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Copyright © 2020 Sil Zafia Publicado independente por Sil Zafia Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de qualquer processo eletrônico ou mecânico, fotocopiada ou gravada sem autorização expressa da autora. ISBN: 978-1539526476
Diagramado e editado por Silmara Záfia. Revisado por Sophia Castro. Capa por Silmara Záfia.
A autora possui os direitos legais registrados e assegurados pela Biblioteca Nacional.
Silmara Záfia, Resende, RJ
Para Jack, com amor.
Índice Itália, outubro de 1787 A espera O casamento As núpcias A primeira refeição do casal Smith Loucura, pecado, paraíso Aceita uma xícara de café? Uma lição para a senhora Smith O hóspede O frio da morte As verdades começam a aparecer Quem é John Smith? Os segredos nunca acabam Confiar A família Fontana Duras verdades Anjo ou demônio? Linda mentira Fantasma do passado Marcada Sem arrependimentos Fuga Onde os vivos não têm vez O anjo Amor O amor que tínhamos... teremos que esquecer? Marcas do passado Ethan Smith Los Angeles, A dança da morte John ainda pode ser cruel Opressão As vantagens da nova época O preço da traição Itália, abril de 1787 A primeira visão O homem no espelho Fé Filhos É mais difícil perdoar a si mesmo
Uma chance para Ethan Outono de 1798 Presságio Por amor Qual é a cor do inferno? O amor que tínhamos, Você realmente me quer? Afundando O impossível Livrai-nos do mal Não há onde nos escondermos Nunca mais jogue o jogo Apenas feche os olhos Lucifer Você realmente me quer morto ou vivo para viver uma mentira? Duras verdades Por amar Adeus, não boa noite Como deixá-lo ir? A cor rubra da morte muda tudo Apenas um rapaz pobre de uma família pobre Bells John Johnells Considerações Finais Siga a autora nas redes sociais Conheça outras obras:
Quando você sentir o meu calor Olhe dentro dos meus olhos É onde meus demônios se escondem
Não se aproxime muito É escuro aqui dentro É onde meus demônios se escondem
Imagine Dragons - Demons
Itália, outubro de 1787
Após escovar os longos cabelos escuros, Isabella beliscou as bochechas até ficarem rosadas e desceu a escadaria de madeira, dois degraus de cada vez. Após escovar os longos cabelos escuros, Isabella beliscou as bochechas até ficarem rosadas e desceu a escadaria de madeira, dois degraus de cada vez. Na sala encontrou sua irmã, Teresa, brincando com Nina, uma gata angorá gorda e de pelos alvos. Isabella pegou sua irmã no colo e a girou como se fossem duas crianças. Os cachos negros da pequena sacolejaram com o rodopio. — Ele está lhe esperando, Isabella — a mãe informou. — Aproveite os breves minutos em que seu pai está fora. A senhora Fontana era o que as pessoas daquela época chamavam de alcoviteira. Em um tempo onde não se casava por amor, e sim por conveniência, aquela mulher almejava um futuro diferente para ambas as filhas. Acreditava que o casamento — único futuro destinado a moças de família — seria muito mais próspero se o casal se amasse previamente. Ao contrário dela, que foi forçada a casar-se com um estranho, e nunca tinha encontrado a felicidade plena no matrimônio. Sentia respeito e afeto pelo marido, mas nunca esteve apaixonada por ele. Com o coração acelerado, a jovem assentiu, colocou sua irmã no chão e correu para a varanda, onde um rapaz — por quem estava apaixonada — esperava para cortejá-la. Stefan Bortolini era um bom homem. Jovem, bonito, mais alto que Isabella uma cabeça, pele alva, cabelos castanhos, olhos da cor de um céu nublado. Servia ao exército e
temia a Deus. Um ótimo partido e estava disposto a pagar o dote que o pai da moça exigisse por sua mão. A observando deslumbrante ali na varanda, com um sorriso deslumbrante, ele se atreveu a tomar sua mão direita e beijar os nós de seus dedos. A garota suspirou, sentindo um formigando espalhar-se das mãos até os braços, passando pelos ombros e descendo pela espinha. Imaginou como seria estar casada com ele e construir uma família nova, longes das brigas dos seus pais. Não via a hora de estar na sua própria casa, e ter um marido que a beijasse nos lábios ao chegar do trabalho. Stefan era o noivo ideal. Gentil, jovem e amoroso. Ao contrário de suas amigas, Isabella temia casar-se com um homem mais velho. Não apreciava diferenças de idade. Para falar a verdade, ela pensava muito sobre seu futuro, preocupava-se com o fato de não ter as rédeas da própria vida. Odiaria que o pai a obrigasse a casar com um homem sem modos e repugnante. Perdida em planos, enquanto ouvia Stefan contar-lhe sobre a casa que acabara de comprar, Isabella jamais poderia suspeitar que, longe dali, em algum bar de má fama, com cheiro fétido de álcool e envolto numa sufocante nuvem de fumaça de charutos, o pai decidia seu futuro. O fato é que o senhor Fontana era viciado em jogo. Um apostador nato. Apesar de possuir um ótimo emprego no banco, já não existia mais dinheiro algum nas economias da família nem posses a serem vendidas. Precisou hipotecar até a casa em que moravam para pagar as dívidas que se acumularam. Mesmo assim, não fora o bastante para se livrar dos agiotas. O senhor Fontana jurava para si mesmo que aquela seria a última vez que apostava em uma partida de truco. Última vez que seus pés o levariam até aquele bar. Nunca mais trataria de negócios com gente da espécie do homem mal-encarado sentado do outro lado da mesa. O sujeito parecia ter menos de trinta anos, boa aparência, um ótimo porte físico, porém, usava roupas velhas, puídas e sujas. Havia também uma ruga de preocupação em seu cenho, marcando a carranca. A barba mal aparada e a sujeira em suas unhas indicavam que o rapaz não tinha bons modos, era um desleixado. Apesar da aparência humilde, tinha dinheiro e era isso que importava ao senhor Fontana. Ele não se incomodava com os meios usados pelo homem para conseguir aquela quantia — suficiente para livrar a família das dívidas e deixá-los confortáveis por muito tempo —, simplesmente não estava em condições de se importar com isso. Sem recurso algum para entrar na aposta, mas desesperado para colocar as mãos no dinheiro, tinha discutido com o sujeito, até entrarem em acordo. — Sem bens, sem aposta — o homem chamado John Smith falava com uma voz marcante. — Até minha casa está hipotecada. Perdi meus imóveis, mas... preciso arriscar... —
senhor Fontana queixava- se com frases mal elaboradas. — Não estou interessado em ouvir as lamentações de um homem falido — John resmungou, se levantando com tanta ignorância que a cadeira se espatifou no chão. Nenhum outro homem naquele bar estava disposto a colocar em jogo a quantia exigida pelo forasteiro, sequer o valor equivalente em propriedades. Ninguém era tão louco como o senhor Fontana. — É casado, senhor Smith? — o pai de Isabella sondou com uma voz auspiciosa, tratando de explicar o porquê daquela pergunta assim que John voltou-se para ele, se detendo na porta do salão por um momento, antes de partir e levar consigo a desejada fortuna. — Não vi aliança em seu dedo. Existe uma senhora Smith? — Não sou casado — John confirmou as suspeitas. — Está noivo ou pretende se casar em breve? — Roggero Fontana sentia o estômago doer tamanho era seu nervosismo. — Seja lá o que tem para me propor, faça rápido. — Tenho uma filha de dezessete anos que não está prometida para nenhum rapaz. Ela é meu bem mais precioso. Aposte comigo. Se eu ganhar, o dinheiro será meu... — E se eu vencer? — John exigiu saber, fazendo com que todos os homens presentes ali voltassem suas atenções para os dois. — Te concedo a honra de casar-se com minha filha, desde que me pague o dote — respondeu solenemente. O forasteiro voltou alguns passos para perto da mesa de apostas, trazendo consigo o saco felpudo de dinheiro, tão sujo quanto suas botas. — Essa jovem... — fez uma pausa, e todos esperaram envolvidos em um silêncio desgastante. — Ela é bonita? — Isabella, esse é seu nome. Ela é uma bela jovem que, com toda certeza, o agradará. — É virgem? Não está tentando se livrar de uma moça desonrada, está? — John falou usando um tom de voz ameaçador. — A honra da minha filha está intacta — senhor Fontana sentiu-se ofendido. — Tem minha palavra. Após o forasteiro garantir a seu oponente que pagaria um bom dote, mesmo que ganhasse o jogo, a aposta foi feita e os dois sentaram à mesa para jogar. As cartas não estavam a favor da família Fontana naquela noite e, em toda rodada, o
sujeito do outro lado da nuvem de fumaça desmanchava a carranca e exibia um sorriso malicioso, o que fazia a dor no estômago de Roggero se intensificar ao ponto de sentir as gotículas de suor se formando na testa enrugada. A cada queda perdida, o senhor Fontana retirava um lenço do bolso do paletó e enxugava o suor. Ele amava sua primogênita. Ela era o último bem que lhe restara e, mesmo que a perdesse nessa disputa, pelo menos estaria livre das dívidas. O salário que ganhava no banco não era uma fortuna, mas com tudo quitado, sua família iria se reerguer, e ele nunca mais voltaria a jogar. Sentiu-se derrotado quando o loiro, do outro lado da mesa, o encarou e, após ganhar a partida, disse com uma voz impassível: — O casamento deve acontecer em duas semanas. Me poupe dos preparativos. — O forasteiro levantou-se novamente, apressado. — Tão pouco tempo. As pessoas irão comentar — o senhor Fontana lastimou. — Pensarão que ela foi desonrada. — Pouco me importa o que os desocupados irão falar. Me poupe dos preparativos — John murmurou com severidade, fazendo com que o pai angustiado mudasse de assunto. — Quanto a Isabella, não pretende conhecê-la? — Roggero Fontana perguntou com mãos trêmulas. — Ela é uma bela jovem. — Diga a sua filha que eu a encontrarei apenas no altar — ele murmurou sem se dar ao luxo de virar para trás. — Em duas semanas. Tenho pressa. Então partiu do bar. Senhor Fontana saiu logo em seguida. Por todo o caminho de casa, seu coração batia pesado. Ele suspeitava que havia algo de muito errado com aquele homem. Sentiu calafrios na espinha durante todo o tempo em que estivera perto do forasteiro, como se a maldade transparecesse dele. Apesar disso, rezava para que fosse apenas um engano. De fato, precisava do dote que ele pagaria para honrar, pelo menos, uma parte de suas dívidas — as mais urgentes. Com o tempo, o genro concederia mais dinheiro, afinal, faria parte da família. Quando chegou em casa, encontrou a esposa e Isabella na sala, contando histórias para a pequena Teresa. — Isabella, minha filha, arranjei um bom partido para você — ele anunciou, tentando acreditar na própria mentira. — Quem? — a filha sussurrou com o rosto tomado pelo pânico. Ela sabia que não
era o jovem Stefan, já que este ainda não tinha pedido sua mão. — Você não o conhece. Ele não reside na cidade, mora nas redondezas, numa grande fazenda. — Quem? — Isabella insistiu. Seu coração batia forte. Um gelo mórbido penetrava seus poros. — Quem é ele? Roggero, nos conte quem é esse bom partido, assim vamos decidir juntos o destino da nossa filha. — Não há o que decidir, Gisela — senhor Fontana respondeu mal-humorado. Estava farto de pensar sobre o assunto. — Já acertei tudo. Não interessa saber quem é. Ele me pagará bem. — Você vendeu nossa filha? — A mãe sobressaltou, incrédula, mesmo que, em sua consciência, já soubesse a resposta. — Não a vendi. Foi uma mão de azar. Se eu ganhasse, estaríamos ricos. — O senhor me apostou? — Isabella não podia acreditar nas palavras que saiam de sua boca. O gelo adentrava seu corpo, caminhando para seu coração. — O casamento acontecerá em duas semanas — o pai respondeu exasperado. — Deveria se sentir honrada em salvar o nome da família. — Não irei me casar sabe lá com quem, tão rápido, sem planejamento, como se tivesse sido desonrada, ainda mais no outono! Para Isabella não havia estação do ano mais deprimente: sem o perfume das rosas, folhas secas caindo e sujando as ruas, avisando que o inverno rigoroso estava se aproximando. — Repita o que disse — o pai pediu com o olhar duro e a frieza na voz. — Roggero, por favor... — a mãe tentou implorar. — Repita! — os nervos do chefe de família estavam no limite. — Não vou me casar em duas semanas. O senhor não pode me obrigar — a filha respondeu no momento de descontrole. Roggero Fontana, já muito nervoso e com rosto avermelhado pela raiva dos últimos acontecimentos, sem a menor tolerância, levantou a mão e desferiu um forte tapa contra o rosto da filha. Isabella foi jogada no chão pelo impacto do golpe. Com os olhos nublados de lágrimas e o rosto perplexo pela violência sofrida, ouviu a confirmação que mais temia: — Você irá se casar e ponto final. Não quero ouvir mais nenhuma reclamação sobre
o assunto — o pai advertiu, dando a conversa por encerrada.
A espera
Anotícia sobre o casamento da primogênita dos Fontana se espalhou com rapidez pela cidade. Sem demoras, Stefan Bortolini soube que sua amada estava prestes a ser desposada por outro homem. Ele se arrependeu amargamente por ter esperado tanto tempo. Sempre foi organizado e calculista. Por esse motivo, adiara a conversa com senhor Fontana até ter condições suficientes para dar à jovem a vida confortável que ela merecia — uma bela casa, dinheiro para comprar vestidos, uma criada que cuidasse dos afazeres domésticos, entre outros pequenos luxos. Pensou em enfrentar Roggero, mas sabia que ele já tinha dado seu consentimento. A palavra de um homem era sua reputação. Um pai de família jamais voltaria atrás depois de conceder a mão de uma filha. Honestidade era tudo. Stefan não poderia lidar com isso. Pensou, então, na possibilidade de fugir com Isabella. Mas essa ideia lhe apavorava. As consequências de um ato como este eram irreversíveis. A família Fontana seria envergonhada perante a sociedade, Roggero teria que arcar o preço da promessa desonrada, certamente iria perseguir o casal fugitivo até encontrá-los. Isabella seria castigada. Certa vez, uma moça da cidade recusara o noivo que seu pai havia lhe arranjado. O pai da mesma a espancou, em seguida, a jogou em uma masmorra e a deixou trancafiada por meses. Nenhum outro rapaz se interessou pela filha rebelde. Não apareceram mais pretendentes para cortejar as irmãs ainda solteiras. Um escândalo como esse manchava a honra de uma família para sempre. Por mais que a amasse e desejasse seu bem, se raptasse a moça e a levasse para bem longe, perderia o apoio do pai, seriam ambos deserdados.
Viveriam se escondendo. Sua amada sofreria. Só lhe restou arranjar um último encontro com Isabella, para certificar-se de que ela ficaria bem. Se a jovem concordasse com uma fuga, Stefan esqueceria de todos os empecilhos e sumiria com ela para bem longe. Mas não iria persuadi-la, apenas faria uma sugestão sutil. Recorreu a Elena Barbieri, uma vizinha e amiga de Isabella, para arquitetar o encontro entre os dois. Não queria que ninguém soubesse, por medo de estragar a reputação de sua amada. Elena se mostrou prestativa e tratou de arranjar tudo. Encontraram-se na casa paroquial da igreja, quando não havia ninguém por perto. A conversa foi breve. Por mais que os olhos de Isabella ainda estivessem inchados de chorar, mostrou-se conformada. Chegara à conclusão que, se Stefan a amasse de verdade, não teria demorado tanto para falar com seu pai. Ela queria um casamento onde existisse paixão. Talvez, aceitar de bom grado aquele noivo que o destino reservou para ela fosse a melhor opção. Estava chateada demais com todos ao seu redor para conseguir pensar com clareza. Magoada com Stefan por ser tão calculista, com seu pai por tê-la apostado como se ela fosse uma mercadoria e, até mesmo com Elena, que teria um futuro diferente. — Não posso fugir — murmurou. — Meus pais nunca me aceitariam em casa se fizesse isso. Não posso viver longe da minha irmã. — Entendo — Stefan concordou, o que deixou Isabella ainda mais contrariada. Ele não aparentava ser um homem movido por paixão, e sim, pelo comodismo. — Espero que seja feliz. Vou ficar por perto para constatar isso. Se ele a maltratar, o mato sem pensar duas vezes. Depois que for viúva, nos casaremos. Essa última declaração chocou Isabella. Não imaginava que Stefan fosse capaz de ir tão longe para defendê-la. — Faria isso por mim? — ela perguntou com a voz embargada de emoção. — Se ele a machucar, senhorita Fontana, se seu futuro marido lhe ferir, de alguma maneira, dê um jeito de se comunicar comigo. Senhorita Barbieri pode me dar o recado. Não hesite em procurar minha ajuda. Isabella respirou fundo. Esperava não precisar disso. Na verdade, a essa altura não sabia mais o que esperar.
∞∞∞ Os dias passavam rápido. Diariamente, como ditava o costume, John enviava flores
brancas à Isabella e sua mãe, mas nunca aparecia para fazer a corte, como os noivos deveriam agir para, dessa forma, irem se conhecendo até a data do casamento. A uma semana da cerimônia, Isabella encontrava-se na sala de jantar de sua casa junto com Elena, a fiel amiga, quando John bateu em sua porta. Estava ali para pagar o dote exigido pela família Fontana. Já que o senhor Smith não aceitara uma festa de noivado, Gisela tinha preparado um banquete para o jantar, onde John era convidado de honra. A pedido da mãe, Isabella trajava seu melhor vestido. Os cabelos castanhos estavam presos em longas tranças. Usara até um pouco de maquiagem. Estava ansiosa para conhecer seu noivo. As mãos tremiam e apertavam-se sobre o colo, embaixo da mesa. — Ele deve ser um bom homem, minha amiga — Elena tentava consolá-la com batidinhas suaves em suas costas. — E bonito. — Um bom homem não escolheria sua esposa em uma mesa de jogo — Isabella retrucou. Em dezessete anos, seu coração nunca havia batido tão forte quanto na ocasião. Os olhos estavam grudados no portal de entrada da sala, mas sua mãe voltou sozinha. — Senhor Smith se recusou a entrar — Gisela informou. — Ele não quer me conhecer? — a filha perguntou com pesar. Por mais que não admitisse, nos últimos dias, Isabella percebeu que aceitar faria a decepção doer menos. Já planejava secretamente o que cozinharia para o marido no primeiro dia e como cuidaria da nova casa. Imaginou-se esperando por ele na hora do jantar, sentada à beira da lareira, lendo ou bordando, desejando que o marido a beijasse quando estivesse em casa. Claro, ela jamais assumiria que começava a concordar com o casamento. No entanto, a decepção de saber que John Smith não queria vê-la fez todas as fantasias virarem fumaça. — Disse que só a verá no altar ― a mãe explicou. — Ele deve ser horripilante — Isabella queixou-se deixando a angústia tomar conta de seu peito. — Papai me vendeu para um monstro. — Ele não é tudo isso que pensa, fique tranquila — Gisela tentava acalmar a filha quando Elena pulou de sua cadeira e correu para a sala de estar, onde, da janela, pôde ter um vislumbre de John, que acabava de cruzar o jardim da casa. — Venha vê-lo, Isabella! ― a amiga gritou empolgada.
— Se ele não quer me ver, não vou me levantar daqui — a jovem respondeu, sempre malcriada. — E nem ouse me contar sobre suas características. Só o verei no altar.
∞∞∞ Mais dias se passaram. Por mais que a senhora Fontana pensasse numa conversa sensata para ter com a filha sobre o que lhe aconteceria nas núpcias, mulheres de respeito não conversavam abertamente sobre determinados assuntos. Cabia exclusivamente ao homem conduzir aquelas questões. Uma mulher de família não deveria se mostrar experiente naquilo. — Faça o que ele pedir e não se assuste. Os homens podem parecer estranhos — ela disse a Isabella, enquanto a ajudava a dar os últimos retoques no cabelo, alguns minutos antes da cerimônia. ― Apenas obedeça. Mas a jovem era muito inocente e não conseguia entender o que sua mãe tentava lhe explica. Sequer fora beijada nos lábios. Enquanto ela saía do quarto, usando um vestido de noiva de um lindo tom azul — já que branco ainda não era uma cor usada nos trajes de noiva no Século XVIII — olhou para a janela e pensou em se jogar dali. Não protestara durante o noivado. Sabia o destino de filhas que não aceitavam os noivos escolhidos pelo pai. Uma afronta tão grave como essa, resultava em humilhação para a família de ambas as partes, além de punição física para a filha rebelde, variando de reclusões até espancamentos prolongados. Então, lá estava ela entrando na carruagem, ao seu lado estava a pequena Teresa que levaria as alianças. Seu pai ajudou-a a subir no veículo, oferecendo-lhe o braço para que ela se apoiasse. Sua pele estava arrepiada. O coração batia descontrolado. Sentia-se perplexa com a complexidade das emoções que tomavam conta de seu corpo. Chorou por todo o caminho até a igreja. Seus pais não ousaram dizer nada em protesto contra seu pranto. Permaneceram calados, como se estivessem num cortejo fúnebre. A mãe pensara em dizer que ela não deveria chorar no dia mais importante da sua vida, mas optou por não se manifestar. A noite estava estrelada e o céu, isento de nuvens. Isabella secou as últimas lágrimas que caíam de seus olhos azuis no lenço oferecido pelo pai, e respirou fundo. Era o fim de uma era para ela. Apoiou-se novamente no braço do senhor Fontana quando a porta da carruagem fora aberta, e desceu. Os dois não trocavam palavras há duas semanas.
— Você será feliz — otimista, Roggero sussurrou as palavras para a filha, mas tanto ele quanto Isabella tinham o pressentimento de que não seria bem assim. Tornou-se impossível controlar a respiração enquanto era guiada pela escadaria da Igreja Católica Apostólica Romana. Apesar de todo o mistério que envolvera o noivo, Isabella não sentia urgência em conhecê-lo. Estava aproveitando cada segundo, como se estivesse indo para a forca. As portas da igreja se abriram e todos ficaram de pé para receber a noiva. A marcha da morte começou a tocar. Teresa, à frente, deu os primeiros passos. A respiração de Isabella estava cada vez mais pesada, sua mente oscilava; fingindo simpatia para os convidados, ela começou a caminhar atrás da dama de honra, apertando o braço do pai, embriagada de tristeza, com um sorriso forçado. As paredes de falsidade pareciam se fechar em sua volta. Entretanto, todos os detalhes vazios e melancólicos sumiram quando ela o viu.
O casamento
A cada passo que Isabella dava, a silhueta de John Smith ficava mais clara. Seu coração batia rápido como as asas de um beija-flor, e ela precisou lutar contra o desejo desesperado de apressar o passo para chegar mais rápido ao altar. Os olhos do noivo possuíam um brilho familiar. Era como se ele estivesse tentando dizer algo a ela, talvez contar-lhe pequenos segredos. A noite estava vibrante. Apenas a classe alta costumava casar-se naquele horário, mas o senhor Fontana não economizou nos gastos, afinal, John Smith tinha lhe dado carta branca. Roggero queria mostrar para todos que sua família pertencia à alta sociedade agora. Para Isabella, as coisas se encaixaram perfeitamente. Todos os convidados se resumiram a um borrão de cores em trajes de gala. Ela estava perplexa, compreendendo o que significava amor à primeira vista. John meneou levemente a cabeça, cumprimentando-a, assim que ela chegou ao altar. Seus corpos ficaram separados apenas por meros centímetros. O sorriso da jovem brilhou, a deixando incrivelmente bonita. Tudo que sua consciência dizia naquele momento era que ela estava encantada em conhecer seu noivo. Ele era alto — mais que seu antigo pretendente, Stefan. Apesar da época do ano, seu rosto tinha cor, vida. Os olhos eram de um tom raro de azul. Isabella não conseguia afirmar sua idade. Era quase imperceptível. Talvez vinte e poucos anos. Não foi capaz de prestar atenção no sermão do clérigo, enquanto seus olhos percorriam o noivo, tentando absorver cada detalhe. Ela estava totalmente fascinada, corando sempre que os cantos dos lábios de John se esticavam num sorriso.
Pouca coisa foi absorvida das palavras ditas pelo clérigo. O nome dele ecoava em sua mente. Ela não deveria estar tão otimista. Não em se tratando de um homem que a ganhou em uma mesa de jogo. Ao final da cerimônia, Isabella foi beijada na testa pelo pai e demais familiares, enquanto John limitou-se a permanecer ao seu lado, já que demonstrações de afeto entre casais não eram bem vistos pela sociedade.
∞∞∞ Apesar de não ser costume o noivo pagar o dote, e sim a noiva, Roggero exigiu isso. Usando parte do dinheiro, providenciou uma festa de casamento impecável, com banquete e música para os convidados. A noite se transformava em madrugada. A comida e bebida não deixavam a desejar. A única coisa que preocupava Isabella era o fato de não ter visto um convidado sequer da parte do noivo. A mobília da sala de estar havia sido retirada para o baile, onde o casal Smith dançaria pela primeira vez. Roggero contratara três músicos para embalar a festa. Foi ele que, orgulhoso, anunciou a abertura do baile, após os convidados se fartarem no banquete servido na mesa de jantar ― vários tipos de pães, sopas, carnes, tortas recheadas, frutas e vegetais, entre outras iguarias. O noivo abriu o baile quando se aproximou de Isabella, que corou perante os olhares de todos os convidados, enquanto ele a guiava pela mão até o centro da sala. Após uma breve reverência, o casal deslizou pelo salão ao som da valsa de três tempos, que ganhava vida conforme os noivos iam girando. Não houve contato entre os corpos, mas Isabella arfou todas as vezes que sua mão tocou levemente os ombros ou as costas de seu esposo. Por mais que estivesse distraída pela magia, não pôde deixar de notar quando Stefan tirou Elena para dançar. Não se sentiu enciumada. Aceitar fazia doer menos. Os noivos não tiveram tempo para conversar durante os festejos. Lá pelas tantas horas, John informou à noiva que era hora de partirem, sussurrando em seu ouvido que tinha pressa em desposá-la. Isabella despediu-se dos convidados e partiu para a carruagem, onde sua bagagem já estava acomodada. — Seja feliz — Gisela Fontana disse, abraçando a filha. — E venha nos ver sempre que possível. — A senhora também deve ir nos visitar — Isabella pediu.
— Não nos primeiros dias — a mãe respondeu. — Não quero atrapalhar. Iremos quando seu pai estiver de folga — ainda com os braços em volta do corpo da filha, pôde sussurrar. — Não tenha medo e obedeça ao seu marido. Então eles partiram. Isabella tinha a cabeça cheia de perguntas, esperou que ele falasse algo quando ficaram sozinhos, mas ele se manteve calado. Seu coração batia pesado, enquanto a carruagem corria pela estrada de terra batida. Os nervos estavam à flor da pele, os dedos se apertavam, seu pé direito batia incansavelmente contra o piso da carruagem. A luz dentro do veículo, ainda que fraca, permitia que ela observasse os detalhes do rosto do marido. Ele estava distraído, não prestava atenção em Isabella. Sua respiração, ao contrário da noiva, era tranquila. John não emitia nenhum som, não fazia nenhum gesto. Era como se estivesse paralisado, olhando para o nada. Isabella se perguntou quanto tempo um ser humano era capaz de ficar imóvel daquela maneira, sem dizer uma palavra. Havia um milhão de questionamentos na mente da moça, lutando para serem verbalizados. Ela fez de tudo para não o aborrecer, até que não suportou mais o silêncio e se atreveu a perguntar: — Por que sua família não veio? — Sua voz saiu rouca devido ao tempo que tinha ficado calada. — Não tenho família — John respondeu brevemente, tão frio quanto o clima lá fora. — Como não tem família? — Isabella insistiu, com o tom de voz suave, tentando manter a conversa, conhecer melhor o marido. — Não tenho família — ele repetiu com a mesma frieza na voz. O silêncio se instalou na carruagem outra vez, fazendo com que a garota começasse a tremer, enquanto recordava a advertência de sua mãe, que dizia para fazer o que ele pedisse naquela noite. Ela não entendia o que sua mãe queria dizer com aquilo. Esperava que logo descobrisse. Ele a beijaria, disso ela tinha certeza, e ansiava por esse momento, enquanto se perguntava por que ele ainda não a tinha tomado nos braços e apertado seus lábios contra os dela. Por que estava tão sério? Onde tinha ido parar o homem que sorria para ela no altar? Seu humor tinha mudado. Algo que ele viu na festa de casamento o deixou assim. Isabella podia apostar que era isso. Será que John flagrou Stefan a olhando de modo lascivo? Alguma outra moça solteira chamou sua atenção, o deixando arrependido de ter se casado com ela? Fora algo que um parente disse? Por que ele não se comunicava com ela? A quietude estava consumindo seus nervos. O caminho parecia não ter fim e Isabella começou a contar mentalmente os segundos, depois os minutos, para matar o tempo, até que
a contagem ultrapassou uma hora. Aquilo a incomodou mais que o silêncio. Sua nova morada parecia longe demais da cidade. Estalava os dedos, angustiada, e começava a limpar a garganta para perguntar se estavam perto da fazenda, quando a carruagem parou. — Chegamos — John informou, abrindo a porta e ajudando sua noiva a descer. Os olhos de Isabella percorreram a escuridão que se estendia até uma pequena casa assustadoramente deteriorada pelo tempo. — Não pode ser aqui... — ela lamentou baixinho. Esperava encontrar um casarão de fazenda, com celeiro e tudo mais. Encolheu-se arrepiada, enquanto John deu ordens para o condutor descarregar as malas, levá-las para dentro, em seguida partir. Ali era ainda mais frio que na cidade. Uma luz brilhava através de uma das janelas. Isabella não sentia nem um pouco de curiosidade em conhecer seu novo lar. Na verdade, preferia dormir na carruagem. Estava preocupada com os insetos, ratazanas e a quantidade de bolor que devia existir ali. Um dos braços de John passou por trás dos joelhos de Isabella, e ela se viu puxada para fora do estupor quando ele a colocou em seus braços, levando-a em direção ao casebre. Novamente seu coração bateu enfurecido. Não conseguiu tirar os olhos do rosto do esposo, até porque não pretendia olhar em outra direção e se deparar com alguma fera escondida nos arbustos em volta. Após subir os seis degraus da escadaria de pedra, John abriu a porta usando apenas uma das mãos. Isabella, agarrada ao pescoço do marido, tinha perdido a coragem de fazer qualquer pergunta. O vão, que deveria ser uma pequena sala, estava às escuras e cheirava a mofo. À medida que ele abria a porta do próximo cômodo, e a conduzia para dentro do quarto, Isabella começava a ter dificuldades para respirar. Só se ouvia a madeira rangendo com cada passo de John e labaredas de fogo estalando. No centro do quarto havia uma cama de casal com dossel, coberta com lençóis amarelados. Ela se perguntou há quanto tempo a roupa de cama não via água e sabão. No lado sul, próximo à janela, havia uma lareira, fonte do fogo e da luz que ela vira lá de fora. No lado leste, em frente à cama, tinha uma cômoda grande de pinho e alguns pertences que ela preferiu não memorizar ainda. Ao lado do móvel estava um espelho retangular grande, quase da altura de John, com várias manchas de corrosão e a moldura desgastada. John conduziu Isabella até a frente do espelho, a deixou ali e se dirigiu à lareira, agachou-se e pegou algumas lascas de lenha, que estavam apoiadas na parede, e jogou-as no fogo. Ficou de pé outra vez, tirou o casaco, o colete e o lenço, voltando então para onde tinha deixado Isabella. Ele afastou suas longas tranças castanhas, a fim de ter uma visão ampla das costas
da jovem. Inclinou-se até seus lábios estarem na altura da orelha dela e sussurrou: — Você é linda. O hálito suave de John soprou contra sua pele, e ela precisou de quase um minuto para voltar a respirar normalmente, enquanto encarava os olhos maliciosos dele através do espelho à sua frente. John passou um dos braços em torno da cintura de Isabella, acariciou seu queixo com a outra mão, e aproximou-se ainda mais, encostando os lábios contra seu pescoço. — Nunca fui beijada — ela confidenciou, inquieta por não saber o que esperar, sem ter a mínima noção de quando ele iria fazer aquilo. — Eu sei — John disse confiante. Deixando-a novamente, foi até a cômoda, pegou com uma das mãos um cálice prateado e na outra... O que era mesmo aquilo? Isabella o viu abrir um canivete e uma lâmina cintilou contra a luz do fogo, enquanto John voltava para ela com o objeto apontado em sua direção. — O que pretende fazer com isso? — ela perguntou assustada, sem fôlego.
As núpcias
— Shiii... — John fez sinal para que ela ficasse em silêncio, pousando o dedo indicador em seus lábios. Isabella tremia. Imaginava se aquilo era normal, não sabia o que John poderia fazer com ela. Não estava preparada para nada. Por que ele não a beijava logo? Será que ele não a queria? — Feche os olhos — ele ordenou. — Não! Por favor, diga-me, o que pretende com essa faca? ― a jovem suplicou apavorada. — Shiii... — ele sussurrou outra vez. — Vai ser rápido. Fique quieta. Enquanto ela sentia as pernas ficarem bambas e o medo horripilante dominar até seus ossos, John pegou a palma direita de Isabella e a pressionou contra a lâmina, fazendo o sangue se concentrar naquela área, só então deslizou o objeto por sua mão, respingando as gotas vermelhas de imediato. Isabella começou a choramingar, enquanto ele apanhava o sangue com o cálice prateado, ainda pressionando a ferida para que o líquido continuasse a fluir pelo corte. A mão doía, ardia, mas ele lançou um olhar que a fez ter medo de reagir. — Qual o motivo disso? — ela o questionou. — O que vai fazer com meu sangue? A imagem do esposo bebendo daquele cálice e depois tentando beijá-la a enojou.
John não respondeu, mas soltou uma das mãos que segurava a mão dela e alcançou um pano esfarrapado em cima da cômoda. Envolveu rapidamente a mão delicada e ferida com o retalho, fazendo com que o sangue parasse de fluir. Pegou o cálice, derramou o conteúdo dentro de um vidrinho transparente e o tapou com uma rolha de cortiça. Aos poucos, ela começava a se acalmar, mas o corte ardia por baixo do curativo. — Por que guardou meu sangue? Para quê...? John permaneceu calado, guardou tudo de volta na cômoda e voltou-se para a jovem e ingênua esposa. O coração ansioso da moça martelava no peito, enquanto o marido deslizava as costas da mão pelo seu maxilar, desfazendo suas tranças com a outra mão, e curvando-se para baixo até seu rosto ficar na altura do dela. Os lábios dos noivos se encontraram. Primeiramente, um leve toque, em seguida a boca de John se abriu contra a dela, e Isabella sentiu a dor na mão se esvair, assim como a força de suas pernas. Ele sugou de leve seu lábio superior e ela tentou imitar seu gesto, fazendo o mesmo, provando o gosto da boca dele. Ficou tonta. Um novo tremor percorreu seu corpo, a presenteando com arrepios na superfície da pele, que não tinham nenhuma relação com o frio do outono. Pelo contrário, a jovem sentiu a nuca umedecer com o calor que se apoderou dela. Ele deixou os lábios de Isabella para contemplar seu olhar. O primeiro beijo que ela ganhou fez seu coração martelar tão forte que chegou a doer. — Você está tremendo — ele comentou. Isabella concordou com a cabeça, sentindo as bochechas corarem. A sensação era de estar nas nuvens. — Posso ouvir seu coração batendo — John acrescentou com os cantos dos lábios arqueando-se em um sorriso cativante. Seus olhos eram de um azul raro e brilhavam com o reflexo das chamas na lareira. Sua boca carnuda e macia, além do modo como ele mordiscava discretamente o lábio inferior, quase imperceptível, era como um convite para mais um beijo. Ela se perguntou o que o marido queria dizer com poder ouvir seu coração bater. Era apenas uma metáfora ou estava tão ansiosa a ponto de ele conseguir escutar de verdade? Gostaria de saber quantos beijos eles poderiam dar antes de dormir. Esperava que fossem muitos. Por esse motivo, quando John voltou a inclinar-se em sua direção, foi Isabella que encurtou a distância, ansiosa por sentir os lábios do esposo tocarem os dela de novo. John apertou-a com firmeza, seus dedos procuraram a nuca dela e os braços musculosos se fecharam em volta de Isabella como um abrigo quente e seguro. Ainda tímida, ela ergueu a mão e contornou o maxilar de John com o polegar,
admirada com as sensações provocadas pelo contato entre suas línguas. Gostou da maneira como os dedos dele acariciaram a parte de trás do seu pescoço e subiram sorrateiros até sua nuca, onde se misturaram às mechas do cabelo de Isabella. A empolgação pelo novo, além do calor que a acalentava, envolvia e a despertava ― simultaneamente ―, ofuscava o raciocínio de Isabella. Desejava permanecer assim com o marido para sempre, isso se não incendiasse e virasse cinzas. Sentiu-se eufórica ao perceber que passariam o resto da vida juntos, nos braços um do outro. Sem que ela percebesse, ele tirou uma das mãos do seu corpo e alcançou o canivete novamente. Parou de beijá-la, colocando-a de volta no chão, e riu quando ela ficou na ponta dos pés esperando outro beijo que ele não deu. Isabella ainda estava agitada, sentindo o sangue fluir rápido por baixo da pele, quando ele a conduziu de volta ao espelho. John, mais uma vez, afastou os cabelos dela que estavam grudados no suor de suas costas pálidas e, só nesse momento, ela viu a lâmina brilhante e convidativa. A dor e o medo, que tinham sumido de sua mente, voltaram nesse instante. Isabella engoliu em seco, arregalando os olhos, com medo do que ele faria dessa vez. Tremeu ainda mais e sua respiração parou quando perdeu de vista a faca que via pelo reflexo do espelho. Ele a afundava em suas costas e ela esperou pela dor, mas a única coisa que ouviu foi o barulho de tecido fino sendo rasgado. John cortava, sem paciência, as amarras das costas do seu vestido. Em seguida cortou o espartilho, conseguindo, então, visualizar toda a coluna dela. Pelo espelho, ela viu os olhos de John brilharem e ganharem interesse. Surpreendentemente, não se sentiu envergonhada pela nudez. A maneira como o marido a observava, deixou Isabella confiante e curiosa para descobrir o que viria pela frente. Por mais que sua mãe tivesse dado algumas dicas sobre a noite de núpcias, Isabella jamais estaria preparada para o que viria em seguida. Nunca ouvira falar de pessoas que faziam aquilo, ao menos sabia que tais atos existiam. John possuía um gosto intrínseco, que combinava com sua personalidade reservada. Ele a abraçou por trás, tocando seu corpo nu, a envolvendo com seu calor. Isabella arfou quando sentiu as mãos de John — quentes e ásperas — deslizando pela sua barriga, subindo para os seios. Ele os apertou e roçou os lábios na clavícula de Isabella, provocando um tipo de arrepio que ela nunca havia sentido. John não parecia ter pressa. A levou para cama e deitou-se sobre ela, usando o joelho para afastar suas coxas e se acomodar ali. Mesmo que ele ainda estivesse vestido, Isabella pôde perceber a firmeza de seu corpo quando John moveu o quadril lentamente. Aquilo foi muito bom, e ele repetiu o movimento ao vê-la mordendo os lábios. — Gostou disso? — a voz macia e convidativa quis saber.
— Sim — ela cochichou uma resposta preguiçosa, tentando prender os sons que estavam se formando no fundo de sua garganta. — Eu não sei... — Shiii — ele pediu ao colocar o dedo indicador sobre os lábios dela, ficando apoiado apenas em uma das mãos. Após um sorriso e olhos brilhantes, John abaixou a cabeça até o pescoço de Isabella e começou a beijá-la, descendo, os lábios tocando o corpo imaculado da virgem. Sem entender o porquê, apenas seguindo os impulsos de um corpo em chamas, ela puxou a camisa do esposo e abriu os botões com pressa, engolindo em seco quando ele a ajudou, acabando de tirá-la, exibindo seu tórax. Era a primeira vez que Isabella via um homem sem camisa. Podia ser considerado um privilégio estarem com a luz da lareira os iluminando. Muitos casais só faziam no escuro, passando a vida inteira sem vislumbrar o corpo um do outro. Deixando-a trêmula e inquieta, John desceu da cama. Agachou-se no chão, com a mão apoiada no colchão, e puxou algo embaixo da cama — um baú. Interessada, ela se sentou para ver do que se tratava. John abriu a tampa e tirou um objeto estranho lá de dentro. Era um pedaço de ferro com cerca de meio metro de comprimento, que possuía semicírculos em ambas as extremidades. — Fique de joelhos — John pronunciou as palavras com autoridade. Sem pensar duas vezes, Isabella obedeceu. A curiosidade mexeu ainda mais com seu imaginário. O que viria a seguir? Ela sentia como se fosse uma pedra derretendo com as lavas de um vulcão. Será que o marido também sentia semelhante calor? — O que vai fazer? — perguntou com urgência ao vê-lo subir na cama novamente, trazendo o objeto. — Não vou machucá-la, prometo — John sussurrou. — Caso sinta câimbra, me avise. Ela confirmou com a cabeça e mordeu o lábio. — Afaste os joelhos — outra instrução dada na voz de veludo. Obedecendo prontamente, Isabella deslizou os joelhos em cima dos lençóis, sentindo-se exposta. Ele a analisou, os olhos percorrendo cada centímetro de pele. Umedeceu o lábio inferior com ponta da língua e posicionou o objeto no espaço entre as pernas da esposa, encaixando as coxas nos semicírculos, de modo que ela não pôde mais movê-las. ― Você é terrivelmente bonita ― disse o marido ao se aproximar da donzela
imóvel. Seu hálito quente soprava contra os lábios dela, que estavam entreabertos, por onde a respiração instável passava. ― Agora, coloque suas mãos em mim. O coração descontrolado ameaçou explodir no peito da jovem. Suas bochechas coraram, mas ela queria fazer aquilo. Ergueu a mão e a colocou no ombro de John. Seus dedos acariciaram lentamente a pele do peito. Ela sorriu satisfeita ao sentir a rigidez dos músculos. Levantou a segunda mão para tocá-lo. John estremeceu quando as mãos macias escorregaram até seu abdômen e as pontas dos dedos traçaram os contornos dos músculos. Cerrou os olhos e trincou o maxilar quando sua bela avançou para baixo. Os corpos de ambos ardiam, mas ele, mesmo tomado pelo prazer, a deteve e deixou a cama pela segunda vez. Não tinha pressa. Aquela era uma noite que John degustaria aos poucos, apreciando o sabor de cada detalhe. Isabella tentou se mostrar calma, enquanto o marido procurava algo dentro do baú. Dessa vez voltou com um par de algemas de cobre. — Fique quieta — pediu. Ela limitou-se a concordar. Não iria a lugar algum naquela noite, muito menos para longe dele. Dessa vez, ele se dirigiu às costas da esposa, juntando seus pulsos e os algemando, logo, fazendo o mesmo com os tornozelos, enroscando os dois pares de algemas para que ela não pudesse escapar. Isabella sentiu o sangue ferver. Estava perplexa, imobilizada. Será que todos os casais faziam desse jeito quando estavam sozinhos? Ela suspeitava que não, que John Smith era um caso raro. Ele arrastou-se até ficar de frente para ela, admirando-a por alguns instantes, os olhos azuis brilhando de fascinação. — O que pretende fazer? — ela sondou. Antes de dar uma resposta, John a beijou, enfiando a língua rudemente na boca de Isabella, procurando a dela. Quando ela começou a corresponder ao beijo, sentiu algo, além da língua do marido, entrando em sua boca. Tratava-se do dedo indicador de John. Ele parou de beijá-la e se afastou, mas permaneceu com o dedo lá dentro. — Chupe! — exigiu, usando um tom de voz selvagem. Isabella deslizou a língua em volta do indicador, o chupando, então John o puxou devagar. Os olhos cheios de cobiça. Desceu a mão até as coxas da esposa e, com aquele
dedo ainda úmido com a saliva, tocou entre suas pernas. Ela sentiu a aspereza da ponta do dedo em contato com a parte mais sensível do seu corpo. Sentiu a pulsação, o ardor delicioso, as palpitações nos lugares errados, estava ficando molhada. Os dedos de Isabella se fecharam contra os próprios tornozelos, as unhas arranhando a pele. Ela cerrou os olhos e trincou o maxilar com força, esperançosa, imaginando que seria capaz de abafar os gemidos. — Abra os olhos, Bella — a voz aveludada do marido exigiu. Ela obedeceu, mas não o encarou. O corpo de John estava bem perto, dava para sentir o calor que emanava dele. — Isso te deixa nervosa? — ele quis saber. Isabella levou um segundo inteiro para entender o que poderia deixá-la nervosa. O dedo de John continuou descendo. O atrito a enlouquecia. Então ele parou. Bem ali. Na entrada nunca penetrada. — Gosto que respondam minhas perguntas, Isabella — a voz do marido parecia séria. — Isso te deixa nervosa? O peito da jovem subia e descia com a respiração descontrolada. Lentamente, ela levantou os olhos e o encarou. — Sim. — Ninguém te explicou o que os casais fazem nas núpcias? — Não — ela respondeu prontamente, em seguida, ouviu o riso dele. — Vou entrar em você, Bella — John afastou o dedo e levou a mão até a calça, traçando o contorno do seu membro. — Vou colocá-lo dentro de você. É isso que os casais fazem. Nossos corpos foram feitos para se encaixarem. Você vai gostar. Sinta — dito isso, ele voltou a tocá-la com o dedo. Dessa vez, enfiou devagar. Isabella sentiu uma leve ardência, mas, quando John puxou e colocou de volta, ela gostou da sensação. Se inclinou para frente e encostou a cabeça no peito do marido. O polegar dele a massageava mais em cima, enquanto o outro dedo continuava a se mover. Ela estava gemendo contra os lábios fechados, tímida. — Não tenha pudor, Bella — John sussurrou, a voz era tão macia que a fazia relaxar. — Estamos só nós dois aqui. Ninguém pode nos ouvir. Não fique envergonhada por sentir prazer. É para isso que nos casamos. É assim que faremos todas as noites. Hesitante, Isabella abriu os lábios, os deixando roçar na pele de John, então soltou um gemido preguiçoso. Era golpe baixo o que ele estava fazendo, aqueles dedos se
movimentando. Os sentidos da jovem estavam embaralhados. Ela só queria ceder, se entregar a ele. — Precisa me amarrar para fazermos isso? — quis saber. — Não — John respondeu —, mas eu gosto de vê-la amarrada, vulnerável, totalmente ao meu dispor. Assim, posso fazer qualquer coisa com você, Bella. Ela limitou-se a soltar um gemido. Porém, repentinamente, John a deixou para revirar o baú. O objeto escolhido da vez foi um açoite com cabo de madeira enegrecida e tiras de couro com nós nas extremidades. O coração de Isabella bateu forte demais quando ele lançou as tiras de couro contra suas nádegas. A pele ardeu, mas os comichões logo foram substituídos por arrepios quando John usou o objeto para acariciá-la com suavidade, provocando e despertando novas reações. Ela jamais fantasiou que seria assim estar casada. Nunca, uma única vez na vida, imaginou passar por aquilo. Estava convicta de que nem todos agiam daquela maneira. Com certeza, caso tivesse se casado com Stefan, ela nunca descobriria tudo que John tinha para lhe mostrar. Será que era certo o que estavam fazendo? Bem, não importava. Aquele homem de gostos e atitudes singulares era seu marido. Era a ele que Isabella dedicaria sua vida. Todos os dias. Todos os dias e noites. Borboletas descontroladas dançaram um baile dentro do estômago da jovem ao considerar o que poderiam fazer sempre que estivessem com vontade, sem ninguém para atrapalhar. Após atiçar o desejo da noiva o quanto pôde, John a libertou das algemas, roçando seus lábios nas marcas avermelhadas deixadas em seus pulsos. As mãos fortes e ásperas massagearam as coxas doloridas de Isabella. Ele a deitou e beijou seus lábios, seu maxilar, clavícula, seios, barriga. O corpo de Isabella se contorceu sobre os lençóis amarelados quando o marido seguiu para baixo e o rosto desapareceu entre suas coxas. Ela arqueou as costas e se agarrou aos travesseiros sem dar importância ao estado da roupa de cama ou as teias de aranha que se acumulavam nos cantos das paredes velhas. Nada mais importava. Não havia espaço em sua mente para lembrar que John guardara seu sangue. Sua mente se concentrou no que ele fazia lá embaixo, como sua língua deslizava. Todo pensamento, cada batida de seu coração, toda terminação nervosa e sensível de seu corpo desejava que ele nunca parasse o que estava fazendo. Era a melhor experiência que ela já tinha desfrutado. Mas ele parou. Ficou de joelhos e se livrou do que sobrava do traje de noivo. Isabella o olhou sem recato, absorvendo aquela novidade.
Dessa vez, John tinha pressa. Ainda assim, beijou Isabella na boca e acariciou seus cabelos quando se deitou sobre ela e começou a invadi-la. Seus olhos só perdiam contato com os de sua bela por um breve piscar de olhos. Ele a encarava, admirado com sua beleza, inocência e submissão. Quantas vezes John já tinha se deitado com uma mulher? Foram muitas. Poderia ser apenas mais uma noite de luxúria para ele, mas Isabella era diferente. Além de ser sua esposa, ela possuía uma ingenuidade que fazia tudo parecer mágico para ele. A maneira como o fogo reluzia sobre o suor na pele dela a fazia parecer a mulher mais linda que ele já vira nua. Era tão jovem, despreparada, vulnerável... somando isso tudo ao perfume — que não se igualava ao aroma de todas as primaveras que ele já vivera — exalado do corpo dela, em chamas. Todos esses atributos provocantes fizeram com que o coração de John batesse mais forte, quase tão intenso quanto o de Isabella. Foi como se seu coração crescesse duas vezes o tamanho normal, e se aquecesse. Ainda assim, isso não poderia acontecer. Ele não se entregaria do mesmo jeito. Nunca ficaria vulnerável como ela. Nunca. Ela não conhecia absolutamente nada sobre John Smith, a não ser o nome e o endereço. Aliás, Isabella sequer sabia onde estava. Poderia ser no meio do nada. Mas, naquele momento, não ligava. Não sabia do mal que ele seria capaz de lhe causar. Naquele instante, ela apenas se deixou levar.
A primeira refeição do casal Smith
Isabella piscou os olhos algumas vezes. Aos poucos, recobrava a consciência, caindo em si. Não estava mais em seu quarto de menina. Um pouco de claridade entrava pela janela, infiltrando-se nas cortinas de rendas amareladas, mas o sol estava escondido atrás de uma espessa camada de nuvens cinzentas que cobria o céu de norte a sul. A lareira estava apagada, restavam apenas pequenos resquícios de brasas. Isabella virou-se de lado, esperando encontrar John Smith dormindo ali, junto com ela, mas estava sozinha no quarto. Agora o cômodo parecia ainda mais mofado, abandonado. Precisou respirar fundo para afastar a sensação de solidão. Ela levantou-se e foi até o espelho. O corpo parecia mais voluptuoso, como se a noite passada tivesse despertado algo. Na verdade, as últimas horas que passou acordada tinham-lhe deixado sinais: havia três marcas roxas e arredondadas, ambas entre os seios e seu pescoço, um arranhão bem na curvatura de sua cintura, as marcas avermelhadas nos pulsos e o curativo do corte que ele havia feito em sua mão direita. Isabella olhou em volta. Nada que John usara para apanhar seu sangue estava ali. Ela suspirou e, vendo as manchas de sangue e outras sujeiras na roupa de cama, decidiu rapidamente que aqueles lençóis precisavam ser trocados. Foi até a sala procurar um dos baús onde tinha trazido seu enxoval — Gisela mandara bordar, de última hora, as iniciais dos noivos JI em letras azuis. O baú era de madeira escura, com tiras de couro presas a fivelas acobreadas para mantê-lo fechado.
Isabella o arrastou para dentro do quarto e escolheu o melhor jogo do enxoval. Os lençóis na cor marfim contrastavam com a madeira escura da cama com dossel. Após arrumar tudo, Isabella puxou outro baú, que estava embaixo da cama. Ali, John guardava objetos extremamente íntimos e singulares, que foram usados durante as núpcias do casal. Com os olhos brilhando de curiosidade, e a respiração acelerada devido à lembrança, ela levantou a tampa do baú e observou o interior dele. Com cuidado tocou o açoite, o puxando pelo cabo. Os dedos macios deslizaram sobre as tiras de couro escuro, brincando com os nós arredondados das pontas. Seu coração disparou com a recordação do que haviam feito há poucas horas. Sentiu o cobre frio das algemas, que mantiveram seus pulsos presos durante boa parte da noite, e engoliu em seco. Apesar de, a princípio, ter ficado receosa quando John apareceu com todos aqueles itens, ela confiou nele e, nem por um segundo, ele a decepcionou. Não esperava por nada daquilo. Ainda assim, os olhos do marido passaram confiança. Além disso, sua mãe fez advertências a respeito da estranheza dos homens, e de como ela deveria ser obediente, a todo custo. Isabella não estava arrependida de ter obedecido cegamente ao marido. Ele foi carinhoso, mesmo usando coisas que remetiam a instrumentos de tortura. Ela pensou na maneira como ele beijou seus pulsos avermelhados após liberá-los das algemas. John importava-se com ela — Isabella concluiu com um sorriso —, queria fazê-la feliz. Quando acabou de se vestir, e saiu do quarto, estava faminta. Alimentou-se do que encontrou nas prateleiras empoeiradas da pequena dispensa. Precisou manter os olhos no próprio pão para não ficar enjoada devido à falta de higiene da cozinha de John. O cômodo estava infestado de teias de aranha misturadas a poeira. Uma espécie de grude escuro estava impregnada na pia e perto da janela. O silêncio predominava. O casebre ficava longe das grandes estradas. Não existia vizinhos nas proximidades. Era só John e Isabella. Onde ele estaria? Por que não acordou a esposa para que fizesse seu café? Poderia ter avisado para onde iria. Ele deve ter seus motivos — Isabella pensou. Decidiu que era necessário fazer uma faxina. Sua família não tinha criadas, Isabella estava acostumada ao trabalho doméstico. Aquilo não a incomodava. Depois de tentar limpar um pouco o cômodo, ela lembrou-se que precisaria preparar o almoço para seu esposo. Esposo! A palavra ecoou em sua mente lhe causando um frio na barriga. Desejou que ele chegasse depressa para tomá-la em seus braços.
∞∞∞
Estava picando tomates para o molho do ravióli quando ouviu três batidas ecoarem na porta. Tomada pelo êxtase, Isabella correu para atender, esperando encontrar o marido para abraçá-la. Ao abrir a porta, o vento frio se instalou entre ela e o visitante. Não se tratava de John. Era uma mulher baixinha, encorpada, de olhos negros como duas profundas esferas, pele branca, possuía longos cabelos ondulados que caíam um pouco abaixo dos quadris. Era incomum ver damas de cabelos soltos em público, moças e mulheres de família nunca saíam de casa daquele jeito. Ela usava vestido e luvas, ambos na cor preta. Em seu pescoço ostentava uma gargantilha de pedras escuras. — Olá — Isabella sussurrou, deixando transparecer a decepção que sentiu. — John? Onde está John? — a mulher perguntou, esticando-se nas pontas dos pés para ver sobre o ombro de Isabella. — Ele não está — a jovem respondeu, muito incomodada por não saber onde seu marido estava e, mais ainda, por outra mulher estar o procurando. — De onde o conhece? — A que horas ele volta? — a mulher exigiu saber, sem responder à pergunta de Isabella. Seus olhos inquietos esquadrinhavam o entorno a cada segundo, como se ela estivesse com medo de ser flagrada por alguém ou que um monstro pudesse saltar dos arbustos mais próximos. — Em breve. — Preciso ir! — disse a dama, apertando os dedos dentro das luvas de seda. Sem cerimônia, ela se foi. Isabella a observou desaparecer na floresta de pinheiros em frente à casa. Não viu carruagem ou cavalos por perto. De onde aquela senhora poderia ter vindo a pé? E o que queria com John Smith? Parecia tão... desesperada. Estando Isabella prestes a acabar de fazer o molho, John voltou. Entrou tão silencioso, fechando a porta atrás de si, que ela deu um pulo de susto quando sua voz encheu a cabana: — O almoço está pronto? — ele perguntou, sem se ater a olhá-la. — Está quase — Isabella respondeu com um sorriso iluminado, que se desfez quando percebeu que John não olhava em sua direção. Ele puxou uma cadeira da mesa da cozinha e se sentou, tirando alguns papéis do bolso do sobretudo negro. Isabella secou as mãos num pano encardido e levou uma cesta de pães até o esposo, com o corpo trêmulo, desejando que ele a beijasse. Mas John permaneceu envolto nos papéis. Ela notou que o marido sabia ler, já que seus olhos azuis investigavam cada linha com atenção. A jovem se perguntava para onde tinha ido o homem da noite anterior. A frieza de
John agora era tanta que ela tremia enquanto almoçavam, sem trocar uma única palavra. Isabella era uma típica italiana do Sul, estava acostumada com o barulho das conversas animadas na hora das refeições, e esse silêncio a fazia sentir uma profunda saudade de sua família. Sentia-se constrangida demais para puxar assunto, sequer lembrou-se de mencionar sobre a misteriosa mulher que procurara por ele. Quando acabaram, ele pediu café. Com o coração apertado, Isabella levantou-se, colocou água em uma chaleira e pôs para esquentar, depositando mais madeira no fogão a lenha. Terminado de coar o café, que estava pelando, ela arrumou a xícara cuidadosamente em uma bandeja, e torceu para que ele percebesse o carinho com o qual ela cuidava de tudo. Isabella o serviu, a fumaça e o aroma invadiram a cozinha e, enquanto ele provava o café, ela alcançou a cesta de pães e a esticou na direção de John outra vez, mas parou, ficando imóvel, quando ouviu seus protestos. — Que café horrível! — John falou baixo, mas com uma voz cruel e cortante. Isabella permanecia congelada, com a mão ainda esticada segurando a cesta próxima a ele. — Sua mãe não te ensinou a cozinhar? Então, ele despejou o conteúdo da xícara, quase fervendo, sobre o antebraço de Isabella. Ela, de imediato, sentiu um frio no local, em seguida o ardor insuportável, enquanto as bolhas se formavam na pele delicada. Isabella gritou e correu até a pia para despejar água fria na queimadura. Seus olhos se inundaram de lágrimas. A dor era profunda. — Faça outro — John pediu e, como não foi atendido, levantou-se da cadeira e foi até onde ela estava, entrelaçando os dedos longos nas mechas de cabelo da nuca de sua esposa, os juntando com brutalidade. Ela tentou se soltar dele, mas não conseguiu. — Está vendo aquelas brasas ali? — John sussurrou, obrigando-a a olhar para o fogão a lenha, onde o fogo ardia tanto quanto a queimadura que ele causara em seu braço. Isabella assentiu com o pavor a cegando. O queixo tremia de medo. Tinha sido educada para ser submissa, obedecer ao marido em qualquer circunstância, mesmo assim, ela nunca tinha visto o pai tratar sua mãe daquela forma. O corpo da senhora Fontana não era carregado de cicatrizes causadas por Roggero. — Imagine como seria se eu colocasse uma dessas brasas na palma de sua mão e a fechasse por uns cinco minutos inteiros — John rosnou baixo e ameaçador. Seu tom de voz havia mudado, como se fosse outro homem falando através dele. — Consegue imaginar a dor? As lágrimas pingavam na fenda entre seus seios. Ela não sabia se deveria responder. Qualquer coisa que fizesse poderia irritá-lo ainda mais.
— Consegue ou ficou surda? — John grunhiu. — Sim — ela murmurou. — Por favor... não... — Então obedeça quando eu mandar. Entendido? — Sim. John puxou ainda mais os cabelos dela, com tanta força que seu corpo ficou suspenso no ar. Ele a levou até o fogão — Preciso te ensinar como se faz um bom café? — Não! — Isabella soluçava. Ele a largou ali. Enquanto preparava um novo café, rezando para que ficasse bom o suficiente, pelo canto do olho, ela o viu afastar o tapete velho da sala e levantar uma das tábuas do assoalho, retirando alguma coisa dali de dentro. Tratava-se de um baú de peso e conteúdo desconhecido, onde ele guardou os papéis que lera antes do almoço ser servido. Acabando o café, ela deixou o bule em cima da mesa e correu para o quarto, trancando a porta atrás de si. Sua cabeça e braço doíam. Ouviu os passos de John se aproximarem. O pânico a deixou tonta. O quarto girava ao seu redor, sufocando-a. O homem carinhoso e gentil da noite anterior havia desaparecido, dando lugar a um monstro que poderia machucá-la ainda mais. O medo era devastador. O braço queimava. Ela não poderia aguentar outra queimadura. Temia ser espancada por ter fugido da cozinha. Viu na janela uma possibilidade de escapar. Abriu-a e pulou para fora do quarto. Correu o mais rápido que pôde, sentido o frio refrescar sua pele em chamas, seguindo na direção em que ela pensou ter vindo na noite anterior. Não considerou aonde aquela corrida a levaria, Isabella só queria fugir para bem longe. Desejou nunca mais voltar a vê-lo, mas sabia que isso não seria possível. John a encontraria antes que ela conseguisse auxílio. E quem a ajudaria naquelas circunstâncias? John era seu marido e possuía o contrato de casamento. Ela pertencia a ele. Como única forma de aliviar o desespero que sentia, ela disse em pensamentos que nunca mais voltaria a se entregar a ele como tinha feito na noite passada. Nunca mais deixaria se levar. Ouviu o trotar de um cavalo se aproximando. Não olhou para trás, apenas apressou a corrida. O nariz ardia com o clima frio. Seus pulmões e coração ameaçavam explodir. Tentou pular uma cerca. Não deu tempo, o cavalo parou bem ao seu lado e, imediatamente, John estava segurando seu braço.
Loucura, pecado, paraíso
John trazia um vasilhame em uma das mãos contendo uma substância esverdeada e pastosa. Puxou o braço machucado de Isabella e aplicou uma camada da gosma sobre a pele queimada. Ela continuava apavorada, temendo o pior. Queria ter sido mais ágil e conseguido esconder-se na floresta, entretanto, John sempre seria mais rápido. — Vai sarar logo — ele disse quando acabou, com a voz gentil como se não tivesse sido ele o causador daqueles machucados. — Volte para casa, Bella. Aqui fora não é seguro para você. Quer que eu a leve de volta? Ouvir John chamá-la de Bella fez seu corpo estremecer, por mais mórbido que isso parecesse. A substância aplicada em seu braço pareceu surtir rápido efeito, a dor estava diminuindo. Ela o observava pelo canto do olho, sem visualizar o rosto do marido, apenas as roupas velhas. Queria estar preparada para um novo ataque. Nunca mais ficaria com a guarda baixa quando estivesse na companhia do esposo. — Não precisa — Isabella conseguiu dizer sem encará-lo. John montou no cavalo, que relinchou em protesto. — Para seu próprio bem, volte para casa. E não ouse tentar fugir. Não queira me ver com raiva — ele a alertou e partiu na direção oeste. Isabella sentou-se na grama sem se preocupar em sujar o vestido. Sentia-se desolada.
Se aquele que a queimara ainda não era um John com raiva, perguntou-se que tipos de atrocidades ele seria capaz de fazer quando estivesse furioso. Estava perdida. Precisaria calcular cada passo que desse, cada palavra, para não o irritar novamente. Então assim seria sua vida a partir de agora? Viver com medo? Olhou para o céu repleto de nuvens carregadas, depois para a floresta que se estendia dos dois lados da estrada de terra batida. Repensou os avisos do marido sobre não fugir. E se existisse uma única saída? Se fosse capaz de se embrenhar na floresta, acompanhando o caminho da cidade e chegar até Stefan? Sabia que ele era um rapaz honrado, que cumpriria sua palavra. Partiriam para longe. Mesmo que não voltasse a ver sua família, estar segura era sua prioridade. Não era do seu feitio sair furtivamente de situações difíceis de lidar. Mas não restavam alternativas. Não poderia se sujeitar a viver isolada do mundo com um homem que a machucava no primeiro dia de matrimônio. Tomou fôlego e segurou o vestido a fim de passar por baixo da cerca. Olhou para o céu nublado e sentiu esperança. Uma de suas preocupações, além de não ser vista por ninguém, era não congelar antes de chegar à cidade. Precisaria manter-se sempre em movimento rápido para deixar o corpo aquecido. Ficar doente era a última coisa que precisava. Após alguns minutos de corrida, com o vestido erguido, mantendo-se oculta entre as árvores sem se distanciar da cerca e da estrada, seguindo na direção que tinham vindo na noite anterior, Isabella teve uma surpresa que fez todos os pelos do seu corpo se eriçarem. Repentinamente, a floresta deu lugar a uma clareira, onde, à sua frente, estava o casebre de John Smith. Isabella engoliu em seco e refez em pensamentos todos os passos dados. Não deveria estar de volta à casa se tinha corrido na direção oposta. Não fizera curvas bruscas. Tinha absoluta certeza de que não estava andando em círculos. Sendo assim, como poderia estar de volta? Esfregou as mãos contra os braços para se livrar dos calafrios que sentiu ao notar que o casebre parecia ainda mais assustador sob a luz, ainda que opaca, do dia. Não havia tempo para ponderar sobre o que acabara de acontecer. Deu as costas para o lar de John Smith e começou a correr, obrigando pés e pulmões a suportarem o esforço. Voltou pela floresta, tomando cuidado de continuar em linha reta, não mais se preocupando em seguir a cerca ou a estrada.
∞∞∞
Aconteceu de novo. Suas pernas fraquejaram ao atingir a vasta clareira pela segunda vez. Caída no chão, olhou para o solo e piscou várias vezes antes de erguer a cabeça e encarar a casa. ― Como? Estou enlouquecendo? ― Isabella se perguntou. ― Meu nome de solteira é Isabella Fontanna. Filha de Roggero e Gisela. Nasci na primavera de 1780. Me casei com John Smith ontem. Ele... Com os olhos nublados, ela olhou para o braço onde John despejara o café quente. A pele havia absorvido boa parte da gosma esverdeada que ele depositara sobre a queimadura. Estranhamente, não sentia mais dor. Limpou as pontas dos dedos no saiote do vestido e afastou a gosma de sua pele, se deparando com o braço pálido e intacto, livre dos ferimentos da queimadura. Tinha absoluta certeza de tudo que aconteceu, mas como podia ter cicatrizado tão rápido? Como poderia estar de volta ao casebre sem estar enlouquecendo? ― Nasci na primavera de 1780. Me casei com John Smith ontem... Quais partes foram imaginação de Isabella e quais haviam sido reais? ― Todas as partes foram reais! ― ela grunhiu para o vento frio. Não admitiria perder a razão, apesar de assumir que estava falando sozinha. Levantou-se rapidamente e, antes de se preparar, estava correndo outra vez, para longe do casebre e dos pensamentos incoerentes, seguindo a mesma estratégia de andar em linha reta.
∞∞∞ Seu corpo estava exausto quando a clareira e o casebre surgiram pela terceira vez em seu caminho. Os primeiros pingos de chuva de outono caíam vorazes sobre a trança bagunçada, os ombros e o vestido. Não parou até estar dentro de casa. Fechou a porta atrás de si e tentou acalmar a respiração com as costas apoiadas na madeira envelhecida. Parecia que o casebre respirava junto com ela. Cansados. Abatidos. Assustados. Incrédulos. Naquele momento, sentia medo ― tanto dos jogos pregados por sua mente quanto do humor instável de John. O ar embolorado do cômodo fez Isabella sufocar. Mas não existiam alternativas. Não tinha disposição para outra corrida e ficar lá fora, no relento, só provaria que não estava em posse de suas faculdades mentais. Na tentativa de provar para si mesma que os fatos ocorridos no almoço eram reais,
ela dobrou os joelhos e engatinhou pelo assoalho até o tapete gasto e empoeirado. O levantou e tateou com as mãos até encontrar a tábua que John levantou para esconder os papéis mais cedo. Sentiu-se aliviada quando os encontrou. Ferro forjado em sangue foi tudo que ela conseguiu ler antes de os relinchos de vários cavalos fazerem-na sobressaltar. O barulho vinha dos fundos da propriedade, onde devia estar localizado o estábulo ― certamente, lotado de cavalos, a julgar pelo alarde. Devia haver dezenas deles. Todos enfurecidos. ― O que há de errado com esses cavalos? ― ela se perguntou ao colocar tudo de volta, levantar-se e ir até a janela sobre a pia da cozinha. Seus nervos chegaram ao limite quando seus olhos pousaram diante da figura de John Smith levando um animal para longe de suas vistas. Correu até o quarto e fechou a porta. Não queria que o marido visse que ela tinha apanhado chuva. Poderia desconfiar que sua jovem esposa tentara fugir. Rapidamente arrancou o vestido e os trajes de baixo. Escolheu o vestido mais escuro que encontrou, para combinar com as trevas em seu coração. Refez a trança e respirou algumas vezes, tomando coragem antes de deixar o quarto. Os cantos dos lábios de John se curvaram para cima ao entrar e dar de cara com sua bela esposa. Seu casaco estava encharcado e seu cabelo molhado respingava água. Involuntariamente, ele mordiscou o lábio inferior ao notar como as bochechas dela estavam coradas. Alguns metros os separavam, mas ele foi capaz de acompanhar o olhar da jovem que foi direcionado a uma faca esquecida perto do fogão a lenha. John limpou a garganta, e o rosto de Isabella incendiou ao ser pega de surpresa. Abaixou a cabeça e olhou para o vestido numa demonstração de recato e submissão. ― Preparou o jantar? ― perguntou ele. ― Ainda não... eu... não ― ela gaguejou tomada pelo pânico. Sabia que não poderia enfrentá-lo. Não desarmada. ― Trouxe mozzarella de leite de búfalo, vinda do sul de Napoli, e pão de centeio. Vou me lavar antes de jantarmos. Pretendo ir para a cama cedo. O coração de Isabella batia desenfreado à medida que John se aproximava dela para entrar no quarto. ― Deus, me ajude! ― ela murmurou, enquanto retirava as mozzarellas de dentro de um embrulho de papel pardo. Cortou fatias de queijo e pão, os dispondo em uma bandeja de
prata, e tratou de arrumar a mesa que tinha ficado bagunçada desde o almoço. Sentia-se presa em um pesadelo. Olhava a cada segundo para o local intacto onde John lhe queimou com café. Não havia uma única bolha como testemunha, sequer a vermelhidão na pele. Apenas a lembrança e a certeza de que aquilo tinha sido real. Já havia escurecido quando John voltou à cozinha e acendeu as lanternas, em seguida colocou mais lenha no fogão. Seu corpo exalava um cheiro distinto e convidativo, envolvendo o cômodo e pegando Isabella de surpresa. A jovem terminava de lavar a louça quando sentiu um toque quente na sua omoplata direita, exposta pelo vestido. Praguejou em pensamentos contra a reação do seu corpo quando sentiu os lábios do marido tocarem seu ombro. Engoliu em seco, paralisada, enquanto os dedos dele desfaziam suas tranças. Apesar da chuva torrencial que batia contra o casebre, Isabella podia ouvi-lo respirando. Sentiu John enrolar os longos cabelos escuros em seu pulso, descobrindo as costas e o pescoço da jovem. ― Não deveria ter ficado na chuva. Seus cabelos ainda estão úmidos ― ele observou, fazendo com que os olhos de sua esposa se arregalassem. ― Não deveria tentar fugir de mim, Bells. Dito isso, John a soltou, afastando-se na direção da despensa. Logo voltou com uma garrafa de vinho. ― Aceita? ― ele a questionou, apontando um copo e a garrafa para ela, enquanto Isabella torcia os cabelos para mantê-los presos. ― Não, obrigada ― ela mediu as palavras, considerando que ele poderia ser ainda mais cruel sobre o efeito do álcool. Sentaram-se à mesa. Ela se perguntou se a comida estava envenenada quando John comeu o primeiro pedaço de queijo. ― Não vai comer? ― ele perguntou, dando um gole no vinho, a observando com olhos curiosos. Em silêncio, Isabella colocou o primeiro pedaço na boca. Adorava mozzarella de búfalo. Só percebeu o quanto estava faminta quando engoliu. John não era um homem muito educado, por esse motivo, ela não se refreou. Comeu com pressa, sem se preocupar com os bons modos que uma dama deveria demonstrar à mesa. ― Uma mulher esteve aqui procurando por você hoje de manhã ― ela ousou comentar após observá-lo por um longo tempo, certificando-se que o marido estava relaxado. Pôde notar o rosto de John ficar pálido.
― Que mulher? ― ele perguntou com a voz rouca. ― Uma senhora. Mais baixa que eu, cabelo escuro e comprido. Usava roupas pretas. Sabe quem é? ― Sei ― ele disse engolindo a saliva. ― Quem? ― perguntou aos sussurros. ― Ouça, Bella, aqui é próximo demais de Napoli, e há muitos homens de má índole que se embrenham pela floresta para fugir. Não abra a porta para ninguém. É muito perigoso. Mais perigoso que dividir a cama com você? Isabella fantasiou perguntar. ― Era uma mulher, não eram homens... ― a jovem observou. ― Sua mãe não te ensinou que se deve ouvir e obedecer ao marido? Imediatamente, ela abaixou a cabeça para evitar seu olhar. Notou o clima ficar tenso. Não queria responder àquela pergunta. John estirou a mão e alcançou a cadeira de Isabella, a arrastando pelo assoalho, até colocá-la entre suas pernas. Ela sentiu medo perante a proximidade. Sua respiração perdeu o controle. O marido a observava de perto, mas ela manteve a cabeça baixa e o olhar fixo nas mãos trêmulas sobre o colo. ― Olhe para mim, Isabella ― a voz aveludada de John exigiu. Atrevida, ela não obedeceu. Sentia os joelhos de John em volta de suas coxas, as apertando. Com a ponta do dedo indicador, ele ergueu o queixo dela para cima e se inclinou para mais perto. Ela trincou o maxilar, as narinas inflamadas, o olhar duro contra as próprias mãos. O hálito de John cheirava a vinho. Um vinho doce. Ele estava a poucos centímetros de Isabella, mas ela continuou de cara fechada, sem encará-lo, enquanto ele acariciava seu maxilar, tentando fazê-la relaxar, deixando um rastro quente em sua pele. Estava tão tensa que temia se partir ao meio. ― Ouça, Bells ― John sussurrou. ― Consegue ouvir? O coração dela ameaçava explodir. Curiosa, ela se rendeu. ― O quê? ― perguntou Isabella. Quatro olhos azuis se encararam por um instante.
― Seus batimentos. Ela fechou a cara novamente, irritada por não ser capaz de controlar o coração. ― Me beije, Bella ― ele pediu repentinamente, com a voz suave. ― Não. ― Quero que você me beije. Cheguei cedo para passar a noite inteira com minha esposa. Não desdenhe de mim dessa maneira. ― Dormirei aqui na sala ― ela anunciou, sentindo um caroço se formar em sua garganta. Olhou para o braço, a pele lisa e imaculada. E se fosse apenas imaginação? Se John não tivesse a machucado de verdade? Como ela explicaria ter corrido em linha reta, para longe, e ter se deparado com o casebre em seu caminho todas as vezes? Peças pregadas pela mente? Sentia-se perfeitamente bem até aquela mulher aparecer diante de sua porta à procura de John. As coisas arruinaram a partir dali. Poderia ele ser inocente? Lentamente, ela ergueu o olhar para encará-lo. John a observava com os cantos dos lábios curvados para cima, mordendo o interior das bochechas para conter uma risada. Era melhor estar ficando louca do que ter se casado com um monstro. Ele não parecia um monstro agora. ― Não vai dormir na sala, Bells ― sussurrou John, alisando a pele do pescoço dela com as costas da mão. ― Não quero ir para a cama com você ― Isabella respondeu de queixo erguido, o tom de voz atrevido, testando o marido. Queria descobrir se ele ficaria irritado e atacaria. Sorrateiramente, ela estirou a mão sobre a mesa e alcançou a faca que usara para cortar as mozzarellas. Segurou o objeto com força e o trouxe para o colo, tomando cuidado de manter o olhar de John preso ao seu. ― Prefere começar aqui na mesa? ― ele quis saber, ainda com o sorriso discreto, inclinando ainda mais a cabeça para perto da esposa. Confusa e desesperada, sem saber no que acreditar, ela posicionou a faca na garganta do esposo. ― Não se aproxime mais! ― o advertiu. Os olhos tristes e assustados ficaram úmidos. Constatou com pavor que suas mãos tremiam demais. Não tinha volta. Aquilo terminaria de uma maneira ruim, de uma forma ou de outra. O olhar de John não se abalou, não parou de encará-la. Avançou ainda mais na direção da jovem, seu pescoço se apertando contra a faca.
― Não ― ela sibilou. ― Não é uma assassina, Bells. Pare com isso! Ele lhe deu mais alguns segundos para que ela tomasse uma decisão. Isabella largou a faca, que caiu no chão. Se sentia ridícula e covarde. O que pretendia fazer após cortar a garganta do esposo? Com alívio, constatou que John não estava irritado. Aquele não era o mesmo homem que a queimara na hora do almoço. Talvez, fosse apenas imaginação. Se deixou levar pelos olhos brilhantes que a encaravam. Sentiu as narinas inflamarem e seu corpo despertar quando John terminou de se inclinar até seus lábios. As mãos ásperas acariciaram as costas dela. As mãos suaves tocaram o pescoço dele. Estou louca. Isabella constatou. É melhor assim... Por um instante, John se afastou dos lábios de sua bela e sorriu, um sorriso que exibia os dentes. Então, colocou-a de pé, segurando em sua cintura com uma das mãos e apertando-a contra a mesa, ele usou a mão livre para atirar todos os objetos que estavam ali para o chão, salvando apenas a garrafa de vinho. A colocou sobre a mesa, empurrando seus ombros para que ela se deitasse. ― Feche os olhos, Bells ― John pediu com um sussurro ao inclinar-se sobre o pescoço de Isabella. ― Não demoro. Ela se desafiou a ficar parada, aproveitando o distanciamento para tentar recuperar a respiração. A chuva continuava. O vento parecia querer levar o casebre para bem longe, mas isso não assustava Isabella. Seu coração iria explodir. Foi uma pequena alucinação. Ela pensou. Talvez um cochilo no meio do dia tenha bagunçado minha mente. Ouviu os passos de John se afastarem. Ele arrastou algo dentro do quarto. O baú! A respiração acelerou novamente. Ele estava voltando com algum objeto retirado do baú. Ouviu um tilintar próximo ao seu ouvido. Virou a cabeça na direção do som e abriu os olhos, se deparando com as algemas de cobre. Engoliu em seco, mas cedeu quando John algemou um pulso de cada vez nas pernas da mesa. ― Abra a boca ― ele ordenou. Quando ela obedeceu, John colocou um bastão revestido de couro preso a fivelas entre seus dentes, o prendendo atrás de sua cabeça. Ela não poderia falar nem mexer os braços; apenas suas pernas estavam livres ― o que não era de grande ajuda. Por último, uma venda escureceu seus olhos. Arfou inquieta diante do silêncio que perdurou por um longo momento. Sabia que
John a observava. Ele disse que gostava de vê-la daquela forma, imobilizada e a sua inteira disposição. ― Sinta ― John cochichou perto do seu ouvido, enquanto colocava em uma de suas mãos um objeto. Ele posicionou os dedos dela em uma esfera um pouco menor que seu polegar. ― Segure ― pediu antes de começar a puxar uma espécie de cordão cheio de bolinhas, separadas por aproximadamente três centímetros de distância cada uma. As esferas deslizaram pelos dedos de Isabella. Um cordão de bolinhas. O que ele fará com um cordão de bolinhas? Ela se perguntou eufórica. ― Vou colocar isso dentro de você ― John explicou baixinho. Ela engoliu em seco e esperou ansiosa, enquanto ele afastava seu vestido. A sensação das esferas lhe invadindo devagar fez seu coração acelerar e seu corpo desfalecer; era possível distinguir, uma após a outra, cada bolinha sendo inserida. Teve alguns instantes para se acostumar com aquilo, então, John retirou a primeira. Sentir o marido puxando o cordão de bolinhas de dentro dela a fez se entregar totalmente, perdendo o que restara das suas inibições ou medos. Vinho foi derramado em seu corpo. John não teve pressa de experimentar cada gota da bebida sobre a pele de sua esposa. Começaram sobre a mesa e, quando chegaram ao quarto, não havia uma única peça de roupa separando seus corpos.
∞∞∞ Os cabelos de Isabella estavam grudados no suor de sua pele. John afastou as mechas e acariciou as marcas roxas acima dos seios dela. Descansavam sobre os lençóis bagunçados, bordados com a iniciais dos recém-casados. ― Me lembre de ser mais cuidadoso da próxima vez, Bells. ― Você não me escutaria. Ele segurou um dos seus pulsos e traçou as marcas vermelhas com o dedo indicador, depois puxou o braço para perto de seu rosto e beijou os machucados nos pulsos dela. Fez isso de olhos fechados, bem devagar. ― É verdade que ninguém te disse como seria? ― ele a sondou com os olhos azuis brilhando. ― O que nós faríamos quando estivéssemos a sós? ― Ninguém disse. Posso jurar ― ela respondeu sem pudor. Estava sentada no colo do marido. Seus corpos ainda estavam suados, vermelhos e quentes. ― Mamãe só me disse para obedecê-lo. John sorriu e a apertou contra seu corpo, girando-a para deitá-la na cama, debruçando-se sobre ela e fitando seu olhar
― Foi um sábio conselho ― ele sussurrou com a voz aveludada e um sorriso torto. ― Adoro o som que você faz quando se rende. ― Que som? ― ela questionou com ingenuidade. ― Seus gemidos. Você não faz ideia do que eles fazem comigo. O corpo de John estremeceu com um súbito arrepio. ― Acho que seus gemidos soam quase como uivos selvagens ― ela comentou brincalhona, feliz por ter relaxado depois de todas as atribulações. John deu uma risada suave e beijou o topo da testa dela. ― Mas você é bonito ― ela apressou-se em dizer. ― É muito bonito. Claro, John Smith não era um homem elegante e bem cuidado. Contudo, seus traços eram admiráveis, os olhos lindos e o corpo incrivelmente atraente, a voz aveludada, o porte que passava segurança, as mãos hábeis, um cheiro único e delicioso. ― Sendo assim, formamos um belo casal, já que você é terrivelmente deslumbrante, formosa... Bella. Isabella mordeu o lábio e sorriu. Por alguns instantes, ficou pensativa. ― Quando poderemos ter um bebê? ― perguntou de maneira inocente. O sorriso de John se desfez e seu corpo ficou rígido. Com o maxilar trincado, ele deslizou para o lado da esposa e puxou o cobertor. ― Está tarde. Precisamos dormir. Isabella notou a repentina mudança de humor do esposo e se encolheu embaixo da coberta. Os olhos fitaram as chamas na lareira até pegar no sono, quando os abriu novamente, estava sozinha.
Aceita uma xícara de café?
Ela se vestiu, prendeu os cabelos e foi para a cozinha, surpreendida com o cheiro de café. ― Não precisava fazer isso ― a jovem murmurou para John, que estava sentado à mesa bebendo de uma xícara. ― Prefiro meu café ― ele respondeu mal-humorado, sem se dar ao trabalho de olhar a esposa. O coração da jovem deu um solavanco. Olhou para o braço com a pele intacta. Era verdade? Não tinha sido loucura? John havia feito tudo aquilo no dia anterior? Tinha a maltratado, a queimado e depois agido naturalmente? O fato de não ter como tirar a prova daquilo a enlouquecia. Isabella mordia o lábio, a mente dando voltas, tentando encontrar explicações para o ocorrido um dia antes ― cada tentativa frustrada de fuga. ― Não me espere para o almoço ― ele avisou após levantar-se da cadeira e seguir para a porta. Saiu sem se despedir.
∞∞∞ Ficou por um longo tempo ali parada, pensando no futuro incerto, nos sonhos que poderiam não se realizar, na expectativa que sempre teve de um noivo que a beijasse
quando chegasse do trabalho. Sequer sabia em que o marido trabalhava. Não tinha praticamente nenhuma informação sobre ele. E se tentasse fugir novamente? Como poderia ter dado voltas se estava andando em linha reta? Aquela pergunta lhe importunava de preocupação. E se John havia mesmo derramado café quente em seu braço, por que não havia nenhuma cicatriz? Não, Isabella não fugiria. Não ainda. Ergueu a cabeça decidida e fungou para afastar a torrente de lágrimas de desgosto e incerteza. Mesmo que tudo tivesse sido fruto de sua imaginação, ele só a tratava com carinho quando queria usá-la. Não ficaria chorando por ele. Aquele homem não merecia uma única lágrima. Na próxima vez que o esposo tentasse algo, Isabella reagiria. Estaria pronta, nem que precisasse carregar sempre uma faca nas roupas de baixo; e, certamente, esfaquearia sua jugular, não se deixaria ser seduzida pelos lindos olhos azuis outra vez. Se John planejava fazer da vida dela um inferno... bem, isso seria recíproco. Com a determinação de quem não aceitaria um futuro traiçoeiro, ela caminhou até a cozinha, se deparando com a bagunça que ele fez quando jogou todos os itens da mesa no chão. Parecia uma casa abandonada há muitos anos. Decidiu que começaria a mudar seu destino naquele mesmo instante. Não admitiria morar num casebre imundo como aquele. Faria uma grande limpeza em seu lar e exigiria que John desse uma boa pintura naquelas paredes tomadas pelo limo, mofo e musgo, bem como as portas e janelas. — Ele também terá que me comprar vestidos novos e pó de arroz, como meu pai sempre fez — sussurrou na solidão do lar. — Além de sapatos e joias. Atravessou a cozinha fétida, empurrou a porta deteriorada e saiu pelo acesso dos fundos. Pegou um balde de madeira e foi até o poço próximo à floresta. Lamentou a distância que teria que percorrer várias vezes carregando peso, mas não desistiria da faxina. A água estava gelada como o vento que uivava em volta da casa. Isabella temeu pegar um resfriado ou algo pior. Seria trágico adoecer naquele fim de mundo. Tinha o pressentimento de que John não teria coragem de pagar um médico caso ela viesse a ficar acamada, afinal ele não se incomodou em contratar os serviços de uma criada para deixar a casa digna de recebê-la. Ele sequer trocara a roupa de cama imunda onde os dois se deitaram pela primeira vez. Tentando ser mais forte que o frio, ela começou a lavar as janelas com um esfregão
que encontrou na despensa, evitando os respingos de água. Fez uma pilha com objetos que julgou velhos demais para estarem em um lar de recém-casados. John teria que comprar coisas novas, pois ela planejava atear fogo naquelas. Só parou de trabalhar quando sentiu fome e beliscou alguma coisa na despensa. Ao final da tarde, estava exausta e suja, mas sentia-se aliviada por ver a casa um pouco mais limpa e agradável. Estava perto do anoitecer quando Isabella arrumava um arranjo de flores em cima da mesa. Havia encontrado um jarro de boa aparência e uma plantação de jasmins nos arredores, que usou para ornamentar a casa. Ainda pensava em esconder uma faca em seu espartilho para se proteger de John quando ouvira o barulho de uma carruagem se aproximando da propriedade. Ela correu para a janela, agora limpa graças a seus esforços, e viu o veículo elegante puxado por dois cavalos vistosos, ambos de pelo marrom. Seu coração saltou porque ela sabia a quem pertencia aquela carruagem — Stefan. — Não é possível — murmurou apreensiva ao olhar para os dois lados da estrada, certificando-se de que John não estava por perto. — O que ele faz aqui? Ela tentou em vão arrumar o cabelo e lavar a sujeira da pele exposta pelo vestido, mas parecia que a imundice da casa tinha impregnado no seu corpo. Precisava descobrir logo o motivo daquela visita, antes que John voltasse, do contrário, ela temia ficar nervosa e não saber que mentira inventar. Não queria desperdiçar tempo indo se trocar. Abriu a porta hesitante e observou o cocheiro abrir a porta da carruagem para Stefan Bortolini descer. O rosto do rapaz se iluminou quando seus olhos encontraram os dela, acanhada na soleira da porta. Ele se aproximou da casa a passos largos, ansioso para descobrir se ela estava bem. Isabella jamais tinha reparado verdadeiramente no quanto Stefan era elegante e limpo, uma vez que nunca convivera com um homem tão sórdido quanto John. Sentiu-se profundamente envergonhada ao ver que o rapaz se espantou ao notar o estado em que ela se encontrava. Mas o jovem Bortolini era um cavalheiro muito distinto, e logo tratou de disfarçar a surpresa. — Como descobriu onde é minha nova casa? — Isabella perguntou quando ele parou diante dos degraus de acesso à entrada. — Não chamaria isto de nova casa — Stefan disse hesitante, sem querer ofendê-la e, ao mesmo tempo, sem deixar passar despercebida sua opinião a respeito da nova morada da sua amada. — Senhorita Elena descobriu o endereço e me contou. Minha ansiedade não permitiu que eu esperasse nem mais um dia sem notícias suas.
— Agradeço a preocupação, e também à Elena. Ela é uma amiga muito fiel. Mas não sei como explicaria sua visita se meu marido chegasse agora. — Me perdoe por ser tão evasivo. Acontece que a preocupação não me deixaria dormir esta noite. Seu marido não me parece boa pessoa. Ainda mais agora que sei para onde ele te trouxe. — Nem tudo sai como planejamos — ela sussurrou. — Parece tão assustada e... se me permite dizer, está imunda. Stefan nunca a vira daquele jeito. Estava habituado a encontrar Isabella sempre limpa e bem vestida. — Não esperava sua visita. Estava cuidando da casa e não me vesti para recebê-lo. — Tudo bem. Só estranhei. Não devia estar nessas condições nos primeiros dias de casada. Seu esposo tendo tanto dinheiro, imaginei que fariam uma dessas viagens que estão na moda para recém-casados. — Chama-se lua de mel — Isabella explicou, ainda apreensiva. — Suponho que ele não gastaria tanto dinheiro com isso. — Percebo que o senhor Smith é mesquinho. Trazer uma jovem tão linda para morar aqui — Stefan falou, observando com escárnio a casa. — Você parece muito abatida. Posso assegurar que ele não chegará tão cedo. O vi passando a cavalo pela praça da cidade, indo para uma direção oposta a esta. Imagino que você possa me oferecer um café. — Deseja entrar? — ela questionou sobressaltada, mantendo os pulsos avermelhados longe das vistas do jovem. Sentia-se muito envergonhada. — Acredito que não sou mais bem-vindo na vida da senhora Smith — Stefan reclamou, visivelmente magoado pela frieza de Isabella. — Não se trata disso. Você e eu sempre teremos uma ligação, e não precisa me chamar de senhora Smith quando estivermos a sós. — O que é então? Asseguro-lhe que ele não voltará antes da minha partida. — Tudo bem! Não era minha intenção ser grosseira. É que a casa é tão simples... Ela saiu do caminho, fazendo menção para que Stefan entrasse. O rapaz sentou-se à mesa, onde colocou seu chapéu, enquanto Isabella preparava um café, imaginando que ele jamais seria tão inconveniente se a bebida não lhe agradasse — como talvez John tenha feito. Sacudiu a cabeça. Pensar naquilo a deixava confusa.
— Queria voltar no tempo para apressar a negociação do nosso casamento com seu pai. Lamento muito ter agido com tanta frieza e ter feito planos demais. Só queria dar-lhe a vida confortável que merece, Isabella. Fui tonto ao pensar que nenhum pretendente apareceria para uma jovem tão formosa. — Não é algo que você possa consertar — ela disse baixinho, a voz melancólica. — Sinto muito. — Também sinto. Preferia ter me casado com você, Stefan. Mas não podemos voltar atrás. — Quero que sejas feliz, Isabella, por isso ficarei por perto para me certificar que está sendo bem tratada. — Agradeço a preocupação. — Prometa que me contará se algo de ruim acontecer? — Stefan pediu. — Juro que a levo embora para bem longe se seu marido... Ele não conseguiu concluir o que dizia. Foi interceptado por John, que irrompia pela porta, atravessando o cômodo com fugacidade, dominado pela fúria. John atirou a mesa da cozinha para o lado, como se ela não pesasse mais que algumas plumas, fazendo com que o chapéu de Stefan voasse para longe, junto com o arranjo de jasmins.
Uma lição para a senhora Smith
John não era o tipo de homem que conversava antes de tomar alguma providência. Primeiro ele agia. Se seu oponente ainda estivesse vivo quando John cansasse de lutar, talvez eles pudessem ter algo parecido com um diálogo. Mas Stefan era um jovem do exército, estava pronto para enfrentar situações indesejáveis e não se intimidaria tão fácil. Com agilidade, empurrou Isabella para um canto da cozinha, afastando-a do alcance de John, e ergueu a postura. John avançou contra ele e acertou um soco no queixo do jovem, antes que Stefan pudesse resolver para que lado desviar. Ele tombou para trás até suas costas estarem apoiadas contra a parede da cozinha, a mesma onde Isabella estava. Ele não entendia como o marido da sua amada tinha capacidade de golpeá-lo com tanta violência. Stefan possuía treinamento para lutas, por que não conseguia reagir a tempo? Ainda tonto, sacudindo de leve a cabeça para clarear a mente, ele avançou um passo na direção de John. Antes que pudesse armar o próximo golpe, com a mesma velocidade de uma batida de asa de um beija-flor, John estava atacando novamente. Desta vez, o golpe dado em seu peito tirou Stefan do chão e o jogou alguns metros para cima. O rapaz perdeu a consciência ao cair e bater com a têmpora no chão. Isabella gritava apavorada, mas nada do que ela dizia prendia a atenção do marido. Ele continuou lançando socos contra o jovem inconsciente, acertando seu rosto, peito e estômago. — Por favor, John! — Isabella implorava de mãos postas, as lágrimas escorrendo
pelo rosto sujo, enquanto ela se aproximava. — Pare! Seu marido não dava ouvidos. Ela estava em estado de choque. Sabia que aquela visita de Stefan era inoportuna, mas não supôs que John reagiria com tamanha barbaridade. Nem ao menos sabia que seu marido era tão forte. Ela cobriu a boca com as mãos diante do espanto ao chegar perto dos dois e constatar que o queixo de Stefan se encontrava esfolado. Escorria sangue de várias feridas em seu rosto e, pelo modo como ele estava caído no chão recebendo os golpes, fazia parecer que havia alguns ossos quebrados. Isabella não conseguia entender como Stefan não fora capaz de reagir. Ele possuía um corpo atlético, musculoso e bem treinado. Não fazia sentido apanhar daquele jeito sem lançar um único soco contra John. — Ele só veio me visitar — ela clamou. — Não aconteceu nada de desrespeitoso entre nós. É apenas um bom amigo. As palavras prenderam a atenção de John por tempo suficiente para que Isabella tentasse novos argumentos. — Se continuar, irá matá-lo, John! Eu imploro que pare — ela colocou uma das mãos trêmulas sobre o ombro do marido. — Por favor! O cocheiro, que ouvira o barulho da carruagem, entrou correndo pela porta, mas parou assim que viu o corpo de Stefan estraçalhado. — Deixe-me levar o senhor Bortolini daqui — o senhorio suplicou. — Prometo que não haverá retaliação. John ergueu as sobrancelhas de um jeito diabólico para o homem. Havia respingos de sangue em seu rosto, e aquele olhar seria capaz de assustar até mesmo um homem feito. Ao vê-lo tão ameaçador, o cocheiro recuou alguns passos para trás, visivelmente temeroso por sua segurança. — John, meu marido — Isabella continuava com suas súplicas, sabendo que a próxima pancada poderia ser fatal para Stefan —, deixe esse homem levá-lo daqui. Não há nada entre nós. Somos amigos de infância. Nos consideramos como irmãos. John voltou-se para a esposa, fitando-a com os olhos vidrados. O ódio estava tão visível em seu rosto que parecia tê-lo transformado. — Ele merece morrer por vir até aqui na minha ausência — John murmurou com cólera, as palavras tão frias que fizeram arrepios percorrerem o corpo magro de Isabella. — Sua morte servirá como um aviso para que nenhum outro homem se aproxime da senhora Smith.
