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Princípio Vital
Mônica Novaes - 2018
PRINCÍPIO VITAL Capa Laís Maria Revisão e edição Marcella Cardoso
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens e acontecimentos descritos são produtos da imaginação do autor. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência. 1ª publicação – 2018 Copiar algum texto completa ou parcialmente, sem dar os devidos créditos, ou sem a autorização do autor é crime com pena prevista em lei. Crime de Violação aos Direitos Autorais no Art. 184 do Código Penal. Lei 9.610 de 19/02/1998. Índices para catálogos: amor - casal – drama – erotismo – hot – newadult – paixão – preconceito – romance – romance hot - sensualidade
O essencial é invisível aos olhos. Antoine de Saint-Exupéry
AGRADECIMENTOS Minhas queridas leitoras Chegamos no final de Princípio Vital, e estou aqui para agradecer por todo o carinho, agradecer à todos que acompanharam, que comentaram e curtiram cada capítulo. Sem vocês isso tudo não seria possível. Me apaixonei por essa história e me envolvi muito. Confesso que no início tive certa dificuldade para conhecer os personagens, para entendê-los e saber o que eles gostariam de contar ao decorrer do enredo, mas hoje enxergo claramente que Mariana e Valentim são exemplos de luta e força para um recomeço, para o amor. Bom, quero dizer um MUITO OBRIGADA para as pessoas que me estimularam e não me deixaram desistir. Como todas as pessoas, qualquer escritor também lida com problemas no dia a dia... Na realidade, eu não pensei em desistir. Gosto de terminar tudo aquilo que eu começo, mas em alguns momentos eu senti que não conseguiria... Felizmente, consegui. Conseguimos! • Obrigada Marcella, minha leitora alfa, que me ajuda a aprimorar a escrita e faz parte de cada pedaço das minhas histórias. ♥ • Obrigada @LaisMaria07 por cuidar da parte ilustrativa do meu livro. Por conversar comigo nas horas difíceis, e por ser tão gentil. ♥ • Obrigada @MyNameIsZoeX2 pelas dicas infalíveis de uma bela escritora. Te admiro, mulher. ♥ • Obrigada a todas as meninas do grupo do Whatsapp. Uma amizade boa e sincera nasceu entre nós e espero mantê-la por muito tempo. Vocês fazem o meu trabalho ser mais incrível ainda. ♥ • Obrigada às leitoras que já me acompanhavam no Wattpad, e também àquelas que são novas por aqui. ♥ Agradeço o apoio de todos, de coração. Mônica
Prólogo Ela era um cadeado difícil de abrir, mas ele possuía todas as chaves dentro de si. Valentim Del Torre
Não creio que o filho da puta do Álvaro havia me convencido de entrar em um puteiro. Meu casamento era insustentável? Sim. Eu estava vivendo uma recente desilusão? Estava, mas não era adepto a traições e nem a pagar mulher para descontar minhas frustrações. O lugar até era elegante, limpo e organizado, mas não deixava de ser uma casa onde mulheres se vendiam para desconhecidos. O meu amigo e também gastroenterologista do hospital, estava em um universo paralelo, bebendo destilados há horas. Eu me mantive em um Grant's Scotch desde que saímos do PUB e viemos para cá. Os chopes haviam deixado minha visão turva. Para ser sincero, estava ficando louco mesmo. Bebia raramente. — Agora sim vai ficar bom — Álvaro comemorou virando toda a vodca do seu copo e o colocou em cima do nosso mezanino. — Bom pra você que não usa um bambolê de ouro no dedo — resmunguei de volta. Olhei curioso em direção ao palco, onde algumas luzes vermelhas se acenderam focalizadas no centro, o resto da casa noturna estava apagada. A sensação de estar em um prostíbulo era de ser um animal em período de caça, isso me fazia sentir mal ou sem integridade alguma por compactuar com algo tão desrespeitoso. Aquelas mulheres eram tratadas com completo impudor, não precisava ser inteligente para saber disso. Mas eu estava bêbado e queria extravasar. Músicas repletas de luxúria invadiam o ambiente. Homens agiam instintivamente, levantando-se e colocando dólares nas poucas peças de roupas das prostitutas. Dois homens de preto faziam a segurança nas laterais do palco, caso algum imprevisto acontecesse. — Estou no céu, Valentim. Estou no céu — meu amigo faltava se afogar na própria baba ao admirar as danças sensuais. Eu estava incomodado, confesso. Um incômodo dentro da calça, sendo mais específico. Minha vida sexual com Vivian era um fiasco, e ver aquelas mulheres
cheias de volúpia despindo-se estava começando a me inquietar. Um detalhe era que todas estavam com o mesmo corte de cabelo no comprimento do pescoço, os fios pretos lisos e uma franja que cobria as sobrancelhas. Seria uma forma de oferecê-las privacidade? Perucas? Virei mais dois, três, quatro copos de uísque. Estava indo para o céu junto com Álvaro quando o espetáculo foi interrompido e as poucas luzes vermelhas foram desligadas. Ouvi reclamações dos presentes ali, e me senti injustiçado também, logo quando estava ficando bom. Um coro de assovios e gritos se misturava com aplausos eufóricos quando duas beldades pisaram no palco. Ou eu estava bêbado ou aquela atração era digna de ser a principal. As duas brilhavam, um macacão preto reluzia chamando toda a atenção, e um vermelho fazia o mesmo trabalho. Elas eram um pecado, dois pecados. — São duas mesmo? — Álvaro me questionou. E eu gargalhei. Mas demorei também para me convencer que uma perdição poderia ser duplicada daquela forma, e que eu não estava alcoolizado a esse nível de não conseguir distinguir. Cada uma se agarrou a uma barra de ferro, e iniciaram movendo seus corpos impecavelmente no compasso da música. Na realidade eu não estava ouvindo som algum, os meus olhos permaneciam compenetrados na dama de preto. Estava enfeitiçado, como uma criança apreciando um doce na vitrine. Sua bunda era um desenho feito à mão, seu quadril largo acentuava-se ao chegar na cintura fina, e os seios volumosos formavam duas montanhas redondas no majestoso decote. Primeiro a dama vermelha caminhou onde formava o T do palco, virou de costas e abaixou-se para levantar e empinar o traseiro para o público. Ouvi meu amigo resmungar algo do meu lado, mas não entendi nada, estava alucinado. Quando a dama de preto encurtou a distância da plateia, eu me senti desapontado por não poder enxergar os traços do seu rosto. Merdas de luzes vermelhas! Quis levantar e me aproximar, estava apaixonado ou muito bêbado. — Álvaro, essa mulher é um pecado — cochichei ao outro embriagado do meu lado. — Eu disse que seria uma boa você vir comigo, olha isso... Observei mais longos minutos a interação de ambas com os homens próximos ao tablado, e me enfureci quando elas ofereceram para dois deles descerem os zíperes em suas costas. Me levantei, querendo estar no lugar do homem loiro que
aproveitava para percorrer as mãos nas curvas da pequena dama de preto. Ninguém notou, muitos ali estavam à beira da loucura em assisti-las. Senti uma súbita vontade de esmurrar o explorador, mas me contive. Ela estava gostando do show, e não era da conta dela a minha postura de bêbado possessivo. Quando desceram do palco junto com todas as outras prostitutas, começaram a conversar com os convidados do local. Álvaro logo sumiu com uma delas, me avisou que subiria para um dos quartos da casa. Eu queria ver a mulher arrebatadora que se apresentou no final mais uma vez, mas ela estava ocupada demais envolvida em assuntos com outros caras. A essa altura já havia me esquecido do que ocorreu mais cedo. Queria ultrapassar qualquer limite de embriaguez e mandar minha sobriedade ir se foder, para de alguma forma amenizar a dor latejante no meu peito. Me aproximei do balcão para pedir a última dose e esperei a garçonete trazer minha conta. Olhei aos arredores procurando-a em vão. Bebi até a última gota do líquido no copo e agradeci a funcionária. Uma sensação estranha consumiu o meu corpo e principalmente minha cabeça, ouvi um ruído estridente e contínuo ecoar dentro dos meus ouvidos. Algo estava errado. — O senhor está bem? — uma voz gentil e incrivelmente delicada me fez virar, e então eu vi a dama de preto, que não estava mais de preto, já que havia se despido em cima do palco. — Você é mesmo uma violação a minha fidelidade — proferi as palavras sem antes filtrá-las. Já tinha passado da conta. Ela sorriu, e que belo sorriso! Os seus olhos estavam apreensivos, ou eu estava bem louco. — E não me chame de senhor, você não é muito mais nova do que eu — endureci o semblante para repreendê-la, mas há essas horas eu estava mais mole que gelatina. — Olha só, tem fios brancos aqui — estendeu sua pequena mão com as unhas longas e tocou minha barba. Olhando-me com seus dois mirantes azuis. Estava puto, não queria ter ficado tão ébrio. Merda! Não conseguia sequer manter um diálogo normal com a mulher. Mal conseguia enxergá-la. — Por que não coloca uma roupa? Esse mini short e esse sutiã transparente não cobrem nada, você não precisa disso, é tão bonit... Antes que eu terminasse de falar eu a vi rolando os olhos, como se aquilo fosse o que ela mais ouvia.
O amargor veio forte na minha boca, pisquei diversas vezes tentando em vão retomar minha sanidade. Não ia passar vergonha ali, então decidi ir embora. Me despedi da prostituta e sai tentando não tropeçar nos próprios pés. Não sabia onde estava a chave do meu carro, nem mesmo minha carteira, nada. Tudo ficou escuro. E eu não consigo me lembrar nem mesmo de um borrão, de um flash. Só recordo de caminhar para fora do bordel e sentir uma dor pungente na cabeça. Abri os olhos, xingando cem gerações de Álvaro por ter me convencido a ir a um puteiro. Olhei para o teto e não me familiarizei com o quarto. Assustado, me sentei e passei as mãos pelos lençóis pretos da cama. Estava em um lugar desconhecido. Caminhei até a janela, encostei no parapeito e me localizei quando vi a rua movimentada lá embaixo. Estava no centro nublado de Seattle. Procurei meu celular pelo quarto e praguejei ao ver dezenas de ligações de Vivian. Minha cabeça não estava no lugar, latejava e doía. Quando deparei com a minha própria imagem em frente ao espelho fiquei ainda mais perdido. Estava machucado, na têmpora, na boca e um resquício de sangue no nariz. Meu caralho! O que tinha acontecido? Investiguei o quarto atrás de pistas que me trouxessem alguma informação, encontrei minha carteira com todos os documentos e a chave do carro. Ao lado, sobre uma mesa pequena, tinha uma garrafa de isotônico como peso sobre um bilhete, peguei rapidamente e li:
“Pedi dois analgésicos para diminuir a sua dor de cabeça, e uma pomada para o inchaço na boca. Por favor, tome mais cuidado para não se machucar. Melhoras!” Cuidado? Melhoras? É isso? Eu não sei nem como vim parar aqui porra! Olhei para as duas cartelas de comprimidos e sentei-me na beirada da cama. Averiguei o meu pau se tinha algum vestígio pós foda, mas não obtive respostas. Que diabos eu estava com a cara estourada? A dama de preto era a última pessoa que eu havia visto, o bilhete só podia ser dela. Quis despejar toda a minha irritação até mesmo nas recepcionistas do hotel, mas me controlei. Interroguei as duas funcionárias sobre a reserva, mas elas não tinham os dados da mulher que me acompanhou, disseram que a mesma só entregou os meus documentos e que devido ao meu estado, elas permitiram que subíssemos.
Fiz o trajeto para minha casa sentindo-me frustrado e preocupado. Afinal, eu tinha entrado em um prostíbulo, ido embora sabe-se lá Deus como, apanhado de não sei quem, deixado uma desconhecida dirigir o meu carro, e por fim, transado com a desconhecida. Uma desconhecida prostituta.
1 Valentim Del Torre
Estava intragável, não havia um dia em que eu saísse de casa sem ter me desentendido com Vivian. A mulher sentia ciúme do ar que eu respirava e do chão que eu pisava. Fazia seus melodramas pelo menos dez vezes ao decorrer do dia. Por esse motivo eu procurava passar todas as horas dentro do hospital e longe dela. Pegava um plantão atrás do outro, até dormia no meu consultório. Eu não a odiava, mas possuía um sentimento muito pior, pena. — Nem um beijo, querido? — perguntou-me assim que peguei a minha maleta e caminhei para a garagem. — Estou atrasado — olhei o relógio em meu pulso querendo sair o quanto antes. Ela abaixou a cabeça e consentiu. Vivian tinha deixado sua autoestima se esvair com o vento há anos. Mesmo tendo uma beleza escultural ela estava descuidada porque só se preocupava em saber sobre como eu me sentia e qual era o tamanho do meu amor por ela. Sua vida era em prol da minha. Total obsessão. Me sinto um imbecil retratando isso mais uma vez, como todas as manhãs anteriores. Até quando eu aturaria e reclamaria sem tomar nenhuma decisão? Um covarde, com doutorado e tudo. — Fala doutor — Álvaro, o responsável pela área de gastrenterologia do hospital chegou tocando meu ombro com um soco. — A equipe já chegou? — Estão com as crianças, aquela loira veio e está deslumbrante. Preciso conseguir o número dela — meu amigo suspirou sonhador. Tínhamos vínculo com uma companhia de teatro, que duas vezes por semana visitava as crianças para proporcioná-las um momento de alegria, já que viver dentro de um hospital não era nada animador. Alguns voluntários se juntavam aos artistas da escola e a ala virava uma bagunça, uma bagunça boa. — Doutor Valentim — dois enfermeiros acenaram com a cabeça para mim, parando em minha frente —, estão chamando-o para assistir a peça de hoje. — Claro, tenho um assunto para tratar antes, e então irei para lá. Sorri para ambos. Inflei minha postura, sabendo que a reunião seguinte seria um
caos. O administrador financeiro do hospital era o ambicioso do meu irmão, que nunca aceitou o fato do nosso pai ter deixado o hospital em minhas mãos. Saulo de longe era alguém fácil de lidar. Na infância tínhamos problemas de convivência, na adolescência ele se tornou alguém revoltado e violento. Depois da morte do nosso pai, colocou seu verdadeiro eu para fora, mostrando toda a sua ganância e interesse pelo dinheiro. A conversa foi longa e exaustiva. Saulo reclamava dos pacientes que tinham pendências financeiras com o hospital ao longo dos tratamentos. Eu não me importava, dinheiro não era um problema para nenhum setor. O fato é que ele queria sempre mais, se não fosse por mim e pelo subdiretor, Saulo extorquiria os pacientes. Nossas conversas eram movidas a contrariedades, e opiniões completamente diferentes. Consigo vinha toda a energia negativa, e eu tentava ser breve todas as vezes que nos encontrávamos. A associação oferecia uma sala de aula ampla para as crianças com câncer, onde todas, de diversas faixas etárias, se reuniam para aprender e recrearem. Entrei em silêncio porque a peça teatral havia começado. Todos estavam em suas cadeiras, os mais debilitados permaneciam conectados no soro com os cateteres heparinizados. Estavam felizes independente do estado de saúde que cada um possuía e essa alegria típica de criança contagiava o ambiente. Eles adoravam os dias em que a companhia os visitava. — Tio Valentim — três delas abriram seus sorrisos puros para mim, mesmo que eu tenha me acomodado silenciosamente. Sorri de volta e apontei com o queixo para os três rapazes que estavam no centro da sala, e então voltaram a direcionar toda a atenção para o conto. Ouvimos três histórias, com direito a cenário e vozes imitativas. No fim, montaram rapidamente um quadro com os personagens de Alice no País das Maravilhas. Fiquei entretido com a introdução e só desviei o foco quando a protagonista da narrativa entrou. Estava com a roupa temática. O vestido azul com branco e os cabelos loiros ondulados retratavam perfeitamente a ilustração de Alice. A mulher com as íris de um azul celeste ganhou a atenção de todos com a forma de apresentar, até mesmo dos médicos presentes. Sua voz continha todo o mistério da obra, e quando caí em mim, estava vidrado em cada gesto da atriz. Alice no País das Maravilhas era o filme que a minha Ana mais gostava de assistir, e eu a acompanhava sem compreender o conceito por trás da trama. — Alice era uma menina curiosa e mudava constantemente. Ela mergulhava no
mundo dos sonhos, buscando respostas para tudo o que acontecia em sua volta... A protagonista falava baixo, enfatizando enigmaticamente cada frase. Eu, com minhas três dezenas de anos, faltava roer as unhas. Imagina a minha trupe careca? Estavam adorando. Ao encerrar, os personagens de todos os livros contados foram interagir com as crianças, que acreditavam fielmente estarem conhecendo as figuras ficcionais. Eu ainda estava imóvel, tentando evitar a dor crescente dentro do meu peito. Senti vontade de ter minha filha ao meu lado, ela ficaria deslumbrada com a peça. Os enfermeiros levaram-as de volta aos seus respectivos leitos. Todos se despediram e a última pessoa na sala era a "Alice", que estava apagando as luzes. — Doutor Del Torre, não é? — abriu um belo sorriso para mim, encostada na parede com a mão no interruptor — Ficará aqui? Quer que eu deixe essa acesa? Levantei-me após retornar a realidade, coloquei as mãos nos bolsos do jaleco branco e cessei a distância entre eu e a mulher loira. De perto ela era ainda mais encantadora. Sua boca formava um coração pequeno, os cílios volumosos contrastavam-se na limpidez das suas íris, o nariz era tão fino que oferecia um destaque espetacular aos seus lábios e as bochechas avermelhadas, queimadas pelo frio. — Algum problema, doutor Del Torre? — franziu as sobrancelhas encarando-me com apreensão. — Não, não — arrumei a minha postura e estendi a mão para saudá-la —, só Valentim — não conseguia deixar de estudar cada traço angelical em minha frente —. Você deve ser Alice — brinquei tentando quebrar o estranho clima instalado. Ela sorriu, e Deus... — Gostou da minha atuação, Valentim? — sua boca pronunciou meu nome com tanta doçura. O que eu estava pensando? A culpada disso era a carência acirrada. Ou talvez essa Alice na minha frente houvesses me levado a um passado que eu me esforçava para superar. Tudo o que remetia a minha Ana, involuntariamente mexia comigo. — Almoça comigo? — disparei de repente. Ela me olhou de soslaio, arqueando a sobrancelha bem marcada.
— No hospital mesmo, temos um restaurante — expliquei. — Eu sei — acenou positivamente com a cabeça, mas permaneceu com a expressão desconfiada —. Não vou poder, inclusive estou atrasada. — Não é a primeira vez que te vejo aqui, não só nas peças. Tem algum familiar internado? — questionei buscando uma trégua. — Sim, minha mãe está há pouco mais de um mês aqui. Você é o diretor do centro de oncologia? — a respondi com um movimento de cabeça —. Ela está no último estágio da doença. Estava em outro hospital, que não possuía boas condições. Sabe como é... — ela encolheu os ombros e respirou forte pelo nariz. Parecia muito cansada. — Eu realmente sinto muito... — Mariana — completou. Mariana. Meu subconsciente repetiu. Incrível como a personagem foliadora de minutos atrás não fazia jus a mulher agora na minha frente. Seus olhos, apesar de lindos, eram tristes e isso me perturbou. Ela parecia carregar um peso sobre-humano nas costas, suas frases calculadas demonstravam que havia muita coisa entalada na garganta que precisava ser dita, desabafada. Não nos conhecíamos, mas compartilhamos um silêncio desesperado e aflitivo. Há dois anos eu sentia necessidade de gritar para o mundo e colocar toda a fúria para fora. Ela parecia querer o mesmo. — Se não se importa, preciso deixar de ser Alice agora e voltar para o mundo concreto — seus lábios esticaram em um sorriso fechado e tímido —. Tenha um ótimo dia pela frente, Doutor Valentim. — Sem o "doutor", já disse — sorri da mesma forma —. E igualmente. Não estávamos em um dia bom, a atmosfera densa e carregada deixava isso claro. Fechei-me dentro do consultório depois disso. Naquele momento senti uma agonia descomunal, tentando entender porque levava uma vida fracassada. Mesmo tendo muitos bens materiais em mãos, eu não tinha nada. Sentia-me um homem fadado à infelicidade. Achava injusto, considerando que nunca tinha cometido algum crime ou alguma atrocidade com o próximo. — Doutor Del Torre, a Senhora Vivian o aguarda no restaurante — a recepcionista avisou pelo telefone.
Sentada na última mesa, excluída das demais, Vivian mexia no celular. Quando me aproximei o deixou sobre a mesa, fez menção para me beijar e eu correspondi beijando-a na testa. Ela manteve os olhos fechados por mais alguns segundos e tentou sorrir. — Tudo bem, querido? Como está o dia por aqui? — Tudo bem — respondi pegando o cardápio em nossa frente —. O que vai querer comer? Seus dedos acariciaram meu ombro sobre o jaleco e seguida ela arrumou a gola da minha camiseta azul. — Já almocei. Vim para te ver um pouco, e para pedir que tente chegar mais cedo em casa. Há semanas que não te vejo após o trabalho, sempre madruga neste lugar — seus olhos buscaram os meus e eu insistia em desviar o contato. — Tentarei — disse apenas. — Você sempre fala isso, querido — sua mão moldou meu rosto direcionando-o para o dela —. Promete que chegará mais cedo? Estou pedindo só um dia. Suas pupilas dilataram ao suplicar. — Sim, Vivian — peguei sua mão querendo tirá-la do meu rosto e a beijei carinhosamente. Ignorei sua presença pelo restante do almoço. Comi uma massa ouvindo minha esposa falar e falar. Sobre os eventos que seus pais realizariam, sobre os móveis que ela gostaria de trocar, e também sobre nós dois. Ela não desistia. Parecia estar cega ou queria viver assim, fantasiando um matrimônio que não existia mais. Abaixei o talher quando Mariana entrou no recinto. Vestia uma calça legging, botas que cobriam suas panturrilhas e um casaco de pele. Ela passou a mão sobre o rosto que estava quase coberto pelo capuz, parecia esgotada. Caminhou até o balcão de atendimento e deve ter feito algum pedido. — Querido, algum problema? — Vivian interrompeu minha observação. — Nenhum — capturei o garfo novamente e enrolei o espaguete. Continuei assistindo de canto cada movimento. Ela se afastou colocando algo em sua bolsa, apoiou a mesma em uma mesa para poder tirar seu casaco quente. Mariana fechou os olhos, e eu fiquei em alerta. Então escorou na cadeira buscando apoio, e quando seu corpo amoleceu eu notei que ela estava desmaiando. Apressei-me em sua direção, mas infelizmente ela já havia caído. Vivian veio atrás de mim e abaixou-se também.
— Essa mulher está passando mal? Não, Vivian. Está brincando de desmaiar no meio do hospital. — Fique aqui, vou levá-la até a enfermaria. Peguei Mariana nos braços, e seu corpo estava tenro, os braços soltos apontados para o chão e a cabeça encostada em meu peito. Carreguei-a até a enfermaria e solicitei uma divisória de biombo, coloquei-a cuidadosamente na maca e fiz os primeiros procedimentos. Medi a pulsação e a pressão. Estava tudo bem. Seus olhos foram se abrindo aos poucos, ela olhou para o teto e depois para os lados. — Eu passei a vergonha no crédito ou no débito? — perguntou-me me fazendo sorrir. — Caiu dramaticamente aos poucos, como as princesas fazem nos filmes — aproximei-me e coloquei meu polegar na sua pálpebra inferior esquerda, e depois direita. Analisei a tonalidade interior e ela se assustou. — Tem alguma coisa no meu olho? — Não, senhorita. Há quanto tempo não come? — comecei a organizar o painel atrás da maca. Ela pensou, pensou e pensou. Solicitei um suporte de soro, uma bandeja, álcool, as luvas e o conector. Furei seu braço na área cubital após realizar a antissepsia, Mariana permaneceu quieta. Abri o controlador de gotas do equipo, e joguei os descartáveis na lixeira. Ela me assistia minuciosamente. — Está desidratada. Vou pedir algo leve para você comer e uma vitamina. — Eu fui ao restaurante para comer — esclareceu. — Pelo jeito não deu tempo. Requeri uma refeição que logo chegou. Ela se sentou um pouco limitada pela mangueira do soro e mandou ver na comida. — Algum parente que eu possa contatar? — perguntei. Mariana negou com a cabeça e limpou a boca com um guardanapo. Sorveu a vitamina do copo e me olhou. — Minha mãe está internada aqui. Não quero preocupá-la. — Algum outro familiar? — indaguei. — Não tenho — tomou mais um pouco falando com naturalidade.
Me calei. Senti que tinha sido espaçoso demais e invadido a privacidade dela. Como não tinha mais ninguém para avisar? — Precisa se cuidar, não será útil para a sua mãe caso esteja anêmica, então comece a se alimentar. É nítido que está preocupada e exausta. Cuido de diversos pacientes dentro desse hospital, vejo diariamente os parentes, alguns ficam mais acabados que os próprios doentes. Seus cílios longos abaixaram-se quando ela fitou o prato, tirou a bandeja que estava sobre suas coxas e alternou o olhar para a bolsa de soro. — Não estava contando com isso — umedeceu a boca, claramente tensa. — Com o que? — não entendi mesmo! — Eu sei que a internação aqui é cara. Me surpreendeu! Pensei rapidamente em algo para descontraí-la. — Fica por conta da casa, se você me disser a moral de Alice no País das Maravilhas. Sua sobrancelha arqueou-se interrogativamente para mim. Saí apenas para entregar a bandeja para uma enfermeira e voltei, sentando na cadeira ao lado do seu leito. — E então? — Doutor Valentim, você não deveria estar aqui comigo e... — Valentim — corrigi e ela rolou os olhos. — Certo então, Valentim — parecia ter ficado convicta —. Me responda, por que ficou tão tenso na minha ilustração na sala de recreação? Não a conhecia para me abrir, e muito menos mencionaria a maior tristeza da minha vida. — Eu achei incrível como você interagiu com as crianças e as intrigou — despistei. Ela não acreditou, mas entendeu que não era bom persistir. — Sinto em te desiludir, mas Alice não tem uma moral, pelo menos é o que eu acho. — Como? — A história é uma alegoria à jornada do crescimento de uma criança. Mas por que se importa com uma trama infantil? — Sempre assisti com a minha filha, e não notei que eram possíveis tantas
informações subentendidas. Mas você também parecia estar bem envolvida no que narrava — corri para a minha zona de conforto, não alimentaria o assunto sobre Ana. — Já que parece se interessar, vou falar diante da minha perspectiva — ajeitouse encostando no travesseiro e puxou o lençol até a cintura —. No conto tudo é possível. É um universo desprovido de lógica, de provas físicas... Assenti com a cabeça para ouvir a continuação. — Admiro muito a imaginação, e o quanto Alice desmembra isso. Há muita contestação e para mim, está claro que a finalidade é a busca pela liberdade. — E isso significa para você? — já havia perdido o contexto. Estava perguntando sobre ela. — O que? — questionou após uma pausa silenciosa. — Liberdade. — É o grau de independência legítima, Valentim, que qualquer ser humano deve ter — respondeu com incredulidade, e me olhou como se eu tivesse duas cabeças. Aliás, três. Seus olhos comunicativos seguraram os meus e nos defrontamos por longos segundos. Sua mãe tinha câncer, e concordo sem dúvida que acompanhar e cuidar de alguém vítima dessa doença passava longe de ser fácil. Mas não era só isso. Ou eu deveria ir direto procurar meu amigo psiquiatra ou realmente conseguia enxergar através de seus olhos. E o que eles transmitiam não era bom. Mariana falou com tanta transparência e propriedade sobre a liberdade que eu quase acreditei. Ela estava presa a algo, escrava de alguma infelicidade, assim como eu do meu casamento.
2 Mariana D'Ávila
Carlie dirigia feito uma recém-habilitada e ouvíamos buzinas frequentes exigindo passagem. Alguns xingamentos no trânsito também eram comuns. Minha amiga ignorava, fingindo que nada estava acontecendo. Dependendo de seu humor, até mandava beijinhos como resposta. — Desse jeito vou chegar quando acabar o horário de visita. Todo dia era uma luta para chegar até o Saint Clair, o carro de Carlie era uma carroça, a única diferença é que era movido a combustível. Eu não podia reclamar. Se não fosse pela sua ajuda eu teria que vir de ônibus e não conseguiria ficar com a minha mãe pelas manhãs. — Entregue — minha amiga sorriu para mim quando estacionou o carro e o motor fez um estrondo horroroso —. Tem certeza que não quer descansar um pouco? — me analisou, com a sua habitual expressão de preocupada. — Certeza — aproximei-me e a beijei no rosto —. Obrigada. Eu volto de ônibus ou metrô. — Belezura, bom que eu durmo como se não houvesse o amanhã. Saí e antes que eu batesse a porta da carroça minha amiga me chamou — Não se esqueça de mandar um beijo e um abraço bem apertado para a Dona Martha e fala que não me esqueci do bolo de ganache que ela mais ama. Concordei com a cabeça e bati a porta. Subi a escadaria enorme da frente do hospital e entrei pelas portas automáticas. O lugar limpo e amplo cheirava a álcool e produto natural de limpeza. Antes eu não gostava de frequentar um ambiente onde se concentra uma grande quantidade de enfermos, achava que a energia não era boa, mas hoje percebo o quão equivocada estava. Há algumas semanas esse local havia se tornado a minha segunda casa. Chegava pela manhã e só saía quando tinha as aulas de dança para dar na companhia de teatro, ou à noite, quando encerrava o expediente de visitação. Eu convivia com doentes em situações muito críticas, como minha mãe. Mesmo diante disso, era possível sentir a garra deles, a obstinação em melhorar, em poder sobreviver.
— Minha filha, não precisava vir tão cedo — minha mãe pegou em minha mão e a beijou carinhosamente —. Está melhor hoje? Fiquei sabendo que desmaiou no refeitório ontem — antes que ela terminasse eu encrespei a testa, irritada pela informação ter chegado nela —. Você sabe, as notícias se espalham — ela sorriu. — Melhorei sim, Dona Martha. Tinha esquecido de me alimentar, só isso — respondi deixando minha bolsa sobre meu colo enquanto me sentei na cadeira ao lado de seu leito. — Já disse que não quero que se esforce tanto, você precisa descansar. A cada dia suas olheiras estão mais fundas, você está emagrecendo, meu amor. Não precisa disso tudo, estou sendo bem cuidada aqui — falava acariciando minha mão e olhando dentro dos meus olhos. — Eu gosto de ficar com você e aproveitar cada segundo, a senhora sabe. E vou fazer o que fora daqui? Só tenho a Carlie e as crianças do balé. — Eu sei. Eu sei. Mas me entristece ver que a sua renda vai toda para o meu tratamento e que mesmo assim falta. Eu queria que você terminasse sua licenciatura em dança, curtisse como jovens da sua idade, conhecesse um grande amor, não que ficasse enfurnada dentro disso aqui... — suas íris esverdeadas olharam para os cantos da ala onde se encontravam outras vítimas da mesma doença. — Besteira, tudo isso é ilusão. Estou feliz estando ao seu lado e me arrependeria caso não estivesse — beijei o dorso da sua mão e me apressei para mudar de assunto —. Carlie mandou um beijo, um abraço e disse que não se esqueceu do seu bolo preferido. — E aquela doidinha está bem, minha filha? Conversamos, conversamos e conversamos. Por fim entreguei a faixa que Carlie pediu, para enfeitar a cabeça sem fios da minha mãe. Fiz um laço bonito com o tecido colorido e beijei sua testa. Despedi-me por ora, porque precisava tomar um café. — Olha se não é a loira mais bonita desse hospital — ouvi uma voz graciosa assim que saí pela porta e pisei no longo corredor. Olhei para trás e ri ao ver um médico descontraído caminhando em minha direção —. Sou o Álvaro, e você, quem é? — Mariana — respondi com um sorriso um pouco envergonhado com a intimidade. Esbarrar com outro médico pelo hospital me fazia lembrar do dia anterior, no
qual conheci Valentim. O curioso homem que não me deixou em paz até desvendar a obra de Alice no País das Maravilhas. O acontecido tinha sido mais do que estranho. Estávamos tensos, a atmosfera não ajudava, ele parecia incomodado com inúmeras coisas e eu também. Eu tinha lá meus milhares de motivos para ser infeliz, e ele parecia também não estar nada contente com a vida que levava. Compartilhamos muitas frustrações em silêncio e aquilo foi atordoador. — Se incomoda se eu me sentar com a senhorita? — Álvaro sequer esperou a resposta, puxou a cadeira do restaurante para que eu me acomodasse, e eu o fiz. Ele sentou-se ao meu lado, pegou um cardápio e me entregou, depois abriu outro e correu os olhos pelas opções de café da manhã. — Preciso de um café expresso bem reforçado, e torradas com pasta de amendoim — solicitou ao garçom que anotava rapidamente —. E a senhorita, Mariana? — perguntou sorrindo para mim e eu fechei o cardápio. — Eu quero um mocaccino, com mais café do que chocolate — expliquei entregando-lhe o cardápio —. E não quero comer nada, obrigada. O médico deixou o homem se retirar e então se virou para mim. — Hoje não tem recreação, por que veio? — Minha mãe tem carcinoma, e afetou os dois rins simultaneamente. — Sinto muito. É bem agressivo, mas nada impossível para Deus e para... — Álvaro olhou para as outras duas portas de entrada do restaurante — e para o meu amigo ali, esse aí é o melhor de todos. Quando o médico se levantou eu pude ver Valentim entrar com uma mulher, eu não conseguia lembrar se era a mesma do dia anterior, involuntariamente meus olhos percorreram pelos braços dos dois até encontrarem suas mãos, que estavam entrelaçadas, olhei para a outra mão e averiguei sua aliança dourada adornando seu anelar. Eu não tinha visto que o oncologista era casado, talvez por ter tido uma vertigem ou por ter focado mais em suas íris radiantes e intensas. Mas aquilo de alguma forma embrulhou meu estômago. Ouvi Álvaro cumprimentando Valentim e depois a esposa do mesmo. O garçom chegou com meu mocaccino e eu empurrei o líquido fervente para dentro. Minha boca estava na abertura estreita do copo fumegante, meus olhos evitaram os de Valentim, que parecia estar me observando. Fiquei incomodada e me levantei de supetão. Sem entender minha atitude, eu me apressei para sair, até que trombei em uma senhora muito elegante e a tampa do copo abriu, derrubando todo o café com chocolate nela.
Claro Mariana! Você não pode ver uma vergonha que vai correndo passar. Comecei a gaguejar, tentando pedir desculpas. — Está tudo bem, minha querida. Eu sei que não foi de propósito — ela pegou no tecido da blusa e chacoalhou tentando se livrar dos respingos —. Está muito quente! Charlotte, pegue outra blusa no carro para eu vestir — entregou um controle para a garota do lado, e só então notei sua presença. — Desculpa mesmo. Eu estava distraída, não vi a senhora e... — Está tudo bem. Vamos esperar minha filha pegar outra peça. Essas coisas acontecem — ela sorriu complacente e pegou em meu ombro —. Vamos, pegue outra coisa para você tomar, já que minha blusa se encarregou disso. Acabei sorrindo com a sua forma despreocupada de lidar. Neguei a bebida até porque qualquer mínimo gasto inesperado não cabia no meu orçamento. Esperei a tal Charlotte voltar com uma blusa de lã para a senhora, que foi para o banheiro se trocar. — Sua cara está engraçada, fica calma! Minha mãe é uma estrambelhada das grandes — a moça também dos olhos claros me cutucou com o ombro. — Não vai cumprimentar o seu irmão, filha? — a senhora perguntou assim que regressou do banheiro. — Nem por tortura. Você sabe que não engulo aquela megera — a filha proferiu convicta. Então saquei que elas estavam falando de Valentim e depois da esposa dele. Fiquei atenta, como se eu sentisse necessidade de bisbilhotar e desvendar algo sobre o oncologista. — Mas Tim não tem culpa, Charlotte. É isso o que ela quer, ter o seu irmão só para ela. Quer dar esse gostinho a ela? Eu não dou não. — Dona Leonora, Dona Leonora! Não vá cutucar o vespeiro — Charlotte avisou. A senhora e seu estilo de grife se locomoveram até Valentim e a "megera". Nisso, Álvaro se aproximou de mim e de Charlotte. — Meu irmão tá por aí, Álvaro? — Não o vi hoje ainda, aquele vagabundo trabalha quando quer. Eram três? Charlotte e Álvaro tinham uma intimidade grande pelo visto. — Está perdida, Mariana? — o médico sorriu se divertindo com a minha cara de sonsa.
— Olha, admito que sim. Vocês falam pra caramba — fechei as pálpebras e balancei a cabeça, depois as abri e escutei os dois rindo. Acabaram me convencendo de tomar um café direito. Sentamos, comemos e conversamos. Todo minuto a Eleonora demonstrava o quão incomodada estava por ver seu filho com a Vivian, sim, em dez minutos descobri o nome e toda a personalidade da "megera". Charlotte não economizava um adjetivo difamatório quando se tratava da cunhada. Álvaro preferia ficar na dele, já que respeitava o casamento do amigo. A megera ladra de filho e de irmão não parecia mesmo ser uma boa pessoa, não ouvi uma qualidade sequer. Coitada! Eles perguntaram sobre mim, sobre o meu trabalho com a companhia de teatro e dança. Falamos sobre a minha mãe na medida do possível. Sinceramente não gostava de me abrir, muito menos com pessoas que eu acabei de conhecer. Valentim após terminar o desjejum saiu irritado pelas portas do restaurante, deixando Vivian sozinha. Senti uma súbita pena dela, parecia triste e ao mesmo tempo conformada com aquilo. Charlotte e Eleonora foram embora pouco depois. — Preciso entrar em cinco minutos — Álvaro fitou o relógio caro em seu pulso —. Posso te pedir uma coisa, Mari? — Claro. Só não tenho certeza da resposta — larguei o guardanapo na mesa após limpar a boca. — Você quer jantar comigo, hoje? Quase engasguei com a própria saliva. Como podia ser tão direto e rápido assim? O endocrinologista era muito charmoso, galanteador e seus traços arianos compunham sua beleza. Mas não era do meu mundo e eu jamais aceitaria um convite desse. — Já sei, você tem compromisso? Então faz assim, me passa o seu número — pegou o celular do bolso. — Tenho — levantei-me pegando a alça da minha bolsa e colocando no ombro —. Desculpa, mas nos vemos depois, aqui no hospital — disse meio embaralhada e fugindo de passar o meu celular. Ele também se levantou e estendeu a mão, eu a apertei e ele aproveitou para cessar a distância e beijar minha bochecha. — Até logo, Mari. Quando me acomodei ao lado da maca da minha mãe, usufruí do pequeno
espaço no colchão para apoiar meus braços e meu rosto. Estava exausta, morta de sono para falar a verdade. Minha mãe estava medicada e adormecida. Eu cochilei por poucos minutos até ouvir seus gemidos de dor. Despertei assustada e rapidamente acionei o botão de emergência no painel atrás do leito. Valentim entrou empurrando a cortina separatória e viu uma Mariana aflita e totalmente apreensiva. Eu segurava a mão da minha mãe e tentava acalmá-la ao vê-la se contorcer e ter espasmos. — Fica calma. É consequência da quimioterapia. Vamos trocar a GEP, e oferecer os cuidados paliativos. — A sonda entupiu? — perguntei controlando meu choro. — Sim, mas são as dores do tratamento mesmo. Eu preciso que você saia — falou baixo quando mais dois enfermeiros entraram —. Mariana, ela ficará bem — me convenceu quando cravou seus olhos nos meus. Fiz um esforço terrível para mover minhas pernas dali. Caminhei para uma das recepções do hospital e me sentei na poltrona cor creme. Apoiei meus braços nos joelhos e minha cabeça entre eles. A verdade é que minha rotina não era fácil. O cansaço era excessivo. Trabalhava muito e se dormia duas ou três horas era motivo de comemoração. Me alimentava mal por falta de apetite, e também de dinheiro. Todo o tempo livre eu estava ao lado da minha mãe, não a culpava por nenhum esforço que eu fazia, ou pelos sonhos que eu abdicava a cada dia, afinal, ela era tudo o que eu tinha, tudo mesmo. — Como ela está? — fiquei em pé tão rápido que precisei colocar minha mão na poltrona para não cair —. Melhorou? — Voltou a dormir, está melhor sim — o oncologista respondeu, com uma expressão séria e observadora. — Eu vou lá, obrigada por ter socorrido tão rap... — capturei a bolsa, mas fui pega pelo braço assim que me virei para sair dali. — Mariana, ela está dormindo. Por que não vai para casa fazer o mesmo? Olhei para a sua mão em meu pulso, para a aliança, depois para os seus olhos mesclados entre o verde e o amarelo. Engoli a saliva como um cimento e olhei para os nossos pés, qualquer coisa para não continuar tento o deslumbre do homem na minha frente. Não era possível que um desconhecido causasse uma ansiedade e um aperto tão grande dentro de mim. Soltei-me de seus dedos firmes e acariciei a parte quente em minha pele. — É uma boa ideia — a minha resposta nem parecia fazer sentido diante daquela
intensa troca de olhares. Nem sabia mais o que ele tinha perguntado. — Descansa, à noite eu libero para você vir ver a sua mãe. — Estarei ocupada, mas agradeço. — Ocupada? Então aceitou o convite do Álvaro? — o seu cenho franziu sutilmente e o desconforto estava presente em cada palavra. — Como sabe? — cruzei meus braços em frente ao corpo. — Aceitou ou não? — Nem o conheço — respondi um pouco perplexa —. E na realidade nem te conheço também, por que está me cobrando satisfação? Seus músculos relaxaram visivelmente após minha resposta. Ele ignorou minha pergunta e mostrou seus dentes brancos e alinhados, seus lábios finos e hidratados deixavam o sorriso ainda mais atraente. Me repreendi por estar dando espaço a qualquer devaneio e voltei à realidade quando ele perguntou: — Então cancele o seu compromisso e jante comigo? Vi a esposa dele dar passos em nossa direção, por trás de Valentim ela o abraçou e despejou um beijo em seu ombro, se posicionou ao seu lado e me mediu dos pés a cabeça. Por que eu já achava Vivian uma megera? Ele fechou os olhos, contrariado. Eu não respondi. Apenas assenti educadamente com a cabeça e saí dali, me sentindo uma completa idiota por principalmente achá-lo tão diferente.
3 Valentim Del Torre
Mariana estava com os braços estendidos para cima da cabeça, sua postura ereta e perfeita alucinava as meninas que a assistiam, o queixo e o nariz mantinham-se empinados enquanto seu corpo se movia harmonicamente. Seus passos eram simétricos e profissionais no ritmo lento da melodia. Ela fez uma demonstração rápida e então começou a ensinar a postura para as minhas pequenas pacientes que, prestavam atenção muito empolgadas. — Isso, muito bem! Mantenha o rosto assim — Mariana apoiou o queixo de uma delas com o indicador —. Agora um, dois, três... — foi contando à medida que abaixava flexionando as pernas e levantava na ponta de suas sapatilhas. Sua gargalhada tornava-se uma música muito mais apreciável para os meus ouvidos. Ignorei a melódica canção que as meninas dançavam e foquei no som que vinha da sua garganta. Ela se divertia genuinamente com aquilo, e não era diferente para as suas mais novas alunas. As crianças estavam debilitadas e Mariana entendia isso, mas não deixava transparecer dó ou qualquer sentimento parecido. Elas seguiam as coordenadas dentro de seus limites, segurando no corrimão instalado ali especificamente para a oficina de dança, que após dois dias de insistência por parte da companhia eu acabei cedendo, ainda mais quando soube que a professora seria ela. Desde o episódio em que minha esposa apareceu inconvenientemente, eu não havia trocado uma palavra com Mariana. Tinha repensado tudo e concluído que isso era o melhor a fazer. Afinal, eu era casado e totalmente contra traições. Em contrapartida, minha mente não obedecia e se envolvia em sonhos com a dançarina de balé e isso eu não podia controlar. Sua mãe assistia, e o filho de uma puta do Álvaro também. Ele a admirava com o queixo caído e por pouco não fiz o favor de levar um babador para o imbecil, mas optei por sair dali, tentando fugir do desconforto que a distância entre mim e ela me fazia sentir. O dia de trabalho não rendeu. Estava lá desde a madrugada de plantão, rasguei algumas receitas que prescrevi erroneamente por puro descuido. Refiz e quando terminei me dei conta de que não aguentaria mais uma hora sequer no hospital. Precisava descansar e por minha cabeça no eixo. Antes de ir embora peguei o número de Mariana no sistema do hospital, sem nada planejado.
Fui para meu apartamento após o almoço, agradeci mentalmente quando vi que Vivian não estava. Fui direto para o banho, coloquei um moletom e me aconcheguei na cama. Quem pensou que eu ia enfim descansar se enganou. Na minha mente só vinha os cabelos loiros compridos, a boca rosa e carnuda, os olhos tão cintilantes capazes de cegar, o corpo desenhado milimetricamente e o mais importante, o jeito autêntico que só ela tinha. Acordei pouco antes do jantar. Ajudei Vivian a nos servir e sentei na ilha da cozinha ao lado dela. O barulho dos talheres me perturbava há anos, assim como o seu perfume e sua presença. O infeliz silêncio atormentava minha cabeça de uma forma agoniante. Suas perguntas descabidas e sem nexo me irritavam a ponto de eu perder a fome. — Querido, passei o dia com a minha mãe. Fizemos algumas compras para a nossa casa, chegam amanhã cedo. Será que você pode cancelar o próximo plantão para receber comigo? — O que foi que comprou agora, Vivian? — afastei o garfo da boca e olhei para ela. Vivian colocou seus fios pretos e curtos para trás das orelhas preparando-se para falar. — Então querido, quero trocar o nosso closet um pouco, comprei espelhos para dar a impressão de amplitude, outro sofá — ela apontou para o estofado no meio da nossa sala — e outro tapete, para poder combinar com as cortinas. Ouvi concordando com a cabeça. Ela podia pintar as paredes de rosa se quisesse desde que se ocupasse o suficiente para me deixar em paz. — Eu também pedi para tirarem amanhã os móveis do quarto da nossa filha, eu sei que você não quer, mas já está na hora. — Como é que é? — dessa vez soltei os talheres com força no prato e girei a banqueta ficando de frente para ela. — Eu sei, querido. Eu sei que você não quer, mas precisei solicitar que tirassem sem sua permissão. Aquele quarto não pode ficar daquele jeito para sempre. Ela não está mais aqui e aquilo tudo é inútil. Sua mão veio em direção ao meu rosto, mas impulsivamente segurei seu pulso. Desci pegando meu prato e coloquei na pia. — Valentim, você faz essa cena sempre. O que restou foram só objetos e coisas materiais, Ana morreu, não faz sentido guardar lembranças se te fazem tanto mal. Bati o copo com água no corian da pia e encarei-a nos olhos.
— Não faz sentido guardar lembranças? — questionei com asco e ironia —. Sabe o que me faz mal, Vivian? Essa sua frieza, essa forma indiferente de lidar com os pertences da nossa filha. — Você sabe que eu não quis dizer isso, querido... — Você quis dizer exatamente o que disse. Não queira consertar, fica pior a cada palavra. Me retirei da cozinha e segui para o quarto. Vesti uma calça jeans, tênis, uma blusa de moletom preta e enfiei meu celular no bolso. Antes de passar pela porta avisei que não era para encostarem um dedo no quarto de Ana. Então desci para a garagem ignorando a mulher repugnante tentando se explicar atrás de mim. Entrei no carro e pedi licença para que ela saísse da frente do carro. Sim, ela sempre fazia isso. Chorava e implorava dramaticamente para saber onde eu estava indo. Eu sempre ia para casa de Charlotte ver minha sobrinha, ou para casa da minha mãe buscar paciência. — Olha só quem resolveu dar sinal de vida — Charlotte me abraçou e sentiu a tensão no meu corpo, ela me olhou, me olhou e então disse —: Vai esperar ficar velho e cheio de cabelos brancos para poder se divorciar daquela vaca? Neguei com a cabeça, farto com a situação. Ela cedeu espaço e então eu entrei. Eric, meu cunhado, comia um pedaço de pizza no sofá assistindo futebol na televisão. Ele limpou as mãos no guardanapo e levantou para me cumprimentar. — Quer, Tim? — Charlotte ofereceu as pizzas que estavam na mesa central. Capturei uma fatia de pizza de queijo e me sentei ao lado de Eric para assistir a partida. — Cadê a Sol? — perguntei quando também me incomodei com o silêncio. — Ela dormiu cedo, está toda empolgada com a chegada das férias. Fazendo mil planos de viagem e tudo mais — minha irmã lambeu o ketchup dos dedos enquanto me respondia. Aceitei a cerveja artesanal que meu cunhado ofereceu e fiquei até o final do jogo. Quando o assunto rodeou sobre o meu casamento eu quis ir embora. Minha irmã apesar de ser três anos mais nova, se preocupava muito com o meu bem estar psicológico e não escondia a aversão que tinha de Vivian. — Desculpa, Tim. Não vou falar dela mais. Vamos falar de coisas boas! — Como estão as aulas de música da Sol? Ela está gostando?
— Está fascinada, e fica triste nos dois dias da semana que não tem — meu cunhado me contou com um sorriso admirado. Me apeguei muito a minha sobrinha porque ela e Ana conviviam diariamente, era a "melhor amiga" da minha filha. E quando Ana faleceu, Sol ficou doente. Eram como irmãs, sempre juntas. Mas ao contrário de mim, minha sobrinha havia superado, estava sempre me dando aulas de evolução espiritual sem nem perceber. — E aquela loira maravilhosíssima que você não parava de olhar lá no restaurante do hospital? Aquele dia que eu fui com a mamãe — Charlotte não poupava sua curiosidade. Ela colocou o copo de Coca Cola na mesa central aonde meu cunhado também apoiava os pés. Mariana. Mas era tão evidente assim? — Não sei de quem está falando — menti. Ela riu pendendo a cabeça para trás. Deu-me um puxão na orelha e ficou séria. — Deixa que eu refresco sua memória, Tim. Uma loira dos cabelos bem compridos, com um porte de modelo, alta, dos olhos mais claros que os meus e os seus. — Continuo sem saber, deixa de ser maluca — limpei meus dedos no guardanapo e joguei na caixa da pizza. — Aquela, que Álvaro está caidinho. — Você também acha que ele está marcando em cima dela? — perguntei. — Ué! Refrescou a memória tão de repente? Incrível como Charlotte sabia ser geniosa, herança da nossa mãe. Entre mim e ela, ela ganhava em disparada. Sempre tinha as melhores e mais rápidas respostas, pensava e agia habilmente. — A bicha é bonita mesmo, fala sério! Até eu, se fosse homem — minha irmã fingiu se abanar com a própria mão. — Charlotte! — Eric a repreendeu e ela olhou com uma expressão interrogativa para o marido. — O que? Não sou cega. A mulher é o poder em pessoa. Só podia passar um corretivozinho naquelas olheiras. Mas nada que não dê para consertar. Dá um nocaute de beleza na sem sal da ladra de irmão — Charlotte foi proferindo sem permissão, como sempre fazia. O problema é que ela me fez retratar cada detalhe de Mariana. Sorri lembrando
da Alice, ou melhor, da professora de balé, dos sorrisos, das respostas engraçadas, do seu jeito espontâneo. — Cuidado pro seu sorriso não te engolir. Ah meu Deus! Sabe nem disfarçar — minha irmã bateu a mão na testa e se levantou com o que sobrou do jantar em mãos. — Ela é tudo isso mesmo, cara? — Eric perguntou baixo para mim. — É — a resposta escapou da minha boca e minha cabeça já fantasiava ter Mariana perto de mim. Peguei meu celular do bolso e digitei inúmeras vezes uma mensagem, apaguei e digitei, apaguei, digitei. Mandei: ✉ “Boa noite, Mariana. Está ocupada? Valentim” Minha irmã espiou de canto de olho e opinou: — Posso te dar um conselho? Posso? Que bom! Ela não vai te responder, ela sabe que você é casado? — confirmei com a cabeça —. Então pode pensar mil coisas, vai que acha que é a megera da Vivian sondando. Pelo menos ligue! Hoje é sábado, duvido que ela durma cedo. — Você acha que Mariana tem um sábado livre? Eu duvido — disquei o número dela receoso em apertar para chamar. Minha irmã fez isso por mim e eu confesso que tremi, feito um adolescente. Caiu na caixa de mensagens. Levantei conformado, fui para a porta e me virei para os dois. — Ah, meu irmãozinho. Não desiste tá? Qualquer coisa para te desapegar da amarração daquela Vivian — minha irmã respirou fundo, mais triste do que eu —. E olha que Mariana não é qualquer coisa, se eu fosse você investiria. — Sou casado, Charlotte. Está na hora de você ir dormir, está sonhando já — beijei sua testa e ela me abraçou. Dei um toque na mão do meu cunhado e esperei as portas do elevador abrirem. Dentro do carro eu me neguei a ir para minha casa. Sabia que Vivian me esperava acordada, ela ia até o seu último nível de sono para me ver chegar. Fazia isso até quando Ana era pequena e precisava dela nas manhãs seguintes,
considerando que eu tinha horários difíceis no hospital. Contratamos uma babá para a nossa filha porque Vivian não conseguia ficar acordada pelo simples fato de querer medir os meus passos, e não, nunca cobrei nada disso dela. Rodei com o carro nas avenidas principais, passando em frente das boates e dos bares. Alguns restaurantes estavam fechando devido ao horário, mas outras casas noturnas tinham filas quase quilométricas para a entrada. Eu não queria beber, mas o contexto praticamente me obrigava. Queria menos ainda voltar e dividir a cama com Vivian. O que me restava era parar em algum bar e amenizar o estresse. Estava fazendo um pequeno retorno para o outro lado da avenida quando vi Mariana acompanhada de uma mulher negra, cheia de cachos castanhos. Elas saiam de um restaurante mexicano. Aproximei o rosto do para-brisa para ter certeza do que era ela e apressei para estacionar o Porsche. Não sabia o que ia fazer, mas foi uma coincidência deliciosa encontrá-la. — Mariana — chamei após bater a porta do carro. — Valen... Valentim — ela se assustou quando me viu, parou de rir e olhou para os meus olhos. Sua pele não estava pálida como normalmente, nem suas olheiras tão perceptíveis. E as pálpebras grandes marcadas com uma maquiagem escura destacavam suas íris que, determinavam a quantidade de luz que Mariana continha. As sobrancelhas arqueadas demonstravam sua surpresa, seu nariz arrebitado dava vida aos seus lábios carnudos. A obra esculpida terminava em seu queixo proeminente, e claro, não podia deixar de admirar suas maçãs levemente avermelhadas. Incrível como eu enxergava algo por detrás das janelas azuis, seus olhos eram tão, mas tão bonitos que serviam de disfarce para uma constante dor que Mariana carregava. — Foi desse fugitivo do paraíso que você me falou? — sua amiga me olhou tanto que até fiz o mesmo para conferir se ainda estava de roupa —. Ai, sua bruxa! — e ela reclamou pelo beliscão que levou de Mariana. Eu acabei sorrindo. Ela tinha falado de mim! — Falou bem ou mal? — coloquei minhas mãos nas costas e encostei no meu carro, tentando relaxar pelo menos visivelmente. — Estou com medo de levar outro beliscão. Ela tem unhas grandes — a morena se aproximou —. Meu nome é Carlie — deu sua mão para mim —. Olha essa mão, Mari — avaliou minha mão apertando-a. Fiquei constrangido.
Que amiga mais sem noção! — Desculpa, Valentim — Mariana empurrou a amiga, mais vermelha que um tomate —. Nós já estávamos de saída. — Eu posso levá-las — ofereci rezando para Mariana desistir de ir embora. Ela tirou as mãos dos bolsos do sobretudo, estava com luvas. Pegou o celular e conferiu o visor. Parecia querer saber a hora. — Eu preciso ir, Mari. Você pode ficar — Carlie também olhou no relógio em seu pulso. Bastou Mariana olhar a amiga para censurá-la. — Não, eu vou com você. Carlie parou um táxi rapidamente. Senti uma palpitação ruim no peito, não queria vê-la entrando no carro para ir embora. — Olha aqui, não vai deixar um homem gato desse na mão, né? — a desparafusada não sabia sequer ser discreta —. Se você não quiser, eu vou com ele — ela ameaçou já com a porta aberta do táxi. Mariana pensou, pensou. Olhou para mim e se deu por vencida. — Vamos tomar um vinho, hoje é sábado — ajudei-a a andar até o meu carro quando se decidiu. Seus saltos pretos eram muito altos, o que a deixava somente com uns dez centímetros abaixo da minha altura. Abri a porta do carro para ela e fechei quando vi que tinha se acomodado. Entrei do outro lado, coloquei o cinto e liguei o rádio em uma estação que só tocava músicas calmas. — Estavam comendo? — perguntei tentando puxar assunto. — Pois é, Carlie conseguiu outro emprego e queria comemorar — explicou, digitando algo no celular. — Ela trabalha com você? — Sim, mas agora trabalha em outro lugar também — ela me olhou apoiando-se de lado na porta do carro —. Como sabia que eu estava aqui? — Eu não sabia — sorri ao dar a resposta —. Estava andando pela cidade, aqui é o ponto mais movimentado de Seattle. Pegamos a segunda avenida. Deixei meu carro para um manobrista estacionar e ajudei Mariana descer. Ela se apoiou em meu ombro para andar pelo beco que passamos para chegar no PUB que escolhi.
— Está me sequestrando? — quebrou o silêncio. — Estou. Algum problema, bailarina? — Nenhum, doutor — seu sorriso se abriu, e eu o observei quando olhou para os nossos pés. Chegamos no Bathtub Gin and Co e ela abraçou o próprio corpo, sentindo o frio noturno da nossa cidade. Eu quis abraçá-la, mas não era cogitável. Solicitei uma mesa perto do aquecedor, e o hostess nos levou até o respectivo lugar. Pedi um vinho branco do menu, e me esforcei ao máximo para não ficar vidrado em Mariana. Queria poder desenvolver uma conversa como pessoas normais, mesmo sendo quase impossível tendo uma poesia em forma de mulher bem na minha frente. — Sua filha tem quantos anos, Valentim? — perguntou sorridente, enquanto guardava algo em sua bolsa. — Ela morreu, com cinco anos. — Ah, meu Deus! Eu sinto muito, muito mesmo — Mariana puxou os lábios para o canto e mordeu a boca por dentro —. Qual era o nome dela? — Ana. Só Ana — sorri ao pronunciar o nome da minha filha. — Belo nome. Modéstia parte — jogou os cabelos, brincando e fazendo charme. — É, parece com o seu — peguei o cardápio desviando minha atenção das suas mechas longas, tentando inutilmente ignorar o cheiro delicioso que elas exalaram. — Ela morreu em algum acidente? — também pegou o cardápio. As suas perguntas não continham melancolia, ela parecia simplesmente querer saber da minha história. Sem me penalizar ou me encher de condolências falsas como todos faziam. — Ana teve leucemia, foi irreversível. Depois da minha resposta ela largou o cardápio, me olhou nos olhos e segurou minhas mãos. O gesto me pegou de surpresa. Sua pele agora sem luvas, estava gelada. Seus dedos acariciaram os meus e então ouvi e vi sua respiração profunda sair. — Pode ter certeza que quando digo que sinto muito, é que sinto mesmo. Sei como é ter alguém tão importante na família, vítima do câncer. E também sei que vou perder a minha mãe em breve. Admiro a sua força por continuar, Valentim. Mal sabia ela que eu não tinha força alguma. Era só um dia após o outro. Amanhecia, anoitecia, amanhecia, anoitecia.
— Você também vai conseguir — tentei consolá-la. Apertei meus dedos nos seus. Trouxe suas mãos geladas até minha boca e as beijei, afetuosamente. Seus olhos não abandonaram os meus. Eu não sei porque tinha feito aquilo, mas naquele momento era só um pai que tinha perdido a filha, diante de uma filha que logo perderia a mãe. Contei para ela sobre a doença de Ana. Sem detalhar muito, era um tópico que se caso fosse aprofundado seria inevitável não me causar alteração de humor, sempre sentia raiva e desgosto com como as coisas foram conduzidas, e da conduta da minha esposa diante da circunstância. Não deixei transparecer o meu sentimento de fracasso por ser oncologista e não conseguir curar minha própria filha, mas sem que precisasse mencionar, Mariana usou as palavras que eu precisava ouvir, dizendo que cada ser tem sua missão, e que nem usando os métodos mais avançados e modernos eu conseguiria salvar alguém que Deus escolheu ter ao Seu lado. Mariana era uma companhia extremamente agradável. Ela aceitou tomar uma taça de vinho comigo, e quando começamos a falar da minha mãe e da minha irmã, suas gargalhadas ecoaram no pequeno espaço que estávamos. Notei uma graciosidade peculiar em sua risada, ela fazia um barulho com o nariz, como se fosse um ronco bem baixinho. — Elas são realmente doidas! — comentou. — As duas não estão nem aí com o que vão pensar. — Então foi Charlotte que apertou para chamar a ligação? — Foi — admiti. — Ah, meu Deus! — limpou a maquiagem preta debaixo dos olhos. Ela literalmente chorou de rir quando contei que era minha irmã quem mandava os bilhetes para as minhas pretendentes na época do colégio. Charlotte falava por mim e planejava os meus encontros. Eu não era tímido, mas não conseguia ser descarado como ela. — E me diz uma coisa — indagou, assim que se recuperou das gargalhadas —, sua esposa não sente ciúme de você sair? Já sei, você diz que está com algum amigo, ou melhor, no hospital — pegou o menu de vinhos e bateu no meu ombro —. Homens! Por que vocês são assim? — Eu pelo menos não sou assim. Não minto, mas também não dou satisfações para Vivian. Outra hora falaremos sobre o meu casamento, não quero estragar o clima. Pode ser?
Ela se calou. — Ei, bailarina — levantei seu queixo com o apoio da minha mão, quando vi seu olhar focar nas taças sobre a mesa —. Você não foi invasiva. Só vamos deixar isso para lá, tudo bem? Assentiu com a cabeça e olhou pela quarta vez no celular. — Tem compromisso, Mariana? — eu definitivamente não queria ouvir a resposta. Era quase meia noite e ela já tinha se despedido da amiga antes. Por que a preocupação com o horário? Tinha algum sortudo na parada, claro! Só podia ser. — Não posso demorar para ir embora — molhou os lábios novamente no vinho. Mariana bebia mais devagar do que eu, goles tão curtos que quatro dedos levaram uma hora para serem ingeridos. — Você tem namorado? — encurralei sendo direto, para que ela não pudesse dissimular. Mesmo temendo mais uma vez o que ela tinha para falar. Ficou quieta. Me olhou, me olhou e sorriu. — Não tenho, Valentim. Em silêncio, eu agradeci aos céus. Ficamos mais cerca de trinta minutos falando sobre as crianças do hospital e sobre o quadro clínico da sua mãe. Ela me contou um pouco da sua infância interiorana e então terminamos a segunda taça. Mariana tirou a carteira da bolsa mas eu coloquei minha mão sobre as dela, empurrando-as devagar para guardar. Olhei sério para ela e neguei com a cabeça. — Me deixa pagar também. — Mariana — adverti. Deixamos o PUB quase uma hora da madrugada. Ela queria pegar um táxi e obviamente que não permiti. Coloquei seu endereço no GPS me sentindo um felizardo por saber onde ela residia. Quando cheguei no local, me senti um pouco mal. Conhecia aquele prédio, mas só por passar na frente algumas vezes. Velho e muito detonado. Ela não se sentiu mal quando viu minha reação ao averiguar o local. — Eu garanto que minha casa é muito aconchegante — sorriu tirando o cinto —. Tem jeitinho de lar, sabe? — colocou a bolsa no ombro. Não, eu realmente não sabia o que era esse jeitinho de lar.
— Isso aqui é seguro? — movi o dedo apontando a nossa volta —. Você mora com Carlie? — É. E moro — foi seca —. Não gosto da forma que fala. Ela me encarou por alguns segundos. — Desculpa — cedi. — Tudo bem, Valentim — sorriu um pouco sem graça e se aproximou para se despedir. Nos desencaixamos um pouco, tomados pela vergonha. Por fim, segurei-a na nuca e deixei um beijo demorado em seu rosto. Fui recompensado pelo seu cheiro e pela maciez do seu cabelo em meus dedos. — Tenha uma boa noite, bailarina.
4 Mariana D'Ávila
Ouvi o barulho do chuveiro e o cheiro cítrico do sabonete exalou pelo quarto, os meus olhos ainda apertados pelo sono somado ao cansaço da noite, se direcionaram para a porta do banheiro. Permaneci deitada, abraçada ao travesseiro branco, pensativa e preguiçosa. Mesmo que fizesse parte da minha rotina, toda vez que eu acordava ao lado de um estranho em um quarto de hotel, vinha consigo uma carga de culpa acompanhada da sensação de sujeira. Não sentia orgulho da minha profissão, mas infelizmente era o que proporcionava o dinheiro suficiente ou, quase suficiente para custear os gastos constantes dos diversos tratamentos que minha mãe fazia. Muitas vezes faltava, o que me obrigava a ralar mais e mais. David ao menos não era tão estranho assim. O irlandês frequentava o Le Luxe desde antes da minha chegada. E quando fui contratada para definitivamente servir a casa, ele me escolheu como companhia, para passar todas as noites que se hospedava em Seattle. Era um homem rico, empresário da indústria farmacêutica, casado e bem resolvido. — Bom dia, Bela. — Bom dia, David — me sentei devagar na cama, estendi os braços me espreguiçando enquanto observava o homem passar a toalha branca nos fios loiros e lisos do seu cabelo. — Está como uma leoa — sorriu admirando meu cabelo que, com certeza estava parecendo um ninho. — Imagino que sim — sorri também com o comentário e levantei, enrolando-me no lençol. — O serviço de quarto logo traz o seu café da manhã. Tome um banho para relaxar, Bela. Você apagou de tão cansada que estava, espero não ser o culpado disso — se aproximou e segurou meu queixo, me roubou um beijo rápido e abriu o frigobar ao lado da cama. — Não, você não tem culpa — tomei a garrafinha de água da mão dele, e ele me fuzilou com o olhar, brincando. Bebi uns goles e devolvi. — Se eu não fosse casado... Você já seria minha mulher — o irlandês sem vergonha suspirou, estudando o meu corpo de cima a baixo. Ignorei o
comentário e virei-me de frente ao espelho do banheiro. Mexi nos meus cabelos em uma tentativa falha de penteá-los com os dedos, e o prendi fazendo um coque no topo da cabeça. Tomei uma ducha rápida e saí enrolada na toalha de algodão. O café estava em uma bandeja no meio da cama. David falava algo no celular próximo a janela grande do quarto, seu sotaque puxadíssimo às vezes me confundia, e eu também não fazia a mínima questão de saber nada da vida dele, além do que ele se sentia confortável de contar. — Bela, tenho que ir. Espero que tenha um bom dia — capturou novamente meu queixo e distribuiu beijos no meu rosto todo —. Deixei na gaveta, ali — olhamos juntos para um criado mudo —. Não sei se ficarei até amanhã na cidade, mas será um prazer tê-la essa noite se caso sim. — Certo, você tem o meu número e sabe a hora que chego no Le Luxe — sorri sem mostrar meus dentes e peguei o copo com suchá de hibisco na bandeja —. Tenha um bom dia, David. — Até mais, Bela. Ele me apelidou carinhosamente de Bela desde a primeira vez que saímos. Sempre enaltecia minha beleza, falava dos meus olhos, do meu cabelo, das minhas curvas, bunda, tudo. Era um homem gentil, mas querendo ou não estava ali para se satisfazer, não havia preocupação com o meu prazer, ou com como eu me sentia, era algo maquinal e frio. Não me importava, David me pagava muito bem e não me destratava como a maioria dos outros. Antes de ir embora peguei o envelope com o faturamento da noite e coloquei meu casaco para enfrentar a manhã gelada. Garoava quando pisei fora do hotel, pedi um táxi sem condições de voltar com transporte público para casa. Estava acabada. O apartamento estava silencioso quando entrei. Carlie com certeza também tinha passado uma madrugada inteira virada. Abri a porta do seu quarto devagar e confirmei, ela estava desmaiada entre os edredons. Tomei outro banho. Sim, detestava me sentir suja. Tinha a esperança de me limpar com a água do chuveiro, mas era em vão. Dormi até às duas da tarde, e acordei com muita saudade da minha mãe. Eu e Carlie resolvemos ir para o hospital visitá-la, e aproveitaríamos para almoçar por lá mesmo. Ficamos em silêncio durante o trajeto todo. Exceto pelo comentário sobre um empresário que conheceria a Le Luxe em breve. — As meninas estão todas empolgadas — respondi, quando Carlie contou que
boatos apontavam que o homem era um poço de beleza e poder. — Quer apostar quanto que ele vai escolher você ou a Justine? — Olha, eu não sei. Provavelmente estarei ocupada, David vem de duas em duas semanas. O silêncio reinou novamente. Nós sentíamos a exaustão do nosso trabalho e respeitávamos quando uma ou a outra precisava ficar quieta. — Olha se não é a loira mais bonita desse mundo — Álvaro apareceu ao nosso lado no corredor de entrada do Saint Clair. — Não era só do hospital? — questionei. — Mas Jesus Cristo, como é o seu nome, dona dos cachos mais bonitos que já vi? — o galanteador logo partiu para a minha amiga. — Carlie. E você fica uma coisa tentadora dentro desse jaleco — parece que ela acordou de repente. — É um prazer conhecê-la. Eu sou o Álvaro — pegou na mão dela e beijou. — Eu garanto que o prazer é todo meu. Ouvi a voz de predadora da minha amiga e balancei a cabeça, segurando o riso. Deixei os dois flertando no corredor e segui para o quarto onde minha mãe ficava. Meu coração parou quando não a vi deitada na maca, o lugar desocupado me trouxe um vazio tremendo. Fui para a recepção mais próxima onde duas funcionárias falavam no telefone e nenhuma delas me deu atenção. Dei uma volta atrás de algum enfermeiro conhecido, mas nada. — Doutor — cocei minha garganta para corrigir —. Valentim — senti um alívio ao vê-lo passar por trás de mim. Peguei em seu braço e ele me olhou preocupado. — Aconteceu algo Mariana? — Minha mãe, não está lá. — Tenha calma. Sua mãe passou mal, vomitou muito e a enfermeira levou-a para o banho. Mas ela já está melhor! Minha mão foi automaticamente sobre o meu coração, respirei fundo e fechei os olhos. — Senti um medo enorme, Valentim — voltei a olhá-lo. — Vamos conversar. Podemos ir ao Starbucks? Daqui meia hora — olhou no relógio dourado em seu pulso.
— Não vai dar. Eu cheguei tarde hoje e quero compensar a ausência. — Mariana — ele fez uma pausa paciente —. Martha está medicada, tomou muito dimenidrinato para as náuseas e os efeitos colaterais da quimioterapia. Vai voltar do banho e dormir. Abaixei os ombros, rendida. — Tudo bem, então passo dar um beijo nela. Os olhos de Valentim examinaram os meus. Parecia que meus segredos seriam desvendados a qualquer hora, que ele iria desnudar o meu interior e me deixar vulnerável. A verdade é que tive medo quando notei esse sentimento em mim. Evitei o contato e abaixei minha cabeça, voltando para o leito da minha mãe. — Minha filha, Carlie estava me contando o quanto o trabalho de vocês está puxado — ela pegou minha mão e colocou entre as suas. Minha mãe sabe que trabalho em casa noturna, mas não sabe especificamente com o que. Ela acredita que eu seja algum tipo de bargirl, e na realidade eu comecei assim, mas jamais conseguiria pagar uma internação para ela com um emprego desse. — Está um pouco, mãe — confessei —. Mas tranquilo, o que importa é que estou conseguindo dinheiro — sorri para ela, que me olhou preocupada. — É, isso é verdade. Mari é a preferida da nossa patroa — minha amiga contou, fazendo minha mãe contentar-se um pouco. O problema é que o fato de eu ser a "preferida" de Pauline, me faz trabalhar mais. Ela me coloca como atração, como o chamariz da noite. Considerando também que sou nova, carne fresca e pouco "usada", os homens pagam mais, fazendo o lucro da casa aumentar muito. — Álvaro me chamou para ir comer algo com ele — Carlie contou assim que saímos do quarto. — Valentim também. Vamos ao Starbucks? É aqui ao lado, e não quero ficar a sós com ele. — Por que não? Ah, menina! Se eu fosse você aproveitava aquela loucura de homem. Eu hein, parece que você tá dormindo no ponto. — Aproveitar? Ele é casado, diretor do hospital que minha mãe fica, e ele não quer nada comigo. Só está na merda com o casamento dele. — E daí que é casado? Quantos homens casados você transa por semana? — questionou baixinho, e eu apertei seu pulso —. Ai, sua bruta! Eu cochichei — se defendeu.
Mas é verdade. E daí que é casado, Mariana? Quantos homens com um puta anel de platina no anelar você transa por semana? Inúmeros! — Não, nada a ver! — respondi depois de um tempo pensando —. Não sei de onde está tirando essas ideias, sua louca. Ele só é um homem bonito. — E charmoso pra cacete! Gostoso! Um pecadinho! Ai se eu pudesse — se lamentou, suspirando e rolando os olhos. — Podemos ir? — ouvi a voz grave e grossa atrás de mim. Levei um susto. — Credo! Que susto — Carlie falou o que eu pensei e nós três rimos. — Doutor Álvaro está do lado de fora te aguardando, Srta. Carlie. Ela saiu entusiasmada e eu me coloquei ao lado de Valentim. Andamos para fora do hospital, e parei em sua frente quando vi que tirou uma chave do bolso. — Não acho uma boa ideia irmos de carro. Valentim acenou cumprimentando com a cabeça três pessoas que passaram pela entrada. Ele era muito conhecido no Saint Clair, era um diretor participativo. E isso não me deixava nada confortável. — Por quê? — franziu as sobrancelhas formando um vinco entre elas. — Acredito que a maioria por aqui sabe que você é casado e conhece a sua esposa. Eu não gostaria se fosse comigo, Valentim. — Mas nós só somos amigos. Qual é o problema nisso? Amigos? Não precisa pegar tão pesado também! — Vamos andando — ignorei a pergunta dele e fui na frente. Ele demorou um pouco para me alcançar, quando se aproximou estava sem o jaleco, com uma blusa de linho preta e as mãos enfiadas nos bolsos da calça. — Devo imaginar que você quer conversar comigo sobre a minha mãe — fui objetiva, nunca gostei de rodeios. — Sim. Fechei meu casaco me protegendo do frio que a garoa proporcionava. Continuamos caminhando um ao lado do outro, e então ele falou: — Suponho que saiba sobre o estado do carcinoma de sua mãe, certo?! — consenti e ele continuou —. Os cuidados paliativos são requeridos quando tornase claro que o paciente se encontra em estado progressivo de declínio. Estamos avaliando e gerenciando rotineiramente o quadro clínico dela, através de consultas e intervenções ativas necessárias. — Eu sei, ela me contou que quase toda semana muda a medicação ou a
quantidade, para se adaptar com o que o organismo dela pode digerir — meu coração pareceu ter sido comprimido, e meu estômago doeu diante dos comentários do oncologista —. Mas por favor, Valentim, seja direto! Nossos passos se tornaram mais lentos, estávamos a um quarteirão de distância da cafeteria. — Sua mãe tem ficado muito deprimida com a astenia, ela parou de se alimentar há alguns dias. — Isso significa que ela está desistindo? — encarei-o, sentindo meus olhos arderem e inundarem —. Mas Valentim, ela está fazendo terapia, não está? — Sim. Nós oferecemos a terapia dinâmica, mas sempre respeitando o limite de cada paciente. — Posso conversar com ela, para voltar a comer. Eu falo com ela quando voltarmos para o hospital. Paramos em frente ao Starbucks quando Valentim segurou minhas mãos, como um gesto de apoio. Seus olhos ampararam os meus, seu polegar contornou minhas pálpebras inferiores a fim de secar duas linhas molhadas que escorregaram dali. — A tendência da família é forçar a ingestão de comida do paciente. E eu te entendo, sei que quer o melhor para a sua mãe, mas o meu conselho é que nessa fase terminal você respeite as necessidades do corpo dela, que agora são diferentes. Se ela se nega, por que sujeitá-la a mais um sofrimento além do que já se suporta? Coloquei minhas mãos cobrindo meu rosto, e comecei a soluçar deixando minhas lágrimas molharem minhas mãos. Senti um abraço acolhedor e apertado me envolvendo. — Eu não quero perdê-la, Valentim — tentei secar minhas bochechas, recuperando a respiração e controlando minha voz trêmula. — Eu sei, Mariana. Eu juro que eu sei. Me desvencilhei dos braços dele quando a ficha caiu. Ele não tinha que ter me abraçado, ainda mais no meio da rua, na entrada de um lugar supermovimentado. — Você parece tão cansada — me analisou por segundos, secou mais uma vez meu rosto e segurou meu queixo direcionando meu rosto para ele —. Eu posso te prometer que esse medo e essa dor diminuirão. — Obrigada, Valentim — me esforcei para abrir um sorriso de gratidão. Ele apoiou sua mão nas minhas costas, guiando-me para dentro. Logo avistei
minha amiga e o gastroenterologista sentados em uma mesa de canto. Nos juntamos a eles, e não precisei dizer nada para Carlie me olhar toda preocupada. — Você quer conversar? Quer ir embora? — ela aproveitou um minuto de distração dos médicos para cochichar, aproximando-se de frente a mim. Neguei com a cabeça e respirei fundo. Peguei o tablet para pedir um mocaccino e depois encostei na parede ao meu lado, esperando os três pedirem algo. — Vocês almoçaram? — Valentim perguntou. — Fiz uma lasanha congelada, mas Mariana estava dormindo ainda. — Aonde costumam frequentar? Quer dizer, deduzo que saíram ontem. Apareceram mais tarde hoje para visitar a Martha — o oncologista parecia estar rondando para descobrir algo. Eu e Carlie nos entreolhamos, procurando entrar em um consenso sobre o que falar. — Gostamos de PUB, nada demais — tirei o casaco ao sentir o lugar mais aquecido do que a área externa. — Vamos marcar então, qualquer dia — Álvaro sugeriu, afeiçoado por minha amiga. — Eu topo. Topo o que você quiser — Carlie respondeu fazendo-o gargalhar, e vi de soslaio quando Valentim balançou a cabeça, se divertindo com a sinceridade da minha companheira de apartamento. Nossos cafés chegaram, mais tortas e torradas. — Por que não come um pedaço desse roll? É o meu preferido, experimente — Valentim tirou uma tortinha do papel e deixou no meu prato, cortou alguns pedacinhos e pegou com a mão. — Eu não quero, obrigada — beberiquei o meu café quente com chocolate e creme, devagar para não queimar a boca. — Coma, Mariana — ele ofereceu mais uma vez, colocando o pedaço de doce perto dos meus lábios. Eu cedi, capturando cuidadosamente o roll de canela dos seus dedos para não fazer sujeira. Seus olhos permaneceram focados na minha boca por tempo demais, eu peguei um guardanapo para limpar os farelos de açúcar, sentindo minhas bochechas queimarem de vergonha. A sorte é que Carlie e Álvaro estavam tão entretidos, mostrando coisas em seus celulares, que não viram a cena. — Gostou? — Valentim limpou os dedos com a própria boca, e foi minha vez de
ficar vidrada em seus lábios finos e seu arco de cupido ligeiramente melado pelo creme. — Muito — respondi, com a saliva travada na garganta. Forcei a engolir e me recuperei, arrumando minha postura. Ficamos um pouco envergonhados depois da troca desejosas de olhares. Eles pediram mais cafés, e eu estava ficando impressionantemente incomodada com o meu jeito em relação a Valentim. Ficava reparando em cada detalhe dos seus movimentos. A forma de arrumar o cabelo negro e revolto, como segurava o garfo com total precisão, sua boca avermelhada assoprando o café, os sorrisos estampados por consequência das graças dos nossos amigos, seus graciosos olhos que se fechavam quando ele ria, e a forma que suas mãos gesticulavam quando explicava qualquer coisa. Busquei não prestar muito a atenção em sua aliança grossa e dourada na mão esquerda, ela me irritava de forma desproposital. — Você também é professora de dança, Carlie? — Álvaro questionou. — Só se for dança da chuva — ela riu e nós também. — Mas vocês não trabalham juntas? — Valentim interroga, verificando as expressões de Carlie ao responder. — Sim, trabalho na oficina de teatro e dança que Mariana dá aulas de balé. Ela não mentiu. Pelo menos eu preferi pensar assim do que me sentir culpada. — Moram juntas e trabalham juntas. Eu e Valentim pegamos um plantão no mesmo horário e no dia seguinte não aguento olhar pra cara dele — Álvaro espeta o amigo. — Você não vive sem mim. — Não vivo mesmo, daria tudo, eu disse tudo, para estar no lugar da Vivian — Álvaro foi hilário, eu sorri com a ênfase que ele deu, mas me senti mal quando terminou falando da esposa. Na hora de nos despedirmos, Valentim se aproximou para me dar um beijo no rosto. Eu retribuí e então peguei meu casaco para colocá-lo de volta. Notei que o médico ficou me olhando por tempo demais. Carlie estava ao lado da mesa, com os braços cruzados prestando atenção em algo que o gastro contava. — Se machucou? — Não, por que? — ergui a sobrancelha, confusa com a pergunta impremeditada. — Vamos, Mari? — Carlie interrompeu.
Cuidadosamente, Valentim pegou no meu pescoço, fazendo-me inclinar a cabeça para trás. Claro! O irlandês havia me marcado, só podia ser. — Está roxa aqui — senti o polegar dele deslizar sobre a possível marca e arrepiei de um jeito estremecedor. Mas fiquei inibida com sua observação. — Nós jogamos paintball, e Mariana arrasa. Carlie, querida, da onde você tirou isso? — Paintball? Não tinha necessidade de mentir, como também não tinha necessidade nenhuma do intrometido perguntar de um chupão no meu pescoço. O que ele tinha a ver com isso? Que falta de noção me fazer ficar constrangida assim. Ave Maria, rogai por nós pecadoras não é mesmo?! — Eu sou perito nesse jogo, humilho qualquer um — Álvaro realmente só podia estar obcecado em Carlie, pra não ter enxergado maldade nenhuma e nem entender a situação. Valentim continuou me olhando, e eu coloquei minhas mechas compridas para frente do corpo, tentando discretamente cobrir meu pescoço, não sabia mais o que poderia ser encontrado ali, então achei melhor me precaver. — Vamos essa semana. Um conhecido meu tem uma arena muito boa de paintball. Podia jurar que ele estava falando só pra se divertir com a minha cara. Dias depois, Álvaro veio falar comigo no hospital, contando que havia marcado um jogo no campo do conhecido. Eu queria morrer de vergonha. É claro que Valentim não tinha acreditado na história furada Carlie, aquela maluca! Era tipo mentir para o pai que as marcas de sexo selvagem eram nada mais nada menos que uma alergia da bijuteria usada no pescoço. Quem nunca? Eu nunca! Até porque Deus me livre do meu pai. Inclusive já livrou, amém! Mas sei que muitas já fizeram isso. Estava na minha rotina de costume. Balé, peças para as crianças do Saint Clair, convivendo diariamente com a minha mãe, e a noite recebendo o máximo de dinheiro concebível. O oncologista surgia feito uma aparição para mim no hospital, mas uma aparição que eu adorava ver. Somente durante o horário de almoço que eu o via irritado, na maioria das vezes porque a megera, aliás, a Vivian aparecia para fazê-lo companhia.
Na sexta feira Charlotte veio falar comigo sobre aulas de balé para a sua filha, porque no dia anterior tinha me assistido ensinando as meninas do hospital. A irmã de Valentim era tão engraçada quanto ele tinha descrito no dia em que fomos tomar um vinho, na semana passada. Ou mais, ela me fazia rir com o seu jeito espontâneo, e Deus que me perdoe, mas adorava a forma depreciativa que referia à esposa do irmão. No sábado recebi uma mensagem logo cedo. ✉ “Bom dia, bailarina Estou ansioso para ver como você arrasa no campo, com um marcador na mão. Em uma hora eu passo no seu prédio para pegar você e Carlie. Fiquem prontas, Valentim” Estava sonolenta ainda por causa da madrugada agitada. Tinha ido dormir próximo das sete horas da manhã, e às nove e meia estava de pé. Passei para ver minha mãe lá pelas seis e voltei ao apartamento, já que ela estava completamente indisposta e só queria dormir por consequência dos remédios. Coloquei o celular na testa e fechei os olhos. Queria matar Carlie, mas também a amava um pouco mais por ser responsável pelo meu encontro com Valentim hoje. Corri para acordá-la, ela resmungou muito e relutou, mas quando falei a palavrinha mágica chamada Álvaro, ficou de pé no mesmo instante. Tomamos banho revezando o banheiro, depois vesti uma calça jeans, uma blusa cinza de mangas longas e tênis. Caprichei no perfume, mas deixei minha pele livre de maquiagens. Fomos para a cozinha e eu abri uma lata de energético, tinha dormido pouco e embora estivesse animada, meu corpo estava cansado. Ouvi uma buzina soar da frente do meu prédio, sim, o residencial que eu moro é pequeno, têm três andares e pouquíssimos apartamentos. O interfone não funciona e não tem uma portaria. Meu celular começou a vibrar em cima do balcão que separa a cozinha da sala, e Carlie apareceu toda desajeitada no corredor vestindo uma blusa de moletom. Descemos pelas escadas e então eu vi o carrão alto do Valentim. Ele saiu, abriu a porta traseira para Carlie e depois a do passageiro ao seu lado, para mim. Ele estava com uma camiseta branca e por cima um casaco fino de malha azul,
calça jeans escura e tênis branco. Sua feição me mostrava que estava despreocupado e contente, assim como eu. Carlie tagarelava no banco de trás sobre como jogaríamos, eu aproveitei para pegar as regras porque nem me lembrava. Aliás, só tinha jogado duas vezes. — Vamos ver se Mariana é boa mesmo — Valentim me provocou e eu aumentei o volume do carro. Comecei a cantarolar Show me Love do Robin Schulz e Richard Judge, Carlie entrou no ritmo e Valentim balançou a cabeça sorrindo. But there's still nothing as beautiful as you Mas ainda não há nada tão bonito como você Will you show me love as we get older Você vai me mostrar o amor à medida que envelhecemos And I'm falling at your feet E eu estou caindo aos seus pés After 30 years of service Após 30 anos de serviço And one to fit our need E um para atender a nossa necessidade Show me love as we grow colder Mostre-me o amor como nós crescemos, mais frio Let our love provide the heat Deixe nosso amor fornecer o calor Minha boca cantava a música animada, mas minha mente estudava a letra tão sugestiva. Percebi os músculos dos braços de Valentim um pouco tensos ao chegar no refrão da música e eu também fiquei apreensiva. Pegamos uma estrada para chegar na tal arena. Encontramos Álvaro nos esperando no galpão, conversando com dois rapazes. Logo nos deram as vestimentas necessárias, macacão, luvas grossas, colete, joelheiras, cotoveleiras e a máscara de proteção. Eu e minha amiga nos ajudamos a vestir tudo e depois voltamos para o galpão. Valentim me olhou dos pés a cabeça, ele suspirou e aconselhou: — Prenda o cabelo, bailarina.
Fiz uma trança rápida deixando-a de um lado do meu ombro. Escutamos as instruções do monitor do jogo enquanto esperávamos Charlotte chegar com o marido. Álvaro e Carlie pareciam se conhecer há anos, ela logo começou a pular nas costas dele e ele corria pelo campo, dois palhaços! — Você ficou incrível toda equipada. — Você também está uma gracinha, Valentim — não consegui me conter. — Uma gracinha? — interrogou, rindo. — Uma gracinha — confirmei. Íamos jogar livre, sem as regras fixas do paintball. Só seguiríamos o objetivo mesmo, roubar a bandeira do time inimigo e trazer para o nosso time. Um instrutor formaria uma equipe, e o outro a segunda equipe. Na primeira estava eu, Valentim, o instrutor e Charlotte. Na outra, Carlie, Álvaro, um instrutor e Eric, o cunhado de Valentim. Pegamos os marcadores e colocamos a quantidade necessária de munição. Eu estava muito ansiosa e excitada para começar. Fomos para a arena, eu me senti em um campo de batalha, onde tinha barris, pneus, mesas, bunkers, e uma verdadeira adrenalina percorreu nas minhas veias. Queria começar logo, mas também estava com medo de levar tiro daquelas gelatinas com tinta. Nos posicionamos atrás dos barris, eu estava bem perto de Valentim, Charlotte um pouco distante e o instrutor ao meu lado. Após enchermos o cilindro, desabilitamos a trava de segurança das armas e as seguramos com as duas mãos. Fizeram uma contagem e então o jogo começou. Os dois instrutores foram os primeiros a se movimentarem, se escondiam atrás dos pneus e das árvores, até se aproximarem do centro do campo. Valentim correu para o barril mais próximo e eu com a Charlotte permanecemos no mesmo lugar, rindo de nervoso. — Tô cagada de medo, menina — ela admitiu e eu concordei com a cabeça. — Daqui eu não saio daqui ninguém me tira — respondi. Ouvimos alguns tiros e estrondos das bolinhas lançadas contra os materiais utilizados como escudos. — Mariana — ouvi Valentim gritar meu nome e tomei coragem para sair dali. Corri na direção dele, que estava com as pernas dobradas, quase ajoelhado no mato cortado. — Tô nervosa — disse, rindo. — Mas você não arrasava no paintball? Estou começando a desconfiar que
algum homem andou te deixando marcas no pescoço — falou, todo irônico. Agradeci mentalmente quando precisamos correr porque o instrutor do time adversário se aproximou. Nos escondemos atrás de uma árvore e nossas respirações estavam altas e ofegantes. Arrisquei a colocar o dedo no gatilho e me virar em direção ao campo, vi Carlie e então atirei, não acertei mas ouvi ela me xingando de tudo o que vocês podem imaginar. — Quase! — praguejei. — Venha — Valentim segurou minha mão e disparamos para o centro do campo. Ele atirou no cunhado, mas o mesmo conseguiu desviar e fugir. Ouvi Carlie comemorar toda orgulhosa, e nós caímos na risada quando descobrimos que a comemoração era porque ela acertou o Álvaro. Ela realmente não sabia que não podia acertar um parceiro de equipe. Demos uma chance e não eliminamos Álvaro. Valentim foi o primeiro a descartar um membro da equipe dois. Ele tirou o instrutor, que estava distraído observando o lado oposto ao que Valentim estava. Nós batemos nossas mãos, e eu o parabenizei. Charlotte esbarrou em nós dois, e se atreveu a correr para o meio descampado. O seu próprio marido a eliminou em segundos e então nosso jogo empatou. Eric disparou algumas gelatinas de tinta em nossa direção mas conseguimos ser rápidos. Nos aproximamos da área do time inimigo, chegando perto da bandeira. — Tente atirar na Carlie, ela está aérea. Segure o marcador assim — ele me mostrou segurando a arma, apoiando o cano com precisão —, mire no pescoço dela, e fique aqui — pegou na minha cintura colocando-me na distância correta da árvore. Quando Carlie correu para alcançar o nosso campo, eu atirei. Acabei exagerando no número de disparos, mas consegui acertá-la fazendo a bola estourar e sujar sua roupa de tinta. — MORTO! — ela levantou as mãos em sinal de rendição e tirou a máscara, saindo da arena. Quando tomei coragem para atravessar para o outro lado, Valentim gritou o meu nome mas eu ignorei. Levei alguns disparos no colete e por sorte as gelatinas não explodiram, o que significa que não fui eliminada. Corri procurando algum esconderijo, e ao meu lado avistei a bandeira amarela do outro time desprotegida. — MORTO! — ouvimos outro participante gritar.
Pela voz foi o instrutor do meu time. Estava uma loucura! De repente Eric apareceu e eu corri para capturar a bandeira. Virei-me e pressionei o indicador no gatilho, me escondi atrás de uma pilha de pneus e continuei atirando. Peguei a bandeira e a encaixei na cintura, me preparei para regressar para o outro lado. Acho que pela pouca propulsão do gás contra as cápsulas eu acabei não conseguindo eliminar o Eric, mas quando saí correndo para voltar, dei de cara com ele. Meu marcador estava apontando exatamente para ele, preparado para atirar, e ele estava com a sua arma abaixada, o que ocasionou sua rendição. — Eu me rendo — levantou as mãos e se retirou do campo. Escutei mais disparos, gritos de Charlotte e de Carlie. — Vai Mariana! Para a esquerda. Só tem o Álvaro no campo, vai para a esquerda — Charlotte recomendou berrando. Corri para a esquerda, preocupada com a falta de munição de cápsulas no cilindro. Vi Valentim passar no meio do campo, e me apressei para chegar até o local escolhido para a bandeira, encaixei ela no suporte e no mesmo instante escutei Álvaro gritar: — MORTO! — Vai porra! Ganhamos — Charlotte desceu correndo para a arena, e foi abraçar o irmão. — Uhuuuuuuul! — Carlie celebrou, mesmo sendo o time inimigo a desfrutar da vitória. Eu me apoiei nos joelhos, tentando recuperar meu fôlego, tirei a máscara e larguei o marcador na grama. Valentim me olhou um pouco de longe, e eu sorri para ele. Ele se aproximou devagar e envolveu seu braço no meu pescoço. — É bailarina, você arrasa mesmo — ganhei um beijo apertado na bochecha. — Uma dupla dessas no mesmo time bicho, fica impossível não vencer — Charlotte inflou o peito e falou toda cheia de si, mas se referindo a mim e ao irmão. — É, porque você mesmo só correu e gritou feito uma louca — Eric cutucou a mulher. — E você fica quieto, não te dei permissão para atirar na Mariana — ela beliscou o marido. — Só respingou, não estourou nenhuma bolinha — respondi, tirando o colete
pesado. Depois desfiz das outras vestes e tentei arrumar o que sobrou da minha trança. Nos juntamos no bar do local, pegamos uma cerveja bem gelada e sentamos na grama em frente a um lago. — Um brinde aos vencedores da batalha — Charlotte ergueu a garrafinha de vidro para mim e para Valentim —. Vocês não brindam nada não, nem sabem jogar — ela esboçou a melhor expressão de metida em direção ao marido, Álvaro e Carlie. Viramos a cerveja trincando e os quatro nos deixaram a sós, sem mais nem menos. Olhamos o sol, reluzente e cheio de raios alaranjados refletindo na água. Depois abaixamos a cabeça e futucamos a terra por baixo da grama. — Podíamos fazer isso sempre — Valentim sussurra. — Isso o que? — viro meu rosto para observá-lo. Seus cabelos estão desgrenhados e sua pele sutilmente suada. — Passar um dia juntos. Sua companhia me agrada muito, Mariana — as íris verdes salpicadas por tons de amarelo me encaram. No mesmo momento penso em seu casamento, alterno o olhar para o céu, contemplando o azul límpido e ensolarado, o que é raro. — Como amigos, sim. — Como quiser — sua mão termina de tirar o lacinho que prendia as pontas da minha trança. Ele começa a desfazer as voltas das mechas e eu balanço minha cabeça a fim de colocar meus fios no lugar. — Eu adoro o seu cabelo. — Adora? — sorrio desembaraçando meus fios com os dedos. — Adoro. Ele ilustra o que eu penso sobre você. — Como assim? — indago confusa. — Você é como o sol, que chega para aquecer. Seu tom calmo e natural me faz sentir como se as palavras proferidas fossem corriqueiras, mas ele não faz ideia do que causou dentro de mim. Mantenho meus olhos compenetrados nos dele, sem poder e nem conseguir falar algo para retribuí-lo. Ele ainda completa:
— E seus fios dourados irradiam como o sol.
5 Valentim Del Torre
Cheguei em casa no final do dia, tomei um banho e estava me arrumando para ir ao hospital quando Vivian entrou no quarto, parou na porta do banheiro e ficou me observando. — Querido, podíamos sair para jantar — sugeriu. — Vou para o plantão — passei a toalha mais uma vez no cabelo, e a joguei no meu ombro. Coloquei uma blusa de inverno e parei em frente à extensa pia, para escovar os dentes. Senti uma repulsa involuntária quando ela apareceu por trás e me abraçou, beijando meu ombro e inalando o cheiro da minha roupa. — Fica para jantarmos juntos, por favor — pediu sussurrando. Lavei minha boca e virei-me saindo dos seus braços devagar. — O trabalho em primeiro lugar, Vivian. Ela respirou fundo fechando os olhos, e eu sabia que estava tentando se controlar para não surtar, mas esse exercício de autocontrole era sem sucesso na maioria das vezes, Vivian era completamente desequilibrada. — O trabalho em primeiro lugar? Você sempre colocou Ana em primeiro lugar. Olhei para ela, e mesmo ao decorrer desses dois anos, ela conseguia me surpreender e me deixar descrente. — Até porque ela era minha filha — expressei o óbvio. — E eu sou sua esposa — disse brava. — Isso não significa que eu sinto vontade de estar com você — pendurei a toalha e saí do banheiro. Estava revisando minha maleta quando Vivian colocou as mãos no quadril, ao lado da cama. — Você tem outra, não é? Está comendo alguma vadia por aí? É por isso que não sente falta, por isso que não faz nada comigo. Pois fique sabendo que eu vou descobrir quem é e vou acabar com essa historinha. — Pirou, Vivian? Largou as sessões com a sua psiquiatra? — franzi as
sobrancelhas, exasperado. — Só pode ser. Querido, você sequer me toca, não me olha, não me beija. Só pode estar suprindo isso com alguém. Mariana apareceu na minha cabeça sem que eu anuísse. Sorri ao lembrar da nossa manhã e tarde juntos. Mas não, eu não a usaria como um "alguém para suprir" a carência do meu casamento, jamais! Virei a noite com Álvaro no hospital. Mandei mensagens para Mariana, desejando tê-la ao meu lado. Porque estava sentindo sua falta desde o momento em que a deixei em sua casa. Ela não respondeu, como de praxe. Óbvio que ela tinha alguém. Alguém como Mariana não teria? A desculpa esfarrapada da sua amiga para justificar a marca de um bom sexo no pescoço, foi cômica. Optei por entrar na farsa já que não tinha nenhum mínimo direito de cobrar satisfações dela, embora eu quisesse muito. Na manhã seguinte a bailarina apareceu vestida a caráter, e contagiou as crianças. Dois homens a acompanhavam, brincando e oferecendo algumas atividades recreativas. Não era o habitual dia da semana, mas autorizei quando soube que a companhia a traria para a visita. Mariana dançou, cantou, encenou e contou histórias para a minha trupe de carecas. Eles a adoravam, senão idolatravam. As meninas ficavam mexendo em seus cabelos dourados, e se divertiam simulando uma peruca. Por fim, ela pintou as pacientes, fazendo uma maquiagem infantil nelas. Quando chegou a hora de voltarem para seus respectivos leitos, Mariana ficou, para recolher a bagunça espalhada. O tempo todo que fiquei assistindo e venerando suas atitudes, ela não me olhou, nem mesmo de canto. Meus colegas enfermeiros foram juntos com as crianças e restou nós dois na sala. Levantei para ajudá-la a guardar os brinquedos e adereços, mas não recebi sequer um bom dia. — Está tudo bem? — perguntei após colocar um chapéu de fantasia dentro do cesto de plástico. Ela assentiu com a cabeça evitando me olhar. — O que acha de almoçarmos juntos, Mariana? — esperei que direcionasse o rosto para o meu, mas ela não o fez.
— Obrigada Valentim, mas não é uma boa ideia. Ela simplesmente passou pelas portas de entrada do lugar e eu fiquei parado sem entender. Saí da sala e a vi andando pelo longo corredor. Fui atrás, mas dois pacientes me pararam para conversar. Tentei ser breve e então voltei a segui-la. Parei quando a vi descer as escadas na frente do hospital. Comecei a questionar se o que eu tinha falado no dia anterior era a causa desse comportamento frio em relação a mim. Será que ela me achava um completo canalha? Ou um carente idiota? Fui consultar a Sra. Martha e vi que a mesma estava sedada. Mariana podia estar sendo consumida pelo sofrimento de perder a mãe aos poucos e era minha obrigação compreendê-la e respeitar seu espaço, espaço esse que começou a me martirizar, quando os dias da semana foram passando e ela continuou se esquivando. Eu estava almoçando no restaurante quando minha irmã apareceu ao meu lado, sentou-se na cadeira e seguiu o meu olhar. — Vai deixá-la almoçando sozinha? — Charlotte roubou uma batata frita do meu prato e mastigou depois de perguntar. — Ela não quer falar comigo — respondi, perdendo o apetite. — Por que? — ergueu uma sobrancelha interrogativa. — Eu devo ter exagerado, no paintball. — No que exatamente? — roubou outra batata frita —. Fez algum tipo de declaração? — Eu acho que sim. — Como ela reagiu? Recordei o momento, lembrando de seu sorriso tímido e suas bochechas muito coradas. Suas pupilas dilatadas concentradas em mim. — Não sei, Charlotte. — Sabe sim. Como ela reagiu? Eu posso te ajudar Tim, se você colaborar. — Ficou quieta, um pouco tímida e com o olhar centrado no meu. — Hummmm... Minha irmã ficou pensativa por segundos, e partiu para a mesa de Mariana. Era só o que me faltava ela fazer como na infância, cuidar das minhas paqueras e se responsabilizar pelos meus encontros.
Charlotte já tinha 27 anos, ela não faria isso. Fui embora no começo da noite, muito exausto. Passava de 24 horas sem dormir. Só queria chegar, tomar um banho e ir direto para cama. Mas não foi bem assim. Saulo estava sentado na poltrona da antessala do apartamento, e assim como ele, Vivian também segurava um copo com gim. Tirei meu casaco, coloquei no gancho ao lado da porta e me aproximei para saudá-lo. Apertei sua mão com firmeza e Vivian se levantou para me beijar. Selei sua boca e no mesmo instante notei sua embriaguez. — Ia até o hospital, mas Vivian não soube informar que horas você voltaria para cá, então decidi esperar — Saulo falou. — Tudo bem. Aconteceu alguma coisa? — sentei-me na poltrona vaga, e Vivian fez menção de servir gim para mim, eu neguei. Meu irmão puxou as barras da calça e acomodou-se ao meu lado, virou o líquido transparente e me olhou após fazer uma careta. — Nós precisamos de uma vez por todas cortar os pacientes com dívidas no hospital. Você como diretor tira uma grana gorda pra cacete, mas não considera que os outros funcionários querem aumento gradativo de salário, e isso não é possível se os folgados continuam pagando como "conseguem". — Os outros funcionários querem aumento gradativo de salário? — dei uma risada sarcástica —. Francamente, o seu individualismo é tão óbvio. Bom, negociamos um acréscimo na segunda feira. Saulo ficou incomodado. E eu sabia que não adiantaria oferecer um aumento correto de salário, ele queria mais, não era um valor justo que ele desejava. — Vim com o intuito de te avisar. Porque eu, na posição de administrador e responsável pela rentabilidade, vou pedir ao setor financeiro para efetuar as cobranças com os determinados juros. Gargalhei outra vez, já nervoso. — Querido, seu irmão está certo. Se os pacientes não custeiam corretamente suas internações, deverão ser cobrados com juros. Levantei-me passando as mãos no cabelo, e olhei intransigentemente para Saulo. — Não tem sentido algum, e você não tem a minha autorização — ordenei com o dedo apontado para o meu irmão. Ele me lançou seu olhar mais furioso, o qual eu já estava acostumado. Deixei os dois na sala e fui para o quarto. Tomei uma ducha demorada e relaxei na cama. Estava quase pegando no sono quando Vivian deitou ao meu lado,
colocou a perna por cima das minhas e encostou seu corpo no meu. — Não fique bravo, querido. Pense direito sobre o que Saulo diz — senti sua carícia no meu rosto e seu dedo passar pela minha barba por fazer. — Ele quer extorquir quem não tem condições — me mantive na mesma posição, sem movimentar sequer o braço que estava embaixo da minha cabeça. — Extorquir? Não, querido. Ele quer que paguem corretamente as internações, os tratamentos. O que há de errado nisso? — O que há de errado é que muitos não podem arcar com esses gastos. Principalmente os meus pacientes. Você está cansada de saber que o tratamento do câncer na maioria das vezes é longo e cheio de contratempos. — Então eles que procurem outro hospital, com métodos mais simples e menos modernos. Como a mulher não podia se sensibilizar? Vivian assistiu a luta árdua da nossa filha, durante os seus últimos seis meses de vida. Mas a verdade é que ela assistiu, mas não acompanhou de perto. Era só uma telespectadora que via sentada na plateia, o mais longe possível. Não esteve presente em uma sessão sequer de quimioterapia de Ana, não a ajudou com seus medos, com a vergonha quando perdeu seus lindos cachos. Vivian simplesmente não se envolveu, até quando nossa filha pediu seu amparo. Apaguei a luz do abajur ao meu lado e virei-me na cama. Me arrumei, ficando de costas para ela e não demorei para adormecer. Na manhã seguinte, como era final de semana, eu dirigi para o edifício da minha irmã, estava com saudades de Sol. Minha sobrinha me recepcionou com o melhor dos abraços e me encheu de perguntas enquanto se aninhava em meu colo. Seus olhinhos brilhantes fitaram os meus e ela disparou: — Tio Valentim, a mamãe não quer me dar o castelo da Barbie Cinderela. — Eu não, eu me recuso a comprar uma Cinderela tão cara. Essas porras são feitas de diamante por acaso? — Mamãe, não pode falar essas palavras feias — Sol censurou a Charlotte, com o semblante fechado e a voz de repreensão. Eu segurei o riso e sentei no sofá, ajeitei Sol em minha perna e mexi em seus fios bagunçados. — O que acha de ir escovar esses dentes? Princesa não tem bafo, meu amor —
fiz cócegas cutucando suas costelas e ela caiu na gargalhada, tentando se desvencilhar de mim. — Tio Valentim! Para! — riu mais enquanto escorregava do meu colo para o tapete no chão —. Vou pentear os cabelos também, princesas têm cabelos lindos — mexeu em seus fios embaraçados —. Mas não vou esquecer, na volta vamos conversar sobre o meu castelo da Cinderela. Balancei a cabeça em negação quando Sol foi para o corredor e entrou em seu quarto. — Se ferrou, Tim. Agora vai ter que dar a Barbie que caga ouro para ela — minha irmã segurava uma xícara quente entre as mãos. — Você sabe que me faz bem presenteá-la, supre um pouco a saudade que eu tenho dos pedidos constantes de Ana. — Eu sei — Charlotte pegou na minha mão, e me apoiou com o olhar. Escutamos o interfone tocar ecoando pelo apartamento inteiro. Minha irmã foi atender e eu fui para o quarto ajudar Sol com os cabelos. — Tio Valentim, quando vou poder te maquiar e pintar suas unhas de novo? Lembra o dia que fizemos festa do pijama na sua casa? Claro, a Tia Vivian não pode estar lá. Ela não gosta de bagunça e reclama o tempo todo. Não gosto dela, mas eu sei que ela gosta muito de você. Tio Tim, o quarto da Aninha ainda está lá, né? Eu adoro os ursos gigantes que ela tem, podemos fazer uma reunião das princesas, o que você acha, Tio Valentim? Prestei atenção em todas as suas perguntas e seus parênteses, à medida que ia tirando os nós com a escova em seus fios castanhos claros. — Eu acho uma boa ideia, meu amor. Podemos marcar sim, senhorita. Uma festa do pijama, uma reunião, ou um chá, como você gosta. Ela bateu palmas, e pegou um batom cor de rosa na penteadeira branca iluminada. — Se eu continuar sendo uma criança boazinha, obedecer o papai e a mamãe, e tirar notas boas até as férias, você me dá o castelo da Cinderela no natal, Tio Valentim? — Dou, Sol — sorri ao admirar sua forma de negociar, tão pequena e tão esperta —. Mas é segredo nosso, você consegue guardar? — Consigo — cruzou os indicadores em frente a boca e beijou em forma de juramento. Gostava de ser cúmplice da minha sobrinha, ela se sentia responsável em nossas
missões juntos e isso de uma forma ou de outra acabava amenizando a falta que Ana fazia em minha vida. Eu tinha uma parte de Sol só para mim, um companheirismo só nosso. — Tio Valentim, agora me dá licencinha que eu preciso me transformar na bailarina. Mamãe comprou uma roupa linda para eu usar nas minhas aulas. Aulas de balé? Charlotte estava aprontando! Minha irmã não dava um ponto sem nó. Fui até a sala e vi a porta de entrada aberta. — Que bom que você veio, a Sol está ansiosíssima para aprender — ouvi minha irmã comemorar —. Comprei uma roupa que a moça da loja indicou, não sei se está certa, porque nunca gostei desses negócios de menina, eu amava fazer luta sabe? Até saía na mão com Valentim, mas minha filha vive no mundo das princesas, eu até tento acompanhar mas não sirvo pra isso — Charlotte riu. E Mariana também riu. No caso, ela era a nó do ponto. Senti meu corpo gelar instantaneamente quando pisou na sala do apartamento. Estava com um sobretudo branco, os cabelos longos e dourados adornando esplendidamente a roupa, um pouco bagunçados pelo cachecol preto em seu pescoço. Ela tirou devagar a lã que enredava também a sua nuca, olhando diretamente para os meus olhos. Parecia tão surpresa quanto eu. — Deixe aqui — Charlotte ajudou quando percebeu que ela não sabia onde colocar a bolsa. Então pegou e colocou no balcão de bebidas. — Mariana — fui o primeiro a falar, enfiando as mãos nos bolsos da calça e ficando em pé para recebê-la. — Valentim. — Surpresa! — minha irmã levantou as mãos para o alto e abriu um sorriso satisfeito. Mariana estava envergonhada, ela olhou para os outros lados do ambiente e então Charlotte disse: — Sol está se trocando. Você vai ter que ter muita paciência, ela fala mais que a boca, aliás, mais do que eu. Não para quieta e faz mil perguntas por milésimo de segundo. Ela teve a proeza de descontrair a loira que estava um pouco atônita próxima a porta, arrancando-lhe um sorriso. — Mamãe!! Tio Valentim! Eu preciso de ajuda. Tô enroscada — ouvimos Sol
gritar lá do quarto. Charlotte seguiu para onde a filha estava e Mariana pousou as mãos de frente ao corpo, segurando o cachecol entre os dedos. Estava de botas com saltos não tão altos, e com o sobretudo perceptivelmente armado da cintura para baixo. — Você está bem? — perguntei —. Venha, sente aqui. Elas podem demorar — indiquei o sofá maior no centro da sala. Ela pensou e cedeu —. Quer um copo de água, ou um suco? — Estou bem Valentim, obrigada — sorriu sutilmente, formando uma covinha na bochecha esquerda. — Essa menina enroscou o cabelo todo nisso aqui — Charlotte voltou do quarto segurando algum adereço grudado no topo da cabeça de Sol. — É normal enroscar as presilhas da renda as primeiras vezes — Mariana logo se prontificou, ficando em pé. Ela ia se aproximar de Sol, mas vimos o deslumbre estampado nos olhos da minha sobrinha, que ficou imóvel admirando a professora de balé. — Ela que vai me ensinar, mamãe? — puxou o tecido da blusa de Charlotte sem tirar os olhos de Mariana. — Sou eu, por que? — ela sorriu, buscando estabelecer um diálogo com Sol. — Você está com uma roupa de bailarina por baixo desse casaco enorme? — seus olhos permaneceram vidrados. Ela deu alguns passos na direção de Mariana. A cena foi engraçada, considerando que estava com o acessório pendurado nos cabelos, todo bagunçado. — Estou. E você ficou linda, parece uma bailarina profissional com esse collant, essa saia e as sapatilhas. Sol não tinha limites, como a mãe. Chegou tão perto de Mariana, pegou os botões do sobretudo e foi descasando cada um. A loira não a deteu, mas estava visivelmente tímida com a situação. Por baixo daquela coberta toda, tinha também um collant rosa, uma saia rodada e armada, e meias finas em um tom de branco claro. — Eu vou ter que contar para todas as minhas amigas do colégio que a minha professora de balé é a Odette — Sol cobriu a boca com as mãos e balançou a cabeça, admirada. Mariana riu com a observação, mas eu e Charlotte ficamos sem entender. — Eu acho que Odette dança muito mais do que eu.
— Mas você vai me ensinar a dançar O Lago dos Cisnes? — Ensinarei o que você quiser, Sol — Mariana pegou na barra da saia com as duas mãos e gesticulou como uma verdadeira princesa, abaixando-se elegantemente em sinal de cumprimento. Minha sobrinha retribuiu o movimento. — Mas bailarinas não usam botas. Usam? — a espertinha arqueou a sobrancelha, analisando os pés de Mariana. — Eu trouxe as minhas sapatilhas, estão na bolsa. E as suas, são de tecido como eu solicitei para a sua mamãe? — São sim, as de iniciante — foi a vez de Charlotte responder. Eu analisava a situação embasbacado. Sol não digeria qualquer um logo de primeira, mas era nítido o quanto estava apaixonada pela fantasia que Mariana representava. — Agora vamos arrumar esse cabelo direitinho. Posso? — Mariana juntou as mãos e Sol assentiu com a cabeça, virando de costas para a professora. Ela cuidadosamente desfez os enroscos dos fios na renda e formou um coque simétrico na mais nova aluna. — Venha, minha mamãe preparou a sala dela de ioga só para a gente dançar balé — Sol puxou Mariana pela mão toda empolgada, levando-a para o outro cômodo. Eu estava sorrindo ainda, e no mesmo lugar desde o momento em que Mariana chegou. — Pode? Já vi Mariana de Alice no País das Maravilhas, de Cinderela, a Bela Adormecida, agora é essa tal de Odette do Lago dos Cisnes. Ela não cansa? — Charlotte pegou a xícara deixada na mesa central em frente ao sofá e chamou minha atenção em seguida: — Tim, você precisa disfarçar essa babação por ela. — Eu não consigo — confessei. — É, ela entrou na fila da beleza umas quatrocentas vezes. — Tenho vontade de ficar elogiando horas os cabelos dela, os olhos, o nariz, a boca... Senti um par de olhos me examinando sem pausa. — Valentim! — Que? Charlotte meneou com a cabeça e foi para a cozinha.
Mariana passou pela sala e foi até o balcão pegar sua bolsa. Estava com os pés no chão, exceto pela meia fina. Ela calçou suas sapatilhas, e se abaixou para amarrar as tiras em seu tornozelo. Suas panturrilhas estavam cobertas por polainas rosa, e seus cabelos longos presos em um rabo de cavalo. Seus traços eram tão perfeitamente desenhados que eu me questionava se ela realmente era de verdade ou só uma miragem. Mariana, mesmo sendo uma mulher alta, possuía um corpo delicado e harmônico em cada sinuosidade. — Charlotte, eu posso utilizar os colchonetes para os exercícios de alongamento? — Por favor, fique à vontade. Usem a sala como quiserem. Eu vou descongelar as coisas para o almoço e já vou até lá para assistir. Mas se sinta em casa! Mariana D'Ávila Ele me olhava tanto que eu me sentia desejada, nua e desarmada. Não conseguia formar diálogos com Valentim. Temia o crescente sentimento intruso dentro do meu peito. Não tinha me dado a chance de conhecer alguém e me entregar às emoções. Tive uma adolescência extremamente conturbada graças ao meu pai, e logo quando eu e minha mãe saímos do interior para conseguir viver em Seattle, eu comecei a trabalhar excedentemente para ajudá-la a bancar a nossa casa. Não demorou muito para o seu câncer dar os primeiros sinais, e quando passamos pelo primeiro oncologista, a doença já estava evoluída e atacava os dois rins. Ela saiu do emprego de gerente em uma cafeteria e eu passei a trabalhar dia e noite para custear seus tratamentos. A princípio achei que não conseguiria, que nunca me acostumaria com a rotina exaustiva de ter dois empregos, não dormir, não me alimentar direito, e no final do mês ter o suficiente só para pagar o hospital. Não sobrava quase nada. Minha sorte foi que encontrei Carlie logo depois. Me ajudou muito, ela compreendia quando eu não conseguia contribuir para os gastos primordiais, como aluguel, compras para a despensa e outras necessidades básicas. Não tive tempo para mim na adolescência. Cresci em um lar disfuncional até os meus 19 anos, aos 21 viemos para uma cidade grande, e aos 23 descobrimos que minha mãe havia contraído uma doença violenta. Já lutávamos há dois anos extenuantes. Ou seja, conhecer homens eu conhecia, mas me envolver, construir uma história,
ou me apaixonar, eram coisas que não me importavam muito. Não tinha espaço para isso na minha vida, nunca teve. Minha cabeça sempre se ocupou com preocupações diárias, como por exemplo, as agressões constantes do meu pai contra a minha mãe. Perdi as contas de quantas vezes achei que ele a mataria, bem na minha frente. Evidentemente, abrir uma brecha para os meus sentimentos sempre foi algo incogitável. — Mariana! Mariana! — ouvi a vozinha fina e persistente de Sol. Ela me buscou dos meus pensamentos enquanto fazia seus movimentos borboletas com as pernas —. Posso te chamar de Tia Ana? — Como quiser, Sol — sorri e ela continuou mexendo as pernas como se estivesse batendo asas. Eu fiz os mesmos movimentos, depois passei as primeiras práticas de ponta juntamente com as de postura. Fizemos a posição de sapinho, depois o plié, a técnica de floor-barre. Ficamos em pé para fazer elevés segurando na barra. Transferindo o peso todo para uma perna só, ficando com o outro pé em coupé. Saímos do eixo, e eu a estimulei alongar o máximo do colo de seu pé, respeitando seus limites. Ela estava amando, cada comando, cada mínima conquista. — Tia Ana, você sabe dar aquelas piruetas e girar um montão? — perguntou interessada, dando uns goles na água da sua garrafinha. — Sei sim, senhorita — puxei o laço dos meus cabelos, os arrumei e prendi novamente. — Deixa eu ver, por favorzinho — juntou as mãozinhas em frente ao rosto, com os olhos brilhando em minha direção. — Tenho a melodia dos Cisnes aqui, o que acha de eu te mostrar um pouquinho? Coloquei Tchaikovsky no aparelho de som e alonguei minhas pontas no gesso da sapatilha. Ela ficou sentadinha no colchonete, esperando ansiosamente cada movimento meu. O ritmo vagaroso do clássico do filme me oferecia somente movimentos mais lentos e dramáticos. Dei um giro duplo no eixo da ponta, com os braços formando arcos e as mãos finalizando a postura tradicional. Saltei baixo uma, duas vezes e abaixei-me para saudar e findar a dança. — Só mais um pouquinho, por favor — Sol olhou suplicante. Tinha feito só uma pequena demonstração de poucos segundos. Ela me convenceu com seu jeitinho meigo de pedir e eu voltei a fazer, não seguindo
completamente a coreografia até porque não lembrava minuciosamente. Estava flexionando as pernas e levantando-me para girar quando me deparei com Valentim paralisado na porta, com dois copos de suco nas mãos, me estudando, com os olhos fixos sobre mim. Levei um susto e parei. — Trouxe um suco para as bailarinas — ele entrou na sala de ioga e levou primeiro o copo para a sobrinha, depois chegou perto de mim, me entregou e sussurrou: — Me surpreendo com como você consegue ficar mais maravilhosa a cada dia. Eu que estava com a boca encostada no vidro do copo, desisti de sorver o líquido de laranja e cravei meus olhos nos dele. Meu coração estava palpitando e meu corpo todo formigou. — Tio Tim, por que não senta aqui e assiste a terceira parte da nossa aula? É muito interessante — Sol sabia ser convincente, e causava um sorriso fácil em Valentim. Ele demorou para deixar de me olhar, virou para a pequena esperta e fez um sinal de concordância. — É muito mais do que interessante, meu amor — tratou de sentar ao lado da criança que estava no colchonete. E eu só relaxei para passar a última parte, que seria uma música para Sol dançar, quando Charlotte entrou descontraindo a atmosfera densa. Sol dançava livremente, inserindo os primeiros passos que eu havia lhe passado. Nada tão específico ou sequencial, era só para analisar sua desenvoltura e relação com a dança. A menina era solta, destemida e atrevida, realizava todos os movimentos ensinados com precisão, demonstrando que estava realmente focada em aprender. Não sei quem estava mais orgulhoso, Valentim ou Charlotte. E era muito bom presenciar a paixão palpável do médico pela sobrinha. — Tia Ana, venha! Mostra para eles que você é a Odette do Lago dos Cisnes. Eles vão acreditar — a danadinha puxou minhas mãos e eu me levantei. — Ana — Valentim repetiu como uma oração. E sorrindo, deixou uma respiração funda sair. Acatei aos seus pedidos e dancei divertindo-me com ela. Segurei suas mãozinhas no alto e a fiz girar. Ela se esforçava para ficar na meia-ponta. Sua mãe não demorou para se juntar, começou a bagunçar com a filha, ficou descalça e participou da atividade. Sol convenceu o tio de entrar para a brincadeira e claro, ele cedeu. Valentim ficou de meias e com o corpo rijo, seguiu a coreografia
descoordenada da tagarelinha. — Tio Valentim! — chamou sua atenção, brava —. Não é assim, tem que ficar nas pontas e fazer assim com as mãos — segurou em seus braços e apontou-os para cima. Valentim me olhou e eu acabei rindo. Ele me fuzilou com os olhos, como se quisesse me culpar pela vergonha que a sobrinha estava fazendo-o passar. — Anda, seu duro! Obedeça a mais nova bailarina — Charlotte empurrou o irmão com o ombro. — Eu te ensino — me prontifiquei, segurando para não cair na gargalhada. — Eita que agora que ele não aprende mesmo — a doida da irmã insinuou. Deixamos as duas dançando entre os colchonetes e eu fiquei perto de Valentim. Mostrei as pontas dos pés para ele, e ele tentou copiar. Estava concentrado, mas eu desmoronei a rir quando ele tentou arrumar a postura ereta e os braços no alto. Não combinava com ele. Detalhe que, ao longo dos anos no balé, eu conheci muitos dançarinos homens. Os admirava demais. Mas o oncologista? Simplesmente não combinava. Seus gestos eram muito masculinos, e indelicados. — Danço mais que você, bailarina — caçoou, sorrindo para mim. — Não tenho dúvidas disso — concordei ironicamente. De repente ele me pegou, puxando-me fortemente para o seu corpo. Minhas costas colidiram em seu peito e abdômen, e sem que eu tivesse tempo para reagir, ele me girou. Minha saia rodou junto. Ele me voltou colando-me em seu corpo novamente, de frente. Nossos rostos ficaram a pouquíssimos centímetros de distância. Senti sua respiração arfante tocar a minha boca, e um sorriso branco e travesso tomou conta de seus lábios. Valentim me deitou apoiando-me em seu antebraço, e sobrepôs um pouco o corpo no meu. — Mandou muito bem, Tio Valentim! — ouvimos as palmas de Sol, e nos desvencilhamos. — Sua professora duvidou do meu talento como dançarino, meu amor. Tive que provar o contrário — arrumou os cabelos, gerando um coro de risos. — Eu estou mortinha de fome. Ralei muito nessa aula, já sou uma profissional — Charlotte se abanou. — Não é nada, mamãe. Só a Tia Ana que sabe dançar, como a Odette. E claro, eu também sei. — Sabe mesmo, você é uma ótima aluna, Sol. Bate aqui — levantei minha mão
esperando o toque, que veio empolgado —. Vamos formar uma dupla e tanto, você vai ver. — Você adorou a Mariana não é, filhota? — Charlotte apoiou a mão no ombro da filha e ambas foram saindo da sala. — E pelo jeito o Tio Valentim também, mamãe. Minhas bochechas doeram de tanto que eu sorri com a observação genuína da pequena espertinha. O médico deu os ombros, e disse: — Crianças são tão sinceras, percebem tudo — ele abaixou para calçar os tênis. — Sua sobrinha é incrível, Valentim — aproveitei para desfazer o laço das tiras das sapatilhas e tirei-as. — Ela é, uma criança muito inteligente. — Coloca inteligente nisso — complementei. — Venham almoçar! A comida está quentinha — ouvimos Charlotte gritar. — Não vou ficar para o almoço. Mas adorei passar a manhã como professora da Sol — calcei minhas botas e quando terminei de fechar o segundo zíper da mesma, senti Valentim segurar meu braço. — Fique e almoce com a gente. Você deve estar cansada e com fome. Me posicionei ficando rente a ele. O ar poderia ser cortado com uma faca, de tão espesso que ficou. — Valentim, o que você está fazendo? — perguntei, já sentindo-me sufocada com a situação. — Como assim o que estou fazendo? — Por que está querendo se aproximar tanto de mim? — meus olhos acompanharam os dele, atentos a qualquer coisa que quisesse passar despercebida. — Eu gosto da sua companhia, Mariana. Me faz um bem inigualável. — Isso não é certo. — Por que não? Qual é o problema em ter um carinho grande por você? — É só carinho, Valentim? Você garante isso? — encarei-o totalmente desconfiada. — Eu tenho apreço por você, e como você disse, como amigo. — Amigo — repeti sarcasticamente. Não acreditava nas palavras dele, eram sem convicção alguma. Seu toque dizia outra coisa, seus sorrisos, a tensão instalada toda vez que ficávamos perto um do
outro e principalmente seus olhos tão límpidos. Esses não me enganariam nunca! A família agitada acabou me convencendo de ficar para almoçar com eles. Charlotte tinha feito batatas recheadas de carne e creme com ervas finas. Ela podia se inscrever no MasterChef se não tivesse seu tempo inteiro ocupado com o consultório. Sim, descobri que além do irmão, Charlotte também era médica, ginecologista mais especificamente. Mas ela trabalhava em um consultório particular e individual, alegando que não queria se envolver nos rolos com o irmão mais velho, o qual eu desconhecia. Não fiquei questionando, embora sentisse muita curiosidade pela vida em torno de Valentim, Charlotte era comunicativa, falava sobre tudo um pouco sem se aprofundar. Sol estava tão cansada que dormiu com a taça de sorvete apoiada na barriga, enquanto assistia Frozen na enorme TV da sala. Eu tinha terminado minha sobremesa e me levantei para despedir-me. Já havia vestido meu sobretudo antes do almoço, e meu corpo pedia arrego. Tinha passado a madrugada em claro, fiquei uma hora com a minha mãe e corri para vir conhecer a pequena espertinha. — Vou te levar — Valentim levantou-se também. — Muito obrigada, mas não precisa — olhei na direção da sua sobrinha e depois para Charlotte —. Diga a ela que mandei um beijo e que no próximo sábado eu estou de volta, no mesmo horário. — Ela me acompanha às vezes no Saint Clair. Vai até querer frequentar mais, agora que sabe que você apresenta peças de teatro e interpreta diversas princesas para as crianças. Sorri em agradecimento e caminhei até onde minha bolsa grande estava. — Valentim vai te levar — Charlotte falou sem deixar eu me opor —. Foi um prazer ter você em casa, Mari. Aliás, Ana, Tia Ana — Charlotte se embaralhou e riu —. Brincadeiras a parte, mas estou muito feliz que Sol esteja tão empenhada. A irmã mais nova de Valentim nos levou até a porta da sala, depois do mesmo ter dado um beijo na sobrinha. Ele era realmente muito carinhoso com ela. Completamente amoroso, tendo em vista a perda tão precoce da sua filha. Descemos os andares em silêncio. As portas do elevador se abriram e caminhamos até o estacionamento onde seu carrão estava estacionado. Ele abriu a porta para mim, e esse gesto singelo mexeu comigo, como da primeira e da segunda vez. — Estará ocupada a noite? — perguntou sem me olhar, enquanto colocava o cinto de segurança.
— Estarei sim, Valentim — só de pensar que viraria mais uma noite acordada o cansaço bateu forte. Respirei fundo e me ajeitei no banco, encostando o rosto na janela. — É inquietante ver o seu contraste de humor — comentou, ganhando a minha atenção —. Quando está rodeada de crianças, fica feliz. Quando não, se entristece. O que tanto te incomoda, Mariana? — Nada que refira-se a você — fui curta, e tentei romper qualquer chance de prolongar esse assunto. — Fico contente com isso, mas ainda preocupado. Eu sinto que não seja consequência somente do estado de saúde de sua mãe. O seu trabalho, você é infeliz no trabalho? Aliás, você tem um segundo emprego, certo? — Só estou cansada, Valentim. Podemos ir? — achei que ia morrer de falta de ar, de tanto tempo que prendi a respiração. Absolutamente tensa com a conversa abordada. Ele finalmente desistiu e o silêncio deu seu ar de graça. Passei a odiar o silêncio por causa dele! Meus ouvidos cultuavam a sua voz rouca, grossa e levemente aveludada. Gostava que o som da sua risada preenchesse o ambiente, mas infelizmente tinha que interrompê-lo quase sempre. Não havia terreno para nos conhecermos, e muito menos um contexto para nós dois. Eu podia oferecê-lo umas horinhas de sexo. Nada mal, visto que o nosso desejo era claro e pungente. Usufruiria da lascívia em qualquer circunstância. Mas não com Valentim.
6 Valentim Del Torre
Eu tinha a impressão de que o cheiro da colônia de jasmim permanecia dentro do quarto, principalmente na cama rosa em forma de carruagem. Os adesivos de coroa estavam começando a descascar nas paredes lilás. O guarda-roupas continuava intacto, com inúmeros vestidos e sapatilhas brilhantes que nunca mais seriam usados. Os brinquedos em caixas dispostas no tapete de princesas da Disney não eram mexidos há anos. As cortinas brancas abafavam um pouco o cômodo. Decidi abri-las para iluminar e deixar o sol entrar. Sentei-me na poltrona ao lado de uma escrivaninha, onde tinham laços, maquiagens infantis, um livro da Alice No País das Maravilhas, e algumas bonecas. Ana me pediu para cuidar dos cabelos delas, e não deixá-las sozinhas porque sentiam medo. Era só uma divagação da mente de uma criança. Minha filha tinha muita criatividade, um dom só dela de imaginar. Era generosa, levava seus brinquedos para o hospital e dava para as crianças menos favorecidas. Ela era linda, tão linda que diversas vezes me emocionava só de observá-la. Há dois anos tinha se tornado um anjo, e junto com ela, levado meu coração. Eu queria ser evoluído o suficiente para aceitar a perda de Ana, aos seus cinco anos de idade. Queria acreditar nas suas palavrinhas consoladoras "Eu estou bem papai, não estou triste". Ela era muito mais forte do que eu. Mesmo doente, com meses contados, pedia para eu descansar do trabalho, mas eu não saía do hospital porque não queria perder nenhum minuto e desperdiçar qualquer momento estava fora de cogitação. Ana dizia "Vai para casa, cuida da mamãe porque ela gosta muito de você. Eu sei que ela também gosta de mim, mas está muito triste de você não ficar com ela". Quando notei, já estava com a garganta doendo com o desespero entalado nela. As lágrimas tomavam conta da minha face, mas a revolta adormecida permanecia como uma ferida aberta causando-me uma dor aguda dentro do peito. — Venha para cá, querido — ouvi a voz baixa de Vivian me chamar. Sequei meu rosto com as costas da mão e levantei da poltrona. Minha esposa estava com os braços cruzados em frente ao corpo, escorada no batente da porta.
Me aproximei dela e recebi um abraço pouco confortante. — Ela está bem, você precisa compreender isso — suas mãos encaixaram-se em meu rosto e suas íris pararam nas minhas. — Eu sei — disse somente. Na realidade sabia mesmo. Acredito piamente que existe algo melhor depois daqui, um lugar mais justo, mais bonito, menos sujo. — Vamos tomar café — ela deslizou as mãos na extensão dos meus braços, na tentativa de relaxar o meu corpo —. Passei no Starbucks e peguei o roll de canela que você adora. Vivian tirou a torta de canela da sacola da cafeteria e também um copo com café. — Obrigado — agradeci e ela sorriu —. Nem vi que tinha saído — comentei. — Você não vê nada do que eu faço — e um sorriso triste apareceu em sua boca. Me senti mal, eu realmente não sabia sobre nada do que Vivian fazia. Não tinha mais interesse. Me senti pior ainda quando o roll na minha mão lembrou-me da sensação da boca de Mariana encostando nos meus dedos. Suas bochechas coradas pouco sardentas e os mirantes azuis me fitando. — Têm dias que são difíceis. Me desculpa pela falta de atenção — deixei o doce no prato ao perder o apetite. Sorvi um pouco do café e desci da banqueta para caminhar até o quarto. — Valentim, de uma vez por todas — seus passos apressados fizeram ela me alcançar —. Ana está morta. Você acha que eu não sofro? Sofro diariamente, eu fui mãe por cinco anos. Gerei ela aqui — colocou as mãos sobre a barriga —. Mas ela morreu, nós precisamos seguir em frente. — Não fale da morte dela com tanta frieza, Vivian. Não percebe que toda vez que se refere a ela eu fico mais revoltado com você e com o nosso casamento? Sinto desgosto em te ter como esposa. Você é insensível. — Eu não sou insensível. Só que além de perder a nossa filha, eu estou perdendo você também desde que descobrimos que ela tinha a merda da leucemia. — Se tivesse acompanhado desde que Ana engatou uma batalha contra a doença, não teria me perdido. Teríamos lutado juntos, mas você foi desumana, Vivian. Ela implorava para você ir no hospital. Queria realizar coisas que só podiam ser feitas com você. Via as amiguinhas da ala com suas mães, mas e você? Estava aonde? — Eu não aguentava assistir ela sofrendo daquele jeito.
