupa senhorial limpou tudo. Quando acabou, Bria se recostou de novo nos travesseiros, esforçando-se, lutando por recuperar o fôlego e poder dizer a Emma tudo o que havia em seu coração. —Mo banacharaid... — assobiou, e o ar se arrastou, sugando, úmido, dentro de seu peito. — Isso significa «minha amiga especial» em irlandês, havia-lhe dito isso alguma vez? E é uma grande, uma autêntica amiga... Emma, que estava inclinada por cima da cama, arrumando o lençol limpo, agarrou, com um impulso, a mão de Bria entre as suas e a levou a bochecha. —Ai, Deus, Deus. Não sei como vou viver sem ti. Bria sentiu como a invadia a debilidade, como aumentava aquele montão de pedras, de uma em uma, mas conseguiu sorrir. —Lembra-te? Quão único tem que fazer é olhar no espelho. —Não, não. —Emma cabeceou, negando, com tanta força que as lágrimas salpicaram as mãos, entrelaçadas, das duas—. Estava equivocada, equivocada. Você não é minha imagem invertida, é o melhor que há em mim. Ensinaste-me como devia ser. Tem-me feito vislumbrar a vida que teria que viver e agora me deixa para que a viva sozinha. «Não — pensou Bria —, deixo-te para que a vivas com meu Shay.» Shay... Seguia estando loucamente apaixonada por ele, agora igual à sempre. Às

vezes em que despertava de noite e o encontrava na cadeira junto à cama, observando-a, desejava que suas lembranças dela não fossem aquelas, a não ser as de outros tempos, quando ela era jovem e bonita e estava cheia de vida. Uma noite lhe pediu que se deitasse na cama com ela. Com ele deitado de costas, junto a ela, na escuridão, com a cara voltada para sua cara e o braço descansando, pesadamente, em sua cintura... Recordava-lhe aquelas vezes na caverna, quando eram tão jovens e tinham estado assim, simplesmente jogados juntos, abraçando-se estreitamente, sustentando-se. Pôs as palmas das mãos sobre seu peito e notou a tensão que havia nele; era um homem a ponto de explodir em mil pedaços. Pensou naquela vez na Irlanda quando, durante três dias, pensou que estava morto e a dor que sentiu todo o tempo era mais do que podia suportar. Perguntou-se como Shay aguentava isto, como o tinha aguentado durante todos aqueles meses, vendo como ela morria um pouco mais com cada fôlego, ou se, no mais profundo de seu ser, tinha preparado seu coração para sua morte fazia muito tempo. Com muita frequência, o coração de Shay tinha sido um mistério para ela. Mas acreditava que se lhe pedisse que fosse sincero por um momento, que lhe dissesse qual era seu maior desejo, diria-lhe: «Que vivas». E essa era a única coisa que não podia lhe dar. Assim, em troca, daria-lhe seu outro desejo fervente, embora ele ainda não soubesse qual era. Pôs-lhe as mãos no peito e notou como lhe pulsava o coração. —Fará uma coisa, uma coisa muito pequena, por mim, querido? — disse—. Quando eu tiver ido. Quero que guarde luto por mim, que chore por mim e que sinta muito minha falta. Mas depois de um tempo, quero que peça a nossa Emma que seja sua mulher. O brilho azul da lua que entrava pela janela mostrou sua expressão de assombro e, por debaixo do assombro, um estremecimento de culpa e dor. E outro sentimento que ela tinha esperado não ver: resistência. —Isso não é uma coisa pequena, Bria.

—Uma coisa grande, então. Moveu uma mão para cima para agarrar-se a sua nuca e aproximar-se mais a ele. Notou como o pulso saltava e pulsava com força sob sua mão, notou como lhe palpitava o coração sob sua mão. —Uma coisa absurda, impossível — disse ele, com a voz enrouquecida de dor—. Não pode conseguir, só com sua vontade, que ela ocupe seu lugar. Nem em meu coração nem no coração de nossos filhos. Não pode vir e me dizer que a queira e pensar que me casarei com ela quando você não esteja. — Mas ela quer às meninas e elas a querem e, a sua idade, têm muita necessidade de uma mãe. E nosso Jacko, tão pequenino como é, é o que mais necessitará de uma mãe. E ela seria uma boa esposa para ti. Seguir-te-ia até o fim do mundo. A risada de Shay foi rasgada, quebrada. —Querida, ela tem suficiente dinheiro para comprar o mundo inteiro. Para que me necessitaria? —Está a necessidade nascida do amor. Ela te quer Shay. Sei, porque o vi em sua cara e a conheço tão bem como me conheço, porque somos iguais no mais profundo de nosso ser. Ela te quer por ser o homem magnífico, valente e sonhador que é. Notou como o peito dele se agitava com força ao respirar. —A mbuire, Bria. Você é minha mulher. É a única mulher que quero. Assim apoiou a cabeça em seu peito, aninhando a bochecha no oco que havia por cima de seu coração, ouvindo-o pulsar. —Deixa que seu coração encontre seu caminho — disse. Podiam ter passado horas ou só minutos quando acrescentou: —Fiz-te mal, Shay... Aquela noite na praia em Gortadoo, te seduzindo e te afastando de Deus. Roçou-lhe a bochecha, o nariz e os lábios com os seus abertos. —Mo chridh, mo chridh... Queria que fosse minha esposa então e sigo

querendo-o agora e não sei como vou viver quando morrer.

As tardes em que tinha forças pedia que a levassem para fora, para ver morrer o dia. Envolviam-na em edredons e a sentavam em sua cadeira de balanço com o assento de palha e ela olhava como o sol se ocultava, lentamente, silenciosamente, atrás de ponta Poppasquash. Essa noite o sol poente arrastava listras de ouro pelo céu. O ar era suave e comedido e cheio de promessas. Tardes como esta, recordou... À tarde de um sábado de festa, de piquenique em Town Beach. Ela sentada, com as costas recostadas no tronco nodoso de um olmo. A cabeça de Shay apoiada em sua saia e ela brincando com seu cabelo, tão quente pelo sol e tão suave que lhe deslizava entre os dedos. As meninas observavam um atoleiro que a maré tinha deixado na areia, estavam agachadas, com os joelhos muito abertos e as duas cabeças inclinadas juntas, uma vermelha e outra castanha. Suas queridas filhas... E logo, afastou o olhar das duas cabeças, vermelha e castanha, para olhar a cara de seu marido e ver que tinha adormecido. Era um dia corrente, um momento corrente e, de repente, deu-se conta de que era feliz. Não feliz de um modo corrente, a não ser grosseiramente feliz. Tão cheia de uma alegria pura e violenta que parecia a ponto de explodir, tão transbordante que poderia ter gritado de gozo. E a felicidade que sentiu então era a mesma doçura de agora, ao recordála. Abriu os olhos e se encontrou sozinha. Não, sozinha não... Pensavam que dormia, Emma e Shay, assim tinham ido até a beira da água e estavam ali, um ao lado do outro, falando em voz baixa. Uma vez ouviu Shay rir. Então possivelmente ficou adormecida de verdade, porque quando abriu os olhos, o sol tinha diminuido e voltado de cor laranja no horizonte. Shay e Emma seguiam onde estavam e pareciam rodeados de uma luz dourada, como

acontece quando o sol volta a sair depois de uma tormenta. E era muito estranho, porque ouvia a voz de Shay, não destroçada como estava agora, a não ser bonita como tinha sido uma vez e sua voz estava em seu sangue, era parte de seu sangue, pulsando forte e cheia de vida, pulsando cálida por suas veias. Ouvia-o tão bem como se estivesse ao seu lado, mas sabia seguraramente que estava falando com Emma, falando com a Emma agora, dizendo a Emma: —Uma tarde como esta... Parece como se o sol se agarrasse a borda do mundo e o dia fosse durar para sempre e um instante depois o sol vai e perde sua pressa e o dia se acaba, depois de tudo. Mas sua promessa segue contigo, de algum jeito, dentro da noite. A promessa e a lembrança. «Sim — pensou Bria—, a lembrança segue viva.» Abriu a boca para pronunciar seu nome e notou que o fôlego abandonava seu corpo e não conseguia recuperá-lo. Por um momento, pensou que tinha anoitecido, mas logo viu que estava equivocada, porque o sol brilhava agora com mais força que nunca e Shay vinha para ela. Um Shay sem sombras, todo luz e juventude, alegre e ardente e lhe dizia: «Quer dançar comigo, mo chridh?». Assim que se meteu entre seus braços e dançaram, riram e se amaram sob o sol de um dia mágico.

Capítulo Vinte e Dois O ataúde negro laqueado de Bria McKenna descansava em cima de um par de tamboretes no meio da cozinha com o gasto papel de aves do paraíso nas paredes e o rachado linóleo no chão. A sua cabeça repousava uma coroa de flores de cera em um marco de seda. A seus pés, ardiam velas altas e uma lamparina. As chamas oscilavam com a corrente que entrava pela porta, aberta a uma noite de brumas do verão. O postal bento da Virgem Maria que antes pendurava da parede do dormitório, agora descansava sobre seu peito. Bria sustentava seu rosário de madeira entre as mãos, como se estivesse rezando. Todos diziam que estava muito bonita. O marido de Bria estava de pé, junto ao ataúde, vestido com um traje de pano negro, de portador do féretro. Estreitava a mão dos homens e aceitava beijos na bochecha das mulheres que vinham para lhe oferecer suas condolências e lhe dar avisos de missas pelo repouso da alma de Bria. Em voz baixa, seus lábios pronunciavam palavras de gratidão, mas seus olhos eram duas pedras plainas e lisas. Suas filhas estavam sentadas junto a ele, com as mãos enlaçadas em cima da saia de seus vestidos de luto. Noreen respondia a todos os que lhe falavam com uma voz educada e contida. Merry estava silenciosa, nem sequer cantarolava, mas de vez em quando, dava um suspiro tão estremecedor que a medalha que levava ao redor do pescoço saltava sobre seu peito. O filho de Bria, que nunca a conheceria, dormia em seu berço, junto à estufa. Fazia um momento — antes que viessem os vizinhos de Bria e seus

companheiros da fábrica para apresentar seus últimos respeitos— a cozinha estava tão silenciosa que Emma podia ouvir o gelo fundido que gotejava no recipiente que recolhia a água, debaixo da geladeira. Ajudou às meninas a pendurar papel crepe negro por cima da porta e só ouvia o chiado das gaivotas no porto e o gemido de uma boia na baía envolta em névoa. Pôs latas cheias de flores silvestres por toda a cozinha e preparou chá, café e encheu bandejas de queijo, bolo e pão de soda e todo o tempo esteve atenta para ver se ouvia seus passos na varanda, mas ele ficou na parte de trás, na praia onde Bria tinha morrido. Tinham pensado que estava adormecida. Levavam um momento juntos, olhando o pôr-do-sol e falando; não de nada muito importante, só falando dessa maneira tranquila que tinha nascido entre eles durante as últimas semanas da enfermidade de Bria. Falaram até que o sol se fundiu na baía de cor cobre, então deram meia volta para levar Bria para dentro e viram que se foi. Emma recordou que foi isso o que ele disse: —Ai, Bria, querida. Foste-te. Foi e se ajoelhou junto à cadeira de balanço e beijou os frios lábios e logo a pegou no colo e a levou ao interior da casa. Emma ficou na praia até que soou a sirene da mudança de volta na fábrica e então entrou para lhe ajudar a dizer às meninas. Abraçou Noreen enquanto choravam juntas. Merry não chorou. Sentou-se nos joelhos de seu pai e se encolheu e seu cantarolo era a música mais doce e triste que Emma já tinha ouvido. Depois ficou com as meninas um momento e deu a mamadeira com seu mingau ao bebê quando a senhora Vai o trouxe. Mas foi Shay quem se encarregou de lavar e vestir o corpo de Bria para o velório e o fez sozinho. O velório começou com muita gravidade, com o irmão de Bria dirigindoos na reza do rosário. Sua voz de sacerdote, lenta e profunda, salmodiava as

orações as convertendo em um coro glorioso de esperança e fé, mas sua cara tinha a cor cinzenta de um fogo morto. Emma se ajoelhou com os outros e fechou os olhos, escutando o clique das contas ao contar as ave-marias e os padre-nossos. Sabia que Bria tinha gostado da bonita música que faziam os rosários. E lhe teria encantado o que veio depois. Colin, o barbeiro, pôs ar no saco da gaita de fole, levou a boquilha à boca e encheu a noite de gemidos tão ásperos, ricos e tristes que tocavam os nervos da alma. Mas logo apareceram um violino e um acordeão. A música se voltou forte e alegre e não passou muito tempo antes que os sapatos começassem a claquetear e o abajur de querosene do teto oscilasse como se a pequena cabana se pôs a dançar sobre seus pilote. Alguém disse algo que fez com que algum outro risse e o bate-papo se voltou tão vivaz como a música. O padre O'Reilly passou uma bandeja com pipas de barro e uma terrina com tabaco. Os homens colocavam as jarras no balde da cerveja que havia na pia e faziam circular copos com poitín. Logo a cozinha se esquentou com os corpos apertados e as velas acesas e o ar se espessou com a fumaça do tabaco e o aroma de malte da cerveja. As mulheres se reuniram em torno da mesa, bebendo inumeráveis xícaras de chá. Emma permaneceu à margem, escutando, mas sem integrar-se. Sabia que as mulheres não estavam sendo grosseiras, mas não sabiam o que fazer com ela, assim não faziam nada. —Agarrou-se em seguida à mamadeira, que Deus o benza —dizia a senhora Vai. Como cuidadora do pequeno Jacko, era ela a que atraía quase toda a atenção—. Quando ela já não pôde lhe dar o peito, a pobrezinha. E por muito que vivam não encontrarão um bebê mais doce. Nunca arma escândalo. Só se está no berço durante horas, fazendo borbulhas de saliva e praticando seu sorriso. —Tem o sorriso de seu pai, vá se o tem —disse alguém.

—E o cabelo de sua mãe, que Deus a benza. Todas olharam para Bria, dentro de seu ataúde, com o cabelo estendido, como se fosse um leque escarlate, por cima do travesseiro de cetim branco. Todas menos Emma, que cruzou a porta aberta e saiu, sozinha, a alta varanda. O mundo inteiro estava impreciso, convertido em uma espessa nuvem de sal branco, que amortecia alguns sons e magnificava outros. Ouvia o ligeiro atraio sugador da maré sobre a praia, na parte de trás. A praia onde Bria morreu. A cabeça de Emma caiu para trás para olhar ao alto, a um branco infinito. Pensava que já não ficavam lágrimas e, entretanto, voltaram, transbordando de seus olhos, rodando por suas bochechas e metendo-se entre o cabelo. Pensou que não podia suportá-lo, que Deus tinha que acabar com aquilo já, porque não podia suportá-lo nem um segundo mais. Ao dia seguinte seria a missa funeral e logo enterrariam Bria no cemitério da Santa Maria, entre os velhos monumentos caídos, cujas caras, castigadas pelo tempo, estavam cobertas de musgo. Sua tumba seria uma nova cicatriz na terra, durante um tempo, mas ao fim de umas semanas, a erva começaria a crescer de novo e, quando chegasse o inverno, a neve e a chuva começariam a erodir a nova pedra. E na primavera, Emma plantaria violetas e floresceriam. Com o tempo, Emma sabia que suas lágrimas deixariam de ir a seus olhos com tanta facilidade e que o que parecia tão insuportável agora chegaria a ser suportável, quase sem que ela se desse conta. Mas seu coração se agarraria a sua dor para sempre, agarraria-se a ele como um apaixonado. Porque seu coração sabia que havia perdas que nunca se superam.

Quando o velório terminou, a névoa se tornou tão espessa como o soro do leite. Em grupos de dois e três, por famílias ou sozinhos, os convidados introduziam os dedos na pilha de água benta e recebiam do padre O'Reilly a bênção da Dia is Maire Dhuit antes de desaparecer no branco sudário da noite.

E a casa ficou silenciosa de novo. Emma ajudou às meninas a despir-se e se encarregou de que se deitassem para o resto da noite na branca cama de ferro. Inclinou-se e afastou os vermelhos cachos da testa de Merry e beijou a pele suave e rosada. Merry cantarolou. —Diz que mamãe não quer nos deixar — disse Noreen. Emma rodeou a cara de Merry com as mãos. As bochechas da pequena estavam molhadas e pegajosas pelas lágrimas. —Claro que não queria tesouro, porque lhes queria há todos muito, muitíssimo, mas agora está em paz, no céu. O cantarolo de Merry adotou um tom furioso e sacudiu a cabeça, com força, mas esta vez Noreen se limitou a encolher os ombros. Emma agasalhou melhor Merry, puxando o lençol debaixo de seu queixo redondo, adornada com uma covinha. —Boa noite, meninas — disse, embora mal conseguisse pronunciar as palavras, de tão ressecada que tinha a garganta. Mas quando dava meia volta, para partir, Noreen disse em voz muito baixa e tensa: —Senhorita Emma, pode deitar-se conosco um momento? Assim baixou a luz do abajur e se deitou junto a elas em cima do edredom, com seu estampado de flores, e ficou ao lado das filhas de Bria na escuridão, naquela segunda noite que passariam sem ela. Pela porta aberta do dormitório ouvia Shay falar com o irmão da Bria. Melhor dizendo, o sacerdote falava, mas não havia nenhuma palavra de resposta do marido de Bria. E quando as meninas dormiram por fim e ela saiu à cozinha, encontrou-o sozinho, de pé no meio do gasto chão de linóleo marrom como se não estivesse do todo seguro de como tinha chegado até ali. A saia de tafetá negro do vestido de luto de Emma, sussurrou ao aproximar-se e lhe colocar a mão no ombro e ele se voltou, lentamente, de forma

que, por uns instantes, pareceu que sua mão ficava colada ao pano negro de sua jaqueta antes de cair ao lado. —Se houver algo mais que possa fazer... Olhou como tentava sorrir e não o conseguia. —Não, obrigado. Já tem feito muitíssimo. —Seu olhar voltou para o féretro de em cima da mesa, como se o puxasse. Olhava-o como se esperasse que a mulher que havia dentro se levantasse e fosse até ele—. Eu gostaria de ficar sozinho, por favor — disse. Disse-o com amabilidade, quase com doçura, mas a Emma doeu. Voltou-se e o deixou ali, mas quando acabava de cruzar a porta, detevese e olhou para trás, embora depois desejou não havê-lo feito. Ele tinha ido até o ataúde e estava de pé, olhando a cara de sua esposa morta e, naquela silenciosa cozinha, Emma o ouviu pronunciar umas palavras doloridas e desesperadas. —E como se supõe que vou seguir vivendo sem ti, Bria, querida? Podeme dizer isso, mo bhean?

Nos dias que seguiram à morte de sua esposa, Shay McKenna tirava o barco de pesca ao mar e ficava ali até que escurecia. Em agosto, as horas de luz eram longas e era fácil as encher recolhendo redes, pegando o que tinha caído nas armadilhas e cevando as linhas. Os dias que não havia vento, remava. Esses eram os melhores dias, quando conseguia cansar-se tanto que não podia pensar e a única dor que sentia era a dos músculos, das articulações e dos ossos. Mas às vezes... Às vezes, o sol poente deixava às nuvens da cor do cabelo de Bria e a água que se derramava por cima da proa soava como sua risada. Ou a brisa do entardecer fazia o mesmo som, como um pequeno suspiro, que ela sempre fazia quando ele entrava nela e, então, conhecia uma dor que lhe corroía a alma, a dor da perda e de nunca mais. Shay McKenna pensava que, às vezes, parecia que tinha pegado uma

escopeta e tinha disparado contra si mesmo, abrindo um buraco no coração. Fazia mais de duas semanas que ela se foi quando, um dia, voltou para casa um pouco antes do habitual. Inclusive assim, o sol já tinha se posto, deixando o céu de cor cinza com brochadas de carvão aqui e ali. Levou um tempo para tirar o barco da água, atrasando o momento em que teria que entrar na casa e ela não estaria ali. Quando se obrigou a subir a varanda e abrir a porta, as luzes já estavam acesas em meio da crescente escuridão. Pensou que a cozinha cheirava bem, ao jantar que se cozinhava nos fogões. Começou a entrar no dormitório, mas logo se deteve de repente na soleira. A senhorita Emma Tremayne estava inclinada sobre sua cama, trocando a fralda suja de seu filho. Enquanto a olhava, ela colocou a cara na barriga do Jacko, esfregando-lhe com o nariz e o pequenino agitava os punhos e ria, com aquele profundo gorjeio que fazem os bebês. E as lágrimas acudiram, ácidas, aos olhos de Shay McKenna. Ela deve ter percebido sua presença, porque se endireitou e se voltou. Soltou uma pequena exclamação de surpresa e o sangue lhe tingiu de rubor as bochechas. —Senhor McKenna! Pensava que estava... Espero que não lhe importe. Necessitava que o trocassem. Ele assentiu e fez um gesto com a mão, como se lhe desse permissão para seguir com o que fazia. Mas não parecia poder dizer nada e retrocedeu, saindo de costas, sentindo-se enorme e torpe e muito grande para sua pele. Sentou-se à mesa da cozinha e o gato, Precioso, subiu aos seus joelhos de um salto. Acariciou-lhe as comidas orelhas enquanto o animal lhe cravava as enormes unhas nas coxas. Havia um silêncio cometido e caseiro na casa. Ouvia o ferver das batatas cozendo-se a fogo lento no fogão. E do dormitório, chegavalhe o frufru da seda, o roce de um sapato de pelica contra o chão. Começava a se perguntar onde estavam suas filhas quando a voz de

Emma chegou flutuando até ele. —Enviei às meninas a casa da senhora Vai, com o bolo de sementes de papoula que ficou do lanche... foi muito amável, a senhora Vai. Shay sabia que Emma Tremayne tinha estado vindo com frequência desde a morte de Bria. As meninas lhe tinham falado dessas tardes quando ia buscá-las as portas da fábrica, com uma cesta cheia de comida. Recolhiam ao pequeno Jacko na casa da senhora Vai e em seguida Emma preparava lanches para todos. Uns lanches como é devido, ao estilo da “Gente Importante”, que teriam feito Bria sorrir. Shay olhou ao redor. Era seguro que as flores que havia em cima da mesa não as tinha posto ele. Tinha deixado os pratos do café da manhã na pia, mas ela os tinha lavado e recolhido. Entretanto, inclusive sem tudo isso, sabia os dias em que ela vinha porque podia cheirar o rastro de sua presença, que deixava ao partir. Uma lembrança de lilás que sempre lhe faziam pensar em cálidas tardes de primavera, quando o mundo inteiro parece cheio de expectativas e promessas. Observou que havia um livro desconhecido em cima da mesa e o agarrou. Era um volume, encadernado em cetim e com as bordas douradas, titulado Vistas dos presidentes. Abriu-o e leu: «Para Emmaline Tremayne, por sua excelência em ortografia». Excelência em ortografia... A ideia lhe fez sorrir. Tentou imaginá-la menina. Provavelmente, usava aventais brancos, tão engomados que rangiam quando andava. Seguramente que não tinha ido por aí com buracos nas meias nem os joelhos esfolados nem palha entre o cabelo. Emma saiu do dormitório com o pequeno Jacko nos braços e talvez sua roupa não rangesse, mas com certeza que sim sussurrava. Aquele sedoso sussurro que parecia emitir inclusive quando estava quieta. Olhou como punha a seu filho no berço, observou como lhe alisava, com o dedo, o cabelo por cima do ponto suave da cabeça e pensou que Bria sempre fazia o mesmo e lhe fez um nó na garganta, pela saudade de algo que não voltaria a ser.

Afastou os olhos dela e olhou pela janela que emoldurava um céu que agora tinha o azul profundo e escuro de um entardecer do verão. Quando olhou de novo ao interior, viu que ela se aproximou e estava junto à mesa, com a mão apoiada no respaldo de uma cadeira e olhando o livro que ele tinha entre as mãos. Um gesto de preocupação desenhava uma ruga entre suas escuras sobrancelhas. —Noreen me disse que estava ensinando-a a ler —disse— e pensei... Bom, como está interessada na história da América e, nesse livro, há umas partes deliciosamente sangrentas, que lhe darão calafrios, pensei que, ou melhor, gostaria... —A mão apertou com mais força a cadeira—. Isso sim, disse-lhe que primeiro tinha que perguntar a você, antes de poder ficar e espero que não lhe importe. Shay queria lhe dizer que desejava com desespero que suas filhas aprendessem a ler, que recebessem uma educação. Seu desespero por tirá-las da fábrica era tal que teria vendido qualquer resto que ficasse de alma. Mas parecia que não conseguia fazer passar nada de ar nem nenhuma palavra por sua garganta. Deixou o livro com cuidado sobre a mesa. Abriu a mão, apoiando-a plaina sobre o oleado. Separou os dedos tudo o que pôde, até que as veias e os ossos da mão se destacaram na pele. Levantou o olhar e viu que ela também estava lhe olhando à mão. Sua enorme e brutal mão, calejada e cheia de cicatrizes. O olhar de Emma se afastou de repente, encontrou-se com o seu e se afastou de novo, com um esforço. A pele de sua testa era tão translúcida que podia lhe ver as veias azuis, podia ver como pulsavam. Perguntou-se o que a fazia estar tão assustadiça essa noite. Nunca sabia que Emma seria. A jovem atrevida e rebelde com uma boca insolente e extravagante como uma adivinhação irlandesa ou a tímida senhorita da boa sociedade que atuava como se não fosse capaz de matar uma mosca.

E logo estava a jovem que tinha acabado conhecendo e apreciando durante as últimas semanas de vida de sua esposa. Aquela Emma era uma amiga generosa, amável e leal. A Emma de esta noite se retirou até o outro lado da cozinha, junto ao fogão. Agarrou um trapo de toalha de listras vermelhas para levantar a tampa da panela negra que soltava vapor e o terroso aroma das batatas ao ferver encheu o ar. Era uma visão estranha a que oferecia ali na cozinha, com seu vestido que parecia todo renda e laços de cetim, de um amarelo pálido como a nata fresca. —O Padre O'Reilly tomou o chá conosco —dizia naquele momento— . Contou-nos muitas histórias da Bria, de quando era menina em Gortadoo. Feznos rir muito e parecia uma coisa muito boa... Dar às meninas lembranças de sua mãe para guardar em seus corações. —Olhou para ele por cima do ombro. Tinha retorcido o trapo entre as mãos, até formar um nó—. Espero que não lhe importe. —Deixe de dizer isso. —As palavras tinham brotado mais ásperas do que queria. Respirou fundo e pigarreou—. Deixe de dizer que espera que não me importe, porque não me importa. Emma havia lhe virado as costas e estava pondo o trapo em cima da pia, dobrando-o com cuidado. —É só que prometi a Bria que... Shay se levantou, fazendo cair a Precioso ao chão. O gato saiu da sala com um miado ofendido e uma rabada. Emma girou sobre si mesmo, com os olhos muito abertos e luminosos. —Por todos os Santos, senhorita Tremayne — disse ele—, por que não teria que vir tão frequentemente como quer? Ela deu um passo atrás como se pensasse que ele ia saltar-lhe em cima, embora não tinha dado nem um passo. —Obrigado — disse—, eu... Tenho que partir. —Jogou um olhar pela janela—. Está já muito escuro.

Tinha deixado o chapéu e as luvas na mesinha que havia junto à pilha de água benta. Shay olhou como os punha. Um chapéu branco, de palha, com uma larga fita amarela, que atou com graça sob o queixo. Umas luvas de uma renda tão delicada que podia lhe ver a pálida pele das mãos através dela. Emma pôs a palma de sua mão enluvada em renda no fecho e abriu a porta, mas antes de sair, voltou-se e lhe ofereceu um sorriso doce e trêmulo. —Boa noite, senhor McKenna. —Boa noite, senhorita Tremayne — disse ele, mas ela já tinha desaparecido. Lentamente, voltou a sentar-se. Agarrou o livro que tinha dado a Noreen e o deixou de novo. Pensou que teria que levantar-se e tirar as batatas do fogo antes que se convertessem em purê. Pensou em ir até o aparador e tirar a jarra de poitín. Tinha a boca tão ressecada como a palha. —Dhia. Que mentiroso tão enorme é, Seamus McKenna. Dizer a ela e dizer a ti mesmo que não te importa.

Para Emma era difícil voltar para a casa da Rua Thames, sabendo que agora ele podia estar ali. Já não podia afastar-se do que sentia por ele e ele sempre pertenceria a Bria. Depois daquilo, esteve a ponto de manter-se afastada, teria se mantido afastada se não fosse pela promessa que tinha feito. Inclusive assim, deixou passar um pouco de tempo antes de voltar e escolheu um dia de pouco vento, quando sabia que lhe custaria horas trazer o barco para casa. Fazia calor, com um sol amarelo dourado e um ar úmido e brumoso. Um desses dias de verão típicos de Bristol nos quais Emma pensava que quase podia ouvir como o próprio calor suava, ofegava e gotejava. Fazia calor dentro da casa e Emma deixou a porta aberta, recordando que Bria sempre tinha fome de luz. Acabava de tirar o chapéu e as luvas e deixá-los em cima da mesa quando

aconteceu: levantou o olhar e viu Bria de pé junto aos fogões. De pé junto aos fogões com a mão na chaleira. Com a mão envolta em um trapo de toalha, como se temesse que a asa estivesse muito quente, porque saía vapor pelo pitorro. Tinha posto a camisola de cambraia que Emma lhe tinha dado, que tinha volantes de renda nos pulsos. Levava o rebelde cabelo como fazia muitas vezes, amarrado na nuca com um pedaço de corda, mas algumas mechas lhe tinham soltado e colado nas bochechas úmidas. Raios de sol se desdobravam da porta aberta através do chão para lhe rodear os pés descalços. A camisola era muito curta; Emma podia ver os ossos, nodosos e brancos dos tornozelos. —Bria —sussurrou Emma, cheia de dor. Bria, a Bria dos fogões se voltou e sorriu, com os escuros olhos iluminando-se ao ver Emma. E logo desapareceu. —Era mamãe. Emma deu a volta com tanta rapidez que teve que agarrar-se ao respaldo da cadeira de escada para não cair. O coração lhe palpitava com força e violência nos ouvidos, como um fluxo impetuoso. Merry estava de pé na entrada. Tinha todo o aspecto de um rato de fábrica, com penugem e fios de algodão grudados à roupa e no cabelo e os pés descalços negros e gordurentos. —Viu-a —disse Emma ou pensou que dizia. Não conseguia fazer funcionar os pulmões. Merry cantarolou e assentiu com a cabeça. Emma se voltou outra vez para os fogões. Deu um passo, com as pernas trêmulas. Não havia ninguém. A chaleira estava no fogão e o fogo, apagado. Entretanto, Bria tinha parecido tão real, ali de pé; naquele único instante relâmpago, tinha sido real. Uma mulher vestida com uma camisola que ficava muito curta, sustentando uma chaleira fumegante na mão envolta em um trapo

de toalha. Não era uma figura amorfa, refrigerante, flutuando no ar. Estava suando. Emma tragou saliva e respirou. Fechou os olhos e os voltou a abrir. Seguia sem haver nenhuma mulher ao lado dos fogões. Merry lhe aproximou e a agarrou pela mão. A mão de Emma tremia. Tratou de controlar o tremor, mas não pôde. E tampouco pôde evitar que lhe tremesse a voz. —Viu-a... viu a sua mamãe antes de hoje? —Às vezes — disse Merry, pronunciando as palavras, não as cantarolando—. Vem quando papai chora por ela. Ele se senta aqui na mesa até muito, muito tarde da noite, sem fazer nada, só fica sentado. E lhe fala, fala-lhe com mamãe. Diz: «Bria, querida, por que tiveste que me deixar?”.”.» e depois chora. É então quando ela vem e fica de pé atrás dele e lhe acaricia o cabelo. —Seu pai... seu pai a vê? Merry cantarolou um não. Respirou fundo e cantarolou de novo, um cantarolo comprido e alto. Então abriu a boca e Emma pensou que voltaria a falar com palavras, mas Noreen entrou na cozinha naquele momento, tagarelando como uma urraca, com o pequeno Jacko nos braços. —A senhora Vai disse que foi mais doce que um torrão de açúcar e eu lhe disse: «Quando não o é?». Igual ao capataz que hoje foi mais malvado que uma víbora e, quando não o é? Açoitou ao Nate O'Hara nas pernas com uma corda porque tinha deixado cair às bobinas, assim Merry foi e jogou uma maldição, no capataz, e agora seu “negócio” cairá. Só que ele ainda não sabe. Quer que ponha para esquentar a chaleira, senhorita Tremayne? —O que? Ah, não, faz muito calor — disse Emma, com a voz ainda um pouco trêmula—. Vou preparar um pouco de limonada. Agarrou ao pequeno dos braços de sua irmã e o estreitou contra seu peito, respirando seu aroma de talco e leite. Esfregou a bochecha contra o suave cabelo vermelho, o cabelo de sua mãe.