— Não faça isso, meu marido — ela prosseguiu com os apelos, as palavras escapando por entre os soluços desesperados. — Faça qualquer coisa contra mim, mas não o mate. Estou implorando! Deixe-o ir. John pesou a nova oferta. Seus olhos adquiriram um brilho ainda mais assustador. — Tire esse cachorro da minha casa — ele disse para o cocheiro, que não hesitou por um único segundo. Stefan fora arrastado até a carruagem como um cadáver. Seu sangue respingou no piso que Isabella tinha lavado há pouco tempo. John bateu a porta do casebre com força, virando-se para encarar os olhos vermelhos da esposa. Ela se sentiu como uma presa fácil, enclausurada com um sádico notório, sem ter para onde escapar. Quase se arrependeu de ter convencido o marido a poupar Stefan, no entanto, ainda que soubesse do que John era capaz, ela não deixaria seu antigo pretendente morrer por ter se preocupado demais com ela. — Você recebe um homem na nossa casa logo no segundo dia — John vociferou, fazendo um calafrio percorrer a espinha de Isabella. Ela olhou em volta à procura de algum objeto que pudesse usar para se defender, mas não tinha muita coisa ao seu alcance, a não ser as brasas do fogão onde preparava o café que Stefan nem chegou a provar. — Estava fazendo café para ele? — John inquiriu com berros ao notar a atenção da jovem se voltando para o fogo. — Responda! Os gritos fizeram Isabella encolher os ombros por alguns segundos. Entretanto, logo ela percebeu que precisava agir rápido. Não existia folga para ficar assustada ou preocupada com Stefan. Sua prioridade no momento era manter-se a salvo. Estava mais perto do fogo que ele e correu naquela direção, mas o maldito a venceu na corrida, colocando-se entre ela e o fogão. — Estava preparando meu café para ele? — o berro de John foi ainda mais alto. Isabella sentiu esvair a coragem que a dominara mais cedo. Amedrontada e sem defesa alguma, ela soluçou. — Era só um pouco de café — sussurrou pesarosa. — Ele é como um irmão. — Vou te ensinar como mulheres casadas devem agir — John anunciou ao puxá-la pelo cotovelo, empurrando Isabella na direção da porta dos fundos, que ele arrombou com um chute.
Ela olhou seu rosto por um instante, encarando os olhos vidrados, como se uma tempestade os nublasse. Era como se não fosse mais John dentro daquele corpo, por trás daqueles olhos. Não entendia como ele poderia ficar tão cruel. Aquele não poderia ser o mesmo homem que havia lhe dado tanto prazer na noite anterior. Parecia que John Smith estava possuído. A única certeza era de que não adiantaria implorar. — Por que me comprou? Por que me trata deste jeito? — ela o questionou, andando depressa para acompanhar seus passos largos. Imunda, abatida e assombrada, seu coração martelava de pavor, a sujeira do rosto se misturava as lágrimas e formava uma mistura lamacenta. Mas o pior de tudo era a vergonha de estar sendo tratada sem o menor afeto. — Aprenderá uma lição — John disse ao passar com a jovem pelo poço, onde ela tinha apanhado água para limpar a casa. Uma torrente de blasfêmias preencheu seus pensamentos. Não adiantava ser destemida. Se nem Stefan tivera uma chance de se defender, o que seria dela? Naquele momento, ela amaldiçoou seu pai e o resto da família Fontana. Não podia acreditar que o destino estava sendo tão impiedoso com ela. A tarde começava a se transformar em noite quando John soltou seu cotovelo, jogando-a contra o tronco robusto de uma árvore. Ela cambaleou, mas conseguiu ficar de pé e endireitar a postura. O encarou tentando demonstrar algum resquício de dignidade, mas aquele olhar a apavorava. — O que pretende fazer? — ela questionou, engolindo o medo. — Tenha misericórdia! — Não é digna de dividir um lar comigo se traz um homem para dentro de casa na minha ausência. Estou sendo misericordioso — John disse antes de dar as costas e voltar na direção do casebre, a largando na floresta. Com olhos arregalados, ela o assistiu se afastar. Um soluço escapou de seus lábios, antes de abrir um sorriso de alívio. Então era isso? John estava a expulsando de casa, não queria mais viver com ela? Sem pensar aonde iria ou como seria sua vida a partir daquele momento, ela virou as costas e correu. O corpo estava dolorido pelo esforço da faxina, e os pulmões ardiam, enquanto ela insistia em manter o ritmo acelerado, mas não queria parar. Tentou não pensar em como fracassara em sua primeira tentativa de fuga no dia anterior, conforme a tarde se transformava em noite — tão escura ali na floresta.
Correu por horas, mas não chegou a lugar algum. Seu estômago protestava, ela não ingeria nada desde o desjejum. Se empenhou tanto na limpeza do casebre que acabou se esquecendo de almoçar. Quando a noite transformou a floresta em breu, ela esbarrou contra troncos e tropeçou em galhos. Havia sido criada na cidade e jamais pensou que uma mata pudesse ser tão assustadora. Em certo momento, sua corrida não era mais para escapar do marido; e sim, dos barulhos que a rodeavam na escuridão. Fatigada, faminta e sedenta por alguns goles de água, acabou derrapando em um trecho de terra lamacenta e caiu, batendo a cabeça contra as raízes grossas de uma árvore. Se odiou por ser estúpida e ingênua, por não saber se localizar. Não poderia dizer em que direção estava a cidade, a estrada ou o casebre. Não tinha conhecimento das estrelas, para poder se orientar por elas, e mesmo que tivesse, o céu estava nublado. E fazia tanto frio! A garganta seca e o estômago vazio a deixavam tonta. Tentou ficar de pé, mas a cabeça pesava. Apoiou-se no tronco e, em instante de pura covardia e desespero, chamou pelo nome do marido. Abraçou os joelhos para se proteger do frio e apertou o estômago com a mão livre, deixando a cabeça descansar em seus joelhos. Enquanto rezava para que Stefan sobrevivesse, e que pudessem fugir para um lugar muito distante, decidiu que era melhor passar a noite ali e voltar a correr de manhã, tentando se orientar pelo sol. Talvez morresse de frio, mas não havia nada que pudesse fazer. Em meio às lágrimas, acabou adormecendo. Algum tempo depois, despertou num sobressalto. Demorou a recordar onde estava. Apesar da confusão mental, Isabella conseguiu distinguir uivos se sobressaindo no barulho da floresta. — Lobos! — constatou entrando em pânico. O medo fez seu coração sacolejar e a mente clarear. Como ela se defenderia de lobos ali? Precisava escalar uma das árvores. Tateou o tronco com as mãos trêmulas, enquanto ouvia os uivos cada vez mais perto. Entretanto, não havia galhos para que conseguisse se apoiar e subir, então voltou a correr. Poucas passadas depois, estava no chão novamente, prendendo o tornozelo em um emaranhado de arbustos secos. Na tentativa de se soltar, percebeu que um animal a alcançou. Primeiro ela sentiu a respiração próxima de suas pernas, em seguida outro uivo. Prendendo a respiração, constatou que se tratava de dois lobos. Como o destino fora tão cruel?
— O que fiz para merecer isso? — questionou-se, notando uma súbita mudança na corrente de ar. Era como se um vendaval estivesse se aproximando dali. Os animais soltaram uivos guturais e o vento aumentou, soprando folhas e galhos pequenos, então cessou por completo. Isabella sentiu o toque de uma mão quente em seu tornozelo, machucado pelo esforço de se soltar. — John — sibilou agradecida. — Vou tirá-la daqui num segundo — disse uma voz masculina desconhecida. Não era John. Isabella apertou os olhos e tentou enxergar quem cortava os galhos para libertá-la. O homem a colocou no colo e correu dali. Seu corpo era rígido e quente, Isabella se aninhou em seu peito na esperança de escapar do frio. Cada movimento que ela tentava executar resultava em muita dor. Os lobos começaram a persegui-los, mas ele falou algo, em um idioma que Isabella desconhecia, que fez os animais recuarem. Não demorou a ver a iluminação do casebre, o que significava que não tinha ido muito longe. John estava sentado no batente da cozinha, comia queijo e bebia vinho como se nada de importante estivesse acontecendo. Usou um candeeiro para iluminá-los, só então Isabella pôde ver o rosto do homem que a salvara. Ele era novo. Moreno, barba espessa e por fazer, olhos pequenos, cabelo curto e escuro, um ótimo porte físico e poucos centímetros mais baixo que John. Isabella sentiu-se apavorada com receio do que seu marido faria ao vê-la nos braços de outro. Se, por causa de uma mísera xícara de café, John tinha feito tudo aquilo, como agiria quando a visse mantendo um contato físico tão íntimo com aquele rapaz? — Me ponha no chão — exigiu quando pararam em frente a John, no entanto, ele a ignorou. — Rafael — John falou num tom calmo, cumprimentando o rapaz. — Por que largou sua esposa na floresta? Queria que os lobos a devorassem? — o jovem interrogou sem medo de desafiá-lo, ainda mantendo-a bem apertada contra seu peito. — Só estou ensinando como são as coisas — John se defendeu.
O hóspede
Isabella estava surpresa por ver o esposo falando de igual para igual com aquele rapaz, em vez estar surtando de ciúmes ao vê-la nos braços de outro. Ela deu uma boa olhada para o jovem que atendia pelo nome de Rafael. Ele representava ser amigável, e demonstrava benevolência com o sofrimento dela. Parecia não ter medo de John Smith. — Me tire daqui — ela sussurrou ao fazer um esforço tremendo para alcançar o ouvido do rapaz. — Imploro. Me leve para bem longe. ― Em vez de ela aprender alguma coisa, iria ser devorada pelos lobos! — Rafael expressava seu descontentamento, enquanto mantinha Isabella apoiada em seu peito. — Você a salvou. Por que todo esse drama? — John perguntou, enquanto dava goles generosos de vinho diretamente do gargalo. — Isso não está certo — Rafael resmungou, confortável como se a garota em seu colo não pesasse mais que algumas gramas. — Pare de questionar meus métodos — John vociferou atirando a garrafa vazia para longe. — Seus métodos... — Rafael bufou. — Prometeu que iria revê-los, mas vejo que você é um caminho sem volta. — Por favor — Isabella cochichou —, me ajude.
John soltou um grunhido formado no fundo de sua garganta e ficou de pé, encaminhando-se para dentro da casa. — Por quanto tempo deixou a deixou perdida? — Rafael quis saber ao adentrar a cozinha. — Qual a justificativa? Isso não estava nos planos. — Isso não tem nada a ver com aquela teoria. Foi apenas uma punição por algo que ela fez. — O quê? — Rafael questionou com a curiosidade aguçada. — Não darei detalhes da minha vida íntima para alguém que nem apareceu no meu casamento. — Pensei que essas coisas não fossem importantes para você, Johnny! — Rafael relaxou um pouco, seguindo para o quarto do casal, entrando com Isabella sem a menor cerimônia. Colocando-a sobre a cama, gritou olhando sobre o ombro direito: — Prepare um chá. Ela está gelada! Isabella não entendia por que o marido não estava surtando com aquele rapaz, quando tinha tentado matar Stefan por bem menos. — Não pode ficar aqui! — ela tentou alertá-lo. — John irá me matar. — Não tenha medo — Rafael sussurrou num tom calmo. — Vou cuidar desse machucado. Isabella encarou o rapaz, enquanto ele passava os dedos macios em torno de seu tornozelo, observando com curiosidade as marcas avermelhadas causadas pelos arbustos. — Dói? — ele sondou à medida que deslizava a ponta do indicador a sua pele. — Sim — a jovem respondeu com urgência. — Por favor, me deixe sozinha. Me deixe fugir! — Você pertence a mim — a voz de John ecoou pelo quarto e Isabella sentou-se rapidamente, afastando as mãos quentes de Rafael e encolhendo-se junto a uma das colunas do dossel da cama. — Não irá a lugar nenhum. — Por favor, ele só estava... — ela tentou argumentar. A cada passo de John, ela se desesperava ainda mais. Estava apavorada. Mas o marido não demonstrava estar zangado desta vez. Agora ele parecia um homem reservado e tranquilo. — Beba — ele disse sentando-se na cama e colocando uma caneca próxima a boca de sua esposa. — Devagar. Ela aceitou, estava sedenta. Naquele momento, não importava que John tivesse envenenado aquela água. Isabella beberia da mesma forma, e até ficaria grata se sua vida
acabasse ali. — Vá preparar o chá, e procure um pouco de pão; há mozzarellas de búfalo na despensa. Ela não come há horas. — John murmurou para Rafael, recebendo do amigo um olhar de reprovação, que ele soube ignorar muito bem. — Me deixe a sós com minha esposa. Foram necessários poucos passos para que o rapaz deixasse o quarto, fechando a porta atrás de si, trancafiando Isabella novamente com o monstro. — Está se sentindo bem? — John perguntou com um olhar inocente. A boca da jovem se abriu formando um “O”. Não conseguia entender como ele parecia tão calmo agora. Aquele não era o mesmo John que agredira Stefan até deixá-lo inconsciente. O homem que se apresentava diante dela possuía um brilho diferente no olhar, traços menos marcados e um semblante tranquilo. Ela não estava certa se conseguiria responder aquela pergunta sem insultá-lo. Tinha medo de abrir a boca e despertar o monstro que parecia adormecido. Por mais que tivesse milhares de palavras para falar e protestos a fazer sobre o comportamento inaceitavelmente rude do esposo, não queria sofrer ainda mais naquela noite. Precisaria engolir tudo e mostrar obediência, pelo menos até pensar numa maneira eficaz de escapar para sempre. Fugiria com Stefan. Teve uma ideia: assim que a poeira baixasse, convidaria John para visitar seus pais, talvez um almoço de domingo. Na ocasião, pediria ajuda a Elena, sua eterna melhor amiga. Seria a última vez que John colocaria os olhos nela. — Ficou surda? — John murmurou num tom de voz mais grave, o cenho franzido enquanto analisava a expressão distraída de Isabella. Quatro olhos azuis — pares de tonalidades diferentes — se encararam por alguns momentos, iluminados pelas chamas da lareira acesa. — Seja obediente — ele advertiu. — Responda minhas perguntas sempre que eu as fizer. Não me dê motivos para ficar irritado. — Estou faminta — Isabella disse sem pestanejar. Precisaria ser fria e enganar John, fingindo aceitar seus atos desumanos —, e meu corpo dói. — Rafael trará logo a comida. — Ele fez uma pausa e encarou a janela. — Será que posso confiar em você novamente? Ele se fazia de vítima muito bem. — Não sabia que ele estava vindo — ela murmurou. — Garanto que Stefan jamais voltará a me visitar.
— Espero que esteja certa. Se o encontrar novamente por aqui, ou até mesmo na estrada para cá, não hesitarei em matá-lo — John ameaçou, em seguida franziu o cenho e estreitou os olhos. — Por que mente para mim, Bella? — Não estou... — ela começou a falar, mas John bateu o punho fechado contra a cama, fazendo com que Isabella se encolhesse ainda mais. — Pare com essa mentira — ele ordenou. — Sou seu marido. Você me deve respeito. Imagina que consegui me casar com você só por uma jogada de sorte? Se enganou. Foi tudo planejado. Te observei por meses antes de encontrar seu pai na casa de jogos. Nunca me viu? Ela meneou a cabeça em negação, puxando pelas lembranças, tentando encaixar o rosto de John em algum quadro de sua memória. — Acha que não sei sobre Stefan? — John continuou. — Nunca me subestime, Isabella. Sei todos os dias que ele esteve na sua casa quando seu pai se ausentava. Sei que você mente, que dissimula, e que sua mãe acoberta tudo. Seu pai é um cego que não consegue enxergar nada além do que sua ganância permite ver. Nesse momento ouviram três batidas pausadas contra a porta. — Entre, Rafael, ela precisa comer — John disse levantando-se e indo para a janela, enquanto o amigo trazia uma bandeja com pães de trigo e fatias de queijo. Faminta, Isabella não se refreou nem tentou demonstrar bons modos, comeu na pressa que sua fome pedia. — Acredita que o frangote do exército veio até aqui? — John perguntou para Rafael. — Stefan? Isabella arregalou os olhos ao perceber que seu antigo pretendente já era assunto conhecido entre o marido e Rafael. — Ele mesmo. — Mas vocês acabaram de se casar — Rafael sussurrou. — Como descobriu esse lugar? Ela o chamou? — Claro que não. Uma amiga alcoviteira descobriu onde moramos e tratou de passar a informação adiante — John explicou. — Por sorte percebi tudo antes, quando passava pela cidade e o vi. Resolvi ficar de olho e acabei descobrindo que ele tomara o rumo daqui. — É por isso que a colocou para fora de casa? O que fez com ele? — Ia matá-lo, mas Isabella implorou que poupasse sua vida, em troca poderia fazer
o que bem entendesse com ela. — Não deveria tê-la ouvido, Johnny — Rafael o repreendeu. — Seu dever era matálo. Como deixa vivo o homem que vem atrás de sua esposa? Isabella não servirá de nada caso se deite com outro. — Não imagino que ela seja capaz de ir para a cama... — John não conseguiu concluir a frase, foi tomado por uma fúria que fez saltar uma veia em sua testa. Voltou seu olhar para a esposa que os observava com olhos amedrontados. — Não seria capaz disso, seria? — Ele só veio verificar se eu estava bem — ela sussurrou, forçando as cordas vocais, a voz lutando para sair em meio ao pavor. Encarando o marido, ela resolveu usar a verdade, talvez conseguisse escapar das mãos do carrasco. —Não dei absolutamente nenhum detalhe sobre nós. Ao terminar de falar, Isabella sentiu-se aliviada por ter pronunciado aquelas palavras com tanta firmeza. Era bom que John sentisse o quão destemida ela era, mesmo que não fosse verdade, mesmo que não servisse de nada parecer valente. — Coloque água para esquentar — John disse ao amigo. — Ela está imunda, precisa de um banho. — Baterei na porta quando estiver pronta — Rafael avisou após assentir a ordem de John, logo voltando para a cozinha, os deixando a sós novamente. — Ainda tenta defendê-lo, não é? — John falou baixinho, porém com a raiva desenhada nas entrelinhas. — Acha que sou tolo, que sou fácil de enganar. Você não sabe nada sobre mim, enquanto eu conheço cada segredo seu, cada pensamento. Planeja fugir? Espera contar com a amizade de Elena? Experimente. Ouse ao menos tentar. Matarei a garota primeiro, depois ele. Isabella tentou manter a expressão inabalável, mas por dentro sentia todas as esperanças se esvaindo, como areia jogada ao vento forte, se desfazendo, indo para bem longe. — Poderia matá-lo hoje mesmo — John continuou —, ainda assim o deixarei vivo. Quero ver quanto de teimosia lhe domina, o quão valente você pensa ser. Acha que pode fugir de mim? Se matar sua amiga não te puser um freio, se ainda assim você tentar escapar de novo, mato sua irmã. Um a um, sua família será eliminada, até restar só ele, você e eu. Vamos descobrir o quanto se importa com ele. Já que se ofereceu para ser castigada no lugar dele... — Você é um monstro — ela cuspiu as palavras com nojo. — O que pretende com tanta violência? Mostrar que é mais forte que Stefan? Sinto dizer que, independente de quantos você torture ou mate, seu coração nunca terá metade do caráter que o dele possui. — Me julga tão mal assim? Pensa que ele é melhor que eu?
— Stefan nunca me largaria nessa floresta amaldiçoada, com fome, sede e frio! — Ele nunca passou pelo que passei. Nem ele e nem você. Não sabe por que ajo assim e nem está interessada em descobrir. Pois bem, vou te ensinar, dia após dia, que é a mim que você deve obediência. A vida que você conhecia não existe mais. Esqueça o que era se preocupar com vestidos, fitas de cabelo e todos esses assuntos fúteis. Você me pertence agora, Isabella. Não há escapatória. Estarei sempre um passo à frente de cada plano que traçar. Seu corpo e sua alma são meus. Três novas batidas na porta fizeram as ameaças de John cessarem por alguns instantes. Ele ordenou que o amigo entrasse. — A água está pronta — Rafael anunciou. — Me ajude a trazê-la. Os dois voltaram para a cozinha, deixando Isabella sozinha no quarto, mas logo retornaram carregando, cada um dos homens, dois baldes de madeiras cheios de água morna. Foram necessárias várias viagens para que conseguissem encher uma espécie de banheira, confeccionada em ferro fundido e coberta com uma camada de esmalte branco, que ficava localizada em um pequeno vão anexado ao quarto. Isabella estranhou — e sequer havia reparado — a existência daquela espécie de banheiro, pois a frequência com que os europeus tomavam banho era rara; por esse motivo era incomum encontrar banheiros nas casas, ainda mais nas classes menos favorecidas. Não entendeu a razão de John ter construído aquilo se ele parecia tão grosso e sem modos. Ela observava tudo com um olhar curioso, até tinha esquecido as brigas. Quando acabaram de encher a banheira, pela milésima vez, John disse para Rafael deixá-los a sós. — Venha — o marido a convidou, enquanto abria o guarda-roupas e pegava um pedaço de tecido felpudo. Isabella não hesitou em levantar as pressas da cama e acompanhá-lo. Estava interessada em descobrir como era aquele cômodo. Ao entrar, deparou-se com um ambiente totalmente diferente do resto da casa. Ali não havia sujeira no chão, o limo não se acumulava nas janelas nem o mofo nas paredes. — Aqui é tão limpo — ela disse ao deslizar os dedos sobre uma pia de bronze com torneira do mesmo material, outro objeto inusitado para ser encontrado num casebre tão humilde. — Entre na água — John pediu. Mesmo que Isabella já tivesse tomado banho no dia anterior, como mandava a tradição de lavar-se no dia do casamento, ela apoiou-se na borda para entrar, mas foi interrompida pelo timbre da voz de John.
— Liberte-se de todos os costumes que conhece, tire essas roupas primeiro! — Quer que eu entre nua na água? — ela perguntou com espanto na voz. Não era dessa maneira que se tomava banho na Europa. — Exatamente — John respondeu com uma das sobrancelhas arqueadas. — Esqueça as regras da sociedade. Está na hora de se lavar de verdade. — Mas a água está morna — ela teimou. — Meus poros serão dilatados, eu posso pegar alguma doença… — Tire as roupas, Isabella! — John falou com mais severidade, lhe lançando um olhar de advertência. Com medo, ela apressou-se em tirar o vestido, permitindo que John soltasse as amarras do seu espartilho. Entrou na água, em seguida assistiu o marido remexer em alguns frascos que estavam sobre o batente da janela, que ela não fazia ideia do que continham. John se dirigiu ao quarto, mas logo voltou trazendo uma tira de tecido de algodão. Pegou um dos frascos e espalhou uma substância esverdeada sobre o pano, voltando-se para a esposa. — Use isso para limpar os dentes — ele explicou ao entregar o fragmento de tecido. — O que é isso? — a jovem quis saber. Nunca tinha usado nada para limpar a boca além de, ocasionalmente, um pano embebido em água. — É uma mistura de ervas e alguns frutos. Deixa o hálito agradável, evita que os dentes apodreçam e caiam. Você usará isso todos os dias, quando lhe for possível, antes de dormir. Ela limitou-se a obedecer, a fim de evitar mais problemas. Assim que a substância tocou suas gengivas, Isabella sentiu uma ardência e vacilou, entretanto, quando encostou a ponta da língua, percebeu que a mistura possuía um sabor agradável e refrescante, o que a estimulou a dar continuidade com a higiene bucal. Aproveitou para limpar também sua língua. Ao acabar, sentiu uma sensação prazerosa na boca que nunca tinha experimentado. Colocou as mãos formando uma concha sobre os lábios e soprou, aspirando o ar em seguida. Percebeu que seu hálito havia adquirido um cheiro de menta muito agradável. Enquanto ela fazia isso, John tirou suas vestes e, alcançando alguns frascos na janela, entrou na água. Equilibrou os vidros na borda da banheira e afundou a cabeça na água. Quando emergiu, ele encarou Isabella por vários segundos, a água pingando do seu cabelo loiro e escorrendo pelo rosto. Ela observou como John possuía cílios longos e cheios.
— Vire-se — ele ordenou, alcançando uma esponja vegetal que, para Isabella, só possuía a função de raspar a sujeira das panelas e tachos. Abriu um dos frascos e despejou um líquido viscoso sobre a mesma. Curiosa, Isabella atendeu à ordem do marido. John aproximou-se, passando as pernas em volta do corpo da jovem, afastou os longos cabelos castanhos que ainda estavam secos, e esfregou as costas de Isabella com a esponja. Ela encolheu-se ao sentir o toque firme das mãos de John e afastou-se, se virando para encará-lo. — Por que está esfregando isso em mim? — ela reclamou. — Já não é perigoso o suficiente estar imersa em água morna? — Bella, tomo banho praticamente todos os dias dessa forma e não adoeço — ele falou com calma, sem irritação na voz. — Venha, deixe que eu te ensine. — Parece tão errado — ela murmurou e John revirou os olhos, a puxando de volta. Quando ele acabou de lavar todas as partes do corpo da esposa, usando a esponja e o líquido perfumado, Isabella cheirava a lavanda e jasmim. Foi a vez dos cabelos receberem a higiene que John julgava adequada. Ele aplicou a mistura viscosa de outro frasco, que por sua vez possuía a mesma fragrância suave de lavanda misturada à camomila. Ao ser esfregado com a substância, e enxaguado em seguida, o cabelo de Isabella ficou áspero, mas ele aplicou o composto do terceiro frasco, que era mais consistente e cheirava a abacate, o que deixou os fios macios novamente. Isabella sentia a cabeça leve e a pele fresca. Apesar de todos os pudores e preconceitos a respeito de se lavar daquela forma, ela adorou a sensação de estar livre da sujeira e tão cheirosa. Descobriu que John, que ela julgava ser tão sujo, possuía hábitos de higiene muito mais eficazes que os dela. — Onde conseguiu esses produtos? — ela quis saber, o observando lavar-se com o mesmo zelo com o qual havia cuidado dela. — Nunca os vi na cidade. — Eu mesmo os preparo — ele explicou. — Não uso enxofre, nem chumbo, só coisas que extraio de plantas. Por isso está tão cheirosa. — De onde você vem? — Isabella sondou. — Nunca ouvi falar desses costumes por aqui. Conheço muitas pessoas que nunca tomaram um único banho na vida, por medo dos males que a imersão causa. — Um dia te direi, quando estiver pronta para entender. Isabella pensou em sair da água, mas estava agradável ali. Resolveu observar o marido enquanto ele estava ocupado. Ela entendeu que John possuía múltiplas personalidades, e que uma delas — a que o dominava agora — poderia até ser interessante e
atraente. Quando ele estava completamente limpo, aproximou-se novamente da jovem na intenção de beijá-la. Por mais que o rancor a dominasse, e ela sentisse repulsa de John, seus corpos, hálitos, e a água em que estavam, exalavam um perfume tão delicioso que ela se viu envolvida naquela atmosfera; além disso, a fricção causada por seus corpos molhados era uma imensa tentação. Não conseguiu resistir por muito tempo.
∞∞∞ Ainda estava enrolava no tecido felpudo que John usara para secar seu corpo. Tentava manter os olhos abertos enquanto contava os minutos, esperando que o marido caísse em sono profundo. Quando julgou ter dado tempo suficiente para ele não acordar, Isabella levantou-se sem fazer nenhum barulho. Vestiu-se com uma camisola branca e o observou por um instante. Ele era muito bonito quando não estava fazendo atrocidades, e tinha o porte físico muito bem definido. Mas isso não era motivo para Isabella ficar. Pretendia deixá-lo naquele mesmo instante. Planejava se embrenhar na floresta, escalar alguma árvore e passar o resto da madrugada, depois tomar o rumo da cidade, sempre oculta nas árvores, e encontrar Stefan. Dessa vez, teria que dar certo. Ela não teria o luxo de se perder outra vez. Despediu-se em pensamentos do marido, desejando que ele encontrasse todo castigo que merecia, e saiu na ponta dos pés. Não tinha notícia de Rafael desde que ele trouxera a água morna para o banho. Talvez tivesse ido embora. Passou sorrateiramente pela sala e deixou a casa, fechando a porta com cuidado. O coração batia tão forte que Isabella tinha medo que o marido pudesse ouvir. Encaminhou-se para os fundos do terreno, onde pretendia adentrar a mata, cruzando os braços na esperança de aquecer o corpo, mas estava impossível. O vento batia gelado e cruel. Ao enxergar o poço, ela viu também um ponto de luz. Um candeeiro estava no chão próximo à entrada da floresta, e iluminava um homem de costas. Isabella se deteve, resolvendo que partiria na direção contrária, mas um diálogo entre duas vozes masculinas chamou sua atenção, e ela resolveu espiar a cena por alguns segundos. Logo retornaria ao plano inicial. Abrigou-se à sombra de alguns arbustos no terreiro da casa e aguçou sua audição, prendendo até a respiração a fim de ouvir melhor. — ...você precisa abri-las com mais frequência — a voz desconhecida disse. — Percebeu como está doendo agora?
Ela não conseguia visualizar quem falava, era como se a pessoa estivesse escondida e sentada atrás do poço, mas podia reconhecer muito bem quem estava de costas. Tratava-se de Rafael. Ele estava despido da cintura para cima e possuía ombros largos. Na luz do candeeiro sua pele parecia dourada. — É uma dor quase insuportável — Rafael respondeu. — Por isso estou evitando fazê-lo. — Mas precisa fazer, pelo menos três vezes por semana — a voz disse. — Elas foram feitas para serem abertas, não para ficarem escondidas. Tente. Resista. Não fuja de quem você é. Isabella estava cada vez mais curiosa em saber do que falavam, quando ouviu Rafael grunhir e se curvar para a frente, caindo de joelhos no chão. Seu grito era baixo, porém, significativo. Ele parecia estar sofrendo muita dor. A jovem quase se aproximou para tentar ajudá-lo, mas a lembrança de seus planos de fuga a impediram. Ficou chocada com o que viu em seguida. Algo brotava das costas de Rafael. Perplexa, ela tentou se aproximar mais, à medida que os grunhidos se transformavam em rugidos ferozes. Não podia acreditar no que seus olhos testemunhavam. Talvez estivesse sonhando, mas algo grande saiu dali. Eram duas, com cerca de um metro e meio de comprimento cada. — Rafael tem asas! — Isabella sussurrou quase inaudível, com uma das mãos sobre a boca. Estava chocada, ainda assim, queria ver melhor aquilo. As asas saíram completamente e ela pôde ver toda a sua imensidão. Elas começavam estreitas no ponto onde emergiam das costas de Rafael, e alargavam-se até a parte exterior, ficando estreitas novamente na borda inferior. Eram lindas e aparentavam ser extremamente macias. Eram constituídas, como Isabella pôde observar, de penas que começavam alvas e desciam, escurecendo à medida que se aproximavam do fim, terminando com uma cor escarlate um pouco abaixo dos joelhos de Rafael. A garota estava sem ar e não sabia o que pensar, mas não sentia medo. — Abra — a voz sugeriu. Rafael voltou a se erguer e, com um impulso, elas ficaram ainda maiores — gigantescas, na verdade —, chegando a medir mais de dois metros de largura.
Na luz do candeeiro, Isabella conseguia enxergar os detalhes, como as penas eram menores e arredondadas na parte de cima, e terminavam grandes, compridas e mais ralas na parte de baixo, sendo ainda maiores na parte exterior. Havia também uma curvatura mais ou menos na distância dos ombros, o fazendo parecer imponente. — Elas foram feitas para te levarem a qualquer lugar, mas você insiste em andar a cavalo ou de charrete, como se tivesse vergonha de quem é — a voz o repreendeu. — Elas estão escurecendo. Cada vez que as abro, estão mais avermelhadas na parte de baixo ― o rapaz disse com o timbre de voz melancólico. ― Isso é só uma das consequências que virão por não as usar ― o homem o lembrou. ― Não quer que fique mais doloroso. Quer? ― Nem sempre posso abri-las com frequência ― Rafael tentou argumentar. Sua voz ainda estava rouca devido a dor. ― Repito: pare de negar quem você é. Nesse instante a garota tentava chegar mais perto e acabou pisando num galho, chamando a atenção dos dois homens que conversavam.
O frio da morte
Isabella abriu os olhos e piscou algumas vezes. Sentia-se estranha, atordoada. Estava deitada de lado, virada na direção contrária à porta. Moveu-se para o meio da cama e deu de cara com John deitado de barriga para cima, os olhos fixos no teto e as mãos atrás da nuca. Seu peito desnudo subia e descia preguiçosamente com a respiração tranquila. Ela sentia que faltava algo, mas não conseguia entender o que era. — Rafael dormiu aqui? — perguntou após um longo bocejo. O nome do amigo de John ecoava em sua mente. Recordava-se de tê-lo visto carregando água morna em baldes de madeira, mas depois do banho, não o vira mais. Não conseguiu entender o porquê de ela não ter se preocupado em arranjar algum lugar para ele dormir, de lhe oferecer lençóis limpos. Era o papel de uma dona de casa tratar bem a visita do marido. John poderia ficar furioso. — Sim. Na sala — John respondeu ao tombar a cabeça de lado para encarar a esposa. Seus olhos azuis encontraram os de Isabella, fazendo-a lembrar de toda a mágoa que tinha dele. Mas a jovem estava consciente de que, se fosse tentar fugir, precisaria ganhar a confiança de John. Levantou-se da cama e vestiu-se. Resolveu entrar no vão anexo ao quarto para lavar o rosto. Até usou um pouco da substância esverdeada e refrescante para higienizar a boca.
Enquanto fazia isso, ela pensava que John poderia ser um crápula, monstro, ainda assim, sabia muito bem como ficar cheiroso. Isabella não estava se rendendo. Longe disso. Ela o mataria naquele exato momento, caso não existissem consequências. Esconderia uma faca bem afiada no espartilho. Aquela seria sua primeira atitude ao deixar o quarto. Se ele tentasse machucá-la novamente, não sairia impune. Passando pelo quarto, viu que o marido permanecia deitado na cama, os olhos azuis fitando o teto, uma expressão enigmática no rosto. Ela não tinha o menor interesse em saber a respeito dos pensamentos que prendiam tanto a atenção de John. Abriu a porta e saiu para a sala. Tomou um susto ao encontrar Rafael sentado no velho sofá de John. Ainda não tinha descoberto por qual motivo o rapaz não abandonava seus pensamentos. Memórias de Rafael vinham em ecos, como se ela estivesse esquecendo de algo importantíssimo, mas não fazia sentido algum. Observou o jovem com cautela. Ele estava absorto na leitura de algo; os cotovelos apoiados nos joelhos; as mãos segurando o livro grosso de capa preta. Isabella estreitou os olhos, aproximando-se com passos sutis, até conseguir ler o título. Bíblia. Rafael estava lendo a Bíblia? Isabella deu mais um passo e ele notou sua presença. — Bom dia, amor — a cumprimentou, fechando o livro rapidamente e ocultando-o ao seu lado no sofá. — O café está pronto. — Bom dia — ela respondeu, ainda com aquela impressão. Era como se ela soubesse de um segredo sujo sobre Rafael. Por mais que se esforçasse, não conseguia recordar. Talvez isso se devesse tão somente ao fato de ele tratála por amor, e ela temer a reação do marido, caso ele ouvisse. — Não precisava se incomodar com isso. Você é a visita. — Não foi incômodo nenhum, amor! — Rafael sorriu, exibindo a fileira superior de dentes alvos. — Soube que John não gosta do seu café. — Isso não é engraçado — Isabella o repreendeu sem pensar, sentindo a confusão de pensamentos que poderiam a enlouquecer. O episódio do café havia, de fato, acontecido? Poderia receber uma punição por ser tão mal-educada com o hóspede? Mas, sendo bem sincera, não ficou arrependida. — Desculpe-me. Como está o tornozelo? — Rafael perguntou ao levantar-se do sofá, caminhando na sua direção. — Deixe-me ver. Ele se agachou e alcançou a perna da jovem, por baixo das saias do vestido,
examinando as marcas avermelhadas. Os dedos de Rafael a tocaram com gentileza. — Gosta disso, amor? — o rapaz sussurrou, os olhos fixos na pele de Isabella, enquanto as pontas macias dos dedos a acariciavam. Certamente ela gostava. Que mulher que fora tratada com tanta brutalidade, estava longe de casa, desolada, não gostaria de receber um pouco de afeto de mãos tão macias e gentis? Sua voz ficou presa na garganta e ela limitou-se a menear a cabeça positivamente. — Tudo vai passar — Rafael continuou. — Só tenha paciência. Suporte mais um pouco. — Suportar mais um pouco? — ela o questionou perplexa e se afastou, irritada. Foi para a cozinha com a certeza de que estava sozinha na sua jornada de tentar escapar. Abriu uma gaveta e procurou uma faca pequena e afiada. Encontrou uma perfeita que media poucas polegadas e possuía uma bainha de couro. Ainda de costas para o visitante, enfiou o objeto em seu decote, o posicionando dentro do espartilho apertado. O couro pinicou sua pele no início, mas aquilo era bom, serviria para lembrá-la daquela saída — esfaquear a jugular do marido e observá-lo sangrar até a morte.
∞∞∞ John e Rafael tomaram café, enquanto Isabella cuidava dos afazeres domésticos. Comeria depois. Não queria sentar-se à mesa com eles. Não confiava em nenhum. Quando acabaram, os dois deixaram o casebre. John informou que voltaria para o almoço, e que Isabella não tentasse nada que a fizesse se arrepender posteriormente. — Poupe seu tempo. Em vez de ficar fazendo planos de fuga que não obterão sucesso, cuide do almoço. Prepare algo digno do seu esposo — John fez a advertência. A bainha de couro queimou dentro do espartilho de Isabella. Ela abriu a boca para responder, mas o marido foi mais rápido. — Caso eu não a encontre aqui quando chegar, volto até à cidade e capturo sua irmãzinha — a voz de John transmitia ameaça, em conjunto com aquele olhar assustador. — Nem pense em tocar... — Isabella estava inclinada a usar a faca, mas ela nunca conseguiria algum lucro naquela investida. Rafael ficaria do lado de John, e ela acabaria amarrada a alguma árvore, sendo chicoteada até um animal feroz ser atraído pelo cheiro de sangue. — Você não faz ideia do que sou capaz de fazer com ela — John arqueou as sobrancelhas. — Não é capaz sequer de imaginar a dor que posso causar.
— Pare! — Isabella vociferou. — Me deixe cuidar do almoço! Os dois partiram. Ela sabia muito bem que refeição seria digna de seu esposo: qualquer prato temperado com veneno. Pensou em quebrar um copo em milhares de caquinhos e colocá-los no risoto de John. Quando ele desse por si, já estaria engolindo tudo, os fragmentos de vidro o rasgando por dentro.
∞∞∞ Isabella se conteve. Dedicou aquele dia, assim como os demais que vieram, a transformar o velho casebre em um lugar mais agradável. Um lar que não lhe causasse tanta vergonha quando um ente querido viesse visitá-los. No início, parecia impossível tornar aquela casa menos pavorosa. Porém, com o passar dos dias, Isabella começou a acostumar-se com sua morada. John não era um exemplo de marido ― longe disso ―, mas, desde que Rafael passou a frequentar a casa, ele estava ocupado demais para se aborrecer com a esposa e, consequentemente, magoá-la. Saíam cedo e chegavam muito tarde com grandes quantias. Na maioria das vezes, quando John aparecia, Isabella já estava deitada fingindo dormir. Algumas noites, ele a procurava. Nunca a forçou a fazer nada contra a vontade. A cama era o único lugar onde eles se entendiam, onde John contemplava a esposa e lhe dava o devido valor. Às vezes, ele apenas se deitava ao lado dela e fechava os olhos após beijar sua clavícula. Quando John adormecia, Isabella soltava a respiração pesada e o observava dormir. Quase sempre chorava. Queria saber como estava Stefan. Desejava ver Elena. Sentia falta dos pais e especialmente de Teresa. Mas não recebia notícias de nenhum deles. Só lhe restava John Smith. Como se ela não existisse para o resto do mundo. Que belo futuro. A recompensa por ter sido uma filha obediente. Então, Isabella chorava até cair em sono profundo. Ainda pensava em fugir, mas tinha medo que o marido machucasse sua irmãzinha. Ela não queria testá-lo. John não se portava exatamente como um crápula quando não era contrariado. Ela o odiava, nutria aversão até pelo som dos seus passos se aproximando. Apesar disso,
começava a pensar que as coisas poderiam ficar mais fáceis, de alguma forma, se ela aceitasse o destino. Dadas as circunstâncias, cooperar era a escolha mais sábia a se fazer, por enquanto. Um dia, quando ele tinha atingido o clímax, mas ainda acariciava as costas suadas de Isabella, a jovem teve um lampejo de admiração pelo marido, considerando que eles poderiam estar conectados de uma forma que ela não poderia entender. Nos braços de John, sentiu um calafrio na espinha com a ideia de que pertenceria a ele para sempre. A consciência foi mais forte e ela se odiou por ter aquele tipo de pensamento. John não estava conectado com ninguém. Ela jamais permitiria se iludir por seus carinhos e raros momentos afetuosos.
∞∞∞ Isabella andava pela casa. Rafael não tinha dormido lá na noite anterior, e John tinha aproveitado a privacidade para fazer o que ele chamava de “desfrutar cada canto da casa”. Resultado: a sala havia ficado de pernas para o ar. Ela estava terminando de organizar a bagunça antes de começar a cozinhar. Passando pela sala, sua visão periférica captou um movimento, como se alguém estivesse sentado no velho sofá. Ela virou a cabeça lentamente, sentindo os pelos da sua nuca ficarem eriçados, mas não havia nada ali. Foi até o quarto, terminou o que precisava fazer naquele cômodo e voltou. Estava virando as costas, rumo à cozinha, quando ouviu uma risada. Ficou imóvel. Agora não eram apenas os pelos da nuca que estranhavam algo, os dos braços também se arrepiaram. Um rangido de assoalho sendo pisado encheu a casa. Outra risada. Isabella sentiu o peito ficar gelado. Engoliu em seco e virou a cabeça lentamente na direção do sofá. Lá estava uma jovem. Talvez tivesse catorze anos. Usava um vestido de noiva feito sob medida. O véu estava jogado para trás. A criatura balançou-se para frente e para trás quando percebeu que Isabella a tinha notado. Tratava-se de uma garota loira. Havia semicírculos arroxeados abaixo dos olhos, a boca pequena estava fechada numa linha fina. — Ele fez com você? — a mocinha perguntou à Isabella. — Ele se deitou com você, não se deitou? Isabella estava paralisada de medo. Acreditava em fantasmas, mas nunca vira nenhum. Até aquele momento. Seu coração batia muito forte e rápido. Onde estaria John agora? Estava sozinha naquela casa, no meio do nada. Ironicamente, pensou em como
queria ter o marido por perto naquele instante. — Estou falando do senhor Smith — a moça continuou. — John Smith. Sei que ele mora aqui. Posso sentir seu cheiro... Você é tão bonita. Como se chama? Isabella abriu a boca, mas a única coisa que saiu foi uma pequena nuvem de vapor. Está tão frio! O que aquela criatura queria? Quem era? De onde conhecia John? — Fale, querida — a loira continuou, levantando-se do sofá, fazendo o coração de Isabella bater tão depressa que parecia estar prestes a explodir. — Não se acanhe. John, onde você está? O pensamento gritava dentro da mente da jovem, mas não conseguia verbalizar nada. Como queria que o marido voltasse! Havia algo de hostil na expressão da garota, um brilho vingativo no olhar. Ela parecia delicada, falava com suavidade, mas Isabella podia imaginá-la brandindo um machado contra ela, enquanto a jovem permanecia imóvel, paralisada pelo frio da morte. Aquela criatura se aproximando queria vingança. — Eu era muito doce, meiga, ingênua — ela falava; a cada passo, uma frase. — Minha família era pobre. John aproveitou-se da nossa miséria. John Smith, você deve conhecê-lo. A cabeça de Isabella balançou duas vezes expressando um sim. A atmosfera ao seu redor estava cada vez mais gélida. Ainda assim, ela queria ouvir, saber o que a garota tinha a dizer sobre John. — Éramos em grande número, órfãos. Meu tio mais velho nos pegou para criar quando nossos pais morreram. Ele já tinha alguns filhos, quando nos juntamos aos dele, a coisa ficou feia. Não havia comida, dinheiro ou roupas suficientes. Dormíamos amontoados em um quartinho. Meu tio racionava a comida para que não padecêssemos. Um dia seus filhos comiam, no outro, era nossa vez, meus irmãos e eu. Isabella estava envolvida com a história, tentando imaginar como deveria ser difícil. Ela passara algumas horas com fome, perdida na floresta, e não tinha sido nada agradável. Imaginou o que seria ficar um dia inteiro sem comer, não ter nada em casa. Deveria ser muito doloroso para uma criança. Pensou em sua irmã Teressa e ficou agradecida por esta nunca passar necessidades, não conhecer agonia que era sentir fome. — Então senhor Smith apareceu — a criatura continuou. — Não veio sozinho, havia um rapaz com ele. Atendia pelo nome de Rafael, mas jamais disse seu sobrenome. Depois que eles apareceram na pequena propriedade do meu tio, nunca mais sentimos fome. Passamos a fazer de três a quatro refeições por dia. Todos os dias. A carne começou a aparecer nos nossos corpos, onde antes só existia pele e osso. Eles também trouxeram roupas quentes antes do inverno rigoroso chegar, cobertores, sapatos confortáveis. Vivemos
semanas muito felizes, graças a eles. E o rapaz, Rafael, fazia aquele trabalho com a madeira dos pinheiros que tinha no sítio. Acho que se chama marceneiro. Fabricou camas, uma sobre a outra, em conjuntos de dois ou três, e colocou-as no nosso quarto. Rafael estava sempre trabalhando. Não dormíamos mais amontoados no chão. Pela primeira vez, me senti gente de verdade. A fome voraz tinha desaparecido, e estávamos aquecidos. A menina fez uma pausa e olhou para o chão. Isabella só queria que ela continuasse, mas não tinha certeza de como dizer isso, sua língua estava mole dentro da boca. — John Smith era um homem muito bondoso, bonito. Deus sabe como ele fez bem a nossa família, nos tirando do sofrimento que era viver com o estômago roncando. Ele tinha o sorriso muito amoroso, e sempre o mostrava quando nos olhava de cima dos seus quase dois metros de altura. E seus olhos... eram de um azul tão raro... — Azul como ela nunca conheceu — Isabella murmurou por entre os dentes, inaudível. Não conseguia imaginar John fazendo todas aquelas coisas. Ele não era misericordioso. Rafael sim, mas o marido não. — Mas ele queria algo em troca. Ninguém faz nada de graça. Nunca imaginei que, por trás de todos os sorrisos que o senhor Smith me dava, existiam outras intenções. A moça estava em pé a dois metros de Isabella. Prosseguiu. — Ele ofereceu muito dinheiro para meus tios, em troca de poder me levar. Na ocasião não me importei, era pelo bem da minha família, e John era tão nobre, gentil, que mal haveria? Meu tio chamou o juiz na nossa casa. Com dinheiro se consegue tudo, e John tinha muito. Então nos casamos. Ninguém jamais me alertou sobre o que aconteceria quando a porta do quarto fosse fechada. Pensei que iríamos somente morar juntos. Você sabe do que estou falando. Ele fez com você também. Essa é a única razão de ele nos escolher. A respiração de Isabella estava presa na garganta, os olhos úmidos. John tinha feito o bem para a família que passava fome, ainda assim, aqueles meios não valeriam diante de tal fim. — John me levou para a cama — a garota voltou a falar —, fez coisas que nunca se passaram pela minha cabeça. Por alguns momentos, até parecia outro, como se tivesse se transformado. Ele era muito grande e forte e eu... — a moça deu de ombros — do mesmo jeito que você vê agora. Pedi para ele parar, mas não me deu ouvidos. Eu não gostei. Queria matá-lo; até tentei, mas está claro que não deu muito certo. A lâmina do machado se voltou contra mim quando tentei arrancar sua cabeça enquanto ele dormia. John acordou antes e rachou meu crânio. Isabella estava aterrorizada. Aquela era uma história que a deixaria acordada por dias. — Mas pense bem, não era melhor morrer do que passar por aquilo todas as noites? Eu preferi. Você também, Isabella. Disse que era melhor estar morta. Ainda que no
pensamento, você disse. Ela não percebeu quando nem de onde aquele machado apareceu nas mãos da garota, erguendo-se sobre Isabella. A jovem estava tão congelada que não pôde se mover. — Mesmo que o inferno queime, ainda é melhor que passar por aquilo — a garota sussurrou, brandindo o machado contra o rosto de Isabella. Uma pancada ecoou pela sala, junto com o vento frio. A jovem olhou para a porta e o viu entrar, encolhendo as asas para conseguir passar. Estava sem camisa, e o calor de seu corpo esquentou Isabella quando Rafael a abraçou e suas asas se fecharam contra ela como um cobertor macio.
As verdades começam a aparecer
Isabella abriu os olhos e sua visão foi ofuscada pela luz que entrava pela janela do quarto. Piscou algumas vezes, mas estava sonolenta demais para se manter acordada; não conseguia diferenciar sonho e realidade. Seus olhos focaram em algo. Alguém. Ele estava deitado com ela na cama, não usava camisa, pelo menos foi isso que Isabella constatou. Um súbito momento de recordação a fez arregalar os olhos. Rafael estava na cama com ela! Era o cúmulo dos cúmulos. E estava seminu, deitado de lado a observando. Isabella pensou nas asas. Pensou que tivesse sonhado, que ainda estivesse sonhando. Um sonho duplo. Que toda a história de fantasma fosse apenas fruto de uma mente cansada. Rafael se aproximou de Isabella, fazendo a cama ranger. Ela abriu a boca para protestar quando percebeu que ele pretendia beijá-la, mas não conseguiu dizer coisa alguma; a língua não obedeceu. Ele veio devagar, os olhos se fechando, mas antes que os lábios tocassem os dela, Rafael desviou da sua rota e acabou beijando a testa de Isabella. — Durma, amor — ele sussurrou. — Descanse em paz. Estou aqui. Os olhos, que já estavam pesados e nebulosos, se fecharam.
∞∞∞
Quando Isabella acordou novamente, notou que ainda não estava sozinha. Mas já era noite. O fogo na lareira estalava devagar, esquentando e iluminando o quarto. Havia alguém na cama desta vez. Ela se apavorou, não conseguiu se mexer, era como se estivesse paralisada. A primeira coisa que concluiu foi que se tratava da garota fantasma que contou aquela história horrível e depois tentou matá-la com o machado. Mas, depois de fechar e abrir as pálpebras inúmeras vezes, constatou que era Teresa. Ficou ainda mais apavorada. Como sua irmã tinha chegado ali? Isabella não poderia permitir que John ficasse sob o mesmo teto que Teresa. A menina era só uma criança, não conhecia nada da vida, ele era um monstro isento de qualquer qualidade positiva. Queria dizer para a menina correr, fugir e não olhar para trás, mas no fundo sabia que não passava de outro sonho. John a tinha feito enlouquecer muito rápido. O mundo era injusto, entretanto, com Isabella, ele estava sendo um carrasco. Logo o sono a derrubou novamente. Desta vez, quando Isabella despertou, estava sozinha. Percorreu os olhos à procura de mais visitantes. Não encontrou ninguém. Só havia a lareira acesa. Uma sensação muito desagradável tomou conta de seu estômago, chegando a causar dor. E se não fosse um sonho? Se toda aquela história fosse real? Se John tivesse sido mesmo capaz de se casar com aquela garota e depois matá-la? Isabella estava vivendo com um, além de sádico notório, assassino de esposas? Levantou-se da cama. Parecia que faltava algo em sua mente. Como se ela não fosse capaz de retomar todas as memórias daquele dia. De fato, faltava algo. Não recordava em que momento tinha ido parar na cama. Havia a noiva fantasma e depois... nada! Por mais que se esforçasse, não conseguia lembrar. Verificou se estava vestida decentemente antes de deixar o quarto. A casa parecia vazia. Dirigindo-se para a cozinha percebeu a porta aberta, deixando o frio de outono entrar. Caminhou até a porta, atraída por um ponto de luz no quintal. Uma fogueira. Ouvira vozes. Passou pela porta sem fazer barulho. A noite estava escura, mas ela conseguiu distinguir os dois homens trabalhando na escavação de um buraco retangular nas proximidades do poço. A luz da fogueira dava a seus corpos um tom dourado muito bonito. Eles estavam sujos de terra, mas não paravam de tirar areia do buraco. — Você tem que queimar isso também, John! — Rafael falava com um tom de voz imponente. — Não posso fazer isso agora — John lamentou. Parecia envergonhado.
— Te conheço há tanto tempo, Johnny — Rafael baixou o tom —, ainda assim você me surpreende. — Eu não pensei que fosse dar errado. Só queria agradar a criança. Ela é tão bonita e me remete a inocência — John divagava desculpas. Isabella ainda não tinha percebido o quanto a voz do marido era firme e aveludada. Eles não notaram sua presença ali, escondida nas sombras da casa. Por que cavavam? Do que falavam? Que criança era essa que ele mencionava? — Você tem que se decidir: tem sentimentos ou não? — Rafael perguntou. — Sinceramente, você precisa escolher um lado: faça o bem ou o mal. Só não fique em cima do muro. — Nenhum homem é completamente bom, amigo — John retrucou —, assim como não sou só maldade. Você sabe. Conhece cada pensamento meu, todos os motivos e sentimentos. Rafael respirou fundo, largando a pá por alguns segundos. — Pegue a boneca, Johnny, precisamos queimá-la. — Eu não vou pegá-la de volta! — John sibilou. — Ela é só uma menina. Você não dá um brinquedo a uma criança e depois o toma, por pior que você possa ser. As sobrancelhas de Isabella estreitaram-se. Do que diabos estavam falando? Um pressentimento ruim apertou a boca do estômago. — Devia ter pensado nisso antes de dar-lhe a boneca da garota que você matou — Rafael acusou, a voz saindo por entre os dentes. — Por que ainda guardava isso consigo depois de tantos anos? Isabella aproximou-se alguns passos, o corpo tomado de calafrios. Os dois estavam tão concentrados que não perceberam. — Apenas guardei — John tentou se justificar. Sua esposa não percebeu, mas naquele instante seu timbre de voz mostrava que ele estava destruído por dentro, castigado pela culpa. A próxima frase saiu fraca. Isabella só fora capaz de ouvir estando bem perto. — Acha que gostei de fazer tudo aquilo? Que eu queria machucá-la? Sabe muito bem todos os meus motivos. Foi você quem insistiu por tanto tempo para que eu fizesse! E deu certo? Não! Os dois haviam parado de cavar e estavam absortos na discussão. As chamas alaranjadas iluminavam os vincos em seus rostos chateados. Aquela não era uma amizade fácil. John, mais alto que Rafael alguns centímetros, inclinava o corpo na direção do amigo, demonstrando sua força, mas ele não se intimidava; conhecia muito bem as fraquezas de John.
Há tempos um irritava o outro. As atitudes de ambos eram como ciscos nos olhos. Uma briga de verdade estava prestes a acontecer. — Um detalhe mal calculado — Rafael se defendeu. — As metáforas eram difíceis de entender. Um erro. — Foram muitos erros ao longo de todos esses séculos, Rafael! — John retrucou profundamente chateado, o rosto transtornado. A jovem estava apavorada com tudo que ouvira. Séculos? O que o esposo queria dizer com ao longo dos séculos? — Só vá até lá e recupere essa maldita boneca! — Rafael brandiu. — Ou prefere que esse fantasma continue perturbando sua esposa? Você pegou o brinquedo da morta e deu para sua cunhada. O que diabos tem na cabeça? Imaginou mesmo que não ia perturbar o espírito que não consegue descansar em paz? Não! Não! Não! A mente de Isabella gritou ao ver a pequena criatura sair correndo através das árvores da floresta. — Senhor Smith! Senhor Smith! — a menina gritava assustada, carregando um candeeiro em uma das mãos e a boneca na outra. Largou o primeiro objeto no chão e apontou para a mata. — Tem um lobo bem ali. Não pode ser. Isabella queria acordar, desejando que tudo não passasse de outro pesadelo, mas seu consciente sabia que não era. Havia sido real. O fantasma, Rafael tentando beijar seus lábios, a parte do ao longo dos séculos e, pior que todo o resto, sua irmã bem ali, no inferno de John. Teresa correu até o cunhado. Agora segurava apenas a boneca. John a pegou no colo e a abraçou, apertando-a contra seu tórax. As pernas da menina encaixaram-se ao redor de sua cintura. Isabella não gostou nada daquilo. Um milhão de pressentimentos ruins castigaram seu corpo em forma de calafrios. O coração tinha parado de bater. Poderia suportar as atrocidades de John, mas não aguentaria vê-lo fazer qualquer mal a sua pequena irmã. E ele podia fazer muita coisa ruim contra ela. Isabella sabia do que o marido era capaz. Estava horrorizada. As lágrimas escorriam pelo rosto quando tentou, com sucesso, arrancar Teresa dos braços de John. — Minha irmã, o que faz aqui? — Isabella perguntou ao colocar a menina no chão, verificando todo o corpo da criança para certificar-se de que ela estava bem. — Senhor Smith me trouxe — a voz de Teresa era doce e inocente. Isabella soluçava. — Ele disse que você estava com saudades de mim, irmã. Papai o deixou me trazer para te visitar. Por que choras? — Não é nada, meu bem — a jovem tentou disfarçar, abraçando Teresa e olhando com fúria para John.
Não podia acreditar que seu pai tinha entregado Teresa para John. Mas, tratando-se do homem que obrigou sua filha a casar-se com um completo desconhecido por dinheiro, não era de se admirar; permitir que a filha mais nova partisse com o cunhado era o de menos. Rafael se aproximou, enquanto Teresa aparava as lágrimas do rosto de sua irmã. — Me dê a boneca. — É minha! — a pequena rosnou. — Foi presente do senhor Smith! Mas Rafael conseguiu arrancar o brinquedo velho das mãos da menina. — Essa não serve para você — ele disse. — John estava louco quando resolveu te dar um brinquedo tão velho. Logo comprará outra. — Não gosto dele — Teresa reclamou no ouvido de Isabella. — Ele não queria que eu viesse te ver, irmã. Brigou com o senhor Smith por causa disso. A casa não é dele, pertence a vocês. Esse rapaz não passa de um intrometido! Isabella conhecia os motivos de Rafael. Ele tentara impedir John de trazer a criança porque sabia exatamente qual a finalidade daquilo. A mente da jovem foi inundada com as ideias do que John poderia fazer à Teresa.
Quem é John Smith?
― Me devolva a menina — John exigiu a Isabella, mas a esposa apertou a pequena irmã contra seu peito, a protegendo do marido, colocando-a nos braços novamente. Encarou John com severidade. Não permitiria que ele colocasse as mãos em Teresa. A ideia a deixava com os nervos totalmente abalados. Sentia revolta por estar passando por toda aquela agonia, enquanto o pai, causador de tudo, dormia em paz com as contas pagas. — Isabella, me devolva a menina — John reclamou ainda mais duro. Odiava ser contrariado, ainda mais na frente de Rafael. Aquele não era um dos seus melhores dias. — Me deixe levá-la de volta para casa, John. Prometo que nunca vou tentar fugir. Juro por Deus, só não encoste... — Me. Dê. A. Menina! — o esposo falou lentamente, com a voz fria e dura como aço. — Por que está tão nervosa, irmã? — Teresa perguntou. — O que teme? — Não, John, eu imploro ― Isabella continuou mesmo que as lágrimas tentassem afogar suas palavras. — Deixe-a em paz. Seu problema é comigo! — Rafael — John chamou o amigo, olhando sobre o ombro direito. O rapaz veio e, após uma breve troca de olhares, segurou os braços de Isabella para que o marido tomasse a criança. A jovem tentou soltar-se, mas todo o esforço foi em vão. John levou Teresa para
dentro de casa e trancou a porta da cozinha. O medo, a raiva, o pavor, tudo de ruim que ela poderia sentir, chegaram ao limite. Seus nervos davam choques. Gritou, se debateu, mas não fora capaz de se libertar e livrar a irmãzinha dos braços do carrasco. — Calma, amor, essa dor irá passar. Se você relaxar, aceitar, as coisas irão se encaixar — a voz macia do anjo soprava contra o ouvido de Isabella. Seus lamentos foram silenciados, Rafael estava tapando sua boca. Só restaram os soluços. Uma infinidade de pensamentos povoou sua mente. As piores ideias a fizeram provar o mais amargo terror. Então a porta da cozinha foi aberta, John saiu por ela. Rafael soltou Isabella, que correu no mesmo instante, de encontro ao marido, as mãos fechadas em punhos acertaram seu peito. — O que fez com ela? — exigiu saber aos prantos. — Calma, Bells! — John falou gentilmente, a voz baixa e controlada. — Teresa está no nosso quarto rabiscando alguns papéis e... — O que fez com ela? — a jovem repetiu a pergunta. — Não fiz nada. — Por que a levou para dentro? — Isabella queria saber. Mesmo sentindo algum alívio, era difícil acreditar no esposo. — Porque precisamos conversar, e não pode ser na frente dela. Isabella, ainda que relutante, tentou controlar as emoções e assentiu. Havia muita coisa para ser conversada; centenas de questões. — Por que a trouxe aqui, se não para machucá-la? — começou a interrogá-lo. John olhou para baixo e meneou a cabeça negativamente. — Só queria trazê-la para passar algum tempo com você — John sussurrou. — Estão atrás de mim. De Rafael e de mim. E agora de você também. Precisamos ir embora daqui. Queria deixar você despedir-se de sua irmã antes de partirmos. — Quem está atrás de nós? O que tenho a ver com isso? — a jovem quis saber. Nunca tinha feito mal a ninguém, por que diabos alguém estaria atrás dela? — Você se casou comigo; é parte do bando agora — ele explicou. — Eu vou te contar quem está atrás de nós e o porquê, mas preciso resolver alguns detalhes antes. — O que essa pessoa quer? O que quer com nós três? — Isabella perguntou. — Quer me matar — John disse com um tom baixo, porém orgulhoso. — Matar
você primeiro, e depois a mim. Ela ponderou a informação por alguns segundos. Se essa pessoa deixava John com medo, sendo ele terrível do jeito que era, ela poderia ser ainda pior e mais cruel. Não sabia como se sentir em relação a ir embora dali. Seus pais não se importavam com ela, e seria mais seguro para Teresa ficar longe de John. Ainda assim, havia Stefan; Isabella não tinha informações a respeito do jovem, rezava para que ele estivesse se recuperando. De qualquer maneira, estava em maus lençóis. — Não fiz nada — murmurou apavorada. — Por que me envolveu nisso? — Vou te proteger, Bells. — Você? — perguntou com ironia. — Rafael também vai ajudar. O único motivo de quererem te matar também é para me deixar fraco, de luto. Ela riu sem humor, não conseguia imaginar que John ficaria de luto por sua morte. O marido não era aquele tipo de pessoa. Mas havia infinitas perguntas a fazer agora, aproveitando que o marido estava suscetível a um interrogatório. — Você sabe o que vi na sala? A garota vestida de noiva? — ela perguntou. John meneou a cabeça positivamente. — Ela me contou uma história — Isabella prosseguiu, a voz baixa. Rafael estava ao lado dos dois, ouvindo tudo. — Disse que vocês dois ajudaram a família dela, depois você a levou embora. Falou que se casaram, que... — Somente quando pronunciou aquilo em voz alta, sentiu a gravidade da situação. Se aquilo fosse verdade, John não era apenas um monstro, também um demônio, que a arrastaria com ele para o nível mais baixo do inferno. Sua alma tremeu de pavor. — É verdade? — Sim. Aconteceu tudo como ela disse. Eu a matei. Ela está enterrada bem ali — John admitiu apontando para o buraco que haviam cavado. — Você não foi cuidadoso com ela! Era muito nova e não esperava o que fosse acontecer! Você não foi gentil. Depois a matou. Quantos anos você tinha na época? — Isso foi há muito tempo, Bells. — Quanto tempo? — ela o questionou com severidade. — Muito tempo — John respondeu sucintamente. — Você não precisa dos detalhes. De nada adianta eu me arrepender. O que fiz está feito, nada que eu sinta vai alterar o passado.
— Matou mais alguém além da pobre noiva? De certa forma, Isabella já sabia a resposta. Uma inclinação para matar não cessaria com apenas uma vítima. — Sim — ele confessou. — Muito mais. O que está feito não pode ser mudado. Ela queria insultá-lo, dizer o quanto o menosprezava, para onde ele iria no dia do juízo final, mas sabia que era mais importante usar aquela brecha para fazer perguntas. — Quantos anos você tem para já ter feito tanto mal à humanidade? John Smith parecia ter menos de trinta anos, mesmo assim, Isabella ouvira muito bem quando ele disse as palavras ao longo dos séculos. — Isso não importa. — Para mim importa. Você disse a Rafael que foram muitos anos ao longo dos séculos. Diga em que ano nasceu. — Nasci em 27 — ele assumiu. Isabella fez as contas rapidamente. Estavam em 1787, então John teria sessenta anos. Como ele conseguia disfarçar tão bem a idade? — Tem sessenta anos? — perguntou perplexa por ter se casado com alguém que possuía a idade de seu pai. — Não, Bella — John negou. — Mas você disse que nasceu em 1727, como não ter sessenta anos? — Não falei que nasci em 1727, só disse 27 — John parecia divertir-se com a cara que Isabella estava fazendo. Rafael também ria, parado ali, ao lado do casal, ouvindo a conversa. — Explique direito. Estou farta de meias verdades. Me diga exatamente quando você nasceu e quantos anos tem. John olhou para o chão por um instante, chutando um pouco de terra com a ponta da bota. Colocou as mãos atrás das costas, a direita segurando o pulso esquerdo, olhou para Isabella com certo orgulho, então disse a verdade. — Nasci no ano de 27. Não neste século. Nasci em 27 antes de Cristo. — O quê? Os olhos de Isabella quase saltaram das órbitas porque, mesmo parecendo impossível, ela sabia que John não estava mentindo.
— Você pediu a verdade, Bells. Isabella sabia que, quando John a chamava de Bells, estava sendo gentil. Talvez fosse apenas um truque para enganá-la. — Como? — ela mal conseguia pronunciar as palavras. Nunca algo havia a deixado tão chocada quanto agora. — Como sobrevivi? — John a ajudou. — Sim. — Eu teria que contar minha história desde o começo para que você entendesse. — Então conte! — Isabella sibilou, a voz alterada e forçada. — Conte tudo! Eu exijo saber. — Antes de contar tudo, preciso resolver umas coisas. — Seu timbre de voz estava suave e calmo. — Não quero saber. Não me importa o que você tem que fazer agora ou depois, eu quero a história toda, e quero neste instante! — Isabella gritou. — Bells, eu tenho 1814 anos, é uma longa história. — Já disse que não quero saber! — Outro grito. — Você não vai me enrolar desta vez. Pode me bater, me queimar, fazer qualquer coisa, mas vai ter que dizer! Rafael descruzou os braços e remexeu os pés. — Acho que vou ficar com Teresa, deixá-los a sós — o anjo disse. Se Isabella recordasse aquelas asas não o deixaria sair dali. Não gostava nada da ideia de ter Rafael perto de sua irmãzinha, ela não confiava nele, porém, as opções eram escassas. Era preciso se conformar. — Cuide bem dela — John pediu. — Não vamos muito longe. Quando ela adormecer, termine o que estávamos fazendo. Queime a boneca. O sal grosso está na... — Eu sei, Johnny. Não se preocupe. Rafael entrou na casa, os deixando sozinhos. — Você não vai gostar de mim quando começar a ouvir — John murmurou. — Vou ser muito sincero. — Não gosto de você agora — ela deu de ombros, o encarando com desprezo. — É questão de níveis diferentes de ódio.
John não queria que Isabella o detestasse, mas, com o passar dos séculos, ele desaprendera a conviver em sociedade; perdera o jeito de cativar os seres humanos, logo ele, logo John Smith. Ele disse à esposa para pegar um agasalho bem quente. Isabella obedeceu, indo até o quarto, onde viu Teresa fazendo um grande mapa da cidade — a jovem pensou que aquele era um passatempo muito avançado para a idade da pequena. Rafael a ajudava. Ela beijou a irmã na testa e logo voltou com uma capa grossa e um cobertor. O frio lá fora era cruel, mas o sangue de Isabella estava quente. Ela não se abateria por causa da temperatura. — Está pronta? — o marido quis saber. Pela primeira vez ele a tratava como um semelhante, sem menosprezá-la. — Estou. Aonde vamos? — Para as margens do rio. — Vai me afogar depois que contar sua história? — Por mais que a pergunta parecesse cômica, Isabella não estava brincando. — Gosto de ficar perto da água. Se vou remexer meu passado, quero estar em um lugar onde me sinta bem. Pelo menos isso. Ela engoliu em seco. John não parecia nada à vontade. Por alguns segundos, Isabella pensou que seria melhor não saber, mas a curiosidade era maior que tudo. John tinha selado um dos cavalos e pendurado um candeeiro no lado esquerdo da sela. Ele subiu primeiro, em seguida ajudou sua esposa a montar, sentando-se de lado, agarrada em suas costas. Com o incentivo da espora, o animal disparou para a mata nos fundos da casa. Era como se ele já soubesse para onde estava indo, desviando de todas as árvores no caminho. Isabella precisou segurar bem firme na cintura do marido, caso contrário, cairia, e uma queda naquela velocidade poderia ser fatal. O vento gelado soprava impiedoso, então ela escondeu o rosto atrás dos ombros de John, protegendo-se. O cavalo parou às margens de um rio. O casal desceu e ele a guiou para sentar-se nas pedras mais próximas da água. Naquela noite não dormiriam. — Quando eu estiver contando, caso venha a duvidar, olhe dentro dos meus olhos, é onde todos os meus segredos estão escondidos — John sugeriu, os iluminando com a luz do candeeiro. Ela limitou-se a concordar com a cabeça, abraçando-se dentro do agasalho e da manta.
— Não sente frio? — perguntou ao reparar que John usava roupas normais, sem tremer ou bater o queixo. — Não sinto — ele respondeu encarando a água. — Comece! — Isabella exigiu. — É difícil saber por onde começar — John murmurou. Isabella imaginou que o esposo fosse enrolar, mas não aconteceu. — Eu tinha a sua idade, dezessete anos, quando tudo começou. Meu pai procurava uma jovem com quem eu pudesse me casar, já estava na hora. Havia uma moça na aldeia em que morávamos. Ela se chamava Ana, era uns três anos mais velha que eu, mas os casamentos eram feitos quando a moça era bem mais nova que isso, e Ana já tinha passado da idade de casar-se. Isso não era nada bom, tanto para ela quanto para sua família. O povo da minha aldeia a evitava. Sua família tinha vindo de um lugar distante, e pouco conhecíamos a respeito deles. “Mas eu sabia que não era culpa de Ana não ter se casado. Eu sempre soube. Assim como sabia exatamente onde meu pai deveria procurar um animal que se perdia. Sempre tive esse dom de sentir as coisas. Às vezes conseguia saber se determinada pessoa guardava um segredo, coisas do tipo. E Ana escondia algo. Apesar de tudo, desejava me casar com ela. Minha família foi contra, eles queriam alguém mais jovem e confiável. Bati o pé, era muito teimoso. Precisei trabalhar duro por um ano e meio, dia e noite, até fazer meu pai perceber que eu era merecedor de escolher minha esposa.” — E ele aceitou que você se casasse com Ana? — Isabella pronunciou o nome da moça com certo desprezo. Jamais admitiria, mas não gostava nada de saber da existência dessa mulher. — Aceitou quando eu já estava com dezenove anos — John continuou. — Nosso povo tinha um costume, toda vez que se realizava um casamento, o noivo levava a moça até a cabana, onde a desposava, em seguida trazia o lençol manchado de sangue para provar a todos os convidados a honra da noiva. Caso ela não fosse mais virgem, o casamento era desfeito e as consequências eram o apedrejamento. Ana tremia de medo quando a levei para a cabana. Eu já sabia antes que ela me contasse, a moça com quem acabara de me casar não era mais virgem. “Ela estava certa da punição por ter escondido isso, seria apedrejada até a morte. Tentei acalmá-la, dizer para confiar em mim, então ela contou o que aconteceu. Quando estava com quinze anos, a idade em que deveria ter se casado, ela foi violentada por três homens. Eles a desonraram, os três, a machucaram muito. Ana tinha cicatrizes da violência por todo o corpo, sentia muita vergonha. Ela narrou todo horror que passou nas mãos dos monstros, foram horas de abusos da pior espécie. Confessou que preferia ter morrido.” “O pior de tudo é que eu conseguia sentir a dor e o desespero que ela revivia enquanto me contava sua história. Esse detalhe ajudou a alimentar o ódio por eles.” — E o que aconteceu depois que ela explicou isso? — Isabella quis saber. Aos poucos, sentia empatia por Ana.
— Fiz um corte na minha coxa, limpei o sangue no lençol e o levei para os convidados na festa. Jamais a entregaria. Após algumas semanas de buscas, consegui encontrar os três homens que abusaram de Ana; para mim não era difícil encontrar algo, eu sempre tinha noção de onde procurar. Peguei um por um. O primeiro foi durante a noite. Invadi sua cabana enquanto ele dormia, o amarrei e o levei para um local afastado, onde ninguém pudesse ouvir os gritos. Pendurei-o pelos pulsos num galho forte de uma árvore, e a vingança começou. Ateei fogo nos seus pelos pubianos e deixei queimar, até atingir a carne. Ainda posso sentir o fedor que aquilo exalava. Em seguida o espanquei, causando feridas profundas. Não tinha pressa, assim como ele não teve com Ana.” “Enquanto fazia tudo aquilo, eu conseguia sentir as mesmas coisas que ele, a dor e a agonia. Soube, através dos seus pensamentos, que ela não tinha sido a única. Outras mulheres foram vítimas da sua covardia, incluindo uma senhora de idade. Quando seu corpo estava todo retalhado, o observei por um tempo. O homem agonizava de dor, implorava por perdão. Peguei um pedaço de madeira grosso, cheio de farpas e espinhos, e enfiei no seu orifício, até não conseguir mais empurrar. Acho que suas cordas vocais arrebentaram, já que, invés de gritar, ele apenas grunhia. O desgraçado sangrou como um animal abatido. Então eu o castrei enquanto ainda estava vivo. Ele morreu com as pancadas que lancei contra sua cabeça. Fiz isso com os outros. Não me arrependo até hoje. Além de vingar o que fizeram com Ana, poupei a honra de outras mulheres indefesas.” Isabella sentia calafrios ao ouvir a história. Pintara a cena toda em sua mente. Seu estômago se embrulhou. — Imagine o cheiro de sangue misturado a pele queimada — John sussurrou. — Esse odor nunca me deixará em paz, não importa quantos milhares de anos eu dure. — Continue — Isabella pediu. Não achava que John tinha feito algo errado naquela ocasião, ele foi tirano por justa causa. Além disso, salvara a moça desonrada de um futuro cruel, onde sua família seria exposta. — O que aconteceu com Ana? — Ela sabia o que eu tinha feito. Até então não tínhamos segredos. Contávamos tudo um para o outro. Levávamos uma vida simples, mas feliz. Ana era a pessoa que mais me importava no mundo, a amava mais que a mim. Queria ter filhos o mais rápido possível, todo mundo que se casa quer. Ela ficou grávida, então algo mudou. “Ninguém além de mim percebeu. Seu rosto ficou pálido e magro, só que apenas eu via isso, por causa desse dom. Às vezes, quando Ana dormia, eu podia ver moscas e outros insetos saindo de sua boca, como se ela já estivesse apodrecendo. Eu sabia que aquilo só poderia significar uma coisa: Ana morreria em breve, antes de dar à luz. Faria qualquer coisa por ela, o que estivesse ao meu alcance, e o que também não estivesse. Por várias noites, antes de me deitar, eu implorava a Deus por misericórdia, por uma cura para Ana. Mas a misericórdia de Deus é difícil de entender. O que pedimos a Ele vem devagar, e eu tinha muita pressa. Os dias de Ana estavam contados, junto com ela, nosso filho. Então, um dia, de tanto eu pedir de joelhos, uma voz me atendeu. Eu sabia que não era Deus. Um som horripilante como aquele jamais seria providência Divina.”
“Pedi a entidade que falava nos meus pensamentos que aparecesse. Sabia que era um demônio, mas eu estava desesperado demais para escolher de quem receberia ajuda. Certa noite, quando Ana já cuspia sangue, recebia sua visita. Imaginei que se tratava de uma criatura vermelha, com rabo, chifres e olhos amarelos. Não foi bem assim. O demônio veio em forma de uma mulher muito bonita, tentadora. ‘Ela’ gostou do meu dom de sentir e prever coisas. Me propôs um acordo: daria mais dez anos de vida e saúde para minha esposa, quando esse período passasse, ela viria para nos pegar. O preço era apenas minha alma. A de Ana não, só a minha. Minha esposa estaria salva, enquanto eu iria direto para o inferno com o demônio, sem julgamento ou chance de arrepender-me dos meus pecados.” — Você me cortou no dia no nosso casamento, guardou meu sangue. Tem algo a ver com tudo isso? — Isabella quis saber. Ela acreditava em Deus e no demônio. Mas nunca conhecera ninguém que tivesse feito um acordo daqueles, além das histórias de bruxas. — Falaremos sobre isso outra hora. Por favor, preciso seguir o cronograma de fatos. — E o que aconteceu depois? Você aceitou o trato? — Claro. Por mais alguns anos com Ana eu faria qualquer coisa. Vendi minha alma naquela mesma noite. O tempo passou, Ana perdeu nosso filho, mas sarou. De vez em quando, a mulher atraente me visitava, para não me deixar esquecer do trato. Em uma dessas visitas, me mostrou o que aconteceria quando eu fosse para o inferno. Os três homens que abusaram de Ana estariam me esperando. Iam fazer comigo tudo que fiz a eles, só que muito pior. Eu vi claramente os três entre as chamas, emergindo em um rio de lavas. Os três iriam me amarrar e me desmembrar, pedaço por pedaço, intercalando com pancadas. Havia fogo e aquele fedor que não consigo esquecer. Eles queimariam todos os pelos do meu corpo, minha pele... A questão é que não poderiam me matar, pois eu já estaria morto. Aquele sofrimento duraria para sempre. A partir dali, passei o resto dos anos que Ana ficou viva aterrorizado com aquela ideia. Os pesadelos aconteciam todas as noites. Era muito horrível porque jamais teria fim. Iria para o inferno e seria castigado por toda a eternidade. Nunca mais vivi em paz. Desde que Ana não fosse para lá comigo, eu faria qualquer coisa para me livrar disso. Então, quando os dez anos se passaram, ela se foi. Eu não dormia há meses, não descansava. As imagens, o cheiro, o calor e agonia não abandonavam meus pensamentos uma hora sequer. Enlouqueci de tanto medo e pavor. Enquanto falava, os olhos de John serpenteavam pelo chão, apavorados. Isabella podia ver o par de esferas azuis dançando à luz do candeeiro. Os ombros estavam caídos, a coluna curvada para frente. O corpo de John tremia e Isabella estava certa que não era de frio. Seu marido estava aterrorizado. — Gostaria de jamais recordar aqueles dias em que não dormia, com medo dos pesadelos que vinham me aterrorizar sempre que eu adormecia — ele confessou com a voz mais aveludada possível. — Tinha vinte e nove anos quando o demônio voltou na forma de mulher. Me propôs um novo acordo. Era tudo que eu queria. Aceitei imediatamente, sem dar importância às condições. Eu faria tudo para não passar a eternidade daquele jeito. Não tinha sido uma pessoa má até aqueles dias, apenas justo. Também não me arrependo de ter vingado a honra de Ana. A partir do dia em que concordei com o novo pacto, jamais
envelheci, adoeci ou algo parecido. Você pode cortar minha garganta, me dar um tiro, que meu corpo irá se regenerar. Sentirei a dor, claro, mas não morrerei. ― Por isso não teve medo que eu te esfaqueasse no outro dia? ― Exatamente. Só ele pode me matar. Eu venho fugindo da morte desde aquele tempo. — É ele que está atrás de nós? — Isabella tinha milhares de perguntas para fazer, mas aquela foi a que julgou mais importante. Sentia-se mal de ver o marido tão agoniado. — Sim, Bells — John respondeu, virando o rosto para encarar a esposa, os olhos brilhando, aflitos, implorando por uma salvação que ela não poderia dar. O coração de Isabella se contraiu no peito, apertando-se até lhe causar dor. Ela não queria sentir pena de John, mas estava sentindo. — A história não termina aí, não é mesmo? — Não. Quem dera — John desviou os olhos, os braços abraçando o próprio corpo. — A partir daquele dia, só acumulei mais motivos para temer o inferno, centenas deles. Existia uma pergunta primordial martelando nos pensamentos de Isabella, mas ela sabia que, depois que a verbalizasse, a história se estenderia pelo resto da noite. Antes queria saber só mais uma coisa. — Quanto à garota que apareceu em casa... — começou com uma questão mais fácil, antes de fazer a pergunta importante: — Por que diabos se casou com ela? — Tínhamos um plano. A ideia era de Rafael. Eu procurava uma moça inocente para casar-se, acredite, tínhamos mesmo um plano, e muitas razões para fazer isso. Encontrei aquele monte de crianças na miséria. Eu podia sentir de longe a fome que abatia e corroía os pequenos estômagos, o frio e o sofrimento. Resolvemos que dali tiraríamos minha nova esposa. Primeiro, ajudaríamos com dinheiro, já que sempre tivemos muito, deixaríamos a família estruturada para resistir depois que desaparecêssemos. Assim foi feito. Escolhi a mais velha dos irmãos. Meu plano era deixá-la amadurecer alguns anos, mas Rafael não achava seguro esperar tanto. Nossos planos tinham pressa e prazo. Tentei encontrar uma brecha que me desse pelo menos uns três anos. Eu me casaria, a levaria, mas só a desposaria quando ela estivesse pronta. Mas não pude esperar. Não sei como consegui fazer aquilo. De todas as coisas ruins e pecados que já cometi, aquele foi o que mais doeu. Foi pior do que espancar e matar os três que machucaram Ana, pois eles mereciam, mas aquela moça não. Só fiz aquilo porque Rafael me deu todas as garantias de que daria certo para mim. — Você fez com ela exatamente como fez comigo? — Isabella sentiu as bochechas corarem ao recordar as núpcias. — Usou todos aqueles... sabe... o cordão de bolinhas, as algemas, o açoite...?
— Não, Bella! — o tom de voz de John estava carregado de repulsa, ele franziu o cenho. — Isso é outra coisa. Me deitei com a ela do jeito mais simples. O que você e eu fizemos... — ele sacudiu a cabeça. — Eu só faria com alguém como você. Ele ainda não tinha explicado o propósito e as razões de se casar com ela, mas Isabella sabia que estava muito perto de descobrir. — O motivo de você ter feito isso tem a ver com Rafael e o demônio? — Sim. — E não deu certo porque você a matou? — Sim também. Mas ela tentou me matar primeiro. Na época eu me encontrava vulnerável, tinha medo de morrer de verdade, e encontrar todos os monstros esperando para me pegar. Não pensei duas vezes, acabei com a vida dela e os meses de planejamento. Isabella respirou fundo, preparando-se para a questão importante. — Esse novo acordo — enquanto falava, o coração dela vacilava no peito —, o trato que fez com o demônio... você não morre, consequentemente não vai para o inferno. Ele te deu a imortalidade. No primeiro acordo você vendeu a alma, e eram apenas por dez anos. O que ele exigiu de você em troca da imortalidade?
Os segredos nunca acabam
John se moveu lentamente, como se saísse de um estupor. Virou o rosto para encarar a esposa, carregando uma expressão de dor. A fumaça saia pelos seus lábios entreabertos, por onde ele respirava pesadamente. — Você não precisa saber disso — murmurou, os olhos tristes a fitando. — Preciso sim! — Isabella exigiu. Sabia que, de algum jeito, aquilo tinha a ver com ela. — Você já me odeia, Bells, para que intensificar isso? Isabella ponderou aquelas palavras. Saber tudo aquilo fez com que ela sentisse mais ódio de John? Não. Ela sentia algo, mas não era ódio. John havia feito uma coisa muito nobre por Ana, casando-se com ela, depois se vingando daqueles homens, os monstros. Entendia perfeitamente por que ele estava tão apavorado em ir para o inferno. O que ele tinha feito para salvar a vida de Ana era... Isabella nem conseguiria encontrar a palavra certa. Pensou que John jamais faria isso por ela, que, o que ele sentiu por Ana estava morto e enterrado, o mesmo sentimento jamais se repetiria. Ela nunca seria amada daquele modo, a ponto de ele vender sua alma em troca da salvação dela. — Não pense que fiz por vaidade, por medo da solidão — John começou a murmurar, como se soubesse que Isabella estava pensando em Ana. — Não teve muito a ver comigo. — Não pensei dessa forma, John — Isabella sussurrou. Fora dominada por uma
vontade enorme de escorregar para mais perto do marido, até sentir o calor do seu corpo. — Ana viveu um tormento após ser violentada. Nunca tinha sido feliz. — Até você aparecer. Era estranho pensar que John, aquele crápula, tinha sido a salvação de alguém. Mas a verdade, surreal ou não, estava bem ali, estampada no rosto dele. — Depois que nos casamos ela parecia outra pessoa, alguém que se libertou de um fardo muito pesado — John prosseguiu. — Então veio a doença. Não era justo que, logo quando ela estava feliz, sua vida acabasse. Foi por isso que me meti nessa enrascada, por Ana, porque ela merecia alguns anos de uma vida que valesse a pena. Todo mundo merece. Ainda mais ela, que sempre foi o tipo de pessoa que nunca causou mal aos outros. — Você fez muito por ela. Foi a coisa mais nobre que já vi alguém se submeter a fazer por amor. Cedendo à vontade, Isabella deslizou o quadril sobre a pedra onde estavam sentados. O calor que emanava do corpo de John atingiu seu braço direito. Ele pareceu surpreso com a aproximação. — Não sente repulsa de mim? — perguntou, os olhos investigando a esposa. — Não — a voz de Isabella saiu como um silvo. Ela não imaginava que John fosse o tipo de pessoa passional. Isso a surpreendeu, a deixou curiosa. Não considerou muito o que estava prestes a fazer. Na verdade, estava farta de pensar, planejar, raciocinar. Queria deixar o cérebro ocioso por alguns instantes. Desejou que toda a paixão de John fosse por ela. Queria sentir o gosto dos lábios do marido outra vez, por mais absurdo que parecesse. John ainda a encarava quando ela investiu, aproximando-se do seu rosto. Primeiro, seus lábios tocaram a bochecha, roçando sobre a barba. Ele ficou paralisado por alguns instantes. Aquela era a última reação que esperaria de Isabella. Então as bocas se encontraram, e ele a agarrou, puxando-a para si. John faria tudo que ela quisesse naquele momento, desde que ela pedisse carinhosamente. A esposa ainda tentava beijar de lábios fechados. John riu por dentro, ela ainda era inocente. Mas ele mudaria aquilo. A ponta de sua língua deslizou sobre os lábios dela, forçando, os dedos fazendo carinho para que ela relaxasse o maxilar, até que Isabella abriu a boca. As línguas se encontraram. Num piscar de olhos ela estava no colo de John, as pernas abraçando sua cintura, o cobertor os envolvendo. O beijo durou um tempo considerável e, quando Isabella afastou-se repentinamente, John permaneceu de olhos fechados. Ela alcançou sua testa, a beijando, descendo os lábios pelo espaço entre os olhos, até alcançar a boca outra vez. John a apertava bem forte, e seu
corpo quente afastava os tremores causados pelo vento gelado. Os beijos a fizeram relaxar, descansar a mente por poucos minutos. — Seja minha novamente — ele sussurrou o pedido quando as bocas se afastaram alguns centímetros. — Em casa — Isabella respondeu tentando recuperar o fôlego. — Aqui. Agora. — Em casa — ela repetiu. — Está frio demais. — Teresa está no nosso quarto. Você não quer tirá-la de lá para... — Temos a sala, no sofá — Isabella sugeriu. — É onde Rafael dorme. — Maldita casa pequena! Podemos fazer no vão onde tomamos banho. — Teresa ouviria seus gemidos — John argumentou. — Me amordace! — Isabella arqueou uma das sobrancelhas e ele riu. Ela estava sugerindo que o marido usasse os objetos do baú. Ela gostou daquilo, principalmente do cordão de bolinhas. Mas John sabia que poderia satisfazê-la sem ajuda dos acessórios. — Aqui, Bella. Agora! ― sua voz mostrava a urgência que ele sentia em possui-la. Isabella piscou os olhos e os apertou, encarando John com severidade. — Está tentando tirar o foco da conversa, me distrair! — Foi você que me beijou primeiro — John se defendeu. — Só estava sendo carinhosa, tentando ser gentil! Anda! Conte-me. Responda todas as minhas perguntas e serei sua por inteiro. Podemos fazer em cima dessas árvores se quiser, desde que responda tudo. John se lembrou de Isabella fazendo aquele som. A recordação dos seus gemidos o convenceu com facilidade. — Pergunte. — Qual foi o segundo pacto? O que você precisou fazer? — Eu ainda tenho que fazer. A cada dez anos ele vem buscar sua barganha. O demônio exigiu uma alma em troca da minha. A cada dez anos uma nova alma. — Você tem que matar?
— Não. Só entrego a pessoa, ainda com vida. Quando as regras foram impostas, pensei que seria fácil. Eu só precisaria encontrar assassinos e facilitar suas passagens para o inferno. Seria um justiceiro. Até sorri com a ideia. Mas não era bem assim. O demônio tinha condições para essas almas. Elas precisam ser puras. É mais fácil arranjar isso entre criancinhas. — E você faz? — perguntou, chocada. — Você insistiu em saber, Bells. — Você pega crianças e as entrega para um demônio? — É meu sacrifício por não ir para o inferno. Essas crianças não têm inimigos. Não haverá monstros esperando por vingança. Elas ficam no limbo. Isabella, eu faço qualquer coisa para não ir para lá, para não os encontrar. Posso amar você, mas te mataria se esse fosse o único jeito. Ela tinha pedido a verdade, então precisaria aguentá-la. — Você faz algum mal às crianças antes de entregá-las? — Não. Só as condeno. — E como as escolhe? — O demônio disse que eu seria como Deus, decidindo os destinos de pessoas inocentes. Eu escolho quem morre, mas acima de tudo, quem vive. — A cabeça de John estava inclinada para baixo, ele não queria ver a repulsa nos olhos de sua Bella. — Ele não passa de um invejoso que quer ser adorado a todo custo, e só consegue isso se aproveitando das nossas fraquezas. — Então você já condenou quase cento e oitenta crianças — ela fez a conta. — Não, Bella. Dois séculos após o pacto, eu estava vegetando perto de Roma... — Vegetando? — Sim, porque isso não é vida. Convivendo com a culpa, sempre sozinho, sem poder arranjar uma família, já que não envelhecia. Foi quando encontrei Rafael. — O que Rafael é? — Um anjo — John explicou sem rodeios, e de certa forma, ela não ficou surpresa, sentiu como se já soubesse. — Ele tinha cometido um leve delito. Não me pergunte qual, Rafael nunca me contou. De qualquer forma, seu retorno ao céu estava probido. Ele disse que existiam formas de quebrar o pacto sem que eu fosse para o inferno. Rituais. — E você fez? Conseguiu?
— Ainda não. Já tentamos uma porção de coisas, desde então. Mas já consegui prorrogar os dez anos, fazê-los durar quase cem. Achei que tinha vencido, mas o demônio acabou aparecendo. — Mesmo assim, vocês não desistiram — Isabella concluiu. — Como são esses rituais? — Funciona da seguinte maneira: a alma da vítima saldaria meu débito com o demônio, me livrando do pacto até o fim dos tempos. Mas não pode ser qualquer pessoa, há lugares e datas certas para fazer isso. Já tentamos vários rituais diferentes. Rafael faz as pesquisas, e nós dois colocamos em prática. — E você confia nas pesquisas de Rafael? — ela quis saber. Não confiava muito. — Se não confiasse em um anjo, em quem mais confiaria? — Um anjo que não pode entrar no céu — a voz de Isabella soou cheia de ironia. — O céu é um lugar muito seletivo, Bells. Qualquer delito leve e já era. Isabella se perguntou qual crime Rafael teria cometido para ser expulso. Mas sabia que não poderia ser pior que tudo que John fizera. — Aquela garota que apareceu na sala era parte disso? — Sim. Eu a matei antes de realizar o ritual, desperdiçando décadas de procura e preparação. — E o que acontece nesses rituais? Quem são as pessoas certas? — Tentamos sempre formas diferentes. Mas é Rafael quem dita tudo, só obedeço ao que ele manda. — Então, se Rafael diz que você deve se casar com alguém, você faz. — Faço qualquer coisa. — Por que uma garota tão nova? Teve outras? — Isabella perguntou. — Ela foi a única. Ele não me conta o ritual até o dia de fazê-lo, só vai me dando as instruções e eu cumpro. Naquela vez eu precisava salvar uma garota da miséria... por favor, Bells, vamos deixá-la descansando em paz. Já errei em pegar aquela boneca para dar a sua irmã, isso fez seu espírito inquieto despertar. Por favor, não me faça mais lembrar o dia em que a matei. Isabella percebera que John estava entrando no estado de estupor outra vez. — Você se arrependeu de fazer aquilo com ela?
— Arrependimento não apagaria as coisas que fiz, não a traria de volta. — Teve outras Anas em sua vida? Outras mulheres que você amou? — ela tentou uma pergunta mais leve. — Foram duas, além de Ana. Em quase dois milênios me apaixonei três vezes. Isabella se sentiu ofendida, enciumada. O que aquelas mulheres tinham que amoleciam um coração tão duro como o de John? — Me fale sobre elas — sua voz saiu seca, dura. — A segunda mulher tinha mais de vinte anos quando a conheci. Ela era bonita, mas seu pai, pobre e soberbo, queria arranjar um marido rico para a filha. Isso não aconteceu e ela acabou passando da idade de se casar. Paguei o dote que ele exigiu, nos casamos e vivemos alguns anos juntos. Então tive que deixá-la. Ela já andava reclamando que estava parecendo mais velha que eu — John deu de ombros. — Mas antes, além das casas que coloquei em seu nome, deixei-a com dinheiro suficiente para viver confortavelmente por quase um século. Isabella constatou que John era complexo demais, bem como eram seus sentimentos por ele. Tinha condenado um monte de crianças, mas fazia bem a algumas pessoas, apenas pelo fato de fazer, sem ter a ambição de que boas ações o fariam herdar o paraíso — já que as portas do céu estavam trancadas para ele. — E quem é a terceira mulher que você amou? — ela sondou com o coração apertado. — Ela era a mais nova das três, e a mais bonita, teimosa e cheia de razões. Era diferente das mulheres submissas com quem eu estava acostumado a lidar. O dinheiro da sua família ficou escasso, porque seu pai era viciado em jogo. Chegou a ponto de hipotecar a casa para pagar as dívidas. A observei durante um tempo. Ela tinha um pretendente, mas o dinheiro que ele tinha não seria suficiente para saldar as dívidas do seu pai. Pelo jeito que ele andava jogando, a mãe e a irmãzinha mais nova acabariam tendo que lavar roupa para as famílias ricas da cidade para conseguir um pouco de comida na mesa, além de terem que deixar a casa quando o banco a tomasse. — Você pensou na minha irmã e em mamãe quando resolveu se casar comigo? — Isabella perguntou com os olhos marejados. Simplesmente não sabia como processar todas as emoções. Odiava tudo que John fizera com ela, mas seu coração estava amolecendo por ele. Espera, sou uma das três mulheres por quem ele já se apaixonou? Se perguntou perplexa. — Medi as vantagens e desvantagens para você. Acho que nenhum homem da cidade estaria disposto a pagar todas as contas que seu pai adquiriu. — E como tinha certeza que meu pai toparia?
— Eu sabia. Apenas sabia. Assim como sabia todas as cartas que ele tinha em mãos, como tinha certeza que Ana guardava um segredo. Essas coisas só acontecem, sem explicação. É natural para mim. Tinha chegado a hora da pergunta primordial. ― Você tem planos de fazer algum tipo de ritual comigo? John esticou uma das pernas e remexeu a terra úmida com a ponta da bota, o olhar voltado para baixo. Ela estava sentada ao seu lado novamente e o abraçou assim que percebeu a relutância do marido em responder sua pergunta. — Diga — insistiu ela com um sussurro. Ele virou-se para encará-la. Achava que sua esposa era a mulher mais linda que já cruzou seu caminho. Isabella era muito importante para John, todavia, ao longo de tantos séculos, ele desaprendera como demonstrar o que sentia. Sabia que não valia a pena se apegar muito. Em poucos anos, seria obrigado a deixá-la. Por mais que a amasse, que quisesse ficar com ela até o fim dos seus dias, não poderia. John não envelhecia. Perderia Isabella como perdeu as outras. Era questão de tempo. — Não sou eu quem administra essas partes dos rituais — ele murmurou mantendo os olhos distantes da esposa. — Rafael resolve todos os detalhes. Eu executo. — Pretendem me usar? — ela insistiu. — Sim — John respondeu. Isabella pôde vê-lo franzir o cenho. — Mas não sei exatamente o que faremos. A jovem fechou os olhos e pintou um quadro dramático em sua cabeça: estava deitada sobre a lápide de um cemitério, o corpo jazendo, formando uma poça de sangue, enquanto sombras a observavam, esperando o momento de levá-la para as trevas mais profundas. — Já respondi todas as perguntas — John murmurou. —Está na hora de cumprir sua palavra. Isabella sabia o que aquilo significava. O coração disparou. As perguntas não tinham cessado, mas ela precisava pensar com cuidado em tudo aquilo, só depois formular um novo interrogatório. Aquela era a hora de relaxar, e o marido resolveria isso para ela.