— Você assume diariamente o quanto é fraca. — Não fale assim, querido. — Eu te pedi outro filho há um ano, queria conseguir superar, suprir, qualquer porra! Mas qual foi a resposta? Não. Você negou porque é uma egoísta. E pessoas egoístas ficam sozinhas, é a lei da vida. — Valentim — bradou ao me ver sair pela porta —. Volta aqui e fala direito comigo! Nós podemos conversar sobre isso, você só sabe estourar comigo — seu choro veio e me deixou mais puto ainda. — Eu não quero conversar sobre nada com você. E se quer saber, jamais teria outro filho, porque você não serve para ser mãe — peguei minha maleta no sofá e a chave do carro. — Ana nunca aceitou que você brigasse comigo, e que fosse grosseiro. Ela deve ficar muito orgulhosa, da onde quer que esteja nos vendo. Minha reação com a repulsa foi fechar os olhos. Apertei a mão no couro da maleta preta, e me virei para ela — Vou marcar uma reunião com a Dra. Scott para essa semana. — Não, Valentim. Não vai marcar, eu não vou deixar — se aproximou de mim e passou as mãos pela minha blusa, deixando transparecer a sua aflição —. Querido, existem brigas dentro de um casamento. Nós podemos nos entender, só precisamos ter mais paciência um com o outro. Por favor, não faz isso, eu te imploro. — Nosso casamento não tem mais estrutura alguma, Vivian. — Calma, estamos em crise é só isso. Não marque nada com a advogada, eu prometo melhorar e respeitar seus sentimentos em relação a nossa filha. Eu deixo de ser fria, faço qualquer coisa. Respirei fundo, desacreditando de todas as palavras proferidas. Não respondi e me direcionei à porta. Ao entrar no carro eu ouvi um toque de mensagem no celular, e não controlei a ansiedade ao ler o nome na tela. ✉ “Bom dia, Valentim Não conseguirei ir de manhã no hospital. Você pode por favor liberar uma hora na parte da noite, para eu poder ver a minha mãe? Um beijo, Mariana”
O objetivo da mensagem era somente relacionado a sua mãe, mas me encheu de alegria receber algo dela. E um beijo no final. Me senti um pouco íntimo e Mariana mais desarmada. ✉ “Claro, bailarina Vou deixar o seu nome autorizado. Vá o horário que conseguir. Fique à vontade para me pedir quando precisar. Outro beijo.” Queria muito ter ganhado outra mensagem mas infelizmente só fiquei na vontade. Mariana era muito ocupada, tinha uma vida visivelmente agitada e sua postura expunha o cansaço rotineiro que a acompanhava. Desde o dia anterior que eu havia levado ela para casa, passei a acreditar que a bailarina era sim compromissada. Me deu um corte daqueles quando demonstrei minha curiosidade por sua ocupação, provavelmente impondo ali que não deveríamos ter intimidade. Não sei explicar o porquê, mas isso me deixou muito descontente. Chegar no Saint Clair e não vê-la na sala onde ficavam os leitos dos pacientes e da sua mãe, era muito desanimador. — Não está no melhor dia, meu amigo? — Álvaro apoiou o braço no meu ombro e caminhamos até a farmácia do hospital. — Não — tentei não soar grosseiro mas falhei. — Não animou nem de ter visto a Mariana ontem? — Ela é uma mulher compromissada, eu tenho quase certeza. E Álvaro, vocês não entendem que eu sou casado e não vou aderir à canalhice? — Me desculpa, Valentim. Mas que merda de matrimônio é esse? Você é infeliz, Vivian deve mascarar a realidade o tempo inteiro. Que situação horrível! Até quando vai aceitar ter uma vida amargurada assim? Acenamos com a cabeça para um dos farmacêuticos do local e virei-me para o gastro. — A Vivian tem um desequilíbrio emocional terrível. A psiquiatra sempre me fala que a tendência da depressão dela é a autodestruição. Ela cometeu duas tentativas de autocídio depois de discutirmos e eu sair de casa.
— Tá bom, Valentim. Mas me diga, o que você tem a ver com isso? Me assustei com a posição do meu amigo e endureci o semblante. — Ela era mãe da minha filha, Álvaro. Não posso abandoná-la só porque tem doença mental. — Não é abandonar. Você tem uma longa vida pela frente, não me diga que vai aceitar passá-la ao lado de alguém que não ama? É desperdício, meu amigo. — Álvaro — balancei a cabeça, carregado já com o assunto repetitivo. — E não é só porque ela tem problemas psicológicos. Você quer que eu fale em ordem alfabética ou cronológica os motivos infelizes que consiste o seu casamento? — No momento eu quero que você fique na sua, preciso me concentrar para realizar a licença desses medicamentos. Por gentileza — olhei para a porta e meu amigo se retirou. A manhã se arrastou lenta. Almocei com Álvaro ouvindo as suas baboseiras tentando me convencer de ir em um puteiro, uma casa noturna que ele havia conhecido. Disse que lá era um paraíso, com mulheres muito gostosas. Ficou me enchendo a paciência falando sobre o quanto eu precisava meter. Que o meu estresse era falta de um buraco quente pra abrigar meu parceiro aqui. Eu tinha vontade de matar o tantã, mas o imbecil conseguia arrancar minha risada facilmente. No domingo o hospital ficava tranquilo, exceto por algumas emergências dos meus pacientes. Tinham mais três oncologistas no mesmo horário, o que me possibilitou de sair. Ultimamente trabalhar estava sendo algo difícil, como todo o resto. Sinceramente, tinha me empolgado a ir para o Saint Clair depois que comecei a ver Mariana lá, mas fora isso não rendia. Antes de ir embora, fui falar com Martha. A mãe da bailarina ficava sedada na maior parte do tempo. Disse a ela o que Mariana pediu e saí. Parei em frente ao prédio da professora de balé e peguei meu celular. Mandei mensagem avisando que estava na frente, mas não recebi resposta, então liguei. Não fui atendido. Ela não estava. Não sei o que vim fazer, mas a vontade de vê-la era maior que qualquer razão. De repente vi Mariana chegar com algumas sacolas nas mãos, minha irmã e Sol ao seu lado. O que elas estavam fazendo juntas? Não sei. Mas invejei Charlotte involuntariamente. Desci do carro e minha sobrinha foi a primeira a me ver. Soltou a mão da mãe e correu em minha direção.
— Tio Tim! Mamãe não avisou que viria. Que legal, vamos poder assistir juntos o filme que a Tia Ana baixou para mim no computador dela. Você vê comigo, não é? A Tia Ana disse que tem pipoca e pode fazer um brigadeiro. Eu não estava entendendo nada. — Claro, meu amor. Assisto com você sim. Olhei para as duas mulheres atrás da criança e meus olhos pararam nos de Mariana. Toda vez que nos víamos era a mesma surpresa, mas a sensação era crescente. Cada encontro o sentimento se apurava mais. — Vocês combinaram? — Charlotte olhou para Mariana e depois para mim. — Não. Eu passei para avisar Mariana que a mãe dela está bem e que pediu para ela descansar ao invés de ir ao hospital. — Valentim, eu tenho certeza absoluta que você tem um celular — minha irmã ironizou, desconfiada e geniosa. — Vamos entrar, vamos — Sol começou a puxar o casaco da Charlotte e eu me livrei das indecências da minha irmã. — Você quer falar algo comigo, Valentim? — Mariana parou na minha frente depois de dar as sacolas e um molho de chaves para Charlotte, que entrou com a minha sobrinha —. Aconteceu alguma coisa mais séria? — Não, só precisava te ver — confessei, respirando fundo. — Precisava me ver? — um tímido sorriso fendeu em seus lábios. Lábios carnudos e cuidadosamente desenhados. Seus olhos também... Eu não conseguia escolher para onde olhar. — Sim — quase sussurrei. — Entre, fique com a gente. — Não, eu só... — Anda Valentim. A loira já estava dentro do hall de entrada, eu passei pela porta e bati a mesma. Censurei meus pensamentos pecaminosos no momento em que desejei ser um aparelho de raio-x ao vê-la subindo degrau por degrau. Seu quadril movimentando lentamente e a bunda bem próxima a mim. Sua mão, delicadamente, segurava o corrimão lateral até chegarmos no segundo andar. Eu subiria um prédio de mil andares se Mariana estivesse subindo na minha frente. — Não tô achando, tenha calma sua apressada — Charlotte reclamava de dentro do apartamento.
Mariana entrou, rindo da discussão infantil de ambas. Eu fiquei em seu encalço, ela fechou a porta após eu passar e foi até o outro lado do balcão onde ficava a cozinha. — O que precisam? — perguntou. — Uma panela pra pipoca — minha irmã respondeu. — Tem que ser uma bem grandona. Pra fazer pra mim, pra você, pra mamãe e pro Tio Tim — Sol colocou as mãos na cintura. — Você viveria só de pipoca se pudesse né, meu amor? — aproximei do balcão e vi Sol afirmar com a cabeça. — O que eu posso fazer se pipoca é tão gostoso? — deu os ombros fazendo Mariana rir. — Achei, aqui uma pipoqueira — tirou de um armário alto e deu para minha irmã. O lugar era realmente pequeno. A típica cozinha que um tem que sair para o outro entrar. A sala era ocupada por um sofá relativamente grande e cinza, um tapete felpudo da mesma cor no chão, uma estante um pouco bagunçada decorada com objetos coloridos, uma televisão grande e só. Lembrei que Vivian colocou o máximo que conseguiu de vasos e quadros caros na nossa sala de estar. Tinha aparadores de cristal e outras coisas bem inúteis. Minha casa passava a sensação de um lugar gelado, intocado. Ana transmitia vida ao nosso apartamento. — Só tirem os sapatos porque Carlie surta com limpeza, por favor — franziu o nariz, sentindo-se constrangida por ter que pedir isso. Mal sabia que Vivian não suportava um mínimo cisco de poeira e fazia a empregada doméstica limpar com a língua se necessário. Deixamos os tênis na caixa ao lado da porta e depois me acomodei com a Sol no sofá. A amiga de Mariana apareceu no pequeno corredor, se espreguiçando com os braços no alto da cabeça. Passava das duas da tarde e ela ainda estava dormindo? Tudo bem que domingo as pessoas aproveitam para dormir mais. — Nossa, quanta gente bonita na minha sala! — comemorou, passando os dedos por baixo dos olhos borrando mais ainda a maquiagem preta. — Você é a amiga da Tia Ana? Qual é o seu nome? Sabia que ela é minha professora de balé? E que ela disse que eu sou uma ótima aluna? Logo vou dançar tão bem quanto ela, sabia? — Sol se colocou a postos e disparou. Típico
da minha sobrinha. — Da onde saiu esse grilo falante? — Carlie questionou sorridente. — Grilo falante? Não, eu não sou o grilo falante. Eu sou a Cinderela — deu a sua pequena mão para Carlie. — Concordo, com essa beleza toda é até mais bonita que a Cinderela — e então pegou a barra da camisola e abaixou-se cumprimentando Sol com um movimento característico da realeza. — Gostei dela, mamãe — disse para minha irmã que estava limpando as mãos em um pano de pratos. As duas se cumprimentaram com um abraço e então começaram a falar sobre o filme que Sol havia escolhido. Mariana pediu ajuda para ela com os ingredientes do brigadeiro, fazendo-a se sentir super-responsável e importante. Minha sobrinha ficou de pé na cadeira ao lado da loira e a ajudou com o doce. — É de uma mulher assim que você precisa — Charlotte surgiu com um guardanapo e passou no meu queixo, se divertindo às minhas custas. — Não tô babando — me defendi. — Você está apaixonado, o que é muito pior. O que eu tinha feito para merecer o mesmo sangue que uma mulher tão desaforada? — Apaixonado? Vou te passar o contato da psiquiatra da Vivian — respondi baixo. — Já que você falou da megera, no meu ponto de vista estar apaixonado por outra é muito melhor — riu da minha cara e me deu um beijo apertado na bochecha. Se levantou e saiu. Simplesmente soltou a pérola e me deixou falando sozinho. As quatro vieram para a sala e nos ajeitamos no sofá. Mariana foi a última, já que ficou responsável por adaptar e conectar o notebook na televisão. Ela colocou o filme escolhido e minha sobrinha já devorava a pipoca deixando algumas caírem pela rapidez. Restou o espaço ao meu lado para Mariana sentar. Ela pegou a almofada e colocou sobre suas coxas. Sua amiga entregou um balde de pipoca para ela, depois levantou para apagar as luzes e fechar a cortina escura. — Não, Tio Valentim. Pegue da Tia Ana, essa é só minha — Sol agarrou a sua vasilha com pipocas e nós rimos. — Coma comigo — Mariana colocou o balde mais para a sua perna esquerda
que estava ao meu lado. Era o filme O Lago dos Cisnes que elas tanto falaram no dia anterior. Mariana e Sol assistiram vidradas cada segundo. Conversaram somente sobre as cenas de balé mostradas. A loira tratava minha sobrinha com tanto carinho e atenção, se comunicavam de igual para igual. Eu ficava admirado! Comemos o brigadeiro saboroso, e depois Mariana levou a tagarela até seu quarto. Mostrou algumas fantasias que tinha de apresentações que fez com a oficina de dança e teatro. Sol se esbaldou com os adereços, coroas, chapéus, tiaras. Os lenços e os vestidos fizeram minha sobrinha renovar o apelido da professora, passou a chamá-la de fada. Enquanto Carlie e Charlotte conversavam na sacada da sala, a pequena me chamou para acompanhá-las até o quarto. Esperei Mariana dar abertura para o ato, não iria invadir a privacidade dela. Seu sorriso simpático foi a confirmação. Tinha uma cama de casal no centro do quarto coberta por um edredom branco com flores rosas, prateleiras com livros, uma penteadeira branca com um banco pequeno embaixo, cortina escura como a da sala, um closet estreito e abarrotado de roupas e sapatos. Ao lado um banheiro pequeno e todo branco. O carpete claro do chão mantinha o ambiente aquecido, e permitia que andássemos descalço sem pisar no chão frio. Carlie saiu e Charlotte aproveitou para ir embora com a Sol. Eu disse a Mariana que a levaria para o hospital ao anoitecer, e então ela pediu para eu ficar. A tarde ia se despedindo e a temperatura caindo. Ela pegou uma manta preta e se cobriu no sofá. Escolhemos Vikings no Netflix, porque coincidiu de estarmos na mesma temporada. — Não se importe se eu ficar no celular. Estou resolvendo umas coisas do trabalho — me informou com o aparelho em mãos, enquanto digitava rapidamente. — Mas a escola não está fechada no domingo? — indaguei. — Estou falando com a minha patroa — explicou. — Tudo bem — peguei o controle e dei play no episódio. Volta e meia ela pegava o celular que não parava de vibrar anunciando mais mensagens. — Mariana, se você quiser eu tiro a série e vou para minha casa. Não quero atrapalhar. — Vou deixar essa merda pra lá! Eu hein, não tenho sossego nem no domingo — bufou levantando-se do sofá e jogando o aparelho na manta.
A luz da tela acendeu e estava tão próximo de mim que foi inevitável não olhar de canto. Diversas mensagens de "David" e "Hector". Algum dos dois podia ser o cara que ela saía, ou tinha alguma relação mais séria. Mas por que falar que estava conversando com a patroa? Achei desnecessário. — Para o episódio e vem me ajudar a montar uma pizza — pediu da cozinha. Olhei na direção dela e pensei por segundos. Fui até a cozinha e vi uma massa redonda esticada na pequena mesa de canto. — Já está com fome de novo, bailarina? — Muita por sinal. — Bom saber, porque você nunca come direito — peguei o molho de tomate pronto no balcão e ela me entregou uma colher. — Não acha que repara demais em mim não?! — comprimiu os olhos para me fitar. — Você também repara em mim — respondi com convicção. Ela deu os ombros e não falou mais nada. Espalhei o molho pela massa, Mariana começou a cortar o queijo ao meu lado. Fui lavar os tomates na pia, sequei as mãos e pendurei o pano de pratos no cós da minha calça. Uma mania que ia contra a qualquer regra de etiqueta. Espalhei as azeitonas mas Mariana as tirou. — O que foi? — Tem que por vida nas coisas, Valentim. Deixa de ser sem graça. Pegou o queijo e cobriu a massa toda. Depois com as azeitonas escreveu a letra V e a letra M. Com os tomates fez uma carinha, formando os olhos com as rodelas e uma boca sorridente com palmitos. Por fim colocou tiras de frango defumado. Sorri igual idiota ao ver que ela conseguia mostrar sua personalidade até em uma pizza. — Só você mesmo — comentei, balançando a cabeça. — Uma obra de arte — apontou com as duas mãos a pizza na mesa, se gabando. — Já que a Sol diz, você também tem mãos de fada — brinquei, e ela revirou os olhos. Não sei se foi proposital, mas quando Mariana foi colocar a massa para assar no forno, ela esbarrou com o corpo no meu, passou com a sua bunda avantajada lentamente no meu quadril e eu tive que resgatar uma força descomunal para não
agarrá-la. Depois lavou as mãos, e veio secá-las no pano pendurado na minha calça. Fez lentamente os movimentos para tirar as gotas de água, seus dedos encostaram no meu jeans e eu senti brevemente o seu toque. Seus olhos firmaram nos meus e o silêncio barulhento se instalou no minuto. — Os seus olhos são tão bonitos, Mariana — minha voz saiu mais baixa do que eu pretendia. — Eu preciso — gaguejou um pouco, pegou uma tampa e abanou o pescoço sem nem se ligar com o que o gesto representava. Não estava quente. Estávamos nos provocando calor. — Se não se importa, eu preciso trocar de roupa — avisou um pouco transtornada. Eu mexi com ela! — À vontade — dei espaço para que saísse da cozinha e apoiei as mãos na mesa, um pouco atordoado também. Voltou com um blusão e com as pernas nuas. Segunda vez que eu tinha o deslumbre das suas pernas. Mas a primeira minha sobrinha estava junto, então não teve o mesmo efeito. Eram longas, torneadas e definidas, certamente por causa da sua profissão. Seu cabelo estava preso em um coque bagunçado no topo da cabeça. — Vamos voltar a ver a série? Prometo não ficar no celular — abriu um sorrisinho. Regressamos para o sofá, e subitamente Mariana colocou uma almofada no meu colo e deitou a cabeça na mesma. Fiquei imóvel. Reparando em seus fios de ouro enrolados em um coque mal feito. — Vou soltar o seu cabelo — avisei. Desfiz as voltas e comecei a pentear com os dedos. Tão macio e com aroma de camomila. — Como essa Lagertha é maravilhosa de linda! — comentou. — Também acho — concordei e um par de olhos brilhantes me encarou —. Você é mais! Estava com ciúme? — Eu sei — se acomodou novamente na almofada e voltou a assistir. — Esse Lothbrok também viu, podia me dar uma chance — suspirou admirada
com o homem sem camisa na televisão. — Mariana — a repreendi. — Que? Vai me dizer que não consegue enxergar a beleza dele? É um gostoso. — E está bem longe de você — proferi, irritado. — Iria para a Austrália numa boa se fosse para conhecer ele — ela estava me provocando? —. Mas calma, Valentim, ele não existe. Gosto do Ragnar, não do Travis — fingiu de boba, referindo-se ao personagem, depois ao ator —. Tá pronta — e se levantou ao ouvir o apito do forno. Fui ajudá-la a fatiar, já que pra isso ela não tinha muita habilidade. Nos sentamos no sofá mesmo, para comer. Ela lotou de ketchup picante e mostarda. — Pega pra mim — pediu apontando o copo enorme com refrigerante. Bebi um pouco da Coca-Cola e entreguei em sua mão. — Como minha irmã veio parar na sua casa? — Conheço ela há pouquíssimo tempo, mas já a adoro. Ficamos conversando por mensagem, aí a Sol me mandou áudios dizendo que queria assistir o filme. Elas vieram para cá e nós fomos no mercado comprar algumas coisas. — Fiquei sem entender nada — falei ao terminar de mastigar — Ficou boa, estamos de parabéns. — Estamos mesmo. Mas o meu M ficou todo errado, o queijo bagunçou tudo — fez um beiço que eu lutei muito para não atropelar tudo e morder. — O meu V tá aqui, intacto. Comi dois pedaços e ela três. Assistimos mais um episódio e fomos para o Saint Clair. No caminho meu celular começou a tocar incessantemente, e como eu tinha o hábito de deixá-lo no suporte central do carro, Mariana viu que era Vivian me ligando. — Não vai atender? Deve estar preocupada. — Nós brigamos, não estou a fim de escutar a voz dela. Mariana virou-se para mim, encostando na porta e me observando com a expressão de pensativa. — Vocês brigam sempre, aparentemente — parecia estudar a situação —. Por que a sua mãe e a sua irmã não gostam dela? — Vivian não é uma mulher muito fácil de conviver — expliquei superficialmente.
— Mas Eleonora e Charlotte nutrem uma repulsa forte. Bom, não tenho que me intrometer. — Não, está tudo bem. O fato principal é que ela não foi uma boa mãe para Ana. Mariana ficou quieta, claramente pensando nas incontáveis possibilidades comportamentais da minha esposa. Chegamos em frente ao hospital e eu apenas ia deixá-la. Estava cansado e precisava dormir para fazer o plantão da madrugada. — Foi bom hoje. — Foi — respondi e ela tirou o cinto de segurança. — Mas eu acho melhor a gente considerar a realidade. — E qual é a realidade? — uma frase bastou para o meu bom humor se extinguir. — Você é casado, e eu não quero conhecer ninguém. — Mariana, nós já nos conhecemos. E não estamos fazendo nada de errado — falei deixando minha apreensão nítida na voz. — Você é um homem muito bonito. Inteligente, educado e... — Mariana — interrompi. — E eu não sou burra, sei das nossas intenções. — Quais são as nossas intenções? — sondei buscando saber se as dela eram as mesmas que as minhas. Embora nem eu soubesse as minhas reais intenções. Ela balançou a cabeça, desistindo de falar. — Diga, por favor — tentei encorajá-la. — Têm coisas que não precisam ser ditas, Valentim — pegou a bolsa e colocou no ombro. Ela abriu a porta mas eu segurei cuidadosamente em seu braço. — Me perdoa se estou confundindo a sua cabeça — que merda eu tinha falado? Sua reação não foi boa, ela não disse nada, só saiu do carro e bateu a porta. Eu tinha acabado de jogar a nossa aproximação no lixo. Era um imbecil! Um doutor em idiotice! Cheguei frustrado no apartamento. Vivian estava com uma camisola de seda verde, vendo algum programa aleatório na TV e com uma taça na mão. — Fui até o hospital e você não estava — abaixou o volume e me olhou —. Pode admitir, você tem outra mulher? — levantou-se e arrumou nos ombros o
robe de seda da mesma cor. Não falei nada. Avancei colocando minha mão na nuca dela e consumindo sua boca com a minha. Ela correspondeu rapidamente, começou a tatear o meu corpo, minhas costas, braços e abdômen. Nossas línguas não tinham o mesmo compasso, Vivian me beijava com uma urgência sufocante. Senti que realmente tinha algo errado quando peguei em seus cabelos e não eram os que eu queria. Não eram loiros e nem longos. Não tinha o cheiro floral moderadamente adocicado. Puxei seu lábio sugando-o. Envolvi nossas línguas, buscando de alguma forma diminuir o desejo acumulado, mas foi em vão. Vivian gemia na minha boca e já tinha tirado o robe. Deslizei as alças finas da sua camisola, que caiu sobre seus pés. Ela colocou suas mãos na fivela do cinto da minha calça e o puxou depressa. — Quanta saudade — choramingou assim que eu a coloquei de costas para mim e beijei seu ombro. Ela abaixou o tronco apoiando-se com as mãos no estofado, e eu coloquei o tecido pequeno da sua calcinha para o lado. Escorreguei meus dedos com a sua lubrificação natural e os enfiei. Fiquei na altura do seu traseiro e comecei a chupá-la devagar, acompanhando o ritmo do meu dedo médio e do anelar. — Aí, querido! — ela gemeu e rebolou com o quadril, esfregando a bunda na minha cara. Intensifiquei a penetração encurvando meus dedos dentro dela. Sua mão veio até minha cabeça assim que a invadi com a língua. Ela segurou nos meus cabelos e palavras desconexas saíram de sua boca. Seus gemidos tornaram-se mais escandalosos quando enterrei meu pau. Guiei a velocidade das estocadas apertando-a na cintura. Beijei seu pescoço, sua nuca, e por fim ela virou o rosto na direção do meu. Me beijou, e sua língua tentou criar sintonia com a minha mas não conseguiu. Com tesão eu estava, claro! Mas só porque meu pau tinha encontrado um buraco quente para se abrigar e se aquecer, como dizia Álvaro. Como conseguia pensar nisso durante o sexo? Ensandecida, ela pediu mais. Gozou duas vezes e eu finalizei fazendo o mesmo. Fomos para o nosso quarto e dividimos o box para tomar um banho. — Me desculpa falar que você tem outra, você sabe, eu só tenho medo de te perder — passou as mãos com sabonete nas minhas costas. — Deveria pensar mais para falar, não viveria pedindo desculpas.
Eu até tentava, mas quando via já estava sendo estúpido com ela. Passei o plantão para outro médico, porque estava cansado. Vivian adormeceu enlaçada no meu corpo e com a perna por cima das minhas. Eu estava mexendo no meu celular e decidi assistir o vídeo feito por Charlotte, de Sol e Mariana dançando. Eu aparecia algumas vezes também. A alegria e a paz que Mariana transmitia eram únicas. Será que minha irmã tinha razão? Era mesmo possível eu estar me apaixonando?
7 Mariana D'Ávila
Mesmo com o desfecho infeliz, o meu domingo com Valentim tinha sido bom. Ele dissimulou dizendo que estava confundindo minha cabeça, mas o confuso era ele. Eu não seria boa no que faço se não soubesse reconhecer a vontade de um homem. Ainda mais um desejo tão ávido. Meu Deus, com tanto lugar no mundo por que ele precisava morar justo no meu pensamento? — O Hector veio até aqui ontem. Disse que te esperou no hotel e você não apareceu. Aconteceu alguma coisa, Mari? Minha chefe se acomodou em sua poltrona grande e mirou a atenção para os papéis espalhados sobre a mesa. — Estava muito cansada, Pauline. Eu mandei mensagem para ele, dizendo que não conseguiria encontrá-lo. — Eu recomendo que você o recompense de alguma forma —. Seus olhos direcionaram-se aos meus —. Acho que você não está em condição de dispensar um dos clientes que mais paga pela sua companhia. — Tenho consciência disso, vou entrar em contato com ele e tento consertar a situação. — Ótimo, Mari — ela guardou alguns contratos dentro de um envelope, cruzou as mãos apoiando-as na mesa e me olhou séria —. Eu vou precisar muito de você essa semana. O empresário não acredita que encontrará uma acompanhante a altura. — E Justine? Eu tenho que ver com o David qual é o dia que ele vem para Seattle. — Ela está com um investidor, só volta na próxima semana. Minha flor, você não está entendendo... Eu não te envolveria se não fosse para te beneficiar. Esse homem cobrirá qualquer outra oferta já feita a você. Mas para isso será necessário que o conquiste, o que eu tenho certeza que conseguirá facilmente. — Certo. — Ensaie alguma dança especialmente para ele, vai deixar ele de quatro
rapidinho — Pauline piscou um olho e sorriu —. Mas me diga, como sua mãe está? Conversamos mais um pouco sobre como faríamos na quinta-feira e eu saí do seu escritório. Fiquei com as minhas colegas de trabalho, ensinando-as uma pequena lista de movimentos do pole dance e depois fui para o hospital. Procurei a minha mãe no extenso quarto onde ela e mais outros pacientes ficavam, mas seu leito mais uma vez estava vazio. Resolvi esperar um pouco, considerando que da outra vez ela havia sido levada para tomar um banho. — A senhorita é filha da Martha? — uma enfermeira que dobrava o lençol ao meu lado perguntou e eu acenei positivamente —. Eu acho melhor você ir até a recepção e pedir para localizar o Dr. Del Torre. — O que? Por quê? — Ele te explicará. Informe a recepção, ele pediu para qualquer funcionário avisar caso visse a senhorita chegar. A ansiedade tomou conta do meu corpo inteiro. Sabia do estado da minha mãe, temia que a qualquer momento eu chegasse no hospital e não a encontrasse com vida. Corri para a recepção e logo comunicaram o oncologista. Ele apareceu acompanhado de mais um médico, ambos tensos e com expressões rígidas. O olhar do Valentim foi o suficiente para me certificar de que algo estava errado. — A senhorita pode nos acompanhar por favor? — foi o outro médico que indagou. Só fui atrás deles, sem dizer nada. Entramos em um consultório do hospital e Valentim apontou a poltrona para mim. — Sente — disse baixo. — O que foi, Valentim? Aconteceu algo com a minha mãe, não é? Você sabe que eu não gosto de enrolações, seja direto — precisei focar meu olhar no dele para descobrir alguma coisa. — Mantenha a calma, Mariana. Nós vamos inteirá-la de tudo. O outro doutor pegou uma pasta de cima da mesa, abriu o elástico dela e tirou uns exames. — Sua mãe está realizando um novo check-up agora. Ela passou mal durante a madrugada... — Por que não me ligaram? — interrompi, toda afoita. — Mariana — Valentim me repreendeu —, você precisa nos deixar falar —
pediu e eu fiquei quieta —. Ela estava com febre alta e quem ficou no plantão noturno foi o Dr. Phillip — olhou para o companheiro de trabalho ao lado. Ué, mas não era Valentim que faria o plantão? —. Ele é nefrologista, e logo desconfiou que fosse uma infecção ou inflamação. Fizeram mais exames e um novo diagnostico foi dado. Além da neoplasia, sua mãe está com uma inflamação chamada glomerulonefrite, que impede completamente a filtração das toxinas do sangue em um rim. — Eu averiguei porque vi um inchaço repentino nos olhos e nas pernas dela. E também houve um aumento excessivo da pressão arterial. — Eu quero vê-la! — levantei-me tão rápido que tive uma vertigem. Segurei nos braços da poltrona e senti as mãos de Valentim me equilibrar pela cintura —. O que será feito? Qual é o tratamento indicado? Eu já estava entendendo o ponto que eles queriam chegar mas não conseguia digerir. — Eu vou trazer um chá fitoterápico para te acalmar — o oncologista pousou os olhos sobre os meus após ter me soltado. — Não quero nada disso, quero ver a minha mãe — teimei. — Você está ciente de que o sistema imunológico dela está debilitado, para ser sincero, comprometido — Valentim falou firme. — O tratamento viável seria com corticoides. Eu a mediquei, mas o organismo rejeitou. Sua mãe não está mais ingerindo água, o que dificulta cem por cento o procedimento — o nefrologista explicou. — Tem algo que possa ser feito? — meus olhos estavam marejados e minha angústia contribuiu para a minha glote começar a fechar. Estava me dando falta de ar. — Vamos aguardar os resultados dos últimos exames realizados e então eu decido — Valentim ficou nitidamente aflito ao me ver tão desconsolada. — Vou deixá-los a sós para conversarem, e daqui a pouco passo no laboratório para retirar os exames — Dr. Phillip assentiu com a cabeça para o colega de trabalho, mantendo as mãos unidas em frente ao quadril. Não consegui dizer nada. Abaixei meu rosto em minhas mãos e senti o toque de Valentim nas minhas costas. — Não dá mesmo para tirar o rim mais atingido? — ergui os olhos, sentindo-os como se estivessem queimando ao derramarem lágrimas tão dolorosas. — Se não tivesse afetado o outro, daria. Mas você sabe que se fizéssemos a incisão para tirar o tumor, seria só um sofrimento a mais, considerando que o rim
remanescente também não está totalmente saudável. — Mas o menos atingido pelo menos não está com aquela inflamação que você citou. Os sintomas diminuiriam muito, não é? Fiquei tão desesperada que queria acreditar no meu pouco conhecimento sobre a doença. Valentim ficou quieto, abaixou a cabeça, passou a mão com tensão sobre a boca e então eu notei que tinha mais algo, que ele evitou partilhar. — O que está escondendo, Valentim? — fiquei em pé e andei para um lado e depois para o outro —. Pode falar, eu não quero que me poupe de nada do que está acontecendo. Ele segurou no meu braço, fazendo-me parar no lugar. — Ela teve algumas alucinações, que o Dr. Phillip acha que é devido à febre, mas eu desconfio que seja mais grave. No momento em que cheguei aqui hoje, me chamaram com urgência para o leito da sua mãe. Ela estava tendo uma convulsão generalizada atônica. — Minha mãe têm convulsões sempre, Valentim. — Sim, mas o quadro foi diferente hoje. A generalizada atônica significa perder a consciência. Somado ao fato das alucinações antes da medicação do nefrologista, me faz considerar a existência de uma metástase no cérebro. Sequei minhas lágrimas persistentes que escorriam sem parar pelo meu rosto. Abaixei minha cabeça e puxei o ar com força para os pulmões, sentindo minha respiração tremular. — Então seria mesmo inútil tirar o rim ou tratar? — Seria. Quando saímos do consultório e nos dirigimos até o corredor do laboratório o Dr. Phillip apareceu com envelopes em mãos. Eu já tinha ligado para Carlie porque estava completamente sem condições para ir embora sozinha depois. Não ia pedir para Valentim, não o conhecia há muito tempo para compartilhar uma dor tão profunda. O nefrologista se retirou, já que aqueles exames eram referentes ao câncer da minha mãe. Valentim analisou ali mesmo, e eu com as mãos cruzadas coladas na minha boca, sentia meu rosto inundar mais. Agoniada, chorei em silêncio. Esperando a conclusão do homem nervoso na minha frente. Ele me mostrou algumas imagens apoiando os papéis no balcão próximo, onde não tinha ninguém. E me explicou que foi feito um procedimento intracraniano, no qual constatou pequenos cancros no tronco cerebral e no cerebelo.
Desabei. Minhas pernas fraquejaram e tentei libertar meu sofrimento chorando mais. Valentim me abraçou. Me envolveu afetuosamente em seus braços, beijou meus cabelos e encostou meu rosto em seu peito. — Eu vou fazer o que estiver ao meu alcance para não deixar a sua mãe sofrer. Fica calma, por favor — ouvi seu sussurro próximo ao meu ouvido, seguido de um beijo no rosto. — Não quero perder a minha mãe, Valentim — falei tão embargada que nem sei se ele entendeu —. Ela não merece passar por tudo isso. — Toda vida tem um propósito. A minha Ana se foi tão cedo e eu tenho certeza que ela não sente mais dor. Solucei mais um pouco, me afastei dele enquanto seus polegares secavam minhas bochechas vãs vezes. Ele me puxou para mais um abraço com uma preocupação tangível, e eu me senti protegida. Estava desolada, mas Valentim conseguiu me acalentar. Ouvi alguém coçar a garganta, mas continuei inerte a tudo ao meu redor. Repentinamente ele se afastou, devagar. — Posso saber o que está acontecendo aqui? Por que está abraçado com essa mulher? Vi muita ira nos olhos de Vivian. Ela me mediu dos pés a cabeça, como da outra vez. Pude escutar sua respiração totalmente alterada sair pelas narinas, o maxilar rijo e o corpo todo tenso. — Acabei de receber uma péssima notícia sobre a doença da minha mãe. Valentim só foi gentil — tomei a frente quando percebi que o homem estava sem saber o que falar. — Agora vai abraçar todas as parentes dos seus pacientes, Valentim? — Menos! — mandou. — Menos? — gargalhou ironicamente —. Está esperando o que para sair daqui? Eu e o meu marido precisamos conversar — primeiro olhou para mim e depois fuzilou o médico ao meu lado. — Não te dou o direito de falar com ela assim — Valentim engrossou o tom. — Está defendendo essa mulher? Aliás, se isso é uma mulher, parece um trapo — falou com o máximo de desdém que conseguiu. — Quanta prepotência, Vivian. Antes um trapo do que um ser humano soberbo e repulsivo como você — passei as costas das mãos embaixo dos meus olhos,
sentindo-me furiosa. — Como essa desqualificada sabe o meu nome? Eu acho bom você ter uma ótima explicação. Não aturei mais um segundo ali. Saí depressa, ouvi os passos de Valentim atrás de mim, mas parou quando Vivian disse: — Será que Ana se orgulharia de você trair a própria mãe dela? Estou decepcionada. A partir dali eu saquei o jogo baixo que a megera usava para manter o casamento. Tive uma vontade louca de voltar e esbofetear a cara de cínica dela. Como Valentim podia ser tão marionete? Eu não me submeteria a uma chantagem emocional, na qual a moeda de troco fosse uma criança. A grande questão é que Valentim era nitidamente amargurado por viver sem Ana, por tê-la perdido tão precocemente. Não voltei e nem esbofeteei, porque queria acima de tudo ficar um pouco com a minha mãe. Cheguei no quarto que ela havia sido transferida e a vi dormindo, tão frágil. Com uma máquina apitando indicando seus batimentos cardíacos, uma máscara de oxigênio e diversos fios conectados, soro, remédios e controle de pressão. Carlie entrou quando eu achei que desmoronaria novamente. Estava afobada. Correu para me abraçar e se explicou: — Vim o mais rápido que consegui, mas você sabe que a minha carroça não colabora no trânsito — ela olhou para a minha mãe na cama e depois para mim —. Como a Tia Martha está? Por que veio para esse quarto? Contei tudo o que eu havia escutado há pouco e Carlie não conteve as lágrimas. Ficamos abraçadas por tempo indeterminado. Minha mãe não acordou e eu estava tremendo de fome. Ouvi Carlie xingar a Vivian durante todo o almoço, ela não se conformou. Eu dizendo que a esposa de Valentim era doente e Carlie falando que de doente ela não tinha nada, que era ruim mesmo e bem esperta. — Você tem que parar de achar que tudo são flores — disse convicta para mim —. Essa mulher sabe como e o que faz. — O que importa é que não me importo — me esforcei ao máximo para colocar a comida para dentro e minha amiga me olhou com deboche. No caminho para casa eu e Carlie abordamos a questão dos custos do tratamento da minha mãe. Logo chegaria o gasto de mais um mês, e viria mais dos exames
caríssimos realizados, da consulta avaliatória do nefrologista e da internação no quarto individual. Eu não teria como pagar. Já estava devendo cinco sessões de quimioterapia e pagando parceladamente. — Não vai cobrir o necessário, mas eu vou te ajudar Mari — Carlie disse quando entramos no nosso apartamento. Sentei no sofá me sentindo acabada. — Conheça o tal empresário que vai na Le Luxe, pode ser a saída — ela abriu a geladeira e pegou uma garrafa d'água. A cabeça doía, latejava mesmo! Tomei dois analgésicos e tentei descansar. Mas o turbilhão de preocupações não abandonava minha mente. Valentim me falou que minha mãe tinha pouco tempo de vida, não eram semanas ou meses estipulados, mas era bom eu me preparar. Só não fazia ideia de como lidar com isso tudo, como me despediria da única pessoa que me criou e me deu amor desde o dia em que eu nasci? Adormeci no sofá e acordei com o toque de chamada do meu celular. Quis recusar quando vi Valentim escrito na tela, mas a vontade de ouvir a voz dele venceu. — Mariana? — soou calmo. — Oi. — Está se sentindo melhor? — Não sei, acabei de acordar — olhei em direção as janelas tentando me orientar do quanto dormi. — Você pode descer? — Aonde? — não tinha entendido e me sentei quando caiu a ficha — Você está na frente do meu prédio? — Estou. Desce, por favor? Preciso me desculpar. Pensei e pensei. — Vou abrir pra você — informei e desliguei. Me enrolei na manta, incomodada com o frio que a noite trazia. Abri a porta do meu apartamento e desci os dois lances de escada. Não fazia ideia de qual era a minha aparência, visto que eu tinha chorado até dormir. Abri os dois portões para ele e subimos os degraus em silêncio. Ao entrar no apartamento eu voltei para o sofá, cruzei minhas pernas e continuei embrulhada tentando me aquecer.
— Está sozinha? — perguntou. — Eu acho que sim — olhei na direção do pequeno corredor do meu quarto e de Carlie. — Quero pedir desculpa pela grosseria da minha esposa — ele abaixou o olhar. Ouvir ele se referindo a ela como esposa me deu aversão. Era pra ser insignificante. — Você não tem que se desculpar, ela que não tem educação. Coloquei minhas mãos sobre o meu colo, mexi em meus dedos e evitei olhar para ele. Senti suas mãos quentes tocarem e segurarem as minhas. Adorava a suavidade da sua pele. — Mariana — me chamou e eu o olhei —, hoje eu notei que fico atordoado em te ver mal, e muito mais quando alguém te destrata — ele sorriu um pouco envergonhado e balançou a cabeça —. Você tem o coração incomparavelmente mais bondoso do que o de Vivian. Não se abale com as palavras dela. — Valentim, eu não consigo entender o porquê continua com alguém que você sequer admira — estampei meu desgosto e indignação —. Me desculpa a intromissão, mas olha para você e olha para ela... Ela parece ser tão... não sei, tão impiedosa. — Vivian é doente. Ela se trata há anos, desde que Ana era recém-nascida. — Tem que amar muito pra ter paciência com alguém como ela — provoquei, tirando minhas mãos das dele. Na verdade mesmo eu não sabia se ele amava a esposa, mas senti a necessidade de jogar a isca. — Eu não a amo. A confissão parece ter lavado minha alma e tirado toneladas dos meus ombros. — Você não sai da minha cabeça, Mariana. Seus olhos vidraram-se nos meus. Senti meu corpo entrar em êxtase e continuei muda por longos segundos. — A gente não pode... — falei totalmente confusa. — Eu sei — um sorriso triste tomou conta dos seus lábios. Reparei em seus olhos esverdeados e tão verdadeiros, as sobrancelhas escuras, o nariz fino, o maxilar anguloso coberto em partes por uma barba fina com pelos aloirados e mais escuros, e no centro do seu queixo um furinho charmoso que eu
subitamente quis morder. Umedeci a boca com a ponta da minha língua assim que a senti secar, voltei a olhá-lo nos olhos e respirei tão fundo que ele riu e falou: — Fico tão deslumbrado quanto as crianças do hospital quando você aparece fantasiada e interpreta os personagens preferidos delas. Você é tão iluminada, destemida, tem garra... — sua voz foi tornando-se um sussurro à medida que as palavras saíam. Já estava sentindo o cheiro refrescante do seu hálito e, diferente das outras vezes, ele usava um perfume aquático e fougére. O aroma me fazia pensar em banho recente. — Mas ao mesmo tempo sei que possui diversos medos por trás desses oceanos azuis. É delicada, sensível, tão pura... Pura? Quase que gritei de uma vez por todas: Pura não, sou puta mesmo! Sério, pura? Como ele podia me enxergar desta forma? Meu corpo era sujo, manchado pela minha profissão. — Você está me idealizando como os seus pacientes, Valentim — tentei sorrir. — Não estou — sua mão veio carinhosamente para o meu pescoço por baixo do meu cabelo. Seu polegar acariciou meu queixo, minha bochecha e por fim contornou os meus lábios. Instintivamente, acabei mordendo o inferior e ele assistiu entreabrindo a boca. Entorpecida, deitei o rosto em sua mão. Ele repetiu o contorno com o polegar, mas desta vez aproximou o rosto do meu. O ar que saía da sua boca estava quente, assim como o meu. A nossa temperatura era febril. Eu fechei meus olhos quando lentamente Valentim encostou os lábios nos meus. Não reagi, não queria dar passo em falso. Eu o esperei. Senti seus dentes prenderem o meu lábio como eu havia feito sozinha segundos antes. Levei minha mão para sua nuca e emaranhei seus fios negros nos meus dedos. Não senti a sua língua, somente sua boca esfregar na minha, a desejando em cada milímetro. Ele passou a ponta do nariz no canto dos meus lábios que estavam sutilmente abertos, sentindo a minha pele. Fiquei inebriada com a sintonia e a tensão sexual manifestada. Nunca tinha experimentado um desejo tão ardente, ou a vontade de me perder insanamente em cada músculo do corpo de alguém.
— Ah, Mariana — lamentou quase inaudível. Encostamos nossas testas ainda de olhos fechados, e naquele instante eu soube que Valentim seria o meu martírio. Não ultrapassamos mais limite algum, não fizemos mais nada, mas ele cuidou de mim. Me esperou tomar um banho e me vestir. Fez lanche e suco para mim, depois sentou na minha cama e mexeu nos meus cabelos, até que eu dormi. Não sei que horas Valentim saiu, mas eu acordei mais leve e até mais forte. A não ser pelo vazio que se instalou ao ver que ele tinha ido embora. Fui até a oficina de dança, dei três aulas para as crianças e conversei com os voluntários sobre a organização de um evento para receber doações de agasalhos e brinquedos. Eu estava um pouco revigorada. Claro, meu coração continuava dolorido por conta do estado da minha mãe, mas a energia tão cheia de vida das crianças me animou. Valentim já tinha me mandado mensagem desejando um bom dia e pedindo para eu almoçar com ele. Fui até o hospital, fiquei um tempo com a minha mãe que, graças a Deus estava relativamente melhor e depois fui para o restaurante com Valentim e Álvaro. Nossas constantes trocas de olhares ruboresciam minhas bochechas, ele sabia me intimidar com aqueles olhos lindos. Álvaro volta e meia tirava sarro da nossa comunicação telepática, mas na maioria do tempo o gastro falou da minha amiga, reclamando que ela nunca tinha tempo para sair com ele. Fiquei triste por Carlie. Os dias passaram e neles eu e Valentim nos aproximamos muito. O episódio do meu apartamento não voltou a acontecer, mas só de poder ficar perto dele e sentir seus abraços eu já me sentia mais forte. Na quinta-feira eu saí do Saint Clair após a recreação com as crianças. Eu estava tensa e foi difícil disfarçar para Valentim. Seria um dia importante. Eu conheceria o empresário secreto. Pauline me deu um bom dinheiro, para um vestido no nível do encontro. Fui ao shopping e escolhi uma peça de mangas três quartos, gola alta, com a barra pouco acima dos joelhos e preto para não ter erro. Era discreto, mas em contraste com os meus longos cabelos ficaria perfeito. Uma prostituta com roupas abertas demais não impressionaria um homem exigente. Seguida da depilação eu tomei banho, hidratei meu corpo inteiro com um creme ligeiramente adocicado, alisei meus cabelos e os prendi em um coque apertado,
para formar ondas quando eu soltasse. Vesti uma lingerie preta com cinta liga, para não ter erro também. Caprichei na maquiagem, carreguei os cílios de rímel para realçar minhas íris azuis e optei por um batom vermelho vinho, que salientou meus lábios grossos. Confesso que estava nervosa porque criaram muitas expectativas sobre esse empresário. Eu queria que Justine tivesse o conhecido primeiro para me dar o feedback. Mas como Pauline disse, eu correria o risco da minha colega de trabalho se tornar uma acompanhante fixa. Eu não podia sonhar em perder uma proposta financeira tão boa. Quem sabe conseguiria quitar as dívidas do tratamento da minha mãe? Recebi uma mensagem de Pauline, avisando que o cliente havia mandado um motorista para me buscar, e ela me desejou boa sorte. Entrei em um carro preto de executivo que parou no meio fio em frente ao meu prédio. Dei boa noite ao motorista mas não fui respondida. Querido, eu não suporto gente grossa. Deixei no pensamento mesmo, não ia acabar com a minha chance antes de chegar no lugar. — O senhor pode por favor, me informar aonde estamos indo? — perguntei sem jeito. Estava me sentindo deslocada e muito ansiosa. — Estou te levando ao Fairmont Olympic — disse somente. Um hotel de luxo que eu fui três ou quatro vezes. Nem todos os homens me levaram no melhor lugar para transar, muitos deles eram casados e poupavam seus cartões de crédito para as esposas não desconfiarem. Meu celular começou a vibrar dentro da clutch e eu toda desajeitada tentei pegálo, o volume estava alto e parecia que qualquer coisa incomodava o senhor ranzinza na minha frente. Valentim estava me ligando e eu não pude atender. Recusei a ligação e segundos depois recebi uma mensagem: ✉ "Notei que estava muito calada hoje, quero que saiba que estou aqui e que você pode contar comigo, combinado? Estou com saudade, bailarina, e pensando seriamente em trocar meu plantão para ir ao seu apartamento fazer uma pizza. O que acha? Valentim"
Uma ânsia bateu forte no meu estômago e eu fiquei péssima. Juro que senti vontade de desistir e pedir ao motorista para voltar. ✉ "Boa noite, Valentim Obrigada por se preocupar, mas eu tenho compromisso. Um beijo" — Você está autorizada para entrar, esse é o seu cartão — o ranzinza olhou para trás me dando o cartão e eu enfiei o celular na bolsa, que voltou a vibrar anunciando mais mensagens — Mil e quatro, no décimo andar. Agradeci e desci fechando os últimos botões do meu sobretudo também preto. Uma garoa fininha caía, enfiei minhas mãos enluvadas nos bolsos e entrei no saguão. O movimento era grande, funcionários e hóspedes transitavam de um lado para o outro. Encontrei rapidamente os elevadores e entrei em um. Tirei minhas luvas colocando-as na clutch e esfreguei minhas mãos geladas uma na outra. Respirei fundo espantando o inesperado nervosismo. Era só mais um cliente, provavelmente velho, que estava atrás de descontar em mim a vida sexual frustrada. Parei em frente ao quarto e dei três toques com o indicador, mas não ouvi nada. Resolvi passar o cartão no sensor e empurrei a porta. O cheiro era amadeirado e forte. O ambiente estava um pouco escuro, exceto pelas luzes da cidade e de um lustre no centro do quarto. Olhei para os lados e não demorei para encontrá-lo. Estava de costas em uma poltrona da cor grafite — como do restante da decoração do quarto. — Boa noite — deixei minha bolsa na primeira mesa que encontrei e ele virou lentamente. Me surpreendi. Não era um velho feio e gordo. Era um homem enigmaticamente bonito, dono de um corpo grande e viril. — Boa noite, D'Ávila — pronunciou meu sobrenome e sorriu de canto. Seus olhos que compunham nuances diversas entre o verde e o amarelo, percorreram sem deixar escapar um singelo detalhe do meu corpo. Os cabelos, as sobrancelhas e os pelos da barba eram tão pretos. Essas características aliadas ao seu terno também preto me fizeram imaginá-lo como um mafioso. Tive vontade de rir do meu próprio pensamento. De repente ele ficou em pé e foi tão
intimidador que eu dei um passo para trás. — Pauline tinha razão — sussurrou, e calculadamente andou em volta do meu corpo para analisá-lo —. Você é deliciosa. — Agradeço — olhei em seus olhos e ele os desviou —. Qual é o seu nome? — Me agradeça mostrando tudo o que sabe fazer — um sorrisinho maléfico apareceu. — Como o senhor quiser. Virei-me em direção a ele que, caminhou até a cristaleira de bebidas e encheu uma taça de vinho, aceitei por educação, embora preferisse não beber. E também porque precisava relaxar, admito. Ele sorveu o líquido âmbar em seu copo e levantou-o para mim, oferecendo um brinde: — Pelo prazer de ter me surpreendido — brindamos e continuei estudando seus traços mais de perto —. E esquece o senhor. Meu nome é Saulo.
8 Mariana D'Ávila
T
— ire a roupa — sua boca encostou na minha orelha e pediu sem mais delongas. Vagarosamente eu comecei a desabotoar meu casaco comprido. O homem grande e vigoroso voltou a se sentar, com um copo de whisky na mão. Seus olhos miravam as minhas coxas e em cada movimento do meu quadril, que seguia o ritmo sensual do blues que ele havia escolhido. Deixei o sobretudo cair no chão e virei-me de costas, deslizando minhas mãos da minha cintura até as minhas pernas, abaixando lentamente até sentar nos calcanhares. Olhei-o por cima do meu ombro e vi seu punho fechado ressaltando as veias em seu braço forte. Saulo tinha se despido do terno, continuou somente com uma camisa preta arregaçada nas mangas. Vez ou outra sorvia a bebida, mantendo-se compenetrado em mim. O chamei com o dedo e delicadamente coloquei meus cabelos para um lado, oferecendo-o as minhas costas. — Abra — pedi, mostrando o zíper comprido do meu vestido. O homem veio audaz, desceu um pouco o zíper livrando o meu pescoço da gola, e então começou a beijar minha nuca, mordeu meu ombro que logo ficou nu e então parou o fecho na altura da minha lombar. — Vou foder o seu traseiro até você não conseguir sentar — senti uma mordida no lóbulo da minha orelha. Confesso que sua voz me deixou extasiada. Fechei meus olhos e inclinei a cabeça para trás, deitando-a em seu ombro. Ele emaranhou meus fios com força entre seus dedos e eu entreabri a boca. Seu sorriso malicioso expôs seus dentes brancos e me causou um calafrio. Saulo dava medo. — Fique sem nada — acertou um tapa cheio na minha bunda e se afastou. Passei as mangas pelos braços e abaixei todo o tecido até tê-lo em meus pés, dei um passo para fora e abaixei-me para pegá-lo. Joguei para Saulo, que levou a peça até o nariz e cheirou fechando os olhos. — Se a sua boceta for tão gostosa quanto o seu cheiro... — fixou os olhos nos
meus. — É mais, eu garanto — apoiei meu pé no estofado da poltrona entre as pernas dele. Senti sua mão passar pelo meu scarpin, depois subiu para a panturrilha até o final da minha coxa. Tirei as meias pretas devagar, descalcei e calcei novamente os saltos. — Beba — me deu o seu copo e eu neguei com a cabeça. — Obrigada, prefiro ficar sóbria. — Não estou pedindo, estou mandando — continuou com o copo na minha frente —. Beba tudo. Minha mente relutou, mesmo contrariada eu peguei o whisky e virei todo o líquido, que desceu queimando minha garganta. — Muito bem, menina — o tapa que ele deu no meu rosto me pegou completamente desprevenida. Ele sorriu ao me ver assustada e então se levantou, fechando a mão em meu pescoço. Sua boca veio devorando a minha, a língua buscando explorar cada canto, a mão esquerda fazendo uma bagunça no meu cabelo e a outra apalpando minha bunda com força. — Vai me dizer que é puta e não gosta de apanhar? Existia o mínimo de intimidade com os clientes que gostavam de bater ou de apanhar. Não logo de primeira e sem consentimento algum. Ele me olhou com uma superioridade humilhante quando se afastou, um sorrisinho irônico permanecia em seus lábios. Sua beleza era realmente um mistério. — Um bom e velho Chivas pra você ficar soltinha — encheu mais um copo. — Saulo, eu agradeço mas não estou acostumada a beber muito. — D'Ávila — ele balançou a cabeça com sarcasmo —. Eu pago e você obedece. Me entregou um copo cheio e brindou comigo. Ele bebeu tudo de uma vez e esperou eu dar um gole para avançar novamente na minha boca. Sua língua exigia intensidade, sintonia, e eu tentei retribuí-lo como possível. Saulo começou a dar passos longos, segurando-me pela cintura até esbarrarmos na cama. Ele me jogou no colchão brutalmente e veio por cima. Beijou meus seios arrancando-os para fora do sutiã e em seguida rasgou a renda da minha calcinha. — Eu disse para tirar tudo.
Começou a chupar o meu pescoço, minha clavícula e meus seios que logo foram libertos da lingerie. Seus lábios foram descendo pelo centro da minha barriga, ele abriu minhas pernas prendendo-as em seus braços e então beijou meu sexo. Eu gemi, contorcendo-me e arqueando as costas da cama. Com os dedos ele abriu os lábios e com a língua sugou o meu clitóris. — Que delícia, Saulo — falei ofegante. Seus dedos me penetraram com força até onde podiam, os movimentos eram rápidos e eu me apoiei nos antebraços para poder assisti-lo. Sua outra mão se dedicou aos meus peitos, apertando-os e beliscando os mamilos. — É mais gostosa do que o seu cheiro — ele passou a língua do meu ânus até o meu clitóris. Era bom e experiente. Fiz um oral nele, dividido entre chupadas, lambidas e carícias com as mãos. Ouvi xingos como "puta", "cachorra", e outros adjetivos que eu estava habituada. Quando finalmente Saulo entrou em mim eu o escutei insultar as minhas gerações: — Filha da puta, que boceta deliciosa do caralho — mordeu minhas costas, segurou no meu cabelo inclinando minha cabeça para trás, e então alcançou minha boca. Despejamos nossos gemidos abafando-os nos nossos lábios. Saulo deixou incontáveis tapas na minha bunda, aproveitando da que eu desconfiei ser sua posição preferida. Fiquei a maior parte do tempo de quatro, aguentando-o montar em cima de mim e mergulhar principalmente no meu ânus, de forma animalesca. — Deixei passar porque foi a primeira vez, mas não ache que vou permitir que você não goze. Não aceito ser um cliente como todos os outros. — Foi bom para mim, Saulo. E o meu dever é te satisfazer. Ele gargalhou, sorveu mais dois dedos de whisky e me olhou. — Eu sei que sua obrigação é me proporcionar prazer e por isso, eu preciso que você também sinta. Coloquei a camisa preta e caminhei em sua direção, enredei seu pescoço com os meus braços e inalei seu cheiro amadeirado misturado ao nosso sexo. — Vá dormir! Quero que acorde bem cedo porque vamos conversar sobre alguns
detalhes. — Eu fiz algo que não gostou? — encarei seus olhos que estavam levemente acinzentados. Sentia a embriaguez ainda presente, não era algo corriqueiro eu ingerir bebidas alcoólicas, mas aquilo de alguma forma havia me deixado mais solta e mais relaxada. Tinha a impressão de que o meu corpo flutuava quando me ajeitei no colchão. Fechei os olhos e apaguei rapidamente. No outro dia fiquei espantada ao me deparar com o olhar de águia sobre mim. Senti um pouco de dor de cabeça, mas não tive tempo de me espreguiçar ou despertar totalmente. Saulo logo me colocou deitada de lado e de costas para ele, me fez empinar a bunda contra o seu quadril e se enfiou em mim. — Eu acho bom que tenha boas respostas, elas serão responsáveis pela minha escolha — sussurrou no meu ouvido e lambeu minha orelha. Eu estremeci, arrepiada e um pouco desorientada. Fechei meus olhos e rebolei contra o seu colo sentindo sua espessura e a fricção dos nossos corpos. Saulo me mordeu, chupou minha pele, me enforcou e claro, me xingou. Acabamos no banho, e a ausência de intimidade entre nós dois era sem dúvidas, desconfortável. — Vinte mil mensal — falou de repente, enquanto secava os cabelos com a toalha em frente ao espelho do banheiro. Eu quase engasguei com o pedaço de maçã. — Você não poderá sair com mais ninguém, eu disse ninguém. Quero exclusividade absoluta. — Certo — assenti com a cabeça. — Obedecerá as minhas ordens sem pestanejar. Me acompanhará nos eventos que eu a convidar, independente do lugar e do dia. Pensei em minha mãe. — Você me avisará com antecedência? — joguei o resto de maçã no lixo e parei na porta para olhá-lo. — É claro que não. E eu quero que se vista adequadamente, utilize o dinheiro para comprar roupas e o que precisar. — E essas ordens incluem o que? — Minhas vontades sexuais, D'Ávila.
— Se você me garantir que não é nenhum sádico. Ele riu e secou as mãos na toalha de rosto pendurada. — Posso aumentar a oferta caso ache que não vale a pena arriscar por vinte mil. Mas claro, isso se eu gostar da sua resposta... — Qual resposta? Pergunte. — Você transava com os seus clientes sem preservativo? — Não, nunca — respondi embasbacada. — Então é limpa? Até me sentiria ofendida caso não fosse uma prostituta em questão. — Sou, Saulo. — Ótimo, porque eu não vou ficar usando aquela merda. — Mas eu acho melhor continuarmos usando. — Só enquanto você não passa por uma médica e não usa contraceptivo. Depois disso não usaremos. — Saulo — ponderei. — Vinte e cinco por mês. Me calei. Era mais do que eu imaginava. — Não sairá sem minha permissão e fique com isso — ele tinha caminhado até a poltrona para pegar algo no bolso da calça que usou no dia anterior. Ouvi barulho de chaves que logo foram entregues em minha mão. — O que é isso? Calma. Olha, eu sou professora de balé em uma companhia de teatro. Tenho alunos fixos, e também visito minha mãe frequentemente, ela está muito doente. Ele me olhou, me olhou... e pegou a mesma calça para vestir. — Se as visitas forem breves, tudo bem. E sobre o trabalho, é mesmo necessário? — Eu amo ensinar as crianças, Saulo. Ele assentiu com a cabeça. — Do trabalho direto para casa. — E o que é isso? — segurei no chaveiro com a miniatura do Space Needle de Seattle. — Convenhamos, você mora em um lugar inabitável. Quero que mude o quanto antes.
— Um apartamento, Saulo? — Flat. Eu precisava pensar e organizar tudo na minha cabeça. Conversar principalmente com Carlie e com Pauline. Minha chefe com toda certeza apoiaria, ela queria que eu encontrasse o homem certo para arcar com as despesas altíssimas do hospital, em contrapartida perderia uma das funcionárias que mais fazia a Le Luxe lucrar. Já Carlie ficaria preocupada por ser uma proposta tão repentina. Com o dinheiro que ganharia eu até a ajudaria a pagar o aluguel, não queria de forma alguma deixá-la na mão. — Eu posso pensar? — Não. Pauline me assegurou que a casa poderia me apresentar outras caso eu não te aprovasse. — Isso significa que gostou de mim? — Olhe para você — seus olhos mais uma vez percorreram por todo o meu corpo. — Você compreende que são muitas coisas para eu digerir? — Sinceramente, eu não estou aqui para te entender. Ele terminou de se vestir rapidamente. Passou por mim e beijou o meu pescoço. — Amanhã temos um almoço. Te pego no flat, o endereço e tudo o que você precisa saber está naquele contrato — ele apontou para a mesa ao lado da porta —. Assine-o e me entregue à noite. — Mas Saulo... Não restou tempo para falar porque o homem saiu e bateu a porta. Coloquei o mesmo vestido do dia anterior e sentei na cama para ler o contrato deixado. Tratava de tudo o que ele citou, exclusividade, regras sobre a minha rotina, enfaticamente o consentimento do não uso de preservativos e outras dezenas de tópicos. Quando cheguei no apartamento contei tudo para Carlie. Ela ficou sentada na tampa da privada fazendo seus comentários inusitados enquanto eu tomava banho. — Já posso me sentir como a Anastasia Steele? — Exceto pelo simples fato do Saulo ser um ogro arrogante, ao contrário do Christian Grey que é um lorde totalmente educado. — Só isso mesmo? — debochei. — Ah, você é um pouquinho menos virgem que a Anastasia, mas quem liga pra
esse detalhezinho? Acabamos rindo juntas. Carlie sabia ser absurda. — Quanto a mim, fique tranquila. Reverta todo esse dinheiro para a Tia Martha. Sempre me virei bem com o aluguel e as outras contas. — Então você acha que devo aceitar? — Você me contou tudo, mas mesmo assim não tem como eu viver e sentir o mesmo. Se você acha que pode suportar todas essas normas loucas dele, vai fundo. Se não minha amiga, pula fora. — Esse domínio eu já sabia que seria pedido, qualquer homem disposto a pagar tudo isso cobraria exclusividade — enrolei-me na toalha rosa e saí do box. — E pense pelo lado bom Mari, ele não é um velho flácido de pau pequeno. — Não, pelo contrário. É bem gostoso — penteei meus cabelos enquanto relembrava da noite. — Mas se exceder o seu limite em relação aos tapas você tem todo direito de comunicá-lo. Além de toda a anormalidade da situação, tinha algo maior me incomodando e bloqueando. Eu sabia o que era, só não queria crer. — E o Valentim? — minha amiga, como sempre, leu meus pensamentos. — O que tem ele? — tentei soar indiferente. Ela negou com a cabeça e revirou os olhos. Teria que me afastar dele e pronto. Porque usufruíamos de uma linha muito tênue entre amizade e uma atração abrasada. — Só pede para esse Senhor das Ordens autorizar minha entrada nesse flat, estou achando tudo tão chique. Ouvi Carlie pedir antes de eu sair e bater a porta do carro. Fiquei na calçada do hospital preparando o meu psicológico para encontrar Valentim e depois minha mãe. Minha amiga tinha me ajudado a esconder dois chupões visíveis. Não conseguia entender a minha necessidade de poupar Valentim sobre a sujeira que era a minha vida. Ele não tinha o mínimo direito de opinar sobre nada. Ele era casado e eu solteira, dona de mim. Droga! Merda! Seria pedir demais uma chance para nós dois?
Valentim Del Torre Vi Mariana subir os degraus no final do corredor e me apressei para alcançá-la. Estava com os braços cruzados em frente aos seios, com uma blusa branca de mangas compridas, calça preta justa nas pernas e uma bota da mesma cor de saltos baixos. — Bom dia, bailarina. — Bom dia, Valentim — era tão fácil distinguir os seus humores. — Será que podemos conversar? — encostei no corrimão um degrau acima do que ela estava. Queria contar que marquei com a advogada para tratar do divórcio com Vivian. Ela seria a primeira pessoa a saber. Sentia-me tão leve e seguro com Mariana, para falar de todos os assuntos. Até mesmo sobre minha filha, que era delicado demais. De alguma forma eu queria e talvez precisasse da aprovação dela, algum sinal de que estava fazendo a coisa certa. Queria ver sua reação, se ficaria entusiasmada por nós dois. Estava querendo a separação primeiramente por mim, mas não podia negar que Mariana havia se tornado um bom motivo. Não a conhecia o suficiente para dizer que teríamos algo, mas as correntes que nos impediam seriam finalmente soltas para desfrutarmos das coisas que a vida nos preparou, fossem elas poucas ou muitas. — Não, não podemos. Franzi o cenho um pouco desnorteado com a resposta. — Estávamos tão bem durante a semana, aconteceu algo de ontem para hoje, Mariana? — Não estávamos bem, não temos nada para você falar assim — ela descruzou os braços e tentou passar por mim. Se eu não pudesse desvendar algo ao olhar para os mirantes azuis desde a primeira vez que nos vimos, deixaria passar batido. Segurei em seu braço e em seguida apoiei seu queixo para direcionar o rosto angelical ao meu. — Me diga o que está acontecendo — pedi e a vi desviar o olhar marejado. — Nada que te diz respeito, me dá licença Valentim — voltou a cruzar os braços.
Coloquei minhas duas mãos em seu rosto e deixei alguns dedos em seu pescoço fino, desci um degrau ficando a menos de um centímetro dela. Primeiro beijei sua testa, descansando minha boca ali, fechei os meus olhos e quando os abri, vi que ela estava com os olhos fechados também. De repente Mariana se desarmou, descruzou os braços e então eu a abracei. Ela demorou para ceder e retribuir, mas quando o fez eu me senti a salvo. O misto de sensações que tomou conta de cada célula do meu corpo foi indescritível. Seu cheiro, somado as suas curvas e seus cabelos macios não se compararam a conexão de sentimentos que compartilhamos naquele momento. Eu não consegui pensar em mais nada quando Mariana abriu os olhos e fixou-os em minha boca. Rompi lentamente a pequena distância entre nossos lábios, mas ela não esperou. Avançou sofregamente, beijando-me como um pedido de achego, de amparo. Segurei em sua nuca e em seus cabelos e a encostei na parede correspondendo-a, e partilhando exatamente da mesma emoção. Senti suas pequenas mãos pegarem na minha cintura por baixo do jaleco, elas me apertaram subindo pelas minhas costas até chegarem na minha nuca. Nossas línguas dançaram com magistralidade, em uma combinação inigualável. Busquei ao máximo sentir o seu gosto fresco, delicioso, e sua língua macia. Pressionei seu corpo ao meu e fui recompensado com um gemido baixo enclausurado na minha boca. Apalpei seu quadril, suas costas, a curva acentuada da cintura e me segurei para não descer e saciar minha vontade de sentir o traseiro perfeito e redondo. Mariana não era só um bom motivo, era o principal. — Desculpa, Valentim — disse quando separou os lábios dos meus. Desculpa? — Desculpa, Mariana? — É, desculpa. Não queria ter feito isso — passou a mão pelo rosto e olhou para o lado. Peguei em seu queixo de novo mas dessa vez ela tirou a minha mão. — Não queria? — hesitei, formando um vinco entre minhas sobrancelhas. Desorientada, ela balançou a cabeça, pegou a bolsa que tinha caído no chão e terminou de subir a escada me deixando para trás. Eu não ia deixar assim. Claro que não! Me apressei para tratar dos pacientes com imunossupressão, especialmente das crianças portadoras da neoplasia mais afetadas pela doença. Algumas estavam
visivelmente mais abatidas, outras mais dispostas, mas independente do estado me tratavam com completo carinho. — O que você tanto pensa, Tio Valentim? Está tão diferente hoje — Alba era uma menina de oito anos que lutava contra a leucemia linfoide aguda. Tínhamos acabado de realizar mais uma transfusão de hemácias e plaquetas, um procedimento que fazíamos quase que diariamente. Verifiquei seus sinais vitais, temperatura e pressão arterial. — É complicado demais, pequena Alba — sentei-me ao seu lado e tirei a máscara hospitalar. — Complicado demais é ficar careca Tio Valentim, e querer sair do hospital e não poder — ela franziu o nariz, falando sem nenhuma melancolia. — Eu sei — segurei em sua mão frágil e febril. — Por que não se declara como fazem nos filmes? — Do que está falando, meu amor? — Você sabe que eu sou uma geniazinha, e eu sei que você está apaixonadinho Tio Valentim. Também sei que é por aquela moça bonita que vem sempre nas recreações. — Anda me espiando, é? — brinquei. Tirei minhas luvas descartáveis e as joguei na lixeira ao lado. — Não preciso disso para enxergar — tirou a própria máscara e mostrou a língua para mim. Fiz carinho em seu braço e levantei-me. Caralho, era tão evidente? Não vi mais Mariana no hospital, ela tinha ficado pouco com Martha, considerando que a mesma mantinha-se a maior parte do tempo sedada para o alívio das dores. Mais tarde minha irmã me ligou para informar que Mariana daria aula para Sol na sexta-feira mesmo. Fiquei curioso com a mudança repentina de dia, mas aproveitei para ir até o apartamento de Charlotte. Iria conversar com Mariana ela querendo ou não. Eu só não sabia que seria tratado com tamanha frieza. Minha sobrinha veio me recepcionar como todas as vezes, eufórica, tagarela e amável. Peguei-a no colo, ela que já vestia o collant e os outros adereços do balé, e ela começou a falar:
— Minha aulinha vai atrasar um pouquinho, Tia Ana está comendo com a mamãe e o papai lá na cozinha. Sentei-me no sofá e acomodei a Sol na minha coxa. — Mamãe estava bem brava com a fadinha. Disse que ela não pode ficar sem comer tanto tempo. — Mariana estava sem comer, de novo? Assentiu com a cabeça e continuou: — E ainda ouvi a mamãe perguntar porque ela estava chorando antes de chegar aqui. Mas é segredo nosso, Tio Tim. Você sabe que a mamãe não gosta que eu fale mais que a minha boquinha. Ouvi a voz de Mariana ecoar da cozinha junto às gargalhadas da minha irmã, não consegui decifrar o que ela tinha falado porque estava preso ao sentimento doloroso que apossou do meu coração. Por que essa mulher se comportava assim? Me sentia cada vez mais frustrado por não conseguir encaixar todas as peças do quebra-cabeça. Depois de pouco tempo, a bailarina levou minha sobrinha para a sala de ioga sem sequer me olhar. Meu cunhado saiu para resolver um imprevisto no escritório e Charlotte sentou ao meu lado, respirou fundo e cultuou comigo um silêncio profundo. — Vai me falar o que tá rolando ou eu posso começar com as minhas suposições? Estava admirado com o tempo que ela tinha aguentado sem disparar seus mil questionamentos. — Não é uma boa hora, Charlotte — avisei. — E você veio aqui atrás dela pra ficar mudo? — Vou esperar a aula terminar. — Certo. Ficamos quietos mais um pouco. — Mas vocês brigaram? — Não sei. — Como não sabe, Valentim? Eu vou enfartar se você não me contar o que está rolando. — Você sabe o porquê ela mudou o dia da aula? — Disse que tem um compromisso, que apareceu de repente — Charlotte me
examinou e passou o indicador no queixo —. Espera aí, você desconfia de algo. — É óbvio que Mariana namora, ou tem alguém que seja importante. — Você já perguntou? — acenei positivo —. E ela disse o que? — Que não namora. — Então ela não namora, Mariana não parece mentir — minha irmã estava totalmente pensativa —. Não é por causa da mãe dela? Ela pode estar sofrendo muito. — Eu sei que ela sofre com a doença da mãe, mas não é só isso. Eu sei que não é — passei as mãos pelo meu rosto e depois pelo meu cabelo, bagunçando-o e sentindo-me perdido. Ouvi as inúmeras hipóteses de Charlotte, mas nada fazia sentido, era alguma peça bem distinta e que eu temia não conseguiria encontrar. Mariana apareceu trocada, com a roupa que estava antes no hospital e se despediu da minha irmã, deu um abraço na minha sobrinha e acenou relutante para mim antes de sair pela porta da sala. — Tá esperando o que? — Charlotte levantou exasperada. — Vai logo, Tio Valentim — Sol começou a me empurrar. Saí atrás de Mariana e coloquei a mão no sensor do elevador quando vi a porta fechando. Entrei em seguida e parei na frente dela. — O que foi, Valentim? — O que foi? — acabei indagando irritado demais. Seu passo para trás fez suas costas colidirem contra a parede de aço. — Eu exijo que conte o que está acontecendo, não vê que eu me preocupo com você? — Você não tem que me exigir nada — ela não abaixou o tom também —. Não tem direito algum para isso. — E o nosso beijo? — Foi só um beijo que não significou nada. — Só um beijo que não significou nada? É sério, Mariana? — Valentim — suas mãos vieram até o meu peito, limitando a nossa aproximação que já nos esmagava de desejo —. Por favor, você tem a sua esposa e eu tenho a minha vida. — Você tem a sua vida com quem? — encurralei-a sem perceber. Mariana respirou fundo e abaixou a cabeça. A porta do elevador se abriu, ela
passou e eu também. Saí pela portaria atrás dela, que ficou esperando um táxi na calçada. — Por que está fazendo isso? Que porra! — dessa vez segurei em sua cintura e a fiz ficar de frente para mim. — Porque eu não quero nada com você, não percebe? Não quero nada. Doeu mais do que eu pensei. Doeu porque na verdade eu não esperava ouvir aquilo. Ainda mais quando seus olhos não desviaram dos meus. — Não quer? — questionei com o que restou da minha voz. — Não — a palavra não titubeou. Enfim a soltei. Ela entrou no carro amarelo e não me olhou mais. Fiquei parado, tentando inutilmente digerir as merdas que ela havia proferido. Liguei para Álvaro e implorei companhia ao meu amigo, precisava mais do que nunca encher a cara. Ele se apressou para sair do hospital e me encontrou no PUB na área central da cidade. Eu esperei do lado de dentro, já que uma chuva fina tinha começado a cair. Pedi dois chopes no balcão e terminei de beber antes do Álvaro chegar. — Tá curando uma desilusão amorosa, meu caro? — senti a mão dele apertar meu ombro e depois o vi sentar ao meu lado. — Pedi um pra você, mas como demorou — levantei a segunda caneca que eu já estava bebendo. — Você me chamar para beber é algo inédito. O que devemos a honra? — Honra caralho nenhum! — Tá na fossa mesmo pelo jeito — meu amigo levantou a mão para pedir um chope ao garçom. Bastou cinco copos cheios para eu começar a colocar tudo o que tinha acontecido para fora. Ele me ouviu fazendo um comentário ou outro, mas preferiu me deixar contar até o final. — Isso que dá seu filho da puta. Se tivesse deixado o amigo aqui investir na loira, não estaria sofrendo igual a um desgraçado. Ledo engano achar que amigos serviam para confortar e não para foder mais a sua situação. — Eu não investi na Mariana, caralho. Ela só chegou sem avisar e revirou minha cabeça.
— Cara, como você está apaixonado. E lascado! Perdidamente fodido! — Obrigado pelo apoio, porra. Álvaro acabou desabafando sobre a amiga da bailarina, só que a diferença é que ele tinha conseguido sair com ela três vezes e na segunda foram para cama. Ele estava um passo bem na frente, em relação ao ponto em que eu estava com Mariana. O fato é que Carlie também dizia não querer estabelecer nada com ele. — O que essas feiticeiras querem? — questionou enfurecido. — Acabar com a nossa sanidade — apoiei mais um copo sobre o balcão. — O próximo é por minha conta — fui surpreendido ao ouvir a voz ditatorial do meu irmão. Olhei para trás e notei que eu estava alcoolizado por ter levantado para cumprimenta-lo. — Afogando as mágoas, Dr. Del Torre? — perguntou sorrindo. — E aí seu merda — Álvaro também o saudou. Assim como eu, meu amigo também não suportava o Saulo, é óbvio que a embriaguez havia nos deixado mais receptivos. — Não diga nada a esse filho da puta — falei baixo próximo ao ouvido de Álvaro, que concordou com a cabeça. — Não sabia que você tinha tempo para beber, doutor — Saulo debochou, pegando um copo de whisky da mão do garçom. — Se quer saber, temos tempo pra muita coisa — meu amigo levantou o décimo, ou sei lá qual copo de chope, e nós brindamos. — Está precisando administrar direito então. — O que quer dizer, Sr. Administrador? — caçoei. — Acho que falta tempo pra dar um trato na Vivian por exemplo, porque porra, que mulher insuportável. Álvaro me olhou, preocupado com como eu reagiria. — E por que você não cuida do seu pau ao invés de cuidar do meu? — Está sendo muito bem cuidado — mexeu o copo dissolvendo o gelo na bebida. — Então larga a esposa do cara, seu imbecil — Álvaro falou na esportiva. — Se vocês soubessem como estou bem servido — ele virou todo o líquido e pediu mais um.
9 Mariana D'Ávila
M
— ari, eu estou falando com você — ouvi minha chefe tentar pela milésima me manter concentrada. Por que o coração só quer aquilo que não é pro nosso bico? Eu não conseguia parar de pensar no beijo de Valentim. — Justine ainda não voltou, e duas meninas estão doentes. Eu preciso de você aqui hoje. — Pauline — adverti —. Eu te expliquei que Saulo não é um homem fácil de driblar. — Estou ciente, minha flor. Não vou prejudicar você, deixarei todos os seguranças da casa avisados. E já que vocês dois não têm nada marcado para essa noite, quebra essa pra mim? Fechei meus olhos e respirei fundo, ela sorriu e me abraçou. — Obrigada, Mari. Você sempre salvando a Le Luxe — Pauline veio me abraçar e beijou meu rosto. — Mas não se esqueça da condição, eu só vou dançar e depois ir embora. Não posso correr o risco. — Combinadíssimo. Não podia de forma alguma transar com outro cara. Só de pensar no olhar perigoso de Saulo eu me senti intimidada. Desci para o salão e tomei um suco enquanto ajudava as meninas com a coreografia das apresentações noturna. Tentei de tudo para me distrair e esquecer da reação angustiante de Valentim. Se eu fechasse os meus olhos podia reviver a sensação dos seus lábios nos meus, do calor de sua pele e do seu toque preciso. Saí do devaneio quando meu celular começou a vibrar no bolso da calça, peguei e vi Charlotte escrito. Falamos sobre o evento beneficente que a oficina de teatro realizaria para arrecadar agasalhos e brinquedos para as crianças. Ela e Sol estavam empolgadas e, sinceramente, eu me sentia muito acolhida por ambas. Temi que algum dia a irmã de Valentim descobrisse qual era a minha fonte de renda e decidisse cortar vínculo comigo. Gostava tanto de Sol que só de pensar em me afastar dela me dava vontade de chorar. Eu andava muito emotiva, na
verdade. Minha vida estava uma montanha de coisas ruins, que eu não via a hora de escalar, atravessar e chegar no final. — Não fique com essa carinha, amiga. Agora as coisas vão começar a se ajeitar, você vai ver — Carlie me abraçou de lado e abriu um sorriso sincero para mim. Não é porque Saulo pagaria bem pela minha companhia que as coisas se ajeitariam. Até quando eu viveria nessa vida que me causava desgosto? Até quando lidaria com todos os tipos de homens sem sentir o mínimo prazer em estar com eles? Passei em casa pegar o macacão que usaria a noite, tomei banho e voltei para a Le Luxe com a Carlie. Estava no camarim com as meninas e na maioria das vezes eu ficava responsável por maquiá-las. — Amores, a casa está ficando lotada. Não demorem — Pauline falou após dar dois toquinhos na porta. — Sim senhora — a maioria respondeu em uníssono. — Prontinho Kalani, só esfumace um pouco aqui — apontei o cantinho do olho de uma colega e ela concordou com a cabeça —. Estou atrasada, preciso me arrumar. — Teríamos ainda mais público se você deixasse esses cabelos enormes soltos — Kalani passou as mãos pelos meus fios e eu balancei a cabeça me gabando e brincando. — Pauline só quer que mantenhamos o padrão e a nossa privacidade. — Porque a dignidade eu tô deixando aqui agorinha mesmo — Carlie terminou de passar um batom vermelho e deixou em cima da penteadeira. — Se eu errar em alguma coisa... — Kalani, não tem problema. Homem nenhum está aqui para ficar analisando coreografia — sorri para ela, que respirou fundo. Ela entraria comigo como atração principal, já que Justine ainda estava fora. As meninas foram saindo de acordo com que iam ficando prontas, mas eu não circularia pelo salão. Combinei com Pauline de que só dançaria e iria embora, não podia de forma alguma me comprometer. — Trouxe para você — Carlie voltou com um copo largo de vidro e me entregou. Cheirei o líquido e fiquei olhando para ela. — Bebe logo, menina.
Sorvi todo o líquido e desceu queimando. Gim com tônica. — A casa está lotada! — Imagino — dei as costas para ela —. Feche aqui pra mim. — Você está me humilhando com esse macacão — senti o zíper subir pela minha coluna. — Ficou bom? — Gostosa pra cacete, amiga. Eu ri e balancei a cabeça. Prendi todo o meu cabelo e o escondi embaixo da peruca preta chanel. — Não sei qual cabelo é mais difícil por, os meus cachos ou esses metros de fios aqui— Carlie me ajudou com os fios loiros que escaparam. Ela saiu depressa porque estava atrasando a apresentação inicial com as meninas. Eu fiquei ao lado do palco assistindo minhas colegas dançarem e ouvindo toda a bagunça que os homens faziam. Homens são tão animais, né? Não sabem jamais se comportar. — Estamos brilhando — Kalani apareceu com o seu macacão igual o meu, porém vermelho, chacoalhando o próprio corpo. — Na hora que formos ficar de costas você fica ao meu lado, tá bom? Pra não correr o risco de perder o limite do palco — expliquei. — Já pensou eu caio? Que mico. — Pode ter certeza que algum homem te segura — pisquei com um olho e ela sorriu. Kalani era mais nova do que eu, aliás, muito nova, se eu não me engano tinha acabado de completar vinte anos. Ela chegou sem saber dar um passo de dança mas pegava com facilidade tudo o que eu passava. A última música terminou e prepararam o palco para nós duas entrarmos. Vi que a pele negra de Carlie estava pálida quando passou por mim, parecia ter visto uma assombração, mas sequer deu tempo de questionar. Ouvimos assovios e gritos eufóricos quando chegamos no palco. Eu e Kalani nos direcionamos até as barras de ferro e seguramos nelas. A música se iniciou lenta, sensual, enquanto descíamos quase encostando a bunda no chão. A princípio fiquei olhando para a minha colega de trabalho, queria passar segurança, já que notei que ela estava com receio de cometer algum erro. Quando levantamos eu encurtei a distância da plateia e percorri os olhos por todas as pessoas presentes. Eu gelei.
Entrei em pânico. Demorei milésimos de segundos, que pareciam uma eternidade, para voltar a dançar. Valentim estava me assistindo. Puta que pariu, não era uma alucinação. Desviei minha atenção e busquei interagir com os homens próximos ao tablado. Tentei esconder minha tremedeira e todo o nervosismo entalado na garganta. Que diabo ele está fazendo aqui? Eu quis descer correndo para falar com ele, brigar, mandar ele ir embora. Senti ciúme e medo, muito medo. Mas tive que continuar a sequência da apresentação acompanhando Kalani até o "T", para dois "voluntários" abaixarem o zíper dos nossos macacões. Olhei de soslaio para Valentim, incomodada e constrangida, por saber que ele estava assistindo o cliente da casa passar as mãos pelo meu corpo. Valentim tinha ficado de pé, perceptivelmente irritado com a cena. Meu Deus, devo ter dançado pole dance na cruz pra passar por isso. Nos despimos do macacão e os deixamos no palco. Saímos pelas laterais e eu vi Carlie encostada na parede, com os olhos fechados e uma mão cobrindo parcialmente o rosto. — Você viu ele? Aliás, eles? — ela nem tinha aberto os olhos mas sabia que eu estava em sua frente. — Vi. — Eu acho que estão pra lá de Bagdá. — Não consegui reparar muito, estão longe, as luzes não ajudaram. Seria necessário inventar uma nova palavra para descrever o quão tensa estávamos. — O que você vai fazer? — perguntei. — Tem aquele cara da semana passada aí. Vou chamá-lo para um quarto ou para ir embora agora. — Certo. — Você não vai lá falar alguma coisa, sei lá, se explicar? — Não, Carlie. Ficou louca? Não tenho cabeça pra isso agora. — Isso se ele te reconheceu — ela respirou fundo e eu também —. Bom, já vou então. Qualquer coisa me liga — ela me abraçou.
— Caralho — sussurrei e ela também. Corri para o camarim, deixei minha sombra nos olhos o mais escura possível, também fiz marcações fortes nos contornos do meu rosto. — Hector está lá embaixo, esperando para falar com você — Pauline encostou ao meu lado. — Eu ligo para ele depois. — Disse que não vai embora sem antes falar com você — minha chefe torceu a boca — Merda — resmunguei. — Tá toda tensa, o que foi? Nem sinal do Saulo. — Não é nada — soltei o ar com força pelas narinas e me levantei. Foda-se, eu contaria tudo para Valentim. Era a hora. Se eu chegasse perto dele, muito provavelmente seria reconhecida. Estava na hora de tirar a máscara. Desci e parei ao lado do longo balcão do bar. Hector me ofereceu um copo grande com suco e brindou comigo. — Deveria te castigar por ter fugido de mim — seu olhar malicioso parou sobre o meu. — Desculpa. Tenho estado muito ocupada — puxei um pouco de suco pelo canudo. — Muitos clientes? — ergueu a sobrancelha preta e grossa. — Não, não é isso. Você sabe, a saúde da minha mãe, a oficina de teatro — dei os ombros. — Não é melhor falar que não sou mais interessante para você? — deslizou o indicador pelo meu rosto. Olhei para trás de Hector e vi de longe Valentim. Estava encostado no final do balcão, demasiadamente bêbado. — Estou dando um tempo, Hector — sorri, sem tirar os olhos de Valentim. Fiquei preocupada no mesmo instante. Álvaro não estava mais junto, e Valentim não conseguia sequer pegar algo na carteira. Eu vi o momento em que ele se distraiu com a garçonete e uma das minhas colegas de trabalho pareceu ter colocado algo dentro do copo de whisky dele. — Com licença, Hector — nem estava prestando atenção há tempos. Saí rapidamente quando o vi sorver todo o líquido âmbar, ele ficou de costas e se
apoiou no balcão. — O senhor está bem? — perguntei, fazendo-o virar para mim. Seus olhos esverdeados examinaram todo o meu corpo, que estava coberto somente por um short preto e um top da mesma cor. Não sabia como abordá-lo. Mas assim que analisei sua expressão embriagada, os olhos caídos e o sorriso fácil na boca, notei que ele não estava nenhum pouco bem. — Você é mesmo uma violação a minha fidelidade — cambaleou um pouco e eu acabei sorrindo. Ele não tinha me reconhecido. — E não me chame de senhor, você não é muito mais nova do que eu — ele tentou fazer uma carinha de bravo. — Olha só, tem fios brancos aqui — toquei em sua barba, olhando dentro dos olhos dele. Dentro do meu íntimo eu queria que ele me identificasse. Não queria ser alguém insignificante naquele momento. E também precisava levá-lo embora. Tinha quase certeza que a menina havia colocado algo no whisky. — Por que não coloca uma roupa? Esse mini short e esse sutiã transparente não cobrem nada, você não precisa disso, é tão bonit... Virei os olhos. Discurso moralista a essas horas, Valentim? Eu o vi piscar várias vezes, talvez na esperança de retomar uma pouco da sobriedade. Mas ele quase derrubou o cardápio e os copos de cima do balcão quando apoiou-se com o braço. — Preciso ir — disse ainda de olhos fechados. — Posso colocá-lo dentro de um táxi. — Não, estou de carro — sorriu e me olhou —. Você é encantadora, bailarina. Bailarina? Merda! Valentim pegou uma pequena fila para passar a comanda e sair da casa, eu analisei o instante em que dois caras se comunicaram e apontaram para ele. Tinha algo de muito errado acontecendo. Subi correndo e vesti um sobretudo preto, fechei ele inteiro e avisei Pauline que tinha um imprevisto para resolver. Passei pelo Isaac, que é um amigão meu, segurança da casa, expliquei tudo e pedi a arma dele. — Criança, criança — ele ponderou tirando o revólver do coldre.
— Por favor, Isaac. Você sabe que eu consigo manusear uma arma. Tinha aprendido aos meus dezoito anos de idade, da pior maneira. — Espere um pouco e eu vou com você. — Você vai precisar fechar aqui ainda, não tem como esperar. Ele pensou, continuou me olhando e então deu o revólver na minha mão. Eu o escondi dentro da manga comprida do sobretudo e literalmente corri com os saltos para fora da Le Luxe. Andei pela redondeza, procurando qualquer vestígio de Valentim e dos dois caras. No quarteirão ao lado pude ouvir urros de dor. Me apressei sentindo minha pele toda gelar e meu cabelo ficar úmido com a garoa. Os dois homens que apontaram para ele tinham o seguido e o enfiado em uma viela. Valentim estava no chão, se encolhendo e tentando se defender com os braços. — Larguem ele! — gritei —. Larguem agora! Ouvi a risada maléfica de ambos e então viraram para mim. — O que é? A princesa quer entrar na brincadeira também? — o menor colocou as mãos na cintura e deu alguns passos em minha direção. — Podemos nos divertir — o outro com um sorriso perverso insinuou. Tirei a arma já engatilhada da manga e a equilibrei nas minhas duas mãos, segurando no cano e com o indicador no gatilho. — Uou, uou, uou! — o que estava mais próximo parou e colocou as mãos para o alto. — Quero a carteira dele, a chave do carro e tudo o que pegaram — falei firme. Eles se entreolharam. — Ela sabe o que está fazendo — um deles sussurrou. Olhei para a câmara do revólver e ajeitei o carregador. — Deixem tudo no chão e vazem! — mexi a arma na mão —. Não tenho medo de atirar em vocês. Eles tiraram a carteira do bolso, o controle do carro, aliança, e uma corrente de platina. Graças a Deus eu consegui esconder qualquer resquício de nervosismo, não demonstrei meu medo deles reagirem. Mantive o tom severo e a expressão sisuda. Os homens caminharam devagar, passaram ao meu lado com as mãos levantadas
e eu os segui mirando com a arma, caminhei até a entrada do beco e mandei eles sumirem. Ouvi uma tosse afogada e só então voltei à realidade. Valentim estava machucado. Me aproximei dele, abaixei no chão e larguei o revólver ao seu lado. — Eu vou cuidar de você, fica calmo — peguei-o pelos ombros tentando colocar a cabeça dele no meu colo —. Ah, meu Deus, seu rosto... Você consegue me dizer se quebrou algo? Consegue me orientar? — Como sabe que eu sou médic... — Anda, Valentim. Me ajuda a te ajudar. Vamos sair daqui, levanta e se apoia em mim. Devagar nós ficamos em pé, encaixei a arma no short e apoiei o braço de Valentim nos meus ombros para equilibrá-lo. O médico estava sob efeito de alguma droga alucinógena, praticamente apagado. Procurei o Porsche e estava quase caindo, de tão pesado que o braço dele era. Fui apertando o botão do controle até ouvir um alarme. Chegamos no carro e eu coloquei Valentim no banco de trás, ele logo deitou. — É necessário ir para o hospital? — questionei. Ele não respondeu. — Está me ouvindo? Você quer ir para o hospital? — Não. Não quebrei... — resmungou de olhos fechados. Coloquei a aliança em seu anelar esquerdo, mas eu queria era jogá-la no bueiro. Assumi a direção do carro cagando de medo de bater ou cometer qualquer infração. Entrei no hotel mais próximo, no centro de Seattle mesmo. Pedi ajuda do homem da portaria para levar Valentim até o elevador no saguão. — Moça, preciso dos seus documentos — a recepcionista solicitou. — Olha, os dele. É mais fácil — peguei na carteira a habilitação com os dados de Valentim. — Certo. — Estou sem nada aqui no momento. Ele pode pagar amanhã quando acordar? — Não podemos realizar esse serviç... — Por favor, acabamos de ser assaltados. Preciso só colocá-lo na cama e descansar. Mandei um olhar suplicante para ela, que compadecida cedeu.
O rapaz que eu acho que era porteiro do estacionamento, me ajudou a entrar no quarto com Valentim e a deitá-lo no colchão. — Você pode me fazer só mais um favor? — Claro, senhorita — sorriu para mim. — Aliás, deixa. Eu peço pelo telefone — olhei para o aparelho em cima da escrivaninha. — Com licença — e então assentiu com a cabeça e deixou o quarto. — Obrigada. Valentim continuava completamente apagado. A intenção daqueles homens em combinação com a da menina do Le Luxe foi dar um "boa noite Cinderela" para roubá-lo depois. Mas pra que toda a violência? Valentim não estava em condições de reagir ou tentar se defender de um assalto. Liguei para uma farmácia 24 horas e pedi toalhas umedecidas, analgésicos, soro de limpeza, algodão e pomada para possível inflamação dos hematomas. Ainda bem que eles não demoraram para efetuar a entrega. Eu estava em uma adrenalina que só. Limpei os machucados, passei pomada e aproveitei para tirar uma casquinha da paisagem que foi ter Valentim com a camisa erguida e o abdome todo exposto. Tadinho, estava vermelho e com marcas roxas. Por que tudo isso aconteceu conosco? Juro que não consegui entender. No auge da minha exaustão eu deitei ao seu lado, fechei meus olhos mas é óbvio que não dormi. Virei-me de frente para ele e acendi o abajur no aparador às suas costas. Reparei em cada detalhe encantador da face do homem desmaiado. Percorri com o meu dedo indicador e o médio, contornando seus traços enquanto pensava em tudo desde que o conheci. Queria desvendar naquele momento o que se passava dentro da sua mente inteligente. Fiquei em dúvida entre me sentir mal por não ter sido reconhecida ou completamente aliviada. Era justificável. Estava absurdamente bêbado e depois ainda lhe deram a droga. Me perguntei o porquê fiquei tão louca quando notei que estavam tramando algo ruim para ele. Fiquei mais transtornada ainda ao chegar na viela e vê-lo caído no chão, sendo agredido. Não consegui processar tudo na hora, estava tomada pela adrenalina. Beijei com carinho o furinho charmoso no centro do seu queixo e acabei
chorando. Eu estava apaixonada por Valentim. E o defenderia quantas vezes fossem necessárias. Escrevi um bilhete e saí um pouco antes de amanhecer. Pedi para a recepcionista não dar informações sobre mim, peguei um táxi na frente do hotel e segui para o meu apartamento. Não tinha tido tempo no dia anterior, precisava pegar pelo menos o básico para levar ao flat. Cheguei e Carlie estava na bancada da cozinha com uma colher na boca — Entrega para o Isaac por favor, não volto lá tão cedo — deixei o revólver em cima do balcão e Carlie me olhou assustada. Seus olhos também estavam diminutos por causa do choro. — Aonde você se meteu? — ela desceu e veio sentar comigo no sofá. Bufei, relaxando meu corpo no estofado. — Deram alguma droga pro Valentim, ele estava literalmente fora de si. — E por que a arma? — Se deram a droga é porque queriam fazer algo, roubar ou sei lá. — E você foi atrás? — Ele saiu e dois caras sinalizaram, eu percebi que tinha algo errado e pedi a arma pro Isaac. Procurei pelo bairro e encontrei Valentim sendo praticamente espancado em um beco. — Jesus Cristo — Carlie arregalou os olhos e colocou a mão sobre a boca —. Não tentaram nada com você? — Com certeza estavam desarmados. — E você estava chorando por que? Brigou com Valentim? — Carlie, ele estava inconsciente — reforço. — Você gosta dele, não é? — Gosto — passei as mãos pelo rosto e me levantei —. E você gosta do Álvaro. — Em uma escala de zero a dez, quanto estamos fodidas? — Onze.
10 Valentim Del Torre
E
— u não acredito, Valentim. Não acredito — ouvi Vivian gritar enfurecidamente —, eu vou acabar com a minha vida desse jeito. — Para com isso, Vivian. Vai quebrar a casa toda, porra — a envolvi com o braço, levantando-a do chão para tirá-la de perto dos estilhaços de vidros. — Você está me traindo, por que meu Deus, por quê? — a mulher se debateu com força no meu colo, ainda de costas para mim. Estava em prantos, chorando em meio ao surto. — Não estou te traindo, Vivian — coloquei ela sentada no sofá e agachei em sua frente —. Se acalma, eu vou pegar o seu remédio e a caixa de curativos. — Mais remédios? Investiguei o seu semblante e respirei fundo ao notar que sua boca assim como seu queixo tremiam. — Quanto você tomou? — O restante da cartela, tinha metade. — Há quanto tempo? Vamos para o hospital. — Não faz nem uma hora, e eu não quero. — Não é questão de querer. É tarja preta — a peguei no colo e senti seu corpo amolecido em meus braços. — Eu queria te amar menos, não aguento mais — balbuciou com os olhos fechados. Desviei de toda a bagunça que ela fez quebrando as coisas, fomos para o quarto e logo Vivian começou a sentir náuseas. Os calmantes provocaram uma crise de vômitos. Dei um banho rápido nela, e a ajudei colocar uma roupa. Novamente na sala, fiz a limpeza dos pequenos ferimentos em suas mãos, causados pelos cacos. — Qual é o nome dela, Valentim? Quem é ela? Fiquei quieto enquanto olhava nos olhos dela. Não conseguia entender como em anos atrás fui tão apaixonado por Vivian, admirava sua beleza e autoconfiança, duas características que eu deixei de enxergar ao decorrer do tempo. — É aquela loira do hospital, não é?
— Vamos — falei baixo. — Olha só para você, era pra eu estar cuidando... O que aconteceu? Te bateram por quê? — a essa altura as palavras saíam lentas já que ela estava ficando zonza. Ignorei minha dor aguda de cabeça, e a levei para o carro. Dirigi para o Saint Clair e fiz o encaminhamento para Vivian realizar a lavagem gástrica. Os enfermeiros me olhavam curiosos, por conta dos machucados e roxos formados no meu rosto. — Que merda te aconteceu? — Álvaro apareceu ao meu lado escrevendo algo em um prontuário —. Que eu me lembre te levei no puteiro não em um ringue. — Vai se foder, Álvaro — deliberei e virei o corredor, ele veio correndo atrás. — Você e a Vivian brigaram de novo? Eu vou acompanhar o procedimento dela. — Está esperando o que? — entrei no vestiário masculino e abri um armário para pegar um jaleco. — É sério cara, não foi ela que te bateu, né? Não é possível que tenha ficado tão fei... — Álvaro, eu não lembro o que aconteceu ontem. Não quero falar sobre isso, para de me encher a porra do saco e vai trabalhar. — Claro, Senhor Patrão — caçoou e deu as costas. — Álvaro — chamei e ele parou para indagar —, Mariana já apareceu? — Por enquanto não a vi. Incomodado, voltei a mexer no armário. Esperei o gastroenterologista se retirar para me sentar no banco e tentar me acalmar. Não tive tempo de sequer digerir o que tinha acontecido no dia anterior. Estava receoso com a história de ter comido uma prostituta. Queria muito lembrar dos acontecimentos, de como apanhei e a sequência dos fatos, mas era em vão. Tinham me dado alguma droga. Mas se a mulher me colocou para dormir, por que não roubou nada? Uma mulher não teria a capacidade do estrago feito nas minhas costelas e no meu rosto. Eu estava inteiramente dolorido. Caminhei para a ala onde Martha ficava internada e cumprimentei os pacientes dos três leitos ao lado do dela. A mãe de Mariana estava concentrada no livro em suas mãos. Cocei a garganta ao sentar na cadeira, ela abaixou o livro e sorriu ao me ver. — Dr. Del Torre. — Martha — assenti com a cabeça —. Como se sente?
— Estou bem, as dores vieram de madrugada mas já diminuíram. Obrigada. Mas e você? Está machucado. — Está tudo bem, obrigado. Ela parecia um pouco surpresa com a minha abordagem repentina. Seus olhos buscavam entender algo por detrás dos meus. Suas íris eram tão parecidas, senão idênticas as da filha, o formato grande dos olhos também, exceto pela ausência de cílios. — Sabe, a minha filhinha adotiva, Carlie? — ela puxou assunto —. Você a conhece né? — concordei com a cabeça —. Então, ela me contou sobre você e a minha filha. — Contou o que? — questionei. — Ah, espero que eu não esteja falando nada demais — sorriu um pouco sem graça —. Contou que Mariana e o senhor estão apaixonados — foi direta ao ponto. — Apaixonados? — ri um pouco nervoso. — Que se beijaram — sussurrou cobrindo parcialmente a boca com uma mão, como se estivesse compartilhando um segredo. Fiquei quieto por segundos. — Me desculpa, doutor. Não queria te constranger. — Não constrangeu — sorri e segurei em sua mão —. Eu gosto mesmo de Mariana, ela é um ser humano incrível — eu quis soar neutro. Seus olhos me estudaram e sua outra mão cobriu a minha, ela fez um gesto singelo com os dedos sobre os meus e disse: — A minha filha é espetacular, e eu sei que não é necessário fazer propaganda sobre ela. — Ela é espetacular — repeti, enquanto minha mente divagava em lembranças dela. — Só é um pouco fechada, não teve uma infância legal e muito menos a adolescência. Tenho culpa disso tudo e o mínimo que posso fazer, já que ela gosta de você, é pedir para que tenha paciência. — Mas senhora Martha... Eu acho que você está confundindo um pouco, Mariana não está disposta a conhecer ninguém, ou se envolver. — É o que a razão diz, mas o coração sempre é teimoso e acaba vencendo — ela sorriu e de repente se encolheu, colocou ambas as mãos na barriga e gemeu. Chamei os dois enfermeiros responsáveis pelo tratamento dela e me despedi.
Uma chama tímida se reascendeu dentro do meu peito, Martha havia alimentado minha esperança. Não era possível que depois da intensidade mutua do nosso beijo Mariana não sentisse nada, suas palavras duras não coincidiam com a entrega de seu corpo, ou até mesmo com o desejo oculto em seus olhos. A psiquiatra de Vivian recomendou que eu ficasse observando-a em casa, então tive que deixar os dois últimos plantões do final de semana. Mariana não entrou em contato comigo, nem mesmo por mensagem. Eu também preferi não ir atrás, estava tentando digerir o ocorrido da sexta feira. Cogitei passar no Le Luxe onde Álvaro me levou, para descobrir o que de fato tinha acontecido, mas Vivian precisava de mim o tempo todo. Quarta feira foi o primeiro dia da semana que encontrei a bailarina. Carlie e Álvaro conversavam no restaurante do hospital e Mariana permanecia alienada do assunto, mexia na refeição em seu prato mas continuava fitando o nada, pensativa que só. — Posso me sentar com vocês? — me dirigi a mesa dos três quando terminei de fazer o meu pedido. Ela foi a primeira a abaixar a cabeça e evitar de me olhar. Álvaro puxou a cadeira ao seu lado para que eu sentasse e foi o que eu fiz. — Os hematomas estão bem melhores, cara — ele mexeu o copo plástico de suco e comentou. — Apanhou feio hein, Dr. Valentim — Carlie mastigou o último pedaço de crepe e limpou os farelos dos dedos. — Galera, eu estou de saída. Uma boa tarde para vocês — Mariana se levantou e pegou a bolsa do encosto da cadeira. — Mas você nem comeu... — Carlie apontou para a massa no prato da amiga. — É... e-eu vou pegar um café, estou sem fome — olhou rapidamente para mim e saiu andando. — Que bicho mordeu ela? — Álvaro perguntou para Carlie e eu assisti Mariana passar pelas portas. — Ela está sobrecarregada com o evento beneficente que acontecerá no final dessa semana, deve ser isso — ela explicou. Me levantei e fui até o balcão, pedi para cancelarem o meu almoço e só peguei um café. Passei pelo quarto de Martha e perguntei por Mariana, ela me informou que a filha tinha saído há pouco. Fui atrás e a vi antes da escadaria frontal do hospital, sentada em um banco ao lado de uma árvore. Tinha feito um coque nos
cabelos e segurava um cigarro entre os dedos. — Com quem pegou esse cigarro? — me sentei ao seu lado. Apontou com o queixo um senhor de idade tossindo depois de soltar a fumaça pelas narinas. Tirei o cigarro dela e joguei no cinzeiro. — Por que foi conversar com a minha mãe? — quando me fitou, reparei em suas olheiras fundas e nas marcas recém-feitas em seu pescoço. Distraí-me com isso e demorei para encarar seus olhos. — Só fui perguntar como ela estava se sentindo. — Você fica com as crianças e não com os adultos. Por que está fazendo isso? — O que? — Isso! Vai na minha casa, me instiga a te beijar na escada do hospital, trata a minha amiga como se fosse sua também, fala com a minha mãe para saber da minha vida, se senta com a gente como se eu quisesse a sua presença... — E você? E você, Mariana? — indaguei baixo, aproximando-me dela —. Está dando aulas particulares para a minha sobrinha, mesmo sabendo do vínculo grande que tenho com ela. Se tornou amiga da minha irmã e frequenta a casa dela — abaixei mais a voz ainda —, você me convidou para entrar na sua casa... — Você tinha ido até lá sei lá para que... — E ainda por cima deitou no meu colo pra assistir série. Fez aquele charme todo com a pizza, e me beijou ali dentro — apontei para o lado interno do hospital. — Eu te beijei? A culpa é minha agora? — ela ficou em pé, enraivecida. — É sua sim. Desde que assisti a sua peça para as crianças, você não dá folga para a minha cabeça. Não me dá sossego um segundo sequer. — Fique sabendo, Valentim, que eu só te beijei porque estava carente, não significou nada. — Carente? — levantei e observei de cima a sua expressão, ela colocou as mãos na cintura se recusando a sentir-se diminuída por causa da altura —. Essas marcas no teu pescoço me dizem que você não sofre desse mal. — Por que se intromete tanto? — cochichou ainda brava. Mariana D'Ávila — Quer que eu ignore a sua presença como? Quase todos os dias está aqui para
ver a sua mãe. — E se eu não venho você vai atrás de mim. — Não seja petulante, Mariana — seus olhos alternaram para a minha boca. — Eu estou falando sério. — Eu também — a voz dele saiu quase inaudível. — Também o que, Valentim? — questionei um pouco atordoada por sentir a respiração dele tão próxima. — Também estou louco para te beijar. As pessoas transitavam, descendo e subindo as escadas, entrando e saindo pelas enormes portas automáticas de vidro, mas só existia nós dois. Respiramos fundo como se tivéssemos corrido uma maratona infinita, mas tinha sido só uma discussão, muito madura por sinal. — Quem te machucou assim? — sondei, temendo completamente que ele assimilasse. — Uma briga qualquer, de bar — demorou um pouco para responder e gaguejou quando compenetrei meus olhos nos dele —. Ok, Mariana. Álvaro me fez ir a um puteiro. — Puteiro? — É, casa noturna. Essas que exalam sexo, cheias de mulheres promíscuas. — E por que foi a esse lugar se tem esse preconceito todo? — Preconceito? Não tenho. — Está nítido, Valentim — rolei os olhos. — Levei um toco bem dado na sexta-feira, quis encher a cara e fui facilmente influenciado pelo meu amigo maravilhoso — explicou todo irônico. — Levou um toco? Mas você não é casado? Já sei, sua mulher dormiu de calça jeans? — ironizei também. — Tomou o que hoje de manhã? Nunca te vi tão atrevida, bailarina — acabou sorrindo. — Só estou lidando com a realidade — pisquei somente um olho para ele e peguei minha bolsa do banco —. Agora se não se importa, vou pedir outro cigarro para o Mr. Câncer de Pulmão. — Que humor horrível, Mariana. — Você mexeu com quem estava quieta, doutor — passei por ele e fui até o senhorzinho do cigarro.
Pedi outro e encostei no pilar ao seu lado. Sobre a brincadeira terrível do câncer, eu já tinha me auto-oprimido em silêncio, só estava irritada com a proximidade de Valentim. E caramba, estávamos em um hospital com forte atuação na área de oncologia, era melhor levar na esportiva do que potencializar o sofrimento dos pacientes. Né não?! Não, né? — Fica assim não, minha jovem. Namorados brigam mesmo mas não é por muito tempo — o senhorzinho aconselhou. — Não, ele não... — Ainda mais um casal tão bonito como vocês. Fume um cigarro, acalme os ânimos e depois converse com o seu amado — riscou o dedo no isqueiro e eu acendi o cigarro. Não sabia porque estava fumando, mas de alguma forma ficava mais relaxada. Esperei Carlie, que levou mais um ano dentro do Saint Clair, e depois pegamos a carroça, aliás, o carro dela para irmos embora. Ficamos no meu flat, que com muito custo eu consegui convencer Saulo a autorizar. Antes que pensem o pior, não, ele não estava me agredindo. As pegadas no pescoço eram consequência de uma transa selvagem que rolou entre nós dois na noite passada. — Não estou gostando de morar sozinha — Carlie reclamou quando se sentou no sofá retrátil de suede no meio da sala. — Eu também não — peguei um saquinho de torradas no armário e me acomodei ao lado dela —. Olha pra isso aqui, — girei a mão para a nossa volta. — Muito luxo né? — Muito frio — coloquei uma torrada na boca e ela pegou o pacote. O flat ao contrário da maioria, era muito espaçoso. A sala cabia dois apartamentos como o meu e da Carlie, e estava toda mobiliada, como o restante do imóvel. Tinha uma cama enorme de casal decorada com edredom preto e travesseiros enormes, ao lado dois aparadores com abajur, um banheiro com direito a hidromassagem, chuveiro e pia dupla. Somente a cozinha era pequena, mas dispunha uma ilha para realizarmos as refeições. E a varanda possuía poltronas largas de fibra sintética, era tudo muito organizado e estratégico. Eu não ia trabalhar, mas Carlie sim. Ela foi direto para a Le Luxe, e eu fiquei sozinha já que Saulo tinha ene compromissos, os quais eu não tinha nem noção do que eram, e também sinceramente, não me interessavam. Minha amiga voltou perto das cinco horas da manhã, eu mesma ofereci,
considerando que a casa noturna era bem mais próxima do flat, do que do meu antigo apartamento. Não consegui dormir mais, mas Carlie capotou de sono na cama. Meu celular começou a vibrar, eu fechei o roupão e fui para a varanda atender. — Bom dia, Saulo — desejei assim que atendi. — D'Ávila — saudou sério —, quando autorizei a entrada da sua amiga era somente para visitas, não quero ninguém dormindo aí. — Ela veio porque aqui é mais perto da Le Luxe. E não vejo problema em tê-la como companhia. Fiquei assustada com a rapidez em que a notícia chegou. — Francamente, eu peguei esse flat para você e não quero que... — Francamente, Saulo — revidei —, eu não preciso desse flat. — Não precisa? Mas eu fico com voc... — Carlie continua com o contrato do apartamento. Posso voltar a morar com ela e se você quiser, enfia esse flat no nariz. — Por que acordou tão irritada? — ele atenuou a voz. — Mesmo que o seu dia não esteja começando bem, deseje um bom dia para as pessoas. É educação, Saulo. E ninguém suporta ouvir ordens e sermões às seis horas da manhã. Ouvi sua risada soar um pouco nasal e então me sentei na poltrona, um pouco mais tranquila. — Estou em Michigan, voltarei no sábado. Compre algo para usar. — O que faremos? Sábado eu tenho o evento beneficente. — Cancele o evento beneficente, simples. Respirei fundo, tentei pensar em algo mas nada veio em mente. Não podia contrariá-lo de novo. Não sei como ele não tinha estourado ainda. — É um almoço? — Um almoço com meus sócios e investidores. Outro? Que saco! — Eu não posso me ausentar da companhia no sábado, Saulo. — D'Ávila, eu vou precisar repetir? Tem a aneurisma da sua mãe, não vai querer que ela morra por falta de tratamento, certo? — ele sabia ser desdenhoso ao cubo —. Não seja burra. — Não é aneurisma — contrariei impaciente.
— Não importa. Compre algo decente para usar. — Certo. — E sobre a sua amiga, só me avise com bastante antecedência quando ela for dormir aí. Vai se ferrar, ditador! Já tinha desligado quando vociferei para o celular. Ele era tão repulsivo, arrogante, calculista, que ah!!! Sobrepunha toda a sua beleza física. — Vai congelar aí fora — ouvi minha amiga resmungar e olhei para trás. Carlie cobriu o rosto com o travesseiro e voltou a dormir. Adiantei todo o trabalho da manhã. Começando por recombinar o horário da aula da Sol. Sete horas da manhã já estávamos na sala de ioga, Sol toda energética e eu no segundo copo de mocaccino para despertar. — Que peninha que o Tio Tim não está aqui hoje, ele gosta tanto de ver você — a tagarelinha fez um laço bonito na panturrilha e ajeitou as sapatilhas. — Você acha, Sol? — Se eu acho, Tia Ana? Não. Tenho certeza mesmo — ela levantou e veio até mim, sentou em meu colo e envolveu seus bracinhos no meu pescoço. Sol era totalmente espontânea, talvez como todas as crianças —. Vocês poderiam fazer parte de um conto de fadas. Já pensou? Princesa e... Aliás, rei e rainha Del Torre, teriam vários principezinhos e princesinhas. Me dariam priminhos e viveríamos em um castelo muito grande — ela realmente encenou, com sotaque e tudo. Ouvi as gargalhadas altas e efusivas de Charlotte, olhei para a porta e ela estava se acabando de rir. — Desculpa, mas Sol consegue me surpreender sempre — ela apoiou-se nos joelhos se recompondo e eu continuei sem reação. As duas ficaram se divertindo, inventando contextos e enredos criativos para a minha futura vida ao lado de Valentim. Eu tentei ao máximo concentrar a sobrinha dele na aula mas elas estavam com a corda toda para me desfocarem. — Mamãe, Tia Ana, estou cansada — Sol respirou fundo e colocou a língua para fora —. Acabou a aula? — Sim, senhorita. Pode ir tomar água e ir ver o filme — liberei e ela saiu correndo da sala. Peguei minha garrafinha em cima da pilha de colchonetes e percebi que Charlotte estava me estudando.
— O que? Vai dizer que eu e o seu irmão vamos morar em um castelo também? — olhei para ela e indaguei. — Fiquei sabendo que se beijaram — ela falou um pouco mais séria mas com um sorriso escondido no canto da boca. — Charlotte... — Ah, qual é Mariana?! Ele é o meu irmão e eu gosto de você, não tem porque ter vergonha de mim. E afinal de contas, Valentim come iogurte sem colher. — Quê? — Come iogurte sem colher. Deve beijar bem. Usei uma força descomunal para não desfalecer de rir. — Ele é casado. — Por mim poderia ser viúvo — deixou o ar sair com força pelo nariz e voltou a sorrir —. Como foi? Você gostou? O que você sente por ele? — Charlotte, por favor — deixei a garrafinha no mesmo lugar e coloquei minhas mãos para trás, escorando-me nos colchonetes —. Você pode me contar o motivo desse desgosto todo? — Vivian é uma pessoa ruim, Mariana. — Ela é depressiva, é difícil conviver e gostar de pessoas depressivas. — Não estou falando da energia ou algo do tipo. Estou falando da cabeça dela. — Então, a depressão é na mente. — A qual se torna a própria oficina do diabo quando ela quer. — Ela manipula o Valentim? O que ela fez com a Ana? — Você se importa mesmo com o meu irmão, não é? Abaixei a cabeça e depois olhei para o lado. — Hein? — indagou buscando confirmar. — Me importo. Ela pediu que sentássemos para conversar e então me contou aquilo que achou que deveria. Percebi que Charlotte não excedeu nenhum limite, querendo respeitar a privacidade do irmão e a dor dele. Soube que Vivian visitou Ana somente duas vezes em seu estágio final e a rejeitou claramente quando viu que a doença era irreversível. E a mulher já não nutria uma boa relação com a filha desde que a pequena nasceu. — Ela é possessiva demais, Charlotte. Meu Deus, qual é o problema? Se existe amor na relação, o filho vem para fortificar o casamento.
— Eu concordo. Eu e Eric quando a Sol nasceu, ficamos ainda mais unidos. Somos um time sabe? Aprendemos e ensinamos um ao outro. — Com certeza. Mas por que ele continua vivendo infeliz? Ele já me disse que não a ama. — Na maioria das vezes eu quero matá-la, mas consigo entender o meu irmão. Claro, isso não significa que eu faria o mesmo que ele. Imagina abdicar da própria felicidade em prol da do outro? — Me diz? Por quê? Já que infelizmente Ana se foi, por que eles não separam? — É delicado. Valentim já encontrou Vivian dentro da banheira, transbordando água e sangue. E cuidou dela nas duas tentativas de suicídio com carro. Fora as incontáveis vezes que tomou remédios... — Não são só ameaças? Chantagens? — Eu acreditava nisso também, até que uma vez cheguei no apartamento deles e Vivian estava literalmente pendurada com a corda no pescoço, se enforcando. — Deus! — Mas sabe Mariana, o que o Valentim pode fazer? Ela já trata com psiquiatra, fez todos os tipos de terapia. Não quero ver o meu irmão envelhecendo amargurado. — Por que não a internam em uma clínica? — percebi que me intrometi demais e tentei corrigir —. Quer dizer, não sei se isso é viável, desculpa. — Eu já teria feito isso há tempos, não precisa se desculpar. Ainda não gosto dela — Charlotte riu e me fez relaxar um pouco —. Acontece que Ana gostava muito da mãe, embora não fosse correspondida. Sempre tentou conquistá-la, agradando de todos os jeitos. E quando ficou doente, cansou de pedir para o meu irmão cuidar de Vivian. A conversa não se estendeu muito mais, era muita coisa para eu digerir e pensar sobre Valentim. Senti-me triste por ele, queria de alguma forma ajudá-lo a sair desse pesadelo profundo. Sol me chamou para o seu quarto para ajudá-la a terminar de selecionar as coisas que iriam para a doação. Tentei me entreter com o mundo das princesas que ela me mostrava, mas minha cabeça fervilhava nas informações sobre Valentim. Não pude ficar mais tempo, precisava ir para o evento e marcar o máximo de presença possível, já que as duas da tarde ia almoçar com Saulo e os seus sóciosinvestidores e blá-blá-blá. Encontrei a rapaziada da oficina de teatro, os dois professores de ritmo e dança
em geral. Organizamos rapidamente o que faltava porque as crianças já estavam chegando. Oferecemos um café da manhã recheado de guloseimas, bolos, pães, tortas doces e salgadas, sucos e leite com chocolate. A celebração estava sendo realizada no próprio salão da companhia. Um pátio simples, semelhante a um galpão. Tinham mesas longas espalhadas, próprias para o evento. Ajudei meus colegas a receber as mães e as crianças, e com elas começaram a chegar as doações. Arrecadaríamos dinheiro também, mas meu chefe, também dono da oficina, que ficou responsável por essa parte. Charlotte chegou com o marido, Sol logo se juntou com as demais crianças e se enfiou em um dos brinquedos infláveis. — Trouxemos duas caixas, uma de brinquedos e outra de roupas — Eric apontou para a entrada, onde estavam duas caixas grandes. — Que maravilha! Farão a alegria de muitas crianças. — Eu também gostaria de doar uma quantia, mas cheque é melhor para nós. É possível, Mari? — Charlotte perguntou e começou a procurar algo em sua bolsa. — Sim, claro. Mas isso é com o meu chefe, ele está ali... — apontei para Alex que estava atendendo um casal. — E só para constar, está linda de Aurora — Charlotte caçoou e eu fiz uma careta para ela. — Você está sabendo mesmo sobre as princesas, estou orgulhoso de você — Eric beijou o rosto da esposa e nós rimos. — Tenho que me esforçar, se não Sol me esgana. Os dois foram conhecer a estrutura do evento e o que era oferecido, e eu fiquei divertindo as crianças, principalmente as meninas. Sim, me comportava como a Bela Adormecida, saudava-as com gestos da realeza, falava com elas sobre os vestidos, castelos, fadas e coisas inimagináveis. A verdade é que eu me sentia em paz rodeada daquelas criaturinhas pequenas e inteligentes. Conversei com um pai aqui, outra mãe ali. Entrei na cama elástica com a Sol já que Charlotte se negou por estar de vestido curto, e pulamos até cansar. — Tia Ana, eu posso colocar a sua coroa um pouco?— a danadinha pediu. — Claro, deixa que eu coloco em você para não estragar o seu penteado — tirei dos meus cabelos e ajeitei a tiara dourada no topo da cabeça dela, tomando cuidado para não desmanchar as tranças e o coque —. Pronto, está mais linda ainda.
— Tio Tim — ouvi a criança berrar de repente, não sei se fiquei assustada ou surda. Ela saiu esbaforida da cama elástica e correu pelo salão, até o querido padrinho, sim, descobri que Valentim não é só o tio preferido, é o padrinho de Sol. Eu tentei me recompor, mas tive que sair do brinquedo quando dois pequenos entraram. Desci os degraus estreitos da escadinha de ferro e passei a mão no meu vestido rosa, sentindo meus braços suarem por baixo das mangas. Esse homem estava mesmo me perseguindo, depois a culpa era minha. Aham, espertinho! Céus, por que ser tão bonito? Vi suas mãos dentro dos bolsos da calça jeans e metade dos braços expostos, por causa das mangas arregaçadas do suéter escuro. O cabelo, visivelmente macio, estava com algumas ondas, e o seu olhar sorriu quando me viu. Ele pegou a Sol no colo e caminhou em minha direção. Pouco atrás dele, ela apareceu. Em cima dos seus saltos belíssimos e um vestido elegante na cor salmão. Tirou os óculos escuros e averiguou o galpão inteiro. Me deu asco! — Vim trazer as coisas da Ana — ouvi a voz de Valentim, mas continuei olhando para a Sra. Del Torre. — Não acredito, é sério? Quando decidiu isso? Estou orgulhosa de você, irmão — Charlotte passou na minha frente e abraçou Valentim. — Decidimos — Vivian se intrometeu querendo participar. Os meus olhos encontraram os dele, ficamos por segundos nos fitando. — Vamos precisar de ajuda, lotou o carro inteiro — Vivian disse simpática. Novamente parecia existir só nós dois. Eu fiquei em silêncio mesmo que a minha alma quisesse gritar. — Posso dar uma palavrinha com você, professora? — Alex tocou meu braço e só então eu cortei o contato visual com Valentim. — Claro, com licença — pedi à família. — Você é sensacional, Mariana. O casal, Charlotte e Eric, doaram muito dinheiro para a ampliação da companhia e também para as crianças. — Que ótimo, Alex! — sorri contente com a notícia. — Vamos poder aumentar o galpão e atender mais crianças. — Isso é realmente maravilhoso! — abracei Alex e depois voltei a olhá-lo —.
Depois fale com aquele homem... É o Dr. Del Torre do hospital do câncer, Saint Clair, sabe? — questionei e ele assentiu —. Ele perdeu a filhinha há dois anos, e trouxe bastante coisas para doar. — Se eu pudesse triplicaria o quanto pago a você — dessa vez Alex me abraçou. — Que isso, sou voluntária e amo estar aqui. Fui para o lado de fora para tomar um ar, porque me senti sufocada desde que Valentim chegou com a megera, víbora, aliás, com a esposa dele. Mas foi em vão. Ele estava descarregando o carro sozinho, tirando caixas e mais caixas de todos os tamanhos. — Preciso de ajuda — gritou para mim. — Peça para a sua esposa — respondi. Ele revirou os olhos e eu tive vontade de rir. Desencostei da mureta e fui até o Porsche. Inesperadamente fui segurada pelos braços e encostada na parte de trás do carro. — É com ele que você namora? — perguntou me cercando com os braços. — Que? Com quem? — Com aquele cara? — Alex? — ergui uma sobrancelha. — Esse mesmo. Comecei a rir e balancei a cabeça. — É, gosto mesmo de homens com o dobro da minha idade. — Não estou brincando, Mariana. — Vem, eu vou te ajudar a tirar as coisas — passei por baixo do seu braço, o vi fechar os olhos e morder o lábio inferior. — Você é igual água, bailarina — sussurrou no meu ouvido e foi até a porta traseira do carro. — Água? — olhei para ele. — Escorre. Foge, não é segurável. Ele ficou de um lado do carro e eu do outro. Nos encaramos com as portas abertas e decidi que precisava voltar para o salão. Descarreguei algumas caixas e terminamos rápido. — Você deu um passo hoje — eu disse ao fechar a porta. — Eu acho que é a coisa certa a fazer — olhou para o chão enquanto segurava uma bicicleta rosa.
— Estou orgulhosa de você. Seu sorriso me arrepiou e me causou uma súbita vontade de beijá-lo, abraçá-lo ou acolhê-lo de algum jeito. Senti que ele precisava. — Tio Valentim, Tio Valentim — Sol veio correndo em nossa direção. — O que foi, meu amor? Olhamos imediatamente para ela, que estava até ofegante. — A Tia Vivian, ela fez o meu amiguinho, o Matt, você não conhece, mas eu fiz um amiguinho... — Calma, fala com calma — ele pediu. — Estávamos brincando, eu fui pedir para Tia Vivian pegar um pedaço de bolo para mim e Matt também pediu, mas ela assustou ele. — Assustou como? — perguntei já enraivecida. Valentim me repreendeu com o olhar mas eu ignorei. — Disse pra ele não encostar nela, porque é uma criança "suja". Por que Matt é sujo? Lembrei-me rapidamente de Matt, um aluninho negro de 6 anos. Corri para dentro. Não podia ser verdade uma coisa dessas. — Alex, cadê o Matt? Sabe? Aquele que tem cachinhos? — Carlie levou ele no banheiro para acalmá-lo. Minha amiga tinha chegado. — É verdade o que aconteceu? Aquela filha da p... — meu chefe me censurou. — Eu não presenciei. Rondei o salão com o olhar e parei quando a avistei. Valentim já estava ao seu lado com Sol no colo. Dei passos tão firmes que poderia afundar o chão. — Que merda você falou para aquela criança, Vivian? — Não disse nada demais, ele se doeu atoa. — Você disse que ele é sujo, Tia Vivian. Matt é só o meu amiguinho. — Sujo por quê? Você pode me explicar? Além de negro, Matt podia ser discriminado por sua classe social baixa, como a maioria das crianças presentes. — Vai lá com o seu papai, meu amor — Valentim colocou a afilhada no chão e ela entendeu o recado, se retirou no mesmo momento.
— Você fez isso mesmo, Vivian? — o médico olhou para a esposa ao lado. — Eu disse sujinho, mas não era para ofender. Ele é negro, logo... — Você é a única suja aqui, aliás, imunda — Charlotte apareceu ao meu lado e apontou o dedo na cara da cunhada —. Quem pensa que é pra falar assim com uma criança? — Charlotte, fica na sua. Vocês estão fazendo uma tempestade, qual é o problema nisso? — Isso é racismo, Vivian — Valentim disse indignado. — Eu só não meto a minha mão na sua cara agora — interrompi os dois e falei baixo, após respirar fundo — em respeito as crianças. — Não cansa de ser intrometida, garota? Olha como está vestida — olhou com deboche para a minha fantasia —. Não é mulher que se preze para falar algo. — Vivian — Valentim advertiu. — Claro, porque uma preconceituosa racista que é. O menininho passou perto de nós, ainda chorando de soluçar no colo de Carlie. — Você viu o que fez com aquela criança? A sua sorte é que a mãe dele não está aqui — falei mais furiosa. Ela riu. — Isso é uma ameaça? — Vá embora antes que eu perca minha paciência. E aproveita pra ver se não esqueceu seu coração em casa. — Vagabunda, você acha que eu não sei que tá louca pra abrir as pernas pro meu marido? — ela insinuou sussurrando, perdendo totalmente a compostura. — Vivian, chega! — Valentim segurou seu braço. — Por que acha que vim com ele hoje? É meio óbvio que não estou interessada em evento beneficente. Eu já te avisei Valentim — olhou para ele —, e vou deixar avisado para você — voltou a me afrontar —: Eu acabo com quem quer que seja se chegar perto do meu marido. Charlotte começou a rir, desembestou a rir mesmo. — Quer saber, eu vou embora — ela passou as mãos pelo vestido —. Vamos, querido. — Não, eu vou — vi a hora no relógio no meu pulso —. Certifique-se de que ela não vai aprontar mais e na próxima, mete a mão na cara dela — cochichei no ouvido de Charlotte.
Toda a descoberta sobre a história de Valentim com Vivian, aquela compaixão e sentimentalismo, tinha se dissipado. Eu queria mais é que ela se fodesse e ele também! Não era possível viver ao lado de alguém tão cruel, tão repugnante! Meu Deus!!! Esperei Carlie no estacionamento para irmos embora mas Valentim apareceu primeiro. — Sério, fica longe de mim! — Mariana, por favor. — Por favor? Eu que peço, pelo amor de Deus, Valentim! É impossível ter qualquer relação com essa mulher. — Eu sei. — Sabe bosta que sabe, continua casado com um ser humano tão asqueroso. Nossa! — balancei a cabeça, fechei os olhos e depois soltei o ar pela boca. — Na verdade — foi a vez dele olhar no relógio — daqui a pouco me encontrarei com a advogada. — O que isso tem a ver? — eu estava realmente tão estressada com o ocorrido que nem me toquei. — Vou pedir o divórcio.