Um pé caiu com força na varanda de madeira, fazendo-o ranger. Uma sombra se projetou através do chão banhado em sol. Emma levantou a vista justo quanto Shay McKenna enchia o oco da porta. Seus olhares se encontraram durante um tenso momento, logo ele deu um passo atrás e olhou para outro lado. —Tenho trabalho que fazer no barco — disse—. Pensava que tinha que lhe dizer... dizer às meninas onde estou. Emma apoiou a bochecha na cabeça do bebê e escutou como ele se afastava. Sob sua mão, as costas do pequeno subia e descia ao ritmo de sua respiração, enquanto fazia suaves sons contra seu ombro. Emma lhe passou os lábios pelo cabelo com um suave beijo e em seguida o devolveu a Noreen e foi atrás de seu pai. Não estava trabalhando no barco. Estava na praia de calhaus pizarrosos, sentado entre as rochas e os fios gomosos das algas, no lugar onde Bria morreu. Emma recolheu a saia de seu vestido de veraneio de musselina branca e se sentou juntou a ele. Shay mantinha a cara separada dela, observando a um par de pescadores que rastelavam as águas profundas em busca de mariscos. A dor e o vento lhe tinham gravado rugas mais profundas no canto dos olhos. Uma jarra de poitín lhe pendurava dos dedos de uma mão, mas não parecia que estivesse bebendo. Cheirava a mar e a vento do verão e Emma queria tocá-lo. Só tocá-lo. —Merry fala comigo — disse. —Merry não disse uma palavra em três anos. —A mim sim. Ele voltou a cabeça para olhá-la. Em seus olhos, Emma viu dor e culpa em carne viva, mas não incredulidade. —Mas por quê? Por que a você? —Torceu um lado da boca para baixo— . Não queria dizê-lo tal como soou. Só... —Queria dizer por que eu e não Bria. —Emma cabeceou, encolhendo ligeiramente os ombros—. Isso não o posso dizer. É algo estranho quando

acontece. É como se, de repente, encontrasse suas palavras e logo as perdesse outra vez. Shay voltou à cara para o outro lado. Olhou para baixo, entre os joelhos abertos; empurrou um montão úmido de erva com a bota. —Contou-lhe Bria como aconteceu, como foi que minha filha perdeu suas palavras? Emma queria lhe dizer que assim foi como se apaixonou por ele, quando Bria o contou. —Sim —disse. Ele levantou a jarra como se fosse bebê-la, mas não o fez. —Há quem diz que Deus deu o uísque aos irlandeses para evitar que governassem o mundo. De repente, levantou-se um vento fazendo estalar o porto em um milhão de diamantes e lhe levantando o cabelo que lhe caía, comprido, por cima da nuca. Emma queria enredar os dedos naquele cabelo e atrair sua cabeça para ela até que descansasse em cima de seu peito. —Pensava que era um homem que podia dominar o mundo, sem dúvida nenhuma. Queria ser o homem forte e valente, que vivia pela Irlanda, que lutava pela Irlanda, sempre sonhando no dia grande e glorioso em que explodiria a rebelião e no que a Irlanda e eu faríamos com nossa liberdade quando a tivéssemos. Tinha-lhe posto a boca dura e tensa. Emma desejava apertar seus lábios, com força, contra aquela boca, apertá-los até que o beijo fosse doloroso. —Matei ao administrador que empurrou a minha mãe para atirar-se ao mar e, como um estúpido, não fiz planos para o que viria depois. Dhia, ali estava eu, atuando como se tudo fosse uma farsa teatral, incluindo o herói mártir que, ao final, levanta-se e sai do cenário. E deixei que minha mulher e minhas filhas pagassem o amargo preço por isso. Emma notou o forte tremor que percorria ao Shay por dentro e desejou

rodeá-lo com seus braços e sustentá-lo assim até que o tremor passasse. —Sei o que pensa de mim —disse—. Que sou jovem e mimada e que não conheço nada do mundo real e tem razão. Mas sei como morreu Bria e bastante de como viveu, e fez as duas coisas como se acreditasse que a honra é o que forja nosso espírito. Não seria você quem é, Shay McKenna, se não lutasse pela Irlanda e por você mesmo. E não seria o homem que Bria amava. Ele tinha ficado em silêncio e não a olhava, mas não lhe importava. Escutou o suave golpear das águas contra o cais e o zumbido dos fusos da fábrica na distância. Observou como uma gaivota se alimentava dos restos de um sanduiche de carne enlatada que alguém tinha deixado. Queria lhe dizer que era o homem que amava. Queria lhe dizer que era seu primeiro pensamento de cada manhã e o último antes de dormir. Que devido a ele e a Bria antes deles, toda sua vida era vazia. —Mãe de Deus! As palavras saíram de sua boca com uma exclamação dilaceradora, como se algo tivesse se quebrado em seu interior. Inclinou a cabeça e a jarra de uísque lhe caiu da mão e começou a lhe tremer as costas, com fortes sacudidas. Tremia com uns soluços violentos, silenciosos e angustiantes. Emma queria... Sua mão se deteve no ar, em cima do cabelo de Shay e logo o tocou. E então ele se voltou para ela e ela o rodeou com seus braços e o sustentou, abraçando-o com força enquanto ele chorava.

Capítulo Vinte e Três —Aaai! Anda para ver se encontra! — O padre Donagh O'Reilly arrancou o chapéu da cabeça e se golpeou com ele contra a coxa. —Vai e deixa um presente assim de graça, o próprio São Patrício bendito poderia havê-la enviado ao último pinheiro com um suspiro. Digo-lhe, senhorita Tremayne, que esse menino não é capaz de lançar nem para tirar-se de uma base molhada. Colocou o chapéu e se sentou outra vez na primeira fileira dos degraus improvisados, enquanto o rebatedor trotava ao redor do diamante que tinham desenhado na erva parda do terreno comunal de Bristol. O Philadephia Athletics jogava contra o New York Mutuals em uma exibição de beisebol profissional e as pessoas tinham adotado aos Mutuals como equipe da casa. Os Mutuals perdiam por oito corridas a duas. O rebatedor do Athletic levava um tempo fazendo o percurso das bases, acompanhado por assobios e vaias. Merry ficou em pé de um salto e começou a dançar trocando de um pé a outro e cantarolando com força. —Está-lhe jogando uma maldição — disse Noreen—, para que o... —O cabelo e os dentes lhe caiam esta mesma noite — disse Emma, rapidamente. Teve cuidado de não olhar para o padre O'Reilly, mas por seu risinho de cumplicidade, suspeitava que tinha muito boa idéia da verdadeira natureza das maldições de Merry McKenna. Emma agitou o leque com tanta força que lhe levantava a asa de seu chapéu branco, de fina palha trançada. Embora o céu estivesse coalhado de nuvens, tão cinzas como o estanho, fazia calor. Um espesso manto pendurava

em cima do campo, cheio de aromas de erva queimadas pelo sol e da borracha queimada da fábrica próxima. Os altivos olmos se inclinavam, caídos, sob o ar úmido. Um brava passou perto das tribunas, vendendo chourice em réstias. O padre O'Reilly se levantou e foi atrás dele, levando às meninas consigo. Já lhes tinha comprado fatias de melancia, amendoins torrados, milho com manteiga e encurtidos em um cravo. Emma pensou que teria que lhe recordar que, quando fizeram planos para que este sábado livre fosse especial para as meninas, isso não incluía comer até conseguir uma boa dor de barriga. O lançador dos Mutuals fez um out e o público lhe dedicou uma zombadora ovação. Emma viu Judith Patterson e Grace Attwater passeando agarradas pelo braço ao redor do campo. Saudou-as com o braço, mas elas não pareceram vê-la. Esperou um momento e as saudou de novo. Esta vez estava segura de que a tinham visto, mas lhe voltaram, lentamente, as costas e se afastaram. Emma mordeu o lábio e olhou para o quiosque de música, piscando contra a ardência das lágrimas. Teria que ter sabido prever este momento. Acostumou-se que a “Gente Importante” pensasse que sua amizade com uma família irlandesa imigrante era outro exemplo peculiar da insensatez dos Tremayne, algo parecido a suas esculturas. Mas agora, pelo visto, tinha cruzado alguma linha invisível e entrou no reino da má educação. Emma se disse que não lhe importava, mas a verdade é que sim que lhe importava. Por muito que sempre tivesse odiado relacionar-se em sociedade, pelo menos, tinha sido bem recebida e aceita. As olhadas que recebia eram de admiração, não de censura e repulsa. Agora só o enorme peso de seu nome e do anel do senhor Geoffrey Alcott em seu dedo impediriam que caisse no vazio de forma permanente e completa. Ultimamente, a tolerância de sua mãe também estava acabando. Pela manhã, quando Emma mencionou que ia levar às meninas McKenna a partida de

beisebol, nos olhos de sua mãe apareceu aquela expressão acossada e lhe tremeu a mão de tal maneira que verteu café em cima de sua torrada, que era o único que se permitia tomar no café da manhã. —Emma, não posso evitar me preocupar —disse Bethel— por como se receberá que tenha convertido a essas órfãs irlandesas em sua obra de caridade favorita. Uma entrega tão pessoal por sua parte mal pode ser aceitável. Emma passou a sua mãe à bandeja com as torradas, confiando em distraila. —Deste-te conta, mamãe, que verteste café no prato? Toma outra... Bethel afastou a torrada. —Sabe que não posso, quando cada bocado que tomo se nota em minha pessoa. Não valora os sacrifícios que faço, Emma, por ti... A seguir sua mãe tinha passado a enumerar esses sacrifícios e a partida de beisebol tinha ficado esquecida. Emma pensou que, felizmente, não tinha mencionado que um sacerdote católico irlandês arredondaria o grupo. Inclusive assim, sentiu um calafrio de apreensão. Não ia poder seguir vivendo em dois mundos de forma indefinida. Algum dia, alguém — sua mãe, Geoffrey ou alguém como Judith Patterson e Grace Attwater— a obrigariam a escolher; escolher entre a Emma que vivia com um luxo puritano em As Bétulas e que era a única esperança de sua família e a Emma que tinha sido a bhanacharaid de Bria McKenna. Os olmos suspiraram e inclinaram a cabeça sob o vento quente e úmido. Emma pensava no aspecto tão solitário que podia ter um quiosque de música vazio, em um dia nublado de verão, quando viu Shay McKenna que se aproximava, cortando através da erva do campo, queimada pelo sol. Vestia-se como se acabasse de deixar o barco, com as mangas enroladas por cima dos cotovelos e sem abotoar o pescoço da camisa. Observou como se aproximava dela com aquele ar flexível e seguro que tinha. Observou como lhe aproximava e lhe pareceu que o coração lhe dava saltos no peito, esperando.

Ele levou um dedo à asa do chapéu como saudação ao chegar até ela. —Bom dia, senhorita Tremayne — disse, ocupando o assento do padre O'Reilly, a seu lado, nos degraus. Saudou com o braço a suas filhas, que conversavam com um grupo de meninos que trocavam cromos de beisebol. Às vezes, Emma sentia como se a pele fosse incendiar-se só com seu toque, mas, claro, ele nunca a tocava. Nem sequer havia o tornado a ver desde aquela noite na praia, quando o tinha rodeado com seus braços enquanto ele chorava a sua esposa morta. Shay captou a atenção do padre O'Reilly, que estava junto ao homem do chourice e assinalou para uma loja de listras vermelhas e brancas onde vendiam cerveja. Dirigindo-se a Emma, disse: —O bom padre não esteve tentando convertê-la, verdade? Sorriu-lhe timidamente e negou com um gesto. —É um homem calado... Quando não está gritando aos jogadores. Shay abriu um pouco mais os olhos. Uns olhos que tinham o profundo verde da luz do sol nas águas da restinga. —Calado, ele? Vi como Donagh fazia com que mais de uma mulher fizesse uma confusão e não soubesse o que dizer, mas nunca ao contrário. Mas também é verdade que é estranho que o guri tropece com alguém mais bonito que ele. Como elogio, não era muito. Entretanto, Emma notou como se ruborizava, como se ele acabasse de lhe dizer que era a criatura mais bonita do universo. Fez-se silêncio entre os dois. No diamante, os Mutuals conseguiram um duplo e o público os aclamou, mas Emma não estava olhando. Ouvia-se o retumbar dos trovões ao longe e o céu escureceu. Pensou que, certamente, ele podia ouvir os batimentos de seu coração. —É verdade que ia ser sacerdote, também? —Bria lhe contou também isso, né?

Estava sentado com os cotovelos apoiados nas coxas e as mãos pendurando, soltas, entre os joelhos. Inclinou-se e arrancou uma folha de erva para retorcê-la entre os dedos. —Quando era menino, eu gostava muito de ir à missa com todo seu santo mistério e suas cerimônias. Durante um tempo, neles encontrei sentido a minha vida. E logo... —encolheu os ombros—. Deixei de fazê-lo. Emma pensou que depois foi Bria quem deu sentido a sua vida. E agora a tinha perdido também. Aquele dia na praia, quando lhe tinha deixado que o sustentasse enquanto chorava, não tinha sido capaz de pensar no que lhe dizer, assim não lhe havia dito nada, só o tinha rodeado com seus braços. Mas agora... —Senhor McKenna. —Ele voltou à cara para olhá-la, mas sua cara não mostrava nada do que pensava. Emma confiou em que ele tampouco visse nada na sua—. Há algo que queria lhe dizer faz tempo e que não sei se terei outra oportunidade... Queria lhe dizer que, aconteça o que me acontecer no resto de minha vida, sei que serei uma pessoa diferente, uma pessoa melhor por ter conhecido a sua esposa. Ensinou-me como ser amiga de alguém e como ter uma amiga. E como viver e querer sem condições. Ele já não a olhava, mas viu o movimento de sua garganta ao esforçar-se por tragar. Viu como o irmão de Bria saía da loja dos refrescos com duas jarras de cerveja em uma mão e réstias de chourice na outra. Mas então o sacerdote se deteve para falar com um homem com um traje de linho, enrugado, e um canotier. O que Emma disse a seguir não tinha pensado dizê-lo. Saiu de seus lábios antes de poder evitá-lo. —Às vezes... Às vezes penso que não deveria me casar com o senhor Alcott, porque duvido que ele e eu tenhamos o que você e Bria tinham. Houve um momento em que pensou que ele não ia responder-lhe. —Um matrimônio não se faz só propondo-o — disse ele finalmente—. É algo que se faz vivendo dia a dia juntos. Dias gloriosos como aquele em que vê

como sua mulher dá o peito a seu primeiro filho. Ou dias de grande tristeza, quando daria a esse burro estúpido e teimoso com o que te casaste um bom tapa antes que olhá-lo. —Sorriu-lhe de repente com um sorriso extraordinário—. E dias singelos, como este, quando veem uma partida de beisebol juntos e te pergunta se a chuva vai cair antes que esse parvo pachorrento de seu cunhado consiga chegar com a cerveja. Emma lhe devolveu o sorriso, mas queria lhe dizer que já sabia que nunca teria um dia assim com Geoffrey e os filhos que pudessem ter. Entretanto, possivelmente ele leu o que pensava em sua cara porque disse: —Sua vida será o que você dela faça, Emma Tremayne... E eu estou seguro de que será magnífica. Estava sendo amável e amabilidade não era o que ela queria dele. E pensou, mas não disse, que apesar de tudo, ele queria a sua Bria e ela o queria, a vida de Bria tinha sido o que ele tinha feito dela. Ouviu o estalo de uma bola saindo do taco de beisebol e viu que os que os rodeavam gritavam e agitavam os braços. Voltou à cara e olhou para cima e viu que a bola se dirigia diretamente para ela, desenhando um arco, comprido e alto, no ar. Não teve tempo de agachar-se. Levantou as mãos e a bola caiu justo entre elas, lhe golpeando com força as palmas, cobertas com suas luvas de renda, mas Emma mal sentiu o golpe. Estava muito surpreendida e entusiasmada e muito contente consigo mesma. —Agarrei-a! —exclamou, rindo e voltando-se para ele—. O viu, senhor McKenna, a...? Ele a estava olhando, com um olhar intenso e Emma viu que algo relampejava em seus olhos, uma espécie de fome selvagem e desesperada. E sentiu a penetrante doçura de perder-se, de perder-se de forma absoluta e magnífica naquele olhar de seus olhos.

Mas então começou a chover, umas grosssas gotas que matraqueavam contra os degraus como ervilhas secas e o que tivesse visto — ou algo que acreditasse ter visto— desapareceu. —Merry —gritou ele, de repente—. Maldita seja. O que está fazendo? Emma se voltou. Noreen e o padre O'Reilly se apressavam para eles e Noreen pôs as mãos em cima da cabeça, tentando proteger-se das salpicaduras da chuva. Mas Merry corria em direção contrária, dava a volta ao quiosque e se dirigia para a Rua State e o porto. Então pareceu que as nuvens se desabavam sobre eles e a chuva começou a cair em ondas e correntes e a pequena desapareceu de vista. —Merry! —voltou a gritar Shay antes de sair disparado atrás dela. Emma recolheu a saia e o seguiu, quase escorregando, sobre a erva molhada. A chuva, que vinha da baía, feria-lhes a cara enquanto corriam. O vento soava como velas batendo. Merry tinha percorrido todo o caminho até o cais da Rua Thames quando a alcançaram. Subiu a um embarcadouro e, por um momento, Emma teve o horrível temor de que fosse saltar à água. A tormenta açoitava a baía formando ondas rodeadas de branco que vomitavam espuma contra as tábuas cinza e desgastadas. Merry foi até a beira do embarcadouro e então se deteve e se voltou e parecia que os estava esperando. Cantarolava tão forte que todo o corpo lhe dava sacudidas. Shay foi o primeiro em chegar até ela e a pegou entre seus braços, mas ela começou a sacudir-se e retorcer-se, com um cantarolo muito agudo, que era como o zumbido de uma colmeia derrubada. Noreen chegou correndo, com o padre O'Reilly lhe pisando os calcanhares, ainda com a cerveja e as salsichas nas mãos. Merry se revolveu tão raivosamente nos braços de seu pai que este quase a deixou cair. Seu cantarolo se converteu em um uivo.

—Nory —disse Shay, ofegando, com a chuva lhe jorrando pelo gorro e o cabelo e metendo-se nos olhos. Tinha a cara mudada—, que Deus nos ajude. Nory, o que está dizendo? Os olhos de Noreen pareceram aumentar-se até lhe encher a cara como dois poços negros. Tremia tanto que os dentes lhe tocavam castanholas. —Diz... Diz que a fábrica está em chamas e que a senhorita Emma tem que vir para nos buscar, para nos tirar dali. De onde estavam viam claramente a fábrica. Com suas paredes de granito, seu telhado de piçarra cinza e sua alta chaminé de tijolo, parecia tão enorme e ameaçadora como uma prisão, mas não havia chamas nem fumaça. —Não está em chamas — disse Shay. Tentou voltar à menina histérica para aquele lado, para que o visse por si mesmo, mas lhe dava chutes e agitava os braços agitada e cantarolava—. Olhe, querida, pode ver daqui que não está em chamas. —Diz que a senhorita Emma tem que vir nos buscar — repetiu Noreen, e a voz lhe quebrou com o medo que sempre vivia dentro dela, justo sob a superfície. Emma estendeu os braços e Merry se lançou a eles, rodeando os quadris de Emma com as pernas, apertando-a com força e o frenético cantarolo foi se acalmando. Emma a abraçava estreitamente, embora vacilasse um pouco sob o peso da pequena. —Virei — lhe disse com a cara colada ao pescoço úmido e trêmulo da menina—. Prometo-lhe que virei.

Shay ouvia Emma no dormitório, dizendo doces palavras a sua filha para sossegá-la. A pequena não tinha querido saber nada dele. E Noreen se foi à casa da senhora Vai, para procurar o bebê e ficou ali. Ao que parecia, tampouco ela queria saber dele. Não é que pudesse culpá-las. Ultimamente, não tinha estado com elas para lhes oferecer consolo. Mãe de Deus, se nem sequer soube

consolar ele mesmo. Emma saiu e ficou junto à porta, com uma mão na ombreira. — dormiu — disse—. Pus-lhe uma garrafa de água quente nos pés para que não pegue um resfriado. Ele tentou lhe sorrir, mas não conseguiu. —É maravilhosa com ela. É uma maravilha com as duas e com o pequeno também e sei que não lhe agradeci como é devido. Por todos os Santos, não agradeci de maneira nenhuma. Nunca tinha conhecido a ninguém como ela, capaz de fazer com que todo seu ser parecesse alegrar-se sempre que lhe faziam o mínimo elogio. Podia ver como o prazer lhe percorria a cara, como um relâmpago sob a pele, até lhe sair pelos olhos. Pensou que foi só quando a viu pela primeira vez que parecia altiva e inabordável. Agora sabia que só era uma maneira de proteger-se e não revelar quão vulnerável era. E cada vez que tinha outro vislumbre daquela fragilidade que havia nela, sentia uma aterradora sensação de descobrimento, como se fosse o primeiro homem em vê-la. Agora mostrava essa fragilidade, olhando ao redor da cozinha, incapaz de olhá-lo nos olhos. —Fez café —disse—, mas não o serviu. Ele permaneceu sentado à mesa e a olhou enquanto ia até o fogão. Olhoua como afastava a cafeteira de esmalte azul do fogo, olhou como os músculos lhe esticavam no braço, pálido e esbelto. O cabelo lhe tinha secado, mas algumas mechas lhe tinham soltado para cair, como plumas, pela nuca. Gotas de chuva batiam na janela, desenhando sombras salpicadas sobre sua cara. Emma trouxe a cafeteira à mesa e ele olhou a forma como a curva de seu peito se marcava contra sua blusa de seda enquanto servia o café em um par de canecas de estanho. Ao inclinar a cabeça, deixou descoberto o pequeno osso da nuca. Desejou tocar a pele ali, na nuca. Sentir aquele osso e a suavidade de sua

pele sob os dedos. Fechou a mão em um punho apertado, em cima do oleado. Separou-o da mesa e o ocultou em cima de seus joelhos. Notava que o coração lhe palpitava com uns batimentos do coração lentos, esforçados. Nunca tinha conhecido este aspecto do desejo. Não... sim que o tinha conhecido, muito tempo atrás, mas o tinha esquecido. Tinha esquecido que a fome e o desejo podem viver em seu interior, ocultos, e logo sair à superfície quando menos se espera. Quando menos o quer. Emma deixou a cafeteira e pegou o livro que ele tinha deixado sobre a mesa. O livro que tinha lido durante as longas horas da noite anterior. Ultimamente, não dormia muito. Tinha dormido tantos anos com Bria junto a ele, que agora parecia não poder fazê-lo sem ela. Tinha sido um fiel cliente da Roger's Free Library nas últimas semanas. Deu a volta ao livro e leu o nome em voz alta. —Anna Karenina... Fará-lhe chorar — disse. Ele observou como o rubor da lembrança se estendia como uma mancha pelas bochechas da jovem, viu como o pulso lhe pulsava na garganta e lhe separavam os lábios com uma exclamação afogada. A ponto esteve de sorrir. —Não, não a um tipo grande e duro como eu, seguro que não. Embora, talvez, possa chegar a acontecer que os olhos me turvem um pouco. Ela se ruborizou ainda mais e logo riu, com uma risada baixa e tímida. Deu meia volta e se sentou na cadeira que ficava frente a ele. Agarrou seu café, mas em seguida voltou a deixá-lo sem beber e ele viu como lhe acendia uma luz travessa nos olhos. —Deu-se conta alguma vez — disse— de que, na Roger's Free Library, os livros dos escritores e os das escritoras são mantidos segregados nas prateleiras? Shay viu como a covinha do canto do lábio se afundava e esperou o que

ia lhe dizer a seguir, sabendo que lhe surpreenderia. —Faz que se pergunte, não é verdade? —seguiu dizendo ela—, a que se dedicam esses livros quando apagam as luzes e fecham as portas e não há nem indício de carabina. Shay se surpreendeu ao voltar a rir. Levava muito tempo pensando que nunca mais voltaria a rir. Sorrindo, arrastou a caneca até deixá-la diante dela e passou o dedo pela borda. Lançou-lhe um olhar e logo voltou a baixar os olhos à mesa, concentrando-se, absorto, em olhar como seu próprio dedo se movia ao redor da caneca. —Há outra coisa que queria lhe falar, senhor McKenna. «Não o faça —queria lhe dizer ele—. Não compartilhe nada mais seu comigo, porque me assusta. “Leva-me a um lugar onde não quero estar.» —Estive pensando —disse ela— sobre o problema da escolaridade para os meninos da fábrica, aqui em Bristol. Está claro que não podem assistir a nenhuma aula depois de seu turno, porque cairiam adormecidos sobre as carteiras, depois do longo esforço do dia. Mas pensava que possivelmente poderíamos estabelecer uma espécie de escola com becas que pagaria aos meninos por assistir. Dessa maneira, suas famílias poderiam continuar recebendo seus ganhos e os meninos receberiam a educação que necessitam para melhorar sua posição na vida. Olhou-o e sua vulnerabilidade, sua necessidade de lhe agradar, era quase dolorosa de ver. E lhe aterrava. Mãe de Deus, aterrava-lhe tanto que não parecia capaz de impedir que as palavras saíssem de sua boca. —Uma escola com becas, isso poderíamos estabelecer... E esse «nós» os quais são, senhorita Tremayne? Você com seu fundo de um milhão de dólares lhe queimando no bolso. É que possivelmente está pensando que encontrou um meio para comprar sua entrada em nossas vidas?

—Vá coisa tão esnobe que acaba de dizer — exclamou ela, com voz entrecortada. Afastou a cara, piscando rapidamente e ele soube que estava lutando por não chorar. —É verdade — disse. Notou como lhe endurecia a cara e queria parar, mas não podia—. O admito. Ela tinha se posto de pé e lhe dava as costas. Ele sabia que agora o deixaria. Tinha-a ferido e não gostava de saber que podia fazê-lo. Que podia feri-la e com tanta facilidade. Mas não ia lhe impedir que se fosse. Desejava que Bria não lhe tivesse metido àquela ideia na cabeça; a ideia de que a senhorita Tremayne, membro de uma das altas e poderosas famílias da “Gente Importante” de Bristol, Rhode Island, acreditava estar apaixonada por alguém como ele. Porque não lhe podem dizer que alguém está apaixonado por ti sem mudar a maneira como você olha a essa pessoa. Não pode menos que te perguntar como seria se por uma vez... Shay pensou que possivelmente um homem não pode evitar o desejo. Possivelmente não pode evitar que apareça a paixão, mas o que sim certo, como há o inferno, é que não tem por que atuar segundo esses sentimentos. E se isso significava não olhá-la, se isso significava permanecer afastado dela, isso é o que faria. Se isso significava não pensar nela, então, muito bem, também podia fazê-lo. Mas não ia deixar que acontecesse... fosse o que fosse.

A tormenta de verão que alagou a primeira partida de beisebol de exibição limpou durante a noite. Agora o céu estava azul como um ovo de pato, com nuvens brancas e passageiras e a brisa soprava leve e suave como uma pluma. Mas, claro está, nunca se teria atrevido a chover durante a festa no jardim dos Alcott.

Os Alcott davam uma festa no jardim de sua mansão da Rua Hope duas vezes ao ano, o primeiro dia de junho e o último dia de agosto. A tradição se iniciou em 1792 e, após, todos os Alcott a tinham mantido, cada um com mais grandiosidade que o anterior. Era uma tradição da “Gente Importante” da qual Emma sempre desfrutava e, este ano, os jardineiros dos Alcott se superaram, criando um caleidoscópio de flores que parecia girar e trocar a disposição das cores com a brisa. Emma percorreu o atalho que rodeava a fonte de mármore, com seus cupidos brincalhões. Inspirou profundamente o ar perfumado de flores, que trazia uma sugestão da salgada água da baía para lhe dar um toque penetrante. Baixou a sombrinha e deixou cair à cabeça para trás, empapando-se no sol como se fosse azeite. A sombrinha foi arrancada das mãos e devolvida a seu lugar, para protegê-la daqueles raios desastrosamente bronzeadores. —Pelos céus benditos, criatura! —exclamou Bethel—. O que está fazendo? A verdade é que te arruinaste, possivelmente, a cútis este verão. Mas não é necessário aumentar os danos. E aqui, precisamente. Emma recuperou o controle de sua sombrinha e a apoiou levemente em seu ombro recoberto de tule e renda lilás. —Sinto-o mamãe. Esforçarei-me para ter mais cuidado. Sua mãe a olhou com ar de dúvida e suspirou. —É uma dura prova para mim, Emma. Todos meus filhos sempre foram uma dura prova para mim. A fonte tilintava como campainhas de prata, harmonizando com os sons de Claire do Lune» que chegavam do quarteto de corda agasalhado no caramanchão. Mais tarde, haveria tênis e tiro ao arco, mas, no momento, os convidados se contentavam perambulando pelo jardim e participando dos aprimoramentos distribuídos pelas mesas cobertas de damasco e protegidas por uma loja de listras azuis.

Quando estiveram perto da vista e o aroma da loja, Bethel a olhou com uma mescla de desejo e aversão lutando em sua cara. Como se o patê de foie gras, as ostras servidas em cima de gelo em suas meias conchas e os merengues com morangos e nata batida fossem, todos, amantes cruéis que desejava e temia ao mesmo tempo. Emma pensou que sua mãe parecia excepcionalmente jovem e bonita aquele dia pontilhado de sol, com seu vestido de verão, de cetim bege pálido, drapeado com metros de renda de cor creme. Mas tinha um ar lânguido e trêmulo, como se estivesse à beira do desmaio. —Mamãe —disse Emma—, por que não me deixa que te traga um pratinho com algo? Um pouco de salada de lagosta, possivelmente? Sua mãe rechaçou a oferta com um estremecimento. —Por Deus, Emma, às vezes acredito que você gosta de me atormentar. Sabe que se me aproximar de pelo menos três metros dessa terrível loja, não poderei me colocar dentro de meus objetos íntimos sem que Jewell tenha que usar, positivamente, uma manivela para me atar os laços. E agora que sabemos seguramente que seu pai vem às bodas, não quero lhe decepcionar. Tem que sentir-se orgulhoso de me exibir agarrada pelo seu braço. Emma enlaçou seu braço com o de sua mãe e se apoiou contra ela, que era o mais perto de um abraço que se atrevia a chegar. —Estará orgulhoso, mamãe, estou segura. Entretanto, notou uma tensão por dentro ao dizê-lo. Estava segura de que seu pai viria, mas também o estava de que voltaria a partir. Perguntou-se o que acontecia quando vivia unicamente para um momento que vem e se vai e, depois, encontra-te com que nada mudou. Deu-lhe um apertão carinhoso a sua mãe no braço. —Mas ainda falta muito para as bodas e, enquanto isso, está-te consumindo, vais ficar nos ossos. —Tolices. Está sendo melodramática, como de costume. Olhe, aqui

chega o senhor Alcott para te buscar. Sem dúvida para que vás apresentar-lhe seus respeitos a sua avó, essa velha desventurada e insalubre. Mas seu prometido é um encanto. Às vezes, o dever é difícil; sei, querida —disse Bethel enquanto começava a afastar-se, deixando a sua filha aos atentos cuidados de seu prometido—. Entretanto, devemos suportá-lo com elegância e com um sorriso alegre. Mas Emma não teve que fingir um sorriso enquanto olhava como Geoffrey lhe aproximava por um atalho bordeado de vasos de barro de terracota com gardênias vermelhas como rubis. Tinha um ar muito arrumado e na moda com uma jaqueta listrada e uma gravata vermelha de laço. —Emma —disse, lhe agarrando a mão e levando-lhe aos lábios e ela viu como uma genuína felicidade lhe enchia os olhos. Embora tivesse estado em Maine durante a maior parte do verão, cada manhã chegava as Bétulas uma rosa branca, perfeita, para ela, sempre com a mesma mensagem, escrito por sua elegante mão: «Estou desesperado por não poder estar contigo». —Se veio para me coagir para que jogue uma partida de tênis contigo, Geoffrey, tenho que te advertir de que, sem indício de dúvida, não vou fazê-lo. Porque as raquetes que me empresta, sempre parecem ter buracos no meio. Ele riu e seguiu lhe agarrando a mão um momento mais, antes de soltá-la. —Deve vir e reconhecer diante de minha avó que é um fracasso total na pista, porque ela sempre insiste em que é a própria perfeição. Emma sabia que Eunice Alcott nunca tinha insistido em tal coisa, mas respondeu a aquele elogio perfeitamente expresso de seu prometido com um gentil sorriso. Geoffrey a levou para a varanda da parte de trás, onde sua avó estava comodamente instalada em uma poltrona de vime entre vasos de barro de samambaias e Palmeiras. Estava envolta em xales de cachemira, embora o dia fosse quente e a mão

lhe tremia um pouco ao levá-las impertinentes aos olhos, mas concedeu a Emma um olhar penetrante e anunciou sem mais preâmbulos: —Encontrei Prudence Dupres morta no jornal esta manhã. Com só oitenta e sete anos, pobrezinha. Cortada na flor da vida. Emma e Geoffrey trocaram sorrisos com o olhar, enquanto se acomodavam em poltronas ao lado da anciã. Durante o verão tinha havido escassez de mortes entre a “Gente Importante”. —A avó —lhe tinha advertido Geoffrey um momento antes— esteve submetida a um aborrecimento desesperado. Ontem, chamou o editor do Phoenix para queixar-se da penúria de obituários em seu jornal. —Dizem que morreu de água no cérebro — dizia Eunice Alcott—. Ora, primeiro se negam a imprimir qualquer morte, durante muitos dias, e logo quando conseguem uma, mentem sobre sua causa. Água no cérebro. Como chega até ali? Pergunto eu. Não ides dizer-me que Prue tinha começado a nadar, porque não vou acreditar nisso. Não quando mal podia sustentar-se sobre seus dois pés sem cair, embora isso tinha mais a ver com os copinhos de xerez que tomava às escondidas há todas as horas... mas deixemos isso. Não, a verdade é que morreu porque lhe partiu o coração. —Não sabia que a senhora Dupres tivesse sofrido uma tragédia ultimamente — disse Emma. A anciã se inclinou para sussurrar ao ouvido de Emma, mas como era surda, todos os que estavam na mansão da Rua Hope a ouviram. —O senhor Dupres teve uma tórrida aventura com uma fulana de vodevil, só um mês antes de casar-se. —Avó... —disse Geoffrey suspirando—, esse escândalo particular aconteceu faz mais de sessenta anos. E o homem se redimiu mais que sobradamente engendrando seis filhos e vinte e sete netos. A senhora Alcott repicou no braço de Emma com seu leque de marfim. —Isso é o que acontece quando uma se casa com alguém inferior;

quebra-lhe o coração e morre a uma idade temprana. —Mas eu não sabia que o senhor Dupres fosse... —Era francês, querida. Isso o diz tudo, não? Todos advertimos a Prudence de que, um dia, arrependeria-se e olhe se não foi assim. Morta no jornal, com o coração quebrado —suspirou e entrecerrou os olhos para fixá-los nos tilos, que sussurravam suavemente sob a brisa—. Não te disse, Geoffrey, que hoje brilharia o sol? —Disse-me que choveria. A senhora Alcott voltou a bater com o leque em Emma e se inclinou para ela para sussurrar em voz alta: —Sempre vê chuva, inclusive quando não há nenhuma nuvem no céu. Que tendência tão desagradável ao pessimismo. Não posso nem imaginar de onde lhe vem. —interrompeu-se bruscamente, com os olhos fixos no caminho pavimentado de mármore e projetando o queixo para fora—. Como se atreve! Como se atreve a usar a essa pobre criatura para atrair a atenção? Emma e Geoffrey se voltaram para ver quem se atrevia a fazer o que e Geoffrey conseguiu controlar no último instante uma exclamação transbordante de escândalo e assombro. —Maddie! —exclamou Emma e imediatamente estava em pé e correndo pelo caminho rodeado de tilos, correndo a tanta velocidade que tinha que levantar as saia por cima dos tornozelos, sem lhe importar absolutamente que toda a sociedade da “Gente Importante” estivesse ali para presenciar suas más maneiras. Corria para sua irmã que avançava em sua cadeira, empurrada por Stuart Alcott. Maddie levava um vestido branco de cambraia, bordado com raminhos de nomeolvides diminutos e estava muito bonita e feliz, com as bochechas ruborizadas e os lábios sorridentes. —Vim, Emma — disse, com a voz subindo em espirais como se fossem pétalas de rosa.