Confiar
Pela janela, Isabella pôde constatar que ainda estava escuro. O sol não havia nascido. As brasas na lareira mantinham o quarto iluminado e aquecido. Ela piscou os olhos e bocejou. Havia uma mãozinha descansando em sua bochecha. As maçãs do rosto e as pálpebras possuíam um lindo tom rosado, os cílios grossos e compridos contrastavam com a pele clara. Teresa seria uma jovem muito bonita. Na certa, teria mais sorte que a irmã mais velha quando estivesse na idade de se casar. Respirando fundo, fazendo uma prece, Isabella se aproximou da irmã deitada ao seu lado e beijou sua testa. Ela parecia muito frágil, porém, estava protegida entre o casal. Isabella se moveu para levantar e sentiu dor nos músculos internos das coxas. Riu com a lembrança. John passara dos limites quando ela resolveu ceder, ainda na floresta, no frio. Mas não existia vento suficiente para esfriar o casal. Dirigiu-se ao cômodo de banho e fez a higiene bucal como John lhe ensinou. Voltou a cama e, com muita delicadeza, puxou o corpo de Teresa para o lado em que estava deitada, deixando o meio do colchão livre. Então se enfiou entre o marido e a irmã. Por alguns minutos observou as pálpebras de John. Pensou na infinidade de coisas que ele já tinha vivido, nos seus defeitos, erros irremediáveis, a paixão que estragou sua vida e, acima de tudo, o inferno — seu maior medo. Como ele conseguia dormir à noite? Aproximando-se dele, Isabella beijou sua testa. Sentiu a respiração de John mais pesada. Desceu roçando os lábios até encontrar a boca do marido. Os braços fortes e ágeis rapidamente agarraram sua cintura, apertando-a contra o peito. John correspondeu ao beijo
com voracidade, não recordava que existia uma criança dormindo ali. Ela conseguiu afastar-se por tempo suficiente para lhe dar um sinal de advertência. — Teresa! — Isabella sussurrou. — Podemos levá-la até a sala — John sugeriu com a voz convidativa. — Derrubo Rafael do sofá e a coloco em seu lugar antes que ela acorde. — Outra hora — ela se negou, procurando ganhar espaço. Não gostava de ter certos tipos de desejos enquanto estava perto de Teresa. — Vamos para outro lugar — John insistiu, foi quando ouviram o relincho de cavalos enfurecidos. — O que é isso? — Isabella perguntou assustada, sentindo o coração acelerar demais quando notou o alarme nos olhos do esposo. Ele se levantou com pressa e foi até a janela. O maxilar estava trincado, a boca entreaberta deixando passar a respiração forte e acelerada. Isabella sabia que o medo de John ao ouvir aquele barulho só poderia significar uma coisa: o demônio vindo cobrar a dívida. A mente trabalhou rápido: a única alma inocente ali era a de Teresa. Instintivamente agarrou a irmã, puxando-a para seu peito. A criança permaneceu em sono profundo. John teria que matar Isabella primeiro para conseguir colocar as mãos na menina. Ela jamais permitiria que ele fizesse algum mal a sua irmã, enquanto estivesse viva. Pelo menos, era esse o pensamento que a confortava. Ela observou o semblante de John. Seus olhos vasculharam à procura do intruso, até que se fixaram em algo. Então os ombros relaxaram e ele soltou um longo suspiro. — Rafael está preparando a carruagem. Vamos sair — ele explicou. — Aonde vamos? — Isabella sondou. — “Vamos” é muita gente. Você não vai, Bells. Apesar da fala parecer rude, não tinha soado dessa forma. — Por favor, John. Não nos deixe sozinhas aqui. Nos leve. Tenho medo! Ele ponderou por alguns segundos, enquanto ainda estava de pé, sem camisa, junto ao batente da janela. Não havia pelos no tórax de John. Ele era esguio, mas possuía músculos muito bem definidos. A pele clara, junto com as sombras da madrugada, destacava os gomos em seu abdômen. Por alguns segundos, Isabella perdeu-se com aquela visão. John notou o modo como a esposa o analisava. Pareceu ficar envergonhado. Ela ergueu o olhar lentamente, passando pelo peito dele, pescoço, lábios rosados, até os quatro
olhos azuis se encararem. As bochechas de John ficaram coradas. Isabella sabia que a fase ruim havia acabado. John não se fecharia novamente; pelo menos era o que ela esperava, a julgar pelo modo como ele estava lhe tratando agora. Ambos pensavam a mesma coisa: um dia, ele teria que dizer adeus. Isso os machucaria. E quando ela o deixasse partir, estaria acabado. Temia o quanto seria doloroso. Então ficaria envergonhada por permitir que ele tivesse se tornado alguém tão importante em sua vida. John sabia exatamente como ela estava se sentindo. Era como se Isabella gritasse, mas ninguém podia ouvir. Apenas ele, porque era capaz de sentir o mesmo que ela, descobrir o que estava pensando. — Temos quanto tempo? — a voz de Isabella saiu rouca. — Cinco... talvez dez anos — John respondeu, encarando o chão. — E depois? — Você sabe o que virá depois, Bella. — E se eu quiser mais? — ela quis saber. — Sinto muito — John respondeu. Engoliu em seco e desviou o olhar para a janela. — Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal. (Mateus 6:34). — Está recitando a Bíblia — ela comentou espantada. — Não imaginei que lesse o Livro Sagrado. — Se quer mesmo nos acompanhar — John desconversou —, use o melhor vestido que possuir e arrume o cabelo. John tirou uma muda de roupa do armário e entrou no cômodo de banho. Saiu alguns minutos depois, enquanto Isabella prendia o cabelo numa longa trança. Ele trajava roupas refinadas demais para seus padrões. Deixou o quarto sem dizer uma palavra. Isabella terminou de se arrumar, tratou de aprontar Teresa, e as duas se dirigiram à cozinha onde encontraram um anjo elegante retirando uma fornada de pães do forno a lenha. Ela observou curiosa, enquanto Rafael os colocava em um grande cesto de junco. O anjo percebeu Isabella parada do outro lado do vão. Ele não tinha visto a jovem no dia do casamento, mas imaginou que ela ficara tão deslumbrante quanto agora. O cabelo preso nas longas tranças lhe dava um ar de realeza. Ao notar como Rafael a encarava, ela precisou conter a vontade de revirar os olhos.
Enrugou o cenho ao entender o que ele fazia na cozinha. O cheiro de pão recém tirado do forno enchia o pequeno cômodo. O rapaz estava enchendo cestos de junco com os pães. Vestia roupas elegantes e limpas. — Para quê tantos pães? — Isabella perguntou intrigada, mas foi interrompida por John, que adentrava a cozinha com pressa, carregando um balde de madeira cheio de frutas. — Tome o café da manhã logo — o marido ordenou. — Não temos o dia todo. Ele estava sendo o velho e rabugento John. — Pegue um pão, amor — Rafael disse com um sorriso, estendendo um dos pães para Isabella, ignorando a pressa do amigo. Ela pegou com a cara fechada. Não suportava mais ouvir Rafael a tratando daquela forma. Por que John não se incomodava? Por que ele não pulava no pescoço de Rafael como tinha feito com Stefan? A lembrança do seu antigo amor a fez abaixar os olhos, encarando as mãos. Como estaria Stefan? Tinha se recuperado? Mencionara com alguém o verdadeiro culpado dos seus ferimentos? Ela não tinha como saber. Mesmo de cabeça baixa, notou que o marido a observava, parado, os braços caídos ao lado do corpo, o semblante sério — ela não precisava levantar os olhos para ver que era exatamente assim que John se encontrava. Conhecia o motivo. Ele podia saber o que ela estava pensando. Aquilo era perturbador. — Se apressem — John resmungou antes de se afastar, saindo do casebre. Isabella acomodou a pequena Teresa em uma das cadeiras, e as duas comeram rapidamente. Ela percebeu que Rafael tinha talento para a cozinha; o pão estava delicioso, o café também. Não estava acostumada a ver um homem cozinhar. Pelo menos, seu pai nunca fez isso em casa. Quando estavam alimentadas, Rafael já havia preparado tudo. As guiou para a carruagem, onde o cocheiro já esperava. Elas entraram envoltas em agasalhos grossos. John já estava ali, Rafael entrou em seguida. Seguiram viagem por algumas horas. O cheiro de pães dentro do espaço pequeno era reconfortante. Teresa dormiu a viagem inteira no colo da irmã mais velha, como se nenhum mal pudesse a atingir. Isabella não sentia o mesmo. Estava consciente que, a qualquer momento, alguma coisa muito ruim poderia acontecer. — Bella — John chamou quando pararam. Ela olhou pela janela, mas não conseguiu enxergar muita coisa além do nevoeiro que pairava sobre a estrada. — Estou ouvindo — sussurrou, temendo o que poderia acontecer a seguir.
— Ouça — ele pediu —, a alguns metros daqui há uma casa, lá mora uma família numerosa. Muitas crianças estão passando fome e frio. Foi por isso que viemos. A boca da jovem se abriu em formato de “O”, ela recordou a história da garota fantasma. Primeiro, os dois ajudavam, depois levavam uma criança para executar o ritual, seja ele qual fosse. Uma centelha de alívio tocou seu coração — pelo menos não usariam Teresa. Então ela sentiu vergonha por pensar assim, não podia se conformar diante da situação. Precisava fazer algo. — O que pretende? Vão ajudar a família em troca de uma criança? — perguntou horrorizada e se voltou para Rafael. — O que vai exigir dele desta vez? — Se acalma, amor — o anjo pediu. — Chega de me chamar assim — ela grunhiu por entre os dentes, falando baixo para não acordar a irmã —, não sou seu amor! Rafael franziu o cenho, a atitude repentina de Isabella o fez congelar. — Tem como você me ouvir? — John murmurou. — É importante. — Não vou ajudá-lo a fazer uma barbaridade! — a moça retrucou. — Pode me apertar o quanto quiser. As narinas de John estavam inflamadas. Ele não entendia como a esposa conseguia tirá-lo do sério em questão de segundos. Já estava arrependido de trazê-la. — Confie em mim — ele pediu com a voz aveludada. — Confiar em você? — Isabella sorriu de um jeito mórbido. Os dois pares de olhos azuis se fitaram soltando faíscas. Rudemente, John se aproximou um pouco mais e colocou a boca nos lábios da esposa, a beijando com urgência, uma das mãos segurando seu maxilar. Foi estranho. Não estavam a sós, e casais não deveriam se beijar em público. Quando acabou, John passou a língua pelo lábio inferior e suspirou. — Confie em mim, Bella, por favor — ele repetiu o pedido, dessa vez soando mais gentil. Ela meneou positivamente a cabeça. Ainda arfava com a surpresa do beijo. Adorou que Rafael estivesse presente. — A história é a seguinte: você é uma senhora bondosa, que herdou muito dinheiro dos seus falecidos pais, e vive de fazer caridade. Rafael é seu esposo... — Por que ele tem que ser meu esposo? — ela exigiu saber, voltando a se irritar.
— Rafael tem porte e cara de rico, vocês combinam. Não me pareço com alguém que tem dinheiro o suficiente para fazer caridade. Pareço mais alguém que precisa de esmolas. Entendeu? Ela não pensava isso de John, ainda assim, assentiu. — Eu trabalho para vocês. Teresa é sua irmã. Você só precisa concordar com a história, se mostrar condescendente e pegar algumas das crianças no colo. — Posso fazer isso — ela declarou de queixo erguido. — Eu sei que pode, Bells. — John a beijou na testa. — Lembre-se: Rafael é seu esposo. Se casaram na primavera... — Agora me diga qual sua recompensa — Isabella sondou. — O que vai ganhar com tudo isso? — Você não entende, não é? — Não está sendo claro, senhor Smith, como quer que eu compreenda? — arriscou dizer. Teresa se remexeu no seu colo, começando a acordar. — Bells, nós ganhamos dinheiro. É isso que fazemos com todos os anos livres — John explicou com gentileza. — Ganhamos dos ricos, tiramos dinheiro deles, e ajudamos quem precisa. Sei que tem muita gente pobre no mundo, que o que fazemos não traz muita diferença à balança geral, mas faz diferença individualmente, para quem ajudamos. A jovem não soube o que dizer. Ficou encarando os olhos do marido por um longo momento, até ser interrompida pela voz de Rafael. — Você precisa fazer a sua parte, John — o anjo murmurou. John assentiu com a cabeça, em seguida deixou a carruagem. Isabella acalentou Teresa, que acabava de acordar, e pegou um dos pães no cesto para sua irmã comer. Olhando pela janela, ela conseguiu vislumbrar o esposo caminhar pela estrada, atravessando o nevoeiro. Abrindo a porta da carruagem, foi capaz de enxergar uma pequena casa no alto da colina que John subia. Havia uma menina loira de mais ou menos cinco anos de idade. O marido a pegou no colo e caminhou com ela para dentro da casa. O coração de Isabella se espremeu no peito por medo do que ele poderia fazer com a criança. Por mais que John pedisse para confiar nele, Isabella não estava totalmente segura. Ela sabia que seu esposo faria qualquer coisa para não ser levado ao inferno, tudo que estivesse ao seu alcance. Ele poderia muito bem ter mentido para ela com toda a encenação de homem caridoso. Era difícil crer que John não tinha segundas intenções. Mas acontece que, dessa vez, Isabella estava enganada. Tudo que fizeram naquela casa foi entregar os cestos de pães e frutas, alguns cobertores que estavam na carruagem e
muitos agasalhos para as crianças. Isabella precisou se apresentar como a herdeira de uma família cheia de posses, foi necessário dizer que Rafael era seu esposo. Pelo canto do olho, a jovem pôde perceber o quanto o anjo parecia satisfeito com aquele fingimento, e isso não a agradou em nada. Era como se Rafael se deleitasse com a ideia de ser ele o marido. A jovem senhora Smith estava chegando a algumas conclusões. Duvidava que John parecesse mesmo tão pobre a ponto de não poder ajudar uma família necessitada. Ela averiguou que havia dedo de Rafael naquela história. Imaginou o anjo plantando ideias na cabeça do esposo, dizendo que era muito melhor usar Isabella como sua mulher, que as pessoas acreditariam mais. Isabella sentia cada vez mais apatia por Rafael.
A família Fontana
Quando a tarde caiu, eles voltaram para a cidade a fim de deixar Teresa em casa e fazer uma visita ao casal Fontana. Isabella se sentiu radiante por poder ver a mãe novamente, mesmo que esta não tivesse feito absolutamente nada para impedir que Isabella se casasse com um desconhecido, nem se deu ao trabalho de visitar a filha durante esse tempo. Apesar de toda a mágoa, Gisela era sua mãe, a pessoa que lhe deu a vida. A jovem sabia que não poderia guardar aquele ressentimento por muito tempo. Se sentiu em casa e adorou o cheiro da comida da mãe. Antes de servir o jantar, a senhora Fontana preparou o quarto de Isabella para que o jovem casal dormisse, destinando o quarto de Teresa para hospedar Rafael. Os seis sentaram-se à mesa. Rafael parecia confortável, mesmo que aquela fosse a primeira vez que visitava a família. Foi estranho ver John compartilhar a mesa com seus pais, mas ele não parecia deslocado. Isabella entendeu que John deveria estar habituado a jantar com famílias estranhas, cada vez que praticava suas boas ações. ― Você trabalha com investimentos, não é mesmo? ― Roggero questionou John. ― Exatamente ― o genro respondeu. ― Compramos de pessoas que estão à beira da falência e, posteriormente, vendemos pelo dobro ou triplo do preço. ― Isso é bom. Deve ter acumulado um bom dinheiro até agora ― o senhor Fontana disse com olhos brilhantes. Isabella sentiu-se incomodada com o assunto, mas não era educado atrapalhar a conversa dos homens. ― Tenho minhas economias ― John falou vagamente.
― Poderia me arranjar um pequeno empréstimo? ― o pai perguntou descaradamente. ― Considere como um investimento. Poderei lhe pagar com juros. ― Pai! ― Isabella esqueceu-se dos bons modos. ― Tudo bem, Bells ― John falou com sua voz macia e aveludada, acariciando a mão da esposa. ― Tomei o bem mais precioso de seu pai. Sou parte da família. O mínimo que posso fazer é ajudar nas finanças. As palavras de John chocaram Isabella, de modo que ela ficou sem reação. Sabia que John estava mentindo, que ele não comprava de pessoas falidas e depois vendia mais caro. O marido jogava praticamente todas as noites, sempre envolvendo grandes apostas, e ganhava todas as vezes, porque sempre sabia qual seria a próxima jogada do oponente. Com uma parcela do dinheiro, ele ajudava famílias pobres e cheias de bocas para alimentar. Essa era a parte que fazia Isabella suspirar. Sentia orgulho por ele ter um coração tão generoso. O que tinha acontecido ficara no passado. Apesar disso, não imaginou que ele se mostraria tão prestativo em ajudar Roggero Fontana. ― Eu sabia que tinha encontrado um ótimo partido para minha filha ― disse Roggero orgulhoso. Mal podia se conter de alegria. ― Vamos à casa de jogo. Tudo que eu ganhar em apostas está noite será seu ― John explicou. ― Está com sorte, senhor Fontana?
∞∞∞ Após o jantar, os homens partiram. Gisela não se sentiu à vontade ao ver o marido sair para fazer apostas, mas Isabella disse que o pai estaria seguro na companhia do genro — ela estava consciente que John não deixaria seu pai perder. As mulheres limparam a mesa da cozinha, cuidaram da louça e depois estavam livres para conversar. No entanto, havia uma questão perturbando a mente de Isabella. Por mais que ela quisesse evitar pensar sobre aquilo, não poderia se controlar. Tinha consciência de que não deveria sequer ponderar tal coisa, mas estava tomada por uma vontade muito maior que o pensamento racional, era seu coração que estava a dominando naquele momento. Com a desculpa de ir visitar sua amiga, Elena Barbieri, Isabella deixou a casa da família Fontana, desacompanhada, e partiu para encontrar Stefan.
∞∞∞ O rapaz padecia sozinho em cima de uma cama de solteiro. Pelas gotículas de suor
que brilhavam em sua testa, Isabella notou que uma febre alta o maltratava. Se aproximou dele devagar. O cabelo encaracolado e macio estava úmido. Os olhos acinzentados a encararam, piscando várias vezes, como se não acreditasse que a jovem estivesse mesmo ali. Os dois se encararam por longos minutos. Isabella estava tomada por sentimentos ruins, e saber que aquilo tinha acontecido por sua culpa era desolador; a fazia lembrar o quão perigoso e desumano seu marido poderia ser. Se Stefan nunca tivesse ido na velha casa do jovem casal, para ter notícias de Isabella, jamais teria levado aquela surra de John — quase mortal. Stefan também não entendia como se deixara abater tão fácil, não poderia suspeitar que John tinha algo sobrenatural a seu favor. Tensa com as emoções e os medos que a perseguiam, Isabella estendeu a mão trêmula, vacilando sem saber se aquilo era certo, e tocou rosto de Stefan. O rapaz encolheuse ao sentir o carinho da jovem. Para ele, era como um sonho receber sua visita, já que ninguém mais aparecia. — O que ele fez a você? — Stefan quis saber. — Sinto muito por te causar problemas com seu marido. Nunca me passou pela cabeça que ele fosse uma pessoa tão violenta. Não sei como me desculpar por ter ido até sua casa sem ser convidado, e ter aceitado entrar sem a presença dele. Acontece que eu não seria capaz de continuar sem saber como você estava. E agora que sei, não consigo suportar a ideia de que a senhorita se casou com um monstro, e eu não posso fazer nada para protegê-la, pois estou preso a esta cama. Porém, o meu estado não importa! O que interessa é que daremos um jeito. Me diga, o que ele fez com você depois que me levaram inconsciente? — Ele não me fez nada, acredite não sofri nenhum mal — Isabella mentiu, enquanto recordava o marido a levando até a floresta. Os dois sabiam que ela estava mentindo, seus olhares confirmavam isso, ainda assim, era melhor, para ambos, não tocarem no assunto. A jovem ficou inquieta com o silêncio que se instalou no cômodo, e resolveu que era melhor mudar de assunto. Parecia que não via Stefan há uma década. As poucas semanas com o marido tinham sido longas e intensas. — Por que está tão sozinho? — Isabella sondou curiosa, estranhando que Stefan estivesse largado às traças naquela casa pequena. Era muito fria e suja. Lembrava sua nova morada antes das longas faxinas. O fogo da lareira estava quase se apagando. Ela esfregou as mãos nos braços com força, na tentativa de se aquecer um pouco mais. — Meu pai acha que sou uma vergonha para a família e que é melhor que eu fique aqui isolado. — Enquanto Stefan explicava, seus olhos lhe traiam, demonstrando toda a dor que ele sentia. Estava extremamente envergonhado por ser visto naquela situação. Logo ele,
um jovem do Exército acostumado a lutar, agora se encontrava derrotado, sozinho e ferido numa cama. Sem amor. Sem glórias. — Por que você seria uma vergonha para seu pai? — Isabella perguntou curiosa, se atrevendo a inclinar-se para afagar os cabelos do rapaz. Estava sentada na mesma cama que ele. Se sentia muito responsável pelo que lhe ocorrera para se dar ao luxo de pensar que não seria apropriado sentar-se na cama de um rapaz, muito menos se encontrar sozinha com ele em sua casa. — Sou do Exército, Isabella, e alguém como eu não deveria ter levado uma surra daquelas. Meu pai acha que eu não sou capaz de me defender sozinho. — Você não teria chances contra John. Ele é extremamente agressivo. — Quando me recuperar, vou te levar embora comigo, como deveria ter feito quando você ainda estava noiva. Isabella não estava certa se queria ir embora, ainda mais tendo a consciência que John os encontraria onde quer que se escondessem. Não haveria lugar no mundo onde John não pudesse encontrá-los. — O que foi Isabella, não quer ir embora comigo? — Stefan estava perguntando a jovem quando ouviram batidas na porta da frente.
Duras verdades
Ocoração de Isabella bateu forte no peito. Ainda era cedo da noite, e certamente John estaria na casa de jogo com seu pai, ainda assim, seu peito se apertou. — Deve ser a enfermeira que vem trocar meus curativos — Stefan explicou ao ver o olhar apreensivo de Isabella. — Está na hora. Não se preocupe, ela tem a chave. As batidas continuaram. Será que a enfermeira tinha perdido a chave? — Você está aí, Isabella? — uma voz conhecida quis saber, ainda batendo na porta. — Sou eu, Elena! A jovem apertou os olhos. Seu coração batia forte demais. Como Elena saberia que ela estava ali. Com o medo castigando, ela caminhou até a porta — os passos vacilantes. Tocou a maçaneta, sentindo-a gelada contra seus dedos, e abriu a porta devagar. Lá estava Elena, não sozinha; o que já era de se esperar. Todos os seus medos nadaram rapidamente, subindo, até encontrar a superfície, emergindo da água gelada com voracidade. Pensou em sair pela porta, sem se despedir de Stefan, mas seu plano foi destruído quase que instantaneamente. — Saia da frente — a voz aveludada e letal de John exigiu. Sua mão grande e forte
segurava o cotovelo de Elena. As lágrimas de medo escorriam pelo rosto da amiga. Aquilo só podia significar que John tinha a ameaçado para fazê-la dizer onde estava Stefan. Ele escoltou Elena para dentro da casa. Rafael os seguia. — John, por favor, eu imploro, solte Elena e não a machuque! ― a jovem implorou com cuidado, temendo que alguma tragédia acontecesse à amiga. Mas o marido já estava ao lado da cama de Stefan, os olhos ferozes encarando o moribundo. Largou a moça e se aproximou ainda mais da cama. Isabella conseguiu se colocar entre os dois: agressor e vítima. — Saia! — John ordenou. — Não posso confiar em você por alguns minutos. Pegue sua amiga e vá para a casa de seus pais! Consegue fazer isso? — Vá embora, Isabella — Stefan pediu com a voz torturada. Apesar do pavor, ele tentava se mostrar forte. — É Senhora Smith! — John grunhiu, corrigindo-o. — Vá — repetiu Rafael. Isabella sabia o que eles fariam. Não matariam o rapaz sem antes torturá-lo com covardia. E, outra vez, seria a culpada. — Cale a boca, Rafael! — ela berrou. Elena estava soluçando. Apesar do medo, não deixaria aquela casa sem levar Isabella. — O que pretende fazer, John? — ela exigiu saber, agarrando os ombros do esposo, encarando seus olhos azuis. — Ele nunca mais fará você me desrespeitar — o marido respondeu, mas antes que ele tirasse a jovem à força do seu caminho, Isabella abaixou o tom. — Por favor — pediu aos sussurros —, eu não suportaria saber que meu melhor amigo foi morto pelas mãos do homem que amo. Aquela declaração pegou John desprevenido. A respiração pesada e difícil fazia seu peito inflar. Suas mãos seguravam o corpo esguio da esposa. Ela o amava mesmo ou era apenas um truque, uma façanha para detê-lo? — Acha que vim aqui para te desrespeitar? — ela perguntou tão baixo que ouvidos humanos não poderiam escutar. — O que imagina que estávamos fazendo além de conversar? Pensa mesmo que sou tão devassa a ponto de fornicar com um homem
praticamente inválido? É essa a ideia que tem a respeito de sua esposa? — A questão não é essa — John murmurou, parecia abatido. — Não acho que seja devassa, sei o quanto era inexperiente quando nos casamos. — Então o que é? Por que não posso ver como meu amigo está? Por que Rafael acha que é errado? Por que ele acha que você deve matá-lo? — Não quero que as pessoas comentem que minha esposa tem encontros furtivos com outro homem — John explicou. — Desde quando se importa com as conclusões que os outros tiram? — ela exigiu saber. — Desde quando você me ama, Bella? ― Não é a ocasião nem o lugar certo para falarmos sobre isso — Isabella murmurou. Apesar de toda a melancolia, a escuridão e o ressentimento que os envolvia, ela ficou perplexa com o jeito de John sussurrar, o modo como seus olhos azuis brilhavam com a luz da lareira. Suas bochechas ficaram coradas. Sabia que aquela declaração a faria ficar acordada a noite inteira. John causaria isso. Já podia notar os sinais corporais do marido. E soltariam faíscas a madrugada toda. John sabia ser encantador e persuasivo quando queria. Isabella ficou na ponta dos pés. Sua testa encostou no nariz de John e ela ergueu a cabeça para prender seu olhar. — Me ouça sussurrando — ela pediu quase inaudível. — Por favor, não faça mais nada que vá partir meu coração. Por favor, acredite que não há ninguém além de você. É por você que estou apaixonada, meu marido. Só não parta meu coração ferindo as pessoas que amei antes de conhecê-lo, que ainda amo. Existem muitos tipos de afeição... — Vamos para casa — John respondeu, sua voz era apenas um silvo baixo —, para que você possa me mostrar todos esses tipos de afeição, todas as formas de amor. Ele piscou um dos olhos, os lábios se curvaram para cima discretamente. — Me dê alguns minutos. Espere lá fora. Preciso trocar duas palavras com Stefan. John grunhiu baixinho. — Confie em mim — ela pediu. Sentiu as mãos de John afrouxarem. Ela acabara de descobrir como lidar com ele:
gentil, amorosa, sedutora. O marido e o anjo saíram primeiro. Elena se deteve por alguns instantes. — Com quem você se casou? — perguntou para Isabella ainda assustada, logo os deixando a sós. — Cruel — Stefan resmungou, enquanto a jovem se sentava na cama ao seu lado. — Fica quieto! — Isabella sibilou. — Não aponte os defeitos dele de novo, como se eu já não soubesse que eles existem. Preciso falar sobre algo mais sério! — Mais sério que isso? Do que estar casada com um ogro, frio, desumano, patético e cruel? — Shiii! Ela não teria muito tempo, precisava ser rápida e cuidadosa. Não sabia como funcionava a cabeça de John, como ele conseguia sentir os pensamentos das pessoas, se poderia descobrir o que estavam pensando mesmo lá de fora. Teria que arriscar. — O que sabe sobre demônios? — perguntou em voz baixa e sem rodeios. Os olhos de Stefan procuraram respostas dentro dos seus, mas, quando não encontraram, ele a levou a sério. — Não sou um homem muito religioso, Isabella, ainda assim, acredito na existência do demônio. Sei que Lucifer se rebelou contra Deus, essas coisas, o básico. — Você acha que outros anjos o seguiram? Que existem outros além de ― ela se deteve alguns segundos, relutante em dizer o nome ― ... Lucifer? Stefan enrugou o cenho. Não sabia o porquê de Isabella fazer aquele interrogatório. Entretanto, de algo ele tinha certeza: se ela usara aquele tempo limitado para falar sobre isso, deveria ser extremamente importante. — Como disse, não sou especialista em religiões. Mas conheço alguém que pode lhe ajudar. Alguém que já esteve diante do mal. — Conhece? — Isabella sussurrou desacreditada. — Sim! Você também conhece. Ele pode te ajudar e ainda manterá tudo em sigilo. Sei que precisa de descrição. — Quem? — ela quis saber. A temperatura havia caído drasticamente. Podia notar o vapor saindo de seus lábios a cada palavra sussurrada. — Padre Lorenzo, o principal padre da Catedral. Poucos sabem, mas ele já realizou exorcismos aprovados pelo Vaticano.
— Obrigada, Stefan — murmurou agradecida. — Eu perguntaria o motivo de tudo isso, porém, imagino que seja mais seguro não saber. — Exatamente — ela disse. — Você é inteligente. Voltarei para saber como está. Isabella se inclinou para beijar o rosto de Stefan, em seguida, levantou-se e caminhou para a porta, usando a estratégia de ocupar a mente com o corpo do marido e todas as coisas devassas que ele era capaz de fazer. Se concentrou naquilo ao encontrá-los lá fora. — John — ela pediu baixinho usando aquele olhar que aprendera a fazer —, posso ir à igreja? — Está tarde para rezar — ele respondeu. Ela pensou com todas as forças, imaginando cada detalhe, cada sentimento. John sorriu ao seu lado, o rosto ficando corado. Havia dado certo. — Nunca é tarde para confessar os pecados — Isabella disse. — O que adianta confessar, se você não está arrependida? — John quis saber e ela apertou seu braço, o fazendo parar, enquanto Rafael e Elena se adiantavam. — Vai me fazer pecar de novo? — ela perguntou. — Muitas vezes — ele respondeu. — Então me deixe rezar um pouco, tenho minha fé e minhas crenças. Não quero ir para o inferno por culpa dos seus atos indecorosos e suas posições obscenas. Sei que o que você faz comigo não é normal. — O que esperar de alguém que experimentou de tudo? — John murmurou com a voz macia. — Te acompanho até lá. Ele parecia incrivelmente charmoso e seguro de si. Não exatamente esnobe ou metido. John Smith não era assim. Representava a figura de alguém que havia acabado de descobrir que era amado. Mal podia conter o sorriso e a vontade de estar a sós com sua Bells o mais rápido quanto fosse possível. ― Não precisa ficar me esperando. Leve Elena. Afinal, foi você que a tirou de casa ― disse Isabella. ― Consegue me esperar na igreja sem arranjar encrenca? Isabella não deu a John o gostinho de uma resposta. Ele enfiou a mão no bolso do sobretudo e tirou um saquinho de couro pesado cheio de moedas.
— Dê para o padre — ele disse, o entregando à esposa.
Anjo ou demônio?
Foi preciso buscar o padre na sacristia. Mas, com a quantia que Isabella trazia como ofertório, o homem não viu problemas em atendê-la fora de hora. — Não vim confessar meus pecados — a jovem foi direta ao se ajoelhar no confessionário. — Vim suplicar vossa ajuda. Soube que realiza exorcismos, que possui conhecimento sobre o demônio. — Que mal a assola, minha senhora? — ele perguntou com a voz gentil. — Tenho uma suspeita, padre Lorenzo. Não se trata de um exorcismo, não preciso que expulse o demônio de ninguém. — Vá em frente — ele a incentivou. — Preciso saber se existe apenas um ou se é verdade que ele tem discípulos. — Sim, é verdade. — Padre, é possível que um desses discípulos... sejam anjos caídos, estou certa? — Correta. Todos eles já foram anjos e serviram ao Pai Celestial. — É possível também que algum deles ande pela Terra, usando a face de um homem bonito, contando mentiras e se passando por uma pessoa bondosa? — Minha querida — o padre sussurrou curioso —, me diga como se chama esse
indivíduo do qual você suspeita. — Rafael. — Rafael é o nome de um dos sete arcanjos — padre Lorenzo explicou. — Em hebraico significa Deus cura. Ele é o arcanjo enviado por Deus para ajudar a humanidade com todo tipo de cura. — Então Rafael não caiu? — Isabella sussurrou decepcionada. — Não, querida. Os sete arcanjos são mensageiros de Deus. Nenhum deles se rebelou contra o Criador. Isabella ponderou por alguns instantes. Duvidava que Rafael fosse mesmo um arcanjo, porque um arcanjo jamais dedicaria seus dias a incentivar uma pessoa a fazer o mal. O problema é que ela não precisava descobrir somente sobre Rafael, também teria que desvendar quem era o demônio com o qual John havia feito o pacto, e se teria algum jeito de livrar o marido disso. — Esse indivíduo está mostrando o caminho errado, padre, incentivando alguém a fazer o mal. — O Arcanjo Rafael mostra o caminho correto para humanidade. Como tem tanta certeza que se trata de um ser sobrenatural, invés de um humano malicioso? — Eu sei, padre. Tudo que posso dizer é que tenho certeza disso. Ele não é humano, mas caminha e interage como se fosse um, induzindo alguém a cometer os piores crimes com falsas garantias. — Um anjo caído — o padre murmurou. — Quando Lucifer se rebelou contra Deus, cobiçando ter maior poder, vários anjos o seguiram e o ajudaram na rebelião. Depois se instalaram entre os humanos, já que tinham livre acesso ao inferno e à Terra, e procriaram... — Anjos podem se deitar com humanos? — Isabella perguntou ainda mais assustada, interrompendo o padre. — Segundo as escrituras sagradas, vários deles procriaram com humanos. Essa é a origem dos nefilins. Dizem que o Grande Dilúvio tinha como fim extinguir essa raça, porém, por causa do acesso direto entre o inferno e a Terra, eles se salvaram e continuam aqui. — Sempre pensei que entre anjos não houvesse distinções, que não existia isso de homem ou mulher. Nunca imaginei que pudessem ter filhos. — Eles aprenderam como fazer isso — o padre explicou a surdina, como se revelasse um segredo muito pesado. — Dois anjos caídos foram expulsos do céu por se apaixonar. Assim como os homens, anjos também possuem o livre arbítrio para escolher que caminho seguir.
— Padre, como saber se esse anjo é mesmo um anjo mau, se ele segue Lucifer ou só vaga pela terra? — Querida, já ouviu a frase “Quem não é comigo é contra mim” de Mateus (12:30)? Quem não está com Deus e não segue seus caminhos, está a favor de satanás. — Até mesmo o anjo que caiu por amor? — ela questionou. Estava pensando se Rafael não era um desses... Não! Não poderia se deixar iludir por ele. Que tipo de anjo induziria John a tantas maldades? Rafael não era do bem. Se algum dia tinha sido, isso ficou no passado. — Os anjos que foram expulsos por se apaixonar estavam caindo na tentação da luxúria, um dos sete pecados capitais. Os conhece, não é mesmo? Isabella respondeu que sim. Havia uma pergunta que ela precisava fazer. E valeria tanto para Rafael quanto para o demônio que fez o pacto com John. — Como matar esse anjo caído? — ela quis saber, arriscando tudo. O amigo de John poderia estar ouvindo a conversa de algum lugar. Se essa suposição fosse verdade, ele faria com que John a matasse antes que Isabella pudesse dizer ao marido que Rafael não era de confiança. — Minha jovem, anjos caídos, demônios, como queira chamar, são criaturas imortais. Não há como matar um imortal. — Então ele ficará pela Terra conforme sua vontade? — ela perguntou, sentindo o peito apertado. Não podia ser verdade. — E tudo que dizem sobre exorcismo? — O exorcismo é realizado para afastar o demônio, é preciso muito estudo para fazer isso. É um rito perigoso. E é feito para expulsar o mal de uma pessoa que está em estado de possessão demoníaca. Entende? A esconjuração não mata o inimigo, apenas o afugenta de perto da pessoa possuída. — O senhor poderia fazer um exorcismo? — Eu precisaria de provas para apresentar ao Vaticano. Um feito desse tipo requer autorização e bênção. Isabella soltou o ar pesadamente dos pulmões. Não teria tempo nem meios para recolher evidências de que Rafael estava manipulando John. Ele a mataria antes que ela pudesse voltar à igreja, caso tentasse algo ousado. Ela teria que arranjar outro jeito. — Padre, tem algum conselho para me dar sobre como proceder com esse ser? Não quero piorar as coisas. — Me leve até ele... — Não posso! Ele me mataria se suspeitasse. Terei que dominar o pensamento na
sua presença. — Pode ser um engano — padre Lorenzo sugeriu com o tom de voz amistoso. — Não é! — Tente água benta — o padre sugeriu. — Água benta... — ela sussurrou. Aquilo só levantaria suspeitas. — Não precisa jogar água benta contra o indivíduo. Pode fazer com que ele beba ou toque por acidente. E, outra coisa muito importante: nunca tente agredi-lo com punhais, facas, adagas ou espadas, jamais levante-as para ele. Foram dois demônios que ensinaram a humanidade como fazer e usar espadas. — Entendi — Isabella murmurou ainda mais apavorada. — Mas existem dois demônios que são imunes à água benta. Lembre-se disso. Ela levaria o padre agora mesmo com ela se Rafael não fosse capaz de matá-lo num instante. Tudo estaria arruinado — suas vidas e a chance de salvar John. Tentando disfarçar e camuflar todos os pensamentos sobre a conversa com padre Lorenzo, e com as garantias de que o procuraria em breve, Isabella acompanhou o marido para a casa de seus pais.
Linda mentira
Enquanto caminhavam para a casa de seus pais, Isabella resolveu questioná-lo: — John, há uma pergunta que venho pensando em fazer. — Faça, Bells — John disse com gentileza. Ela sentiu a respiração se acalmar, o marido parecia não ter percebido nada. Apertou com mais força a garrafinha de água benta escondida dentro da capa e murmurou as palavras. — Por que não se importa que Rafael me chame de amor? — Isso te incomoda? — John questionou. — Isso me confunde! — Isabella proclamou exasperada. Os dois pararam de caminhar. — Você espancou Stefan e quase o matou só por me ver ao lado dele. Enquanto isso, seu amigo me chama de amor e você não move um dedo. — Acha que Rafael está interessado em você? — ele perguntou, o que fez com que Isabella perdesse o controle. — Pare de responder meu interrogatório com novas perguntas — ela se queixou. — É tão desagradável! — É só uma palavra. Amor. — John deu de ombros. — Não é relevante.
— Isso não é a maneira adequada de tratar uma mulher casada. — Acha mesmo que, se Rafael estivesse atraído por você, ele já não a teria tomado para si? — Você deixaria? — Isabella perguntou chocada. — Você não entende? — John a questionou atônito, prosseguindo sem esperar a resposta. — Até agora não conseguiu compreender? É a ele que devo os últimos séculos e a forma como vivi. Por isso, se ele quisesse mesmo você, eu não impediria. Os olhos claros de Isabella piscaram algumas vezes. As palavras do marido a feriram. — Me dividiria com ele? — Rafael. Não. Está. Interessado. Em. Você — John pronunciou cada palavra lentamente, com firmeza, na esperança de que a moça pudesse assimilá-las. — Então, pare de se preocupar com o modo como ele a trata. Ele não foi educado para viver na sociedade em que você nasceu. — Você diz que deve muito a ele, mas tenho certeza que teria sobrevivido sem sua “ajuda” — ela disse, fazendo aspas com os dedos. — Rafael me deu uma coisa que eu não tive em muitos séculos — John murmurou com a voz mais calma, porém, tocante. — Ele me deu esperança quando não havia mais nada além da morte. E por todos aqueles que eu impedi de voltar para casa, por cada olhar que me deram antes de serem levados, pelos sorrisos perdidos, e por todos os fantasmas que nunca irão me deixar viver em paz... Se ele cair... eu caio. — Ele já caiu, John — Isabella disse baixinho, comovida com as palavras e com a fé que ele depositava no anjo. — Por que desconfia tanto de Rafael? Ele te ameaçou, disse algo? — Ele fez você se deitar à força com aquela garota — ela sussurrou. Estava frio. — Por mais que seja comum maridos tomarem as noivas contra a vontade na noite de núpcias, Rafael te influenciou. — Por mais que fosse comum, por mais que eu tivesse me casado com ela, o nome dado a isso é estupro. Ele me instigou a fazer, sim, mas fui eu quem fiz. É na minha mente que todos os gritos ecoam na hora de dormir, sou eu que relembro como ela lutou, eu sou a pessoa que agiu e que é perturbada pela lembrança. Se sou o único castigado, a culpa é exclusivamente minha. Eu me deitei com ela. Não preciso jogar a culpa dos meus atos em ninguém. Quero que pare de questionar Rafael. Isabella engoliu em seco. Percebeu que estava sozinha naquela luta. John era devoto de Rafael. O marido era como os homens do Antigo Testamento, que adoravam falsos
deuses, cegos pelas seduções do demônio. Agora ela teria que mascarar os pensamentos, fingir ter deixado para lá. — Desculpa me intrometer de tal modo, por ser tão rude — ela pediu, dissimulando estar envergonhada. — Só queria que você não fizesse mais aquelas coisas. — Só foi uma vez. — As coisas poderiam ser melhores se você não seguisse por esse caminho — ela disse. — As coisas poderão ser melhores se eu encontrar o caminho certo. — Os olhos azuis de John brilhavam com a falsa esperança, aquele brilho raro, o azul como ela nunca conheceu. E por aquele brilho no olhar do marido, ela lutaria. Iria até o fim do mundo, sem se importar em nunca voltar para casa. Por cada sorriso que ele apagou e todos os fantasmas que o perseguiam todas as noites. Por todas as palavras que ela não poderia dizer, por todos os gritos que não seria capaz de silenciar. Nem que fosse a última coisa que ela fizesse, mesmo que no fim ela morresse. Se ele caísse, ela morreria. Mas morreria tentando. Precisava salvá-lo. — Você não vai me deixar daqui a alguns anos — Isabella declarou. — Não me interessa se vou envelhecer. Irei com você até o inferno. John a olhou boquiaberto. Sua bela senhora lhe fazendo promessas quando ele não merecia o pegou desprevenido. — Vamos para casa — ele sussurrou. Quando o casal chegou à residência da família Fontana, Rafael já estava acomodado no quarto da pequena Teresa. Isabella pegou a mão do esposo e o guiou pela escada. Encontraram a porta que dava para seu quarto de solteira. Entraram. As mãos da jovem estavam no colarinho do marido assim que a porta foi trancada. Ela pretendia mostrar porque não valeria a pena se separarem, mas John era mais forte, e ele também tinha algo para mostrar — seu amor. A lareira estava acesa, os lençóis limpos, as roupas sendo tiradas com pressa. Lábios rosados e pele quente. John possuía um jeito distinto de demonstrar amor. Usou uma bola pequena e envolta em fivelas de couro para amordaçar a boca de Isabella. Atou suas mãos e virou-a de costas, a apoiando em uma das colunas do dossel da cama, e prendeu seus pulsos na estrutura superior. Os dedos ásperos e apressados percorreram o corpo da jovem, tocando a pele macia, as formas curvilíneas, as partes mais quentes.
Isabella parecia ser a pessoa dominada, mas era John que se sentia escravizado por ela, pelas vontades e desejos. Subjugado pelo prazer de estar com sua esposa. Mas ele era o mais forte, e não parava, nem quando a madeira do dossel da cama estalou, muito menos quando a estrutura cedeu e se partiu, fazendo com que ambos caíssem sobre o colchão, só para quebrarem também o lastro da cama.
∞∞∞ — Mamãe ficará assustada quando vir essa bagunça — Isabella sussurrou, enquanto deslizava as pontas dos dedos pelo maxilar de John. Seus corpos estavam enroscados em cima do colchão, sobre os estilhaços da madeira que sobrou do que fora uma cama. Suas peles suadas reluziam as chamas tremulantes do fogo na lareira. — Não se preocupe, Bells — John disse após beijar sua testa. — Mandarei fazer uma cama nova com um excelente marceneiro da cidade. Um móvel muito melhor e resistente. — Ela era uma ótima cama. Você é quem foi muito bruto. — Isabella soprou baixinho. — Um móvel fraco — John insistiu. — Sou bruto na nossa casa e a cama nunca quebrou. Foi feita para resistir à pressão. A jovem revirou os olhos para o marido. O casal logo caiu no sono e, muito antes do sol raiar, Isabella já estava de pé. Vestiu-se rapidamente e deixou o marido dormindo em sono profundo. No andar de baixo, se dirigiu à cozinha, onde encontrou sua mãe preparando o desjejum. — Coloque isso na água do café — pediu Isabella aos sussurros, entregando para sua mãe a garrafinha que o padre havia lhe dado. — Faça com que Rafael o beba. — O que é isso? — Gisela Fontana perguntou desconfiada. Apesar de ainda ser madrugada, ela já estava bem vestida, usava seu colar de pérolas combinando com os brincos e o cabelo impecável. — Água benta — Isabella respondeu com a voz mais baixa possível. — Rafael precisa de bênção, mas é teimoso demais para ir à igreja. Pode fazer isso? — Claro. Sempre devemos ajudar as pessoas a encontrar o caminho do Pai — Gisela disse e fez uma pausa, parecia procurar as palavras certas. — Espero que um dia perdoe a mim e a seu pai por esse casamento. — Já perdoei — a filha mentiu. — Estou feliz pelo homem que o destino trouxe para mim. Ele é muito gentil e parece me amar. Não era uma completa mentira. Talvez John tivesse cruzado o caminho de Isabella
por um propósito. Ela poderia encontrar uma forma de salvá-lo. Pelo menos, era nessa esperança que a jovem estava se agarrando.
∞∞∞ — Venha, Rafael! — Isabella o convidou animada, esforçando-se ao máximo para manter os pensamentos disciplinados. Não poderia se dar ao luxo de cometer nenhum escorregão. — Você precisa experimentar o café que minha mãe faz. É tão bom quanto o seu. Gisela estava no andar de cima, logo desceria para compartilhar a mesa com a família completa. A xícara do café coado com água benta já estava servida. Ao lado dela, pães, queijo e maçãs. Isabella não sabia se a água continuaria benta mesmo após ser misturada com café e açúcar, mas era preciso tentar. Era tudo que tinha no momento. — Sente-se — ela acrescentou quando ele permaneceu imóvel próximo à mesa, fitando a xícara. — Está tão sorridente hoje — Rafael observou. — Aposto que teve uma ótima noite. A maneira como ele falou fez o estômago de Isabella embrulhar. Precisou conter a ânsia. Por um breve instante, imaginou Rafael parado ao lado da parede, com a orelha encostada para ouvir os sons que John e ela faziam na cama. — Tive bons sonhos, agora venha e tome café! — Desculpa, amor, mas não faremos o desjejum aqui — o anjo disse encarando Isabella. — John, você e eu precisamos partir agora. Os olhos da jovem se arregalaram, seu sorriso se desfez. Ele sabia? Como? Não foi cuidadosa o suficiente? Se Rafael tinha mesmo descoberto, então aquela recusa significava que ele não se arriscaria a se aproximar da água benta? — Rafael tem razão, Bella. Se despeça da sua família e agradeça por nos hospedarem — John pediu e baixou o tom de voz. — Antes de deixar a cidade, encomendarei e pagarei pela cama nova. Os dois saíram e Isabella ficou parada, a mão agarrada ao encosto de uma das cadeiras. Sentia-se perdida, exposta, vencida. Tinha usado todo o conteúdo da garrafa naquele café. Se fosse tentar de novo, teria que arranjar mais água benta.
Fantasma do passado
Isabella acordou espantada com o frio que fazia dentro do quarto, mesmo a lareira ainda estando acesa. Tinha voltado para casa há alguns dias e nada anormal acontecera, até então. Como Rafael não estava por ali todos os dias, John e ela tiveram muitas oportunidades de demonstrar o quanto estavam apaixonados um pelo outro. Aproveitando a ausência do anjo, o casal tinha passado algumas horas acordados naquela cama e, no momento, John dormia em sono profundo. Inquieta, ela piscou os olhos e viu uma sombra se mover na parede em frente à cama. Projetando a cabeça para frente, ela viu do que se tratava. Sentiu cada pelo do seu corpo se arrepiar. Ficou paralisada. O garotinho devia ter apenas três anos de idade. Olheiras roxas marcavam seus olhos, que eram exatamente da cor dos de John — aquele azul raro. Seu cabelo era cor de trigo, a franja caía sobre suas sobrancelhas bem desenhadas. Vestia uma camisa branca de botões e um macacão preto. Estava todo encharcado, como se acabasse de sair da água. Sua pele era cinzenta e tinha a textura estranha, como se ele tivesse... Tivesse... Isabella arfou, sentindo o ar contaminado com o cheiro apodrecido. Morrido afogado! Ela já tinha visto um cadáver de alguém que morreu dessa forma, portanto, sabia que estava diante de um. Apavorada com a súbita paralisia, ouvia os pingos de água caírem da roupa do garoto para o assoalho. Ele cutucava a pele de John inúmeras vezes, como se tentasse acordá-lo, mas John não se movia. Seus dedos pareciam ultrapassar os limites de espaço.
Apenas um espectro, um fantasma. O barulho dos cavalos agitados no estábulo foi aumentando até tornar-se infernal. Pareciam apavorados, trotando de um lado para o outro. Até o garoto fantasma se assustou e deu as costas para John. Isabella o observou correr pelo quarto e desaparecer atravessando a parede leste. Apenas nesse momento, a jovem conseguiu falar. — John! John! John! — ela chamava sacudindo os ombros do marido. O ruído de passos rápidos e pesados em volta da casa, misturado a correntes sendo arrastadas, quase se sobressaía ao alarde dos cavalos. — O que foi? — perguntou ele ao despertar. — Tem... — Isabella respondeu sem fôlego. — Alguém... alguma coisa... lá fora! Assustado, John tapou a boca da esposa e, colocando-a nos braços, a puxou para fora da cama. Sentaram-se no chão e ele olhou pela janela. — O que está acontecendo? — Isabella perguntou. De certo modo, ela já sabia. — Shiii! — John sussurrou pressionando o polegar nos seus lábios. — Não faça barulho. Batidas ocas eram dadas em todas as janelas e portas da casa. Isabella nunca havia sentido tanto medo assim, nem mesmo quando John a largou na floresta ou quando a noiva fantasma apareceu. Dessa vez, era muito pior. Ela conseguia ver o pavor nos olhos de John. E só uma coisa o deixava tão aterrorizado — o demônio do pacto. Rafael não estava por perto para ajudá-los. Ela nunca desejou tanto que ele aparecesse. As batidas continuavam. Era como se uma multidão corresse em volta da casa, puxando correntes presas a latões de cobre. — Estou com medo — Isabella confessou, sentindo as lágrimas descerem. John a apertou entre seus braços com tanta força que a impediu de respirar. — Estou aqui com você, não estou? — ele disse com a voz aveludada. — Mas está com tanto medo quanto eu. — Confie em mim! — ele pediu, encarando os olhos úmidos da esposa. Outro rangido ainda mais forte ecoou do outro lado da parede de madeira na qual eles estavam apoiados. — Tenho que ir lá fora para resolver isso. Você precisa ficar aqui. Não saia por nada. — Por favor, não me deixe! — ela implorou. Temia nunca mais ver o marido e,
sozinha naquele fim de mundo, só restariam os fantasmas de pessoas assassinadas. — Shiii! — ele pediu outra vez a calando com os dedos sobre seus lábios — Só há um jeito de parar isso. Uma das tábuas do estábulo dos cavalos, que ficava a alguns metros da casa, cedeu ao alvoroço dos animais, se partindo e permitindo que eles fugissem. — Enquanto você dormia, uma criança morta apareceu aqui — Isabella contou rapidamente. — É só um fantasma. Não saia do quarto — John advertiu, em seguida engatinhou até a cama e, debaixo dela, alcançou um rifle antes de sair em silêncio. Ela teria rastejado atrás do marido se suas pernas permitissem tal ato, mas a paralisia só deixou que ela soluçasse. Alguns instantes depois, Isabella ouviu o estrondo de tiros cortando a madrugada, então fez-se silêncio. Sem mais passos, correntes ou relincho de cavalos, nada, só a solidão e o frio. Isabella permaneceu encolhida no chão com tanto medo que mal podia respirar. As lágrimas a cegavam. Sentiu o coração ser rasgado por um punhal com a incerteza de rever o marido, a dor foi intensa. Uma questão passou pela sua cabeça: por que, justamente na noite em que o demônio surgiu, Rafael não estava ali para protegê-los? Por que o tal anjo protetor não apareceu? Onde ele estaria? E se... Ela mordeu o lábio com a grandeza do pensamento que teve: se Rafael nada mais fosse que o próprio demônio disfarçado, acompanhando John aonde quer que fosse, o induzindo a cometer novos pecados, o enganando para depois traí-lo bem ali? Seria possível? É claro que sim! Então, o que seria dela? O assoalho da sala rangeu com o peso de alguém e seu coração parou, suas mãos congelaram, a respiração acelerada formava uma nuvem de fumaça que saía de sua boca. A coisa se aproximou. A jovem estava indefesa e desamparada, a porta do quarto abriu, entretanto, era apenas John voltando para ela. Os dois pares de olhos azuis se encararam. Ela jamais conseguiria explicar o tamanho do alívio que sentiu por vê-lo vivo, mas compreendia que ainda não estavam seguros. Talvez, nunca estivessem. — Acabou — ele anunciou. Isabella saiu da posição em que estava e ficou de pé. Seus braços e mãos ainda tremiam.
— Tem certeza? — a jovem perguntou, estudando o semblante de John. — Sim. — O que exatamente acabou? — ela quis saber. — O jogo — John disse. — A brincadeira de caça e caçador. — E você é a caça? — Isso é apenas um sinal. Espíritos amaldiçoados enviados como lembrete de que o dia está chegando. — Que dia? — Isabella questionou. — O dia de cumprir a minha parte do pacto e entregar a caça ao demônio. — A alma de um inocente — ela murmurou e os esposo confirmou com um aceno de cabeça. — Mas você não quer fazer isso. — Tudo que quero é arranjar um jeito de desfazer o pacto. — Onde Rafael está agora? Por que ele se foi? — ela quis saber, mas suas questões foram ignoradas. — Preciso fazer uma coisa. O que havia lá fora se foi, mas temos que tomar algumas precauções. — Do que está falando? — ela questionou. — Precauções? Essa coisa vai voltar? — Provavelmente. Escute, logo o dia vai amanhecer. Tenho que espalhar sal grosso em volta da casa, enquanto isso, você poderia tentar acalmar os cavalos. — Sal grosso? — ela perguntou estarrecida. — Mantém os maus espíritos longe. Não permite que eles entrem na casa. Agora vista suas roupas. — Maus espíritos? Não estou entendendo nada! — Bells, aquilo que você ouviu lá fora não era humano, mas tem o poder de te machucar. Por isso, preciso tomar uma medida que a deixe segura, pelo menos deles. — Você quer me proteger dos fantasmas? — Não. Dos espíritos inumanos que vagam, daqueles que possuem livre acesso entre o céu e o inferno.
∞∞∞ Enquanto Isabella ajudava John a espalhar o sal grosso em volta da casa, ela contou sobre o fantasma do menino que parecia ter morrido afogado. Após ouvir, o olhar de John ficou perdido, fitando o nada, a face apática. — O menino não era um desses espíritos inumanos, não é mesmo? — a jovem sondou quando notou que as mãos do marido tremiam, mas ele não respondeu. — Quem era ele, John? Quem era aquele garotinho? — Vamos até o estábulo ver o que sobrou — ele murmurou com a voz rude. Isabella pensou em insistir, porém concluiu que poderia deixar aquilo para outra ocasião. O que assustava John a amedrontava também. Quando entraram no estábulo, a fraca luz do sol já clareava o leste do casebre. Os cavalos que restavam ficaram agitados, mas John segurou a mão de Isabella e a guiou até o maior de todos. Uma égua. Tinha os pelos brancos e sua crina era da cor dos primeiros raios de sol no amanhecer. Isabella passou a mão no pescoço da égua e o animal se acalmou um pouco, apesar do alvoroço que os outros faziam. — Tem nome? — Isabella perguntou. — Não. Escolha um. — Ravena — Isabella sussurrou. John retirou a égua do estábulo e a preparou rapidamente para que sua esposa montasse. Logo partiram. Quando a luz do sol já iluminava tudo, chegaram à parte mais alta das montanhas, ao norte da casa. John ajudou sua Bella a descer do cavalo e depois o prendeu no tronco de um pinheiro. Ela se sentou na margem do rio, sobre as pedras escuras e ficou olhando a água correr, tentando arranjar uma explicação sensata para tudo, mais precisamente para o sumiço de Rafael. Não adiantaria interrogar John, ele não falaria sobre isso, muito menos ficaria contra o amigo. — Gosta disso? — John chegou por trás e sussurrou perto do ouvido da esposa. Ela se virou e viu que ele segurava uma caixa de veludo aberta que continha uma gargantilha trabalhada em arcos de ouro branco com um grande pingente de diamante vermelho. A joia era um esplendor e custava mais do que a jovem poderia imaginar. — É linda — Isabella admirou, passando os dedos sobre a pedra.
— Você a quer? — John quis saber com olhos apertados, a investigando. — Claro! — O que você faria para consegui-la? — ele questionou com o tom de voz sugestivo. — O que quer dizer com isso? — Isabella foi acometida por um pressentimento desagradável. — O diamante vermelho é o mais raro e valioso que existe — John explicou. — Poucas pessoas no mundo já tiveram a oportunidade de admirar seu brilho. — Onde conseguiu isso? — Não importa. Sabe, Bells, hoje deve estar fazendo uns quatro graus; e a temperatura da água, abaixo de zero. Essa joia custa mais do que seu pai ganharia numa vida inteira de trabalho... — John falava com a voz macia, quase inocente. — Pularia no rio para ganhar esse colar? — Sim — ela respondeu sem pestanejar. Caso o pai viesse a perder tudo no jogo novamente, a venda daquele colar garantiria o conforto da sua família, principalmente o da pequena Teresa. — Tem que pular nua — John pediu com um olhar tão atraente e intenso que deixou Isabella sem fôlego. — Se eu pular, além de me dar o colar, terá que me contar quem era aquele fantasma que apareceu no quarto. — Tudo bem — John respondeu. — Mas só contarei quando voltarmos para casa. — Jura pela sua vida? — Isabella quis saber. Tinha suas dúvidas. — Juro — ele respondeu com um sorriso brincalhão. — Está sorrindo porque não é você quem vai pular! — Não estou te obrigando, Bells. — O sorriso de John se alargou quando ele tirou a gargantilha de dentro da caixa e a arremessou no rio. — Maldito! — ela murmurou, enquanto esticava os braços por trás das costas para abrir os botões do vestido cor de marfim. O frio cruel congelou sua pele quando as várias camadas de saia caíram aos seus pés. Ainda assim, Isabella se esforçou para não tremer muito e não parecer covarde. John havia se apoiado nos cotovelos para assistir a esposa tirar as roupas, engolindo em seco a cada pedaço revelado do seu corpo. Era sempre ele quem despia Isabella, e gostou de vê-la fazer isso sozinha.
Ela respirou fundo, já arrependida, levantou os braços acima da cabeça, estalou os dedos da mão e pulou no rio na direção em que o esposo havia jogado o colar. Sentiu como se mil facas perfurassem sua pele. Não conseguia pensar em nada a não ser na dor que envolvia seus músculos e ossos. Era como estar envolta em um domo de gelo. Cada parte do seu corpo sentia a dor e a agonia. Uma joia valeria tanto? Com certeza não. Mas os benefícios que a joia traria eram dignos daquela loucura, assim como o resfriado que, certamente, a acometeria. Lutando contra o frio, ela sacudiu os braços quando chegou ao fundo e tateou as mãos no chão pedregoso. Sentiu algo macio tocá-la. Parecia a mão de alguém, mas a água estava escura e Isabella não enxergava quase nada. Viu um vulto branco se agitando perto dela. Aquilo balançando eram fios de cabelo ou algum tipo de vegetação ripária? O oxigênio estava se esvaindo quando ela percebeu que havia algo sendo colocado dentro da sua mão. O coração explodiu em batimentos desenfreados e, apavorada, ela movimentou os membros até atingir a superfície. John estirou a mão e a tirou da água assim que a viu, passando uma manta grande e quente em volta do seu corpo gelado. — Você conseguiu, Bells — ele sussurrou um pouco surpreso. Isabella abriu os olhos e viu o diamante vermelho na palma da mão, o colar de ouro branco enroscado em seus dedos. Sabia que não tinha encontrado a joia sozinha, alguma coisa ou alguém a colocou na sua mão. Uma criatura esteve lá embaixo com ela. Mas o quê? — É sua! — John disse, a puxando para as pedras. Com mãos ágeis, ele tirou suas roupas e se enroscou no corpo da esposa, abrigados pelo cobertor. Rapidamente, Isabella se sentiu aquecida pelo calor que emanava da pele nua do marido. Os tremores diminuíram. Confusa, ela se apertou ainda mais contra John, aproveitando aquele corpo aquecido como se ele fosse um calmante. Estava assustada, mas não queria dizer nada ao marido, não pretendia deixá-lo preocupado. Então, procurou mentalizar outras coisas, como uma ida à loja de penhores, onde ela conseguiria uma fortuna pela joia. — Não vá perdê-la! — John a advertiu, enquanto sentava-se com Isabella em seu colo. — Se eu a perder, você a encontrará para mim. Precisava analisar o que tinha acontecido no fundo do rio, mas não podia fazer isso ali, não se sentia segura para pensar em tais assuntos perto de John. Apoiou a cabeça no peito do marido e ficou feliz quando sentiu as mãos fortes e grandes apalparem seu corpo. Isabella não se atreveria a se afastar daquele corpo quente e musculoso.
Com um sorriso, John colocou a gargantilha no pescoço da jovem. Isabella tocou o grande diamante e ficou deslumbrada com o contraste da jóia sobre sua pele pálida. — Tem mais de onde veio este? — ela sussurrou a pergunta. — Tem muito mais — John respondeu, a encarando com um olhar lascivo. — Só vai depender do que você está disposta a fazer para ganhar. — É disso que eu tenho medo — murmurou Isabella. — Acho que mereço um agrado agora — o marido pronunciou as palavras com a voz aveludada e, quando Isabella não protestou, ele deslizou a palma da mão pela sua coxa. Ela ergueu a cabeça e o beijou devagar, sentindo arrepios que não eram causados pelo frio. John mordeu o lábio inferior da esposa e, em seguida, afastou-se de sua boca para admirá-la. Ela passou a mão trêmula e desajeitada sobre o peito dele, encontrando a palpitação do seu coração. — Por que bate tão forte? — Isabella quis saber. Mesmo que seu próprio coração estivesse quase saindo pela boca, o de John ainda batia mais forte e rápido. — Por você — ele respondeu. — Porque amo você, Bells. Ela sentiu as bochechas corarem e as emoções tomarem conta dos seus sentidos. Sentou-se de frente para John, passando suas pernas em torno do tórax do esposo, o beijou com urgência e, enquanto suas mãos desciam pelo abdômen definido, o cobertor caía expondo os corpos nus do casal. — Eu juro que não vi nada! — Ela ouviu a voz irritante do anjo anunciando sua chegada. Imediatamente, o cobertor estava em volta deles outra vez. Isabella enterrou o rosto na clavícula de John, envergonhada e furiosa. — Juro, eu não vi nada! — Rafael repetiu. — Vou dar um tempo para vocês se recomporem. — Qual é o problema dele? — ela grunhiu a pergunta para John. — Vamos nos vestir — John respondeu sem dar muita atenção à fúria da esposa. — Terminaremos isso mais tarde. Ela estava tão enraivecida por Rafael atrapalhar aquele momento, que não virou para olhá-lo. Estava morta de vergonha por ser flagrada nua. Sabia que ele tinha feito de propósito. — Você precisa se vestir, Bella — John a lembrou.
De cara fechada, Isabella obedeceu, enquanto o marido fazia o mesmo.
Marcada
— Estou voltando! — o anjo avisou. — Pode vir. Agora está tudo bem — John gritou para o amigo. O rapaz se aproximou trazendo um cavalo negro, o puxando pela rédea, e o prendeu próximo a Ravena. Isabella não pôde deixar de notar como as formas do corpo do anjo apareciam através da camisa quando ele se movimentava para se certificar de que seu cavalo estava bem preso. Rafael era bonito. Talvez fosse o homem mais bonito que Isabella já viu. Mais bonito que John, isso ela não conseguiria negar. Mas nem toda beleza a fazia esquecer as desconfianças. — Trouxe o que eu pedi? — John perguntou com o tom áspero. Seu humor parecia ter mudado de repente. — Sim — o amigo respondeu —, está preso na cela. — Vou buscar. — Enfim, te vi nua, amor — Rafael sussurrou com um sorriso, que Isabella julgou muito malicioso, quando o esposo se afastou para ir até o cavalo negro. Aquele comentário foi o cúmulo e ela pensou em revidar, mas percebeu o sorriso do anjo se tornar ainda mais sombrio quando John voltou trazendo um objeto de ferro, comprido, com as letras JS desenhadas em uma das extremidades com uma fonte elegante.
Cada letra tinha cerca de dez centímetros de comprimento. — John Smith — Rafael murmurou. — São suas iniciais, como pediu. Isabella sabia que aquilo tratava-se de um ferrete usado para marcar animais ou escravos, e imaginou que John marcaria Ravena. Ela não queria ver a cena; já estava se afeiçoando à égua e não pretendia testemunhar o animal sofrer. Pensou em dizer a John que não precisava daquilo, mas acabou se omitindo. Sentou-se sobre uma pedra, se aquecendo no cobertor, e ficou observando, enquanto John preparava uma fogueira e Rafael apoiava uma vara de pescar entre os pedregulhos à margem do rio, de um jeito que ele não precisasse ficar vigiando até fisgar um peixe. Quando a fogueira ficou pronta, John colocou o ferrete próximo a ela, com as iniciais JS dentro das chamas. Isabella ficou assistindo as letras se aquecerem e ficarem alaranjadas, mas logo aquilo a enojou. — Beba um pouco. — John ofereceu um cálice a ela, cheio do vinho que o anjo trouxera. — Não, obrigada — Isabella recusou. — Eu bebo. Já que ela não quer... — Rafael pegou o cálice das mãos do amigo e bebeu tudo de uma só vez. Deu de ombros quando esvaziou o copo. — Vou precisar. Isabella ficou curiosa a respeito do efeito que o álcool faria ao anjo, ia se atrever a perguntar, mas foi interrompida. Sem avisos, John se inclinou por trás das costas da esposa, fazendo com que ela pensasse que ele a abraçaria. Ficou assustada quando a lâmina gelada roçou na sua pele. Com o canivete, John rasgou o vestido da jovem na altura do ombro direito, expondo parte de suas costas. Isabella sentiu um frio avassalador tomar conta do seu corpo, junto com a lembrança do marido agressivo dos primeiros dias. — Por que fez isso? — perguntou, levantando-se imediatamente. John não respondeu, estava olhando para a fogueira, onde suas iniciais ardiam dentro das chamas. Logo tudo se encaixou na mente da moça: a bebida que ele a ofereceu, a pele exposta, o ferrete sendo preparado no fogo e os braços de Rafael se fechando contra ela. Aquilo não era para marcar a égua, era para marcar ela: Isabella Smith! O medo investiu com violência em sua espinha dorsal. — O que vai fazer? — a jovem perguntou desesperada, já sabendo da resposta. Seu coração parou de bater quando John virou-se para ir até a fogueira. Ela se debateu e
implorou, entre os braços de Rafael, como um escravo imploraria, sem se importar com dignidade — Por favor, John, não faça isso! Por favor, John. Por favor! Eu faço qualquer coisa! O anjo a empurrou para o chão, prendendo-a e, apenas com uma das mãos, imobilizou seus braços que se debatiam no desespero. John se dirigiu até a fogueira e pegou o ferrete. As letras JS estavam totalmente alaranjadas e brilhantes. — Amor, ele te mandou beber! — Rafael sussurrou com mais malícia que nunca. — Teria ajudado. — John, você perdeu o juízo? — ela questionou entre soluços, tentando esquivar-se dos braços do rapaz, mas ele era forte demais para que ela conseguisse escapar. O desespero invadiu sua mente quando John disse: — Gostaria de dizer que não vai doer, mas estaria mentindo. Ele apoiou o ferrete de volta na fogueira e foi até onde estavam os cavalos. Isabella aproveitou para implorar a Rafael. — Me ajuda — ela sussurrou, enquanto as lágrimas escorriam, fazendo cócegas em suas bochechas, sem que ela pudesse apará-las. O rapaz apenas negou com a cabeça. Parecia se divertir com o desespero da jovem. Mas suplicar era tudo que ela tinha a fazer. — Por favor, me ajuda. Por favor, Rafael! Eu faço qualquer coisa! — Amor, eu não posso — o anjo respondeu. Então ela entendeu que aquele era mais um dos planos de Rafael. Ele tinha trazido o ferrete, mas era John que iria executar. John estava de volta com o objeto de tortura em mãos. Ele derramou um líquido transparente nas costas da jovem, fazendo com que ela gritasse de pavor. — Vá em frente, Johnny — Rafael incentivou. — A segure bem firme, não permita que ela se mova — o homem exigiu. Isabella trincou os dentes quando o ferrete sumiu de vista. A torrente de lágrimas escorria pelo pescoço. As mãos de Rafael eram fortes e a machucavam, mas nada pôde ser comparado a dor que sentiu quando o ferro em brasa encostou na pele das suas costas.
∞∞∞ O frio era intenso. Isabella sentia que aquilo iria infeccionar gravemente. A ferida não parava de doer um só segundo e a febre começava a abatê-la.
― A dor logo vai passar. ― O sussurro de Rafael chegou até ela, enquanto ele preparava uma tenda para que a jovem pudesse dormir. Ela queria ordenar para que ele calasse a boca, mas aceitou de bom grado o cobertor que o anjo envolveu em seu corpo trêmulo. Se sentia traída, profundamente magoada. O homem que ela pensou amá-la a ferrou como se ferra um animal. Estava embolada no cobertor perto da fogueira, tentando proteger-se do frio, porém era difícil, ainda mais quando metade das suas costas estava descoberta. Ela não aguentaria encostar nada naquele ferimento. A febre parecia aumentar a cada minuto. Isabella desejava mais que tudo estar no casebre, perto da lareira, mas não aguentaria a viagem de volta para casa, as dores eram muitas. Uma espessa camada de nuvens cobria o céu de norte a sul. A noite estava chegando, precisariam pernoitar por ali. A tenda seria o único abrigo. Pensou em como era tola, como foi seduzida tão facilmente.
∞∞∞ ― Sinto pena dela. Isabella ouviu o murmúrio de Rafael a alguns metros dali. Provavelmente, ele estaria pescando nas pedras que margeavam o rio. Já era noite e eles pensavam que Isabella dormia quando, na verdade, ela estava apenas de olhos fechados. A dor era intensa demais para que a jovem dormisse. ― Foi você quem me disse para fazer, Rafael ― John grunhiu. ― E você não hesitou, Johnny, nem por um minuto. A voz do anjo ecoou na noite gélida. Fez-se silêncio por um longo e desconfortável tempo, até que John voltou a falar. ― Sou um canalha. O que posso fazer? ― O que você poderia fazer era tratá-la melhor. Você a fez se sentir como se fosse um animal. John não disse nada. Apertou os lábios e fechou a cara. ― Se ela morrer, a culpa será sua ― a voz do anjo chegou aos ouvidos de John como um soco. Como o rapaz ousava falar daquela maneira quando tinha sido ele a dar todas as instruções, a enfiar na cabeça de John que o plano daria certo? Era como se ele quisesse fazer o amigo se sentir culpado.
A mente de John dava voltas. Queria consolar sua Bells, mas a presença dele só a deixaria pior. ― Acho que eu seria muito melhor que você ― Rafael resmungou. ― Tenho certeza que seria um marido muito melhor. Isabella ouviu aquilo. Sob a exaustão da febre, seus sentidos ficaram em alerta. Não sabia se estava acordada ou era apenas o sonho de uma mente exausta. ― É isso que você pensa? ― John questionou o amigo. ― É isso que quer? Quer a minha mulher? ― Talvez ela também me queira... Um segundo após dizer isso, Rafael estava sendo arremessado para junto do pinheiro onde os cavalos estavam presos. Os animais ficaram assustados e relincharam. O barulho de galhos se partindo encheu os ouvidos de Isabella dentro da tenda. Esquecendo por um segundo a dor que sentia, ela se arrastou para fora da tenda até poder vê-los. Ela não sabia se era a febre a fazendo delirar, mas Rafael não parecia ter muita vantagem sob os socos de John. Isabella engatinhou para mais perto, notando que o maxilar de Rafael estava fora do lugar, seu corpo parecia sem vida. Um aperto tomou conta do seu peito; ela sabia. Era apenas um truque. Quando o anjo revidou, com um único e certeiro golpe, fez o corpo de John Smith voar vários centímetros para cima. Subindo... Subindo. Voando. Pairando. Caindo. Num gesto rápido, Rafael pegou um dos troncos na fogueira ainda acesa e o colocou sobre as pedras, com a parte incendiada apontando para cima, bem onde o corpo de John veio a cair, tendo o peito dilacerado pela madeira em chamas. O sangue de John escorreu devagar pelas pedras.
Sem arrependimentos
Chovia lá fora. Isabella estava febril e sentia que aquela infecção ainda poderia piorar gravemente. A dor não abrandava um só segundo, aliás, o corpo inteiro estava dolorido por causa da febre. Sua cama fora arrastada para perto da lareira. Ela não tinha certeza se os últimos fatos ocorridos na noite da marcação eram reais ou apenas um pesadelo. Estava se agarrando a segunda opção. A ideia de Rafael assumindo que seria um bom marido para ela a deixava apavorada. — É difícil de acreditar, mas ele não fez por mal — o anjo sussurrava no seu ouvido. Estavam a sós no quarto. Isabella permanecia petrificada encarando o nada, enquanto ele lhe soprava palavras de consolo. — Acho que essa coisa foi longe demais — o rapaz comentou com um tom pesaroso assim que John entrou trazendo uma caneca de chá quente. — Se a marcação fizer com ela o que você disse que faria, terá valido a pena. Mas precisamos testá-la para saber se funciona. — De que jeito? — Rafael perguntou.
— Do jeito tradicional. E se não der certo, a culpa será sua! Agora me deixe a sós com ela. Rafael levantou-se da cama e deixou o quarto. John colocou a caneca de chá entre as mãos de Isabella e deixou as pontas dos dedos escorregarem pelo braço da esposa. — Beba — ele pediu com um sussurro, em seguida, ergueu os braços dela para que a caneca alcançasse seus lábios. — Ajudará a desinflamar. Como a jovem se recusou a abrir os lábios rachados da febre, John apertou seu maxilar fazendo com que a bebida entrasse na sua boca. Mas ela cuspiu tudo dentro da xícara. O homem respirou fundo. — Fale comigo, Bells — ele implorou, após colocar a xícara no chão ao lado da cama. — Já fazem três dias que você não fala comigo. Eu juro que aquilo teve um propósito. Rafael disse... Isabella bufou ao ouvir aquelas palavras e virou o rosto na direção oposta ao marido. Ele deu um sorriso torto e beijou o pescoço da esposa com delicadeza, satisfeito por ela esboçar alguma reação. — Rafael disse que isso te deixaria protegida. Ele mandou forjar o ferrete com minhas iniciais e fez um ritual, assim você estaria segura... — E você acredita em tudo que ele diz — Isabella o interrompeu, virando o rosto para encará-lo com ódio no olhar. — Eu te odeio! Odeio os dois. Ele ficou feliz ao ouvir aquela voz doce novamente, mesmo que ela estivesse irritada. — Mas se ele estiver certo, se a marcação exercer o poder que Rafael disse que exerceria, você poderá me acompanhar a qualquer lugar. — Não quero ir a lugar nenhum com você, monstro! — a bela moça rosnou. — Beba o chá, pelo menos, vai ajudar a se curar — John pediu, se agachando para pegar a xícara no chão. — Prometo pela minha alma, que um dia vai queimar no inferno, que eu nunca mais vou te machucar. — Já machucou demais — ela retrucou após um longo e desconfiado gole de chá. — Eu tive um motivo. — Que diabos você está falando? Explique logo! Me proteger de quê, se a única coisa que me machuca é você? — Lembra do barulho em volta da casa? Lembra que eu fui lá fora e os espantei? —
John perguntou e ela fez que sim com a cabeça. — Eram espíritos furiosos que queriam vingança. Lá fora a chuva tinha cessado, mas o vidro da janela ainda estava repleto de pingos, dificultando a visão. Sobre o batente da janela, havia um vasinho de porcelana holandesa contendo uma única papoula branca, que Rafael havia dado a Isabella depois que voltaram da expedição em que ela foi marcada. Por trás da papoula, através do borrão que eram as gotículas de água na janela, uma mulher vestida de preto se aproximava da casa. Era morena, cabelos encaracolados e longos, tinha covinhas, pele clara e o olhar negro como o de Rafael. Todos os seus traços eram marcantes. Se Isabella fosse até a janela, iria sentir inveja da beleza única da mulher. A desconhecida observava a casa velha e pequena, quase caindo aos pedaços. Caso John saísse de perto da esposa, caminhasse alguns passos e esfregasse a mão no vidro embaçado na janela, notaria que aquela mulher lá fora tinha exatamente o mesmo rosto de séculos atrás, como se os anos não fizessem diferença para ela — mas o homem já sabia disso. Tinha recebido aquela visita durante aproximadamente 1800 anos. E agora ela estava ali novamente, com os olhos inflamados, desejando colocar as mãos macias em Isabella Smith. Desconhecendo totalmente sua observadora, a jovem continuava sendo malcriada com o marido. — Explique com clareza! O que são esses espíritos que vagam? Por que ser cruel comigo me protegeria deles? — São algumas das almas que eu mandei para o inferno — John sussurrou após um longo suspiro. — Eles sobem vez ou outra para se vingar de mim, vingar a dor que causei quando os tomei de suas famílias. Esses espíritos não podem me machucar, já que, enquanto eu cumprir com minha parte no trato, serei imortal, então eles tentam ferir a coisa mais preciosa que tenho, que no momento é você. São capazes até de matá-la. Rafael encontrou um jeito de te proteger. O ferro que te marcou foi fundido com meu sangue e o seu, que recolhi no dia em que nos casamos. Um ritual pagão, claro, mas pode ser que resolva, que eles não possam te machucar também. Isabella ficou quieta o encarando, procurando alguma coisa para dizer, mas nada lhe veio à mente. — Se isso der certo... — Vendeu minha alma? — ela conseguiu perguntar com escárnio. — Não! Claro que não! Sua alma vai descansar no céu quando você partir. — Por que não me contou qual era o objetivo disso tudo? — Isabella quis saber ainda com o tom revoltado. — Não tive coragem. Você me deixou nervoso.
— Covarde, isso que você é — ela murmurou. — E se Rafael estiver mentindo? — Por que ele mentiria? — John questionou. A jovem revirou os olhos. O marido ainda estava cego. Um arrepio a assaltou quando ela, repentinamente, recordou o fantasma do menino que apareceu no quarto, assim como os cabelos que ela pensou ter visto no fundo do rio. ― Tenho uma pergunta a fazer e quero que seja absolutamente sincero comigo ― ela falou com autoridade. ― Bells... ― John, você me marcou como se eu fosse um animal do seu curral, como se eu fosse uma propriedade pela qual você não sente nenhum afeto. Finalmente, as palavras saíram como um turbilhão, se libertando do seu peito. ― Bells ― John tentou acalmá-la, mas foi interrompido outra vez. ― Eu te dei meu amor e você... ― um soluço a impediu de prosseguir. Isabella precisou respirar profundamente antes de continuar, proibindo que o sentimento de estupidez a abatesse novamente. ― Então exijo que responda uma pergunta com toda a sinceridade do mundo. Ele também respirou fundo, soltando o ar devagar. Já sabia o que Bells perguntaria. Isso faria um passado muito bem enterrado voltar à tona. Emoções que ele não precisava mais sentir. ― Diga. ― Você já sabe, não é? ― ela adivinhou. ― Pergunte. ― O menino que esteve aqui no quarto antes de tudo acontecer... ― a jovem começou sem saber direito como continuar. ― Tenho certeza que o vi no fundo do rio quando pulei para pegar a maldita gargantilha. Ele me ajudou a encontrar a jóia, caso contrário, eu não teria conseguido. Sei que o garoto é um dos fantasmas do seu passado. Alguém que voltou para te atormentar. Por favor, John, responda a verdade. Quem é ele? ― Meu filho ― John revelou sem rodeios, fazendo o coração de Isabella bater forte. ― Fruto do meu casamento com uma das mulheres que precisei abandonar. Não tive culpa; não diretamente. Ela achava que o garoto se parecia muito comigo. Não aguentou olhar para ele depois que eu parti. Tomada pelo desespero de ser abandonada, ela afogou o próprio filho. Nosso filho. ― Você o amava.
― É claro que sim, Bells. O silêncio perdurou no quarto novamente, enquanto John fitava o nada. Isabella não queria conversar sobre os sentimentos do marido por aquela mulher, não queria pensar nele tendo um filho de outra. Por isso, engoliu todas as informações, dizendo para si que aquilo era passado, e falou como se o diálogo anterior não tivesse existido. — Tudo bem! Como vamos descobrir se essa estupidez funciona de verdade? — Precisamos atrair um dos espíritos até você... — Nesse momento, John pareceu mudar completamente de humor. Seu olhar ficou sério e os ombros caíram. — Eu não quero perdê-la. Não posso ficar a eternidade ao seu lado, e faço o que for preciso para te manter a salvo, pelo menos, deles... — Ainda te odeio — ela resmungou. — Logo vai cicatrizar — ele se inclinou para perto fazendo seus lábios roçarem no lóbulo da orelha da esposa —, e será apenas uma marca. — Pare, John! — ela esbravejou, notando as intenções do marido. Levantou-se da cama e se dirigiu à janela. Sabia que a chuva havia cessado, então esfregou a mão no vidro e se deteve com a figura lá fora. Sua voz soou trêmula. — Quem é aquela? Tem uma mulher lá fora! Notando o alarme na voz de Isabella, John deixou a cama e rapidamente alcançou a janela. Suas mãos tremiam e seu coração não batia mais. — Demônio — John murmurou por entre os dentes. Seu maxilar trincou com tanta força que Isabella temeu que seus dentes se quebrassem. Um segundo depois, ele agarrou Isabella pela cintura e a tirou da janela, com toda brutalidade já conhecida. — É ela? — Isabella quis saber, mas já sabia a resposta. Deixou que o marido a carregasse para longe. Tudo nela doía, como se um animal voraz devorasse sua carne. Percebeu o sangue escorrendo do nariz do marido e se encolheu de pavor. — É melhor começar a confiar em Rafael — John disse colocando-a no chão e andando pelo quarto, calçando as botas pretas e o casaco. Beijou a testa da esposa e se foi, a deixando sozinha no quarto.
Fuga
Oanjo entrou no quarto e a flagrou sentada na cama, os olhos fitando o nada, em choque. Ele se aproximou de seu ouvido e sussurrou tão baixo que até ela teve dificuldades para ouvir. — Amor, precisamos sair daqui agora! — Para onde? — a jovem perguntou sem se dar ao luxo de incomodar-se com a proximidade entre os dois. — Não importa. — E John? — Ele sabe se cuidar. Então Rafael passou o braço esquerdo por baixo das coxas dela, mal cobertas pela camisola de algodão cor de lavanda, e pressionou o braço esquerdo em suas costas marmóreas e machucadas pela queimadura da marca JS, a puxando para seu peito. Por mais que tentasse ser cuidadoso, Isabella gemeu de dor quando o anjo a levantou da cama, presa em seus braços. Ainda que os pés de Rafael tocassem o chão, o assoalho antigo não fazia barulho algum. Na verdade, era como se ele nem respirasse para não emitir qualquer ruído. Chegando à sala do casebre, Rafael a colocou no chão. — O...? — Isabella começou a perguntar, mas o anjo apertou o dedo indicador
contra seus lábios, impedindo-a de prosseguir. Ele a encarou até a jovem entender que deveria ser silenciosa como um túmulo, só então ergueu o tapete da sala — tão velho que Isabella já tinha calculado que datava da época em que Cristo andou pela terra. Considerou a ideia de gritar pelo marido, mas, pela primeira vez, sentia que deveria dar um voto de confiança ao anjo. Se o demônio a encontrasse, poderia querer levá-la. Pensou por que Deus permitia tal aberração, o próprio demônio na terra? Como deixava que seus anjos vagassem daquela forma, induzindo homens de mente fraca a praticarem maldades? Não importavam as respostas. Rafael era tudo que ela tinha no momento. Após a nuvem de poeira do carpete se aquietar, o rapaz bonito abriu uma espécie de alçapão no piso, exibindo uma escuridão sufocante. Ele segurou sua mão e a induziu a descer uma escada. Quando pôs o segundo pé nos degraus, Isabella conseguiu ouvir o trotar de cavalos, logo, o relincho suplicante de sua égua Ravena. Isabella começou a vacilar nos degraus, pensando em voltar e socorrer o animal, em vez de ser covarde e se esconder, mas algo a jogou em cima de Rafael, fazendo com que eles caíssem sobre a terra úmida do chão de um túnel. Uma explosão. As janelas de vidro transformaram-se em uma chuva de pequenos fragmentos caindo sobre o assoalho. O fogo atingiu rapidamente a sala e sua luz entrou pelo alçapão. Por sorte, o corpo de Rafael amorteceu a queda, e ela não se machucou ainda mais, apesar de sua camisola ficar toda suja da lama do chão de terra. Graças à luz do fogo, Isabella pode ver que o túnel se estendia vinte metros à frente, desaparecendo numa curva escura. As paredes eram feitas de uma mistura de barro seco e rochas negras, o teto tinha a forma de semicírculo. O lugar fedia a bolor, era frio, úmido e claustrofóbico. O anjo a colocou de pé. A explosão a deixara surda e tonta. Ele resmungou algo, mas o zumbido nos ouvidos a impediu de entender. — John... — ela sussurrou, enquanto apertava as mãos em concha contra as orelhas, tentando retomar a audição e fracassando. — Ele... — Fique. Aqui! — Rafael pronunciou as palavras lentamente, assim ela pôde ler seus lábios. Ele subiu as escadas de madeira velha, dois degraus de cada vez, e chegando à sala desviou das chamas que lambiam o cômodo. Isabella pressionou as pontas dos dedos indicadores nos ouvidos e seu canal auditivo doeu, porém, obteve sucesso dessa vez e conseguiu ouvir o barulho do fogo destruindo a casa.
O fogo do inferno, pensou. O que o demônio tinha feito com John? Sua cabeça dava giros. — John! — murmurou sozinha e apavorada, planejando subir as escadas para descobrir o que acontecera com o esposo. Por sorte, o rapaz voltou antes que ela pudesse cometer qualquer imprudência. — Consegui pegar o diamante vermelho que ele te deu. — E John? — ela perguntou com os olhos cheios de lágrimas. — Acredite em mim quando digo que John sabe se cuidar sozinho. Nossa prioridade é mantê-la a salvo — Rafael falou com firmeza. Seu objetivo era levar a jovem esposa do amigo para o mais longe possível, sem deixar que ela sofresse qualquer dano. Precisava fazer isso rápido. A passagem secreta embaixo da casa já não era mais tão secreta e o fogo logo invadiria o túnel. Não havia tempo para mais perguntas. O túnel já não estava mais tão frio. As chamas alaranjadas começavam a lamber os primeiros degraus da escada. Suas pernas estavam bambas e o nervosismo era maior do que na noite das suas núpcias. O medo era tão surreal que ela não conseguia organizar os pensamentos. Mesmo com toda a tormenta, Isabella olhou uma última vez pelo alçapão despedindo-se do seu lar, vendo-o ser consumido pelo fogo, e correu atrás de Rafael, que seguia dois passos a sua frente. Isabella pressentia que sua vida dependia do seu empenho em correr, fugir dali, então ignorou a respiração ofegante, a dor aguda na barriga causada pelo esforço físico e o pavor que sentiu ao ver o fogo invadindo o túnel. Ergueu um pouco a camisola, para que não atrapalhasse sua corrida, e saiu em disparada, seguindo o anjo. Na primeira curva do túnel, aquela que ficava a aproximadamente 20 metros do alçapão, a luz das chamas diminuiu consideravelmente, até o túnel se encontrar em total escuridão. Isabella se apavorou com o manto negro que se formou, em pânico, sem saber se ainda estava próxima de Rafael. Temendo o que haveria escondido naquele breu, chamou pelo nome do anjo, e o som da sua voz ecoou, perturbando a paz de dezenas de morcegos que repousavam de cabeça para baixo no teto arqueado. Seu grito foi estridente quando alguns voaram de encontro a ela. — São apenas morcegos! — Rafael agarrou sua mão esquerda e a puxou para que voltasse a correr. — Pare de gritar! Lembre-se de quem estamos fugindo! Com a mão direita livre, a jovem tapou a boca, mas a sensação das asas de penugem fina e asquerosa batendo de encontro a sua pele era repugnante demais para que ela ficasse quieta. E quando um deles arranhou sua bochecha, Isabella voltou a berrar em desespero. Rafael parou de correr, a pegou no colo e apertou-a contra si, esquecendo-se de que ela estava com as costas machucadas da queimadura. Era a primeira vez que ficavam tão
próximos um do outro por tanto tempo. — Amor, eu imploro, pare de gritar. Naquela ocasião, não havia mais discussões ou dúvidas sobre o porquê de Rafael tratá-la daquele modo. As necessidades eram vitais e, mesmo que o rapaz não dissesse isso, sabia que estavam correndo perigo. — Você está apertando minha queimadura — ela reclamou por entre os dentes. Rafael encontrou outra posição para segurá-la, voltando a fugir em seguida. Seu corpo forte curvado sobre Isabella servia como proteção contra as criaturas que habitavam o túnel e reagiam apavoradas com a passagem dos dois. Correram por centenas de metros, talvez alguns quilômetros. Isabella seria incapaz de afirmar. Estava frio e sufocante. O cheiro fétido das fezes dos inquilinos do túnel fazia com que a jovem pressionasse o rosto contra o peito do anjo, aspirando seu aroma natural e agradável através da camisa de algodão. Por alguns instantes, pensou que Rafael poderia ter enganado John, causando a explosão e a levando para uma armadilha. Mas que interesse um anjo teria na jovem? Eram dúvidas demais para se preocupar ali. Sequer sabia se devia se angustiar pelo marido ou preferir que aquele demônio o levasse de vez. Sua tormenta acabaria. Sem mais ferimentos, brigas e medo. Não mais o azul de seus olhos, seus carinhos e a espetacular adrenalina que John a fazia sentir. Apenas ela. Talvez Rafael. Quem sabe, encontraria um destino ainda pior nas mãos do anjo expulso do céu. A incerteza era tudo que a jovem tinha para se agarrar naquela madrugada. Em certo ponto, Isabella começou a enxergar algo que ela chamaria de luz no fim do túnel, quando Rafael dobrou à esquerda. Ela teria ficado aliviada se não fosse as poças de água que ficavam cada vez maiores à medida que eles se aproximavam da luz. Os pés do rapaz começaram a ficar submersos, batendo freneticamente na água a cada novo passo. Quando chegaram até uma espécie de portão gradeado, a água gelada já atingia as coxas de Rafael. O mais curioso é que aquela água não parecia vir de lugar algum, simplesmente se acumulava, como se jorrasse do chão — mas não havia vestígios disso —, despencando pelas grades com o barulho de uma cachoeira. Era madrugada, mas a lua clara permitia que Isabella pudesse ver que aquele portão os separava de um desfiladeiro de rochas negras e pontiagudas que se erguiam acima da praia. Um precipício de aproximadamente quarenta metros de altura. Ignorando o frio cortante, ela desvencilhou-se dos braços do rapaz, entrando na água, se aproximou e apertou a face contra as grades, observando o mar revolto quebrando em ondas espumantes contra as rochas afiadas e, daquela altura, mortais.
— É por aqui que pretende escapar? — ela questionou, sentindo que tinham corrido para aquele lado inutilmente. Suas mãos deslizaram pelas barras de metal enferrujado devido à maresia, com cerca de dez centímetros de diâmetro cada, dispostas paralelamente uma ao lado da outra a uma distância que equivalia ao tamanho do seu punho. Ao atingir com a mão a extremidade esquerda das grades, Isabella se deparou com um cadeado capaz de ocupar toda a palma da sua mão. — É por aqui que nós escaparemos — Rafael falou com determinação. — Está trancado — ela lamentou. — Você deveria confiar mais em mim, amor — ele murmurou, retirando algo do cinturão preso à calça. Isabella o olhou brevemente, notou que o anjo parecia ofendido quando lhe entregou uma chave grossa e pesada. — Você precisa abrir o cadeado — ele disse. — Está enfeitiçado. Não posso tocá-lo. — Que tipo de feitiço? — ela perguntou exigente. — Água benta. — Isso não é um feitiço — Isabella comentou, mas Rafael não estava disposto a discutir. — Você sabia, não sabia? Sobre o café, naquela manhã na casa dos meus pais, por isso não aceitou! — Amor — Rafael sussurrou com a voz rouca, enquanto colocava a chave na palma da mão de Isabella —, não temos tempo para esse tipo de explicação. Ela entendeu a urgência em sua voz. Segurou a chave com firmeza e a levou até o cadeado. Somente quando o abriu, se deu conta da altura em que estavam. Ela morreria antes de atingir as pedras mais baixas e, graças à cachoeira que se formava no túnel e ganhava força sobre as rochas, não poderiam escalar. Não havia saída. Empurrou a grade e virou-se para Rafael. Ele a olhava com seriedade. — Tenho que te pedir perdão, amor. — Pelo quê exatamente? — Isabella quis saber. Não gostou da forma como seu coração começou a bater. O frio a fazia tremer, mas o passo que o anjo deu para se aproximar dela causou ainda mais arrepios em seu corpo. — Por ter deixado John te machucar todas as vezes, por não ter impedido, pelas vezes em que eu não estava lá. Ela não soube o que responder. Havia milhões de ofensas em sua mente, mas ela não seria tão imprudente a ponto de insultar o anjo quando dependia dele. Permaneceu em silêncio, até mesmo quando ele se aproximou ainda mais, segurando o rosto da moça entre
as mãos com muita gentileza. Inclinando-se para baixo, Rafael aproximou os lábios de Isabella, mas ela virou o rosto para o lado, o impedindo de beijá-la nos lábios. — É disso que se trata? — ela quis saber. O ouviu engolir seco quando se afastou. — Era apenas uma possibilidade — o anjo sussurrou. — Talvez eu fosse a melhor escolha. Isabella soube que aquela discussão com John na outra noite tinha sido real. Rafael a desejava, queria tomá-la do amigo. Ela deu um sorriso sarcástico, mas nada disse a respeito daquela ousadia, guardou todas as acusações consigo. — Acho que corremos em vão — ela disse. — Não há como sair por aqui. — Podemos voar — Rafael sugeriu dando alguns passos na direção de onde vieram. — O quê? — Isabella questionou, mas ele não respondeu. Tirou a camisa, agachou-se na água e trincou o maxilar com força. Seu rosto se contorceu em uma careta de dor. Grunhiu e berrou. Isabella precisou piscar algumas vezes até assimilar o que era aquilo. Asas! Asas enormes surgiam das costas do anjo. Ela perdeu o fôlego. Pareciam macias e se tornavam ainda maiores nas extremidades. Dentro do túnel, ele não podia abri-las. — Confie em mim, amor — o rapaz disse quando se aproximou. Dessa forma, ele parecia tão imenso que Isabella se sentiu minúscula entre seus braços quando ele a tomou no colo e a apertou contra si. A água escorria da camisola. Lá fora, o frio seria ainda mais cruel. — Confia em mim — o anjo repetiu. — Vou te levar para um lugar seguro. Se tiver medo, feche os olhos. Ele caminhou até o portão, agachou-se novamente e libertou as asas. — São lindas — Isabella sussurrou sem fôlego, agarrada ao pescoço de Rafael. — Eu sempre quis voar. Rafael tomou impulso e pulou no abismo. Numa fração de segundos, levantou voo. As nuvens encobriam a lua naquele momento. Isabella olhou para baixo e viu como as ondas quebravam furiosas contra as rochas, sobre o ombro do anjo e o bater de asas, viu a fumaça na direção do casebre. Pensou em John, onde ele estaria. Estavam subindo, se afastando cada vez mais da costa. Subiram tão alto que as nuvens ficaram para trás, tão alto que era quase impossível respirar ou raciocinar com tanto frio.
