4- JOÃO-J-RAMSEY-MICHAELS

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COMENTÁRIO BÍBLICO PnNTFMPfiR ÂMPH

JOA (O

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Jna Edição Contemporânea de Almeida

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A os estudantes que têm lido o Evangelho de João comigo, desd£ 1958

ISBN 0-8297-1743-9 Categoria: Comentários © 1984, 1989 por J. Ramsey Michaels Hendrickson Publishers, Inc. © 1994 por Editora Vida Traduzido pelo Rev. Oswaldo Ramos Todos os direitos reservados em língua portuguesa por Editora Vida, Deerfield, Florida 33442-8134 — E.U.A. As citações bíblicas são da tradução de JoãO Ferreira de Almeida, Edição Contemporânea, da Editora Vida, s^lvo onde outra fonte for indicada. Capa: John Coté

índice

Prefácio ............................................................................................... Agradecimentos .................................................................................. Abreviaturas.......................................................................................... Introdução ........................................................................................... 1. A Palavra da Vida (João 1:1-18) ............................................... 2. Os Primeiros Dois Dias: A Mensagem de João Batista (João 1:19-34).............................................................................. 3. Os Próximos Dois Dias: A vocação dos Discípulos (João 1:35-51).............................................................................. 4. Os Últimos Dois Dias: O Casamento na Galiléia (João 2:1-12)................................................................................ 5. A Primeira Páscoa (João 2:13-25) ............................................. 6. Jesus e Nicodemos (João 3:1-21) .............................................. 7. Jesus e João Batista (João 3:22-30) ........................................... 8. “Aquele Que Vem do Céu” (João 3:31-36)............................... 9. Jesus e a Mulher Samaritana (João 4:1-42)............................... 10. Jesus e o Filho do Oficial (João 4:43-54) .................................. 11. Cura à Beira do Tanque (João 5:1-18)....................................... 12. Pai e Filho (João 5:19-29)........................................................... 13; Testemunhas de Jesus (João 5:30-47) ....................................... 14. Pão para Cinco Mil (Joãó 6:1-15).............................................. 15. Jesus Caminha Sobre o Mar (João 6:16-25)............................. 16. Jeus, o Pão da Vida (João 6:26-59) ........................................... 17. Palavras de Vida Eterna (João 6:60-71) .................................... 18. Jesus e Seus Irmãos (João 7:1-13)............................................. 19. Jesus na Festa dos Tabernáculos (João 7:14-27)...................... 20. “Dele Sou e Ele me Enviou” (João 7:28-36)............................ 21. O Último Dia da Festa (João 7:37-8:20) ................................... 22. Jesus e os Incrédulos (João 8:21-29) ......................................... 23. Jesus e os Que “Creram” (João 8:30-59).................................. 24. O Cego de Nascença (João 9:1-12) ........................................... 25. A Investigação (João 9:13-34)................................................... 26. Cegueira Espiritual (João 9:35-41)............................................

5 7 9 11 29 37 47 55 61 66 74 78 80 89 94 100 104 109 114 119 130 134 138 144 147 158 16l 169 175 181

índice 27. Jesus, o Bom Pastor (João 10:1-21).......................................... 28. Jesus É Rejeitado (João 10:22-39)............................................ 29. De Betânia para Betânia (João 10:40-11:16)........................... 30. Ressurreição de Lázaro (João 11:17-44) ................................. 31. Veredicto Contra Jesus (João 11:45-54).................................. 32. A Última Páscoa (João 11:55-12:11)........................................ 33. A Entrada Triunfal em Jerusalém (João 12:12-19) ................. 34. Jesus Fala de Sua Morte (João 12:20-36)................................ 35. Descrença ou Crença? (João 12:37-50).................................... 36. Jesus Lava os Pés dos Discípulos (João 13:1-20) ................... 37. Jesus Prediz que Será Traído (João 13:21-30) ........................ 38. Três Pronunciamentos Decisivos (João 13:31-35).................. 39. Partida Próxima I (João 13:36-14:31) ........... .......................... 40. O Amor de Jesus e o Ódio do Mundo (João 15: l-16:4a)....... 41. Partida Próxima II (João 16:4b-33) .......................................... 42. Jesus Ora Por Seus Discípulos (João 17:1-26) ........................ 43. A Prisão de Jesus (João 18:1-14).............................................. 44. Jesus e o Sumo Sacerdote (João 18:15-27) ............................. 45. Pilatos e a Condenação de Jesus (João 18:28-19:16a) ............ 46. Crucificado, Morto e Sepultado (João 19:16b-42).................. 47. O Túmulo Vazio e a Primeira Aparição (João 20:1-18) ........ 48. A Segunda Aparição e Sua Seqüência (João 20:19-31) ......... 49. A Terceira Aparição (João 21:1-14)......................................... 50. Jesus, Pedro e o Discípulo Amado (João 21:15-25)................ Glossário .............................................................................................

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Prefácio

Embora não apareça nas listas comuns de “best-sellers”, a Bíblia continua a ser mais vendida que qualquer outro livro. E, a despeito do crescente secularismo ocidental, não há sinais de que o interesse pela mensagem da Bíblia esteja arrefecendo. Bem ao contrário, número cada vez maior de homens e mulheres examina suas páginas em busca de luz e orientação, em meio à crescente complexidade da vida moderna. Esse interesse sempre renovado pelas Escrituras, o qual se encontra tanto dentro como fora da igreja, é fato notável entre os povos da Ásia e da África, bem como da Europa e das Américas. Na verdade, à medida que saímos de países tradicionalmente cristãos parece aumentar o inte­ resse pela Bíblia. Pessoas ligadas a igrejas tradicionais católicas e pro­ testantes manifestam, pela Palavra, o mesmo anseio presente em comu­ nidades evangélicas mais recentes. Por isso, ao oferecermos esta nova série de comentários, desejamos estimular e fortalecer esse movimento mundial de estudo da Bíblia pelos leigos. Conquanto esperemos que pastores e mestres considerem estes volumes muito úteis à compreensão e comunicação da Palavra de Deus, não os escrevemos primordialmente para esses profissionais. Nosso objetivo é fornecer, a todos os leitores das Escrituras, guias confiáveis que os ajudem a melhor compreender os livros da Bíblia — guias que representem o que há de melhor em erudição contemporânea, e que sejam apresentados de maneira a não exigir preparo teológico formal para ser entendidos. É convicção do editor, bem como dos autores, que a Bíblia pertence ao povo, e não meramente aos acadêmicos. A mensagem da Bíblia é tão importante que de modo algum pode ficar acorrentada a artigos eruditos, presa a ensaios e monografias herméticos, redigidos apenas para os especialistas em teologia. Embora a erudição rigorosa, esmerada, tenha seu lugar no serviço de Cristo, todos quantos participam do ministério do ensino, na igreja, são responsáveis por tomar acessíveis à grande comunidade cristã os resultados de suas pesquisas. Por isso, os eruditos que se unem para apresentar esta série de comentários o fazem tendo em mente estes objetivos superiores.

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Prefácio

Há muitas traduções e edições contemporâneas, em português, do Livro santo. Na sua maioria essas edições são excelentes e devem ter a preferência do leitor no que concerne à compreensão. A Bíblia de Jerusalém, baseada na obra de eruditos católicos franceses, vividamente traduzida para o português, talvez seja a mais literária das traduções recentes. A BLH (Bíblia na Linguagem de Hoje), da Sociedade Bíblica do Brasil, é a tradução mais acessível às pessoas pouco familia­ rizadas com a tradição cristã. Há, ainda, em português, a Almeida Revista e Atualizada, e a Edição Revisada de Almeida, além de outras traduções mais recentes. Todas essas versões são, à sua própria maneira, muito boas, e devem ser consultadas com proveito pelo estudante sério das Escrituras. É possível que a maioria dos estudantes deseje possuir diversas versões para consulta, objetivando especialmente a clareza de compreensão —■embora se deva salientar que de modo algum qualquer delas esteja isenta de falhas e deva ser considerada a última palavra quanto a qualquer ponto. De outra forma, no haveria a menor necessidade de um comentário como este! Esta série de comentários, por ser tradução do inglês, faz referências à NEB, que constitui verdadeiro monumento à pesquisa moderna protes­ tante, e a outras versões em inglês, entre elas a RSV, a NAB, e a conceituada NIV. Como texto bíblico básico desta série decidimos usar a ECA, por ser esta edição a que está-se tomando padrão, de modo especial nos semi­ nários e institutos bíblicos. Por representar, no momento, o que há de melhor na literatura evangélica em língua portuguesa, ela aos poucos se toma a mais utilizada por pastores e outros estudiosos das Escrituras. Cada volume desta série contém um capítulo introdutório expondo em minúcias o intuito geral do livro e seu autor, os temas mais importantes, e outras informações úteis. Depois, cada seção do livro é elucidada como um todo, e acompanhada de notas sobre aqueles pontos do texto que necessitam de maior esclarecimento ou de explanação mais minuciosa. Esta nova série é oferecida com uma oração: que venha a ser instru­ mento de renovação autêntica, e de crescimento entre a comunidade cristã no mundo inteiro, bem como meio de enaltecer a fé das pessoas que viveram nos tempos bíblicos, e das que procuram viver, em nossos dias, segundo a Bíblia. Editora Vida

Agradecimentos

Este volume é produto de sala de aulas. À medida que ensinava o Evangelho de João ano após ano, verifiquei que meu método aos poucos foi-se mudando de tópico, ou temático, para seqüencial. Permiti a mim mesmo ser guiado, cada vez mais, pela ordem narrativa do autor do Evangelho, de modo que o curso assumiu a forma de comentário elabo­ rado em diálogo. Portanto, o convite que recebi, em 1977, para contribuir para esta série, chegou-me como oportunidade bem-vinda. Parecia-me que o volume haveria de redigir-se por si mesmo. Na realidade, a tarefa não foi tão simples assim. Um verdadeiro comentário, até um que não seja técnico, precisa de atenção dedicada a cada versículo, a cada minúcia particular da língua, e da tradução, numa extensão que o trabalho de classe rara­ mente exige. Conquanto uma tradução anterior do Evangelho de João, que eu fizera, me colocasse em boa posição, vi-me formulando perguntas que eu não imaginara antes, e observando detalhes que outrora me escapara à atenção. Este empreendimento demonstrou não ser a tarefa tranqüila que eu imaginara de início, de que me beneficiei imensamente. Gostaria de agradecer a Ward Gasque o fato de ele me envolver neste projeto honroso, e a muitos de meus alunos, ao longo dos anos, porque fizeram perguntas relevantes, elaboraram excelentes trabalhos acadêmi­ cos e, de modo geral, partilharam meu prazeroso estudo desse Evangelho. Da mesma forma, agradeço aos tradutores e ao editor da New Interna­ tional Version, pelo fato de me haverem provido um excelente texto com que eu pudesse trabalhar. Agradeço aos eruditos do passado e aos do presente, que me enriqueceram o conhecimento - a B. F. Westcott, C. K. Barrett, e C. H. Dodd, em meus primeiros anos de magistério, e a Raymond Brown, mais recentemente. Apresento agradecimentos pessoais a Bill Jackson e a meu antigo colega Rod Whitacre, pelos comentários valiosos que me fizeram sobre o primeiro rascunho dos capítulos 1-5; a Corinne Languedoc, pela boa datilografia e excelente humor; a meus amigos de Hendricksen Publi­ shers - de modo especial Phil Frank - pelo trabalho cuidadoso que fizeram na segunda edição. Acima de tudo, sou grato à minha esposa Betty e a

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Agradecimentos

nossos quatro filhos. Muitas coisas aconteceram em nossas vidas, naque­ les anos em que estive trabalhando neste projeto, anos cheios de mudan­ ças inesperadas; entretanto, eu não os trocaria por nada deste mundo. Desligado dos laços familiares, eu não teria produzido este livro, nem outras coisas memoráveis. A todos, os meus sinceros agradecimentos, pelo apoio moral necessário para que este modesto volume pudesse vir à luz.

Abreviaturas

AB ANF AV BDF

GNB HNTC ICC JBL KJV LCL LXX NIV NT AT Ps. Sol. 1QH 1QS RSV

Anchor Bible Pais Antenicenos Veja KJV F. Blass e A. Debrunner, A Greek Grammar o f the New Testament and Other Early Christian Litera­ ture. Traduzida e revista por R. W. Funk (Chicago: University of Chicago Press, 1961) Good News Bible Harper New Testament Commentary International Critical Commentary Journal of Biblical Literature Versão Autorizada do Rei Tiago Biblioteca Clássica Loeb Septuaginta (tradução grega do Antigo Testamento) Nova Versão Internacional Novo Testamento Antigo Testamento Salmos de Salomão Hinos do Qumran Manual de Disciplina de Qumran Versão Padrão Revista

Introdução

O último Evangelho, na seqüência tradicional de quatro, ocupa posi­ ção um tanto à parte, em relação aos primeiros três (comumente conhe­ cidos como “sinóticos”). Seu título, “Evangelho Segundo João” (ou, como trazem alguns manuscritos antigos, simplesmente “Segundo João”), à semelhança dos títulos dos sinóticos, não fazia parte do texto redigido pelo autor, mas foi afixado ao texto pelos cristãos primitivos, quando os quatro evangelhos começaram a circular como coleção. Este Evangelho, como os demais, é anônimo. Todavia, nas discussões moder­ nas, até mesmo os que falam sem hesitação em “Mateus”, “Marcos”, e “Lucas” (independentemente de suas opiniões concernentes à autoria desses evangelhos!), com freqüência usam, ao referir-se a João, a expres­ são não-comprometedora “o quarto Evangelho”, sugerindo que este Evangelho de certo modo é mais anônimo do que os demais. O quarto Evangelho não é mais anônimo do que os outros. Na verdade, seria o menos anônimo, porquanto traz, pelo menos, uma espécie de assinatura, “o discípulo a quem Jesus amava” (21:20-24; cf. 13:23-25; 19:26-27; 20:2-8; 21:7). Quem era esse discípulo? Quem foi “João”? De que maneira ambos acabaram identificados como sendo a mesma pessoa, e quais seriam os méritos dessa identificação? Estas são as perguntas que precisam ser respondidas, concernentes à autoria do Evangelho. Os Filhos de Zebedeu Além dos irmãos Pedro e André, os primeiros discípulos convocados para acompanhar Jesus em seu ministério, foram “Tiago, filho de Zebe­ deu, e João, seu irmão” (Marcos 1:19/ Mateus 4:21/ Lucas 5:10). Ambos são mencionados no próprio Evangelho de João só uma vez (21:2), não pelos seus nomes, mas simplesmente como “os filhos de Zebedeu”. Quase sempre, nos evangelhos, os dois irmãos aparecem juntos, quando, por exemplo, ambos se referem à aldeia samaritana que não quis receber a Jesus, e perguntam-lhe: “Senhor, queres que mandemos que desça fogo do céu e os consuma?” (Lucas 9:54). Jesus chegou a dar-lhes um nome em comum: “Boanerges”, expressão aramaica que significa “homens do trovão” ou “filhos do trovão” (Marcos 3:17). Em certa ocasião pediram

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a Jesus: “Concede-nos que na tua glória nos assentemos, um à tua direita, e o outro à tua esquerda” (Marcos 10:37; em Mateus 20:21, é a mãe deles quem formula o pedido a favor dos rapazes). À vezes os dois aparecem ao lado de Pedro, como no monte da transfiguração (Marcos 9:2/ Mateus 17:1/ Lucas 9:28), no Getsêmani (Marcos 14:33/ Mateus 26:37) ou na ressurreição da filha de Jairo (Marcos 5:37/ Lucas 8:51); em algumas ocasiões os dois pares de irmãos - Pedro e André, Tiago e João - estão em cena (Marcos 1:29; 13:3), da mesma forma como estavam juntos quando Jesus os chamou, estando eles lidando com suas redes de pesca. Só uma vez, em toda a tradição sinótica, João fala, ou age, sozinho: “Mestre”, relata ele a Jesus, “vimos um homem que em teu nome expulsava demônios, e nós o proibimos de fazer isso porque não segue conosco” (Lucas 9:49; cf. Marcos 9:38). “Não o proibais”, foi a resposta de Jesus, “pois quem não é contra vós é por vós” (Lucas 9:50; cf. Marcos 9:39-40). O Discípulo a Quem Jesus Amava De que forma a metade dessa “combinação fraterna” veio a ser identificada com o assim chamado “discípulo a quem Jesus amava”, e, desse modo, com o autor de um dos quatro evangelhos? A lógica é simples e contém forte apelo. O “discípulo a quem Jesus amava” deveria ser um dos doze a quem Jesus havia escolhido (6:70-71) para que o ajudassem, e dessem prosseguimento a seu trabalho, porque estava presente na última ceia (13:23-25). Na verdade, o discípulo amado “estava reclinado próximo a Jesus (13:23), e “na ceia se reclinara sobre o seu peito” (21:20). Visto que nos evangelhos sinóticos, Pedro, Tiago e João (e às vezes André) constituem uma espécie de “círculo íntimo”, os apóstolos mais chegados a Jesus nos momentos cruciais de seu ministé­ rio, seria bastante provável que o discípulo amado fosse um deles. Obviamente não seria Pedro, visto que o amado foi distinguido de Pedro, ou com ele contrastado, em quatro das cinco ocasiões em que aparece no Evangelho: Na última ceia, Pedro pediu ao amado que descobrisse quem era o traidor predito (13:23-25). Na manhã da páscoa, o amado e Pedro ouviram as notícias do túmulo vazio; o amado ultrapassou a Pedro e, finalmente, “viu e creu” (20:2-8). No lago de Tiberíades, quando um estranho apareceu aos discípulos,

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enquanto estavam pescando, disse o amado a Pedro: “é o Senhor” (21:7). Quando Jesus predisse a morte de Pedro, este voltou-se e olhou para o amado, perguntando qual seria seu destino; Jesus lhe replicou que isso não era da conta de Pedro. Uma nota conclusiva identifica de modo explícito o discípulo amado como sendo o autor do Evangelho (21:20­ 24). O único incidente que não envolve Pedro é o ocorrido por ocasião da crucificação (depois que Pedro e os demais haviam fugido), quando Jesus entrega sua mãe ao cuidado do discípulo amado (19:26-27). Há duas outras ocasiões em que a designação “o discípulo a quem Jesus amava” não ocorre, nas quais, todavia, se presume a presença do amado: 1:35-41 (em que um discípulo cujo nome não é mencionado está presente, ao lado de André, irmão de Pedro), e 18:15-16 (em que um discípulo anônimo leva Pedro ao pátio do sumo sacerdote). Tais incidentes deveriam, provavelmente, permanecer fora de consideração; todavia, ainda que sejam deixados de lado, as evidências indicam que há certa rivalidade, talvez, ou pelo menos uma espécie de peremptoriedade em prol do discípulo amado, neste Evangelho, quase sempre tendo Pedro no cenário. Poderia o amado ser André, o irmão de Pedro? Parece que essa probabilidade se exclui pelo fato de André ser mencionado pelo nome em 1:40,44; 6:8; 12:22. Por que alguém seria designado livremente pelo próprio nome, em alguns contextos, mas em outros recebe a designação anônima de “o discípulo a quem Jesus amava”? A mesma objeção aplica-se à maior parte dos doze: Filipe (1:43-46; 6:5-7; 12:21-22; 14:8-10), Tomé (11:16; 14:5; 20:24-28; 21:2), e Judas (14:22), bem como Natanael, que provavelmente também esteve entre os doze (1:45-49; 21:2). Aplica-se de igual modo a Lázaro, a quem disse Jesus que o “amava” (11:5), acerca de quem poderia ter circulado o boato de que nunca haveria de morrer (21:23), só por causa de sua maravilhosa ressurreição. Por que Lázaro seria designado pelo nome nos capítulos 11-12, para tomar-se anônimo nos capítulos 13-21? Sobram, então, os filhos de Zebedeu, que não são chamados pelos seus nomes no Evangelho mas, estiveram presentes na última ceia, e numa outra ocasião em que o discípulo amado desempenhou certa função (21:2; cf. v. 7). O relato sinótico do ousado pedido que fizeram: sentar-se à esquerda e à direita de Jesus “na tua glória” (Marcos 10:37 e paralelos) pode indicar que esses dois já estavam acostumados a sentar-se naquelas

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posições, quando todos se sentavam juntos para as refeições. Talvez estivessem apenas pedindo que tais posições terrenas se perpetuassem no reino eterno! Não existe base para certeza, quanto a isto, porque parece que a esperança deles quanto ao futuro se focalizava em tronos e em autoridade jurídica (cf. Mateus 19:28), não tanto em assentos ao redor de uma mesa de refeições; parece-nos, todavia, que estas duas idéias não estavam muito longe uma da outra (cf. Lucas 22:30). Seja como for, o lugar do discípulo amado na última ceia fo i imediatamente ao lado de Jesus - se à direita ou à esquerda, não o sabemos (13:23). Se o processo identificador, por eliminação, ficar com Tiago e João apenas, os filhos de Zebedeu, Tiago pode ser eliminado por causa de seu martírio logo depois. Sua morte pelas mãos de Herodes Agripa I, em Atos 12:2, deu-lhe pouco tempo para poder redigir o Evangelho, e menos ainda para que se espalhasse o boato de que ele não morreria antes da Segunda Vinda de Cristo (João 21:23)! O processo eliminatório conduziu-nos, pois, ao outro fiího de Zebedeu, o apóstoío João. Isso ajuda a explicar por que a identificação do discípulo amado como sendo Joào, o filho de Zebedeu, é encontrada quase universalmente na primitiva tradição cristã. Uns poucos testemunhos surgidos bem mais tarde, que falam de João como tendo sido martirizado, parecem-nos tentativas de criar um cumprimento mais literal do que Jesus pretendia, para uma de suas profecias. A advertência do Senhor, em Marcos 10:39, de que os dois irmãos deveriam beber “o cálice que eu beber”, e ser “batizados com o batismo com que eu sou batizado” dizia respeito ao fato de Tiago vir realmente a ser martirizado; entretanto, no caso de João, poderia referir-se a seu exílio na ilha de Patmos, em seus últimos anos, “por causa da Palavra de Deus e do testemunho de Jesus” (Apocalipse 1:9). A conclusão de que João, o filho de Zebedeu, seria o discípulo amado, impressiona, mas não tem garantia absoluta. Permanece ainda a possibi­ lidade de Jesus ter tido outros discípulos íntimos, talvez de Jerusalém, em vez da Galiléia, (além daqueles doze), um dos quais poderia ter sido o discípulo amado. Por essa razão, muitos eruditos preferem respeitar o anonimato dos próprios discípulos, sem tentar identificá-los com preci­ são. João, o Apóstolo Visto que o nome de João sempre esteve tão fortemente ligado ao quarto Evangelho, seria interessante examinar a memória que ele deixou

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na igreja primitiva, bem como as tradições que o identificam como o autor do Evangelho. Após a ressurreição de Jesus, João é encontrado ao lado de Pedro, em Jerusalém, à porta Formosa do templo (Atos 3:1-11) e diante do concílio regente, ou sinédrio (Atos 4:1-23). Depois, ele e Pedro são enviados pela igreja de Jerusalém à Samaria, a fim de ministrar o Espírito Santo às pessoas que ali haviam crido, e resolver o problema de Simão, o mago (Atos 8:14-25). A associação de Pedro com João, no livro de Atos, relembra a associação do discípulo amado com Pedro, no Evangelho de João, como se aquele fosse a continuação deste. Ambos continuam juntos na carta de Paulo aos Gálatas, onde se concorda que Pedro, João e Tiago (não o irmão de João, mas Tiago, irmão de Jesus) prosseguiriam em sua missão entre os judeus, enquanto Paulo e Bamabé trabalhariam entre os gentios (Gálatas 2:9), O autor do livro de Apocalipse (escrito provavelmente depois da morte de Pedro) identifica-se como “João” (Apocalipse 1:1,4,9; 22:8), e o fato de não precisar de maiores apresentações sugere que pode ser este mesmo João, o filho de Zebedeu, e apóstolo de Jesus Cristo, agora um profeta bem conhecido entre os cristãos de Éfeso e outros centros eclesiásticos da Ásia Menor. De qualquer modo, a tradição demonstra essa identifica­ ção ao conectar o apóstolo de modo íntimo à igreja de Éfeso. Irineu, perto do fim do segundo século, escreveu a respeito “daqueles que tinham grande familiaridade com João, o discípulo do Senhor, [afirmando] que João lhes transmitira aquela informação [i.e., a respeito da idade de Jesus e a extensão de seu ministério], E permaneceu entre eles até a época de Trajano”. E acrescenta Irineu explicitamente que “a igreja de Éfeso, fundada por Paulo, e tendo João permanecido entre eles de forma perene, até os tempos de Trajano [i.e., d.C. 98-117], constitui testemunha verdadeira da tradição dos apóstolos”.'3 Polícrates, bispo de Éfeso no final do segundo século, assim escreveu ao bispo de Roma: “Pois grandes luminares repousam na Ásia, os quais despertarão no último d ia ... há também João, o que se reclinou no peito do Senhor, e que era sacerdote, usando a mitra, um mártir e mestre;ele dorme em Éfeso”.4 Pápias, bispo de Hierápolis, na Ásia Menor, assim escreveu uma geração antes que “sempre que chegava alguém que houvesse seguido os presbíteros, eu lhe fazia inquirições sobre as palavras desses presbí­ teros, que haviam dito André, ou Pedro, ou Filipe, ou Tomé, ou Tiago,

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ou João, ou Mateus, ou que estavam dizendo Aristião, e o presbítero João, ou qualquer outro dos discípulos do Senhor. É que eu nunca supus, sequer, que as informações oriundas de livros me ajudariam tanto quanto as palavras oriundas de uma voz viva, sobrevivente”.5 Afirmava Eusébio que Pápias se referia aqui a dois indivíduos chamados João: o primeiro havia sido um dos “discípulos do Senhor”, e o segundo, um “presbítero” de época posterior.6 Contudo, a citação não confirma a vindicação de Eusébio; cada vez que João é mencionado, é como “presbítero” e como “discípulo do Senhor” (parece, de fato, que Pápias usa a palavra “pres­ bítero” com o sentido de “apóstolo”, e num certo ponto Eusébio lhe segue *7 a prática.) Parece que Pápias refere-se a João de dois modos: primeiro, como apóstolo dentre os demais apóstolos, como guardião das tradições do passado e, segundo, como figura contemporânea, o único sobreviven­ te dos “apóstolos” ou “presbíteros” originais (cf. as duas cartas, Segunda e Terceira João, enviadas pelo “presbítero” (ou ancião), 2 João 1; 3 João 1). Policarpo, bispo de Esmima, na Ásia Menor, mais ou menos na mesma época de Pápias, é mencionado por Irineu como havendo conhe­ cido João. Numa carta a um certo Florino, Na Soberania Única de Deus, escreve Irineu: “Porque eu o vi, sendo eu ainda um menino, na baixa Ásia, com Policarpo... lembro-me das coisas daquela época melhor do que as que aconteceram mais recentemente — porque as experiências da juventude, crescendo com a alma, com ela se unem — pelo que posso distinguir até o lugar onde o bem-aventurado Policarpo sentava-se [e] ensinava. . . . as palestras que ele dirigia ao povo, como falava de sua associação com João, e com os demais que haviam visto o Senhor, e como se lembrava de suas palavras, e que coisas relacionadas com o Senhor havia ele ouvido da parte daqueles homens, tanto concernentes a seus milagres quanto a seu ensino”.8 Também as mais antigas tradições da igreja relacionam João, o apóstolo, o filho de Zebedeu, à redação de um Evangelho, às vezes com citações diretas do Evangelho de João, como o temos hoje. Teófilo de Antioquia, no final do século segundo, assim escreveu: “E daí que as escrituras sagradas ensinam-nos, e todos os homens que têm o espírito [inspirados], um dos quais. João, diz: ‘No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus”’; e prossegue com uma breve exposição de João 1:1-3. Irineu, depois de recontar as tradições associadas com os demais

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evangelhos, conclui que “depois, João, o discípulo do Senhor, que também se reclinara sobre seu peito, publicou por si mesmo um Evan­ gelho, durante sua residência em Éfeso, na Ásia”.10 Mais tarde ele acrescenta que João escreveu seu Evangelho a fim de refutar certos hereges gnósticos que afirmavam que Deus, o Criador, e Deus, o Pai de Jesus, eram dois deuses diferentes, e vai fazendo citações abundantes do prólogo, a fim de comprovar sua tese.11 Ainda antes mesmo (cerca de 130-140 d.C.), certo Ptolomeu, ele próprio um desses gnósticos, atribuiu a “João, o discípulo do Senhor” as palavras “no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo 12 era Deus” e, noutra passagem, atribuiu ao “apóstolo” as palavras que cita a seguir: “todas as coisas foram feitas por meio dele, e sem ele nada do que foi feito se fez”.13 Declarações desse tipo demonstram que, no segundo século, tanto os ortodoxos quanto os hereges (como viriam a ser chamados) apelavam para o Evangelho de João e consideravam o apóstolo João como seu autor. Os testemunhos da autoria de João são do início da igreja, e unânimes, ainda que certos relatos sobre as circunstâncias sob as quais o Evangelho foi escrito pareçam confusos e inconfiáveis. Os prólogos antimarcionitas de fins do segundo século (i.e., títulos evangélicos pre­ sumivelmente escritos com o objetivo de refutar o herege Marcion) apresentam João ditando a Pápias, que é identificado como seu discípulo. O cânon Muratório, que data aproximadamente do mesmo período, declara que todos os discípulos jejuavam juntos durante três dias, após o que “era revelado a André. . . que, estando todos fazendo revisão, João descrevia todas as coisas em seu próprio nome”.14 Poderia haver um grão de verdade nestas tradições, em que o Evangelho de João incorpora as reflexões de todo um grupo de mestres e profetas cristãos do primeiro século, companheiros do apóstolo João, e que o Evangelho não se constitui apenas das memórias de um único indivíduo. Se o discípulo amado for, na verdade, João, o filho de Zebedeu, certos fatores teriam estado em ação, temperando o zelo vingativo deste “filho do trovão” (Marcos 3:17) e a excitação apocalíptica do profeta que escreveu o livro do Apocalipse. A teoria bem difundida da “escola” joanina, embora não fosse provada, sendo, talvez bastante improvável, poderia explicar a diversidade dos escritos atribuídos a João, bem como as diferenças de personalidade entre o discípulo amado que aparece no Evangelho e o

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apóstolo irascível lembrado pela igreja. Quem é que consegue ler a vívida narrativa (e dela logo esquecer-se) de Clemente da Alexandria, sobre o idoso João, em Éfeso, após seu exílio em Patmos, cavalgando com audácia até o esconderijo de uns ladrões, a fim de resgatar um jovem convertido que renunciara à fé, e se entregara a uma vida de perversida­ de?15 Em contraste, o discípulo amado no Evangelho de João com freqüência é retratado como um homern pensativo, gentil, posto em reflexões, bem diferente do apressado e impulsivo Pedro. As descrições posteriores de João, em sua velhice, ressoam mais como aquilo que esperaríamos de um Pedro transformado! Dizia-se que certa vez João encontrou-se com um herege, Cerinto, num balneário público de Éfeso. João teria corrido para longe dali, gritando: “voemos para fora daqui, porque o balneário poderá ruir, pois Cerinto, o inimigo da verdade, está lá dentro”.16 Pondo de lado a questão de tais histórias serem confiáveis, ou não, seriam elas necessariamente incoerentes, se comparadas ao retrato do discípulo amado, pintado no quarto Evangelho? A imagem tradicional do discípulo amado, como sendo gentil, ou passivo, baseia-se mais em pressuposições do que em declarações explícitas do texto. A personali­ dade de João, na verdade, não emerge do Evangelho que leva seu nome. Tudo que ali está dito é que Jesus o amava, e a ele confiou sua mãe, para que dela cuidasse (19:26-27), que João sentava-se ao lado de Jesus, à mesa, e que numa ocasião reclinou-se bem perto, a fim de fazer-lhe uma pergunta (13:23-25), que ele correu mais depressa do que Pedro até à sepultura de Jesus, e “creu” quando a viu vazia (20:2-8), e que reconhe­ ceu o Senhor ressurreto na praia do mar da Galiléia (21:7). Nada disto o caracteriza como audacioso ou impetuoso, por um lado, nem gentil ou pensativo, por outro. Os poucos vislumbres de seu comportamento no Evangelho de João não fortalecem nem enfraquecem a noção de ser ele João, o filho de Zebedeu. Pesadas todas as evidências, dois fatos se salientam. Primeiro, este Evangelho é anônimo por decisão e objetivo de seu autor. Toda e qualquer tentativa para dar-se nome ao autor permanece tentativa apenas, sem conclusão definitiva. Segundo, nenhum outro nome senão o de João, o filho de Zebedeu, aparece na tradição. Sua vindicação baseia-se em boa evidência, conquanto circunstancial. “João”, portanto, é o nome pelo qual nós nos referiremos ao Evangelho. A única indicação explícita do envolvimento de outros, além de João,

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na redação do Evangelho, é o anônimo “nós” (oculto em ECA) de 21:24: “[nós] sabemos que seu testemunho é verdadeiro”. Um grupo de cristãos em algum lugar está comprovando a validade do testemunho escrito do discípulo amado. As tradições que ligam João a Éfeso poderiam sugerir que esse “nós” se refere aos anciãos da igreja efésia, e talvez também que aquele “eu” (oculto em ECA) do versículo seguinte (“eu cuido”) se refere a um escriba entre eles, responsável por preparar o texto do Evangelho para publicação. Entretanto, não há como termos plena cer­ teza disso. O que parece mais plausível é que o mesmo grupo que se denomina “nós” deu “uma mãozinha” no versículo 23, e talvez também em outras referências ao “discípulo a quem Jesus amava”. É mais provável que os companheiros, os associados de João, se referissem a ele com essa espécie de “aposto”, coisa que o próprio João talvez não fizesse. Contudo, a declaração em 21:24 de que o discípulo amado não só “testifica destas coisas” mas, ele “as escreveu”, estabelece limites estritos à participação de outras pessoas na redação do Evangelho. A teoria mais plausível é que o autor esboçou o Evangelho de forma muito parecida com a que temos hoje, mas, como narrador, resolveu ficar fora da história. Seus associados em Éfeso (ou onde quer que tenha sido) lhe respeitaram o anonimato, mas deram testemunho à sua própria maneira, do seu envolvimento pessoal na história que ele narra. Conseqüentemente, testemunharam também a confiabilidade do seu Evangelho. Consegui­ ram fazer isso ao tecer na trama da própria narrativa vários lances breves do discípulo em ação e ao acrescentar o pós-escrito, no final. Além disso, há evidências de que o Evangelho de João não foi escrito de uma só vez. O fim do cap. 20, por exemplo, parece ter sido redigido, em certa altura, com o objetivo de encerrar o Evangelho. Se isso de fato aconteceu, o cap. 21 teria sido acrescentado como apêndice, pelos mesmos companheiros que redigiram os versículos finais, ou (mais provavelmente) pelo próprio autor. Afinal de contas, o texto indica que o autor está presente na cena (21:7), não havendo razão para que se duvide de sua responsabilidade quanto ao cerne da narrativa. A repetição de certos temas na elocução de despedida de Jesus e, de modo especial, a aparente conclusão desse discurso em 14:31 (com as palavras “levan­ tai-vos, vamo-nos daqui”), sugere que a fala de Jesus poderia ter assu­ mido essa forma depois de passar por dois estágios, ou duas revisões de texto; o primeiro estágio seria 13:36-14:31 eooutro, 15:1-17:26, desen­

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volvendo alguns temas-chaves introduzidos em 13:31-35 (para discussão mais aprofundada, veja os comentários sobre 20:30-31; 13:31-35; 14:31). O prólogo (1:1-18),ou partes dele, poderia ter sido redigido depois do resto do Evangelho, ao qual teria sido afixado como um resumo do plano divino da salvação, que Jesus Cristo executou. Entretanto, ainda que falemos de revisão e de re-escrita, não é necessário imaginar que outras mãos tenham alterado a obra do discípulo amado. É muito possí­ vel, pois, que estejamos lidando com um processo criativo complexo, que se centraliza nas reflexões históricas e teológicas de um homem, nas quais ele trabalhou com afinco, no contexto particular de uma comuni­ dade de fé, cujos interesses foram considerados com cuidado. Portanto, é apropriado que se fale de uma comunidade joanina, ainda que haja pequena evidência concreta de que os discípulos tenham sido treinados formalmente para dar prosseguimento a certa tradição teológica ou literária. Nenhuma comunidade religiosa pode existir sem que haja uma estrutura, mas a de João era uma comunidade do Espírito, mais do que mera estrutura eclesiástica. Clemente de Alexandria observou, com perspicácia, no século terceiro, que quando João percebeu que “os fatos externos haviam sido estabelecidos nos evangelhos, [ele] foi estimulado por seus discípulos, e movido divinamente, pelo Espírito, para compor um Evangelho espiritual.” 17 É este caráter “espiritual” do Evangelho de João que tanto sublinha sua autoridade, e também o distingue de Mateus, Marcos e Lucas, em estilo e em conteúdo. Autoria e Autoridade A despeito da evidência histórica de que o apóstolo João escreveu o Evangelho de João, a autoridade do Evangelho repousa em algo muito mais sólido do que a identidade do autor. Acima de tudo, a autoridade do Evangelho baseia-se em sua vindicação implícita de ter sido inspirado pelo Espírito Santo. Em seus sermões de despedida, Jesus aparece prometendo a seus discípulos (inclusive ao amado), que rogará “ao Pai, e ele vos dará outro Consolador (gr.: parakletos), para que esteja con­ vosco para sempre, o Espírito da verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece. Mas vós o conheceis, pois habita convosco, e estará em vós” (14:16-17). A palavra grega empregada aqui para designar o Espírito, parakletos (com freqüência traduzida para o português como “Paracleto”), literalmente se refere a alguém que é “chamado” para ajudar (daí a tradução de GNB: “Ajudador”). Essa

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palavra é um substantivo formado pelo verbo parakalein, exortar, enco­ rajar ou confortar (daí a tradução tradicional de KJV, “Consolador”, com o sentido antigo, oriundo do latim, de alguém que fortalece ou encoraja). Tem, portanto, um significado passivo e ao mesmo tempo ativo. É um “Conselheiro”, não apenas alguém chamado para ajudar, mas alguém que de fato ajuda, ao exortar, encorajar ou aconselhar os necessitados. É termo jurídico em 1 João 2:1, onde o próprio Jesus é “um Advogado (gr.: parakletos\ RSV, ECA: ‘Advogado’) para com o Pai”, que nos defende perante o Juiz supremo. A atividade do Espírito como “Paracleto” ou “Consolador” se eviden­ cia em várias passagens, nos sermões de despedida. Disse Jesus que o Espírito: vos ensinará todas as coisas (14:26) vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito (14:26) testificará de mim (15:26) convencerá o mundo do pecado, da justiça e do juízo (16:8) vos guiará em toda a verdade (16:3) não falará de si mesmo; mas dirá tudo o que tiver ouvido (16:13) vos anunciará o que há de vir (16:13) Ele me glorificará porque há de receber do que é meu, e vô-lo há de anunciar (16:14) O ministério do Consolador, à semelhança do ministério de Jesus, é de revelação. O Consolador toma as coisas conhecidas mediante o ensino e o testemunho, ao ajudar os discípulos a lembrar-se do que Jesus disse, ao guiá-los à verdade, ao revelar-lhes as coisas que vão acontecer, e até ao confrontar o mundo e provar que seus padrões estão errados. Significa isso, porventura, que o Espírito traz à igreja “novas” revelações? Só no sentido em que todas as revelações por definição são “novas”. Com maior precisão: o Espírito expõe de maneira nova o significado da magna e definitiva revelação de Deus em seu Filho Jesus Cristo. O autor considera, com clareza, seu Evangelho, como sendo um lugar - talvez o lugar - onde essa revelação está acontecendo. Ele escreve conscientemente que o Consolador está testificando de Jesus Cristo através do autor, e através do próprio Evangelho. Ele registrou o que Jesus disse e o que Jesus ainda está dizendo à igreja e ao mundo, após a

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crucificação e a ressurreição. Não é mero acidente o fato de que, de todos os evangelhos, o de João é o que parece falar mais imediatamente a nós, hoje, como uma palavra vinda de Deus. Aquele que falou ali continua falando, depois de muitos séculos, convidando a todos os leitores a crerem nele, e a receber a vida eterna, e nova, como a dádiva de Deus. João e os Sinóticos Seria errado inferir, pelo que acabamos de dizer, que o Evangelho de João é “mais inspirado” do que os outros três. A distinção aguda que Clemente de Alexandria faz entre João, como sendo o “Evangelho espiritual” e os sinóticos, como tendo interesse nos “fatos externos”18 não pode ficar isenta de um qualificativo. Os sinóticos também são “espirituais”, e o Evangelho de João está vitalmente interessado em “fatos externos”. O que distingue João é mais sua autoconsciência da inspiração do Espírito, do que a inspiração em si. A inspiração, quer a de João, quer a dos evangelhos sinóticos, possui um aspecto “vertical” e outro “horizon­ tal”. O aspecto vertical é a consciência de que Deus fala do céu, mediante as palavras do autor e de sua comunidade. Esse conceito se expressa na promessa de Jesus do Paracleto, ou Consolador, que “ensinará todas as coisas” aos discípulos a os “guiará em toda a verdade” (pela ordem, 14:26: 16:13). O aspecto horizontal é o reconhecimento tácito de que o texto foi redigido com base nas tradições orais e escritas a respeito de Jesus, previamente coligidas pela igreja e empregadas na instrução e edificação dos fiéis. Este fato se exprime na promessa de Jesus de que o Espírito “vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito” (14:26) e, porque o Espírito “testificará de mim”, os discípulos também devem dar testemunho, “pois estais comigo desde o princípio” (15:26-27). A inspiração não consiste em Deus ditar sua mensagem como o executivo à sua secretária mas, em vez disso, é um processo complexo que se realiza na vida diária da igreja ao longo de várias décadas, isto é, entre o ministério de Jesus e a época em que os evangelhos acabaram de ser redigidos. Conquanto a maioria dos eruditos concorda que o Evangelho de João foi o último dos quatro a ser escrito, é difícil decidir se João teve acesso aos outros três. O certo é que ele não escreveu no vácuo, mas dispôs de várias tradições: por exemplo, suas próprias memórias como testemunha ocular de muita coisa que aconteceu, e as coleções de ensinos e milagres

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de Jesus, preservados oralmente, ou por escrito. Além disso, alguns eruditos afirmam que ele usou o Evangelho de Marcos (só uns poucos dizem que ele também usou Mateus, ou Lucas) mas, as evidências dessa opinião estão longe de serem conclusivas. Na maior parte do texto, parece que João escreveu independentemente dos demais autores, utilizando os mesmos tipos de tradições - em certos casos as mesmas tradições - que os sinóticos usaram, vendo-as, todavia, à sua própria maneira distintiva, de modo que produziu um retrato singular de Jesus. O Evangelho de João se distingue dos sinóticos de duas maneiras: primeira, no estilo do ensino de Jesus (e até certo ponto, no conteúdo); segunda, na cronologia e modo de estruturar o ministério de Jesus. Enquanto o tema da proclamação de Jesus, nos sinóticos, é o reino de Deus, em João esse tema é o próprio Jesus e sua missão. A revelação do Senhor gira em tomo de si mesma. O que o Senhor revela do céu, vezes e vezes sem conta, é simplesmente isso: ele é o Revelador enviado dos céus! Mas, ao tomar conhecido esse fato, faz que Deus, o Pai, fique conhecido, e mediante seus milagres e atos de misericórdia revela Deus em ação. A diferença entre João e os sinóticos pode ser resumida afirmando-se que o que está implícito em Marcos, Mateus e Lucas, tomou-se explícito em João. O enfático, mas enigmático “EU” dos sinóticos (“ouvistes.. . EU porém, vos digo”) toma-se o misterioso e majestoso “EU SOU” do Evangelho de João (8:58). Ao proclamar o reino, Jesus se faz conhecido como o mensageiro de Deus, o Pai que o enviou - aos que o ouvirem com fé. Isto se pode inferir dos evangelhos sinóticos, mas somente João, mediante o ministério do Espírito, remove o véu a fim de permitir que o leitor veja o panorama total das palavras de Jesus, após sua ressurreição. Esta é a razão por que os sermões de Jesus ressoam tão monotonamente egoístas, girando ao redor dele mes­ mo, aos ouvidos de alguns leitores modernos do Evangelho; Jesus só pode revelar Deus ao auto-revelar-se (14:9). O objetivo da missão de Jesus ao mundo não é revelar uma teologia (i.e., um corpo de informações a respeito de Deus) mas, revelar o próprio Deus. É o que ele faz mediante palavras e ações, a saber, através de uma série de milagres ou atos simbólicos, combinados com ensinos e sermões que explicam o signifi­ cado desses atos. A estrutura do Evangelho de João em grande parte formou-se por essa mistura de palavras e ações. Diferentemente dos evangelhos sinóticos,

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que localizam o ministério de Jesus na Galiléia e o concluem com uma viagem a Jerusalém e um relato da Paixão, João divide o ministério em duas partes, ambas centralizadas em Jerusalém, na maior parte. Há duas maneiras possíveis de fazer-se essa divisão: (1) Costuma-se considerar os capítulos 2-12 (ou mais precisamente 2:13-12:50) como narrando o ministério público de Jesus, e os capítulos 13-20 ou 13-21, como seu ministério privado, que culmina em sua morte e ressurreição. Na primeira parte, sua atenção se dirige ao “mundo”, a saber, às multidões e autoridades religiosas da sinagoga (cap. 6), ou ao templo, durante as festas religiosas judaicas (caps. 2-3,5,7-8,10,11-12); a segunda parte consiste de dois sermões de despedida, expostos perante seus discípulos, em particular; e após a Paixão, já ressurgido o Senhor, de três aparições aos discípulos. A Paixão domina o Evangelho todo. O ministério privado conduz à Paixão, que constitui o contexto do ministério público. Os dois eventos que nos sinóticos introduzem a semana da Paixão — a purificação do templo e a entrada triunfal em Jerusalém — em João estão separados um do outro, e são utilizados como parêntesis que encerram e separam todo o ministério público (2:13-22; 12:12-19). A necessidade de Jesus morrer pelos pecados do mundo não se revela de modo gradual, mas vai-se tomando evidente desde o início (cf. 1:29). (2) Um modo alternativo de dividir-se o Evangelho de João é consi­ derar cada um desses dois eventos bem conhecidos (a saber, a purificação do templo e a entrada triunfal) como introdução de uma seção especial do Evangelho: a seção do julgamento (2:13-11:54) e a seção da glória (11:55-21:25). O julgamento implícito na expulsão dos mercadores do recinto do templo dá a deixa para uma série de sermões públicos que funcionam à guisa do equivalente de João do julgamento de Jesus perante o sinédrio, o concílio ou tribunal judaico. O segredo que o leitor de hoje conhece, mas que os contemporâneos de Jesus não conheciam, é que não é Jesus quem está sob julgamento, nestes diálogos contundentes, mas o próprio templo, a cidade de Jerusalém, o sistema religioso judeu — em última análise o mundo todo. Finalmente, o veredicto surge em 11:47-53 — Jesus deve morrer — mas, ao condená-lo à morte, o mundo se autocondena. A “glória” da Paixão de Cristo se depreende da entrada triunfal (12:16) e de uma série de observações que se seguem (12:23, 28-30; 13:31-32;

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17:1,5), ainda que prossiga o tom de julgamento (12:31; 16:11). Tanto o julgamento como a glória tomam-se realidades completas na procla­ mação escamecedora de Pilatos de que Jesus é rei, diante do palácio do governador (19:14) e na própria crucificação (19:17-18). Não é necessário, e tampouco possível, fazer uma escolha difícil e rápida entre (1) e (2), visto que em ambos os casos 11:55-12:50 é um tanto transitório, marcando o final do ministério público, com ênfase no julgamento, e o início da Paixão, com sua decisiva revelação da glória de Cristo. No final desta narrativa de transição há um pronunciamento mais curto, também de transição (12:44-50), no qual Jesus faz um resumo da reação do mundo, positiva ou negativa, diante de sua mensagem. É esse texto que leva muitos comentaristas a dividir o Evangelho entre os caps. 12 e 13, mas a questão é mais complicada do que parece. Não se deve menosprezar o marcante paralelismo entre 2:13 e 11:55: “Estando próxima a páscoa dos judeus, Jesus subiu para Jerusalém” (2:13). “Quando se aproximava a páscoa dos judeus, muitos daquela região subiram a Jerusalém” (11:55). Ambos os textos quase parecem alternativas para o início de uma história sobre a Paixão; o efeito que produzem é construir o Evangelho todo ao redor da consciência de Jesus, de que ele devia encetar sua peregrinação a Jerusalém e ali morrer durante a festa da páscoa. Tudo quanto fica fora desta estrutura da Paixão é o prólogo (1:1-18), e uma seqüência de seis dias, na qual o autor entretece o ministério de João Batista, a vocação dos primeiros discípulos de Jesus, e o milagre no casamento em Caná da Galiléia (1:19-2:11). Todo o ministério de Jesus na Galiléia está simbolizado nesse milagre em Caná (cf. Marcos 2:19­ 20), de modo que quando o Senhor vai a Jerusalém a fim de purificar o templo, a impressão momentânea do leitor é de que entrou de súbito na última semana do ministério. Fica bem claro que João maneja a familiar cronologia sinótica com certa liberdade, isto é, uma liberdade que parece ter nascido da consciência do autor, de estar sendo conduzido a toda a verdade pelo ministério do Espírito. Há um ponto crucial, entretanto, em que João não está remodelando uma cronologia anterior mas, apenas rememorando o que aconteceu durante certo período desprezado, em grande parte, pelos autores dos

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sinóticos - o intervalo entre o batismo de Jesus por João Batista e a prisão do Batista.19 De acordo com Marcos, Mateus e Lucas, o ministério de Jesus não se inicia enquanto o de João Batista não termina (cf., Marcos 1:14); entretanto, no Evangelho de João os ministérios dos dois se sobrepõem. Já em plena atividade, em 3:24, depois de Jesus haver selecionado seus discípulos, realizado seu primeiro milagre na Galiléia e confrontado eis autoridades em Jerusalém, o autor traz à memória de seus leitores que João Batista ainda não havia sido lançado na prisão. O Evangelho de João se inicia com um capítulo inteiro consagrado à carreira de Jesus, sobre o qual os sinóticos silenciam. Dessa maneira, esse capítulo suplementa o testemunho dos sinóticos a respeito de Jesus de modo significativo. É errôneo caracterizar os sinóticos como históri­ cos, e João como teológico, tanto nos interesses quanto nas intenções. Vê-se claramente que os quatro evangelhos são históricos e teológicos em seus objetivos. As diferentes maneiras pelas quais interesses e obje­ tivos se sobrepõem, e limitam-se mutuamente, são responsáveis pela diversidade existente entre os quatro e dão a João, de modo especial, uma singularidade bem distinta, em comparação com os sinóticos. Propósito e Datação do Evangelho de João Com freqüência se diz que o propósito deste Evangelho está declarado em 20:31: “Estes, porém fatos do Cristo ressurgido] foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que crendo, tenhais vida em seu nome”. Daí terem alguns tirado a inferência de que esse Evangelho foi redigido para incrédulos, a fim de serem alcançados e convertidos à fé cristã. Todavia, tal pressuposição é altamente impro­ vável porque, do princípio até o fim, o Evangelho de João pressupõe considerável grau de sofisticação e de maturidade da parte de seus leitores, na compreensão do simbolismo cristão e das alusões às práticas e crenças com que estão familiarizados apenas os que já são crentes há tempos (como por exemplo, menções a batismo, santa ceia, experiência de perseguição ou de martírio — partindo de dentro, não de fora). O principal propósito do Evangelho de João provavelmente pode ser iden­ tificado como o propósito de todo e qualquer Evangelho: fazer que a carreira já passada de Jesus Cristo se tome uma realidade atual à presente geração, “os que não viram, e creram” (20:29). Nas palavras de outro texto neo-testamentário atribuído a João: “O que . . . ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos com respeito ao Verbo

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da vida . . . testificamos dela, e vos anunciamos a vida etem a... O que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também tenhais comu­ nhão conosco. E a nossa comunhão é com o Pai, e com seu Filho Jesus Cristo” (1 João 1:1-3). Fossem quais fossem outros objetivos e propósitos — contra-ataque a falsos ensinos concernentes à natureza humana ou divina de Jesus Cristo, a polêmica contra os que criam que João Batista era o Messias, ou a preocupação com os cristãos judeus que viessem a romper com a sinagoga e identificar-se abertamente com o movimento cristão (os quais com freqüência são propostos como razões por que o Evangelho teria sido escrito) — tudo isso deve ser entendido como reforço deste propósito simples, mas supremo. Quanto à datação do Evangelho de João, é bem mais difícil atribuir-lhe uma data do que comumente se pensa. Se o autor for realmente uma testemunha ocular, o Evangelho deve ter sido escrito durante o primeiro século de nossa era cristã; contudo, visto que não existe evidência conclusiva de que João utilizou outros evangelhos, em sua forma defini­ tiva, não se pode delimitar o quão cedo João teria escrito o seu. Conquan­ to não haja razões para duvidarmos da opinião geralmente aceita de que João teria sido o último dos quatro evangelhos, tampouco há algum modo de comprová-lo. João poderia ter sido escrito em qualquer época, na segunda metade do primeiro século. Só a referência em 21:23, ao boato segundo o qual o discípulo amado não morreria, é que sugere que a data de redação poderia estar mais próxima do fim do primeiro século.

Notas 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12.

De acordo com Orígenes, Commentary on Matthews 16.6. Irineu, Against Heresies 2:22.5; ANF 1.392. Idem., 3.3.4; ANF 1.416. Eusébio, Ecclesiastical History 3.31.3; LCL 1.271. Idem., 3.39.4; LCL 1.293. Ibid., 3.39.5-7. Ibid., 3.39.7. Ibid., 5.20.4-6; trad. D. J. Theron, Evidence ofTradition (Grand Rapids: Baker, 1958), pág. 27. Teófilo de Antioquia, To Autolycus 2.22; ANF 2.103. Irineu,/Igaí/isf Heresies 3.1 A; ANF 1.414. Idem., 3.11.1; ANF 1.426. Ptolomeu, Exegesis ofJohn, in Irineu, Against Heresies 1.85; ANF 1.328.

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13. Ptolomeu, Letter to Flora, in Epifânio, Panarion 3.33; trad. R. M. Grant, Gnosticism (New York: Harper, 1961), pág. 184. 14. Theron, Evidence of Tradition págs. 107-9. 15. Clemente de Alexandria, The Rich Man’s Salvation 42; ANF 2.603-604. 16. Irineu, Against Heresies 3.3.4; ANF 1.416. 17. Clemente de Alexandria, Hypotyposeis; veja Eusébio, Ecclesiastical History 6.14.17; LCL 2.49. 18. Idem. 19. Eusébio, Ecclesiastical History 3.24.11-12. Observação: No início deste livro há uma lista de abreviações usadas neste comentário (veja pág. 10).

1. A Palavra da Vida (João 1:1-18)

O prólogo é destacado do resto do Evangelho de João pelo fato de designar a Jesus como o Verbo (gr.: logos, w . 1,14, lit.: “Palavra”) em vez de “o Filho.” Contudo, João usa o termo unigénito (implicando filiação), nos w . 14 e 18 e, desse modo, prepara o terreno para a ênfase, que caracteriza esse Evangelho, no relacionamento Pai-Filho, existente entre Deus e Jesus. Também do ponto de vista do estilo, o prólogo de certa forma salien­ ta-se, ficando à parte do resto do texto. A repetição de certas palavraschaves, que também aparecem ligadas, dá certa dignidade e solenidade aos doze (ou mais) primeiros versículos. Por exemplo (seguindo a ordem vocabular do original grego), no v. 1: “V erbo... V erbo.. . Deus. . .Verbo... Deus. . nos versículos 4-5: “vida... vida.. . lu z .. . lu z ... trevas... trevas.. . ”; nos versículos 7-9: “como testemunha para testifi­ car a respeito da lu z .. . não era a lu z .. . para testificar da luz. . . a luz verdadeira... [luz] vindo ao mundo”; nos versículos 10-12: “m undo... mundo. .. m undo... seu. .. seus.. . receberam. .. receberam. . No meio do versículo 12 as repetições em cadeia cessam de repente. O efeito é um aumento marcante no passo e na intensidade, criando um pequeno crescendo no finál do versículo 13. O leitor percorre depressa as frases que descrevem o que os crentes não são (“filhos nascidos não do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem”) e fixa-se triun­ falmente no que são ([nascidos] “de Deus”). O versículo 14 traz uma mudança sutil. O autor faz uma pausa a fim de refletir no impacto causado pelo que acabou de dizer. A mensagem dos primeiros treze versículos é que o Verbo se fez carne. Ao mesmo tempo, o autor e sua comunidade projétam-se dentro da história do Verbo que se tomou ser humano. O Verbo habitou entre nós. Vimos a sua glória.. .cheio de g ra ç a ... da sua plenitude todos nós recebemos graça sobre graça (vv. 14, 16). Portanto, o prólogo pode ser dividido em duas partes: primeira, um sumário reduzido da história do Evangelho, inician­ do-se na eternidade e chegando até a experiência atual dos crentes em Cristo (vv. 1-13), e segunda, a resposta confessional desses crentes a esta revelação na história (vv. 14-18).

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O estilo distinto e vocabulário singular do prólogo levou muitos eruditos à conclusão de que o autor incorporou em seu Evangelho, logo no início, um primitivo hino cristão (ou pré-cristão). Plínio, o governador romano da Ásia Menor, no início do segundo século, escreveu ao imperador Trajano, dizendo que os cristãos “tinham o hábito de reunir-se num certo dia, antes do sol nascer, e cantar estrofes alternadas de um hino a Cristo, como se este fora um deus” (Cartas 10.96; trad. D. J. Theron, Evidence ofTradition [Grand Rapids: Baker, 1958], pág. 15). Possíveis fragmentos desse hino que se enquadram nessa descrição existem dentro do Novo Testamento (ver, Filipenses 2:6-11; Colossenses 1:15-20), e também é possível (conquanto não seja provável) que algumas partes de João 1:1-18 de início assumiram forma no contexto do culto cristão. Entretanto, não existe acordo entre os eruditos quanto a que versículos do prólogo pertenciam a esse pressuposto hino. Alguns têm tentado separar a poesia da prosa, de modo que quando certas “inserções” de prosa acerca de João Batista (vv. 6-8, 15) são removidas, o resto pode ser considerado como o hino ou poema original. Outros têm proposto reconstruções ainda mais sutis e complexas. Contudo, as repetições de palavras, formando de cadeias, que dão à primeira parte do prólogo um sabor estilístico especial, percorre a primeira (assim chamada) seção de prosa (vv. 6-8) e também a seção (considerada) poética. Embora o prólogo do Evangelho de João seja conhecidíssimo, e poético à sua maneira, NIV (à semelhança da maioria das versões em inglês e portu­ guês) trazem-no todo sob forma de prosa. Se houver ali, subjacente, um hino, não se encontrou um meio seguro de resgatá-lo. Sejam quais forem suas fontes, o prólogo em sua forma atual é apenas o que parece - a introdução literária ao Evangelho de João. Se a introdução houvesse começado no versículo 6, não haveria erro nenhum quanto ao objetivo da história. O versículo 6 inicia-se no mesmo ponto em que o Evangelho de Marcos começa (é onde a parte narrativa do Evangelho de João tem início), a saber, com João Batista (cf. Marcos 1:2-5; João 1:19-28). Nos evangelhos escritos e na pregação primitiva cristã, o ministério de João Batista serve de intróito ao ministério de Cristo (cf. Atos 10:37; 13:24-25). Entretanto, os primeiros cinco versí­ culos do Evangelho de João fazem referência a um começo remoto, o mesmo “princípio” de que nos fala Gênesis 1:1, quando “criou Deus os céus e a terra.” O refrão de Gênesis (“e disse D eus.. . e disse Deus. . .”)

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encontra seu equivalente na designação do prólogo: o Verbo (cf. Salmo 33:6: “Pela palavra do Senhor foram feitos os céus, e todo o exército deles pelo sopro da sua boca”). O propósito do autor do Evangelho é colocar a história de Jesus numa perspectiva cósmica. A luz que veio ao mundo em Jesus Cristo é a mesma luz que iluminou todas as criaturas humanas, desde o princípio. A palavra que criou todas as coisas, que também criou a vida, encontra expressão, agora, numa pessoa em particular, num ser vivente especial que habitou entre nós. Os primeiros versículos do Evangelho de João reivindicam o passado, de modo sucinto mas decisivo, em prol de Jesus Cristo. Ele é aqui a personificação da palavra criativa (verbo) de Deus, da mesma forma como posteriormente o Senhor será conhecido como a personifi­ cação de coisas que a palavra (verbo) chamou à existência: luz, verdade, vida e ressurreição, pão da vida, a vinha plantada por Deus. Quem dá vida é a Vida; Quem prega a verdade é a Verdade. Acima de tudo, Jesus é apresentado, no prólogo, como Aquele que revela, Aquele através de quem Deus falou no princípio e continua a falar. Por todo o Evangelho de João Jesusfala a palavra mas, no prólogo, ele é a Palavra, a encarnação pessoal de tudo quanto proclama. A carta aos hebreus introduz Jesus de modo extraordinariamente semelhante: “Havendo Deus outrora falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de tudo, por quem fez o mundo” (Hebreus 1:1-2). Todavia, se o Evangelho de João lança raízes no passado de maneira muito semelhante à de Hebreus, seu centro de interesse a partir do prólogo fixa-se de modo integral no presente e no futuro, não no passado. Não importando quais seriam suas implicações mais amplas, a função imediata dos versículos iniciais é simplesmente formar uma base para a ironia da subseqüente rejeição do Verbo, no mundo: “Estava no mundo, o mundofoifeito por meio dele, mas o mundo não o conheceu” (v. 10). O passado não constitui um fim em si mesmo. O propósito principal do parágrafo inicial, concernente à obra criativa de Deus mediante o Verbo é conduzir-nos à afirmação concernente ao presente: A luz resplandece nas trevas, “e as trevas não prevaleceram sobre ela” (v. 5). Com muita audácia, o autor silencia a respeito de todo o Antigo Testamento. Num instante ele fala da luz e da vida que foram criadas por Deus e no outro, proclama essa mesma luz que brilha hoje, vencendo as

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trevas ao seu redor. O resto do Evangelho deixa bem claro que a referência é à vida e à morte de Jesus, que veio ao mundo como luz (3:19; 8:12; 12:46), que enfrentou as trevas na hora de sua morte (9:4-5; 11:9-10; 12:35-36; 13:30). A luz resplandece nas trevas agora, por causa de Jesus, e de sua obra. Nos versículos 6-13 o autor volta, e descreve em rápido resumo como essa luz veio a brilhar tão triunfantemente num mundo escuro. A história se inicia da maneira costumeira, com João Batista; o inusitado é a insistência em que João Batista não era a luz mas meramente veio para testificar da luz (v. 8). À semelhança de Jesus Cristo, João Batista foi enviado de Deus como seu mensageiro mas, afirma o autor do Evangelho, a semelhança termina aqui. Por que é que se julgou que essa explicação seria necessária? A razão mais plausível é que o autor sabia de muitas pessoas, ou grupos de pessoas, para quem João Batista, e não Jesus, era a luz, a saber, Aquele que revelaria Deus. Sabe-se que essa crença ainda existia no século terceiro d.C. (veja nota sobre 1:8), sendo que o Evangelho de João a contra-ataca aqui e noutras passagens (cf. 1:20-21; 3:27-30). Conquanto o papel de João Batista fosse apenas o de testificar a respeito da luz, o autor continua dizendo que a luz verdadeira que ilumina a todos os homens estava vindo ao mundo (v. 9). A luz estava no mundo (v. 10) na pessoa de Jesus Cristo, durante o ministério de João Batista, ainda que João, de início, estivesse inconsciente disso (cf. 1:31, 33). Se Jesus, no prólogo, é a personificação do Verbo, não deixa de ser também a personificação da luz produzida pelo Verbo. Se existir uma questão quanto a quem é o sujeito, nos versículos 10-12, se o Verbo, ou se a Luz, tal questão é secundária, visto que em ambos os casos o sujeito é Jesus. Quaisquer distinções entre Verbo e Luz receberam transcendên­ cia em Cristo. “Cristo” estava no mundo, o m undo foi feito por meio de “Cristo” mas o mundo não conheceu “a Cristo.” O autor do Evan­ gelho não está recontando, aqui, um mito, ou alegoria, em que idéias abstratas assumem vida por si mesmas; ele narra história genuína, usando um telescópio e resumindo tudo em uma ou duas sentenças, história que será desenvolvida e ampliada no resto do Evangelho. Jesus veio para o que era seu, mas os seus não o receberam (v. 11). Num sentido imediato, seu país era Israel, e os seus, o povo judeu. Israel e o judaísmo constituíram o palco em que se desenrolou o drama de seu ministério público. Entretanto, o prólogo mencionou m undo três vezes,

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em duas linhas. O contexto sugere com muita força que, num sentido mais amplo, a pátria de Jesus é o mundo, ao qual foi enviado, sendo seu povo todos os seres humanos, de todas as nações e raças, todos sobre os quais a luz de Deus brilha (cf. w . 4, 9). Estas implicações mais amplas tomam-se aparentes quando Jesus vai a Jerusalém pela última vez (cf. 12:19, 32) e quando ele confronta Pilatos e a autoridade de Roma. A história da vinda da luz termina com um relato da experiência da própria comunidade do autor. Os judeus fizeram o que os seus (os de Jesus) no resto da humanidade não fizeram. Os seus dentre os gentios o receberam como mensageiro de Deus, e nele puseram sua fé. Receberam a condição de filhos de Deus, não por procriação, nem por geração natural, mas mediante novo nascimento divinal. Segundo as palavras de Cristo a Nicodemos, nasceram “de novo” (cf. 3:3). É dessa culminância que o autor diz: A luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram sobre ela (v. 5), e é dessa mesma perspectiva que o autor mostra como a luz o iluminou e à sua comunidade. E assim foi que o Verbo se fez carne, e habitou entre nós (v. 14a). A comunidade do autor adquire vida e começa a falar por si mesma: Vimos a sua glória, a glória como do unigénito do Pai. À semelhança de Isaías no templo (cf. 12:41), ou dos três discípulos no monte da transfiguração (cf. Lucas 9:32), a comunidade do autor viu a glória de Deus manifesta em Jesus Cristo. Entretanto, não foi uma questão de incidente particular, nem de visão singular. Haviam contemplado a glória de Cristo numa enorme série de eventos, a partir de seu batismo e no casamento de Caná (cf. 2:11), até sua morte e ressurreição. O primeiro a vê-la foi João Batista, que agora é apresentado como porta-voz de toda a comunidade cristã. Primeiramente, João é identifica­ do mediante a citação de algo que ele dissera certa vez sobre Jesus: O que vem depois de mim tem a prim azia porque foi prim eiro do que eu (v. 15). Embora estas palavras reforcem os primeiros versículos do prólogo, sobre a pré-existência de Jesus, seu propósito no contexto imediato é apresentar um novo testemunho dos lábios de João Batista, a saber, da sua plenitude todos nós recebemos graça sobre graça (v. 16). Aqui, João não está mais falando como profeta solitário, mas como membro da comunidade cristã. Ei-lo entre os que “receberam” a Jesus (cf. v. 12). Sendo o mensageiro através do qual outros chegarão à fé (cf. v. 7), João é o porta-voz apropriado de todos os crentes. O versículo 16

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é, portanto, não um testemunho que João pronunciou para si mesmo, numa ocasião particular, mas um testemunho comum a todos os crentes em Cristo. A plenitude de Jesus Cristo é uma expressão que se baseia na convicção de que o próprio Jesus era um homem cheio de graça e de verdade (v. 14), frase que relembra a descrição de Estêvão em Atos 6:8 (“cheio de fé e de poder”) e a expressão mais comum “cheio do Espírito Santo” (Atos 6:3,5; cf. Lucas 4:1; João 3:34). Se o Espírito em Lucas e Atos significa “poder” (Lucas 24:49; Atos 1:8), Espírito, nos escritos joaninos, significa “verdade” (João 4:23-24; 14:17; 15:26; 16:13; 1 João 5:6). Portanto, graça e verdade é um circunlóquio para Espírito Santo. O Espírito que repousou sobre Jesus após seu batismo pertence, agora, a todos os seus seguidores, visto que Jesus é “o que batiza com o Espírito Santo” (1:33). A confissão da comunidade de crentes provavelmente não vai além do versículo 16. O tom dos vv. 17-18 é outra vez didático e impessoal, como o dos vv. 1-13, quando o autor empreende a tarefa de explicar de modo concreto o significado da frase enigmática “graça sobre graça” (v. 16). A dádiva de Deus da lei judaica, diz o autor, abre caminho para a graça e a verdade, a dádiva do Espírito mediante Jesus Cristo. A distinção não se faz entre lei e graça, como formas contrastantes de salvação, mas entre duas dádivas da graça: a lei e o Espírito (cf. Paulo, em 2 Coríntios 3:7-18). Quando o autor acrescenta que ninguém nunca viu a Deus, aparentemente ele tem Moisés em mente, que não teve permissão de ver a face de Deus (Exodo 33:20-23). Em Jesus, as limitações impostas a Moisés e aos israelitas foram abolidas (cf. 2 Coríntios 3:18). Ver a glória de Jesus é ver a glória de Deus, pois, vimos a sua glória, glória como do unigénito do Pai (v. 14). Ver a Cristo é ver a Deus (cf. 14:9), porque Cristo é o Deus unigénito que está ao lado do Pai (cf. v. 1). O tema do prólogo é revelação. Só Deus pode revelar Deus, quer seja ele chamado de Verbo (v. 1), quer de Deus unigénito (v. 18). Pressu­ põe-se a divindade de Cristo por todo o texto, mas a mensagem não é simplesmente que Jesus é Deus. A mensagem é a seguinte: visto que ele é Deus, seu ministério na terra tomou Deus conhecido perante nós todos e, agora, ao lado do Pai, continua a fazer Deus conhecido mediante o Espírito (cf. 17:26). Por todo o Evangelho de João vemos e ouvimos Cristo fazendo exatamente isso.

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Notas Adicionais # 1 1:1 / era Deus: a ausência do artigo definido, no grego, antes de “Deus'’, levou alguns a presumir que a palavra estaria sendo usada como adjetivo (“o Verbo era divino”), e até mesmo a suprir, com implicações politeísticas, um artigo indefinido (“o Verbo era um deus”, cf. “New World Translation” [Tra­ dução Novo Mundo] das Testemunhas de Jeová, 1961). Todavia, há duas razões por que Verbo tem o artigo definido, no grego, e Deus, não: (1) para indicar que Verbo é o sujeito da oração, ainda que em grego venha após o verbo “ser” (i.e., “o Verbo era Deus” e não “Deus era o Verbo”) e (2) para indicar que Verbo e Deus não são termos totalmente intercambiáveis. Embora o Verbo seja Deus, Deus é muito mais do que o Verbo; Deus é também “o Pai”, enquanto o Verbo é identificado no v. 14 não como o Pai, mas como o unigénito do Pai. Nos termos dos debates posteriores acerca de Cristo, o Verbo tem a mesma natureza de Deus, mas, o Verbo e o Pai não são a mesma pessoa. 1:4 / Nele estava a vida: há uma questão que envolve pontuação, no texto grego. As palavras ho gegonen (lit., “aquilo que foi feito”) estariam concluindo o pensamento do v. 3, ou estariam iniciando o v. 4? Veja B. M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament (Londres e Nova York: United Bible Societies, 1971), págs. 195-96. ECA (à semelhança da maior parte das versões) parece pressupor a primeira alternativa como mais adequada, ao traduzir: “sem ele nada do que foi feito se fez”). Todavia, a esmagadora evidência de antigos manuscritos, e dos pais da igreja, é que nos primeiros séculos ho gegonen era entendido como início do v. 4, e não como conclusão do v. 3. A questão não é que no Verbo havia vida, mas que mediante o Verbo a vida se manifestou (lit., “o que foi feito nele era a vida”). 1:8 / Ele não era a luz. Tal negativa enfática a respeito de João Batista teria um sentido especialmente marcante em contraste com a crença mencionada na obra Recognitions I, 54, do terceiro século, falsamente atribuída a Clemente: “Até mesmo alguns dos discípulos de João [Batista], que pareciam grandes [homens de Deus] separaram-se do povo, proclamando que seu mestre era ò Cristo” (ANF 8.92). 1:9 / estava vindo ao mundo: a frase no grego pode referir-se a todos os homens ou à luz. O contexto favorece esta última alternativa, com muita força. Falar de todos os seres humanos “que estavam vindo ao mundo” é linguagem inflada, sem articulação com a economia lingüística do prólogo. Falar da luz que estava vindo ao mundo é estabelecer uma base inteligível para a declaração do versículo seguinte, que Jesus “estava no mundo”. Se a segunda alternativa for a correta, deveria ser entendida, à semelhança de ECA, como construção perifrásica, unindo o verbo “estar” ao particípio presente de “vir”: A luz verdadeira - que ilumina a todos os homens - estava vindo ao mundo. 1:13 / nascidos não do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem: lit., “não de sangues, nem da vontade da carne, nem da vontade do

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macho”; i.e., não mediante intercurso sexual comum, iniciado pelo desejo do marido. Evidentemente, trata-se de pessoas que nasceram fisicamente mediante esse processo, mas não é esse o processo mencionado aqui. 1:14 / unigénito do Pai: Esta frase é mais do que simples metáfora. Jesus não recebe glória como se Deus fosse seu Pai e como se fosse o unigénito do Pai, mas porque esta é a realidade. A linguagem nos faz lembrar o batismo de Jesus. O termo unigénito (monogenes não focaliza o nascimento de Jesus [como denota a tradução de KJV, “o único gerado"]), mas enfatiza o fato de ser ele o objeto singular do amor do Pai. É expressão empregada do mesmo modo, diríamos, como “amado” (agapetos), no relato dos sinóticos, sobre a voz que veio do céu por ocasião do batismo de Jesus (Marcos 1:11); Mateus 3:17; Lucas 3:22). O autor do Evangelho de João fala como se ele e sua comunidade, à semelhança de João Batista, fossem testemunhas oculares do batismo de Jesus (cf. “vimos” no v. 14, com “eu vi”, no v. 32). 1:15 / Este é aquele de quem eu disse: Um antigo texto do conhecimento de Orígenes, no terceiro século (e provavelmente do conhecimento de seus adversários gnósticos, antes ainda), faz da maior parte do v. 15 um texto entre parênteses que identifica João Batista: “Este é aquele que disse: ‘Ele vem depois de mim, mas é maior do que eu, porque existia antes de eu nascer.’” O efeito desta tradução é tomar o v. 16 a verdadeira mensagem, de que João “testifica” e a qual “exclama” como testemunha atual perante os leitores do Evangelho. João Batista, que uma vez dissera: O que vem depois de mim, etc. agora diz: Da sua plenitude todos nós recebemos graça sobre graça, etc. Esta variante de texto foi adotada por Westcott e Hort, no “Greek New Testament” que editaram em 1881 (Nova York: Harper & Brothers), mas nenhuma outra ediçãao em grego a adotou. (Está preservada, no entanto, na Tradução Novo Mundo, de 1961 [Brooklyn: Watchtower and Tract Society], e na tradução de Richmond Lattimore, The Four Gospels and the Revelation [Nova York: Farrar Straus Giroux]). Quanto a uma defesa dessa composição e tradução, veja J. R. Mi­ chaels, “Orígenes e o Texto de João 1:15”, New Testament Textual Criticism: Its Significance for Exegesis. Essays in Honour ofBruce M. Metzger (Oxford: At the Claredon Press, 1981), págs. 87-104. 1:18 / Deus unigénito: Alguns manuscritos antigos não trazem a identifica­ ção do unigénito com Deus (monogenes theos no grego), usando monogenes com hyios, palavra grega mais comum para “filho” (i.e., ho monogenes hyios, “o Filho unigénito”, cf. 3:16; 1 João 4:9). Entretanto, o texto oficial de ECA tem o apoio dos melhores manuscritos e com toda probabilidade é correto. É improvável que algum escriba tenha alterado essa expressão joanina tão comum, “filho unigénito”, pondo em seu lugar algo tão inusitado e pouco familiar como Deus unigénito.

2. Os Primeiros Dois Dias: Â Mensagem de João Batista (João 1:19-34)

A parte de narração do Evangelho de João começa com uma terceira referência à mensagem de João Batista (cf. w . 6-8, 15-16). A diferença entre as referências do prólogo, e a desta seção é que, nesta parte, agora, a atenção se focaliza num testemunho particular de João Batista, dado numa ocasião particular, quando as autoridades judaicas, posteriormente designadas com mais precisão por fariseus (v. 24), enviaram uma delegação de sacerdotes e levitas de Jerusalém, a fim de interrogar o profeta. É uma ocasião que se estende por pelo menos uma semana. Usando a frase no dia seguinte (vv. 29,35,43), e “no terceiro dia” (2:1), o autor apresenta uma seqüência de seis dias, seguida de um indefinido “não muitos dias” (2:12). O propósito é realçar um período memorável no começo do ministério de Jesus. O Dia Um consiste do testemunho negativo do Batista: Ele diz quem ele não é (vv. 19-28). O Dia Dois consiste do testemunho positivo do Batista: ele proclama Jesus e diz ao povo quem é Jesus (vv. 29-34). O resto da semana consiste de histórias de como as pessoas chegaram à fé, como resultado direto ou indireto do testemunho do Batista (1:35-2:11). C. H. Dodds observou que 1:6-8 serve de esboço adequado do que se segue: o Batista não era a luz (1:19-28), mas veio testificar da luz (1:29-34), de modo que por seu intermédio todos pudessem crer (1:35-37; cf. 10:42). (Historical Tradition in the Fourth Gospel [Cambridge: Cambridge University Press, 1963], págs. 248-49.) O interrogatório de João Batista no primeiro dia traz à memória a reação popular a seu ministério, de acordo com o Evangelho de Lucas: “Estando o povo na expectativa, e pensando todos de João, em seus corações, se porventura seria o Cristo” (Lucas 3:15). A diferença no Evangelho de João é o tom de hostilidade implícita, em vez de esperança serena. Tanto Lucas quanto João pressupõem que houvera muita ativi­ dade anterior, da parte de João Batista. Deveria ter atraído muita atenção, de modo que suscitou perguntas como: Quem és tu? És tu Elias? És tu o profeta? Parece que o leitor está sendo apresentado ao Batista numa

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fase adiantada de seu ministério, talvez na parte final. De acordo com o livro de Atos, “quando João completava a carreira, disse: Quem pensais vós que eu sou? Eu não sou o Cristo, mas após mim vem aquele a quem não sou digno de desatar as sandálias dos pés” (Atos 13:25). O Batista sabe o que seus interrogadores têm em mente. Não mencio­ naram o Messias de modo explícito mas ele declara, sem hesitação: Eu não sou o Cristo. O Cristo [o Messias], ou o ungido, era visto de maneiras variadas pelos judeus do tempo de Jesus. Com freqüência era esperado como se fora um poderoso rei da linhagem de Davi (cf. “Rei de Israel”, v. 49), e às vezes, como um grande sacerdote, à semelhança de Aarão, ou Melquisedeque, ou um grande mestre, ou profeta, como Moisés. Quando os mensageiros de Jerusalém perguntam: Es tu Elias? e És tu o profeta? ainda estão insistindo fortemente na questão do messianismo. A resposta de João Batista: Não sou ou não para essas perguntas, ressoa como simples negativa; todavia, o autor do Evangelho enfatiza que João “confessou e não negou, confessou” (v. 20), ao decla­ rar: Eu não sou o Cristo. A negativa de João Batista é, na realidade, uma confissão, frente à implicação ao leitor que Jesus era o que João não era. Fica perfeitamente evidente que Jesus é o Messias (cf. 1:41; 20:31), mas ele também é Elias, e é o Profeta. Estes não são títulos que João Batista poderá utilizar ao formular seu próprio testemunho a respeito de Jesus (vv. 29, 34); entretanto, sem dúvida alguma são títulos aplicáveis ao Senhor. O narrador tem interesse, por todo o capítulo, em relacionar os títulos pelos quais Jesus pode ser chamado e reconhecido. São todos legítimos e apropriados, alguns mais importantes do que outros; todavia, no Evangelho, como um todo, a realidade de quem é Jesus excede qualquer título, e até mesmo qualquer coleção de títulos possíveis. A profecia de Malaquias encerra-se com a promessa de Deus: “Eu vos enviarei o profeta Elias, antes que venha o dia grande e terrível do Senhor. Ele converterá o coração dos pais aos filhos, e o coração dos filhos aos pais, para que eu não venha e fira a terra com maldição” (Malaquias 4:5-6). A tradição cristã tem considerado Elias como o precursor do Messias mas, aqui ele é visto como o precursor do próprio Deus e, portanto, constitui uma personagem messiânica por si mesma. Sua missão é de reconciliação, e sua mensagem, de arrependimento, a última oportunidade de arrependimento antes que chegue o “dia grande e terrível do Senhor”. Esta concepção a respeito de Elias é, aparentemente, o que

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jaz por detrás da pergunta dirigida a João Batista. O chamado de João ao arrependimento, e seu ministério de batismo baseado na reação do povo à sua convocação (cf. Marcos 1:4-5) com toda certeza levantaram a pergunta: Quem és tu? surgida como conjectura de que João haveria de ser Elias. A pergunta Es tu o Profeta? também decorre de um texto bíblico específico, pelo qual Moisés diz aos israelitas que “o Senhor teu Deus te suscitará um profeta como eu, do meio de ti, de teus irmãos. A ele ouvirás. Foi o que pediste ao Senhor teu Deus em Horebe, no dia da congregação, dizendo: Não ouvirei mais a voz do Senhor meu Deus, nem mais verei este grande fogo, para que não morra. Então o Senhor me disse: Falaram bem no que disseram. Eu lhes suscitarei um profeta do meio de seus irmãos, semelhante a ti; porei as minhas palavras na sua boca, e ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar. Eu mesmo pedirei contas de todo aquele que não ouvir as minhas palavras, que ele falar em meu nome”. (Deuteronômio 18:15-19). No que concerne a este Evangelho, o Profeta é Jesus, com tanta certeza quanto o Messias é Jesus (cf. 6:15). Jesus é “aquele de quem Moisés escreveu na lei” (1:45; cf. 5:46), e ainda quando chamado por outros títulos (como por exemplo, Filho), a reiterada insistência, neste Evangelho, é que ele fala apenas as palavras que o Pai lhe deu. Jesus é o Revelador de Deus e, assim, o Profeta máximo (cf. mais uma vez Hebreus 1: 1- 2 ). Por outro lado, em parte alguma do Novo Testamento é Jesus identi­ ficado com Elias, nem dele se diz que veio cumprir o papel messiânico de Elias. Conquanto haja analogias entre o ministério de Jesus e o do Elias histórico (ver, Lucas 4:25-26; 7:11-17), e alguns tenham visto Jesus dessa maneira (Marcos 6:15; 8:28), do próprio Jesus se afirma que reinterpretou o papel de Elias, na profecia, como tarefa preliminar, não final, tendo atribuído esse papel a ninguém mais senão a João Batista! (ver, Mateus 11:14; 17:10-13). Entretanto, temos aqui algo inteiramente novo. O próprio João Batista via a Elias como figura messiânica e, por isso, deixou de identificar-se com o profeta. Em sua negativa fica implícita sua presunção de que Aquele que estava prestes a vir (“aquele que vem após mim”) é Elias, é o Profeta e é o Messias. Isso explicaria, como sugere Raymond Brown (The Gospel According to John, AB 29A [Nova York: Doubleday, 1966], pág. 64) o notável pronunciamento do Batista a respeito daquele que estava por chegar: Este é aquele que vem

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após mim (v. 30). Pelas implicações, Elias, bem como o Profeta e o Messias, são uma pessoa, Jesus, e o autor do Evangelho pára por aí. O termo “Messias” enfatizará o reinado de Jesus, o termo “Profeta” enfa­ tizará a revelação que ele vai trazer, mas a identificação de Jesus com “Elias” só traria complicações à situação, sem acrescentar uma dimensão útil, sequer. Por isso, o autor do Evangelho deixa que permaneça um testemunho meramente negativo e indireto sobre Jesus Cristo. Quando a delegação vinda de Jerusalém prosseguiu pressionando quanto à identidade de João, o profeta afirmou (com as palavras de Isaías): Eu sou apenas a voz do que clama no deserto: Endireitai o caminho do Senhor! (v. 23; cf. Isaías 40:3). Do ponto de vista do narrador, isto significa que João Batista haveria de preparar o caminho de Jesus (cf. 3:28) mas, do ponto de vista dos interrogadores do Batista, a resposta foi apenas mais uma evasão. Se ele não é uma figura messiâ­ nica, perguntam eles, por que então batiza? (v. 25). O ministério de batismo de João havia atraído a atenção das autoridades , porém, não ficou claro por que teriam pensado que a prática batismal teria implica­ ções messiânicas. Não há evidências em fontes antigas de que o batismo fosse considerado parte da obra do Messias (ou do Profeta). O que impressionara os mensageiros, portanto, provavelmente não fora a prá­ tica do batismo em si, mas o chamado ao arrependimento, de que o batismo era símbolo, como bem sabiam. Como poderia um homem que não reivindicasse para si mesmo o papel messiânico convocar o povo judeu daquele tempo para uma mudança tão decisiva? Entretanto, ainda que o autor do Evangelho pressuponha a existência de antigas tradições quanto à pregação de João Batista sobre arrependi­ mento (cf. Marcos 1:4, 15; Mateus 3:2, 7-10; Lucas 3:2-3, 7-14), o interesse desse autor centraliza-se no próprio ato do batismo. Quando lhe perguntam: Então por que batizas? o Batista de modo algum menciona o arrependimento, em sua resposta. Na verdade, ele deixa de responder à pergunta, nesse momento, mas adia a resposta até o Dia Dois. Com efeito, o pronunciamento crucial do Batista começa num certo dia, e só termina no dia seguinte. Uma pessoa que esteja familiarizada com as tradições anteriores esperaria que o Batista respondesse: “Eu, em verda­ de, vos batizei com àgua, mas ele vos batizará com o Espírito Santo” (cf. Marcos 1:8). Em vez disso, ele faz uma pausa, a fim de enfatizar “Aquele que vem após mim” (v. 27) e adia a menção do batismo com o Espírito

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Santo até o Dia Dois (v. 33), depois de o Esperado ter sido identificado. Todavia, nem mesmo o pronunciamento integral acerca de água e de Espírito responde à pergunta: por que batizas? Essa resposta também é deixada para o Dia Dois. Basta que, por enquanto, se salientem dois pontos: primeiro, a identidade do Esperado ainda é desconhecida, e segundo, o Esperado é incomparavelmente maior do que o próprio João Batista. O registro do Dia Dois inicia-se com João Batista identificando o Esperado como sendo Jesus (vv. 29-30), identificação de que os demais Evangelhos só dão indícios (ver, Mateus 11:3; Lucas 7:20; Mateus 3:14). João desempenha, aqui, o papel que lhe foi atribuído no prólogo. Ele fala em nome da toda a comunidade cristã ao confessar que Jesus é o Cordeiro de Deus (v. 29) e também o Filho de Deus (v. 34). Somente agora é que João responde à pergunta: “por que batizas?” Seu batismo é por causa de Jesus, “para que ele fosse manifestado a Israel” (v. 31). O Israel a quem Jesus é manifestado não é a nação toda, mas um pequeno círculo de discípulos, um grupo de “verdadeiros israelitas” (cf. 1:47) que se tomou o núcleo de uma nova comunidade, à qual Jesus mais tarde, segundo registro, haveria de revelar “a sua glória” (2:11), em Caná da Galiléia. De início Jesus é identificado como o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo (v. 29). A aparente referência à morte sacrificial de Jesus surge aqui, inesperadamente (exceto v. 36), não tendo paralelo no ensino do Batista. Entretanto, até mesmo nos sinóticos o batismo de João é chamado de batismo “para remissão dos pecados” (Marcos 1:4; Lucas 3:3). “Aquele que vem”, segundo a proclamação do Batista, “limpará a sua eira, recolhendo o trigo no seu celeiro, e queimando a palha com fogo que nunca se apagará” (Mateus 3:12; cf. Lucas 3:17). O mundo de Deus deverá ser purificado; todo pecado será purgado da terra, e todo mal será destruído. Cordeiro de Deus em si mesmo sugere imagem completa­ mente diferente, o sacrifício cruento de uma vítima inocente, mas o ceme dessa declaração não é tanto que o Cordeiro recebe a culpa dos pecados do mundo, mas que o Cordeiro de modo literal remove o pecado. A ênfase recai sobre o resultado da obra do Cordeiro, não sobre os meios de atingir esse resultado. O melhor comentário dessa mensagem é 1 João 3:5, onde a linguagem do Batista revive: “E bem sabeis que ele se manifestou para tirar os nossos

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pecados. E nele não há pecado”. “Manifestou” é o mesmo verbo tradu­ zido “fosse manifestado” ou “tomado conhecido”. Embora o título de Cordeiro não esteja presente em 1 João, a menção da impecabilidade de Jesus faz lembrar o cordeiro sacrificial “sem defeito”, prescrito na lei do Antigo Testamento (ver, Êxodo 12:5; Levítico 22:18-25; cf. 1 Pedro 1:19-20). “Tirar pecados” é igual, então, numa composição paralela no contexto, a destruir a obra do diabo: “Para isto o Filho de Deus se manifestou: para destruir as obras do diabo” (1 João 3:8). De acordo com o Evangelho de João é isso exatamente o que a morte de Cristo realizou: “Agora é o tempo do juízo deste mundo; agora será expulso o príncipe deste mundo” (João 12:31; cf. 16:8-11). A mensagem de João Batista contém tanto salvação quanto julgamento. Embora ele veja Jesus como cordeiro, a obra desse cordeiro se apresenta tão multifacetada como a do Cordeiro messiânico, no livro do Apocalipse (ver, Apocalipse 5:6-14). Ele não é apenas uma vítima, mas o Salvador do mundo (cf. João 4:42) e Juiz do mundo. O futuro do mundo, e de cada pessoa nele, está nas mãos do Cordeiro. João Batista explica de imediato que foi verdadeiramente Jesus, o Cordeiro de Deus, quem ele estivera anunciando antes, ao falar de modo um tanto indefinido a respeito daquele que viria em breve. Naquela época ele ainda não sabia quem era o Esperado (v. 31), mas agora sabe. Antes que “fosse manifestado a Israel” a identidade daquele que estava prestes a chegar, era preciso que fosse revelado ao próprio João, que prossegue dizendo como essa revelação lhe veio. Deus lhe dera um sinal: Quando visse o Espírito descendo dos céus sob a forma de uma pomba e repousando sobre uma pessoa, ficaria sabendo que tal pessoa era “Aque­ le” que vem após mim, que (como João havia prometido) haveria de batizar com o Espírito Santo (v. 33). Em certo ponto (presumivelmente por ocasião do batismo de Jesus), João Batista viu aquela cena. O Espírito desceu como pomba vindo dos céus e pousou sobre Jesus, o que significou para João que Jesus era o Filho de Deus (vv. 32, 34). João Batista toma-se aqui participante dos eventos sobrenaturais que ocorre­ ram no batismo de Jesus. A voz vinda dos céus (“Tu és o meu Filho amado em quem me comprazo” Marcos 1:11) não é mencionada; todavia, seu lugar é tomado pela expressão filho de Deus, no testemunho de João. O batismo de Jesus é recontado apenas de modo indireto, e em retrospecto. Não faz parte, na verdade, da seqüência do narrador, de seis

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dias. Já no primeiro dia, João Batista havia dito à delegação de Jerusalém: no meio de vós está alguém que não conheceis (1:26). A implicação é que por essa época João já o conhecia, pois, acrescenta: do qual eu não sou digno de desatar as correias das sandálias (1:27). Os acontecimen­ tos rememorados nos versículos 32-34 já pertencem ao passado, e Jesus está em Betânia (entre vós, v. 26), talvez na companhia de alguns seguidores do Batista. Por isso, quando João viu a Jesus, que vinha p ara ele (v. 29) essa vinda não teria sido com o objetivo de batizar-se, mas seria apenas o modo de o narrador colocar o Senhor no cenário de forma dramática. Não há como ter certeza sobre quanto tempo decorreu, antes dos seis dias, até o batismo de Jesus, ou quanto tempo durou o relacio­ namento de Jesus com o Batista. A referência ao Espírito, que não apenas desceu “do céu como pomba” mas permaneceu “sobre ele [Jesus]” (vv. 32-33), sugere que João Batista esteve com Jesus durante semanas, ou meses, a fim de conhecê-lo como alguém em quem habitava a plenitude do Espírito (cf. 1:16; 3:34), antes de revelá-lo de público a Israel. Se isso significa que o próprio Jesus teria sido um dos discípulos do Batista é questão que interessa a historiadores mas, pelo que parece, não interessou ao autor do Evangelho. Alguns discípulos de João, dois capítulos mais adiante, fazem um retrospecto sobre o relacionamento entre os dois, e referem-se de modo vago a Jesus: “aquele homem que estava contigo além do Jordão” (3:26), e o autor contenta-se em ficar por ali mesmo.

Notas Adicionais # 2 1:231 João respondeu com as palavras do profeta Isaías: Só neste Evan­ gelho aparece a citação de Isaías 40:3 nos lábios do próprio João Batista. Nos demais Evangelhos o autor é quem tece um comentário (Marcos 1:3; Lucas 3:4; Mateus 3:3). Entretanto, em Mateus, o texto está intimamente relacionado às palavras de João, que poderia tê-las adaptado com ligeiras mudanças (“Este é aquele [em vez de ‘eu sou’] de quem o profeta Isaías falou”). Se Isaías 40:3 ajudou a aguçar a consciência da comunidade essênia de Qumran, de modo que saísse ao deserto a fim de estudar a lei (lRs 8:13-16), não há razão por que não tenha influenciado a João Batista também. 1:24 / alguns dos fariseus que tinham sido enviados: é altamente imprová­ vel que o autor houvesse introduzido uma nova delegação, neste ponto da história, ou que bem mais tarde houvesse acrescentado fariseus ao grupo de “sacerdotes e levitas” (v. 19) à mesma delegação! Seria preferível traduzir esta frase como RSV: “haviam sido enviados da parte dos fariseus”. Isso reitera o v. 19 e assim (parecendo fazer novo início) esses homens lançam a mais crucial

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das perguntas (então por que batizas?), enfatizando-a dentre a série de per­ guntas preliminares. 1:25 / se não és . . . Elias: o único indício quanto a uma crença judaica de que Elias seria esperado como alguém que viria batizando, encontra-se num documento cristão que surgiu meio século após a redação do Evangelho de João. Justino, o Mártir, em seu Diálogo com Trypho 8.4, apresenta Tripho, o judeu, afirmando que o Messias seria desconhecido “até que Elias venha para ungi-lo e o tome manifestado a todos” (veja ANF 1.199). Deve-se observar, primeiro, que nem mesmo aqui a palavra batizar é empregada e, segundo, que em outros aspectos a passagem parece ter sido reconstituída pelo relato evangélico do que João Batista realizou por Jesus (cf. João 1:31). O testemunho é mais fiel às tradições cristãs do que às judaicas. 1:28 / em Betânia, do outro lado do Jordão: Além dessa referência, nada mais se sabe do lugar. Era mistério até para Orígenes, no terceiro século, que adotou, em vez desse nome, “Betabara” (Commentary on John 6:40), uma cidade a leste do Jordão, mencionada em outros manuscritos antigos. Pierson Parker (“’Bethany beyond Jordan”, JBL 74 [1955], pág. 258) identificou esta Betânia com a que ficava bem próxima de Jerusalém, mediante a tradução da localização assim: “do lado oposto àquele em que João estivera batizando, no Jordão”. Entretanto, noutras partes, no Evangelho de João (i.e., 3:26; 10:40) a frase “do outro lado do Jordão” refere-se com clareza à margem oriental (i.e., o atual reino da Jordânia), não havendo razão por que devamos entender a expressão aqui de modo diferente. Seria improvável que o autor identificasse a bem conhecida Betânia de Marta, Maria e Lázaro de maneira tão estranha (contraste 11:1,18). Assim, a localização desta outra Betânia, a leste do Jordão, permanece indeterminada. Duas facetas da narrativa merecem menção: (1) à parte a citação de Isaías 40:3, nenhuma ênfase especial se coloca no ministério de João “no deserto”. Betânia a leste do Jordão presumivelmente seria um vilarejo, à semelhança de “Enom, perto de Salim” na Judéia (cf. 3:23). A narrativa que se segue sugere que Jesus morava nalgum lugar ali (1:39), e que em suas vizinhanças cresciam figueiras (1:48). (2) O texto não afirma categoricamente que João batizava no rio Jordão. Embora os Evangelhos sinóticos deixem bem claro que o Batista batizava no Jordão (Marcos 1:5; Mateus 3:6), o Evangelho de João indica maior mobilidade da parte do precursor. Ele batizava em Enom “porque havia ali muitas águas” (i.e., provavelmente fontes naturais e lagoas), e o mesmo se poderia dizer, talvez, de Betânia. 1:29 / Cordeiro de Deus: C. H. Dodd (The Interpretation of the Fourth Gospel [Cambridge; University Press, 1958], págs. 230-38) argumenta que há um contexto judaico nesse título, partindo de referências apocalípticas ao Messias, como sendo um cordeiro jovem, poderoso, que defende o rebanho de Deus contra seus adversários e os afugenta. Esta é uma sugestão atraente, que pode ser correta, mas as evidências são escassas (só Enoque 90.38 e Testament of Joseph 19.8; esta última referência pode ser uma interpretação cristã de João

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1:29, em vez de a fonte da referência). Como o próprio Dodd parece reconhecer (págs. 236-38), a evidência mais significativa é o Cordeiro no livro de Apoca­ lipse, com 1 João 3:5, e o fato inegável de que eliminar o pecado era uma das funções do Messias judeu. Outras sugestões (por exemplo, que Cordeiro de Deus relembra o cordeiro pascoal, ou o Servo descrito em Isaías 53, ou o sacrifício de Isaque, da parte de Abrãao, em Gênesis 22) são deficientes porque, primeiro, enfraquecem a credibilidade deste versículo, como pronunciamento de João Batista em parti­ cular e, segundo, porque até mesmo para o autor do Evangelho, estes temas são periféricos, não centrais, para a compreensão da morte redentora de Jesus (apesar disso, veja 8:56; 19:14, 36). 1:30 / após mim vem um homem. É necessário ter em mente o contexto de tempo deste versículo. O anúncio de que após mim vem um homem que tem a primazia, porque era primeiro do que eu foi feito antes da ocorrência dos eventos descritos neste Evangelho, antes mesmo do batismo de Jesus. Naquela época, diz João, eu mesmo não o conhecia (v. 31). João ainda estava falando de alguém que viria, uma pessoa indefinida, não de Jesus em particular, visto que ainda não tinha visto o sinal da pomba identificadora de Jesus como o Esperado. Portanto, quando o Batista diz: após mim vem um homem, deve estar falando de uma sucessão temporal real (“determinado homem virá mais tarde") e não, como alguns sugerem, do discipulado (“um homem que hoje me segue, como meu discípulo, recebe precedência sobre mim”). “Vir após” pode, na verdade, significar discipulado (cf. Marcos 8:34), mas a declaração de João, aqui, não pode ser utilizada como prova de que Jesus era discípulo de João. O mesmo provavelmente é verdade a respeito de 1:27, conquanto este versículo seria pronunciado numa época posterior, quando o Batista sabe que Aquele que havia de vir agora está presente (v. 26). A declaração “este é aquele que vem após mim” (v. 27) provavelmente é uma referência à mesma declaração feita antes, citada no v. 30, e não uma afirmação que Jesus fora discípulo de João. Tal referência é citada apenas em retrospecto, no Evangelho (1:15,30); a breve alusão em 1:27 parece não constituir exceção. 1:34 / Filho de Deus: Alguns manuscritos antigos, muito importantes, trazem, em vez de Filho de Deus, “o Escolhido (Gr.: eklektos) de Deus”. É possível fazer-se boa defesa desta variante. Com facilidade se pode ver como o copista poderia ter mudado “Escolhido de Deus” para a expressão bem conhe­ cida Filho de Deus, sendo difícil imaginar uma mudança em direção oposta. Os títulos dados a Jesus neste capítulo não aparecem, via de regra, duplicados, e Filho de Deus aparece mais tarde, em 1:49. Todavia, as evidências de manus­ critos, em prol de Filho de Deus são muito fortes. Que os copistas dos mais antigos manuscritos estavam sempre dispostos a permitir que um título inusita­ do, ou pouco familiar, para Cristo, permanecesse, se eles o julgassem autêntico, demonstra-se pela expressão bem confirmada “Deus unigénito” do v. 18, e “o Santo de Deus” de 6:69. Aqui, Filho de Deus provavelmente é o que o autor escreveu, mas “Escolhido de Deus” também era expressão lembrada com

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clareza e firmeza, estando numa das mais antigas tradições acerca de João Batista (escritas e orais), de modo que ela persistiu na tradição escrita. Filho provavelmente representa a interpretação do autor do Evangelho do termo do próprio Batista, “o Escolhido” (ver, o uso de “Filho de Deus” em conexão com uma referência ao batismo de Jesus em 1 João 5:5).