11 Mariana D'Ávila
Meu subconsciente correu e o abraçou tão apertado que poderia esmagá-lo. Ele também encheu Valentim de beijos, buscando selar o passo dado entre nós dois. Mas minha consciência me obrigou a permanecer estática, observando-o e processando a notícia dada. Estava tudo errado e fugindo do controle. — Não vai dizer nada? — seu sorriso diminuiu e a pergunta saiu um pouco aflita. — Quando tomou essa decisão? — Desde que a minha filha morreu. Mas agora tenho um motivo real para concretizar e seguir em frente. — Está dizendo que esse motivo sou eu? Não podia ser, não era bom, nada bom. O meu trabalho impediria a nossa aproximação ou de estabelecermos um relacionamento. Não fazia ideia de como Valentim reagiria ao saber que eu fazia sexo por dinheiro, ele era tão correto, centrado e valorizava nitidamente os princípios de ética e da moral. Minha vida fugia dessa linha, era uma estrada com curvas muito fechadas para se adequar com as dele. — Vamos, Mari? Estamos atrasadas — Carlie chegou no estacionamento, mas eu e Valentim não interrompemos o nosso olhar —. Quer que eu os deixe a sós? Não sabia que estavam conversando. — Não, vamos — dei um passo em direção ao carro findando a tensão entre eu e Valentim. — Avise a sua mulher que da próxima vez que ela falar sobre Mariana abrir as pernas, eu quebro as dela — minha amiga avisou usando o tom mais natural possível. E por incrível que pareça Valentim sorriu. — Não haverá próxima vez, Carlie — certificou. Ele fez questão de abrir a porta do carro para mim e fechou quando me acomodei. Me mantive calada o trajeto todo para o flat. Carlie até tentou dialogar sobre a
minha conversa com o médico, mas eu não dei abertura. Estava me sentindo angustiada ou até mesmo injustiçada. Tinha conhecimento do preconceito consistente partilhado entre os homens em relação as prostitutas. Eles não estavam dispostos a ouvir as explicações, os porquês de levarmos vidas assim. Na realidade machismo e compreensão nunca combinarão. — Minha amiga, você precisa melhorar essa carinha. Seja lá o que for, Saulo logo estará aqui para te buscar. — O Senhor Ranzinza — corrigi. — Tanto faz. Mas se anime, lembre-se do propósito de tudo isso. — Eu acho que Valentim gosta mesmo de mim, Carlie — desabafei quando me sentei na cama com a toalha na cabeça após um banho rápido. — Não tenho dúvidas. — Mas sabe quando o contexto não ajuda? Nada encaixa? — Acredite, eu sei — ela lamentou entristecida, sentando-se também. — Ele está com a ideia de se divorciar da Vivian e se aproximar de mim, para nos conhecermos de verdade. — Por que você não tenta, Mari? — Você não conhece o Saulo, Carlie. Sério — olhei para ela. Não tinha um por cento de chance de dar certo. Valentim era um homem notavelmente conservador e prezava pelos bons costumes. Se um dia eu resolvesse contar, seria com a certeza de afastá-lo completamente, e isso eu não queria. O Senhor Ranzinza me deixou na frente de um sofisticado restaurante, e antes disso eu até tentei criar uma conversa com ele, mas sem sucesso. — Obrigada, tenha uma boa tarde — desejei e ele só assentiu com a cabeça. Entrei no lugar e procurei Saulo, o vi levantar sutilmente a mão para eu localizálo. Fui até a mesa onde três homens, contando com ele, estavam sentados e acompanhados de mulheres. Quando me aproximei o suficiente fiquei em pânico, David estava de costas e só me viu quando ficou em pé com os outros, para me cumprimentar. — Essa é a Mariana D'Ávila — disse aos "amigos". Saulo os apresentou para mim, mas eu sequer ouvi seus nomes, minha ansiedade já me afligia e eu queria correr dali o mais rápido possível. — Sente-se — Saulo puxou a cadeira e eu sentei —. Está linda — sussurrou no
meu ouvido. Tinha escolhido um vestido cinza longo de elastano justo com uma fenda na perna direita, que subia até a minha coxa, sem decote nos seios, somente os ombros expostos. Coloquei o meu cabelo para o lado, cobrindo um só ombro e olhei para Saulo. — Obrigada, você também está muito bonito — tentei abrir um sorriso simpático, o qual sumiu no mesmo instante em que virei para a mesa e vi David com os olhos focados em mim. Sua esposa era uma mulher com os cabelos alaranjados, cheias de sardas no rosto e os olhos bem verdes. Era magrinha , delicada e aparentemente calada. — Prefere espumante ou um vinho comum? — Saulo pegou o menu de bebidas alcoólicas e questionou sem me olhar. — Prefiro um suco. Seu olhar repreensivo pousou sobre mim e eu me ajeitei na cadeira, incomodada. — Pode escolher — consertei a resposta e ele voltou a olhar as opções. — Eu não sabia que você era casado — o cara que eu não lembro o nome comentou. — Não somos casados — Saulo respondeu. — Pois deveria prender uma dama como ela o quanto antes se não, será passado para trás — o mesmo homem disse usando um tom divertido. — Não estamos aqui para falar sobre assuntos pessoais — Saulo desfocou a atenção do menu e encarou o homem, que logo assentiu com a cabeça e voltou a atenção para a mulher em seu lado. Saulo chamou o garçom e pediu um vinho para mim, no mesmo instante a esposa de David falou: — Boa escolha, vou querer o mesmo — ela olhou para mim com um sorriso simpático e perguntou: — Você já experimentou esse vinho? É docinho, mas embriaga bem rápido. Eu sorri completamente sem graça e neguei com a cabeça. — Bebo raramente. — Tenho certeza que vai gostar. Desviei meu olhar quando David voltou a me observar. Senti a mão de Saulo na minha coxa e um apertão, cobrando a minha atenção. — Tem algo te incomodando? — cochichou para mim.
— Não, está tudo bem. — As pessoas não costumam mentir para mim, D'Ávila. Fiquei quieta. Os três empresários começaram a conversar, tratando de assuntos dos quais eu desconhecia completamente. Tentei captar no meio do conteúdo qual era a função de Saulo, mas não descobri. Só sabia que tinha algum vínculo com a área da saúde, já que David era dono de uma grande indústria farmacêutica. Ouvi as duas mulheres falarem sobre seus trabalhos com a moda e eu continuei quieta, não tinha como participar. — E você Mariana... É Mariana? — a outra, morena, que eu não havia decorado o nome indagou, eu concordei com a cabeça —. O que você faz? Olhei para David que esperava a minha resposta. Eu engoli minha saliva com dificuldade e quando abri a boca para responder, Saulo me interrompeu. — Ela é professora de dança, mais especificamente de balé. — Incrível, suponho que dance bem — David deixou a ironia imperceptível. — Faço o que posso — estava a ponto de ter uma crise de ansiedade. — Que legal, Mariana — a esposa do meu ex-cliente sorriu —. Você tem uma escola de danças? Agora que eu e David vamos nos mudar para Seattle com as nossas duas filhas, precisaremos procurar uma boa escola para elas continuarem as aulas. — Não, eu trabalho em uma companhia. Mas posso te indicar bons lugares — respondi depois de um tempo. O silêncio pairou. Saulo não parava de me olhar, o que me deixava ainda mais desconfortável. O garçom trouxe nossos vinhos e brindamos sem motivo aparente. — Pedi bouillabaisse para nós dois. — Não faço ideia do que seja — sussurrei para ele. — É uma sopa com lula, camarão, garoupa e outros peixes. Você vai gostar. — Tudo bem. Eles voltaram a falar sobre empresas e sociedade. Como eu não conseguia me encaixar e nem deveria, me levantei para ir ao banheiro. — Aonde vai? — Ao banheiro. — Não demore — advertiu.
Pedi ajuda ao maître para encontrar e entrei no banheiro gigantesco. Parei em frente a pia e respirei fundo, arrumei meu batom cor de boca e fiz um rabo de cavalo um pouco bagunçado, soltei o cabelo e prendi de novo. Estava nervosa. — Bela — ouvi David assim que as portas do hall do banheiro abriram. — David. — O que está havendo? Ele é seu namorado ou mais um cliente? — Eu não acho que devo falar sobre isso. Ele se aproximou e pegou em meu braço, esperou que eu o olhasse e depois acariciou o meu rosto, eu me afastei imediatamente e neguei com a cabeça. — Por favor, David. Não diga que me conhece. — Não direi. Mas estou preocupado, Saulo te amedronta? — Da onde tirou isso? — indaguei erguendo minha sobrancelha. — Bela, você disse duas frases desde o momento em que chegou. Quer compartilhar algo comigo? — Ele é um cliente sim, mas é algo mais sério. — Fixo, você quer dizer? Admiti com a cabeça e gelei quando ouvi o barulho de uma porta bater na parede. Saulo entrou no mesmo ambiente que nós dois e se aproximou desconfiado e silencioso. — Algum problema aqui? — Nenhum — David sorriu simpático e se afastou de mim. — D'Ávila não têm conhecimento sobre os nossos assuntos, então não é necessário que converse com ela — Saulo disse, revestido com toda a sua carranca. — Não subjugue a inteligência da sua companheira, meu caro — mais uma vez o irlandês sorriu e eu permaneci atônita. Assim que ele se retirou Saulo parou em minha frente e estudou o meu semblante. — Vamos, o nosso prato está pronto. Concordei e o acompanhei para fora. Voltamos a nos sentar e depois disso não falei mais um "A". Reparei nos diálogos das duas mulheres em minha frente e tive vontade de aconselhar o irlandês a não trair mais a sua esposa, ela era doce, culta e amigável. Só que claro, eu não disse nada. Não entendia o propósito de levar as mulheres para esse tipo de reunião, não
participávamos de tópico algum, ficávamos como enfeites a tiracolo. Já na calçada, aguardamos o motorista e Saulo entregou-lhe dinheiro. — Pegue um táxi — ordenou. O Senhor Ranzinza abaixou a cabeça e se despediu. Ele abriu a porta do carro para mim e entrou do outro lado. Demorou um pouco a ligar o carro para sairmos. Sabia que estava estressado e torcia para que não fosse comigo. — É necessário eu perguntar da onde você conhece o irlandês? Neguei com a cabeça. — Já fodeu com ele? O olhei apreensiva. — Me responda quando eu falar com você. — Já nos relacionamos sim — confessei. Ele riu e de repente socou as duas mãos no volante. — Bem antes de você, Saulo — tentei atenuar. — Não sei porque me surpreende saber que você é tão suja. Na segunda reunião e já nos sentamos com um cliente seu. Está de parabéns. — Eu não sou suja — argumentei baixo. — O que me garante que você está me dando exclusividade? — Não tenho porque mentir — balancei os ombros —. E por que isso é tão importante? Eu sou só uma prostituta. — Não me tire do sério. — Você já está fora do sério. Seguimos o resto do percurso em silêncio. Chegamos no flat e quando fui abrir a porta do carro no estacionamento, Saulo me puxou para fora pelo braço. Eu me desvencilhei dos seus dedos e me afastei. — O que pensa que está fazendo? — Anda, suba — pegou novamente no meu braço e me guiou em direção ao elevador. — Não me segure assim — peguei em sua mão novamente, mas ele apertou a minha pele firmemente com seus dedos. — Só me obedeça, esqueceu? Me calei. Entramos no flat, o vi afrouxar a gravata no pescoço e servir um copo
com o whisky que ele mesmo comprou. — Tire a roupa — usou seu tom autoritário. — Você não acha que podemos conversar? — me sentei na beirada da cama para tirar os saltos. Ele se aproximou e agachou em minha frente. Seus olhos expressavam a fúria palpitante presente dentro dele. Achei que fosse falar mais uma das suas frases ofensivas, mas o que aconteceu foi pior. Saulo segurou meu rosto com tanta força que a minha mandíbula doeu. — Se eu quisesse conversar pagaria um psicólogo. — Por que não paga uma puta por dia então? Não sou um ser inanimado. Minha boca foi maior que a noção. Ele ameaçou de bater no meu rosto, mas eu segurei em seu pulso. Me levantei rapidamente e fui para o outro lado da cama. — Você não vai me bater sem o meu consentimento — bradei. Ouvi sua gargalhada debochada, e eu tive que subir na cama quando ele avançou para o meu lado. Senti suas mãos puxarem meus tornozelos me fazendo cair sobre o colchão. — Essa relutância desperta ainda mais vontade de te dar uns tapas. Fiquei a mercê dele. Seu corpo era bem maior que o meu, difícil de me livrar. Saulo levantou meu vestido até a altura da minha cintura e simultaneamente tirou o cinto da calça, abaixou o zíper e subiu na cama. — Aos poucos vou te transformar no que eu quero — sussurrou quando passou a trilhar uma fileira de beijos pelo meu pescoço e colo. Coloquei minhas mãos em seu tórax limitando a aproximação. Ele lançou um olhar interrogativo e me rendeu ao unir meus pulsos para cima da minha cabeça. Ouvi o barulho da embalagem metalizada e disse: — Eu só acho que você está nervoso e que poderíamos... Prendeu o tecido rendado da minha calcinha no dedo e seu pau entrou com brutalidade. Eu fechei meus olhos, repreendendo-me por sentir que os seus muitos centímetros me excitavam. Infelizmente fazia parte do instinto impulsivo e carnal. As estocadas prosseguiram fortes, produzindo o som dos nossos corpos se chocando. A respiração dele era ofegante, descompassada e misturada a gemidos bestiais. Segurei em seus cabelos e no mesmo instante Saulo consumiu a minha boca, exigindo um beijo intenso e obsceno.
Suas íris esverdeadas planaram sobre as minhas, enquanto seu lábio quente roçava os meus. — Prefiro assim, quando você não está falando nenhuma merda — um sorriso malicioso se instalou em sua boca. Ele nos virou colocando-me por cima do seu colo. Terminei de tirar meu vestido passando-o nos meus braços e na minha cabeça. Abri o sutiã tomara-que-caia nas costas deixando-o cair. Continuei segurando a renda cinza da minha calcinha para o lado e passei a rebolar no seu membro. Movimentei para frente e para trás, depois levantei e sentei ouvindo minha lubrificação natural junto à da camisinha. Saulo segurou no meu quadril comandando o ritmo dos meus movimentos. Desferiu tapas na minha bunda, fazendo minha pele queimar. Tomou meus seios em sua boca, dando atenção a um mamilo depois ao outro. Ele também bateu nos meus peitos, apertou os bicos ao ponto de me ouvir reclamar de dor. Fui trocada de posição mais uma vez, fiquei de quatro com o rosto deitado no travesseiro. Ele mesmo me fez empinar a bunda, passou a boca e a língua no meu ânus, enquanto tirava a gravata seguida da camisa social preta. Primeiro penetrou o dedo, alargando e se familiarizando com o orifício, depois enfiou o pau abrindo-me dolorosamente. Meu cabelo foi puxado ferozmente para trás, fechei meus olhos e mordi a boca sentindo a dor se alastrar. Novamente ele não foi cauteloso, só apaziguou o meu desconforto — que mesmo fazendo anal diversas vezes, era grande — quando levou os dedos ao meu clitóris. Saulo me estimulou rapidamente, também encurvou seus dedos dentro da minha boceta, levando-me ao orgasmo. Ouvi os insultos quando foi a sua vez de gozar, ele me mordeu e me enforcou enquanto montava com força em cima de mim. Depois de terminarmos, sorriu satisfeito dando-me um beijo rápido na boca. Fiquei quieta observando seu corpo quando levantou-se para jogar o preservativo no lixo do banheiro. O assisti lavar o rosto na pia e molhar os cabelos negros. — Marquei a sua consulta com a médica de minha confiança — contou. Eu não cederia sobre transarmos sem camisinha, não mesmo. — Como terei certeza que você também é limpo? — perguntei. — Desculpa, mas você é uma puta e eu um homem prudente. Será que ele me achava tão burra mesmo ou só fingia? Nós dois olhamos para o sofá quando ouvimos o vibra do meu celular. Caminhei para pegá-lo mas Saulo o tomou da minha mão. Eu tinha configurado para que
todos os números ficassem em anônimo. Uma novidade: eu não era tão burra assim. — Quem fala? — ele atendeu grosseiramente a ligação desconhecida —. É mudo, imbecil? Valentim Del Torre — Mantenha a calma, Dr. Del Torre. Infelizmente os juízes optam por utilizar o Código do Processo Civil, onde todas as ações de família são iniciadas por uma audiência de conciliação ou mediação. — Já sabemos que Vivian não cederá a um divórcio consensual. Será perda de tempo. — Por vocês não terem mais filha, poderíamos também realizar o extrajudicial. Seria mais rápido e menos burocrático. — Sem querer ofendê-la, mas Dra. Scott, a senhora tem conhecimento de que isso é impossível. — Correto. Preciso mantê-lo ciente de que o litigioso exigirá de mais paciência e tempo. Será necessário a análise de partilha de bens, para sabermos qual foi o regime patrimonial escolhido. — Lembro que adotamos o regime parcial. — O hospital Saint Clair é somente seu, certo?— a advogada me olhou por cima do óculos de grau e eu concordei com a cabeça —. Aí que está, teremos que ver se a Sra. Vivian não vai se opor. — Fora de cogitação. O hospital é herança do meu pai e ela não tem vínculo algum. — Bom, vou elaborar o processo e redigi-lo. — O mais rápido que a senhora puder — enfatizei. — Ok. Assim que finalizar nós voltamos a nos encontrar para analisar se está como o Doutor quer. — Estou facilitando por não exigir nada. Só quero o meu hospital, as outras propriedades eu cedo para Vivian. Passei pela porta e antes de ir embora ressaltei mais uma vez:
— Seja rápida, por favor. E não noticie a Vivian até que tudo esteja encaminhado. Deixei o escritório e fui direto para o hospital, sentindo um misto de alegria com receio. No caminho decidi ligar para Mariana e dar a notícia, mas fui pego de surpresa quando um cara atendeu. — Quem fala? É mudo, imbecil? Fechei os meus olhos, respirei fundo e então desliguei. Quando parei na minha vaga do hospital, abaixei minha cabeça no volante e bati a testa algumas vezes. O tom usado transparecia a irritação por ter outro homem ligando para ela. Quis tentar novamente para questioná-la, mas desisti. Saí do carro e a alegria de minutos antes tinha evaporado. Fui para o vestiário colocar o jaleco e encontrei Álvaro falando no celular, ele me cumprimentou com a cabeça e depois se retirou. Sentei-me no banco querendo me recompor. Caminhei até a minha ala e me distraí com as crianças. A minha paciente Alba compartilhou sua felicidade por estar reagindo minimamente ao tratamento, depois coloquei um filme para as quatro crianças que permaneciam acordadas e apaguei as luzes. Logo todos dormiriam. Em média duas horas passaram e eu fui ver como Martha estava. Me deparei com Mariana deitada na maca também; a bailarina, assim como a mãe, estava de olhos fechados. Porém acordada, já que seus dedos acariciavam o braço frágil e cheio de agulhas ligadas ao equipo. As pálpebras junto aos cílios loiros se separaram e ela sobressaltou quando me viu. — Está me olhando há quanto tempo? — cochichou quase sem som. — O suficiente — também sussurrei. Cuidadosamente Mariana se levantou, prendeu os cabelos com os próprios fios e ajeitou o casaco. — O ritmo cardíaco dela está baixo. — É comum, sua mãe está fraca. — Ela está com febre — Mariana esfregou as mãos. Peguei o prontuário ao lado do leito e dei uma olhada rápida. — Está medicada — informei. De repente Martha começou a ter impulsos elétricos, se debatendo e mexendo-se desordenadamente. O famoso curto circuito no cérebro que chamamos de
convulsão. Vi seus músculos se contraírem e enrijecerem rapidamente. Mariana correu desesperada para tentar paralisá-la, mas eu a segurei, afastando-a da mãe. Virei Martha de lado, evitando que a língua caísse para trás, tirei o seu cachecol e assisti os espasmos. — Valentim — Mariana tentou interferir mais uma vez —. Você não vai fazer nada? — e logo começou a chorar. — Fica calma, fica calma — pedi com serenidade, olhei no meu relógio para contar o tempo de convulsão. Acionei os enfermeiros pelo botão de emergência e subi as grades laterais da maca, protegendo-a de uma possível queda. Martha acordou após a descarga, e Mariana se apressou para limpar a espuma em sua boca. — Mãe, estou aqui com você — ela abraçou a mãe e foi empurrada com força. Mariana se assustou e me olhou. — Vão cuidar de você, eu não vou sair do seu lado. A mãe dela olhou com estranheza e abaixou a grade lateral, já questionando: — O que você tá fazendo aqui? Não pedi pra vir me ver. — Mãe, sou eu — Mariana disse com calma. — Saia daqui! Saia daqui agora! — Martha desceu pelos dois degraus largos e tentou avançar em Mariana. Eu a defendi colocando-me entre as duas. — Martha, nós estamos no hospital e você precisa se deitar. — Não vou me deitar. O que ela está fazendo aqui? Eu não pedi pra ela vir me ver — repetiu olhando para mim. Ouvi Mariana chorar nas minhas costas. Os enfermeiros chegaram e tentaram apaziguar a situação, que só piorou quando Martha proferiu: — Você matou o meu marido, você é desumana, não merece vir me ver. Eu não te chamei para vir me ver. O que está fazendo aqui? — gritou repetindo as palavras várias vezes. — Mãe, por favor me ouça — Mariana tentou se aproximar mas eu a detetive. — Ela não está sã — aconselhei baixo. — Você matou o meu marido. O que ela está fazendo aqui? — Martha me olhou depois de esbravejar. Os enfermeiros tentaram orientá-la, dizendo onde ela estava e os motivos da internação.
— Administrem trinta miligramas de aripiprazol — prescrevi e a ouvi gemer de dor — e a mesma dose de sempre de morfina. — Ela não digere mais via oral, doutor — um enfermeiro mencionou. — Estou ciente. É via venal mesmo — terminei de anotar os medicamentos no prontuário e só então notei que o choro havia desaparecido. Olhei para trás e Mariana não estava mais no quarto. — Cuidem dela e fiquem para observá-la. Ela acabou de ter uma convulsão e perdeu a consciência, não a deixem por um segundo. Procurei Mariana pelo hospital inteiro, tentei ligar para ela vãs vezes. Larguei o plantão e fui até o seu prédio, demorou para Carlie me atender e quando aconteceu, ela disse que Mariana não estava. — Carlie, ela saiu sem me avisar do hospital, estou preocupado. Colabora, por favor. — Ela realmente não está aqui — a amiga dela abriu mais a porta, fechou os olhos e depois os abriu como se fosse declarar algo —. Mariana se mudou. — Como assim se mudou? Para onde? — Eu não posso falar. — Está brincando comigo, Carlie? Estou te dizendo que a sua amiga saiu nervosa após ver a mãe ter convulsão e alucinações, e você não pode me dizer aonde ela está? — Entre, vou tentar ligar. — Ela não me atendeu — informei. — Mariana não está apaixonada por mim. Ela vai me atender — captei seu tom sugestivo e entrei após ela ter deixado a porta aberta. Sentei-me no sofá e senti o vazio presente no sossego do apartamento. Por que ela tinha se mudado e não podia me contar? Inferno! — Sim, Valentim está aqui — ouvi a amiga falar e a segui até a cozinha tentando ouvir a conversa —. Mari, ele não está com cara de que vai embora sem satisfações. Não, não passei — ela bebeu um copo de água e ficou de frente para mim escutando Mariana falar do outro lado —. Não deveria ter saído desesperada, você nos preocupa desse jeito — ouviu mais um pouco. — Diga que eu vou encontrá-la — gesticulei com a boca. — Ele está dizendo que quer te ver — Carlie falou —. Mari, não dificulta mais. Valentim só quer te ajudar — eu não conseguia decifrar as palavras da bailarina —. Eu sei, minha amiga. Mas não adianta fugir.
— Peça para ela ir ao Bathtub Gin in Co, fomos lá a primeira vez. Carlie precisou de mais uns minutos para convencê-la a me encontrar. Mariana era dura na queda, mas eu não a deixaria escapar de novo. Muitas coisas precisavam ser esclarecidas. Até pensei em perguntar para a amiga sobre as alegações de Martha em relação à Mariana ter "matado o marido", mas não era dela que eu queria ouvir. Como médico eu sabia que em momentos de alucinações, os pacientes retratavam e mencionavam fatores passados ou guardados em seus subconscientes. Não era totalmente incongruente ou infundado. Quando a vi o meu coração se apertou. Seus olhos estavam muito inchados, as bochechas totalmente avermelhadas assim como o nariz. O cabelo em um coque desgrenhado, e já vestia outra roupa: uma calça preta justa ao corpo e um moletom preto que ficaria largo até em mim. O All Star velho lhe dava uma aparência ainda mais descuidada. Apesar disso a sua perfeição resplandecia. Os olhos azuis brilhantes junto à boca carnuda e desenhada me fazia questionar pela centésima vez se era mesmo possível ela sentir algo por mim. — Seja breve, Valentim — impôs assim que nos sentamos. — Primeiro olhe para mim — pedi, ela demorou mas acatou —. Segundo, não serei breve.
12 Valentim Del Torre
C
— omo ela está? — seu olhar cansado se direcionou ao meu, os azuis tão celestiais estavam nublados e tristes. — Estável — mexi no suporte da vela no centro da mesa de madeira. Evitei seu olhar pelo tempo necessário de organizar a avalanche de perguntas que eu queria fazer. Ouvi Mariana chamar o garçom e pedir um suco. — Coma alguma coisa — observei a cor da sua pele —, está pálida. — Não, obrigada. — Traga por favor, uma salada ceasar e um bife ancho. — Somente para uma pessoa, senhor? — Isso — assenti para o garçom que logo pediu licença para e se retirou —. Quando diagnostiquei a minha própria filha com leucemia o mundo desabou sob os meus pés, Mariana — comecei a falar porque ela não o faria —. Lutei cada dia de sua vida para reverter o quadro, revirei a ciência e até deixei de crer em Deus diversas vezes. Foi exaustivo, como está sendo para você. Passei longos meses morando no hospital junto com ela. Eu via uma criança morrer a cada duas semanas mais ou menos. Ganhei a sua atenção assim que toquei no assunto sobre a minha filha. Seus olhos marejados fitaram os meus e mesmo que ela não soubesse, eu me sentia incomparavelmente consolado como nunca antes. — Era como uma contagem regressiva ou uma bomba relógio. Estava ciente de que uma hora tudo ia desmoronar e mesmo me preparando dia após dia, eu sabia que não suportaria perder a minha filha de cinco anos — tentei em vão conter a lágrima solitária que transbordou do meu olho, e depois sorri —. Engraçado é que depois de todos os anos como interno, residente e por fim atendente, a única coisa que eu queria era ser leigo. Apagar todo o meu conhecimento e viver ao lado de Ana sem saber o seu prognóstico. — Você não queria saber quanto tempo ela tinha — Mariana concluiu baixo. — Não. Porque eu sei que essa ideia de morte lenta, que proporciona despedida, é hipocrisia pura. — Eu acreditava que aos poucos me conformaria, que o tempo me ajudaria a
compreender e aceitar a morte da minha mãe. — O cansaço te faz ceder, somente o cansaço. A saudade que a ausência causa será sempre apavorante, não importa como, a morte sempre abala as estruturas, até do mais forte. — E eu estou tão cansada — confessou, e no mesmo instante seu choro contido veio a tona. Levantei me sentindo um inútil por não poder diminuir sua dor. Até diria que se pudesse transferia para mim, mas eu já vivia com uma angústia semelhante. Acomodei-me ao seu lado no banco comprido e almofadado, e aproximei sua cabeça do meu peito. Ela segurou o meu braço e se permitiu, chorou e soluçou. — Às vezes parece que eu não vou suportar — disse embargada. — Quanto a isso eu te dou certeza, eu prometo, que você vai aguentar. — Eu só tive a minha mãe a vida inteira. Você consegue entender? — me olhou e afirmei —. Morávamos em uma cidade pequena, que devido a todos os traumas que eu somei na infância não conseguia me relacionar com crianças da minha idade. Eu fui crescendo, na adolescência escolhi me isolar. Tinha muitos problemas em casa, não pude me aproximar das pessoas da minha idade e assim por diante... Pensei no que Martha disse, sobre a culpa de Mariana na morte do marido e assimilei com os traumas na infância, adolescência e juventude. — O marido do qual sua mãe falou, é o seu pai? — perguntei assim que ela se acalmou. — Nunca o chamei assim, mas é, o monstro do meu pai. — O que ela disse sobre... — Ele a espancava — Mariana me interrompeu e o pranto voltou —, ele batia nela todos os dias, muitas vezes a deixava inconsciente e ia embora, eu era só uma criança e precisava me virar pra sobreviver. Vivi no inferno. — Eu acredito em tudo o que está falando — falei com calma, incentivando-a a contar mais. — Mas aí eu cresci — ela deu uma risada e secou o rosto com a manga do moletom —. Eu cresci e não aturei mais. Quis sair do inferno. — Mariana você... — Olha, eu não vou estender o assunto mas é isso... Minha mãe não estava mentindo. As toneladas em suas costas muitas vezes a ofuscava, não para mim. De uma
forma ou de outra, mesmo que ela estivesse em seus piores dias, desolada e deprimida, eu conseguia enxergar claramente alma brilhante e toda a sua luz interior. Naquele momento de confissão, a neblina presente em seus olhos diminuíram. Existia muito para ser visto na claridade e eu estava disposto a desvendar. — Senhores, perdoem a demora — o rapaz deixou a comida sobre a mesa. — Obrigado — segurei os talheres e cortei os pedaços do ancho. Organizei os pratos e deixei a salada na frente de Mariana, temperei do meu jeito e entreguei o garfo para ela, ela cedeu e petiscou as folhas. — Coma a carne também, por favor — aproximei o prato da sua salada, e me senti aliviado ao vê-la comendo. Usufruí do tempo em silêncio para poder digerir o que tinha ouvido há pouco. Mariana estava inerte a mim, pensativa enquanto mastigava os pedaços do bife. Ela terminou a salada e bebeu um pouco do suco. Mariana D'Ávila — Pedi o divórcio hoje. Minha advogada dará entrada no processo. Ele disse mas eu permaneci quieta. Não nego que fiquei feliz, mas as correntes continuavam amarradas nos meus pés. — Creio que logo ficará pronto. — Eu tenho alguém — falei baixo. Valentim pousou a taça de água na mesa e a me olhou confuso. — Você tem? Você tem alguém? Larguei os talheres no prato e limpei minha boca com o guardanapo. — Valentim — segurei delicadamente suas mãos, mas ele sequer se moveu —, eu disse desde o início que não poderíamos ter nada. — A única barreira era o meu casamento, Mariana — tirou abruptamente as mãos das minhas e proferiu grosseiramente —. Você falou e reafirmou todas as vezes que questionei sobre ter namorado. Voltei a zona do silêncio e ele estava completamente inquieto. — E você ama esse alguém, porra? Eu não estou entendendo — engoli minha saliva preparando-me para falar e ele questionou novamente —: Ama, Mariana? Desviei meus olhos do dele, mas me desesperei quando o vi levantar,
provavelmente para ir embora. Valentim estava abrindo a carteira mas eu segurei suas mãos. — Foi ele, não foi? Que atendeu o seu celular? É ele que te deixa cheia de marcas sempre? Há quanto tempo está com ele? — Eu não o amo, Valentim — disse convicta. — Então rompe de uma vez. — Simples assim? — Aprendi com alguém que o grau de independência legítima que todo ser humano deve ter, é a liberdade. Mas até onde vai a sua? O mundo dá voltas não é mesmo? Eu não podia estar ouvindo aquilo. Fiquei em pé e minha expressão demonstrou meu descontentamento e indignação. — É sério que está falando de liberdade comigo? Você vive um casamento fracassado, com uma mulher desalmada. Acha mesmo que pode me cobrar sobre atitudes? — Vou me divorciar — repetiu. De novo o silêncio. De repente ele me olhou como se tivesse descoberto algo sórdido. — Você não o ama, mas continua — parecia estar juntando as peças —. Ele te chantageia de alguma forma? — Nem todas as pessoas são como a Vivian. As íris esverdeadas não desgrudavam das minhas, estudando-me e averiguando qualquer coisa que quisesse passar despercebida. — Você é um quebra-cabeça sem fim, Mariana. — Devo ser — dei os ombros, me sentindo desanimada. — Uma coisa — seu indicador apoiou meu queixo e ficamos com os lábios bem próximos —, se você quer que eu desista de você, desista. — Valentim, pra que perder tempo comigo? É tudo tão incerto. — Nunca estive tão certo de que não será tempo perdido. Sua boca corada e hipnotizante estava a menos de um centímetro da minha. Em transe, umedeci meu lábio inferior, concentrada demais no rosto perfeitamente anguloso rente ao meu. — Vamos, eu te levo para a sua casa — me tirou do devaneio e eu tive que balançar a cabeça para a sanidade voltar.
— Eu pego um táxi. — Está tarde. — Não é um problema, chegarei em casa do mesmo jeito. — Isso tudo é para eu não aparecer de surpresa na sua nova casa? — Isso tudo é porque o dia foi longo e assim como eu, você também precisa descansar. Voltei batendo a cabeça na janela de vidro do táxi. Me martirizando por não ter agarrado Valentim quando ficamos a um dedo de distância. A vontade crescia violentamente dentro de mim, não deixando espaço para nenhum outro homem. Arghhh, como eu o queria! Na manhã seguinte fui para o hospital, na esperança de encontrar a minha mãe lúcida, e felizmente era assim que ela estava. A abracei e mesmo sentindo uma necessidade sufocante de falar do dia anterior, eu deixei para lá. Conversamos sobre a autora dos romances que ela lia, do evento beneficente que realizei junto à oficina de teatro e dança, também contei sobre a Sol e da minha convivência com a irmã de Valentim. Carlie não demorou para se juntar a nós, ela levou um pedaço de bolo natural e Martha comeu um pedaço mínimo com dificuldade. Minha amiga tinha o dom único de entreter a minha mãe, falavam sobre coisas engraçadas, sobre namoro e até sexo. Na hora do almoço Álvaro insistiu para que eu e Carlie comêssemos com ele. Eu estava terminando de tomar um energético de guaraná quando Valentim se juntou a nós. — E como está o relacionamento de vocês dois? Aproveitem que no início é só rala e rola — o gastro disse colocando a última garfada na boca. — Cala a boca, Álvaro — falei e Carlie deu risada. — Eu acho que estamos começando pelo final então — Valentim se lamentou e eu dei uma encarada brava nele. — Sinto muito, meu amigo — Álvaro bateu a mão no ombro dele como um gesto de apoio. — Mas e vocês, estão curtindo o "rala e rola"? — revidei. Ambos ficaram quietos e não me deram uma resposta. — É galera, não tá fácil pra ninguém pelo jeito — Valentim comentou e eu balancei a cabeça sorrindo. — Se dependesse só da nossa vontade estaríamos os quatro no altar, ou suados
entre quatro paredes, mas quem disse que a vida facilita? — Carlie bufou e nos fez rir. — Vocês não facilitam — Álvaro criticou, enfatizando o "vocês". — Eu não sei de nada! — levantei minhas mãos em rendição e afastei a cadeira da mesa —. Vou me despedir da minha mãe e ficar um pouquinho com as crianças. — Elas estão sentindo a sua falta — o oncologista disse, quando terminou de sorver o suco verde do copo. — Não estou podendo ficar tanto como antes. — É a merda do seu compromisso. — Mas também sinto falta delas — ignorei a cutucada de Valentim mas ele não parou: — As crianças são mais legais do que o seu relacionamento, te garanto — cutucou mais uma vez. — Típica coisa que uma criança de quatro anos fala — Carlie provocou e Valentim estreitou o olhar para ela. — Não sei o que vocês estão tomando, mas tragam pra mim amanhã, o negócio é bom pelo jeito — insinuei, rindo. Estávamos realmente parecendo quatro crianças emburradas com a atual conjuntura. Fiquei em pé e fui até o balcão pedir um mocaccino, Valentim chegou por trás de mim e sussurrou: — Fiz minhas malas ontem. Mexi o copo com o café fumegante e fiquei de frente para ele, observando seu semblante e pensando simultaneamente. — O que está pensando em fazer, Valentim? — Não estou pensando. Já fiz! Beberiquei com cuidado o mocaccino para não me queimar e esperei que ele prosseguisse. — Tenho uma casa e hoje antes de vir para o hospital, deixei minhas coisas lá. — Meu Deus! Vivian deve estar arrancando os cabelos. — É, está. — Ela sabe do divórcio? — Ainda não. Deve achar que eu só estou dando um tempo, como fiz outras
vezes. — Isso não é certo. — Não é certo, mas é a única forma da advogada redigir o contrato sem ela interferir e me deixar louco. Fomos andando pelo corredor principal do hospital e subimos alguns lances de escada enquanto conversávamos sobre esse mesmo assunto. Chegamos na ala de oncologia pediátrica e nos afastamos, assim como Valentim, eu também me sentia uma atração no meio dos anjinhos internados. Me tratavam como uma verdadeira princesa. — Moça, eu posso falar com você um pouquinho? — senti uma mãozinha pequena puxar o tecido do meu casaco e eu que estava conversando com um menininho, me virei para reconhecer a dona da voz. — Oi, claro que pode princesa — abri um sorrisão ao vê-la e me sentei ao seu lado na maca. Ela tirou a máscara de oxigênio e Valentim se aproximou. — Alba, Alba — ele a advertiu, mas ela só deu um sorrisinho travesso —. Não fique muito tempo sem sua máscara. — Pode deixar, Tio Valentim. Mas você pode deixar a gente conversar? Sabe, é coisa de mulher — pediu toda meiga. — Ah, desculpa. Coisa de mulher — ele levantou as mãos e fez uma careta. Espantei ele movimentando a mão e Alba deu risada. — Fala, lindeza. Mas você ouviu o Tio Valentim, não pode ficar muito tempo sem a máscara. Ela concordou com a cabeça e pegou em minhas mãos. — Você é muito bonita, sabia? — me elogiou e eu deitei a cabeça sutilmente para o lado, para admirá-la. — Meu amor, você também é muito linda. — O meu cabelo era loiro igual o seu — ela pegou nos meus fios e deslizou os dedos. — Tenho certeza de que era lindo. Mas cabelos não são tão importantes — pisquei para ela —. Diga, menininha. O que você quer falar comigo? — Sabe, eu ia pedir pro Tio Valentim, mas eu tenho vergonha. E você está sempre aqui então achei melhor pedir pra você. — Pode pedir.
— Eu e meus dois amiguinhos aqui do hospital, vimos uma história na televisão que levaram cachorrinhos pra visitar as crianças. — Uma reportagem? — perguntei e ela assentiu. — E eu tinha um cachorrinho, mas ele morreu e eu nem estava em casa pra dar tchau. — Ah, eu sinto muito pelo seu bichinho. Você quer que eu convença o Valentim de trazer cachorrinhos aqui? — captei a mensagem e sorri ao idealizar. — Prestei atenção em tudo direitinho na televisão, tem cachorrinhos que podem visitar crianças doentes como a gente aqui. — Tem mesmo, Alba. Eu vou providenciar isso, tá bom? — Promete? — Prometo que vou encher o saco do Tio Valentim até ele não aguentar mais e deixar. — Eba! — ela me abraçou de repente e eu retribuí. E eu enchi muito a paciência do Valentim, até que ele cedeu. Mas eu teria que correr atrás de tudo já que ele estava cheio de plantões para fazer. Na mesma tarde liguei para inúmeras ONGS voluntárias e quando souberam que era para o hospital Saint Clair, quiseram agendar o quanto antes. Consegui pro dia seguinte e fiquei muito feliz só de imaginar a alegria dos pequenos pacientes ao ver os animais. Saulo apareceu quando a noite caiu, me importunou infindavelmente, porque eu estava saindo sem informá-lo e sem a sua permissão. Eu tinha vontade de chutar a cara dele, mandar calar a boca e engolir a merda do seu machismo indigesto. Mas óbvio, ficava calada. Precisava dos vinte e cinco mil, e pasmem que mesmo esse valor, não cobria exatamente os gastos mensais do hospital. Acredito que muitos sabem sobre o sistema de saúde dos Estados Unidos, mas vale ressaltar que não tem convênio e os tratamentos são absurdos, ainda mais o Saint Clair em específico. O hospital oferecia todos os recursos ou mais do que o necessário, para assistir pessoas vítimas do câncer. Todos os procedimentos de internação, medicação, quimioterapia, hospedagem, alimentação, eram caríssimos, mas com certeza era um dinheiro que eu gastava tendo a confiança de que minha mãe estava em boas mãos. — Eu vou ir ver a Carlie, você vai ficar aqui? — perguntei de costas para ele, enquanto mexia no guarda-roupas embutido a procura do meu sobretudo mais
grosso. — Vai sair a essa hora? — Qual é o problema? — Sua amiga deve estar trabalhando. — Eu a espero. Qual é o problema em ter alguém para conversar e compartilhar as coisas? Você não tem amigo, Saulo? — Eu te levo — desconsiderou o que eu falei e ofereceu. — Não precisa, posso pegar ônibus. Ele gargalhou e me olhou negando com a cabeça. — Está tarde. No momento eu percebi que estava caindo em um poço sem fundo, porque senti como se fosse Valentim falando para mim, igual na noite anterior. Era paixão ou loucura relacionar até mesmo Saulo ao Valentim. Ele acabou me convencendo afinal, o meu dia também tinha sido um pouco exaustivo. Confesso que estava dormindo melhor desde que Saulo apareceu, não precisava virar madrugadas e mais madrugadas na Le Luxe, mas ainda assim, a rotina de visitar hospital somado ao desgaste emocional era bem cansativo. Saulo me deu um beijo antes de eu descer do carro, e falou: — Se cuida — confesso que estranhei —. Não durma fora, vou deixar o meu motorista a sua disposição, você tem o número do contato dele. — Que exagero, Saulo. — Não discuta comigo. E D'Ávila — segurou meu braço —, eu estou sempre de olho. Psicótico. Entrei no meu prédio querendo ver Carlie, tínhamos passado pouco tempo juntas no hospital, também era diferente conversar quando estávamos só nós duas. Mandei uma mensagem enquanto subia as escadas e ela me respondeu de imediato, disse que não chegaria tão tarde e eu fiquei contente. Abri a porta do apartamento e virei em direção à cozinha, estava com fome e queria preparar algo rápido para comer. Eu só não contava que logo em seguida entraria em choque. A luz da sala se acendeu e o susto foi tão grande que precisei escorar na parede ao meu lado para não cair. — Lugarzinho asqueroso que você mora.
Ela observou em torno de si e eu continuei quieta tentando me recuperar. — Não fique preocupada, não entrarei sempre. — Como você conseguiu? — eu sequer estava raciocinando. — Existe chaveiro e foi bem fácil convencer o velho quando ele viu esse muquifo. Guardei toda a minha fúria e fui até a sala, sentei-me na poltrona e apontei o sofá para que ela fizesse o mesmo. — Não, estou bem em pé. Não quero sentar nesse sofá suj... — Não está sujo, fique tranquila. Vivian continuou em pé e eu tentei demonstrar que eu estava confortável na situação. — Qual o propósito da visita? — questionei. — O meu marido saiu de casa e eu sinto cheiro de piranha no meio. — No caso então, não sou eu — sorri —, não sou piranha — dei os ombros, descontraída. — Eu não estou brincando — falou irritada. — Pareço piranha, Vivian? — levantei-me ficando mais alta do que ela —. O que te faz concluir que eu sou essa vagabunda que você enche a boca para humilhar? Você me conhece? — Mulher que dá em cima de homem casado é biscate, querida. — Já que não tem nada importante e sensato para falar, vá embora — caminhei em direção a porta e a abri —. E enfia o querida no seu cu! Ela se aproximou e fechou a porta com força. Ficamos bem perto uma da outra, seus olhos afrontaram os meus e eu me mantive impassível. — Você não vai tirar o Valentim de mim, está me escutando? — continuei com a minha mudez —. Está ouvindo, sua piranha? — Se você me insultar mais uma vez, eu vou ser obrigada calar a sua boca com o peso da minha mão — respondi firme. — Tão baixa — falou com desdém. — Baixa? Você que está na minha casa me xingando, por causa do próprio marido. Se está com medo de ser trocada ou descartada, não é comigo que você tem que falar. Mas sinceramente, Vivian? Qualquer homem em sã consciência meteria o pé na bunda de uma mulher diabólica como você. — Eu só vim para avisar que eu faço da sua vida um inferno se atrapalhar o meu
casamento. — Querida — imitei o tom que ela usou antes —, eu não estou aqui para estragar casamento nenhum. Não percebe que o seu marido tem asco de você? Ele sente mais nojo do que eu sinto de você. Não cansa de ser mal amada? Que nível de rebaixamento, Vivian. Abri a porta novamente. — Ele me ama sim e não é pouco. Só temos nossas diferenças como todo casal. — Se está dizendo... — E ao contrário do que eu tenho certeza que você pensa, temos uma vida sexual ativa e muito boa. — Vivian? — indaguei e dei risada, ela necessitava afirmar essas coisas para si mesma —. Por gentileza, não quero sua energia contaminando a minha casa. — Não vou perder o Valentim. — A gente só perde aquilo que tem. Ela levantou a mão esquerda para me mostrar a aliança dourada e um anel brilhante de noivado. — Significa muita coisa mesmo, com certeza — ironizei. — E se for preciso, não te deixarei em paz. — Tenho cara de medrosa? A empurrei para fora com um pouco de brutalidade, ela ia falar mais alguma coisa mas eu fechei a porta. — Da próxima vez que fizer isso eu vou chamar a polícia. Invasão é crime — ameacei alto.
13 Valentim Del Torre
E
— la é uma louca, foi dentro da minha casa me xingar. Totalmente sem senso do ridículo. Meu Deus, Valentim! Como conseguiu casar com uma mulher tão egocêntrica, impiedosa, insensível e magrela daquele jeito? Porque ela é seca, parece que se alimenta só de mato — ela andava de um lado para o outro dentro do meu consultório no hospital, revoltada e irada com o fato de Vivian ter entrado em seu apartamento na noite anterior —. Sério, não é possível. Não consigo engolir aquela carinha cínica dela, ela se faz viu? Se faz de santa perto de você, eu tenho certeza. Eu estava como um perfeito tonto a escutando falar e colocar toda a raiva para fora. Mesmo se eu não quisesse, o meu sorriso tinha tomado vida própria e não saía da minha boca. Continuei admirando-a até que ela se cansou e expirou com força a respiração. — Por que está sorrindo? Não percebeu que estou enfurecida? Puta da vida! — Estou apaixonado e excitado. Os olhos grandes se destacaram ainda mais em seu rosto delicado, ela parecia ter ficado sem resposta. — Cuidado, posso descontar minha irritação em você! — Eu adoraria — provoquei. Ela virou os olhos e se aproximou. — Preste atenção! Oriente a sua mulher... — Ex — corrigi. — Ainda não é ex — contrariou toda atrevida —. Ponha ela no devido lugar, porque não tenho muita paciência. — Deixa comigo, senhorita. Vou amansá-la — assegurei. — Amansar do jeito que eu tô pensando? — incrédula, ela ergueu a sobrancelha —. Como consegue transar com a Vivian? — questionou baixo, como se ouvir isso fosse corroer a nossa audição. — Não estou falando nesse sentido, bailarina. — Acho bom — fechou a cara.
— Acha bom? Sente ciúme, é? — importunei. — Não! — ela hesitou antes de falar —. Sinto nojo dela! — Aham. — Me poupe, Valentim. Ela abriu a porta branca da minha sala e me esperou para sair atrás. — O pessoal da instituição está chegando — olhou em seu relógio pequeno no pulso. — Primeira vez que autorizo a entrada de animais no hospital — contei e fui contemplado com um sorriso maravilhoso. Mariana foi de encontro às crianças, e eu assinar alguns termos de responsabilidades da ONG. — Dr. Del Torre — a recepcionista me chamou assim que colocou o telefone na base —, o seu irmão pediu a sua presença na sala administrativa. — Ah, ele resolveu aparecer — comentei mais para mim do que para a mulher na minha frente —. Retorne e diga que logo estou lá. Ela acatou a ordem. Caminhei pelos corredores, vendo os enfermeiros circulando e empurrando macas ou cadeiras de rodas. Na maioria das vezes os funcionários estavam apressados para resolver as emergências dos pacientes. Phillip e Álvaro me cumprimentaram com acenos antes de eu entrar na ampla sala de recreação. As vozes infantis e risadas evidenciavam a alegria do ambiente. Tinham dois cachorros da raça Golden Retriever fazendo a felicidade da minha trupe de carecas. Os cães estavam uniformizados e eram guiados de um leito para o outro, por dois adestradores. Mariana e Alba estavam abaixadas na altura da fêmea, e ambas compartilhavam uma empolgação ímpar. A minha pequena paciente passava as mãos nos pelos compridos e bem cuidados, e ria alto ao ver a cadela abanar o rabo. Cumprimentei os homens que acompanhavam a visita dos caninos, conversei brevemente com eles e depois me aproximei de Mariana. Abaixei-me com elas e mexi na pelagem macia e higienizada. — Ela não é linda, Tio Valentim? Olha o rabo dela, é grandão! — o sorriso de Alba ia de uma orelha até a outra. — Ela é! — olhei para Mariana e sorrimos em sincronia. A bailarina estava com os olhos cheios d'água, mas tratou de secá-las antes que molhassem sua pele.
— Obrigada — movimentou a boca sem sonido algum. Eu é que tinha muito para agradecê-la. Uns coleguinhas de Alba juntaram-se para curtirem também. Beijei a testa de Mariana em um ato impensado e me levantei. Ela continuou me olhando sem mudar a expressão. Solicitei o deslocamento da Martha para a recreação, porque queria que ela aproveitasse a visita também. Mariana com certeza gostaria de um momento como esse ao lado da mãe. Encarreguei os enfermeiros e finalmente fui para o departamento administrativo do hospital. A porta do escritório de Saulo estava semiaberta, e quando entrei tive que esperá-lo encerrar uma ligação no telefone. Sentei na poltrona e analisei uns papéis espalhados em completa desordem sobre a mesa. — Resolveu aparecer — disse assim que notei que ele havia desligado, mas continuei averiguando uma folha em minhas mãos. — Faz parte trabalhar de vez em quando — respondeu sossegado. Quando terminei de ler o comprovante, a preocupação estava impressa na minha cara. Olhei para o meu irmão e franzi a testa interrogando-o em silêncio. — Eu te avisei que faria. — E eu disse que não tinha o meu consentimento. — Eu sou o chefe do setor financeiro — falou totalmente petulante. — E eu sou o seu chefe — engrossei —. Você não tinha o direito. — Claro que tinha, tanto é que fiz. — 40% de juros mensais, Saulo? Isso não tem coesão! — fiquei em pé e joguei as folhas novamente na mesa. — Já começaram a realizar a operação de cobrança dos doentes endividados. Nós precisamos lucrar, precisamos que seja justo para os dois lados. — É justo. Porra, Saulo! — esbravejei —. Você tem o seu Senhor salário, benefícios e mais as bonificações que acontecem quase todo mês. Por que quer tirar o coro de pessoas que não podem pagar? — Porque se elas não podem pagar, simplesmente não deveriam estar aqui. Não enxerga? O hospital também faz parte do sistema de capital. Agindo rigorosamente você vai ter muito mais. Seja razoável e pensa comigo, Valentim, eu e você não sabemos quem são os devedores, não é nada pessoal, só estou sendo profissional. — Você perguntou se eu quero ter muito mais? Não quero! Ganho muito bem,
estou muito satisfeito. E não, não está sendo profissional. Está sendo frio e calculista. — Claro, você é o diretor e sua remuneração tem toda a somatória de plantões e cirurgias que auxilia. Não seja egoísta, Doutor — proferiu com sarcasmo enquanto reunia as folhas espalhadas. — Sabe por que o nosso pai não te responsabilizou por tudo isso aqui? — a provocação o fez me encarar irritado —. Porque você o afundaria! Sua ganância acabaria com o hospital. — Você sabe que foi porque não escolhi medicina. — Não precisa ser médico para dirigir um hospital. — Mas é necessário não ser um filho bastardo — a frase saiu carregada de rancor. Discordei com a cabeça e concluí: — É necessário ter empatia, e esse sentimento você desconhece. Escutei o beep do meu aparelho identificador no bolso do jaleco e caminhei para a porta. — Última coisa, gênio — parei e virei em sua direção —, essa sua cobiça só nos fará perder pacientes. Daria um jeito de reverter a situação, mesmo sabendo que não resolveria da noite para o dia. Eu ressarciria todos esses juros, se essa extorsão fosse mesmo realizada antes de eu conseguir solucionar. Fui para o quarto indicado pelo beep e tive que ocultar todo o descontentamento que Saulo me causou, para contar aos pais que o filho deles realizaria a última cessão de quimioterapia. Atualizei o prontuário e depois fui para o meu consultório. Jurei que continuaria furioso com o meu bondoso irmão, mas de repente lembrei da cortina de cabelos dourados, da comoção nítida nos azuis cintilantes e em seus dentes perfeitos que junto aos seus lábios, formavam em intensidades divinas, o rosto mais belo e angelical que eu já vi. Resolvi fazer uma surpresa. Mariana D'Ávila — Eu disse que esse negócio de não avisar com antecedência não daria certo, agora não venha me culpar. — Que pessoa com vinte e seis anos não tem um passaporte? — interrogou
descrente. — Eu. — Não conseguirei adiar essa viagem. — E não precisa, Saulo. São reuniões como as outras que fui, não tenho muita utilidade. — Não é para ter mesmo, mas é sua obrigação me acompanhar. — Procura uma prostituta com passaporte, ou por lá mesmo — desaforei. Saulo me olhou, me olhou e respirou profundamente. — Como é difícil te suportar. — Dizem que a beleza não compensa mesmo — dei os ombros. — Com quem você pensa que está falando? Não acha que está abusando? — me puxou pelos pés, e eu que estava encostada na cabeceira acabei sendo arrastada pelo colchão. Ele se posicionou por cima de mim e me esforcei para ignorar o perigo constante que seus olhos demonstravam. Ainda estávamos nus e um pouco suados. — Estou só de TPM, respeite esse período, não fico muito simpática. — Vou ter que te levar na médica pelos cabelos? Você não foi na consulta. — Eu não quero transar sem preservativo, Saulo — reforcei. — Você não tem que querer nada — seus dentes morderam meu lábio inferior puxando-o dolorosamente. — Está me machucando — disse com a boca ainda presa nos dentes dele. Sua reação foi fechar ainda mais a arcada dentária fazendo-me sentir uma dor ardente no inferior do meu lábio. Ele se afastou com um sorriso e eu passei meu indicador no local. — Seu louco! — sujou meu dedo de sangue. Levantei-me da cama e fui para o banheiro conferir. Ele veio atrás e me agarrou —. Sai, Saulo! — Impossível explicar o desejo e o prazer que eu sinto em te ferir. — Me larga, estou falando sério! — desvencilhei seus braços do meu corpo quando senti uma mordida na minha escápula, e entrei no banheiro. Liguei o chuveiro naquela tentativa vã de limpar e me livrar da sensação de impureza presente em meu corpo. Mas Saulo interrompeu quando também entrou no box e tomou minha boca, emaranhando os fios dos meus cabelos. — Voltarei no final de semana. Domingo sem falta você me acompanhará em um evento.
Ditou enquanto passava a toalha nas próprias costas, e eu concordei deslizando o pente nas minhas pontas. — Não infrinja nenhuma regra estipulada. Acatei o que ele disse, embora não fosse obedecer suas ordens insanas. Primeiro, fui até o antigo apartamento para ver Carlie. Pedimos delivery de hot dogs e colocamos um filme, mas minha supercomparsa apagou na primeira cena. Assisti até a metade mas não estava muito interessada. Já que Valentim passeava sem anuência alguma pela minha cabeça. Fazia morada sem sequer pedir licença. Ri sozinha ao lembrar da manhã no consultório, em que descontei toda a minha frustração sobre a esposa — megera, víbora e sem coração — dele. E como uma comunicação telepática o meu celular começou a tocar e eu senti que era ele. — Bailarina, me concede a honra de te levar para a minha casa? — perguntou sem eu ter falado nada. — Primeiro dia e já quer me levar para a sua casa? Você não tem vergonha? — brinquei. — Não tenho muita vergonha, na verdade. — Percebi. — Estou esperando a resposta aqui embaixo. — Como sabe que estou no apartamento? — Carlie falou para Álvaro e... — Vocês são piores que mulher! Ele deu risada. — Estou descendo — avisei —. Espera só eu trocar de roupa. — Não se preocupa com o frio, minha casa é quente. E eu também. — Pelo amor de Deus, que péssimo Valentim! — recriminei e ele gargalhou deliciosamente. Desliguei e me troquei rapidamente. Coloquei uma calça jeans clara, botas pretas de saltos e meu querido sobretudo da mesma cor. Passei só um corretivo nas olheiras, e rímel. Devido ao frio noturno de Seattle, minhas bochechas ficavam bem rosadas como um blush natural, e minha boca avermelhada. Desobedecendo mais uma regra do idiota, eu entrei no carro de Valentim. E droga! O cheiro dele espalhava-se bem concentrado com a ajuda do ar quente ligado.
— Espero que esteja com fome — uma mão estava no volante e o outro braço no apoio entre os nossos bancos. — Você deve achar que eu sou uma esfomeada, vive querendo me alimentar. — Eu sei que não come direito — ele me olhou. Alternei minha atenção para o seu braço forte e com veias grossas, em sequência para a mão esquerda na direção, reparei também no relógio aparentemente caríssimo e depois em seus dedos longos que constituía uma mão grande e muito máscula. Precisei dar um zoom imaginário para enxergar com clareza que seu anelar estava vago, sem a aliança. — Mariana — escutei sua voz distante, mesmo que estivesse bem ao meu lado. Só então ele sacou que eu estava observando-o. — Te atrai me ver dirigir? — Não — menti descaradamente. Ouvi sua gargalhada ocupar o interior do carro, e ribombar sem dó no meu íntimo. — Voltando ao que eu estava falando enquanto a senhorita me consumia com os olhos...— se divertiu, sem tirar o foco da avenida —, fiz um jantar completo, com direito a entrada, prato principal e sobremesa. — Você sabe cozinhar? —Tem sorte que o acompanhamento da sua pizza foi você, porque sinceramente... Dei um tapa no ombro dele. — Sou ótima na cozinha — simulei indignação. — Você acredita no que está dizendo, Mariana? — fingiu seriedade. Rimos e seguimos harmonicamente até chagarmos no bairro arborizado em que ele residia. O lugar era engenhado com diversas mansões, feitas de tijolinhos, madeira, concreto, e vários outros tipos. Quando ele estacionou, me deparei com uma casa que ocupava no mínimo três terrenos. A garagem cabia uns cinco carros, o jardim era lindo e iluminado por leds na grama e nos pinheiros. A porta alta de madeira escura tinha um estilo antigo, e ornava perfeitamente com a parte de dentro. A decoração da sala mesclava entre o estilo retrô e o vintage, com mobílias mais baixas e alongadas, sofá comprido com almofadas, poltronas redondas e um tapete de pele sintética largo complementava o centro desocupado do ambiente.
A cor dos móveis variavam entre as tonalidades de marrom que a madeira oferecia, em contraste com o sofá bege espaçoso. Na lareira, o fogo queimava uma pirâmide de toras secas oferecendo calor, e as fagulhas da brasa crepitavam causando um som agradável e conchegado. — O cheiro está bom — Valentim retomou minha atenção. — Está mesmo — sorri voltando a olhá-lo —. Aqui dentro está tão quentinho — comentei, terminando de desabotoar meu sobretudo. Ele se aproximou para me ajudar e passou o casaco vagarosamente pelos meus braços, pendurou no gancho ao lado da porta e caminhou pela sala, eu fui atrás. Vi a sala de estar, a copa e depois a cozinha. Ele abriu o forno, conferiu e fechou. — Dá tempo antes de esfriar — disse baixo para si mesmo. — Tempo do que? — Da surpresa. — Qual surpresa? O que está aprontando? — questionei desconfiada, estreitando meu olhar para ele. — Vá até a sala e me espere lá — pediu. — Valentim, eu tenho medo de surpresas — não era bem medo, era... apreensão. Senti sua carícia no meu rosto e ganhei mais um beijo na testa. Estava gostando da ideia de sentir a boca dele duas vezes no mesmo dia. Fiz o que ele pediu e sentei-me no tapete em frente à lareira, me senti a vontade para tirar as botas e deixá-las no cantinho do sofá. Fiquei triplamente mais ansiosa quando ele voltou com uma caixa grande azul, com um laço vermelho na tampa. Ajoelhei-me quando ele pousou o presente no tapete e fiquei receosa de abrir, mais ainda ao perceber que o "presente" se mexia. — Valentim, o que você colocou aqui dentro? — nada passava na minha cabeça, só fiquei com medo de verdade. — Deixa de bobagem e abra. Reparei que na parte superior tinha dois buracos redondos para a entrada de ar, e no mesmo instante que ouvi o ganido, eu destampei e fui surpreendida com um cãozinho. — Ahhhhhh, meu Deus! — tirei o bichinho de dentro da caixa e olhei para Valentim. — Arriscada a ideia, né? — ele riu.
A filhote de Husky Siberiano era branca com manchas pretas, as íris azuis a deixava ainda mais linda. — Ela ficou o tempo todo nessa caixa? — me preocupei. — Coloquei agora que a peguei. Estava na área gourmet. Nem me toquei, mas dei zero atenção para Valentim. Fiquei conversando com a mini lobinha no meu colo, que hora me lambia, hora tentava me morder com seus pequenos dentinhos pontiagudos, e também chorava. Estava um pouco deslocada, mas se acalmou no colo quando dei o meu chaveiro para ela brincar. — Ela parece um lobinho — comentei com aquela vozinha que deveria ser proibida, usada com bebês e animais. O médico fez carinho na orelhinha da filhote, e ela danou a mordê-lo. — Eu vi o seu afeto com os cães hoje no hospital. E achei os olhos dela parecidos com os seus. — A Sol vai amar — pensei na tagarelinha. — Por que você é assim, Mariana? Estou aqui pensando em como vamos adaptála — ele olha para a Husky —, e você está ocupada lembrando da minha sobrinha. — Isso é ruim? — Isso me faz te querer cada vez mais. Acabei sorrindo, mas eu não podia ceder. Levantei e corri um pouco, chamando a cadelinha que veio atrás tentando puxar a barra da minha calça. — Ela pode se chamar Lua — peguei-a do chão e analisei seus detalhes. — A Sol vai se apaixonar. Valentim me deixou sozinha na sala para servir o nosso jantar. Ele perguntou se poderíamos comer na mesinha pequena da sala, sentados no chão para aproveitarmos do aquecimento da lareira. E claro, eu adorei a ideia. A entrada foi suflê de queijo. Em seguida experimentei o molho com champignon que "só" ele fazia. — Você comprou tudo isso e está dizendo que fez, larga de ser mentiroso. Nem tem louça na cozinha — sondei. — Porque eu sou um homem organizado e lavei. — Me engana... Sabia que era comida caseira mesmo, já que as bandejas estavam no forno, e não
duvidava dos seus dotes culinários. Só ficava pasma com como um homem podia ser tão prendado. Um bom pai, médico e muito carinhoso com os pacientes, bom tio, gostava de animais, organizado e além de tudo com talento gastronômico. Não podia ser possível. Isso sem falar em suas características físicas, e do apetite sexual que despertava em mim simplesmente por estar perto dele. — E o prato principal... — fez mistério, trazendo dois pratos para nós. Ele deixou a refeição sobre a mesinha, era carne assada com mostarda, coberta de batatas e cebolas. — Eu vou embora rolando daqui, que cheiro delicioso! — peguei os talheres, mas Valentim balançou a cabeça. — Deixa que eu corto — e foi o que, impecavelmente, ele fez. O primeiro pedaço da carne eu ganhei na boca. Admito que as borboletinhas batiam asas sem parar na minha barriga. Sentia um misto de desejo ardente, com vontade de abraçá-lo e contemplar o silêncio nos braços dele. Mas o medo só me deixava em paz por no máximo dois minutos, toda hora ele vinha para avisar que o que eu estava fazendo não era certo. Também tinha o autoquestionamento sobre o que eu poderia proporcionar a um homem tão encantador. E por fim a dúvida esmagadora sobre ele não lembrar definitivamente do fatídico dia em que o defendi do assalto e o levei para um hotel. Podia ter certeza de que quando ele me olhava por tempo demais, eu estava sendo descoberta, como se os meus olhos realmente me entregassem, ou os fizesse rememorar, mas as conversas partiam para outros tópicos e eu esquecia. Lua só parou de morder a barra da minha calça e a de Valentim, quando a sua energia descarregou e ela pifou. Dormiu com a cabeça apoiada no pé dele, tendo alguns espasmos por estar sonhando. Nós entramos em um acordo, já que eu morava em um lugar pequeno, Valentim ficaria com ela quando crescesse, mas óbvio que eu continuaria vendo-a sempre, ou arrumaria um jeito de adaptá-la comigo. Já estava apegada na bichinha. Deitamos no tapete após terminarmos a sobremesa, e ele me puxou para o seu peito enquanto massageava a minha cabeça de forma relaxante. Apoiei o cotovelo no chão e minha cabeça na minha mão, ele ficou na mesma posição de lado para me olhar e falar:
— O seu namorado não diz nada sobre você ocupar até os seus finais de semana? — Não é meu namorado. É um relacionamento... diferente — desviei meu olhar sem saber me explicar direito —. Ele não sabe, é muito ocupado. — Não gostaria de estar na pele dele, aliás... Em certas partes sim. Mas não aturaria minha namorada saindo com um cara que a deseja. — Suponho que você seja o cara que deseja — joguei, desfrutando do prazer que era ouvir isso. — Já que ele vive ocupado, e antes que minha irmã me mate por não ter te comunicado o quanto antes... — Comunicado o que? — Charlotte fará aniversário no próximo domingo, será uma comemoração simples na casa da nossa mãe. E lógico, ela quer que você compareça. Logo no domingo? Arrrgh! — Eu passo para dar um abraço nela e levar um presente. — Se você não for, terá que se ver com ela e não comigo — ameaçou brincando. Eu não poderia ir, mas nisso eu pensaria depois. Minha mente estava atulhada com os acontecimentos. Valentim estava morando sozinho, eu conheci a casa dele, ganhei a Lua de presente, havia sido convidada para o aniversário da irmã, com a presença da mãe deles e possivelmente outros familiares importantes. De toda forma, era um laço significativo que estávamos criando. — Mariana? Ele interrompeu o silêncio duradouro que se instalou. — Estou acordada. — Durma aqui! — seus olhos faiscavam quando seu peito veio sobre mim para ver e ouvir a minha resposta. Apenas assenti com a cabeça impossibilitada de falar —. Por que se esquiva quando me aproximo? Minha respiração errou um compasso e se tornou ofegante, engoli minha saliva e olhei para o lado, pensando inutilmente em uma maneira de sair debaixo dele. Mais um centímetro e eu não aguentaria. — Os seus olhos, Valentim — admiti —, sua boca — precisei umedecer a minha —, o seu cheiro... — eu já estava extasiada olhando para cada parte que citei. Ele me beijou.
O sabor natural da boca dele se perdeu no vinho adocicado que tomamos, sua língua estava um pouco gelada por conta da bebida. Ele encaixou uma perna entre as minhas, e pressionou meus seios com o peitoral. A intensidade era avassaladora, e eu podia jurar que o nosso calor faria nossos corpos entrarem em combustão. Sua mão livre tocou a minha pele por baixo do tecido da blusa, conhecendo a curva da minha cintura, e depois desceu firmemente pela lateral da minha coxa. Valentim ergueu a minha perna fazendo-a enredar o seu quadril. Nossos lábios não se distanciavam, nossas línguas brigavam para ver qual demonstrava mais pulsão sexual, em um ritmo lento e libidinoso. Gemi quando sua boca percorreu pelo meu pescoço com beijos úmidos e suaves, a língua também contribuía para que o meu arrepio se tornasse cada vez mais difícil de suportar. Meu corpo parecia se contorcer e dançar involuntariamente. Os nossos quadris se atritaram e eu pude sentir seu membro duro como uma pedra. Enlouqueci. Acabei com a tortura em meu pescoço quando agarrei em seus fios negros, e retomei o beijo avidamente. Acontece que ele tinha acabado de desvendar um dos meus pontos fracos e não me deixaria escapar. Com força, emaranhou meus fios próximos a nuca e repuxou, fazendo-me oferecer novamente o meu pescoço. Primeiro roçou a barba curta e macia na minha pele, depois mordiscou e deixou um beijo deleitoso em meu queixo. Achei que ele fosse findar minhas estruturas voltando ao meu pescoço, mas ele não o fez. Inesperadamente recebi o terceiro beijo na testa, e então olhou para os meus olhos. — Vai acontecer, mas quando você for só minha. Descobri que Valentim possuía diversas formas de me desestruturar.
14 Mariana D'Ávila
Era raro a garoa dar uma trégua para a cidade chuvosa, principalmente no final do ano. Mas naquela manhã os raios solares refletiam no meu edredom, e a fresta da cortina permitia uma linha de luz iluminar a minha bochecha. Se o sol resgata pessoas da depressão, por que não me ajudaria a acordar após somente uma hora de sono? Me sentei na cama sorrindo, acreditando que teria um belo dia pela frente. Meu bom humor estava tão elevado que eu poderia irritar quem estivesse por perto. — Bom dia melhor amiga do mundo inteirinho — deixei todo o meu peso sobre Carlie, que ainda estava adormecida ao meu lado no colchão. Ela tampou o rosto com o travesseiro, mas eu o tirei, enchi seu rosto de beijos até fazê-la desistir e se levantar. Coloquei uma playlist para tocar na minha caixinha de som portátil, e fui até a micro cozinha do flat. Dançando, preparei panquecas para o nosso café da manhã. A música de Regina Spektor dizia no fundo: I never loved nobody fully Always one foot on the ground And by protecting my heart truly I got lost In the sounds Eu nunca amei ninguém completamente Sempre foi com um pé no chão E por proteger de verdade meu coração Eu me perdi Nesses sons Agitada, balançava meu quadril e cantarolava na cadência da canção. O cheiro de Valentim ainda estava impregnado na camisa que ele havia emprestado para
mim. — Que música triste! — Carlie apareceu e sentou em frente ao balcão, tentando prender os cachos revoltos. Eu sabia que era triste, mas o ritmo era... irônico. Continuei com meu cover, cantando com a colher na mão: I hear in my mind All these voices I hear in my mind All these words I hear in my mind All this music And it breaks my heart And it breaks my heart And it breaks my ha-ah-ah, ah-ah-ah... Eu ouço na minha mente Todas essas vozes Eu ouço na minha mente Todas essas palavras Eu ouço na minha mente Toda essa música E isso parte meu coração Coloquei a opção de repetir o som mas Carlie apertou o botão para pausar. — Me diga de uma vez! Vocês transaram? Teimosamente, dei play na música. Voltei a mexer no quadril e desliguei o fogo das panquecas, fazendo um mistério para a minha amiga. — Por que está com a camisa dele? — ela estava ficando brava e então gritou —: Vou guardar meus segredos também. Imediatamente abaixei o volume e deixei o prato no balcão. Sentei-me na banqueta de frente para ela, servi suco em um copo e café para mim. — Você e Álvaro... De novo? Espera aí, você não foi trabalhar ontem? Minha
melhor amiga é uma mentirosa — falei indignada e boquiaberta. — Eu confirmei por um acaso? — Nem precisa. Está na sua cara. — Pauline está uma fera comigo, eu não avisei que não iria. — Ela é uma chefe flexível, te entenderá. — O que importa agora é você acabar com esse mistério. Transaram? Demorei para respondê-la, não porque queria deixá-la mais curiosa, mas porque queria responder que sim. — Não — desanimei quase que imperceptivelmente —. Mas estamos nos dando bem. — Por que está com a camisa dele? — Tomamos chuva essa madrugada, eu fiquei encharcada e Valentim me emprestou uma roupa. — E você quis dormir sentindo o perfume dele — ela completou. Eu olhei para o meu copo de café e mexi o líquido com a pequena colher enquanto dezenas de lembranças passavam como um filme diante dos meus olhos. — Eu gosto dele — minha boca sorriu sem meu comando —. Valentim é um homem tão maduro, protetor, carinhoso. Sabe? Ele se preocupa comigo, respeita o meu espaço quando enxerga os limites. Ele é aquele cara que faz churrasco com a família no final de semana... E que joga bola com as crianças, deixa uma menina fazer maquiagem ou se preciso brinca de boneca. Você me entende? — olhei para minha amiga quando concluí o raciocínio. Os olhos grandes e negros, contornados por cílios compridíssimos, estavam concentrados em mim, me analisando. Aproveitei para analisá-los também. — Você sente medo por mim, não é? — questionei, e foi a vez dela abaixar a cabeça. — Não sei até que ponto, Mari. Você também é essa pessoa que gostaria de reunião em família aos finais de semana, que maquiaria ou jogaria bola com seus filhos. É generosa, respeitosa e protetora. Mas tem uma vivência que ele não tem, e por isso pode compreender perfeitamente o que te levou a usufruir do seu corpo para sobreviver. Você sabe os seus motivos, mas Valentim sendo esse homem que você descreveu... — Não seria capaz de entender a minha versão — finalizei. — Eu queria muito dizer o contrário.
Não pude controlar a raiva que senti de Carlie naquele momento, era errado e eu sei disso, mas a verdade nua e crua me entristeceu e me deixou irritada. Minha madrugada tinha sido tão boa, com Valentim e a nossa cachorrinha. Tomamos vinho, fizemos marshmallow e assistimos Vikings. Isso depois de termos passado a manhã toda na casa da irmã dele, ido embora tarde do hospital, que foi a hora em que tomamos chuva e ele me emprestou a camisa que eu não queria mais devolver. Entrei pro banho e toda a animação já havia se dissipado, e piorou ainda mais quando Carlie entrou no banheiro e questionou: — Você não vai mesmo no aniversário de Charlotte? — Saulo está chegando, temos um evento para ir. — Álvaro me convenceu, mas ficarei só um pouco. Entro mais cedo hoje na Le Luxe. — O presente da Charlotte está no meu guarda-roupas — avisei. Comprei uma jaqueta branca jeans e uma pulseira de prata com um berloque do sol, simbolizando a tagarelinha. O vestido comprado durante a semana era um de couro preto, totalmente justo, com bojo meia taça e de alcinhas finas. Para me encobrir do frio, criei vergonha na cara e escolhi um novo sobretudo preto, na mesma loja. Pasmem, Saulo conferia os meus gastos para saber se eu realmente gastava com vestes caras. E eu achava um absurdo, chorava cada dólar desperdiçado. Comecei a me arrumar ao anoitecer. Passei base, corretivo, contorno, iluminador, lápis preto e uma sombra puxadinha nas laterais dos olhos, a boca eu deixei livre de batom, na realidade não curtia muito cores fortes, de vez em quando passava uma tonalidade da cor natural dos meus lábios, mas preferia sem nada. Saí do banheiro furiosa, fazendo contorcionismo e todas as posições para fechar o zíper do vestido nas minhas costas. Levei um susto quando vi Saulo encostado na porta de entrada me observando com um sorrisinho divertido. — Está difícil? — Não, é a TPM que me deixa puta até com um vestido. — Puta você já é — corrigiu quando se aproximou de mim. — É uma terapia rebaixar os outros? — ergui a sobrancelha assim que ele terminou de fechar para mim. — Você é insolente, D'Ávila — segurou no meu rosto com a costumeira força e selou minha boca —. Dê uma volta — ordenou.
Calcei minhas sandálias pretas abertas e girei devagar no próprio eixo. — Ótima escolha de vestido. — Obrigada. — Sentiu minha falta? — perguntou. Fui pega de surpresa, e como achei que ele estava zombando de mim como sempre fazia, eu comecei a rir. — Ô! Senti muito a sua falta — ironizei. Saulo continuou sério e então eu parei de rir. Óbvio que eu não sentia a falta dele, ainda mais tendo Valentim tão perto de mim. Sequer tinha lembrado de Saulo durante os dias em que ele ficou fora. Lua veio correndo da sacada, e começou a pedir colo. Pulando na minha perna e depois mordendo o sapato de Saulo. Ele me olhou totalmente desentendido. — O que é isso Mariana? — Uma cachorrinha. Colocou as mãos por dentro do terno, encaixando-as no quadril. Já eu, me abaixei para pegar a bichinha do chão. — Ela é linda, não é? — sorri e olhei para ele. — Eu não te autorizei a colocar um cachorro aqui dentro. E da onde você tirou? Quem te deu? — Minha amiga — menti —. Deixa de ser insensível, olha como ela é fofa — fiz carinho nos pelinhos macios e Lua agradeceu me dando uma lambida no queixo. — Esse animal vai ficar enorme e você tem até amanhã para desaparecer com ela. — Mas Saulo... E a desavença começou. Pensamentos totalmente diferentes, até que ele explodiu e não era mais viável conversar, não tinha finalidade discutir com um homem tão egoísta. Ele pegou o meu sobretudo novo que estava pendurado na cadeira e me entregou. — Não é para tirar. — Eu sou como um enfeite, né? — provoquei. — Isso deveria te agradar, pelo menos não é uma mulher feia. Virei os olhos e segui suas mãos com o olhar, que fechavam habilidosamente os
botões grandes do casaco longo. — Eu gasto aquele tanto nesse vestido para escondê-lo? — É para mim — seus olhos encontraram os meus e eu só consegui assentir com a cabeça. Descemos o edifício, Saulo segurou a minha mão para passarmos pelo saguão do prédio, abriu as portas para mim e eu o acompanhei até o carro. Eu não sabia muito sobre modelos de carros, mas saí com muitos caras de grana, então logo reconheci que se tratava de um Bentley. — Com o que você trabalha? — perguntei pela primeira vez. Ele abriu a porta para mim e eu entrei, depois que nos acomodamos, Saulo ligou o ar e deu partida. — Sou investidor — resolveu responder depois de minutos. — Isso eu sei — olhei para ele. — O resto não te interessa — disse grosso. Dane-se também! Não me interessava mesmo. Encostei na porta e fiquei em silêncio. Incomodada porque ele sequer ligava uma música ou puxava algum assunto. Eu sei que eu só o acompanhava e não tínhamos nenhum tipo de compromisso, mas de certa forma era uma relação, não digo amorosa nem nada assim, mas não deixava de ser uma relação. Custava conversar ou pelo menos ser educado? Seguimos quilômetros e mais quilômetros de uma rodovia, nos afastando do centro de Seattle. Saulo se identificou no controle de acesso na entrada de um condomínio. — Tem certeza que estou apropriada? — fiquei insegura quando notei o nível do residencial. — É a minha "família" — fez aspas com as mãos —, nada demais. — Vai me apresentar para a sua família? Está de brincadeira? — arregalei os olhos. A sua expressão demonstrava que não era nada importante e que eu não deveria me preocupar. Vai ver não era tão próximo da família, mas foi inevitável não ficar duas vezes mais nervosa. Ele dirigiu em um extenso caminho asfaltado no meio de árvores altíssimas, que balançavam por causa do vento gelado que fazia. Paramos em frente a uma mansão branca do tipo clássica, com toda a parte superior cinza, assim como as janelas.
Um manobrista se ofereceu para estacionar o carro, mas Saulo recusou. Ele deixou na garagem interna e então descemos. Respirei fundo, sendo corroída pela ansiedade. Nunca tinha sido apresentada para os pais de alguém antes. Muitas luzes estavam acesas, um jazz bem suave ressoava lá de dentro, estilo música ambiente de restaurante. Eu segurei no braço dele na tentativa de me aproximar e tentar me acalmar, mas ele me olhou com censura e disse: — Fique atrás de mim. Dei um passo para trás e quis fugir dali. Chegamos nas portas da entrada principal e duas moças nos recepcionaram com taças de champanhe. A sala sofisticada já estava bem movimentada, pessoas sentadas nos sofás compridos e nas poltronas, conversando tranquilamente. Saulo cumprimentou um rapaz, depois outro e outro... E eu continuei atrás dele. Seguimos um corredor e entramos em um salão. Na terceira recepção, a moça tirou meu sobretudo e colocou na acomodação de pertences. Eu olhei para Saulo e ele balançou a cabeça sem dizer nada. Dei o primeiro passo, o segundo, e no terceiro empaquei. Vi o Álvaro no fundo do salão, ao lado a minha amiga Carlie. Meus olhos percorreram por todo o ambiente, encontrei Charlotte conversando animadamente com duas moças, ao lado Erick com Sol no colo, e por fim Vivian ao lado de Eleonora. — Ande, D'Ávila — Saulo ordenou baixo no meu ouvido e eu permaneci travada. Sol abriu um sorriso enorme quando me viu, pediu para descer do colo do pai e veio saltitante com seu vestidinho florido. — Essa é a minha sobrinha Sol — Saulo ia me apresentar, mas a própria fez questão de disparar a falar — Eu sabia que você chegaria, Tia Ana — abraçou minhas pernas. Tentei me mover mas só consegui colocar a mão nos cabelos da sobrinha do Valentim. Atônita, imóvel. — Todo mundo estava bravo porque Tia Carlie disse que você não ia aparecer, mas eu disse pra mamãe, pro papai e pro Tio Valentim que você apareceria sim — ela olhou para cima, para mim e para Saulo —. Oi Tio Saulo — seu sorriso diminuiu, ficou um pouco receoso —. Você e a Tia Mariana se conhecem? Sabia que ela é minha professora de balé? É a melhor que existe, ela também é amiga da mamãe e do papai. Fechei os olhos contando até um milhão e rezando simultaneamente.
— É mesmo Sol? Interessante — ele assentiu com a cabeça para a criança. O clima ficou estranho. — Vou avisar o Tio Valentim que você chegou. — Não, Sol... — antes de eu conseguir falar a menina já havia saído às pressas. — Você? — Saulo me olhou totalmente interrogativo. — Meeenina! Que bom que você veio — Charlotte interrompeu, me abraçou apertado, me deu um beijo em uma bochecha depois na outra —. Carlie disse que não conseguiria vir — se afastou um pouco para me analisar —. Como você é gostosa, né? Olha só esse vestido. Ela olhou para o homem ao meu lado e tornou a me fitar, ficou perplexa. — Saulo, que bom que veio — sorriu —. Não sabia que vocês se conheciam. Vocês estão juntos? Quer dizer, porque chegaram juntos... — Sempre querendo saber demais, Charlotte. — Curiosidade, seu ignorante — ela deu um soquinho no ombro dele —. Não liga viu, Mari? Meu irmão é um ogro. Irmão? — Eu amei a jaqueta e o berloque, muito obrigada — Charlotte sorriu novamente, e ainda sem jeito disse —: Fiquem à vontade. Quando ela se distanciou, vi Carlie se aproximar com o semblante totalmente perdido, assim como o meu. Mas antes da minha amiga chegar, Saulo foi mais rápido e parou na minha frente. Sua cara não era das melhores, ele umedeceu a boca e me encarou por longos segundos. — Vai continuar muda? — Vocês são irmãos? Como eu não sabia disso? Qual é o seu sobrenome? — Graham. Somos irmãos por parte de pai. Da onde os conhece? A melodia leve da bossa nova com jazz no piano foi apartada, as pessoas, as conversas, tudo ficou embaçado e distante demais. Até mesmo a imagem de Saulo na minha frente foi ficando turva. — Eu preciso de um pouco de água — falei. — Não. Você precisa me explicar — contrariou bravo. — Não tenho o que explicar, só preciso de um copo de água — olhei para os olhos dele e andei para sair dali. Ele segurou meu braço e por trás de mim, sussurrou nervoso: — Eu disse para me explicar.
Fechei meus olhos e respirei profundamente, quando os abri, vi Valentim do outro lado do salão, com a afilhada em seu colo. O médico me olhou sem entender nada, franziu as sobrancelhas e o cenho quando viu Saulo atrás de mim, me segurando. Ele parecia não ter nem pensado, deixou Sol com Erick e encurtou a distância entre nós. Vivian reparou que o marido estava se aproximando de mim, então largou a conversa com Eleonora e tentou freá-lo, mas Valentim se desvencilhou. Saulo reparou e questionou ainda mais puto: — Não vai me dizer que o meu irmão era um cliente seu? Se for isso, Mariana, você vai se ver comigo. Neguei com a cabeça. — Nunca tive nada com o seu irmão — olhei para ele e o fiz soltar meu braço —. E não me ameace. — Saulo — nunca tinha visto Valentim tão inexpressivo, impassível. — Dr. Del Torre — Saulo respondeu e eu senti o ar de sarcasmo. — Mariana — permaneceu inabalável quando se dirigiu a mim, mas vi a perturbação em seus olhos. — Como vai, Vivian? — Saulo cumprimentou a megera. — Bem à medida do possível, cunhado. Valentim a repreendeu com uma só olhada. Que merda estava acontecendo?! — Charlotte me disse que vocês se conhecem — Saulo sorriu dissimuladamente. — Se conhecem bem — Vivian também sorriu falsamente. — Minha mãe está no Saint Clair — ressuscitei minha voz —. E como te contei, ela tem câncer — olhei para Saulo —, e por esse motivo conheci o seu irmão — terminei de explicar. — Só por esse motivo não é, querida? — Vivian insinuou —. Mas fico realmente feliz que esteja com alguém, Saulo. Poderia ter encontrado uma mulher melhor, mas pelo menos essazinha vai parar de arrastar asas pro lado do meu marido. — Vivian, você não conhece Mariana e se tiver o mínimo de senso, vai calar a boca e ficar na sua — Valentim falou baixo para ela, mas pude escutar. — Não preciso que me defenda, Valentim — voltei a fitá-lo. Uma avalanche de sentimentos estava prestes a me derrubar. Havia novamente
obstáculos gigantescos entre mim e Valentim, como se todos os que conseguimos destruir ao decorrer dos dias tivessem sido reconstruídos, maiores e mais fortes. Como dois homens tão distintos, com personalidades tão dessemelhantes podiam ser irmãos? Ficamos em silêncio, mas resolvi sair para quem sabe voltar a respirar. Saulo me guiou até a área descoberta do salão, onde algumas pessoas fumavam. — Permaneça aqui, eu vou pedir para um segurança ficar de olho em você. — Aonde você vai? — Curtir a festa. — E eu vou ficar aqui? — Já me fez passar vergonha o suficiente — ele acariciou meu queixo e se aproximou para me beijar. — Saulo, é verdade, não tenho nada com o seu irmão. Não faz sentido ficar aqui fora sozinha. — Já te disse que calada é melhor? Segurei no braço dele com força quando ameaçou sair. — Você é louco — proferi —. Está frio, deixei meu sobretudo na entrada. — Que eu me lembre, eu disse para você não tirar. Vai passar frio porque me desobedeceu. — Me leva embora então — pedi. — Na hora que eu quiser ir — ele fez carinho na minha bochecha com o polegar —. E mais uma coisa, se eu ver meu irmão se aproximar, você vai aguentar as consequências. — Minha amiga está lá dentro, sua irmã também, posso ficar com elas. Estou realmente com frio. — Mais uma palavra e esqueça o dinheiro. Cruzei meus braços e o vi passar para o interior da casa depois de falar algo com um homem de terno, que estava com as mãos para trás, todo sisudo. Fiquei encostada na parede e só me locomovi quando desocuparam um dos bancos. — Entre se quiser, está garoando — falei para o tal segurança que Saulo comunicou —. Não tem mais ninguém aqui. — A senhorita está bêbada?
— Não. Ele disse isso? — questionei, o homem concordou com a cabeça. — Então por que ele pediu para eu não te deixar sair daqui? Devo me preocupar? — Não, fique tranquilo — sorri para ele —. Você pode me dar um cigarro? — notei uma carteira de cigarros no bolso da calça social. — A senhorita deveria entrar, está sem casaco e essa garoa pode te deixar resfriada. — Obrigada pela gentileza e preocupação — peguei o cigarro que ele me ofereceu e logo depois o isqueiro. — Finalmente te achei, doida — Carlie apareceu na porta de vidro próxima a mim —. Por que tá aqui fora? Tá garoando, não está com frio? Vamos entrar, Charlotte quer falar com você. E eu também. — Não posso e depois nós conversamos sobre isso — traguei sentindo a fumaça da nicotina me relaxar perceptivelmente. — Você bebeu? Por que está tomando chuva, louca? Vamos — ela segurou meu braço —. E larga essa merda — pegou o cigarro da minha mão, jogou no cinzeiro e deu um sorrisinho pro segurança. — Entre com ela, qualquer coisa eu me resolvo com Sr. Saulo — piscou, com cumplicidade. — Você é maluca, seu cabelo está todo úmido — Carlie passou a mão nos meus fios — O que aconteceu? Saulo brigou com você? — Ele me mandou ficar lá fora — confessei. — Ele o que? Ele é doente? Não trouxe um agasalho? Você está gelada. — Eu quero ir embora, Carlie — olhei para a minha amiga, meus olhos já estavam marejados —. Saulo não bate bem da cabeça. — Vamos conversar. Tenha calma — ela passou os polegares embaixo dos meus olhos para secar e corrigir a maquiagem. — Achei vocês — Charlotte chegou com a mão sobre o coração, sutilmente ofegante — Mari, acho que você precisa me contar algumas coisas. — Prometo contar, mas não agora, não hoje. Cadê o seu irmão? — perguntei. — Valentim deu o castelo que a Sol tanto queria, e os dois estão brincando lá na sala. — Não, o Saulo — especifiquei. — Meu Deus, estou tão perdida! — admitiu olhando para mim.
— Ô loira, por que está com o imbecil do Saulo? — Álvaro se aproximou de nós —. Você merece coisa melhor. — Álvaro, não se intromete — Carlie o repreendeu. — Vocês podem me falar aonde ele está? Preciso ir embora — me sentia em uma completa inercia. — Está ocupado — Charlotte indicou o irmão com o queixo. Saulo estava sentado com mais duas mulheres, uma com o cotovelo apoiado sobre a mesa e com os seios bem expostos no decote. Ele cochichou no ouvido, depois segurou em sua nuca e beijou o canto da boca dela. — Não sei há quanto tempo vocês estão juntos, mas não se sinta ofendida. Saulo é assim mesmo, Mari — ela segurou na minha mão —. Vamos subir, quero ter privacidade para conversar com você. — Ele me pediu para esperá-lo — contei. Poderia muito bem ativar o botão da ignorância e mandar Saulo junto com as insanidades dele para o raio que o parta, mas estava tão aflita com toda a situação que mal conseguia raciocinar. Eu, Carlie e Charlotte fomos para outra sala da casa e subimos dois andares de escada. — Desde quando namora com o meu irmão? Você disse ao Valentim que não namorava. — Não namoro, temos um relacionamento. — Um relacionamento que você não sabe nem quem é a família do cara? — Conheço o Saulo há pouco tempo, Charlotte. — Você sabe como Valentim está se sentindo, Mari? — ela me olhou depois de destrancar uma porta. Entramos em um quarto grande, e a acompanhei até a cama de casal. Nós três sentamos. As perguntas de Charlotte ficavam cada vez mais diretas e difíceis de responder, mantive a linha superficial para não me comprometer. Eu definitivamente só queria ir embora para chorar, mas sabia que essa era a atitude mais covarde a ser tomada. Disse a elas que minha cabeça estava explodindo e que eu precisava ficar sozinha. Pedi também que me acobertassem, caso Saulo notasse minha ausência. — O quarto de Valentim é a terceira porta a direita, achei que gostaria de saber — a irmã dele falou sugestivamente.
— Obrigada, Charlotte. — Fique à vontade. Carlie me olhou e eu pude escutar seus conselhos mesmo que em silêncio. Minha amiga me compreendia mais que qualquer outra pessoa no mundo. Durante toda a conversa ela ficou quieta ao meu lado, como um gesto de apoio. Às vezes eu ficava apreensiva por causa da forma em que Saulo falava comigo, mas não era do meu feitio me acanhar. Já tinha lidado com muitos homens, e eu tinha meus limites em relação a humilhações. O que ele pensava? Que podia mandar e desmandar, me deixar no frio, me expor dando em cima de outras na mesma festa, e ainda por cima me ameaçar? Eu acabaria com aquilo.
15 Mariana D'Ávila
Eu encontraria alguma forma de acabar com essa loucura que estava vivendo há algumas semanas. Não era justo que as minhas dificuldades financeiras pudessem custar tanto. Na atual situação não era só o meu corpo que estava em jogo, mas sim a minha sanidade mental. Saulo estava corrompendo inteiramente a minha liberdade, sendo um homem persuasivo, manipulador e sádico. Com certeza, sádico. Levantei-me da cama e decidi ir até o antigo quarto de Valentim. O corredor longo tinha vários quadros pendurados nas paredes, também possuía retratos do rosto de Sol, Charlotte, Valentim, de um senhor e por um fim de Eleonora. Fiquei entretida reparando nos desenhos das telas grandes e compridas. Levei um susto e senti meu corpo inteiro gelar quando a voz de Valentim ocupou o lugar. ― O meu irmão, Mariana? Fechei meus olhos, buscando coragem no mais profundo do meu íntimo para olhá-lo. ― Eu não sabia ― repeti, cansada. ― Tem noção da desordem que está causando? ― seus passos o aproximaram vagarosamente. ― A culpa é toda minha? ― A maior parte ― ele abriu a porta logo atrás de mim e prosseguiu ―. Você se tranca dentro dos problemas e se esconde o tempo inteiro ― entrou no quarto que Charlotte havia me indicado, deixou um espaço para eu passar e disse firmemente ―: Entre. ― Não me dê ordens! ― pedi, exausta de ouvir as pessoas mandando em mim. ― Por favor ― ele corrigiu. Pisei dentro do quarto e Valentim trancou a porta detrás do meu corpo. Olhei ao arredor e reparei brevemente na decoração requintada do cômodo. ― Eu não me tranco dentro dos meus problemas, você sim faz isso há anos. ― Isso por um acaso é uma competição? ― ele virou de frente para mim e eu apenas respirei fundo ―. Eu quero e preciso saber, o que você tem com o Saulo?
― Eu não quero mais falar sobre isso. ― Mas você vai falar ― ficou bem próximo do meu corpo ―. E vai falar agora! ― a sua autoridade consistente ainda era desconhecida por mim. ― O que pensa que está fazendo, Valentim? Você continua com a escrota da sua mulher, ela até veio com você. ― Chega, Mariana! ― falou alto e grosso ―. Não estamos fazendo comparações, você não vê que vai muito além disso? Você sabe da minha vida, e tudo bem, eu sei que você é uma professora de balé, que a sua mãe está doente, mas o que mais? Porra! ― esbravejou, frustrado ―. Eu pedi o divórcio e estou aguardando ansiosamente o processo. Não chamei a Vivian para me acompanhar, minha mãe que convidou por educação ― seus olhos não desgrudaram dos meus ―. Você pode, pelo menos uma vez, encarar o fato de estar errada por se omitir tanto? ― Vai com calma! Você disse que eu sou o motivo concreto para o seu pedido de separação, mas não me use como justificativa como se eu estivesse aqui desfazendo um laço matrimonial maravilhoso. Olha só para aquela mulher, me poupe, Valentim! ― bufei ―. E eu te contei que tinha alguém, só não podia adivinhar que esse alguém era o seu irmão. Impacientemente, Valentim passou ambas as mãos pelo rosto, soltou o ar dos pulmões com força pelas narinas e voltou a me olhar. ― Você não o ama, caralho! E pode não perceber, mas seus olhos falam mais do que você, então eu sei que tem algo errado, só não consigo descobrir. Mariana, por favor ― ele segurou meus braços, ganhando toda a minha atenção para o seu olhar ―, Saulo está te chantageando? Eu conheço aquele filho da puta muito bem. Vi que ele continua com a mesma intimidade com nossas duas primas que também vieram para a festa. E eu sei que você não aceitaria um insulto deste. ― Não! Tire essa ideia absurda da cabeça! ― recuei meus braços como se suas mãos faiscassem na minha pele ―. Você pode simplesmente me deixar em paz? Você me sufoca! Me sufoca muito ― disse mais baixo. ― Eu te sufoco porque não aceito suas meias verdades. Sufoco porque me preocupo com você e quero te ver segura, porque não admito te ver tão triste o tempo todo. Te sufoco porque quero descobrir suas razões ― o homem em minha frente já tinha perdido a compostura, começou a falar alto e se alterar mais a cada palavra proferida. ― Eu não quero que invada a minha vida, não te dei abertura para saber nada sobre mim ― fui petulante.
― Fez eu me apaixonar por você, não é o suficiente? E mesmo com toda essa curva que você faz com as palavras, eu sei que está apaixonada por mim também. Eu ia negar mas foi tarde demais. Valentim me puxou contra o seu corpo e emaranhou os meus cabelos com os dedos. Seus lábios encostaram nos meus, quentes, lentos e sedentos. Fechei meus olhos e não me rendi, tentei falar algo desconexo mas fui dominada ao sentir a língua desejosa ocupando minha boca. O seu toque delicioso foi me desarmando aos poucos, eu comecei a retribuí-lo cheia de vontade e anseio. Quando percebi, estava querendo devorá-lo, explorando a boca dele e envolvendo nossas línguas. Em contrapartida, Valentim estava mais lento e a intensidade demonstrada significava o quanto ele precisava desvendar os meus sentimentos. Ele me pegou no colo fazendo meu vestido subir até o quadril. Nossos sexos roçaram-se sutilmente, seu membro estava duro feito uma rocha, eu rebolei querendo senti-lo inteiro, e foi necessário aprisionarmos os gemidos nas nossas bocas. Valentim abandonou meus lábios quando me deitou sobre a sua cama, ele beijou o meu pescoço enquanto esfregava o nariz em minha pele. Seus dentes mordiscaram minha orelha, e o arrepio foi tomando proporções avassaladoras, em cada célula do meu corpo. Eu estava ficando loucamente excitada. Segurei em seus cabelos, mantendo seu rosto na direção do meu. Seus olhos brilhavam, e mantiveram-se assim quando ele decidiu pegar nas alças finas do meu vestido e abaixá-las. Senti um beijo suave no seio esquerdo, na exposição do decote, e depois no direito. Valentim livrou-os do bojo, deixando os meus mamilos a mostra, foi só então que seus olhos desviaram dos meus para vê-los. ― São lindos, como imaginei ― atenciosamente, a ponta da sua língua enrijeceu ainda mais meu bico, e o sugou com força antes de deixá-lo. Recebi a mesma atenção no outro, involuntariamente arqueei as costas do colchão e deixei minha respiração arfar. Massageei seus cabelos e mordi meu lábio inferior quando voltei a encará-lo. ― Quando nós descermos ― começou a deslizar lentamente a parte de trás dos dedos pela extensão da minha perna, ouriçando cada pelo das minhas coxas ―, você vai abrir o jogo e acabar com essa história sem sentido. Permaneci com as pernas flexionadas e um pouco abertas, ele se posicionou entre elas e despejou um beijo na minha virilha.
― Eu não posso ― respondi, fechando meus olhos. ― Não só pode, como vai! ― o homem percorreu desta vez com a palma da mão o comprimento da minha perna até chegar no núcleo delas. Tocou o tecido da calcinha e passou dois dedos entre os lábios da minha boceta, que estava quente e naturalmente lubrificada. ― Valentim ― choraminguei. ― Eu não vou te dividir mais ― devagar, colocou a renda preta para o lado e passeou com os dedos conhecendo a textura do meu sexo. Quando ele penetrou o dedo médio, eu precisei virar o rosto para o colchão e morder o lençol, buscando abafar o gemido indomável reproduzido. Não era só questão de preliminar, sexo ou o ato em si. Era uma sequência de fatores que estava me levando ao ápice. Como a necessidade carnal e ávida que eu sentia do toque dele, o contato caloroso das nossas peles, os olhares tão voluptuosos, as respirações misturadas que formavam um som erótico e de alta lascívia, e sobretudo, toda a clareza de sentimentos que dividíamos em cada tato. Ensandecida, eu forcei o seu pulso querendo que ele enfiasse mais fundo. Olhei para as íris verdes compenetradas nas minhas e tive que engolir minha saliva com força. Os cabelos escuros estavam bagunçados e contrastavam com o seu suéter branco, a maxila quadrada somada ao pequeno vinco formado entre as sobrancelhas pretas potencializavam suas características masculinas, Valentim era um homem violentamente gostoso e viril. Desenhei sua boca com o meu polegar e me apoiei com o antebraço na cama, recuperei o fôlego e disse baixinho: ― Nós não podemos fazer isso. Vi seu anelar entrar e senti curvar-se dentro de mim. Os movimentos de vai e vem prosseguiram dolorosamente lentos, enquanto seu polegar tocava precisamente meu clitóris inchado. Meu ventre doía, se contraía pedindo por libertação. ― Nós não vamos transar ― certificou. Extasiada, mantive meus olhos fechados. Eu queria muito gozar, queria muito ter seu pau preenchendo cada centímetro da minha boceta. Valentim Del Torre
Seu corpo era lindo em cada sinuosidade. Os seios salientes e pontudos pareciam esculpidos, o quadril largo e a cintura fina eram perfeitos para enredar e moldar com as minhas mãos. A mulher era a tradução de beleza e sensualidade. Mariana até sabia controlar o volume dos seus gemidos embriagadores, mas sua natureza era arisca. Ela se contorcia e dançava com o quadril de uma forma fodidamente libidinosa. A boca carnuda ora ficava entreaberta, ora castigada com mordidas para descontar o próprio tesão. Sua língua umedecia constantemente os lábios que ressecavam por consequência da respiração acelerada e ofegante. Qualquer gesto e detalhe me enlouqueciam velozmente. Suas pequenas mãos apertaram meus ombros, e as unhas compridas arranharam minhas costas quando enfiei mais o indicador, até o final. Parecia que a qualquer instante sua boceta pegaria fogo. O líquido escorregadio encharcava os meus dedos, mas foi quando a senti apertá-los e vi seu abdômen se contrair que eu os tirei. ― Eu preciso de você, por favor ― suplicou gemendo completamente ofegante. Tudo o que eu mais queria era mergulhar dentro dela, poder sentir as suas estruturas retraírem o meu pau e me deliciar com seus sons lúbricos causados por mim. ― Não faz isso comigo ― pediu. ― Eu quero enterrar o meu pau em você ― sussurrei. Ela me puxou para si e rapidamente desabotoou minha calça, deu tempo de detêla e voltar a deitá-la na cama. A mantive parada com nossos lábios colados, e nossa respiração foi descompassadamente casando uma com a outra. ― Preciso que me permita ser seu, Mariana. A bailarina conseguiu enrilhar o meu corpo inteiro só de apalpar o meu pau, segurei seu punho e o coloquei para cima da cabeça. Sem desistir, ela levou a mão livre entre as próprias pernas e voltou a se estimular. Fiz o mesmo, controlando suas duas mãos a cima da cabeça. Eu sei que Mariana estava a um passo do orgasmo, mas eu não a daria, não assim. ― Você vê? Você sente que é isso o que queremos? ― Então me dá o que eu quero ― seus olhos azuis e límpidos pareciam bêbedos. ― Você não quer só sexo ― desenhei carinhosamente seus traços angelicais com o polegar e completei ―. Eu te quero inteiramente para mim, bailarina ― beijei seus lábios.
Finalmente se deu por vencida e assentiu com a cabeça. A soltei e senti seu toque sensível no meu rosto, beijei sua mão e me ajeitei, para poder colocar a calcinha e o vestido dela no lugar. O silêncio reinou enquanto nos organizávamos. Infelizmente eu não conseguia parar de me remoer ao relembrar da cena em que vi Mariana ao lado do meu irmão. As individualidades de ambos possivelmente se combatiam em cada palavra dita. Mariana tinha bom coração e caráter, enquanto Saulo procurava o mínimo de conduta. As personalidades não se misturavam, não tinham como se encaixar ou se adequar, eram demasiadamente diferentes. As sensações vividas dentro do quarto onde cresci até alcançar a fase adulta, tinham sido as mais reais e esclarecedoras entre mim e Mariana. Não havia mais o que questionar, se antes possuíamos dúvidas sobre nossos sentimentos, elas foram cessadas a partir dali. Nós precisávamos nos dar uma chance. ― E-e-eu preciso descer ― ela disse refazendo a trança no estilo solta em seus cabelos ―. Devem estar nos procurando. O semblante de Mariana mudou completamente assim que se recompôs. Estava tensa, nervosa e agitada. ― Embora não pareça, ficamos pouco tempo aqui. E eu posso fazer isso com você ― sugeri, querendo oferecer todo o apoio e confiança. ― Não, não ― ela balançou a cabeça e passou a mão pelo rosto ― Minha maquiagem, como está? ― perguntou, preocupada. ― Você está linda, como sempre ― sorri ao observá-la. ― Eu vou descer primeiro. ― Mariana ― segurei seu braço, sentindo-me inseguro ―. Você vai falar com o Saulo? Ela abriu a boca, fechou, respirou fundo e respondeu: ― Vou. Assisti seus passos em direção a porta e quando ela ficou parada antes de se encorajar para sair. Me sentei na cama e esperei um tempo para ir atrás. Reparei na mancha preta que seus olhos deixaram no lençol claro da cama e rememorei o nosso momento. Desci os degraus da escadaria central da casa dos meus pais, passei pela sala e de repente Charlotte apareceu desesperada. ― Rápido Valentim ― minha irmã me puxou pelo braço ―, Mariana vai matar
a Vivian!
16 Valentim Del Torre
Era como uma leoa feroz, defendendo-se e encurralando a presa com as patas firmes, detendo-a por baixo do seu corpo. Os dedos de Mariana estavam apertando a jugular da Vivian, e seus olhos estavam famintos por justiça. A primeira coisa que eu fiz foi tentar tirá-la, ela sequer viu quem era e gritou para que saísse de perto. ― Eu te avisei, Vivian. Eu avisei. Me controlei o máximo que consegui. Minha esposa, ex-esposa estava vermelha, porque Mariana limitava a circulação sanguínea à medida que a enforcava mais. ― Alguém tira essa louca de cima de mim! Sua vadia baixa! ― Vivian disse com a voz esganiçada, enquanto tentava se rastejar para se livrar do peso da Mariana. ― Não encosta em mim! ― furiosa, ela ordenou para Álvaro se afastar. ― Ela está possessa, não se intrometam! ― Carlie nos aconselhou, ciente de como a amiga pode ser violenta quando se transforma. ― Eu não quero que me dirija a palavra, não quero te ver na minha frente, sua mal amada ― desferiu um tapa barulhento no rosto de Vivian e recebeu outro em revide, impulsivamente eu me aproximei, mas Carlie me parou colocando a mão no meu ombro. Mariana se revoltou e gritou ―: Se você tem problema para lidar com o fracasso que chama de casamento, resolva com o Valentim! Não foi preciso nenhum esforço da minha parte ― chacoalhou Vivian fazendo a cabeça dela colidir contra o chão, sem deixar de enforcá-la. ― Sua filha da puta! Você deu em cima do meu marido desde a primeira vez em que eu te vi, usando o pretexto da mamãezinha doente, acha que não conheço seu truque de puta? Eleonora tentou intervir no instante em que Vivian arregalou os olhos e os fechou, e Mariana perdeu o juízo ao ouvir a ofensa sobre sua mãe. ― Eu não te mato porque o crime não compensa. Mas olhe bem dentro dos meus olhos e escute ― seus polegares cravaram na jugular mais uma vez e Vivian abriu os olhos para encará-la ―, não fala da minha mãe, porque a doente é você. Doente de alma e coração. Você está cavando o seu próprio buraco e ele vai te levar até o fundo do poço. Lembre disso.
Saulo chegou tarde para o espetáculo e tentou puxá-la com brutalidade pelos braços, mas ela se defendeu com um tapa. Reparei no estado dele, alcoolizado, camisa para fora e manchada de vermelho, o terno desajeitado, e a nossa prima Jade ao seu encalço. Eu estava muito nervoso com a situação, mas Mariana parecia precisar daquilo para lavar a alma. Me controlei até quando deu, no entanto, sabia que ela não estava em sã consciência e que a raiva havia se apossado completamente do seu discernimento. Interferi quando a Vivian amoleceu ainda acordada, porque Mariana estava sufocando-a pela glândula submandibular, isso poderia causar danos reais. Abaixei-me ao lado dela e toquei em seu braço. ― Mariana ― chamei baixo ―, saia de cima dela, ou eu vou ter que te tirar. Ela me olhou com os olhos vermelhos, marejados. Na lateral esquerda de seus lábios tinha um pequeno corte, seu pescoço levemente arranhado, mas nenhum ferimento grave. Por fim acatou o meu pedido e ainda tremendo, se levantou devagar, voltando para a órbita. Ouvimos Vivian tossir, e tentando se recompor ela ficou em pé. Não satisfeita com os hematomas, continuou a provocar: ― Fique sabendo, Mariana ― encurtou a distância ―, que eu vou te infernizar. Não ache que roubar homem comprometido é algo que trará boas consequências na sua vida. Você travou uma guerra comigo, querida ― ela limpou o nariz ensanguentado. ― Uma hora você vai entender que não é preciso roubar ninguém, quando se tem alguém tão detestável como você ao lado. Vivian tentou acertar mais um tapa e pegar nos cabelos de Mariana, que não recuou e estava pronta para atingi-la. Mas deu tempo de mantê-la no lugar. ― Chega ― sussurrei no ouvido dela ―. Tenta se acalmar. Ficou de frente para mim e de costas para a adversária, fechou os olhos e respirou fundo, uma, duas, três vezes. Saulo não esperou mais nenhum segundo e se aproximou me afrontando com o olhar, eu não arredei um centímetro. ― Você viu, Saulo? Que o seu irmão e sua querida namorada sumiram juntos? Grande coincidência, não acha? ― a voz da minha ex-esposa estava me dando asco ―. É isso, plateia. Podem voltar para a comemoração de vocês ― dissimulou um sorriso. Saulo olhou para Mariana e esperou uma explicação. Mas ela andou para longe
de nós dois, em direção à saída do salão. Charlotte, após mandar Vivian embora, foi com Carlie atrás de Mariana. ― Você não se cansa ― Saulo exprimiu. Indaguei-o com a sobrancelha, e ele sorriu sarcasticamente. ― Não cansa de ser esse filho da puta ― deixei que falasse ―, que está sempre querendo tirar tudo de mim. ― Alguém como você não tem nada a oferecer para Mariana ― respondi convicto. ― É ai que você se engana, tudo o que eu ofereço ela recebe de bom grado. Seu sorriso variou para insinuativo. E sua frase latente, carregada de sarcasmo e confiança me pegou desprevenido, buscou meu temperamento mais agressivo e me fez reagir sem nem pensar. Dei um murro no lado esquerdo do seu maxilar que o fez cambalear para trás. Ele passou a mão no local, mexeu a mandíbula e balançou a cabeça ainda sem tirar o maldito sorriso irônico da boca. ― Meu santo Deus! O que foi agora? ― minha mãe apareceu e se pôs no nosso meio ―. Valentim, por que bateu no seu irmão? ― Não somos irmãos ― Saulo disse com desdém ―. Esse infeliz não é o meu irmão. ― Felizmente ― me afastei e fui procurar Mariana. A encontrei na área frontal da casa dos meus pais, ela estava quieta, ouvindo minha irmã e a amiga falarem. Os braços cruzados em frente ao corpo demonstravam que o frio a incomodava. Fui na recepção e busquei seu sobretudo na acomodação de pertences, voltei e coloquei sobre seus ombros. As duas ficaram quietas. Eu continuei fodidamente irritado com o que Saulo insinuou, só de pensar que a bailarina, a minha bailarina, tinha intimidade com alguém tão repulsivo, e que ele a usava como um objeto bonito de ornamento, me subia a vontade de voltar e terminar a surra que eu mal comecei. Automaticamente, fiquei inseguro e receoso com a decisão crucial que ela teria que tomar. Carlie e Charlotte se retiraram para nos dar espaço, e então eu busquei os mirantes azuis. ― Vou embora e farei o que combinamos. Vou conversar com o seu irmão para esclarecer tudo, mas saiba de uma coisa, eu definitivamente não vou entrar nessa guerra com a Vivian. Você decide ― suas palavras saíram firmes, pegaram-me
de surpresa e me deram um alívio sem igual. ― Já está mais do que decidido ― continuei fixo a ela ―, mas você não precisa ir embora com ele. ― Não vou resolver aqui. Já ocupei tempo demais do aniversário da sua irmã e estou morrendo de vergonha. ― Então eu te acompanho. ― Não, eu iniciei essa história e é o meu dever por um ponto final. Averiguei o movimento das suas íris para saber se ela estava escondendo algo, mas era como se estivessem nubladas, impossíveis de aprofundar. ― Tem algo que queira me contar? ― Eu resolvo a minha vida sozinha ― ela disse sem ser grosseira. Ainda sem me conformar, assenti com a cabeça. ― Mari! ― minha irmã chegou chamando-a alto ―. Vamos voltar e curtir. Falta muito para a festa acabar. ― Obrigada, Charlotte. Eu preciso mesmo ir. E mais uma vez, me desculpa pela cena, eu não queria ter passado tanto dos limites. A Sol não viu nada mesmo? ― Te desculpar? Eu é que devo desculpas. Você aliviou a vontade que eu estava de arrebentar a cara dela. E fique tranquila, Sol está no décimo sono. ― Menos mal, então. ― Mulher, que força você tem! Como conseguiu derrubar ela com um soco? ― Você deu um soco nela? ― interrompi desorientado. Ela deu os ombros, encolhendo-se com uma carinha de ingênua. Balancei minha cabeça, subitamente orgulhoso por saber daquilo. Fui arrastado por Charlotte para entrar, mas entrei com a intenção de me despedir da minha mãe e dos poucos familiares presentes. Mariana não quis mesmo retornar, ficou lá fora esperando o Saulo. Carlie e Álvaro estavam sentados em volta de uma mesa, sorvendo uma bebida quente. ― Cara, parecia uma leoa indomesticável ― Álvaro comentou fascinado. ― Vocês não viram nada ― Carlie falou com propriedade ―. Mariana tem uma força que amedronta qualquer uma. ― Se excitou? Porque eu... ― amigo de cu é rola, mesmo! Acabei rindo, recordando da cena e da fissura incontrolável de Mariana. Nunca tinha visto uma mulher com tanto desejo de fazer, literalmente, justiça com as
próprias mãos. Senti vontade de beijá-la naquele momento. Enquanto o casal conversava sobre algo aleatório e ainda falavam do acontecimento, eu corri para o jardim de entrada, mas ela já não estava no mesmo lugar. Meu celular começou a tocar no bolso e eu vi o nome da Vivian na tela, também notificações de inúmeras mensagens de texto. Com certeza estava mais do que furiosa. Silenciei as chamadas e enfiei o aparelho no bolso novamente. Procurei com os olhos qualquer sinal de Mariana, e encontrei o Bentley de Saulo. Caminhei na direção e ainda alguns metros distante, era possível ver como ele estava alterado dentro do carro. Imediatamente puxei a maçaneta da porta, que estava trancada. Mariana me ouviu e desencostou da janela, ela o respondia com calma. Eu não conseguia ouvir por causa da maldita acústica na lataria. Bati no vidro e pedi para que eles descessem, mas ela negou com a cabeça. Fui ficando desesperado e preocupado com o diálogo nada amigável do meu irmão. Peguei o celular novamente no meu bolso e disquei o número dele. No mesmo segundo Saulo desligou. Insisti ligando no dela. Sem parar de falar, ele pegou o celular de Mariana e lançou contra a janela, quase acertando o rosto dela. Ela colocou o cinto, virou para mim e levantou a mão gesticulando e movimentando a boca dizendo para eu ficar calmo. Mariana D'Ávila Me revoltou ver a aflição estampada em Valentim sem poder fazer nada. Saulo tinha travado o carro e eu não ousaria contrariá-lo em seu acesso de raiva. Era burrice relutar com alguém que estava fora de si. Ele acelerou o carro o máximo possível e nos distanciamos rapidamente da mansão. ― Eu escolhi você como a minha garota de programa ― ele colocou a mão no peito e continuou ― eu te dei um contrato, especificando todas as regras que você seguiria. Você desobedeceu todas. Eu te paguei adiantado, e a única coisa que exigi em troca foi que metesse só comigo. ― A única coisa, Saulo? ― questionei ironicamente e mantendo meu tom bem baixo. ― Foi a única coisa. Não sei aonde eu estava com a cabeça ao pensar que puta serve pra algo, além de foder ― ele socou as duas mãos no volante ―. Por isso continuam nessa vida miserável, porque não controlam a própria boceta. Não
conseguiu dar exclusivamente pra um só, D'Ávila? ― ele me olhou, enraivecido. ― Eu só transei com você. ― Cala a sua boca. Não mandei você me responder. Já havíamos saído do residencial, e ele dirigia há alguns minutos na rodovia. Confesso que a situação estava me fazendo entrar em pânico, mas fechei os olhos, rezando para me manter lúcida e agir de forma sensata. ― O meu irmão, porra? Foi foder com o meu irmão? Você viu a vergonha que me fez passar? Não respondi. Ele olhou pelo retrovisor e desta vez socou a porta, causando um estrondo assustador. ― Agora olha lá, tá todo preocupadinho com você. Olhei pelo retrovisor do meu lado e vi o farol alto, quando a luz deixou de ofuscar reconheci que o Porsche de Valentim estava nos seguindo. Saulo ultrapassou todos os carros da nossa frente, fazendo os motoristas buzinarem e até deslizarem na pista. ― Saulo, pelo amor de Deus, tenha calma. ― Esse sou eu calmo, Mariana. ― Foi tudo um mal entendido. Nada planejado, não era a minha intenção causar nada disso. ― O diabo também é cheio de boas intenções ― ele sorriu e eu me arrepiei inteira. Valentim havia nos perdido de vista. E mesmo que eu rezasse para manter o equilíbrio, minhas pernas começaram a fraquejar. Minha respiração se descompassou e meu coração estava mais acelerado do que o próprio carro. Pousei minha mão com cautela sobre o braço de Saulo e aconselhei baixo: ― Podemos ter uma conversa sensata, tenta respirar e se acalmar, por favor. Saulo freou imprudentemente e parou no acostamento. Ele tirou bruscamente a minha mão e fechou o punho ao segurar nos meus cabelos da nuca. ― O papel de ditar ordens é meu. ― Você está me machucando ― avisei, ao sentir meu couro cabeludo queimar. Quando ele ameaçou de golpear meu rosto contra o painel do carro, eu me livrei e o empurrei com força. ― Não seja louco de bater em mim! Não encoste um dedo em mim ― gritei e
ele ficou surpreso com a minha reação ―. Você e nenhum homem neste mundo tem o direito de ferir a minha integridade física! Ele gargalhou mas eu ignorei, controlando o desejo pulsante de matá-lo. ― Seu prepotente! Você vive sozinho e confunde isso com superioridade, vai se tratar! ― tentei vãs vezes abrir a fechadura interna do carro para sair. De repente ele agarrou o meu pescoço com uma só mão, me estrangulando enquanto olhava nos meus olhos: ― Vagabunda, imunda! É só no seu sonho que o meu querido irmão, o homem inteligente, de caráter, cheio de valores ― foi desprezando e debochando das características do Valentim ― vai ficar com uma prostituta fodida da cabeça aos pés ― não deixei de confrontá-lo com o olhar e sustentei meu rosto, negando a insuportável vontade de chorar ―. Agora desça! Anda, desça do meu carro. Ele me soltou e só então senti a dor da pressão que usou em meu pescoço. Passei as mãos no local e deixei o ar dos meus pulmões sair com força pela boca. Não titubeei quando ele finalmente destrancou o carro, abri a porta e saí. Sim, estava em uma rodovia escura sem fazer ideia da localização. Determinadamente, andei pelo acostamento sem olhar para trás. Em algum lugar eu chegaria, e qualquer um era melhor que estar perto de um sádico como o Saulo. Porém, ouvi o barulho da porta bater, por precaução olhei para trás. Ele tinha descido do carro e os faróis acesos iluminaram seu percurso até chegar em mim. Eu tentei apertar o passo, mas Saulo correu e me segurou pelo braço. ― Desculpa, me desculpa. Desvencilhei meu braço da mão dele, sentindo nojo. ― Desculpa, eu acabei te ofendendo. Entra no carro ― virei-me de frente para ele, desnorteada. Neguei com a cabeça, sem conseguir esconder meu medo por mais nenhum segundo. Dei passos para trás me afastando novamente, mas ele não estava disposto a parar. ― Não vou te machucar, confia em mim ― tive vontade de rir e chorar ao mesmo tempo ―. Passamos no flat e você faz o que preferir. Devagar ele se aproximou, como se eu fosse um bicho arisco prestes a atacar. Nada tinha lógica, ele era um louco! Dei as costas e continuei caminhando, ouvi uma buzina de um imbecil que passou e em seguida senti o corpo robusto de Saulo me abraçar. Ele me pegou por trás e eu comecei a me debater.
― Me solta! Caralho, Saulo! Você é louco, me solta por favor! ― Não vai ir embora sozinha, pirou? Me enfiou dentro do carro e fechou a porta. A merda da porta tinha trava interna automática, logo fiquei presa. Ele se acomodou no banco de motorista, ligou o motor e deu partida. Fiquei em estado de choque, sentada e imóvel do jeito como ele me colocou no banco. Se não fosse comigo, eu simplesmente não acreditaria se me contassem que o restante do caminho foi um silêncio absoluto, como se realmente, nada tivesse acontecido. Chegamos no flat e eu continuei na espreita, pronta para me defender de qualquer atitude imprevisível. E para me deixar mais atônita, ele pegou uma mala grande na parte de cima do guarda-roupa e colocou sobre a cama. ― Pegue as suas coisas, na hora que eu sair do banho eu não quero te encontrar aqui. Olhei para ele e alternei para a mala. Abri todas as portas do guarda-roupa branco e fui capturando o máximo de cabides. Ignorei a presença pavorosa dele e comecei a enfiar as roupas de qualquer jeito na mala. Ele se retirou e eu aproveitei para me apressar mais. Não fiz questão de nada que foi comprado para usar quando fosse acompanhá-lo, peguei somente as coisas que eu levei. Fui até a lavanderia onde a Lua chorava pedindo atenção, peguei a bichinha amedrontada, o seu urso de pelúcia, os coloquei dentro do transporte e segui para o hall. Esperei o elevador e entrei morrendo de ansiedade para descer logo. Entramos em um táxi, e eu não conseguia sequer pensar durante o trajeto para o meu antigo apartamento, continuava estarrecida. Repentinamente, começou a tocar Fidelity na rádio, a mesma música que ouvi no café da manhã quando acreditei ilusoriamente que o dia seria bom. Mas desta vez, era como se a vida estivesse rindo de deboche da minha cara. Ouvia a letra falando: And suppose I never ever met you Suppose we never fell in love Suppose I never ever let you kiss me so sweet and so soft Suppose I never ever saw you Suppose we never ever called
Suppose I kept on singing love songs just to break my own fall Just to break my fall Just to break my fall Just to break my fall Break my fall All my friends say that of course its gonna get better Gonna get better Better better better better... E suponha que eu não tivesse te encontrado Imagine que não nos apaixonamos Imagine que nunca deixei você me beijar de um jeito tão doce e suave Faça de conta que nunca vi você Faça de conta que nunca conversamos Faça de conta que eu segui cantando canções de amor Só para aliviar minha própria queda Só pra aliviar a minha queda Só pra aliviar a minha queda Só pra aliviar a minha queda Me machucar Todos meus amigos dizem que é claro que isso vai melhorar Vai melhorar Melhor, melhor, melhor, melhor... A canção representava o amor de maneira clara, e era incrível como eu me encaixava nas entrelinhas. Era como sair da sua zona de conforto e enfrentar situações que jamais acreditou que enfrentaria. Significava tirar os pés do chão, se arriscar e expor a parte mais sensível de si, o seu coração. Era como se desarmar e perder a autodefesa. Era se doar e precisar mais do que tudo de reciprocidade. Perdida, larguei minha mala na sala, acendi as luzes e coloquei a cadelinha no chão. Carlie não havia chegado, com certeza estava com Álvaro. Peguei o
telefone e liguei para o celular dela, demorou, mas atendeu. Pedi para o médico me passar o endereço de Valentim porque eu não lembrava. Depois disso coloquei um moletom quente e confortável, calcei tênis, peguei o transporte com a cachorrinha e fui para a rua esperar outro táxi. As avenidas pareciam não acabar, e eu só precisava chegar logo na casa do Valentim, eu precisava muito. Quando cheguei no meu destino, desejei que o motorista tivesse uma boa madrugada e dei o dinheiro da corrida. Era possível ver pelos vãos das cortinas escuras que as luzes da sala estavam acesas. A porta se abriu antes mesmo de eu bater. Ele deixou o celular cair e veio até mim. Eu fui abraçada por uma versão desesperada de Valentim. Deixei a caixinha com a Lua no chão e retribuí, enredando-o por baixo de seus braços. ― Graças a Deus ― sussurrou e beijou a caminha cabeça ―. Graças a Deus ― repetiu ainda aflito.
17 Mariana D'Ávila
Nos beijamos com urgência, afogueando com a troca de calor das nossas peles. Valentim pegava com força em meus cabelos, percorria minhas curvas com as mãos, me apertando, buscando fundir nossos corpos. Ele só me soltou quando ouviu a nossa cadelinha lamuriar dentro do transporte. Abrimos a portinha para que ela pudesse sair e logo comecei a ser mordida na barra do meu moletom. — Vou fazer um mocaccino, venha aqui — segurando na minha mão, ele me guiou até a cozinha. Achei fofo o fato de ele se lembrar que eu era viciada em mocaccino. O homem conversava descontraidamente com a Lua, como se ela entendesse cada palavra falada. Sabíamos que entre nós, tinha muita coisa para ser esclarecida, mas teria a hora certa. — Você quer comer alguma coisa? Foi tudo uma loucura na festa, nem comemos. — Pode ser um sanduíche — levantei-me da cadeira na mesa no centro da cozinha e fui ajudá-lo. — Pegue as coisas na geladeira, fique à vontade — ele abriu uma das portas da geladeira e eu me aproximei. Peguei patê de frango, tomates, queijo e pães no balcão ao lado. Coloquei-os nos pratos e recheei. — Eu achei que você não viria — Valentim se colocou atrás de mim e beijou a curva entre o meu ombro e pescoço. — Costumo cumprir tudo o que eu falo — limpei a faca com o patê no pão e fechei a vasilha. — Você por acaso tem alguma imperfeição? Pensei enquanto fatiava o tomate e concordei com a cabeça. — Tenho, eu ronco. — Falando nisso, quando você ri também ronca um pouquinho — ele sorriu olhando para mim e eu estreitei o olhar, censurando-o. — Devo me preocupar? Talvez fazer uma cirurgia no nariz, doutor?
— Claro que não — novamente, veio por trás de mim e abraçou o meu corpo, espalhando beijos nos lugares em que minha pele estava exposta —. Gosto exatamente do jeito que é. — Quero ver falar isso quando dormir comigo e passar a noite em claro, sou um trator — lambi meus dedos e fechei o sanduíche. — E também tem a questão das suas reações um pouco violentas. Vou rezar para nunca brigarmos, porque sinceramente, ontem você parecia uma fera selvagem. Sorrimos e eu neguei com a cabeça. Ele serviu duas xícaras e puxou a cadeira de madeira para que eu pudesse sentar. Me acomodei, cruzando as pernas na cadeira e peguei o lanche. — Mariana — me chamou de repente e eu o olhei —. Meu divórcio sai depois do natal. — Sua advogada confirmou? — perguntei e ele assentiu —. E a Vivian? — Ela só terá que assinar, mas eu li todo o processo e concordo com todos os termos, acredito que a Vivian não irá reclamar também. — Eu duvido que ela assine — fui sincera e ele desviou o olhar. — Em alguns momentos eu acho que você não anseia o mesmo que eu. — Como o que por exemplo? — Parece que não quer se envolver, não quer nos dar uma chance — ele deu uma mordida no sanduíche e eu beberiquei o líquido fumegante da xícara. — Não é isso, Valentim — pensei para me explicar —. Eu só acho que não nos conhecemos o suficiente para arriscar, jogar tudo pro alto e mergulhar sabe? — Estamos nos conhecendo, mas você precisa colaborar também. — Você pode não gostar do que eu sou, do que eu me tornei. Valentim me analisou. — Todos têm traumas, problemas, todo mundo está um pouco quebrado. O encarei e fiquei em silêncio. — Eu posso suportar — abriu um sorrisinho de lado. — Espero muito que sim — saiu mais como uma lamentação. Peguei mais um pouco de mocaccino e coloquei nossos pratos na pia. Fomos para a sala e sentei no tapete esperando-o acender a lareira. Ele pegou duas almofadas e um edredom que estava no sofá para nos deitarmos. — Você terminou com o Saulo? — Valentim me puxou para deitar no seu peito, e eu pude escutar seus batimentos cardíacos.
— Sim. — E ele perdeu a cabeça — concluiu. — Você provavelmente conhece o seu irmão. — Por isso temi por você. Ele te agrediu? Demorei para responder, levantei o rosto para fitá-lo e neguei com a cabeça. — Por pouco. Sua expressão mostrou seu incomodo e desgosto. — Saulo teve uma namorada que vivia inteira roxa. Ele é possessivo. — Eu não tinha como adivinhar — apoiei meu queixo em seu peito e respirei fundo. — Aonde vocês se conheceram? Não consigo imaginar alguém como você com o meu irmão. Eu me sentei, encorajando-me para contar, nem que fosse preciso fechar os olhos pra despejar toda a montanha de merda que era a minha vida. Era necessário abrir o jogo, já que pretendíamos construir um relacionamento, o primeiro passo seria falar a verdade. Valentim ficou atento ao meu comportamento e se sentou também. De repente ouvimos alguém afundar o dedo na campainha. Olhamos em direção a porta, sem imaginar quem poderia ser. Achei que fosse a Vivian, mas ouvi uma voz masculina embargada. — É o Álvaro — se levantou e eu permaneci no mesmo lugar. Ouvi as gargalhadas do gastro no momento em que ele entrou na casa, estava claramente bêbado. — Desculpa, não sabia que estava com visitas — Valentim apoiou o amigo que mal parava nas próprias pernas —. Oi Mariana, queria te parabenizar pela briga de hoje. Vamos fazer uma queda de braço, porque com aquele murro que deu nela, suspeito que você seja mais forte do que eu. — Não duvido — dei uma risada. — Então, meu amigo. Eu vim te chamar para me acompanhar até o puteiro. Sabe, aquele que fomos? Mariana pode ir também, preciso me embriagar. — Mais? A saliva travou na garganta e eu fiquei em pé. Coloquei as mãos nos bolsos traseiros da calça e me encostei no braço do sofá. — Tudo culpa da sua amiga — Álvaro apontou para mim —. Ela está
despedaçando o meu coração. — O que aconteceu dessa vez? — perguntei. — Ela disse que o namorado estava fora mas que agora voltou, então não quer mais nada comigo. Valentim me olhou ligeiramente desconfiado, e eu tentei disfarçar. — Eu acho que Carlie gosta de você, Álvaro — falei. — É uma feiticeira, isso sim. Está me deixando louco — ele sentou no sofá —. Mas vamos então? Você vai gostar de lá, Mari. Pode tomar uma com a gente, nada demais. É um lugar respeitoso, Valentim adorou — ele sorriu ironicamente. — Muito, claro que adorei. Quem não gostaria de encher a cara em um puteiro, ser drogado por uma prostituta, espancado e não lembrar de nada? — Isso é desculpa sua pra não assumir que comeu a puta — Álvaro zombou. — Tenho certeza que até em meu nível máximo de insanidade não faria isso. — Palhaçada sua, porque têm muitas mulheres gostosas naquele lugar. — Pode até ter, mas não achei meu pau no lixo — Valentim finalizou o assunto. Eu estava estática, prestando atenção na discussão dos dois e me remoendo por dentro. Se antes sentia medo, o sentimento tinha dobrado. — Então vamos? — o gastro insistiu. — Não. Você não vai beber mais porque tá todo torto. — E transar com uma desconhecida não te fará sentir melhor — aconselhei quando finalmente recuperei a fala. — Concordo, pagar por sexo é o cúmulo do desespero — Valentim saiu da sala e foi para a cozinha. — Faz a sua amiga casar comigo, Mari. Eu amo ela, estou perdidamente apaixonado. — Você está bêbado — joguei a almofada nele. — Eu fecho os olhos e fico lembrando do bumbum redondinho dela, dos peitinhos assim — ele fez bicos com as duas mãos na altura do peito. — Me poupe! — franzi as sobrancelhas. — Tome — o oncologista entregou um comprimido e um copo d'água para amigo. — O que é?