Onde os vivos não têm vez
Isabella conseguiu ver o muro de pedras a alguns metros de onde aterrissaram. Pelas formas que se erguiam lá de dentro, mais altas que o muro, ela pôde concluir que se tratava de um cemitério. Era a única construção ao alcance de seus olhos. Ainda não tinha retomado o domínio da respiração e suas roupas encharcadas pioravam a sensação térmica de estar congelada. — Vamos entrar aqui? — ela perguntou alarmada. Túmulos e lápides a deixavam pouco à vontade. — Amor, quando não estou com vocês, é aqui que moro... — o anjo respondeu na defensiva, enquanto recolhia as asas, que rapidamente se esconderam em suas costas. — Por quê? — sua voz saiu entrecortada com o bater de queixo, foi a única pergunta que ela conseguiu verbalizar. — Aqui os vivos não me incomodam. A tomando nos braços mais uma vez, Rafael a levou para perto do portão. Isabella o fitou, desconfiada, por um tempo depois que ele a colocou no chão, e então observou lá dentro. Havia uma árvore no lado esquerdo do cemitério. Suas folhas e galhos pareciam chorar sobre um túmulo humilde. Se ela forçasse bem a vista, poderia ter o vislumbre de alguém balançando nos galhos do lado oeste. — Há mais alguém morando aqui? — ela sondou ainda observando, tentando
identificar a silhueta daquele que brincava na árvore chorona. Enfiando um dos braços entre as grades do portão, o anjo conseguiu abri-lo. — Muita coisa mora aqui — ele respondeu ao seguir o olhar da sua protegida. — Mas nenhum inquilino é humano. Fique tranquila, o demônio não vai te procurar entre fantasmas. — Por que ele viria atrás de mim? — Ainda não entendeu, amor? Ele quer John e pode te usar para conseguir isso. — Como? — Te capturando. Moeda de troca. Por isso te tirei da casa. Um súbito calafrio a fez estremecer. — Não se preocupe, eu vou te proteger até ele voltar — Rafael acrescentou com um sussurro, segurou a mão de Isabella e a puxou para dentro do cemitério. Ela queria fazer mais perguntas — como John escaparia, por exemplo —, mas foi distraída por duas meninas idênticas que perseguiam alguma coisa entre as lápides. As gêmeas vestiam camisolas brancas que se arrastavam pelas ervas daninhas no solo do cemitério. Uma delas tinha uma corda amarrada ao pescoço que pendia até o chão. — Venha, meu amor — Rafael a puxou pelo pulso, adentrando o cemitério —, você verá muito disso por aqui, não se impressione. Nos primeiros passos, Isabella o seguiu de bom grado, até que, ao virarem na esquina de uma fileira de túmulos simples, ela se deparou com o fantasma de uma mulher. Era baixinha, encorpada, de olhos azuis e pele branca, possuía longos cabelos escuros e ondulados que caíam um pouco abaixo dos quadris. Usava vestido e luvas, ambos na cor preta. Isabella sempre fora boa em memorizar semblantes, portanto, reconheceu o rosto da dama de preto. Era a mesma mulher que a visitara no casebre, perguntando por John Smith, logo depois do casamento. Soltando-se da mão de Rafael, a jovem foi de encontro à dama, mas esta desapareceu quando Isabella estava bem perto, como se nunca houvesse estado ali. Suas mãos repousaram na lápide fria. Havia uma foto da mulher em formato oval pregada na junção da cruz. Era ela. Isabella não tinha dúvidas.
Estava sem fôlego. Percebeu que tivera contato com os fantasmas do passado de John antes mesmo de saber do que ele era capaz. — Ela morreu há quase dois séculos — Rafael explicou baixinho ao se aproximar e colocar a mão no seu ombro gelado. — Eu sei — Isabella respondeu tão baixo que o vento frio quase varreu o som da sua voz para longe dos ouvidos do anjo. Encarava a data de nascimento e óbito da dama de preto. — Ela foi uma... delas? Das mulheres que ele amou? As batidas do seu coração a traíam. Não sabia identificar o que estava sentindo pelo marido. Não podia constatar sequer se aquele sentimento era bom ou ruim. Mas não foi capaz de ignorar uma determinada emoção que crescia e fazia doer seu estômago vazio: ciúme. — John foi embora alguns anos depois que se casaram, quando passou a ser suspeito o fato de que ele não envelhecia — Rafael começou a contar. — Nunca tiveram filhos. Ele partiu em um navio que rumava para o Novo Mundo, com uma desculpa que eu não consigo recordar. Num lapso de pena, John prometeu que um dia iria regressar para os braços de sua esposa, sem imaginar que ela ficaria lá, esperando, sozinha, os olhos vagando por cada navio que atracava no porto. Os anos se passaram, mas John nunca voltou. Não podia fazer isso. Ela morreu naquele porto, depois que seus cabelos ficaram brancos e sua roupa virou um trapo. Só a morte tirou a esperança de que um dia o veria de novo. — É assim que as coisas acabarão para mim também — Isabella disse. Havia um nó tão espesso em sua garganta que ela mal podia murmurar. — Uma despedida rápida quando eu estiver velha, algumas mentirinhas. Morrerei sozinha, como ela. Não haverá filhos para levarem flores no meu túmulo. Apenas o esquecimento. Não existirei mais, ainda assim, John continuará vivendo, encontrando outras mulheres, as amando. As lágrimas estavam escorrendo pelo rosto pálido. — Amor... — Não, Rafael! — ela interrompeu o anjo. — Não tente me convencer que não será desse jeito. De queixo erguido, Isabella afastou as lágrimas com as pontas dos dedos. Apesar de tudo, era orgulhosa demais para permitir que o rapaz sentisse pena dela. — Eu só queria dizer que precisamos nos abrigar em algum lugar ― ele murmurou. ― Está frio demais. Vou te mostrar meu lar. Rafael a conduziu na direção de uma casa que ficava no lado sul do cemitério. Antes de chegar à porta, Isabella virou o rosto novamente para a árvore chorona e não viu mais a criatura brincando em um dos galhos, agora, o mesmo galho sustentava uma corda na qual o homem pendia enforcado. Sua língua estava para fora da boca e a cabeça
tombada para o lado direito, como se seu pescoço tivesse sido quebrado pelo enforcamento. — Ele só quer chamar sua atenção. Venha — o anjo convidou. — Quando as coisas se acalmarem, iremos testar essa marca, descobrir se você ficou imune às criaturas que vagam. No momento, você precisa se aquecer e cuidar da ferida. Rafael mantinha aberta a porta de madeira grossa, pesada e esculpida com desenhos de anjos gorduchos, esperando que ela entrasse. — Anjo, não a leve para si! — uma voz suave e infantil pediu. A jovem virou e a viu de perto. Era uma das gêmeas que estavam perseguindo algo entre os túmulos. A outra estava parada em silêncio ao lado da irmã. — Queremos brincar com ela! As duas eram incrivelmente semelhantes. Cabelos escuros e pele pálida. A mais tímida tinha uma corda enrolada em seu pescoço e uma linha de sangue insistia em escorrer de sua boca. Pacientemente, a garotinha limpava o líquido pegajoso e avermelhado com as mangas da camisola. A que havia falado com Isabella, aparentemente, não tinha nenhum ferimento, mas ao observá-la melhor, Isabella viu os cortes ainda úmidos em seus pulsos. — Ela é tão bonita — a gêmea tímida falou lentamente, estendendo uma das mãos para tocar o cabelo escuro e comprido de Isabella, mas a irmã interrompeu-a com um tapa em seu braço. — Não toque nela! — sua voz era autoritária. Logo, voltou-se para Rafael. — Anjo, por favor, deixe-a brincar conosco! — Antonella, não implique com sua irmã! — Rafael disse com firmeza. — E, Madonna, sim, ela é realmente bonita! Mas Isabella não é um brinquedo, apesar de parecer uma bonequinha de porcelana... deixe-nos em paz, preciso cuidar dela. Se alguma das duas tivesse sido enviada para o inferno através de John e houvessem escapado de lá, eu as deixaria brincar com todo prazer. — Não somos essas criaturas que você e John tanto falam — Madonna murmurou, encarando o chão. — Anjo, você sempre as guarda para si! — reclamou Antonella, a mais desinibida. — Vam... — o rapaz não conseguiu finalizar o convite. Isabella viu os olhos de Rafael se arregalaram de dor quando ele abriu as asas e a puxou para o peito. Só durou um segundo entre o alarde no olhar do anjo e suas asas estarem abertas. Apenas um segundo.
Mas não foi suficiente. Quando as asas macias e quentes envolveram o corpo da jovem, a pontada nas costas já tinha lhe atingido. Piscou os olhos. A dor ficou tão profunda que ela não conseguiu mais respirar. Rafael afastou as asas. A ponta da flecha que atravessara o peito de Isabella havia espetado também sua barriga quando ele a abraçara. Em meio aos esforços para manter os olhos abertos, Isabella viu uma saída para a dor. Uma tranquilidade sobrenatural se aproximava. Ela apenas precisaria parar de resistir. Sua consciência estava se aniquilando e um vago horror bloqueava seus batimentos. Então, através da doce agonia, ouviu o timbre da voz do seu amado. O sangue invadia sua garganta com pressa, a fazendo engasgar. Naquele instante, ela soube que, se existisse uma oportunidade, perdoaria John por todos os erros. Por quê? Quem saberia? A cor escarlate da morte muda tudo.
O anjo
— Um caixão, Rafael? — John perguntou com urgência. — Vamos colocá-la em cima de um caixão? — Prefere o chão? — Rafael quis saber? — Tudo bem, arraste para aquele canto — John dizia, enquanto tentava segurar as lágrimas. — Vamos tirar a flecha. Com todo cuidado, ele colocou o corpo da esposa sobre o caixão de madeira. Suas mãos estavam sujas de sangue e mancharam o belo rosto de Isabella quando ele a acariciou. — Vamos tirar isso de você, Bells — ele choramingou ao rasgar o vestido dela. — Mantenha os olhos abertos, por favor. — Dói — Isabella sibilou. Cada vez que ela tentava falar era uma tortura, quantidades maiores de sangue lhe sufocavam. — Frio. — Eu sei, meu amor — John continuou sussurrando, enquanto a virava de lado para puxar a flecha pelas costas da esposa. — Só preciso que mantenha os olhos abertos. — A dor vai deixá-la inconsciente — Rafael o alertou. — Eu preciso tentar — dito isso, ele puxou o objeto com força e, de imediato, Rafael apertou pedaços de retalhos do vestido da jovem contra a ferida exposta. John retirou a camisa e a usou para estancar o sangue que escorria das costas de
Isabella. Colocou-a devagar de barriga para cima e beijou sua testa. Seus belos olhos se fecharam, mas voltaram a se abrir para encará-lo. — Vá buscar alguém, Rafael! — John berrou para o amigo ajoelhado ao lado do caixão. — Agora! — Não adianta — o anjo respondeu com melancolia. — Ele tem razão — uma voz feminina disse na entrada da porta —, a flechada foi mortal. — Saia daqui! — John berrou para o demônio, mas ela o ignorou. Entrou e sentouse sobre um dos caixões. — Ela já está morta — a mulher continuou sem se comover com o sofrimento de John. — Levo a alma dela. Não é inocente, mas pelo amor que sente por ela, vai me servir, já que você não me deixou outra escolha. — Rafael! — John voltou a grunhir. — Tem que haver outro jeito — o anjo pediu para o demônio. — Me leve, mas deixe-a viver. Ela só tem dezessete anos! — o marido começou a implorar. — John! — o amigo tentou adverti-lo. — Não faça isso. — Uma alma não substitui outra — a mulher informou. — Venho fazendo substituições há centenas de anos — John sibilou por entre os dentes. — Eu iria cumprir minha parte no acordo, isso não era preciso. Ela não tem nada a ver com esse maldito pacto. — Era a única forma de pará-lo — a mulher rosnou —, de termos esse encontro. Você foge de mim desde que conheceu esse caído. — Me leve. É o que você sempre quis, não é? Me ver torturado por todos aqueles que me fez condenar. — Você não entende, John? Não consegue perceber as coisas? — Entendi desde o começo que tudo que quer é me ver lá embaixo, ardendo no fogo, com o maior número de almas possíveis para me retaliar. Será sua diversão por toda a eternidade, sentar-se perto, assistir tudo de novo e de novo. — Acha que o meu lugar é o inferno? Que eu fico por lá, serpenteando entre as chamas até que chegue mais um dia de vir até a terra buscar uma alma? — a mulher perguntava incrédula.
— Você caiu — Rafael murmurou antes que John pudesse responder. — Muito tempo antes de mim, você caiu. E sua queda foi muito pior que a minha. Seu lugar é lá embaixo. — É tão estúpido! — a mulher o insultou. — Não conhece seus próprios semelhantes. Vocês dois foram uma dupla de idiotas durante todos esses séculos. Eu não caí, Rafael! — Você é um demônio! Só pare de falar e me leve logo. Poupe-a. — Como não caiu? — Rafael quis saber. — Você é o anjo mais burro que existe. Quanto a você, John, quem te disse que sou um demônio? Os olhos azuis de John vagaram pelo sangue que ensopava as vestes de Isabella, ele procurou uma resposta para aquela pergunta, mas não conseguiu encontrar nenhuma. — Quem é você? — Rafael questionou a mulher. — Sariel, Azrael, Malak, Almawt, ceifador... — ela disse e fez uma pausa para uma risadinha sarcástica. — Já me deram tantos nomes, mas prefiro ser chamada de Anjo da Morte. Melhor: Morte. Os dois homens se entreolharam. John buscava respostas nos olhos do amigo, mas esse apenas assentiu. — Acharam que podiam me enganar? — perguntou ela com sarcasmo. — Que Rafael ia encontrar um livro antigo, escolher um feitiço e te fazer viver para sempre? A mulher mordeu o lábio e lançou um sorriso sedutor para John. — Por que atirou nela? — John rosnou. — Não tem direito de... — Não me diga o que posso ou não fazer. A morte dela é sua culpa. — Ela não vai morrer! — o grito do homem ecoou pelo cemitério, entre as lápides. Apesar de todos os fantasmas que iriam lhe pegar, ele desistira da fuga do inferno por sua Bells. — Não entende que só está fazendo ela sofrer? Enquanto você segura suas mãos e derrama lágrimas sobre seu corpo, ela está lutando para manter viva uma alma que não é mais dela. — Não! Não! Me leve. Deve haver um demônio lá embaixo querendo colocar as mãos em mim. — Está tentando negociar uma coisa que não é mais sua, John. Sua alma me
pertence. Pare. Deixe-a ir. Você já abandonou tantas. Por que ela é importante? Ele não respondeu, continuou fazendo carinho na sua amada e sussurrando em seu ouvido súplicas para que ela não dormisse. — Explique como você fez um pacto com ele — Rafael pediu. — Como essa coisa funciona? — Sempre que alguém morre, eu preciso recolher sua alma e levar para o lugar de merecimento. Ana estava destinada a morrer, mas John tentou impedir isso. Entenda que se é o destino de alguém morrer, eu preciso pegar esse espírito. Ele pagou a alma da esposa com a dele. Por dez anos. Foi o que consegui arranjar porque o sofrimento dele, a vontade de salvar sua mulher, me deixou intrigada. Você já sabe o que aconteceu ao término do prazo. Venho preenchendo o espaço da alma de John com centenas de almas inocentes. — Por que tinha que ser o espírito de um inocente, por que o fez matar tanta gente boa? — Rafael sondou com um vinco na testa. — Eu trabalho para dois chefes desde que o primeiro homem surgiu na terra. Um lado bom, outro ruim — a mulher disse. — Sabe qual é a diferença entre eles? O Criador não interfere na sua vida, não te induz a fazer nada. O que não posso afirmar sobre o que está lá embaixo. Ele interfere, persuade, te coloca em becos sem saída, te induz a fazer coisas que só te levarão para um nível mais baixo. Ele quer ver John no último nível. — Tem algum jeito de acabar com isso? Posso fazer algo para salvá-la? — John quis saber. Os olhos de Bells haviam se fechado há alguns minutos, o que fizera o homem entrar em desespero. — Qualquer coisa, qualquer pacto por mais alguns anos com ela. Havia tanta coisa que John queria consertar, tantos lugares para levar Isabella, tanta história. A mulher que ele amou não poderia terminar ali, agonizando. — Tenho uma proposta — a morte anunciou com um sorriso convidativo. — Diga logo! — Rafael exigiu. — Ela mal consegue respirar. — Eu a levo comigo... — Isso não! — John a interrompeu. — Me deixe terminar! Eu a levo comigo e te livro de todo o resto, te devolvo a humanidade. Você morrerá quando chegar a hora, seja de causas naturais ou acidental. Estará livre do inferno, livre de condenar outras pessoas. Só precisa dizer que sim, que aceita trocar sua amada por isso tudo. Aposto que o demônio vai ficar muito interessado em todo esse amor. Ele venera a destruição desse sentimentalismo. — Você não pode me livrar do inferno — as palavras escaparam por entre os dentes de John. — Eu matei muitos, estou fadado a isto.
— É aí que você se engana, John. Rafael é tão estúpido que nunca te abriu os olhos. Só há um pecado que o Criador não perdoa: o suicídio. E sabe por quê? Não há tempo para o arrependimento verdadeiro. O suicídio tira a coisa mais preciosa que Ele deu à humanidade: a vida. Você não cometeu esse pecado. Se arrependa do fundo da sua alma que eu devolverei, e poderá existir uma esperança. Só precisa dizer que aceita, que usará sua amada para saldar seu débito comigo. O buraco estará preenchido. — John... — Rafael o chamou com um sussurro. — Tem que haver outro jeito — o homem murmurou. — Você diz que eu não posso trocar minha alma pela dela, porque a minha já não me pertence. Mas eu posso substitui-la. Trarei alguém, nas condições em que exigir, quantas desejar. Só me dê mais alguns anos. — Vai recusar a minha proposta, a chance de escapar do inferno, de todos aqueles que você matou, por causa de um romance? Foram muitos, John! Recorda o que você fez com aqueles homens que violentaram Ana? Eles vão fazer com você também! Pode se livrar disso! É só aceitar. De repente, Rafael se levantou impaciente e com passos largos alcançou o anjo da morte, agarrando seu braço. — Vamos conversar. Você e eu. De anjo para anjo. — Diga — a mulher pediu com uma das sobrancelhas erguidas. — Tem que haver um jeito. Existe outro modo. O homem já sofreu demais. Sei que pode fazer algo por ele, por ela. Você não é como o demônio, não se alimenta do sofrimento. Não permita que ele a faça pensar dessa maneira! Você recolhe as almas. Só isso. Não é sua função persuadir, mentir, destruir. — Se eu fosse abrir mão toda vez que um homem perdia sua esposa, que uma mãe perdia um filho, não haveria lugar no mundo para tanta gente. A morte é a ordem da natureza. Eu sou a ordem. — Vamos parar com essa conversa bonitinha — Rafael sussurrou para que só a mulher ouvisse. — Não estou falando de todas as outras vezes, das outras pessoas. Estou me referindo a esse casal, ao aqui, ao agora. Você bagunçou a ordem uma vez. É hora de acertar as coisas. Faça o que disse, liberte John do pacto, deixe-o viver em paz, envelhecer com a mulher que ama, ter tempo para se redimir. — Não posso — a mulher sibilou. — Há uma lacuna que precisa ser preenchida... — Você pode, sim — Rafael apertou o braço da morte com mais força. — Sei que consegue. Um dia, tudo que conhecemos irá acabar, até o seu trabalho. Você não terá mais serventia. De que lado quer estar? O bom ou o ruim, como você mesma diz? A mulher pensou por alguns instantes.
— Talvez haja uma maneira... — Diga! — Rafael a sacudiu. — Não temos tempo! — Primeiro, preciso de alguém para substituí-la. Uma moça da mesma idade que se encontra no leito de morte. Não faça perguntas. — Eu buscarei — Rafael disse depois de respirar aliviado. — Iria te dizer para não participar disso, mas percebo que não tem interesse nenhum em subir novamente — a mulher comentou. — O céu é um lugar muito seletivo. Alguém como eu não consegue se encaixar por muito tempo. — Continue — John pediu. Tinha se levantado e estava ao lado dos dois, ouvindo atentamente. — Não posso deixá-la aqui — a mulher explicou. — Não posso. Ela morre no agora. — O que quer dizer com isso? — Rafael perguntou lentamente. — Eu levo uma alma no lugar da que John deveria ter me dado. Revemos o nosso trato. Isabella vai comigo. — Não! — John rosnou. — Escute com atenção! — a mulher pediu. — A vida dela acabou aqui, John. Não adianta mais. Ela só está se segurando por sua causa. Ela morre hoje. Mas eu terei a alma dela comigo, não a entregarei para ninguém. Isabella vai nascer novamente. Você só precisará guardar esse segredo e a procurar. — Reencarnação? — Rafael quis saber. — Melhor que isso. Te devolverei Isabella exatamente como ela é. Fisicamente será igual. A mesma Isabella nascida outra vez. — Quando? — John perguntou, os cantos dos seus lábios estavam se curvando num sorriso. — Quando a verei de novo? — Em breve. Você é praticamente imortal. Alguns anos de espera não lhe farão diferença. Só terá que encontrá-la. — Farei isso — ele garantiu. ― E... ― a mulher fez uma pausa. ― Uma última coisa. Não posso salvar a alma da criança que ela carrega em seu ventre. Não tenho como salvar a alma de um bebê. Você sabe. Não pude fazer isso com Ana.
O coração de John parou. Tudo à sua volta ficou estagnado, enquanto ele absorvia aquelas palavras. Um bebê. Sua Bells estava grávida dele. Não conseguiu processar a informação. Não tinha volta. — Ainda temos o nosso pacto, só mudaremos algumas cláusulas — a morte o lembrou. — Vou procurar a alma que você precisa — Rafael anunciou. Quando saiu pela porta, as longas asas já estavam surgindo em suas costas. — Fico grato — John disse com a voz embargada, confuso, porém, agradecido. Então, voltou-se para sua amada que padecia sobre o caixão. — Bells, minha vida, se ainda estiver aí, me ouça. Inclinando-se sobre o corpo ensanguentado da esposa, John pôde ouvir seus fracos batimentos. Seu coração estava tão apertado que mal batia dentro do peito. Um bebê! Ele sacudiu a cabeça, não queria que ela soubesse. — Bells, quando acordar de novo, saiba que eu estarei te esperando. Não importa quanto tempo passe. Eu estarei te esperando. Me procure, mas se não conseguir me encontrar, apenas espere. Rafael me ajudará. Não se apaixone por mais ninguém — John explicou rapidamente. — Toda a dor vai desaparecer agora. Descanse. Eu te amo. Você será minha... outra vez... em uma nova vida.
Amor
As lágrimas quentes causavam uma reação peculiar quando caíam sobre sua pele fria. Dor. Seu mundo e sua consciência praticamente se resumiam a dor. Algo mais forte que Isabella não permitia que ela descansasse, que adormecesse. As lágrimas de John. Nunca imaginou que aquele homem choraria por ela. Ouvira toda a conversa, mas pouco absorvera. Sua mente vagava entre as lembranças. Tanto felizes quanto tristes. Recordara a primeira vez que Teresa a abraçou apertado. A primeira vez que viu Stefan. Não conseguia se lembrar quando conheceu Elena, era como se sua amiga estivesse sempre lá, uma presença constante em sua vida. Lembrou-se da primeira vez que encarou os olhos azuis de John Smith. No altar. Ela não sabia de todos os demônios que se escondiam naqueles olhos, por isso ficou encantada. Agora, o conhecendo melhor, ficou perplexa ao ouvir da boca de John que ele estava recusando uma salvação. Por ela. Era a maior burrice que ele poderia fazer. Mais dor. Mais confusão de pensamentos.
Ela queria dizer para o marido que não se preocupasse. Sabia que ele se apaixonaria novamente. Isso nunca foi um fardo para John. Sua cama nunca esfriaria. Mas não foi capaz de falar. Não conseguiu abrir os olhos uma última vez. Tinha alguns pedidos em mente. Seus últimos desejos. Queria pedir a John que entregasse o diamante vermelho para Teresa, para que sua irmã tivesse uma vida confortável sem depender de nenhum casamento arranjado. Queria dizer a John para convencer Stefan a se casar com Elena. Eles fariam um belo par. Mas não houve tempo. As palavras finais não saíram. Isabella se engasgou nas despedidas e no sangue. O sussurro de John lhe dizendo para procurá-lo, para não se apaixonar por outro, foi a última coisa que escutou. Fantasiou que a tranquilidade viria, que o sono da morte a deixaria descansar de toda a dor. Estava enganada; não houve trégua. Sentiu a escuridão fria prender seus pulsos, a arrastar para direções que a deixavam enjoada. Não havia som algum. Nenhum sinal de que aquela situação se resolveria. Num pranto silencioso, implorou pelo fim, pelo sossego de sua alma. Mas, de alguma forma, ela continuou caindo e caindo, sendo levada e puxada em todas as direções sombrias possíveis. As trevas a seguraram, ampararam sua queda, a lançaram de novo no abismo vazio, como se dissessem venha comigo. Não soube quanto tempo durou, quantas tentativas de abrir os olhos ou emitir algum som terminaram fracassadas. Centenas...? Milhares. Não era de se admirar que seus olhos doeriam quando Isabella os abrisse outra vez. Uma voz aguda e feminina dizia coisas sobre fazer amizade com um monstro que morava embaixo da cama. Ela piscou dezenas de vezes até que conseguiu focar em algo. Uma porta. Sentou-se procurando a ferida causada pela flechada. Não encontrou, sequer uma cicatriz. Usava uma pequena e curiosa peça confeccionada em seda branca. O local era estranho, porém, bem arrumado, e possuía um cheiro muito bom. A voz da mulher foi substituída por gritos de um homem falando apressado coisas que não faziam sentido algum para Isabella. As vozes deram lugar a uma confusão de sons que a deixaram atordoada. Nunca ouvira nada parecido com aquilo. Abismada, ainda na cama, tocou seu cabelo e percebeu que estava mais curto que da última vez em que o penteou. Ficou chocada ao notar a coloração negra em suas unhas. Estava apavorada. E que tipo de peça de roupa era aquela que não lhe cobria praticamente nada? A porta se abriu e ela puxou os cobertores para cobrir o corpo. Alguém estava entrando. O pânico tomou conta dos seus nervos.
Poderia ser qualquer um. Rafael. Graças a Deus! Ele se aproximava da cama trazendo uma bandeja nas mãos. Sorria e mordia o lábio como se estivesse gostando do barulho e dos gritos que infestavam o cômodo. — Bom dia, amor — ele a cumprimentou, enquanto colocava a bandeja de café da manhã sobre a mesinha de cabeceira. Misteriosamente, fez o barulho cessar e pulou na cama ao lado de Isabella. Onde estão seus modos? Onde está sua camisa? Ela se perguntou em pensamentos. — Onde está John? — foi a primeira coisa que ela disse. — John? — Rafael franziu o cenho como se tivesse sido pego de surpresa. — Las Vegas, eu acho. Faz muito tempo que não nos falamos. Las Vegas? O que diabo é Las Vegas? Desconfiada, Isabella afastou o rosto quando o anjo tentou beijá-la nos lábios. — Teve um pesadelo, amor? — ele quis saber, enquanto investia novamente na tentativa de outro beijo. Desajeitada, Isabella pulou da cama para escapar do abraço de Rafael. Ficou espantada ao ver o quadro acima da cabeceira da cama, onde o anjo e ela estavam abraçados em roupas elegantes. Abaixou o olhar e encarou o dedo enfeitado com um anel dourado. Um anel semelhante estava no dedo de Rafael. — Os veremos em breve — o anjo disse. — No aniversário da filhinha deles. Vamos pegar o avião e dar um pulo lá. Acho que está na hora de você começar a fazer amizade com a esposa de John. Isabella piscou os olhos, mas nada conseguiu dizer a respeito disto.
“Não julguem e vocês não serão julgados. Não condenem e não serão condenados. Perdoem e serão perdoados.”
Lucas 6:37
O amor que tínhamos... teremos que esquecer?
Isabella encarava o convite sobre a mesa de cabeceira. Era para ser uma surpresa. Uma surpresa preparada pelo seu adorável marido. As narinas se inflamaram ao ler, pela milésima vez, os nomes no envelope do convite:
Para Isabella Valentin e Rafael Valentin.
Não queria ser chamada de Valentin. Queria ter o sobrenome Smith de volta. Bateu com punho contra a cabeceira e depois levou a mão à testa. Como John pôde fazer isso? Como ele aceitou entregar sua Bells para outro homem e depois mandar-lhe convites como se aquilo não fosse nada, como se o passado não existisse? Ela mordeu o lábio. Mais de dois séculos haviam se passado desde que eles se viram pela última vez. Desde que ela o olhou como seu marido. John Smith. A mente dava giros tentando encaixar as peças. Agradeceu por Rafael ter ido treinar e não ver como ela estava. Tinha o dia inteiro para pensar antes de começar a se arrumar para o Red Carpet. Isabella não queria ir a uma cerimônia de uma coisa que ela nem sabia o que era. Um filme?
Tapete vermelho? Nenhuma daquelas palavras faziam sentido. Nada fazia sentido. Não queria usar um vestido festivo e se pendurar no braço de Rafael para ver John Smith ao longe desfilando com sua bela esposa. Não queria passar por isso. Desejava encontrar John naquele exato momento para que ele lhe contasse detalhadamente que diabos de confusão era aquela. Aquele não era o combinado. Por que ele não havia esperado? Por que Rafael? Levou as mãos aos lábios horrorizada. Sentiu os nervos à flor da pele quando olhou para os lençóis de seda da cama. Ela... Ela tinha se deitado com Rafael! Era mais do que poderia suportar naquele momento. Não era para ser assim. John Smith deveria ser o único homem a tocá-la. Só ele. Apenas ele. Agora ela era chamada de senhora Valentin. Para o inferno com o sobrenome Valentin! Para o inferno, Rafael! Para o inferno com a esposa de John! Ela precisava dele. Só dele. Apenas ele. O veria à noite e daria sua vida por um instante a sós com John Smith. Esperava olhar dentro de seus olhos e entender o que tinha acontecido. Queria respostas, mas não poderia deixar Rafael perceber. Não queria que ele soubesse que ela, enfim, tinha despertado. O anjo certamente não sabia disso. Era melhor assim. Isabella nunca confiaria nele. Não tinha feito no passado e não seria naquele século que começaria a acreditar em alguém que fora expulso do céu. O maldito objeto prateado tocava a mesma canção agressiva que a despertou mais cedo. Uma foto aparecia na tela. Um nome desconhecido. Isabella enfiou o aparelho embaixo do travesseiro e rezou para que o som cessasse, e quando não aconteceu, ela arremessou o objeto contra a parede, mas o enviado do inferno continuou tocando a canção da morte. Isabella estava a ponto de ter um colapso nervoso. Tocou o convite e deslizou os dedos sobre o título do filme I’m sorry. O nome Fallen Angels vinha logo abaixo, com menor destaque. Em letras menores ainda estavam os nomes: John Smith, Ben Mason, James Dark e Dan Andrew. O que diabos estava acontecendo? Era o fim do mundo chegando?
Se jogou contra a cama e passou a mão pelos cabelos razoavelmente curtos. Ela precisava segurar a barra quando estivesse na presença de Rafael, e como faria para se livrar de seus beijos? O que faria quando chegasse a hora de cumprir com suas obrigações de esposa? Uma batida na porta interrompeu seu desespero. Uma senhora alta e magra, de cabelos acobreados, enfiou a cabeça na porta entreaberta. ― Seu vestido chegou, senhora Valentin ― disse a mulher. ― Que vestido? ― Isabella perguntou, visivelmente irritada por ouvir aquele sobrenome. ― O vestido que a senhora usará a noite, no Red Carpet. Pensei que o senhor Valentin já tivesse lhe mostrado o convite que o senhor Smith enviou há semanas. ― Ah, claro. Entre. ― O senhor Valentin teve muito trabalho em esconder da senhora essa festa. Isabella revirou os olhos, enquanto a ruiva colocava um longo vestido sobre a cama. ― A partir de hoje, me chamará apenas de Isabella. ― Senhora... ― É uma ordem ― ela disse alto demais, assustando a mulher. ― Tudo bem, Isabella. ― Rafael teve trabalho, então? ― Sim. Ele precisou mentir durante todo esse tempo, com a desculpa de que teria aquela luta em Manhattan, e que vocês não poderiam estar no Red Carpet. Senhor Valentin precisou engolir seu mau-humor. Luta? Manhattan? Quando alguma coisa começaria a fazer sentido?
∞∞∞ Algumas horas mais tarde, Isabella encontrava-se sentada em uma confortável cadeira, enquanto um homem e uma mulher nada familiares trabalhavam em seu cabelo e rosto. Estavam no banheiro luxuoso e maior que o velho casebre onde ela morara com John. Pelo menos Rafael não tinha a roubado para fazê-la morar em condições sub-humanas.
― Você está deslumbrante ― Rafael disse quando, às nove horas da noite, ela surgiu na porta da frente da mansão Valentin. Ele era tão bonito que não parecia ser real, usando um terno elegante, sapatos lustrosos e o sorriso de tirar o fôlego das despreparadas. Mas sua beleza não deixava Isabella fascinada. Tudo que ela queria era ter seu John de volta, o peculiar e desleixado John; aquele que afirmava ter cara de pobre. ― Obrigada pelo vestido ― ela lembrou-se de agradecer. ― E pela surpresa. Não queria dar sinais de nada. Sabia que precisava dissimular na presença do anjo, por isso sorriu e, de bom grado, aceitou sua mão estendida para auxiliá-la a entrar na carruagem negra e brilhante, que roncava baixinho e não possuía nenhum cavalo para puxála. ― Não precisa me agradecer, amor. Onde está seu celular? Por que não atendeu as ligações? Ela engoliu em seco. ― Estava atordoada com os preparativos, sinto muito. Rafael deu um breve aceno de cabeça e se inclinou para beijá-la, o que fez com que Isabella se encolhesse no assento.
∞∞∞ Havia, de fato, um tapete vermelho. Tudo que Isabella entendia é que aquela festividade se dava ao lançamento de um filme (ela não fazia ideia do que aquela palavra significava) e que John tinha alguma coisa a ver com aquilo. Ele parecia muito importante agora. Rafael disse que muitas pessoas queriam chegar perto dele, o que soou estranho para Isabella. John sempre foi tão rabugento, por que diabos iam querer estar perto dele? Quando a porta da carruagem estranha se abriu, ela se sentiu confusa com os brilhos e as vozes. Milhares delas. Algumas pessoas gritavam. Havia uma faixa de separação e homens de preto cuidando para que a multidão não se aproximasse das pessoas que atravessavam o tapete vermelho. Por alguns instantes, ela se sentiu como uma rainha, enquanto Rafael a conduzia pelo tapete, oferecendo seu braço para que ela se apoiasse. ― Sorria, amor ― ele sussurrou enquanto caminhavam devagar. ― Eles te adoram, você é... A voz do anjo desapareceu, assim como os flashes de luz e as vozes ensurdecedoras. Lá estava ele.
Não parecia ser o mesmo John Smith. Isabella riu sem humor. Ele parecia mais novo. O cabelo estava bem cortado e mais escuro. E... John estava elegante, usando um terno preto, com uma dama ao seu lado. Isabella percorreu os olhos pela mulher e trincou o maxilar. Nunca havia sentido uma dor tão forte no coração como sentiu naquele instante. A alguns metros de distância, ela era invisível para John Smith. Desejou soltar-se de Rafael e correr até ele. Mas havia todas aquelas pessoas tentando chegar perto dele. Por quê? ― Quero cumprimentá-lo ― ela sussurrou por entre os dentes para o novo marido. ― É claro, amor. Mas precisa ser simpática com os repórteres. Sabe que um deslize pode... ― Por favor, Rafael ― ela pediu com urgência no olhar. ― Não me deixe atravessar essa multidão sozinha. O anjo meneou a cabeça, despediu-se das pessoas ao redor e conduziu Isabella até o velho amigo. Ela perdeu o fôlego ao vê-lo de mãos dadas com outra mulher. Doía tanto que não podia respirar. A princípio, John limitou-se a sorrir. Isabella queria abraçá-lo, puxá-lo para um canto e começar um interrogatório, após um longo beijo, obviamente, entretanto, sabia que não poderia com todos aqueles abutres em volta. Rafael a soltou para cumprimentar a insignificante senhora Smith, e Isabella aproveitou-se da situação para se pendurar no pescoço dele. ― O que diabos está acontecendo? ― ela rosnou contra o lóbulo colado da orelha de John. Sua voz quase inaudível o fez ficar rígido como pedra. ― Não era esse o acordo! ― Bells? ― John sussurrou, chocado como se tivessem arrancado o coração de seu peito. Ela se afastou do seu pescoço para encará-lo. Naquele suave deslizar do tempo, os dois se olharam, se reconheceram, e John viu quase 230 anos passarem diante dos seus olhos. Ele agarrou seu braço e a puxou discretamente para seu peito para que seus corpos se reencontrassem, nem que fosse por um segundo. John sentia que seu coração tinha parado. Havia centenas de repórteres e fotógrafos prontos para capturar qualquer anomalia no seu comportamento. Nada de deslizes. Se segure. Aguente! ― Aja naturalmente ― ele sussurrou antes de soltá-la.
Aquela era uma grande noite para eles. Os rapazes precisavam de John, ele era o principal suporte. Era o filme do ano. E Endy estava com ele. Se comporte! ― Rafael ― ele cumprimentou o amigo com um sorriso de orelha a orelha e olhou para sua esposa. Os flashes das câmeras deixavam Endy deslumbrada. Mas ele não podia fazer nada a respeito da garota parada a sua frente com o olhar perdido. ― Johnny ― o anjo brincou ao abraçá-lo. Os dois casais viraram-se para serem fotografados. ― Onde estão os caras? ― Rafael quis saber. ― Eles já passaram pelo tapete ― John explicou tentando manter a armadura. ― Estão lá dentro. ― Endy, como vai Lanai? ― o anjo se dirigiu a mulher de John. ― Está com a babá. Vocês precisam nos visitar mais vezes. ― Temos que encontrar um espaço na agenda ― Rafael disse com o seu habitual sorriso. ― Isabella, precisamos conversar ― John falou ao ter uma ideia repentina. Precisava ficar sozinha com aquela que tinha sido sua paixão. ― Temos uma proposta para lhe fazer. É surpresa. Acho que você vai gostar. Ela assentiu, tentando esconder a confusão de pensamentos, e abriu um sorriso para John. Ele teve que dar o melhor de si para segurar a máscara. ― Vamos conversar ― Isabella disse com gentileza. A tristeza e a emoção arruinaram o interior de John Smith. Ele não conseguia acreditar que sua Bells estava de volta, que isso tinha acontecido no dia da pré-estreia do filme. Ele não podia arruinar as coisas, precisava se controlar. Acontece que John era capaz de sentir as mesmas emoções que dominavam Isabella naquele momento, e isso acabava com ele. Queria abraçá-la, beijar o topo de sua cabeça e prometer que ia ficar tudo bem. Porém, isso não era verdade. Os casais trocaram algumas palavras e seguiram pelo tapete até o interior de um teatro colossal. Isabella olhou em volta abismada. ― Nossos lugares são na primeira fila ― John murmurou, segurando na base da coluna de Endy Smith para conduzi-la pelo corredor. ― Rafael, se importa se eu roubar Isabella por quinze minutos? Tenho uma oferta de trabalho que ela não pode recusar.
― Claro. Faço companhia para Endy ― o anjo concordou despreocupadamente. Com satisfação, John constatou que Rafael não tinha percebido nada. Não lhe agradava deixar Endy sozinha com ele, mas não estava em condições de exigir muito. ― Onde está seu celular? ― ele perguntou, aproximando os lábios do pescoço de Isabella enquanto a guiava para os bastidores, aproveitando-se da aproximação para aspirar seu aroma. ― O enviado do inferno que toca uma canção estranha? Se for ele, o deixei em casa. Não sairia com aquilo! ― Bells! ― John exclamou. Precisavam ter uma longa conversa. Vinte minutos não daria para nada. ― Siga essa escada até o fim. Abra a porta e me espere na cobertura. Não vou demorar. Não se meta em encrenca. Se alguém perguntar, diga que precisa tomar um ar ou vai atender uma ligação importante. Ela concordou e viu John desaparecer em um corredor escuro. Pessoas com pranchetas passaram por ela, mas se limitaram a lhe dirigir sorrisos. Isabella não queria sequer considerar o que alguns estavam vestindo. O que tinha acontecido com a vergonha das mulheres? Não ficou mais que dois minutos sozinha no terraço do teatro. As estrelas lhe fizeram companhia até John Smith abrir a porta de acesso e limpar a garganta para chamar sua atenção. Ela queria correr até ele e abraçá-lo com força, beijá-lo, mas estava confusa e chateada demais para fazer isso. ― Por quê? ― foi tudo que ela conseguiu murmurar antes de ser dominada pelas lágrimas. ― Se acalma, Bells ― John sussurrou, indo até ela e segurando em seus ombros. O corpo se arrepiou ao entrar em contato com o dela. Ele apertou os lábios no topo de sua cabeça e aspirou o perfume dos seus cabelos. ― Me explica o que está acontecendo! ― ela exigiu ao se inclinar para encará-lo. A força do seu olhar destruiu a armadura que ele tentava manter erguida. Já tinha sofrido muito por ela. ― Por que desistiu de mim? ― Passei mais de duzentos anos te procurando, Bells. Nunca, nem por um dia, desisti de te encontrar. Farejei seu cheiro, seus pensamentos, tudo em que pude me agarrar ― ele contou com urgência. ― Foram dois séculos inteiros de desespero, sem saber em que lugar do planeta você renasceria ou quando. ― E como explica tudo isso? Você está casado com outra! E eu... ― Por duzentos anos, eu juro, nunca desisti de te encontrar. Não houve um só dia
em que não te procurei. ― E como acordei casada com Rafael? ― ela quis saber colocando umas das mãos na cintura de John. — Há mais ou menos treze anos, te encontrei morando em um orfanato. Você era só uma criancinha assustada, sozinha na vida, sonhando em encontrar uma família, desejando ganhar um presente de Natal ― ele explicou. A emoção tomou conta da sua voz. ― Passei todo aquele tempo esperando encontrá-la exatamente como eu a vi pela última vez. Foi um choque vê-la menina. Descobri que haviam te abandonado na porta do orfanato quando você era uma recém-nascida. Toda a informação que existia a seu respeito era o nome “Isabela”. Mas logo notei que você não era a mesma, que eu não tinha encontrado minha Bells. “Foi frustrante perceber que eu havia te perdido para sempre, que sua alma não tinha voltado junto com seu corpo. Você era só uma menina de onze anos mendigando um pouco de atenção, de carinho. Mesmo assim, não desisti. Passei a visitá-la sempre, te levar presentes, na esperança de que um dia, quando eu chegasse para te ver, você iria me olhar e dizer que se lembrava de tudo, que tinha se recordado quem éramos um para o outro. Entenda, você era uma criança de onze anos, eu não podia levar você embora comigo. O que eu poderia fazer?” “Mas você nunca me reconheceu, não se lembrou, jamais me olhou com interesse. Eu garanto que, se você tivesse me olhado uma única vez como está fazendo agora, eu teria rastejado aos seus pés até você gostar de mim. Mas você nunca me enxergou como homem, não me via dessa maneira, por mais que me esforçasse para te agradar.” “Certo dia, Rafael apareceu em um dos nossos encontros. Você já devia estar com dezesseis anos na época. Não demoraria a deixar o orfanato. Foi então que aquele olhar, que eu tanto esperei, apareceu. Só que não era pra mim. Era para ele. Eu sabia que minha Bells não existia mais. A morte tinha devolvido seu corpo, mas levado embora sua alma.” John se afastou de Isabella e olhou para o chão, cutucando o concreto com a ponta do sapato, como se a lembrança lhe causasse dor física. ― Você era uma adolescente. Uma moça muito bonita. Rafael teve sorte de ter o seu amor ― John murchou os ombros envergonhado e continuou a contar com a voz rouca. ― O que eu deveria fazer? Não podia obrigá-la a gostar de mim. As coisas mudaram muito em dois séculos. Não podia forçá-la a se casar comigo e, ainda que pudesse, eu nunca mais te obrigaria a nada. As coisas que te fiz... Não faria de novo. “Rafael me convenceu de que era o melhor homem para você, que ele iria lhe proteger de caras como eu, te dar tudo que você precisasse. ― Não era eu ― Isabella murmurou após um soluço, lutando contra a coriza, tentando controlar as lágrimas. ― Me lembro da dor, de sentir as suas lágrimas, da escuridão. E depois... O tempo parecia não ter fim. Então... eu acordei hoje de manhã e você não estava lá.
― Eu sei que não era você, Bells. Não faz ideia do quanto foi doloroso vê-la com meu melhor amigo ― John disse e deu de ombros com um sorriso forçado que mascarava uma careta de dor. ― Como prêmio de consolação, me convidou para entrar com você na igreja, quando resolveram se casar. Não tive coragem de recusar isso a você. Mas foi um marco na minha vida, o dia que te entreguei para ele foi quando entendi que não tinha mais volta. Que todo o amor que tivemos nunca mais iria voltar. Tive que seguir em frente. ― Mas eu voltei, John. Ainda podemos ficar juntos. Você e eu... ― Para, Bells! Por favor ― ele pediu com a voz rouca e sussurrada. Isabella notou seus olhos brilhando antes das primeiras lágrimas caírem. John levou a mão até o rosto e esfregou os olhos, mas não conseguiu deter o choro. ― Você... ― ela começou a falar, tentando encontrar as palavras em meio ao pânico. ― Você vai deixar para lá? É o nosso fim? Ele não respondeu. As lágrimas afogaram suas palavras. Envergonhado, ele se virou para ir embora. ― John ― ela gritou para as costas largas do homem de quase dois metros de altura. ― Ela é mais importante que eu? Você dedicou dois séculos da sua vida para me procurar, não me diga que essa mulher é mais especial que eu. ― Temos uma filha ― ele comentou, dando os primeiros passos em direção à porta. ― E tenho dez minutos para estar no palco. ― Você está me deixando ― Isabella constatou desesperada. ― Vai me deixar para ele? Ela queria correr até John e esmurrar suas costas, mas estava paralisada. ― Não quero ser a esposa dele. Não quero me deitar com ele! Eu não lembro de nada que você me contou. Para mim, você ainda é o único homem. Sinto tanta saudade! John se deteve antes de alcançar a maçaneta. Levou um momento até ele se virar de volta para sua Bells. Com passos largos e apressados, ele a alcançou. Segurou o rosto dela com as duas mãos, acariciou seus lábios com os polegares e tentou raciocinar. ― Nunca traí minha esposa ― ele confessou com a voz aveludada, enquanto Isabella agarrava seus pulsos, sentindo seu hálito, a respiração ofegante. ― Durante todo o tempo em que te procurei, nunca traí você. Só encontrei outra mulher quando você já estava casada. Eu nunca traí nenhuma esposa. ― Para tudo tem uma primeira vez ― ela sussurrou convidativa, ficando na ponta dos pés e deixando que John a tirasse do chão. Rapidamente, sentiu seu corpo ser pressionado contra uma parede. Seus lábios se encontraram, as bocas se abriram, famintas. Ele sonhara com aquilo durante muitas décadas,
mas o sabor de sua Bells era infinitamente melhor que suas memórias. As mãos grandes e ásperas encontraram a maciez da sua pele, as curvas macias, os cabelos. Seu mundo sombrio foi tomado por ela. ― Bells ― John gemeu contra os lábios de sua amada ―, eu preciso estar no palco. ― Não sei o que quer dizer com isso, mas entendo que deve ser importante ― ela murmurou um pouco mais calma. ― Tenho que te explicar muita coisa. O mundo não é mais o mesmo. ― Então, vamos dar um jeito de ficarmos juntos? ― Isabella quis saber com os olhos esperançosos. ― É muito mais complicado do que parece. ― Por causa de sua filha? ― ela especulou. Não queria pensar agora no que aquela criança significava. ― Por causa de Rafael. As coisas que ele fez... Não confie nele, mas não deixe ele perceber que você não confia. ― Nunca confiei nele ― ela falou com ressentimento. ― E quando ele quiser... ― Você não é obrigada a ir para a cama com ele. Repito, o mundo mudou. Homens e mulheres têm os mesmos direitos. Diga que está indisposta, que sente dor de cabeça... Invente uma desculpa. Mulheres são especialistas nisso. Mas, em hipótese alguma, deixe Rafael saber que você voltou. ― Tomarei cuidado. Quando nos encontraremos de novo? ― Preciso dar um jeito ― John disse ao se afastar. ― Temos que ir agora, Bells. ― Tudo bem. ― Tome cuidado ― ele disse ao abrir a porta. ― E me prometa uma coisa. ― O quê? ― Isabella quis saber. ― Que nunca mais vai gravar um clipe seminua com outra banda que não seja a minha. Não suportaria vê-la contracenando com outro homem novamente. ― Como disse?
Marcas do passado
Isabella sentiu o calor das pontas dos dedos de John tocarem sua pele abaixo das omoplatas. Ela se deteve no topo da escada, invadida pelas lembranças dolorosas. Um dos braços dele a envolveram e puxaram-na para seu peito. A respiração descontrolada de John causou cócegas na nuca de Isabella, enquanto ele a levava de volta para o telhado. ― O que aconteceu? ― ela sussurrou, entorpecida pelos sentimentos. Novamente, as estrelas brilhavam acima de suas cabeças. ― A marca ― a voz de John soou estridente. ― Minhas iniciais estão marcadas nas suas costas, Bells. Você está usando um vestido de costas nuas. Todos irão ver. Antes de sair de casa, ela tinha se olhado no espelho e aquela cicatriz não estava lá. Isso tinha aparecido há poucos instantes, junto com as recordações de sua vida passada. A Bells que ele tanto amou; agora, sete anos mais velha e ainda mais bonita. O ar abandonou seus pulmões quando ela se virou para encará-lo. O que ele poderia fazer? Não poderia enfrentar Rafael, tomar sua filha de Endy ou deixá-la. Não tinha como ser mais difícil. O novo marido de Isabella era mais perigoso do que John poderia imaginar. E, por causa da marca, Rafael saberia que Bells tinha despertado. As mãos de John estavam fechadas em punhos quando ela o encarou com um olhar penetrante e intenso. ― John Smith ― Isabella sussurrou, os lábios macios se movendo com sensualidade para pronunciar seu nome.
― Sinto muito por tê-la queimado. ― Não estou mais magoada ― ela murmurou tentando acalmá-lo. ― Foi uma coisa que... ― Que Rafael disse para você fazer. John acenou com o maxilar trincado. O quebra-cabeças se encaixou na sua mente, fazendo as engrenagens de seu cérebro trabalharem rapidamente. As coisas começaram a fazer sentido. Todas as coisas que Rafael falava, suas teorias, tudo. Ele engoliu em seco, enquanto Isabella passava seus braços em volta da sua cintura e apoiava a cabeça em seu peito. Desde o primeiro dia de casados. Rafael esteve envolvido em tudo. “A faça ser forte”, o rapaz dizia para John, “o sofrimento pode deixá-la dura como pedra”, “precisamos treiná-la, tenho um plano para fazer Isabella ser imortal”, “Quer alguém como você, John? Alguém que não envelheça, não importa quantas décadas escoam pelo ralo do tempo?”. ― Sim ― ele murmurou pensando alto. É claro que queria. E Isabella era uma moça muito bonita, alguém com quem ele gostaria de passar o resto dos seus séculos. John se apaixonara por ela na primeira vez em que a viu indo à igreja. A marcação a ferro quente era apenas o início dos rituais que Rafael planejava para Isabella. Seriam dolorosos, mas ele dera garantias de que funcionaria, e John teria sua esposa para sempre. Poderiam ter filhos... Então, ele começou a compreender tudo. Provavelmente, nunca existiram rituais. Tudo que Rafael queria, da maneira mais sutil possível, era fazer com que Isabella odiasse John. Se sentiu o homem mais tolo que já existiu na face da terra. Não queria acreditar, mas era a realidade, desnuda e sem tempero. Por causa das calúnias do anjo, ele fizera aquele amor morrer, dia após dia, até acabar completamente com ela. Rafael tinha conseguido Isabella. Mas... qual o motivo? Por que se esforçar tanto por uma mortal? Uma entre tantas. De certa forma, John entendia que Bells era especial, só que ele sentia isso porque a amava. E quanto a Rafael? Por que alguém poderoso como ele se empenharia tanto em conquistar uma garota? Não importava quantos anos tinham se passado, John continuava respirando. Tantas noites, tantas vidas deixadas para trás, corações partidos. Tão experiente, tão vivido! E levou quinze séculos para retirar a máscara de Rafael. ― Você precisa estar no palco! ― a voz doce e com o ar de ingenuidade o alertou. ― Não fui eu quem quebrou a promessa ― ele murmurou, encarando o nada. ― O amor que te prometi... ― Eu sei, John. Não duvido de você.
― Precisa cobrir essa marca. ― John retirou o terno e colocou em volta dos ombros de Isabella. ― Não se permita ser fotografada expondo ela. Não deixe que Endy veja, muito menos Rafael, pelo menos por enquanto. ― Vou usar seu terno a noite inteira ― ela disse, aspirando o aroma de John impregnado no colarinho.
∞∞∞ Quando voltou ao seu assento na primeira fileira, Isabella sentia-se levemente mais confortável, protegida pelo terno daquele que ela acreditava ainda ser seu marido. Não haviam se separado. John Smith ainda era seu esposo. Teve vontade de deixar o terno escorregar devagar para que Endy visse as letras marcadas em suas costas, mas Rafael interrompeu seu pensamento. ― O que aconteceu? ― ele quis saber? ― Está com frio? Está doente? Com pesar, ela percebeu que não era conveniente usar a peça de roupa de um outro homem que não fosse seu esposo. Para todos os efeitos, Rafael era seu marido do século XXI. ― Estava tremendo de frio, John me ajudou ― ela explicou vagamente, enquanto Rafael substituía o terno do amigo pelo seu. Isabella se apoiou no encosto do assento e torceu para o anjo não ver a cicatriz. ― E sobre o que conversaram? ― ele quis saber, enquanto Isabella entregava o terno para a senhora Smith. Ela limpou a garganta. Não tinha considerado aquela pergunta, mas, no instante em que ia abrir a boca para responder, uma grande cortina a sua frente foi puxada, revelando John e outros três homens, ambos vestidos de preto. Não foi o barulho da música que chamou a atenção de Isabella, muito menos os instrumentos nunca vistos antes ou as imagens que apareciam atrás da banda Fallen Angels. Toda a sua atenção foi direcionada a John. ― Sinto muito por tudo que fiz ― John cantarolou com sua voz aveludada e impecável. Ela estava perplexa, como da primeira vez que o viu. Mas aquele não era o mesmo John que Isabella costumava conhecer. Todos no teatro estavam cantando junto com ele. As pessoas pareciam amá-lo. E enquanto cantava, ele abria os sorrisos mais espetaculares que ela já vira. Sabia que aquela canção tinha a ver com ele, pelo modo como John cantava cada verso. Ele tinha colocado sua alma na letra daquela música e, de vez em quando, se
aproximava da beirada do palco e olhava diretamente para sua amada, mas logo direcionava seu olhar para Endy ou outra pessoa que estivesse na plateia. A canção acabou, as luzes se apagaram e as cortinas foram puxadas. Enquanto Isabella tentava se recuperar, ao lado do senhor Valentin e da senhora Smith, as cortinas foram abertas novamente, mas as luzes permaneceram apagadas. Uma nova canção começou a tocar. John estava voltando para se acomodar entre ela e Endy. De um jeito inexplicável, Isabella sentiu como se já conhecesse aquelas notas, as suaves e misteriosas batidas. As luzes avermelhadas se acenderam no palco, revelando um homem esguio e alto, usando uma camisa preta com todos os botões abertos, que exibia um abdômen impecável. Para Isabella, ele lembrava uma pintura de Jesus Cristo, com cabelo castanho na altura dos ombros, barba cheia e olhos azuis. O homem começou a cantar uma canção desafiadora e melancólica. Os olhos dele encontraram os de Isabella e, mesmo que Rafael estivesse ao seu lado, o homem cantou vários versos olhando diretamente para ela, o que a fez ficar tensa. Ela queria desviar o olhar, mas não conseguia. Sabia que John estava sentindo sua súbita mudança de humor. Ficou envergonhada. A voz do homem era atraente, assim como o jeito como ele movia os lábios. O peito de Isabella esquentou, seu coração bateu forte. Precisou umedecer os lábios e fechar as mãos em punho para tentar controlar o que era praticamente incontrolável. Ele era lindo, mas não fazia sentido que seu corpo reagisse daquele jeito. Tão quente! O som dos instrumentos ficou mais suave e o homem começou a sussurrar, mas Isabella não se prendeu ao que ele dizia, estava chocada demais com a cena exibida no telão atrás dele. Uma mulher com belas curvas, praticamente nua, vinha engatinhando pelo chão, usava uma venda negra e havia uma coleira em seu pescoço. O mesmo homem que estava cantando a puxava pela coleira na imagem no telão. Ela andou de quatro atrás dele de uma maneira perturbadoramente sensual, até que o homem parou e se ajoelhou para beijá-la na boca. O corpo de Isabella fervia agora. Sentia tanta vergonha que mal conseguia respirar. Não podia acreditar que a mulher andando de quatro atrás daquele homem era ela própria, Isabella.
Ethan
O clima estava tenso, Isabella podia sentir isso enquanto Rafael a guiava pelo tapete vermelho. John a seguia de perto, carregando Endy pendurada em seu braço. Eles assistiram a estreia do filme por duas longas horas, onde Isabella não conseguia tirar da cabeça as imagens dela engatinhando atrás daquele homem. Seu estômago doía. Que tipo de mundo era esse em que mulheres casadas se prestavam a tal papel e seus maridos pareciam não se importar? — Isabella, podemos continuar aquela conversa com a banda? — John perguntou como quem não queria nada. — Eles estão no camarim. A jovem virou o rosto na direção de Rafael, esperando sua aprovação. — Vou apresentar Endy a algumas pessoas — o anjo disse piscando para a esposa. — Só não me deixe sozinho por muito tempo. Espero que entrem em consenso. — Volto logo, querida — John murmurou para Endy e beijou sua testa. Virou-se para Isabella, apoiou a mão em suas costas cobertas pelo terno de Rafael e a guiou para os bastidores. — Que lugar é esse? Que espécie de mundo é esse? — a jovem perguntou com perplexidade no tom de voz. — Não era eu naquelas imagens, John! Eu juro! Jamais faria aquilo! Nunca iria me expor daquela maneira — ela murmurava apressada, sentindo que deveria se explicar para o marido da vida passada. — Todos viram meu corpo. Juro que não me lembro de nada disso!
— Um momento, Bells — John pediu, puxando do bolso da calça um dos aparelhos enviados do inferno. — Judith, ouça. Preciso que consiga um vestido que sirva em Isabella Valentin. Um vestido que cubra totalmente suas costas. Ela se machucou e não quer que isso apareça nas fotos. Você tem três minutos. John desligou o telefone e voltou-se para sua Bella. — Você precisa encarar as coisas com mais naturalidade, Bells. Sei o quanto parece impossível, mas Rafael não pode desconfiar de nada. — Vou tentar. Mas é difícil quando me vejo praticamente nua, encoleirada e arrastada por um homem desconhecido. — É apenas um vídeoclipe — John explicou. — Você estava interpretando. A música faz parte da trilha sonora do filme que assistimos. A canção da minha banda é a principal. Ninguém se chocou ao vê-la daquele jeito. As pessoas admiraram sua beleza e seu talento. Além disso, você já apareceu tendo apenas as mãos para cobrir os seios em centenas de capas de revistas. — O quê? Como assim? — Você é modelo, Bells. É o que chamam de Top Model. Seu corpo é seu instrumento de trabalho. Você ganha uma fortuna por mostrá-lo. Isabella franziu o cenho. De onde vinha, as únicas mulheres que usavam o corpo como instrumento de trabalho eram as meretrizes. Se sentiu extremamente suja. — Eles têm câmeras por todos os lugares — ele disse ao segurar a maçaneta da porta de um camarim. — É melhor sermos discretos. Apenas bons amigos. Ela assentiu. Judith, uma mulher alta, esguia e de longos cabelos prateados segurava um lindo vestido azul tiffany com um decote frontal. — Bom trabalho, Judith — John elogiou a figurinista da banda Fallen Angels. — Agora, poderia dar licença? Isabella precisa se trocar.
∞∞∞ Quando voltaram a encontrar seus respectivos cônjuges, Isabella estava com as costas cobertas e instruída sobre como se comportar diante das câmeras, além do que dizer a respeito do encontro com a banda de John, que também estavam inteirados sobre a mentira. John sorriu despreocupadamente para Endy e beijou sua testa enquanto Isabella devolvia o terno de Rafael. Os quatro, seguidos de outros convidados e membros do elenco,
seguiram para um salão de festas onde a música e as luzes deixaram Isabella tonta. Do outro lado, o homem, que lembrava uma imagem de Jesus Cristo, notou Isabella assim que ela adentrou o lugar. Ele segurava uma taça de champanhe, mas a deixou em cima de uma mesa e se aproximou do grupo a passos lentos. — John...? — ela sussurrou quando percebeu o homem vir na direção deles com os olhos fixos nos seus. — Vocês precisam tirar algumas fotos — John disse para que todos ouvissem, no momento em que o homem os encontrou —, afinal, o clipe foi um sucesso. — Parabéns, Ethan — Rafael cumprimentou o homem com um aperto de mão. — John tem razão, o clipe ficou demais. — Todos os créditos à Bella — Ethan respondeu, estendendo a mão para cumprimentar John e sua esposa Endy. O coração de Isabella se desfez ao ouvi-lo chamá-la pelo apelido íntimo de “Bella”. Um incêndio misterioso se iniciava em seu interior. Com um sorriso largo, ele voltou-se para ela e, com toda a habilidade discreta e sensual, colocou a mão na base de sua coluna e a puxou dos braços de Rafael. — Quase fizemos mais sucesso que o par romântico do filme — Ethan sussurrou no ouvido de Isabella. — Você arrasou com todos eles. — Obrigada pela confiança — Isabella respondeu ao elogio enquanto tentava retomar o poder de sua respiração. A enxurrada de sentimentos a deixou grogue. Seu corpo parecia agradecer pelo braço dele que estava, de maneira protetora, em volta dela. Se sentiu mal por tudo, mas não deixou de sorrir para os milhares de flashes que os fotografavam. Algum repórter mais ousado pediu para fotografar apenas Ethan e Isabella, o que fez com que ele a afastasse ainda mais do grupo. — Por que não atendeu minhas ligações? — ele perguntou, colocando as duas mãos na cintura da modelo, virados um de frente para o outro. Ela limitou-se a sorrir, atordoada com os flashes. Em seguida, ele induziu-a a ficar de frente para as câmeras, e se aproximou de seu ouvido, de modo que seu cabelo castanho caiu sobre o ombro de Isabella e lhe causou arrepios indesejados. — Não quer me ver mais? — Ethan sussurrou para que só ela ouvisse. Parecia chateado. De uma maneira estranha, o calor da pele do homem fazia Isabella querer ficar cada vez mais perto dele. — Seja discreto — ela disse, como pensou que John diria numa situação como aquela.
Os dois voltaram ao grupo. Ela se sentia muito mal por tudo, principalmente por ter que ficar ao lado de Rafael enquanto John estava com Endy. Ainda assim, ela notou seus olhos azuis com um brilho diferente, sua testa marcada pelo vinco. John havia acabado de descobrir o que estava acontecendo entre Ethan e a nova Isabella. Ele conseguia sentir as emoções indecorosas de Ethan e a confusão que era a mente de sua Bells. Ela não entendia o que havia se passado entre eles. Um caso extraconjugal não era nada incomum nos dias atuais, porém, no século em que ela nasceu, era motivo para um terrível escândalo. Ela não estava pronta para o século XXI. O maxilar de John trincou e seus olhos se vidraram em um ponto fixo. Isabella podia ver a dor em seu rosto. O salão já estava lotado de celebridades, e os fotógrafos, enfim, os deixaram em paz. Uma música agradável tocava e algumas pessoas estavam dançando, iluminadas por luzes coloridas. — Já que Rafael tem aquela luta em Manhattan — Endy disse, olhando diretamente para Isabella com um sorriso amistoso —, por que não vem conosco para Las Vegas? Lanai vai adorar ficar alguns dias com você. Rapidamente, Isabella concluiu que Lanai se tratava da filhinha de John. — Temos aquela reunião amanhã — Ethan lembrou, ainda muito próximo da modelo. — Vocês podem remarcar para outro dia — Endy sugeriu com uma doce insistência. — Você nunca veio à nossa casa, Isabella. A jovem piscou os olhos. Abriu os lábios para dizer algo, mas não soube o quê. Seus pensamentos foram inundados por imagens fantasiosas de como seria a casa de John, sua filha. Quão doloroso seria ver o novo casal Smith sentando-se à mesa para as refeições, se retirando para o quarto na hora de... Ela não poderia aguentar ver aquilo. Como ele se sentiria? Por favor, John! Ela gritou em pensamentos. — Não precisa vir se não quiser — ele disse parecendo ler sua mente. Na certa, tinha lido mesmo. — Ah, Isabella! Por favor — Endy ainda insistia. — Quer dançar enquanto analisa suas possibilidades? — Ethan perguntou e, antes que ela respondesse, já estava a guiando para longe deles. Pararam do outro lado do salão. Isabella estava confusa demais para sequer imaginar como se dançava no século XXI. O homem parado à sua frente, a encarando com curiosidade, era tão bonito que a deixava desconcertada.
— É isso que gosto em você, Bella — Ethan sussurrou —, você é imprevisível. Nunca sei o que vai acontecer. — Eu... Não sei dançar — ela cometeu um erro ao confessar. Mas Ethan imaginou que fosse apenas uma brincadeirinha da divertidíssima Bella. — Coloque suas mãos em mim, no meu pescoço — ele pediu e, cega pela luz dos seus olhos, ela obedeceu. — Só me siga, um passo de cada vez. Movendo os pés para acompanhar Ethan, ela odiou a nova Isabella. Se fosse para se casar com um homem que não fosse John, deveria ter escolhido Ethan, e não uma criatura mentirosa e dissimulada como Rafael. Se perguntou o que ele lhe fazia para ela estar o traindo. E como ele não suspeitava de nada? Será que Rafael ainda tinha asas? Ainda podia voar? — Há quanto tempo estamos... — ela começou a perguntar, mas não sabia que palavra usar. — Quase um ano — Ethan respondeu. — E você não quer ir a Las Vegas porque não vê a hora de ficarmos a sós novamente. Eu também não. Estou louco para saber quem ficará amarrado dessa vez: você ou eu. Isabella ficou tão vermelha e envergonhada que interrompeu os passos de dança. Olhou para o homem dos pés à cabeça. Ela o amarrava? E o que fazia depois? Seus pés a levaram de volta para o grupo. — Vou com vocês, Endy — ela disse apressada, percebendo que estava pronunciando o nome da esposa de John pela primeira vez. — Você não se importa, Rafael? — Claro que não, amor — o anjo disse. — Assim que acabar a luta, pego um avião para Las Vegas. — Você também vai? — John o questionou, chocado. Rafael nunca tinha ido visitálo desde que Lanai nasceu. Seu coração bateu forte. — É claro que vou, Johnny! — o anjo respondeu com um sorriso largo e malicioso. — Você, Isabella, eu... Conversaremos sobre os velhos tempos! O coração velho e cansado de John se apertou no peito. O principal motivo de ele ter ido morar em Las Vegas era manter sua nova família longe do anjo caído. Rafael nunca tinha visto Lanai. Então, isso ia mudar. John temeu pela segurança de sua família e, acima de tudo, teve medo do que Rafael poderia induzi-lo a fazer.
Smith
Surpreendentemente, os dois séculos que John Smith passou sem sua Bells tinham feito muito bem ao seu otimismo. Ele estava confiante em relação ao futuro, imaginando que Rafael só queria matar a saudade dos velhos tempos em que os três viveram juntos. Não tinha nada a ver com chantagens infernais e manipulações. Claro, John não era capaz de sentir os pensamentos de Rafael, mas o amigo não tinha lhe dado nenhum olhar suspeito. Só o velho e conhecido sorriso malicioso que o anjo costumava dar quando estava na companhia de Isabella. Portanto, John Smith não gastaria suas energias pensando no que Rafael queria dizer com aquilo. A mulher que ele tanto amou estava descansando no quarto do outro lado do corredor, e isso sim era motivo para deixá-lo inquieto. Imaginou vinte e três maneiras diferentes de levantar da cama, sem acordar Endy, e ir até o quarto de hóspedes e se enfiar embaixo dos lençóis com sua Bells. Mordeu a parte de dentro da bochecha e respirou fundo. Não conseguiria dormir, por mais que estivesse acordado a mais de 24 horas. Levantou da cama devagar e vestiu uma camiseta de algodão, se preparando para tomar um café da sua máquina de café expresso — umas das inúmeras vantagens do século XXI. Já passava do meio dia, mas Endy gostava de dormir até tarde quando perdia uma noite de sono. Ele se acostumou a acompanhar sua rotina. Abriu a porta do quarto e, como se ainda existisse uma conexão muito forte entre eles, Isabella estava parada do outro lado do corredor, segurando a porta, usando um robe de seda azul. Por um segundo, John só conseguiu pensar em tomá-la para si. Mas conseguiu se
conter. Nunca tinha amado duas mulheres ao mesmo tempo. Era confuso querer estar com as duas. — Não consegue dormir? — ele perguntou. Ela fez que não com a cabeça. — Quer tomar um café? Para John, muitos e muitos anos haviam se passado, só que para Isabella, a lembrança do marido a queimando com café quente ainda estava fresca em sua mente, o que fez com que ela se encolhesse. — Não sou mais aquele homem, Bells — John sussurrou ao sentir o medo vindo dela. — Sei que nunca vai me perdoar, mas... Nesse momento, o celular dela estava tocando. Ela já havia aprendido como manipular o aparelho e nem pensava mais que ele tinha sido enviado do inferno. O considerava muito útil, na verdade. — É melhor atender — John comentou, a deixando sozinha na porta. Ele precisava de um café forte para reorganizar os pensamentos. Quando Isabella desceu, a casa já funcionava a todo vapor, com Lanai espalhando brinquedos pela cozinha e Endy atendendo telefonemas totalmente desperta. — Se Rafael virá — ela disse ao notar Isabella se aproximando —, precisamos planejar algo para fazermos, não acha, Johnny? Bella tremeu ao ouvi-la falar daquela maneira. Johnny. Era doloroso demais. — Talvez eles só estejam a fim de descansar — John respondeu, ajudando Lanai a montar uma casa de bonecas feita de lego. Isabella se perguntou como ele se sentiu quando soube que iria ser pai. Desejou com todas as forças que aquela fosse a sua vida, que a filha fosse deles. Apertou os olhos e implorou para acordar daquele pesadelo, mas, ao reabri-los, ainda estavam na mesma cozinha, Endy continuava tagarelando e ela não pertencia mais a John. Era um completo pesadelo. Tinha de existir um modo de resolver aquilo. Por fora, ela tentava sorrir, enquanto aquela mulher estranha e ladra de maridos a convidava para sentar. Por dentro, entrava em desespero total. A morte tinha que desfazer tudo aquilo. — Preciso ir agora — Endy falava, enquanto beijava a bochecha de Isabella. — É um prazer imenso receber você na nossa casa. Juro que não volto tarde. Podemos ir a um cassino à noite. O que você quiser, Isabella. A mulher beijou a garotinha e saiu pela porta dos fundos tagarelando ao telefone.
Isabella se sentiu mais à vontade para olhar a criança filha do seu amado. A menina tinha três anos, mas era grande para sua idade — puxara ao pai que media quase dois metros de altura —, possuía cabelos loiros e aquele mesmo tom de azul raro que Isabella só tinha visto nos olhos de John. Ela não se parecia em nada com a mãe, era a cópia viva do pai. A jovem reparou que John se desconcertou quando ficaram a sós, e suas mãos não conseguiam mais encaixar os legos nos lugares certos. — Papai! — Lanai reclamava, demonstrando ter uma personalidade forte. — Você não está fazendo direito! Por um instante, Isabella imaginou se conseguiria agarrar John, Lanai e fugir com eles para um lugar bem bem bem longe, onde Rafael nunca pudesse encontrá-los. — Ele te seguiria a qualquer lugar — John murmurou antes que ela falasse. — Precisamos pensar em alguma coisa — ela implorou. — Não podemos continuar assim. Tem que haver um jeito de fazer as coisas voltarem ao normal. — O relógio não anda para trás, Bells. Não há como voltar no tempo. — Você está desistindo de mim? — Filhinha, vá brincar na sala, papai precisa conversar. Obediente, Lanai se foi. John levantou do chão e foi até a mesa onde Isabella estava sentada. — Desisti de você quando essa nova Isabella se casou com Rafael. Segui minha vida. Eu tenho uma vida, que gosto muito, aliás. Não posso simplesmente largar todo o resto, colocando você e minha família em perigo. Rafael fez alguma coisa muito grave para que a morte devolvesse só o seu corpo e mantivesse sua alma presa. Seja lá o que fez, teve trabalho. Ele não iria abrir mão de você da noite para o dia. Está vindo para cá e a gente precisa se controlar na frente dele. Até descobrirmos alguma coisa de concreta, não vou colocar nenhuma de vocês em risco. — E como descobriremos isso? — Invocando o anjo da morte — John sussurrou — e arrancando explicações dela. — Você acha seguro? Ela já aprontou demais comigo. — Temos outra escolha? — Não — ela respondeu pesarosa. — Como invocaremos a morte? — Não deve ser muito difícil de conseguir contato se estivermos perto de alguém que está passando dessa para a melhor. Aliás, você vagou na cola dela por anos a fio. Deve
haver uma ligação entre vocês duas. Isabella se encolheu com o sentimento de estar caindo e sendo arremessada em várias direções, por quase uma eternidade. Não queria passar por tudo aquilo novamente. — Então vamos descobrir o que Rafael fez para conseguir ficar com você. — Como? — Isabella questionou, colocando pouca — ou nenhuma — credibilidade nos planos de John. — Barganhando. Sei que ela ainda quer minha alma. Que lá embaixo tem alguém muito interessado em me pegar. — Você não pode se oferecer em troca de... — Shiii — ele a interrompeu, ao perceber que ela entrava em desespero, colocando o dedo indicador contra seus lábios, causando uma reação peculiar no corpo da jovem. — Confie em mim, Bells. Ela engoliu em seco, desejando se aproximar um pouco mais daquele homem. — E depois... Caso isso dê certo, se conseguir afastar Rafael de mim... — Isabella fez uma pausa significativa antes de prosseguir. — Em que parte da sua vida vou me encaixar, John Smith? Ele sabia exatamente a resposta que Bells queria. Aquela era a segunda parte mais complicada: Endy e Lanai. John respirou fundo e sentou-se à mesa, ficando de frente para sua Bells. Para sua sorte, ele era o único dos dois a sentir as emoções dos outros. — Antes de resolvermos que parte da minha vida vai ocupar, senhora Valentin, você precisa escolher com quem quer ficar. Não sou o tipo de homem que divide a mulher, que aceita ser traído — John disse como se fosse uma bola de cristal e pudesse prever o que viria a seguir. O iPhone de Isabella começou a tocar alto e vibrar sobre a mesa. John alcançou o aparelho e deu uma rápida olhada no visor, onde a imagem de um homem que lembrava Jesus Cristo aparecia. — Ethan — ele disse com desdém. — Você deve fazer um sexo muito bom para ele estar tão obcecado. As bochechas de Isabella coraram com intensidade. As pessoas do século XXI não tinham pudor algum. — Não quero... Não vou atender! Aquela Isabella não existe. Nunca existiu. Era um ser humano sem alma, sem princípios. Sinto muito por você tê-la conhecido. — Você o quer — John disse, tentando controlar o tom de voz, a olhando por baixo
dos cílios grossos. Mas só ele sabia como estava se sentindo por dentro. — Não estou falando da outra Isabella. Estou falando de você. Da mulher que foi casada comigo. Você quer saber como ele faz. Eu senti. Muito mais forte do que o sentimento que você tinha por aquele frangote. Como era mesmo o nome dele? — Stefan — ela sibilou. — Isso. O que sentia por ele não chega nem perto. É mais forte que você. Seu corpo quer e você está curiosa para saber como é. — Pare! — Vamos lá, atenda! Ele está ligando de novo. Não vai desistir. — Alô! — ela atendeu com tanta frieza que fez Ethan se deter por alguns instantes. — Bella? Minha deusa, o que está acontecendo com você? — o homem murmurou no outro lado da linha. Ela estava ciente que John podia ouvir. — Você quer descobrir? — John sussurrou. — Quer saber como ele faz? — Eu. Não. Quero! — Isabella cuspiu as palavras. — Ethan, não posso falar agora. — Podemos nos ver à noite. Pego um avião para Las Vegas. Vamos a um cassino, fazemos algumas apostas e depois... A voz de Ethan calou-se quando Isabella apertou o botão vermelho e desligou a chamada. — Ele está ficando desesperado. Sei exatamente como ele se sente. Sei muito bem como é perceber que está perdendo você e não poder fazer nada. — De que lado você está, John? Vai me ajudar ou me empurrar para outro homem? O que diabos aconteceu com o John Smith que eu conhecia?
Los Angeles, Janeiro de 2002
Era
um bom ano para John Smith. Um ano maravilhoso. Todas as teorias, apreensões e superstições que envolviam a virada do século tinham se mostrado sem fundamento. A América era um excelente lugar para se viver, mesmo depois do terrível incidente do 11 de setembro. Por medo da ironia do destino, John chegou a imaginar que sua Bells poderia estar no avião, ser uma das vítimas do atentado. Precisou ir até lá e tudo que ele sentiu foi horrível — até para John Smith. Muitas mentes compartilhando a mesma coisa, famílias destruídas. O sentimento de luto tomou conta daqueles pensamentos. Eram muitas emoções e John conseguia sentir todas elas. Não era algo que ele pudesse evitar. Mas quatro meses haviam se passado e, agora, ele se sentia feliz, realmente feliz. Tinha encontrado sua Bells em um orfanato em Pasadena. Era o que ele mais desejava. Ela tinha onze anos. Uma criança, mas ele esperaria. Ela também não se lembrava de nada, só que isso não era problema. John via aquilo com positividade. Encara esse detalhe como uma nova chance de conquistá-la, de fazer ela se apaixonar pelo John certo. Quando ela tivesse idade, claro. Para quem tinha passado mais de duzentos anos procurando, o que seriam quatro ou cinco? Um piscar de olhos.
Então, lá estava ele na porta do orfanato, esperando para ser atendido. Era a terceira vez naquela semana que ele aparecia com presentes. Um carro cheio deles. Isabella queria uma nova boneca e ele não achava justo presentear apenas uma criança, quando havia tantas carentes de atenção. As freiras adoravam a presença de John. Ele estava reaprendendo a ser um homem carismático. Elas permitiram que ele entrasse e recolheram todos os presentes. John não fazia questão de entregá-los para as crianças, preferia ficar no anonimato — exceto com Isabella. Eles se encontravam no pátio, perto de uma fonte que já não funcionava mais. Isabella ficava linda no uniforme azul marinho. John tentava a todo custo não pensar naquela menina como a mulher com quem ele tinha se casado, e ficava ansioso com a ideia de esperá-la crescer. No início, ele não sabia exatamente o que fazer, se devia pegá-la no colo, segurar sua mão, beijar seu rosto. Mas, apesar da confusão de comportamento, ele estava feliz. Muito Feliz. John se sentava na borda da fonte e atirava pedras dentro dela até sua Bells aparecer correndo. — Me disseram que você é meu tio, um irmão da minha mãe — ela disparou a falar assim que o avistou. Estava usando os patins cor de rosa que ele tinha lhe dado uma semana antes. Girava em torno da fonte, sem dar muita atenção a John, com os joelhos esfolados e a saia azul esvoaçando. — Quem disse isso? — John murmurou ficando de pé, em posição de correr para socorrê-la se acaso ela caísse. — As meninas do dormitório. Disseram que temos um olhar parecido. Sua voz era doce. Era mágico ouvi-la falar. — Se eu fosse seu tio, tiraria você daqui e te levaria para morar numa casa bem grande. — Então por que não me leva? Mesmo sem ser meu tio. Quero ter uma casa, um quarto só meu — ela choramingava. — Eu não posso. Não sou casado e eles não me dariam sua guarda. Se ao menos você se lembrasse. — Me lembrar de quê? — Nada, meu amor. Me fale sobre seu dia.
Julho de 2003 Era verão. Um verão infernal, e Isabella estava com quase treze anos. Naquele dia, ela não conseguia controlar os pensamentos. Tinha menstruado pela primeira vez e imaginava o quanto aquilo ia mudar sua vida. John pensava como seria se estivessem em um século anterior. A primeira menstruação de uma garota marcava o início da sua vida adulta, quando já poderia se casar. Eles estavam em um parque de diversões e ela se recusava ir em qualquer brinquedo onde avistava crianças. Se considerava muito madura. John se limitava a revirar os olhos. Ele dava tudo que ela queria, e ela sempre queria mais: roupas, tênis, sandálias de tiras, meias, maquiagem, perfumes, pilhas novas, um pijama que brilhava no escuro, CD’s, livros, revistas feitas para aborrecentes, brincos, roupas de banho, pulseiras, caixas de maquiagem, uma colcha de cama do cantor que ela gostava, pôsteres, ingressos para ela e as amigas irem ao cinema, ingressos para o parque, ingressos para matinês, ingressos para jogos, feiras, exposições, revistas em quadrinho, edições raras, miniaturas raras, mais roupas, livros de capa dura, babyliss, removedores de maquiagem, cílios postiços, celular, telefone sem fio, jogos, bolsas, mais roupas, entre outras coisas. Era impressionante a capacidade que ela tinha de sempre pensar em coisas novas para exigir dele. Mas nunca parecia satisfeita. Simplesmente parou de se mostrar agradecida. Isso o magoava, mas ele acreditava que era um processo e precisava ser paciente. O corpo de menina mudou. Ela ainda era magra, mas os seios já começavam a aparecer. John imaginava que faltava pouco para ela se apaixonar por ele. A ansiedade era cada vez maior. Apesar disso, ele a respeitava. Raramente a tocava sem necessidade. Beijava-lhe o rosto quando a encontrava, se ela não estivesse com um humor insuportável, e segurava sua mão quando precisavam atravessar uma rua muito movimentada. Os abraços ocorriam apenas quando John lhe presenteava com algo que Isabella julgava que ele não fosse conseguir comprar. Ainda no parque, após ele ter acertado no tiro ao alvo para pegar o urso enorme que ela queria, um grupo de rapazes passou por eles. Tinham em torno de quinze anos. Isabella estava com o braço encostado no de John, mas se afastou quando um dos rapazes olhou para ela, imaginando que não queria ser vista perto de John Smith. Ele sentiu seu pensamento e a dor foi instantânea. A garotinha de doze anos que
John tanto amava... tinha vergonha de ser vista com ele. Se perguntou o que tinha acontecido com sua Bells. Talvez, quando ela alcançasse a idade que tinha quando deixou a vida, sua memória voltasse. Ele só tinha que ter um pouco mais de paciência.
Dezembro de 2004 Todo o orfanato foi à Disney. Era o presente de Natal que Isabella queria. Até as freiras estavam hospedadas no resort. John Smith pagou tudo. Havia um laguinho no hotel e eles andavam em torno dele. John atirava pedrinhas que quicavam na água e Isabella estava irritada por não conseguir imitá-lo. — Dizem que você quer muito fazer sexo comigo — falou repentinamente a adolescente de quatorze anos. John engasgou na própria saliva, mas conseguiu disfarçar. — Quem te disse isso? — ele perguntou, sentindo o coração bater mais forte. — Todo mundo fala — Isabella respondeu com franqueza. — Sabe, quando você não está por perto, as pessoas comentam. Acham estranho você me dar tudo o que quero. Ele não sabia o que dizer. Não era de tudo mentira, mas ele não desejava aquela criança que beijava os colegas na escola. Ele queria a Isabella mulher e estava esperando por ela. Faltava pouco. — Eles são uns idiotas que têm inveja. Não deveria ficar preocupada. Alguma vez, em três anos, já faltei o respeito com você ou te fiz pensar isso? — Nunca — a adolescente respondeu rapidamente. — Você nunca, jamais me fez nada parecido. — Então não se preocupe com o que os outros falam. Eles só queriam ter alguém que os amasse como eu amo você. — Você faz sexo? — Isabella perguntou tirando o ar dos pulmões de John. — Que
bobagem, claro que faz. Mas você faz muito? — Isso... — ele procurou as palavras. Aquela garota estava cada vez mais ousada. — Isso não é assunto... Não vamos conversar sobre isso. — Eu faria sexo com Nick. Nick era um cantor de uma banda idiota que Isabella idolatrava. Imaginava que ia se casar com ele e tinha até uma calcinha com a foto do cantor. John sabia disso porque ela pedira dinheiro a ele para comprar a peça, e seus pensamentos tinham ficado muito claros. John estava imaginando se ela ia gostar tanto assim dele caso ele viesse a montar uma banda e fizesse muito sucesso.
Outubro de 2005
Rafael voltou. Os amigos não se viam há algumas décadas. O anjo queria conhecer Isabella, mas John disse que era melhor esperar. Ele não ia mais visitá-la com tanta frequência, porque alguns pensamentos de Isabella eram impossíveis de aguentar. Mas, pelo menos uma vez por semana, ele lhe dava o ar da graça. Numa tarde chuvosa, depois da escola, Isabella foi encontrar seu benfeitor em uma lanchonete sofisticada da região. John comprara um buquê de flores e esperava por ela na mesa mais afastada. Ela entrou pela porta usando o último jeans que ele tinha lhe comprado. Estava cheirosa e deslumbrante. Todos os homens do lugar olhavam para aquela moça. Ele respirou fundo e esperou que ela se sentasse ao seu lado. — Para quem são essas flores? — a garota perguntou curiosa. — Arranjou uma namorada? — São para você, Bella — ele disse se aproximando um pouco mais. Ela já tinha beijado uma porção de garotos e John não poderia mais ficar esperando. — Obrigada — ela disse se inclinando para aspirar o perfume das flores, e sua mão esbarrou na de John. Ele a segurou e a puxou até sua boca para beijar os nós dos seus dedos.
Cerrando os olhos, John se concentrou ao máximo para ler os pensamentos de sua Bella, saber se ela tinha gostado. Mas não havia nada sobre ele naquela mente adolescente. Isabella estava pensando... estava... estava pensando no rapaz que acabava de adentrar a lanchonete. — Johnny! — Rafael disse com um sorriso, fingindo surpresa ao encontrar o velho amigo. — Não me disse que tinha uma namorada e que ela era tão bonita. — Não somos namorados! — Isabella teve pressa em esclarecer. — Somos só... Ah, senta aqui com a gente! E Rafael sentou, invadindo não só a mesa, como a vida dos dois.
Março de 2006
A banda era a tentativa mais idiota que John encontrou de chamar a atenção de Isabella. O sucesso não vinha tão fácil quanto ele pensava.
Agosto de 2006 Rafael só podia estar brincando. Que espécie de amigo ele era?
Abril de 2007
Isabella nunca seria uma fã da banda Fallen Angels. Ela jamais compraria pôsteres de John e colaria em seu quarto. Até por que não havia pôsteres para serem comprados. A carreira artística era uma droga, mas pelo menos mantinha John longe de Rafael e da sua falsa amizade. Isabella... Aquela garota fútil e obcecada por coisas e mais coisas não era sua Bells. Jamais seria. “Compre isso”, “compre aquilo”, “vi uma bolsa na vitrine da...”, “minhas amigas falaram de um novo celular”, “tem um show que queremos ir”, “já viu a nova jaqueta que estão usando? Não deve ser muito cara, John”. Todos os pedidos sumiram. O dinheiro dele já não era mais importante quando Rafael também lhe enchia de coisas. E ela deixou John de lado. Ele sentia falta de comprar coisas, mas não podia obrigá-la a amá-lo. Não existia nenhum presente que pudesse fazer ela se apaixonar por John Smith. Ainda mais agora que ela estava tirando fotos para uma agência de moda e podia comprar suas próprias coisas. Uma tonelada de coisas. A vida daquela garota se resumia a possuir coisas.
Janeiro de 2007 Já tinham se passado seis anos desde que John a vira pela primeira vez. A menina cresceu, se transformou em uma linda modelo, e agora apunhalava seu benfeitor pela frente, diretamente no coração. — Você é meu melhor amigo. Cuidou de mim quando ninguém mais se importava — Isabella dizia com timidez. — Me deu de tudo. No dia mais importante da minha vida, eu quero que você esteja comigo, que entre na igreja e me entregue para Rafael. Estou te convidando para ser meu padrinho. Estava acabado. Era o fim de uma era. Bater em Rafael não iria resolver absolutamente nada. Sequestrar Isabella, trancá-la num castelo e esperar que ela se apaixonasse só iria fazê-la odiá-lo. Ajoelhar aos seus pés a faria sentir pena dele. Ele já tinha tentado isso e o que Isabella pensou a respeito dele foi vergonhoso.
— Sei que você esperava que eu fosse mudar de ideia. Sei o que sente por mim. Mas é ele quem amo. Desde o primeiro instante que o vi. Você vai encontrar alguém, John. Há uma garota por aí esperando para ser chamada de Senhora Smith. Você só precisa procurar direito.
A dança da morte
Isabella o chamou no silêncio do carro: — John, me ouça. — É seguro, Bells. Confie em mim. — Acho que tenho motivos para nunca confiar. — Nós vamos até esse cemitério — John tentou explicar, mas foi interrompido pelos protestos de Isabella. — Foi justamente em um cemitério que a morte atirou uma flecha em mim! É por eu ter ido àquela necrópole que estamos desse jeito agora! — Ouça, Bells — ele disse com delicadeza, como se falasse com uma criança. — Ela não tem mais interesse em nós... — E o seu pacto? — Não existe mais pacto. Pelo menos, não preciso cumprir com nada. Acabou. — Como assim? Você está livre? Não precisa mais sacrificar pessoas? John Smith sorriu com satisfação. — Não, Bells, não preciso mais sacrificar almas inocentes.
— Como? — ela insistiu curiosa. — É uma longa história. E hoje não é meu dia de contar histórias. Se não fosse essa confusão toda, pensou Isabella, ela poderia viver anos muito felizes com seu amado, agora que ele estava livre de todas aquelas atrocidades e tinha caído em si a respeito de Rafael. — Preste atenção. O anjo da morte não tem motivo algum para fazer nada contra nós. Pelo menos, não esta noite. Eu tenho o objeto e vou usá-lo para invocar esse anjo. — Enquanto falava, John dirigia pelas ruas de Las Vegas, se afastando cada vez mais do centro. — Não sou experiente nesse assunto. Sei como fazer a invocação, mas não sou especialista nisso. Vou abrir um portal entre nosso mundo físico e o espiritual. Vou convidar uma entidade inumana, e pode ser que outras a acompanhem. Podemos ser surpreendidos por qualquer coisa. Não quero que nenhum espírito amaldiçoado pregue peças por aí, que machuque pessoas por minha culpa. Por isso o cemitério, onde todos estão mortos. — E quanto a nós? Eu acabei de voltar. — Quer saber o que Rafael fez para ter conseguido você ou não? — John perguntou com a voz áspera. — Se quer essa resposta... — Tudo bem.
∞∞∞ Havia um cemitério antigo nos arredores de Las Vegas. A superlotação obrigou o prefeito a construir uma nova necrópole na região, tornando o outro inativo. Musgos tinham tomado conta das lápides de pedra. As trepadeiras cobriam as catacumbas como uma cortina viva. A brisa soprava o cheiro típico de cemitério para os invasores. John pulou sobre o muro e ajudou Isabella a fazer o mesmo. Colocando o objeto que trazia em cima de uma das lápides mais altas, ele segurou as mãos de Isabella, com uma lanterna acesa embaixo do braço, e a encarou por alguns segundos. — Eu ainda te amo. O mesmo amor que sentia desde que te vi pela primeira vez. Como se não existisse ninguém mais no mundo que pudesse fazer eu me sentir vivo, como se meu corpo e minha mente fossem padecer sem você — John confidenciou aos sussurros. — Naquela época tudo era diferente e eu nunca poderei me desculpar pelas coisas que te fiz, sei que não tem perdão para mim. Não há nada que eu possa fazer sobre o passado. Como eu disse mais cedo, o relógio não anda para trás. O tempo é como água escoando pelo ralo. Eu só queria ter te conhecido nesse século, gostaria de ter cuidado de você como cuidei
daquela criatura que ocupava seu corpo. Se fosse você, eu teria te levado até algum abismo perto da costa, para vermos as ondas quebrando lá embaixo. Eu teria esfregado as mãos em seus ombros quando a brisa soprasse fria contra nós. Teria beijado o topo da sua cabeça e esperaria você ficar distraída, então eu me ajoelharia e tiraria um anel do bolso. Você me olharia com surpresa e não haveria nenhuma riqueza no mundo que pudesse se igualar ao que o seu sim significaria para mim. Essa seria uma de nossas lembranças mais doces. Acontece que não posso manipular nada. Forças maiores destruíram todos os planos que fiz enquanto te procurava. Mas ainda temos o “daqui para frente”. Eu tenho uma vida e não posso largar tudo, não sou mais esse tipo de homem, sem mencionar os riscos que corremos. Não estou desistindo de você. Só preciso de tempo para entender o que aconteceu e procurar uma saída, um jeito de nos livrarmos dele. Então seremos só você e eu... Claro, minha filha também. Preciso de tempo. Adoraria te pegar agora e beijá-la, fazer coisas que meu corpo implora. Ainda assim, quero fazer a coisa certa. Ainda sou casado. Não quero que seja minha amante, não quero que se rebaixe a isso. Depois de tantas palavras, Isabella não sabia mais o que dizer. John havia amadurecido mais nesses duzentos anos do que no tempo que vivera antes. Ela gostava de como ele estava agora, apesar dos pesares. O tempo em que ela passaria esperando que tudo se resolvesse só serviria para aumentar a vontade de pertencer a ele novamente. — Acho que tem borboletas dentro do meu estômago — ela murmurou com a garganta áspera de emoção e o abraçou com força. — Sabe, eu cheguei a imaginar que tudo era coisa da minha cabeça, que você nunca tivesse existido. — Nós vamos ficar juntos novamente — Isabella disse com convicção. — Você será meu e eu serei sua, e o resto da minha vida será dedicada a você. Não quero pensar que vou envelhecer e você não. Não me importa. Ele beijou o topo da sua cabeça e a manteve em seus braços por um longo momento. Era como estar em casa. Isabella era seu lar, por mais estranho que parecesse. John se perguntou como tinha suportado dezoito séculos sem conhecê-la, como foi forte o suficiente para manter a sanidade durante os dois séculos que passou procurando por ela. Aquilo tinha ficado no passado, e eles precisavam se preocupar com o futuro. — Vai mesmo largar Endy? — Eu preciso de tempo. — Você tem todo o tempo do mundo, John. — Vamos em frente. Temos que fazer o que é preciso. Dito isso, John a puxou para adentrar o cemitério até estarem bem afastados do muro. Sobre o mato crescido, ele abriu a mala que transformou-se em um tabuleiro com letras e palavras em uma língua desconhecida.