3. Os Próximos Dois Dias: Vocação dos Discípulos (João 1:35-51)

João Batista repete seu testemunho sobre Jesus como o C ordeiro de Deus na presença de dois de seus discípulos (v. 36). É assim que ele fez que Jesus “fosse manifestado a Israel”. Com efeito, ele entrega seus próprios discípulos a Jesus. Um desses dois é André (v. 40), mas o outro não é identificado. A presunção largamente difundida é que esse segundo discípulo seja o próprio autor do Evangelho, o “discípulo amado” men­ cionado cinco vezes na segunda metade do Evangelho. Mas nem todos os discípulos anônimos têm que ser esse, o “amado”. É mais provável que o segundo discípulo seja Filipe (cf. 1:43), que aparece ao lado de André em duas outras ocasiões (6:5-9; 12:21-22) e que, à semelhança de André, traz alguém a Jesus (1:43-51). Os dois discípulos nos versículos 35-39 antecipam, assim, os versículos 40-42 e 43-51, respectivamente: Jesus chama André e Filipe; André traz seu irmão Simão a Jesus, enquanto Filipe traz Natanael. A história do chamado é classicamente simples. Os dois discípulos ouvem a proclamação de João e seguem a Jesus. O fato de que seguiram, entretanto, conotando discipulado, não é o fim da história, mas o começo. Jesus lhes pergunta o que estão procurando e eles dizem que querem ver onde o Senhor mora. E assim fazem uma visita ao domicílio de Jesus em Betânia, onde passam o dia com o Senhor. Interessado na exatidão, o narrador acrescenta a qualificação de que na verdade passaram apenas uma parte do dia com Jesus, porque já era quase a hora décima (quatro horas da tarde, v. 39), e o dia acabava ao pôr-do-sol. O que mais importava não era quanto tempo passaram juntos, mas o fato de terem estado com Jesus. Ele se tomou o rabi deles (o mestre, v. 38; cf. 13:13). Discipulado, neste Evangelho, não significa apenas seguir a Jesus mas permanecer com ele. De tempos em tempos Jesus ficaria com seus discípulos, ou candidatos a discípulos, à parte, entre um e outro confronto público com as autoridades de Jerusalém (e.g., 2:12; 3:22; 4:40; 6:3; 10:40-42; 11:54; 18:2). Antes de partir deste mundo, Jesus pede a seus discípulos que “permaneçam” unidos a ele, permanecendo em seu amor

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e obedecendo a seus mandamentos (15:1-10). O discipulado se inicia deixando a vida pregressa a fim de “seguir” Jesus (cf. Marcos 1:16-20) e completa-se ao “seguir” o Senhor até à morte de mártir, ou “permane­ cendo” fiel a ele numa vida de obediência amorosa (cf. João 21:19-23). Se os dois discípulos passaram o resto do Terceiro Dia com Jesus, os eventos dos versículos 40-42 devem ter ocorrido no Quarto Dia. Entre­ tanto, o dia seguinte só é anunciado no v. 43. Por quê? Parece que o narrador não quer que o chamado de Simão Pedro (versículos 40-42) fique à parte do relato mais extenso do chamado de Natanael, em que se concentra o principal interesse. O chamado de Simão Pedro é parte da tradição do autor, que não deseja deixá-lo fora mas, a bem da verdade, não há um dia especial devotado à vocação de Simão nessa seqüência de seis dias. O evento é um apêndice ao Terceiro Dia, incluído com o objetivo de completar a narrativa e preparar as pessoas para os eventos do Quarto Dia. André encontra Simão e lhe diz: Achamos o Messias (v. 41); Filipe encontra Natanael e lhe diz: Achamos aquele de quem Moisés escreveu na lei (1:45); Jesus diz que Simão é pedra (Cefas ou Pedro, v. 42), e Natanael, um verdadeiro israelita (1:47). Mas os paralelismos param aqui. A entrevista de Jesus com Simão Pedro encer­ ra-se tão abruptamente como se iniciou, enquanto Natanael prossegue, professando sua fé e recebendo uma promessa em prol de todos os discípulos (1:45-51). Se dispuséssemos de apenas esta parte introdutória da narrativa, chegaríamos à conclusão de que Simão Pedro foi um figurante de menor importância, no Evangelho de João, e que Natanael teve grande projeção, mas, no decorrer dos acontecimentos, o inverso é que é verdadeiro. A profissão de fé de Pedro não é omitida, apenas adiada (6:68-69); o leitor aprenderá mais a respeito dele do que de qualquer outro discípulo (ver 13:36-38; 18:15-18,25-27; 21:15-19). Pouca importância é dada ao novo nome de Simão. Não existe um texto equivalente ao de Mateus, em que há uma promessa a Pedro: “sobre esta pedra edificarei a minha igreja” (Mateus 16:18). Embora esse discípulo seja chamado comumente de “Pedro” ou “Simão Pedro”, Jesus ainda o chama, às vezes, de “Simão, filho de João” já no fim, como em 21:15-17. A tradição de Pedro, a Rocha, é preservada e reafirmada; contudo, para o autor do Evangelho, o mais importante é Simão, o Pastor (outra vez cf. 21:15-17). A “vocação” de Filipe é diferente da vocação descrita nos versículos

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35-39. Jesus “encontrou” Filipe (v. 43) da mesma maneira que André “achou” seu irmão Simão (v. 41), e como Filipe “encontrou” Natanael logo depois (v. 45). Nos outros dois casos, o processo de “encontrar” implica em ir buscar determinada pessoa: André foi buscar seu irmão, e Filipe foi buscar seu amigo galileu. É bem provável que Jesus não se viu frente a frente com Filipe por acaso, mas conhecia-o e foi buscá-lo deliberadamente. Tal idéia faz sentido se o discípulo anônimo do dia anterior for Filipe. Quando Jesus diz a Filipe: segue-me (v. 43), não é, portanto, um convite inicial para o discipulado, mas uma convocação para que acompanhasse a Jesus pela Galiléia. A importância da nota entre parênteses de que Filipe, bem como André e Pedro, eram galileus de Betsaida, está no fato de demonstrar a adequação desse convite. Mas, que estariam fazendo esses galileus em Betânia. na margem leste do Jordão, com João Batista? Até Natanael é de Caná da Galiléia (21:2). A Galiléia e a região além Jordão estavam sob o domínio de Herodes Antipas, o tetrarca cujas aventuras extra-maritais João Batista denunciara, e que finalmente pren­ deu a João e mandou matá-lo (Marcos 6:17-29; cf. Josefo, Antiquities 18.116-19). Obviamente João Batista atraía muita atenção na Galiléia, centro de expectativa messiânica, não sendo de surpreender que o profeta houvesse arrebanhado um grupo de seguidores ali. Agora os galileus vão para casa. Inicia-se a viagem para o casamento em Caná (2:1-11) e passar alguns dias em Cafamaum (2:12). De início apenas Filipe e Jesus são mencionados, mas a presunção no capítulo 2 é que todos os discípulos de Jesus (pelo menos quatro) estão presentes. O grupo se forma quando Filipe conta a seu companheiro conterrâneo, galileu, Natanael, a novidade estonteante: o Messias veio, é galileu, Jesus de Nazaré, filho de José (v. 45). A resposta de Natanael revela um tipo de regionalismo atravancador que se recusa a ver glória ou grandeza nas coisas familiares, ou de casa. Quando ele pergunta: Pode v ir algum a coisa boa de N azaré? (v. 46), a questão levantada não é de rivalidade mesquinha entre cidadezinhas, mas da cegueira humana. A atitude de Natanael é paralela à das pessoas na sinagoga de Cafarnaum (6:42) e de Nazaré (Marcos 6:1-6; cf. Lucas 4:16-30). Visto que os antecedentes de Jesus são locais, e conhecidos localmente, ele não pode ser alguém especial. É certo que ele não pode ser aquele de quem Moisés escreveu, e a quem se referiram os profetas (v. 45). Foi como

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disseram alguns em Jerusalém, mais tarde: “nós sabemos de onde ele é, ao passo que quando o Cristo vier, ninguém saberá de onde ele é” (7:27). Não se esperava, de modo muito particular, que o Messias viesse da Galiléia (7:41-42). Conquanto o ceticismo de Natanael provavelmente se baseasse tanto em sentimentos quanto em doutrinas, o narrador fez dele o porta-voz desses preconceitos e tendências. Com certeza, quando o Evangelho estava sendo redigido, os judeus estariam dizendo a respeito dos cristãos (ou nazarenos): “de Nazaré! Pode vir alguma coisa boa de N azaré?” (cf. Atos 24:5). A conversão de Natanael, portanto, tipifica a conversão de qualquer judeu que vence tais preconceitos contra o cris­ tianismo, e crê em Jesus. Declara Jesus que Natanael é um verdadeiro israelita, em quem não há nada falso (v. 47). Jesus demonstra aqui, mais claramente ainda do que no momento em que deu novo nome a Simão,seu dom sobrenatural de discernir caracteres (cf. 2:25). Parece que o Senhor se refere ao patriarca Jacó, que praticou a mentira até o momento em que se encontrou com Deus, na pessoa do anjo, que lhe trocou o nome para “Israel” (Gênesis 32:28). Natanael é um israelita digno desse nome. Jesus não está elogiando a Natanael, que externa seu ceticismo (v. 46), mas de modo especial repete o que fez com Simão: olha o homem e vê, não quem ele é, mas quem ele será por transformação. Tampouco a resposta de Natanael (v. 48a) dá a entender que ele, de modo imodesto, se considera “um verdadeiro israelita”. Ele apenas expressa surpresa pelo fato de Jesus falar como se já se houvessem encontrado antes. A estranha alusão de Jesus ao fato de tê-lo visto debaixo da figueira (v. 48b) aciona uma tecla responsiva: é o sinal, para Natanael, de que Jesus possui conhecimento sobrenatural. Só podemos especular a respeito do que Jesus quis dizer com debaixo da figueira. Estaria o Senhor referindo-se a algum incidente em Betânia, logo antes de Filipe trazer-lhe Natanael, ou a algo acontecido na Galiléia, num passado mais distante? Por que a figueira teria tanto significado para Natanael? Visto não haver respostas para estas perguntas, é possível que a história tenha um significado simbólico. Se Natanael era um verda­ deiro israelita, e representante do “Israel” a quem Jesus deverá mani­ festar-se (cf. 1:31), a expressão de Jesus nos encaminha a Oséias 9:10. “Achei a Israel como uvas no deserto, vi a vossos pais como a fruta temporã da figueira no seu princípio”. O ponto crucial é que talvez Jesus tenha encontrado o novo Israel, da mesma forma como Deus, seu Pai,

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encontrara o antigo Israel. Noutra passagem, Jesus fala da alegria de a pessoa descobrir um tesouro escondido num campo, ou de vender tudo quanto possui, a fim de adquirir uma pérola magnífica (Mateus 13:44­ 46), ou de encontrar uma moeda perdida, ou uma ovelha extraviada (Lucas 15:1-10). A imagem de Oséias sobre a descoberta de frutos em terras desérticas é bem adequada, de modo que se pudesse criar um simbolismo semelhante. Os discípulos de Jesus são, de fato, achados preciosos, dádivas do Pai (cf. 6:37; 17:6) mas, visto ser demasiado cedo, nessa altura do Evangelho, para revelações dessa magnitude, o pronun­ ciamento do Senhor permanece como uma espécie de enigma. Natanael, ao modo da mulher samaritana, logo depois, ouve as pala­ vras de Jesus e as considera um pronunciamento de alguém “que me disse tudo o que tenho feito” (cf. 4:29). Entretanto, enquanto a mulher sama­ ritana simplesmente levantou a possibilidade de Jesus ser o Messias, Natanael anunciou com toda ousadia, sem quaisquer questionamentos, que tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel (v. 49). Ambos os títulos, virtualmente sinônimos neste contexto, constituem modos alternativos de afirmar-se que Jesus é o Messias (cf. vv. 41, 45). A designação do rei ungido de Israel, como filho de Deus, tem raízes no Salmo 2:6-7. O autor do Evangelho sabe que Jesus é o Filho de Deus num sentido mais profundo do que Natanael poderia ter entendido (cf. 1:14, 18); contudo, ele permite que Natanael (à semelhança de João Batista) faie em nome da comunidade cristã. As expressões de Natanael, Filho de Deus e Rei de Israel antecipam a esperança do autor do Evangelho de que todos os seus leitores venham a crer “que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e “crendo” tenham “vida em seu nome” (20:31). Dentro das limitações de Natanael, Rei de Israel (i.e., o Messias) define o que Filho de Deus significa, mas para o autor e seus leitores, Filho de Deus (i.e., o Filho eterno, divinal) define o que significa o “Messias” ou o Rei de Israel. O Evangelho de João é a história da coroação do Filho de Deus como Rei, de modo paradoxal, em sua morte (cf. 12:13, 15; 19:14,19). Natanael, logo de início, profetizou o fim; entretanto, a profissão de fc que ele fez não é adequada. Suas palavras são corretas, mas baseiam-se em alicerces insuficientes. Natanael creu porque se impressionou com o conhecimento sobrenatural de Jesus. Jesus lhe promete, e aos demais discípulos: coisas maiores do que esta verás (v. 50). Eles verão o céu

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aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem (v. 51). A visão prometida assemelha-se à de Jacó que “sonhou: Eis que uma escada estava posta na terra, cujo topo chegava ao céu; e os anjos de Deus subiam e desciam por ela” (Gênesis 18:12). No lugar de Jacó está o Filho do homem, o próprio Jesus. A visão é de Natanael, mas os discípulos, à semelhança de João Batista por ocasião do batismo de Jesus (1:32-34), participarão dessa visão. Começarão a ver “a sua glória, a glória como do unigénito do Pai” (1:14). Os acontecimentos dos últimos quatro dias estiveram-se encaminhan­ do para este pronunciamento. Todos os variados títulos de Jesus — “Messias” (ou “Cristo”), “Cordeiro de Deus”, “Filho de Deus”, “Rei de Israel” — encontram sua explicação na auto-designação de Jesus — Filho do homem. Em todos os evangelhos, esta é a denominação mais distintiva, mais característica, que Jesus dá a si mesmo. A promessa da visão do Filho do homem nos faz lembrar a afirmação do Senhor, em Marcos 14:62, em pleno julgamento: “vereis o Filho do homem assenta­ do à direita do Todo-poderoso, e vindo sobre as nuvens do céu” (cf. Mateus 26:64). A diferença é que em nossa passagem o Filho do homem está na terra. Como Jacó, Jesus está embaixo, ao pé da escada, como recebedor da revelação divina, e foco dessa revelação ao mundo. Nata­ nael e os demais discípulos verão a verdade, não na lonjura infinita dos céus, nem num futuro distante e tampouco no emaranhado doutrinário dos rabis, mas ali mesmo, diante de seus olhos, no próprio Jesus (cf. Romanos 10:6-8). Natanael recebe a promessa de uma visão que haverá de vencer-lhe o desdém pelo familiar e pelo comum. Ele aprenderá o que significa: “o Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (1:14). A visão da glória (até mesmo a de Nazaré!) revive na estrofe seguinte do poema de Francis Thompson: Chore (quando tão triste, que mais triste impossível), Chore, que sobre tão grande perda Há de refulgir a procissão da escada de Jacó Estirada entre a rude cruz e o céu! Permanecem as perguntas sobre quando e como as visões teriam ocorrido. Teriam Natanael e os demais verdadeiramente visto anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem? Houve uma promessa a João Batista, de uma visão do Espírito descendo, que se cumpriu no batismo de Jesus; quanto a esta promessa, porém, não vemos

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um evento comparável a que possamos relacioná-la. Não há uma ocasião definida em que os discípulos literalmente viram Jesus reencenando o sonho de Jacó, e tampouco houve um momento em que o sumo sacerdote judeu viu Jesus “assentado à direita do Todo-poderoso, e vindo sobre as nuvens do céu” (Marcos 14:62). Os anjos não exercem papéis de impor­ tância no quarto Evangelho (cf. apenas 12:29; 20:12). Entretanto, atvjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem é a realidade de Jesus sentado à mão direita de Deus, vindo outra vez à terra. É a mesma realidade testemunhada por João Batista, realidade que Cristo até mesmo em sua humanidade está unido aos céus, e usufrui perfeita comunhão com Deus, seu Pai (cf. 8:29; 11:41-42). Os discípulos “verão” essa realidade, não numa visão angelical particular, mas no ministério de Jesus como um todo, iniciando-se com o casamento de Caná.

Notas Adicionais #3 1:39 / hora décima: Os judeus contavam as horas começando pelas 6 da manhã. Alguns têm argumentado que o Evangelho de João segue, ao invés, um sistema romano-egípcio semelhante ao nosso, em que o dia se inicia à meia-noi­ te. Isto significaria que os dois discípulos se encontraram com Jesus às dez horas da manhã. A contagem das horas se toma uma questão difícil na fixação da hora exata em que Jesus morreu (cf. 19:14); contudo, a obrigação de provar que o autor não segue o sistema judeu, comum, cabe aos que defendem a idéia do sistema romano-egípicio. 1:41 / A primeira coisa que André fez. A palavra grega éproton, “primeira”, palavra usada como advérbio. Alguns manuscritos antigos trazemprotos (dando como tradução: “André foi o primeiro”). Outros trazem proi (“no dia seguinte, pela manhã”). Esta última alternativa, embora incorreta, produz um quadro exato da seqüência dos acontecimentos. 1:51 / Na verdade, na verdade: lit., “Amém, amém, eu vos digo”. Esta formulação é empregada vinte e quatro vezes no Evangelho de João, anteceden­ do declarações de importância especial do próprio autor, ou daqueles de quem ele recebeu tradições. Trata-se de solene atestado da verdade da declaração que se segue, ou forma retórica que se originou com Jesus. “Amém” era usado comumente para concluir-se uma declaração, ou uma oração, mas Jesus, em vez disso, a usava como introdução. O “amém” duplo ocorre apenas (e sempre) no quarto Evangelho, mas parece que tem o mesmo sentido que o “amém” simples dos sinóticos. sobre o Filho do homem: Na tradução grega de Gênesis 28:12, Jacó viu os anjos subindo e descendo “nela” (i.e.,“na escada”). Entretanto, o original hebraico é ambíguo, e alguns rabis lêem o texto como se fosse “nele, em Jacó”. A frase no Evangelho de João tem a preposição grega epi, com o caso acusativo,

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a fim de denotar movimento na direção de um objeto. Tal preposição na verdade desenvolve o trabalho de duas; o sentido é que os anjos subiam a partir do Filho do homem e desciam para o Filho do homem. O Filho do homem não corres­ ponde à escada, no sonho de Jacó, mas ao próprio Jacó, ao pé da escada. Jesus penetra na visão do patriarca, toma-a sua, imaginariamente e, pela sua palavra, partilha-a com seus discípulos.

4. Os Últimos Dois Dias: Casamento na Galiléia (João 2:1-12)

A viagem de regresso à casa, na Galiléia, não é descrita. O autof concentra-se num único incidente que ocorreu após a chegada do grupo. As discussões sobre se seria possível chegar à Galiléia, saindo de Betânia, em dois dias, são estéreis; primeiro, porque não se conhece a localização exata de Betânia (veja nota sobre 1:28) e, segundo, porque a frase no terceiro dia poderia ter sido usada para expressar um período indefinido, e curto de tempo (como “uns dias” em conversa informal, em português). Literalmente, a frase significa “no dia depois de amanhã” (cf. Lucas 13:32), a saber, no terceiro dia depois de Jesus haver encontrado Natanael. Seria nosso Dia Seis. Contudo, é possível que o autor não esteja usando linguagem exata e, de qualquer modo, o número que ele atribuiu a este dia não é o sexto, mas o terceiro! Certamente ele é mais preciso aqui do que no v. 12 (“não muitos dias”) e não há nada errado em enumerar a seqüência de seis dias. Entretanto, a ênfase está na seqüência, não no total de seis. Se houvesse mais ou menos dias, a ênfase seria a mesma. São questionáveis as interpretações que falam de uma seqüência de “seis dias da nova criação”, correspondendo à semana de seis dias de Gênesis 1. Tampouco é provável que essa seqüência pretende correspon^ der aos “seis dias antes da páscoa”, perto do fim do ministério de Jesus (cf. 12:1), ou aos seis dias anteriores à transfiguração (cf. Marcos 9:2; Mateus 17:1). Mais coerente é a observação de que a frase no terceiro dia traz à memória a linguagem usada por Jesus ao referir-se à sua ressurreição dentre os mortos (ver, Mateus 16:21; Lucas 24:7, 21; 1 Coríntios 15:4), assim como o milagre de Caná antecipa a glória da ressurreição. Todavia, até esta última correlação é especulativa, na melhor das hipóteses; o terceiro dia não é expressão que se usa de modo explícito para a ressurreição de Jesus, no evangelho de João (embora cf. “três dias” em 2:19). Esperar que essa conotação exista aqui, onde a expressão faz parte de um contexto seqüencial mais amplo, é talvez atribuir demasiada capacidade imaginativa ao autor e demasiada sofisti­ cação ao leitor.

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(João 2:1-12)

A história se desenrola com rapidez. Houve um casamento em Caná. A mãe de Jesus, Maria (que permanece anônima neste evangelho), era uma das pessoas convidadas e, talvez por causa dela, Jesus e seus discípulos também foram convidados. O autor do evangelho presume que ela atribui poderes sobrenaturais a Jesus, visto que quando se acaba o vinho, ela lhe fala como se seu filho pudesse fazer alguma coisa (v. 3). A resposta do Senhor confirma a idéia de que a observação de Maria constituiu um verdadeiro pedido: M ulher, que tenho eu contigo? Ainda não chegou a m inha hora (v. 4). Maria não se desanima com a aparente recusa de seu filho, mas age de acordo com o que ele lhe diz, e deixa o problema nas mãos dele (v. 5). Jesus prossegue, mandando vir seis grandes talhas de pedra, usadas para purificações cerimoniais, cheias de água (mais de 450 litros, no total). Quando se tira a água, esta se transforma em vinho (vv. 6-9)! A transformação não está mencionada, ficando essa idéia por conta de um particípio grego, que deu uma cláusula subordinada, em português (v. 9). Todavia, a grandiosidade do milagre fica atestada (sem querer!) por um comentário humorístico, feito-pelo mestre de cerimônias: Todos põem primeiro o vinho bom e, quando já beberam fartamente, então o inferior; mas tu guardaste até agora o bom vinho (v. 10). O incidente pode ser avaliado por si mesmo, ou como partè do evangelho, ou como um todoí Por si mesmo é o relato curioso de um milagre um tanto extravagante, feito com o objetivo não de atender a uma desesperada necessidade humana mas, simplesmente, para evitar um desastre social. O fato é narrado com sobriedade e simplicidade, como se fora um incidente verdadeiro, rico de belos meios tons simbólicos que, com certeza, justificam a sua inclusão no evangelho. Embora a história propriamente dita se enquadre em referências aos discípulos de Jesus (w . 2, 11), os discípulos nenhum papel desempenharam na narrativa do milagre. Eles ajudam, em vez disso, a fixar a história em seu atual contexto, no evangelho de João. A reação dos discípulos é que dá significado à história, nesse contexto mais amplo. Este, o prim eiro dos seus sinais miraculosos, Jesus realizou em Caná da Galiléia. Assim revelou a sua glória, e seus discípulos creram nele (v. 11). Para o narrador, o lugar dos discípulos na história é aquele ocupado pelos serventes, a quem Maria dissera: Fazei tudo o que ele vos disser (v. 5), os quais, segundo o texto nos diz, eram os únicos que sabiam de onde

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viera o vinho (v. 9). Em certo sentido, esses serventes representam não apenas os primeiros quatro discípulos, mas todos quantos sabem de onde veio Jesus, e fazem o que ele manda. Tão logo a história é contada, a atenção se fixa nos discípulos e sua reação. O propósito do milagre é revelar-lhes a glória do Senhor, a eles que são o novo Israel (cf. 1:31), o que transforma em realidade a visão prometida a Natanael. A declaração explícita, que eles creram em Jesus (v. 11), completalhes o chamado e marca um começo auspicioso para o ministério galileu. Depois desse único milagre em Caná, e de uma estada curta em Cafamaum, Jesus vai a Jerusalém, à época da páscoa, e expulsa os vendilhões do templo (cf. 2:13-22). Para o leitor já familiarizado com os demais evangelhos, pareceria que a paixão de Cristo já se inicia (cf. Marcos 11:15-18). Fica a impressão de que o evangelho de João seria, na verdade, um evangelho resumido! É evidente que tal impressão é errônea, porque as atividades de Jesus prosseguem, havendo diversas viagens de ida e volta entre Jerusalém e a Galiléia. Só no capítulo 12 é que Jesus vai a Jerusalém pela última vez, e só no capítulo 18 é preso. No capítulo 2, diz ele a sua mãe: ainda não chegou a m inha ho ra (v. 4). Entretanto, a purificação do templo é antecipada de modo delibe­ rado, produzindo um efeito duplo. Primeiro, coloca tudo que se segue sob a sombra da iminente paixão de Cristo, e empresta a seus diálogos com os judeus o caráter de julgamento. Segundo, transforma a história do casamento de Caná numa espécie de resumo, ou miniatura do ministério total de Jesus na Galiléia, pois nesse casamento, ele trans­ forma a água da purificação ritual, tradicional (v. 6), no vinho de uma nova época, muito alegre, a era messiânica. O ministério de Jesus é visto aqui quase da mesma maneira como é visto nas parábolas dos sinóticos. Quando perguntam a Jesus por que seus discípulos não jejuam, ele pergunta, por sua vez: “Podem os convidados para o casamento jejuar enquanto está com eles o noivo? Enquanto têm consigo o noivo, não podem jejuar” (Marcos 2:19). É claro que Jesus não era o noivo na cerimônia de casamento em Caná; —entretanto, no mundo imaginário de suas parábolas, ele se via a si próprio como o noivo, sendo a época passada na terra, tão jubilosa quanto uma festa de casamento. Ele se referiu, também de modo significativo, ao ”vinho novo" que, disse o Senhor, deve ser despejado

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“em odres novos” (Marcos 2:22). Provavelmente, foi uma ilustração desse tipo, atribuível ao próprio Jesus, que induziu o autor do evangelho de João a usar o milagre do vinho, numa festa de casamento, como símbolo apropriado de tudo quanto precedeu a Paixão. Um senso de “já, mas ainda não” permeia a narrativa. Jesus mostra sua glória e seus discípulos crêem, mas só depois de ser dado um sinal ao leitor de que esta revelação é provisória, não definitiva (v. 4). O momento adequado à “glorificação” de Jesus é sua morte (cf. 12:33; 13:31; 17:1,5), e esse momento ainda não chegou. O milagre de Caná é demonstração de glória bastante precoce; é exibição que tipifica o ministério da Galiléia como um todo, e cumpre, de modo específico, a promessa feita a Natanael. A justaposição de 1:19-51 sobre 2:1-11, no texto do Evangelho de João, permite que essas passagens se expliquem mutuamente. Jesus agora é “manifestado a Israel” (1:31). Contudo, se a narrativa de Caná é o término de algo — a saber, da seqüência de seis dias, com sua promessa de glória — é também um início. O prim eiro dos seus sinais miraculosos (v. 11) indica que mais coisas acontecerão. Mais milagres ocorrerão, mas o autor do Evangelho tem em mente um milagre em particular, a cura do filho de um oficial do rei, nessa mesma cidadezinha de Caná da Galiléia (4:54). Muito se tem escrito a respeito da fonte desses milagres, ou sinais, usada pelo autor deste Evangelho; todavia, a enumeração dos milagres de Jesus pára no número dois. Estes dois milagres de Caná formam um par bastante diferenciado dos demais. Nenhum dos dois dá ensejo a discussão, ou controvérsia. Ambos fazem exatamente o que o autor do Evangelho quer que os milagres façam: levam as pessoas a crer em Jesus e, mediante a fé, obter vida (veja 20:31). A duração do tempo que Jesus permaneceu em Cafamaum, com sua mãe, irmãos e discípulos, não pode ser determinada pela análise do texto. É vaga a expressão não muitos dias, contrastando agudamente com a deliberada seqüência de dias que se estendem de 1:29 até 2:11. O v. 12 representa uma breve pausa, uma suspensão temporária da ação, antes de Jesus confrontar pela primeira vez seus inimigos, em Jerusalém e no templo. Outras pausas semelhantes ocorreriam em Betânia, a leste do Jordão (10:40-42) e numa cidade chamada Efraim, perto do deserto (11:54). Jesus havia dito a sua mãe: Ainda não chegou a m inha hora (v. 4). Agora as pessoas estvam esperando.

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Notas Adicionais # 4 2:4 / Que tenho eu contigo? lit., “que para mim e para ti?” Uma tradução ligeiramente alterada, mas ainda literal, mais adequada ao contexto atual, é: “que queres de mim?” A expressão idiomática é empregada tanto na literatura hebraica quanto na grega a fim de dissociar a pessoa que fala da que ouve (ver, os demônios clamando a Jesus em Marcos 1:24 e 5:7). Jesus está insistindo num ponto: se ele age, ele o faz por sua própria iniciativa, em obediência a Deus, seu Pai. Ninguém o forçará a agir, nem mesmo sua própria mãe (cf. 7:6-10). Jesus se dirige a sua mãe chamando-a de mulher, termo que, no grego, não constitui falta de respeito (cf. 19:26); entretanto, é suficiente para causar dissociação entre Jesus e Maria, o tradicional relacionamento mãe-filho, colo­ cando o Senhor sob a direção única de Deus. NIV traz “querida mulher”, que é expressão demasiado íntima. Mulher, apenas, ou “minha cara senhora”, comu­ nicariam melhor o tom de ligeira irritação que o Senhor deseja comunicar. 2:6 / duas ou três metretas: lit., “duas ou três medidas”. Uma “medida” equivalia a nove galões, aproximadamente 20 ou 25 galões em cada talha. 2:8 / tirai agora. B. F. Westcott sugere que Jesus está ordenando que se tire mais água do poço que encheu aquelas seis talhas, e não das próprias talhas (The Gospel According to St. John [Grand Rapids: Eerdmans, 1950; reimpressão da edição de 1881], págs. 38-38). Isso evitaria a suposição de que Jesus produziu tão enorme volume de vinho, e é verdade que o mesmo verbo é empregado em 4:7, 15 para tirar água do poço. Contudo, não há menção explícita da fonte da água (como, 4:6 e 9:7), somente das talhas, de seu propósito e capacidade. Por que tais minúcias são incluídas se o milagre diz respeito somente a uma pequena quantidade de água tirada diretamente do poço? Se há extravagância em quase 500 litros de vinho bom, essa não é maior do que “uma libra de nardo puro, um perfume muito caro” derramado nos pés de Jesus (12:3), nem maior do que “quase cem libras de uma mistura de mirra e aloés”, usada para embalsamar-lhe o corpo (19:39). Abundância de vinho era uma das esperanças apocalípticas judaico-cristãs, de modo que as seis talhas de Caná são volume modesto, em comparação com a fantástica abundância nos dias do Messias (cf. Enoque 10.19, 2 Baruque 29.5). Papias, um bispo do segundo século, da Ásia Menor, atribuía a Jesus e a “João, o discípulo do Senhor”, uma profecia sobre “vinhas... com 10.000 videiras e em cada videira 10.000 ramos, e em cada ramo 10.000 rebentos, e em cada rebento 10.000 cachos de uvas, e em cada cacho 10.000 uvas e cada uva esmagada produziria 25 metretas de vinho” (Irineu, Against Heresies 5.33.3). A “extravagância” do evangelho canônico de João nos parece “coisa corriqueira”, visto que possui, afinal, uma base histórica. Entretanto, salienta o ponto de que quando Jesus dá vida, ele a dá com abundância (cf. 10:10). Há muito mais do que o suficiente para todos quantos passam necessi­ dades (cf. 6:13). 2:11 / Este, o primeiro dos seus sinais miraculosos: lit., “este começo de

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f

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sinais”.?a palavra para “milagres” ou “sinais” (gr.: semeia) enfatiza o caráter simbólico desses atos. São importantes não apenas por serem miraculosos, mas também por transmitirem um significado, ou mensagem.

5. A Primeira Páscoa (João 2:13-25)

A primeira visita de Jesus a Jerusalém, à semelhança de todas as visitas subseqüentes, coincide com uma das festas judaicas. Ei-lo que chega como peregrino, para celebrar a festa da páscoa. De modo especial, a redação do v. 13 corresponde bem de perto à de 11:55, que assinala a última páscoa e o início da Paixão de Cristo. Quando o anúncio aqui no capítulo 2 é seguido pela narrativa da purificação do templo, evento que nos demais evangelhos se associa à semana da Paixão, parece que esta primeira páscoa é, na verdade, a última, e que os acontecimentos da Paixão de Cristo estão prestes a iniciar-se. Temos esta impressão porque o autor do Evangelho transferiu a purificação do templo para o início do ministério de Jesus. É melhor crer nesta troca, do que imaginar que Jesus na verdade purificou o templo duas vezes. O Evangelho de João toma os atos simbólicos com que se inicia a semana da Paixão, nos evangelhos sinóticos (i.e., a entrada triunfal e a purificação do templo) e os separa, de tal modo que cada evento funciona como uma espécie de “manchete” da versão joanina do drama da Paixão: o livro do Julgamento (2:13­ 11:54) e o livro da Glória (11:55-21:25; veja Introdução). O sinal de julgamento é dado quase de imediato na purificação do templo. Jesus faz um chicote de cordas e expulsa da área do templo todos os animais sacrificiais — ovelhas e novilhos — que encontrou à venda para lucro. Espalhou as moedas dos cambistas e virou-lhes as mesas. Não libertou os pombos (sacrifícios dos pobres) mas, ordenou aos que os vendiam: Tirai daqui estas coisas! Como ousais transform ar a casa de meu Pai em mercado! (v. 16). No âmbito histórico, este “ataque” de Jesus, no templo, tem essencialmente o mesmo significado percebido nos sinóticos. Trata-se de um ato de reforma radical. O câmbio de dinheiro e a venda de animais “no lugar”, para fins sacrificiais, aparentemente facilitavam as coisas para os adoradores e, ao mesmo tempo, enriqueciam a tesouraria do templo. No espírito de Amós ou de Jeremias, Jesus deu um fim brusco (talvez apenas temporário) a essa prática. Entretanto, o interesse do autor do Evangelho focaliza-se menos nas reformas de Jesus e mais no preço dessas reformas, que o Senhor deveria pagar, e que o aguardaria no futuro. Os líderes judaicos imediatamente exigiram de

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(João 2:13-25)

Jesus um sinal do céu, que servisse de evidência de sua autoridade messiânica (v. 18). A resposta de Jesus é enigmática: Destruí este templo, e em três dias o levantarei de novo (v. 19). Trata-se de um enigma que as autoridades não podem decifrar. De que forma uma estrutura que levou quarenta e seis anos para erigir-se poderia ser reconstruída em apenas três dias? Antes de tudo, por que ela deveria ser destruída? Aqui, bem como na história de Caná, os discípulos são o veículo do interesse do autor do Evangelho. As coisas de que os discípulos “lem­ braram-se” repetem-se na narrativa à feição de estribilho (vv. 17, 22). Com respeito à expulsão dos mercadores do templo, lembraram-se de um versículo das Escrituras: O zelo da tua casa me consumirá (v. 17; cf. Salmo 69:9). Com respeito à disputa que se segue com as autoridades judaicas, eles se lembram de seu enigma quanto ao templo e percebem que o Senhor se referia a seu corpo (vv. 21-22). O autor a seguir une os dois fatos, comentando que os discípulos creram na E scritura e nas palavras que Jesus tinha dito (v. 22). A mesma ênfase na fé que surgiria nos discípulos após a ressurreição reaparece na narrativa da entrada triunfal: a princípio, seus discípulos não entenderam tudo isto. Só depois que Jesus foi glorificado é que se lembraram de que estas coisas estavam escritas a respeito dele, e que lhe havia dito estas coisas. Em 2:22, a referência à fé dos discípulos toma-se seqüência de 2:11: “creram nele” em Caná, mas creram e compreenderam com maior profundidade “quan­ do Jesus ressurgiu dentre os m ortos.. A fé em 2:11 é preparatória à fé pós-ressurreição, em 2:22, que é a fé do autor do Evangelho e de seus leitores. A fé cristã é incompleta enquanto não se fixa na morte e ressurreição de Jesus. O elo que liga os versículos 17 e 22 sugere que a memória da passagem do Salmo 69 (à semelhança da memória do enigma de Jesus), despertou após a ressurreição, tendo em vista a Paixão de Cristo. Isto se vê no emprego do tempo futuro do verbo: o zelo da casa de Deus consumirá a Jesus, isto é, redundará em sua morte às mãos das autoridades do templo. Só depois da Paixão poderiam os discípulos “lembrar-se” dessa passagem, dessa maneira. De modo semelhante, o enigma a respeito do templo só pode ser decifrado por alguém que soubesse isto: “. . . o Filho do homem. . . fosse morto e que depois de três dias ressurgisse” (Marcos 8:31). Que tal conhecimento só adveio “depois do fato” haver ocorrido

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está explicitamente declarado no v. 22. Antes desse fato, parecia não haver alternativa, senão tomar a profecia de modo literal, e foi isso mesmo que as autoridades do templo fizeram (v. 20). A acusação de que Jesus estava planejando a destruição do templo, que vem à tona no relato ^ dos sinóticos, quando do julgamento de Jesus (Marcos 14:58; Mateus 26:61), baseava-se aparentemente numa versão truncada desse registro de João. Para o autor do quarto Evangelho, a má compreensão serve de cortina de fumaça para impedir a visão e interpretação corretas, no caso presente o conhecimento pós-ressurreição partilhado pelo autor e leito­ res: ele falava do templo do seu corpo (v. 21). O fato de que templo e corpo sejam ambos metáforas neo-testamentárias para a igreja, levou alguns comentaristas a descobrir implicações corporativas aqui: é a igreja cristã (cf. Mateus 16:18). Entretanto, embora seja verdade que a igreja se edifica na ressurreição de Cristo (cf. Efésios 1:20-23), não há qualquer evidência de que o autor do Evangelho tem em mente mais do que a ressurreição de um homem, dentre os mortos, depois de três dias. É a ressurreição de Jesus - e só a dele - que lhe confere autoridade sobre o templo, e que dá a seus discípulos um alicerce firme para a fé. Prossegue o relato da primeira páscoa de Jesus. Ainda que a purifica­ ção do templo tenha ocorrido no fim do ministério de Jesus, não há razão para duvidarmos de que o Senhor fez uma visita a Jerusalém e ao templo, antes. Essa visita (que envolveu a exigência de um sinal!) é mencionada em Lucas 4:9-13. O Evangelho de João fala de modo genérico sobre os sinais miraculosos que fazia Jesus na Páscoa (v. 23); contudo, tais sinais não foram mencionados em pormenores. Quando desafiado a mostrar um sinal miraculoso (2:18), Jesus só entregara às autoridades judaicas um enigma; entretanto, o autor presume que alguns milagres (provavel­ mente semelhantes àqueles descritos mais tarde no Evangelho), já teriam sido operados. Nicodemos menciona esses sinais em 3:2, e sobre os galileus que deram boas-vindas ao Senhor, quando este voltou de Sama­ ria (4:45), está registrado que “tinham visto todas as coisas que ele fizera em Jerusalém, por ocasião da festa”. Por causa desses milagres, muitos creram no seu nome (v. 23). A situação parece paralela à de 2:11: mais e mais discípulos estão abraçan­ do a fé. Todavia, o paralelismo é falso. Há algo errado na fé dos que “creram nele” nessa festa da Páscoa. Fazendo trocadilhos com a palavra

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“crer” ou “confiar” (gr. pisteuein), o narrador observa que ainda que tais pessoas “creram” em Jesus, ele próprio não confiava nelas. Ele não lhes aceitou a fé como sendo genuína. O que não ficou claro é a base dessa suspeita. Teria o Senhor reprovado a fé daqueles homens porque era fé baseada em mero fascínio pelo miraculoso, o milagre por amor ao milagre (cf. 4:48)? Será que Jesus sabia que em seus corações essas pessoas “amavam mais a glória dos homens do que a glória de Deus” (12:43)? O fato de o autor do Evangelho não ter problema em 2:11 com uma fé baseada em milagres, sugere que isto, em si mesmo, não é o problema, no v. 24. Em vez disso, o problema é a covardia. Os que crêem mas escondem sua fé, ocultando-a do mundo, não chegaram, na verdade, a crer. Não pertencem à tradição de João Batista, nem de Natanael. Jesus conhecia os corações desses homens com tanta certeza como sabia que Simão se transformaria em “pedra”, ou que Natanael era “um verdadeiro israelita”. O Senhor iria desmascarar a incredulidade deles num confron­ to posterior: “Eu não aceito glória dos homens, mas vos conheço. Sei que não tendes o amor de Deus em vosso coração” (5:41, 42). Jesus sabia que a “fé” de muitos, nessa primeira páscoa, em Jerusalém, era apenas “louvor humano”, não uma fé que conduz à vida eterna.

Notas Adicionais # 5 2:15 / lançou a todos fora do templo, bem como os bois e as ovelhas: o grego não é muito claro quanto a se Jesus usou um chicote apenas nos animais ou também nos cambistas. De acordo com Raymond Brown (The Gospel According to John, AB 29A [Nova York: Doubleday, 1966] pág. 114), Jesus “expulsou a cambada toda do interior do templo, junto com ovelhas e bois”. Todavia, existe certa relutância entre os tradutores em admitir que Jesus usou de violência física no trato com seres humanos. A maneira como ele fala aos vendilhões de pombos (v. 16) sugere que eles ainda estavam no cenário e que não os fustigou com o chicote. É provável que Jesus tenha improvisado a chibata de cordas a fim de remover os animais do templo, sabendo que seus donos lhes seguiriam atrás, de imediato, a fim de proteger sua propriedade. 2:18 / que sinal miraculoso: a palavra sinal (gr.: semeiori), é a mesma empregada em 2:11 tendo, porém, um sentido diferente. A referência é a uma espetacular demonstração de poder, um sinal do céu (cf. 6:30). Uma passagem bem próxima é Mateus 12:38, em que os fariseus pedem um sinal e Jesus responde de modo semelhante, como uma predição velada de sua ressurreição (o “sinal do profeta Jonas”, Mateus 12:39-40). 2:19 / Destruí este templo. O sentido do imperativo é “se vocês destruírem

(João 2:13-25)

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este templo, eu o reconstruirei em três dias”. Como indica a reação das autori­ dades, a ênfase está na reconstrução, não na destruição. Contudo, a forma do verbo talvez reflita a noção de que as autoridades judaicas são os que destruirão este templo (isto é, executarão Jesus; cf. 8:28; 19:16). O efeito do imperativo é desafiar as autoridades, logo de início, a que tomem a pior decisão e colham os resultados. o levantarei de novo. Embora levantarei possa referir-se à constru­ ção de um templo, trata-se de uma palavra do Novo Testamento usada caracteristicamente para a ressurreição dos mortos. É a mesma palavra empregada no v. 22 (“quando Jesus ressurgiu entre os mortos”). A distinção entre Jesus levantando-se a si mesmo (v. 19) e sendo levantado (i.e., pelo Pai, v. 22), não é do interesse do autor do Evangelho. 2:20 / quarenta e seis anos: o segundo templo, iniciado por Herodes, o Grande, cerca de 20 a.C. (Josefo, Antiquities 15.390), não se completou senão em 63 d.C. (Antiquities 20.219). O pretérito aqui indica que o templo estivera sob construção durante quarenta e seis anos, mas que não estaria necessariamen­ te terminado (quanto a um emprego semelhante, cf. Esdras 5:16). Visto ser clara a referência ao templo de Jerusalém, e não metáfora ao corpo de Jesus, não temos aqui uma indicação da idade do Senhor. 2:22 / muitos. . . creram no seu nome (cf. 1:12). “Crer nele” e “crer em seu nome” parecem expressões intercambiáveis, no Evangelho de João. A seme­ lhança das construções gramaticais no grego sugere que uma é apenas a forma abreviada da outra, com base na suposição de que o nome representa a pessoa. 2:25 / Ele não necessitava de que alguém lhe testificasse a respeito do homem. Quanto a esta expressão idiomática, que exprime idéia de conhecimen­ to completo, cf. 16:30; 1 João 2:27; 1 Tessalonicenses 4:9; 5:1.

6. Jesus e Nicodemos (João 3:1-21)

Nicodemos nos é apresentado como exemplo especial dos “crentes” mencionados em 2:23-25. Sendo um dos principais dos judeus e m estre em Israel (v. 1,10), Nicodemos não é, talvez, um membro bem típico do grupo, embora indicações posteriores nos mostrem que as autoridades do povo na verdade eram notáveis entre os assim chamados “crentes” (12:42). É possível que Nicodemos tenha vindo a Jesus, à noite, por medo. Ele fala, talvez, em nome do grupo maior, ao fazer a confissão que coloca o resumo do narrador (2:23) em suas próprias palavras: Rabi, sabemos que és Mestre, vindo de Deus. Pois ninguém poderia fazer estes sinais miraculosos que tu fazes, se Deus não fosse com ele. (v. 2). Jesus interrompe a Nicodemos com uma declaração solene: Em verda­ de, em verdade te digo que quem não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus. (v. 3). A figura de linguagem é uma forma elevada do uso que Jesus faz, noutra passagem, de crianças, como metáfora do discipulado: “Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tomardes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus” (Mateus 18:3). O exemplo extremo de alguém tomar-se criança é esse expresso por Nicodemos: voltar ao ventre materno e nascer pela segunda vez (v. 4). Jesus explica que nascer de novo na realidade significa nascer da água e do Espírito (v. 5), frase cujo objetivo é esclarecer, embora para alguns críticos modernos, tenha efeito contrário. O v. 6, sem mencionar a água outra vez, afirma que o que é nascido do Espírito, é espírito, considerando-se que uma expressão semelhante, “nascido de Deus”, já havia aparecido no prólogo (1:13; cf. também 1 João 2:29; 3:9; 4:7; 5:1,4,18). Somente no v. 5 é a água mencionada em conexão com esse novo nascimento. Nascer de novo ou nascido do Espírito refere-se a ter uma vida radicalmente transformada pelo poder de Deus. É como reiniciar a vida outra vez, com novas percepções e novos relacionamentos. Todavia, que é que a água tem que ver com isso? Nascer da água e do Espírito são dois elementos distintos, ou apenas um elemento? Estaria Jesus dizendo que a pessoa precisa “nascer da água” (seja o que for que isso signifique) e também “nascer do Espírito?” Ou teria o Senhor em mente a água como metáfora para o Espírito (i.e., a pessoa deve “nascer da água,

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a saber, do Espírito Santo”)? Se a água representa simplesmente o Espírito Santo (como vemos, em 7:39), por que então a água é meneionada? A metáfora toma-se fora de propósito a menos que a frase “nascer da água” em si mesma tenha um significado no qual a metáfora se baseia. Alguns sugerem que se trata do nascimento físico. Água nos escritos judeus pode ser eufemismo para o esperma masculino (ver, os Hymns de Qumran falam da humanidade como sendo pó, ou barro “amassado com água” (1 QH 1.21, 3.24, 12.25, 13.15). Sendo metáfora, então, a expres­ são nascer da água e do Espírito significa nascer de uma semente, ou de um esperma que não é físico mas espiritual (H. Odeberg, The Fourth Gospel [Amsterdão: B. R. Grüner, 1968; reimpressão da edição de 1929], págs. 63-64). Esta interpretação evocaria uma metáfora masculina de Deus como o Pai, no sentido de procriador masculino (cf. 1 João 3:9). O problema desta interpretação (à parte o acúmulo de metáforas sobre metáforas!) é que a água não está entre as expressões para nascimento físico, relacionadas em 1:13. E quando Jesus prossegue, mencionando o nascimento físico, para Nicodemos, no v. 6, a frase que o Senhor usa é “nascido da carne”, e não “nascido da água”. Se água e Espírito são dois elementos distintos, é bem lógico que à frase nascido da água se atribua um significado próprio. Repetimos, há quem lhe atribua o sentido de nascimento físico: a pessoa precisa nascer fisicamente e espiritualmente. Em discussões populares a respeito desta passagem, a água às vezes é entendida como o próprio nascimento, em vez da procriação, isto é, com o rompimento da bolsa d’água no útero materno, no início do parto. Entretanto, as dificuldades inerentes à interpretação da “semente espiritual” estão todas presentes aqui, e com­ plicam-se mais ainda por causa da redundância implícita em a pessoa ter de nascer fisicamente, a fim de entrar no reino. O ponto central do v. 6 é que o novo nascimento por si mesmo não é físico, mas espiritual. É mais provável que nascer da água e do Espírito seja uma metáfora do batismo com água e com o Espírito Santo. Os dois elementos foram ligados antes, no testemunho do Batista sobre o batismo: João batiza com água mas Jesus é aquele que batiza com o Espírito Santo (1:26, 33). A formação do par, com esses dois elementos, envolve tanto o contraste como a continuidade. O batismo de João fica incompleto sem o Espírito; entretanto, não há evidência de que o batismo com água chegou ao fim quando o Batista saiu do cenário. O batismo com água e com o Espírito

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(nesta ordem) toma-se o modo normativo no livro de Atos, para a iniciação na comunidade cristã: “Disse-lhes Pedro: arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo, para perdão de pecados. E recebereis o dom do Espírito Santo” (Atos 2:38). De modo semelhante, Jesus está dizendo a Nicodemos que ele não poderá entrar no reino de Deus a menos que dê o passo de iniciação na nova comuni­ dade da fé que se vai formando ao redor de João. Ele deve abandonar o grupo que freqüenta e unir-se ao novo grupo mediante o batismo com água, e com o Espírito Santo. A metáfora sobre tomar-se criança com­ bina-se com a linguagem da iniciação cristã. Nicodemos é tratado como representante dos que creram em Jesus mas ficaram com medo de confessar o Senhor (2:23-25; 12:42). A menos que tais pessoas corram o risco da perseguição, ao identificar-se de público como crentes, sua fé é invalidada. No primeiro século, essa identificação pública consistia do batismo e da experiência de receber o Espírito Santo. O ponto crucial não é que o batismo seja sempre, e por toda parte, necessário para a salvação, nem que a pessoa nasceu de novo simplesmente porque se submeteu ao batismo de água. O ponto nevrálgico é que a fé que nada arrisca não é fé, e a ninguém conduz ao reino de Deus. O encontro de Jesus com Nicodemos foi mais do que um intercâmbio entre dois indivíduos. Os plurais do v. 7 (necessário vos é nascer de novo) e do v. 11 (não aceitais o nosso testemunho) deixam bem claro que duas comunidades se confrotam aqui: os seguidores cristãos de Jesus e a representada pelo mestre de Israel (v. 10). O apelo forte dessa entrevista é negativo: a comunidade de Nicodemos não consegue enten­ der a comunidade de Jesus, da mesma forma como nós não entendemos de onde vem nem para onde vai o vento. As vidas daqueles que nasceram de novo constituem mistério total para quem não nasceu de novo (v. 8). A conversa entre Jesus e Nicodemos gira ao redor do impossível. Os milagres de Jesus são impossíveis sem a ajuda de Deus (v. 2). Ninguém pode ver o reino de Deus, nem nele entrar, sem o novo nascimento (v. 4). Há duas esferas de existência, a física e a espiritual, não existindo passagem natural de uma para a outra (vv. 6-8). Como pode ser isso? pergunta Nicodemos, sem perceber que ele próprio é prova viva do fenômeno. Ele é o grande mestre de Israel e no entanto não consegue entendê-lo (v. 10). Nada há no mundo (nem no judaísmo, em particular) que ofereça acesso genuíno a Deus ou ao seu reino. Somente mediante a

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aceitação de Jesus e seus seguidores (v. 11) e da participação na comu­ nidade cristã pode uma pessoa penetrar no reino do Espírito. É o que Nicodemos e sua comunidade (até agora) não conseguiram perceber. Após breve pausa de transição, o testemunho cristão positivo é esta­ belecido nos w . 14-17. As coisas terrestres (v. 12) são as impossibilidades da seção precedente, enquanto as coisas celestiais representam as boas novas da vida eterna mediante o dom do Filho de Deus. A tecla da impossibilidade continua a ser batida no pronunciarmento de que nin­ guém subiu ao céu, senão o que desceu do céu (v. 13a); entretanto, tal exceção crucial marca uma mudança de tom: senão o que desceu do céu - o Filho do homem (v. 13b). A perspectiva temporal deste versículo e dos que se seguem é pós-ressurreição, como se Jesus, o Filho do homem, já houvesse subido aos céus (cf. 6:62; 20:17), ou como se o autor estivesse olhando para trás, ao contemplar a dádiva de Deus, de seu Filho (v. 16). A maneira de resumir a história do Evangelho na terceira pessoa, quase em separado, é reminiscência da primeira metade do prólogo. É difícil dizer onde terminam as palavras pronunciadas por Jesus, durante seu ministério terreno, e onde começam estas palavras concer­ nentes ao período pós-ressurreição. A palavra de Jesus a Nicodemos, e as reflexões do narrador, sob inspiração do Espírito Santo, estão muito interligadas, de tal modo que não é possível distingui-las - nem é isso necessário. Unificadas assim, compreendem as coisas celestiais que só o Filho do homem ressurreto sabe e nos faz saber, de modo singular. O v. 14 parece um tipo de enigma proposto a Jesus pelos seus adversários (ou para Nicodemos, em particular) à maneira de 2:19, enigma resolvido para os leitores cristãos mediante reflexão na morte redentora de Jesus, no v. 16. Formalmente, o padrão como M oisés. . . da mesma fo rm a. . . o Filho do homem nos relembra um texto sinótico a respeito de Jonas: “como Jonas . . . assim. .. o Filho do homem” (Mateus 12:40; cf. Lucas 11:30). Em ambos os casos um incidente bíblico se transforma em ponto de comparação, para uma referência velada à morte e ressurreição de Jesus. Aqui, a serpente de bronze levantada numa vara, no deserto, a fim de levar a cura, em meio à praga das serpentes ardentes (Números 21:8-9), transforma-se em simulação grosseira de Jesus cravado na cruz (cf. 12:23; 18:32). Todavia, Jesus não traz mera cura física; o Senhor nos traz vida eterna (vv. 15-16), a salvação (v. 17). O plano de Deus é um plano de salvação de escopo mundial. O amor

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de Deus pela raça humana se expressa em “dar” o seu Filho unigénito para morrer na cruz (v. 18). Esse “dar” é mais específico do que “enviar” (v. 17). Deus “enviou” seu Filho ao mundo (a encarnação) mas, deu seu Filho à morte (paixão) de maneira que o mundo pudesse ser salvo, e fugir da condenação (v. 17). Estabelece-se a universalidade da salvação, entretanto, pelas frases: todo aquele que nele crê no v. 15 e também no v. 16. A pessoa que quiser obter a vida etema deve crer, da mesma forma que o israelita precisava olhar a serpente de bronze a fim de curar-se (Números 21:8-9). Vida eterna é o equivalente, neste Evangelho, a reino de Deus, do qual Jesus havia falado a Nicodemos (vv. 3,5). Não se trata apenas de vida sem fim; tampouco é vida que só começa após a morte. É novo tipo de vida, nova forma de existência que caracteriza agora mesmo a pessoa que crê em Jesus e nasce de novo. Nos vv. 18-21 examinam-se as alternativas de fé e descrença. Ainda que salvação, e não julgamento, seja o objetivo primordial de Deus, o julgamento é inevitável sobre os que não crêem. O julgamento, à seme­ lhança da salvação, é uma realidade atual. O incrédulo já está condenado (v. 18). A condenação é que “os homens amaram mais as trevas do que a luz porque as obras deles eram más” (v. 19). Mais uma vez temos a impressão de que o autor do Evangelho está olhando para trás, para os ensinos de Jesus, de um ponto de vista privilegiado, é como se a questão da fé e da incredulidade já estivesse resolvida. O autor escreve antecipa­ damente, a respeito de uma condenação posterior aos que “amavam mais a glória dos homens do que a glória de Deus” (12:43). E provável que em ambos os casos o mesmo grupo é que está sob acusação, a saber, os assim chamados “crentes” de 2:23-25 e 12:42. Pelos vv. 20-21 entende-se que ter a verdadeira fé é vir p ara a luz. A luz que veio para o mundo é Jesus Cristo (cf. 1:5-10), e vir para a luz é vir a Jesus, de modo público, não secretamente, para o batismo e discipulado. A fé genuína requer a participação aberta na comunidade da fé. A acusação levantada contra Nicodemos e seus amigos é que eles não deram esse passo. O fracasso de uma pessoa que não vem para a luz é atribuído ao medo de que suas obras sejam expostas (para que as suas obras não sejam reprovadas, v. 20). É sinal de que a pessoa pratica o mal. A pessoa que vem para a luz é alguém que vive de acordo com a verdade (v. 21) e demonstra, mediante a exposição à luz, que suas obras são feitas em Deus. O fato de a pessoa vir a Jesus prova que Deus já

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esteve operando em sua vida. Numa curiosa reversão da teologia cristã posterior, Jesus salienta o ponto de que as pessoas comprovam suas boas obras mediante a fé! Apoiando esta lógica surpreendente não encontraremos a noção de que a salvação se obtém mediante boas obras mas, antes, encontramos a forte doutrina da eleição divina. Da perspectiva humana, o novo nasci­ mento é a conversão mas, da perspectiva divina, a “conversão” simples­ mente traz a campo aberto a verdadeira natureza das pessoas a quem Deus escolheu para serem seus filhos. Ninguém pode vir a Jesus a menos que Deus a traga a Jesus (6:44). A pessoa que vem a Jesus é a que primeiro ouviu a voz de Deus e foi instruída (6:45). Somente a pessoa que “quiser fazer a vontade de Deus” entenderá a mensagem de Jesus (7:17). Todos os seres humanos um dia serão divididos em “os que fizeram o bem” e “os que praticaram o mal” e julgados conforme seu comportamento (5:29). Todavia, o teste sobre se a pessoa faz o bem ou o mal é se a pessoa vem p a ra a hiz. O dualismo do Evangelho de João tem sido chamado de “dualismo da decisão” (R. Bultmann, Theology ofthe New Testament [Nova York: Scribners, 1955], vol. 2, pág. 21). A base é o dualismo implícito na escolha soberana de Deus, após o qual vem o dualismo do último julgamento; mas um elemento é o mistério eterno e o outro, a ratificação de algo que já se decidiu. O que importa na história é se a pessoa decide permanecer nas trevas ou vir para a luz que raiou em Jesus Cristo. Esta é a principal questão teológica derivada da primeira visita de Jesus a Jerusalém.

Notas Adicionais # 6 3:1 / Havia entre os fariseus um homem: A repetição da palavra “homem” (gr.: anthropos), após a ocorrência da mesma palavra em 2:25, relaciona Nicodemos de modo íntimo ao grupo descrito na seção precedente. 3:3,5/ Em verdade, em verdade: lit., “amém, amém” ou “verdadeiramente, verdadeiramente”. É formulação introdutória que chama a atenção para a importância do texto que vem a seguir e, possivelmente, para a derivação de alguma tradição particular (cf. 1:51). 3:3, 7 / nascer de novo: a expressão de novo (gr.: anothen), também pode ser traduzida por “de cima” (cf. 3:31). O renascimento de que fala Jesus é de fato um novo nascimento vindo de Deus (1:3), do reino do Espírito e, nesse sentido, “vem de cima”, mas a resposta de Nicodemos focaliza apenas o fato de ele só enxergá-lo como um segundo nascimento. O caráter divino desse novo nascimento é descrito nos vv. 5-8.

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3:5 / da água e do Espírito: é impossível determinar do ponto de vista gramatical se água e Espírito são dois elementos distintos ou um só. O fato de ambos os termos serem regidos por uma única preposição, em grego, sugere que são um elemento só. Entretanto, em 1João 5:6 o mesmo tipo de construção (“por água e sangue”) é seguido de imediato por outro tipo de construção em que cada elemento tem sua própria preposição e artigo definido (lit., “não com a água apenas mas com a água e com o sangue”). A decisão interpretativa deve ser tomada, portanto, em bases diferentes, não na base gramatical. 3:6 / O que é nascido da carne, é carne, mas o que é nascido do Espírito, é espírito: Jesus não está fazendo um resumo da vida do crente (primeiro ele nasce fisicamente e depois, nasce espiritualmente) mas, está fazendo distinção entre dois reinos de existência que não devem ser confundidos (cf. 3:31; 8:23). 3:8 / O vento sopra. A palavra grega pneuma (é a palavra para Espírito, neste contexto e por todo o NT) também pode significar “vento”. O emprego da palavra, aqui, com o verbo cognato pnei (“sopra”) indica que o sentido correto no caso é vento (cf. apenas Hebreus 1:7 no NT). A escolha de pneuma, em vez de alguma outra palavra para vento (ver, pnoe, Atos 2:2) permite que o autor faça um trocadilho. A palavra usada como metáfora para Espírito é a mesma palavra para Espírito! Ninguém sabe de onde vem o vento, nem para onde vai, e o mesmo é verdadeiro a respeito dos que nascem do “vento” (i.e., do Espírito de Deus). 3:10 / Tu és mestre em Israel, e não compreendes estas coisas? A lógica do diálogo indica que estas palavras devem ser tomadas como declaração, em vez de pergunta. Os eruditos que dizem que Jesus, surpreendido, está pergun­ tando por que razão Nicodemos nada sabe sobre o batismo, nem sobre o novo nascimento, têm a obrigação de procurar pelo menos indícios dessas doutrinas no Antigo Testamento (ver, Jeremias 31:33 ou Ezequiel 36:25-27). Entretanto, o Antigo Testamento não participa desta discussão, neste ponto, e não haveria maneira de Nicodemos poder entender de pronto o novo ensino de Jesus. Longe de a ignorância de Nicodemos constituir surpresa para Jesus, ela apenas com­ prova a questão crucial do Senhor: as coisas espirituais só podem ser entendidas pelos que nasceram do Espírito (cf. Paulo em 1 Coríntios 2:11-14). 3:13 / senão o que desceu do céu - o Filho do homem: alguns manuscritos antigos trazem uma redação mais longa: “exceto aquele que desceu do céu, a saber, o Filho do homem, que está no céu”. Esta variante toma explícito o que está apenas implícito no texto mais curto, sendo mais fiel à idéia de que o Filho do homem já subiu. 3:15 / nele crê: somente aqui no Evangelho de João a preposição grega en é empregada com o verbo pisteuein, “crer”. Em todos os demais textos ocorre a preposição eis (“em”), ou um dativo sem preposição. É provável, portanto, que “em” liga-se à expressão “ter vida” em vez de ao verbo “crer”; “para que todo aquele que nele crê tenha a vida eterna” ficaria assim: “de modo que todo aquele que crê possa ter vida eterna nele”. A base da tradução da NIV é o paralelismo com o v. 16, em que pisteuein é empregado da forma normal, joanina, com eis.

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3:19 / os homens amaram mais as trevas . . . as obras deles eram más. Observe o pretérito: do ponto de vista do autor do Evangelho, as decisões já foram tomadas e a acusação é: as pessoas amaram as trevas, e suas obras eram más. É possível que homens (gr.: anthropoi), objetiva relembrar a repetição (três vezes) de anthropos em 2:25 e 3:1. 3:21 / quem vive de acordo com a verdade: lit., “pratica a verdade”. A frase “praticar a verdade” ocorre na literatura do Qumran como expressão de fiel participação na comunidade dos eleitos, no deserto. Veja, 1 Rs 1.5,5.3, 8.2,9. No Gnosticismo cristão primitivo (Ptolomeu, Letter to Flora 6.5), expressão semelhante pode significar viver de acordo com a Realidade que chegou em Cristo (i.e., obedecer à lei de Deus de modo espiritual, e não literal). Essa terminologia indica que a aguda distinção existente entre fé e obras, que caracteriza a teologia cristã posterior, nem sempre é útil para a compreensão da literatura judaica e (exceção feita a Paulo) da literatura cristã primitiva.

7. Jesus e João Batista (João 3:22-30)

Explica-se agora o interesse de Jesus pela “água” e pelo “Espírito” (3:5), como forma de iniciação em sua nova comunidade. Tão cedo deixa Jerusalém, Jesus assume um ministério de batismo na Judéia. O v. 22, bem como 4:1-3, têm a aparência de passagens transitórias que resumem uma estada na Judéia, de duração indefinida (cf. a breve estada em Cafamaum em 2:12). Entretanto, certos pormenores desse resumo exi­ gem mais algumas explicações. Por exemplo, o próprio Jesus batizou alguém? Não, seus discípulos é que batizaram (4:2). Além disso, a razão por que ele encerrou seu ministério na Judéia teria sido a percepção dos fariseus (segundo se dizia) de uma possível rivalidade entre João Batista e Jesus (4:1). Haveria alguma verdade nessa percepção? Os versículos 23-30 (e indiretamente os vv. 31-36 também) apresentam a resposta do autor do Evangelho a esta pergunta. O resumo abreviado expande-se, portanto, e transforma-se numa reflexão histórica e teológica sobre o relacionamento entre Jesus e João Batista. As atividades batismais de João Batista desenvolveram-se especifica­ mente em Enom, perto de Salim (v. 23). O fato de uma localidade definida ser atribuída a João, não, porém, a Jesus, indica que os vv. 23-30 poderão ter vindo de material anterior, preservado na comunidade dos seguidores do Batista (cf. referência a Betânia em 1:28). Enom (à semelhança de Betânia) não pode ser localizada com precisão, hoje; todavia, o autor do Evangelho (ou sua fonte) parece ter certa familiari­ dade com esses nomes de lugares - provavelmente mais com Salim do que com Enom; de outra forma, por que Salim teria sido mencionada? O versículo 23 confirma a evidência de 1:28 de que João não limitou seu ministério batismal ao rio Jodão. Enom foi escolhida por causa de seu grande suprimento de água, talvez alimentado por fontes naturais. Fosse onde fosse sua localização exata, Enom ficava na margem ocidental do Jordão, porque do ministério anterior de João na Betânia se diz que ocorreu “no outro lado” (v. 26). A nota patética de que João ainda não tinha sido lançado na prisão (v. 24) é redundante, em sua posição atual. Se João estava batizando, obviamente não podia estar na prisão! Esse comentário é uma nota do

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autor, que pertence logicamente a um lugar antes do v. 23, como explicação sobre como é possível que João ainda estivesse atuante. É comentário que, embora natural, poder-se-ia chamar de “reflexão tardia”. O autor do Evangelho sabe da prisão do Batista mas, a ela se refere apenas desse modo indireto. João Batista não é removido da história à força, mas permite-se-lhe que saia por si mesmo e que se despeça com dignidade (vv. 27-30). O testemunho final de João é apresentado por uma observação de seus discípulos (v. 26), e surge por causa de uma disputa que travaram com um judeu anônimo acerca da purificação (inclusive, segundo se presu­ me, o batismo). A natureza do debate não ficou clara mas a observação dos discípulos ressoa, talvez, como se o judeu houvesse dito algo a respeito do aparente sucesso do ministério batismal de Jesus. Se foi assim, a cena ilustra com acuidade a situação a que 4:1 se refere: Jesus e João Batista são vistos como rivais, parecendo que Jesus tem maior sucesso do que o Batista. Ainda quando se recordam do primeiro teste­ munho de João, sobre Jesus, em 1:19-34, os discípulos de João parecem surpresos e estupefatos, diante da crescente popularidade de Jesus (v. 26). A unidade do capítulo se mantém na resposta de João a seus discípulos (vv. 27-30). João fala de algo que é humanamente impossível, como Jesus falaria a Nicodemos: O homem só pode receber o que lhe for dado do céu (v. 27; cf. vv. 2, 3, 5). Em particular, João dá testemunho de suas próprias limitações, citando parte do testemunho a que seus discípulos acabaram de referir-se (v. 28). O Batista não é o Messias, apenas um mensageiro enviado à frente, a fim de preparar o caminho para a chegada do Messias (cf. 1:20,23). Em sua imaginação, João vê a época presente como um casamento (cf. 2:1-12; Marcos 2:19-20; Mateus 22:1-14; 25:1-13); contudo, o noivo não é ele, Jesus é que é o noivo, na parábola de João, sendo João apenas o amigo de confiança que se alegra quando o noivo o convida para a festa (v. 29). Ao terminar seu papel de mensageiro, João assume sua nova função mais modesta, a de confessor, e discípulo de Jesus. Toma-se uma espécie de discípulo ideal, que ouve a voz de Jesus (cf. 10:3, 27) e tem alegria completa (v. 29; cf. 15:11; 16:24). A verdadeira resposta à pergunta implícita dos discípulos de João vem no v. 30.0 que eles vêem acontecer na Judéia é historicamente inevitável:

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Jesus cresce, enquanto João Batista diminui. Contudo, é isso que João quer, pois suas palavras de despedida são as de um discípulo que deseja tomar-se pequeno como uma criança, a fim de ganhar o reino (cf. Mateus 18:3-4; 23:12; João 3:5). Foram palavras proferidas com o intuito de serem repetidas, palavras que as pessoas devem proferir como fruto de suas próprias experiências.

Notas Adicionais # 7 3:23 / Enom, perto de Salim: O mapa em mosaico, do sexto século, de Madeba, na Jordânia, mostra duas cidades com o nome de Enom, uma a leste do rio Jordão, perto de onde João estivera batizando antes (“Enom, agora Sapsafas”), e a outra, a oeste do rio, e mais ao norte. Esta fica ligada de modo específico à nossa passagem, por ter o cognome de “Enom, perto de Salim”, havendo concordância com a localização, ou seja, quase 12 quilômetros ao sul de Betesam, assinalada num dicionário geográfico do quarto século, composto de nomes de lugares bíblicos, o Onomasticon de Eusébio (cf. também o diário de viagens, do quarto século, do peregrino europeu Egeria). As tentativas modernas de localizar Enom na Samaria, onde hoje existe uma Salim, a sudeste de Nablus, tendo nas vizinhanças uma Ainun, não conseguem convencer ninguém, por causa de João 4:1-4. A narrativa dificilmente faria sentido se o Batista já estivesse batizando na Samaria! Todavia, esses nomes teriam sido comuns: Enom vem de uma palavra aramaica que significa “fontes”, e Salim, à semelhança de Salém, ou Jerusalém, deriva de uma raiz semítica que significa “paz”. A localização assinalada por Eusébio e pelo mapa de Madeba parece basear-se não apenas em inferências do Evangelho de João e poderia, por isso, ser considerada tradição independente - e plausível. Veja J. Finegan, The Archaeology of the New Testament (Princeton: Princeton University Press, 1969), págs. 12-13. 3:25 / um judeu: alguns manuscritos antigos, importantes, trazem “certos judeus” (NIV, nota marginal). Seria correto se a variante fosse erro de copista. Todavia, se alguém inseriu uma alteração deliberada, é mais provável que um singular original tenha sido mudado para o plural (“os judeus” estão sempre em disputa neste Evangelho), do que um plural mudado para singular (surgindo, então, a pergunta: Que judeu? Qual era o nome dele?) A ausência do artigo, seja com plural, seja com singular, também sugere que a palavra original estava no singular, porque judeus em todo o texto joanino são sempre “os judeus”, definindo um grupo bem característico, enquanto um judeu, individualmente (a menos que seu nome fosse mencionado), seria quase que inevitavelmente designado assim, sem o artigo. 3:28 / Eu não sou o Cristo. A primeira metade da auto-apresentação de João refere-se com clareza a 1:20; todavia, a segunda metade não constitui citação palavra por palavra de nenhum texto anterior (embora cf. Marcos 1:2; Lucas

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7:27). João é designado no prólogo como tendo sido “enviado” (1:6), enquanto a idéia de que teria sido “enviado” adiante do Messias pode ser uma inferência de declarações de que o Messias haveria de vir “depois” dele (1:15,27, 30). A questão se complica pela asserção de 1:15,30 de que o Messias tem “a primazia” sobre o Batista num sentido bem diferente, referindo-se a posição, ou dignidade, em vez de tempo. Outra alternativa possível é que João esteja citando textual­ mente uma forma de tradição que não conseguiu introduzir-se no capítulo 1.

8. “Aquele Que Vem do Céu” (João 3:31-36)

O autor do Evangelho acrescenta uma reflexão teológica às despedi­ das de João Batista, da mesma forma como acrescentou outra ao teste­ munho de João, no prólogo (1:17-18), e à conversa de Jesus com Nicodemos, em Jerusalém (3:13-21). Tomando a frase característica do Batista, “o que vem” (cf. 1:15,27; Mateus 3:11; 11:3; Lucas 7:20) o autor do Evangelho designa Jesus como aquele que vem de cima ou aquele que vem do céu (v. 31). Segundo este padrão, aquele que vem da te rra e fala das limitações humanas, provavelmente é o próprio João Batista. O v. 31 se baseia no reconhecimento do próprio Batista de tais limitações, no v. 27: “O homem só pode receber o que lhe for dado do céu”. O v. 33 indica de modo definitivo que o Batista recebeu o testemunho vindo do céu. Aquele que aceitou o seu testemunho que veio do céu e confirmou que Deus é verdadeiro (v. 33), não é um qualquer, mas refere-se em primeiríssimo lugar a João Batista, como é retratado neste Evangelho. Nicodemos e sua comunidade rejeitaram o testemunho de Jesus (v. 32; cf. v. 11); todavia, João Batista e outros semelhantes a ele aceitaram-no como mensagem proveniente do próprio Deus. João Batista é o protótipo de todos quantos endossam a verdade de Deus, ao reconhe­ cer Jesus como o mensageiro singular de Deus. As palavras proferidas por Jesus são para ele palavras vindas de Deus, porque Deus atribuiu a Jesus o Espírito “sem medida” (v. 34). Por ocasião do batismo de Jesus, o Espírito Santo desceu sobre ele a fim de nele “permanecer” (1:32,33), e o Batista continua a testemunhar, como testemunhara antes, de que isso é verdade. Os últimos dois versículos do capítulo são uma meditação breve a respeito do batismo de Jesus. A declaração de que o Pai am a o Filho, e todas as coisas confiou às suas mãos (v. 35) ecoa a tradição sinótica da voz vinda do céu: “Tu és o meu Filho amado em quem me comprazo” (Marcos 1:11; cf. o uso de “unigénito” em João 1:14, 18; 3:16, 18). A imagem da ira de Deus “permanecendo” sobre os que rejeitam o Filho (v. 36) também se destaca como sombria contrapartida do Espírito “permanecendo” sobre Jesus (1:32-33). No presente contexto, a reflexão sobre o batismo serve a dois propó­

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sitos: sumariza o tema teológico principal do capítulo (i.e., as alternativas da fé e da descrença), e antecipa a Cristologia do resto do Evangelho. O amor do Pai pelo Filho, e toda a autoridade que o Pai lhe delegou tomam-se o tema do primeiro grande sermão de Jesus, em Jerusalém (5:19-29), e base presumida de todos os demais sermões (cf., 13:3; 17:2). O último versículo deste capítulo leva o leitor de volta ao ponto alcançado nos vv. 18-21, dando unidade a todo o capítulo, como um todo. O testemunho do Batista reforça o testemunho de Jesus, de que crer nele constitui toda a diferença entre a salvação e o julgamento da parte de Deus.

Notas Adicionais # 8 3:33 / Aquele que aceitou o seu testemunho: Existe uma similaridade formal entre os w . 32-33 e í.l 1-12. Há uma declaração genérica acerca da rejeição de Jesus, seguida de uma exceção muito importante. O povo, em sua maior parte, não o recebeu, mas algumas pessoas (outros) o receberam. O v. 33 não é genérico mas específico: aquele que aceitou o seu testemunho, isto é, “de Jesus”. O verbo “aceitar” ou “receber” nos relembra a própria linguagem de João Batista, em 1:16 e em 3:27. Se a referência foi feita de modo específico a ele, o versículo é uma declaração do que de fato aconteceu, e não (como com freqüência se entende) sentença relativa, condicional (i.e., se alguém o aceitar, fica confirmada a verdade de Deus). Confirmou (gr. esphragisen, lit., “afixou seu selo”) aparentemente significa que João, mediante seu testemunho (no capítulo 1 e em 3:27-30) de modo formal confirmou a verdade das declarações de Jesus, talvez segundo o princípio de que o testemunho de duas testemunhas era considerado válido (cf. 8:17; Deuteronômio 19:15). Embora Jesus dê certa importância a este atestado de seu ministério (cf. 5:33-35), o Senhor deixa bem claro que a verdadeira confirmação de sua obra é a que vem de Deus (cf. 5:34,36-39; 8:16-18, e de modo especial o emprego do mesmo verbo em 6:27: “Deus, o Pai, o marcou com o seu selo [de aprovação]”).

9. Jesus e a Mulher Samaritana (João 4:1-42)

A transição se iniciara em 3:22, prosseguindo em 4:1-4. Jesus parte de Jerusalém, indo para o interior da Judéia e, daí, para a Galiléia, via Samaria. O material aí apresentado (3:23-36) capacita o leitor a entender a introdução embaraçante do capítulo 4. Que Jesus fazia e batizava mais discípulos do que João (v. 1) já fomos devidamente informados em 3:26. Porque os fariseus observaram esse fato, depreende-se daí que os discí­ pulos do Batista aparentemente foram lembrados disso por “um judeu” (3:25). O que ainda não se mencionou é a reação de Jesus a tais evoluções. O propósito dos vv. 1-3 é explicar as ações de Jesus segundo seu conhecimento. O comentário entre parênteses relembra outros exemplos em que o narrador atribui declarações ou ações a Jesus, baseadas em seu conhecimento sobrenatural (cf., 2:24-25; 6:6,64; 13:1, 3,11; 18:4). No caso presente, todavia, Jesus ficou sabendo das coisas por vias normais. Quando Jesus percebeu que os fariseus começavam a encará-lo, e ao Batista, como rivais, o Senhor saiu do lugar (v. 3). O autor do Evangelho abre um hiato rápido a fim de corrigir uma impressão falsa que talvez tenha surgido entre 3:22 e 4:1 (bem como em 3:26). Jesus não batizava pessoalmente. Ocorriam batismos na Judéia como resultado de seu ministério, e sob sua jurisdição, mas quem batizava realmente eram seus discípulos. O objetivo é assegurar o leitor de que a impressão dos fariseus era errada. Jesus e o Batista não eram rivais, nem poderiam ser, visto que seus papéis eram diferenciados, e ambos se movimentavam em esferas diferentes (cf. 3:27-36). Teologi­ camente, a noção de que Jesus, que se supunha batizar com o Espírito Santo (1:33), também batizava com água, como João Batista fazia, é fato surpreendente, não tendo paralelo nos demais evangelhos. Para o autor deste Evangelho, parece que esse fato derivou de uma tradição estabelecida com firmeza, que ele foi obrigado a reconhecer, e sobre a qual ele acrescenta seu próprio comentário pessoal, esclarecedor. Quase constrangido, o autor apresenta fortes evidências de que Jesus, durante algum tempo, supervisio­ nou um ministério que incluía o batismo com água, na Judéia, que provocou a comparação com o ministério do Batista; o resultado é que ficou parecen­ do, pelo menos para alguns, que havia competição.

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O relato do itinerário de Jesus provê razões para quase cada um de seus passos. Se os vv. 1-3 nos informam por que Jesus regressou à Galiléia, o versículo 4 acrescenta: era-lhe necessário passar por Sama­ ria, o que introduz o incidente entre Jesus e a mulher samaritana. A necessidade de Jesus passar pela Samaria não era geográfica, mas teoló­ gica. Havia trabalho a ser feito ali. Samaria era campo missionário —maduro para a ceifa (v. 35), sendo a intenção de Jesus fazer a vontade daquele que o enviou, e realizar a sua obra (v. 34). As ações de Jesus são determinadas não pelas circunstâncias, mas pela sua vocação divina. A visita de Jesus a Samaria tem duas partes: primeira, sua entrevista à mulher samaritana, junto ao poço de Jacó (vv. 5-26) e, segunda, uma série de relances alternados de Jesus e seus discípulos, por um lado, e da mulher mais o povo da cidade samaritana, do outro (vv. 27-42). A conversa de Jesus com a mulher samaritana centraliza-se no tema dos lugares sagrados, de modo especial um campo e um poço tradicional­ mente associados a Jacó (vv. 5-15), e o templo samaritano do monte Gerizim (vv. 19-26). Jesus promete à mulher o Espírito Santo, que transcende esses lugares sagrados e toma obsoleta a devoção a eles (vv. 13-14, 23-24). Entre a discussão sobre o poço e a do monte sagrado há um vislumbre abrupto da história pessoal da mulher (vv. 16-18), que provê a base para o testemunho dela de que Jesus lhe disse tudo o que ela fez (vv. 29, 39). De que forma esses segmentos da entrevista de Jesus com a mulher samaritana se relacionam entre si? A mulher serve para representar três “grupos oprimidos” pelos quais Jesus demonstrou excepcional interesse, segundo os sinóticos. O simples fato de ela ser mulher suscita surpresa da parte de seus discípulos: como poderia o Senhor falar-lhe? (v. 27). Conquanto não seja uma prostituta, é imoral quanto ao sexo (v. 18). Pela raça e pela religião que professa, ela é uma intrusa, uma odiada samari­ tana, do ponto de vista judeu. Judeus e samaritanos, explica-nos o autor, nem sequer tocam nos mesmos utensílios (v. 9). Ao buscá-la, Jesus se mostra, nesta narrativa, reconhecidamente como o Jesus dos sinóticos (cf., Marcos 7:24-30; Lucas 7:36-50; 10:25-37), o que veio a fim de evidenciar misericórdia aos publicanos, às prostitutas e a todos os mar­ ginais da sociedade judaica. O encontro se inicia de modo surpreendente, não com Jesus conce­ dendo misericórdia à mulher, mas, ao contrário, o Senhor é quem pede

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misericórdia a ela. Ele se coloca na curiosa posição de precisar de ajuda (um gole de água, cf. Marcos 9:41) de alguém que, segundo a cultura a que Jesus pertencia, seria objeto de seu ódio. Entretanto, a sede dele propicia ocasião para que o Senhor reverta os papéis, e ei-lo oferecendo água viva (v. 10) à mulher. Não ficamos sabendo se ela acabou dando água a Jesus, ou não, antes da evolução destes acontecimentos. Todavia, se o início foi Jesus pedindo água à mulher (v. 7), a conclusão foi a mulher pedindo a Jesus o suprimento infinito da água que ele afirmava poder conceder-lhe (v. 15). A inversão de papéis só foi possível por causa do uso que Jesus fez da água como metáfora do Espírito Santo (vv. 10, 13-14). O que ele prometeu nada mais foi do que o batismo do Espírito Santo (cf. 1:33). Não ficou explícita aqui a identificação da água viva com o Espírito, como está bem explícita em 7:38-39, mas apesar disso é válida. O “dom de Deus” (v. 10) é uma expressão usada para o Espírito (num ambiente samaritanó) em Atos $:20 (cf. Atos 2:3%; 10:45; 11:11), e o Espirito se toma ineqüivocamente o tema da última parte da auto-revelação de Jesus à mulher (vv.21-24). A outra única possibilidade é que a água represente a vida eterna (v. 14), mas o cerne da declaração de Jesus é que esta água proporciona ou sustenta a vida eterna (assim como a água física sustenta a vida física), não que a água mesma seja a metáfora para vida. “O Espírito é que vivifica” (6:63; cf. 1 Coríntios 15:45). O batismo com o Espírito é a concessão da vida, o começo da nova criação (20:22; cf. Gênesis 2:7). O ministério de Jesus é mais do que mera continuação do de João. Qualquer atividade de batismo realizada por Jesus na Judéia é de importância secundária e ficou para trás. Sua obra efetiva não é batizar com água mas fazer o que João predissera que ele faria: batizar com o Espírito Santo. A metáfora da água é usada aqui não no sentido de lavar ou ser imerso, mas de beber (cf. Paulo em 1 Coríntios 12:13: “Pois todos nós fomos batizados em um só Espírito, formando um só corpo... e a todos nós foi dado de beber de um só Espírito”). O Espírito sacia a sede, não no sentido de eliminar o desejo de alguém da presença de Deus, mas no sentido de satisfazer continuamente esse desejo. O Espírito Santo será como uma fonte inesgotável dentro do crente “que jorre para a vida eterna” (v. 14). A mulher samaritana toma a metáfora de modo literal. A única água vivificante que ela conhece é a água do poço, que já lhe pertence e a seu

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povo (w . 11-12). A promessa de Jesus, do Espírito e da vida eterna, apenas significa que ela não terá mais de vir ao poço para tirar água! (v. 15). Este diálogo termina em incompreensão; todavia, o comentário da mulher é curiosamente correto, porque quando vier o Espírito, lugares sagrados tais como o poço de Jacó perderão seu significado. Identidades religiosas ou étnicas baseadas no controle de tais lugares serão substituí­ das por uma nova identidade no Espírito (cf. vv. 21,23). A resposta de Jesus à mulher samaritana assinala uma mudança na narrativa. Em vez de corrigir seu equívoco, ele lhe diz que ela deve voltar ao poço pelo menos uma vez, com seu marido (v. 16). Parece que a missão de Jesus na Samaria se iniciará com a conversão de uma família inteira. Isso acontece no livro de Atos (16:15, 33-34; 18:8; cf. 11:14) e ao final desta mesma viagem, no Evangelho de João, quando Jesus chega à Galiléia (4:53), mas em Samaria não irá acontecer. Talvez na esperança de receber a água viva de imediato, a mulher diz a Jesus que não tem marido. Ironicamente, Jesus a elogia por dizer a verdade (vv. 17, 18) e, assim, expõe seu adultério (cf. Marcos 10:12). A mudança de assunto não é tão abrupta quanto parece. A narrativa presume uma estreita relação entre o batismo com o Espírito e o perdão de pecados (cf. Marcos 1:4-8; Atos 2:38). Jesus, que batizará com o Espírito, é o “Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (1:29). —Quando o Espírito for concedido (20:22), Jesus dirá a seus discípulos: “Aqueles aos quais perdoardes os pecados, são-lhes perdoados; aqueles aos quais não perdoardes, ser-lhesão retidos” (20:23). O pecado, para ser perdoado, deve primeiramente ser exposto, e foi, mas o adultério da mulher não é o centro do interesse neste capítulo. O rumo da narrativa não segue da mulher para seu atual marido (ou amante) mas da mulher diretamente para o resto do povo àâ cidade (vv. 28-30). Quaisquer sentimentos de culpa que ela possa ter tido não são mencionados. Em vez de culpa, sua reação à introspecção sobrenatural de Jesus em sua vida é de espanto (vv. 29, 39). Conclui instantaneamente que ele é um profeta (v. 19). Como ele é judeu e profeta, ela aproveita a oportuni­ dade para iniciar uma conversa sobre as respectivas vindicações de judeus e samaritanos quanto aos lugares de adoração - o monte do templo em Jerusalém e o monte Gerizim, perto de Sicar (v. 20), sendo o último provavelmente visível de onde se encontravam. É inútil especular se ela estava ou não tentando distrair a atenção de sua condição moral. Para o

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autor do Evangelho, pelo menos, sua observação não é um desvio mas leva adiante o impulso principal da história. Diz-lhe Jesus que a questão mais importante não é onde mas como adorar a Deus. Logo as alternativas Jerusalém ou monte Gerizim perde­ ram sua importância. Os verdadeiros adoradores (i.e., os cristãos) adorarão o Pai em espírito e em verdade (v. 23) como resultado do prometido batismo. Segundo autores cristãos ulteriores, eles são uma “nova raça” (Epístola a Diogneto I) ou uma “terceira raça”. “No que respeita aos gregos e judeus é antigo. Mas nós somos cristãos, e como uma terceira raça o adoramos de uma nova maneira”; (Pregação a Pedro, citado em Clemente de Alexandria, Stromateis VI, 5.39-41, traduzido na obra de Henneck-Schneemelcher, Apócrifos do Novo Testamento, [Fila­ délfia: Westminster, 164], vol. 2, pág. 100). Aproveitando-se a referência da mulher a seus pais, ou aos ancestrais samaritanos que adoraram em Gerizim (v. 20), Jesus de modo sutil introduz o termo Pai, em conexão com a adoração a Deus (w . 21,23), ressaltando que somente no Espírito (i.e., na nova comunidade cristã) é possível adorar a Deus como Pai (cf. Paulo aos Romanos 8:15-16; Gálatas 4:6). Porque ele é Pai, assim deseja ser adorado, e os cristãos são o tipo de adoradores que ele procura (v. 23). No versículo 22 Jesus fala como judeu, pois é como a um judeu que a mulher samaritana se lhe dirigiu. Entretanto, ele não fala em nome de todos os judeus, mas pela pequena comunidade de fé que se formou ao seu redor (cf. 3:11). Quando seus opositores judeus, numa confrontação posterior (8:41), afirmam conhecer a Deus como Pai, Jesus contesta sua pretensão (8:42). A única vantagem dos judeus sobre os samaritanos é que a salvação vem dos judeus (v. 22b), isto é, o próprio Jesus surgiu dentre os judeus, trazendo “graça e verdade” e o conhecimento de Deus para todo o mundo (cf. 1:17-18). Este conhecimento permite que, pri­ meiramente, os discípulos judeus de Jesus e depois os samaritanos e gentios, conheçam quem eles adoram (v. 22), ou que adorem o Pai como ele é realmente (vv. 23-24). Se Deus é Espírito (v. 24), então só a vinda do Espírito permite conhecer sua verdadeira natureza. A mulher replica aos ensinamentos de Jesus pela única forma que conhece: a expectativa dos samaritanos de um Messias que virá e nos explicará tudo (v. 25). O autor do Evangelho usou o vocábulo judeu Messias (i.e., “o Ungido”) para designar a figura de quem a mulher fala. A palavra usada pelos samaritanos era “Taheb” (ou “Restaurador”). O

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Taheb, cujas funções correspondem em linhas gerais às do Messias judaico, era uma figura modelada segundo Moisés, delineado segundo as expectativas bíblicas de um profeta parecido com Moisés, que viria e revelaria ao povo tudo o que Deus ordenasse (Deuteronômio 18:18). Essa expectativa era intensa também no judaísmo (cf. 1:21), porém destaca­ va-se mais entre os samaritanos. Significativamente, é aqui no contexto samaritano, e só aqui, que Jesus admite ser o Messias, e de modo claro, decidido, sem vacilações (v. 26). Seis capítulos adiante, o povo de Jerusalém ainda está perguntando: “Até quando nos manterás em sus­ penso? Se tu és o Cristo, dize-o abertamente” (10:24). Entretanto, muito tempo antes, no pequeno povoado samaritano, o segredo já se revelara! A aceitação por Jesus, da versão da mulher sobre o messiado, explica-se provavelmente pelo papel profético e magisterial que ela atribui ao seu Messias. A declaração de que quando ele vier, nos explicará tudo (v. 25) antecipa a linguagem de Jesus ao prometer a vinda do Espírito aos seus discípulos, no sermão de despedida (cf. 16:13-16). A obra do Espírito é uma extensão da obra de Jesus. Ê uma obra de revelação, e quando a mulher samaritana pensa em revelação, pensa no Taheb. Indo além do reconhecimento que ela faz de Jesus como profeta (v. 19), o Senhor finalmente se lhe dá a conhecer como o Profeta-Messias a quem ela e seu povo estavam esperando (v. 26). Toma-se clara a razão pela qual ele disse: a hora vem (v. 21), tendo acrescentado, em seguida: vem a hora, e já chegou (v. 23). O encontro de Jesus com a mulher (vv. 5-26) atingiu seu objetivo. Aconteceu uma revelação e a esperança da mulher tomou-se realidade. Os discípulos, que foram mencionados como que entre parênteses no versículo 8, se aproximam neste momento (v. 27). Surpresos de que ele pudesse sequer falar a uma mulher (ainda mais mulher samaritana!), por um instante parecem espantados demais diante de Jesus, para perguntar por quê. Muito embora os discípulos não estivessem presentes quando ele se revelou à mulher, ficam sem fala (cf. a hesitação deles em fazer-lhe perguntas em 16:5, 19 e 21:12). Assim que os discípulos chegam da cidade, a mulher volta para lá, e a narrativa se divide em duas cenas centralizadas em dois grupos de personagens: a mulher e o povo da cidade (w . 28-30, 39-42), e os discípulos e Jesus (vv. 31-38). Quando os discípulos oferecem a Jesus a comida que compraram em Sicar (veja v. 8), Jesus lhes fala de um alimento que possui, o qual vós

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não conheceis (v. 32). Por enquanto, estes verdadeiros adoradores, que um dia suplantarão tanto os judeus como os samaritanos, são tão igno­ rantes como a mulher samaritana (cf. v. 22). Ainda não se acham preparados para adorar a Deus em Espírito. O Espírito se encontra em Jesus, e só nele (cf. 3:34). A comida de que ele fala é a obediência a Deus (cf. Mateus 4:4) e a conclusão da obra daquele que o enviou (v. 34). Em última análise, esta obra abrange a totalidade do quarto Evangelho (cf. 17:4; 19:30) mas é definida no cenário seguinte (com troca da metáfora) como ceifa (i. e., uma colheita de novos crentes) entre os samaritanos. Podemos contrastar esta circunstância com a descrita em Mateus 9:36-10:6, em que a “ceifa” inclui apenas “as ovelhas perdidas da casa de Israel” e exclui especificamente qualquer “cidade de samari­ tanos”. Os horizontes de Jesus são mais amplos (ou pelo menos se alargam mais cedo) no Evangelho de João do que nos sinóticos. Aquele “que tira o pecado do mundo” (1:29) está prestes a ser reconhecido por um povo estrangeiro como o Salvador do mundo (v. 42). Não é uma ceifa comum. Para demonstrar sua singularidade, Jesus utiliza dois provérbios conhecidos (vv. 35,37): (1) Ainda há quatro meses até a ceifa. Costumeiramente se estabe­ leceram quatro meses entre o plantio e a colheita (v. 35), mas Jesus fala de abundância messiânica igual à prevista pelo profeta Amós, na qual “o que lavra alcançará ao que sega, e o que pisa as uvas ao que lança a semente” (Amós 9:13; cf. a abundância de vinho nas bodas de Caná). Os vv. 35-36 repetem em linguagem metafórica a afirmação de Jesus à mulher samaritana de que vem a hora e já chegou (v. 23). Uma colheita abundante de vida eterna (cf. v. 14) está para começar. Tanto para o semeador como para o ceifeiro, é um momento de regozijo (v. 36). (2) Um é o semeador, e outro o ceifeiro. Jesus transforma um ditado tradicional sobre a desigualdade e futilidade da vida humana (cf. Eclesiastes 2:18-21) numa palavra de promessa a seus discípulos: Eles irão beneficiar-se do trabalho de outros porque são enviados para colher frutos que não plantaram (v. 38). Mas, na aplicação que Jesus faz destes provérbios, quem é o semeador e quem é o ceifeiro? E quem são os outros mencionados no v. 38? O v. 34 sugere que Deus é o semeador, porque a tarefa de Jesus é realizar sua obra. Nos vv. 39-42 é Jesus sozinho quem realmente realiza a ceifa entre o povo samaritano. Todavia, no v. 35 ele convoca seus

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discípulos para os campos maduros, e são eles que no v. 38 devem colher os frutos pelos quais outros trabalharam. Os papéis neste drama não estão determinados. Jesus não está falando por alegorias nem enigmas, mas usa uma metáfora passível de várias aplicações. Uma mudança de posições pode ser observada no v. 37. Se a idéia dominante dos vv. 34-36 era “como o Pai me enviou”, nos vv. 37-38 é “eu vos envio” (cf. 20:21; também 17:18). Mas o fato dos discípulos não participarem de nenhum modo da missão a ser encetada entre os samaritanos, sugere que o propósito dos vv. 37-38 é permitir uma visão momentânea da situação imediata à da própria época do narrador. Àqueles que proclamam a mensagem cristã, seja para os samaritanos (e.g., Atos 8:4-25), seja para o mundo todo (cf. 20:21), não devem desanimar, mas lembrar-se de que Jesus e outros (como a mulher e os convertidos de Sicar) já estiveram ali para preparar o caminho. Embora Samaria estivesse fora de “seu caminho usual” (cf. Mateus 10:5), Jesus havia passado por lá ocasional­ mente (cf. Lucas 9:51-56) e realizado uma obra de ensino em pelo menos uma cidade samaritana. A distinção entre semear e ceifar se observa talvez em dois estágios da fé dos samaritanos, nos vv. 39-42. Sua fé havia-se iniciado com o testemunho hesitante da mulher sobre o que Jesus lhe dissera (vv. 29, 39), mas quando eles se encontraram com Jesus e ouviram por si mesmos sua mensagem, muitos outros creram. Sua fé de “segunda mão” (como eles a consideravam) havia dado lugar a um conhecimento pessoal e a uma profunda convicção de que Jesus era verdadeiramente o Salvador do m undo (v. 42). Estas palavras esclarece» finalmente que, paia o autor do Evangelho, os samaritanos se colocam como representantes de todos os povos do mundo. Ao passar, por divina necessidade, por uma cidade samaritana e conversar com uma mulher pecadora, Jesus tanto colhe frutos como antecipa uma colheita maior ainda, vindoura: a missão da igreja aos gentios.