— Estou com pena do seu fígado, tome logo. Álvaro deitou todo folgado no sofá e tirou os tênis com os próprios pés. Eu e Valentim voltamos a nos acomodar no tapete e nos cobrimos com o edredom. — Estou empatando a foda de vocês, né? — o gastro questionou olhando para o teto. — Temos planos para isso — Valentim contou. — Temos? — indaguei, erguendo a sobrancelha para ele. — Romântico insanável — o loiro revirou os olhos. Fiquei encarando Valentim para saber do que ele estava falando, mas o homem só deu os ombros e não matou minha curiosidade. Fomos para o quarto após o amigo bêbado dormir no sofá. Valentim entrou no corredor cheio de prateleiras e cabides, pegou uma blusa de moletom grande e me entregou. — Eu adoro o seu cheiro, deixa na minha blusa por favor. — Como quiser. Tirei meus tênis, desfiz o laço do cadarço da minha calça de moletom, subi a minha blusa e lentamente a passei pelos meus cabelos, estava sem sutiã. Desci a calça me despindo dela também. Valentim tinha sentado para me assistir e não se conteve quando fiquei de costas para pegar a roupa no chão, logo me capturou pelo quadril e beijou a minha bunda. Eu comecei a rir, tentando fugir das mordidas provocantes na minha pele. — Um colírio para os meus olhos — senti suas mãos unirem minhas bandas, apertando com um pouco de força. — Eu até te deixaria usufruir, mas... — Mas sexo é valioso pra mim, e eu tenho planos. — Todo cheio de mistérios — fiquei de frente para ele que, vislumbrou meus seios. Depois não se contentou e segurou ambos, passando os polegares nos meus bicos. — Valentim — gemi. — Tudo em você é divino. — Espera pra falar isso depois da madrugada com os meus roncos. Abaixei-me e beijei sua boca enquanto segurava seu rosto. Em seguida, com as duas mãos na minha cintura, ele beijou minha barriga e mordeu levemente
minha pele. Coloquei sua blusa e me enfiei debaixo das cobertas. O médico ficou responsável por apagar as luzes e acender um abajur. Deitei-me de costas para ele, que logo me aconchegou no seu corpo, encaixando-se perfeitamente atrás de mim. Senti beijos na minha nuca e seu nariz inalar o meu perfume. — Estávamos falando sobre Saulo antes do Álvaro chegar — quis dar sequência. — Agora não — fugi —. Estou cansada e vou acordar muito cedo. — Certo. Então durma porque as crianças querem te ver, bailarina. Na manhã seguinte fui despertada com beijos na minha lombar e sentindo todos os meus pelos arrepiar-se. Empinei a bunda do colchão ao senti-lo trilhar uma linha de beijos na minha coluna nua. Por fim ele abaixou o moletom, colocandoa no lugar e beijou a polpa do meu traseiro. — Acorda, Bela Adormecida. — Hoje serei a Alice — me espreguicei e sentei na cama. — Voltando às origens — seu sorriso branquinho apareceu. — Preciso passar no apartamento, para pegar algumas coisas. — Eu vou com você, prefiro que não fique andando sozinha por enquanto. — Está com receio que o seu irmão tente algo contra mim? — Não confio nele. Saulo nunca lidou bem com rejeição. — Por que você é o diretor geral do hospital e ele não? Ele nem trabalha lá, não é? — Fico cada vez mais confuso com a ideia de você ter ficado ao lado de alguém que sequer conhece. Ele trabalha lá sim, aliás, quando quer. É administrador. Mas move os próprios negócios também. Valentim ficou me olhando e eu tive a típica impressão de que estava com a alma exposta, desnuda dos pés a cabeça. Era como se ele tivesse uma visão do meu interior sem eu ter que falar nada. — Vamos. No banheiro tem tudo o que precisa, te espero na cozinha — beijou o canto dos meus lábios. Fiquei mais uns minutos sentada no colchão, olhando para o nada e pensando no quão fodida eu estava. Não conseguia encontrar nenhuma saída que me prejudicasse um pouco menos. Não conseguia digerir a ideia de perdê-lo. Era a primeira vez que eu nutria um sentimento tão arrebatador, e tinha medo do
desfecho da história. Cheguei na cozinha com os cabelos molhados e vestida com o mesmo conjunto da noite anterior. Álvaro estava com uma cara de sofrido e enjoado. — Beba mais, camarada — Valentim deu um tapa na cabeça do amigo, que reclamou colocando a mão no lugar atingido. — Falei muita merda? — Imagina. Só estava sofrendo pelo bumbum redondinho e os peitinhos assim — o imitei gesticulando com a mão. O gastro colocou a mão no rosto, envergonhado, e Valentim caiu na risada comigo. — E também convidou a Mariana para nos acompanhar no puteiro. Convite supercorriqueiro. — Isso eu lembro. Queria ter ido mesmo, pra tirar aquela bruxinha da minha cabeça. Fui até a máquina de café, coloquei uma cápsula e peguei a tigela com uma salada de frutas feita pelo médico. — Obrigada — sorri para ele. — Você é linda — sussurrou, despejando um beijo gostoso na minha bochecha. Mexi o café na xícara e sorvi com cuidado. Sentei ao lado de Álvaro na cadeira em volta da mesa e comi as frutas do pote. — Vocês estão juntos, finalmente? — ele questionou. — Estamos — Valentim respondeu. — É, creio que sim — respondi meio sem jeito. O gastro foi para o Saint Clair e eu com Valentim seguimos para o meu apartamento. Carlie estava dormindo, eu me apressei para pegar uma bolsa com apetrechos e ele aguardou sentado na minha cama. — Pegue roupas. — Pra? — olhei para ele. — Pra ficar na minha casa. — Valentim, eu trabalho. — Tudo bem, eu posso te levar e buscar no trabalho. A oficina de dança não fica tão longe do hospital. Ponderei, segurando a mochila nas mãos. Acabei cedendo, peguei umas três trocas de roupas e fui para a cozinha colocar ração para a Lua. Em cima do
balcão tinha um envelope, peguei o papel e abri para ver do que se tratava. Logo compreendi que era do hospital. Li rapidamente, e fiquei completamente nervosa ao ver a cobrança de mensalidade com juros altíssimos. Eu estava absurdamente lascada. Regressei para o quarto e avisei que poderíamos ir. — Ficou quieta o caminho todo. É por que eu te pedi para ficar na minha casa? — perguntou quando estacionou o carro. — Chegou uma carta do hospital — admiti —. Não sabia que seria cobrado juros de atraso. — Está atrasado o pagamento? — questionou preocupado. — Um pouco. Me atrapalhei para saldar por conta do tratamento de terapia dinâmica que iniciou no mês retrasado. — Me devolva a correspondência e eu dou baixa no sistema. Me senti uma absoluta interesseira no mesmo instante. Olhei para ele e neguei com a cabeça. — Como assim? — Eu quito, Mariana. — Não, não! — tirei o cinto de segurança e me virei para trás, para pegar a mochila no banco —. Não é isso, eu só não sabia mesmo dos juros. — Isso é ideia do meu irmão. Estou revertendo a merda que ele fez. — Tinha que ser — bufei. Desci do carro e senti Valentim pegar na minha mão cruzando os nossos dedos, fiquei um pouco surpresa mas ele continuou agindo naturalmente. — Na volta passamos para pegar a correspondência, preciso de algumas informações que estão no documento para poder acessar no sistema. — Eu não concordo com isso. — Não precisa concordar — ele sorriu. — Se for possível, eu conseguirei pagar, em um ou dois meses. — Mariana — ele parou na minha frente e acariciou meu rosto —. Está tudo bem, não vejo problemas nisso. — Não quero que pareça que estou com você por interesse. Posso te pagar aos poucos então? — Eu nunca vou achar isso, e se te faz sentir melhor, pode sim. Pague como você conseguir.
— Combinado. Soltei a mão dele quando a porta do elevador se abriu e nós chegamos em uma das recepções do hospital. Não queria que a notícia da nossa relação se espalhasse. As pessoas poderiam ser maldosas, até porque Valentim nem tinha se divorciado da megera ainda. Ele me olhou de forma interrogativa e eu beijei seu rosto, porque íamos nos separar ali. — Daqui a pouco passo para ver a sua mãe. — Tá bom, vou lá com as crianças e ver se o Alex já chegou. — Você orienta esse cara, não gosto da forma que ele te trata. — Ele é casado, Valentim. — Eu também sou, hipoteticamente. Revirei meus olhos e franziu o cenho. — Estou falando sério, não gosto da forma que ele te olha e te abraça. — É só o meu chefe, nos damos muito bem. Você vai gostar dele se o conhecer. — Duvido. — Larga de ciúme. — Não é ciúme, é cuidado. — Aham — ironizei. Ouvi barulho de saltos e me virei para ver. Contei até um milhão quando Vivian passou por nós dois e disse: — Estou te esperando no consultório, querido. Querido? Paciência, Jesus! — Se livra logo dela, caso contrário, vou encher o meu chefe de abraços. — Não me provoque, e se comporta! Só então reparei que as pessoas estavam nos observando, como se estivessem averiguando qual era o status atual do diretor do hospital. Fui para o quarto onde o leito da minha mãe ficava, cheguei mansamente e beijei sua testa. Ela abriu os olhos com um pouco de dificuldade e abriu um sorriso sincero. — Oi minha filha, como você cresceu — segurou minha mão e fez carinho. — Vim sábado te ver, mãe — sentei-me ao seu lado. — Você ainda era pequena quando nos vimos — ela continuou sorrindo, e claro, não estava consciente —. Se tornou uma mulher linda!
— Eu preciso de um conselho seu — pedi, ignorando o devaneio alucinado dela. — Diga, filha. — Estou apaixonada — confessei com um sorriso involuntário na boca —, e é reciproco. — Que coisa boa! Você realmente está crescendo — mexeu nas pontas dos meus cabelos —. Ele te trata bem? É carinhoso? — Trata sim. É um homem muito altruísta, romântico, calmo. — Maravilhoso então. Você sabe que o que eu sempre desejei é que encontrasse alguém amoroso, que não cogitasse nunca levantar a mão para você, ou que te agredisse de outras formas. Porque o seu pai destruiu a minha vida. — Não, Valentim nunca me bateria — balancei a cabeça —. Ele ama crianças, é o oncologista daqui. — Do hospital? Não consigo me lembrar. — Ele já falou com você algumas vezes — contei, tentando situá-la. — E você tá esperando o que? Se desarma, minha filha. Não é todo mundo que tem a sorte de ser feliz. E se existe amor, aos poucos tudo se encaixa, se ajeita e no final dá certo. A deixei depois de um tempo a fazendo companhia e fui para a ala infantil. Alex com dois colegas de trabalho me esperavam para iniciarem as apresentações. A ausência de Valentim estava me irritando, perdi quase toda a concentração só de imaginar que ele estava no consultório com a louca da Vivian. Fiquei conversando com a Alba após as peças de teatro e vi Sol chegar com Charlotte, já quase na hora do almoço. — Oi, Mari — a irmã do Valentim beijou meu rosto. — Tia Ana — me abaixei para receber o abraço da Sol. — Cadê o meu irmão? — Está no consultório, a ladra de irmão está lá com ele. — A peçonhenta teve coragem de vir aqui depois de ontem? Vai lá, Mari. Não deixa não! — É Tia Ana. A Tia Vivian não é boa para o Tio Tim. Pensei e rapidamente decidi ir até o consultório dele. Toquei na porta mas não fui atendida. Decidi abrir, na antessala não tinha ninguém, só vi a silhueta de dois corpos pela porta de vidro fumê. Resolvi entrar. Meu estômago embrulhou e imediatamente eu dei um passo para trás. Vivian
estava segurando Valentim, tentava beijá-lo e ele se livrava com as mãos, se esforçando para não machucá-la. O pior é que ela estava nua, somente com uma calcinha vermelha. Ainda parada na porta, levei alguns segundos para processar a cena. — Pela milésima vez, coloque a sua roupa e saia daqui! — ele disse firme para ela, com os olhos focados nos meus. Balancei minha cabeça e me retirei da sala. Constrangida, enciumada e possessa com a atitude da mulher. Tudo me dizia que não daria certo. Eu estava viajando quando pensei que poderia fazer as coisas se encaixarem entre nós dois. A ex-esposa víbora jamais se conformaria em perder Valentim, e ele nunca aceitaria alguém como eu, considerando que não "achou o pau no lixo", e que valorizava totalmente o sexo. Não permitiria que pagasse as mensalidades do hospital, não mesmo! Não podia de forma alguma ficar em dívida com ele. Ia pagar como? Transando com outros caras? Eu já previa uma futura humilhação por conta disso. Fui para frente do hospital e encontrei o mesmo senhorzinho fumante, pedi um cigarro para ele e acendi com o isqueiro emprestado. Peguei meu celular e sentei em um banco um pouco escondido. Liguei para Pauline até ela atender. — Pauline. — Minha flor, quanto tempo! Como você está? — Bem. Eu preciso que você me coloque para apresentar. — Como? E o Saulo? — Não estamos juntos mais. Depois te explico toda a situação. — Ah meu Deus! — Você pode me colocar hoje junto com a Justine? — Claro, claro! Hector ligou perguntando de você, e David veio aqui ontem, sente saudades de você. Se estiver enroscada com dinheiro... — Estou sempre precisando, mas não quero ninguém agora. Vou tentar faturar dançando só. — Certo, te pago o mesmo de sempre. Desliguei e me distraí fitando a grama e tragando o cigarro. — Para de fumar, Mariana — Valentim pegou o cigarro da minha mão e jogou no cinzeiro de metal —. Não preciso nem esclarecer o que aconteceu, preciso? — Não. Não é da minha conta — me levantei, pegando a minha bolsa para ir
embora. — Então por que está tão brava? — Não estou brava — neguei com a cabeça me recusando a encará-lo —. Só sei que isso não vai funcionar. — Isso o que? — ele buscou olhar dentro dos meus olhos. — Nós dois. — Já disse que eu vou fazer dar certo. — Você fala da boca pra fora, Valentim. — É o que você vai ver.
18 Valentim Del Torre
Perdi a conta de quantas vezes Mariana recusou minhas ligações, não atendia a porta e o diálogo comigo no hospital não passava de duas frases. Desde que Vivian fez aquela cena patética no meu consultório, Mariana me evitava. Se eu estava inseguro? Não posso negar. Mas sempre fui um homem determinado em se tratando de sentimentos. Eu queria aliviar o seu cansaço físico e emocional, poder entrar no canto da sua cabeça onde guardava todo o sofrer, e mostrar que eu era alguém de verdade, disposto a lutar para curar cada ferida feita pela vida. Desejava ter chego em outros tempos, em épocas onde ela ainda sorria inocentemente, acreditando que alguém legal a amaria. Gostaria de mudar isso, para torná-la mais confiante nas pessoas. Infelizmente, não estava sob meu controle, não havia como fazê-la esquecer as tristezas que passou, elas pareciam acompanhá-la desde que Mariana era só uma menina. Mas eu podia mostrar o meu melhor, ser sincero e digno de seus sentimentos. Falar a verdade onde a iludiram. Ser companheiro onde a abandonaram. Ouvi-la ao invés de só falar, respeitando o seu tempo e coragem. Claro, eu a encorajaria quando necessário o impulso. O que eu podia fazer era ficar, mesmo quando os problemas aparecessem, quando ela pensasse que a maré nos levaria para o caminho contrário. Apenas, ficar. E era exatamente isso que eu havia decidido. Resoluto, fui ver a Martha cinco horas da manhã, sentei-me ao lado de seu leito quando notei que ela já estava acordada, segurava um livro em mãos e esfregava os olhos hora ou outra, no intuito de desembaçar as vistas cansadas. ― Doutor Valentim ― a mulher sorriu afetuosamente para mim e largou o livro na maca, ao seu lado. ― Como vai, Sra. Martha? ― passei uma mão pelo seu braço, e senti sua temperatura febril. ― Sem dores, graças a Deus. E o senhor, está bem? ― Sim, obrigado ― menti ―. E Mariana, como está? ― eu precisava de alguma forma saber dela. ― Mariana sempre diz que está bem, mas eu sei que é para me poupar. Sinto que minha filha está angustiada e tem piorado a cada dia. Não a diga que estou lhe
contando. Ela prefere se esconder ao invés de bater de frente com a tristeza. A mãe da bailarina não deixava de me passar a versão verdadeira de sua filha, e assim, além de conhecer um pouco mais de Mariana, eu conseguia saber como ela estava nesses dias longe de mim. Entretanto, isso só era possível quando Martha estava lúcida, o que vinha se tornando cada vez mais raro. ― Posso te fazer uma pergunta? ― Claro filho. Se eu for útil, irei te responder. ― A senhora sabe se ela voltou com o namorado? ― Namorado? ― me olhou um pouco confusa ―. Que eu saiba, Mariana está apaixonada por você. Ela não me contou sobre nenhum outro namorado. A resposta me surpreendeu, não só por ter a confirmação da paixão recíproca, mas por ouvir que Mariana sequer mencionou Saulo para a mãe. Não nego que isso me causou um estranhamento ainda maior, sobre o comportamento dela diante do seu relacionamento nada coerente, com o meu irmão. ― Na realidade ― continuou ―, Mariana te elogiou muito a última vez que eu me lembro que conversamos. Eu acho que ela encontra em você o oposto do pai. ― Me elogiou? O que ela disse? ― Disse que você é generoso, romântico, que ama crianças e é uma pessoa calma, o que é uma das principais características para a minha filha. Sorri com aquilo e quis me inteirar mais. ― Mariana teve problemas com o pai? ― Pelo contrário. Mariana quando nasceu, era tranquila, um doce, até a adolescência. Ela passou a se fechar para fugir de certas situações de dentro da nossa casa. Quando cresceu, se enfiou nas escolas de dança, e só voltava para casa porque se preocupava comigo. O pai dela que tinha problemas. ― Peço para que a senhora me fale caso eu estiver sendo invasivo ― reforcei. ― Está tudo bem, eu já superei, porém tudo ainda a assombra. Por isso, uma vez pedi paciência a você, doutor. ― E qual foi o momento em que decidiram definitivamente vir para Seattle? Eu não estava mais fazendo uma investigação em busca do passado e dos motivos de Mariana ter se tornado quem era, a essa altura, sentia minha mente esmorecer, por saber que as dores da minha grande bailarina eram maiores do que eu imaginava.
― O meu ex-marido era um homem que delegava muito bem, todo mundo da cidade pequena em que morávamos gostava dele, porque da porta para fora da nossa casa era um cidadão bom, simpático e agradável, diferentemente da sua real conduta. E em um dos surtos, fiquei a um passo da morte, Mariana não aguentou e me defendeu. Ela sempre me defendia ― vi um sorriso admirado abrir em sua boca pálida, e percebi que Martha não se lembrava do dia em que acusou a filha de matar o marido ―, mas especificamente neste dia, Mariana quase comprometeu a própria vida para acabar com o nosso pesadelo. A cidade era realmente minúscula, então a culparam cruelmente, achavam que ela era doente e a isolaram mais ainda. Foi por isso que decidimos recomeçar em outro lugar. ― Eu soube superficialmente ― comento, desnorteado ―. O seu marido a agredia também? Vi duas linhas transbordarem e escorrerem pelas bochechas da mulher cansada e frágil. Ela se posicionou, encostando as costas no travesseiro para dar continuidade na história. ― Por pouco ele não acabou com o seu sonho de ser bailarina, de tanto que a batia. Mariana interrompeu diversas vezes seus cursos, se afastava por longos períodos para poder se recuperar. Às vezes não dava tempo sequer de se livrar das lesões. Se a minha bailarina não tivesse o matado, eu teria feito. Destruiria um monstro deste sem pensar em consequências, em nada. Mesmo que eu quisesse, não tive mais forças para dar prosseguimento ao assunto. Meu peito doía de tal forma inexplicável, a raiva pulsava gradativamente no meu sangue. E acima de tudo, o desespero em tê-la por perto me tomou, eu precisava cuidar dela. Não minto que fiquei decepcionado e inconformado com Martha porque Mariana teve a infância corrompida, mas era incapaz de julgá-la, a mulher também tinha vivido no inferno e depois que finalmente se livrou, ficou presa em uma cama de hospital. O destino estava sendo impiedoso com ela e independente da conivência, eu não achava justo. Antes de encerrarmos a conversa eu compartilhei uma ideia com ela, sobre os meus planos para o Natal ao lado de Mariana. Ela concordou e ficou entusiasmada. Mariana D' Ávila
Era dia 23, faltava pouquíssimo para a celebração natalina. Data da qual não tinha a mínima importância na minha vida. Nunca havia comemorado ou desfrutado de uma ceia natalícia, no auge dos meus vinte e seis anos. Confesso que há muito tempo não me afetava mais. Eu poderia passar sozinha como diversas vezes. Mas especialmente neste natal, fui surpreendida com um convite feito pela família de Valentim. Charlotte e Eleonora foram superqueridas comigo, me ligaram na tentativa de me convencer a passar com eles. Eu neguei, muito embora quisesse participar. Eu me sentia acolhida quando estava perto de Charlotte, Sol, até mesmo de Eleonora, e Valentim nem se fala... Mas lamentavelmente não era viável estar com eles, principalmente em um dia tão significativo. A cidade se tornava mais fria a cada dia, ir embora da Le Luxe em plena madrugada era, por pouco, congelante. A garoa fininha e gelada não abandonava os meus trajetos noturnos, mas felizmente eu não ficava até altas horas na casa noturna. Em torno de uma hora da madrugada já estava no apartamento. O difícil era acordar cinco horas da manhã para ir dar aulas na oficina de balé, a temperatura dificultava a separação amorosa entre mim e a cama. Falar em separação, não conseguia deixar de pensar em Valentim por um minuto sequer do meu dia. A boa notícia é que o seu irmão, não havia mais me procurado e por isso, senti que ele preferiu me deixar em paz. Não compensava mesmo. Talvez eu tivesse menos valor do que um homem como ele. Carlie dizia que eu estava a um, ou no máximo dois pés de ter um pico de depressão. Não me comunicava com mais ninguém, exceto com a minha mãe, prezando sempre, é claro, pelo disfarce de filha alegre e forte. Tudo para não sobrecarregá-la. A frequência das visitas de Álvaro no nosso apartamento só aumentava e sinceramente, eu partilhava da felicidade com a minha amiga, ela merecia, merecia muito! Mas todas as vezes que o gastro chegava, eu corria para me trancar no quarto, evitando qualquer assunto relacionado ao seu amigo. Se eu era uma covarde? Realmente não sei. Opto por dizer que eu só estava conservando o que me restava de saúde mental. Mais uma das manhãs nubladas de um sábado, onde eu preparei o meu mocaccino antes de enfrentar o dia cinza lá fora. Minhas aulas com a Sol permaneciam no mesmo horário, e eu me apressei para comer alguma coisa
mesmo que o apetite não fizesse mais parte da minha rotina. Levei um susto quando Álvaro apareceu na sala só de cueca. Ele também ficou espantado e logo pegou uma almofada do sofá para cobrir a parte frontal do único tecido que vestia. ― Não fique tão traumatizada. É o frio que deixa ele pequeno ― brincou, me fazendo sorrir. ― Bom dia ― desejei, terminando de tomar minha cafeína com chocolate. ― Eu já tenho que ir para o hospital, mas como sua amiga hiberna feito uma ursa, fiquei com dó de acordá-la ― ele pegou uma calça que estava pendurada no encosto do sofá e vestiu. Vai saber o que esses dois fizeram durante a madrugada enquanto eu dormia. ― Quer um café? ― ofereci. ― Eu tomo na lanchonete. É hoje que a Sol tem aula de balé? Eu posso te levar. ― Não, que isso Álvaro. Não se incomode! Eu já estou de saída. ― Mari, está um frio de enrugar pau lá fora. ― Sorte que eu não tenho um ― franzi minhas sobrancelhas, achando engraçada a referência. ― Posso, por favor, fingir cavalheirismo e levar a senhorita para trabalhar? Se você virar uma estátua de gelo Valentim não me perdoará. Olha só, até rimou. ― Se você prometer que não tocará no nome dele de novo pelo percurso, sim ― condicionei. ― Feito ― ele roubou meu copo e tomou o restante do meu mocaccino. O gastro era um cara descontraído, uma companhia alegre para começar bem o dia. Torcia demais para que ele e Carlie engatassem um relacionamento. Ele parou rapidamente em uma vaga proibida para que eu pudesse descer na frente do prédio. O agradeci e segui para a portaria. Minha entrada já estava autorizada, então só saudei o segurança grisalho do local e cheguei ao elevador. Toquei a porta algumas vezes, e quando se abriu eu fui envolvida por um vendaval de sensações. Eram palpitações crescentes, em cada partícula de mim. Cada vez que eu o via, um ciclone de sentimentos se aguçava no meu interior. Não consegui expressar reação, passei por ele e tirei o meu cachecol envolto ao pescoço. Olhei para a sala do apartamento e percebi o quão silencioso o lugar
estava. ― A minha sobrinha está deitada, com febre, não poderá realizar a aula hoje ― ele me informou. Desconfiei da situação. Charlotte com certeza me avisaria. Não o olhei, porque fiquei notavelmente abalada com a sua presença. ― Posso vê-la? ― pedi. O homem passou ao meu lado e caminhou pelo longo corredor, eu entendi aquilo como um sim. Andei atrás devagar e entrei no quarto da pequena tagarela quando ele me deu passagem. A irmã de Valentim estava sentada ao lado da filha, com um livro infantil em mãos, enquanto Sol se aconchegava deitada com a cabeça no colo da mãe. ― Tia Ana! ― feliz, ela sentou-se rapidamente. ― Oi, Sol ― me aproximei da cama e recebi um beijo na bochecha. Em seguida ela tossiu e fez uma carinha triste. ― Eu não vou poder dançar balé hoje ― comprimiu a boca pequenina ―, mas você pode ficar e me contar historinhas, junto com o Tio Valentim ― disse esperançosa. ― Não, senhora. O Tio Valentim te deu remédio e você precisa descansar. Não é, Tim? ― em seguida, Charlotte sorriu para mim como um gesto de cumprimento. ― Sua mãe está certa, Sol. Você precisa descansar para ficar boa logo ― e o irmão ajudou. De novo a expressão de decepção apareceu no rostinho dela. Mexi em seus cabelos fininhos e pensei. ― Ouça o seu tio e a sua mamãe, que rapidinho você fica boa para eu te levar em uma apresentação. ― Apresentação? ― seus olhinhos aumentaram-se. ― De balé. Sempre tem, e eu prometo te levar. ― Sou muito obediente não é Tio Tim? ― Então em breve você irá comigo em uma peça ― confirmei. Ela se empolgou e voltou à atenção para a mãe. Eu me retirei do quarto e voltei na sala para pegar minha mochila. ― Para de se punir tanto, Mariana ― ouvi a voz que eu mais gostava ressoar, proferindo as palavras com calma e um pouco de aflição.
Continuei parada e de costas para Valentim. ― Eu não me puno, estou bem ― estiquei meus lábios em um sorriso fechado quando virei-me de frente para ele. ― Está vendo como vive em penitência? ― o médico não se aproximou, estávamos a alguns metros de distância e mesmo assim, o volume da nossa conversa era muito baixo ―. Tudo bem se você não estiver bem. ― Por que está dizendo isso? Você não sabe. Ele soltou o ar levemente pelo nariz, e sorriu tristemente, também com a boca fechada. ― Por mim tudo bem se você é uma pessoa que se esconde. Se eu estivesse no seu lugar, muito provavelmente, não faria diferente. Talvez estivesse até pior. ― Do que está falando, Valentim? Não preciso que sinta pena de mim. ― Não sinto pena. Não tenho porque ter pena de uma mulher forte como você. Só estou dizendo que eu compreendo a necessidade do tempo que você tem para as coisas fluírem entre nós dois. Eu realmente entendo que seja uma pessoa fechada. Os seus olhos não desgrudaram dos meus, até quando ele se aproximou e colocou a mão no meu pescoço, acariciando-me delicadamente. ― Eu só peço que me dê o mínimo de espaço ― sussurrou. Deitei a cabeça em sua mão que moldou o meu rosto, fechei meus olhos e suspirei desolada. Quando abri as pálpebras, vi suas íris esverdeadas melancolicamente cravadas nas minhas. ― Sou a maior ilusão que você poderia ter encontrado ― segredei. ― Estamos sujeitos a fraquejar. Eu posso querer sair pela porta, mas prometo, Mariana, que sempre vou respirar fundo e voltar, para ficar ao seu lado. Me atormenta não poder mudar o seu passado e as suas frustrações, mas eu posso fazer você voltar a crer em um futuro. Porque quando eu te conheci, eu também voltei a acreditar. Foi invencível a luta contra a intensidade das suas palavras e ao que elas causaram no mais secreto do meu ser. Minha linha d'água entornou e eu senti uma lágrima solitária escorregar na minha pele. Ele beijou o ponto molhado, umedecendo seus lábios. Fechei meus olhos e me permiti sentir sua pele com a ponta do meu nariz, sua barba macia, e o cheiro que eu padecia a cada dia mais por desejar respirá-lo.
― Por favor, meu amor ― suplicou. Acheguei esfregando nossos lábios vagarosamente. Ele entreabriu a boca e sua respiração se unificou com a minha. Resvalei minha língua tocando na dele, em seguida contornei seus lábios. Coloquei minha mão em sua nuca e senti a quentura de sua pele. Seu gosto me inebriou no momento em que, sensivelmente, nossas línguas começaram a sintonizar em um ritmo compassivo. Firmemente, Valentim envolveu a minha nuca e dedilhou entre as mechas dos meus cabelos. Eu ficaria horas usufruindo do prazer que era a conexão excitante que tínhamos, entre a suavidade de seu toque variada ao enlaço masculino vigorosamente enlouquecedor. Mas ele pareceu ter despertado e voltado junto comigo ao cenário em que nos deparávamos: no meio da sala da casa da irmã dele. ― Você também me faz acreditar em um futuro melhor, Valentim ― confessei. Desta vez, não só sua boca, como seus olhos também sorriram. Seus lábios encostaram-se na minha testa e assim permaneceram por alguns segundos. Fomos juntos para o hospital. Cheguei para ficar com a minha mãe e identifiquei a energia cúmplice dos dois. Com certeza haviam conversado, mas naquele momento eu não ia contra. Eu era uma pessoa quebrada e como disse Valentim, tudo bem não estar bem. Aceitar isso seria um grande avanço para mudar o enredo da minha vida. ― Eu pedi para a sua mãe e espero que assim como ela, você aceite ― Valentim me abraçou por trás. Olhei primeiro para Martha, depois para ele, sem entender. ― O que? ― perguntei apreensiva. ― Eu quero que você passe o Natal comigo. ― Não ― nem cogitei e respondi ―. Ficarei no hospital com a minha mãe. ― Você me desculpa minha filha. Mas não vou te querer aqui ― ela sorriu e parecia realmente contente. ― Como não? Você é a minha única família, Dona Martha ― contrariei ―. Não é discutível isso. Desvencilhei de Valentim e sentei na ponta do colchão. ― Está na hora de você formar uma família, não é por nada não, mas está perto dos trinta, Mari ― ela ainda zombou de mim e eu estreitei o olhar.
― Está se desfazendo de mim? ― Não, a Sra. Martha só quer que a filha dela tenha um Natal digno ― Valentim ajudou a convencer. ― O que vocês andaram conversando? ― questionei desconfiada. ― Ah, minha filha. Você nunca comemorou, está mais do que na hora de modificar alguns maus costumes. Foi difícil, mas eles me convenceram. No dia 24 de dezembro eu passei a manhã no Saint Clair e aproveitei a véspera natalina com a minha mãe. Depois, Valentim me levou até o apartamento para terminar de arrumar a minha mala. Minha amiga e Álvaro estavam tão empolgados quanto nós, eles também passariam juntos, só que na casa da senhora Eleonora. Os pais do gastro, inclusive, eram amigos da família Del Torre, o que significava que Carlie seria apresentada para os quase sogros. Já Valentim deixou uma incógnita, não me contou para onde iríamos. E eu pouco ansiosa e curiosa que sou, fiquei perturbando-o até dizer chega, mas o danado não cedeu. ― Não quero estragar nada, mas... ― coloquei o cinto de segurança do carro dele e encostei na porta para fitá-lo ―. E a megera da sua ex? ― A Vivian têm muitos familiares em Seattle, os pais, tios, avós ― explicou, sem ligar para o adjetivo que eu coloquei. ― Entendi, mas quero saber como ela está reagindo perante as suas decisões. ― Ela foi algumas vezes no hospital e também na minha casa ― Valentim dirigia tranquilo, entrando em uma estrada pelo acostamento ―, mas estou fazendo de tudo para manter a calma e lidar da melhor forma. ― E existe uma forma de lidar com aquela louca? Ele sorriu e me olhou. ― Existe. ― Posso confiar em você? ― perguntei. ― Com todo o coração, bailarina. Me contentei. Coloquei minha mão em sua nuca e fiquei massageando seu couro cabeludo, vez ou outra descendo por sua pele, enquanto ele acariciava a minha perna, oferecendo-me seu sorriso fascinante.
19 Valentim Del Torre
Cada palavra da música Human que sua voz afinada emitia, vinha cheia de crença e persuasão. Ouvi barulho das louças se esbarrarem, e a água sair com força das torneiras aquecidas da pia. Havíamos feito um lanche rápido ao decorrer das quatro horas e meia de viagem, e como tinha mais de dois anos que eu não vinha para cá, a despensa não tinha um grão sequer e por isso, me apressei para ir ao mercado e abastecê-la. Pedi para a bailarina descansar enquanto eu fazia as compras, mas quem disse que ela era obediente? As luzes imitavam lampiões, quatro penduradas no alto do balcão e mais duas no centro do teto. Como todo o restante da decoração rústica, a cozinha continha itens de madeira escura que transmitiam a sensação de lugar quente. Minha casa de campo por mais que fosse climatizada com aquecedores construídos no subsolo, continuava gelada. O rio do extenso camping ficava muito próximo, e como na maioria dos natais, estava parcialmente congelado. As árvores estavam naturalmente decoradas com uma fina camada branca, e o orvalho também cobria todo o gramado que cercava o chalé composto de alvenaria. Fora as montanhas gigantescas que rodeavam a mata e traziam uma nevada glacial. Mariana ficou muito empolgada ao chegarmos e deslumbrada com o fato de termos a natureza como vizinha, que era como se tivesse esquecido ou deixado para trás todos os problemas que vivia. Eu larguei cuidadosamente as sacolas de papel no balcão de madeira, sem querer interromper o espetáculo que era vê-la dançando, rebolando no ritmo de Kiss Me Thru The Phone. Estava acostumado a assisti-la apresentando um balé clássico ou contemporâneo, mas naquele momento Mariana era o próprio Soulja Boy. Ela mexia a cabeça, remexia o quadril, descia requebrando e subia, tudo com um prato cheio de espumas nas mãos. Que playlist esquisita era aquela? Ela fechou os olhos, mordeu a boca e continuou balançando a cabeça. Eu não aguentei e comecei a rir. Já tinha sido seduzido o suficiente, mesmo achando engraçada a interpretação da música, ela tinha o dom inato de sensualizar.
Coitada da louça, foi jogada com força contra o metal da pia. Ela colocou a mão sobre o coração e praguejou alto: ― Que susto, Valentim! ― fechou os olhos e respirou fundo. ― Combina mais com você do que o próprio balé, professora ― cutuquei. ― Ah é? ― ela tirou o avental e secou as mãos em um pano. Escutei o volume da música atingir o máximo da caixa portátil de som. ― She call my phone like ― Mariana se aproximou com as duas mãos em frente aos seios, mexeu o quadril e virou-se de costas para requebrar a bunda em mim ― Da da dada, da.... We on the phone like, dada da da... Ela gosta de me ligar Nós, com o telefone Ela era contagiante. ― Baby you know that I miss you, I wanna get with you tonight but I cannot, babygirl. And that's the issue, girl you know I miss you, I just wanna kiss you ― é óbvio que eu conhecia as músicas populares do Soulja. Você sabe que eu sinto saudades Eu quero ficar com você, hoje à noite, mas eu não posso menina E essa é a questão Menina, você sabe que eu sinto saudades Eu só quero beijar você Deslizei as minhas mãos na sua cintura e as senti serem movimentadas com o próprio gingado de Mariana. Ela gargalhou daquele jeito que seu nariz parecia roncar, e dançou sem intervalos. Com suas mãos sobre as minhas, em seu comando, adulei seus peitos por cima do tecido da blusa, depois sua barriga, suas coxas e entre elas. O coque no topo da sua cabeça se desfez aos poucos e o véu dourado caiu sobre seus ombros e costas. O cheiro de flores com um leve adocicado de morango tomou toda a minha atenção. Peguei com força em seus fios, primeiro inalei o aroma afrodisíaco, e em seguida os ergui para expor sua nuca. Mordi a lateral do seu pescoço fino e distribuí beijos até voltar e esfregar o nariz em sua cerviz. Ela estremeceu, encolhendo-se para deixar sua pele inacessível. Segurei com mais força em seu cabelo, reclinando sua cabeça para trás e o rosto para cima,
possibilitando-a de me olhar. Seus lábios estavam entreabertos, e uma melodia nova e lasciva completava o ambiente conectando profundamente nosso olhar. Engoli minha saliva e permaneci encarando-a. Seus olhos diziam tanto, e acobertavam mais ainda. Eu estava fodidamente apaixonado, mais do que podia controlar, mais do que imaginei um dia ficar. Éramos nossos, como se o mundo e nada mais existisse, além de nós dois. Mariana tinha tanta luz própria, mais forte do que qualquer sombra que pudesse aparecer no nosso caminho. A mulher mais incrível e cativante que eu conhecia. Enfeitiçado, soltei suas mechas e em silêncio, ela ficou de frente para mim. ― Valentim ― ela sussurrou. ― Diga, amor. Estava virando um hábito chamá-la assim. Talvez fosse mesmo o que eu sentia por ela. ― Eu... ― de repente ficou preocupada, confusa. ― Pode falar. Pensei que naquele momento viria alguma confissão, que ela se desarmaria do escudo que eu tinha certeza que usava. Mariana escondia algo imenso e parecia sentir medo das consequências. Mal sabia que por ela eu suportaria o mais terrível dos segredos. ― Eu não tenho nada demais para te oferecer, além dos meus sentimentos. Como isso poderia ser comparado a algo insignificante? ― Para alguns é nada Mariana mas para mim, é tudo ― respondi certo do que estava falando. Um pouco receosa, ela sorriu. Suas pequenas mãos geladas achegaram-se no meu cabelo, próximo a minha testa e com carinho, ela me beijou. ― Eu amo quando você me chama de amor ― seus olhos fixaram nos meus. ― Eu amo tanta coisa em você ― confessei. Ela se afastou e pareceu pensar. ― Vou enxaguar os talheres, depois podemos terminar de montar a árvore. ― Não, nós vamos tomar um banho ― contrariei. Não aguentaria mais um dia, mais uma hora, mais minutos sem poder senti-la. Eu precisava daquilo como precisava de oxigênio. Havia demorado para
transarmos porque eu queria que fosse como ela merecia. Mariana finalmente sendo só minha, e eu dela. Naquele momento tive a impressão de que a bailarina sentia medo, por ter chegado a hora. Claramente Mariana não era virgem, como Vivian era quando nos casamos, e nas vezes em que nos beijamos, em que eu a toquei, ela que queria dar carta branca para prosseguirmos até o fim. No entanto, naquele instante, podia ser engano meu, mas ela estava com medo. ― Vamos acabar as coisas por aqui primeiro. Tem a árvore para montar, o turkey que eu preciso temperar e colocar no forno, e o molho gravy que você quer fazer. Turkey = peru Gravy = molho de carne Cruzei meus braços em frente ao peito quando ela retornou para a pia, ligou a torneira e ignorou a minha presença. Permaneci na mesma posição, até que se incomodasse com o silêncio e desse devida atenção para a situação. ― Tá legal ― ela fechou a torneira e continuou de costas para mim ―, eu estou com medo. ― Do que exatamente? ― Não quero que objetifique o meu corpo, eu preciso continuar sendo mais do que isso pra você. ― Mariana ― a repreendi e me coloquei ao seu lado ―. Olhe para mim enquanto eu falo com você, por favor ― pedi e ela o fez ―. Da onde está tirando essa ideia maluca? É óbvio que você não é virgem ― dei uma risada, descrente ―. Ou é? Ela abaixou a cabeça e negou. ― Não, não é por isso. Mas Valentim, se a gente transar e você não querer mais o que estamos construindo... ― Por que eu agiria assim? Se alguém já fez isso, foi um babaca. É impossível deixar de gostar de você por qualquer motivo que seja. Você é muito mais do que sexo pra mim. Desde que te conheci, fiquei louco para conhecer cada gemido, expressão e reação do seu corpo, mas optei por organizar nossas vidas primeiro, porque com certeza a pessoa que você é, é mais importante do que qualquer outra questão. ― Eu sinto que a qualquer hora essas promessas irão embora com o vento ― ela falou baixo, quase inaudível.
Foi inevitável a irritação. Que porra estava passando na cabeça dessa mulher? ― Você está acostumada com homens iguais ao Saulo, e deve gostar ― proferi impensadamente. O desejo que eu estava de tê-la se esvaiu com a lembrança do meu irmão. Seus olhos, agora tristes, olharam para os meus rapidamente. Ela secou as mãos novamente e se retirou da cozinha. Eu tinha falado merda e seria inútil tentar consertar de imediato. Preferi ir tomar um banho sozinho. Liguei as duas duchas com o intuito do vapor esquentar rapidamente o banheiro, tirei a calça, o suéter de lã e a blusa de malha, de mangas. Lógico que eu pediria desculpa pela idiotice, não era justo logo no nosso primeiro natal eu deixá-la mal, eu não tinha esse direito. Mariana se sentia insegura em fazer sexo comigo e ser largada, vai ver isso fazia parte da sua lista secreta de frustrações. Bufei, exasperado e com raiva da minha atitude. Repentinamente, ouvi o barulho do box escuro sendo aberto. Permaneci de costas para as portas de vidro, sentindo a água quente cair com força nos meus ombros e cabeça. Suas mãos finas e delicadas espalmaram minhas costas, e percorreram subindo nos meus ombros, descendo pelo meu peitoral. Seus lábios encostaram na minha pele molhada e ela perguntou baixo: ― Ainda estou convidada para o banho? Senti seus seios encostarem na minha omoplata e em seguida ela me envolveu, abraçando-me pelo pescoço, provavelmente na ponta dos pés. ― Você nunca vai ser um objeto para mim, bailarina ― disse ao segurar seus pulsos ―. E se quiser esperar termos um relacionamento mais concreto para acontecer, vou entender e respeitar. Devagar, ela tirou os braços de cima dos meus ombros e se posicionou na minha frente. Estava completamente nua, e eu também, já que havia tirado a boxer antes de ligar os chuveiros. Seu olhar não era como o de minutos atrás na cozinha, era cobiçoso, faminto. ― Eu confio em você, com todo o meu coração ― revelou baixo. A beijei, aflito por ter adiado tanto tempo. Peguei em sua nuca, delineei a curva da sua cintura e em seguida apertei a polpa do seu traseiro farto, colando todo o seu corpo no meu. Só os bicos ouriçados dos seus seios que tocavam ligeiramente o meu peito. As nossas línguas casavam em compasso e excitação. Suas unhas afiadas cravaram em minhas costas, arranhavam e apertavam. Coloquei ambas as mãos em seu rosto, limitando os fios úmidos de cobrirem
suas bochechas. Mariana se deleitou lentamente com a minha língua, e entre as minhas pernas o meu pau latejava, só de imaginar a sensação de ter a macies da sua boca nele. Sua mão direita o apanhou e começou a manejá-lo certeiramente. Afastei-me o necessário para dar espaço aos seus movimentos. Seu polegar circulou a minha cabeça que já pulsava, e quando gemi, Mariana deixou meus lábios e se agachou em minha frente. Dei passos para trás, evitando que a água caísse diretamente em seu rosto. As íris azuis pareciam acesas, faiscantes em direção as minhas. Passei as minhas mãos na altura de suas têmporas e uni seus cabelos, mantendoos como um rabo para o meu manuseio. Primeiro a mulher sorriu, um fodido sorriso ferino. Ela fechou as mãos no meu pau e desfilou com elas de cima para baixo, de baixo para cima, várias vezes. Tentei me controlar o máximo, mas era impossível. Minha garganta grunhia em consequência do tesão que Mariana me causava. Ela o lambeu por toda a extensão, aparentemente me preparando. Quando o abocanhou foi a minha perdição. Seus lábios pareciam desfazer um novelo, desenrolando-o lentamente. Sua boca o rodeava e sugava permitindo que eu conhecesse o limite da sua garganta. Mariana D'Ávila Com força, Valentim repuxou meus cabelos fazendo-me olhar para cima e encará-lo. Teimosamente, espacei meus lábios e encaixei vagarosamente o pau dele até alcançar minhas amígdalas. Ele fechou os olhos, pressionando as pálpebras, e com os lábios semiabertos, praguejou algum palavrão indecifrável. Com o incentivo da minha mão, voltei a chupá-lo. Verdadeiramente, nunca havia ficado tão excitada por ter o pau de alguém dentro da minha boca. Era como se eu quisesse engoli-lo, e ansiava por senti-lo dentro da minha boceta. Peguei em meus seios e apertei os picos rijos, belisquei e os puxei, sentindo um apetite sexual anormal. ― Mariana ― sua voz havia ficado rouca, baixa e mais deliciosa de ouvir. O olhei, sem deixar de masturbá-lo com as mãos ―. Abra as pernas ― pediu. Me ajeitei, trocando os joelhos pelos meus pés no piso frio, e fiquei muito
aberta. ― Passe os seus dedos na sua boceta ― foi mais como uma ordem, e eu acatei. Deslizei três dedos pelo meu períneo, sentindo a lubrificação natural misturada com a água quente do banho. Seu punho fechado no meu rabo de cavalo me redirecionou ao seu pau, e com prazer continuei o oral lento e intenso. Ouvi o puxar da respiração e o ranger dos dentes de Valentim. Penetrei meus dedos na minha abertura e acabei gemendo. Eu estava tão quente. ― Gostosa ― o escutei sussurrar. Lambi, chupei, suguei, enovelei lentamente com os lábios, despejei minha saliva, forcei até sentir ânsia, tudo tentando amenizar o desejo louco que eu nutria por ele. Fui levantada pelos cabelos e sua boca consumiu a minha, buscando misturar nossos gostos. Ele invadiu o meio das minhas coxas com a mão e enfiou dois dedos dentro de mim, suas investidas eram fortes e rápidas. O tesão já estava tão acumulado no meu ventre, que eu desmoronaria a qualquer vez que seus dedos chegassem até o final. Colei nossas bocas tentando abafar e confinar meus gemidos mais altos, mas ele voltou a segurar em meu cabelo, mantendo meu rosto a centímetros do dele para poder me assistir. Fechei os olhos e mordi meu lábio, depois entreabri a boca. ― Por favor ― supliquei. ― O que você quiser, Mariana ― ele arrastou os dentes no meu queixo e me mordeu. Eu me encolhi, contraindo o abdome, sentindo o orgasmo próximo. ― Isso só no meu pau, amor ― sussurrou rente ao meu ouvido. Eu estremeci mais e reclamei quando ele tirou os dedos. Estava sentindo meu corpo amolecer, provavelmente por conta do vapor e da água muito quente. Claro, só por conta destes dois fatores. ― Já que você quer esperar, paramos por aqui ― ele piscou e abaixou-se para mordiscar meu mamilo. ― Você só pode estar brincando.
Ele beijou meus lábios com um sorriso divertido na boca e eu continuei desconcertada. ― Seque o cabelo, não quero que você gripe ― beijou minha testa e girou os registros para fechar os chuveiros. ― Valentim! ― chamei sua atenção ―. Você não vai fazer isso comigo ― disse contrariada. ― Só seque os cabelos, bailarina. Me deu a toalha e eu logo me enrolei, ainda desapontada. O vi caminhar nu para o quarto após se secar, e expirei com força ao vislumbrar sua bunda sutilmente avantajada, as costas largas e musculosas, e os braços grandes com veias salientes. Que homem! Como podia ter tanto controle? O quarto, para combinar com a rusticidade do chalé, era escuro, com aparadores, cômoda, roupeiro, poltronas, cama e calçadeira da cama em madeira de demolição. A lareira do cômodo permanecia acesa desde que chegamos, com a brasa queimando as toras que já estavam pequenas. O piso de plátano escuro aquecia os meus pés, possibilitando que eu andasse descalça mesmo com a temperatura baixíssima. A casa de alvenaria e madeira no meio do nada, era aconchegante e sofisticada em contradição a rusticidade, devendo valer uma fortuna. Revirei minha mala a procura do secador e olhei Valentim de soslaio, ele parecia escolher um agasalho em sua mala que estava em cima de uma cadeira acolchoada. Brava, retornei para o banheiro e procurei uma tomada. Penteei meus cabelos e depois passei o ar quente pelos meus fios, sem ligar muito para a bagunça que a potência do sopro causava. Levei um susto quando o médico apareceu detrás do meu corpo, ficou me analisando com um sorrisinho sacana, mas mantive minha cara fechada. Ele beijou minha escápula e eu tentei desviar. ― Já disse que fico louco quando te vejo furiosa? ― É, sou uma fera ― falei com atrevimento. Ele gargalhou pendendo a cabeça para trás e eu tentei encontrar a graça. ― Vamos ver até onde minha felina é indomável. De repente, Valentim se abaixou entre as minhas pernas e levantou uma, apoiou meu joelho sobre a pia, deixando-me completamente aberta.
Desliguei o secador e o olhei, ele negou com a cabeça e disse para eu voltar a secar meu cabelo. Obedeci, mas delirei ao sentir sua língua atravessar da minha boceta até o meu ânus em uma lambida lenta e molhada. Com os dedos firmes, ele segurou minha perna que estava para cima e com a outra mão apertou a minha bunda. Valentim sugou o meu clitóris e brincou com ele, dando uma leve mordiscada. Eu fechei meus olhos e escutei minha respiração chiar. Rebolei com o quadril e com a mão livre, peguei em sua cabeça embaraçando seus fios entre meus dedos. ― Sua boceta tem o gosto do paraíso, Mariana ― ele enfiou a língua e a movimentou dentro de mim. O homem saboreou cada milímetro, chupou com vontade alternando entre lento e rápido. Variando as sucções entre fortes e fracas. Larguei o secador na pia após desligá-lo e virei-me de frente para ele. Pousei minhas mãos em seu rosto e o olhei dentro dos seus olhos. ― Você vai me comer hoje, e agora! ― ditei. O sorriso satisfeito e descarado que ele deu, me deixou extasiada. Quando fui pega no colo, senti a cabeça larga e escorregadia do seu pau tocar a minha abertura. Tentei rebolar, mas ele segurou na minha bunda para impedir. Fui deitada na cama e Valentim cobriu meu corpo com o seu. Ele trilhou beijos pelo meu rosto, pescoço, desceu para os meus seios e mamou neles. Massageou meus bicos, olhou para os meus olhos e sorriu. Maldito sorriso! Estávamos tão sintonizados, entregues e loucos um pelo o outro que era possível detectar isso nos nossos olhares, no nosso toque, no calor das nossas peles e no descompassar da nossa respiração. Pela primeira vez eu não me sentia um usufruto qualquer de alguém, pela primeira vez eu estava com um homem que ia muito além de interesse carnal. Sua boca se apossou da minha, como se ele precisasse sorver o meu prazer e desfrutar comigo o delírio que causávamos um no outro. Minha boceta pulsava tanto que, quando ele entrou, sentimos um estalo. Arqueei as costas do colchão e puxei as roupas brancas de cama, arranhando selvagemente. Fiquei em transe ao ser preenchida por inteiro. Com os cotovelos apoiados nas laterais do meu corpo, Valentim colocou uma mão em meu rosto e contornou meus lábios com o polegar. Quando abri os olhos para observá-lo, sua mandíbula parecia travada, rígida.
― Está deliciosamente molhada ― ele umedeceu os lábios e eu sorri, apenas confirmando com a cabeça. O vi se apoiar com as mãos para poder ficar um pouco distante do meu corpo e vagarosamente, ele começou a ritmar as estocadas, colocando todo o seu membro. Meus gemidos ainda eram baixos, e os grunhidos de Valentim demonstravam seu completo deleite ao se enterrar dentro de mim. Era lancinante o desejo que crescia no meu íntimo, meu ventre sofria espasmos constantes só de tê-lo escorregando para o meu interior, e por isso, contraí seu pau largo e comprido inúmeras vezes, sem sequer notar. Ele me beijou e eu aproveitei para enclausurar os meus gritos falhados, que vieram quando os movimentos tornaram-se mais rápidos, profundos e pesados. Peguei em seus ombros, em sua nuca, beijando-o perdidamente. Baguncei e puxei seus cabelos, mordi seu lábio e ele retribuiu tudo na mesma intensidade. ― Sou ― tentei falar mas fui interrompida pelo meu gemido obsceno ― louca ― ele mordeu meu pescoço e eu gemi novamente ― por cada parte do seu corpo. E era verdade. Meu Deus, como era verdade! A primeira vez que eu dizia por condicionamento natural e real do meu corpo, do meu desejo e dos meus sentimentos. ― E é seu, cada centímetro ― insinuou, e eu sorri com o duplo sentido. Valentim saiu de cima de mim e eu aproveitei para ficar de bruços, uni minhas pernas e empinei a minha bunda. Ele primeiro analisou. Eu deitei meu rosto de lado, no travesseiro para poder olhá-lo. Senti suas mãos alisarem minha bunda, apertarem com um pouco de força e por último senti um beijo em cada banda. ― Levante o quadril, bailarina ― pediu. Ele colocou um travesseiro um pouco alto por baixo da minha barriga, e eu sabia que desta forma o sentiria entrar ainda mais fundo. Sua mão percorreu pela minha coluna, arrepiando-me inteira. Ensandeci com a visão de ter o seu pau encaixando-se perfeitamente entre o meu traseiro, invadindo minha boceta e a encharcando ainda mais. Ele segurou na minha nuca com rigidez, me fazendo voltar a olhar para o seu rosto, e eu fitei a sua boca fisgada entre os dentes. Valentim estava todo concentrado enquanto me penetrava.
Apoiado em um só joelho, ele foi colocando tudo. Em sequência se escorou com as mãos novamente no colchão, deitou-se sobre o meu corpo, e entrou até suas bolas baterem no meu clitóris. Sentindo o clímax apoderar-se das minhas estruturas, eu comecei a pressioná-lo, retraí-lo com tanta força que o fiz gemer. Senti uma mordida no meu ombro, em seguida de beijos tentadores. Nossos corpos se colaram enquanto suas estocadas ficavam mais violentas, mais deliciosas. Aproveitando do espaço proporcionado pelo travesseiro embaixo do meu quadril, Valentim me enlaçou e levou a mão no meu clitóris. Estimulou o meu ponto inchado e dolorido, enquanto eu tentava com todas as forças me desvencilhar e sair debaixo dele. O orgasmo me tomou em proporções cruéis, meu corpo recebeu uma descarga elétrica incontrolável, fazendo minhas pernas tremerem e meu gemido sair esganiçado, falhado e descomedido. Levei minha mão para trás e espalmei em seus músculos do abdômen, oblíquos e bem definidos a fim de pará-lo. Seu olhar parecia me incendiar. Gritei seu nome, mas ele não parou. ― Você vai gritar o meu nome toda vez que gozar? ― segurou no meu pescoço e beijou meu maxilar ― Vai? ― Vou ― choraminguei com o que restou da minha voz. Instintivamente fiquei de quatro e rebolei, empurrando minha bunda contra o colo dele, indo para frente e para trás em um ritmo louco e desgovernado. Desta vez ele tentou me impedir, mas foi em vão. ― Mariana! ― advertiu, sem fôlego. Subitamente senti lágrimas escorrerem dos meus olhos, eu estava no ápice do tesão. Com brutalidade ele me parou, segurando na minha bunda a ponto de marcá-la. Os últimos movimentos não permitiram que ele entrasse até o talo, porque seu pau estava completamente sensível. Naquele momento o ouvi rosnar ao se aliviar, gozando por longos segundos. Sua respiração permaneceu trêmula e demorou para Valentim sair. O famoso silêncio reinou. Só quando recuperei minha consciência que lembrei do preservativo, mas fiquei com vergonha de falar. Recebi beijos carinhosos na linha da minha coluna até chegar na minha bochecha. Meu corpo estava desfalecido no colchão, a mercê de qualquer coisa. Estava acabada. Nunca tinha tido um orgasmo tão longo e avassalador.
― Do que adiantou o banho? ― questionei, de olhos fechados. ― Podemos tomar outro para nos restabelecermos ― sugeriu se divertindo com o meu estado ―. Próximo round? Eu costumava ser tão desbocada, treinada a falar baixaria durante as transas com os clientes, a receber tapas, xingamentos, ficar vermelha, roxa, perder toda a minha dignidade durante o sexo, mas desta vez não. Sequer falei, me soltei porque se não, entraria em uma ebulição ocasionada pelo tesão e volúpia crescente que Valentim proporcionava. Não sei dizer se inconscientemente era medo de mostrar algo que o fizesse desconfiar de qualquer coisa, ou se eu estava, pela primeira vez, me descobrindo no sexo, me permitindo ser conduzida pelas sensações e sentimentos. ― Por que está quieta? ― quis saber, preocupado. Quase fui tomada pelo impulso de olhar no fundo dos olhos dele e dizer que eu o amava, mas engoli as palavras e me sentei. ― Só cansada ― sorri ―. Podemos descer e colocar os enfeites no pinheiro de natal? ― Ei ― ele abraçou minha cintura quando levantei ―. Estou certo de que você tem o corpo mais bonito que eu já vi, os seios, a barriga ― ele depositou um beijo na mesma ― as pernas, a bunda então... não preciso nem falar ― sorriu, parecendo rememorar nossos minutos anteriores ―, mas minha felicidade está presente no seu sorriso. Eu não quero que fique preocupada. Nós não só "transamos" agora ― fez aspas com a mão ―, nós fizemos amor. E eu não vou te descartar como uma mulher qualquer. Você é a minha mulher, consegue entender? ― Valentim se pôs de pé e segurou em meu rosto ―. E é valiosa demais para mim. A declaração tão inesperada fez meus olhos marejarem. Concordei com a cabeça e passei meu nariz pelo dele levemente. Fechei meus olhos e sussurrei: ― Já disse que confio em você. ― Me perdoa pela besteira que eu falei antes do banho. Não cometerei a burrada de te ofender de novo. Fitei as íris esverdeadas e sorri. ― Você é maravilhoso, Valentim, e eu quero ser sua cada vez mais.
20 Mariana D'Ávila
Ficamos entre chamegos e carícias. Depois, tomei outra ducha e coloquei o moletom bem quente que ele me ofereceu. Regressamos para a sala e eu o ajudei acender a lareira, porque o fogo anterior já havia tostado todos os pedaços de troncos. Eu estava faminta, fazer amor com Valentim tinha me dado uma fome de dois dragões. Não aguentaria esperar as horas para o turkey ficar pronto, não mesmo. Assim que terminamos de decorar a árvore de natal, sim, duas ou três horas antes de dar meia noite, nós partimos para a cozinha. ― Não senhora, comer pipoca e tomar vinho? Deixa eu pensar em alguma coisa ― Valentim nem cogitou minha ideia para saciar a vontade de comer logo. ― Qual é o problema? Pelo menos é rápido! ― reclamei ―. Já comi pipoca em inúmeros natais. ― Por isso mesmo. Eu sou o responsável por mudar os seus maus costumes ― ele piscou para mim e eu revirei os olhos. Como o sinal de celular era impossível, não tinha como acessar a internet, eu já estava sem mesmo, desde que Saulo quebrou, então Valentim fez uma receita que estava fresca na cabeça. Fondue de queijo. Meu estômago roncava enquanto ele preparava e organizava os ingredientes. Ver as luzes piscando na árvore, as bolas brilhantes e coloridas, as caixas que imitavam presentes no pé do pinheiro, tudo, não me remetia a nada. Não conseguia me lembrar desta data de forma alegre porque nas três vezes que tentamos comemorar, meus pais acabaram discutindo no final da noite, e acabou em violência drástica. Era uma lembrança nova para entrar na minha memória. Valentim fazia parte do novo ciclo, onde com calma, ele tentava juntar os meus pedacinhos para me remendar dos danos passados. Independente dos meus receios, sentia-me extremamente segura ao lado dele, e querendo ou não, este sentimento em demasia me despertava um novo medo. Eu estava vivendo a completude nas alturas, a queda seria grande e catastrófica.
― Comprei sorvete, posso fazer um brownie recheado para acompanhar ― o homem totalmente prendado sugeriu, com o freezer aberto. ― Não quero sobremesa, comi muito ― coloquei minha mão sobre a barriga e ganhei um sorriso de satisfação. ― Já é natal. Acho que posso te dar o presente ― ele fechou a porta do freezer e caminhou em minha direção. Senti um beijo nos lábios e seus olhos pousados sobre os meus ―. Eu sei que está claro, mas preciso reforçar o quanto estou feliz de você ter aceitado passar esta data comigo. ― Eu não me lembro de ter passado um natal tão contente, obrigada Valentim ― retribui o beijo e o acariciei no rosto ―. Mas... eu não comprei um presente para você. Decidimos as pressas sobre vir, me desculpa. Ele sorriu, me olhou, me olhou e me olhou. ― É clichê dizer que você é o melhor presente? Torci o meu nariz para o lado, franzindo-o levemente e concordei com a cabeça. ― Clichê, mas pode repetir porque eu adorei ouvir ― dei uma risadinha e ele me abraçou. ― É o meu melhor presente ― beijou meu rosto e nós voltamos para a sala. O embrulho estava em cima de uma poltrona de madeira pintada de branca, com o acolchoado da mesma cor. Ele me entregou a sacola temática de sinos e trenós e eu me sentei no sofá ao lado para abrir. Desfiz o laço curiosa, dentro havia uma caixinha. Abri e sorri ao encontrar uma miniatura de baú. ― A chave ― ele pegou e me entregou uma mini chave ―. Há outra surpresa esperando por você em Seattle. ― Homem! ― o censurei ―. Não fique gastando comigo. Sem contar que sou a curiosidade em pessoa. Girei a chave no baú marrom com detalhes em ouro, e assim que a tampa se abriu, uma pequena bailarina delicada de cristal apareceu, girando na ponta fininha da sua sapatilha, a música era a clássica Tchaikovsky, dos Cisnes, a que Sol amava. ― Pedi para personalizar, não queria que fosse a mesma melodia chata de sempre ― nós rimos. ― Eu tive uma caixinha de música aos sete anos ― contei a Valentim, sorrindo ao admirar os detalhes tão delicados do presente ―, mas meu pai quebrou, e... não chegava aos pés desta aqui ― passei a mão sobre o veludo interno.
― Abra aqui... ― ele apontou para uma gavetinha frontal do baú. Dentro, estava guardado um colar na cor prata, mas parecia ouro branco. Os dois pontos brilhantes das sapatilhas reluziram quando o peguei na mão. ― Ah Valentim ― suspirei ao deslizar o polegar pelo pingente ―. Não tinha como ter escolhido melhor. Obrigada ― agradeci novamente. ― Posso? ― pediu olhando para a joia em minha mão. Entreguei e virei-me de costas, segurando meus cabelos para ele por em meu pescoço. Senti um beijo no meu ombro e na minha nuca, depois do colar ser colocado. Fechei os meus olhos quando Valentim segurou nos meus braços para dar continuidade ao caminho percorrido com os seus lábios. ― Você está me devolvendo a vida, Mariana ― sussurrou com a boca próxima ao meu ouvido. Senti a mordida leve no meu lóbulo e encolhi o pescoço, totalmente arrepiada. ― E eu quero fazer parte dela, sempre ― respondi, entorpecida. ― Sempre, meu amor ― desta vez a sua voz quase não saiu. Ele segurou em minha nuca e despejou beijos mais intensos e ardentes. Eu tentei me esquivar, totalmente sensível ao toque, mas Valentim me prendeu para torturar minha pele. Já não suportando o sofrimento prazeroso, eu me virei de frente para ele e aconcheguei-me em seu colo, com uma perna em cada lado do seu quadril. Senti suas mãos em minhas pernas, que logo subiram apertando a lateral do meu corpo. Beijei seus lábios, provocando-o com a língua e mordiscando o inferior. Ele sorriu quando ameacei beijá-lo. Enfiei meus dedos pelos seus fios e fitei seus olhos por longos segundos... ― O que eu fiz para merecer um homem tão incrível? ― questionei baixinho. ― Não exagere. A pessoa incrível aqui é você. ― Bobagem ― dei o ombro ―. Eu não me canso de olhar pra você ― disse sorrindo ―. Contaria cada sarda ― passei o indicador na parte superior de seu nariz onde concentrava-se a maioria delas ―. E seus olhos me lembram o fim de tarde, quando o céu ganha uma infinidade de cores e tons. Esse amarelo perdido no verde, às vezes azulado... ― observei cada minuciosidade das nuances de suas íris. Ele negou com a cabeça e estreitou o olhar para mim, opondo-se aos meus elogios.
― Divina é a sua beleza, Mariana. Suas íris sim, são como dois mirantes dos mares mais azuis e cristalinos. E essa sua boca ― ele alternou o olhar para os meus lábios e involuntariamente eu prendi o inferior entre os dentes ―, tem o formato de um coração. Sem contar que ela faz coisas fantásticas ― insinuou ao passar o polegar para soltar o meu lábio da mordida. ― Faço coisas fantásticas com a boca?! ― indaguei em um timbre provocativo. Minha mão deslizou para a sua nuca e eu fechei o punho firmando os dedos em seus cabelos, mordi seu queixo e mantive o tom baixo ―. Estou sentindo bem aqui ― rebolei em seu colo quando percebi que seu membro já estava grande e endurecido ―, que sim. Valentim gemeu, fechando os olhos e umedecendo a boca. Meus lábios se separaram em um sorriso libertino quando suas pálpebras abriram e ele me fitou novamente. Encostei lentamente nossos lábios e envolvi minha língua na dele, iniciando um beijo calmo e carregado de desejo. Tirei minhas polainas e as meias sem nos desgrudarmos, passei sua blusa de malha pelos braços e cabeça, aproveitando para pegar e tatear seu corpo vigoroso e quente. ― Você é tão gostoso ― cochichei em seus lábios. ― Gosto deles livres assim... Ele comentou ao tirar minha blusa de moletom, que na verdade era dele, enquanto apalpava as minhas curvas com uma força acentuada. Por não ter seios grandes, eu não tinha o hábito de usar sutiã em casa, gostava de deixá-los livres. ― E eles amam suas chupadas, mordidas... Antes de eu conseguir terminar, senti uma intensa sugada no meu mamilo. Puxando a respiração entre os dentes, fechei meus olhos e deitei a cabeça para trás. ― Valen... Ele fez o mesmo com o outro, e os eriçou mais quando começou a passar a língua superficialmente, deixando-os totalmente durinhos. Sondei os arcos que seus músculos formavam em suas costas, arranhando e apertando sua pele. Involuntariamente, meu quadril iniciou uma dança lenta e ritmada em seu colo, possibilitando, principalmente porque estava sem calcinha, que eu sentisse apuradamente a grossura e solidez do seu pau. ― Também é um costume muito bom não usar calcinha, bailarina ― sua voz
ainda tinha imponência e controle. Sua mão estava encaixada por baixo do meu peito enquanto me encarava. ― Deveria aderir e ficar sem nada ― provoquei, com a sanidade adormecida pela excitação. Valentim me enredou com o braço e me levantou somente para se livrar da calça fina cinza de pijama. Voltamos a nos sentar e seu pau quase escorregou de uma vez para dentro de mim, mas ele o tirou e me sacaneou com um sorriso devasso. ― Você me tortura tanto ― reclamei. ― Já disse que fico louco quando te vejo contrariada ― beijou meu pescoço e eu fechei meus olhos. Ele passou a mão pelo membro e eu me afastei um pouco para dar espaço. Valentim deslizou a coroa rosada por entre os meus lábios úmidos, escorregando com o nosso líquido pré-ejaculatório. Mordi meu lábio emitindo um som longo de tesão e ele gemeu quando eu o apertei. ― Você precisa parar com isso, ou não vou aguentar nem cinco minutos. ― Se você parar de me torturar ― revidei. Em consonância, nos observamos nos olhos e depois alternamos o olhar para nossas bocas. Valentim Del Torre Depois de tanto tempo desprezando um bom sexo, eu tinha percebido que até nas melhores das fodas, minha ex-esposa não atingia os pés de Mariana. Não que fosse justo comparar uma mulher com a outra, até porque minha bailarina era inigualável. Mas desde horas atrás notei que todas às vezes anteriores, no decorrer dos meus trinta anos, não tiveram uma conexão magnética tão tangível. Nossos corpos bailavam em uníssono. Estar dentro de Mariana era inebriante, como uma droga que me levava aos níveis mais altos e antes inalcançáveis de prazer. Ela era abrasadora, sua boceta era a mais quente. E as pressões esmagadoras que fazia contra o meu pau, me levavam até o céu, de onde por pouco, eu não voltava. Mariana prosseguiu com as reboladas deliciosas, encaixando o meu pau e tirando-o. Estávamos nos provocando, para saber quais eram nossos limites de controle.
Ela apoiou os pés no estofado, nas laterais do meu corpo, e me ofereceu a visão erótica da sua boceta engolindo a cabeça do meu membro. Quando foi se levantar, eu a fiz sentar de uma vez, até o final. Mariana deitou a cabeça no meu ombro e mordeu meu pescoço com força, oprimindo seu gemido escandaloso. Segurei em seus cabelos e meti dentro dela. Entrando e saindo. A obriguei olhar para mim. ― Quero ouvir seus gemidos. Embora sua visão parecesse turva, embriagada, ela obedeceu, permaneceu focada nos meus olhos. Mariana começou a castigar o lábio inferior e eu não aguentei observar, ataquei sua boca com uma avidez tórrida, explorando e aproveitando da habilidade lenta e convidativa de sua língua. Seus braços envolveram o meu pescoço enquanto suas mãos apertaram o estofado atrás da minha cabeça, para apoiar e impulsionar seus movimentos no meu colo. Não demorou para que a bailarina entrasse em frenesi, buscando sentir mais. O impacto das suas sentadas ficaram fortes, nossas peles batiam uma contra a outra causando sons, suas descidas se aprofundaram, como se ela quisesse foder com o meu pau até o último milímetro. Passei minhas mãos em suas costas, apertando e trazendo seu corpo suado para o meu, mas ela se afastou e estendeu os braços em direção ao sofá, a cima do meu rosto. Seus seios ficaram na altura da minha boca, e com o meu pau inteiro dentro, ela começou a friccionar a virilha na minha. Para frente e para trás. Se deliciando perdidamente. Admirei suas pequenas montanhas que, resvalavam em meus lábios. Coloquei minha língua para fora e permiti que seu bico deslizasse por ela toda vez que seu seio quicava perto, em seguida o devorei, encaixando-o quase inteiro na minha boca, não deixei o outro livre, segurei-o e castiguei seu mamilo com o polegar. ― Valentim ― era possível sentir seus pelos todos ouriçados nas minhas mãos, a tremedeira sutil em suas coxas, os gemidos entrecortados e falhados ―. Me chupa... assim ― pediu que eu continuasse o que estava fazendo ―. Isso ― ela pegou no seio que estava na minha boca e o forçou ainda para dentro. ― Você gosta de rebolar no meu pau, não é? ― mordisquei com um pouco de força o pico sensível e belisquei o outro com os dedos ―. Então continua, com força ― segurei em sua bunda, fincando meus dedos em sua pele e comandei
seu vai e vem corpulento. Ela me fez abandonar seu peito quando avançou em meus lábios, e mordeu de forma dolorida o inferior tomando a minha boca, despejando nela todos os seus malditos ruídos deleitosos que me arrancavam da órbita. Um sorriso safado corrompeu ainda mais a figura angelical de alguns minutos atrás, e me levou ao inferno, onde meu corpo todo queimou de prazer. Para não finalizarmos em segundos, fui obrigado a levantar, com ela ainda no colo. ― Você é a mulher mais fodidamente saborosa que eu conheço ― beijei seu pescoço, me entorpecendo com seu perfume misturado ao meu. Depois olhei em seus olhos e sorri, ao vê-la fazendo o mesmo. Cuidadosamente, abaixei-me no tapete felpudo de lã em frente a lareira da sala, deitei Mariana e voltei a enfiar o meu pau. Mariana ficou concentrada em meus olhos, seu corpo subia e descia no ritmo lento das estocadas. Compenetrado em suas íris, levei dois dedos em sua boca e ela os lambeu sensualmente, depois chupou e babou neles. Com a sua própria saliva, esfreguei seu clitóris levemente. Tomado pela tentação de assistir meu pau sendo consumido, alternei meu olhar para nossos sexos e intensifiquei as metidas. ― Você me fode tão gostoso ― sussurrou, com a voz embargada no gemido. Eu podia sentir que na segunda vez a sua entrega já era maior. Era uma satisfação desvendar cada parte da ilha paradisíaca que compunha o seu corpo. ― E eu estou com tanta vontade de gozar ― confessou, abrindo um sorrisinho travesso, fechando os olhos com as sobrancelhas franzidas e deixando um longo gemido gutural escapar. ― Goza, Mariana ― incentivei, fazendo movimentos leves em seu clitóris ―. Encharca o meu pau, amor ― provoquei, mantendo uma cadência bem demorada de entra e sai. Suas costas arquearam-se do tapete. De olhos fechados, Mariana virou o rosto para morder o próprio braço e aprisionar seus gemidos mais altos na pele. Ela apalpou os seios, e involuntariamente o quadril levantou-se em direção ao meu. Com brutalidade, Mariana começou a chocar seu corpo contra o meu, fazendo meu pau entrar até o final, em seu ritmo. Deixei.
Sem deixar de estimular a área inchada e pulsante. ― Amor ― Mariana lamuriou. No ápice, ela tentou tirar minha mão, segurou meu pulso com força mas eu impedi. Aumentei a velocidade e fui mais do que recompensado quando sua boceta lançou um esguicho prolongado. Seu gemido veio baixo e durou muitos segundos até acabar. Trêmula e inerte, Mariana tentou novamente controlar minha mão. Cedi, por notar o quão fraca ela ficou. Mas deitei meu corpo sobre o dela, sentindo-a escorregadia por causa do gozo todo, e também pelo suor misturado ao meu. Estávamos transpirando libido. Enterrei o meu pau, canalizando o peso no quadril e a beijei nos lábios, enquanto ela se recuperava aos poucos. ― Isso nunca tinha acontec... ― tentou se explicar. ― Shhh... ― a beijei novamente ―. Foi uma delícia. Seu mel tinha poder de afoguear o meu pau em níveis absurdos. E com mais três estocadas, me esvaziei completamente dentro dela. E não, não existia dúvidas sobre o que estava fazendo. Eu seria o homem mais feliz do mundo se Mariana carregasse um filho meu. Não que fosse acontecer agora. Tínhamos muito o que crescer, superar, amadurecer um relacionamento, em suma: viver. E por isso, presumia que ela se cuidasse com algum método contraceptivo. Mas se Deus concedesse um fruto, a qualquer hora, eu seria grato. Mariana D'Ávila A nossa noite tinha sido uma loucura. Valentim era um homem insaciável, ou eu, talvez nós dois. Usufruímos da maioria dos cômodos do enorme chalé antes de adormecemos na cama gigantesca de casal. Senti um pouco de medo para dormir. O silêncio do lugar por ser uma reserva ecológica, era preenchido por sons da natureza. Os zumbidos cricrilantes dos grilos na beira do rio, o coaxar dos sapos e o crocitar das corujas formavam uma melodia que eu não estava acostumada, mesmo vindo do interior. Valentim conversou comigo até que eu pegasse no sono. Ele me contou que Ana ainda estava viva a última vez que visitou o camping, ela que o acompanhava
para as aventuras superselvagens, de trilhas, montarias e mergulhos. Vivian nunca esteve presente, não tinha paciência para estas programações. Já eu, fiquei imaginando como seria sensacional desbravar o mundo com Valentim e a filha dele. Combinamos de voltar no verão para trazer a Sol, porque no inverno ficava inviável realizar as trilhas e passeios do local. O que eu sei é que fui dormir ao amanhecer, com o canto matutino dos pássaros. O quarto estava meio escuro quando abri os olhos, devido às janelas fechadas. Meu braço estava aberto para o lado, e nisso eu percebi que Valentim já havia levantado. De repente, senti minha mão tocar em folhas, levei um susto e virei o rosto para ver. Era um buquê de rosas de um vermelho bem vivo e brancas, enrolado e preso com um ramo seco. Sorri feito boba. A caligrafia dele era ilegível, horrível, na hora assimilei com o fato dele ser médico e ri sozinha. Me esforcei para compreender as palavras,
"Bom dia, meu amor. Me espetei todo com os espinhos para pegar essas rosas, mas posso mentir e dizer que sou um sortudo por fazer amor com uma felina indomável, que me arranhou inteiro. Bom, em respeito à sua amizade com a cama, eu vou até o rio e já volto! Seu mocaccino está no balcão." Bem no cantinho:
"Vou te proibir de dormir nua, ou serei incriminado por abuso de inconsciente, e não ria da minha letra." Gargalhei alto e encostei o bilhete nos lábios, pensando no quanto Valentim era
apaixonante. Procurei um agasalho na minha mala, mas ousei em ir até a dele. Peguei uma cueca samba-canção preta, e ouvi um tilintar sobre o chão no momento em que fui puxar a blusa de moletom. Era um relicário preso com uma corrente dourada. Dentro tinha uma foto de uma criança encantadora, dos cabelos lisos e cacheados nas pontas, os olhos verdes como esmeraldas e um sorriso banguelo, o contorno do quadrado que formava o relicário estava escrito "Ana e papai". Coloquei a peça junto ao meu coração e fechei os olhos, como uma oração silenciosa ao espírito puro da pequena Ana. Senti um arrepio subir da minha lombar ao meu pescoço. Abri meus olhos, olhei aos arredores e guardei novamente a joia. Eu a amava sem mesmo conhecê-la e a perda que Valentim carregava era esmagadora. Percebi naquele instante que eu sofria as dores dele, assim como ele sofria as minhas e que eu não queria mais mascarar as impurezas da minha alma. Eu não me adequava a nenhuma das narrações em que ele me viu interpretar. Talvez, eu fosse o lado mais sombrio dos contos, o personagem que se tornou a consequência dos traumas, ou o vilão dominado pelo pecado que se deixou aniquilar pelo caminho mais fácil. A minha coleção de frustrações era grande e estava na hora de começar a exterminá-las.
21 Valentim Del Torre
Foi preciso um tempo na beira do rio, que estava parcialmente congelado, para organizar o ciclone dentro do meu coração. Tentei elucidar a mim mesmo sobre os possíveis sentimentos emergidos de forma tão veloz. Pela primeira vez, depois de tanto sofrer, ao aceitar uma vida estagnada dentro de um casamento frustrado, eu estava esperançoso a respeito de reencontrar a felicidade. Porque com certeza, Mariana significava o reencontro com este estado de espírito. O recomeço. A restauração. Ela era a minha chance, ou o meu impulso. Me sentei em um banco pequeno, após passar na casa de caça e pesca, preparei uma vara de carretilha, porque mesmo que estivéssemos no inverno, os peixes ficavam famintos e pegavam as iscas. Me esforcei para isolar os pensamentos ruins que começaram a tempestuar na minha cabeça. Tinha medo que ela decidisse se afastar novamente, temia principalmente continuar não sabendo os verdadeiros motivos por tanta recusa ao nosso relacionamento. Se antes eu não suportava ficar longe, agora muito menos. Prosseguiria com o mesmo método de aceitação, deixando-a digerir aos poucos, confiar e se abrir no seu tempo. Mas para isso, eu precisava estar perto. — Te achei, finalmente — ouvi sua voz e olhei para o lado. Ela estava vestida com um casaco verde, escuro e comprido, com botões dourados e uma gola que protegia seu pescoço do frio. Suas pernas estavam cobertas por uma calça preta justa de moletom, que quase não aparecia por causa da bota comprida até os joelhos. Seu véu de fios dourados estava um pouco desgrenhado e caído sobre os ombros, o nariz com a ponta vermelha, assim como as maçãs coradas por consequência da temperatura. A imagem de Mariana se contrabalançava em uma linha muito tênue entre sonho e realidade, às vezes desacreditava que uma mulher tão atraente poderia estar na minha frente, partilhando do mesmo desejo intenso que o meu. — Você gosta de pescar? — ela perguntou fazendo uma careta.
— Sentar em frente a um rio me traz paz — respondi e deixei a vara encaixada no banco. Me levantei e me aproximei dela. — Concordo — envolveu os braços em meu pescoço —. Bom dia, Valentim — desejou, encostando os lábios nos meus. — Bom dia, Mariana — retribuí o beijo e o sorriso —. Você tomou o seu café? — Tomei, obrigada por ser tão atencioso — ela agradeceu e depois deitou sutilmente a cabeça para o lado, me analisando. — O que foi? — questionei, curioso. — Onde fica a casa de caça e pesca? Também quero. — Eu te levo. — Não, fique aqui. Me diz como chego. Expliquei o caminho, não era longe da onde estávamos. Mariana parecia pensativa, como se de novo estivesse se preparando para me dizer algo. Aquilo me incomodava, mas não era tão importante quanto ao amor que eu nutria por ela. Resolvi ir atrás quando os minutos foram passando. Entrei no telheiro e senti uma fisgada ruim no peito ao encontrá-la conversando descontraidamente com um homem. Ambos estavam muito próximos, estudando as varas de pescar. Ele parecia informá-la das características, enquanto ela ficava atenta aos detalhes. A fisgada tomou dimensões maiores quando o novo colega a fez gargalhar espontaneamente. O imbecil ainda a apreciava com completo despudor, alternando entre seus olhos e sua boca. Ela só parou de rir quando virou e se deparou comigo. — Valentim — disse, um pouco assustada. — Meu amor — dei alguns passos na direção deles. — Ele ia me ajudar a escolher — explicou. O homem se manteve em sua postura, sorridente e seguro da situação. Assenti com a cabeça quando ela falou e a enredei pela cintura. — Agradeço — estendi a mão para saudar o cara, que correspondeu, dissimuladamente, de bom grado —, mas deixa comigo, eu ajudo a minha namorada. Mariana me olhou averiguando minha expressão, depois sorriu sem graça para o
homem, e nos afastamos para ir até outras prateleiras. — Marcando território? — cochichou para mim. — Divertida a companhia, Mariana? — questionei também baixo, enquanto evitava o contato visual com ela ao escolher os artigos para a pescaria. — Isso tudo é ciúme? — continuou cochichando. Ignorei a pergunta e levei os utensílios até o balcão para pagar. Cruzei nossos dedos quando saímos, e voltamos para a beira do rio. — Vai continuar mudo? — insistiu. — Você ganha a atenção por onde passa, e isso não é ruim. Você é linda — tentei especificar —. Mas não suporto a forma lasciva que te olham. Preferia que fosse um direito só meu, mas o desejo dos filhos das putas fica sempre evidente. — É bobeira sua — senti seus braços sobre meus ombros e o carinho na minha nuca —. Homens costumam ser desrespeitosos sim, mas eu me imponho. Não fique apreensivo. — Impossível — resmunguei, ainda desconfortável. — Você também é um homem completamente atraente e além disso, rico. Acha que não percebo a quantidade de mulheres caidinhas? Que fariam tudo para ter algo seu? Mas não deixo que me incomode tanto, porque eu acho que estamos nos tornando um casal muito bonito, e o que importa é que eu te respeito e você me respeita. Não podemos permitir que a insegurança interfira — ela disse, olhando nos meus olhos. O amargo veio na minha boca de repente, lembrei do meu irmão e me esforcei para não projetar na minha mente momentos íntimos dos dois. Ela não tinha culpa, mas foi inevitável. — Podemos? — perguntou olhando para as peças em minha mão. Concordei e abri o segundo banco para que ela sentasse. Preparei outra carretilha e nos acomodamos um ao lado do outro. — Valentim, você consegue contato com o hospital? — perguntou. — Já entrei em contato, sua mãe está bem, estável. — Obrigada. Novamente, o silêncio. — Aqui é lindo — aparentemente, Mariana queria harmonizar o clima entre nós
dois. — É. Ela pareceu se conformar. Se posicionou de frente para o rio e se concentrou no movimento dos peixes. Coloquei três no balde, mas a pedidos de Mariana os retornei para a água. Ela não queria matá-los e disse que só estava ali por causa da serenidade que o som da leve correnteza proporcionava. — Você agradece por estar vivo? — tive que rir com a nova tentativa de diálogo, ela só sorriu e deu os ombros —. Estou falando sério. Olha isso — apontou o horizonte com o queixo. Admirei as montanhas, as árvores verdes mescladas com o brancor dos cristais de gelo, o som da floresta que nos cercava, por fim, encarei os olhos de Mariana, e foi como se no mesmo instante, eu encontrasse o mar. Não me cansava de contemplar suas íris sublimemente celestiais. — Eu esqueço — confessei. — Gosto da sua sinceridade — seu sorriso se prolongou, aformosando o seu rosto. — E você, agradece? — Tenho dias muito ruins, mas não deixo de dizer obrigada, porque tenho consciência de que tive dias ainda piores — ela abaixou a cabeça, balançando-a —. Eu agradeço por ter a minha mãe, sei que é por pouco tempo, mas achei que a perderia na infância. Eu agradeço por não ter que conviver com a violência do meu pai. Agradeço por andar, Valentim — voltou a me olhar, e eu a interroguei com a minha própria expressão —. Fiquei um tempo sem os movimentos das pernas por consequência de uma lesão na coluna, causada por uma pancada. E meu mundo desmoronou sob os meus pés, sabe? Porque eu sonhava em ser reconhecida como bailarina — as revelações sempre vinham de repente, eu nunca estava esperando quando Mariana finalmente contava algum dos seus traumas. — Ele bebia muito? — Muito. E arrumava qualquer mero e insignificante detalhe para brigar com a minha mãe. Ele tinha ódio de mim por defendê-la, sem contar que sempre quis ter um filho homem. Era como se eu fosse um peso na vida dele. — O que com certeza é mentira. Criança nenhuma é peso para os pais, muitas vezes o fardo é contrário.
— Ele era o meu fardo. Pesava muito ter que viver embaixo do mesmo teto. — Imagino que sim — respondi baixo. Ficamos em silêncio. Vi sua saliva passar com pressão entre seu músculo digástrico na garganta. Ela estava se preparando para falar. — O primeiro abuso foi quando eu tinha dezesseis anos. Fiquei inteiramente estarrecido, lívido. — Mas eu sempre fui do grupo dos moleques, nos cursos, na escola. Eu sabia me defender até certo ponto. Precisei aprender a brigar cedo — ela riu da própria situação —. E eu consegui me proteger dele. — Sua mãe sabia? — Depois de alguns meses eu não aguentei mais, então contei. — Ele chegou a consumar? Ela negou com a cabeça. — Por pouco. Mas Valentim, o abuso psicológico era muito mais devastador. Todo mundo está acostumado a ouvir a relação da violência sexual com a culpa, e é exatamente isso. Na minha cabeça eu era a responsável por despertar os desejos nele. A esta altura, já estava me martirizando por ter falado minutos antes do olhar dos homens sobre ela. Com certeza ouvir esse tipo de comentário inflamava suas feridas. — Me perdoa, amor — pedi, fiquei em pé e me abaixei em sua frente com as mãos apoiadas em seus joelhos —. Eu não deveria ter dito aquilo. — Não peça desculpas. Eu o matei — proferiu, e seu olhar ermo transbordava as lágrimas acumuladas —. Ele tinha uma espingarda, e naquele dia eu tinha voltado tarde para casa, queria ficar até o ultimo minuto na escola de dança. Ele descontou na minha mãe porque não aturava que eu ficasse fora de casa. Quando cheguei, tudo estava quebrado, minha mãe ensanguentada no chão e ele como um animal em cima dela. Segurei em suas mãos que começaram a tremer e beijei cada uma. — Se não quiser lembrar, tudo bem — disse baixo. — Não, você precisa saber que eu não sou esse anjo que idealiza. — Você ter tirado a vida de alguém para resguardar a sua e a da sua mãe, não te torna uma pessoa má.
— Eu nunca chorei pela morte dele, a morte do meu próprio pai. Eu não me arrependo, Valentim — ela ergueu os ombro e os abaixou —. Eu não me arrependo de ter atirado na cabeça de uma pessoa do meu próprio sangue. — Você estava saturada. Eu faria o mesmo, muitas pessoas fariam o mesmo pela sobrevivência — apertei suas mãos, mantendo meu olhar convicto e fixo no dela. — Eu tenho medo de ir para o inferno — ela sorriu —. Será que eu sou maluca? — Não, não é — sorri de volta —. Eu teria matado um delinquente como o seu pai se ele fizesse o que fez com uma criança minha, e iria para o inferno com a consciência tranquila. — Está dizendo que eu vou, então? — ela riu. — A sua atitude foi de um ser humano sensato que preza pela própria vida e acima disso, pela vida da mãe. Você se esgotou e Mariana, eu faria coisas piores por Ana, por um filho meu. Mariana d'Ávila Além de tudo era um homem compreensível. Era errado procurar algum defeito escuso nele? Existia, não era possível! — Você fala muito sobre crianças e sobre Ana. E-e-e — gaguejei ao tentar esclarecer — , é claro que eu adoro quando me conta algo da vida dela. Eu a amo sem nem conhecê-la, e às vezes até chego pensar que sinto saudade. Eu sei que parece engraçado, mas é o meu sentimento — falei um pouco receosa. — Diga, Mariana — Valentim já havia percebido que eu estava ponderando para exprimir algo sério. — Sei da importância para você, mas não quero que fique decepcionado. Ele soltou as minhas mãos, aguardando que eu confessasse uma questão complicada. — Eu não quero ser mãe. Não quero ter filhos. Valentim se levantou visivelmente perturbado com o que eu acabei de falar. Passou a mão sobre a boca e voltou a me olhar. — Esse assunto não precisa ser conversado agora. Estou ciente de que estamos no começo de um relacionamento. Você não usa contraceptivo, é isso?
— Não, não tomo remédio. E é uma decisão que eu tenho formada há anos, muitos anos. — Tudo bem, amanhã quando voltarmos para Seattle eu te medico, e a partir de hoje nós usaremos preservativo, não tem problema. Mas não é necessário você definir. Temos muito tempo pela frente e a vida está em constante mudança, nós estamos sujeitos a mudar de planos sempre. — Você não está entendendo — me levantei para ficar de frente a ele —. Eu não vou ser mãe. Não vou te dar filhos porque simplesmente não posso criar alguém. — Não precisamos falar sobre isso agora — ele repetiu, contrariado. — Escuta — segurei seu rosto entre minhas mãos —, é minha obrigação te informar, se você realmente pensa em ter um futuro ao meu lado. Não posso e não vou te iludir. — Mas Mariana... — Valentim! Eu nasci e cresci em um lar disfuncional, minha educação foi bruta e cruel. Não tive figura paterna e nem mesmo materna, mesmo que minha mãe tentasse agir para fazer diferente. Adquiri a disciplina da rua, e mesmo amando balé, convivi com moleques. Não tenho um por cento de capacidade de formar, cuidar ou apoiar uma criança. Quieto, ele me abraçou. Apoiou o queixo na minha cabeça e acariciou meus cabelos. Eu queria falar mais, mas seu gesto foi um meio de me calar. — As suas atitudes provam o contrário — sussurrou —. Se Deus tivesse escolhido você para Ana, tudo teria sido melhor. — Você realmente não entende... — Entendo sim. Ele me soltou e sorriu ao colocar uma mecha para trás da minha orelha. — Vamos entrar? Está frio e eu fui proibido de matar peixes. — Desculpa — enruguei o nariz e torci a boca —, por ter desanimado a sua pesca, mas os peixinhos não merecem. — Você me anima de outras maneiras — depois de ter pego todo o material, ele rodeou meu pescoço com o braço e nós caminhamos de volta para o chalé. Resolvemos fazer o almoço quando o dia já estava escurecendo, eu tinha acordado tarde. Uma chuva começou a cair sobre os telhados de madeira e o barulho servia de calmante.
Valentim serviu vinho em duas taças e eu me sentei na banqueta para vê-lo cozinhar. — Posso te ajudar? — perguntei. — Você é um desastre na cozinha, amor. — Está vendo? Vou listar inúmeros motivos para a recusa da maternidade. — E eu vou listar infinitos a favor. Com a ajuda do vinho, engoli minha contestação e me calei novamente. — Lave as folhas e tempere a salada, por favor. Desci da banqueta e fiz o que ele pediu. Como estávamos transitando próximos ao forno, a casa toda fechada com o aquecedor no subsolo ligado e as lareiras acesas, eu comecei a sentir calor. Fui para o quarto e me despi de todo o agasalho, vesti uma blusa comprida do Valentim, o que já estava se tornando um costume. Aproveitei para colocar mais do vinho docinho que ele havia deixado em cima da mesa e fui para a cozinha. Ele sorriu quando me viu com a sua roupa, mas continuou cortando os legumes sobre a tábua. As mangas de seu suéter estavam arregaçadas. Eu venerava ver seus braços e suas mãos trabalharem com tanta precisão. O relógio dourado estava no mesmo lugar de sempre, e eu me sentia abençoada toda vez que reparava o seu anelar esquerdo livre do anel de casamento. Não aguentei admirá-lo por muito tempo, então me aproximei. Passei minhas mãos por seus ombros largos e em seus braços. — Você é todo concentrado e me deixa completamente desconcertada. Continuou a passar a faca fatiando o legume. — Você não faz ideia do quanto me desconcentra — confessou —. Perdi a conta de quantas vezes tive que refazer receitas prescritas erradas. — Culpa minha? — perguntei, brincando. — Tudo culpa sua — concordou. — E se eu te falar que estou com os peitos do jeito que você gosta, você se desconcentra? — Sem sutiã, bailarina? — perguntou, desacelerando o ritmo dos cortes. — Uhum — apertei e massageei seus ombros levemente. Deslizei minhas mãos
pelo seu peitoral, passando as unhas sobre seus músculos —. E sem calcinha também — provoquei mais. Ele largou a faca e ficou de frente para mim. Sorri sentindo-me vitoriosa e mordi meu lábio em seguida. — Você não é um anjo mesmo. — Não, não sou — lentamente, peguei na barra da blusa e subi passando-a pelos meus braços. Valentim não hesitou quando fiquei inteiramente nua. Ele me pegou facilmente pela cintura e me colocou em cima do balcão. Atrevida, abri minhas pernas e ofereci a visão da minha boceta. Parecia que ele me atearia fogo só com o olhar, e eu estava adorando. — Toca nela. Acatei a ordem e coloquei dois dedos sobre meu clitóris, fiz movimentos circulares e triangulares. Apertei os dedos dos pés no balcão ao sentir o calor incendiar meus poros e com a outra mão toquei meus seios, um de cada vez. Ele espalmou as mãos nas minhas coxas, deixando-me ainda mais exposta. Seu dedo médio deslizou entre os lábios umedecidos e imediatamente eu contraí meu abdômen. — Molhe eles — trouxe os dedos até a minha boca, eu os lambi, chupei e por fim deixei minha saliva escorrendo no comprimento deles. Suguei a respiração e comprimi a entrada da minha boceta quando Valentim penetrou dois dedos. — Se masturbe mais, amor — ordenou, fazendo-me aumentar a velocidade dos movimentos. Comecei a sentir suas investidas com mais profundidade, minhas paredes internas se contraíam naturalmente e, toda vez que isso acontecia, Valentim me olhava inquieto. — Vou ao quarto e quando eu voltar, quero que esteja pingando — tirou seus dedos e eu só consenti com a cabeça, sentindo-me entorpecida. Imaginar que eu teria seu pau grosso me abrindo e estocando até o meu limite, estimulou ainda mais para continuar me tocando. Enfiei meus dedos sem abandonar a minha região inchada e palpitante. Gemi, e ignorei o estrondo causado por derrubar um objeto não identificado no chão.
Queria dar o que ele tinha pedido, então aprofundei meus dedos e os coloquei com mais força. Minha outra mão ia para os meus seios e voltava para o meu clitóris. Minhas pálpebras grudavam-se com força quando o tesão quase alcançava o último nível. Eu precisava dele para atingir. — Valentim — bradei ofegante. Não tinha um minuto que ele havia saído, mas eu precisava, estava desesperada. Tirei meus dedos quando o vi em minha frente, meu peito subia e descia por consequência da respiração. Senti meus cabelos baterem em minhas costas e grudarem nelas. Eu já estava suando. — Fui pegar isso — ele me mostrou a embalagem metalizada. — Imaginei — respondi e voltei a ficar com a boca entreaberta. — Mulher, você está pingando — olhou deslumbrado para a minha boceta. — Você pediu, amor. Passei meus dedos pelo núcleo onde escorria uma pequena quantidade de lubrificação. — Pensei no seu pau dentro de mim — incitei. — Você é muito gostosa! — ele passou o polegar no meu bico enrijecido —. Mas primeiro eu quero sugar o seu prazer. Depois prometo me enterrar dentro de você. Com um maldito olhar malicioso, ele se abaixou um pouco para se encaixar no centro das minhas coxas. Sua língua veio certeira, com uma lambida sorveu a maior quantidade do líquido, depois com a pontinha dela, começou a desfrutar e abrasar o meu ponto mais aceso, me levando a um delírio intenso. — Não goze, Mariana! — seu tom foi autoritário. Abri meus olhos e o encarei, assenti com a cabeça e me controlei ao máximo para não desmanchar em segundos. Frustrada, descontei gemendo. Fiz um escândalo na cozinha ao sentir leves metidinhas com a língua macia, enquanto suas mãos achegaram com firmeza em meus seios. — Homem! — vociferei, com a voz completamente trêmula. — Passaria horas fazendo isso, sua boceta é deliciosa — ele chupou meu clitóris e eu revirei os olhos. Pus minhas mãos em seus cabelos e os puxei sem medir a força. Fiz Valentim
olhar para os meus olhos e determinei: — Ou eu encharco seu pau agora, ou a sua boca. Sorrindo, ele se distanciou ficando com a coluna ereta novamente. Tirou o suéter e abriu o botão da calça jeans. Desci do balcão, coloquei minhas mãos no botão e no zíper na expectativa de me abaixar e devorar o seu pau, mas fui impedida ao ser posicionada de costas. Ele me fez apalmar o balcão, sua mão passeou entre a minha bunda, tocou sutilmente minha vagina e desta mesma forma, me deixou empinada. Encostei o queixo no meu ombro para poder olhá-lo e joguei meu cabelo para o lado oposto. Inesperadamente, senti seu punho fechar quando segurou meus cabelos e sua boca se aproximou da minha. Nos beijamos ardentemente, brigando e despejando o desejo com as nossas línguas. Saboreei do meu gosto em seus lábios, o que me excitou dez vezes mais. Ouvi o barulho do plástico metalizado e sem abandonar minha boca, ele entrou em mim. Entrou sem piedade. Como avisado, eu gozei. Ele manteve os dedos firmes em meus cabelos e a boca colada na minha. Gemi e tentei amenizar a loucura voltando a beijá-lo. Ele sugou minha língua, com a outra mão agarrou meu quadril, e com os impulsos fez minha bunda colidir contra seu colo. Larguei seus lábios e abaixei minha cabeça, extasiada, fervendo. Não demorou para Valentim pegar meus cabelos pela nuca e repuxá-los, fazendo minha cabeça ir para trás. Olhei seu rosto acima do meu e gritei quando ele estocou com furor até o final. — Todo dentro, como você queria — ele encostou os lábios na minha testa e continuou segurando meu cabelo como uma corda de manejo. Fechei meus olhos com força e soltei um gemido esganiçado. — Olhe para mim — puxou o rabo de cavalo. Voltei a encará-lo com dificuldade, e em seus olhos estavam estampados seus instintos mais primitivo. Um homem que até o momento eu desconhecia, entregue e inebriado pelo tesão.
— Mete mais forte — usei um tom baixo e sensual. — Mariana! — ele considerou, com um sorrisinho travesso. — Me faz tremer! Deixa minhas pernas bambas. Mete em mim até não aguentar mais! — despejei minha profunda vontade e fui censurada com o seu olhar. Ele parecia estar um pouco receoso —. Você não vai me machucar — assegurei. As investidas permaneceram desaceleradas e fundas. Seu olhar ainda estava cravado no meu, querendo buscar confiança sobre o que eu havia pedido. Eu não titubeei. Sua mão segurou minha perna e a colocou para cima. Ele sabia que nesta posição era possível chegar até o meu limite interno. A cadência foi aumentando, mais veloz, mais feroz. Sua cabeça pendeu para trás e ele fechou os olhos, soltando o ar dos pulmões com força. Valentim apoiou as mãos nas suas costas rente ao quadril e conduziu suas estocadas para dentro de mim. Mantive meu traseiro parado, fazendo nossos corpos chocarem. Ele acelerou mais. Mais fundo. Com mais potência. Seu pau estava muito duro e me preenchia inteiramente. Nossas palavras ficaram desconexas, indecifráveis, eu estava perdida, enlouquecendo. Conheci a voz e o arquejo mais gutural de Valentim, o que com certeza intensificou o meu completo deleite. Eu rebolava, pressionava minha bunda para trás, o arranhava, e o puxava querendo nos fundir. Enquanto ele, segurava em meu pescoço, nos meus cabelos, beijava meu ombro, minhas costas, a nuca, meu rosto, roçando sua barba macia, deixando minha pele alva bastante avermelhada. O suor era abundante, e quando atingimos o clímax, meu corpo desabou. Minhas pernas não me obedeciam mais, foi necessário que ele me segurasse para me manter em pé. Era bom experimentar novas versões do sexo. Ele conseguia provar que o significado e o sabor eram totalmente diferentes de todas as vezes que eu fiz. Incomparável. — Eu quero isso todos os dias — falou com o fôlego arfando. — Eu também — senti ele tirar o membro de dentro de mim, mas seu braço
continuou envolvendo o meu corpo. — Todos os dias quando voltarmos, Mariana. Antes de dormir e ao acordar. Meu cérebro ainda não tinha se recuperado do êxtase, demorei para processar. — Está dizendo que... — Estou dizendo que sou louco por você, que eu quero dormir e acordar do seu lado. Eu dei risada em reação ao nervosismo. — Quero que pegue suas roupas, a nossa lobinha, suas fantasias dos contos de fadas e se mude para a minha casa. Realmente compreendi que a queda seria muito, muito alta. Não estava preparada para protagonizar mais uma tragédia na vida de Valentim. Eu sabia que mentira não combinava com sabedoria. Mas eu não mentiria. Poupar seria omissão. Não sustentaria mais a vida que eu levava, até porque sentia repulsa só de pensar em outro homem encostando em mim. Eu deixaria no passado. Deixaria que Valentim quitasse a dívida do hospital, e rezaria para que o seu irmão nunca nos atrapalhasse.
22 Mariana D'Ávila
P
— ara, Valentim! Me larga! — implorava entre as gargalhadas afogadas —. Eu vou morrer, me solta, homem! — tentava empurrá-lo e ria mais e mais. — Você precisa dizer só uma palavra... — ele deu uma pausa para que eu pudesse recuperar um pouco do fôlego. Respirei fundo e ameacei falar, mas aproveitei para tentar fugir. Ele me capturou e me jogou na cama novamente. — Você não vai fugir, bailarina — tornou a fazer cócegas, com seus dedos cutucando as minhas costelas e minha barriga —. Uma palavra. — SIM, SIM, SIM! — esgoelei, achando que realmente morreria sem ar. — Eu sabia que aceitaria — finalmente ele me largou, como se não tivesse me obrigado a aceitar. Assim que chegássemos, eu pegaria as minhas coisas e me mudaria para a sua casa. — Considerando essa sua forma gentil de pedir... — ironizei. Ele ficou sentado na beirada do colchão, me olhando com o lábio inferior preso entre seus dentes branquinhos. Estreitei os olhos e balancei minha cabeça em negação. — Eu não conhecia esse seu lado persuasivo — disse. — Coisa pouca. No meu caso, é mais fácil dizer o pouquíssimo que conheço de você. Senti uma energia densa pairar sobre nós após ter falado, mas me sentei ao seu lado e peguei em sua mão. — E ainda assim está convidando uma estranha para morar com você — mexi em seus dedos, encaixando-os nos meus e depois encarei seus olhos. — É possível que desta forma eu tenha a chance de desvendar os mistérios da estranha — ele piscou para mim e em seguida beijou os nós dos meus dedos. — Você está ficando louco — retruquei brincando.
— Por você, a cada dia mais — respondeu, com um sorriso afável na boca. Avancei, derrubando-o na cama e tomando seus lábios. Nosso beijo logo se transformou em uma labareda que só se apagaria se nos consumíssemos, e foi o que fizemos. Depois arrumamos nossas malas para a infeliz volta a Seattle. Eu estava com saudade da minha mãe, não era mais acostumada a ficar longe dela, era algo raro de acontecer no decorrer dos anos desde que descobrimos sua doença, mas foi como suprir uma necessidade que não dava mais para relevar. O trajeto para retornarmos a nossa cidade foi tranquilo. Conversamos, cantamos, conversamos e conversamos. Faltando duas horas eu acabei deitando o banco e cochilando. A manhã estava mais gelada que o comum, e o interior quente do carro me fez relaxar para adormecer. Despertei ao sentir Valentim fazer carinho em minha bochecha, abri os olhos com um pouco de relutância e o vi sorrindo com os lábios fechados, estava me observando. — Chegamos. Continuei com o rosto encostado nas mãos, na mesma posição encolhida no banco de couro com o casaco dele sobre meus ombros. Olhei ao arredor e não reconheci o lugar. — Aonde, homem? — No seu segundo presente. Franzi minhas sobrancelhas e averiguei todos os lados pela janela. Confusa, voltei a olhar para ele. — Desça, amor — ele pediu. Enfiei meus braços no casaco e fechei o zíper, sendo praticamente congelada com a temperatura externa. Valentim envolveu o braço na minha cintura e juntos caminhamos para dentro de um prédio construído com tijolinhos. Um dos tipos de arquitetura antiga que eu admirava em Seattle. — O que é isso? — cochichei no ouvido dele. — O presente que eu falei — ele passou a mão sobre o bolso da calça e então ouvi o tilintar das chaves. — Valentim! — censurei, hesitante.
— Anda, bailarina! Quero que tenha o seu próprio espaço. O vi acenar para o homem da recepção do prédio e eu fiz o mesmo, um pouco atônita. Ele me guiou para o elevador e subimos até o primeiro dos quatro andares. Logo estávamos em frente a uma porta de vidro que possibilitava a vista interna do salão. Ansiosa, enfiei as três chaves na fechadura até conseguir abrir. O lugar tinha espelhos inteiriços por toda parte, as barras de apoio para aulas de balé, vestuário feminino e masculino. Tudo arejado e claro devido às janelas grandes. — É sério? — eu quis confirmar, com o fio de voz que restou. — Gostou? — ele colocou as duas mãos no quadril, observando o espaço. — Você está de brincadeira comigo! — eu fiquei maravilhada. — Assim você não precisa ficar se deslocando para todos os cantos, é bom que tenha o seu próprio lugar. Um segundo foi o suficiente para eu estar no colo dele, abraçando-o e enchendo seu rosto de beijos. — Você não existe! — beijei seu pescoço e apertei meus braços nele querendo esmagá-lo. — Existo, e sou todo seu — seus lábios finos e rosados se fenderam, formando uma covinha charmosa e perdida na barba do lado esquerdo. — Obrigada, mil vezes obrigada — segurei seu rosto e selei sua boca incontáveis vezes. Desci do seu colo e andei por cada metro quadrado do salão, que não eram poucos. Distribuí todos os colchonetes, rosas e azuis pelo chão, mantendo-os plastificados, e imaginei o movimento das aulas, pude até ouvir as vozes das crianças, dos meus futuros alunos. Me imaginei crescendo, evoluindo em direção a um sonho que me acompanhava desde a infância e que, graças a Valentim eu estava alcançando. Foi inevitável não me emocionar. Ele me abraçou por trás e beijou meu ombro. — Você merece — sussurrou. — Eu amei! Minha felicidade é tão grande que mal estou cabendo dentro de
mim. Mas... — fiquei de frente para ele —. Preciso te dizer que ter alguém como você é mais importante do que qualquer coisa material. Cultuamos o silêncio sem desgrudarmos nossos olhos, gratos e confiantes nos nossos sentimentos prósperos. Valentim me beijou tão intensamente que eu amoleci em seus braços, o deixei conduzir, e sua mão confirmava, em cada toque, o quanto eu pertencia a ele. Pouco mais tarde, fomos para o hospital. — Você vai me esperar? — perguntei. — Vou para a nossa casa descarregar o carro. Também preciso pegar a Lua no apartamento da Charlotte — ouvi-lo falar "nossa" casa tranquilamente acelerou meu coração. Como podia se adaptar tão facilmente com a ideia? — Então tá, eu vou entrar para vê-la. Preciso muito — me espreguicei erguendo os braços e movimentei o pescoço para um lado e para o outro. — Peça para a recepção me ligar e eu passo te buscar quando você quiser ir embora — senti sua mão tocar na parte de trás da minha cabeça acariciando-a com a ponta dos dedos. — Eu pego um táxi, fique tranquilo. E... obrigada, amor — sorri e me aproximei para beijar sua boca —. Pode deixar que eu desfaço minha mala quando chegar. — Certo — ele me deu mais um beijo e olhou para a porta quando eu a abri para sair. Arrumei meu cabelo sobre os ombros e subi as escadas frontais do Saint Clair. Cumprimentei a recepcionista quando as portas automáticas se abriram, e alguns enfermeiros que sorriram amigavelmente, como se eu já fizesse parte da equipe hospitalar. — Loira, você voltou — senti Álvaro apoiar o braço em meu ombro ao se aproximar de mim. — Oi, Álvaro. Voltamos! — Feliz natal, atrasado — ele me abraçou e eu correspondi. — Feliz natal! — desejei —. Está vazio — comentei ao notar os corredores menos movimentados do que o normal. — Final de ano é assim mesmo, a maioria dos pacientes que permanecem são da oncologia. Comprimi os lábios, triste com o fato.
— Bom, vou ver minha mãe. Sabe se Carlie está no apartamento? — Não sei te informar, não a vejo desde a noite da véspera. Há quase três dias. Temi por ela, minha amiga com certeza estava trabalhando. No final do ano, devido às festas, Pauline exigia mais das meninas, considerando que a demanda diminuía, os homens resolviam ser bons pais e maridos, então a frequência na casa caía muito. Consequentemente, tínhamos que ralar mais para poder manter o padrão. Dona Martha me deu um sorrisinho fraco quando cheguei em seu leito, ela pegou minha mão assim que sentei ao seu lado, e tirou a máscara de oxigênio, que era um novo adereço até então não visto por mim. — Por que está com a máscara, mãe? — questionei. — Não tenho força para respirar sozinha, minha filha — segurou o aparelho afastado da boca —. Você está bem? Como estão as coisas com Valentim? — seu fôlego esgotou e então ela voltou a encaixar a máscara cobrindo o nariz e a boca. Suas olheiras estavam tão profundas, seus olhos cansados piscavam lentamente, e seu peito fadigava de forma agoniante ao inspirar e expirar a respiração. — Ah, mamãe — lamentei, levei minha mão em sua careca e passei o polegar em um gesto de carinho —. Não gosto de te ver assim — respirei fundo e tentei focar no outro assunto para não aborrecê-la —. Estamos bem, a viagem foi ótima. Obrigada por ter me convencido. Ela sorriu novamente e tirou a máscara. — Ele vai cuidar de você, como eu nunca cuidei. Te fará feliz como você sempre mereceu. Meus olhos encheram d'água e eu os fechei, sentindo as linhas molhadas descerem pelo meu rosto. — Não gosto quando a senhora fala com esse tom de despedida — sussurrei e voltei a olhá-la. — Não há porque se entristecer, filha — senti seu dedo gélido tocar minha bochecha para impedir que as lágrimas continuassem molhando-a —. É o ciclo da vida, e agora estou feliz que você tenha encontrado alguém para se reconstruir. Estou tranquila. A fiz respirar na máscara novamente porque sua voz estava ficando mais baixa e abafada. — Eu só queria que — disse aflita — que as coisas fossem diferentes para você,
para nós duas. Queria que a senhora pudesse se recuperar e viver todo o tempo que perdeu. — Meu amor, olhe para mim — ela levantou meu rosto ao apoiar o meu queixo com o dedo —. Você me deu a vida desde que chegou, desde que nasceu, tão pequenininha e frágil. Você me ensinou muito, me fez sonhar mesmo quando vivíamos um pesadelo. Se fizesse ideia do orgulho que tenho, fui abençoada com uma filha incrível. Você é um ser humano de muita luz, meu bem — ela secou mais algumas lágrimas que teimavam em cair —. Agora por favor, deixa de chorar. Voltou a inalar o oxigênio e eu assenti com a cabeça. — Senhorita D'Ávila? — ouvi uma voz grossa atrás de mim, passei as mangas do casaco no rosto para secá-lo e me levantei. — Já volto — gesticulei com a boca para minha mãe, que apenas sorriu. Era o Dr. Phillip, nefrologista do hospital. — Posso dar uma palavrinha? — Claro — puxei o ar pelo nariz e afirmei com a cabeça. Nos afastamos do quarto e ficamos na antessala. Eu sabia e sentia que não eram boas notícias. No estágio da minha mãe, eu não esperava mais nenhuma guinada, infelizmente já tinha perdido as esperanças. Não sei se isso era correto diante da fé que possuía em Deus, mas a verdade é que eu só precisava encarar a realidade. Colocar meus pés no chão e enfrentar com lucidez. — Você quer se sentar? — o médico parecia preocupado. — Não, obrigada. Posso ficar aqui — cruzei meus braços e mantive meus pés firmes no chão, mesmo tremendo inteiramente por dentro. — Certo. Eu tentei comunicar você e o Dr. Del Torre, mas o seu celular sequer chama e o do doutor estava sem sinal. — É, estou sem — contei —. E viajamos para um local afastado. — Sim, eu soube que o Doutor contatou o hospital para saber da sua mãe, mas eu não estava presente. Conseguimos mantê-la estável mas é a minha função dizer que o quadro da Sra. Martha não é bom. — Imaginei — empurrei minha saliva com dificuldade. — Os rins da sua mãe, junto aos pulmões, estão em desequilíbrio funcional. A
deterioração de alguns órgãos ocorrem de maneira progressiva, e isto ocorre como uma degradação sistêmica. Consegue compreender? — indagou e eu assenti —. É como uma cadeia interligada — ele uniu as duas mãos na tentativa de simplificar a explicação —. Se um falha, os outros correm o risco de falhar. — Entendi — alternei o olhar de suas mãos para os seus olhos, e senti os meus queimarem com a água salgada entornando novamente —. O doutor está dizendo que minha mãe terá uma falência múltipla? — questionei sem delongas. O especialista me analisou, cruzou as mãos em frente ao corpo e movimentou a cabeça em sinal positivo. — Sua mãe tem pouco tempo — concluiu. Nenhuma palavra saiu da minha boca, avistei uma parede branca atrás do médico e a fitei sem enxergar nada. — Você quer um calmante? Posso ajudá-la em algo? — voltei da inércia e neguei. — Obrigada. Voltei para a cadeira ao lado da minha mãe e decidi que não choraria na frente dela, não demonstraria a minha tristeza. Sua vida já estava difícil demais, e eu sabia que me ver contente era a sua maior alegria. Eu tinha motivos para comemorar e escolhi compartilhar com ela. Dei até os detalhes mais quentes da viagem, e sem dúvidas consegui distraí-la. Minha mãe adorava e mesmo fraca, se empolgava, enchia-me de perguntas que, hora ou outra eu tinha que interromper para economizar o seu fôlego. Contei sobre a lobinha que Valentim havia me dado e por último, sobre o salão de balé. Ela ficou encantada, os comentários sobre o médico iam de melhor a melhor ainda. — Olha aqui hein dona Mariana. Se você não casar com esse homem, eu volto para puxar o seu pé — ela fechou o semblante, me fazendo rir mesmo com a colocação importuna. — Martha! — a repreendi. — O que é, minha filha? Ele te ama, está escrito, estampado, anunciado aos quatro ventos. Cada vez que ela ria, eu podia enxergar seu desconforto pulmonar. Aos poucos, fui a acalmando e tentei não empolga-la com mais nenhuma novidade. No fim, minha mãe estava chorando.
A mudança de clima foi tão drástica que me derrubou. Nós choramos abraçadas. — Eu quero que ele cuide de você, eu preciso disso — confessou embargada. Afaguei seu corpo frágil no meu abraço e engoli os soluços, calando meu pranto para permitir que ela tivesse o seu momento. Estava escurecendo quando saí do hospital. Sentei-me no banco de sempre, embaixo da árvore, e fiquei sozinha por longos minutos, até o senhorzinho da carteira de cigarros aparecer. — Aceita, menina? — perguntou docemente. — Obrigada — peguei um cigarro e depois o isqueiro para acender. — Algum parente? — Minha mãe — sorri tristemente. — Minha neta — ele contou. — Eu sinto muito — me compadeci, de coração. — Eu também — ele tragou a fumaça, com a mão tremendo levemente. — Mas por que o senhor só fica aqui fora? — quis saber. — Minha filha não autoriza a minha entrada. Aquilo me doeu. — Eu perdi minha esposa há alguns anos e comecei a beber, me tornei um homem agressivo — contou espontaneamente —. Minha netinha nasceu e minha filha exigiu que eu me afastasse. E eu compreendo, ela está certa. — Mas o senhor vem quase todos os dias — comentei. — Pois é, tento todos os dias ver Alba. Um dia eu vou conseguir. — Alba? — Você a conhece? — ele sorriu com os dentes amarelados, decorrência de anos de nicotina. — Ela é radiante, uma criança maravilhosa — lembrei da pequenina que me pediu para contatar uma ONG e levar cães na ala pediátrica. — Faz um ano que não a vejo, desde que foi transferida para este hospital. Mas tenho fé — ele realmente tinha fé, dava para ver em seus olhos. — Eu espero que o senhor consiga, faça um voto, uma promessa.
— Já fiz, estou há muitos meses sem uma gota de álcool. — Então Deus te ouvirá. Ele pegou em minhas mãos e desta vez sorriu com os lábios fechados. — Obrigado, menina. Deus também fará o melhor para a sua mãe — falou com delicadeza. Dei mais algumas tragadas no cigarro e ficamos em silêncio. Descobri que o nome do senhorzinho era Benjamim, Ben. Eu enfiei na minha cabeça que o ajudaria ver a neta. Mas não fiquei muito tempo sentada, a dor pungente ainda judiava do meu peito, apertando-o e me sufocando por dentro. Eu precisava extravasar, gritar, chorar mais, embaixo de uma ducha quente, ou simplesmente me empanturrar de comida assistindo televisão, mas eu precisava que Valentim estivesse comigo em qualquer opção que eu escolhesse. Os braços dele me acalentariam. Peguei um táxi sentido ao bairro dele e fiquei com a cabeça apoiada na janela do carro, vendo cada construção sem conseguir enxergar nada. Tinham coisas demais ocupando minha cabeça. Paguei o motorista e desci em frente ao jardim. Do lado de fora já era possível escutar a discussão. — Como pode ser tão cego, Valentim? Eu o amo e fiz de tudo por nós dois, todos esses anos. E agora você vai fazer isso? — Vivian, você está piorando, a doença está consumindo a sua cabeça gradativamente. Eu viajei com ela, estou decidido sobre a minha vida. Não a estrague mais uma vez. — Acha que estou mentindo? Então eu provo... Olha! — ela berrou. Minha mão permaneceu na maçaneta, eu estava tremendo da cabeça aos pés. O que aquela mulher estava fazendo dentro da casa de Valentim? Da nossa casa? Coisa boa não era. Ela só podia ter descoberto, é claro que ela sentiria prazer em entregar e me difamar para ele. Entrei de uma vez na sala e vi Valentim completamente tenso, sentado na poltrona com um papel em uma mão, sua outra mão estava na boca. Ele ficou muito assustado quando me viu.
— Não vai dizer nada? Acha mesmo que eu seria capaz de mentir sobre isso? — Sobre isso o que? — minha respiração estava presa nos brônquios, e foi necessário enfiar as mãos nos bolsos do casaco para esconder a tremedeira. — O assunto é com o meu marido — respondeu com afronta. — Vá embora — ele disse para ela. — Querido... — Agora, Vivian! Vá embora! — gritou grosseiramente. — Você não pode falar assim comigo, não agora. — Alguém pode me dizer de uma vez o que está acontecendo? — acabei gritando também. — Vou deixá-los a sós, mesmo acreditando que não tenham nada para conversar, considerando que ele é o meu marido — ela enfatizou. — Saia! — desta vez ele ordenou baixo, exaurido. Vivian pegou a bolsa no sofá e colocou no ombro, passou a poucos centímetros de mim me fuzilando com o olhar. Foi a primeira vez que senti medo dela, porque sua postura era de triunfo total. Notei que o assunto não era comigo, e sim entre eles. — Sente aqui — me pediu baixo e totalmente perturbado. — Não — cruzei meus braços e parei em frente a poltrona onde ele estava sentado —. O que é isso? — Sente aqui! — esbravejou, com os olhos marejados. — Você não vai gritar comigo! — revidei —. Fale de uma vez, o que é isso na sua mão? Repentinamente, ele se levantou e me abraçou. Permaneci com os braços soltos nas laterais do meu corpo, sem correspondê-lo. Eu tinha vivência o suficiente para saber que algo de muito errado estava acontecendo, e a prova estava no papel em sua mão. Não era coragem, não era força, não era posição alguma. Eu tinha mergulhado novamente na mais profunda inércia, e só precisava de uma resposta: — Vivian está esperando um filho seu? O tempo pareceu parar, a espera foi eterna. — Está.
Mas ela veio, me estraçalhando por dentro.
23 Valentim Del Torre
O
— que você veio fazer aqui, Vivian?— questionei, incomodado com a presença dela. — Posso entrar? — Não é necessário, estou ouvindo — continuei com a mão escorada no batente da porta, impedindo a sua passagem. — O assunto é sério. Estudei seus olhos, tentando descobrir o que se passava na mente insana da minha ex-esposa, mas foi impossível de decifrar. Dei espaço para que ela entrasse e atravessei a sala, enquanto ela encostava a porta da minha casa. Em sua mão tinha um envelope branco, o qual ela alisava as bordas lentamente enquanto me observava. — Estou esperando — coloquei minhas mãos para trás e mantive minha postura rígida. — Vocês estão realmente juntos, não é? — Estamos. — Não nos divorciamos ainda, posso alegar uma traição. — Está falando sério? — fui sarcástico —. Traição? Não somos um casal há anos. Bom, não vou gastar minha energia com suas loucuras. Vá direto ao ponto. Que documento é este na sua mão? Chegou a intimação do divórcio? — Para a sua infelicidade, não. E achei desleal da sua parte entrar com um processo sem me informar. — Muitas coisas foram desleais da sua parte, Vivian. Por favor, diga o que você quer. — Querido, essa mulher não combina com você. Ela não tem modos, não sabe se portar. Não consegue enxergar que está interessada no que você tem? Aliás, como ela paga a internação da mãe no nosso hospital? Dando aulas de balé? — indagou com desdém. — O que você está insinuando?
— Ela transava com o seu irmão por dinheiro, assim como está fazendo com você. Achei que fosse mais inteligente, querido. Sua perturbação podia ser contagiosa, ela quase conseguia manipular a minha mente, de tão eloquente que era. O problema é que a merda que tinha acabado de falar, fazia sentido. Não que Mariana fizesse sexo por dinheiro, mas meu irmão pode ter a ajudado no período que ficaram juntos, e eu não achava isso errado. Mas o tom que Vivian usou foi totalmente pejorativo, como se a bailarina se envolvesse com homens como eu e meu irmão por dinheiro, como se ela se prostituísse. — Mais uma palavra sobre Mariana e eu te coloco para fora — adverti, irredutível. — Francamente, Valentim. Eu sou sua esposa há quase uma década, vai defender qualquer na minha frente? Qual é o seu problema? Esqueceu de tudo o que vivemos? Eu vou te mostrar o quão enganado e iludido você está. — Ela não é como você descreve. E se você não consegue enxergar é porque não tem os mesmos valores. — Quem não consegue enxergar é você. Aquela puta abriu as pernas pro seu próprio irmão — insistiu, falando mais alto. Odiava ouvir isso, era como um soco na boca do estômago. — É a última vez que eu pergunto, que documento é esse? Vivian demorou para responder. — Estou com medo da sua reação, mas acho que ficará contente, já que você sempre quis... Minha ficha caiu. Coloquei as duas mãos no rosto, farto dos devaneios corriqueiros dela. Fiquei de costas e respirei o mais profundo que consegui, para manter o equilíbrio diante da situação. — Vai me dizer que está grávida? — Você não queria outra criança? Ri, sentindo ondulações de nervoso percorrerem minhas veias. — Eu não fiz isso sozinha, quer que eu te relembre do dia? Ela não precisava recordar. Infelizmente. — Está apelando. Não acha que é jogar baixo demais? — Você me pediu! Você me pediu muitas vezes.
— Quando eu ainda acreditava que poderíamos recomeçar, mas o nosso casamento acabou. — Eu não vou ter essa criança sozinha, você sabe bem que não tenho condições mentais para lidar com a maternidade. Eu não a quero, não sem você. — Nunca achei que agiria com tanta má fé. Um filho? Você enlouqueceu completamente. Como pode ser tão cego, Valentim? Eu o amo e fiz de tudo por nós dois, todos esses anos. E agora você vai fazer isso? — Vivian, você está piorando, a doença está consumindo a sua cabeça gradativamente. Eu viajei com ela, estou decidido sobre a minha vida. Não a estrague mais uma vez. — Acha que estou mentindo? Então eu provo... Olha! Puxei o envelope da mão dela quando oferecido e peguei o papel de dentro. Sentei-me na poltrona e analisei rápido. Estava acostumado a ver exames. A assinatura era de um ginecologista do Saint Clair, o exame foi realizado no meu hospital. A primeira folha indicava um teste sanguíneo e a segunda o ultrassom. Já era um feto bem desenvolvido, e o número de semanas correspondia com a última vez que havíamos transado. Coloquei minha mão sobre a boca e reli as informações. Não foi possível controlar a sensação extasiante quando vi o bebê nas imagens. Olhei em direção a porta quando a mesma se abriu, Mariana entrou na sala e parecia mais assustada do que eu. — Não vai me dizer nada? Acha mesmo que eu seria capaz de mentir sobre isso? Eu achava tantas coisas naquele instante, e simultaneamente não pensava em nada. — Sobre isso o que? — o semblante de Mariana estava triste, seus olhos entregavam um choro de minutos atrás. — O assunto é com o meu marido. — Vá embora! — mandei. — Querido... Fiquei nauseado, com um mal-estar terrível. — Agora, Vivian! Vá embora!
— Você não pode falar assim comigo, não agora — eu estava mais do que acostumado a lidar com a vitimização dela. — Alguém pode me dizer de uma vez o que está acontecendo? — Mariana se alterou. — Vou deixá-los a sós, mesmo acreditando que não tenham nada para conversar, considerando que ele é o meu marido. — Saia! — pedi baixo. Vi Mariana estremecer perceptivelmente quando minha ex-esposa passou ao seu lado. Ela parecia cansada, como na maioria das vezes desde que a conheci, principalmente quando saía do hospital. — Sente aqui! — eu estava perturbado. — Não — parou na minha frente e cruzou os braços —. O que é isso? — direcionou as íris para o papel em minhas mãos. — Sente aqui! — bradei, tomado pela vontade esmagadora de chorar. — Você não vai gritar comigo! Fale de uma vez, o que é isso na sua mão? Eu precisava abraçá-la, e foi o que eu fiz. A envolvi nos meus braços, e senti uma gota escorrer do meu olho. O silêncio estava me moendo inteiro. Não sabia o que pensar, o que falar, como agir. — Vivian está esperando um filho seu? Fechei meus olhos e a abracei mais forte. — Está. Me conformei que não seria correspondido, então dei alguns passos para trás e quis observá-la. Suas lágrimas inundavam as bochechas avermelhadas, ela olhou para cima tentando controlar o aguaceiro e espalmou as mãos sobre os olhos. — O que nós vamos fazer? — me perguntou, engolindo o próprio pranto. Nós? — Nós podemos enfrentar juntos, Valentim. Ela não fazia ideia do que estava falando, ou na realidade não conhecia um terço do estado de demência de Vivian. No momento, eu odiava minha ex-esposa, desejava que alguma tragédia acontecesse com ela, mas em contrapartida, o instinto de proteção em relação ao bebê que ela carregava, deu sinal. Talvez fosse um carma, um fracasso predestinado. Algo que eu estava pagando
por pecados de vidas passadas, era como se não adiantasse fugir. Era como se a minha punição me freasse em cada passo que eu tentava dar. Mariana D'Ávila Eu me sentei na poltrona que antes ele ocupava, porque minhas pernas pareciam não aguentar. A demora para responder demonstrou que ficar comigo nesta situação, não era uma opção. Eu coloquei o rosto entre meus braços, que estavam apoiados nos joelhos e tentei pensar em algo que eu pudesse falar, mas não vinha nada. O meu cansaço havia triplicado, meu coração doía de forma indecifrável. Senti as mãos de Valentim tocarem meus braços, e como se pudessem me queimar, eu as empurrei e balancei a cabeça. — Já entendi, Valentim — sequei meu rosto com força e tentei levantar, mas no mesmo instante minha visão turvou. Ainda assim falei baixo —: Se é o que eu estou pensando, não tente me consolar. E me dá licença, vou pegar minha mala e ir para o meu apartamento. Passei reto por ele e fui em direção ao quarto. Ele me seguiu. — Mariana, a Vivian é uma mulher suicida, e ela está grávida. A primeira atitude, caso eu não fique do lado dela, é tentar algo contra si e consequentemente contra esse bebê. Eu nunca quis te magoar. Deus sabe o quanto eu quero te fazer feliz, estou tão surpreso e desolado quanto você. Me perdoa, amor, eu te imploro que me perdoe. Eu vou pensar em algo, vou pensar como resolver essa bagunça. — Não diga que está tão desolado quanto eu — virei de frente para ele e encarei seus olhos —, porque não está. Quem está sendo descartada sou eu. Não me peça perdão, e não me inclua em mais nada. Você é um fraco! Um covarde. O primeiro obstáculo que apareceu e já te fez voltar para ela. Eu esperava muito mais, Valentim. Muito mais — me descontrolei novamente, voltando a chorar feito uma criança —. E esse filho nem deve ser seu, não deve ser verdade. — A criança é minha, eu fiz merda. Eu fiz merda — ele expirou a respiração com furor e passou as mãos sobre o rosto. — Ótimo, continue carregando esse fardo — peguei minha mala e saí puxando-a —. E seja infeliz com ela.
— Você está sendo rude, Mariana. — Rude? Eu conto que não quero ser mãe porque a droga da minha vida me transformou em uma pessoa insegura, problemática, me abro sobre tudo isso e olha o que acontece? Você acha que eu não amo crianças? Eu amo! Eu teria dez filhos com você, Valentim. Dez crianças com seus olhos, com seu sorriso, suas sardas, com o seu caráter. Eu teria. — lamuriei —. Mas eu não posso, não consigo compactuar com a ideia de colocar alguém no mundo para não tratar com o devido amor, tratar como Vivian fez com a Ana — fechei meus olhos e inspirei o ar, tremendo —, mas ela vai ter uma segunda chance. O seu sonho é ser pai e ela está realizando para você. Peguei na maçaneta da porta da entrada mas Valentim impediu que eu abrisse. — Não estamos parando por aqui. Não diga como se estivesse me dando um adeus, porque isso não é um adeus. Eu só preciso organizar a zona que aquela mulher se dispôs a fazer na minha vida. — Você se submete a infelicidade que ela proporciona — fiquei rente a ele —. Até quando ela vai ditar e comandar a sua vida? Não consegue enxergar como Vivian pode ser maldosa? A filha de vocês morreu com uma doença violenta, uma criança Valentim! Uma criança de cinco anos, lutou até o ultimo dia para sobreviver, enquanto uma mulher adulta não valoriza a própria vida. Ela vive de ameaças e chantagens. — Não são ameaças, não são chantagens, Mariana! — ele também começou a falar mais alto —. Éramos jovens quando nos conhecemos, Vivian perdeu o irmão e desenvolveu uma depressão fodida, a gravidez de Ana foi um choque para ela. Eu fui apaixonado! Acha que eu me apaixonaria por alguém tão ruim como ela é hoje? Era outra mulher, a vida que a deixou amarga. Comecei a rir ironicamente e o encarei com incredulidade. — É sério, Valentim? Então significa que eu tenho que ser perversa por tudo o que passei? — Não, significa que você é maravilhosa por não ter permitido que a vida te corrompesse. Acabei com o silêncio depois de alguns segundos: — Você está decidido? — A minha decisão está na minha frente. — Você vai ficar ao lado dela enquanto eu fico plantada esperando? Até ela
colocar o próximo plano em prática. Isso não vai ter fim, porque você não coloca um ponto final. — Preciso cuidar dessa criança. Eu não vou me perdoar se algo acontecer, já perdi a Ana, não posso perder outro filho. Me compreenda, por favor. Outro filho. Que não era nosso. Outro filho, que eu não geraria. Minha cabeça martelava e a dor causada era tão grande que o choro me tomou de novo, fechei meus olhos entregue a angústia e senti meus soluços inflarem meu peito. Ele me abraçou de novo, e eu não correspondi. De repente, sentir seu toque, me causou raiva misturada com decepção. Eu me debati nos braços dele e soquei seu peito com ambas as mãos. — Não vou te esperar, Valentim. Eu não posso, porque estou machucada, você disse que eu poderia confiar de todo o meu coração e agora você o quebrou. Ele tentou amenizar minha fúria me apertando em seu abraço. — Eu disse que não desistiria de você e eu vou cumprir, porque eu te amo Mariana. Eu te amo mais que tudo. Era a primeira vez que ele dizia que me amava e eu jamais imaginei que doeria ouvi-lo declarar. Mas doeu, as palavras me dilaceraram. Naquele momento eu acreditei que não o amava. Só queria xingar e bater nele, para diminuir minha frustração. Passei a manga do casaco para secar meu rosto, e depois tirei o mesmo empurrando Valentim para se afastar. O agasalho era dele, dei em sua mão e fiquei de costas para sair. — Desculpa te chamar de fraco e de covarde, você não é. Cuide do irmão de Ana e se dedique para ficar bem ao lado de Vivian. Tive que brigar para ele parar de me seguir, não queria mais nenhum favor, não queria sua compaixão, não queria mais nada vindo dele. Joguei a chave do salão no jardim da casa, o que horas antes havia sido meu presente, e caminhei até a avenida mais próxima. Eu sentia o vento cortante queimar meu rosto. O choro deixou de amenizar a aflição, não bastava. O aperto no coração passou a ser calado segundos depois, era devastador e crescente. Me esmagava por dentro e ao mesmo tempo parecia não caber em mim.
Demorou para conseguir um táxi, mas isso não importava. Qualquer lugar seria ruim, na rua ou em casa, a tristeza continuaria me penalizando. Cheguei no apartamento, larguei as chaves na mesa e olhei para os lados. Tudo de novo. No mesmo lugar. Menos eu. Acreditei que o vazio que eu sentia antes era bem melhor do que a avalanche que Valentim causou. Fui para o banheiro e tomei banho, cerca de trinta minutos deixando minhas lágrimas escorrerem pelo ralo. Eu chorava e me calava. Estava desorientada, hora atônita, hora em pranto. — Tem alguém viva aqui? — ouvi a voz da minha amiga e os toques na porta do meu quarto. — Oi — puxei a respiração pelo nariz controlando a água salgada, e passei as mãos embaixo dos olhos. — Amiga! — ela se apressou ao ver meu estado e sentou-se ao meu lado, me abraçou preocupada —. Aconteceu alguma coisa com a Tia Martha? O que foi? Afirmei com a cabeça e continuei fitando minhas mãos porque se eu a olhasse, voltaria a chorar. — O que aconteceu? Me fala pelo amor de Deus, Mari. — Minha mãe vai morrer e Valentim vai ser pai. Encarei seus olhos e ela ficou estática, tentando processar. — E você não está grávida — ela assimilou com os olhos arregalados —. Vaca, aquela mulher é uma nojenta!— ela segurou meus dedos que eu não conseguia parar de mexer —. Vocês têm certeza? Ela pode estar inventando porque sabe a fraqueza do Valentim. — Ela mostrou o exame, é do hospital deles. — Nossa, Mari! Agora que estavam começando de verdade. Mas ele pode ficar ao seu lado mesmo nessa circunstância, ou não? Contei tudo, com dificuldade por conta dos soluços e da agonia entalada na garganta. Depois conversamos sobre a minha mãe e eu acabei desabafando toda a indignação que sentia. Continuava devendo para o hospital, e não tinha da onde tirar para pagar. A conformidade sobre o estágio final dela, fazia com que eu deixasse de me preocupar um pouco com o dinheiro, depois que ela partisse, eu poderia dever o quanto fosse, não me importava de estar fodida até a cabeça.