Isabella observou curiosa, enquanto John murmurava coisas em latim. Ela imaginou que ouviria raios caírem, luzes e até fumaça, mas estava calmo ao redor do cemitério. — Feche os olhos — ele pediu e, após mais algumas palavras, calou-se. O coração de Isabella martelava nos ouvidos. Desejava segurar as mãos de John. Não queria ficar no escuro. Esperou pacientemente um novo comando. O silêncio dominou o lugar, não houve alteração na brisa ou na temperatura. Nada. Apenas o nada. Chegou a pensar que John tinha ido embora, já que nem sua respiração ela ouvia. — Olá — uma voz melódica cantarolou e os dois abriram os olhos instantaneamente. Lá estava ela. — Olá, John Smith! — Como acabamos desse jeito? — Isabella berrou para o anjo da morte. — Menos! — a mulher disse erguendo a palma da mão para o rosto de Isabella. — John, controle essa criatura. Ele pensou em dizer para o anjo medir suas palavras, mas eram eles que deveriam ter cuidado. — Por quê? — John foi objetivo. — Só nos explique o motivo de ter feito isso. — Querem saber porque fui tão generosa a ponto de consertar a história de vocês? — Consertar a história? Você transformou isso em uma tragédia quando me deu de bandeja para o anjo! — Bella gritou. — Abaixe o tom de voz que eu não apareci aqui para ouvi-la berrando. Devia se ajoelhar e ser eternamente grata por eu ter lhe poupado de John Smith. Consertei a vida dos dois sem que ninguém me pedisse! — Você vendeu a alma dela para Rafael — John tentava manter a calma. — Um demônio. — Querido John, você passou mais de 1500 anos com Rafael, sabe que Isabella não pode exatamente pertencer a ele, não é? — a mulher continuou. — O quê? — Isabella perguntou sem entender o que a morte queria dizer. — Escutem bem, porque não vou explicar duas vezes! Eu tive trabalho para arquitetar a vida de vocês exatamente como está agora. Eu trouxe duas pessoas do passado de ambos para este século. Não foi coincidência, também não foi nada fácil. Isabella, meu doce, você o amava. Sinto muito por não ter trazido a mesma aparência que aquele rapaz tinha no século XVIII, mas o sentimento não mudou. Me diga se estou errada, mas quando o viu foi como se já o conhecesse, não é mesmo?
— Stefan...? — Isabella murmurou a pergunta. — Você trouxe Stefan de volta? — Ethan? — John também questionou. — Isabella, qual era a coisa que você mais desejava do fundo do seu coração? Se livrar de John e poder viver com Stefan, não era? Você pedia com todas as forças. Foi o pedido mais sincero que fez durante dias. Queria se livrar de John, e foi exatamente isso que te dei. Acha que John iria te querer quando começasse a ficar velha? Não seja tão ingênua! Não reclame de o rapaz não ter a mesma aparência de antes. Ethan não é alguém que se joga fora. Ele a ama e vai envelhecer junto com você. — Isso é um monte de bobagem — John falou exasperado. — Bella não ama esse cara. — Do que está reclamando, John? Como pode ser tão ingrato? — a morte disse com sarcasmo. — Não diga que não a reconheceu? — Quem? — ele grunhiu. — Ah! Como são tolos. Fazem juras em pensamentos sobre amor eterno, eu dou um novo corpo a uma alma que tanto amaram e não os reconhecem mais. Como são fúteis! Se apegam a um corpo físico quando é o espírito que rege o que cada um de vocês é. — Diga! — John exigiu. — Qual a mulher que você mais amou? — Isabella — ele disse por entre os dentes. — Ainda a amo. — Tem certeza? Analise bem seu coração, Johnny, querido. Por quem você fez os maiores sacrifícios que um homem poderia fazer? Não se lembra? Nos braços dela você chorou. Nos seus braços ela morreu. Quantas vezes você implorou para tê-la de volta nem que fosse apenas em um sonho? — Ana... — A voz de John era apenas um sussurro. A ficha caiu mais rápido para Isabella. Ana era o primeiro amor de John. Ele vendeu sua alma por alguns anos a mais com ela e nunca se arrependeu. Aquilo estava acima das coisas com as quais ela poderia lutar. Era Ana! — Vocês me cansam. Nunca a reconheceu? Em nenhum olhar da sua esposa você viu aquela garota? Pensei que sua memória fosse melhor. — Endy? — ele relutou em acreditar. Não conseguia trabalhar as informações para organizá-las por etapas. Estava paralisado. — Ana... Endy? O que era o amor por Isabella perto do que ele sentiu por sua primeira esposa? A primeira mulher com quem ele se deitou.
— Trouxe Stefan para Isabella e lhe devolvi não só Ana, como a filha que vocês teriam se ela não tivesse adoecido. Eu trouxe duas pessoas do mundo dos mortos e lhe dei corpos novos, não sejam tão exigentes. Se não estão satisfeitos, não sou culpada. Só dei a vocês aquilo que mais queriam na vida. O silêncio voltou a cair sobre os dois. A esperança desapareceu completamente do peito de Isabella. Ela poderia tentar lutar contra Rafael, poderia esperar o tempo que fosse, mas não dava para ir contra um sentimento que estava enraizado no peito de John a mais de um milênio. Não tinha como vencer a reencarnação de quem ele amou incondicionalmente, pela mulher por quem ele fez tudo que estava ao seu alcance e nunca se arrependeu. Aquela com quem ele ficou casado por mais tempo, que nunca o magoou nem lhe despertou desconfiança. O primeiro e verdadeiro amor da vida de John. Enquanto Isabella... Mesmo que não fosse ela, estava ciente que jamais poderia apagar do coração dele a dor que foi vê-la se apaixonando por Rafael. As desconfianças com Stefan, e agora Ethan. Sentiu como se suas mãos estivessem amarradas. Não havia mais nada a ser feito. — Ela morre? — o sussurro de John cortou a noite. Sua voz estava comovida. Isabella estremeceu. — Sinto muito, Johnny — a voz da mulher e sua falsa empatia quase os enganou —, não posso consertar tudo. Ela morre quando completar os anos que ela viveu na outra vida. — E nossa filha? — Não me peça para lhe contar o futuro, homem! Se contente com o agora. Vamos lá, os dois, em uníssono, me agradeçam! Isabella se encolheu, incapaz de dizer alguma coisa. — Querida — a morte se dirigiu a ela —, por que quer tanto John Smith? Esse outro é muito melhor. — E quanto a Rafael? — Bella quis saber. — Como posso ao menos pensar em ser feliz estando casada com ele? — Como mudam de ideia tão rápido. Numa hora estão amando, são melhores amigos, e depois trocam tudo. Não consigo acompanhá-los. — Não seja dissimulada — John a repreendeu. — Você sabe sobre Rafael. Sabe mais que eu. — Tem razão. Eu sei sobre tudo — a mulher se gabou. — Então, como deixou que outra alma ocupasse o corpo de Isabella, alguém que se apaixonaria por ele? Logo ele, um demônio.
— Rafael é pior que um demônio, mas ele tinha muito mais a me oferecer, e eu não sou tola — a mulher confessou. — E como me livro desse anjo caído? — Isabella questionou, agarrada a uma última esperança. — Não seja boba, meu doce. Não tem como se livrar de Rafael. Você só precisa se dividir entre os dois. — Se ele é um demônio — John disse —, seu lugar é no inferno. Deve existir algum ritual que o leve de volta. — Aí é que está o problema, querido John. Rafael foi expulso não apenas do céu, mas também do inferno. Não tem como se safar dele. John acolheu aquela informação com um arrepio que percorreu sua espinha. Trincou os dentes. Tinha de existir um modo. — Seja mais clara! Por que ele negociou com você? Por que Isabella era tão importante para ele? — John fez a pergunta crucial. — Não banque o bisbilhoteiro. Não vou fazer fofoca. Se quer descobrir isso, terá que arranjar outro jeito. Mas, se eu fosse você, nem tentaria. Isabella não vai se livrar dele enquanto ela ainda o interessar. E ele tem muito interesse. John mediu as palavras por um instante. — Tenho mais uma pergunta — ele disse. — Entendi que ele me induziu a cometer os maiores pecados. Eu estuprei uma jovem e depois a matei. Rafael me disse que aquilo me salvaria. Hoje sei que era mentira. Se ele queria um mal daqueles, por que não fez ele mesmo? Por que desperdiçar tanto tempo me convencendo a fazer, se poderia ser ele o autor daquela perversidade? — O objetivo de Rafael não era executar barbaridades. Sua finalidade era te induzir a se autodestruir e machucar o próximo. Ele fez você maltratar Isabella porque nada o daria mais prazer do que ver você atormentado pelos seus crimes depois. Assim como te convenceu a fazer todas aquelas outras coisas que só você sabe. E como prêmio, ainda fez Isabella te odiar. As perguntas não tinham cessado, mas o tempo da morte sim. E tão instantaneamente como surgiu, ela se foi, deixando o casal em uma situação ainda pior do que quando chegaram ao cemitério.
John ainda pode ser cruel
A volta para casa foi conturbada e longa. John sabia que precisava regressar logo. Prometera a Endy que não iriam demorar, mas as coisas estavam ficando fora de controle, ainda mais quando o celular de Isabella não parava de tocar com as ligações de Ethan. — Pelo amor de Deus, atenda a essa droga! — ele rosnou quando perdeu a paciência. — Não sou como você pensa. Não estou conformada com essa brincadeirinha da morte. Não vou me jogar nos braços dele, ao contrário de você. — E eu nem posso dizer: o que foi que eu fiz para merecer isso? — John resmungou com ironia. — Fiz muita coisa para ser castigado. — Aposto que não está se sentindo castigado. Não vê a hora de se atirar nos braços dela. — Atenda a porcaria do telefone. — Não vai me empurrar para ele. — Não estou te empurrando para ninguém, Bells. Se você não o quer, atenda e pergunte onde ele está. Vamos até lá e eu te garanto que será a última vez que vai receber uma ligação dele. Naquele instante, ela não pensou no que tinha sentido por Stefan. Não pensou que Ethan fosse a reencarnação dele.
— Quem garante que ele está na cidade? — Você é o amor da outra vida dele. Ele vai atrás de você aonde for, desde que ainda haja esperança. Atenda e diga que vai encontrá-lo agora.
∞∞∞ Algum tempo depois, era John que ignorava as ligações de Endy. Estavam subindo no elevador de um hotel cassino de luxo. — Espere aqui — John pediu com o velho temperamento autoritário de volta. Deu três batidas com a mão fechada em punho e, quando Ethan abriu, ele empurrou a porta e a trancou, deixando Isabella no corredor. Ela não sabia se se sentia aliviada por ele ainda se importar com ela, ou se tinha desprezo por si mesma. John não levou mais de três minutos para sair. — Vamos, esse nunca mais vai te incomodar. — Ao dizer isso, ele segurou o pulso de Bella, mas ela se desprendeu do seu aperto. — Não vou agora — disse com uma ideia se instalando em sua cabeça. — Como não vai? Quer entrar aí? — Só não quero ir para sua casa e ver você abraçar a mulher da sua vida. Sei que está louco para fazer isso, para olhar nos olhos dela e tentar entender tudo que está acontecendo. E não quero ser testemunha. Não vou estar lá para ver. — Bells...? — John, vá viver a sua vida. Não tem espaço para mim nela — Isabella murmurou, ignorando o nó na garganta. — Não vou ficar na sua sombra esperando o dia que as coisas vão voltar ao normal, porque já entendi que não irão. Vá! É com ela que você quer ficar. — Não posso te largar sozinha em um hotel. Você é minha hóspede. As coisas não são fáceis de se resolver assim. — Só vá! Preciso ficar longe de você para colocar a cabeça em ordem. Se eu precisar, tenho o enviado do inferno para te chamar. O que doeu mais foi quando ele concordou. Quando John entrou no elevador e as portas se fecharam, Isabella soube que estava acabado. Uma dor rasgou seu peito, as lágrimas se formaram rápidas, mas ela ainda tinha seu orgulho. Não ia ficar em seu encalço esperando que... apenas esperando. Claro, sabia que ainda iria precisar de John Smith. Mas tudo era diferente agora.
Seu casamento tinha se desfeito e ela fora a última a saber. A vida tinha continuado para John, também continuaria para ela. Só não achava justo que, logo agora que ele tinha mudado, tinha aprendido a ser homem de verdade, toda essa confusão tinha acontecido. Enxugou as lágrimas e respirou fundo. Sua vida não girava mais ao redor de John Smith, e ela teria que fazer suas próprias escolhas, decidir e agir por conta própria. A primeira coisa que queria fazer era entrar naquele quarto de hotel e ver Stefan por trás de outros olhos. Bateu na porta e esperou um instante. — Quem é? — o homem quis saber. Não dava para negar. Sua voz tinha ficado ainda mais bonita. — Is... — ela começou a sussurrar, mas aumentou o tom de voz. — Bella. A porta se abriu instantaneamente. Sua barba estava suja do sangue que tinha escorrido do corte no lábio, ainda assim, Ethan não deixava de ser bonito. — Veio me destruir? — ele quis saber. — Me dê licença — a jovem disse, entrando na suíte. Sorriu com a lembrança que isso seria totalmente inadequado na época em que ela tinha dezessete anos. Encontrar um homem a sós era inaceitável, mas Stefan e ela já estavam acostumados com isso. — John Smith...? — Ethan murmurou com desprezo. — Esqueça o que John falou. Temos assuntos mais importantes para conversar — ela disse, mordendo o lábio e o examinando com precisão. Seu cabelo comprido estava preso em um coque despenteado no alto da cabeça, a barba suja de sangue, os olhos azuis brilhavam como um lago no verão. — Se queria terminar comigo, não precisava mandar um maluco me dar um soco. Eu não iria ficar implorando por você. — Shiiii — Isabella sussurrou e se aproximou dele, aproveitando a liberdade do século XXI para abraçá-lo bem forte. — Esqueça o que John disse. Os braços de Ethan corresponderam, ainda assim, antes que ele pudesse ficar mais ousado, a jovem se afastou. — Por que me olha como se não me conhecesse? — ele quis saber. — Onde fica o banheiro?
Ethan mostrou a direção e Isabella foi até lá, pegou uma toalha de rosto, molhou na água morna da pia e, quando saiu, ele já estava no quarto. Ela sorriu para ele, o que mexia com seus sentimentos, por mais que ele não pudesse entender nada do que estava acontecendo. — Senta aqui. — Isabella o puxou pela mão e sentaram-se na cama alta e macia. — O que está acontecendo? — Ethan quis saber. — Ainda não — ela disse e começou a passar delicadamente a toalha pelo seu lábio, limpando o seu ferimento. — Nunca disse a você o quanto tive sorte em conhecê-lo — falou como se estivesse conversando com o antigo Stefan, apesar de ser Ethan diante dela. — Nunca pude agradecer do fundo do meu coração por se arriscar tanto, por estar nessa situação. — Eu te amo, Bella. O que mais poderia fazer? Pego um avião e te sigo aonde quer que você vá. Por favor, não me arrasa desse jeito. Sei que também me ama. Ela não podia dizer que era verdade, não correspondia daquela forma. — Eu nunca estive com outro homem além do meu marido. — O que é isso, Bella? — Ethan perguntou surpreso. — Está ensaiando para um novo papel? — Shiiii! Me deixa terminar. Eu nunca fiz nada com outro homem além do meu marido. Nem mesmo um beijo. Você me deu muito quando eu não tinha nada para te oferecer. Quero que seja o primeiro depois dele. Seu coração estava incendiando quando ela largou a toalha no chão. O rosto de Ethan estava livre do sangue. Gentilmente, ela colocou as mãos em seu pescoço e se inclinou até seus lábios estarem juntos. Sentiu como se o segundo beijo fosse ainda mais emocionante que o primeiro, pelo menos foi isso que ela quis sentir. — Não vá embora — ele pediu com uma careta de dor emocional quando se afastaram. — Eu não vou. Para ele, tinha sido só mais um beijo. Para Isabella, não. Milhares de cenas passavam na sua mente, centenas de emoções. Era como seu casamento com Rafael deveria ter representado para John. Era o seu marco, a época de seguir em frente. Para sua sorte, Ethan beijava muito bem e a amava demais. — Eu deixo você me arrasar de novo, Bella — ele confidenciou. — Porque sei que você faz valer a pena.
— Acredita em reencarnação, Ethan? — ela o questionou inesperadamente. — O quê? — Ele parecia perplexo. Aquela não era a mesma Bella com quem ele passava noites em claro. — Acredita que já vivemos outras vidas? — Por que isso agora? É claro que acredito. Você sempre foi tão cética, fazendo piadinhas e debochando de mim, como se divertir-se às minhas custas fosse uma tradição a ser seguida — Ethan falava rápido. — Quantas vezes te disse que você é meu amor de outras vidas? — Aquela Isabella que você conheceu já não importa mais — ela disse sem se preocupar se ele iria entender ou não. — Acabei de despertar de um longo pesadelo. Já estive em um século distante, quando a vida era diferente. E eu te conheci lá. Me lembro de você. Isabella segurou as mãos dele, fechou os olhos com força e o beijou novamente. — Tenho tanta coisa para te contar — Ethan sussurrou. — Espero, do fundo do meu coração, que o pesadelo tenha acabado.
Opressão
No princípio, não era nada demais. Ethan tinha acabado de voltar de um desfile, onde tinha se apresentado com sua banda na passarela, enquanto as modelos desfilavam com as peças das novas coleções dos melhores estilistas de New York. Havia uma modelo que insistia em encará-lo durante o ensaio. Era a mais bonita do grupo. No final, ele estava indo embora com o número do celular dela. Se chamava Isabella Valentin. O sobrenome vinha do lutador Rafael Valentin. Eram casados. Mas Ethan encarou aquilo de cabeça erguida. Talvez ela não estivesse feliz no casamento. Os motivos de Isabella o querer eram irrelevantes. E, mesmo que o marido fosse um lutador conhecido por estraçalhar seus adversários no ringue, Ethan não pensou muito a respeito. Ligou para a modelo assim que chegou ao quarto do hotel onde costumava ficar hospedado quando ia à New York. Ela não demorou a atender. Ethan sentiu como se já se conhecessem. Ela era divertida. Quando desligou o telefone naquela noite, se acomodou na luxuosa cama para dormir. A noite há muito já tinha se transformado em madrugada. Mas antes de adormecer, Ethan ouviu um rangido que vinha da parede. Era como se ratos estivessem arranhando dentro das paredes. Pensando em criar coragem, ligar para a recepção e comunicar uma possível infestação de ratos no hotel, de cansaço, Ethan caiu no sono. No dia seguinte, tinha alguns compromissos na cidade e acabou ficando mais uma
noite no hotel. Quando chegou à suíte, já era muito tarde. Havia encontrado Isabella nos bastidores de outro desfile. Conseguindo um pouco de privacidade — momento raro para celebridades como eles —, deram o primeiro beijo. Foi emocionante e ele sabia que ia querer mais. Muito mais. A aliança no seu dedo anelar esquerdo era um detalhe quase insignificante, assim pensava Ethan, desde que fossem discretos. Ao telefone, naquela mesma noite, enquanto ele jantava com os outros rapazes da banda, marcaram de se encontrarem em uma praia afastada quando chegassem a Los Angeles. No já conhecido quarto de hotel, a sós, Ethan tirou suas roupas e tomou um banho quente, saindo logo depois com uma toalha enrolada em seu quadril. Ouviu batidas na porta da suíte e, ao olhar pelo olho mágico, viu o lutador Rafael Valentin esperando no corredor. O estranho é que ele deveria estar do outro lado do país, em uma luta importante. Ethan engoliu em seco, ergueu a cabeça pronto para encarar seus erros de frente e abriu a porta. Não havia ninguém no corredor. Ele levou alguns segundos parado encarando o tapete à sua frente. Como Rafael poderia ter sumido tão rápido? Como poderia estar ali? Uma ideia lhe veio como um relâmpago. Ia ligar a TV e procurar pelo canal que transmitia a luta ao vivo, onde poderia saber se Rafael estivera ou não batendo na porta da sua suíte. Mas, ao virar-se para o interior do quarto, encontrou todos os lençóis jogados no chão. O mais estranho é que Ethan não tinha ingerido álcool nem usado nenhuma droga. Ao ligar a TV no canal que transmitia a luta ao vivo, lá estava Rafael vencendo o primeiro round. Foi a partir desse dia que ele parou definitivamente com a bebida. A primeira vez em que foi para a cama com Isabella, enquanto ela cavalgava sobre seu quadril, Ethan pensou ter visto a sombra muito negra de um homem parado na porta do banheiro. Ele podia jurar que a sombra tinha o mesmo porte físico de Rafael. Então, por várias semanas, o casal de amantes não se viu mais, consequência das agendas sempre cheias. Durante o tempo que passaram separados, Ethan não testemunhou nada de anormal. Mas bastou um telefonema de Isabella pedindo para marcarem um encontro que as bizarrices voltaram. Quando desligou o telefone, outra noite em um quarto de hotel, Ethan viu as roupas,
que tinha usado no show daquele dia, penduradas num cabide colocado misteriosamente em um prego, onde antes estava um quadro. As calças pretas e com rasgos nos joelhos tinham sido prendidas na camiseta branca por alfinetes, e havia uma corda amarrada em volta do colarinho onde ficaria o pescoço de Ethan. Os sapatos estavam colocados logo abaixo da barra da calça. O quadro estava no chão, escorado na parede de cabeça para baixo. Encarando a parede onde a esquisitice estava pendurada, Ethan coçou a cabeça e tentou manter a sanidade. Ainda assim, ele não podia fugir da verdade. Alguma coisa estava acontecendo. Ele não era cético. Não era louco. Aquilo tinha relação com Rafael Valentin. Ethan só não podia explicar como, mas coisas sem explicação aconteciam o tempo todo, no mundo inteiro. Quando deitou-se para dormir, com a mente exausta de tanto montar o quebracabeça dos fatos, Ethan ouviu os rangidos dos ratos arranhando dentro da parede. Decidido a comunicar a recepção, ele tirou o telefone do gancho e foi surpreendido por fortes batidas na parede onde suas roupas tinham sido penduradas. Chamou a recepção sem pensar duas vezes para reclamar do barulho no quarto ao lado, mas lhe informaram que não havia ninguém hospedado lá. Um funcionário do hotel chegou a verificar a suíte em questão. Nada. Sentindo-se ridículo e envergonhado pelo que os funcionários estariam pensando a seu respeito, Ethan desistiu e voltou a se deitar. A mesma sombra negra apareceu na porta do banheiro. Só havia um abajur aceso na sala da suíte, longe de Ethan, o resto estava escuro. A sombra parecia ainda mais escura. Devagar, ela adquiriu uma forma indeterminada e flutuou acima dele. Quando acendeu a luz do abajur sobre a mesinha de cabeceira, a coisa desapareceu. Mas não foi assim que acabou. Uma maldita vontade de cometer suicídio se apossou da sua mente. Não era um pensamento novo. No começo da carreira, quando as frustrações eram demais e o dinheiro de menos, ele considerou aquela ideia inúmeras vezes. Eram muitas possibilidades: um tiro, ingestão excessiva de drogas, um salto de uma janela acima do sétimo andar, uma simples corda. E toda aquela infelicidade teria fim. Pensou no quanto estava gostando de Isabella, como as coisas fluíam com ela. Mas a mulher não estava disposta a se separar. Deixou isso bem claro desde o começo. Eles não poderiam assumir aquela paixão. Ele nunca tinha amado alguém tão profundamente. Talvez a morte não fosse uma saída tão ruim assim. A corda ainda estava ali, jogada em um canto junto com as roupas que ele encontrou penduradas na parede. Seu corpo começou a esfriar. Seu coração ficou pesado. As lágrimas vieram. Talvez, se ele saísse do quarto, fosse até o bar e pedisse uma bebida, conseguisse espairecer a mente. Todavia, Ethan não queria beber, não queria perder o controle dos pensamentos e não tinha nenhuma disposição para levantar da cama.
A angústia o pegou com tanta força que até respirar era difícil. Nem mesmo nas noites em que desejou encerrar sua vida tinha se sentido tão mal quanto agora. Aquele tipo de depressão que vem sem avisar, aquela coisa que faz você não ter vontade de levantar da cama. Um peso invisível e opressor que algumas pessoas sentem no decorrer da vida. Só quem já foi tomado por algo assim, consegue entender porque Ethan pensou em usar a corda para aniquilar sua vida naquela noite. Mas a pressão era tão forte, que ele não poderia se levantar e agir. Ficou lá deitado, até que o sol nasceu no horizonte. Na manhã do novo dia, dores acometiam seu fígado e sua cabeça. Encontrou Isabella novamente. Quando ela o abraçou e ele sentiu seu coração batendo contra seu peito, Ethan voltou a ter esperanças. Quando a jovem comentou a respeito de ele estar tão abatido, Ethan tentou lhe contar sobre os episódios anormais. Mas Isabella não lhe deu ouvidos. Disse que aquilo não passava de superstição de gente do interior. Ele não queria que sua amada o visse como um caipira, por isso se calou. Mas as coisas não pararam. Pelo contrário, os incidentes ficaram ainda mais frequentes e os sentimentos suicidas, muito mais perigosos. Às vezes, quando Ethan escovava os dentes de manhã na frente do espelho, outro homem aparecia refletido. Em algumas ocasiões, este homem possuía ferimentos no rosto. Alguma coisa em seu olhar era muito familiar, mas Ethan nunca havia cruzado com ele. Passou a evitar espelhos. Deixou a barba e o cabelo crescerem. Durante as refeições mais saborosas, de repente, ele sentia como se vermes se movessem em sua boca. Passou a comer menos. Perdeu peso. Não gostava de si mesmo. Tinha vergonha e andava cada vez mais só. Apenas Isabella o tirava daquela depressão. Quando ela chegava, Ethan erguia a cabeça, tomado por uma paz tranquilizadora, e a abraçava como se sua vida dependesse dela. Mas os momentos juntos eram poucos. A sombra de Rafael estava sempre por perto. Isabella era sua única cura, ainda que momentânea, por essa razão, ele iria aonde ela estivesse.
As vantagens da nova época
— Eu passei praticamente minha vida inteira trancada, Ethan — Isabella sussurrou após um longo beijo. A ela não importava o que ele iria pensar. Nada era mais importante que si mesma. Estava na hora de se colocar em primeiro lugar. — Por favor, me leve para algum lugar onde o vento sopre contra a minha pele, onde possamos ver o céu, ou esses prédios iluminados. — Quer sair comigo em público, Bella? — ele perguntou. — Sim. Está na hora de aproveitar as mudanças. — E quanto aos fotógrafos? Os curiosos? — Ethan insistiu com o cenho franzido, os olhos fitando os de Isabella com curiosidade. — Quem se importa com eles? Eu não ligo. Você liga? — É claro que não — ele respondeu, levantando da cama e pegando uma jaqueta. — Vamos. Mas primeiro quero te levar a um lugar. No elevador, ele a colocou de frente para o espelho, pôs a jaqueta em seus ombros e acariciou seu rosto enquanto os quatro olhos azuis se encaravam no espelho. — Não sei o que houve, mas adoro essa nova Isabella Valentin — Ethan sussurrou. — Nunca mais me chame por esse sobrenome — ela pediu. — Somos só você e eu agora. E nada mais importa. Só por esta noite. Me faça esquecer o passado. Ela não estava se referindo ao casamento com Rafael Valentin, como Ethan
imaginou, estava falando sobre o fato de John estar com seu amor de milhares de anos naquele instante. Mas não queria pensar nisso agora. Não era capaz de lidar. Deram as mãos quando saíram do elevador, como se o mundo não importasse mais. Com passos apressados, ele a levou para o cassino do hotel. Os olhos da jovem ficaram perplexos e sua boca se abriu, observando todas as luzes, as pessoas livres com sorrisos espontâneos, as roupas, as bebidas. Tudo parecia novo agora. Ela estava vendo o mundo com outros olhos. Os olhos de uma garota livre que podia ir e vir a hora que bem entendesse, que tinha direito de vestir o que quisesse e beijar um homem que não fosse seu marido em público sem ser castigada. Os dois pararam diante de uma mesa já ocupada por jogadores. Ethan estava eufórico, parecia o homem mais feliz do cassino; talvez, o mais feliz do mundo. Ele se virou para ela — dando tempo para que as pessoas ao redor reconhecessem o astro do rock e a top model — engoliu em seco e inclinou o rosto até que seus lábios estavam separados por apenas um centímetro. Isabella pôde sentir o hálito de Ethan. Pensou em Stefan. Mordeu o lábio. Tentou não pensar. Ethan tinha aquele olhar que parecia atravessar sua pele e descobrir tudo que ela estava pensando. Isabella também podia saber o que ele queria naquele momento. Ele era solteiro. Não havia problema algum em beijar uma modelo em público. Era ela a pessoa comprometida. Por isso, ele queria que fosse ela a dar o próximo passo. A gravidade parecia puxá-los para mais perto. Ela lembrou da última vez que Stefan se inclinou para beijar sua mão. O vento soprava frio. Foi há mais de duzentos anos, ainda assim era ela a garota apaixonada, inocente e sonhadora. Era Stefan o rapaz apaixonado. E a vida — ou morte — estava lhes dando uma segunda chance. As lembranças invadiram sua mente como relâmpagos. Ela piscou os olhos e se esforçou ao máximo para não pensar no azul como ela nunca conheceu, em como ficar sem John estava sendo cinza escuro. Ela não queria a solidão. Não queria mais nenhum pensamento doloroso. Suavemente, os olhos perderam o foco, até que os lábios se tocaram. O coração de um deles explodiu em batimentos, as mãos do outro ficaram úmidas. Ethan passou os braços em volta da cintura dela e a ergueu do chão. Isabella gostou disso, até dobrou as pernas para trás, enquanto ele a girava devagar. Quando as bocas se separaram, ela apoiou os antebraços no peito de Ethan e abriu um sorriso. — Nunca me senti tão livre — confessou baixinho. Ele sorriu de volta. Todos estavam olhando. Devagar, ele a colocou no chão e beijou sua testa. — Vamos jogar um pouco?
Compraram fichas, se abancaram em uma mesa e começaram a jogar. — Meu pai morreria se soubesse que estou em uma mesa de jogo. Justamente onde ele me perdeu — Isabella murmurou. Ethan a observou com cautela. Até onde ele sabia, Isabella era órfã, mas ela parecia feliz e ele não queria atrapalhar aquilo. — Ele já está morto — ela completou. — Praticamente todos estão. Mas você... Você está aqui, Stefan. — Stefan? — Seu nome de outra vida — Isabella disse como se fosse a coisa mais natural do mundo. — Definitivamente, precisamos conversar, Bella! — Ethan, isso fica para depois. Agora eu só quero me divertir. É claro que perderam todo o dinheiro apostado. Mas isso era o de menos. Desceram até o subsolo, onde ficava localizada a garagem, e encontraram uma moto que Ethan mantinha no hotel para quando vinha a Las Vegas. Ele tinha muitos veículos em vários lugares do país. Preferia a solidão dos hotéis a comprar casas pelos principais estados. — Você quer que eu suba nisso? — Não confia em mim? — ele disse, colocando o capacete e estendendo o outro para ela. — É claro que não confio! — Isabella respondeu, ainda assim, aceitou o capacete e o colocou na cabeça como Ethan tinha feito. Montou na motocicleta e abraçou a cintura dele. — Segure mais apertado — ele instruiu, dando partida na moto. Isabella sentiu as vibrações por baixo de suas pernas e mordeu o lábio. Estava começando a gostar muito daquele século. Eram as horas mais despreocupadas da sua vida desde que Roggero Fontana a perdera na mesa de jogo para John Smith. Ethan acelerou a moto e tomou o rumo de Boulder City, uma cidade do interior de Nevada. Lá, havia uma represa chamada Hoover Dam, cenário de muitos filmes de ação. Em pouco menos de uma hora, o casal chegava às margens da represa. Isabella tirava fotos mentais de tudo que via. A noite estava escura, mas as luzes da Ponte Mike O'Callaghan–Pat Tillman Memorial em formato de arco davam a iluminação que eles precisavam. Ethan estacionou a moto o mais perto possível dos penhascos. Ainda com a jaqueta dele, Bella se aproximou do parapeito e olhou para baixo. O vento bagunçava
seus cabelos, esfriava sua pele. Era a sensação que ela queria. — Venha — ele disse ao pular a barreira de proteção e estender a mão para que Isabella fizesse o mesmo. Logo estavam na beira do penhasco. Ele se sentia como um adolescente tendo a vida inteira pela frente. Isabella sentou-se em uma pedra e Ethan apoiou-se entre suas pernas, de costas para ela. Passando seus braços em volta dele, sentindo sua pele quente, os corações batendo, Isabella pôde entender que era muito nova. Dezessete anos era muito pouco para ter caído nas mãos de John Smith. — Você nunca teria me maltratado, me machucado fisicamente, nunca teria feito joguinhos obscuros comigo — ela sussurrou. — Eu nunca te machucaria, Bella. — Você nunca teria me colocado para fora de casa e me deixado lá para que um animal me atacasse. — Ele te maltratou? — Ethan perguntou espantado, virando-se para encará-la. — Você não tem uma lista infindável de mulheres que largou, como teria feito comigo se houvesse oportunidade. — Eu nunca te largaria, Bella. Não sei do que você está falando, mas eu só sei amar você, não faria nada que fosse te decepcionar. — Quero ser amada. Quero que você preencha os pedaços que foram arrancados do meu coração. Stef... Ethan, eu quero ficar com você. — Não brinca comigo enquanto eu te amo tanto, Bella — ele pediu ainda entre seus braços. — Não desconte em mim a raiva que você tem de outra pessoa. — Não estou brincando. Afastando o olhar para o céu estrelado, Ethan tentou pensar por alguns segundos. Isabella o abraçou mais forte até que ele apoiou a cabeça em seus ombros e ela pôde beijar seu pescoço. Então, ele pegou sua mão esquerda e acariciou seus dedos, demorando-se no anelar, até que começou a puxar delicadamente a aliança do dedo de Bella. Manteve o objeto dourado na palma da mão por um instante e depois o jogou no abismo. Ele sorriu e o mordeu o lábio, sentindo uma pontada de dor no machucado. Apoiou melhor as costas no peito de Isabella e acariciou suas pernas expostas pelo vestido. — Acabou? De verdade?
— Quero apenas você. Isabella desejava ter alguém que fizesse por merecer estar com ela. Que não se virasse contra ela na primeira oportunidade, que não a colocasse de castigo ou a queimasse, fosse com café ou um ferrete. Pensou em dizer que o amava. Mas ainda não era hora. — Não mude de ideia, por favor, Bella. Não volte para o seu marido. — Eu não vou voltar — ela disse com convicção. — Não o amo. Não suporto ficar nem mais um dia perto daquele demônio. Nenhuma mulher é obrigada a permanecer casada em pleno século XXI, não é mesmo? — Vai fazer as malas e dar o fora? — Vou. Ethan se virou para encará-la. As primeiras cores do amanhecer surgiam no horizonte. — E não vai mandar John Smith vir atrás de mim quando se cansar? — Como alguém pode se cansar de você, Ethan? Você é lindo, é apetitoso, desejável, apaixonante, decidido. Vi como as mulheres no cassino te comiam com os olhos. O motivo que impediu Isabella de fugir com Stefan foi por ele ser muito calculista, não agia por paixão. Esse novo homem tinha tudo que ela desejava. Não o cara perfeito, porém, o mais adequado para viver com ela a vida que ela gostaria muito de ter. Se beijaram com mais desejo dessa vez. As mãos de Ethan encontraram sua cintura, subiram para os seios e ela sentiu o corpo vibrar quando ele a apertou tão forte que a ergueu da pedra. Suas pernas envolveram o quadril de Ethan, seus dedos escorregaram pelo cabelo comprido, tocaram a pele e os músculos. Então, quando Ethan estava puxando as alças do seu vestido para baixo, ela lembrou-se das letras JS marcadas em suas costas. Livrou-se do beijo de Ethan e bufou de raiva. — O que foi? — ele quis saber. — Hoje não — ela resmungou. Não estava pronta para contar a história toda. Queria, primeiramente, dizer a John que não iria mais esperar. Que ele não era merecedor de todo amor que ela tinha sentido. Que ela nunca mais iria acreditar em suas desculpas. — Me leve para a casa de John.
— Oi? — Estou hospedada lá, esqueceu? O dia está amanhecendo e preciso resolver algumas coisas. Nos encontramos mais tarde, depois que eu tiver um longo encontro com a cama e o travesseiro — dito isso, Bells bocejou. — E é assim que você me deixa novamente, depois de ter dito todas essas coisas, ter feito todo esse teatro. — Tem minha palavra, Ethan. Não vou mudar de ideia. Só me leve até a casa de John. Quando chegou, o casal Smith já tomava café da manhã, preparando Lanai para ir à escola. John trincou o maxilar quando sentiu a enxurrada de pensamentos vingativos de Bells. O modo como ela relembrou estar nos braços de outro, como se sentiu, como seu corpo esquentou. Ele queria ignorar, mas não pôde. Não tinha mais nervos. — Passou a noite fora? — Endy perguntou com preocupação. — Vou me separar de Rafael — Bella declarou. — Faz um ano que estou indo para a cama com outro homem. — Espero que esse outro homem não seja meu Johnny — Endy comentou sem graça. — Ah, claro que não! John e eu somos só grandes amigos — Isabella explicou. — Nunca o veria com esses olhos. Fique tranquila, Endy. John quase rosnou de ódio. Queria sacudir Bells até fazê-la criar juízo, mostrar o papel ridículo que ela estava fazendo, mas não podia, não tinha direito. Não depois de ter lhe dado as costas no hotel. — Posso tomar café na piscina? Quero organizar os pensamentos — Bella pediu. — Claro, querida. Endy levou os itens do café da manhã para a mesa na beira da grande piscina e deixou Isabella sozinha. A esposa de John não pensou muito a respeito do que Bells estaria passando. Tinha a cabeça cheia e um dia corrido. Talvez, no fim da noite, as coisas teriam se resolvido. Deixou Isabella sozinha e voltou para dar atenção ao marido e a filha. A jovem começou a fazer planos, enquanto comia uma fatia de pão light sem margarina e bebia café com adoçante. Imaginou o que diria a Rafael e como se protegeria dele. O que faria com a marca de John em suas costas? O que ele estaria pensando? Assim
que Endy saísse, será que ele viria até ela...? Num sobressalto, ela notou o homem moreno e enfurecido parado ao lado da mesa. Isabella podia jurar que havia uma aura escura em volta de Rafael. Seu coração disparou e ela foi tomada por uma sensação ruim, algo que nunca havia sentido. Rafael segurava um jornal em uma das mãos. Jogou as folhas sobre a mesa e emitiu um som inumano. Isabella abaixou os olhos e viu a fotografia dela e Ethan se beijando no cassino estampada na primeira página. Mas não deu tempo de ler a manchete, Rafael atirou a mesa para longe com a mão fechada em punho. A louça cara de Endy rolou pelo jardim. O café escorreu pelo azulejo em volta da piscina. Ele voltou a pegar o jornal, amassou entre as mãos e o arremessou contra o rosto chocado de Isabella. — O país inteiro está falando disso, sua vagabunda! — Rafael grunhiu com nojo. Um segundo depois, John estava cruzando o gramado e se colocando entre o antigo amigo e sua... Bells. — Ei, calma! — John pediu, enquanto Isabella dava um risinho cínico para Rafael, feliz por não ter que dizer a ele que estava tudo acabado. — Não se meta, John — o anjo pediu. Passando pelo amigo, Rafael avançou novamente para Isabella.
O preço da traição
Uma música tocava no som do automóvel que Ethan dirigia. A voz de John fazia promessas de que tudo iria ficar mais fácil, enquanto uma melodia calma da banda Fallen Angels abafava os soluços de Isabella. O medo havia invadido sua mente. Não tinha como ficar mais fácil, muito menos agora. Porque existia uma grande parte de Rafael que queria Isabella. Uma parte cruel e inescrupulosa. Ela não sabia o motivo, mas estava certa disso. Rafael ainda a desejava, mesmo depois da traição. O anjo não deixaria para lá. No fundo, Ethan também tinha consciência disso. Não precisava fechar os olhos para ser dominado por todas as coisas que o assombraram durante um ano. Anormalidades que ele não podia explicar como, mas sabia que eram causadas pela fúria do homem traído. Ele não queria pensar em que tipo de coisa Rafael estava envolvido, mas sabia que era poderosa o bastante para interferir na vida de outras pessoas e causar muito mal. Rafael não iria desistir do dia para a noite. Ethan também não. — Obrigada por não ter bancado o machão — Isabella sussurrou. — Obrigada por não ter ido atrás dele para se vingar. Ao olhar para o gesso em sua mão, as lembranças inevitáveis inundaram a cabeça da jovem. Precisou prender a respiração e trincar o maxilar por causa da dor — algo que sempre tinha a acompanhado desde que John cruzara seu caminho. Não que ainda estivesse sentindo-a naquele momento, mas a memória era muito forte. O som do osso da sua mão se partindo quando Rafael afastou John de seu caminho e a jogou contra o chão. Uma queda de
mal jeito resultou em uma dor enlouquecedora. John também havia caído, mas em questão de segundos estava de pé novamente. Foi só isso que o anjo precisou para fazer Bella quebrar a mão esquerda — questão de segundos. Rapidamente, Endy a socorreu e levou-a até a cozinha, onde ligou para emergência ao som dos gritos de dor de Isabella. Lá fora, corpos e objetos colidiam a todo momento, mas Endy Smith era inteligente o suficiente para não querer voltar à piscina e se meter na briga dos dois. Pediu para Lanai esperar no quarto até as coisas se acalmarem. Foi difícil suportar a dor. Era como se todas as cicatrizes estivessem queimando, e ela tinha muitas, ainda que escondidas pelo novo corpo. Não queria pensar, mas sabia que John era mais fraco que Rafael, que ele não poderia vencer um anjo caído. Ninguém podia. E ele viria atrás de Isabella porque, por um misterioso motivo, Rafael ainda a queria com ele. Como sempre quis. — Você sempre desejou ela, não foi? — John murmurou por entre os dentes, ainda perto da piscina, distante o bastante para que as mulheres na cozinha pudessem ouvir. — Você a queria o tempo todo. Depois de alguns socos trocados, os dois tinham parado para tomar fôlego. — É como nos velhos tempos, não é, John? — Rafael disse com cinismo. Do seu nariz escorria... Não era como sangue. Não possuía a cor vívida e escarlate. Do nariz do anjo escorria um líquido preto e pegajoso. Era a confirmação que John precisava: Rafael sabia que a antiga Bells estava de volta. Talvez ele sempre soubesse quando e como ela voltaria. Não adiantava esconder a marca JS ou trocar palavras sussurradas. Não podia enganá-lo. — Ela tem uma nova chance — John disse com cautela imaginando se o velho “amigo” também saberia que Ethan era a reencarnação de Stefan. — Isabella tem a chance de ter uma vida normal, livre da nossa influência. E, mesmo que eu queira quebrar cada osso do corpo dele, agora eu amo do jeito certo para saber que é a hora de Isabella recomeçar. — Você não está amando da maneira correta, John! — Rafael brandiu. — Você nunca soube fazer nada sem minhas orientações, muito menos amar. John pensou em todas as vezes que o falso amigo tinha o induzindo a machucar sua Bells, pensou em confrontá-lo mais um pouco, mas era muito perigoso para as garotas na casa. O melhor era fazer Rafael ir embora de maneira pacífica e só depois ver como Isabella estava. — Tudo que sei é que não vou mais machucá-la.
— Ela gostava daquilo, era viciada na dor — Rafael declarou. — Sofrimento era tudo que ela precisava. Mais uma vez, John engoliu o ódio com sabedoria. — Ela não pertence mais a nenhum de nós. Você não é dono dela, não pode controlá-la. Deixe-a em paz. Deve ter um milhão de outras mulheres interessadas... — Não seja ridículo John. Já esteve no meu lugar. Sabe como é amá-la, como é querer estar com ela mais do que qualquer outra coisa, conhece muito bem como é depender daquela luz que sai dela. Você esteve exatamente no mesmo lugar em que estou agora. — Está enganado, amigo — John pronunciou a palavra “amigo” com ironia —, Isabella nunca me traiu. Nem mesmo quando Stefan a procurou, não aconteceu nada entre os dois. Ela se manteve fiel até seu último suspiro. Enquanto com você, parece que não foi exatamente assim. Rafael rosnou. — Vou fazê-la entrar nos eixos novamente. Se eu conseguia fazer você colocá-la na linha, também saberei fazer. — Não vou deixar — John declarou. — Você não vai estragar a chance que ela tem. Outro sorriso sínico cintilou nos lábios do anjo, mas ele calou as palavras que queriam escapar de sua boca. — Quero que vá embora agora, Rafael — John continuou. — Não quero mais que faça parte da vida da minha família. — Éramos melhores amigos... — Não queremos mais as mesmas coisas. Nossos objetivos são outros. Você não pode continuar nas nossas vidas sem nossa permissão, e nenhum de nós quer você por perto. John imaginou que Rafael fosse revidar, que fizesse ameaças contra sua família ou chantagem emocional, mas o anjo nada disse, apenas se foi. Mesmo assim, sua ausência não trouxe alívio ao coração cansado. John estava ciente de que o pior ainda nem tinha começado. Rafael era um demônio. Não adiantava fantasiar que ele jogaria no time do bem ou que faria a coisa certa. Aquela espécie não possuía tons de cinza, era preto ou branco. Para entrar na vida de alguém, um demônio precisava de consentimento, John tinha deixado a porta aberta para Rafael entrar, assim como tinha feito Isabella. Ele jamais seria um ente querido sem permissão, mas não era tão simples assim se livrar de um espírito inumano. Não era como dizer “não te quero mais na minha vida, pode ir embora”. Não. O anjo havia dado muitas coisas a John, e isso o deixava em débito. Sabia que, em breve,
Rafael iria querer tudo de volta, com juros exorbitantes. O mesmo valeria para sua Bells. Aquilo era inevitável. Ou... Pelo menos, John não conseguia pensar em nenhuma solução. Mas se existisse... Não! Era muito improvável. O anjo caído não pertencia mais ao céu ou ao inferno. Seu lugar era ali, entre os vivos. Perto da família Smith.
∞∞∞ “Obrigada por não ter bancado o machão. Obrigada por não ter ido atrás dele para se vingar.” As palavras gentis de Bella ecoaram por alguns instantes na mente de Ethan. — Pode parecer covardia eu ter deixado por isso mesmo, sem ir atrás dele para quebrar seus dentes, mas ficar com você no hospital era muito mais importante que me vingar. — Você agiu com inteligência. Prefiro que esteja comigo do que procurando confusão — Isabella sussurrou. — A vida vai se encarregar de dar o que ele merece — Ethan disse com perspicácia. — Agora que você me escolheu, não tem como deixá-la sozinha. O carro seguia solitário pela rodovia que os levaria a um hotel afastado, onde Ethan imaginava que pudessem descansar e passar algumas noites em claro, explorando o corpo da sua amada e sendo explorado por ela. Isabella suspirou. Era como ela sempre tinha desejado. Um homem romântico e atencioso. A vida que sonhara desde menina. Uma parte dela ainda mantinha aquele sentimento amoroso por Stefan, outra parte permanecia apaixonada por John, mas nenhuma parcela dela alimentava sentimentos por Rafael, a não ser desprezo e rancor. E todas essas partes sabiam que aqueles momentos felizes não durariam muito. Algo maior estava por vir. Ela podia ouvir um pequeno chiado no ouvido direito; se fechasse os olhos por muito tempo escutaria uma respiração de alguém que não estava no carro, sua pele se arrepiaria e dedos frios iriam tocá-la. Poderia ser apenas fruto da sua imaginação, ou então o prenúncio da verdadeira face do anjo caído. Um presságio.
Itália, abril de 1787
Chovia lá fora. Os ventos enraivecidos jogavam a água contra as janelas da Igreja Católica Apostólica Romana, fazendo parecer que o diabo queria afugentar os fiéis. Entretanto, a igreja estava cheia de devotos, em sua maioria mulheres e moças virgens com seus terços enrolados nas mãos cobertas por luvas claras. Mas existia alguns homens, entre eles um sujeito vestido com roupas puídas e sujas, como se dormisse com os ratos. Havia fuligem em seu rosto e na barba por fazer. Ele estava sentado na última fileira, no lugar mais afastado. Era onde John Smith sempre se sentava quando ia a alguma igreja. Aguardando um encontro com um novo amigo, o padre Enrico (que viria a morrer dois meses depois, sendo então substituído pelo padre Lorenzo) para discutir as benfeitorias da semana. Por indicação do padre Enrico, John estava ajudando algumas famílias pobres da região. Tinha passado a manhã de domingo auxiliando um miserável, com oito bocas para alimentar, numa mina de carvão. Por esse motivo, a fuligem adornava de maneira pretensiosa suas feições. Tinha algo peculiar naquele ambiente. John conseguia sentir sua presença. Com base em anos de experiência, ele sabia exatamente do que se tratava: ali naquela missa dominical estava presente seu próximo amor. Assim que notou a suave brisa que fazia os pelos do seu braço se eriçarem e o coração bater mais forte, John arrependeu-se por não ter passado em casa para se lavar e vestir um traje mais apresentável. Ele ainda não tinha se virado para vê-la, mas estava tão certo de sua presença como sabia quantos dedos havia em suas mãos. Sabia, também, que a reconheceria facilmente entre as moças virgens presentes na igreja. Mas temia que ela o
visse naquele estado. Que jovem iria se interessar por alguém que ia à missa dominical com o rosto sujo de fuligem? Sendo assim, John tentou não olhar para o lado esquerdo. Ele imaginava que a jovem poderia estar o encarando, sem conseguir desviar os olhos da imagem da pobreza que ele representava. Talvez ela pensasse “quem deixou um miserável como este entrar aqui?”, “como ele ousa se misturar com famílias de bem?”. Definitivamente, John não queria que aquela fosse a primeira impressão que a senhorita tivesse sobre ele. Pensou em levantar e ir embora, mas aquilo chamaria ainda mais atenção para si, além disso, não conseguiria se afastar daquele campo de força tão facilmente. Porém, mesmo querendo evitar a todo custo ser visto pela jovem naquela situação, a curiosidade era infinitamente maior que o pudor. O desejo de saber como ela era o fez virar o pescoço lentamente para a esquerda. Seu coração martelava nas suas têmporas. Após engolir a saliva, John puxou o ar pela boca, pois suas narinas ardiam, apesar do clima agradável. Como havia de ser, seus olhos pararam em uma senhorita. Por uma questão de sorte, ela não estava olhando para John, sequer tinha reparado nele durante a missa. A respiração de John acelerou como se ele tivesse em uma corrida. Ele apertou as mãos sobre os joelhos e se empertigou para tentar controlar as reações. E... Quando os cantos dos seus lábios se curvaram para cima em um sorriso tímido, apareceram covinhas em suas bochechas. Não tinha como saber nada sobre a jovem, mesmo com seu notável talento para descobrir coisas sobre as outras pessoas. Mas algo ficou ecoando na cabeça de John. Aquela era a moça mais bela que ele já tinha visto. Como estava passando despercebido, permitiu aos seus olhos o prazer de se deleitar com as feições da moça por mais alguns instantes. Havia um toque de agressividade em seu semblante, sutil, mas presente, como uma rebeldia contida. O sentimento era intenso demais. O coração ainda batia forte. Como John Smith costumava saber das coisas, ele cogitou a ideia de que aquele seria o maior amor da sua vida. Talvez ele viesse a amá-la mais do que amou Ana. Não! O pensamento fez John voltar o pescoço para a frente, desviando os olhos da bela jovem.
Ana não! Ana era sagrada. Não havia como outra mulher ser mais importante que ela... A não ser que... O pensamento fez John virar o pescoço novamente para admirá-la. Ela poderia ser a reencarnação de Ana... O pensamento vinha acompanhado de uma risada debochada. Besteira! A alma de Ana estava sã e salva no paraíso, graças ao pacto. Assunto encerrado. Sem querer abusar da sorte, John não ousou observar a moça novamente e manteve seu rosto longe das vistas dela, como medo de ser flagrado e assustá-la com sua aparência imunda. Ao término da missa, John não ficou para tratar com padre Enrico. Ele seguiu a senhorita e a senhora sua mãe discretamente pelas ruas da cidade, coloridas pelas flores da primavera que ganhava força. Ele acabou descobrindo seu nome e endereço apenas observando os pensamentos da mãe e filha. Não era como ler o que elas pensavam, funcionava mais como sentir. John acreditava que estava ligado a um elevado nível de intuição. Ele sempre sabia das coisas. Assim, John descobriu que não estava sozinho. Um concorrente. Um merdinha pretensioso e calculista. O frangote, de nome Stefan, caminhou com discrição próximo às duas mulheres. John trincou o maxilar e fechou os punhos quando percebeu os sentimentos que Stefan nutria pela moça. Ela voltou a cabeça na direção do rapaz, abriu um sorriso recatado e John soube que deveria matá-lo. Mas estava tentando fazer as coisas do jeito certo. Rafael estava ajudando.
∞∞∞ — Era ela — o anjo falou com convicção apoiado na borda do poço. Suas asas estavam abertas e relaxadas ao lado do corpo. — Tem certeza? — o outro quis saber? — Absoluta. Era ela. Corpo e alma. — Poderia ser uma pessoa parecida com ela. Já fazem quantos séculos?
— Milênios — Rafael o corrigiu. — Fazem alguns milênios. Mesmo que o céu derretesse, o inferno congelasse e a terra apodrecesse de tão velha, eu ainda a reconheceria. — São poucos os casos de humanos que voltam do mundo dos mortos com o corpo e a alma. Acredita que ela reconheceria você? Que ela ainda carrega aquele poder? — Coisas futuras — Rafael sussurrou com o pensamento distante. Uma brisa suave fazia a penugem mais delicada de suas asas tremular discretamente. — Sa... — o outro começou, mas foi interrompido. — Não ouse dizer! — Rafael protestou com um olhar frio. — É o nome que eles te chamariam aqui na terra. Era o nome pelo qual você seria conhecido. Todas as preces... — Rafael. É assim que prefiro ser chamado. — O nome de um dos arcanjos — o outro observou. — Eras tão importante quanto eles. Imagina que o poder dessa jovem pode fazê-lo ser aceito novamente... no inferno... ou no... paraíso? — O que te faz pensar que quero ser aceito de volta? — Esse corpo que você possui ainda tem um rastro. Eu consigo sentir. Essa obsessão pela moça tem a ver com o que aconteceu quando você foi expulso. Lucifer quase te destruiu. — Lucifer não conseguiria — Rafael pronunciou o nome com desprezo. — E ela me reconstituiu. — E tudo que você fez para agradecer foi... — Não vou dizer que não me diverti, que o sofrimento dela não me alimentou — Rafael murmurou com a lembrança e suas pupilas se dilataram; uma reação que o pegou desprevenido. Ele piscou algumas vezes. Acontecia de tempos em tempos. O corpo do rapaz que ele possuiu, em ocasiões raras e aleatórias, demonstrava sinais de ainda abrigar a pobre alma humana do infeliz. Apesar do seu poder, Rafael não conseguia controlar isso. — Se a deseja tanto, porque não a toma de vez? — o outro anjo caído quis saber. — O jeito fácil não me interessa. John vai se casar com ela. Eles irão se apaixonar, como tem de ser, e vai ser um prazer induzi-lo a fazê-la sofrer, maltratá-la. Um prazer imenso. Ela ainda vai se perguntar por que continua a amá-lo depois de todas as atrocidades que ele cometer, e como ela não consegue odiá-lo por muito tempo — Rafael abriu um sorriso —, sem saber que não tem como fugir, que eles vão se amar até que a morte os separe novamente.
— Amor — o outro murmurou —, um sentimento tão fútil. — Desventurado Johnny. Pobre Isabella — Rafael simulou uma cara de tristeza. — Lugar errado. Hora errada para aqueles três — o outro disse por fim.
∞∞∞ John não conseguia disfarçar o sorriso. A ideia de ter uma companheira novamente era estimulante. Viver com alguém que ele amava, dividir sua vida e... se ela fosse a mulher certa, confiar a ela seu segredo. — Bells — ele sussurrou na noite escura. Pensou na ideia de terem um bebê. Todo mundo que se casa quer ter filhos, John pensou. Filhos que consigam sobreviver à infância, coisa que os seus nunca conseguiram. Foram tantas perdas que ele desistiu de tentar, não queria passar pela dor de perder outra criança. Mas ele sabia que com ela poderia ser diferente. E se as coisas ocorressem bem... Era o "se" que o incomodava e ele não queria se dar ao luxo de ter falsas esperanças. Não naquela altura da vida. — Em vez de simplesmente chegar e pedir a mão da bela moça para o senhor seu pai, por que não optar por aparecer como um herói, Johnny? — Rafael sugeriu. — Eles não são pobres, amigo — John disse. — Não posso salvá-los da pobreza. — Senhor Fontana gosta de jogar — o anjo disse com inocência, como se o pensamento tivesse surgido ao acaso. — O que propõe, Rafael? — Você sabe o que fazer, meu amigo. Ah, você sabe! O velho Johnny nunca erra.
A primeira visão
O aquecedor do carro só podia estar quebrado. Isabella não entendia nada sobre automóveis, mas se compreendesse um pouco o sistema de aquecer e resfriar o ar, saberia que ele estava com defeito. Era a única explicação. O frio fazia seus ossos tremerem enquanto Ethan dirigia. Ela nunca tinha se sentido tão gelada. Mas ele parecia não se importar com a temperatura. Estava usando apenas uma camiseta regata branca, uma calça jeans rasgada nas coxas e joelhos. Observando o jeito como ele tinha prendido o cabelo em um coque alto, com várias mechas soltas, Bella percebeu que Ethan não tinha vaidade. Ele era simplesmente bonito, sem pretensões. Pensar daquela forma fez o corpo de Isabella esquentar consideravelmente, e ela se perguntou como seria. Não queria parecer ardilosa, mas era difícil não ficar olhando para um certo formato comprido em alto relevo na calça de Ethan. Seus mamilos ficaram rígidos e ela mordeu o lábio inferior, mas sacudiu a cabeça com um sorriso leve. Tirando o frio nos ossos e o calor entre as pernas, ela se sentia leve. Tudo graças a uma palavra recém-descoberta: divórcio. Instruída por Ethan, ela tinha ligado para seu advogado para pedir que acertasse os detalhes do divórcio com Rafael Valentin. Divórcio! Uma palavra. Oito letras libertadoras. Se aquilo existisse no século XVIII, sua mãe não teria sido tão infeliz. Para completar o clima de felicidade, Ethan aumentou o som e começou a cantar.
— Você é incrível, Ethan! — ela gritou mais alto que a música, tentando não pensar em Stefan e todo o resto. Ele abaixou o volume e olhou para Bella, enquanto dirigia em linha reta. — Somos incríveis juntos — ele disse. — Não acredito que a vida está me dando a oportunidade de começar tudo de novo com alguém como você. Parecia tão simples, tão fácil. — Você não vê, Bella, que seu coração sempre me pertenceu? Mesmo antes de me conhecer, o meu já pertencia a você. — Eu sei. E ela sabia mesmo. Antes de conhecer John Smith e todas as confusões que ele trouxe para sua vida, Isabella já amava Stefan. Estando com ele, era muito fácil pensar em toda a dor que John tinha lhe causado; pensar na dor e perceber que as partes boas não faziam valer a pena tanto assim. Amar John era como estar cega. Ela não tinha conseguido enxergar a realidade, colocar tudo em uma balança e encontrar o resultado certo. E só depois de ele ter virado as costas para voltar aos braços de Endy, é que a cegueira tinha passado. — Estamos chegando — ele disse quando saiu da rodovia e entrou em uma estrada de cascalho. Isabella mordeu o lábio novamente. A última vez que ela tinha feito aquilo tinha sido antes de John marcá-la com um ferrete, há mais de 200 anos. Seu coração disparou quando ela viu a estonteante construção rodeada por árvores frondosas. A fachada do hotel era maravilhosa. Quando passarmos pela porta do quarto, ela pensou, eu serei dele e toda a dor que John me fez passar vai amenizar. Os funcionários do hotel foram receptivos. Enquanto eles seguiam o mensageiro, as mãos de Isabella tremiam, seu coração martelava de ansiedade. Era como se fosse a primeira vez, só que agora ela sabia o que ia acontecer, e isso a deixava ainda mais nervosa, a ponto de seu estômago revirar. Ethan estava sorrindo quando entregou uma cédula de cinquenta dólares para o mensageiro antes deste deixá-los a sós. O rapaz agradeceu com surpresa e se demorou alguns instantes antes de partir, talvez decidindo se pedia um autógrafo ou não. Quando ele partiu, o estômago de Isabella estava ainda mais inquieto. Ethan se aproximou e colocou a mão em sua nuca, a puxando para um beijo. Os lábios dele eram
macios e quentes. — A depressão acabou — Ethan sussurrou contra a boca entreaberta de Isabella. Ela quase respondeu, mas a ânsia a impediu. Temendo o pior, ela correu para o banheiro se perguntando como podia estar tão nervosa. Trancou a porta e sentiu o cômodo à sua volta girar. Por sorte, conseguiu alcançar a tampa do vaso e abriu. Enquanto colocava tudo para fora, o banheiro continuava girando e girando. As cores claras começaram a ficar cinza escuro, e foram escurecendo e escurecendo. Mesmo depois de ficar tudo preto, o lugar ainda girava. Por último, ficou âmbar. Parou de repente. Ela respirou fundo e estranhou a textura do chão abaixo dos seus joelhos. Passou a mão nos lábios tentando se livrar dos resquícios de vômito e piscou os olhos. As mãos esbarraram na areia quente abaixo do seu corpo. Quando conseguiu enxergar com clareza, não havia mais vaso sanitário, vômito, banheiro, nem mesmo o pensamento de que Ethan estava a esperando no quarto. Era como se Ethan não existisse. Pelo menos ela não conseguia mais se lembrar dele. Sentia medo. Foi a primeira coisa que constatou. Medo de ser descoberta. — Beba — uma voz masculina disse. — Vai se sentir melhor. Ela levantou devagar, apoiada na mão do homem. Com cuidado, ela arrumou o vestido até que a barra cobriu as sandálias de tiras de couro. Tudo a sua volta tinha cor de âmbar, exceto pelo céu que estava azul de um horizonte a outro. Aceitou o cantil que o homem a ofereceu e bebeu alguns goles de água. Todo o passado e presente, a vida inteira que ela conhecia havia desaparecido da sua memória. Por esse motivo, ela não assimilou o rosto do homem ao de Rafael. Era ele! Isabella deveria reconhecê-lo. Os mesmos olhos castanhos e pequenos, a barba, o nariz afilado, o porte físico, sorriso. Era Rafael! Apesar disso, ela não estava fugindo. Olhou a paisagem desértica ao seu redor e respirou o ar seco. Seus lábios estavam rachados. — Eu vou me casar em pouco tempo — a jovem sussurrou. — Se descobrirem, minha vida acaba! Preciso ir. — Podemos fugir — o rapaz disse. Era o som da voz de Rafael, mas Isabella não estava pensando nisso. Ela queria arranjar um jeito de não partir o coração do rapaz. Havia amor em seus olhos castanhos. Sim, amor. Estava estampado nos olhos do rapaz. Ele a amava. Mas ela não.
— Eu amo meu noivo — ela murmurou timidamente. O rapaz riu. Um riso sem humor. Um riso de cortar o coração. — E o que eu faço com o que sinto por você? — ele perguntou. — Sei que não sou ninguém em comparação a ele. Não tenho riquezas, não sou nobre, não sou digno de uma moça como você. Sei de tudo isso, mas não consigo desistir assim tão fácil. — Sinto muito, Rafael — ela sussurrou com os olhos focalizados na areia. — Eu fui prometida para me casar com ele desde que era criança... — As pessoas percebem que eu não consigo desviar os olhos quando vejo você — o rapaz continuou. — Eu não deveria estar aqui. Posso ser apedrejada. — Ninguém vai descobrir. Não se preocupe. Vou embora daqui, vou te deixar seguir seu caminho, mas antes preciso te pedir uma coisa. — O quê? — Isabella quis saber. — Um beijo — Rafael disse. Era uma época diferente de todas as outras que ela conhecia. Antes de Cristo. Antes de praticamente tudo. Indignada com tamanha audácia, ela se virou para ir embora, mas o rapaz segurou sua mão e a puxou para seu peito. Ela nunca tinha se aproximado tanto assim de um homem e seu corpo reagiu de maneira estranha. — É só um beijo. Seu marido terá você inteira. Eu só quero um beijo antes de desaparecer da sua vida. — Nunca fui beijada e quero que ele seja o primeiro — ela disse com convicção, mas algo nos olhos castanhos do rapaz a fizeram amolecer o coração. Sabia que não o desejava, mas não pretendia fazê-lo sofrer mais do que já fazia. Muito além das mulheres do seu tempo, que jamais poderiam se encontrar a sós com outro homem que não fosse um parente ou o marido, ela meneou positivamente a cabeça. Tinha consciência de que era errado, mas quando Rafael inclinou a cabeça até encostar a boca nos seus lábios, ela o correspondeu. O rapaz era muito mais alto que Isabella. Ele a tirou do chão quando a segurou firme entre seus braços. A língua dele entrou em sua boca e ela seguiu seus instintos, mesmo que nunca tivesse beijado antes. Erguendo as mãos, Isabella encontrou a nuca de Rafael e seus dedos escorregaram pelos cabelos castanhos. Ela gostou da maciez deles, gostou do sabor da língua de Rafael na sua boca, gostou...
Uma nova golfada e o mundo estava girando e mudando de cor novamente. Atordoada, fechou a tampa do vaso e se levantou com as mãos trêmulas. — Era Rafael! — ela murmurou com os olhos vidrados no piso de mármore. Mas não era Rafael. Não exatamente o mesmo rapaz possuído que ela conhecia. Sentiu como se aquela visão pertencesse a algo que ela vivera antes da vida que conhecia. — Bella? — Ethan ainda estava chamando. pera Ela abriu a porta, passou pelo astro do rock e encontrou dentro da bolsa o enviado do inferno, ligou para John e, assim que ele atendeu, tentou explicar o que estava acontecendo. — Acho que tive uma visão do passado, John. Mas não do meu passado! Era um lugar estranho, parecia um deserto e Rafael estava comigo. Mas eu nunca vivi aquilo, entende? — Fale com calma — John pediu com a voz aveludada. — Você não está entendendo! Rafael estava lá, e o mais impressionante é que eu confiava nele. Não havia nada do anjo caído! John, eu te amava, ia me casar com você, mas não no século XVIII, era em uma época muito mais antiga. E Rafael era diferente! — Tem um computador aí? Precisamos fazer uma chamada de vídeo e o celular é pequeno demais para o que você precisa me explicar. — Tudo bem! — dito isso, ela virou para Ethan, parado perto da porta do banheiro com o olhar indecifrável. — Você tem um computador? — Acho que você precisa me explicar o que está acontecendo — Ethan disse com firmeza na voz.
O homem no espelho
— Só preciso que me arranje um computador, Ethan. Assim que eu conversar com John, te explico — Isabella disse com o olhar apelativo. — Você estava passando mal e... — ele mencionou, sem querer acreditar que ela estava mesmo no telefone com John. — A última vez que esteve na casa de John Smith saiu de lá com a mão quebrada. Bella… — Por favor — ela insistiu e olhou para mão engessada. Estava tão ansiosa que tinha esquecido como era dolorosa a fúria de Rafael. — Eu preciso falar com John agora. É muito importante. Confia em mim! De cara fechada, Ethan respirou fundo e caminhou até uma das malas, onde alcançou um laptop e trouxe até a cama, o deixou lá e foi para a sala da suíte, dando privacidade a Isabella. — Não sei usar essa coisa — ela sussurrou ao telefone assim que viu Ethan desaparecer. — Ele está com ciúmes de mim? — John perguntou, ignorando o que ela tinha dito. — Idiota! — Não deboche de mim. Eu deveria estar em uma espécie de lua de mel aqui, em vez de ligar para você, mas preferi lhe manter informado de tudo. Seja mais indulgente. — E eu deveria estar cuidando da minha filha, mas resolvi atender sua ligação — John retrucou.
— O que ela tem? — Uma febre que não baixa. Então, vamos tratar desse assunto logo, tudo bem? — Já disse que não sei mexer nessa coisa — ela disse sem paciência. — Bells, até Lanai sabe usar um computador. — É porque ela nasceu neste século. Antes que Isabella perdesse o resto da paciência, John a instruiu a usar o laptop. Os dois se demoraram por alguns instantes se encarando quando a conexão de vídeo foi estabelecida. Era difícil para ambos não serem tomados pelas inúmeras lembranças. — Você é linda — John sussurrou sem pensar, fazendo com que o coração de Isabella se apertasse no peito. — Eu estava — ela começou devagar, tentando ignorar as emoções — ... com Rafael. John limpou a garganta, envergonhado pelo momento de descontrole. — Continue — pediu. — Você tem que entender, não era o mesmo Rafael que conhecemos. Fisicamente sim, mas por dentro, era só um pobre rapaz. Ele queria que fugíssemos juntos, mas eu ia me casar com você. Tenho certeza que era com você. — Você teve uma visão da vida de Ana? — Não, porque ele disse que você era nobre, tinha dinheiro, então não podia ser na época de Ana. Foi tão real. Naquele momento, eu não consegui entender que era uma visão, só quando voltei a realidade. — Ele fez algo contra você? — John quis saber com o cenho franzido. — Não. Ele era bom. Não era um demônio. Só um rapaz pobre. — Ela preferiu não contar a parte em que eles se beijaram. — E me amava, estava infeliz pelo nosso casamento. — Tem uma possibilidade, mas... — John sussurrou. — Diga! — Você sabe que anjos e demônios não possuem forma física como nós, não sabe? — Como assim? — Isabella ficou confusa. — Rafael é exatamente como nós. — Ele usa um corpo que não é dele. Acha que ele teria mesmo aquela aparência?
— Espera, você está dizendo que estive com o rapaz que Rafael possuiu, mas antes de ser possuído? — É uma possibilidade. — Como? — Bells, você sabe que não está segura, não é? Que ele pode tentar algo contra você a qualquer momento, certo? Contra... — John se mostrava relutante em dizer, mas acabou fazendo. — Ele pode fazer algo contra Ethan, só para atingir você. — E o que devo fazer? — ela perguntou com tristeza. — Tem alguém que pode nos ajudar... — A morte de novo não! — Bella reclamou. — Um humano. Ele tem me ajudado a lidar com Rafael há alguns anos. Imagino que ele poderá decifrar melhor esse sonho. Acredito que você ficará mais segura no lugar onde ele vive, pelo menos até termos alguma ideia do que fazer. — Quem? Não faça mistério, John. — Você vai descobrir. Se topar, podemos viajar em breve. — Viajar para onde? — Bells o questionou. John Smith riu, mas não havia nada de humor em seus olhos. — Para casa — ele disse simplesmente. Ela colocou a mão sobre a boca que estava em formato de O. Não precisava perguntar, já sabia do que se tratava. — Ainda consegue falar italiano? — John quis saber. Pela primeira vez, Isabella se deu conta de que não falava o mesmo idioma de quando vivera com John Smith. — Não tenho certeza — ela sussurrou. — A nossa casa ainda existe? — Em tese, sim — John falou timidamente e deu de ombros. — O fogo a destruiu, eu a reconstruí. Mas, com o passar dos anos, algumas paredes caíram. Era um casebre velho, afinal. — Você se lembra da igreja onde nos casamos? — A voz de Isabella era apenas um sussurro, seus pensamentos voavam entre os séculos. — Como eu poderia esquecer? — Era lá onde John Smith tinha visto sua Bells pela
primeira vez, porém, ele não diria isso, não queria aumentar a confusão de sentimentos. — Será nossa primeira parada. — Se formos mesmo para a Itália, Ethan irá comigo. Não posso deixá-lo para trás — ela tentou se justificar. — Endy e Lanai também irão. Não se preocupe. — Vou contar tudo para Ethan. Ele merece saber. Você se importa? John deu de ombros. Estava preocupado com sua filha e cansado demais para começar uma discussão. — Se ele contar alguma coisa sobre mim para qualquer pessoa, eu o mato. Ela assentiu, certa de que John falava a verdade. — Eu... Preciso desligar agora. — Vai se cuidar? — ele quis saber. Ela fez que sim com a cabeça e fechou a tampa do laptop sem querer se despedir formalmente. Era mais do que poderia suportar naquele momento. Ethan estava na sala, sentado no sofá, segurando o controle remoto e passando distraidamente pelos canais da TV. — Certas coisas não deveriam ser ditas — ela começou devagar. Sabia que ele não acreditaria. — Comece. — Só vou te contar porque prometi isso e gosto de manter minha palavra, mas estou ciente de que vai achar que não passa de uma mentira. Só me prometa que não vai rir... muito. Ethan desligou a TV e ficou de pé. Isabella o pegou pela mão e o levou até a cama. Preferia estar sentada e ter travesseiros ao alcance das mãos quando ele começasse a debochar. Com delicadeza, ela colocou o notebook sobre a mesinha de cabeceira e se acomodou entre os travesseiros, mas Ethan não se sentou. Estava sério demais. — Eu nasci em 1770... — foi a primeira coisa que Isabella contou. E fez um breve resumo de toda a história da sua vida, peculiar e inacreditável. Contou sobre o vício do pai, seu amor por Stefan, o inesperado casamento com John, um pouco do que ela sabia sobre ele e, principalmente, Rafael. Então falou sobre a morte e como acordou nesse século, a explicação da morte e a razão de ela ter vindo até ele.
— O homem no espelho — Ethan murmurou ainda com o semblante sério. Ele não tinha rido nem por um instante. Ouviu tudo com paciência. — O quê? — ela sussurrou com medo de que, se falasse mais alto, acabasse o afugentando dali. Ethan sentou-se na cama. — Desde que começamos a nos encontrar, coisas estranhas começaram a acontecer. Coisas macabras. Nunca contei a ninguém, mas sempre relacionei tudo a Rafael. Imaginava que ele estivesse envolvido com algum tipo de magia negra. Foi quando parei de beber e emagreci. Às vezes, quando eu ia comer, sentia que tinha larvas na comida. E, outras vezes, quando ia escovar os dentes, olhava no espelho e via outro homem com o rosto machucado e o olhar cansado. Comecei a evitar espelhos, por isso deixei a barba e o cabelo crescerem. Talvez fosse esse tal de Stefan. Não sei. Parece uma boa explicação. — Você não acredita — Isabella o acusou. — Não está rindo, mas não acredita. — Já vi muitas coisas que não podem ser explicadas, Bella. — Pouco tempo antes de a morte me levar — ela disse, ficando de pé e tirando a blusa de algodão cinza, exibindo sua cintura fina e um sutiã de renda caro —, John fez isso comigo. Essa marca só voltou quando eu despertei. Ethan se empertigou na cama e tocou as curiosas letras JS marcadas na pele de Isabella. Ele conhecia cada centímetro daquela pele macia e nunca havia visto aquilo. Não teria como passar despercebido. Devagar ele tocou a letra J. Parecia bem cicatrizada. — Dói? — Não — ela disse. — Por que ele fez isso? — Rafael disse que seria bom para mim, iria me proteger. Mas era mentira, ele só queria que eu ficasse com raiva de John. — Como ele fez essa marca? Não parece uma tatuagem, se parece mais com uma... — Queimadura — ela completou o raciocínio de Ethan. — Ele fez com um ferrete desses de marcar animais. Colocou o ferro dentro de uma fogueira e esperou até que as letras ficassem alaranjadas de tão quente, então... Isabella engoliu em seco e sentiu as lágrimas quentes escorrendo pelo rosto. A lembrança da dor era vívida, mas a vergonha parecia ser ainda pior. Vergonha. Sim. Vergonha de admitir que o homem que amava tinha feito aquilo com ela, mesmo que ele estivesse sob influência de um demônio.
— Por que você deixou? — Rafael me segurou — ela disse com a voz embargada de tristeza. — Eu não tinha como escapar. Ethan a puxou para seus braços. Ele não conseguia decidir se acreditava ou não, mas no fundo sabia que era verdade. As evidências estavam bem ali. — Sinto muito — ele sussurrou ao beijar o topo da cabeça de Isabella. — Mas apesar de tudo, você ainda o ama. — John está com Endy agora... Ana. A mulher que ele sempre lembrou. A esposa que ele mais amou. — Mas se ele aparecesse aqui dizendo que lhe escolheu, aposto que você não pensaria duas vezes. Isabella mordeu o lábio com a ideia de ter John de volta, entretanto, o pensamento durou pouco. A lembrança dele a marcando falou mais alto. John poderia estar sob influência de um anjo caído, sim, mas isso só tinha acontecido porque ele tinha permitido que Rafael fizesse parte da sua vida, que o manipulasse. — Eu estou com você, Ethan, e não vou te deixar por causa de John — ela falou com convicção. — Mesmo que ele fique de joelhos e implore, eu ainda ficarei com você, porque você é infinitamente melhor que ele. Sei que nunca me machucaria como ele fez. — De repente, o ressentimento ficou mais forte que a vergonha e as palavras saíram de seus lábios com pressa, como tiros de canhão. — Ele quase te matou porque você veio me visitar, eu entrei na sua frente e implorei que ele não te machucasse mais. Você foi tirado daquela casa velha como um cadáver. Não sei como escapou com vida. Depois ele me colocou para fora de casa, me largou na floresta. As lágrimas fizeram seus olhos arderem, mas os braços de Ethan estavam fechados ao redor dela. Ela se sentia protegida, mesmo que soubesse que esse sentimento era tolice. Chorou por vários minutos, mas Ethan não recuou. Só havia as luzes dos abajures acesas. Quando Isabella abriu os olhos, viu algo que fez gelar sua espinha. — Ethan — ela falou quase inaudível. — Tem alguém na porta do banheiro. Era uma silhueta muito escura de quase 1,90m de altura e ombros.
Fé
— Calma, Bella — a voz de Ethan parecia distante, enquanto ela mantinha os olhos nos lençóis, tentando não fazer contato visual com aquilo. Seu coração batia descompassado. — Fique calma. Mas como se acalmar quando havia um demônio querendo colocar as mãos em você? Sentiu a mão por baixo do gesso pinicar e esquentar. — Ethan... — ela sussurrou ao ver que ele estava levantando da cama. Não parecia assustado. Um cheiro de carne estragada foi notado de repente. — Ethan! — ela murmurou por entre os dentes, ousando erguer os olhos e ver que seu amante estava andando de costas na direção da sombra. Quase dava para ouvir a respiração do espectro. Ainda de frente para ela, de costas para o inimigo, Ethan alcançou o interruptor, fazendo a luz encher o cômodo. A sombra sumiu. — Viu só? — ele perguntou com um sorriso. — A luz contra o mal. Ela estava paralisada, não podia acreditar que a sombra tinha desaparecido e, junto com ela, o odor de putrefação.
— Não deve ser tão simples assim, só acender uma luz — Bells comentou com pânico. — É o que temos, por enquanto. Ele andou pela suíte e acendeu todas as luzes que encontrou, inclusive as da varanda, e voltou para envolver Isabella entre seus braços. — Já tive muitas experiências do tipo, desde que te conheci e trocamos telefones. Começou com barulhos na parede, vultos que só minha visão periférica conseguia ver e que, quando apareciam, deixavam uma sensação horrível de depressão, me fazia ter vontade de cometer suicídio. Nem no espelho eu me olhava mais. — Se você diz que começou no dia em que nos conhecemos, só pode ser Rafael. Ethan ficou pensativo. Sempre imaginou que era isso, mas ter a confirmação deixou sua mente vazia por alguns instantes. Um leve apagão, como se o mundo e tudo em que ele pensava tivessem desaparecido para dar lugar a um universo onde um demônio o caçava. Não alguém traído. Não um homem. Sim, uma criatura. Algo dotado de uma maldade maior do que Ethan conseguia imaginar. Uma entidade que poderia atingi-lo de todas as formas que desejasse. Naquele instante em que sua mente se encheu de pavor e trevas, ele tremeu de medo. Porque, por mais absurdo que parecesse, se Rafael quisesse sua morte, não iria simplesmente acabar com sua vida. O demônio transformaria a vida Ethan no inferno mais amargo, algo que sua mente ainda não era capaz de fantasiar. Começaria sutilmente, mas chegaria ao ponto de fazê-lo tirar a própria vida. Ele olhou para Isabella. Seus olhos azuis cintilavam na luz de tantas lâmpadas acesas. Ethan podia sair agora e tudo aquilo desapareceria. Ele encontraria os amigos da banda, teria ideias inspiradoras, faria ainda mais sucesso e seria feliz. Mas não podia deixar Isabella. O músico não era idiota. Não era apenas por amor. Claro que ele a amava como nunca tinha amado, mas não era só por isso. Era questão de honra e cavalheirismo. Bella tinha deixado um demônio por causa dele. Que tipo de homem ele seria se fugisse agora, se deixasse o medo falar mais alto? Ele iria honrá-la enquanto ainda pudesse lutar. Não só por amor. Era a coisa certa a fazer. — Ethan — Isabella sussurrou com o rosto apoiado em seu peito —, estou com medo. Muito medo. — Espera — ele pediu, se levantando novamente. Foi até o lado leste da suíte, verificou se todas as luzes ainda estavam acesas e só depois revirou sua mala, voltando com um terço de contas de madeira em uma das mãos. — Tome. Gentilmente, ele colocou o tercinho em volta do pulso bom de Isabella e beijou sua testa.
— Às vezes, a gente precisa de um amuleto para poder acreditar que aquilo vai nos trazer sorte, não importa o que é. Não sou religioso, mas minha mãe me deu isso quando era adolescente, disse que iria me proteger e, mesmo que eu não acreditasse, quando minha mãe me pede para que eu faça alguma coisa, eu obedeço. Por isso, ainda tenho ele depois de tantos anos. — Eu era católica — Isabella sussurrou, olhando para a cruz de madeira pendendo de seu braço. Ethan deitou-se na cama e ela se aninhou em seu peito. — Na Itália. Ia à missa todos os domingos. — Não posso dizer o mesmo. Nunca frequentei nenhuma igreja. — Mas... — Ela se deteve, com medo de perguntar, porém, pensou a respeito e decidiu que era melhor fazer. — Você acredita em Deus? Ethan ficou em silêncio por um momento inteiro. Pensou sobre muita coisa. Acontecimentos de toda uma vida passaram diante de seus olhos como relâmpagos antes de ele responder. — Acredito. Isabella ergueu-se na cama, apoiando o peso do corpo no cotovelo, e sorriu para Ethan. — Ainda bem, porque você é a cara do filho Dele! — ela exclamou. — Até tu, Isabella? — ele brincou fazendo uma careta bonitinha. — É sério! A primeira coisa que pensei quando te vi foi no quanto você era parecido com Jesus Cristo. Imaginei que tivesse deixado a barba e o cabelo crescerem para ficar ainda mais parecido. Ele riu. — Não, não foi por isso. — Não fique chateado — ela pediu. — Devia ser uma honra se parecer com Ele. Por um segundo, Isabella parou para pensar e se deu conta de que nunca tinha conversado com John a respeito de Jesus. John Smith já tinha nascido quando o filho de Deus andou pela Terra. Como ela nunca tinha o questionado sobre aquilo? Como será que as coisas tinham acontecido de verdade? John saberia, disso ela tinha certeza. Ele podia ter visto com os próprios olhos. Tantas coisas, tantas lembranças. As histórias que ela conhecia através de livros... John tinha visto tudo acontecer. A queda de Constantinopla, o fogo em Roma, a peste bubônica, as cruzadas, a construção da Catedral de Notre-Dame, a reforma protestante, todos os reinados... tudo! E ela nunca se deu ao trabalho de pensar sobre isso.
John viu a história acontecer. — Sempre pensei que recrutava para o outro lado — Ethan brincou, trazendo Isabella de volta à realidade. — Como disse? — ela perguntou. — Você sabe, coisas que vêm com a fama. As drogas, a bebida. Temos fãs, inspiramos pessoas e, muitas vezes, acabamos fazendo isso de forma negativa. Ou seja, recrutamos para o outro lado. Sem mencionar o sexo promíscuo. Foram tantas drogas. — Sabe que não faço ideia do que você está falando, não é? Isabella não conseguia entender por qual motivo alguém se inspiraria em Ethan só por ele cantar algumas músicas. Ele riu novamente. — Falando nisso — começou com um jeito tímido nada habitual —, você não se lembra de... nada? Não era preciso explicar. Bella entendia do que ele estava falando só pelo seu olhar. Ela mordeu o lábio. — Para mim, nunca fizemos isso. John continua sendo o único. — Puta merda! — Ethan bateu com o pulso fechado contra o colchão fingindo estar decepcionado. — E você está há mais de duzentos anos sem sexo? — Isso — ela admitiu e deitou-se novamente para aninhar-se no peito de Ethan. — Você sabe que as coisas mudaram muito, não sabe? — Não precisava ver o rosto de Ethan para saber que ele estava com o sorriso brincalhão. — O sexo mudou. Ouvi dizer que as pessoas do seu tempo faziam no escuro, que as mulheres de respeito precisavam ficar de bruços e algumas até rezavam enquanto o marido se divertia. Saiba que não é mais assim. Foi a vez de Isabella rir. — John não era desse jeito. Se está com medo de tirar minha honrada pureza, não se preocupe porque ele já fez isso. Mesmo há duzentos anos, John já fazia coisas que talvez você nunca tenha feito. Ethan não gostou de ouvir aquilo. Ela estava subestimando com quem estava falando. Mesmo assim, não disse nada. Pensou em como essa Isabella era diferente. Era como se fosse uma gêmea da outra. A garota por quem ele se apaixonou era rasa, não tinha esse brilho no olhar, esse jeito meigo de morder o lábio e olhar para baixo. A outra Isabella gostava de sexo. Não havia regras. Na verdade, Ethan pensava que era como se ela não
tivesse consciência, que trair o marido não significava nada. Agora, conhecendo essa novavelha Bella, ele percebia que talvez a outra não tivesse alma. Não que estivesse admitindo para si mesmo que tudo aquilo era real. Ainda não. Só estava analisando todos os pontos. A Isabella sem alma não se importava com a consciência, só com a reputação, por isso não pretendia se divorciar. Era tão rasa quanto um pingo d’água sobre uma superfície lisa. Apesar disso, ele a amava, sentia que dependia dela, como uma droga. Tão viciante quanto uma droga. Tão perigosa quanto. Só quando a consumia é que ele se sentia bem novamente. O afastamento trazia a depressão, como uma abstinência. Essa mulher cheia de emoções, determinada e com brilho nos olhos que estava deitada em seu peito era diferente. Mil vezes melhor e um milhão de vezes mais letal que a outra. Porque ela tinha o assumido publicamente quando se beijaram no cassino em Las Vegas, e agora havia um anjo caído muito irado com os dois. — Eu te amo, Bella — ele sussurrou, se declarando para essa nova mulher pela primeira vez. — Ethan... — ela murmurou. — Eu sei. É muito cedo para que você diga, para que sinta o mesmo. Eu entendo. Mas quero que saiba que amo você. E se eu for mesmo a reencarnação desse tal de Stefan, sempre te amei. — Você é Stefan. Só que mil vezes melhor — Bella sussurrou e um bocejo escapou de seus lábios. — Ethan, você vai comigo para a Itália? — Vou com você a qualquer lugar. Mas preciso saber a razão e a data. Tenho uma agenda de shows para cumprir. — John disse que tem alguém que pode nos ajudar. — John — Ethan pronunciou o nome com nojo. — Preciso dele, mas não se preocupe, estou com você e esse é um fato que John não pode mudar. Além disso, ele levará a esposa e a filha. — Outro bocejo. — Quando? — Ainda não sei. — Durma um pouco. Eu cuidarei de você. Ethan queria beijar cada centímetro da pele macia de Isabella, queria fazê-la esquecer John, mostrar como se fazia no século XXI, mas ela parecia muito exausta e assustada. Ele não era um homem das cavernas. De repente, pensou em algo.
— Bella, você disse que Rafael foi expulso não só do céu, mas também do inferno, por isso ele vaga na terra. — Hunrum... — Isabella balbuciou. — Sabe se ele está sozinho ou existem outros demônios que também foram expulsos do inferno? — Ethan perguntou, mas Isabella já tinha adormecido. Ele a tirou delicadamente de seu peito e a cobriu com o edredom. Levantou-se da cama e andou pelo quarto. Não gostava de dormir antes do dia amanhecer. Considerava a luz do sol mais segura para fechar os olhos. Ouviu o barulho de um pássaro ao longe. O hotel se localizava no campo. Não era de se estranhar, mas era um ruído tão agourento. Ethan não conseguia identificar que ave era aquela. Não entendia muito sobre pássaros. Na verdade, não entendia nada. Deixou para lá. Na sala, foi até o frigobar e pensou em beber alguma coisa, talvez só uma cerveja, mas logo descartou aquela ideia. Não teria uma recaída logo agora. Voltou ao quarto e pegou o laptop na mesinha de cabeceira. Pretendia ver como estava a repercussão do filme do qual sua música estava na trilha sonora, assim como a banda de John Smith, Fallen Angels. Tinha ficado tão envolvido com Isabella que não pensou no vídeoclipe que tinha estreado junto com o filme. Abriu o YouTube para ver o número de visualizações, mas resolveu olhar os e-mails primeiro. Havia um de um remetente desconhecido com um arquivo anexado. O assunto estava em outra língua. Sem fazer muito caso, Ethan clicou no e-mail e logo baixou o vídeo em anexo. Olhou para Isabella dormindo tranquilamente ao seu lado e voltou-se para tela do laptop. Ethan sentiu o corpo inteiro ficar gelado, principalmente o estômago. O leitor de vídeo mostrava um Ethan agachado diante de um solo arenoso. Só que ele nunca tinha visto nem gravado aquele vídeo. Não era em alta definição, mas ele se reconheceu perfeitamente. O Ethan na tela se inclinou sobre o chão, com as mãos encostadas na boca como se estivesse devorando algo. Levou treze segundos para o homem se virar na direção do espectador, mas quando fez isso, o choque tomou conta de Ethan. Ele abriu as mãos e, com lábios e dentes sujos e escancarados no pior dos sorrisos, exibiu o que estava comendo. Não era preciso ver com clareza. Ethan sentiu o cheiro antes de tudo, tão real quanto a gravidade que o mantinha preso ao chão. O Ethan do vídeo estava comendo fezes e agora oferecia as sobras em suas mãos para o espectador. Horrorizado, Ethan fechou o laptop, o jogou no chão desejando que se quebrasse e correu para o banheiro, torcendo para chegar ao vaso antes de vomitar no chão. Ao passar
pela porta onde antes o espectro tinha aparecido, os pêlos do seu corpo se eriçaram e o mundo a sua volta pareceu esfriar. Poderia ser apenas a pressão do seu corpo caindo por causa do vômito… ou não.
Filhos
— Já falei que ele vem — Bells murmurou aborrecida, enquanto John batucava os dedos no balcão do saguão vazio da primeira classe. — Não é o jatinho da banda dele — ele falou com irritação. — Não pode se atrasar desse jeito. Por algum motivo inexplicável, John não gostava de viajar de avião. Ele havia passado quase dois milênios sem aviões, não era fácil se acostumar, mesmo quando as viagens ocorriam diariamente. — Não vou sem Ethan — Bella falou com determinação. — Então pare de me deixar nervosa! Ela não sabia que John também estava nervoso. Era sempre muito confuso ter Isabella e Endy dividindo o mesmo espaço. Ele não sabia como se comportar na presença das duas. — Encontrou Rafael ontem? — John quis saber. — Sim — ela murmurou, olhando para a mão engessada. — Em público? — Sim. Dois advogados, ele, eu e, claro, Ethan esperando do lado de fora da sala — Bells disse com firmeza. — Valeu a pena ter contado tudo pra Ethan. Ele está me ajudando, principalmente a respeito do divórcio e das maravilhas do século XXI.
— Foram só dois dias com ele, não fale como se fizesse uma eternidade. — Para, John! Ele pigarreou e pensou em abaixar a cabeça, mas lembrou-se de quem era. Deu uma longa olhada no visual de Isabella. Naquele macacão jeans, a blusa cinza mostrando sua barriga e a pele macia, os óculos de sol, o cabelo solto caindo sobre os ombros e o batom vermelho. Por Deus, ela era linda! Não que Endy deixasse a desejar, mas Bells era... — Para de me olhar assim — ela o repreendeu com os olhos semicerrados por trás dos óculos. Virou-se e se dirigiu ao sofá de couro bege no meio do saguão. Odiava admitir, mas Ethan estava mesmo atrasado e John demonstrava cada vez mais impaciência. Ela não queria ficar perto de John Smith. Era uma sensação horrível notar que ainda era apaixonada por ele, que seu corpo se carregava de eletricidade na sua presença. Mas John parecia pensar diferente. Ele se aproximou dela e sentou ao seu lado, dobrando a perna esquerda e colocando o pé sobre o sofá. Seus dedos longos alcançaram o rasgão no joelho da calça jeans e, impaciente, ele começou a puxar as laterais do buraco, o alargando. Bells o observou atentamente enquanto ele arruinava o resto da calça. Seus olhos estavam voltados para baixo, os cílios grossos vibravam sutilmente. Ela já estava se adaptando as excentricidades do século XXI. Gostava do jeito desleixado que John tinha de se vestir, assim como Ethan. Rafael era diferente. Ela tinha o encontrado, a pedido dos advogados, para tentarem um acordo amigável. Ele vestia um impecável terno azul marinho e gravata cinza. O terço da mãe de Ethan estava pendurado no braço direito de Isabella. O anjo o olhou com curiosidade. Apesar dos nervos à flor da pele, Bella conseguiu camuflar o ódio que sentia por ele. Estava confiante que Rafael não tentaria nada em um edifício lotado de testemunhas, à luz do dia. — Eu te perdoo, Isabella — o anjo murmurou na presença dos advogados. — Posso esquecer o que fez. — Eu não esqueço — ela disse, erguendo a mão fraturada sobre a mesa. — Além disso, estou apaixonada por outro homem. Os advogados se remexeram em seus acentos e Isabella se arrependeu de ter sido tão ousada. Rafael poderia descontar em Ethan.
— Percebi o tercinho pendurado em seu braço. Pretende voltar a frequentar a igreja? — ele insistiu. — Vá se foder! — Isabella xingou, fazendo com que seu advogado risse de maneira nada profissional. Ela estava passando dos limites, mas Rafael não parecia bravo. — Eu quero muito que você vá se foder. Ethan tinha ensinado aquela expressão e estava sendo um prazer usá-la. Ela sorria agora ao recordar, mas ainda estava atenta aos pequenos buracos na gola da camiseta do homem ao seu lado. — Comprou essa camisa rasgada desse jeito ou ela só é velha demais? — Bells perguntou. John olhou repentinamente para a camiseta branca, como se não fizesse ideia do que estava vestindo. —Você nunca deixou de ser desleixado, John Smith. Sua aparência no tapete vermelho quase me enganou. — Peguei a primeira roupa que vi — ele murmurou inquieto porque, de repente, Isabella estava perto demais. — E você está destruindo sua calça — ela brincou e pegou a mão dele, afastando-a do rasgo que crescia cada vez mais. — Há várias coisas nesse século das quais não consigo me acostumar — John sussurrou tomado pela emoção de senti-la tocando sua mão —, mas é muito bom te ver desse jeito — ele disse e acariciou a parte exposta da barriga de Isabella. Ambos os corações pararam de bater. Bells olhou para os lábios de John e se deu conta do quanto queria beijá-lo novamente, do quanto ainda estava apaixonada por ele. Uma paixão doentia. Ela mordeu o lábio. Doentio. John tinha lhe feito muito mal, ainda assim, Bells não conseguia odiá-lo. Por mais que trincasse o maxilar e relembrasse todas as dores, não era capaz de desejá-lo menos. Isabella sabia que isso era burrice, que sentir essas coisas por John era a maior estupidez. Ela conseguia controlar os pensamentos. Sim, conseguia lembrar de todas as coisas ruins. Mas o coração era incontrolável. John ergueu a mão, virando o corpo lentamente na direção de Isabella, e deslizou os dedos nos cabelos dela. — Eu queria te beijar — ele sussurrou com a voz aveludada. — Também queria que você me beijasse. — Foi uma dessas frases que falamos sem pensar. Quando se deu conta, já tinha dito.