Notas Adicionais # 9 4:4 / E era-lhe necessário passar por Samaria: Se a localização tradicional de Enom estiver correta (ver nota relativa ao v. 3:23), e se a atividade de batismo de Jesus se realizou próximo dali, fica mais do que claro que a necessidade não era geográfica. Samaria, de fato, seria um desvio, se o destino do Senhor fosse a Galiléia. 4:5 / Sicar: O lugarejo aparece no mapa de Madeba, do sexto século, como “Sicar, atualmente Sícora”. Corresponde provavelmente à atual aldeia árabe de

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Askar, ao pé do monte Ebal, a uns mil e seiscentos metros a leste de Nablus. Askar tem uma fonte que pode corresponder à “fonte de Sicar” (En Soker) mencionada no Misna (Menachoth 10.2), mas um poço muito fundo, que se adapta à descrição daquelejunto ao qual Jesus parou, encontra-se um quilômetro mais ao sul, na aldeia de Balatah, onde ficava a antiga Siquém (destruída pelo rei judeu João Hircano, antes de 100 a.C.). —Alguns sugerem que Sicar, em João 4:5, é referência equivocada a Siquém (dois manuscritos siríacos realmente mencionam “Siquém”), mas não é certo que existia uma cidade no lugar de Siquém, no tempo de Jesus. No relato, os deslocamentos de ida e volta entre o poço e a cidade têm mais sentido se a distância for um quilômetro, em vez de cerca de 80 metros que hoje separam o poço de Jacó (como ainda é conhecido) de Tell Balatah (as escavações de Siquém realizadas por Emst Sellin e, mais tarde, por G. Emest Wright). A mulher deve ter percorrido a distância maior de Sicar até o poço por motivos religiosos ou porque seus vizinhos a consideravam indesejável (não era bemvinda) no poço de sua própria cidade (ver J. Finegan, Archaeology ofthe New Testament [Princeton: Princeton University Press, 1969], págs. 36-38). 4:6 / Assentou-se junto à fonte: no grego o advérbio houtos (assim) acrescenta à narrativa o toque expressivo do contista, o qual se perde na maior parte das traduções (incluindo NIV): Jesus “sentou-se deste modo” ou “sentouse bem assim” ao lado do poço. O advérbio é usado semelhantemente em 13:25. E ra quase a hora sexta: Ver nota relativa ao v. 1:39. 4:9 / Os judeus não se dão com os samaritanos: Alguns manuscritos antigos omitem esta observação entre parênteses, mas estes apartes esclarecedores são próprios do estilo do narrador. As palavras pertencem ao texto e se referem de modo específico às leis da pureza: judeus e samaritanos não bebem do mesmo copo! 4:16 / E vem cá: ou “volte aqui”.A repetiçãono grego do advérbio enthade (“aqui”) nos w. 15 (“precise viraqui tirá-la”) e 16 (“e vem cá”) de certomodo ameniza o pedido repentino de Jesus no v. 16 e ajuda a ligar as duas etapas da conversa. 4:23 / Mas vem a hora, e já chegou: A nova maneira de adorar já começara (entre os seguidores de Jesus) embora o fim da adoração no templo de Jerusalém e no monte Jerizim ainda estivesse distante (“vem a hora”, v. 21); quanto à expressão, cf. 5:25, 16:32. Os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade: o Espírito Santo é chamado de “o Espírito da verdade” em 14:17; 15:26; 16:13. “Espírito” e “verdade” são equiparados em 1 João 5:6, ao passo que “verdade” (2 João 2; 3 João 12), ou “graça e verdade” (João 1:14,17) podem ser usadas como designações do Espírito Santo. O relacionamento com Deus, como Pai é um novo relacionamento que se tomou possível pela vinda de Jesus Cristo ao mundo. 4:26 / Eu o sou: lit., “Eu sou” (gr. ego eimi). Formalmente, estas palavras correspondem à expressão pela qual Jesus mais tarde se revela como Deus (8:58). Mas, aqui elas simplesmente o identificam como o Messias (v. 25).

10. Jesus e o Filho do Oficial (João 4:43-54)

Mais uma vez o narrador apresenta uma explicação para o itinerário de Jesus. Depois de dois dias em Sicar (cf. v. 40), Jesus sai de Samaria e contiua a viagem para a Galiléia (v. 43; cf. vv. 3-4). A razão apresentada é a própria observação de Jesus (provavelmente feita em ocasião dife­ rente): Um profeta não tem honra na sua própria terra. Muito se especulou sobre se a própria te rra (gr. patris) de Jesus se refere à Galiléia ou à Judéia. Se for a Galiléia, o ditado é logo desmentido pela boa recepção que Jesus tem ali (v. 45), embora o Senhor suspeite dos motivos dos galileus (v. 48). Mas, se for a Judéia, ou Jerusalém, por que a expressão não foi citada antes, quando Jesus “não confiava” no povo de Jerusalém (2:24) ou quando decidiu deixar a Judéia (4:3)? Curiosa­ mente, a expressão é citada em conexão com sua partida de Samaria, após uma visita de dois dias. É, então, Samaria a patris de Jesus? Obviamente, não. Embora seus inimigos o denunciem mais tarde como samaritano (8:48), a presunção clara de seu encontro com a mulher é de que ela é samaritana e ele, judeu (4:9, 19, 22). O fato de nenhuma das identificações propostas para a patris ter sentido, sugere que o âmago do ditado não depende de tal identificação. O propósito da declaração é simplesmente explicar por que Jesus saiu de Sicar depois de apenas dois dias. O motivo corresponde ao da “ordenança do evangelho” estabelecido no manual da igreja, do segundo século, conhecido como Didache: “Que todo apóstolo que se aproxime de ti seja recebido como o Senhor, mas ele permanecerá apenas um dia ou, se necessário, mais um; mas, se ele ficar três dias, é um falso profeta” (11:4-5). Isto é parte do que o autor chama de “o comportamento do Senhor” (11:8) e provavelmente se baseou no próprio costume de Jesus. O ministério de Jesus era, sem dúvida, itinerante (cf. Mateus 8:20; Lucas 9:58), e o ponto fundamental do v. 44 é que ele não deve desgastar a boa recepção que teve, ficando muito tempo em Sicar. Permanecer num lugar mais do que dois dias é tomá-lo sua patris e não ter honra ali. Neste sentido, sua patris vem a ser finalmente Jerusalém, o lugar onde os profetas são tradicionalmente desonrados e mortos (cf. Lucas 13:33), mas esta aplicação está fora do objetivo da presente passagem.

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Na Galiléia, Jesus é recebido pelas pessoas que haviam visto as coisas que ele fizera em Jerusalém na festa da páscoa (v. 45; cf. 2:23; 3:2). A aparente razão para essa menção é ajudar a esclarecer a resposta brusca de Jesus ao pedido do oficial, no v. 48: Se não virdes sinais miraculosos e prodígios, de modo nenhum crereis. A resposta coloca os galileus na mesma condição dos que, em Jerusalém, haviam desafiado Jesus a provar sua autoridade fazendo um milagre (2:18), ou daqueles que “creram” por causa de seus milagres, mas cuja fé ele não aceitou como verdadeira (2:23-25). O narrador insinua de início que, tendo estes galileus realmen­ te estado presentes na ocasião anterior, as suspeitas de Jesus a respeito deles tinham fundamento. Todavia, a história que se desenrola (vv. 46-54) diz respeito a um galileu que não se assemelha àquele estereótipo, nem se enquadra nesta acusação. Não se sabe ao certo se o oficial do rei (gr.: basilikos, lit., “real”) era gentio ou judeu. A questão da cura a distância (portanto, sem contato físico) lembra duas curtas narrativas em que Jesus, na condição de judeu praticante, cura gentios sem tocá-los ou ir às suas casas (i.e., a filha da mulher siro-fenícia, Marcos 7:24-30; Mateus 15:21-28; o criado do centurião romano, Mateus 8:5-13 e Lucas 7:1-10). Mas nestes dois casos, parte do cerne da história é que o paciente é um não-judeu, enquanto no relato de João nada se esclarece a respeito. A aparente relutância de Jesus em atender ao apelo do oficial (v. 48) nada tem que ver com sua raça ou com as leis de impureza, que separavam os judeus dos gentios (cf. 4:9), mas baseia-se na suspeita genérica contra os que exigem milagres, ou neles se deleitam. A semelhança com os dois relatos dos sinóticos faz presumir a possibilidade de o oficial ser gentio, mas o autor do Evangelho já confirmou o objetivo universal do ministério de Jesus em 4:1-42 (esp. v. 42) e, agora, volta-se para outras questões (que ainda se relacionam). A história da cura é emoldurada por referências que a ligam à narrativa das bodas de Caná (2:1-12). Jesus se encontra com o oficial do rei e realiza a cura na mesma aldeia de Caná (v. 46), embora o filho do oficial esteja doente na vizinha cidade de Cafamaum. Quando termina a história e o milagre já se confirmou, o narrador o chama de o segundo sinal miraculoso de Jesus (v. 54), correspondente ao primeiro, que ocorreu em Caná (2:11). O que estes dois milagres têm em comum que leva o autor do Evangelho a omitir os outros, que se admite terem ocorrido em Jerusalém, na páscoa (cf. 2:23; 3:2)? E por que a seqüência pára em dois,

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embora mais cinco milagres (dois deles na Galiléia) são registrados durante o ministério de Jesus, e outro (também na Galiléia) depois de sua ressurreição? É evidente que há algo mais, envolvido aqui, do que apenas um piedoso interesse geográfico por Caná, como lugar de milagres. As duas histórias têm em comum uma associação direta entre um milagre e um resoluto ato de fé. Quando Jesus “revelou sua glória” transformando em vinho grande quantidade de água, “seus discípulos creram nele” (2:11). Depois da ressurreição, a fé dos discípulos se aprofundou e se aperfei­ çoou, quando “creram na Escritura e nas palavras que Jesus tinha dito” (2:22). No caso do oficial do rei, os dois estágios fundem-se num só. Tão logo Jesus lhe disse que seu filho viveria, ele creu na palavra de Jesus, e partiu (v. 50). Desde o início ele demonstrou fé nas palavras de Jesus, fé que é atribuída aos discípulos somente depois que as palavras de Jesus se comprovaram com sua ressurreição (2:2). Se os discípulos repre­ sentam os que creram por causa do que viram, o oficial do rei exemplifica “os que não viram, e creram” (20:29). Ele é, portanto, alguém com quem os leitores deste Evangelho podem identificar-se, porque também “cre­ ram na palavra” sem verem. Ele atua na narrativa como um cristão da pós-ressurreição, ou da segunda geração, retratado por antecipação, como aqueles mencionados na última oração de Jesus, que viriam a crer nele através da mensagem proclamada pelos primitivos cristãos (17:20). Assim como houve um milagre para aqueles primeiros discípulos (2:11), assim há também um para este grupo posterior (4:54). A distinção não se faz entre judeu e gentio mas, apenas, entre épocas e circunstâncias. Na maioria dos casos, a distinção não é enfatizada nas narrativas subseqüentes. Os discípulos são um grupo com quem os leitores devem identificar-se. Eles também (mesmo antes da ressurreição) vêm a crer nas palavras de Jesus (e.g., 6:68-69; 15:3,7; 17:8,14), e o que Jesus lhes diz obviamente se destina também aos leitores do Evangelho. O ponto principal não é que a fé do oficial se mostra “superior” à dos primeiros discípulos, mas apenas que sua história define de maneira mais resumida em que consiste a fé: confiança total, incondicional, em Jesus e em tudo que ele promete. Crer é aceitar sua palavra, não importando muito quanto a pessoa tenha visto de sua glória, se muito ou se pouco (2:11). A história ainda não terminou. A fé do oficial do rei ainda precisa ser comprovada. Todavia, àquele que não exigiu comprovação, esta lhe é

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oferecida (w . 51-53). Ao voltar para Cafamaum, seus servos saem ao seu encontro com as boas novas de que seu filho está bem. Ao perguntar a que horas a febre passara, fica sabendo que foi no exato momento em que Jesus lhe disse “teu filho vive”. A repetição destas mesmas palavras nos versículos 50 e 53 (cf. também v. 51), tanto comprova o milagre como ressalta que as palavras de Jesus são vivificantes. A restauração da vida e da saúde física do filho do oficial do rei ilustra e reforça as promessas de Jesus, feitas antes, em Jerusalém (3:15-16) e em Samaria (4:14, 36). Até certo ponto, esse milagre também antecipa sua auto-revelação como doador da vida nó capítulo seguinte (5:19-29). Essas implicações mais profundas ficam sem exame, por enquanto. Confirmada sua fé, o oficial do rei toma-se um convertido. A semelhança de várias conversões no livro de Atos, creu ele e toda a sua casa (cf. Atos 11:14; 16:15, 31-33; 18;8). Mais uma vez o leitor é lembrado de que Jesus encontra-se numa missão (da Judéia à Galiléia, passando por Samaria). Do mesmo modo que o povo da cidade de Sicar, o oficia] do rei e sua família (incluindo pelo menos seu filho e seus servos) são parte da “colheita” dessa missão. O primeiro ciclo do ministério de Jesus está completo, agora. Ele estabeleceu um novo “Israel” em Caná, e completou um círculo retor­ nando a Caná. Os convertidos de Sicar e Cafamaum representam tanto uma ampliação como um aprofundamento da fé dos primeiros discípulos. Suas histórias marcam um início modesto da missão universal que, para o autor do Evangelho, ainda prossegue. Eles são exemplo das pessoas a quem os discípulos serão enviados (cf. 17:18; 20:21) e para quem o próprio Evangelho foi escrito (20:30-31).

Notas Adicionais # 10 4:44 / Um profeta não tem honra na sua própria terra: encontram-se formas ligeiramente diferentes deste provérbio em Marcos 6:4; Mateus 13:57 e Lucas 4:24. Em todos os casos, a referência é mais à cidade natal de Jesus, Nazaré, do que a toda uma região como a Galiléia ou Samaria. Devido a isto e por causa da diferença de contexto, estas passagens não devem determinar o sentido aqui. 4:46 / £ havia ali um oficial do rei, cujo filho estava doente: a história desta cura não pode ser identificada (como alguns têm procurado fazer) com o relato sinótico da cura do servo de um centurião romano (Mateus 8:5-13; Lucas 7:1-10). O termo basilikos não se aplica normalmente aos soldados romanos, e em nossa passagem o doente é filho do oficial, não um servo (em Lucas é mesmo

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um servo, como também, talvez, em Mateus). A semelhança maior é que nos dois casos a cura é realizada a distância, mas esta é uma característica também encontrada na história da mulher siro-fenícia e sua filha (Marcos 7:24-30; Mateus 15:21-28). A última é realmente mais parecida com a história do Evangelho de João, em que a mulher, como o oficial do rei, supera a hesitação inicial por parte de Jesus e, graças à sua fé perseverante, alcança libertação para sua filha. —(O mesmo não acontece com o centurião a menos que Mateus 8:7 seja tomado como pergunta: “Irei eu curá-lo?”). Os paralelos entre as três histórias sugerem, não que sejam todas baseadas no mesmo incidente, mas que refletem um modo característico de descrever os encontros de Jesus com os gentios. Isto é verdade, muito embora o autor do Evangelho de João não mostre interesse especial em se o oficial real é gentio ou judeu. 4:50,53 / Seu filho vive é tradução literal. A questão fundamental, natural­ mente, não era que o filho ainda estaria agarrado à vida, como a um frágil fio, mas que ele iria restabelecer-se - e já estava mesmo restabelecendo-se - de sua doença. A morte, que parecera inevitável (v. 47), já fora afastada. O presente do indicativo transmite a idéia de que Jesus concede a vida eterna agora, e não apenas no último dia (cf. 5:24-25). 4:52 / Ontem à sétima hora: veja a nota sobre o versículo 1:39. O oficial pode ter iniciado de imediato a viagem de vinte e sete quilômetros, de Caná a Cafamaum, tendo pernoitado talvez em Magdala. Os servos provavelmente não saíram com as boas novas senão no dia seguinte, quando o menino estava fora de perigo. 4:54 / O segundo sinal miraculoso: esta referência, mais a do versículo 2:11, tem fundamentado as teorias de que o Evangelho de João utilizou uma “fonte de sinais”, uma coleção de histórias miraculosas contadas para levar as pessoas a crerem em Cristo. Argumenta-se que, em certa época, os relatos de 20:30-31 ou 12:37 (ou ambos) pertenciam a esta fonte. Mais tarde, o episódio de 20:30-31 foi utilizado como epílogo para o Evangelho concluído, enquanto o de 12:37 serviu para resumir sua primeira parte. Estas teorias não são impossíveis, mas não conseguem explicar de que modo os milagres dos capítulos 5-11 podem incluir-se com legitimidade na seqüência. Nenhum destes é mencionado indivi­ dualmente como um “milagre” ou “sinal”. Além disso, neste Evangelho as referências genéricas a sinais ou milagres (2:18,23; 3:2; 4:48; 6:2,30) apresen­ tam uma considerável variedade de significados, de modo que não há funda­ mento firme para se presumir que as referências genéricas em 12:37 e 20:30-31 dizem respeito a uma série determinada de histórias de milagres.

11. Cura à Beira do Tanque (João 5:1-18)

Neste ponto, o interesse do narrador pelo itinerário de Jesus começa a desvanecer. Os eventos dos capítulos 5,6 e 7 são introduzidos por uma frase conetiva vaga, meta tauta (Algum tempo mais tarde, 5:1; “depois destas coisas”; “depois disso”, 7:1). A transição do capítulo 4 para o capítulo 5 é natural, no sentido que Jesus de modo apropriado vai a Jerusalém, saindo da Galiléia, p ara assistir a uma festa dos judeus (v. 1); todavia, a transição do capítulo 5 para o capítulo 6 é mais estranha. Presume-se que Jesus ainda esteja em Jerusalém, no final do capítulo 5, mas o início do capítulo 6 encontra-o na Galiléia, prestes a atravessar o lago da Galiléia, indo para o outro lado (6:1). Por essa razão, alguns eruditos têm proposto que se inverta a ordem dos capítulos 5 e 6: Jesus está na Galiléia, no final do capítulo 4, continua lá no capítulo 6 e, finalmente, retoma a Jerusalém no capítulo 5! Entretanto, essa proposta deixa sem explicação o começo do capítulo 7, que não diz que Jesus voltou à Galiléia, mas dá a entender que ele já estava lá, viajando de cidade a cidade (7:1). O remanejamento dos capítulos cria alguns pro­ blemas enquanto resolve outros. A falácia desse procedimento jaz na tentativa de tomar esse Evangelho mais cronológico do que, na verdade, se desejou tomá-lo. Aquela frase no início de cada capítulo parece querer dizer apenas o seguinte: “o fato seguinte que eu gostaria de narrar é . . . ” Havendo trazido Jesus de Caná para Jerusalém e de volta a Caná, mais uma vez o autor se volta, agora, para interesses teológicos mais abertos. A vista do interesse denotado neste Evangelho pelas festas religiosas judaicas (ver, “páscoa” em 2:13; 6:4; 11:55; 12:1; 13:1; “tabernáculos”, ou “sucote”, em 7:2; “dedicação”, ou “anuca”, em 10:22), é surpreen­ dente que a festa mencionada no versículo 1 não seja especificada. Presumindo-se que tal festa seja a da páscoa, alguns têm entendido que Jesus esteve em Jerusalém durante três páscoas (capítulos 2,5 e 12-19), e que passou mais uma na Galiléia (capítulo 6). Outros têm sugerido que se trata da festa dos tabernáculos, ou festa das semanas (i.e., pentecoste). Entretanto, o autor deixou a festa anônima, talvez deliberadamente, ou talvez porque a história foi-lhe passada sem a ambientação histórica exata. Se a festa ficou não-especificada de propósito, poderia ter sido

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com o objetivo de quebrar a ordem cronológica. É possível que a história da cura à beira do tanque fora preservada originalmente como exemplo dos milagres (de resto não-especificados) operados por Jesus em sua primeira páscoa em Jerusalém (2:23; 3:2). Desde que a história da purificação do templo havia sido transferida para aquela primeira visita da páscoa (2:13-22), esse incidente tenderia a empanar os milagres relacionados a tal ocasião. O relato que encontramos em 5:1-18 é talvez um desses cujos milagres foram “retirados” de sua ambientação e época originais, revestidos de nova forma literária, mais apropriada , e transfor­ mados na base tanto da controvérsia contínua de Jesus com as autoridades judaicas, quanto de sua auto-revelação como doador da vida. Seja como for, este foi o milagre que Jesus mais tarde pinçou e separou como o foco da oposição que lhe moveram (7:21-23), conquanto se soubesse que o Senhor operara muitos outros (7:31; cf. 6:2). Este é apresentado como exemplo do tipo de ação que, desde o início, em seu ministério, haveria de produzir conflitos sobre a guarda do sábado, e sobre as vindicações pessoais do Senhor (vv. 16, 18). João descreve a cena com máximo cuidado (vv. 2-5). A cura se dá num lugar onde se esperavam curas. Betesda com certeza era um santuário de curas, consistindo de uma lagoa, em que uma agitação intermitente, como se fora uma fonte, teria propriedades terapêuticas, segundo o povo. Jesus observa o cenário, composto de grande número de doentes e de aleijados reunidos em busca da cura. A atenção do Senhor volta-se para um homem inválido havia trin ta e oito anos (v. 5). Embora se presuma com freqüência que ele era paralítico (cf. Marcos 2:1-12), o texto joanino não o afirma. À semelhança do filho do oficial do governo, em Cafamaum, deste homem se diz apenas que era inválido (cf. 4:46). O interesse do narrador não está nos pormenores médicos do caso (exceto quanto ao tempo em que o homem esteve naquelas condi­ ções) mas na cura - e, mais ainda do que na cura - nas conseqüências. A ironia dessa cura é que Jesus passa por cima do santuário milagroso tão bem descrito, e cura o doente (da mesma forma como curou o filho do oficial) com uma simples palavra: Levanta-te! Toma a tu a esteira e anda (v. 8; cf. Marcos 2:9,11). A forma dessa ordem é que determinou as conseqüências. O doente é curado de imediato e faz exatamente o que Jesus lhe ordena. A essa altura, o evangelista faz uma pausa a fim de suprir-nos uma informação preciosa: Era sábado (v. 9b; cf. 9:14). O

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homem quebra a lei do sábado, não por ter sido curado, mas por carregar sua esteira (v. 10). Em vez de aceitar a responsabilidade de suas próprias ações, lança a culpa sobre o homem que me curou, que me disse: Toma a tua esteira, e anda (v. 11). Todavia, ele ignora a identidade de Jesus, que se escapulira no meio da multidão (v. 13). Nem o homem nem as autoridades judaicas “encontram” Jesus. É Jesus quem “encontra” o homem curado perto do templo e com ele conversa (v. 14a). A iniciativa sempre está com Jesus. Sua identidade, suas idas e vindas, enfim, sua pessoa só é conhecida daqueles a quem ele se revela (cf. 9:35-37). Entretanto, ele conhece o caráter e as circunstâncias do homem a quem acabara de curar. Fazendo eco da história do paralítico, nos evangelhos sinóticos, em que a cura e o perdão dos pecados virtualmente se iguala­ ram (Marcos 9:35-37), Jesus adverte o homem: Olha, agora já estás curado. Não peques mais, p ara que não te suceda coisa pior (v. 14b; cf. advertência de Jesus à mulher adúltera em 8:11, no final de uma passagem inserida no Evangelho de João por copistas posteriores: “Vai, e não peques mais”). O Senhor não trata, aqui, da questão de esse homem ser doente como punição de seus pecados, questão que se levanta no relato subseqüente da cura do cego de nascença (cf. 9:1-3), e tampouco são iguais as situações. O homem doente de Betesda despreza a adver­ tência de Jesus, como se não a tivesse ouvido. Seu encontro com Jesus no templo significa apenas que agora ele consegue identificar Jesus, às autoridades judaicas, como o responsável pela sua violação do sábado (v. 15). A essa altura ele desaparece da narrativa, e o leitor não fica sabendo se lhe aconteceu ou não coisa pior. A principal função desse homem é precipitar os conflitos entre Jesus e as autoridades judaicas, as quais prosseguirão até o fim deste Evangelho. O conflito desenvolve-se em dois estágios. O primeiro estágio gira em tomo da questão levantada, a lei do sábado (v. 16). Jesus fala sobre essa questão de modo conciso mas dramático (v. 17), e suas palavras empurram o conflito para um segundo estágio, que gira em tomo da vindicação do Senhor de ser Filho de Deus e, assim, fazendo-se igual a Deus (v. 18). A reação de Jesus a esta acusação é dramática mas, de modo algum concisa, visto que se estende até o final do capítulo (w . 19-47). Os w . 16 e 18 têm em comum uma formulação introdutória que salienta estes dois estágios: Assim, porque Jesus fazia estas coisas no sábado, os judeus o perse­ guiam (v. 16).

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Por este motivo os judeus ainda mais procuravam matá-lo (v. 18). Os versículos alternados também começam com uma formulação correspondente: Jesus lhes disse:/ Jesus respondeu-lhes: (gr.: apekrinato, w . 17,19). Nos evangelhos, Jesus é apresentado dando respostas variadas à acusação de que ele, ou seus discípulos, são culpados de quebrar a lei do sábado. A maior parte de suas respostas baseia-se na lógica, ou em considerações práticas (e.g., João 7:22-23; Marcos 2:25-27; 3:4; Mateus 12:3-7, 11-12; Lucas 13:15-16; 14:5), porém, uma delas pelo menos centraliza-se na pessoa do próprio Jesus: “Portanto, o Filho do homem até do sábado é senhor” (Marcos 2:28 e paralelos). A resposta de Cristo em João 5:17 também pertence a esta última categoria: M eu Pai tra b a ­ lha até agora, e eu trabalho também. O contexto amplo desta declara­ ção está em certos debates entre os rabis e filósofos judeus quanto ao significado do enunciado bíblico de que Deus descansou no sétimo dia (Gênesis 2:2-3; cf. Exodo 20:11). A conclusão deles é que Deus na verdade não parou de trabalhar depois daqueles seis dias, visto que, se Deus parasse, o mundo deixaria de existir. Em vez disso, o Senhor simplesmente terminou sua obra criativa e iniciou sua obra de sustenta­ ção do mundo, e de vigilância sobre ele (veja, Filo, Allegory ofthe Laws 1,5s.). Neste sentido, o próprio Deus quebra o sábado. Alicerçado nesta conclusão, Jesus argumenta que se Deus (a quem ele chama de seu Pai) ainda trabalha, até mesmo no sábado, é apropriado e necessário que ele também trabalhe, até mesmo no sábado. O pressuposto de Jesus é que suas obras são obras de Deus (cf. 4:34). As autoridades judaicas ofendem-se não tanto diante da referência de Jesus à velha discussão de Deus e do sábado, mas por causa da frase meu Pai, que implica a declaração de que Jesus é Filho de Deus num sentido singular (v. 18). A expressão lhes ressoou como se Jesus estivera fazen­ do-se igual a Deus (em Filipenses 2:6 está escrito que Jesus deliberada­ mente decidiu não fazer isso). Tal acusação se repete em 10:33: “tu, mero homem, te fazes Deus a ti mesmo”. Para qualquer judeu conhecedor do Antigo Testamento, tal declaração seria equivalente a blasfêmia (10:33; cf. Êxodo 20:3; Deuteronômio 6:4, 13-14). Uma única vez antes disso, no Evangelho, Jesus falou tão abertamente sobre Deus ser seu Pai (2:16, “meu Pai”), e a extensão completa da hostilidade provocada por essa expressão só agora é que começa a mostrar-se.

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Notas Adicionais # 11 5:1 / uma festa dos judeus: As palavras dos judeus servem de lembrete aos leitores gentios sobre a situação histórica. Alguns manuscritos têm o artigo definido (“a festa dos judeus”), que poderia significar ou tabernáculos (sucote), ou páscoa. Embora tai redação seja incorreta, pode preservar a memória de que os eventos prestes a serem registrados ocorreram de fato durante uma das visitas de Jesus a Jerusalém por ocasião de uma páscoa. 5:2 / Ora, existe em Jerusalém, próximo à porta das ovelhas, um tanque. .. o qual tem cinco pavilhões. É provável que a descrição objetive informar os leitores que não conhecem a cidade. O texto em português contém a palavra porta, porque a palavra grega probatike é apenas um adjetivo com o significado das ovelhas. Quando o autor do Evangelho deseja designar um local como sendo chamado de certo modo, ele normalmente emprega a palavra “lugar” (como em 19:13, 17) ou outra mais específica, como por exemplo, “cidade” (4:5, 11:54). Neste caso ele está descrevendo uma lagoa, na qual deseja que focalizemos a atenção (cf. v. 7). Se a porta das ovelhas fosse um lugar bem conhecido em Jerusalém (cf. Neemias 3:1; 12:39), seria natural que a lagoa em questão fosse localizada em relação a tal porta. Betesda (“casa de misericórdia”): alguns manuscritos antigos trazem “Betezata”. O rolo de cobre encontrado em Qumran (3Q15 11.12) faz alusão a dois tanques (“Betesdatain”: um tipo de plural hebraico indicativo de dualidade). “Betezata” pode representar um esforço (quer da parte do autor do Evangelho, quer da parte de copistas posteriores) para transcrever em grego o plural correspondente ao aramaico, “Betesdata”. A arqueologia, bem como testemu­ nhos posteriores de geógrafos e de peregrinos, confirmam a noção de que o tanque era duplo. Veja J. FLnegan, /trcheology ofthe New Testament (Princeton: Princeton University Press, 1969), págs. 142-47; J. Wilkinson, Jerusalem as Jesus Knew It (Londres, Thames & Hudson, 1978), págs. 95-104. 5:3 / No final deste versículo, vários manuscritos acrescentam as palavras: “esperando o movimento das águas”. Desses manuscritos, alguns continuam ainda: “um aiyo descia em certo tempo, e agitava a água. O primeiro que entrasse no tanque, depois do movimento da água, sarava de qualquer doença que tivesse”. (Veja NIV, margem). Estas adições foram feitas por escribas, numa tentativa de explicar a declaração do enfermo no v. 7. É provável que primeiro se tenha acrescentado a primeira linha, mais curta, como ponto de referência para o período “quando a água é agitada”, no v. 7. A adição mais longa teria sido incluída, a seguir, como explicação (baseada em lenda popular) da razão por que as águas se agitavam de tempos em tempos. A verdade contida nessa lenda é que talvez o lago possuísse uma fonte intermitente que se julgava ter propriedades curativas. Há evidências arqueológicas de que depois de 135 d.C., o tanque estaria sendo usado em cultos oficiais romanos, como santuário pagão milagroso, consagrado ao deus Asclépio. É provável que já nos dias de

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Jesus o lugar e suas tradições sofressem restrições da parte dos judeus ortodoxos, conquanto ainda fosse freqüentado por judeus e por pagãos também. Veja R. M. Mackowski, Jerusalem, City of Jesus (Grand Rapids: Eerdmans, 1980), págs. 79-83. 5:6 / sabendo: não há razão para pensarmos (com GNB, “e eie sabia”) que o conhecimento de Jesus, nesse caso, era sobrenatural (como, em 2:24-25). O tempo aoristo implica que Jesus descobriu que o homem estava doente havia tanto tempo, talvez por que lho contaram. 5:16 / a lei não permite que carregues a tua esteira. É irônico constatar que carregar o homem enfermo em sua esteira ou cama (cf. Marcos 2:3) não constituía quebra do sábado. Veja Misna, Shabbath 10:5. Carregar a esteira ou cama de propósito, como um fim em si mesmo, é que era proibido. 5:16 / porque Jesus fazia estas coisas. O tempo imperfeito, usado coeren­ temente neste versículo e no 18, sugere que a cura (e a reação das autoridades diante da cura) era algo típico em muitos incidentes que poderiam ter sido mencionados, ocorridos nos primórdios do ministério de Jesus. A idéia é que as autoridades começaram a persegui-lo porque tais curas ele as executava até mesmo no sábado. De modo semelhante, entende-se que a vindicação do Senhor de que Deus era “seu Pai” (v. 18), teria sido proclamada reiteradamente. 5:17 / Jesus lhes disse. O aoristo mediano do verbo (apekrinato), em vez do passivo usado como mediano (apekrithe), ocorre apenas aqui e no v. 19, em meio a mais de setenta ocorrências desse verbo, no Evangelho de João. Embora seja a forma usual empregada por Josefo, historiador judeu, só se encontra sete vezes no Novo Testamento, dando a impressão de ser reservada para “declara­ ções. . . solen es.. . ou legais”. (W. Bauer, A Greek-English Lexicon ofthe New Testament 2a. ed., rev. W. F. Amdt, F. W. Gingrich, e F. W. Danker [Chicago: IJniversity o f Chicago Press, 1979], pág. 93). Uma boa analogia de João 5:17 é I.ucas 3:16, onde João Batista faz uma solene declaração, não em resposta a uma pergunta em particular, que alguém lhe tenha dirigido, mas simplesmente As esperanças e aos pensamentos das pessoas. Também aqui Jesus não está “respondendo” a uma pergunta específica, feita numa ocasião específica. O Senhor apenas defende de modo formal (e típico) seu procedimento. Portanto, as palavras do Senhor no v. 17 e nos w . 19-47 só devem ser consideradas como ligeiramente ligadas ao contexto da narrativa.

12. Pai c Filho (João 5:19-29)

Jesus responde à segunda acusação que lhe lançam as autoridades judaicas com um longo sermão (w . 19-47), que começa com a fórmula solene, em verdade, em verdade vos digo (v. 19; cf. também os vv. 24, 25). Ele inicia parecendo que põe limites à sua autoridade como Filho unigénito de Deus: o Filho por si mesmo não pode fazer coisa alguma; ele só pode fazer o que vê o Pai fazendo, porque tudo o que o Pai faz, o Filho o faz igualmente (v. 19). Jesus não está desdizendo o que havia dito antes, porque suas palavras reiteram a vindicação do v. 17, de que as obras que pratica são as mesmas obras de Deus (v. 19). A linguagem do Senhor parece~se à de uma parábola; ele se assemelha a um filho aprendiz de seu próprio pai humano, que aprende pelo exemplo e imitação (v. 20). Sua autoridade é absoluta, não a despeito do fato de que por si mesmo não pode fazer coisa alguma, mas por causa disso. Sua autoridade é autoridade delegada. Em tudo quanto faz, está sujeito a seu Pai, e totalmente na dependência do amor e do poder de seu Pai. Em sua elocução, Jesus começa a falar misteriosamente de si mesmo na terceira pessoa como o Filho, da mesma maneira como fala de si mesmo em todos os evangelhos como o Filho do homem. Filho e Filho do homem são termos empregados quase de forma intercambiável nos vv. 26-27. Alguns eruditos têm argumentado que tais termos, Filho e Pai, representam a linguagem confessional do autor do Evangelho (coixio talvez seja o caso em 3:16-18, 35-36). Entretanto, o íntimo relaciona­ mento entre Filho e Filho do homem, e o firme testemunho do Evan­ gelho de João segundo o qual Jesus foi na verdade acusado de vindicar filiação divina (5:18; 10:33-36), indicam que o emprego de linguagem desse tipo teve origem no próprio Jesus (cf. Mateus ll:27/Lucas 10:22; também, a voz ouvida durante o batismo de Jesus, nos sinóticos, e o modo de Jesus dirigir-se a Deus, em oração, chamando-o “Abba”, ou “Pai”). A autoridade de Jesus como Filho expressa-se em suas “obras” (v. 20). As obras do Pai executadas pelo Filho são duas: dar vida e executar julgamento. Jesus se refere a esta obra dupla nos w . 21-23 e também nos w . 26-27, e sempre antecede seus pronunciamentos com as mesmas palavras:

(João 5:19-29)

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Assim como o P a i . . . assim também o Filho (v. 21). Assim como o P a i . . . assim também . . . o Filho (v. 26). Se quiséssemos traçar uma distinção entre esses dois ciclos, diríamos que a ênfase do primeiro está na execução das obras, pelo Filho (como, a cura do enfermo à beira do tanque), e a do segundo está mais na autoridade subjacente, mediante a qual o Filho atribui vida e executa o 1u1 r r o t Y

i A c* T ^ a i i e

Três pronunciamentos esclarecedores da estrutura temporal das obras do Filho interligam os dois ciclos (vv. 24, 25, 28-29).rf^.v. 20 já há indícios de uma distinção entre obras presentes e obràs futuras: “porque o Pai ama o Filho, e lhe mostra tudo o que faz. E lhe mostrará maiores obras do que estas, para que vos maravilheis”. Os tempos dosjVerbos sugerem que as “maiores obras” são as do futuro. Estas estão demarcadas com clareza nos vv. 28-29: No final do tempo haverá a ressurreição de todos quantos morreram, para gozar a vida com óu para sofrer o julgamento (i.e., a condenação). Ainda que essa ressurreição com dois objetivos fosse uma esperança judaica comum (pelo menos entre os fariseus, Atos 23:6; 24:15), Jesus afirma que causará espanto (vv. 20, 28), porque Deus executará estas "maiores obras” mediante seu Fjlho, qúe também é o Filho do homem (v. 27). Contijdo; se o Deus da criação ainda opera em Jesus (v. 17), seu poder para fefetivar a consumaçao já está operando em Jesus (w . 24, 25). Em milagres tais como a cura de Betesda, a ressurreição, ou nova vida, há tanto tempo aguardada, se realiza por antecipação. As “maiores obras” ainda são futuras; entretanto, a ênfase de Jesus (indicada pela repetição insistente: em verdade, em verdade vos digo nos w . 24-25) repousa sobre o que ele está realizando em seu ministério atual. A vida eterna está à disposição agora, Todos quantos ouvirem a mensagem de Jesus e crerem no Pai que o enviou jamais emreiiiarau o juigaiuenio, e inenos amua a cunaenaçao. v-»crenie ja passou da morte para a vida (v. 24; cf. 3:18). —O versículo seguinte bate na mesma tecla, numa linguagem mais aproximada à dos w . 28-29. Pode-se fazer uma comparação como segue: Versículo 25 vem a hora e já chegou em que os mortos ouvirão a voz

Versículos 28-29 vem a hora em que todos os que estão nos

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(João 5:19-29)

Filho de Deus, e os que a sepulcros ouvirão a ouvirem viverão sua voz e sairão As diferenças de linguagem mostram que os vv. 28-29 referem-se a uma ressurreição literal e geral, no final do tempo, enquanto o v. 25 (como o 24) refere-se a algo que Jesus considerava pertencer à experiên­ cia do presente. Em seu ministério os doentes estavam sendo curados, e os mortos espirituais estavam voltando à vida, pela mensagem que o Senhor trouxera da parte do Pai. Se os vv. 28-29 representam a escatologia convencional (i.e., o ensino teológico a respeito do futuro, e o término desta era), os vv. 24-25 representam o que C. H. Dodd, e outros, chamam de escatologia cum­ prida. O que se supõe que iria acontecer no futuro já está acontecendo, neste instante - em certo sentido. O propósito do autor do Evangelho não é negar a esperança tradicional quanto ao futuro (e tampouco é o propósito de Jesus). Os acontecimentos futuros, afinal de contas, é que são as “maiores obras” que encherão de espanto os ouvintes. O propósito é, antes, utilizar essa esperança quanto ao futuro de modo que ajude a explicar o que Jesus vem fazendo, e o que ele fará nos capítulos seguintes. O Senhor está concedendo vida, tanto no sentido físico como no espiri­ tual, agora mesmo; ele também está executando julgamento, visto que à medida que as pessoas aceitam ou rejeitam a mensagem que proclama, são imediatamente salvas, ou condenadas ( veja, 3:18-19; 5:30-47; 9:39-41). O objetivo da obra de duplo objetivo de Jesus é que todos honrem o Filho, como honram o Pai (v. 23). Visto que a obra de Jesus e a obra do Pai são uma e a mesma coisa (cf. vv. 19-20), a reação de uma pessoa perante Jesus é, por definição, sua reação perante Deus. Jesus é o agente, ou representante de Deus, tendo poderes para agir em lugar de Deus (13:20; cf. Mateus 10:40; Lucas 10:16). O objetivo de Jesus que todos honrem o Filho tem intuito universal, como tinha o objetivo de João Batista, “a fim de que todos cressem por meio dele” (1:7). Entretanto, a advertência anexada: Quem não honra o Filho não honra o Pai que o enviou (v. 23b), faz ressoar uma nota mais negativa, que antecipa tanto o resultado do ministério público de Jesus, em geral (ver, 8:42,49; 12:37, 43,48) como o da confrontação com as autoridades, em particular (5:37­ 44).

(João 5:19-29)

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Notas Adicionais # 12 5:22 / O Pai a ninguém julga. Deve-se notar que o paralelo entre a concessão da vida e o julgamento, nos vv. 21-22, não é perfeito. O Pai ressuscita os mortos e o mesmo faz o Filho, mas o Pai não julga, tendo delegado todo julgamento ao Filho. Tal distinção, todavia, é talvez mais aparente do que real. Noutras passagens Jesus nega que tenha vindo a fim de julgar o mundo (3:17), ou que julga os que rejeitam sua mensagem (12:47; cf. 8:15), mas, apresenta essas negativas apenas com o objetivo de enfatizar que seu objetivo primordial é salvar. Tais negativas não excluem o fato de que o julgamento procede de seu ministério (cf. 3:18-19; 8:16; 12:48). De modo semelhante, a negativa aqui acerca do Pai não exclui o fato de que o Pai na verdade julga (com o Filho e mediante o Filho). 5:26 / Ter a vida em si mesmo. A mesma construção gramatical grega é traduzida em 6:53 como “tereis vida em vós mesmos”. A idéia de que o Filho “tem vida em si mesmo” se entende dentro da estrutura de sua dependência do Pai, para ter vida. Aparentemente, “ter vida em si mesmo” significa ter a vida de Deus como possessão segura que não pode ser arrebatada. Em si mesma, a frase não inclui a noção de que a pessoa tem o poder de conferir a vida a outros, mas as traduções semelhantes a “fonte de vida” (tanto de GNB como da Bíblia de Jerusalém) podem ser defendidas com base no contexto, especialmente o paralelismo com o v. 21. 5:27 / o Filho do homem: Embora a expressão Filho do homem no grego não tem o artigo definido (único lugar, nos evangelhos, onde isso ocorre), ainda deve ser tomado como um título. A ausência do artigo é normal no grego, quando uin substantivo predicativo precede o verbo “ser” (como aqui), ainda que se entenda que esse substantivo é definido. Também è verdade que “Filho do homem” não tem o artigo definido na tradução grega LXX de Daniel 7:13 (cf. Apocalipse 1:13; 14:14), embora o paralelismo não seja adequado, visto que a frase ali é símile, e não um título: i.e., “um como o Filho do homem” ou “um que tinha a aparência de ser humano” (GNB). 5:28/ Não vos maravilheis disto, i.e., não se surpreendam diante da presente autoridade do Filho para conceder vida e para julgar, visto que ele exercerá maiores poderes ainda de ressurreição e julgamento no último dia (cf. v. 20). 5:29 / Os que fizeram o bem . . . os que praticaram o mal: o julgamento final com base nas obras praticadas (com recompensas e punições adequadas) era parte integrante da expectativa judaica, quanto ao fim. Jesus é mostrado aqui como endossando tal expectativa; todavia, no contexto do Evangelho de João, o v. 28 deve ser entendido em relação a 3:20-21: os que fizeram o bem são os que “vieram para a luz” e os que praticaram o mal são os que se recusaram a vir. No contexto imediato, o v. 24 deixa isso bem claro.

13. Testemunhas de Jesus (João 5:30-47)

O sennão de Jesus dos vv. 19-47 pode ser dividido em duas partes, com base na troca da terceira pessoa para a primeira, no v. 30. Em vez de referir-se a si próprio como “o Filho”, Jesus agora passa a usar o enfático pronome Eu (w . 30,31,34,36,43). Entretanto, a segunda parte do sermão inicia-se à semelhança da primeira, com a insistência do Senhor em que sua autoridade é autoridade delegada. —Ele nada faz por si mesmo, mas age inteiramente segundo as instruções que recebe de seu Pai (v. 30; cf. v. 19). Se age segundo vê o Pai fazendo (vv. 19-20), também julga segundo ouve a vontade do Pai, que lhe fala (v. 30). É possível que a referência no fim do v. 29 à “ressurreição da condenação” serviu de transição natural para a segunda parte do sermão. A obra dupla de conceder vida e exercer julgamento ainda está à vista mas a atenção, por enquanto, centraliza-se na função de Jesus como juiz. Suas decisões são justas, jamais arbitrárias, ou baseadas em caprichos pessoais: “não busco a minha vontade, mas a vontade do Pai que me enviou” (v. 30). O ambiente é o de um tribunal. Do ponto de vista das autoridades judaicas (cf. v. 18), Jesus está sob julgamento mas, do ponto de vista do autor do Evangelho, essas autoridades é que estão sob julgamento, sendo Jesus o promotor de justiça denunciante. O processo do Senhor se alicerça no princípio escriturístico de que pelo menos duas testemunhas são necessárias para que se lance uma acusação viável, em juízo (8:17; cf. Deuteronômio 19:15). O testemunho de uma pessoa — até mesmo o testemunho de Jesus — é insuficiente por si mesmo (v. 31). —Portanto, o Senhor começa a convocar suas testemunhas: João Batista (w . 33-35); as obras de Jesus (v. 36); o próprio Pai (vv. 37-38); e as Escrituras (v. 39; cf. 45-47). Todavia, essa lista não é aleatória. Jesus começa a falar no singular de outro (v. 32), uma testemunha particular que testifica a respeito dele. Embora mencione João Batista de passa­ gem, deixa bem claro que essa testemunha não é o Batista (v. 36). O testemunho do Batista perante as autoridades judaicas (cf. 1:19-28) tinha seu próprio valor, lembrando-lhes Jesus disso, na esperança de que ainda possam crer e salvar-se. Entretanto, trata-se apenas de um testemunho humano (vv. 33-34). Jesus tem em mente alguém muito maior do que o

(João 5:30-47)

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Batista, e um testemunho muitíssimo mais decisivo. É claro que o outro que testifica a meu respeito é o Pai (v. 37). As obras de Jesus não são mencionadas por causa delas mesmas, mas pelo fato de apontarem para o Pai. Essas obras são as próprias obras que o Pai me deu para realizar, essas que eu faço, testificam de que o Pai me enviou (v. 36). São, então, essas obras o testemunho do Pai, a favor de Jesus (v. 37), ou há algo mais específico em mente? O pensamento do Pai testificando diretamente a favor do Filho nos faz lembrar do relato sinótico da voz que se ouviu durante o batismo de Jesus e, de modo especial, em sua transfiguração (“Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo. A ele ouvi” Mateus 17:5; cf. também 1 João 5:9). Entre­ tanto, o ponto primordial de referência (ao qual o relato da transfiguração poderá estar aludindo) é a promessa de Deus a Moisés de enviar “um profeta do meio de seus irmãos, semelhante a ti; porei as minhas palavras na sua boca, e ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar” (Deuteronômio 18:18; cf. João 1:21). O contexto dessa promessa é o pedido feito pelo povo: “não ouvirei mais a voz do Senhor meu Deus” como quando ele falou do monte Sinai, “nem mais verei este grande fogo, para que não morra” (Deuteronômio 18:16). VistQ que é mais fácil ouvir a voz de um homem do que a voz de Deus, anuncia-se um profeta à guisa de substituto da aterradora revelação do Sinai. Quando Jesus adverte seus ouvintes: vós nunca ouvistes a sua voz [a do Pai] nem vistes a sua form a (v. 37), a questão em pauta não é meramente que não estavam presentes no Sinai, e tampouco que a experiência deles sofria das mesmas limitações de Moisés, e do povo de Israel, a quem não foi permitido ver a face de Deus (e.g., Êxodo 33:20-22; Deuteronômio 4:12). A questão pressionada por Jesus é que eles rejeitaram o profeta prometido. Vós não credes naquele que ele [o Pai] enviou e, pelo fato de não crerem, a mensagem de Deus não tem lugar em seus corações (v. 38). Se houvessem crido, teriam ouvido a voz de Deus, e até teriam visto sua face - na pessoa de Jesus (cf. 1:18; 14:9). A referência implícita ao profeta semelhante a Moisés, mencionada em Deuteronômio 18, leva Jesus a discutir de modo mais genérico o testemunho do Pai a favor de seu Filho, nas Escrituras (vv. 39-47). Bem no âmago da questão estava uma trágica ironia. Se havia um testemunho que teria grande valor perante as autoridades judaicas, seria o das Escrituras. Aqueles homens estudavam as Escrituras com grande fervor,

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na esperança de obter a vida eterna; entretanto, quando as Escrituras lhes mostraram Jesus, como o caminho para a vida (como em Deuteronômio 18:15-18, mostraram-se indispostos a crer (vv. 39-40). Jesus retoma a este ponto nos vv. 45-47: se os homens cressem de verdade em Moisés (i.e., nas Escrituras que Moisés escreveu), teriam crido no que ali está dito a respeito de Jesus. Visto que não crêem nos escritos de Moisés, não conseguem aceitar Jesus e suas vindicações (vv. 46-47). Neste sentido, Moisés é acusador deles (v. 45); todavia, crer em Jesus é o mesmo que crer em Moisés; rejeitar o que Jesus diz é o mesmo que rejeitar Moisés e as Escrituras. Afinal, Jesus é a pedra de toque determinadora de se a pessoa vai viver ou vai morrer. Portanto, o resultado final é que as duas testemunhas necessárias para apoiar uma acusação, de modo que seja recebida no tribunal, estão ambas encarnadas no testemunho de Jesus. A outra testemunha que depõe a favor de Jesus (i.e., o Pai) fala de modo mais decisivo, não à parte de Jesus, mas em suas palavras, e mediante elas. Num sermão posterior, onde se presume esta ligação inseparável entre Jesus e o Pai, Jesus diz o seguinte: “Ainda que eu testifique de mim mesmo, o meu testemunho é válido, pois sei de onde vim e para onde vou. . . eu a ninguém julgo. Mas se na verdade julgo, as minhas decisões são certas, porque não estou sozinho. Estou com o Pai que me enviou” (8:14-16; contraste 5:31). As palavras de Jesus são auto-suficientes, têm autenticação própria, exata­ mente por que não são suas próprias palavras. São palavras que o Pai lhe ordenou que falasse (cf. Deuteronômio 18:18). Bem no meio das referências finais de Jesus ao testemunho das Escrituras (vv. 39-40, 45-47), há uma breve seção em que o Senhor faz um contraste entre sua própria atitude quanto ao louvor e à glória, e a atitude de seus ouvintes (vv. 41-44). O objetivo de Jesus não é o louvor humano mas a glória que vem do único Deus (v. 41, 44). Aquelas autoridades judaicas, entretanto, gostavam de receber glória uns dos outros (v. 44). Até aqueles que, dentre os líderes, vieram a crer em Jesus, (segundo se diria mais tarde) “não confessavam a sua fé, pois tinham medo de ser expulsos da sinagoga; pois, amavam mais a glória dos homens do que a glória de Deus” (12:42-43). Aqui, todavia, Jesus fala por si mesmo: “[Eu] vos conheço. [Eu] sei que não tendes o am or de Deus em vosso coração” (v. 42). A similaridade de pensamentos tende a confirmar a sugestão de que o capítulo 5 é, na verdade, urna coletânea

(João 5:30-47)

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de materiais preservados, relacionados àquela primeira visita pascal, nem tudo ligado de modo direto à controvérsia a respeito do sábado, e sobre a autoridade de Jesus como o Filho. É inteiramente possível que algumas pessoas se lembrassem e passas­ sem adiante certas tradições de Jesus defendendo sua autoridade contra adversários amargos, junto com outras tradições segundo as quais o Senhor desmascarou alguns elementos que aspiravam ser discípulos, cujas pretensões eram más. Os vv. 41-44 demonstram alguns traços de pertencer a esta segunda categoria; todavia, na presente forma do Evan­ gelho as duas “audiências” estão misturadas. Jesus aparece dirigindo-se às autoridades judaicas da mesma forma, quer se lhe oponham, e bus­ quem-lhe a vida, quer nele creiam em caráter privativo, mas recusam-se a romper com o sistema religioso estabelecido (cf. 8:30-59; 12:37-43). A segunda resposta de Jesus aos desafios que as autoridades judaicas lhe arremessam termina de modo apropriado, com um apelo implícito (vv. 36-36) e outio explícito (vv. 39-47) às Escritvaas judaicas. Os vv. 19-47 agora podem ser vistos como seqüência longa e bastante iluminadora da reivindicação pura do versículo 17: “Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também”. Essa passagem descortina para o leitor a natureza da obra divina de Jesus (exemplificada nas curas precedentes e nas seguintes), e estabelece a continuidade das palavras e ações de Jesus â auto-revelação do Pai no passado, a Moisés e, através dos escritos mosaicos, às autoridades judaicas. A má vontade das autoridades em reconhecer as reinvindicações de Jesus põe em jogo sua alegada fideli­ dade às Escrituras, o cerne de sua fé e a base de sua esperança de vida.

Notas Adicionais # 13 5:31 / Se eu testifico a respeito de mim mesmo: o princípio mencionado neste versículo aparece também na Misna: “não se pode crer em ninguém que testifique de si mesmo” (Ketuboth 2.9). 5:39 / Examinais as Escrituras. O grego poderia também ser traduzido no imperativo (“Examinai as Escrituras”), mas o contexto dá apoio ao presente do indicativo. As autoridades judaicas examinam agora as Escrituras porque “pensam” (pensais) ter nelas a vida eterna. O ponto enfatizado por Jesus é que ao rejeitá-lo, as autoridades contradizem suas próprias aspirações e anulam de vez seus minuciosos estudos. 5:39, 45 / A observação de que os vv. 41-44 interrompem uma seção unificada que trata do testemunho das Escrituras judaicas (vv. 39-40,45-47) tem o apoio de um fragmento do Evangelho, não-canônico, datado do segundo

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século (Papyrus Egerton 2), parte do qual pode ser reconstituído como segue: “Examinais as Escrituras, nas quais pensais que havereis de encontrar a vida; essas mesmas Escrituras falam de mim! Não julgueis que vim para acusar-vos perante meu Pai. Moisés, em quem depositais vossa esperança, é aquele que vos acusará”, (cf. w . 39,45; o fragmento prossegue com um texto paralelo de João 9:29). Veja E. Hennecke e W. Schneemelcher, New Testament Apocrypha (Philadelphia: Westminster, 1964), vol. 1, págs. 94-97. 5:43 / Se outro vier em seu próprio nome, a esse aceitareis. O outro (gr. allos: lit. “outro ”) não é definido como o “outro ” (allos do v. 32). Não há referência aqui ao anticristo (cf. 1 João 2:22; 2 João 7) nem (como alguns têm sugerido) a candidatos judeus, específicos, que se auto-entitularam de messias (ver, Simão Bar Cochba, o dirigente da última revolta judia contra Roma, cerca de 135 d.D.). Ao contrário, Jesus se refere aqui a qualquer indivíduo que possa aparecer autopromovendo-se, e almejando “a glória dos homens” (v. 41). Visto que o caráter de tal pessoa corresponderia muito bem àquelas autoridades judaicas (v. 44), estes líderes estariam dispostos a dedicar plena fidelidade ao anticristo, e não ao verdadeiro Cristo. 5:44 / a glória que vem do único Deus? lit.: “a glória que é oriunda do único Deus” (em contraste com "a glória uns dos outros”, cf. 12:43). A palavra traduzida por glória (doxa) é a mesma que aparece em 2:11. O contraste aqui se faz entre a glória humana ou aprovação humana (cf. v. 41), e a glória ou aprovação de Deus; mas, a escolha da palavra doxa sugere que a “glória” de Deus está sendo revelada tanto nas palavras de Jesus (w. 43, 47), quanto em seus milagres (2:11), e também que ao rejeitá-lo, seus ouvintes estão rejeitando a “glória” de Deus.

14. Pão para Cinco Mil (João 6:1-15)

A frase indefinida, de ligação, depois destas coisas (v. 1; cf. 5:1) introduz uma narrativa que subitamente localiza Jesus na Galiléia, com atravessando o lago da Galiléia de um lado para outro. Um começo assim dá a idéia de que o autor do Evangelho apanhou uma fonte de narrativa e nela entra bem no meio dos acontecimentos. O único elo real que liga este incidente a outros, precedentes, em João, é a menção, no v. 2, dos sinais miraculosos que ele operava na cu ra dos enfermos (cf. 4:43-54; 5:1-18). Não há meio de calcular-se quanto tempo se passou desde o milagre e a controvérsia do capítulo anterior, até agora. Se a “festa dos judeus” de 5:1 foi a páscoa, pelo menos um ano se passou, visto que agora é outra vez época de páscoa (v. 4). O objetivo do autor, nesta altura, não é a cronologia, mas prover um vislumbre e exemplo do ministério galileu de Jesus (além de 2:1-12 e 4:43-54) e, de modo particular, do ensino do Senhor na sinagoga galiléia (cf. 6:59). A história do pão para alimentar cinco mil homens encontra-se nos quatro evangelhos (cf. Marcos 6:32-44; Mateus 14:13-21; Lucas 9:10b17); já o relato de Jesus caminhando por cima das águas tem paralelismos em Marcos (6:45-52) e Mateus (14:22-33). O tema sob o qual o Evan­ gelho de João engloba este material é o tema sinótico familiar de Jesus sendo seguido por grandes multidões persistentes (vv. 2-5,14-15,22-24; e.g., Marcos 1:35-37; Mateus 4:25-5:1). Tal acompanhamento de Jesus acaba tomando-se a ocasião propícia para o Senhor ensinar às multidões o que significa “segui-lo” ou “acompanhá-lo” (vv. 2, 5) de verdade (6:26-59). Muitos se retiraram, ao descobrir qual seria o custo do discipulado, mas “os doze” (tendo Simão Pedro como seu porta-voz) reafir­ maram a fé e determinaram que seriam auxiliares e companheiros de Jesus (6:60-71). A referência à páscoa (v. 4) prende-se ao costume do autor de colocar as obras e sermões de Jesus no contexto das principais festas religiosas judaicas (cf. 2:13; 5:1; 7:2; 10:22; 11:55), mas este é o único caso em que Jesus não se encontra em Jerusalém, a fim de celebrar a festa. Por que mencionaria o autor a ocasião festiva num contexto que denota tão pouco interesse pela cronologia? Teria essa referência o objetivo de

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caracterizar a alimentação de cinco mil homens como uma espécie de páscoa cristã que estaria antecipando a ceia do Senhor? Seria esse milagre a abertura do cenário para a controvérsia subseqüente a respeito de Moisés e o maná no deserto (6:30-32; cf. Êxodo 16:4, 15)? Na verdade, a descrição do pão sendo distribuído pela multidão faz lembrar a insti­ tuição da ceia do Senhor: Então Jesus tomou os pães, deu graças, e repartiu-os com os que estavam assentados. E fez o mesmo com os peixes (v. 11; cf. e.g., 1 Coríntios 11:23-25). Além disso, o sermão na sinagoga sobre “Jesus, o Pão da Vida” (w . 26-59) termina com o que muitos consideram uma meditação explícita sobre a ceia do Senhor como sacramento (6:52-58). Entretanto, em si mesma, a menção da páscoa, no v. 4, não apresenta o menor indício de que a ênfase da narrativa deve estar na refeição pascal, ou em alguma adaptação desta cerimônia. Nas duas outras passagens em que se menciona a páscoa como estando próxima (i.e., 2:13; 11:55; cf. 12:1; 13:1), essa declaração introduz material textual que, de certa forma, aponta para a morte de Jesus na última páscoa, em Jerusalém (i.e., 2:14-22; 12:1-36). Na passagem presente, o efeito é buscar, de modo semelhante, introduzir uma reflexão sobre a morte de Jesus, desta vez, porém, pondo ênfase especial em suas implicações para o discipulado. Como um todo, este capítulo funciona de maneira semelhante à primeira predição de Jesus sobre sua paixão, segundo os sinóticos, com o acompanhante chamado ao discipulado (cf. Marcos 8:31-9:1 e textos paralelos). O relato de João da multiplicação de pães e peixes inicia-se com a aproximação de grande multidão que havia presenciado as curas de Jesus, e com a conseqüente retirada do Senhor para um monte, onde se assentou, talvez a fim de ensinar a seus discípulos (vv. 2-3; cf. Mateus 5:1-2). O relato encerra-se com a fuga de Jesus para a solidão, no mesmo monte, a fim de frustrar as tentativas da multidão de fazê-lo rei à força (vv. 14-15). Entre a primeira e a segunda retirada, Jesus vai ao encontro da multidão com o objetivo de ministrar às suas necessidades. Ao olhar para a multidão (v. 5), Jesus olha ao mesmo tempo para o futuro (cf. 4:35). Ele já traçou seus planos (v. 6), antecipando-se ao problema que, nos outros evangelhos, surge bem depois: De que maneira se há de alimentar a multidão? (cf. Marcos 6:35-36 e textos paralelos). Ele pro­ voca Filipe e André, dois de seus primeiros discípulos (cf. 1:40-44), dos quais arranca um comentário azedo: seria virtualmente impossível prover

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alimento para tantas pessoas (w . 7, 9b). Todavia, André menciona de passagem que um menino tem cinco pães de cevada e dois peixinhos (v. 9a), com os quais Jesus alimenta a multidão toda (vv. 10-13). Todos os evangelhos especificam cinco pães e dois peixes, mas apenas o de João conta a história do jovem anônimo que os trouxe. O toque de interesse humano é mais facilmente explicado como uma recordação real do acontecido. Embora certos aspectos da narrativa nos façam lembrar a história de Eliseu e seus vinte pães de cevada em 2 Reis 4:42-44 (ver, a ênfase no que sobrou), o incidente do Antigo Testamento não constitui modelo suficiente para explicar as ações de Jesus, e tampouco o relato que delas faz o autor. Reconhece-se que essa história de João é a mesma que aparece nos sinóticos. Jesus faz a multidão sentar-se na relva e distribui-lhe pão e peixe até que todos se satisfaçam. A característica distintiva do relato joanino é que o próprio Jesus distribui o alimento à multidão, diretamen­ te, e não mediante as mãos de seus discípulos (v. 11; contraste com Marcos 6:41). Entretanto, são os discípulos que recolhem as sobras do pão: doze cestos abarrotados, “para que nada se perca” (v. 12). O efeito dessa tarefa atribuída aos discípulos é que o simbolismo fica realçado, simbolismo já presente nos sinóticos, de doze cestos cheios de pão excedente (cf. Marcos 6:43). A abundância de pão representa a abundân­ cia de vida que Jesus nos concede, mas o pormenor de que nenhum pedaço de pão se perde antecipa o simbolismo da oração eucarística que se encontra no Didache, um manual de ordem eclesiástica do segundo século. Essa oração parece basear-se nesta passagem de João, ou no incidente que ela descreve: “Assim como este pão moído foi espalhado pelas montanhas, mas foi juntado, e tomou-se um só, permite que a tua igreja seja reunida desde as extremidades da terra, formando teu reino” (Didache 9.4). Os doze cestos de pão que sobrou representariam, segun­ do se entende, a igreja cristã mantida em segurança no mundo pelo poder de Deus. Da mesma forma que o pão foi recolhido em doze cestos, a igreja se personificou em doze apóstolos (cf. 6:70; 17:12; 18:9). Assim como nada daquele pão se perdeu, nenhum dos crentes em Cristo é abandonado, nenhum deles se extravia e se perde (cf. 6:39; 10:28). Entretanto, afirmar que a alimentação dos cinco mil representa a eucaristia cristã é simplificar demais o simbolismo da ceia do Senhor. Conquanto a distribuição do alimento seja descrita em termos eucarísti-

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cos (v. 11), o milagre vai além da eucaristia, atingindo o que a própria eucaristia representa: a unidade e a segurança dos seguidores de Jesus como seu corpo, neste mundo. À sua própria maneira, Paulo também vê o pão da ceia do Senhor como a própria igreja: “Porque nós, sendo muitos, somos um só pão e um só corpo, pois todos participamos do mesmo pão” (1 Coríntios 10:17). O fato de Paulo enfatizar “um só pão” enquanto João enfatiza “doze cestos d e ... pães” não deve obscurecer a similaridade dos conceitos que ambos afirmam. Entretanto, a menção dos doze cestos cheios de sobras de pães de cevada apenas fornece um indício do significado que o escritor sacro tinha em mente. A verdadeira interpretação teológica da alimentação da multidão surge no sermão perante a sinagoga, nos versículos 26-59, e no diálogo conclusivo entre Jesus e seus discípulos (bem como candidatos a discípulos), nos versí­ culos 60-71. O elo de ligação não mencionado entre os doze cestos de pão e a igreja mantida em segurança no mundo é a Pessoa do próprio Cristo (cf. 6:35, 48). Que o milagre dizia algo a respeito de Jesus, até a multidão pôde perceber (v. 14), embora em seus próprios termos. Ele deve ser o profeta esperado, semelhante a Moisés, porque, à semelhança de Moisés, ele alimentou miraculosamente os que o seguiam (cf. 6:30­ 31). O hábito dos pretendentes messiânicos, nos tempos de Jesus, era procurar credibilidade mediante a reencenação de famosos milagres do Antigo Testamento, ou a execução de outros de mesma grandeza (veja, Josefo, Antiquities 20.97, 167-70). Os homens daquela multidão viam em Jesus tão somente o messias em potencial, uma pessoa que transfor­ maria em realidade suas esperanças políticas, alguém que, segundo pensavam, podiam usar a fim de atingir seus próprios objetivos políticos. A intenção do populacho era violenta, talvez algo parecido com um seqüestro de Jesus, a fim de transformá-lo em títere, mero pretendente do trono de Davi, vago já havia muito tempo. Todavia, o Senhor lhes conhece a intenção (cf. 2:24) e, por isso, regressa a sós ao monte. Chega ao fim, por enquanto, a manifestação do Senhor às multidões da Galiléia.

Notas Adicionais # 14 6:1 / que é o de Tiberíades: o nome em duplicata desse mar é algo notável. Parece que o autor do Evangelho prefere o nome Tiberíades (cf. 21:1), mas o nome mais familiar, mar da Galiléia, é mantido também, por causa de uma fonte oral, ou escrita, semelhante aos relatos sinóticos. 6:5 / Onde compraremos: a resposta de Filipe indica que o sentido da

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pergunta de Jesus seria: “Como poderemos comprar pão suficiente? Onde arranjaríamos o dinheiro necessário?” Não parece que o problema aqui é o fato de estarem todos no deserto, sem mercados nas proximidades, e não há indícios, no texto, de que tais seriam as circunstâncias. 6:6 / para o experim entar: Experim entar não é verbo empregado aqui no sentido ético; significa apenas obter uma resposta. Jesus deseja extrair de seus discípulos uma expressão clara da impossibilidade humana de prover alimento para tantas pessoas. O propósito da observação entre parênteses é assegurar que a pergunta de Jesus a Filipe não dê a entender que houve incerteza da parte do Senhor quanto ao que aconteceria a seguir. 6:8 / O utro dos seus discípulos: Diferentemente de Filipe, André é apresentado aqui como se seu nome não fora mencionado antes (cf. entre­ tanto 1:40). Em ambas as passagens ele é identificado como irm ão de Sim ão Pedro. Ocorre o seguinte: (a) essa terminologia é a da fonte usada por João (que poderia não incluir o relato do chamado de André) ou (b) essa frase deveria ser traduzida assim: “o primeiro de seus discípulos”, havendo refe­ rência explícita ao chamado mencionado em 1:40. A palavra grega heis, traduzida por outro, de vez em quando é empregada no sentido do numeral ordinal “primeiro”, sendo talvez digno de nota que alguns manuscritos antigos se refiram a André como o “primeiro” dentre os discípulos de Jesus, em 1:41 (veja Nota Adicional sobre 1:41). Entretanto, a primeira alternativa é a mais provável. 6:9 / rapaz: a palavra grega paidarion significa criança, jovenzinho, ou escravo jovem , podendo referir-se a ambos os sexos. O pronome relativo masculino confirma o fato de que neste caso se trata de um rapazote. 6:10 / povo. . . hom ens. NIV e ECA preservam a distinção criada pelo uso de uma palavra genérica para pessoas (gr.: anthropoi), é a palavra que se usava em geral (mas não sempre) para referência a adultos do sexo masculino, em particular (andres ). Tal fato pressupõe uma situação que só é descrita de modo explícito por Mateus: “E os que comeram foram cerca de cinco mil homens, além de mulheres e crianças” (Mateus 14:21; cf. 15:38). Presume-se, portanto, que a multidão é bem maior do que cinco mil pessoas, um povaréu misto (é provável que nem mesmo o garoto que supriu o alimento tenha sido contado entre os cinco mil!). Permanece a incerteza quanto a se o autor do Evangelho estava ou não consciente dessa distinção. 6:11 / deu graças: gr.: eucharistesas (cf. 6:23). A palavra eucaristia deriva desse verbo. Os textos paralelos (Marcos 6:41; Mateus 14:19; Lucas 9:16) empregam um verbo diferente: eu logein (lit., “abençoar”). O verbo empregado por João corresponde ao verbo usado na segunda multiplicação dos pães (i.e., de quatro mil pessoas) em Marcos (8:6) e em Mateus (15:36). A ação de graças desempenha função crucial em outro milagre feito por Jesus em 11:41. Dar graças torna-se o modo de Jesus invocar o Pai para que demonstre seu poder.

15. Jesus Caminha Sobre as Águas (João 6:16-25)

A fuga de Jesus para a solidão, evitando os que desejavam fazê-lo rei, fornece mais uma razão para um pormenor dos evangelhos sinóticos que só é explicado em parte, aqui. Após a multiplicação dos pães e peixes, Jesus “imediatamente obrigou os seus discípulos a subir para o barco e passar adiante, para o outro lado, a Betsaida, enquanto ele despedia a multidão. Tendo-os despedido, subiu ao monte para orar” (Marcos 6:45-46; cf. Mateus 14:22-23). O Evangelho de João sugere mais: “sabendo que viriam arrebatá-lo para o fazerem rei, tomou a retirar-se, sozinho, para o monte”, evitando uma tentativa de seqüestro! De modo semelhante, Marcos e Mateus acrescentam uma razão para algo que João não explica. Por que os discípulos de Jesus (v. 16) repentinamente regressam a Cafamaum no bote, sem o Senhor? —A resposta dos sinóticos é que eles embarcaram porque Jesus os forçou a isso. Ambos os relatos se explicam mediante a suposição de que Jesus exercia controle total da situação, e planejava seus movimentos com máximo cuidado. A ação se divide em dois dias: a tarde do dia (indefi­ nido) em que o milagre ocorreu (v. 16) e o dia seguinte (v. 22). A referência ao dia seguinte não tem a intenção de iniciar nova seqüência como a de 1:19-2:11; só é necessária a fim de justificar a menção de tarde e que já estava escuro (v. 17). A aproximação da noite imprime um toque dramático na consciência do leitor, pois Jesus ainda não viera encontrá-los (v. 17). Tanto o narrador do Evangelho quanto seus leitores já sabiam a história de como Jesus se juntou a seus discípulos, ao caminhar por sobre as águas, mas os atores, os participantes do drama de nada sabem. Quando o Senhor lhes aparece, os discípulos ficam chocados e aterrorizados (v. 19). Fundem-se e misturam-se as perspectivas dos discípulos e as perspecti­ vas literárias do autor do Evangelho e seus leitores. Os leitores partilham o terror dos discípulos no barco, no v. 19; todavia, já no v. 17 os discípulos se tomam participantes dramáticos da antecipação dos leitores quanto ao aparecimento de Jesus no lago. Considerando-se o incidente, é duvidoso que os discípulos estivessem aguardando um encontro com Jesus, quer mediante uma caminhada miraculosa do Senhor sobre o mar, quer pelo

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desembarque deles num predeterminado ponto da praia. Longe de acalmar as ansiedades que poderiam tê-los acometido por causa da tempestade que se agravava (v. 18), a aparição infundiu nos discípulos maior pavor (v. 19). O relato dos sinóticos explica que eles julgaram estar vendo um fantasma (gr.:phantasma: Marcos 6:49; Mateus 14:26). Quando Jesus lhes assegura, Sou eu; não temais (gr.: ego eimi, v. 20; cf. Marcos 6:50; Mateus 14:27), seu objetivo é apenas identificarse. O Senhor não é um fantasma, mas Quem naquele dia mesmo havia alimentado a multidão, Quem se refugiara no monte e Quem os enviara de volta a Cafamaum, pelo lago. É aqui que discípulos e leitores sepa­ ram-se. Para os discípulos, Jesus se revela como ser humano, seu mestre e amigo. Todavia, para os leitores, o emprego da expressão ego eimi sugere algo mais. Ele é nada menos do que o próprio Deus, o Eu Sou, o Deus que se revela nas Escrituras Hebraicas (cf., Isaías 43:25; 45:18; 51:12; 52:6), que existia antes de Abraão (cf. 8:58), cujo poder se manifestou sobre as águas (ver, Salmo 77:16-20) e também sobre a terra seca. No Salmo 107, depois de refletir sobre o cuidado de Deus pelo seu povo desgarrado “pelo deserto, por caminhos solitários”, e sobre como o Senhor lhe satisfez a fome e a sede, e o libertou (107:4-22), o salmista escreve: Outros desceram ao mar em navios; comerciaram nas grandes águas. Viram as obras do Senhor, as suas maravilhas nas profundezas. Pois ele falou e se levantou um vento tempestuoso, que elevou as ondas. Subiram aos céus e desceram aos abismos; a sua alma se derreteu em angústias. Andaram e cambalearam como ébrios; esvaiu-se-lhes toda a sua sabedoria. Então clamaram ao Senhor na sua tribulação, e ele os livrou das suas angústias. Fez cessar a tormenta; acalmaram-se as ondas. Alegraram-se com a bonança, e os levou ao porto desejado (Salmo 107:23-30).

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Em particular as últimas linhas ficam dramatizadas na estranha decla­ ração do verso 21, de que quando os discípulos tentaram colocar Jesus a bordo, imediatamente o barco chegou à praia p ara onde iam. O incidente todo vem envolto no sobrenatural, à semelhança de uma aparição da ressurreição (mais ainda do que o capítulo 21). Jesus assegura a seus discípulos de que ele é de fato a Pessoa que conhecem há tanto tempo; no entanto, a presença dele — e, por um momento, a deles também — é elusiva, transcendendo tempo e espaço. Não é só o fato de o Senhor penetrar no mundo deles — o barco e a tempestade no lago — porém muito mais: ele lhes propicia um vislumbre e sabor, ainda que efêmeros — do mundo dele próprio. Não está registrada a reação dos discípulos (contraste com Marcos 6:51-52; Mateus 14:32-33). Tão logo atingem a praia, os discípulos saem da história até pelo menos o versículo 60 (possivelmente vv. 66 ou 67). Cabe ao leitor captar a sensação de mistério que envolve o acontecimento; ele que aguarde uma explicação que só as palavras de Jesus proverão mais tarde (em parte). Os eventos do dia seguinte são narrados do ponto de vista da multidão deixada para trás, no mesmo lugar da miraculosa multiplicação dos pães, multidão que ainda procura a Jesus (cf. v. 15). Não viram barcos por ali, entenderam que só havia um, o qual os discípulos de Jesus haviam tomado (vv. 22,24), e cuja partida com certeza testemunharam. Sabiam que Jesus não havia partido com seus discípulos, no barco, mas tendo-o procurado em vão pela encosta do monte, só podiam chegar à conclusão de que Jesus, de algum modo, estava a caminho do encontro com seus discípulos em Cafamaum. Não só deixaram de encontrar seu profeta-rei, como ficaram desamparados no lado oposto do lago. Outros barcos chegaram de Tiberíades, entretanto, bem a tempo de eles reiniciarem sua busca (vv. 23-25). O propósito da súbita menção desses outros barcos foi apenas explicar como a multidão (ou aquele grupo dentre a multidão que estava no encalço de Jesus) atravessou o lago e, assim, predispôs o cenário para o longo sermão de 6:26-59. O tema desta seção é: a busca de Jesus. Os que o buscavam encontraram-no do outro lado do lago, porém, a forma como o Senhor lá chegara permaneceu-lhes um mistério. Se os movimentos rápidos do Senhor estão fora do alcance da compreen­ são até de seus verdadeiros discípulos (vv. 16-21), quanto mais longe ficam, então, da compreensão daqueles que o buscam para seus propó­ sitos pessoais? Os que o procuram em incredulidade jamais o encontrarão

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(cf. 7:34; 8:21). Há um caminho certo e um caminho errado para chegarmos a Jesus, ou para seguirmos o Senhor; o propósito do sermão que está prestes a ser pregado é demarcar o caminho certo. O versículo 25 seria mais apropriadamente incluído nesta seção, em vez de no sermão que se segue, visto que dá oportunidade à multidão para levantar a pergunta implícita na seção como um todo: De que forma Jesus atravessou o lago? (i.e., De onde veio ele? E para onde vai?)

Notas Adicionais # 15 6:17 / e Jesus ainda não viera encontrá-los. Há os que pensam que Jesus e seus discípulos haviam combinado previamente o lugar de encontro, nalgum ponto da praia, e alguns eruditos afirmam, em aditamento, que o tempo em que se fez esta declaração foi antés de os discípulos entrarem no barco. Nesse caso, o propósito dessa declaração seria explicar por que os discípulos finalmente partiram sem Jesus. Todavia, tais suposições são desnecessárias se entendermos que essas palavras foram dirigidas aos leitores do Evangelho, não refletindo as impressões subjetivas dos discípulos, quer estivessem dentro, quer fora do barco. 6:19 / cerca de vinte e cinco ou trinta estádios: é tradução literal, repre­ sentando entre 5 e 6 quilômetros. Um “stadium” ou “estádio” era a extensão do estádio romano (i.e., cerca de 185 metros). 6;19 / andando por sobre o mar, ou “sobre o lago”. Alguns eruditos têm argumentado, baseados no uso do caso genitivo (em vez de acusativo), com a preposição epi, que o que se tem em mente é que Jesus esteve caminhando “ao longo” da praia do lago, e não por sobre o lago (cf. a mesma construção em 21:1). Isso despiria a história de todo o elemento sobrenatural, miraculoso, e também lhe arrebataria o objetivo. Ficariam sem explicação o pavor dos discípulos e a impressão dada pelos versículos 22-24 de que Jesus cruzou o lago por meios sobrenaturais. A referência a Jesus a aproximar-se do barco também fica difícil de reconciliação com a imagem de o Senhor meramente caminhando à beira da praia. Quanto a um bom exemplo da mesma frase, por sobre a água (ou, “sobre o mar”) utilizada com conexão com a expressão “sobre a terra” (como duas esferas claramente diferenciadas), cf. Apocalipse 10:2, 5. 6:21 / então, eles de bom grado o receberam: lit., “eles desejavam recebê-lo no barco”. Quando o verbo é empregado no tempo aoristo, em João (i.e., 1:43; 5:35), diz respeito a uma intenção que se cumpre. Quando o autor emprega (como aqui) o tempo imperfeito (cf. 7:44; 16:19), refere-se a uma intenção que não se concretizou. O sentido mais provável é que os discípulos desejaram tomar Jesus e colocá-lo dentro do barco mas, antes mesmo de esboçarem um movi­ mento, viram-se repentinamente no ponto de desembarque, no destino almejado. É digno de nota que em Marcos, nesta mesma ocasião (6:48), o mesmo verbo no mesmo tempo é usado a respeito de uma intenção não concretizada da parte

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de Jesus. É possível que os dois autores dos evangelhos estiveram retirando material de uma fonte comum, oral ou escrita, ao redigir esta história. 6:23 / de Tiberíades: O texto é ambíguo. Pode significar tanto que os barcos vieram da cidade de Tiberíades, até o lugar (indefinido) onde a multidão recebera alimento, ou que a própria Tiberíades ficava perto do lugar em que comeram o pão. Essa ambigüidade pode derivar da realidade de ambos os fatos serem verdadeiros e ambos mencionados de propósito. Que os barcos chegas­ sem de Tiberíades era natural, se Tiberíades fosse o porto importante mais próximo. Entretanto, Lucas parece localizar o milagre da multiplicação de pães em relação a Betsaida, do outro lado do lago (9:10). Os geógrafos não têm sido capazes de chegar a um acordo quanto ao lugar certo. O lugar que a tradição tem honrado (i.e., et-Tabgha, gr.: heptapegon, lugar identificado por sete fontes) na verdade fica mais próximo de Cafamaum do que de Tiberíades, ou de Betsaida, e parece que foi escolhido mais por causa da conveniência dos peregrinos que por sua autenticidade. 6:25 / quando chegaste aqui? i.e., sob quais circunstâncias? como? Não estão na verdade pedindo informações, porém, expressando espanto.

16. Jesus, o Pão da Vida (João 6:26-59)

O sermão se inicia com um diálogo entre Jesus e a multidão, e vai-se tomando cada vez mais um monólogo, ao prosseguir. A multidão havia começado a seguir a Jesus, por causa dos milagres que ele realizara (cf. 6:2). Todavia, a partir da multiplicação dos pães as pessoas passaram a persegui-lo porque poderia satisfazer-lhes a fome física e (assim todos esperam) as ambições políticas também (cf. 6:15). Pensam que o acharam mas, na verdade, estão enganados. Foram alimentados, mas ainda não começaram a receber o que Jesus tem para dar. Portanto, a busca encetada por eles deve prosseguir (cf. Lucas 11:9-10). Ainda não conseguiram entender que a comida é apenas uma metáfora. À semelhança do próprio Cristo, cuja comida era “fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra” (4:34), que todos obedeçam à admoestação: Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela comida que permanece p ara a vida eterna, a qual o Filho do homem vos d ará (v. 27; cf. a “água” que Jesus ofereceu à mulher samaritana, 4:14). A obra de Deus é esta: crede naquele que ele enviou (v. 29). A menção do verbo “crer” (em vez de meramente procurar ou perse­ guir) suscita da multidão a exigência de outro milagre, ou sinal, compa­ rável àquele do maná que Moisés deu aos israelitas, no deserto (vv. 30-31). O incidente está registrado por extenso em Êxodo 16, mas os interrogadores de Jesus citam apenas o resumo feito pelo salmista: Deu-lhes a comer pão do céu (v. 31; cf. Salmo 78:24). Estranho pedido esse, vindo tão depressa, logo após o milagre que por si só convida uma comparação com Moisés e o maná! Por que aquelas pessoas a quem Jesus alimentara miraculosamente, no dia anterior, pedem-lhe agora pão do céu? Parece que a palavra-chave, aqui, não é pão, mas a frase do céu. A cena traz à memória a discussão travada entre Jesus e os fariseus logo após a segunda multiplicação dos pães, para alimentar uma multidão, registrada em Marcos e Mateus: “Os fariseus saíram e começaram a discutir com ele, pedindo-lhe, para o tentarem, um sinal do céu. Ele suspirou profundamente em seu espírito, e disse: Por que pede esta geração um sinal? Em verdade vos digo que a esta geração não se dará sinal algum” (Marcos 8:11-12). Em Mateus (16:4) há uma exceção: “não

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se lhe dará outro sinal senão o do profeta Jonas” (i.e., a ressurreição de Jesus, cf. 12:39-41). Quer a ocasião seja a mesma de João 6, quer não, a natureza aparente do pedido é semelhante nos dois exemplos. Tampouco o incidente é singular no Evangelho de João. Jesus já havia sido desafiado dessa mesma forma ao visitar Jerusalém pela primeira vez (2:18), e havia respondido (como em Mateus) com uma referência velada à sua res­ surreição (2:19). Aqui, a resposta do Senhor é bem mais elaborada. Ele inicia acrescentando alguns comentários interpretativos ao salmo men­ cionado (v. 32): N ão ... foi Moisés quem deu pão

M a s ... Deus (o Pai de Jesus) dá o verdadeiro pão

O verdadeiro pão é imediatamente definido como aquele que desce do céu e dá vida ao mundo (v. 33). Os termos da discussão são quase totalmente trocados. Não é uma questão do que fez Moisés à época do Êxodo, mas do que está fazendo Deus agora mesmo. Não é uma questão de maná que vem do céu, mas da Pessoa de carne e sangue que está diante da multidão — Jesus, o filho de José (v. 42). Jesus não lhes dá o mero pão (um sinal miraculoso) do céu. Ele é esse pão; em tudo quanto diz ou faz, Jesus é o sinal miraculoso de Deus. O povo, ainda não pronto para entender essa distinção, pede-lhe: dá-nos sempre desse pão (v. 34). O pedido do povo faz lembrar o da mulher samaritana (4:15); entretanto, a situação agora é diferente da situação daquela mulher. Foi-lhes saciada a fome de pão material, não, todavia, a fome de milagres. Esses judeus que “pedem sinal” (1 Coríntios 1:22), ainda não entenderam o alvo para o qual os milagres de Jesus apontam. Sabem que seus milagres concedem vida (v. 33), mas não sabem que a vida significa crer nele (cf. 5:39-40). No versículo 35 o diálogo se transforma em monólogo, com interrup­ ções (i.e., vv. 41-42, 52). Essas interrupções da parte da multidão, que agora passa a denominar-se “os judeus” (vv. 41,52), podem ser utilizadas a fim de dividir o sermão em três seções: os versículos 35-40, 41-51, e 52-58. Uma estrutura alternativa é a divisão em duas seções (w . 35-47 e 48-58), cada uma delas iniciada por um pronunciamento idêntico: Eu sou o pão da vida (vv. 35,48), e cada uma subdividida por uma disputa entre “os judeus”. O sermão, como um todo, recebe a designação de sermão perante a sinagoga, tendo sido pregado (presumivelmente num

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sábado) na sinagoga de Cafamaum (v. 59). Em determinado ponto (talvez à altura do v. 35?), o cenário muda-se da praia do lago para a sinagoga, quando a conversa assume um caráter mais formal. Muitos eruditos preferem a divisão tríplice desse sermão, por causa das pausas definidas nos vv. 41 e 52, e também porque a última seção é considerada por alguns como obra de algum editor posterior; contudo, se o conteúdo for a consideração máxima, a divisão em duas partes é a mais apropriada. Os vv. 35-47 esclarecem mais o significado da frase pão do céu, da citação escriturística anterior (v. 31), enquanto os w . 48-58 explicam o sentido do verbo comer, do mesmo versículo citado. O Salmo 78:24 é o texto básico, sendo os vv. 35-47 e 48-58 o sermão em duas partes, baseado nesse texto, pregado perante a sinagoga. No meio de cada parte, os ouvintes se ofendem à face de declarações que Jesus faz: nos versículos 41-42 ele diz que veio do céu, e no versículo 52, que dará sua carne para que a comam. Primeira Parte: O Pão do Céu (w. 35-47). O tema da primeira parte está antecipada no versículo 33: O pão do céu é Jesus. No versículo 35, Jesus repete essa declaração sob forma diferente: “Eu sou”, sendo esta a primeira de uma série de sete declarações desse tipo, encontradas neste Evangelho: Eu sou o pão da vida (6:35,48; cf. 41,51). Eu sou a luz do mundo (8:12; cf. 9:5). Eu sou a porta das ovelhas (10:7; cf. v. 9). Eu sou o bom pastor (10:11,14). Eu sou a ressurreição e a vida (11:25). Eu sou o caminho, a verdade e a vida (14:6). Eu sou a videira verdadeira (15:1; cf. v. 5). Todas essas declarações, exceto a quinta e a sexta, ocorrem duas vezes. A repetição permite que Jesus use as metáforas de maneiras diferentes. Em alguns casos, o primeiro emprego da metáfora apresenta Jesus em sua singularidade, ou em contraste com outros que poderiam reivindicar designação semelhante; o segundo explora algum aspecto particular, ou alguma implicação da metáfora. Aqui, o contexto sugere que Jesus é o verdadeiro pão (v. 32), em contraste com o maná; da mesma forma, ele é a videira “verdadeira” (15:1), ou o “bom” pastor, em contraste com o mercenário (10:11-13), ou a porta das ovelhas, em contraste com o ladrão

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(10:7-8). Entretanto, o que domina a primeira parte do sermão não é a metáfora do pão, mas a personalidade de Jesus. A não ser pela referência rápida à fome, no v. 35, a metáfora permanece letárgica até a segunda parte. Nos vv. 35-37, Jesus fala mais como o Filho (v. 40) do que como o pão da vida. Se ele é pão, é pão do céu (vv. 38, 41-42; cf. v. 33), recaindo a ênfase nessa origem e missão divinas. Embora o Senhor satisfaça a fome e a sede, em sua vinda, (v. 35), ele não é “comido” como pão. Aqueles a quem ele ministra “viram-no” (vv. 36, 40), “vieram” a ele (vv. 35, 37,45) e “creram” nele como o Filho (w . 35-36,40,47; cf. v. 29). A metáfora sobre “comer” permanece no contexto (cf. v. 27), mas Jesus prefere empregar linguagem direta. É necessário esclarecer à multidão o que significa vir a ele e segui-lo (cf. vv. 2, 5, 22-25), não porque eles o farão (a multidão não virá a ele, nem o seguirá), mas por amor do auditório “oculto” - os discípulos (vv. 60-71) e, por último, os leitores do Evangelho. A conclusão da primeira parte do sermão é que, em seu sentido completo, “vir a Jesus” significa crer nele e receber vida eterna (vv. 40, 47). Esta é a comida que nunca perece (cf. vv. 27, 29) e que satisfaz a fome mais pungente. Trata-se de comida que essa multidão não provará (v. 36). Embutido na metáfora do pão do céu está um esquema de todo o plano de salvação delineado no Evangelho de João (vv. 37-40). Jesus veio do céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou (v. 38; cf. 4:34). A seguir, a vontade de Deus para Jesus é declarada duas vezes, em textos paralelos: . . . que eu não perca nenhum de todos os que ele me deu, mas o ressuscite no último dia (v. 39). . . . que todo aquele que vê o Filho e nele crê tenha a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia (v. 40). O plano do Pai, executado pelo Filho, é um plano que salva. Todos os que vêm a Jesus, todos os que o vêem e nele crêem, são os que o Pai lhe deu. O Pai cuidará de que estejam em perfeita segurança; ele lhes concederá nova vida, como possessão atual, e os ressuscitará no último dia (cf. 5:24-25, 28). São a dádiva do Pai a Jesus, o Filho de Deus. A medida que Jesus vai explicando o plano de salvação à multidão, toma claro o que o leitor do Evangelho, talvez já esteja suspeitando: a multidão não participa da salvação. Mas, como vos disse, vós me vistes e contudo não credes (v. 36). Não é de surpreender, portanto, a reação

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do povo às suas palavras (w . 41-42). O versículo 44 é complemento negativo do versículo 37. Todos que o Pai der a Jesus virão a ele, e ninguém pode vir a menos que seja “trazido” a Jesus pelo Pai. A pessoa é trazida ao ouvir a voz do Pai, e ao aprender dele. Embora esse processo “educacional” tenha raízes profundas na eleição divina e na consciência individual (cf. 3:20-21), somente o ato livre, externo, de vir alguém a Jesus pela fé é que comprova ter sido a pessoa “ensinada por Deus” (v. 45). No que concerne à experiência humana, ouvir e aprender do Pai significa ouvir e aprender a mensagem de Jesus (v. 46; cf. 5:19; 8:38), e somente Jesus pode interpretar o Pai perante o mundo (cf. 1:18). O Pai fala em Jesus, o Filho (cf. 5:37-38). O versículo 47 resume essa parte do sermão, reduzindo a mensagem divina a termos mais simples possíveis: Em verdade, em verdade vos digo: Quem crê, tem a vida eterna. Segunda Parte: Comer o Pão (w. 48-58). Surgindo a segunda ocor­ rência da declaração: Eu sou o pão da vida (v. 48), a metáfora do pão começa a ganhar subsistência própria, dando nova forma ao sermão e nova dimensão à simples necessidade de crer a fim de obter vida. A atenção se focaliza no verbo comer, do Salmo 78, que serve de texto. Jesus virtualmente repete as palavras pronunciadas antes, pelos seus interrogadores: Vossos pais com eram o m aná no deserto (v. 49; cf. v.31), e acrescenta algo importantíssimo: e m orreram . Em seguida, o maná é contrastado com o pão que desce do céu (v. 50; cf. v. 33). Quem comer desse pão nunca morrerá, mas viverá eternamente. Mais uma vez Jesus se identifica com esse pão. De modo específico, o Senhor o chama de m inha carne, que eu darei pela vida do m undo (v. 51). Aqui, pela primeira vez, Jesus liga a metáfora do pão à expectativa de sua própria morte. A linguagem de Cristo faz lembrar as palavras que lhe foram atribuídas, no primeiro relato da instituição da ceia do Senhor: “Isto é o meu corpo que é entregue por vós” (1 Coríntios 11:24; cf. Lucas 22:19). A carne de Cristo, ou seu “corpo”, significa a entrega de seu corpo à morte, assim como o sangue se refere, no Novo Testamento, ao derramamento de seu sangue na cruz. Paulo emprega “corpo” desta maneira, quando diz que os cristãos estão “mortos para a lei pelo corpo de Cristo” (Romanos 7:4), e emprega “carne”, quando declara que “na sua carne” (Efésios 2:14), Cristo destruiu a inimizade entre o judeu e o gentio.

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No início, e também no final da segunda parte do sermão, Jesus fala de comermos do pão que é sua carne (vv. 50-52, 57-58): aqui está o p ã o ... do qual se o homem comer (v. 50) se alguém com er deste pão (v. 51) este pão é a m inha carne (v. 51) como nos pode d a r este homem a sua carne a comer? (v. 52) quem de mim se alimenta (v. 57) quem comer deste pão (v. 58) Os versículos 53-56 apresentam um fenômeno diferente. Quatro vezes em rápida sucessão, Jesus fala da dupla necessidade de comer sua carne e beber seu sangue. Nada há na metáfora do pão que prepare o leitor para a menção do sangue a ser bebido, algo abominável para a mente judaica (ver, Levítico 17:10-14). Exatamente no momento em que os judeus se escandalizam à face da idéia de comer a carne do Senhor (v. 52), Jesus multiplica o escândalo inúmeras vezes. Em vez de explicar-lhes o signi­ ficado de suas palavras metafóricas, Jesus lhes diz que devem beber seu sangue também! A metáfora da carne comida e do sangue bebido era empregada no Antigo Testamento com o sentido de mortandade e total desolação (ver, Ezequiel 39:17-20). Os opressores de Israel seriam obrigados a comer sua própria carne e beber seu próprio sangue (Isaías 49:26). Visto que este último significado parece impossível, no contexto atual, muitos eruditos acham que a linguagem chocante de Jesus é alusão simbólica aos dois elementos da ceia do Senhor, o pão e o vinho do sacramento cristão. Se o sentido for esse, argumenta-se, a passagem (em geral definida como os vv. 51c-58, iniciando-se com as palavras: Este pão é a m inha carne, que eu darei pela vida do mundo) deve ter sido acrescentada ao Evangelho de João por um editor posterior. Nem Jesus nem o autor do Evangelho teriam falado de modo tão direto a respeito da ceia do Senhor, ou considerado a participação na ceia uma condição essencial à salvação (v. 53). Se se tratar de tradição primitiva, deve ter-se originado no contexto da última ceia, como variante das palavras que a instituíram (“Isto é o meu corpo... isto é o meu sangue”), não na Galiléia, no apogeu do ministério de Jesus. Todavia, todas estas conclusões se baseiam na pressuposição de que os versículos 51c-58 apresentam um ensino diferente do resto do sermão. Seria verdade isso? O único fator novo introduzido no versículo 51 é a alusão à morte de Jesus (minha

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carne, que eu darei pela vida do mundo). Até os sinóticos apresentam Jesus a predizer a própria morte, embora ainda esteja na Galiléia (ver, Marcos 8:31; 9:31), não havendo razão por que o Evangelho de João não possa fazê-lo, também. A declaração no versículo 33 de que Jesus dá vida ao mundo com toda certeza alude à noção de que ele dá sua carne pela vida do mundo. Disse o Senhor: eu desci do céu não p ara fazer a m inha vontade, mas a vontade daquele que me enviou (v. 38). —Entre o falar da missão de Jesus, ou de sua obediência ao Pai, e o falar de sua morte na cruz há uma distância mínima. No Getsêmani o Senhor orará assim: “Não seja, porém, o que eu quero, e, sim, o que tu queres” (Marcos 14:36). Antes de discutirmos se as referências ao comer a carne e beber o sangue de Cristo são sacramentais, ou não, é conveniente que observe­ mos algo com muita atenção: o fato desta linguagem pressupor a morte violenta do Senhor. Seu efeito é intensificar o que já ficou implícito pela palavra carne, no versículo 51. A menção de sangue não chega a acrescentar nova dimensão teológica, distinta, mas apenas toma mais vívida e chocante a doutrina de que Cristo dará sua vida, sua carne mesmo, por amor ao mundo. As referências à carne e ao sangue, juntas, erigem-se na estrutura referencial com o sentido de comer o pão que é Jesus (i.e., vv. 50-52,57-58), devendo ser interpretadas sob esta luz. Por outro lado, as referências ao pão ou à carne salientam-se na estrutura da missão de Jesus. Apenas a verdade (estabelecida na primeira parte de seu sermão) de que ele é o pão vivo que desceu do céu (v. 51) nos possibilita com er sua carne. No versículo 57, Jesus baseia esse “comer” de modo mais explícito ainda em sua missão, e em seu relacionamento com o Pai: Assim como o Pai, que vive, me enviou, e eu vivo pelo Pai, assim tam bém quem de mim se alim enta, viverá por mim. Que é esse “comer”? Seja o que for que a metáfora signifique de modo concreto, ela expressa um rela­ cionamento nosso com Jesus que corresponde ao próprio relacionamento de Jesus com Deus, seu Pai. Assim como Cristo depende do Pai, a fim de ter vida, o crente que “come” Cristo dele depende a fim de ter vida. Conquanto a dependência de Cristo ao Pai não esteja descrita de modo explícito, aqui, em termos de “comer”, ele havia dito antes: “A minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou, e realizar a sua obra” (4:34). Assim como o Pai enviou a Jesus, Jesus enviará seus discípulos

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(4:38; 17:18; 20:21). Assim como sua comida é obedecer ao Pai e completar sua obra, a comida dos discípulos de Jesus é obedecer-lhe e completar sua obra. Esta obra divina fora definida anteriormente como crer em Jesus (vv. 28-29), com a promessa de que quem crê, tem a vida eterna (v. 47). Entretanto, agora fica demonstrado que a fé envolve o discipulado. Da mesma forma que Jesus obedeceu a seu Pai e completou sua obra, ao dar a própria vida (cf. 17:4; 19:30), o discípulo de Jesus deve obedecer-lhe, segui-lo até à morte. A linguagem da morte violenta - comer a carne de Jesus e beber-lhe o sangue - aponta para a necessidade não de meramente aceitar a realidade da morte de Jesus para a vida do mundo, mas de segui-lo no caminho da cruz. Nos sinóticos, quando Jesus começou a predizer sua paixão, acrescentou ele o seguinte: “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, e siga-me. Pois, quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, mas quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, esse a salvará” (Marcos 8:34-35). Mais tarde, no Evan­ gelho de João, Jesus falará de sua morte e, ao mesmo tempo, do que significa ser seu discípulo; “em verdade, em verdade vos digo que se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica só. Mas se morrer, produz muito fruto. Quem ama a sua vida, perdê-la-á, mas quem odeia a sua vida neste mundo, guardá-la-á para a vida eterna. Aquele que me serve deve seguir-me, e onde eu estiver, ali estará também o meu servo. E se alguém me servir, meu Pai o honrará” (12:24-26). Variam as metáforas; todavia, o ponto central é sempre o mesmo. Se não comerdes a carne do Filho do homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós mesmos (v. 53) não significa apenas partilhar dos benefícios da morte de Cristo, mas participar da própria morte do Senhor, tomar-se servo e discípulo dele. Significa segui-lo e (à maneira de cada um) participar de sua missão e destino. A questão não é que o martírio será realidade inevitável, mas que essa é sempre uma possibilidade, se a pessoa for fiel (e.g., 13:36; 15:18-16:4; 21:18-19). Inácio, bispo de Antioquia, no início do segundo século, parece ter entendido essa metáfora em termos semelhantes. Ao partir para Roma, para o martírio, assim escreveu ele: “Quero o pão de Deus, que é a carne de Jesus Cristo, que era da semente de Davi, e como bebida, quero seu sangue, que é o amor incorruptível” (To the Romans 7.3). A ênfase no discipulado, ou no martírio, logicamente não exclui a conexão com a ceia

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do Senhor. É bem provável que Inácio tenha visto os dois aspectos como estando interrelacionados, inseparáveis e, se Inácio de fato os viu assim, é necessário que admitamos a possibilidade de o autor do Evangelho de João considerar a ceia do Senhor como expressão-chave e exemplo-chave da comunidade cristã assumindo sua cruz a fim de seguir a Jesus. A promessa de vida neste capítulo desenvolve-se num contexto de morte, não só a morte de Jesus mas (pelo menos em potencial), a morte dos que foram chamados para segui-lo. De fato é a perspectiva da morte infalível que atribui sutileza especial ao refrão bastante repetido: eu o ressuscitarei no último dia (vv. 39, 40, 44, 54), e à certeza conclusiva de que aqueles que comerem viverão p ara sempre. A segunda parte do sermão encerra-se onde se iniciou, com os ancestrais israelitas no deserto, onde morreram e permaneceram mortos, embora houvessem comido o maná (v. 58; cf. v. 49). Jesus promete algo muito superior ao maná do deserto: Vida com ele, agora, e vitória sobre a morte, no último dia.