Eu vi o dia amanhecer sentada no sofá da sala, com uma xícara de café que me acompanhou a noite toda. Carlie ficou comigo até quando aguentou, mas acabou adormecendo deitada no colchão no chão. Eu não estava me aguentando em pé, a exaustão era física e emocional. Mas eu tinha que resgatar forças para ir até o Saint Clair, e antes passar na casa de Charlotte para conversar. Acordei minha amiga porque precisava que ela ligasse para Álvaro, queria saber os horários que Valentim ficaria no hospital e até seus plantões. E o gastro detalhou para Carlie enquanto eu anotava. Faria de tudo para não vê-lo. Carlie estava compadecida com a minha situação, porque ainda se levantou e me ofereceu carona. — Vai lá, amiga. Eu te espero aqui — ela passou a mão no meu braço em um gesto de carinho. Tomei coragem e desci do carro. Charlotte me autorizou e eu subi até seu apartamento. Sol veio com a costumeira empolgação, com pijama e pantufas, me abraçou e eu abaixei para pegá-la no colo, a minha vontade era abraçá-la e chorar até terminar de secar por dentro. Mas eu não podia. — Que surpresa boa! — a irmã de Valentim disse. Seu semblante mudou assim que ela veio da cozinha e me viu —. Filha, eu e a Tia Ana precisamos conversar. Chama o papai para ir brincar com você. A pequenina enredou meu pescoço e deitou a cabeça no meu ombro. — Você é a princesa mais bonita que eu conheço, não chora, Tia Ana — disse com um tom de ordem. — Eu estou bem, não se preocupa — abri o melhor sorriso que consegui e abaixei para colocá-la no chão. — Venha, filha — vi Eric aparecer no corredor, assenti com a cabeça para ele, que correspondeu com um sorriso empático. — Sente aqui — Charlotte apontou para uma poltrona. — Obrigada, serei breve — permaneci em pé e comecei a rezar para não desmoronar na frente dela —. Primeiro quero me desculpar, não queria que as coisas caminhassem desta forma.
— Você e meu irmão? Sua mãe? O que aconteceu? — começou a perguntar, totalmente preocupada. — Você vai ser Tia, Charlotte. Vivian está grávida, e Valentim escolheu cuidar dela. Não tem espaço pra mim na vida dele, e... Eu não sei como estou suportando, mas eu sei que esperar vai me arruinar ainda mais. Espantada, ela abriu a boca e colocou a mão sobre os lábios. — Não, não estou entendendo. Não estou acreditando. — Eu não deveria te contar, ele deveria. Mas acho justo esclarecer o motivo pelo qual não posso continuar dando aula para a Sol. Me desculpa, Charlotte. Eu simplesmente não posso. — Ah, minha amiga! — inesperadamente, fui abraçada —. Eu te entendo, não precisa se desculpar. Isso não vai durar muito, eu sei que logo você volta. — Não volto, Charlotte — sequei as lágrimas gordas que desceram nas minhas bochechas —. A companhia de balé do Alex, que você conheceu no dia do evento beneficente, está de portas abertas para a sua filha. É uma oficina humilde, mas os professores são muito bons, são de minha confiança. — Mas e você... — Não darei aulas por enquanto. — O hospital precisa de você, as crianças... — É como se eu não estivesse mais aqui, você entende? Eu preciso de um tempo. — Vou matar o meu irmão — ela sussurrou. Sol veio correndo do corredor e novamente envolveu os braços finos no meu quadril, me desequilibrei pela força do abraço e coloquei minhas mãos em suas costas. — Eu gosto muito de você, Tia Ana. Mas o Tio Tim gosta mais, então não demora para voltar, por favor. — Minha filha, você estava ouvindo nossa conversa? — Charlotte a repreendeu. — Sol! — Eric chamou. — Preciso ir agora — evitei olhá-los porque o choro já estava quase transbordando. Eu e Carlie chegamos no hospital e contemplamos o silêncio ao lado da minha mãe, que dormia conectada a maquina dos batimentos cardíacos.
— Será que Pauline ainda tem um espaço para mim? — perguntei baixo para minha amiga. Ela me olhou pensativa, me observou e sorriu. — Sempre terá. — Vou com você essa noite. — Você não está bem, Mariana. — Eu preciso dançar. — Você precisa descansar — ela contrariou. — Eu preciso fechar os olhos e dançar — insisti com convicção.
24 Mariana D'Ávila
Rebobinei a fita. Quando agarrei a barra de ferro em minha frente, no centro do palco, apertei o play. Em um ritmo célere, minha infância cruzava minha mente nas poucas lembranças boas que eu tive. Meus fios dourados batiam no meio das costas, a única coisa que tirava a minha professora do sério, já que eu era sua criança preferida nas aulas de balé. — Prenda esse cabelo, Mariana — ela pedia incontáveis vezes ao decorrer da aula. Eu ignorava, rodopiando na ponta do meu pé, com os braços para cima e as mãos que delicadamente, formavam minha perfeita postura. — Mais um... e dois — Dulce contava os meus movimentos — Cabriole... — eu saltitava unindo meus pés toda vez que ela comandava — Cheval! — e finalizava com ambas as pernas no ar, na horizontal. Abri meus olhos e minha visão foi ofuscada pelos holofotes que estavam do outro lado da boate, eles iluminavam o palco e escureciam toda a plateia. A cadência lenta da música para o strip-tease — que eu não faria —, começou a ditar os movimentos do meu corpo rente ao ferro, em minha frente. Quando algumas luzes foram acesas, eu pude ver os homens sentados nas diversas mesas, alguns mais próximos, outros para o fundo e também em camarotes separados nas laterais. Todas as meninas já haviam apresentado, e minha chefe preferia me colocar como a principal no final. Ainda mais porque tinha tempo que eu não comparecia a Le Luxe. Os homens compartilharam de um intenso silêncio quando me viram subir no palco. Mas não durou muito, quando decidi rebolar lentamente com a barra encaixada no meio do traseiro, deixando o clima erótico fluir. Meus cabelos, como sempre na casa noturna, estavam escondidos debaixo de uma peruca preta com os fios na altura do pescoço, e aquilo de alguma forma, me deixava mais à vontade, mesmo que dançar com eles soltos fizesse parte da
minha identidade desde cedo. O fato é que de tempo em tempo, eu deixava mais de mim para trás. Mas eu não estava preocupada com ninguém ali. Permanecia presa nas minhas memórias, onde a dança representava tudo na minha vida. — Você está cada dia melhor — Dulce me abraçou e beijou minha cabeça —. É a minha melhor aluna e logo, estará pelo mundo dançando ou ensinando. — Eu quero ensinar, você sabe — respondi, abraçando-a também. Eu podia ouvir minha voz, infantil e levemente rouca. — É uma ótima escolha, Mariana — me deu mais um beijo e me soltou —. Agora vamos, são mais de dez horas e sua mãe já me ligou seis vezes. — Meu pai. Deve estar furioso — comuniquei, e a tristeza no olhar da minha professora ficou visível. — Qualquer coisa você pode me telefonar. Estamos combinadas? Confirmei com a cabeça, mas eu nunca telefonava. — Vamos, eu te deixo na sua casa. Eu ia a pé depois da escola para a oficina, mas eu sempre voltava tarde para casa, dez, onze horas da noite, então Dulce me levava todos os dias. Ainda completaria nove anos e não era nada seguro uma menina andar sozinha pelas ruas escuras da cidade interiorana. Ela sabia dos problemas que eu tinha com meu pai, ou pelo menos fazia uma mínima ideia, uma das únicas que acreditava quando eu dizia que meu pai não era uma pessoa boa. Porque o resto da vizinhança supunha que ele era um sujeito exemplar. Mas ninguém fazia ideia, ninguém podia imaginar o monstro que residia sob o mesmo teto que eu. Ouvi assovios e o filme em minha mente foi pausado. Encarei os senhores que me assistiam e vibravam com os meus movimentos. Naquele momento, eu não estava presente, apenas o meu corpo. E ele mexia vagarosamente de acordo com o que minha alma tentava expressar, e para quem estava de fora somente testemunhando, achava sensual. As batidas ficaram mais fortes, altas e lascivas. O lado bom do meu dia acabava quando eu chegava em casa. E eu ouvia o estalar do cinto. Neste dia, não foi diferente.
Minhas pálpebras estavam juntas novamente, e as recordações me deixariam desestruturada, caso eu não estivesse acostumada, mas eu estava. Eu estava tão acostumada a apanhar do meu pai, como a ficar na ponta dos meus pés sobre os gessos das sapatilhas. — Já mandei vir direto da escola para casa — outro ruído do couro batendo contra minhas pernas —. São quase onze horas da noite, você tem que aprender a me obedecer! — a fivela estralejou contra minha pele, incontáveis vezes. Os gritos da minha mãe se misturavam aos barulhos do cinto. Ela tentava empurrá-lo, e o método que ele usava para afastá-la era com bofetadas. Era sempre assim. Ela caía no chão e tentava de novo, e de novo... — Deixa ela em paz! — berrava —. Para! Pelo amor de Deus! O lugar atingido queimava e parecia estar em carne viva. Os roxos aparentavam ser sangue pisoteado. E eu não dizia nada. Exatamente nada. O que parecia enfurecê-lo ainda mais. — Da próxima vez eu vou fazer você ir parar no hospital, está me escutando? Não quero filha minha rodando pela cidade. Larga essa porra de dança, e fique dentro de casa! — seu tom era tão autoritário que fazia meus tímpanos doerem. — Ela só tem oito anos, seu doente! — minha mãe se aproximou e me abraçou quando ele decidiu que já tinha batido o suficiente. Eu estava ajoelhada no chão, prendendo um choro causado pela dor que sentia, e a do corpo era a menos importante. Eu sentia dor dentro do meu íntimo, por desrespeitarem minha integridade física, minha fragilidade de criança. O lábio da minha mãe sangrava, e com o meu dedo pequeno tentei limpar. — Ele te machucou, mamãe — o tormento de dezoito anos atrás ainda era palpável e fervia nas minhas veias, como se eu estivesse revivendo detalhadamente. Ela me abraçou e me levou até o meu quarto, nos trancamos lá dentro, mesmo que meu pai tivesse saído aquela noite, como todas as outras. Nos trancamos porque minha mãe tinha medo de ele voltar e cometer algo contra mim, enquanto dormíamos. Independente do que eu vivia, não deixava de ser uma criança, uma menina com oito anos. Tinha inocência em mim, e eu não compreendia tudo o que acontecia em casa, minha mãe tentava ao máximo abrandar as brigas, mesmo que seu esforço fosse inútil na maioria das vezes.
Analisei os espectadores e escorreguei minhas costas na barra de ferro, até que estivesse sentada nos meus calcanhares. Alguns deles estavam vidrados, boquiabertos, assistindo minha apresentação. Outros, bebericavam seus drinks e davam atenção para as minhas colegas de trabalho. Eu estava estilhaçada por dentro, em mil e um pedacinhos. E minhas lágrimas brotaram nos meus olhos, para certificar de que eu era como um edifício sem qualquer sustentação, prestes a desabar. — Bela — reconheci a voz e o apelido. O som tinha atenuado, minha música havia acabado e eu permanecia imóvel em cima do palco. Olhava aos arredores, sentindo um pânico crescente me invadir. Três homens encostaram no palco e colocaram notas altas no elástico da minha cinta liga. De repente, os homens se afastaram e então vi o irlandês loiro encurtar a distância. — Bela — chamou mais uma vez. O corpet preto parece que me sufocou. A passagem de ar estava estreita, e quando meu olhar foi de encontro ao dele, eu quis fugir. E foi o que eu fiz. Corri para trás do palco e achei o camarim onde deixava meus pertences. Tirei minha peruca e desfiz o laço apertado da minha roupa. — Você está bem? — Justine tinha me seguido e entrou preocupada no camarim. — Tem alguma coisa para beber, Justine? Ela se sentou na cadeira vermelha aveludada ao lado do meu banco, e me estudou enquanto eu soltava meus cabelos dos elásticos e grampos. — Soube que você saiu com o Saulo, o investidor que Pauline ansiava conhecer. — Saí, mas não recomendo — sequei meus olhos —. O cara é louco! Minha colega deu uma risadinha enquanto abriu o armário baixo ao seu lado. Pegou uma garrafa de tequila, tirou a tampa e me entregou. — Sei. Conheci também — contou —. Fácil lidar com homem mandão e escroto como ele — ela deu os ombros —, mas eu estou tranquila, pesquei um milionário e tô feita — levantou a mão para que eu pudesse ver seu anel de brilhante. — Está brincando? — fiquei boquiaberta e sorri —. Me conta! Encostei a garrafa na boca e virei, sorvendo o líquido com elevado teor
alcoólico. — Ele é beeeeeem mais velho, mas é um homem bom. Se apaixonou pelo remelexo da minha bunda e... bingo! — ela gritou —. Vou me casar. Comecei a rir, e minha tristeza parecia adormecer com a ajuda de Justine e claro, da tequila. — Mas isso não importa, não é nenhum conto de fadas ou alma gêmea. Sou uma mulher nova, com um corpinho que dá pra perder uns quinze minutinhos, e ele é um homem viúvo, trilhardário, que não tem onde enfiar grana, então escolheu enfiar em mim — o mais engraçado é que ela falava sem nenhum aborrecimento. Mas eu sabia, que por trás de cada menina, cada sorriso forçado das minhas colegas de trabalho, havia uma história, uma frustração, uma angústia. Por exemplo a Carlie, ela tinha sido expulsa de casa por ter engravidado na adolescência. Mas o bebê foi colocado para a adoção assim que nasceu. Ela não tinha condições psicológicas, muito menos financeiras de criar um filho, e queria o melhor para ele. E desde então, nunca tinha voltado para a casa dos pais, nem mantinha contato. E o contraditório é que ela sempre me animava nos meus momentos mais difíceis. Ela não era minha parente, mas se tornou minha família pela força que me dava. — Mas menina, deixa eu te contar do Saulo... — Justine se empolgou após ter terminado de me inteirar sobre seu futuro marido —. Ele me levou no hotel Fairmont Olympic, chiquérrimo. — O matadouro — concluí. — Te levou lá? — ela revirou os olhos quando eu concordei com a cabeça —. Então, a Pauline disse pra eu ensaiar uma dancinha especial, foi o que eu fiz, mas não consegui sensualizar nem até a metade, menina. Ele me agarrou, avançou em mim todo selvagem. Que homem, né? Fairmont Olympic, dancinha, selvageria... Familiar, muito familiar. Eu tinha repulsa de Saulo, não havia perdoado a violência tanto verbal quanto física. Era um agressor em potencial, com toda certeza. — E aí? Ele não foi grosseiro com você? — perguntei, na realidade não estava nada interessada na conversa. Só bebia mais e mais da tequila. — Você sabe que gosto de homem ignorante, Mari — ela contou rindo e eu acabei gargalhando também —. Descortês, malcriado.
— Você e essa mania em ser domesticada na cama — não pude conter o comentário e ela me deu um tapinha brincando —. Mas o que deu errado? Foi porque já estava laçada ao seu futuro marido? — estreitei os olhos, desconfiada —. Não é sua cara se prender tão rápido. — Que nada menina, eu largaria o grisalhinho por um macho como o Saulo... Quem não largaria? Rico, bonito, delicioso, meu Deus... que homem bruto. Não achava nada disso. Ele era apenas o irmão do Valentim. Apenas? — Mas você não sabe o que aconteceu... — ela abaixou os ombros, respirando fundo e deixando seu desânimo aparente. — Deixa de mistério, Justine. O que ele fez? Te bateu? — Não — ela franziu as sobrancelhas, unindo-as. — Te xingou? — Justine negou com a cabeça também — Humilhou? — continuei tentando adivinhar. — Ele me chamou de Mariana — ela me cortou para que eu parasse. E eu me calei. — Pois é. Foi na segunda vez que saímos, ele estava embriagado — pra variar —. Lascou tapa na minha bunda, menina, e me chamou de Mariana. — Pra te descer o tapa lembrando de mim... Deve querer me matar — pensei alto. — Ou deve sentir falta de você de quatro, ou embaixo dele — ela piscou e arrancou a tequila da minha mão —. Chega, você não está acostumada a beber. — Mas você não quis mais por causa disso? — ergui a sobrancelha, não tinha porque ela se sentir mal com o ocorrido. Nunca misturávamos sentimentos com o trabalho. — Não, ele não quis mais, Mari. Tentamos mais uma vez, mas o cara tá perturbado. Você colocou pozinho mágico nos seus países baixos, sua danada! Foi minha vez de revirar os olhos. — Mas bobeira! Não ligo de ter levado fora de um gostosão daquele. Estou preocupada com a sua cena no palco. O que você teve? Passou mal? — Não tenho nada, Justine. Não se preocupe! — sorri.
— Você sumiu... Já sei! Se apaixonou e está sofrendo? Ou é algo com a sua mãe? Segurei o rosto dela com as duas mãos e encarei seus olhos, eu estava um pouco bêbada e percebi quando vi seus traços um pouco borrados. — Nada, não se preocupe — reafirmei. Não conseguia processar o que ela me contou sobre Saulo, mas não tinha importância para mim, não mesmo. Ao contrário de Justine, eu não aceitava ser domesticada ou domada por um cara que se achava o dono de todos. Além de tudo, arrogante, indelicado, superficial. Arrgh! Asco! Meu Deus! Eu não estava nada bem. Ria com Justine pensando em Valentim. Ria querendo chorar. A bebida possivelmente estava surtindo efeito. Carlie também se juntou, mas depois as duas foram ao salão, para atender os homens. Abaixei minha cabeça na penteadeira branca de madeira, encostando a testa nos meus braços e senti tudo em minha volta girar. Como as pessoas gostavam tanto de beber? A sensação era terrível. A falsa alegria ia embora rapidamente, e abria espaço para o sofrimento que se multiplicava velozmente. — Bela? — o apelido afetuoso ressoou dentro do camarim e, só então percebi que David havia entrado. Sei lá por quanto tempo ele estava atrás de mim. — David — sequei meus olhos para limpar a sujeira preta de rímel e virei para olhá-lo —. O que você está fazendo aqui? Ele tinha parado de frequentar o Le Luxe desde que me conheceu. — Pauline me avisou. Não quero que pareça invasivo, eu só... Eu mando mensagens e você não responde. — Estou sem celular — informei —. E apaixonada — completei. Ele sorriu movendo a cabeça devagar. Tentei me levantar e torci o pé com o scarpin, meu nível alcoólico não era dos melhores. O irlandês se aproximou rapidamente e me segurou para que eu não caísse. — Você bêbada tem relação com o que aconteceu no palco — disse com o seu jeito de observador —. Essa paixão não está te fazendo bem, não é? — Eu preciso beber — disse convicta —. E não, nada está me fazendo bem,
David. — Você não precisa beber, já está no grau — ele expressou uma careta que me fez rir —. No ponto. — Quero beber até ter amnésia, por alguns dias se possível. Descalcei meus saltos e virei-me de costas para ele. — Tire esse negócio de mim — pedi, referindo-me ao corpet apertado. — Bela, Bela... — advertiu, quando começou a passar os dedos desfazendo as voltas do cadarço. — David, David... — copiei, provando que eu realmente não estava sã. Ele riu e se afastou quando terminou. — Pronto. — Vou descer até o bar, essa tequila já está me enjoando. Você vai comigo? — indaguei e peguei um sutiã preto para combinar com a calcinha. — Se for para beber, que beba coisa boa e comigo — ele tirou o sobretudo marrom escuro e falou —. Vire-se, Bela. Fiquei de costas de novo e coloquei meus braços nas mangas do agasalho pesado. — Pauline me avisou que você não está disponível, então coloque e abotoe este sobretudo ou se não, os homens não resistirão à melhor opção do cardápio. O repreendi com o olhar e ele abriu um sorrisinho. Descemos para o salão da casa noturna e eu fui direto para o bar. Tinha calçado novamente os scarpins e estava difícil me equilibrar nos quinze centímetros. Por isso, David me abraçou pela cintura e eu enlacei meu braço no dele. Em frente ao balcão de bebidas, o europeu tomou iniciativa e escolheu por mim. — Um French, com mais champanhe do que gin, e com bastante limão — solicitou. Eu não fazia ideia do que era aquele negócio. — Você vai gostar, o champanhe adocica bem — ele esclareceu. A bargirl preparou rapidamente o drink e me entregou. — Obrigada — agradeci. Ia virar o líquido da taça goela a baixo, mas David me impediu.
— Devagar — me deu um canudo —. Agora me diz, — ele puxou a banqueta para que eu sentasse, e também se sentou, ao meu lado —, o cara é o Saulo? — David levantou a mão para pedir um whisky e voltou a me olhar —. Por favor, diga que não, ou já vou tampar meus ouvidos. — Não — dei risada —. Nunca gostaria de alguém que me inferioriza. — Essa é a garota que eu conheço — ele sorriu e ficou me olhando. Suguei a bebida fortemente com o canudo e terminei. Ele ficou um pouco assustado, mas nem dei tempo para ser questionada. — Quero outra coisa. — Vocês têm White Russian? — perguntou para a moça do balcão, com seu sotaque evidente. Ela viu no menu de bebidas e positivou com a cabeça —. Faça um por gentileza. A minha acompanhante precisa de algo forte para se acalmar — explicou, mas ela nem prestou atenção. Estava mais atenta à beleza do loiro do que qualquer coisa. — Está deixando a barba crescer, David? — aproveitei para apaziguar a conversa. — Você gostou? — Está um charme — insinuei brincando. Os assuntos abordados foram tranquilos, nada que me encurralasse ou me fizesse lembrar dos meus problemas. Não ficamos muito mais, porque eu notei que estava ficando realmente fora de mim. Não que estivesse causando um alvoroço, eu acho. Só queria subir no palco e dançar mais, menos sem me equilibrar nas próprias pernas. — Eu não estou com cabeça mesmo, David. — Shhh... Bela, olhe para mim — ele pegou em meu rosto e acariciou minha bochecha —. Só quero cuidar de você, por todas as vezes que você me fez bem. — Eu te fiz bem? — questionei perplexa. — Muitas e muitas vezes. Como uma válvula de escape. Ele abriu a porta de um carro preto executivo e me ajudou a entrar, vindo logo depois. — Para o hotel, senhor? — só então vi o motorista. — Isso — David respondeu. —Nossa! — alardei —. Deixei minha bolsa no camarim.
Ele me olhou e sorriu. — Não se preocupa, eu dou um jeito. Quando adentramos o quarto, David foi tomar um banho e eu tirei o sobretudo para me enfiar debaixo das cobertas, só de calcinha e sutiã. Minha cabeça começou a divagar, me torturando fortemente com imagens de Valentim. O sorriso, as mãos tateando meu corpo, os beijos intensos e ardentes, o olhar capaz de me despir, as palavras tão carinhosas, todo o seu jeito amável e por último, a delirante forma que fazíamos amor. — Bela, quer que eu peça algo para você comer? — David saiu com uma toalha enrolada no quadril e com a outra secava os cabelos, Eu perdi a noção. Da pior forma. — Eu quero que você venha aqui. Tinha acabado de ter uma ideia insana e rezava para que funcionasse. Confuso, ele se aproximou e ficou em frente à cama. Eu me ajoelhei e me aproximei da beirada. Desencaixei a toalha branca de seu quadril enquanto ele vislumbrava o meu corpo coberto somente pelo sutiã e o fio da calcinha. Olhei para o seu pau que estava moderadamente ereto, e quando fui pegá-lo, David se afastou. — Não — disse hesitante. Me levantei, um pouco surpresa com a reação dele e persisti. Passei minhas mãos em seu peitoral e abdômen. — Eu preciso — sussurrei —. Seja a minha válvula de escape. — Você não precisa — seus olhos azuis fitaram os meus. Eu tinha a sensação de que se eu o tocasse e ele me consumisse, a dor do abandono, da saudade e da frustrante decepção que Valentim havia me causado, se diluiria, ou pelo menos diminuiria. — Você não precisa, só está bêbada — ele me abraçou e apoiou o queixo no topo da minha cabeça. — Eu preciso, David — continuei —. Eu preciso — e meus soluços tomaram conta da minha respiração, fazendo meu peito tremer. Comecei a chorar e ele me afagou, fazendo carinho nos meus cabelos e nas
minhas costas, como se eu fosse uma verdadeira criança solitária que precisava de colo. E era isso, carência de colo, de ombro. Só jamais havia imaginado que essa atitude viria de um ex-cliente. — Eu poderia ser sua válvula de escape, Bela, mas isso só te faria mal, te corroeria por dentro. — Te corrói trair sua esposa? — ousei em perguntar, por pura petulância. — Não me incomoda, porque eu não a amo. Mas você está chorando, então eu creio que você realmente tenha sentimentos por ele... Acredite em mim, não há como substituir quando seu conforto está nos braços de alguém específico. E ele tinha razão. — Não é justo! — passei as mãos no rosto e me afastei —. Isso não é justo! Ele tem escapatórias, está com a mulher dele, e eu estou aqui, sem ter para onde fugir. Ele roubou o pouco de paz que restava em mim... Não sei até que ponto fui patética, porque só me lembro de ter sentado em frente à cama e chorado infinitamente, com David me abraçando na expectativa de transmitir qualquer apoio cabível. Acordei com uma senhora dor de cabeça, uma náusea de vômito incontrolável. Olhei para o lado e David estava com os olhos fechados, com o braço encaixado embaixo da cabeça. Eu corri para o banheiro e coloquei litros de líquido para fora. Segurei meus cabelos e fiquei longos minutos até a ânsia passar. E David acordou provavelmente com o barulho, e veio para o banheiro. — Por isso continue não gostando de bebida alcoólica — bateu nas minhas costas e eu respirei fundo. Dividimos a pia para escovarmos os dentes, e eu podia detectar uma certa admiração em seu olhar. — Você é linda até destruída — sorriu. Eu levantei o pé para chutar a sua bunda, mas ele foi rápido e segurou a minha canela quase me fazendo cair. — Obrigada por não ter abusado de mim, por ter resistido aos meus encantos. — Resisti a sua embriaguez, só — ele cuspiu o creme dental e lavou a boca. A vergonha era minha companheira daquela manhã, eu estava contornando as conversas para não aprofundarmos sobre o drama da minha vida. O irlandês foi compreensivo.
Ele me emprestou uma camisa social e uma samba canção. Fiquei super na moda. E também fez questão de passar no Starbucks para pegarmos um café da manhã reforçado. Em frente ao meu prédio, beijei sua bochecha e agradeci com um abraço. — Se cuida, Bela. E não fique bêbada com muita frequência, mas quando quiser ficar... — ele tirou um cartão pessoal da carteira e me entregou —. Me ligue. Sorri e depois meneei com a cabeça para o motorista. Desci do carro e subi depressa para o apartamento. Estava morrendo de ressaca, estava estampado na cara o quanto minha cabeça latejava. Entrei rapidamente na sala e fui direto para a cozinha para procurar um analgésico. — Carlie! — gritei —. Minha cabeça vai explodir. — Não exploda em menos de dez segundos, espera, calma! — ela veio correndo do quarto e desajeitada, vestia uma calcinha. Foi necessário me olhar por menos de milésimos de segundos para diagnosticar —. Bebe mais, desgrama! Ela pegou a caixa de remédios e me entregou uma cartela. — Só pra te avisar, bebedeira não cura desilusão amorosa! — O que cura então? — perguntei desesperançosa. — Se você retornar as quinhentas mil ligações do Valentim, talvez cure. — Ele ligou? Carlie fez questão de pegar nosso telefone e mostrar as ligações e os áudios na caixa de mensagens. Áudios como: "Eu preciso saber como você está, me retorne." Ah, meu bem, vai me dizer que não sabe do meu estado? Ou como: "Eu estou longe, mas o meu coração está com você. Se cuida, por favor" Eu lá queria o coração dele? Queria ele do meu lado. Queria do pretérito imperfeito, como toda a nossa história. Imperfeita.
— Fale com o Álvaro, e confirme se ele não vai hoje para o hospital. — Vai mesmo evitá-lo? — perguntou. — Até esquecer que ele existe. — Então vai demorar... — ela murmurou. Joguei os respingos que sobraram do meu copo d'água nela e fui para o meu quarto. Por tudo o que era mais sagrado, eu iria esquecê-lo.
25 Valentim Del Torre
Não tinha nada específico para observar, o teto era branco com um lustre candelabro de cristais bem no centro. Era o meu novo passatempo, mas não servia como distração, considerando que toda vez em que eu me deitava na cama do quarto de hóspedes e olhava para cima, por minutos ou até horas, tudo o que vinha na minha cabeça eram fios loiros. De Ana, e de Mariana. Lembranças martirizavam a minha consciência, e nenhum item da rotina me fazia parar de pensar nas duas, por um segundo sequer. Temia a loucura por estar longe, mais uma vez, de uma pessoa que eu amava. — Papai, papai. Venha aqui! Corra, papai — a voz estridente de Ana surgiu, assim que fechei meus olhos. Minha mente me migrou para o rio do camping, próximo ao nosso chalé. — O que foi, meu amor? — corri para me aproximar da beirada onde ela estava. — Olha... uma família de patinhos — ela apontou e eu me sentei ao seu lado para admirar. Minha filha tinha acabado de completar cinco anos, e a doença era uma ligeira preocupação. Jamais acreditei que tomaria uma proporção tão devastadora. Ela era uma criança disposta, relativamente saudável, com uma simples anemia fácil de tratar. — É a mamãe — indiquei a ave maior — e os filhotes. — A minha mamãe não fica tão pertinho de mim assim. Por que, papai? — ela me olhou, com suas bolas de gudes esverdeadas. Era um assunto que me chateava, mas não tinha como me esquivar das perguntas, Ana era cativante e geniosa, mais geniosa do que a tia, a Charlotte. — Sua mãe está com alguns problemas, mas não se preocupe, somos adultos e vamos resolver. — Ela está sempre cansada para brincar comigo, sempre triste ou brava. Mas com o Tio Saulo ela fica feliz, até prepara o jantar. Mas para mim ela reclama de fazer o almoço, não gosta de me levar para a escola ou ao parque. Eu irrito a mamãe?
A observação inocente e meticulosa me deixou pensativo. — Papai? — cobrou minha resposta. — Claro que não, minha pequena — a abracei e mexi em seus cabelos —. Quando ela estiver melhor, com certeza ficará perto de você. E olha só, ela veio conosco desta vez. — É verdade mas... você promete? — Eu prometo. Mas qualquer coisa, você tem a mim. E eu sou seu melhor amigo, esqueceu? — Melhor amigo do mundo inteiro — ela sorriu e me abraçou mais apertado. Era como abraçar o mundo, o meu mundo. Como eu sentia falta daqueles braços pequenos, do cheiro de colônia e dos cachos macios nas pontas dos cabelos. Minha filha era uma escultura de Deus, sem sombra de dúvidas. Feita cuidadosamente com muito carinho e dedicação. E eu, um homem abençoado por tê-la, o pai mais feliz entre todos. — Vamos entrar? A mamãe foi buscar o almoço e já deve estar voltando — alisei suas costas enquanto a via assentir com a cabeça. Ana se levantou e correu em direção a nossa casa de campo, eu fui atrás até capturá-la e tirá-la do chão, fazendo-a emitir gritos alegres e uma gargalhada que soava como uma sinfonia de querubins aos meus ouvidos. Nada estava no lugar que deveria. Nada. Primeiro minha filha. Depois, a pessoa que finalmente eu tinha encontrado para completar a minha vida. — Valentim! Querido! — a voz de Vivian me despertou, atrapalhando minhas recordações. Levantei do colchão e fui para o corredor. Passei no quarto de Ana e abri um pouco a porta, eu achei ser impossível, mas tinha se tornado um cômodo mais sem vida quando desfiz dos brinquedos, acessórios e roupas dela. Não tinha cor. Os móveis estavam cobertos por lençóis brancos e ficariam assim até que eu decidisse o rumo deles. — Você precisa de alguma coisa? — perguntei à minha ex-esposa quando parei na porta do nosso quarto. Antigo quarto. — Estou com dor nos pés e nas costas. Não respondi, fui para a cozinha e peguei um relaxante muscular próprio para
gestantes. Enchi um copo com água e regressei ao quarto. — Toma, vai ajudar — dei o comprimido para que ela pegasse, mas o que ela fez foi me encarar. — Eu preferia uma massagem — disse hesitante. — E eu preferia não estar aqui. Vivian respirou fundo e pegou o remédio, ingeriu com a ajuda da água e foi para o banheiro da suíte. — Até quando vai continuar assim? Você voltou há uma semana e continua dormindo no quarto de hóspedes. Eu sou sua esposa, Valentim. Nos dê uma chance, dê uma chance ao bebê que eu estou carregando — ela levantou a blusa de seda do pijama expondo a barriga —. É o seu filho que está aqui, isso não te sensibiliza? — Vivian, escuta. Essa criança será amada imensuravelmente, mas isso aqui — apontei para ela e para mim — não existe mais. Eu não te amo, eu te olho e não sinto absolutamente... nada. Por que é tão difícil compreender? Se você acredita que um filho nos unirá, você está redondamente enganada. O que ela não sabia é que, eu ansiava contando os dias, para que ele nascesse. Eu teria a tutela, se necessário reviraria a justiça para ganhar a guarda. E então, cortaria qualquer laço direto com Vivian, mantendo o contato somente para a convivência dela com o bebê. — Eu sei disso, eu sei... Eu vejo que não sente nem desejo, mas o que eu posso fazer? Continuo te amando e admirando tudo em você. Tenho esperanças sim, Valentim, de que essa criança veio como uma dádiva na nossa vida de casal. — Não adianta — conformado, saí do quarto. — Você vai para o hospital? Preciso marcar uma consulta. Quero fazer o acompanhamento com o Dr. Augustino Clin. — O mesmo que fez seus exames — completei. — Isso. Gostei dele. — Sim, ele é bom. — Eu vou com você. — E as dores? — deixei nítida minha suspeita. — Não quero ficar aqui sozinha, já fiquei tempo demais. E além do mais, sua puta de aluguel deve estar em algum canto do hospital, esperando ansiosamente
para te ver. — Você não vai comigo e continuarei te deixando sozinha, até que saiba respeitar a Mariana. — Eu não quis ofender... eu só falo o que eu penso, a realidade. E eu vou sim. — A realidade é que você é uma mulher ruim, arrogante e presunçosa. Sua companhia é tóxica então não, você não vai. Peguei uma garrafa de água na geladeira e chequei meu celular antes de sair de casa. No carro, qualquer melodia da rádio me entristecia, como se fossem trilhas sonoras para o meu termino com Mariana. Optei por desligar o som, mas a revolta por causa da nossa situação não passava. Bati as mãos no volante, sentindo-me em uma encruzilhada sem ter para onde escapar. — Papai — Ana estava apavorada, com os olhos maiores ainda, vidrados em mim assim que pisei na sala de estar do nosso apartamento. — Onde está a sua mãe, meu amor?— abaixei-me na altura dela. Ela era um bebê, com seus três anos. — Bava, papai. Mamãe está muito bava — tentou explicar do seu jeito, e nesta época Ana não pronunciava algumas consoantes. Ouvi a voz de Vivian vociferar e ecoar de dentro do nosso quarto. — Você não vai me ameaçar, não vai me ameaçar de novo! Estou cansada disso, desses joguinhos, estou exausta. Seu tom foi atenuando à medida que ela encostou as costas na porta do banheiro e se agachou com lágrimas nos olhos. — Eu só quero ser feliz com o meu marido, me deixa em paz por favor! Ficou assustada com a minha presença e logo desligou a chamada, bloqueando o celular. — Cansada de quais joguinhos? Com quem você estava falando? — Com ninguém, Valentim! — ela se levantou e passou por mim, mas a impedi segurando em seu braço. — Me fale agora, Vivian! Quem está te ameaçando? — a olhei com seriedade e ela abaixou a cabeça. — Me deixa em paz também! — Você é a minha mulher, eu exijo que me conte o que está acontecendo — não a soltei.
— Você não vai me obrigar a falar nada, agora me larga! — sacudiu o braço. Nossa filha entrou no quarto e pediu colo para mim. Fiquei encarando Vivian por mais um tempo até que ela se retirasse. — Por que mamãe tá bigando? — Não se preocupa, não se preocupa. Ela já vai se acalmar — abracei minha filha e sua cabeça pousou em meu ombro. — Ela é muito bava. — Mas você não tem culpa, viu? Ninguém tem! — beijei sua cabeça —. Vamos, está na hora de dormir minha princesa. — Não, papai. Não tô com sono. Li Alice no País das Maravilhas até que ela adormecesse no meu braço, dividindo o pequeno colchão de sua cama comigo. Cuidadosamente, a arrumei no travesseiro e cobri com um edredom rosa. Beijei seu rosto e desejei que os anjos a protegessem durante o sono. Era o ritual noturno, eu ficava observando-a dormir e conversando com Deus para que cuidasse e proporcionasse somente coisas boas à minha filha. Mesmo chegando do plantão acabado e com muito sono, eu não deixaria de esclarecer a cena que presenciei minutos atrás. Fui para a cozinha e encontrei Vivian sentada na ilha, jantando uma espécie de macarronada com queijo e legumes. — O jantar está no forno — disse. Sentei-me ao seu lado e fiquei analisando-a por um tempo, até que ela tomasse coragem para falar alguma coisa, mas ela descontou tudo na comida, dando uma garfada mais rápida que a outra. Fiquei irritado, ela estava me tirando toda a paciência. Afastei seu prato com um pouco de força. — Olhe para mim e me diga, com quem estava falando? — Com ninguém. Eu sou louca, esqueceu? A psiquiatra acha, você acha, sua mãe, sua irmã, todo mundo acha que eu sou louca. Até minha própria filha. — Não desvie a conversa, essa tática é antiga. E não coloque Ana no meio do que quer que seja. — Valentim, você se lembra a última vez que dormimos juntos? Que fizemos amor? — suas íris claras se direcionaram para as minhas. Eu não soube
responder —. Sabe por que você não consegue responder? Porque faz semanas, aliás, quase dois meses. Eu concluí. — Você está me traindo? — questionei sem delongas, sem deixar de compenetrar nos olhos dela com os meus. Impaciente, Vivian olhou para um lado e para o outro. — É só isso que importa, não é? Não importa se você não volta para casa e fica enfiado dentro daquele hospital dia e noite. — Meu pai morreu e eu tenho que dirigir um hospital inteiro — falei pela milésima vez. — Já estou exausta de ouvir a mesma coisa. Eu sempre fico com o resto, o que sobra de você. Você chega de madrugada na maioria das vezes, eu não aguento nem ficar acordada porque temos uma criança pequena. Não te vejo mais, não fazemos mais nada juntos. — Essa sua conversa está muito torta. Quero que me responda. Você está me traindo? Quem é o cara? — saí da banqueta e encaixei as mãos no quadril. — Eu não estou te traindo, ficou louco? — ela também desceu e parou em minha frente, colocou as mãos nos meus ombros, expirando uma respiração longa —. Só quero ter o meu marido de volta. Desde que Ana nasceu você só dedica o tempo que lhe sobra para ela, eu fico em terceiro plano. Acha que não cansa? — Vou repetir, não coloque Ana no meio dos nossos problemas. Meu pai morreu quando ela nasceu, isso explica a situação. Eu não tenho tempo, você não consegue compreender. — Então faça algo para melhorar, para mudar isso. Aceite logo o seu irmão como diretor e ele te ajudará a gerir! — De novo? Você só pode estar delirando! Já disse que está fora de cogitação, Saulo é ganancioso e ele vai afundar aquele lugar! — Eu não serei a típica esposa solitária por muito tempo. Então você que sabe! — Não confio mais em você, Vivian — tirei suas mãos dos meus ombros e me afastei —. Não é a primeira vez que presencio isso. — Quanto a isso você não precisa se preocupar, eu não tenho outro homem. O que você ouviu foi só uma discussão. — Com quem? — insisti.
— Ninguém importante. — Me dê seu celular — ordenei. — Não — ela hesitou. — Agora, Vivian! — estendi a mão —. Eu quero saber quem é esse ninguém. — Eu disse não! — se alterou perceptivelmente. — Ótimo, amanhã cedo eu volto para levar Ana ao colégio. Mesmo saturado do dia de trabalho pesado, eu voltei para o Saint Clair e lá fiquei a madrugada toda na correria das emergências. Quando amanheceu, liguei para a médica psiquiatra da minha esposa, marquei uma consulta para saber o que estava acontecendo, e como estava o desenvolvimento do tratamento. Ela me atenderia depois que eu levasse minha filha para a escola. Daquele dia em diante, Vivian trocou de psiquiatra. Porque a especialista me contou sobre o distúrbio, uma síndrome que explicaria muita coisa. Só não sabia que embaralharia mais minha cabeça com as poucas pistas que eu tinha em mãos. Daquele dia em diante, iniciei uma jornada dentro de um labirinto sem fim, uma meada que até hoje não havia conseguido encontrar a saída. Cheguei no hospital crente de que veria Mariana, a saudade só apertava a cada hora. Uma garota sardenta dos cabelos ruivos me parou perto das portas automáticas de vidro, logo na entrada. — Você! — ela disse ansiosa —. Você é médico, não é? Trabalha aqui? — seu sotaque era muito puxado, deixando claro que não era de Seattle. Alguma coisa naquela mulher me chamou atenção. Seus olhos dentro das profundas olheiras eram vivos, mas transmitiam uma angústia assombrosa. — Trabalho sim. Em que posso ajudá-la? — Você conhece uma moça chamada Mariana? Mariana D'Ávila. Procurei na lista telefônica todos os lugares que tinha alguém com esse sobrenome. Estou revirando a cidade há dias. Me diz que cheguei ao lugar certo, por favor — disparou a falar. Estudei sua expressão aflita e olhei para o relógio no meu pulso. — Estou atrasado para uma consulta, mas acho que posso te ajudar sim. Você aguarda? O Starbucks é no cruzamento do outro quarteirão... Ou se preferir,
temos um restaurante dentro do hospital. — Jura que pode me ajudar? Então você a conhece? — Conheço. Entre, está muito frio aqui fora. A abordagem repentina me deixou muito curioso. Levei a menina até o restaurante e autorizei para que ela escolhesse algo para comer, já que parecia um animal indefeso e perdido. — Volto após a consulta, tudo bem? Ela assentiu com a cabeça e sorveu o café fumegante do copo. Conversei com os pais de uma criança para explicar o novo método de tratamento mais agressivo, para o filho deles que estava com tumor nos pulmões. Dar más notícias era como sair carregado de um campo de guerra. Sempre horrível. Fui até Martha para saber da sua disposição, e ela me contou que a filha apareceria na hora seguinte. Eu não sabia se comemorava ou ficava mais atordoado. Vê-la sem poder estar realmente perto seria esmagador, como tudo estava sendo desde o episódio na minha casa. Marquei a consulta com o Dr. Augustino, o obstetra e depois, sentei com a desconhecida no restaurante. Pedi um mocaccino para mim. Toda vez que eu tomava lembrava de Mariana. Ela tinha me viciado naquilo, mas esse era o vício mais fácil de lidar, comparado ao que eu adquiri por ela. — Como ela é? — me perguntou sorridente. — Não entendi. — Mariana. Como ela é? Ela é alta, baixa? Morena, loira ou também é ruiva? — Alta, e é loira — respondi, completamente desentendido sobre o interesse tão imprevisível. — Por que ela vem até o hospital? Está doente? — de repente ficou preocupada. — Não — meu estômago doeu só de pensar nessa hipótese —. Mas este assunto é particular. Indico que questione diretamente a ela. — Ela é bonita, Doutor... — ela olhou meu jaleco — Valentim? Ela é bonita? — a ruiva fechou os olhos um pouco desordenada e balançou a cabeça —. Me desculpa, quando fico nervosa não paro de falar. Me desculpa. Não precisa responder.
— Ela é linda — disse sem deixar espaço para qualquer dúvida sobre sua beleza. A garota tímida esboçou um sorriso e assentiu com a cabeça. — Com licença... Dr. Del Torre, a filha da paciente Martha está no seu consultório. Disse que precisa falar com o senhor — minha secretária apareceu para comunicar. — Espere um instante e você falará com a Mariana. — Não sei nem como te agradecer, obrigada Valentim, quer dizer, Dr. Valentim... Del torre — ela tentava se corrigir e piorava. Ansioso, caminhei até a sala do consultório e assim que abri a primeira porta, todas as idealizações boas sobre a visita dela, foram embora. Eu achava que Mariana tinha vindo para conversarmos, para nos vermos, tentarmos matar a saudade, qualquer coisa. Mas não esperava, nem na mais remota imaginação, que a veria acompanhada de um homem. Um maldito loiro com cara de europeu que trajava um terno azul escuro. — Mariana — saudei quando ela me viu. Meu dia tinha começado há pouco e já estava fodido! Detectei uma súbita semelhança no olhar triste da ruiva com o da mulher na minha frente. Mesmo com o semblante derrubado, ela continuava absurdamente deslumbrante. Deus, como eu era fascinado! — Valentim — sua voz saiu em um sussurro —. Eu vim para quitar a dívida com o hospital.
26 Mariana D'Ávila
V
— ocê sabe que não precisa fazer isso, David — olhei para o irlandês antes de descer do carro. — Não vejo porque não — ele sorriu e destravou meu cinto de segurança, ficando com o rosto bem próximo do meu —. Mas continuo decepcionado por você nunca ter compartilhado exatamente o que está acontecendo com a sua mãe. — Não achava necessário. Nós nos encontrávamos somente para... — ele colocou o indicador nos meus lábios, impedindo-me de terminar a frase e negou com a cabeça. — Quando dizia que se não fosse casado eu me casaria com você, era verdade. Você é uma mulher espetacular, bela. E a sua profissão não diminui seus méritos — senti um beijo apertado na bochecha —. Vamos. O homem abriu a porta para mim e eu o guiei até o elevador, que ia do estacionamento no subsolo até a recepção do hospital. Não demorou para que eu notasse os olhares dos funcionários sobre mim, há dias não me viam com o Valentim e provavelmente estavam tirando suas próprias conclusões. — Eu vou te pagar — cochichei no ouvido do David. — Dormindo com vários sem parar? — cochichou de volta —. Injusto. Esse dinheiro não me fará falta. Sessenta e sete mil dólares era um dinheiro que eu nunca teria em mãos, e o irlandês simplesmente tinha para quitar a dívida de uma prostituta. Isso só reforçava ainda mais que a desigualdade existia e que era gritante. — Bela, você não quer que eu resolva sozinho? — Não, a paciente é a minha mãe. Posso tentar falar direto com o setor de cobranças, pelo menos não entrarei em contato com o Valentim. Sim, eu havia contado quase tudo para o David. A semana que passou foi o suficiente para nos aproximarmos muito. Ele estava em Seattle para finalizar a parte burocrática da mudança da Irlanda para cá, e logo suas filhas junto à esposa ficariam definitivamente na cidade.
— O Dr. Valentim é o diretor geral, falaremos com ele mesmo. Eu realmente não fazia ideia do que o Valentim pensaria sobre o pagamento da dívida, ainda mais que eu estava acompanhada de um homem, o cheque estava no nome do David também, mas sinceramente? Isso era a parte menos importante. O tratamento da minha mãe que eu tanto me sufocava para custear finalmente seria quitado. Minhas mãos formigavam e eu podia sentir minhas costas suarem, mesmo com a temperatura baixa da antessala, onde a secretária estava. Ela disse que iria encontrá-lo para informar minha visita, e então nos deixou esperando. — Mantenha a calma — David passou as mãos nos meus braços e suas íris fitaram as minhas. Assenti com a cabeça, embora estivesse com o coração batendo mais forte no peito. Valentim não precisou sequer entrar na sala, o seu cheiro invadiu o ambiente assim que ele abriu a porta. Eu fechei meus olhos, respirei fundo de forma sutil para esconder um pouco do meu nervosismo e engoli a saliva com dificuldade, já que meu coração parecia ter saltado para a boca. Ele parou na minha frente, tirou o estetoscópio do pescoço e encarou David antes cravar seus olhos em mim. — Mariana — o tom perturbado da sua voz me deixou embasbacada. — Valentim — tive que coçar a garganta para retomar a voz que quase não saiu —. Eu vim para quitar a dívida com o hospital. Seu olhar me sondou por longos segundos. — Sente-se — apontou para a poltrona em frente à mesa —. Acredito que o seu amigo não precisa estar presente para isso. — David — o irlandês estendeu a mão para cumprimentá-lo —. O amigo se chama David — completou com um resquício de ironia —. E preciso estar presente, caso o doutor tenha alguma dúvida sobre o cheque. Foi aí que Valentim me encarou mesmo, confuso e com um incômodo estampado na ruga formada entre suas sobrancelhas franzidas. Ele não retribuiu a saudação, se sentou, mudou o notebook do centro para o canto e apoiou ambas as mãos unidas em cima do tampo de vidro. — Você não precisa pagar agora — o médico me olhou —. Eu disse que faria isso e além do mais, a internação e a terapia dinâmica ainda não acabaram.
— Não tem problema, eu deixo o valor para mais um mês. É só você me orientar sobre os valores — meu ex-cliente tirou um bloco de cheques do terno e pegou uma caneta que reluzia o ouro nos detalhes. — Se você não se importa... David — Valentim acrescentou o nome com sarcasmo —. Eu gostaria que Mariana me respondesse. O homem ao meu lado me fitou, com um sorrisinho divertido nos lábios e indicou o médico com o queixo. — Ele quer que você responda, Bela. Meu amigo parecia querer provocar, mas sem más intenções, como se estivesse testando o Valentim. Eu saí do meu torpor quando ouvi David me chamar pelo apelido costumeiro, isso não ia dar certo. — David está correto, pegue o cheque e diga se há alguma dúvida. Se não se importa, seja breve. Quero ver a minha mãe e depois tenho um compromisso. O compromisso era ir para casa, sentar no sofá e chorar. A qualquer minuto eu assistiria Valentim exteriorizar todo o furor que estava impresso na desaprovação do seu olhar, no maxilar rígido e nos seus dedos que apertavam suas mãos avermelhando-as. Ele se levantou, caminhou até a porta e a abriu. — Nos deixe a sós — o pedido foi autoritário e até grosseiro. David me olhou e eu apenas concordei com a cabeça, gesticulei com a boca que ele podia ir. — Vou deixar mais um cheque assinado — habilidosamente, o homem loiro pegou a caneta, preencheu o papel e me entregou —. Coloque o valor quando decidirem. Irei tomar um café, qualquer coisa me chame, Bela. Valentim bateu a porta com força assim que o empresário se retirou. Ele sentou em silêncio na sua poltrona e abriu o notebook. Digitou rapidamente enquanto eu tentava entender o que exatamente estava se passando em sua cabeça. — Se você queria me provocar, conseguiu — finalizou o que estava fazendo e fechou com brutalidade o computador. Depois, ele pegou os dois cheques, rasgou e jogou na lixeira ao lado da sua mesa. — Por que fez isso, Valentim? Eu precisava que você reconhecesse para me
livrar logo disso. — Sua dívida já está quitada, Bela — sua respiração ofegava com força. Parecia tão nervoso, como um explosivo no qual eu era o dispositivo. — O que você fez? Ele virou o notebook para mim com uma página aberta, que eu demorei para assimilar. — Está pago. Agora a única coisa que você precisa, é me explicar que porra está acontecendo. Fiquei em pé e ele encurtou totalmente a distância entre nós, sua aproximação me intimidou, dei alguns passos para trás e quase caí ao encostar as pernas na poltrona. — Bela, Mariana? Bela? Por que esse irlandesinho de merda te chama assim? Trate de avisá-lo que eu vou romper o vínculo de fornecimento da empresa dele com o hospital, ainda hoje. — Você não pode fazer isso, por causa desse ciúme infundado. — Ciúme infundado? Só pode estar brincando comigo. Eu quero saber, o que ele é seu? — o homem estava a cada segundo mais enraivecido. — Meu amigo — dei os ombros —. E não estou entendendo porque está gritando comigo. — Seu amigo? Você tem certeza que não entende? — Não, não entendo. E eu não te dei o direito de pagar nada, não estamos mais juntos e eu não preciso da sua ajuda. Ele riu ironicamente e olhou para cima, passando as mãos sobre o rosto para tentar controlar a evidente agitação dos seus ânimos. — Ele é mesmo só um amigo? — persistiu, mas eu permaneci quieta. Valentim andou em círculos com as mãos no quadril e me assustou quando quebrou a jarra de vidro que estava na mesa. Nunca imaginei que o veria assim, o homem sossegado e concentrado que eu conhecia estava totalmente desequilibrado naquele momento. — Calma, Valentim! Olha a bagunça que está fazendo — agachei para recolher os cacos, mas fui puxada com força pelos braços. Ficamos com o corpo rente um do outro, seus olhos estavam avermelhados e a boca entreabriu diversas vezes antes dele organizar o que ia falar.
— Eu passei a semana inteira atormentado e louco de saudade. Tentei te ligar incansavelmente, esperei ansioso que você aparecesse aqui. Me martirizei cada minuto por ter te magoado, me empenhei em arquitetar planos para ficarmos juntos enquanto o meu filho não nasce... — E eu? — ele ia continuar, mas eu gritei —. E eu, Valentim? Olha para mim! Olha! — meus olhos já estavam ardendo com as lágrimas —. O que você enxerga? Me diz! Eu confiei em você e... — desisti de falar tudo o que estava guardado e engasgado —. Nunca ninguém me causou tanta dor — sussurrei. Ele alternou o olhar, como se ver o meu estado o destruísse. E questionou baixo: — Por que, Mariana? Por que ele te apelidou daquele jeito? Por que se dispôs a pagar uma quantia tão alta para a sua mãe? — Escuta aqui! — segurei seus braços com força —. Eu não te devo nenhuma satisfação, cuida da sua família, da sua esposa e do seu filho. Da minha vida você não precisa saber mais nada. Peguei minha bolsa da poltrona e fui em direção à porta. — Não faz isso comigo. Eu amo você, bailarina. Fechei meus olhos ao ouvir e controlei a vontade angustiante de berrar. — Me ama, Valentim? — ao contrário de suprir meu desejo de explodir, eu perguntei calmamente e fiquei de frente para ele —. Que amor é esse que abandona? Que não suporta, não prevalece? — Me ouça, por favor — senti o carinho dele no meu rosto e eu não sabia que um toque tão singelo poderia doer tanto. — Eu não tenho nada com o David, somos só amigos — interrompi —. Ele tem me ajudado muito, porque não está sendo fácil superar a sua ausência. Acredite em mim, é muito cedo para me relacionar com outra pessoa, eu não consigo. A compreensão ficou nítida em seus olhos, ele assentiu com a cabeça ainda acariciando minha bochecha. — Eu acredito em você. É que, fico perturbado só de te imaginar com outro. Agora me ouça. Não vou aguentar essa distancia entre nós dois, eu era acostumado com a infelicidade antes da sua chegada, mas você mudou isso. — E o que quer que eu faça, Valentim? — eu estava entorpecida e ansiava por sentir mais do seu toque. — Só quero que permita que eu fique perto. Posso ir no seu apartamento todos os dias ao sair do hospital, ou se preferir te dou a chave da nossa casa, e também
nos encontramos aqui. Podemos nos adaptar, e quando meu filho nascer nós concretizamos os nossos planos. Meus sentimentos tão intensos me dominariam facilmente, eu poderia me submeter ao que a situação oferecia, até porque na minha cabeça, uma mulher da vida, que compartilhou seu templo mais sagrado, que eu sempre acreditei ser o corpo, com inúmeros homens, não era merecedora de ter uma união digna com alguém. Pensamento retrógrado talvez, mas fui condicionada pela mente masculina a pensar assim, desde que entrei para essa profissão. Mas algo lá no fundo não aprovou este ponto de vista. Assim como Valentim, era justo que eu fosse feliz. — Não — respondi, e ele ficou surpreso. — Podemos nos esforçar para conseguir. — Eu não vou me esforçar para aceitar o fato de que o homem que eu quero, continue casado. Não vou ser sua válvula de escape porque você não é a minha. Valentim, você significa muito mais para mim, é a minha insegurança e a minha âncora. O meu medo e minha coragem, é a avalanche de sensações e o meu ponto de paz — umedeci minha boca e respirei fundo para completar —. Um relacionamento não se consiste somente em paixão e entusiasmo, o amor também sofre turbulências. E por isso, eu não vou aceitar ser só os seus momentos bons. Não te quero pela metade se estou disposta a me doar inteira. Seus lábios tomaram os meus tão rapidamente que eu não tive tempo de processar. Valentim me encostou na porta e estendeu os meus braços a cima da cabeça. Suas mãos apertavam o meu corpo, enquanto sua língua movia-se duelando com a minha em completa maestria. Sua boca estava quente em contradição ao frescor do hálito levemente mentolado. Nosso ritmo era harmonicamente entorpecente. O beijo parecia ter uma ligação direta com o meio das minhas pernas, onde logo começou a pulsar com os movimentos libidinosos que ele fazia com a língua. Quando nos afastamos, mesmo que contra a vontade, nossas respirações se misturaram. Arfantes, inspirando e expirando desejo. — Nós partilhamos do mesmo sentimento, as circunstâncias estão me limitando de demonstrar, mas eu te juro minha bailarina, que vou te provar o quanto é recíproco esse desejo de construir uma vida com você. Só me dá mais alguns dias, vou pensar em uma forma de manter o meu filho seguro. Senti seu abraço enquanto sua mão pegava os meus cabelos rentes a nuca, seus lábios encostaram no meu pescoço, distribuindo beijos prementes e cheios de
afeto. Enxuguei uma lágrima solitária que rolou no meu rosto e me afastei, com um sorriso frágil na boca. — Você vai ter que juntar pedaço por pedaço — falei baixo—, e são muitos. — Estou acostumado com plantões de setenta e duas horas, não me canso facilmente — ele sorriu —. Eu te amo — sussurrou com a boca encostada na minha testa. Tentei me recompor e encarei seus olhos. O fato é que eu só via verdade neles. — Agora preciso ir ver a minha mãe. — Tem uma menina te esperando no restaurante — ele olhou no relógio dourado do pulso. — Uma menina? Quem? — Não faço a mínima ideia. É uma ruiva e parece perdida. Eu disse que você falaria com ela. A porta se abriu de repente e nós dois olhamos. Nos afastamos quando a aparição de Saulo densificou a atmosfera. — Garanto que estou mais surpreso que vocês — ele guardou o celular no bolso do paletó preto e sorriu ao voltar a me olhar —. Depois da notícia da gravidez da minha cunhada você ainda tem coragem de se encontrar com o meu irmão? — É, algumas coisas não mudam. O seu jeito imoral por exemplo — passei por Saulo e olhei para trás somente para ver o sorriso sutil de Valentim. Caminhei pelo corredor até chegar no elevador, quando a porta se abriu, vi Álvaro e David conversando descontraidamente. O fato é que eu me sentia rodeada de minas, que a qualquer passo em falso tudo seria bombardeado e detonado, como um perfeito campo minado. Mas inexplicavelmente eu confiava no irlandês. — Bela, eu ia te procurar. Estava demorando, fiquei preocupado. — Vocês se conhecem? — Álvaro quis saber e eu afirmei com a cabeça. — Sim, ela é professora de balé das minhas duas filhas — o irlandês era mais liso que sabonete. — Vamos tomar um drink essa noite, por minha conta — Álvaro pegou a mão do David para se despedir e me deu um beijo no rosto —. Você e sua amiga estão convidadas.
— Apaixonado que só — cutuquei, falando baixinho. — Apaixonado e não nego — ele disse em alto e bom tom. As portas do elevador se fecharam e David deu risada. — Esse cara é engraçado. — Ele é. — Deu tudo certo? — ele pegou o celular e entrou em um aplicativo bancário. — Valentim rasgou os cheques. — Acabei de ver que não foi descontado o valor mesmo. — Mas ele fez transferência da conta dele. — Olha Bela, essa paixão que você está nutrindo é totalmente mutua. A tensão entre vocês chega a ser apavorante. — Ele titubeou em largar a esposa sem saber do que eu faço, imagina se soubesse. — Não, ele hesitou porque ela está grávida e pelo o que você me contou, a mulher foi até interditada. — Está defendendo o Valentim? — o encarei, desconfiada. — Nem morto. — Mas e se ele soubesse? — indaguei, coberta de insegurança —. Você por exemplo, vive dizendo que se casaria comigo, mas eu tenho certeza que não assumiria uma mulher como eu. — Uma mulher como você? Atraente, bonita da cabeça aos pés, inteligente, guerreira e madura? E...— ele chegou perto do meu ouvido — deliciosa na cama? — e levou um tapa forte no braço. — David! —o repreendi. — Não é a quantidade de homens que você dormiu, Bela. No meu caso, é o zelo pela minha família. Mesmo que eu não ame a minha ruiva, nós somos amigos e convivemos bem por nossas filhas. Mas o seu cara vive uma situação diferente, ele tem repulsa da esposa. Fiquei pensativa. O que eu não podia negar é que a companhia de David me fazia bem. — Você é maluco. O celular dele tocou.
— Tenho que correr para uma reunião imprevista. Mais tarde nos encontramos para tomar o drink que Álvaro falou. Nos despedimos e eu entrei no restaurante. Averiguei o lugar até encontrar uma garota com o cabelo laranja. Não sabia quem era, e quando me aproximei o suficiente, confirmei que nunca a tinha visto na vida. A menina era claramente uns anos mais nova do que eu, tinha duas tranças na raiz dos fios lisos que se uniam em um laço bem feito, parecia uma boneca, com os traços delicados e cobertos de sardas. — Oi — tirei a atenção do livro que estava em suas mãos. — O-o-oi — ela deixou o livro cair e abaixou para pegar, quando foi levantar, bateu a cabeça na quina da mesa. — Machucou? — perguntei preocupada. — Sim, quer dizer, não — a garota colocou a mão sobre o local e ficou em pé na minha frente —. Você é a Mariana? Eu achei que não viria. — Sou. E você, quem é? Ela fechou os olhos com a mão no machucado. — Tem certeza que não machucou? Posso pegar um gelo ou sei lá... Estamos em um hospital — o nervosismo da menina estava me contagiando. — Não, está tudo bem. — O Dr. Valentim disse que você queria falar comigo. Sobre o que? — É que, eu sei que é estranho, você deve estar me achando uma louca ou... — ela passou a língua para molhar a boca —. Mas eu te procurei por dias e estou contente por finalmente ter encontrado. — Garota, você está me deixando preocupada — sentei na cadeira e afastei a do meu lado para que ela voltasse a sentar —. Deixa de rodeios, por que me procurou? — Vou tentar te explicar, é que eu disparo a falar quando estou nervosa, me desculpa. — Tudo bem. Estou te ouvindo — deixei minha bolsa sobre a mesa e a olhei. — Meu nome é Eveline, nasci em Shelton, cheguei em Seattle há quatro dias e desde então estou revirando as listas telefônicas e as redes sociais para te encontrar. — Nasceu em Shelton? — ela ter citado a minha cidade natal foi o que ganhou
minha concentração. — Sim. E... eu sou sua irmã, Mariana. Fiquei estarrecida olhando-a, sem dizer nada. — Eu posso, olha... eu posso te mostrar — começou a procurar algo dentro da sua mochila e tirou um papel um pouco amassado —. Aqui, meu registro de nascimento. Meu pai se chama Edgar, o nosso pai. Senti uma onda ruim me invadir assim que ela pronunciou o nome do monstro. Passei os olhos rapidamente nas informações, li nome, sobrenome, idade e reconhecimento de paternidade. Olhei para Eveline e ela que tinha desfeito suas tranças, estava fazendo outras novas, com as mãos trêmulas. A garota era timidez pura. — Jamais imaginei. Meu Deus, ela sabia que eu tinha matado o meu próprio pai? O nosso pai? — E por que está aqui? Por que veio atrás de mim? — eu não queria ser rude, mas era informação demais para processar —. Você o conheceu? Com aptidão, ela terminou a trança e me olhou. Parecia um bichinho perdido e assustado diante das minhas perguntas. — É uma longa história, Mariana. — E eu estou disposta a ouvir. Levantei da cadeira e coloquei minha bolsa no ombro. — Me espere aqui. Coma alguma coisa — tirei notas da minha bolsa —. Eu já volto! Desorientada, caminhei rumo ao quarto do leito da minha mãe, olhando para os meus pés, passando as mãos na minha nuca que parecia fervilhar. Esbarrei, causando um impacto contra o corpo de Valentim. Ele derrubou um prontuário no chão que, no mesmo instante eu abaixei para pegar e entreguei em sua mão. Fiquei olhando em seus olhos, calada e ainda imóvel. — O que foi, amor? — questionou aflito. — Eu tenho uma irmã — contei, totalmente letárgica. — Irmã? A ruiva que veio te procurar? — Sim, aquela esquisita do restaurante, é a minha irmã mais nova.
27 Mariana D'Ávila
Ele me observou como se eu estivesse com duas cabeças, primeiro sorriu, depois fisgou o lábio, com o semblante desorientado. — E você está feliz? — Não sei, eu acho que sim — eu tinha perdido o norte de toda a situação, mas a notícia de ter uma irmã havia me deixado enigmaticamente empolgada. — Qual o nome da sua mais nova irmã? — Mais nova e única né, eu espero. Eveline, ela fez dezenove anos recentemente. Caminhamos até o leito da minha mãe enquanto Valentim me enchia de perguntas, as quais eu não sabia responder. Eveline ainda esclareceria tudo, por enquanto eu estava totalmente perdida e no escuro com a novidade. — E você vai contar para ela? — o médico indicou com o queixo a minha mãe, que estava com um livro em mãos. — Que ela foi traída, ou que meu pai possivelmente tinha uma segunda família? — Pode ser que ela esteja ciente há muito tempo. — Prefiro não arriscar, não quero que ela se altere — mantivemos nosso tom o mais baixo possível até que chegássemos ao lado da maca. — Sra. Martha, fico contente em vê-la com essa carinha boa — Valentim pegou a mão da minha mãe e acariciou gentilmente com o polegar. Ela tirou o respirador já que o cateter nasal enviava oxigênio direto às suas narinas, possibilitando que respirasse, mesmo que com mais dificuldade, sem a máscara. — Eu é que estou contente em ver vocês dois juntos. Andaram brigando, não é? Nós nos entreolhamos e depois voltamos a sorrir. — Está tudo bem, mãe — também peguei em sua mão e abaixei, para beijá-la na bochecha. — Estou presa nessa cama, mas continuo com uma ótima audição, minha filha.
Sem contar que enxergo tudo através desses diamantezinhos redondos — ela se referiu aos meus olhos —. Ouvi burburinhos sobre vocês. — O que exatamente? — Valentim perguntou. — Não importa. Mas preciso aconselhá-los — ela apertou nossas mãos com as suas —: não desperdicem esse presente, Deus colocou um na vida do outro com um propósito, então busquem cumpri-lo, mesmo que para isso vocês precisem enfrentar certos obstáculos. Se existe amor entre duas pessoas, vale a pena lutar. Acreditem no que estou dizendo, porque eu só os desejo o bem. Me sentei no pequeno espaço do colchão e encostei minha cabeça em seu ombro, grata por suas palavras e consequentemente me sentindo confortável com o seu afago em meus cabelos. — E você — ela beliscou a barriga de Valentim —, trabalhe com toda a paciência que estiver no estoque, vai precisar usar com a minha filha. Ele reclamou e deu risada com a forma divertida que minha mãe deu o sermão. — Eu é que estou tendo que manter a calma, por nós dois — resmunguei. Aproveitei que a ala pediátrica fazia parte do trajeto de volta ao restaurante e parei para visitar Alba. A garotinha me abraçou tão forte que até o seu médico ficou enciumado. — E eu, não ganho meu abraço? — Venha, Tio Tim — ela abriu os braços e o acolheu carinhosamente. — Sabe quem eu conheci, Alba? — sentei-me na cadeira ao lado, massageando seus dedos finos, e ela me olhou curiosa balançando a cabeça em negação —. Um tal de Benjamim. Suas íris brilharam na direção das minhas, mas me arrependi no momento em que Valentim me censurou com uma única estreitada de olhar. — Você conheceu meu vovô? Alba ficou tão alegre que eu decidi ignorá-lo. — Sim. Você gosta dele? — Muito, mas a minha mamãe não — torceu a boquinha e eu respirei fundo, triste com aquilo —. Queria que ele viesse me ver, eu não posso sair daqui — ela murchou os ombros. Como se fosse possível segredar, eu me aproximei do seu ouvido e cochichei: — Eu prometo que vou trazê-lo aqui. Deixa comigo.
Sensorialmente, sua ansiedade foi transmitida para mim. Era bom vê-la animada e é óbvio que eu importunaria o Dr. Valentim Del Torre, até que meu pedido fosse acatado. — Agora você precisa descansar — ele recomendou depois de ter mexido em alguns botões da máquina ligada em um painel. — Você volta? Para contar as histórias das princesas... — ela me deu mais um abraço e eu me controlei para não apertá-la muito. — Sim senhorita. Com a certeza de que em poucos dias teria o meu homem de volta, eu estava menos angustiada. Ele explicou que a estratégia seria colocar um profissional para cuidar integralmente de Vivian, porque uma clínica psiquiátrica não era nada viável, com a razão de que a gravidez poderia ser colocada em risco, já que ela, nas duas vezes que foi internada em reabilitação, se recusou a comer e a seguir o tratamento adotado. — Seria perigoso para a saúde do bebê — ele concluiu. — Eu compreendo, e não quero em circunstância nenhuma colocar um ser indefeso em risco. Minha tristeza ficava de escanteio para que eu pudesse pensar a agir corretamente. Por dentro, o ciúme me corroía de tal forma que eu temia não aguentar, mas tínhamos amor, então valia a pena lutar. — Obrigado, meu amor — ele me abraçou e antes de me soltar, enfiou algo no meu bolso do jeans, apalpou meu bumbum e me instigou no ouvido —: Não se sinta pressionada, mas saio daqui às cinco horas. Entendi o recado, peguei a chave e rodei o chaveiro no meu indicador. Permaneci estagnada, admirando suas costas largas e seu jeito de andar, as mãos enfiadas nos bolsos do jaleco, como na maior parte do tempo. Guardei o molho na minha bolsa e tomei coragem para voltar até a minha irmã. Irmã. Essa palavra não pertencia ao meu vocabulário, não até hoje. Mas descobrir que uma parte de mim existia há dezenove anos, no auge dos meus vinte e seis, me causava uma sensação demasiadamente estranha. — Vamos para casa, Eve. Tenho só até as cinco para conversar — toquei o ombro da ruiva que assustada, teve um sobressalto. — Eve — ela repetiu — eu era chamada assim quando criança.
Caminhamos para fora do hospital, e esperamos em silêncio a boa vontade de algum taxista parar. — Você mora sozinha? — Com a minha melhor amiga. — E sua mãe? — Está internada no hospital que acabamos de sair — contei. — Desculpa — ela olhou para baixo. — Tudo bem. Chegamos na frente do meu edifício e ela vislumbrou os arredores, com o mesmo fascínio que eu tive quando cheguei na cidade grande. — Aqui é tão diferente. — É, eu sei — concordei já abrindo o portão. Nós subimos as escadas até o meu andar e quando entramos no apartamento, Carlie estava só de calcinha na porta da geladeira. Nada anormal. Só fiquei surpresa quando Eveline cobriu os olhos com as duas mãos. — Ai meu Deus, desculpa! Desculpa, desculpa! — quantas vezes mais ela pediria desculpa? — Aposto que você tem o que eu tenho — Carlie fechou a geladeira e parou na nossa frente —, ou mais peitos, talvez — ela ruborizou a ruiva feito um tomate. — Essa é Eveline — apresentei —. Minha irmã. Seus globos oculares quase saíram das órbitas, dei de ombros e fui pegar água, como quem não quer nada. — Como assim uma irmã? Você vai para o hospital com um irlandês e volta com uma irmã? Eu e Eve rimos com o jeito engraçado da minha amiga indagar, e o que eu notei na gargalhada dela me fez desarmar totalmente. — Ah meu Deus, é verdade! Ela tem o mesmo ronco horroroso na risada. Já estava séria, observando a ruiva tímida que apareceu de supetão na minha vida. Nervosa, ela desfez as tranças do cabelo e perguntou se poderia usar o banheiro. — Vocês não estão brincando com a minha cara, não é? — Carlie estava mais espantada do que eu.
— Não, ela chegou de Shelton há quatro dias. — E por que veio atrás de você? — Não faço a mínima ideia — forcei a boca para baixo, tão confusa quanto ela —. E quer saber, não estou pronta para me tornar uma irmã mais velha. Só mais tarde. Caminhei para o meu quarto e Carlie me seguiu. Não que eu fosse recusar a chegada de Eveline, mas a única coisa que eu desejava mais do que respirar, era ver Valentim e matar a saudade que estava me matando. — Você viu aquele meu sutiã decotado de renda, preto? — Não muda de assunto, sua doida! Continuei procurando no meio do meu roupeiro zoneado. — Viu ou não? O que parece uma blusa curtinha, sabe? — Mariana! — ela falou alto. — O que, Carlie? — parei de revirar as roupas —. Faça companhia para ela, eu volto na hora de ir para o bar. — Que bar? — Álvaro nos convidou, junto com David. — Corrigindo, você vai para o hospital para quitar uma dívida, volta com uma lista de surpresas, sendo, uma irmã, um drink marcado com Álvaro e David, e com um emprego de babá para mim? — Eu sei que está tudo uma bagunça, eu sei — gesticulei com as mãos, fechando meus olhos —, mas eu vou me encontrar com o Valentim e quero o meu sutiã, você pode me ajudar? — Puta que pariu! Por último e não menos importante — ironizou — um encontro com o doutor. — Qual é, Carlie ? — respirei fundo me rendendo —. Nós nos gostamos. Vou me dedicar, não quero passar mais nenhum final de ano dentro de uma boate, dançando para um monte de homem nojento. É pedir demais ter alguém que realmente se importa comigo? — Você sabe que me preocup... — Te falei que Saulo quase flagrou eu e Valentim? — cortei.
Minha amiga desistiu e se sentou na minha cama. — Está ali — ela apontou para uma gaveta. — Obrigada. Cruzei o corredor do meu quarto para o banheiro e vi Eveline parada no meio da sala. Eu estava agitada, andava para um lado e para o outro, esperando o efeito do creme depilatório me deixar lisa e livre dos inapropriados pentelhos. — Bem vinda à loucura, Eveline — ouvi a dona dos cachos dizer para a ruiva. Tomei um banho com o meu sabonete líquido mais cheiroso e assim que terminei, o aroma adocicado se misturou ao moderado cheiro floral do meu perfume. Vesti o conjunto preto de lingerie, e aproveitei o tempo de sobra para secar meus cabelos. Essa simples tarefa me conduziu a devaneios pecaminosos, que me obrigaram a fechar os olhos ao reviver o episódio em que Valentim me chupou e me levou ao completo delírio. Fui interrompida ao escutar o telefone. Tirei o secador da tomada e saí do banheiro. Carlie atendeu e ficou me olhando enquanto escutava a pessoa na linha. — Quem era? — perguntei, já que estava acostumada a ligarem no residencial desde que Saulo destruiu meu celular. — David, confirmando se vamos mesmo. — Eu não quero atrapalhar vocês — Eve se pronunciou. — Atrapalhar? Você vai com a gente. — Eu te empresto uma roupa — assegurei. — Não, não se incomodem comigo... Eu posso arrumar um hostel, ou pousada. — Nosso sofá é confortável, Eve — Carlie foi supersolícita. — Preciso me arrumar, meninas. Pode escolher alguma coisa para vestir — a menina era tão acanhada que eu tinha que ser simpática para formarmos diálogos —. Carlie, mande mensagem para o Valentim informando qual bar nós vamos, tá? — beijei o rosto de cada uma e me apressei para arrumar uma roupa. O vestido descolado cinza, era perfeito para a ocasião, o zíper no meio que possibilitava abri-lo inteiro o tornava muito sexy. Prendi meus cabelos em um coque após secá-los completamente, a fim de obter ondas e volume. Realcei meus olhos com delineador e uma sombra clarinha para ornar com o batom rosa natural. Iluminei minhas maçãs, passei mais um pouquinho de perfume e subi
nos quinze centímetros que a sandália meia pata preta oferecia, antes de finalmente sair. Era hilário estar nervosa como se estivesse a caminho de um primeiro encontro. É que na verdade, desde que nos conhecemos, nossos encontros eram meras consequências. Então sim, eu estava nervosa. Me esforcei para apagar a lembrança da semana anterior, na qual saí desolada por esse jardim. Observei os pinheiros bem podados, enquanto me encorajava, e segui em direção à porta grande de madeira. Preferi bater mesmo tendo a chave, por educação ou vergonha. Não fui atendida, então tomei a iniciativa de destrancar e entrar. A sala estava vazia, mas escutei barulho da cozinha. Deixei minha bolsa no sofá e fui até ele. O ambiente era tão limpo que brilhava, Valentim era sempre tão organizado e precisava de tudo impecável para fazer qualquer coisa, talvez fosse um hábito adquirido pela medicina ou mais uma das suas infinitas qualidades naturais. — Eu não tinha certeza que você viria, então... — ele lavou as mãos na pia e quando virou-se para mim, não escondeu a admiração —. Você está linda! Fui despida com o percorrer das íris esverdeadas por todo o meu corpo. Mas o que ele não sabia, é que eu o achava mais lindo ainda. Seus braços fortes estavam evidentes com a camiseta preta básica, a calça de sarja bege exibia suas coxas e pernas torneadas, formando um apetitoso físico atlético. — Obrigada. — Eu é que agradeço — insinuou. — O que está fazendo de gostoso? — me aproximei até, propositalmente, encostar nele. Ele fingiu estar inalterado e quem ficou desestruturada foi eu, ao ver seu sorrisinho devasso. — Esperando a calda de chocolate. — Fondue? — Fondue. Roubei um beijo rápido de seus lábios e mordiquei o inferior. — Você está tão cheirosa — gemeu ao inalar o meu pescoço. — Não faz assim — choraminguei, consumida pela calidez que se alastrou na linha da minha coluna.
— Assim como? — dissimulou, espalhando beijos lentos na minha pele exposta. — Valentim — foi minha voz de gemer, cada milímetro mais arrepiada. Intrinquei meus dedos nos seus cabelos macios e deixei que ele me cheirasse e beijasse. Seu perfume entorpecente também exalava, forte e masculino. Juntos, se tornavam um aroma afrodisíaco. Sua mão firme encaixou na minha nuca e emaranhou meus fios. Ele contornou minha orelha com a língua e eu estremeci inteira encolhendo o pescoço. — Ai! — gani quando meu coro cabeludo foi puxado impedindo-me de esconder minha pele. — Eu quero te beijar inteira — disse bem rente ao meu ouvido. Precisei de uma força descomunal para me afastar e me recompor. Passei as mãos no meu vestido e mordi meu lábio ao olhá-lo. — Quanta pressa. — Mariana — suspirou, contrariado. Me esquivei quando ele tentou me agarrar, e gargalhei. Molhei o dedo na calda quente do fondue e chupei o mesmo para provocá-lo. Ele pegou um morango vermelhinho e afundou no chocolate, assoprou com cautela e aproximou a fruta dos meus lábios. Seus olhos cravaram no movimento da minha boca, até que eu ingerisse por inteiro. Passei a língua para limpar os seus dedos, também nos meus lábios e mastiguei, me segurando para não ceder à sua voraz apreciação. — Muito gostoso — sussurrei, quando por fim engoli a fruta. — Muito — concordou baixinho. — Abre um vinho. — O que disse? — Um vinho, amor — tive que repetir, controlando o riso. Antes que ele fosse para a adega na sala, eu beijei o canto da boca deixando-a sutilmente melada. Peguei o caquelon, a tigela onde estavam as uvas e os morangos e andei para a sala. Coloquei o conjunto todo na mesinha e me ajeitei no sofá. — Um brinde à sua sede — ele me entregou uma taça e levantou a que estava entre seus dedos.
Brindamos. — Porque vou saciá-la completamente. Nossos olhares permaneceram grudados enquanto degustamos o líquido rubi. — Me dê seu celular. Deixei que ele desbloqueasse e procurei o aplicativo de músicas para selecionar uma playlist. Escolhi o álbum do Two Feet, para combinar com o momento. Alcancei um palito com uva e mergulhei na calda, direcionei à sua boca e esperei que capturasse. Peguei mais uma, mas desta vez não o deixei comer. Lambuzei seus lábios e devorei a uva. Em seguida, lambi vagarosamente o lugar que sujei. Ele fechou os olhos, permitindo-se levar pela sensação que minha língua causava, até beijá-lo trocando nossas salivas doces. O desejo abundante demonstrado me tirou o alento. Ele me colocou em seu colo e espalmou as mãos na minha bunda, apertando-me e fazendo o meu corpo dançar para frente e para trás. — Estou louco para entrar em você — confessou ao separar nossos lábios. Logo sua boca trilhava um caminho abrasador, pelo meu pescoço e clavícula. — Eu sei — afirmei ao rebolar e me deleitar com o seu pau duro entre as minhas pernas. Seu indicador e o polegar encaixaram-se no zíper frontal do meu vestido e indiciou que abriria. Saí de seu colo e neguei com a cabeça. Love is a Bitch invadiu a sala, aumentei o som pelo celular, que estava conectado a uma caixa potente de som. Levantei meus cabelos com as mãos na minha nuca, e em frente ao Valentim, comecei a descer movimentando meu quadril sensualmente. Ele folgou no sofá, relaxando e afastando as pernas para me dar espaço no centro delas. Subi a malha do meu vestido quando adulei minhas pernas de baixo para cima. Deixei à renda preta a vista e virei-me de costas. Segurei no tecido, empinei minha bunda e o encarei por cima do ombro. Valentim estava inquieto e afogueado com a dança. Estacionei entre suas coxas e desci o zíper lentamente, desunindo os dois lados e mostrando minha lingerie. O vestido formou uma poça em volta dos meus pés. Seus lábios ouriçaram cada pelo meu, quando beijaram a minha barriga. Ele deslizou a ponta do nariz até chegar na minha calcinha, e ali pressionou e
inspirou com força. — Deliciosa. Me perdi. Segurei em seus cabelos para não desequilibrar quando enfiou os dedos entre minhas pernas, ainda impedidos pelo fino tecido de renda. — Encharcadinha, amor. Meu corpo estava em ebulição e minha boceta implorava por seu toque. — Eu quero você — supliquei ao ver Valentim em pé na minha frente. Habilidosamente, ele abriu o fecho do meu sutiã após admirá-lo, e livrou meus peitos da peça. — Aqui? — senti uma chupada no seio esquerdo —. Ou aqui? — e lambeu o mamilo direito. — Aqui! — ousadamente, peguei em sua mão e coloquei no meio das minhas pernas. Fui devorada avidamente, nosso beijo asfixiou os meus gemidos à medida que ele massageava meu clitóris. Me guiando de costas em direção ao quarto, eu enredei seu pescoço com o braço para não cair dos saltos finos. Valentim estava tão excitado e louco de desejo quanto eu. Ele me jogou na cama e puxou o elástico da minha calcinha, descendo-a devagar. Tirei sua camiseta ao me sentar na cama, mas fui empurrada para deitar novamente. Fugi da beirada e fiquei de quatro perto da cabeceira, apertei minhas mãos nos ferros e aconcheguei meu rosto no travesseiro, assistindo-o colocar o preservativo em todo o comprimento. Seu olhar era tão libertino que, se eu não estivesse enlouquecida, sentiria medo. Mas eu desejava sofregamente o que estava por vir. Por dentro eu tremia, por fora, minhas costas suavam. Qualquer pingo de sanidade havia se dissipado, eu estava ali, submissa a sua impetuosidade. Cada parte de mim ansiava por ele, ansiava pela sua tortura. Sua boca reverenciou da minha lombar escalando até minha nuca. Eu estava entregue, indefesa e faltava pouco para desmanchar. — Valentim — bradei quando ele entrou. Estocando freneticamente e com força, Valentim me apertava se deleitando com as minhas curvas e principalmente com a minha bunda. Comecei a ser controlada pelo rabo feito em meu cabelo, do jeito que mais o alucinava. Bati
meu traseiro contra o seu quadril e o combate dos nossos movimentos acirrados fazia a cama socar contra a parede. Desejávamos agressivamente nos fundir, sermos um só. — Eu amo você — falou próximo do meu ouvido e me eriçou ainda mais ao mordiscar minha orelha —. Está me ouvindo? — Repete, por favor — implorei. — Então rebola no meu pau — e descontroladamente, eu fiz o que ele mandou. Com os meus fios loiros grudando no meu rosto por conta do suor, eu o beijei descompassadamente, ouvindo nossas respirações extenuadas. — Você vai... acabar... comigo — clamei entre os gemidos. Meu ventre doía, pedindo por mais, pedindo libertação. Contraí seu pau com força estreitando minha entrada, recebi um tapa em revide e em seguida seus dedos cravaram na minha bunda. Esguichei um líquido que ensopou o lençol. Ele montou parcialmente sobre mim, desesperado pelo alívio, vociferou brutalmente e se esgotou por longos segundos. — Eu te amo, gostosa — reforçou assim que se recuperou um pouco. O homem caiu ao meu lado com a mão sobre o peito, depois retirou o preservativo cheio e o amarrou. — Ahhh! — repugnei ao sentir o meu gozo no lençol. Ele riu e veio me beijar. — Isso é sinal de que eu dou pro gasto — olhamos para a pequena poça. — Isso — selei sua boca — é sinal — outra vez — de que você está ferrado — finalizei encostando nossos lábios demoradamente. — Ah, é? Por que? — fingiu estar desentendido. — Porque vou querer sempre, de novo e de novo. — Eu faço esse esforço vai... Por você. — Esforço? — semicerrei os olhos e ele sobrepôs o meu corpo, distribuindo um monte de beijos pela minha pele suada. Tomamos um banho rápido, e depois coloquei a mesma roupa, calcei minhas sandálias e prendi meu cabelo porque estava impossível de desembaraçar os nós. — Leve, amor — Valentim estendeu a mão com uma jaqueta jeans. — Não precisa.
— Mariana, esse vestido é curto e você ficará com frio. Convencida, peguei e coloquei. Era preta e ia até o meu quadril. Ficou estiloso e combinou com os saltos. — Carlie te avisou do bar? — Sim. Quem vai estar lá? — ele pousou a mão sobre a minha coxa quando assumiu a direção do carro. — Carlie, Álvaro, David e Eveline, acho que só. — Por que esse babaca vai? — David não é um babaca, Valentim — debati irritada. — Não o defenda na minha frente, por favor. — Só estou dizendo a verdade, ele é um cara legal e já conversamos sobre isso. David é só meu amigo. O médico fechou a cara e continuou dirigindo pela avenida, focado nos semáforos e no tráfego de carros. — Você fará plantão hoje? — não consegui conter a dúvida. Eu queria que ele respondesse que sim, que passaria todas as noites no hospital até voltar para mim. — Não. Só amanhã. Olhei o movimento das calçadas e senti sua mão na minha. — Não fique preocupada. É você que eu desejo e que eu amo — ele beijou o nó dos meus dedos. Nos despedimos quando o carro estacionou na frente do bar. — Boa sorte com a sua irmã — acariciou a lateral do meu rosto. — Obrigada. Qualquer coisa liga para a minha amiga ou para o seu amigo. — Juízo, bailarina. — Sempre, doutor — sorri antes de sair e bater a porta.
28 Mariana D'Ávila
E
— ssa bela dama vai brindar com um White Russian — David escolheu minha bebida após me dar um beijo no rosto —. Está linda, e exalando sexo — cochichou bem baixinho no meu ouvido. — Calado — belisquei seu braço e ele se contorceu. — Sua calcinha está do avesso — cutucou na altura do meu cóccix e segurou a etiqueta da minha calcinha, por cima do tecido do vestido. — David, você é terrível — minha amiga reparou na cena e o fez rir. — Mariana é terrível. É esse exemplo que vai dar para a sua irmã mais nova? — ele pegou o copo com o garçom e me entregou. — Oi, Eve — dei um beijo na bochecha dela e ela me deu um sorrisinho. — Aquele médico do hospital, o que me ajudou a te encontrar... — Sim, eles transam — Álvaro concluiu, antes que Eveline questionasse. — Gente! O foco sou eu? Bebam e finjam que nem estou aqui — ia colocar o drink na boca, mas David me parou. — Um brinde à Mariana e ao seu sexo selvagem — ele uniu as pestanas loiras, dando uma piscadela. Sentei na cadeira acolchoada entre Eve e David. Eles voltaram a conversar sobre o assunto de antes da minha chegada, e minha irmã era a única que permanecia em silêncio. Sua timidez a atrapalhava, e quando começava a falar sobre algo, ela se enrolava toda e pedia desculpas. — Beba, é doce — ofereci. O coquetel era uma bebida com licor de café, vodca e creme de leite adocicado. — Vou continuar na Coca — ela levantou o copo para me mostrar. — Anda, Eve. Faz bem de vez em quando, desestressa. — Obrigada — ela meneou com a cabeça em um gesto negativo e voltou com a boca no canudo do refrigerante. — Por que aquele viado não veio, loira? — Álvaro me perguntou.
— Cuidando da vaca — Carlie respondeu por mim. — Não ofenda o pobre animal, minha preta — ele cheirou o pescoço dela, e eu revirei os olhos ao presenciar. — Essa mulher é tão ruim assim? Porque pelo visto ninguém gosta dela, coitada — o irlandês se compadeceu. — Coitada de mim — resmunguei. — Vou no banheiro, com licença — Eve avisou de repente e se levantou. — Ela é toda quietinha, né? — Carlie comentou. — E tem um traseiro que está me desvirtuando — o irlandês sequer disfarçou ao secar a bunda da ruiva. Bati em seu braço repreendendo-o. — Ai, Bela! — fez uma careta —. Não fique enciumada, é com você que eu casaria. — Pode brochando o pau, camarada. Essa aí é do meu amigo — o gastro se intrometeu. Chamei o garçom e pedi quatro doses de tequila, que logo vieram acompanhadas de sal e limão. — Arriba — minha amiga convidou e nós levantamos os copinhos —. Abajo — abaixamos — Al centro — unimos os quatro —, y adentro! — os três gritaram e eu fiquei gargalhando tentando virar a dose ardente. Fechei meus olhos e lambi o sal. — Vou pegar uma tequila pra ruiva — David disse. — Não, obrigada. — Tenho propriedade para dizer que a cor do cabelo faz jus, vocês ruivinhas são calientes como o fogo e adoram uma tequila — ele chamou o garçom e pediu mais uma dose. Minha irmã acabou cedendo e tomando, o que gerou uma agitação dos meus amigos na mesa. Comprei um cigarro e segui para a área de fumantes, acendi com o isqueiro emprestado de uma moça e me abracei sentindo um misto de frio com prazer, ao poder inalar o perfume do meu homem na jaqueta. Eu estava me sentindo bem, mesmo que ainda confusa com o fato de Eveline
aparecer. — Posso me sentar aqui? — Claro — dei espaço no banco e a ruiva sentou. — Desculpa, eu não estou acostumada a sair e beber, por isso não consigo me enturmar. — Primeiro — soltei a fumaça —, para de pedir desculpas, você não precisa disso. Segundo, também não estou acostumada. Sempre trabalhei feito uma desgraçada pra bancar os tratamentos do câncer da minha mãe, só a Carlie está presente na minha vida há mais tempo. Mas sair e poder estar entre pessoas que eu gosto é uma novidade para mim também. Não se sinta pressionada porque estamos bebendo ou porque eles falam besteira. Você é bem vinda, Eve — falei convicta, e a vi formar duas covinhas nas bochechas ao sorrir. — Obrigada. Eu precisei de muita coragem para vir atrás de você. — Eu imagino. Mas se eu soubesse da sua existência, teria ido atrás também. — Queria ter uma formação antes de me mudar, por isso esperei para terminar o curso de hotelaria. — Você planeja ficar em Seattle? — Sim, Shelton não têm oportunidades para mim. — E nem pra ninguém — nós rimos. — É verdade. Mas eu gosto de lá. — Vivi meus piores pesadelos naquela cidade, então é difícil gostar. — O Edgar fez parte desses pesadelos? — ela foi direta, fitando-me nos olhos. Era incrível como eu achava minha irmã uma bonequinha, delicada como um cristal, os olhos em um verde água estonteante, o nariz fininho perdido entre as milhares de sardas alaranjadas, os lábios, diferente dos meus, eram bem fininhos, e sua inocência pairava naturalmente. — Ele nunca foi um bom pai, um bom marido, um bom homem. Você deve saber. — Sei pouco sobre ele, mas sei que não era bom. — Vocês eram como... não sei, como uma família? — Não — ela fechou os olhos —. Nunca. — Tudo bem se você me contar?
Eu tinha consciência de que se o monstro fazia parte do enredo, a história era de terror com direito a drama e desastres. — Consigo me lembrar somente de uma vez, em que eu o vi. Eu era muito pequena, me escondi atrás da minha mãe enquanto eles discutiam sobre a minha vida. Assenti com a cabeça, com toda a atenção nela. — Minha mãe era jovem quando ele a estuprou. Mas Edgar deveria ter algum tipo de transtorno, ele se arrependeu e voltou para pedir desculpas. Meus olhos encheram d'água no mesmo instante, olhei para o lado tentando mantê-las no mesmo lugar. — Ela engravidou quando foi violentada, e meus avós a colocaram para fora. Jovem, sem terminar os estudos, de família pobre, não tínhamos saída. — Eu teria o deixado agonizar se soubesse — revoltada, sussurrei mais para mim do que pra ela. — O que disse? — Eve me olhou. — Nada. E o que aconteceu? — Minha mãe conta que eu tinha três anos quando ele apareceu para pedir perdão, e eu tenho flashes deste dia. Ela pediu dinheiro, porque com o salário do trabalho instável era impossível de me sustentar. O cômico é que eu não eu estava espantada, eu estava revoltada. E qualquer coisa que ela falasse de Edgar, não me surpreenderia. — Ele deu? — Deu uma quantia e pediu para que sumisse comigo, por causa da família dele. Você e sua mãe, no caso. — Sim. — Mas minha mãe ficou. Ele tentou matá-la, mas não me lembro. — Eveline, Edgar era um crápula, um monstro tenebroso. Aquele homem não merecia viver, não merecia respirar o mesmo oxigênio que as outras pessoas. — É verdade que você o matou? — suas íris compostas de ingenuidade brilhavam em meio a aflição. — É. — Imagino que não tenha sido nada fácil crescer com um pai louco.
— Não foi — sorri, entristecida ao lembrar. — Você quer me perguntar mais alguma coisa? — E a sua mãe como está hoje? — Vive como pode. Pretendo enviar dinheiro — ela esboçou um sorriso que expôs seus dentes branquinhos e curtos, e entre eles seus caninos apareciam, bem pontudos. — Vou te ajudar a arrumar um emprego. — Não quero que atrapalhe a sua vida por minha causa, não quero atrasar seus planos ou ser um peso. Eu só vim porque precisava esclarecer, precisava te conhecer. Independente do trauma, somos irmãs e eu não me contentaria até te encontrar. — Não vai me atrapalhar, Eve. E você agiu certo. Temos o mesmo sangue, é nosso direito nos conhecermos. Traguei o cigarro e esperei para soltar. — Você trabalha com o que? Fez alguma faculdade? — Isso não vem ao caso agora — bati a brasa —. Pode ficar no meu apartamento, é pequeno e simples, mas é melhor que um hostel ou uma pousada. — N-n-não, não precisa se preocupar comigo. — Preciso. Você viajou, me procurou por dias e afinal de contas, é minha irmã caçula. Então sim, preciso me preocupar, é meu dever cuidar de você. — Ainda bem que você é legal! — ela relaxou os ombros e respirou fundo. — Acho que é assim que as irmãs agem né? — arqueei uma sobrancelha, perdida com a situação. Acabamos rindo. Larguei o cigarro que havia queimado inteiro, no cinzeiro, fechei a jaqueta jeans e nós entramos. — Vocês namoram? — O que? Quem? — Aquele médico. — Outra longa história — fiz um sinal com a mão para deixar pra lá. — Que demora, Bela — David enredou o meu ombro. — Papo de irmãs — Carlie rosnou, nitidamente enciumada —. Seu doutor estava me ligando, mas não vi e não atendi.
— Me empresta aqui — estiquei a mão para pegar o celular. Beberiquei um pouco do coquetel do irlandês enquanto sentia seu carinho no meu braço e mexia no celular para retornar a ligação. — Não precisa — Carlie disse —. Amiga, não precisa ligar. Estava digitando os números na tela e aérea ao que ela falava. — E aí, doutor — a voz de David saiu tranquila. — Mariana — já a de Valentim veio grossa e imponente. Levantei o rosto e demorei para assimilar. Olhei para Carlie e ela mexeu o ombro, como quem diz "eu tentei avisar". — Senta, fique à vontade — meu amigo apontou a cadeira na nossa frente. — Posso falar com você um instante? — Valentim me intimou. — Claro — me desvencilhei do braço do irlandês e me aproximei do homem bravo. Andamos em direção ao balcão do bar e envolvi seu pescoço com os braços. — Por que está aqui? Aconteceu alguma coisa? Valentim desvinculou meus braços e me ofereceu a banqueta para sentar. Me acomodei e cruzei minhas pernas. — Aconteceu, fiquei com saudade e voltei. Fui para frente com o corpo a fim de ganhar um beijo mas ele travou o maxilar. — Está bravo por causa do David? — O que você acha, Mariana? — Já te expliquei que nós não temos mais nada. Maldita palavrinha que escapou na hora e no lugar errado. — Mais nada? — enfatizou. Eu tinha acabado de me autossabotar. A fúria estava explícita em sua expressão. — Mais nada, Mariana? Vocês tinham alguma coisa? Então você mentiu, disse que ele era só um amigo. — Mas ele é só um amigo — tentei me defender —. Não temos mais nada. — Mas já tiveram — ele se aproximou de mim se controlando para não alterar o volume da voz —. Eu não quero esse cara perto e muito menos encostando em você. Estamos combinados?
O encarei com os braços cruzados, olhei para os lados sem movimentar a cabeça, mexi meu pé inquietamente e concordei com a cabeça. — Vocês namoraram? É por isso que ele se dispôs a dar o dinheiro? Hein, Mariana? — Não, não namoramos, Valentim. — Vocês já transaram? — ele perguntou baixo e eu fiquei incrédula com a invasão —. Quando vocês transaram? — Valentim! — tentei limitá-lo. — Já nos conhecíamos? — Não faz sentido falarmos disso! — Porra, Mariana! — ele desceu obsesso do banco alto, e passou a mão sobre a boca, gesto o qual era marca registrada dos seus momentos de raiva ou preocupação —. Quantas vezes desde que nos conhecemos? Qual foi a última vez? Me responda. Segurei em seu rosto com as duas mãos e cravei meus olhos no dele. — Isso tudo não importa. Nós somos amigos agora e ele é um homem legal, que me respeita e me apoia. — Mas me desrespeita, não viu como tira com a minha cara? Até a hora que eu perder a paciência e... — E nada! — interrompi — E nada, Valentim. Você não vai brigar com ele porque tivemos uma relação. Eu sou leal aos meus sentimentos e fiel a você. Não quero e não preciso de outro homem. — Mas... — Mais nada! — interrompi mais uma vez —. Eu suporto a ideia de você dormir na mesma casa que a sua esposa, todos os dias. Você não tem noção do quanto isso é doloroso e difícil. E mesmo que quebrada, minha confiança ainda permite que eu aguente. Então por favor, faça o mesmo por mim. — O problema não é você. — O problema é ele — completei antes que ele fizesse —. Já conheço essa ladainha machista. Se eu perceber que ele está me desrespeitando, eu mesma vou resolver. — Vou aceitar esse seu espaço, mas amor, qualquer graça que esse imbecil fizer, eu quebro a cara dele e não socorro.
Ri com a forma séria que ele esbravejou e selei sua boca seguidas vezes. — Também sei esmurrar as pessoas, você deveria lembrar disso. — Eu te amo — seus lábios permaneceram a menos de um centímetro dos meus. Deus, como eu queria declarar o quanto era recíproco, mas não conseguia. Travava. — Vamos embora? Eu te deixo no seu apartamento — ele cruzou nossos dedos e levou a minha mão até a boca para beijá-la. — O senhor pode por favor engolir esse ciúme com uma boa dose de whisky e curtir com a gente? — Em outra mesa? Posso — insistiu me fazendo gargalhar —. Parece um porquinho, amor — beijou meu pescoço ao ouvir meu ronco. — Anda, venha — o puxei pela mão e me acomodei ao lado de Eve, com Valentim a minha esquerda. — Brigas se resolvem com mais sexo — com o copo na mão, David ergueu o indicador. Eu senti o braço de Valentim enrijecer, alisei o lugar algumas vezes a fim de acalmá-lo e fiquei olhando para o seu rosto. — Mas então cara, a empresa expandiu mais nos EUA do que na Irlanda? — Álvaro prosseguiu com o assunto. — Isso, a renda maior está concentrada aqui, por isso optei por me mudar para ficar a par e administrar... Nós os deixamos falarem do ramo farmacêutico enquanto Eve contava do curso de hotelaria, porque Valentim perguntou. Ele tinha notado rapidamente que ela era um tanto introvertida, e gentilmente a inseriu nas conversas. Fiquei agarrada em seu braço o tempo inteiro, para segurá-lo caso estourasse em alguma das vezes que David me chamava de Bela. Carlie estava se divertindo às custas da minha preocupação e quando decidimos ir embora, ela foi com o Álvaro. Me despedi de David que, ainda fez a última provocação falando no meu ouvido sobre minha calcinha do avesso. O celular de Valentim começou a tocar irritantemente desde que entramos no carro até chegarmos na frente do prédio. — Obrigada Dr. ... Valentim — minha irmã agradeceu, toda sem jeito. — Valentim, Eveline — ele sorriu e falou calmamente para tranquilizá-la.
Eve desceu quando a entreguei as chaves do apartamento, para nos deixar a sós. — Não vai atender? — indiquei o celular no suporte central do carro. — Não tenho porque atender, estou com você. — Atenda, Valentim — era o meu ciúme querendo desafiá-lo. Voltou a tocar e eu peguei o Iphone, vi o nome da Vivian e uma foto do seu contato. A praga era linda de doer e isso me tirava do sério. — Você não sente atração por ela? Vivian é tão bonita. — Não, Mariana. Deixei de sentir há anos. — Mas por que a engravidou? Ele hesitou em falar mas eu continuei quieta, aguardando. — Descontei a tensão sexual nela, um dia em que eu e você nos vimos. Foi uma forma de diminuir a minha frustração. Ô sentimentozinho traiçoeiro esse ciúme! Parecia pegar meu coração e retorcer como um pano de chão. — Funcionou? — Eu fechava os olhos e via cabelos dourados, então acho que não funcionou. Silenciei os toques das chamadas e coloquei o celular no mesmo lugar de antes. Tirei meu cinto de segurança e pulei pro colo dele, ajeitando minhas pernas nas laterais. Ele espalmou as mãos nas minhas coxas e encostou a cabeça no banco, me observando. — Sua beleza é impressionante, bailarina — seu indicador acariciou meu queixo e eu me aproximei para encostar nossas bocas. Esfreguei a pontinha do meu nariz no dele e prendi seu lábio nos meus dentes. — Tire um tempo para mim amanhã, doutor. — Farei o possível. — Eu acho bom mesmo... Espacei seus lábios com a minha língua que, logo tocou a sua, lenta e sensível. Cadenciei nosso beijo enquanto segurava sua nuca delicadamente, deslizei as unhas em seu couro cabeludo e rebolei com o quadril de acordo com o ritmo que sua mão ditou. Ele apertou minha cintura, entrelaçou meus cabelos com a outra mão e chupou meu lábio deixando uma mordida no mesmo. Gemi ao sentir seu membro endurecer e resvalar pela renda da minha calcinha.
— Você está cheirando a sexo, amor. — É porque estou molhada... — levantei-me sutilmente de seu colo e vimos a marca próxima do zíper da calça. Ele sorriu e passou dois dedos no meu núcleo, penetrou um dedo e encurvou dentro de mim. Não demorou para tirar, me deixando sedenta. Trouxe os dois dedos melados até a minha boca e eu os suguei, deliciando-me com o meu gosto. — Caralho — acho que foi a primeira vez que eu o ouvi proferir essa palavra. — Minha boca que faz coisas fantásticas — copiei seu elogio —, está doida para trabalhar no seu pau. Então arrume um tempo para mim amanhã. — Golpe baixo. — E pode piorar — dei um beijinho no canto da sua boca e pulei para o outro banco. Peguei minha bolsa e ia devolver a jaqueta mas ele recusou. — Durma bem, bailarina. — Durma bem, bem longe da girafa. — Girafa? — ele engasgou de rir. — E não é? Igualzinha. Saí do carro e Valentim ainda balançava a cabeça, gargalhando deliciosamente. Entrei no apartamento e Eve estava revirando sua mochila. Fui para o quarto, peguei um pijama de frio e voltei para emprestá-la. — Tome um banho, fique à vontade. Vou fazer sanduíches, você quer? — Eu comi amendoins no bar. — Amendoim não mata a fome, Eve. — Tá bom, eu aceito — ela sorriu. — Eu fico esfomeada quando bebo. Enquanto minha irmã tomava banho, eu preparava os lanches. Meus pensamentos estavam cem por cento ocupados pelo médico maravilhoso que, vinha me conquistando arrebatadoramente. — Pegue — dei o prato com o pão para ela e nos sentamos de frente uma para a outra, no balcão. — Eu esperei por uma recepção ruim, achei que surtaria ou me ignoraria.
— Não temos históricos muito felizes, então o mínimo que eu devo fazer é me compadecer e te acolher. — Desse jeito vou me acostumar rápido com a ideia de ter uma irmã mais velha. Conversamos enquanto devorávamos os sanduíches, fiz mais dois para prolongar os assuntos. Eve parecia mais à vontade quando estava só nós duas, como se muitas pessoas ao mesmo tempo a deixasse apreensiva. Ela me contou um pouco sobre sua mãe e sobre seu primeiro namorado, mas não quis entrar em detalhes. Já eu, falei sobre o balé e o que representava na minha vida. Fomos dormir tarde, acabei arrastando o meu colchão pesado até a sala, para fazer companhia a ela. Acordei cedo com os raios solares refletindo no meu rosto. Incomodada, levantei para fechar as cortinas. Mas dormir não era uma opção, já estava desperta e queria visitar minha mãe. Tomei banho, coloquei uma calça jeans escura, uma camiseta branca e o fiel sobretudo preto. Calcei minhas botinhas pretas e escrevi um bilhete para avisar a Eveline. Subi no ônibus e acabei descendo antes ao avistar um shopping. Entrei em uma loja de aparelhos eletrônicos e com a ajuda do atendente, eu escolhi um celular. Já que Valentim havia pago toda a dívida, eu pude usar duzentos e cinquenta dólares para a compra. Também fui até a agência bancária, decidida a fazer uma coisa. Estornei o valor exato que Saulo tinha adiantado, sem faltar um dólar sequer. Respirei aliviada por ter feito isso. Quando cheguei no Saint Clair cumprimentei as recepcionistas e enfermeiros, e fui até o leito da minha mãe. Ela não estava pois levaram-na para tomar banho. Caminhei em direção ao restaurante porque precisava de um mocaccino, e ia aproveitar para configurar meu novo celular. Distraída, andei pelo longo corredor e quando olhei para frente, me deparei com Valentim e Vivian. A mulher estava em uma cadeira de rodas, com os braços cheios de curativos, o rosto com diversos hematomas de cores e intensidades diferentes. Suas pernas também tinham machucados de arranhões e cortes. Estremeci diante situação. Olhei para os olhos de Valentim e sua aflição somada ao nítido cansaço, acabaram comigo.
— Está tudo bem? — tomei coragem e perguntei. — Fique aqui, querido — sua voz saiu calma — me encontre no estacionamento. — Não, você não pode empurrar essa cadeira sozinha — ele contrariou grosseiramente. — Vivian, o que aconteceu? Você sofreu um acidente? Valentim mexeu a cabeça fazendo um sinal para que eu parasse de questionar, mas dane-se! A mulher estava um caos. — Agradeço pela preocupação, Mariana — ela me olhou —. Vou deixar que conversem. O meu espanto foi que não constatei nenhum sinal de ironia ou competitividade nas suas palavras. — Vou levá-la, depois nos falamos — Valentim se dirigiu a mim. — O bebê está bem? — gesticulei inaudivelmente com a boca. — Depois, Mariana.
29 Valentim Del Torre
Seu semblante não me enganava, o orgulho sempre ficaria oculto detrás da carranca sisuda e da imponência profissional que ele representava. Meu pai era um homem bom, embora deixasse minha mãe furiosa por não comparecer em nenhuma data comemorativa. Sua presença era algo raro e quando acontecia, o entusiasmo se tornava incontrolável. Ele era como um deus para mim, um deus da medicina. Sempre inovando com suas pesquisas, era um dos cirurgiões mais renomados do país. Seria arrogante da minha parte dizer que herdei seu dom, mas aprendi a manusear um bisturi antes mesmo de aprender a falar. Dr. Jackson Del Torre era como um ídolo influente em sua profissão. Tão influente que segui rigorosamente os seus passos. Ganhei meu primeiro kit de primeiros socorros e os instrumentos de sutura aos oito anos, e não pensem que era de brinquedo, como herança do meu avô. Eram feitos de prata. Recordo-me que, somente eu podia tocar nos equipamentos que ganhava. Charlotte tentou vãs vezes se aproximar para ganhar a atenção do nosso pai, já Saulo, nos observava sempre calado em seu canto, já que nosso pai deixava claro seu desprezo. No entanto, ao decorrer das longas horas que Jackson passava no hospital, eu chamava meu irmão mais velho para me fazer companhia, e o ensinava tudo o que havia aprendido no dia. O que aquela criança de oito anos não sabia é que, a medicina podia ser um inferno sem ramificações. Horas sem dormir a base de cafeína, estresse acumulado, medo da incompetência, dificuldade para seguir a risca o juramento que, incluía diversas regras inflexíveis. Uma delas era que seu paciente, independente da circunstância ou grau de proximidade, vinha antes da sua própria vida. Se colocar em primeiro lugar não era uma regalia oferecida aos médicos. Minha missão dentro da profissão era salvar vidas e o que eu escolhi impregnou na minha essência. O fator mais pesado que acompanhava todos os colegas do mesmo ramo, sem exceção, era a culpa. A culpa por acreditar que poderia ter feito diferente, poderia ter feito mais, poderia ter sido um médico melhor e assim evitado mortes
fatídicas. A culpa era um fardo maior do que o arrependimento, a culpa consumia os médicos gradativamente, baseando-se nas cobranças internas. O que o mundo não sabia, é que os médicos eram doentes. Doentes de exaustão, doentes por crer que nunca bastava. Doentes porque enquanto zelávamos pela saúde dos pacientes, abdicávamos da nossa. Em todos os episódios em que presenciei a minha ex-esposa em um dos seus surtos, eu soube que ela era o meu teste diário, a pessoa que engatilhava o lado infernal de ter escolhido essa carreira. Eu era um médico e ela, uma paciente diária. — Ele fez isso comigo, ele fez. — Porra! O que foi que você fez? — abaixei-me ao seu lado, mas rapidamente me apressei para pegar a caixa de primeiros socorros. Preparei as compressas de gaze e comecei a limpar o sangue, estancando outros machucados mais fundos. — Seu irmão fez isso comigo, Saulo me agrediu. Eu não aguento mais — Vivian escondeu o rosto entre os braços. — Isso foi há muito tempo, Vivian — passei um algodão cirúrgico com antisséptico em seu rosto, mas ela se esquivou. — Não foi — seu choro desentalou da garganta, tornando-se copioso. — Ele não está aqui — tentei estender seus braços para ver os cortes, mas ela voltou a encolhê-los. Atrás das suas costas eu encontrei meus instrumentos de sutura, incluindo tesoura e bisturi. A automutilação fazia parte do seu distúrbio. Saulo não havia a machucado, há muito tempo ele não fazia isso. — Não aguento mais, não aguento. Eu quero sair daqui, só quero sair daqui — minha ex-esposa passou as mãos pelas próprias roupas para se livrar, como se estivesse sufocada dentro de si. — Eu preciso te levar para o hospital, você pode contrair alguma infecção, esses instrumentos estavam guardados há meses sem esterilização — com cautela, continuei limpando com o gaze e antisséptico os ferimentos das suas coxas —. Por que fez isso, Vivian? Por mais que aquilo não fosse um acontecimento inédito, sempre me atordoava.
Era difícil de entender como uma pessoa podia ser capaz de causar tanta dor a si mesma. — Não! — ela gritou. O bisturi e a tesoura estavam guardados há um tempo, mas nunca foram utilizados, então falar sobre uma possível infecção foi só uma forma de convencê-la a ir até o hospital, porque eu temia por uma complicação gestacional, temia pelo bebê. Vivian começou a negar com a cabeça em movimentos frenéticos, passou as mãos por baixo dos olhos e inspirou o ar com força pelo nariz. Sua testa e têmporas tinham lesões vermelhas e em outras tonalidades, já as escoriações das pernas estavam cobertas de sangue. Os braços arranhados como o pescoço, e em volta do seu corpo além de respingos de sangue, haviam tufos de cabelo. Decidi carregá-la, mas ela ficou arisca e se debateu me empurrando. — Não quero ir, estou cansada de ser vista como louca. Muito cansada — sussurrou. Me agachei novamente ao seu lado e limpei seu supercílio. — Eu entendo. Só precisamos realizar alguns exames para certificar de que está tudo bem. — Aqui não está tudo bem — ela bateu o indicador na própria cabeça —. Aqui nunca está tudo bem. O banheiro estava um perfeito caos, o espelho inteiriço da pia espatifado em trilhares de pedaços, o vidro do box havia estourado e enchido a banheira de estilhaços, não era um lugar seguro para ficar. — Olhe para mim — pedi com calma, ela demorou mas acatou —. Eu estou aqui e cuidarei de você. Vou te levar para o outro banheiro para tirar esses cacos grudados na sua roupa, e limpar os vestígios de sangue. Mas não empurre, nem se debata porque o banheiro está cheio de vidro. Transtornada, ela balançava o corpo para frente e para trás, com um olhar perdido. Cuidadosamente a coloquei no colo e levei para o outro quarto, liguei o chuveiro ainda segurando-a e a deixei em pé na minha frente. — Olhe aqui — tirei uma pequena uma lasca de vidro da sua testa —. Prometi cuidar de você e é isso o que eu vou fazer. Eu sei que você confia em mim, então se acalma e deixe que eu te dê um banho.
Ela fechou os olhos e assentiu com a cabeça. A guiei para baixo da ducha e vagarosamente, tirei sua blusa e a calça. — Saulo me contou que você e Mariana estão juntos ainda — seus olhos estavam avermelhados em consequência das lágrimas incessantes. — Por que insiste nessa amizade com o meu irmão? Nunca foi saudável, Vivian. Deixei que a água a livrasse dos resquícios de cacos e depois espalhei o sabonete líquido por seus braços. — Por que você insiste em fingir que eu não existo? Por que não conversa comigo? Estou falando da Mariana. — Me responda sobre Saulo primeiro — pedi. — Se a desconfiança é a mesma de sempre, não, eu e seu irmão nunca tivemos um caso. Mas ele sempre esteve comigo, e você nunca. Ele foi meu amigo pelos anos que me senti sozinha. — Tudo bem. — Não está, me conte sobre a Mariana. Você a ama? — Sim, amo. O assunto se encerrou. Não fazia sentido alimentar um passado no qual Saulo deixou de ser meu irmão para tornar-se meu inimigo. Eu não era mais um moleque apaixonado disputando uma mulher. Conheci Vivian primeiro e então meu irmão passou a nutrir um sentimento não correspondido. Ele escondeu por anos, até o dia da cerimônia do noivado, quando trancou a Vivian em um quarto da nossa casa e a espancou. Naquela época, ambos eram muito unidos e me incomodava absurdamente. Eu estava sempre engajado em pesquisas do hospital, fazendo plantões sem fim como interno, mas desejava mais do que tudo ser mais presente para ela, que era minha namorada. Já Saulo, tinha tempo de sobra, mas não estabelecia relacionamento com nenhuma mulher, talvez por ser nitidamente problemático. Meu irmão afastava qualquer garota, com seu jeito violento e perturbado. Mas com Vivian foi diferente, já que ela perdeu o irmão, que era a sua pessoa mais próxima, ela se apegou a Saulo, quis ajudá-lo e se tornaram inseparáveis. Vivian era uma menina boa, sem maldade ou impureza. Para ela era amizade, afinal Saulo era só seu cunhado, mas para ele tomou proporções muito maiores.
Saulo foi preso no dia do meu noivado. Mas meu pai, sempre prezando pela imagem, quis abafar o caso e pagou uma fiança alta para tirá-lo uma semana depois. Pouco tempo passou, nós descobrimos que Ana estava a caminho, e eu me transformei no homem mais protetor do mundo. Exigi uma medida protetiva, que só durou um ano porque nossa filha nasceu quando meu pai morreu. O hospital caiu sobre minhas costas e Vivian adoeceu, eu não tinha tempo para absolutamente nada e ela sentia falta de Saulo. Eu surtei quando ambos reataram a amizade, mas meu irmão estava mudado, ou foi o que eu quis acreditar. Talvez soe como ignorância da minha parte ter dado oportunidade para ele se reaproximar da minha família, mas Saulo estava namorando e foi Vivian quem escolheu dar uma nova chance. As brigas dentro da nossa casa voltaram automaticamente, eu tinha muito ciúme porque não ficava em casa, e embora confiasse em Vivian, a confiança no meu irmão permanecia abalada. Ela assegurava que estava tudo bem, mas não era o bastante para mim. Minha filha começou a reclamar sobre o tratamento da mãe e as coisas foram de mal a pior... Os telefonemas constantes que a levaram a ter síndrome do pânico e assim, a relação dela com Ana foi decaindo demasiadamente. Nas ligações, eu a ouvia implorar para viver em paz comigo, dizendo que não aguentava mais ser ameaçada. E o problema é que ela não me permitia ter acesso. Mas sempre soube que era o meu irmão. Ele não deixou de amá-la um dia sequer, e ela, por ter construído anos de amizade ao lado dele, não queria que eu intervisse como fiz no nosso noivado. Vivian dizia que não poderia suportar caso ele fosse preso novamente. Sua justificativa era a solidão, Saulo era seu único amigo. Foi como prender a respiração por muito tempo, como tentar sobreviver a um fogo cruzado. A responsabilidade de ministrar centenas de pacientes, todos os setores do hospital, com a recente morte do meu pai e uma filha pequena, que não tinha suporte materno porque sua mãe tinha desequilíbrio emocional, causado pelo
meu próprio irmão, era exaustivo. Por pouco não fiquei louco. A solução foi, junto com a psiquiatra de Vivian, analisar seu comportamento na tentativa de detectar a raiz dos problemas e tratá-la. Na alegria e na tristeza. Na saúde e na doença. Ela havia desenvolvido um distúrbio chamado Síndrome de Estocolmo. A saída era uma nova porta para um mundo obscuro, no qual eu temia viver para o resto da vida. Mesmo Saulo sendo um agressor, Vivian se identificava com ele. No início como um método de autodefesa, depois por medo, até que se tornou um laço afetivo. A doença incluía relações amorosas ou de amizade. O duplo comportamento de afetividade e o ódio concomitantes eram sintomas consequentes de um estresse físico e psicológico, também utilizados como estratégia de sobrevivência por parte dos reféns de abusos, intimidação e agressões. E ela era refém. Era vítima de uma síndrome resultante da relação com o meu irmão. Também vítima da minha ausência, da minha frieza e da minha falta de atenção. Eu era seu marido e também culpado por ter a deixado tanto tempo, por não ter limitado de uma vez a amizade entre ambos, e o pior é que, antes de saber da doença, eu passei a preferir que eles continuassem unidos, pelo menos assim, não me cobrava tanto por ser tão ausente. Havia me tornado o que eu mais abominava no meu pai. ... Peguei uma camisola para Vivian, por ser a mais fácil de vestir e a cobri com o edredom. Dei dois analgésicos e um anti-inflamatório para que ela pudesse descansar. Passei a noite em claro, desembaraçando os fios escuros do seu cabelo curto, enquanto sua cabeça repousava em meu colo, e lentamente seu corpo ia parando de tremer à medida que o choro cessava. Minha ex-esposa tinha se perdido no meio do caminho, sua vida estava desgraçada há tempos, e eu só notei quando nossa filha fez três anos. As coisas melhoraram, as crises eram menos frequentes porque finalmente interferi na
relação dos dois. Foi quando o filho da puta despejou a montanha de merdas na minha frente, dizendo o quanto foi louco por ela, mas que sofria por não ter tido reciprocidade. Vivian foi um perfeito fantoche das insanidades dele, porque vivia em uma intensa solidão, da qual eu não me importei. Um hospital inteiro para gerir, residência, dois sócios que queriam extorquir e afundar o legado do meu pai, especialização... Eu não tinha tempo nunca, e me desdobrava para conseguir poucos minutos para estar com Ana. Ao amanhecer, eu ajudei Vivian a se agasalhar e dirigi até o Saint Clair, pedi para duas enfermeiras olharem os ferimentos enquanto conversava com o Dr. Augustino Clin, o obstetra. Ele esclareceu algumas dúvidas sobre a gestação e depois a examinou. Encontramos Mariana na direção dos elevadores. Seu olhar preocupado analisou o estado da Vivian na cadeira de rodas e ela começou a questionar. Mas não era a hora de conversar, ela merecia mais que uma rápida explicação. — Volte e converse com a Mariana, querido — Vivian falou assim que travei o seu cinto de segurança —. Ela estava preocupada. — Seu médico orientou repouso absoluto, preciso estar perto para saber que vai seguir. — Não sou uma crianç... Meu beep começou a tocar no bolso, olhei rapidamente para o visor e estava escrito Alba. Me apressei, sequer avisei Vivian e corri para os elevadores. Enfiei a mão impedindo que terminasse de fechar e entrei. Mariana D'Ávila Estava sentada com Álvaro tomando um mocaccino quando vi Valentim correr feito um flash. Eu e o médico nos entreolhamos e levantamos desesperados para saber o que tinha acontecido. Quatro enfermeiros estavam em volta da cama da Alba, agitados, exercendo rapidamente seus trabalhos. Valentim comandava a situação dizendo o que era para eles checarem. — Deite a maca, ela precisa ficar em decúbito dorsal — com o estetoscópio ele ouvia o coração dela e olhava na tela ao lado.
Só consegui entender o que estava acontecendo quando ouvi a maldita máquina de batimentos apitar ininterrupta, indicando que a criança estava sem frequência cardíaca. — Valentim — eu não consegui me segurar —, o que está acontecendo? Ela vai ficar bem? Ele não me respondeu, e eu estava aflita demais. Olhei para Álvaro mas ele só balançou a cabeça. — Valentim! — falei mais alto. — Eu não sei — me respondeu exasperado. — O oxigênio não está chegando, doutor — uma enfermeira informou. — Ela está tendo uma parada. Peguem o tubo e laringoscópio, vou fazer uma intubação endotraqueal. Fizeram o que ele ordenou, o vi se posicionar atrás da cabeça de Alba após deitarem-na completamente, e então encaixou um aparelho na boca dela, impedindo-a de fechar. O oncologista colocou um tubo comprido na garganta dela e desceu com exatidão até alcançar o local necessário. Eu continuava sem entender nada. — Chegou? — a enfermeira perguntou. — O laringoscópio, e o balonete — estendeu a mão até que colocassem os dois instrumentos nela —. Aumente a ventilação — exigiu. Depois do procedimento, me fizeram seguir os olhares em direção a tela. Os batimentos voltaram e Alba parecia ter desafogado. — Espere a aspiração completa das vias aéreas, até que estabilize — orientou a auxiliar ao seu lado, que apenas assentiu com a cabeça —. Fique com o ambu preparado, ela pode ter dificuldade para respirar e vai precisar de assistência ventilatória. — Certo, Dr. Del Torre. — E me avise quando ela acordar. Ele se retirou perturbado, demorei para sair da condição letárgica e ir atrás. O encontrei em sua sala, inquieto e falando alto no telefone. — Quero que me indique o melhor, com urgência! — e bateu o aparelho na base. — Hoje não é um dia bom, né?
— E parece que só piora — ele respirou fundo. — Alba vai ficar bem? — eu quis saber. — Aquela criança é uma bomba relógio, Mariana — ele passou as mãos com força no cabelo, revoltado e aflito —. Eu quero que você faça uma coisa — me pediu. — Claro, eu faço. — Encontre o avô de Alba e diga que eu autorizei a visita. — A mãe dela não pode saber. — Não vai saber. — Isso significa que ela está morrendo? — Isso significa que ela está morrendo — afirmou. Eu me sentei na poltrona e passei minhas mãos pelo rosto. — O que era no telefone? — Liguei para o centro psiquiátrico, para encontrar alguém que fique com a Vivian. — Por que ela está tão machucada? — Porque pegou meus instrumentos de sutura e se cortou inteira — respondeu, simplesmente. — Isso é culpa minha? — engoli seco. — Não, a culpa é minha. A tormenta estava evidente em suas íris esverdeadas, na sua respiração entrecortada e nos seus passos agitados. Ele não estava bem e consequentemente, eu também não. Queria poder minimizar seus problemas e acalmá-lo, mas ao contrário disso, minha presença parecia deixá-lo ainda mais agoniado. — Vou te deixar sozinho — peguei uma caneta na mesa e um papel —. Esse é o meu número novo — anotei. — Espera — segurou meu pulso e eu fiquei de frente para ele —. Você é a minha única alegria no meio disso, minha única certeza. Não quero que fique preocupada, eu consigo lidar com tudo. — Está tudo bem — passei meu polegar em sua bochecha e sorri —. Se eu fico preocupada é porque...
Porque eu te amo, amo mais do que imaginei ser possível. — Por que? — seus olhos cravaram nos meus. — Porque... eu odeio te ver mal e tão apreensivo. Já disse que não sou só um refúgio ou uma casa de sentimentos bons. Quero ser mais do que isso, quero que compartilhe suas dificuldades e suas dores comigo. — Eu sei, meu amor. Só não quero que você sofra. — Isso acontece quando você fica distante — abaixei meu olhar para os nossos pés —. Não me tira da sua vida — sorri triste —. Acredite, eu sou forte e posso aguentar muita coisa. Com a mão no meu queixo, ele direcionou meu rosto ao seu. — Não vou permitir que os problemas interfiram no que eu almejo viver com você. Só tenha paciência, só mais um pouco... — Tudo bem. Eu não vou a lugar nenhum — beijei o canto da boca dele e fui abraçada. — Obrigado. Fechei meus olhos e inalei seu perfume, retribuí o abraço sentindo uma imensa vontade de chorar, mas me controlei. — O bebê está bem? Deus, como eu tinha ciúme! E me repudiava por nutrir um sentimento tão maldoso por uma criança indefesa. — O obstetra disse que sim. — Fico feliz. E não era mentira. Por mais que eu desejasse por tudo que esse bebê estivesse crescendo dentro da minha barriga e me martirizasse por não ser assim, eu sabia que era o ser mais importante na vida de Valentim e que se algo acontecesse, ele simplesmente não conseguiria suportar. As dores dele eram as minhas. — Quando tudo isso passar, vai ter valido a pena. — Tenho certeza que sim. — Eu amo você, bailarina. O apertei com mais força, tomada por um medo avassalador de perdê-lo. Já estava cansada de ter que viver longe, de não poder expressar o que eu sentia e
de não poder concretizar nossos planos. Valentim demonstrava completa segurança sobre seus sentimentos, mas ele não sabia a quantidade de incertezas eu carregava. Eu era o outro lado da moeda. Se eu tivesse casada com um homem doente, sob o mesmo teto, tendo que cuidar e zelar pela saúde dele, como Valentim enfrentaria? Tinha medo, medo de ele não conseguir se desvincular, principalmente por causa da sua profissão e do seu caráter. E aí quem não suportaria, seria eu. *** Síndrome de Estocolomo (Stockholmssyndromet em sueco) é o nome normalmente dado a um estado psicológico particular em que uma pessoa, submetida há um tempo prolongado de intimidação, passa a ter simpatia e até mesmo de amor ou amizade perante o seu agressor. Decúbito dorsal: ou supina, pessoa que deita com a barriga voltada para cima. Intubação Endotraqueal: Intubação endotraqueal ou orotraqueal é um procedimento de suporte avançado de vida onde o médico, com um laringoscópio, visualiza a laringe e através dela introduz um tubo na traqueia. Laringoscópio: instrumento endoscópico, contendo um sistema óptico, que se introduz pela boca para visualizar a laringe. Ambu: também chamado de "reanimador manual", é composto por um balão, uma válvula unidirecional, uma válvula para o reservatório de gás, uma máscara facial e um reservatório de gás, e é adequado para ventilação manual do paciente.
30 Mariana D'Ávila
Tia Ana
— , senti saudades. Mas fiquei muito feliz que você e o Tio Tim tenham deixado a Lua esse tempo aqui na minha casa. Nós passeamos todos os dias, sabia? Eu, a mamãe, o papai e a Lua. Compramos até uma roupinha pra ela não ficar com frio, é de lã e tem touca para proteger da chuva, você quer ver? — Sol me contou os detalhes ansiosamente, enquanto eu permanecia abraçando-a —. Quem é ela? — a criança falante indagou ao ver Eve ao meu lado. — Que legal, Sol! — respondi entusiasmada e beijei sua bochecha —. Ela deve amar a sua companhia, quero vê-la vestida com a roupinha sim. E essa aqui é a Eveline, minha irmã. Mãe e filha se entreolharam com os olhos arregalados. Eu e Eveline sorrimos com a reação. — Vai lá, filhota. Solte ela — a irmã de Valentim autorizou. Sol saiu saltitando em direção à grande lavanderia do apartamento. Contei rapidamente sobre a chegada da ruiva na minha vida e Charlotte, como sempre, se empolgou com a novidade. — E você, como está? — os olhos grandes e esverdeados me observaram. — Sobrevivendo, um dia após o outro — relaxei os ombros e bufei. Charlotte me abraçou apertado e xingou: — Sua filha da mãe, sentimos saudade mesmo. — Eu também. — E como está com o meu irmão? — agora sim ela passou a olhar com os olhos cravados em mim, para que nada passasse despercebido. — Estamos bem — parei para pensar —. Tentando lidar com as surpresas que Vivian coloca no meio do nosso caminho. — Fiquei sabendo — ela torceu a boca. — Mas sinto pena dela. — Eu também. Meu irmão deve estar louco de preocupação por causa do bebê.