— Acredite, Bells, do fundo do meu coração, quero que as coisas deem certo entre vocês. Desejo que ele te faça feliz — John falou com sinceridade. — E juro que estou tentando, com todas as forças, não te desejar, não pensar em fazer um monte de coisas com você. — Por que você nunca traiu nenhuma esposa — ela disse quase inaudível. Mas antes que ele pudesse responder, John percebeu Ethan entrando no saguão da primeira classe e afastou-se de Bells. — E como Endy está lidando com tudo isso? — ela perguntou antes que Ethan os alcançasse. — Ela não sabe nada sobre... isso. Não precisa saber. Endy pensa que vamos viajar a negócios. — Tudo bem — ela disse e levantou-se para abraçar Ethan. Se sentia tão confusa que não sabia o que pensar. — Desculpa a demora — Ethan pediu contra o ouvido de Bella. Então olhou para John com tanta raiva que suas mãos tremeram. Não dava para ignorar todas as coisas que ele sabia sobre John agora, tudo que ele tinha feito contra Isabella. — Se controle — Bells pediu, se enroscando no braço de Ethan. John respirou fundo, destrincou o maxilar e ligou para Endy usando um desses aparelhos enviados do inferno. Ela estava em um restaurante alimentando Lanai e tentando mantê-la o mais distraída possível antes do voo. Lanai era como o pai, não se dava bem com aviões. — Ela ainda está com febre — John murmurou ao ficar de pé. — Lanai. — Sinto muito — Bells disse. Ethan revirou os olhos discretamente, só queria não precisar daquilo e poder levar Bella para longe de John Smith. Menos de três minutos depois, Endy estava cruzando o saguão com a criança de bochechas vermelhas nos braços. John ia pegar sua filha, mas a menina praticamente se jogou no colo de Isabella, fazendo com que Ethan se afastasse. — Bells — Lanai sussurrou, encostando a testa no pescoço de Isabella, que notou a pele da criança ardendo. Ela olhou para John preocupada. — Tem certeza? — Bells quis saber. Não precisava perguntar se deveriam mesmo viajar com Lanai doente, já que John sabia o que ela estava pensando. O olhar que ele lançou foi suficiente para Isabella entender que sim, eles deveriam
viajar. Estamos indo para casa!, ela pensou com todas as forças, para que John entendesse. John deu um único aceno de cabeça, enquanto eles seguiam para a parte externa do aeroporto, onde o jatinho os esperava. Você tem noção do que isso significa?, ela continuou, satisfeita por poderem trocar algumas palavras daquele jeito. É a nossa terra, John! Foi onde nos casamos! — Vai ser uma viagem interessante — ele disse de cara amarrada. — Quer que eu pegue Lanai? — Não precisa — Bells se negou. — Não ligue para o humor de John, Ethan. Ele morre de medo de voar — Endy falou colocando a mão no ombro do homem. — A propósito, já te disseram que você lembra uma dessas pinturas de Jesus? Ethan revirou os olhos, mas acabou sorrindo com gentileza para a esposa de John. — Você é a primeira pessoa que me diz isso — ele blefou, em seguida, usou as palavras de Bella. — É uma honra se parecer com ele. Endy abriu um sorriso bonito. Ela era jovem e tinha aquele jeito de brava, mas na realidade, era muito simpática. Ao embarcarem no jatinho, Bells acomodou Lanai em uma poltrona e percebeu que a temperatura da criança tinha baixado razoavelmente. — Precisamos conversar, Isabella — Endy informou. Ela parecia empolgada e John, ao ouvir aquilo, fechou ainda mais a cara. Isabella, mesmo desconfiada, a seguiu para a parte mais ao sul da aeronave. As duas sentaram-se nas poltronas da calda. — John não te contou? — Endy quis saber. Isabella arregalou levemente os olhos, sendo tomada por um mal-estar repentino. — Não...? — ela respondeu, mas soou como uma pergunta. — Ainda bem, porque eu queria dar a notícia. Você sabe, ficamos um tempo afastadas, mas você é alguém que amo muito. Sabe que sempre pode contar comigo para qualquer coisa. — Sei... — Bells ficava cada vez mais ansiosa. Não estava gostando do rumo daquela conversa. Olhou para a frente e viu Ethan mexendo no seu enviado do inferno a duas poltronas delas. John estava com a filha.
— Eu não quis te contar antes por causa da estreia do seu vídeoclipe com a banda de Ethan, o filme e, você sabe, essa confusão com Rafael. — Endy olhou com empatia para Bells. — Sinto muito que as coisas tenham atingido o ponto de... ele te agredir e... Não vamos falar disso! Você me conhece, sabe como falo demais quando fico nervosa, — ela elevou a voz para que o esposo ouvisse — ao contrário de John, que se fecha em um casulo! Enfim, você precisa me contar como aconteceu... Você e... Ethan. — Endy — Bells murmurou, segurando as mãos da mulher e a encarando —, diga o que você tem para me contar. — Ah. Estamos grávidos — ela disse e mordeu o lábio. — Onze semanas. Desculpa não ter contado antes. Isabella moveu os lábios, mas não soube o que dizer. Sentiu os olhos ficarem úmidos. Seu coração se apertou. — São gêmeos — Endy continuou sem perceber o choque no rosto de Bells. É tão... insano! Saber que tenho dois bebês dentro da minha barriga. E... John está vivendo uma mistura de alegria e preocupação. Você sabe como a gestação da Lanai foi perigosa. Tudo que o médico falou sobre os riscos, que eu jamais deveria engravidar novamente, mas... Tenho fé que tudo vai dar certo. Muita fé.
É mais difícil perdoar a si mesmo
O ar era mais suave ali do que em qualquer outro lugar do mundo. Era o que John Smith sempre pensava. No carro com Lanai em seus braços, ele via os olhos de Bells brilhando ao observarem a arquitetura antiga da cidade, as mudanças que o progresso trouxe, os detalhes que nem o tempo foi capaz de mudar, o chão de pedras, os muros de séculos atrás, as calçadas estreitas. — Vamos direto para o hotel? — Endy questionou o marido. — Seria bom descansar um pouco. — Deixaremos você lá — John disse. — Temos trabalho a fazer. Não se preocupe, levarei Lanai para que você possa dormir um pouco. — Obrigada — ela sussurrou, agradecida. A gravidez a deixava sonolenta e terrivelmente cansada. Isabella sequer desviou os olhos da janela para observar o casal conversando. Estava perplexa demais com a enxurrada de lembranças. O hotel ficava localizado onde antes era um grande jardim de inverno, onde Isabella costumava levar Teresa para brincar nas tardes de clima agradável e, algumas vezes, trocava olhares com Stefan. Quando se acomodaram em suas suítes, John convidou Isabella para tomar um café a sós no restaurante do hotel. Mas café trazia amargas lembranças, então preferiram chá. — Não estou chateada — Isabella disse ao se sentar e deu de ombros, colocando os óculos de sol no topo da cabeça. — Só estou curiosa pelo fato de você não ter me contado.
Era mentira. Ela adoraria dar um soco no estômago de John e um chute no meio das suas pernas, depois entortar seus dedos das mãos para trás, até quebrá-los e, só então, cuspir na cara dele. Mas já tinha se decidido que John não importava mais, que ela estava com Ethan agora e o que seu primeiro marido fazia ou deixava de fazer não era problema seu. — Você estava casada com Rafael quando aconteceu — John disse ao sentir a fúria nos pensamentos de Bells. — Não engravidei Endy depois que você voltou. Não me culpe por isso. Não me culpe por ter sido dispensado e seguido minha vida. Você pode me culpar por milhares de coisas, mas não por isso. Endy não tem culpa de nada do que aconteceu entre nós. Não a odeie. Minha filha também não é culpada. —Eu jamais odiaria Lanai — Bells disse, tomando um gole do chá. — Não detesto sua esposa. O único que odeio é Rafael. Só não entendo por que não me contou, por que me deixou acreditar que ainda tínhamos uma chance quando sabia que sua esposa estava grávida de gêmeos. — Eu não poderia, Bells. Ela me pediu para guardar segredo, por causa do risco da gravidez. Prometi que não contaria e cumpri minha promessa. Mas não fiquei te iludindo, expliquei que as coisas não eram simples e não dava para largar tudo porque você tinha voltado. John não tinha dado esperanças. Aquelas palavras fizeram o coração de Isabella sangrar, mas ela engoliu a dor goela abaixo e ergueu o queixo. — Está tudo bem — mentiu novamente. — Está tudo muito bem, John. Ethan é um homem decente, é tudo que eu sempre quis. E Endy é um amor, vocês têm uma filha linda, terão mais bebês. Sabe... talvez você e eu nunca déssemos certo. Mesmo que eu tivesse voltado quando você me encontrou no orfanato. Acho que não era para ser. Nós dois juntos... iríamos brigar e depois acabar nos odiando. Acho que as coisas estão muito bem assim. Endy te deu algo que eu não te dei. — Filhos... — John murmurou com a voz extremamente rouca, sendo invadido por uma lembrança cruel. — Você não lembra, Bells? — O quê? — Isabella arregalou os olhos. John considerou por um momento contar. Sentiu a boca amarga, o coração machucado pela lembrança ainda vívida daquele último momento. Isabella estava inconsciente, padecendo sobre o caixão, quando a morte lhe contou. Não tinha como Isabella saber. E era melhor assim. — Nada. Não é nada. Termine o chá. Precisamos encontrar alguém. — Quem precisamos encontrar, John? Você nos trouxe até aqui, pare de fazer tanto mistério!
— Um amigo. — Um amigo como Rafael? — Isabella perguntou com receio do que John poderia estar escondendo. — Não, ele não é como Rafael — John respondeu com um sorriso. — Confie em mim, Bells. A febre parecia só baixar nos braços de Isabella. Lanai afundava a cabeça na clavícula dela e acabava cochilando. Até mesmo no carro, enquanto John dirigia com Ethan no banco ao lado. Obviamente, eles se odiavam, mas estavam cientes que era melhor deixarem as diferenças para depois. John dirigia tranquilamente pelas ruas da cidade, seguindo na direção oeste. Virou em uma ruela estreita, mas cheia de apartamentos onde haviam grades nas janelas do térreo. Era o centro da cidade, longe de onde Isabella morava quando ainda era a senhorita Fontana. Estacionou diante de um modesto prédio amarelo. Desceram do carro e John bateu duas vezes em uma porta dupla marrom com aproximadamente três metros de altura. A porta abriu com um rangido de dobradiças necessitando de lubrificação. Foram recebidos por um homem negro, de cabelo curto e uma simpatia que logo os cativou a entrarem. — Sejam bem-vindos — ele disse, fazendo uma sutil referência, enquanto o grupo se juntava no hall de entrada. — Sua filha cresceu, John. — Este é Massimo Benedetti — John o apresentou, em seguida informou o nome do casal ao seu lado. Os olhos do homem se destacaram na pele escura quando grudaram-se nas feições de Ethan. — Até já sei o que vai falar — Ethan sussurrou, incomodado com o cenho franzido do homem o estudando com atenção. — Você se parece com Gesù Cristo — o homem disse com a pronúncia italiana —, mas não era isso que eu ia falar. — O que é? — Ethan perguntou baixinho, de certa forma, prevendo o que ele falaria. — Aquilo foi um sinal. O vídeo. O inimigo quer usar você. Um arrepio percorreu o corpo de Ethan. Como o homem saberia sobre o vídeo onde Ethan comia fezes se ele não tinha contado nem para Bella?
— Vamos deixar o assunto para depois. Vamos tomar um chá. Me chamem de Massimo. Conheço John há alguns anos, mas sei praticamente tudo sobre você, Isabella. Pelo menos as partes que interessam. Eles seguiram Massimo por uma escadaria que levava ao primeiro andar, onde se acomodaram à uma mesa farta de pães, frutas e as maravilhosas mozzarellas de búfala. A última vez que Isabella comeu aquilo foi no primeiro jantar com John Smith. Sua boca salivou. Incapaz de resistir à gula, ela entregou Lanai para o pai e serviu-se de um prato cheio de mozzarellas e pães. Ambos comeram com tanto gosto que fizeram os olhos de Massimo brilharem de satisfação. Como um bom italiano, agradava-lhe ver amigos reunidos ao redor de sua mesa para uma refeição. — Vai nos contar quem é o senhor e como pode nos ajudar? — Isabella perguntou com gentileza. — Já que John fez tanto mistério... — Sou diácono da Igreja Apostólica Romana e acompanho de perto o trabalho do padre Luca. — Padre Luca está autorizado pelo Vaticano a realizar exorcismos — John explicou brevemente. — E eu o auxilio — Massimo disse com orgulho. — Já estive diante do mal dezenas de vezes, por isso sei quando estou na presença de um oprimido, como Ethan. — Como sabia sobre o vídeo? — o astro do rock quis saber, enquanto Bella lhe lançava um olhar de reprovação, que queria dizer “por que não me contou?”. — Digamos que John não é o único a sentir as coisas — Massimo respondeu com bom humor. — Talvez seja por isso que nos damos tão bem. Apesar de toda preocupação que os assolava, Bells suspirou aliviada, decidindo que, a princípio, podia confiar no diácono. — Já era hora de arranjar um amigo que preste, John — ela brincou e Massimo riu, mas John ficou sério. Ethan também. — A febre de Lanai... — John murmurou lentamente — tem a ver com... — Sim, ele vai atacar os mais fracos primeiro. Não há pressa. O tempo não funciona da mesma forma para criaturas inumanas como funciona para nós. Por isso são pacientes, esperam o tempo que for preciso. — Vamos fazer um exorcismo em Rafael? — Bells quis saber. — Ah, se fosse simples assim — Massimo disse. — Não que um exorcismo seja
uma tarefa simples. É perigoso e pode ser mortal. Já foi, em muitos casos, por isso acabou sendo ocultado pela igreja católica. Apesar disso, não podemos simplesmente exorcizá-lo. — Por que ele não pode ser mandado de volta ao inferno — Bells murmurou. — Entre outras coisas. Um ser maligno, dotado de uma inteligência imensuravelmente maior que a nossa — a voz de Massimo adquiriu um tom sombrio ao falar —, possuiu um corpo há milhares de anos. Ele usou o nome de um dos arcanjos do Pai. O Arcanjo Rafael é o portador da cura aos homens, não só espiritual, mas também física, o protetor, um anjo que cuida das providências divinas, de guiar o homem pelo caminho de Deus. Essa criatura fez tudo que era contrária à vontade do Pai, usando o nome de Rafael. Ele guiou John pelo caminho da escuridão e levou infelicidade a centenas de pessoas. É um demônio poderoso e influente, que não pode ser jogado de volta no fogo do inferno. Por isso, realizar um exorcismo só iria piorar a situação. Estaríamos tirando o demônio de um corpo, deixando-o livre para possuir outro. — Eu — Ethan declarou com a voz trêmula. — Seria conveniente aos seus fins, usar o corpo de alguém que é a imagem de Gesù Cristo para levar desgraças aos filhos de Deus. Muito conveniente. Na certa, ele já sabe que John abriu os olhos, que pode tentar o exorcismo. Talvez esteja procurando outro corpo para zombar da Santíssima Trindade — Massimo falava com sabedoria. — Você passou pelo primeiro estágio, a infestação, onde o demônio deu os primeiros sinais da sua presença. Ele te assombrou com batidas, barulhos vindos de dentro da parede, aparições, formas negras... — Foi exatamente assim — Ethan disse. — Encontrando espaço, ele passou para a segunda fase, a opressão. Você sentiu a tristeza te prender à cama, perdeu o apetite, a vontade de sair, se afastou das pessoas, pensou em tirar a própria vida. — E o que vem depois? — Ethan arriscou perguntar. — A possessão. — E se não for Rafael? — John perguntou, se solidarizando com o sofrimento do rapaz, deixando as rixas de lado. — Se existirem outros? Se Rafael tiver aliados...? Não sabemos se ele foi expulso sozinho. — Não sabemos, John. É esse o muro no nosso caminho, não sabemos de quase nada — Massimo admitiu. — Agora minha filha está doente e eu não sei o que fazer. — Quando John disse isso, Lanai se remexeu em seu colo. — Fé, meu amigo. — Você pede fé a um homem como eu? — John perguntou com sarcasmo.
— John... — Bells sussurrou. — Ouça o que ele tem a dizer. — Eu não vou! — John disse imparcial sem esperar o que o diácono verbalizasse o pensamento. — Não vou perder tempo com isso. Isabella e Ethan se entreolharam, espantados com a raiva na voz de John. — Por que não? — Massimo quis saber. — Não vou contar meus pecados para um padre como se isso fosse resolver alguma coisa. Não tem perdão para as coisas que fiz. Deus não vai me perdoar só por eu me confessar! Isso é uma das... — Maiores besteiras da igreja? — Massimo completou sua fala, mantendo o bom humor. — Confesse. — Jamais. Isso é perda de tempo. — Você confiou sua vida, seus atos, a vida da mulher que amava, tudo que tinha, nas mãos de um anjo caído. Fez tudo que ele quis sem nunca contestá-lo. Eu estou pedindo uma simples confissão, e você se recusa. — Era diferente! — John quase gritou, seus olhos brilhavam com a ira repentina. — Claro que era. Você estava servindo ao mal. Era totalmente diferente. Confesse! — Não! — John insistiu e, de repente, sentiu a mão macia e quente de Bells tocar sua mão trêmula. Ela o olhava com uma mistura de compressão, espanto e súplica. — Você não entende, Bells! Tenho dois milênios de pecados. Só te contei uma pequena parte das coisas que fiz. O mínimo do mínimo. Não quero dizer em voz alta para um estranho todos os crimes que cometi. De certa forma, o olhar expressivo e o caloroso aperto de mão de Bells o fizeram se acalmar. — Não faça por mim ou por você — ela falou tão baixo que só ele pôde ouvir —, faça por sua filha. — Se confesse, John — Massimo pediu com tranquilidade. — É só o que peço, a princípio. — Não é que você não acredite na confissão — Bells continuou sussurrando como se pudesse ver através dos olhos de John e entender sua alma —, você tem medo.
∞∞∞
— Só eu acho que isso vai demorar uma eternidade? — Ethan resmungou quando John desapareceu entre as colunas góticas da igreja. — Guarde o sarcasmo para outra hora — Bella o repreendeu. — Era aqui que você me paquerava na outra vida. Foi aqui que fui batizada, que me casei. — Com ele — Ethan disse e Isabella lançou-lhe um olhar de reprovação, indicando que ele deveria ter cuidado com as palavras usadas perto de Lanai, que estava no colo da jovem. O deixando para trás, ela caminhou devagar com a menina em seus braços, absorvendo as lembranças e os detalhes do gótico flamejante presentes na igreja. Notou que haviam acrescentado duas grandes ilhas de metal onde os fiéis podiam acender velas. Ethan a seguia. No aparador próximo às ilhas, ela pegou três velas, acendeu uma, e fez Lanai e Ethan acenderem as outras duas, apoiando o pavio nas chamas das velas já acesas. Quando Lanai colocou a vela sobre o apoio, abriu um sorriso para Isabella e beijou sua bochecha. — Isabella te faz bem, não é? — Ethan perguntou, segurando na mãozinha da criança que o olhava com atenção. — Você se sente muito bem no seu colo. Sei como é, a presença dela alivia a dor. Lanai não disse nada. Não era uma criança quieta, ainda assim, desde que a febre havia começado, ela não tinha falado muito. Limitou-se a estender os braços para Ethan, que a pegou no colo. — Não quer fazer uma oração? — Isabella quis saber. Ethan sacudiu a cabeça em negação. — Vim aqui com você, acendi uma vela e estou esperando, mas você não vai se aproveitar da situação para me converter, Bella. Não vai! Ela não ficou ofendida. Apenas riu com o jeito de Ethan e como Lanai estava à vontade em seu colo. Ele podia ser um bom pai. — O que foi? — Ethan quis saber. — Nada! Vamos nos sentar. Sentaram-se e esperaram. Inquieto, Ethan colocou os pés sobre as costas do banco à sua frente, depois acabou deitando-se e tirando um cochilo, aliviado pela tranquilidade que o lugar transmitia, apesar de não se sentir muito à vontade com imagens de santos.
Os minutos se transformaram em horas. Fazia silêncio na igreja. O coração de Isabella batia ansioso, enquanto Lanai também cochilava, deitada no banco com a cabeça apoiada em seu colo. Ela estava recordando como se sentiu traída, enquanto seguia para aquela igreja no dia do casamento, e como seu coração reagira quando viu John Smith pela primeira vez. Não era como se ela estivesse se apaixonando. Era como se eles já se amassem, só não haviam se conhecido ainda. Lembrou de seus pais, se perguntou como a vida teria sido para Teresa, se tinha se casado, tido filhos, se encontrara a felicidade, quando será que a morte tinha lhe encontrado, e decidiu que seria bom visitar o túmulo da família Fontana. John devia saber onde ficava, bem como tudo que havia acontecido com eles. Ficou tão envolvida naqueles pensamentos que deu um sobressalto quando viu John atravessar em silêncio a nave e se dirigir ao altar. O corpo de Isabella se arrepiou por inteiro quando o viu dobrar os joelhos e se ajoelhar diante do altar. Seu queixo caiu quando ele se curvou para a frente, com os ombros caídos, num gesto de total desamparo. Sem desviar os olhos de John, Bells sacudiu Ethan para que ele acordasse e segurasse Lanai, então se levantou devagar, insegura, sem saber se deveria se aproximar. Caminhou como se pisasse em ovos pelos metros que a separavam do altar. Seu peito subia e descia com a respiração acelerada e um soluço escapou de seus lábios quando, encurtando a distância, ela percebeu o corpo de John tremer. Deu os últimos passos silenciosos e se ajoelhou perto dele. O piso escuro de granito era frio, mas isso não a incomodou. O choque de ver um homem como John Smith caindo aos pedaços diante da imagem de Cristo fez as lágrimas se formarem nos olhos de Isabella. Seu soluço chamou a atenção de John, mas ele não se virou para olhá-la. Não tinha coragem. Ele cerrou os olhos, fazendo com que as lágrimas caíssem, e tentou se empertigar, mas a dor o mantinha para baixo. A vergonha, a culpa e o arrependimento o faziam desejar nunca mais levantar-se dali. Não queria mais encarar o mundo. Um mundo ao qual ele não deveria mais pertencer. Tremendo, Isabella ergueu a mão e acariciou as costas de John. Ele aparou algumas lágrimas, só que elas não paravam de cair. — Ah, John... — ela sussurrou. — Eu não consigo, Bells — ele disse e se virou para encará-la com os olhos tão azuis que machucavam.
Ela não precisava ser o diácono para saber do que ele estava falando. — Seu coração ainda está duro — Bells sussurrou. — Precisa deixar Deus amolecêlo. Outro acesso de choro atacou John e Isabella tentou apanhar algumas das lágrimas que escorriam pelo seu queixo e encharcavam sua camiseta. — Eu reneguei a Ele, Bells. Você sabe... Não tenho coragem de pedir perdão, por mais que eu me arrependa de tudo. Por mais que eu deseje voltar no tempo e mudar minhas escolhas, o que fiz está feito. Não sou mais um filho de Deus. — Não fale assim. Você veio aqui por um motivo. É claro que ainda é Seu filho. Ele jamais abandonaria você. — Como você pode ter um coração tão bom? — John perguntou. — Depois de todo mal que te fiz, você ainda tem coragem de secar minhas lágrimas, quando nem tenho mais forças de te pedir desculpas. E o mal que causei a todos os outros nunca será perdoado. Você não faz ideia do quanto é doloroso o peso da culpa, do arrependimento. — Eles não podem te perdoar, já que estão mortos. Mas você não está aqui para nos pedir perdão. Deus trouxe você até aqui para que você perdoe a si mesmo. Ele está aqui entre nós, eu posso sentir e tenho fé. Só que você precisa se perdoar, John. Só você pode fazer isso. — Não consigo. Estou destinado ao inferno — ele disse, puxando a respiração pesada e apoiando a cabeça no ombro de Isabella, permitindo que ela o abraçasse com força. — Deus não é sinônimo de castigo, de dor ou culpa. Acredite em mim, deixe Ele entrar no seu coração. Ainda dá tempo, John.
∞∞∞ — Aqui seu corpo foi enterrado — John explicou mostrando a lápide de concreto onde estava gravado o nome de Isabella Smith. — Foi um casamento curto. Não chegamos a ver neve cair juntos, não passamos nenhum Natal... Era muito difícil estar ali, mas concordou por ela. Bells merecia algumas concessões. Mas as lembranças ficavam mais nítidas e tornavam a dor mais causticante. A brisa soprava fria. A estátua belíssima de uma mulher segurando um bebê em seu colo parecia os observar com proteção. — Você mandou fazer? — Bells quis saber, passando a mão na pedra esculpida. John engoliu a saliva. A escultura da mãe segurando um filho que o casal Smith
nunca chegou a conhecer. Ele meneou a cabeça positivamente. Seu rosto esquentou, o fazendo sentir ainda mais a corrente de ar gélida que os cercava. As sombras das demais esculturas decorando as lápides centenárias pareciam maiores, como se estivessem atentas, na expectativa do instante em que ela fosse se dar conta. O céu era de um cinza escuro, camadas e mais camadas de nuvens espessas pareciam querer desabar acima de suas cabeças. No momento em que tocou a cabeça da estátua do bebê nos braços da mulher, a mão de Isabella se afastou e parou no ar. Os segundos se arrastaram, a jovem permaneceu imóvel. John queria acalentá-la, dizer-lhe que havia sido diferente. No entanto, era aquela a realidade deles. — O anjo da morte me contou antes de te levar para longe de mim — ele confessou. A dor parecia queimar seu peito. — Mas não podia salvá-lo. — Era um menino? — Bells quis saber. As lágrimas iluminaram seu rosto. — Nunca soube. — Poderíamos ter sido felizes. Uma família de verdade, se não fosse... John a puxou para seus braços e a apertou. Era sua vez de consolá-la. — Teríamos sido — ele disse afundando os lábios em seu pescoço. — Sim, teríamos. — O que aconteceu com meus pais, com Elena...? — As lágrimas quentes rolavam pelo rosto da jovem. — O que aconteceu com Teresa, John?
Uma chance para Ethan
Isabella saiu do chuveiro após um longo banho quente. Enrolou-se em uma toalha e desfrutou de todos os luxuosos cosméticos que ela podia bancar. Colocou um vestido claro e desceu para o restaurante do hotel. Ethan estava sumido desde a saída da igreja onde John havia se confessado, mas isso não deixava Isabella preocupada. Talvez ele só tivesse coisas para resolver na Itália. Um sumiço de algumas horas não significava uma ação de Rafael. Respirou fundo e tentou manter a serenidade, enquanto realizava o trajeto até o restaurante, sorrindo para todos que a cumprimentavam. A revelação de John ainda rondava sua cabeça. Não entendia os sentimentos de agora. Sabia que ter um filho era o sonho da Isabella inocente do século XVIII, mas as coisas haviam mudado. Ideias e sonhos podem se transformar. E a ideia de ter um filho no mesmo mundo em que o demônio Rafael existia era perturbadora. John estava sentado à mesa mais afastada, olhando através da parede de vidro com vista para a avenida movimentada. Estava sozinho. — Pontual — ele disse ao notar a presença e o perfume de Isabella. — Onde está Endy e Lanai? — ela quis saber antes de se sentar na cadeira em frente a John. — No quarto — ele disse e passou a língua no lábio inferior, ainda observando os automóveis indo e vindo.
— Pensei que jantaríamos todos juntos — ela sussurrou, apoiando os pulsos sobre a mesa e erguendo o queixo para encarar John à meia luz do restaurante. — Lanai melhorou? — Sim, teve uma considerável melhora, e Endy não quis jantar comigo essa noite — ele confessou. — Não leve para o lado pessoal, é só que... Ela disse que meu cheiro a deixa enjoada, por causa da gravidez. — Ela não parecia enjoada do seu cheiro mais cedo — Bells comentou, apesar de não saber muito sobre gestações e como as mulheres se sentiam. — Pois é. Foi um enjoo repentino — John disse e deu de ombros, demonstrando indiferença, mas Isabella estava certa de que não era aquilo. Alguma coisa estava acontecendo. — O que aconteceu com Teresa? — repetiu a mesma pergunta que tinha feito no cemitério, e que John se recusou a responder. — Bells... — Por que não quer me contar? Elena e Stefan acabaram se casando, isso não me abala. Fico feliz que ele tenha encontrado amor no matrimônio, que, em pelo menos uma de suas vidas, fora feliz. Mas, e quanto a minha irmãzinha? Não me diga que se casou com ela. — Não me casei com Teresa — ele disse e esfregou a nuca. — Prometo te contar quando as coisas estiverem mais calmas. — Promete mesmo? Ele fez que sim com a cabeça, desviando os olhos para a janela de vidro. Por um instante, pareceu o sombrio John do passado. Só por um instante. — Você se sente melhor... sabe... depois da confissão? — ela quis saber, mudando de assunto. John sorriu, mas não havia humor em seus olhos. Ele fez que sim com a cabeça. — O padre Luca acreditou em tudo que você contou? — Sim. Ele já sabia sobre mim. — Isso é bom... Eu acho. Ele parece entender de muitas coisas. E... espero do fundo do meu coração que consiga se perdoar — Bells disse e alcançou a mão de John sobre a mesa. Ele analisou seu gesto com olhos estreitos, mas ela não se afastou. Não havia nada de errado em segurar a mão dele, ainda mais depois de John ter derramado tantas lágrimas em seu peito. Pediram o jantar e comeram em um silêncio que só foi interrompido por algumas dúvidas que Bells ainda tinha a respeito do século XXI.
Ambos os corações maltratados estavam em paz, com receio, mas em paz, até certo ponto. Bells limpou os cantos da boca com o guardanapo e o colocou sobre a mesa. — Acha que podemos visitar nossa antiga casa? — ela quis saber. — Claro — ele disse sem olhá-la nos olhos, parecia muito distante. — Tudo que você quiser, Bells, mas não esta noite. Ele se remexeu na cadeira, apertou a mão esquerda contra sua nuca, sentindo a tensão dos músculos. Precisava de uma massagem. — John, gosto muito de você e sei que sente o mesmo. Nos amamos e podemos transformar esse sentimento em amizade — Isabella disse. Ver John desabar no chão daquela igreja a tinha feito refletir sobre muita coisa. — Já que, agora, amizade entre um homem e uma mulher não é nada demais. Ele ergueu o olhar e a encarou. — Não parece ser ótima essa chance que temos de fazer a coisa certa dessa vez? Temos pessoas que amamos, somos amados. — Você entendeu o que a morte quis dizer — John observou. — Demorei um tempo, mas agora entendo. Com amor e nossos corações em paz, talvez a gente consiga se livrar de Rafael. — De alguma forma. — De qualquer forma. Eu amo você, John, mas sei que não fomos feitos para ficarmos juntos. — Compreendo. Foi uma confusão dos infernos quando tentamos — John admitiu, fazendo com que Bells abrisse um sorriso. — Quero que seja feliz. Vou ficar por perto para garantir que isso aconteça. E, quanto àquele demônio, vou destruí-lo, nem que seja a última coisa que eu faça. — É dessa fé que precisamos — ela disse e levantou, pronta para se retirar, sem imaginar o poder que a última frase de John carregava. — Acha que é mesmo só enjoo ou... Endy não me quer por perto? Isabella apoiou as mãos sobre a mesa e pensou por alguns segundos. — John, se sua esposa estivesse chateada com alguma coisa, acho que você já teria percebido, afinal, você pode sentir o que ela pensa. — Com Endy não — ele confessou. — Ela e Rafael são os únicos que nunca
consegui sentir.
∞∞∞ Com o corpo ainda perfumado e fresco do banho, e o estômago alimentado, Bella voltou a sua suíte. Abriu a porta, mas a fechou de volta com olhos arregalados, tomada por um pavor repentino. Respirou fundo, parada no corredor do hotel, tentando entender o que tinha visto lá dentro. Apertou os olhos e tentou manter a calma. Havia um homem de pé, entre a sala e o quarto, cabelos curtos, sem camisa, e várias velas acesas sobre os aparadores. — Rafael — ela falou em pânico e, por um momento, quase correu de volta para o restaurante, onde tinha certeza que ainda encontraria John, mas conseguiu controlar o pânico. Antes de fazer alarme, resolveu abrir a porta novamente, como a mulher corajosa na qual ela estava se transformando. O homem havia se aproximado da porta, com os braços caídos ao lado do corpo. Pela penumbra, ela demorou quase dois segundos para reconhecê-lo. — O que aconteceu...? Seu cabelo...? — ela perguntou, entrando no quarto e alcançando-o, segurando seu rosto entre as mãos. — Sua barba... Ethan se inclinou para baixo e deixou os lábios encostarem nos de Isabella por um instante. — Sou eu, minha Bella — ele sussurrou, tomado por um sentimento quente e dominador. Tentou manter a calma. — Mas... eu gostava do seu cabelo — Isabella disse pesarosa, tocando as mechas curtas do novo corte de cabelo de Ethan. A barba ainda estava ali, só que tão rala que mal era notada. — Gosta de mim ou só do meu cabelo? — ele brincou, sentindo os batimentos acelerarem enquanto os dedos dela acariciavam seu rosto. — De você — ela disse e mordeu o lábio, um gesto inocente, mas que quase acabou com o autocontrole de Ethan. — Massimo falou sobre Rafael querer usar alguém parecido com Cristo para zombar... algo assim — ele disse com o timbre de voz diferente, um som produzido no fundo da sua garganta. — Bem, pelo menos isso tenho certeza de que ele não vai ter. Me diga você, ainda me pareço com Jesus? — Não — ela admitiu, balançando a cabeça e se dando conta do quanto fazia calor dentro da suíte.
Algo havia mudado, não era apenas o visual de Ethan. Deixando aquele calor penetrar no seu pensamento, Isabella mordeu o lábio novamente diante do rosto de Ethan e observou suas reações. Seu peito nu subia e descia com a respiração forte. Bella deixou suas mãos escorregarem até aquela região e sentiu as batidas violentas, ainda com os dentes apertando a carne do lábio inferior. — Meu coração está a ponto de pegar fogo — ele sussurrou com a voz aveludada. — Você não sabe o que isso significa para mim — Isabella murmurou, entendendo o que ele queria dizer. Não se tratava apenas do coração. Seus corpos estavam em chamas, como as dezenas de velas que davam uma cor âmbar ao quarto. — Não importa quantas vidas eu viva, nunca vou me esquecer de você — Ethan falou com tanta intensidade que a fez arfar e tombar a cabeça para a frente. Ele deu a volta, se posicionou atrás de Isabella e segurou seus pulsos com uma força que não era cruel, mas era suficiente para ela não conseguir movê-los. Com a ponta do queixo e o nariz, ele afastou seus cabelos das costas e deu um passo à frente, induzindo-a a fazer o mesmo. Devagar e com os braços imobilizados, ela foi conduzida até o portal entre a sala e o quarto. O corpo da modelo foi pressionado contra a madeira, em seguida ele se ajoelhou, beijou a parte de trás do seu calcanhar, deslizou a língua até sua panturrilha, e quando alcançou a parte de trás do joelho, Isabella soltou um gemido involuntário. As luzes acenderam e se apagaram sozinhas, mas a língua de Ethan continuou subindo, enquanto as unhas dela rasgavam o papel de parede. Quando piscaram novamente, eles perceberam. — Rafael — ela murmurou ofegante, sentindo seu interior contraindo-se com o prazer de ter a língua de Ethan percorrendo cada centímetro da sua pele. — Foda-se, demônio! — ele falou com confiança. — Vou devorar sua esposa. Exesposa. E se quiser me impedir, terá que me matar. — Ethan! — Isabella o censurou, mesmo que a coragem de Ethan a fizesse desejá-lo ainda mais. — Ele quer assistir para entender por que é corno — Ethan comentou, agora de pé, pressionando o corpo contra o de Isabella novamente. — Não deve conseguir satisfazer uma mulher direito. — Ethan! — Bella gritou novamente, sentindo a pélvis dele apertar suas nádegas. —
Controle a língua! — Assim...? — ele perguntou, prendendo os cabelos de Isabella entre os dedos e passando a língua lentamente na parte de trás do seu pescoço, fazendo sua pele se arrepiar. Ela se contorceu com as vibrações e a doce agonia que sentiu entre as pernas. Apertou ainda mais as unhas contra o papel de parede e tentou manter a calma. Mais forte que qualquer outra coisa, seu corpo queria, sua carne ansiava por aquilo. Já fazia 230 anos. — Assim? — Ethan insistiu um pouco mais alto e lambeu novamente, deixando a outra mão escorregar pelas suas omoplatas, sem pressa, com os dedos ásperos por causa do constante atrito com as cordas do violão, até passarem pelos ombros, e continuarem descendo. Ela implorou em pensamentos para que ele tocasse seus seios, para que os apertasse. — Sim — conseguiu responder num sussurro. Ethan parou com o toque quando ouviu aquela palavra. Deu um sorriso malvado, alcançou a mão de Isabella e a puxou para baixo. Ansiosa, ela esperou até seus dedos tocarem a calça dele. Estava quente. Curiosa, ela permitiu que as pontas dos seus dedos acompanhassem o volume repuxando o tecido, mas tinha alguma coisa errada. Seus olhos se arregalaram quando ela constatou a largura e comprimento. Engoliu em seco e sentiu um tremor percorrer seu corpo. Se libertando de Ethan, ela virou-se para encará-lo, respirando pela boca. Queria ter certeza que realmente era aquilo que parecia. De frente para ele e olhando dentro dos seus olhos, ela o tocou novamente, dessa vez sem delicadeza, fazendo com que ele soltasse o ar pela boca, com os lábios repuxados exibindo os dentes inferiores. Ela massageou. Ele tremeu. Deus, não pode ser tão grande!, Bella pensou, mas logo se arrependeu. Aquela não era ocasião para chamar o nome sagrado de Deus. Se ele perder o controle, vai sair pela minha garganta, ela fantasiou com um sorriso brincalhão. Não ficou com medo, pelo contrário, aquilo a excitava. Determinada, ela empurrou o peito de Ethan até o outro lado do portal. Os olhos dele brilharam quando ela se agachou. — Também sei controlar minha língua — ela disse e lambeu do cós da calça até acima do umbigo. — Não controle — ele implorou. Bella se ergueu novamente, o encarando. Ela estava tão deslumbrante que Ethan não
conseguia respirar. Perdendo o controle, ele tentou abrir o cós da calça, mas ela deu um tapa em seu rosto. Foi forte e fez barulho. Ethan não estava esperando por aquilo. Ela segurou o maxilar dele e virou seu rosto de lado, então passou a língua por trás do lóbulo de sua orelha esquerda. — Acha que sou inocente só porque vim de outro século? — ela perguntou com a voz baixa, lenta e sensual. Ethan arfou. Isabella estava se ajoelhando novamente. Abriu o botão e o zíper da calça, enquanto passava a língua por cima do jeans. Puxou tudo para baixo de uma só vez e mordeu o lábio ao libertá-lo. Quando sua boca o tocou, ele não conseguiu controlar o gemido de prazer. Ainda sem colocar as mãos nele, Bella deslizou a ponta da língua por todo o seu comprimento, em seguida o colocou na boca e passou os braços ao redor do quadril de Ethan. Ele, definitivamente, não estava esperando por aquilo, por essa Bella. Gemeu e segurou o cabelo dela para que pudesse ver seu rosto enquanto ela fazia. Seus lábios eram macios, sua saliva quente, sua língua o contornava, enquanto ela ia mais fundo. Mas não durou muitos segundos. Isabella se levantou novamente, colocou o pé direito entre as pernas de Ethan, por cima da calça arriada, se apoiou nos seus ombros e colocou o peso do corpo contra o pé direito, forçando a calça dele a descer até seus tornozelos. — Caralho — ele xingou, enquanto terminava de tirar a roupa. Seu coração batia violentamente e seu corpo ardia. — Fique quieto! — Isabella exigiu. Deu alguns passos para trás e puxou o vestido para cima, o tirando pela cabeça e ficando só de lingerie. Ele tremeu quando ela tirou o sutiã e o jogou de lado. Voltou para ele, colocou outra vez as mãos em seus ombros, só que dessa vez Ethan é quem foi empurrado para baixo. Ela o fez se ajoelhar, com a cabeça apoiada contra o portal, na altura da sua pélvis. — Vamos ver o que mais você sabe fazer com a língua — Isabella disse baixinho e tirou a calcinha. Ela colocou o pé sobre o ombro de Ethan e aproximou seu quadril até os lábios dele tocarem sua intimidade. Ela tinha esquecido o quanto era gostoso. Mas ele a fez se lembrar, com a ponta da língua pressionando na sua região mais sensível, fazendo movimentos circulares, subindo, descendo, entrando, esfregando... Ela se sentiu vibrando de prazer, o meio das suas pernas pulsava numa agonia que só crescia cada vez que Ethan lambia. A pressão a fazia latejar, a delicadeza a levava aos gemidos. Então os dedos dele estavam envolvidos. Tonta com as sensações, ela gritou quando ele deixou um dedo escorregar para dentro dela, depois outro. Ele a sugou com força e colocou mais um dedo, que entrou com dificuldade. Começou a movimentá-los para dentro e para fora.
A agonia foi aumentando. A pulsação parecia queimá-la. Seus dedos estavam a penetrando tão rápido, tão fundo. Mas ele parou abruptamente, segurou o quadril dela e a colocou no chão. Havia uma cama macia, com lençóis perfumados, mas Ethan preferia o chão. Ele afastou as coxas dela com as mãos e lhe lançou um olhar sério, como se quisesse dizer que era a vez de Isabella ficar quieta. — Conhece aquela expressão “fazer um camelo passar pelo buraco de uma agulha”? Ela riu e fez que sim com a cabeça. — Você vai me machucar, mas eu gosto da dor — ela confessou e mordeu o lábio. Ele não teve como segurar, não com ela se comportando de um jeito tão sexy. Encaixou o quadril entre suas pernas e começou a forçar. Isabella se contorceu embaixo de Ethan. Era tão sólido que ela podia sentir seu canal se dilatando à força, ficando ainda mais sensível, reagindo a penetração. Doía, queimava, dava prazer. Um prazer tão intenso, tão cruel, que a fazia puxar o quadril dele para entrar mais rápido. Ethan a preencheu completamente, a esticando, tocando cada milímetro de pele, cada nervo. Ela ficou tão sensível que pôde senti-lo vibrando com o desejo enlouquecedor. Ethan se demorou um instante a observando, imóvel, admirando sua sensualidade. Nesse momento, ela contraiu o canal com uma experiência que o fez arregalar os olhos. Ele quase morreu de prazer. Isabella fez de novo, gritando e mordendo o lábio. Aquela contração acabava com os dois. Ethan se inclinou ainda mais sobre ela e lambeu seus lábios, antes da primeira investida. Foi veloz, sem controle. Fez o corpo de Isabella se desfazer após um longo gemido. Foi apenas isso que ele precisou fazer, uma única estocada e ela chegou ao clímax. Mas Ethan não parou. Ainda gemendo, o corpo trêmulo, ela se enroscou nele, suas unhas o machucaram, ele grunhiu, mas não ligaram. Seus corpos rolaram pelo chão, Bella ficou por cima e se moveu com voracidade, com fome daquele prazer. Ethan sentou-se com ela encaixada nele, alcançou seus seios e os chupou com vontade. Ela ficava louca com aquilo: vê-lo lambendo e sugando seus mamilos. Isso a levou a outro orgasmo. Seu corpo vibrou. Isabella quase pediu para ele parar, exausta. Mas Ethan não parou. Ele a ergueu e a levou para a parede, onde a encurralou, tirou os pés dela do chão e penetrou mais fundo. O movimento foi mais veloz. Seus corpos estavam suados e escorregavam um no outro. Os gemidos de Bella eram enlouquecedores e Ethan era tão sexy que ela não conseguia pensar em nada mais. Apenas seus olhos, sua boca, seu suor, o movimento, sua pele quente, o cheiro de homem. Era alucinante pensar que só havia os dois ali. Que eles podiam fazer qualquer coisa que quisessem. Se viu de quatro no chão, mas não pensou no assunto. Deixou que Ethan a guiasse até em cima do centro de mesa da sala. Ela ficou nessa posição, enquanto ele se afastou,
mas logo voltou com uma vela. Sem aviso, ele despejou em suas costas e ela gritou. Mas não a queimou, era apenas um óleo de massagem e tinha um cheiro delicioso. Ele a observou com malícia, enquanto suas mãos espalhavam o óleo quente pelo corpo de Bella, deixando suas mãos entrarem em cada orifício. Aquilo era novo para ela, mas não menos prazeroso. Continuou de quatro enquanto Ethan a explorava, despertando nela novas sensações, prazeres que ela não imaginava que existiam. Depois, ele a comeu, devorou seu corpo, se derramou dentro dela num êxtase que quase o fez perder os sentidos. Mas não perdeu. Não parou. O desejo parecia não ter fim, era como se eles tivessem esperado séculos por aquilo e só existisse aquela noite. E fizeram valer cada segundo.
Outono de 1798
A flor azul nas mãos de John parecia dar cor à floresta cinzenta. Todas as folhas haviam caído das árvores, deixando a paisagem com aparência estéril e sombria. Tinha sido um milagre encontrar aquela flor, que representava para John a esperança. O fazia lembrar da beleza de Bells, da sua personalidade, que era uma mistura de força e delicadeza que inspiravam. O fim do milênio se aproximava. Por experiência, John sabia que coisas grandes aconteciam em ocasiões como essas. Ele sorriu, com os lábios carnudos e rosados, as covinhas nas bochechas. Após mais de uma década, se sentia esperançoso de que sua Bells fosse voltar. Estava trabalhando no velho casebre durante as manhãs, o reformando para receber seu amor novamente, da maneira correta dessa vez. Parecia certo manter o lar em que eles viveram. Não eram só os momentos terríveis. Aquele lugar lhe trazia algumas das melhores lembranças que guardava da sua Bells. Entrar na casa de banho era como vê-la novamente, se lavando na água morna pela primeira vez, ficando fresca, nova em folha. Os lençóis da cama do casal não eram mais amarelados. Possuíam agora um branco que transmitia paz. As paredes haviam sido pintadas de azul claro, com alguns quadros que John tinha certeza que Isabella iria gostar. Não havia mais bolor pela casa, as janelas eram abertas com frequência. John não tinha deixado sua melancolia se enraizar no lugar. Estava elevando sua alma com toda sua força e determinação, para fazer por merecer quando ela voltasse. A maioria dos móveis tinham sido queimados na explosão, mas John fez questão substitui-los.
Após mais de dez anos da tragédia no cemitério, os amigos haviam se afastado. Rafael sugerira que eles se separassem para procurar Isabella. John concordou com veemência, certo de que sua Bells voltaria para ele, e não para o anjo. Achou melhor tomarem distância um do outro. Algumas lembranças o faziam perceber que Rafael poderia ser tóxico para a nova oportunidade que Bells e ele teriam. Afinal, que marido queria alguém por perto chamando sua esposa de amor? Às tardes, John ia ao cemitério da cidade, onde o corpo da jovem estava sepultado. Queria deixar a flor azul sobre a cama, na fantasia de que ela voltasse na sua ausência, mas preferiu levá-la consigo para colocar sobre o túmulo. Apeou o cavalo próximo ao muro de pedras e passou pelos portões de ferro adornados. Cem metros após a entrada, virava à esquerda e podia ver a escultura da mulher segurando o bebê, na segunda fileira de lápides. Passando as mãos sobre a pedra fria, ele depositou a flor no centro e sentou-se à sombra da estátua. Passava horas ali. Mesmo sabendo que Bells não podia senti-lo, achava o lugar mais apropriado para estar perto dela. Mais de três quartos de hora haviam se passado, enquanto John murmurava pedidos de desculpa sob a brisa fria de outono, quando ouviu o som de um cortejo se aproximando dos portões. Ele ergueu a cabeça de repente. De súbito, seus batimentos cardíacos pararam e um frio mortal percorreu sua espinha. John afastou os lábios e tentou respirar pela boca. Foi então que sentiu o primeiro pensamento de luto. A dor rasgava o coração dos pais ao lado do caixão. Antes que o cortejo passasse pelos portões, ele já sabia a quem pertencia. — Teresa — pronunciou o nome da irmã de sua Bells horrorizado, focando o olhar na entrada do cemitério. O choque foi ainda maior quando o primeiro homem apareceu no seu campo de visão. — Rafael? — Inconscientemente, suas mãos se fecharam em punho. O anjo não deveria estar ali. Não poderia. Prometera que iria vasculhar o novo mundo à procura de Isabella. E John Smith, tão envolvido na espera de sua amada, não pensou em mais nada além disso. Sentiu que os pensamentos da Senhora Fontana foram ficando mais claros. A lembrança de ver o corpo de sua filhinha caçula balançando lentamente, com o pescoço quebrado pendurado pela corda amarrada à viga de sua casa, era tão doloroso que ela não queria mais viver. Suas duas filhas estavam mortas agora.
— Foi por causa do bebê — ouviu a voz feminina sussurrar atrás do seu ombro esquerdo. Se deteve outra vez. Era a voz de Isabella. Ele se virou devagar, mas foi uma Teresa crescida que ele viu ali. A vira pela última vez naquele mesmo lugar, no velório de Isabella. Havia uma corda enroscada em seu pescoço, mas seu rosto estava bonito. Ela era quase tão bela quanto a irmã mais velha, o que fez John se encolher de culpa. Por que não tinha ficado por perto? Por que não dera atenção a sua cunhada? — Não queria me matar — ela voltou a falar, com o rosto bem próximo ao dele. — Foi por causa do bebê. Olhando para baixo, John viu as mãos de Teresa repousadas sobre a barriga saliente. Usava uma camisola branca de aparência cara. Os olhos de John se arregalaram com as próximas palavras. — Ele era o homem certo. Tinha dinheiro, era de sua confiança, amigo de Isabella, pelo menos era o que parecia. E era tão bonito, tão sedutor. — Ela respirou, mas era como se o ar não chegasse mais aos seus pulmões. — Você se casou com Rafael — John constatou com pavor, sentindo-se culpado por ter sumido da vida dos Fontana, por ter acreditado que o anjo iria mesmo embora dali. — Era para ter sido a melhor escolha — a jovem Teresa disse. — Mas não foi. Ele era tão falso, tão invejoso. — Do que ele tinha inveja? — A voz de John saiu rouca. A temperatura caía bruscamente. O inverno chegaria mais cedo naquele ano. — De você, irmão — o fantasma da sua cunhada disse. — Ele queria que tivéssemos o que você teve com Isabella. Rafael também me marcou. Ficando de costas, Teresa puxou a gola da camisola para baixo, mostrando a cicatriz de uma queimadura em sua pele, no formato de um símbolo que ele pensou nunca ter visto. — Por que Rafael teria inveja de mim? — John indagou. Quase ergueu os dedos para tocá-la, mas ficou com medo do que aconteceria. — Queria que eu fosse exatamente como ela. Me odiava por ser eu mesma — Teresa disse, sem responder à pergunta de John. — Quando descobri que teríamos um bebê, não pensei duas vezes. — Suicídio, o único pecado... — Para o qual não há perdão — Teresa completou sua frase e abraçou os próprios joelhos. — Mas eu não teria um filho de um demônio.
— É apenas uma teoria. — O que...? — É o que dizem, que Deus não perdoa suicidas. Mas não há como saber, até que se faça. — Para onde vou agora, John? Matei o filho de um demônio, mas também matei a mim mesma. Para onde você acha que vou?
Presságio
Isabella piscou os olhos lentamente para se adaptar à luz que entrava pelas grandes janelas de vidro. Por um breve instante, ficou perdida entre os séculos. Sentiu como se estivesse acordando na manhã posterior a suas núpcias com o senhor Smith. Lembrou-se de que, naquela ocasião, ela tinha revirado na cama e dera conta de estar sozinha. John havia partido sem se despedir. Voltando apenas na hora do almoço, para queimá-la com café quente. As recordações a fizeram inflar o peito de ar. Cada vez tinha mais certeza de ter tomado a decisão certa. Se remexendo no colchão, ela sentiu o interior das coxas arder e mordeu o lábio com um sorriso. Apoiou-se em um dos cotovelos e se ergueu para ver o homem que dormia ao seu lado. Ethan estava de barriga para cima, o cabelo curto bagunçado e os olhos cerrados. Sua respiração era baixa e lenta. O lençol lhe cobria até a cintura, revelando um tórax esguio, com músculos se destacando. Prendendo a respiração, ela levantou a mão e percorreu os gomos do seu abdômen com as pontas dos dedos. Ele se moveu. — Que horas são? — Já perdemos o café da manhã — Bella respondeu, observando através do lençol que Ethan sofria do mesmo problema matinal que John. — Não faz mal — ele sussurrou, tentando manter os olhos abertos.
— O que acha de tomar um banho antes de comer? Acabaram na banheira, onde passaram quase duas horas cuidando de suas necessidades matinais.
∞∞∞ Dominadora, ela apoiou as costas na borda e Ethan sentou-se entre suas pernas. A água estava quente e ele ficou quieto, enquanto ela massageava seu corpo lentamente. — Sabe o que acontecerá hoje? — Ethan perguntou. — Ainda não — Bella disse. — É estranho... — O quê? — ela quis saber. — A calmaria — ele disse, passando a mão pelos cabelos e se dando conta de que estavam curtos. Uma mudança radical no visual sempre o deixava confuso por alguns dias. — Não tem nenhuma sombra por perto, nenhum telefone tocando, você não tem que ir embora... É ótimo, mas é estranho. De alguma forma, ela entendia o que ele queria dizer. — A calmaria antes da tempestade — Isabella sussurrou com o olhar mórbido, suas mãos ficaram imóveis sobre a clavícula de Ethan. Aquilo não duraria. Ela sentiu que deveriam se apressar, que precisavam encontrar Massimo o mais rápido possível, para conseguir respostas. Pelo menos... tentar. — Eu quero te fazer feliz — Ethan sussurrou. — Você já está me fazendo feliz — ela disse com firmeza, mas o ar foi roubado de seus pulmões assim que acabou de pronunciar aquelas palavras. Um medo repentino e devastador assolou seu coração, seus nervos, até suas entranhas. Um temor real e quase palpável. O medo de perder Ethan. — Eu te amo — ela apressou-se em dizer e colocou a mão em seu queixo para fazêlo virar a cabeça na sua direção. — Eu te amo muito, acredite.
Isabella sentia que precisava dizer. Não era exatamente uma premonição, mas um pressentimento. O desespero fez as lágrimas escorrerem e caírem na água morna. — Por favor, seja forte e não me deixe! — ela implorou antes de beijá-lo com intensidade. Não temia que Ethan fosse largá-la. Não era nada disso. A morte... Ela nem conseguia concretizar o pensamento. Doía muito.
∞∞∞ — Massimo vai nos encontrar na igreja — John dizia ao celular. — Podemos almoçar juntos... quer dizer, Endy saiu... — Você, Lanai, Ethan e eu — Bells concluiu. — ... Isso — ele disse relutante. — Por mim, tudo bem. Nos encontramos daqui a pouco — ela disse e desligou o celular para encarar Ethan, que já estava vestido e perfumado. — Um programinha a quatro? — ele perguntou com sarcasmo. — Vamos à igreja depois do almoço — Isabella informou. — Não pense que só porque cortou o cabelo estará livre de Rafael. A calmaria estava deixando-a paranoica. Ela preferia encarar algum problema do que não saber o mal que os pegaria de surpresa. Tirava-lhe o ar. — Pode controlar os pensamentos na presença de John, pode ser um pouco discreto a respeito de nós dois? — ela perguntou. — Ele está sendo muito gentil nos desejando felicidade. Ethan apertou os olhos e a examinou. — O homem te torturou, seu corpo e seu psicológico, e você quer retribuir sendo discreta? Não esqueci a parte em que ele me espancou em outra vida. — John se arrependeu. Eu sei. E todo mundo merece uma segunda chance. Se você tem o coração tão bom quanto penso que tem, não vai fazer pouco dele logo agora. Ethan revirou os olhos.
∞∞∞
Lanai parecia cada vez mais encantada por Isabella. A criança sorria com tanto afeto que Bells se via pensando em sequestrá-la e nunca mais devolvê-la aos pais. Ethan devorava uma pizza inteira com gosto, fitando o nada a cada mordida, apreciando o sabor da culinária italiana. — John — ele chamou o homem a sua frente —, não sei se vai lembrar, mas acho que já conheceu alguém chamado Stefan. John deixou o garfo cair sobre a mesa e olhou para Lanai. — Eu soube que ele sofreu muito... digo, fisicamente. Foi vítima de uma agressão. — Enquanto falava, Ethan encarava John com curiosidade. — Uma agressão covarde. — Não precisamos falar disso na frente dela — Isabella o repreendeu com tanta fúria que seus olhos quase saltaram das órbitas. — Tudo bem — o astro do rock disse e acariciou a mão de sua amada. — Fique calma. Só quero trocar algumas palavras com John. — Pergunte o que quiser — John respondeu com os olhos nublados pelas recordações. Seu maxilar estava trincado e seu nariz ardia quando o ar passava. Ethan fez uma pausa, cortou um pedaço de pizza, o levou à boca e o mastigou devagar. O clima ficou tão pesado que a tensão poderia ser cortada com uma faca. — Não sei se você teve tempo de conversar com ele — Ethan prosseguiu, escorregando nas palavras, se demorando a verbalizar os pensamentos —, com Stefan... Não sei bem como dizer isso. Ele está... você sabe... — ele olhou para Lanai, que comia devagar, não queria usar a palavra “morto” na frente da menina. — E faz muito, muito tempo. Não sei se sente remorso pelo que se passou, e acho que não tenho direito de te dar o perdão por algo que não aconteceu comigo. Ainda assim, se isso influenciar em alguma coisa, caso importe... da minha parte, você tem meu perdão. Se fizer alguma diferença... Ethan terminou de falar e voltou a olhar para seu prato, tentando fugir do significado daquelas palavras. Ele não sabia bem como se sentir, mas tinha certeza que deixaria Isabella feliz e orgulhosa. John ficou o observando por um longo momento. A surpresa o tinha deixado sem reação. — Faz diferença, sim — ele disse por fim, seus olhos estavam brilhando. — Faz muita diferença. Obrigado. O homem meneou a cabeça em resposta. Os lábios de John Smith se curvaram para cima e ele quase sorriu quando sentiu um fardo a menos em suas costas. Ele olhou para Bells, e ela estava olhando de volta com um sorriso simpático.
Você merece perdão, ela pensou com intensidade. — Quero fazer xixi! — Lanai anunciou, interrompendo o momento. — Pode ir comigo, Bells? — É claro. — Podemos ir ao banheiro do quarto? Quero pegar minha boneca. — Seu desejo é uma ordem, senhorita Smith — Isabella brincou e as duas deixaram o restaurante. O elevador não demorou a chegar. Com tranquilidade, elas subiram para a suíte onde a família Smith estava hospedada. Lanai sempre segurando a mão de Bells. Quando a porta do elevador se abriu, todos os medos caíram diante dos olhos de Isabella. Seu estômago ficou embrulhado e o sangue fugiu de seu rosto. — Bella — ele disse ao usar o pé para segurar a porta e se agachar para pegar Lanai no colo. — Vejo que tirou o gesso. Ela sentiu vontade de passar a mão pelo pulso que queimava, só que não conseguia se mover. Rafael estava elegante, com uma camisa branca que destacava seus ombros largos, e o sorriso de dentes brancos que enganaria qualquer moça desavisada. — Não faça nada com ela — Isabella pediu baixinho quando Rafael deu um passo para trás. Como ele tinha...? Ah, Deus! Movida pelo instinto protetor, ela saiu do elevador com movimentos artificiais. — Precisamos conversar — ele disse com o sorriso tão bonito que chegava a ser perturbador. Ela gritou o nome de John em pensamentos. Considerou a ideia de correr, mas não tinha coragem de deixá-lo sozinho com Lanai, por esse motivo, seus pés se arrastaram atrás dele, como se ela não tivesse vontade própria. — Por que não está usando o tercinho? — Rafael quis saber. — Ficava tão bonito em você. Isabella se deu conta de que havia o tirado para entrar na banheira e tinha esquecido de colocar novamente. — O que quer? — ela o questionou. — Deixe ela fora disso.
— Ah, Bella! — ele disse e sacudiu a cabeça em negação, antes de entrar em uma suíte. Lá dentro, colocou Lanai sobre a cama de casal. A menina estava com as bochechas vermelhas e havia gotículas de suor em sua testa, mas ela não falava nada, só encarava um ponto qualquer com olhos inexpressivos. Uma confusão de pensamentos passava pela mente de Isabella. Ela poderia correr, mas não conseguiria pegar Lanai a tempo. A criança se deitou sobre os lençóis impecáveis e soltou um longo suspiro. — O que fez com ela? — a jovem mulher perguntou, subindo na cama para examiná-la. — Ela tinha melhorado, seu... — É melhor se afastar dela — Rafael advertiu, abrindo os botões da camisa. — Não vou te machucar, Isabella, mas não posso dizer nada a respeito dela. — O que fez...? — ela insistiu, mas, por causa de algo no brilho dos olhos castanhos de Rafael, ela se levantou, afastando-se alguns passos da cama. Assistiu o moreno se agachar no chão, de costas para ela, e se curvar para a frente. Um grunhido de dor escapou de seus lábios. Isabella sabia o que Rafael faria, mas não queria ver. Só que ela não tinha opção. Viu a carne das costas dele se abrirem em feridas diagonais, por onde um líquido preto logo escorreu. Sentiu um odor ruim e notou as penas escarlates saírem lentamente dos cortes. Mesmo que ela tivesse total conhecimento da maldade do anjo caído, ela se compadeceu pela dor que aquilo o causava. Levou algum tempo até as asas estarem totalmente abertas. Eram de um vermelho sangue e ocupavam uma grande parte do quarto. Ainda curvado, Rafael levantou-se, virando para encará-la. O mesmo líquido negro escorria sutilmente de seu nariz e ouvidos. — Como elas ficaram dessa cor? — ela perguntou com os olhos vidrados no anjo. Por um instante, tinha se esquecido de todo o resto. Ele deu de ombros, mas até esse leve movimento parecia feri-lo. — Dediquei anos e anos a você, e agora quer arranjar um jeito de me mandar embora para longe — Rafael disse com tanto pesar que fez o corpo da jovem estremecer. — Por que eu? — Isabella perguntou sem fôlego, enquanto ele se aproximava e fechava as asas vermelhas em volta do corpo dela.
Eram quentes e ela se viu com o rosto pressionado contra o peito nu de Rafael. Lembrou-se do seu cheiro na última vez em que ela estivera em seus braços. — Por que eu? — repetiu. — Você me curou uma vez — ele sussurrou, afundando o rosto no pescoço da jovem. — Preciso que faça novamente. — O quê? — ela perguntou, confusa com a proximidade dos dois. — Preciso que se lembre — Rafael disse e se afastou, libertando-a de suas asas. Elas murcharam e desapareceram em suas costas. Ele ficou a encarando por um instante. Isabella não conseguia se mover, parecia hipnotizada. Então... aconteceu. O grito agudo de Lanai a fez arregalar os olhos ao mesmo tempo em que o corpo de Rafael caía pesado sobre o chão de mármore. Isabella não sabia para que lado correr, com a cabeça virando para ambos. Lanai praticamente guinchava e se contorcia na cama, encharcando os lençóis de urina, fazendo a jovem dar um passo para trás. Como puderam ser tão idiotas? Não era Ethan que ele queria, era Lanai! Ela constatou com horror e recuou outro passo, com medo de dar as costas para a menina. Mas acabou fazendo. Agachou-se ao lado do homem e sacudiu seus ombros devagar.
Por amor
O rapaz abriu os olhos castanhos, que pararam imediatamente no rosto de Isabella. Ele a encarou confuso, depois franziu o cenho numa careta de dor. Ele abriu os lábios para dizer algo, mas antes que fizesse isso, Isabella sabia. Tinha certeza de que era ele o mesmo rapaz da visão que ela teve no banheiro, no outro dia. — Amor — ele disse com tanta paixão que fez o coração de Isabella doer. — Que lugar é esse? Os olhos castanhos oscilaram e, ainda com o cenho franzido, ele ficou perplexo diante do que via. — Juro — murmurou voltando a encará-la —, eu não estava conseguindo me dominar. Jamais teria te machucado. Não era eu! — ele estava desesperado para se explicar. — Amo tanto você, nunca lhe faria tamanho mal. — É aqui que seu prometido mora? Vocês se casaram? — o rapaz moreno continuou a perguntar. Até falar parecia lhe causar dor física. — Quem? — Isabella sussurrou a pergunta com os lábios bem perto desse novo Rafael. — Seu noivo... ou marido. John. Ele vai me matar — o rapaz disse e tentou se levantar, mas as forças lhe faltaram. Ergueu uma mão trêmula e acariciou a bochecha de Isabella, hipnotizado com a beleza da jovem. — Graças a Deus você está bem, amor. Pensei que morreria. Foi o maior erro da minha vida!
— O quê? — Bella perguntou com gentileza, tentando descobrir qualquer informação que fosse relevante. — Ele veio à noite. — Quem? — Não posso falar seu nome. Seu nome de verdade. Mas ele me prometeu ajuda, disse que faria você ser minha. Ele não é como nós, amor — Rafael disse tão baixo que Isabella precisou se aproximar ainda mais do seu rosto para ouvi-lo. — Deixei ele entrar, permiti que ele usasse meu nome, que ele me usasse, porque eu só queria ter um momento com você. Fui estúpido, agora sei que não te mereço que nunca vou ser digno de tê-la como esposa. Ele... — Continue — ela pediu. — Ele fez coisas horríveis com você. Nunca imaginei que você fosse sobreviver, Isabella. Ele te machucou tanto, mesmo quando você implorava por misericórdia. Sei que é difícil de acreditar que não era eu, mas é verdade. Juro pela vida de toda minha família. Era meu corpo, mas não eram minhas ações, porque eu deixei ele entrar. — Um... — Bella começou, mas baixou a voz. — Um demônio possuiu seu corpo? — Ele disse que era um anjo, que tinha caído porque Deus não era misericordioso como pregavam. Ele me prometeu muitas coisas, mas... como você se recuperou? — Eu... — a jovem não terminou de falar. Ethan e John irromperam pela porta. Pressentindo o que estava acontecendo, John correu até Lanai e a pegou pelos ombros. A pequena ria sem parar como se produzir aquele som fosse novidade para ela. Só que não era uma risada infantil. Parecia mais como uma mulher adulta gritando. Ethan se aproximou a passos largos de Isabella e deu um chute contra as costelas do rapaz em seus braços. O moreno estava tão debilitado que seu corpo escorregou no chão até esbarrar contra a parede. O astro não era muito de usar violência, porém a situação pedia medidas drásticas. Então algo surpreendente para os recém-chegados aconteceu. Isabella se arrastou pelo chão, até ficar entre Ethan e o rapaz, recebendo na coxa o novo chute lançado por Ethan. — Pare! — ela gritou ao sentir a dor. Sua mente foi inundada por tantas lembranças dolorosas que seus braços quase fraquejaram. Lembrou-se da flecha que atravessou suas costas, de ser machucada por John Smith, de apanhar do pai. Lembrou-se de uma dor ainda pior que todas as outras. Algo que ela não tinha recordações de ter vivido, mas que ligava tudo.
Ficou tonta com as imagens que preencheram sua mente, sendo levada para aquela vida anterior, onde tudo começou. A risada parecida com a que Lanai dava naquele momento, os guinchos, seus próprios gritos. Estava escuro, havia rochas e areia. Uma brisa soprava fria, mas as pedras ainda estavam quentes. Era isso! Suas costas estavam apoiadas contra a pedra. As estrelas brilhavam, mas sua visão estava turva. Ela gemeu de dor. — Pare! — sua voz parecia ecoar contra as rochas. As risadas continuavam. Tão horripilantes quanto o que ele fazia. Ela não conhecia nada daquilo. Cresceu sabendo que se casaria com John. Foram prometidos um para o outro desde que eram criancinhas. E havia esse rapaz de boa aparência, olhos castanhos, sorriso torto. Ele gostava de Isabella, mas sua família não tinha posses como John. Ele nunca poderia oferecer a vida que ela pensava que teria. No começo, Isabella se divertia com o modo como o rapaz a olhava, como ele sempre arranjava um jeito de prestar algum serviço à família da jovem. Ele se chamava Rafael. Quando surgia uma oportunidade, ele se aproximava de Bella, fazia-lhe elogios, comentava sobre a beleza dela, mas sempre muito respeitoso. De algum modo, ela começou a apreciar sua companhia. Ela amava John, não tinha dúvidas, mas não conseguia parar de imaginar o quanto Rafael deveria sofrer por saber que nunca a teria, por saber que ela não poderia ser sua esposa por causa da sua situação financeira. Sim, ela amava muito seu noivo John. Apesar disso, pensava como seria se Rafael tivesse posses, se viesse de uma família importante. Ela se perguntava se seus pais pensariam na ideia de desmanchar seu casamento com John e permitir que ela se unisse a Rafael. Eram só dúvidas, dessas que pessoas com tempo livre sempre têm. Entretanto, seus pais nunca desonrariam seus compromissos. Ela se casaria com John, independente de quanto dinheiro Rafael tivesse, porque esse era o acordo de seus pais. Era assim que as famílias honradas faziam milênios atrás. Eles se beijaram. Era um risco muito grande a se correr, mas o que era um beijo perto do amor que Rafael sentia por ela? John a teria para sempre. Rafael só implorava por um beijo. Isabella não tinha sido capaz de negar. Foi esse o maior erro. Para a jovem, apenas um beijo; para Rafael, uma oportunidade. Não foi de tudo culpa dele. Seu coração batia forte, o desespero dominava sua
mente. Ele não chegava a ser obcecado pela jovem, mas o beijo fez despertar em seu corpo novas sensações, esperanças, desejos ainda mais fortes. O demônio o encontrou logo após aquela tarde. Não. Não foi exatamente assim. Os caminhos dos dois se cruzaram à noite. Ele não veio em forma física, não o enganou com uma aparência bonita. Estava fraco demais para isso. Tinha escapado de uma batalha, tinha sido expulso pela segunda vez da sua morada — céu e inferno. As promessas foram muitas. A mulher que Rafael amava poderia ser dele, vida longa, fortuna... Tudo em troca de um corpo e um nome. Rafael. Um nome tão bonito, o nome de um arcanjo. O demônio queria aquele corpo, aquela alma e aquele nome. Não foi difícil persuadir Rafael. A criatura sabia dos desejos do rapaz, sabia como alimentá-los, conhecia seus pensamentos e suas fraquezas. Não foi difícil possuí-lo. Tudo que precisava era de permissão para usar o rapaz, recuperar suas forças, se alimentando do medo e da dor. Só isso podia curá-lo da sua batalha, da sua segunda queda. E foi assim que Isabella conheceu o demônio pela primeira vez. Naquela mesma noite, usando o corpo e a voz do jovem, só que com muito mais astúcia e charme, ele a atraiu para um lugar distante. Quando começou, quando ele arrancou suas roupas, Isabella sabia que não era Rafael, o jovem apaixonado por ela. O jeito como ele ria, como se movia... Não era ele. Seu semblante se transformava drasticamente. Ela não sabia se era pela névoa da dor e do desespero, ou se era real, mas os olhos dele pareciam mudar, pareciam ficar vermelhos. Ela gritou pelo pai, pelos irmãos, por John, mas ninguém ouviu. Foi desonrada, humilhada e violentada pela criatura que usava o corpo de um pobre rapaz que tanto a amava. Ela sabia que não sairia com vida dali, que nunca mais veria sua família novamente. Piscou os olhos e viu as estrelas pela última vez. Nada do que Isabella já tinha vivido e sofrido se comparava à dor que vivenciou com essa visão. O desespero de ser agredida até a morte, de saber que seus últimos instantes de vida eram da pior dor que uma mulher poderia sentir. Quando seus olhos piscaram e ela recobrou a consciência, vomitou sobre o chão do hotel, escapando do transe, tentando se erguer apoiada nas mãos e nos joelhos. O rapaz moreno estava caído com olhos fechados, sangue escorria de pelo menos três partes do seu rosto, suas mãos estavam amarradas atrás das costas com fios de cobre. Olhou em volta prendendo a respiração, com medo de voltar a vomitar, e notou Ethan e John sobre a cama. Ambos seguravam Lanai.
— Por que chora, papai? Por que chora, papai? Por que chora, papai? — a pergunta foi repetida três vezes para John, em uma voz errada e agourenta. Não se parecia em nada com a voz doce de Lanai. A atmosfera no quarto estava pesada, hostil, fazia tanto Isabella quanto Ethan quererem se afastar. Era a coisa certa a se fazer. Pelo menos para Ethan, agora que ele estava livre da opressão. — John... — Bells sussurrou, horrorizada. — Eu sei — John a interrompeu. Não precisava que Isabella o dissesse que o demônio estava no corpo da sua filha. — Me desculpa por aquilo — Ethan pediu para a jovem sem soltar o ombro da criança que ria novamente. — Você entrou muito rápido na frente dele. Por que fez isso? — Porque ele era inocente. Era só um corpo que esse demônio usava — ela sussurrou. — Como ele ainda está vivo? — John quis saber. — Fez um pacto também? Ele te disse isso? — Algo do tipo... John... — Bells, o que vou fazer? Isabella sabia, todas as visões estavam se encaixando. Ela olhou para John e recordou o amor que ela sentia por ele naquela outra vida que estava voltando em flashes, essa vida que nem mesmo o experiente John lembrava-se de ter vivido. — Eu sei o que fazer — Bells disse com uma certeza que nem ela sabia ter. Seu corpo tremeu. Ela olhou para Ethan, encarou seus olhos curiosos e franziu o cenho, sentindo os olhos se enxerem de lágrimas. De todos, Ethan era o melhor caminho, o melhor homem e o melhor amor que ela poderia receber. Mas, quando as peças se encaixaram, ela entendeu que não tinha nascido para isso, que sua alma não estava destinada ao amor, a ser feliz. Ethan era tão bonito, tão perfeito. Só que não passava de uma doce ilusão, um consolo pelos dias escuros. Então ela olhou para John e entendeu aquela paixão insana que eles sentiram quando se casaram no século XVIII. Entendeu por que não conseguia controlar, apesar de todo ódio que sentia por John Smith, por que não podia evitar amá-lo. Tinha nascido com ela. Eles se amavam muitos e muitos séculos antes daquele tempo. Eles estavam prometidos um para o outro há milênios. Isabella respirou fundo. Muito fundo. Se ela nunca tivesse beijado aquele rapaz, se
sua antiga reencarnação não tivesse traído John, talvez o demônio nunca tivesse se interessado por eles. Talvez... Os dois homens esperavam pela sua resposta. — Não é você que ele quer, John — ela começou com pesar. — Não é sua filha, sua família. Não é Ethan. Ele só quer a mim. John piscou os olhos. — Antes de ele entrar no corpo dela, disse que eu podia curá-lo. É isso que ele quer — Bella disse, mas omitiu a parte que mais a assustava, que o demônio precisava fazê-la sofrer para se curar. A atmosfera ficou ainda mais pesada. O céu, antes ensolarado, ficou cinza escuro. John tentou dizer alguma coisa, mas Isabella foi mais rápida. — Quem é a pessoa que você mais ama no mundo, John Smith? — ela quis saber. — Minha filha — ele disse sem pestanejar. — Eu sei... — Bells murmurou. — Eu teria dito o mesmo se um dia pudesse ser mãe. — Você não vai fazer isso — Ethan falou com o timbre de voz decidido. — Foi muito bom o que aconteceu entre nós — Bella disse e mordeu o lábio, antes de se virar para Lanai. Ela baixou o tom de voz, parecendo bem mansa. — Volte para Rafael. Sei porque gosta tanto desse nome, sei porque ficou tanto tempo no corpo dele. Você não pode simplesmente me pegar a força para me ter. Você tentou uma vez e me matou. Sabe que precisa me convencer a fazer aquilo por você, caso o contrário, terá que esperar por séculos a minha reencarnação. Por isso brigou tanto com a morte para que ela não me levasse. Você precisava me conquistar primeiro. Eu tinha que querer você. Assim, você conseguiu meu corpo nessa nova vida, mas não tinha minha alma. Agora tem os dois. Só precisa sair do corpo dessa criança e voltar para o do rapaz. Deixe John e Ethan em paz e me terá como sempre quis. Foi rápido. Só uma rajada de vento. Lanai estava caída nos braços do pai, enquanto as asas de Rafael sopravam calor pelo quarto. Foi mais rápido que o pensamento. John não protestou, porque não sabia como fazer, o que oferecer em troca, mas Ethan, sim. Porém, ambos sabiam. Nada que eles oferecessem cobriria a oferta de Isabella. Tudo que a jovem tinha dito fazia sentido. Sempre tinha sido ela o maior desejo do demônio, desde que ele tinha sido expulso
do inferno. Rafael, John e Ethan eram apenas meios de tentar chegar até ela. Quando Isabella deu um passo na direção do rapaz moreno, prostrado no meio da suíte com as asas vermelhas bem abertas, conseguiu compreender a força que ele tinha. O calor das suas asas chegou até seu corpo e a esquentou. Ela quase sorriu para ele, por um instante, se rendendo ao poder do demônio, mas mordeu o lábio antes que pudesse fazer isso. Tentou manter o pensamento firme, dizendo para si mesma que, apesar de estar indo com ele, nunca se entregaria de verdade, era só uma forma de afastá-lo deles, por hora. Ligue para Massimo Benedetti, seu amigo, ela pensou com toda força para que John pudesse entender. As asas se fecharam em volta do corpo da jovem e Rafael a levou embora.
Qual é a cor do inferno?
— Já quis tanto uma coisa que isso acabou te consumindo? Já desejou tanto algo que te levou à ruína? — O anjo estava de costas, sentado sobre o parapeito do prédio mais alto da cidade, de modo que Isabella não podia ver seus olhos. Estava nu da cintura para cima e suas costas ainda sangravam na região onde as asas haviam desaparecido. — Nunca deixei um desejo me dominar — a jovem respondeu, observando o líquido escuro que escorria da ferida cicatrizando. O vento soprava frio, as estrelas estavam cobertas por camadas espessas de nuvens. — Claro — Rafael sussurrou com a voz macia e calma. — Deus não aceitava pecadores entre eles. Não é engraçado? Não podíamos cometer uma única transgressão, enquanto ele criou o mundo para pecadores. — Por que você foi expulso? — ela não resistiu em perguntar. — O céu é um lugar muito seletivo — o anjo respondeu. — E por que te mandaram embora do inferno? — Lá é muito quente — ele disse e virou-se repentinamente na direção de Isabella, ficando de pé e dando alguns passos. — Todas as coisas que sua mente é capaz de imaginar estão lá. Tudo que você sequer consegue pensar. Eu vi os homens que mataram Ana. Eu sei de tudo, Isabella. Seu passado, sua outra vida, seu futuro.
— O que aconteceu com Teresa? Meus pais... minha gata? — ela ousou questionálo. — Tudo tem um preço, amor. — Não se finja de inocente! — ela esbravejou, incomodada com a proximidade, ainda tentando digerir a decisão que tinha tomado, de se sacrificar em nome da paz de Ethan, John e Lanai. — Não venha com essa história de que o céu é um lugar muito seletivo. Não sou fácil de enganar como John Smith. — O inferno é muito quente, amor — o anjo soprou as palavras ao se inclinar sobre a clavícula de Isabella. — Conseguiu sentir? Sim, ela conseguia. — O fogo é tão ardente que domina esse corpo. Gosta do calor? Quer senti-lo dentro de você? — O que aconteceu com minha irmã, Teresa? — Isabella insistiu com a voz fraca, tentando manter o controle dos pensamentos a qualquer custa. — Me deixe entrar em você e responderei estas perguntas. — O quê? — Quero possuir o seu corpo. A jovem deu alguns passos para trás e encarou o demônio a sua frente. — O que vai fazer com meu corpo? — ela desejou saber. O ar estava sumindo. — Vou deixar você ver e sentir tudo, amor. A única integridade moral que John Smith conseguiu manter ao longo dos séculos foi o respeito ao matrimônio. Foi a única coisa em que não consegui corromper, mas você é o amor de toda a sua eternidade. Vamos tentá-lo. Duvido que ele consiga se manter íntegro. — O que ganha com isso? Valia ressaltar que havia algo no jeito como ele falava que fazia Isabella ficar instigada. — Ethan e John. Os dois homens que você conheceu. O que eles não fariam se você pedisse? Pecado, luxúria... — Prometeu deixá-los em paz se eu viesse com você — ela tentou se negar. — Não vamos fazer nada que eles não desejem ardentemente. Estamos juntos agora, amor, mas preciso que você me prove lealdade com esse pequeno gesto. Permita que eu entre em você.
— O inferno é vermelho? — ela sussurrou ao se render. Os lábios de Rafael tocaram o lóbulo de sua orelha. — É vermelho ardente.
Não importa quantas mortes eu morra, eu nunca esquecerei Não importa quantas vidas eu viva, eu nunca irei me arrepender Tem um fogo dentro deste coração E uma revolta prestes a explodir em chama
Você realmente quer? Você realmente me quer? Você realmente me quer morto ou vivo Para torturar pelos meus pecados
Me diga, você mataria para salvar uma vida? Me diga, você mataria para provar que você está certo?
Thirty Seconds To Mars - Hurricane
O amor que tínhamos, nós tivemos que deixá-lo ir
— Isso é ridículo — Ethan resmungou pela quarta vez, enquanto dirigia pelas ruas italianas. Seu peito estava tão apertado que ele precisava se distrair com a teimosia. Seguiam para o leste da cidade, os pneus deslizavam silenciosos pelos calçamentos das ruas históricas com centenas, talvez milhares, de anos de tradição. O astro do rock não sabia ao certo. Ele riu para o para-brisas ao pensar em sua carreira, em ser um astro; em ter milhares de fãs pelo mundo todo; em ter fortuna e prazeres. Nada disso tinha valor agora. Ele era só um corpo e uma alma lutando por uma chance, sem saber que armas poderia usar. A fama e o dinheiro não podiam mais ajudá-lo. Não podiam ajudá-la. Pelo espelho retrovisor, ele via o sol se pondo no oeste, o momento do crepúsculo. O rosa tingiu o céu, mas para Ethan parecia mais que rosa. Parecia vermelho. Era como se o céu estivesse ardendo. A pulsação acelerada o fez pisar mais forte no acelerador. No banco traseiro, Lanai riu com o desenho que assistia no iPad do pai. — Ainda acho que isso é ridículo — Ethan disse um pouco mais alto desta vez, após pigarrear para chamar a atenção de John. — Se me falassem que comer merda poderia ajudar minha filha a se manter a salvo,
eu comeria um prato cheio — John garantiu. — Eca, papai! — Lanai gritou batendo com sua mãozinha na coxa do senhor Smith. O estômago de Ethan embrulhou com a lembrança do que vira naquele dia, quando estava no hotel com Isabella, ligou seu notebook de madrugada e acabou assistindo aquele vídeo que recebeu em seu e-mail, onde o próprio comia fezes. Fez uma careta. O quão macabro e poderoso poderia ser Rafael era a última coisa que Ethan queria lembrar durante aquele crepúsculo vermelho. — Sendo assim — voltou a falar com o homem no banco de trás —, acho que uma cerimônia de batismo é muito aceitável. — Massimo irá conduzir o ritual. Não precisamos de um padre — John informou, enquanto o outro estacionava ao lado de uma antiga igreja. — Acho que não deve chamar de ritual — Ethan fez a observação, enquanto pegava sua carteira no porta-malas. — Não sei. Deve ter outro nome mais adequado. Celebração, talvez... — Tanto faz — John respondeu ao pegar o aparelho eletrônico da mão da filha e beijar sua testa. A temperatura do corpo da menina estava perfeitamente normal agora que o demônio tinha realizado seu desejo de milênios. — Onde será que ela está? — Ethan quis saber. — Bells? — John estava tão distraído que mal conseguia sentir as emoções do homem que o acompanhava pela rampa de pedra que dava acesso aos degraus que os levariam ao interior da igreja. — Sua esposa — Ethan o corrigiu — e seus filhos. São gêmeos, não é mesmo? Tantas preocupações que dilaceravam o coração de John que ele mal conseguia distinguir uma da outra. Tudo doía. Ao passar dos séculos, aprendera que muitas vezes as dores físicas estão intrinsecamente ligadas aos sofrimentos da alma. Durante mais de dois milênios, John desejou ter filhos, agora tinha realizado esse sonho, precisava lutar contra céu e inferno para mantê-los em segurança. — Uma coisa de cada vez — respondeu a Ethan. — Ele pegou Lanai uma vez, e o que eu puder fazer para evitar que isso se repita, farei. Como tenho quase certeza de que Endy está a salvo em alguma loja, fazendo compras, sem imaginar o que estamos passando, me odiando por causa dos hormônios, vou me preocupar com Lanai primeiro, depois Isabella.
— Estou quase certo de que ela vai nos procurar — Ethan respondeu. — Pelo menos é tudo que espero. — E que não demore. Sei muito bem o poder de persuasão que o maldito tem. Você erra achando que está fazendo o certo. É isso que ele te faz. Chegaram ao todos dos degraus e, diante da enorme porta de madeira, John entregou Lanai para Ethan carregá-la. De acordo com as tradições católicas, eles iriam batizá-la. O astro não era a melhor opção para ser padrinho da criança, mas era tudo que John tinha no momento. Ele nunca foi religioso, além do sacramento do casamento, nunca seguiu outro costume. Ia às missas apenas quando havia segundas intenções, mesmo que fossem boas, como na vez em que viu Bells pela primeira vez. Por essa razão, batizar sua filha para tentar protegê-la de uma nova possessão poderia soar ridículo. Só que John comeria merda pela sua filha, batizá-la parecia mesmo muito razoável.
∞∞∞ — Vou dar-lhes um presente — o anjo sussurrou para a mulher ao seu lado. O vestido vermelho de seda moldava-se ao corpo magro e curvilínea da jovem, a fenda até o alto da coxa revelava a pele macia da sua perna esquerda a cada passo que Isabella dava. Junto do anjo, caminhava por uma rua solitária de um bairro pobre. As pichações nos muros fétidos de urina poderiam causar arrepios na espinha de uma mulher como Isabella, mas os perigos mundanos não a preocupavam naquela noite. — Que presente? — ela disse com a voz sensual. — Parece que você está se referindo a mim e outra pessoa. — Já descobrirá, amor — um anjo disse ao segurar sua mão. — Veja, logo à frente, após a grande lata de lixo. — Não vejo nada! — Isabella comentou. — Só posso sentir o cheiro de lixo se decompondo. O anjo aspirou o ar com um sorriso satisfeito. Para ele, era um odor muito agradável. O fazia lembrar de seu local preferido no inferno. — Estamos chegando perto. Mais alguns passos e ela conseguiu enxergar a silhueta de um homem sentado no chão, com as costas apoiadas no muro pichado. Se aproximaram dele. — Olhe em seus olhos — o anjo pediu com prazer na voz —, veja como estão desvairados.
Ela observou o mendigo imundo. Estava tão sujo que seu odor se igualava ao da lata de lixo. Moscas pousavam em seu rosto, mas o homem não preocupava-se em abaná-las. Estava apático, com exceção dos olhos que reviravam loucamente. — Dois amigos estão dentro dele, fazendo uma pequena festa — O anjo disse com satisfação. — O que isso tem a ver com o presente? — Isabella perguntou, com as emoções dormentes. Por mais que tentasse se esforçar, mais de duas ideias de como matar o mendigo passaram de relance em sua mente. Sorriu com a ideia de executá-lo, mas depois se deu conta do pensamento e tentou encontrar o amor de Deus dentro de si, tendo consciência de que estava sob influência de Rafael. O anjo riu da luta interior da jovem. — Vou entrar neste homem agora. Vou deixar você a sós com minha pobre casca por uma noite, amor. Sei o que deseja, sei o quer sentir, mas sua consciência ainda fala mais alto e você não conseguirá se eu estiver por perto. Ela piscou boquiaberta com suas palavras. Mal podia acreditar. Não sabia como se sentir a respeito daquilo. — Vai sair do corpo de Rafael para que fique a sós com ele? — não pôde deixar de perguntar. — Para que se consumam — o demônio disse dentro do corpo do rapaz, com uma sensualidade tão dissimulada que seduziria qualquer garota desavisada. — Amanhã você me conta os detalhes. Após ouvir isso, Isabella percebeu o corpo do mendigo estremecer. Ela sabia que o pobre e bom Rafael estava de volta. Pensou que poderia ser a única chance de estar a sós com ele, para tentar descobrir qualquer informação que pudesse ajudar naquela batalha. Rafael tinha passado milênios possuído, poderia saber de algo importante. Não era possível que sua alma estivesse adormecida todo esse tempo. Ela tentou raciocinar por um momento, procurando entender como se dava a possessão. Será que ele ficara adormecido dentro do próprio corpo, todos esses anos, ou o rapaz conseguira ver o mundo ao seu redor, os acontecimentos, como observamos a paisagem lá fora, através de uma janela embaçada em um dia de temporal? Só tinha um modo de obter todas aquelas respostas, e este modo estava bem ali, parado ao seu lado.
Você realmente me quer?
As mãos macias e quentes tocaram os ombros do rapaz. Ele piscou os olhos quando um arrepio percorreu sua espinha. Isabella o encarava com a boca apetitosa entreaberta e úmida. Ele respirou fundo. Ela arfou. — Rafael — ela disse seu nome com um tom de voz que fazia tudo se revirar por dentro. Sem que ele tivesse tempo de considerar sua próxima ação, colocou as mãos nos quadris da jovem, cobertos pelo vestido de seda. O calor veio como uma onda, o atingindo em um segundo, dos pés à cabeça. — Amor... Vá em frente. Nunca havia tempo. A pressa era sua única amiga. Houvera momentos, vários deles, em que Rafael conseguia recobrar a consciência e enxergar através do demônio dentro do seu corpo, que dominava cada uma das suas razões. Os momentos eram breves, mas serviam para alimentar sua esperança de liberdade. Rafael o conhecia, sabia o que irritava o demônio e o os pecados que lhe causavam mais prazer, conhecia até seu nome, aquele que nunca deveria ser pronunciado. O anjo caído tinha medo do próprio nome. Vá em frente! Ele escorregou as mãos pela curva, apertou a carne macia. Os lábios tão desejados estavam contra os seus. Era como se apaixonar pela primeira vez. Ele agarrou-a com força e a ergueu. Isabella segurou em seus ombros quando ele a girou, depois a colocou no chão. Podia ouvir uma canção ao longe, uma melodia enternecedora e envolvente que falava sobre
tristeza de verão. Isabella virou-se de costas e, olhando sobre o ombro, balançou o corpo devagar, no ritmo da canção, forçando seu quadril de maneira sensual contra o dele. As palpitações atingiram suas extremidades como uma fome voraz. Ela mordia o lábio de um jeito que o fazia querer estar dentro dela mais que qualquer outra coisa. Sua pele estava se aquecendo, suando. — Quer sair daqui? — Isabella perguntou com a voz arrastada, ainda dançando contra o quadril do rapaz. — Sim — ele gemeu. Se afastando do jovem, ela esticou a mão para que ele a seguisse pelo beco. — O demônio ainda está aqui — Rafael disse ao passar pelo mendigo. — Venha — Isabella incentivou, o conduzindo para a calçada movimentada. Pararam diante do automóvel que o demônio dentro de Rafael havia usado para chegar até ali. — Sabe como usar um carro? Digo, sabe dirigir? — Não faço a menor ideia, e você? Ela balançou a cabeça em negação, fazendo o cabelo ondular em suas costas. — O que quer fazer? — Tudo — Rafael disse com um sorriso. — Tudo que aquele demônio despreza. Isabella deu um sorriso que tirou seu fôlego. Ele a desejava mais que qualquer outra coisa no mundo, mas faria do jeito certo dessa vez. Desviou os olhos do automóvel e olhou ao redor. Era um mundo muito diferente do qual ele tinha nascido. Se sentia perdido. — Como pôde mudar tanto? — perguntou, deixando seus olhos percorrerem os prédios ao redor. — O tempo muda tudo — Isabella respondeu. — Afeta tudo. — Ele vai voltar — o rapaz falou com pesar. — Vai me possuir outra vez. — Nunca foi nosso destino estarmos juntos, Rafael. Naquela vida, eu deveria ter me casado com John. — Não tem nada a ver com destino. Permiti que ele fizesse isso e venho pagando pelo meu crime eternamente. — Ele não está aqui agora — Isabella murmurou. — Temos pouco tempo. Aonde quer ir? Rafael inclinou a cabeça e sorriu, apontando na direção de uma fachada negra onde
várias pessoas estavam aglomeradas. — Um bar? — ela perguntou confusa. — Ele não gosta de bares. Quebrou sua mão porque esteve em lugar como esses. Isso o irritou tanto! Isabella o encarou por alguns instantes. Queria perguntar como era ser possuído, mas achou que não gostaria da resposta. Pelo pouco que conhecia do século XXI, sabia que uma foto do casal estamparia as novas manchetes da manhã seguinte. — O casal Valentin faz as pazes — sussurrou, antes de começar a caminhar na direção do bar. Rafael a seguiu depressa. As pessoas na porta abriram caminho para que um dos casais mais invejados do mundo passassem, sem saber dos dramas internos vividos por eles. — Imagino que não sabe dançar — ela disse para o rapaz quando adentraram o estabelecimento. O cheiro de álcool e perfume era forte ali, mas pelo menos a música era boa. — Nunca tive oportunidade de fazer isso. Tiraram uma foto dos dois e, com sarcasmo, Isabella fez uma reverência na direção do flash, antes de afastar a seda do vestido, até que a fenda revelasse toda sua coxa. — Coloque as mãos no meu quadril e tente seguir o ritmo — ela o instruiu ao passar os braços em volta do seu pescoço. Ficaram um instante se olhando até que uma nova música se iniciasse. Não havia mais ninguém dançando ali, mas isso não intimidava Isabella. Se Rafael queria dançar, ela faria isso por ele. — Amor — o rapaz gemeu quando ela deslizou o quadril contra o dele, trazendo de volta aquele desejo voraz. — Feche os olhos — ela pediu baixinho contra seu ouvido. Arrepios fizeram Rafael estremecer, mas ele obedeceu. — Continue se movendo no ritmo e sinta minhas mãos. Os dedos de Isabella deslizaram na pele quente do rapaz, acariciaram sua nuca, escorregaram pelo seu cabelo e tocaram a firmeza dos seus músculos, enquanto ele gemia baixinho e chamava por ela. A jovem não tinha noção da intensidade com a qual seus gestos mexiam com ele. Alguém que ficou preso dentro do próprio corpo, privado de seu livre arbítrio por milênios. Quando a música acabou, Rafael abriu os olhos castanhos.
— E se não for só por esta noite? — Rafael sussurrou ao afastar o cabelo de Isabella para beijar seu pescoço. — O que quer dizer? — Eu te amo tanto — ele disse com os lábios no lóbulo da orelha dela. — Tanto... Você viveria comigo? — Rafael, ele só te deu uma noite — Isabella o lembrou. — Alimentar essa esperança só iria te fazer se sentir pior. — Ele me possuiu porque deixei, mas posso lutar contra isso. Pode ser que ele não retorne ao meu corpo se eu não der a permissão. Serei forte. Se tiver seu amor, terei um motivo para lutar. Os olhos de Isabella se arregalaram. — Não pode lutar! — ela falou exasperada. — Por que não? — É o mesmo que deixar o demônio solto para possuir outra pessoa. — Se importa mais com outra pessoa? — Rafael perguntou confuso, franzindo o cenho ao encará-la. — Fiquei preso por muito tempo. Não acha que mereço uma libertação? — Se fizer isso, ele pode entrar no corpo da filha de John novamente. Tem que haver outro jeito. Rafael estreitou os olhos. Machucava que ela se importasse tão pouco com ele. — Não há outro jeito — o rapaz assegurou. — Vamos descobrir como te ajudar. John deve estar neste momento com Massimo... — John vai me matar na primeira oportunidade. — Ele não faz mais isso. John mudou. Ele é bom agora. Vamos te ajudar. — Amor, não vou deixar o demônio me possuir outra vez.