Emma se deteve, dando um tropeção, diante dela, rindo e chorando ao mesmo tempo. —Isso vejo. Ah, Maddie, isso vejo. Stu se apoiava com os braços muito esticados nos punhos da cadeira. Estava mais que acalorado, estava suando. Tinha a gravata torcida e o amido de sua camisa estava murcho. Vapores de brandy se agarravam a ele como se fossem uma fumaça oleosa. —Muito bem, Maddie, querida menina —disse arrastando as palavras—. Vieste e está aqui, agora, pode me perdoar um momento? Parece-me que ouço como me chama um coquetel de champanha. Maddie o olhou afastar-se e as sombras empanavam já a excitada alegria de seus olhos. Apertou as mãos com tanta força, em cima de sua saia, que os nódulos se voltaram da cor da cera velha. Emma se inclinou para baixo e agarrou uma das mãos entre as suas. —Maddie... —Acha que mamãe se zangará muito? —perguntou Maddie, em voz muito baixa. —Se o fizer, nunca o demonstrará em público. E logo eu ajudarei a capear a tormenta. Emma soltou a mão de sua irmã e começou a empurrar a cadeira para a loja de refrescos, onde estava reunida a maioria das pessoas. Procurou a sua mãe com o olhar, mas não a viu. Recordou havê-la visto antes, com o tio Stanton e a senhora Norton, passeando para o lado sul da casa, onde estava o orgulho dos jardins Alcott; seus canteiros de rosas com trinta e sete variedades. Emma confiava em que seguiria ali. A Maddie já ia resultar-lhe esta imersão inicial nas águas sociais da “Gente Importante” bastante difícil, sem ter que fazê-lo sob o olhar azul, profundamente enfurecido de sua mãe. —Ai —exclamou Maddie, em voz baixa, quando as rodas da cadeira estralaram ao passar por cima de uma greta nas lajes de mármore—, agora

começo a compreender por que teme tanto estas coisas. É como se o vento tivesse dispersado todas minhas ideias, e estou segura de que, em qualquer momento, farei ou direi algo equivocado. —Por que não deixa isso comigo? —disse Emma, com uma alegria um pouco excessiva —. Ultimamente, converti-me em uma perita em fazer e dizer as coisas equivocadas. O ruído de conversação e as risadas se sossegaram quando se aproximaram da loja. —Todos nos olham, Emma —disse Maddie. Sua voz soava alta e tensa, como a corda, muito apertada, de um relógio. —Não estão fazendo nada disso. —Não, é ainda pior. Olham e logo olham para o outro lado e fingem que não viram o que acabam de ver. —É só que perderam o costume de verte fora de As Bétulas — disse Emma—. É normal que haja um certo desconforto inicial, mas as coisas se farão mais fáceis com o tempo. —Se mamãe me permitir uma segunda vez. Emma deteve a cadeira e se inclinou por cima do ombro de sua irmã para lhe agarrar de novo a mão, apertando-lhe com força. —Maddie, me alegro muito de que tenha vindo. Estou muito orgulhosa de que o tenha feito. Maddie voltou à cabeça e olhou a sua irmã, com os olhos brilhando com lágrimas mal contidas. —Está-o, Emma? De verdade, está-o? —De verdade. Maddie liberou a mão e se agarrou aos braços da cadeira. Emma viu como lhe pulsava o pulso, com força e violência, nas veias da nuca. Duas tensas linhas brancas lhe emolduravam a boca. —Então, por favor, me empurre até debaixo daquele salgueiro e vá pedir

a Stu que me traga um copo de ponche. Vá, por favor — insistiu, ao ver que Emma vacilava—. Posso estar ali só um par de minutos e, além disso, vejo que se aproxima seu querido Geoffrey para me salvar de parecer com a que fica sem dançar. Apesar de tudo, Emma esperou até que Geoffrey se unisse a elas antes de partir. Podia confiar em que Geoffrey cuidaria de sua irmã. Sua lealdade e sua sensibilidade para fazer o devido sempre tinham sido tão inexpugnáveis como suas maneiras cavalheirescas. Emma pensou que não podia dizer o mesmo de seu irmão. Encontrou-o de pé diante da fonte; olhando com cara de poucos amigos aos cupidos que jorravam água, como se o estivessem insultando. Ao ouvir seus passos, voltouse para olhá-la, oscilando um pouco. Sustentava uma taça de champanha, vazia, na mão. —Ah, Emma. Já vem me buscar, né? É que se sente abandonada? Escrutinada? Criticada? Desmoralizada? Eu o adverti, sincera e honestamente, o adverti. Recordei-lhe que nós, a “Gente Importante”, cultivamos a elevada arte de fechar os olhos ante o incomum e o desagradável. Emma olhou para Stuart Alcott à cara. Ainda era bonito, apesar da carne inchada ao redor dos olhos, injetados de sangue, e a boca frouxa, de bêbado. —Stu, se ia atuar assim, por que...? —Por que fiz o que? Trazê-la aqui? Porque ela me suplicou isso e tenho uma certa inclinação para as causas perdidas, sendo uma eu mesmo. —encolheu os ombros e cambaleou, aterrissando quase dentro da fonte—. Por outro lado, como proverbialmente se diz; se está tentando determinar se minhas intenções gerais para sua irmã são honoráveis, direi-lhe isso com total claridade; não tenho intenções. Sou um jogador, bêbado e mulherengo muito reputado e esses só são os vícios que reconheço quando há damas diante de mim. Minha falta de intenções inclui castigar com minha presença a qualquer mulher durante mais de uma noite. Nossa Maddie, virginal e antiga amiga, economizará-se inclusive

isso. Começou a afastar-se dela, mas Emma o agarrou pelo braço. Stu se soltou, mas ela o havia tocado o tempo suficiente para notar seu violento tremor interior. —Não pode vir para casa um verão, pôr sua vida de pernas para cima e depois não ter nada mais que ver com ela. —Não posso? —Atirou a taça de champanha à cabeça de um cupido. Lançou-a, simplesmente, como se, se tratasse de uma bola de tênis, mas igualmente se partiu em mil pedaços, cintilantes como gotas de rocio ao sol—. A verdade é que acredito que não ter nada mais que ver com ela é o máximo ato de bondade que posso mostrar para a senhorita Madeleine Tremayne. —Stu, por favor — disse Emma—, por favor, não lhe faça mal. Ele se voltou e ficou olhando-a um momento, em seguida lhe acariciou a bochecha com o dorso da mão. —Não posso evitá-lo, menina. A vida faz mal. Seu olhar se elevou e se fixou em algo que havia atrás dela e, embora Emma não se voltou, sabia que olhava a sua irmã. E que a visão de Maddie, sentada em sua cadeira, à sombra dos tilos, doía-lhe de uma maneira terrível e fundamental. Passou a seu lado, sem dizer nenhuma palavra mais e esta vez, Emma deixou que partisse.

«O que acontece quando vive unicamente para um momento que vem e se vai e logo descobre que não mudou nada?”» O verão ia aproximando-se, quente e pegajoso a setembro. Emma seguiu mantendo sua promessa. E cada vez que abria a porta da Rua Thames, o coração lhe parava um segundo esperando ver Bria junto ao fogão, mas nunca voltou a vê-la. Começou a esculpir de novo, um gozo e uma agonia que tinha deixado de

lado desde as semanas finais da vida de Bria. Passava horas na velha estufa, procurando a artéria que ia de seu coração a suas mãos, mas sentia como se usasse uma faca banguela para fazê-lo. Cortava-se, mas não sangrava e a maioria do que criava do frio e úmido barro, destruía. Um dia, junto à única rosa branca que seguia chegando cada manhã, Geoffrey lhe enviou uma carta do Maine. Contava-lhe com uns detalhes meticulosos como progredia o trabalho na fundição. Ao final, escrevia: «Esta noite, sentado, te escrevendo, nesta sala (não lhe farei a honra de chamá-la salão) feia e sem alma de minha casa de hóspedes, é quando mais me doem os braços com o desejo de te abraçar e desejo o momento em que possa te chamar, com orgulho e de todo coração, minha esposa». Era o mais perto que já tinha chegado a lhe dizer que a amava. Sabia que essa carta teria que lhe agradar, mas em troca, sentia-se esmagada pela culpa. Tinha-lhe prometido casar-se com ele, estava deixando que se apaixonasse por ela e, todo o tempo, ela amava a outro. Alguém a quem não podia ter. Nesse lugar do coração onde se guardam os segredos, onde se diferencia o bem do mal e a honra da desonra, sabia que tinha que pôr fim a aquilo. Uma coisa ou a outra tinha que terminar. E então, uma terça-feira pela tarde, ao entrar no caminho que levava a casa da Rua Thames, viu que as violetas que ela e Bria plantaram morreram. Ajoelhou-se e começou a arrancá-las de uma em uma, como se pudesse fazer um ramalhete com elas, só que estavam mortas. Sabia que estavam mortas; entretanto seguia as agarrando, com desespero, as arrancando agora pela raiz, as jogando em sua saia e sujando-se de terra por toda parte. Suas mãos ficaram quietas e fechou os olhos. Uma única lágrima caiu em cima das pétalas purpúreas, secas e murchas, que tinha na saia, seguida por outra e outra mais e logo teve que apertar as mãos com força contra a cara para afogar o ruído de seu pranto. Quando acabou, jogou a cabeça para trás e cravou os doloridos olhos em

um céu cheio de nuvens arrastadas pelo vento e sentiu como se a tivessem arrancado da terra e estivesse voando lá em cima sozinha, triste e assustada. Então se deu conta que devia estar dando todo um espetáculo, ali sentada ao pé da varanda, coberta de terra e violetas mortas, aos olhos e aos ouvidos da Rua Thames. Levantou-se e entrou na casa, mas não havia ninguém e ainda passaria um momento antes que soasse a sirene da mudança de turno na fábrica. Fez uma jarra de limão efervescente para tomar com o bolo que havia trazido para as meninas. Foi até o berço do pequeno Jacko, agora vazio, porque estava na casa da senhora Vai. Agarrou a manta e a esfregou contra a bochecha, aspirando seu aroma de bebê, mas em seguida voltou a deixá-la no berço porque despertava nela um desejo doloroso, vazio, de coisas que não compreendia. Perambulou pela casa. Ficou de pé junto ao lavabo que Shay usava cada manhã e pensou: «Aqui é onde esteve faz só umas horas; tocou esta lâmina de barbear e esta toalha». Mas aquele vazio desejo voltou a aparecer e se afastou dali. E viu Bria. Viu-a outra vez junto aos fogões, vestida com a camisola que lhe havia dado, mas, em vez de estender a mão para pegar a chaleira, agora estava de cara à janela, olhando para fora, com os olhos muito abertos e escuros e cheios do mais absoluto horror. —Bria! —exclamou Emma, mas naquele mesmo instante desapareceu. E as partes de carvão que havia na cozinha — os que se deixaram apagar pela manhã— começaram a arder de repente. Emma viu que o fogo brilhava, vermelho, pela fresta da porta de carga; podia cheirar como ardia. «Mas isso é impossível», pensou e naquele instante o fogo se apagou. Foi até os fogões com pernas trêmulas. Tocou a superfície, mas estava fria. Abriu a porta de carga. O carvão estava cinza, convertido em cinzas. Frio. Olhou pela janela. Viu que se levantou um vento, mas isso era tudo.

Soprava com força, com tanta força como o dia em que Merry disse... —A fábrica... Meu Deus, a fábrica!

Capítulo Vinte e Quatro Emma saiu tão rapidamente pela porta que colocou o salto do sapato no último degrau da varanda e caiu, patinando ao golpear contra o chão, rasgando a saia e esfolando as mãos e os joelhos. Ficou de novo em pé e recolhendo a saia até meia panturrilha, correu à parte de trás, para a praia. O vento agitava a baía levantando ondas. Os barcos de pesca se encabritavam e voavam sobre a água, com as velas brancas e avermelhadas batendo as asas. Subiu ao embarcadouro e pôs-se a correr, tropeçando por duas vezes nas tábuas curvadas, correu sem parar até chegar ao final do cais para poder olhar para a cidade, e ver a fábrica de algodão da Rua Thames. O vento lhe batia com força na cara, levantava-lhe a saia e lhe provocava um tumulto de ruídos nos ouvidos. Com a mão, protegeu os olhos do fulgor do sol contra a água. A fábrica estava ali, com seus muros de granito e seu telhado de piçarra cinza. Uma nuvem de fumaça branca saía da alta chaminé, como sempre. Mas não havia redemoinhos de fumaça nem chamas saindo pelas elevadas e imundas janelas. —Não acontece nada — se disse—. Tudo está bem. Mas não tinha a impressão de que estivesse bem. Havia quatro quarteirões da casa até a fábrica e não deixou de correr em todo o caminho. Cruzou com um trabalhador dos campos de cebolas, que voltava para casa e que lhe gritou: —Né, senhora! Onde é o fogo? Queria lhe gritar uma resposta, gritar pelo medo que agora a atacava, mas não tinha fôlego. Atravessou correndo a grande grade com seu arco de tijolo e entrou no pátio deserto. Seguia sem ver nada de fumaça nem fogo, mas subiu correndo as

escadas de ferro que levavam a porta forrada de lata, com as ombreiras de ferro, da sala de fiação. Subiu tão rápido que deu com as palmas das mãos contra a porta. Baixou a mão e agarrou o trinco e puxou para cima... e não aconteceu nada. Puxou para baixo... e não aconteceu nada. A porta estava fechada com chave. As escadas de ferro se agitavam e tremiam sob seus pés com a força das máquinas que vibravam dentro. Inclusive com o vento, ouvia o ruído que faziam, o estrondo metálico, o estalo continuado e o zumbido como de um milhão de abelhas furiosas. O vento se acalmou um momento e pensou que cheirava a algo que se chamuscava, como quando deixa uma tábua muito tempo sobre algodão engomado. Olhou para cima, mas o único que podia ver era a aresta de piçarra cinza do telhado. E então o viu, um redemoinho que saía de debaixo da cornija... Fumaça negra.

Shay McKenna não podia trazer seu barco de volta depois de um dia de pesca sem passar por diante do cais da fábrica de algodão da Rua Thames, onde suas filhas trabalhavam na sala de fiações. Todos os dias olhava aqueles muros de pedras cinza e aquela chaminé fumegante e dizia o mesmo “logo lhes tirarei daí pequenas, prometo-o”. Quando se nasce católico e irlandês em um clachan chamado Gartadoo, está acostumado a ser pobre, acostumado a escavar como uma galinha em uma parte de terra que nunca será teu. Está acostumado a viver em uma cabana de pedra com uma pilha de palha como cama e, possivelmente, se tiver a sorte dos irlandeses, um tamborete ou dois para te sentar. E está acostumado, que Deus te ajude, a enviar a seus filhos aos campos de batatas, com enxadas em suas diminutas mãos, assim que apredem a andar. Estava acostumado a tudo isso então, lá em Gortadoo, mas já não o

estava agora. Bria, deitada em sua cama, de noite, depois de um turno de doze horas, deitada de barriga para baixo enquanto lhe esfregava as pernas doloridas e com cãibras, lhe falando... «Merry tem que subir em uma caixa enquanto trabalha com a hiladora, porque é muito pequena para ocupar-se das bobinas.» «Há baratas correndo por todo o chão, entre os pés. Os meninos as molham com azeite lubrificante e lhes tacam fogo.» «O capataz sai à passarela e touca o apito e todo mundo puxa as alavancas do bastidor e começa a fiar. E então ele nos tranca com chave até que acaba o turno.» «São os dedos menores os que as arrumam melhor. E tem que ser rápido e ágil com eles, para apanhar os fios quando se enredam ou se partem. «A penugem do algodão se mete em nossos olhos, no nariz e na garganta. O ar está sempre muito úmido e poeirento e cheio dessa felpa.» «Doem os ouvidos pelo estrondo e os olhos começam a te arder, de tanto olhar como os fios se enchem, enchem-se e se enchem... Que Deus nos ajude, estive vendo em sonhos essas bobinas que crescem e crescem.» Dhia, como lhe rasgava as vísceras ver suas filhas sair arrastando-se da cama, pela manhã, ainda escuro, para ir a esse lugar onde o apito do turno lhes chiava nos ouvidos, para ficar trancadas sob chave, longe do sol, trancadas com o pó e as máquinas e as bobinas que se encham e que as perseguirão em sonhos... A sirene da fábrica soou com um tom agudo, que sobressaltou ao Shay, lhe fazendo soltar o leme um momento e o barco girou, as velas bateram e o casco rangeu. Porque não era o toque curto e agudo que anunciava uma mudança de turno, a não ser o longo ulular que advertia de um iminente desastre. Subiu à ponte, entrecerrando os olhos contra o forte impulso do vento... e

viu uma fumaça negra e oleosa que subia retorcendo-se para o céu da fábrica onde estavam suas filhas. Onde estava sua vida.

Emma estava a meio caminho, descendo as escadas, quando a sirene da fábrica soltou um longo e estridente gemido. «Meu Deus, Meu Deus... —Os pés escorregaram nos degraus metálicos e esteve a ponto de cair rodando—. Há um incêndio e estão trancadas aí dentro, as filhas da Bria estão aí dentro e eu prometi que viria salvá-las, só que não posso, não posso chegar até elas porque está fechado com chave, com chave, com chave... Há um incêndio e está fechado com chave...» Operários de outras partes da fábrica foram saindo ao pátio, junto com rios de acre de fumaça negra e cinza. Emma chegou ao pé da escada correndo, porque tinha visto o senhor Stipple sair cambaleando e tampando a cara com um lenço. Lançou-se para ele e lhe agarrou pelas lapelas da jaqueta. —Senhor Stipple, graças a Deus, graças a Deus... É necessário que abra a sala de fiações... Ele tentou soltar-se, negando com a cabeça. Seus olhos pequenos, como dois botões redondos e brancos, tinham um olhar fixo em sua cara carnuda. Emma o sacudiu, lhe cravando os dedos com mais força na lã áspera e gordurenta. —Pois me dê. Dê-me a chave. Ele deu um puxão para afastar-se. —Não, não, não posso... —A chave! —gritou-lhe Emma, grunhindo as palavras contra sua cara e fazendo com que ele recuasse. —Em... Meu escritório — disse e voltou a negar com a cabeça, com os olhos fixos, enlouquecidos—. Não vou voltar ali. O fogo está na tessitura e isso está muito perto, muito perto...

Emma o soltou e se lançou pela entrada, parecida com uma caverna, da fábrica, justo no momento em que o sino do quartel de bombeiros começava a soar. Estorvava-lhe a saia, que lhe enredava entre as pernas, assim que a arrancou. Estava no vestíbulo com os cartões amarelos que registravam o tempo de entrada e saída, colocadas em pulcras filas militares na parede. Seguia sem ver as chamas, mas umas turvas nuvens de fumaça chegavam até o vestíbulo da parte de trás da fábrica. Teve que chegar até o escritório do senhor Stipple a provas, seguindo o revestimento de madeira das paredes e deu graças a Deus de que não estava longe, porque tinha os olhos cheios de lágrimas e lhe ardia o peito. A porta estava fechada e, por um momento, ficou em pânico ao pensar que também estaria trancada a chave. Mas o pomo girou facilmente sob sua mão e só depois de ter aberto a porta de um puxão lhe ocorreu que poderia haver um muro de chamas ao outro lado. Não era assim. Fechou a porta de repente atrás dela e se lançou dentro de uma habitação que parecia extremamente escura e silenciosa depois do tumulto exterior e muito menos cheia de fumaça. Ofegou e tossiu e absorveu uma baforada profunda de ar limpo. Mas tinha que se apressar... Dirigiu-se para o escritório, pensando que a chave estaria ali e tropeçou com a borda levantada do tapete, se golpeando contra uma enorme caixa forte e machucando o quadril. Entretanto, nem sequer o sentiu, porque, justo nesse momento, viu um par de ganchos em uma parede forrada com um papel separado e com marcas de umidade. Desde um pendurava um gasto chapéu de feltro negro e, do outro, um aro de ferro carregado de chaves. Arremeteu através do espaço entre a mesa do escritório e a parede e agarrou as chaves.

O aro de ferro estava quente e lhe queimou a mão, sobressaltando-a e fazendo com que gritasse e o deixasse cair. Rasgou uma parte de suas anáguas e o usou como amparo para voltar a pegar as chaves. Notava como a habitação ia esquentando, como se estivesse diante da porta aberta de um forno de carvão. Endireitou-se justo no momento em que o papel da parede se incendiava e, imediatamente, convertia-se em cinzas. Deu meia volta a toda velocidade e se precipitou, através da habitação, para a porta, tropeçando de novo contra a mesa do escritório e fazendo com que escorregasse por cima do fino tapete. Caiu, dando tombos, contra um alto arquivo metálico, enganchando o cabelo em um dos puxadores de bronze e não podia soltá-lo, não podia... Ao fim conseguiu soltar-se e correu através da habitação, para a porta. A porta se abriu de repente, dando contra a parede. Uma nuvem de fumaça flutuava ao seu redor, espesso como névoa marinha. Um braço coberto com um impermeável amarelo e uma grossa luva de couro apareceu através da bruma cheia de fuligem e Emma se agarrou a ele. Uma cara surpreendida, rematada por um casco negro, parecia flutuar, carente de corpo, entre a fumaça. —Senhora, que demônios...? —Passou-lhe as mãos pelos braços, como se tivesse que assegurar-se de que era real—. Jesus. tenho que tirá-la daqui, mas primeiro tenho... —A chave — disse Emma, com voz entrecortada, enquanto levantava o aro que levava na mão—. A tenho. Então ele se inclinou e a agarrou nos braços, como se fosse uma menina. Assim cruzaram a porta e entraram no vestíbulo tão cheio de fumaça que era como tentar ver através de uma manta de lã. Emma apertou a cara contra o peito do homem e procurou não respirar.

Ele avançou com passos largos, quase correndo, enquanto o recobrimento

de madeira dos lados começava a arder e ficavam envoltos em um rugido de calor. Mas no momento, tinham-no atravessado e a água das mangueiras de incêndios os empapava como se fosse um toró. Noreen! Merry! Shay abria caminho aos empurrões entre a multidão que enchia o pátio da fábrica. Esteve a ponto de cair em cima de um amontoado de mangueiras de incêndios e se deteve um momento, vacilando sobre seus pés como se os gritos, as ordens e os chiados fossem golpes físicos que o sacudissem. Jogou a cabeça para trás, para olhar para cima, à cortina de fumaça ocre que flutuava por cima de suas cabeças; às luzes laranja e amarelas que dançavam, refletindo-se nos cristais das altas e estreitas janelas da área de fiações. Olhou para as escadas com os degraus recobertos de ferro e aos dois homens vestidos com capas de chuva amarelos, que atacavam com suas tochas uma porta forrada de chumbo. Umas tochas que ressonavam com força quando seu fio golpeava as placas de metal, deixava marcas em forma de meia lua e nada mais. «E então nos tranca com chave até que acaba o turno». Shay se lançou para as escadas, gritando e amaldiçoando. Com o canto do olho viu um bombeiro que saía cambaleando pela larga boca da entrada da fábrica. O homem levava uma mulher nos braços, mas a deixou assim que esteve fora da fumaça e, logo, pôs-se a correr, gritando e agitando um aro negro, com chaves por cima da cabeça. Shay seguiu ao bombeiro escada acima e suas botas faziam tremer os degraus de ferro. Pareceu que passava uma eternidade até que o homem encaixou a chave na fechadura, giraram as dobradiças, levantou o fecho e, por fim, a porta se abriu. Uma fumaça negra e oleosa e mulheres e crianças se derrubaram para fora, tossindo e ofegando, com os olhos chorosos e as mãos diante da cara para medir o caminho. Um após o outro saíam aos tropeções pela

porta, empurrando e pressionando em seu desesperado medo por sair dali... crianças, muitas crianças. E nenhum deles era nenhuma de suas filhas. Shay abriu passo entre eles, até chegar à passarela, procurando freneticamente entre os que ficavam dentro, mas a fumaça era tão espessa que resultava difícil ver algo. O ralo de ferro do chão da passarela tremia sob seus pés. Mãos pequenas se estendiam para ele, agarravam-se a ele e ele as guiava para a porta aberta e olhava, não deixava de olhar, procurando a suas filhas e gritando, gritando dentro de sua cabeça. Esforçou-se por ver a sala de baixo. As hiladoras seguiam funcionando, estralando e produzindo um ruído metálico, mas ninguém se ocupava delas. A parede do fundo estava em chamas. A velha madeira se esquartejava e cuspia chamas sibilantes, fumegantes, que se estendiam rapidamente em fitas ao longo das tábuas gordurentas do chão, levantando ampolas que arrebentavam e borbulhavam como sopa fervendo. Uma mão lhe agarrou à perna da calça. —Papai! Shay deu uma volta completa, agarrando Noreen em seus braços com um só movimento, e Merry também estava ali e a agarrou também e acabava de atravessar a porta, com as duas nos braços, quando uma das máquinas se acendeu, explorando em redemoinhos de um vermelho aceso e disparando faíscas azuis. Shay já estava abaixo das escadas com suas filhas a salvo nos braços. Levou-as até o extremo mais afastado do pátio, longe da fumaça e das cinzas. Deixou-as no chão e lhes passou as mãos por toda parte, por cada centímetro de seus corpos. Estavam assustadas e asfixiadas pela fumaça, mas não estavam feridas em nenhum lugar, que ele pudesse ver. Entretanto, não podia deixar de tocá-las. Seguia tendo que tocá-las, sentir o calor de sua carne viva. Suas filhas... tinha estado a ponto de perder a suas filhas. Se as tivesse

perdido... Uma mulher saiu correndo de entre a multidão de olheiros e operários, dirigindo-se para eles, corria e gritava seus nomes. Uma mulher que jorrava água e só vestia uma rasgada anágua, como saia, e vertia lágrimas que deixavam uns rastros brancos em sua cara cheia de fuligem. A mulher que o bombeiro tinha tirado da fábrica em chamas. Emma. —Veio para nos buscar, papai, tal como Merry disse que o faria. —Já sei, querida. —Shay se sentou na cama e afastou o cabelo molhado da testa de Noreen. Inclinou-se para ela e beijou a pele ruborizada pelo calor, mas não queimada, graças a Deus, graças a Deus. —Dormir, isso é o que as duas teriam que estar fazendo agora —disse, quando foi capaz de falar—. Já sabem o que dizia sua mãe, que não havia nada que uma boa noite de sono não pudesse curar. Noreen lhe ofereceu um sorriso trêmulo, mas Merry só o olhava com uns olhos muito abertos e acossados. Não cantarolou nem uma vez, desde que ele a tirou da fábrica em chamas, mas lhe custou muitíssimo convencê-la para que soltasse a mão de Emma. —Veio por nós, papai —disse Noreen—. Tal como o prometeu. —Sei. Teve que abrir os olhos ao máximo para conter as lágrimas. Inclinou-se e rodeou com os braços a suas filhas e as abraçou forte, muito forte. Apesar de um longo banho, seguiam cheirando a fumaça e estremeceu ao pensar nisso. Não podia deixar de tremer. —Amo-lhes, minhas meninas — disse, em um sussurro porque já estavam adormecidas. E eram palavras que, para um homem, às vezes resultavam difíceis de dizer, inclusive a suas filhas.

Levantou-se da cama, com cuidado para não despertá-las e foi ver seu filho, que dormia no berço que lhe tinha feito com velhas gavetas de café Arbuckle. Com os lábios percorreu a gorducha bochecha do pequeno e logo o beijou na parte suave da cabeça. Ia sair da habitação, pisando suavemente com os pés sem sapatos, mas se deteve ao chegar à porta e se voltou para olhar a seu filho no berço improvisado e a suas filhas dormidas na branca cama de ferro. Passou um tempo, comprido, doce, suspenso, só olhando-os e tremendo em seu interior pela força do que sentia por eles. Ao entrar na cozinha, surpreendeu-se ao ver que agora se tornou azul, com as sombras da próxima noite. Emma estava sentada na cadeira de balanço, ao lado da janela. Inclusive em meio da confusão do pátio da fábrica, inclusive com aspecto de rato de fábrica, também a tinha reconhecido; como senhorita Tremayne e como a mulher que se lançou dentro da fábrica em chamas para procurar as chaves que abriam a porta da sala de fiações, salvando a vida das mulheres e crianças trancadas dentro. Mas parecia quase assustada pela atenção e não parava de insistir em que não tinha feito nada, que um bombeiro tinha entrado para procurar a chave, quase lhe pisando os calcanhares, e que, ao final, tinha acabado tendo que ser resgatada, também. A ninguém lhe tinha ocorrido perguntar, ainda, o que estava fazendo ali. Mas Shay sabia, pelas palavras que ela murmurava soluçando enquanto permanecia ajoelhada nos tijolos do pátio, estreitando às meninas contra seu peito; sabia que estava na fábrica, tentando abrir a porta, muito antes que soasse o alarme. E, além disso, tinha Merry, que o tinha sabido muito antes que acontecesse. Entretanto, não ia pensar muito em quão estranho era tudo aquilo. Os irlandeses têm um dito sobre como as perguntas que não têm resposta são milagres ou mistérios e ambos têm que tomar-se como questão de fé. O único pensamento de Shay, uma vez que as meninas estiveram fora de

perigo, foi levar-lhes para casa. Emma foi com eles, como se ali fosse onde pertencesse, mas, além disso, Merry não lhe soltava a mão. Ajudou-lhe a tranquilizar as meninas para que superassem o susto e às colocar na cama. Esquentou a chaleira para que se banhassem e lhes fez beber chocolate quente. Envolveu-as em camisolas de flanela e lhes pôs uma garrafa de cerveja, cheia de água quente, na cama, tanto para que as reconfortasse como para que lhes desse calor. Agora estava sentada na cadeira de balanço, perto dos fogões, em sua cozinha. Como se aquele fosse seu lugar. Sua blusa de cambraia branca estava cinza de fuligem e furada pelas queimaduras do cisco. Suas anáguas estavam em pior estado, rasgadas, convertidas em farrapos em alguns lugares e manchadas de água. Ainda estava modestamente coberta do pescoço até quase o tornozelo, mas Shay duvidava que nenhum homem tivesse visto antes à senhorita Emma Tremayne em anáguas. Sustentava uma mão dentro da outra, em cima da saia, como se lhe doesse. Foi até ela e se ajoelhou; agarrou-lhe a mão e lhe deu a volta. Um vergão vermelho lhe cruzava a palma, como se fosse uma soga, mas não havia ampolas. Via como lhe pulsava o coração nas veias azuis do pulso. Levantou o olhar para ela, mas não soube o que dizer. Já lhe havia dito «obrigado», mas não era suficiente e, entretanto, não havia outras palavras. —Queimou a mão — disse. —Só um pouco. Não usava luvas — respondeu ela, de uma maneira que era uma estranha mescla de altivez e travessura. Tinha as sobrancelhas e a parte frontal do cabelo um pouco chamuscadas, o qual lhe dava um aspecto inocente e assombrado—. Já vê, isso é o que acontece sair de casa sem luvas. Ele sorriu, mas o sorriso se rachou a meio caminho e se converteu em outra coisa. Notava cada um dos ossos, separados e finos, de sua mão. —Senhorita Tremayne...