— Sim, estamos evitando de nos vermos pra não prejudicá-la mais. Ela ama o Valentim — dizer isso amargou a minha boca, o que me fez pausar por alguns segundos —, e eu não quero ser o motivo de mais uma desgraça. — Entendo, Mari. Mas faz tempo que vocês não se veem? — Que não saímos? Oito dias. Hoje marcamos um jantar, porque o Álvaro o substituirá no plantão. — Ótimo — ela voltou a sorrir. — Demorou, Sol — virei-me ao escutar as risadas eufóricas da criança, enquanto Lua puxava brincando, a barra do seu moletom. Em pouco tempo, a Husky havia crescido perceptivelmente, suas patas estavam maiores e suas orelhas também. Abaixei-me para recebê-la e fui recompensada com uma dose descontrolada de lambidas no rosto. — Mini lobinha! Também senti sua falta — acariciei seus pelos tentando acalmá-la. — A mamãe me explicou que a Lua é sua e do Tio Tim, mas me prometeu que vamos adotar um cachorrinho. — É verdade, filha — Charlotte passou a mão pelo ombro da filha, que estava na sua frente. — Que legal, Sol! Você merece um cãozinho. Sentei-me no chão e peguei o brinquedo da boca da lobinha. Ficamos brincando de cabo de guerra, enquanto ouvíamos os rosnados e os latidos. — Tia Ana, quando minhas aulas de balé vão voltar? E também não esqueci da apresentação que você prometeu me levar. — Você acha que eu não lembraria? Eu vim para ver essa doidinha — mexi nos pelos acinzentados da cachorrinha —, mas tenho uma surpresa pra você também. Fiquei em pé e fui até a minha bolsa, peguei os ingressos de um espetáculo de balé clássico para duas semanas depois e a entreguei. — Leia para mim, mamãe — ela estendeu os convites. — Minha filha, você sabe ler. — Mas leio devagar, estou ansiosa. Eu e minha irmã rimos do jeito inquieto da pequena, e a ajeitei no meu colo
quando ela se sentou, com a atenção voltada à Charlotte. — Uau, é uma academia famosa! — Charlotte disse assim que terminou de passar as informações. — Tô muito, muito, muito feliz. Obrigada Tia Ana — recebi inúmeros beijos na bochecha e adorei vê-la tão feliz —. Você também vai, Eveline? — ergueu o olhar para a mesma —. Posso ir de bailarina. Não, não. Você pode me ajudar a escolher um vestido? Tenho um rosa rodado, ou aquele lilás, sabe mamãe? — a criança disparou falar, me fazendo rir. — Calma, é só daqui uns dias. — E eu espero conseguir ir sim, Sol — a ruiva respondeu. Nos divertimos mais um pouco e aproveitamos para colocar o papo em dia, depois segui para o hospital enquanto Eve foi para uma entrevista de emprego. O lugar começou a testar o meu controle emocional diariamente, porque além de estar se tornando cada vez mais raro encontrar a minha mãe lúcida, eu não podia me aproximar de Valentim, tinha que assisti-lo de longe, o que era uma grande tortura. Mas foi a forma que escolhemos para evitar as fofocas, principalmente porque Saulo passou a aparecer com mais frequência. Álvaro dizia que ele estava fazendo isso para me sondar, porque trabalhar mesmo que era bom... Dona Martha na maioria das vezes ficava sedada, para não sofrer com as dores que, gradativamente, estavam acabando com ela, mas ainda assim, eu permanecia ao seu lado, segurando sua mão, conversando e contando sobre o meu dia, como se ela realmente escutasse. Perto das seis horas eu me apressei para ir embora, Valentim passaria sete e meia no meu apartamento para sairmos para jantar. Me atrasei um pouco porque queria impressioná-lo, e demorei um tempão para escolher o vestido preto justo de renda. Os scarpins pretos eram básicos mas deixavam minhas pernas mais torneadas e bonitas. Passei uma maquiagem levinha e me perfumei bem, queria sentir seu nariz me inalando com avidez, como de costume. Eu estava morrendo de saudades! O pior foi que o meu atraso não significou nada. Havia se passado uma hora após o combinado e nada dele aparecer. Com as mãos agitadas, eu desbloqueava e bloqueava meu celular, esperando sua ligação ou uma mensagem.
Fui ficando tão nervosa que me deu tontura, eu estava desde o almoço sem comer, mas eu sabia que ele apareceria, então guardaria a fome para o nosso jantar. No entanto, deu nove e meia e nem sinal. Decepcionada, fui para o quarto e troquei meu vestido por um conjunto de moletom. — Já voltou? — Eveline abriu a porta da sala do apartamento, cheia de sacolas nas mãos. Levantei para ajudar a colocar as compras no balcão. — Não, nem fui. — Por que? Vocês discutiram? — Não, ele... ele só não apareceu. A ruiva ficou quieta, até porque ela era inexperiente demais para me dar conselhos sobre relacionamentos, ainda mais sobre um tão conturbado como o que eu vivia. Contei para ela, no decorrer dos dias anteriores, sobre mim e Valentim. E mesmo tímida, sem saber muito se expressar, eu pude enxergar sua empatia em relação a minha situação. Eve era uma romântica desmedida, acho que acreditava até em contos de fadas, com príncipe encantando e tudo que tinha direito. — Como foi lá? — Eu acho que consegui — ela sorriu. — Jura? Que bom, Eve! — em um ato automático eu a abracei. Ela ficou sem graça, mas retribuiu. — David é um homem muito bacana mesmo — disse. — Ele é — concordei com toda certeza. Meu amigo irlandês tinha arrumado três entrevistas para a minha irmã, e nesta terceira ela sentiu que havia conseguido o emprego. Era um hotel de luxo no centro de Seattle, e com a indicação valorosa do David, ficou mais fácil de ser contratada. — É na recepção, mas o lugar parece oferecer um plano de carreira. Sentamos no sofá após guardamos as coisas nos armários e geladeira. Eu aproveitei para ligar a TV enquanto escutava a Eve contar detalhadamente como
foi. — E você? Não voltou mais para a boate? — Não — respondi, somente. Ela também sabia do meu trabalho, não dos detalhes sórdidos, mas sabia que eu dançava para homens desconhecidos dentro de uma casa noturna. — Tentou ligar para ele? — mudou de repente de assunto. — Não acho que seja uma boa ideia — falei, chateada. — Eu sinto muito que seja assim... Percebi aquele dia no bar que vocês tem uma sintonia muito forte. — É, nós nos amamos. — Espero que isso acabe o quanto antes para ficarem juntos. — Eu também — sorri sem mostrar meus dentes. Colocamos Vikings para assistir, já que compartilhávamos do mesmo gosto, e fizemos pipoca. Eu continuava com tontura por não ter posto nada no estômago durante quase o dia todo. Conversamos sobre a irmã de Valentim e sobre a Sol, Eve havia adorado as duas, o que era fato que aconteceria. Ambas eram amáveis e muito importantes para mim. Eve adormeceu no sofá, eu deitei a sua cabeça na almofada e a cobri. Fiquei observando-a por um tempo, porque ainda precisava disto para conseguir assimilar e processar a ideia de ter uma irmã. Me enfiei embaixo das cobertas na minha cama e peguei meu celular. Ainda tinha esperança de receber alguma explicação. Senti vibrar na minha mão e abri o aplicativo de mensagens cheia de expectativas. Não era ele. Mas fiquei feliz em ver a janelinha de Charlotte piscando. ✉ "Obrigada por hoje, e venha nos ver mais vezes. A Sol te adora muito." A mensagem estava com uma foto da Sol com a lobinha dormindo na cama de princesa dela. Eu respondi no mesmo instante: ✉ "Eu é que agradeço, também a adoro demais. E Eve gostou muito de vocês."
Começamos a conversar até que ela perguntou do irmão, eu contei e logo sua fúria foi exposta: ✉ "Não acredito! Valentim vai levar umas bofetadas pra ver se para com isso. Como ele te deu um bolo? Não acredito mesmo." Mas eu ainda tentei defendê-lo. ✉ "Tudo bem, eu sei que está sendo uma semana difícil para ele." E ela: ✉ "Mas caralho, ia cair o dedo dele se avisasse?" Fiquei lidando com a revolta de Charlotte até que outra mensagem me surpreendeu. Saulo: ✉ "Decepcionante, não é? Se ainda estiver com fome, eu estou a disposição." E logo abaixo uma foto que me causou náuseas. Literalmente. Valentim e Vivian sentados de frente um para o outro, dentro de um restaurante. Não tinha certeza se Saulo tinha tirado, mas a pessoa responsável pelo clique estava fora do estabelecimento, talvez do outro lado da rua. Porém, era possível identificar ambos perfeitamente, através da fachada de vidro do lugar. Como o maluco sabia que eu ia jantar com o irmão dele? E meu número era novo! Dei zoom diversas vezes para certificar de que era atual, poderia saber baseando nos machucados recentes da esposa de Valentim, mas aproximar tanto não contribuiu com a resolução da foto. Eu só sabia de uma coisa: Vivian e Saulo eram muito unidos e percebi desde o aniversário de Charlotte. E por isso, eu precisava descobrir o que os dois estavam tramando, tinha certeza que não eram simples devaneios da minha imaginação fértil.
Valentim Del Torre Me torturei mentalmente quando percebi que meu celular tinha ficado dentro do consultório no hospital. Mariana ficaria totalmente desapontada por não tê-la avisado. Mas a mulher não parava de gorfar, alegando que as vitaminas prescritas pelo obstetra haviam feito mal ao seu estômago. Seus lábios tremiam por causa dos calafrios e os olhos lacrimejavam em consequência das ânsias de vômito. — Você tinha plantão, me desculpa — ela se lamentou, ainda debruçada na privada. — Está tudo bem — coloquei seus cabelos para trás e continuei sentado ao seu lado no chão do banheiro. E mais jatos vieram. Exigi que ela se hidratasse e tomasse um remédio para as náuseas. Ficamos por horas no banheiro, depois preparei algo rápido para que Vivian se alimentasse e deixei a banheira encher. O repouso ainda era absoluto e quanto mais ela evitasse ficar em pé, melhor seria. O incomodo crescia dentro de mim, e a preocupação por ter feito Mariana esperar também. Com certeza a bailarina estava furiosa comigo, mas no dia seguinte eu explicaria. Infelizmente não foi assim. Encontrei com Mariana no corredor no período da manhã, segurei em seu braço assim que a vi passar reto. — Me perdoa, Mariana. Não foi proposital, eu deixei meu celular no consultório e só peguei agora. Sei que está brava, mas a intenção não foi te deixar esperando. A fúria explícita tomou suas íris azuis, seu semblante fechado me analisou sem titubear. — O problema não foi não avisar — disse friamente —. O problema é que você trocou nosso jantar por outra coisa, e seja lá o que for, não tem justificativa. — Vivian ainda não está bem, você consegue entender? — Valentim — ela fechou os olhos e gesticulou com as mãos, depois os abriu e
me encarou —, guarde suas explicações, eu não as quero. — Eu sei que vem sendo compreensiva há muito tempo, mas eu preciso que acredite em mim. Queria muito ter te levado para jantar ontem, mas ela começou a vomitar e ficamos por horas sentados dentro de um banheiro... — Eu vi uma foto de vocês dois em um restaurante — sua raiva se conteve dentro de um sussurro —, portanto repito, não quero explicações. — Foto? Qual foto? — perguntei indignado. Rapidamente ela tirou o celular da bolsa e me mostrou. — Você conversa com o meu irmão? — agora quem a raiva consumiu foi eu —. Por que fala com o filho da puta do Saulo? — Eu por acaso respondi? E não importa, o que importa é isso — seu dedo indicou a foto. — Saulo consegue superar qualquer nível de insanidade. Essa foto é antiga, Mariana. E caralho, por que ele fez isso? — Quer que eu pergunte? Eu pergunto — raivosamente, seus dedos finos começaram a digitar agilmente. Tomei o celular de sua mão e apaguei a conversa com o imbecil. — Você acha mesmo que eu desperdiçaria uma noite ao seu lado? Nunca precisei mentir para você, Mariana. — Estou com ódio! — ela confessou. — Que coincidência, porque eu também estou — ia devolver o celular mas hesitei, puxando-o de volta —. Por que ele tem o seu número? — Ele não tem! Aliás, tem, mas não foi eu que passei. Seu irmão é louco. — Mariana — estudei seu olhar. — Não estou mentindo, Valentim. — Estranho. Ficamos em silêncio indeterminado com uma tensão palpável entre nós. Decidi abraçá-la, mas o gesto não teve uma boa recepção. Mariana relutou e se afastou. — Você sempre coloca a Vivian em primeiro lugar, eu te esperei por horas. — Não diga isso, por favor amor. Você está em primeiro lugar, eu só quero que o meu filho fique bem. — Então contrate alguém que cuide dela logo, porque minha paciência está se
esgotando. — Estou vendo com cautela isso, mas já está quase certo. — Ótimo, você sabe onde me encontrar quando estiver resolvido. Tentei impedi-la de sair mas Mariana se soltou da minha mão. Aquilo foi um checkmate e eu entendia completamente. Os dias foram passando e neles, três profissionais foram entrevistados para cuidar de Vivian. Presenciei mais um surto quando contei da minha escolha para ela. No fundo, sentia dó do estado decadente em que minha ex-esposa estava chegando. Contudo, eu não podia mais me responsabilizar e nem me culpar tanto. Sentia que a distância seria capaz de tirar Mariana definitivamente de mim e só de pensar nesta possibilidade, eu ficava louco. Vivian me acompanhou até o hospital algumas vezes, por sentir medo de ficar sozinha no nosso apartamento. Sinceramente, me preocupava o fato de levá-la no mesmo ambiente que Mariana estava, mas sabia que a bailarina era madura o suficiente para lidar, caso Vivian resolvesse causar intrigas. Mariana tentou vãs vezes conversar comigo, mas naquela semana, meu tempo estava todo preenchido com pré e pós-operatórios de diversas cirurgias. — É humilhante ficar aqui, assistindo você demonstrar seu amor por outra mulher. Bem na minha frente. Minha ex-esposa retomou minha atenção. — Não quero que se sinta humilhada. — Impossível. Estou perdendo meu marido pra uma mulher como ela... — Vivian olhou com desprezo para Mariana, que estava sentada em uma mesa longe da nossa. — Entendo que não goste da Mariana e respeito, mas não a ofenda. Se você a conhecesse, saberia que ela é uma mulher incrível. — Incrível, Valentim? — Vivian riu nervosa —. Você realmente não enxerga? — Não começa. — O que interessa para essa mulher é o seu dinheiro. Assim como com o seu irmão, assim como foi com todos os outros clientes dela. — Não me faça perder o controle, Vivian — minha voz saiu como uma ameaça. — Você já perdeu faz tempo, desde que se apaixonou por essa prostituta.
Levantei-me e arrastei a cadeira. Vivian fez o mesmo e parou de frente para mim. Percebi que ganhamos toda a atenção do restaurante. — Eu não sei o que fiz pra merecer o fardo tão pesado que você é na minha vida, mas não abuse da minha sanidade, Vivian. — Sinto muito, querido. Mas você se perdeu em uma teia de mentiras. Aquela mulher é uma mentira. Ela é prostituta. Nosso tom permanecia baixo quase como um sussurro, mas a realidade é que eu estava prestes a explodir. Eu sabia o que Vivian queria dizer e caralho! Eu não queria que as coisas se encaixassem tanto como estavam se encaixando. — Tem uma coisa na sua mesa que você gostaria de ver. Encarei Vivian por mais um tempo até me afastar, passei por Mariana, que se levantou abruptamente e tentou me parar. — Quando vamos conversar? — a bailarina não parecia ter percebido o quão puto eu estava, notei a aflição e o cansaço nos seus mirantes azuis. — Agora não, Mariana. — Eu preciso falar com você — insistiu. — Ele disse que agora não, Mariana — Vivian reforçou e eu nem contrariei. Sentia-me como se estivesse entorpecido, sob efeito de alguma droga letárgica. — Sempre tentei te avisar, mas além de cego por aquele diabo em forma de mulher, você ficou surdo e não quis me ouvir. — Francamente, Vivian. Você não é a pessoa mais sã para estar acusando alguém. Principalmente a Mariana. — Querido, você está tão equivocado. Entramos no meu consultório e eu vi uma pasta transparente sobre minha mesa. — Que porcaria é essa? — Abra e leia. — Não é assim que você vai me induzir a desistir dela, Vivian. Seja o que for isso... — Abra e leia, Valentim! — ela gritou.
Abri a merda da pasta e me deparei com um contrato. Saulo. Mariana foi sua acompanhante, por vinte e cinco mil dólares. E duas assinaturas que eu reconheci imediatamente. — Vocês não têm escrúpulos, Vivian? — esbravejei —. Que porra é essa? O que o nome da Mariana está fazendo nessa merda? Quieta, ela só me olhou. — Me responda! — engrossei totalmente o tom —. Até que ponto você vai chegar para tentar nos destruir? — Eu não estou destruindo nada, a prostituta é ela. Li a sequência de dados e as cláusulas na outra folha, reli mais uma vez e minha vista foi embaçando. As letras pareciam não fazer sentido, como o resto do circo que Vivian estava armando. — Ela trabalha em um lugar chamado Le Luxe. Acho que, infelizmente, você conhece esse puteiro muito bem. Pisei na lixeira para abrir a tampa e jogar o contrato que parecia brasa na minha mão, mas Vivian puxou com força antes que eu o fizesse. — Conhece ou não, Valentim? — perguntou alto —. Não foi lá que você passou a noite embriagado e voltou todo machucado? A voz dela estava me irritando, as insinuações maldosas sobre Mariana começaram a me exaltar demasiadamente. Eu conhecia o lugar. Eu conhecia aquela porra daquele lugar! Caralho, eu conhecia a sensualidade daquele corpo, da boca carnuda e dos mirantes azuis. Meu Criador! Quantas noites Mariana esteve ocupada, lotada de compromissos ocultos? Seu dinheiro como professora de balé sequer custearia um dia no meu hospital, muito menos meses de internação para sua mãe com câncer. Meu sentimento por ela era tão forte e intenso que eu não enxerguei, não me dispus a ir até o final para saber o motivo da relação com um cara como o meu irmão, ela não sabia nada sobre ele. — Ela é uma mentira — a voz de Vivian ressoou como um eco na minha mente. — Saulo te entregou esse contrato?
— Sim. E querido, a intenção não era te magoar, mas sim te fazer enxergar onde estava se metendo. Queria que Vivian e meu irmão morressem naquele momento. Sabia que ambos queriam nos ver separados, mas isso não amenizava a mentira de Mariana. Cada batida do meu coração era dolorosa. Minha respiração estava desconfortável, minha cabeça latejava. Meu corpo formigava pela raiva e frustração. — Este lugar... — usei o que sobrou da minha voz. — É possível que ela vá esta noite — Vivian sorriu e me devolveu a pasta —. Não sei se você precisa, já que esteve lá... Mas aqui tem o endereço. Saí e fui direto para o bar. Não tinha força para continuar no hospital e nem autocontrole para lidar com qualquer paciente. Pedi quatro copos de whisky, um atrás do outro, na esperança de que a ardência da bebida tirasse um pouco a atenção da minha angustia. Era como perder o chão embaixo dos meus pés. O álcool talvez me encorajasse a ir até a casa noturna onde Mariana trabalhava, precisei de incontáveis doses até me sentir forte o bastante. Ao anoitecer, eu acelerei pelas avenidas, causei tumulto e buzinadas dos outros carros. Uma tonelada estava sobre o meu peito, esmagando-o e me fazendo ficar sem ar. Me analisei no retrovisor do centro do carro e nunca me vi com o semblante tão carregado, os meus olhos se perdiam entre a água salgada que logo transbordaria. Nunca tinha chorado por uma mulher, até aquele exato momento. Agradeci mentalmente quando vi que o prostíbulo estava com uma fila grande. Subornei um segurança na porta dos fundos e fui para um camarote do canto. O lugar não era como a primeira vez que eu vim, embora não lembrasse de praticamente nada, a sensação de estar ali para confirmar que a mulher que eu amava se vendia para um bando de aproveitadores, era totalmente diferente da sensação que tive da outra vez. No palco, três garotas dançavam, a do centro agarrava-se na barra de ferro e erotizava expondo seu corpo para a plateia. Olhei para os espectadores e meu sangue ferveu quando vi David conversando com Mariana. Lá estava ela. Estupidamente linda, com seu maldito corpo delicioso que eu venerava, coberto
pelo mesmo macacão preto brilhante, fazendo as lembranças virem à tona como uma pancada violenta. "O senhor está bem? Olha só, tem fios brancos aqui." Exatamente no dia em que ela me beijou no hospital. Mariana e o irlandês partilhavam de uma intimidade notável, ela negou quando ele ofereceu um copo com bebida e sua feição não era das melhores. Não me importei naquele instante, porque estava consumido pela raiva. Eu sei que se continuasse ali, eu faria merda, e das grandes. Já tinha visto demais, então decidi ir embora. A questão é que me acostumei com o silêncio, com o tempo e o espaço dela. Eu desejei tanto tê-la para mim que minha visão escureceu, ou simplesmente me recusei a enxergar. Entreguei-me mesmo sabendo que tínhamos rachaduras do tempo, e me dediquei a cuidar das suas feridas e de toda a fragilidade. O problema foi ter tentado mergulhar e persistir em uma mulher que me oferecia só a superfície. Meus sentimentos se tornaram profundos e mesmo assim, eu quis arriscar a nadar no raso. Ela era rasa, e me fez bater a cabeça sem piedade.
31 Mariana D'Ávila
O cansaço era tão grande que as ideias malucas começaram a transitar na minha mente. E se eu recomeçasse do zero em outro lugar? Largasse as dores, as cicatrizes e meu grande amor para trás? E se eu simplesmente esquecesse de tudo e recomeçasse? Acho que nunca fui uma pessoa ruim, mesmo diante das dificuldades procurei manter minha sanidade e caráter intactos. Não pisei na cabeça de ninguém e muito menos feri as pessoas para me dar bem. Talvez se eu tivesse feito como os vilões das histórias fazem, eu estaria melhor. De qualquer forma, eu acho que estaria menos fodida que agora. Meus pés estavam tão cansados quanto o restante do meu corpo. Amar doía em uma intensidade sem fim. Amar doía como ser dilacerado. O amor torturava a sangue frio. — Me diga o que você tem, amiga. Carlie sentou-se ao meu lado no camarim e colocou a mão sobre meu ombro, foi o suficiente para que eu desabasse mais. A abracei com força e fui acolhida nos braços finos da minha amiga. — Estou tão preocupada com você, Mari — ela afagou meus cabelos. Aquela semana não havia sido fácil porque, minha mãe se despedia progressivamente, seu corpo sequer respondia, era como se ela não estivesse mais ali, como um ser vazio e sem vida alguma. Ainda assim, era grata por ter o pouco dela. — Você sabe que nunca estará sozinha, não sabe? — Obrigada, Carlie — me afastei e sequei minhas lágrimas —. Vamos! — Primeiro, tome isso — minha melhor amiga pegou uma garrafinha de água no frigobar e me deu —. Sempre superamos tudo. Até a lua, ida e volta, lembra? — Até a lua ida e volta — consenti e dei goles na água. Até a lua ida e volta era o quão grandiosa significava a nossa amizade.
Ela nunca me deixaria sozinha, assim como eu nunca a deixaria. — Feche aqui pra mim, por favor. Saí com o meu macacão preto reluzente que volta e meia eu usava, já que era confortável e não me deixava tão exposta. Desde que conheci Valentim, eu não havia me envolvido sexualmente com fregueses da boate, exceto o irmão dele, nada mais que o irmão dele. Não me sentia à vontade sendo comida com os olhos. Neste dia, não foi diferente. — Bela, você está linda como sempre — David me acolheu em seus braços, beijou o topo da minha cabeça e apoiou o queixo na mesma —. Só precisa melhorar essa carinha. — Estou tentando, obrigada — sorri como pude e continuei com o rosto encostado no peito dele. Meus amigos sabiam que meus dias vinham sendo difíceis, e me sentia sortuda por ter David para me apoiar. Eles eram as únicas coisas que eu possuía em minhas mãos, porque todo o resto estava escorregando entre os meus dedos. Valentim parecia pouco a pouco escorrer entre os vãos dos meus dedos. Às vezes chegava a acreditar que não conseguiria lidar com a perda, caso acontecesse. Mas em contrapartida, preferia crer que era só a droga de um primeiro amor com probabilidade de dar errado. Já imaginou se todas as pessoas que sofressem por este sentimento escolhessem desistir de tudo? Eu não faria isso. Eu era uma sobrevivente. Eu tinha visto o fim do mundo algumas vezes e no dia seguinte estava tudo bem. Enquanto o irlandês e Carlie conversavam, eu observava tudo ao meu redor. Os homens lotando a casa noturna, homens ricos, a maioria com suas mulheres esperando em casa, a troco de quê? Sexo era bom, mas podia ser tão vazio e sujar o espírito. Não queria mais alimentar pessoas tão sórdidas. Queria me transformar no que clamava minha alma, eu era uma bailarina, com quase duas décadas de aprendizado, meu corpo suplicava por isso. Mas infelizmente, este lugar, trazia um pouco de mim. Por isso, ainda retornava ali. Só que a exaustão me consumiu tanto que sequer consegui dançar. Fiquei ao lado de David o tempo inteiro, ouvindo seus conselhos e sentindo sua demonstração de carinho. — O que precisar eu farei para te ajudar, Bela.
Pensei por longos segundos enquanto deslizava os dedos no meu copo de suco. — Queria sair daqui, me encontrar em outro lugar — confessei. — E você acha que eu não sei? Sorri com a compreensão dele e admiti: — Mas eu tenho vergonha, passei anos no meio disto. Me sinto bem vinda aqui, como se fosse o meu segundo lar. — Essa vida não é o seu lar, Bela. Você só se acostumou. — Já pensou, eu me empenho no balé de novo e acontece algum escândalo? Já me envolvi com muitos homens, David. — Não se preocupe. Esses homens não conhecem a sua essência e você não deve nada a eles. Fiquei quieta por instantes e ele me fez rir: — Mas se deve é só me dizer que eu pago. — Você é sensacional — estiquei meu corpo para abraçá-lo e depois arrumei minha postura na banqueta, em frente ao balcão. — Vamos, eu te deixo no seu apartamento. Assenti. Fui até o camarim para pegar minha bolsa, me despedi de Justine e Carlie, e saí com o irlandês. — Minha esposa quer que as minhas filhas voltem para as aulas de balé, e elas estão em uma escola com muitas outras crianças que praticam dança clássica. Se você quiser, pode começar do início. — Obrigada mas... — Te dou até um empurrão. — Empurrão? — Um impulso financeiro, Bela — ele sorriu. — Não vou aceitar dinheiro e agradeço de verdade. Mas se suas filhas quiserem, eu estou à disposição. Só não acho certo frequentar a sua casa para as aulas. — Tenho outra solução. Não se preocupe com nada. — David — adverti. — Resolverei tudo. — David, David.
— Durma bem, e continue forte. — Sempre. — O médico te ama, Bela. Só continue forte. Beijei o rosto dele e desci do carro. Mexi no meu celular para ver se Valentim havia dado algum sinal, nada. Esperei meu chuveiro esquentar, depois tirei a roupa e fui para o banho. Demorei para tirar a maquiagem preta dos meus olhos, terminei e enrolei a toalha no meu corpo, desfiz o coque do meu cabelo e escovei meus dentes. Abri a porta do banheiro e voltei para o quarto. Dei um pulo para trás ao ver Valentim parado na frente da janela e de costas para mim. — Oi — minha saliva parecia ter virado concreto. Eu tinha deixado tudo aberto porque Eveline acabaria o turno no hotel em algumas horas. — É pra se sentir menos suja? — perguntou e continuou de costas. — Perdão? — O banho. É uma tentativa de se sentir menos suja? Minhas pernas ficaram tão pesadas que eu sequer consegui me mover. Minhas mãos ainda seguravam o nó da toalha sobre meus seios e minha respiração começou a descompassar. — E-e-eu — gaguejei sem saber o que responder. — Estou falando com você, Mariana — virou-se para mim e eu fiquei amedrontada com o seu olhar —. Você tomou banho pra tirar o cheiro de outro homem? Passei as mãos no meu rosto, completamente atordoada. — Você descobriu. Seus passos cessaram a distância entre nossos corpos, Valentim pegou nos meus cabelos da nuca fazendo-me inclinar a cabeça expondo o meu pescoço. De perto, pude enxergar seus olhos avermelhados indicando o choro recente. Seu nariz inspirou com força a minha pele e sua respiração descontrolada e agitada me deixou mais nervosa. — Não faça isso, eu não fiz nada com ninguém.
Ele soltou meus cabelos e eu o empurrei. — Você sempre foi um mistério, mas não imaginei que fosse uma mentira. Nunca. — Desde que eu te conheci, só estive com você. — Não — ele sorriu perturbadoramente —. Você não conseguiu esconder a relação com o meu irmão e nem com o irlandês. Foram os que apareceram pela culatra. — Não tenho porque mentir sobre isso, Valentim — sua risada em resposta me arrepiou inteira, causando-me ondas de nervosismo pelo meu corpo inteiro. — Eu vi que aquele cara acabou de te deixar aqui. É seu cliente fixo? — Me espere na sala, quero me trocar. Valentim riu mais. — Ficar nua na frente dos homens não é um problema pra você, Mariana. — Valentim, estou te pedindo para ir até a sala. E inesperadamente ele avançou na minha boca, espalmando minhas costas e pegando com avidez na minha nuca. O beijo era voraz, com gosto de whisky perdido em um pedido de socorro. Cada maldita célula do meu corpo me traiu, cedendo ao seu toque. Com as mãos em seu peito o empurrei de novo e tentei relutar com as forças que me restaram, consciente de que precisava afastá-lo, mas naquele momento a consciência era o elo mais fraco. A boca dele devorava a minha, nossas línguas dançavam e minhas mãos deixaram de tentar distanciá-lo. Peguei em seus cabelos macios, apertei sua nuca e mordisquei seu lábio inferior. Afastei-me quando as lágrimas inundaram meus olhos, que continuaram fechados até sentir sua mão puxar o nó, fazendo a toalha cair sobre meus pés. — Não podemos fazer isso agora. — Por que? Seu corpo não é um objeto? Ah, espera — ele ironizou —, você me pediu para não te "objetificar". O encarei incrédula por usar contra mim a insegurança da nossa primeira vez. — Vou relevar porque está bêbado. Rapidamente peguei uma calça e uma blusa no roupeiro e vesti. Ele me prensou na parede, encurralando-me com seus braços e começou a beijar meu pescoço, roçando a barba e o nariz.
— Você é um veneno, Mariana. Um veneno responsável por destruir o que restava de bom dentro de mim. Ele mordeu minha pele, então o afastei brutalmente. — Precisei fazer isso pra salvar a minha mãe. Da onde mais eu poderia tirar tanto dinheiro pros tratamentos? Não tenho mais ninguém além dela, só queria que ela tivesse as melhores chances de viver. Eu sei que você pode entender isso. — Existe outras saídas — ele me olhou um pouco confuso. — Me diga quais, Valentim! — Seguros, empréstimos bancários. Qualquer coisa. Ri alto. — Você é rico! Deve ter nascido rico! Acha que eu não tentei? — Porra! Com quantos precisou transar pra pagar? Caminhei para a sala porque não sabia o que dizer. — Você faz ideia de tudo o que está passando na minha cabeça agora, Mariana? — Você faz ideia do que foi ter que me deitar com estranhos? Acha mesmo que eu gostava? — Não fale como se fosse passado, você estava lá hoje mesmo. — Eu não dormi com ninguém, caralho! Eu não consegui desde que você entrou na minha vida. — O MEU IRMÃO, PORRA! Você meteu com ele por vinte e cinco mil! — EU TENHO NOJO DO SEU IRMÃO, VALENTIM! — gritei tão alto quanto ele —. Eu tenho nojo de todos que pagaram pra dormir comigo! — as lágrimas ensopavam minhas bochechas. Nossos olhos ficaram fixos, desesperados, aflitos. — Não estudei, não sou formada, não sou ninguém nessa merda de vida. Só quis proporcionar o que minha mãe merecia, ela sofreu tanto antes de eu conseguir dinheiro. — Valor nenhum podia pagar o seu corpo, Mariana! Pelo amor de Deus — ele passou as mãos no rosto e expirou o ar com força —. Olha pra você, você é tão bonita — ele fitou o meu corpo da cabeça aos pés —. Meu Deus. O homem ficou de costas para mim novamente, mexeu nos cabelos e colocou as mãos na cintura. Transtornado.
Com os olhos fechados, eu declarei: — Eu amo você, Valentim. — Não, não ama. — Estou dizendo a verdade. Ele cruzou os braços e ficou de frente para mim. — Depois da mentira, qualquer verdade vira dúvida, Mariana. — É por isso que eu neguei quando você chegou, por isso que recuei. Era previsível que tudo isso aconteceria. Por que não deixou que eu me fechasse, por que não foi embora da minha vida todas as vezes que eu pedi? Eu sempre te quis. Droga! Eu sempre soube que te amaria, mas sabia que o perderia. Você é o meu martírio! — Não me culpe por ter insistido em alguém que eu venerei e que idealizei uma vida ao lado. Não me culpe por ter tentado por nós dois. Você fez tudo acabar. — Não sou digna do amor por ser prostituta? Minha última palavra o fez fechar os olhos e respirar fundo. — Não repita o que acabou de dizer. Você ter se deitado com muitos homens é só o agravante, mas o pior foi ter mentido, Mariana. Aquilo estava virando uma guerra que não duraria muito, onde os dois precisavam permanecer na defensiva. — Acha que planejei que essa história fosse assim? Se lembra que eu disse que as suas palavras iriam se esvair com o tempo? Eu era realmente uma prostituta, porque queria que minha mãe vivesse um pouco mais. É pecado querer salvar a própria mãe? Valentim sentou no sofá, apoiou os cotovelos nos joelhos e cobriu os olhos com a palma das mãos. Seu corpo ficou trêmulo e a respiração entrecortada anunciou o choro. Meu coração se despedaçou ao vê-lo naquele estado. Eu me aproximei, sentei-me ao seu lado e o enredei com cautela com o braço. — Me perdoa, me perdoa — supliquei baixo —. Tudo o que eu disse e demonstrei sentir foi verdadeiro. O silêncio volta e meia se instalava. Era esmagador. — Como conseguiu me levar para um hotel? — rememorou. — Dirigi o seu carro.
— Mas como me carregou? — Você ajudou um pouco e mesmo que não ajudasse, eu daria um jeito. — Naquele dia nós não... Neguei com a cabeça. — Você sequer abria os olhos. Te drogaram. — O que fez pra se livrar dos caras que me bateram? — Peguei a arma do segurança da boate. — O mesmo que eu subornei hoje, provavelmente — confessou baixo. — Você o que? Você foi até lá? Valentim positivou com a cabeça. — Está tarde — disse, com o intuito de se despedir. — Não! Fique! — segurei seu braço impedindo que se levantasse. — O que nós tínhamos acabou, Mariana — me olhou firme. — Para, Valentim! Nós podemos enfrentar, fique aqui comigo. — Não, não podemos. Imaginar que ele iria embora e ficaria perto de Vivian amargou a minha boca e fez o meu estômago embrulhar. Meu desespero era claro e estava estampado na minha cara. — Você não pode ir embora. Não quero que fique com ela, não faz isso comigo. — Mariana. — Por favor, Valentim. Da última vez você a engravidou. Por favor... Calei meu choro beijando-o. O gosto salgado das lágrimas diluía-se com as nossas salivas. Estávamos submergidos em uma profundidade de sentimentos sem fim, como uma abertura de almas bem ali, diante um do outro. De alguma forma, ele conseguia reconhecer que eu o amava de verdade, que ele era o único homem para mim. E no meio daquela bagunça toda, eu também podia perceber que mesmo com suas palavras duras, Valentim continuava me amando e sofria infindavelmente por isso. — Com quantos homens já dormiu? Demorou, mas suas íris esverdeadas que eu tanto idolatrava, e que agora pareciam turbulentas, me encararam. Eu não sabia a resposta.
— Quantos? Tentei falar, mas nenhum som saiu da minha boca. Com a mão, ele escondeu o próprio rosto e tentou se controlar. — Me perdoa, mas eu não posso. Eu não consigo. Assustei ao vê-lo se levantar. — Calma, não vai embora. — Então me diga! Com quantos homens já transou, Mariana? — esbravejou com toda fúria. Seus olhos ficaram presos nos meus por segundos, implorando para que eu desse uma resposta. — Eu não sei — sussurrei. O mundo desmoronou sobre a minha cabeça no instante em que ele mexeu no bolso, tirou um bolo com dezenas ou centenas de notas de cem e jogou no meu colo. — O que está fazendo? — Não sei qual é o seu preço, mas acho que paga todas as vezes que transamos. Fiquei em pé e joguei com toda força o dinheiro no peito dele. — Você não era como os outros pra mim, seu idiota! — Você teve a coragem de aparecer com aquele irlandês dentro do meu consultório e depois no bar. Então Mariana... você foi igual com todos os outros. — E a tristeza, o medo e o ciúme que engoli pra ficar do seu lado? E toda a merda que aceitei da louca da sua esposa? As paranoias, os surtos? Me torturei e sofri igual condenada por ter que ficar longe. Aguentei a distância muitas vezes... — Porque tinha quem suprisse — ele me interrompeu e eu berrei, com dificuldade por conta do choro excessivo mas berrei: — E ia aceitar o seu filho com aquela doente! Acha que faria isso por quê? Não era pelo seu dinheiro. Engula essa merda! — peguei o bolo do chão e forcei contra o seu peito —. Eu era digna de perdão também. Andei até a porta e a abri vendo minha mão tremer na maçaneta. — Suma antes que eu perca a cabeça! Típico me transformar em uma pessoa agressiva quando me sentia ameaçada ou
humilhada. Não queria bater nele e colocar mais da minha fragilidade para fora. O que garantia que, futuramente, Valentim não usaria contra mim? Soube naquele momento, que magoar era mais fácil do que permitir que lhe magoassem. Estávamos armados, prontos para o disparo antes que o outro disparasse. Como no velho oeste, as pessoas se amavam mas estavam sempre prontas para matar antes de morrer. Me iludi, pensando que o amor faria o outro se colocar em frente da pessoa amada para tomar um tiro por ela. Me enganei, e então descobri que todos nós precisávamos segurar uma arma. Falei para aquele maldito homem, que não tinha nada para oferecer além do meu sentimento e ele disse que isso era tudo, que servia. Agora eu estava em um poço sem fundo, onde mesmo calada minha alma gritava alto. Podíamos simplesmente ferir o outro e ir embora, como Valentim havia acabado de fazer ao passar pela porta.
32 Mariana D'Ávila
Mais uma vez a vida me sacaneava, ou Deus era um Senhor muito malvado que se divertia com os meus infortúnios, ou alguém estava brincando com a minha boneca de vodu, cutucando principalmente minha cabeça e meu coração. Cada dia que passou foi perturbador. Vivian me abordou inúmeras vezes para falar sobre coisas banais, e eu a tratava com respeito para evitar qualquer desavença. Odiei vê-la frequentando tanto o hospital. O que os funcionários pensaram sobre mim? Que eu era uma puta separadora de lares? Puta eu até fui, mas ela e Valentim não tinham um lar para que eu pudesse destruir. Tudo fez sentido. A megera, esposa do oncologista junto ao irmão dele, deveriam estar rindo da minha desgraça ou cantando vitória juntos em algum canto por aí, enquanto eu, chorava incessantemente trancada dentro do meu quarto. Saulo não ficou longe do pesadelo naquela semana, observava de longe o meu desconforto em ter que engolir aquela mulher diabólica. Vivian aparentou estar recuperada dos ferimentos, mais consciente e até menos venenosa. Mas foi engano meu. Desde a mensagem que Saulo me mandou com a foto do casal, eu passei a desconfiar ainda mais. Ambos tinham planos, e um deles, que era me desmascarar, havia sido colocado em prática. — Sua mente está divagando em expectativas. Não vai me dizer que ainda tem esperanças com o meu irmão? — Saulo me abordou de repente com um tom zombatório. — Você é pior que assombração! — fechei os meus olhos em reação ao susto que ele me deu. — Uma bela assombração — o homem sorriu e sentou-se ao meu lado. Eu me afastei, indo para o outro lado do banco comprido na área externa do Saint Clair.
— Me diz D'Ávila, ainda alimentando o intenso sentimento genuíno e arrebatador? — questionou, repleto de sarcasmo. — Cadê o espaço que eu te dei pra se intrometer na minha vida? — levantei-me disposta a sair mas fui segurada pelo braço. — É mais inocente do que eu pensava — seu corpo ficou complemente rente ao meu, e sua altura me intimidou um pouco, mas ergui o queixo mantendo a postura. — Solta o meu braço. — Não esqueça que o sangue que corre nas minhas veias é o mesmo que corre nas de Valentim. Naquele momento, a ameaça não fez tanto sentido, mas tudo tinha se encaixado depois de ter sido humilhada pelo médico. Ele me enxergava como o irmão, uma prostituta e nada mais. — Ficarei por perto, para quando você desistir desta insensata história de amor. E confesso que vou rir muito da sua cara, mas servirei como um delicioso alicerce. Valentim não me prendeu em cárcere quase privado, não me obrigou a transar, não me estapeou sem consentimento, nem me colocou para fora do carro na beira de uma estrada no escuro... ele fez muito pior. Retorceu meu coração e partiu cada pedaço. Eu quis muito contar para ele sobre Vivian e Saulo, precisava mais do que tudo desabafar, conversar e me sentir amparada, infelizmente não foi possível. O médico permaneceu ocupado com diversas cirurgias em dias consecutivos. No entanto, uma coisa salvou e fez aquela tortura diária toda ficar de escanteio. Sr. Ben, o avô de Alba, teve o privilégio de ver a neta na minha presença. Depois de ter insistido, Valentim autorizou a entrada do senhor e o ligou para comunicar que ele estava liberado. A criança acabou com todo o receio do avô em um piscar de olhos. Ela ficou tão contente que contagiou quem estava por perto. Eles se abraçaram com tanto carinho e permaneceram assim enquanto Alba contava suas histórias, sobre sua rotina no hospital, as recreações, e até mesmo da vez em que convenci Valentim a levar os cães para visitar os internados. Sr. Benjamim ouviu tudo com admiração, já eu, precisei conter minhas lágrimas por sentir a conexão sublime que avô e neta tinham.
Já no elevador, eu senti uma tontura tão forte que precisei me segurar para não cair. Eu era uma irresponsável, que só comia quando começava a tremer de fome. Até nisto eu lembrava de Valentim, porque ele fazia questão de me alimentar o tempo inteiro. Mas me adaptei desta forma, as preocupações sempre ocuparam mais espaço na minha vida, não estava acostumada a me colocar em primeiro lugar. Caminhei para o refeitório e pedi carne com batatas fritas. Sentei-me em uma cadeira para aguardar o meu almoço e peguei meu celular. "Oi, amor. Como estão as coisas? Estou sentindo tanto a sua falta." Enviei para Valentim. Minha alma foi na boca quando alguém tocou no meu ombro amigavelmente. — Ele não vai te responder, Mariana. Ainda não se adequou à tortura que é amar este homem? — Oi, Vivian — bloqueei a tela do meu celular e coloquei sobre a mesa. — Admiro que ele tenha se esforçado para conseguir tempo para você no período que ficaram juntos, mas não deveria ter se acostumado. — Não precisamos fazer isso — medi sua atitude de puxar a cadeira e acomodar-se ao meu lado. — Você diz, falar sobre o meu marido? — Exato. Não é da minha índole ser falsa. — Que ótimo, Mariana. Então sejamos claras. — Sinceramente, poderemos continuar como estávamos. Eu te respeito, você me respeita. Nos cumprimentamos por nada mais que educação, ou melhor, eu finjo que você não existe e você finge que eu não existo. — Você me respeita? — ela riu ironicamente —. Eu te respeito? — e forçou mais a risada —. Você não respeita nem a si mesma, querida. — Certo, você me odeia e eu te odeio. Pode, por favor, me deixar em paz? — Claro. Mas antes vou te alertar mais uma vez, a última. Não crie expectativas sobre o meu marido. Eu sou a mulher dele, me adaptei à rotina conturbada da medicina, sei das necessidades e do tempo dele. Estamos passando por problemas como todo o casal, e no fundo eu sei que Valentim me ama, e que este filho nos aproximará ainda mais. Passamos por dificuldades e até hoje ele foi forte por mim, por nós dois. Então por favor Mariana, não seja burra! Você está
perdendo seu tempo e gastando a minha paciência. Minha refeição chegou e mantemos o silêncio. Tentei beliscar uma ou outra batata porém, se tornou indigerível assim como a mulher ao meu lado. E depois daquele dia, mais especificamente daquela noite, na qual Valentim desestruturou tudo o que vínhamos construindo, eu deixei realmente de comer. Meu apetite, assim como meu sono estava totalmente desregulado. No início tomei um ou outro remédio para apagar, mas depois não foi mais necessário. O sono era excedente, e eu me sentia fraca. — Estou indo ver a Tia Martha. O seu café está no balcão. Por favor Mariana, saia desse quarto e coma! — Eveline já chegou do hotel? — eu quis saber, porque me preocupava com os horários dos turnos da minha irmã. — Não, mas mandou mensagem dizendo que passou no Starbucks. — Obrigada. — Mariana — ela deu mais um toque na porta. — Hum? — Tudo passa. E eu te amo, amiga. — Eu também. Ouvi Carlie respirar fundo e os seus passos em seguida. Permaneci com o rosto encostado no travesseiro molhado e só estendi a mão para alcançar a caixinha de lenço. Meu nariz não parava de escorrer devido ao choro. Sentia cansaço, dor, raiva e principalmente sono, então optei por voltar a dormir. — Mariana! MARIANA! A voz de Eve invadiu e interrompeu meu sonho. Escutei ela socar a mão na porta, sentei-me e passei as mãos no rosto. Atendi a porta e vi seus olhos preocupados em minha direção. — Já são seis horas da noite, você precisa sair um pouco. — Eu juro, Eve, juro que essa ideia é inviável agora. — Posso te provar o contrário, Bela. A voz grave do irlandês ressoou lá da sala, eu levei um susto e Eveline encolheu os ombros dando um sorrisinho quando a encarei.
Pisei fundo até a sala e vi o loiro sossegado no sofá, ele bateu a mão ao lado no estofado e eu acatei. — Você tem quinze minutos para tomar um banho e ficar bem sexy. — Pirou? — Temos uma reserva às oito e meia. Mas como sua irmã me contou que você sequer visitou sua mãe nos últimos dias, pensei em te acompanhar no hospital antes de irmos para o restaurante. — David — relutei. — Ou você pode ir assim mesmo, não me importo. — É sério. — Treze minutos — ele olhou no relógio do pulso. Sua presença somada ao seu jeito, me deixaram ligeiramente alegre. Pouco tempo depois estávamos no Saint Clair. Eu olhava para os lados como se alguém estivesse me perseguindo. — Estou com você, fique tranquila — David alisou meu braço. Não sei se foi uma boa ideia, ver minha mãe me deixou dez vezes mais triste. Ela estava dormindo, o contorno de seus olhos nitidamente arroxeados, a boca pálida como de uma pessoa sem vida, mas sua pele continuava quente, fervendo de febre. O irlandês nos assistia de longe, enquanto eu fazia carinho na cabeça careca dela. Beijei sua a testa e a vi sorrir. — Meu amor, você veio. — Desculpa mãe, eu... — Eu sei, filha. Carlie me avisou que está gripada — era claro pelo tom da sua voz que ela não acreditava na desculpa inventada. — Sim, e a senhora está muito frágil. Tive medo de... — Mariana — ela me cortou —, eu estou morrendo, mas você não minha filha. Há quanto tempo tem dedicado sua vida em prol da minha? Não se sinta culpada por precisar ficar sozinha agora. Eu sei meu amor, que as coisas não estão legais para você. — Não quero que se preocupe comigo, mãe — me esforcei para manter as lágrimas no lugar, mas uma teimosa escapou.
Carinhosamente minha mãe a secou na minha bochecha e me olhou com compaixão. — Saiba que quem te olha lá de cima nunca dorme, nunca falha e nem atrasa. Deus sabe o tempo de todas as coisas. — Estou tentando acreditar nisso, mas é tão difícil. — Sei que sim, mas minha filha, só te peço para não perder a fé. — Vou tentar. — E vai conseguir. Você é a pessoa mais forte que eu conheço, e estar exausta não te torna fraca. Só respeite os seus limites. — Mãe, eu odeio quando a senhora fala como se fosse se despedir. — Tudo no tempo Dele, minha filha. Gravei cada detalhe do seu rosto delicado, já marcado pela dor e pela luta. Me aconcheguei em seus braços finos e senti o carinho materno que em pouco tempo eu não teria mais. Seu cheiro floral, embora misturado com o do hospital, me trazia uma paz sem igual e o som da sua respiração me deixava aliviada de uma forma inexplicável. — Se quiser ficar, eu peço um quarto individual e uma cama a mais. David disse totalmente compreensivo, eu o abracei e me livrei do choro agoniante que me sufocava naquele instante. — Vou querer ficar. Mas preciso muito comer, não estou me aguentando em pé. Pegamos um elevador rumo à recepção e chegando, eu encontrei quem eu menos queria: Saulo. Estava com um terno escuro e imponente, conversando com um senhor, na mão tinha uma maleta preta, típica de executivo. — Bela, não! — o irlandês segurou meu pulso mas eu me soltei. Caminhei furiosa em direção ao irmão de Valentim, não sabia exatamente que eu ia fazer ou falar, mas não morreria engasgada. Me surpreendi comigo mesma quando automaticamente minha mão voou na cara dele, causando um ruído ardido contra sua pele e logo uma vermelhidão aparente. — Seu frustrado de merda! — esbravejei —. Me deixa viver em paz! Levantei a mão para estapeá-lo, mas fui contida com a firmeza de seus dedos no meu punho.
— A senhorita precisa conversar? — perguntou dissimuladamente após abrir os olhos. — Foder a minha vida não vai resolver a sua, doente! Ignorei a presença do homem que antes conversava com Saulo, ignorei os olhares e descontei minha ira. Bati no seu rosto com a outra mão e quando a mesma também foi controlada, David se aproximou. — Tire sua mão dela, rapaz — o irlandês ordenou baixo e com calma. — Qual é o direito de vir até o meu hospital e me desaforar? — o irmão de Valentim me defrontou raivoso, mas eu não senti medo. Puxei minhas mãos com força livrando-me dele e o empurrei com mais força ainda. — Esse hospital é do seu irmão, babaca! — cuspi as palavras e ele veio para cima de mim, não para me agredir e sim para provavelmente me xingar e ofender. Uma pequena quantidade de pessoas havia parado para assistir, os burburinhos começaram e Valentim não demorou para chegar. Nessa hora, David já estava entre mim e Saulo, me protegendo e evitando que eu batesse mais no delinquente. — Chega! — a voz de Valentim saiu grossa e alta como um estrondo. — Então controle essa puta, caralho! O revide de Saulo foi o suficiente para Valentim fechar a mão e dar um soco pesado no seu queixo, que o fez cambalear. — Todos de volta ao trabalho! — mandou exasperado —. Agora! Nossos olhos se cruzaram por poucos segundos, mas ele se recusou a me olhar novamente quando analisou o irlandês do meu lado. Depois dos seguranças terem controlado o Saulo, que insistia em tentar atacá-lo, o oncologista saiu sem dizer mais nada, e aquilo me deixou mais destruída. Ingenuidade minha achar que era impossível. Eu e David fomos comer em um restaurante próximo, mas parecia que quanto mais tempo eu ficava sem comer, mais difícil se tornava de mastigar e engolir. — Você vai ficar doente, Bela. E ele teve razão. No dia seguinte era a apresentação da escola famosa de balé e eu estava um caco. Espirrando mais que respirando, tossindo igual cachorro,
com o nariz da cor de uma pimenta e com a pele que parecia brasa de tão quente. — Você não precisa ir. Deixa a Eveline levar o grilinho falante, eu ligo para Charlotte e peço para ela ir também. Carlie me seguia de um lado para o outro, do quarto para o banheiro, do banheiro para o quarto. — Está bom assim? Parei em frente ao espelho e vi o meu reflexo com o vestido vermelho cinturado que disfarçava minha magreza excedente, ele era rendado com forro, de mangas compridas e até os joelhos. — Você está me escutando? Tome o antitérmico e fique dentro de casa. — Carlie, eu prometi para a Sol que a levaria nesse espetáculo. Ela está ansiosa há semanas. — Mas meu Deus, você está doente mulher! — disse irritada. — Eu aguento. — Olha, desisto — ela bufou e saiu do meu quarto. — Ela está certa, Mari. Você precisa tomar um remédio e descansar. — Descansar do que? Eu não faço mais nada. — Santa teimosia! — minha irmã praguejou. — Ligue para um táxi. Ganhei um abraço delicioso na altura da cintura, quando Charlotte abriu a porta. Sol começou a tagarelar sobre estar triste por Valentim ter levado a Lua embora, mas sua mãe apaziguou relembrando que iriam adotar um cãozinho em breve. A menina estava linda com um vestido lilás de princesa todo rodado, e sapatilhas brancas nos pés. — Posso fazer uma coisa nos seus cabelos, Sol? — minha irmã pediu e a criança assentiu ansiosa. Eveline fez uma das suas tranças maravilhosas, a deixando ainda mais deslumbrante. Chegamos na Benaroya Hall, uma casa de apresentações da década de noventa, e nos acomodamos nos assentos no corredor central, onde possibilitava uma visibilidade ótima para a atração.
A academia que se apresentaria era de Moscou, famosa e reconhecida no mundo do balé. Logo, o lugar estava lotado, com todas as poltronas ocupadas. Durante o espetáculo nós três vibramos, nos emocionamos, sentimos toda a emoção de cada dançarino. Era profissional, intenso e perfeito. E como há anos eu não comparecia a um espetáculo, eu esqueci do quanto desejava estar junto em cima do palco. Quando acabou Eveline foi para o hotel e eu levei a Sol para comer. Ela alegou que seu pai a proibia muitas vezes de comer lanches, e nós adoramos quebrar as regras. — Tia Ana, será que o Tio Tim vai me deixar de lado agora que a Tia Vivian está com um bebê na barriga? A criança parecia realmente aflita com a situação. — Eu espero que não, Sol — fui sincera —. Seu tio te ama muito, mas ele e a Vivian precisam resolver algumas coisas. Tenha paciência, pode ser? — Tudo bem — ela mexeu a cabeça —. Eu tenho você como tia também. — Tem — concordei, feliz por ouvir aquilo. — Quero voltar a fazer balé, Tia Ana. Hoje foi tão, tão, tão lindo. Voltamos a falar sobre o assunto enquanto terminávamos de devorar o lanche. Estar com a pequena falante me deixou mais relaxada e foi a primeira refeição, em dias, que eu fiz por completa. Mais tarde a deixei no apartamento com o Eric, já que Charlotte tinha saído para atender uma emergência obstétrica, e depois voltei para minha casa. — Que merda! Será que é tão fácil assim entrar no meu apartamento? Inferno! — praguejei assustada e irada por ver Saulo todo confortável no meu sofá.
33 Valentim Del Torre
Acordar se tornou ruim, além do ressentimento constante, a ressaca também me perseguia. Eu tinha que parar de beber ou a administração do hospital iria desandar. Ser chefe da área mais importante e de destaque do conjunto exigia muito da minha capacidade e concentração, o lugar não significava só uma propriedade para mim. Mas estava difícil pra caralho continuar centrado. Ouvia Álvaro me encher a porra do saco toda manhã, ele despejava as merdas na minha cabeça e me sacudia para levantar. — Você tem reunião hoje, porra. Vai lavar essa cara e tirar essa catinga de bêbado. — Vai pro caralho, Álvaro! Ele não desistiu até me ver entrar no banheiro. O fluxo forte de água começou a levar o peso da noite anterior e amenizar a enxaqueca desgraçada. Já o sentimento crescente de decepção não saía no banho. — Ligou pra sua mulher? — Não fode, Álvaro. Estou acordando ainda. Esfreguei a toalha na cabeça para secar o cabelo e me vesti enquanto seguia para a cozinha, precisava de um analgésico ou minha cabeça explodiria antes de chegar no Saint Clair. — A mulher pode ser um câncer na sua vida, mas está grávida e você precisa agir como homem, caralho. Fechei os olhos em recusa sobre ouvir mais uma palavra do meu amigo e engoli o comprimido. Antes de sair, alimentei a Lua e a deixei solta nos fundos da minha casa. — Cadê seu carro, Álvaro? — perguntei quando o vi entrar no passageiro do meu. — Puta que pariu, foi feio mesmo o negócio. Te busquei no bar de táxi, você não estava em condições, então peguei seu carro e te trouxe embora.
Resmunguei me sentindo mal por ter esquecido muitas partes da noite. Dei partida e o silêncio nos guiou até o hospital. — Está indo nas consultas com a Vivian, Valentim? — ele questionou ao chegarmos no vestiário. — Não, mas converso sempre com o Dr. Augustino. — E ela não está surtando? — Com o que? — Com o fato de você não acompanhar. — Foda-se se está surtando ou não, Vivian é surtada com ou sem motivo. O gastro me olhou pensativo. — E não vai me contar da discussão com a Mariana? — Acredite quando digo que é melhor você não saber. Traíra, isso que eu era. Mas eu precisava me orientar sobre a posição certa na situação. Contar sobre Mariana o faria relacionar à Carlie, e eu não tinha dúvidas que ambas exerciam a mesma profissão. Daria mais um tempo para a amiga de Mariana dizer a verdade, pouco tempo. Coloquei o estetoscópio e o comunicador no bolso do jaleco e saí com Álvaro. — Tem conversado com a acompanhante da Vivian? — Sim, nos falamos diariamente. Finalmente contratei uma mulher da ala terapêutica do hospital para ficar com a minha ex-esposa. Eu não podia, assumo que não dava conta mais. Os meus limites haviam extrapolado. Passamos para pegar café na cafeteria e Álvaro não parava de questionar sobre Vivian, era estranho já que ele nunca demonstrou demasiado interesse nas loucuras dela. — Minha cabeça está me matando e falar dela não ajuda. — Seja lá o que Mariana fez, não é pior do que a Vivian está fazendo. — Do que está falando? — Nada. — Álvaro. — Nada ainda, Valentim.
Ele pegou o celular do bolso e começou a digitar se distanciando. O meu amigo acreditava que Vivian estava disposta a revirar o mundo do avesso para me separar de Mariana, mas o coitado sequer imaginava que a mulher que ele amava se deitava com um ou mais homens toda noite, ou todo dia. E era o mesmo que Mariana fazia. O corpo dela esteve em tantas camas e embaixo de tantos filhos das putas, que não era necessário tanto esforço para Vivian nos separar. — Querido. Vi quando a mulher entrou no meu consultório com um envelope nas mãos. — Acabei de realizar. Abri o papel assim que me foi entregue e identifiquei o exame. — Soube o sexo? — olhei para ela. — Vamos ter uma menina — seu sorriso anunciava o deslumbre pela notícia e seus olhos pareciam brilhar com sinceridade. Fiquei feliz com a novidade mas, alguma coisa me incomodou, algo que eu não sabia discernir. Talvez culpa por achar que a outra criança tentaria substituir a Ana, ou remorso por construir sem estrutura alguma, uma família ao lado de alguém completamente inabilitado para a função. — Que bom, Vivian — meu sorriso não foi muito convincente. — O que foi, querido? Você está se alimentando bem? Não está com uma carinha boa. — Não se preocupe comigo, só quero que cuide da nossa filha, tudo bem? Então ela sorriu mais uma vez e repentinamente me abraçou. — Estou me dedicando, quero ser uma mãe melhor — senti seus lábios no meu rosto e em seguida a ponta fina do seu nariz no meu pescoço —. Volta pro nosso apartamento — pediu baixo. — Você sabe que não é certo, fazer algo contra a minha vontade não será saudável para nenhum dos lados. Coloquei minha mão na sua lombar como um gesto rápido de retribuição e logo me afastei. — Mesmo depois de descobrir o que aquela mulher é? Você não enxerga que eu mereço ter você comigo? Nunca te magoei assim, com mentiras... Não sou como ela.
Em silêncio, observei os traços da mulher que um dia fui apaixonado. — Não, você não é. E ela nunca seria como Mariana. Nunca me faria a amar tanto. Enxerguei um resquício de dor em suas íris, que foi disfarçada com o desviar dos olhos. — Posso te esperar? A noite? Quando você sair do plantão? — Pra que, Vivian? — me esforcei para não ser grosseiro. — Agora que sabemos que teremos uma menininha podemos falar dos nomes... Sei lá, Valentim, qualquer coisa. Na gravidez da Ana você estava tão perto, conversava com ela na minha barriga, fazíamos planos, conversávamos tanto. Não quero que esse bebê seja rejeitado só porque estamos passando por problemas. Reparei nos pequenos detalhes da ecografia e me inteirei das medidas e peso da minha filha, comparando com as referências da tabela ao lado. — Eu saio às dez horas, mas se estiver cansada não precisa me esperar. — Estarei acordada — mais um sorriso e mais um beijo, só que rente à minha boca. Devolvi os exames com o envelope e me despedi. O dia foi longo, o hospital estava uma loucura, cheio de emergências extremas que chegavam na traumatologia. Não era minha especialidade mas acompanhei cada caso, orientando os internos e residentes do turno. Fora as duas reuniões longas e entediantes com o setor financeiro. A exaustão ficou excessiva perto das sete horas da noite, o período todo tinha sido marcado pela correria. E pra terminar de foder, dois enfermeiros me contataram desesperados, por causa de uma discussão na recepção. Me apressei para saber o que acontecia e meu sangue ferveu ao me deparar com Saulo e Mariana. Me obriguei a engolir o caroço formado na garganta, e a fúria que triplicou de ver o irlandês tentando contê-los. Dois homens que a tiveram do mesmo jeito que eu. Matava imaginar que duas pessoas repulsivas pagaram para usufruir do corpo dela, matava pensar que ambos a viram como eu vi. Uma parte do meu cérebro relutava me fazendo crer que ninguém a conheceu
como eu, mas racionalmente eu sabia que era uma autodefesa da minha mente contra a realidade. Eu não podia me iludir mais. — Esse hospital é do seu irmão, babaca! — ela gritou furiosa. Eu impus a minha voz com potência ao ver meu irmão intimidá-la com um passo a frente. Mariana nunca abaixava a cabeça diante de uma briga, sua postura era tão de ataque como a do meu irmão. Ali, todos percebiam que a mulher sabia se defender e que não temia o tamanho ou a imposição de Saulo. Minha ordem fez o mesmo me olhar, e descontrolado ele respondeu: — Então controle essa puta, caralho! O inconsequente perdeu totalmente o direito e o dever de ficar na dele. Foi mais forte que qualquer razão. Eu esmurrei sua mandíbula, abrangendo o queixo e a lateral do rosto. Ele cambaleou e moveu o maxilar. Ordenei que a plateia voltasse para o trabalho e dolorosamente, os olhos de Mariana encontram-se com os meus. Meu irmão tentava se livrar dos seguranças, parcialmente convencido de que não poderia fazer nada contra mim na recepção do meu hospital. Os mirantes azuis de Mariana me inibiram como uma eternidade, mas não consegui sustentar ao lembrar que o irlandês permanecia a postos do lado dela. Fui para casa no final da noite antes de ir para o meu antigo apartamento, e ao me deparar com as bolas azuis da Husky, que veio eufórica me receber, a saudade foi intensificada. Aquela maldita mulher estava em todos os cantos, em cada palavra e gesto do meu dia. Descobri que a saudade vinha no frio do colchão, quando eu me revirava na tentativa de esquecê-la e de me adaptar com o quarto vazio. Também no silêncio causado pela ausência da gargalhada engraçada que só ela tinha. Eu não conseguiria lidar com a perda e com o frio que ela deixou, muito menos com a nostalgia que me torturava sem piedade. Era mentira dizer que diminuiria com o tempo. Mariana D'Ávila — Se você não se importa... essa é a minha casa. Pode se retirar por favor? — fingi educação.
Larguei minha bolsa no balcão e abri a geladeira para pegar uma garrafinha. — O intuito não era te foder. Parei a mão no ar, com o comprimido de antitérmico nos dedos e o encarei. — Aliás, te foder sim, mas a sua vida não. Corrigiu, com um humor sarcástico. — Sério, não sei o que está fazendo aqui, mas hoje não foi um dia bom. Eu preciso tomar essa merda e ir dormir. Por favor, saia da minha casa porque sua presença me dá asco. — Minha presença te dá medo, D'Ávila. O homem robusto se aproximou o suficiente para me fazer dar o costumeiro passo para trás. — Eu te dou medo, Mariana? Minhas pernas começaram a tremer, coloquei as mãos para trás e as apoiei no balcão prevendo que eu cairia caso não segurasse. A garrafinha foi direto para o chão, esparramando água em volta dos nossos pés. Ele sorriu diabolicamente ao notar meu nervosismo. Passei por baixo dos seus braços que me encurralavam, e fui rapidamente para a sala. — Se você não sair, eu vou chamar a polícia. Alcancei o telefone e apertei um botão para ligá-lo. — Gosto de você inteira, não vou te machucar. Ele tirou o aparelho móvel da minha mão e retornou-o a base. — Você não tem que me odiar por ter te ajudado. Uma hora você seria obrigada a contar que não é tão puritana, como demonstrou ser ao meu irmão. Coitado D'Ávila, ser enganado a vida toda deve ser horrível. Estudei seu olhar por muitos segundos, havia muita coisa escondida e contida. Saulo era realmente amedrontador, e sua beleza podia ser tentadora como a maçã do pecado original de Adão e Eva. Contudo, de problemática já bastava a minha vida. Era sensato manter distância daquele homem. — Enganado a vida toda? — indaguei. Ele deu os ombros e se afastou, ainda esboçando o mesmo sorriso.
— O seu irmão sabe que a mulher dele o traiu com você? Joguei a armadilha e ocultei minha incerteza me mostrando convicta. Aos poucos tudo começava a fazer sentido. — É o que você deduz? — só que ele também sabia jogar. — Quantas vezes, Saulo? Por quanto tempo? A incredulidade ficou exposta na minha cara, o nojo também era nítido. — O Valentim sempre seguiu uma conduta inquestionável. Mulheres não gostam de homens tão certos, Mariana — disse confiante. — Deixa de rodeio, caralho. Você e a Vivian traíram seu irmão desde o começo? Ele sabe disso? — Você que está dizendo. Mas vai com calma, pode se prejudicar mais, caso suas acusações estejam infundadas. — Que merda, Saulo! Por que fazem tudo isso com o Valentim? Por que aquela louca continua insistindo tanto em um casamento fracassado, sendo que ela traiu ele com você? Por que vocês não vão para o inferno juntos de uma vez?! — disparei, indignada com todas as novas conclusões que tirei. — Você fala demais e é irritante, Mariana. O seu polegar acariciou meu queixo e seu olhar foi de encontro aos meus lábios. Saulo ficou próximo o suficiente para densificar o ar e me deixar sem oxigênio. Eu o empurrei, mas fui segurada e posicionada de costas para ele. Suas mãos fortes e seus braços me prenderam contra o corpo grande e rijo, ele tocou minha nuca com a boca e disse: — Nunca mais fale que aquele hospital não é meu. Fechei meus olhos, tremendo, suando e com um frio horripilante percorrendo na minha espinha. — Ou eu juro que te darei um jeito e você não continuará tão bonita assim — sussurrou no meu ouvido. — Está me ameaçando? — tentei me soltar mais uma vez —. Está dizendo que vai me bater? Merda! Na adrenalina eu sempre agia impulsivamente. — Me bata, Saulo! Não é sendo abusivo que você alimenta esse ego doentio? Vamos, pode me bater! Fiquei de frente para ele quando fui solta e me descontrolei mais ao ouvir sua
risada. — Eu não tenho medo de você, não sinto um pingo de medo. Se quiser fazer como deve ter feito com diversas mulheres por aí, faça! Mas eu juro, eu juro que vou até o inferno pra acabar com a sua vida, porque nenhum homem tem o direito de encostar um dedo em mim sem o meu consentimento — minhas lágrimas começaram a transbordar abundantemente —. Anda, não é isso que te faz se sentir mais homem? Eu sou menor, mais fraca, você está em vantagem. Bata! — o desafiei berrando. O que me levava a enfrentá-lo daquele jeito eu não sei, só podia ser loucura. Mas eu sei que repetiria com qualquer outro homem, nunca, em hipótese alguma eu apanharia calada como minha mãe fez a vida inteira. E nunca, jamais, deixaria barato. Não eram só ameaças, eu realmente iria até o inferno para destruir a vida dele. Eu só não esperava que ele me abraçaria naquele momento. Meu Deus, jamais esperava. Minha reação foi gritar, embalada por um choro copioso. — Valentim tirou tudo de mim, e eu não suportei ver ele tirando você também. Porra, era tão óbvio. Óbvio. Óbvio! Como eu podia ser tão burra? Valentim era um oncologista renomado e regia um legado hospitalar inteiro, enquanto o irmão apenas administrava o império. Saulo o invejava lastimavelmente. Muitas coisas seriam esclarecidas, eu queria cessar as dúvidas que me enlouqueciam, embora soubesse que nada traria o homem que eu amava de volta. Eu tinha me metido em uma teia embaraçosa demais e não me contentaria até entender tudo. — Essa conversa não acabou — sequei meu rosto mais uma vez e me afastei de Saulo quando meu celular começou a tocar. O homem me olhou nitidamente perdido, arrisco dizer que até arrependido por ter se exposto daquela forma. — Oi? — atendi nas últimas chamadas. — Mariana, venha para o hospital. Era Valentim, e eu sabia porquê.
34 Mariana D'Ávila
Eu achei que não viveria sem ela, e lá estava: em pé, com os olhos abertos e sentido meus batimentos cardíacos retumbarem no peito. Eu continuava viva, por mais incabível que acreditava ser, eu respirava e ela não. Cada dia da minha frustrante infância eu dediquei aquela mulher, eu a admirava mesmo quando ela tinha hematomas espalhados por toda a pele. Eu queria ser como ela, um pouco mais feliz, mas como ela. Afetuosa e dona de um coração que eu desentendia como cabia no peito, era enorme e estava sempre aberto. Minha mãe foi uma mulher incrível. Sofredora do início ao fim. E se me perguntassem se eu apertaria o gatilho para acabar com a tortura que era ter aquele monstro sob o mesmo teto que o nosso, a resposta seria sim. Não tínhamos liberdade para sermos felizes, não tínhamos espaço. Mas depois que meu pai morreu, nós conseguimos viver, nos abraçar e rir sem medo. Ela era minha família e a única coisa que eu tinha até então. Ela me dava colo e ombro, esteve presente na minha primeira apresentação de balé, no sucesso e na derrota, sendo sempre carinhosa e uma cúmplice em todas as situações. Minha mãe era como um anjo e significava tudo para mim. O mundo podia ir contra as minhas escolhas, mas eu faria tudo novamente. Tudo para ter mais um tempo com ela. Me deitaria com mais cinquenta ou cem homens desconhecidos para pagar seus tratamentos, venderia minha integridade se necessário, caso sua doença tivesse cura. Mas o câncer era traiçoeiro e mais forte que nossos sonhos. Assim como a vida, traiçoeira, frágil como um fio prestes a arrebentar. A dela estava por um fio há anos e o sofrimento precisava cessar. Era trágico como em um segundo você podia estar sorrindo olhando para a pessoa que amava, e no outro ser atropelada ao atravessar a rua. Os minutos e as horas definiam o que seria, como seria e até quando. Era assustador. Não houve uma última despedida.
Não foi como nos livros e filmes de romance, com aquela despedida profunda. Ela apenas se foi e me deixou. A maldita máquina apitava ininterruptamente e seu belo rosto estava no travesseiro, sutilmente caído para o lado. Valentim tentava reanimá-la com as pás, gritando para aumentarem a corrente elétrica do desfibrilador. Ele olhava nos meus olhos e eu via dor, preocupação e pêsame. — Para. Meu pedido saiu mais baixo do que eu imaginei. — Carregue para 200, afastem-se! — e mais uma vez colocou as pás no peito dela. Os enfermeiros obedeceram o oncologista e ele tentou mais uma vez ressuscitála. — Por favor chega, Valentim — minha voz saiu audível. Foi a vez dele obedecer. — Ela está cansada, a deixe ir — pedi sentindo a ardência nos meus olhos. O médico assentiu porque sabia que a insistência do choque cardíaco era em vão, e declarou: — Hora da morte onze horas e trinta minutos. Educadamente os enfermeiros saíram para me dar privacidade. Lembrei dela falando que Deus sabia a hora de todas as coisas, e me confortou. Peguei em suas mãos já frias, beijei as duas e fechei meus olhos. Sentia a presença do médico perto de mim, mas naquele momento era eu e minha mãe, uma última vez. — Obrigada — sussurrei —, obrigada, obrigada. Abaixei-me até a maca e beijei sua testa, permaneci nessa posição e de olhos fechados por um longo tempo, tentei digerir que aquilo era um adeus. Tentei aceitar que eu não acordaria e vestiria meu melhor sorriso para vir visitá-la. Eu nunca mais a veria, somente quando fechasse meus olhos. — Sinto muito — ouvi uma voz gentil e feminina ao meu lado —. Você tem que assinar isto. A enfermeira que sempre esteve perto da minha mãe me passou os papéis presos
em uma prancheta. Era sobre a doação dos órgãos remanescentes. Assinei sem dar atenção, era a vontade dela. Doar o que restava de saudável para salvar outras vidas. — Precisam levá-la — Valentim me situou. O processo precisava ser rápido, então a tiraram do quarto. O vazio me invadiu arrebatadoramente, parecia ter algo corroendo minhas entranhas tamanha era a dor. — Eu estou aqui com você... Olhei dentro dos olhos dele e não disse uma palavra. Me retirei do quarto e vi minha amiga correndo em minha direção, minha irmã logo atrás. Ambas pararam ofegantes e me abraçaram apertado de repente. — Viemos o mais rápido que conseguimos. E era verdade, Eveline estava uniformizada e Carlie de vestido e saltos. — Loira, ô loira! — Álvaro me abraçou em seguida, aparentemente estava com Carlie, pelo estilo das roupas de ambos. — Eu quero ficar sozinha, só um pouco — me esforcei para sorrir querendo garantir que eu ficaria bem, mas não era verdade. Entrei no elevador e antes que as portas fechassem, Valentim impediu com o braço. — Mariana, você não falou com o Dr. Phillip. Seus olhos estavam tempestuosos, aflitos. — Vou passar essa responsabilidade para a Carlie, tudo bem? — Claro. Fitei os meus pés e cruzei meus braços em frente ao corpo, fiquei aguardando ele liberar o elevador. — Mariana. Olhei mais uma vez. — Eu quero cuidar de você. — Agradeço, mas não. Seus cuidados machucam. — Não diga isso. Eu sei como está se sentindo, eu sei exatamente. Você precisa de alguém agora.
— Alguém que não acabe mais comigo. — Meu amor... — Por favor, deixe a porta fechar. Nos encaramos, ambos com lágrimas nos olhos. Me mantive firme até as portas fecharem, e sozinha a dor se multiplicou. — O sofrimento dela acabou, D'Ávila — não precisei contar nada, Saulo deduziu. Ele estava no estacionamento na frente do hospital. Acabei aceitando a carona, na pressa era a melhor opção para chegar logo no Saint Clair. — Eu sei. — Vamos, vou te fazer companhia. — Obrigada, mas você não é uma boa companhia. — Olha, eu sei que você tem repulsa de mim, mas... — Saulo, agora não. Nenhum maldito táxi parava e o Saulo desceu do carro para falar comigo. — Perdi minha mãe também, Mariana — por que diabos ele estava se abrindo? —. Vou te levar para sua casa, posso ficar em silêncio. Este não é o momento de ficar sozinha. — Aceito a carona de novo. Mas quero ficar sozinha sim, porque é assim que eu lido. Entramos no carro e seguimos para o meu apartamento. Saulo não era bom em relação a obedecer ordens. Ele subiu atrás de mim e eu rapidamente entrei e fui direto para o banheiro. Abri as duas torneiras da banheira antiga e esperei encher. — Abra essa porta, Mariana — ele socou a madeira. — Saulo, vai embora! Eu quero ficar sozinha. — Mas não vai. Vou sentar aqui e esperar o seu banho. Se o que eu planejava desse certo ele esperaria por muito tempo. Tirei meus agasalhos e continuei com calcinha e sutiã. Entrei na água quente, lentamente a temperatura começou a relaxar o meu corpo. Notei naquele instante que eu estava estarrecida e em estado de choque.
Minhas mãos tremiam e meus lábios também. Fechei meus olhos e levei um susto quando Saulo gritou: — Sei que te mandei calar a boca muitas vezes, mas agora eu quero que você fale. Não fique em silêncio, estou preocupado. — Está tudo bem, Saulo. Só preciso de um banho. — Não está tudo bem, sua mãe morreu. Ele parecia querer me despertar porque sabia do meu estado. — Eu sei, obrigada por lembrar — a ironia foi involuntária. Me sentia derrotada por cada aspecto da minha vida desgraçada. Era como se o tempo tivesse tirado o pouco que almejei. O sonho de dançar, de ensinar, de ajudar pessoas carentes e por fim, minha mãe. Odiava me vitimizar, mas me sentia uma fodida, uma ninguém. — Ainda aqui. Fale comigo. — Saulo, vai embora. O vapor excedente e a quentura alta da água começaram e me entorpecer. Tinha a sensação de que minha mente não era capaz de assimilar e processar essa perda drástica. Fiquei com medo de estar pirando e da sensação atormentadora nunca passar. — O que você fez? Onde ela está? — Dentro do banheiro — ouvi Saulo contar para a minha amiga, que chegou desesperada. — O que você fez com ela, seu idiota? Levanta e vai embora. — Você consegue ser mais irritante do que a Mariana, meus parabéns — Saulo era inescrupuloso até nos piores momentos —. E idiota é você de ter deixado uma pessoa que acabou de perder a mãe sozinha. — Mari, tá tomando banho? — ouvi a voz angustiada de Eve. — Olha só, a ruiva fala — Saulo zombou. — Vão embora — supliquei —. Estou implorando pra ficar sozinha. — Você vai abrir essa porta agora, Mariana. Sua voz está esquisita. Abra! Minha mente divagou para longe, enquanto de fundo, Carlie e Saulo discutiam feio. Minha irmã tentou me convencer a sair do banheiro, mas era como se cada palavra deles estivesse em outro idioma.
— Pronto, ele foi embora. Terminou o banho? — minha amiga bateu de novo na porta. Eu estava buscando coragem. — Mari, saia do banheiro e fique com a gente. Queremos te ajudar. — Vai ajudar se pararem de falar — respondi. Ouvir a preocupação delas me acovardava. Mas depois eu recordava que fui molestada durante a infância, perdi a virtude e a ingenuidade brutalmente. Lembrava que abandonei meus ideais, comecei a trabalhar cedo. Eu não conheci pessoas, muito menos possuí relações estáveis, de amizade ou de amor. Eu era feliz quando o pesadelo com Edgar acabou. Eu e minha mãe fomos felizes. Mas a doença apareceu e corrompeu mais uma vez o que idealizávamos, depois de tanta superação. Comecei a me deitar com um homem diferente do outro, toda noite. Velhos, novos, gordos, magros, loiros, morenos, grisalhos. A única semelhança era de conta bancária, todos ricos. Homens que não sabiam se eu estava bem, ou se eu queria berrar com toda força dos pulmões. Eles não se preocupavam com quão aquilo era doloroso para mim, ou com a minha vontade de chorar por ter que vender o meu próprio templo. Para eles, não tinha diferença. Podia ser sem qualquer motivo plausível, ou como no meu caso, que minha mãe era vítima de um câncer agressivo e devastador. O prazer deles era o meu corpo, como se eu fosse um ser indolente, sem coração. Como um lixo descartável. Eu não havia construído bases sólidas ao decorrer da vida. Eu não tinha nada. E a verdade sobre essa afirmação era tão absoluta que me encorajou a desistir. Demorou para que eu perdesse a consciência ao afundar na banheira. Foi desesperador. Mas o alívio veio quando não ouvi e não vi mais nada. Eu não senti mais nada. Valentim Del Torre
— Estou chegando. Pelo amor de Deus, arrombem essa porta! Carlie, pelo amor de Deus. — Estamos tentando, Valentim — a voz chorosa misturada ao desespero me deixou mais atordoado —. Eveline tentou abrir com grampo, cartão, faca, brinco, tudo. Essa porta é muito pesada, não conseguimos arrombar. Cheguem logo, por favor — ficou tão embargada que eu não entendi o que ela falou depois. — Não tem porteiro? Gritem pro vizinho, qualquer homem pra abrir aquela porra! — meu amigo estava no banco de passageiro, desesperado também. — Não tem ninguém nesse lixo de lugar! — foi a primeira vez que escutei a voz da irmã de Mariana soar sem receio. Foi quase impossível não bater com o carro durante o trajeto, a merda da distância parecia ter triplicado. — Isso é culpa minha, é culpa minha, Álvaro. Eu humilhei ela... Eu a humilhei tanto. — Não, não é culpa sua. Calma, meu amigo. Ela vai ficar bem. — Eu ofendi Mariana porque ela se prostituía. Essa mulher me salvou, e só queria salvar a mãe também... O que foi que eu fiz? A informação saiu da minha boca sem que eu percebesse. — Certo. Você pisou na bola. Carlie era puta desde a adolescência. Fiquei sabendo há semanas, mas tivemos uma conversa esclarecedora. Você não deveria ter agido como agiu, porque Mariana é uma mulher incrível e muito humana. Mas agora não é o momento de se remoer e sofrer as mágoas. Então pisa nessa porra desse acelerador! — Então você sabia sobre Carlie? — questionei espantado. Eu tinha me tornado alguém como meu pai: orgulhoso, prepotente e dono de todas as razões. Isso me fez sentir ódio. — Claro, ela me contou assim que você e Mariana brigaram, mas me pediu para não comentar sobre nada. Porque diferente da babaquice que você fez, eu fiquei do lado da Carlie. Ela não queria que a amiga soubesse e se sentisse mais na merda. As minhas lágrimas começaram a rolar sem pausa pelo rosto, pela frustração do arrependimento. Quando chegamos foi uma correria. As duas mulheres estavam em prantos.
— Faz quanto tempo que ela não responde? — Dez, quinze minutos — Carlie não sabia exatamente. Mas eu sabia que ao contrário do que a maioria achava, a água doce podia ser mais perigosa que a água salgada, a do mar no caso. A água doce era bem mais parecida com a composição do nosso sangue, e quando inalada para os pulmões, ela passava para a corrente sanguínea imediatamente e diluía o sangue, levando a insuficiência do órgão. Após o desmaio e a inconsciência submergida, Mariana começaria a aspirar a água e asfixiaria. Esse processo de afogamento tanto consciente quanto inconsciente podia acontecer em apenas três minutos para levá-la a morte. Eu torcia para que ela não tivesse tentado desta forma. Estourei a porta com toda força porque sabia do angulo correto do banheiro, sabia que a madeira pesada não machucaria o corpo de Mariana. E na vida real, o afogamento não era visivelmente desesperador. Ela entrou em um estado de conservação chamado "Resposta Instintiva de Afogamento", seus braços estavam nas laterais do corpo, a boca no nível da água e a cabeça jogada para trás. Já havia afundado e pela banheira ser rasa, seu corpo voltou para a superfície. Minha analise foi muito rápida e automática, precisava estudar esses detalhes para saber como socorrê-la. Levei em média dois segundos para tirá-la da água, desacordada e com o corpo amolecido. Não era possível ouvir nada que saía da boca da Carlie, Álvaro ou Eveline. David também tinha acabado de chegar e estava tão agoniado quanto os outros. — Ela tem pulso? Veja o pulso — o gastro indagou. — Está fraco. Coloquei Mariana no tapete do quarto dela, me aproximei do seu nariz para sentir a respiração, mas não tinha ar. Rapidamente inclinei sua cabeça para trás e deixei seu queixo levantado, apertei o nariz dela com força e com a outra mão abri sua boca. Encostei nossos lábios em um gesto mecânico de respiração boca a boca. — Quero quebrar a cara de todos vocês. Como deixaram ela sozinha, caralho? — o merda do irlandês não parava de infernizar —. Vamos para o hospital!
— Ela não vai aguentar esse tempo, David. Reveze com a massagem cardíaca, Valentim — Álvaro sugeriu. Averiguei a rigidez do tórax dela e iniciei as compressões cardiopulmonares, alternei entre a insuflação boca a boca e as massagens. — Vamos, amiga, acorda. Estou com tanto medo — Carlie suplicava. Uni minhas mãos e continuei as compressões com mais força. — Não faça isso comigo, por favor Mariana — minha voz saiu baixa —. Meu amor. Fiz mais da respiração e apertei seu peito acima do sutiã branco molhado. Eu não poderia perdê-la. Era impossível viver sem ela. — Está cansando, eu faço — Álvaro se ofereceu, impensadamente o empurrei e voltei aos socorros. Fechei meus olhos quando a ouvi tossir. — Obrigado, meu Deus, obrigado. Deixei que ela vomitasse a água aspirada e retornei as respirações. Era esse o processo para salvar uma vítima de afogamento. Depois virei seu corpo de lado para sair o que sobrou em seu peito. — Pegue uma coberta. Uma coberta, Carlie — Álvaro orientou, estava agitado como todos. A amiga da Mariana estava em choque, por isso foi Eveline quem rapidamente puxou as cobertas da cama e me entregou. Os olhos azuis mais lindos que eu já havia visto me observaram. Ela permanecia um pouco perdida, mas respirando normalmente. — Você vai sentir frio agora, então eu vou te cobrir — expliquei com calma. — Vamos sair, ela precisa se secar e se aquecer — Álvaro disse para os três. — Não vou arredar o pé daqui, eu a seco e coloco uma roupa nela — o sem noção do irlandês disse. — Não, eu vou ficar com ela — Carlie contrariou. Vi Eveline ainda com os olhos assustados assistindo tudo, ela não se pronunciou e saiu do quarto. — O Valentim fica — ouvir voz de Mariana me deu vontade de chorar feito uma
criança. Com cuidado eu a coloquei na cama e despi sua lingerie branca, só então fui relembrar do detalhe que me entristeceu mais ainda ao pegá-la da banheira: Mariana estava significantemente mais leve, mais magra. Ela se sentou na cama e colocou o moletom que eu achei no roupeiro. — Valentim. Ainda estava mergulhado na inércia, tentando digerir que há pouco a mulher que eu amava estava desfalecida em meus braços. Me virei para olhá-la, já que estava sentado na beirada de sua cama e esperei. — Eu agradeço que tenha me socorrido — ela parou de me olhar nos olhos ao abaixar a cabeça e fitou as próprias mãos sobre as pernas cruzadas —, e eu te pedi para ficar aqui porque preciso te falar uma coisa. — Eu errei feio com você e me arrependo, estou aqui para o que você precisar conver... — Não. Minha mãe morreu hoje, não quero prolongar este assunto sobre nós dois e aliás, não temos muito o que conversar, por isso vou acabar de uma vez com essa história. — Não, Mariana... — me aproximei no colchão e quando fui encostar em sua mão, ela puxou a mesma para si. — Não — se recusou a sentir o meu toque —. São nos momentos de sufoco que descobrimos se existe amor, se é real... E eu entendo que ter mentido não foi o melhor caminho, mas a sua primeira atitude depois de me humilhar, foi sair da minha vida. Então... não existe amor. Eu ultrapassei meus limites para ficarmos juntos, você sabe que aguentei muita coisa daquela mulher, que agora espera um filho seu. Isso é amor. Mas você... — ela sorriu tristemente e me olhou — você me deixou no primeiro sufoco. Queria responder mas, ainda sorrindo, ela me repreendeu com os mirantes azuis e disse: — Agora eu preciso que você vá embora, da minha casa e da minha vida.
35 Álvaro Hayes
Minha feiticeira roncava feito uma retroescavadeira, dependendo do quão cansada ela estava seu nariz até assoviava durante a noite. Às vezes quando Carlie dormia no meu peito, eu acordava com medo de morrer afogado, de tanta baba. E ela era tão linda. Seus cachos se enfiavam na minha boca, ou coçavam meu nariz durante o seu sono profundo. Eu tentava desembaraçar seus fios incansavelmente, era um ninho macio, cheiroso e lindo. Seu corpo curvilíneo e nu, coberto parcialmente pelo lençol branco que contrastava em sua pele negra, me deixava alucinado. — Bom dia, minha preta — a mulher deveria me achar um louco por sempre acordar antes para ficar admirando-a, como um completo fissurado. Ela prendeu a respiração e no mesmo instante eu conferi o meu hálito. — Estou com bafo? — Muito — e então soltou o ar. Coloquei seu corpo por baixo do meu e comecei a enchê-la de beijos, só para irritá-la. — Vai escovar esses dentes, antes que eu vomite em você. — Eu também amo você, minha diabinha. — Se ainda tem esperança de receber um bom dia, levante e vá escovar os dentes. Eu sabia o que o "bom dia" dela significava. Corri para o banheiro e fiz o que ela mandou. Poucos segundos depois, senti suas mãos pequenas e as unhas compridas arranharem o meu peito. — Seu toque tem contato direto com o meu pau. — Posso ver, palmitão — e despudoradamente, sua mão desceu para o Álvaro Júnior e o apalpou com força.
Gemi com o apertão e me virei rapidamente para colocá-la sobre a pia, sua camisolinha de seda branca subiu expondo as coxas morenas e deliciosas, e o centro que mostrava a calcinha da mesma cor. — Não podemos demorar, nossa missão Sherlock Holmes precisa ser finalizada — ela disse, deixando um gemidinho escapar ao sentir minha boca em seu pescoço. Inalei seu perfume doce e comecei a beijar a área, logo toda a sua pele estava arrepiando sob meu toque. — Estou sabendo. Se depender dos dois, vão continuar na merda — me referi aos nossos amigos. Mariana e Valentim se amavam tanto que até ficar no mesmo ambiente me causava náuseas. Mentira, era bonito de ver, mas a desgraça é que nunca se entendiam. A vida parecia brincar e rir da cara deles, com contratempos e desencontros. A culpa disso estava direcionada à doida da esposa de Valentim, e a outra parcela era do Saulo-darkness. Mas eu e a minha feiticeirinha compreendíamos que o nosso casal de amigos estava vivendo uma merda atrás da outra, e por isso não enxergavam a realidade escancarada. Vivian era uma piranha. Saulo um filho da puta frustrado e invejoso. — Vou raspar minha cabeça, sério. Que merda, Álvaro! Olha como você deixa meu cabelo! — Carlie reclamou quando inutilmente, tentava domar a floresta selvagem que chamávamos de cabelo. — Não faça isso, adoro puxar esses cachos revoltos enquanto você grita o meu nome. A abracei por trás e espalhei beijos pelo seus ombros nus, vi seu corpo estremecer ao sentir minha mordida em sua nuca. — Chega! Estou na pausa do meu anticoncepcional, e você goza litros. Não queremos um pentelho agora. — Não queremos? Está falando por mim? Seus olhos negros e amendoados me encararam, um pouquinho assustados. Eu me diverti com a sua reação, Carlie tinha a tendência de se esquivar quando eu falava de algo que consolidasse o nosso futuro juntos. — Você não sabe o que está falando.
— Quero uma penca de filhos com você, preta. — Ah é... Conte-me mais sobre como é gostoso transar duas horas sem pausa. — É bom — respondi, confuso. — Você é burro? Acha mesmo que teríamos tempo para uma foda mínima de quinze minutos com uma criança chorando no quarto ao lado? — É, podemos esperar. Me bateu o desespero só de imaginar ter só quinze minutos fazendo amor com ela. — Bom garoto — ela deu um toque no meu queixo e depois beijou meu rosto —. Vamos, temos que desmascarar aquele médico safado. — Dr. Augustino Clin vai ver com quem está se metendo. — Ui. Você falando assim me dá até vontade de perder mais uns minutinhos... A agarrei e ouvi seu gritinho eufórico, acabamos nos enrolando pela cama antes de seguirmos para o hospital. — Tome o seu café, vou estudar os prontuários dos pacientes de hoje e volto para ficar com você — entreguei meu cartão de crédito para ela, mas a vi hesitar para pegar —. Preta, o que é meu, é seu. — Eu tenho dinheiro. — Já disse que não quero que use mais um centavo do dinheiro infeliz que suou para ter. — Não gosto que fale assim. Envolvi sua cintura e encostei nossas testas. — Você sabe o quanto eu te amo, não sabe? — indaguei e prossegui ao vê-la assentir: — Então permita que eu demonstre do meu jeito. — Já disseram que você é um homem com "h" maiúsculo? — Não sei o que isso significa — arqueei a sobrancelha. — Um homão da porra, seu burro. — Você é maluca — gargalhei com o comentário e a enchi de beijos antes de infelizmente ter que largá-la. O trabalho me chamava. Minha cabeça não ficava legal longe dela, desde que Carlie me contou sobre o
trabalho que exercia, eu a queria o tempo inteiro perto de mim. Me esforçava arduamente para lidar com a informação da melhor forma. A insegurança era tremenda, mas eu não permiti que me consumisse. Só que eu precisava, necessitava que ela ficasse por perto, até que o incomodo passasse. Não precisamos brigar para entrarmos em um acordo sobre ela me acompanhar todas as manhãs no hospital. Carlie fazia amizades facilmente, as enfermeiras e as médicas residentes a adoravam, então ela se sentia em casa no Saint Clair. Também decidimos que durante os meus plantões noturnos ela dormiria no seu antigo apartamento, o que dividia com a Mariana e Eveline. Eu confiava na loira, e estava começando a conhecer e confiar na ruiva. Carlie esperou uma semana após a morte da mãe da amiga, para se mudar para o meu apartamento. Mariana havia entendido que nós precisávamos estar juntos para que eu pudesse enfrentar a situação, e minha preta só aceitou porque a ruiva estava sempre com a Mariana. Eu confiava em Carlie, sem resquício de dúvida. Seus olhinhos brilhantes e amendoados diziam a verdade, enquanto seus lábios carnudos pronunciavam o quanto me amava. Então era o meu dever dar uma chance para ela, para nós dois e principalmente para a minha felicidade. A preta era a minha felicidade. — Dr. Hayes — a enfermeira chefe da ala de oncologia me cumprimentou no corredor. — Bom dia, gostosura — beijei a bochecha da senhora gordinha, que todos amavam no hospital. — Deixa disso, menino — e levei um tapa. — Está cheirosa, trocou de perfume? — Fiquei sabendo que o doutor vai se casar em breve, então deixe de ser galanteador e contenha-se. — Não estou sabendo que vou casar, mas gostei da ideia. — Ainda não se acostumou com as fofocas de hospital? Continuamos andando em direção ao elevador, e quando entramos ela me olhou e respirou fundo. — O que te aflige, meu bem? — perguntei. — Está difícil administrar sem o Dr. Del Torre, os outros oncologistas não são
tão eficientes. Sem contar que as crianças perguntam diariamente por ele. — Prometo que vou trazê-lo de volta, nem que seja preciso arrastar aquele filho da mãe. — Faça isso, pelo bem do hospital. Meu amigo não comparecia há dias e isso significava que o Saint Clair saía dos trilhos. Ninguém conseguia manter a organização do hospital como ele e isso era uma merda, porque eu sabia que Valentim demoraria para se recuperar da dor de amor e das bebedeiras incessantes. O cara nunca tinha amado daquele jeito, pelo menos desde que o conheci. Na hora do almoço eu procurei Carlie pelo hospital e a encontrei sentada no jardim, nitidamente cabisbaixa. Preocupado, me sentei ao seu lado e alisei seu rosto. — Aconteceu alguma coisa? — Nada. — Carlie. — Nada, palmitão — ela sorriu, mas quando me olhou, a tristeza se tornou impossível de passar despercebida. — Preta, além de ser seu namorado, eu sou seu amigo. — Eu sei, e eu te amo por isso também — ela me abraçou. — Então me diga, o que foi? — acariciei sua nuca e me afastei para olhá-la. — Às vezes me bate uma tristeza por vir aqui e não ver a Tia Martha. Mesmo que ela estivesse mal há muito tempo, era bom tê-la aqui. Poder vir e contar como a minha vida estava. Falei tão pouco sobre você, queria ter falado mais. Ela sempre sabia detectar o que estava acontecendo no meu coração. Como uma mãe, sabe? Eu tinha consciência de que a Tia Martha não aguentaria por muito tempo, mas acho que ninguém nunca está preparado para a morte... E eu queria muito tê-la no meu casamento, ou me ensinando como cuidar dos meus filhos. — Você quer dizer, no nosso casamento e dos nossos filhos? — Claro né, besta. Se eu estou com você e te amo, com quem mais seria? — Você quebra qualquer clima — estreitei o olhar e ela deu os ombros. — Eu sei, desculpa. — Não peça desculpa, é uma das milhares coisas que amo em você.
O sorriso dela me fez sorrir. Naquele momento eu queria disfarçar o quanto me preocupava em usar as palavras certas em relação à Martha. — Olha preta — passei o polegar na maçã do seu rosto e respirei fundo —, todos nós sabemos que não há palavras que consolem em certos momentos, e este é um deles. Perder alguém é definitivamente, uma merda. Mas sejamos racionais... Martha lutou demais e estava exausta, como qualquer um estaria no lugar dela — as íris castanhas me fitavam como se ela acreditasse e precisasse ouvir cada frase que saísse da minha boca —. Sofre quem fica. Eu creio fielmente que ela está bem agora, então vamos pensar que foi o melhor diante do estado que ela se encontrava. — É que... Merda, estou sendo egoísta né? Eu deveria ser forte para segurar a barra com a minha amiga, e é mais egoísmo ainda dizer que eu a tinha como uma mãe... — Amor, escuta — coloquei um cacho para trás de sua orelha, que por vida própria teimou e voltou para o rosto —, você não é culpada por se sentir assim, é preciso sofrer, expressar, falar, para a dor poder passar, e eu estou aqui para te apoiar. Confia em mim. Um dia, pode demorar, mas você vai olhar para trás e a dor vai ter se tornado uma lembrança boa, sempre misturada com saudade é claro, mas vai se diluir com o tempo. — Eu não sei o que seria de mim sem você. — E nem é pra saber. Carlie ficou mais animada após o almoço, na verdade estávamos ansiosos para terminar o que começamos nas semanas anteriores. Eu pesquisei minuciosamente, inclusive invadi o sistema e violei as regras da obstetrícia para tirar a máscara da Vivian. Minha preta sempre inteligente, tinha desconfiado desde o inicio sobre a veracidade da gestação repentina da esposa do meu amigo, Mariana desconfiou também, mas bastaram uns exames para ambos se contentarem. Porém como sempre, Carlie estava certa. Foi só mexer bastante que a merda começou a feder. — E então? — ela estralou os dedos, ansiosa para saber o que tinha nos exames em minhas mãos. — Bingo!
— Deixa eu ver — ela pediu, quase surtando. — Calma, vida — passei os olhos mais uma vez nas informações, sem deixar escapar um mínimo detalhe. — Álvaro, eu vou ter uma síncope. — Você sabe o que é síncope? — provoquei. — Não, mas acho chique falar. Ela avançou nos documentos e se sentou para ler. Enquanto Carlie confirmava o que desconfiávamos, eu comparava apurando precisamente os exames que Vivian dizia ser dela. — Caaaaaralho! Somos fodas — a doida da minha namorada começou a pular e fazer uma dancinha esquisita —. Toca aqui — e levantou a mão para que eu batesse. — Somos preta, somos muito fodas. — Mulherzinha dissimulada! Minha vontade era ir até o consultório do Dr. Augustino Clin e esmurrar a cara do sem vergonha. Mas deixaria para o Del Torre, o prazer de acabar com ele. O médico salafrário havia compactuado com a mentira deslavada de Vivian, ele pegou exames de uma outra gestante que fazia acompanhamento no Saint Clair e só alterou os dados pessoais. Sob qual chantagem eu não sei, mas isso jamais justificaria. Eram os mesmos diâmetros, quantidade de semanas e as mesmas imagens. As ultrassonografias transvaginal, morfológica e o doppler continham exatamente as mesmas informações. Até que ponto a mulher insana levaria essa mentira? A desalmada aproveitou que o Valentim estava transtornado com os acontecimentos entre ele e Mariana. O meu amigo sequer acompanhava aquela falsa gestação, desde o princípio eu notei que tanto ele, quanto Mariana não tinham cabeça para enxergar que a história não passava de uma armação. Eu e minha namorada ficamos felizes por saber que a notícia poderia unir nossos amigos, ou pelo menos, contribuiria para que eles voltassem a se entender aos poucos. — Agora eu posso bater nela, né? Me apaixonava ainda mais quando Carlie vestia a versão diabinha.
36 Mariana D'Ávila
Eu tinha que aprender a me amar, me amar muito. Me respeitar para chegar e poder dizer que recusaria qualquer coisa oferecida pela metade. Não queria o pouco, as partes, a metade, eu só aceitaria o completo. Tomei essa decisão quando a solução foi tirar Valentim da minha vida, ele demoraria para desocupar o meu coração, mas se dependesse de mim, todas as forças seriam usadas para esquecer que um dia eu o amei. O problema é que vinte quatro horas por dia ele não saía da minha cabeça, e as lembranças iam de boas à melhores. Exceto o episódio no qual ele me ofendeu, Valentim sempre foi um homem maravilhoso e admirável aos meus olhos. O meu primeiro amor. Não ter minha mãe também era um fator agravante, antes eu poderia receber os melhores conselhos e me sentiria amparada nessa desilusão. Tudo bem que eu sabia exatamente o que ela diria, mas não era o suficiente, a queria perto de mim. A saudade nunca passava e eu me sentia tão sozinha, mesmo que nunca estivesse. Naquela segunda feira eu acordei bem cedo, disposta a procurar empregos, porque dormir não pagava contas, infelizmente. — Bom dia, Mari — minha irmã se sentou na banqueta e pegou a xícara que eu havia colocado. — Oi Eve — coloquei outra cápsula na máquina e esperei que o mocaccino saísse. — Está melhor hoje? — Um pouco. Me sentei ao lado dela e sorvemos a bebida fumegante em silêncio. — Me empresta o seu computador, Eve? — Claro, vou pegar. Passamos horas procurando na internet os classificados de empregos. Eu tinha experiência da oficina anterior, havia estudado em duas escolas na minha cidade,
que graças ao suor da minha mãe eram boas. Eu e Eveline anotamos um por um, e em seguida eu liguei para marcar entrevista. Inclusive a primeira seria naquela tarde, minha irmã quis me acompanhar. Foi bom, porque eu estava nervosa e insegura. Antes de entrar na sala ela alisou meus braços e me fez respirar fundo. — Relaxa, Mari. Você tira de letra — e deu seu sorriso de apoio para mim. Agradeci inaudivelmente e entrei na sala. A mulher que era dona da escola, foi supersimpática comigo, fez perguntas básicas sobre a dança, o que significava para mim e sobre trivialidades do balé. — Obrigada, Mariana. Temos outras candidatas e quando acabarmos a seleção, nós ligaremos. — Eu que agradeço — estendi minha mão para despedir-me e saí da sala. É prepotência se eu disser que eu sou uma boa dançarina, eu sabia que sim, mas eu saber não provava nada. Para trabalhar nos lugares você tinha que ter formações, indicações, falar línguas estrangeiras, ter algum diferencial, e pensar nisso me batia o desespero, eu não tinha ensino superior, primeiro porque desde pequena a dança era a minha certeza, segundo porque as circunstâncias não contribuíram para que eu estudasse. Falava o pouco do francês que aprendi no fundamental, e o básico do espanhol que aprendi no ensino médio. Não tinha sido dançarina de escolas famosas ou renomadas. Isso tudo me deixava insegura e eu temia não conseguir um emprego que me estabilizasse financeiramente, porque era mais do que a hora de dar uma repaginada no rumo da minha vida. Agora eu não tinha minha mãe e consequentemente não haveriam os gastos exorbitantes do hospital, mas eu precisava bancar um apartamento, compras, contas básicas de toda casa. — Você não pode ficar tão insegura, Mari. Vai com calma, você vai conseguir um bom emprego. Essa cidade é grande, você viu, na internet tem inúmeros. — Vou conversar com o David. — Não é hoje que ele viaja pra Irlanda? — Acho que sim — entortei a boca, não gostando da ideia. Eu odiava ficar longe do irlandês, sua energia alegre sempre me fazia sentir melhor. Sentamos para comer no Starbucks em um quarteirão próximo ao hospital e isso me fez rememorar que Valentim havia me presenteado com um espaço para que
eu começasse a minha escola, com os meus alunos, desde o primeiro degrau. — O que foi? — Eu não deveria ter mentido para o Valentim, ele queria me dar um futuro porque acreditava em mim. — Ninguém nunca deve mentir, mas não se crucifique porque agora já foi. Ele também nunca, em circunstância nenhuma, tinha o direito de te ofender como fez. — Eu sei — soltei o ar pelo nariz e dei a última mordida no roll de canela, o mesmo que Valentim sempre gostou de comer no Starbucks. De repente o restinho do sabor de canela atacou o meu paladar fazendo meu estômago embrulhar. Foi como em uma cena de filme, vi Valentim entrar pelas portas do estabelecimento e simultaneamente o vômito veio na minha boca. Segurei e apressadamente corri para o banheiro. Percebi que minha irmã veio correndo atrás de mim e comecei a chamá-la. — Tô aqui, o que foi? Estava estragado? — Não. — Cadê você? — ela parecia procurar pelas cabines. Enfiei o pé embaixo para que ela achasse, sem me arredar da frente da privada. — Eve, eu preciso muito que você me ajude a pensar. — Você está gorfando igual louca e quer pensar? — ela se apressou para segurar meu cabelo quando mais um fluxo de líquido saiu. — É sério — passei a mão para limpar a minha boca —. Foca. — Foquei. — Aqueles absorventes que eu deixo no banheiro... — Calma. No armário? — Isso. — O que tem? — ela ergueu a sobrancelha totalmente desentendida, minha irmã era muito ingênua. — Eles continuam lá? — perguntei —. Os absorventes não foram usados? — Não sei se são os mesmos, Mari. Ué, o que tem a ver? — Eu não fiz compra. Eu não usei os absorventes, eu não menstruei.
— E isso te faz vomitar? — eu tinha certeza que Eveline era virgem. — Isso significa que minha menstruação está atrasada, que agora estou vomitando... e que eu posso estar grávida. Os olhos esverdeados quase saltaram para fora quando falei. — O Valentim está lá fora, quer que eu chame? — Não, não — balancei a cabeça —. Calma, preciso ficar calma. — Tá. Meu Deus! Você está grávida? — Eve. — Grávida de quanto tempo, Mariana? Quando vocês fizeram amor? — Eveline — adverti. — Vende exame na farmácia? — Puta que pariu, eu disse que preciso me acalmar! Ela ficou quieta por pouco tempo até não se aguentar e falar: — Será que eu vou ser tia? Rolei meus olhos e debrucei na privada, nojento eu sei, mas eu podia afundar minha cabeça na água do vaso que nada seria pior do que minha própria vida. Terminei de esvaziar o meu estômago e depois lavei minha boca na pia. — Nós viajamos no natal e fizemos sexo sem camisinha. Eu contei para ele que não quero ter filhos, então tivemos uma breve discussão, e resolvemos que quando voltássemos para Seattle eu iria até o hospital para tomar uma injeção que evitasse uma possível gravidez. — E você não foi. — Não. A mulher dele não nos deu tempo, logo veio com a bomba da gravidez dela. — Caramba — minha irmã balançou a cabeça e passou a mão no rosto. — Mas preciso ter calma, ainda não tenho certeza. — Mas Mari... o aborto é uma opção se você tiver certeza? — ela perguntou. — Não consigo pensar em nada agora. — Espero que não seja uma opção, o bebê também é uma obrinha de Deus. Sermões religiosos não me ajudariam naquele momento.
Vi Valentim se levantar quando eu saí com Eve do banheiro. Eu abaixei minha cabeça recusando-me a ter contato visual para evitar que ele viesse falar comigo. Se ele falasse um A, eu falaria que tô grávida e desesperada sem saber o que fazer, isso que nem certeza tinha. — Tudo bem, Mariana? — mas não foi o suficiente para contê-lo. Levantei a cabeça e dificultosamente encontrei seu olhar. Não consegui responder, gaguejei até que Eve me desse uma empurrada para que eu desembestasse. — Tu-tudo, por que? O médico me conhecia e automaticamente estranhou o meu jeito. — Eu preciso falar com você. — Precisa? — vai burra, escreve logo na testa! — O que foi? — ele sorriu um pouco confuso. — Vou deixar vocês — minha irmã disse e saiu. — Sobre o que? — Sobre a Lua. Queria saber se está tudo bem para você se ela ficar permanente comigo, ela está crescendo sem parar e minha casa tem espaço. — Você não voltou para o apartamento? — Não volto mais, Mariana — assegurou completamente certo daquilo. Engoli o caroço formado na minha garganta e assenti com a cabeça. — Por mim tudo bem. — Está acontecendo alguma coisa? Está pálida, nervosa e não para de esfregar as mãos — seu olhar desceu para as minhas mãos inquietas. — Está. Ele estreitou o olhar para os meus olhos e me estudou. — Está tudo bem, Valentim. — Fiquei sabendo que Carlie foi morar com o Álvaro — ele quis puxar assunto. — Sim. — Estou feliz por eles. — Eu também. — Mariana — ele persistiu —, o que foi?
— O que foi o que Valentim? Conversa estranha, eu hein. — Espera — senti sua mão no meu pulso quando ameacei sair —. Quando quiser ver a Lua, você tem a chave da nossa... da minha casa. — Agradeço, mas peço pra Charlotte buscar ela para eu poder vê-la. — Você não precisa me evitar tanto assim. — Preciso. — Por quê? Eu mal estou conseguindo suportar a saudade que sinto de você, como você consegue? — Eu não consigo. — Está conseguindo. Seu amor por mim acabou? Fiquei muda, olhando-o incrédula com a pergunta. — Acha que deixar de te amar é como uma ordem de despejo, Valentim? — Então nos dê uma chance. — Eu dei, muitas. Estremeci quando senti sua mão tocar o meu pescoço, não sabia o que ele ia fazer até ver seus dedos ajeitarem o pingente das sapatilhas de ouro branco, o que ele me deu. — Está impossível sem você, sabia? — sua voz questionou baixinho —. Impossível, e dói mais a cada dia. Sinto sua falta em cada detalhe e em todo canto. Parece que ainda escuto sua gargalhada engraçada pelos cômodos, ou o cheiro dos seus cabelos no meu travesseiro. E eu não sei Mariana, se vou conseguir superar. Olhei para cima na tentativa de manter a lágrima dentro do meu olho e peguei no meu colar para que ele tirasse a mão. — Você escolheu a Vivian. Você escolheu ela todas as vezes que eu precisei que me escolhesse. — Você mentiu sobre uma coisa muito importante, Mariana. Me deixou às cegas, no escuro. — Seria diferente se eu não tivesse mentido? Você teria se envolvido comigo se soubesse? — ele não respondeu —. Eu quis você desde que entrou naquela sala com as crianças para me assistir. Eu deixei meus sentimentos falarem, não queria te perder, uma vez nessa vida coloquei o que eu sentia em primeiro lugar. Eu queria ser mais do que aquela profissão me rotulava, porque eu sempre fui mais.
Ter feito o que eu fiz não me torna uma pessoa menos humana ou menos digna. — Você é digna de todo o amor, e eu sei disso. — Sabe, mas o seu preconceito não. — Eu estou aqui para me redimir. — Infelizmente seu arrependimento não apaga cada palavra que eu ouvi. Eu juro que queria deletar o que você fez, eu queria nos dar uma chance, mas é em vão. É em vão porque não posso voltar atrás e deixar de dormir com todos os inúmeros caras. O meu passado sempre vai ser esse, eu sempre vou ser uma exprostituta e isso sempre vai te atormentar. É a minha vida, o que eu tive que me sujeitar e... você pode entender, mas nunca se conformará que a mulher ao seu lado não sabe com quantos homens transou. Infelizmente Valentim, eu não tenho como voltar atrás, eu sou essa pessoa, com todo esse histórico. — Nós podemos tentar. Eu posso dar o meu melhor, mesmo que me sinta inseguro, eu estou muito disposto a reconstruir tudo. — Minha vida sempre foi uma série de incansáveis tentativas. Sempre incerta, instável. Mas agora eu quero mudar, eu preciso. Interrompi quando o vi abri a boca para responder, balancei minha cabeça e sorri. — Não se preocupe, em pouco tempo o seu filho nasce e vai preencher esse vazio que está sentindo. Dei as costas e saí da cafeteria. Eveline estava emputecida tentando tirar o pé grudado em um chicletes no chão. — Ai, que, raiva! Me apressei o máximo para sair dali, precisava chorar. Minha irmã esticou o chiclete para se aproximar de mim e eu continuei andando. — O que foi? Ele falou bobagem de novo? — Não — o tremor no meu peito começou a anunciar o choro —. Que merda! Merda, merda! — Contou que acha que está grávida? Ah, meu Deus! Não chora, Mariana, calma — ela tentava me acalmar e ao mesmo tempo continuava enfurecida com o chiclete. — Preciso ter certeza primeiro. — Então vamos.
Andamos até uma farmácia e Eveline comprou três testes de marcas diferentes. Ela queria que eu fizesse no banheiro da farmácia mesmo, mas eu não estava pronta. Queria chegar em casa e me preparar psicologicamente para o resultado. — Seu celular é inútil, D'Ávila? — só não contava com a abordagem de Saulo na frente da minha casa. — Assombração — praguejei. — Estou te ligando há horas. Onde se enfiou? — E te interessa? — Você é tão insuportável quanto sua irmã? — ele olhou para a ruiva ao meu lado, e não teve resposta —. Não, você é mal educada. — Respeita a minha irmã, idiota — rebati. — Estou há tanto tempo aqui que me deu fome. Tem alguma coisa pra comer nesse muquifo? — Se você não gosta "muquifo", por que vem? — Eveline o atacou. — Olha só quem tem língua afiada... — Por que não entrou? Já conseguiu antes — destranquei o portão e nós três entramos. — Estou tentando ser um homem mais disciplinado. Eveline gargalhou alto, até eu assustei. — Vou fazer uma macarronada. Ela informou quando entramos no apartamento. — Você sabe cozinhar? — Saulo perguntou com desdém. — Porque é rápido e eu estou atrasada para o trabalho — minha irmã o ignorou e disse para mim. — Trabalho a noite? É puta também? Nós duas o encaramos e ele fez o sinal de zíper na boca. — Se quer ficar aqui, respeite a minha irmã — exigi. — Estou tentando. Ajudei Eve com os ingredientes e comecei a cortar os temperos. — Mas você também é puta? — ele não se conteve, minha irmã corou como um tomate e não respondeu.
Eve era tímida e falar nesses assuntos não a deixava confortável, claro. — Fiz hotelaria e trabalho em um hotel no Centro. — Hum — ele resmungou. Preparamos macarrão com queijo e comemos assistindo Vikings. Saulo não via uma cena sem rosnar, falando o quanto a série era péssima. — Não sei em que mundo você vive — comentei, inconformada. — Em um que a televisão não existe. — Olha só, uma semelhança com o Vikings — Eveline deu uma última garfada e se levantou. — Já vai, Eve? — Sim, vou pegar minha bolsa no quarto — ela falou e abriu a torneira da pia da cozinha. — Deixa que eu lavo, se não você vai se atrasar mais. — Obrigada — e me deu um sorrisinho. Quando me sentei ao lado do irmão de Valentim de novo, indaguei porque ele estava tão pensativo. — Será que ela não se incomoda de ser tão manchada? — Manchada? — É. Cheia de sardas pelo rosto inteiro, horrível. — Eu acho lindo. — Horrível — reforçou. Minha irmã saiu, e antes cochichou para que eu fizesse logo os testes. Depois, eu me perguntei o que diabos estava fazendo a sós com o próprio diabo em casa. Eu não sabia as reais intenções de Saulo, mas desde a morte da minha mãe ele vinha agindo diferente, respeitava meu espaço e demonstrava ter mais senso, mesmo que falasse muita merda e fosse uma pessoa totalmente ranzinza e inconveniente. É óbvio que eu preferia a companhia de David, mas meu amigo andava muito ocupado com a empresa e com as filhas, já que sua mulher estava doente. Carlie até me visitava, mas convivíamos menos do que antes porque ela e Álvaro formavam uma dupla imbatível e inseparável. Era bom ver minha amiga feliz e realizada, eu a desejava as melhores coisas da vida, porque sem dúvidas ela merecia.
— Ainda tem medo de mim? — Saulo parecia se preocupar. — Nunca tive — dei os ombros —, mas mulher nenhuma se sente bem com um homem violento do lado. — Você testou os meus limites, por isso fui agressivo. — Não justifica. — Justifica. — Já pensou se batessem na sua mãe? Você gostaria? Ele não me respondeu. Eu tinha tocado em alguma ferida? — Tem suco? — Coca Cola, na geladeira. — Posso pegar? — Fique à vontade. A mudança de assunto foi previsível, Saulo impunha diversas barreiras quando se tratava da sua vida pessoal. Era um limite impossível de invadir. — Pegue um copo pra mim também — pedi, enquanto pensava. — Estou pegando. Bebi toda a Coca Cola do copo e levei mais um tempo para decidir que faria os exames de farmácia. — Preciso que você vá embora agora, estou cansada e amanhã tenho entrevistas de emprego. Quando fui me levantar senti uma tontura intensa. Segurei no braço do sofá e fechei meus olhos. — Levantou rápido demais. — É. Abri meus olhos e minha visão estava turva, os móveis pareciam se mexer. — Está tudo bem? — Saulo sondou. — Sim. — Então estou indo. Pisquei algumas vezes e tentei focar meu olhar em um ponto fixo, mas minha cabeça doeu e eu só me lembro que minhas pernas fraquejaram quando fui dar um passo, e então eu caí.
37 Mariana D'Ávila
Pisquei com força e lentamente abri os olhos. A luz do abajur era a única que iluminava o meu quarto, e mesmo com duas cobertas grossas sentia uma corrente fria pelo meu corpo, calafrios e minha boca tremia. Me sentia esquisita, mole e um pouco letárgica. Eu demorei para processar a presença de Carlie na minha cama, ela estava dormindo e acordou quando resolvi me sentar. — Que bom que acordou, preciso muito te contar uma coisa — ela parecia animada. — O que aconteceu? — perguntei confusa. — Como assim? — e de repente ficou mais desentendida do que eu. — O Saulo foi embora? — Sim, quando eu cheguei ele disse que você tinha ido dormir. E ah, depois precisamos conversar sobre isso viu, mocinha? Não gosto da sua amizade com esse cara. Minha cabeça estava uma grande confusão, eu não conseguia assimilar os fatos, não me lembrava se desmaiei e como Saulo me colocou na cama, ou se realmente adormeci. — Mariana, estou falando com você. O que foi? Que cara esquisita. — Oi? — olhei para Carlie. — Bebeu, foi? Neguei com a cabeça e varri o quarto com os olhos, tentando me recordar. Levantei e procurei pelo meu celular. Meu corpo estava estranho e os movimentos pareciam mais lentos do que os meus comandos. — O que você quer? — Meu celular. — Tá aqui, sua louca — ela pegou o aparelho ao lado do meu travesseiro. — Preciso ligar para o Saulo.
— Mari, eu sei que está com sono, mas a novidade que eu tenho é maravilhosa e você precisa escutar. Apoiei minhas mãos no quadril e me dispus a ouvi-la. — Vivian não está grávida. Olhei para um lado e para o outro, e minha cabeça continuava uma bagunça. — Você escutou? — O que? — Eu disse que aquela piranha não está grávida! Ela mentiu. Foquei na minha amiga por um tempo e assenti com a cabeça. — Bem que eu desconfiei. — "Bem que eu desconfiei"? É essa a sua reação? — Carlie, a Vivian traiu o Valentim com o Saulo. — É uma naja mesmo! Que mulher asquerosa. — Mas mesmo ela não estando grávida, acho que Valentim será pai. Encolhi os ombros e me sentei na beirada da cama. — Vou te perguntar mais uma vez, você bebeu? — Não. Mas acho que essa gravidez está me deixando louca. — Gravidez? Você tá grávida e não me contou? — Não sei. — Mariana, você tá me pirando! — Pega ali — apontei para o roupeiro — tá dentro da minha bolsa, vou fazer os testes. — É por isso que está assim? — Estou sentindo tonturas há semanas, e hoje eu acho que desmaiei. Nos enfiamos dentro do banheiro e eu urinei nos três potinhos diferentes, coloquei as canetas dos testes e esperei o resultado. Os três foram iguais, três positivos e um deles me informou o número de semanas. — Meu Deus! Quase dois meses — Carlie disse. Me sentei na tampa da privada e abaixei minha cabeça nos braços, aflita e totalmente perdida.
— Valentim vai amar a notícia. As duas, né. Vivian não estar grávida bosta nenhuma, e a mulher que ele realmente ama está. — Eu preciso ir falar com ele. — Precisa. —Tem algo de muito errado acontecendo. — Do que está falando? — Essa falsa gravidez tem relação com o Saulo, eles querem destruir Valentim... querem me destruir também. — Você está nervosa porque acabou de descobrir que tem um bebê na sua barriga. — Não, Carlie. Eu preciso conversar com o Valentim, agora. Flashes passeavam na minha memória mas eu não conseguia distinguir os acontecimentos e as cenas, eram relacionadas a Saulo horas atrás no meu apartamento. Era como um grito na minha cabeça, intraduzível e perturbador. Sentia o meu corpo ainda fraco e indisposto, como se eu estivesse sob efeito de alguma droga alucinógena, mas era impossível esperar porque o pressentimento ruim esmagava meu peito. — Por que não espera amanhecer para ir falar com ele? — Não posso. — Então eu vou com você. — Não precisa, eu pego um táxi. — Mariana. Minha amiga não conseguia entender meu desespero repentino, e na verdade nem eu. Só que imaginar Valentim correndo qualquer tipo de risco me deixava transtornada. Não sei se minha cabeça que não funcionava direito ou se eu estava certa do meu presságio. Depois de me agasalhar com o meu sobretudo grosso, colocar calça e botas, eu desci as escadas do meu prédio e tentei ligar para o táxi, mas a merda não atendia. Andei em direção à avenida movimentada onde provavelmente encontraria táxis e notei que um carro com vidros escuros me seguia, pisquei diversas vezes, para
minha visão que parecia turva, voltasse ao normal mas não adiantou. No momento em que pisei na faixa de pedestres uma luz ofuscou todo o meu caminho, e foi rápido o suficiente para eu não entender nada. Meu corpo foi lançado pela alta velocidade do carro e estirado no chão. Senti minhas pernas e meus braços doerem e tentei mexer minhas mãos para tocar o meu rosto por ter a sensação de que escorria sangue nele inteiro, mas não consegui movimentá-las. A passagem de ar parecia diminuir a cada respiração. Comecei a ouvir vozes ao meu redor, pessoas que se aproximavam, virei a cabeça para poder enxergar, mas era tudo um borrão, a dor logo tomou uma proporção insuportável. Um carro havia me atropelado violentamente, meu corpo estava estendido no chão e eu continuava sem entender nada. Valentim Del Torre — Eu quero ir falar com a Mariana. — É madrugada, Tim. Espere até o amanhecer. — Não, eu vou agora. Não posso esperar mais um segundo, Charlotte. — Ela deve estar dormindo. — Eu a acordo. — Tim! — Charlotte, não vou esperar mais. Mais cedo eu e Álvaro nos encontramos no Bathtub Gin in Co, o mesmo pub de sempre, e foi onde meu amigo revelou a mentira doentia de Vivian. Não é necessário descrever sobre como eu me senti, e não foi como perder um filho, inexistente, e sim um sentimento de culpa imensurável, por ter deixado a mulher que eu amava a troco de uma farsa. — Então eu vou com você. Primeira pessoa que me veio em mente quando eu soube, foi Charlotte. Minha irmã sempre foi compreensiva e sabia dar os melhores conselhos, me guiava quando eu não encontrava saídas. Eu não sabia sequer por onde começar ou melhor, recomeçar com Mariana, mas eu precisava pelo menos tentar mais uma vez.
— Avise o Eric então. — Ele costuma atender a Sol antes de mim, quando ela acorda — minha irmã deu um sorrisinho e encolheu os ombros. Meu cunhado era realmente um ótimo pai. — Pare com isso, está me dando agonia — ela se referiu aos meus batuques frenéticos no volante. — Não sei controlar o nervosismo. — Mas vai ter que controlar, porque a conversa com a Mari será longa. — Você não deveria ter vindo. — Claro que deveria, estou louca para dar um abraço nela e mostrar que dou todo o apoio para a reconciliação de vocês. Charlotte podia ser muito sonhadora quando queria, é óbvio que uma reconciliação com a bailarina não seria nada fácil, e com razão. — Que merda, um acidente. A avenida está interditada — ela comentou quando nos aproximamos da avenida do bairro de Mariana. — Não tem nenhum carro batido — analisei o local pela janela e a multidão que cercava o possível acidente. — Tem alguém atropelado ali, Tim. Vamos descer, anda, venha! — Charlotte foi tirando o cinto. Eu fiz o mesmo porque era o nosso dever socorrer qualquer vítima que fosse. Mas meu coração pareceu tropeçar e falhar ao ver que a mulher estirada no asfalto era a minha Mariana. Corremos e afastamos os curiosos, anunciando que éramos médicos e que precisávamos de espaço para examiná-la. Os olhos azuis encontraram os meus e ela se esforçou para falar... — Não sinto meus braços. — Nós vamos te ajudar, tudo bem? Nós vamos te ajudar — minha irmã garantiu —. Lacerações espalhadas, contusões múltiplas... — e foi examinando seu corpo. — Chame uma ambulância, e pegue minha maleta no carro. Charlotte se dirigiu rapidamente ao meu carro, e depois regressou correndo com a minha maleta médica e o celular na outra mão.
— Meus braços, Valentim. Eu não consigo mexer — as lágrimas desciam rapidamente molhando as bochechas e misturando-se ao sangue que escorria do seu nariz. — Você vai ficar bem, eu vou cuidar de você — assegurei —. Ela está hipertensa — peguei a lanterna clínica e averiguei suas pupilas para saber seu nível de consciência —, e com taquicardia — por fim, chequei seus batimentos. Passei tudo em um tom de voz baixo para a minha irmã, não queria assustar Mariana, porque baseado na minha experiência, eu sabia que seu estado não era bom. — Eu estou com medo. — Não fique com medo, eu juro que ficará tudo bem. Não vou sair do seu lado — falei, sem saber sobre se quem estava mais angustiado era ela, ou eu —. Eu amo você, e não vou sair daqui. — Eu estou com medo. — Meu amor, você vai para o hospital e ficará bem. — Estou com medo de perder o nosso filho, Valentim. Foi como se uma faca me rasgasse de cima a baixo de uma vez só. — Nosso filho? — questionei, confuso. Achei que ela pudesse estar delirando. Mariana fechou os olhos com força e engoliu a saliva, respirando dificultosamente e de uma forma agoniante. O sangue encharcava seu sobretudo e espalhava-se em algumas pequenas poças nas laterais do seu corpo pelo asfalto. Me afastei um pouco para poder checar o restante sem soltar nossas mãos. — Charlotte! — vociferei alto e desesperado. — Estão vindo, Tim. Calma, fica calmo — minha irmã se reaproximou após desligar o telefonema, tocou meu ombro —. Mariana, está me ouvindo? — e por fim acariciou o rosto dela. — Charlotte... — minha maldita voz tremulou ao ponto de não conseguir explicar, mas eu me recompus o máximo que consegui para perguntar: — esse sangramento, ali — olhei para o meio das pernas de Mariana —. Por que ela está sangrando assim? — eu sabia! — Pode ser qualquer hemorragia interna, algum ferimento... Mas nós vamos cuidar, meu irmão.
— Eu sei que pode ser hemorragia. Mas ela está grávida. — Tem algum instrumento no seu carro para que eu possa ver o estado do bebê? — Não sou ginecologista, porra! — limpei a água do meu nariz que se misturava as lágrimas e olhei para trás —. Alguém pode me falar quem foi o desgraçado que fez isso com a minha mulher? Alguém viu alguma coisa? Falem, caralho! Ninguém abria a maldita boca, ninguém sabia o que dizer. O filho de uma puta, que eu rezava para que queimasse no inferno, havia atropelado Mariana e fugido. Seu olhar começou a divagar para os lados e sua boca proferiu palavras desconexas. Seu cérebro possivelmente havia entrado em estado de choque para se proteger das dores. Quando os paramédicos puseram o colete cervical, imobilizaram o restante do seu corpo e colocaram dentro da ambulância, eu averiguei uma última vez o local do acidente. Assustador. Incontáveis eram as vítimas que salvei ao decorrer da minha carreira, mas ver o corpo da mulher que eu amava sofrendo o trauma, me deixou desnorteado. Minha irmã levou o meu carro e eu fui na ambulância com Mariana. Orientei os paramédicos no caminho e conseguimos manter os sinais vitais bons até chegarmos no Saint Clair. Os enfermeiros correram com a sua maca, levando-a para a traumatologia. Não era a minha especialização. O trauma sempre foi caótico, uma confusão. Os enfermeiros ficavam bitolados, os médicos às vezes não sabiam por onde começar, porque a maioria dos corpos que chegavam na emergência eram só como uma massa perdida no meio do sangue. Não era para mim. — É sua parente, Dr. Del Torre? — Dr. Dean Barnett me questionou. — Sim, não. É minha namorada. Ela está grávida, chamem uma obstetra agora — disse aos enfermeiros, eles acataram e um saiu às pressas. O traumatologista me olhou por milésimos de segundos e voltou ao auxílio imediato. — Eu preciso que o doutor se retire. — Não, eu vou ficar. Eu sabia das regras quanto ao grau de parentesco na relação entre médico e paciente. Eu não podia realizar uma cirurgia ou assistir o tratamento do meu pai, da minha mãe, irmãos, ou esposa por exemplo. Com Ana foi possível porque era o responsável pelo departamento de oncologia, e com Vivian também pois eu
não ficava desesperado quando seus surtos aconteciam. Porém com Mariana foi diferente, como sempre. Eu estava atrapalhando, ordenando uma série de coisas aos médicos e impedindo que eles realizassem suas funções com precisão. — Saia agora, Dr. Del Torre! — Dr. Barnett disse firme. Hesitei. Mas por saber que minha presença não ajudaria, eu saí. — E então? — Me mandaram sair. — Imaginei. Você não pode ficar com o caso dela, mas eu posso. — Faça isso. — Vou entrar e ver o que será feito — Charlotte segurou minhas mãos. Ela vestiu o avental cirúrgico, as luvas e entrou. Sentei no corredor e quando abaixei minha cabeça, comecei a rezar para Deus, implorando sua misericórdia, suplicando para que Ele salvasse Mariana e meu filho. Demorou demais. Ainda a transferiram para uma sala de cirurgia. Estourei com os três médicos e até mesmo com a minha irmã. O meu papel era comunicar os parentes referente aos pacientes do hospital, e não ser a pessoa que aguardava desesperadamente uma boa notícia. Mas naquele momento eu vivi o outro lado da moeda. Abordei os cirurgiões uma última vez e questionei. — Ela ficará bem, cuidamos para evitar infecções e agora realizaremos uma cirurgia no braço esquerdo. — Obrigado — não havia sequer como agradecer — Dra. Charlotte — fiquei aflito quando vi minha irmã de cabeça baixa ao lado dos outros médicos. — Acompanharei a cirurgia — informou. — O meu filho — fixei meus olhos nas íris esverdeadas da minha irmã, porque era a única parte exposta devido à máscara descartável, e busquei qualquer tipo de refúgio — Como ele está? Charlotte demorou e por fim negou com a cabeça. — Não — contrariei atordoado. — Eu sinto muito, Tim — ela sussurrou.