Notas Adicionais # 16 6:27/ Deus, o Pai, o marcou com o seu selo: À semelhança de 3:35-36, este breve período explicativo se entende melhor como uma reflexão do autor do Hvangelho sobre o batismo de Jesus. Há diversas notas possíveis, desse tipo, neste capítulo, que explicam o ponto sob discussão (vv. 33, 50, 58), ou acres­ centam um qualificativo necessário (v. 46). 6:33 / Pois o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo. O emprego repentino da terceira pessoa, de novo, sugere que se trata de um comentário entre parênteses que mistura as palavras de Jesus às do narrador da história, à semelhança de 3:13-21 ou 3:31-36. Esta identificação de Jesus como o pão do céu, neste versículo, parece prematura, na história, visto que tal identificação não se toma explícita nos lábios de Jesus senão no v. 35. Além disso, o versículo 33 parece ficar desprezado em seu contexto imediato. O [jcdido da multidão no v. 34, dá-nos sempre desse pão, entende-se mais facilmente como reação não ao versículo 33, mas à referência inicial de Jesus ao verdadeiro pão do céu, no versículo 32. Por outro lado, em havendo uma tentativa séria para atribuir-se ao versículo 33 um lugar definido num diálogo real, marcado por um “toma-lá-dá-cá”, tal versículo seria traduzido de modo diferente, em relação a NIV: “Pois o pão que Deus dá é aquele que vem do céu, e dá vida ao mundo”. Tal tradução é gramaticalmente possível porque a palavra grega para pão é masculina (como o pronome “ele”; NIV traduz assim: “pois o pão de Deus e' ele que desce do céu”). A tradução como aparece em ECA evita explicitamente que Jesus seja identificado como o pão (isto fica velado até o v. 35), ficando a declaração do Senhor enquadrada de modo mais lógico no contexto imediato. Ambas as

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traduções, todavia, são legítimas, podendo haver a possibilidade de o autor do Evangelho ter sido deliberadamente ambíguo. Do ponto de vista da multidão, pão é "aquele que" desce do céu (à semelhança do maná), entretanto, a tradução de NIV é a mais apropriada para o leitor do Evangelho que sabe, logo de início, que o Pão é uma Pessoa. 6:35 / jamais terá sede: é importante que não leiamos nesse pronunciamento de Jesus as suas referências anteriores, nos w . 35-36, sobre bebermos o seu sangue. Jesus nos é apresentado aqui apenas como o doador da água da vida, como em 4:14 e 7:37-38. Essa declaração do Senhor está ligada à metáfora do pão, e à exposição de Salmo 78:24, apenas de modo vago, visto que os verbos empregados não são “comer” e “beber” mas “vir” e “crer”. 6:36 / Mas como vos disse, vós me vistes e contudo não credes. Quando foi que Jesus disse isso à multidão? A resposta mais plausível é 5:38: “não credes naquele que ele enviou” (cf. 5:40, 43, 46-47). Quando os sermões de Jesus assumem caráter formal, há um sentido no qual seus adversários são sempre as mesmas pessoas (i.e., “os judeus” 5:18; 6:41), quer esteja ele na Galiléia, quer em Jerusalém, e a despeito da ocasião. O Senhor não disse literalmente que a multidão o havia “visto”. A associação entre ver e crer surge, em vez, a partir do atual contexto. A multidão diz que quer ver um sinal, a fim de crer (v. 30), mas Jesus lhe diz que ele é o sinal (c. 35). O versículo 36 poderia ser parafraseado assim: “mas eu vos disse que não acreditais - e de fato não me acreditais, embora me tenhais visto” (contraste v. 40: “que todo aquele que vê o Filho e nele crê tenha a vida eterna”). 6:37 / o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora. É bem diferente a vinda da multidão, em 6:5, da “vinda a Jesus” a que se referem os w . 35 e 37, onde “vir” é sinônimo de “crer”. 6:39 / que eu não perca nenhum... mas o ressuscite no último dia. Os importantes pronomes gregos deste versículo são neutros e estão no singular: lit., “que de tudo quanto ele me deu eu nada perca, mas o ressuscite no último dia”; cf. v. 37a (lit., “tudo que o Pai me dá”). Essa construção gramatical sugere que Jesus vê os redimidos de forma corporativa, como entidade una e singular. Em contraste, os pronomes do v. 40 são masculinos, e no singular, implicando que estas mesmas promessas se destinam aos crentes como indivíduos. 6:41 / os judeus. O Evangelho de João com freqüência designa os adversários de Jesus como “os judeus”, porque nos dias do autor os judeus e a sinagoga judaica representavam forte ameaça contra a comunidade cristã (cf. 16:1-2). Vez ou outra esse termo se refere de modo particular às autoridades religiosas (ver, 5:15-18), mas, aqui, toma-se designação da multidão que começa a murmurar acerca de Jesus. O verbo murmurar nos faz lembrar o comporta­ mento dos israelitas no deserto, no tempo de Moisés (cf. Êxodo 16:2, 7, 8). Ironicamente, foi em resposta à murmuração deles que Deus lhes enviou o maná. 6:46 / Desta vez o comentário do narrador acrescenta um qualificativo: “ouvir” o Pai e dele “aprender” não são a mesma coisa que vê-lo. Os que afirmam ter revelações divinas, secretas, enganam-se a si mesmos, e aos outros.

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Esta idéia é a mesma do prólogo. Deus só se revela em sua palavra (cf. 1:1,18). 6:50 / —Mas aqui está o pão que desce do céu: mais uma vez o emprego da terceira pessoa sugere que o autor do Evangelho está dando nova roupagem às declarações de Jesus, da perspectiva de um crente professo (cf. vv. 27b, 33). Criou-se, assim, uma alternação entre declarações que se iniciam com “eu”, ou “eu sou” (vv. 48-49, 51), e declarações confessionais que começam com “o”, “este”, “que”, “o qual” (v. 50, 51, “este pão”). Como noutras passagens do Evangelho de João, as palavras de Jesus e as palavras da comunidade cristã são consideradas quase intercambiáveis (cf. também v. 58). 6:54 / quem come: aqui e nos vv. 56-58, emprega-se uma palavra grega que normalmente significa “alimentar-se” de alguma coisa, à semelhança do modo de um animal alimentar-se. Afirmam alguns eruditos que João escolheu essa palavra rude, de modo deliberado, a fim de imprimir realismo à idéia de comer-se a carne de Jesus. Todavia, no tempo presente João emprega só este verbo, para “comer” (cf. 13:18), de modo que esse emprego é considerado simples característica de estilo joanino. 6:56 / permanece em mim e eu nele: essa palavra para permanece (gr.: menein), só é empregada neste versículo, neste capítulo. É usada de modo manifesto nos sermões de despedida de Jesus (ver, 15:4-10). 6:57 / eu vivo pelo P ai... viverá por mim. O sentido sugerido pelo contexto é que Jesus vive sua vida na terra, dia a dia, na dependência do Pai, e assim seus discípulos, por sua vez, vivem na dependência de Jesus. Em 14:19, entretanto, Jesus emprega um fraseado semelhante a fim de referir-se à sua ressurreição. É possível que ambos os aspectos estejam em vista, aqui. Jesus vive pelo Pai, ou em função do Pai, tanto nesta vida, na terra, quanto na ressurreição dentre os mortos, enquanto seus discípulos vivem por Jesus, também em ambos os sentidos. Não há dúvida, entretanto, de que a maior ênfase, em cada caso, é no aspecto do tempo presente, isto é, na vida dia a dia. 6:58 / Este é o pão que desceu do céu... O último dos adendos explicativos do autor do Evangelho virtualmente repete o v. 50, unindo nesse pronunciamen­ to a fraseologia dos w . 49-51, com que o sermão se iniciara. Tal resumo dá unidade e coesão aos w . 48-58, tomando difícil separar (como muitos têm tentado fazer) os vv. 51c-58 do resto do texto.

17. Palavras de Vida Eterna (João 6:60-71)

Se o verdadeiro tema do sermão de Jesus, sobre o pão da vida, é o discipulado, não é de surpreender que o auditório real (embora escondi­ do), acabe sendo os discípulos, que deixaram de ser mencionados, depois de 6:22. O que nos surpreende é que a reação dos discípulos ao sermão corresponde bem de perto à dos “judeus” que murmuraram contra Jesus (v. 41), e disputaram entre si a respeito de suas afirmações (v. 52). Não fica bem evidente que os discípulos de Jesus, nesta passagem, constituem um grupo definido, firmemente determinado a segui-lo - exceto os doze, que surgem como entidade distinta nos versículos 67-71.0 termo discí­ pulos talvez seja empregado sem muita coerência, referindo-se a todos quantos viajavam na companhia de Jesus (ainda que durante um período curto de tempo), ouvindo-lhe os ensinos. Ao ser interrogado, mais tarde, “acerca dos seus discípulos e da sua doutrina”, Jesus enfatizou que ele sempre ensinara de modo público, “nas sinagogas e no templo, onde todos os judeus se reúnem”. O ensino de Jesus não era esotérico, e tampouco seus discípulos um grupo subversivo, ou secreto (18:19-21). Aqui, em Cafamaum, no capítulo 6, o autor do Evangelho dá um exemplo substancial do ensino público de Jesus, na sinagoga (cf. v. 59), e discípulos, segundo parece, veio a tomar-se termo designativo de todos quantos lhe ouviam o ensino - tanto o grupo de seguidores fiéis que o Senhor encontrou à beira do mar (6:16-21), quanto a multidão que o seguiu no dia seguinte (6:22-25). Isto poderia ajudar a explicar como “os judeus” (que “não crêem”, 6:36) e os “discípulos” (pelo menos crentes em potencial) são vistos na narrativa operando de modos semelhantes. O cerne da queixa dos discípulos de que o ensino de Jesus é duro (v. 60), não está, talvez, na dificuldade em entendê-lo (por causa da impli­ cação de canibalismo literal) mas, no fato de ser difícil pô-lo em prática. O que Jesus diz não mais lhes é obscuro; ao contrário, é bem claro. Seguir o Filho do homem até à morte violenta era um discurso duro, na verdade! Entretanto, m urm uravam (v. 61), e sua murmuração se parecia com a dos “judeus” (v. 41); e a resposta de Jesus sugere que o que os escanda­ lizou foram as mesmas duas perguntas que anteriormente haviam causa-

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do controvérsia. Primeira pergunta: como podia Jesus, mero galileu como eles mesmos, afirmar que havia descido do céu (v. 42)? Segunda: como podia ele dar a sua “carne a comer?” (v. 52); noutras palavras, como podia Jesus exigir que eles o seguissem e se tomassem participantes de sua morte violenta? Jesus dá resposta às duas objeções juntas, nos versículos 62-63. Primeiramente, e se eles vissem o Filho do homem subir p ara onde prim eiro estava? (v. 62). Porventura isso não os convenceria de que ele viera dos céus, em primeiro lugar? Para os ouvintes, essa idéia seria pura teoria e imaginação. Entretanto, os leitores do Evangelho ficariam sa­ bendo e crendo que o Filho do homem fez isso, exatamente. “Não me detenhas”, mais tarde Jesus haveria de dizer a Maria Madalena, “pois ainda não voltei ao Pai. Mas vai ter com meus irmãos, e dize-lhes: Eu volto para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus” (20:17). Em segundo lugar, Jesus traz à lembrança de seus discípulos relutan­ tes que o Espírito é que vivifica, a carne p ara nada serve (v. 63). A ascenção e o Espírito andam juntos, quer na teologia do Evangelho de João (cf. 7:39; 20:22), quer no Novo Testamento em geral (ver, Atos 2:33). Todavia, que tipo de distinção Jesus está fazendo aqui, entre Espírito e carne? Como pode Jesus insistir, num só fôlego, na necessidade absoluta de “comer” sua carne e, logo em seguida, que a carne p ara nada serve? Alguns eruditos pensam que o sermão anterior, o da sinagoga, já não está em vista, mas que Jesus está voltando à distinção que fez a Nicodemos, entre o que vem de Deus e o que meramente vem do homem (cf. 3:6). Outros interpretam o versículo 63 como um quali­ ficativo das tendências sacramentalistas dos vv. 53-58: para a vida cristã do crente, a participação na ceia do Senhor é de importância crucial, desde que esse crente participe do Senhor “espiritualmente” (i.e., de acordo com o sentido verdadeiro do sacramento). É mais provável que carne tenha o mesmo sentido, aqui, como na primeira ocorrência, no sermão, isto é, no v. 51. “Carne” lá referia-se à morte de Jesus pelo mundo, e se a esta palavra se der um sentido semelhante, no v. 63, a afirmação é que a morte por si só nenhum valor tem. Espírito funciona aqui no sentido de espírito que dá vida, mediando a ressurreição (cf. 1 Coríntios 15:45; Romanos 8:11). Sem a esperança da ressurreição, a morte p ara nada serve, ainda que em prol de uma causa nobre, e a morte “pela vida do mundo” (v. 51) toma-se uma

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impossibilidade. O v. 63, desta maneira, acentua a promessa reiterada do sermão precedente, de que “Eu o ressuscitarei no último dia” (6:39,40, 44, 54). Para os hesitantes discípulos do v. 60, as palavras de Jesus pareceram “duras”, visto que o tema do sermão era “carne” e “morte”, mas, à vista da promessa da ressurreição, Jesus pode caracterizá-las, em vez disso, como “Espírito” e “vida” (v. 63). A despeito da explicação de Jesus, muitos dos discípulos voltaram atrás e já não andavam com ele (v. 66). Sem minimizar essa crise no ministério de Jesus, o narrador enfatiza que o Senhor não foi apanhado de surpresa. Ele já sabia do descontentamento, antes que lho contassem (v. 61) e foi rápido em concluir, ainda depois de defender a causa que advogava, que alguns de vós não crêem. O narrador utiliza essa decla­ ração (junto à referência a Judas Iscariotes no v. 17) como evidência de que Jesus sempre soube quais de seus seguidores lhe voltariam as costas, e qual deles o trairia. O próprio Jesus menciona sua advertência anterior de que ninguém pode Vir a mim, se pelo Pai não lhe for concedido (v. 65; cf. v. 44) como evidência suplementar do mesmo conhecimento sobrenatural. Contrastando com a palavra indefinida muitos dos versículos 60-66, a expressão os doze (vv. 67, 70) se presume tratar-se de um grupo vocacionado e escolhido (cf. Marcos 3:13-19, e textos paralelos). No Evangelho de João, registra-se pelo menos o chamado de quatro deles (1:35-51); contudo, a existência deles como um grupo só se toma explícita aqui (cf., entretanto, os doze cestos de sobras, enchidos pelos discípulos de Jesus no v. 13). Simão Pedro, cuja função é relativamente irrelevante na narrativa do chamado dos doze (1:42), aparece agora como o porta-voz do grupo. Ele reconhece que as palavras de Jesus são palavras da vida eterna e que Jesus é o Cristo, o Santo de Deus. A fé dos doze assim estabelecida servirá de base para as instruções que Jesus lhes dará em seus sermões de despedida. Todavia, um deles ainda se retirará. Judas, filho de Simão Iscariotes, já mencionado anonimamente como o traidor de Jesus (v. 64), tem o nome declinado aqui, pela primeira vez. É um diabo porque através dele o diabo procurará, finalmente, tirar a vida de Jesus (cf. 13:2,27). Todavia, este é um rápido vislumbre do futuro; a ameaça imediata que se ergue sobre a cabeça de Jesus vem “dos judeus” na Judéia (7:1).

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Notas Adicionais # 17 6:69 / o Santo de Deus: de acordo com 10:36, o Pai “santificou” o Filho ao enviá-lo ao mundo. Alguns mnuscritos antigos trazem “o Messias, o Filho do Deus vivo” (harmonizando o texto com Mateus 16:16), mas “o Santo de Deus” deve ser a forma preferida, sem dúvida. Em Marcos e em Lucas, ironicamente, um demônio se dirige a Jesus nessa mesma sinagoga de Cafamaum, empregando as mesmas palavras como título de Jesus (Marcos 1:24; Lucas 4:34).! 6:71 / Judas, filho de Simão Iscariotes: só o Evangelho de João menciona que o pai de Judas se chamava Simão (cf. 13:2,26). Iscariotes provavelmente significa “homem de Queriote”, algo que se infere de textos variantes em alguns manuscritos. Em cada lado do mar Morto havia uma cidade, uma em Moabe e a outra no sul da Judéia e, dessas duas, uma poderia ser Queriote.

18. Jesus e Seus Irmãos (João 7:1-13)

Pela terceira vez (cf. 5:1; 6:1) a narrativa se inicia de modo um tanto vago, com palavras indefinidas: “algum tempo mais tarde”, “depois destas coisas”, depois disso. A observação de que andava Jesus pela Galiléia (v. 1) provavelmente tinha a intenção de constituir um resumo ou caracterização genérica de seu ministério, reconhecendo a verdade do testemunho sinótico de que a Galiléia era, de fato, o local da maior parte do ensino e das atividades de cura de Jesus. É provável que o narrador presuma que Jesus morava em Cafamaum com sua mãe, seus irmãos e seus discípulos (2:12; cf. 6:59), utilizando essa cidade como base de suas viagens pela Galiléia. Entretanto, é irônico que Jesus nunca mais se encontre na Galiléia, a partir do versículo 10 deste capítulo, até sua ressurreição (capítulo 21). O Evangelho de João está mais interessado nas visitas de Jesus a Jerusalém do que nos demais lugares por onde ele viajou e morou durante a maior parte de sua vida. Tais visitas ocorriam sempre em decorrência de uma das festas judaicas (cf. 2:13; 5:1), mas agora surge a questão sobre se Jesus irá ou não, a Jerusalém. Primeiramente, levanta-se a questão na Galiléia (vv. 2-10: Irá ele à festa dos tabernáculos?) e, depois, na própria Jerusalém (vv. 11-13: virá ele para a festa?). Existe a incerteza porque Jesus está sendo procurado pelos judeus, desejosos de matá-lo (v. 1; cf. 5:18). A despeito do perigo, seus irmãos insistem em que ele vá à Judéia, p ara que os teus discípulos vejam os milagres que fazes (v. 3). Não ficou claro o que eles têm em mente. Presume a proposta dos irmãos de Jesus a existência de um grupo definido de discípulos, em Jerusalém, com quem Jesus ficou durante algum tempo sem contato? Estariam eles insistindo que ele tomasse providências no sentido de recuperar os seguidores que havia pouco se dispersaram (6:66)? Anulando ambas as possibilidades está o fato de que os irmãos de Jesus falam de teus discípulos (v. 3) e m undo (v. 4) como expressões quase intercambiáveis. O que estão pedindo a Jesus é nada menos do que a realização de um espetáculo público de milagres. É bem provável que estejam empregando o termo discípulos, referindo-se de modo genérico a qualquer pessoa em Jerusalém que viesse a contemplar

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seus milagres e chegar à fé. Na verdade, o auditório de Jesus é o mundo todo, visto que ele ensina “nas sinagogas e no templo, onde todos os judeus se reúnem” (18:20). Seus irmãos o convocam de maneira especí­ fica para um ministério no templo. O Senhor já ensinara na sinagoga, em Cafamaum (6:50), e agora chegou o tempo de revelar-se publicamente na festa dos tabernáculos, em Jerusalém. O que os irmãos de Jesus lhe rogam com insistência que faça é o que ele de fato fará nos capítulos 7 e 8. Contudo, o narrador toma o cuidado de salientar que o conselho deles parte da incredulidade. Não crêem nele, e tampouco são mencionados de novo neste Evangelho. O lugar deles é tomado pelos verdadeiros “irmãos”, os discípulos (20:17-18), um dos quais é declarado filho da mãe de Jesus (19:26-27). Os irmãos naturais de Jesus são descritos como amigos do mundo, isto é, de maneira bem oposta à dos discípulos crentes (v. 7; contraste 15:19). Visto que o tempo deles não está nas mãos de Deus, mas em suas próprias mãos, não faz a mínima diferença o fato de eles irem à festa ou permanecerem em casa (v. 6). Entretanto, para Jesus a época é exata, porque sua vida e seus planos estão sob a direção de Deus. O diálogo entre Jesus e seus irmãos nos faz lembrar sua conversa com Maria, sua mãe, no capítulo 2. Em ambos os casos, a família de Jesus lhe formula um pedido, implícito ou explícito, cuja resposta é uma recusa (2:4; 7:6-9), depois do que Jesus prossegue, dando atendimento ao pedido em seus próprios termos (2:6-10; 7:10). A razão da recusa é a mesma, em ambos os casos: A “hora” de Jesus, isto é, seu tempo, ainda não chegou (2:4; 7:6). Para o narrador, o tempo de Jesus refere-se à mani­ festação fmal de sua glória, quando o Senhor for crucificado e quando ressurgir dentre os mortos, em Jerusalém (cf. 12:23; 13:1). Só quando Jesus deixou bem claro que o que ele está prestes a realizar não é a auto-revelação final, mas apenas preliminar, sente-se ele livre para prosseguir e pôr mãos à obra. Ninguém poderá forçá-lo a fazer seja o que for, nem mesmo seus parentes mais próximos. Ninguém lhe dirigirá os movimentos, senão Deus, o Pai e, quando chegar a época exata, “nin­ guém”, afirma o Senhor, “a tira [sua vida] de mim, mas eu espontanea­ mente a dou” (10:18). Não faz a mínima diferença se o pedido se apresenta como mera menção sutil da necessidade de pessoa (aparente­ mente) muito amada (2:3), ou como desafio envolto em incredulidade para que o Senhor dê ao povo o que este deseja (7:4). Em ambos os casos

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o pedido segue um curso de ação já decidido na liberdade soberana de Deus. Jesus subirá a Jerusalém para a festa dos tabernáculos, não, porém, com seus irmãos, nem a rogo deles. Ele se fará conhecido no mundo segundo seu próprio modo, em Jerusalém; todavia, não é o mundo que lhe determinará a agenda. Estas considerações ajudam a explicar a aparente duplicidade do comportamento de Jesus, nos vv. 8-10. Ele aguarda que seus irmãos tenham partido para a festa e, a seguir, enceta sua viagem não publica­ mente, mas em oculto (v. 10). Não fica explícito, aqui, se o segredo consiste apenas em evitar as rotas normais de viagem, ou a companhia de seus irmãos na estrada — nem se outro fator mais importante está em jogo. Inegavelmente, existe um movimento nos capítulos 7-8 partindo do sigilo (7:10) para o sermão público (7:26), e de volta para o sigilo (8:59). O propósito da visita de Jesus à festa dos tabernáculos é a revelação. Ele pretende realizar exatamente o que seus irmãos lhe suge­ riram: manifesta-te ao mundo (v. 4). A auto-revelação do Senhor tem um começo, determinada duração, e um final bem definido. Ao término de seu sermão, seus ouvintes estarão divididos, à semelhança dos que o seguiam, no capítulo 6, em crentes e incrédulos. Já existe a divisão básica. Antes mesmo de Jesus chegar, alguns da cidade o defendem como um homem bom, enquanto outros o denuncia­ vam como enganador do povo (v. 12; quanto a disputas semelhantes, por causa de Jesus, cf. 7:40-43; 9:16; 10:19-21). Jesus vem não apenas para sua auto-revelação, mas a fim de tomar conhecidos “os pensamentos de muitos corações” (Lucas 2:34; cf. João 3:19-21). O resto dos capítulos 7-8 deve ser considerado uma série de sermões em que se realiza o julgamento decisivo do mundo — representado por Jerusalém e seu templo.

Notas Adicionais # 18 7:2 / festa dos tabernáculos / (ou “tendas”, hebraico: sukkoth): a origem dessa festa está delineada em Levítico 23:33-43 (cf. Deuteronômio 16:13-17). A observância da festa nos tempos de Jesus, e depois, bem como das várias tradições a ela ligadas, está descrita em minúcias no tratado sukkah, na Misna e no Talmude. Ela é significativa neste ponto da narrativa por ser uma das únicas três ocasiões (ao lado da páscoa e da festa das primícias, ou pentecoste) em que se convocava todo o povo de Israel para comparecer “perante o Senhor teu Deus, no lugar que escolher” (Deuteronômio 16:16).

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7:8 / por enquanto não subo a esta festa. Alguns manuscritos antigos trazem: “eu não vou”. O texto apresentado por ECA parece levar em conside­ ração o fato de que Jesus, dois versículos depois, acaba indo à festa. Entretanto, o texto mais definido - e mais difícil - traduzido por “eu não vou”, é sem dúvida o correto. Jesus nos é mostrado recusando com clareza a proposta de seus irmãos. Ele não irá a essa festa mediante solicitação deles, pela iniciativa deles, mas segundo a direção do Pai. Subo em grego é lit.: “subindo” (anabainó). O emprego aqui é idiomático. Visto ser Jerusalém o centro de Israel - e do mundo - para o judeu praticante, a pessoa sempre “subia" a Jerusalém, não importando a direção de onde viria. Além disso, estando Jerusalém à altitude de cerca de 800 metros, ir da maioria das localidades a Jerusalém seria, literalmente, “subir”. Portanto, seria ver “demais”, no emprego deste verbo um indício de que Jesus ‘subiria’ à cruz, ou ao céu (cf. 3:13-14; 6:62; 20:17). o meu tempo ainda não chegou: lit., “o meu tempo ainda não se cumpriu”, ou (v. 6) “meu tempo ainda não está aqui”. O meu tempo (tanto aqui como no versículo 6) pode referir-se ao momento que chegou no v. 10, quando Jesus de fato foi à festa; todavia, outras passagens neste Evangelho (ver, 2:4; 12:23; 13:1; 17:1) sugerem em vez disso que o meu tempo (noutra passagem, lit., “hora”) refere-se à última visita de Jesus a Jerusalém, quando ele foi crucificado e ressurgiu dentre os mortos. Assim, ainda que Jesus vá à festa dos tabernáculos, no v. 10, seu tempo ainda não chegou (cf. 7:30,39; 8:20).

19. Jesus na Festa dos Tabernáculos (João 7:14-27)

A unidade de 7:14-8:59 toma-se aparente desde que se reconheça que 8:1-11 é o registro de um incidente separado, não parte original do Evangelho de João. Só desprezando estes versículos e saltando de 7:52 para 8:12, sem pausa, é que o leitor consegue ver como os capítulos 7 e 8 formam uma unidade. O sermão no templo, proferido por Jesus, é apresentado na forma de um longo discurso, embora se presuma, talvez, que possa ter sido pregado durante um período de vários dias, durante a festa dos tabernáculos, ainda que o material que o compõe possa ter sido colhido de coleções de ditados relacionados a várias e diferentes ocasiões. Trata-se do sermão do templo, por excelência, pregado por Jesus, que permanece como seqüência do sermão da sinagoga, do capítulo 6. Se o tema deste é redenção pela morte de Cristo, o do sermão do templo é o julgamento sobre Jerusalém e sobre o mundo. (Quanto a mais alguma discussão, veja J. R. Michaels, “The Temple Discourse in John”, New Dimensions in New Testament Study, ed. R. N. Longenecker e M. C. Tenney [Grand Rapids: Zondervan, 1974], págs. 200-213). Se o ministério público descrito no Evangelho de João for visto como antecipação da paixão de Cristo (veja Introdução), este sermão corres­ ponde ao sumário encontrado em Lucas 21:37-38: “De dia Jesus ensi­ nava no templo, e à noite ele saía e ia pousar no monte chamado das Oliveiras. E todo o povo ia de madrugada ao templo para ouvi-lo”. De qualquer modo, este foi o padrão pressuposto pela pessoa, seja quem for, responsável por usar a passagem de 7:53-8:11 a fim de dividir o sermão em duas partes: “Então cada um foi para sua casa. Mas Jesus foi para o monte das Oliveiras. De manhã cedo apareceu de novo no templo” (7:53-8:2a). Em vez de unir o tema de Jesus ensinando no templo à semana da paixão, em particular, como o fizeram os evange­ lhos sinóticos, João o usou como característica saliente do ministério de Jesus, antes da paixão. Este seria, talvez, o corolário natural do fato que, no Evangelho de João, Jesus visita Jerusalém várias vezes. Ensinar publicamente, no templo, não é atividade ocasional de Cristo, tampouco limitada a certo período de sua vida, mas prática freqüente (como também ensinar nas sinagogas, cf. 18:20). O sermão formal do templo,

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dos capítulos 7-8, à semelhança do sermão da sinagoga, do capítulo 6, é-nos apresentado como amostra. Vezes e vezes sem conta o leitor é lembrado de que o templo é o ambiente, e a festa dos tabernáculos, a ocasião, de tudo quanto Jesus diz: Estando a festa pelo meio, subiu Jesus ao templo, e começou a ensinar (v. 14). Então Jesus, ainda ensinando no templo, clamava.. . (v. 28). No último dia, o grande dia da festa, Jesus pôs-se de pé, e clam ou .. . Ele disse estas palavras ensinando na área do templo no lugar do gazofilácio (8:20). Então pegaram em pedras para atirar nele, mas Jesus se ocultou, e retirou-se do templo (8:59). As três primeiras destas referências representam as grandes divisões do sermão: 7:14-27; 7:28-36, e 7:37-8:20. A quarta referência encerra o sermão propriamente dito, bem à maneira como 6:59 encerra o sermão da sinagoga. Essa última conclui um longo pós-escrito (8:21-59) que desenvolve algumas das questões levantadas antes, avançando para as confrontações mais agudas, e encerrando a auto-revelação de Jesus. Visto que o Senhor atrasa sua viagem até que seus irmãos tenham partido, Jesus chega tarde à festa (v. 14). Começa a ensinar no templo de imediato e, logo de início, seu ensino atrai a atenção das autoridades religiosas. Como é possível, raciocinam eles, que uma pessoa desprovida de educação rabínica formal consiga falar com tanta competência e sabedoria? O conteúdo do ensino que impressionou essas autoridades não nos é dado, como parte da narrativa. É provável que o narrrador tenha em mente as exposições das Escrituras Hebraicas, mas, o centro das atenções está nas respostas que Jesus dá às perguntas formuladas por aquelas autoridades judaicas. Todavia, visto que as perguntas não haviam sido dirigidas ao Senhor, mas antes, a cada um deles mesmos, entre si, assim também a resposta de Jesus (vv. 16-18) não se dirige a eles, mas aos leitores do Evangelho. A razão por que Jesus pode ensinar tão bem sem ter tido educação formal é que o Senhor era “ensinado por Deus” (cf. 6:45). Os que decidem obedecer a Deus são os que reconhecem que Deus nos fala mediante Jesus Cristo. Sabem que Jesus é o verdadeiro mensageiro de Deus, que deseja que a glória seja dada a Deus, e não a ele próprio. O reverso é igualmente verdadeiro: os que não vêem Jesus

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desse modo demonstram, pela rejeição do Senhor, sua desobediência a Deus. Focalizando a atenção nas autoridades religiosas, Jesus os coloca nesta segunda categoria. São desobedientes a Deus e às leis de Deus, visto que procuram matar a Jesus (v. 19). Visto que para esses homens a lei de Deus significa a lei de Moisés, Jesus aproveita a oportunidade para vindicar suas próprias ações (e condenar as deles) nos termos estipulados pela lei de Moisés. Quando a lei da circuncisão (i.e., aquela segundo a qual o menino deve ser circuncidado aos oito dias de idade) entrasse em conflito com a lei do sábado, concordava-se que a lei do sábado poderia ser desrepeitada (ver, Misna 18.3-19.2); o menino poderia receber a circuncisão até mesmo num sábado. Argumentando do menor para o maior, Jesus conclui que ele também estava de acordo com a lei por te r curado o homem todo no sábado (v. 23), i.e., quando ele curou o doente no tanque de Betesda (cf. 5:1-9). Aquele foi um milagre (v. 21) que os deixara estupefatos (cf. 5:20, 28). A defesa racional que o Senhor faz aqui representa um pós-escrito atrasado à observação enigmática profe­ rida dois capítulos antes: “Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também” (5:17). A argumentação de Jesus faz sentido por causa de uma suposição dos mestres judeus segundo a qual a circuncisão concedia a perfeição ao homem (ver, Misna Nedarim 3:11; Não se disse a Abraão que ele era perfeito senão depois de circuncidar-se). Eles também argumentavam do menor para o maior que se a circuncisão “que se aplica a um só dos 248 membros do corpo humano, detém o sábado, quanto mais [a salvação do] corpo todo deterá o sábado?” (Talmude Babilónico, Yoma 85b). A diferença está em que os rabinos limitavam esse princípio a situações que expusessem a vida em perigo imediato, enquanto Jesus o aplicava em benefício de qualquer pessoa necessitada, ou doente (cf., Mateus 12:1-8, 9-14; Lucas 13:10-17; 14:1-6). É inescapável a implicação de tudo isso para os ouvintes. Se Jesus estiver certo no que tange à lei, aqueles judeus estão errados pelo fato de odiá-lo e procurar matá-lo. Na verdade, estão desobedecendo à própria lei que afirmam cumprir (v. 19). Porém, o verdadeiro choque não lhes sobreveio na lógica do argumento, mas na observação de Jesus, quase de passagem, de que eles estão procurando matá-lo (v. 19b). Indignados, negam tal intenção (v. 20). É enigmático e incongruente a aparente falta

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de percepção daqueles homens que, pelo jeito, ignoram que o narrador e seus leitores já sabem de tudo. Bem cedo, em 5:18, as autoridades religiosas de Jerusalém já haviam tomado a decisão de matar Jesus. Essa é a razão por que o Senhor permaneceu tanto tempo na Galiléia (7:1). Quando, finalmente, o Senhor decidiu ir a Jerusalém, “os judeus o procuravam na festa” (7:11) aparentemente com intenções hostis. Até as multidões sabiam que Jesus era um homem procurado pelas autoridades, pois “ninguém falava dele abertamente, por medo dos judeus” (7:13). Por que então a surpresa deles diante da franca acusação de Jesus, no versículo 19, de que seus ouvintes desejavam matá-lo? Estariam escon­ dendo suas verdadeiras intenções? Ou devemos fazer uma distinção entre os judeus dos versículos 15-19 e a multidão do versículo 20? Estaria a multidão fingindo ignorância de toda a situação por causa do medo mencionado no versículo 13? Nenhuma dessas hipóteses é particularmente convincente. Uma explica­ ção melhor é que a negativa da multidão, no versículo 20, é honesta. As pessoas não entendem, de fato, por que Jesus acha que certas pessoas não descansarão senão depois de matá-lo. Isto só seria possível se a identidade de Jesus lhes fosse desconhecida, isto é, se não percebessem que Jesus é o notório operador de milagres de Betesda, procurado pelas autoridades. Mais uns versículos adiante, alguém dentre a multidão diz, numa aparente rever­ são da situação: Não é este o que procuram m atar? (v. 25). O contraste entre esta declaração e a negativa do versículo 20 indica que a pergunta levantada não é apenas retórica. Em vez disso, o versículo 25 é um momento genuíno de reconhecimento, uma nova percepção que irrompe entre a multidão, sobre Jesus. Agora a multidão percebe que Jesus é, de fato, o homem procurado pelas autoridades, por causa da cura de Betesda. A interpretação da lei ou das Escrituras Hebraicas é o tema do ensino de Jesus - mas apenas formalmente. A verdadeira questão em jogo é a identidade de Jesus. Ele chega a revelar-se a si mesmo, e não o sentido deste ou daquele texto. Todavia, a auto-revelação ocorre num contexto de ocultação. O diálogo registrado em 14-24 explica-se melhor sob a suposição de que Jesus está incógnito, no templo. Parece que isso é o que significa a declaração de que Jesus foi à festa “não publicamente, mas em oculto” (v. 10). Quer Jesus tenha ocultado sua identidade de modo sobrenatural (cf. 20:14-15), quer mediante disfarce, não há registro. É possível que o

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“disfarce” tenha consistido apenas em evitar a roupa típica, ou a aparên­ cia costumeira de um rabi (veja, Mateus 23:5). Isto explicaria por que alguém que em outras passagens deste Evangelho é chamado de “Rabi” (ver, 1:38; 3:2; 6:25) ou “Mestre” (13:13), aqui é descrito como inculto, sem ter estudado (v. 15). Não é provável que tal conclusão se tenha baseado no conhecimento direto da história pessoal de Jesus. O julga­ mento feito pelas autoridades religiosas de que Jesus não havia estudado (v. 15) talvez se tenha formado à base de sua aparência. Tudo quanto pudessem discernir, ao olhar para ele, lhes diria tratar-se de “uma pessoa da terra” (hebraico: ’am há-aretz, inculta, que nada sabia da lei de Moisés, cf. 7:49). Todavia, as palavras de Jesus desmentiam tais conclu­ sões. Para todos quantos quisessem obedecer a Deus, aquelas palavras eram reconhecidas como provenientes do próprio Deus (vv. 16-17). Por fim, depois de lançar a idéia de que ele é um homem procurado pelas autoridades, e dar a entender, de modo mais aberto, que realizou um milagre, Jesus desafia seus ouvintes a discernir a fundo, além do disfarce, chegando à sua verdadeira identidade: “Não julgueis segundo a aparência, mas julgai segundo a reta justiça” (v. 24). É isso exatamente o que acontece nos vv. 25-27, quando a questão da identidade de Jesus movimenta-se de imediato para nova fase. A conclusão de que aquele estranho, que surgiu de repente na festa dos tabernáculos, é Jesus na verdade, o que realizou o milagre de Betesda, é conhecimento preliminar conducente à pergunta: “Quem é Jesus, então?” A primeira resposta que vem à mente é que ele é o Messias (v. 26) mas, Jesus (agora que ele foi identificado como Jesus!) é conhecido como o galileu de Nazaré (cf. 1:45; 6:42; 7:1, 40), mas acredita-se que o Messias deva ter origens misteriosas e desconhecidas. A pergunta insistente, Quem é Jesus? ainda não foi respondida mas dominará o sermão do templo até o fim, à medida que a auto-revelação de Jesus vai-se desenvolvendo sem parar.

Notas Adicionais # 19 7:15 / sabe tanto lit., é “conhece as letras”. Conquanto a frase possa referir-se à capacidade de ler e escrever, a referência aqui é ao conhecimento de Jesus, e sua compreensão interpretativa das Escrituras. Esta terminologia é empregada porque no judaísmo as crianças costumeiramente aprendiam a ler manuseando as Escrituras. A palavra “letras” ou “escritos” também era empregada com referência às Escrituras hebraicas, em 5:46. 7:16 / Respondeu Jesus: Aqui, como em 15:17, 19, Jesus não está respon­

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dendo a uma pergunta específica que lhe tenha sido dirigida mas, ele inicia um sermão. A forma mediana do verbo apekrinato, empregada na passagem ante­ rior, teria sido bem apropriada aqui também. Todavia, o narrador preferiu a voz passiva, mais costumeira, apekrithe, talvez por causa do v. 21, em que o diálogo se toma realístico, sendo apekrithe empregado em resposta direta à pergunta da multidão. 7:19 / Não vos deu Moisés a lei? É possível ler estas palavras como declaração negativa, e não como uma pergunta: “Moisés não vos deu a lei”. Essa construção corresponderia à sintaxe de 6:32 (“Não foi Moisés quem vos deu o pão do céu”) e anteciparia a qualificação feita no v. 22 de que a lei da circuncisão iniciou-se com os patriarcas, e não com Moisés. Todavia, isso poria a perder a ironia intencional do v. 19: eles reconheciam que a lei viera por meio de Moisés e, no entanto, desobedeciam a ela. Além disso, é preciso lembrar-nos de que a qualificação no v. 22 é mera reflexão posterior. Jesus inicia a sentença atribuindo a circuncisão de modo explícito a Moisés, ficando virtualmente certo que o versículo 19 tem o mesmo objetivo. 7:20 / Estás possuído por demônio: esta declaração não deve ser tomada como acusação séria de possessão demoníaca. É expressão que se aproxima bastante da nossa costumeira “você está louco”, constituindo mera introdução à pergunta incrédula: Quem procura matar-te? 7:24 / segundo a aparência... a reta justiça: não se trata primordialmente da questão dos padrões pelos quais se chega a um julgamento. A forte distinção que aqui se faz é entre a pessoa tirar suas conclusões a respeito de Jesus, baseada na “vista”, isto é, na “aparência externa”, ou baseada na obediência a Deus, ao “fazer a vontade de Deus” de modo que fique sabendo se o ensino de Jesus é de Deus ou não (v. 17). 7:27/ ninguém saberá de onde ele é. No contexto do capítulo, esta crença acerca do Messias parece contradizer a crença a que o v. 40 se refere (i.e., que ele virá de Belém). O narrador deseja salientar a confusa diversidade das expectativas messiânicas e, ao mesmo tempo, afirmar que Jesus (à sua própria maneira) cumprirá todas estas variadas expectativas. A expectativa judaica de um Messias oculto, ou cuja origem fosse desconhecida, é atestada na literatura apocalíptica (ver, 1 Enoque 48:6; 4 Esdras 13:51-52) e (talvez) em Justino Mártir, Dialogue with Trypho 8.4 (veja, contudo, nota sobre 1:25). É possível que as raízes dessa idéia estejam entrelaçadas às do título “Filho do homem”, e o relacionamento desse título ao Messias judaico.

20. “Dele Sou e Ele Me Enviou” (João 7:28-36)

Inicia-se de novo o sermão do templo, com a observação de que Jesus clamava. Este segundo anúncio (w . 28-29), à semelhança do primeiro (w . 16-19), dá início a um encontro com o povo; entretanto, ele surge como reação a algo que já foi expresso. Assim como os versículos 16-19 cuidaram da questão que deixava perplexas as autoridades religiosas, no v. 15, os vv. 28-29 também cuidam do debate entre o povo de Jerusalém, nos vv. 25-27. De modo específico, a passagem cuida de responder à objeção de que Jesus não pode ser o Messias, porque todos sabem de onde veio Jesus. É verdade - todos sabem de onde Jesus veio - geograficamente. No entanto, a verdadeira origem de Jesus não é um lugar, mas uma Pessoa, aquele que me enviou, uma Pessoa a quem Jesus conhece, e a quem o povo não conhece. Neste sentido, Jesus enquadra-se no perfil de um Messias de quem se diz: “ninguém saberá de onde ele é” (v. 27). —Jesus sabe de onde veio, e os leitores do Evangelho também o sabem (cf. 1:1-18); todavia, para as multidões de Jerusalém e para as autoridades religiosas sua origem permanece envolta em mistério. Até este ponto do sermão, aquele que me enviou ainda não foi identificado de modo explícito. É possível inferir do versículo 16 que o termo se refere a Deus, porque Jesus afirma com clareza que seu ensino vem de Deus. Entretanto, Jesus evita a designação Pai, que desempenhou uma função tão importante no sermão do capítulo 5 e, agindo de maneira diferente, expressa-se de modo vago e indireto. Que os ouvintes de Jesus não conhecem o Pai (i.e., de onde Jesus veio) fica dramatizado pelo fato de a palavra “Pai” nem sequer ser usada. Mais tarde, quando ele começa a falar de modo aberto a respeito de seu Pai (8:16-18), o termo provoca uma controvérsia imediata que domina o resto do sermão. No capítulo 7 já se começa a montar o palco para a controvérsia final. As palavras de Jesus dividem seus ouvintes, coerentemente, em dois grupos. Para alguns ele é um “homem bom”; para outros, é um enganador (v. 12). Alguns crêem nele como alguém que opera milagres, e um possível Messias (v. 31), mas outros estão dispostos a entregá-lo às autoridades. A declaração de que procuravam prendê-lo, mas ninguém

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pôs as mãos nele, porque a sua hora ainda não tinha chegado (v. 30) é ilustrada pela tentativa frustrada dos fariseus e principais sacerdotes, nesse sentido, nos versículos 32-36. Quando os guardas são enviados para prendê-lo, Jesus os deixa transtornados com suas palavras misterio­ sas (w . 33-34). Não só a origem de Jesus é desconhecida pelas multidões, mas seu destino também. Se ele veio de Deus, segue-se que voltará para Deus; entretanto, a menção de sua partida é tão enigmática quanto a referência à sua vinda. Conquanto ele diga vou para aquele que me enviou (v. 33), os mensageiros dos sacerdotes e dos fariseus nada percebem, nestas palavras, quanto a ele partir para estar com Deus. Tudo que ouvem é: não me achareis; e onde eu estou, vós não podeis v ir (v. 34); e no máximo conseguem chegar à conclusão hipotética de que Jesus irá para os dispersos entre os gregos, e ensinará os gregos (v. 35). A sugestão demonstra a ignorância deles. Nada entendem sobre aonde ele vai, como nunca entenderam de onde ele veio, e o fracasso deles em não conseguir prendê-lo (cf. vv. 45-46) cumpre a profecia de Jesus segundo a qual eles o procurarão e não o encontrarão. Há um toque de ironia na observação a respeito de Jesus ir ensinar aos gregos, visto que o narrador e seus leitores sabem que a partida de Jesus (i.e., sua morte e ressurreição) na verdade hão de espalhar seu ensino por todo o mundo de fala grega. Este segundo diálogo entre Jesus e as autoridades de Jerusalém se encerra, à semelhança do primeiro, com uma nota de mistério e falta de entendimento.

Notas Adicionais # 20 7:28 / clamava: o uso deste verbo sugere que virá uma declaração solene e decisiva, comparável ao testemunho de João Batista, em 1:15-16 (cf. também 7:37 e 12:44). vós me conheceis e sabeis de onde sou. Esta sentença no grego liga-se ao que se segue por um “e” ([gr.: kai não está na ECA]) que, pelo fato de introduzir um qualificativo, deveria ser entendido como “e ainda assim”. Sabem de onde ele veio geograficamente; contudo, esse conhecimento pouco significa, porque o Senhor não veio por sua própria autoridade, e eles não conhecem Aquele de quem ele veio. 7:31 / Quando o Cristo vier, fará mais sinais miraculosos do que este homem tem feito? Essa pergunta presume que o Messias haveria de realizar milagres à sua vinda (cf. 2:18; 6:30; Marcos 13:22), e que bastaria o número ou a freqüência de seus milagres para comprovar sua identidade. Tais idéias, conquanto não estivessem registradas nas fontes judaicas, presumivelmente

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faziam parte das expectativas dos judeus em 20:30,31 também: os milagres de Jesus dão testemunho de que ele é o Messias, sendo que os que foram registrados formam apenas uma amostragem, parte apenas de um número bem maior. Entretanto, no contexto imediato da festa dos tabernáculos, o próprio Jesus se referiu a apenas “um milagre” (v. 21). A reação do povo, no v. 31, aparentemente se baseia em sua reputação, agora que sabem quem ele é (cf. 3:2; 6:2). 7:35 / os judeus: é termo que, neste Evangelho, com freqüência se refere às autoridades religiosas (cf., 7:15); aqui se aplica, todavia, aos guardas enviados pelas autoridades a fim de prender Jesus. A reação deles é descrita com maior precisão no v. 46: “Jamais alguém falou como este homem”. Entretanto, visto que são mensageiros dos fariseus e principais sacerdotes, é possível que a incompreensão que lhes é atribuída no v. 35 seja considerada como caracterís­ tica das autoridades religiosas, também (cf. 8:22). os dispersos entre os gregos: lit., “para a diáspora dos gregos”. A palavra grega diaspora era empregada a fim de descrever judeus não-palestinos (e mais tarde a cristãos, 1 Pedro 1:1) como povo de Deus espalhado pelo mundo grego. “Diáspora dos gregos”, portanto, deve significar a diáspora dos judeus entre os gregos. Porém, a suposição que fazem é que Jesus ensinará não aos judeus da diáspora, mas os próprios gregos (i.e., gentios). O que aqui é apresentado como crasso erro de compreensão, toma-se uma esperança realística (cf. 10:16; 11:52; 12:20-24), nos últimos capítulos deste Evangelho, com base na morte de Jesus.

21. 0 Último Dia da Festa (João 7:37-8:20)

O terceiro pronunciamento público de Jesus na festa dos tabernáculos ocorreu no último dia, o grande dia da festa (v. 37). Talvez seja a expressão de Jesus mais lembrada e, com toda certeza, a que mais discussões suscitou, do sermão do templo, senão do Evangelho todo. Dos dezenove artigos sobre João 7, relacionados na bibliografia do extenso comentário de Raymond Brown, dezessete tratam dos versículos 37-39! (The GospelAccording to John AB 29A [Nova York: Doubleday, 1966], pág. 331). Tal fato se poderia atribuir tanto ao apelo intrínseco nas palavras de Jesus, quanto à combinação singular das dificuldades que enfrentamos ao discernir a forma como tais palavras devem ser traduzi­ das e interpretadas. Os versículos 37-39 poderiam ser entendidos - e isso seria bem plausível - de pelo menos três diferentes maneiras: 1. J e s u s... clamou: “ Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crê em mim, como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva”. Isto dizia ele do E sp írito ... (ECA). 2. Jesus... clamou: “Se alguém tem sede, venha a mim. Beba, quem crê em mim. Como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva”. Isto ele dizia do Espírito.. . (NIV - margem). 3. Jesus... clamou: “Se alguém tem sede, venha a mim. Beba, quem crê em mim”. [Foi] como disse a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva. Isto ele dizia do Espírito. .. Na interpretação deste texto, duas questões se nos apresentam: a questão da pontuação e a de quem é que está fazendo a citação escriturística, de origem incerta: é o narrador ou é Jesus? A primeira tradução liga a frase quem crê em mim à citação escriturística, de modo que o crente (qualquer crente) é a pessoa de cujo interior fluirão rios de água viva. Na segunda versão a pontuação é diferente: a frase “se alguém tem sede” é paralela a “quem crê em mim”, e a citação escriturística se segue à guisa de comentário de Jesus sobre a sentença precedente. Em ambas as versões, a citação escriturística é texto de Jesus e não do narrador. Contudo, tão logo a citação da Escritura se separa da frase quem crê em mim, deixa de ser óbvio que é citação de Jesus. A terceira versão a atribui ao narrador, em vez de a Jesus.

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O efeito de tal mudança é significativo. De acordo com a versão número três, Jesus estende o convite aos sedentos espirituais, para que venham e bebam, não havendo uma promessa explícita ligada ao convite. 0 autor do Evangelho aproveita a oportunidade para declarar que esse apelo de Jesus cumpre um texto profético especial, das Escrituras. A pessoa de cujo coração fluem rios de água viva é agora o próprio Jesus, e não o crente. Esta tradução da passagem teria certas considerações a seu favor. É mais natural que pensemos em Jesus, e não em crentes individuais, como a fonte das águas vivificantes do Espírito de Deus. O v. 39 menciona o Espírito que os crentes em Cristo mais tarde haveriam de receber, (não que forneceriam a outros). É Jesus quem nos dá o Espírito Santo, como o próprio hálito de sua boca (20:22). Na crucifica­ ção, numa cena de simbolismo riquíssimo, água e sangue fluem do peito trespassado do Senhor (19:34). A verdadeira escolha, na interpretação dos vv. 37-39, não é entre as versões 1 e 2 (i.e., entre ECA e NIV — margem), mas entre uma das duas primeiras e a terceira. A verdadeira questão é quem está mencionando as Escrituras: é Jesus, ou o autor do Evangelho? Favorecendo as versões 1 e 2, pode-se dizer que Jesus é delineado mencionando livremente as Escrituras, neste Evangelho; e há indícios, como vimos, de que a expo­ sição das Escrituras poderiam ter desempenhado um papel mais relevante no sermão do templo, do que parece (cf. vv. 15,22-23). O v. 39 é, todavia, comentário do narrador, cujas palavras dão bom sentido à suposição de que é o próprio Jesus quem fala no v. 38. Por outro lado, se o narrador é que é o responsável (como na versão número 3) pela maior parte do v. 38, então no v. 39 ele comenta suas próprias palavras, ali acrescentadas, (i.e., a citação escriturística), e não as palavras de Jesus. O sujeito do verbo, no v. 39, não é Jesus (“ele dizia”) mas, as Escrituras (“elas diziam”). O mesmo verbo grego (eipen, é traduzido “diz” (referindo-se à Escritura) no v. 38, e “dizia”, no v. 39 (referindo-se a Jesus). É difícil escolher entre as três alternativas; mas o leitor moderno fica, talvez, perguntando-se por que é necessário que se faça uma escolha. O peso da tradição favorece a versão número 1 e, num grau menor, a versão número 2; entretanto, uma apreciação da versão número 3 derrama sua própria luz no sentido do texto. Aqui, como noutras passagens (ver, 3:11-21) as palavras de Jesus fundiram-se com as do narrador de forma

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tão íntima que as três versões dessa passagem comunicam de modo amplo o mesmo sentido. Nas três Jesus convida o ouvinte sedento a “vir beber” da água que ele tem a oferecer. As três versões incluem no convite uma promessa de água viva. As três interpretam a água como sendo o Espírito, e em todas há uma qualificação no v. 39, de que essa dádiva do Espírito seria algo que os crentes haviam de receber mais tarde, que é decisivo. Ficou claro de qualquer modo que o convite e a promessa eram futuros, do ponto de vista de quem vê os eventos registrados na festa dos tabernáculos. Afinal, o Espírito Santo ainda não fora dado, porque Jesus ainda não havia sido glorificado (v. 39). Os w . 37-39 fazem parte dessas referências feitas no sermão do templo, e antes do sermão, que dão muita ênfase ao fato de o tempo da revelação final e decisiva de Jesus ainda não ter chegado (i.e., 7:6, 30; 8:20, 28). O anúncio de Jesus no último dia, o grande dia da festa é um convite para a fé e uma promessa de vida embutidos num seimão centralizado principalmente na incredu­ lidade e no julgamento. Trata-se de um anúncio cheio de alegria cuja hora ainda não chegou. Entretanto, para o autor do Evangelho e para os leitores, o tempo já chegou: Jesus foi elevado à glória e o Espírito foi concedido. Tanto o convite quanto a promessa estão já em vigor. Estas características que as três versões têm em comum ultrapassam de muito, em valor, os pontos em que diferem. A principal diferença é que a versão número 3 faz de Jesus a fonte do Espírito que distribui vida, enquanto as versões 1 e 2 - a número 1 com clareza, e a número 2 com certa ambigüidade - atribuem esse papel (pelo menos de forma derivada) ao crente. Entretanto, em nenhum caso o crente é visto como a fonte da vida, nem do Espírito, para outras pessoas. A imagem de correntes de água fluindo do coração do crente (se é isso que o autor tenciona) tem certa afinidade com 4:14, em que Jesus promete que todo o que beber da água que ele lhe der “se fará nele uma fonte de água que jorre para a vida eterna”. Que o crente em Cristo se transforma em canal da vida de Deus para os outros está implícito na mensagem total do Evangelho de João, porém esse não é o cerne da questão em 4:14 e tampouco em 7:37-38, em especial. A ênfase está na generosa abundância da vida e do poder do Espírito no coração do crente, à feição de uma fonte que transborda e não cessa de jorrar. A fonte de água é Jesus, nas três versões vistas, porque só ele pode dizer: se alguém tem sede, venha a mim e beba. A maior parte das declarações que começam com “Eu sou”, no

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Evangelho de João se fazem acompanhar de algum corolário - um convite ou uma promessa, ou ambos (ver, 6:35: “Eu sou o pão da vida. —Aquele que vem a mim não terá fome, e quem crê em mim jamais terá sede”; cf. 8:12; 10:9; 11:25-26; 14:6; 15:5, etc.). Os versículos 37-38 parecem uma dessas declarações nas quais o “Eu sou” ficou omitido, permanecendo apenas o corolário - como se Jesus houvesse dito: “Eu sou a fonte da vida”; se alguém tem sede, venha a mim e beba (cf. Apocalipse 21:6). Quer seja necessário, quer não, essa passagem induz à comparação com 8:12, em que Jesus prossegue em sua auto-revelação e em seu confronto com as autoridades religiosas: Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida. —Cada um desses pronunciamentos assume significado especial contra o contexto de um ritual diário na festa dos tabernáculos - a água da fonte de Siloé sendo despejada num cântaro ao lado do altar, no templo, e as lamparinas imensas sendo acesas no pátio das mulheres, respectivamente (cf. a Misna, sukkah 4.9-S.4). No último dia, quando tais rituais haviam cessa­ do, Jesus proclama a si próprio como a fonte verdadeira da água e da luz - para Jerusalém e para o mundo inteiro. Em 8:12 de novo o Senhor estende um convite e uma promessa; todavia, uma vez mais a nota de esperança submerge no contexto de rejeição e julgamento (8:12-20). O paralelismo entre 7:37-38 e 8:12 sugere que o cenário da ação não mudou. As unidades menores que formam 7:37-8:20, conquanto possam ser mal atadas entre si, são tratadas de modo legítimo como um drama que se desenrola no templo no último dia, o grande dia da festa. A auto-revelação de Jesus em 7:37-39 provoca uma divisão na multidão (vv. 40-43) ou, antes, traz à tona a divisão que já existia havia muito (cf. v. 12). Parece que os eventos dos vv. 30-31 estão acontecendo de novo, mas com maior intensidade. Desta vez alguns confessam que Jesus é o profeta ou o Cristo (vv. 40-41), mas outros levantam objeções teológi­ cas: o galileu Jesus não pode ser o Messias, visto que o Messias deve vir de Belém da Judéia (cf. Miquéias 5:2). Faz-se uma tentativa de prender Jesus, mas ninguém pôs as mãos nele (v. 44; cf. v. 30). O autor do Evangelho bem poderia ter acrescentado: “porque ainda não havia che­ gado a sua hora”. Contudo, é certo que não havia necessidade de tanto esmero. Em vez de descrever com pormenores a segunda tentativa infrutífera para prenderem Jesus, o autor do Evangelho prefere determinar que este

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é o ponto ideal para registrar o resultado da primeira tentativa de prisão. Os vv. 45-52 são uma seqüência dos vv. 32-36. Os guardas do templo, mencionados como tendo regressado à presença dos principais sacer­ dotes e fariseus no v. 45, são os mesmos do v. 32. O testemunho deles a respeito do poder da palavra e da presença de Jesus (v. 46) refere-se ao pronunciamento espantoso dos vv. 33-34. A única coisa que esses guardas podem fazer é levar seu espanto às autoridades que os enviaram. A partir do v. 47, pelo menos, até 8:20, os fariseus tomam conta do cenário. Jesus os confrontará de modo direto mas, primeiro, demonstrase quais são as atitudes e o caráter deles. É provável que tenhamos de presumir que falam em nome dos principais sacerdotes e em seu próprio nome. Têm profunda consciência de seu “status”, em contraste com o da plebe, que nada sabe a respeito da lei, e que por isso é m aldita (v. 49). A implicação dos fariseus é que Jesus e seus seguidores enquadram-se muito bem nesta descrição. É provável que todos soubessem que os discípulos de Jesus provieram, na maior parte, da classe social conhecida como ’am Há-aretz, ou “povo da terra”. Visto que não haviam estudado a lei sistematicamente e tampouco foram educados com o objetivo de obedecer a ela em tudo, mas apenas de modo geral, eram considerados por alguns dentre os piedosos como malditos de Deus. (Quanto a algumas ilustrações disto na literatura rabínica, veja Misna, Aboth 2.6; 3.11). A primeira impressão das autoridades a respeito de Jesus, quando o Senhor apareceu na festa, foi que ele era ignorante da lei (cf. v. 15) e, a despeito de tudo quanto transpirou desde então, os fariseus persistiam em manter viva essa impressão. Levantam uma pergunta escamecedora no v. 48, implicando que ninguém dentre os fariseus creu em Jesus, e que ninguém que verdadeiramente conhecesse a lei creria nele. Vindo não se sabe de onde, e como resposta à afirmativa deles, Nicodemos (de quem nada se ouviu desde o capítulo 3) toma a palavra. Apresentado como fariseu e . .. “um dos principais dos judeus” (3:1), Nicodemos havia funcionado como exemplo individual daqueles que, em Jerusalém, haviam “crido” em Jesus, cuja fé, entretanto, o Senhor não aceitara como genuína (2:23-25). Pelo menos de modo formal, Nicode­ mos é refutação viva do julgamento drástico a que os fariseus acabavam de submeter Jesus e seus seguidores (cf. também 12:42). Entretanto, a genuinidade da fé de Nicodemos permanece em dúvida. A observação dele (v. 51) não constitui uma confissão altissonante mas, apenas um

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apelo por justiça. Ele aparece na narrativa mais a fim de demonstrar a intransigência dos fariseus do que para marcar novo estágio em seu desenvolvimento espiritual. Quando suas opiniões são questionadas de modo gentil até mesmo por um de seus próprios membros, apressam-se a carimbar o cidadão que os contesta, em tom de zombaria, com o título de galileu (v. 52). A intenção não é pesquisar com seriedade as origens da família de Nicodemos mas refutar suas aparentes simpatias pelo Jesus da Galiléia. A primeira investida dos fariseus é corolário dos w . 41-42: se o único profeta esperado é o Messias, descendente de Davi, e nascido em Belém, não existem profetas galileus autênticos. Só os que ignoram as Escrituras é que seguirão um galileu. Nicodemos desaparece tão repentinamente como apareceu, ficando o palco à disposição de Jesus, para que confronte os fariseus novamente (8:12), agora de modo direto, e não através de emissários. Contudo, o pronunciamento do Senhor: Eu sou a luz do m u nd o ... como seqüência de 7:37-38, não se dirige aos fariseus com exclusividade mas a quem me segue, isto é, a todos. O objetivo é universal e com toda a probabilidade, à semelhança de 7:37-38, orientada para o futuro. O desejo dos irmãos de Jesus, que ele se “manifeste ao mundo” (7:4) está chegando ao ponto de concretização; todavia, o resultado é o que Jesus previra: o mundo “me odeia a mim, porque dele testifico que as suas obras são más” (7:7). Só com a vinda do Espírito é que os resultados serão diferentes. Os representantes do mundo de imediato desafiam a autoridade de Jesus. O debate que se segue é nova encenação de 5:30-38. A afirmação de Jesus de que ele é a luz do mundo não tem valor porque ele fala de si próprio (8:13). Os fariseus têm em mente o princípio da lei oral segundo o qual não se deveria crer numa pessoa que testemunhasse em prol de si mesma (Misna, Ketuboth 2.9). Jesus havia reconhecido esse mesmo princípio em 5:31 mas, aqui, faz uma exceção (v. 14). A diferença não está na conclusão para a qual ele se movimenta, mas na lógica mediante a qual chegará a ela. Diz ele que seu testemunho sobre sua própria pessoa é válido porque sei de onde vim e p ara onde vou. A razão por que os fariseus lhe questionam a autoridade é que eles não sabem estas coisas (v. 14b). Não está claro como tal conhecimento daria validade ao testemunho de Jesus, até chegar-se aos versículos subseqüentes, em que Jesus martela o mesmo princípio de novo, agora com palavras diferentes: vós não

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sabeis de onde venho, nem p ara onde vou, segundo parece, é modo indireto de ele referir-se ao Pai. O testemunho de Jesus é válido porque ele conhece o Pai. Na verdade, o Pai está falando através do testemunho de Jesus. Os versículos 14, 16 e 18 constituem três modos progressiva­ mente claros de Jesus declarar que há, de fato, apenas duas testemunhas, Jesus e o Pai, o qual fala pelos lábios de Jesus. Esta é a razão por que seu testemunho traz seu próprio selo de autenticação. O leitor entende isto porque a mesma questão surgira anteriormente, no sermão de 5:30-47, mas aqui os fariseus ficam perplexos. Uma diferença considerável é que o sermão anterior começara com uma apresentação sistemática do rela­ cionamento existente entre o Pai e o Filho (cf. 5:19-29), mas aqui os fariseus parecem ouvir a respeito do Pai pela primeira vez. Nem uma só vez Jesus se refere a Deus como seu Pai, em todo o sermão, mas usa, em vez disso, circunlóquios tais como: “aquele que me enviou”, ou de onde vim, ou para onde vou. Agora, ele revela a Fonte misteriosa, o Alvo misterioso, como sendo seu Pai, e os fariseus não entendem. Nem mesmo depois, em 8:27, fez-se luz na mente deles de que “aquele que me enviou” significa o Pai. Qual a razão dessa aparente regressão terminológica? Ter-se-iam esquecido os fariseus de que a verdadeira razão por que Jesus era um homem procurado pelas autoridades era que ele “dizia que Deus era seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus” (5:18)? Isso não é provável. O objetivo da narrativa é, antes, dramatizar a ignorância dos fariseus sobre o que significa para Deus ser o Pai de Jesus, isto é, dramatizar a ignorância deles de tudo quanto Jesus ensinou em 5:19-47. O sermão anterior, conquanto claro e decisivo para os leitores do Evangelho, não penetrou sequer nos ouvidos do auditório. Foi um monólogo do princípio ao fim, objetivando o narrador mais aos seguidores atuais e futuros de Jesus do que as autoridades judaicas. O sermão do templo, por outro lado, é pontilhado de diálogos cortantes entre Jesus e seus adversários. Visto que esse sermão objetiva a boa comunicação, dentro de um contexto literário, as interrupções na comunicação tomam-se dolorosamente evi­ dentes — como, por exemplo, a pergunta dos fariseus: Onde está teu Pai? (v. 19). Os fariseus não estão questionando a legitimidade do nascimento de Jesus, como alguns comentaristas têm sugerido, mas reagindo à menção do Senhor do princípio escriturístico de que são necessárias duas teste­

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munhas a fim de validar uma declaração em tribunal (v. 17; cf. Deuteronômio 19:15). Há duas testemunhas, diz Jesus: Ele próprio é uma, e o Pai, a outra (vv. 16,18). Onde está teu Pai? é o desafio dos fariseus para que o Senhor traga sua segunda testemunha. Eles ainda não entenderam o fato que a segunda testemunha não fala como entidade externa identi­ ficável, mas apenas através do próprio Jesus (cf. 5:31-40). Ouvir a Jesus é também ouvir a segunda testemunha. Conhecê-lo é conhecer seu Pai. Entretanto, o sombrio veredito de Jesus, no presente caso, é: Não me conheceis a mim, nem a meu Pai (v. 19). A declaração resumida: “Ele disse estas palavras ensinando na área do templo no lugar do gazofilácio” (8:20), corresponde em forma ao final do sermão da sinagoga, dois capítulos antes (“Ele disse estas coisas na sinagoga, ensinando em Cafamaum”, 6:59) e assim dá a impressão de que o sermão do templo chegou ao fim . Na verdade, o sermão prossegue até o fim do capítulo. O que se encerrou foi m eramente um estágio do debate entre Jesus e os fariseus, no pátio das mulheres, no oitavo dia da festa. A alusão no v. 20 ao gazofilácio (e assim, de modo indireto, ao pátio das mulheres), sugere que a festa já terminara; no entanto, Jesus não sai do templo senão no v. 59. Em algum ponto da coleta desta matéria, o versículo 20 pode ter servido para encerrar o sermão do templo, embora a frase um a vez mais (v. 21; cf. v. 12) permite ao autor que acrescente outras discussões, relembradas, provavelmente, em conexão com a mesma visita de Jesus a Jerusalém. As costuras que de vez em quando aparecem, bem visíveis, no tecido da narrativa, apenas salientam a intenção do autor de tecer um relato singular, contínuo, do ministério de Jesus no templo, de 7:14 a 8:59. A festa termina com Jesus ainda em liberdade. Os fariseus não são capazes de prendê-lo, como os guardas não o foram, antes, visto que a sua hora ainda não tinha chegado (v. 20).

Notas Adicionais # 21 7:37 / No último dia, o grande dia da festa: o último dia da festa era o sétimo; todavia, no oitavo dia havia uma celebração distinta, por direito próprio, um dia de regozijo em que se cantava o Hallel (i.e., Salmos 113-118). A festa especial do oitavo dia é discutida em profundidade no midras do quinto século, Pesikta de-Rab Kahana 28 (ed. W. G. Braude e I. J. Kapstein [Philadelphia: Jewish Publication Society, 1975], págs. 424-44). Na Misna (sukkah 4.8) o oitavo dia é chamado de “o último dia da festa”, enquanto Josefo (Antiquities

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3.245) refere-se com clareza à festa dos tabernáculos como festa de oito dias. Tais considerações sugerem que o v. 37 refere-se, na verdade, ao oitavo dia que, se não for o mais importante para todas as pessoas, era contudo um dia especial, posto à parte dentre os demais para propósitos específicos. 7:38 / como diz a Escritura: não se identifica a passagem escriturística mencionada. Sob a pressuposição de que o próprio Jesus é a fonte da água, duas das sugestões mais comumente apresentadas são o Salmo 78:16 (“fez sair fontes da rocha, e fez correr as águas como rios” — referindo-se ao incidente descrito em Êxodo 17:1-7) e Zacarias 14:8 (“Naquele dia [i.e., dia do Senhor] também correrão de Jerusalém águas vivas, metade delas para o mar oriental, e a outra metade até o mar ocidental”; cf. também Ezequiel 47:1-12, e o emprego que o Novo Testamento faz do tema em Apocalipse 22:1-2). Deve-se pressupor a identificação metafórica de Jesus com a rocha vivificante do deserto do Sinai (cf. 1 Coríntios 10:4), ou com a própria cidade de Jerusalém e seu templo. Pressupondo-se que o crente é a fonte de água, as sugestões incluem Provér­ bios 18:4; Isaías 58:11; e de modo especial (nos apócrifos), Siraque 24:28-31: “Agora, eu, como regato que parte da corrente [da sabedoria], canalizo as águas para um jardim, digo a mim mesmo: ‘regarei minhas plantas, meu canteiro de flores regarei’; de súbito, este regato se transforma em rio e, depois, essa fonte minha se toma em mar. Assim, envio meus ensinos brilhantes como a aurora, para que se tomem conhecidos ns regiões longínquas. Despejo, pois, instrução, como profecia” (NAB). Nenhum desses textos chega perto de prover uma fonte de qualquer tipo de citação exata. É provável que a passagem que o autor do Evangelho (ou Jesus) tinha em mente continha a notável frase do seu interior (lit., “do seu estômago”; gr.: ek tes koilias autou, não existindo passagem bíblica que combine esta frase com a figura de linguagem de fontes de água. Justino Mártir, no segundo século (D ialogue with Trypho 135.3) identificava os crentes como sendo “a verdadeira raça israelita” por terem sido “pedras tiradas da rocha do coração” (gr.: ek tes koilias ) de Cristo, à semelhança de pedras tiradas do seio da terra (cf. também Dialogue 114.4). Pode bem ser que ele e João estivessem cônscios de aplicações já existentes de textos como Zacarias 14:8, Ezequiel 47:1-12 e Salmo 78:16 a Cristo, e que João está citando um midras (paráfrase) cristão como a Escritura a que se refere. 7:40-41 / o P ro feta .. . o Cristo: cf. 1:20-21. A verdadeira disputa não se trava entre os que afirmam que Jesus é o Profeta predito em Deuteronômio 18:15-18 e os que afirmam que ele é o Messias que descende de Davi, mas, entre ambos esses grupos contra os que perguntam: Pode o Cristo vir da Galiléia? 7:52 / não surge profeta: todas as tribos de Israel tiveram seus profetas (cf. o Talmude Babilónico, sukkah 27b), não sendo estrita verdade que nenhum profeta houvesse vindo da Galiléia (Jonas, viera de Gate-Hefer, na Galiléia, 2 Reis 14:25). Por isso, a versão da NIV - margem (“o Profeta”, baseada num papiro bem primitivo, manuscrito chamado P ), e ECA, é atraente, pois cria um paralelismo com o v. 41: “o Profeta”, visto ser ele de fato o Messias, não

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virá da Galiléia, mas de Belém, na Judéia. Contudo, não existe evidência de que na expectativa judaica havia uma fusão total entre o Profeta mosaico com o rei messiânico e davídico. É bem mais provável que os fariseus estejam afirmando que nenhum profeta está vindo da Galiléia agora, i.e., esse galileu chamado Jesus não é verdadeiro profeta. 8:1-11 / Esta seção (designada como 7:53-8:11, em edições padrão do texto grego e na maioria das versões em inglês) não se encontra nos manuscritos mais antigos e por isso não pode ser considerada como parte do Evangelho de João. A maior parte dos manuscritos que contêm essa passagem coloca-a aqui; alguns a colocam no Evangelho de Lucas (depois de 21:38), e outros no final do Evangelho de João. Um manuscrito a coloca depois de João 7:36, e numa tradução antiga, encontra-se após João 7:44. Embora, sem dúvida alguma, seja um incidente verdadeiro da vida de Jesus, a história da mulher adúltera não pertence ao Novo Testamento e, de modo mais específico, não cabe aqui, no texto, onde sua presença divide a ação de um dia em duas partes, e interrompe o desenvolvimento da narrativa de 7:37-8:20. Uma ambientação histórica bem mais propícia é aquela descrita em Lucas 21:37-38 em que Jesus, durante a última semana de seu ministério, passa as noites no monte das Oliveiras, e os dias ensinando no templo (cf. vv. 1-2), respondendo às perguntas dos fariseus e principais sacerdotes, acerca da lei. Isto ajuda a explicar por que alguns manuscritos posteriores inserem essa passagem depois de Lucas 21:38, não, porém, por que muitos outros o colocam aqui. Parece que dois fatores contribuíram para que isto acontecesse: (a) a história ilustra a declaração de Jesus aos fariseus, em 8:15, através de uma mulher: Vós julgais segundo os padrões humanos; eu a ninguém julgo (cf. v. 11). (b), ao mesmo tempo, enfatiza o tema joanino de que, apesar disso, do ministério de Jesus emerge o julgamento. Ao recusar-se a condenar a mulher adúltera, Jesus condena o sistema religioso vigente, diante do qual ela é acusada. O tema implícito do julgamento de Jerusalém e seu templo pode ser a mola mestra que impeliu os copistas posteriores a colocar a história dentro do sermão sobre o templo, na festa dos tabernáculos. Até mesmo o pormenor de que foram-se retirando um a um, a começar pelos mais velhos, que se envergo­ nharam, faz-nos lembrar o antigo exemplo de julgamento sobre o primeiro templo de Jerusalém, em Ezequiel 9:6 (onde as “autoridades” julgadas em primeiro lugar são literalmente “os mais velhos” de Israel). 8:17 / vossa lei: há quem às vezes insista que Jesus é apresentado, aqui, falando como se ele próprio não fora judeu (cf. a mesma frase em 10:34 e a frase “sua lei” [“lei deles”], em 15:25). Acredita-se que a frase reflita a perspectiva gentílica, até mesmo anti-judaica, do autor deste Evangelho. Dois outros fatos, entretanto, explicam de forma mais plausível a linguagem empregada por Jesus nessas duas passagens, (a), os pronomes fortalecem o argumento do Senhor ao tomá-los “ad hominem”. Os adversários de Jesus são refutados pela mesma escritura que eles próprios reconhecem, e que proclamam ser verdadeira; também se presume que Jesus reconhece a Escritura como

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verdadeira; todavia, esse fato não é crucial nesta discussão, (b) Pode ser que Jesus esteja falando no estilo dos profetas do Antigo Testamento que, às vezes, em nome de Deus, erguiam-se contra Israel e pronunciavam julgamento contra suas instituições (ver, Isaías 1:13-14: “vossas luas novas, e as vossas solenidades” (algumas versões trazem o adjetivo possessivo antes de "incenso" e “congregações”). 8:20 / no lugar do gazofilácio: lit., “na tesouraria”. A referência não diz respeito à câmara usada para guardar os bens do templo mas, com toda probabilidade, ao lugar de acesso a tal câmara, i.e., o pátio das mulheres (assim denominado a fim de ser distinguido do recinto sagrado onde se ofereciam sacrifícios, sendo a entrada proibida às mulheres). Visto que o pátio das mulheres era onde se realizava a cerimônia da lâmpada que se acendia, no oitavo dia (cf. Misna, sukkah 5.2), era o ambiente natural para a pregação deste sermão pelo Senhor. O fato de o lugar ser chamado de “lugar do gazofilácio”, em vez de “pátio das mulheres” poderia simplesmente fazer ecoar outras narrativas em que “o gazofilácio” é o cenário do ministério de Jesus (ver, Marcos 12:41-44 e Lucas 21:1-4, quando entram na história as contribuições financeiras das pessoas).

22. Jesus e os Incrédulos (João 8:21-29)

Os vv. 21-29 servem para documentar a acusação de Jesus contra os fariseus, no v. 19: “não me conheceis a mim, nem a meu Pai”. O Pai é o passado de Jesus, e seu futuro também. Jesus veio de Deus e partirá de novo para Deus; entretanto, seus ouvintes não entendem nem uma nem outra coisa. O espanto anterior, concernente ao lugar para onde iria Jesus (cf. 7:32-36) também se repete aqui (vv. 21-22), todavia, com o sombria observação adicional: e m orrereis no vosso pecado (v. 21). As palavras de Jesus não devem ser tomadas como sentença absoluta de morte, mas como advertência. As autoridades judaicas (como todas as demais) morrerão em seus pecados se não crerdes que eu sou (v. 24). O outro lado desta advertência é a promessa de vida, no versículo 51: “se alguém guardar a minha palavra, jamais verá a morte”. Até mesmo no contexto mais próximo, Jesus pode falar mais positivamente: Quando levantardes o Filho do homem, então sabereis que eu sou quem digo ser (v. 28). Qual desses dois caminhos, então? Morrerão eles em seus pecados, ou chegarão a crer em Jesus e saber quem é ele? O diálogo pressupõe o mesmo abismo existente entre o mundo lá de baixo e o mundo lá de cima, que direcionou a conversa com Nicodemos no capítulo 3. As autoridades judaicas são deste mundo (v. 23) e não podem começar sequer a entender Jesus sem um novo nascimento de cima. Quando o Senhor diz que vai embora, para um lugar aonde não o poderão seguir, só conseguem imaginar que ele planeja suicidar-se (v. 22)! Entretanto, assim como uma compreensão defeituosa havia, antes, apontado para a profunda verdade da missão aos gentios (7:35), aqui também a menção do suicídio aponta para a frente, para a morte voluntária de Jesus na cruz, a fim de levar nosso pecado. Enquanto não levantassem o Filho do homem na cruz não ficarão sabendo quem é Jesus, nem que ele vem falando as próprias palavras de Deus (v. 28). A referência a um momento, no futuro, quando terão compreensão, só serve para acentuar a presente ignorância em que estão imersos. Quem és tu? perguntam a Jesus (v. 25), e ficam sabendo que já vos disse desde o princípio, isto é, desde o início do ministério de Jesus, o Senhor se tem feito conhecido. Bastaria que ouvissem (v. 25). Muitas coisas o Senhor poderia dizer para condenação deles, mas se

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recusa a entrar numa discussão amarga (v. 26). Antes, a intenção do Senhor é comunicar a mensagem que o Pai lhe deu (vv. 26, 28b). Na medida em que esta revelação é uma auto-revelação, ela se centraliza numa frase estranha: eu sou quem digo ser (w . 24, 28). Literalmente, a frase em grego (ego eimi) significa “Eu Sou”, sem um predicativo (cf. v. 58). Deveríamos porventura suprir um predicativo retirado do contexto - por exemplo, do v. 23, “Eu sou de cima”, ou do v. 28, “Eu sou o Filho do homem”? Ou seria o caso de a auto-revelação estar precisamente na ausência de um predicativo? Esta última alterna­ tiva é a mais provável. A identidade de Jesus não se liga a um predicativo particular, mas emerge de todas as suas palavras e ações, até este ponto, no Evangelho. O que os ouvintes devem aceitar, e o que o “levantamento na cruz” vai demonstrar, é que Jesus é de fato quem ele afirma ser (explicita e implicitamente).

Notas Adicionais # 22 8:25 / O que já vos disse desde o princípio: o grego é obscuro (lit., “o começo, o que eu vos disse”). Tem sido traduzido assim: “Primordialmente, o que eu vos digo” (e até mesmo como pergunta), “Por que vos falo, afinal?” Um antigo manuscristo tem um texto mais longo: “Eu vos disse no começo o que vos falo agora”, e embora o texto talvez não seja original, pode representar uma paráfrase primitiva que captou o sentido pretendido pelo autor. 8:28 / Quando levantardes o Filho do homem: “levantar” como alusão à crucifixão, cf. 3:14. A aparente implicação de que as autoridades judaicas crucificariam Jesus é surpreendente à luz de 18:31 (que parece enfatizar que a crucificação era um método romano de execução), mas a passagem em foco antecipa, em vez disso, 19:16: “Finalmente, Pilatos o entregou [aos principais sacerdotes] para ser crucificado”. A presunção é que de algum modo as autori­ dades judaicas (embora não o povo judaico) crucificaram Jesus. então sabereis: ao lado da afirmação gritante de que as autoridades judaicas haveriam de crucificar o Filho do homem, vem uma nota igualmente surpreen­ dente de esperança. Como resultado de sua morte, essas pessoas entenderão quem é Jesus, e com que autoridade ele fala. Entretanto, a ênfase não se coloca na fé, nem no arrependimento dessas autoridades religiosas em particular, mas no fato de que Jesus e suas afirmações serão justificados diante do mundo inteiro mediante o que aconteceria depois de o Senhor ter sido “levantado” (i.e., mediante sua ressurreição). Conquanto tal reivindicação seja futura, o versículo como um todo (ao lado do versículo 29) objetiva primordialmente afirmar algo sobre o presente: Jesus é quem é agora; ele nada faz por si mesmo, mas fala agora o que o Pai lhe falou; Deus está com ele, e ele vive a fim de agradar a Deus agora, e sempre.

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8:29 / ele não me deixou só, pois sempre faço o que lhe agrada. O argumento da seção anterior de que nas palavras de Jesus tanto o Pai quanto o Filho falam, desenvolve-se aqui (cf. v. 16). A razão por que Jesus não está sozinho é que ele só faz o que agrada ao Pai (cf. 4:34; 5:30; 6:38). A mesma terminologia é empregada a respeito dos crentes em Cristo, em 1 João 3:22.

23. Jesus e os Que “Creram” (João 8:30-59)

A reação de muitos dentre as autoridades judaicas com quem Jesus conversava é crer nele (v. 30), por isso o resto do sermão se concentra nesse grupo de “crentes”. A predição de que eles entenderão depois quem é Jesus (v. 28) parece transformar-se em realidade antes de o levantarem na cruz. Isso parece bom demais para ser verdade, e de fato é mentira. Tais pessoas não demonstram fé genuína (cf. 2:23-25). Jesus dirigiu-lhes a atenção na direção do futuro; todavia, o grupo não está interessado. O presente é suficientemente bom para esses “crentes”, que estão satisfeitos com seu atual relacionamento com Deus. Essas pessoas precisam de tempo, a fim de tomar-se discípulos verdadeiros. Só mediante obediência contínua à mensagem de Jesus poderão conhecer a verdade e saber o que significa estar livre (vv. 31-32). A menção da liberdade os ofende, com sua implicação de que não são livres, agora. Como descendentes de Abraão, sentem orgulho de jam ais terem sido escravos de ninguém (v. 33). Jesus explica que está empregando a escravidão como metáfora para pecado e morte (vv. 34-36). Quer sejam descendentes de Abraão, quer não, estão sujeitos à morte à semelhança de todas as demais pessoas e, nesse sentido, são escravos (cf. Hebreus 2:14-15). A promessa de Jesus de libertá-los é uma promessa de vida, uma alternativa, diante da perspectiva sombria de morrer nos próprios pecados (cf. vv. 21,24). O v. 51 tomará a promessa explícita, sem o emprego de metáforas: Em verdade, em verdade vos digo que se alguém guard ar a m inha palavra, jam ais verá a morte. Dois temas — o intercâmbio entre vida e morte, e o significado de ser descendente de Abraão — são as questões que continuarão a separar cada vez mais Jesus e os “crentes” judeus, e que acionará o gatilho da confrontação com que o sermão do templo se encerra (v. 59). Não se põe em jogo a descendência abraâmica desses “crentes” (v. 37); todavia, a conduta deles compromete-lhes a herança. Jesus admite serem fisica­ mente filhos de Abraão, mas na ética e no espírito não o são. Mais uma vez Jesus os acusa de estarem tentando matá-lo (vv. 37,40), agora num contexto em que sua identidade é conhecida (contraste com 7:19). Se o comportamento daquelas pessoas tem significado, Abraão

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não é o pai delas; se fôsseis filhos de Abraão, praticaríeis as obras de A braão (v. 39). As obras que praticam comprovam que tem paternidade bem diferente (v. 41). Jesus faz uma conexão entre o tema da vida e da morte com o da verdade e da mentira, e entre ambos com o antigo conflito entre Deus e o diabo (vv. 42-47). —Deus é o doador da vida que mediante Jesus Cristo toma conhecida a verdade, no mundo. O diabo é a fonte da morte, um homicida desde o princípio, e mentiroso e pai da m entira. São referências à negação proferida pela serpente à verdade de Deus no jardim do Éden (Gênesis 3:4) e ao assassinato perpretado por Caim, que matou seu próprio irmão Abel (Gênesis 4:8; cf. 1 João 3:12). A morte e a falsidade caminham juntas, da mesma forma que a vida e a verdade. Quando Jesus os acusa, dizendo: procurais m atar-m e, tem em mente apenas a recusa de seus ouvintes em aceitar seu ensino, a verdade que de Deus recebera (vv. 37,40). O Senhor iguala a mentira à tentativa de assassinato porque a mentira e a morte provêm da mesma fonte, e também porque uma induz à outra, inevitavelmente (v. 44). No final do capítulo, as palavras de Jesus ficam comprovadas como sendo absoluta verdade, porque os “crentes” pegam em pedras para a tira r nele (v. 59). Embora o assassinato não fosse a intenção deles, de início, as palavras de Jesus descobriram-lhes as verdadeiras atitudes e ações. Por serem incapazes de ouvir as palavras de Deus, proferidas pelos lábios de Jesus, fica comprovado que não pertencem a Deus, mas ao diabo, e que estão agindo segundo intenções diabólicas (v. ,47). O fato de essas pessoas denunciadas de forma tão áspera, nesta passagem, serem chamadas de judeus (v. 31) suscitou a acusação de que o Evangelho de João é “anti-judeu”, e até “anti-semítico”. Todavia, devemos lembrar-nos de que estes judeus em particular criam nele. Parece que se eles representam alguém, além deles mesmos, representam certos grupos de judeus cristãosl Os irados “crentes” procuram agora os nomes mais feios imagináveis a fim de insultar Jesus: ele é samaritano (cf. 4:9) e possuído por demônio (cf. 7:20). Não se trata de acusações comedidas, levantadas contra Jesus, e valiosas perante um tribunal, mas expressões espontâneas de raiva. O Senhor deixa sua defesa e o julgamento de seus adversários às mãos do Pai (vv. 49-50) e retoma à sua promessa inicial de vida eterna aos que lhe obedecerem o ensino (v. 51; cf. vv. 31-32). É como reabrir uma velha ferida. Mais uma vez as reivindicações de Jesus são rejeitadas mediante

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um apelo a Abraão (v. 52; cf. v. 33). O fato de Jesus pretender conceder vida de tal modo que se alguém g u ard ar a m inha palavra, jam ais verá a m orte significa que eíe se põe acima de Abraão e dos profetas (w . 52-53). Vida e morte são concebidas, aqui, em termos físicos, como se Jesus estivesse prometendo isenção da morte física. Sem parar a fim de corrigir o mal-entendido, Jesus responde à pergun­ ta: Quem pensas que és? (v. 53). A resposta de Jesus, nos vv. 54 e 55, neutraliza o apelo a Abraão com um apelo ao próprio Deus, supremo Doador da Vida e Legislador de todos nós. Todavia, acrescenta o Senhor: Vosso pai A braão exultou por ver o meu dia; viu-o e alegrou-se (v. 56). Assim como há uma alusão específica em 1:51 à experiência de Jacó, em Betei (Gênesis 28:12), é natural que procuremos algo específico aqui também. Parece que tal referência diz respeito à promessa que Abraão recebeu que de sua semente proviriam bênçãos para o mundo todo (Gênesis 12:1-3). Presume-se que essas bênçãos se cumpririam em Jesus (cf. Gálatas 3:16); todavia, o começo de sua concretização foi o nasci­ mento de Isaque e seu livramento da morte prematura (Gênesis 18,22). Provavelmente devemos entender que Abraão viu o dia de Jesus em conexão com um desses eventos, ou com ambos. É bem possível que o autor tenha em mente aquele momento específico quando “levantou Abraão os olhos e olhou, e viu atrás de si um carneiro preso pelos chifres entre os arbustos” e ficou sabendo que seu filho fora poupado (Gênesis 22:13); alguns intérpretes cristãos da igreja primitiva consideravam este incidente como simbólico da morte de Jesus, o cordeiro de Deus (ver, Melito de Sárdis, em suas Eclogues; veja R. M. Grant, Secong Century Christianity Londres: S.P.C.K.,1957, pág. 72). Num mal-entendido aparentemente deliberado, os “crentes” hostis reagem como se Jesus houvesse dito que vira Abraão, em vez de Abraão ter visto o Senhor, em seu dia (v. 57). O esforço deles em fazer que a afirmação de Jesus parecesse absurda só é bem sucedido na medida em que demonstra a ignorância voluntária deles mesmos. Entretanto, a resposta de Jesus é séria e decisiva: Em verdade, em verdade vos digo que antes que A braão nascesse, eu sou (v. 58). Pronunciando tais palavras, Jesus vai além de tudo quanto já disse. Ele viu Abraão; estava vivo no tempo de Abraão, e muito antes. —Parece que os exemplos anteriores do emprego da formulação “Eu Sou” (i.e., 4:26; 6:20; 8:24, 28) estiveram esperando esta oportunidade para exibir seu sentido mais

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profundo. Contrastando com tudo, não há substância que se possa extrair do contexto imediato nem do remoto; por exemplo, que ele é o Messias, ou o Filho do homem, ou “aquele que desce do céu”, ou todas as coisas que ele afirmou ser. Jesus simplesmente é. Eu sou neste caso é a formulação de Deus de sua própria auto-revelação, da mesma forma que era nas Escrituras hebraicas (heb.: ’ani hu \ lit., “Eu ele”, mas normal­ mente traduzido para o grego como ego eirni, ou “eu sou”). —Tal formulação aparece de modo especial em Isaías 40-55, onde Deus a utiliza a fim de proclamar sua singularidade como o Deus da aliança com’ Israel, fiel às suas promessas, forte para livrar e restaurar seu povo (ver, Isaías 41:4; 43:10-13, 25; 45:18-19; 48:12; 52:6; cf. Deuteronômio 32:39). O emprego dessa expressão implica num monoteísmo radical, não qualificado: “antes de mim Deus nenhum se formou, e depois de mim nenhum haverá” Isaías 43:10b); “Eu sou o Senhor, e não há outro” (Isaías 45:18); “Eu sou, Eu somente, e não há outro Deus além de mim” (Deuteronômio 32:39). Quem utilizasse essa formulação, fosse quem fosse, da maneira como Cristo a utilizou, cometeria blasfêmia (Isaías 47:8; Sofonias 2:15). Aqui, pela primeira vez, as implicações da utiliza­ ção dessa formulação por Jesus chegaram até seus ouvintes; a reação deles foi: pegaram em pedras p ara a tira r nele (v. 59). Não há dúvida de que acabaram entendendo que Jesus falava com a voz de Deus, como se ele próprio fosse “o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, e o Deus de Jacó” (cf. Êxodo 3:6). O uso da formulação “Eu sou”, com relação a Abraão, relembra a disputa de Jesus com os saduceus nos evangelhos sinóticos, em que o Senhor defende a crença na ressurreição futura (Marcos 12:18-27 e passagens paralelas). O argumento de Jesus nessa ocasião foi que Deus havia dito a Moisés: “Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó”, e que Deus “não é Deus de mortos, e, sim, de vivos” (Marcos 12:27 e Mateus 22:32; Lucas 20:38 explica: “pois, para ele todos vivem”). Aqui no Evangelho de João é o próprio Jesus que faz a declaração “Eu Sou” e vindica ser o Doador da vida (v. 51). Não se deve presumir que a declaração: m orreu A braão (vv. 52-53) representa necessariamente o ponto de vista do narrador, ou de Jesus; pelo menos não se deve presumir, se isso implica a peremptoriedade comum da morte. Os adversários de Jesus, errados em tudo, estão errados neste ponto também. Aquele que existe desde antes de Abraão, e promete vida

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eterna aos crentes, é a fonte da vida e da esperança até para o próprio Abraão, e para os profetas. O Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó é Jesus; ele é o único Doador de vida, e Senhor da ressurreição (cf. 5:21, 25, 28). Só Jesus pode prometer a seus seguidores: eu o ressuscitarei no último dia (6:39-40,44,54), sendo que nesta passagem até Abraão e os profetas estão incluídos entre os seguidores de Jesus. O sermão do templo, à semelhança do sermão da sinagoga, no capítulo 6, termina com uma nota de que a vida de Deus está disponível aos seres humanos apenas mediante a confiança em Jesus, e a obediência ao seu ensino. Completa-se, agora, a auto-revelação do Senhor que se manifesta. Quanto aos ouvintes ali presentes, a reação deles não é marcada nem pela obediência nem pela confiança. Os “crentes” dos vv. 30-31 são desmas­ carados: são incrédulos, definitivamente não crêem. Para eles, a reinvidicação de Jesus, de ter a mesma identidade do Deus de Abraão, é blasfêmia. A reação deles de tentar apedrejar Jesus é natural e inevitável e, de modo irônico, cumpre aquilo que Jesus predissera como sendo a constante intenção deles. Já haviam tentado matá-lo (cf. 7:19; 8:37,40), primeiramente pela rejeição de sua mensagem e, agora, de modo literal. Falha, porém, a tentativa deles de tirar-lhe a vida, como falharam outras tentativas anteriores de prendê-lo (cf. 7:30, 44). Não nos é relatado de que maneira ele escapou; de modo misterioso Jesus se ocultou, e retirou-se do templo (v. 59b). Ele chegara vindo do lugar onde se ocultara, a fim de manifestar-se no templo, durante a festa dos taberná­ culos; agora, ele volta a esconder-se.