Afundando
O celular de John tocava incansavelmente. Já passava das duas horas da manhã e ele se sentia tão abatido que não tinha forças para atender. Na cama ao lado, sua filha recém-batizada dormia o sono dos anjos. O lado que deveria ser de Endy estava vazio. Sua mulher não tolerava mais dormir ao seu lado e havia se hospedado em outra suíte, com a desculpa de que o cheiro do John lhe provocava ânsia. Tateando na escuridão, ele conseguiu alcançar o aparelho. Não reconheceu o número, mas pôde constatar pelo código do país que a chamada se originava na Itália mesmo. — O que é? — murmurou ao atender. — John — Bells sussurrou. — Ah... John! Ele se sentou na cama imediatamente, apertando o cobertor com a mão tensa. — Bells, onde você está? — sua voz era só um sussurro. Não queria acordar Lanai. — Onde ele está? — Estamos perdidos, John — Isabella lamentou com um gemido. O coração dele parou de bater por um instante. Não poderia ser pior do que já estava sendo. Respirou fundo, tentando se lembrar da última vez em que se sentiu em paz. Não
conseguia recordar. Tinha medo de pedir mais detalhes, porém sabia que precisava fazer. — Rafael... — ela começou, mas foi interrompida. — Demônio! — Não! Não seu amigo, mas o rapaz que ele possui... — Não enrola, Bells — John implorou. — O demônio deixou seu corpo para que tivéssemos uma noite juntos. Longa história. Mas acontece que o rapaz diz que não vai permitir ser possuído de novo. Pedi emprestado um celular no caminho para o banheiro e estou trancada em uma cabine. John, se Rafael não for possuído, o demônio vai ficar solto, não é? — Sim... — John falou com a voz atônita. — Ele vai querer um de nós. Ethan... ou quem sabe Lanai outra vez. — Não vou deixar — ele garantiu, mas sabia, melhor que ninguém, que não havia muito o que pudesse fazer para proteger sua filha. Ela era só uma criancinha, e podia ser facilmente iludida novamente. Não tinha forças para lutar contra uma possessão. O corpo de John doeu com a agonia. Não queria pensar nas coisas horríveis que poderiam acontecer. — Lanai não — ele pediu com todas as forças. — O que a gente faz? Massimo não pode nos ajudar? — Vou ligar para ele agora mesmo. Você consegue segurar as pontas enquanto procuro ajuda? — Tudo que posso é tentar. — Ela suspirou. — O que a gente fez para merecer isso? John sabia exatamente a resposta, mas não ia perder tempo relembrando o passado. — E se você convencê-lo a voltar atrás? — John sugeriu. — Ele já está possuído há tanto tempo, já deve ter se acostumado. — Não posso fazer isso! Ele é um ser humano, tem bom coração. — Não tenho certeza. Você não me contou tudo que viu sobre nossa vida passada. Tudo que sei é que estávamos noivos, e esse rapaz queria te roubar de mim. Do outro lado da linha, Isabella se encolheu. Se John soubesse exatamente como tinha se passado, mataria Rafael com as próprias mãos. Ela entendia agora. Há milênios, Isabella e John estavam destinados desde crianças a se casarem. Eles se amavam e mereciam ficar juntos. Ele era um homem benevolente e faria tudo para vê-la feliz, mas
havia aquele rapaz pobre, de uma família miserável, que estava perdidamente apaixonado por Isabella. Rafael não tinha posses, faltava alimento, usava vestes esfarrapadas, aceitava esmolas. Muitas vezes, a caridade o salvara da fome. Não havia nada que ele pudesse fazer para que Isabella se tornasse sua esposa. Mas ela era tão bonita, tão maravilhosa. A jovem, mesmo prometida para John, nunca tinha dado sequer um primeiro beijo. Imaculada, inocente e com um coração bondoso. Tinha pena do rapaz, da condição de sua família. Odiava olhar dentro daqueles olhos castanhos e perceber que ele sentia fome, que era humilhado e que a desejava mais que tudo. Naquela vida passada, Rafael lhe pedira um beijo. Ela se casaria com John, e este a teria pelo resto de suas vidas. O rapaz só queria um beijo. Uma única lembrança, e iria embora dali; partiria para nunca mais voltar. Não suportaria vê-la casada com outro. O coração indulgente a fez concordar com o pedido, mesmo sabendo que seria apedrejada, caso fossem descobertos. Ela confiara nele, se não tivesse feito, toda a desgraça teria sido evitada, porque aquele único beijo, em vez de afastar Rafael, o fez ter esperanças. O rapaz sentiu que poderia ter mais. Não sabia como, mas poderia. Naquela mesma época, muito tempo depois da queda dos anjos, do exílio no inferno, uma nova revolta acontecia. Por motivos ainda não revelados, um demônio, que antes havia habitado o céu ao lado do Criador, estava sendo expulso de seu lar pela segunda vez — o inferno. Deus não o queria, Lucifer não o tolerava. Ferido, humilhado e sozinho, o anjo caído fora condenado a vagar pela terra. Sem um único aliado, isento da possibilidade de retornar a um de seus lares. Foi quando se deparou com aquele rapaz, tão infeliz e ambicioso. Seu nome o agradava. Rafael. A graça de um dos arcanjos do Pai. Seria uma perfeita vingança, usar o nome de um dos anjos preferidos de Deus, aquele responsável pela cura, para levar desgraça e sofrimento a um casal de herança celestial. Nem Lucifer tinha sido tão perverso a ponto de mexer com Isabella e John. Mas o demônio expulso não tinha mais nada a perder, e um pecado como aquele o faria ser lembrado dos céus até o nível mais baixo do inferno. Se apossando do corpo de Rafael, aproveitando-se da cobiça que dominava o coração do rapaz, ele atraiu Isabella para um segundo encontro, uma armadilha, onde a jovem havia sido violentada até a morte. Um crime que nunca poderia ser perdoado.
John ficou sem sua noiva e, apesar de sua riqueza, acabou se entregando a tristeza até padecer. Reencarnou alguns séculos depois, mas sem sua amada, sem recordar nada sobre sua vida passada. Havia encontrado Ana e lhe prometido amor eterno, sem saber que sua verdadeira eterna amante só reencarnaria quase dois milênios depois. E, apesar de milênios terem passado desde aquela primeira reencarnação, se John Smith soubesse que Isabella tinha sido violentada pelo demônio, mataria Rafael assim que colocasse suas mãos nele. Se o rapaz não tivesse cobiçado a noiva de John, mesmo que tivesse acontecido em uma vida passada, milhares de almas teriam sido poupadas. De certa forma, Rafael era culpado. — O demônio se aproveitou das fraquezas dele — Bells murmurou por entre os dentes, lembrando-se da última visão que teve, aquela onde o rapaz possuído violara seu corpo até tirar a vida dela. — Assim como o anjo da morte se aproveitou das suas. — Ana era minha mulher. Nos amávamos. Ela sentiu o golpe no coração. Se existisse uma chance, se todas os problemas sem solução se resolvessem, e o casal pudesse ficar junto novamente, desta vez, da maneira correta, Bells ainda aceitaria, agora sabendo que John era seu amor de todas as suas vidas?
O impossível
— John, e se... — Isabella sussurrou o mais baixo que pôde. — Se o quê? — Se conseguíssemos fazer com que ele fosse aceito de volta em outro plano? — O céu é um lugar muito seletivo, Bells — John a lembrou. — Quantas vezes preciso te dizer? — O céu não! É óbvio que não seria aceito lá. Estou falando de um lugar mais quente. — O inferno? Pelo que sabemos, ele também não pode voltar para lá — John murmurou. — Mas e se... — Bells tentou raciocinar. Tinha que existir uma saída para tirar de vez aquele encosto das suas vidas. — Se negociássemos com o próprio diabo? — John quis saber. — Primeiro, acha mesmo que seríamos capazes de chamar a atenção dele? — Lucifer — ela sussurrou o nome. — Se oferecêssemos alguma coisa que ele queria muito? — Você quer fazer um pacto com o próprio diabo?
— John, faço o que for preciso para afastar esse demônio de nossas vidas de vez. Rafael, Ethan, Endy, seus filhos, você e eu livres para vivermos em paz. — É tudo que eu queria, Bells, mas podemos nos meter em uma situação ainda pior. — Pior que isso? — Vou pensar a respeito. Com calma. — Massimo pode ajudar — Isabella sugeriu com insistência. Não havia tempo para calma. — Duvido que ele concorde em participar de uma coisa dessas, mas tudo que temos a fazer é tentar. — Por favor, John — ela suplicou. Queria perguntar sobre Ethan, não tinha coragem de ligar para ele enquanto estava destinada a passar uma noite com alguém que era obcecado por ela há milênios. Ethan não precisava daquilo. — Ethan... — Ele é um idiota, mas tudo que quer é salvar você. Sabe te amar do jeito correto; da maneira que nunca fui capaz fazer. As recordações fizeram seu estômago revirar. Isabella sabia o quanto John era nobre sem a presença do demônio. Pelo que podia se lembrar da outra vida, ele era alguém por quem ela morreria. Um bom homem, um coração enorme. John era gentil, amoroso, paciente, até o demônio entrar em suas vidas. Isabella foi assassinada, John morreu algum tempo depois, e mesmo quando reencarnou, ele ainda tinha o coração puro. Fez o impossível por Ana. Fez mais do que qualquer outro teria feito. Só então ele se perdeu no caminho errado. Tinha sido profundamente afetado por séculos de sacrifícios, mas então... Quando conseguiu se livrar do demônio, voltou a ser aquele homem nobre. — John, se lembra quando você espancou Stefan e me largou na floresta? — A memória ainda estava fresca em sua mente. — Bells — ele gemeu. — Por favor, eu era... — Se lembra? — Isabella insistiu. — Como se tivesse acontecido há poucas horas. — Lembra-se de quando desposou aquela moça? Se lembra do café que derramou no meu braço? — Pelo amor de Deus, Bells! Você me convenceu a me confessar. Pensei que desejava que eu seguisse em frente. — Quero que siga, só preciso saber se você recorda. — Me lembro de tudo muito bem — ele admitiu com a voz dura.
— Como você se sentiu? — Isabella quis saber. — Como uma marionete. Como se meu corpo agisse por conta própria. Não queria fazer aquelas coisas, mas havia uma maldade tão violenta dentro de mim que me guiava, me cegava. — Era como se não fosse você? — Exatamente — John confirmou. — Era só isso que eu queria saber — ela murmurou antes de desligar. Abriu a cabine, deixou o banheiro e entregou o celular para o homem que a esperava no corredor — um desconhecido, encantado com a beleza da modelo. Passando discretamente pelo bar, pôde ver o topo da cabeça de Rafael na frente do balcão. Seguiu até a saída, precisava ser rápida. Tinha algo que queria perguntar ao demônio, e seria muito mais apropriado encará-lo longe daquele rapaz. Correu pela calçada, fazendo a seda vermelha do vestido balançar ao redor das suas pernas, de volta ao beco escuro, onde o mendigo ainda estava caído. O odor era repugnante, as feridas na pele estavam apodrecendo. Seus olhos reviravam nas órbitas. — Você — ela falou, sentindo o estômago embrulhado. Os olhos sem vida a encararam. Parecia um doido varrido. Ela se encolheu por um instante, mas voltou a ficar ereta. Precisava ser corajosa e não sair correndo para longe daquela repugnância. — I-sa-be-lla — a voz soava perturbadora, se alongando nas sílabas. — A-mor. A jovem teve nojo até de engolir a própria saliva, mas não vacilou. — Você possui Rafael desde que foi expulso do inferno pelo próprio Lucifer, mas essa não é a primeira vez que você abandona o corpo dele, não é? O mendigo possuído abriu um sorriso de dentes podres. — Sei o que quer saber — a voz demoníaca disse. — Vá em frente. — Você saía do corpo de Rafael para possuir John — ela disse. Não foi uma pergunta, e sim uma afirmação, e as palavras fizeram seu corpo inteiro arrepiar-se. — Como descobriu? — a coisa perguntou com um sorriso ainda mais largo e macabro. — Fui tão discreto. John Smith nunca percebeu. — Porque eu sei que John é bom. Porque eu estava lá, o vi se transformar em um crápula. Mas alguém com o coração como o dele não seria capaz de tanta crueldade. Demorei demais para perceber, mas agora eu sei. John também foi possuído inúmeras vezes
por você. E o deixou pensar que era ele quem fazia aquilo tudo — Isabella concluiu, se odiando por ter demorado tanto a descobrir. Durante todos aqueles séculos, John havia se culpado, se torturado, quando tinha sido apenas uma vítima de uma força muito maior e mais poderosa que ele. O mendigo deu uma gargalhada. — Não sabe como era divertido entrar no corpo dele. Mas eu o deixava consciente para ver tudo que seu corpo fazia. John só não podia revidar. Seu corpo obedecia aos meus comandos, mas ele assistia tudo. Não dava para saber que estava sendo possuído. Foi um dos meus trabalhos mais satisfatórios. Vê-lo arrependido depois, por coisas que não tinha culpa de ter feito, só perde para a satisfação que foi estuprá-la até a morte. Você se abriu para mim, agonizou, sangrou até sua alma te abandonar. Com um ódio insano, ela começou a chutar violentamente o corpo do mendigo. Como uma criatura poderia ser tão perversa assim? Fazer esse tipo de maldade apenas por diversão... Ela queria vê-lo capturado, preso para sempre, para que nunca mais pudesse destruir outras vidas. Quanto mais o chutava, mais o demônio gargalhava. Isabella notou o porquê. Mais uma vez ele causava dor a outra pessoa. O mendigo era a única vítima dos chutes, recebendo exclusivamente a dor dos pontapés em seu corpo. A jovem se deteve, ergueu o queixo e se preparou para voltar ao bar, dando as costas ao indigente. — Tem mais alguém que foi meu brinquedinho por alguns meses. Ela não era tão boa e divertida quanto você, mas me serviu. Um horror nublou os olhos de Isabella. Ela moveu o corpo lentamente na direção do demônio. — Não! — sua voz saiu agoniada quando o nome da sua irmãzinha ecoou em seus pensamentos. — Teresa não! — Seu pai era tão ambicioso. Lhe dei algum dinheiro e ele a entregou de bandeja. John estava ocupado demais pensando em você. Não imaginou que seu melhor amigo fosse se interessar pela pequena Teresa. O horror fez o corpo de Isabella entrar em choque. Seus olhos marejaram. — O que fez com minha irmã? — Eu a devorei. Comi seu corpo, sua mente. Eu fiz um filho nela. Pena que ela era inteligente demais. Se matou porque não queria ter um filho de um demônio. Sacrificou sua alma. Mas até nisso, ela me divertiu.
As mãos da jovem se fecharam em punho, as unhas penetraram a pele delicada das palmas. Ela queria dizer que o faria pagar por tudo, queria cuspir as palavras, mas não sabia como punir uma criatura inumana, ainda mais quando essa criatura se divertia com o sofrimento. Como castigar alguém que adorava a dor?
Livrai-nos do mal
— Não posso, John — Massimo Benedetti repetiu. — Te ajudei em inúmeras situações, mas não posso e não vou compactuar com isso. Massimo estava irredutível. Ele auxiliava um padre de nome Luca, um sacerdote que possuía autorização do Vaticano para realizar exorcismos — atividade que era executada, na maioria das vezes, em segredo. Um ato perigoso tanto para o padre e seus auxiliares quanto para a vítima possuída. Algo que já tinha ceifado a vida de vários fiéis. Tendo total conhecimento do trabalho sério e árduo que era a realização de um exorcismo, de suas dificuldades e perigos fatais, o senhor Benedetti não poderia auxiliar John Smith naquela tarefa tão controversa. — Meu trabalho é exorcizar demônios, não atraí-los para que "subam do inferno”. Ainda mais o próprio... — Ele não seria capaz de dizer o nome naquelas circunstâncias. Fez o sinal da cruz como um ato de proteção, não só espiritual, mas também física. Massimo sabia muito bem dos perigos daquilo. — Livrai-nos do mal... — sussurrou mais alto ao finalizar o gesto. — É o único meio — John disse. — Não quero desrespeitar seu trabalho, sei que isso irá contra sua fé, seus princípios e sua religião, mas não existe outra saída. — Sempre há o caminho da fé — Massimo murmurou. — Não posso te incentivar a ir com um plano desses a diante. Você se ajoelhou perante um padre, fez uma confissão que durou horas, disse estar arrependido de todas as suas escolhas. Escolhas estas que
começaram quando você fez algo semelhante: invocou uma força sobrenatural. Suas intenções eram boas, mas quando aceitou o pacto, não foi de maneira inocente. Sabia muito bem o risco que estava assumindo, John Smith. Você se ajoelhou e pediu perdão por tudo. Como quer fazer algo ainda pior que aquilo? — Você sabe muito bem que essa é a minha única opção, Massimo. Ele é o único com quem posso barganhar. — Toda sua longa vida, sua família, seus amigos, sua fé. Irá passar por cima de tudo outra vez? — Se existisse um meio de afastar aquele demônio de uma outra forma, acha que não faria? — John o questionou. Não estava irritado com seu amigo, mas sim com a situação. — Você mesmo me confirmou que demônios têm uma inteligência além da nossa, que têm conhecimento sobre passado e futuro, a respeito do universo. O que somos nós perante a ele? Só uma criatura como esse demônio poderia nos ajudar. — E o que te leva a crer que ele vai te ajudar? — Massimo quis saber. — É minha única opção — John repetiu. — Vou fazer isso, mesmo que vá para o inferno. Agora que sei quem Rafael realmente é, ou melhor, a criatura que está dentro dele, tenho total ciência de que não sou páreo para lutar contra um ser desse tipo. Sozinho não consigo. — Te ensinei o caminho da fé, mas agora você vai contra tudo. — O caminho da fé não será capaz de afastar esse demônio da minha família e de Isabella. Ele está com ela agora. Ter fé e esperar que uma força maior tenha piedade de mim e o afugente não resolverá, porque ele não pode voltar ao inferno. Está condenado a vagar na terra, e nada que fizermos aqui o fará desistir de me prejudicar. O aceitei na minha vida e na das pessoas que amo, e sou o único que posso fazer algo para afastá-lo. Massimo Benedetti respirou fundo, apertando o braço da cadeira giratória do seu escritório — uma espécie de biblioteca cheia de livros antigos que a maior parte da humanidade não sabia de sua existência. Com a mão livre, ele coçou a barba que começava a crescer na pele negra. — Sei disso. Estou ciente de tudo isso, John, mas minha fé e meus princípios não me permitiriam deixar você sair nessa missão sem tentar persuadi-lo do contrário — ele disse ao se levantar, caminhou até uma das prateleiras e passou os dedos pelas lombadas de couro. Encontrou o que procurava e retirou um livro de capa cor de vinho, com o título em latim impresso em letras douradas. — Estudei sobre exorcismos durante muitos anos da minha vida. Ajudei na realização de vários. Estive na presença do mal tantas vezes. Minha existência foi dedicada a auxiliar o padre a exorcizar demônios, a afastá-los dos humanos. Esse é o meu trabalho, John. Algo que cumpro em segredo. Você sabe que exorcismos não são mais corriqueiros, que a medicina nos ajudou a separar o que era uma real possessão das doenças da mente. A psiquiatria descarta suspeitas de possessão a todo momento, e dá o tratamento que o paciente realmente precisa. Histeria, bipolaridade, depressão,
esquizofrenia e tantos outros transtornos mentais foram tratados como casos de possessão demoníaca nos séculos passados. A medicina avançou, graças a Deus, e confusões assim não acontecem mais. Um exorcismo só é realizado perante todas as evidências que descartem uma doença mental. É um trabalho realizado em sigilo, a igreja mantém em segredo. Os casos são poucos, mais uma vez agradeço a Deus por isso, mas ainda acontecem. Entende a seriedade desse trabalho? Consegue compreender os perigos que corremos a cada vez que precisamos realizar um exorcismo? Cada vez que um demônio consegue possuir uma vítima, entrar em seu corpo para destruir uma criação de Deus... Essa é uma tarefa séria. Meu trabalho é expulsar demônios, e aqui está você me pedindo para ajudá-lo a invocar um. Pior de tudo: conjurar o pai da mentira. Depressa, Massimo fez o sinal da cruz, repetindo o ato três vezes. Se recusava a dar nome à criatura a qual se referia. — Não estou pedindo para ir até lá comigo. Só preciso de ajuda para escolher o local adequado — John tentou argumentar. — Necessito de proteção para as pessoas que amo. Enquanto estiver fazendo isso, deixarei outro demônio entre eles. Tem noção dos perigos que vou enfrentar? Você é o único a quem posso recorrer. Massimo coçou a barba outra vez. Um medo terrível assolava sua alma. Tinha a noção do perigo que seu amigo corria. Talvez nunca pudesse se livrar das consequências de um ato daqueles. Tinha pagado por mais de dois mil anos de castigos por invocar ajuda de uma força inumana. O que receberia em troca de conjurar o próprio diabo? — Sim, eles vão precisar de proteção — o homem disse pensativo, os olhos castanhos percorrendo as páginas do livro antigo em suas mãos. Tinha se dado conta de que, apesar da gravidade da decisão de John, aquilo era necessário, e que tudo que seu amigo queria era livrar a humanidade de um demônio. Aquela atitude heroica talvez valesse de alguma coisa na balança final. Todavia, como falava o dito popular, o inferno estava cheio de boas intenções. Um arrepio percorreu o corpo do senhor Benedetti e ele precisou fazer o sinal da cruz outra vez. — Toda a proteção — John reafirmou. — Ele já possuiu minha filha uma vez. Só saiu porque Isabella se ofereceu em troca, mas ele pode mudar de ideia a qualquer momento. Se isso acontecer... — Vocês irão precisar de relíquias. — Relíquias de santos? — John questionou com certa incredulidade. — Sou católico apostólico romano, se vem pedir meu auxílio, é com base na minha fé que irei ajudar. Tudo que espero é que tenha fé. — Não estou desacreditando. Já vivi coisas demais para desacreditar em qualquer crença, ainda mais na sua — John disse com franqueza. — Só não pensei que pudesse fazer
algo do tipo por mim, nos disponibilizar relíquias… — Farei o que estiver ao meu alcance para protegê-los, mesmo que não apoie sua ação. — Tem outra coisa sobre a qual quero conversar. Vocês acreditam em reencarnação? Isabella me contou sobre visões que teve, na qual vivíamos em uma época anterior, provavelmente muito tempo antes de eu nascer. Estávamos prometidos um para o outro. Pelo que entendi, essas visões remetiam a uma vida passada em que deveríamos ter ficado juntos, mas, por intervenção do demônio, isso não aconteceu. — Segundo as Sagradas Escrituras nas quais acredito, a vida é apenas uma. Porém, cá entre nós, há um relato com provas substanciais de que uma vítima de possessão que foi atendida por um grande amigo, demonologista e exorcista aprovado pelo Vaticano, seria uma reencarnação de outra mulher possuída dois séculos antes. É o único relato que conheço com provas evidentes, além do caso mais recente de sua esposa Endy e de seu amigo Ethan. Mesmo com base nisso, não defendo a crença e nem abomino. Como você disse, vivemos coisas demais para desacreditar totalmente. — São casos raríssimos, mas não é o padrão, certo? — John observou. — Algo assim. — Preciso ir agora, Massimo. Tenho um ritual para preparar. Você me liga quando estiver em posse das relíquias? — Ligo. Tome todo cuidado. Não estou o incentivando, mas vá a um local afastado para fazer isso. Siga seu coração e procure mantê-lo cheio do amor e da luz de Deus. Mantenha o pensamento nas boas intenções. Se apegue ao bem.
∞∞∞ A cerca de cem quilômetros da cidade em que nascera, onde John e Ethan estavam hospedados, Isabella aguardava nas ruínas de uma praça, ao lado de uma igreja. O cenário a fazia pensar que ainda estava na Itália do século XVIII. Ao seu lado, Rafael esperava em silêncio. Isabella carregava o celular que não havia devolvido ao frequentador do bar. Não se orgulhava de tal ato, mas não se arrependia. Apesar de existirem por tanto tempo, por caminharem ao lado do sobrenatural pelos séculos, ainda dependiam de coisas terrenas como dinheiro e comida. Não tinham um centavo. O demônio tinha ido de carro até o local onde havia deixado o corpo de Rafael para possuir o mendigo. Não sabiam dirigir e não encontraram dinheiro nem cartões no automóvel estacionado próximo ao bar em que estiveram. O aparelho celular tocou nas mãos da jovem. — John? — ela respondeu no primeiro toque.
— Ainda está aí? — ele perguntou com a voz aveludada, disfarçando a angústia que o dominava. — Estou na mesma praça, próxima à catedral — ela explicou. — Não deveria ficar em público. Você é uma modelo famosa, qualquer um pode te reconhecer. E Rafael é um... John relutava em se acostumar a tratar o rapaz livre do demônio como um ser humano. Era difícil desassociá-los depois de ter passado tantos séculos sendo enganado por aquele rosto. — Não tem ninguém aqui. É um lugar antigo. — Lugares antigos atraem turistas, principalmente aqui na Itália — John a informou. — Bem, está vazio desde que chegamos — ela disse ao dar de ombros. Olhava para a igreja com frequência, considerando se valeria de alguma coisa correr até lá, caso o demônio deixasse o corpo do mendigo e voltasse para atormentá-los. — Tudo bem. Já rastreei a localização e enviei um carro para buscar vocês. Devem estar aqui em duas horas. — Estamos com fome — Isabella confidenciou. — Parece uma preocupação banal, mas não temos dinheiro. Acho que o demônio queria que nos humilhássemos pedindo. — Ele jamais perderia essa oportunidade. — John, preciso contar algo que aconteceu. Lembra daquela vez em que você me levou à igreja, após sairmos da casa de Stefan? — Como esquecer? Você disse que precisava se confessar. — Isso! Acontece que o padre Lorenzo tinha conhecimento sobre demônios. Não fui até ele para me confessar, e sim na esperança de que pudesse me ajudar a salvar você. Após lhe contar o que eu sabia e minhas dúvidas sobre a índole do seu amigo, ele me deu uma garrafinha de água benta e me instruiu a colocar no café que ofereceria a Rafael, como um teste para saber se isso o afetaria. No dia seguinte, fiz como padre Lorenzo disse, mas Rafael não aceitou beber o café. Deu a desculpa de que tinha pressa. — Ela fez uma pausa inspirou o ar com intensidade, observando o chão de pedra abaixo de seus pés, as rachaduras no banco ao lado do que estava sentada, a beleza da arquitetura das construções ao redor. A faziam se sentir em casa. — O que quero dizer com isso tudo é que, talvez, esse demônio seja imune a objetos sagrados. — Espero que seja verdade — John disse esperançoso. Precisava acreditar que as relíquias que Massimo havia prometido conseguir poderiam protegê-los enquanto ele estivesse ausente. — Vejo você em breve. Por tudo que é mais sagrado, se cuide. — Vou me cuidar. E como estão Lanai, Endy e os bebês?
— Estão todos bem. Endy ainda está se mantendo distante por causa dos enjoos, mas não parece ser nada sobrenatural. Não acho que ela esteja assim por influência dele. Deve ser apenas uma coisa hormonal. Lanai está com ela na suíte ao lado. Estão aproveitando para descansar... Vou desligar agora. Ainda preciso resolver algumas questões. — Tudo bem. Nos veremos logo. Isabella desligou. Pensou naquela reviravolta. Ela tinha “se entregado” ao demônio a troco de ele deixar Lanai, John e Ethan em paz. Mas o maldito tinha deixado o corpo de Rafael, e este insistia que não permitiria mais servir de casca para o anjo caído, que iria lutar para não ser mais possuído. Rafael queria viver, o que deixaria o demônio livre para tentar possuir um deles. Quem sabe, Lanai novamente, a mais fraca de todos. Por esses motivos, John precisaria agir depressa, arranjar um modo de se libertar de uma vez por todas da presença demoníaca. Isabella não sabia ainda o que exatamente ele planejava, mas sabia que era grande... e perigoso. Ao seu lado, Rafael pigarreou. Ela poderia ter pesado a possibilidade de o demônio já ter assumido o corpo do rapaz outra vez. Ele era tão bom em dissimular, que a jovem sequer notaria sua presença, mas ela estava ocupada demais com seus pensamentos para considerar isso.
Não há onde nos escondermos
— John ficará, pelo menos, três dias longe — Massimo Benedett dizia para sua pequena plateia de ouvintes. — Durante esse tempo, vocês precisarão se manter protegidos. Independente de suas religiões ou ausência delas, mantenham o pensamento positivo. Não deixem as trevas os consumirem. John, Bells e Ethan ouviam atentamente, enquanto o homem discursava andando de um lado para o outro na suíte onde a top model havia se hospedado com Ethan. — John, já que sua esposa não pode saber o que está acontecendo, entregue este medalhão a ela e outro a sua filha — Massimo continuou ao se dirigir à mesinha de centro, onde abriu um pequeno baú de madeira com adornos dourados. Ele retirou dois colares de ouro com pingentes de relicário e os entregou a John. — Tomei a liberdade de colocar fotos de sua família dentro deles — Massimo continuou. — Por trás das fotos há relíquias de segunda classe. — São fragmentos de objetos pessoais que pertenceram a santos? — John o questionou. — Sim. Coloquei pedacinhos do tecido das vestes de uma irmã canonizada no século passado. John abriu as duas mãos e recebeu os relicários abençoados. — Convença sua esposa a usar, assim como sua filha. Não vai livrá-las completamente do mal, mas será de grande ajuda na proteção.
— Ajuda divina é tudo que elas precisam — John disse em agradecimento. — Para você, Ethan, preparei algo menos discreto, já que poderá colocar no bolso — Massimo explicou ao se aproximar do baú para retirar uma pequena trouxinha de couro que cabia na palma da sua mão. — Aqui tem uma relíquia da mesma santa. Não tire do seu bolso por nada. — Obrigado. Não tirarei. — Ethan pegou o objeto e o apertou bem forte entre os dedos. Não acreditava no objeto em si, mas na força e no poder que havia no simbolismo representado por ele. — Para você, Isabella — Massimo retirou a última peça do baú, um colar de relicário em formato oval com um camafeu na figura de um rosto feminino perfilado —, trouxe a única relíquia de primeira classe que consegui assim tão depressa. — O que é uma relíquia de primeira classe? — a jovem perguntou ao pegar o colar e passar o dedo indicador nas formas do camafeu. — É uma parte do corpo de um santo. Unhas, ossos, cabelo... No seu relicário há uma mecha de cabelo de um santo que realizou exorcismos em vida. Uma relíquia muito rara e poderosa. Vocês precisam acreditar, acima de tudo. — Eu acredito — Isabella disse com convicção, fazendo com que o senhor Benedetti sentisse um arrepio com suas palavras. — Eu também acredito — Ethan concordou. Os três olharam para John, que deu de ombros. — Quem sou eu para desacreditar de algo? — o senhor Smith disse com a voz rouca. Os olhos azuis encaravam Isabella sem parar, tomado por um pressentimento ruim, ele temia seus próximos passos como raramente se acovardava com alguma coisa. Contava com Isabella para manter sua família protegida, mas sabia que não poderia esperar muito de alguém com pouca experiência. A fé era tudo que ela tinha. — Trouxe garrafas de água benta e recipientes de sal, ambos abençoados. Á água é um símbolo da pureza que, abençoada, une o poder espiritual ao material. Os inimigos não podem com ela porque são impuros, sujos. Mantenham em suas suítes e molhem os dedos para fazerem o sinal da cruz sempre que voltarem ao quarto. — E o sal? — Isabella quis saber, recordando da vez em que ajudou John a espalhar sal em volta do casebre. — O sal abençoado é um símbolo de saúde mental e física — Massimo explicou. — Abençoado, ele tem o poder de afugentar o maligno e proteger de seus ataques. — Existe algum demônio que é imune a tudo isso? Pelo que sabemos, o mal com o qual estamos lidando foi expulso também do inferno — Ethan disse. — Isso poderia influenciar em
algo? Deixá-lo mais forte, consequentemente resistente a todos esses objetos? — Somos humanos — Massimo respondeu com um sorriso amigável —, não sabemos de tudo. A fé é tudo de mais valioso que temos nesse momento.
∞∞∞ No hall do hotel, Rafael distribuía sorrisos e abraços a todas as turistas que vinham até ele cumprimentá-lo pela última luta. Foi questionado sobre a separação da modelo Isabella, e se o boato de que estavam reatando era verdadeiro. Dissimulado, ele conseguiu se esquivar das perguntas sem deixar de ser simpático com as mulheres ao seu redor. Gostava muito daquela atenção. Em uma época distante, havia sido desprezado por garotas como aquelas. Agora, elas caíam aos seus pés. Isabella não parecia tão significativa assim, afinal. Não tinha valido a pena ter estragado sua alma e seu corpo em nome do amor que sentia por ela. Entretanto, estava sendo recompensado pelo tempo em que vivera aprisionado. — Na minha época — ele murmurou para si, quase inaudível —, fui um excluído pela sociedade. E aqui estou eu sendo exaltado. Quem sabe, tenha valido a pena. O rapaz até tinha um coração bom, mas era facilmente manipulado pela possibilidade de alcançar objetivos não atingidos por sua classe econômica. Resumidamente, Rafael se deslumbrava facilmente. Talvez, pensou, aquilo que sentia por Isabella nem fosse amor, mas apenas uma paixão. E paixões são passageiras. Se ele apenas se afastasse, fosse para bem longe de toda a confusão que envolvia a jovem, se mantivesse são para não deixar o demônio possuí-lo outra vez, poderia ter uma vida plena, desfrutando das vantagens de ser um lutador famoso. Seria muito bem recompensado. Considerou a ideia de sair daquele hotel, deixar John, Isabella e tudo que fosse relacionado a eles para trás, descobrir como usar os bens e a riqueza que estavam em seu nome, viver a vida. Acreditou plenamente que essa era a melhor opção, contudo, como se uma força maior o dominasse outra vez, virou a cabeça para a esquerda, até olhar sobre o ombro, e viu Endy entrando no saguão com Lanai em seus braços. Sentiu uma vontade imensa de, sorrindo, ir até elas e apertar o pescoço de ambas até que o ar se esvaísse de seus corpos e suas almas as abandonassem. Imaginou-se fazendo isso, sentiu a pele suave e quente de seus pescoços entre os dedos, os batimentos cardíacos enfraquecendo até cessarem por completo, enquanto seus olhos oscilariam entre cada uma delas. A ideia de pôr em prática aquilo era tão emocionante que ele se viu realmente tentado, com a impressão de que atingiria um clímax avassalador ao tirar a vida delas.
Seu sorriso se alargou ainda mais quando as viu se acomodarem em um sofá. Respirou fundo e se dirigiu até elas. Sentia que devia contar a Endy que seu marido era apaixonado por Isabella, e que a trocaria por ela sem pestanejar. A dor que aquilo causaria a Endy não era tão empolgante como matá-la, mas o acalmaria por ora.
∞∞∞ — Posso contar com vocês para exorcizar minha filha ou minha esposa, caso as relíquias, o sal e a água benta não sejam suficientes na minha ausência? — John perguntou a Massimo. — Sem dúvidas. — Nós o ajudaremos — Isabella disse com esperança. — Vocês precisaram arranjar um jeito de manter o demônio distraído — John acrescentou. — Pelo menos o suficiente para não atrapalhar meus planos. — Você ainda não nos contou qual exatamente é o plano — Ethan disse. — Precisamos estar a par de tudo. — John vai conjurar o inimigo da humanidade, o próprio diabo — foi Massimo que o denunciou. — O quê? — Isabella perguntou dois tons acima do normal. Ethan ficou sem palavras. — Preciso convencê-lo a aceitar “Rafael” de volta ao inferno — John disse com os ombros murchos, fazendo aspas com os dedos. — É nossa única saída. — John... — Bells o chamou, pressentindo no que aquilo poderia resultar. — Não vou negociar minha alma novamente, já aprendi a lição — ele tratou logo de esclarecer. — Mesmo assim — ela murmurou. — Que outra saída temos? No céu ele não será aceito e, enquanto estiver na terra, não nos dará paz. — Ele tem razão, Bella — Ethan concordou. — Como vai conjurá-lo? — Vou a um lugar distante. Para a segurança de todos nós, é melhor que não saibam mais detalhes. — Irá sozinho? — a jovem perguntou. Seu semblante revelava a angústia que a corroía.
John se limitou a confirmar com a cabeça.
Nunca mais jogue o jogo
Tudo a oprimia. Isabella estava na suíte que Endy alugara para não ter que dormir com o marido. A jovem teve a ideia de propor à esposa de John que começassem a preparar a lista de compras para os gêmeos, assim a manteria distraída e sempre por perto. Como não tinha muita intimidade com Endy, ela não sabia se seu comportamento era normal, mas parecia haver uma barreira entre as duas, como se a mulher estivesse escondendo que sabia mais do que deveria. Na verdade, parecia mais que ela estava fazendo um esforço enorme para tolerar Isabella. Poderia ser apenas paranoia, mas aquilo mexia com seus nervos. E não tinha como se afastar. Era melhor que ficassem o tempo todo juntas, como John havia pedido antes de seguir para o aeroporto, onde tomaria um destino que ela desconhecia. Ethan estava na cola de Rafael, para avisar ao menor sinal de possessão. Eles esperavam que o demônio pudesse voltar ao corpo do rapaz. Contavam com isso. Era melhor tê-lo ali, diante dos seus olhos, do que não saber onde ou como ele atacaria. O músico auxiliou o lutador a encontrar a casa que possuía naquela cidade, onde conseguiram entrar com facilidade. Rafael parecia deslumbrado com todas as riquezas que o demônio adquirira em seu nome. Poderia viver confortavelmente do modo como sempre quis. Os funcionários da mansão, Ethan pôde constatar, cochichavam discretamente ao ver que o lutador estava na companhia do homem com quem a modelo o tinha traído.
Alguns pareciam assustados, como se imaginassem que Rafael estivesse levando Ethan para uma armadilha, o que o fez concluir que o demônio poderia já ter se mostrado perigoso para aquelas pessoas. Se perguntou que tipo de atrocidades ele fazia para eles estarem tão receosos. A propriedade ficava afastada do centro urbano, cercada por jardins, com um caminho de cascalho que levava até a mansão. Na frente da casa havia uma fonte de tamanho significativo. A porta de entrada media cerca de quatro metros de altura, esculpida em madeira de lei com dobradiças que rangiam ao serem abertas. — Essa casa realmente me pertence? — Rafael perguntou como se desacreditasse ter tamanha riqueza. — Não só essa, como outras quatro mansões espalhadas pelo mundo — Ethan explicou vagamente. — Só que metade pertence à Isabella por direito. Vocês eram casados e, perante a lei, construíram essa fortuna juntos. O rapaz acenou com a cabeça, passando pelo hall de entrada e chegando à primeira sala. Olhou para cima e viu um lustre de ferro, com detalhes em cristais, que parecia muito distante do chão. Por um instante, ele teve o vislumbre de um corpo pendurado ao objeto por uma corda. Tentou entender o que aquilo significava. Parecia já ter visto aquilo antes. — O que foi? — Ethan o questionou ao notar que ele observava o lustre. — O demônio saiu do meu corpo, possuiu um funcionário e o fez cometer suicídio bem ali — Rafael disse, as palavras se encaixando em sua mente enquanto ele as verbalizava. Em um gesto de proteção, Ethan fez o sinal da cruz e apertou a relíquia em seu bolso. — Ele fez isso com muitos outros funcionários que já passaram por aqui — Rafael acrescentou. — Só por diversão. Depois dava um jeito de encobrir tudo. Induziu vários a tirarem a própria vida. Sente a energia ruim que tem nesse lugar? Um arrepio percorreu a espinha do músico, mas ele tentou se manter no controle. — É notável — Ethan disse, franzindo o cenho e calculando a que altura do chão aquele lustre estaria. — Como eles chegavam até ali para... se enforcar? — Se arrastando e se contorcendo pelo teto — Rafael explicou, inabalável. Ethan franziu ainda mais o cenho, se perguntando se a indiferença a algo como aquilo poderia ser uma pista de que o demônio estava ali ou era apenas uma alma calejada por séculos daquilo. — Deve haver um cofre na suíte principal — ele disse a Rafael após pigarrear. — Acha que consegue descobrir a senha? — Um anagrama com o nome de Isabella? — o rapaz respondeu com um sorriso aberto.
Havia duas escadas em forma de meio arco, uma paralela a outra, que levavam a um hall no andar de cima. — Vamos lá. A energia ruim estava mesmo ali. Oprimia a alma de Ethan, murchava seus ombros, arrepiava sua espinha e o fazia ranger os dentes. Precisou olhar várias vezes para trás enquanto seguia Rafael pelas escadas. Constatou que, por mais que o demônio não estivesse com eles naquele momento, havia muita carga negativa no local. Talvez até outros demônios com livre acesso aos portões entre o inferno e a terra. Se perguntou por que Deus permitia uma aberração como aquela: criaturas dotadas de maldade imensurável passeando entre os homens, lhes causando mal e destruição. Então se deu conta de que o Criador não interferia no livre arbítrio, e que não poderia culpá-Lo pelas escolhas de outros. Imaginou-se sendo empurrado escadaria abaixo. O que Rafael faria para parecer um acidente? Seria difícil de comprovar, após ele ter sido o motivo da conturbada separação do lutador e da modelo, mas para um demônio aquilo não seria problema. Ele acharia outro para possuir e deixaria aquele rapaz para encarar as consequências. Olhou mais uma vez para trás e engoliu a saliva ao se imaginar rolando pelos degraus. — Eu escolho Deus — murmurou para si. — Escolho estar do lado de Deus. Então, para se acalmar, mentalizou que o plano de John daria certo, que em breve estariam livres daquela criatura. Isabella e ele poderiam finalmente construir uma vida plena juntos. Seguiriam com suas carreiras, quem sabe até teriam filhos. De fato, havia um cofre na suíte principal. Rafael não teve problemas para descobrir a combinação. Ficou maravilhado com a quantidade de dinheiro e joias que havia ali, além de um acumulado de documentos falsos. — Essa é apenas uma parte do que você deve possuir — Ethan comentou, inquieto. — Encontrou os cartões de crédito? Deve haver dinheiro nas contas bancárias, e muito mais que isso nos cofres das mansões nos Estados Unidos. — Em pensar que esta manhã eu passei fome por não ter dinheiro — o rapaz comentou pensativo. — Assim como passei tantas outras vezes antes de ser possuído. — Está arrependido de tê-lo permitido em sua vida? Rafael pegou um monte significativo de euros e o levou até seu nariz para sentir o cheiro. Tocou as joias com a outra mão e fechou os olhos. — Como poderia me arrepender diante de tanta riqueza? — ele disse ao se virar para Ethan. — Nem por todos os corações que ele quebrou, todas as vidas que foram destruídas por
um demônio que usava seu corpo? Rafael estreitou os olhos, enquanto seus dedos tocavam as cédulas. — Já sentiu fome, Ethan? Tanta fome que você desmaia? Já olhou ao redor e viu que toda a sua família passava pela mesma coisa que você? — Não — o músico murmurou, envergonhado. Já tinha passado muita dificuldade no começo da carreira, mas fome de verdade, nunca. — Já desejou tanto uma mulher e não pôde tê-la por não ter dinheiro? Ethan balançou a cabeça lentamente em negação, sendo dominado por uma energia negativa ainda mais forte. — A desejei mais do que tudo. A queria mais que minha própria vida — Rafael confessou. — Eu a desejei muito mais do que você deseja agora. Mas ela não me queria porque eu não tinha riquezas, porque eu mal tinha o que comer. — Não, você não a desejou mais que eu — Ethan se atreveu a dizer. — Você não a amava. Se amasse de verdade, não a teria colocado em risco. Amor não é obsessão, amor não aprisiona nem condena, não vai contra a vontade da pessoa. Você a queria a todo custo, mesmo que ela não o quisesse de volta. A Isabella daquela vida não poderia se apaixonar por você, não poderia amá-lo mesmo que você fosse rico, porque era John que ela amava, e isso você nunca poderia mudar. Se a amasse de verdade, teria consciência da sua situação financeira e entenderia que ela não seria feliz ao seu lado, que John seria sempre a melhor escolha. Em vez disso, você insistiu, a fez beijá-lo por pena, e aceitou que um demônio tomasse seu controle para passar uma noite com ela. Tinha consciência de que a desonra arruinaria sua vida, mesmo assim você fez. Amor não condena desse jeito, Rafael. O rapaz piscou os olhos pequenos. — Você tem razão — admitiu. — Era pelo poder. A achava bonita. Você sabe como é, o jeito como ela faz você se apaixonar, fazer tudo por ela. — Duvido que Isabella tenha o manipulado — Ethan rebateu. — Não, mas eu queria tudo que viria com ela. Não aguentava as injustiças da vida. Não me julgue se nunca passou pelo que passei. — Caráter não tem nada a ver com riqueza. Você não tinha quando era pobre, e parece não ter agora que é rico. O demônio escolheu bem. Rafael deu uma risada, colocou o dinheiro no cofre e o fechou. — Se acha o todo poderoso só porque dizem que é parecido com o filho de Deus? Sinto te informar, mas nós somos exatamente iguais. Ela era casada e mesmo assim vocês tiveram um caso. Onde fica a desonra?
Passou pela cabeça de Ethan que o rapaz estava argumentando e se portando bem demais para quem tinha acabado de sair de tudo aquilo. Engoliu a saliva e apertou a relíquia em seu bolso novamente. — Não vou discutir com você — disse ao abrir um sorriso sarcástico. — Te trouxe aqui para te ajudar a assumir a vida que precisa e vou fazer isso. Não vou entrar em uma batalha sobre quem foi melhor ou pior. Mas, só para deixar claro, se não sabe, eu também fui oprimido por um demônio, mas tive discernimento de não aceitar ser controlado por ele. Rafael riu novamente. — Você nunca foi tentado com fui, muito menos nas mesmas circunstâncias. Ainda assim, por mais que dispense seus julgamentos, agradeço sua ajuda. Quero assumir o controle da minha vida, das finanças, preciso saber como me portar, como seguir meu trabalho, e deixar todos vocês em paz. — Acho que tem motivos maiores para não deixar o demônio voltar ao seu corpo, não é mesmo? — Ethan perguntou com curiosidade. — Deseja fazer suas próprias escolhas. — Imagino que esse demônio já não tem mais interesse em mim — o lutador concluiu. — Agora precisamos conversar sobre essa coisa de fama. Ethan relaxou a postura. Estava disposto a fazer tudo para ajudar o rapaz se ele dissesse que realmente não queria ser possuído outra vez. — Você tem muito a aprender. — Já percebi que minha imagem vale dinheiro. Seja minha presença ou uma simples figura impressa em um pedaço de papel. Isso me faz ganhar mais dinheiro. Não é incrível ser adorado? Tiraram uma foto minha e de Isabella no bar onde estivemos. — As pessoas pagam para você fazer propagandas de suas marcas, para ir em seus restaurantes, hotéis, boates e tudo que você possa imaginar. É um mundo de insanidade, de teatro, fingimento e manipulação, mas o dinheiro que vem com tudo isso é real. — As mulheres também. Algumas me abordaram no hotel. O músico ficou mais aliviado ainda. Rafael só desejava Isabella quando ela era alguém que ele não poderia alcançar. Na verdade, sempre tinha amado a si mesmo e o que sua mente inventou dela. Sua maior paixão era ele mesmo, e agora que tinha tudo, não ia se arriscar correndo atrás de uma, quando podia ter várias. A futilidade e a fama lhe cairiam muito bem. — Você é lutador. Vai precisar manter o corpo em forma, vida saudável e precisará cuidar da sua imagem. Apesar de ter consolidado sua fama em virtude de brigas e pancadaria, sempre manteve a imagem preservada, sem se envolver em escândalos e polêmicas. Agora que está em processo de divórcio, precisa tomar cuidado para não estragar sua imagem pública. Faça o que quiser em lugares particulares, em suas mansões, hotéis onde se hospeda, mas não deixe que sua privacidade venha a público. Se cometer deslizes agora, a mídia irá alegar que você é o
tipo de homem que desmorona quando é traído, que precisa ter uma mulher para guiá-lo, que sozinho você não passa de uma celebridade mimada. — Entendo. Precisarei me envolver apenas com pessoas de confiança e manter as aparências. — Basicamente isso — Ethan concordou. — Além disso, você tem muito, muito dinheiro, conhece muito bem como é passar fome e pode ajudar muita gente. — Eu fazia isso com John quando estava possuído — Rafael contou. — Me lembro da sensação de encontrar pessoas que estavam em situações nas quais já estive. — Você recorda como era quando estava possuído? Conseguia enxergar o que acontecia, tinha consciência? — Assim que acordei no hotel, quando o demônio deixou meu corpo para entrar no da filhinha de John, minha cabeça estava uma confusão. Eu mal sabia o que estava acontecendo. A paixão por Isabella e tudo que ele tinha causado a ela parecia muito recente, como se tivesse acontecido um pouco antes. Mas as horas vão passando e tudo vai ficando mais claro. É muita coisa para lembrar e assimilar, mas sim, eu conseguia ver o que estava acontecendo. Ao acenar com a cabeça, Ethan sentiu o celular vibrar no bolso. Ao pegá-lo, constatou que se tratava de sua Bella. — Oi — ele atendeu com gentileza, saindo da suíte, desejando poder estar com ela logo, livre de toda a confusão sobrenatural. Queria planejar suas vidas. — Como estão as coisas por aí? — ela quis saber. — Bem. Trouxe ele até a mansão. Encontramos dinheiro, documentos. A casa possui um clima muito pesado, por todas as coisas ruins que já devem ter acontecido aqui. Fora isso, o resto parece calmo. Vou ajudá-lo a tentar seguir sua vida. A boa notícia é que ele não está mais obcecado por você. A fama e as riquezas o deslumbraram. Rafael quer seguir com a carreira de lutador e parece estar disposto a tudo para preservar sua imagem. Ela riu do outro lado da linha, tomada por, pelo menos, o alívio de não ter mais um jovem não correspondido sob sua responsabilidade. — Você é a pessoa mais decente e justa que conheci — ela disse para Ethan com sinceridade. Mesmo que John tivesse um coração enorme, duvidava que encarasse ajudar Rafael daquela forma, conseguindo desassociar a imagem do demônio ao rapaz com tanta facilidade. — Não é nada — Ethan deu de ombros. — Percebi que não posso julgá-lo por suas decisões quando não estive em seu lugar, nunca passei pelas mesmas coisas que ele. — Exatamente, Ethan. Este é o ponto. Não cabe a nós julgá-lo. Deus se encarregará
disso. Independente de tudo que aconteceu, devemos fazer o bem sem olhar a quem — ela falou com orgulho do namorado. — E sem esperar nada em troca — Ethan acrescentou. — Cometi o erro de julgar os sentimentos que ele alimentava por você, mas sei que não sou ninguém para fazer isso. Vou focar minhas energias em ajudar a resolver tudo isso. Não vejo a hora de voltar para a banda, voltar a compor e me dedicar a você. — Eu também. Mal tivemos uma noite em paz. — Tenho esperanças que tudo vai passar logo, Bella. — Você não falou sobre os planos de John para ele, não é? — Jamais. É melhor que não saiba. — Sim — Isabella concordou. — Ele não pode saber o que John foi fazer. — Fica fácil não contar quando nem eu mesmo sei — Ethan brincou. — É muito mais seguro para nós. John fará o que for preciso para acabar logo com isso, confio nele — ela disse com fé. — Acha que Rafael está mesmo livre desse demônio? — Aparentemente, sim. Mas quem sou eu para afirmar qualquer coisa? — Entendo. — Ficarei de olho e o manterei ocupado. Como estão as coisas com Endy e Lanai? Ethan ouviu a risada baixinha de sua amada. — Não sei se é minha consciência, mas parece que ela sabe alguma coisa sobre mim e está fazendo um esforço enorme para disfarçar. — Talvez ela só esteja te julgando por você ter traído Rafael. Muita gente julga dessa maneira. — Pode ser isso. Vou desligar agora. Mantenha o pensamento positivo e não se afaste da relíquia. — Está no meu bolso. E a sua? — Pendurada no meu pescoço, mas escondida dentro da roupa para Endy não ver que tenho um colar parecido com o que John lhe deu. — Eu te amo muito, Bella. — Eu também te amo, Ethan. Te amo por tudo que você é. Nos vemos logo.
— Até breve. Ethan colocou o celular dentro do bolso e ouviu o rangido sutil de correntes balançando. Se concentrou para prestar mais atenção. Caminhou devagar até o hall daquele andar, onde podia ver o lustre balançando. Havia uma funcionária uniformizada limpando alguns itens de decoração sobre a mesa de centro da sala ampla do andar inferior. O candelabro balançava lentamente bem acima de sua cabeça. Se apoiou no corrimão de ferro, com detalhes em dourado e observou o lustre. Não precisava se perguntar se havia corrente de ar para balançar um objeto tão pesado. Olhou para a funcionária outra vez, notando que ela usava fones de ouvido e não podia ouvir os rangidos, quando sua visão periférica captou uma forma escura deslizando pela corrente que pendia do lustre. Não pensou em erguer o olhar e descobrir que se tratava de uma aberração, disparou para a escada aos gritos para que a mulher saísse de debaixo do lustre. Na metade dos degraus, ouviu o estrondo do candelabro se chocando com a mesa de centro. Ao chegar até a sala, com o coração subindo pela garganta, e o medo terrível do que presenciaria, deu de cara com os olhos arregalados da funcionária, afastada cerca de dois metros de onde estava limpando, com a mão direita sobre o peito. O sangue parecia ter fugido do seu rosto. O candelabro de ferro havia destruído a mesinha de centro e quebrado o piso de mármore. Olhando para cima, Ethan viu Rafael apoiado no corrimão, onde ele havia estado momentos antes. Seu rosto não revelava susto ou preocupação. Os cantos dos seus lábios estavam curvados para cima em um sorriso discreto de deboche. — O demônio está aqui — Ethan murmurou inaudível, assustado e ao mesmo tempo se sentindo grato por tê-lo ali e não perto de Isabella.
Apenas feche os olhos
John tinha acabado de desembarcar no aeroporto de Las Vegas, em Nevada, quando ligou o celular e leu a mensagem de Ethan informando que o demônio tinha se manifestado em Rafael novamente, em sua mansão na Itália, e que Isabella, Endy e Lanai estavam a salvo. Ele se sentiu grato e, ao mesmo tempo, péssimo por saber que o rapaz não conseguiu resistir à possessão. John sabia como era aquilo, não poder controlar sua vida uma vez que já tinha aceitado a presença do inumano ao seu lado. Uma aceitação da qual era muito difícil voltar atrás. Pegou a mala de rodinhas na esteira, puxou a alça, com a jaqueta de couro apoiada em seu antebraço, passou pela alfândega, colocou os óculos escuros, o boné, e seguiu para o banheiro masculino mais próximo. Pretendia apenas atender a um chamado da natureza, quando notou um senhor o observando pelo espelho da pia. John fechou o zíper da calça, se endireitou e foi até uma das torneiras se lavar. A princípio, não estranhou o olhar fixo do homem, estava habituado a ser reconhecido sempre que saía em público. Ignorando o cansaço, esboçou um sorriso gentil e acenou para o senhor com a cabeça. — Não vá até ele — a voz rouca e madura disse. John sentiu o corpo todo se arrepiar. Com os olhos ocultados pelos óculos escuros, ele olhou para o homem.
— Não, não vá até ele — a voz pediu outra vez, soando ainda mais rouca. Com espuma na mão, John deu alguns passos para trás, se perguntando se Rafael poderia ter lhe seguido até ali, mas não ficou para descobrir. Seguiu apressado para a saída do aeroporto, sem se importar em ser simpático com as pessoas, e tomou um táxi. Disse o endereço de sua residência e pegou o celular outra vez. — Ele ainda está aí? — perguntou assim que Ethan atendeu. — Sim. Estou tentando disfarçar o máximo. Acho que ele não sabe que notei sua presença. De qualquer forma, continua se passando por Rafael. — Certo. — John, faça o que tiver que fazer, mas seja rápido. — Ok. John encerrou a ligação e procurou respirar normalmente. Seus batimentos martelavam em suas têmporas. Sentia o corpo e a mente exaustos, como se um peso maior fizesse pressão no seu ser. Não queria dizer a Ethan que o demônio provavelmente já sabia que ele sabia. Era dissimulado, mentiroso e muito mais inteligente, porém, enquanto pensasse que estava enganando o músico, ficaria distraído. Aquilo era o que importava no momento. Milhares de perguntas perturbavam sua mente. Se aquela criatura tinha conhecimento sobre passado e futuro, ela também poderia prever seu destino? Saberia que John estava em uma missão para negociar seu retorno ao inferno com o próprio Lucifer? Um demônio era capaz de prever seu próprio exorcismo? A cada instante, ficava mais confuso. Deslizando as pontas dos dedos na testa, pressionando a pele em busca de alívio para a dor, pensou no quanto teria sido bom levar uma vida normal. Apenas uma mulher amada — Isabella. Por que ambos não haviam sido destinados a existências normais? Por que não foram capazes de se apaixonarem e viverem felizes até que a morte os tivesse separado e fim? Por que passar por tudo aquilo? Apenas eles... Existia algum motivo maior para tudo aquilo? Bells lhe contou que eles estavam destinados a se casar em outra vida, mas algo atrapalhou. Então John reencarnou e conheceu Ana primeiro. Apenas séculos depois, Isabella voltou a encontrá-lo. Certamente, o destino deles não era ficarem juntos nesta vida. Mas se John Smith pudesse escolher, mesmo que ele não fosse mais capaz de admitir, escolheria Isabella. Se pudesse acordar daquele pesadelo e ter uma vida comum, seria com ela. Sem Anas, Endys, sem morte e demônio. Somente sua Bells e ele. Teriam filhos ou adotariam, e
morreriam de alguma doença — dessas que atingem pessoas mais velhas — depois de várias décadas juntos. Se ele tivesse o poder de fechar os olhos e retornar ao início de tudo, seja lá onde a existência de sua alma começou, pediria para ser um homem comum apaixonado por sua Bella. Apenas uma vida com começo, meio e fim. Sem essa confusão de reencarnação, dons, poderes e demônios. A vida das outras pessoas nunca lhe pareceu tão simples quanto naquele momento, quando fitou o para-brisas e se deu conta de que não adiantava sonhar acordado. Seu destino era uma sequência de desastres onde, talvez... apenas talvez, o pior deles ainda estivesse por vir. Naquela noite… Apenas quando chegou em casa, recordou da ligação que havia recebido de Isabella, e seu questionamento sobre como ele tinha se sentido ao fazer as atrocidades da época em que estivera cumprindo com sua parte no pacto. Ele havia dito que se sentia como uma marionete, como se seu corpo agisse por conta própria. Então ela o questionou se ele... “Era como se não fosse você?”, ele quase pôde ouvi-la perguntar. Era exatamente daquele jeito. Houve um estalo em sua mente quando se deu conta daquela barbaridade: o demônio o possuíra também! Quantas vezes? Seguiu para o escritório com o rosto horrorizado, se sentindo ainda mais imundo que antes, por se dar conta de que seu corpo fora habitado pela criatura mais imoral que conhecia, por ter permitido que um anjo expulso do céu pelo Criador dominasse sua vida de tal forma. De modo automático, ele encontrou o objeto que precisava na última prateleira do armário da parede leste do cômodo, onde nem Lanai nem Endy alcançavam. Um baú de madeira, com adornos em ouro, prata e bronze, trancado por uma chave que John levava sempre consigo. Ele abriu a fechadura e se deparou com os pergaminhos velhos. Os abriu, correndo os olhos pelos nomes naquela língua há muito já esquecida. Não era a primeira vez que John fazia planos de recitar aquelas palavras, clamar pelos nomes contidos no pergaminho. Algum tempo depois da fundação do cristianismo, ele havia descoberto uma seita que realizava rituais pagãos que invocavam poderosos seres sobrenaturais. John havia se misturado entre os membros da seita e recolhido tudo que precisava para desenvolver o culto sozinho. O conhecimento milenar parecia exercer força sobre aqueles pergaminhos. Mas, como dito antes, não era a primeira vez que ele pensava em usá-los em seu benefício.
Décadas depois daqueles conhecimentos terem se perdido no tempo, após a morte de todos os membros do grupo, John se viu apaixonado. Era a primeira vez que entregava seu coração depois da morte de Ana. Ele sabia que não poderia ficar com ela por muito tempo. A mulher continuaria envelhecendo, mas ele conservaria a mesma aparência enquanto existisse. Cogitou a ideia de utilizar os comandos verbais registrados nos pergaminhos para conjurar seres que pudessem dar imortalidade a sua amada. Chegou a providenciar as vestes adequadas para desenvolver o ritual, mas acabou voltando atrás ao se dar conta de que não poderia condenar a alma daquela mulher a uma existência como a dele e que, mesmo que a cerimônia parecesse correta e pura para os antigos membros que a desenvolveram, John sabia que nada genuíno poderia resultar dali. Aquele que evocava forças inumanas para fins tão poderosos e pessoais só poderia estar fadado ao infortúnio. Na segunda vez em que cogitara a ideia de usar os pergaminhos, sua Bells havia sido levada pelo anjo da morte. John não considerou mais o perigo de a expor àquelas forças inumanas. Isabella já tinha sido colocada frente a frente com o mal quando entrou em sua vida. Fazia tanto anos que os tais conhecimentos haviam sido esquecidos pela humanidade que lhe pareceu, de certo modo, correto fazer uso deles outra vez. Sabia que os pergaminhos dentro do baú, que estava escondido por baixo do piso do casebre, continham um ritual que consistia em dar vida a uma escultura feita de barro — uma espécie de boneco. Nos anos em que participara da seita, nunca vira um ritual como aquele ser executado. Funcionaria? John não era cético, já tinha passado e conhecido coisas demais para duvidar de algo, ainda assim, não chegou às vias de fato. A alma de sua amada não era algo que ele poderia manipular para dar vida a uma boneca de barro. Sua vida tinha sido levada, seu espírito só retornaria quando o anjo da morte decidisse que era hora. — Demônio — John murmurou com sarcasmo ao olhar para os pergaminhos dentro do baú, recordando quantos séculos passou acreditando que o anjo da morte era um demônio. Tocou o tecido de linho, se perguntando se as vestes teriam resistido a tantos séculos se não fosse pela magia. Fechou o baú e respirou profundamente. Mais uma vez desejou ter uma vida simples ao lado de Isabella. Tinha amado Ana com todo carinho, mas nada se comparava à força que Bells exercia sobre ele. Mesmo que ele tivesse voltado para os braços de Endy ao saber que ela era a reencarnação daquela que o levara a aceitar um pacto com a morte. Era mais uma questão de honra que prioridade. Agora John conseguia entender. Não tinha largado Isabella naquele hotel com Ethan porque amava mais Endy, ou Ana, mas sim porque ela era sua esposa. Havia desistido de sua Bells quando ela aceitou se casar com Rafael, encontrou Endy e prometeu-lhe amor e fidelidade em uma cerimônia. Não passaria por cima daquilo. Mas estava claro como água, era apenas uma questão de honrar o casamento. Isabella era sua prioridade logo depois de sua filha, Lanai. E ainda havia os gêmeos crescendo no ventre de Endy. A coisa toda ia muito além de desejo e vontade própria, mas se pudesse realmente escolher, se não fosse passar por cima de honra e magoar os sentimentos daquela que ele
prometera amar, se não destruísse uma família, a escolha seria Isabella — que agora estava se agarrando a Ethan com uma esperança exagerada. Ele não admitiria em voz alta, mas o ciúme o corroía por dentro. Ciúme da oportunidade que Ethan — ou a alma de Stefan — tinha de viver ao lado de alguém tão incrível quanto ela. Ciúme do fato de Ethan ser apenas um peão naquela história, alguém que caíra de paraquedas no problema de outro e tentava ajudar como podia, mas que não carregava o peso da responsabilidade de salvar todos que amava. Ethan não precisava deixar sua família sozinha na Itália, pegar um avião e voar para longe deles, para longe de Isabella. Ele não tinha que dirigir até um lugar isolado, vestir as roupas certas e recitar as palavras, se agarrando à fé de que o ritual conjuraria o diabo, só para depois ter que barganhar com o pai da mentira, o responsável pela revolta dos anjos, pelo maldade entre os humanos, pelo inferno que John tanto temia. Não. Ethan só precisava ficar lá e desempenhar as tarefas as quais fosse designado, em nome do amor que John sabia muito bem que não era genuíno. Isabella também teria escolhido John se aquilo realmente fosse uma escolha. Ele sabia disso. Era nas suas mãos que o destino de todos estavam e ele faria o impossível para afastá-los do demônio. Enquanto seguia até sua suíte no andar de cima, checou o celular, passando os olhos pelo aplicativo de mensagens. Ben, o baixista do Fallen Angels, o integrante mais responsável da banda, queria saber o motivo por trás do cancelamento de todos os ensaios e reuniões e daquela viagem à Itália. Podia imaginar Ben preocupado com o fim do Fallen Angels, com medo do sucesso ter subido a cabeça de John a ponto de fazê-lo decidir se separar da banda para seguir carreira solo, como tantos vocalistas costumavam fazer quando atingiam um certo nível de fama. John sorriu para o celular, desejando com todas as forças que fosse só aquilo, que todos os seus problemas se resumissem à banda. Parecia fútil em meio a tanta confusão parar e responder a uma mensagem daquelas, mas ele fez. Apertou o botão do microfone e gravou uma mensagem de áudio. “Não queria dar a notícia assim, mas Endy está grávida. De gêmeos! Seremos pais novamente. Sabe como ela é. Me fez viajar para fazer compras. Seu humor não está dos melhores e estou fazendo de tudo para agradá-la nesse momento onde ela parece escravizada pela alteração dos hormônios. Mas vai ficar tudo bem, amigo. Volto assim que ela se der por satisfeita. Como sempre falamos, nossas famílias vêm sempre em primeiro lugar.” Era o lema da banda e Ben entenderia. John tomou um banho, sentindo a água escaldante cair sobre seus ombros doloridos pela
tensão, em seguida, se vestiu com calças de moletom, camiseta de algodão e tênis — roupas fáceis de tirar. Alcançou um blusão com capuz em um dos cabides do closet, o vestiu e encarou seu reflexo no espelho. O azul de seus olhos parecia mais profundo que de costume. Coçou a barba por fazer e se convenceu de que era hora de partir. Uma viagem razoavelmente longa o aguardava.
Lucifer
Las Vegas, cidade que John escolhera como lar após perder as esperanças de ter Isabella de volta, ficava localizada no Deserto de Mojave, em Nevada. Ele dirigiu seu SUV pela The Strip, principal rua da cidade, mesmo que aquele não fosse o caminho que precisava tomar. Gostava de dirigir por ali para observar os turistas indo e vindo, quando o estresse o dominava, olhar para as fachadas luminosas dos hotéis famosos que se localizavam naquela rua, como o Bellagio e o Caesars, e pensar sobre a quantidade de vidas diferentes que se cruzavam naquele local. A energia dos lugares costumava exercer poder sobre seu espírito, e John gostava de como se sentia ali. Olhou com melancolia para a fachada do Monte Carlo e tocou o baú ao seu lado, no banco do passageiro. — Não acredito que estou indo atrás de quem evitei por mais de dois mil anos — murmurou na solidão do automóvel. — Só eu mesmo para apostar que o diabo vai me livrar deste inferno. Era tão irônico buscar ajuda do ser mais temido de todos. Mas aquela era uma situação extrema e Lucifer era a última chance, já que os portões do céu estavam trancados para o retorno do anjo caído que usava o nome de Rafael. Deixando a área de entretenimento de Las Vegas, John dirigiu para os limites da cidade, onde tomou a direção sul com destino ao centro do Deserto de Mojave, que se localizava no estado da Califórnia.
Percorreu cerca de 150km até a cidade fantasma de Kelso. Na madrugada, mal pode ver o antigo posto dos correios abandonado às margens da estrada, como um aviso para dar meia volta. Pegou uma estrada secundária e deserta de terra batida, e percorreu mais dezesseis quilômetros. Ao fim dessa rota, desceu do veículo. — É aqui que todos os sonhos morrem — falou baixo, sentindo a brisa amena ao seu redor. As estrelas eram sua única companhia naquela madrugada que marcaria para sempre seu destino. Imponentes, brilhavam acima de sua cabeça, iluminando o pico à frente — o ponto mais isolado do deserto mais seco da América do Norte. Enquanto trocava suas roupas confortáveis pelas vestes que trazia no baú, seus olhos já se adaptavam à noite e ele pôde reconhecer uma árvore de Josué, espécie nativa daquele deserto. Aquilo o fez se lembrar do homem que ele amarrou a um galho e o espancou por ter estuprado Ana. Uma das almas que o aguardavam no inferno. A paz parecia ser algo inalcançável para John, mas se pudesse proporcionar isso às pessoas que amava, ele iria até o fim. Não viu necessidade de trancar o carro. Sabia que por ali não passava uma única alma viva. Com os pergaminhos e o celular em mãos, deixou a segurança do veículo e começou a caminhar na direção da montanha. Já era manhã na Itália, mas na Califórnia não passava das três horas da madrugada. Pensou em Lanai, Isabella, Endy e os gêmeos que ela carregava, exatamente nessa ordem. Olhou para a tela do celular, verificou que havia sinal e pensou que, se não havia notícias, estava tudo bem com eles, na medida do possível. Ele não sabia exatamente onde aquela jornada terminaria, mas era exatamente ali que começava. Talvez, John Smith se perdesse de vez naquela noite.
∞∞∞ Não havia trilha no local. John procurou seguir em linha reta, subindo o pico e desviando das rochas. O solo cheio de pedras soltas dificultava sua caminhada, mas esforçou-se para ir o mais distante possível. Ainda tendo certeza de que aquele local era inabitado e de difícil acesso, que ninguém passava por ali, considerou que era mais seguro fazer o ritual no lugar mais distante e isolado que pudesse encontrar. Quando chegou onde julgou adequado, parou e olhou para as estrelas, sabendo que seu futuro era incerto. Não sabia se seus pedidos seriam atendidos, não sabia ao menos se
conseguiria invocar Lucifer — em vez de acabar conjurando um demônio qualquer — e, mesmo que desse certo, não sabia o preço que seria cobrado dele, mas tinha fé, e isso era tudo com o que podia contar. Foi surpreendido pela vibração do celular. Antes de olhar para a tela iluminada, foi tomado por um pressentimento terrível de perda. — Quem? — perguntou para a noite de olhos fechados. — Quem esse maldito demônio machucou desta vez? Abriu os olhos com o coração batendo forte e a respiração acelerada, sentindo náuseas e dores abdominais, mas respirou aliviado quando constatou que se tratava apenas de Ben desejando saber se John iria querer se afastar dos palcos quando os gêmeos nascessem. Sabia que o colega de banda estava na sua casa, em Las Vegas, e que só havia mandado mensagem àquela hora por pensar que John estivesse na Itália, em uma manhã ensolarada. Ben não era alguém que gostava de ficar acordado até tarde, por esse motivo, era o que mais sofria com a agenda de shows. Sendo assim, John podia imaginar que seu amigo havia perdido o sono, tamanha era a preocupação com o Fallen Angels. “Não se preocupe, Ben. Vou conciliar os shows com a chegada dos bebês. Não pense mais nisso e vá dormir.” Ele enviou a mensagem de voz e esperou pelo “ok” do amigo, só então pôde usar a lanterna do aparelho para enxergar as escrituras contidas nos pergaminhos. Era incrível a capacidade que tinha de saber que invocar espíritos inumados só trazia desgraça para sua vida. As punições espirituais eram reais, e ele já tinha experimentado várias vezes, apesar disso, lá estava ele executando a maior conjura de todas. Mas não pensou nisso enquanto lia as preces ritualísticas naquela língua esquecida. Se concentrou no que estava fazendo e mentalizou a ideia de que a captura do demônio pudesse interessar a Lucifer e no que usaria para convencer o diabo a aceitar a criatura de volta. Não estava muito certo deste segundo detalhe. Esperava que as ideias fossem se encaixando com o decorrer dos acontecimentos e que ele soubesse o que dizer quando chegasse o momento. Dependia do seu poder de persuasão. As palavras verbalizavam em seus lábios, enquanto a brisa do deserto soprava, fazendo suas roupas balançarem suavemente, provocando cócegas em sua pele. Procurou ao máximo se concentrar, mas se viu questionando o que Isabella estaria fazendo com Endy e Lanai naquele momento exato, se estavam longe de Rafael. Pensou até a quantos quilômetros de distância estaria a pessoa mais próxima dali, se a distância seria o suficiente para mantê-la em segurança, caso o ritual funcionasse... — Caso funcione? Onde está sua fé, John? Sem nenhum sinal, sem ruídos, sem aviso prévio, John ouviu a voz mansa e masculina.
Levou um tempo considerável de cabeça baixa, encarando o solo arenoso, até ter coragem de olhar naquela direção. — Você veio até aqui, vai se fazer de tímido agora? Até se arrumou para mim. — Não me arrumei para você — John murmurou por entre os dentes, percorrendo os olhos pelo chão até enxergar os sapatos dele. — É parte do ritual. Seus olhos subiram devagar, até encarar a figura a sua frente. — Para alguém que já passou por tanta coisa, você está se mostrando um homem incrédulo — ele disse. — Era só me chamar e ter fé em mim que eu viria. John piscou os olhos, a mente trabalhando depressa. Estava diante do diabo, precisava ser esperto. Percebeu que a criatura estava insinuando que John deveria ter fé nela. Esperava ser adorada para dar o que lhe fosse pedido? Bem, John não pretendia ser um adorador de satanás. A risada cortou a noite, mas era suave. — Não precisava fazer nenhum ritual, muito menos um altar de adoração a mim — Lucifer explicou. — Era só ter me chamado e acreditado na sua própria fé de que eu viria. Mas já foi. Você até fica bonito nessas roupas. John franziu o cenho. — Não o chamei para falar de moda — ele disse, percorrendo os olhos ao redor, esperando ver sombras e figuras demoníacas na espreita, mas não havia nada além do Deserto do Mojave iluminado pelo brilho das estrelas. — Imagino por que me chamou. Sabia que esse dia, mais cedo ou mais tarde, chegaria. Faz tanto tempo que nos encontramos... — Nos encontramos...? — John o interrompeu. — Do que está falando? O diabo deu risada. — Você tem uma mentalidade humana limitada. Mas imagino que sua amada esteja mais avançada, que ela se lembre de mais coisas que você. Mulheres são mais desenvolvidas. — Está falando daquela outra vida? Das visões que Isabella teve? De repente, John sentiu o estômago revirar. Fechou os olhos e levou a mão até o abdômen, na expectativa de controlar a ânsia. Por trás das pálpebras cerradas, notou que a iluminação das estrelas estava mais forte. Reabriu os olhos e precisou piscar várias vezes, incomodado com a claridade que tinha lhe pegado de surpresa. Levou um instante até começar a identificar a paisagem ao seu redor. Não parecia mais
estar no Deserto do Mojave. Era dia. Estavam em uma praia de areia branca e rochas negras. A água cristalina se transformava em ondas espumantes que arrebentavam na costa. John se viu perdido, sem saber se aquilo era uma visão, um sonho ou a realidade. Mas não queria perguntar, não pretendia se mostrar fraco diante do ser que ele agora podia enxergar com clareza. Tratava-se de uma figura humana, um homem na casa dos trinta anos, alto, atlético, cabelo escuro e ondulado, olhos castanhos e pequenos, nariz reto e um sorriso amigável. Lembrou-se da primeira vez em que negociara com a morte, pensando que era o demônio do pacto, e como se surpreendeu com sua beleza. O diabo era tão vistoso quanto a morte. Não tinha certeza se Lucifer seria capaz de saber o que ele estava pensando. Não podia afirmar que o demônio que se passava por Rafael podia ler seus pensamentos, não sabia o quanto criaturas inumanas eram capazes de embrenhar-se em sua mente. Considerou o quanto era fraco, vulnerável e com pouco conhecimento. — Foi naquela outra vida que nos encontramos? — arriscou perguntar. — Na vida em que eu deveria ter me casado com Isabella? Considerou se na encarnação anterior era tão louco e apaixonado quanto costumava ser, se seria capaz de propor um trato com o próprio diabo quando perdeu sua noiva Isabella. — Não, John — Lucifer negou. — Não nos encontramos em nenhuma de suas vidas humanas. Foi antes disso. — Antes? — não pôde deixar de perguntar, sentindo-se um tolo logo em seguida. — Você não me invocou para saber mais sobre o passado, não é mesmo? — Lucifer perguntou com o cenho franzido. John considerou a questão por um momento, desviando os olhos do diabo, sem ter coragem de encará-lo mais que o necessário. — Já deve saber por que o chamei aqui — John disse. Lucifer sorriu. Era um sorriso enérgico. Uma garota diria que era deslumbrante. — Não pretendo aceitá-lo de volta assim — respondeu a John. — O expulsei da minha casa e não vou convidá-lo a se juntar a nós outra vez. — Casa? — John repetiu a palavra com curiosidade, se perguntando pela primeira vez se o inferno seria realmente da forma que pintavam: rio de lavas, dor, gritos... Estava perante o detentor da chave dos portões do inferno — pelo menos era assim que John o considerava —, poderia simplesmente perguntar. — Não será tão fácil assim — Lucifer respondeu, o que fez com que John concluísse que
ele poderia conhecer seus pensamentos. — Se quer saber exatamente como é o inferno, terá que ver com seus próprios olhos azuis, John. — Então por que o expulsou de sua casa? — Pelo mesmo motivo que todos nós fomos expulsos do céu — Lucifer disse vagamente, com o sorriso que deixava brecha para muitas dúvidas. — Ambição. — Todos nós? — John não pôde deixar de observar. — Todos nós — Lucifer reafirmou, o olhando com curiosidade e empolgação, recostado em uma das pedras escurecidas da praia. — Todos os demônios... e você? O diabo não conseguiu segurar o riso. — Você não se lembra mesmo, não é? — De quê? — John quis saber. — Da nossa queda. John sentiu como se estivesse caindo, seu estômago ficou gelado, seu coração pareceu parar por um minuto, e sua mente se esvaziou. Por um instante, ele não conseguiu pensar em nada. — Acha que eu viria até aqui por um humano qualquer? — o diabo perguntou. — Me admira que, nesses anos todos, nunca tenha descoberto sua origem. As narinas de John se inflamaram, tentou engolir a saliva, mas sua garganta se fechou. Seus olhos arderam de repente. Se esforçou, mas não sabia o que pensar. Conseguiu relembrar a voz de Massimo dizendo que Lucifer era “o pai da mentira”, só então, foi capaz de recuperar o controle da respiração. — Acha mesmo que um humano qualquer existiria por todos esses anos? — É mentira. Fiz um pacto, por isso sobrevivi até aqui. Não foi com você, mas com o anjo da morte — John soou firme, chegando a uma nova conclusão de que talvez Lucifer não soubesse tanto quanto fazia parecer. — E imagina que o anjo da morte viria para qualquer pessoa, um humano como tantos outros? — Eu pedi com fé. — Você não é o único que tem fé. Já se perguntou por que tantas pessoas fazem preces fervorosas e não são atendidos? Já deve ter escutado sobre lendas, pactos com demônios, mas alguma vez conheceu alguém que passou pela mesma coisa? Que está vivo há mais de dois mil
anos? Conhece um humano que viveu pelo menos metade disto? — Rafael — ele insistiu. — Alguém possuído por um demônio, ainda mais um que foi expulso tanto do céu quanto do inferno, não conta — Lucifer declarou, cruzando os braços e observando John com os olhos estreitos. John sentia a brisa do mar soprar contra sua pele, fazendo as vestes balançarem, movimentando camadas de areia. Mas o cabelo ondulado de Lucifer permanecia imóvel, assim como o terno e a calça, ambos pretos. Se perguntou o porquê. Era como se a brisa soprasse não contra ele, mas através, fazendo John imaginar que se tratava apenas de uma aparição e não um corpo real, com matéria. Se encontrava naquela praia de verdade ou era apenas um sonho? — Já se perguntou por que tem um sexto sentido tão aguçado que faz parecer que você consegue ler mentes? John limitou-se a encará-lo, se recusando a dignificar a pergunta do diabo com uma resposta, até que ele mudou de postura. — Acho que já enrolamos demais — Lucifer disse de repente, como se tivesse mudado de ideia com algum pensamento que lhe ocorreu. — Vim até aqui, vamos tratar logo do que quer, porque você vai querer voltar logo ao velho continente. — O que aconteceu? — John perguntou, mas sem estar certo se queria saber exatamente do que o diabo estava falando. — Chega de conversa fiada. Você já viveu muitas coisas para que eu tenha que ficar fazendo rodeios para dar uma notícia — Lucifer continuou, seu rosto estava impassível, mas seu olhar revelava uma certa aflição que John jamais imaginou que veria naqueles olhos. — Você acaba de ficar viúvo.
Você realmente me quer morto ou vivo para viver uma mentira?
John piscou os olhos, as cortinas de cílios pesados subindo e descendo, revelando e ocultando aquele raro tom de azul. — É mentira — foi a primeira coisa que conseguiu dizer, mesmo que seu coração e seus instintos dissessem o contrário. — Não tenho motivos para perder meu tempo inventando mentiras. Não sou como um demônio que se diverte com o sofrimento dos humanos, John. Sou o próprio diabo, mas acho que não tem informações suficientes sobre mim. Seu celular vai tocar em alguns instantes. O mundo tornou-se um borrão diante deles. John sentiu o clima mudar, seu estômago revirou a ponto de ele não conseguir segurar. Sentiu a pressão do corpo cair drasticamente. Considerou que não fosse suportar aquilo. Pensou na morte e, pela primeira vez em milênios, sentiu que seus dias estavam contados. Poderia morrer bem ali. Se Lucifer estivesse certo, e ele tivesse acabado de ficar viúvo, a alma de Ana, por fim, encontraria um descanso e a sua seria levada ao inferno? Mesmo que o pacto tivesse sido desfeito? Se isso acontecesse mesmo, quem daria um jeito no demônio? Ninguém além de John poderia resolver aquilo. Todo peso da responsabilidade estava sobre seus ombros. Abalado, suando frio, sem conseguir enxergar nada além de vultos ao seu redor, ele se inclinou para baixo e vomitou até pensar que colocaria as tripas para fora. Quando parou, sentindo o gosto azedo na boca, notou que o estômago estava melhor.
Piscou os cílios grandes outra vez e notou a brusca mudança de cenário. Se deu conta de que o mal estar não era porque estava morrendo e sim voltando ao Deserto do Mojave. — Que lugar era aquele? — foi a primeira coisa que quis saber ao ficar de pé. — Te dou a notícia de que sua querida esposa Endy acaba de morrer, junto com ela os gêmeos, e você quer saber em que lugar estávamos? — Lucifer sacudiu a cabeça em desaprovação. — Estávamos em uma ilha da América do Sul. Nada em especial, só um lugar que eu gosto de visitar quando venho a esse mundo. — Não acredito em você. Endy está bem, nossos filhos tam... — John não terminou de falar. Sentiu a vibração do celular tocando no bolso grande da calça de linho. As estrelas continuavam brilhando no céu. Ele alcançou o aparelho no bolso e viu a foto de Isabella na tela. Sentiu como se o coração se fundisse com seu estômago, no desespero doloroso. Lucifer não poderia estar certo. — Oi...? — atendeu com a voz falha. — Bells. Ouviu o soluço do outro lado da linha e soube naquele instante que as coisas ficariam ainda mais difíceis. — John... Eu sinto tanto! — A voz de Isabella estava trêmula. — Como aconteceu? — ele quis saber, tentando se manter forte e controlado, mas desmoronando por dentro. — Como soube? Está com...? — Sim, estou. — Ela... John, estou com Lanai aqui, não posso falar muito. — Foi um acidente? Ela viu? — Espere um pouco... coloquei ela sentada em um banquinho e vou me afastar para poder falar... pronto. — Isabella puxou o ar para os pulmões com intensidade e tentou firmar a voz. — Eu tive a ideia de fazermos listas de compras para os bebês, assim ela ficaria ocupada e sempre por perto — ela contou depressa, antes que perdesse o controle outra vez. — Mas me parecia estranha, como se não estivesse à vontade comigo, como se soubesse de algo. Desconfiada... Mas segui com o plano, porque estar por perto era tudo que eu precisava. Combinamos de vir ao Centro hoje fazer algumas compras. Um motorista do hotel nos trouxe com Lanai. John, ela estava ao meu lado o tempo todo. Compramos algumas peças para os bebês e decidimos caminhar nas proximidades de um castelo. Estávamos tomando sorvete quando ela se aproximou da grade de proteção que dava para um nível mais baixo. Me virei para brincar com Lanai e no mesmo segundo...
— ... ela se jogou — John completou. — Bateu a cabeça nas pedras... Eu sinto tanto! A polícia está aqui... Eu não sei o que fazer... Ele não sabia mais o que falar. Não conseguia nem mensurar a agonia que sentia no peito. Já tinha passado por muitas perdas, mas era uma dor com a qual nunca se acostumava. E ainda havia os gêmeos. Queria desligar o celular e desabar em prantos, queria sair correndo dali e abraçar sua filha, tentar apagar a lembrança do que testemunhou. Queria invocar alguma força espiritual e implorar para devolver a vida a sua esposa. — Por quê? — murmurou mais para Lucifer do que para Isabella. — Por que ela tiraria a própria vida desse jeito? — Não faço ideia — Bells lamentou. — Pensei que o demônio poderia ter possuído seu corpo, mas Ethan me disse que ele voltou para Rafael. Os dois estão na mansão desde ontem. Eu juro que não sei... Se eu não tivesse inventando essa história maluca de lista de compras, se tivéssemos ficado no hotel fazendo qualquer coisa da era contemporânea, mas as poucas coisas que sei sobre passar tempo são arrumar uma casa e planejar enxovais, além de passeios em um dia ensolarado... Isabella soltou um soluço desesperador do outro lado da linha. John percebeu que o diabo se aproximava com passos lentos, estendendo a mão para pegar o celular. Estava tão abalado que o entregou. — Não foi culpa sua, minha Bella — Lucifer disse com a voz amigável e gentil. A milhares de quilômetros do Deserto do Mojave, no velho continente, ela se deteve por um instante, olhando para Lanai, se certificando de que a menina estava segura. As lágrimas ainda escorriam dos grandes olhos azuis, deixando marcas nas bochechas rosadas. A menina parecia madura para a idade, mas diante daquela perda, a dor era tudo que a guiava. — Quem é? — Isabella quis saber, de certa forma, já tendo a certeza de quem se tratava. — Um velho amigo — Lucifer respondeu. — Ouça, sei que já perdi a credibilidade há tempo demais, só que ainda posso ser sincero com alguém como você, minha Bella. A culpa não foi sua. Esse demônio que lhe atormenta desde a queda não está sozinho. Ele foi esperto o suficiente para nunca deixar nenhum de vocês perceber, mas sempre temos alguém, não é? — Lu-cifer...? — ela questionou devagar, sentindo milhares de arrepios percorrerem seu corpo, junto com uma tonelada de emoções que abalaram seus nervos. Mal pôde ficar de pé quando se deu conta. Deu alguns passos largos até Lanai e deixou o corpo cair sobre a pedra. Olhou para as mãos e percebeu que tremiam ainda mais do que quando viu o corpo de Endy caído no chão de pedra do castelo. — Lucifer... Ela precisava repetir em voz alta até ter certeza das imagens e lembranças que estavam povoando sua mente.
— John já sabe? — ela quis saber. Precisava se amparar em algo ou acabaria desmaiando. Agarrou Lanai ao seu lado, tentando encontrar no corpo da criança algum conforto para aquela terrível descoberta. — Ele não é como você, querida. Nunca foi — Lucifer respondeu ainda mais gentil. — Não acreditaria em mim nem que eu colocasse todas as lembranças dentro da sua cabeça. Só você poderá lhe contar a verdade, só em você ele vai confiar. — O que nós fizemos? — Bella lamentou com a voz castigada pela culpa? — A troco de quê? — Éramos tão ambiciosos — Lucifer respondeu, notando que John voltava a cair no chão para uma nova onda de vômitos e sequer lhe dava atenção. — Foi pela nossa liberdade. — Acho que não vou aguentar mais. As lembranças são terríveis — Isabella disse, sentindo-se sufocada. — Você é apenas uma humana, minha querida. É e sempre foi especial. Mesmo que possua o dom de acalentar almas desesperadas, de dar alívio para as enfermidades do corpo e da alma, você ainda é humana. Imagino como deve ser difícil suportar isso. Você consegue entender melhor do que eu tudo que causamos. — Lucifer, eu queria tanto que estivesse aqui agora. Por que não consigo me lembrar de te encontrar novamente depois da queda? — Você é tentação demais para mim, precisei me manter longe todo esse tempo, mas vou te encontrar. Eu prometo. — Você se arrepende? — ela quis saber. — Claro que não — Lucifer respondeu. — Fizemos o que tinha que ser feito. — Mas você foi condenado por isso. E todos os outros que te seguiram. Você condenou a todos nós. — Eles só estão pagando o preço da derrota. Mas se você tivesse se levantado contra Ele, se tivesse lutado do meu lado, teria um lugar só seu no meu mundo. Você seria a rainha daquele lugar. — Do inferno? — Cada um tem o inferno que merece, Bella, e o seu seria maravilhoso. Mas você preferiu ficar do lado de John, do lado do Pai. E foi assim que Ele agradeceu. — Não éramos mais dignos do céu, sei disso, mas doeu tanto. Fomos castigados por amar — ela disse e suspirou. — Um amor tolo, um amor que te destruiu, que lhe condenou à banalidade da vida
humana. — Venha me encontrar. Por que não está aqui comigo nesse momento? — Eu irei, mas usarei os métodos humanos. Ainda tenho assuntos a tratar com John. — Perdoe John, por mim. — Nos vemos em breve, minha querida Bella — Lucifer disse e desligou, antes de fazer falsas promessas. Não queria ter que lembrá-la que ele não era alguém que perdoava.
Duras verdades
Lucifer olhava para John com uma mistura curiosa de desprezo e inveja. Nenhum dos irmãos tinha sido amado como John foi por Isabella. Nem mesmo o próprio diabo teve uma companheira tão fiel e devota quanto ela. Ela abrira mão do poder que tinha e do que ainda poderia ter para lutar ao lado de John, do lado do Criador, consequentemente se opondo a Lucifer na grande batalha. Ele jamais poderia odiá-la por sua escolha, a amava demais para isso. Só que nunca poderia perdoar John por tê-la feito escolher o outro lado. Justamente o lado vencedor. — E o que vocês ganharam com isso? — ele perguntou diretamente para John, que tentava se recuperar do terrível mal estar e da ânsia. — Do que está falando? — ele quis saber após se levantar, percebendo que precisava de um banho com urgência para se livrar dos odores do vômito. — Isabella te contará. Agora me escute — ele disse com urgência. — Você quer algo que só eu posso te dar. — Só você pode nos livrar desse demônio, livrar os que restaram. — Endy não viveria muito, assim como Ana. No fundo, você sabia. É por isso que preferiu continuar casado a se separar e ficar com Isabella, seu grande amor. Se deixou iludir pelas palavras do anjo da morte, mas alguma parte de você tinha ciência de que Endy partiria em breve, e então você poderia reconquistar sua Bells — Lucifer constatou com um sorriso quase amigável. — Era uma boa ideia, se não fosse o demônio.
— O que quer para aceitá-lo de volta no inferno e nunca mais deixá-lo sair? — Você. Os dois se encararam por um instante. — Se sempre me quis, por que nunca subiu aqui e me pegou? — John ousou saber. — Preciso que você queira vir comigo, que você se entregue a mim. — Livre arbítrio? — John perguntou, dando um riso sarcástico. — Besteira. Tudo que quer é que eu te adore. — Se acha assim tão importante? Você não é anjo nem demônio, querido John. Não é nada comparado a mim. Não preciso da sua adoração. — Então por que precisa de mim? — Porque eu não perdoei o que você fez, obrigando Isabella a ficar contra mim. John estreitou os olhos, sem saber exatamente o que pensar. Sua mente estava esgotada. Tinha batalhado por mais de mil anos para não ir ao inferno e encontrar seus inimigos e, logo agora, teria que se render? — Ele nunca te deixaria em paz, John. Nenhum de vocês. Principalmente sua filha. Te dou a chance de dar uma vida normal a ela. — Por que Endy fez isso? — Porque um demônio a tentou, a fez se matar só para causar dor a sua pequena criança e a você. — Mas Ethan estava com Rafael — John disse. — Há outro com ele. Um demônio que escapou do inferno e se aliou a ele. John coçou a cabeça. — Sobre o que estava conversando com Isabella? — Ela vai te contar — Lucifer disse. — É curioso que eu estou aqui diante de você e não se lembra, enquanto ela só precisou ouvir minha voz. — Você quer ficar com ela — John constatou com horror, o peito doendo de culpa, medo e o sentimento de perda. Seu estômago queimava com a ansiedade. Não podia acreditar que precisaria se condenar para salvar sua filha. — Não a amo dessa forma. Adoro Isabella, mas nunca foi dessa maneira. E você sabia disso, mesmo assim, a fez lutar contra mim.
— Era isso que estava tentando dizer desde o começo? — John quis saber, finalmente. Éramos a mesma coisa? — Não se atreve a dizer, não é? É vergonhoso demais para você. — Anjo — ele disse de queixo erguido e um olhar desafiador. Uma parte dele não queria acreditar no diabo. Pensava em Massimo e em tudo que ele tinha dito sobre Lucifer, sobre não cair nos seus truques. Só que, lá no fundo, era como se John soubesse o tempo todo. — Um humano qualquer não existiria todo esse tempo — ele disse, usando as palavras de Lucifer. Engoliu a saliva e tentou se empertigar, mas o peso daquele conhecimento era demais. — Demônio? — Não consegue mesmo se lembrar? John sacudiu a cabeça em negação, a sentindo dolorida, se dando conta de que sempre estivera condenado ao inferno. — Você não é mais um anjo, querido — Lucifer disse. — Mas ficou do lado do Criador na grande batalha. Isabella o seguiu, ficando contra mim, por isso vocês não caíram com minha legião de imbecis. Trocando o peso do corpo para a outra perna, John considerou aquelas palavras por um instante, ainda sem saber se deveria desacreditar no diabo ou seguir seus instintos que lhe diziam que aquela era sua história e a única explicação para tudo. Doía saber. Se sentia traído pelas próprias memórias. Estava odiando depender de Lucifer ainda mais. — Então por que não estamos no céu? — perguntou por fim. — Vocês se apaixonaram. Não um amor fraternal. Vocês amaram-se de um jeito diferente. — Nos amávamos mais do que amávamos o Pai — John concluiu com a voz baixa. — Ele jamais toleraria algo do tipo. — Deveríamos amar a Deus sobre todas as coisas e não fizemos. — Ganância, ambição, vaidade... Coisas assim fizeram todos os demônios e eu cairmos, mas vocês foram expulsos por amar demais. É a história de amor mais trágica que conheço. Caíram em um sentimento que só cabia aos humanos, por isso foram rebaixados a isso — Lucifer disse, gesticulando para John. — Vocês não são imortais e nunca conseguem ficar juntos. Sempre há alguém para os separar. Esse é o castigo por não tê-Lo amado acima de tudo. — Quantas vidas já vivi? Quantas vezes já fui separado dela?
— Muitas. John olhou para o chão, depois para as estrelas e entendeu tudo que sentiu por Isabella desde a primeira vez que a encontrou naquela igreja. Era trágico demais saber que nunca a teria para sempre. — Se eu for com você, será definitivo. Não vou nascer de novo e jamais viverei o amor que começou no céu — ele disse. Era difícil de aceitar, até de entender, mas era a realidade. — Já disse, eu não perdoo, John. Aquele demônio foi um invejoso enquanto era um anjo, queria ser como o arcanjo Rafael, sentia ciúmes de Deus, por esse motivo lutou ao meu lado na batalha. No inferno, ele queria ser mais do que era, desejava ter sua própria legião, planejava arranjar aliados para se rebelarem contra mim. Ele queria tomar o meu lugar. Acabei com ele e o expulsei. Eu jamais poderia perdoar algo assim, vai contra a minha natureza. Mas posso aceitá-lo de volta se você também vier. Este é o meu preço e seu castigo por ter feito minha querida Bella lutar contra mim. — Vim até aqui disposto a fazer o que fosse preciso para mandar aquele demônio de volta para o inferno, portanto, eu aceito — John disse mais rápido do que Lucifer imaginava. — Agora que sei que nunca a terei de verdade, eu aceito em troca de livrar minha filha de toda essa merda. — Sua única cria que vingou — Lucifer comentou, pensativo. — Me leve até Isabella. Tenho que vê-la pelo menos uma vez. Você precisa organizar o velório de sua esposa antes de partir comigo. Havia milhares de perguntas a fazer sobre anjos, demônios, céu e inferno, mas se sentia depressivo demais para falar. A ideia de seguir o diabo para sempre era chocante demais para que pudesse aguentar. Deu uma risada estranha quando imaginou o que Massimo falaria quando descobrisse que ele tinha levado o próprio diabo para a Itália, se é que iria descobrir. Se sentiu tolo, fraco e impotente. Tinha se ajoelhado diante de um padre e pedido perdão por todos aqueles pecados quando jamais poderia ser perdoado. No fim das contas, ele tinha fugido do inferno inutilmente. Pensou que nada mais importava, se pelo menos sua filha fosse poupada, porém, no voo de voltar para a Itália, Lucifer lhe contou como tinha perdido Isabella na vida anterior, sendo violada pelo demônio até a morte. Essa revelação fez o ódio consumir o pouco que restava da sua sanidade. Sentiu as mãos tremerem e tentou se apegar a ideia do quão persuasivo um demônio poderia ser, seduzindo um rapaz pobre de uma família pobre a usar seu corpo por uma noite. Só que o pensamento não durou muito. Queria destruir o rapaz com as próprias mãos. Perguntou a Lucifer como era o inferno, quais eram os níveis e quais de suas vítimas encontraria lá, mas o diabo não se mostrou muito disposto a lhe responder. — No céu e no inferno, sabemos tudo sobre os humanos e a terra, todavia, aqui vocês não
sabem nada sobre nós ou nosso lar — Lucifer murmurou. Parecia que as palavras ecoavam na mente de John em vez de serem verbalizadas. — E é à humanidade que você foi condenado. Humanos vão para o inferno tão leigos quanto você irá.