—Devo insistir em que me chame de Emma. —Sua mão tremia só um pouco—. Não posso ser a senhorita Tremayne quando estou sentada em sua cozinha, vestida só com anáguas e sem sobrancelhas. Não é aceitável. Não soube em que momento lhe soltou a mão nem quando ela se inclinou para ele e lhe estendeu os braços. Mas, de algum jeito, agora tinha as mãos entre seu cabelo e ela se deslizava da cadeira até ajoelhar-se no chão, diante dele, e ele tinha os lábios em seu cabelo e ela escondia a cara na curva de seu pescoço. Agarrou-a pelos ombros e a afastou delicadamente. Ela levantou a cara e seus olhos eram dois enormes lagos, de cor verde escura. Shay não via nada neles, salvo a si mesmo, refletido para toda a eternidade. Conseguiu ficar em pé, não sabia como, porque não lhe parecia notar as pernas. Retrocedeu, afastando-se dela, primeiro um passo, logo outro e outro, até que tocou a parede com as costas. Ela seguiu ajoelhada no chão, no mesmo lugar onde ele a tinha deixado. Seus olhos o absorviam, absorviam o mundo. —Estava aqui sentada, recordando — disse — o dia que fizemos uma visita à raposa e seus cachorrinhos. E pensava... —deteve-se, tragando como se lhe doesse a garganta. Shay via como lhe pulsava o pulso no pescoço—. Pensava que o que de verdade queria era voltar para prado para ver como estavam. Parece-me que irei este domingo, depois da igreja. Não tenho nenhuma escopeta feita com partes daqui e de lá para disparar contra as aves, assim suponho que terei que levar uma cesta com algo das cozinhas de As Bétulas. Shay imaginou-a chegando ao prado com uma cesta de vime cheia de frango com molho de laranja e faisão em terrina. Esteve a ponto de sorrir, salvo que seu próprio coração pulsava muito rapidamente e sentia uma opressão muito grande no peito, que quase lhe impedia de respirar. —E me perguntava se... —esfregou-se o pescoço, onde pulsava o pulso, por cima do pescoço de renda de sua blusa destroçada—. Reunira-te ali comigo? —Não — disse ele ou acreditou que dizia. Não sabia que desejá-la podia

produzir esta sensação, uma sensação tão profunda dentro dele, que não havia mais remedeio que ceder a ela. —Shay — disse ela, com voz entrecortada—, você sabe que eu... —Sim, sei, sei. —Quero que... —Tinha as mãos apoiadas, com as palmas para cima, sobre as coxas, mas agora as levantou abrindo-as como se suplicasse—. Veja que ridícula, estreita e vazia é minha vida; nem sequer sei as palavras para expressar o que quero. Todos esses livros, machos e fêmeas, segregados em suas pulcras prateleiras da Roger’s Free Library e nenhum deles têm as palavras que necessito para te dizer o que quero. —Não o faça. Não o diga. Emma inclinou a cabeça e ficou assim um momento, com as costas curvadas e tensas, a nuca visível, branca, sob a negra onda de seu cabelo. Shay fechou as mãos em apertados punhos, cravando as unhas nas palmas. Emma se levantou lentamente, com elegância, até ficar em pé e o olhou e agora seus olhos eram doces, cinzas e frescos como o céu ao amanhecer. —No domingo — disse—. Estarei te esperando no prado da raposa. —Nunca voltarei a esse lugar — respondeu ele e se perguntou onde encontraria a força para que suas palavras não fossem mentira.

Capítulo Vinte e Cinco Correu a toda velocidade até que lhe doeu o peito. Correu com raiva, até que os pés levantaram uma nuvem de pó que flutuou por cima da estrada de Ferry e sua respiração ressonasse áspera, em seus ouvidos. Correu e correu, mas a dor se mantinha a sua altura, emparelhada a ele passo por passo e fôlego por fôlego. Aquela dor vazia e sibilante. Jogou a cabeça para trás e gritou seu nome para o céu, duro, azul e desumano: —Bria! A estrada se curvava. Agora corria contra o vento e o notava, quente e seco, na cara. Era um vento sudoeste, que, aqui, levantava-se cada tarde do verão e cheirava a mar. Os velhos ianques asseguravam que avivava as paixões e despertava o desejo. O desejo. Que coisa mais estranha era o desejo. Podia escolher o que pegava e o que comprava, o que ficava e o que dava de presente. Mas não o que desejava. Estava já muito dentro do bosque. Três meses atrás os arces e as bétulas estavam ainda verdeando com as últimas chuvas da primavera. Agora as folhas decaíam com o úmido calor do verão. Passaria um mês e estariam resplandecentes de ouro e carmesim, e sua esposa seguiria estando morta. E embora o coração lhe encolhesse com uma dor insuportável ao pensá-lo, isso não mudava a verdade das coisas. Não ia escolher manter-se longe do prado, agora o via. Levava correndo por essa estrada há bastante tempo, dizendo-se, todo o momento, que estava

fugindo. Agora não ficava nada mais que escolher, nada mais que fazer. Só correr para reunir-se com ela. O prado refulgia cheio de varas de ouro, como uma terrina cheia de sol. Ela estava sentada no meio, uma jovem com um vestido branco de cambraia, vincado, e um chapéu amarelo de palha, com uma fita azul que se levantava e flutuava sob a brisa. A luz parecia transbordar-se de sua pele, como se o sol vivesse dentro dela. Viu-a e se perguntou como tinha podido acreditar alguma vez que podia sentir o que sentia e, entretanto, obrigar-se a acreditar e atuar como se não sentisse absolutamente nada. Ficou sob a sombra das árvores e a contemplou um longo e doce momento. Logo saiu ao sol para unir-se a ela. Ela o ouviu e voltou à cabeça e sua cara se iluminou mais ainda e se voltou alegre e espectadora. —Vieste — disse e o alívio que havia em sua voz estava, um pouco, matizado de medo. E nem sequer sabia ainda o muito que ele a desejava. Shay sentia vertigem e desespero de tanto desejá-la. Sentou-se junto a ela e apoiou os braços nos joelhos dobrados. O vento quente e seco agitava as escuras mechas de cabelo da testa e da nuca de Emma. Desejava lhe tirar aquele delicioso chápeu com sua larga fita azul e lhe soltar o cabelo. Desejava encher as mãos com seu cabelo e enterrar a cara nele, respirar nele até encher-se por completo do aroma dela. Afastou os olhos, para olhar ao redor da clareira, ao escuro verde dos ramos emplumados das tsugas, às pinceladas amarelas das varas de ouro e os ásteres de olho negro, aos vermelhos bagos do saúco, amadurecidas nos ramos. À toca da raposa, que tinha uma ave diante... uma ave enorme, rosada e depenada. —Quereria me dizer —perguntou— que diabos é aquilo? —É um capão.

—Mãe de Deus. Depois disto, esses cachorrinhos terão que estar muito famintos para conformar-se com as esquálidas galinhas de um granjeiro. Ela tinha a risada de uma menina travessa. Desejava beijar seus lábios abertos quando ria e absorver o som de sua risada até o mais profundo de si mesmo. —Espero que tenha cuidado antes de te sentar — disse, pensando em gracejá-la com suas histórias e fazê-la sorrir, possivelmente rir de novo—. É que não sabe que nos dias de calor como hoje, às serpentes gostam de esconder-se nos campos de varas de ouro? Os lábios de Emma tremeram com o sorriso que ele queria. Sua boca era uma delicada rosa ferida na palidez de sua cara. Desejava beijá-la na boca. —Talvez tenha vindo procurando que me piquem — disse ela. Ele riu ante sua coragem. —Shay... Adorava a maneira como dizia seu nome. Soava a aroma de fumaça de lenha, penetrante. —Emma — disse, lhe devolvendo o presente e viu seu prazer na forma como as profundidades oceânicas de seus olhos se agitavam e mudavam. Emma baixou o olhar até sua saia, onde as mãos, enlaçadas, formavam um pequeno punho apertado. —O que fazemos agora? —perguntou com voz baixa e trêmula. —Jazemos se ainda quer. —Sim quero — disse ela, com um suspiro afogado—. Mas como... como começamos? —Lentamente, parece-me — disse ele e sorriu, porque tal como se sentia por dentro, tremendo e batendo como uma vela solta ao vento, «lentamente» parecia

algo

impossível—.

Sim,

faremos

lentamente,

delicadamente.

Despiremo-nos um ao outro, lentamente, e logo te acariciarei suavemente em todos os lugares onde deseje que te toque.

Ela emitiu um som ofegante que era meio risada, meio suspiro, embora seguisse sem olhá-lo. Separou as mãos e começou a puxar os pequenos botões de pérola do pulso da luva, mas tremia muito e sua respiração era ofegante de novo. Agarrou-lhe a mão. —Deixe que eu tire — disse. Voltou-lhe a mão e a pôs sobre seu joelho e desabotoou um único botão, logo levou o pulso aos lábios e beijou o pequeno espaço de pele branca, muito branca, que ficava descoberta. Em seguida desabotoou outro botão e a beijou outra vez e outra e outra até que os seis botões estavam desabotoados e ele estava desfeito. Agora Emma o olhava e todo o primeiro amor de uma moça lhe iluminava, brilhante e vulnerável, os olhos. —Me toque mais — disse—, me toque os lábios com os teus. Com a mesma simplicidade como se o fizesse cada dia de sua vida, beijou-a na boca. Um beijo longo que começou suave e terno e se voltou selvagem e faminto, procurando tudo o que desejava e encontrando-o. Despiu-a como tinha prometido, lentamente, e a acariciou com doçura. Com a boca e as mãos e a língua lhe acariciou os seios. Acariciou-lhe a garganta e o ventre e entre as pernas. Já não podia dizer nenhuma palavra. Só podia tocála. Quando tirou sua roupa, não se surpreendeu do atrevimento com que ela o tocava, porque sabia isso dela, que podia ser ao mesmo tempo atrevida e tímida. Acariciou-lhe, por toda parte, como se estivesse moldando-o com as mãos. Shay se incorporou para poder lhe ver a cara. Tinha os olhos muito abertos e escuros, da cor da fumaça de turfa. Desejava-a muito, muito e não ia deter-se agora. Quando entrou nela, Emma soltou um pequeno grito e ele o apanhou com

sua boca. Empurrou para penetrar por completo dentro dela, lançou-se ao mais profundo dela e quando chegou o momento se retirou, para poder dar-se a ela sem lhe dar um filho. Aliviou-se junto a ela, mas seguiu rodeando-a com seus braços, estreitando-a contra ele. Notou fios de seu cabelo entre sua cara e a dela. Notou a suavidade de seus seios contra seu peito e o calor e a umidade de seu ventre nu apertando-se contra o seu. Tinha-a desejado, mas desejava igualmente que ela o abraçasse assim. Simplesmente o abraçasse e o reconfortasse. Emma estava deitada de costas, nua. O sol se fundia e se derramava sobre ela como se fosse manteiga quente. O vento a tocava em lugares que sequer sabia que existissem antes que Shay os encontrasse. Sentia-se amadurecida e transbordante de amor. Abriu os olhos a enorme terrina, azul, do céu. O mundo parecia apanhado em um silêncio borbulhante. Então começou a cantar um astuto e uma abelha lhe passou zumbindo perto da bochecha. E ouviu a respiração entrecortada de Shay. Voltou à cara e toda sua visão do mundo foi à curva, redonda e forte, do músculo de seu braço. Ao princípio, tinha notado seu corpo com algo muito parecido ao medo, com aquele peso, aquela força. Mas isso não foi o final, a não ser só um princípio. Porque lhe tinha feito umas coisas... Tinha-lhe metido à língua na boca. Tinha-lhe chupado os seios como um bebê. Havia-a tocado entre as pernas com os dedos e a boca e lhe tinha metido a língua dentro, também. E logo ele se colocou dentro dela. Tinha-lhe doído um pouco, mas não lhe importou. Pensou que tinha sido criada para aquele momento, o momento em que agarraria o corpo dele dentro do dela e sentiria seu peso e sua necessidade. E quando acabou, quando se separaram, o momento seguia estando ali, entre eles, sempre o estaria. Eram dois e logo eram um.

«Nunca amarei a ninguém mais que a ele — pensou—. Não desta maneira, nunca mais.» Incorporou-se, apoiando-se no cotovelo e o olhou. Tinha os olhos fechados e um torcido de preocupação na boca. Perguntou-se se estaria pensando em Bria. Não lhe importava se era assim. Bria era o espelho de seus corações. Pôs-lhe a mão no peito e notou como continha a respiração. Logo abriu os olhos. —Emma —disse e o que ela ouviu em sua voz lhe envolveu o coração e o espremeu sem piedade. Pôs-lhe os dedos nos lábios. —Não o diga. Não diga que não teríamos que havê-lo feito. Não lhe afastou os dedos dos lábios. Ergueu a mão e a colocou entre seu cabelo que tinha desatado por completo. —Um homem — disse e ela notou como lhe moviam os lábios, notou o suave que eram debaixo de sua dureza— pode arruinar a uma virgem ao seduzila, mas se ela vier a ele por vontade própria, é um presente que lhe faz. Não vou dizer que não teríamos que havê-lo feito. Não vou te dizer isso. —Não quero que se acabe — disse ela—, ainda não. Ele se inclinou para ela e seu cabelo lhe roçou a bochecha e seu fôlego lhe queimou o pescoço. —Que Deus me ajude, eu tampouco. Beijou-a na boca, logo se afastou e seus olhos percorreram seu corpo, todo seu corpo. Emma sentia como se a tocasse com os olhos e isso fazia com que se fundisse por dentro, como se fosse feita de cera e seus olhos fossem fogo. —Não me olhe — disse, sentindo-se novamente tímida, de repente. Sorriu-lhe, com um sorriso de bandido. Passou-lhe os dedos pela curva do ventre, ao longo da escura linha de pelo que crescia ali e os meteu na cálida escuridão mais abaixo.

—Ah mhuire... Como posso não te olhar?

O profundo púrpura do anoitecer estava começando a cair sobre As Bétulas quando entrou, em sua pequena carruagem laqueada de negro, no longo caminho pavimentado de conchas calcadas. Entregou o carro a um moço e logo ficou sozinha no caminho, olhando para trás, para a enorme e adornada grade. As barras de ferro forjado projetavam fundas sombras azuis e púrpuras sobre a grama. De repente, este verão, tinham crescido roseiras silvestres pelo lado da baía. E agora, com aquele quente vento do entardecer, suas brancas pétalas estavam caindo, silenciosas, em cima da erva, como lágrimas de pérolas. Pensou: «estive com meu amante». E pensá-lo a fez sorrir. Mas quando voltou a cara para a baía e o vento a acariciou igual aos dedos de seu amor, descobriu que tinha as bochechas úmidas de lágrimas. Deu meia volta e subiu as escadas, atravessou a ampla varanda e cruzou as esculpidas portas de ébano, pisando com cuidado, como se andasse em cima de gelo. Carrews, o mordomo, apareceu ante ela, com seu ar silencioso e discreto, quando estava a ponto de começar a subir as escadas. —Estão-na esperando no salãozinho da frente, senhorita Emma —disse. Pensou que, provavelmente, ficou olhando-o de uma forma estranha. sentia-se estranha, deslumbrada e desorientada, como se, de repente, tivessemna arrancado e em seguida houvesse tornado a deixa-la em um lugar onde nunca tinha estado antes. —Mas não tínhamos nenhum convidado para jantar esta noite —disse finalmente. Carrews colocou o queixo e baixou as sobrancelhas, um gesto que fazia quando não se seguiam as convenções a sua satisfação. —Tenho a impressão de que só o senhor Alcott está presente neste momento e não veio vestido para jantar.

Sim que era a voz baixa e grave de Geoffrey a que ouvia enquanto se aproximava das portas com colgaduras de damasco que davam ao salãozinho. Estavam um pouco entreabertas e, durante uns instantes, permaneceu oculta pelo cortinado, olhando a sua mãe e ao homem com o qual tinha prometido casar-se. Estavam sentados nas poltronas Chippendale com o respaldo festoneado. Em cima do antigo aparador de palisandro havia uma decorada cafeteira de prata Jorge II e Emma soube que o café estava recém feito, porque saía fumaça pela boquilha. Bebiam no jogo de Sèvres, o qual significava que Bethel tinha pensado que a ocasião era o bastante importante para justificar o melhor, inclusive se, pela primeira vez, Geoffrey não estava vestido em consonância. A verdade é que seu traje de linho branco estava, um pouco inverossímil nele, manchado de fuligem. Estava sentado com seu canotier em equilíbrio sobre um joelho e a asa se dobrou em um dos lados, como se a tivesse esmagado com o punho. Estava em Maine quando se produziu o incêndio e devia ter demorado todo esse tempo em chegar. Emma pensou que devia vir diretamente da fábrica, que tinha ficado muito danificada pela fumaça e as chamas. Mas sabia, porque sua mãe o havia dito, que tanto as naves como as máquinas estavam asseguradas. Sua mãe — temendo a vergonha social de que o prometido de sua filha ficasse, subitamente, na ruína— tinha feito com que seu primo, o banqueiro, investigasse-o. Entretanto, parecia estranho ver Geoffrey Alcott, seu futuro marido, ali no salãozinho. Descobrir que a vida podia seguir seu velho caminho quando ela tinha mudado tanto. Quando debaixo da cambraia branca e a renda de seu sutiã, debaixo de seu espartilho de ponto e de sua regata francesa com suas nervuras bordadas... Debaixo de todos os aditamentos que acompanhavam à senhorita Emma Tremayne havia uma marca vermelho na curva de seu seio direito, posta ali pela boca de Shay McKenna. Encontrar que a vida seguia como sempre quando ela ainda estava úmida

entre as pernas, ali onde ele tinha estado. Quando podia cheirá-lo nela. Deve ter feito algum ruído justo nesse momento, porque Geoffrey levantou o olhar e a viu. Não ficou em pé de um salto nem correu para ela, porque isso teria sido uma conduta inapropriada, inclusive para um homem que não viu a sua prometida há mais de duas semanas. Em troca, levantou-se com uma atitude cavalheiresca e avançou para lhe pegar as mãos e acompanhá-la ao interior da sala. —Emma, querida — disse—. Apressei-me a vir assim que me inteirei do acontecido. Não está ferida, verdade? Diga-me que está bem. Emma vacilou um momento, de forma que ele teve que sustentá-la com uma mão sob o cotovelo. Logo, levantou a vista para ele, sentindo-se confusa e enjoada de novo e então se deu conta de que ele falava do incêndio. —Não, eu... só queimei a mão um pouco. Um bombeiro entrou em seguida atrás de mim e me tirou. Todo mundo conseguiu sair. Ele a conduziu a um sofá de brocado com o respaldo de medalhão. Sentou-se a seu lado, sem lhe soltar a mão. Ela olhou para baixo e viu que faltava um dos botões de pérola de sua luva. Notava como lhe pulsava o pulso, forte e rápido, no pulso que Shay McKenna tinha beijado e beijado e beijado. E notava o olhar carrancudo de sua mãe nela. Era a menção do fogo. Seu «ato de valentia» tinha sido descrito no Bristol Phoenix e isso era algo nada apropriado. O nome de uma senhora só devia aparecer nos jornais duas vezes em toda sua vida: o dia de suas bodas e o dia de sua morte. —Parece que alguns dos meninos das bobinas da sala de hiladoras estavam molhando insetos com azeite e lhes tacando fogo; assim é como começou o incêndio — dizia Geoffrey—. O que não entendo é como estava ali. A mão de Emma tremeu um pouco dentro da sua. Tratou de soltar-se, mas ele á apertou um pouco mais, o justo para retê-la, então se rendeu. —Passava por ali e vi a fumaça e me lembrei de ter visto as chaves no escritório do senhor Stipple — disse.

Era o que contava a todo mundo. Odiava pensar no que diziam dela. Seu ato de valentia. Quão único ela pensava, quão único queria, era tirar dali às filhas de Bria. —Pelo menos, ao final não foi nada — disse Geoffrey. —Não foi nada. — Emma começou a tremer por dentro, muito, muito dentro; tremia com tanta violência que a voz lhe quebrou—. Pode me dizer só uma coisa, Geoffrey? Aquela porta era a única saída da sala de fiar, por que estava fechada com chave? A boca de Geoffrey se esticou nos cantos e um músculo começou a pulsar debaixo do olho direito. —As hiladoras, em especial as jovens, usavam essa porta para escapulir antes que acabasse seu turno. Emma se pôs a rir. Ria porque, se não tivesse feito, teria gritado. Mas sua risada era forte e cheia de histeria, até ela podia ouvi-lo. Sua mãe deixou a xícara de café com um firme clique que pareceu alterar o ambiente cortês da sala mais que a risada de Emma. —Por favor, esta menina insistiu em sair para passear no meio do dia com este tempo tão horrível. Não recordo que antes tenha feito tanto calor a estas alturas de setembro. Temo-me, senhor Alcott, que sua queridíssima Emma sofre de insolação. — voltou-se para Emma, com o sorriso acerando-se nos cantos. As sombras que tinham acossado seus olhos todo o verão estavam ali de novo—. Seria melhor que fosses deitar-te um pouco antes do jantar. Emma baixou a cabeça, ocultando seus próprios olhos. —Sim, mamãe —disse e ficou em pé recolhendo a saia. —Emma, espera. —Geoffrey lhe agarrou a mão de novo e se levantou com ela—. Temo-me que, faz um momento, devo te haver parecido insensível. É obvio que me preocupam essas mulheres e esses meninos e o que podia lhes haver acontecido. Haverá reformas, prometo-lhe. Em realidade, já despedi o capataz por não estar disponível durante a crise.

A cara de Geoffrey ao olhá-la era terna e solícita. Mas seus olhos cinza eram como um atoleiro no qual só via o céu e sua própria cara refletida. Tinha deixado de acreditar que chegaria a compreendê-lo, a conhecê-lo e se convenceu de que não só era desnecessário que uma esposa da “Gente Importante” conhecesse ou compreendesse ou, inclusive, amasse a seu marido, mas sim, além disso, não era apropriado. Não era tanto que estivesse furiosa com ele como que estava decepcionada. Agora compreendia plenamente que, desde o dia da caçada da raposa, quando lhe tinha pedido que se casasse com ele, Geoffrey estava destinado a desiludi-la. Era uma ideia inquietante. Que as coisas que não funcionavam entre eles pudessem ser culpa dele tanto como dela. —A verdade é que me sinto indisposta, Geoffrey — disse. —Sim, é obvio que sim — disse, lhe dando uns tapinhas na mão—. A pressão, o estresse... Tem um coração valente e generoso, querida. E, além disso, com tudo este horrível calor. Acompanhou-a até as portas do salãozinho, onde a beijou na bochecha antes de deixar que se fosse. Emma subiu e se jogou na cama como se, de verdade, tivesse sofrido uma insolação... e possivelmente assim era. Dobrou os joelhos e rodeou as pernas com os braços, as estreitando contra o peito. Fechou os olhos e apertou a cara, com força, contra os ossos dos joelhos, convertendo-se em uma apertada bola. Mas dentro, o coração de Emma seguia pulsando livre, desbocado e assustado. Como um Saveiro navegando com o vento em popa, através do oceano, sem costa alguma à vista nem esperança nem promessa de encontrá-la. Navegando a toda vela para um mundo de infinitas possibilidades.

Capítulo Vinte e Seis As estrelas empalideceram e logo desapareceram e, embora ainda não tinha saído o sol, tinha chegado um novo dia. Shay McKenna estava aproveitando bem as primeiras horas da manhã, preparando o barco para um dia de pesca. Tinha enchido os baldes de ceva e tinha um pote de café recém-feito, abaixo, na pequena cozinha. Acabava de fixar a decota de estribor ao foque e se inclinou para soltar o cabo e soltar as amarras quando ouviu ranger o embarcadouro e notou que se movia. E um par de elegantes botas de cano longo de pelica cor tabaco apareceram frente a ele nas erodidas tábuas cinza. —Senhorita Tremayne — disse, suspirando—. Seria muito incômodo para você me dizer o que, por todos os diabos do inferno, está fazendo aqui? Ela avançou um passo e o olhou de cima, por baixo da asa de outro adorável chapéu. Este era de palha azul escuro adornado com uma pluma de garça real que apontava, altiva, para os céus. —Vim para passar o dia contigo. —Dhia. O dia, diz. —Percorreu a praia com o olhar, mas só os falcões e as gaivotas estavam ali para vê-los. De momento—. No que está pensando, criatura? Emma levantou o queixo um pouco e entrecerrou os olhos. —Não me chame criatura. Ele a olhou como olhava a Noreen quando ficava difícil. —E suponho que sua bonita carruagem está estacionada frente a minha casa a esta hora da manhã para que todo mundo veja e saiba que a senhorita Emma Tremayne encontrou um amante irlandês. O queixo de Emma subiu um ponto mais.

—Claro que não. Vim andando. —Estupendo. E suponho que vieste por toda a Rua Hope, não é assim? Entretanto, estendeu-lhe a mão para que pudesse saltar a bordo antes que a visse alguém, ali de pé em seu embarcadouro, com todo o descaramento e antes de sair o sol. O barco era grande, de pouco impregnado, equipado com uma rede de arrasto enrolada em dois tonéis, armadilhas para lagostas e algumas linhas e ceva para abadejo e bacalhau de rocha. Sempre lavava o barco ao final do dia, mas seguia cheirando a pescado. Não podia dizer-se que pertencesse ao mesmo universo que o pequeno Saveiro de Emma. O barco se balançava com a maré, mas Emma se mantinha de pé na coberta com aquela elegância atlética que sempre tinha mostrado no mar. A mão de Shay se apoiou ao final das costas da jovem e se deteve ali um momento. Aproximou-lhe os lábios à orelha, só para ter o prazer de lhe cheirar o cabelo. —Possivelmente seria melhor que ficasse abaixo até que saiamos do porto —lhe disse. Ela voltou à cabeça para ter o prazer de notar o roce de seus lábios na bochecha. Logo lhe sorriu com os olhos e desapareceu pela escada para a câmara. Shay pensou que já podia sentir-se satisfeita de si mesmo, porque tinha feito sua maldita e perigosa vontade. Em uma manhã de setembro, o porto de Bristol pode estar tão tranquilo como um lago. Shay içou as velas, mas derivaram um momento, até que, finalmente a lona tomou o vento. O sol apareceu aceso, pintando traços vermelhos em cima de mares de níquel. Shay estava brigando com o foque, que orzava em excesso, quando Emma subiu, vestida com sua jaqueta de marinheiro e seu chapéu flexível. Supunha que aquela era a versão de um disfarce para a senhorita Emma Tremayne. Talvez em outro planeta houvesse um par de olhos que a confundissem com um pescador de Bristol. A essência do que significava ser uma senhora, nascida e criada como tal, estava aderida a ela como uma nuvem

perfumada. Olhou ao redor, para saber onde estavam, para comprovar que rumo seguiam e logo se voltou para ele e Shay viu algo muito parecido a um autêntico desespero em seus olhos. —Não me leve para casa — disse. Olhou-a com o cenho franzido, já que isso era precisamente o que tinha estado a ponto de fazer; navegar diretamente até ponta Poppasquash e desembarcá-la ali, onde pertencia. Só que... só que seguia sentindo aquela felicidade doce, que lhe punha um nó na garganta, por tê-la ali com ele. Não lhe disse nada, mas soltou a vela maior, pondo o barco vento em popa para o centro da baía Narragansett. Emma se sentou na ponte, onde não estorvava e voltou à cara para o vento. Shay não estava acostumado a ter companhia no barco com ele, mas a ela não parecia lhe importar que estivesse calado e lhe respondia com sua própria quietude. O mundo se encheu com o suave sussurro do vento da manhã nas velas e a suave descarga da água contra a proa. O sol estava na cúspide de sua glória quando ela pronunciou seu nome. E a forma como o disse, como se os extremos se quebrassem, fez-lhe olhá-la. Estava sentada como uma menina com os pés colocados debaixo dela e os braços ao redor dos joelhos. Tinha as bochechas ruborizadas e a boca com aquele aspecto ferido. —Shay. Quando vamos deitar-nos juntos outra vez? Shay soltou uma gargalhada grave e dolorosa. —Terrivelmente valente, isso é o que está te tornando com suas palavras, Emma, querida. A felicidade lhe encheu a cara com um relâmpago de luz e ele soube que era porque a tinha chamado «Emma querida». Não tinha tido intenção de fazêlo, mas não lamentava havê-lo feito.

Colocou o joelho, como uma cunha, entre os raios do volante para estabilizá-lo, meteu os polegares nos bolsos e se vestiu de irlandês para ela. —Havia um herói irlandês, de nome Cú Chulainn. O moço sofreu uma derrota terrível às mãos de uma tribo de mulheres que se lançavam nuas à batalha. Jogou um olhar a aquele grupo com os seios ao ar, deu meia volta e saiu fugindo como se a vida dependesse disso. A boca de Emma se curvou em um lento sorriso. —Está me dizendo que quer fugir de mim, senhor McKenna? O que ele queria... Depois que Bria e ele fizeram amor pela primeira vez, falaram de seu futuro, não só de amanhã nem do dia seguinte, mas sim de sua vida inteira. Juraram-se passar à vida juntos, como marido e mulher, inclusive antes de fazêlo na igreja, ante Deus. Mas com Emma, só podia ser o momento. Um momento que não tinha passado nem teria futuro, que não podia ter ambição nem esperança além de si mesmo. Doce, selvagem e passageiro... Isso era o momento, nada mais. O que ele queria... Pensou nela, na sensação de seus seios entre suas mãos, da curva de seu ventre esfregando-se contra ele e de suas coxas suaves e redondas contra sua cara. Pensou em seu sabor e em seu aroma e o que ele queria era tomá-la de novo. —O que te dizia é o que teria que estar fazendo. Não o que estou fazendo, claro, porque já passei pelo Pardon Hardy e comprei uns globos. A pequena ruga que se fazia entre as sobrancelhas quando estava preocupada ou confusa apareceu agora. —Às vezes, não te entendo. O que têm a ver os globos com tudo isto? Shay se pôs a rir. —Os globos, menina, são uma coisa que impede que um homem faça um filho a uma mulher. Entretanto, nem sempre funcionam. O que temos entre

mãos, Emma Tremayne, é um assunto perigoso. O queixo se elevou de novo; cada vez o fazia melhor. —Não tenho medo — disse. Mas ele ouviu o tremor em sua voz. Estava começando, a sentir, o que era o custo e as consequências, do que estavam fazendo. —Eu sim — disse—, estou muito assustado. Ela o olhou atentamente, tratando de ver se o dizia de verdade. Quando compreendeu que sim, afastou o olhar e ele viu como tragava com força. Inclinou-se e agarrou uma sardinha grande e gorda do balde que havia a seus pés. —Agarra-a e prepare um anzol com ela — disse. Lançou-lhe o escorregadio pescado em cima da saia e sorriu quando viu que dava um salto e soltava um gritinho—. Se for passar o dia comigo, Emma Tremayne, terá que fazê-lo pescando. Punha boa vontade para tentá-lo, tinha que reconhecer-lhe Mas lhe dava mais problemas que ajuda, porque tinha que lhe explicar o que tinha que fazer e logo lhe ensinar a fazê-lo e, todo o tempo, desejava tocá-la. Agora a baía era de um azul liso e frágil, salpicada com velas distantes. Pescavam o bacalhau entre as pequenas ilhas que tinha disseminadas entre ponta Poppasquash e a ilha Prudence. Quando passaram por um lugar onde as ondas rompiam com violência e a corrente formava redemoinhos perigosamente ao redor de um montão de rochas recortadas, Emma disse que ali era onde seu irmão se afogou em uma tormenta seis anos atrás. —Meu pai saiu para buscá-lo em seu Saveiro, quando o vento soprava ainda com muita violência. Demorou tanto em voltar, meu pai, que pensei... — estremeceu, como se aquele longo tempo de espera seguisse vivo dentro dela—. O único do Willie que trouxe ao voltar foi seu gorro do clube náutico. Mais tarde me ensinou onde o tinha encontrado, flutuando entre essas rochas, junto com pedaços de madeira; isso era tudo o que ficava do navio do Willie.

—E isso não fez com que tivesse medo de navegar? —Fez-me ter medo, mas de outras coisas. Quando o sol estava alto e dourado no céu e a água parecia pulimentada como uma lâmina de aço, pôs o barco ao pairo e tirou sua comida: sanduiches de carne enlatada para compartilhar com ela. —Quase sempre, esta pequena baía de Narrangasett é tranquila —disse— , não como as selvagens de Gortadoo. Emma estava sentada junto a ele, o bastante perto para tocá-la, embora não se tocavam. O chapéu que ela tinha tomado emprestado lhe ocultava uma parte do rosto, mas fazia algo com seu pescoço, alongando-o de forma impossível e não podia deixar de pensar no muito que desejava percorrer com seus lábios o arco, branco e comprido daquele pescoço, do esterno até aquele lugar atrás de sua orelha. —Me fale de sua Irlanda — disse ela. Abriu a boca para lhe responder e lhe rachou a voz. —Minha Irlanda? Há mais de uma? —Bria me falou da sua. Agora quero saber da tua. Shay ficou calado um minuto e, logo, disse: —Minha Irlanda... Olhe, é um espinheiro branco, a árvore sagrada das fadas, em meio de uma nua solidão no alto de uma colina de rochas negras. É uma mulher que caminha através de um campo lamacento olhando para cima para ver uma coluna de fumaça elevando-se do telhado de palha amarela de seu shibeen. São as sebes de fúcsias que caem, escarlates, por cima de um muro de hambruna no verão e montões de turfa secando-se ao sol. Emma voltou à cabeça para olhá-lo e ele se surpreendeu ao ver como lhe enchiam os olhos de lágrimas. —Faz com que soe muito bonita. —Não é assim como Bria falava da Irlanda? —Não, embora seguisse amando-a, havia mais dor nas lembranças de

Bria. —Seguro que o havia dito, admitindo a verdade do que ela dizia e aceitando a dor que entranhava. Era um consolo agridoce que pudessem falar de Bria com tanta liberdade. Mas a verdade é que o amor que os dois tinham pela Bria era a única coisa real que compartilhavam além de seus corpos. De uma maneira que só agora estava começando a ver, durante as últimas semanas de vida de sua esposa, tinham formado um triângulo; ele, Emma e Bria. Bria tinha sido a base, mantendo-os unidos. Mas agora ela se foi e os tinha deixado sozinhos, apoiando-se mutuamente. No momento. —Quando era menino em Gortadoo — disse no tranquilo silêncio que se fez entre eles—, íamos lançar-nos contra as ondas quando rompiam na areia da praia e, logo, subíamos às rochas para ver o pôr-do-sol. Há uma lenda, sabe?, Que diz que mais à frente do sol poente há um país chamado Tír na nÓg, um lugar de eterna juventude. Mas nenhum irlandês foi para buscá-lo. Nós, os irlandeses, gostamos de sonhar deixando a Irlanda, mas não queremos fazê-lo de verdade. E quando nos vemos obrigados a deixá-la, sentimo-nos perdidos. Emma havia se virado um pouco, de forma que agora o olhava e estendeu a mão e lhe acariciou a cara com os dedos. Percorreu a forma do nariz, as maçãs do rosto, o arco das sobrancelhas e a cicatriz da bochecha que se fez quando um obenque se soltou do mastro durante uma borrasca e o golpeou. E logo lhe acariciou os lábios. —Perdida é o que eu me sentiria — disse e seus próprios lábios tremiam— se tivesse que te deixar. Shay queria pôr seus lábios sobre os dela e deixá-los ali para sempre. —Terá que me deixar algum dia, Emma. Sabe, verdade? Ela assentiu, com os olhos muito abertos e úmidos, admitindo a verdade do que ele dizia e aceitando a dor que lhe causava. De algum jeito tinha se aproximado tanto que seus lábios quase se tocavam e ele a beijou.