Notas Adicionais # 23 8:31 / os judeus que criam nele. A construção gramatical é diferente do v. 30 (i.e., “crer” seguido de um dativo, em vez de uma preposição que designa Jesus como o objeto de sua fé). Todavia, no contexto, ambas as construções são equivalentes. Neste Evangelho, crer em Jesus é crer no que ele diz, e crer em sua mensagem significa crer nele como sendo mensageiro de Deus. Não há meio de fazer que o v. 31 se refira a um tipo menos adequado de fé, do que a do v. 30. Não é possível distinguir, pela linguagem empregada num ou noutro versículo, que a fé de que se fala não é genuína, ainda que eventos subseqüentes viessem a demonstrar que de fato tratava-se de fé enganosa (cf. 2:23-25). 8:31-32 / Se permanecerdes no meu ensino, verdadeiramente sereis meus discípulos. Então conhecereis a verdade e a verdade vos libertará. Cf. as palavras de Jesus em seu discurso de despedida àqueles que eram genuinamente

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seus discípulos: “Nisto é glorificado meu Pai, em que deis muito fruto, e assim vos tomareis meus discípulos” (15:8); “já não vos chamo de servos, porque o servo não sabe o que faz o seu Senhor. Antes, tenho-vos chamado amigos, pois tudo o que ouvi de meu Pai vos tenho dado a conhecer” (15:15). Observe que nesta última passagem, liberdade contrasta com servidão, sendo definida como o conhecimento da verdade trazida por Jesus, como ocorre no presente texto. 8:33 / jamais fomos escravos de ninguém. O espírito orgulhoso por causa da independência judaica que induziu o povo judeu à revolta, em 70 d.C. manifesta-se nesta declaração. A ironia, percebida pelo narrador e seus leitores, é que Israel havia perdido para Roma sua liberdade e independência, quase um século antes desta declaração ser pronunciada, e não haviam sido reconquistadas quando o Evangelho de João foi redigido. Conquanto não estivessem exatamen­ te em escravidão, os israelitas de modo nenhum estavam livres de domínio estrangeiro. 8:34 / escravo do pecado: as palavras do pecado estão ausentes em alguns manuscritos e versões antigos. Não é difícil verificar por que alguns escribas antigos omitiram essa expressão. A ênfase do versículo repousa sobre a metáfora da escravidão, como tal, e não na entidade escravizadora. Todavia, a evidência mais forte dos manuscritos favorecem o texto mais longo. A escravidão men­ cionada aqui é a do pecado, como também nas cartas de Paulo (ver, Romanos 6:16, 20). O pecado funciona como um termo intermediário entre a metáfora (escravidão) e a realidade (morte). A declaração seguinte de Jesus: “o escravo não permanece sempre em casa” (v. 35a), leva adiante a metáfora em que, de modo realístico, descreve uma família típica dos tempos de Jesus e, provê, também, uma interpretação teológica: “escravidão” aqui significa morte. O Filho (i.e., Jesus), ao contrário, tem vida eterna (v. 35b), e dá essa vida aos moribundos. É nesse sentido que ele liberta as pessoas (v. 36). 8:38 / presença do Pai... de vosso pai: no grego não há o pronome posses­ sivo. Não se apresenta nenhum contraste explícito entre o Pai de Jesus (Deus), e o pai de seus adversários (o diabo), senão no versículo 41. Portanto, é bem provável que o único Pai a que o texto se refere neste versículo seja Deus: “Eu falo do que vi na presença do Pai, e vós fazeis o que ouvistes de vosso pai” deveria, nesse caso, ser mudado para: “Eu falo do que vi na presença do Pai; portanto, fazei o que ouviste do Pai” (NIV, margem). Esta tradução tem o apoio da palavra oun (“portanto”) do texto grego. Tal tradução presume que o último verbo “fazer” (gr.: poieite), deve ser tomado como imperativo em vez de indicativo. Jesus está fazendo o último apelo a seus adversários para que aceitem suas palavras ccmo se fossem palavras vindas de Deus, o Pai, e as ponham em prática. Todavia, a reação de seus adversários (v. 39) demonstra que sua ascendência abraâmica lhes é muito mais importante do que o apelo de Jesus em prol de seu Pai. 8:39/ se fôsseis ... praticaríeis: alguns manuscritos antigos prosseguem no apelo ao fazer que o segundo verbo desta sentença seja imperativo: “Se sois filhos de Abraão, praticai então as obras de Abraão” (NIV, marginal). Entretan­

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to, o início do versículo seguinte em grego (“mas agora procurais matar-me) deixa bem claro que a sentença condicional no v. 39 renega a paternidade abraâmica: se aqueles adversários fossem verdadeiramente filhos de Abraão, fariam o que Abraão fez. Todavia, não são fihos de Abraão. Gramaticalmente, o primeiro verbo está no presente, embora se pudesse esperar ali um imperfeito. O efeito disso é que fica salientada a suposição da realidade, efeito conseguido pelos tradutores de GNB, cujo texto diz: ”se fôsseis verdadeiramente filhos de Abraão..". as obras de Abraão: (tradução lit.) cf. Tiago 2:21-23. Em Tiago a referência se faz à prontidão de Abraão em oferecer seu filho Isaque em sacrifício (Gênesis 22:1-14), mas aqui parece que Jesus tem em mente o caloroso gesto de boasvindas de Abraão aos mensageiros de Deus (Gênesis 18:1-8). O Senhor contras­ ta o comportamento hostil (v. 40) dos assim auto-denominados “filhos" de Abraão com a amorosa hospedagem do patriarca. 8:44 / Vós pertenceis ao vosso pai, o diabo: lit.: “vós sois do pai, o diabo”, ou mesmo: “vós sois do pai do diabo” (!). O final do versículo (é mentiroso e pai da mentira) também se poderia interpretar como referência ao pai do diabo (i.e., “o pai dele é mentiroso”). Tais possibilidades poderiam ter servido de base para posteriores especulações gnósticas a respeito da origem do diabo; entre­ tanto, dada a ausência de tais especulações noutras partes do Evangelho de João, e nas epístolas, fica virtualmente certo que o sentido que se obtém na ECA é correto. A primeira oração do versículo poderia ser parafraseada assim: “Vós sois ‘do Pai’, certo, mas vosso ‘Pai’ é o diabo!” A última oração diz, literalmen­ te: “ele é mentiroso, e seu pai” (i.e., pai da primeira mentira [“certamente não morrerás”, Gênesis 3:4] e, portanto, o pai de todas as mentiras subseqüentes). 8:52 / Morreu Abraão e também os profetas. Esta declaração faz lembrar de modo superficial as próprias palavras de Jesus em 6:49 (“vossos pais... morreram”, cf. 6:58), mas a função dela na narrativa é diferente. No capítulo 6, a implicação de Jesus era que Deus havia julgado a geração que, muitos séculos antes, havia perecido no deserto (cf. 1 Coríntios 10:5); mas, todos quantos comessem o pão da vida oferecido agora por Jesus viveriam para sempre. Quem morreu, disse o Senhor a seus inimigos, foram “vossos pais”. Aqui, todavia, o ponto central de Jesus é que seus inimigos não são verdadeiros descendentes de Abraão (cf. v. 39), e tampouco são filhos dos profetas. A declaração de que Abraão e os profetas estão mortos é declaração deles, não do Senhor, nem do narrador. Os retos vêm o dia de Jesus - e vivem! (cf. v. 56, Marcos 12:27; observe também que Abraão é tido como estando vivo na presença de Deus em Lucas 16:22-31). Quanto a um exemplo da luta do judaísmo com a noção de que até mesmo um grande homem como Abraão finalmente teve de provar a morte física, veja The Testament of Abraham, trad. M. E. Stone (Missoula, Mont.: Society of Biblical Literature, 1972). 8:56 / Vosso pai Abraão: Contraste o v. 39, em que Jesus nega que Abraão é pai deles. Aqui, à feição “ad hommem”, Jesus de modo zombeteiro lhes atira

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em rosto a vindicação deles mesmos (cf. v. 54; “meu Pai, o qual vós dizeis que é vosso Deus”). por ver o meu dia: a literatura judaica antiga testifica a crença em que Deus revelara a Abraão “o fim dos tempos” (4 Esdras 3:14; cf. também o comentário rabínico posterior, Gênesis Rabbah 44,22 [Midrash Rabbah {Londres: Soncino Press, 1961), vol. 1, pág. 376] sobre Gênesis 15:18). Entretanto, a referência aqui é, com toda probabilidade, não à visão de Abraão em Gênesis 15, mas à promessa de um filho, e ao nascimento e livramento da descendência prometida. 8:57 / Ainda não tens cinqüenta anos: é bastante precário procurar argu­ mentar, baseado neste número redondo, como alguns têm tentado fazer, que Jesus se aproximava dos cinqüenta anos de idade (ver, Irineu, Against Heresies 1.22.6), ou que o Senhor aparentava essa idade (de acordo com Lucas 3:23 “Jesus tinha quase trinta anos” ao iniciar seu ministério). Em comparação com os muitos séculos que os separavam de Abraão, até mesmo uma estimativa generosamente expandida de cinqüenta anos ressoava como apenas um breve momento, servindo o propósito de salientar o longo tempo decorrido.

24. 0 Cego de Nascença (João 9:1-12)

Terminou o sermão do templo, mas o ministério de Jesus prossegue em Jerusalém, não havendo uma quebra perceptível na narrativa. Esca­ pando da morte por apedrejamento, Jesus “retirou-se do templo” (8:59), e quando ia passando (aparentemente fora do recinto sagrado), viu um homem, cego de nascença (v. 1). A despeito da transição suave, fica bem claro que se inicia um novo capítulo, na verdade, uma nova seção, na estrutura do Evangelho. Os dicípulos de Jesus, longe do cenário desde o final do capítulo 6, estão novamente com o Senhor (v. 2) e, mais uma vez ele reassume o papel de operador de maravilhas. A cura do homem que nascera cego suscita uma série de investigações partindo das autori­ dades religiosas (vv. 13-34) e, no fim, a confissão do cego (vv. 35-41), seguida de novo sermão em que Jesus confronta as autoridades com a palavra de Deus pela última vez (cap. 10). A seqüência se inicia com uma pergunta feita pelos discípulos. Uma característica do grave problema desse cego, que atraiu a atenção dos discípulos, era que a cegueira era de nascença. Tal fato poderia ser do conhecimento geral, ou seria óbvio para os circunstantes pela aparência do homem. Seja como for, esse aspecto da situação do deficiente foi o que se considerou digno de explicação. Presumindo-se que a cegueira congênita era punição de algum tipo, seria essa punição pelos próprios pecados do cego ou pelos pecados de seus pais (v. 2)? A idéia tradicional entre os judeus, “certamente em iniqüidade fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe” (Salmo 51:5), emerge aqui, na pergunta inicial dos discípulos e, de novo no veredicto dos fariseus sobre o homem, no encerramento do interrogatório a que o submeteram (v. 34). Ainda que Jesus rejeite as alternativas postuladas pela pergunta, e muda o foco de atenção, tirando-a da causa (i.e., origem) da aflição do homem, e pondo-a no seu propósito (v. 3), o fato de o homem ser cego e cego de nascença permanece ponto saliente na narrativa. É isso que coloca a história à parte, dentre todas as narrativas dos sinóticos sobre curas de cegueira (Marcos 8:22-26; 10:46-52 e textos paralelos; Mateus 9:27-31). Se um homem é cego de nascença, a restauração de sua vista, nesse caso, é nada menos do que um novo nascimento. Esse incidente toma-se lição prática, de cuja

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vivência Jesus havia falado a Nicodemos: “quem não nascer de novo não pode ver o reino de Deus”. “Aquele que não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus” (3:3,5). A cegueira desse homem, diz Jesus, não resulta do pecado de alguém, mas propicia a ocasião para que se manifestem em sua vida as obras de Deus. À semelhança da pessoa mencionada em 3:21, que “vem para a luz”, o homem que nascera cego vai demonstrar em sua experiência que é filho de Deus. Ao vir (literalmente) das trevas para a luz, ele nasce ' de novo. A história desse cego é a do crente em Cristo, a do convertido. De início ele é apenas um mendigo, um ser humano marginalizado pela velha comunidade judaica e, no fim, toma-se um adorador de Jesus (v. 38). Questões teológicas levantadas no capítulo 3, mas não resolvidas, com referência a Nicodemos, são dramatizadas e esclarecidas no episó­ dio do cego que se curou. Conquanto a eleição divina (que deu forma ao pensamento de 3:18-21) não se faz explícita no relato da cura e conversão do cego, a doutrina se salienta nas reflexões teológicas do capítulo 10. O cego de nascença é uma das “ovelhas” de Jesus, visto que ele ouve a voz do Pastor e a ele segue, trocando a velha comunidade pela nova. A reação dele comprova que Deus já está operando em sua vida (cf. 3:21). Esta operação de Deus se concretiza na obra de Jesus. Antes de agir, Jesus fala da urgência que o impele (vv. 4-5). Pouco antes, ele se referira a essa urgência em “fazer a vontade daquele que me enviou, e realizar a sua obia” como o alimento que lhe sustentava a vida (4:34). Aqui, a figura de linguagem é a do dia e da noite. Jesus compara seu ministério à luz num mundo tenebroso (cf. 1:9; 3:19; 8:12), luz que, à semelhança da luz do dia, tem seus limites e deve, com o tempo, dar lugar de novo às trevas. Como o trabalhador que se determinou encerrar um trabalho antes da noite sobrevir, Jesus convoca seus discípulos a unirem-se a ele e apro­ veitar ao máximo as horas de luz que restam (cf. 11:9-10). É preciso que nos lembremos de que as referências ao dia e à noite constituem uma breve parábola sobre o ministério de Jesus. Tais referências param aí. Noutra passagem o autor do Evangelho consegue olhar para trás, no ministério de Jesus, e comentar que “a luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram sobre ela” (1:5). Do ponto de vista do autor do Evangelho, esse tempo iniciado com a partida de Jesus, deste mundo, é tempo para fazermos obras “maiores” do que as que Jesus fez (14:12), não é tempo de trevas em que ninguém pode trabalhar. O foco no

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capítulo 9 dirige-se à paixão de Cristo, que se aproxima. O ponto central nos vv. 4-5 não é que a obra de Deus se paraliza quando a vida de Jesus na terra se acaba, mas que o Senhor tem uma determinada tarefa que lhe foi confiada, e um tempo limitado para executá-la. Portanto, o que o Senhor está prestes a fazer, ele o faz sob necessidade divina. Ao incluir seus discípulos nessa necessidade (devemos fazer as obras, v. 4), Jesus não está muito interessado em pedir-lhes ajuda, nesse milagre particular, mas principalmente convidando-os a que enfrentem com ele a realidade próxima, a da cruz. Trata-se da extensão de uma convocação anterior para que partilhem sua obra (cf. 4:34-38), convocação que ele repetirá várias vezes, antes da paixão (cf. 11:7, 15; 12:26; 14:31). O milagre propriamente dito é narrado de modo simples e breve (vv. 6-7), estabelecendo o padrão para duas repetições mais breves ainda desse relato, feitas pelo próprio cego após sua cura (vv. 11,15). O relato lembra duas outras histórias semelhantes, do Evangelho de Marcos, sobre a cura de um surdo-mudo (Marcos 7:31-37) e de um cego de Betsaida, na Galiléia (Marcos 8:22-26). Nessas narrativas Jesus não hesita em usar quaisquer meios secundários disponíveis, a fim de obter a cura. Num caso ele coloca dois dedos nos ouvidos de um surdo-mudo e, em seguida, cospe nos dedos e toca a língua do homem (Marcos 7:33); cospe nos olhos de outro cego, toca-o com as mãos e depois toca-lhe os olhos de novo (Marcos 8:22,25). Aqui, o Senhor cospe no chão e faz um bolinho de lama que esfrega nos olhos do cego; a seguir, envia-o até o tanque de Siloé a fim de lavar-se e remover a lama. Tais procedimentos não eram incomuns entre os antigos curadores, visto que a saliva (de modo especial quando o curador estivera jejuando) teria, segundo se supunha, virtudes terapêuticas. A cura dos olhos de alguém mediante saliva era especifica­ mente proibida aos sábados, no Talmude, por alguns rabis (Shabbath 108a), embora o problema a respeito do sábado, neste caso (cf. vv. 14, 16) parece ter surgido porque Jesus amassou o barro, fazendo uma bolinha, a fim de realizar o milagre da cura (Misna, Shabbath 7.2, arrola “amassar” coisas [farinha, por exemplo] entre as 39 atividades proibidas no sábado; cf. 24.3). A interpretação simbólica que o narrador faz de Siloé, como Enviado (v. 7) abre a possibilidade de que o incidente todo, descrito nos vv. 6-7, conquanto vívido e factual, sirva a um propósito simbólico, na narrativa. Irineu, escrevendo perto do final do segundo século, propôs que “as obras

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de Deus” demonstradas nestes milagres de Jesus, nada mais eram que “a feitura do homem” no princípio, quando “formou o Senhor Deus o homem do pó da terra”: aquilo que o Verbo “omitira no útero” - a saber, os olhos do homem - o Verbo “os formou em público, a fim de que as obras de Deus pudessem manifestar-se nele”. Irineu usa esse milagre a fim de mostrar que o Redentor e Pai dos crentes também é o Criador do mundo. A lavagem em Siloé é “a lavagem da regeneração”, o novo nascimento representado pelo batismo cristão (Against Heresies 5.15.2­ 3; ANF 1.543). Sem insistir num relacionamento tão direto a Gênesis 2:7, podemos apreciar esta interpretação por causa de sua forte ênfase na nova criação, ou novo nascimento, na história do cego que se curou. A observação de que a fonte de água pela qual o cego recebe a vista chama-se Enviado (como Jesus é “enviado” de Deus) sugere que a água representa o Espírito Santo. O cego de nascença nasce de novo agora “da água e do Espírito” (cf. 3:5). O resto do capítulo manifesta todas as experiências de um judeu que se converte ao cristianismo: nasce de novo, é batizado; é interrogado pelas autoridades religiosas (vv. 13-34); é expulso, finalmente, da sina­ goga (v. 34); confessa sua fé em Jesus, a quem adora como seu Senhor (v. 38). Tais ocorrências não estão narradas, é claro, na ordem em que acon­ tecem na vida dos convertidos ao cristianismo. A pessoa deve confessar a Jesus como Messias e Senhor, antes de receber o batismo; os interro­ gatórios e eventual expulsão ocorreriam depois. A ordem nesta narrativa foi determinada pelo fato de registrar um incidente histórico real. Não se trata de conto fictício, nem de alegoria. O narrador toma um incidente real da vida de Jesus a fim de retratar ou simbolizar vários aspectos da experiência dos crentes, a partir do momento em que Jesus ressurgiu até os últimos dias. A seqüência de eventos é histórica, mas a doutrina emergente é teológica. É a doutrina segundo a qual os verdeiros filhos de Deus descobrirão seu caminho, ao sair da velha comunidade em direção à nova comunidade, ainda que essa transição não seja fácil. Se 8:30-59 descreve um falso e hipócrita tipo de cristianismo judaico, o capítulo 9 descreve um cristianismo real. A transição começa nos vv. 8-12. A prolongada investigação dos fariseus, nos w . 13-34, é precedida por um vislumbre dos vizinhos do cego, e daqueles que o tinham visto antes, como mendigo. Depois de

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discutir entre si a respeito da identidade do homem (vv. 8-9), confron­ tam-no de modo direto (vv. 10-12). Era ele a mesma pessoa, isto é, o mendigo cego que haviam conhecido antes, ou não? O desacordo entre eles faz lembrar certas disputas ou “cismas” entre a multidão, noutras passagens desse Evangelho, a respeito das afirmações e da identidade do próprio Jesus (ver, 7:12,40-43; cf. 9:16; 10:19-21). A reação do ex-cego (v. 9) também, e de modo estranho, nos faz lembrar Jesus. Sou eu, diz ele, utilizando a mesma expressão de auto-identificação usada por Jesus (gr.: ego eimi; lit., “Eu sou”; cf. 6:20; 8:24, 28, 58). Estas semelhanças sugerem que ainda que Jesus mesmo tenha-se retirado do cenário, é o poder e a autoridade de Jesus que estão em jogo, na avaliação da experiência do ex-cego. Em certo sentido, ele é representante de Jesus na narrativa dos vv. 8-34, embora não seja ainda seguidor de Jesus. Ele dá testemunho daquilo que Jesus fez por ele (v. 11), e com teimosa persistência “conta sempre a mesma história” ao longo de uma série de interrogatórios. É irônico que ele não saiba do paradeiro de Jesus (v. 12) e que (como veremos mais tarde) deixa de reconhecê-lo quando o encontra de novo.

Notas Adicionais # 24 9:2 / Quem pecou, este ou seus pais? Por detrás da pergunta dos discípulos jaz não apenas a noção bíblica de que os filhos às vezes são responsabilizados pelos pecados de seus pais (ver, Êxodo 20:5; analizada e refutada em Ezequiel 18), mas também a idéia proposta por certos rabis de que a criança no útero já vem envolta em pecado (veja, Genesis Rabbah 63.6 [Midrash Rabbah (Londres: Soncino Press, 1961), vol. 2, págs. 559-60], baseado em Gênesis 25:22 e Salmo 58:3). Não é provável que as idéias helenísticas a respeito da preexistência da alma tenham contribuído para o surgimento desta pergunta. Há poucas evidên­ cias de que tais idéias fossem largamente disseminadas no judaísmo (cf., talvez, Sabedoria 8:20), ou que fossem utilizadas a fim de explicar as desgraças físicas. 9:4 / Devemos... daquele que me enviou: havia uma tendência em antigos manuscritos para remover a discrepância aparentemente inapropriada entre o plural e o singular: i.e., “devo fazer as obras daquele que me enviou”, ou “devemos fazer as obras daquele que nos enviou”. A redação mais difícil encontrada no texto é, talvez, a correta; a segunda variante (aquela em que há dois plurais) também é difícil; todavia, o fraseado “aquele que nos enviou” foge tanto do estilojoanino que o toma suspeito. “Aquele que me enviou” é expressão fixa joanina, equivalente a “o Pai”. Essa fixidez mesma é que parece ter criado a discrepância entre o singular e o plural, numa sentença em que Jesus envolve seus discípulos na urgência de sua própria vocação.

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O plural “nós devemos” apresenta o efeito adicional de atribuir à declaração de Jesus uma aplicação secundária, além daquilo que o Senhor (ou talvez o autor do Evangelho) tinha em mente. Os crentes comumente aplicam esse texto à sua própria missão no mundo, entre a ressurreição de Jesus e sua volta, no futuro, na Parousia. Então, noite... quando ninguém pode trabalhar entende-se como a época posterior à Parousia, quando a missão já está cumprida (cf., o hino, “Ceifeiros - a noite em breve vai descer”, Salmos e Hinos, 450). Entretanto, dia e noite não são empregados dessa forma no Evangelho de João e tampouco noutras passagens do Novo Testamento (ao contrário, cf., Romanos 13:12; 1 Tessalonicenses 5:1-11; 2 Pedro 1:19). 9:5 / Sou a luz do mundo. Cf. 8:12. Em Mateus 5:14, Jesus emprega a expressão “luz do mundo” a fim de descrever seus discípulos. Mas, aqui, a despeito do verbo no plural (“devemos”) do versiculo precedente, o foco está em Jesus e em sua singularidade. A luz está no mundo enquanto ele prossegue em seu trabalho, sendo a escuridão a hora de sua paixão. 9:7 / (que significa o Enviado). A etimologia de Siloé dando o sentido de Enviado não foi criada artificialmente no interesse do simbolismo do autor. Afinal, a água do tanque fora “enviada” literalmente, ou “conduzida”, da fonte de Giom, pelos condutos de Ezequias (cf. 2 Reis 20:20; 2 Crônicas 32:30; a história também é narrada pela inscrição de Siloé, descoberta no túnel, em 1880, e retratada em Jerusalem, City of Jesus, de R. M. Mackowski [Grand Rapids: Eerdmans, 1980], pág. 74.) É incerto se a palavra Enviado (heb. salah) é derivada mesmo, ou não, do nome Siloé. De qualquer forma, é bem provável que a etimologia já estivesse ligada ao nome, quando o Evangelho foi escrito. Talvez o autor tenha aproveitado uma etimologia existente, com o objetivo de estabelecer uma conexão simbólica entre este tanque e o Espírito enviado por Deus (cf. 7:39). É que a água utilizada na festa dos tabernáculos era, de acordo com a Misna [sukkah 4.9], tirada desse tanque.

25. A Investigação (João 9:13-34)

Quando as entrevistas informais a que os vizinhos do ex-cego o submeteram resultaram em nada, eles o levaram aos fariseus (v. 13). O narrador aproveita a oportunidade para acrescentar uma nota importante: o milagre ocorrera num sábado. O narrador, por isso, refere-se de novo à prática de Jesus (v. 14), visto que foi o processo, e não a cura em si, que violou a lei do sábado (i.e., a Misna, shabbath 7.2). Da mesma forma como ocorreu na cura de Betesda, no capítulo 5, o conflito se centraliza em duas questões interligadas: quebra do sábado e identidade de Jesus (cf. 5:16-18). De que modo se há de reconciliar o comportamento ilegal de Jesus com a idéia de que ele veio de Deus? A negação da origem divina de Jesus (v. 16) aparece de súbito, na narrativa, visto que Jesus não faz afirmações explícitas de si mesmo, neste capítulo. A reação dos fariseus parece pressupor, até certo ponto, as controvérsias dos capítulos 7 e 8. Os próprios fariseus estavam divididos acerca de Jesus (v. 16), à semelhança do populacho durante a festa, em 7:40-43, embora o grupo dominante seja, claramente, o dos que afirmam que Jesus não é de Deus. A investigação deles prossegue, em três estágios: após a entrevista inicial com o ex-cego (vv. 13-17), os fariseus convocam seus pais (vv. 18-23), e quando essa troca nenhum resultado apresenta, chamam o ex-cego novamente para uma segunda rodada de perguntas (vv. 24-34). Quanto ao homem propriamente dito, quanto mais o bombardeiam e lhe pedem que repita a história, mais cresce sua compreensão sobre Jesus. Perante os circunstantes, ele fala de modo não comprometedor a respeito de o homem cham ado Jesus (v. 11); sob interrogatório formal ele conclui, de início, que Jesus é profeta (v. 17; cf. 4:19); por fim, depois de um áspero interrogatório cruzado, atira aos fariseus a mesma frase com que a controvérsia se iniciara: Jesus vem de Deus (v. 33; cf. v. 16). Essa é a frase que causou sua expulsão da sinagoga (v. 34). O propósito de interrogar os pais do ex-cego (vv. 18-23) foi sacudir, e abalar, se possível, o testemunho implícito no fato de que esse homem, que obviamente agora podia enxergar, na verdade era o mendigo de Jerusalém, que todos sabiam haver nascido cego. A identidade desse cidadão, em quem o poder de Deus podia ser visto em operação, toma-se

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pista para a descoberta da identidade de Jesus. Os pais foram rápidos na verificação dos fatos (v. 20) mas, não se dispuseram a dar-lhes uma explicação. Sabiam que a questão do como (vv. 19, 21), na verdade era uma questão de quem (v. 21), e não estevam dispostos a discutir Cristologia. A explanação do narrador (vv. 22-23) dá a entender que os pais do ex-cego sabiam (ou pelo menos suspeitavam) mais do que diziam. A verdadeira razão do silêncio deles era o medo, não a ignorância. J á os judeus tinham resolvido que quem confessasse ser Jesus o Cristo, fosse expulso da sinagoga (v. 22). Se os pais agiram como agiram por causa desse decreto, deveriam saber que a cura de seu filho era obra de Jesus, e que estava relacionada à questão do messianismo do Senhor, como deixa implícito o narrador. A afirmação deles que não sabiam quem havia curado o filho (v. 21) era, portanto, falsa. Para que a atitude dos pais e o comentário que se lhe segue façam sentido, o decreto mencionado no v. 22 precisa ser entendido no contexto dos acontecimentos anteriores, registrados neste Evangelho. Jesus estava sendo procurado pelas autoridades desde o capítulo 5. A multidão da Galiléia o havia proclamado “o Profeta que devia vir”, e tentou “arreba­ tá-lo para o fazerem rei” (6:14-15). Na festa dos tabernáculos, entre as especulações populares sobre se ele seria o Messias, ou não, os guardas tentaram, sem sucesso, prendê-lo (7:25-36, 40-52). Havia suspeitas de que ele “engana o povo” (7:12); os que criam nele eram taxados de “plebe, que nada sabe a respeito da lei, é maldita” (7:49). Não é de surpreender, portanto, verificar que as autoridades tentavam eliminar da sinagoga todo aquele que se declarasse um seguidor de Jesus como o Messias. O temor que nutriam contra movimentos messiânicos resumese, dois capítulos adiante, numa reunião do Sinédrio: “Este homem realiza muitos sinais miraculosos. Se o deixarmos prosseguir assim, todos crerão nele, e virão os romanos e tomarão o nosso lugar e a própria nação” (11:48). Confessar a Jesus como sendo o Messias era politica­ mente perigoso; as autoridades religiosas desejavam isolar os que faziam tal confissão, de modo que pudessem evitar que os romanos ficassem com a impressão de que a sinagoga de algum modo se tomava base de atividades revolucionárias. O silêncio dos pais do ex-cego induz a uma confrontação final entre ele e os fariseus (vv. 24-34). A medida que o diálogo vai prosseguindo, o homem toma-se cada vez mais seguro de suas opiniões. De início, ele

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apenas repete o refrão: Eu era cego, e agora vejo, sem arriscar um julgamento sobre a asserção dos fariseus sobre ser Jesus um pecador (v. 25). Irrita-se ele, porém, diante da convocação para repetir os pormenores outra vez: J á vos disse... P ara que quereis ouvir de novo? Quereis fazer-vos tam bém seus discípulos? (v. 27). Amaldiçoando o sarcasmo do ex-cego, os fariseus fazem vir à tona o que, para o autor do Evangelho, é a verdadeira questão em jogo: Eles são discípulos de Moisés, enquanto o homem que nascera cego é discípulo de Jesus (v. 28). Da perspectiva do autor do Evangelho, até isso é erro devido a má compreensão, visto que Jesus havia dito: “Se crêsseis em Moisés, creríeis também em mim, pois ele escreveu a meu respeito” (5:46). Entretanto, essa má compreen­ são serve para salientar a situação prevalecente nos dias do autor do Evangelho: Há duas comunidades, a dos discípulos de Jesus, e a dos discípulos de Moisés, ambas afirmando que falam em nome de Deus. “Cristianismo” e “Judaísmo” estão-se tomando entidades distintas, e rivais, à medida que a igreja começa a definir-se, sobrepujando a sina­ goga. As palavras dos fariseus eram quase proféticas: o antigo mendigo e cego estava transferindo sua fidelidade de uma comunidade para outra. Todavia, no mesmo instante armaram os fariseus uma arapuca para si mesmos ao admitir que, no que concernia a Jesus, nem mesmo sabemos de onde é (v. 29). Esse era o modo enfático de eles negarem que Jesus viera de Deus (cf. v. 16), embora para o ex-cego (e para o narrador) isso apenas refletia a ignorância deles (cf. 8:14). As últimas palavras desse homem aos fariseus carregam a mesma dose de sarcasmo que ele lhes inoculara momentos antes (v. 30; cf. v. 27) mas, bem depressa adquirem um tom de seriedade (vv. 31-33), quando ele expressa suas verdadeiras convicções. Os fariseus tinham razão: ele é discípulo de Jesus. Ele não fica neutro, diante da afirmativa de que Jesus é pecador (contraste v. 25). Jesus não pode ser pecador, conclui o ex-cego, porque sabemos que Deus não ouve a pecadores. Ele ouve ao homem que é temente a Deus e faz a sua vontade (v. 31). O ex-mendigo e cego atribui sua cura a Deus, sendo Jesus o intercessor que pede a Deus que aja. Entretanto, ao mesmo tempo ele pode afirmar sem hesitação que foi Jesus quem lhe curou a cegueira (vv. 30, 32). Sua perspectiva sobre milagres coincide com perfeição com a do autor do Evangelho, e também com o Jesus retratado neste Evangelho (cf. 11:41-42). As obras de Jesus são as obras de Deus

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(cf. v. 4; 4:34). Não se pode atribuir alguns milagres ao Pai e outros ao Filho; tudo quanto acontece redentivamente é obra do Pai mediante o Filho (cf. 5:17-29), podendo ser visto de forma legítima desta ou daquela perspectiva. Embora o homem que nascera cego seja porta-voz de um Jesus ausente, durante todo o debate, e também de uma teologia que leva o endosso explícito do narrador, trata-se, todavia, de um indivíduo que fala por si. Conta sua história com realismo e humor. Diferentemente do doente do capítulo 5, este homem tem personalidade, espírito ágil e convicções fortes. Diferentemente de Nicodemos, não deixa dúvidas sobre o que ele pensa de Jesus. É certo que se trata de um dos caracteres mais memoráveis de todos os evangelhos. Suas respostas rápidas, cheias de ironia (vv. 27, 30), bem como seu testemunho sério a favor de Jesus (vv. 31-33), irritaram seus interrogadores e lhes frustraram as pretensões. Eles reagem (desprezando a cura do homem), revertendo à crendice popular expressa pelos discípulos de Jesus, logo no início da narrativa, segundo a qual aquela deficiência física de nascença significava que ele havia nascido em pecado (v. 34; cf. v. 2). E assim, concluindo que o ex-mendigo e cego havia exaltado Jesus como o Messias, expulsaramno da sinagoga (v. 34; cf.v. 22). E assim é que a história do cego de nascença vem emoldurada por referências ao seu nascimento em pecado (vv. 2, 34). O objetivo da história não é afirmar, e tampouco negar, que ele nascera em pecado mas, retratar-lhe a cura milagrosa como uma transformação tão completa que constitui um verdadeiro novo nascimento. Finalmente, aqui está o oposto de Nicodemos, um convertido a Cristo sobre cuja experiência não pode pairar a menor dúvida. Se o diálogo com Nicodemos deixou bem clara a impossibilidade de entrarmos no reino de Deus sem o novo nascimento, a história do ex-cego e mendigo dramatiza a possibilidade, na verdade a inevitabilidade de entrarmos nesse reino desde que tenhamos verdadei­ ramente nascido “da água e do Espírito” (3:5).

Notas Adicionais # 25 9:22 / fosse expulso da sinagoga: esta expressão (gr.: aposynagogos), ocorre em 16:2 com respeito à experiência dos cristãos após a ressurreição de Jesus e, em 12:42 (como aqui), com referência à possibilidade já existente durante o ministério terreno de Jesus. Muitos comentaristas acreditam que essa expressão é anacronismo, no Evangelho de João. Diz-se que reflete uma prática instituída

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cerca de 90 d.C., de excluir os judeus cristãos das sinagogas mediante a exigência feita, como parte da oração conhecida como as Dezoito Bênçãos (ou shemoneh esreh, uma maldição sobre os minim e nozrim ([i.e., provavelmente os “hereges” e os “nazarenos”, ou cristãos]; a questão era que os judeus cristãos não podiam amaldiçoar a si mesmos e, portanto, tinham que ir embora). Entretanto, a expulsão, quer potencial, quer real, é parte integrante, inseparável, da história do ex-cego, de modo que é preciso procurar talvez outra explicação. Se a palavra-chave é Cristo (com as associações de ordem política que esse título carregava, no tempo de Jesus), a decisão das autoridades (tinham resol­ vido) mencionada nesse versículo faz sentido neste contexto literário, e pode refletir (embora não se possa comprovar) a situação prevalecente perto do fim do ministério de Jesus. 9:24 / Dá glória a Deus. É uma espécie de expressão idiomática usada com o objetivo de reforçar uma verdade pronunciada por alguém (como, e.g., em Josué 7:19); cf. GNB. 9:27 / e não ouvistes. Um antigo papiro e alguns manuscritos antigos omitem a negativa, de modo que o texto ficaria assim: “Já vos disse, e vós ouvistes”. Este texto prepara o leitor, logicamente, para o que se segue: para que quereis ouvir de novo? Entretanto, o texto como aparece em ECA e NIV tem base mais sólida nos manuscritos, e ecoa as palavras do próprio Jesus em situações similares, neste Evangelho (cf. 8:43,47). quereis fazer-vos também: esse também é interessante, porque pode ser tomado como admissão tácita do ex-cego que ele próprio se tomara discípulo de Jesus, algo que ele mesmo ainda não declarara mediante palavras. 9:281 discípulo dele: o termo dele em grego é ekeinos, aqui, e houtos no v. 29), e “desse camarada” em NIV. Contrasta com força com discípulos de Moisés, carregando um tom de zombaria e desprezo, transformando Jesus em figura anônima, sem credenciais que dêem valor à sua mensagem. 9:29 / este nem mesmo sabemos de onde é. É possível que o narrador esteja consciente da contradição entre esta declaração e 7:27: “mas nós sabemos de onde ele é, ao passo que quando o Cristo vier, ninguém saberá de onde ele é”. A ironia do contraste (se este for deliberado) é que os fariseus estão aqui, involuntariamente, dando testemunho do messianismo de Jesus, da crença que se determinaram estirpar. O significado que pretendem imprimir às suas palavras não é, com certeza, que ignoram o lugar de onde Jesus veio (contraste 6:42; 7:41, 52), e sim, que lhe rejeitam as credenciais. 9:31 / Nós sabemos. Esta frase, nos lábios do ex-cego ecoa o emprego que dela fazem os fariseus (de quem também escarnece), no v. 29. Em ambos os casos, há um apelo a algo comumente reconhecido como verdadeiro; entretanto, o propósito de tal apelo é refutar o adversário numa controvérsia. 9:34 / Tu és nascido todo em pecados: lit., “sua pessoa toda nasceu em pecados”. A palavra todo (gr.: holos é empregada em contraste com a deficiên­ cia única da cegueira. Os fariseus estão dizendo que há muito mais coisas erradas

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nesse homem, desde seu nascimento, além da cegueira (no final de contas, é a língua dele que os perturba tanto!). A cegueira congênita é mero sintoma de uma desgraça moral muito pior. O lado positivo desta perspectiva, para o autor do Evangelho, é que a restauração da visão pode servir eficientemente como símbolo do novo nascimento espiritual da pessoa integral. O uso do plural, “pecados”, no grego, sugere que os fariseus estão pensando não em pecado, como algo abstrato, mas em atos pecaminosos, específicos, quer da criança no útero, quer de seus pais (cf. v. 2). e nos ensinas a nós?: A palavra ensinas (lit.) é empregada aqui com uma conotação de autoridade (cf. 1 Timóteo 2:11, onde as esposas são advertidas contra o ensinar a seus maridos, ou seja, dominá-los, e não contra o ministério de ensino; cf. também Mateus 23:8 e talvez Tiago 3:1). e o expulsaram.: O contexto deixa bem claro que se trata de expulsão e exclusão formais (cf. v. 22), e não apenas remoção do recinto onde se processava o interrogatório.

26. Cegueira Espiritual (João 9:35-41)

Só faltava o ex-cego reencontrar Jesus em pessoa, para que a história ficasse completa. À semelhança de um pastor que procura sua ovelha perdida, Jesus toma a iniciativa de encontrá-lo. Jesus o encontrou, após a expulsão da sinagoga (v. 35), do mesmo modo que havia encontrado o paralítico, após a cura em Betesda (cf. 5:14). O Senhor apenas advertiu o ex-paralítico para que não pecasse mais; aqui, todavia, ele faz uma tentativa séria de estimular-lhe a fé: Crês tu no Filho do homem? Este é o único lugar, em todo o Novo Testamento em que Filho do homem é expressão empregada como termo de confissão ou credo. O leitor espe­ raria, em vez disso, “Filho de Deus”, ou “o Cristo” (cf. 1:34; 11:27; 20:31). Filho do homem é designação empregada pelo próprio Jesus. Todavia, há pouca evidência nos evangelhos de que o Senhor esperaria que as pessoas a empregassem, ou que seus contemporâneos soubessem seu significado. Parece que, de início, não era título, de modo nenhum, mas derivação de expressões aramaicas: bar nas (indefinida, “um filho de homem” ou “um homem”), ou bar nasa’ (definida, “o filho de homem” ou “aquele homem”), expressões empregadas virtualmente como pronomes (e.g., “alguém” ou “certa pessoa”). À luz deste contexto, a presente narrativa faz muito sentido. Pergun­ ta-lhe Jesus: “Você crê naquele homem [i.e., naquele homem que lhe restaurou a visão]? A resposta é: Quem é ele, Senhor, p ara que eu nele creia? (v 36). Tanto quanto sabemos, o ex-cego jamais pusera seus olhos em Jesus. Conquanto houvesse voltado do tanque de Siloé habilitado a enxergar bem (v. 7), não há a mínima indicação de que Jesus estivesse aguardando seu regresso. Ao ser interrogado pelos seus vizinhos, decla­ rou não saber onde estava Jesus (v. 12). A pergunta do ex-cego, no v. 36: Quem é ele, Senhor, para que eu nele creia? é, portanto, bastante natural. Não há jeito de ele saber que está falando à própria pessoa que lhe restituiu a visão. Tão logo Jesus se identifica (v. 37), o ex-cego crê (da mesma forma que disse que o faria, no v. 36), a cai de joelhos aos pés de Jesus, em adoração (v. 38). Esta reconstituição explica de modo lógico como o incidente poderia ter acontecido. A única dificuldade aqui é que no texto, como se nos

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depara, Filho do homem parece ser um título, e não mera expressão semelhante a um pronome indefinido, empregada para um indivíduo anônimo. A pergunta, “quem é esse ‘Filho do homem’?” se ergue uma vez mais neste Evangelho, entre a multidão na festa da páscoa, depois de Jesus ter afirmado “que convém que o Filho do homem seja levantado” (12:34). Ali, a pressuposição do autor é que “Filho do homem” é o termo de Jesus para Messias (para ele mesmo, de modo específico, como o Messias sofredor), e que o povo está tentando conciliarar essa noção com a que o povo mesmo formulou sobre o Messias (que “permanecerá para sempre”). Se a passagem em foco for entendida de modo semelhante, Jesus estaria perguntando ao ex-cego de nascença se ele crê no Messias. Se, como parece provável à vista da narrativa precedente, esse homem chegou à conclusão de que “o homem chamado Jesus” (v. 11) é o Messias, seu pedido é que possa conhecer esse Jesus e, se possível, encontrar-se com ele. A seguir, a auto-manifestação de Jesus, no v. 37, faz disparar a expressão de fé e o ato de adoração. À parte a reinterpretação que o autor do Evangelho dá a Fiiho do homem, como termo explicitamente messiânico, o sentido da conversa, no texto do Evangelho de João, constitui paralelo íntimo do sentido que tinha no ambiente original e também, talvez, nos mais antigos relatos desse milagre. O fato de a profissão de fé do ex-cego só aparecer depois de sua expulsão da sinagoga é forte evidência de que o interesse do narrador, aqui, é histórico, e não apenas teológico ou ilustrativo. Conquanto o ex-cego de nascença seja apresentado como um típico judeu convertido ao cristia­ nismo, ele aparece também como pessoa real, numa história verídica. Este “case study” (exemplo prático) é um fato real, não mero produto de ficção, e tampouco uma parábola ou alegoria, como se vê com clareza. O relato se encerra com uma profissão de fé, no v. 38. A partir do que aconteceu, Jesus apresenta uma generalização a respeito de sua missão no mundo. Ele veio para trazer julgamento, afirma ele, a fim de que os que não vêem, vejam, e os que vêem se tornem cegos (v. 39). Cegueira, aqui, toma-se metáfora. O tema da reversão expresso nesta metáfora faz lembrar certos ditados de Jesus, nos evangelhos sinóticos: por exemplo, “os sãos não necessitam de médico, mas, sim, os doentes. Eu não vim chamar os justos, mas, sim, os pecadores” (Marcos 2:17); “mas aos que estão de fora todas estas coisas se dizem por parábolas, para que vendo, vejam, e não percebam; e, ouvindo, ouçam, e não entendam; para que

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não se convertam, e lhes sejam perdoados os pecados” (Marcos 4:11-12). Jesus não está falando a alguém, em particular, neste ponto; suas palavras foram registradas para instrução do leitor. Todavia, visto que “a carapuça lhes serviu bem”, alguns dos fariseus (que até o presente momento não haviam dado nenhuma evidência de estarem presentes) intrometem-se e perguntam: Acaso tam bém nós somos cegos? (v. 40). Essa pergunta permite que Jesus tenha a oportunidade de contrastar dois grupos: o de pessoas como o ex-cego de nascença, que mostram pela aceitação da mensagem de Jesus que são suas “ovelhas”, e o das pessoas como os fariseus, que demonstram pela sua incredulidade que não lhe pertencem. Este contraste será o tema do próximo capítulo. Em resposta imediata à pergunta dos fariseus, Jesus revela que vem falando de modo metafórico, e prossegue, aplicando a metáfora e introduzindo a noção de pecado ou culpa (v. 41). Cegueira é uma metáfora adequada para pecado, assim como a capacidade de ver com clareza é metáfora de retidão (cf., e.g., 11:9-10; 12:35-36; 1 João 2:9-11). Entretanto, a reversão utilizada ao lado da metáfora (c. 39) está presente em sua aplicação também: os cegos não são culpados; os culpados são os que afirmam que podem ver. O cego foi curado; os fariseus, por causa da recusa teimosa em aceitar a realidade do poder de Deus, só fazem comprovar que de fato são cegos. A cegueira deles é pior porque é voluntária. No caso deles (e não no do ex-cego) a pergunta, “quem pecou?” (cf. v. 2) era uma pergunta que fazia sentido. O pecado deles sim, é que era sua cegueira, e não o pecado universal que caracteriza a condição humana, mas o pecado que se manifesta com a vinda de Jesus ao mundo (v. 39), e que consiste na negação da mensagem do Senhor. Mais tarde, em seu sermão de despe­ dida, Jesus haveria de estabelecer com clareza esse princípio: “Se eu não tivesse vindo, nem lhes tivesse falado, não teriam pecado. Agora, porém, não têm desculpa do seu pecado... ”Se eu não tivesse feito entre eles o que nenhum outro fez, não teriam pecado" (15:22,24; cf. 9:32: “Jamais se ouviu dizer que alguém tenha aberto os olhos a um cego de nascença”). Com essas palavras, permanece o vosso pecado (v. 41), Jesus exer­ cita a autoridade divina que no fim conferirá a seus discípulos, para que “retenham” (20:23) o pecado dos fariseus. O veredito lançado nos evangelhos sinóticos de que eles eram “guias cegos” (Mateus 23:16, 17, 19) ou como “um cego” guiando “outro cego” (Mateus 15:14), fica solenemente enfatizado. Os cegos que eles, na sua presunção, estão

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conduzindo, entrarão no reino de Deus, enquanto eles mesmos permane­ cem na escuridão.

Notas Adicionais # 26 9:36,38 / Senhor... Senhor: a mesma palavra no grego kyríe é traduzida por Senhor em ambos os versículos. No v. 36, o ex-cego ainda ignora a identidade de Jesus, pelo que o chama de senhor, respeitosa forma de dirigir-se a um adulto desconhecido. No v. 38, Jesus se deu a conhecer, de modo que Senhor é expressão de fé e adoração devidas a Deus. Na NIV aparece “Sir”, no v. 36, e “Lord”, no 38. 9:37 / Tu já o viste, e é aquele que fala contigo. Cf. a auto-manifestação de Jesus à mulher samaritana, em 4:26 (“Eu o sou, eu que falo contigo). A ausência da expressão ”Eu Sou" aqui, onde poderia ser esperada, talvez possa explicar-se pelas palavras precedentes, tu já o viste, que colocaram o pronunciamento de Jesus na terceira pessoa. Viste é palavra usada, provavelmente, com o objetivo de salientar que o homem está vendo Jesus, agora, pela primeira vez em sua vida. 9:39 { Eu vim a este mundo para juízo. Estas paíavras parecem contradizer 12:47b (“eu vim, não para julgar o mundo, mas para salvá-lo”), mas cf. 12:48: as palavras de Jesus são a pedra de toque mediante as quais se executará o juízo (cf. também 3:17 com 3:18-21).

27. Jesus, o Bom Pastor (João 10:1-21)

O breve diálogo entre Jesus e os fariseus em 9:39-41 é apenas o começo de um sermão que se estende (com uma interrupção apenas) por quase todo o capítulo 10. O padrão verificável nos capítulos 5 e 6: utn milagre seguido de um sermão que o explica, mantém-se aqui, também. O que o capítulo 10 interpreta, contudo, não é a cura do cego, como tal, mas os eventos que se sucederam à cura, isto é, a expulsão do ex-cego da sinagoga e sua profissão de fé em Jesus. Dois contrastes dominam todo o capítulo: o contraste entre os fariseus e Jesus, como pastores do povo, e o contraste entre os fariseus e o ex-cego, como recipiendários da mensagem de Jesus. A fala de Jesus dirigida aos fariseus tem duas partes (vv. 1-6 e 7-18), cada uma delas prefaciada pela expressão característica Em verdade, em verdade (vv. 1,7; cf. 1:51). A primeira parte é chamada de parábola (ou “figura de linguagem”, v. 6); a segunda parte utiliza a comparação da parábola de duas maneiras diferentes, a fim de reapresentar as vindicações de Jesus (vv. 7-10, 11-18). Essa não é bem uma parábola (i.e., história imaginária que expande em metáfora, freqüentemente com um fim surpreendente). Em vez disso, temos aí uma descrição genérica de uma cena familiar na Palestina do primeiro século, de pastores e ovelhas. Como tantas outras histórias de Jesus, narradas nos sinóticos, poderia ser chamada parábola da normalidade, visto que descreve o que normalmen­ te ocorre em certas situações do dia a dia. O jejum, por exemplo, é normal quando morre alguém mas, seria anormal numa festa de casamento (Marcos 2:18-20). Os médicos de modo geral são indicados para pessoas doentes, e não para quem está sadio (Marcos 2:17). O vinho novo deve ser guardado em odres novos (Marcos 2:22). Se uma ovelha cai numa cova num dia de sábado, seu dono a removerá dali (Marcos 12:11), o que retrata uma imagem mais aproximada da presente passagem. Se um pastor perde uma ovelha, ainda que noventa e nove estejam em seguran­ ça, ele deixa estas entregues a si mesmas e sai à procura da que se extraviou (Lucas 15:4). Mesmo que não constituam cenas de todos os dias, pelo menos são atos normais entre as emergências de cada dia. É desse tipo a parábola dos vv. 1-5. Se percebemos que alguém está

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transpondo a cerca do redil de ovelhas a fim de apanhá-las, em vez de entrar pela porta, talvez seja lícito concluir que não se trata do pastor, nem do dono das ovelhas (v. 1). O verdadeiro pastor entra pelas vias normais; o guarda (provavelmente um aprendiz de pastor, ou pastor-ajudante) o reconheceria, e até mesmo as ovelhas conhecem sua voz. O pastor, por sua vez, chama as ovelhas pelo nome e, visto conhecerem-lhe a voz, não há dificuldade em conduzi-las às pastagens (vv. 2-4). Tudo isso representa o procedimento normal. Todavia, se um estranho tentasse conduzi-las para fora de modo semelhante, as ovelhas fugiriam dele, assustadas pela voz desconhecida (v. 5). O ponto central deste relance rápido da vida rural palestina não se esclarece de imediato. Por enquanto, o leitor poderia até sentir simpatia pelos fariseus (cf. 9:40-41) que ouviram Jesus contando a história; mas eles não entenderam o que ele queria dizer (v. 6). Há, definitivamente, grande diferença entre falsos pastores e verdadeiros pastores de ovelhas (v. 1). Esse contraste é bem antigo, no judaísmo, tão antigo como Ezequiel 34, com a denúncia dos falsos líderes de Israel (34:1-10), e a proclamação do próprio Deus de que ele assumirá o papel de Pastor de seu povo (34:1-31). Na história de Jesus, três coisas distinguem o verdadeiro pastor do falso: o verdadeiro entra pela porta, o guarda lhe permite a entrada e o rebanho lhe reconhece a voz. Que a mais importante dessas características é a terceira, demonstra-o a reiteração nos versículos 3 ,4 e 5. O verdadeiro pastor, contrariamente ao ladrão e assaltante (v. 1), é aquele cuja voz as ovelhas reconhecem e à qual atendem. Aplicando este princípio à narrativa precedente, a do cego de nascença, poderíamos concluir que Jesus é reconhecido como o verdadeiro pastor pelo fato de a ovelha (i.e., o ex-cego) ter ouvido sua voz, e tê-lo seguido, e não aos fariseus. Esta conclusão teria mérito se a questão levantada e respondida pela parábola fosse: “Quem é o verdadeiro pastor?” (a resposta seria: “aquele que é aceito pelas ovelhas). Entretanto, a validade da missão de Jesus no Evangelho de João não depende de ele ser aceito por alguém. Presume-se que Jesus é o Messias e também o verdadeiro Pastor de Israel, inde­ pendentemente de como as pessoas reagem à sua Pessoa. Se assim é, a questão que a parábola elucida não é primordialmente: “Quem é o verdadeiro pastor?” (cuja resposta óbvia seria: Jesus) mas, “Quem são as ovelhas?” (cuja resposta certa seria: todos quantos ouvem-lhe a voz

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de Pastor verdadeiro e lhe obedecem). Não se testam pastores, neste capítulo, mas ovelhas. Os ouvintes de Jesus é que estão sendo julgados, não o próprio Jesus. O cego de nascença comprovou ser ovelha de Deus pela fé em Cristo. Que acontecerá aos fariseus que estão ouvindo essa história? Jesus já os pronunciou culpados (9:41), sendo que o debate subseqüente apenas reforçará esse veredicto. Resta a Jesus aplicar a linguagem da parábola na confrontação que prossegue, entre ele próprio e as autoridades religiosas do judaísmo. O resultado não é uma interpre­ tação unificada da parábola, mas vários ecos e extensões diferentes da parábola. Esta seção do sermão é prefaciada pela expressão Em verdade (v. 7), e conclui com as palavras: os judeus se dividiram novam ente (gr.: schisma) por causa do que Jesus lhes dissera (vv. 19-21). Há aqui duas subseções, cada uma delas marcada e iniciada por pronunciamentos com Eu Sou. A primeira subseção (vv. 7-10) contém este pronunciamento: Eu sou a porta das ovelhas (v. 7), e, de novo, Eu sou a p orta (v. 9). A segunda (vv. 11-18) apresenta este pronunciamento: E u sou o bom pastor duas vezes (vv. 11 e 14). A primeira subseção responde de pronto a uma pergunta que prova­ velmente não é feita. O leitor poderia reagir, diante dos vv. 1-6, pergun­ tando sobre o pastor, ou sobre as ovelhas mas, com toda probabilidade, não perguntará sobre a identidade do porteiro (v. 3), nem sobre como identificar a porta! No entanto, Jesus começa a expandir a parábola, não por onde nós o esperaríamos, dizendo “Eu sou o pastor”, mas por um pormenor inesperado: Eu sou a porta das ovelhas (lit.). É verdade que a porta foi mencionada com certa ênfase no início da história. Entrar no redil “pela porta” (v. 1) é fazer entrada legítima. A porta, portanto, poderia ser interpretada como a legitimidade para os que se propõem ser “pastores” (líderes) entre o povo de Deus. O pronuncia­ mento de Jesus, nesse caso, deveria ser entendido como “Eu sou a porta para as ovelhas” (i.e., os que procuram acesso ao povo de Deus como líderes desse povo devem possuir autoridade derivada de Jesus). Inter­ pretado desse modo, o pronunciamento tem relevância para a igreja de Cristo à época em que o Evangelho estava sendo redigido; mas, é difícil sabermos como os fariseus que ouviram Jesus teriam entendido isso. Além do mais, a interpretação mais natural de a porta das ovelhas, como aquela tradução sugere, é a porta usada pelas ovelhas para entrar e sair,

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não a porta de acesso às ovelhas. Esta tradução e interpretação têm apoio no v. 9: E u sou a porta. Todo aquele que en tra r por mim, salvar-se-á. E n trará e sairá, e achará pastagens. A metáfora da porta apresenta Jesus como o caminho para a salvação (cf. 14:6), não como aquele que dá validade a ministérios. Ele veio para que todos quantos crerem tenham vida, e a tenham em abundância (v. 10). A metáfora da porta empregada nos vv. 7-10 está relacionada apenas de leve à porta mencionada na história propriamente dita. Antes de ser a porta, Jesus é aquele que vem (w . 8,10). Este verbo - que não faz parte da metáfora da porta - tem prioridade sobre a metáfora, de modo que a limita e controla. É como Aquele que vem - de modo específico como o Messias - que Jesus se auto-designa a porta das ovelhas. Ele é o caminho para a salvação, não de modo passivo (como a palavra p o rta por si mesma poderia sugerir), mas de modo ativo, de alguém que veio para salvar. Também é como Aquele que vem que Jesus contrasta a si próprio com todos que vieram antes de mim, que são ladrões e assaltantes, mas as ovelhas não os ouviram (v. 8), mais uma vez apanhando uma frase da própria história (v. 1). O propósito do contraste é tomar bem claro que Jesus é o único caminho para a salvação. Mais tarde ele diria a seus discípulos: “Ninguém vem ao Pai, senão por mim” (14:6). Num contexto muito diferente, nos sinóticos, Jesus é retratado admoestandonos assim: “Entrai pela porta estreita. Pois larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por ela” (Mateus 7:13-14; cf. Lucas 13:24). Dizer que todos que vieram antes de mim são ladrões e assaltantes (v. 8) é apenas um modo diferente de dizer que todas as demais portas são falsas, que todos os demais caminhos são enganosos. Alguns viram aqui uma alusão a falsos pretendentes messiânicos (dos quais havia alguns nos dias de Jesus); todavia, essa referência talvez não seja tão específica assim. A repetição da declaração iniciada com “Eu Sou” fornece uma estru­ tura dentro da qual se salientam dois pontos distintos. A primeira decla­ ração (v. 7) é seguida pelo contraste entre Jesus e todos os mestres e ensinos falsos (v. 8). A segunda declaração (v. 9a) vem precedida de uma descrição apropriada das funções da porta: ela dá às ovelhas acesso fácil ao redil, à segurança, à liberdade e às pastagens (v. 9b). Estas são, também, as funções de Jesus: Ele concede proteção contra o mal, e vida abundante a seus seguidores (vv. 9b-10). Repete-se aqui o contraste com

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os ladrões, visto que estes fazem exatamente o contrário. O ladrão só vem p ara roubar, m atar e destruir (v. 10a). Há um padrão semelhante nos versículos 11-18. A primeira menção de Eu sou o bom pastor (v. 11) precede um contraste com o pastor que não é tão bom (i.e., o mercenário, vv. 12-13). A segunda menção (v. 14a) é precedida de uma descrição de como age o bom pastor, numa referência explícita à obra real, redentiva, de Jesus (vv. 14b-18). O principal ensino, inerrante, dessa passagem é que Jesus é o Pastor que se sacrifica por suas ovelhas: dou a minha vida pelas ovelhas. Tal assertiva é feita logo de início, ao jeito de uma definição de bom (v. 11) e de novo, no meio, como parte de uma revelação ou profecia sobre a obra salvífica que Jesus está prestes a realizar (v. 15). Os dois últimos versículos são devotados integralmente ao exame teológico dessa assertiva, em maior profundade (vv. 17-18). Esta subseção apresenta algumas características não encontradas na parábola inicial. Não se deve igualar m ercenário (vv. 11-13) a ladrão e assaltante (v. 1), este último mencionado também na polêmica da porta, no v. 8. O papel do mercenário é assumido por outro, pelo lobo (v. 12), que ataca o rebanho, e dispersa as ovelhas. O mercenário é apresentado apenas para formar contraste com o bom pastor. A diferença entre eles é que o bom pastor arriscará a própria vida a fim de proteger o rebanho, o que o mercenário jamais fará. Afinal, as ovelhas não pertencem ao mercenário, (v. 12) cujo sustento delas não depende, e o bem-estar delas não lhe interessa como interessa ao pastor. O mercenário não representa de modo simbólico nenhum grupo particular de Israel (e.g., os fariseus), e tampouco a descrição que dele faz o Senhor pretende ser acusação aos líderes de Israel. O mercenário aparece nesse sermão apenas para fazer contraste com o bom pastor que dá sua vida pelas ovelhas, a fim de livrá-las dos predadores. Tais predadores - os ladrões e assaltantes e o lobo saqueador - são os verdadeiros inimigos do rebanho e do pastor. A quem representam, então? Para Jesus, representam todas as forças do maligno, que o Senhor veio destruir: os demônios, ou espíritos imundos, aos quais expulsou das pessoas deles possuídas; o “valente”, a quem o Senhor amarrou e cujos cativos libertou (Marcos 3:27); as autoridades religiosas que acusaram o Senhor de estar ligado a satanás (Marcos 3:22), e que finalmente planejaram e executaram a prisão e morte do Senhor. Para o narrador, os inimigos do rebanho representam aquelas mesmas

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autoridades religiosas que já estavam tentando matar Jesus (cf. 5:18; 8:40), e expulsavam seus seguidores da sinagoga (9:22,34). Esse mesmo grupo mais tarde condenará o Senhor à morte, e o executará, e expulsará das sinagogas seus discípulos - tudo isso em nome da piedade (16:2-3)! O lobo, bem como os ladrões e assaltantes, representam neste Evangelho as usurpações e invasões do “mundo” perverso, em toda a sua alienação de Deus. contra os seguidores de Jesus (cf. 15:18-25). É contra o “mundo” que o rebanho precisa ser protegido (cf. 16:33; 17:11, 14-16). Jesus, o Pastor, dará sua vida a fim de protegê-lo e salvá-lo. A idéia do pastor que arrisca a própria vida por amor das ovelhas transforma-se, quase imperceptivelmente, de metáfora em realidade, à medida que o sermão prossegue. O quadro pintado no v. 11 é o de um pastor que dá a sua vida pelas ovelhas, i.e., na defesa do rebanho atacado pelo lobo. Os vv. 11-13 são uma metáfora prolongada, uma história à parte que faz parelha com a parábola dos vv. 1-5. No mínimo, ambas provêm um esboço em que figuram dois caracteres diferentes (i.e., o pastor e o mercenário) mas, acima de tudo, retratam com realismo o lobo que ataca o rebanho, com o mercenário fugindo a fim de salvar a própria vida. Primeiro vem a chave interpretativa dessa história: Eu sou o bom pastor (v. 1la). A seguir conta-se a história, como se fora uma parábola, inteiramente na terceira pessoa: O bom pastor dá a sua vida pelas ovelhas (v. 1lb). Prossegue a história até o versículo 13. Mas, os versículos 14-16 são diferentes. A repetição de Eu sou o bom pastor necessariamente traz Jesus de volta ao uso da primeira pessoa. Desta vez, porém, ele prossegue nesse uso: Eu conheço as minhas ovelhas, e as minhas ovelhas me conhecem. Assim como o Pai me conhece, também eu conheço o Pai, e dou a m inha vida pelas ovelhas... tenho outras ovelhas... a mim me convém agregá-las também. Isto deixa de ser figura de linguagem, ou parábola, para ser uma automanifestação do Filho. Embora ele empre­ gue metáforas, estas palavras não são metafóricas; elas cumprem o objetivo de descrever literalmente a realidade. Nada aqui tem que ver com pastores e ovelhas. Tudo aqui se refere a Jesus e a seus discípulos, seu Pai, e a morte redentora do Senhor. Quando Jesus fala do conheci­ mento mútuo que há entre ele e o Pai, e entre ele e seus discípulos (v. 15), suas palavras nos fazem lembrar sua automanifestação em Mateus 11:27: “Ninguém conhece o Filho, senão o Pai, e ninguém conhece o Pai,

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senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar”. Quando Jesus diz: dou a m inha vida pelas ovelhas (v. 15), está bem claro que ele não está falando de lutar fisicamente contra lobos, mas de morrer na cruz a fim de redimir os que nele crêem. E quando o Senhor promete: tenho outras ovelhas... me convém agregá-las também... e haverá um rebanho e um pastor (v. 16), está profetizando a missão da igreja aos gentios, após sua morte e ressurreição (cf. a explícita referência do narrador a esta missão em 11:52). Portanto, os vv. 14-16 compreendem um resumo inerrante,- embora parcial, da missão de Jesus, desde seus primórdios (assim como* o Pai me conhece, tam bém eu conheço o Pai) até seu cumprimento total na história (haverá um rebanho e um pastor, cf. 11:52; 17:20-23). Tal resumo não provém dos discípulos de Jesus, sob a forma de credo, mas dos próprios lábios de Jesus, como revelação. Entretanto, há algo irracional em tudo isso. Como é possível que Jesus morra e ainda assim ser capaz de reunir suas ovelhas num só rebanho? Nessa corrente de atos redentivos falta um elo essencial. O Senhor precisa ressurgir dentre os mortos. A magna questão dessa passagem é que a morte de Jesus resulta na unidade do rebanho; todavia, a presunção não expressa por palavras é que a unidade só é possível por causa da ressurreição. Em vez de morte seguida de ressurreição, o padrão é morte seguida da reunião da comunidade, sendo a ressurreição o elo (de que não se falou) que une a ambas. O mesmo padrão encontra-se em Marcos 14:27-28, onde Jesus diz a seus discípulos: “Está escrito: ferirei o pastor, e as ovelhas se dispersarão. Mas, depois que eu tiver ressurgido, irei adiante de vós para a Galiléia”. Aqui, a ressurreição é mencionada numa cláusula subordinada apenas, enquanto em João 11:51-52 nem sequer é mencionada (“Jesus morreria... não somente pela nação, mas também para reunir em um só corpo os filhos de Deus que andavam dispersos”). Na passagem em foco a ressurreição se toma explícita nos versículos 17-18. Jesus explica que dará sua vida p ara to rn ar a tomá-la (v. 17). Diferentemente do pastor ferido, de Zacarias 13:7 (texto escriturístico citado em Marcos 14:27), Jesus apresenta-se aqui como alguém que morre voluntariamente e por sua própria iniciativa: Ninguém a tira de mim, mas eu espontaneamente a dou. Eu tenho autoridade p ara dá-la, e autoridade para to rn ar a tomá-la (v. 18). A vida do Senhor, como toda e qualquer vida (cf. 5:21,26) está à sua disposição. Se “o Filho vivifica aqueles a quem quer” (5:21), não é de surpreender que ele possa

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recuperar sua própria vida das garras da morte. No entanto, o Filho não é autônomo (cf. 5:19,30). Quer na morte e ressurreição, quer na formação de nova comunidade, Jesus sempre age sob o comando de seu Pai (v. 18b; cf. 14:31). Ele tem autoridade para fazer apenas o que o Pai quer que seja feito. Todavia, por que o comando e a autoridade estão fundamentados no amor do Pai pelo Filho (cf. 3:35; 5:20), o amor também é a ação responsiva do Pai ao fiel cumprimento de Jesus da obra do bom pastor (v. 17a). O breve sermão encerra-se quando os ouvintes de Jesus (w . 19-21) se dividiram novamente (gr.: schisma; cf. 7:43; 9:16). É significativo que o que divide o povo judeu não é só a afirmação explícita que o Senhor acabara de fazer, quanto ao seu relacionamento singular com Deus, mas também o insistente fato de o Senhor haver dado visão aos cegos (v. 21). A controvérsia levantada pelo próprio ex-cego, no capítulo precedente, ainda está bem vívida (9:32-33). Tanto as palavras quanto as obras de Jesus continuam a desafiar seu auditório, e a forçá-lo a tomar uma decisão.

Notas Adicionais # 27 10:3 / suas ovelhas: alguns têm argumentado, a partir desta frase, que as ovelhas pertenceriam a vários pastores, ou donos, e que estariam reunidas num único redil. Contudo, a frase “o pastor das ovelhas” no v. 2 sugere, em vez disso, que todas as ovelhas pertencem a um pastor. A palavra suas (que também ocorre no texto grego do v. 4. “suas ovelhas”) não implica qualquer redundância; é possível que tenha sido escolhida, tendo o narrador em mente a aplicação a Jesus. Os discípulos de Jesus são os “seus” num sentido muito especial e íntimo (cf. 13:1; contraste 1:11, onde “os seus não o receberam”. Na parte final do Evangelho de João, os “seus” [referindo-se aos que pertencem a Jesus] vieram a ser identificados com o grupo mencionado em 1:12, dos que “crêem no seu nome” e receberam o direito e “o poder de serem feitos filhos de Deus”). 10:4 / tira para fora todas as ovelhas que lhe pertencem. Este versículo especifica o modo como o pastor as leva para fora (v. 3). Ele entra pela porta do redil e literalmente as empurra ou conduz pela porta; daí, após terem saído, o pastor caminha à frente das ovelhas, guiando-as às pastagens. A palavra grega para tira (ekballein) é a mesma palavra empregada para a expulsão da sinagoga, em 9:34-35, embora o paralelismo talvez seja mera coincidência. Não existe a menor intenção aqui de contrastar o “cuidado pastoral” de Jesus com a severa disciplina imposta pelos fariseus. 10:7 / eu sou a porta das ovelhas. Um antigo papiro e algumas versões antigas trazem: “o pastor das ovelhas”. Esta modificação parece resultar de um

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engano de escribas ao contrastar “pastor” com “ladrões e assaltantes” e ao presumir que é o pastor que está em foco, aqui. Todavia, o correto é porta. 10:8 / antes de mim: Estas palavras não fazem parte da metáfora da porta (i.e., antes da porta, ou em frente à porta, procurando entrar; cf. e.g., Tiago 5:9). Têm sentido temporal: todos os que até agora ofereceram meios de salvação são ladrões e salteadores. 10:9 / entrará e sairá: a ênfase aqui está na liberdade das ovelhas, em poder ir e vir, de acordo com suas necessidades. O pastor lhes provê proteção e pastagens. Não se trata de sair da salvação e depois a ela voltar. 10:10 / para que tenham vida, e a tenham em abundância. ECA indica de modo correto que a última frase é retórica. Não existem dois estágios na experiência cristã: vida e, depois, vida em abundância. A única vida espiritual que este Evangelho conhece é a vida em abundância. É a “vida eterna” que Jesus nos dá, que é a única vida genuína existente. A íntima conexão entre vida e liberdade nos faz lembrar de 8:32-36. 10:11 / dá a sua vida: (lit.: “alma”). O sentido é que o bom pastor arrisca sua vida pelas ovelhas (poderíamos dizer que “avalia as ovelhas como superiores à sua própria vida”). A mesma expressão idiomática nos w . 15, 17 (“dou a minha vida”) e no v. 18 (“a dou”) refere-se de fato à morte (morte de Jesus, na cruz), e não o mero perigo de morte. 10:16 / outras ovelhas: J. A. T. Robinson (Twelve New Testament Studies, Naperville, Dl.: Allenson, 1962) argumenta que as outras ovelhas são os judeus de língua grega, dispersos pelo mundo; mas, a ênfase dada pelo Evangelho de João na missão de Jesus ao mundo inteiro, e não apenas aos judeus (e.g., 1:10; 4:42; 12:32) favorece fortemente a identificação dessas ovelhas com os gentios (cf. 7:35). 10:17 / Quanto a um exemplo de um texto bastante antigo, desta passa­ gem, cf. Gospel of Philip 9: “Não só quando veio, entregou ele sua alma, quando desejou fazê-lo, mas desde o dia em que o mundo passou a existir havia ele dado sua alma. Quando ele assim o quis, veio tomá-la, visto tê-la dado em resgate. Estava com os ladrões, e havia sido levada em cativeiro. Mas, o Senhor a salvou”. (The Gospel of Philip, trad. de R. McL. Wilson, [Londres: A. R. Mowbray, 1962], págs. 29, 71). Ao lado da interpretação literal subsiste uma especulação sobre o aprisionamento de almas em corpos corruptos, até que Cristo venha libertá-las (confusão entre redentor e redimidos). A menção de “ladrões” lembra João 10:1. 10:19 / os judeus se dividiram novamente. É de todo provável que o mesmo auditório de 9:40-41 e 10:6 esteja presente aqui, a saber, os fariseus ou os líderes religiosos judeus, e não o povo como um todo. Até entre os fariseus havia os que respeitavam o poder de Jesus para curar (v. 21; cf. 9:16b).

28. Jesus é Rejeitado (João 10:22-39)

O registro de tempo e lugar, nos vv. 22-23, objetiva arrumar o palco para novo encontro entre Jesus e as autoridades judaicas, e não para demarcar os eventos de 9:1-10:19. A estrutura cronológica do ministério de Jesus, especialmente em Jerusalém, é montada segundo as festas religiosas judaicas. Destas, a última a ser mencionada é a festa dos tabernáculos, no outono (7:2), que é o contexto dos capítulos 7-8. Agora é inverno, e época da festa da dedicação (conhecida hoje como Hanukkah); presume-se que os acontecimentos de 9:1-10:19 tenham ocorrido no final do outono, entre as duas festas. A festa da dedicação celebrava a independência judaica e a restauração e reconsagração do templo, em 165 a.C., sob Judas Macabeu, após o templo ter sido profanado pelos gregos, sob o rei selêucida Antíoco Epifânio (veja 1 Macabeus 4:36-61; 2 Macabeus 10:1-8). Era uma época propícia para que palavras do tipo “somos descendentes de Abraão, e jamais fomos escravos de ninguém” (8:33) ganhassem vida no coração de cada judeu. À semelhança das ocasiões de outras festas, esta também era época de expectativas messiânicas. Conquanto os romanos respeitas­ sem o recinto do templo, e permitissem liberdade religiosa aos judeus, essa festa funcionaria como lembrete de que a independência política obtida sob os macabeus deixara de ser realidade. Para todos, exceto os ativistas militantes mais ardorosos, a única esperança de reconquistar a independência estava na vinda do Messias. A pergunta levantada no v. 24 (Se és tu o Cristo, dize-o abertam ente), entretanto, não representa um anseio popular genuíno pelo Libertador mas, antes, os esforços das autoridades empenhadas em fazer Jesus cair numa armadilha: que ele assumisse o papel messiânico. Afirmar “Eu sou o Cristo”, exatamente com essas palavras, seria equivalente a atrair todas e quaisquer tentativas de fazê-lo rei (6:15) e, desse modo, colocar o Senhor em sério perigo, em relação aos romanos. A cena nos faz lembrar o interrogatório de Jesus, nos outros evange­ lhos, ao ser ele julgado. “És tu o Cristo, o Filho do Deus bendito?” (Marcos 14:61; cf. Mateus 26:63; Lucas 22:67a). Aqui, como em Mateus e Lucas (não, porém, Marcos), a resposta de Jesus é ambígua: Eu já vos

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disse, e não credes (v. 25; cf. Lucas 22:67b-68, [“Se eu disser que sim, não o crereis. E se vos perguntar, não me respondereis”]). A ambigüidade reside no fato que neste Evangelho Jesus ainda não lhes disse (nem a outra pessoa qualquer, num contexto judaico) de modo taxativo, que ele é o Messias (embora o tenha declarado num ambiente samaritano, cf. 4:26). O que o Senhor tem em mente é que ele já lhes disse que é o Messias mediante suas obras (v. 25), de modo especial a cura do paralítico de Betesda e do cego de nascença (cf. v. 21). Tais milagres, realizados sob a autoridade do Pai, testificam que Jesus tanto é o Messias como o Filho de Deus (cf. 5:36; 20:31). Essa identificação se faz mediante os sermões aí registrados, nos quais Jesus expõe o significado desses milagres. Todos quantos rejeitam o testemunho unificado das obras e das palavras de Jesus comprovam, mediante tal rejeição, que não pertencem ao rebanho de Jesus (i.e., não sois das minhas ovelhas, e não estão sob o cuidado do bom pastor). É apenas outro jeito de dizer: “não pertenceis a Deus” (8:47). Com estas palavras: porque não sois das minhas ovelhas (v. 26), Jesus retoma à figura de linguagem empregada em 1-18. O que se segue nos vv. 27-30, porém, entende-se melhor não como parábola, mas como automanifestação do Filho, que usa a metáfora do pastor e da ovelha, bem ao estilo dos vv. 14-16. A auto-identificação de Jesus, aqui: “Eu sou o bom pastor”, está mais implícita do que explícita; mas, as atividades de Jesus como pastor e Filho são descritas de modo similar em duas seções: I. Versículos 14-16 (a) Eu conheço as minhas ovelhas, e as minhas ovelhas me conhecem. Assim como o Pai me conhece, também eu conheço o Pai (b) e dou a minha vida pelas ovelhas (c) Ainda tenho outras ovelhas que não são deste aprisco. A mim me convém agregá-las também. Elas também ouvirão a minha voz, e haverá um rebanho e um pastor.

II. Versículos 27-30 (a) as minhas ovelhas ouvem a m inha voz; eu as conheço, e elas me seguem.

(b) eu lhes dou a vida eterna, e jam ais perecerão. (c) ninguém poderá arreb atáIas da m inha mão. M eu Pai, que as deu a mim, é m aior do que todos; ninguém pode arrebatá-las da m inha mão.

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Formalmente, essas duas seções têm em comum o pronome “eu”, bastante revelador (ainda que do ponto de vista gramatical venha oculto, em português), sendo o Pastor/Filho quem fala. Quanto ao conteúdo, têm em comum três características: (a) o conhecimento mútuo entre pastor e rebanho (baseado na seção I, no conhecimento mútuo entre Pai e Filho), (b) a dádiva da vida do pastor às ovelhas (baseada na seção I, de modo específico na morte do pastor), e (c) o ministério do pastor a seu rebanho (na seção I a missão a “outras ovelhas” e a consecução da unidade; na seção II, a segurança e proteção do rebanho). A seção II é uma versão simplificada da seção I, focalizando a segurança do rebanho, livre do mal, ou da destruição (cf. vv. 9-12), usando isso como ilustração da obra realizada pelo Pai e pelo Filho, juntos. No capítulo 5, o princípio de que “meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também” (5:17) está ilustrado em termos de dar sua vida (5:21,26), e em exercer julgamento (5:22,27). Aqui, o mesmo princípio encontra expressão naquilo que constitui o corolário de dar a própria vida, isto é, a provisão de segurança para os que correm perigo. O fato de a obra ser comum de Pai e Filho forma a base de um silogismo: se: ninguém poderá arrebatá-las da minha mão e ninguém pode arrebatá-las da mão dele (vv. 29-29) então: Eu e o Pai somos um (v. 30). Jesus e o Pai são um porque executam o mesmo trabalho, e permane­ cem na mesma relação com o rebanho. Isto não equivale a dizer que Jesus apenas imita seu Pai ou a ele obedece. São um não do ponto de vista ético apenas, nem se trata de unidade de vontade. De fato, ambos executam a mesma obra, isto é, o Pai desempenha seu trabalho no mundo de modo singular mediante seu Filho Jesus Cristo. Essa declaração de Jesus não perturba seu auditório menos do que 5:17 (onde ele lança a mesma assertiva) nem 8:58 (“antes que Abraão nascesse, eu sou”). Em 5:18, as autoridades “ainda mais procuravam matá-lo”; em 8:59 pegaram em pedras p ara a tira r nele; e aqui de novo os judeus pegaram em pedras p ara apedrejá-lo (v. 31; o emprego de de novo pelo narrador tem em vista, sem dúvida alguma, o precedente de 8:59). Mais uma vez Jesus apela para seus muitos grandes milagres em sua

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defesa (ou melhor, “boas obras”), desta vez como obras de um bom pastor (v. 32; cf. vv. 11,14). Não são grandes por causa de sua magnitude, mas tais obras são “boas” porque trazem vida e proteção aos necessitados. Vêm como modelos da bondade do próprio Pai, o Pastor do seu povo, porque são obras, Jesus o reitera, procedentes de meu Pai. A pergunta cheia de ironia de Jesus: P or qual deles (milagres) me apedrejais? (v. 32) pressupõe a lógica da defesa que o Senhor faz de suas curas, nos outros evangelhos: “Logo, é lícito fazer bem nos sábados” (Mateus 12:12; cf. Marcos 3:4). Aqui, no Evangelho de João, a questão já mudou do sábado para as vindicações de Jesus quanto a ser Filho de Deus (cf. 5:16-18; 9:16). Para as autoridades judaicas, isso é blasfêmia: Tu, m ero homem, te fazes Deus a ti mesmo (v. 33; cf. 5:18). Parece que os judeus se referem à declaração de que Eu e o Pai somos um (v. 30). A resposta de Jesus é surpreendente, não porque ele apele às Escritu­ ras, mas pela maneira como o faz: Não está escrito na vossa lei: Eu disse que sois deuses? (v. 34). A citação é do Salmo 82:6: “Eu disse: Vós sois deuses; vós sois todos filhos do Altíssimo”. Entretanto, Jesus não cita o versículo precedente: “Eles nada sabem, e nada entendem. Andam em trevas; todos os fundamentos da terra vacilam” (82:5) nem o seguinte: “Todavia, morrereis como homens; caireis como qualquer dos príncipes” (82:7). Quando Jesus diz: vossa lei, não está declarando que as Escrituras pertencem a seus adversários, e não a ele próprio, e sim que um apelo deles às Escrituras (bem diferente dos apelos que ele próprio vem fazendo à autoridade do Pai) é apelo mediante o qual ele e seus adversários permanecem em terreno comum. O princípio segundo o qual a E scritura não pode ser anulada (v. 35) é algo em que Jesus e as autoridades judaicas estão concordes (cf. Mateus 5:18). Até esse ponto ele usa aquele salmo com máxima seriedade. Todavia, o que faz seu argumento parecer estranho é o fato que os que são chamados de deuses de modo algum são elogiados. É verdade que Jesus argumenta do menor para o maior: se aqueles que eram meros recipiendários da mensagem de Deus podiam ser chamados de deuses, por que seria blasfêmia o fato de Jesus, escolhido de modo singular pelo Pai, e enviado ao mundo, cha­ mar-se a si mesmo pelo menos de Filho de Deus? A intenção de Jesus não é enfraquecer a vindicação que fez no versículo 30, ou de alguma forma diminuir a ofensa provocada por suas palavras, perante as autori­ dades religiosas. O ponto central de Jesus não é o fato de ele ser o Filho

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de Deus, sem ser Deus, nem que ele é Deus num sentido comparável ao modo como esse título foi empregado no Salmo 82:6. Em vez disso, a ênfase de Jesus é que títulos dessa natureza são irrelevantes em sua automanifestação ao mundo. Logo no início da polêmica, as autoridades judaicas tentaram discutir com Jesus a respeito de títulos (w. 23-24,33), enquanto Jesus lhes respondia fazendo referências a suas obras que, assim dizia o Senhor, são milagres que eu faço em nome de meu Pai (v. 25; cf. 25-30, 32,37-38). Só nos versículos 34-36 Jesus fala da questão de títulos, e o faz com o único objetivo de salientar que os títulos nada significam. O que importa são as obras de Deus. Jesus poderia ter dito simplesmente: “Eu sou Deus” ou “Eu sou Filho de Deus” ou “Eu sou o Messias”; contudo, não teria dito mais do que Deus mesmo disse ao referir-se aos “deuses” do Salmo 82. O propósito da citação não é vindicar para Jesus um título fixo, mas reduzir ao absurdo, de vez, essa questão de títulos. Nos vv. 37-38 Jesus retoma seu sermão e o completa, segundo seu esboço de assuntos: Se não faço as obras de meu Pai, não acrediteis em mim. M as se as faço, e não credes em mim, crede nas obras, p ara que possais saber e com preender que o Pai está em mim, e eu nele. O objetivo destas palavras é reiterar a afirmação do versículo 30 de que Eu e o Pai somos um. A questão central para Jesus não é o título Cristo (v. 24), nem Filho de Deus (v. 36), nem mesmo Deus (v. 33) e, sim, o relacionmento entre ele e o Pai, relacionamento demonstrado em mila­ gres tais como a cura do cego de nascença. Trata-se de um relacionamen­ to baseado não apenas em conhecimento mútuo (cf. v. 14), mas baseado no fato de o Filho habitar o Pai e o Pai habitar o Filho: o Pai está em mim, e eu (o Filho) nele. Os ouvintes não participam desse relaciona­ mento, e tampouco são convidados a participar; porém, Jesus deseja que possais saber e com preender que tal relacionamento existe (v. 38). Os ouvintes, ali presentes, não podem aceitar essa afirmação: De novo procuravam prendê-lo, mas ele lhes escapou das mãos (v. 39; cf. 7:30, 44; 8:59). Os leitores do Evangelho conseguem aceitar isso; todavia, nesta altura da narrativa ainda não estão inteiramente preparados para compreendê-lo. O tema da habitação mútua há de tomar-se de grande importância, nos sermões de despedida de Jesus, quando, então, e só então, mais um segredo se revela: os discípulos de Jesus estão nele e ele nos discípulos, num relacionamento comparável àquele em que o Pai está no Filho, e vice-versa (cf., e.g., 14:20; 15:4; 17:21).

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Notas Adicionais # 28 10:23 / pórtico de Salomão: os pórticos do templo eram pátios cobertos que circundavam toda a área do templo, dos quatro lados, abrindo-se para o santuá­ rio. O pórtico virado para o leste era chamado de pórtico de Salomão porque se apoiava em obras de pedras anteriores a Herodes, que se acreditava serem da época do próprio Salomão (Josefo, Jewish W ar 5.184-85; Antiquities 15.398­ 400; 20.221). Tais pórticos eram característica comum da arquitetura grega, sendo muito utilizados como locais de ensino. Foi da palavra grega para “pórtico” (stoa ) que a escola filosófica dos estóicos tomou seu nome. O pórtico de Salomão foi o local onde os primitivos cristãos se reuniam e proclamavam sua mensagem (Atos 3:11; 5:12), sendo também local apropriado para que Jesus ali ensinasse e discutisse. O autor do Evangelho preserva informações históricas precisas, neste sentido. 10:24 / nos manterás em suspenso: lit.: “elevarás nossa alma”. É frase empregada na LXX (Salmo 24 [25]: 1; 85[86]:4. “A ti, Senhor, elevo a minha alma”) referindo-se a uma oração de antecipação. Aqui, a expressão idiomática tem um sentido um pouco diferente. Ainda está presente o elemento de anteci­ pação, porém não é coisa boa; tem conotação de incerteza, num estado que exige correção (quanto a um exemplo ilustrativo da transição entre LXX e o Evangel­ ho de João, cf. Josefo, Antiquities 3.48). A figura de linguagem diz respeito aqui a segurar o fôlego a alguém, ou impedir-lhe que respire (i.e., manter alguém em agoniosa expectativa). Walter Bauer, em Greek-English Lexicon o f the New Testament (2a. ed., rev. W. F. Amdt, F. W. Gingrich, e F. W. Danker [Chicago: University of Chicago Press, 1979], pág. 24) só conseguem citar um único exemplo do emprego dessa expressão com esse sentido - e é do século 12 d.C. - tendo, entretanto, com toda clareza, o mesmo sentido exigido pelo contexto (o que explica a EGA). 10:26 / não sois das minhas ovelhas: é tradução literal, com o sentido de: “vós não pertenceis ao meu rebanho”). 10:29 / Meu Pai, que as deu a mim, é maior do que todos: a tradução marginal de NIV traz: “O que meu Pai me deu é maior do que tudo”, é texto mais difícil do que a variante encontrada em muitos manuscritos antigos, e da versão oficial de NIV. Por essa razão tem maiores probabilidades de ser a correta. É texto que considera os discípulos de Jesus de modo coletivo como comunidade singular e unida (cf. “um rebanho”, v. 16; veja também a Nota Adicional sobre 6:39). Que o Pai é maior do que todos é fato óbvio para qualquer leitor; mas, em que sentido a nova comunidade de crentes é maior do que tudo? A colocação de meu Pai em primeiro lugar no texto grego sugere que a grandeza da dádiva deriva da grandeza do Doador, a cujos olhos é verdadeira preciosidade (cf. o valor que Jesus confere a seus discípulos, a dádiva do Pai a Jesus, em 17:6-26; também o valor perante o pastor, da ovelha perdida, da moeda perdida à dona-de-casa, e do filho perdido, a seu pai, em Lucas 15:4-32).

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10:35 / a quem a Palavra de Deus foi dirigida: Alguns dos rabis aplicavam o Salmo 82:6 aos israelitas que testemunharam a revelação no Sinai (e.g., o Talmude Babilónico, Abodah Zarah 5a). Se é isto que se tem em mente no presente contexto, o argumento de Jesus faz lembrar 5:37-38 em que seus ouvintes estão sendo comparados com os que ouviram a mensagem de Deus, no Sinai. Não existe revelação à parte, além da de Jesus, a quem o Pai escolheu e enviou ao mundo como sua “Palavra” da antigüidade (v. 36; cf. 5:38). 10:36 / santificou: NIV traz: “pôs à parte” com o sentido de “consagrou” ou “santificou” (cf. 17:17, “Santifica-os” Tos discÍDulosl; 17:19. “Por eles me santifico a mim mesmo, para que eles também sejam santificados na verdade”). A palavra significa “pôr à parte como santo” (i.e., para um propósito divino, particular). Jesus foi separado para uma missão ao mundo, e sua consagração (até à morte) provê a base da consagração e da missão dos seus-discípulos. , 10:38 / crede nas obras: (lit. NIV traz: “crede nos milagres”). Esta declara-' ção envolve um paradoxo. Crer nas obras de Jesus,(neS^è Evangelho, é o mesmo que crer nele. Jesus não está apresentando unja alternativa genuína, mas, sim­ plesmente indicando outra avenida conducente à fé nele, i.e., mediànte a fé em suas obras, em vez de em suas palavras. Em última análise, as obras de Jesus, suas palavras e ele próprio são intercambiáveis no que concerne à fé. As palavras e as obras de Jesus são apenas os1veículos de sua automanifestação. As obras incluem os “milagres”, mas a eles não se limitam, de modo algum. xYsdJ

(C -A \

29. De Betânia para Betânia (João 10:40-11:16)

A misteriosa fuga de Jesus (v. 39) encerra a confrontação no pórtico de Salomão, no templo, durante a festa da dedicação (cf. v. 22), da mesma forma que sua fuga anterior havia encerrado a confrontação no templo, durante a festa dos tabernáculos (cf. 8:59). Desta vez o Senhor sai de Jerusalém, que fora cenário de suas atividades desde 7:14, e retoma a Betânia, do outro lado do Jordão, onde ele passou algum tempo com o Batista, e começara ajuntar alguns discípulos (vv. 40-42; cf. 1:19-51; 3:26). A narrativa anterior implicava que Jesus teria um lugar onde se hospedava, em Betânia (1:38-39), tendo sido ali, talvez, que ele ficou novamente (v. 40). A reflexão sobre João Batista e seu testemunho em prol de Jesus (v. 41) faz lembrar 1:29-34. Todavia, a observação apensa de que em bora João não tenha feito nenhum sinal miraculoso... enfatiza o ponto central de que o testemunho do Batista era apenas preliminar e prepara­ tório para o testemunho crucial das obras de Jesus (cf. 10:25-38). O argumento de 10:25-42 é comparável ao de 5:30-41, exceto que a passagem anterior iniciou-se com o testemunho de João Batista (5:33-36) e, a seguir, encaminhou-se para o testemunho mais decisivo das próprias palavras e obras de Jesus, voltando, depois, para o testemunho do Batista, em pós-escrito. Neste sentido, os versículos 4-42 são pós-escrito dos versículos 22-39, mas sua principal função é introduzir o capítulo 11. Não está registrado quanto tempo Jesus permaneceu nesse lugar, a leste do Jordão, mas aqui, como em outra passagem, o tempo passado fora de Jerusalém serve de interlúdio, ou breve período de pausa que antecede as maiores confron­ tações com as autoridades religiosas da cidade. É o caso de transições breves, como esta, (cf. 2:12; 11:54) e da seção toda, que compreende o itinerário de Jesus da Judéia, através da Samaria à Galiléia (3:22-4:54). É também o caso de 7:1, um texto paralelo de interesse particular por causa das similaridades e contrastes entre o diálogo que se segue em 7:2-10 e o de 11:1-16. Em cada caso, a questão é se Jesus voltará ou não à Judéia, onde as autoridades estão tramando tirar-lhe a vida:

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(João 10:40-11:16) Capítulo 7

Andava Jesus pela Galiléia (7:1) Os irmãos de Jesus lhe suplicam que vá à Judéia (7:3) Jesus esperou, porque sua hora ainda não havia chegado (7:6-9) Depois ele foi também (7:10) O resultado'. Jesus não morre (7:30; 8:20,59)

Capítulo 11

Jesus retirou-se p ara além do Jordão (10:40-42). Seus discípulos (11:7-8) lhe suplicam que não vá (11:8) Jesus esperou dois dias (11:6)

D epois ele foi (11:9-11, 15). O resultado: Jesus vai m orrer (i.e., “ ser glorificado”, 11:4; cf. 11:16). Emerge dessa comparação o fato que a visita à Judéia e a Jerusalém, no capítulo 7, não seria a visita final, mas a do capítulo 11 seria a última. Pelo menos haveria de ser o começo do “assalto final” de Jesus sobre Jerusalém e o mundo incrédulo. Tal assalto ocorre em dois estágios: a viagem no capítulo 11 de Betânia, a leste do Jordão, à Betânia perto de Jerusalém, e a viagem no capítulo 12, de Efraim, perto do deserto (outro lugar de pausa, 11:54) à Betânia perto de Jerusalém, pela segunda vez (12:1-11) e, daí, para Jerusalém. De 12:12 até o fim do capítulo 20, Jesus nunca mais sai de Jerusalém, e tudo que ali acontece centraliza-se em sua paixão. Pressupõe-se, pela redação de 11:6, ficou ainda dois dias no lugar onde estava, certa continuidade entre 10:40-42 e 11:1-16. Esse lugar interessa ao narrador, não por causa da coincidência de seu nome com o da outra Betânia (que ele não se dá o trabalho de salientar!), mas porque no lugar onde estava (gr.: ekei muitas pessoas creram em Jesus (10:42). Quando surge a questão de voltar à Judéia, os discípulos salientam a Jesus o fato que havia pouco os habitantes da Judéia procuravam apedrejarte (cf. 10:31), e voltas para lá? [gr.: ekei]? (11:8). A questão que eles apresentam é se Jesus vai deixar o lugar onde fora bem recebido e aceito, trocando-o por aquele que reagiu a todos os seus apelos com um antago­ nismo que se avolumava cada vez mais. Há boas razões para crer que a fé das pessoas a leste do Jordão era genuína. A observação de que João não tinha feito nenhum sinal miraculoso (10:41) nenhum propósito teria a menos que estivessem cônscios de milagres realizados por Jesus. Conquanto sua fé fosse a resposta (bastante demorada) ao testemunho de João Batista, ela se baseia não apenas nesse testemunho, mas também

(João 10:40-11:16)

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nas obras de Jesus que subseqüentemente a comprovaram (cf. 10:38). Em suas mentes, poderiam ter dito a João Batista o que os moradores do vilarejo samaritano disseram à mulher samaritana (4:42): “Já não é pelo teu dito que nós cremos; agora nós mesmos o ouvimos falar, e sabemos que este é verdadeiramente o Salvador do mundo”. Que é que levou Jesus desse lugar de aceitação e reconhecimento, de volta àquele lugar de hostilidade e possível morte? Não foi um projeto missionário cuidadosamente planejado, e tampouco uma decisão cons­ ciente de automanifestar-se uma vez mais em Jerusalém. O que o levou de volta foi o apelo de amor face à necessidade de um amigo querido (11:3). O narrador faz uma pausa a fim de apresentar Lázaro (vv. 1-2) e, assim, inicia-se a história. Lázaro se identifica em relação a Betânia, e Betânia se identifica em relação às duas irmãs, Maria e Marta, e à história da unção de Jesus por Maria (cf. 12:3-8). Contudo, ao referir-se a esse acontecimento, o narrador não está primordialmente dando seqüência à sua história; liga-o, porém, a algo que já é do conhecimento de seus leitores, uma história da última semana do ministério de Jesus que (desta ou daquela forma) haviam ouvido desde que tomaram conhecimento do Evangelho pela primeira vez (cf. Marcos 14:3-9, esp. v. 9). Lembrar-seiam da mulher que ungiu os pés de Jesus (ou, em algumas versões) a cabeça dele? O amigo doente era irmão dela! A identificação dá ao leitor do Evangelho de João um ponto de referência para o que se segue. Diferentemente do paralítico de Betesda, este doente tem nome e identi­ dade. O leitor se interessa logo de início pelo que acontece a esse doente (há interesse profundo pelo cego de nascenca, também, mas neste caso o interesse cresce porque vamos conhecendo-o bem, à medida que sua história se desenrola). Ao ouvir a notícia da doença de Lázaro, Jesus olha para além da situação imediata, para o seu fim (esta enferm idade não acabará em morte). O fim da situação não será a morte, mas... a glória de Deus e a glória do Filho de Deus (v. 4). Do primeiro milagre de Jesus se diz que revelou a glória de Jesus (i.e., fê-lo conhecido de seus discípulos, cf. 1:14, 31), e agora, um pouco antes do último milagre de seu ministério público, manifesta-se mais uma vez a glória do Senhor. Não se registrou a reação dos discípulos ao pronunciamento de Jesus. Nem mesmo ficou claro que o Senhor está dirigindo-se a ele. Suas palavras são tranqüilizadoras; no entanto, há nelas um quê de mistério. Está ele prometendo outro milagre

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ou apenas declarando, em termos gerais, que Deus fará que todas as coisas colaborem para o bem dos discípulos? Se o Senhor estiver prome­ tendo um milagre, a impressão que se tem é de que se trata de uma cura semelhante às demais curas que Jesus tem feito (e.g., 4:46-54; 5:1-9). Nenhum indício aparece de ressurreição, visto que o significado aparente do versículo 4 é que Lázaro não morrerá de sua doença. O versículo 12 deixa bem claro, de qualquer maneira, que os discípulos estão pensando em recuperação física natural, e não em cura miraculosa: o sono fará bem a Lázaro, e ele vai melhorar. Para os discípulos, o recado de Marta e Maria é uma perturbação, e também uma ameaça, pois convoca Jesus a voltar a um local perigoso (v. 8). Os discípulos entenderam mal as palavras de Jesus quanto a duas questões. Primeiro, entenderam que Lázaro não morreria. Jesus os leva a essa compreensão pelo uso de uma metáfora, a do sono como símbolo da morte (v. 11), mas , corrije o engano mediante a declaração explícita: Lázaro está morto (v. 14). Se Lázaro estiver morto, a única maneira pela qual a promessa do v. 4 pode realizar-se é o milagre da ressurreição. O segundo engano (o mais sério) relaciona-se intimamente ao primei­ ro. Após tantos sermões que o Senhor pregou, os discípulos ainda não entenderam as afirmações de soberania de Jesus sobre a vida e a morte (e.g., 5:19-29; 6:35-40, 53-58; 8:31-36, 51, 58; 10:14-18, 27-30). Eles não entendem que a glória de que Jesus fala não só não exclui a morte (i.e., a morte de Lázaro) mas só é possível mediante a morte — primeiro a morte de Lázaro e, depois, a do próprio Jesus! A glória de Deus é a vitória sobre a morte, obtida no caso de Lázaro, vitória que se declarou posteriormente quando Jesus disse a Marta: “Não te disse que se creres verás a glória de Deus?” (11:40). Todavia, além da ressurreição de Lázaro, a glória de Deus manifesta-se na “glorificação” do Filho de Deus (v. 4b), expressão usada neste Evangelho para a morte de Jesus na cruz (cf. 12:23; 13:31-32; 17:1). Jesus é glorificado em sua morte porque nesse ato de auto-entrega voluntária (cf. 10:18) ele termina a obra que o Pai o enviou a realizar, e recebe a aprovação do Pai. A possibilidade de seu Mestre vir a morrer também perturba a mente dos discípulos de Jesus, mas como um perigo a ser evitado (v. 8), ou como uma ocasião de desespero (v. 16), jamais como momento de glória. Jesus lhes fala sobre a preocupação com o perigo que cerca o retomo à Judéia dando-lhes uma espécie de enigma (vv. 9-10), contrastando a

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segurança das horas iluminadas do dia com os perigos de se viajar à noite. Esse enigma é uma forma elaborada de o Senhor dizer-lhes o que lhes foi afirmado várias vezes antes, que a hora de Jesus (i.e., a hora de sua morte), ainda não chegou (cf. 2:4; 7:30; 8:20; cf. 7:6,39), e que enquanto não chegar, ele está em segurança perfeita. Entretanto, a maneira solene pela qual Jesus enfatiza esse ponto, sugere ao leitor que as doze horas no dia estão prestes a findar e que o período de trevas está próximo (cf. 9:4-5). Portanto, quando essa hora for anunciada (12:23,27,35; 13:1), o anúncio não virá como surpresa, mas como algo sobre que foram adver­ tidos com antecedência. Os discípulos, todavia, não estão interpretando nenhum dos sinais. O rompimento da comunicação entre eles e Jesus é quase cômico. A observação importantíssima que ele faz no v. 4 cai no vácuo, como acontece também ao relevante enigma dos versículos 9-10. A declaração metafórica feita pelo Senhor, de que nosso amigo Lázaro dorme, mas vou despertá-lo (v. 11; cf. Marcos 5:39), é tomada de modo literal e mal compreendida. A única coisa que conseguem entender é o convite do Senhor, repetido duas vezes, para que o acompanhem na volta à Judéia, a fim de verem o amigo doente (vv. 7,15). No primeiro convite, hesitam, por causa do perigo de prisão e apedrejamento (v. 8); no segundo convite, Tomé os incita a desprezar todo o perigo e enfrentar a morte com seu Mestre com toda bravura (v. 16). Há forte ênfase na perspectiva de morte, e na exortação, Vamos (vv. 7,15,16), cena que nos faz lembrar, de modo curioso, a exortação de Jesus a seus discípulos sonolentos no Getsêmani (Marcos 14:42/Mateus 26:46). Como aquela passagem, esta também é uma convocação para a paixão, um desafio para que se permaneça ao lado de Jesus na hora que se aproxima, hora de crise e de morte (o que se tomará mais evidente ainda em 14:31). A implicação do v. 16 é que os discípulos, a despeito de sua mente obtusa, são capazes (com a ajuda de Tomé) de vencer a falsa prudência do v. 8, e reagir com coragem e boa vontade ao desafio que Jesus lhes coloca diante dos olhos. O Senhor não os elogia nem os repreende pelo zelo demonstrado. A proposta de Tomé, que acompanhem Jesus até à morte, expressa um ideal joanino real a respeito do que é o discipulado fiel (12:26; cf. 6:52-58); entretanto, há nela um pouco daquela temerida­ de sentida na afirmação de Pedro, após a santa ceia: “por ti darei a minha vida” (13:37). Se Jesus houvesse perguntado a Tomé o que perguntou a

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Pedro: “Tu darás a tua vida por mim?” (13:38), a resposta deveria ter sido “não”. Nem Tomé nem os demais estavam prontos, nem agora nem depois, para a morte; todavia, a aspiração deles era autêntica. Começa­ vam a mover-se na direção correta. A questão que permanece é: por que Jesus esperou dois dias (v. 6) antes de chamar seus discípulos e voltar à Judéia? Essa demora toma-se ponto crítico quando o Senhor chega e é recebido com palavras tristes, quase acusadoras, da parte de Marta e Maria: “Senhor, se tu estivesses aqui, meu irmão não teria morrido!” (vv. 21, 32; cf. v. 37). Jesus soube (de modo sobrenatural) quando Lázaro morrera (v. 14), mas sua atitude no que concerne à demora é bem diferente. Diz ele a seus discípulos: e me alegro, por vossa causa, de que iá não estivesse, p ara que possais crer (v. 15). A pergunta rude se ergue: Jesus esperou deliberadamente que Lázaro morresse, de modo que tivesse a oportunidade de realizar um milagre muito maior? Não é provável. Uma resposta melhor é que Jesus não queria ser forçado por Marta, Maria e Lázaro, a quem ele amava muito (vv. 3, 5), como não o quiz no caso de sua mãe (2:4) e de seus irmãos (7:6-10). O registro preserva a memória autêntica de que Jesus com freqüência atendia às iniciativas das pessoas necessitadas (cf., e.g., 4:46-54; Marcos 1:40-45; 7:24-30), mas nesse registro há a insistência caracteristicamente joanina de que ainda que esse fosse o caso Jesus mantinha sua independência de todas as pressões humanas, só dando satisfações ao Pai, a ninguém mais. O Senhor atende a cada clamor de ajuda; todavia, em seu tempo e em seus termos. Nem amigos e tampouco inimigos lhe estabeleciam a agenda, ou controlavam suas ações. Embora não fosse autônomo, é “soberano” no sentido de que ninguém, exceto o Pai, lhe diz o que deve fazer (cf. 4:34; 10:18). A espera de dois dias exemplifica essa soberania peculiar sob a direção do Pai, e distingue a vida de Jesus (de modo especial neste Evangelho) de todas as demais vidas.