38 Mariana D'Ávila
A dor se alastrou quando movimentei meu braço para alcançar minha barriga e tocá-la, fiz isso antes mesmo de abrir os olhos, como um gesto instintivo de mãe. Gemi ao me ajeitar na cama e sentar. Minha cabeça pesava toneladas e latejava como se a pancada estivesse sido diretamente nela. — Valentim — sussurrei sentindo minha boca secar —. Valentim — ele cochilava na poltrona ao lado. — Oi meu amor, estou aqui. Desculpa, acabei dormindo — se aproximou rapidamente e segurou minha mão com as suas duas —. Como está se sentindo? — Valentim — fitei seus olhos —, como o bebê está? — Ele não resistiu. Senti meus olhos arderem e tive que fechá-los para conseguir lidar com a tristeza que me abateu. — Ele ainda está aqui? — apertei a minha barriga com a mão livre, a que estava com o braço engessado. — Charlotte precisou induzir o aborto. Minha respiração se descontrolou, meus lábios tremeram e eu afoguei com o choro. Valentim se aproximou mais e cuidadosamente me abraçou. Senti sua boca na minha cabeça, e chorei enquanto retribuía abraçando-o com aflição. — Tadinho, Valentim. — Ele não sofreu. — Ele parecia um bebê? Você viu? — Não precisamos falar sobre isso, você precisa ficar calma. — Eu preciso saber — o soltei e encarei seus olhos mais uma vez —. Você o viu? — Sim. Eu o vi. — Como é um bebê de dois meses? — Começa a se assemelhar a um ser humano. Estômago, fígado, rins em
desenvolvimento, e o coração formado. Ele era bem menor que o centro da minha mão. Enxerguei com clareza toda a angustia expressa nas íris esverdeadas, quando ele abriu a mão e olhou para o centro dela. — Bem menor — reforçou. Tirei minha mão da dele e escondi meu rosto para poder chorar mais. Fui abraçada de novo e desta vez não consegui sequer me mover para corresponder. — Eu deveria ter protegido ele. — Não, eu deveria ter protegido vocês. — Estava indo te contar e... — A culpa disso tudo é minha. — Não é, Valentim. Ele estava aqui — coloquei a mão sobre a barriga mais uma vez — e eu não fui capaz de cuidar dele. — Mariana, foi uma crueldade o que fizeram com você. — Eu não vi o carro quando atravessei, não consegui evitar. — Eu sei. Eu sei — senti as pontas dos seus dedos acariciarem meus cabelos e minha cabeça —. Para de se culpar, por favor. — Era o nosso filho... era o seu sonho, e eu ia te dar isso. — Você está bem, está viva, é o que importa para mim — o médico apoiou meu rosto para que eu o olhasse —. Eu não suportaria te perder, Mariana. — Então cuida de mim, porque eu não consigo mais sozinha — minha confissão o fez chorar. Eu estava emotiva, e não sabia se era aquilo o que eu queria, mas era o que eu precisava. Ele se sentou na beirada do colchão e ficamos abraçados por um longo tempo. — Me perdoa por ter chegado tarde demais, me perdoa por ter faltado tanto quando você precisou de mim — desta vez, seus braços me apertavam como se ele precisasse sentir cada parte do meu corpo. Fiquei em silêncio, ouvindo e sentindo nossos corações baterem em sintonia. Minha mente perambulou por todo o ocorrido, eu tinha muito para conversar com Valentim, mas naquele momento estava exausta, com dores e dentro de uma tristeza descomunal. Não tive tempo de ao menos me acostumar com um
serzinho dentro de mim e já o havia perdido, eu tinha perdido um filho. — Você precisa descansar, esses remédios são fortes e te darão mais sono — Valentim olhou para a bolsa de soro e eu olhei para os dois acessos no meu braço e na minha mão. — Estou sentindo minhas pernas agora — movimentei lentamente os pés e flexionei as pernas, mas gemi ao senti-las totalmente doloridas. — Não fique se esforçando. Seu corpo sofreu um impacto muito traumático, por isso você não conseguiu mexer as pernas e os braços. Mas agora está tudo bem. — E o meu braço? — virei o rosto para ver, todo enfaixado. — Foi quebrado. O ortopedista fez uma cirurgia e ocorreu tudo como o planejado. Você vai precisar de fisioterapia e acompanhamento neurológico porque bateu a cabeça, mas graças a Deus as contusões da sua cabeça não foram muito agudas e não causaram nenhum edema. — Eu queria que minha mãe estivesse viva. Era o desejo mais pungente e real. Queria que Martha entrasse por aquela porta e cuidasse de mim, me acolhesse e me ajudasse a lidar com a perda de um bebê. — Ela não está aqui, mas eu não vou sair do seu lado. — Minha irmã soube? E Carlie? Não quero que fiquem preocupadas. — Sabem. Estão todos do lado de fora há horas. — Poderei vê-las? Carlie foi a primeira a saber e Eve... — Estão todos almoçando, e você precisa descansar mais. O quarto estava escuro e por isso eu perdi a noção da hora. Valentim se acomodou ao meu lado e me fez deitar em seu braço, enquanto mexia nos meus cabelos para me fazer dormir. Não demorei, porque os remédios realmente davam sono e quando acordei, o homem estava de olhos fechados exatamente na mesma posição, sem ter se mexido um centímetro. Por um minuto pude imaginar como nosso filho seria, se caso puxasse os traços do pai, os olhos esverdeados, os lábios finos assim como o nariz, o cabelo volumoso e escuro, e o furinho no queixo que eu tanto amava. Pensei se seria uma menina, ou um menino. De toda forma seria lindo. — Me destrói te ver chorando, amor — Valentim acordou e me observou. Seu polegar escorregou pela minha bochecha para secar as lágrimas que desciam. Me virei para esconder o rosto em seu peito, porque não consegui parar de
chorar imediatamente. — Ficaremos bem — senti seu beijo e o aperto de sua mão nas minhas costas. Valentim pediu uma refeição para mim quando me acalmei. Era a típica sopa de hospital e um iogurte natural. Como eu mal conseguia me mover sem sentir dor, ele deu cada colherada na minha boca. — Seus amigos precisam te ver, estão enlouquecidos por mensagens. — Ok. Aproveita e sai um pouco deste quarto. — Negativo. — Pode ir, Valentim. Vai comer alguma coisa no restaurante e alongar um pouco essas pernas. Ele sorriu mesmo que tristemente, e me deu um beijo na testa. — Tomarei um banho aqui no hospital mesmo e depois vou comer. — Não se preocupa, estou segura aqui dentro — tentei brincar e ele só assentiu com a cabeça. — Quando eu voltar te darei um banho. — Peço ajuda para Eveline ou Carlie. — Nem pensar. Você escolhe entre mim e as enfermeiras. — Certo. — Nada de se agitar ou estressar, porque você... — Vai, Valentim! — o interrompi para que ele saísse logo. Fiz um coque com o meu próprio cabelo e me ajeitei para recebê-los. Vi o médico se comunicar com o olhar com os meus amigos quando eles passaram pela porta, fiquei curiosa, mas com certeza Carlie me contaria o que era, ou pelo menos David. — Continua bela, mesmo cheia de curativos — David comentou sorrindo assim que me viu. — Gentileza sua, devo estar um desastre — toquei nos esparadrapos do meu rosto e retribuí o sorriso. — Charlotte nos contou do bebê, nós sentimos muito — Álvaro torceu a boca para o lado. — Você e Valentim são novos, poderão ter muitos filhos — Carlie segurou a
minha mão e a beijou —. Fiquei tão preocupada, minha amiga. Você precisa parar de me assustar, se não meu coração não aguenta. Apertei a mão da minha amiga e balancei a cabeça. — Vou parar, prometo. — Está com dores, Mari? — Eveline perguntou. — Um pouco, mas nada insuportável. — Você é quase de ferro, mulher — Álvaro brincou. — Fora que quebrei meu braço, acho que sou. — Com licença — ouvi a voz de Charlotte invadir o quarto —. Trouxe alguém para te ver. Vi a pequena passar pelos adultos presentes e em segundos ela estava subindo os degraus da minha cama. — Tia Ana — Sol me abraçou —, o que aconteceu? A mamãe não quis me contar, só disse que você veio pro hospital. — Eu atravessei a rua sem olhar para os dois lados — distorci a história, claro —, aí um carro não me viu e acabou batendo em mim. — Nossa, Tia Ana. Você quebrou o braço? — ela pegou no meu gesso e eu assenti com a cabeça —. Posso desenhar nele? Enquanto eu conversava com meus amigos, Sol fazia suas artes em meu braço enfaixado. Fugi ao máximo quando o assunto abordava a perda do meu filho. Todos se retiraram quando Valentim voltou. E antes, eu tentei tirar alguma informação dos meus amigos sobre a encarada que o médico deu neles ao entrarem no quarto. — O que vocês estão me escondendo? — Do que? Minha sobrinha que desenhou, não é? — ele reparou no Sol e na Lua desenhada no meu braço. — Não se faça de desentendido. — Eu pedi para eles não falarem muito sobre o bebê. Desviei meu olhar e concordei com a cabeça. — Eveline trouxe aquela mochila com roupas — ele olhou para a poltrona no canto —. Vamos para o banho? — Desculpa, Valentim. Eu prefiro que uma enfermeira me ajude, nós dois não
temos intimidade mais. Enxerguei tanta decepção em seu rosto que quase voltei atrás do que havia acabado de falar, mas mantive a decisão e esperei que ele chamasse a enfermeira. — Estarei aqui caso precisem. O médico ficou sentado na poltrona enquanto eu e a moça entramos no banheiro da suíte. Ela me ajudou a tirar o avental hospitalar e me apoiou o tempo inteiro, porque os medicamentos deixavam meu corpo meio mole, entorpecido. Quando eu me sentei na cadeira adaptada embaixo do chuveiro e a enfermeira começou a lavar meu cabelo, uma tontura tomou conta da minha cabeça e meu corpo pendeu para frente, quase me fazendo cair. — Ah meu Deus, cuidado! — ouvi a voz preocupada da mulher. Valentim já estava dentro do banheiro antes dela terminar de falar. — Deixa que eu termino — disse em seu tom autoritário. — Minha cabeça está rodando — reclamei ao fechar os olhos. Levantei a cabeça em direção ao chuveiro e deixei a água morna cair diretamente no meu rosto. Naquele momento esqueci que estava nua, exposta e vulnerável na frente do homem que havia me machucado da pior forma. — Você está molhando sua roupa — eu falei ao vê-lo tão perto de mim. — Não tem problema. Senti seus dedos massagearem meu couro cabeludo, e sua testa franzia ao me analisar. — Por que está fazendo isso tudo por mim? Levantei com ajuda e ele me ajudou a vestir o roupão. — Diga, Valentim. — Eu não vou aguentar se for o culpado por mais um descuido, eu te deixei todas as vezes que precisou de mim. Com a piedade de Deus e a sua, eu quero e preciso cuidar de você. — Sinceramente, eu acho que cuido melhor de mim do que você — falei com um pouco descontração para não ofendê-lo —. E outra coisa, você precisa cuidar de si mesmo primeiro. Coloquei um conjunto de moletom e voltei a me sentar na maca. Ele fez os
acessos nas minhas veias novamente e se sentou ao meu lado. — Saulo te inveja mortalmente, e deve desejar ter esse hospital só para ele. Assim como desejou ter cada detalhe da sua vida. Primeiro a sua esposa. Vivian te traiu com ele — não deixei de olhá-lo nos olhos — não sei desde quando, mas parece que é algo comum para eles. Depois, ele conseguiu me tirar de você. — Conseguiu? — Sim. Quando deu aquele maldito contrato para a Vivian, e compartilhou com ela sobre onde me conheceu. Você caiu exatamente como ele queria que caísse — encostei minhas costas nos travesseiros e tentei relaxar —. Você me perdeu quando me ofendeu e me humilhou, como eles planejaram. — Pedirei perdão dia após dia se necessário, Mariana. — Já conversamos, não adianta se sentir culpado e pedir perdão. Você nunca aceitaria ter alguém que se prostituiu como sua mulher. — Não, eu realmente não aceitaria. Mas aceitei porque é você. Eu me apaixonei por você, eu te conheço em cada detalhe e amo cada um deles. Já tentei te esquecer quando estava com raiva, decepcionado, puto com tudo, mas não consegui, porque eu simplesmente não consigo deixar de pensar em você uma hora sequer do meu dia. Nenhuma outra mulher me atrai, nenhuma outra mulher ocupa a minha cabeça. A saudade que eu tenho de você me corroí, como se eu estivesse em um buraco sem saída. — Eu sei que no fundo você sente o amor que eu tenho por você, sei que nunca duvidou dos meus sentimentos. Eu nunca fui mentirosa, e se eu não te contei foi por puro medo de te perder. Você sempre soube do meu amor, sempre... Aguentei muito por nós dois... Eu estava esperando um filho seu, enquanto aquela louca só fingia estar grávida. O que você acha disso, Valentim? Pagaram pelo meu corpo porque eu precisava salvar a minha mãe, mas e Vivian? Te traiu com o seu irmão por que? Ela precisava? Ela sim deveria ser alvo de humilhação, aquela mulher não tem caráter algum e foi infiel sabe se lá desde quando. — Mais uma vez estou aqui para me redimir. Infelizmente eu demorei, mas hoje consigo enxergar sua índole com toda clareza. Mas tenha calma Mariana, não é nada fácil amar tanto você e imaginar que usufruíam do seu corpo, o corpo que eu tanto venero. Não foi fácil. Mas eu estou passando por cima disso tudo, de qualquer porra de insegurança. — Os problemas se agravaram, Valentim. Antes éramos só eu e você, mas a nossa história saiu dos trilhos. Eu perdi minha mãe nesse período, e agora perdi
um filho. — Eu também perdi esse filho, Mariana! — sua voz saiu mais grosseira —. Por que acha que não dói tanto em mim quanto dói em você? Ficamos nos encarando em silêncio, virei meu rosto e segurei as lágrimas. — A culpa não é sua, mas eu preciso culpar alguém para poder suportar — admiti baixo. — Estou aqui, pode me culpar. Voltei a olhá-lo e balancei minha cabeça. — Achei que diria que esse bebê não era seu, achei que duvidaria. — Nunca. — Afinal, eu transei com tantos outros caras... — Mariana — ele me cortou. — Ana era mesmo sua filha, Valentim? — precisei fechar os olhos para tomar coragem e questionar. — Ana era minha filha. O assunto se deu por encerrado, sua feição tinha se fechado e ele se afastou de mim ao responder. Dormi após comer uma salada de frutas, foi difícil achar uma posição confortável que não me causasse dor, senti falta de Valentim ao meu lado na cama. Graças aos remédios o sono veio rápido. As cortinas abertas permitiram que os raios solares entrassem no quarto, eu não sabia quantas horas havia dormido, mas foram muitas. Averiguei o quarto inteiro e não tinha ninguém. Uma senhora entrou e me desejou bom dia, deixou o café da manhã e se retirou. Me sentei e tentei alcançar a bandeja. — Merda! — resmunguei. Meu corpo estava mais dolorido que no dia anterior, a enfermeira do café da manhã me avisou que a dosagem dos medicamentos tinha diminuído. — Eu te ajudo — vi Saulo passar pela porta. — Onde está o seu irmão? — perguntei com um pouco de medo.
— Valentim pediu para avisar que foi para casa buscar mais roupas — Eve entrou ofegante no quarto —. Eu tentei impedir que ele entrasse — ela se referiu ao Saulo. — Não sou nenhum monstro ou ameaça, Eveline — ele sorriu sarcasticamente para a minha irmã. Saulo enredou o leito e pegou a bandeja, deixando-a sobre minhas coxas. — Vou te dar na boca, pra poupar seu esforço. — Não precisa, Saulo — olhei para a minha irmã e tentei me comunicar com o olhar. — Precisa sim. Soube que o seu acidente foi drástico, deve estar dolorida ainda. — Eveline me ajuda com isso. — Soube até que perdeu uma criança — ele me ignorou. Apoiei minhas mãos no colchão e me afastei quando o homem chegou mais perto. Senti facilmente o cheiro de whisky e nicotina. — Ela está dizendo que não precisa, Saulo. — Eveline — apontei para a porta com a cabeça e minha irmã entendeu. Saulo carregava aquele costumeiro olhar de predador frustrado, contrariado. Sua respiração estava notavelmente alterada, eu pude sentir quando seu nariz tocou o meu pescoço. Derrubei toda a refeição quando o empurrei, causando um estrondo das coisas caindo no chão. — Escute aqui — ele pegou no meu moletom, me deixando completamente intimidada —, você não tinha que se intrometer nos problemas entre mim e meu irmão, mas você insistiu. Te dei tempo e espaço para se afastar, ou desistir de ficar com ele. — Do que você está falando, Saulo? Você bebeu, saia daqui! — Estou ciente de cada palavra que sai da minha boca — ele sorriu e soltou a gola do meu moletom —. Você chegou e atrapalhou tudo. Eu não queria te machucar, e fiz o máximo para que você saísse do nosso caminho. — Nosso caminho? Do que está falando? — insisti. — Você é inteligente, D'Ávila, mais inteligente do que imaginei — ele rondou a minha cama e cruzou os braços quando parou —. Eu droguei você para evitar que fosse atrás de Valentim, ao saber da falsa gravidez de Vivian. Só subestimei
os seus sentimentos. Porra, Mariana! Mesmo drogada você quis ir atrás dele? Não era a intenção que você fosse atropelada e perdesse essa criança, até porque eu não sabia que estava grávida. Não foi mesmo a intenção... se você tivesse entendido que eu queria te proteger, ao invés de ter que tomar decisões mais violentas pra te afastar do Valentim... A ira se apossou do meu corpo inteiro, eu tirei as agulhas da minha mão e do meu braço e saí da cama. O empurrei com força contra a parede, já esbravejando alto: — Eu desconfiei! Seu filho da puta! Eu desconfiei que você tinha colocado alguma coisa na minha bebida, você matou o meu filho, Saulo! — fiz as costas dele colidirem contra a parede. — Não, você matou essa criança — ele sorriu e pegou nos meus braços para me impedir —. Custava ficar longe do meu irmão? Custava me ouvir quando eu dizia que essa sua insistência não terminaria bem? — Eu não matei o meu bebê, seu doente! — grudei na blusa dele de novo e estapeei seu rosto —. Você é tão louco quanto a Vivian, vocês dois merecem as piores coisas desse mundo. — Mulher descontrolada! — desta vez ele segurou meu punho —. Não vim aqui para brigar, vim aqui pra dizer que estou caindo fora dessa história. Foi Vivian que te atropelou, sua imbecil! Eu tentei te proteger disso. Eu lembro que aquela louca te disse que se envolver com um homem casado não traria boas consequências na sua vida, e ela acertou. Você está colhendo seus frutos, Mariana. — Vai se ferrar, Saulo! — berrei. — Se quiser me denunciar, me entregar... você escolhe — ele levantou os braços em sinal de rendição —, mas eu não sou a ameaça. O perigo fica bem do seu lado e se chama Valentim. Ele está te levando pro fundo do poço e Vivian vai ser sempre um fardo. Ela e o meu irmão são inseparáveis. Ele nunca vai deixar de zelar por Vivian, ele nunca deixará de fazer o papel de bom homem, aquela mulher estará presa nele por toda a vida. Balancei minha cabeça e coloquei minhas mãos no ouvido. O homem era corrosivo, perturbador. Saulo tinha a capacidade de destruir qualquer sanidade e coerência. — Tudo bem por aqui, Srta. D'Ávila? — dois enfermeiros entraram e um deles perguntou.
Fiquei em silêncio olhando para Saulo. — Ele já está de saída — informei. — Você tirou o soro e a medicação, Mariana — Eveline falou um pouco brava —. O que esse louco fez? — Nada — o homem moreno e alto voltou a sorrir, e ficou próximo de Eveline para tocá-la no queixo —. Não fiz nada, não é, D'Ávila? — vi Eve estremecer de medo ao sentir a mão dele. — Saia, Saulo! — ordenei. Minha irmã continuou estática quando ele soltou o rosto dela com certa brutalidade. Se eu não tinha entendido aquele gesto repentino, ela muito menos. — Como quiser — era quase possível acreditar em seu tom gentil —. Só um aviso, como amigo — dei um passo para trás e ergui o queixo para fitar seus olhos, tão próximos do meu —. Amar pode ser tão bom quanto viver, mas pode ser tão destrutivo como a morte. Não deixe que a profundidade te afogue, D'Ávila. Por que o diabo tinha que ser tão enigmático? Não senti suas palavras como uma intimidação ou aviso. Soou como um conselho. Assisti seus passos que o levaram para fora do quarto. — Vou chamar a enfermeira responsável pelo seu caso, só um minuto — o enfermeiro de uniforme verde anunciou. — Eu preciso que você chame a polícia também, quero dar um depoimento. Saulo podia ser a pessoa mais persuasiva, insolente, manipuladora. Podia ter me confundido, ter me deixado paranoica, com medo e me sentindo perdida, mas ele não era capaz de me convencer da culpa de ter perdido o bebê. Aquela culpa pertencia a ele e Vivian e eu não deixaria de fazer justiça pela vida da criança inocente que eu carreguei no ventre.
39 Valentim Del Torre
Alba faleceu na manhã seguinte do acidente de Mariana. Minha pequena paciente teve falência dos órgãos, e o que definiu sua morte foi uma parada cardiorrespiratória, quase como no caso de Martha. Já bastava a perda do nosso filho, lidar com a morte da criança que ela tanto adorava a faria piorar, e era o meu trabalho evitar qualquer decadência na saúde de Mariana, tanto saúde física quanto a emocional. Ela continuou um pouco sedada, seu estado de alerta mental também ficou mais lento. Sua amiga Carlie se ofereceu e insistiu para cuidar dela após mais dois dias no hospital, e não que eu não confiasse nela, mas além de ser minha obrigação, eu queria a bailarina na minha casa, onde eu pudesse ver e atender qualquer necessidade. Tirei alguns dias de folga para não sair de perto dela, e caso eu precisasse resolver algumas coisas, como denunciar o Dr. Augustino para o Conselho de Medicina, ou testemunhar no processo aberto contra Vivian e Saulo, Mariana ficaria com a minha irmã. Nós todos fomos intimados para depor no caso do atropelamento. Mariana contou detalhadamente aos policiais, sobre as ameaças constantes que recebeu da minha ex-esposa, das invasões de privacidade, dos insultos e pressões psicológicas. Saulo não escapou, e o mais incrível é que eu não me surpreendi quando soube das agressões que ele a submeteu, por fim do envenenamento que causou a sua perda de sanidade, e consequentemente o atropelamento. Teríamos que repetir para um juiz, sem deixar faltar qualquer mínimo detalhe. Mesmo sem cabeça para lidar com a justiça, Mariana se esforçou e decidiu fazer isso pelo nosso filho. Eu me orgulhava dela indescritivelmente. — Você não precisa mais me ajudar com o banho — ela relutou quando entrei em seguida no banheiro. — Não é seguro que você fique em pé por muito tempo. Vou colocar a banheira para encher, sente na cama enquanto isso. — E... me sentiria melhor se eu dormisse no outro quarto.
Ela se referiu ao quarto de hóspedes. Mesmo que essa distância me estilhaçasse, eu assenti e fui trocar a roupa de cama do outro quarto. Depois peguei dois comprimidos na cozinha, retornei e entreguei para que ela ingerisse. — Tome cuidado com o seu braço, deixe para fora da banheira. — Você me ajuda a entrar? Minhas pernas ainda estão doendo — Mariana pediu, um pouco receosa. — Apoie aqui — dei o meu braço e ela o segurou para subir os degraus. Mesmo com escoriações, hematomas espalhados, o braço enfaixado e o rosto cheio de ferimentos, ela continuava linda, nenhuma outra mulher conseguiria chegar aos pés da beleza de Mariana. — Qualquer coisa estou no quarto — briguei internamente para tirar os olhos dela e deixá-la a sós no banheiro. O silêncio do ambiente, a ausência de palavras, da voz ou da sua gargalhada peculiar, era algo que eu devia ter me acostumado, por tanto tempo longe, por tantas desavenças e desencontros, mas eu não me acostumava nunca. Era perturbador e cada vez mais solitário. Mariana estava no cômodo ao lado, e mesmo assim sentia-me como um estranho para ela. E pior que essa sensação, era a de culpa. A maldita que me acompanhou desde criança quando meus irmãos se afastaram porque eu tinha a atenção do meu pai e eles não, depois na minha profissão quando eu não conseguia salvar todas as vidas, em seguida veio uma ex-esposa doente, a incurável doença de Ana, depois toda a merda que fiz com Mariana e por último a morte do nosso filho. Não era vitimização, eu realmente tinha culpa. A medicina desgraçou minha vida, me estreitou em um só caminho, e as escolhas erradas vieram em decorrência. Ter a certeza de que Ana era minha filha me aliviava, confirmei este fato quando ela adoeceu. Eu que administrei e estudei todos os seus exames e estágios. E a desconfiança de uma possível traição de Vivian com Saulo sempre esteve presente, só que em determinado período da minha vida parou de me incomodar. Como citei inúmeras vezes, Ana era a pessoa que importava para mim, o resto deixou de valer há muito tempo. Até surgir a bailarina. O problema é que no momento, eu não conseguia oferecer nada a Mariana. O
sentimento de vingança ocupou um enorme espaço no meu íntimo, e na atual conjuntura ficou difícil distinguir até que ponto eu poderia chegar sem perder a consciência. — Valentim. Ela buscou minha mente, me fazendo caminhar até o banheiro. — Eu sei que isso é lamentável, mas não consigo me ensaboar. Tudo está doendo — seus mirantes azuis abaixaram-se em direção a água, Mariana parecia envergonhada ou talvez contrariada por ter que me pedir ajuda. Tirei os sapatos, as meias, abri a fivela do cinto e puxei a peça. Despi também o casaco, a blusa, e assim que peguei no elástico da cueca Mariana advertiu: — Valentim. Abaixei-me na altura da banheira e direcionei seu rosto para o meu. — Nós não somos dois estranhos. — Já tomei banho. Não tem problema. Eu quero sair — ela gaguejou e proferiu sem muita convicção. — Quero cuidar de você, Mariana. Então eu vou entrar nessa banheira e lavar cada parte do seu corpo. Ela continuou hesitante e até pensou em resistir mais, mas eu não dei esse tempo ao me acomodar detrás do seu corpo. Somente as mechas soltas dos seus fios estavam molhadas, o restante do véu loiro havia sido preso com um laço de cabelo. Coloquei as mechas para o lado e espalhei o sabonete líquido em seus ombros, pescoço e nuca. Seus músculos estavam perceptivelmente tensos, e firmemente com as pontas dos meus dedos comecei a desenrijecê-los. No início o meu toque a deixou mais tensa, mas em minutos seu corpo foi cedendo. Seus olhos se fecharam quando ela se entregou à massagem cuidadosa e técnica das minhas mãos. — Doeu muito? — perguntei preocupado ao ouvir seu gemido. — Um pouco, mas preciso que continue. — Se doer novamente, me avise. Mariana acenou positivo e voltou a relaxar. — Vou soltar o seu cabelo.
Ela concordou de novo. Soltei os fios dourados para poder massagear sua cabeça também. Mariana deixava qualquer obra prima com inveja. Seus traços angelicais eram perfeitos e contrastavam com o corpo alongado, as curvas sensuais e todas as suas sinuosidades. Meus olhos adoravam sua boca, intuitivamente eu observava a curva que desenhava seu lábio superior logo abaixo do nariz fino, depois o lábio inferior mais carnudo, que ressaltava seu queixo delicado e proeminente. Ver cada traço perfeito ferido me fez voltar à realidade, porque independente de ser apaixonado pela mulher em minha frente, eu estava ali para cuidar dela. Mesmo sendo o maior apreciador de toda a sua beleza, naquele instante uma necessidade pungente de acolhê-la cresceu dentro do meu peito e foi muito mais forte do que o desejo que eu nutria como homem. — Tudo bem se eu lavar o seu cabelo? — Por favor. Foi difícil conter o choro alastrante ao vê-la tão entregue, mesmo sem querer. Mariana passou por coisas inimagináveis e sobreviveu a quedas que desestruturaria qualquer pessoa. Ela era sem sombra de dúvidas, a mulher mais forte, o ser humano mais firme entre todos que conheci. E ter que carregar essa fortaleza a deixou profundamente cansada. Ela sentia como todos, sofria, chorava, desistia. Mariana parecia ser de ferro mas naquele momento eu vi, ela estava quebrada. Mariana D'Ávila Escutei o choro de Valentim nas minhas costas, mas não soube como reagir. Permaneci imóvel, sentindo seus dedos apalparem e distensionarem meus músculos. Não foi preciso segurar as minhas lágrimas porque elas não vieram. Sentia-me paralisada no tempo. Suas mãos espalmaram minhas costas com o sabonete e a esponja, mantive meus olhos fechados para aproveitar a sensação de cada toque.
— Vou te ajudar a sentar do outro lado agora. Valentim me apoiou para que eu fosse para o lado oposto da banheira e pudesse estender as pernas em volta do seu quadril. Não, eu não fiquei no seu colo, preservamos uma certa distância entre nossas partes íntimas. Ele ensaboou minhas pernas, coxas, cintura, barriga, seios, pescoço, tudo bem devagar. Por fim nos afastamos e recostamos na banheira, ele fez uma massagem reconfortante nos meus pés, e surpreendentemente eu dormi com a cabeça deitada no encosto. Despertei tempo depois, nua e com uma toalha no cabelo. Observei o quarto escuro de hóspedes, e com a decoração um tanto fria. Empurrei o edredom e vesti o roupão quente que estava na beirada da cama. Procurei Valentim pela casa porque mesmo que eu quisesse espaço, ficar sozinha demais me deixava mais angustiada. A filhote de Husky, que não parecia mais tanto uma filhote assim, foi quem indicou onde o seu dono se encontrava. Ela latiu e latiu em frente a uma porta no final do corredor dos quartos, onde eu nunca tinha entrado. Bati na madeira vãs vezes. — Vai descansar, Mariana — seu timbre diferente evidenciou que algo estava errado. Pensei em deixá-lo e voltar para o quarto, mas não consegui. — Posso entrar? — É melhor você ir para o quarto. Ponderei mas não obedeci. Abri a porta e me deparei com uma vasta bagunça. Na lareira do lugar, que parecia uma pequena biblioteca, livros e outros objetos queimavam e causavam ruídos em contato com a brasa. Andei pela sala e observei os porta-retratos jogados e espatifados no chão. A maioria deles era fotos com Saulo, e com outro homem que eu julguei ser o pai deles. Valentim aparecia sorridente, abraçado e tranquilo dentro dos abraços do homem ou de Eleonora. Charlotte era indiferente, e aparentava tirar fotos por obrigação. Já Saulo, ainda na infância possuía o mesmo olhar desiludido, rejeitado. Era uma criança linda, dos cabelos negros e os olhos tão claros como os de um lince. Ele era avulso aquela família. Me aproximei da lareira e reconheci um álbum típico de casamento, bonito, grande e sofisticado. O rosto de Vivian se desfigurava incendiando nas chamas. Valentim estava sentado em uma poltrona marrom de couro, e segurava duas
fotos nas mãos, como se aquelas fossem as que merecessem serem salvas. Sua pele estava vermelha, e eu diria que era por causa da proximidade com a lareira quente, mas confirmei o que desconfiava quando enxerguei o remorso em seus olhos, misturado com desespero e fúria. — Esses livros... esses livros devem ser caros, Valentim — me apressei para pegar as apostilas grossas de sua especialização que estavam no chão, praticamente despedaçadas. Duas prateleiras altas e compridas haviam sido derrubadas, o lugar foi revirado de ponta cabeça. — Olha isso — falei, espantada ao ver diversos instrumentos médicos caindo de três caixas pretas aveludadas. — Deixe aí — ele disse firme quando sugeri recolher. Respirei fundo, me levantei e coloquei as apostilas sobre a mesa comprida de madeira. — Ana? — olhei para as fotos em suas mãos. — Sim. Quando ela nasceu... — Valentim me entregou a primeira foto — e a última foto que tiramos — me mostrou a segunda. Ana estava careca, frágil e visivelmente debilitada, mas seu sorriso tinha um poder arrebatador. — A vida tem sido injusta com a gente — foi impossível engolir o nó grosso da minha garganta. — Eu perdi o meu segundo filho, Mariana. Fico me perguntando, o que foi que eu fiz? Onde foi que eu pequei? — Deus também deve estar cansado dos meus questionamentos — dei poucos passos para trás e sentei na mesa espessa. — Eu perco tudo. As coisas a minha volta não dão certo. — Temos isso em comum — tentei sorrir mas foi em vão. — Não sei o que Ele quer ensinar desgraçando a minha vida, mas já me perguntei se não é melhor eu e você nos separarmos definitivamente, porque você não pode ser a próxima pessoa. Você não pode... — Do que você tá falando, Valentim? Eu não vou morrer. — Não sei como Esse filho da puta espera que eu reaja diante dos desastres, mas não vou ficar esperando que Ele termine de me foder. — Deus não é cruel, não fale assim. Estamos nesse inferno para superar e
evoluir... — Não venha com esse papo, Mariana. Por favor, não diga que Ele não é cruel. A resolução não viria naquela conversa. Não conseguiria ampará-lo se eu mesma me sentia destruída. Eu não tinha uma solução, um conselho, uma palavra que o sustentasse. — Primeiro eu vou cuidar de você até que fique bem o suficiente para tomar suas decisões. Mas depois, caso você não ache seguro estar na minha vida, eu vou entender. Vivian e Saulo são culpados pela morte do nosso filho, mas eu também sou. Fui o pior tipo de homem, ainda mais quando deixei a porra do meu ego sobressair, quando não quis deixar você ir. Eu quis te manter perto, quis me redimir porque eu a amo, mas é egoísmo insistir se esse amor te machuca. Um dia eu disse que o amor dele me machucava e precisava corrigir. — Todas as vezes — minha voz falhou —, todas as vezes que esse amor me feriu, foram quando você estava longe, quando eu senti sua falta, quando eu quis te ter do meu lado e não podia. Esse amor me feriu quando eu não pude demonstrar, quando me senti sozinha. Mas quando eu estava com você, quando ficávamos juntos... esse amor me fez sentir tanta alegria como nunca antes. O problema não foi você Valentim, o problema foi a sua ausência. O problema foi desejar dolorosamente me consolar no seu abraço, cessar as dúvidas, os medos que me atormentavam, e não poder. — Sei que falhei, mas foi uma sequência de fatores que se acumularam e eu me deixei levar, pelas fraquezas e receios. — Se você quer saber, realmente... eu nunca fui tão feliz em toda a minha vida. Nunca foi fácil de enfrentar os problemas que surgiram entre nós dois, mas o que sentíamos se alimentou e cresceu velozmente. Foi por você que eu conheci a Sol e a Charlotte que, mesmo maluca é como uma irmã para mim... Foi você que me permitiu ter os melhores últimos meses ao lado da minha mãe. Talvez se você não tivesse aparecido, eu não teria aguentado o desgaste da despedida lenta que vivi com ela. — Mas tudo teria sido melhor se eu não ousasse sair do seu lado, como almejei desde o princípio. — Seria — concordei e continuei mantendo nossos olhos fixos —. Sua exesposa sim é cruel. Desumana. Ela usou as armas mais fortes pra te desequilibrar. Seu irmão também balançou a corda bamba que era a sua vida. — E eu não impedi.
— Você não enxergou tão nitidamente como quem estava de fora. Eles não parariam até consumirem totalmente a sua força. — Mas Mariana — Valentim puxou o ar pelas narinas e ficou em pé —, eles despertaram um lado que eu desconhecia em mim — e então deu uma volta ao redor da poltrona. — Você precisa se preparar, porque sua ex-esposa será condenada em breve. E seu irmão logo dará um novo motivo para ir preso também. — Saulo é esperto, ele não se arriscará tão cedo. A prova foi ele ter dado uma droga indiagnosticável pra você. — Ele disse que eu podia entregá-lo e parecia certo da decisão. — Mariana, essa ingenuidade não é sua. Não consigo entender como você pode acreditar em uma vírgula que o meu irmão diz. — Ele demonstrou uma singela mudança quando foi até o hospital. — Mudança? Te segurando pelo pescoço ou intimidando a sua irmã? Já conversamos sobre isso. Você não vai chegar perto dele, não vai sair dessa casa sem a minha companhia ou de alguém da minha confiança. Eu conheço o meu irmão há quase trinta anos, Saulo é frio e calculista, ele diz as coisas mais sombrias com toda naturalidade. Analisei o que Valentim havia acabado de falar e pensei alto: — Ele banaliza o terror. — Banaliza. Continuei pensando até interromper o silêncio e dizer: — Vamos limpar essa bagunça. — Não. Eu vou preparar algo para você comer, venha — Valentim estendeu sua mão e eu hesitei por segundos antes de pegá-la. Saímos do escritório/biblioteca e caminhamos até a cozinha. — Valentim... Ele encaixou uma cápsula na cafeteira e me olhou. — Eve pode vir ficar comigo durante o dia. Ela trabalha no hotel em período noturno, durante o dia fica livre. — Tirei uns dias de folga. — Isso não prejudica você, ou sei lá... o hospital?
— Não estou preocupado com o hospital agora. Só irei amanhã para resolver o caso daquele verme com o conselho. — Dr. Augustino? — Sim. — Você conversou com esse médico? Ouviu o que ele tinha pra falar? Vivian ou seu irmão podem ter chantageado ele. — Não importa, nada justifica um médico violar o juramento e as leis do conselho. — Valentim, você já caiu em diversas armações. Por que esse obstetra não cairia? O homem ficou quieto e me deu a xícara com o mocaccino. Longe de mim defender um profissional desonesto, mas se tratando de Vivian e Saulo, eu não duvidava de nada. Comemos um sanduíche e terminamos de tomar os cafés antes de irmos deitar. Mas infelizmente não consegui dormir, no hospital eu acostumei a ter sempre uma companhia no quarto, depois do acidente os pesadelos se tornaram corriqueiros e às vezes acordava até em prantos no meio da noite. Decidi então me enrolar no edredom da cama e sair andando pelo corredor até o quarto de Valentim. Bati na porta e entrei. — Está acordado? — O que foi? — indagou preocupado — Estou. — Quero deitar aqui com você. Posso? Ele deixou o lado esquerdo vago para mim, organizou dois travesseiros e bateu a mão nos mesmos. — Venha! Seu ronco faz falta. Nós sorrimos juntos e eu encurtei a distância para me aconchegar na cama, ao lado de Valentim.
40 Mariana D'Ávila
O cheiro te acordou?
—
— Com certeza — sorri para Valentim que segurava a alça da xícara. — O seu está pronto, quer que coloque mais chocolate? — o médico me observou quando eu peguei o mocaccino e aproximei dos lábios, eu neguei com a cabeça em resposta —. Conseguiu dormir depois do analgésico? — Consegui, obrigada — pousei a xícara no balcão e me sentei. O desconforto do gesso no meu braço era tremendo, um saco achar posições certas para relaxar e dormir, o lado bom é que ter Valentim nas duas noites seguidas em sua casa havia me poupado dos pesadelos. O homem me passava uma segurança sem igual, eu me sentia realmente protegida ao lado dele, mesmo que ele pensasse o contrário. — Como foi a conversa com o Dr. Augustino? — Foi demitido. — Você o entregou para o conselho? — esperei ele me dar a torrada com queijo e fixei meus olhos nos dele. — Saulo ameaçou de tirá-lo do cargo, a mãe dele é de idade e está doente. O cara ficou com medo e fez o que aqueles dois mandaram. — Eu disse. — Não denunciei para o conselho, mas no Saint Clair ele não trabalha mais. — Acho que é o suficiente para puni-lo. — Espero. Terminei de mastigar a torrada e fiquei pensando nas atitudes de Valentim. — Você é bom para todos — externei. — Sou? — É. E as pessoas confundem isso com trouxice. Valentim sorriu e eu balancei a cabeça.
— O que importa é que as pessoas boas de verdade gostam de você. — Não sei se confio nisso... — Eu sou uma pessoa boa, não sou? — Está dizendo que gosta de mim? — desta vez seus olhos sorriram. — Mesmo que eu queira socar sua cabeça na parede sim, eu gosto. Aliás, eu amo você. — Você faz ideia de como me sinto ao ouvir isso? — Faço. Eu sinto o mesmo quando você diz. Valentim deu a volta no balcão e envolveu o meu corpo por trás, depositou um beijo suave no meu ombro e deixou o queixo apoiado ali. Senti sua respiração tocar a minha pele levemente, eu arrepiei e fechei meus olhos. — Valentim. — Fala. — Quando você volta para o hospital? Eu quero muito ver a Alba. Minhas palavras acionaram um botão de tensão que enrijeceu seu corpo inteiro, estranhei a reação mas não assimilei. — Mariana, eu estava pensando nisso antes de você acordar. — Nisso o que? Em quando voltar para o hospital? — Em Alba. — O que tem ela? — soltei seus braços e fiquei de frente para ele. Sua feição entregou alguma coisa, que eu também não quis processar. — Infelizmente ela faleceu na manhã seguinte do seu acid... — Não, não, não — dei uma risada esganiçada —. Não é verdade. — Eu sinto muito. Sinto também por não ter te contado. — Valentim, Alba morreu? — a incredulidade era tão grande que eu realmente não conseguia digerir. — Sim. — Meu Deus, Alba morreu? — o soluço veio junto com o choro, e uma dor insuportável tomou conta de mim. — Eu sinto muito. Nós sentimos muito — ele me abraçou e eu fiquei mole dentro dos seus braços.
— Eu não acredito, eu não acredito. Por que você não me contou antes? Eu queria ter me despedido, eu queria ter visto ela... Eu queria... — Meu amor, não tinha mais o que ser feito. O estágio era terminal e ela aguentou muito mais do que eu previ. — Por que você não me contou? Valentim — esfreguei meu rosto no intuito de secar as lágrimas e encarei os verdes claros de suas íris. — Eu não podia, Mariana. Você ia receber a notícia sobre o nosso filho. — Isso que vocês estavam me escondendo, não é? O silêncio dele serviu como resposta. Eu ia comer as outras torradas preparadas, mas o apetite havia se esvaído. Não conseguia entender como Valentim lidava com tanta postura diante de uma perda, mas era porque a sua profissão cobrava isso. Ele me disse que cada morte era sim dolorosa para ele, cada despedida carregava consigo a tristeza, mas que com o tempo conseguiu encarar de uma forma menos drástica. Ser oncologista era mais do que perder para uma doença maldita, sua especialidade também o presenteava com histórias de pessoas incríveis, sabedoria e lições que ele levaria para o resto de sua vida. Ser oncologista era lutar com todas as armas para salvar vidas. Muitas vezes perder, mas muitas vezes vencer. O restante do dia foi pesado e angustiante. Eu não parava de relembrar os momentos felizes que vivi ao lado da pequena guerreira. Alba era um anjo incrível, puro e amável. Tentei acreditar ainda mais que o paraíso existia, que ela estava saudável e alegre perto de Deus. Nesses dias Valentim não pode ir atrás de vingança, mesmo que a cada hora, notavelmente, esse desejo crescesse dentro dele. Saulo tinha sido destituído da sua função no hospital também, mas não era o suficiente, a vontade de Valentim era matar o irmão com as próprias mãos. Vivian telefonou, duas, três, quatro vezes, todas as ligações recusadas. O advogado contratado por David, sim, foi uma discussão infindável até resolverem quem escolheria o advogado para o meu caso, e David convenceu Valentim que conseguiria um profissional excepcional que me faria vencer o processo, havia nos orientado para não chegarmos perto de Saulo e Vivian, em prol da nossa vitória. Sexta feira a noite todos quiseram se reunir na casa de Valentim para um jantar. Charlotte argumentou que era para comemorar porque eu tinha nascido de novo.
Eu não sabia se ria ou me desesperava por ter David e Valentim na mesma sala, conversando com as mesmas pessoas. Charlotte e Carlie descontraíam o ambiente com facilidade, ambas divertiam os presentes com suas palhaçadas e piadas inconvenientes. — Antes de servir o jantar, eu tenho um presente para a minha Bela — David disse, todo afrontoso. — Quem é sua Bela, Tio David? — Sol questionou confusa. Eu fuzilei o irlandês com o olhar e ele deu seu sorrisinho para mim. — Sua tia, raio de Sol — ele beijou a bochecha da garotinha após levantar da poltrona. — Nada disso, minha tia é do meu tio — a menina franziu as sobrancelhas e limpou a bochecha, indignada com aquilo. — Não dê bola, esse irlandês é um babaca meu amor — Valentim abaixou-se e pegou a sobrinha no colo. — Olha a boca, tio exemplar — Eric o repreendeu. — É babaca mesmo minha filha, a mamãe deixa você falar tá? — Charlotte contrariou o marido e me fez rir —. Mas nós gostamos de você viu, irlandês? — Dê logo esse presente — Carlie interrompeu. O homem loiro se aproximou de mim e tirou um envelope de dentro do terno. — Espero que você goste. Eve, Carlie, Charlotte e Álvaro ficaram do meu lado, curiosos para saber o que era. Valentim ficou no outro canto da sala com a cara fechada e carregando a afilhada. — Não consigo entender. O que é isso, David? — reli por cima e fitei o irlandês. — Contrato assinado com uma escola — Álvaro explicou. — C-c-como assim? — É o colégio das minhas filhas, estavam precisando de uma professora de balé. Lembra? — Mas como conseguiu? — continuei perplexa. — Tenho meus contatos — David piscou para mim.
— Mas eu estou com o braço quebrado, eu... Meu Deus, David! — Você tem um mês inteiro para se recuperar, Bela. A pequena tagarelinha saltitou na minha frente para poder ver o papel e eu me abaixei para explicar direitinho a ela. Eu começaria a dar aula de balé em uma escola particular caríssima no mês seguinte. As meninas ficaram felizes, me abraçaram e me parabenizaram. — Eu disse que te ajudaria a recomeçar — o irlandês falou baixo somente para eu ouvir. Percorri o olhar pela sala e senti um vazio ao ver Valentim desaparecer no final do corredor comprido. — Você é afrontoso mesmo — Charlotte brincou. — Fica esperto irlandezinho, eu quebro sua cara em dois tempos se você estiver mal intencionado com a mulher do meu irmão — Álvaro quis defender o amigo. — Sou muito bem casado — pela primeira vez eu escutei David dizer aquilo. — Obrigada — agradeci finalmente e o abracei —. Obrigada mesmo. — Você merece, Bela — senti um beijo carinhoso na bochecha —. Mas acho melhor ir atrás do seu amado, porque ele ficou pistola. Gargalhei com o comentário e retribuí o beijo no seu rosto por cima da barba. Eu não sabia exatamente como agir, eu e Valentim não estávamos mais juntos, se é que um dia ficamos de fato juntos, mas é claro que continuava existindo, até mais intensamente, o sentimento de amor e esperança entre nós dois. Sentia-me no dever de apaziguar o que o atormentava e aliviar o ciúme dele. — Está irritado? — entrei devagar no quarto e me sentei na cama ao seu lado. — Vocês tiveram um relacionamento? — Valentim não quis me olhar nos olhos. — Profissional. O vi fechar os olhos e abaixar a cabeça. Eu sabia que era duro para ele ouvir e conviver com o meu passado. — Mas se envolveram emocionalmente? — Não. Você é o primeiro. — Tudo bem. Não queria que se preocupasse, eu só me retirei porque o ciúme é incontrolável. — Eu entendo. E eu quero que me fale, além de tudo eu quero o seu bem. É
melhor que fale mesmo. — Eu sei. É dizendo que curamos as feridas, o silêncio infecciona. — Realmente, a palavra é o único meio possível de purificação. — Exato — ele sorriu e eu também. Era bom saber que concordávamos em alguns aspectos. — Então vamos voltar para a sala e jantar? — levantei e fiquei em sua frente, estendi as mãos e esperei que ele as segurasse. Senti a quentura da sua pele na minha e o seus braços fortes me enredarem repentinamente. Encostei meu rosto em seu peito largo e fechei meus olhos para curtir a sensação do beijo na minha cabeça. — Obrigado. — Você vai ver, David gosta de você e torceu muito por nós doi... — Não força, bailarina. Posso aceitá-lo dentro da minha casa, mas gostar dele é pedir demais — Valentim franziu o nariz e negou com a cabeça. — Certo, como quiser. Caminhamos de volta para a sala e o primeiro comentário inapropriado veio obviamente do irlandês. — Deu tempo de uma rapidinha? Vocês são feras mesmo. Só deu tempo de Eric tampar os ouvidos da filha e o restante dos convidados rirem. — Mariana gosta das coisas devagar — Valentim deu os ombros. — Com o braço bom eu já demoro... imagina assim. Eles sabiam perfeitamente que eu me referi ao meu lento e demorado orgasmo. Achei que o clima ficaria tenso, mas o irlandês não tinha jeito. — A ruiva está disponível? Já que a loira foi laçada... — David continuou após acabarmos a refeição e levantarmos da mesa. Quatro garrafas de vinho já haviam sido consumidas, com exceção de mim, Eve e Sol, todos estavam bebendo. Observar todos conversarem, trocarem experiências bizarras e contarem histórias engraçadas me fez ficar em silêncio, agradecendo mentalmente por tê-los em minha vida. Hora ou outra minha mão pousava sobre minha barriga e eu só pensava que, se o bebê estivesse vivo ele teria os melhores tios e o melhor pai do mundo.
Ninguém havia percebido, mas Valentim e David estavam conversando, o assunto eu não sabia porque fiquei admirando-os, mas pareciam tranquilos e sem presunções. — Não é, Mariana? — Valentim me tirou de transe. — Perdão, o que? — Viajando, Bela? — Não — guardei a cena de segundos atrás com todo carinho e sorri para ambos —. O que estavam falando? Não ouvi. — Valentim me contou que te deu um espaço de dança, no natal. Olhei para o médico e hesitei para respondê-lo. — Caso as crianças do colégio queiram fazer aulas intensivas, você pode oferecer suas aulas no salão — ele parecia apreensivo. — É uma boa ideia — minha concordância o surpreendeu —, mas vamos com calma. — É uma ótima ideia, Bela. Os dois voltaram a conversar como se eu não estivesse ali. Fui para o grupinho das meninas e ao nosso lado Eric e Álvaro gargalhavam com assuntos ridículos de macho. — Isso que ele disse hoje que é muito bem casado — Carlie resmungou. — Mas que rola um interesse isso rola — Charlotte disse convicta. — Parem com isso — vi minha irmã trançar os fios ruivos com certa pressa. — Ei, calma — parei suas mãos — elas estão tirando sarro. — Eu sei — Eveline sorriu, ainda tensa. — Álvaro que me perdoe, mas esse irlandês é delicioso — minha amiga cochichou — É bom de...? — ela fez um sinal de foda com a mão. — Carlie! — censurei. — É ou não? Também fiquei curiosa, conta pra gente — a irmã de Valentim me cutucou com o ombro. Vi que Eve fixou os olhos em mim, interessada na minha resposta. — Vão se danar! — revirei os olhos —. Vou pegar mais suco. Você quer, Eve? Minha irmã assentiu e nós fomos para a cozinha.
— Pode ser sincera comigo — encostei a bunda na pia e olhei para ela. — O-oque? — David — fui direta. — O que tem? — Eveline — adverti. — Preciso que seja clara, eu realmente não entendo. — Você tem interesse nele? Não precisa ter vergonha, você chegou faz um tempo, não sai, não conheceu ninguém... — Claro que não — ela arregalou os olhos e balançou a cabeça —. Não, Mari. — Ele é sem vergonha mas é um homem incrível, você ganharia o coraçãozinho irlandês facilmente. — Eu sou virgem — ela confessou como se fosse um segredo profundo. — Eu sei — mas não era para mim. — Sabe? Eu deixo tão na cara? — Não é isso. Eu só sei — sorri e alisei seus braços, não queria que ela continuasse tensa —. O que isso tem a ver? Não impede nada. — David te conheceu por... sexo — Eve tinha dificuldade até de pronunciar a palavra —, não sou contra isso, não sou contra a nada do que você fez, mas não é o que eu quero para mim. — Eu também não quis — respirei fundo e relaxei os ombros. — Claro, não era isso que eu queria dizer, eu só... É só que... — Fala, Eveline — ordenei firme. — Não consigo me arriscar, já me machuquei no passado, então prefiro evitar. — Se machucou? — O meu ex-namorado me enganou... Só queria dar o próximo passo para poder transar comigo. — Típico — abri a geladeira para pegar a jarra de suco e servi para nós duas —. Você quer só depois do casamento? — Sim. Ou pelo menos quando eu estiver certa de que o homem será meu marido. — Direito seu.
— Admiro muito o que você fez e o quanto se sacrificou, mas eu não sou forte como você — minha irmã sorriu e eu levantei meu copo para brindar com ela. — Espero que você encontre esse sortudo logo porque transar com quem você gosta, Eveline... é a oitava maravilha. Nós rimos e assim que decidimos nos juntar novamente com o pessoal, a campainha tocou. — Eu atendo — Charlotte se dispôs toda animada. — Vocês convidaram mais alguém? — Álvaro perguntou. Me aproximei de Eric quando vi Sol dormindo em seu colo e deixei o meu copo na mesinha. — Posso levá-la para cama? — Por favor — o marido de Charlotte facilitou para que eu pegasse a pequena. — Vou colocar no quarto do Valentim — informei. — Obrigado — Eric sorriu e deu um beijo na filha antes que eu seguisse pelo corredor. A menina ficou com a cabeça deitada sobre meu ombro até ser colocada na cama. Beijei seu rostinho e a cobri. Deixei o abajur aceso antes de ter que fechar a porta depressa para poupá-la da gritaria que veio da sala. Encontrei Eve no corredor e pedi que ela ficasse com a Sol no quarto, para caso a criança acordasse. — Você é muito cínica de vir aqui, depois de tudo o que fez, depois de matar o meu sobrinho. Eu vou matar você, sua louca desgraçada! — os berros de Charlotte eram de estremecer qualquer um —. Eu vou te matar! Charlotte tinha bebido, então se alterou mais ainda. Eu cheguei na sala, assustada e preocupada com a situação, mas fui invadida por uma raiva descomunal quando vi Vivian dar um tapa estrondoso no rosto da ex-cunhada. Charlotte grudou no cabelo dela e revidou. Valentim as separou e fez as costas de Vivian colidirem contra a parede. — Não encosta na minha irmã que eu perco a razão com você, caralho! Uma confusão perfeitamente formada. Eric preocupado com a esposa, Valentim segurando Vivian pelo pescoço, Carlie sendo presa pelo Álvaro e eu perdida na cena. — Quer ir embora? Vamos, eu pego um quarto em algum hotel. Vamos, Bela —
David colocou a mão sobre meu ombro. — Estou me contendo há dias pra não ir até o apartamento e cometer uma besteira, Vivian. Por que você não nos deixa em paz? Porra, mulher! — Eu é que não tenho paz desde que aquela puta apareceu na nossa vida — ela deixou de olhar para Valentim e me encarou mesmo de longe —. Faz parte da sua profissão se envolver com homens casados? É uma regra? — Vivian, me escuta! — a voz grave e grossa de Valentim, era usada somente quando necessária e podia ser assustadora —. Essa história já acabou. Você já não tinha mais papel nenhum na minha vida, antes mesmo de eu conhecer Mariana. Isso tudo já tinha acabado antes de eu me apaixonar por ela. Eu e você não existe há um bom tempo e você sabe disso. Que inferno, é tão impossível compreender e aceitar? — Nós sempre tivemos problemas, querido. E sempre conseguimos superar e enfrentar. — Meu Deus, Vivian! Eu tentei de tudo para ajudar você com a doença, mas caralho, você está a cada dia mais louca. Suas mentiras, o que fez com Mariana e com nosso filho não foi o suficiente para se vingar de tudo o que te aflige? — Valentim tirou as mãos do pescoço dela. — O que mais você quer destruir, Vivian? — a minha voz saiu de repente. — Você me destruiu, sua vagabunda. — Eu não te tirei um filho — o choro apertou minha garganta e as lágrimas desceram nas minhas bochechas. — Não sei do que está falando. Não sei do que vocês estão falando. — Pooooorra! Que mulher dissimulada. Vou te educar no tapa, insolente de merda! — Carlie que já tinha se soltado de Álvaro ameaçou avançar nela, mas o namorado voltou a segurá-la. A risada irônica da ex-esposa de Valentim ocupou o ambiente e com certeza arrepiou os nervos de todos presentes. — Me educar? Vocês é que precisam rever o que estão fazendo. O que é isso? Um jantar feliz em família? Isso aqui não é a sua família, Valentim — Vivian negou com a cabeça —, eu sou, era a Ana... — Não. Não é você e sim, era Ana, mas ela morreu. Nossa filha morreu e agora eu preciso e quero seguir em frente. Se há qualquer resquício de consciência, qualquer pedaço que sobrou da mulher que eu conheci ai dentro de você, entenda
isso. Por favor, entenda que eu não a amo mais, que o nosso contexto conturbado e doentio acabou. Eu escolhi ter Mariana em minha vida, é ela quem eu amo. O médico me fitou e eu precisei desviar o olhar para não chorar mais. — Você cavou seu próprio buraco, como eu disse Vivian — falei baixo e passei a mão embaixo do meu nariz para secá-lo. — Você ter perdido essa praga não é minha culpa, mas é consequência de ter tirado o meu marido de mim. Lembra que eu disse que suas atitudes não gerariam boas consequências? Está mais claro agora? — Consequência? Consequências? Você perdeu a noção de tudo, Vivian? Você me atropelou, você cometeu um crime contra a minha vida e a do meu filho — empurrei David e dei passos em direção da mulher —. O que veio fazer aqui? Tentar corrigir suas merdas com o Valentim? Não é preciso nem pensar para saber que ele não a quer, nem o Saulo que é outro louco te quer por perto. Ninguém gosta de pessoa sem coração, de gente sem alma. O que adiantou fingir que estava grávida? Diz pra mim! Fez o Valentim voltar pra você, te amar? Só sendo muito irracional e insana para pensar que me matando você o faria gostar de você. Vi toda a raiva expressa em seus olhos avermelhados. Umedeci minha boca e interrompi assim que ela ia responder: — Eu jurei que te faria sangrar se te visse, que eu te mataria, mas acabei de notar que não sinto a mínima vontade — falei com desprezo —. Sinto pena de você, por isso não quero me igualar e ter uma vida desperdiçada pelo ódio. Às vezes Vivian parecia entender e estar ciente, mas era impossível confiar em sua dupla personalidade. — Valentim — ela suplicou chorosa. — Eu também sinto pena de você, Vivian. — Por favor, não diga isso, nós éramos tão felizes... — Eu não sou ninguém para fazer justiça mas eu sei que ela existe. — Eu ainda sou aquela pessoa que você conheceu, está aqui dentro de mim. Você não conhece essa... Mariana, ninguém aqui te conhece como eu. A gargalhada de Charlotte foi icônica. Valentim deu a palavra final antes de colocá-la para fora. — Sinto muito, mas o seu destino é apodrecer em um hospício.
O silêncio pairou quando a porta bateu. Olhei para David, depois para Charlotte, Eric, Álvaro e Carlie. Charlotte cessou o desconfortável silêncio: — Tem sobremesa? E é claro que nos fez rir. — Merda de mulher, vir falar que não somos a família de Valentim. Pau no cu dela! — Menos, meu bem — Eric a repreendeu. — Se você não tivesse me segurado eu teria deformado aquela carinha cínica. — Você está um pouco bêbada, e não se perdoaria caso não lembrasse detalhadamente — Eric respondeu a esposa. — Ainda bem que você me conhece — ela beijou o marido. — Você está bem? — David acariciou meu rosto e eu assenti. — Foco na sobremesa, que o cheiro do bolinho de chocolate me deu água na boca — foi a vez de Carlie falar. Valentim me ajudou a servir o petit gâteau nos pratinhos e nos espalhamos no sofá da sala. Mais tarde eles foram embora e nos deixaram a sós. A Lua se acomodou na frente da lareira e nós sentamos no tapete perto dela. Senti os dedos de Valentim cruzarem com os meus e com a outra mão ele desenhou carinhosamente os traços do meu rosto, eu deitei em sua mão e fechei meus olhos. Sussurramos no mesmo segundo. — Mariana. — Valentim. Estávamos excitados, com um desejo e uma tensão sexual acumulada. Minha vontade era pungente, tê-lo ao meu lado não era o suficiente. A adrenalina de hora atrás intensificou o nosso desejo e deixou a atmosfera sufocante. Não o queria perto. Nem ao lado. O queria dentro de mim.
41 Mariana D'Ávila
Tudo a nossa volta deixou de existir, eu tinha Valentim agachado diante de mim, o único homem que amei e tinha a certeza de que amaria para o resto da vida. Suas íris tão claras e esplêndidas me encaravam retribuindo toda a devoção, todo o amor. Um sorriso singelo passeava pelos lábios finos e chegavam aos seus olhos. Uma de suas mãos segurava minha panturrilha enquanto a outra descalçava a minha bota, apoiando meu pé sobre seu joelho. Ele fez o mesmo com o outro calçado, depois tirou minhas meias e ajoelhou-se bem próximo do meu corpo. Nossos beijos minutos atrás foram o suficiente para seguirmos a diante, sem receios e cheios de voracidade um pelo o outro. O homem pegou no botão do meu jeans, abriu, desceu o zíper lentamente e depositou um beijo casto no meu ossinho do meu quadril. Ajudei-o saindo da calça e continuei parada esperando o próximo passo. — Você é tão cheirosa, bailarina — Valentim fechou os olhos quando encostou o nariz e os lábios na minha calcinha de renda branca. Um gemido foi a única resposta que consegui dar. Com a minha mão livre eu agarrei seus cabelos e encolhi o abdômen ao senti-lo passar a língua que mesmo por cima do tecido fino, me excitou deliciosamente. O médico ficou em pé, bem mais alto do que eu, e abaixou o rosto para encontrar minha boca. Ele mordiscou meu lábio inferior e olhou dentro dos meus olhos. — Senti muito a sua falta, meu amor — sussurrou contra os meus lábios. — Eu também — confessei baixo. Sua língua começou uma dança libidinosa e vagarosa com a minha. Ele lambeu minha boca e eu fiz o mesmo. Eu só conseguia utilizar uma mão, e por isso esforcei-me para sentir o máximo do seu corpo, cada parte que eu alcançava, os cabelos, a nuca, as costas, o rosto, o braço e a barriga. Valentim me enredou pressionando meu corpo no dele, fazendo meus seios encostarem em seu peito largo e musculoso sem abandonar minha boca por um segundo. Seus dedos emaranharam com força o meu cabelo na nuca e fez um
rabo, e assim ele pode guiar o ritmo do beijo, me provocar e me atiçar. — Não faz assim — reclamei quando o danado ameaçou de beijar e me deixou na vontade. — Você é tão gostosa, sabia? — seu olhar quente pousou sobre meus lábios, e foi quando eu mordi que ele gemeu contrariado. — Sente falta da minha boca que faz coisas fantásticas? — brinquei. — Olha como ele fica só de imaginar... — ele pegou minha mão e levou até o seu pau grosso, duro como uma rocha. — E olha o que acontece — eu trouxe sua mão até o centro das minhas pernas, mostrando-lhe a umidade na minha calcinha. Tirei minha mão da dele quando seus movimentos tomaram posse da minha sanidade. Seus dedos circulavam o meu clitóris e passeavam por toda a extensão da minha boceta, enquanto sua boca roçava no meu pescoço, esfregando a barba baixa e macia. Precisei me equilibrar em seu ombro para manter-me com os pés no chão. Minha respiração arfou no ouvido dele, eu precisei morder sua orelha para conter um gemido escandaloso, ao sentir minha calcinha ser colocada para um lado e dois dedos entrarem em mim. — Valentim — choraminguei sentindo o tesão aumentar a cada penetrada. Até tentei segurar o pulso dele para controlar as investidas, mas escolhi pegar no seu pau grande e gostoso. Valentim me ajudou para desabotoar a calça, então ousei de invadir a boxer e segurar com força o membro de completo prazer. Comecei batendo lentamente e espalhando sua lubrificação. — Eu preciso mais do que tudo sentir o gosto da sua boceta — estremeci completamente ao ouvir sua voz bem pertinho e arrepiei inteira. Obedeci com passos para trás e sentei-me na cama, levantei o quadril para ajudálo a tirar a minha calcinha. Cuidadosamente ele também me despiu da blusa fina de mangas. Era nítida a perdição do homem, eu tive que sorrir ao assisti-lo na dúvida entre olhar para os meus olhos ou para os meus seios já livres do sutiã. — Fico louco só de te olhar. — Tire — apontei para o suéter preto que moldava perfeitamente seus músculos. Ele fez o que eu mandei e me surpreendeu ao me levar para o centro da cama.
Seu corpo veio sobre o meu, grande, virtuoso e gostoso. — Você é quente — deslizei meus dedos nas suas costas, braço e subi de volta para a nuca. — E você está pingando — ele disse e beijou o meu queixo. — Deve ser saudade... — Saudade do que, amor? — fingiu de desentendido. — De cada parte do seu corpo, mas principalmente do seu pau — falei descaradamente e ele ergueu a sobrancelha espantado. — Isso são modos? — a carinha de bravo o deixou ainda mais lindo. — Essa boca fantástica também pode ser bem suja. Não pensei que o que eu tinha acabado de falar podia acabar com o nosso momento, mas ainda bem que não estragou. — Estou doido pra conhecer essa boquinha suja... — seus olhos sorriram mas também queimavam sobre mim —. Mas hoje quero fazer amor com você. — Sou toda sua, Valentim — disse quase inaudível. — Eu sei que é, Mariana. — Então por favor... — sorri e ele gargalhou. — Não ainda. Sem pressa. O meu núcleo pulsava involuntariamente, pedindo para que Valentim preenchesse cada centímetro. — Ah não... — resmunguei. — Shhh... — ele desencostou os lábios do meu pescoço —. Se concentre. Apoiei-me como pude para apreciá-lo. A visão era maravilhosa, ver a boca daquele homem tão fodidamente delicioso desvendando e se deleitando com cada parte do meu corpo me enlouquecia. Minhas costas caíram no colchão quando Valentim deslizou a língua entre os lábios da minha boceta, eu precisei puxar seu cabelo para descontar. O toque no meu clitóris foi o suficiente para me fazer entrar em ebulição. Meu corpo ficou inquieto, tremeu na boca dele e isso o estimulou a continuar, com mais intensidade, com mais vontade e fome. — Isso... — ele sussurrou com a maior cara de safado para mim quando eu abri mais as pernas, entregando-me de bandeja.
— Nossa... — falei entre os dentes, com a respiração ofegante — Continua... isso... Eu pegava nos cabelos macios dele, soltava, voltava a pegar. Mordia o lençol ao lado, fechava os olhos, o admirava, tudo em completo delírio. — Shhh... se concentra só na sua boceta, só nela. Queria matá-lo, porque eu ia morrer de tesão. — Caralh... — não consegui terminar a palavra porque precisei mordiscar a boca e revirar os olhos. Suas chupadas eram delicadas e ao mesmo tempo fortes. Seus lábios sugavam meu clitóris com a ajuda da língua e eu fiquei ainda mais alucinada ao sentir seus dedos entrarem em mim. — Quero que aperte o meu pau assim — ele sorriu e voltou a chupar. Valentim se deliciava, ora com os olhos fechados, ora com os olhos nos meus. Com a outra mão ele pegou meus seios e me torturou com beliscadas e massagens nos meus mamilos. Eu queria arrancá-lo do meio das minhas pernas porque estava prestes a gozar. Era um desejo louco e contraditório, porque ao mesmo tempo eu forçava sua cabeça e me arreganhava para ele. — Eu vou gozar... Que delícia! — arqueei as costas e depois o quadril da cama. O sem vergonha tirou os dedos e lambeu minha boceta com gosto, repetidas vezes até o clitóris. Eu achei que ia chegar no paraíso quando ele decidiu parar, e eu o xinguei mentalmente de todos os nomes. — Não fique frustrada, amor — o homem levantou e se encaixou entre as minhas pernas. Eu senti a cabeça larga do seu pau abrir a minha entrada molhada. — Esse seu ladinho sádico judia muito de mim. — É porque eu fico louco de ver esse biquinho e essa carinha implorando pra eu te comer — senti a mordiscada na minha boca e foi minha vez de retribuir a mordida com força, quando ele entrou até o final. Valentim posicionou o meu braço de uma forma que não me incomodasse, naturalmente o seu gesto me fez amá-lo ainda mais. As veias dos seus braços saltaram quando ele apoiou as mãos fechadas no
colchão. Suas estocadas eram lentas, fortes e inebriantes. Meus seios quicavam toda vez que seu corpo chocava contra o meu. Cruzei minhas pernas nas costas dele e prendi um pé no outro para poder pressionar os nossos quadris. Nós nos beijamos devagar e cheios de devassidão. Os gemidos se misturavam e nossas bocas se abriam dando espaço para as respirações mais fortes. Valentim não parava. — Está ouvindo? — lambeu a minha orelha. Assenti com a cabeça. O barulho da minha boceta mostrava o quão encharcada ele me deixava. — Feche os olhos — disse ainda no meu ouvido e eu acatei —, meu pau está entrando e preenchendo sua boceta toda... ela está engolindo ele inteiro. A imagem na minha cabeça, do que realmente estava acontecendo no momento, foi de completa lascívia e me excitou ao ponto de fazer minha vagina expulsá-lo de dentro de mim para poder esguichar. Seus dedos massagearam a área inchada e prolongaram o meu "squirt". Com a outra mão ele tampou a minha boca porque o grito que eu dei foi descontrolado. Quando o jato acabou Valentim voltou a entrar e só parou ao gozar. Nos recuperamos envolvidos pelo silêncio. Sua respiração fazia minha cabeça descer e subir no seu peito, os dedos acariciavam-me, seguindo todo o comprimento dos fios dos meus cabelos. No passado eu chorei por ter me submetido a estranhos, por me sentir usada e descartável, mas naquele momento as lágrimas arderam nos meus olhos porque eu sentia-me verdadeiramente amada. Não quis que ele percebesse e por isso levantei e fui para o banheiro. Eu não sabia se era bom o que tínhamos feito e o quanto podia ser doloroso. Era difícil, impossível esquecer a história triste que carregávamos até então, não do nosso passado separados, mas o enredo desde quando nos conhecemos. Perder um filho foi o mais triste das tragédias. Quantos machucados mais Valentim teria que cicatrizar? O que mais eu conseguiria suportar? Eu tenho um pressentimento que nós vamos ganhar Nossos corpos tornam tudo perfeito E seus olhos podem me fazer nadar
Então, de novo tudo parece novo Eu mal posso segurar minha língua Para dizer o mínimo, eu estou na sua E seus olhos Estão dizendo mais do que podemos falar e estão mais quentes que o nosso esporte no quarto E suas coxas são beijos de fora, garota isso é tudo que eu preciso — I'm Into You, Chet Faker Valentim Del Torre Olhei para o centro ensopado do colchão e em seguida para a porta do banheiro, Mariana havia fechado há pouco. Levantei-me para trocar a roupa de cama e depois disso me sentei para esperá-la sair. Não era de costume a mulher ficar silenciosa após fazermos amor, notavelmente alguma questão a perturbou. Me atormentava só de pensar que ela poderia ter se arrependido, ou que ela se afastaria. O certo talvez seria ceder mais espaço, ir para o outro quarto ou deixá-la sozinha, mas eu não podia. Temia perdê-la mais uma vez. — Não fique aí dentro sozinha, Mariana. Ouvi-a puxar o ar pelas narinas e foi o suficiente para saber que estava chorando. Bati na porta mais uma vez e respirei fundo. — Venha aqui fora, quero te abraçar. — Você pode me levar para o apartamento, por favor? Neguei com a cabeça mesmo que ela não pudesse ver. — Por favor, saia Mariana. — Eu não quero conversar agora — disse entre o choro. — Não precisa. — Não quero que me veja chorando. Eu só choro... — Eu fecho os olhos.
— Não quero falar besteira pra te magoar, Valentim. — Eu posso fingir que não escuto. — Mas... — Saia do banheiro e venha deitar. A porta se abriu e ela estava de cabeça baixa, soluçando e com o rosto todo molhado. — Está tudo bem — abracei e a guiei até a cama —. Nós vamos ficar bem. — Não sei como você tem certeza disso... — Nos encontramos por algum propósito. — E se esse propósito for sofrer? — era difícil não titubear diante dos olhos azuis mais expressivos que eu conheci. — Nós mudamos o propósito — assegurei. — E se você não me escolher mais uma vez? — Você sempre foi a minha escolha, Mariana — enxuguei suas bochechas depois de sentarmos. — Não, você me deixou todas às vezes. Eu não quero as suas palavras e as suas promessas, Valentim. Não quero que seja esse homem que vai e volta quando pode, quando quer... — Não serei esse homem, Mariana — falei impaciente. Ela era a mulher da minha vida, e eu me sentia cada segundo mais idiota por fazê-la sofrer tanto. — Você foi esse homem até hoje — dura na queda desde o início. — Agora eu quero ser o seu marido. No mesmo instante ela retornou a me encarar, perdida e surpresa.
42 Mariana D'Ávila
Comecei a gargalhar disparadamente. Deitei a cabeça para trás de tanto rir. Valentim continuou sério. — Meu marido? E eu seria tipo... sua esposa? — Que eu saiba é assim que funciona — seu semblante fechado me fez voltar a rir. O som era tão alto que se misturava com os roncos do meu nariz e tornava a situação mais cômica. — Eu quero me casar com você, Mariana. Qual é a graça? — Ficou louco? — parei de rir e balancei a cabeça, ainda com um sorriso incrédulo na boca —. Você não me assumiria assim... No papel. — É o que eu pretendo. — Valentim. — Você quer casar comigo? — era realmente sério. — Quando não estivermos suados, estivermos vestidos e em sã consciência, você pode repensar no que está propondo. — Estou em completa consciência. Bom — ele levantou e deixou o travesseiro no lugar — , isso pelo menos não foi um não. Ganhei um beijo na testa e outro nos lábios. — Eu quero que você seja a minha mulher, quero que se case comigo. Fiquei muda. — Dê a resposta quando você estiver pronta. — Onde você vai? — questionei ao vê-lo vestir a cueca e uma calça de moletom. Valentim não me respondeu e simplesmente saiu do quarto. Fiquei olhando para as paredes, completamente em transe. Fiz caretas mesmo sozinha, franzi as sobrancelhas, pensei e finalmente dormi.
O cheirinho de mocaccino invadiu o quarto e as minhas narinas logo cedo. Sentei na cama e segui para o banheiro ainda nua. Escovei meus dentes, olhei para o espelho e tentei mais uma vez digerir o pedido da noite anterior. Valentim não estava na cama, e eu coloquei seu suéter pois era o mais rápido de vestir. — Acordou cedo — comentei, sondando. Valendo ou não, o médico havia bebido umas taças de vinho no jantar, mas não aparentou estar bêbado em momento algum. De qualquer forma eu continuava achando que ele estava louco de me pedir em casamento. Eu sabia os porquês de nunca ter pensado em ser vista como esposa. — Uhum. — Lua comeu? — abaixei-me para fazer carinho nos pelos macios da lobinha. — Uhum. — O que foi? — sentei-me na banqueta e peguei minha xícara. — Está com fome? — Estou — respondi observando-o de costas. — Comprei cupcakes e os rolls de canela — ele tirou das sacolas do Starbucks. — Você saiu e eu nem vi. — Você dorme igual pedra. Valentim estava seco e nem quis me olhar enquanto lavava as taças sujas de vinho na pia. — Coma o cupcake, é de chocolate. Peguei a caixinha com o bolinho e respirei fundo ao abrir e ler uma plaquinha escrita "Sim ou não?" — Isso é o seu "sem pressão", Valentim? Ele deu os ombros. — Não desisto, esqueceu? Tirei a plaquinha mas continuei olhando para a mesma. Decidi descer da banqueta e parar ao lado dele, esperei que o mesmo me olhasse e segurei suas mãos quando o fez.
— Ainda não estou inteira, Valentim — confessei —. Estou despedaçada por ter perdido o nosso filho, estou perdida por não ter mais a minha mãe, por ver a injustiça tão próxima a mim... Você não tem medo? Vê crianças morrerem o tempo todo... Alba por exemplo, foi embora e isso é tão injusto. Eu estou tomada por uma revolta tão grande, e para ser bem sincera, ando achando Deus muito cruel também. Ele não deixou de me olhar e apertou minhas mãos. — Nós nos amamos — dei uma pausa para retomar —, mas estamos despedaçados. Pular todas as etapas não nos fará bem. Precisamos recomeçar e ver se superamos aos poucos. — Eu juro que te entendo, bailarina. Mas é que... eu prefiro enfrentar tudo isso ao seu lado. — E eu ficarei do seu lado... — Valentim parecia realmente inseguro —. Não falho com as minhas promessas. Estarei bem aqui. Eu só não quero e não consigo te oferecer tudo isso agora. Não estou bem... não estamos bem. — Não estamos — ele repetiu. — Então vamos com calma. — Volto a trabalhar amanhã. Não posso mais adiar os plantões, as consultas e cirurgias marcadas. E não quero que você volte para o seu apartamento, lá não é seguro e... — Tenho uma solução para isso — sorri. — Tem? — Se você me der uma caroninha... — Me explique. — Me leve no apartamento, eu pego todas as minhas coisas e me mudo definitivamente para cá. — Gostei dessa ideia — foi o primeiro sorriso que ele abriu naquela manhã —. Vou trocar as fechaduras da casa e reforçar a segurança com câmeras e alarme. — Não é necessário... — Não confio no meu irmão. — Eu temeria mais por Vivian. Uma mulher desprezada pode ser muito perigosa. Valentim pensou e pensou. Terminou de enxaguar duas taças de cristal e me
olhou de novo. — Você pode ir para a casa de Charlotte, até que haja a sentença dos dois. — De jeito nenhum. — Mariana, meus horários são malucos no hospital. É uma correria... minha irmã adoraria te receber, e todos os dias que eu estiver aqui você fica comigo. — Valentim, eu vou acabar com a privacidade dela com o seu cunhado. Indiscutível. Eu compreendia totalmente a situação, e coitado dele se fosse trabalhar preocupado. — Carlie não trabalha mais. Álvaro tem os mesmos horários loucos que os seus. Posso ir para o apartamento deles. Diz ela que lá é sofisticado, então consequentemente deve ser mais seguro. Valentim morava em um bairro de ricos onde só tinham mansões, mas querendo ou não o lugar era aberto, todo arborizado, a maioria das casas não possuía portões, somente aquelas portas enormes depois do jardim. — Vou fazer o possível para colocar Álvaro na mesma escala horária que a minha. — Certo — concordei. Quem visse de longe acharia que éramos um casal como outro qualquer, dividindo o mesmo teto, com uma rotina típica de casados. Almoçamos juntos, passeamos com a nossa cadelinha juntos, assistimos filme e dormimos juntos no sofá no final da tarde. O fato é que somente eu e ele sabíamos os problemas e preocupações que atormentavam nossa cabeça. Por fora estava tudo bem, exceto pelo gesso no meu braço estávamos inteiros. Mas entre mim e ele existia o conhecimento, o entendimento da dor um do outro. Valentim ficava quieto às vezes, um silêncio esmagador. Assim como eu me fechava em algumas horas do dia. Não era nada fácil digerir a perda de um bebê, do meu primeiro filho. Meus amigos diziam que eu e ele teríamos muito tempo pela frente e eu torcia para que sim, mas era um equívoco acreditar que uma gestação futura substituiria a que eu perdi. Um bebê nunca substituiria o outro. A mãe que perdeu uma criança mesmo que ainda no ventre, foi mãe! E mesmo que tenha sido breve dói demais.
Sentia um pedaço faltando em mim, e Valentim também. Era o segundo filho que o homem havia perdido. Eu sei que partilhávamos da sensação de estarmos predestinados a perder tudo aquilo que amávamos e isso nos amedrontava, porque nos amávamos. — Está tão pensativa. Fechei os olhos e acomodei minha cabeça no travesseiro depois da observação dele. — Não é nada demais. — Eu sei — não era necessário falar, ele sabia. — Eu quero muito que Vivian seja punida — confessei ainda de olhos fechados. Senti a mão de Valentim tocar meu rosto e colocar meu cabelo para trás. — Ela será — sua boca encostou carinhosamente na minha testa —, faremos de tudo para que isso aconteça. — Valentim — engoli a saliva, bastante receosa —, eu não vou te perdoar se você escolher ajudá-la nessa. — Mariana. — Nunca falei tão sério — abri meus olhos e foquei em suas íris —, ela matou o meu filho. — O nosso filho. Não tem cabimento o que você está falando... — Tem. Você tem dó dela. — Mariana, o bebê que você perdeu era meu também. Ela negligenciou minha primeira filha, foi fria, uma pessoa terrível. As chances de Vivian se esgotaram. — Você está sempre querendo salvá-la Valentim, e ela te tira a vida a cada tentativa. — Não tenha dúvidas que estarei do seu lado. Eu quero justiça pelo meu filho... — voltei a fechar os olhos e então ele questionou: — Está me escutando? Confirmei com a cabeça. Eu sempre acreditava nele, mas o problema é que todas às vezes ele me feriu. — Também confiei em você e me machuquei. Surpresa, eu abri os olhos e continuei em silêncio. — Ou você deixa o passado para trás ou não teremos um futuro.
— Esse passado é muito recente e está presente. Ele não me respondeu e apagou o abajur. Peguei em seu braço por baixo das cobertas e deslizei os dedos pela sua pele, depois entrelacei nossos dedos. — Você não faz ideia do quanto eu desejo que isso dê certo. — Nós estamos machucados, mas dizem que o amor cura Mariana. — Então me dê amor — falei baixinho e trouxe a mão dele para os meus lábios. Valentim acendeu a luz amarela do abajur e eu pude enxergar sua carinha de pensativo. — Então casa comigo. Novamente eu dei risada. — Isso é chantagem. — Isso é amor, Mariana. — E chantagem — balancei minha cabeça e mordi meu lábio —. Quando tudo isso passar, eu caso. — Você promete? — Prometo. — De verdade? — De verdade, homem — o empurrei e ele me agarrou. Fiquei por cima do seu colo e em segundos estava embaixo dele. Ele começou a beijar meu pescoço e cheirar minha pele. — Está me fazendo cócegas, Valentim — tentei empurrá-lo mais uma vez mas estava presa entre seus braços. — Não é essa a intenção — ele me olhou. — Qual é então? — Me diz você... Com a pontinha do nariz ele subiu pela minha bochecha e beijou minha orelha lentamente, parei de rir no mesmo segundo, estremeci e encolhi o rosto na direção do meu ombro. Sua mão fez a alça da minha blusa descer até que expusesse meus seios. Seus lábios quentes foram descendo, macios e com beijos entorpecentes.
Eu abri a boca e minha respiração ofegante escapou. Desencostei as costas do colchão oferecendo meus peitos quando ele encostou a boca em um deles. Seus olhos encontraram os meus e sorriram cheios de intenções. Peguei em sua nuca e puxei seu rosto para o meu, devorei seus lábios avidamente e fui retribuída com o mesmo anseio. Em pouco tempo, o quarto virou um cenário libidinoso e febril. Somente as paredes puderam presenciar o nosso desejo transformado em completo erotismo. Meus gritos ecoaram enlouquecendo Valentim. Os movimentos fortes, intensos e indomáveis que ele fazia para entrar até o limite em mim, foram suficientes para nos levar a níveis incontroláveis de prazer. O homem que eu amava tinha o dom de me deixar encharcada e me fazer esguichar. Ele nitidamente se deliciava ao assistir meu ápice e minhas pernas tremerem diante da minha completa entrega. Sobretudo nosso sexo era quente, caloroso no sentido de afeto. Valentim era selvagem, mas amoroso. Nós fazíamos amor como se nossas almas se conhecessem antes mesmo dos nossos corpos. No outro dia nós íamos para o hospital, Valentim marcou uma consulta com o ortopedista que fez a cirurgia no meu braço. O cheirinho de mocaccino se espalhou pela casa toda. Lua puxava as minhas meias enquanto eu tentava encontrar minhas botas debaixo da cama. A bichinha rosnava e fazia cabo de guerra sozinha. Maluca! — Vou chamar seu pai pra te dar um sermão, sua doida. — Sou péssimo com sermões — Valentim entrou no quarto e me deu um susto — Essa posição... — Calado — levantei quando alcancei minha segunda bota —. Solta, louca! — peguei a Husky e apertei seu focinho para provocá-la mais. — Você está criando um monstro, bailarina. — Ela não deixa eu por roupa direito. — Lógico, você provoca — ele pegou a lobinha do meu colo e beijou seus pelos —. Seu café está pronto — avisou. — Esse negócio de preparar meu mocaccino todos os dias é um método de conquista? — Funciona?
Dei risada como resposta e os segui até a cozinha. — Um dos benefícios de se casar comigo. O médico colocou a lobinha no chão. — Valentim! — dei um tapa no ombro dele, e antes que eu me afastasse ele me segurou e me pôs de frente ao seu corpo. — Acordei mal humorado. — Não parece — estreitei meu olhar e o analisei. — Mas estou — ele fez um biquinho que foi inevitável não beijar. — O que foi? Me conta. — Tantos dias dormindo com você — ele passou as mãos nos meus cabelos e retribuiu meu beijo — e hoje tenho plantão. — Ficarei bem com a Carlie, e Eve está de folga. Será uma noite das calcinhas. — Você nem usa. — An? — Calcinha. — Idiota! — gargalhei e o soltei —. Uso sim. — Raramente. Sutiã nunca. — E você gosta. — Gosto — ele assentiu com a cabeça e me deu minha xícara. Nossa conversa matinal foi completamente descontraída. Ter passado horas fazendo amor na noite anterior havia nos relaxado muito. Valentim me levou até o consultório do ortopedista dentro do hospital e ficou metade da consulta comigo, até ser chamado para uma emergência. — Passo te dar um beijo no almoço — rapidamente senti seus lábios na minha testa e acenei. O especialista era legal, me inteirou sobre a sequência de cuidados do meu braço, os pontos, cicatrização e por fim a fisioterapia. Ele assegurou que faríamos da forma mais rápida e segura, porque eu estava ansiosíssima para começar a dar aula no colégio que David tinha arrumado. Foi a primeira vez que pisei na área de oncologia e não vi Alba. Foi horrível o que eu senti, mas tratei de esconder atrás do meu melhor sorriso.
Meu ex-patrão Alex, estava com os meus antigos colegas de trabalho, animando as crianças com uma série de atividades recreativas. Fiquei um pouco com eles até ver Carlie chegar com Álvaro. Almoçamos todos juntos, até minha irmã apareceu. De noite seguimos o combinado. Charlotte apareceu para tomar vinho conosco no apartamento de Álvaro, e ficamos até altas horas falando bobagens. Era indescritivelmente bom tê-las por perto. Nos embriagamos, incluindo Eveline que nunca bebia. — Álvaro disse que por ele tudo bem — Carlie disse. — Mas ele avisou o Valentim? — perguntei. — Ainda não. Ele disse que Valentim tinha entrado em cirurgia, mas vai avisar. — Vai ficar putasso — Charlotte comentou e nos fez rir. — Não acho uma boa ideia — falei. — Por favor, eu nunca saio, nunca estou de folga — minha irmã insistiu. — Meninas, estou com o braço quebrado. Horrível sair assim. — Linda desse jeito você acha que vão reparar no braço? Por favor né, Mari... Vamos, quero aproveitar que meu marido me deu passe livre hoje — Charlotte também tentou me convencer. — Nós cuidamos de você — Carlie virou a garrafa direto no gargalo. — Mas David... — Meu irmão é um ciumento. Não há nada de errado, o irlandês é nosso amigo. — Meninas — hesitei mais uma vez. — Por favor, por favor — Eve piscou os cílios longos e nem precisou forjar uma carinha angelical, já que era a sua por natureza. Não havíamos combinado de sair e por isso Carlie teve que emprestar roupas para todas. Eu coloquei uma calça de cintura alta preta, um body preto decotado até o umbigo e uma jaqueta de couro preta. Usei minhas botas altas e fiz uma maquiagem leve. Era risada pra todo lado. Estávamos realmente altas de álcool, era algo inusitado. David passou nos buscar com um carro notoriamente caríssimo e nos levou para um pub.
Nós dançamos e eu me diverti muito assistindo Eveline tão solta e feliz. David cuidou de Eve como se ela fosse sua filha. Charlotte subiu em cima do balcão para dançar, nada sensual, somente para brincar e fez as poucas pessoas presentes no local rirem. — Fodeu! — três horas da manhã o meu celular começou a tocar dentro da bolsa —. Vamos no banheiro atender — pedi —. Fodeu, fodeu! — corri com Carlie para o banheiro. Atendi Valentim na terceira chamada. — Oi, amor — falei um pouco embargada. Amor? — Estou indo te buscar. — Tá bravo — sussurrei para a minha amiga e ela riu — Não precisa, o seu plantão acaba as sete. Eu vou para a casa com as meninas e amanhã cedo para a sua. — Não saia dessa merda até que eu chegue — ouvi a ligação ser finalizada. Entortei a boca para Carlie e dei os ombros. — Tô ferrada. — É ciúme bobo. — Não é — neguei com a cabeça. O pouquinho de sobriedade que me restava tinha consciência que eu estava errada por sair, primeiro por tudo o que estava acontecendo, segundo porque não esperei que Valentim fosse comunicado. Mas como cabeça de gente bêbada não funciona direito, eu voltei para dentro do salão e peguei mais um drink com a Carlie. Sentei do lado de David, já que Charlotte e Eve estavam dançando loucamente. — Sua irmã é uma graça — David disse enquanto admirava Eveline. — É linda — concordei. — Não acredito que seja virgem — ele negou com a cabeça e eu fiquei surpresa. — Ela te contou? — Bêbada ela fala demais — ele comprimiu os lábios e eu coloquei a mão na testa. — Vai se arrepender, tadinha. E você tem interesse? — Não estou disposto a tirar o lacre de nenhuma mulher, não é justo destruir
alguém como Eveline. E também amo a minha esposa — o irlandês sorriu me fazendo rir. O abracei e beijei seu rosto. — Nós amamos ter você como amigo. Já pode trazer a sua mulher para o grupo. — Quando ela melhorar quem sabe... Meu amigo também me abraçou e antes que eu tentasse entender o que a esposa dele tinha que ele tanto escondia, nós fomos interrompidos e afastados por um braço seguido de um murro no irlandês. David quase caiu da banqueta de frente do balcão mas eu o segurei. Olhei para trás e era Valentim. Ele segurou a camisa do irlandês e ia dar outro golpe, mas eu gritei para contêlo. — Solta ele! — empurrei Valentim. — Que porra é essa, Mariana? — o médico estava claramente furioso e cuspindo fogo em minha direção. — Ficou maluco? — David colocou a mão sobre o ferimento. — O que foi, gente? — Eveline se segurou no balcão para não cair. — Por que bateu no David? Eles são só amigos, Tim — Charlotte tentou apaziguar, totalmente assustada. — Vamos embora, Valentim — eu disse firme. — Eu quero você longe dela — Valentim apontou o dedo para o irlandês —. Me ouviu? Bem longe! David deu risada e me fez dar outro grito quando revidou um soco no médico. — Caralho, vocês piraram? — Carlie os empurrou, eu não conseguia mais porque meu braço começou a doer. — Fica na sua, cara! Estou aguentando essa sua criancice faz tempo — David manteve a tranquilidade na voz —. Mariana te ama, para de se comportar feito um moleque e valoriza direito essa porra! Deixei o final da discussão para os seguranças resolverem e simplesmente me retirei do local. Peguei um cigarro dentro da bolsa e sentei no murinho próximo do pub para fumar. Fiquei sã no instante que a mão de Valentim foi na cara do David.
Estava decepcionada, mas também entendia o lado dos dois. Óbvio que Valentim veria maldade em qualquer proximidade minha com o irlandês, o abraço o deixou irado, somado ao fato de não ter sido avisado sobre a minha saída repentina. Já David era um bom amigo que me queria bem, e por ter presenciado tantas desavenças entre mim e Valentim estava cansado de ficar calado.
43 Valentim Del Torre
Perder a cabeça se tornava muito fácil quando Mariana fazia parte da situação. Juro por Deus que eu confiava nela, mas não conseguia nem com todo o esforço do mundo, confiar em uma pessoa que pagou para tê-la sem roupa. Isso não entrava na minha cabeça. David alimentou este sistema. Foi a forma que Mariana encontrou de salvar a mãe e eu tenho ciência disso, mas continuaria discordando pro resto da vida. Nenhuma mulher deveria se despir por dinheiro. Calma, antes que pareça preconceito eu esclareço: Ela precisou disso, sim. Mas a raiz dessa história era suja, a prostituição era algo que eu jamais aceitaria como condição de vida para um ser humano, justamente por ser algo desumano. O problema não era Mariana, ela não era culpada. Mas aquele irlandês compactuava com isso, com mulheres que precisavam se submeter a algo tão humilhante e egoísta. O desgraçado por um momento, no último jantar que fizemos em minha casa, ganhou minha confiança. Era nítido que ele gostava de Mariana e queria o seu bem, mas eu ainda temia que o interesse pudesse ser carnal. Não o conhecia o suficiente para assegurar a integridade física da minha bailarina a ele. Não ter sido avisado com antecedência sobre a saída inesperada delas também me deixou furioso, quando cheguei Mariana e David estavam abraçados e o meu sangue ferveu. Sequer pensei, agi por impulso e assustei todos os clientes do bar. Claro que o irlandês não deixou barato e revidou. Senti minha gengiva sangrar e quando fui terminar de descontar minha ira um segurança me impediu. — Se não pararem eu vou bater em vocês! — minha irmã gritou brava. — Cadê a Mari? — Eveline mal parava em pé, era a primeira vez que eu via a ruiva embriagada. Nós olhamos para os lados procurando-a e percebemos que Carlie também tinha saído. Me soltei do segurança após garanti-lo que havia me acalmado, e ajudei Eveline a caminhar para fora. — Acabaram, crianças? — Carlie perguntou com deboche.
— Eu não sei você, mas minha mão está doendo. Preciso de um tempo caso queira continuar — o desgraçado zombou, mesmo com o nariz e a boca sangrando. — Vamos embora — ignorei e fui até Mariana. Tirei o cigarro de entre os seus dedos e apaguei no cinzeiro —. Eu levo vocês também — disse para as outras três. — Não, vocês têm muito o que conversar — Charlotte se intrometeu mais uma vez. — Esse imbecil bebeu, não vou deixar que leve vocês. — Estou ótimo, obrigado — o irlandês me cortou —. Vamos, eu deixo vocês. — Tentem se entender, pelo amor de Deus — Carlie pediu. — Se você brigar com ela, eu te deserdo como padrinho da minha filha. Está ouvindo? — Charlotte me ameaçou —. Passo o cargo para Mariana. Eles tinham bebido muito, David era o mais são. — Venha — vi Mariana levantar e apoiar a irmã com o braço —. Tente lembrar de tomar bastante água quando chegar, vai amenizar a sua ressaca — e a orientou quando passou o cinto do carro por ela —. Cuidem dela, por favor. — Sim, capitã — Carlie assentiu com a cabeça quando bateu a porta traseira do carro. — Preciso ligar para o Eric para confirmar que você chegou? — olhei para Charlotte, que logo revirou os olhos. Mariana só acenou para se despedir do irlandês, mantendo uma certa distância. Nós caminhamos em silêncio até o meu carro. Ela entrou, fechou a porta e encostou o rosto na janela após colocar o cinto. — Deixei uma cirurgia complicada na responsabilidade de um residente — eu também não cederia facilmente, não estava completamente errado —. Fiquei treze horas ao todo em cirurgia hoje, em pé. Estou cansado, exausto para falar a verdade. Perdi um paciente e estou sem comer. Ela continuou sem me olhar, encostada na porta. — A noite o hospital não para, parece uma guerra com corpos chegando, um pior que o outro. Estou realmente esgotado, isso que foi o primeiro plantão após os dias que fiquei fora. Mariana me olhou, me analisou e deitou a cabeça no encosto do banco.
— Estou bêbada, e se eu falar você vai acabar ouvindo merda. — Deveria ter me avisado. — Eu tentei. — Então não saísse. Conversamos sobre manter a sua segurança, e na primeira noite você sai. — Nunca fui um cãozinho medroso, Valentim. — Então eu terei medo por você, porque os seus problemas foram causados por mim. Terei medo por você e terá que me ouvir, por favor. — Acha o que? Que a sua esposa viria atrás de mim pra me atropelar de novo? Que problema teria? Nem tenho um bebê na barriga mais. Ela estava irritante e disposta a machucar. Mas eu sabia que era para tentar estancar a própria ferida. — Ex-esposa. E não importa se o nosso filho... não resistiu — tomei cuidado com as palavras —, você está viva e pretendo mantê-la assim. Mariana fechou os olhos e virou o rosto para a janela. — Eu bati na sua mulher, aliás, ex-mulher — corrigiu com petulância — por um ideal. Também porque ela colocou minha mãe no meio da discussão. Não foi por você. Então não soque ninguém por minha causa, não preciso que faça isso por mim, sei me defender perfeitamente — falou baixo —. David não fez nada contra nós. — Você pediu que eu cuidasse de você. — Não que fosse um cão de guarda. — Que mulher teimosa — cochichei e apertei as mãos no volante. — Sou mesmo — ela escutou —. Não sou uma criança — sua voz de sono entregou que logo ela dormiria. Mas às vezes Mariana precisava ser tratada como uma. Não julgando por imaturidade, pelo contrário, a bailarina era muito mais madura do que eu. Mas ela precisava ser tratada como uma criança justamente por ter tido a infância corrompida. Não fazia parte da sua vida ter colo, achego e afeto, e este era o motivo de tanta relutância. — Já disse que não precisa ser forte o tempo inteiro — comentei, mas ela não deve ter ouvido porque logo seu nariz roncou. Dirigi ouvindo-a roncar até a nossa casa. Ela acordou quando estacionei, e então
desceu. Bateu a porta com toda força na parede da garagem, e começou a pedir desculpas sem parar. — Desculpa, eu não vi que estava tão perto. Será que arranhou? Desculpa. — Está tudo bem. Entre e vá direto para o chuveiro. — Desculpa, Valentim — ela passou a mão na porta. — Para o banho, Mariana! Tinha até amassado a lataria e tirado tinta da parede pela força que ela usou ao abrir, mas eu não disse nada porque não importava, até sorri ao ver o estrago. O milagre é que ela me obedeceu. Entrei no quarto e ouvi o chuveiro ligado. — Precisa de ajuda? — Ainda estou brava com você. — Somos dois. — Ótimo. Vou dormir no quarto de hóspedes — ela simplesmente passou nua pelo quarto e o chuveiro continuou ligado. — O que está fazendo? — Tomo banho lá também. Levantei depressa e fechei a porta. — Não vai a lugar nenhum. Dê meia volta, tome seu banho e venha deitar comigo. — Que saco! Pra que tanta ordem? — Porque você está alcoolizada. Mariana rolou os olhos e fiquei com raiva por ter vontade de dar risada e abraçála, mas controlei a raiva e a vontade. Ela conseguiu tomar o banho sozinha, mas molhou o cabelo. Sequei primeiro com a toalha e depois com o secador, e ela prosseguiu nua. — Não vou vestir seu moletom. — Vai sim. — Eu pego um pijama. — Suas roupas estão todas sujas. Virou os olhos mais uma vez e cedeu, vestiu meu moletom e se acomodou na cama.
— Vai dormir de costas? — perguntei. — Vou. — Boa noite — mesmo bravo, eu não deixei de beijá-la no rosto antes de dormir. — Hum — só resmungou. Levei um susto. Seus mirantes redondos e cristalinos estavam sobre mim. Ela sequer piscava, com as mãos embaixo do rosto, concentrada e distante. — Está com raiva de mim? — pergunta típica da ressaca moral. — Não. — Eu fiz merda. — Fez. — Você também — sua voz mal saía. — Fiz. — Pelo menos não se machucaram tanto — seu indicador passeou pelo inchaço da minha boca e o hematoma no meu nariz. — Os seguranças não deixaram e minha irmã ficou gritando histericamente. — Preciso agradecê-la. De repente seus olhos se fecharam e ela franziu as sobrancelhas. — Droga! O seu carro. — Não tem problema nenhum. — Desculpa. — Você já pediu. — Nunca mais eu vou beber. — Aham — segurei o riso, beijei seus lábios e me levantei. — Estou falando sério. Meu Deus! Que dor na cabeça — Mariana sentou na cama e apertou os olhos. — Se tivesse cumprido o combinado não estaria. — Eveline. Nossa, minha irmã! Ela está bem? — Não sei, deve estar com o dobro de ressaca, mas está viva.
— Graças a Deus. Diz Mariana que o cheiro do mocaccino embrulhou o estômago dela, mas desta vez não era uma possível gravidez, e sim a ressaca forte. Dei um analgésico e outro remédio para náuseas. Mesmo dormindo tarde, acordamos relativamente cedo, então a manhã foi composta de preguiça. Mais tarde um pouco eu a levei para o hospital para começar os procedimentos da recuperação do braço. Aproveitei para estudar uma pilha de prontuários e dar orientações aos novos internos. Álvaro me abordou no elevador para dizer o quão engraçada foi o restante da noite, que Eve, Charlotte e o irlandês foram para o apartamento dele e acabaram com todo o whisky. Consequentemente, ele nem sabia se estavam vivos porque não haviam acordado ainda. O gastro ainda se divertiu às minhas custas, por causa da briga da madrugada. Meu amigo era muito mais tranquilo do que eu em relação a ciúme. — Dormi quatro horas essa noite, tenho que trabalhar o dia todo e mais um plantão noturno. — Eu te substituiria, mas Carlie disse que quer conversar. Devo ficar com medo? Torci a boca para baixo e dei os ombros. — Não sei, você conhece a sua namorada. — Será que vou ser pai? — ele perguntou e depois me olhou receoso. — Ficaria muito feliz por você, mas puto com ela. Depois de ter bebido todas ontem? — É verdade, então não deve ser isso. — Te desejo boa sorte no que quer que seja, porque essas mulheres são malucas. — São — ele concordou ainda pensativo. O tempo que consegui desocupar fui com Mariana até o advogado para tratar dos processos. Ela ficou tensa, porque ele deixou claro que não haviam provas concretas contra o meu irmão, muito possivelmente Saulo sairia ileso desta situação, considerando que nenhuma mulher prestou queixa, ele não tinha nenhum outro antecedente criminal, nenhuma acusação, exceto pela vez em que espancou Vivian no dia do noivado, mas meu pai com toda a sua influência conseguiu interceder e livrá-lo das ações de acusação.
Mariana ainda contava com qualquer resquício de bom caráter que Saulo pudesse apresentar, mas eu desacreditava totalmente que houvesse qualquer chance do meu irmão se entregar. É difícil discernir se era por causa da rivalidade entre mim e Saulo, ou se realmente eu tinha razão em temer suas atitudes dali para frente, mas o advogado e Mariana receavam que Vivian seria a causadora de mais problemas, porque na cabeça insana dela, ela era uma mulher trocada. Depois da conversa levei Mariana para ficar com Eveline. Ambas ficaram assistindo filme, e eu voltei para o hospital. Álvaro estava muito nervoso quando o seu expediente encerrou, ele não sabia o que esperar. Pedi para me contar assim que descobrisse. Minha noite foi como de costume: uma correria. Dormi minimamente na sala dos plantonistas e na parte da manhã quando achei que ia embora chegou mais um caso de neoplasia maligna. Uma cirurgia imediata foi realizada e eu só consegui continuar acordado por causa da cafeína. Peguei Mariana e cheguei morto em casa. — Carlie pediu Álvaro em casamento — Mariana lambeu os dedos após experimentar a carne que estava no forno. — Carlie? Não era pra... Mariana deu os ombros e sorriu. — Minha amiga é doida. — Enquanto isso o meu pedido continua negado. — Não neguei o seu pedido de casamento — ela me olhou. — Mas também não aceitou. — Valentim — e então me repreendeu. — Vou dormir, bailarina. Morri e esqueceram de me enterrar. — Tadinho! — ela envolveu os braços por trás dos meus ombros e beijou meu rosto —. Coma primeiro. Respirei profundamente e concordei. Almoçamos juntos, eu tomei uma ducha e assumi um relacionamento sério com a cama. Só tive o tempo para engolir um sanduíche antes de ter que correr e deixar Mariana com Carlie para correr até o hospital. Era o terceiro plantão direto, e eu sabia que Mariana não era acostumada com essa rotina, me preocupava imaginar
o que ela pensava sobre o meu trabalho ininterrupto. Perto das 22h Mariana me ligou para avisar que sairia com Álvaro, Carlie, mais duas amigas delas que eu desconhecia, Dr. Phillip do Saint Clair, minha irmã e meu cunhado, para comemorarem o noivado do mais novo casal. Desta vez não fiquei enciumado, porque fiz questão de confirmar que o europeu não estaria junto. Eu disse que se caso conseguisse um tempo daria uma passada no bar que eles escolheram, até porque era perto do hospital. Mas pelos imprevistos, não deu. — Meu amor, avise para Álvaro que não conseguirei ir. Tenho dois pacientes no pós-cirúrgico, eles não estão estáveis e por isso não posso correr o risco de sair do hospital — disse para Mariana na ligação. — Ah, que pena. Eu queria você aqui — percebi que não haviam barulhos. — Queria estar com você... Está no banheiro? — Fazendo xixi. Acho que descumpri uma promessa — disse, e consegui imaginar seu rostinho pensativo. — Bebeu? — Duas tequilas e um french. — Tudo bem, eu cuido de você. Só não exagera, pense na dor de cabeça que terá amanhã. — Você é um príncipe. Um homem maravilhoso. — Ficou bêbada rápida, hein — brinquei. — É sério. Eu quero você pra mim, tem como? — Eu sou seu, Mariana — acabei sorrindo feito idiota. — Mas queria aqui, comigo — parecia uma criança prestes a chorar para ganhar alguma coisa —. Vem pra cá. — Ah, bailarina. Eu queria, mas realmente não posso. Ouvi o beep tocar avisando para eu socorrer um paciente, e infelizmente teria que desligar. — Não beba muito mais e não saia de perto do pessoal. — Fica tranquilo, amor. — Se cuida, por mim. — Valentim, não se preocupa — Mariana disse com toda calma e me
tranquilizou —. Eu te amo. Sorri mais uma vez e respondi: — Eu também amo você. Em menos de um minuto eu estava ao lado do leito do paciente de emergência. Passei na cafeteria e peguei um café, conversei com o Dr. Dean sobre o caso de Mariana, depois fui para o laboratório ver o trabalho dos internos. O sono estava chegando e eu não podia dormir. Resolvi mandar mensagem para a minha loira, para distrair e me manter acordado. ✉ ”Como está aí? Estou louco para chegar na nossa casa e matar a saudade.” Logo veio a resposta: ✉ “Chato sem você :( Estarei esperando ansiosamente.” Sentei-me na poltrona detrás da minha mesa e enviei: ✉ “Quando eu estiver saindo, te mando uma mensagem e ligo para um táxi te buscar. Pode ser?” ✉ “Se chegar antes de mim, tire a roupa e coloque meu moletom.” Ela enviou várias risadas e perguntou: ✉ “Como se fosse uma surpresa?” Me animei com a ideia. ✉ “Gosto de surpresas. Nada melhor do que você nua, dentro do meu moletom.” Ela mandou uma carinha e disse:
✉ “Então não é nua, amor. Mas já que gosta de surpresas...” Respondi com três mensagens mas Mariana provavelmente largou o celular. Resolvi tomar um banho para me manter desperto. Usei o banheiro de um dos quartos de plantão e quando terminei não consegui esconder o susto. Minha bailarina estava deitada em uma das camas estreitas, com os saltos fora do colchão. — Bu! A mordida em seu lábio inferior me distraiu e meu corpo enrijeceu só de assistila examinar o meu corpo. — Esqueceu de trancar a porta do quarto, doutor? Não deveria. Vai que alguma médica ou enfermeira entre e veja um pecado desses só de toalha. — Como descobriu o quarto? Ela se levantou e deu passos em minha direção. Suas mãos delicadas e finas passearam pelo meu peito que ainda estava quente pelo banho, o gesso não atrapalhava o movimento de uma delas. Mariana umedeceu sua boca carnuda e depois me encarou nos olhos. — Estou com uma boa reputação por aqui. Dr. Dean até disse "o seu doutor está descansando no quarto vinte e três." Sorri e moldei seu rosto com a mão, ela fechou os olhos e mordeu novamente o lábio inferior. — Que bom que veio, minha noite estava tão cansativa e desinteressante. — Mas eu posso deixá-la interessante — sua voz soou provocativa. — Pode. — Primeiro você precisa tirar essa toalha, doutor — ela encaixou os dedos na minha cintura e desprendeu o tecido de algodão —. Está calor aqui dentro. — Concordo. Você está com muita roupa — averiguei o casaco que ela vestia, a calça jeans e as sandálias fechadas. — Não se preocupa, eu tiro tudo pra você. Entreabri a boca para falar, mas a mulher me empurrou contra a cama e me fez sentar, a toalha havia caído no chão. Ela se despiu primeiramente do casaco e da blusa, seus seios ficaram expostos. Peguei uma das peças e cheirei seu perfume alucinante.
Um de seus pés se apoiou no colchão na lateral do meu corpo, e assim Mariana abriu uma sandália e tirou, fez o mesmo com a outra. Segurei em sua panturrilha e subi minha mão até a bunda polpuda e gostosa. — Já? — perguntou em tom de deboche ao me ver duro. — Só de ouvir sua voz ele fica assim. — Então só me veja, e ouça — ela segurou minha mão e me fez tirá-la do seu corpo —. Sem tocar em mim. Sua autoridade me excitou mais. A mulher virou seu corpo perfeito e pegou no cós da calça a fim de tirá-la. Rebolou com uma lentidão perturbadora até que o jeans passasse da sua bunda, as polpas ficaram apertadas no tecido grosso, o que deixou seu traseiro ainda maior, era quase impossível enxergar o fio preto da calcinha enfiado. Não aguentei. Atolei minhas mãos apertando-a e deixei uma mordida no lado direito. — Quietinho! — ordenou como se estivesse falando com uma criança. Eu dei risada e ela sorriu. Mariana saiu do jeans e ficou de frente para mim. Montou no meu colo, esfregou os seios no meu peito e rebolou o quadril, permitindo-me sentir sutilmente a umidade da sua calcinha sobre o meu pau. Peguei em sua cintura e desci para o quadril, querendo movê-la e ditar o ritmo, estava enlouquecendo de vontade e precisava senti-la mais. — Como você é desobediente, Valentim — segurou novamente minhas mãos e me fez afastá-las do seu corpo. — Isso é tortura — reclamei. — Sabe o que é tortura? — seus braços enredaram o meu pescoço e seus lábios ficaram tão próximos dos meus que eu pude sentir seu hálito quente —. Estar em um bar e desejar desesperadoramente você dentro de mim. Isso é tortura, doutor — ela completou com a boca rente ao meu ouvido, seguida de uma mordiscada. Arrepiei com a sua voz e gemi ao sentir a fricção da boceta dela no meu pau. — Desesperadoramente? — emaranhei meus dedos nos seus fios macios e a fiz inclinar a cabeça. Tomei seu pescoço com beijos intensos e esfreguei minha barba em sua pele. Mariana apertou minha nuca e com a mesma mão deslizou as unhas nas minhas
costas. A vi fechar os olhos e pender a cabeça para o lado, se deleitando com a minha boca. Aproveitei a entrega para pegá-la no colo e jogá-la na cama. Ela deu risada, e certamente mais uma vez, tive a certeza de que a mulher era a mais linda entre todas que conheci. Não canso de dizer que além de ter um corpo magistral, a delicadeza dos traços que desenhava seu rosto era divina. Puxei o triangulo preto despindo-a finalmente por inteira. Ela tentou se sentar para me puxar, mas a empurrei novamente. — Preciso agradecer por ter vindo — insinuei. — Então agradeça direitinho — a mulher se apoiou nos cotovelos e afastou as pernas, flexionando-as o suficiente para eu ter a visão perfeita da sua boceta rosinha. Meu pau pulsou e minha boca encheu d'água. Me encaixei entre suas pernas e a envolvi pelas coxas, aproximei minha boca da virilha dela e ao distribuir beijos pelas suas coxas pude sentir o arrepio em cada pelinho loiro ouriçado. A lentidão durou pouco, logo minha língua estava mergulhando buscando sentir o máximo do gosto do tesão que Mariana oferecia. Enfiei em sua entradinha e estimulei o clitóris ao mesmo tempo. Seu corpo se contorcia como o de uma dançarina. Tive que colocar minha mão para abafar os gemidos mais altos, afinal, estávamos dentro do hospital. Alternei a penetração com os dedos e só entrei nela quando estava totalmente lubrificada. Seus olhos suplicavam, porque Mariana queria descontar com gritos, era nítido o quanto ela queria bradar ao sentir as estocadas mais fortes. Mas não podia, então continuei controlando-a com a pressão da minha mão sobre seus lábios. Era delicioso assisti-la contida. Sua mão segurou meu pulso e seus olhos fecharam-se espremidos. Eu não parei até que a visse delirar. O mais difícil era dominar o meu próprio tesão, conseguir durar, porque sinceramente a quentura da boceta dela me extasiava. Mariana rebolava e quicava tão gostoso, me deixava no auge da ereção, tanto que ouvíamos o barulho do meu pau bater dentro dela. Tinha vontade de estapeá-la quando sentia suas contraídas, ela sabia apertar e foder como ninguém. Acabei marcando sua bunda de tanto apertar e dar uns tapas.
Quase uma hora depois estávamos debaixo do lençol, ofegantes e cansados. Encarávamos o teto em silêncio, enquanto meus dedos desembaraçavam a bagunça que eu mesmo havia feito em seu cabelo. Nada era mais claro pra mim do que o amor que eu sentia por ela. Nada era tão real, tão palpável como a paz que ela me trazia. Nada me deixava mais seguro do que tê-la perto de mim. — Eu não quero nunca mais ficar longe de você — sua confissão pegou o restante dos meus melhores e mais intensos sentimentos —. Não quero viver sem você. — E não vai ficar e nem viver sem mim. — Quero que seja pai dos meus filhos, Valentim — ela ergueu o rosto, e as íris azuis confirmaram a convicção em sua voz. — Você será a mãe dos meus filhos, Mariana — mexi nos fios loiros e me aproximei para beijá-la na testa. Ela fechou os olhos e voltou a deitar no meu peito. A notícia boa é que os dois pacientes do pós-cirúrgico não deram trabalho no que sobrou da noite. Por isso, de manhã tive o privilégio de acordar com a mulher mais linda do mundo ao meu lado. Ouvimos toques na porta e ela abriu os olhos preocupada. — Dr. Del Torre? O Senhor está aí? Mariana mordeu o lábio com apreensão e eu passei o polegar em seu rosto. — Esse hospital não funciona sem mim — falei tranquilo e a vi sorrir. Beijei-a na boca e me levantei para por roupa. — Dr. Del Torre? — Estou saindo. — Ok, me desculpe. Por fim vesti o jaleco e parei em frente da cama para me despedir mais uma vez. — Pegue um táxi, vá para casa descansar. Esse colchão é uma porcaria. — Estou descansada, leve como uma pluma — Mariana se espreguiçou e me deu um beijo —. Vou passar no apartamento para pegar todas as minhas roupas. Não foi possível esconder o sorriso que quase me engoliu.
— Então me espere, vou com você. Só tenho que repassar as informações do turno da noite e estou livre. — Vou tomar um café. — Pegue um pra mim — dei mais um beijo e ela se levantou. — Anda, Dr. Del Torre! — Só mais um — ela riu quando encostei nossas bocas. — Vai logo! Mariana me acompanhou até que eu deixasse o quarto. Seu olhar de admiração me enchia de ternura. Nos olhávamos do mesmo jeito e isso provava o quanto nosso amor era recíproco.
44 Valentim Del Torre 35 dias depois. 2 dias antes do julgamento.
Está feliz, meu amor?
—
Eu só queria ouvi-la confirmar, porque o sorriso enorme esboçado em seu rosto não deixava dúvidas. Mariana começaria de verdade a realizar mais um dos seus sonhos. O ortopedista indicou que ela esperasse mais dez dias para poder se livrar da tipoia imobilizadora de braço, mas ela negou, disse que estava bem o bastante para o seu primeiro dia como professora no colégio infantil. — Radiante — ela aumentou o som e começou a cantarolar. Sua voz doce e ainda sonolenta preencheu o carro. — Lembre-se do que o Dr. Dean orientou, nada de abusar deste braço, para não regredir na fisioterapia. Mariana assentiu e eu continuei a observando. Estávamos bem, nos encontrando, nos encaixando, adaptando e melhorando a cada dia mais. O tempo estava fazendo seu trabalho, acalmando a turbulência e cicatrizando as feridas. Pouco a pouco ficaríamos bem. — Seja lá o que esteja aprontando, não vai conseguir esconder por muito tempo — ela piscou para mim quando foi abrir a porta do carro para descer. — Não estou escondendo nada, bailarina — retribuí a piscada e a puxei antes que saísse —. Meu beijo. — Nós sempre nos atrasamos com esses beijos. — É ruim? — indaguei com meus lábios encostados nos dela —. Se for ruim eu paro — a enchi de beijos e ela riu. — Não acho ruim não — senti seus dentes prenderem meu lábio inferior e chupá-lo em seguida. — Tenha calma, e por favor se cuide. — Sempre tão cuidadoso — ela passou a ponta dos dedos pela minha barba e analisou meu rosto —. Ficarei bem.
— Venho te buscar. — Eu te ligo. — Amo você, bailarina. — Também amo você, amor — Mariana me deu mais um beijo e então saiu do carro. Esperei que ela entrasse no colégio notoriamente sofisticado, e dei partida em direção ao hospital. — E aí, quando sai esse casamento? — Se dependesse de mim, estaria casado. Mulheres enrolam demais com essas coisas. — Ajude com os preparativos, opine mesmo não sabendo do que se trata, mas não deixe para ela decidir tudo, porque mulheres ficam entre o azul turquesa e o azul celeste por exemplo. E cara, são cores iguais. — Carlie não decidiu sequer a igreja e está difícil conseguir data — meu amigo bufou e eu apenas sorri. — Ela não vai fugir. — Eu espero. Não o vi mais ao decorrer da manhã até à tarde. Prontuários, duas cirurgias simples, reuniões com internos e residentes, laboratório, altas, acompanhamento de pós-cirúrgico, pessoas chegando a todo instante no pronto socorro e sendo passadas para confirmar possíveis tumores, tomografias, burocracias no administrativo e contratação. Um famoso pandemônio. Mas eu não podia negar que, viver como se estivesse na capital do inferno era o meu dom. Minha profissão não trazia felicidade todos os dias, mas era parte de mim e eu tinha nascido para a medicina. — Nossa Valentim, as crianças são uma graça. O legal é que os garotinhos não debocharam em momento algum, participaram e se interessaram do mesmo jeito. — Claro, eu não tenho dúvidas de que você é excepcional no que faz. E claro, os garotos devem estar fissurados na beleza da professora. — Bobagem! — ela riu —. São muito educados e disciplinados. — É um colégio bom então. — Muito. — Conheceu as filhas do irlandês?
— Conheci, são encantadoras. A felicidade estava nítida, explícita em cada palavra que saía de sua boca. Já eu, estava cansado, mas tomado por uma adrenalina corriqueira. Em momento algum falei sobre minha exaustão, para não desanimá-la afinal, a alegria dela nutria a minha. — Está na hora do almoço? — Uhum — perguntei porque parecia que ela estava mastigando —. Amor, você não vai me falar o que está te deixando tão quietinho? — Estou normal, bailarina. — Não minta pra mim. Saber que Mariana conhecia cada aspecto do meu comportamento me fazia sentir como um homem de sorte. Ela reparava em mim, conhecia cada detalhe. Eu não estava quieto, mas escondi um presente que seria dado à noite. Ela jamais adivinharia. — Preciso desligar, estão me bipando. Ela respirou fundo. — Tente comer um pouquinho, pra se manter em pé. Fico preocupada com essa correria toda. — Mas não precisa se preocupar, estou acostumado. — Eu te amo por salvar vidas. — Eu te amo por levar alegria às crianças. — Não queira me comparar com o Superman. — Superman? — dei risada. — Você é um Superman. — Exagerada. — Tenho certeza que toda a sua trupe de carecas te enxerga assim, como um super-herói imbatível. — Obrigado — eu só tinha que agradecê-la mesmo. Muitas vezes pelos transtornos diários e pelas perdas, eu esquecia o fato de que muitos pacientes asseguravam suas vidas em minhas mãos, e o significado disso é que eu era bom. — Eles acreditam em você — foi possível saber que seu sorriso se abriu —, e eu
também. Fiquei em silêncio para digerir suas palavras. — Mais tarde passo te buscar, meu amor. Que o seu dia continue maravilhoso. — Tá bom. Só promete que vai comer. — Vou — garanti —. Deixa eu desligar porque não param de chamar aqui. O beep apitava sem parar no bolso. Comi o quanto o tempo permitiu e voltei para o trabalho. Quando abrandou o caos eu fui tomar um café no Starbucks com o Álvaro, e aproveitei para ver as fotos do primeiro dia de trabalho que Mariana me enviou. Perto das 18h consegui sair do hospital para buscá-la. Ansiava que o seu presente estivesse chegado, e então sairíamos para jantar em comemoração. O carro novo estava estacionado na garagem, mas Mariana não viu porque foi direto para a porta de entrada. Ela estava tão empolgada me contando sobre o seu dia que sequer olhou para os lados. — Preciso que fique quieta um pouco. Mordi meu lábio e ela me olhou estranho. — Vire-se, vou tampar os seus olhos. — O que foi? — Vire-se. Obedeceu, e então eu cobri seus olhos com minhas mãos. Caminhamos pelo longo jardim até chegarmos na garagem e pararmos de frente a um SUV, especificamente uma Mercedes GLS grafite. Tirei minhas mãos e a chave do meu bolso para entregá-la. — O que é isso, Valentim? — Um carro. — Estou vendo. Mas por que tampou meus olhos, me trouxe até aqui e está me dando essa chave? — ela olhou para o controle automático. — Adoro te levar e buscar em todos os lugares, mas sei que você gosta de independência. — E por gostar de independência eu ganho um carro? — Mariana continuou perplexa e sem pegar a chave da minha mão. — Você sabe dirigir, não sabe? — ignorei-a e fui para o banco do motorista. Liguei o motor do carro e comecei a mexer no painel para me familiarizar com o
carro novo. Depois fiz questão de sair e entrar pela porta do passageiro para que ela fosse na do motorista. — Venha, amor. — Valentim! — estava expresso o susto no seu semblante. — Sabe dirigir, certo? — Sei. Mais ou menos. Aliás, faz tempo que não pego um carro. — Te ajudo — sorri e liguei o som. — Que pesada! — comentou quando empurrou mais a porta para entrar. — Mandei blindar. — Pra que? — ela franziu as sobrancelhas. — Sua segurança e dos nossos futuros filhos. Ela tinha falado uma, duas, três vezes que queria que eu fosse o pai dos seus filhos, e esse desejo crescia velozmente dentro de mim. Mariana não conseguiu responder, e uma lágrima solitária escorreu molhando seu rosto. — É meu? — suas mãos tocaram o volante, depois o painel, os botões, o computador de bordo e por fim mexeu no retrovisor central. — Você gostou? — É enorme, cheiroso — ela mordeu o lábio —. Eu amei. — Então é seu. — Ponha o cinto! — Tem certeza que... Mariana deu um arranque antes que eu terminasse de travar o cinto, nos fazendo rir. — Onde nós vamos? — Só uma voltinha, amor. Seus olhos brilhavam em direção ao painel detrás do volante, onde mostrava a velocidade. As unhas pintadas de branco claro e os dois anéis que Mariana sempre estava nos dedos, tomaram minha atenção. Depois olhei para sua boca, que ora ou outra era mordida anunciando sua excitação por estar dirigindo. — Eu prometo — ela teve que aumentar o tom de voz por causa do volume da
música —, que não vou bater as portas na parede. — Ah, sem vergonha! Do meu carro pode? Ela deu os ombros e sorriu, voltou a focar na rua e mexeu somente uma vez no câmbio, já que era automático. — Não vou sair do bairro porque não sei se estou preparada para dirigir no trânsito. — Pode ir, estou aqui. — Não... — Estou aqui, Mariana. Ela me olhou, pensou e então decidiu acelerar o carro para entrarmos na avenida. Posicionei-me de lado para poder admirá-la melhor. — Que carrão! Quanto isso custou? Nunca vou conseguir te pagar, você sabe. E na verdade nem quero, deve ter custado meus rins. — Custou um rim, somente um, se avaliado no mercado negro. — Se quiser então eu vendo o meu pra te pagar. — É, não teria problema. Sou cirurgião mesmo, colocaria outro. Ela balançou a cabeça e me deu um tapa na coxa. — Que conversa de doido — disse rindo. Não tínhamos um rumo certo, ela só continuava seguindo pelas avenidas. — Posso ir até o apartamento? Eveline ainda não saiu para trabalhar, quero mostrar o meu presente! Posso até levá-la no trabalho. Estou tão feliz. — Claro, amor. Consegue chegar? — Consigo. Tudo bem que errou o trajeto três vezes, mas chegamos. Mariana afundou a mão na buzina e então ligou para a irmã. Nós subimos um pouco, tomamos um café e descemos para Eveline prestigiar o carro. O céu já estava escuro e nublado, então decidimos ir embora. Antes de voltarmos para casa, deixamos Eveline no hotel no Centro. Aguardei duas horas para Mariana ficar pronta, mas valeu cada segundo de espera. Ela estava maravilhosa dentro de um vestidinho branco curto, de saltos vermelhos e um sobretudo vermelho. Os cabelos presos e com ondas nos fios davam seu ar selvagem. Sua maquiagem era leve como de costume, os olhos grandes pelo
contorno e cílios longos, a boca mesmo que com um batom claro era um centro de atenção, carnuda, desenhada e convidativa. Suas bochechas estavam como sempre, levemente bronzeadas e queimadas pelo frio. — Como você está gostoso, amor — ela passou as mãos nas golas do meu sobretudo xadrez escuro —. E cheiroso — depois inalou meu pescoço e depositou um beijo casto para me instigar. Mariana me olhou nos olhos, acariciou meu rosto e beijou meus lábios. — Você está maravilhosa — segurei seu rosto com ambas as mãos e pressionei minha boca na dela. Foi inevitável não começar um beijo ali. Lento, saboroso e intenso. — Tem certeza que vai sem o imobilizador? Não está doendo? — averiguei seu braço e peguei nos pontos de torção. — Tenho. Aquilo me deixa feia, e não está doendo. — Você nunca está feia. E olha que já te vi roncando, bêbada, babando. Roncando, bêbada e babando junto. Ela riu e me deu um tapinha. — Vamos. Reparei em seus passos e no contraste do sobretudo vermelho com os seus cabelos dourados, depois com as pernas claras e os saltos também vermelhos. Era crime ser tão bonita. E não era só fisicamente, a energia que Mariana carregava consigo, a paz que ela transmitia a qualquer lugar que ia, o sorriso que contagiava, o olhar que transparecia um mundo de infindáveis histórias. Ela era uma mulher deslumbrante e repleta de luz interior. — Você fica tão bem de preto e com o cabelo assim — acariciou delicadamente meu cabelo, já que estava arrumado para trás. — E eu já desisti de encontrar palavras pra te elogiar — aproveitei o semáforo fechado para poder olhá-la e beijei sua mão que já havia descido para o meu rosto —. Te amo. — Eu também amo você — sua mão continuou descendo, parou na minha coxa, deslizou por dentro dela e me apertou. — Mariana — adverti. — Não fiz nada.
— Você é um anjo — falei ironicamente. — Só faltam asas — ela piscou várias vezes me fazendo sorrir. Velas, uma lista de incontáveis canções de Michael Bublé, jazz-vocal, swing, blue-eyed soul, um clima calmo determinado pela pouca luz do ambiente, a cidade inteira para vermos do restaurante rodeado de vidros no Space Needle, a torre turística de Seattle com seus 184 metros de altura, compôs o nosso jantar. O contexto ocasionava uma certa sensação de volúpia nos casais presentes, eu e Mariana não ficávamos fora dessa. O salto dela encaixava-se entre minhas pernas, no acolchoado de onde eu estava sentado. Ela acariciava minha perna delicadamente com a ponta da sandália. As músicas vagavam entre sensuais e românticas, e nossos assuntos fluíam prazerosamente. — Aqui é lindo — suas íris circularam por todo o ambiente — e a comida é sensacional. — Você quase teve uma parada cardíaca no elevador, bailarina. — Claro, aquele negócio nos trouxe até o céu em um segundo. Terminamos nossos pratos e ela pediu uma sobremesa, eu continuei degustando o vinho da carta artesanal da casa. Depois de terminar a torta de maçã Mariana se levantou, eu não entendi quando vi sua mão estendida para mim. — Eu amo essa música, é deliciosa para dançar. — Você sabe que eu não levo muito jeito. — Venha, eu guio você! Levantei-me querendo rir antecipadamente pela vergonha que eu passaria. Ajudei-a a tirar o sobretudo grosso e então suas costas ficaram expostas no decote bem aberto do vestido. Aproveitei para encostar minha mão em sua coluna e depois a enredei pela cintura. Aumentaram a música quando viram nos juntarmos aos dois casais que estavam na pista central do restaurante. Feeling Good na versão de Michael Bublé tinha um ritmo sedutor. Eu deixei que Mariana ditasse os primeiros passos. Não demorou cinco segundos para entrarmos em completa sintonia e esquecermos de tudo a nossa volta. Os olhos lindos da minha loira focaram nos meus, a testa encostou na minha, nossas respirações se misturaram e nossos corpos dançaram como um só. Mariana tinha gingado, mais do que isso, sabia exatamente como conduzir os movimentos de cada batida. Ela gargalhava caso
eu a apressasse, ou a pegasse com força quando a música chegava em um tom mais alto. A bailarina ia para frente e girava para voltar aos meus braços, perfeitamente como uma profissional. Encostamos nossos lábios, quando ela ficou de costas e encostada em mim. Demos um beijo demorado e carinhoso, e foi no mesmo momento que a melodia acabou. Nos aplaudiram e Mariana assentiu em agradecimento. Nós regressamos rindo para a nossa mesa. — Mentindo pra mim em Dr. Del Torre — a mulher sentou em minha frente —. Claro que você sabe dançar. — Eu me viro, você é profissional. — Relaxa, nós arrasamos. Coloquei minhas mãos sobre a dela que estava na mesa e me aproximei para beijá-la no dorso. — Tudo bem com o seu braço?— questionei preocupado. — Deu um pouquinho de mau jeito. Mas amanhã tenho fisio, vai passar. — Mariana, Mariana... — O que importa é que nos divertimos — ela também beijou minha mão. Pedi mais vinho para mim e a bailarina também quis. De repente, depois da adrenalina e da energia positiva, ela ficou quieta. Já a conhecia o suficiente para ter certeza do motivo. — Vai dar tudo certo. — E se as provas não forem o suficiente? — São o suficiente — passei confiança ainda segurando sua mão —, as câmeras de vias públicas registraram perfeitamente o carro, a placa, tudo. A fuga foi flagrada em seguida do atropelamento. Não tem como dissimular essas imagens. — Tem certeza... Certeza que... — Meu amor, as imagens estão nítidas. Ficava louco só de lembrar do que vimos, Mariana fez questão de rever inúmeras vezes para alimentar o ódio e o desejo de vingança, mas eu consegui assistir somente uma vez o momento em que ela foi jogada com toda força pelo carro de Vivian. Foi o bastante para o meu desejo extrapolar todo o limite da razão. Torcia para que Vivian fosse punida severamente, porque caso contrário eu faria merda e me prejudicaria.
— O advogado do seu irmão retornou as ligações do Dr. Ulysses? Dr. Ulysses era o oadvogado encarregado do nosso caso. — Retornou. Eles irão comparecer, mas não espere nada do Saulo, Mariana. Ele não se entregará. Mesmo assim não se preocupe, encontrarei uma forma de foder com a vida dele. Ela respirou fundo e olhou para o lado. — Desculpa tocar nesse assunto, é porque está perto do dia e eu estou ansiosa... — Não se desculpe, também tenho essa sede. Qualquer resquício de tensão foi embora minutos depois, nós rimos mais, conversamos mais, nos divertimos. Mariana voltou dirigindo, primeiro porque tinha bebido só meia taça de vinho, segundo porque queria curtir mais o carro. Chegamos em casa e aproveitamos o final da noite da melhor forma, fazendo amor. Mariana D'Ávila 1 dia antes do julgamento. Mesmo com uma Mercedes zero, gigante e blindada, Valentim me seguiu com o carro dele até o colégio para saber se eu chegaria bem. Nenhum cuidado era pouco, ainda mais tão próximo do julgamento. Eu desejava avidamente que a sentença fosse dada logo após a primeira audiência, e o advogado garantiu que com todas as provas a deliberação do juiz sairia brevemente. Era tudo o que eu queria, porque só assim me sentiria pronta para recomeçar. Saulo também deveria pagar, por ter me drogado e principalmente pelos crimes de violência contra as mulheres. Eu não tinha conhecimento, mas Valentim afirmava com toda certeza que existiam outros delitos. O colégio era lindo, bem estruturado e elitizado. Eu tinha aula quase sem parar, porque eram muitas turmas já que para seguir o método de ensino era necessário ter classes pequenas, ou seja, muitas classes com poucos alunos. Os meninos mostravam tanta dedicação quanto às meninas, isso era novidade para mim e claro que eu amei. Duas professoras foram superatenciosas comigo, me acompanhavam nas aulas para passar as regras da escola e informações sobre os alunos. Uma chamava-se Ellis e a outra Olívia.
Nós três almoçamos juntas e eu fui embora antes das 16h, porque havia terminado a grade daquele dia. No caminho de volta eu ainda tentava processar o fato de ter um carro, O carro. Pensei em recusar, porque diante dos meus princípios deveria conquistar tudo sozinha, mas Valentim não aceitaria a recusa, e eu sabia que o valor de uma Mercedes naquele nível, mesmo sendo muito alto, não faria falta no bolso dele. Sem contar a felicidade evidente por me presentear. O avisei que estava chegando em casa e ele disse que tinha acabado de sair do hospital também. Ouvi os latidos da Lua, o que não era normal da Husky. Ela era calma, exceto quando eu a provocava nas brincadeiras. Lua não parava de ladrar, incessantemente. Destranquei a porta, deixei minha bolsa e o casaco perto da entrada e chamei a lobinha. — Lua! Para de latir sua doida — abaixei-me porque achei que ela viria me receber como de costume —. Venha! Ela latia na porta da cozinha, eu só conseguia ver seu rabinho peludo balançando e seu corpinho indo pra trás a cada latida mais potente. Estranhei. Ouvi um barulho de louça contra o chão e me apressei até a cozinha. Peguei a Lua imediatamente quando vi quem estava lá. — O que você está fazendo aqui? Dei um passo para trás quando vi o que estava em sua mão direita, olhei na direção do rosto dela e engoli minha saliva como se fosse um bloco de concreto. — Você se machucou? Posso te ajudar? — Me ajudar? — ela riu —. Está com medo só porque estou com um revólver carregado? — e então levantou a arma. — Tem sangue na sua testa, seus braços... — eu comecei a tremer de nervoso ao ver os pulsos dela arranhados e a mão também ensanguentada, aparentemente cortada com estilhaços de louças. — Que tal se preocupar com você? — foi quando ela apontou o revólver prata em minha direção que eu dei mais passos para trás. — Vivian, abaixa essa arma!