Beijaram-se em um lugar de ar saturado de sal, sol alto e água azul escura. Shay ouviu como lhe pulsava o coração nos ouvidos, parecia haver-se desbocado, seu coração, ter encalhado, extraviado. Seu coração estava perdido. Afastou a boca da dela. —Vamos abaixo — disse. Agarrou-a pela mão e a conduziu aonde queria ir ou, possivelmente, ela o conduziu. Esta vez o amor que fizeram tinha um fio de desespero e avareza. Seus corpos nus faziam ruídos selvagens, úmidos, enquanto o barco rangia e o casco gemia. Seu impulso começou a seguir o ritmo do subir e descer da proa na água. «Meu coração está perdido — pensou—. Estou perdido.» E então, como acontece com todos os momentos, chegou o final. Desembarcou-a na parte mais afastada de ponta Poppasquash e ela ficou olhando como ele se afastava dela, em seu barco. Olhou ao redor como se nunca tivesse visto tudo àquilo antes, nunca tivesse visto as brancas bétulas brilhando douradas ao sol nem a baía derramando espuma e algas na praia pizarrosa. Nunca havia sentido uma brisa assim, tão suave e fraca, nem ouvido um astuto com um canto tão doce. Pensou que nada em seu mundo voltaria a ser igual. Entrou na casa, subiu a seu dormitório e tirou a roupa. Tirou toda a roupa até ficar tão nua como tinha estado com ele e pensou: «Toca-me aqui e aqui e aqui, em todos os lugares secretos de minha feminilidade. Acaricia-me». —Todas às vezes — disse Emma—. Acontece-me todas às vezes. Shay estava jogado de costas, com os braços esticados por cima da cabeça e o peito agitado. Estavam jogados, nus no prado, entre as varas de ouro. Mas as flores se estremeciam, como se a brisa lhes fizesse sentir frio, e o sol tinha já o brilho brônzeo do outono. Voltou à cabeça para olhá-la, lentamente. Sentia o corpo como se fosse de chumbo, como se o tivessem golpeado com algo grosso e pesado.

—O que te acontece? —Você. Shay ficou de lado e ela se voltou para ele. Agarrou-lhe o peito com a mão cavada e lhe esfregou o mamilo com o polegar. Viu como o calor provocado por sua carícia se movia para cima, como um rubor, por cima do esterno e até a garganta e pensou que quase podia ver como saíam às palavras dela, saíam voando da garganta, elevando-se velozes, como um bando de gaivotas separando-se da costa. —Amo-te, Shay. Viu como esperava, ansiosa, sem fôlego, que lhe dissesse as mesmas palavras. Beijou-a na boca e queria lhe dizer: «Estar contigo não era como imaginava que seria. Não posso estar contigo sem te desejar e não posso te ter sem te desejar de novo». A beijou na garganta e queria lhe dizer: «Nunca tive intenção de te amar, mas, já vê, amo-te». —Emma — disse, em troca. Ela se afastou e se incorporou, cruzando as pernas ao estilo índio, como uma menina. Parecia pequena e vulnerável, sentada daquela maneira. O sol lhe tinha polvilhado toda a pele de ouro. Levava raminhos e folhas, e pétalas de varas de ouro no cabelo. —Quando o senhor Alcott voltar para casa —disse—, tenho que lhe dizer que não posso casar com ele, depois de tudo. —Ai, Dhia, não. Não faça isso. Ela moveu a cabeça de trás para frente, uma vez. Falou como se lhe doesse a garganta e tivesse o coração nos olhos. —Não pode esperar me ensinar um milagre e logo acreditar que vou conformar-me com uma vida sem ele. Agarrou-lhe a mão e a pôs entre as pernas. —Isto é tudo o que eu te ensinei e não há nada milagroso nisso.

Os dedos de Emma se fecharam em torno dele, apertando-o com um pouco de rudeza e teve que fechar os olhos para combater um estremecimento. —Não, equivoca-te — disse ela—. É o único e verdadeiro milagre. Shay se incorporou e ficaram joelho com joelho. Agarrou-lhe a cara com as mãos. Emma tinha a boca úmida e aberta e os olhos como um céu batido pelo vento. Como tinha chegado até ali? E ela, como tinha chegado ela até ali? —Emma, querida... Isto que há entre nós, é uma paixão de um momento. Não pode durar. Em especial quando um dos dois teria de abandonar tudo o que tem e a vida que estava destinada a viver, para tratar de fazer com que durasse. Não faça algo que te fará derramar lágrimas amargas mais tarde. Rodeou-lhe o pulso com os dedos. Sustentou-lhe a mão imóvel, para poder voltar à cara e roçar com os lábios seus nódulos. —Uma vez me disse que minha vida seria o que eu fizesse dela. —E a promessa que fez a seu senhor Alcott? E o seu dever para...? Ela moveu a cabeça e seus lábios roçaram sua mão uma vez e outra vez mais. —Sei o que é o dever. Vivi com o dever toda minha vida. —Agarrou-lhe a mão e começou a deslizá-la por seu próprio corpo, pela garganta, por cima dos seios e da curva do ventre—. O dever é todas essas coisas intermináveis que tem que fazer e seguir fazendo eternamente, inclusive quando já não quer fazê-las. Inclusive quando já não pode suportar fazê-las. Levou-lhe a mão ao lugar quente e escuro entre suas coxas. —Me libere dele, Shay. Por favor, me libere. Ele queria dizer: «Comecei sem me atrever a esperar nada e agora aqui estou, esperando-o tudo». Mas em troca disse: —Não posso fazer isso por ti, Emma Tremayne, porque sempre serei um pobre menino de Gortadoo. E sempre amarei a Bria. Ela se inclinou para ele e lhe roçou a bochecha com os lábios, como um suspiro de beijo, tão terno e etéreo como uma pétala de rosa que cai em cima da

erva. —Sei. É o que estou tentando te dizer. Sempre te amarei. Amava-o. Amava-o enquanto estava de visita na casa das irmãs Carter, tomando chá e falando do tempo. Amava-o enquanto jogava xadrez com Maddie e enquanto olhava lâminas de alta costura com sua mãe. Ia ao serviço dominical em San Miguel e se sentava no genuflexório vermelho vivo, esta vez vestida de bege, e o amava. Respirava e sentia como o amava. Um abeto iluminado por um raio de sol lhe recordava seus olhos. O chiar de uma serra através da madeira a percorria de cima abaixo, como se fosse sua voz. O profundo e opulento fervor da água do mar por cima da proa de seu navio lhe recordava sua risada. Pensava que era uma espécie de loucura, isso que sentia por ele. Uma loucura de amor. Dizia-se que não ia pensar nele durante um momento, que não o recordaria durante um momento. E logo fazia todas essas coisas, interminavelmente. Não ia deixar que se fosse, não até que o mundo se acabasse e, então, esperava, com o coração na garganta, pulsando esperando exatamente isso: acabar-se. Algo selvagem na garganta, que o mundo se acabasse. Cada dia despertava e via uma rosa branca perfeita em cima da penteadeira. «Devo dizer o que penso —. Assim que volte, devo dizer-lhe Ensaiava as palavras em sua cabeça. «Geoffrey, é um amigo muito querido, mas percebi que não podemos ser nada mais que amigos um para o outro. Geoffrey, não posso ser a esposa que você merece, assim que te devolvo sua liberdade. Geoffrey, amo a outro.» «Tenho um amante e, ah, por certo é um menino pobre de Gortadoo.» Havia tantas palavras que podia escolher para lhe dizer, mas nunca tinha sido boa com as palavras e não podia imaginar-se lhe dizendo essas coisas sem imaginar a dor de seus olhos.

Perambulava por As Bétulas, passando de uma habitação a outra, olhando seu reflexo nos espelhos com os marcos dourados e os espelhos entre as janelas, roçava com as mãos os respaldos das poltronas Chippendale e as cômodas com incrustações de similor. Sustentava um garfo de prata na mão e apoiava a bochecha em um travesseiro de cetim e pensava: «Posso viver sem tudo isto». Mas logo olhava a sua mãe, sentada à mesa do café da manhã e tomando só café em toda a manhã. Sua mãe, cada vez mais e mais magra, com o coração posto, ansiosamente, na volta de um marido que não viria se não houvesse bodas. E um dia encontrou Maddie na biblioteca olhando com olhos exagerados e fixos, perdida naquele mundo de sonhos que, ultimamente, parecia ter cada vez mais peso em seu espírito. Stuart Alcott tinha deixado Bristol, de novo, ao dia seguinte da festa no jardim e, após, Maddie não se aventurou a sair de As Bétulas. Emma pensou que isso é o que acontecia ao amar imprudentemente. Isso é o que sempre se dizia que acontecia. Mas e se, apesar de tudo, isso é o que desejas? Não havia tornado a deitar-se com ele desde a última vez no prado das raposas. Dizia-se que ele tinha que sair para pescar e sabia que escapar para estar com ele, no barco, era algo insensato que não podia voltar a fazer. E tinha seus deveres de membro da “Gente Importante” que cumprir, sua presença nas partidas de tênis e torneios de whist e vendas de bolos para obras de caridade. Só uma vez, quando foi ver as meninas e ao pequeno Jacko na casa da Rua Thames, estava ele ali. Essa noite formaram uma família. Comeram colcannon e pão de soda para jantar, sentados à mesa com o oleado marrom, bem limpo. Quase conseguiu sentir que tinha entrado naquela cozinha, com o descolorido papel de aves do paraíso, e ocupado o lugar de Bria, ali junto aos fogões, com a chaleira na mão. O padre O'Reilly passou por ali e os cinco foram dar uma volta juntos pela estrada de Ferry, com Noreen empurrando ao pequeno Jacko no coche. Ela

e Shay caminhavam um ao lado do outro, mas não tão perto que sua saia lhe roçasse sequer a perna. Os arces de açúcar estavam agora em chamas contra o céu. As samambaias se tornaram de uma profunda cor de bronze, os juncos e as juncias, de um amarelo torrado. Ensinou-lhes o costume ianque de meter as primeiras castanhas das Índias da temporada no bolso, para prevenir o reumatismo. E disse às meninas que guardassem as suas para enterrá-las em bolas de neve quando chegasse o inverno. Uma vez, quando o padre O'Reilly e as meninas se adiantaram um pouco, Shay lhe disse, com uma voz que era apenas mais que um sussurro: —Desejo-te. Olhava-a fixamente, com os olhos verdes e exigentes, sobressaltando-a com a fome que via neles. Notou os seios, tensos e doloridos, pressionando contra todas as capas de roupa que levava. Suas pernas, recobertas de meias e calções de seda, tremiam como se estivessem nuas. —Eu te desejo mais —disse. Ele afastou o olhar dela e o ouviu inspirar, com uma respiração profunda e estremecida. —Isto é igual à Púca. Emma notou que a boca lhe torcia com um sorrisinho; seu coração pulsava desbocado. —Ao que? —A Púca. É uma fada, uma égua branca, com chifres. Só encontrará isso em uma estrada solitária ou, melhor dizendo, ela encontrará a ti. Parará-te e te perguntará se quer cavalgar nela. E quando te tiver em seu lombo, partirá galopando contigo por cima do escarpado. —Quero saltar por cima do escarpado contigo, Shay McKenna. Acredito que seria como voar. No caminho de volta viram sair à lua sobre a baía. Aquela noite, da janela

de seu dormitório, olhou para fora e viu a lua ali no céu, como se a tivesse seguido até em casa. Esperou-o na parte de fora da grade de ferro forjado. Quando chegou, vinha da parte de trás, pelo caminho do bosque de bétulas. Chegou apressado, com a jaqueta de marinheiro inchando-se ao vento e o chapéu lhe ocultando a cara. Ela tinha bastante medo de que ele se zangasse, por isso ela tinha feito. —Vim diretamente do barco — disse, enquanto se aproximava—. Assim que Noreen me deu sua carta. Está bem? O que aconteceu? Ela enlaçou as mãos às costas e se ergueu em toda sua estatura. —Não aconteceu nada. Quero te ensinar algo. —Me ensinar... —afastou-se bruscamente dela, agarrando-se aos barrotes de ferro da grade, apoiando-se neles. Fechou os olhos—. Que Deus nos ampare. Pensava que nos tinham descoberto. —E isso seria tão terrível? Deu meia volta para lhe cravar o olhar. Emma estava descobrindo que se voltava frio quando se zangava. E duro. Seus olhos eram tão duros como as rochas de granito que enchiam as praias da baía. —Sabe que sim —disse—. Não seja criança, Emma. E então, igual a uma menina, sentiu desejos de chorar. —Sinto muito. Só... Não me ocorreu outra maneira de fazer com que viesse. Nunca teria vindo se lhe tivesse pedido isso, nem sequer se te tivesse enviado um convite com seu nome gravado. —Claro que não teria vindo. Um dos dois tem que ter um pouco de juízo. Começou a afastar-se da grade, mas ela o reteve, lhe pondo a mão no braço. —Não vá, por favor. Tenho algo... Significaria muito para mim que me deixasse lhe dar isso E não haverá nada escandaloso que ninguém possa descobrir. Mamãe está em Providence, no almoço de seu Clube de Senhoras, e

Maddie sempre faz a sesta pela tarde. Shay olhou ao redor, arqueando as sobrancelhas com um fingido assombro. —E não tem serventes neste lugar tão grandioso? Faz tudo sozinha... Esfregar os chãos de mármore e polir os bules de prata? —Temos quinze serventes em As Bétulas — disse ela e logo se ruborizou um pouco por como soava ao dizê-lo—. Só vou levar-te a velha estufa, não ao salãozinho nem, Deus não o queira, vamos, nos deitar em minha cama com dossel. Se lhe virem comigo na estufa, pensarão que é um trabalhador da pedreira que veio a entregar algo. E agora já basta de desculpas, desculpas e explicações, Shay McKenna. Pode vir comigo ou não. Cruzou a grade sem olhar para trás para ver se a seguia. Ao princípio, não ouvia seus passos no caminho, detrás dela e logo, ouviu-os. A luz do mar entrava pelas paredes de cristal da estufa, oscilando no chão de ladrilhos brancos e negros, como se, se tratasse de ondas diminutas. Sabia que adoraria o ter ali, naquele lugar que tinha convertido em próprio, que era unicamente dele. Deixou-o que jogasse um olhar enquanto ela fazia rodar uma base que estava oculta em um canto. Em cima da base havia uma peça que tinha feito, tampada com lona. Ficou diante dele, nervosa e excitada. Até aquele momento, o único que lhe tinha dado era seu corpo. Isto estava feito com o sangue de seu coração. —Fiz para ti — disse—. Bom, não, em realidade o fiz para mim mesma. Mas é para que você tenha. Se o quiser, claro. Não tem por que aceitá-lo, só por ser educado. —Precioso — disse, brincando agora. Olhava uma parte de tecido salpicado de pintura e manchado de barro, como se contemplasse uma obra de arte. Emma agarrou as bordas do tecido e a levantou lentamente; pensava que

podia ouvir como os batimentos de seu coração enchiam a habitação. A mão de Shay se levantou, detendo-se diante da escultura, mas sem tocá-la. —Mo bhean — sussurrou, com sua voz destroçada voltando-se mais áspera—, Bria, moça... Era Bria; a cara de Bria, tal como ela tinha imaginado fazê-la, uma vez, uma máscara de sua cara, com aqueles extraordinários ossos, fortes, muito fortes, mas invisíveis, existindo na infinidade do espaço e no olho da mente, invisíveis atrás da cara que era uma carapaça de bronze tão fino como o papel crepe. Era três vezes o tamanho natural e estava colocada sobre o pedestal menor que pôde usar, sem deixar de obedecer às leis da física, para que parecesse que flutuava no ar. A mão de Shay começou a tremer e a deixou cair a um lado. Emma olhou para o outro lado, porque doía ver sua cara. Ver o amor e a dor que brilhavam, úmidos, em seus olhos e lhe esticavam a boca. Deixou-o sozinho, com a cara de Bria, um longo momento, deixou-o em silêncio para que estivesse com o espírito de Bria. Ficou olhando pelas janelas sujas de salitre. Observou como a maré engolia a praia de calhaus, observou como o vento agitava as folhas amarelas das bétulas. Estavam amadurecidas, aquelas folhas. Pensou que desapareceriam com um único golpe de vento do mar. Deixou-o sozinho com Bria até que o silêncio naquele vasto espaço de cristal lhe fez insuportável. —É um bronze feito com a técnica de cera perdida — disse finalmente—, que começa com um molde feito de argila, de forma que posso esculpir outras cópias. Posso fazer uma para cada uma das meninas e para o Jacko e para o padre O'Reilly, se quiser. Decidiu que não olhá-lo era pior. Voltou-se e se encontrou com que ele

tinha a vista cravada nela. A última vez que tinha visto esse olhar em sua cara foi à noite que nasceu seu filho. Aproximou-se dela, mas não a tocou, salvo com os olhos. —Uma mulher extraordinária, isso é o que é, Emma Tremayne. Não deixa de me dar coisas insubstituíveis. Emma baixou a vista ante a crueldade dos sentimentos que via em seus olhos. —Eu também a queria, Shay —disse. Tocou-a, então, atraindo-a dentro do círculo de seus braços. Pôs-lhe as palmas das mãos no peito e notou como respirava, notou o batimento de seu coração, notou-o vivo. —Sei que era assim — disse—. Sei. Notou como a estreitava contra ele. Quando se separaram, Emma se sentia mais leve, como se flutuasse lá encima, no côncavo teto de cristal. Agarrou-o pela mão e puxou-o até outra figura envolta em lona. Não lhe disse nada, mas observou atentamente sua cara enquanto levantava o tecido. Era um par de mãos, esculpidas em granito, as mãos de um homem, esculpidas em tamanho natural e fechadas em punhos. —Não tem que preocupar-se de que vá expô-las — disse—. Nem mamãe nem o senhor Alcott me permitiriam expor meu trabalho. Não é apropriado. A “Gente Importante” não exibe seu talento, só suas posses. Shay dava voltas à escultura, olhando-a com uns olhos um pouco assombrados e indômitos. —É mais músculo que cérebro, este tipo — disse finalmente. Emma ocultou um sorriso. —É você, Shay McKenna. —Já, isso pode supô-lo. Que Deus me ajude. —São só suas mãos, que Deus te ajude. Algum dia possivelmente faça

outras partes tuas. Observou-a atentamente, do outro lado dos pulsos, grossos, de avultadas veias, da escultura. —Que minhas partes? —Todas essas tuas partes, maravilhosas, deliciosas. Estive-as praticando desde a primeira vez que te vi, aquele dia na caçada da raposa. A verdade é que, até então, só se tinha atrevido a fazer suas mãos, inclusive em barro, mas desfrutava gracejando-o. As orelhas de Shay estavam se pondo vermelhas. —Está me dizendo que me despiu em sua imaginação, quando apenas me conhecia? —Não fez você o mesmo comigo, em sua imaginação? —Nuuunca —disse ele, exagerando o acento—. Bom, possivelmente te levantei um pouco a saia e joguei uma olhadinha a seus tornozelos. Em minha imaginação. Rindo, Emma retrocedeu até que tropeçou com o torno onde fazia o modelado do barro. Sentou-se em cima, impulsionando-se para girar e levantou a saia, abrindo muito as pernas, como uma corista de vodevil. —E agora, o que vê em sua imaginação? —Vejo uma desavergonhada. Deteve o torno agarrando-a pela cintura com suas enormes mãos. Os joelhos de Emma se separaram ainda mais e ele se introduziu entre elas. Formou-lhe redemoinhos a saia e a anágua ao redor da cintura e sua mão se moveu pelo comprido músculo de sua coxa até a abertura de seus calções. Baixou a cabeça e a mordeu ligeiramente no lábio inferior. —Você também tem umas quantas partes deliciosas. —Não, são tuas. Todas tuas. Soltou-lhe a cintura e lhe apoiou a palma da mão na nuca para beijá-la profundamente. Sua língua entrou com força, freou seu impulso e logo ficou

quieta, lhe enchendo a boca. Apertou o ventre contra o dela. Estava duro. Emma jogou a cabeça para trás, com os olhos olhando muito abertos às cristaleiras que giravam acima, fraturando a luz em um caleidoscópio de céus azuis e chãos amarelos que davam voltas. Shay apertou seus lábios sobre o oco palpitante de sua garganta e sua voz redobrou em seu sangue. —Emma, Emma, Emma...

Às vezes, quando seus sonhos se acabavam e despertava ao inverno que era sua vida, Maddie Tremayne era pressa de uma agitação que não podia suportar. Atormentava-se atirando a roupa da cama e levantando a camisola, para poder ver a devastação de seu corpo e desfrutar-se em seu ódio. Seu ódio da vida e de Deus. Seu ódio de si mesmo. Mas inclusive o ódio e a autocompaixão empalideciam depois de um momento. Então, se fazia bom tempo e sua mãe não estava em casa para brigá-la por armar um escândalo, chamava um lacaio para que a levasse abaixo e a sua donzela, Tildy, para que a empurrasse pelo jardim. Aquele dia tinha intenção de aventurar-se através da grama até o pequeno promontório que dominava a baía. Mas então viu uma sombra de movimento atrás das paredes de cristal da velha estufa. —Aí está Emma — disse, olhando para Tildy por cima do ombro—, trabalhando em suas esculturas. —Vamos ver se quer companhia, senhorita? —Pois, não sei. Maddie não queria incomodar, se sua irmã estava imersa em seu trabalho. Não é que Emma fosse mostrar-se descortês; mostraria-se alheia a tudo e isso era pior. Entretanto... aquela tarde, Maddie tinha despertado sentindo-se terrivelmente sozinha. Não, mais que sozinha; sentia-se vazia. Como se um

vento cruel tivesse soprado através dela enquanto dormia, ressecando sua alma. Além disso, em realidade não importava, porque Tildy já a estava empurrando pelo atalho do jardim, além dos vasos de barro de gerânios e pelo terraço que percorria a parede sul da estufa. Tildy os viu primeiro e soltou uma exclamação afogada, parando a cadeira tão bruscamente que Maddie foi para diante e teve que agarrar-se aos braços da cadeira para não cair. Maddie não emitiu som algum, porque tinha perdido todo o fôlego. Emma estava com um homem, um homem que Maddie nunca tinha visto antes. Um tosco operário, por seu aspecto, e com o cabelo revolto e umas gastas calças de veludo cotelê... umas calças que estavam baixados até as coxas. As mãos de sua irmã se viam pálidas sobre a pele mais escura das nádegas nuas do homem, enquanto espremia a tensa carne quase grosseiramente. Emma estava inclinada para trás sobre uma espécie de mesa e o homem estava de pé entre suas pernas. A blusa de Emma e sua regata estavam abertas, deixando o peito descoberto e o homem lhe chupava o mamilo, puxando-o com os dentes. E então os quadris do homem começaram a bombear e empurrar, com força, com tanta força que a mesa dava sacudidas. A cabeça de Emma estava jogada para trás e sua boca, muito aberta e Maddie pensou que podia ouvir como ofegava, mas logo se deu conta de que o que ouvia era o vento entre as bétulas. Isso e sua própria respiração entrecortada. Tildy tratou de lhe dar a volta à cadeira, mas uma das rodas se entupiu no cimento desfeito entre as lajes. —Não! — disse Maddie, com aspereza—. Deixa-a! Tildy gemeu. —Mas, senhorita Maddie, não deveríamos estar olhando isto. Não é decente. —Te cale e faz o que te digo! Olhou, olhou-o tudo. E quando acabou, o coração de Maddie Tremayne

palpitava como se tivesse estado correndo e o suor se acumulava debaixo de seus seios e corria, a jorros, entre as baleias de seu espartilho. Mas quando falou de novo, tinha a voz firme, resolvida. —Desejo que me leve de volta para casa. Gemendo de novo, Tildy puxou a cadeira e, por fim, conseguiu soltá-la. O vento parecia ter morrido de repente e, agora, quão único Maddie ouvia era o estalo continuado de suas rodas. «Minhas rodas — pensou—. Minhas rodas são o único som que faz minha vida. Nem sequer meu coração faz já nenhum som porque não há ninguém para ouvi-lo pulsar.»

Capítulo Vinte e Sete Era uma tarde nublosa e o abajur não estava aceso no dormitório onde Emma Tremayne jazia na cama branca de ferro com seu amante irlandês. Fora soprava um vento terrível, um vento de tormenta com um fio amarelado. —Vou ter que partir de Bristol — disse Shay. Quão único Emma podia fazer era permanecer ali, sem fôlego, permanecer ali e pensar: «dentro de um momento respirarei de novo, dentro de um momento seguirei vivendo. Quão único preciso é um momento, um momento...». —Donagh diz que tem um amigo em Nova Iorque e esse tipo diz que pode conseguir trabalho para mim nas docas, um trabalho que me dará muito mais dinheiro do que estou fazendo aqui, com um barco de pesca que nem sequer é meu. Estava deitada junto a ele, em sua cama, e lhe estava dizendo que ia deixá-la. Respirou, respirou de novo. Estava aprendendo, estava crescendo. Não o perguntou, afirmou-o. —Irei contigo. —Emma. Acariciou-lhe o cabelo, seguindo toda sua longitude, até onde lhe frisava ao redor dos seios e por cima do quadril. Agora Emma sabia por que a tinha deixado vir a sua casa essa tarde, quando o padre O'Reilly tinha levado às meninas a uma festa na igreja e só

ficava o pequeno Jacko em seu berço, como carabina. De algum jeito, o que tinham se acabou e ela não se inteirou. —Emma... O que há entre nós dois é muito doce, sem dúvida e, porque é doce não podemos deixá-lo e, como não podemos deixá-lo, um dia nos vão descobrir. Não é algo que possa seguir e seguir sem custos nem consequências. Emma se levantou e foi até a janela que dava à baía. Tinha começado a chover e as ondas batiam contra as rochas e os embarcadouros, inclusive no porto. Pôs a mão plaina contra o cristal da janela, como se notasse o tamborilar das ondas ao romper, o tamborilar de seu coração. De seu coração moribundo. —Se eu for contigo, pode durar e durar. Para sempre. —Mas eu não vou deixar que venha. Rodeou-se com os braços, apertando-se, sustentando-se para não partir-se em pedaços. Sentia como o medo de perdê-lo crescia em seu coração, em sua garganta, atrás dos olhos. —É meu dinheiro ianque, não? —disse—. Está te comportando como um presunçoso esnobe irlandês. Voltou-se para olhá-lo. Sentou-se e estava subindo as calças, fechando-a. —Em parte, sim. É uma coisa que resulta um pouquinho difícil de ignorar, seu dinheiro. Aqueles olhos deles, tão verdes, tão duros, aqueles olhos que ardiam com tanta dureza, todo ele tão duro. Queria estender a mão e lhe acariciar o nariz quebrado, beijá-lo. Golpeá-lo com força para quebrá-lo de novo. Era insuportável olhá-lo. Era injusto que fosse o homem que era e que ela o amasse tanto. —Está me dizendo que tenho que renunciar a meu fundo para ficar contigo? Está-o convertendo em uma condição? Acredita que não poderia fazêlo, que não o faria? Não te atreva a me dizer que não te quero o suficiente. —Ah, mhuire... —levantou-se da cama daquela maneira que tinha, com um repentino, mas elegante desdobrar-se de uns membros largos e poderosos—.

Nem sequer pode começar a imaginar o que seria «suficiente». Há algo mais no amor que foder e mais no matrimônio que as duas coisas juntas. Ser marido e mulher... é compartilhar. Compartilhar sonhos e destinos, histórias e cerimônias, crenças e fé. Compartilhar coisas tão pequenas como o gosto pela carne em conserva e a couve e coisas tão grandes como os filhos que chegam a fazer e criar juntos. —Mas eu quero ter filhos contigo. Quero ser uma mãe para os filhos que já tem. Shay afastou o cabelo da cara com as duas mãos. —Aí está e você não vê que já está acontecendo... que eu falo de uma coisa e você ouve outra. Posso te dizer que sempre fui um tipo de homem de «pão para hoje e fome para amanhã» e não teria nem ideia do que te estou falando. Igual a mim tampouco a teria de como é ter um milhão de dólares guardados em uma coisa chamada fundo fiduciário e ser capaz de lhe unir a palavra «só» como se não tivesse mais importância que este chapéu... —Agarrou o chapéu de veludo negro da penteadeira com a pintura lascada e o estendeu para ela. Logo o enviou voando em cima da cama e agarrou as luvas de pelica, de cor crua, e as pôs diante da cara—... ou que outro par de luvas. Arrancou-lhe as luvas da mão e as atirou a um lado. —Está equivocado. Sempre estiveste equivocado com respeito a mim nesse sentido. Faz com que pareça mimada, egoísta e vaidosa e, possivelmente, sou todas essas coisas, mas posso mudar. Mudei. —Acha que mudaste o suficiente para viver conosco em uma casa de vizinhos humilde, procurar um trabalho em uma fábrica e aprender que classe de «situação» é trabalhar com uma máquina hiladora durante doze horas ao dia, seis dias à semana? —Por que teria que fazê-lo? Sou uma rica herdeira ou é que já o esqueceste? —Claro que não o esqueci. Então possivelmente eu e os meninos

poderiamos ir viver contigo a essa grandiosa casa dourada, onde até os quinze serventes nos desprezariam desde o instante em que entrássemos pela porta de trás, confundindo-a com a da frente e... —Soltou um longo e áspero suspiro—. Não pode ser, Emma. Algumas coisas não podem ser, por muito que as desejemos. Uma rajada de chuva golpeou, de repente, com um duro e rápido repico no telhado da cabana. Os dois se sobressaltaram e olharam pela janela, mas não se podia ver nada mais que a água caindo pelos cristais. —É um covarde, Shay McKenna —disse ela, com a voz quase afogada pelo ruído que fazia a chuva—. Tem medo de tentá-lo. —Sim, admito-o. O que estou é assustado de te fazer mal e me machucar. De ter que ver como minhas filhas e meu pequeno, que chegariam a te querer como a uma mãe, sofrem sua perda quando deixar nosso mundo para voltar para o teu. —Podemos fazer nosso próprio mundo, Shay, nosso próprio lugar especial. Juntos. —Ai, querida... —Negou com a cabeça e a boca lhe suavizou em um sorriso que lhe rompeu o coração —. E que classe de lugar seria esse? Você está muito alta para que eu te alcance e quão único faria seria te rebaixar. A tormenta tinha enchido a habitação de uma estranha luz amarela. A luz o iluminava, apanhando o brilho úmido de seus olhos, o tic nervoso de um músculo em sua mandíbula. E ela compreendeu agora que, como fazem os homens, ele tinha decidido fazer suas todas às opções. Compreendeu-o, mas não ia aceitá-lo. Se ele ia à Nova Iorque, ela o seguiria. Arrastaria-se de joelhos até ele, se fosse necessário e logo faria com que a deixasse ficar. —Tem... —A voz de Shay se quebrou e teve que voltar a começar—. Tem que saber, Emma... Nunca haverá ninguém mais para mim. Quero-te com

todo meu coração e te quererei para sempre, mo chridh. Ela começou a recolher sua roupa, para vestir-se em silêncio. Chegou até a porta antes de olhá-lo. Estava na cozinha, vestido só com as calças e com os botões ainda desabotoados. Estava despenteado, tinha as bochechas ruborizadas e a marca de um beijo no pescoço. Parecia o amante de uma mulher, que justo acabava de abandonar sua cama. —Eu te amo e você me ama —disse ela—. Então, possivelmente, poderia explicar a seu coração por que parto. Ele pronunciou seu nome uma vez, mas ela seguiu andando e saiu.