Notas Adicionais # 29 10:41-42 / iam procurá-lo... creram nele: quanto à combinação de “ir" a Jesus e “crer” nele, cf. 3:18-21; 6:35; 7:37-38. 11:3 / aquele a quem amas: (cf. v. 5, onde João emprega uma palavra diferente para “amar”, no grego, porém, com o mesmo sentido). Além dessas duas irmãs e um irmão, a única outra pessoa separada individualmente como objeto do amor de Jesus é o assim chamado discípulo amado, mencionado na

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segunda metade deste Evangelho, e identificado como o próprio autor do Evangelho. (13:23-25; 21:20-24). Têm alguns especulado que na verdade o discípulo amado é Lázaro (cuja ressurreição teria dado origem ao boato que não morreria, 21:23), mas essa opinião deixa de explicar por que o homem é mencionado por nome nos capítulos 11 e 12 e toma-se anônimo daí em diante. Lázaro, Marta e Maria nunca são chamados de discípulos de Jesus (provavel­ mente porque não viajam com ele); entretanto, parece que qualquer coisa que se dissesse aos discípulos, ou acerca dos discípulos, poderia ser dito a tal família, ou a respeito dela. São “amigos” de Jesus (vv. 3,5,11; cf. 15:13-15). A profissão de fé de Marta, em Jesus (v. 27), corresponde palavra a palavra à confissão que este Evangelho escrito objetiva reforçar (cf. 20:31). Diferentemente do discípu­ lo amado, esses três não constituem personagens de autoridade, nem testemu­ nhas de âmbito social das tradições do Evangelho; são, em vez disso, “crentes comuns”, participantes da história, com os quais os leitores do Evangelho (i.e., a comunidade cristã em geral) se identificam (cf. o oficial real de 4:43-54). 11:4 / para a glória de Deus: veja a nota sobre 11:40. para que o Filho de Deus seja por ela glorificado: Jesus, em sua glorifi­ cação, pode ser designado Filho de Deus (como aqui), “Filho do homem” (12:23; 13:31), “teu Filho” (17:1), “Jesus” (7:39; 12:16), ou por o pronome da primeira pessoa (17:5). Este versículo é um dos poucos exemplos em que o termo confessional integral Filho de Deus ocorre nos lábios do próprio Jesus (nunca ocorre nos evangelhos sinóticos, e no Evangelho de João somente aqui e em 3:18; 5:25; e 10:36; Jesus o evita até mesmo ao suscitar uma profissão de fé do ex-cego de nascença, em 9:35). Todavia, esse termo está implícito na linguagem característica acerca do “Pai” e do “Filho” (e.g., 5:19-23), e o uso que Jesus faz dele em 10:36 tem a intenção de resumir todas as suas vindicações sobre si mesmo, tanto em palavras quanto em obras (cf. 19:7). É possível que esse título tenha sido escolhido, no presente contexto, por amor ao paralelismo de glória de Deus (v. 4a) e Filho de Deus. 11:6 / Porém: O emprego em ECA desta conjunção baseia-se na presunção de que o v. 5 foi inserido ali com o objetivo de explicar que a demora de Jesus não significava falta de amor por seus amigos: conquanto os amasse (apesar de amá-los), ele demorou. Todavia, visto que a partícula grega oun significa “portanto”, ou “assim” em vez de “porém”, ou “apesar disso”, o propósito do v. 5 é, talvez, explicar por que Jesus decidiu ir até lá (a despeito do perigo) em vez de por que ele demorou a ir. ainda dois dias: não existe simbolismo significativo nesses dois dias. A ressurreição de Lázaro não ocorreu no “terceiro dia” (para corresponder à ressurreição de Jesus) mas, depois de quatro dias (vv. 17,39). Tampouco existe correspondência plausível entre esses dois dias e a extensão da viagem de Jesus à Galiléia (2:1), nem sua estada em Sicar, na Samaria (4:40,43). O ponto central dessa demora é apenas armar o palco para a divulgação feita por Jesus de que Lázaro está morto (vv. 11-15), e para os acontecimentos que se seguem. 11:8 / os judeus: neste caso, a referência é geográfica (“os da Judéia”), por

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causa da menção específica da “Judéia” (v. 7); no entanto, o grupo que o autor tem em mente é o sistema religioso judaico de Jerusalém (cf. 10:31). 11:12 / melhorará: lit.: “ele se salvará”. Trata-se de um exemplo raro, no Novo Testamento, do uso secular do verbo grego sozein (“salvar”), no sentido de cura ou recuperação natural. 11:161Tomé, chamado Dídimo: Em grego, Didymos era nome próprio com o sentido etimológico de “gêmeo”. A palavra hebraica te 'om (aramaico: te ’omâ) significava “gêmeo”, mas não era, tanto quanto sabemos, nome de família. Todavia, poderia ter sido um apelido. Havia um nome grego, Tomé, e às vezes, no período helenístico, um judeu que fosse conhecido como gêmeo, ou descend­ ente de gêmeo, poderia receber o nome de Tomé como seu nome grego. Se isso aconteceu, neste exemplo, Tomé seria o nome grego do discípulo, e “Didymos”, ou “Dídimo” (Gêmeo) seria um nome grego adicional que lhe fora dado como lembrete de sua origem semítica, tendo em vista também o significado da palavra. Em tradição posterior, Tomé seria identificado com Judas, ou Judá, o irmão de Jesus (cf. Marcos 6:3), considerado como gêmeo do próprio Jesus! (e.g.,Acts ofThomas 11; also 31; cf. Gospel ofThomas 1). 11:16 / para morrer com ele: Visto que há uma declaração anterior de que “Lázaro está morto” (lit., “morreu”, v. 14), é possivel, do ponto de vista gramatical, entender que Tomé estaria dizendo: “morrer com Lázaro”, mas a causa e as circunstâncias concernentes à sua morte seriam tão diferentes, que tal interpretação é bastante improvável. A declaração de Tomé diz respeito, em vez disso, a morrer com Jesus (cf. v. 8).

30. Ressurreição de Lázaro (João 11:17-44)

Após breve introdução, em que se monta o palco para a ação (w . 17-19), o drama da ressurreição de Lázaro se desenrola em três cenas: a primeira, entre Jesus e Marta, que provê uma interpretação teológica para o incidente global (vv. 20-27); a segunda, em que Jesus reage diante da tristeza de Maria, e de alguns judeus que vieram chorar com ela (vv. 28-37); e a terceira, no túmulo, em que o narrador descreve como foi que Jesus chamou Lázaro de volta à vida (vv. 38-44). Não há certeza quanto ao tempo gasto na viagem de Betânia a Betânia. O propósito da declaração de que já fazia quatro dias que Lázaro havia sido enterrado (v. 17) não é criar uma cronologia, nem ajudar a fixar a localização dessa Betânia enigmática, a leste do Jordão (cf. 1:28). Se Lázaro morreu cerca da hora em que Jesus recebeu o recado sobre sua doença (v. 4), a viagem (depois de dois dias de espera) teria tomado pelo menos dois dias. Se ele morrera (como é mais provável) cerca do momento em que Jesus disse que ele “dorme” (v. 11), a viagem teria tomado mais tempo. O propósito da menção dos quatro dias é estabelecer uma base sólida para o comentário de Marta, no v. 39 e, assim, um contexto dramático no qual Jesus tem um encontro com a sombria realidade da morte, nos vv. 40-44. O narrador está mais interessado na localização de Betânia em relação a Jerusalém (v. 18) do que em relação à outra Betânia, a leste. Parte da razão poderia ser que o narrador conhece esta distância e desconhece a outra mas, bem mais importante: ele deseja explicar a presença, ali, de alguns judeus de Jerusalém (v. 19) que desempenharão um papel dimi­ nuto mas crucial, nessa história (w . 31, 33, 36-37, 45-46). O fato de a presença deles em Betânia precisar ser explicada (afinal, a maioria das pessoas de Betânia era constituída de judeus!) sugere que, como acontece com freqüência neste Evangelho, o que o autor tem em mente são as autoridades religiosas. Visto que Betânia ficava tão perto de Jerusalém, algumas pessoas vieram dessa cidade para chorar a morte de Lázaro, com a família, e entre esses amigos estavam os líderes religiosos. A chegada de Jesus a Jerusalém é descrita aqui como a de um rei conquistador, ou como os primitivos cristãos mais tarde haveriam de

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aguardar sua segunda vinda à terra, na Parousia (e.g., 1 Tessalonicenses 4:15-17; 1 Coríntios 15:23, 51-57; à semelhança do Senhor que está voltando à terra, na expectativa de Paulo, Jesus está voltando a Betânia a fim de ressuscitar o morto). É uma espécie de entrada triunfal, relatada de antemão, mais privada do que pública, numa pequena vila em vez de na grande cidade. Não se trata tanto de uma antecipação da entrada pública de Jesus em Jerusalém (12:12-19), mas principalmente do início de uma corrente de eventos que culminam na entrada triunfal. Para Marta, Jesus era Aquele que havia de vir (v. 27; cf. 6:14), de modo que quando ela ouviu que Jesus vinha à sua vila, e à sua casa, saiu-lhe ao encontro (v. 20), como se fora uma delegação enviada a receber com boas-vindas a um imperador vitorioso, e escoltá-lo para dentro da cidade (cf. a linguagem empregada para as boas-vindas a Jesus, em Jerusalém, em 12:13, 18). A saudação de Marta a Jesus (v. 21) traz à lembrança a demora do Senhor em atender-lhe o recado. Entretanto, a despeito do tom de suas palavras, não há intenção de acusá-lo; ainda que Jesus viesse de imediato, Lázaro estaria morto havia dois dias. O propósito de Marta (e de Maria, no v. 32) é, antes, afirmar sua confiança em que Jesus tinha poder para curar os doentes. Mesmo nessas circunstâncias tão trágicas, ela não exclui a possibilidade de um milagre, conquanto ela não faça a menor idéia da forma que tomará (v. 22; quanto a uma nota semelhante, cheia de expectativa e antecipação, cf. as observações da mãe de Jesus em 2:5). O que está claro para ela é que o poder de Jesus é o poder de Deus; se o Senhor executar um milagre, fá-lo-á não por sua própria autoridade, mas pela de seu Pai (cf. 5:17, 19). Todos os milagres de Jesus realizam-se, em última análise, em resposta milagrosa à sua oração (cf. 6:11; 9:31), não importando se a oração foi expressa em palavras, ou não. No caso de Lázaro, a oração é explícita. Jesus pede que Lázaro volte à vida, e Deus lhe atende o pedido (cf. vv. 41-44). Quando Jesus assegura a Marta: Teu irm ão ressurgirá (v. 23), ele expressa num segundo a esperança que partilha com os fariseus (e.g., Atos 23:6-8; 24:15; cf. João 5:28-29) e anuncia o que fará dali a minutos. Marta compreende a esperança, não, porém, que o cumprimento se dará de imediato. Ela consegue concordar com Jesus: Eu sei que ressurgirá na ressurreição, no último dia (v. 24). Aí está um conforto real, mas não era preciso que Jesus lhe lembrasse isso, nem se trata de uma

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promessa capaz de cortar-lhe a tristeza do momento. Em vez de referir-se de modo direto à morte de Lázaro, Jesus fala de modo genérico da esperança judaica quanto à ressurreição (w . 25-26). Embora o Senhor não diga nada que não houvesse dito antes, neste Evangelho, (cf. 5:21, 24-26; 6:39-40, 44, 54; 8:51, 58), Jesus rapidamente menciona duas coisas que tocam o interesse imediato de Marta: ele se coloca, e à fé nele, bem no centro da esperança da ressurreição e transforma essa esperança: tira-lhe a expectativa um tanto teórica, voltada para o futuro, e dá-lhe um toque de experiência no presente, dota-a da vida de Deus, agora. O modo de Jesus responder (vv. 25-26) parece-se com várias de suas declarações iniciadas com “Eu Sou”, em que o verbo de ligação possui um predicativo seguido de um convite ou promessa, introduzido por um pronome relativo, ou cláusula condicional, ou particípio (cf. 6:35; 8:12; 10:9). Neste exemplo, temos dois predicativos (Eu sou a ressurreição e (eu sou) a vida, v. 25a) e dois convites/promessas (Quem crê em mim, ainda que esteja m orto, viverá v. 25b; e todo aquele que vive e crê em mim, nunca m orrerá, v. 26a). A primeira dessas cláusulas relativas (participiais, em grego) explica a declaração “Eu sou a ressurreição”; a segunda explica “Eu sou a vida”. O significado pode ser estabelecido como segue: (a) Eu sou a ressurreição — isto é, quem crer em mim, viverá, ainda que morra. » (b) Eu sou a vida — isto é, quem vive e crê em mim, jamais morrerá. O relacionamento entre essas duas afirmativas pode ser entendido melhor quando (b) é visto como seguimento lógico de (á). Se for verdade que quem crê em Cristo e morrer (e.g., Lázaro) viverá de novo, segue-se que nenhum crente vivo morrerá em definitivo. A vida que ele recebeu é vida eterna (cf. 3:16; 10:28). O crente poderá morrer fisicamente, mas o domínio da morte é temporário. Disse Jesus: “eu o ressuscitarei no último dia” (6:39-40). A nota nitidamente cristã, aqui, é que Jesus ressuscitará o crente. O Senhor mesmo, sua própria Pessoa, é a ressurreição e, portanto, a vida. A vida eterna é o relacionamento com Cristo. Se o Senhor estiver presente, a vida está presente, não meramente a vida soprada no ser humano, na criação (cf. 1:4), mas a vida decorrente da ressurreição, a nova vida pertinente ao “último dia”, vida que nunca terminará. A resposta de Marta, diante do pronunciamento do Senhor, é total­

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mente apropriada, pois centraliza-se na Pessoa de Jesus (v. 27). Isto é verdade a despeito do total desinteresse de Jesus quanto a títulos (cf. 10:34-38) e a despeito do fato de o Senhor não lhe contradizer nem lhe endossar a confissão de fé (Cristo se mostra de igual modo reservado quanto às confissões de Natanael, em 1:49, de Pedro, em 6:69, e de Tomé, em 20:28). Marta reconhece a Jesus como o Cristo, o Filho de Deus no contexto de sua vindicação de ser o Doador da vida; a resposta explícita de Marta: Sim, Senhor, ao responder-lhe a pergunta: Crês isto? escla­ rece a questão. O endosso do autor do Evangelho à confissão de fé de Marta se percebe no emprego que ele faz dos mesmos dois títulos de Jesus, ao declarar o propósito por que seu Evangelho foi escrito (20:3 la). Ele almeja que seus leitores se unam a Marta, no testemunho que ela dá de Jesus, tendo esta intenção explícita: “para que, crendo, tenhais vida em seu nome” (20:31b). Conquanto os títulos não sejam um fim em si mesmos, fazem sentido quando demonstram (como no caso de Marta), o reconhecimento das obras do Senhor Jesus, de seu poder para dar vida, e seu anseio nesse sentido. E assim é que Marta, a hospedeira de mente prática mas perturbada, do Evangelho de Lucas (cf. Lucas 10:38-42), toma-se no Evangelho de João mulher de palavras e mulher de fé. É surpreendente que o papel de Maria seja o de simples eco de Marta (vv. 28-32). Havia ficado em casa, chorando, e só saiu para encontrar-se com Jesus quando Marta veio chamá-la (v. 28). As primeiras palavras de Maria ao ver Jesus são duplicação exata das palavras de Marta (v. 32; cf.v. 21), menos a nota de esperança (cf. v. 22). Parece que o narrador conhece as mesmas tradições sobre Marta e Maria, bem conhecidas de Lucas, visto que ele delineia Maria sempre aos pés de Jesus (v. 32; cf. 12:3; Lucas 10:39). Entretanto, pelo menos neste relato, o jiapel de Maria é secundário. Ela comparece nesta história mais para chorar, função que partilha com as autoridades judaicas chegadas de Jerusalém (v. 31; cf.v. 19). Vê-la, e ver os judeus chorando, despertou a emotividade de Jesus - a tristeza (v. 35), a agitação e (surpreendentemente) a ira (vv. 33, 38). O Senhor não se irou contra Maria e os que a acompanhavam no choro, por terem perdido o controle (esperava-se, em situações como essa, que houvesse choro e lamentações em voz alta), nem se irou por causa da falta de fé quanto ao que ele poderia realizar (visto que não tinham meio de saber o que é que ele faria). O Senhor estava irado contra a morte, o inimigo que prende todos os seres

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humanos em cativeiro de imundícia e vergonha (cf. Hebreus 2:14-15). A morte não está personificada aqui como sendo o diabo; entretanto, o conflito implícito diante do túmulo de Lázaro é o mesmo conflito contra as trevas, e contra “o príncipe deste mundo” que emerge em conexão com a própria morte (que se aproxima) de Jesus (cf. 12:31; 13:2; 14:30). A ira de Jesus faz lembrar a ira que às vezes o Senhor demonstra nos evangelhos sinóticos, ao enfrentar a imundícia (Marcos 1:40-45), ou quando expulsa demônios (Marcos 9:19). Enquanto Jesus caminha na direção do túmulo, suas lágrimas produ­ zem uma reação mista entre as autoridades judaicas que ali vieram para chorar com as duas irmãs. A forte emoção do Senhor é prova evidente de seu amor por Lázaro; há, entretanto, os que lhe questionam o poder, ou a disposição, ou ambos, como inexistentes, pois, não impediram a morte do amigo (vv. 36-37). O desacordo momentâneo é prenúncio de uma divisão mais séria que sobrevirá (cf. vv. 45-46). O milagre é narrado em poucas palavras (vv. 38-44). Nenhum sermão interpretativo se lhe segue, porque Marta já lhe deu a devida interpretação (w . 25-26). É bem de propósito que Marta é a única testemunha que se salienta nesse cenário milagroso. É a observação dela que chama a atenção do leitor para a imundícia nauseante da morte (v. 39), e a ela Jesus renova sua promessa de ver a glória de Deus (v. 40; cf. v.4). Cumpre-se a promessa de imediato. Quando a pedra que bloqueava a entrada do túmulo é removida (a despeito da advertência de Marta), Jesus olha para cima em oração ao Pai. Oração sob a forma de ação de graças, não de petição (cf. 6:11); seu relacionamento com o Pai é tão íntimo e forte (cf. 10:38), que tem certeza de que seus pedidos já foram atendidos, e que Lázaro voltará à vida (vv. 41-42). Ora em voz alta, não por que isso lhe é necessário, mas deseja que os circunstantes saibam que não age autonomamente. Chama a Lázaro pelo nome, com a autoridade que o Pai lhe conferiu (cf. 5:21,25-26). Tão logo Jesus fala, Lázaro surge mancan­ do à porta do sepulcro, tendo as mãos e os pés enfaixados, e o rosto envolto num lenço (v.44). A cena quase humorística apresenta contraste agudo com a descrição do túmulo de Jesus, na manhã da ressurreição (cf. 20:5-7). O narrador conhece (e aqui enfatiza) a diferença entre a ressurreição de Jesus e a de Lázaro. Lázaro ressuscitou para voltar a morrer, um dia. Após o milagre, ele retomaria a mesma vidinha que levara antes. Jesus, por sua vez,

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ressuscitaria para entrar em nova existência na presença do Pai, e em novo relacionamento com os discípulos. Nunca mais a morte haveria de tocá-lo. Contudo, a despeito desse contraste, o narrador emprega o termo “sinal” (cf. 12:18), para descrever a ressurreição de Lázaro: sinal da ressurreição para nova vida, quer a de Jesus, quer a dos que lhe perten­ cem. Em si mesma, a ressurreição de Lázaro não é, qualitativamente, diferente dos demais milagres de cura realizados por Jesus. A ressurrei­ ção é uma espécie de “supercura”, não sendo os dois exemplos de ressurreição de cadáveres, mencionados nos evangelhos sinóticos (i.e., Marcos 5:35-43: Lucas 7:11-17), salientados dentre os demais milagres para despertar maior atenção. A ressurreição de Lázaro ergue-se de modo supremo, dentre os milagres de Jesus, apenas como um sinal. Entretanto, visto que o Evangelho de João interessa-se pelos milagres de Jesus precisamente como sinais de sua glória (i.e., como expressões de seu relacionamento com o Pai), este milagre serve, para o narrador, como conclusão, ou toque final bem adequado para a série de sinais que compreendem o ministério público de Jesus.

Notas Adicionais # 30 11:17 / fazia quatro dias... enterrado: Muitos comentaristas referem-se à crença judaica de que durante três dias após a morte, “a alma perambula por cima do cadáver, tentando reentrar no corpo mas, tão logo vê que a aparência dele muda, vai embora” (Midras Levítico Rabbah 18,1 [Midrash Rabbah Londres: Soncino Press, 1961, vol. 4, pág. 226]). Essa crença não é atestada de modo amplo; todavia, era verdade que segundo a lei oral, se fosse preciso identificar um cadáver, isso deveria ser feito dentro de três dias após a morte (sob a teoria de que depois desse prazo as mudanças físicas produzidas pela decomposição seriam grandes demais, não permitindo certeza na identificação; Misna, Yebamoth 16.3). É duvidoso que esse tipo de discussão jorraria alguma luz na presente passagem. Se a intenção fosse salientar que Lázaro estava realmente morto, os detalhes nos parecem desnecessários (ele estava, afinal de contas, enterrado!) e também confusos (Jesus não estaria realmente morto, porque ressuscitou dentro de três dias?). Acima de tudo, a intenção é apenas preparar o leitor para a confrontação de Jesus com a morte e a imundícia, no v. 39. 11:18 / quinze estádios: (trad. lit.), ou pouco mais de três quilômetros. (Veja nota sobre 6:19). 11:27 / que havia de vir ao mundo: conquanto correta, do ponto de vista técnico (visto que segundo o ponto de vista de Marta o Filho de Deus já veio),

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a tradução é passível de dar a entender erroneamente que havia de vir mas ainda não veio. A intenção da construção gramatical (particípio presente no grego), não é fixar a época em que o Messias virá (exercício entre o presente e o futuro), mas definir-lhe o caráter de Alguém que virá (i.e., uma Pessoa que invade a história e a transforma). Uma tradução melhor poderia ser: “o Cristo, o Filho de Deus que vem ao mundo”. 11:28 / em particular: a necessidade de privacidade é demonstrada nos w . 19 e 31. Visto que Marta deseja que Maria tenha um momento de privacidade com Jesus, não quer que o grupo todo de lamentadores esteja presente. Entre­ tanto, esse momento a sós, que ela busca, é impossível (v. 31). O Mestre está aqui: A linguagem confessional de Marta (v. 27) não transparece nas palavras que ela dirige à irmã. Para elas, Jesus é simplesmente o Mestre, visto que são discípulas dele. Mestre, à semelhança de “Senhor” (outro termo que elas empregam coerentemente, ao dirigir-se a Jesus) dá conotação de fidelidade e respeito (cf. 13:13). te chama: (trad. lit.). Não há registro das palavras de Jesus pedindo que Maria seja chamada. É possível que Marta tenha considerado os vv. 25-26 como “convocação” de Jesus a ela, Marta, ou a Maria, ou a qualquer crente. O mesmo verbo é empregado na chamada de Lázaro, para que saia do sepulcro (12:17), e quando o pastor chama suas ovelhas pelo nome (10:3); o substantivo correspon­ dente é a “voz” com que o Filho de Deus chama os mortos à vida (5:25,28; cf. 11:43). É mais provável, entretanto, que o pedido de Jesus para ver Maria tenha sido omitido nos vv. 20-27, para que a atenção se focalize no próprio encontro de Marta com Jesus, e na momentosa confissão que ela faz. 11:33 / comoveu-se profundamente em espírito, e perturbou-se: lit.: “ele se tomou irado no espírito, e se sacudiu”. NIV e ECA suprimem o toque de ira (como ocorre em virtualmente todas as traduções em inglês), aqui e no v. 38 (lit.: “estando irado mais uma vez dentro de si mesmo”). Mas os verbos gregos empregados denotam, sem sombra de dúvida, ira e agitação. Se essa agitação (ou “tremor”) é física e também emociona! é difícil dizer; a voz ativa (“ele se sacudiu”) indica que é. Parece que a ira era intema, enquanto o tremor ou as sacudidelas seriam externas, como expressão da ira. A primeira pergunta que um intérprete, ou tradutor, faria, não é: Por que Jesus tremeria de ira? mas, que é que essas palavras significam na verdade? 11:35 / Jesus chorou. A palavra para “chorou” aqui é diferente da palavra empregada para o choro de Maria e dos líderes religiosos judeus. No caso destes (w. 31, 33) a palavra significa “lamentar” (à semelhança da lamentação costumeira, num funeral da época), enquanto a palavra empregada para o choro de Jesus significa apenas “derramar lágrimas”. Que as emoções de Jesus eram profundas e genuínas depreende-se dos vv. 33 e 38. 11:37 / ele, que abriu os olhos ao cego: Cf. 10:21. Seguindo-se ao v. 36, a intenção desta declaração é questionar a sinceridade do amor de Jesus (i.e., a cura do cego de nascença provou que ele tinha o poder para impedir a morte de seu amigo; talvez estivesse faltando o desejo de curá-lo).

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11:40 /Não te disse que se creres verás a glória de Deus? A que afirmativa anterior estaria o Senhor se referindo? Ele havia prometido a Marta que seu irmão ressuscitaria para a vida (v. 23); ele lhe havia falado também a respeito de “crer” (w. 25-26), e ela havia, de fato, “crido” (v. 27). Todavia, não houve promessa explícita da glória de Deus. O Senhor havia mencionado a glória de Deus no versículo 4, não, porém, a Marta. Uma possibilidade que intriga é que as palavras do v. 4 não teriam sido dirigidas aos discípulos que estavam com Jesus, a leste do Jordão, mas teriam sido, na verdade, a resposta de Jesus enviada às irmãs, em Betânia, com respeito à doença de Lázaro (v. 3). Se assim for, o versículo 40 pode referir-se de modo específico ao versículo 4. Conquanto não está registrado de modo explícito que o versículo 4 é mensagem enviada a distância, às irmãs, tampouco está claro que Jesus a dirigiu aos discípulos, nem dão eles evidência de a haverem escutado (contraste v. 7, onde Jesus de modo explícito se dirige aos “discípulos”). Seja como for, os versículos 4 e 40 estão intimamente relacionados à idéia de que a glória de Deus se manifestou na ressurreição de Lázaro dentre os mortos (cf. também a visão contínua prometida aos discípulos de Jesus, de acordo com o v. 51). 11:44 / Desatai-o e deixai-o ir: (trad. lit.). Os três casos de ressurreição relatados nos evangelhos encerram-se com uma palavra semelhante, um toque de interesse humano caloroso pelo qual Jesus procura dar atendimento a uma necessidade adicional, comparativamente de menor importância (cf. Marcos 5:43; Lucas 7:15). É possível, também, que a libertação de Lázaro das faixas de pano que o amarravam tem a intenção de sugerir a figura bíblica da “libertação” que traz a vitória sobre a morte e as forças do mal (e.g., Mateus 16:19; Lucas 13:16; Atos 2:24; cf. João 8:32-36).

31. Veredito Contra Jesus (João 11:45-54)

O ministério público de Jesus, que se iniciara com a purificação do templo (2:13-22), mostra em toda sua extensão as características que nos sinóticos se associam à semana da paixão, em Jerusalém: primeira, o fato de o Senhor ensinar no templo (ver, 7:14-8:59; 10:22-39; cf. Lucas 21:37-38), e segunda, o tema implícito nesse ensino de que tanto ele quanto seu auditório estão envolvidos num julgamento em tribunal, chamam suas testemunhas e procuram confirmar suas vindicações (ver, 5:30-47; 8:12-20). Em comparação com os registros sinóticos do julgamento de Jesus perante o concílio regente, ou sinédrio, (cf. Marcos 14:53-65; 15:1; Mateus 26:57-68; 27:1-2; Lucas 22:66-71), este é, verdadeiramente, um longo julgamento. Se há algo que corresponda à momentosa automanifestação de Jesus diante dos principais sacerdotes (Marcos 14:62; Mateus 26:64; cf. Lucas 22:69), é o diálogo no pórtico de Salomão, no templo (10:22-39). Mesmo aqui, Jesus aponta para trás, para coisas que ele dissera ou fizera antes (10:25). O julgamento de Jesus registrado nos sinóticos com freqüência se divide em duas partes: um julgamento “judeu” e um julgamento “romano”. O Evangelho de João, todavia, substitui o julgamento judeu com matéria proveniente do ministério público de Jesus. Só o julgamento romano, a audiência perante Pilatos, é que é deixado para a narrativa da paixão (18:33-38; cf. Marcos 15:2-4; Mateus 27:11­ 14; Lucas 23:1-5). Contudo, um julgamento só se conclui com um veredito. Os versículos 47-53 registram o “veredito” do sinédrio contra Jesus; não se trata de um veredito formal, ou oficial, mas apenas a determinação final de que Jesus deve morrer. Tal veredito surge como resultado direto da ressurreição de Lázaro. Os judeus que haviam estado chorando na casa de Marta e Maria dividem-se em dois grupos, por causa do milagre. Muitos creram em Jesus, mas alguns foram ter com os fariseus e lhes contaram o que o Senhor havia feito (v. 45; embora a palavra “divisão” ou “cisma” não apareça, a situação lembra as “divisões” mencionadas em 7:43; 9:16 e 10:19-21; cf. também a disputa descrita nos vv. 36-37, dentro deste grupo

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de lamentadores). Foi o relatório da facção de fariseus incrédulos que precipitou a reunião do sinédrio. Os fariseus e principais sacerdotes ficaram alarmados, não apenas pela ressurreição de Lázaro, mas pelos muitos sinais miraculosos que Jesus estava realizando (v. 47). Temiam um movimento da massa, baseado na fé em Jesus, e a conseqüente repressão do governo romano (v. 48; que algumas idéias revolucionárias tomavam corpo demonstra-se pela tentativa na Galiléia de transformar Jesus em rei mediante a força, 6:15). A proposta de Caifás, o sumo sacerdote (vv. 49-50), não é tão óbvia como poderia parecer de início. A intenção dele não é meramente livrar-se de Jesus, mas que Jesus atraísse a ira de Roma, para manobrar a própria Roma, no sentido de livrar-se de Jesus. Seria melhor que Roma destruísse um homem, do que toda a nação. Nesse sentido, de acordo com Caifás, Jesus deve morrer pelo povo, e que não pereça toda a nação (v. 50). O narrador apanha a frase m orra pelo povo e dá-lhe uma interpretação inteiramente diferente nos vv. 51-52. Ele se atribui essa liberdade basea­ do em que Caifás (como sumo sacerdote) deve ter sido profeta também; conseqüentemente suas palavras vieram de Deus, tendo um significado mais profundo do que parecem ter, à primeira vista. Jesus m orreria... não somente pela nação (como o bom pastor, que “dá sua vida pelas ovelhas” v. 51; cf. 10:11, 15). Também, como pastor, Jesus vai reunir em um só corpo os filhos de Deus que andavam dispersos (v. 52; cf. 10:16). A morte de Jesus é redentora; mediante sua morte, o povo judeu tem uma oportunidade de ser poupado — não apenas da destruição política, como era a esperança de Caifás, mas poupado da própria morte (cf. v. 26). Mais do que isso, a morte de Jesus é unificadora; mediante sua morte, todos quantos crêem, de todas as raças, receberão não só a vida eterna, mas (junto com os judeus) serão reunidos numa comunidade única, a salvo dos perigos externos (10:16,28-29; cf. 17:11,20-23). Esta é a visão de Jesus no Evangelho de João, visão que o autor do Evangelho apanhou — pelos olhos de Caifás — e adotou para si mesmo. A pressupo­ sição do autor do Evangelho é que as palavras de Caifás transcendiam de longe seu conhecimento e intenções pessoais. À semelhança de Balaão (cf. Números 24), Caifás falou com maior sabedoria do que a que realmente tinha, e seus maus desígnios serviram aos propósitos divinos. Os vv. 51-52 interrompem o registro do concílio. Seguindo o conselho

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de Caifás, as autoridades religiosas tomaram sua decisão: resolveram matá-lo (v. 53). Num sentido prático, essa decisão nada tinha de novi­ dade. As autoridades “ainda mais procuravam matá-lo” desde o confron­ to a respeito da guarda do sábado (5:18), quando Jesus passou a ser um homem procurado. Inúmeras vezes a terminologia empregada é que “procuravam matá-lo” (7:1, 19, 25; 8:37, 40), frase que mais sugere violência o povo do que procedimentos jurídicos formais. O Senhor havia chamado “os judeus” de homicidas, e filhos do primeiro homicida, o diabo (8:44). O sinédrio apenas endossou um “veredito” que materializou a intenção homicida que o tempo todo lhes enchera o coração. Repete-se pela última vez o padrão costumeiro da fuga à face do perigo: Jesus procura um lugar relativamente seguro de refúgio. Desta vez ele procura retiro numa aldeia chamada Efraim, numa região perto do deserto (v. 54). É bem provável que Jesus já houvesse ficado ali, antes (à semelhança da Betânia, a leste do Jordão), sabendo que ali encontraria refúgio.

Notas Adicionais # 3 1 11:47 / Sinédrio: o maior concílio, ou maior corpo governamental dos judeus, na Judéia, compunha-se dos principais sacerdotes, dos anciãos, ou nobreza leiga dentre o povo, e de eruditos (escribas, incluindo fariseus), sendo presidido pelo sumo sacerdote atuante. Esse corpo diretivo detinha a autoridade final sobre assuntos religiosos e seculares pertinentes aos judeus, desde que suas decisões não conflitassem com a autoridade do procurador romano. Debate-se a questão sobre se à época o sinédrio tinha autoridade para aplicar a pena de morte (o apedrejamento de Estêvão, em Atos 7, indica que sim, mas João 18:31 é citado costumei ramente como prova de que o sinédrio não tinha esse poder. Veja discussão sobre 18:31). Que faremos? Esta expressão (no futuro do indicativo, em vez de subjuntivo deliberativo) pode ser traduzida como pergunta retórica, sendo a resposta implícita: “nada”. Entretanto, o contexto (v. 48) sugere que pode ter um sentido deliberativo, ainda que expresso no futuro: “que faremos?” como trazem ECA e GNB. 11:48/ iodos crerão nele: cf. o uso de linguagem generalizada, semelhante a esta em 1:7;3:26; 12:32, eesp. 12:19. Esse “universalismo” não constitui mero temor infundado da parte dos sacerdotes e fariseus (cf. 12:11), mas está entra­ nhado na perspectiva do autor do Evangelho. No entanto, essa linguagem não tem a intenção de ser literal. Para o autor eo Evangelho, essas palavras apenas apontam de modo geral para o cumprimento da vontade de Deus na missão realizada por Jesus e seus seguidores. nosso lugar: esse termo pode referir-se ao lugar santo (i.e., o templo), ou a cidade santa de Jerusalém. É provável, com base no uso contemporâneo, que a referência

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seja ao templo; ver, Atos 16:13-14; 7:7, e esp. João 4:20. 11:49 / naquele ano: (cf. v. 51; 18:13): não se sugere que o sumo sacerdote ocupava esse ofício em mandato anual. Essa inferência seria enganadora. Teoricamente, as funções do sumo sacerdote eram vitalícias (cf. Números 35:25); na prática ele ocuparia o cargo a vida toda ou até que os romanos o depusessem. Caifás esteve nesse cargo durante pelo menos dezoito anos (cf. Josefo, Antiquities 18.35,95). A frase naquele ano com certeza é usada de modo retórico, no sentido de “naquele fatídico ano da paixão do Senhor nosso”; cf. “aquele dia” (v. 53) e “dessa hora em diante” (19:27), expressões relacionadas à paixão do Senhor. 11:51 / profetizou: parece que o narrador presume que todo sumo sacerdote teria o dom da profecia. Josefo atribui a profecia a João Hircano, que foi sumo sacerdote de cerca de 135 a 104 a.C., dando indicações todavia, de tratar-se de caso singular, ou pelo menos de que essa não era a regra geral (War 1.68-69; Antiquities 13.299-300). Um sumo sacerdote anterior, Jaddua, havia recebido a revelação em conexão com uma visita de Alxandre, o Grande, a Jerusalém, e o próprio Alexandre teria recebido uma revelação (Antiquities 11.327,333-334). Entretanto, o narrador não está muito interessado em generalizar a respeito dos poderes proféticos do sumo sacerdote, mas apenas deseja interpretar um pro­ nunciamento dele como tendo natureza profética. Sendo Caifás o sumo sacer­ dote, ficou ligeiramente mais apropriado que o narrador se utilizasse daquele artifício, e ele aproveita a oportunidade. 11:52 / filhos de Deus que andavam dispersos. O termo é empregado aqui para designar os que haviam sido escolhidos para a salvação (contraste 1:12, onde esse termo denota em que as pessoas se transformam, mediante a fé em Jesus). Filhos de Deus equivale a “rebanho” (de modo específico “outras ovelhas que não são deste aprisco,” de 10:16). Uma metáfora mais remota que poderia ter contribuído para a adoção desta linguagem, aqui, é a da igreja como sendo o pão partido e “espalhado pelo monte”, que foi “recolhido e transformado numa unidade” (Didache 9.4; cf. João 6:12-13). 11:54 / já não andava publicamente entre os judeus: é situação que corresponde bem àquela descrita em 7:1, exceto que naquele caso, Jesus ficou na Galiléia. uma aldeia chamada Efraim: desconhece-se o local exato desta aldeia. Eusébio, no quarto século, localizou-a cerca de 30 quilômetros ao norte de Jerusalém, e oito quilômetros a leste de Betei (Onomasticon 28.4; 90.19). O mapa Madeba, no sexto século, também a situa (“Efrom ou Efréia: o Senhor esteve lá”) a nordeste, perto de Rimom, na área montanhosa ao redor do vale do Jordão. Se estas tradições estiverem corretas, “Enorn, perto de Salim” (3:23) ficaria a alguma distância, ao norte, sendo possível (sem que se possa provar) que Efraim é onde os discípulos de Jesus desenvolveram um ministério de batismo (3:22). As modernas tentativas de identificação do local centralizam-se ou na aldeia árabe de et-Taiybe (já chamada de “Afra”), ou no vale de Ain Samniya, ligeiramente a nordeste.

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com os discípulos: não há certeza quanto a se os discípulos com que Jesus permaneceu eram o mesmo grupo de discípulos que viajaram com ele para Betânia (cf. 11:16), ou uma comunidade de discípulos que residiam em Efraim, ou ambos os grupos. É provável que Tomé e seus companheiros se houvessem unido a Jesus, neste retiro; contudo, se Efraim era território familiar, poderia ter havido um grupo de discípulos ali que providenciou alojamento para todos (cf. 3:22,26; 4:1).

32. A Última Páscoa (João 11:55-12:11)

Pela terceira vez no Evangelho de João, aproxima-se a páscoa (v. 55; cf. 2:13; 6:4), e pela segunda vez, e também a última (cf. 2:13), Jesus viaja para Jerusalém a fim de participar da festa. Na primeira visita a Jerusalém houve a purificação do templo (2:13-22), que deu a impressão de que a paixão de Cristo estava prestes a iniciar-se, o que não aconteceu. Agora, todavia, a paixão está prestes a começar; o narrador vai criando a atmosfera de expectativa, para sua história. João não afirma de imediato que “Jesus subiu para Jerusalém” (2:13), mas diz que muitos (v. 55) subiram e, ao chegarem, procuraram Jesus, perguntando: Que vos pare­ ce? Não virá ele à festa? (v. 56). Primeiro Jesus regressa a Betânia (12:1) e, depois, faz a entrada triunfal em Jerusalém (12:12-19). Cresce a expectativa nervosa à medida que a páscoa vai chegando: quando se aproxim ava a páscoa (v. 55), seis dias antes da páscoa (12:1), “no dia seguinte” (i.e., cinco dias antes, 12:12), “antes da festa” (13:1). O “assalto” a Jesus na cidade, que o conduziria à prisão, morte e ressurrei­ ção, vai-se desenvolvendo passo a passo. Quem eram os muitos daquela região que subiram a Jerusalém para a festa, suficientemente cedo de modo que realizassem os ritos de purificação? Seriam judeus de todo o Israel, ou um grupo mais específi­ co? O fato de a palavra região aparecer no v. 54 e no v. 55, sugere que as pessoas estariam vindo da mesma região onde Jesus se estabelecera. Que estivessem procurando a Jesus e especulando quanto a se ele viria ou não à festa (v. 50) seria natural se as pessoas o conhecessem, e soubessem de seus paradeiro anterior. Não é provável que o nome de Jesus fosse tão conhecido em todos os lares, que as pessoas por todo Israel estivessem fazendo aquela pergunta. De qualquer modo, os adoradores descritos nos vv. 55-56 (diferente­ mente de “os judeus” de 7:11, passagem semelhante em alguns aspectos) não hostilizam Jesus mas, seriam neutros (mais semelhantes às “multi­ dões” de 7:12). Se sabiam onde estivera Jesus antes, nada disseram às autoridades. Identificar e dar continuidade às multidões mencionadas por todo o capítulo 12 é problema difícil, sendo natural que se pergunte se a grande multidão de judeus de 12:9, que fora a Betânia a fim de ver Jesus

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e Lázaro, pode ser identificada com o grupo que estava procurando Jesus, de acordo com 11:55-56. A multidão de 12:9 estava obviamente violando a ordem dada pelos principais sacerdotes e os fariseus (11:57) p ara que, se alguém descobrisse onde ele estava, o denunciasse, p a ra o prenderem . O povo soube que Jesus estava na Betânia mas não o denunciou; ao contrário, o povo foi para lá para vê-lo. Talvez não seja por acaso que a ordem dos principais sacerdotes e fariseus é primeira­ mente mencionada em conexão com o grupo daquela região, que procurava Jesus no templo (vv. 55-57). Conquanto suas transições nem sempre sejam suaves, nem claras, o narrador deixou em aberto a possi­ bilidade (nada mais do que mera possibilidade) de ter havido uma multidão em particular de adoradores (de Efraim) que procurou Jesus em Jerusalém, antes da festa (vv. 55-56), encontrou-o em Betânia (12:9) e, finalmente, deu testemunho de seu milagre de ressuscitar Lázaro dentre os mortos (12:17). Até certo ponto pode-se testar a continuidade, à medida que avançamos; contudo, não há como possamos provar (ou refutar) a idéia de que a multidão viera de Efraim. Encaixada entre a procura de Jesus, e seu encontro, está a história da unção do Senhor por Maria (12:1-8). O narrador já fez alusão a esse incidente ao apresentar-nos Lázaro (11:2); todavia, reconta-o agora com pormenores, e na seqüência apropriada. Trata-se, reconhecidamente, da mesma unção que deve ter ocorrido em Betânia, na casa de um leproso chamado Simão, de acordo com Marcos 14:3-9 e Mateus 26:6-13. As diferenças no Evangelho de João seriam que o nome de Simão não é mencionado e que o jantar (em homenagem a Jesus) é oferecido talvez como celebração da ressurreição de Lázaro. Se o hospedeiro é anônimo (v. 2), ninguém mais o é. Todas as faces familiares do capítulo 11 estão presentes: Marta, ajudando a servir (cf. Lucas 10:40); Lázaro, reclinado à mesa (v. 2); e Maria, aos pés de Jesus, como sempre (v. 3; cf. Lucas 10:39; João 11:32). A única figura nova é Judas Iscariotes (vv. 4-6), já mencionado (6:71) sem ter, todavia, exercido algum papel na narrativa, até este momento. Entende-se melhor essa história como prefigurando a última ceia de Jesus com seus discípulos (13:1-30), e os sermões acompanhantes, de despedida (esp. 13:36-14:31). Freqüentemente alguns comentaristas ob­ servam que o registro dessa história recebeu influência, em certos pontos, da memória de um incidente semelhante, ocorrido na Galiléia, e que se

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encontra apenas em Lucas (7:36-50): por exemplo, os pés de Jesus são ungidos, não sua cabeça (contraste com Marcos 14:3), e Maria, impulsi­ vamente enxuga-lhe os pés com o próprio cabelo (quanto aos dois pormenores, cf. Lucas 7:38). Em Lucas, uma mulher desconhecida usou seu cabelo para enxugar as lágrimas dela derramadas nos pés de Jesus, e só depois disso é que os ungiu com perfume; em João, Maria derrama perfume nos pés de Jesus e de imediato os enxuga (v. 3)! Argumenta-se que tais pormenores cabem com perfeição no relato lucano, tratando-se de uma prostituta impulsiva que fora perdoada, e que seriam ilógicos no relato de João, que se refere à devoção de uma amiga querida, achegada a Jesus. Portanto, conclui-se, as duas situações se misturaram, até certo ponto, nesta narrativa. Isso talvez seja verdade mas, não deveríamos esquecernos de que lavar — e enxugar — pés, é ato de significado decisivo noutra parte do próprio Evangelho de João (i.e., 13:1-17). Antes de chegar à narração da espantosa inversão, em que o Mestre lava os pés aos discípulos (13:8), o narrador descreve a situação mais natural, ou normal, de uma discípula ungindo os pés de seu Mestre. O elemento estranho não foi o ato de ungir, em si mesmo, mas o perfume caríssimo usado por Maria, e a quantidade de perfume que ela empregou. Em primeiro lugar, Maria é simplesmente modelo do espírito de serviço; é traço que ela partilha com Marta (v. 2); porém, acentua-se aqui o espírito de serviço de Maria. Ela recebe elogios pela extravagância de sua devoção — e nesse sentido faz lembrar Lucas 7:36-50. Tão grande quantidade de perfume (v. 3) fez invadir a casa toda de fragrância suave. Entretanto, nada disso é considerado, no Evangelho, como fim em si mesmo. Trata-se apenas da medida do amor daquela mulher por Jesus, e de sua fidelidade em servi-lo. A principal similaridade entre a presente passagem e o sermão de despedida de Jesus é que, em ambos, um ato simbólico representa o espírito de serviço (cf. 13:1-17), ocasionando a revelação de que Jesus deve partir (vv. 7-8; cf,13:33; 13:36-14:31). O paralelismo se fortalece pela presença de Judas em ambas as situações (w . 4-6; cf. 13:2, 11, 21-30). Atribui-se a Judas, aqui, críticas que em outros evangelhos estão assinaladas a “alguns dos presentes” (Marcos 14:4) ou aos “discípulos” (Mateus 26:8), que protestam contra o desper­ dício da ação de Maria (v. 5). Conquanto não perca a oportunidade de comentar o caráter de Judas, e sua traição a Jesus, a ocorrer em breve

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(w . 4, 6; cf. 6:71), o narrador usa a reclamação de Judas como a deixa para a revelação de Jesus: O que Maria acabara de fazer (quer ela o perceba, quer não) foi, com efeito, embalsamar simbolicamente seu corpo, por antecipação, preparando-o para a sepultura (v. 7). Fica a implicação de que logo o Senhor partirá (v. 8; cf. 13:33). Assim como o veredito do sinédrio tomou historicamente certa sua morte, a unção de Maria dramatizou essa certeza àqueles mais íntimos do Senhor. A perspectiva da ausência de Jesus, em suas palavras finais, a mim nem sem pre tereis (v. 8), permanece, por enquanto, sem o conforto de pelo menos um indício de que haverá nova reunião com ele; não há nenhuma promessa de sua presença renovada. Só mais tarde estenderá ele uma palavra de esperança a servos do tipo de Maria, cujo amor por ele é mais forte que a própria morte: “Aquele que me serve deve seguir-me, e onde eu estiver, ali estará também o meu servo. E se alguém me servir, meu Pai o honrará” (v. 26; cf. 14:3; 17:24). O mesmo tema da ausência de Jesus e de como ela será vencida, dominará os sermões de despedida; todavia, por enquanto o problema fica sem solução. A celebração é interrompida pela chegada a Betânia de um grupo de adoradores vindos de Jerusalém (v. 9). Retomando o fio da meada da ordem dada pelo sinédrio, em 11:47-53, o narrador acrescenta um pósescrito de que Lázaro, também, estava na mira das autoridades, para ser morto. Lázaro era a prova viva do milagre; visto que ele vivia muitos dos judeus iam te r com Jesus e criam nele (v. 11; cf. 11:45). A decisão de matar Jesus, portanto, incluía planos de matar Lázaro também (v. 10). Caifás e os principais sacerdotes não perceberam a ironia de que não era suficiente que “um só homem morra pelo povo,” (11:50), mas era preciso que dois morressem! O narrador acrescenta este pós-escrito acerca de Lázaro, neste ponto do relato, por causa de sua declaração anterior de que a multidão visitante viera ver Lázaro e também Jesus (v. 9). Não tendo ido diretamente aos principais sacerdotes, a multidão desafiava o sinédrio e protegia os dois fugitivos — não um só.

Notas Adicionais # 32 11:55 / para se purificarem: era necessário que os participantes da páscoa estivessem cerimonialmente purificados (cf. Números 9:6-12; 2 Crônicas 39:17­ 18), e com toda probabilidade, presumia-se que os ritos de purificação fossem necessários para os judeus que morassem entre os gentios, ou perto deles. 11:56 / Não virá ele à festa? A forma da pergunta, em grego, indica que se

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espera uma resposta negativa. Contudo, o fato de eles estarem procurando Jesus sugere que havia uma possibilidade de o Senhor estar lá. 12:3 / Uma libra: (trad. lit.; gr.: litra, a libra romana de doze onças). Certamente era uma quantidade grande, suficiente para durar muitos anos; cf. a quantidade extravagante de especiarias utilizada mais tarde para embalsamar o corpo de Jesus (19:39). nardo puro, um perfume muito caro: a concordância textual entre João e Marcos 14:3 — estendendo-se ao uso comum de algumas palavras muito raras — é algo espantoso, e sugere que os dois relatos não só se basearam no mesmo incidente, mas também na mesma narrativa desse incidente. Nardo, ou nardoda-índia, era uma planta nativa da índia, cujo óleo era para ungir, ou para fazer perfumes. A palavra traduzida por puro (lit., “fiel” ou “digno de confiança”; daí “genuíno” ou “não adulterado”) é empregado desta maneira somente aqui e em Marcos 14:3. Poderia ser a marca comercial sob a qual o produto era vendido. toda a casa se encheu: há uma tradição segundo a qual se interpreta esta frase de modo simbólico significando algo equivalente a Marcos 14:9: a notícia da boa ação de Maria encheu o mundo todo, da mesma maneira que o suave perfume do nardo puro encheu a casa (o último Midras sob Eclesiastes 7:1 [Soncino ed., Midrash Rabbah (Londres: Soncino Press, 1961, vol. 8, pág. 166) disse: “[A fragrância de] o bom óleo difunde-se do dormitório à sala de jantar, enquanto um bom nome difunde-se de um ao outro fim do mundo”). É bem provável que essa frase, à semelhança da menção de “nardo puro” e outros pormenores, apenas reflitam a vívida lembrança de alguém que esteve presente durante a ocorrência do fato. 12:5 / trezentos denários: (“denarii”; NIV traz “o salário de um ano”. A moeda em questão é, especificamente, o denarius romano. Um denarius era o salário de um dia, de um operário (cf. Mateus 20:2), de modo que trezentas dessas moedas manteria viva uma família pobre durante quase um ano. 12:6 / era ladrão; tendo a bolsa, tirava o que nela se lançava. O fato de Judas ser o tesoureiro dos discípulos de Jesus é fato observado também em 13:29; contudo, que era ladrão, só se menciona aqui. Judas é sempre visto como o traidor, no Evangelho de João, sem indicação direta, contudo, de que traiu por dinheiro. Esta passagem permite que olhemos de relance, em retrospecção, o caráter de Judas (quanto a uma perspectiva sobre ladrões, cf, 10:1, 10). O narrador apresenta essa informação aqui, a fim de deixar claro que a questão imediata não são as atitudes corretas ou erradas no que concerne aos pobres (controvérsia que a própria história poderia facilmente ter levantado), mas sim a presença ou a ausência de Jesus (veja nota em 12:8). 12:7 / Deixai-a. Ela guardou este perfume para o dia do meu enterro: (trad. lit.). O propósito expresso na declaração de Jesus é propósito que se realiza no presente, não no futuro. Entretanto, o presente momento é antecipação da unção do corpo de Jesus para a sepultura (cf. 19:38-42). O Evangelho de Marcos expõe o significado com maior clareza e mais pormenores (“Deixai-a, por que a aborreceis? Ela praticou boa obra para comigo... Ela fez o que pôde. Anteci­

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pou-se a ungir o meu corpo para a sepultura”, 14:6, 8; cf. Mateus 26:10,12. É possível que o fraseado objetivo, quase enigmático, de João represente a forma mais primitiva da declaração do Senhor, enquanto Marcos e Mateus preserva­ ram um texto um pouco posterior, mas correta, que esclarece mais. 12:8 / Vós sempre tereis os pobres convosco. Marcos 14:7 traz a mesma declaração, porém, com as palavras adicionais: “ e, quando quiserdes, podeis fazer-lhes bem”. Longe de incentivar uma atitude de negligência ou pouco caso para com os pobres, Jesus (em Marcos) exorta-nos a dar-lhes atenção em suas necessidades (cf. Deuteronômio 15:11). Mateus 26:11 não traz aquelas palavras adicionais, talvez porque o evangelista já teria enfatizado com bastante força, em 25:31-46, o fato que, durante o período da ausência de Jesus, as boas obras feitas em prol dos necessitados seriam feitas em prol do próprio Jesus. João não as reproduz, entretanto, em seu Evangelho, simplesmente porque a questão dos pobres não é questão de que ele está tratando nesse momento. O evangelista repele aquela observação porque a considera cortina de fumaça atirada por Judas, o ladrão. Conquanto a sugestão de que Judas não tinha interesse algum pelos pobres (v. 6) traga a implicação leve que os cristãos devem interessar-se, a ênfase de João não recai sobre a primeira parte do pronunciamento: Vós sempre tereis os pobres convosco, mas naquilo que se lhe segue de modo natural: mas a mim nem sempre tereis. João está interessado na questão singular da separação iminente entre Jesus e seus discípulos. 12:10 / Os principais sacerdotes decidiram, então, matar também a Lázaro. Ainda que o verbo traduzido por decidiram está no perfeito do indicativo, e não no mais-que-perfeito, parece que o narrador está provendo mais algumas informações sobre o concílio reunido em 11:47-53. Ele não estaria, pois, descrevendo uma nova decisão ocasionada pela atual visita da multidão a Betânia. Esta última conjectura parece ficar implícita pela palavra então, de ECA. Se as autoridades houvessem ficado a par da visita a Betânia, teríamos muita dificuldade em ver a razão por que não prenderam Jesus (e Lázaro) em Betânia mesmo, em vez de emitir novas ordens. Uma tradução melhor poderia ser a seguinte: “Os principais sacerdotes haviam decidido matar a Lázaro também”. Se a referência é para coisas pertinentes a 11:47-53, os “muitos judeus” que “criam nele” (v, 11) são os mesmos mencionados em 11:45, e não o grupo que agora visita Jesus em Betânia.

33. A Entrada Triunfal em Jerusalém (João 12:12-19)

No dia seguinte o cenário muda. O narrador retoma a história do ponto de vista das multidões crescentes que participarão da páscoa em Jerusa­ lém. O povo recebeu a notícia de que Jesus estava a caminho, vindo para a cidade (v. 12). O texto não nos diz de que maneira o povo recebeu essa notícia — até um pouco mais tarde (vv. 17-18). Tampouco o leitor foi advertido, mediante palavras explícitas, de que Jerusalém seria o destino de Jesus — embora o leitor arguto tê-lo-ia imaginado. Antes de analizar as razões por detrás da ação do povo, ou de ligar esta cena à que a precede, o narrador apenas descreve, tão brevemente quanto pode, o que a multidão fez e o que fez Jesus. Quando as pessoas saíram a encontrar-se com Jesus com ramos de palmeiras, gritando louvores a Deus e lançando bênçãos ao rei que chegava, o Senhor encontrou um jum entinho, e montou nele (vv. 13-14a). Isso é tudo que está registrado quanto à entrada de Jesus em Jerusalém. O resto (vv. 14b-19) é comentário. Os comentários do narrador dividem-se em três partes: citação escriturística (vv. 14b-16), uma nota adicional fazendo distinção entre duas multidões, e explicando-as (vv. 17-18), e uma reflexão final significativa sobre a cena toda, pelos fariseus, funcionando como um coral de drama grego (v. 19). A citação escriturística é bastante livre, referindo-se a Zacarias 9:9, mais livre do que aparece em Mateus 21:5. (Mateus é o único Evangelho, além de João, que inclui essa citação no relato da entrada triunfal). A importância está na correspondência existente entre certas palavras da citação e outras da narrativa acompanhante (inclusive a exclamação da multidão no v. 13). Por um lado, quanto à passagem de Zacarias, se lem braram de que estas coisas estavam escritas a respeito dele, e por outro lado, a multidão é que lhe havia feito estas coisas (v. 16). A correspondência centraliza-se em duas palavras: vem (i.e., aquele que vem, v. 13; vem, v. 15; cf. também Jesus estava a caminho de Jerusalém , v. 12) e rei (i.e., rei de Israel, v. 13; o teu Rei vem, v. 15). Existe uma correspondência subsidiária entre montou no v. 14 e mon­ tado, no v. 15, e também entre jum entinho, no v. 14 e filho de jum enta, no v. 15. Essa correspondência aponta para o tema de Jesus vindo como Rei, sentado num jumento, como que num trono. A realeza de Jesus só

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foi mencionada duas vezes, antes, neste Evangelho: a primeira vez de modo mais ou menos positivo (1:49) e a segunda vez, de forma negativa (6:15). Contudo, na narrativa da paixão a realeza de Jesus será a categoria dominante, em que Jesus e suas afirmações serão apresentados — pela última vez — ao mundo (cf. 18:33-38: 19:12-16, 19-22). A ênfase na realeza de Jesus, na história da entrada triunfal em Jerusalém, sugere que num sentido bastante real (como dá a entender a observação sobre a páscoa, em 11:55) a narrativa da paixão de Cristo já se iniciou. A adequação da citação do profeta Zacarias e, portanto, da realeza de Jesus como sendo a categoria apropriada para compreender-se o Rei tomou-se clara aos discípulos, acrescenta o narrador, só depois que Jesus foi glorificado (v. 16). Glorificado é expressão que encerra em si mesma a morte e a ressurreição de Jesus. A glorificação do Senhor só se completa quando ele ressurge dentre os mortos (e o Espírito está pronto para vir, 7:39); todavia, ela se inicia cedo, quando o Senhor encara a morte face a face (12:23; cf. 11:4). O v. 16 é reconhecimento de que a interpretação da entrada triunfal representada pela citação escriturística é pós-ressurreição (assim como a interpretação da purificação do templo, dada em 2:17, 22 também o é). Entretanto, o futuro liga-se ao presente. A “glorificação” está prestes a começar (v. 23); está prestes a revelar-se (vv. 24-33) a natureza paradoxal da realeza de Jesus. Fica sem solução no v. 12 a questão de como se precipitou a alegre saudação de boas-vindas, em primeiro lugar. Como foi que a grande multidão ouviu que Jesus estava a caminho de Jerusalém ? Os vv. 17-18 foram acrescentados à narrativa a fim de responder a essa pergunta mas, ao fazê-lo, levantam outras perguntas. Primeiramente, esses versí­ culos complicam o quadro da entrada triunfal ao fazer uma distinção entre a multidão que estivera com ele e a multidão que foi ao seu encontro com ramos de palmeiras. Em segundo lugar, por causa da incerteza do texto, ficamos em dúvida quanto à identidade do primeiro desses dois grupos de pessoas. Se a multidão que estivera com ele estivera (como NIV e ECA indicam) com ele quando (gr.: hotè) ele ressuscitou a Lázaro do túmulo, deve ter sido a multidão que fora confortar Marta e Maria (11:19, 31, 33), havendo muitos ali que creram em Jesus (11:45). Todavia, de acordo com alguns manuscritos antigos, “a multidão que estivera com Jesus” relatou à multidão reunida em Jerusalém para a Páscoa “que” (gr.: hoti) Jesus ressuscitara a Lázaro.

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Neste caso, é mais plausível identificar a primeira multidão como a que havia ido a Betânia para ver Jesus e Lázaro (v. 9) e depois, presumivel­ mente, retomara a Jerusalém de novo. Conquanto o manuscrito não proporcione apoio muito forte a esta tradução interpretativa, favorecendo mais a outra, pelo menos provê continuidade entre o relato da entrada triunfal e tudo que a precede. Se a multidão do v. 9 não for a mesma multidão que dá testemunho no v. 17, é difícil ver por que, afinal, está no relato. Por outro lado, o grupo de autoridades judaicas que consolou Maria, no capítulo 11, já serviu a uma função definida no desenvolvi­ mento da história (11:45-46), e seu testemunho já produziu seu efeito (v. 11). Parece que o fator adicional que suscitou a entrada triunfal foi a verificação realizada pela multidão que visitara Betânia, no v. 9. Por causa da estranha colocação dos vv. 17-18 (quase como se fossem reflexões posteriores), e de modo especial também por causa da incerteza textual, esta “nota de rodapé” explanatória toma o relato da entrada triunfal mais confuso. Todavia, há uma coisa que essa nota explica com clareza: a recepção principesca feita a Jesus à entrada da cidade (e, , portanto, tudo quanto aconteceu depois) deve-se diretamente à ressurrei­ ção de Lázaro. Cumpre-se a promessa de Jesus: a doença de Lázaro resulta na “glória de Deus, para que o Filho de Deus seja por ela glorificado” (11:4). O último comentário desvirtuado vem dos fariseus (v. 19). Parecialhes que a sombria predição de Caifás se tomava realidade. Todos agiam como se cressem em Jesus (cf. 11:48); o mundo todo o seguia. O narrador percebe a ironia da observação deles e dela tira vantagem. Certa vez Jesus havia perguntado: “Que aproveitaria ao homem ganhar o mundo todo, e perder a sua alma?” (Marcos 8:36). Ei-lo agora, com o mundo a seus pés, prestes a perder a própria vida — “pela vida do mundo” (cf. 6:51). Introduziu-se então o paradoxo, mas suas muitas dimensões precisam ser exploradas.

Notas Adicionais # 33 12:13 / Hosana: é expressão aramaica que significa “salva agora!” usada literalmente como petição de livramento, ou como termo técnico, atribuindo louvor a Deus. A forma hebraica dessa expressão é empregada como petição no Salmo 118:25 (fonte aparente da aclamação do povo), mas os autores do Novo Testamento parecem ter em mente um clamor de louvor. Tanto aqui como em Marcos 11:9-10 e Mateus 21:9, o texto grego deixa a expressão aramaica sem

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tradução (cf. também Didache 10.6: “Hosana ao Deus de Davi”). Lucas, em vez de deixar a expressão sem tradução, ou traduzi-la de modo literal, registra sua interpretação dela, usando uma paráfrase: “Toda a multidão dos discípulos, regozijando-se, começou a dar louvores a Deus em alta voz, por todas as maravilhas que tinham visto, dizendo: Bendito o Rei que vem em nome do Senhor!” (Lucas 19:37-38; quanto a uma tradução mais literal de “hosana”, cf. Apocalipse 7:10: “Salvação ao nosso Deus”). Um exemplo moderno de como uma oração pode tomar-se clamor de louvor é “Deus salve a rainha!” Bendito é aquele que vem em nome do Senhor. Esta parte da aclamação do povo é citação do Salmo 118:26, um dos assim chamados “Salmos de Hallel” (Salmos de Louvor, 113-118), usados na liturgia da páscoa. Não é, todavia, citação da Escritura (a citação operacional das Escrituras é, em vez disso, Zacarias 9:9, no v. 15), mas clamor espontâneo derivado, em parte, da liturgia e ecoando a terminologia que Jesus usara noutra passagem deste Evangelho (aquele que vem: cf. 1:25,27; 3:21; 6:14; 11:27; rei de Israel: na linha seguinte, cf. 1:49). 12:15 / filha de Sião. O sentido é: “cidade de Sião” (GNB) ou simplesmente “Sião” (i.e., Jerusalém). Veja o paralelismo em Sofonias 3:14, 16. 12:16/ seus discípulos não entenderam: não se pode culpar os discípulos por não terem entendido. A ênfase não está na incapacidade deles de entender agora, mas, no fato de haverem entendido depois (cf. 2:22). Esse comentário ajuda a redefinir o significado da realeza de Jesus, em termos de sua morte e ressurreição.

34. Jesus Fala de Sua Morte (João 12:20-36)

O princípio segundo o qual “todo o mundo vai após ele”, isto é, “Jesus” (v. 19), encontra uma ilustração imediata em alguns gregos que estavam entre os adoradores, na festa (v. 20). O pedido deles para ver Jesus foi dirigido a Filipe (cf. 1:43-44), que o passou cerimoniosamente a André, depois do que ambos o passam a Jesus (vv. 21-22). Estes dois discípulos já foram vistos juntos antes, duas vezes: primeiro, como agentes de Jesus ao juntar de início um grupo de seguidores (1:35-45) e, depois, como os dois cuja fé Jesus testou, pouco antes de multiplicar os pães para cinco mil pessoas (6:5-9). Ei-los outra vez formando uma dupla, desta vez para apresentar ao Mestre os anseios do mundo gentílico, recebendo dele, ainda que de modo indireto, a revelação de como o mundo gentílico haveria de ver a Jesus. Ao pedirem para ver a Jesus, os gregos estavam meramente solicitando uma entrevista. Entretanto, Jesus tem em mente uma visão redentora univesal (cf. 6:40: “Pois a vontade do meu Pai é que todo aquele que vê o Filho e nele crê tenha a vida eterna”). Portanto, o Senhor não lhes responde a pergunta de modo direto; o leitor não fica sabendo se a entrevista foi concedida ou não. Em vez disso, Jesus anuncia que é chegada a hora (contraste 2:4), hora em que o Filho do homem será glorificado (v. 23). Só quando o Senhor for glorificado, mediante a morte e a ressurreição, os gregos (e todos os demais gentios) serão capazes de vê-lo como Redentor. Que a importante hora era, na verdade, a hora de sua morte ficou implícito em duas ocasiões em que o Senhor usou essa palavra neste Evangelho. Duas vezes havia ele escapado à morte “porque a sua hora ainda não tinha chegado” (7:30; 8:20). Agora, uma vez mais refere-se o Senhor à morte, usando porém linguagem parabólica (v. 24). Essa parábola, à semelhança de diversas parábolas do reino de Deus, nos sinóticos, fala de uma semente que frutifica (cf., Marcos 4:1-9, 26-29, 30-32; Mateus 13:24-30). Entretanto, em vez de Jesus ser o semeador que lança a semente ao solo (como, em Mateus 13:37), ele próprio é, neste exemplo, o grão de trigo. É ele quem deve morrer e, mediante sua morte, produzir muito fruto. Sua morte possibilitará uma colheita riquís­ sima, pois levará a salvação aos gentios. .

(João 12:20-36)

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O v. 32 é seqüência do v. 24. Quando os vv. 24 e 32 são colocados lado a lado, ficam semelhantes a duas estrofes de um único hino: (a) Em verdade, em verdade vos digo que se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica só. Mas se morrer, produz muito fruto (v. 24). (b) Mas eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim (v. 32). A simetria entre (a) e (b) centraliza-se no contraste entre as frases “na terra”, no primeiro versículo, e “da terra”, no segundo. Esse contraste salienta-se face à similaridade formal das duas estrofes. Ambas foram construídas com base em orações adverbiais. A primeira inicia-se com um “se” negativo, condicional (i.e., “a menos que”; “não morrer”), resultando em sentença que faz lembrar outras, neste Evangelho (ver, 3:3,5; 6:53) e termina com um “se” positivo, conquanto também condi­ cional (“Mas se morrer, produz muito fruto”). A oração adverbial tem­ poral é positiva (“quando eu for levantado”), na segunda estrofe, que completa a idéia da primeira e, ao mesmo tempo, a interpreta. O grão de trigo é identificado agora pelo enfático pronome “eu”, como sendo o próprio Jesus, enquanto a referência à produção de muito fruto se define como todas as pessoas atraídas a Jesus. Jesus, “o grão de trigo”, cai “na terra” na morte, e é “levantado da terra” na ressurreição, semelhantemen­ te a uma planta que cresce com vigor. Parece que Jesus narrou uma paráboía sobre o desenvolvimento de uma píanta, semelhante às que encontramos nos sinóticos, para definir usa própria paixão e ressurreição. Entretanto, o que Jesus e as formas mais primitivas de tradição fizeram não é necessariamente idêntico ao que o autor do Evangelho fez. No Evangelho, como o vemos agora, os versículos 24 e 32 não estão juntos, e o versículo 32 não é interpretado como referindo-se à ressurreição de Jesus, mas à sua morte na cruz (v. 33; cf. 3:14). O autor do Evangelho não está tão interessado na seqüência (i.e., primeiro Jesus morre, depois ressuscita), mas interessa-se principalmente em focalizar a morte de Jesus, e só a morte. É evidente que ele focaliza a morte de Jesus da perspectiva da ressurreição; todavia, ele não está interessado na ressur­ reição como um evento isolado, distinto. Pelo fato de o autor do Evan­ gelho saber que Jesus ressurgiu dentre os mortos, e crer na ressurreição, é capaz de interpretar a morte de Jesus na cruz como uma vitória, uma “glorificação”. O autor sobrepõe os contornos da ressurreição, com todo o seu significado, sobre os da crucificação. Vista dessa maneira, a tragédia terrível se toma vitória gloriosa. O horrendo ato de “levantar”

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(João 12:20-36)

Jesus na cruz se toma sua exaltação num lugar de honra, na presença de Deus (cf. Atos 2:33; 5:31), sua apologia perante o mundo todo. Por isso é que o Senhor dará vida eterna “a todo aquele que nele crê” (3:15) e atrairá “todos a mim” (v. 32). Para o autor do Evangelho, os versículos 24 e 32 são duas imagens diferentes da mesma realidade, a morte de Jesus, e ambas enfatizam o ponto central segundo o qual está latente na própria morte o poder e a realidade da ressurreição. O paradoxo inerente tanto na natureza quanto na graça é que a vida só vem mediante a morte (cf. 1 Coríntios 15:36). Esse paradoxo há de manifestar-se não só na experiência de Jesus, mas na dos discípulos também (v. 25). Assim como no Evangelho de Marcos a primeira predição da paixão foi seguida de imediato pelo ensino do discipulado (Marcos 8:31-38), assim também aqui o anúncio da chegada da hora de Jesus toma-se a base de um chamado decisivo à auto-negação e ao serviço sacrificial (vv. 25-26). Nem mesmo a morte consegue separar Jesus de seus discípulos se, à semelhança de Maria (cf. vv. 3-8), tiverem o espírito de me servir (v. 26). Servir a Jesus na nova situação vindoura será definido, todavia, não meramente nos termos do exemplo de Maria, mas segundo o próprio exemplo de Cristo (cf. 13:1-17). Servir a Cristo é seguir ou imitar a Cristo (v. 26), isto é, ser o mesmo tipo de servo que ele foi (cf. 13:13-16). Mais tarde, Jesus coloca este ensino no contexto de ser odiado e perseguido pelo mundo (15:18-21). Ele nunca diz a seus discípulos que devem odiar o mundo, em represália, mas exorta-os a desprezarem sua própria vida (quem odeia a sua vida neste mundo) de modo que possam guardá-la. . . p ara a vida eterna (v. 25). O que se exige do discípulo, à face da morte de seu Mestre, é que desista de qualquer interesse pessoal que tenha no mundo e siga a Jesus no caminho da servidão. Quando tal exigência é cumprida, onde eu estiver, diz Jesus, ali estará tam bém o meu servo (v. 26a). O Senhor não especifica onde ocorrerá isso; tudo que os discípulos precisam saber, no momento, é que estarão com ele, e que seu amor é mais forte do que a morte. Mais tarde, ele lhes dirá que se lhe unirão na presença do Pai (14:1-3) e que ali verão a glória integral que ele recebeu do Pai (17:24). Por ora, o Senhor lhes oferece apenas a segurança geral segundo a qual se alguém me servir, meu Pai o honrará (v. 26b). Estes versículos concedem um vislumbre de panoramas que serão apresentados em minúcias nos sermões de despedida.

(João 12:20-36)

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Havendo falado a seus discípulos (vv. 22-26), Jesus agora volta a atenção a seu Pai (vv. 27-28) e, finalmente, à multidão (presumivelmente a “grande multidão” dos vv. 12 e 18) que o rodeava (vv. 29-36). O Evangelho de João não registra a oração de Jesus no jardim do Getsêmani (no momento em que Jesus está no Getsêmani a questão já teria sido resolvida, 18:11). O equivalente mais próximo do episódio no Getsêmani é a oração que parte de um coração perturbado (v. 27), com respeito à hora que chega. Momentaneamente indeciso sobre qual deveria ser o teor de sua oração, de início Jesus roga que não chegue ainda a hora do sofrimento mas, de imediato retira a petição, substituindo-a por outra: Pai, glorifica o teu nome (vv. 27-28a; cf. Marcos 14:36: “Pai, todas as coisas te são possíveis. Afasta de mim este cálice. Não seja, porém, o que eu quero, e, sim, o que tu queres”). O que muda a petição de Jesus é o reconhecimento de que foi precisamente p ara esta hora que eu vim (v. 27). Como em Marcos, o fator decisivo é a fidelidade a um compromisso: “fazer a vontade daquele que me enviou, e realizar a sua obra” (4:34). Lembra-se Jesus: “eu desci do céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou” (6:38). Portanto, a oração escolhida pelo Senhor é: “faça-se a tua vontade”, ou (seu equivalente) Pai, glorifica o teu nome! (v. 28a). Um leitor familiarizado com a oração dominical poderia quase ima­ ginar que Jesus estaria começando a recitá-la, com palavras bem pareci­ das com as registradas por Lucas (“Pai, santificado seja o teu nome”, Lucas 11:2). Se esse for o caso, Jesus não prosseguiu na oração domini­ cal, nem a encerrou, porque uma voz vinda do céu lhe respondeu de imediato: J á o glorifiquei, e outra vez o glorificarei (v. 28b). São surpreendentes essas duas “glorificações”; contudo, elas também emer­ gem, uma bem distinta da outra, em duas passagens subseqüentes (13:31­ 32; 17:4-5). Primeiramente, Deus traz glória a seu nome mediante a obediência de seu Filho (assinalada na oração obediente há pouco pro­ nunciada) e em segundo lugar, ao reunir-se a seu Filho mediante a morte e ressurreição (cf. esp. 17:5). Nada disso fez sentido aos circunstantes. O que os impressionou foi o poder e majestade da voz (v. 29), e não o que a voz disse. Entretanto, à semelhança da dramática oração de Jesus antes da ressurreição de Lázaro (11:41-42), a voz se ouviu por amor do povo, e não de Jesus (v. 30). À semelhança da oração de Jesus, esta voz foi como que uma ponte entre Jesus e o céu, um exemplo concreto,

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(João 12:20-36)

incomum, de “céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem” (1:51), e um lembrete de que Jesus não agia segundo sua própria vontade, mas sempre e apenas por iniciativa do Pai. Voltando a atenção à multidão, Jesus lhe anuncia a chegada de sua hora, da mesma forma como antes a anunciara aos discípulos (cf. v. 23). Visto que a hora é entendida agora em relação ao mundo e não a Jesus, pessoalmente, a ênfase recai no julgamento em vez de na glória (v. 31; cf. 3:19; 5:22,27). Conquanto o Evangelho de João não registra nenhum daqueles incidentes encontrados nos demais evangelhos, em que Jesus curou as pessoas endemoninhadas, é bastante notável que o julgamento do mundo seja descrito aqui como se fora um grande exorcismo: agora será expulso o príncipe deste mundo (termo comumente empregado no exorcismo de demônios, ver, em Marcos 1:39; Mateus 10:8; 12:28). O interesse deste Evangelho não está na pluralidade de forças demonía­ cas mas unicamente no diabo, o único adversário de Jesus, o príncipe deste mundo (cf. 14:30; 16:11). A passagem faz lembrar a parábola de Jesus nos outros três evangelhos sobre seu conflito com “Satanás” ou “Belzebu”, o maioral [i.e., líder] dos demônios: “Ninguém pode roubar os bens do valente, entrando-lhe em casa, se primeiro não amarrá-lo. Então saqueará a sua casa” (Marcos 3:27/Mateus 12:29; cf. Lucas 11:21-22). A figura de linguagem em João é diferente — Satanás é expulso, em vez de amarrado — mas a realidade é a mesma. Jesus derrota o príncipe deste mundo e liberta seus cativos. Mas, eu quando for levantado da terra, atrairei todos a mim (v. 32). Quando o “levantamento” é entendido como a ressurreição de Jesus (i.e., quando o v. 32 afinar-se com o v. 24), a atração de todos ao Senhor poderá ser entendida como a ressurreição de todos os mortos, no último dia, pelo poder daquele que ressurgiu (cf. 5:25-29; 6:39-40, 44, 54). Todavia, quando o “levantamento” é entendido primordialmente como a crucificação (como o v. 33 o exige), a atração de todos é vista mais naturalmente como uma missão, a transformação de um único grão em muito fruto (v. 24), ou a reunião das ovelhas esparsas num “rebanho” (10:16; cf. 11:52). No Evangelho de João é mediante a cruz — seguida e completada pela ressurreição, é certo, mas essencialmente mediante a cruz — que a missão se toma realidade (cf. 10:15-16; 11:51-52; 12:23­ 25). A cruz assemelha-se a um ímã que atrai a todos (judeus e gregos igualmente). Quer seja Jesus (v. 32), quer seja o Pai (cf. 6:44) quem atrai

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as pessoas, é à cruz, e ao Crucificado, que as pessoas vão. Ser atraído à cruz é ser atraído ao padrão de discipulado representado nos vv. 24-26, ou em 6:53-58, sob a metáfora de comermos a carne de Jesus e bebermos seu sangue. Parece que a multidão nada ouviu sobre as coisas envolvidas na promessa de Jesus, de atrair todos a si mesmo. Só o “levantamento” lhes chamou a atenção. Entretanto, ao ouvirem falar em “levantamento”, teriam pensado em exaltação ou em crucificação? O significado do v. 24 gira em tomo da resposta. Se o povo entendeu o “levantamento” como exaltação (cf. Atos 2:33; 5:31), estaria então dizendo: A Lei nos diz que o Messias deve ser exaltado, Aquele que dura para sempre, e governa Israel, mas vós dizeis que ele é esse misterioso “Filho do homem” (i.e., o problema deles gira em tomo do termo Filho do homem). Mas, se o povo entendeu o “levantamento” como crucificação, estaria dizendo o seguinte: A Lei nos diz que o Messias dura para sempre, mas vós dizeis que “o Filho do homem” (expressão com que designais, assim supomos, o Messias) morrerá crucificado (i.e., o problema deles gira em tomo de um Messias moribundo). A segunda alternativa é a mais provável. A terminologia da multidão ecoa mais de perto às palavras de Jesus em 3:14 (“importa que o Filho do homem seja levantado”), mais do que suas palavras neste presente contexto (nem o título Filho do homem nem o verbo im porta encon­ tram-se no v. 32). A analogia da serpente na ponta de uma vara, erguida no deserto, deixou bem claro que 3:14 se refere à crucificação, e o emprego da linguagem desse versículo, pelo povo (de modo especial depois do comentário entre perênteses do v. 33), demonstra que enten­ deram da mesma maneira as palavras de Jesus. De que forma eles chegaram a essa conclusão, apenas com base no que Jesus dissera no v. 32, é mais difícil de determinar. Afinal, essa multidão não teve o benefício do comentário do narrador, no v. 33! Contudo, seja como for, o diálogo parcial do v. 34 serve de lembrete aos leitores do Evangelho que os contemporâneos judeus de Jesus tinham grande dificuldade em entender um Messias crucificado, como a teriam os discípulos que entrariam em contato mais tarde com os judeus. As últimas palavras de Jesus à multidão continuam a enfatizar sua morte próxima. O Senhor usa a figura de linguagem da luz e das trevas, da mesma maneira como em 9:4-5 e 11:9-10; em outras palavras, a luz

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(João 12:20-36)

é o tempo durante o qual Jesus está na terra, e as trevas são o período após sua partida. Entretanto, as duas passagens anteriores empregaram essa imagem a fim de acentuar a própria urgência de Jesus quanto à sua missão, enquanto a passagem em foco agora a utiliza a fim de sublinhar a urgência dos leitores do Evangelho em crer no Senhor antes que sej'a tarde demais. A luz é muito mais do que o período de tempo em que Jesus está presente; a luz é o próprio Jesus, Aquele em quem devem crer. O resultado desse apelo — bem como de todos os apelos que o precederam — está delineado nos vv. 37-50. A multidão de expectadores a quem Jesus fala é vista pelo narrador como representativa de todos quantos ouviram a mensagem de Jesus em seu ministério aqui na terra, e de quantos a ouviram depois desde então. A metáfora da luz e das trevas é flexível, e não fixa, em sua aplicação. A escuridão não caiu de vez, e para sempre, quando Jesus foi embora. A luz ainda está brilhando (cf. v. 46; 1:5; 8:12) e as palavras dos vv. 35-36 são tão apropriadas ao mundo do narrador (e ao nosso), quanto eram no ambiente histórico da última páscoa de Jesus. Term inando de dizer estas coisas, Jesus se retirou e ocultou-se deles (v. 36b); chegara ao fim uma seqüência particular de sua automanifestação (cf. 8:59), mas a história tem prosseguimento. O resto dessa história será visto em grande parte pelos olhos de seus discípulos, que continuarão a manter diante do mundo o urgente apelo dos vv. 35-36.

Notas Adicionais # 34 12:20 / Gregos: esse termo se refere aos gentios de nascimento, e não aos judeus de fala grega (cf. 7:35). Os que aparecem aqui podem ser gregos que se converteram ao judaísmo, ou talvez gentios que respeitavam e adoravam o Deus dos judeus (à semelhança do eunuco etíope de Atos 8:27, ou de Comélio, em Atos 10:2). Seja como for, estavam entre a multidão, adorando a Deus, na páscoa judaica. 12:23 / respondeu: isto é, a Filipe e a André, não aos gregos. Os vv. 23-26 são dirigidos aos discípulos, e não a estranhos, e tratam de assuntos pertinentes aos discípulos. 12:24 / se morrer: o emprego do verbo morrer a fim de descrever a germinação de uma semente, não é intrínseca à metáfora. A escolha desta palavra talvez tenha sido ocasionada pela figura de linguagem de uma semente que cai ao solo; a palavra morrer, dando a entender a morte humana, antecipa o v. 25. 12:33 / para mostrar: lit.: “significava” ou “dava um sinal”. É verbo que se

(João 12:20-36)

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relaciona com o substantivo característico “sinal”, ou “milagre”, neste Evange­ lho. Para o autor do Evangelho, o “levantamento” de Jesus na cruz é um sinal da vitória sobre a morte. Ao referir-se a esse evento Jesus revelou o sinal antecipadamente (cf. 18:32, e também o sinal verbal dirigido a Pedro, com respeito à morte desse apóstolo, em 21:19). 12:34 / Nós temos ouvido da lei que o Cristo permanecerá para sempre: essa referência é feita às Escrituras, de modo genérico, e não a um código legal, nem ao Pentateuco em particular (cf. talvez Salmo 110:4 ou Isaías 9:6-7). A crença em que o Messias haveria de permanecer para sempre não se confinava aos que o concebiam como figura sobrenatural, ou transcendental. A multidão poderia ter em mente passagens em que Deus prometera que a linha messiânica dos descendentes do rei Davi jamais se romperia (ver, 2 Samuel 7:13; Salmo 132:10-12; e esp. Salmo 89:36, que está muito próximo da passagem em foco agora, no que concerne à terminologia). Jesus também permanecerá para sempre, a despeito do fato de ser levantado na morte, o que se vê neste Evangelho num contexto parabólico, em 8:35. 12:35 / Andai: este verbo constitui paralelismo do verbo “crer” ou “continuar a crer” (também no imperativo) no v. 36; ambas a ocorrências desse verbo são qualificadas pela oração: enquanto tendes luz. Esse “andar” ou “crer” não significa opção neutra por Jesus, mas uma vida vivida pela fé (cf. 8:12). O emprego do imperativo em ambos os casos pode implicar aqui que a multidão ainda não cria. O ponto central de Jesus é simplesmente que por enquanto o povo dispõe de luz (enquanto tendes luz, v. 35) visto que ele está presente, ainda, entre o povo. E o Senhor deseja que a fé prossiga ainda depois dele partir (fisicamente).

35. Descrença ou Crença? (João 12:37-50)

O último apelo de Jesus à multidão foi “crede na luz” (v. 36), ou “ponham sua confiança na luz”, mas a primeira observação do narrador, em seu resumo conclusivo (v. 37) foi que ainda não criam nele. O ministério público de Jesus resumiu-se numa série de sinais miraculosos cuja intenção era nutrir a fé, mas o resultado foi o contrário: descrença. O propósito do Evangelho de João foi exatamente este, conforme decla­ ração em 20:30-31: reverter esse resultado. Contudo, a fim de realizar essa tarefa de modo realístico, a força e a teimosia da descrença precisa­ vam ser apresentadas nos termos mais gráficos possíveis. O resumo no v. 37 faz lembrar a fala de Moisés a Israel, em Deuteronômio 29:2-4: “Tendes visto tudo o que, perante os vossos olhos, o Senhor fez na terra do Egito, a Faraó... as grandes provas, os sinais e aquelas grandes maravilhas. Até hoje, porém, o Senhor não vos deu um coração para entender, nem olhos para ver, nem ouvidos para ouvir”. Entretanto, não é a esta passagem que o narrador apela. Talvez porque ele deseje algo mais forte, mais profundo, o narrador menciona, em vez dessa passagem, a experiência de Isaías (vv. 38-41). Primeiro, ele descobre nas palavras de Isaías 53:1 uma expressão equivalente à idéia de que as pessoas ainda não criam nele, isto é, em Jesus: Senhor, quem creu na nossa prega­ ção? (com a resposta implícita: “ninguém”). Que os primitivos cristãos apelavam para este versículo, em sua frustração por causa da indisposi­ ção de Israel para reconhecer Jesus como o Messias, fica demonstrado pelo emprego que Paulo faz dessa passagem de Isaías, em Romanos 10:16. Aqui, o autor do Evangelho encontra a mesma rejeição e frustra­ ção na experiência de Jesus (cf. 15:18-21). O segundo estágio da argumentação do narrador é que as pessoas não criam porque não podiam crer (v. 39). Em apoio a este julgamento tão severo, o autor apela para Isaías 6:10 (v. 40). O próprio Jesus é apresen­ tado, nos evangelhos sinóticos, mencionando este versículo de Isaías, em conexão com a prática de ensinar mediante parábolas (Marcos 4:12; Mateus 13:13-15; Lucas 8:10). Há duas diferenças no emprego que o narrador faz dessa passagem de Isaías, no Evangelho de João: refere-se a todo o ministério de Jesus, e não ao ensino por meio de parábolas,

(João 12:37-50)

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apenas. E atribui a Deus, de modo explícito (não apenas implicitamente) a cegueira do povo, e a incapacidade de entender. A ênfase na eleição negativa (i.e., Deus negando a verdade a alguns, e retendo-a, de modo que os impeça de vir à fé) é, pelo menos mais forte aqui que em qualquer outro Evangelho. No contexto imediato, a referência à cegueira espiritual segue-se de modo natural, após o apelo para que o povo ande na luz, nos w . 35-36. Num contexto mais amplo, a citação de Isaías faz lembrar o pronunciamento de julgamento, da parte de Jesus, sobre os fariseus, em 9:39-41. A própria vinda de Jesus ao mundo tem o propósito de cegar bem como dar vista, sendo que seu veredicto contra os fariseus coincide com perfeição com o veredicto que o narrador, na presente passagem, lança contra todos os que rejeitam a mensagem de Jesus. Todavia, jamais, neste Evangelho, a noção da escolha ou rejeição, da parte de Deus, de indivíduos, no que concerne à vida eterna, exclui um apelo ao livre arbítrio de tais indivíduos. A eleição, de modo especial a eleição negativa, sempre é apresentada após a consumação do fato, como explicação do por que alguém creu ou não creu. Nunca se trata de um julgamento, ou de uma impossibilidade, declarados por antecipação. Fica estabelecida a legitimidade do apelo a Isaías, não simplesmente com base em que o profeta escreveu as Escrituras, nem em que há analogias entre a experiência de Isaías e a de Jesus, mas com base em que o profeta se referiu de modo direto ao próprio Jesus (v. 41). Isto se faz ligando Isaías 6:10 a seu contexto, isto é, à visão do profeta no templo: “Eu vi o Senhor assentado sobre um alto e sublime trono, e as orlas do seu manto [LXX: ”sua glória"] enchiam o templo. Os serafins estavam acima dele... E clamavam uns aos outros, dizendo: Santo, Santo, Santo é o Senhor dos exércitos; toda a terra está cheia da sua glória" (Isaías 6:1-3). O narrador com toda audácia identifica “o Senhor” da visão de Isaías com Jesus, e “sua glória” com a glória de Jesus. À semelhança de Abraão, que se alegrou de ver o dia da vinda de Jesus (8:56), Isaías é retratado, aqui, como um discípulo cristão bem anterior ao tempo de Cristo, tendo uma visão ou vislumbre da glória que um dia seria revelada no ministério e na morte de Jesus (cf. 1:14; 2:11; 11:40; 12:23). É surpreendente que o narrador estabeleça a conexão entre o teste­ munho de Isaías e Jesus, na segunda citação que faz, em vez de na primeira. A primeira citação (Isaías 53:1) faz parte do memorável quarto Cântico do Servo, de Isaías, que se inicia (de acordo com a LXX) assim:

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(João 12:37-50)

“Vede, o meu servo terá entendimento, será levantado e glorificado excessivamente” (Isaías 52:13; ECA e outras versões são diferentes). O Evangelho de João emprega duas palavras dessa passagem: “levantado” (v. 32; cf. 3:14; 8:28) e “glorificado” (vv. 16, 23; cf. 11:4) com respeito a Jesus e sua morte próxima; é provável que ao escolher estas palavras estava pressupondo (como ocorre em muitas passagens do Novo Testa­ mento) a identificação de Jesus com o servo sofredor, cuja carreira é delineada profeticamente em Isaías 52:13-53:12. Talvez o narrador apenas pressuponha que o leitor tenha familiaridade com essa conexão, e chama sua atenção para um ponto de referência menos óbvio. O comentário do v. 41 presume, na verdade, que haja um conhecimento um tanto sutil das circunstâncias que envolvem a vocação de Isaías. Não é impossível que a argumentação, como um todo, tenha sido erigida sobre um sistema já bem desenvolvido de interpretação cristã das Escrituras judaicas, sistema que se criou depois de Jesus ter sido “glorificado” (v. 16), ou quando ele “ressurgiu dentre os mortos” (2:22). A alternativa da descrença é a crença, e o autor parece disposto a apresentar essa alternativa no v. 42. Todavia, o que ele apresenta não é alternativa alguma. A declaração de que muitos dentre as autoridades creram nele, isto é, em Jesus, fica de imediato cancelada pelo fato que não confessavam a sua fé, pois tinham medo de ser expulsos da sinagoga. Qual é o grupo em vista? Parece que se trata de um grupo caracterizado pela mesma pseudo-fé mencionada em 2:23-25 e 8:30-31. À semelhança dos “crentes” de 2:23-25 que, conforme se verificou depois, “amaram mais as trevas do que a luz” (3:19), estas pessoas am avam mais a glória dos homens do que a glória de Deus (v. 43; cf, também 5:41, 44). A única característica que possivelmente distingue este grupo dos demais é que era formado de autoridades de entre o povo. Mas “os judeus que criam nele” em 8:31 são designados por um termo que com freqüência denota as autoridades judaicas, enquanto outro, colocado como exemplo dos “muitos” que creram, de acordo com 2:23, era “Nicodemos, um dos principais dos judeus” (3:1; cf. 3:10). A sombria referência a tais crentes secretos (e, portanto, falsos) numa passagem colocada em lugar tão estratégico, bem no final de um resumo do ministério público de Jesus, sugere que o narrador lhe atribui impor­ tância especial. Diferentemente do cego de nascença, tais crentes não fizeram uma pública profissão de fé. Não quiseram arriscar serem

(João 12:37-50)

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expulsos da sinagoga (cf. 9:22, 34), pelo que se mantiveram silenciosos quanto à sua fé em Jesus como o Messias, e continuaram a funcionar em posições de liderança na comunidade judaica. O veredito do Evangelho de João é que essa posição é insustentável. Não tomar uma decisão já é uma decisão. Essas pessoas escolheram a aprovação humana, e não a aprovação de Deus (v. 43), mediante seu silêncio. O autor escreve a respeito dessas pessoas, imprimindo um toque de tragédia, como que ciente de que algumas delas freqüentavam as sinagogas de sua própria cidade (Ásia Menor, ou noutra parte). Os judeus que se identificavam de modo público como cristãos poderiam, sob certas circunstâncias, enfren­ tar a expulsão da sinagoga e até a morte(cf. 16:2). Nem todos estavam dispostos a pagar o preço, nem a seguir o caminho do discipulado que lhes fora demarcado nos vv. 24-26 (cf. 6:53-58). Só estavam dispostos os que haviam vindo “para a luz” (cf. 3:21), ao declarar abertamente sua fé, e receber o batismo cristão (cf. 3:1-21). Não existe a mínima evidência de que a acusação dos vv. 42-43 dirigia-se aos judeus que criam em Jesus de acordo com 11:45 e 12:11, nem às multidões que testificavam de seu poder miraculoso, de acordo com 12:17. O Evangelho apresenta muitos exemplos de fé genuína em Jesus (cf. 2:11; 4:41-42,53; 6:69; 7:31; 9:38; 10:42), mas o resumo dos vv.37-43 focaliza a descrença de forma total. O narrador deixa a tarefa de falar da verdadeira fé entregue ao próprio Jesus (vv. 44-46), não, porém, com relação a um grupo específico de pessoas que creram (como no v. 42), mas como parte de uma reflexão sobre o propósito e as conseqüências de sua missão neste mundo (vv. 44-50). Visto que Jeus partiu para um esconderijo (v. 36), este pequeno sermão não tem audiên­ cia, nem contexto histórico: apenas contexto literário. Colocado entre os sermões de Jesus às multidões e suas palavras de despedida a seus discípulos, este pequeno discurso resume as alternativas postuladas naqueles sermões, e constitui um prólogo para o de despedida. Grande parte dessa seção ecoa ensinos anteriores. Parece que o autor do Evangelho colheu coisas que Jesus disse, as quais o Senhor ensinou sem que houvesse referência a alguma época e lugar especiais, ou então foram preservadas em conexão a um ou mais dos grandes sermões deste Evangelho — por exemplo, a primeira páscoa de Jesus (3:11-36 ou 5;19-47), ou o sermão do templo (7:14-8:59). Se o autor do Evangelho foi seletivo ao reunir a matéria desses sermões (como o foi, com toda

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certeza, ao narrar as obras de Jesus: 20:30 e 21:25), haveria um estoque razoável de ditados, do conhecimento do autor, todavia não incluídos nos grandes sermões. Conquanto o estilo do narrador testifica que ele não tem medo de ser redundante, a similaridade desses ditados com a matéria já incluída provavelmente teria provocado mais redundância ainda, mais do que o narrador desejaria. É bem provável que os vv. 44-50 foram retirados desse estoque de coisas que “sobraram”, já formulados à maneira característica de João, como resultado de terem sido assunto de meditação, e repetidos, ensinados em comunidades cristãs do conheci­ mento do autor. A breve mensagem de Jesus inicia-se e termina com algo que o Senhor vinha dizendo o tempo todo: que ele é o representante do Pai, pois o Pai o enviou (vv. 44-45,49-50); crer nele é crer no Pai (v. 44; cf. 14:1); vê-lo é ver o Pai (v. 45; cf. 14:9). Deus, o Pai, é Aquele a quem crentes e incrédulos devem igualmente enfrentar. A forma como a pessoa reage face a Jesus tem conseqüências eternas. A missão de Jesus é redentora: Ele veio ao mundo como lu z ... não p ara ju lg ar o mundo, mas p ara salvá-lo (cf. 1:5, 9; 8:12). Entretanto, os resultados não são assim, inevitavelmente (o testemunho está em 37-43). Todos quantos rejeitam a Jesus, o homem e o profeta, deverão enfrentar Deus, o Juiz Supremo de todos (v. 48a). As palavras pronunciadas por Jesus condenarão tais pessoas no último dia, não porque são palavras de Jesus, mas porque são palavras de Deus (vv. 48b, 49). Com respeito a tudo isso, o pequeno sermão repete certos pontos da mensagem de Jesus, já proclamada no passado, e também provoca algumas reações diferentes. Os vv. 37-43 só vêem o lado negativo da reação, enquanto os vv. 44-50 se referem às alternativas de fé e de descrença, em conjunto, e examinam (conquanto de modo breve) as implicações de ambas. Bem no fim, há uma virada na direção do futuro, e uma antecipação de apelo renovado (v. 50). O princípio operacional agindo tanto no passado como no futuro é: o Pai, que me enviou, me prescreveu o que dizer e de que falar (v. 49). Esta ordem significa vida eterna e não morte (v. 50; cf. 6:63, 68). A referência final de Jesus: o que eu d igo... (v. 50) deve ser entendido como aquilo que agora o Senhor tenciona dizer. A estrutura deste pronunciamento é parecido com o de 14:31, que também aponta para o futuro:

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12:50 (lit.): Portanto, as coisas que eu falo, como o Pai me mandou, assim eu as falo. 14:31 (lit.): Exatamente como o Pai me mandou, assim eu faço. Da mesma forma que 14:31 aguarda com grande expectativa o que Jesus fará na paixão, o v. 50 também aguarda com grande expectativa o que ele dirá numa nova série de sermões orientados para a paixão. Todos se baseiam no m andato do Pai (cf. 10; 18) e na identidade de Jesus como Filho e como Profeta, do qual disse o Senhor Deus: “ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar” (Deuteronômio 18:18).