Por amar
Ethan já não sabia mais o que fazer, não entendia de demônios e sentia-se fracassado por não ter sido capaz de impedir a fatalidade com Endy, por não saber como manter aquelas mulheres em segurança. Isabella estava colocando Lanai para dormir, depois de garantir que seu pai estaria ali quando a menina acordasse. Prometera passar a noite ao seu lado e nunca deixá-la sozinha, como um anjo da guarda, mas não sabia exatamente como cumprir aquela promessa. — Foi uma grande besteira — ele disse ao tirar o saquinho de couro contendo a relíquia do bolso. — Quem éramos nós para imaginarmos que sabíamos alguma coisa sobre aquela criatura? — Você fez o que pôde, Ethan — Isabella disse, sua voz revelando o cansaço e seu estado de espírito. Havia olheiras fundas abaixo dos olhos, ombros caídos, não parecia mais aquela super modelo confiante de antes. — Não foi o suficiente — Ethan murmurou, claramente chateado. — Ainda acho que você deveria ter ficado com Rafael. Eu poderia ter me virado sozinha — ela disse, mas em seguida se arrependeu de estar sendo tão rude. Sua mente dava voltas. — Não me culpe por não querer deixá-la sozinha em uma situação tão terrível. — Mas se John vier com... Lucifer — ela baixou o tom de voz, tentando disfarçar a
intimidade —, precisamos ter Rafael debaixo do nosso nariz. — Eu já não sei mais o que fazer, Bella. Imaginei que John estivesse mais preocupado em velar o corpo de sua esposa. — Ele quer mais do que nunca acabar com esse anjo... caído — ela disse pensativa. — Lanai dormiu. Vou tomar um banho. Isabella não sabia mais o que queria para o seu futuro. Esperava ansiosamente por John e Lucifer, queria olhar para eles com seus olhos humanos e tentar entender de fato o que tinha acontecido. John e ela eram um dos poucos anjos que haviam sido expulsos do céu após a grande batalha em que Lucifer se voltou contra o Pai. Ela o amava, entendia seus motivos, mas jamais poderia apoiá-lo. Se sentia envergonhada por ter sido banida do céu por um sentimento que não cabia nem a ela nem a John. Não se arrependia daquela paixão, mas era castigada pela culpa e pela dor das consequências. Se perguntou como conseguiu passar tanto tempo sem recordar sua origem. Bastou ouvir uma voz amiga, o sussurro de Lucifer, para ser banhada com a enxurrada de recordações celestiais, quase sufocantes. Procurou se agarrar às memórias humanas, àquela outra vida onde o demônio a matou, à lembrança do tempo em que viveu com John no pequeno casebre, à recordação da família Fontana, e dos últimos momentos que vivera com Ethan, mas tudo parecia tão falso... O pensamento era como uma grande cicatriz em sua alma. Desejou poder fechar os olhos e voltar a sua casa. Sentiu falta da luz, das sensações e das asas. Foi então que recordou o momento em que vira as asas saindo das costas de Rafael, da vez em que ele voou com ela, de como se sentiu atraída por aquilo. Desligou o chuveiro e, nua, caminhou até o espelho da pia, embaçado pelo vapor. Olhou sobre o ombro, para as costas, a pele maculada pelas iniciais de John Smith, e quase pode ver uma outra marca, a cicatriz em forma de V que começava logo abaixo dos ombros e terminava na base de sua coluna. Foi assaltada pela dor novamente, se curvando para suportar, apoiada na cuba da pia. A vergonha era ainda mais dolorosa, se sentia traiçoeira por ter amado mais a John do que a Ele, e sabia que era exatamente assim que deveria se sentir por toda eternidade. Ardilosos! As lágrimas escorreram quentes pelo rosto humano. Será que as lembranças iriam desaparecer outra vez ou ela teria que conviver com aquilo para sempre? Conseguiu se empertigar novamente, dando uma nova olhada nas costas, desejando ver pelo menos a cicatriz, uma prova de que um dia fora digna de ter asas, mas não havia nada além
das letras JS. — Até o demônio tem asas. São avermelhadas, mas são asas e ele pode voar — sussurrou, revoltada. — Pai, eu não sou digna do seu perdão nem da sua misericórdia, mas por que me tirou as asas? As lágrimas começaram a pingar sobre a bancada de mármore. Tentou entender todas as lembranças, as razões, mas se deu conta de que era apenas um espírito amaldiçoado dentro de um corpo humano frágil e perecível, e que precisaria de alguém como Lucifer para poder lhe ajudar a compreender e reformular as memórias bagunçadas. Se olhou novamente, percebendo que havia um homem esperando por ela no quarto, a quem ela havia prometido amar e não abandonar. Lutou para se apegar àquele sentimento, mas este não parecia mais pertencer ao seu ser. John era e sempre seria tudo para ela. Se amavam acima de todas as outras coisas. Sabia que ele também se sentiria assim quando recordasse, que todas as memórias humanas se resumiriam a nada diante do sentimento que os levaram a ser banidos da casa do Pai. A ansiedade por encontrá-los a dominou. Pediria a Lucifer para perdoar John, levar aquele desgraçado do demônio com ele e o prender no último nível de sua morada, o mais quente e terrível. Estava consciente de que Lucifer tinha motivos para não perdoar John, mas se agarrava à ideia de que o amor e a admiração que sentia por ela fossem suficientes para amolecer sua alma e fazê-lo entender. John não era ambicioso como ele, tinha escolhido seguir os caminhos do Pai em vez de se revoltar e lutar por liberdade. Seu único crime tinha sido desejá-la como nenhum anjo deveria desejar um semelhante. Ele havia sido banido por ela, apenas pelo sentimento, e também perdera suas lindas asas. Foi humilhado e amaldiçoado por se apaixonar, mas não havia prejudicado mais ninguém. Quanto àquele maldito demônio... Isabella se esforçou, até a memória vir à tona. Se lembrou dele, de sua presença na grande reunião e de como ele ficou do lado de Lucifer. Tentou recordar seu nome real. Era algo como... — Shh — ela balbuciou. — Sa... Isso! Começava com Sa... Mas... Miguel, Gabriel, Rafael, Uriel… — começou a recitar o nome dos anjos mais poderosos, até se dar conta de que o demônio não tinha sido um dos arcanjos, que nem sequer era popular entre os mais modestos seres celestiais. Se forçou mais uma vez: — Sa... — ... drach — ouviu o sussurro de Lucifer em seus ouvidos em conjunto com um sopro quente e aconchegante. Olhou para o espelho e foi surpreendida pela imagem dele refletida. Tentou pensar nele como o diabo, como o responsável por toda a maldade que existia na terra, mas não foi capaz. Era como olhar para um irmão muito querido. — Sad... — ela começou a dizer para a figura no espelho, mas foi interrompida pela voz
suave em seus ouvidos. — Não pronuncie esse nome em voz alta, sequer em pensamentos, isso o dará forças para voltar até você. Não se lembra como palavras e pensamentos são poderosos? Admirada, ela balançou a cabeça em concordância. — Você está aqui? — perguntou. — Não, minha querida, estou apenas no seu pensamento, mas logo chegarei. Estou aqui para lembrá-la que, por mais que tenha recuperado suas recordações sobre a vida no céu, você não é mais um anjo — ele disse, em seguida fez uma longa pausa, como se a menção àquilo fosse muito dolorosa. — Suas asas foram arrancadas, sua imortalidade roubada, é apenas uma humana e, sinto muito dizer, mas não é páreo para um demônio como aquele. Além de tudo isso, seu coração é bom, puro, e você está fadada a perdoar. Precisa de mim para resolver tudo, necessita que eu te ensine a lidar com criaturas como ele e sair viva. — Ajuda? — ela disse, tocando o relicário que Massimo havia lhe dado, contendo a relíquia de primeiro grau. Lucifer abriu um sorriso. — Logo estarei aí, mantenha-se viva. Ela ficou algum tempo se encarando no espelho, tentando relacionar passado e presente, sua existência no céu e suas vidas na terra, e tudo que sentia por John. Não sabia direito como concluir o raciocínio. Sua personalidade humana havia se apaixonado por Stefan, mas teve aquele sentimento ofuscado pela magnitude do verdadeiro amor por John, e agora estava envolvida com Ethan. Concluiu que o amor daquela vida poderia ser Ethan, mas John sempre seria o amor de sua existência, algo além do entendimento humano. O mesmo havia acontecido com John e Ana... Endy. Considerou que aquilo poderia ter acontecido em vidas passadas, mas não sabia ainda. Lembrou-se de Rafael e do sentimento não correspondido. Será que um dia, tudo daria certo? Então, procurou assimilar Lucifer a todo o mal. Lembrou-se de sua revolta, de como ele queria ser independente, do quanto era vaidoso. John não era um anjo como ele, aceitava as ordens do Pai sem fazer nenhum questionamento, não tinha nenhuma ambição de lutar por independência, muito menos de se sentar em um trono acima do Criador, como Lucifer planejava. Imaginou se era assim que algumas mães de assassinos se sentiam: incapacitadas de enxergar a verdadeira maldade que habitava no coração do filho. Se Lucifer fosse mesmo tão perverso como a lógica humana dizia, ele não levaria o demônio a troco de nada.
— E onde fica o amor que sentimos um pelo outro? — se questionou com um sorriso, em seguida, conseguiu assimilar um fato primordial: nem o amor pelo Pai tinha sido capaz de frear a ambição de Lucifer, quem dirá o amor por ela. Agarrou-se a esse fato e tentou pensar no que ele exigiria em troca. Um aperto em seu coração veio para lhe dizer que o preço seria caro. Se vestiu, perfumou-se, ciente de que não era um anjo e que precisava cumprir com a rotina humana de cuidados com o corpo, e saiu para o quarto, dando de cara com Ethan, sentado em uma poltrona estilo Luiz XV. Parecia triste e abatido. Recordou as promessas que fizeram um para o outro e procurou esquecer as lembranças de uma vida no céu. Ele não sabia de nada daquilo. — Está tão linda — murmurou com uma insegurança quase palpável. — O que foi? — perguntou, concentrando-se ao máximo no rapaz. — John acaba de ficar viúvo — Ethan comentou. — E...? — Vai me deixar por ele? — o músico foi direto, alheio a tantos fatos mais importantes que aquilo. — O corpo de Endy sequer foi sepultado e já está com ciúmes? — Isabella disse, arqueando uma das sobrancelhas e indo se sentar em seu colo. — Não sei como me sentir — ele sussurrou, a aconchegando em seu peito. — Não sei como as coisas acabarão. — O... diabo... — ela relutou em dizer — levará esse demônio com ele para o lugar mais quente do inferno, e poderemos viver em paz. — Você e eu? — Ethan quis saber, ao segurar o queixo dela, virando seu rosto com gentileza para que Isabella o encarasse. — Sim — ela respondeu num misto de alívio e melancolia. Gostar de Ethan era seguro, era sinônimo de reciprocidade, mas amar John era traiçoeiro, e aquela confusão a consumiria.
Adeus, não boa noite
Eles não demoraram a chegar. Apareceram no meio da noite, quando Isabella ainda descansava no colo de Ethan. Ela pôde sentir a aproximação e levantou-se antes que batessem a porta. — Massimo sabia que eu estava voltando? — foi a primeira coisa que John Smith perguntou a ela. Seu semblante estava frio, quase duro, como se ele tivesse vestido uma máscara de ferro que ocultava sua dor e todas as suas emoções. Isabella quis dizer a ele que não precisava fingir na frente dela, que ali ele poderia ser quem realmente era, revelar seu sofrimento e a pureza do seu coração, mas limitou-se a responder. — Não conversei com ele. Sequer me lembrei de avisá-lo sobre Endy. — Ele já deve ter lido alguma notícia — John comentou com a voz gélida. — Me ligou algumas vezes, mas não tive coragem de atender. Ele deu um passo à frente, curvando o tronco na direção do Isabella, passando seus braços em volta do corpo esguio da jovem, enterrando o rosto em sua clavícula e soltando um longo soluço. Isabella o segurou de volta com toda força, sentindo o coração de John bater contra ela, seu peito rígido e musculoso pressionando seus seios macios. Ela o abraçou com todo amor do mundo, tentando transmitir seus sentimentos através do tato, da proximidade entre seus corpos, com uma intensidade que a deixou sem ar. Moveu os lábios para dizer que o amava, que entendia tudo, que as coisas tinham ficado claras, e que ela sempre pertenceria a ele, não importava quantas vidas vivessem, mas abriu os olhos e viu Lucifer parado no umbral da porta, as mãos segurando a madeira, o olhar curioso e
rosto amigável. — Ah — ela gemeu, nervosa, ansiando por um abraço do anjo caído. Queria puxá-lo para junto dela e poder ter os dois entre seus braços, mas sabia que aquilo seria demais para John. Apenas encarou Lucifer, satisfeita por ter John entre seus braços e seu antigo irmão parado na sua frente, com um olhar representava o quanto ela estava satisfeita em vê-lo. Não pensou na maldade, nas mentiras, nas ambições, muito menos no inferno. Naquele instante, Ethan não existia para ela, nem Lanai, muito menos o suicídio de Endy. Era como reencontrar sua família quando ela mesma não sabia porque tinham passado tanto tempo longe um do outro. Notou quando John a apertou ainda mais forte, colocando o quadril contra o dela. Aquilo fez uma onda de arrepios percorrem seu corpo e um calor já conhecido se acender entre suas coxas. Ficou ainda mais consciente da firmeza dos músculos de John, da maciez dos lábios dele contra seu pescoço, da aspereza dos seus dedos contra sua pele. Se viu apertando as coxas uma contra a outra, agoniada com a excitação crescendo, desejando aquele corpo entre seus braços como jamais tinha desejado antes. Soltou outro gemido, tonta, perdida. Piscou os olhos e voltou a ficar ciente da presença de Lucifer na sua frente, a olhando com ainda mais curiosidade. Então algo estalou em sua cabeça, como um interruptor sendo acendido. Aquilo era obra dele. Isabella era apenas uma humana, então se deu conta do poder que Lucifer deveria exercer sobre ela, como era fácil para ele manipular suas emoções, aflorar sua carne, brincar com sua alma. — John — ela murmurou, lutando para recuperar o controle do próprio corpo, tentando se afastar, mas tenho ciência do quanto queria estar para sempre entre aqueles braços. — Eu vou te soltar, Bells — ele disse para que só ela ouvisse. — Só precisava te sentir entre meus braços mais uma vez. — E se a gente — ela sussurrou. — Sei que isso é insano, que você acaba de perdê-la, mas somos muito mais que duas almas humanas, John. Acho que ainda temos uma chance... — Minha Bells, você ainda tem Ethan — John a lembrou com melancolia, baixinho, finalmente soltando-se de seu abraço, passando as costas da mão direita contra o rosto para afastar as lágrimas. — É ele? — Ethan quis saber, acabando de despertar e indo até eles, sem demonstrar o medo que sentia. — Sim — ela disse, piscando os olhos para se recompor. — Não vai me abraçar, minha querida? — Lucifer quis saber. Ela o olhou como se olha para um irmão com um olhar de advertência. Sabe o que fez comigo, não vou te abraçar deste jeito, ela pensou, ainda o encarando, sabendo que ele entenderia.
Ethan, desinformado, se colocou na frente de Isabella, fazendo um escudo humano entre sua amada e o diabo. Lucifer olhou de Bella para Ethan por alguns instantes, com a expressão indecifrável, fazendo o músico se perguntar se estaria o achando parecido com Jesus Cristo. — Bom, eu adoraria passar um bom tempo com vocês, jogar conversa fora, esse tipo de coisa, mas não vim aqui para isso — Lucifer disse, enquanto John beijava o rosto adormecido de Lanai, deixando as lágrimas quentes respingarem na pele rosada da menina. — Prefiro resolver tudo. Ethan foi o único que se surpreendeu com o modo de falar do diabo. — Onde está Rafael? — John quis saber. — O deixei em sua mansão — Ethan respondeu, mas sem se virar na direção do outro, sem querer se afastar um centímetro se quer e deixar sua Bells desprotegida. — Você pode ficar com Lanai por algumas horas? — John o questionou. — Não devemos demorar. Estaremos de volta antes do dia amanhecer. — Aonde irão? — Ethan quis saber, mas Isabella apertou sua mão com gentileza, tentando demonstrar que tudo ficaria bem. — Precisamos resolver as coisas — ela disse, sentindo-se ansiosa por dar um fim naquilo, no demônio, se perguntando como as coisas ficariam. — Você não precisa ir — Ethan tentou argumentar. — Sim, ela precisa — Lucifer o contradisse. — Mas a trarei de volta sã e salva. — Não confio em você — Ethan praticamente rosnou, endireitando os ombros, tentando parecer ainda maior para proteger sua amada. — Não precisa confiar — Lucifer retrucou. — John, vamos? — Posso ficar a sós por um instante com minha filha? — ele perguntou com a voz rouca, castigada pela agonia, deixando transparecer o desespero. Isabella notou aquilo, se perguntou se era só por causa de Endy e se teria um motivo a mais. Tentou se agarrar a ideia de que as lágrimas eram pelo luto, que a perda de sua esposa era motivo suficiente para abalá-lo de tal forma, mas bem no fundo a sua alma havia uma vibração, um sopro gelado, um frio na barriga, um... agouro. Porque... no íntimo de sua alma, mesmo que a pensamento não chegasse à superfície da consciência, ela sabia que tinha algo mais. Se agarrou ao restinho de luz e esperança que havia em seu coração, abriu um sorriso tímido e forçou as lágrimas a ficarem lá dentro. — Claro, John — ela disse, induzindo Ethan a sair do quarto. — Vamos esperar no
corredor. Lucifer os acompanhou, fechando a porta atrás de sim — Eu não quero que vá com eles — Ethan sussurrou, mas sem virar para olhá-la, temendo dar as costas ao diabo. — Não posso permitir que vá a algum lugar com ele. John está louco por causa da perda, mas eu posso enxergar os perigos e não vou permitir que você se arrisque assim. — Se eu não for, nunca teremos paz — ela disse com suavidade, ainda segurando em sua mão. — Mesmo assim... — Prometo que vou voltar para você — Isabella soou decidida, mesmo que seu espírito desejasse outra coisa. — Você lembra algumas imagens de Jesus Cristo — Lucifer comentou, analisando o rapaz com atenção. — Se quer me insultar... — Ethan começou a dizer, mas Isabella o beliscou, fazendo-o se calar. Os minutos se arrastaram em puro desconforto para o músico e a modelo no corredor. A excitação tinha passado e ela desejava abraçar seu amado irmão, perguntar-lhe coisas, tentar entender ainda mais tudo que havia acontecido. O rosto de John estava inchado quando abriu a porta e saiu do quarto. Ele caminhou diretamente para Ethan e apertou sem ombro, sem disfarçar as lágrimas que escorriam dos seus olhos profundos. — Prometa que vai cuidar bem dela — suplicou. — Da minha filha. — Vou tentar, mas se aquele demônio aparecer... — O demônio não vai incomodar mais — foi Lucifer que respondeu. — Acredite. — Não acredito no diabo. — Acho que desta vez você pode acreditar — John afirmou, sem nenhuma sombra de humor. — Só preciso que dê sua palavra. — Prometo que vou cuidar de Lanai. Ela é minha afilhada — Ethan disse com simpatia, sem se dar conta do quão definitivo era aquele pedido. O surpreendendo, John o abraçou com força. — Sinto muito por tudo que eu fiz — John murmurou, sem sentir vergonha de chorar daquele jeito.
— Eu já perdoei. Não se preocupe — Ethan disse, batendo com a palma da mão levemente em suas costas, alheio ao fato de que aquilo era uma despedida e que jamais voltaria a ver John outra vez. Quando se soltaram, Ethan se virou para Isabella e a beijou com urgência, um beijo rápido, mas apaixonado — pelo menos da parte dele —, antes de largá-la no corredor e voltar para dentro do quarto. Assim que os três ficaram sozinhos, finalmente Isabella pôde correr para Lucifer e dar o abraço que tanto desejava. Ele a tomou em seu peito, recebendo todas as emoções que ela sentia. — Pelo amor de Deus, perdoe John — ela sussurrou de uma forma que só ele ouviria. — Está me pedindo do jeito errado, minha querida — Lucifer respondeu. — E qual é o jeito certo? — Isabella insistiu. — Nenhum, Bella. Ela ia protestar, mas John estava puxando-a para ele, roubando-a para si. — Não posso mais me afastar de você — ele disse com a voz rouca pelo choro, a apertando com firmeza. — Preciso que fique ao meu lado esta noite. — Eu ficarei — ela prometeu com paixão, se enchendo de esperanças de que talvez pudesse viver aquele amor, mas ainda sem saber como se sentir em relação a Ethan.
Como deixá-lo ir?
A noite estava mais fria que nunca. John segurava uma peça de roupa da filha que estava dentro do seu bolso, se agarrando a esperança de que houvesse uma solução para ele no final daquela madrugada. — Senhor, eu não sou digno... — ele sussurrou, mal movendo os lábios. Era ridículo pedir algo ao Pai quando sabia que jamais seria perdoado, mas estava tão desesperado que não se importava em fazer preces em vão. — Você está tremendo — Isabella constatou, com o rosto pressionado contra seu peito. — Está frio — ele comentou vagamente, desesperado para conseguir enganá-la, disfarçar a agonia que sentia. Não podia revelar como aquilo tudo acabaria ainda. — Só continue me abraçando. — Não está tão frio, você está passando mal? — perguntou, preocupada. Ouviu a risada sarcástica de Lucifer ao seu lado, percebendo que ele chamava o elevador do hotel. — Estou bem, é só frio — John mentiu, a mantendo presa entre seus braços. A ideia de se afastar dela era insuportável para ele. — Você não quer ver Endy primeiro? — Bells o questionou. — Antes de resolvermos isso. — Eu passei anos com Endy, anos com Ana, sua alma já se foi. É apenas um corpo. E
nunca pude ter você por mais que alguns meses. Parece que você nunca foi minha de verdade — John lamentou. Ela queria perguntar porque ele estava falando assim, mas estava preparada para ouvir as respostas. — Você se lembra das nossas asas? — ela perguntou, suave. — Se lembra daquele curto período em que fomos felizes no... — Céu — Lucifer completou, adentrando o elevador e observando a porta se fechar. — Nunca voltaremos para casa, meus queridos. — Se você cair, eu também caio — John sussurrou. — Você se lembra, Bells? — Sim. — Foi com essa frase boba que a convenceu a lutar contra mim? — Lucifer quis saber, perdendo a compostura por um instante. — Não lutamos contra você, mas contra a ideia que tinha, e a favor do Pai — John respondeu baixinho. Não joguei Isabella contra você como pensa, só estávamos defendendo o que era certo. — Você se lembrou? — Bells quis saber. — Lembrou-se da batalha? — Algumas coisas. Não consigo recordar exatamente como foi a luta, mas sei que no fim das contas, ele perdeu, assim como toda a sua corja de amotinados — John disse com desprezo. — E quem está rindo agora? — Lucifer disse, tentando se mostrar imponente, mas sem conseguir disfarçar o quanto aquilo mexia com ele. — Aconteceu alguma coisa que não consigo me lembrar — John disse. — Você lutou a favor Dele para depois ter suas as asas arrancadas — Lucifer o lembrou. — Não — John disse pensativo. — Teve algo a mais, uma coisa que aconteceu antes da nossa queda. Lucifer deu de ombros, como se o assunto não lhe causasse nenhum desconforto. — Você se lembra da dor? — Isabella quis saber. — De como foi ter nossas asas arrancadas? Da humilhação... — Você se arrepende de ter ficado ao meu lado, ao lado do Pai? Se arrepende de ter se apaixonado por mim quando este era um sentimento proibido? — Jamais — ela sussurrou quando chegaram ao saguão. O tempo parecia passar de forma irregular. O ambiente estava vazio, com exceção de
alguns funcionários do turno da noite. — Meus sentimentos, Senhor Smith — um mensageiro do hotel comentou quando passaram por ele. — Obrigada — John respondeu, sem perceber que talvez não fosse bem visto pela impressa que ele estava nos braços daquela modelo poucas horas depois de sua esposa ter cometido suicídio. Mesmo que percebesse este fato, não se afastaria dela. — Hoje mesmo uma foto de você estampará uma manchete — Lucifer brincou. — Eu adoro os humanos. Vocês se devoram, se consomem e se perdem a troco de besteira. — Somos assim por causa sua causa — John disse com frieza —, por sua influência. — Está me dando o crédito por toda a maldade que existe na terra? — Não só a você como também a sua corja. — Legião — Lucifer o corrigiu. — São uns imbecis, mas são minha legião. — Você é? É responsável por todo o mal? — Isabella não pode deixar de o questionar, enquanto seguiam para a calçada, onde um carro os esperava. — Se ele não for, mas sua legião de demônios são — John pronunciou a palavra carregada de sarcasmo. — O que dá no mesmo. Lucifer riu, sem responder àquele questionamento. — Então agora você se enquadra como humano, John? Está admitindo que não passa disso? — Nunca me julguei ser mais que um humano — John o rebateu. — A humanidade não lhes cai bem — Lucifer murmurou, se acomodando no banco de trás do carro, Isabella entrou depois, seguida por John. — Por favor, digam que se arrependem de terem escolhido o lado errado da batalha. — O lado certo. O lado vencedor — John o corrigiu, em seguida deu o comando para que o motorista seguisse. — Vencedor — Lucifer quase deu uma gargalhada. — Acho que te deixaram de fora, meu querido. Você lutou pelo Pai, obedeceu a Miguel cegamente, e ele não teve um pingo de gratidão de te defender. — Miguel não precisava me defender de nada. Nós erramos e eu assumi as consequências. Não precisava que um arcanjo me defendesse de um pecado do qual não estávamos arrependidos só porque o ajudei. Não seria justo. — Fala por Isabella também? — Lucifer insistiu. — Minha querida, não se sente
arrependida? Eu te daria um trono. Eles discutiam aos sussurros, para que o motorista não os ouvisse. — Eu não poderia ir contra John, muito menos contra o Pai, mesmo que ela tenha nos punidos — ela respondeu com sinceridade. Sentia dor e vergonha por ter pela expulsão, mas jamais sentiria arrependimento por ter ficado contra Lucifer. — Espere um instante, aonde estamos indo? — Até Massimo — John respondeu vagamente. — Massimo? Estamos indo a casa de Massimo? — Isabella perguntou, chocada. — Não, à igreja — John admitiu. — Está levando o diabo para a casa do Pai? — Ela estava incrédula. — É apenas uma simbologia. Você sabe onde o pai realmente está — John a lembrou. — Sentado em um trono, imponente — Lucifer se intrometeu —, observando tudo, deixando os anjos executarem suas ordens. — Não ouse falar assim Dele na minha frente — Isabella o retrucou. — Eu te amo, mas não vou te perdoar por isso. John bufou, espantado com a ingenuidade de Isabella. — Bells, ele jogou um terço dos anjos contra o Pai, os fez lutar e cair só porque se sentia superior e queria ser mais adorado. Você não entendeu ainda com quem está lidando? Ela o encarou por um instante, ainda era difícil ligar a ideia de o diabo e seu querido irmão serem a mesma criatura. — Não brigue com ela por isso. Vamos à igreja, vou entrar lá para resolvermos tudo e seu amado Pai continuará em seu trono, inabalável — Lucifer disse, claramente se divertindo. Ela quase rosnou para ele, mas John apertou sua mão com força, sabendo que o diabo adorava aquela provocação. — Ele não é adorável como você pensa — disse para ela. — Não está conseguindo raciocinar, porque na última vez que o viu, ainda éramos anjos e ele estava sendo derrotado, mas muitos milênios se passaram depois disto e ele foi responsável por milhares de tragédias. — Eu? — Lucifer fingiu estar ofendido. — Os humanos caem nas tentações mais banais e eu sou culpado? Não fui eu quem lhes deu livre arbítrio para escolherem. — Viu como ele manipula? Ainda se faz parecer inocente — John tentou abrir-lhe os olhos.
— E o que vai acontecer esta madrugada? Você vai levar aquele maldito demônio de volta para o inferno e poderemos continuar com nossas vidas humanas insignificantes até que a morte nos separe outra vez? — Isabella quis saber. — Por que essa palhaçada de ir até a igreja? Massimo vai surtar. Você está ciente disso, não é, John? — Por que ele se diverte com tudo que é ruim, tudo que causa desconforto, adora nos ver colocando nosso amor por Deus à prova — John respondeu. — Amor por Deus à prova? — Lucifer o questionou. — Está mesmo falando sério? Você passou mais de dois milênios matando, maltratando, andando com um demônio e fazendo tudo que ele mandava, permitindo que ele entrasse em seu corpo, obedecendo, cego pelo desejo de ser imortal e escapar do inferno por ter vendido sua alma, indo contra todas as vontades do Pai, e de repente vem falar de amor por Deus? Você não passa de um hipócrita. — Andei com um demônio que só é o que é por sua causa, porque o seguiu. — Aquela criatura já era ambiciosa antes da batalha. Acha mesmo que eu obriguei todos a me seguirem? Eu os convidei, mas vieram porque desejaram, porque tinham suas ambições. Não coloquei a vaidade no coração de nenhum deles. E não comece a falar como se nunca tivesse pecado, porque você nunca foi puro, John, nem aqui e muito menos no céu. Não se esqueça de que foi banido do céu. — Você também! — John não conseguia mais aguentar a provocação calado. — Mas não perdi minha imortalidade, tenho meu próprio trono e uma legião sob meu comando. Uma legião de idiotas, mas ainda é uma legião. Então, John, me diga quem foi mais amaldiçoado? Você não pode nem voar, não é nada. O que te restou? — Ele tem a mim — Isabella disse em protesto, defendendo seu amado. Lucifer deu risada. — O que foi? — ela exigiu saber, só então se deu conta de Ethan, e de que John e ela estavam condenados a nunca ficarem juntos. Precisou apertar a cintura de John mais forte, tomada pelo mal pressentimento. O silêncio se instalou no carro. Outra vez, Isabella se deu conta de como o tempo estava passando diferente. — Sabe qual é a diferença entre mim e um demônio? — Lucifer disse depois de um momento, sem esperar pela resposta. — Um demônio estaria tentando persuadir o motorista a fazer alguma atrocidade, se aproveitando de alguma fraqueza em seus pensamentos, buscaria a todo custo fazer o homem sentir dor só para se alimentar. Sofrimento é o que os mantêm fortes quando escapam do inferno, a dor humana dá energia a um demônio longe de casa, mas eu não preciso disso, não me alimento de martírio. John riu.
— Agora ele quer dizer que é o bonzinho do inferno, que os demônios são os únicos culpados. — Não estou dizendo isso, mas nunca subi a terra para vir atrás de você. Te odiei por ter colocado Isabella contra mim, só que jamais o persegui. Não compreendeu ainda, John? — Não preciso entender nada. Só quero que leve aquele demônio para longe e nunca mais o deixe sair. Isabella quis perguntar se Lucifer poderia perdoar John, mas ainda não estava preparada para a resposta. — Perdoar? — ele questionou em voz alta. — Mesmo que eu quisesse dar meu perdão a ele, como iria perdoá-lo por uma coisa da qual ele não está arrependido? Aquela informação era incontestável, e não havia como lutar contra aquilo. John jamais se arrependeria de ter ficado ao lado do Pai, mesmo depois de ter sido banido. Seu coração era bom, mas como humano, era fraco. Imaginou o quanto o demônio se divertiu o fazendo pecar, como manipular John o fez sentir prazer. — Prazer, foi exatamente isso que o manteve ao lado de John por tanto tempo — Lucifer comentou. — Ele deve ter se sentido como um deus por poder controlar um anjo daquela forma, mesmo que John não fosse mais anjo. — E onde ele está agora? — Isabella quis saber. — Nos encontrará na igreja — Lucifer disse. — Tem certeza? — ela duvidou. — Confie em mim. John deu mais um de seus risinhos sarcásticos, pelo menos, suas lágrimas haviam cessado. Quando chegaram a igreja, o motorista desceu e abriu a porta ao lado de Lucifer, sem fazer ideia de que estava levando o próprio diabo até uma igreja. — São 2h33 da madrugada — John murmurou ao descer, tomando Isabella pelo pulso e a puxando de volta para seus braços com uma força exagerada. — Eu te amo como nunca amei ninguém. — Eu sei disso. É reciproco — ela disse. — Quero que saiba que estou ciente do tudo que estamos fazendo, e que esta é nossa única saída. Por mais que o despreze por tudo, por mais que sinta aversão a ele — John disse empinando o queixo na direção de Lucifer, que parecia olhar maravilhado para construção à sua frente —, é o único capaz de levar aquele demônio de volta. Ele sempre soube quem éramos, por
isso causou tanto mal a nossas vidas. Por termos sido anjos um dia, ele sempre iria ficar no nosso encalço. Não tem como voltar ao céu, e como o diabo o tinha expulsado do inferno, por ele ser tão ambicioso a ponto de querer ter sua própria legião. E só Lucifer poderia aceitá-lo de volta, poderia nos livrar dele. — Tudo está claro agora. Ele virá porque Lucifer tem controle sobre ele, assim como tem sobre todos os outros demônios — Isabella disse. — Nem tudo está claro ainda — John falou baixinho contra seu ouvido. — As lembranças estão se encaixando. Me lembro de como me apaixonei por você, do quanto lutei contra o sentimento, sabendo que jamais deveria senti-lo, até ser correspondido. Quando você também se apaixonou, eu soube que lutaria por você enquanto pudesse. Mas não fui capaz de calcular o quanto estávamos indo contra a vontade do Pai por isso. Não me arrependo, mas não questiono a decisão Dele de nos expulsar. — Me sinto exatamente como você — ela respondeu. — Nós pecamos e tivemos a nossa punição. Só sinto muito por sempre te perder, por não poder mais voar, por estar presa a esse ciclo de vidas interrompidas por tragédias. Consegue se lembrar como morreu na última vida? — Eu me enforquei — ele confessou. — Fiz um pouco depois que encontraram seu corpo. Não poderia existir em um mundo sem você. Só para depois... nascer de novo, para viver outras dores, para pecar. Eu passei quase dois mil anos sem você em uma existência vazia, dolorosa, sem saber que em algum lugar minha alma gêmea iria renascer, só para nos perdemos de novo. — Ainda estamos aqui, não nos perdemos — ela tentou animá-lo. — Não ficaremos juntos. — Por causa dos impedimentos humanos? Ethan, Lanai, a banda, Rafael ou o fato de você ter acabado de ficar viúvo? — Bells — John sussurrou, sentindo as lágrimas se formarem em seus olhos mais uma vez. — Você entende que eu faria tudo por você? Que eu iria até o fim para te dar um pouquinho de paz? Não o John que fui como humano, mas meu verdadeiro “eu”, o anjo que caiu por te amar. — Entendo — ela disse. — Preciso te dizer, mas dói tanto. — O quê? — Eu vou embora, Bells — John admitiu, sentindo uma dor que parecia cortar seu peito ao meio. — Embora para onde?
— O preço que ele exigiu por permitir que o demônio volte para o inferno. Eu vou com ele. — Você não pode estar falando sério — ela disse com ira, se afastando dos braços de John para encará-lo. — É por você e por Lanai. Vocês poderão viver o resto dessas vidas normalmente. Um dia você morrerá e acabará renascendo, porque é a sua sina, só que eu nunca mais poderei voltar. Meu destino sempre foi o inferno, Bells. — Não — ela murmurou, se sentindo mais impotente que nunca, sufocada pela ideia de existir em um mundo sem John. — Não pode me deixar para trás. — Você não pode ir comigo. Acha que ele permitiria que ficássemos juntos no inferno? Irei sozinho. — Não! — ela gritou, tentando raciocinar, achar uma saída e reorganizar os pensamentos. — Tem que haver outra forma. — Quero que você viva, que honre minha memória, mas que seja feliz, que cuide da minha filha. — Prefiro viver atormentada por aquele maldito demônio do que aceitar te perder para todo sempre. Como vou existir sem minha alma gêmea, não pode me condenar a esse vazio, John. — Mas eu não aguento mais, Bells. Quero que você e Lanai tenham paz. — Ele fez uma pausa, se forçando a continuar respirando debaixo de tanta dor. — Não sabe como sinto ciúmes de Ethan, mas sei que ele poderá cuidar de você e da minha filha. — Não — ela murmurou outra vez, quase engasgada pelo choro, correndo para os braços de John e o agarrando com força. — O que fez para Lucifer te odiar tanto? — Eu te coloquei contra ele — John disse, beijando o topo de seus cabelos. — Não é só isso. Não pode ser. — Ela se esforçou para recordar, sabia que ainda faltava uma peça importante no quebra-cabeças, mas não conseguia decifrar o que era. Uma memória chave parecia ter se perdido. Passou as mãos nas costas de John, escorregando os dedos sob o tecido de algodão da camiseta, percorrendo sua coluna até tocar em algo duro enfiando no cós da sua calça. Acabou rindo da situação. — Acha que uma arma iria resolver? — perguntou a John. — Uma bala poderia nos ajudar? John também sorriu, mesmo que as lágrimas continuassem lavando seu rosto.
— Não é para Lucifer... — John — a voz de Massimo o interrompeu.
A cor rubra da morte muda tudo
O homem olhava para os três com curiosidade, parado nos degraus da igreja, na frente da porta esculpida com imagens se santos e criaturas celestiais. John olhou para seu velho amigo e se compadeceu de sua ignorância. Por mais que Massimo dedicasse sua vida aos estudos bíblicos, a luta contra mal, jamais saberia de tudo, do quão poderoso era Lucifer, a ponto de nem o reconhecer. Estava fadado a uma mente humana limitada e, por mais que tivesse boas intenções... — O que aconteceu, John? — o homem perguntou. — Te liguei milhares de vezes e não me atendeu. Tudo que me manda é uma mensagem para encontrá-lo aqui. — Sinto muito, Massimo — ele disse com pesar. — Sou eu quem sinto por sua esposa. O suicídio é... — Massimo lamentou, fazendo um sinal da cruz. — Você já deve imaginar quem esteve por trás disso, quem a induziu a tirar a própria vida — John falou com a voz fria, após afastar as lágrimas. Isabella tentou imaginar como ele se sentia em relação a Endy e sua perda, mas logo decidiu que era melhor não perder um tempo tão precioso com ideias inúteis. Concluiu que deveria gastar melhor seu tempo prestando atenção em John, no que fazia, nos seus gestos, sua voz, sua postura, sua aparência. Era terrível pensar que nunca mais o veria depois daquela madrugada, ainda mais saber que ele arderia no inferno ao lado de tantos homens horrendos, como se nunca tivesse sido um anjo de Deus.
Tem algo a mais, ela pensou. Pare! Sentiu a voz de Lucifer em sua mente. Então o perdoe, não leve sua alma embora, tentou argumentar, mesmo sabendo que era inútil. Jamais, ela o ouviu ecoar em sua mente em definitivo, saindo de sua mente. Não era só por John ter colocado Isabella contra ele. Se Lucifer a amasse tanto assim não levaria John consigo, fazendo com ela sofresse ainda mais, desta vez, para sempre. Tinha que descobrir o que era. — Conseguiu conjurar o... — Massimo começou a perguntar, mas foi interrompido por um arrepio, fazendo o sinal da cruz logo em seguida. — Satanás? — Lucifer perguntou, dirigindo-se a Massimo com um sorriso que tanto podia ser cínico quando amigável, tudo dependia de quem ele estaria enganando. — Não gosto de pronunciar esse nome — Massimo disse. — Atrai. — Eu sei — Lucifer concordou, claramente se divertindo. — Podemos entrar? — John perguntou, aproximando-se com um braço protetor ao redor da cintura de sua Bells. E se eu encontrar um portal que me dê acesso ao inferno?, Isabella se perguntou. Nem pense nisso, Lucifer a advertiu. Sabe o perigo que traria a humanidade deixar um portal desse tipo aberto, sei que não é egoísta o bastante para colocar a vida de tantos humanos em risco, os expondo a demônios. E se já existir um portal?, ela insistiu. Não existe, desista. Lucifer interrompeu o diálogo mental outra vez. Se concentre em John, são seus últimos momentos com ele. Ela fez uma careta, apertando-o com firmeza. — Claro, venham — Massimo disse, retirando um molho de chaves do bolso e procurando a que abriria a grande porta da igreja centenária. — Nem pense em sair por aí tentando abrir um portal para o inferno — John murmurou, a fazendo lembrar de que ainda podia saber o que ela estava pensando. — Prometa que vai cuidar da minha filha e irá viver como uma humana normal. — Eu... — Só prometa, Bells.
— Tudo bem. Eu prometo — ela disse sem muita segurança. — E se ele tem mais algum motivo para me odiar, não adianta ficar tentando decifrar o que é. A decisão já foi tomada — John continuou baixinho, enquanto Massimo abria a porta e fazia sinal para que eles entrassem. Lucifer virou-se na direção do casal e abriu um largo sorriso. Isabella não pôde deixar de observar como ele era lindo e sedutor. Enganaria qualquer um facilmente. Ele foi o primeiro a entrar, passando por Massimo, pedindo licença com uma simpatia exagerada. John conduziu Isabella pelos degraus que levavam até a porta, percebendo os olhos cheios de expectativa de Massimo o encarando, e se dando conta de que já havia alguém na igreja. Rafael, foi tudo que ele pensou. — Quem é esse, John? — Massimo questionou com precaução, aos sussurros. — O diabo — John respondeu sem rodeios, passando pelo amigo e observando o rapaz parado diante do altar, que estava iluminado por uma lâmpada amarelada. Rafael usava um terno grafite, uma camisa preta com alguns botões abertos e sapatos de couro lustrosos. Estava com as mãos nos bolsos e olhava para a imagem de Cristo com atenção. — Olha só! — Lucifer disse, caminhando com passos largos na direção do rapaz. — Olhe em volta. Há tantas imagens nesta igreja, tantos quadros e estátuas, mas nenhum é sobre você. Isabella, compadecendo-se de Massimo, soltou-se de John e segurou as mãos dele. — Eles não vão ficar por muito tempo, não vão destruir sua igreja nem te prejudicar — a jovem disse com compaixão, percebendo que a pele de Massimo havia empalidecido. — Como John pôde trazer um demônio e o próprio diabo aqui? — Massimo quis saber, sentindo-se traído. — Essa era a única escolha que ele poderia fazer — ela admitiu, entendendo, por fim, a decisão de John. — E são dois demônios. Ela empinou o queixo na direção do banco da fileira direita mais próxima ao altar, onde havia uma figura sentada na penumbra. — Meu Pai — ele clamou, desesperado. Isabella apertou as mãos de Massimo mais forte, tentando distraí-lo da discussão que se iniciava no altar. — Precisa manter a sanidade. Você está na presença de cinco anjos caídos.
Os olhos escuros de Massimo a fitaram, procurando um lampejo de mentira em seu semblante, mas só enxergando a mais genuína verdade. — Você e John também caíram — ele concluiu depois de um instante. Seu corpo inteiro estava arrepiado, recordou-se de ler em algum lugar sobre os anjos que tinham caído por se apaixonar, mas não imaginava que tinha sido entre eles. Pensou em ser forte e exigir que deixassem a casa de Deus imediatamente, então se deu conta de que não havia nada que pudesse fazer, que era apenas um homem diante de seres com poderes inimagináveis, e que talvez tudo que ele já tivesse lido sobre eles não tivesse fundamento nenhum. — Eu preciso que seja forte e preste atenção em tudo que testemunhar aqui esta noite — ela pediu com urgência. — Vou te explicar rapidamente, porque quero que escreva nossa história e a esconda no antigo casebre onde vivei com John no século XVIII. Entendeu? Massimo meneou a cabeça positivamente. Ela precisou controlar a respiração antes de voltar a falar. — Éramos todos irmãos, filhos do Pai. Lucifer, como você já deve saber se revoltou, mas nós não lutamos a seu favor, e sim contra ele na grande batalha. Ele, junto com a legião de anjos que o seguiu, foram expulsos e condenados ao inferno, transformando-se em demônios, pelos quais Lucifer é responsável desde então, assim como... — ela deu de ombros — os humanos que não se comportam muito bem. Mas John e eu nos apaixonamos, algo que sempre foi proibido entre os anjos. O Pai nos baniu do céu por isto, arrancou nossas asas e nos amaldiçoou a viver uma vida após a outra sem nunca ficarmos juntos. Esse demônio que possui o corpo de Rafael lutou ao lado de Lucifer na batalha, porque sentia inveja dos arcanjos e também queria ser adorado. No inferno, ele tentou criar sua própria legião, se amotinando contra Lucifer, que descobriu seus planos e acabou o expulsando também do inferno. Está conseguindo compreender? É a forma mais resumida da nossa história, mas é tudo que posso contar. — Sim, estou — Massimo respondeu, sentindo que estava perdendo as forças de seus membros, tamanho era o pavor. — Lucifer não veio até aqui para fazer algum mal a você ou a sua igreja, além do que sua presença em si já causa. John propôs que... — Isabella precisou para por um instante e engolir o pranto que queria continuar sendo derramado. — Ele vai atender o pedido de John de aceitar o demônio de volta no inferno, mas em troca disso, John terá que ir com ele também. — Não — Massimo murmurou. — John não pode fazer isso. — Infelizmente, não há nada que eu possa fazer para impedir. Entendo que ele está fazendo isso mais por sua filha do que por mim e não concordo, mas não vou passar os últimos momentos de sua vida brigando com ele. — Se o... — Massimo começou, sem ter muita coragem de falar. — Lucifer? — Isabella disse, ao ver sua relutância.
Ele fez que sim com a cabeça. — Se ele levar a alma de John, significa que ele não irá mais renascer, que você reencarnará sozinha. — Exatamente. É a nossa maldição. — Só por amar? — Massimo questionou. — Não devemos nunca contrariar a vontade do Pai, agora eu sei e entendo, John também. Massimo sacudiu a cabeça positivamente com vigor. — Eu jamais questionaria uma decisão do Pai Celestial. Você... Você já esteve diante dele? Vocês e todos? — Sim, mas não me pergunte mais que isso. Massimo compreendeu que não deveria desejar saber mais do que aquilo que lhe fosse revelado. — Entendeu o que quero que faça? — ela quis saber. — Que registre tudo, para que um dia, em uma outra vida, caso você venha a ter uma leve recordação, possa encontrar as escrituras contendo sua história. — Isso mesmo — ela falou com um sorriso emocionado, incapaz de continuar segurando as lágrimas. — Você é muito inteligente, é por isso que John tem tanta consideração por você. Agora... quer dar uma olhada nesses anjos caídos mais de perto, sabendo que nenhum mal vai lhe atacar? Massimo olhou para o altar, sem prestar atenção no que os quatro discutiam. — Essas são suas verdadeiras formas? — ele quis saber. — Nunca ouviu falar que Deus fez o homem a sua semelhança? — Isabella respondeu com outra pergunta. — É claro. Mas o diabo não teria ganhando uma aparência mais horripilante? — Quanto a isso, não sei dizer. — Ele está possuindo um corpo, como os outros demônios fazem? — Massimo quis saber. — Acredito que não. Não posso afirmar, mas acho que ele não é como os outros demônios, é muito mais poderoso e astuto. Tudo que posso dizer é que o abracei e seu corpo é bem real.
— Você abraçou o diabo? — Massimo disse, sem conseguir disfarçar o horror. — Fomos todos irmãos, quando éramos dignos de entrar na morada do Pai, e nos amávamos muito. — Minha jovem, sei que já foi um anjo e que não sou ninguém para lhe dar conselhos, mas não é errado adorar o diabo assim? Você fala como se ainda fossem irmãos. — É difícil odiar alguém que amei tanto — ela sussurrou, ciente do quanto era tola e, como Lucifer tinha dito, propensa ao perdão. Ela segurou no antebraço de Massimo e começou a guiá-lo até o altar.
Apenas um rapaz pobre de uma família pobre
Era
uma falta de respeito absurda usar a imagem de alguém que sua maldade havia o consumido, mas aquele outro demônio, que eles mal sabiam que estavam entre eles, se exibia como a falecida Endy. Mas era um corpo. De fato, esse tão demônio não havia possuído o corpo morto de Endy. Tratava-se apenas de uma aparição. — Um demônio fingindo se passar por um espírito humano, nada de novo — John disse ao passar o braço ao redor da cintura de Isabella quando ela se aproximou. — É baixo, é ridículo e é bem a sua cara — Lucifer disse ao olhar para a aparição. Rafael deu risada. — Está rindo de mim? — o diabo perguntou, virando a cabeça de um jeito estranho para olhar o rapaz. Rafael soltou um grunhido de dor, se curvando de repente. Isabella soube naquele instante que suas asas iriam aparecer. Lembrou-se da vez em que o vira abrir as asas pela primeira vez como humana, no poço que ficava atrás do casebre. Recordou também de ouvi-lo conversar com alguém. — Você — ela concluiu, olhando para a aparição em forma de Endy. — Nos acompanha há muito tempo. A aparição riu.
— Ahhhh — Lucifer grunhiu, em seguida, o demônio havia desaparecido. — O que aconteceu? — John quis saber. — Ele voltou para o lugar de onde nunca devia ter saído, mas não se iluda, John, não será tão fácil quanto fiz parecer. Rafael continuava curvado, gemendo com dor, enquanto as asas se abriam lentamente, vermelhas como sangue. John apertou a mão dela, desejando poder levá-la para longe, mas sabendo que não podia. Então, Lucifer andou lentamente até o rapaz, se agachando e se inclinando na sua direção. — Durante todo esse tempo, só conseguiu que um demônio fosse fiel a você? — o diabo questionou. — Persuadiu tantos outros a escaparem do inferno, mas só um te acompanhou. Se dá conta do quanto é imbecil? Dito isso, ele agarrou uma das asas vermelhas e começou a quebrá-la, causando um barulho estranho que ecoou pela igreja, junto aos gritos do rapaz. — Quem está sentindo a dor, o demônio ou Rafael? — Isabella quis saber. — Não sei — John respondeu. — Acho que os dois. Quando a asa caiu, ainda presa as costas dele, porém destruída, Isabella agoniou-se com aquela visão, lembrando-se do quanto era doloroso ser machucada assim. O líquido negro e pegajoso escorria dos ferimentos do rapaz, seu terno e camisa estavam arruinados. Ela não podia mais olhar, apoiou o rosto contra o peito de John. — Não, Bells — John disse, segurando seu queixo e virando seu rosto na direção da cena novamente. Lucifer estava estraçalhando a outra asa, e os sons eram aterrorizantes, além de um cheiro nauseante que ela pôde notar. — Eu te amo muito, e sei o quanto é terrível ver, mas preciso que olhe, que lembre-se para sempre de nunca tentar abrir portal nenhum para ir me buscar. Pelo amor que ainda temos pelo Pai, não permita que mais demônios como este vaguem pela terra. Me prometa. Ela soluçou, enterrando as unhas na cintura de John, desesperada com os gritos do rapaz. — Eu prometo — respondeu em um lamento de dor. Ambos sabiam que aquele não era o único demônio a vagar pela terra, que haviam outros por aí, mas não queriam ser responsáveis pela fuga de mais algum. Rafael se jogou para a frente, o par de asas quebradas caídas de ambos os lados do seu corpo. Começou a rastejar para longe, urrando em desespero, mas Lucifer pisou sobre uma das asas, o impedindo de ir a diante.
— Acha que acabou? — ele perguntou para a criatura ferida. — Só está começando. A alguns metros dali, Massimo estava apoiado em dos bancos, segurando o rosário, recitando as orações com toda fé que possuía. Lucifer encurtou a distância e chegou mais perto do demônio, segurando uma das asas pela base, começando a puxá-la lentamente. — Não posso ver isso, John! — Isabella berrou, mas seus gritos eram abafados pelos grunhidos e urros do demônio. — Eu lembro como dói. Não posso ver! — Precisa — John disse contra seu ouvido, mantendo o rosto dela na direção dos dois. — Se você não levar essa lembrança consigo, vai acabar fazendo alguma besteira. — Não posso suportar saber que você irá com eles — ela lamentou. — A dor vai me matar. — Não vai — John retrucou, a voz falhando pela agonia que sentia de ter que fazer Isabella testemunhar tudo. — Não vai, meu amor. Você ainda viverá muitos anos. O maior grito de todos ecoou pelas paredes da igreja quando Lucifer finalmente arrancou toda a primeira asa das costas do demônio e a ergueu, fazendo o líquido respingar, para depois jogá-la para longe. Ainda faltava uma. Parecia que tinha levado uma eternidade para arrancar a primeira, mas o processo de extrair a outra foi ainda mais lento. Massimo julgou que não fosse conseguir aguentar mais daquilo, mas as palavras de Isabella o pedindo para escrever sua história ainda ecoavam em sua mente, por isso ele se manteve forte e são. Em determinado momento, ainda puxando a segunda asa, Lucifer virou o rosto e olhou diretamente para Isabella. No mesmo instante, sua mente foi invadida pelas lembranças de toda a dor que aquele demônio já tinha lhe causado. Lembrou-se de ter sido estuprada por ele até morrer, recordou a dor, e então todo o caos que passou com John quando se casaram, mas teve algo ainda mais perturbador que lhe veio à mente. — Tem mais alguém que foi meu brinquedinho por alguns meses. Ela não era tão boa e divertida quanto você, mas me serviu. Relembrou a conversa com aquele demônio. — Não! Teresa não! — Seu pai era tão ambicioso. Lhe dei algum dinheiro e ele a entregou de bandeja. John estava ocupado demais pensando em você. Não imaginou que seu melhor amigo fosse se interessar pela pequena Teresa.
— O que fez com minha irmã? — Eu a devorei. Comi seu corpo, sua mente. Eu fiz um filho nela. Pena que ela era inteligente demais. Se matou porque não queria ter um filho de um demônio. Sacrificou sua alma. Mas até nisso, ela me divertiu. Foi nesse momento que ela caiu em si e teve noção do tamanho do mal com o qual convivera por tanto tempo e que, por mais que Lucifer fosse educado e gentil com ela, por mais que falasse com suavidade, ele não era mais o irmão que ela tinha amado, mas sim uma criatura muito pior que aquele demônio, e que ia levar John consigo. Tentou desviar o rosto, mas não conseguiu. — John — pronunciou o nome de seu amado, sem conseguir imaginar o tamanho do medo que ele deveria estar sentindo. Então... estava acabado. As duas asas haviam sido arrancadas. Lucifer se inclinou sobre o corpo e disse algo que eles não puderam ouvir. O corpo de Rafael caiu sem forças no chão. Seus dedos arranharam o piso enquanto ele tentava tomar o controle da respiração. Lucifer ficou de pé e começou a se afastar do rapaz. As asas vermelhas, ou o que sobrou delas, haviam desaparecido. — Acabou? — Bells quis saber. — O demônio se foi? — Sim, minha querida — Lucifer disse com suavidade, mas depois de ter visto tudo aquilo, Isabella não se iludiria mais. John a soltou, e ela sentiu uma amostra do vazio que a consumiria depois que ele partisse. Abraçou o próprio corpo e mal pôde ver o que estava acontecendo. Seu amado sacou a arma do cós da calça e deu passos largos na direção do rapaz caído. — John! — ela gritou, chocada. — O demônio não está mais dentro dele! — É verdade? — ele perguntou a Lucifer. — Você o mandou de volta ao inferno? — Sim. De onde ele nunca mais sairá. — Era só isso que eu queria saber — John disse e puxou o gatilho. — O que vai fazer? Ele é... — Isabella procurou as palavras. — Só um rapaz pobre, de uma família pobre... — É só alguém que deixou um demônio possuir seu corpo e te estuprou. Você não quis me contar, mas eu me lembro de tudo agora, Bells. Ela encarou os olhos castanhos do rapaz e, antes do seu coração bater de novo, o barulho do tiro a fez estremecer.
Suas pernas perderam as forças, mas Lucifer a segurou, apertando-a contra seu peito. — Vai, John — ele disse com a voz aveludada, afagando os cabelos de Isabella e a balançando devagar, como se embalava uma criança. — Minha querida, ele iria para o inferno de qualquer jeito. A igreja só não ficou em silêncio porque o choro de Isabella cortou a noite. Ele apoiou o rosto contra o dela e começou a cantarolar em seu ouvido. — Eu ainda te amo, minha Bella, mas não sinto remorso, muito menos tenho alguma inclinação a perdoar. E foi após aquelas palavras que ela caiu em si, recordando o porquê de Lucifer não perdoar John. O quebra-cabeças se completou, e ela arfou com os olhos arregalados fitando o nada. — Foi John — murmurou, se afastando para encará-lo. A igreja tinha ficado estranhamente solitária, apenas Lucifer, Massimo e Isabella. — Sim, foi ele. — Miguel conduziu a batalha, mas foi John quem deu o golpe que te destruiu — ela concluiu em uma mistura de horror e falta de esperança. Como poderia argumentar contra aquilo? John era responsável pela derrota de Lucifer, que nunca poderia esquecer. Lucifer a apertou mais forte. — Não quero mais falar disso — ele sussurrou contra seu ouvido, com a voz calma, mas séria. — Eu não poderia deixar de insistir. — Não é por você, querida — ele respondeu. — É por ele. Como eu teria autoridade sobre meus demônios se perdoasse o responsável pela minha queda? — Não! — Isabella elevou o tom de voz, se afastando dos braços do antigo irmão. — John não é responsável pela sua queda. A culpa foi toda sua. Nunca deveria ter enfrentado o Pai, desejado estar acima dele. Não pode culpar John por ter defendido quem nos criou. O único culpado é você. Ele a encarou sem piscar, ainda com o semblante sério, mas não parecia magoado por suas palavras. — Você se arrepende... — ela murmurou. — Jamais. — Então você gosta de onde está? Gosta do seu inferno, de ter todos aqueles demônios
fazendo maldades, profanando os humanos e fazendo justiça a sua memória? Lucifer deu de ombros. — Você não entende que não daria certo no céu? — Isabella quis saber. — Talvez... — Então me escute. — Sou todo ouvidos, Bella. — Tem que haver alguma coisa que eu possa fazer para trazer John de volta — ela disse, tomada por uma esperança repentina. — Ele não pode queimar para sempre. — Não — Lucifer respondeu, irredutível. — Nem que seja a última coisa que eu faça — ela insistiu, desesperada, indo até ele com as lágrimas nublando sua visão. Em desespero, Isabella segurou em sua cintura e se ajoelhou diante dele. — Se ele cair, eu caio. Então me leve junto. Ele observou aquela bela figura, o olhando de baixo com os olhos azuis, as lágrimas banhando a pele pálida. Precisou manter a máscara de tranquilidade. — Por favor, irmão — Bella murmurou com os lábios inchados, passando os braços por trás dos joelhos de Lucifer e beijando sua coxa direita. — Tem que haver algo que eu possa te dar em troca de me trazer John de volta. Segurando seu queixo, ele ergueu o rosto dela para encará-la novamente, então também se ajoelhou. — Você é a única que minha vaidade não deseja ver aos meus pés — sussurrou, arrumando seus cabelos e afastando as lágrimas com a ponta dos dedos. — Mas eu não posso perdoar seu querido John. — Ah — ela gemeu, vendo a oportunidade escorregar pelos seus dedos. — Qualquer coisa, Lucifer. Estou implorando! Não estou envergonhada por me ajoelhar aos seus pés. Deve haver alguma coisa que você queira de mim. — Tem algo, mas não é trabalho para você — ele murmurou, pensativo. — Faço qualquer coisa, desde que me devolva John. — Não, querida. — Lucifer! — ela perseverou. — Não vou devolvê-lo nessa vida.
— Em outra encarnação, eu não ligo! Sei que um dia nos encontraremos — afirmou, tornando a chorar, mas desta vez de esperança. — Só precisa me dizer o que tenho que fazer. — Já disse que não é trabalho para você. — E eu já te disse que faço qualquer coisa. — Isabella estava eufórica. — Alguns demônios escaparam do inferno. Muitos, na verdade — Lucifer começou. — Fico entediado de vir aqui na terra mandá-los de volta. — Você quer que eu capture todos os demônios que fugiram do inferno? — ela perguntou, abismada. Não imaginava que seria algo tão difícil. — John é tão importante assim para você? — Sim... Mas como farei? Não sabia nem como lidar com aquele demônio... — Vou abrir um portal, no mesmo lugar em que John me procurou. Fica na Califórnia, no Deserto do Mojave. Ali perto há um vale muito quente, perfeito para isso. — Um portal não vai servir para outros escaparem? — Isabella indagou, sentindo-se ansiosa. — Massimo pode te ajudar a manter o lugar protegido — Lucifer disse e olhou para o homem trêmulo ao lado da primeira fileira de bancos. — Os darei todos os conhecimentos e ritos para exorcizar meus demônios imbecis e mandá-los de volta para casa, onde serão punidos pela fuga. Isabella olhou para Massimo, fazendo sinal para que ele se aproximasse. — Você pode usar seu namorado. Tudo que faz é usá-lo, de qualquer maneira — Lucifer continuou. — E ele será recompensado, ficando com você pelo resto de sua vida. — O que vou dizer a Ethan? — ela quis saber. — A verdade: que este foi o meu preço por não maltratar muito John no inferno. — Tudo bem, eu faço — ela disse e riu sem humor. — É irônico que John tenha ido para o inferno para nos livrar de um demônio e agora eu terei que viver atrás de muitos outros. — É cômico — Lucifer admitiu. — Uma piada. Mais divertido ainda é saber que terei um anjo caído que ainda adora o Pai, um homem de fé e um outro semelhante a Jesus Cristo servindo a mim. Acho que minha reputação nunca esteve melhor. — Você pode me ajudar, Massimo? — a jovem perguntou para o homem que havia se aproximado. — Por John e pela humanidade — ele respondeu.
Ela acenou, agradecida, sentindo o coração cheio de amor novamente. — Vamos salvar a humanidade desses demônios malditos. Ethan ficará empolgado — ela brincou. Claro que ele não ficaria. — Preciso voltar, minha querida. O tempo corre de forma curiosa aqui...
∞∞∞ Antes de partir, Lucifer voltou com Isabella ao hotel, onde deu uma verdadeira aula sobre exorcismos. Massimo os acompanhou, de alguma forma, sentindo-se seguro, sabendo que teria que repensar todas as suas crenças dali em diante. Isabella e Ethan nunca se casaram, não tiveram filhos, mas cuidaram de Lanai como se fosse deles, assim como ela veio a cuidar deles quando ficaram mais velhos. Viveram muitos anos juntos, seguiram com suas carreiras públicas, enquanto investigavam secretamente cada relato sobrenatural do qual se ouvia, localizando os demônios fugitivos e os exorcizando, um após o outro. Um trabalho árduo e cansativo, que só acabou quando o anjo da morte voltou para buscar um deles. Ethan foi primeiro. Dois anos após sua morte, Isabella também partiu. Seu último pensamento foi a recordação de John pedindo para esperar por ele. Após uma longa investigação, a morte do lutador Rafael Valentin foi atribuída a um assalto. O corpo de John Smith nunca fora encontrado. Sumiu sem deixar vestígios. Os membros da banda Fallen Angells tentaram continuar com a banda, mas sem ele, sem ao menos saber o que havia acontecido com seu vocalista, acabaram se separando alguns anos depois.
Apenas feche seus olhos O sol está se pondo Você ficará bem Ninguém pode machucá-lo agora Ao chegar a luz da manhã Nós ficaremos sãos e salvos Taylor Swift - Safe & Sound (feat. The Civil Wars)
Bells Muitos anos depois...
Era
revoltante que uma mulher ainda fosse usada como mercadoria, como se não tivesse sentimentos e vontade própria, como se só servisse para atender as vontades de homens arrogantes e repulsivos. — Dizem que Deus sabe o que faz — ela murmurou, sozinha na carruagem, o corpo sacolejando por causa da estrada irregular —, mas duvido que ele tenha algo a ver com isso. Uma carruagem? Por favor! Sua bagagem também sacudia cada vez que as rodas do veículo passavam por um buraco. Pensou no rosto da mãe, no olhar severo do pai. Foi com mal estar que recordou o que haviam passado quando ele perdeu tudo que tinha. Por mais que ela imaginasse que as coisas ficariam difíceis, que o dinheiro acabasse, nunca pensou que seria ofertada para o primeiro milionário que aparecesse, vendida como um animal, coagida a salvar a família com apenas dezenove anos. O único consolo era saber que suas outras irmãs teriam um futuro melhor, já que as dívidas do pai estariam pagas e os negócios da família reerguidos. Alcançou o celular no bolso dianteiro da calça cinza de sarja, pensando em ligar para a mãe e ouvir sua voz novamente, já estava morrendo de saudades, mas notou que não havia sinal. Bloqueou a tela, frustrada Vira seu noivo apenas duas vezes. Era um homem na casa dos quarenta. Não era tão repugnante quanto havia imaginado, por isso não tinha esperneado e teimado como uma criança
pirracenta. Ele era até elegante, mas não existia química, amor, nem uma mísera atração física. E o pior de tudo era que não deixaria Isabella continuar a faculdade de administração, não permitiria que ela trabalhasse. Tudo havia sido acordado e colocado em um contrato, e todos esperavam que Isabella cumprisse com algo pelo qual ela não era responsável. — Que belo destino — resmungou, se permitindo fazer um bico, sentindo a agonia no peito por ter sua juventude roubada de tal forma, sem controle nenhum do próprio destino. Ainda precisaria ser simpática com todos. Seu noivo odiava mulheres de cara fechada. Sentiu quando a carruagem parou. O cocheiro desceu para abrir uma porteira. Ela já estivera em fazendas antes, mas considerava tudo tão rústico, jamais fantasiou viver em uma. Na estrada à frente havia um aclive, onde uma mansão de tijolos à vista e telhado de ardósia aparecia imponente. A jovem respirou fundo, apertando as mãos no colo e tentando ficar calma, dirigindo sua atenção ao gado robusto nos pastos que ladeavam a estrada. Quando o veículo se aproximou, viu que os empregados estavam enfileirados logo atrás do patrão. Riu com a cena. Havia quatro mulheres uniformizadas, um senhor que parecia um mordomo e um rapaz com roupas velhas e sujas. Foi ele que abriu a porta da carruagem para que Isabella descesse, de cabeça baixa, sem a encarar. Pareciam ter quase a mesma idade, mas a julgar pelo modo como seus ombros estavam caídos, não pareciam ter a mesma criação. Ele era o mais jovem dos empregados, e também o mais alto — devia ter quase dois metros de altura. Quando ela se aproximou dele para descer da carruagem, um pensamento repentino lhe veio à mente: se você cair, eu também caio. Ironicamente, acabou tropeçando com os bicos das botas novas e quase se estatelou no chão, sendo amparada pelo ágil rapaz. Ele a segurou pelos cotovelos, tocando sua pele macia com suas mãos ásperas, calejadas e sujas de barro. Os quatro pares de olhos azuis se encararam pelo tempo suficiente de ele se certificar que ela estava bem. Isabella piscou, certa de que já tinha encarado aqueles olhos antes. Foi tomada por uma familiaridade tão grande que a deixou tonta. — Saia de cima dela, seu incompetente — ouviu o berro do noivo se aproximando, empurrando o rapaz para longe como se ele fosse um animal com alguma doença contagiosa. — Está sujando as roupas dela com sua imundice. Ela ficou em choque com aquele comportamento, se sentindo mal por ser a culpada, por chegar já trazendo desentendimentos, mas se sentiu ainda pior em ver como o noivo tratava os empregados. Seu estômago foi tomado por uma sensação desagradável. — Me desculpe por isso — tentou dizer ao rapaz, mas este já estava se afastando na direção do celeiro que havia a alguns metros do casarão. — Ele só estava me ajudando... — Calada, mulher — o noivo murmurou em seu ouvido, usando um perfume cítrico, o cabelo bem penteado e um terno elegante, baixando ainda mais o tom de voz ao apertar seus
antebraços na frente dos funcionários. — Seu pai não te avisou que detesto ser contrariado? Ela encarou seus olhos verdes, as rugas aparecendo no rosto contraído de raiva, o nariz franzido como um cachorro rosnando. Como não respondeu, ele apertou ainda mais seus antebraços, até doer. — Me desculpe, senhor — ela disse, enojada, sentindo vergonha por ser recebida daquele jeito. — Faça tudo que exigi e nunca terá problemas — o noivo disse com a voz macia, soando terrivelmente falso, ainda a apertando com intensidade, se inclinando para baixo para beijá-la. — Não faz ideia do que quero fazer com você. Era para ter soado sexy, mas tudo que ela sentiu foi repugnância, dando-se conta do quanto estava encrencada, que iria para a cama com aquele bruto sem nenhuma vontade. — Me solta! Amaldiçoando o pai em pensamentos, começou a puxar os braços, pronta para dizer que a porcaria do contrato estava cancelada e que ela não iria mais se casar, mas então ele a pressionou ainda mais. — Cada vez que me contrariar, vou fazer de putinha uma de suas irmãs mais novas. Sua família inteira me pertence agora. Ela olhou sobre o ombro dele, vendo os empregados de cabeça baixa, sabendo que eles tinham acabado de ouvir essa última fala, mas que não a ajudariam. — Tem alguém sempre por perto delas. Se você fugir, bastará um telefonema meu para que ele traga uma delas para mim. — Elas são minhas irmãs — ela sussurrou, nauseada, sentindo a pele queimar de pavor, os olhos arderem e a garganta se fechar. Que bela recepção! — Seu pai te condenou — o noivo disse, soltando seus braços e segurando seu queixo, para enfiar a língua em sua boca. Ela quase o mordeu, mas as ameaças a fizeram resistir. Estava perdida. — Vou viajar, será breve. Volto em dois ou três dias. Me espere, Isabella, e se comporte como uma verdadeira dama, não como a patricinha mimada de classe média que é. Então, entrou na carruagem, a deixando trêmula e horrorizada. — Tirem essa bagagem daqui. Onde está aquele inútil do John? — o noivo berrou. O restante dos empregados correu para pegar suas malas. Uma das funcionárias tentou ampará-la assim que os cavalos começaram a se
movimentar, puxando o veículo. — Vamos entrar — a mulher disse com um sorriso ensaiado no rosto. — Vou te levar até seu quarto. — Minhas irmãs — Isabella murmurou. — Se for obediente, nada de ruim vai acontecer com elas. Terão tudo. — E se eu for à polícia? Preciso ligar para meus pais. — Não vai adiantar de nada. Ele é um mafioso, paga propina aos policiais. Além disso, não usamos telefone aqui e os celulares não pegam. Ele odeia ter tecnologia aqui na fazenda. As outras ajudaram o senhor a carregar suas malas. Ela tentou arrastar uma das bagagens, mas eles não deixaram. A mansão era bonita por dentro, rústica, mas elegante, com lustres enormes, sofás de couro, quadros caros e uma iluminação aconchegante, mas Isabella ainda estava perturbada demais para reparar em coisas tão fúteis. Quase tropeçou em suas botas novamente ao subir as escadas, mas o senhor a ajudou a se manter firme. — Este é o quarto dele? — perguntou quando abriram a porta. — Não. Será apenas seu quarto, ele gosta de ter privacidade — a mulher mais velha e simpática explicou. — Pelo menos isso. O senhor a levou até a cama e ajudou-a a tirar as botas, onde ela desabou em um choro desesperado, enquanto eles desfaziam suas malas e guardavam tudo no closet como se não houvesse uma garota em prantos bem ali.
John
No verão, o jantar era servido antes do sol se pôr, por volta das 19h. Colocaram a mesa para que ela fizesse a refeição na sala de jantar, mas Isabella não gostou nada daquilo, como uma típica italiana, estava acostumada com conversas animadas na hora do jantar, não a comer sozinha e em silêncio. Seu rosto ainda estava vermelho e inchado quando ela adentrou a cozinha. — Vou levar o jantar de John, antes de começarmos a comer — uma das mulheres dizia, colocando comida em uma marmita pequena. — Levar aonde? — Isabella a questionou, pegando a mulher de surpresa. — No celeiro, senhorita. Isabella olhou para a mesa rústica e para os dois bancos compridos de madeira, onde os outros estavam sentados. — E por que ele não vai jantar aqui com vocês? — ela quis saber, imaginando que aquele rapaz ainda tinha trabalho a realizar antes do anoitecer. Era estranho pensar nele e sentir aquela familiaridade outra vez. Não conseguia se lembrar de onde o conhecia, mas sabia que já tinha o visto antes. Chegava até a pensar que ele já tinha feito parte de sua vida. Mas onde? Quando? — O patrão não permite que John coma na casa. — Por quê? — Isabella perguntou, curiosa. — Não questionamos suas ordens — a mulher disse como se estivesse no piloto automático. — John não come conosco nem mesmo quando ele viaja por alguns dias — o senhor completou —, porque se o patrão descobrisse, todos seríamos punidos. Perplexa, mas consciente de que não deveria mais se surpreender, ela se aproximou da bancada onde a pequena marmita estava. — É isso que ele vai comer? — Dentro do recipiente continha apenas uma pequena porção de risoto e uma fatia de pão de aspecto duvidoso. — Enquanto me serviram um cozido inteiro e todos aqueles acompanhamentos, vai levar só isso para quem deve ter passado o dia trabalhando duro?
Ela olhou para cada um dos empregados, que estavam de cabeça baixa. — Só cumprimos ordens, senhorita — uma das mulheres mais jovens murmurou. — Não somos nós quem ditamos quanto John pode comer. Além disso, ele sabe caçar. Sempre foi assim. É nele que o patrão costuma descontar sua raiva. John vive aqui desde pequeno, está acostumado com isso. Ela os fitou sem saber se sentia raiva ou pena, alcançou uma travessa em um dos armários e começou a encher de comida. Munida de dois pratos e talheres, ela partiu para o celeiro. Nenhum dos empregados pediu para que ela não fosse. Saiu pelos fundos e atravessou o descampado entre a mansão e o celeiro, passando pelo galinheiro onde as aves já se empoleiravam para dormir, os cercados de ovelhas, os currais e viu ao longe o que parecia ser um chiqueiro de porcos. Entrou no celeiro devagar, com cuidado para não fazer barulho. Chegou ao corredor das baias dos cavalos e, pela primeira vez, se perguntou onde aquele rapaz dormia, já que não podia sequer comer na mansão, e não havia outras casas por ali que poderiam pertencer aos funcionários. Sentiu seu coração se apertar com as possibilidades. Seus sapatos mal faziam barulho, enquanto equilibrava os utensílios em seus braços e se dirigia para a última baia, a única onde havia iluminação artificial de alguma lâmpada amarelada. Passou pelos cavalos, que não fizeram nenhum sinal de protesto por sua invasão, e alcançou a baia. Deparou-se com a visão do corpo nu e molhado do rapaz, que estava de costas. Suas coxas eram grossas e as panturrilhas definidas, os ombros largos, os braços musculosos, a bunda era lisa e redonda, mas a pele de suas costas era marcada por cicatrizes. Ela arfou, abalada, deixando os pratos caírem, causando um barulho que chamou a atenção dele, que se virou depressa. Isabella tentou equilibrar a travessa com comida, mas quase fraquejou diante da parte da frente do corpo do rapaz. Ela queria virar o rosto, olhar para os pratos destruídos aos seus pés, mas não conseguiu controlar. Viu o peito rígido, o abdômen marcado por gomos, como se tivesse sido esculpido, e a pelugem logo abaixo do umbigo que levava ao falo. Foi só uma fração de segundo, mas ela conseguiu pensar em mil formas de se enroscar naquele corpo. — M-me desculpe, e-eu não vi na-nada — balbuciou, recobrando o domínio da mente e se virando, sentindo o rosto ferver de vergonha, o corpo aceso por um desejo que a fez tremer. Esperou pelos protestos do rapaz, precisando se segurar para não virar e dar mais uma boa olhada, mas ele não disse nada. — Vim trazer seu jantar — acrescentou após um longo instante constrangedor de espera. Silêncio. — Como sou diota! — ela xingou baixinho, se virando, ciente de que não poderia passar
a eternidade parada ali. Ele tinha colocado calças de um jeans desbotado e vestia uma camisa marrom com alguns rasgos próximos às costuras. — Essa comida não é minha — ele disse, encarando a travessa com o cozido e os legumes, os dedos terminando de fechar os botões da camisa. — Não poderia deixar que comesse tão pouco — a jovem murmurou, apoiando a travessa na porta dividida da baia. — Me chamo Isabella. — Eu sei — John respondeu, fazendo com que ela imaginasse que eles realmente se conheciam. — A fazenda inteira estava esperando por você. O patrão não é de esconder suas conquistas. Sem querer ofender... — Em termos mais nobres, estou me casando com um homem gentil que ajudará a quitar os débitos do meu pai por amor à família, mas, em outras palavras, fui vendida como uma daquelas vacas do pasto. — Uma vaca teria mais sorte — John comentou, se encaminhando até a porta e pegando a travessa das mãos da jovem. — Quer entrar? — Tinha pensado em comer aqui, mas acabei quebrando os pratos — ela comentou enquanto ele abria a porta, observando em volta, vendo ferramentas penduradas em pregos na parede, uma cela, chicotes, cordas, chapéu e outros utensílios. Na parte dos fundos da baia havia uma cortina de malha preta enrolada em um nó, que funcionava com uma divisão, separando a entrada da baia do que parecia ser um cômodo de dormir. Graças à lâmpada incandescente que pendia do teto, ela pôde notar uma espécie de colchão de feno no chão, coberto por uma manta roxa. Perdeu o fôlego, engolindo a saliva, tentando se livrar do nó que se formara em sua garganta. Ali era sua morada? O lugar não tinha nem piso de cimento, o chão era de terra batida e fedia a esterco. Deu mais uma olhada discreta, sem querer parecer enxerida, desejando que ali fosse apenas o lugar de descanso do rapaz. Notou uma pilha de roupas sobre um banco, uma toalha de banho — que mais parecia um pano de chão — pendurada, alguns itens pessoais e uma imagem de Jesus crucificado sobre uma mesinha. Ela estava envergonhada, prendendo a respiração para não enjoar com o odor que vinha das outras baias. Se sentia mal por perceber que aquele realmente era seu lar, vivendo como um animal entre os equinos, dormindo sobre o feno e comendo sobras. Que espécie de vida era aquela? Que tipo de homem obrigaria um funcionário a viver assim? — A senhorita pretendia comer aqui? Por quê? — o rapaz indagou. Ele puxou um tronco de madeira e se sentou, fazendo sinal para que ela se acomodasse no banco que estava ao lado da porta.
— Não pensei muito bem. Não gosto de comer sozinha e os funcionários falam como robôs. Não me senti muito bem lá — ela disse sem jeito, sentando-se e imaginando como parecia tola e fútil diante dele. — Eu sinto muito — John disse. Ela precisou encará-lo para ter certeza de que ele não estava zombando. O rapaz parecia sincero. — Eles cumprem todas as ordens. — É por isso que está aqui? Por que não obedece? — Não, o patrão não gosta de me ver pela casa, nem de saber que estive lá dentro sem sua autorização. Sabe como é, ele gosta de tudo do jeito dele. — É por isso que você mora aqui? — ela não conseguiu se abster da pergunta, desejando não soar desrespeitosa. — Não é tão ruim. Ninguém me incomoda — ele disse e deu de ombros. — A não ser quando o patrão tem um surto. — O que ele faz? — Não quero assustá-la, mas ele gosta de maltratar quem precisa dele. — Quando fala sobre maltratar, tem algo a ver com as cicatrizes em suas costas? — Algumas sim — ele disse com franqueza. — Já que trouxe tanta comida, não vou desperdiçar. A senhorita está servida? — Eu como quando voltar ao casarão. Fique à vontade. E não precisa me chamar de senhorita. Só Isabella. — É a noiva do patrão, lhe devo respeito. — Não precisa, John — ela insistiu, sentindo um arrepio percorrer sua pele ao pronunciar seu nome. — Tudo bem, Isabella — ele murmurou com a voz macia, o que fez os arrepios se intensificarem. Sem fazer ideia do que ela pensava, John começou a comer depressa, levando garfadas generosas até a boca sem intervalo. Ela o assistiu, admirada com o sentimento que a dominava, que enchia e aquecia seu peito, como se não fosse errado estar ali, como se não fosse noiva de um homem que ficaria enfurecido se soubesse, como se não estivesse condenada. — Acho que te conheço de algum lugar — sussurrou, enquanto ele estava concentrado em mastigar depressa e engolir. — Você me parece tão familiar que... John ergueu os olhos da travessa, a encarando, foi quando Isabella se deu conta de que
seus olhos eram de um azul que ela nunca tinha visto antes. Seu coração pareceu incendiar dentro do peito. — Do que se lembra? — John quis saber, colocando a travessa sobre o chão e segurando as mãos dela, tão delicadas. Ela se afastou com o choque, arregalando os olhos e perdendo o fôlego. Queria traduzir em palavras o que estava sentindo, mas não era capaz de explicar. — Não me lembro! Só sei que passarei a noite inteira revirando na cama, tentando recordar de onde te conheço. Se sabe, me diga ou vou ficar louca! — Não posso — ele disse com pesar. — Como não pode? Então nos conhecemos de verdade? — Sim, mas não posso dizer de onde, por mais que eu esteja morrendo de vontade de te contar tudo que sei, terá que se lembrar sozinha. — Por quê? — Isabella quis saber. — Porque, se eu te contar, nunca mais poderei te ver. Era a maior das loucuras, mas era como se fosse apaixonada por ele. Por mais que o ambiente exercesse um certo mal-estar, não queria mais ir embora. Com o coração batendo forte, tomada por emoções inexplicáveis, começou a acariciar as veias nas costas da mão esquerda dele, agradecida pelo calor da sua pele ser tão aconchegante. — Por favor, me diga: por que estou me sentindo assim? — ela questionou, sentindo as lágrimas se formarem. — Assim como? — John perguntou, implorando em pensamentos para que ela o abraçasse, que se jogasse com toda força entre seus braços e dissesse que o amava e que ainda o amaria por toda a eternidade, que aquele imbecil do patrão poderia ir para o inferno, que era com ele que ela ficaria e que nunca mais se perderiam novamente, que pela primeira vez na história, eles envelheceriam juntos. Tinha tanta coisa que queria contar, mas estava fadado a depender de que ela se lembrasse por contra própria. — De onde nos conhecemos? — Isabella murmurou outra vez, desesperada, sufocada por aquela agonia e, ao mesmo tempo, sentindo uma faísca de esperança. Queria dizer que o amava, que queria dar o fora dali com ele, antes que aquele monstro voltasse, mas era loucura demais. Desejou ter asas e poder voar para bem longe com aquele rapaz, tirá-lo daquela vida, para serem felizes. Mas como diria isso a alguém que acabara de conhecer?
Sentiu as lágrimas escorrerem e se desesperou, sem conseguir mais raciocinar, deixando o desejo guiá-la, apoiou a boca no peito do rapaz, sentindo o cheiro de sabão caseiro em sua camisa, agoniada com o calor que crescia em seu interior, imaginando que já tinha se sentindo assim com ele milhares de vezes. Seu coração estava disparado, a fazendo estremecer, o suor começava a brotar em sua pele. Ela deslizou o quadril para a frente, chegando mais perto, subindo a boca para seu pescoço. — Passei o dia na lida com os animais, acho que o cheiro deles se impregnou em mim — John lamentou, envergonhado, abatido por ela não lembrar, e ainda assim mexer tanto com ele. Com um atrevimento que ela nem sabia que tinha, levantou-se do banco e sentou-se com as pernas abertas no colo de John, se inclinando em seu pescoço e aspirando seu cheiro másculo. Sem mais cerimônia, sem entender porque estava indo tão longe, ela começou a abrir os botões da blusa de seda lentamente. John sentiu o corpo doer de tanto desejo, a pulsação o fez latejar. Não podia nem tomá-la, se unir a ela antes que ela lhe desse permissão. — Bells — ele gemeu quando a jovem abriu a blusa e puxou uma das taças do sutiã para baixo. — O fogo do inferno não é nada comparado ao seu calor. Ela o calou ao oferecer o seio para ele o chupasse. — Me faça sua, John — murmurou. — Não quero entregar meu corpo àquele desgraçado. O calor se elevou ainda mais com suas palavras. Com sua permissão, John avançou sobre ela, abocanhando o seio enquanto suas mãos trabalhavam depressa em despi-la. Não havia tempo de sobra, e naquele momento ele sabia que precisava aproveitar ao máximo cada minuto ao seu lado. Ela sabia que o noivo a mataria se flagrasse aquilo, mas não ficou com medo. Era como se todos os seus problemas desaparecessem nos braços dele. Soltou um gemido quando John passou a língua contra a dela, se agarrou em suas costas e vibrou de satisfação quando ele a carregou até a cama de feno, se afundando dentro dela no frenesi insano, a fazendo alcançar níveis de prazer impensáveis para ela. E cada vez que chegava lá, era como se já tivesse estado ali dezenas de vezes.
Johnells
— Você acha que os outros empregados vão contar para meu noivo que vim aqui? — Isabella sussurrou entre os braços de John, sentindo-se mansa, relaxada, mas aflita pelas consequências daquilo. — Não sei te dizer. — Você não me diz muita coisa — ela murmurou, chateada por ele não contar o que sabia. — Eu não posso, minha Bells. Estive todos esses anos te esperando para te encontrar aqui, aguentando tudo que foi preciso, mas estou amaldiçoado a não poder dizer. — Você esteve aqui me esperando? John meneou a cabeça em confirmação. — Para me salvar dele? — Para viver para sempre ao seu lado, para ser feliz com você e nunca mais te perder. Só que de nada vai adiantar se você não se lembrar. — Não entendo! É alguma aposta idiota? Uma brincadeira? O que te impediria de falar? — Só pense, puxe pela memória e saiba que sempre te amei. Ela começou a se levantar, caindo em si e dando-se conta da burrada que tinha feito. O noivo havia pagado uma fortuna por sua virgindade, e ela entregava de bandeja a um peão. — Aonde vai? — John quis saber. — Para meu quarto — respondeu, revoltada com todo aquele suspense. — Não gostou? — Não é isso. Preciso ficar sozinha e tentar entender porque fiz isso. Ele a soltou, percebendo que ainda podia perdê-la outra vez. Se ela se casasse com o patrão, tudo estaria perdido. Isabella juntou as roupas e se vestiu, com o rosto sério e o olhar inexpressivo, pensando em sua mãe e suas irmãs, sem querer pensar no que o pai faria se o noivo a devolvesse e dissesse que não iria pagar mais dívida nenhuma.
— Imaginei que fosse passar a noite comigo — ele disse. — Vai me contar? — Não posso. — Então vou dormir no meu quarto. — Vou te acompanhar até lá. Ela quase abriu a boca para dizer que não precisava, mas ainda estava dominada pelo sentimento, pela paixão. Ainda mais confusa do que quando chegara ao estábulo, Isabella deixou que John a conduzisse em direção ao casarão e que segurasse em sua mão por todo o percurso. — Queria ficar com você até o amanhecer, mas preciso reorganizar os pensamentos, pensar nas consequências do que fizemos. Meneando a cabeça em concordância, ele se inclinou para apertar os lábios contra os dela. Queria implorar para que ela não se casasse, mas nem aquilo tinha permissão de fazer. Não era apenas uma ordem, se John abrisse a boca para falar a verdade, sua língua travaria. Isabella soltou sua mão e andou até a porta da cozinha, entrando sem olhar para trás. Passou pelo ambiente vazio e alcançou as escadas na grande sala. A cada degrau, ela recordava a loucura que tinha feito, sem se sentir realmente arrependida, desejando dar meia volta e correr para os braços dele de novo. No quarto, acendeu a luz fraca de um abajur e viu um livro sobre a cama. Se perguntando do que se tratava, ela se aproximou, passando os dedos na capa de couro preta com o título “VERMELHO ARDENTE” em caixa alta. Pegou o livro e abriu a primeira página, sentindo a brisa ao seu redor mudar. Sua nuca esquentou, seu coração começou a martelar no peito e ela se deu conta de que não estava sozinha ali. Pensou no noivo, que poderia ter voltado só para pegá-la no flagra, e foi incapaz de imaginar a punição que receberia. — Só fui levar seu jantar, e ficamos conversando. Não aconteceu nada demais — ela começou a dizer, ciente de que seu cabelo estava bagunçado e as roupas amassadas, virando-se devagar. Se deparou com um homem sentado na poltrona na frente da janela, ele usava terno preto e sapatos elegante, tinha cabelo escuro e um rosto muito bonito. — Não precisa me dar satisfação, minha querida. — Lucifer? — ela questionou, sendo tomada por uma enxurrada de memórias.
— A ideia de pedir a Massimo para escrever sua história foi ótima, mas minha presença é muito mais eficiente. Ela tentou se apoiar na cama, mas acabou escorregando para o chão, caindo sentada com o livro na mão. Lucifer ficou de pé e caminhou até ela com todo seu charme. — Você cumpriu com sua palavra — Isabella constatou, emocionada, sentindo o nó na garganta novamente. Lembrou-se de Teresa, Rafael, Ethan, Lanai, Endy e muitas outras almas que passaram em sua vida como humana. Sentiu-se ridícula por estar diante de John e não recordar que ele era o amor de toda sua existência, que tinha passado dezenove anos sem uma mísera recordação. — Acho que me ama mais do que ama John, porque é sempre na minha presença que você recorda — Lucifer brincou, sentando-se ao seu lado. — Não estou amaldiçoada a nunca poder ficar com você. — E se eu dissesse que vocês podem ficar juntos para sempre, que posso dar um fim a essa maldição... — Como? — ela murmurou, sem saber expressar como estava se sentindo. — John já me entregou a alma, só não tenho a sua. — O quê? Quer nos levar para o inferno? — Você iria? — Lucifer quis saber. — Por John, sim. Ele abriu um sorriso fascinado. — Não vou te levar a lugar nenhum, era apenas um teste. Só vim aqui para te fazer lembrar que são duas almas destinadas a ficarem juntas — Lucifer disse e revirou os olhos. — É tão tolo, mas é o que sentem. Não vou exigir nada em troca, é meu presente por sempre ter me olhado como o irmão que fui, mesmo quando eu não merecia. Levando as mãos em concha à boca, ela arfou, emocionada. — Você sempre foi tão caridosa, tão pura, tão propensa a ajudar quem mais precisava, só que desta vez, se quiser mesmo ficar com John, precisará ir contra sua natureza. — O que quer dizer com isso? — Está aqui para proteger sua família, mas se quiser ir embora com John, terá que deixálos para trás, esquecer sua mãe, suas irmãs, deixar que se virem sem você. Sei como se sente
responsável pelo bem estar deles, mas a decisão é só sua. — Preciso escolher entre John e minhas irmãs? — Não, Bells, você terá que escolher entre elas e você, entre sua vida, suas prioridades. É hora de ser egoísta, pelo menos uma vez. Ou farei esquecer-se de tudo, e você se casará por amor a suas irmãs, e a John só lhe restará ir embora; continuar existindo sozinho. Ela fechou os olhos com força, pensando nas irmãs e na responsabilidade que seu pai daquela vida colocará em suas costas. Pela primeira vez, se deu conta de que não era culpada, muito menos que poderia ser responsabilizada, que ser gentil e caridosa era sua inclinação, mas que jamais seria feliz sem John, que o amor deles era um pecado e que, no fim das contas, teria que ser egoísta para ficar com ele. — Estou orgulhoso por você ter se colocado em primeiro lugar — Lucifer disse. — Eu quero John com todas as minhas forças. — Sei disso. Agora precisa fugir daqui. Seu noivo tem câmeras escondidas por toda a casa e está voltando para te dar uma lição e matar John. — E minhas irmãs? — Isabella perguntou, já ficando de pé. Lucifer balançou a cabeça em negação. Ela assentiu. — Tome o livro — ele disse, estendendo o objeto que continha sua história, a observando caminhar depressa na direção da porta. — Só me responda uma última pergunta. — Tudo bem — Isabella disse, sem querer perder tempo abraçando seu velho irmão. — O que mais deseja nessa vida: ter filhos ou recuperar suas asas? Ela mordeu o lábio, lembrando-se de como se sentiu ao saber que estava grávida quando foi levada pela morte, de como foi criar Lanai e em como John sempre tinha sido louco para ser pai. Respirou fundo, tomada por uma alegria inexplicável, sorriu para Lucifer e respondeu: — Minhas asas. Ele sorriu de volta. O diabo tinha covinhas nas bochechas. — Então voe, minha querida Bella. A presença em suas costas quase a fez desmaiar, mas percebeu que não tinha a mesma fraqueza de alguns instantes atrás. Voltou na direção da janela, sem conseguir conter a curiosidade de olhar no espelho e ver as asas imponentes e avermelhadas em suas costas. — Você está me fazendo a criatura mais feliz do mundo — ela disse para Lucifer, sem
saber como agradecer. — Não, querida, você está se permitindo ser feliz. Agora vá. Sem olhar para trás, ela subiu na janela, encolhendo as asas para passar, sentindo que queria gritar ao mundo que estava completa. A brisa tocou seu rosto de uma forma curiosa. Viu a carruagem do homem se aproximando pela estrada, abriu suas lindas asas e saltou na direção do estábulo, explodindo em uma risada maravilhosa. John já esperava na entrada com as asas em um tom de azul parecido com seus olhos. — Pegue suas coisas antes que ele chegue — ela disse, contendo a vontade de pular em seu pescoço. — Não preciso de nada, Bells, só de você — John sussurrou, a tomando em seus braços para beijá-la com todo amor que existia em seu ser. — Obrigada por nos escolher. Por nos colocar acima dos outros pela primeira vez. — Obrigada por ter me esperado pacientemente. — É curioso, Bells, meu verdadeiro inferno foi aqui na terra. Fui abandonado nessa fazenda quando nasci, cresci servindo de saco de pancadas daquele desgraçado, mas aguentei firme por saber que um dia você viria para mim. Tudo que passei aqui, as cicatrizes nas minhas costas, na minha memória... Esse foi o pior dos meus infernos. — Acabou — ela disse o beijando, conseguindo ouvir a carruagem bem próxima. De mãos dadas, eles fugiram pelos fundos, cientes de que seriam felizes para sempre. Se perderem tinha sido azul como nenhum deles nunca havia conhecido, sentirem a falta um do outro havia sido cinza escuro, totalmente sozinhos, mas amar um ao outro seria vermelho. Vermelho Ardente. Para toda a eternidade.
Considerações Finais Parece que faz uma eternidade que comecei a contar esta história, talvez porque ela sempre esteve em meus pensamentos muito antes de digitar as primeiras palavras. Conheci muita gente através dessa trilogia, leitores que se tornaram melhores amigos. Sinceramente, não sei como será daqui para frente sem aquela ideia de que preciso continuar escrevendo sobre Bells e John. Acabei de escrever a palavra fim, mas a ficha ainda não caiu. Não sei como você se sentirá ao final deste livro, mas espero que possa se lembrar para sempre destes personagens. Às vezes, o amor nada mais é que se doar para ajudar o próximo, mas outras vezes não podemos carregar o peso do mundo nas nossas costas, e só quando se deu conta disto, Isabella pôde ser verdadeiramente feliz. Encerro essa trilogia agradecendo do fundo do coração a todos que fizeram parte disto. Não citarei nomes, por medo de acabar me esquecendo de alguém. Vocês que acompanharam esta história desde o começo, saibam que fizeram meus dias muito felizes, e aos leitores novos, minha profunda gratidão por ter nos dado uma chance. É aqui que me despeço. Se você está tentando carregar o peso do mundo, lembre-se que só tem duas mãos e que, um dia, espero que tudo fique mais fácil.
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Quando Melissa aceitou participar da caça ao tesouro na famosa casa mal-assombrada, ela não esperava que aquilo traria consequências sérias e definitivas. Era para ser só mais uma aventura de jovens inquietos que fugiam, todas as madrugadas, do dormitório da Escola Católica de Martins para se esgueirarem pelas sombras da cidade adormecida em busca de diversão. Mas não era apenas uma brincadeirinha de adolescentes. O destino havia reservado uma surpresa para cada um deles.
Este livro é um Spin Off independente da série "Nos Bastidores". Lucy Peter leva uma vida miserável, acostumada a ser maltratada pelos tios, com quem foi obrigada a morar desde os quatro anos de idade, após uma tragédia. Tudo muda quando sua tia Esther arranja um novo emprego na fazenda da família Hansson, onde vive Axel, o único rapaz da cidade de Agaton, no sul da Suécia, capaz de chamar sua atenção. O problema é que nunca trocaram um único olhar e, enquanto o rapaz bonito e inteligente frequenta badaladas festas em que se apresenta como DJ, Lucy vive no lado pobre da cidade, forçada a viver sob os constantes maus-tratos do tio dominador. Será que Axel poderá salvá-la? Duas realidades completamente opostas irão se misturar em um romance proibido e inesquecível.