— Eu vi... Vi que ele te deu um carro. É pra comemorar que eu vou apodrecer dentro de um hospício? — Não, não é nada disso. Por favor abaixa essa arma, nós podemos conversar. — Nós não podemos, porque não somos iguais. — Eu sei que não. Temos histórias diferentes, mas tenho certeza que você carrega muita dor assim como eu. Vivian ficou quieta e me analisou. Levantei minha mão devagar e coloquei na direção da boca do cano, quando ela posicionou a outra mão no cabo e o indicador no gatilho. — Você não sabe da dor que eu carrego, não sabe nada sobre a minha vida. Ou acha que o resumo dos meus trinta anos é um cunhado agressor, uma filha morta e um marido traidor? — Não desmereço de forma alguma tudo o que você passou, Vivian. Eu preciso que você entenda que a vida nos sufoca de frustrações e que isso não é o fim. Deus sempre nos dá mais chances, Ele não desiste dos seus filhos. Ela riu alto e deitou a cabeça para trás. — Está falando tudo isso porque está tremendo, olha as suas pernas — debochou quando viu que eu realmente estava tremendo. — Estou com medo sim, mas se você tirar a minha vida agora, quem terá que conviver com essa culpa, com este crime é você. Me matar não vai diminuir nem cessar suas dores. Tente por favor, dar uma segunda chance a si mesma. Deus nos dá a vantagem e o tempo para tentarmos de novo e não cometermos os mesmos erros. — No que acha que fui errada, Mariana? Em ter sido a esposa companheira todos esses anos, enquanto era descartada dia após dia por causa de uma profissão doentia que Valentim escolheu? Ou por ter me afastado da Ana quando ela ficou doente porque perdi ainda mais o pai dela? Eu não tinha ninguém. Suas mãos sacudiam a arma pelo nervosismo. — Reconheço os seus motivos, vejo que talvez a solidão tenha te levado a tomar decisões erradas. Mas o que vai acontecer com você depois que apertar este gatilho? — Você não entende. Ela passou a mão debaixo do nariz para limpar a coriza que junto às lágrimas molhava sua boca.
— Posso não entender totalmente, cada um sabe o peso que carrega e o histórico que atormenta. Sabe que... — vagarosamente deixei Lua no chão e voltei à postura na frente dela — eu fui espancada pelo meu pai a infância toda, na adolescência também. Fiquei em uma cadeira de rodas e tive meu sonho interrompido, achei que nunca conseguiria voltar. Eu o matei, e depois a vida tirou minha mãe de mim, ela era única família que havia me restado. As íris em um verde escuro se direcionaram para o lado, como se me encarar fosse acovardá-la. — E aí você encontrou a felicidade abrindo as pernas pra um bando de homens casados? Queria grudar no pescoço dela, mas sentia pena e medo. — Por fim, o meu filho também morreu. — Eu o matei — Vivian sorriu com os lábios fechados, um semblante tomado pelo cinismo —, pode falar, agora não vai mudar nada, ele não vai voltar mesmo. — Sim, você o matou — concluí. — Olha só, te darei um presente, vocês poderão se encontrar. — E mesmo que você faça isso comigo agora — sobrepus minha voz a interrompendo —, mesmo que escolha acabar com a minha vida, nada que apodreceu dentro de você irá se regenerar, tudo só atrofiará mais. Ela abaixou a arma e por um segundo eu me senti aliviada, mas durou até que a boca do revolver estivesse apontada para mim novamente. — Uma ótima observadora... Dei um passo para trás. — Mas eu quero que você e esses seus conselhos se fodam. — Vivian — foi quando ela se aproximou que eu fiquei ainda mais em pânico. — Fica quieta! — e então deu um tiro. Eu fechei os olhos sem saber se havia sido atingida, mas não senti dor alguma —. Sua voz não me deixa pensar. Então abri os olhos e olhei para os lados. Ela havia atirado na parede atrás de mim, não tão perto. Meu coração estava acelerado, parecia que ia explodir e sair do meu peito. Demorei para perceber que minhas mãos estavam pingando suor, geladas e tremendo mais. Ouvimos o barulho da porta de entrada bater e impensadamente eu corri para a
sala. — Mariana — Valentim pegou meus braços, deslizou as mãos nele e eu caí em prantos — Ela... — Não era pra você ter chegado — interrompi em meio ao choro. O médico olhou para o outro lado da sala onde a ex-esposa se encontrava com a arma em mãos direcionada a nós dois. — Não era pra você estar aqui — não sei quantas vezes repeti —. Não era! — Está saindo melhor do que eu planejei. Que prazer é ter vocês dois juntos. — Abaixa a arma e vamos conversar — Valentim pediu baixo e lentamente foi se posicionando na frente do meu corpo —. Vamos resolver isso da melhor forma. — Claro, não teria como ser melhor — Vivian sorriu. — Saia da minha frente, Valentim — pedi e tentei afastá-lo. Não queria de forma alguma que ele me servisse de escudo. — Mariana vai sair e nós vamos resolver — sua voz permanecia calma. — Quem diz se ela sai ou não sou eu. Os dois continuarão aqui. — Não — ele contrariou baixo —. Ela vai sair e nós dois iremos resolver. Isso é entre mim e você. — Era entre mim e você até o dia que essa vagabunda entrou no nosso casamento. — É me matando que você vai se vingar. Eu e você não ficaremos juntos se Mariana morrer. Então resolva isso comigo. Bati nas costas dele ainda chorando e falei embargada: — Você não pode fazer isso comigo. Ela não pode te tirar de mim! Minha cabeça latejava por causa do choro e do pavor. Lua havia voltado a latir sem parar, o clima estava pesado como um filme de terror. Valentim abriu os braços desde que se colocou em minha frente, assegurando-se de que estava me protegendo. O dedo de Vivian deslizava no gatilho enquanto ela pensava, e algumas lágrimas, as quais eu não sabia decifrar, escorriam manchando suas bochechas com o preto da maquiagem. Ela deu um estalo ameaçador e instintivamente eu dei uma braçada em Valentim para ficar em sua frente e defendê-lo, foi quando ele me empurrou com força o suficiente para me fazer cair uns dois metros de distância.
— Não se mexam! — a ex-esposa dele gritou. Ele virou para trás e me olhou, aquilo fez o desespero me bater com força. — Não dê as costas pra ela, porra! — eu passei as mãos no meu rosto e me levantei do chão. Fiquei espantada quando o homem me pegou pelos braços e em fração de segundos olhou nos meus olhos e sussurrou: — Corra! — Por favor, Valentim... — eu me sentia fraca e impotente diante da situação. — Se você me ama, corra! — Por favor, não morre — eu sequer sabia o que estava pedindo, porque fugia do alcance dele. Parece que ele sabia mais sobre o que ela queria, porque ao me ver correndo Vivian não tomou nenhuma atitude. A Husky veio desorientada atrás de mim e eu a peguei no colo. Saí correndo pela rua e entrei no jardim da casa mais próxima. Bati na porta, apertei a campainha diversas vezes mas ninguém apareceu. Fui para a outra e insisti até que um senhor de idade me atendeu. — Calma, criança. Respira e me conta, o que aconteceu? — Meu namorado — tentei controlar os soluços para explicar —, meu namorado. — O que? Vocês brigaram? Você mora por aqui? Vamos chamar a polícia. — Não, não — respirei fundo e travei o pranto descontrolado na garganta —. A ex-esposa dele está com uma arma, me dê um telefone. Falei um tanto desconexa, mas o velhinho entendeu e logo pegou o telefone para acionar a polícia. — Preciso voltar lá, preciso... Não deixe ela sair daqui — deixei Lua no chão. — Não, fique aqui. Fique aqui, tenta se acalmar. — Não tem como ficar calma. Uma mulher louca está apontando uma arma pro homem que eu amo. Eu preciso voltar lá... Ele me fez sentar na poltrona da sala e me deu água, não consegui ingerir. Em pouco tempo ouvimos o barulho de sirenes, e pelo som parecia que muitos carros estavam chegando. Saí para a rua e corri pela calçada na direção da casa de Valentim.
Vi que o senhor tentava me alcançar, mas a idade não permitia. Dois policiais desceram de uma viatura e me impediram. — Preciso que a senhora me conte o que está acontecendo. Do mesmo jeito totalmente desesperada eu fui contando em partes. Três carros haviam parado na frente da casa, e quando cheguei vi que a porta estava fechada e um silêncio angustiante fez parecer que não tinha ninguém lá dentro. — Eu preciso entrar, preciso saber como ele está... Não estou ouvindo nada. — Calma, senhora. Se acalma porque nós estamos aqui e vamos estabelecer uma estratégia. — Estratégia? Eu não estou ouvindo nada! E de repente ouvi o grito histérico de Vivian dizendo: — O seu irmão desgraçou a minha vida! Olhei para o policial ao meu lado e este mesmo se juntou aos outros, eram muitos. A vizinhança que eu nunca tinha visto começou a sair de suas casa para assistir e saber o que estava acontecendo. As pessoas cochichavam e eu ouvia em todo canto coisas como: "é o Dr. Del Torre, diretor do hospital". Chegou mais um grupo de profissionais, como detetive, delegado, perito e até ambulância com equipe médica. Passaram uma fita para isolar a casa e não ultrapassarmos o limite. Peguei o celular emprestado de um médico e liguei para Carlie. Não sei o quanto minha amiga conseguiu entender, mas em dez minutos os nossos amigos e os familiares de Valentim chegaram. Parecia uma eternidade. Eu tremia e meus olhos transbordavam em silêncio, já que eu não conseguia trocar mais uma palavra sequer com ninguém. Fiquei observando os homens negociando próximos das janelas da casa, mas eles não nos atualizavam. Carlie falava comigo, Eveline, David, Álvaro, Leonora, Eric e Charlotte também, mas eu não escutava nada mais que zumbidos. — Vivian! Não!
Ouvimos mais discussão e automaticamente tentei ultrapassar a fita. Mas Álvaro me segurou. Cercaram a casa, armados e aparentemente preparados. Minhas pernas vacilaram e então desfaleci nos braços do amigo de Valentim quando escutamos um único disparo. Gritei "NÃO", com toda a força dos meus pulmões. Senti Álvaro me abraçar forte e as batidas céleres do seu coração. Quando olhei para cima me deparei com o homem aflito e de olhos fechados. — Ela matou ele, ela matou ele — repeti duas, três, quatro vezes. Desta vez Charlotte correu para a casa e não foi detida. Os policiais já haviam arrombado a porta no momento do tiro, eu não tive força, não suportaria ver Valentim machucado ou morto. Naquele instante acreditei fielmente que Deus era cruel e que eu carregava o pior dos carmas, porque tudo o que eu encostava, que estava ao meu redor e eu amava, morria.
45 Valentim Del Torre
Mais uma vez fui egoísta. Expulsei Mariana da casa enquanto a ouvia pedir para que eu não morresse. Talvez ela suportasse se minha ex-mulher doente atirasse no meu peito, mas eu não aguentaria viver sem Mariana. Comparado a ela, eu me sentia um fraco, egocêntrico e naquele momento não era um homem digno. Mas a solução não seria Vivian matar Mariana, não era um teste tirá-la de mim para saber se eu poderia sobreviver. Só que eu também não podia de forma alguma decepcionar a bailarina de novo. Eu tinha que continuar vivo. A calmaria que demonstrei desde o momento que cheguei, era um contraste com o estresse psicológico que Vivian gerou, que por pouco eu não conseguia conter. "Não era pra você estar aqui, não era pra você ter chegado, não era pra você estar aqui..." Ecoava ininterruptamente no meu ouvido e se eu piscasse, as íris azuis de Mariana, perdidas nas muitas lágrimas, apareciam na minha mente. Um olhar desesperado de pânico, de aflição. Ela não queria que eu tivesse aparecido, queria me deixar fora de risco. Quando Mariana correu, eu me aproximei de Vivian e a abracei. Pretendia tirar sua arma mas fui empurrado, qualquer movimento seria perigoso. Me afastei novamente e levantei as mãos em rendição. — Vamos lá. Esse é só mais um dos problemas — tentei acalmá-la —, mais um que poderemos resolver. Já passamos por tantos, e eu sei que você consegue me escutar. — Sabe Valentim, eu procuro entender o que você encontrou em Mariana, no que eu não fui capaz? E esse não é só mais um dos problemas, é o último. Vamos resolver aqui e agora. — Você pode ser uma mulher incrível, Vivian. Apaixonante como quando eu te conheci, pode ter quem você quiser, desde que aceite que é doente e se trate de verdade. — Eu sou aquela pessoa que você conheceu e estou bem aqui na sua frente —
ela tremeu ao voltar a chorar —. Não vê? Não vê que eu tenho me esforçado para você reconhecer que ainda sinto o mesmo que quando nos conhecemos? Eu sei que cometi alguns erros, eu te traí e na verdade... engravidei e achei que Ana era filha do seu irmão — Vivian riu e secou as lágrimas —, mas você não disse nada mesmo sendo o médico dela, então Saulo fez um exame de paternidade. Graças a Deus aquela menina era sua filha. Minha saliva travou na garganta e eu enfiei as mãos nos bolsos da minha calça. — Mas levei uma surra por isso, não me esqueço — minha ex-esposa esboçou um sorriso melancólico —. Eu e Saulo tínhamos planos, e na realidade eu nem sabia porque estava no meio das loucuras dele. Às vezes achava que o amava sim, mas quando caia em si, via que era a solidão se apossando de cada decisão minha. Eu posso te dizer quantas vezes eu e você transamos desde que Ana nasceu... porque não foram muitas — ela olhou para os lados —. E se quer saber, você até demorou para me trair. Como manter um casamento se não tínhamos um ao outro? — e voltou a me encarar —. Fui obrigada a te trair com o homem mais próximo de você e consequentemente próximo a mim. Esse é o meu pecado, querido. E mesmo assim continuei do seu lado, mesmo quando seu irmão me fez propostas indecentes como ir embora com ele, ou ajudá-lo a extorquir o máximo possível do hospital. Ainda estou aqui. — Reconheço sim o seu esforço, e por isso estou pedindo para tentarmos levar o tratamento a sério. Você terá inúmeras chances de ser feliz no futuro e... — ela me interrompeu. Eu nunca a perdoaria e muito menos a manteria perto, por ter falado daquela forma sobre a nossa filha ou do hospital que era um lugar tão importante para mim. Mas mais do que ela, eu desejava ver meu irmão morrer dolorosamente. — Plano A, manter o nosso casamento e ter direito a metade do hospital. — Vocês sabiam que isso não era cogitável. — Plano B — ela me ignorava e parecia realmente não me ouvir —, ter uma filha com Saulo, dizer que era sua e fazê-la herdeira. Mas como você era o pai da menina, apanhei. Até aí nenhuma novidade. — Vivian — respirei fundo e passei a mão sobre a boca —, por que não me contava sobre Saulo? Eu era seu marido, quis te ajudar tantas vezes e você recusou. Dizia que se machucava sozinha, por necessidade. — Sei lá, achei que o amava por ter atenção, cuidado, carinho. Você sabe, minha psiquiatra te contou — ela deu os ombros, referindo-se ao distúrbio.
A mulher havia abaixado a arma, mas seu semblante permanecia carregado e perturbado. — E aí o plano B foi por água abaixo quando a menina ficou doente. Como ela seria herdeira de alguma coisa sendo diagnosticada com leucemia? Tendo tempo de vida contado? — "A menina" era sua filha, foi gerada no seu ventre — meu sangue ferveu. — Mas o meu único refúgio virou uma guerra por aquela menina, querido. Saulo era possessivo, sabe? Só pedia que eu segurasse o nosso casamento até que ele conseguisse tanto poder quanto você no Saint Clair. — Uma criança — ela quis me cortar mais uma vez, mas falei mais alto —, uma criança de três anos sentia medo e tinha preocupação com a própria mãe. Ana se sentia desprotegida, ameaçada no próprio lar. Quantas vezes minha filha te viu ensanguentada? Ela ouvia você gritar e chorar no telefone, todos os dias. Foi essa infância que você teve, Vivian? Era isso que você visualizava ser para seus filhos? Era esse futuro que você me contava que idealizava com o seu irmão, quando ele ainda era vivo? Essa não é a pessoa que eu conheci e não importa o que você faça, não quero nada com você, nunca mais. — Não fale do meu irmão — ela levantou a arma novamente, tremendo —. Sua filha, via a mãe ensanguentada, me ouvia gritar e chorar todos os dias, e o pai, onde estava? Você nos via poucas horas por dia, foi um pai de merda! Um marido de merda! Preferiu aquele hospital do que a própria família, foi sugado por aquele lugar, ficou tão fissurado que ao invés de entregar de uma vez aquele inferno pro seu irmão, escolheu ignorar todos os problemas que tinha em casa. Optou por fechar os olhos até que eu me submetesse às maiores loucuras do Saulo. Eu estava doente, porra! Você me deixou doente, e depois quis compensar sendo o melhor pai e médico para Ana. — Eu fui pai, Vivian! Eu fui pai enquanto você se preocupava em realizar os desejos daquele insolente! Te acompanhei por anos na psicoterapia, me esforcei pra não te deixar sozinha, mas às vezes era impossível! Meu irmão sempre foi louco desde criança, um completo insano que afundaria o nome que meu pai levou décadas para conquistar e edificar, eu não permitiria. E isso aqui não é uma competição para saber quem tem mais culpa, quem está errado ou certo. Você está com um revólver apontado para mim e se acha que atirando acabará com toda essa dor, atire! Atire de uma vez! Ela não atiraria. Eu tinha certeza que não, ou pelo menos precisava acreditar nisso.
— Você está escolhendo isso. Podia ser diferente, mas você está escolhendo. Se não for pra ficar comigo, não vai ficar com outra! Você não merece ser feliz! Vivian passou o dedo no gatilho e posicionou certeiramente o revólver. Fechei meus olhos e rezei. Pedi perdão à Mariana em pensamento e esperei para sentir a bala entrar em alguma parte do meu corpo. — Seu irmão desgraçou a minha vida! — de repente a mulher começou a chorar copiosamente e virou a arma para a própria cabeça. — Não faça isso — pedi calmo. — Todo mundo achava que só eu me machucava, só eu me cortava, a louca que adorava se destruir. Mas ele... — Eu tentei, quantas vezes eu tentei te afastar do Saulo. — Me afastar dele pra me deixar sozinha? Não faz muito sentido, querido. Seus lábios estavam avermelhados, molhados assim como o restante do rosto. As lágrimas entornavam e os olhos esverdeados mostravam toda a angústia presente naquele momento. — Eu te dou razão, mantenha a calma — dei passos em direção a ela e quando gesticulei para tocar em seus braços, ela apontou novamente para mim. Me afastei. Parecia um jogo de sensações, eu ficava desesperado em imaginar a mulher se matar na minha frente e também agoniava de pensar qual nível podia chegar a dor de um tiro no meu peito. — Saulo sempre quis tudo o que era meu. Ela ficou atenta e assentiu com a cabeça. — Mesmo sabendo que poderíamos dividir, eu adoraria ter dividido. Nosso pai, a nossa família, o hospital, Ana podia ter sido sobrinha dele, você uma cunhada companheira, mas ele quis controlar e ter posse de tudo. Naquela altura, o meu nervosismo foi embora. Percebi que não adiantava, ela estava com o poder em mãos e a deixaria decidir o que fazer. Então eu só precisava falar. — Desde pequeno eu quis ter um irmão e quando ele chegou na nossa casa fiquei muito entusiasmado. Mas era um garoto arredio, violento, antissocial. — Você não sabe nada sobre ele — estudei o olhar dela mas não desvendei nada —. Você é a parte feliz da família, Saulo era dor, arrependimento, o pecado. Seu
pai foi um desgraçado, e corrompeu seu irmão desde criança! Seu pai foi um desgraçado! — ela repetiu. Sabíamos que meu irmão era filho de outra mulher do passado do meu pai, mas nunca foi um assunto muito tocado dentro da nossa casa. Era um mistério que ao passar dos anos e com toda a distância entre mim e Saulo, desisti de descobrir. Mas aquilo não justificava o caráter dele, ou pelo menos era o que eu achava. — Eu também sou a parte da dor, arrependimento e desgraça da família. Entende? Entende por que eu e ele gostávamos tanto da companhia um do outro? Sei lá, precisávamos um do outro? Depois que Geoffrey morreu, minha família morreu. Ou acha mesmo que aquela aparência boa de mamãe e papai era real? Eles torciam para que eu me matasse e parasse de dar trabalho. — Não é verdade. — Você acredita no que está disposto a enxergar. Ficamos em silêncio, as sirenes ainda alarmavam do lado de fora. Ouvíamos algumas vozes mas nada decifrável. — Olha só... — ela sorriu — amanhã serei julgada e o seu irmão também... Deixei que ela terminasse. — Saulo é inteligente, sempre foi mais do que eu — o sorriso se abriu um pouco mais por elogiá-lo —, ou mais consciente. Ele sempre disse que eu posso ser altamente perigosa a mim mesma, me chamava de bombinha relógio. Enfim... O juiz vai inocentá-lo. Bom, você deve estar ciente disso. Continuei olhando-a. — E como você mesmo disse, eu apodreceria em um hospício. — Eu exagerei, Vivian. — Não, Valentim. Serei culpada de homicídio doloso, meu advogado me orientou sobre tudo. Vocês têm provas suficientes. — Mas você não matou a Mariana e... — Infelizmente. Mas o filho de vocês sim. Aliás, se é que era seu filho — ela riu —. Independente, estou cansada para apodrecer em um hospício. Novamente o cano do revólver foi em direção à cabeça dela. — Vivian! Não! Perdemos a cabeça. Vivian começou a chorar e eu me aproximei para impedi-la.
Ela gritou comigo e apertou o gatilho. Bastou para tirar a própria vida. Corri e abaixei-me no chão, analisei o furo e o caminho da bala. Deitei a cabeça dela no meu colo e vi o sangue jorrar pelo buraco milimétrico. Ela tinha se matado, não tinha o que fazer. De repente a sala da minha casa estava cheia de policiais e paramédicos. — Estou bem, eu estou bem — assegurei, quando vieram em minha direção. — Sem ferimentos? — um médico atendente questionou. — Estou bem — reforcei. — Valentim! — senti o abraço forte da minha irmã e depois da minha mãe. Me levantei e retribuí. — Preciso que vocês saiam — o perito criminal ordenou. — Você precisa de uma avaliação médica, Tim — minha irmã passou a mão no meu cabelo. — Santo Deus, meu filho! Vivian se... Olhei em direção ao corpo desfalecido sendo fechado em uma capa preta e voltei a olhar para Charlotte e Eleonora. — Eu preciso... — falei um pouco perdido. — O que meu filho? Do que você precisa? — Eu preciso ver Mariana, onde ela está? — Venha, meu irmão — Charlotte me abraçou e me guiou para o lado de fora. Mariana estava ajoelhada no chão, com a rosto coberto pelas mãos. Álvaro a amparava com a mão em suas costas. Do outro lado Carlie abraçava a amiga, enquanto Eveline e David conversavam com um delegado. — Mariana — chamei. Demorou para que ela me olhasse e quando o fez, ficou em pé e desferiu tapas no meu peito, me empurrou e me deu murros. — Idiota! Você nunca mais faz isso comigo! Está me escutando? Idiota, eu odeio você! Eu odeio você! Eu odeio, odeio — ouvi sua voz embargada e a abracei com força —. Eu odeio você — sussurrou — odeio... — Estou aqui — falei baixo —, acabou e eu estou aqui.
Senti seus braços me envolverem e escutei seus soluços no meio de um choro desesperador. Ela me apertou no abraço e fechou os olhos. Álvaro tocou meu ombro e assentiu com a cabeça. — Eu te mataria se você morresse, filho da puta — foi o que meu amigo disse. Minha rua estava lotada, haviam repórteres espalhados e equipes com câmeras. Falei o necessário com o investigador, porque o que eu mais queria era sair do cenário de terror que eu e Mariana protagonizamos. Ela não soltou de mim nenhum segundo. Esperamos Charlotte e Eric pegarem nossa cadela para levarem com eles e depois fomos direto para um hotel. Mandaram uma equipe policial conosco, para fazerem a segurança do local. — Quero tomar banho. — Sim, você precisa — a respondi. — Venha comigo. — Claro. Ajudei Mariana a se despir, e vi pelo reflexo do espelho quando ela fechou os olhos ao sentir minhas mãos deslizarem as alças da blusa fina que vestia. Beijei seu ombro e também fechei meus olhos. — Me perdoa pelo o que fiz hoje. — Você está aqui, então eu te perdoo. Dei outro beijo e terminei de deixá-la nua. Foi uma noite longa, nós dois não dormimos tomados pelo choque de adrenalina. Ela queria saber de tudo o que havia acontecido dentro daquela sala depois que foi obrigada a sair. Amanheceu e o sono não havia chegado. — Vou descer pegar um mocaccino no Starbucks, aqui não servem. — Não, não quero que saia. Peça para entregarem — ela contrariou autoritariamente. — Meu amor — segurei seu rosto —, acabou. E de qualquer forma os policiais estão lá embaixo. — Então vou com você.
— Não precisa, Mariana. — Seu irmão ainda está por aí, solto. E daqui a pouco teremos o julgamento. — Tudo bem. Cedi, Mariana estava em pânico e eu entendia. Nós fomos do hotel até o Starbucks com o carro dela, como nos orientaram, já que era blindado e completamente escuro. Pegamos o nosso café da manhã e voltamos para o quarto. — Você sabe que não precisamos ir até essa audiência — Mariana disse —. Dr. Ulysses disse que pode falar por nós dois. O juiz entenderá, porque está ciente do que aconteceu ontem. — Está falando isso porque acredita que Saulo será inocentado — acrescentei. Ela olhou para o copo e não me respondeu. — Preciso olhar para a cara dele depois de tudo o que Vivian me contou. Tudo bem se você não quiser ir, te deixarei no apartamento do Álvaro. Estão todos lá. — Quem foi intimado para testemunhar? — Dois médicos que te atenderam, funcionários de outros setores do hospital, Eleonora e Charlotte. — Por que as duas vão depor? — Elas conhecem Saulo desde que ele era uma criança. Falar sobre o comportamento dele dará mais veracidade aos fatos recentes. — Você também vai testemunhar? — Eu não ia. Mas vou pedir para o Dr. Ulysses tentar uma abertura com o juiz. Mariana D'Ávila O lugar estava cheio, eu desconhecia muitos dos presentes ali. Valentim tentou me explicar o papel de cada um, mas eu continuava aérea e em choque. A audiência foi horrível do início ao meio. Os advogados debatiam e brigavam. Saulo parecia um fantasma naquele meio. Quieto, entregue, sem vida. O homem responsável por defender o irmão de Valentim tentava me ferrar
mesmo sem me conhecer, enquanto Dr. Ulysses mantinha-se lúcido e perspicaz. O problema é que o advogado inimigo também era muito bem preparado, bom e renomado. Virou uma carnificina de ataques e perguntas cada vez mais difíceis de responder. Busquei averiguar as expressões do juiz, tentei traduzir aquele semblante imparcial e sisudo, mas não consegui extrair nada. — Calma — Valentim segurou minha mão e a apertou. Eu estava gelada, suando e logo comecei a tremer. — Ele vai sair impune — sussurrei. Foi minha vez de testemunhar, de falar tudo o que eu sabia. Fitei todos, o juiz e por último o Saulo. O mesmo se acomodou na cadeira e manteve-se impassível ao me olhar. Fui aos poucos e com muita dificuldade contando tudo desde o início. Tive que parar para me recompor. O juiz parecia compreensível, pois sabia que tinham apontado uma arma para mim no dia anterior. Saulo não expressou nenhuma reação, nada. Vi Valentim fuzilá-lo com o olhar cada vez que eu contava as atitudes mais relapsas de Saulo. Continuei falando. Parecia que as palavras embaralhavam na minha mente e não faziam conexão com a minha boca. Eu estava ficando zonza, cansada, foi quando Valentim interrompeu o meu depoimento e pediu para que me liberassem. — Está ótimo, você foi ótima — ele me confortou. — Seu irmão vai se safar. — Nós não sabemos, meu amor. Fica calma — senti os dedos dele entrelaçarem nos meus. Ouvi Charlotte falar sobre a infância perturbada de Saulo, da convivência entre irmãos que os três tinham, do comportamento dele com Eleonora e com o pai. Depois de alguns delitos que ele cometeu na adolescência, que eram sempre relevados e arquivados, já que Dr. Jackson Del Torre tinha cacife de sobra para abafar qualquer crime que o filho mais velho cometesse. Eleonora falou da conduta duvidosa e de hábitos ruins que ele tinha. Olhei para
Saulo de canto algumas vezes, mas ele continuava da mesma forma, parado, com as mãos dadas sobre as coxas, inabalado e aparentemente firme. Pessoas depuseram a favor dele, foram convincentes o bastante para descartarem qualquer resquício de esperança que sobrava em mim. O juiz pediu o intervalo para a averiguação de declarações e provas. Charlotte sentou-se ao meu lado e fez carinho no meu braço. Eleonora também foi carinhosa comigo. — Tome um pouco — Valentim me ofereceu um copo d'água. — Obrigada — bebi devagar e devolvi o copo. — Tenha fé, minha linda — Eleonora sorriu gentilmente para mim. — Isso, tenha fé — e a filha dela também. O tempo de intervalo acabou, o juiz voltou e o seu discurso deixou claro qual seria o decreto: Saulo seria inocentado. Mas fomos surpreendidos. Interromperam a autoridade maior da audiência e pediram pela entrada de mais uma testemunha. Ele hesitou, mas insistiram. Eu fiquei assustada e totalmente incrédula. Uma reviravolta podia acontecer. Era Justine. Foi a primeira vez em horas que vi a expressão de Saulo mudar. Ele ficou apreensivo e com a postura enrijecida. O que minha ex-colega de trabalho fazia ali? Ela logo tirou minha dúvida quando começou a falar sobre a relação abusiva que havia se estabelecido entre ela e o réu. Seu corpo, atualmente marcado, não era só o que ela tinha para mostrar. Justine também possuía provas em mãos, exames de corpo de delito, mensagens e gravações de áudios onde a violência e descontrole de Saulo ficaram evidentes. Ele tinha perdido. A mulher ainda ousou em se levantar e dar o celular na mão do juiz. Tentaram contê-la, mas Justine sempre foi brava e obstinada. — Esse vídeo mostra uma das vezes que ele me agrediu. O advogado de Saulo se revoltou, tentou reverter mas foi impossível. Justine fixou os olhos nos meus e me deu um sorriso sutil.
Houve mais um intervalo e quando o meritíssimo retornou, ele deu um depoimento longo e por fim a sentença. Saulo ficaria recluso por seis anos em regime fechado. Nós o assistimos sendo levado, preso por algemas. Ele não disse uma palavra e sequer nos olhou.
46 Mariana D'Ávila
Cinco meses se passaram, e no mês passado, em agosto, completei 27 anos. Valentim dizia que meu signo fazia jus a pessoa que eu era, uma perfeita leoa. Para comemorar os trinta e dois anos dele, nós escolhemos reunir os nossos amigos e viajar para o chalé. Era uma boa ideia. Não íamos desde o natal do ano anterior. Era final de Setembro, e dia 25 o médico faria aniversário. Eu estava nervosa há um dia, guardar o presente dele estava me deixando doida. Um deles era que finalmente, eu aceitaria o pedido de casamento. O outro era que eu estava grávida. Eu tinha a ideia de esperar completar as doze primeiras semanas mais arriscadas, porque temia que acontecesse alguma fatalidade com o nosso bebê, tinha medo de decepcioná-lo. Porém, eu não aguentaria mais do que aquela noite. Desde a prisão de Saulo, nossa vida caminhava feliz. No mês anterior, bem no dia 18 no meu aniversário, eu fiz a primeira apresentação com as minhas pequenas bailarinas do colégio. O bom é que Sol havia sido transferida para essa mesma escola, e consequentemente eu era sua professora de novo. O espaço que Valentim me deu no final do ano também começou a ser utilizado, e crescia mensalmente em nome e em número de alunos. Vocês acreditam que Álvaro entrou para a diretoria do Saint Clair? Claro, junto com o Valentim, para poder dividir as tarefas. Calma. Tem mais! Valentim abriu uma nova sociedade farmacêutica com David. Isso mesmo, com o "irlandês babaca". Era difícil crer que depois de tanta tempestade estávamos bem. O meu médico preferido cedeu parte da administração do hospital para o amigo para poder ter
mais tempo comigo. Carlie quis nos matar, porque perderia um pouco do precioso tempo com o marido. Pois é, eles se casaram no meio do ano e logo idealizaram planos para ter o primeiro filho. Eu e Valentim fomos mais rápidos. Mas também, eu começaria a me preocupar se já não estivesse grávida, baseado no tanto que eu e ele fazíamos amor, uma, duas vezes por dia. E três à noite. — Não vai me falar mesmo? Foi algo que eu falei essa noite? Meu noivo — ele não sabia que era meu noivo ainda — estava preocupado com o meu silêncio desde a parte da manhã. Do momento em que acordamos até o momento que estávamos na estrada, nós tínhamos trocado no máximo três frases. Eu estava realmente nervosa. Contente a ponto de não caber dentro de mim, mas com medo, porque perdemos o nosso primeiro filho. Só torcia muito para que desta vez desse tudo certo. — Já disse que está tudo bem, amor — segurei a mão dele que estava sobre a minha coxa e sorri ao olhá-lo. Ele me analisou. — Tem certeza que não foi... Durante a madrugada conversamos sobre um possível tratamento para engravidarmos. Ele que falava "engravidarmos." Como eu disse, estávamos na ativa dia e noite. Valentim temia termos problemas para uma segunda gestação. Tadinho... mal sabia que o nosso fruto estava crescendo há semanas no meu ventre. — Não. Não foi, nós vamos conseguir um bebê sem tratamento. Sua irmã disse que está tudo bem comigo, que eu posso engravidar — Meu Deus! A vontade de contar logo era imensa. Há um tempo eu fazia acompanhamento com a irmã de Valentim, ela era uma ótima ginecologista, e também cirurgiã obstetra. — O problema pode estar em mim. É justo que eu procure saber, não acha? Por que eu tinha a sensação de que ele estava sondando o terreno para poder
concluir alguma coisa? Provavelmente porque estava com aquele segredo me deixando maluca, qualquer coisa que ele dizia parecia que tinha descoberto, mas era paranoia. Queria que fosse surpresa, só isso. Um presente de aniversário dos grandes. — E quando você vai aceitar o meu pedido de casamento? Ele pedia todo santo dia. De manhã, a tarde e a noite. — No seu próximo aniversário, quem sabe — era mentira, mas não custava nada irritá-lo. — Mariana, nós nos conhecemos há menos de um ano, mas não temos dúvidas de que é isso o que queremos. Por que... — Valentim, dirija mais rápido. Estamos atrasados, todos já devem ter chegado. Ele respirou fundo e fez carinho na minha mão. Era difícil vê-lo bravo e olha que eu era uma ótima candidata a conseguir essa proeza. O homem ficava mais ciumento a cada mês que passava, e eu adorava provocálo. Obvio, eu só fazia isso porque estava ciente da certeza que ele tinha da minha lealdade e do meu amor. Uma hora depois entramos no camping. O sol raiava aquecendo o lugar. A grama ao contrário do natal, estava verdinha, o rio, que desta vez não estava parcialmente congelado, corria causando um som calmante. Os pássaros junto aos ruídos dos outros animais da floresta próxima, nos conectavam sublimemente com a natureza. Eu amei este lugar na primeira vez que viemos, mas na segunda vez eu amei o dobro. Não haviam pessoas nos atrapalhando, não haviam mentiras. — Finalmente, porra. Pararam pra dar uma rapidinha? Que demora! — David reclamou assim que eu e Valentim subimos os degraus do imenso chalé. — Não seja intrometido, meu bem — a esposa do irlandês o corrigiu. Pasmem, Katie, a ruiva lindíssima esposa do David se juntou a nós. Depois de um sangramento que ela teve no cérebro, descobrimos que a doença misteriosa era um aneurisma grave. Estando próxima ao Saint Clair, ela foi levada às pressas e teve que realizar uma cirurgia urgente com o neurocirurgião do hospital. E como David mesmo me contou, o casamento estava melhor do que nunca.
Em uma das vezes que saímos David resolveu se abrir comigo, e eu fiquei sabendo dos problemas que ambos enfrentavam. Um deles era que Katie desenvolveu depressão após o segundo parto, e então se fechou para a relação, incluindo para sexo. Foi assim que concluí que ele nunca foi um canalha infiel. Sim, Katie e David entraram em um acordo sobre ele ter sexo fora do casamento... E foi assim que nos conhecemos. Ela sabia sobre mim. Depois da recuperação nós tivemos a conversa mais constrangedora do mundo. A mulher era um poço de doçura e delicadeza, não me ofendeu nem me atacou em momento algum. De qualquer forma, pedi desculpas e disse que os desejava felicidade nessa nova etapa do casamento. — Alguém trouxe uma mordaça? Pra fechar a boca desse imbecil — Valentim retrucou. — David gosta dessas coisas — Katie respondeu —. Trouxe, branco? — Pirou, ruiva? Me expor assim... Os dois eram lindos juntos e nos faziam rir à beça. — Deixem de papo à toa, temos um bolo para fazer — Charlotte cortou a conversa. — Vamos, eu te ajudo — Eric se prontificou e ambos foram para a cozinha interna. — Eu quero sentar, colocar as pernas pra cima e tomar uma cerveja. Posso? — Carlie logo foi para a área externa para carregar a geladeira de coisas. — Traz uma pra mim — Eveline pediu. Nós estranhamos, era dificílimo minha irmã beber. — O que foi? Tive uma noite estressante naquele hotel, estou sem dormir e quero beber. — Vai te dar sono. Vou fazer um French Martini, pra te dar um grau — Álvaro ofereceu e foi atrás de Carlie. Fui para a área gourmet e sentei no banco comprido de madeira. Carlie estava terminando de guardar as coisas na geladeira e Álvaro preparando o drink. — Toma amiga, tá geladérrima, no ponto — minha amiga me entregou uma long neck aberta e eu neguei com a cabeça. — Não vou beber, obrigada. — Tá doente? Olha o calor que está, Mari. Beba comigo — ela continuou com a
cerveja na minha frente. Neguei com a cabeça de novo e a olhei nos olhos. — Mariana! — Carlie me analisou, hesitante. — O que? — perguntei me fazendo de desentendida. — Posso saber o real motivo por você não beber? Carlie me conhecia mais do que eu imaginava. — Obrigado — Valentim apareceu de repente e pegou a garrafinha da mão dela. Eu tentei disfarçar a situação, vi Carlie cochichando para Álvaro e beliscá-lo em seguida quando ele ia gritar algo. — Esses dois são loucos — meu namorado comentou assim que me abraçou. — São — Deus! Eu não aguentaria até o jantar. — Vou pegar outra pra mim — Valentim me deu a cerveja. Parecia brincadeira, para testar minhas habilidades teatrais. — Não vou começar a beber agora — dei um sorrisinho e ele ficou me olhando. A sensação é que todo mundo estava de olho em mim, mas era loucura da minha cabeça. — Vou ajudar sua irmã e o seu cunhado com o bolo — gaguejei um pouco e me levantei. — Sua amiga está estranha — ouvi Valentim comentar com Carlie. — É o calor — Calor, Carlie? Ri sozinha e me juntei com a minha cunhada e Eric. — Muito bom — minha irmã elogiou o drink após bebericar pelo canudo. Fiquei perdida nas lembranças olhando para o lugar onde Eveline e Katie estavam sentadas. Fiquei por tempo demais e sorri quando lembrei que Valentim me fez derrubar os objetos do balcão. — Planeta Terra chamando — Eve estalou o dedo na minha frente. As meninas olharam para os lados e conferiram se havia algo de errado no balcão, eu pisquei para retornar a realidade. — Ela e meu irmão devem ter aproveitado muito desse balcão. Nada demais — Charlotte deu os ombros e continuou mexendo os ingredientes do bolo.
Eveline pulou imediatamente para descer e Katie ficou rindo. — O que? Uma foda num balcão, quem nunca? — a irmã de Valentim simplesmente indagou. — Eve nunca — David se divertia com a timidez da minha irmã. — Você é mesmo virgem? Não consigo acreditar — Eric ajustou a temperatura do forno e então se aproximou de nós. — Por que? Está interessado? — Charlotte logo cortou o marido. — Ainda bem que você não é brava assim, minha ruiva — o irlandês abraçou a esposa e deu-lhe um beijo. — No caso ela é ruiva, então devo ficar atenta sim —Katie respondeu. — Você precisa de ajuda? — perguntei para Charlotte. Era bom demais tê-los descontraídos e alegres, mas eu não conseguia deixar de pensar um minuto sequer na reação de Valentim ao saber que teríamos um filho. O mais engraçado é que até o dia anterior eu não sentia absolutamente nenhuma mudança no meu corpo, mas foi só fazer os testes de farmácia que tive enjoo na manhã seguinte. E para deixar claro, não fiz o exame de farmácia porque estava fissurada na ideia de engravidar, mas sim porque minha menstruação atrasou alguns dias. Cortei as frutas para o recheio do bolo, Valentim gostava de bolos brancos, na maioria das vezes de frutas. O dia estava realmente quente, mas logo comecei a suar mais do que o normal e mais do que qualquer outro presente ali. Minha nuca transpirava, minha testa e o pescoço. — Saia de perto do forno — Carlie apareceu e pegou o prato de frutas da minha mão. — Vou morrer de calor. — Vai tomar um banho e descansar — minha amiga sorriu para mim, confirmando que ela sabia. — Vou... Cadê o Valentim? — Foi com o Álvaro organizar a pescaria de amanhã. — Então eu vou subir e tentar dormir um pouco. — Isso amiga, vai e qualquer coisa me chama.
Dei um beijo no rosto de Carlie e fui para o quarto. Nosso quarto do chalé, o de madeira escura, aconchegante, com lareira e inúmeras recordações feitas em três dias, estava com a roupa de cama limpinha. Desconfiei que o camping oferecia funcionários domésticos para manter os chalés bem limpos e organizados. Não consegui dormir, minha mente ficava buscando as palavras de Valentim, todas as vezes que ele dizia que eu era sua nova chance, seu recomeço. Eu estava feliz demais, mas volto a dizer que o medo também se fazia presente. Não queria estragar tudo, só de pensar em perder o bebê eu ficava aflita. — Carlie disse que você está cansada — estava tão inerte nos meus pensamentos que nem escutei Valentim entrar no quarto. Senti o colchão afundar sutilmente e depois seu abraço por detrás do meu corpo. Fechei meus olhos quando os lábios dele encostaram no meu ombro. — Vou tomar banho, quer vir comigo? — o convidei. — Quero, também estou suado. Levantei e não o olhei até entrarmos no banheiro. — Mariana, se você não me falar o que está acontecendo eu não vou poder te ajudar. — Não tem nada acontecendo — entrei no box e abri os dois chuveiros. Lavei meu cabelo, o corpo todo e as costas com a ajuda dele. Ele não insistiu mais. Os rapazes ficaram na área externa sentados na mesa, papeando e tomando cerveja. As meninas subiram para tomarem banho e se arrumarem para o jantar. — Você preparou alguma coisa? — Carlie cochichou para mim. — Do que está falando? — Pra contar pro Valentim que ele vai ser pai — ela falou mais baixo. Eu revirei os olhos, como podia ser tão rápida? — Não. Aliás, tenho umas ideias. — Qual é, Mari? Por que esse desanimo todo? — minha amiga me olhou preocupada. — Eu tenho medo. Não aguentaríamos perder mais um bebê. — E por que vocês perderiam? Você é nova e saudável. O que aconteceu no
começo do ano foi um acidente, um crime. É bem diferente de agora. — Estou com cinco semanas só, Carlie — relutei. — E você fala só? Tudo isso? Meu Deus! Que vontade de gritar e te abraçar — continuou cochichando e então me abraçou. Acabei sorrindo. — Você vai ver, vai dar tudo certo. Já está dando. — Eu espero muito que sim. — Já deu. Mas anda, termina de se arrumar, vamos descer pra você colocar alguma das suas ideias em prática. — Carlie... — Você tem cinco minutos. Respirei fundo e me apressei. Coloquei um vestido longo de um vermelho bem vivo, deixei meus cabelos soltos, ousei pintar a boca da mesma cor que o vestido e nos pés calcei uma sandália sem saltos. Quando estava pronta, tive uma súbita ideia. Comecei a procurar um envelope na minha mala, na de Valentim e por fim, encontrei na sua maleta médica. Tirei todos os documentos de dentro e guardei na maleta. Sentei em frente à penteadeira do quarto e peguei um papel na gaveta. Com a caneta eu escrevi e guardei no envelope. Levei um susto quando senti a mão dele no meu ombro. Olhei-o com os olhos arregalados e ele franziu as sobrancelhas. — Aprontando, bailarina? — Seu presente — mostrei o envelope e quando ele foi pegar eu puxei de volta —. Calma, apressadinho. — Está cheia de mistérios. — Estou — levantei e beijei-o na boca —. Vamos descer, quero decorar o bolo. — Charlotte já terminou — ele me enredou pela cintura e nós descemos. — Uhum. Valentim ficou me analisando, desconfiado. — Para, homem — dei um tapinha nele. — Você está linda com esse vestido, amor — sussurrou no meu ouvido e me deu
um beijo na bochecha. — Você também está gostoso, amor — pisquei para ele e me juntei com as meninas na cozinha. — Por acaso ainda tem glacê pronto? — perguntei para Charlotte. — Tem, Mari. Na geladeira — ela informou, estava ocupada no telefone, aparentemente falando com Sol —. Merda de sinal — reclamou saindo da cozinha atrás de sinal. Procurei pelo glacê e peguei o bolo grande branco. — Não deixa Valentim vir aqui — pedi à Carlie. — Deixa comigo amiga — ela também saiu e foi para a sala, onde Valentim tinha ficado para acender a lareira. — Vou arrumar os talheres na mesa — Eve comunicou. Comecei a decorar as bordas do bolo e seguida escrevi "Parabéns, papai". Ele ia morrer do coração? Talvez. Mas ia morrer feliz. — Porra, David — coloquei a mão no coração assim que o irlandês pôs as mãos no meu ombro. — O que é isso? — Sai! Vai pra lá — fui expulsando-o antes que ele visse. Tampei a caixa do bolo e guardei de volta na geladeira. — E esse cordeiro, vai sair ou não? — Eric apareceu também. — Estão com tanta fome assim? Está quase pronto — Charlotte deu uma olhadinha com a luz do forno acesa. — E como nossa pequena está? — Eric perguntou para esposa. Eles eram tão fofinhos, aliás, Eric sim, Charlotte era delicada como um coice de mula. — Está bem, mas minha mãe estraga ela demais... Fica dando porcaria fora de hora pra menina. Fiquei observando-os, feliz por saber que daqui a um tempo seria eu e Valentim preocupados com o nosso filho, ou filha. Sentamos para jantar quando a carne saiu, estava deliciosa. Eu comi mais do que o normal, repeti três vezes. Ficaram assustados, mas logo eu poderia começar a usar a desculpa de que estava comendo por dois. Todos beberam vinho, exceto minha irmã e eu.
— Pessoal — peguei minha taça com suco e fiquei em pé. Eles me olharam. Resolvi jogar o medo de lado e fazer um discurso. — Gostaria de falar que vocês são muito importantes para mim. Sou grata por tê-los na minha vida e amo cada particularidade de cada um de vocês. Hoje eu posso dizer que sou feliz, que mesmo passando por obstáculos gigantescos e dolorosos, eu consegui encontrar a felicidade, e isso eu devo á vocês... Claro, tem uma pessoinha aqui que tem mais créditos nisso, porque me fez descobrir que o amor pode ser o sentimento mais delicioso de sentir. Bom — dei risada e sequei uma lágrima solitária que escorreu —, vou parar de falar porque se não começo a chorar. Eles estavam sorridentes e focados em mim. — Eu quero brindar porque hoje estou mais do que decidida a começar uma vida junto de Valentim. Na realidade, dar continuidade, mas para valer... E pra sempre se Deus quiser. Minha cunhada já estava chorando e Carlie com os olhinhos brilhando. — Finalmente, caralho! — Álvaro gritou. — Amor — fitei Valentim que estava vidrado em mim —, eu aceito ser sua esposa, aceito me casar com você. Ele não conseguiu dizer uma palavra. Levantou, me agarrou e me deu um beijo de tirar o fôlego. Derrubei o suco na mesa e nossos amigos riram enquanto batiam palmas. — Ele quer — Valentim disse baixinho —. Deus quer que fiquemos juntos pra sempre. Passei os dedos embaixo dos olhos dele para secar as lágrimas e beijei-o mais uma vez. — Vamos brindar — David levantou a taça, depois a esposa dele e todos em seguida. Eu brindei mesmo sem suco. Nossos amigos nos abraçaram e nos felicitaram, um por um. — Vamos pegar o bolo? — Carlie perguntou e me olhou. Me deu um friozinho na barriga. — Eu pego — minha irmã se prontificou. — Vamos para a sala — sugeri.
Valentim pegou na minha mão e andamos abraçados até a sala. — Eu trouxe seu anel — cochichou no meu ouvido. — Que anel? — De noivado — deu um sorrisinho singelo. — Existe um anel de noivado? — indaguei. — Há meses. — Convencido. Você sabia que eu aceitaria. — Claro que eu sabia. Sentei no colo dele, no sofá enorme da sala. O fragor da brasa queimando as toras era aconchegante, e aquecia a sala. O restante se sentou no tapete de pele no chão e minha irmã veio com o bolo. — Calma, calma — avancei na mão dela antes que abrisse a tampa da caixa. Ela me olhou assustada. Coloquei o bolo sobre a mesa central e me afastei. — Preciso dar o meu presente... E quero que você abra o bolo — eu disse olhando para o meu noivo. Noivo. Noivo! Sempre achei lindo esse negócio de noivado. — Outro presente? — Esse é um pouquinho mais significativo. — Mais do que nosso casamento? Não falei mais nada, só dei o envelope na mão dele. — O que é? Leia em voz alta, vou ter um infarto — Charlotte pediu. Ele abriu e leu. "Eu estou chegando e serei seu maior companheiro(a)". — Que isso, Mariana? — O bolo — falei. — Não, o que é isso no papel? Começaram a rir da reação dele, todos haviam entendido e ele também, só não acreditava.
— Abra a caixa do bolo. Ele abriu e ficou olhando. — Eu vou ser pai? — perguntou baixo, com as íris mais lindas fixas nas minhas. Assenti com a cabeça, com uma vontade monstruosa de chorar. — É sério, Mariana? — Deixa de ser sonso, tô me segurando pra não levantar e dar o primeiro parabéns — Carlie o empurrou com o pé. Ele até bambeou, de tão atônito que estava. — Eu vou ser pai mesmo? — perguntou mais uma vez e eu dei risada dizendo que sim —. Nós vamos ter um bebê, amor? É sério? — e veio me abraçar logo me enchendo de beijos —. Como eu amo você, meu Deus. Eu amo você... Retribuí o abraço com a mesma força. Nós éramos o lar um do outro e isso ficava mais claro quando estávamos dentro do nosso abraço. — Eu também te amo e sim, vamos ter um bebê mesmo meu amor — segurei o rosto dele e selei sua boca. David foi o primeiro a começar a farra. Levantou, nos abraçou juntos e depois os nossos outros amigos fizeram o mesmo, nos envolveram em um abraço coletivo. Nós cantamos parabéns e depois voltamos a sentar para comer o bolo. — Por isso você não bebeu hoje e estava estranha. Quando ficou sabendo? — Ontem amor. Ontem à noite. Não sei como consegui esconder até agora, estava ansiosa. Fiquei passando os dedos nos fios negros e macios do cabelo dele quando terminei de comer. — Está com quantas semanas, Mari? — Eve perguntou. — É amor, quantas semanas? — a ficha dele estava começando a cair. — Cinco — acariciei minha barriga e Valentim abaixou-se para beijá-la. — Oi filho, agora o papai sabe que você está aí, e prometo que cuidarei duas vezes mais da sua mãe. Vê se não dá muito trabalho pra ela, viu? — Agora fodeu, ficou idiota de vez — o irlandês provocou. — Calado — minha cunhada revidou —. Ai Mari, quero falar com ele também. — Eu também — Carlie disse.
— Eu só quero que seja uma menina, pro Valentim se cagar de ciúme — Álvaro desejou. — Valeu — e Valentim respondeu. — E não é? Já imaginou se puxa a beleza da mãe, tá fodido — David colocou lenha. — David — adverti. — Falei nada demais, Bela — ele levantou as mãos. Valentim começou a gostar dele, até porque era inevitável não se render aos encantos do irlandês, e ao seu humor incontrolável. Mas o ciúme sempre estava presente, o que fazia o irlandês provocar sempre. Era uma forte característica dele: ser irritante. — Estou ansiosa pra fazer seu acompanhamento, cunhada — Charlotte uniu as mãos e piscou diversas vezes, toda alegre. — Eu preciso muito que dê certo dessa vez — falei baixo somente para ela e Valentim escutarem. — Vai dar — Charlotte segurou minhas mãos. — Já deu, meu amor — Valentim passou o polegar no meu rosto e beijou minha testa —. Nosso bebê virá forte e saudável, pra te dar muito trabalho. Agarrei a fé de Valentim e a tomei para mim. A noite seguiu tranquila e divertida. Meus amigos estavam ficando embriagados, e então começaram a contar piadas e entrar em assuntos engraçados. Valentim não desgrudava de mim, e a mão dele não saía da minha barriga. Que ele seria um pai incrível eu não tinha dúvidas. E mesmo receosa e com mil questionamentos sobre essa nova fase da minha vida, sobre a maternidade, eu estava inexplicavelmente feliz.
47 Mariana D'Ávila
Você não vai.
—
— Amor, eu vou. — Não vai, Mariana. — Você é meu marido, não meu dono. — Mas sou pai do garoto na sua barriga. Tão dono dele quanto você. — Deus, Valentim! Foi só uma cólica, e a sua irmã deixou bem claro que era por causa da posição dele. — Então pronto. Descanse! Sua noite não foi boa, você precisa dormir. — Eu tenho que dar aula, criatura. — Mas não vai, criatura — revidou tratando-me como uma criança. — Mas eu quero, Valentim. Eu preciso, essa turma vai apresentar daqui a um mês. — Você disse que aquela outra professora, a Ellis, poderia te substituir caso fosse necessário. — Mas não é. Homem, presta atenção — coloquei as duas mãos em seu rosto e o fiz olhar nos meus olhos —. Eu não colocaria o nosso pequeno em risco, certo? Ele está bem, Charlotte confirmou que está tudo perfeitamente bem. — Estou de folga hoje — ele fez um beicinho entristecido —. Te dou um atestado médico, pode ser? — Impossível negociar com você — respirei fundo, me conformando que o melhor era passar o dia agarradinha com Valentim, ao invés de dar aula. Não seria um sacrifico. — Que bom que sabe. — Mas posso passar as aulas por videocon... — Mariana! — ele me repreendeu todo sério. — Ok — levantei as mãos abertas —. Ok, você venceu.
— Então vou fazer pipoca e brigadeiro. — Te deixarei vencer mais vezes. Ganhei um sorrisinho convencido, ele me roubou um beijo e caminhou para fora do quarto. Liguei a TV gigante do painel na frente da cama e comecei a procurar alguma coisa interessante nos incontáveis canais. Nosso pequeno menininho começou a foliar dentro da minha barriga. Era de costume na parte da manhã e principalmente à noite. Me perdi nos diálogos fofos com meu filho e sequer vi o pai dele voltar para o quarto. — Antwan está agitado? — Consigo sentir o joelho dele — coloquei a mão sobre a saliência na minha barriga. — É só você comer que ele sossega um pouco — meu marido sorriu e veio com o balde de pipoca até a nossa cama. — Viu, comilão? Seu pai te conhece melhor que ninguém — acariciei por cima das ondas causadas pelo bebê guloso. Fechamos as persianas com o controle para bloquear a iluminação do sol. O quarto ficou escurinho, propício para escolhermos um filme. Valentim optou por assistirmos Hacksaw Ridge, um filme maravilhoso baseado em uma história verídica da batalha de Okinawa, no Japão. Nele, contava a posição de um médico americano que durante a segunda guerra mundial se recusou a pegar em armas, e mesmo assim salvou muitos homens com seu propósito e sua fé. Emocionante do início ao fim. Eu chorei feito uma criança desolada, e Valentim também não poupou algumas lágrimas. O médico realmente conhecia nosso bebê. Antwan se acalmou assim que eu terminei de devorar o brigadeiro, após ter acabado com a pipoca. — Venha aqui ver seu irmãozinho se acomodar para dormir — bati na cama na intenção de chamar a Lua para subir. Ela obedeceu. Nos meses que se passaram, Valentim contratou um adestrador para educar a nossa Husky. A lobinha estava gigante, com patas enormes, peluda
e linda como um lobo siberiano. Meu marido adorava tanto a cadelinha que fez questão de adestrá-la para deixá-la conviver e crescer com o nosso filho. Ele dizia que os olhos dela eram quase tão bonitos quanto os meus. Lua lambeu minha barriga exposta e aproximou o focinho do meu umbigo, me causando cócegas. Fiz carinho nela e continuei deitada no peito de Valentim. — Bailarina, você tem certeza sobre o que conversarmos ontem? — ele interrompeu o silêncio. — Absoluta. — Podemos ir para qualquer lugar que você quiser. Apoiei minha mão em seu peito e o encarei. — Vou te perguntar mais uma vez. As lembranças te perturbam? Ele desviou o olhar. Valentim havia presenciado a ex-esposa se suicidar na sala da nossa casa e talvez relembrar dessa tragédia o atormentasse. Eu gostava da nossa casa, muito por sinal. Era grande, mobiliada com muito bom gosto, espaçosa e mais que o suficiente para criarmos o nosso filho. Mas se ele insistisse, eu aceitaria me mudar. O bem estar dele importava mais que qualquer coisa. — Podemos comprar uma ótima casa em um condomínio seguro com o dinheiro da venda do outro apartamento e nos mudarmos após a cerimônia. Havíamos nos casado somente no civil, a festa aconteceria depois do nascimento de Antwan. — Fecharam negócio mesmo? — Sim. O apartamento que ele viveu com Ana e Vivian havia sido vendido pela fortuna que valia. Eu tinha uma vida de princesa desde que nos casamos, até antes na verdade. Sempre soube que Valentim era rico de nascença, mas mesmo assim eu impus limites. Amava trabalhar no colégio, ter meus alunos e meu salão de dança. Ele respeitava, embora demonstrasse proteção o tempo inteiro, talvez pela gravidez ou porque fizesse parte do seu ser. — Uma casa com jardim.
— Você escolherá comigo. — Não precisa. Minha única exigência é um jardim, bem grandão — falei. — Feito — senti seus lábios nos meus e sua mão macia acariciar meu rosto. Levantei-me para buscar suco para nós dois e Lua veio atrás. Quando voltei ofereci o copo para Valentim e parei em pé ao lado da cama. O homem sentou-se e bebericou o suco, depois encaixou a mão no meu quadril e ficou de frente para a minha barriga redonda e pontuda. — Sossegou, filho? Posso ficar um pouco com a sua mãe agora, arteiro? — senti seu beijo casto e em seguida vários dele espalhados. — Temos três meses ainda para aproveitar. — Negativo. Ele será meu parceiro. Não é, Antwan? Combinamos que ele deixará a mamãe dar atenção para o papai. — Combinaram? Quero só ver — gargalhei com a forma em que o homem ficava tolo falando com o nosso bebê. A escolha do nome Antwan foi de Valentim, era uma variante de Antônio e significava: de valor inestimável. E realmente, não podíamos estimar o valor que o nosso filho tinha em nossas vidas. Fomos em um restaurante de comida árabe na hora do almoço, Valentim conseguiu uma mesa de última hora. Nos sentamos de frente um para o outro, ele pediu um vinho tinto da carta e soda com limão para mim. Conversamos sobre assuntos aleatórios, e depois que terminamos de degustar a deliciosa culinária seguimos para o shopping mais próximo. Ele queria comprar mais coisas para Antwan. Como se já não bastasse tudo o que o primogênito havia ganhado da nossa família e amigos. — Não, Valentim. Pra que gastar dinheiro com isso? — É muito útil, eu garanto. — Mas ele tem um berço lindo. Não precisa de outro. — Esse é para encaixar na nossa cama. Olhei para o mini berço, que mais parecia um caixote, e analisei. Não entendia nada, estava conhecendo aos poucos, já meu marido tinha experiência de sobra. — Ele pode dormir na nossa cama, com a gente — dei os ombros. — Pra não dormimos direito e corrermos o risco de amassá-lo?
— Não faríamos isso. — É bom para a amamentação noturna também, Mariana. — Certo. Ele solicitou um igual para o vendedor. Nós continuamos andando de mãos dadas pela loja gigantesca de artigos infantis. — Aquele — apontou para um balde. — Um balde? — Pros banhos. — Ele tem banheira, Valentim. O mesmo sorriu para mim e balançou a cabeça. — Confia no que estou falando, já fui pai — não senti arrogância em seu tom, mas me entristeceu —. Queremos dois brancos daquele modelo, se possível em dois tamanhos. O vendedor assentiu e anotou no tablet. — É pra colocá-lo dentro na água morna, é confortável e remete ao seu útero. — Ahhh, é esse! Charlotte comentou comigo. Deixei que ele escolhesse as coisas complicadas e fui olhar mais roupinhas. Era a parte que mais me deixava apaixonada. Camisas xadrez, mini calças estilosas, meias fofinhas, sapatinhos, pantufinhas, luvinhas, toquinhas, cuequinhas, tudo no diminutivo me deixava com os olhos brilhando. Só de imaginar meu pequenino dentro de cada peça eu já sentia uma vontade antecipada de apertá-lo, mas de apertar muito. Passei de corredor em corredor e não hesitei em pegar tudo o que eu queria. Além de Valentim ter muito dinheiro, eu recebia bem das aulas intensivas do salão e um salário melhor ainda do colégio. Não era possível descrever a sensação de realização em poder oferecer tudo e mais um pouco para o meu filho, filho o qual no passado eu nem cogitava ter e que agora desejava loucamente a sua chegada. — Ahhhh não, Valentim. Uma rede? Uma rede em miniatura? Pra que isso? — Pra por sobre o berço. O "berço" de Antwan era montessoriano ou seja, no chão. — Moço, diz pra ele que um bebê não sabe nem o que é rede — olhei para o
vendedor e o mesmo riu. — Os bebês gostam, senhora. — Viu? — Valentim voltou a olhar o mostruário. — Pra que serve isso? — Outro método para acalmar. — Sério? — Ana amava — ele disse, e outra vez me senti triste. — Vou passar o que eu peguei. Tô doida pra ir tomar um milk-shake. Dei um beijo no rosto dele e saí. Toda vez que comprávamos algo para o nosso filho Valentim recordava arrebatadoramente de Ana. E sua primeira filha não era um assunto muito abordado entre nós dois, sempre o ouvia quando preciso, mas eu nunca iniciava a conversa. Antes de terminar de passar todos os itens, Valentim apareceu e não permitiu que eu pagaasse. Nós subimos pelo elevador e sentamos em uma sorveteria para tomar o meu almejado milk-shake. Confesso que estava um pouco pensativa sobre os comentários dele na loja de bebê e por isso fiquei na minha. — O que foi, amor? Fui grosseiro em algum momento? — Não. — Não é um problema você não saber detalhadamente sobre os bebês. — Eu sei. — Ei, o que foi? — seu dedo apoiou meu queixo e direcionou meu rosto para o dele. — De um a dez, qual é o nível de dor que sente atualmente pela perda de Ana? — fui direta ao ponto. Pontuar o nível de dor era algo que ele utilizava com os pacientes, e havia me ensinado. Precisávamos ser bem exatos quanto a isso, o dez por exemplo, era um nível impossível de citar porque não podia ser suportado. — Seis. Conseguiu me surpreender.
— Seis? — Seis — sorriu —. E você, qual é o nível de dor que sente pela perda da sua mãe? Pensei e senti. — Cinco. Eu ia uma ou duas vezes no cemitério por mês, levar flores e contar sobre minha vida. E durante este período todo eu não tinha visto Valentim visitar Ana, desde que nos conhecemos para ser mais exata. — Por que não a visita? — Nunca tive coragem — ele afastou a boca do canudo e desviou o olhar do meu —. Nunca me senti forte para isso — fiquei calada porque o compreendia —. Ana pediu muito para que eu lembrasse somente dos momentos alegres... E por enquanto é só isso o que consigo ter comigo. Não gosto de ficar afirmando que ela está morta. Mas ela está. Eu pensei e quis reafirmar. — Faz parte da aceitação, amor — foi só o que eu disse. — Eu sei. Um dia, quem sabe — sua boca rasgou em um sorrisinho. — Posso ir com você, quando estiver pronto. — Obrigado, meu amor — ele se aproximou de mim e puxou meu lábio inferior. Sua boca estava adocicada e geladinha por causa do milk-shake. Segurei em seu rosto e comecei a beijá-lo, ele correspondeu preguiçosamente e com carinho. Na volta Valentim me lembrou que jantaríamos na casa do Álvaro, porque de lá ele iria para o plantão noturno. Me contou também que tinha um prontuário de uma paciente muito importante para estudar. O bom é que somente uma, ou no máximo duas vezes por semana ele passava a noite no hospital. O restante das noites era todinho meu. Só não contávamos com uma tempestade brava na hora de sair. Não podíamos deixar de ir para o apartamento de Álvaro e Carlie, porque eu ia dormir lá. Meu marido não ficava tranquilo se eu não dormisse na casa dos nossos amigos quando ele tinha plantão, mais um motivo para a insistência sobre mudar para um condomínio fechado. Nada aconteceria comigo pois todos os nossos problemas, que no caso eram
Saulo e Vivian, haviam sido descartados, porém ele ainda sentia-se inseguro e eu respeitava. — Está conseguindo enxergar alguma coisa, amor? — Fique tranquila — ele colocou a mão sobre a minha coxa e continuou olhando para o para-brisa todo molhado da chuva forte que caía do lado de fora. Abaixei um pouquinho o som porque as ruas estavam muito escuras e não queria que nada o distraísse do trânsito. Ele saiu do carro quando estacionou, debaixo do temporal só para pegar um guarda-chuva no porta-malas. Abriu o mesmo e depois a minha porta. — Coloque — me entregou também um dos meus sobretudos com capuz. Me agasalhei depressa e saímos correndo na direção da entrada do edifício. — Você está todo molhado, homem — dei risada e ele acabou rindo também. — Olha esse aguaceiro — pulamos a guia da calçada onde a água corria fortemente. Começamos a rir quando finalmente entramos no saguão do prédio. Ele balançou a sombrinha nos molhando mais ainda e eu bati palmas. — Que gênio! As luzes começaram a oscilar, parecia um filme de terror, no entanto estávamos rindo sem parar. O cabelo de Valentim estava uma bagunça, os fios emaranhados e pingando. — É melhor voltarmos. — Pra onde? Ficou maluco? — Não podemos usar o elevador, bailarina. A energia vai acabar. — Dá tempo de subirmos. — Negativo. — Então vamos de escada — sugeri e ele gargalhou alto. — Eu com esse porte de atleta não aguento dezoito andares, como você pode achar que aguenta subir com essa melancia no lugar da barriga? — Melancia? Tô ofendida. É seu filho, idiota — o empurrei e ele me segurou para me roubar um beijo. — Vamos voltar para o carro. Eu cancelo o plantão de hoje.
— Valentim, podemos ir devagar. Andar por andar. Ele me olhou e analisou a situação. — Não vamos pegar o trânsito de novo, está perigoso — reforcei. — Um andar, paramos. Dois andares, paramos. E assim por diante, combinado? Dei um grito assim que a luz apagou de vez nos deixando no escuro total. — Amor — estendi a mão para alcançá-lo. — Calma, estou aqui — ele me amparou com o braço e em seguida vi a lanterna do seu celular ser acesa. Abrimos a porta das escadas e graças a Deus tinha luz de emergência. Era ruim, mas melhor que nada. Devagar fui subindo degrau por degrau e ele vinha atrás por segurança, caso eu caísse. — Sua bunda cresce a cada dia. Obrigado filhão — ele passou a mão por cima do meu vestido. — Você acha? — peguei na barra do vestido e levantei para provocá-lo. — Minha deliciosa — ele então encaixou o dedo na renda da minha calcinha e fez a mesma se enfiar dentro do meu traseiro. Dei um tapinha leve na mão dele e não foi o suficiente. O homem me agarrou pelo quadril e mordeu minha bunda com força. — Ai! — reclamei —. Vamos dar uma parada — falei ao completarmos mais um andar. — Minha vista estava tão boa. — Não se preocupe, eu melhoro ela pra você. Paramos em uma parte plana que separava um rolo de escada do outro, eu segurei no corrimão e coloquei e perna para cima, alongando-a bastante. Estava grávida mas não doente, e continuava sendo uma bailarina profissional. Dei mais risada da reação dele, das íris vidradas na minha bunda e no restante do meu corpo. Ele passou o sobretudo pelos meus ombros e o deixou cair no chão. Beijou meus ombros, minha nuca e segurou no meu pescoço para mordiscar meu rosto. — Acho que estou molhada — brinquei. Estava toda ensopada por causa da chuva. — Será que consigo te deixar mais? — seus lábios esfregaram-se na minha
orelha e sua voz sensual me arrepiou. — Tenta. Suas mãos geladas passearam pelas laterais das minhas coxas e fizeram o meu vestido subir até a altura dos meus seios, ele tirou a peça passando-a pelos meus braços e minha cabeça. Mordi meu lábio ao olhá-lo e vi seu sorriso devasso bem impresso em seus lábios corados. Embora estivesse chovendo, não estava frio. A área interna do prédio era quente, sem contar que tirar a roupa molhada me deixou mais aquecida. Abaixei minha perna do corrimão e virei-me de frente para ele, peguei em sua jaqueta preta e o empurrei na parede oposta. Nossas bocas se encontraram e nos beijamos intensamente. Exploramos cada parte dos nossos corpos com as mãos, com uma vontade voraz de sentir, de excitar. Ele abriu meu sutiã, que agora eu usava para sustentar os meus seios notavelmente maiores e inchados, pegou nos dois bicos e brincou com os pontos ouriçados, sem deixar meus lábios. Nossas línguas dançavam em completa sintonia, deliciosamente fomos nos entorpecendo e aumentando o desejo até que ficasse insuportável controlar. Valentim havia se despido da jaqueta, do suéter cinza, da calça jeans junto da cueca e dos sapatos. As únicas peças que restaram em mim foram minhas botas de cano longo, porque Valentim me impediu de tirá-las, o homem tinha fetiche por aquilo, e minha calcinha rendada. — Que calor — me abanei quando nos desgrudamos por segundos. — Se eu segurar o seu cabelo refresca? — ele segurou meu cabelo em um rabo e fechou o punho. Eu ia responder mas Valentim me obrigou bruscamente a abaixar. Fitei seu rosto e sorri quando dei de cara com o seu pau grosso, e duro o suficiente para não caber inteiro na minha boca. — Isso me dá mais calor — respondi. O vi fechar os olhos quando percorri cada centímetro com a ponta da língua. Segurei na base do seu pau e o fiz bater nos meus lábios antes de enfiá-lo na boca. Minhas chupadas iniciaram com lentidão e total apreciação. O sugava buscando sentir seu gosto, e querendo vê-lo delirar. Desci esfregando a boca até suas bolas, Valentim colocou a outra mão no topo da minha cabeça e puxou meus cabelos com muita força, ao mesmo tempo em que um gemido escapou no
meio da sua respiração ofegante. — Venha, Mariana — ele ordenou quando relutei ao ser puxada para cima —. Não vai querer que eu goze na sua boca, mulher. Deixei minha saliva cair na cabeça daquele monumento e espalhei com as mãos. Meu marido agachou-se parcialmente e pegou nos meus peitos, estimulou-os até que eu não aguentasse mais esperar para tê-lo dentro de mim. Entregue, levantei-me e rapidamente fui colocada de costas para ele. A barriga não atrapalhava, Valentim sabia exatamente como comandar nossas transas sem que me machucasse. E eu não sentia vergonha nenhuma, muito pelo contrário porque o que eu não achava ser possível aconteceu: ele passou a me elogiar mais ainda quando minha barriga começou a aparecer, assim como meus seios aumentaram, bunda e coxas também. Ele adorava se perder nas minhas curvas. Ouvi o elástico da minha calcinha estalar quando ele a colocou de lado e por fim a rasgou. Seus dedos vieram para o meu núcleo e ali os penetrou, encurvando-os certeiramente. O meu tesão se triplicava a cada toque, cada beijo. Deitei a cabeça para trás e Valentim aproveitou para me beijar na boca. Chupou meu lábio, mordeu e brincou com a minha língua enquanto enfiava seus dedos mais profundamente em mim. Meus gemidos foram enclausurados pelo nosso beijo obsceno, mas foi impossível controlar quando fui preenchida pelo seu pau. Ele mordeu minha boca com força mais uma vez, na intenção de me calar, apertou meu pescoço para estreitar minha passagem de ar e consequentemente diminuir o volume dos meus sons. Segurei no corrimão com as duas mãos e fechei meus olhos. Ele estava muito duro e grande, e parecia crescer mais de acordo com que a sua excitação aumentasse. — Você me deixa louco. — Que tesão, Valentim. — É gostoso, Mariana? Com os olhos ainda apertados eu assenti com a cabeça. Meus cabelos foram puxados com força e então abri os olhos. — Olha pra mim, amor — ele pediu.
Me esforcei para continuar encarando-o. Valentim parecia um animal primitivo e faminto, suas estocadas eram de tirar o fôlego. — Eu adoro ouvir você gemer assim — ouvi o seu sussurro rente ao meu ouvido. Encolhi meu ombro e tentei impossibilitá-lo de falar tão próximo da minha orelha, era um dos meus pontos mais sensíveis. Ele sabia. Então pegou novamente no meu cabelo e fez com que eu ficasse com a cabeça do jeito que ele queria. — Não estou aguentando — choraminguei. — Vou mais devagar — seu sorrisinho travesso não ajudou. E o maldito homem delicioso diminuiu o ritmo mas intensificou a profundidade dos movimentos, passando a entrar até o talo em mim. — Porra, Valentim. Eu vou jorrar desse jeito. Eu via o controle na postura e no olhar dele, mas seu pau pulsava dentro de mim mostrando que cada palavra minha o fazia enlouquecer mais um pouco. Comecei a apertá-lo. Sabia que ele praguejaria a cada contraída e não errei. — Caralho, assim não dá Mariana. Sorri e prendi meu lábio entre os dentes. — Não aguenta? Seus olhos estreitaram diante dos meus. Eu estava fodida. O homem começou a meter selvagemente, pegando no meu principal ponto interno de prazer. E como se não bastasse, seus dedos deslizaram pelo meu clitóris e começaram movimentos abrasadores. Fechei meus olhos, empinei mais minha bunda, reclamei, xinguei, e avisei que eu molharia tudo o que estivesse por perto. Minhas pernas tremeram, e minha boceta o expulsou para jorrar. Ele esperou que eu terminasse de esguichar tudo e voltou a entrar em mim. Seu braço me enredou, já que eu não aguentava parar em pé. Sua mão pressionou a minha boca para abafar meu gemido contínuo e barulhento. Ele gozou, e debochou ao se distanciar: — Não aguenta? Fiquei de frente para o seu corpo e coloquei minhas mãos apoiadas no corrimão atrás. Meu peito arfava, subindo e descendo.
Senti seu beijo no canto da minha boca. — Deixei minha bolsa no carro, e a única roupa que tenho para vestir está encharcada pelo meu próprio orgasmo — refleti. Valentim gargalhou e beijou meu pescoço. — Fica esperta, pense duas vezes antes de me provocar. — Não acho ruim não viu... — Eu sei que não — deu uma piscadela e pegou meu sobretudo do chão —. Vista só esse. — Que vergonha meu Deus — balancei a cabeça com a mão na testa. — Com certeza eles sabem como Antwan foi parar aí — olhou para a minha barriga. O empurrei e então vesti meu sobretudo. Ele pegou meu vestido e o cheirou. — Valentim! Demoramos mais meia hora para subir até o respectivo andar. Cheguei mais cansada que o previsto e com muita sede. Carlie assustou quando me viu. — Achei que tinha acontecido alguma coisa — no momento em que minha amiga foi me abraçar eu me afastei. — Não é uma boa ideia. — Vocês usaram a escada de emergência, né? — Álvaro assimilou. Eles me zoaram durante todo o jantar. Valentim ajudou, sendo que a culpa era dele! Sem vergonha! Ambos os médicos foram para o plantão e eu fiquei com a minha amiga. Eveline chegou de viagem e veio do aeroporto direto para o apartamento. Minha irmã estava viajando muito. Ela se destacou rapidamente na rede de hotéis em que trabalhava e por isso viajava o tempo inteiro. Chato, né? Não demorei para dormir, acordaria cedo no dia seguinte para ir até o colégio. Fui de táxi, já que Valentim ainda estava no hospital. Encontrei a Sol na entrada, eu adorava dizer que ela se tornou minha sobrinha também. Cumprimentei Eric, mandei um beijo para Charlotte e entrei com a grilinho falante. Consegui duas horas livres perto do almoço e decidi ir para o Saint Clair. Acenei
para os funcionários que a cada dia me tratavam ainda melhor e pedi para localizarem Valentim. Estava ocupado com a paciente importante, a que ele havia me falado no dia anterior. Aproveitei para poder comer. Fome de grávida não podia esperar. Já na frente do balcão minha atenção foi chamada para choros e birras. Me virei para olhar e lá estavam duas crianças fazendo o terror, uma brigando com a outra, gritando, tacando talheres e usando um homem de escudo, o pai talvez. O pai. Um belo de um pai. Um pai com um bebê cabeludo dormindo no canguru preso em seu corpo, aquela bolsa de carregar criança na frente do corpo. O homem estava tentando controlar a batalha dos terroristas. Fiquei com pena, não sei se da situação ou se do homem tão bonito sofrendo no meio da guerra dos pestinhas. Fora os que estavam brigando e o do canguru, tinham mais dois sentados tentando almoçar. Cinco ao todo. Cinco!! — Oi, é... Com licença, o senhor precisa de ajuda? — arrumei o vestido branco soltinho que Carlie havia me emprestado. O homem que ainda não tinha me olhado parou de segurar o canudo para outra criança ao seu lado e me encarou. Valentim que me perdoe, mas que olhar! — A mãe deles sai e eles se transformam. — São todos seus? — perguntei assustada. — E falaram que eu não podia ter filhos — o homem robusto e sério parecia cansado e um pouco preocupado, mas o comentário veio acompanhado de bom humor. — Pelo jeito podia sim — descontraí e dei risada. Abaixei-me para pegar os talheres do chão e levantei a mão sinalizando para as meninas que trabalhavam no restaurante, elas me conheciam e me tratavam como patroa. — Sua barriga está grande para você ficar agachando assim. — Não tem problema algum — me aproximei dos esquentadinhos e deduzi que cada um tivesse quatro ou três anos —. Qual é o seu nome, lindinha? Ela emburrou e se escondeu atrás do pai. — Tia, tem neném aí dentro? — uma loirinha com rostinho angelical e olhos lindos como os do pai se aproximou com curiosidade.
— Tem, bem pequenininho — sorri gentilmente para a garotinha. — Minha mamãe quer me dar mais um irmão, não é papai? — a cópia idêntica do homem parecia séria e imponente como ele. — É verdade, filha. O bom é que os pequenos terroristas haviam parado de brigar assim que eu cheguei. Inclusive a mais velha, que era a única diferente dos demais por ter a pele parda e os olhos escuros, conseguiu terminar a refeição sem mais interrupções dos menores. — Eu sou a Angelina — a bonequinha me deu sua mão e pegou em seu vestidinho de inverno para se apresentar. — Que lindo o seu nome — elogiei —. E os seus irmãos, você sabe o nome deles? — Ela é a Belinda, o que é igual a mim e estava brigando é Giuseppe — acabei rindo pelo jeito que ela falou do irmão gêmeo —, Agnes — apontou para a encrenqueirinha — e o caçula dorminhoco é o Liam. Arregalei os olhos para o pai perdido na minha frente. — Querem mais um? — Se der tudo certo, sim. Minha esposa está se consultando com um oncologista agora. — Eu sinto muito. — Não precisa sentir — meio grosseiro, mas não parecia proposital —. Não sabemos ainda se ela tem um tumor. — Sente aqui, tia — Angelina puxou a cadeira para mim. Hesitei, mas acabei me sentando. — A mamãe está bem, papai — a mais velha, Belinda, pegou na mão do pai e o gesto me encheu de admiração. — Eu sei, meu amor. — A mamãe é superforte — Giuseppe complementou. Me afligiu só de pensar que uma família daquele tamanho, onde o amor das crianças pela mãe era palpável, fosse possível de ser destruída caso a mulher fosse diagnosticada com tumor ou câncer. — Você já comeu? Peça o seu na nossa mesa. Grávidas sem comida são um
perigo. Sorri para a observação e finalmente me apresentei. — Eu sou a Mariana. — Romeo, muito prazer. Romeo... Romeo... Esse nome somado a essa beleza não era estranho. Era essa família, uma grande família. Um empresário pai de cinco crianças, casado com outra empresária do ramo de restaurantes. A família das revistas e de toda a mídia. — Você tem uma empresa com o seu sobrenome, não é? — Isso — sorriu ao ser reconhecido. O homem era mais bonito pessoalmente do que em fotos, e mais intimidador. Claro que perdia para o meu marido, mas era um partidão superelegante. — Já vi vocês na internet e na televisão. — Minha esposa tem um programa de culinária italiana. A esposa dele era a paciente especial de Valentim. Ricos e conhecidos como eram, só podia ser. — É o seu primeiro filho? — de repente Romeo puxou assunto. — Segundo. O primeiro eu perdi ainda na gestação — expliquei. — Essas coisas acontecem. — Minha mamãe conta que quase perdeu a Agnes também — Giuseppe estava prestando atenção na nossa conversa. — É mesmo — a pequena encrenqueirinha se intrometeu. — Ela é nosso milagre — Romeo passou a mão nos cabelos escuros da filha —. Como todos, é claro — e logo tratou de corrigir. Mesmo depois que minha refeição chegou nós continuamos conversando. As crianças pelo contrário do que imaginei eram educadas, e notei pela forma de dialogar que eram muito inteligentes. Também, do berço que saíram... imagina a educação que eles tinham? O Sr. Foster, como a maioria o chamava, relaxou depois de alguns minutos. O caçulinha no canguru acordou e o distraiu. Não sei se era típico do homem, mas ele parecia ser um cara crítico, que analisava tudo e todos o tempo inteiro. Embora simpático, mantinha-se sério. Já a turminha não parava de tagarelar
como se me conhecessem há anos. Valentim Del Torre Depois da noite inteira acordado recebendo os exames de Beatrice Foster, uma famosa chefe de cozinha e também esposa de um empresário fodido do ramo imobiliário, eu a consultei. Felizmente a notícia é que a mulher não tinha nenhum tumor. Estava completamente saudável. Ela e o marido queriam ter o sexto filho, daqui um tempo. Já que o caçula não tinha nem um ano, então foi o melhor diagnostico que eu podia ter dado. A mulher, muito bonita vale ressaltar, saiu radiante com o resultado dos exames. Era uma honra receber uma família tão reconhecida no meu hospital e saber que eu era confiável o suficiente para diagnosticá-la. Além de ter viajado para me consultar, a empresária também inauguraria mais um restaurante em Seattle, então ela uniu as duas coisas. Beatrice era falante, ou o povo de Nova Iorque não tinha muito filtro mesmo. Logo foi contando do marido e que eles não aguentavam mais usar contraceptivos para não engravidar, já que sua obstetra desconfiou de um possível tumor no útero dela. Eu e Mariana estávamos no primeiro e eles tinham cinco, querendo o sexto. Deus! Seis crianças! — Olha ali meu marido — a acompanhei até o restaurante onde sua família estava —. Quem é aquela loira? Porra viu, Romeo não pode ver uma loira. Ela se apressou para ir tirar satisfação e eu sequer falei, porque estava puto também de me deparar com Mariana sentada e rindo com o poderoso chefão. Romeo Foster foi mais rápido, se levantou e nos parou no meio do caminho. Tive que manter minha postura profissional e saudá-lo. — E então? — o sorriso galanteador de antes havia sumido quando ele viu a esposa. — E então o que? Quem é aquela loira? Não tem uma hora que chegamos nesse hospital e você conseguiu essa proeza? — Pequena, a mulher ficou com dó de mim. Giuseppe e Agnes estavam se matando.
— Dó? Mulher adora ver um pai sozinho, ainda mais sendo um pai como você. Mesmo estando furioso, estava quase rindo da discussão madura. — Ahhhh, claro! — Sra. Beatrice analisou a Mariana —. É uma grávida pra completar, do jeito que você gosta. Loira e grávida. — Beatrice! — ele a censurou —. E então Dr. Del Torre, você pode me contar qual é o diagnostico? — Está tudo bem, não há tumor. — Dr. Valentim foi supercompetente — a mulher baixinha parecia querer provocar o marido e então o mesmo me encarou. — Você é pediatra também? Arqueei a sobrancelha. — Sim, trabalho na pediatria também. O homem respirou fundo e claro, não entendi merda nenhuma. — O que ela está dando para Angelina? — olhei para a mesa e vi Mariana oferecendo suco para uma garotinha loira. Sr. Foster ignorou. — Saudades de te ver grávida, sabia? Olha que linda aquela mulher — o filho da puta usou a minha bailarina para prosseguir com as provocações. — Quem é ela, Romeo? — Aquela mulher linda e grávida, é minha esposa. Finalmente cortei, os dois se calaram e me olharam. — Minha esposa Mariana, e nosso bebê Antwan — completei. — Ela só foi gentil — Romeo reforçou. — Aposto que sim — respondi —. Ela é professora de dança e adora crianças. — Desculpa, Dr. Del Torre, desculpa Moreno — Beatrice pediu e me fez rir. — Tudo bem... Mas qual é o problema com a pediatria? — questionei. Vi Mariana levantar-se após deixá-los calmos em seus devidos lugares. Ela caminhou até nós e me abraçou. — Minha esposa atrai pediatras — Romeo mencionou. — Moreno! — e a mulher ao seu lado o advertiu.
Mariana me olhou feio após o comentário. — Você deve ser a Sra. Beatrice — a bailarina disse um pouco seca, estava enciumada. — O meu marido é um ciumento, não se preocupa — ela beijou a bochecha de Mariana e também a analisou. — Não me preocupo — Mariana sorriu, e pelo o que eu conheço seu sorriso foi falso. — O importante é que a Sra. Foster está ótima, não é? Poderão aumentar mais a família — interrompi antes que piorasse. — Como disse Dr. Valentim... Hoje inauguro um restaurante aqui em Seattle. E poderei comemorar feliz, graças a essa notícia maravilhosa que você me deu. Por isso ficaria muito contente em tê-los no coquetel. — Nós temos... — Mariana provavelmente inventaria algum compromisso para não irmos. Ela não era tão ciumenta quanto eu, mas havia implicado com a empresária logo na primeira impressão. — Estaremos lá — confirmei e recebi um par de olhos azuis furiosos em minha direção. — Que bom. Eu os aguardo — Sra. Foster deu mais um de seus belos sorrisos, se despediu com um beijo no meu rosto e outro no da minha esposa. O empresário estendeu a mão para mim, mas beijou o rosto de Mariana. Talvez não fosse mesmo uma boa ideia irmos nessa inauguração. Nova Iorquinos eram muito descarados. Mas quando anoiteceu nós decidirmos dar uma passada. Mariana escolheu um dos seus mais belos vestidos, o qual oferecia um decote maravilhoso nos seus seios e também nas costas, mas o detalhe mais bonito era a protuberância da barriga no tecido. Já eu, vesti um terno com uma camisa grafite por baixo e optei por não colocar gravata. Minha esposa também preferia sem. Nos recepcionaram muito bem, tiraram fotos minhas com Mariana na entrada, e também de nós dois com Beatrice e Romeo Foster. Não demorou para que as crianças do casal se aproximassem de Mariana, e ela as tratou com doçura. A garotinha loira junto a mais velha da família, levaram a bailarina para o balcão de sobremesas. Mariana aproveitou para degustar um por
um, até me olhou lambendo os lábios. Romeo me entregou uma taça de vinho e perguntou se eu podia indicar algum pub-balada para eles irem após o coquetel. Fiquei questionando mentalmente como faziam com aquele tanto de filhos, tudo bem, eram ricos e já no restaurante foi possível identificar duas ou três babás. Mas reparando no comportamento de ambos, foi possível notar que a vida noturna deles era sempre agitada. Eles pareciam mais jovens do que eu e Mariana, muito embora tivessem uma história muito conturbada também. Tudo o que sabíamos estava nos jornais e no restante da mídia. Como por exemplo a separação antes mesmo do casamento, uma secretária amante no passado do empresário, a gravidez de risco da Sra. Beatrice, e um ex-namorado frustrado e morto, "morto por legítima defesa". Bom, pessoas milionárias tinham o poder de distorcer as histórias mais terríveis, mas ao conhecê-los naquela noite eu pude notar o quanto aquele casal se amava, o quanto a família era unida. Beatrice e Romeo eram totalmente ciumentos, eu e Mariana nos divertimos assistindo. Ele deveria estar na casa dos quarenta e ela dos trinta, mas por vezes pareciam adolescentes. Estávamos no meio de proprietários e diretores de grandes empresas. Exceto os cinco filhos, não vimos mais nenhuma família presente, certamente porque Seattle ficava muito longe de Nova Iorque e a Sra. Foster estava abrindo restaurantes sem parar, por todo o país, talvez o restante da família não conseguisse acompanhar. No final da noite os dois nos convenceram de ir para um PUB. Mariana aceitou sem hesitar, ela e Beatrice incrivelmente fizeram amizade e conversavam sem parar. E o cara embora fosse um filho da puta por admirar a beleza da minha esposa, era gente boa. Eu sabia beber muito, mas eles sabiam o dobro. Pouco depois estávamos compartilhando os acontecimentos de nossas vidas, Mariana era a única totalmente sóbria mas estava curtindo também. Contamos sobre o drama que foi para ficarmos juntos, Beatrice chorou e começou a desabafar com Mariana sobre os problemas que enfrentou com Romeo. Elas pareciam amigas de anos. No fim, as duas estavam rindo das desgraças do passado e por um momento, todo o sofrimento que enfrentamos parecia uma piada de mau gosto, e digna de risadas.
— Vocês são fortes pra caralho, é até impossível de acreditar — a mulher embora estivesse embriagada, continuava falando corretamente —. Que bom que o segundo bebê está a caminho — ela acariciou a barriga de Mariana. — É, foi muito difícil ter uma gestação interrompida, mas agora estamos felizes né amor? — Mariana sorriu para mim e eu a beijei. — Muito felizes — declarei. — Minha amiga Marina que diz... — ela parou de falar, parecia ter esquecido. — O que a Marina diz, Pequena? — Romeo tentou ajudá-la. — Não lembro, Moreno. Nós rimos. Ela estalou os dedos ao lembrar. — O verdadeiro amor é aquele que suporta toda a dor, ou nasce dela. — Um brinde — levantei o copo de cristal. Nós brindamos, passamos mais horas conversando, até que o cansaço chegou em Mariana e ela pediu para ir embora. Nós nos despedimos e garantimos que manteríamos contato. Romeo e Beatrice ainda estenderam para a pista de dança. — Eles são doidos — Mariana concluiu quando assumiu a direção do carro, já que eu havia bebido —, mas são incríveis. — E engraçados — peguei na sua mão livre e beijei. — Mas amor — ela fez uma careta —, eu não quero ter cinco filhos. Eles são terríveis, muito inteligentes, me dominariam, são mini gênios... — Fique tranquila, eu também não — tentei acalmá-la, ela se calou, mas logo voltou a falar sobre os herdeiros supergeniosos da Família Foster.
48 Valentim Del Torre
Dois anos mais tarde... — Olha ela aqui, com o dedinho na boca — Charlotte apontou para a nossa filha no visor do ultrassom. — Estou tão ansiosa — Mariana disse, com os olhos brilhando. — Antwan também está, não é meu filho? — acomodei o bebê da pele alva e bochechas grandes em meu colo, e o vi assentir com a cabeça. — Sua irmãzinha quer te conhecer, meu amor — Mariana segurou na mão pequena dele e fixou as íris nas minhas. Bella foi uma surpresa para nós. Eu e a minha bailarina conversamos sobre ela engravidar pouco depois do nascimento de Antwan, queríamos que ambos aproveitassem a infância juntos. Porém Antwan crescia a cada dia, desenvolvendo-se e aprendendo as primeiras noções básicas de sobrevivência, como falar, andar, comer, então nos apegamos mais a isso e esquecemos a ideia inicial. Ele era a nossa prioridade. Mas eu e Mariana não nos privávamos da melhor parte do nosso dia, que na verdade era à noite. Continuávamos fazendo amor como dois adolescentes apaixonados, madrugávamos e às vezes nem dormíamos antes de começar o dia. Consequentemente, Bella veio. — Já sabe, cunhada. Nada de ficar se pendurando naquele ferro, nem dando piruetas por aí. — Sim senhora. Sem movimentos bruscos, e devo continuar o meu caso de amor com a bola de yoga. — Até que disfarça bem — olhei para a minha esposa — Charlotte, ela não te obedece. — Valentim! — Mariana franziu o cenho para mim, me censurando. — Você continua dando aulas, amor. Sabe que me preocupo. — Eu dou aulas porque me sinto bem para isso.
— Não tem nada de errado, Tim. Só não quero ela se pendurando naquela barra — minha irmã acariciou meu braço e depois pegou no rostinho de Antwan —. E você, gordinho? Pronto para completar dois aninhos amanhã? — Sorvete — pediu para a tia arrancando-lhe um sorriso derretido. — A titia leva você tomar sorvete, com a sua priminha tá bom? — Depois do almoço — Mariana deu a condição. — Certo, passo buscá-lo então — Charlotte beijou meu filho e ficou em pé tirando as luvas descartáveis. Deixei Antwan entretido com os aparelhos da sala da minha irmã, ajudei Mariana a limpar o gel da barriga e em seguida a se levantar. Ela estava com sete meses, mas a barriga da segunda gestação era nitidamente maior do que a da primeira. — Vamos, comilão — a bailarina agachou-se e o pegou no colo. Meus olhos reviravam automaticamente toda vez que ela fazia isso. — Diga pra ela que não pode fazer isso, Charlotte. — Ela conhece os próprios limites, Tim. Fica calmo, tá parecendo que quem vai parir é você. Respirei fundo. Era difícil discutir com Charlotte ou Mariana, com as duas juntas se tornava impossível. — Você vai papar tudo pra ganhar sorvete? — Mariana brincou com a pontinha do nariz do nosso filho enquanto se retirava do consultório. Antwan mais balbuciava do que falava. Como eu disse, ele estava aprendendo, inclusive as primeiras palavras básicas. Papai foi a primeira de todas, repito: de to-das. Mariana ficou furiosa. Entre as dez primeiras estava "sorvete". Nosso garotinho deitou a cabeça no ombro da mãe e assentiu com a cabeça. Ele adorava ficar com as mãos no cabelo longo e dourado, embaraçando-o inteiro. — Vem com o papai — estendi as mãos para pegá-lo e Mariana o entregou. Coloquei ele na cadeira própria do carro e prendi seu cinto. Esperei Mariana se acomodar no banco do passageiro e então dei partida. — Conseguiu trocar o seu plantão, amor? — ela colocou a mão sobre a minha que estava posicionada em sua coxa. — Claro — trouxe sua mão até os lábios e a beijei.
A comemoração do aniversário de dois anos de Antwan era no dia seguinte. Eu não conseguiria aproveitar caso passasse a noite inteira no hospital, então pedi para outro médico me substituir. Preparei um almoço rápido enquanto os dois brincavam no salão de dança da nossa casa, ouvia os gritos de Antwan e sua gargalhada gostosa, atrás a voz infantil de Mariana falando que ia pegá-lo. Parei na porta e antes de avisá-los sobre o almoço, fiquei admirando. O espaço era grande, com barras laterais de balé e duas no centro, próprias para o pole dance. Essas duas específicas foi eu que escolhi colocar. Que marido não aproveitaria a esposa com o dom mais delicioso de assistir, dentro da própria casa? Aquela sala tinha lembranças, muitas lembranças. — Ela vai nos pegar, corre, corre filho — Mariana segurava na mão de Antwan e corria no ritmo que ele conseguia. Lua latia atrás, brincando e se divertindo como os dois. A loira não tinha jeito. A barriga não a deixava sequer enxergar suas partes íntimas, longe de ser uma reclamação, até porque ficar sob os meus cuidados era algo muito bom, mas lá estava ela, correndo e pulando com nosso filho. — Olha as nossas meias, filho — eles pararam para se recuperarem —, estão pretinhas. O garotinho de cabelo liso e escuro concordou e respirou fundo. Ele era um bebê, mas nos fazia rir o tempo inteiro com suas atitudes de adulto. — Mamãe — chamou. — Diga, amor — ela ajoelhou-se na frente dele e ajeitou seu cabelo. Seu cabelo era cheio como o meu. — Quero papá — colocou a pequena mão na barriga. — Eu acho que o papai fez macarronada com legumes, o cheirinho está bom — ela inalou com força o ar e ele a imitou. Antwan voltou a gargalhar sem parar quando Lua deu lambidas em seu rosto. Ele tentava empurrá-la, mas a Husky o adorava mais do que qualquer outra coisa no mundo. — Mamãe — gritou pedindo ajuda. Antwan tinha muitas cócegas. Mariana ergueu o olhar e me encontrou com os olhos fixos nela. Descruzei os
braços e sorri balançando a cabeça. — Vamos crianças — assoviei para Lua, que entendeu o comando e foi para a cozinha. — Ficar forte, papai — Antwan correu em minha direção e abriu os braços para que eu o pegasse —, igual o Hulk — toda vez que citava esse super-herói ele fechava a cara com bravura. — Ahhh, menino! Vou morder você — Mariana começou a encher a barriga dele de beijos. Ela tirou de letra, ser mãe de menino parecia ser algo nato. Eu tive que aprender, talvez porque criei Ana por anos. Mas Antwan me ajudava, era uma criança inteligente e paciente. — A mamãe está com tanta fome que já está te mordendo — corri com ele até o banheiro e Mariana parou na cozinha. Lavei seu rosto e suas mãozinhas, aproveitei para molhar o cabelo e deixá-lo com um moicano alto. Ele riu quando se olhou no espelho da pia e tentou fazer o mesmo no meu cabelo. Observando-o minuciosamente e de perto, haviam semelhanças entre Antwan e Saulo. Não sei se as expressões, talvez os buracos que se formavam nas bochechas toda vez que ele sorria, ou os olhos esverdeados, que mesmo sendo escuros como os de Charlotte e do nosso pai tinham o formato dos de Saulo. Antwan me fazia acreditar que eu podia ter saudades do meu irmão, ou da nossa infância, eu realmente não entendia. Mas por causa disso, a vontade de cuidar e protegê-lo crescia fortemente dentro de mim. — Papai — ele me despertou. — Oi... vamos comer. Ele envolveu meu pescoço com seus pequenos braços e seguimos para a cozinha. O coloquei no assento e sentei na banqueta ao lado, Mariana ficou do outro lado. — Uma delícia, amor — ela elogiou ao colocar o garfo com o macarrão enrolado na boca —. Não é, filho? O pequeno mexeu a cabeça com a boca cheia e suja em volta. — Que moicano bonito.
— O papai. — O penteado que a mamãe faz é sem graça — provoquei. — Não é, fica todo mocinho — Mariana retrucou. — Você prefere o moicano do papai? — vimos o nosso filho assentir. Dei os ombros e ela rolou os olhos. Eles foram para a sorveteria e eu fiquei ocupado no escritório. Antwan chegou dormindo, e Mariana com a roupa toda manchada de sorvete. — Carlie foi também. Engraçado como John está cada dia mais a mistura dos dois — cochichou ao colocá-lo na nossa cama. — Ela o levou? — Uhum. Você precisa ver amor, nasceu uns cachinhos naquele tanto de cabelo loiro. O nosso afilhado era a mistura perfeita de Carlie e Álvaro, o pequeno não havia completado seu primeiro ano ainda, mas convivia muito com Antwan. Como eu disse, Antwan era calmo e paciente, então entretinha e brincava com o bebê mais novo sem problema algum. — Meu amor, preciso muito de um banho. Olha ele um pouquinho — Mariana se aproximou para beijar minha boca e eu a agarrei pela cintura, ela sorriu e apoiou-se nos meus ombros. — Ou podemos deixá-lo por alguns minutos — sugeri. — Gostei da ideia. Comecei beijando seu pescoço cheiroso, inalei o perfume detrás da sua orelha e depositei outro beijo. Seus dedos emaranharam meu cabelo com força e eu vi seus olhos fecharem-se. — Pro banheiro, amor. — Pro banheiro — concordei. Seus lábios carnudos encontraram-se com os meus, ávidos e com um desejo despudorado. Ela sorriu quando puxou meu lábio inferior e acariciou meu rosto com o polegar. A única distância entre nós dois era Bella. E como da outra vez, seu corpo estava fascinante, mais bunda, mais seios, mais coxas, mais libido. Eu dizia que teria mais dois ou três filhos, mas ela dizia que Antwan e Bella bastavam. Queria somente dois.
Nossa família tinha afeto de sobra, transbordava amor. Mas realmente era o suficiente. Eu e ela havíamos aprendido a lidar com as nossas diferenças e vivíamos muito felizes. Tínhamos nossas discordâncias, como todos os outros casais no mundo. O ciúme também não era fácil, Mariana sempre seria uma mulher linda e cheia de luz, e isso não passava despercebido pelos outros homens. No entanto, ela não deixava dúvidas sobre o quanto me pertencia. E me pertencia naturalmente, porque queria, porque me amava. Não havia possessividade. Não buscávamos moldar nossas personalidades, porque aprendemos a aceitar e lidar com todos os defeitos um do outro. Sabíamos que nossos breves desentendimentos não eram nada comparado ao nosso passado, onde enfrentamos tudo o que poderia ter nos destruído. Todas aquelas tragédias nos fortaleceram e nos tornaram inabaláveis, porque acima de qualquer pessoa ou de qualquer coisa, tínhamos completa certeza que o que sentíamos era o amor do mais profundo do nosso íntimo. Costumávamos dizer que o nosso amor poderia contagiar o mundo todo, e eu sabia que sim. Mariana era o meu recomeço, o meu hoje, o meu amanhã. Toda a vida que nela continha iluminava a minha. E eu era grato, porque depois de tê-la conhecido tudo voltou a fazer sentido. Mariana D'Ávila Eu o olhei dormir, espalhado na cama e enrolado nos lençóis brancos. Parecia cansado, pelas brincadeiras que foram até tarde com o nosso filho. Não passava das oito horas e eu tinha levantado para preparar o nosso café. Mas foi inevitável não sentar um pouco na cama e observá-los. Antwan estava com o braço passado por cima do rosto do pai, relaxado e com o semblante tranquilo. Vestia um dos seus pijamas de dinossauros que ia até os pés, com meias antiderrapantes. A chupeta verde, também de dinossauro, continuava na boca. Valentim adorava que nosso filho dormisse conosco, isso não acontecia todos os
dias, e Antwan dormia bem tanto com a gente quanto no seu quartinho. Eu dizia que era uma mãe de sorte, já que o meu primeiro filho era mais urso que eu. Não me gabava muito, porque John, o bebezinho de Carlie, dava um trabalhão para os pais em relação ao sono. Vai que o meu resolvesse aderir às madrugadas agitadas... Deus me livre! Meu marido e meu filho descansavam feito anjos, e como sempre, estavam conectados de alguma forma. A mão de Valentim pousava na barriguinha do nosso pequeno, como um gesto de proteção ou necessidade de senti-lo perto. O meu mundo inteiro cabia dentro daquele quarto e estava bem diante dos meus olhos. Por vezes eu chorava enquanto os admirava. Fugia do meu controle. Já sentiram um amor tão imensurável a ponto de doer? O meu agradecimento muitas vezes se transformava em lágrimas. Choro de alegria e de oração, pedindo para que Deus cuidasse da nossa família e nos abençoasse mais a cada dia. Olhei para os lados, nossos porta retratos, pantufas pequenas ao lado das maiores iguais, encarei a bailarina da caixinha de música em cima do criadomudo e então peguei no pingente de sapatilhas no meu pescoço, beijei e me permiti contemplá-los mais um pouco. As ligações começaram a todo vapor minutos depois. Terminei de organizar o nosso café na bandeja e levei para o quarto. Abri as cortinas para deixar que a claridade entrasse e sentei-me na beirada. — Acorde o seu papai — sussurrei assim que vi os olhinhos esverdeados me espiarem. Ele fez o que eu pedi, deu beijos babados pelo rosto de Valentim até acordá-lo. Meu marido o pegou e virou no colchão, ficando parcialmente por cima e fazendo-lhe cócegas. — Feliz aniversário, amor do papai — alternou com beijos. Antwan ria, com os pequenos braços envolvidos no pescoço do pai. — A mamãe preparou um café muito gostoso pro seu aniversário, gordinho — apoiei os pés da bandeja na cama e levantei para pegar o isqueiro. — Olha só filho, que gostoso — Valentim passou a mão no cabelo e sentou-se com o antebraço nas costas de Antwan —. Cadê meu beijo? — e perguntou para mim.
Me aproximei e beijei-o devagar, depois sua testa e por um último um selinho rápido. — Vamos cantar parabéns? — falei animada. — Vamos!! — Antwan respondeu agitado, batendo as palmas gordinhas. Me posicionei na cama e acendi a vela do cupcake de chocolate com confetes coloridos. Mais tarde nossa casa encheu. Decoração, confeitaria, monitores, família e amigos. Antwan escolheu uma fantasia do Homem de Ferro, ele amava de paixão todos os super-heróis e Valentim alimentava mais ainda as viagens do filho. Ele estava fantasiado de Batman. Não para por aí, Álvaro veio de Capitão América e o pequeno John de Hulk. Fora eles, os amiguinhos do colégio de Antwan estavam vestidos com outras diversas fantasias. — Eles são ridículos. Olha isso, que horroroso — Carlie balançou a cabeça ao assistir Álvaro se defender de Eric com o escudo do Capitão América. — Ninguém gosta do Homem Aranha, gente — Charlotte nos fez olhar para o marido dela, e consequentemente nós rimos. — E o meu? Se acha demais, olha... total sem noção — então observamos David fazer a pose do Super-Homem e caímos na risada. — Vamos pensar pelo lado bom, eles passam vergonha por nós — comentei sorrindo. — Você acha mesmo que eles estão com vergonha? Estão amando mais que Antwan, se você quer saber — Carlie respondeu inconformada. — Eles são lindos — falei com toda certeza. — São — as três responderam quase em uníssono. A verdade é que babávamos por eles. Nossos filhos não podiam ter pais melhores. — Mas o pau do Álvaro tá marcando na roupa — Carlie acrescentou, contrariada. Elas riram e eu tratei de abaixar o olhar para conferir se não marcava na fantasia preta de Valentim.
Relaxei ao verificar que não. — O que foi, bailarina? — ele chegou perto e pegou no meu queixo para me beijar —. Estou tão sensual que você não consegue tirar os olhos de mim? Meus lábios rasgaram em um sorriso e depois prendi o inferior entre os dentes. — Não posso negar. Seu polegar desenhou minha boca e recebi outro beijo em seguida. — Amor — olhei para o meu relógio no pulso —. Eveline está demorando, será que ela não vem? — Ela disse que viria. Ela sempre se atrasa mas chega, fica tranquila. — Antwan estava perguntando — contei um pouco preocupada. Minha irmã viajava demais, às vezes ficava até um mês fora, em hotéis na Europa e cruzeiros. Mas ela fazia de tudo para estar presente nas datas mais importantes e para acompanhar o crescimento do sobrinho. Meu celular tocou, era uma chamada de vídeo de Eve. — Oi, oi. Está conseguindo me ver e me ouvir? Ela estava sentada em uma fileira de cadeiras, em um lugar bem iluminado. — Oi Eve, aconteceu alguma coisa? — Está tudo bem, Mari. Estou no aeroporto. Meu voo atrasou, só vou chegar à noite — ela torceu a boca para baixo. — Ah, que pena — respirei fundo —, Antwan estava perguntando de você. — Não fique brava, nem triste. Estou levando presentes para todos, e vocês vão enjoar de mim. — Uma semana voa, Eve — reclamei —. Sua mãe virá? Conheci a mãe de Eveline quando fomos para o chalé no primeiro aniversário do meu filho. — Sim, ela disse que chega na terça-feira — ela sorriu —. Você reclamando fica igual ao Antwan. Cadê ele? Deixa eu ver. — Está comendo com a vovó — levantei-me para caminhar até a Eleonora. — Que coisa ridícula é aquela? É Álvaro... Meu Deus, David está de SuperMan? Nós rimos juntas e eu aproveitei para mostrá-los no vídeo. Mostrei também a decoração e as crianças.
— Oi gordinho — minha irmã acenou para a câmera —. Você está gostando da sua festinha? — Titia — Antwan balbuciou e assentiu com a cabeça —. A titia, mamãe — e disse para mim. — Eu vi, meu amor. Ela vai trazer presentes, sabia? Ele comemorou batendo palmas. — Você está muito lindinho de IronMan! Eve conversou um pouco com Eleonora também e depois nós desligamos. Sentei-me ao lado da minha sogra e senti a mão da mesma na minha barriga. — Sua irmãzinha, meu bem? — Minha irmãzinha — Antwan respondeu balançando a cabeça. — Vocês foram vê-la ontem, Mari? — ela me perguntou. — Fomos, está perfeita e enorme — coloquei minha mão na minha barriga também. — Você vai cuidar muito dela, não é? — ela ajeitou a máscara vermelha nos olhos do neto. — E brincar — ele terminou de mastigar o doce de avelã e limpou com a manga da roupa. — Você está linda, não vejo a hora de conhecer minha segunda netinha — Eleonora fez carinho na minha barriga e voltou a abraçar o primogênito. — Também não vejo a hora — escutei a voz de Valentim, depois o senti me abraçar por trás e beijar o topo da minha cabeça. Peguei em seus braços e ergui a cabeça para olhá-lo. — Lua, papai — Antwan começou a gargalhar —. A Lua. Nós vimos a loba se enfiar embaixo da mesa principal do bolo e só deixar o rabo longo de fora. Ela saiu com o focinho todo lambuzado de vermelho, e Sol veio engatinhando atrás. — Ela quis bolo de cereja — explicou dando os ombros. Começamos a rir da cena, Antwan quis descer para brincar com a prima e a Husky. Sol mesmo com a diferença de idade, adorava a companhia do primo mais novo. Álvaro veio com John no colo, e logo atrás David com a sua filha caçula.
— Que princesa mais linda — elogiei a garotinha loira vestida de Elsa, do filme Frozen. — Obrigada, Tia Mariana — agradeceu toda educada —. A mamãe que escolheu. — Ficou muito bonita. — Fala: herdei toda essa beleza do meu pai, Tia Mariana — David se intrometeu, e eu nem podia dizer que ele estava se gabando porque a criança era realmente idêntica a ele. — Não finja que não é com você, Álvaro. Vai trocar seu filho — Valentim interrompeu a conversa quando o cheirinho nada agradável invadiu o ambiente. — Como uma coisinha tão bonitinha pode feder tanto? Nossa, filho! — o médico praguejou —. Como vocês vão emendar um no outro assim? Não aguento mais trocar fralda — e reclamou. Segurei na mão de Valentim e pedi licença quando vi minha ex-chefe chegar. Pauline estava elegante e bonita como todas as vezes que a vi. Trazia em mãos uma caixa grande com um laço azul em cima. Valentim tinha perdido todo o preconceito. Ele nunca apoiaria a prostituição, eu também não. Era um sistema cruel, uma vida árdua e dolorosa que muitas mulheres infelizmente se submetiam para sobreviver, para cobrir problemas ou simplesmente para fugir de frustrações. Eu tinha respeito. E ele passou a respeitar também, após as inúmeras madrugadas em que eu passava contando os acontecimentos e histórias sobre esse mundo escuro. — Espero que ele goste do presente, qualquer coisa vocês podem trocar — Pauline sorriu ao me entregar. — Muito obrigada por vir — beijei-a na bochecha e esperei Valentim cumprimentá-la para poder passar a caixa para ele. — Por favor, fique à vontade — meu marido disse gentilmente —. Minha mãe está sentada ali, se quiser fazer companhia. — Eu te acompanho — abracei-a pelo ombro e voltei até Eleonora. Carlie apareceu também para conversar, depois todos os nossos amigos se reuniram em volta da mesa da avó da família. Incluindo meu ex-patrão, voluntários da companhia que eu trabalhei e funcionários próximos do hospital
— Ela não quis vir? — perguntei para Pauline quando todos se distraíram, ela sabia de quem eu estava falando. — Quando falei com ela na semana passada, disse que pensaria. Depois não respondeu mais minhas mensagens. — Que pena. Eu nunca mais tinha visto Justine, nem mesmo para agradecê-la de novo. Sentia-me em dívida com minha ex-colega de trabalho. Uma dívida impagável. Ela tinha sumido de circulação, nem trabalhava mais na Le Luxe. Simplesmente sumiu e não deixou pistas. As vezes dava notícias para Pauline, mas nada sobre onde estava ou o que estava fazendo. Não importava, eu só queria agradecê-la. Talvez fosse só uma ilusão da minha cabeça, mas eu esperava muito que ela tivesse encontrado um homem legal que, além do dinheiro — que sempre foi algo muito importante para Justine — lhe proporcionasse carinho, ou até amor. — Meu amor, vamos cantar parabéns — Valentim me avisou. — Ele está uma gracinha — Pauline abriu um sorriso ao comentar sobre Antwan. — Ele é um anjinho, um amor de criança — passei a mão no cabelo do meu filho ao vê-lo do meu lado. — Cadê papai, mamãe? — Ali, meu amor — abaixei-me para apontar Valentim. Ele correu até o pai e eu convidei todos para juntarem-se na mesa do bolo. Dois tipos de bolos foram servidos, com doces e bebidas. Nosso filho era muito querido e amado por todos, como no primeiro, o seu segundo aniversário também reuniu muitas pessoas. Ele se entregou ao sono antes do sol se por. Dormiu no colo do pai, com o rostinho deitado em seu ombro. Eu cheguei por trás para abraçá-los, depositei um beijo suave na testa do meu filho e outro na nuca de Valentim. — Vou levá-lo para o quarto — avisei. — Pode deixar. Ele está pesado — meu marido virou para mim e beijou meus lábios —. Logo o pessoal vai embora. — Estou cansada — cochichei somente para ele.
— Vou colocá-lo na cama, deite também. — Mas não tem problem... — Nenhum. Eu cuido disso — Valentim segurou meu rosto e me deu outro beijo no canto da boca —. Vai descansar, a Bella também está pesada. Sorri ao vê-lo preocupado. — Eu amo você — falei baixinho. — Não mais do que eu. Entrei após me despedir dos últimos convidados que estavam na área externa. Carlie andava de um canto para o outro da sala, com o pequeno John nos braços, cantarolando baixinho para que o mesmo adormecesse. David estava sentado em uma poltrona grande, com as duas filhas no colo, uma em cada braço. As crianças tinham aproveitado muito. — Tia Ana, Tio Tim! — ouvimos Sol nos chamar e então paramos no meio do corredor. — Não, minha filha — Charlotte tentou contê-la. — Me contaram que os brinquedos vão ficar até amanhã. Ela se referia aos brinquedos infláveis que alugamos. — Eu posso dormir aqui? Prometo me comportar direitinho. — Nós vamos para casa, Sol — minha cunhada a repreendeu mais uma vez. — Tudo bem — eu disse sorrindo para a minha sobrinha —, mas vamos dormir até mais tarde amanhã, combinado? Valentim me olhou relutante e eu pisquei para ele. — Você quer dormir no quarto do Antwan ou da Bella? — Tanto faz, Tia Mari — me respondeu prestativa. Eu adorava aquele grilinho falante, adorava quando ela ficava conosco em casa. E eu sei o quanto isso significava. Ela era uma das pessoas mais importantes na vida de Valentim. — Mariana, você está cansada e... — Charlotte argumentou. — Charlotte, fique tranquila — assegurei —. Nós vamos tomar um banho bem relaxante e assistir um filme legal. A garotinha correu para dar um beijo na mãe e no pai que apareceu logo atrás, e voltou para segurar na minha mão.
— Tim, qualquer coisa me ligue — a irmã dele pediu. — Pode deixar. Meu marido acariciou os cabelos castanhos da afilhada e depois entrou no quarto do nosso filho. Sol embora geniosa, era obediente. Foi banho, filme, duas histórias e cama. Eveline chegou quando eu e Valentim já estávamos de pijama. Ela encheu a sala de presentes e contou as novidades dos países que havia visitado. Parecia radiante com a vida que estava levando. Particularmente eu me preocupava. Achava Eve muito sozinha, mas o que importava é que ela me passava muita verdade quando afirmava sobre o quanto estava feliz e realizada. — Se vocês não se importam, vou passar para dar um beijo nos dois e ir para a cama. Estou mortinha de tanto viajar — ela se levantou e espreguiçou-se com os braços. — Fique à vontade, Eve. O quarto está limpinho, tudo preparado — falei. — Só te faltam asas, irmã — ela me abraçou, fazendo-me sorrir —. Boa noite — beijou meu rosto — e pra você também, cunhado. Vimos o pontinho ruivo desaparecer no longo corredor, eu e ele nos entreolhamos. — Você é um anjo mesmo — o médico me abraçou e eu relaxei nos braços fortes dele. — Tudo pela nossa família — fechei meus olhos e aproveitei para inalar seu cheiro delicioso. — Obrigado, Mariana — senti um beijo na minha cabeça —. Obrigado por ser a base da nossa família. — Bobeira sua. Não é um esforço. Tudo fica fácil quando há amor. — Eu sei — disse convicto e me apertou mais em seu corpo. — Vou só ver como eles estão... Depois vou para a cama. Me espera lá. — Negativo — contrariou —. Estão todos bem. Vai direto para a nossa cama. Rolei os olhos como de costume, mas me rendi. Estava realmente exausta. — Não revire os olhos, Sra. Teimosia. — Eu só vou com uma condição... — Mariana, sem condições. Você precisa dorm...
— Só — o interrompi — se você fizer amor comigo. Ele repensou, seus olhos brilharam na direção dos meus. Seus lábios não negaram o contentamento em ouvir a minha condição e se abriram no sorriso lindo que eu amava. Eu amava Valentim como se fosse o princípio vital da minha alma. — Você não existe — ele me abraçou por trás e começou a me guiar lentamente para o nosso quarto. — Existo sim e... — fiquei entorpecida quando senti a respiração dele tocar minha pele ao sussurrar: — E é o amor da minha vida. FIM Princípio significa: Início, razão. Vital: Que é necessário, relativo a vida. Eles viveram um amor Genuinamente essencial ♥
Epílogo Antwan Del Torre
Papai tinha em mãos uma coroa de flores coloridas, e mamãe pousava sua mão no ombro dele. Meus super-heróis ficaram por longos minutos parados na lápide da minha irmãzinha Ana. Já Bella, corria de um lado para o outro no extenso gramado úmido do cemitério, vestida de rosa, sapatilhas e um enorme laço nos cabelos loiros, como os de mamãe. Papai beijou a cabeça da mamãe quando ela deitou em seu ombro. Eles respiraram fundo em sintonia após deixarem todas as flores ali. Deram as mãos e
viraram de frente para mim. Os olhos de mamãe estavam vermelhos, mas os "mirantes azuis" como o papai costumava referir, continuavam sendo os mais lindos de todo o planeta Terra. O meu papai mantinha sua postura, mas com meus sete aninhos de convivência ao lado dele, pude ver que seus olhos esverdeados, tão parecidos com os meus, estavam tristes. Eles sorriram para mim e para Bell e estenderam as mãos para que nos aproximássemos. — Vamos, meu pequeno príncipe e minha princesa — mamãe pediu docemente, como se dirigia sempre a nós dois. — Ahhh, aqui está tão divertido — Bell resmungou, ela adorava visitar a nossa irmã e passar horas brincando pela grama verdinha. Sua voz era estridente e muito infantil, não como a minha, que soava como de uma rapazinho, como a de papai. Eu gostava de ser igual a ele em tudo. — Temos compromisso, princesa. Seus tios e primos estão esperando para o almoço na casa da vovó — papai contou calmo —. É melhor irmos antes que volte a chover. — Sol estará lá? — perguntei. Minha prima mais velha era muito legal e adorava brincar de carros e de guerra de travesseiros comigo. Sol, a filha do Tio Eric e Tia Charlotte, a tia mais maluca do mundo inteiro, era linda. Mas ninguém podia saber que eu achava isso. — Claro, filho. Venha, vamos Bell! — Só um pouco, papai. Assistimos Bella segurar na barra do vestido e se aproximar do local onde Ana havia sido enterrada há quase uma década. — Irmãzinha, não se sinta sozinha. Eu, o papai, a mamãe e o Tom vamos para a casa da nossa vovó, sabe? Mas lembra que eu disse que você pode conversar comigo sempre que quiser? O papai e a mamãe acreditam que você me visita de noite, e adoram saber dos nossos encontros nos sonhos. Então por favor, não se sinta sozinha Aninha. — A mamãe não é mamãe da Ana, Bell — expliquei mais uma vez para a minha irmã. O xérox da mamãe rolou os olhos, entediada. — De novo Tom? Aninha disse que a nossa mamãe é dela também.
Por ser o primogênito e futuro protetor de Bell, eu tinha que manter a postura durona de irmão mais velho, por isso muitas vezes eu discordava das suas maluquices, mesmo acreditando em exatamente tudo o que ela nos contava. Minha irmã era brilhante, parecia um raio de luz assim a como mamãe. Bella Del Torre Meu irmãozinho tinha sete anos e eu cinco, mas mamãe dizia que eu parecia mais velha as vezes. Como ele não entendia que Aninha aceitava a mamãe como mãe dela também? Ela me dizia isso nos sonhos, mas Tom nem sempre acreditava que nossa irmãzinha me visitava quando eu dormia. Eu adorava. Vovó Leonora ensinou todos os netos a rezar para o Papai do Céu depois do jantar, e eu aproveitava para pedir pela alegria de Aninha, pedia também que Ele permitisse nossos encontros. Além de tudo, Titia Carlie dizia que eu era a sobrinha mais curiosa, me chamava de pequena anciã, eu não entendia, mas Titio Álvaro concordava. Papai se entusiasmava para ouvir nossas histórias, principalmente quando Ana me pedia para dizer que estava muito feliz. — Está garoando, meu amor — mamãe estendeu a mão mais uma vez para mim, com um sorriso deslumbrante que ia da boca aos olhos. Papai tinha virado de costas em direção a saída, ele sempre fazia isso para esconder que chorava mesmo sendo um homem grandão. Eu e Tom obedecemos o papai quando ele pediu para tomarmos banho. Mamãe não parava de passar na porta do banheiro para ver se eu estava me lavando direitinho, ela não entendia que eu já era uma mocinha de cinco anos e que podia ligar e desligar um chuveiro sozinha. — Terminou, filha? A mamãe deixou o vestido que você pediu em cima da sua cama. Não demore, preciso pentear o seu cabelo e colocar um laço. — Posso escolher o laço, mamãe? — Pode, princesa. A caixinha está em cima da sua penteadeira. — Obrigada, mamãe. — Por nada, meu amor — ela beijou meu cabelo.
Mamãe saiu do quarto e Tom bateu na porta pouquinho depois. — Papai disse que o John e a Lope também estarão na casa da vovó. — Vou levar minhas bonecas então. — Que bom que Sol gosta de brincar de carrinhos, porque John é muito novo para brincar comigo. — Nosso priminho John tem seis anos, Tom. — E eu sete — meu irmão bufou —. Penélope pode brincar com você porque também tem cinco. — Ela vai fazer cinco, Tom. Mas eu gosto de brincar de bonecas com ela e também com a Sol. — É verdade. Vou levar meus carrinhos para dividir com John... Mas se ele quebrar minha camionete nova, como quebrou o meu caminhão, eu vou contar para o Tio Álvaro e para o papai. — Lope sempre pinta minhas bonecas, mas a Tia Carlie limpa direitinho depois. Peguei meu pente rosa de cabelos na penteadeira depois de calçar minhas sapatilhas e escolhi o laço na caixinha de laços. — Mamãe vai arrumar o meu cabelo, vai pegar os seus carros Tom. — Já peguei. Vou chamar o papai para jogar uma partida no vídeo game enquanto isso. — Não vai dar tempo de jogar. Ele saiu do meu lado no quarto e paramos no final do corredor porque papai e mamãe estavam se beijando na boca, Tom quase vomitou e saiu correndo. Eu quis ficar para tentar ouvir o que mamãe declarava. — E de pensar que você chegou de fininho, e rapidamente se tornou a melhor parte de mim. Logo eu, que não queria ninguém. Foi impossível não me apaixonar por você, amor. Você é simplesmente muito mais do que eu sempre quis, do jeitinho que é, não mudaria nada. — É bailarina, nem nos meus melhores sonhos imaginei ter uma mulher tão maravilhosa como você — papai passou a mão com muito carinho na bochecha de mamãe e então beijou sua testa. Cocei minha garganta para avisar que eu tinha chegado na sala, os dois sorriram para mim.
— Você coloca no meu cabelo, mamãe? — estendi o laço. — Venha aqui, princesa. Me aproximei quando mamãe sentou em uma ponta do sofá. — Tom quer falar com você — contei para papai. Ele saiu. — Mamãe, posso te fazer uma pergunta? — Qualquer coisa, filha. — Você e o papai são como nos filmes? — Como assim? — Que se beijam porque dizem que se amam? — Que filme você assistiu, Bell? Fiquei um pouco envergonhada quando mamãe perguntou. Eu só tinha visto uma cena qualquer de um filme desses que duas pessoas se beijam e falam sobre o sentimento amor. — Eu só vi rapidinho, ontem quando fui para a cama de vocês. — Fingiu que estava dormindo, filha? — Não, juro mamãe. Eu dormi rapidinho mas vi a cena de duas pessoas se beijando depois de falarem que se amam. O que isso significa, mamãe? Ela terminou de pentear meu cabelo, pensou, pensou e pensou... — O amor é a melhor coisa que existe, minha filha. — Como ele é? Ela sorriu e prendeu o laço depois de colocar uma mecha da minha franja para trás. — É o que você vê todos os dias aqui em casa. — Não entendi — falei desanimada. — Você gosta do seu irmão? — perguntou. Concordei. — Você vê o papai e a mamãe feliz? Concordei mais uma vez. — Então Bell, isso é o amor.
— Só isso, mamãe? — Simples como sorrir, e tudo que alguém pode ter de melhor na vida. Ela me fez sorrir, mesmo eu não entendendo direito suas perguntas e respostas. Chegamos na casa da vovó e todos entraram, fiquei no jardim esperando Lope e John chegarem com os meus titios Carlie e Álvaro. Abaixei para colher uma rosa vermelha, coitadinha, estava perdida no gramado da vovó. — Você é idêntica à sua mãe. — Oi moço — levantei um pouquinho assustada. O moço alto dos cabelos pretos e com muita barba deu passos na minha direção. Pegou uma flor do jardim da vovó e agachou para me entregar. — Você conhece minha mamãe? — coloquei meus bracinhos para trás negando a flor, e me balancei nos pés. — Tem muitos carros aqui, hoje é uma data especial? — Moço, o papai e a mamãe sempre me pedem para não falar com pessoas que eu não conheço. Você veio almoçar com a gente? Vou chamar a vovó. — Não ficarei para o almoço. Seus pais estão aqui? — Sim, a vovó faz almoço todo final de semana e chama todo mundo. Tia Carlie e tio Álvaro vem com os meus primos, a Sol também, que é minha priminha mais velha, com a tia Charlotte e tio Eric. Tio David vem com a tia Ariel, o nome dela é Katerine, mas ela deixa eu chamar de Ariel, porque a princesa Ariel, a sereia do filme, tem o cabelo igualzinho o dela. Eles também sempre vem. E falando em cabelo vermelho, minha titia Eveline aparece quando está em Seattle, mas é muito difícil... O moço grande sorriu em silêncio, então recuou a flor que ainda segurava e voltou a ficar reto. — Bell, mamãe e papai estão chamando para lavar as mãos. Vovó quer servir o almoço assim que a Tia Eveline der os presentes que trouxe de Londres. — Estou indo, Tom. É que o moço chegou e não é educado deixar ninguém falando sozinho, Tia Charlotte sempre diz isso. — Venha para dentro Bell, o papai não vai gostar nada de você falar com um adulto estranho. — Não sou desconhecido, Antwan. E você tem o jeito do seu pai, rapazinho.
— Você conhece o papai? Como sabe o meu nome? — Conheço o pai de vocês muito bem, crianças. — Bella e Antwan, entrem imediatamente! — Por que? A Tia Eve vai abrir os presentes, papai? — Agora, Antwan! Leve sua irmã. Dificilmente o papai falava bravo comigo e Tom, e naquele momento nós não compreendemos porque ele ficou tão nervoso. Acatamos, mas caminhamos vagarosamente para dentro, contra nossa vontade. — Seus filhos são muito educados, Valentim. — O que você quer aqui? — Vim na paz, se possível para conversar. — S-saulo... — mamãe gaguejou ao dizer o nome do nosso tio que até então não conhecíamos. — Mariana — o irmão do papai cumprimentou. — Os dois para dentro! Agora! — mamãe ordenou, também brava. • • • Saulo Jamais achei que seria doloroso enxergar a recusa fodida que meu irmão evidenciou, e o medo pelos próprios filhos, que eram meus sobrinhos. Eu os tinha visto em fotos na internet e revistas, mas nunca pessoalmente. Minha sobrinha Bella era igual Mariana, da mesma forma que Antwan tinha os traços do Valentim. Aquelas crianças pareciam de filme, perfeitamente desenhadas. A caçula dos cabelos loiros possuía o mesmo carisma da mãe, enquanto o garoto apelidado de "Tom" exercia da mesma postura responsável e centrada do pai. Naquele instante uma sensação nova cresceu no meu peito, um aperto desgraçado misturado a uma felicidade ridícula por tê-los conhecido. — O que você quer aqui, Saulo? — a ex-prostituta, que claramente tinha se tornado minha cunhada, fez a mesma pergunta que o marido. Eu sabia do casamento, sabia do nascimento dos filhos, sabia da mudança deles de casa, que Valentim tinha ampliado o hospital e Mariana aberto uma
companhia de dança que, não demorou muito para ser reconhecida. Conhecia cada detalhe da atual vida daquelas pessoas que, um dia quiseram fingir ser a minha família. — Sua garotinha é linda como você, D'Ávila — provocar o meu irmão era algo que estava enraizado em mim. Irritado, Valentim fechou a porta de entrada e se pôs na frente de Mariana. Era fácil vê-lo fora de si, sempre foi imbecil e passional. — Tenha calma, doutor. Não vim para brigar, então repito, se possível gostaria de conversar. — Não temos nada para tratar, tudo foi resolvido há anos atrás. — Eu não disse que a conversa será com vocês. — Seja claro Saulo, por favor. Os olhos ferozes de Mariana fixaram-se nos meus no momento em que sua língua passeou pelos lábios carnudos e avermelhados, era um privilégio ter tido o prazer de saboreá-los. — Eu preciso falar com a sua mãe — deixei de admirar a boca cheia da puta, que meu irmão escolheu como esposa, e encontrei o mesmo me encarando —. Eleonora está? Eu tinha muito o que arrancar e torcia para que a desejada conversa acontecesse. Aquela velha sabia de coisas que me situariam certeiramente, porque mesmo que ela tivesse sido conivente, talvez até uma comparsa das crueldades do tão renomado Dr. Jackson, vulgo meu pai, a megera deixou de compactuar com as negligências do mesmo quando entrei na adolescência, ou pelo menos parou de fingir cegueira diante de todas as maldades que o fundador do Saint Clair cometia. — Saulo — minha madrasta estremeceu assim que me viu no jardim da sua imponente mansão. Cada canto daquela casa me enojava, maldita mansão que fez parte da minha infância assombrada. — Quero conversar a sós com a senhora, por gentileza. — Negativo. Ficarei aqui com você mãe. Eleonora olhou profundamente nos meus olhos e depois deu um sorriso para Valentim.
— Entre com a Mari, meu filho — acariciou a mão do filho prodígio. A cópia escarrada do Dr. Jackson hesitou, mas a velha o convenceu. — Me siga até o escritório por favor, Saulo. Algo na minha cabeça me fez ficar incomodado diante dos olhares das pessoas presentes na sala de estar, todos me conheciam. Todos sabiam da minha história, aliás, da versão contada para eles. Não abaixei minha cabeça e continuei seguindo Eleonora até a antiga biblioteca, atual escritório. — Fico feliz que tenha cumprido sua pena. A felicitação dela não era bem vinda, nem a de ninguém. — O que você precisa, filho? O costume repulsivo de me chamar de filho perdurou desde a infância. — Não preciso do seu afeto, Eleonora. Nunca fui tratado com o mínimo respeito, tampouco como filho. Ela engoliu a saliva e eu aproveitei para me sentar na poltrona de couro atrás da mesa comprida feita em madeira escura. — Do que precisa? — De algumas informações, que só você pode me dar. — Se eu for útil... — Será. — Mas qual é o seu objetivo? — Me vingar. — Do que, filh... Saulo? — De tudo o que me destruiu. Minha vingança tinha cheiro de carne fresca. Era como uma droga nunca provada por mim, mas que cada célula do meu corpo pedia em abstinência. Eu não iria para o inferno antes de ter retaliação. Me entregaria para qualquer podridão necessária deste mundo para conquistar o meu triunfo, como um Anjo Caído. FIM