Notas Adicionais # 35 12:43 / glória: gr.: doxa, que também no v. 41 é traduzida como “glória”, bem como na maior parte de suas ocorrências no Novo Testamento, inclusive 5:41,44, neste Evangelho. O emprego dessa palavra permite um trocadilho entre “glória” e “glorificar”, um pouco antes, neste capítulo, e no veredicto expresso aqui. Ao escolher a busca da “glória” humana, isto é, o “louvor” dos homens, as pessoas desprezam de vez “a glória de Deus” revelada em Jesus. 12:44 / clamou: o fato deste verbo ocorrer duas vezes no sermão do templo (7:28, 37), demarcando suas três principais divisões, pode sugerir que esse sermão teria sido o contexto original de 12:44-50. Entretanto, a mesma palavra é empregada em 1:15a fim de introduzir uma declaração de João Batista que (à semelhança dos vv. 44-50) não tem um contexto real. Não se pode, portanto, basear nesse verbo nenhuma conclusão firme a respeito da origem destes versículos. 12:47 / eu não julgo: Cf. 3:17,18; 8:15, mas contraste com 5:22,27,30. Veja a nota sobre 5:22.

36. Jesus Lava os Pés dos Discípulos (João 13:1-20)

A nova divisão no Evangelho de João é marcada por um comentário longo, mais ou menos solto, quase sem fôlego, feito pelo narrador (vv. 1-3), mediante o qual ele tenta reunir os temas dos capítulos l-1 2 e 13-17 de modo idêntico, usando-os como sua ambientação de cenário. O primeiro elemento dessa ambientação diz respeito a tempo e circunstân­ cias: A observação de que foi antes da festa da páscoa (v. la) põe em dia as observações temporais de 11:55 (“quando se aproximava”), 12:1 (“seis dias antes”), e 12:12 (“no dia seguinte”). A indicação adicional durante a ceia (v. 2a) é o mínimo necessário para que os vv. 4-5 tenham sentido. Com base nos evangelhos sinóticos, ceia teria sido, presumivel­ mente, a última refeição que Jesus tomou com seus discípulos, uma refeição pascal durante a qual o Senhor instituiu a Santa Ceia, ou Ceia do Senhor (Marcos 14:12-26; Mateus 26:17-30; Lucas 22:7-23; cf.vv. 21-30). Entretanto, se isto for verdade, o autor do Evangelho de João desprezou a instituição da eucaristia de modo total (ainda que 6:52-58 possa sugerir que o autor talvez soubesse disso) e enfatizou, em vez disso, um “sinal” ou ato simbólico diferente, de Jesus. Em vez de identificar a ceia com a páscoa, colocou-a de propósito antes da festa da páscoa (v. 1). Não é provável, portanto, que o narrador imprima algum significado particular à ceia propriamente dita (como nenhum significado ele atribuiu ao “jantar” em Betânia [é a mesma palavra, no grego] mencionado em 12:2). É apenas a ocasião de Jesus afirmar: “o que eu digo, digo-o como o Pai me disse” (12:50) tanto mediante sinais como pela palavra. Para o narrador, os fatores teológicos que compõem esta breve am­ bientação dos vv. 1-3 são mais importantes do que as circunstâncias externas. Em outras palavras, o importante é o que Jesus estava sabendo (vv. lb, 3) e o que o diabo havia feito (v. 2a). Coisas que Jesus estava sabendo: que a sua hora de passar deste mundo p ara o Pai já tinha chegado, e que o Pai tinha depositado nas suas mãos todas as coisas, e que havia saído de Deus e ia p ara Deus; tudo isso proveria vários dos principais temas do sermão de despedida de Jesus (13:31-17:26). Um pós-escrito anexado ao primeiro desses temas (como havia am ado os seus, que estavam no mundo, amou-os até o fim) centraliza a atenção

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no que se segue de imediato: o lava-pés dos discípulos (w . 4-20), enquanto a observação acompanhante sobre o poder do diabo sobre Judas (v. 2b), monta o palco para a subseqüente designação de Judas como o traidor, e sua saída para a escuridão da noite (vv. 21-30). O procedimento de Jesus ao lavar os pés de cada um dos discípulos é descrito em pouquíssimas palavras (vv. 4-5). A atenção se concentra menos no ato e mais na explicação oferecida por Jesus sobre seu signi­ ficado. A interpretação se faz em duas partes: primeiro, há um diálogo um tanto confuso com um Pedro algo confuso também (vv. 6-11) e, depois, uma explicação mais clara e completa, num breve monólogo dirigido aos discípulos, como um grupo (vv. 12-20). Cada parte termina de modo misterioso com uma referência à traição de Jesus por Judas (vv. 11, 18-20), antecipando os vv. 21-30. A pergunta inicial de Simão Pedro (v. 6) salienta o fato de que Jesus, ao cingir-se com uma toalha e lavar os pés dos discípulos, inverteu a prática costumeira. Naquele mundo dos dias de Jesus, os servos poderiam lavar os pés de seu senhor, quando este voltasse de uma viagem; uma esposa poderia lavar os pés de seu marido, ou os alunos os pés de seu professor; todavia, o contrário não podia acontecer. O fato de Pedro chamar Jesus de Senhor (v. 6), conquanto fosse habitual entre os discí­ pulos, neste Evangelho (cf., 6:68; 11:21, 27, 32, 39; 13:36, 37; 14:5, 8, 22), mostra tendência especial, aqui, para salientar a incongruência da situação. Por que o Senhor, o Mestre, deveria desempenhar o papel do servo, em prol daqueles que de fato são seus servos? Eis uma pergunta cuj'a resposta é difícil de encontrar-se; e Jesus não apresenta, de momen­ to, nenhuma explanação. Ainda que Pedro e os demais discípulos não saibam agora o que Jesus faz, compreendê-lo-ão depois (v. 7). A palavra depois (gr.: meta tauta; lit., “depois destas coisas”), quando não é usada apenas como parte da narrativa (como em 5:1; 6:1; 7:1), pode referir-se ao futuro, num sentido geral, ou a eventos futuros mencionados em profecias sobre os últimos dias (ver, Apocalipse 1:19). A promessa de conhecimento, fé ou lembrança especiais num futuro indefinido (em geral depois da ressurreição) é traço comum do Evangelho de João (cf. 2:22; 12:16; 13:19,29; 16:4,25), e a impressão imediata deixada pelo v. 7 é que os discípulos entenderão o que representa o lava-pés depois de Jesus ter sido crucificado e ter ressurgido dentre os mortos. Pedro, nada satisfeito, insiste em sua pergunta, desta vez sob a forma

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de protesto. É impróprio que o Mestre lave os pés de seus discípulos, pelo que Pedro não o permitirá (v. 8). Mas a reação de Jesus também é direta. Se Pedro não permitir que Jesus lhe lave os pés, não é seu discípulo. Sem explicar com precisão o que significa aquele ato, Jesus declara aqui, sem sombra de erro, que o lava-pés que o Senhor realiza nos discípulos não é opcional, mas necessidade real para qualquer pessoa que deseja segui-lo. Para ser discípulo, o indivíduo precisa estar limpo. Finalmente, Pedro entende a questão e suplica que seja todo purificado (v. 9), mas Jesus faz uma distinção baseada em metáfora: alguém volta a casa, tendo tomado um banho nos banheiros públicos (v. 10). Tal pessoa está limpa, exceto os pés, que apanharam o pó da rua. O de que ela precisa não é outro banho, mas apenas o rotineiro lava-pés. Aplicando a metáfora aos discípulos, Jesus lhes diz que, tendo sido lavados, estão limpos. Não precisam de um segundo banho (como o que Pedro roga), mas apenas que os pés lhes sejam lavados. A resposta metafórica a Pedro deixa mais perguntas ainda, a serem respondidas. Em que sentido estão os discípulos limpos? Qual teria sido o primeiro banho deles, que tomou desnecessário o segundo banho? E ainda permanece a pergunta: que representa o lava-pés? Muitos comen­ taristas encontram aqui uma referência à lavagem espiritual, única e definitiva, envolvida no batismo cristão, sendo fácil perceber como os primeiros leitores desse Evangelho deveriam ter feito essa aplicação. Todavia, embora o Evangelho ofereça alguns vislumbres da atividade batismal dos discípulos, nos dias de João Batista (3:22; 4:1-2), esse Evangelho não demonstra interesse especial no próprio batismo deles (presumivelmente às mãos do Batista). Mais direta é a observação subseqüente que Jesus lhes faz: “Vós já estais limpos por causa da palavra que vos tenho falado” (15:3). No decorrer do ministério público de Jesus, os discípulos foram separados do mundo e unidos ao Senhor mediante a aceitação de sua mensagem. Aquele que não creu, dentre eles, foi separado e afastado deles, de modo que no fim os discípulos formaram uma comunidade de seguidores fiéis de Jesus (cf. esp. 6:60-71). É nesse sentido que agora estão limpos, e Jesus está quase pronto para dirigir-se a eles como comunidade fiel que dará prosseguimento a seu trabalho, no mundo. A chave da identidade e da missão no mundo, desses discípulos, de certa forma está representada no ato simbólico do lava-pés; porém, Jesus adia a explicação de como isso ocorre até os vv. 12-20. Por

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enquanto, persiste um obstáculo. É bem verdade, vós estais limpos, mas não todos (v. 10). Jesus havia falado antes daqueles que não haveriam de crer e, também de alguém que “o trairia” (6:64). Os primeiros haviam sido desmascarados e foram-se embora (6:66), mas este último ainda estava ali, presente (6:70-71). Antes de prosseguir e apresentar a inter­ pretação de Jesus para o lava-pés, o narrador faz uma pausa breve para mencionar o traidor, e sublinhar que Jesus estava consciente da presença dele (v. 11; cf. 6:64, 71). O breve desvio entre parênteses antecipa a reflexaõ mais alongada sobre o tema da traição, nos vv. 18-20. A conversa toda entre Jesus e Pedro ocorre durante os preparativos descritos nos vv. 4-5; o versículo 12 retoma o assunto interrompido no v. 5. Porém, quando Jesus pergunta aos discípulos: Entendeis o que eu fíz? (v. 12b), suas palavras surpreendem, porque ele dissera que eles só o compreenderiam mais tarde, depois (v. 7). Mais surpreendente ainda é o comentário no v. 17, que conclui sua explicação: Agora que sabeis estas coisas, bem-aventurados sois se as fizerdes. A presunção é que aquele depois, um tempo futuro, mencionado no v. 7, acaba de chegar! Agora eles entendem o que Jesus fez (cf. 15:15). Conquanto o v. 7, em seu contexto, parecesse apontar para uma época depois da ressurreição, acontece que o tempo indicado se cumpriu minutos depois, ao redor da mesma mesa, e no mesmo capítulo do Evangelho. No Evangelho de João, algumas “verdades pós-ressurreição” (i.e., coisas que se tomam realidade quando Jesus ressurge dentre os mortos a fim de subir ao Pai) arranjam um jeito de aparecer ainda no ministério terreno de Jesus, de modo especial quando se aproxima a paixão. O futuro fica sobreposto ao presente. Todavia, que é que faz a diferença, aqui, entre o que não se entende (no v. 7) e o que se entende (no v 17)? Apenas algumas palavras simples de Jesus, à guisa de explicação, construindo um argumento que parte do maior para o menor. Se Jesus, a quem eles corretamente chamam de Mestre (cf. 1:38; 11:28) e Senhor (cf. vv. 6, 9; 6:68; 11:21, 27, 32, 39) humilhou-se como servo, e lhes lavou os pés, quanto mais deveriam eles estar dispostos a lavar os pés uns aos outros? O ato de Jesus de serviço braçal, de servo, representa exemplo a ser seguido (vv. 13-15). O princípio de que o servo não é m aior do que o seu senhor, nem o enviado m aior do que aquele que o enviou (v. 16), que se refere, noutras passagens (15:20; cf. Mateus 10:24) à inevitabilidade da perseguição, é

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empregado aqui a fim de reforçar a lógica dos vv. 13-15. Se o servo não é m aior do que o seu senhor, não deve então ter orgulho tão grande que deixe de fazer o que Jesus fez; se o enviado não é m aior do que aquele que o enviou, então o papel do servo, pertencente à missão de Jesus, não pode ser considerado estranho perante os seus. O cerne do pronunciamento de Jesus é o v. 14, que se pode delinear no formato de um triângulo, ficando a declaração: Se eu, Senhor e M estre, vos lavei os pés representada por uma linha vertical dirigida para baixo (indicando algo concedida de cima, ou de alguém superior), e a declaração: vós deveis também lavar os pés uns dos outros, repre­ sentada por uma linha horizontal apontada para ambos os lados (indicando mutualidade entre seres humanos). Tal idéia sugere o seguinte diagrama: Jesus

Discípulo

Discípulo

O ponto central deste versículo “triangular” é que as ações de Deus, cheias de graça, para com a humanidade, mediante Jesus, encontram sua finalização e total realização nas coisas que os que recebem essa graça fazem uns pelos outros. Isto será visto em outras declarações triangulares nos sermões de despedida de Jesus, centralizadas no amor divino: por exemplo, 13:34b, “Como eu vos amei a vós, assim também deveis amar uns aos outros”, e 15:12: “O meu mandamento é este: Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (cf. também 1 João 4:11: “Amados, se Deus assim nos amou, nós também devemos amar uns aos outros”, e Efésios 4:32: “perdoando-vos uns aos outros, como também Deus vos perdoou em Cristo”). Para o autor do Evangelho de João, o lava-pés é tanto um símbolo quanto uma expressão concreta de amor sacrificial. L avar os pés uns dos outros (v. 14) é “amar uns aos outros”, e visto que a figura de linguagem diz respeito a purificação, é bem provável que o perdão mútuo de pecados esteja implícito aqui. A iniciativa de amor, de perdão e, de modo específico, de lavar os pés dos discípulos, fica com Jesus. É a iniciativa da cruz. O tom da narrativa (bem como do sermão que se segue) foi determinado nos três primeiros versículos do capítulo: Je su s.. .havia am ado os seu s.. .e sua hora de passar deste m undo para o Pai já tinha chegado... pois havia saído

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do Pai e ia para o Pai. O dar-se a si próprio, expresso no lavar os pés dos discípulos, prefigura o dar-se a si próprio na cruz. O Mestre que lava os pés aos discípulos corresponde ao Bom Pastor que dá sua vida pelas ovelhas (cf. 10:11, 15, 17; cf. 15:13). A extensão desse último princípio pode ser visto na declaração triangular encontrada em 1 João 3:16-18: “Nisto conhecemos o amor: que Cristo deu a sua vida por nós. E devemos dar a nossa vida pelos irmãos. Quem tiver bens do mundo e, vendo o seu irmão necessitado, cerrar-lhe o seu coração, como estará nele o amor de Deus? Meu filhinhos, não amemos de palavras, nem de língua, mas por obra e em verdade”. Assim como não existe via de “mão única” pela qual os discípulos possam “dar a vida uns pelos outros, não existe via de ”mão única" pela qual possam “lavar os pés uns aos outros”. A chave é o amor mútuo, mas esse amor pode expressar-se em ajuda material, atos de bondade, perdão de ofensas, proteção contra perseguições e até mesmo morte em lugar de alguém — todas as coisas que o próprio Deus provê a seus filhos. É isso que Jesus quer dizer ao descrever o lava-pés como exemplo (v. 15). Não só é absolutamente essencial que a pessoa seja “purificada” nesse sentido, por Jesus (v. 8); também é necessário “lavar os pés” dos outros (cf. Mateus 10:8: “De graça recebestes, de graça dai”). O deveis também lavar do v. 14 é obrigação genuína, não mero bom conselho. Trata-se de algo que os seguidores de Jesus “devem” (gr.: opheilete uns aos outros cf. 1 João 4:11) e conseqüentemente devem a todas as pessoas (Romanos 13:8; cf. 1 João 2:6, em que a nossa obrigação é “andar como ele andou”). Jesus faz provisão de uma bem-aventurança especial (uma de apenas duas, neste Evangelho), ou seja, uma expressão iniciada com a palavra grega makarios, “abençoado” ou “feliz”, seme­ lhante às de Mateus 5:3-12 e Lucas 6:20-23, para a pessoa que com fidelidade pagar seu débito de amor (v. 17, bem -aventurados sois se as fizerdes; cf. a bem-aventurança de Lucas 11:28). A forte ênfase em “fazer" ou “pôr em prática” os ensinos de Jesus (vv. 15,17) complementa e equilibra a insistência dada no quarto Evangelho (que lhe serve de característica) em “crer” em Jesus como o caminho para a vida eterna. (Contraste, a outra bem-aventurança joanina, em 20:29: “Bem-aventurados os que não viram, e creram”). O ensino de Jesus em conexão com o lava-pés, no Evangelho de João está assim, surpreenden­ temente, ligado ao ensino com que o Senhor conclui o sermão do monte nos evangelhos sinóticos (Mateus 7:16-27; Lucas 6:43-49): por exemplo,

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“Pelos seus frutos os conhecereis” (Mateus 7:16a; cf. 7:20); “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aque’ que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus” (Mateus 7:21); “Po nto todo aquele que ouve estas minhas palavras, e as pratica, será semel nte ao homem prudente, que edificou a sua casa sobre a rocha” (Mateus 7:24; cf. 7:26). Não ficou especificado o intuito da responsabilidade dos discípulos. Ficou bem claro que eles têm uma obrigação uns para com os outros (v. 14); todavia, a referência no v. 16 ao enviado dá a entender que a missão é mais ampla ainda. Falando-se de modo estrito, o v. 16a (o servo não é m aior do que o seu senhor) basta para salientar a questão crucial de que os servos devem seguir o exemplo de seu mestre no modo como convi­ vem entre si, no trato mútuo. O v. 16b (nem o enviado é m aior do que aquele que o enviou) parece, de início, ter ficado retido pelo narrador, simplesmente porque os dois ditados eram lembrados pela igreja apos­ tólica, e a ela entregues como formando um par (à semelhança do par de Mateus 10:24). Todavia, mediante exame mais minucioso verifica-se que o v. 16b possui uma função que lhe é própria. A palavra enviado (gr.: apostolos significa literalmente “apóstolo” (única ocasião em que a palavra ocorre em João), e pode ser que o versículo 16b funcione como lembrete sutil de que o grupo a que a palavra é dirigida de modo tão decisivo, nos versículos 12-17, na verdade eram “os apóstolos”, que noutras passagens deste Evangelho são chamados de “os doze” (6:67, 70; 20:24). Seja como for, a ênfase no enviado do versículo 16b não é acidental, visto que é reforçada no versículo 20, onde há um pronuncia­ mento com paralelismos íntimos nos evangelhos sinóticos (ver, Mateus 10:40; Lucas 10:16; Mateus 18:5). Tudo isso sugere que, ao lavar os pés dos discípulos, Jesus está preparando-os para a missão no mundo. O espírito de serviço mútuo (v. 14) não é um fim em si mesmo mas um meio conducente ao fim maior, que é a continuação e extensão da própria missão de Jesus. Longe de estarem meramente entre parênteses, os versículos 16 e 20 são cruciais para a compreensão dos versículos 1-20 como um todo. Isto se toma claro quando Jesus explica de modo mais completo, em seu sermão de despedida, o significado do que ele fez e do que fará (cf., 15:16; 17:17-19). O tema comum do discípulo enviado apóia o ponto de vista de que os versículos 18-20, a despeito de sua aparente referência ao traidor Judas,

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pertencem aos versículos 1-17, e não 21-30. Em certo sentido, servem à mesma função, em relação aos versículos 12-17, que o versículo 11 serve em relação aos versículos 6-10. Todavia, devemos observar que a refe­ rência a Judas nos versículos 18-20 não é explícita (no v. 11 tomou-se explícita apenas como comentário do narrador). Jesus não menciona Judas nem pelo nome nem por outra expressão do tipo “aquele que me trai” (cf. v. 11). Tampouco suas palavras têm que ser entendidas como referência a um traidor em particular. O v. 20 sugere que a aplicação mais imediata daquelas palavras seria à missão dos discípulos, depois de Jesus tê-los enviado. Os três versículos formam uma espécie de oráculo profé­ tico, uma advertência contra o perigo de traição da parte de pessoas falsamente comprometidas à fidelidade a Jesus e sua missão. Há vários exemplos de tais oráculos no Novo Testamento: Um irmão entregará à morte outro irmão, e o pai ao filho; e os filhos se levantarão contra os pais, e os matarão (Mateus 10:21; cf. Marcos 13:12). Pois eu vim trazer divisão entre o homem e seu pai, entre a filha e a sua mãe, entre a nora e sua sogra. Assim, os inimigos do homem serão os seus próprios familiares (Mateus 10:35-36; cf. Lucas 12:52­ 53). Nesse tempo, muitos se escandalizarão, trair-se-ão mutuamente e se odiarão uns aos outros (Mateus 24:10). O comportamento descrito em tais pronunciamentos salienta-se em contraste total ao comportamento demonstrado no lava-pés. Jesus ata seu oráculo a um texto bíblico, Salmo 41:9 e diz o Senhor: isto é para que se cum pra a E scritura em sua própria experiência e na dos discípulos (v. 18; uma alusão a Miquéias 7:6 em Mateus 10:35-36 cumpre o mesmo propósito, sem, todavia, a fórmula de cumprimento). O texto nos fala de traição dentro de círculos familiares, ou numa comunidade ligada por laços íntimos (i.e., entre pessoas que comem ao redor da mesma mesa). Conquanto o narrador com toda a certeza esteja pensando em Judas como sendo o exemplo histórico primordial dessa traição (vv. 21-30), não há razão para presumirmos que ele, o narrador, (ou Jesus) tenham exclusivamente a Judas, em mente. As dores da discórdia e da traição hão de ser uma experiência real dentro da comu­ nidade cristã, assim como as dores da perseguição, e Jesus quer que seus discípulos estejam alertas. Quando crentes professos estiverem traindo­ se “mutuamente” e odiando-se “uns aos outros” (Mateus 24:10), Jesus

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quer que todos saibam que ele nos advertiu disso antecipadamente (cf. 16:4a, onde o Senhor trata do mesmo tema da perseguição). Os que se lembrarem de suas advertências (cf. Marcos 13:23; Mateus 24:25) man­ terão a fé em Jesus, quanto a tudo que ele afirmou ser (i.e., que eu sou, v. 19), apesar de todos os desapontamentos e, nesse processo, descobrem que sua fé se reafirma. Esses constituem os verdadeiros “apóstolos” ou “enviados”, a quem é dada a promessa do versículo 20. O breve oráculo de missão encerra-se de modo apropriado com uma garantia profética da autoridade dos mensageiros (cf. a colocação de Mateus 10:4-42 e Lucas 10:16 no final dos sermões sobre missões, substancialmente mais lon­ gos). Assim, reafirma-se que Jesus é Deus, o Eu Sou, o doador da vida (cf. 8:58) na missão dos discípulos, com suas dificuldades bem como seus triunfos, não na traição pessoal que sofre nas mãos de Judas (a despeito de 18:5-8). Contudo, agora, havendo falado de modo geral em traições, no contexto da missão prestes a iniciar-se, pelos discípulos, Jesus está pronto para tratar da traição específica (e do traidor também) que ocorrerá dali a pouco.

Notas Adicionais # 36 13:1 / Antes. Uma expressão temporal tão vaga impossibilita que se extraia a cronologia exata da semana da paixão do Evangelho de João. Tudo que se esclarece é que esta não é a refeição pascal (cf. 19:14). os seus, que estavam no mundo: ouvem-se os ecos, aqui, do prólogo: “Ele estava no mundo... mas o mundo não o conheceu. Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam. Mas a todos os que o receberam... (1:10-12). Na passagem atual, a expressão ’’todos os que" o receberam são identificados como os seus, que tomaram o lugar de “o que era seu, mas os seus” o rejeitaram. Ainda são judeus, mas pertencem ao novo Israel que Jesus começara a reunir de imediato ao seu redor (cf. 1:31, 47-51; 2:11). A declaração de que estavam no mundo não é redundante, como poderia parecer ao leitor casual, mas sugere que terão uma missão no mundo, após a partida de Jesus (cf. 17:11). amou-os até o fim. Algumas traduções tendem a ligar esta declaração de modo especial ao lava-pés (ver, NIV: “agora ele lhes mostrou toda a extensão de seu amor”; BDF par. 207 [3]: “e deu-lhes assim um perfeito símbolo de amor”). Mas, é muito provável que a frase até o fim (gr.: eis telos) tenha um sentido temporal bem como qualificativo, e que essa declaração aponte para algo muito além do lava-pés, isto é, para aquilo que o lava-pés simboliza: a morte de Cristo na cruz. 13:2 / Durante a ceia: alguns manuscritos antigos trazem: “quando terminou

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a ceia”. Esta redação, conquanto bem fundamentada, provavelmente se deve a um erro do copista (talvez erro de má audição), porque de modo algum a ceia terminara (cf. vv. 21-30). tendo já o diabo posto no coração de Judas Iscariotes, filho de Simão, que o traísse: é tradução literal. A questão é se o diabo colocou aquele pensamento no coração de Judas, para que traísse Jesus, ou se o diabo o colocou em seu próprio coração (temos aí uma expressão idiomática semítica que significa “tomar uma decisão”) a decisão de trair Jesus. A primeira idéia é a mais plausível, visto que seria improvável que o narrador refletisse sobre os processos mentais do diabo. Alguns manuscritos antigos tentam fazer que o sentido fique mais óbvio registrando o nome de Judas no caso genitivo (“no coração de Judas”, como em GNB, o que seria equivalente à ECA, e à NIV: “induziu Judas”). Entretanto, os melhores manuscritos trazem Judas no nomi­ nativo; a referência é apenas “ao coração”, mas visto que o propósito do narrador é fazer um comentário sobre a motivação de Judas (cf. v. 27; 6:71), esse “coração” implicitamente deve ser o de Judas. 13:6 / Senhor, tu vais lavar os meus pés? Nenhum texto em português compreensível consegue transmitir a ênfase emocional do texto grego (lit.: “Senhor, tu? os meus? lavar os pés?”). A colocação de Senhor e dos dois pronomes juntos, no início da sentença acentua com muita força a incongruência da situação, perante os olhos de Pedro. 13: 8 / não tens parte comigo. Ter parte (gr.: meros) com Jesus refere-se a participar da comunidade de crentes e partilhar o destino singular que gozam, o de estar com Jesus para sempre (cf. 14:3). Outros empregos de meros no Novo Testamento dizem respeito a um destino eterno, seja de punição, seja de bênção (Mateus 24:51; Lucas 12:45; Apocalipse 20:6; 21:8). 13:10/ senão os pés: estas palavras foram omitidas num manuscrito grego, antigo, mas a vasta maioria dos manuscritos, inclusive os mais antigos, preser­ vam o texto mais longo. Se a variante mais breve for adotada (como sugerem alguns comentaristas), temos as seguintes alternativas: (a) o já se banhou sob referência não diz respeito ao lava-pés; nesse caso, o ponto central da declaração é que o lava-pés não é necessário; (b )o já se banhou sob referência é o lava-pés; nesse caso, Jesus estaria afirmando que o corpo todo de cada discípulo está limpo (no mais está todo limpo), por causa do lava-pés em si. Todavia, a hipótese (a) contradiz o apelo integral da passagem toda (o v. 8 em particular), enquanto a hipótese (b) se toma (pelo menos) difícil de entender, à face da asserção em 15:3 de que os discípulos estão limpos em virtude da palavra de Jesus a eles ministrada. É melhor seguir a orientação dada pelos melhores manuscritos (como NIV e ECA o fazem) e adotar o texto mais longo, com a implicação que o lava-pés não representa o “banho” inicial (já se banhou) mas uma segunda purificação (i.e., a prática do amor e do perdão pela comunidade da fé.) É possível, embora de modo algum certo, que o narrador tenha em mente o batismo, como símbolo acompanhante, que se recebe junto com o ensino de Jesus, na igreja dos tempos do próprio narrador; ele estaria salientando, então,

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que o batismo não deve repetir-se. Todavia, a ênfase da passagem toda recai não no caráter único-e-decisivo do batismo mas, sim, na absoluta necessidade de lavar-se os pés, seja como for que se interprete seu simbolismo. vós estais limpos, mas não todos. É tradução literal. As palavras aqui atribuídas a Jesus não excluem explicitamente uma pessoa dentre todos. É o narrador quem (no v. 11) faz uma conexão explícita com Judas. Embora as palavras literais de Jesus permitam sua aplicação a Judas, também permitem uma aplicação muito mais ampla (se vós for entendido como abrangendo mais do que apenas os doze, isto é, toda a comunidade cristã). A frase mas não todos antecipa o v. 18 (“não falo de todos vós”) e antecipa também a advertência aí dada de que traições — e traidores — serão um espinho insistente na ilharga dos escolhidos de Jesus, e enviados ao mundo. 13:15 / exemplo, para que façais o que eu fiz: o contexto demonstra que Jesus tem em mente primordialmente um exemplo moral. Contudo, de modo algum fica excluído o exemplo litúrgico (i.e., os discípulos em seu culto deverão literalmente encenar o simbolismo do lava-pés). Isso é verdade de forma especial à luz do fato que, neste Evangelho, o ato simbólico de lavar os pés substitui o ato simbólico da instituição da Ceia do Senhor. João conhece, ou está advogando, a prática do lava-pés nas comunidades cristãs com as quais está familiarizado. Essa prática seria um meio de a comunidade cristã dramatizar a responsabilidade de seus membros de serem servos uns dos outros e, desse modo, concretizar integralmente no mundo o perdão e o amor de Jesus. Entretanto, não é provável que João tenha em mente estabelecer uma “orde­ nança” ou um “sacramento”, o lava-pés, a fim de com ele substituir a Ceia do Senhor, que está no centro do culto cristão. A omissão da Santa Ceia no Evangelho de João explica-se, talvez, pela inclusão, antes, do sermão da sinagoga, cujo tema é o pão da vida (esp. 6:52-58), que tomou supérfluo o registro da instituição da Ceia do Senhor. Se João houvesse considerado o lava-pés como prática litúrgica, provavelmente o teria visto como apenas uma parte do que aconteceu ao redor da mesa do Senhor, talvez como preparativo para a eucaristia propriamente dita. 13:17/Agora que sabeis: lit.: “se sabeis”. A tradução como aparece em ECA justifica-se porque o primeiro tippo de oração condicional presume realidade, i.e., que de fato os discípulos conheciam a verdade de que Jesus falava. A oração condicional desse mesmo versículo, se as fizerdes, tem construção gramatical diferente, referindo-se a algo que poderá acontecer ou não, no futuro, em vez de algo já realizado no presente. 13:18 / eu conheço os que escolhi. Estas palavras devem ser entendidas como qualificadoras de 6:70. Jesus escolheu os doze como um grupo, mas Judas em breve será visto como não tendo sido escolhido como indivíduo. O que come o pão comigo, levantou contra mim o seu calcanhar. Alguns comentaristas têm notado que a expressão come o pão comigo (lit.: “comeu o meu pão”) emprega o mesmo verbo grego inusitado para “comer”, que se encontra em 6:54, 56-58; tais comentaristas propõem que João teria escolhido

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esse verbo (em vez do verbo comumente usado para “comer”, usado na LXX, em Salmo 41:10) em virtude das supostas implicações eucarísticas. É mais provável que tal palavra inusitada tenha sido empregada porque João costumava usá-la, meramente por questão de estilo redacional, ou talvez os manuscritos da LXX com que ele trabalhava, e com que estava familiarizado, tinha essa palavra em seu texto do Salmo 41:10. Entretanto, a verdade é que Judas e todos os subseqüentes traidores da igreja antiga (pelo menos em um nível) violaram a comunhão da mesa do Senhor (cf. Marcos 14:18, “um de vós, que come comigo, há de trair-me”). A frase levantou contra mim o seu calcanhar decorre de antigo gesto de desprezo que, com certeza, traz a conotação de alguém tripudiando sobre uma pessoa, ou talvez esse alguém sacudindo o pó da cidade dessa pessoa, que se lhe grudou nos pés. Até hoje esse gesto é insultuoso para os árabes (cf. E. F. F. Bishop, Expository Times, págs. 331-32).

37. Jesus Prediz Que Será Traído (João 13:21-30)

O versículo 21 marca um momento solene, perturbador, tanto para Jesus quanto para os discípulos. As palavras tendo Jesus dito isso (gr.: tauta eipon encerra o discurso dos versículos 12-20 e introduzem nova seqüência de eventos (cf. 18:1, onde a mesma expressão encerra os sermões de despedida, como um todo). A referência a que Jesus p ertu r­ bou-se em espírito faz lembrar sua angústia perante o túmulo de Lázaro (11:33) e, também, diante da perspectiva da “hora” da morte (12:27). A traição de que está prestes a falar é a traícão que o levará à morte, de modo que (como antes) é a proximidade da morte e do diabo que lhe agita o espírito. O Senhor a pronuncia a declaração aberta e solenemente, como alguém que presta um testemunho formal: Em verdade, em verdade vos digo que um de vós me trairá. O narrador sempre manteve a traição a Jesus diante dos olhos de seus leitores (6:64,71; 12:4,6; 13:11) mas, ela chega aos discípulos com um choque: Quem poderia ser o traidor? (v. 22). Nesse momento de tensão uma nova personagem entra na história, um discípulo jamais identificado por nome, mas apenas como aquele a quem Jesus am ava (v. 23; cf. 19:26-27; 20:2-8; 21:7, 20-24). Assim como a identidade de todos os discípulos baseava-se no fato de que Jesus “amou-os até o fim” (v. 1), a identidade deste discípulo, como indivíduo, baseia-se também no amor de Jesus por ele. A posição dele à mesa (cf. Marcos 10:35-40), perto de Jesus, era considerada lugar de honra espe­ cial, pelos demais discípulos. Nem mesmo Simão Pedro sentava-se tão • junto a Jesus como esse “discípulo amado: (v. 24). Conquanto a identi­ ficação deste discípulo com João, o filho de Zebedeu, é tão plausível como qualquer outra que tenha sido proposta (veja Introdução), perma­ nece o fato que, sendo autor do Evangelho (21:24), preferiu ficar anôni­ mo, não tendo o comentarista outra alternativa senão a de respeitar-lhe o anonimato. Tão logo é apresentado, o discípulo a quem Jesus am ava toma-se recebedor de uma revelação (vv. 24-30). Simão Pedro lhe pede que descubra quem é o traidor, e Jesus combina com ele um sinal secreto mediante o qual possa reconhecê-lo: E aquele a quem eu d er o pedaço de pão molhado. Quando o pão é molhado e dado a Judas, o discípulo

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amado (e aparentemente mais ninguém) fica sabendo que Judas é o traidor. Observa o narrador que assim que Judas tomou o pão, entrou nele Satanás, quase como se João estivesse lembrando-se de ver o fato acontecer. Se aquele sinal foi de fato para João, o fascínio que Judas, como instrumento de Satanás, exerceu sobre o apóstolo na maior parte de seu Evangelho (cf. 6:70-71; 13:2; 17:12) é bem compreensível. Quer o próprio narrador seja o discípulo amado, quer esteja extraindo matéria de uma testemunha ocular, proveniente do discípulo amado, o narrador parece estar ocupando o lugar desse discípulo à mesa, escreven­ do dessa perspectiva. A ignorância do resto dos discípulos é ilustrada pela incapacidade deles de interpretar as últimas palavras de Jesus a Judas: O que estás prestes a fazer, faze-o depressa (v. 27). A declaração de que nenhum dos que estavam reclinados à mesa com preendeu a que propósito lhe dissera isso (v. 28) é evidência de ter sido redigida do ponto de vista do discípulo amado. Parece que o narrador transforma esse discípulo em observador da situação, excluindo-o da generalização segundo a qual ninguém à mesa sabia o que estava acontecendo. Em suma, o narrador vê a ação com os olhos do discípulo amado. Embora isso não comprove que os dois são uma e a mesma pessoa, nada nessa narrativa é incoerente face a tal suposição. O discípulo amado é a única pessoa reclinada à mesa, além de Jesus e do próprio Judas, que compreen­ de o significado de sua saída. O leitor não fica sabendo se o discípulo amado partilhou ou não seu segredo com Pedro, cujo pedido o colocou no centro dos acontecimentos. Sendo o discípulo amado o que recebeu o indício do que pairava no ar, porque o Senhor lho dissera, toma-se ele bem adequado para preservá-lo, e colocar na devida perspectiva as últimas revelações e instruções de Jesus a seus discípulos. O versículo 30 apanha o fluxo de ação dramática extema, interrompido no versículo 26, após a nota importante, interpretativa, representada pelos versículos 27-29. Assim que Judas tomou o pedaço de pão, saiu, aparentemente em obediência à ordem de Jesus, no v. 27: O que estás prestes a fazer, faze-o depressa. Acrescenta o narrador que era noite, talvez como comentário dramático do destino de Judas. Em seu último pronunciamento às autoridades religiosas, Jesus havia dito: “A luz ainda está convosco por um pouco. Andai enquanto tendes luz, para que as trevas não vos apanhem. Quem anda nas trevas não sabe para onde vai” (12:35). Para Judas, as cortinas da noite haviam caído; havendo abando­

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nado o círculo dos discípulos, a fim de executar sua obra maligna, Judas caminhava na escuridão.

Notas Adicionais # 3 7 13:23 / estava reclinado próximo a Jesus: a postura reclinada era caracte­ rística das refeições formais no mundo grego, sendo opcional entre os judeus (exceto na páscoa, quando era obrigatória; assim diz Passover Haggadah-. “em todas as demais noites nós comemos e bebemos sentados ou reclinados; porém, nesta noite, todos nós nos reclinamos”). A escolha de palavras que João faz aqui, sugere a alguns comentaristas que ele está descrevendo uma refeição pascal (outros detalhes, como por exemplo, o molhar do pão no v. 26 e a menção no v. 30 de que essa refeição ocorreu à noite também dão apoio a esta teoria). Entretanto, se for uma refeição pascal, obviamente tem caráter particular, celebrada pelo menos com um dia de antecipação (cf. v. 1). Fica bem claro que o autor não a considera a páscoa num sentido literal e cronológico. É possível que tenha sido uma refeição solene feita em lugar da páscoa, exatamente porque “Jesus [sabia] que a sua hora de passar deste mundo para o Pai já tinha chegado” (v. 1). À hora em que a refeição oficial deveria ser tomada, o Senhor já teria partido. Entretanto os discípulos de algum modo esperavam celebrar a páscoa oficial com ele (v. 29). A palavra grega para próximo a (lit.: “ao lado de Jesus”, gr.: kolpos é a mesma palavra empregada na declaração do prólogo, que Jesus estava “ao lado do Pai” (1:18), e poderá ter sido escolhida aqui a fim de acentuar a intimidade existente entre Jesus e o discípulo a quem ele amava. 13:25 / reclinando-se: o texto grego (pelo menos vários dos mais importantes manuscritos antigos) traz o advérbio houtos (“Assim” ou “deste jeito”, não está em ECA), que capta algo da excitação do narrador quanto a esta história, e talvez também a recordação gráfica de uma testemunha ocular (i.e., o próprio discípulo amado?). Veja a nota sobre 4:6. 12:36 / o pedaço de pão molhado: tradução literal: “um bocado molhado”. O bocado que se molhava em caldo ou molho normalmente era de pão; todavia, de acordo com Passover Haggadah, usava-se um maço de ervas amargas para ser imerso no molho da refeição pascal. Se o bocado aqui se refere a pão ou a ervas depende da natureza dessa refeição, segundo o Senhor: seria a páscoa? (observe, contudo, que ECA e outras versões acrescentam a palavra pão, que também aparece em Marcos 14:20). Argumentam alguns, a partir do v. 18 (lit., “aquele que comeu o meu pão”) que é pão que o autor tem em mente aqui, embora tal conexão seja precária. Pão é, talvez, o que o autor quis dizer; todavia, a ênfase do narrador está no ritual o molhar e da entrega, e não no cardápio. 13:27 / Assim que Judas tomou o pão: lit., “depois do bocado”. Embora fique implícito aqui que Judas aceitou o pão, esse fato não se toma explícito antes do v. 30. Disse-lhe Jesus: A partícula grega oun não traduzida permite a possibilidade

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de Jesus haver dito isso no momento em que ofereceu o pedaço de pão a Judas (v. 26). A declaração posterior de que “depois que Judas tomou o pão, entrou nele Satanás”, conquanto esteja primorosamente entretecida na narrativa, como se fora vista por uma testemunha ocular, essencialmente é um julgamento teológico, quer tenha sido formulado no momento, pelo discípulo amado, quer (com maior probabilidade) em retrospecto, à medida que a história foi sendo narrada e registrada. 13:29 / Compra o que nos è necessário para a festa, ou que desse alguma coisa aos pobres: A primeira destas duas suposições reforça a impressão dada pelo v. 1 de que a festa da páscoa ainda não havia começado, que a refeição descrita neste capítulo não era a páscoa propriamente dita, e que os discípulos ainda esperavam celebrar a páscoa juntos (veja nota sobre 13:23). A referência aos pobres nos faz lembrar 12:5-6 e, à luz desse diálogo, salienta um toque de ironia: Os discípulos que pensaram que Judas estaria recebendo dinheiro para os pobres estavam muitíssimo enganados. 13:30/ Assim que Judas tomou: a partícula grega oun de novo não está ECA (cf. nota sobre v. 27); à semelhança de oun do v. 27, provavelmente significa uma retomada do pensamento do v. 26. O v. 30 deve seguir-se com suavidade ao v. 26, sem nada de permeio. Esta partícula de reatamento, oun poderia ser traduzida adequadamente por “então”.

38. Três Pronunciamentos Decisivos (João 13:31-35)

A transição da narrativa para o sermão se faz mediante a repetição no v. 31 do verbo “saiu” (gr.: exelthen, do v. 30). Tão logo Judas saiu, Jesus recomeçou a falar. A matéria do v. 31 até o fim do capítulo 17 compreen­ de os sermões de despedida e a assim chamada oração sacerdotal de Jesus, no Evangelho de João. Os principais temas desses sermões e a oração foram enquadrados de modo programado em três pronunciamen­ tos distintos, nos vv. 31-35. Esses três pronunciamentos consistem dos versículos 31-32, do versículo 33 e dos versículos 34-35, respectivamen­ te. O primeiro diz respeito à glorificação, o segundo à partida de Jesus deste mundo, e o terceiro, ao amor. O conteúdo do sermão que vem logo após esses pronunciamentos pode ser dividido em duas partes. A primeira, 13:36-14:31, consiste de uma série de perguntas e respostas formuladas ao redor do segundo pronun­ ciamento (i.e., predição da partida de Jesus, no v. 33); não é dada atenção especial nem à primeira declaração, nem à última. O segundo grande bloco de sermão (e de oração), 15:1-17:26, desenvolve os três temas apresentados nos vv. 31-35, em ordem invertida. Assim, o tema do amor (com seu corolário de ódio e perseguição) tem expressão integral em 15:l-16:4a; o tema da partida é exposto pela segunda vez em 16:4b-33; e o tema da glorificação de Jesus é tomado e transformado na base da última oração de Jesus em 17:1-26. O esboço proposto pode ser definido de modo conciso como segue: Glorificação (13:31-32) Amor (15:l-16:4a) Partida (13:33) Partida (16:4b-33) Glorificação (17:1-26) Amor (13:34-35) O pronunciamento sobre glorificação (vv. 31-32) reitera e reúne alguns conceitos anteriores de Jesus quanto à sua glorificação (11:4; 12:23) e a glória de Deus (11:4, 40; 12:28). Ambas estão intimamente ligadas e são inseparáveis. Deus é glorificado quando a vontade dele é feita, e sua vontade para o Filho do homem conduz à “glorificação” na cruz. O v. 32 tenciona explicar o versículo 31, ao declarar de modo

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diferente (em ECA com uma oração iniciada com “se;” veja nota) como a glória de Deus e a glória do Filho do homem são interligadas. Deus glorificará o Filho do homem em si mesmo, i.e,. não com demonstração de esplendor externo mas, ao unir de novo Jesus a si próprio na cruz e ressurreição. Há um senso de iminência em tudo isso. A glorificação do Filho do homem na morte ocorrerá im ediatamente (cf. O que estás prestes a fazer, faze-o depressa, v. 27). Acrescenta Jesus: Filhinhos, ainda por um pouco estou convosco (gr.: eti mikron), e diz com franqueza a seus discípulos o que sua glorificação significará para eles. Não se trata para eles de uma fonte de alegria ou de conforto; a glorificação de Jesus significa apenas sua partida, e a dor de sua ausência. Os discípulos não estarão em situação melhor do que as autoridades religiosas a quem Jesus duas vezes repeliu com palavras ásperas: P ara onde eu vou vós não podeis ir (cf. 7:34; 8:21). Que tipo de glória é essa? Por enquanto a pergunta permanece sem resposta. Os vv. 34-35 provêm uma chave interpretativa do relato do lava-pés, nos vv. 1-20, e por sua vez são interpretados pelo ensino de Jesus a respeito de amor e de missão em 15: l-16:4a. A recorrência, no v. 34, do padrão triangular do v. 14 (Como eu vos amei a vós, assim tam bém deveis am ar uns aos outros) sugere que o amor (com seu corolário, a dor da traição) foi o tema das palavras e ações de Jesus desde o começo. O lava-pés, para Jesus, sumarizava o amor em ação. Esta ordem para amar era novo mandamento, não intrinsecamente, visto que até os sectários judeus do Qumran receberam a instrução de “amar a todos os filhos da luz” (1QS 3.13); todavia, em sua base está o amor que se dá a si próprio, o de Jesus na cruz (Como eu vos a m e i... cf. v. 1). O novo m andam ento é o equivalente de João à “nova aliança” mencionada por Lucas e por Paulo (Lucas 22:20; 1 Coríntios 11:25; cf. Marcos 14:24; Mateus 26:28). Todas as nossas testemunhas literárias concordam que algo decisivo aconteceu durante a última refeição de Jesus com seus discípulos, mas Paulo e os autores sinóticos fazem uma ligação entre esse algo e a liturgia da Santa Ceia do Senhor. Para João, relaciona-se à vida diária e à demonstração prática de amor que os discípulos devem realizar uns aos outros. Na verdade, o Evangelho de João permite uma dimensão litúrgica também (veja o comentário sobre 13:40), enquanto Lucas abre espaço no contexto imediato para o ensino prático a respeito do espírito

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de serviço (Lucas 22:24-27). Contudo, os pontos enfáticos prevalecentes são diferentes. O último dos três pronunciamentos termina com novo toque no tema de missão: O novo m andamento do amor mútuo não é fim em (si mesmo, porém, um meio para atingir-se um fim: Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se vos am ardes uns aos outros (cf. 17:21, 23; 15:16; quanto a uma perspectiva diferente do mesmo tema, cf. 13:18-20; 15:18-16:4a). De fato, todos os temas dos sermões de despedida estão nos w . 31-35. aguardando desenvolvimento integral. Se o novo m anda­ mento for considerado a solução do problema levantado no v. 33, pela ausência de Jesus (no sentido que os discípulos reencontram-se com Jesus de novo ao amarem-se uns aos outros), os vv. 31-35 tomam-se quase um pequeno sermão de despedida, completo em si mesmo, com­ parável ao sermão breve dos vv. 12-20. Seria possível alguém imaginar, de fato, um estágio bem primitivo da tradição desse Evangelho, no qual os vv. 12-20 e 31-35 teriam sido os únicos “sermões de despedida” existentes. Tal hipótese seria plausível de modo especial se, como com freqüência se presume, a narrativa da paixão de Cristo tomou forma em primeiro lugar, e os últimos sermões do Senhor foram depois encaixados nessa narrativa, de modo que oferecessem uma interpretação teológica da paixão partindo dos próprios lábios de Jesus. Tal teoria é especulativa; no entanto, a transição de 13:1-35 para 18:1 é bem suave. As palavras “Tendo Jesus terminado” (Gr.: tauta eiporv, veja nota sobre 18:1), corres­ pondem com exatidão às palavras do começo de 13:21, passagem que se segue ao breve discurso dos w . 12-20. A observação de que Jesus partiu (gr.: exeühen) com os discípulos e “atravessaram o vale do Cedrom” (18:1) forma uma seqüência com a simples declaração de que Judas “saiu” (gr.: exelthen), depois de receber o bocado que Jesus lhe oferecera (13:30). Se tal estágio tão primitivo da tradição pudesse ser isolado com absoluta certeza, haveria de revelar uma forma do Evangelho de João muito mais próxima à dos evangelhos sinóticos do que a atual, quanto à proporção de narrativa em relação aos sermões, no contexto da paixão de Cristo. Todavia, se esse Evangelho “primitivo” de João existiu um dia, já não existe mais. Aos vv. 31-35 não foi permitido que ficassem sem posterior desenvolvimento e explanação: as duas resultantes cole­ ções das últimas palavras de Jesus a seus discípulos (13:36-14:31; 15:1-17:26) que fazem do Evangelho de João o que ele de fato é.

(João 13:31-35)

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Notas Adicionais # 38 13:32 / Se Deus é glorificado nele: Estas palavras foram omitidas em vários manuscritos antigos importantes. Embora essa omissão possa ter acontecido por mero acidente, em vista da duplicação da oração Deus é glorificado nele, as evidências externas favorecem o texto mais curto. Se se adotar o presente texto, como está, o v. 32 não é reiteração do v. 31, como um todo, mas apenas da oração “agora é glorificado o Filho do homem”, i.e., Deus glorificará o Filho em si mesmo, e o glorificará imediatamente (a palavra imediatamente ajuda a explicar o dramático “agora” com que se inicia este pronunciamento). Prova­ velmente se deve preferir o texto mais curto. em si mesmo: lit., “nele” (gr.: en autoi). O sentido requer que o grego seja lido com h aspirado, forte, no começo: en hauto (em si mesmo). O Pai glorifica o Filho em si mesmo (i.e., em — ou em relação a — o Pai); dizer que Deus glorifica o Filho no Filho não faz sentido.

39. Partida Próxima 1 (João 13:36-14:31)

O tema singular do primeiro bloco de matéria didática se apresenta sob a forma de diálogo, com uma série de perguntas e respostas (13:36­ 14:24), encerrando-se com um pós-escrito à feição de monólogo (14:25­ 31). Cada pergunta é motivada por uma declaração anterior de Jesus, de modo que cada diálogo apresenta três partes: a declaração inicial de Jesus, a pergunta que ela ocasiona, e a resposta de Jesus a essa pergunta. Ao todo, quatro discípulos têm sua vez como inquiridores: Pedro, Tomé, Filipe e Judas (não “o filho de Simão Iscariotes”, mas outro discípulo chamado Judas). A Pergunta de Pedro (13:36-14:4) A pergunta de Pedro, Senhor, p ara onde vais? decorre da declaração de Jesus no v. 33, “Para onde eu vou vós não podeis ir”. É pergunta natural, porque o destino de Jesus ainda não fora estabelecido; não se trata, contudo, de mero pedido de informação. Por detrás da pergunta está o grito de lamentação: Por que te vais? ou Por que deves partir? O enunciado que se segue (13:36-14:31) é a resposta de Jesus a esse clamor, bem como à pergunta explícita que lhe foi formulada. A afirmação inicial de Jesus de que ele estava indo embora apontava para trás, de modo explícito, a declarações semelhantes feitas anterior­ mente às autoridades judaicas (7:33-36; 8:21). Trata-se do escândalo comum no Novo Testamento, cruz (cf. 1 Coríntios 1:23), que aqui é visto como ofensa até para os cristãos. Para estes, trata-se do escândalo do Senhor ausente. Em vez de responder à pergunta de Pedro de modo direto, dizendo-lhe que vai para o Pai, Jesus inicia qualificando sua declaração anterior: “Para onde eu vou vós não podeis ir”. No versículo 36b o Senhor diz: P ara onde eu vou, não podes seguir-me agora; mais tarde, porém, me seguirás. A experiência dos discípulos não constitui paralelo integral da experiência das autoridades judaicas, visto que a separação entre os discípulos e Jesus é apenas temporária. A resposta de Jesus é dirigida primeiro a Pedro, de modo pessoal; ele lhe seguirá mais tarde, presumi­ velmente na morte (cf. 21:18-19). Embutida nesta parte da resposta de

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Jesus ao escândalo de sua partida há uma referência ao próprio “escân­ dalo” pessoal de Pedro (usando-se a palavra num sentido um tanto diferente). Pedro professa sua prontidão para seguir a Jesus até à morte (e ele o fará); todavia, num futuro imediato ele negará a seu Senhor três vezes (w . 37-38). Esta predição, conquanto seja parte fixa da tradição (cf. Marcos 14:27-31 e passagens paralelas) não é elaborada. O fio da meada é apanhado em 18:15-18,25-27 e, talvez, 21:15-17; todavia, não desempenha papel nenhum na discussão que aqui se desenrola. Em 14:1 Jesus alarga a aplicação de suas palavras a todos os discípu­ los, ao mudar os pronomes do singular para o plural. A recorrência das palavras onde eu estou( 14:3) e para onde eu vou (14:4), entretanto, indica que a declaração de 13:33, motivadora de toda a série de perguntas, ainda está em sua mente. O escândalo da ausência de Jesus é aliviado pela ênfase na esperança. A certeza que Jesus dá a seus discípulos reside no fato de que a separação dele é apenas por tempo limitado. O propósito de sua partida é que ele vai preparar-lhes lugar na casa de meu Pai. O Senhor voltará para os discípulos, que a ele se unirão para sempre (vv. 2-3; cf. 12:26). A referência é à vinda futura de Jesus (cf. 1 João 2:28) e à ressurreição de todos os que nele crêem (cf. 6:39-40, 44, 54). De princípio, tanto a pergunta quanto o clamor de Pedro, tanto o “para onde” quanto o “por que” são respondidos agora. Entretanto, prossegue o diálogo. A Pergunta de Tomé (14:5-7) A declaração que suscita a pergunta de Tomé faz parte da resposta a Pedro: Vós conheceis o caminho p ara onde eu vou (v. 4). As palavras p ara onde eu vou ainda são um eco de 13:33 e 36. A resposta de Jesus à pergunta de Tomé, Como podemos conhecer o caminho? (v. 5), introduz um pensamento novo: o próprio Jesus é o caminho (v. 6). A resposta de Jesus centraliza-se nele mesmo; nem é preciso saber para onde ele vai, no sentido das especulações apocalípticas judaicas, concer­ nentes à estrutura do céu, e tampouco o caminho, no sentido de uma fórmula que possibilite escapar deste mundo e obter salvação (como no gnosticismo e nas religiões helenísticas de mistério). O necessário é apenas que se conheça a Jesus mediante fé pessoal, e nele confiar como o único que pode conduzir o discípulo sedento ao Pai. A pergunta de Tomé muda o foco da discussão, tirando-o do destino para colocá-lo no caminho que possibilita atingi-lo e, ao mesmo tempo, sublinha o fato que

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Jesus ainda não respondeu na íntegra à pergunta formulada por Pedro (Senhor, nós não sabemos p ara onde vais, v. S). Conquanto seja motivada pela menção de Jesus ao caminho, ainda é basicamente a mesma pergunta de Pedro com nova roupagem: P ara onde v a is r em 13:36 (agora com uma referência particular à consequência implícita, “para onde iremos nós quando estivermos te seguindo depois?”). Jesus deu a entender que vai para a casa do Pai (v. 2); todavia, não explicou o que quis dizer com isso. O Senhor fala com maior clareza no v. 6: Ninguém vem ao Pai senão por mim. A ênfase é simultânea sobre Jesus como o Caminho, e o Pai, como o destino. O centro de interesse deixa de ser o tempo (mais tarde, porém, me seguirás) para tomar-se pessoas (Jesus e o Pai). A Pergunta de Filipe (14:8-21) O Pai toma-se, agora, o assunto do terceiro diálogo. Os termos p ara onde eu vou e o caminho são substituídos por “o Pai” e “o Filho”, respectivamente. Assim, a declaração introdutória de Jesus, Se vós me conhecêsseis, também conheceríeis a meu Pai (v. 7), faz eco à queixa de Tomé, Senhor, nós não sabemos para onde vais, como podemos co­ nhecer o caminho? (v. 5). De modo que quando Filipe pede a Jesus: Senhor, mostra-nos o Pai (v. 8), ele levanta pela terceira vez a mesma pergunta: P ara onde vais? O problema aqui ainda é o mesmo de 13:33: Jesus vai embora, e os discípulos não estão numa situação melhor do que as autoridades que rejeitaram a Jesus. Os paralelismos entre este diálogo e a controvérsia de Jesus com “os judeus” em 8:12-20 são especialmente instrutivos. Ali, no contexto de uma controvérsia a respeito da credibilidade do testemunho de Jesus acerca dele mesmo, a expressão “de onde vim e para onde vou” (8:14) foi empregada como meio indireto de referir-se ao Pai. A verdadeira acusação de Jesus a seus ouvintes foi que eles não conheciam seu Pai (8:19), mas, dizer que não conheciam o Pai era o mesmo que dizer que não sabiam de onde Jesus viera, nem para onde ia. Esta passagem derrama luz no capítulo 14, tanto nas similaridades quanto nas diferenças. O tema importante neste caso é a validação do testemunho legal mediante duas testemunhas, Jesus e o Pai (8:17-18), sendo a partida de Jesus deste mundo uma questão subsidiária, de menor importância (conquanto vies­ se em destaque em 8:21). No capítulo 14, a partida de Jesus é o maior tema, sendo a questão da validade do testemunho de Jesus, um ponto de menor importância (Credes em Deus, crede também em mim, v. 1; cf.

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w . 10-11). O reconhecimento da parte de Tomé: Nós não sabemos p ara onde vais (v. 5) corresponde à reivindicação de Jesus, em 8:14 que os que o interrogavam não sabiam “de onde vim e para onde vou”. O pedido de Filipe no v. 8, mostra-nos o Pai formalmente é igual à pergunta: “Onde está teu Pai?” em 8:19a; entretanto, na substância há uma tremen­ da diferença. As autoridades judaicas em seu sarcasmo desafiavam Jesus a que apresentasse sua segunda testemunha, enquanto Filipe está refor­ mulando, em termos pessoais, a mesma pergunta feita por Pedro e Tomé: P a ra onde vais? O comentário a Filipe e outros: “Se vós me conhecês­ seis, também conheceríeis a meu Pai” (v. 7a), que vem antes, corresponde bem de perto ao que o Senhor dissera às autoridades judaicas em 8:19b (“Se vós me conhecêsseis, também conheceríeis a meu Pai”) havendo, porém, uma diferença crucial nos tempos (as condições contrárias aos fatos se transformaram em condições apegadas à realidade, tipo “agora que sabeis estas coisas” de 13:17), e com a certeza acrescentada de que de agora em diante o conheceis, e o vistes (v.7b). Estas palavras mudam o impulso da discussão de modo decisivo, tirando-o do futuro e pondo-o no presente. Para os discípulos de Jesus, o fato que ele estará com eles mais um pouco apenas (13:33) faz que seja imperativo avaliar o que a presença do Senhor na terra já significou (Há tanto tempo estou convosco, v. 9), e reagir pela fé à revelação dele, mediante palavras e obras (vv. 9-11). O caminho para o Pai é mais do que a ressurreição no último dia (cf. vv. 2-3). Trata-se de caminho acessível agora mesmo a qualquer discípulo que ouvir as palavras de Jesus em fé, como sendo palavras do Pai, e entender as obras de Jesus como sendo obras do Pai. É o que os discípulos ao redor da mesa ainda não fizeram (v. 9), e é o que se espera que os leitores do Evangelho façam. Embora a ênfase aqui é na revelação histórica do Filho na terra, não existe distinção aguda entre este tempo e aquele vindouro (em breve), em que Jesus estará ausente. A transição entre um período e outro, no v. 12, é fácil e natural, em contraste com a advertência anterior de Jesus com respeito à noite, “quando ninguém pode trabalhar” (9:4; cf. 11:9-10). O ministério público de Jesus, como um todo, foi marcado pela urgência da mesma exortação com que se encerrou: “A luz ainda está convosco por um pouco. Andai enquanto tendes luz, para que as trevas não vos apanhem... Enquanto tendes a luz, crede na luz, para que sejais filhos da luz” (12:35-36). Porém, no capítulo 14, a partida de Jesus para o Pai

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não significa um fim para as obras de Deus, mas obras maiores (v. 12), realizadas pelos discípulos, que têm a certeza de Jesus, agora com o Pai, lhes atenderá as orações (vv. 13-14). Houve transcendência no ministério público de Jesus: o que é verdadeiro para os discípulos de modo algum é verdadeiro para o mundo. A despeito da incapacidade dos discípulos para compreender, por enquanto, que Jesus está no Pai e o Pai em Jesus, e nisso crer (v. 10), existe uma oportunidade, de agora em diante para que cheguem até este ponto exato (vv. 7b, 11). Depois de responder a cada uma dessas quatro perguntas que marcam seu primeiro sermão de despedida, Jesus continua dirigindo-se a seus discípulos, mas em determinado momento passa do singular para o plural (cf. vv. 1-3, 7, 11-21, 24b). Tal mudança para o plural sugere que certo conteúdo genérico do sermão passou a ser introjetado naquela estrutura tipo pergunta-resposta. O bloco mais longo de puro sermão são os vv. 11-21, em que o conteúdo quase faz submergir (não o faz de vez) o formato pergunta-resposta. Trata-se de uma série de promessas apresen­ tadas a todos que “vêem” (vv. 7,9) Jesus (e sua revelação) e nele “crêem” (v. 11). O Senhor lhes promete o poder para fazerem coisas maiores do que ele tem feito (v. 12) e, intimamente associada a esta promessa, o privilégio de verem suas orações respondidas (vv. 13-14). Contudo, a promessa mais importante é aquela da qual dependem as duas primeiras: a contínua presença de Jesus entre eles (vv. 15-21). O breve monólogo que introduz a última pergunta dos discípulos (v. 22) erige-se de acordo com um padrão simples repetido nos vv. 15-21. Ao responder-lhes a última pergunta, Jesus não elabora muito a reflexão mas apenas repete o padrão, pela terceira vez; agora, porém, introduz uma dedução negativa (vv. 23-24). A seção como um todo dá-nos o seguinte quadro:

(João 13:36-14:31) Versículos 15-20: Se me amais, guar­ dareis os meus m an­ dam entos (v. 15).

Versículo 21: Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama. E quem me ama será amado de meu Pai, e eu tam­ bém o amarei e me manifestarei a ele (v.21).

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Versículos 23-24: Se alguém me am ar, g u ard ará a minha palavra. Meu Pai o amará, e viremos para ele e nele faremos morada (v. 23).

Eu rogarei ao Pai, e ele vos d ará outro Consolador, para que esteja convosco p ara sem p re... Não vos deixarei ó r­ fãos; virei para vós. . . . Naquele dia co­ nhecereis que estou em meu Pai, e vós em mim, e eu em vós. (w . 16-20). Quem não me am a não guarda as mi­ nhas palavras. Esta palavra que ouvis não é minha, mas do Pai que me en­ viou (v. 24). A estrutura da ordenança do amor é um tanto diferente, aqui, da estrutura triangular do capítulo 13: O amor move-se em primeiro lugar para cima; os discípulos devem amar Jesus e, por sua vez, receberão o amor divino. A seqüência é a que se segue: (a) O discípulo deve amar Jesus e guardar seus mandamentos. (b) Conseqüentemente o Pai (e Jesus) amarão esse discípulo e lhe darão uma revelação.

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(João 13:36-14:31)

A única referência neste primeiro sermão ao amor entre o Pai e o Filho mostra o amor movendo-se na mesma direção — para cima: Jesus ama o Pai e faz o que o Pai lhe ordena (v. 31; contraste com 15:9-10). Este padrão simples é melhor descrito como “da aliança”. No judaísmo, o cerne da exigência de Deus se resumia na oração diária conhecida como “Shema”, tirada de Deuteronômio 6:4-6: “Ouve, ó Israel: O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de toda a tua força. Estas palavras que hoje te ordeno estarão no teu coração”. Amar a Deus e guardar seus mandamentos veio a tomar-se modo comum de descrever os deveres de Israel (ver, Êxodo 20:6; Deuteronômio 5:10; 7:9; 11:1). A ênfase estava no amor como exigência e, conseqüentemente, mais no amor do povo a Deus do que no amor de Deus ao povo. A linguagem de Jesus neste ponto faz-nos lembrar sua resposta, nos evangelhos sinóticos, ao escriba que lhe perguntou: “Qual é o principal de todos os mandamentos?” (Marcos 12:28-34; Mateus 22:34-40; Lucas 10:25-28), exceto que em João é o amor a Jesus, em vez do amor a Deus que fica no centro (cf. 21:15-17). Da maneira bem típica do Evangelho de João, Jesus se identifica tão intimamente com o Pai, no que concerne ao discípulo, que ambos são equivalentes (cf. 10:30; vv. 9, 23). A Pergunta de Judas (Tadeu) (14:22-24) Pode-se usar também o nome Judá, a fim de distinguir este discípulo (cf. Lucas 6:16; Atos 1:13) tanto de Judas, o traidor, quanto de Judas, o irmão de Jesus (cf. Marcos 6:3; Mateus 13:55; Judas 1). A pergunta de Judas Tadeu, que à primeira vista parece encoberta pelo conteúdo do sermão que a precede, na verdade é a chave para uma compreensão mais ampla, visto que se refere a pormenores das promessas de Jesus, nos vv. 16-20, que poderiam, de outra forma, passar despercebidos. Pergunta Judas Tadeu: Senhor, por que pretendes manifestar-te a nós, e não ao mundo? (v. 22). Jesus havia falado nos versículos 16-17 de outro Consolador (gr.: parakletos), a quem o Senhor chamava de Espírito da verdade. Desse Consolador disse Jesus: o Espírito da verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece. M as vós o conheceis, pois habita convosco, e estará em vós (v. 17). Mais uma vez, no v. 19, o Senhor havia utilizado a linguagem de seu pronuncia­ mento inicial, em 13:33, agora, porém, com uma qualificação crucial: Ainda um pouco (gr.: eti mikron; cf. 13:33), e o m undo não me verá

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mais, mas vós me vereis. Porque eu vivo, vós tam bém vivereis. Foi isso que despertou em Judas Tadeu a pergunta que ele fez. O mundo não mais verá a Jesus, depois que ele partir. Para o mundo, o Senhor estará ausente; ocorreu uma separação real e permanente. Entretanto, para o crente, tal separação é irreal. Ainda que Jesus vá embora, saindo do âmbito da visão humana, o discípulo continua a “vê-lo” (v. 19; cf. vv.7b, 9) porque lhe partilha a vida e porque conhece o outro Consolador, o Espírito da verdade que assumiu o lugar do Senhor. Jesus parte do mundo só para ficar mais perto de seus discípulos do que nunca esteve antes. Porque ele vai com o Pai, diz o Senhor, seus discípulos saberão um dia que estou em meu Pai, e vós em mim, e eu em vós (v.20; cf. 10:38). Paradoxalmente, é ao partir que o Senhor retoma, visto que ao reunir-se de novo ao Pai, ele se une (bem como seu Pai) aos discípulos também (cf. 20:19-23). Aqui é vencido da maneira mais decisiva o escândalo da ausência de Jesus. No começo (13:33), parecia que os discípulos não tinham vanta­ gem alguma sobre o mundo, visto que não podiam ir aonde Jesus tinha ido. Esta questão foi qualificada na resposta dada a Pedro: os discípulos o acompanhariam, mais tarde porém, quando Jesus houvesse preparado lugar para eles (13:36; 14:3). Agora, revela-se toda a verdade: para os que têm fé não existe separação real entre eles e Jesus. A partida do Senhor significa que ele e o Pai estarão juntos de novo, e que no Espírito ambos estarão presentes, e acessíveis, ao crente fervoroso. A pergunta de Judas Tadeu é natural, porque parece que as palavras de Jesus resistem aos reclamos da experiência sensorial. O que os olhos vêem — a partida de Jesus deste mundo, mediante a morte — é apenas uma ilusão. O que é real — a presença do Espírito, e a união de Jesus com o Pai e todos os discípulos — não podem ser vistos no sentido comum (o mundano) do verbo ver. Judas Tadeu esíá perguntando por que os discípulos e o mundo vêem as coisas de modos tão diferentes. A resposta de Jesus (vv. 23-24) ressoa de início como se ele nem sequer tivesse ouvido a pergunta; entretanto, a decorrência negativa que ele acrescenta no v. 24 trata da questão levantada por Judas ao definir (à maneira característica do Evangelho de João) a diferença entre a igreja e o mundòv Quem não me am a não guarda as minhas palavras. O “mundo” consiste daqueles que não amam Jesus, enquanto a “igreja” (termo jamais usado neste Evan­ gelho) consiste daqueles que amam o Senhor e a ele obedecem (vv. 15,

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21). O Espírito só virá àqueles que conhecem o Espírito (v. 17; cf. 1 Coríntios 2:11-14); Jesus e o Pai estão presentes somente para aqueles que têm olhos para vê-los (v. 19). A pergunta de Judas Tadeu baseia-se na expectativa cristã inicial, comum, de que Jesus voltará à tefra com “esplendor” (2 Tessalonicenses 2:8) e de forma que “todo o olho o verá” (Apocalipse 1:7). Esta perspectiva é a resposta à ausência de Jesus, afirmando sua presença visível — mas no futuro. A resposta do Evangelho de João, em vez disso, afirma a presença invisível de Cristo aqui, agora mesmo, entre aqueles que o amam. Até mesmo quando se considera que a segunda vinda é futura, como no v. 3, é vinda específica para o crente (e vos levarei para mim mesmo) e não uma aparição pública do Filho de Deus sobre a terra. Para João, essa aparição já ocorreu no ministério de Jesus. O mundo já tomou suas decisões e demonstrou ser cego. Portanto, João não sente nenhuma necessidade de submeter suas afirmações sobre a vinda de Jesus ao teste da experiência comum sensorial. Ainda que as aparências externas fossem contrárias, Jesus e o Pai virão, e estabelece­ rão habitação com os crentes (v. 23), no Consolador, e através dele (v. 16), que estará com eles para sempre. Assim, o ceme do capítulo 14 é a reinterpretação do eti mikron (“por um pouco”) de 13:33, com um eti mikron correspondente (“ainda um pouco”) de 14:19. O primeiro rela­ ciona-se tão somente à experiência sensorial; o outro introduz aquilo que para João é o ceme da existência cristã — nova vida no Pai e no Filho. Conclusão (14:25-31) Só nos últimos versículos desse capítulo é que a estrutura perguntaresposta dá lugar ao monólogo. O resumo conclusivo, marcado pela fórmula Tenho-vos dito isto .. ;(v. 25; cf. 15:11; 16:1, 4,25, 33; 17:1), continua tratando do Consolador (v. 26), e da partida e retomo de Jesus (v. 28), com algumas indicações de que a ansiedade dos discípulos, acerca da separação iminente de Jesus ainda não foi aliviada. Jesus descreve mais concretamente do que antes o ministério do Espírito: o Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos fará lem brar de tudo o que vos tenho dito (v. 26) — com o propósito particular de acalmar os temores dos discípulos (cf. 16:4b; também Marcos 13:11; Mateus 10:19-20; Lucas 12:11-12). Não é de surpreender que nesta altura Jesus repita algo que já assegurara antes: Não se turbe o vosso coração, nem se atemorize (v.

(João 13:36-14:31)

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27; cf. v. 1). Mais surpreendente seria o uso que o Senhor faz de uma condição que contraria os fatos: Se me amásseis, alegrar-vos-íeis por­ que eu vou para o Pai, pois o Pai é m aior do que eu (v. 28), especialmente porque o Senhor definita o mundo como os que não amam Jesus (v. 24). Enquanto os discípulos não vencerem a tristeza e o temor, não se pode dizer que amam a Jesus com perfeição (cf. 1 João 4:18), e nesse sentido ainda se encontram em pé de igualdade com o mundo. Aqui, pela primeira vez no sermão, há um implícito reconhecimento de uma crise que virá para testar a fé e o amor dos discípulos. É a crise da separação e, conquanto Jesus tenha feito o máximo a fim de demons­ trar que será uma separação irreal, o Senhor admite tacitamente que para eles será real, pelo menos durante algum tempo. Trata-se de uma tenta­ ção, de uma causa de ansiedade e, embora já tenha sido vencida, segundo as palavras de Jesus, deverá ser vencida na experiência dos discípulos. Com esse objetivo, Jesus deixa-lhes seu desejo de paz, deixo-vos a paz, a m inha paz vos dou. Não vo-la dou como o m undo a dá (v. 27). Não se trata de uma paz que pode ser medida por circunstâncias externas, mas uma paz que está dentro dos próprios discípulos; não é paz do tipo que depende de ausência de conflitos, mas do tipo que permanece constante quando surgem as dificuldades. Existe certa tensão entre as quatro perguntas e as respostas, as quais compreendem a maior parte do sermão de despedida, e o resumo com que ele termina. Se 13:36-14:31 for visto como sermão de despedida, completo em si mesmo, os vv. 25-31 podem ser considerados como o modo de João produzir uma transição entre o idealismo do sermão e o realismo da narrativa da paixão. A crise sobrevirá na pessoa de Satanás, o príncipe deste mundo (v. 30), e Jesus chama seus discípulos para que unam esforços no confronto do maior inimigo nosso (Levantai-vos, vamo-nos daqui, v. 31). É significativo que um sermão construído sobre o anúncio de que Jesus vai para um lugar onde os discípulos não conseguiriam segui-lo, se encerre com uma convocação para que saiam com Jesus a fim de enfrentar o adversário. A convocação final para ação imediata (usando termos diferentes nos evangelhos sinóticos, Marcos 14:42; Mateus 26:46) preserva aqui a ênfase distintiva, típica de João, na unidade de Jesus com seus discípulos, enquanto o Senhor volta a face na direção da cruz.

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Notas Adicionais # 39 13:37 / Por ti darei a minha vida. É expressão idiomática, a mesma empregada por Jesus em 10:11,15,17. 14:1 / Não se turbe o vosso coração: Esse mesmo verbo foi empregado para descrever o estado emocional de Jesus em 11:33; 12:27 e 13:21. Havendo aquietado seu próprio coração, preparando-o para a paixão, Jesus começa agora a preparar seus discípulos para o que os aguarda. Credes em Deus, crede também em mim. Ambos os verbos podem ser considerados imperativos (como NIV) ou presentes do indicativo (i.e., “vós confiais em Deus, e confiais em mim também”); também um deles pode ser considerado imperativo, e o outro, presente do indicativo (i.e., “vós confiais em Deus, confiai em mim também”, à semelhança de ECA). Entretanto, a coerência manda que se traduza ambos os verbos de modo paralelo; o duplo indicativo faria a expressão parecer banal e redundante. A tradução de NIV seria a preferível, portanto; Jesus não está referindo-se à crença em Deus (nem em si próprio) num sentido genérico mas em relação a uma esperança específica quanto ao futuro: “Confiai em Deus e confiai em mim; isto é o que vai acontecer, mas não há motivo de temor”. 14:2 / Na casa de meu Pai há muitas moradas: A tradução “muitas mansões” tem sido mudada na maioria das versões modernas por causa da incongruência de “mansões” dentro de uma casa. Moradas é a tradução literal de monai, do grego, que NIV traduz “quartos”, monai deu em latim manere (“morar”) que por sua vez chegou ao português como “mansão”. Cf. a promessa de Jesus, no v. 23, que ele e o Pai virão e “farão morada” (lit., “habitação”, [mone]) com a pessoa que ama Jesus e lhe obedece. A frase casa de meu Pai faz lembrar 2:16-17, onde se emprega uma terminologia semelhante quanto ao templo de Jerusalém. Aqui ela se refere metaforicamente ao céu. A metáfora, todavia, provavelmente se refere a uma casa, um lar (cf. 8:35-36), e não ao “templo celestial” da literatura apocalíptica judaica e cristã (como, em Apocalipse 4). A ênfase não está em “compartimen­ tos” individuais no céu, mas sim na certeza de que há abundância de lugar para todos quantos pertencem a Jesus. Se não fosse assim, eu vo-lo teria dito. É melhor seguir a GNB, margem, e tomar a sentença como pergunta: “Se não fosse assim, diria eu a vós que eu vou preparar-vos (lit., “vou embora”) um lugar?” Esta tradução é gramaticalmente preferível porque leva em consideração a conjunção “que” (gr.: hoti) a qual, de outra forma, é desprezada. A dificuldade que essa tradução apresenta é a implicação de que Jesus havia dito numa ocasião anterior que ele iria embora, a fim de preparar um lugar para seus discípulos. Em lugar algum desse Evan­ gelho o Senhor disse isso, com essas mesmas palavras, embora houvesse dito que iria partir (ver, 7:33; 8:21), e pode ser que o preparo de um lugar para os crentes fosse considerado implícito em passagens como 6:39; 10:16; e 12:32.

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14:6 / Eu sou o caminho, a verdade e a vida. O impulso mais forte do contexto contém a afirmação de Jesus de que ele é o caminho; as outras duas autodesignações são deduções desta (cf. NEB: “Eu sou o caminho; eu sou a verdade e eu sou a vida”; entretanto, a de Moffatt: “Eu sou o caminho real e vital” vai longe demais nessa direção). 14:7 / Se vós me conhecêsseis, também conheceríeis a meu Pai. NIV e ECA tomam a tradução contrária aos fatos, mas as evidências mais fortes dos manuscritos favorecem a tradução marginal de NIV: “Se realmente me tendes conhecido, conhecereis” (cf. GNB). A declaração imediata e positiva de Jesus: de agora em diante o conheceis, e o vistes (i.e., o Pai, v. 7b) e sua pergunta cheia de surpresa: não me conheces, Filipe? (v. 9), dão apoio extra à idéia de que Jesus está pressupondo o conhecimento — não a ignorância — da parte de seus discípulos. Neste particular, a situação deles contrasta com a dos fariseus, em 8:19. 14:11 / crede por causa das mesmas obras: (tradução lit.). As “obras” de Jesus não se limitam aos seus milagres. (NIV traduz “milagres” em vez de “obras” mas reconhece o significado correto de “obras” ao traduzir “maiores coisas” no v. 12, em vez de “maiores milagres”). 14:12/ maiores: lit.: “maiores obras”. As obras que os discípulos farão depois da partida de Jesus serão maiores do que as de Jesus, não em seu valor intrínseco, ou em sua glória, mas no objetivo. Os discípulos farão as obras de Deus numa escala mais ampla, enquanto levam a mensagem da vida eterna ao mundo todo, tanto a gentios como a judeus (cf. 10:16; 11:52; 12:32). 14:14 / Se me pedirdes alguma coisa em meu nome, eu o farei. Uma característica deste primeiro sermão de despedida é sua terminologia de oração: a oração se faz não só no nome de Jesus, mas a Jesus (em vez de ao Pai), e o próprio Jesus é quem vai responder às orações (alguns manuscritos omitem o me, talvez porque tenha parecido esquisito, ao lado de em meu nome; todavia, está presente nos mais importantes dos manuscritos antigos). A pressuposição de Jesus aqui é que em razão de estar partindo “para o Pai” (v. 12b), partilha a obra do Pai, que é responder às orações e, de fato, ele garante as respostas. A frase em meu nome significa: “sob minha autoridade”; a oração é respondida quando o que pede e Aquele a quem se pede estão unidos em fé e amor, i.e., quando as condições descritas nos versículos 15-21 se efetuam. 14:16 / outro Consolador: outro implica que Jesus também é Consolador (gr.: parakletos\ cf. 1 João 2:1, que fala do Jesus ressurreto ajudando os crentes ao servir-lhes de Advogado diante de Deus). O Espírito Santo é caracterizado, aqui, como o continuador da obra que Jesus fazia em prol dos discípulos enquanto esteve na terra — especialmente no ensino e no encorajamento. A função do Espírito é revelar e cuidar pastoralmente. Ele (ou ela; o termo parakletos em todo caso acentua a personalidade do Espírito) é Consolador no sentido específico de iluminar a revelação que vem de Deus, e que Jesus nos trouxe, aplicando-a às sempre mutáveis necessidades dos seguidores de Jesus. 14:17 / Habita convosco, e estará em vós. Embora o tempo verbal esteja no

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presente (habita) Jesus se refere ao futuro (estará). Quando o Espírito vier, virá para permanecer e viver no coração dos discípulos. Alguns manuscritos trazem só o segundo verbo no futuro, como se Jesus estivesse fazendo distinção entre a presença do Espírito com os discípulos, já naquele momento, e dentro deles, após sua partida. Tal distinção, todavia, é estranha ao texto. Nas referências neotestamentárias sobre união com Deus, em de modo algumjnjplica maior intimidade do que com (cf. Filipenses 1:23; 1 Tessalonicenses 4:17), sendo que aqui as duas preposições são virtualmente intercambiáveis. 14:18/ órfãos: gr.: orphanous literalmente significa: “ficar órfão” ou “aban­ donado”. 14:19 / Porque eu vivo, vós também vivereis. As palavras porque eu vivo referem-se à ressurreição de Jesus; a promessa vós também vivereis provavel­ mente aponta para a esperança dos discípulos quanto à ressurreição futura e também para a possessão atual deles, da vida espiritual mediante o Cristo ressurreto (cf. 6:57). 14:26 / vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito: Essa linguagem costumava ser empregada de modo especial nas advertências concernentes a problemas e perseguições (cf. 13:18; 16:4; e talvez 14:29), mas a memória também desempenhou papel importante na interpretação das obras de Jesus (cf. 2:17, 22; 12:16). O autor deste Evangelho provavelmente viu-se a si mesmo como alguém a quem o Consolador, o Espírito Santo, havia atribuído visão e perspectiva especiais, após a ocorrências dos fatos, quanto às palavras e obras de Jesus, para que pudesse registrá-las. 14:28/ o Pai é maior do que eu. Conquanto Jesus e o Pai sejam “um” (10:30), Jesus ainda pode caracterizar o Pai como sendo maior porque há certos aspectos do relacionamento entre ambos que não são recíprocos, nem reversíveis: o Pai enviou Jesus, Jesus não enviou o Pai; Jesus parte, a fim de unir-se ao Pai, mas o Pai não vem a Jesus. Funcionalmente, o Pai é maior. Os discípulos deveriam alegrar-se porque o ser humano que come com eles, como Amigo e Mestre, não constitui fim em si mesmo, mas é o Caminho para Deus, que é o Começo e o Fim de todas as coisas. 14:29 / antes que aconteça, para que... acrediteis. Antes que aconteça o que? A única resposta possível, nesse contexto, é a partida de Jesus, i.e., todos os eventos relacionados com a paixão do Senhor. Quando foi que creram? Uma resposta plausível é 20:28-29; outra (presumindo que a crença específica se referisse a Jesus partindo para o Pai) é 20:8, em que o discípulo amado “viu e creu” apenas diante de um sepulcro vazio. 14:30 / Ele nada tem em mim: (tradução lit.). É possível que embora seja o próprio diabo que o Senhor tem em mente aqui, a incorporação do diabo em Judas é o que lhe ocorre em primeiro lugar. Isto porque em 13:21-30 Judas “nada tem” com Jesus (cf. também 13:8, “não tens parte comigo”). Ao encerrar-se o sermão de despedida (v. 31), Judas na verdade estava a caminho (cf. 18:2-3); ele e os soldados romanos que o acompanham são o inimigo imediato a enfrentar.

40. 0 Amor de Jesus e o Ódio do Mundo (João 15:l-16:4a)

Assim como é possível imaginarmos um estágio da tradição, quando o único sermão de despedida era 13:31-35, é possível imaginarmos um estágio em que esse sermão estendia-se até 14:31, mas só até aí. Há uma transição suave entre o versículo que convoca os discípulos, “vamo-nos daqui” e a declaração de 18:1 de que Jesus “partiu com os discípulos, e atravessaram o vale do Cedrom”. No fim do capítulo 14 o leitor espera que o grupo saia e que o sermão se encerre. Em vez disso, o sermão prossegue, pois parece que Jesus faz nova introdução. Usando um modo que lembra seu ministério público, Jesus combina uma metáfora concreta, particularmente vívida, com a fórmula “Eu Sou” (cf. “Eu sou o pão da vida”, 6:35,48; “Eu sou a porta das ovelhas”, 10:7, 9; “Eu sou o bom pastor”, 10:11, 14). Como em cada exemplo anterior, o pronunciamento principal ocorre duas vezes: Eu sou a videira verda­ deira (v. 1) e Eu sou a videira (v. 5). Todavia, diferentemente dos exemplos anteriores, os pronunciamentos aqui possuem um segundo elemento identificador depois de cada emprego de “Eu sou” (meu Pai é o agricultor, v. 1; vós sois os ramos, v. 5). O resultado não são parábolas totais (tanto 10:1-5 quanto 10:12-13 assemelham-se a parábolas pelo fato de parecer histórias reais), mas algo semelhante às interpretações que os evangelhos sinóticos acrescentam às parábolas do semeador (Marcos 4:13-20 e textos paralelos) e o joio no campo (Mateus 13:36-43). Jesus se identifica em relação ao Pai nos vv. 1-4, e em relação aos discípulos, nos vv. 5-8. A vinha, ou a videira, eram metáforas antigas que descreviam o povo de Israel sob o cuidado de Deus (cf. Salmo 80:14-18; Isaías 5:1-7). Embora a identificação com Israel permaneça apenas implícita, parcial­ mente desenvolvida (cf. 1:43-51), a metáfora chama a atenção não apenas para Jesus mas para os discípulos e seu relacionamento com o Senhor. Até mesmo nos vv. 1-4, em que Jesus define sua identidade primeiro em relação ao Pai (vv. 1-2), os discípulos são de imediato colocados no quadro (vós, vv. 3-4), enquanto os vv. 5-8 centralizam-se quase inteira­

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(João 15:l-16:4a)

mente neles, nos ramos, e em como dão fruto. A maior parte das declarações de Jesus iniciadas com “Eu sou” neste Evangelho se fazem acompanhar de um convite para “vir” a Jesus, ou nele “crer” (ver, 6:35; 8:12; 10:9; 11:25-26; 14:6), mas eu sou a videira focaliza, em vez disso, os que já “vieram” e tem como corolário a ordem para “permaneceram” (ou “estar em”) Jesus, em quem creram. De fato, a metáfora da videira parece ter sido apresentada neste ponto do sermão de forma primordial para dramatizar o imperativo singular contido no verbo “permanecer” (gr.: meneiri) unido espiritualmente a Jesus, num relacionamento que sustenta a vida. A primeira seqüência tipo “Eu sou” (vv. 1-4) provê uma espécie de história metafórica das experiências dos discípulos. O cuidado dos ramos está nas mãos do agricultor, que corta (gr.: airei) os ramos infrutíferos, e poda (gr.: kathairei) os que são produtivos (v. 2). Este resumo da obra do Pai serve de interpretação do capítulo 13; Judas, o ramo infrutífero, foi “cortado” (cf. 13:21-30), enquanto os demais discípulos estão limpos (gr.: katharoi) como resultado do ensino de Jesus (v. 3; cf. 13:10) e prontos para produzir mais fruto ainda (v. 2). O final da primeira seqüência (v. 4) antecipa a segunda. A chave para a produção de “frutos” é permanecer unido a Jesus, a fonte da vida; contudo, essa permanência não é algo passivo. Consiste de algo mais que simplesmente permitir que Jesus governe o coração da pessoa por abdicação da própria vontade. Trata-se de algo que começa a tomar corpo na segunda seqüência de “Eu sou” (vv. 5-8), chegando a uma expressão concreta da convocação para o amor, e para a missão, que se segue de imediato (w . 9-17). Após a chamada Eu sou a videira, vós sois os ramos (v. 5a), a segunda seqüência cai num padrão de quiasmo — ab, b ’ a ’: a se alguém permanece em mim, e eu nele, esse dá muito fruto; b sem mim nada podeis fazer (v. 5). b ’ se alguém não permanecer em mim, será lançado fora, como o ramo, e secará; tais ram os... queimam (v. 6). a ’ se permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós, pedíreis o que quiserdes, e vos será feito. Nisto é glorificado meu Pai, em que deis muito fruto, e assim vos tornareis meus discípulos (w . 7-8). O ponto central do período como um todo é que quando os ramos permanecem ligados à videira, produzem fruto e, quando não permane­ cem, morrem. Fica bem claro que a e a ’ são promessas, enquanto b e b ’

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são advertências, ou ameaças. Em b a declaração negativa é breve; em b ’ desenvolve-se mais. De modo semelhante, em a a promessa positiva é feita com poucas palavras, mas em a ’ há mais elaboração verbal. Um enunciado a respeito de oração respondida foi entretecido com a ' como exemplo específico de produção de frutos (v. 7; cf. 14:13-14), e por fim o pensamento de Jesus volta ao Pai, que é glorificado, sendo esta a razão última para a produção de muito fruto: que nos tomemos discípulos (v. 8). Que significam estas palavras e imagens de modo concreto, na expe­ riência humana? O discipulado cristão, noção bem clara em si mesma, parece confusa no presente contexto porque Jesus, em vez de pressupor que seus discípulos são discípulos, fala da possibilidade de virem a tornar-se discípulos (e assim vos tornareis literalmente é: “para que possais tomar-vos”, v. 8). É útil lembrar-nos de um sinal especificado por Jesus bem antes, quando falava a um grupo de “crentes” que se revelaram não serem crentes de modo algum: “Se permanecerdes no meu ensino, verdadeiramente sereis meus discípulos” (8:31). A pista deixada é que o discipulado envolve muito mais do que meramente crer (i.e., estabelecer um relacionamento com Jesus); o discipulado exige também permanecer (i.e., manter e nutrir esse relacionamento). Isto deve ser feito mediante o ouvir Jesus e o obedecer-lhe os ensinamentos (8:31), exata­ mente o que os crentes “falsos” de 8:30-59 não faziam. Na presente passagem, o discipulado é definido de modo semelhante em termos de permanecer em Jesus; no v. 7 o Senhor acrescenta, significativamente, a condição de as minhas palavras permanecerem em vós. Afinal, é a “palavra” de Cristo que os limpou (v. 3), de modo que pelo menos uma dimensão do ato de permanecer em Cristo (ou ficar unido a ele) é o lembrar-se de seu ensino, continuando a obedecer-lhe (cf. as numerosas imposições bíblicas a Israel, para que se lembre das palavras do Senhor e a elas obedeçam; ver, Deuteronômio 6:4-9). O padrão triangular familiar do capítulo 13 é reafirmado nos vv. 9-17. Permanecer em Jesus e refletir em suas palavras são atos definidos primeiramente, e com maior precisão, como permanecer em seu amor, mandamento baseado no amor do Pai a Jesus, bem como no amor de Jesus pelos discípulos (v. 9). A permanência no amor de Jesus toma-se equivalente a obedecer-lhe as ordens, o que se baseia no precedente de Jesus permanecendo no amor de seu Pai ao obedecer-lhe as ordens (v. 10; cf. referências à obediência de Jesus em 10:18; 12:49-50; e 14:31).

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(João 15:l-16:4á)

Esse precedente comprova que a obediência de que Jesus fala não é a de um escravo (cf. v. 15), visto que sua motivação é o amor, e seu propósito a alegria (v. 11). Os mandamentos de Jesus são focalizados naquele grande e único mandamento: Amai-vos uns aos outros como eu vos amei (v. 12; cf. v. 17). Aqui, o padrão triangular toma-se explícito; durante algum tempo, Jesus e seus discípulos estão de volta, no mundo do capítulo 13, de modo especial 13:12-17. “Permanecer” finalmente é definido de modo concreto como “fazer” algo (v. 14; cf. 13:15, 17); de modo específico, amar os amigos (i.e., os irmãos e irmãs da comunidade de discípulos) e dar a vida por eles (v. 13). Este foi o exemplo que Jesus deixou, sob a forma de um símbolo, no lava-pés e, de modo literal, em sua morte na cruz. Permanecer nele é seguir-lhe o exemplo de serviço, ao amar o próximo, ainda que nos custe a própria vida (cf. 1 João 3:16-18). Os vv. 9-17 interpretam de modo simultâneo a figura de linguagem da videira dos vv. 1-8 e reforçam a interpretação já dada do lava-pés, dois capítulos antes. Aqui, ironicamente, bem no ponto do Evangelho de João em que o espírito de serviço (de servo) recebe sua mais profunda expressão, esse conceito toma-se ultrapassado. Jesus havia-se referido a seus discípulos como seus servos (12:26; 13:16) e, a despeito do que ele diz no v. 15, voltará a chamá-los assim de novo quase de imediato (v. 20, citando 13:16 ao pé da letra). Entretanto, o termo “servo” (gr.: doulos, às vezes traduzido por “escravo” em algumas versões) tem suas limitações. “O escravo (ou servo) não permanece sempre em casa”, disse Jesus certa vez, “mas o Filho aí permanece para sempre” (8:35). Conquanto o escravo possa ser amado pelo seu senhor, Jesus escolhe outra palavra, amigos (gr.: philos, vv. 13-15), a fim de chamar a atenção de modo especial ao amor pelos discípulos (v. 12) e manter esse amor para sempre diante de seus olhos (cf. 13:1; também 13:23, o discípulo “a quem Jesus amava”). Entretanto, essa distinção é mais profunda. O amor do senhor por seus escravos não requer que ele lhes fale de seus negócios (exceto o que devem ficar sabendo a fim de executar seu trabalho); no entanto, conhecimentos e perspectivas compartilhados são uma parte importante da verdadeira amizade (v. 15). Amizade, aqui, define-se em termos de revelação e imitação. Quase no início de seu ministério, Jesus havia dito: “Tudo o que o Pai faz, o Filho o faz igualmente. Porque o Pai ama o Filho [gr.: philei] e lhe mostra tudo o

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que faz” (5:19b-20). Agora que Jesus revelou a seus discípulos tudo quanto ouviu de seu Pai (v. 15b), eles por sua vez sabem tudo: tu d o ... vos tenho dado a conhecer (v. 15a), e devem fazer o que o Senhor ordena, se fizerdes o que eu vos m ando (v. 14). Isto significa fazer o que Jesus vinha fazendo, visto que os mandamentos de Jesus baseiam-se em seu próprio exemplo (amai-vos uns aos outros como eu vos amei, v. 12; cf. 13:15). Neste ponto, as palavras de Jesus reforçam o que ele já havia dito em 13:17: “Agora que sabeis estas coisas, bem-aventurados sois se as fizerdes”. A amizade realiza-se no serviço amoroso. Amizade e servitude não são atiradas uma contra a outra, como ideais contraditó­ rios, porque o contraste é usado apenas para salientar a importância da revelação. A promessa não cumprida de 8:32 finalmente se concretiza — não, porém, para os que a ouviram pela primeira vez — “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. No capítulo 15, quanto no capítulo 13, o amor mútuo entre os discí­ pulos de Jesus não se limita à comunidade dos discípulos mas inevita­ velmente resulta em missão ao mundo (cf. 13:18-20). O vislumbre positivo, muito breve, dessa missão ao mundo em 15:16-17 funciona como transição para o panorama mais profundo, em grande parte nega­ tivo, que representa as dificuldades e perigos dessa missão em 15:1816:4a. Os w . 16-17 estão ligados ao que se segue pela noção de que os discípulos são escolhidos para essa tarefa (w . 16,19; cf. 13:18), mas, de modo mais íntimo ainda ao que a precede, pela última referência à produção de frutos (para que vades e deis fruto, v. 16) e a última repetição do mandamento: amai-vos uns aos outros (v. 17). Se perma­ necer em Jesus se define de modo concreto como amar uns aos outros, a conseqüente produtividade frutífera deve ser definida como reproduzirse, multiplicar o relacionamento espiritual com Jesus nas vidas de outras pessoas — isto é, a evangelização, como os cristãos de espírito mais eclesiático depois haveriam de chamar a missão evangelística (cf. 12:24: um único grão de trigo “morre” a fim de produzir “muito fruto”). A evangelização do mundo neste Evangelho não resulta do amor, nem da compaixão consciente dos discípulos pelo mundo, nem pelas massas de pessoas que nele estão, mas pelo amor “doméstico”, familiar, que nutrem uns pelos outros, “nisto conhecerão todos que sois meus discípulos”, diz ainda o Senhor, “se vos amardes uns aos outros” (13:35). A seção toda, do v. 9 ao v. 17, se entende melhor não só como interpretação da metáfora

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da videira, em seu contexto imediato, mas como exposição crucial, retrospectiva, do lava-pés em que Jesus demonstrou seu amor pelos discípulos, dois capítulos antes. A esperança de que “conhecerão todos que sois meus discípulos” pelo amor mútuo que demonstrarão não significa que todos crerão. No pri­ meiro sermão, “mundo” foi definido como aqueles que não amam a Jesus (14:22-24). Aqui, a acusação lançada contra o mundo é mais forte ainda. Se os discípulos hão de ser reconhecidos pelo amor, o m undo é definido pelo seu ódio — contra Jesus, em primeiro lugar e, em seguida, contra aqueles que lhe pertencem. A raiz desse ódio é a alienação. Jesus veio “de cima” (3:31), e os que são “deste mundo” não podem sequer começar a entender o Senhor (8:23). Visto que os discípulos “não desceram do céu” como o fez Jesus (3:13; cf. 6:32-42), poderia parecer que eles, diferentemente de Jesus, em algum sentido “pertencem” ao mundo. Contudo, isso não é verdade; o fato de Jesus tê-los escolhido para serem seus mensageiros os alienou do mundo, como se houvessem com toda certeza vindo do céu (v. 19; cf. 17:14). Capitalizando alguns pronunciamentos semelhantes a dois que havia utilizado em conexão com o lava-pés (i.e., 13:16 e 20), bem como pronunciamentos semelhantes aos que se encontram nos sinóticos (ver, Mateus 10:24-25; Lucas 10:16), Jesus prediz que seus discípulos enfren­ tarão perseguições (vv. 18-21). É difícil dizer se a auto-citação de Jesus, no v. 20, pára em não é o servo m aior do que o seu senhor (estando, portanto, baseada inteira­ mente em 13:16a) ou se ela inclui o resto do versículo 20 também. O ponto central do Senhor é que se ele foi perseguido e odiado pelos seus contemporâneos, seus seguidores não deveriam surpreender-se quando o mesmo lhes acontecesse. O v. 20 talvez seja citação de um provérbio não encontrado textualmente em nenhum dos quatro evangelhos, porém, que se apresenta de várias formas em João 13:16 e em Mateus 10:24-25 (as frases marcadas por “se”, com que o v. 20 termina, encontram seus paralelismos em Mateus 10:24b). A questão levantada por Jesus não é, portanto, a mesma de 13:20, Mateus 10:40 ou Lucas 10:16. A missão do Senhor é considerada aqui como o precedente histórico para a missão de seus discípulos, e não como algo idêntico a ela, ou nela incorporada. Embora a missão dos discípulos seja vista como a continuação da missão de Jesus, o Senhor não desfaz a distinção existente entre elas, e tampouco

(João 15:l-16:4a)

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sobrepõe uma à outra. Em vez disso, Jesus focaliza a atenção dos discípulos primeiro em sua própria missão, e suas conseqüências (w . 22-25), e em seguida, de modo mais específico do que antes, focaliza-a no que está à frente deles (15:26-16:4b). O resumo do ministério público de Jesus (vv. 22-25) relembra a acusação de Jesus contra os fariseus em 9:39-41. Essa acusação não foi direcionada contra um grupo particular de questionadores, mas contra o mundo mesmo: é a acusação universal, de que 9:39-41 é apenas um exemplo particular. No Evangelho todo de João, só 1:10-11 e 3:19 são passagens com intenções comparáveis. O solene veredicto se repete formalmente em duas estrofes de estruturas paralelas: a se eu não tivesse vindo, nem a ’se eu não tivesse feito entre lhes tivesse falado eles o que nenhum outro fez b não teriam pecado b ’ não teriam pecado, c agora, porém não têm c ’ mas agora viram [estes desculpa do seu pecado. milagres] e odiaram a mim e a meu Pai (v. 24). Aquele que me odeia, odeia também a meu Pai (vv. 22-23). Em cada estrofe, o pecado do mundo é entendido concretamente em relação à vinda de Jesus ao mundo. Se Jesus não houvesse vindo, não haveria pecado (cf. 9:41), visto que pecado é definido de modo singular como ódio a Jesus e, conseqüentemente, ódio ao Pai que o enviou. Apelando mais uma vez à experiência dos salmistas de Israel, Jesus acrescenta uma citação escriturística de apoio: “Odiaram-me sem moti­ vo” (Salmo 35:19; 69:5; cf. Ps. Sol. 7.1). Se o maior dos mandamentos é amar, o maior dos pecados é odiar. Agora que se estabeleceu o precedente do ódio, os discípulos não devem nutrir ilusões quanto ao que os aguarda no desempenho de sua missão. Enquanto 13:18-20 trata da experiência da traição da parte de membros da própria comunidade, 15:26-16:4a refere-se a uma esfera muito mais ampla de perseguições. Os discípulos de Jesus serão expulsos das sinagogas, da mesma forma que o ex-cego de nascença o foi (9:34), e até mesmo mortos por zelotes religiosos para quem o assassinato é um dever sagrado (16:2; cf. o exemplo de Saulo de Tarso, em Atos 9:1-5). A semelhança de Jesus, serão maltratados pelas pessoas que não conhe­ ceram o Pai nem a mim (16:3).