A tarde tinha escurecido até chegar a um crepúsculo cinza e o vento rondava pelo céu. Da baía se levantava uma névoa espumosa. A chuva caía em rajadas brancas, com um tamborilar que parecia de lençóis batendo as asas em um varal. Estava se dirigindo para a praia quando o ouviu gritar e ouviu seus pés martelando o chão atrás dela. Não queria voltar-se, mas o fez. Ele chegou correndo até ela. Emma se assombrou de como a chuva o tinha empapado e então se deu conta de que ela devia estar igual. O vento emitia um som como de uma vaca mugindo. Então ouviu que lhe dizia: —Não terá vindo de navio até aqui, verdade? —Não — respondeu, mentindo, sem estar segura do por que. Agora só queria afastar-se dele, afastar-se, afastar-se—. Vim no carro e o deixei estacionado diante da biblioteca. Durante um longo momento, uma eternidade, olharam-se fixamente através da chuva que caía, violenta. —Adeus, pois, e tome cuidado — disse ele. E logo a deixou. Deixou-a e voltou para sua casa vazia, voltou para seu dormitório vazio e

se deixou cair em sua cama vazia. Ficou de lado e cravou o olhar na parede. A chuva golpeava na janela e o vento rugia grosseiramente. Colocou a mão no lugar da cama onde ela tinha estado, mas estava frio. —Querida... —disse. Mas não estava seguro de que perda, por qual mulher, estava chorando. Icarus gemia como desesperado de dor enquanto cabeceava e escalava as ondas, com as velas curvando-se e apanhando o vento. O céu estava nublado e raivoso. Os raios caíam em rajadas abrasadoras, alagando cada greta e cada canto do mundo. Emma lutava, com as duas mãos, para sustentar o leme, enquanto a chuva lhe açoitava o rosto, cegando-a. A amurada de sotavento estava meio metro por debaixo das brancas águas; o vento ululava e gemia nos equipamentos do barco. A tormenta era terrível e era bonita, tão terrível e bonita que fazia com que todo o resto da vida parecesse inútil e de mau gosto. «Mas não o amor», pensou. O amor estava à altura. Jogou a cabeça para trás e gritou ao vento: — Fiz isto por vontade própria! Eu o escolhi, Shay McKenna! Eu escolhi isto! O céu inteiro explodiu em uma densa teia de relâmpagos. Naquele raio de fulgor, antes que o mundo fosse engolido, de novo, pelo vento e a chuva açoitadores, Emma viu algo que fez com que lhe parasse o coração. Uma onda. Uma onda pensada para um oceano, não para uma pequena baía de Rhode Island. Inclusive por cima do rugir do vento e da chuva, ouviu o rouco murmúrio que faz uma grande onda quando se prepara para encrespar-se e romper. —Meu Deus, por favor, não... Mas Icarus subia já por aquela negra cara. A proa apontando ao assustador céu, lançando-se à turva escuridão, esforçando-se, esforçando-se... Durante um instante suspenso ficaram penduradas ali, o bravo Saveiro gemendo e tremendo e Emma com a alma nua... penduradas ali, a bordo da eternidade.

E logo se precipitaram para baixo, afundaram-se por um buraco tão profundo e negro como o inferno. Lançaram-se com tanta força que o casco do Saveiro bramou ao golpear o fundo e o mastro se curvou como um arco. Um muro de água se estrelou em cima deles, golpeando com força, os esmagando... e logo desapareceu. Em uns momentos, a borrasca morreu, tão de repente como tinha começado. Seguia chovendo forte e o céu seguia negro, mas o perigo tinha desaparecido, seguindo ao vento. Emma, sentada no Saveiro, tremia e ofegava, mais assustada agora que tudo tinha acabado. Mas também se sentia triunfante. Pensou que não é que tivesse ganhado, fez algo melhor. Tinha sobrevivido. Só uma trêmula luz de gás brilhava no patamar da escura casa. As pernas de Emma tremiam de esgotamento enquanto subia as escadas. Estava empapada e gelada até os ossos e tinha calafrios. Se lhe tivesse interessado, teria pensado em perguntar-se por que a casa estava tão escura e silenciosa, tão possuída de um vazio que gelava a alma. Mas em quão único podia pensar era em quão cansada estava, muito cansada. Abriu a porta de seu dormitório, entrou e a fechou com cuidado. Apoiouse nela, tremendo. De repente, sentiu uns irresistíveis desejos de começar a rir. Queria levantar as saias e girar e girar, até enjoar-se, rindo, até cair rendida ao chão, como fazia quando era menina e a tinham trancado em sua habitação castigada. Algo se moveu em uma das poltronas de seda rosa que havia diante do fogo. —Mamãe? —disse. Sua mãe se levantou e logo um homem ficou em pé, pesadamente, da outra poltrona. Era o tio Stanton, o médico, que agora se pôs ao lado de sua mãe. Havia tanto silêncio que Emma ouvia como a chuva e a água do mar jorravam até o chão, da prega de sua saia. A cara de seu tio estava cansada, preocupada e agora Emma notou o

penetrante e azedo aroma do hidrato de cloral. —O que aconteceu? —perguntou—. Aconteceu algo a Maddie? Os olhos de sua mãe estavam fixos nela, muito abertos e angustiados em sua cara muito magra. Emma deu um passo para ela. —É você, mamãe? Está doente? —Não permitirei que isto aconteça — disse sua mãe—. Não te deixarei que me faça isto.

Capítulo Vinte e Oito Shay McKenna estava diante da pesada grade de ferro forjado e olhava, através dos barrotes, o esplendor de As Bétulas. A casa, enorme e estendida, refulgia sob o sol de outubro, com todos seus telhados e suas janelas altas e suas varandas. As finas telhas, curadas pelo tempo, eram como as tensas escamas de uma serpente. Uma aranha tinha tecido sua rede em cima de um dos adornos, em forma de folha, da grade. Até esse momento, seus finos fios não tinham apanhado nada mais que umas gotas de rocio, embora cintilassem como diamantes. Shay começou a levantar a mão para romper o tecido, para destrui-la e devolver a perfeição a elegante simetria da grade, mas logo a deixou como estava. Rodeou os barrotes com as mãos, empurrou a grade e começou a percorrer o comprido caminho pavimentado com conchas brancas trituradas e calcadas. Sempre tinha pensado que era um homem audaz. Vá se o era e, com o coração martelando com tanta violência no peito, era uma maravilha que não lhe partissem algumas costelas. Porque, embora não esperava vê-la, seu olhar seguia percorrendo o jardim com seus macetones, suas ninfas e sua fonte de mármore, ansioso por ver uma jovem com um vestido de cambraia branca e um chapéu de palha, com uma longa fita azul flutuando ao vento. Quando, por fim, chamou as enormes portas artesanais, de ébano, seu pensamento não tinha tido que dar um grande salto para absorver seu aroma e sentir seu cabelo entre as mãos. E quando as comportas se abriram, pensou: «dentro de um momento a

verei e me sorrirá e dirá...». —Que deseja? —disse um homem com boca avinagrada e sobrancelhas altivas. Shay disse a que vinha e, sem surpresa por sua parte — depois da visita que tinha recebido a noite anterior—, acompanharam-no, cruzando o chão de mármore branco e negro, ao interior da casa. As vezes que tinha estado ali antes, Shay tinha outras coisas na cabeça que admirar a grandiosidade de tudo aquilo. Mas hoje seus olhos captaram o teto abovedado e festoneado, as colunas estriadas embelezadas com pano de ouro, a esplêndida escadaria dupla, de carvalho, e o enorme espelho, com o marco dourado, que havia em cima da chaminé de mármore. Inclusive havia uma armadura completa em um canto, polida até lhe dar um brilho niquelado. Quando era menino, em Gortadoo e brincava de «castelos e cavalheiros» com Donagh, nunca imaginou que existisse um lugar como aquele. O homem da boca avinagrada conduziu Shay a uma estadia com paredes de seda de damasco amarela e painéis brancos e dourados. Uma mulher com o cabelo claro estava vestida, para combinar com aquele suntuoso interior, com um traje amarelo de um tecido tão rígido que parecia ranger inclusive enquanto estava sentada, imóvel. A mulher, a mãe de sua Emma, estava sentada diante de um secreter com relevos em forma de concha, escrevendo em um papel fileteado de ouro, com uma pluma de marfim. Esperou dez tictacs do relógio de similor que havia no suporte da chaminé antes de levantar o olhar para encará-lo. Tinha os olhos mais azuis que Shay já tinha visto. —Estava-lhe esperando — disse com uma voz baixa, com um acento sulino que lhe fez pensar em noites tórridas e ventos sufocantes—. Temo-me que chegou quando estava a ponto de compor os menus de hoje. Se fosse tão amável de esperar só um momento... Voltou-lhe as costas e agarrou a pluma de marfim com uma mão tão

branca e elegante como a asa de uma pomba. Estava sentada em uma cadeira que tinha um pequeno relógio de prata gravada encravado no respaldo. Shay nunca tinha visto uma maravilha assim em sua vida. Era algo bonito, mas do que te servia ter um relógio em um lugar que sempre estava atrás de ti, onde não podia vê-lo? Pensou que era como tantas coisas do mundo de Emma; bonitas, sedutoras e, de uma forma extremamente perversa, inúteis. A mãe de Emma acabou por fim com seus menus e agora lhe dedicou toda a atenção de seus olhos azuis e aveludados. —E bem? É que, ao que parece, nossa primeira oferta não foi suficiente —disse— e decidiu que vir diretamente à fonte poderia ser a maneira mais fácil de conseguir mais? Shay lhe devolveu o olhar. Não era que não compreendesse a pergunta, inclusive a esperava. Mas ouvi-la fez com que seu gênio despertasse, tão raivoso e cheio de cólera que, durante um momento, não pôde falar. —Como meu advogado lhe explicou — seguia dizendo a mãe da Emma—, estou disposta a lhe dar uma certa soma para que se estabeleça em outro lugar, para que desapareça para sempre de nossa vida, mas lhe advirto que não lhe permitiremos que nos sangre. —A fé de Deus. Não me permitirão isso? —disse, exagerando seu acento irlandês e olhando ao redor como se calculasse seu valor, com todo o assombro maravilhado de um menino de Gortadoo, com o esterco ainda grudado aos sapatos—. Um tipo com a palavra esquire colada a seu nome, veio ontem e me ofereceu mil dólares para que vá daqui e não admita ante ninguém que vi ou ouvi falar de uma tal senhorita Emma Tremayne. Assim penso que nos descobriram e não era eu quem sempre lhe dizia que isso aconteceria? E penso também que não vou partir a cara do esquire, se agarrar seu dinheiro em seguida e abandonar minha casa. Foi até ela, tão perto para intimidá-la com seu enorme tamanho. —Mas, logo, esse esquire me diz que a mandaram para ver uns primos

que vivem em uma grandiosa casa, em um lugar chamado Georgia. Assim agora começo a pensar que está grávida e, se o estiver, então vou levar o menino e a ela também e ao inferno com todos vocês. Avançou outro passo e a mulher se encolheu naquela maravilha de cadeira. —É por isso que enviaram a essa plantação? Nunca falou de que tivesse esses primos. Um sorriso tenso, nervoso, esticou a perfeita boca de rosa da mulher. —É que insinua que vocês dois chegavam a falar, realmente? Tinha a impressão... —Sua mão, branca e frágil, revoou no ar—. Bom, não importa. Não há nenhum menino e é algo pelo que os dois deveriam dar graças a qualquer deus que vele pelos insensatos. Tampouco a mandamos, como você diz, a nenhum lugar. Foi por sua própria vontade. A mãe de Emma ficou em pé com graça, em meio de um ranger de rígida seda amarela, e se deslizou ao redor dele, pondo distância entre os dois. —Possivelmente pensou que deixar Bristol durante um tempo era a única maneira passível de acabar com algo que tinha chegado a pensar que era um intolerável engano. —Possivelmente, mas é mais provável que você estivesse sentada aí sobre seu cú coberto de seda, mentindo entre seus dentes recobertos de ouro. Era mais dura do que tinha acreditado. Mantinha-se de pé, diante dele, erguida como um mastro, com uma cara tão impassível que parecia vazia. Mas logo viu o medo em seus olhos, umas sombras que se moviam como nuvens de tormenta voando empurradas pelo vento. Perguntou-se por que não tinha que ter medo, quando, segundo sua maneira de pensar, sua filha tinha estado a ponto de arruinar tudo. —É possível que lhe importasse — disse a mãe de Emma—, inclusive é possível que se convencesse de que a queria. Se for assim, então deveria pensar nela. Deixe que se vá, senhor McKenna. Por seu próprio bem, deixe que se vá.

Que outra coisa pode lhe oferecer salvo infelicidade? Shay olhou ao redor da estadia com suas paredes de seda e ouro e sua cadeira com o bonito e inútil relógio. —Acredito que essas palavras soavam mais a verdade —disse—, quando eu as dizia a ela. Deixou à mulher dourada, na estadia dourada da casa dourada com as mãos feitas punhos e o estômago feito um nó. Mas não deixou As Bétulas, não imediatamente. Seguiu o atalho entre as árvores que levava até a praia onde Emma atracava seu pequeno Saveiro. Icarus estava ali, com as velas arriadas, mas não pregadas, as decota enredadas na coberta e atoleiros de água salgada derramando-se na ponte... e a angústia voltou a possuí-lo. A Emma que conhecia era muito boa marinheiro para ir-se, alegremente, para passar o inverno em uma plantação de algodão qualquer, deixando que seu navio se apodrecesse naquele lamentável estado. Mas e a Emma que vivia naquela casa dourada, a filha daquela mulher fria e dourada? Não havia dúvida de que aquela Emma podia comprar meia dúzia de Saveiros sem sofrer apertos de dinheiro. Estava a ponto de partir quando algo que estava entre as tábuas cinza e curvadas do embarcadouro lhe chamou a atenção. Era uma de suas luvas. Inclinou-se e a pegou; levou a cara, passou a suave pele por cima de seus lábios abertos... respirando sua essência. Esteve a ponto de levar-lhe com ele e logo mudou de opinião e a deixou ali. Mas nos dias e semanas seguintes não conseguiu tirar aquele aroma da garganta.

Davam-lhe hidrato de cloral continuamente, para fazê-la dormir. Algumas noites, Emma se negava a tomá-lo e então a atavam a uma cadeira e lhe atiravam da cabeça para trás, agarrando-a pelo cabelo. Um dos

guardiões se inclinava sobre ela, com o joelho lhe apertando o ventre com força, enquanto lhe incrustava uma cunha de madeira entre os dentes, obrigando-a a abrir a boca. A matrona lhe colocava, à força, um tubo negro, de borracha, pela garganta e logo, com um funil, jogava-lhe a droga, mesclada com água morna através do tubo. Emma não podia tragar o bastante rápido e começava a afogar-se e ter arcadas e abria a boca em busca de ar. Ardia-lhe o peito quando a água lhe enchia os pulmões e gritava. Sempre se prometia que não gritaria, por muito dano que lhe fizessem, mas sempre gritava. Porque depois de que lhe introduziram o hidrato de cloral, à força, pela garganta, punham-lhe um manguito, um par de manoplas de pele, abotoadas com fivelas para segurar as mãos juntas, e esse manguito ia preso a um robusto cinturão de couro que lhe tinham posto, como uma cilha, ao redor da cintura. Logo a metiam em um artefato que chamavam o «berço». O berço era uma caixa quadrada de madeira, como um féretro. —Isto —lhe dizia a matrona, lhe aproximando tanto a boca que lhe orvalhava a cara com sua saliva— te ensinará a te comportar. E logo fechava a tampa e Emma ficava ali, jogada, com um grito preso na garganta, até que o sono da droga a vencia. A matrona tinha uns olhos com pálpebras grossas, como um sapo e uns cabelos cinza lhe brotavam das orelhas e do nariz. Emma aprendeu a odiá-la e temê-la. Mas mais que à matrona, Emma temia as coisas inimagináveis que ainda não lhe tinham feito. Ouvia tais gritos, especialmente de noite, tais chiados de demência; gritos que soavam como se brotassem das almas dos condenados. Quando levava uma semana no manicômio, levaram-na a outra parte do grande edifício de pedra cinza. Acompanharam-na a uma estadia com painéis de madeira nas paredes e forrada de livros, que poderia ter sido uma biblioteca de uma mansão da Rua Hope. Seu tio Stanton estava ali, com outro homem que

disse ser um médico cuja especialidade eram as enfermidades da mente. Disseram-lhe que a tinham ingressado naquele lugar por seu próprio bem, para curá-la de sua natureza «excitável». Seu tio ainda mostrava os rastros dos arranhões que lhe tinha feito na bochecha a noite da tormenta, quando lhe tinha metido uma seringa de injeção no braço. À noite antes de despertar neste lugar. Emma se sentou sobre as mãos, para que não vissem como lhe tremiam, com os joelhos juntos, muito apertadas. —Pode trazer mamãe para ver-me? —disse a seu tio e viu que algo mudava em seus olhos antes de afastar o olhar. Emma pensou que sua mãe não conhecia a autêntica natureza daquele lugar. Estava segura de que sua mãe nunca lhe teria feito aquilo, se soubesse. —É melhor para você que sua querida mãe se mantenha afastada durante um tempo —disse o médico cuja especialidade eram às enfermidades da mente—. É mais fácil administrar um tratamento quando a ruptura da paciente com o familiar é completa. Quando está completamente separada do ambiente que levou a sua excitabilidade. —Este é um lugar para loucos —disse Emma, esforçando-se por que sua voz seguisse soando calma... —. E eu não estou louca. Os dois médicos trocaram olhares cúmplices e, então, algo se partiu no interior de Emma. Saltou da cadeira, lhes gritando: —Não estou louca! Não o estou, não o estou, não estou louca! A matrona entrou na habitação, seguida por dois enfermeiros. Puseramlhe uma camisa de força e a arrastaram para fora e ela seguiu gritando, todo o tempo, que não estava louca. —É a seção doze para ti, bonita — disse a matrona. Meteram-na em uma cela que não era maior que o armário de sua roupa, lá em sua casa, em As Bétulas. Passaram correntes das fivelas na camisa de força até uma argola fixada no chão de pedra e a prenderam de forma que não podia

nem virar-se por completo nem ficar de pé. A matrona fechou a porta com um forte golpe e fez girar a chave na fechadura e quão último Emma viu, antes de ficar envolta na escuridão e o frio, foram os olhos da matrona olhando-a pela mira e, depois, também a mira se fechou de repente. E então Emma gritou, gritou e sacudiu as correntes e tentou livrar-se da camisa de força, forçando os músculos e os ossos de uma forma insuportável e nem sequer sentindo-o, gritando, gritando, gritando... Até que se abriu a porta de repente e jogaram um balde de água fria na cara. Ficou na fria e úmida escuridão, molhada e trêmula e murmurando sem cessar entre dentes: —Não estou louca, não estou louca. —E logo pensou: «Farão que acabe ficando louca». Assim deixou até de murmurar. Mas os gritos seguiam ali, acumulando-se, acumulando-se dentro dela e o terror era como algo selvagem, algo enlouquecido. Tão enlouquecido que se agora deixava sair os gritos, se deixava que saísse embora só fosse um, então não poderia deixar de gritar. Gritaria e gritaria até que os gritos absorvessem sua mente. Quando a matrona veio por fim, uma eternidade mais tarde, disse a Emma. —Vais te comportar bem. E Emma baixou os olhos ao chão, humilde, quebrada e disse: —Sim, matrona —com uma voz muito baixa e trêmula que nunca teria reconhecido como própria. —Comerá e beberá o que lhe deem, sem armar escândalo, e fará o que lhe digam. —Sim, matrona. —Levaremo-lhe a seção número cinco; enquanto se comporte bem. E se não te comportar, voltará para a cela de confinamento. —Me comportarei.

A seção cinco estava atrás de uma porta pesada, enorme, com ferrolhos, que a matrona abriu e logo voltou a fechar com o jogo de chaves que tilintavam, oscilando ao extremo do cordão trancado que sempre levava ao redor de sua grossa cintura. A seção era em realidade um vestíbulo, um longo corredor de que saíam seis pequenos dormitórios, cada um com seis camas de armar de ferro. Ao longo das paredes do corredor havia bancos de madeira e umas pequenas janelas com barrotes, lá no alto, por cima dos bancos. O corredor estava lotado de mulheres. Algumas se limitavam a permanecer

sentadas,

em

silêncio,

nos

bancos.

Outras

caminhavam

freneticamente acima e abaixo, bracejando agitadamente, puxando o cabelo, gemendo e chiando em voz alta, algumas chiavam em silêncio, outras soltavam incoerências ou juramentos horrorosos. Uma das mulheres estava atada a uma cadeira. Olhou a Emma com olhos vazios e a boca entreaberta e babando. A matrona deu um empurrão a Emma, nas costas, e lhe assinalou um lugar vazio em um dos bancos, junto à outra mulher suja, com os olhos enlouquecidos e o cabelo desgrenhado. —Sente-se aí e te comporte bem. As pernas de Emma estiveram a ponto de lhe falhar enquanto obedecia a indicação do dedo da matrona. A peste no corredor era tão azeda como a fruta podre. Ao outro lado do corredor, frente a ela, havia uma mulher encadeada ao banco, com os braços presos por uma camisa de força. Golpeava a cabeça, com força, contra a parede, uma e outra vez. A cara era uma massa de machucados e Emma se perguntou como teria chegado a esse estado, quando era a parte de atrás da cabeça o que se golpeava. Mas, justo então, a matrona se aproximou da mulher e a golpeou com o chaveiro na boca. O sangue brotou dos lábios carnudos da mulher. Ela não fez som algum, mas Emma gemeu. Depois daquilo, ficou sentada

no banco, com medo de mover-se. Ao fim de muito tempo, quando esteve segura de que não a vigiavam, ficou de pé no banco para poder olhar pela janela. O cristal tinha um marco e uns barrotes de ferro, mas, mesmo assim, podia ver através dele. Uma verde extensão de grama baixava até um bosque de bétulas, muito parecidos com os de sua casa. Suas folhas amarelas e seus brancos troncos brilhavam como a prata contra um céu azul e espaçoso. Passaram as horas... Emma nunca soube quantas porque já tinha aprendido que o tempo não tinha sentido naquele lugar. Soou um timbre, as convocando a outra estadia, menor, onde as fizeram sentar em bancos de madeira frente a mesas de cavaletes, e lhes deram carne em conserva e batatas fervidas. Quando a mulher de seu lado começou a passar as batatas na cara e no cabelo, a Emma lhe revolveu o estômago e não pôde comer. Mas quando voltou para seu banco debaixo da janela, tinha muita fome. —É você uma das loucas ou só uma ianque teimosa? Emma se sobressaltou ao ouvir a voz em sua orelha, embora fosse uma voz agradável, suave e melodiosa como o canto da curruca. A proprietária da voz tinha uma cara triste e bonita, ao mesmo, com uns luminosos olhos violeta. Mas Emma se lembrou da habitação com painéis de madeira e de como seu tio e o médico tinham trocado aquelas olhadas cúmplices, enquanto ela insistia em sua prudência e não confiou na mulher nem em suas palavras. Embora tremesse um pouco, Emma conseguiu levantar altivamente o queixo. —A verdade é que não sei o que quer dizer. —Está revoltada ou louca? —A mulher aproximou a cara a Emma para esquadrinhar em seus olhos—. Parece-me bem. Entretanto, às vezes é difícil de saber. E as coisas que se fazem aqui logo fariam que o próprio Jesus cristo chiasse e babasse e dissesse coisas sem sentido. Emma esteve a ponto de sorrir e logo se lembrou dela mesma, chiando e jogando as cadeias de sua cela e estremeceu, em vez de sorrir.

—Vejamos, por que está aqui? —Como? —disse Emma sobressaltando-se de novo. —De que aflição dizem que sofre: melancolia, demência, histeria, prostração nervosa? —Tenho uma natureza excitável. A mulher olhou a Emma de cima abaixo, com um sorriso dançando nos olhos. —Sim, já o vejo. E o que lhe levou a fazer essa natureza excitável? —Tinha um amante — disse Emma, surpreendendo-se pelo orgulho e a maravilha que seguia ouvindo nessas palavras, depois de tudo o que tinha passado—, mas era... ele era inadequado e se esperava que eu me casasse com outro. —Então sofre de um excesso de paixão, uma aflição mais característica da mulher que do homem. Assim, ser mulher é, evidentemente, a raiz de seu problema. É mais, com frequência, ser mulher resulta ser a causa de grandes perturbações nervosas. Era incrível, mas Emma se deu conta de que tinha vontade de tornar-se a rir. A mulher tinha um bonito sorriso, embora tivesse os dentes cariados. —Eu estou trancada aqui pelo crime oposto ao seu — disse a mulher—. Era meu marido quem tinha uma amante. Queria ir viver com ela e eu me neguei a me divorciar. Naquele tempo, pensava que o divórcio era uma vergonha insuportável... Nem sequer permitia que o mencionassem em minha presença. — Durante uns momentos se perdeu em seus pensamentos e logo encolheu os ombros—. Ai, os enganos de julgamento que alguém comete quando é jovem... Assim que me trancou aqui. Não sei se segue com ela. Poderia estar morta, os dois poderiam estar mortos, e durante meus lapsus de prudência, rogo para que o estejam. Digo lapsus de prudência, porque dado que foi ele quem fez com que me internassem, só ele pode me tirar daqui; algo que não é fácil que possa fazer se estiver morto, verdade?

Exalou um pequeno suspiro e disse com toda naturalidade: —Estou trancada neste lugar há mais de trinta e cinco anos. «Trinta e cinco anos. Deus, Oh, Deus...» Emma se sentou de novo em cima das mãos para que ninguém pudesse ver como lhe tremiam. A mulher se chamava Annabel Kane. Nos dias seguintes, sentava-se junto à Emma no banco e, às vezes, quando a matrona não andava por ali e não podia as ver, subiam em cima dele para olhar pela janela. Emma se inteirou de que, ao outro lado do bosque de bétulas, havia uma cerca e uma grade fechada com chave. Enchiam as horas falando. Melhor dizendo, era quase sempre Emma quem falava e falava. Sobre tudo, falava de sua infância em As Bétulas, de sair a navegar e a cavalgar e, extremamente, de Geoffrey, que, pensava cada vez mais, embora não sabia por que. —Temo-me que eu também estou ficando aborrecida Annabel. Cada dia é igual ao anterior. —disse um dia quando se reuniu com Annabel em seu lugar no banco. Annabel se virou com a cara cheia de entusiasmo. —Amanhã vou para casa. Emma lhe agarrou as mãos. —É maravilhoso —disse e as lágrimas afluíram, brilhantes, a seus olhos—. É seu marido? Pediu que a deixem sair? Ou os médicos decidiram que está curada? Mas Annabel não respondeu, de tão excitada que estava. Em troca, falaram toda à tarde das coisas que faria a primeira tarde que estivesse livre. —Vou dar um longo passeio —disse Annabel—. Um longo, longo passeio e olharei para cima, ao largo céu aberto e o absorverei, absorverei-o tudo. E quando partia, inclinou-se e secou uma lágrima da bochecha de Emma. —Cuide essa natureza excitável que tem, senhorita Emma Tremayne. Conserve-a bem.

Mas ao dia seguinte, ao passar por diante dos dormitórios de caminho ao refeitório, Emma viu Annabel Kane jogada, com os pés atados à cama, as mãos no manguito e uma larga faixa de couro lhe atravessando, apertada, o peito. Tinham-na drogado, porque roncava com força. Estava nua. —Annabel! —exclamou Emma, tentando ir para ela. Mas a matrona avançou atrás dela, agarrou-a por braço e a obrigou a parar com um puxão tão forte e violento que quase lhe desencaixou o braço. —Meu Deus... Por favor, matrona. Não pode cobri-la, pelo menos? —Ontem à noite fez migalhas os lençóis — disse a matrona—, assim está sendo castigada por isso. E te encontrará com o mesmo se não fechar a boca. Dois dias depois, Annabel estava esperando Emma em seu velho lugar no banco. Estava de pé, olhando pela janela. —Às vezes, não estou bem — disse—. Levo tanto tempo aqui, Emma, tanto tempo. Toda minha vida. Só tinha vinte anos quando vim. Vinte! Agora tenho cinquenta e cinco, sou uma velha. Morrerei aqui. —Tocou o cristal através dos barrotes com a ponta dos dedos—. Às vezes, desespero-me por morrer aqui. Aquela noite, Annabel Kane cortou os lençóis em tiras e as atou para fazer uma soga, forte e sólida. Logo atou a soga à instalação de cobre das luzes e se pendurou. Depois disso, Emma subia ao banco sozinha. Fechava os ouvidos aos chiados, os gemidos e os grunhidos das outras mulheres, as loucas. Fechava o nariz aos aromas de seu suor e sua urina. Apertava a cara contra o cristal frio, protegido com barrotes e olhava como as bétulas, ali fora, perdiam as folhas, uma a uma. Um dia, olhou fora e viu que a grama estava polvilhada de uma orvalhada de neve. Não pensava em Shay, porque não teria podido suportá-lo. Imaginava passeando com Bria por uma praia cinza, pizarrosa, em meio de um ar que era tão prateado como a baía.

Capítulo Vinte e Nove Era um dia frio e úmido, chuviscava, parecia que o dia estava à beira das lágrimas. Maddie, sentada em sua cadeira, no terraço que dava à baía, temia acabar molhando-se, mas tinha havido um dia cinza, desajeitado e solitário atrás do outro desde fazia tanto tempo com a neve e logo esta chuva pastosa— que precisava sair de casa. Ouviu passos nas lajes e se voltou, esperando ver Tildy ou a um dos lacaios. O coração começou a lhe palpitar de forma violenta e desigual, com medo e alívio ao mesmo tempo, ao ver Stuart Alcott descendo pelo caminho a grandes pernadas. Ia vestido com roupa de montar a cavalo, calças de couro, puxada até o joelho e uma jaqueta Norfolk. —Vá, outra vez por aqui, tão cedo, senhor Alcott? —perguntou quando ele chegou até ela. Tinha-lhe escrito inumeráveis cartas durante os dois últimos meses, lhe rogando que viesse e não tinha recebido resposta alguma—. Tenho que me sentir adulada ou é que te tornaste a ficar sem dinheiro? Stu se inclinou para beijar o ar junto a sua bochecha. —Que tenha boa tarde você também, Maddie, bonita. Em realidade, ultimamente, tive uma rajada de sorte fenomenal nas corridas. Não, esta vez vim para farejar o escândalo. —Escândalo? —tratou de dizê-lo sem lhe dar importância, mas a voz lhe saiu crispada. Assim que ele sabia, provavelmente não tudo, mas sabia algo. —Farejar escândalos me diverte, de vez em quando —disse—. Quando começo a me aborrecer de tanto ir de farra, beber e jogar. Olhava para a baía. meteu uma mão no bolso da jaqueta e apoiou um pé

em um dos vasos de barro ornamentais, de ferro, que tinha distribuídas a intervalos ao longo do terraço. Tirou o quadril e enquadrou os ombros. Era uma pose masculina. —Sabe, Maddie? Não custa muito esforço mentir em nosso pequeno mundo, aqui em Bristol, e sair bem sacados. Apesar de todo nosso dinheiro e nossos esnobes costumes de “Gente Importante”, somos muito provincianos. Mas nos desagradáveis círculos, infestados de tubarões, pelos que estou acostumado a nadar em Nova Iorque, há pessoas cuja única razão para respirar é farejar a mentira e o fingimento nos outros e logo jogá-los abaixo. Baixou o pé da urna e se voltou para olhá-la de novo, estudando-a atentamente, até que ela teve que afastar o olhar. Tinha-lhe estado rogando que viesse para poder lhe contar a verdade, parte da verdade, e lhe pedir que reparasse o horrível dano que ela tinha feito. Mas agora que estava ali, tinha medo. Quando conhecesse sua parte no «escândalo», veria-a tal como era e a desprezaria. —Às vezes — seguiu dizendo ele—, a meus amigos diverte exercitar seu talento de devoradores de homens em águas não exploradas, descobrir pequenos segredos sujos sobre nós, os pretendentes da Nova Inglaterra, aqui no interior. Especialmente, se tivermos a tendência a nos dar ares. E se der a casualidade de que tropeçam com algum segredinho sujo... —Levantou as mãos, as abrindo—. Adoram falar, vá se adoram falar. O coração de Maddie pulsava desbocado. «Sabia, sabia... O que sabia?» —Stu Alcott, por acaso, não estará tentando reunir coragem para me comunicar uma intriga particularmente suculenta? —Em certo modo... Verá, com toda minha inocência, um dia, comenteilhe, por acaso, a alguém que a bonita prometida de meu irmão levava os dois últimos meses de visita em casa de uns primos de sua mãe, em sua bonita e elegante plantação na Georgia e, te haja aqui que me dizem que não há nenhum primo na Georgia. Ou, melhor para os interesses depredadores de meu amigo

dos dentes de tubarão, não há primos com uma bonita e elegante plantação. — Deu um passo para ela, até estar ameaçadoramente perto, até que suas coxas lhe roçavam os joelhos—. E se não tem primos na Georgia — disse—, então onde, Oh onde está nossa querida Emma? —Não sei do que está falando. Claro que há uma casa e uma plantação. Mamãe está acostumada falar de seus primos de High Grove. Mas Maddie temia, temia muito, que Emma não estivesse ali. Stu se inclinou sobre a cadeira, apoiando as mãos nos braços, tão perto dela que podia lhe ver o bater das asas das finas janelas do nariz ao respirar, as dobras do canto dos lábios. Os pontos negros flutuando como bolinhas de pó em seus olhos cinza. E podia cheirá-lo. Champanha passado e um leve aroma de algo parecido a amendoins queimados, doce e enjoativo. —Confessa Maddie. O que tem feito Emma e o que fizeram você e sua mãe com ela? Junto com as palavras, de sua boca brotou um soluço. —Tinha que dizê-lo. Por seu próprio bem, tinha que dizê-lo. Mas isso era mentira. Não tinha tido intenção de dizer nada até que viu Emma voltar, correndo, depois de se despedir de seu amante na grade. Sua irmã levava as saias subidas, até os joelhos, e corria a toda velocidade e ria... Tinha um aspecto muito feliz. Stu tinha os olhos cravados nela, julgando-a, e Maddie não podia suportálo. Afastou a cara, apertando-a com força contra o respaldo da cadeira. —Onde está, Maddie? Maddie meteu o punho com força na boca para afogar outro soluço. Afundou-se mais profundamente na cadeira, como se pudesse atravessar o assento de cano, atravessar a fria terra invernal até o outro lado do mundo, onde ele não pudesse olhá-la e ela não teria que olhá-lo. —Mamãe... disse que Emma era uma vergonha para a família e que tinha que ir-se durante um tempo. A... à plantação...

«Salvo que não havia nenhuma plantação. Mamãe tinha mentido — mamãe sempre tinha sido muito boa mentindo— E... ai, Deus, o que tinha feito?» Maddie levantou o olhar para ele, a seu pesar, mas ele tinha dado meia volta e tinha o olhar fixo na baía. As nuvens cinza e carregadas de água tinham descido mais e suas barrigas roçavam a água. —Escrevi-te — disse ela—, escrevi-te e te escrevi, te rogando que viesse, mas não o fez. A boca de Stu se torceu um pouco. —Suas cartas eram um pouco vagas sobre o porquê de sua chamada. Mas tem razão, deveria ter vindo, de todos os modos. —Girou de novo para olhá-la. Maddie alguma vez lhe tinha visto a cara como então, desprovida de toda cor, quase descarnada—. Essa mulher estúpida enviou a sua irmã ao manicômio do Warren, não é assim? —Oh, Stu, tive tanto medo... —engasgou-se com as palavras, com o medo, a culpa e o horror que foram construindo uma presa dentro dela—. É com o que sempre me ameaçava quando me converti em uma vergonha para a família, com esta cadeira. Disse que tinha mandado Emma a Georgia, mas eu pensei, pensei... Stu resmungou um juramento entre dentes e ela se estremeceu. —Geoffrey sabe? Ela negou com a cabeça, apertando forte os lábios. A pressa era alta e grossa agora e a estava estrangulando. —Ele também acredita que está na Georgia. Mamãe lhe disse que, ultimamente, Emma tinha os nervos delicados e instáveis e que os invernos da Nova Inglaterra pioravam seu estado. —segurou uma mão com outra, em cima da saia, as retorcendo, assustada do que aconteceria agora que o segredo estava descoberto; assustada do que sua mãe faria a ela—. O que... o que vais dizer ao Geoffrey? Não pode lhe contar por que...

Stu deu meia volta, afastando-se dela, como se já não pudesse suportar sua presença e sua voz adotou um tom malvado. —O que lhe diria sobre o por quê? Quão único tenho é uma suspeita, depois de tudo... E um de nós já falou demais. —Por que te importa tanto, além disso? —gritou ela, envergonhada e aterrada, ah, tão assustada de perdê-lo, de perdê-lo quando nem sequer o tinha tido —. Não quis vir por mim, nem sequer quando lhe supliquei isso, mas veio em seguida por ela. Suponho que está apaixonado por ela, igual a todos os outros homens do mundo. Stu ficou em silêncio um momento e logo a surpreendeu aproximando-se de novo. —Importa-me porque Emma é minha amiga. Nunca estive apaixonado por ela, mas sempre gostou de mim. Começou a levantar a mão e ela pensou que ia tocá-la, mas deixou cair à mão, de novo, a um lado. Agora compreendia que nunca ia tocá-la, não da maneira que ela queria, não da maneira que aquele homem rude havia tocado a Emma. —O que aconteceu a seu coração, Maddie? Partiu-te ao mesmo tempo que a coluna? —Claro que se partiu! —Jogou a cabeça para trás e as lágrimas se derramaram de seus olhos e rodaram até o cabelo e os cantos dos lábios—. O que sabe você de minha vida? Você não tem que viver assim... Ela não tem que viver assim. —Esta cadeira não é culpa da Emma. —Não, é culpa do Willie! —chiou-lhe e chiou e chiou ao Willie, morto agora e no céu—. É culpa do Willie e se matou por isso e eu quero morrer. — Enterrou a cara nas mãos, apertando os dedos com força contra os ossos, tratando de deter o ruído de seus rasgados soluços—. Vá. —Maddie...

—Por favor, vá. Ficou calado tanto tempo que ela abriu os lábios para rogar-lhe de novo. Queria que se fosse, que se fosse, que se fosse. Sempre estava partindo e deixando-a. Então ouviu o sapateio de suas botas nas lajes, afastando-se dela, deixando-a. Maddie levantou a cabeça justo no momento em que chegava uma rajada de chuva gelada, empurrada pelo vento da água. Agarrou o liso aro de madeira de suas rodas e tratou de empurrar, mas os aros de borracha estavam encalhados. Soluçando, empurrou mais forte e começaram a rodar, lentamente e logo mais rápido... agora giravam muito rápido, baixavam muito rápido pela varanda do terraço, para a beira que caía sobre a baía, voando agora até dentro das cinzas águas e os céus cinza, voando... Maddie gritou uma vez, um grito forte e agudo, quando a cadeira golpeou contra um dos vasos de ferro fundido, escorregou para um lado e se derrubou, atirando-a contra as ásperas lajes. Chorava com tanta força e o coração lhe palpitava tão forte, de medo e impotência e de absoluta solidão que, ao princípio, não sentiu os fortes braços que a rodeavam. Não até que a levantaram, sustentando-a muito perto do sólido consolo de seu peito. Voltou-se para ele, apertou a cara molhada contra a sua, apertou os lábios contra o duro osso de sua mandíbula e, de novo, notou o sabor de sal, mas não sabia se eram suas lágrimas ou as dele. —Minha pequena — disse Stu—, minha pobre e destroçada pequena.

Foi procura-la durante essa hora do dia em que se pode notar como cai a escuridão, embora o céu segue cheio de luz. Sua pálida cara era luminosa na triste penumbra do corredor. —Emma... Aproximou-lhe mais, até onde estava sentada no banco, por debaixo da janela.

—Emma —disse de novo. Ajoelhou-se diante dela. Tinha as mãos apoiadas na saia, com as palmas para cima e ele as levantou, com suavidade e ternura. —Eu não sabia nada disto. Juro-lhe, Emma, querida, não sabia. Geoffrey lhe abrigou as mãos entre as suas. Ela pensou que devia nota-las frias. Fazia tanto tempo que tinha frio que já não se dava conta. —Acredita-me? —disse—. Diga-me que me acredita. Olhou-o à cara, atrativa e de ossos largos, tão familiar para ela, uma cara que conhecia de toda a vida. Olhou dentro de seus olhos mate, da cor da água cinza, que nunca era capaz de ler. —Acredito-te — disse, embora não estava segura se acreditava ou não e não importava. Agora estava ali e ia tirá-la daquele lugar. Ia levá-la para casa.

Capítulo Trinta Desde que voltou para casa, As Bétulas, à noite anterior, Emma só pensava em uma coisa: Ir dar um longo, longo passeio e levantar o olhar para o céu, largo e aberto, e aspirá-lo, só aspirá-lo em sua totalidade. Atravessar as enormes portas artesanais de ébano, aquela manhã, tinha sido, sem dúvida, uma maravilha; ser capaz de ir a algum lugar sem a matrona nem o ruído metálico de suas chaves. Mas agora que estava ali, na varanda, vestida com seu casaco e chapéu de pele de foca, com as mãos bem colocadas e quentes em seu manguito, tinha medo de dar o primeiro passo. Sentia-se tão destroçada por dentro, como se algumas parte suas se soltaram. Peças irregulares, de um quebra-cabeças, que se tinham colocado mal e nunca voltariam a encaixar umas com outras de tudo. Podia voltar a entrar na casa e pedir a Geoffrey que fosse com ela. Mas quando estava com ela, notava como a olhava fixamente e isso a fazia sentir incômoda. Perguntava-se o que procurava em sua cara: rastros das paixões da Emma desatadas, sinais da natureza excitável da Emma, encontradas e perdidas. Sabia que não estava louca, nunca o tinha estado, mas, de todos os modos, tinham-na dobrado. Tinham-na feito sentir medo de novo. Então lhe pareceu ouvir o rangido da velha cadeira de balanço de vime, mas não havia nada de vento. E quando se voltou para olhá-la, viu que estava imóvel. Entretanto, o som, tão familiar e evocador, deu-lhe a coragem de descer os degraus e andar através de um prado com emplastros de betume de neve velha. Estava se acumulando névoa, como fumaça que saía das bétulas. Deteve-se uma vez e olhou para cima, ao céu, deixando que lhe

enchessem os olhos com seu azul. Absorvendo-o. E quando começou a andar de novo para o grupo de bétulas, brancas, negras e cinzas na paisagem invernal, sentiu-se melhor. Mas não ela mesma. Mas outra pessoa. Uma névoa mais espessa, nacarada e opaca, levantava-se da baía. Não sabia onde começava a água e onde terminava o céu. A praia era uma corrente cinza de areia e neve. A última vez que esteve ali foi o dia em que tinha navegado sozinha até em casa, em meio a tormenta. Tinha deixado Icarus em um estado terrível, mas alguém, agora o via, cuidou do Saveiro por ela. —Foi e deixou seu Saveiro feito um bom desastre, Emma Tremayne — disse uma voz áspera que não tinha pensado voltar a ouvir. E as peças irregulares e quebradas que havia dentro dela se moveram, lhe causando dor. Saiu de entre as árvores nuas e murchas, com as mãos nos bolsos de seu jaquetão de marinheiro e com seu chapéu lhe ocultando a cara e lhe aproximou, até estar tão perto dela que podia tocá-lo. Mas, agora, tinha muito medo de tocálo. —Assim voltaste — disse ele e seu fôlego flutuava através de sua cara em finas nuvens. Sua cara bonita e maltratada. —Voltei? —Da bonita casa da plantação de seus primos, na Georgia. Emma tinha a pele fria e úmida, mas seu coração pulsava veloz e trêmulo. Shay tinha uns olhos verdes extraordinários. Pensou que não podia voltar a suportar aquilo. —Donagh te viu ontem, por acaso, na estação de trem —disse—. Assim é como soube que estava de volta. —Sim. Podiam ter vindo de carro do manicômio do Warren; só eram umas

poucas milhas. Mas Geoffrey disse que tinham que ir de trem, para que ninguém que importasse soubesse a verdade. A verdade de onde tinha estado. —Pensei que o primeiro que faria seria ver como estava seu Saveiro — disse Shay—. Por isso estou aqui. Quero saber como vai, Emma. Sentiu um golpe de ira contra ele. Ira porque tinha tido tanta razão em relação aos custos e as consequências. —Vou casar-me com o senhor Alcott —disse—. Mamãe já não quer esperar os dois anos completos, assim teremos as bodas em junho. No jardim. Mamãe diz que é tão sólido como os tijolos das fábricas que tem. Ele a estava olhando fixamente, intensamente; seus olhos a percorriam de cima abaixo. Ela afastou o olhar. —Esperas um filho, Emma? As peças irregulares, quebradas, deslizaram-se de novo. De repente, queria voltar dentro da casa, onde estava quente. Segura. Piscou e o olhou de novo. —Não foste à Nova Iorque? —Não, ainda não. Agora o ouviu, a grisura de uma dor sem cicatrizar em seu áspero sussurro. —Precisava saber como estava. Se havia um menino... Quando o olhou, foi difícil recordar que se supunha que já não tinha que amá-lo. De algum jeito, encontrou coragem para estender a mão e lhe tocar a cara, seguir o risco da fina cicatriz branca que lhe cortava a bochecha. —Shay —disse—, Shay McKenna. —Como se provasse seu nome, dizendo-o pela primeira vez—. Chegou a me amar, embora fosse só um pouquinho? —Te amar? —Voltou à cabeça e lhe passou os lábios pelos dedos—. Te amo agora, mo chridh. Quando estiver morto, dentro de mil anos, o que fique de mim, seja a alma ou só um punhado de pó, seguirá-te amando.

Emma deixou cair à mão ao lado. —Mas vou casar-me com o Geoffrey. É o melhor. Viu como lhe movia a garganta ao tragar, viu como lhe movia o peito ao respirar. —É o melhor, se você for feliz. Será feliz, Emma? —Tenho frio. Eu... será melhor que volte. Afastou-se dele, percorrendo de novo a praia e passando entre as bétulas. Não teve que voltar-se para saber que ele a seguia olhando, como se nunca fosse a vê-la de novo.

Geoffrey estava entre as sombras da porta, com seus cortinados de veludo, e a olhava. Emma estava junto às janelas, olhando as bétulas, mas não acreditava que os visse. Tinha os olhos voltados para seu interior, a algum lugar muito dentro de si. Umas sombras parecidas com velhos machucados se estendiam por debaixo de suas maçãs do rosto. Devia ter saído para dar um passeio, depois de tudo, porque levava o casaco de pele de foca, embora o tinha desabotoado em parte. Podia ver a franja de renda e diminutos aljófares que formava o pescoço alto de seu vestido e que envolvia um pescoço impossivelmente longo e fino. Disse-se que tinha que ser paciente, que só levava um dia em casa, mas sentia como se lhe estivesse gritando através de uma distância inabarcável e que, se estendesse a mão e a tocasse, desvaneceria-se. Temia não conhecê-la já; possivelmente nunca a tinha conhecido. Ninguém tinha querido lhe dizer, exatamente, o que era que sua «natureza excitável» a tinha levado a fazer para que seu tio e sua mãe tivessem pensado que necessitava um descanso no manicômio para curar-se. Tinha tratado de averiguá-lo, mas sem insistir muito, porque a verdade é que não queria sabê-lo. Não queria inteirar-se de algo que possivelmente não pudesse perdoar.

Foi até ela, junto à janela, o bastante perto para tocá-la, embora não o fez. Cheirava a seu perfume de lilás. —Foi dar um passeio — disse. —Sim — respondeu ela. Falou com voz baixa, como alguém que acaba de despertar de um profundo sono. —Está gelada. Tirou-lhe umas gotinhas de névoa do cabelo suave. Queria lhe perguntar o que estava pensando, mas, em troca, separou-se dela, agarrou um fole de pele tachonada e começou a avivar o fogo.

Nos dias de dezembro que seguiram, Geoffrey passou todo o tempo que pôde com ela, embora nunca conseguisse encontrar as palavras que necessitava para lhe fazer as perguntas que pensava que tinha que lhe fazer. Queria acreditar que ela o necessitava e, por isso, estava ali. Entretanto, nem sempre era fácil encontrá-la. Passava muito tempo passeando ao ar livre, embora se aproximasse o Natal e o inverno era frio e úmido. Esta vez a encontrou na velha estufa. Nunca tinha estado antes ali, onde ela esculpia; nunca o havia convidado. Tampouco tinha lhe oferecido ensinar suas obras, mas a verdade é que pensou que, possivelmente, temia que ele o encontrasse um trabalho pouco sério, de aficionada. A porta estava meio aberta e se deteve na soleira antes de entrar. Um sol amarelo pálido caía do teto de vidro, salpicando de formas aquosas o chão lajeado. Emma estava imóvel, com o olhar fixo em algo estranho feito de bronze e, embora não podia lhe ver a cara, tinha um ar estranho, como em suspense, como se levasse ali, de pé, séculos e séculos. Entrou com a bengala repicando nos ladrilhos. Ela se voltou e ele ficou petrificado ao ver as lágrimas lhe banhando as bochechas.

—Emma, querida —disse, apressando-se a ir junto a ela—, o que acontece? Ela deu meia volta, afastando-se dele para voltar a olhar aquela estranha coisa de bronze. —Tive medo de voltar aqui, medo do que poderia sentir, do muito que doeria. Mas logo me pus a pensar que mamãe possivelmente teria partido a Bria em pedaços, enquanto eu estava fora e, nesse momento, aterrou-me mais ainda não vir. Tinha que vê-la, saber que estava bem, e está bem. Está-o! Não é muito bonita? Geoffrey tratou de parecer admirado ao contemplar aquela estranha coisa. Finalmente decidiu que era a máscara de uma cara de mulher, mas mal podia dizer-se que... Bom, para começar, era muito grande para ser uma cara como é devido. E, além disso, os traços eram muito duros e fortes para pertencer a uma mulher. Sua pobre Emma... Realmente não tinha nenhum talento. Não era estranho que se mostrou receosa a lhe ensinar qualquer uma de suas criações antes desta. A ela parecia lhe ser indiferente contar com sua aprovação. Tinha voltado para aquele estado de suspense, onde nem sequer parecia que respirasse. —Não está pensando em voltar a esculpir, verdade? —Realmente, esperava que não; seus nervos estavam ainda muito frágeis para uma tensão assim. Ela estremeceu, rompendo sua quietude e olhou pelas janelas para o céu invernal, de uma cor azul escuro. —Não — disse—. Se necessitaria muito mais força do que poderia reunir neste momento. Sua cara tinha uma tristeza tão doce que sentiu um doloroso desejo de consolá-la. Sem se dar conta do que fazia, deslizou-lhe o braço ao redor da cintura e a atraiu para ele. Pensava tomar cuidado, lhe dar mais tempo depois de sua enfermidade, mas aqui estava, beijando-a, e era muito tarde.

A boca de Emma estava fria e macia e ele acabou o beijo muito cedo para saber se tinha recebido resposta. E não se atreveu a tentá-lo de novo. —Pensava que hoje poderíamos ir patinar — disse—. Dizem que o gelo no lago Colins é o melhor que houve em todo o inverno. —Isso seria agradável, Geoffrey — disse ela. Mas ele não viu nenhum sentimento em sua cara, nenhum absolutamente. O sol brilhava sobre os delicados colares de renda do gelo que cristalizava as rochas e as árvores e as campainhas dos arnês repicavam uma toada repetitiva. O vento que levantava o trenó ao cortar a neve, removia as peles cinza do pescoço de Emma, que lhe acariciavam a bochecha. Agora lamentava ter aceitado vir, porque notava o medo reanimando em seu interior. Quando estava em casa, em As Bétulas, naquele lugar tranquilo e familiar, sentia que havia tornado a ser ela mesma, a ser a menina que foi fazia muito tempo, como se acabasse de encontrar-se de novo, depois de uma longa e aterradora viagem muito longe de ali. Agarrou-se no braço de Geoffrey, inclinando-se para ele, apoiando-se nele. Ele se voltou e sorriu. Na amortecida luz invernal, seus olhos tinham a cor brunida da prata velha. Pensou que ela e ele se importavam um com o outro; o único problema é que nem sempre o sentiam e isso já não parecia ter tanta importância. Entre as muitas coisas das quais agora tinha medo estava soltar o braço de Geoffrey. Foram andando até o lago, com os patins atados juntos e pendurados do pescoço. Geoffrey a fez sentar em uma rocha para poder lhe atar os seus. Patinaram um junto ao outro, ela e Geoffrey, agarrados pelo braço. O frio lhes queimava o nariz e as bochechas e era maravilhoso sentir o vento na cara e, com grande surpresa por sua parte, pôs-se a rir; embora sua risada soasse frágil no fino ar. No lado largo do lago, uns meninos irlandeses jogavam uma partida de curling, empurrando o disco de pedra com a vassoura, para frente e para trás

pelo gelo. E chiando, aclamando e, já estavam, tratando de golpear-se uns aos outros com o pau. Embora parecesse que os patinadores eram meninos, por um momento a Emma pareceu ver Noreen entre eles. Soltou um pequeno grito e começou a dirigir-se para eles, tratando de soltar do braço de Geoffrey, mas ele não a deixou ir. —Alto aí, querida —disse—, aonde vai? Ela deixou que a levasse dali. Deixou que suas mãos, amáveis e conhecidas, levassem-na de volta à rocha, onde lhe tirou os patins. Deixou que a abrigasse bem no ligeiro trenó e a levasse para casa, onde a coroa de acebo na porta e a luz dos abajures que saía pelas janelas e se vertia na neve dos batentes apresentava uma visão acolhedora. Quando cruzavam o vestíbulo, adornado com grinaldas de pinheiro, chegaram-lhes risadas e uma melodiosa versão de «Gingue Bells» da salinha da família e se deixaram conduzir por aqueles sons. A sala estava iluminada pela luz branca, como de vaga-lumes, das velas da árvore de Natal e cheirava a bolachas de gengibre e a ponche de ovo. Maddie estava sentada em sua cadeira junto ao fogo e era ela a que ria. Stuart Alcott, de pé diante dela, sustentava uma caixa de música com um patinador sobre gelo que girava na tampa. —Stu! —exclamou Geoffrey, com uma voz de desconfiada surpresa. Maddie voltou à cabeça e os lábios lhe abriram em um sorriso tão brilhante que rivalizava com as velas da árvore. —Olhe, Emma, Stu veio para casa para o Natal. —E, além disso, trazendo presentes — disse Stu. Enquanto Emma o olhava, agarrou a mão de Maddie e lhe pôs a caixa de música nela. A melodia ia perdendo corda, mas nenhum dos dois parecia dar-se conta. Stu olhava para Maddie nos olhos e sorria. Um sorriso que se estendia por cima de profundidades, golfos, mundos e inimagináveis espaços. E a forma como ela o olhava ia inclusive mais longe.

«Como o ama! —pensou Emma—. Assim como eu amava ao Shay»

Capítulo Trinta e Um Em Bristol o chamavam a «estação da abertura». Esse momento em que a neve cai das árvores e o gelo se quebra nos riachos, com estalos mais fortes que qualquer foguete de Quatro de Julho. Quando as samambaias jovens e as primeiras flores aparecem na terra que vai esquentando-se e as folhas das bétulas começam a desdobrar-se. A abertura de Emma Tremayne se produziu quase tão lentamente como o degelo primaveril. Naquelas primeiras semanas do novo ano, havia voltado com frequência ao lago Collins, não para patinar, a não ser para olhar os meninos irlandeses jogando suas partidas de curling. Nenhuma outra vez pensou ter visto Noreen, mas seguiu indo. Era o indômito das risadas dos meninos o que a atraía e a maneira como se lançavam através do gelo, sem preocupar-se dos pontos onde era fino nem das gretas e dos ramos mortos ocultos nelas para apanhá-los. Pensava que era doloroso ver sua atordoada bravura. Nunca podia suportar olhá-los muito tempo; por isso, com uma covardia branda e penosa voltava para casa e às coisas conhecidas: o tom sossegador da voz do Geoffrey quando dizia seu nome, ao sólido consolo de seu braço, quando se apoiava nele, à visão das bétulas, brancas e nuas, recortadas contra o branco céu invernal, ao aroma da argila úmida na velha estufa, a argila que preparava cada manhã, como se fosse uma escultora de verdade, com um trabalho de verdade que fazer. Embora nunca se atrevesse a moldar nada com aquela argila, passava horas amassando-a. A sensação de notar como lhe escorregava entre os dedos —

branda, cálida e lisa como carne viva— despertava uma inquietação estranha e ardente em seu interior. Igual à liberdade indômita e temerária, que ouvia apanhada na risada dos patinadores, a fazia recordar muitas coisas. Sentia-se como decepcionada de si mesmo, por não ser capaz de ter menos medo. Uma manhã de março, quando as bétulas gotejavam gelo fundido e o sol apareceu pálido e encolhido em um céu de uma cor azul esvaída, Emma despertou decidida a ir ver as filhas de Bria. Disse-se que era uma promessa que tinha feito, uma promessa que tinha que manter. Mas esse dia, só chegou até a grade de ferro fundido antes de dar meia volta à carruagem e fazer que os moços a guardassem. Pela tarde, nevou de novo, o último suspiro do inverno. Emma permaneceu junto à janela de seu dormitório, olhando cair os flocos no silencioso bosque e desejou poder ser como as bétulas e ter dormido durante aqueles últimos meses, para despertar na primavera com o coração sanado e seus temores esquecidos. Passou ainda algum tempo antes que se atrevesse a tirar a carruagem de novo, mas esse dia conseguiu cruzar a grade, embora o coração lhe palpitava com violência e tinha as palmas úmidas debaixo da suave pele de suas luvas. Foi até a esquina das ruas Union e Thames, mas ali se deteve para olhar a casa de uma distância segura. Assombrou-se do mísero e pequeno que era aquele lugar; aquele barraco de tábuas, construída sobre postes. Como podia ser tão pequena e, entretanto, conter tanto em seu interior? Como podia conter todo o coração de uma mulher? Olhou a casa e as peças quebradas de seu interior se moveram e se detiveram, chiando, de novo, lhe fazendo tanto mal que exalou uma exclamação. «Eu pertenço ali», pensou. Pertencia a aquela cozinha com o papel descolorido e o linóleo gasto; pertencia a aquela família que tomava o jantar, sentada a aquela mesa com o oleado marrom, ao homem que dormia naquela cama branca de ferro. Pertencia à amiga cujo espírito ainda cuidava da chaleira que assobiava no

fogão. Mas havia todo um oceano entre saber onde pertencia e ter o fogo suficiente em seu coração para ir até ali. E Emma Tremayne tinha perdido a coragem para lançar-se ao mar. Um dia, quando a névoa se agarrava às frias águas da baía e a primavera seguia contida nos apertados brotos vermelhos dos ramos das bétulas, Emma foi ao cemitério da Santa Maria e à tumba de Bria. A lápide era uma simples laje, gravada com o nome e os anos de sua vida. A última vez que Emma esteve ali, o pó era húmus marrom e recente, a laje estava recém-esculpida e as letras eram feridas brancas no liso granito cinza. Agora a tumba se afundou um pouco nas bordas e o inverno tinha deixado seu rastro, em forma de diminutas gretas, no granito. Emma se ajoelhou e seguiu o risco das letras da lápide. —Bria —disse em voz alta e a dor de pronunciar seu nome foi algo insuportável. Fechou os olhos um momento e logo cravou o olhar na infinidade do céu. Mas se Bria estava ali, ela não pôde vê-la. Entretanto, a alternativa era muito horrível para pensar sequer nela; para pensar que nada existia além dos ossos da tumba. Emma ouviu uma pegada atrás dela e se voltou lentamente, para ver as filhas de Bria que vinham para ela pelo atalho do cemitério. Noreen levava o queixo alto e seus olhos estavam cheios de receio. —Sempre devemos visitar a tumba de mamãe, depois da escola — disse—. Em todo caso, muitas vezes. Não viemos porque você estava aqui. Merry cantarolou freneticamente e sacudiu a cabeça. Noreen olhou furiosa a sua irmã e suas bochechas se ruborizaram violentamente. —Está bem! É que Merry disse que hoje você estaria aqui. Disse que tínhamos que vir, porque você levava muito tempo nos buscando. Emma abriu a boca, mas estava tão emocionada que não pôde pronunciar

nenhuma palavra. Merry se agachou a seu lado e lhe agarrou a mão. Com a outra mão, a pequena começou a alisar a terra da tumba de sua mãe, acariciando-a como se fosse algo vivo e cantarolando entre dentes. Noreen permaneceu onde estava, estudando a Emma com olhos sombrios. —Papai disse que tinha tido que ir-se durante um tempo, visitar uns parentes. Disse que, por isso, tinha deixado de vir nos ver. Emma sentiu a queimação das lágrimas nos olhos e se esforçou para contê-las. —Mas agora voltei para casa — disse. Tentou um sorriso, mas lhe custou e ficou tremendo nos lábios; entretanto, abriu algo no mais profundo de seu ser—. Assim agora vão à escola, verdade? —Papai nos faz ir. Merry não gosta; já quase nunca cantarola. —Me conte como é — disse Emma—, me fale da escola e do pequeno Jacko. Imagino que terá crescido muito. Já engatinha? E me fale... fale-me de seu pai. Conta-me o tudo. Um sorriso lento e vacilante se estendeu pela cara de Noreen e então começou a falar e Merry intervinha com longos e vibrantes canturreos e os frios meses de inverno começaram a fundir-se.

Emma voltou à tumba de Bria ao dia seguinte e as meninas a estavam esperando. Depois disso, disse-lhes quando ia, porque tinha muito medo de deixá-lo à casualidade ou aos dons de vidente de Merry. Um dia de abril, quando o único que ficava do inverno eram umas poucas nuvens, desfiadas e escorridas, no alto do céu, Noreen trouxe sardinhas e pão de soda e lancharam junto à tumba de Bria, embora sem chá. Outro dia, em maio, quando o sol se derramava, quente e cremoso como manteiga fundida, e o ar era suave, foram dar um passeio pela estrada de Ferry e colheram flores silvestres,

que puseram em uma lata de tomate junto à lápide de Bria. Aquele dia, Emma acreditou ver o padre O'Reilly aparecer da parte de trás da singela igreja de madeira. Começou a ir para elas, mas logo deu meia volta e partiu. E uma vez, um dia em que a terra inteira cantava belamente a primavera, Emma viu uma mulher vestida de cambraia branca, com uma transbordante cabeleira vermelha e uma boca risonha, de pé debaixo de um dos olmos do cemitério. Era tão real que Emma levantou a mão e abriu a boca para chamá-la, mas um instante depois, tinha desaparecido. E chegou um dia, a princípios de junho, quando os tilos estavam em plena e evocadora flor, em que Emma chegou ao cemitério e as meninas não estavam ali. Esse dia, levava violetas para plantar, assim começou a gozosa tarefa sozinha. Ajoelhou-se na erva verdejante e cavou na terra, suave e úmida, com uma pequena pá. Esta vez, quando ouviu passos atrás dela, voltou-se com um sorriso nos lábios. Estava garbosamente vestido com um traje acompanhado por uma gravata listrada, um pescoço largo e um chapéu cogumelo. Caminhava sozinho pelo atalho do cemitério, com aquele estilo dele, a passos largos e seguros. Andou até ela. Emma se levantou, lentamente, cuidadosamente, como com medo de cair. Não avançou, realmente, para reunir-se com ele, só ficou em pé e sentiu sua atração, como se fosse à força da gravidade. E ali estava ele, diante dela. —Shay —disse, com o rubor subindo às bochechas ao dizer seu nome. Seus olhos, verdes e assombrosos, fixaram-se nela daquela maneira dura, aterradora que tinham. Estava tão perto dela que Emma podia cheirar o sabão que ele usava para barbear-se, podia ver a maneira como o cabelo seguia frisando-se um pouco comprido, em cima do pescoço da jaqueta. —As meninas e o padre O'Reilly me disseram que, ultimamente, vem aqui muito frequentemente —disse—. Certamente sabia que me diriam isso, não

é verdade, querida? —Sim —respondeu ela, mas era mentira. Tinha tido muito medo para permitir-se sabê-lo. —E também sabia, certamente, que eu também viria algum dia, que seria incapaz de me obrigar a não vir. —Não... Sim. «Como pode ser —pensava—, que inclusive depois de todo este tempo, inclusive quando não me toca, sigo sentindo que me acaricia?» —E então? —perguntou ele. Ela queria lhe perguntar o que queria dela. Aterrava-lhe perguntar-lhe —E... Não sei — disse, encolhendo ligeiramente os ombros, com um gesto de impotência. Shay deu um passo para ela. Olhou a tumba de sua esposa e as violetas que ela acabava de plantar. Tirou o chapéu e ela viu que tinha as pontas dos dedos brancas. Queria lhe dizer: «que nos encontramos, você, Bria e eu, inclusive quando tantas coisas deviam nos haver mantido separados para sempre... isso teria que contar para algo, não?». Ele se voltou para olhá-la. —Assim — disse—, ainda vais te casar com o senhor Alcott na sábado que vem. Ela queria lhe dizer que nunca voltaria a amar a ninguém, não daquela maneira, não como o amava. —Sim — disse—. A cerimônia será no jardim, em As Bétulas, a menos que chova, claro. Se chover, teremos que adiar de forma indefinida, porque mamãe se suicidará. Ele riu. Não parecia justo que ele pudesse rir, quando ela levava tanto, tanto tempo sem poder fazê-lo. Desde a última vez que tinham rido juntos.

—Pois dá a casualidade —disse ele— de que partimos a Nova Iorque esse mesmo dia. Encontrei trabalho com o responsável por um distrito, para acomodar aos novos imigrantes no bairro, lhes proporcionar perus de Natal, baldes de carvão, barris de cerveja e essas coisas. É um trabalho político, assim que o dinheiro é uma formosura. Não terei que pôr as meninas para trabalhar em nenhuma fábrica. Ela queria lhe dizer: «por que me diz tudo isto, quando ainda dói tanto ouvir lhe dizer isso?». —É obvio, enquanto acomodo a esses imigrantes, irei dizendo que deveriam votar nos democratas e recolhendo doações para o clã. Erin go bragh. Possivelmente haverá um levantamento antes que eu morra. —Se o houver, irás lutar? —Não. Ficarei aqui. —Em Nova Iorque. —Sim, isso, em Nova Iorque. Ela queria lhe dizer: «Vou contigo». Era incrível, mas as palavras estavam ali, a ponto de sair de sua boca, como se não tivesse acontecido nada entre este momento e a última vez, como se não a tivessem dominado. —Emma —disse ele—, quero... A Emma lhe fez um nó na garganta, apertado, cada vez mais apertado. —Quero te agradecer —disse ele—, por economizar as meninas de uma difícil separação. Quando poderia ter desaparecido de suas vidas e as deixar sem saber por que, para sempre. —Sorriu-lhe, um sorriso luminoso, súbito—. Uma grande dama, isso é o que é senhorita Emma Tremayne... E isso também lhe queria dizer. Estendeu-lhe a mão e, por um momento, ela se permitiu senti-lo... a sensação de sua mão dentro da dele. E ao momento seguinte, estava olhando como ele se afastava dela. —Sempre é igual — disse, ao mundo vazio que ele deixava para trás de

novo, é algo que acontece comigo, como por acaso.

Mais tarde, voltou para casa e trocou a singela blusa e saia negras que usava para vestir um traje de primavera de seda cinza esverdeada, adornado com bordados e botões de veludo negro e um grande gravata-borboleta de chiffón branca que caía, em cascata, do pescoço. Foi com sua mãe, no carro de quatro portas da família, à mansão da Rua Hope, voltou para território seguro e conhecido de sua vida como membro da “Gente Importante”. Percorreu o caminho lajeado de mármore, pelo braço do Geoffrey. Os tilos estavam em flor, enchendo o céu azul com flores que flutuavam e doces aromas. No ar quieto, ouviu risadas procedentes da pista de tênis e o tranquilo tamborilar da bola contra as cordas das raquetes. «Estamos caminhando juntos — pensou—, Geoffrey e eu. Caminhando por um caminho lajeado de mármore, sob um dossel formado pelos tilos em flor, caminhando juntos, de braços dados e sem nos tocar.»

Seamus McKenna pensava que o coração de um homem é uma coisa teimosa e estranha. Seguia amando a uma mulher muito depois de que deveria ter deixado de fazê-lo. Estava de pé na calçada da Rua Hope, junto a um poste de gancho de ferro fundido, como se, se tivesse parado ali para recuperar o fôlego. Olhou através das grades às pessoas Importantes, que bebia champanha entre faunos e ninfas de mármore e seus olhos procuravam uma mulher com um pescoço branco e comprido, um sorriso tímido e olhos de espuma de mar cheios de um indômito desejo. —Eu conhecia um Seamus McKenna que teria derrubado essa grade com seus punhos de campeão para chegar à mulher que amava. Shay fechou os olhos um momento, logo os abriu e se voltou para seu cunhado.

—É que não pode me deixar em paz nem um minuto? Além disso, o que está fazendo aqui? —Só passava. —Não me diga. Claro, seguro que há uma enorme quantidade de almas católicas nesta parte da cidade. —E, além disso, os bacalhaus vão nadando, tanto como pulgas em um porco, pela Rua Hope, não? Shay sentia dor na nuca pelo esforço que lhe custava não voltar à cabeça, não olhar através daquela grade, para vê-la, embora só fosse um momento. —Tinha que vê-la mais uma vez — disse e não se surpreendeu ao ouvir Donagh suspirar. —Já a estiveste vendo e bem vista esta manhã. Se tivesse o cérebro que Deus deu a uma lombriga, teria conseguido vê-la todo dia durante o resto de sua vida. Shay olhou; não podia evitá-lo. Ouviu risadas e o tinido de taças, mas, agora, a parte do jardim que ele podia ver estava vazia. —Às vezes — disse—, a vida te leva a lugares onde ninguém pode te seguir. Às vezes, aqueles aos que amas só podem te desejar que Deus te acompanhe. Levantou-se um vento e impulsionou uma nevada de pétalas de tilo à deriva até em cima de suas cabeças. Donagh agarrou alguns com a mão, mas logo os soltou. —Pois claro, sensato é o que você é — disse—, para não tentá-la a deixar que a vida a leve a escapar contigo. Pensa no que abandonaria: uma existência vazia e o matrimônio com um homem ao que, estou seguro, não pode amar, não quando o coração lhe arde nos olhos quando lhe olha. Pensa também no que suas filhas e seu filho iriam abandonar: todos seus anos de crescimento sem uma mãe que lhes queira. O vento se levantou de novo e Donagh tirou o chapéu para voltar a

colocá-lo encaixando-o melhor. —Claro que sim; é um sacrifício grandioso e honorável o que faz por eles, Seamus McKenna. Nossa Bria estaria orgulhosa. Shay cravou o olhar nas largas costas revestidas de negro do sacerdote enquanto este se afastava dali, passando por debaixo da frondosa abóbada dos olmos e dos arces. Logo olhou a seu redor, com uns olhos que lhe doíam como se, tivesse passado todo o ano chorando; olhou as grandiosas mansões com suas colunas e suas grandes janelas. Donagh se equivocava; campeão ou não, não podia partir uma grade de ferro com seus punhos. E se o tentava, só acabaria machucando-se.

Bethel Tremayne viu sua imagem refletida uma e outra vez nos muitos espelhos da esplêndida estadia. Inclusive na tênue e amarelada luz de gás, podia ver as expostas cristas de seus seios, subindo e descendo, rapidamente, como as asas de um pássaro apanhado. Tinha vindo. Era à noite antes das bodas de sua filha e William tinha vindo para casa. Justo como ela sabia que o faria. Tinha entrado no porto de Bristol em seu iate, pela manhã. Assim que se inteirou da notícia, Bethel enviou um servente ao Clube Náutico com uma nota perfumada, convidando-o a vir para um jantar sem cerimônias, só eles dois; recordando-lhe, discretamente, é obvio, que seguia tendo um dormitório ali, em As Bétulas. Tinha vacilado sobre onde o receberia, decidindo-se, finalmente, por aquela pequena e íntima salinha junto à biblioteca. Tinha escolhido aquela estadia, sobre tudo, pelos dois abajures que flanqueavam a chaminé de mármore de cor Siena. Os abajures, com suas telas rosa salmão, de cristal da Birmania, sempre tinham dotado a sua pálida tez de um brilho favorecedor. E, além disso, gostava do efeito dos muitos espelhos da sala, que repetiriam sua beleza, para

ele, uma e outra vez. Cinco minutos antes da hora, acomodou-se no sofá de crina, de cor negra meia-noite. Era incômodo, mas sabia que aquele material opaco complementava a brancura de sua pele e o brilho dourado de seus cabelos. E agora, por fim, o relógio de pé começou a dar a hora, com seu gongo soando pesadamente. As sete, a hora que lhe havia dito que viesse. Uma vulgar sensação de náusea lhe inundou a garganta. E se...? Mas, não, estava preparada para tudo. Tinha enchido a casa de flores, e a cozinheira tinha preparado um jantar com suas coisas favoritas. Ela tinha posto o traje que mais a favorecia, uma seda aquosa da cor da essência de rosas. E tinha se matado de fome até estar tão esbelta e ágil como nunca tinha estado. Quando ele entrasse na sala, ficaria em pé de um salto para abraçá-lo. Possivelmente não era o mais apropriado, não algo que faria uma dama da “Gente Importante”, mas a jovem que o conheceu naquele baile em Sparta, Georgia, provavelmente sim que o teria feito. A moça que levava gardênias no cabelo. O relógio acabou de dar as horas e caiu de novo em seu silêncio, pontilhado pelo tictac. Bethel esperou e esperou... Esperou até que o relógio deu as oito e logo as nove. Quando a porta se abriu, por fim, ficou em pé, cambaleando, com as pernas rígidas e insensíveis. Mas só era Carrews. Carrews que trazia um papel dobrado em uma bandeja de prata. O coração de Bethel palpitava, lentamente, com pulsados agônicos e lhe tremiam os dedos enquanto desdobrava a nota. A verdade é que tinha os olhos tão nublados pelas lágrimas, que demorou um momento em poder lê-la. William tinha escrito que residiria em seu iate enquanto estivesse em Bristol e jantaria no clube. Uma vez... uma vez dançou com ele sob umas aranhas de cristal que refulgiam com o calor e o brilho de mil sóis. Recordava aquela noite

vividamente. Então, por que não conseguia recordar o momento em que o tinha perdido? Ouviu um ruído e levantou a vista. Sua filha Emma estava na soleira, observando-a com aqueles olhos de outro mundo, ali, de pé, com aquela cara que era muito mais bela do que a sua já tinha sido. Desejava que Emma entrasse na estadia e se sentasse junto a ela, que a abraçasse que, possivelmente, consolasse-a. Mas não sabia como pedir-lhe e nem lhe ocorria pensar que Emma queria vir. Não depois do que lhe tinha feito, embora tudo tinha sido, unicamente, por seu próprio bem. E o tratamento tinha funcionado, depois de tudo. Emma ia casar-se com o Geoffrey, ao dia seguinte. Tinha recuperado o juízo. —Mamãe — disse Emma—, encontra-te bem? —Oh, sim — respondeu, fazendo com que seu sorriso e sua voz brilhassem de novo—, só estava aqui, sentada, pensando em amanhã, em suas bodas, repassando todas essas listas intermináveis que, há meses, não param de me dar voltas pela cabeça. A jovem começou a dar meia volta, mas Bethel a deteve, chamando-a tão bruscamente que as duas se sobressaltaram. E logo, as palavras mais estranhas saíram de sua boca, procedentes de um lugar, de um sentimento que nem sequer tinha ideia de que existisse, embora doessem horrivelmente, aquelas palavras, lhe cortando a garganta como facas diminutas. —Vivi uma vida absurda — disse Bethel Tremayne a sua filha—. Não tinha nada e logo o tive tudo e agora, outra vez, não tenho nada.

Capítulo Trinta e Dois O dia das bodas de Emma Tremayne, o sol apareceu em meio de um esplendor vermelho, ouro e laranja. Emma se levantou com o sol, tão inquieta que saiu e foi dar um passeio pelo bosque e até a água. As árvores tinham agora todas suas folhas, de uma brilhante cor verde e estavam cheias de promessas. Descobriu que o inverno tinha mudado a paisagem da praia, mas sempre era assim. As tormentas faziam estragos, arrasavam as areias pizarrosas. A friagem matava algumas árvores e o frio gelava as rochas e as partia. Cada primavera tudo era algo diferente a como tinha sido a primavera anterior. Enquanto retornava pela ondulada grama, deteve-se para olhar a casa, que brilhava, dourada, ao sol. Sentia um triste rasgo ao pensar em deixar aquele lugar, como se fosse para sempre, embora não o faria. Tinha começado a subir os degraus para a varanda quando viu seu pai ali, de pé entre as palmeiras e as poltronas de vime. Aquele estranho que era seu pai. Alto e esbelto, com a tez de cor mogno e a boina branca e o blazer azul de um capitão de iate, estava de pé, com os pés bem afirmados e as mãos enlaçadas às costas, como se estivesse na ponte de mando. Emma acabou de subir a escada, mas se deteve quando ainda ficava um pouco para chegar a ele. —Olá, papai — disse, insegura do que pensar dele. Insegura do que pensaria ele dela—. Obrigado por vir. Seus dentes lhe brilharam na cara quando sorriu e, então, surpreendeu-a

aproximando-se e espremendo-a entre seus braços. —Eu não perderia as bodas de minha garotinha nem por todo o ouro do mundo. —Afastou-a, esticando o braço e a olhou de cima abaixo, lentamente, sem deixar de sorrir—. Salvo que já não é tão pequena. A Emma não lhe ocorreu nada que dizer. Não tinha crescido nem um centímetro desde que ele a viu pela última vez, quando tinha dezesseis anos. Onde sim tinha crescido era em seu interior, mas isso ele não podia vê-lo. —Minha pequena — disse, levantando a mão, como se fosse para lhe acariciar a cara, mas logo a deixou cair e Emma viu que tinha lágrimas nos olhos—. Senti sua falta, Emma. Tampouco tinha nada que responder a aquilo. Ela também tinha sentido falta dele, mas foi ele quem partiu. Soltou-a e se afastou, pondo distância entre os dois e ela compreendeu que um momento de intimidade com seu pai — o primeiro que já tinha tido com ele— tinha chegado e se foi. Ela tinha deixado que se fosse. Ele havia virado a cara de novo para a brisa marinha e seus olhos, de uma cor cinza esverdeada, tinham uma expressão de lonjura. Emma pensou que tinha envelhecido. Agora tinha todo o cabelo branco e as rugas da cara eram profundas sulcadas. —Você gostaria de sair para navegar, papai? —perguntou. Ele levantou a cabeça, sentindo o vento igual a estava acostumado a fazer quando ela era pequena. Vê-lo a entristeceu, inclusive enquanto sorria. —Não é que haja muito vento neste momento — disse—. Entretanto, promete sopro bem mais tarde. —Mas mais tarde estarei casada com Geoffrey. Voltou-se e a olhou à cara, escrutinador. —E depois disso, vais guardar todos seus brinquedos, minha pequena Emma? Já não haverá mais sonhos nem mais aventura? Ela sentiu um súbito e aterrador desejo de chorar e teve que tragar saliva.

—É... é que não deveria fazê-lo? —Isso é o que diz o mundo inteiro, claro. Havia tantas perguntas que queria lhe fazer, mas eram sobre coisas das quais nunca se falava. Logo se deu conta de que nestes últimos momentos tinha trocado mais palavras de verdade com ele que na totalidade de sua vida anterior. E lhe ocorreu algo surpreendente enquanto o olhava: que também ele tinha mudado por dentro, onde ela não podia vê-lo. —Papai — disse—, por que te casou com mamãe? A boca lhe esticou em um sorriso carente de alegria. —Pois, olhe, isso é algo que eu também me perguntei muitas vezes. — ficou calado um momento, como perdido em seus pensamentos ou lembranças. Logo encolheu os ombros—. Eu gostaria de poder te dar uma resposta, Emma. O mais perto que posso chegar a uma razão é que quando a conheci, impressionou-me fortemente, valente e segura que parecia... Tudo o que eu não era e pensava que deveria ter sido. Já conhece o lema da família: «Vence quem aguenta». Sua mãe sempre foi capaz de viver de acordo á ele muito melhor que eu. Talvez seja por isso que me casei com ela, para que fosse o homem que eu não era — exalou uma risada baixa e um pouco amarga—. Devemos admitir que cumpriu esse lema admiravelmente. —Mas se a... admirava tanto, por que partiu? Pensava que lhe diria que foi devido ao suicídio do Willie, devido a tudo o que, todos, faziam para empurrar a seu único filho a lançar-se em meio da tormenta aquela noite. —Chegou um momento — disse—, em que compreendi que nem a entendia nem a compreendia, em realidade, tampouco queria compreendê-la nem apreciá-la, então fui embora. Emma pensou que não podia ser tão simples, que não devia ser tão simples. Sentiu lástima por sua mãe, tramando, intrigando e matando-se de fome todos aqueles meses, para conquistá-lo de novo, quando o tinha perdido

irretocavelmente fazia muito tempo. Quando nem sequer o tinha tido da maneira que importava, porque nunca foi à mulher que ele podia ter amado. Bethel Lane não tinha mudado, mas a maneira como ele a olhava sim que o tinha feito. Seu pai tinha voltado para sua contemplação da água e foi como se ela soubesse, em seu coração, o que ele ia dizer. —Não, é um erro que jogue a culpa a sua mãe. Não foi só ela. Fui embora porque era muito infeliz em minha vida e nada que ela pudesse fazer ou deixar de fazer ia mudar esse fato. De repente, pareceu-me algo terrível ser sempre tão tremendamente infeliz. Emma deu um passo para ele e logo outro. Rodeou-lhe a cintura com os braços e aspirou o quente aroma de seu pescoço e sua garganta. —Iremos navegar mais tarde — disse—, tanto se for à senhora de Geoffrey Alcott como se não. —Sim, mais tarde — respondeu Emma, afastando-se dele. Deteve-se na soleira antes de acabar de entrar e se voltou para olhá-lo. Mas foi ele quem falou. —E você, Emma, é feliz? Ela respondeu, sem pensá-lo. —Pois claro que sou feliz, papai — mentiu—. Depois de tudo, é o dia de minhas bodas... Acredito que irei tomar um café. Você quer? —Já tomei um — disse e aquele sorriso voltou a lhe iluminar a cara. Aquele sorriso que pertencia agora a seu pai, a aquele, ainda, estranho—. Obrigado, de todos os modos. Ela tratou de lhe devolver o sorriso, mas, em troca, lhe nublaram os olhos, assim quase tropeçou ao entrar na casa. Foi ao salão de café da manhã para procurar o café e encontrou a sua mãe ali. Bethel estava sentada à mesa, com suas toalhas de renda, rodeada de porcelana fina e prata de lei. Como de costume, vestia um vestido abotoado, de

pescoço alto e levava o cabelo cuidadosamente recolhido em um elegante coque. Parecia o epítome da elegância e do refinamento... Salvo pelo bolinho que tinha na mão, que ia gotejando creme, e o resto de geleia de morangos que tinha manchado o lábio inferior. —Mamãe, lhe... Encontra-te bem? Bethel deixou o pão-doce e acariciou o broche de pedras preciosas, em forma de cesta, que levava na garganta. —Pois claro que me encontro bem. Depois de tudo, é o dia de suas bodas e casar-se é o maior acontecimento na vida de uma jovem. —Será o maior que acontecerá com Geoffrey? —perguntou Emma. Sua mãe deixou a mão imóvel um instante e logo disse: —Para os homens, é diferente. Emma ia dizer-lhe que seu pai estava do lado de fora, na varanda, mas ao olhar o bolinho, o prato, cheio de migalhas, e a geleia de morangos, compreendeu que sua mãe já sabia.

Emma saiu para navegar no Saveiro sozinha. Antes de partir, roubou uma das rosas brancas de seu ramo de noiva. Havia uma fina neblina em cima da água, como se tivesse caído uma nuvem do céu, mas agora havia o suficiente vento para levar as velas. Foi até o lugar onde tinham encontrado o navio do Willie, destroçado contra as rochas. O lugar onde Willie tinha decidido abandonar, não sós suas próprias bodas, a não ser todo seu amanhã. Durante um longo momento ficou olhando, simplesmente, a espuma que rompia contra as rochas, sobre a tumba do Willie. Pensava: «Se estivesse aqui, perguntaria-lhe: Lamenta havê-lo feito dessa maneira? No último instante, quando a água se fechou em cima de sua cabeça como a tampa de um ataúde e lhe arrebentavam os pulmões de dor, desejou ter escolhido outro meio?».

Durante muito tempo acreditou que sua escolha tinha sido culpa dela, dela e de sua mãe, pelo que aconteceu aquela noite. Mas agora sabia que não era assim. Aquela foi à noite de seu primeiro beijo. Ele era um amigo de Willie, da universidade, que tinha vindo para vê-los durante a última semana de maio. Seu nome era Michael e era tão bonito que Emma pensou que poderia posar para o retrato de um anjo de alguma igreja. Ela só tinha dezesseis anos e passou todo o jantar contemplando-o, com o olhar cravado em seus lábios, enquanto ele falava, bebia e comia, e perguntando-se como seria que um menino assim te beijasse. Que te beijasse qualquer menino. Ele percebeu, de algum jeito, o que era o que ela queria? Aparentemente sim, porque se encontrou no jardim, com os braços de Michael lhe rodeando a cintura e aqueles lábios cheios, mágicos, nos seus. Acabava de começar a fazer algo extraordinário — lhe introduzir a língua na boca— quando Willie os encontrou. —Você, puta! —gritou, mas não a olhava a ela ao dizê-lo. Seus olhos, cheios da dor e sentimento de traição absoluta, estavam fixos em Michael. E logo, de pé atrás dele, olhando-os como se fossem um tableau vivant disposto no jardim, como espetáculo, Emma viu sua mãe. Emma fugiu ao interior da casa chorando, mas de noite, muito mais tarde, seu coração dolorido e desconcertado, levou-a ao dormitório de Willie, para lhe pedir perdão por sua vergonhosa conduta, embora, possivelmente inclusive então, queria que lhe explicasse o que havia atrás daquele olhar em seus olhos. Mas sua mãe tinha chegado ali antes que ela. A porta não estava de tudo fechada e Emma a ouviu dizer com uma voz cheia de ira e asco. —Como pudeste trazê-lo para esta casa? Willie respondeu algo em um murmúrio que Emma não pôde entender. —É uma aflição que pode e deve vencer-se. Pode começar a vencê-la te ocupando imediatamente de seu dever como filho e herdeiro dos Tremayne. Para

quando acabar o verão, espero que tenha encontrado a mulher que será sua esposa e te dará filhos. E não te aproximará desse moço nem a nenhum de sua índole nunca mais. Mas aquele verão, Willie não voltou para Yale nem encontrou à garota com a qual se casaria. Antes ao contrário, Willie Tremayne decidiu sair para navegar em plena tormenta e afogar-se. Emma pensava agora que, possivelmente, ele esperava que se pudesse destruir seu corpo, ninguém se daria conta de quão desenquadrado estava seu espírito. Em uma ocasião, quando eram meninos e estavam brincando nos bosques da Fazenda Hope, encontraram uma armadilha com os restos rasgados e sanguinolentos de uma pata com a pelagem vermelha. Com seus próprios dentes, a raposa tinha cortado a carne e os tendões para recuperar a liberdade. Willie chorou pela raposa e pelo que tinha feito, mas Emma pensou que estava vendo algo bonito. —Willie —disse Emma agora, olhando para as profundidades, formadas redemoinhos pelas marés, onde ele descansava. E pensou que, se não em paz, pelo menos descansava. A brisa soprava com mais força, limpando a neblina. O sol parecia flutuar sobre a água. Ia atirar a rosa de seu ramo de noiva às rochas, quando a visão de sua mão a deteve. Havia duas coisas naquela mão. O anel de safiras e diamantes que lhe tinha dado o homem com o qual ia casar-se. E uma diminuta cicatriz, presente do homem que amava. Pensou que, às vezes, o preço que tem que pagar por fazer o que quer, por ser quem quer, por ser quem é... Às vezes, esse preço é terrível. Mas não pagá-lo é sempre pior.

O trem arrotou uma nuvem de vapor úmido sobre a estação da Rua

Franklin. Era o das 10.05, com destino a Providence, que conectava com o das 11.47, com destino a Nova Iorque. Shay McKenna estava agachado na plataforma da estação, tratando de que sua filha soltasse a luz a qual estava agarrada. Sua força o assombrava; não sabia como ia conseguir com que subisse ao trem sem lhe romper vários ossos. —Merry, tesouro, se não te soltar, vou te dar uma boa surra no traseiro. —Por Deus — exclamou o padre O'Reilly, levantando os olhos ao céu—, seguro que essa ameaça conseguirá resultados, tendo em conta que nunca levantaste a mão a essa menina em toda sua jovem vida. —Sempre há uma primeira vez. —Shay se esforçou por lançar a Merry um olhar ameaçador. Tinha-lhe funcionado com alguns homens no quadrilátero de boxe. A menina nem sequer piscou. Girou sobre os quadris, sem levantar-se, para olhar a sua outra filha, que estava sentada em um baú, sustentando ao pequeno Jacko em cima da saia. —Por que faz isto? Noreen encolheu os ombros teatralmente. O movimento fez cócegas ao pequeno Jacko, que soltou uma risada. —Não sei, papai. Não cantarola. Shay tirou o chapéu, afundou os dedos entre o cabelo e logo se encasquetou de novo o chapéu, com raiva. Sempre haveria outro trem, ao dia seguinte, mas, maldita seja, ali ele era o pai. Ficou em pé e logo assinalou com um dedo rígido ao pompom vermelho que rematava a boina escocesa de sua filha. —Escute bem o que lhe... —Emmmmmmma — disse Merry. Shay ficou olhando-a estupefato durante dois pulsados de seu coração e logo decidiu que não tinha ouvido bem. —A senhorita Emma —disse o padre O'Reilly— está em As Bétulas, agora, enquanto falamos, querida menina, e vai se casar com o homem

equivocado. —Donagh —disse Shay. —Enquanto isso, seu papai está muito ocupado crucificando-se na cruz de suas próprias boas intenções. Shay olhou ao sacerdote com um sorriso duro e tenso. —Importaria-te muito te tirar essa cruz e esse teu vestido, guri, para que possa provar o sabor de meus punhos? Donagh sorriu a sua vez, com um sorriso acerado. —Sempre pensei que, campeão ou não, poderia contigo, guri. E não será necessário que eu tire nada para fazê-lo. —Donagh, quer pensar nisso um maldito minuto? —disse Shay e sua rouca voz soou mais rouca ainda—. No escasso tempo desde que me conhece, fui funcionário de canil, pescador e trabalhador nos campos de cebolas e nenhuma dessas ocupações foi o que se pode chamar uma posição de relevância social e econômica. —E o que? Há homens que constroem coisas, outros constroem sonhos. E logo há outros que passam o tempo sentados sobre seus gordos traseiros, soltando arrotos e peidos e falando da política irlandesa. Sobre os gostos de algumas mulheres não há nada escrito. —Tem isso chamado de fundo fiduciário, com um milhão de dólares, aí esperando. —Pois vá sorte que tem, não? Sempre digo que se um homem tiver que casar-se, mais vale que se case com alguém que tenha dinheiro. —Sou irlandês. —Olhe, pois nisso sim que poderia me haver enganado. Os irlandeses que conheço têm guelra... Ah, Doce Virgem Maria. Já tivemos esta conversa antes e o que estou é mais que cansado. Poderia haver ido à Nova Iorque qualquer dia destes dois últimos meses. —Ouça, espera...

—Se ficaste até agora, é porque esperava que ela viesse e te dissesse: «Seamus McKenna, menino, seguramente que é o homem estupendo e magnífico com o que quis me casar toda a vida». Só que, se não recordar mal, ela já fez isso uma vez e foi você o verme estúpido que lhe disse que não queria saber nada disso. —Isso não é... —Escuta, ninguém está me pedindo minha opinião, está claro? Mas se me pedissem, diria que agora toca a ti apresentar a proposta e isto é quão último vou dizer sobre este assunto. —Se me deixasse acabar embora só fosse uma maldita frase... Soou o assobio do trem. Os dois homens olharam, ao mesmo tempo, a grande esfera branca do relógio da torre da estação. —Em lugar de acabar suas frases, Seamus, seria melhor que conservasse o fôlego para correr a toda velocidade — disse Donagh—, se é que quer chegar a tempo às bodas. Shay mudou o peso de um pé ao outro, como se suas pernas já se puseram em marcha, antes que seu coração e sua cabeça tivesse encontrado a coragem para fazê-lo. —Mas e se...? —Então o único que terá feito terá sido perder o trem. —Donagh lhe deu um pequeno empurrão no ombro—. Venha, homem, vá. Enquanto, nós iremos passeando até a loja de Hardy e compraremos uns sorvetes para nós. Donagh observou como corria aquele homem. Seamus McKenna corria como se fosse pegar um trem para o céu. Pensou que certamente assim era. Certamente, assim era. Viu que as filhas de Shay trocavam sorrisos enormes, cheios de satisfação. Jogou a cabeça para trás e olhou ao céu, piscando com força, para eliminar as lágrimas.

—Ai, Bria, menina. Sempre encontrou a maneira de conseguir fazer realidade os desejos de seu coração.

Emma se olhou no espelho de pé e viu o que esperava ver: a senhorita Emma Tremayne com um vestido de noiva recoberto de renda e aljofares. A longa e ampla cauda de peau de soie se desdobrava a seu redor como um sino. Um véu de tule, preso ao cabelo com flores de flor-de-laranjeira, ocultava-lhe a cara. Mas notava uma estranha, tênue felicidade maturando no mais profundo de seu peito, na região que rodeia o coração. Não estava segura de como tinha chegado a aquele momento. Começou o dia em que Bria McKenna levou o menino morto à última caçada da temporada e acabava agora, o dia de suas bodas. Acabava agora com a escolha que tinha que fazer. Com a escolha que já tinha feito. Não sabia como, mas durante um momento tinha perdido o rumo e tinha deixado que aquilo fosse muito longe e por muito tempo. Quase o tinha deixado até muito tarde. A casa estava silenciosa quando desceu à grandiosa escadaria de carvalho. Sua mãe e Maddie estavam em suas habitações, vestindo-se e seu pai estava na biblioteca. O caramanchão coberto de rosas, a loja de listras amarelas e os baldes com champanha estavam, todos, preparados e esperando no jardim, mas os convidados não começariam a chegar até uma hora mais tarde. Entretanto, sabia que Geoffrey já estava ali, porque tinha visto chegar seu landó. Por sorte para os dois, encontrou-o sozinho, de pé no promontório sobre a baía. —Geoffrey — disse ao chegar até ele, com falta de fôlego como se tivesse estado correndo. Ele se voltou e sorriu, com um sorriso de menino, grande e doce e lhe doeu vê-lo, porque seu sorriso era o que sempre tinha gostado mais dele. —Emma! O que está fazendo aqui fora? Supõe-se que não tenho que

verte vestida de noiva antes das bodas. Traz má sorte. —Geoffrey —repetiu ela—, resulta-me muito difícil dizer isto. Teria que lhe haver dito isso antes, havê-lo feito antes e o sinto, sinto-o muito... mas não posso me casar contigo. O sorriso começou a desvanecer-se. Emma viu como se esforçava por recuperá-lo. —Emma, este não é o momento para fazer brincadeiras. —Iria me fazer infeliz e eu não quero ser infeliz. É algo egoísta, sei e quão único posso contribuir em minha defesa é que eu também te teria feito igualmente infeliz. Agora a olhava em silêncio, aturdido por uma dor inarticulada, e ela pensou que devia lhe dizer algo mais; explicar-lhe algo mais. —Esta tua vida, Geoffrey... Não quero viver assim. Algo o atacou de repente, uma dor horrível e em seus olhos apareceu um vazio e uma ferida insondáveis. E a derrota. E Emma pensou que em algum lugar, no mais profundo de sua alma, Geoffrey sabia que aquilo ia acontecer. —Sinto-o —repetiu. —Mas não pode... —disse e lhe quebrou a voz—. O que vais fazer? Ela sorriu. Não podia evitar sorrir, embora também sentia desejos de chorar. —Não sei. Possivelmente navegar até o Viana de Castelo. —É ele, verdade? —disse e lhe endureceu a expressão—. Suspeitava que havia alguém mais, mas um cavalheiro sempre deve dar a uma dama o benefício da dúvida, assim... Vai com ele. Então ela se deu conta de que Geoffrey já não a olhava, que estava olhando mais à frente, ao homem que estava ao outro lado da grade de ferro forjado. Shay McKenna agarrou os barrotes de ferro e empurrou a grade, abrindoa e cruzando-a.

Emma recolheu a saia de seu vestido de noiva e pôs-se a andar pelo caminho lajeado para reunir-se com ele. —Emma, não faça isso! —gritou Geoffrey atrás dela. Ouviu seus passos sobre o caminho, seguindo-a e, de repente, teve medo de que, de algum jeito, pudesse detê-la, assim que arregaçou mais a saia e pôs-se a correr. Deteve-se diante de Shay McKenna, seu homem, seu coração, sua vida... sem fôlego, rindo, excitada, assustada e apaixonada... apaixonada. —Senhorita Emma Tremayne —disse ele—, vim por ti. Assim, vem comigo ou não? —Sim — disse ela. Para grande surpresa dela, porque não era típico dele, Shay soltou um hurra infantil. Logo a pegou em seus braços e começou a levar-lhe com ele. Emma olhou por cima de seu ombro e viu Geoffrey, ali, de pé, no meio do caminho com o pavimento de conchas calcadas, com as mãos pendurando, vazias, aos lados. Voltou à cabeça e beijou Shay no pescoço. —Teria te seguido a Nova Iorque —disse. Ele se se pôs a rir. —Teria feito isso, de verdade? —Peguemos o Saveiro — disse ela—. Quero partir daqui navegando. Acabavam de soltar as amarras quando Geoffrey saiu correndo de entre as árvores, correndo atrás dela agora que era muito tarde, gritando seu nome. Emma tirou o véu de noiva e tirou o anel que lhe tinha dado. Atou-o ao véu com uma fita de cetim branco e depois atirou o véu ao mar, onde a maré o levaria de volta até ele. A neblina havia se dissolvido e o dia era azul, intensamente azul, com nuvens que pareciam de fumaça. Emma estava na ponte do Icarus, com uma mão afirmando o estay,

deixando que o sol, o vento e o mar a atravessassem. Olhou para trás, para ponta Poppasquash, para a praia de calhaus e conchas e para as bétulas com sua brilhante cor verde e suas folhas novas. Seu olhar captou o súbito brilho de algo branco na costa. Uma mulher, vestida com uma camisola de renda e cambraia, estava ali, de pé, orgulhosa e forte, com a vermelha cabeleira ondeando, indômita, ao vento. E logo, imediatamente, desapareceu e Emma só viu um grupo de bétulas, com os troncos dourados refletindo o sol. De todos os modos, levantou a mão e saudou, não dizendo adeus, mas sim vá bem. —No que está pensando, senhorita Emma Tremayne, é em que vais lamentar esta loucura algum dia? Ela o olhou, nos olhos. Sempre tinha gostado muito de seus olhos. E o momento era tão maravilhoso que temia que, só com que respirasse, esse momento se transbordaria e ela perderia uma parte de sua felicidade. Mas, claro, estava com seu amor, assim sempre haveria mais felicidade que encontrar e entesourar, embora o futuro fosse tão insondável como os buracos negros que há entre as estrelas de noite. —Possivelmente o faça — disse ela, sorrindo, rindo—, mas, enquanto isso será um tempo esplêndido, glorioso, que terei, Seamus McKenna.

***

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

PENELOPE WILLIAMSON

Penelope Williamson nasceu no Alaska, embora na atualidade vive na baía de São Francisco com seu marido. Finalista em várias ocasiões aos Rita, foi ganhadora como Melhor Romance Histórico em duas ocasiões, em 1991 por Wild Yearning (Uma paixão indomável) e em 1993 com Keeper of the dream. Adora navegar, a equitação e a ópera, mas sua grande paixão é ler, escrever e poder falar de livros com suas amizades. Pseudônimos sob os que também escreve: Elizabeth Lambert, Penn Williamson.

GLOSÁRIO

A mhuire: Santa Maria, Virgem Maria Clachan: Pequeno povoado ou aldeia Dhia: Deus Dia is Maire Dhuit: É uma Benção Mo bhanacharaid: Minha melhor amiga Mo bhriathair: Meu irmão Mo chridh: Minha menina ou pequena Och!: Bah! (Expressão de surpresa, desaprovação, pesar...) Ould: velho Shibeen: Taberna ou casa onde se vende licor ilegalmente Shillelagh: Chicote. Slieveen: Pessoa traiçoeira

PAIXÃO PROIBIDA

***

Título original: The Passions of Emma © 1997, Penelope Williamson
Penelope Williamson - Paixão-Proibida

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