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A pressuposição sem palavras que respalda todas estas profecias é a partida de Jesus, e se tomará explícita em 16:5 (cf. 13:36-14:31). Embora a vinda de Jesus tenha sido decisiva no processo de trazer à luz o pecado do mundo, há outra “vinda” que influi na situação (chega a determiná-la) dos discípulos no mundo, após ter ele partido: a vinda do Consolador (v. 26; cf. 14:16-17, 26). A ausência de Jesus ficou claramente indicada pela promessa de que ele enviaria o Espírito da verdade, que procede do Pai (v. 26). Mais ainda do que no primeiro sermão, a presença do Espírito entre os discípulos é prometida de modo especial em situações de perseguição, quando haveriam de sofrer a ausência de Jesus com maior profundidade. Até este ponto, a função do Espírito é a mesma descrita nos evangelhos sinóticos: capacitar os discípulos a permanece­ rem firmes sob interrogatórios hostis, e a testemunharem de Jesus com fidelidade, diante de seus perseguidores (vv. 26-27; cf. Marcos 13:11; Mateus 10:19; Lucas 12:11-12). Conquanto seja esta a principal ênfase da promessa do Espírito, em seu contexto literário e histórico, é provável que os primeiros leitores do Evangelho (à semelhança de muitos outros, hoje) a considerassem como doação de autoridade, num sentido mais genérico, aos que haviam estado com Jesus desde o princípio (v. 27; cf. 1 João 1:1-3). Os que haviam testemunhado as palavras e obras de Jesus na terra estavam singularmen­ te qualificados para serem veículos do testemunho celestial do Espírito. Todavia, se Jesus, ou o autor do Evangelho, tem em mente aqui a justificação da autoridade apostólica, ele a mantém subordinada ao propósito mais imediato de encorajar os crentes em face à perseguição. O interesse primordial de Jesus, diz ele aos discípulos, bem como o objetivo maior do ministério do Espírito, é que não vos escandalizeis (ou “não desistais de vossa fé”) diante da perspectiva de expulsão da sinagoga e até de morte (16:1-2). A expressão não vos escandalizeis (tradução literal do grego) fora utilizada anteriormente quando alguns discípulos recuaram horrorizados diante da perspectiva de partilhar a violenta morte de Jesus (6:60-61). A possibilidade de martírio prosseguiu durante grande parte do Evangelho (cf. 12:24-26; 13:36-38), e agora Jesus se refere de modo explícito ao perigo de serem mortos por causa dele (v. 2). Na verdade, o Senhor viera acusando seus inimigos o tempo todo, com toda franqueza, de tentarem matá-lo (7:19; 8:37,40). O maior impulso da visão profética de Jesus é que todo o ódio dirigido contra ele,

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desde o começo de seu ministério, expressando-se em perseguição (5:16) com o intuito de matá-lo (5:18), será redirigido contra seus discípulos — após sua partida. A esperança do Senhor quanto a seus discípulos é que vos lembreis de que já vos tinha prevenido (v. 4a); que estejam fortalecidos, por causa de duas coisas: primeira, por saber a razão por que as autoridades religiosas os perseguem (porque não conheceram o Pai nem a mim, v. 3); e segunda, por saber que Jesus não foi apanhado de surpresa, mas previu o que lhes estava reservado, com tanta clareza como viu sua própria vocação e destino (cf. 13:19; 14:29).

Notas Adicionais # 40 15:6 / lançado fora, como o ramo: o que se declara no v. 2 como metáfora (“Todo ramo em mim... ele o corta”) aparece aqui sob a forma de símile. A descrição no v. 6b, dos galhos secos que são juntados e queimados não constitui uma declaração teológica, mas fato corriqueiro tirado da observação da vida diária. Todavia, será que a figura de linguagem implica que os que pertencem a Jesus podem perder a salvação que adquiriram, em virtude do relacionamento que mantêm com o Senhor? A resposta depende da apreciação que a pessoa faz das espirituais de condições Judas, o traidor. Se Judas foi, de princípio, um verdadeiro discípulo de Jesus, a pessoa pode chegar à conclusão de que um crente genuíno pode, de fato, vir a ser lançado fora, como o ramo, e secará. Entretanto, se Judas na verdade, jamais foi um filho de Deus, seu caso não é, então, o de um crente que perdeu a salvação. Termos como “um diabo” (atribuído a Judas bem cedo, em 6:70) e “o filho da perdição” (17:12) indicam que esta segunda alternativa é a correta. Judas era um ramo improdutivo, sem frutos, porque não tinha conexão vital com Jesus, não recebia vida do Senhor, em primeiro lugar. A exclusão de Judas apenas tomou visível (para o discípulo amado, pelo menos) o que já era fato consumado em seu coração. É lícito tirar uma conclusão tentativa de que o mesmo fato é verdadeiro a respeito de quaisquer outros “ramos infrutíferos” que o autor do Evangelho possa ter em mente quanto às suas congregações. 15:16 / o vosso fruto permaneça: é tradução literal do grego menei, palavra empregada por todo o capítulo para “permanecer em Jesus”. A esperança aqui expressa é que os convertidos dos discípulos fiquem firmemente estabelecidos na nova fé e desenvolvam entre eles mesmos o mesmo amor mútuo que Jesus deseja para a primeira geração de crentes (cf. 17:20). tudo o que em meu nome pedirdes ao Pai ele vos conceda. Esta expressão do objetivo de Jesus provavelmente deve ser tomada como equivalente do objetivo que a precede de imediato, que os discípulos “vão e dêem fruto” (cf. w . 7-8). A oração faz parte da missão do discípulo; ele cumprirá sua missão dessa forma exata: ao pedir ao Pai uma “colheita” riquíssima de novos crentes (cf. Mateus 9:37-38; Lucas 10:2; também talvez Salmo 2:8). O exemplo máximo

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(João I5:l-16:4a)

de oração como chave para a missão é a própria oração de Jesus em 17:9-23. 15:20 / Se guardaram a minha palavra: O contexto (v. 21 em particular) deixa bem claro que Jesus está sendo irônico, aqui: Se guardaram a minha palavra (coisa que não fizeram), também guardarão a vossa. Embora alguns reagirão de modo positivo à missão dos discípulos (cf. 17:20), Jesus não está levando esse fato em consideração, aqui. 15:21 / por causa do meu nome: i.e., “por minha causa”, “em razão de minha pessoa”. 15:25 / na sua lei: a terminologia empregada indica que a acusação de Jesus dirige-se contra as mesmas autoridades religiosas judaicas que o vêm perseguin­ do e procurando matá-lo. Veja nota sobre 8:17. 15:26 / vos enviarei: no segundo sermão (aqui e em 16:7), Jesus é o que envia o Espírito da parte do Pai. Contraste a terminologia do primeiro sermão, em que é o próprio Pai quem envia o Espírito, embora o faça em resposta ao pedido de Jesus (14:16,26). 16:2 / Expulsar-vos-ão das sinagogas: Cf. 9:22; 12:42, onde havia a possibilidade de o próprio Jesus, em seu ministério terreno, ser expulso da sinagoga. Aqui, essa experiência é inserida num contexto profético que aponta para a experiência dos crentes, nas décadas posteriores à ressurreição de Jesus. Ha evidências judaicas de que houve expulsões das sinagogas, realmente, pelo menos na última década do primeiro século. Veja nota sobre 9:22. oferecendo culto a Deus: (trad. lit.: “adoração”). Assim como boas obras tais como oração, doação de esmolas, e jejum eram consideradas pelos judeus, após a destruição do templo, como equivalentes ao sacrifício, a “boa obra” de livrar o mundo de hereges seria considerada ato de adoração e culto. 16:4a / quando chegar a hora: lit.: “quando chegar a hora deles”. Essa expressão pode significar: “quando chegar a hora de essas coisas (que Jesus acabara de mencionar) se cumprirem” ou “quando chegar a hora de os perse­ guidores” fazerem o que querem fazer. Esta segunda alternativa parece a mais provável (veja GNB e cf. Lucas 22:53b: “Esta, porém, é a vossa hora e o poder das trevas”).

41. Partida Próxima II (João 16:4b-33)

O segundo sermão de despedida desenvolve-se em paralelismo muito íntimo com o primeiro sermão nas partes em que é, apropriadamente, uma “despedida” (i.e., quando trata de modo direto da questão da partida iminente de Jesus; cf. 13:33). Inevitavelmente, é aqui também que as diferenças entre os dois sermões tomam-se mais notáveis. Enquanto o primeiro sermão estrutura-se em grande parte ao redor de algumas perguntas levantadas pelos discípulos, aqui o método pergunta-resposta parece ter sido abandonado de propósito. O primeiro sermão iniciou-se com a pergunta de Pedro: “Senhor, para onde vais?” em 13:36, mas aqui, Jesus faz a declaração específica: nenhum de vós me pergunta: P ara onde vais? (v. 5b). Esta referência não é feita a meras perguntas, mas à pergunta específica que provocou todo o sermão compreendido por 13:36-14:31. É como se Jesus demonstrasse conhecimento de 13:36 mas fizesse um esforço consciente para fazer as coisas de modo diferente. Essa evolução de “perguntas” para “ausência de perguntas” poderia ser apropriada se estabelecesse o ponto central de que agora as perguntas estavam respondidas, e não seria mais necessário nenhum interrogatório adicional. Contudo, a questão não é que os discípulos deixam de ter necessidade de perguntar (por já saberem tudo), mas o caso é que estão todos vencidos por tristeza grande demais, o que os impede de formular a pergunta mais importante que trazem na mente. Eles não estão mais cheios de conhecimentos aqui, do que estavam no capítulo 14. Na verdade, talvez estejam mais confusos e perturbados ainda. O isto que lhes causa tanta tristeza (v. 6) entende-se melhor bem não como o anúncio de que Jesus irá embora (coisa que o Senhor fez de passagem, no v. 5a), mas como o sermão todo, até este ponto, de modo especial 15:18-16:3. O anúncio da partida de Jesus também os perturba muito, conquanto de modo pimordial à luz do que lhes foi dito antes; significa que terão que enfrentar sozinhos o ódio do mundo. O abandono do método pergunta-resposta, no v. 5b, produz o efeito imediato de acentuar a tremenda tristeza que tomou conta dos discípulos. Todavia, mais tarde, quando a ênfase em “nenhuma pergunta” reaparece de novo sob circunstância mais feliz (vv. 23, 30), isso indica que outro

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(João 16:4b-33)

tipo de motivação poderá estar operando também. A mudança de método serve para acentuar o ponto teológico que a iniciativa na revelação não está com os crentes, mas com Jesus. A técnica literária de usar perguntas a fim de conseguir uma revelação divina era bem familiar na literatura apocalíptica cristã e judaica, e nos escritos gnósticos. O Evangelho de João emprega perguntas (ou declarações) oriundas da falta de compreen­ são como oportunidades para a automanifestação de Jesus (cf., e.g., 3:4; 4:11,15,33; 6:34; 7:35-36; 8:22; 11:12; 13:9). Tal é também a caracte­ rística das perguntas do primeiro sermão de despedida; e até mesmo na presente situação os discípulos estão de igual modo atarantados, pergun­ tando-se mutuamente o que Jesus quer dizer com um pouco (vv. 17-18). Aqui, Jesus conhece a pergunta deles antes que a formulem, e toma a iniciativa de dar-lhes a resposta (vv. 20-22). A atitude de tomar as perguntas como ensejo para revelações, neste capítulo, seria articulada meio século mais tarde, em Pastor de Hermas, uma narrativa cristã edificante, compreendendo uma série de visões originárias da igreja de Roma. A verdadeira profecia (i.e., um “espírito dado da parte de Deus”) distingue-se da falsa profecia pelo fato de “não haver perguntas”, nem consultas, à semelhança de oráculos. O espírito que recebe consultas fala por iniciativa humana sendo, portanto, terreal e destituída de poder (Hermas, Mandates 11.5-6). Talvez seja por essa razão, ou razão seme­ lhante, que Jesus toma a iniciativa, em todo o capítulo, de manifestar-se — não apenas no início, quando os discípulos estão perturbados demais para expor suas ansiedades mediante palavras, mas no fim também (v. 30), ao reconhecerem explicitamente que Jesus sabe todas as coisas, não tendo necessidade de ser interrogado, pois deixou tudo bem claro. Não se deve exagerar as diferenças entre o primeiro sermão e o segundo. É óbvio que os discípulos ainda têm perguntas (essencialmente as mesmas perguntas de antes), e Jesus lhes dá as respostas. Ainda no primeiro sermão, a iniciativa pertence a Jesus, em certo sentido, visto que cada uma das quatro originou-se de uma declaração prévia de Jesus. O que ocorre no segundo sermão é apenas isto: a forma de monólogo, que no primeiro sermão de despedida tomou-se dominante tão somente no resumo (14:25-31), toma-se o veículo do segundo sermão todo. Junto com a formulação de 14:25-31, a preocupação acerca de uma crise iminente reaparece a partir de 15:18 e toma-se cada vez mais explícita. A resposta de Jesus à pergunta sobre sua partida não difere, em seu

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esboço geral, daquele que vemos no capítulo 14. Inclui promessas sobre o Consolador (w . 7-15), sobre renovada comunhão entre os discípulos e Jesus (w . 16-22), e sobre orações respondidas (vv. 23-24, 26). A diferença mais evidente é que o ministério do Consolador relaciona-se com o mundo (vv. 8-11) e também com os crentes (vv. 12-15). No capítulo 14, o Consolador falaria apenas aos crentes, visto que o mundo não podia recebê-lo nem reconhecê-lo (14:17). Entretanto, em 15:26-27, o Consolador dá testemunho acerca de Jesus, sendo os discípulos considerados não meros recebedores desse testemunho, mas instrumen­ tos ou colaboradores do Espírito na apresentação do testemunho. O mesmo é verdadeiro quanto a 16:8-11; embora o Consolador seja enviado aos discípulos (o C onsolador... virá p ara v ó s... eu o envia­ rei, v. 7) a missão dele é convencer o m undo do pecado, da justiça e do juízo(v. 8). Isto o Espírito fará, não mediante algum tipo de testemu­ nho interior, no coração das pessoas no mundo, mas pelo testemunho exterior das palavras pronunciadas pelos discípulos de Jesus no decurso de sua missão evangelizadora (cf. 15:27). Os vv. 8-11 resumem o conteúdo deste testemunho; são talvez o enunciado mais próximo que temos de um credo distintamente joanino, a mensagem cristã básica de início proclamada aos incrédulos. Esse sumário divide-se em três partes, cada uma das quais define um conceito-chave singular: pecado, justiça e julgamento. As definições são bem características do Evangelho de João mas, ao mesmo tempo, são coeren­ tes com o modo de entender esses mesmos três conceitos, nos exemplos mais primitivos da proclamação cristã, no livro de Atos. Pecado se define não como quebra de um jogo de leis, mas como a rejeição de Jesus (v. 9; cf. Atos 2:23; 3:13-15). Justiça se define não em termos de obediência a um jogo de leis, mas como afirmação divina, a ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos (cf. Atos 2:24, 36; 3:15); o modo joanino de explicá-lo é: vou para o Pai, e não me vereis mais (v. 10). Só julgamento se entende um tanto diferentemente, em relação aos sermões de Atos (onde o julgamento tem característica de coisa futura, Atos 10:42; 17:31). Identi­ fica-se o julgamento aqui, como em outras partes do Evangelho (5:29 é a única exceção), como sendo a vitória de Jesus sobre Satanás, de modo especial na paixão do Senhor (12:31; cf. 14:30; nos sinóticos, cf. Marcos 3:23-27). Visto que a paixão está prestes a ocorrer, Jesus pode afirmar que o príncipe deste mundo está julgado (v. 11; cf., “agora” em 12:31).

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Que mundo é esse que o Consolador e os discípulos enfrentarão? É o mundo dos judeus ou o dos gentios? As referências anteriores a expulsão de sinagogas e perseguições violentas, como deveres religiosos (v. 2) sugerem que a missão aos judeus é que está primordialmente objetivada, o que tem o apoio de três definições nos vv. 8-11. Os antagonistas judaicos da igreja saberiam a respeito do pecado, da justiça e do julga­ mento, mas as definições lhes seriam novidades: Pecado é rejeitar Jesus; justiça é o que Deus fez por Jesus; julgamento é o que Jesus já fez na morte. A mensagem dos vv. 8-11 representa uma redefinição cristã de tudo quanto tinha importância vital para o judeu. Entretanto, essa mesma mensagem confrontará o pagão gentio também (cf. 18:33-38). O con­ fronto de Paulo com o governador romano Félix ilustra muito bem estes versículos; quando Paulo discursou perante esse oficial pagão e sua esposa judia, a respeito de “justiça, o domínio próprio e o juízo vindouro” (Atos 24:25), o governador ficou amedrontado e pediu a Paulo que se retirasse. Em nenhuma outra passagem fica mais claro que no presente capítulo de João que a mensagem cristã está permanentemente em choque com o mundo, seja ele judeu, seja gentio. Quanto maior a prontidão para reconhecer a realidade do mundo e reconhecer de modo concreto o que significa para o crente viver nele, maior é a possibilidade de uma perspectiva negativa e até mesmo hostil da parte do mundo. No capítulo 14 discípulos e o mundo caminham, pela maior parte, por caminhos que nunca se cruzam; mas nos capítulos 15-17 esses caminhos se cruzam num tremendo conflito, ainda que Jesus só delineie os contornos de tal conflito. Ainda tenho muito que vos dizer, afirma o Senhor a seus discípulos, mas vós não o podeis suportar agora (v. 12). Jesus deixa ao Espírito a tarefa de explanar com maior clareza o que há de v ir (v. 13), a saber, a natureza da missão dos discípulos e a oposição que lhe moverá o mundo, bem como o resultado final de todos os seus esforços. Jesus aproveita a oportunidade e faz as mais arrebatadoras declarações, concernentes ao ministério do Espírito, que podemos encontrar em seus sermões. O Espírito da verdade conduzirá os discípulos em toda a verdade (v. 13). Essa frase, vista fora de seu contexto, poderia referir-se a toda a verdade filosófica e científica do universo; mas, Jesus focaliza, aqui, de modo específico, a verdade que, diz ele, lhe pertence: há de receber do que é meu, e vo-lo há de anunciar.

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Jesus pode falar de sua verdade como sendo toda a verdade porque tudo o que o Pai tem é meu (v. 15; cf. 17:10). Tudo quando o Espírito vier a revelar provém do Pai e, portanto, de Jesus. A ênfase não se coloca no que os seres humanos conseguem aprender de qualquer modo me­ diante investigação racional, ou pelo uso dos cinco sentidos mas, no ainda tenho muito (v. 12) que Jesus gostaria de dizer a seus discípulos e não consegue, a respeito da vida e missão deles no mundo. O ministério de ensino do Espírito se edifica em cima do ministério do próprio Cristo, e nele se desenvolve. Ao tomar explícito o que no magistério histórico de Jesus era apenas implícito, o Espírito preparará os discípulos para que enfrentem novos inimigos e agarrem novas oportunidades que visem a estender a missão de Jesus no mundo. A implicação é que o Espírito fez isso mesmo, neste Evangelho, nos últimos sermões. O longo monólogo é interrompido brevemente por uma pergunta (vv. 17-18), que não é dirigida a Jesus diretamente, mas é pergunta que os discípulos fizeram uns aos outros. A pergunta surgiu por causa de uma espécie de enigma (v. 16) criado em tomo da frase um pouco, que traz à memória uma frase relacionada à partida de Jesus, em 13:33, e que fez brotar o primeiro sermão de despedida (cf. 14:19). Aqui a frase um pouco (gr.: mikroti) ocorre duas vezes, deixando os discípulos confusos. Jesus, em sua explicação, sai de um enigma (vv. 16,19), penetra numa parábola (w . 20-21) e termina em fala normal, clara (vv. 22-28). Ao elucidar o problema levantado pela declaração de Jesus em 13:33, o capítulo 14 havia mencionado um único intervalo breve. “Ainda um pouco”, e o mundo não veria mais Jesus, mas os discípulos continuariam a vê-lo (14:19). No capítulo 16 a ausência do Senhor é reconhecida até mesmo entre os discípulos (um pouco, e não me vereis mais, v. 16a; cf. v. 10, não me vereis mais). Todavia, essa ausência é apenas temporária, visto que depois de um segundo intervalo breve os discípulos o verão de novo (um pouco ainda e me vereis, v. 16b). No primeiro discurso, a fé e a incredulidade entenderam a realidade de modos diferentes; aqui, vêem a realidade da mesma maneira, mas produzem julgamentos diferentes a respeito do que estão vendo. A realidade é a partida de Jesus, do mundo; diante desse fato, diz o Senhor aos discípulos: vós chorareis e vos lam entareis enquanto o mundo se alegra (v. 20). A seguir, Jesus conta uma parábola a respeito de uma mulher prestes a dar à luz uma criança; ele a conta a fim de dramatizar o ponto focal, que a tristeza dos discípulos

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se transformará em alegria (v. 21). Esta figura de linguagem implica uma inversão que parece dizer, de início, que no momento em que a tristeza dos discípulos se tomar em alegria, que a alegria do mundo tomar-se-á em tristeza. A metáfora das dores do parto (cf. 1 Tessalonicenses 5:3), bem como certos termos escatológicos como naquele dia (vv. 23,26), e a palavra empregada no sentido de aflição (ou “sofrimento”; gr.: thlipsis, v. 21), sugerem uma revelação visível tanto para o mundo quanto para a igreja, que decisivamente envergonha o mundo — uma espécie de apogeu do ministério do Espírito, conforme descrição dos w . 8-11. Todos estes fatores apóiam a idéia de que o primeiro um pouco do v. 16 refere-se à partida física de Jesus, deste mundo, pela morte, enquanto o segundo diz respeito ao seu retomo à terra, a segunda vinda, ouparousia, como muitos cristãos primitivos a chamavam. Pode-se demonstrar o processo neste gráfico: O primeiro um pouco é o breve período de tempo disponível, antes da morte de Jesus. O segundo um pouco é toda a era da igreja e de sua

i

Crucificação

um pouco (1)

Segunda Vinda

T __________ i_____ ___ um pouco (2)

alegria

missão. É o período da ausência de Jesus, tempo de tristeza e aflição. O tempo de alegria é aquele tempo futuro, após o retomo de Jesus, quando a fé se transforma em algo palpável. O padrão é bem claro; chamar toda a era da igreja de um pouco, tão somente um pouco, é perfeitamente coerente com a convicção cristã primitiva de que “é a última hora” (1 João 2:18; cf. Tiago 5:8; 1 Pedro 4:7; Apocalipse 1:1, 3; 22:6, 10). Entretanto, existe uma dificuldade neste padrão. Nos vv. 23-24, Jesus faz declarações específicas e dá instruções específicas a respeito da prática da oração naquele dia de alegria, depois de os discípulos terem visto Jesus de novo. Tais declarações, de modo especial o convite, pedi e recebereis, para que a vossa alegria seja completa (v. 24b), são apropriadas para o tempo da missão da igreja, mas inapropriadas para o tempo da consumação, após a segunda vinda de Jesus. São ordens que o autor do Evangelho e seus leitores entenderiam naturalmente como dirigidas a eles, em seu próprio tempo e situação (cf. 14:13-14; 15:7,16). A realização completa de sua alegria corresponde àquilo por que Jesus

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ora em 17:13. Essa alegria não pode ser diferente daquela mencionada nos w . 20-22. Os vv. 23-24 e, portanto, o v. 22 também, pertencem integralmente ao que o autor do Evangelho considera nossa presente experiência, e não a algum futuro estado transformado, de felicidade. Se os vv. 23-24 suportam o peso da interpretação precedente, emerge um novo e mais satisfatório paradigma para a compreensão dos w . 16-22: O primeiro um pouco é, então, o curto espaço de tempo disponível, antes de Jesus morrer. O segundo um pouco refere-se aos dois ou três Crucificação Ressurreição

1 um pouco (1)

um pouco (2)

alegria

dias entre a crucificação e a manhã da páscoa, quando Jesus está na sepultura. Os dois intervalos são mais ou menos iguais na extensão, e ambos literalmente curtos. O tempo de alegria é aquele tempo de renovada comunhão com Jesus após sua ressurreição (cf. 20:20, “os discípulos se alegraram ao verem o Senhor”), época que assinala um relacionamento contínuo com Jesus, no Espírito, até que a missão deles no mundo se completasse (cf. 14:18-20). O tempo da missão dos discí­ pulos é visto aqui não como época de tristeza e aflição pela separação de Jesus, mas época de alegria e de união mais íntima com ele do que fora possível durante a vida do Senhor na terra (cf. 14:20). Trata-se da época em que a promessa de Jesus quanto a orações respondidas entra em efeito, porque Jesus está com o Pai (v. 24, Até agora nada pedistes em meu nome. Pedi e recebereis, p ara que a vossa alegria seja completa; cf. 14:12-14). É certo que este segundo paradigma é mais “joanino” do que o primeiro. A despeito de tudo quanto tem sido dito concernente a traição e perseguição, o autor está consciente de estar vivendo numa era de alegria, não de tristeza. Ele escreve como alguém para quem Jesus está presente, e não ausente. “A luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram sobre ela” (1:5). O penúltimo pronunciamento de Jesus, no capítulo 16 é: No mundo tereis aflições. M as tende bom ânimo! Eu venci o m undo (v. 33). É bem provável que o enigma do v. 16 bem como a parábola do v. 21 foram pronunciamentos de Jesus de que os discípulos se lembraram após sua ressurreição, e essas palavras ficaram sujeitas a mais de uma interpretação, dependendo das circunstâncias dos intérpre­

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tes. Uma igreja sofredora ou oprimida poderia interpretá-las segundo o primeiro paradigma; uma igreja que se regozija na adoração, tendo forte consciência da presença de Cristo, em Espírito, estaria mais apta a interpretá-las de acordo com o segundo paradigma. João mostra-se sensível diante do primeiro paradigma, tão sensível de fato que se toma ambíguo, mas é o segundo paradigma que, finalmente, representa sua própria interpretação dos pronunciamentos de Jesus. Conquanto Jesus um dia há de voltar, de modo que o mundo todo o verá, quando promoverá a ressurreição de todos os mortos, onde estiverem (5:28-29; cf. 14:3), não é a “segunda vinda” que é o assunto mais importante no Evangelho de João. Toda a ênfase, em vez disso, está na reunião de Jesus com seus discípulos, em virtude de sua própria ressurreição dentre os mortos (cf. 20:19-23), e sua contínua presença com eles, durante a missão mediante o ministério do Consolador. Transcendendo a tristeza da perseguição e da traição, Jesus confere uma alegria que ninguém poderá tira r (v. 22). Uma característica notável deste período pós-ressurreição é a comu­ nicação livre e aberta entre Deus e seus filhos. Uma faceta dessa comu­ nicação é, evidentemente, o privilégio de pedir em nome de Jesus, com a promessa de que todas as orações serão respondidas (vv. 23b-24, 26). Todavia, entretecida com a promessa de orações respondidas está a promessa da revelação (vv. 23a [veja nota], 25,29-30). Se os discípulos forem capazes de falar livremente a Deus, em oração, Deus também será capaz de falar-lhes livremente, e estará disposto a isso. Embora o Espírito não seja mencionado aqui de modo explicito, Jesus antecipa aos discípu­ los que ele lhes falará com franqueza e liberdade: abertam ente vos falarei acerca do Pai (v. 25) através do Consolador, ou Espírito da verdade (cf. 15:26; 16:7). O Senhor antecipa que após sua partida — e por causa de sua partida — o véu será removido, e as coisas que hoje deixam os discípulos atarantados se tomarão claras. Ele tem muito que vos dizer (v. 12), e vai dizer-nos tudo, mediante o Espírito, no devido tempo. No v. 25, Jesus faz distinção entre falar por figuras, seu modo de revelação no presente, e falar abertam ente, quando chegar o tempo da revelação total. Falar por figuras só pode referir-se ao enigma do v. 16, à parábola da mulher em dores de parto, no v. 21 e, talvez, à metáfora da videira em 15:1-17. Seria exagero caracterizar o sermão todo como comunicação por figuras, no mesmo grau da declaração de Marcos 4:34

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de que Jesus não falaria ao povo “sem parábolas”. Tão logo o Senhor faz distinção entre falar por figuras e falar abertamente, começa ele a falar tão abertamente quanto possível! (vv. 27-28; esp. v. 28: vim do Pai e entrei no mundo; agora deixo o mundo e volto para o Pai). Os discípulos de imediato reconhecem esta revelação aberta, pelo que representa: Agora falas abertamente, e não usas nenhuma figura. Agora percebemos que sabes tudo, e não é preciso que alguém te interrogue. Por isso cremos que vieste de Deus (vv. 29-30). Essa exclamação decisiva da parte dos discípulos rompe o longo monólogo; pela primeira vez durante o segundo sermão, os discípulos se dirigem a Jesus diretamente. Já não têm medo de levantar perguntas; todavia, agora já não têm necessidade de fazer perguntas, e sabem-no, porque Jesus é o Revelador perfeito. A chave para esta mudança dramá­ tica é a expressão: vem a hora, e já chegou, que Jesus havia usado antes, em duas ocasiões, a fim de enfatizar certos pronunciamentos (4:23; 5:25), e que usará de novo quase imediatamente (v. 32). No presente caso, Jesus permite que seus discípulos terminem a expressão em seu lugar: Ele prometera no v. 25 que vem a hora em que ele falaria abertamente, e os discípulos respondem, no v. 29 que esse tempo é agora. A observação deles de que Jesus fala abertamente agora é bastante acurada, e o reconhecimento de que Jesus veio de Deus (v. 30) confirma o que Jesus dissera a pouco sobre a crença deles (v. 27). O texto não nos oferece indício algum de que a conclusão a que os discípulos acabam de chegar é errônea ou prematura, de algum modo. É bem provável que as palavras deles, tanto quanto as palavras precedentes de Jesus, servem de veículo para a perspectiva do próprio narrador quanto aos eventos que descreve. Essa perspectiva é que o futuro de que Jesus fala nos vv. 22-26 já irrompeu no presente. O futuro já chegou, é agora; a revelação livre e aberta, que caracteriza a era do Espírito, já está operando, não numa série de eventos ou experiências subseqüentes à história do Evangelho, mas no texto do próprio Evangelho: para Jesus, vem a hora, mas para o narrador e seus leitores, ela já chegou. A confissão dos discípulos de que Jesus veio de Deus (v. 30) raramen­ te é considerada como uma das grandes confissões do quarto Evangelho (ver, 1:29,34,49; 6:69; 11:27; 20:28), por várias razões: (1) é atribuída aos discípulos como um grupo, em vez de a um discípulo em particular (na verdade, nenhum discípulo é mencionado individualmente neste

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segundo sermão de despedida); (2) não emprega nenhum dos títulos cristológicos memoráveis, tais como “Filho de Deus”, “Messias”, ou “Senhor”; (3) fica abaixo do clímax, após o Senhor haver declarado, no v. 27: “vós me amastes e crestes que vim de Deus; e (4) parece que sua força foi atenuada pela resposta aparentemente cética de Jesus (v. 31), e a predição imediata sobre os discípulos: sereis dispersos cada um p ara sua casa. Vós me deixareis só (v. 32). Entretanto, apesar dos pesares, e destas considerações, prevalece o insistente fato de que a grande oração do capítulo 17 baseia-se com firmeza nesta confissão (ver, 17:8: “verda­ deiramente conheceram que saí de ti, e creram que me enviaste”). Acima e além de tudo, o explícito reconhecimento da parte dos discípulos, no v. 30, de que Jesus veio de Deus, é o que dá origem à longa oração e, de modo específico, o elogio aos discípulos em 17:6-8. Essa confissão dos discípulos provê um contexto positivo para a oração porque dá o sinal a Jesus de que sua obra está encerrada (17:4). O grupo de seguidores que o Pai lhe dera está pronto, agora, para dar prosseguimento à sua missão no mundo. Do ponto de vista negativo, o contexto da oração é a funesta predição de que os discípulos serão dispersos (v. 32), que desertarão Jesus no momento de sua maior necessidade (cf. Marcos 14:27; Mateus 26:31). O primeiro sermão deu-nos um relance momentâneo do “escândalo” individual de Pedro, ao negar o seu Senhor (13:38); o segundo sermão (como sempre) tratou dos discípulos como um grupo, e se centralizou na embaraçosa verdade de que todos fugiriam, tentando salvar a própria pele, quando Jesus fosse preso (cf. Marcos 14:50; Mateus 26:56). Se o v. 30 representa um momento de grande visão dos discípulos, o v. 32 revela o momento iminente do abjeto fracasso deles. O pensamento dos w . 29-33 fica oscilando para a frente e para traz, à semelhança de um pêndulo entre o polo negativo e o positivo. Os discípulos crêem (vv. 29-30), mas serão dispersos e Jesus ficará só (vv. 31-32); mas na verdade, ele não está só; o Pai está com ele, e no Senhor os discípulos terão paz (vv. 32-33); mas o mundo lhes trará sofrimentos (v. 33), mas Jesus venceu o mundo (v. 33). A oração de despedida sai dessa trama de paradoxos. Aqueles por quem Jesus ora são os que o Pai lhe deu, tirando-os do mundo (17:6,9), e são também os que serão dipersos pelo mundo (v. 32). A famosa oração por unidade (17:11,21,23) em primeiro lugar é oração pelos dispersos, “para reunir em um só corpo os filhos de

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Deus que andavam dispersos” (11:52). Se a oração do capítulo 17 celebra a confissão do v. 30, também objetiva vencer o fracasso e a frustração insinuados no v. 32. No sentido imediato, os dispersos são os 11 discí­ pulos que desertaram Jesus no momento em que o Senhor foi preso. Mas, na perspectiva mais ampla do narrador, são os seguidores de Jesus incluídos nas gerações futuras (cf. 17:20), que se vêem dispersos e vulneráveis num mundo hostil, separados entre si e, aparentemente, separados de seu Senhor. É por eles que Jesus ora: “Para que todos sejam um, como tu, ó Pai, o és em mim, e eu em ti” (17:21). O capítulo 16 fornece mais uma pista acerca da oração do capítulo 17: será a última oração de Jesus pelos seus discípulos, não só porque ele estará deixando o mundo, mas porque seu regresso ao Pai possibilita que o crente tenha um novo relacionamento com Deus, mediante a oração. Orar ao Pai “em nome de Jesus” (em meu nome, w . 23,24,26) significa ter acesso direto ao Pai. Jesus não é uma espécie de intermediário que apanha os pedidos dos crentes e os apresenta ao Pai (v. 26). Ele não considera sua função junto ao Pai como a de um intercessor celestial. Ainda que haja testemunho neotestamentário de que o Senhor ressurreto está “vivendo sempre para interceder” pelos crentes (Hebreus 7:25), o principal interesse de Jesus aqui não se prende ao seu futuro papel de Sumo Sacerdote mas, ao seu desejo de assegurar a seus perturbados discípulos que o próprio Pai vos am a (v. 27). À face da obra redentora de Jesus, os discípulos poderão aproximar-se de Deus diretamente, mediante a oração; o Pai amoroso lhes ouvirá e lhes responderá as orações. Agora, porém, pela última vez antes de partir, Jesus ora ao Pai, a favor dos discípulos. A tradição cristã dos dois últimos séculos chama João 17 de “oração sacerdotal de Jesus”. Esta designação é correta, se mantivermos em mente que Jesus não é visto, aqui, como o Sumo Sacerdote celestial já à direita de Deus, intercedendo pela sua igreja, mas antes, como o Cristo do Calvário, pendurado entre o céu e a terra. Essa oração faz parte daquela obra sacerdotal, única e completa, realizada por Jesus, pela qual o Senhor consagra-se à morte, e seus seguidores redimi­ dos, à missão que lhes foi entregue no mundo (cf. 17:17, 19).

Notas Adicionais # 41 16:4b / porque estava convosco: A linguagem de Jesus traz a implicação de que, em certo sentido, ele não mais está “com” seus discípulos, porque já está

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a caminho de volta ao Pai (cf. v. 5: agora vou). A impressão de distância é mais forte no capítulo 17, em que Jesus insistentemente fala dos discípulos no tempo passado (ver, 17:12, “Estando eu com eles no mundo, guardei-os”; cf. 17:11, “Já não permanecerei no mundo por muito tem po.. . e eu vou para junto de ti”). Em Lucas, é o Jesus ressurreto quem fala assim (Lucas 24:44). No Evangelho de João, no princípio (lit., “no começo”) quando Jesus estava convosco, isto é, com seus discípulos, provavelmente se refere ao tempo de seu ministério público (capítulos 2-12), antes de o Senhor começar a falar de modo explícito de sua

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16:8 / convencerá: melhor seria “condenar”, que combina muito bem com pecado (em grego e em português), porém, não muito bem com justiça e com juízo. Jesus é mostrado aqui expandindo a expressão familiar “acusar de pecado” (cf. 8:46) e desdobrando-a em três partes. \ 16:10 / não me vereis mais. Visto que “o mundo” é que está comprovadamente errado, o leitor esperaria um texto diferente: “ eles não me verão mais” (cf. 14:19!), mas em vez de “eles” o pronomcfscolhido é “vós” (não me vereis mais), antecipando o “vós” do v. 16_(não me vereis mais). Que o v. 10 ainda está em cogitação nos vv. 22-23 démonsfra-se pela referência enigmática dos discípulos, no v. 17, à frase dó Mestre: Vou para o Pai, que só ocorreu no v. 10 16:221outra vez vos veréi. A construção da sentença no v. 16 induz o leitor a esperar isto: “ vós me vereis outra vez”, mas a promessa de Jesus enfatiza mais uma vez sua própria iniciativa na automanifestação. 16:23 / nada me perguntareis: (é trad. literal). A palavra grega para “perguntar” (erotesete) pode significar “perguntar” e “pedir”. Por si mesma, a declaração refere-se maiinatüralmente a “perguntar”: Os discípulos não preci­ sarão fazer perguntas porque Jesus revela tudo livremente (cf. v. 30). Não implica esse nadáf que os discípulos estivessem naquele momento fazendo perguntas. Eles nada perguntavam (vv. 5 ,19). tudo o que pedirdes a meu Pai, em meu nome, ele vos dará. João empregou uma palavra diferente para “pedir” (gr.: aitesete ), com o sentido de “fazer um pedido”, ou “orar”. O emprego de “perguntar” e “pedir” em ECA revela a mudança: de “fazer perguntas” no v. 23a para “fazer pedidos” no v. 23b. Este

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_____, ___ r_____ __ _____ y_______ _ „ _

oração aberta é introduzido nos vv. 23a e 23b-24, respectivamente (separados pela fórmula solene: em verdade, em verdade vos digo), e desenvolvido mais amplamente nos vv. 25-30 (revelação, nos vv. 25, 29-30); oração, nos w . 26-27). 16:26/ pedireis em meu nome: aqui, distinguindo-se dos vv. 23 e 30, surge o verbo grego erotan, com o significado de fazer um pedido, ou orar, pois, é seguido da preposição p eri (“por” ou “concernente”); a mesma construção é empregada, em 17:9: “Eu rogo por eles. Não rogo pelo mundo”. 16:31 / Credes agora? Estas palavras tanto podem ser tomadas como uma alegre exclamação (como em NIV), ou como uma pergunta eivada de ceticismo:

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“será que agora vocês crêem?” (NIV, marg.). Visto que o contexto indica que a fé dos discípulos é genuína (conquanto receba uma qualificação negativa, pela predição do v. 32), a exclamação é a melhor tradução. 16:32 / não estou só. A predição de que os discípulos abandonarão Jesus, que ficaria só, em sua prisão, é corrigida de imediato à luz do princípio (estabelecido em 8:16 e 29) de que Jesus jamais está só, porque o Pai está sempre com ele.

42. Jesus Ora por Seus Discípulos (João 17:1-26)

Se os capítulos 15-17 forem vistos como ampliação em ordem inver­ tida dos três pronunciamentos encontrados em 13:31-35, o capítulo 17 seria a projeção da solene referência à glorificação de 13:31-32. De qualquer modo, o tema dos versículos 1-5 é a glorificação. No v. 1 Jesus ora: P a i... Glorifica a teu Filho, para que também o teu Filho te glorifique a ti. No v. 5, ele ora de novo: E agora, Pai, glorifica-me em tu a presença com a glória que tinha contigo antes que o m undo existisse. Um exame superficial deixaria a impressão de que essas duas petições emolduram a primeira grande divisão da oração. Por causa dessa presunção, muitos comentaristas dividem a oração em quatro partes: o pedido de Jesus quanto à sua própria glorificação (vv. 1-5); seu pedido pelos discípulos, reunidos ao seu redor a fim de ouvir-lhe as últimas palavras (vv. 6-19); seu pedido em prol das futuras gerações de discípulos (vv. 20-23); e seu pedido quanto a uma reunião final com os seus queridos discípulos (vv. 24-26). Todavia, há rompimentos significativos de pensamento após os ver­ sículos 3 e 8 que nos permitem questionar essa divisão. Entre os vv. 3 e 4, as solenes referências de Jesus a si próprio, na terceira pessoa — Teu Filho (duas vezes no v. 1), e Jesus Cristo, a quem enviaste (v. 3) — abruptamente cedem a vez para a primeira pessoa, mais direta: E u te glorifiquei na terra, concluindo a obra que me deste p ara fazer (v. 4). Há, além disso, uma mudança temporal: Os vv. 1-3 dirigem-se ao futuro, enquanto os vv. 4-8 orientam-se, na maior parte, ao passado. A petição inicial de Jesus: Glorifica a teu Filho (v. 1), aponta com máxima clareza para sua morte iminente (cf. 12:23,27-28; 13:1,31-32), enquanto a frase seguinte, para que também o teu Filho te glorifique a ti refere-se a um futuro ainda mais distante. A que se refere Jesus quando fala de o Filho glorificar o Pai? A explicação é dada no v. 2. A frase de propósito: para que também o teu Filho te glorifique a ti (v. lb), toma-se específica mediante uma segunda frase de propósito, estruturada de modo idêntico:

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para que dê a vida eterna a todos os que lhe deste (v. 2b). O Filho glorificará o Pai depois de sua morte na cruz, e esta glorifica­ ção é definida como a doação de vida eterna. Por sua vez, a vida eterna é definida como o conhecimento de Deus, definição entretecida com habilidade na própria petição. Vida eterna significa que conheçam a ti, o único Deus verdadeiro e a Jesus Cristo, a quem enviaste (v. 3). Então, o Filho glorificará o Pai, ao fazê-lo conhecido no mundo. O Filho será capaz de realizar essa tarefa porque o Pai lhe conferiu autoridade sobre toda a carne (v. 2a; cf. Mateus 28:18). Jesus tem em mente, nestes versículos iniciais, a missão mundial a ser executada pelos seus discípu­ los, após sua morte. Mediante o testemunho deles, o Filho glorificará o Pai ao conceder vida e conhecimento a todos que crerem (i.e., a todos os que lhe deste, v. 2). Os vv. 1-3 dão o tom da oração toda, cujo objetivo é universal. Esses versículos, e não 1-5, é que marcam a primeira divisão principal da oração. Os vv. 4-8 (exceto v. 5) de modo algum são petições. Em vez disso, constituem uma espécie de último relatório ao Pai sobre o que Jesus tem feito na terra, no decurso de seu ministério. Baseado em suas realizações, Jesus renova sua oração pela glorificação (v. 5; cf. v. 1); contudo, a ênfase da seção, como um todo, está no sumário em que se apóia a petição mais do que na própria petição. O v. 5, na verdade, está quase entre parênteses, posicionado entre duas descrições paralelas das realizações de Jesus até então: E u te glorifiquei na terra concluindo a obra que me deste para fazer (v. 4). Manifestei o teu nome aos homens que me deste do mundo (v. 6). Exatamente como nos vv. 1-3, a obra do Filho de “glorificar” o Pai se define pela manifestação do Pai, ou fazê-lo conhecido; neste caso, porém, a manifestação é para o grupo específico de discípulos reunidos a fim de ouvir as últimas instruções de Jesus. A frase aos homens que me deste focaliza o grupo limitado de apóstolos, em contraste com todos os que lhe deste (tirando-os de toda a carne) no v. 2. Frases tais como eles guardaram a tua palavra (v. 6), agora sabem (v. 7), eles as receberam , conheceram, creram (v. 8) são o testemunho de Jesus perante o Pai de que a manifestação ocorreu; a obra de Jesus realmente terminou. O Senhor baseia seu testemunho de modo explícito na confissão dos discípulos, em 16:30, ampliando a exclamação de Jesus em 16:31,

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“Credes agora!” Os discípulos são o troféu vivo da missão de Jesus na terra. Ao reiterar seu apelo, glorifica-me em tu a presença (v. 5), o Senhor os apresenta ao Pai, com o reconhecimento de que eram teus e os deste a mim (v. 6) — uma evidência tangível de que a obra de Cristo terminara. Com isso, a intercessão começa: Jesus ora nos vv. 9-19 pelos discípu­ los originais, enquanto nos vv. 20-23 ele volta a atenção para aqueles que pela sua palavra hão de crer em mim. Estas última seção é curta porque as petições dos vv. 9-19 presumivelmente aplicam-se ao grupo maior, também. Os vv. 20-23 apenas tomam explícita essa extensão e trazem sob o foco particular da igreja os temas da unidade e da missão. A transição dos discípulos para a igreja posterior se toma inevitável pelo fato de a oração estar contida num Evangelho. Seu tema primordial deve ser Jesus e seus discípulos, como surgiram no palco da história; entre­ tanto, ao mesmo tempo é preciso que haja pontes ligando esse passado da história ao tempo do próprio autor do Evangelho e suas igrejas. Em geral, tais pontes são simplesmente aceitas como infalíveis; espera-se que o leitor saiba que as instruções de Jesus a seus discípulos imediatos também se aplicam à igreja contemporânea. Todavia, de vez em quando tais pontes se tomam visíveis — por exemplo, em Marcos 12:41 (“O que vos digo, digo a todos: Vigiai!”) e Lucas 12:41 (“Perguntou-lhe Pedro: Senhor, dizes esta parábola a nós, ou a todos?”). Na presente passagem toma-se bem adequada uma ponte por causa da intenção universal dos w . 1-3; enunciando a nota do v. 20, Jesus regressa a temas já discutidos no início do capítulo. O objetivo dessa transição não é fazer distinção profunda entre os dois grupos, e tampouco asseverar coisas específicas a respeito de um grupo que não se apliquem ao outro. Ao contrário, o propósito dos vv. 20-23 é afirmar a continuidade dos discípulos, de geração a geração. Em geral, faz pouca diferença se alguma declaração em particular apareça antes ou depois do v. 20. Em havendo um desenvolvimento da oração, este se prende ao rela­ cionamento entre os discípulos de Jesus e o mundo. A mesma ambigüi­ dade que caracterizou o capítulo 16 prevalece aqui também. O mundo é o inimigo, a fonte da perseguição; entretanto, a oração nem sequer terminou e o mundo toma-se o objeto do propósito amoroso, expresso numa missão. No que concerne aos discípulos, são vistos nos vv. 9-13 como perseguidos, e necessitados da proteção do Pai; nos vv. 14-19 (que

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se iniciam com as palavras: Dei-lhes a tu a palavra) são vistos desem­ penhando sua missão, embora ainda perseguidos e ainda necessitados da proteção do Pai; nos vv. 20-23, aqueles que pela sua palavra hão de cre r em mim são vistos cumprindo sua missão, mas a perseguição já não faz parte de suas vidas. A unidade dos discípulos é vista no v. 11 como um corolário de estarem seguros pelo poder de Deus, enquanto nos vv. 21-23 é o meio pelo qual o mundo virá a saber o que Jesus deseja que o mundo saiba, e creia no Senhor. O papel dos discípulos no mundo de início é passivo, na longa oração, mas vai-se tomando mais e mais ativo, à medida que Jesus caminha para a conclusão. A oração que se iniciara com uma negativa: Não rogo pelo m undo (v. 9), encerra-se com uma intenção afirmativa: para que o m undo conheça [ou “creia”] que tu me enviaste (vv. 21,23). O prazer de Jesus nesses seguidores que Deus lhe deu é proveniente dos vv. 4-8. O Senhor reconhece perante o Pai que eles lhe pertencem (são teus, v. 9) e isso faz lembrar o v. 6, enquanto a afirmação, neles sou glorificado (v. 10) explica mais um pouco a expressão, eu te glorifiquei na te rra (v. 4) — reforçando, com isso, a explanação já dada nos vv. 4-8. De fato, a linha divisória entre o relatório ou apresentação (vv. 4-8) e a petição (vv.9-23) não é sólida, nem rápida. Entretecidas na petição há mais algumas afirmações relacionadas com o ministério de Jesus: Estando eu com eles no mundo, guardei-os... Nenhum deles se perdeu, senão o Filho da perdição (v. 12; cf. 6:39; 10:28).. . dei-lhes a tua palavra e o m undo os odiou (v. 14). Em todos os sentidos, as atividades ministeriais de Jesus, no passado, cercam sua oração orientada para o futuro: ele guardou seus discípulos (v. 12), e agora pede ao Pai que os guarde também, após sua partida (vv. 11, 15); ele lhes deu a palavra de Deus (v. 14), e agora pede ao Pai: Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade (v. 17). Em suma, Jesus os tirou do mundo (cf. 15:19). Já não pertencem mais ao mundo, como ele próprio não pertence (vv. 14, 16), mas reconhece, todavia, que eles continuarão presentes fisicamente no mundo, ainda quando ele não estiver mais aqui. Se estiverem no mundo sem pertencer ao mundo, ali estarão como “enviados” (v. 18). Estarão no mundo da mesma forma que Jesus esteve (cf. 1 João 4:17), enviados aos seus mas recebidos como estranhos (cf. 1:10-11). Não poderão fugir do mundo, como o Senhor não fugiu. Jesus não saiu do mundo enquanto sua obra não ficou completa e, quando saiu,

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sua partida não foi uma fuga mas uma vitória. Portanto, ele não pede ao Pai: que os tires do mundo, mas que os guarde do mal (v. 15; cf. v. 11, e também a última petição da oração dominical: “livra-nos do mal”, Mateus 6:13). A fim de viver no mundo e levar-lhe a palavra do Pai, os discípulos devem “santificar-se”, ou “consagrar-se” ( gr.: hagiazein, lit., “santifi­ car”, vv. 17, 19). Se forem “enviados” como Jesus foi enviado (v. 18), terão sido separados para essa missão, da mesma forma que Jesus o foi, no início (cf. 10:36, em que NIV traduz hagiazein por “separar”). Contudo, o envio e a santificação deles têm nova base. Jesus não diz ao Pai, como 10:36 poderia levar-nos a esperar: “Assim como tu me santificaste (quando tu me enviaste ao mundo), da mesma forma eu os santifico”, mas antes, Por eles me santifico a mim mesmo, p ara que eles também sejam santificados na verdade (v. 19). A palavra “santi­ ficar” assume novo sentido, diferente do que parece ter no v. 17, ou em 10:36. Como é que Jesus se santifica a si mesmol Simplesmente median­ te um forte voto de fidelidade, em seu coração, ao cumprimento de sua missão? Em certo sentido, sim, mas sua missão no mundo já está completa — exceto quanto à sua morte redentora. Portanto, eu me santifico a mim mesmo só pode significar consagração para a morte. Jesus se santifica, ou se consagra [se separa], como um sacerdote santificaria ou consagraria um sacrifício! Jesus é sacerdote e vítima sacrificial, ao mesmo tempo (cf. Hebreus 9:12). A tradicional designação do capítulo 17 como a “oração sacerdotal” de Jesus só se justifica na base dessa afirmação dele: “eu me santifico a mim mesmo [ou me consagro], no v. 19. A auto-santificação, ou auto-consagração de Jesus ao Pai beneficia os discípulos. Jesus morrerá por eles (gr.: hyperauton, v. 19), do mesmo modo que o bom pastor morre pelas suas ovelhas (10:11, 15), ou como Caifás profetizou a morte de Jesus ’’pelo povo, e que não pereça toda a nação" em 11:50, 52, ou como o Senhor falou de dar a “própria vida pelos seus amigos” em 15:13. Porém, quais são exatamente os benefícios da dedicação de Jesus à morte? Que é que sua morte trará aos discípulos? A resposta é dada numa série de quatro períodos de propósito (iniciados, em grego, pela conjun­ ção hina, referindo-se aos discípulos (vv. 19,21a, 22b, 23a); interpolados com duas outras frases de propósito (também iniciadas por hina, mas referindo-se ao mundo (vv. 21b, 23b). Os quatro períodos de propósito,

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ou optativos, que se referem aos discípulos, funcionam como ponte sobre a divisão da oração, no v. 20, e ligam a intenção de Jesus por seus discípulos imediatos à sua intenção pelas gerações subseqüentes: que eles também sejam santificados na verdade (v. 19) que todos sejam um como t u . .. o és em mim, e eu em ti.Que eles tam bém sejam um em nós (v. 21a) que sejam um, como nós somos um (v. 22b) que sejam perfeitos em unidade (v. 23a) Não basta dizer apenas que os discípulos estão “salvos” ou que receberam “vida eterna” mediante a morte de Jesus — embora tais fatos sejam verdadeiros. A salvação deles é descrita aqui de maneira especial. Os discípulos não apenas como uma comunidade de “salvos”, mas também uma comunidade “que salva”. A morte de Jesus tem implicações para eles em pelo menos três níveis: Primeiro nível, a intenção de que os discípulos sejam santificados na verdade (v. 19), reforça a oração de Jesus por sua consagração no v. 17, junto com a afirmação de que assim como tu me enviaste ao mundo, tam bém eu os enviei ao mundo (v. 18). Isto significa que a morte de Jesus é a chave para a missão de que o Senhor vem falando desde o início do v. 14 (com as palavras, “dei-lhes a tua palavra. . ”.). A idéia de que a morte de Cristo é a única coisa que possibilita a missão mundial dos discípulos já é do conhecimento do leitor do Evangelho desde 10:15-16 (“dou a minha vida pelas ovelhas. Ainda tenho outras ovelhas. .. A mim me convém agregá-las também”), 12:24 (“se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica só”), e 12:32 (“eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim”). O segundo nível: a descrição dos discípulos como santificados na verdade (v. 19b) também vai logo atrás do pronunciamento de Jesus, eu me santifico a mim mesmo (v. 19a). Se a autoconsagração de Jesus ao Pai implica sua morte, será que a consagração dos discípulos abre a porta da possibilidade de morrerem eles também? Se “comer a carne” e “beber o sangue” de Jesus implica segui-lo no caminho do discipulado e da missão, até à morte (cf. 6:53-58), e se o princípio de que o grão de trigo deve “morrer” a fim de reproduzir-se, deve ser aplicado também aos discípulos, como o foi a Jesus (cf. 12:25-26), parece que aqui também o martírio está no alvo da visão de Jesus. Se o mundo odeia os discípulos,

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como odiou a Jesus (v. 14; cf. 15:18-21; 16:1-4), não há garantia de que a vida deles terminará de modo diferente da do Senhor. A petição anterior para que fossem “guardados” (vv. 11,15) não deveria ser entendida como referindo-se a sobrevivência física (a despeito de 18:8-9!) mas, com toda a probabilidade, refere-se a permanecerem unidos espiritualmente a Jesus, e uns aos outros (cf. 15:1-8) enquanto concluem sua missão no mundo, não importando o custo. Terceiro nível: as petições por unidade (vv. 21a, 22b, 23a; cf. v. 1lb) devem ser entendidas neste contexto da missão e discipulado. A unidade espiritual de que fala Jesus não constitui uma abstração. Para os discípu­ los, como para todos os crentes subseqüentes, ser santificados na verdade, estar consagrados ao Pai, é o mesmo que tomar-se um com o Pai, e tomar-se um em nós (no Pai e no Filho) é estar santificados na verdade, em Deus, para a tarefa de levar a mensagem de Jesus ao mundo inteiro. Neste Evangelho, união e missão são inseparáveis. Não se busca unidade por si mesma, mas por amor à missão; a missão tem unidade por pressuposição e por objetivo. Anteriormente, Jesus havia declarado o desejo de reunir todas as suas ovelhas, de modo que houvesse “um rebanho e um pastor” (10:16), e no capítulo seguinte o narrador comenta que a morte de Jesus seria em prol dos “filhos de Deus que andavam dispersos” (11:52). Aqui, a unidade dos discípulos serve a um propósito ainda mais amplo, expresso nos dois períodos de propósito adicionais, referentes ao mundo: para que o mundo creia que tu me enviaste (v. 21b); para que o mundo conheça que tu me enviaste [i.e., “creia”] . . . como tam bém am aste a mim (v. 23b; cf. 13:35). Nenhum desses propósitos, quer para os discípulos, quer para o mundo, deve ser considerado como já atingido e executado, do ponto de vista do narrador do Evangelho. Conquanto a unidade dos crentes com o Pai, e no Pai, (mediante o Filho) se realiza em princípio na ressurreição de Jesus dentre os mortos (cf. 14:20), ela não se concretiza de todo sem que haja o término da missão dos discípulos. A unidade dos seguidores de Jesus desafia o mundo a crer em Deus, e a reconhecer seu amor demonstrado em Jesus; no entanto, a reação do mundo é permanente indecisão. O veredicto do narrador com respeito ao ministério terreno de Jesus em grande parte é negativo; só um pequeno remanescente creu (cf.

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1:10-12; 3:19-21; 12:37-43). Todavia, desta ou daquela maneira, Jesus concretizará suas intenções: o mundo há de conhecer a verdade e nela crer de modo redentivo, como os discípulos o fizeram (e nesse caso o mundo deixará de ser “o mundo”), ou, então, o mundo será forçado contra sua vontade a reconhecer que está errado, e que Jesus e seus discípulos são os verdadeiros mensageiros de Deus (cf. 16:8-11). Nesta segunda alternativa, o mundo não passa de um palco onde se fará a confirmação dos seguidores de Jesus como sendo os amados de Deus. Conquanto ambas as possibilidades fiquem em aberto, a ênfase em toda a oração do Senhor repousa mais nos crentes, e em sua vindicação, do que no esboço antecipado do destino do mundo. Vê-se isto com clareza na conclusão da oração (vv. 24-26). No. v. 24, a petição cede lugar a uma declaração direta de intenção: Q uero que onde eu estiver, estejam também comigo aqueles que me deste, p ara que vejam a minha glória, a glória que me deste (cf. 12:26; 14:3). Jesus deseja a seus discípulos uma visão de sua própria glória, glória que me d este... antes que o mundo existisse (cf. v. 5). A glória que Jesus e seus amados partilham tem raízes no amor do Pai por Jesus; existia antes da criação do mundo, e continuará a existir depois do mundo (v. 24). Essa glória será contemplada quando Jesus voltar, quando ele ressuscitará os seus para a nova vida, no último dia (5:25; 6:39-40). Os vv. 24 e 25-26 destacam-se entre si e do resto da oração pela repetição do vocativo Pai e Pai justo, nos vv. 24 e 25. Os vv. 25-26 concluem a oração não com um pedido, mas com um resumo conciso da oração toda, no contexto dos sermões de despedida. A despeito da intenção mais ampla p ara que o mundo conheça (v. 23), o fato da presente realidade é que o mundo não te conheceu (v. 25). Tendo ainda em mente a confissão de 16:30, Jesus refere-se de novo a seus discípulos que conheceram que tu me enviaste (w . 6-8). O mesmo equilíbrio entre o passado e o futuro que lhe deu forma à linguagem noutros pontos da oração (ver, vv. 4-5, Eu te glori­ fiquei na te r r a ... glorifica-me; vv. 11-12, guarda-os... guardei-os) está funcionando aqui também: Eu lhes dei a conhecer o teu nome, e continuarei a dar-lhes a conhecer o teu nome (v. 26). Conquanto o “Consolador”, ou “Espírito da verdade”, não seja mencionado de modo explícito na oração de Jesus, certamente é o Espírito que Jesus tem em mente. Jesus continuará a tomar conhecido o Pai, no mundo, mediante o Espírito e este, por sua vez, mediante os discípulos (cf. 15:26-27).

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As últimas três divisões da oração (depois dos vv. 23, 24 e 26) estão ligadas também, de modo apropriado, pelo tema do amor de Deus. O padrão triangular introduzido pelo sinal do lava-pés controla os sermões de despedida até o fim: que os amaste como também amaste a mim (v. 23) porque me am aste antes da criação do mundo (v. 24) p ara que o am or com que me am aste esteja neles, e eu neles esteja (v. 26). A oração de Jesus por aqueles seus discípulos (bem como por todos os crentes subseqüentes) reforça e demonstra seu amor por todos (cf. 13:1), que agora se mostra claramente articulado como amor singular de Deus por seu Filho, estendido a todo um povo, a uma nova comuni­ dade de fé. Tudo quanto resta é o derramamento desse amor na morte de Jesus, na cruz.

Notas Adicionais # 42 17:1 / Levantou os olhos ao céu: tradução literal. A mesma expressão ocorre no grego, em 4:35 (“erguei os vossos olhos”), 6:5 (“Jesus, erguendo os olhos”), e 11:41 (“Jesus, levantando os olhos para os céus”). Em cada ocorrência, a multidão está aproximando-se ou já está ao redor. Não existe multidão no capítulo 17; entretanto, o emprego dessa expressão logo no início do capítulo pode sugerir o objetivo universal da oração de Jesus. O paralelismo com 11:41-42 é especialmente notável: “Jesus, levantando os olhos para os céus, disse: Pai, graças te dou porque me ouviste... eu disse isso por causa da multidão que me rodeia, para que creiam que tu me enviaste (cf. 17:21,23). 17:10/ Tudo que tenho é teu, e tudo o que tens é meu. Esta frase está como entre parênteses, e faz uma generalização da declaração que a precede de imediato, de que os discípulos são teus. A segunda parte da generalização apóia-se em 16:15 (“Tudo o que o Pai tem é meu”). As duas metades do pronunciamento complementam-se mutuamente ao enfatizarem o mesmo ponto central, de duas maneiras diferentes: o Pai deu tudo que possui a seu Filho; entretanto, tudo quanto ele deu continua a ser sua propriedade (cf. Mateus ll:27/Lucas 10:22). 17:11 / Já não permanecerei no mundo por muito tempo (lit., “Já não estou no mundo”) . .. e vou para junto de ti. Jesus fala como se sua partida já houvesse começado (cf. “estando eu com eles no mundo”, v. 12 (NIV diz: “enquanto eu estava com eles”; “estou vindo a ti, agora”, v. 13). Esta perspectiva é característica não apenas dessa oração, mas dos sermões de despedida que a antecederam, também (veja nota sobre 16:4).

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1 7 :1 1 ,1 2 /0 nome que me deste: Alguns antigos manuscritos trazem, no v. 11: “Pelo poder de teu nome, protege aqueles que tu me deste”, e no v. 12, “Pelo poder de teu nome, eu protegi aqueles que tu me deste” — em ambos os casos referindo-se aos discípulos, como no v. 6. Entretanto, o texto que recebe maior apoio, que é o de ECA (e NIV), declara com lucidez que o Pai deu a Jesus seu próprio nome. Dar o Pai seu nome a Jesus é, talvez, análogo ao Pai ter-lhe dado sua glória (cf. v. 24), estando, com toda certeza, incluído no tudo do v. 10. Entretanto, que nome é esse a que se refere Jesus? Fazendo-se uma comparação com Filipenses 2:9-11 obtemos uma hipótese: esse nome pode ser “Senhor” (gr.: kyrios; é o equivalente grego de Yahweh ou Iavé do hebraico); a profissão de fé de Tomé em 20:8 poderia ser entendida como dando apoio a esta conclusão. Outra sugestão mais provável, muito relacionada ao assunto, é que esse nome seja “Eu Sou” (gr.: ego eimi; hebr.: 'ani hu‘), a autodesignação de Deus neAntigo Testamento (de modo especial em Isaías) que Jesus adotou para si mesmo, em várias situações críticas, cruciais, neste Evangelho (cf. 6:20; 8:24, 28; 13:19; 18:5-6; e acima de tudo, 8:58). 17:12 / para que se cumprisse a Escritura: o cumprimento das Escrituras é mencionado a fim de explicar por que houve uma exceção — Judas — nesse princípio geral segundo o qual nenhum deles se perdeu. A Escritura em mente é provavelmente aquela mencionada em 13:18 (i.e., Salmo 41:9). A exceção comprova a regra: qualquer verdadeira comunidade da fé pode abrigar traidores e apóstatas, mas a presença destes não pode representar perigo para os eleitos de Deus, “guardados” no poder do nome de Deus. 17:18 / eu os enviei ao mundo. É difícil estabelecer com certeza o tempo sob referência. A similaridade com 20:21 (“Assim como o Pai me enviou, eu vos envio”) sugere a muitos eruditos que essas palavras antecipam o comissio­ namento descrito ali. Entretanto, a correspondência com outros verbos na primeira pessoa, nos w . 12 e 14 ( “guardei-os... nenhum se perdeu... dei-lhes a tua palavra; cf. manifestei o teu nome, v.6; lhes dei as palavras que tu me deste, (v. 8) indicam ser mais provável que se refiram à missão que se iniciara dentro do ministério de Jesus (i.e., estando eu com eles no mundo, v. 12). Quer se diga que Jesus enviou seus discípulos ao mundo logo no início de seu ministério, como em 4:38 (“eu vos enviei a ceifar”; cf. Mateus 9:37-38; Lucas 10:2), quer seja após sua ressurreição, como em 20:21, a missão é a mesma. Do ponto de vista da oração do capítulo 17, essa misão já está em andamento, ainda que só agora, mediante a morte iminente de Jesus, o Senhor os esteja consagrando para a tarefa. 17:19 / sejam santificados na verdade:( é trad. lit.) A palavra “verdade”, transportada do v. 17 para cá, tem mais força do que um mero advérbio (em NIV a tradução é: “verdadeiramente”). Refere-se mais uma vez à “palavra” ou à “mensagem” vinda de Deus, que Jesus outorga a seus discípulos. 17:211Que eles também sejam um em nós. É assim que alguns manuscritos antigos dizem: “um em nós”. Deve-se preferir: “que eles também estejam em nós”. Todavia, no contexto não há, na verdade, grande diferença de significado,

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visto que, em qualquer caso, Jesus orou para que todos sejam um (v. 21a). O fato de os crentes estarem “no Pai” e “no Filho” é o mesmo que “ser um em nós”, ou “estar em nós” (i.e., estar com Deus e uns com os outros). 17:24 / aqueles que me deste: lit.: “aquilo que me deste”. Quanto ao emprego do singular neutro para referir-se a crentes de modo corporativo, veja as notas sobre 6:39 e 10:29.

43. A Prisão de Jesus (João 18:1-14)

A saída de Jesus com seus discípulos do lugar onde haviam ceado (v. 1) corresponde à nota de Marcos (14:26) de que “tendo cantado um hino, saíram para o monte das Oliveiras”. Embora o Evangelho de João não mencione o nome “Getsêmani” como sendo o lugar onde pararam, e embora só João o chame de “jardim” (RSV, GNB; gr.: kepos), trata-se claramente do mesmo lugar e da mesma ocasião (a tradução de NIV: “prensa de azeitonas” em vez de “jardim” baseia-se na pressuposição de que se trata de fato do “Getsêmani”, conhecido como o lugar onde havia uma “prensa de azeitonas”). Talvez devido à longa oração no capítulo 17, não haja oração no jardim, e nenhuma exortação aos discípulos a que permaneçam acordados em oração; conseqüentemente não há registro da falha deles nesse ponto. Concentra-se a atenção de modo completo na prisão de Jesus, pelos soldados romanos e pelos guardas do templo. O cenário descrito nos sinóticos só encontra pequeno paralelismo na repri­ menda de Jesus a Pedro, pela tentativa deste de defender seu Mestre com a espada: Mete a tua espada na bainha! Não beberei o cálice que o Pai me deu? (v. 11; cf. Marcos 14:36 e passagens paralelas). O “jardim” é descrito como uma área reservada; nele Jesus entrou com seus discípulos, de acordo com o v. 1, e adiantou-se, no v. 4, a fim de conversar com os que haviam vindo prendê-lo. A explicação de que se tratava de um lugar favorito de encontro entre Jesus e seus discípulos (v. 2), fornece indício de um aspecto do ministério do Senhor em Jerusalém que João não descreve explicitamente em lugar algum. Mas, se Jesus dispendeu tempo com seus discípulos, em particular, fora da cidade (ver, 3:22; 10:40-11:16; 11:54), por que não também em Jerusa­ lém? Por exemplo, teria sido neste “jardim” que Nicodemos viera ter com Jesus, muito tempo antes, trazendo-lhe suas perguntas? É evidente que as instruções e orações particulares de Jesus, com seus discípulos, não se confinaram a essa ocasião específica recontada nos capítulos 13-17 mas caracterizaram o ministério inteiro de Jesus. Embora o esboço do Evangelho divida a vida de Jesus em duas partes: o ministério público, compreendendo os capítulos 1-12, e o ministério reservado, compreen­ dendo os capítulos 13-17, é bem provável que, na realidade, o ministério

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de Jesus sempre teve uma dimensão pública e outra particular, do princípio ao fim. O narrador menciona o costume de Jesus de manter reuniões particu­ lares com seus discípulos, a fim de explicar como Judas sabia onde o Senhor poderia ser encontrado. Judas leva ao jardim não apenas alguns guardas dos principais sacerdotes e dos fariseus, como se menciona nos outros evangelhos, mas a escolta de soldados romanos também (v. 3); (escolta, gr.: speira, normalmente um décimo de uma legião, ou seiscentos soldados!). O Evangelho de João dá ênfase maior do que os demais no papel desempenhado por Pôncio Pilatos e os romanos no julgamento e execução de Jesus, sendo vistos aqui como participantes desde o início. Jesus controla a situação passo a passo. Pergunta duas vezes aos soldados e guardas à sua frente, a quem buscam; duas vezes eles respon­ dem: Jesus de Nazaré; e duas vezes o Senhor se identifica com as palavras sou eu (vv. 4-5; 7-8). À vista da situação, as simples palavras sou eu (lit., gr.: ego eimi) meramente identificam o Senhor como Jesus de Nazaré, a pessoa a quem o grupo busca. Todavia, essas palavras correspondem também, com exatidão, à fórmula pela qual Jesus se revelou como Deus, de acordo com 8:24 e 28 (“eu sou quem digo ser”), e de modo especial 8:58 (“eu sou”; em cada caso, gr.: ego eimi). Somente se atribuirmos igual significado à expressão sou eu, da passagem atual, podemos explicar a reação da multidão de soldados e guardas do templo: recua­ ram e caíram por te rra (v. 6). Ao repetir sua automanifestação (v. 8), Jesus acrescenta: Se é a mim que buscais, deixai ir estes. O pronome estes refere-se a seus discípulos, no jardim. Jesus os guarda de forma literal “no nome que me deste” (17:12a). Esse nome é “eu sou”, cujo poder atirou ao chão a décima parte de uma legião romana! Todavia, a intenção de Jesus não é derrotar seus antagonistas, mas entregar-se a eles — sob a condição de que seus discípulos sejam poupados. Neste ponto, o narrador explicita o elo existente entre a ação de Jesus e sua oração do capítulo precedente. A singular auto-entrega de Jesus cumpre o que ele havia dito imediatamente depois da afirmação de haver guardado seus discípulos em segurança, pelo poder de seu nome divino: “Não perdi nenhum dos que me deste” (v. 9; cf. 17:12b, “guardei-os no nome que me deste. Nenhum deles se perdeu”; cf. também 6:39). A única exceção é Judas, o traidor, “o filho da perdição” (17:12b); no cenário

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atual ele já aparece do outro lado, com os adversários: Judas, que o traía, estava com eles (v. 5) no momento em que foram atirados ao chão, diante da automanifestação de Jesus. O comentário do narrador, no v. 9, transforma a segurança física dos discípulos de Jesus em ilustração do bem-estar espiritual deles. O próprio Senhor assume total responsabili­ dade pela fuga dos discípulos, no momento em que é preso, incorporando esse fato no propósito divino. Ei-los, na verdade, “dispersos cada um para sua casa” (16:32); no entanto, a oração de Jesus em princípio os restaurou e fê-los um. Jesus é o Bom Pastor que não permitirá que os lobos atacantes espalhem e devorem o rebanho que lhe pertence (cf. 10:12-15). A hora de desgraça dos discípulos transforma-se na hora de triunfo de Jesus. Ainda como o Bom Pastor, também, Jesus assegura que, no que concerne à sua vida “ninguém a tira de mim, mas eu espontaneamente a dou. Eu tenho autoridade para dá-la, e autoridade para tomar a tomá-la. Este mandato recebi de meu Pai” (10:18). O mandato do Pai é o cálice que o Pai me deu, pelo que Jesus não permitirá que Pedro o defenda à espada (v. 11). A prisão prossegue até sua conclusão inevitável: soldados e guardas recompõem-se e levam Jesus preso. Primeiro é conduzido a Anás, sogro de Caifás, o sumo sacerdote. Conquanto Anás seja mencio­ nado só em conexão com a paixão do Senhor, neste Evangelho, não é ele o centro de interesse. Em vez disso, o narrador chama a atenção do leitor para o próprio sumo-sacerdote, com o lembrete de seu conselho anterior aos judeus, que convinha que um homem morresse pelo povo (v. 14; cf. 11:49-52). O fato de Jesus ter colocado seu destino nas mãos desse homem significa que o cálice (de sofrimento) agora é inevitável, e que o momento de tomá-lo se aproxima depressa.

Notas Adicionais # 43 18:1 / Tendo Jesus terminado de orar: lit.: “Depois de haver Jesus dito estas coisas” (gr.: tauta eipon). A palavra orar é empregada apenas porque a oração do capítulo 17 a antecede imediatamente. Contudo, num estágio anterior da compilação da matéria, 18:1 deve ter estado depois de 13:35 ou de 14:31. A mesma expressão ocorre em 13:21, no final do breve sermão de Jesus sobre o espírito de serviço, em 13:12-20. atravessaram o vale do Cedrom: vale literalmente é “torrente de inverno”, isto é, um regato que flui durante a estação chuvosa mas fica seco durante o resto do ano. João é o único Evangelho que menciona a rota de Jesus para fora da cidade dessa maneira. Essa terminologia concorda com a da LXX, e descreve de modo acurado o Cedrom e, provavelmente, ajudou a fixar o que mais tarde

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veio a tomar-se o local tradicional do Getsêmani, ao pé do monte das Oliveiras. 18:3 / lanterna, tochas: esse detalhe serve de lembrete de que ainda era noite, como em 13:30. A partida de Judas ocorrera poucas horas antes. Em Lucas, Jesus diz aos que foram prendê-lo: “Esta, porém, é a vossa hora e o poder das trevas” (Lucas 22:53). 18:4 / Sabendo Jesus todas as coisas que sobre ele haviam de vir: esta declaração faz lembrar, na forma, as notas no início da narrativa do lava-pés: “Sabendo Jesus que a sua hora de passar deste mundo para o Pai já tinha chegado” (13:1); “Jesus, sabendo que o Pai tinha depositado nas suas mãos todas as coisas, e que havia saído de Deus e ia para Deus” (13:3). O mesmo conhecimento pressuposto no lava-pés dos discípulos, e nos sermões de despe­ dida, continua a governar as palavras e as ações de Jesus, durante a narrativa da paixão (cf. também 19:28). Nada que venha a acontecer pegará o Senhor de surpresa. 18:9 / para que se cumprisse a palavra que ele tinha dito: A fórmula de cumprimento utilizada aqui (gr.: hina plerothe corresponde com exatidão à fórmula empregada noutras passagens para mencionar o cumprimento de Escri­ turas do Antigo Testamento (ver, 13:18; 15:25 e muito freqüentemente no Evangelho de Mateus). Às palavras de Jesus já se atribui autoridade comparável à do que “está escrito”. 18:10/ Simão Pedro... Malco. O incidente da orelha decepada do servo do sumo sacerdote é narrado em todos os evangelhos, mas só em João aparecem os nomes dos protagonistas. Em Marcos 14:47 o ato é atribuído a “um dos circunstantes”. Mateus 26:52 diz o mesmo, acrescentando uma advertência aos discípulos: “todos os que lançarem mão da espada à espada morrerão” (Mateus 26:52-54; aqui, o v. 11 exerce funções semelhantes). Em Lucas 11:50-51 Jesus diz: “Deixai-os, basta!” e imediatamente cura a orelha da vítima! A menção do nome de Anás e o imediato contexto (v. 13) sugerem que o Evangelho de João pode ter colhido matéria de uma fonte que identifica livremente os indivíduos particulares. A identificação de Simão Pedro realiza duas coisas: Evita a implicação de que todos os discípulos de Jesus estavam armados (cf. Lucas que, em 22:38, limita o número de espadas a duas), e antecipa o relato do fracasso de Pedro, nos vv. 15-18,25-27). A mesma pessoa que estava disposto a defender Jesus com uma espada, logo depois não estava disposto a reconhecer que pelo menos era seu discípulo. 18:13 / Anás: Anás e Caifás são mencionados juntos como “sumos sacerdo­ tes” no início do ministério de João Batista, em Lucas 3:2, e Anás é chamado de modo específico “o sumo sacerdote” em Atos 4:6; entretanto, o Evangelho de João identifica claramente Caifás como o sumo sacerdote naquele ano, tanto neste versículo como em 11:49, 51. Anás é o sogro de Caifás (fato só revelado neste Evangelho), homem de considerável autoridade que, nesta época, não era o sumo sacerdote.

44. Jesus e o Sumo Sacerdote (João 18:15-27)

O breve interrogatório de Jesus pelo sumo sacerdote (vv. 19-24) vem emoldurado pela negação de Pedro, em duas partes (vv. 15-18, 25-27). A divisão da negação em duas cenas segue um precedente refletido em Marcos (14:54,66-72) e em Mateus (26:58,69-75; Lucas, por outro lado, coloca a matéria toda num relatório contínuo, 22:54-62). À semelhança de Marcos, o vívido quadro de Pedro aquecendo-se junto à fogueira do inimigo é o ponto em que a narrativa se rompe (v. 18), para ser retomada depois. Todavia, diferentemente de Marcos e Mateus, que utilizam a primeira cena apenas para montar o palco onde se desenrolará as três negações, o Evangelho de João coloca a primeira delas logo na primeira cena (vv. 16-18) e as outras duas na segunda (vv. 25-27). A casa do sumo-sacerdote e seu pátio é o ambiente onde ocorre tudo que se narra nesta seção. Anás, mencionado de passagem no v. 13, fica esquecido até o v. 24, onde o narrador, atrasado, supre a informação de que Jesus havia sido enviado, ainda manietado (cf. v. 12), de Anás ao sumo sacerdote Caifás, que deve, com toda certeza, ser considerado o interrogador, nos vv. 19-23 (veja nota sobre o v. 24). Simão Pedro e outro discípulo, cujo nome não aparece, seguiram Jesus nesse circuito. Não existe evidência específica que liga este discípulo ao “discípulo que Jesus amava”, mencionado em 13:25, conquanto essa identificação tenha sido feito com muita freqüência. Visto que o outro discípulo era conhecido do sumo sacerdote (v. 15), pôde entrar no pátio da casa do sumo sacerdote (embora, presumivelmente, não tenha entrado na casa) e assegurar a entrada de Pedro também (v. 16). A pergunta da moça à porta (v. 17) parece refletir o mesmo interesse sobre a identidade dos discípulos de Jesus, revelada pelo próprio sumo sacerdote em seu interrogatório de Jesus. Dentro da casa, o sumo sacerdote interrogou Jesus acerca de seus discípulos e da sua doutrina (v. 19), enquanto, lá fora, a porteira perguntava a Pedro: Não és tu um dos discípulos deste homem? Pedro, a despeito dos esforços bem sucedidos de Jesus para dar a segurança aos discípulos (v. 8), e a despeito do fato que a identidade de seu companheiro de discipulado já era conhecida (v. 15), não quis ser identificado como discípulo e assim, teimosamente, negou toda conexão

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que tinha com Jesus (vv. 17, 25, 27). À semelhança de Judas (cf. v. 5), fica do lado em que estão os inimigos de Jesus, aquecendo-se à fogueira deles, no pátio (vv. 18, 25). Os evangelhos sinóticos relatam a história de tal modo que fica implícito que a negação de Pedro talvez tenha sido contada por ele mesmo. Aqui, todavia, está presente outro discípulo, testemunha potencial contra Pedro, sendo possível que a história seja contada, pelo menos em parte, do ponto de vista dessa testemunha. Se este discípulo, conhecido do sumo sacerdote, for a fonte da narrativa tanto da prisão como do interrogatório, é compreensível que Malco, o servo do sumo sacerdote, tivesse o nome aqui mencionado (v. 10) e também que o terceiro questionador de Pedro (v. 26) fosse identificado como parente de Malco. Esta última identificação serve como elo irônico entre o zelo mal orientado de Pedro, no jardim, no v. 10, e sua abjeta covardia no pátio do sumo sacerdote. Todavia, seja quem for o redator deste episódio, ele acompanha o precedente dos redatores dos sinóticos em que focaliza a atenção do leitor no canto do galo, a saber, no cumprimento exato da predição de Jesus (cf. 13:38). Se Pedro temia perder a vida, é duvidoso que seu temor fosse bem fundamentado. Jesus já havia garantido a segurança de seus discípulos (vv. 8-9), e o fato aparente de que o companheiro de Pedro fora publica­ mente identificado como um deles não dá a entender que isso lhes representasse perigo especial. Ao perguntar a Jesus acerca dos seus discípulos, é provável que o sumo-sacerdote desejava seus nomes, não, porém, com a intenção de mandar prendê-los. É mais provável que desejasse interrogar Jesus acerca de seu ensino. O interesse focalizado em seus discípulos e em sua doutrina é interesse único. Ao responderlhe, Jesus indica que a identificação de seus discípulos é irrelevante, porque sua doutrina é, de todo modo, questão pública. Nada dissera o Senhor em particular a seus discípulos que não tenha dito abertam ente ao m u n d o ... nas sinagogas e no templo, onde todos os judeus se reúnem (v. 20). A resposta concisa de Jesus resume os sermões de seu ministério público no templo, em Jerusalém (8:20; cf. 10:22-24) e na sinagoga, em Cafamaum (6:59). O “julgamento” de Jesus aqui, diante do sumo sacer­ dote, de modo algum é julgamento, porque Jesus meramente se refere ao julgamento em andamento, que foi seu ministério público, de onde brotou afinal o veredicto do sinédrio, em 11:47-53. Parece que essa resposta

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deixou de lado as instruções mais particulares que Jesus havia dado a seus discípulos, após a ceia de que participaram todos nos capítulos 13-17. Conquanto tais ensinos jamais tenham sido considerados como dados em oculto,o objetivo de Jesus era o pequeno grupo a quem o Senhor se referiu quando orou pelos “homens que me deste do mundo” (17:6, 9). Todavia, a resposta de Jesus ao sumo sacerdote baseia-se na suposição de que tudo que o Senhor dissera em particular a seus discí­ pulos já estava implícito em tudo que dissera a todas as pessoas — abertamente. Bastaria que houvessem ouvido e entendido! (cf. 12:39-40). Em algumas ocasiões as palavras de Jesus a seus discípulos constituíam uma espécie de eco — com pequenas mas sutis e cruciais diferenças — daquilo que o Senhor dissera às autoridades religiosas, ou às multidões, no templo (a saber, 13:33 com 7:34 e 8:21 ou 14:7 com 8:19, ou 16:27-28 com 8:42). Nada do que Jesus ensinara era subversivo; nunca houve instruções secretas dirigidas a um grupo seleto empenhado em conspirar seja contra Roma, seja contra o sacerdócio judaico. Para que se ficasse sabendo a substância do ensino de Jesus, não era necessário nenhuma lista de discípulos, e nenhum interrogatório deles, um por um. O sumo sacerdote poderia interrogar qualquer pessoa que houvesse ouvido Jesus, em qualquer ocasião — inclusive seus colegas de sacerdócio — e daí tirar suas próprias conclusões. Termina o diálogo, à semelhança do julgamento no sinédrio de Marcos (14:65) e Mateus (26:67), com Jesus sendo submetido a abuso físico (v. 22). Todavia, as razões aqui são diferentes. Não há, aqui, cenas de zombaria. Em vez disso, um dos guardas, interpretando a resposta de Jesus como recusa do Senhor em responder adequadamente à pergunta do sumo sacerdote, o que seria, nesse caso, gesto de desprezo, repreendeu Jesus e deu-lhe um a bofetada, talvez escorado em Êxodo 22:28, (“Con­ tra Deus não blasfemarás, nem amaldiçoarás o príncipe do teu povo”). O apóstolo Paulo demonstrou respeito a este princípio em A tos 23:2-5. Todavia, se Paulo desculpou-se pelo seu comportamento, alegando ig­ norância, Jesus nega completamente qualquer culpa, não aceitando a acusação de ter falado mal: Se falei mal, dá testemunho d o mal. M as se falei bem, por que me feres? (v. 23). Este incidente é relatado talvez por causa deste desafio final, que ficou sem resposta, que nos leva de volta não apenas à declaração de Jesus ao sumo sacerdote, nos vv. 20-21, mas (como o próprio pronunciamento do Senhor), ao ministério todo de

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Jesus. A razão por que ele não pode ser acusado de ter “falado mal” de alguém é que ele sempre falou a verdade, e a verdade é incompatível com o mal (cf. 8:46, “Pode algum de vós acusar-me de pecado? Se vos digo a verdade, por que não credes em mim?”). O propósito da resposta de Jesus ao guarda é simplesmente reforçar e enfatizar sua resposta ao sumo sacerdote.

Notas Adicionais # 44 18:15 / outro d iscíp u lo... conhecido do sumo sacerdote: alguns antigos manuscritos trazem o artigo definido — “o outro discípulo” — reforçando a identificação desse indivíduo com o discípulo amado do capítulo 13 (cf. a terminologia de 20:2, 3, 4, 8). Todavia, os melhores manuscritos mostram o artigo indefinido, como NIV e ECA sugerem. Provavelmente foi esse versículo que deu origem a tradições posteriores segundo as quais João, o autor do Evangelho, teria sido um sacerdote (Eusébio, História Eclesiástica 2.31.3). O discípulo mencionado aqui talvez não fosse galileu e não necessariamente um dos doze, mas um residente de Jerusalém que crera em Jesus (cf., e.g., 11:45; 12:11). Ele é o “narrador” neste ponto, na medida que certas coisas que vão acontecendo são vistas e narradas segundo seus olhos, i.e., baseadas em seu testemunho. Todavia, não existe uma razão forte para que o identifiquemos como o autor do Evangelho. Até mesmo um autor que fosse testemunha ocular basearia sua narrativa, sempre que possível, no testemunho de outras pessoas também (cf. 1:32-34; 19:35). 18:18 / uma fogueira: Só o Evangelho de João menciona uma fogueira de “carvão” (gr.: anthrakia ; NIV e ECA omitem curiosamente o “carvão”); Marcos e Lucas falam mais genericamente de “fogo” e “aquentar-se”. Essa minúcia vívida antecipa a cena à margem do lago, em 21:9, onde “brasas acesas” provêem o ambiente para a tríplice afirmação de Pedro e aparente restauração (21:15-17). 18:19 / a cerca .. . da sua doutrina: A verdadeira resposta de Jesus a todas as perguntas a c erca .. . da sua doutrina encontra-se em 7:16-17: “Se alguém quiser fazer a vontade de Deus” conhecerá algo essencial acerca do ensino de Jesus — que sua doutrina não é dele, mas provém de Deus. Tendo respondido à pergunta do sumo sacerdote, Jesus não toma a responder-lhe mas meramente faz sua atenção dirigir-se a seu ministério público, de modo especial a automanifestação na festa dos tabernáculos, nos capítulos 7-8. 18:20 / ao mundo. .. todos os judeus: O mundo e os judeus ficam implicitamente igualados porque o judaísmo — suas sinagogas e de modo especial seu templo, em Jerusalém — foi o palco onde se desenrolou a confron­ tação de Jesus com o mundo todo (cf. 1:10-11, “o mundo não o conheceu.. . os seus não o receberam”; também 7:3-4, “Vai para a Judéia.. . manifesta-te ao mundo”; 12:19, “Todo o mundo vai após ele”).

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18:24 / Então Ànás mandou-o: O contexto requer que esta declaração seja entendida como observação do narrador, que olha para trás, para algo que acontecera antes (i.e., antes do v. 19). É melhor entendê-la como nota entre parênteses: “(Anás, logicamente, havia enviado Jesus, ainda manietado, a Caifás, o sumo sacerdote)”. Tal conclusão é permissível pela partícula grega oun (traduzida por então, em NIV e ECA) e pelo tempo verbal mandou-o. A exigência baseia-se no fato de que apenas Caifás é chamado de sumo sacerdote no Evangelho de João, do qual se diz com clareza ter sido o interrogador de Jesus, nos w . 19-23. Uma antiga versão siríaca traz toda a passagem dos w . 13-24 numa seqüência diferente (i.e., os w . 13, 24, 14-15, 19-23, 16-18), e alguns manuscritos posteriores recorreram a outras disposições, chegando a transcrever o v. 24 duas vezes em duas diferentes posições! Essas liberdades próprias de escriba, bem como as modernas conjecturas eruditas que produzem os mesmos efeitos, devem ser rejeitadas. A solução mais simples é que quando o narrador chegou ao v. 24, percebeu que suas observações sobre Anás e Caifás, nos w . 13-14, poderiam ter deixado o leitor em dúvida, quanto a quem teria sido o interrogador. Todavia, o v. 24 foi um esforço no sentido de esclarecer a questão sem necessidade de reescrever dois versículos anteriores.

45. Pilatos e a Condenação de Jesus (João 18:28-19:16a)

A condenação à morte de Jesus ocorreu no contexto de uma série de diálogos entre o governador romano, Pilatos, e as autoridades religiosas judaicas. A ocasião teve início bem cedo, de manhã (18:28) encerrandose ao meio dia (19:14), do dia seguinte àquele em que Jesus foi preso. A estrutura da narrativa é determinada pelo fato de as autoridades judaicas, por razões de purificação cerimonial, não entrarem no palácio que servia de sede do governo de Pilatos (v. 28). O simples contato com a habitação de um gentio — ainda que fosse habitação temporária, visto que a residência oficial de Pilatos ficava na Cesaréia — tomá-los-ia cerimonialmente imundos, impedidos de comer a páscoa. Por essa razão, a ação vai ocorrendo em constantes mudanças, para lá e para cá, dentro è fora do pretório. O próprio Pilatos está sempre no centro da ação, quer dirigindo-se às autoridades judaicas fora do palácio (18:29-32, 38b-40; 19:4-8, 12-16a), quer conversando com Jesus lá dentro (18:33-38a; 19:1-3, 9-11). Cada um desses encontros traz sua própria contribuição para que se compreenda melhor o próprio Pilatos, e os fatores que inevitavelmente conduziram inimigos naturais, como Pilatos e as auto­ ridades judaicas, a unir-se e determinar a morte de Jesus. A narrativa poderia ser dividida em seis cenas: Pilatos e as autoridades judaicas (18:29-32). A pergunta de Pilatos a respeito das acusações contra Jesus (v. 29) presumivelmente é pergunta cuja resposta ele já sabe. Os soldados romanos dificilmente teriam participado da prisão de Jesus (cf. v. 3) sem que Pilatos o soubesse e permitisse. Todavia, a pergunta precisava ser feita como rotina proces­ sual legalística. A resposta das autoridades judaicas (v. 30) talvez reflita impaciência diante de tal formalismo, como se estivessem dizendo: “Você sabe muito bem quais são as acusações. Vamos em frente com isso”. A cooperação inicial de Pilatos, quanto à prisão, talvez se tenha originado no fato dele ver aí uma oportunidade de trazer para interroga­ tório um rebelde agitador em potencial, e verificar se ele seria perigoso para a boa ordem política, ou não. Se as autoridades judaicas recebessem

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ajuda no sentido de sufocarem movimentos subversivos entre seu próprio povo, isso seria ótimo. Pilatos preferiria que agora que Jesus estava preso, os judeus mesmos cuidassem do assunto: Levai-o vós, e julgai-o segun­ do a vossa lei (v. 31). A suposição de Pilatos é que os judeus ainda não o julgaram. Embora os evangelhos sinóticos se refiram a Jesus como tendo sido condenado na reunião de sacerdotes e anciãos, na casa do sumo sacerdote, e pelo sinédrio, há algumas razões por que se duvide de que o Senhor houvesse sido formalmente julgado e condenado pelos judeus. Se Jesus houvesse sido julgado e culpado de blasfêmia, ou de ter enganado o povo, teria sido condenado à morte por apedrejamento, à semelhança de seu irmão Tiago, o Justo, o dirigente da igreja em Jerusalém, em 62 a.D. (Josefo, Antiquities 20.200; Eusébio, História Eclesiástica 2.23.4-18) ou à seme­ lhança de Estêvão, no livro de Atos (7:54-60). A resposta das autoridades judaicas a Pilatos, Não nos é permitido executar a ninguém (lit.: “não temos permissão para matar a ninguém”; gr.: apokteineirí), entende-se naturalmente como referência ao sexto mandamento do decálogo (“Não matarás”). A questão não era se os judeus teriam o direito de aplicar a pena de morte, sob o governo romano, mas sim, que a lei deles, judeus, não lhes permitia. Se executassem a alguém sem que houvesse um julgamento formal, e uma condenação por crime comprovado, seriam culpados de assassinato, segundo a lei de Moisés. Se algumas autoridades religiosas achassem que determinada pessoa merecia morrer (cf. 19:7), mas não conseguissem comprovar suas acusações, ou não quisessem pressionar o caso, por medo de um levante popular (cf. Marcos 14:2; Mateus 26:5; Lucas 22:2), o único recurso que lhes sobrava era manipular os romanos de modo que encaminhassem o julgamento da forma favo­ rável aos judeus. Jesus vinha afirmando o tempo todo que as autoridades judaicas estavam procurando “matá-lo” (gr.: apokteinein,l:l9\ 8:37,40). O narrador (5:18; 7:1) e até mesmo as multidões em Jerusalém (7:25) haviam confirmado isto. A decisão oriunda da única reunião do sinédrio, mencionada noutra passagem do Evangelho, não constituiu uma conde­ nação formal mas, simplesmente, um plano das autoridades judaicas para “matá-lo” (11:53). Quando essas mesmas autoridades dizem, agora, a Pilatos: “Não podemos matar a ninguém”, estavam condenando suas próprias ações e expondo sua própria hipocrisia. O ponto de vista do narrador é que eles queriam na verdade “assassinar” a Jesus, e que lhe

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teriam cravado os pregos e traspassado o peito com a espada, com suas próprias mãos. Entretanto, a hesitação dos judeus quanto a agir segundo sua própria autoridade, sem uma condenação formal, significava que Jesus haveria de morrer pelas mãos dos romanos, em vez de ser execu­ tado segundo um método judaico. Jesus não seria esmagado pelo apedre­ jamento, mas “levantado” em horrível morte por crucificação, e foi nessa perspectiva que o narrador vê o cumprimento das palavras do próprio Cristo (cf. 3:14; 8:28; 12:32-33). Nada que venha a acontecer pegará Jesus de surpresa; todos os planos desonestos das autoridades judaicas e todas as vacilações de Pilatos permanecem sob a necessidade divina. O Filho do homem “deve” ser levantado em morte redentora e, por isso, triunfante (cf. 3:14-16). Pilatos e Jesus (18:33-38a). Dentro do pretório, Pilatos interroga a Jesus pela primeira vez. O tema da conversa é reinado, tema que domina a narrativa a partir deste ponto até o momento em que Pilatos coloca uma inscrição: “Jesus de Nazaré, o rei dos judeus” sobre a cruz de Jesus, e insiste em que a redação fique como está (19:19-22). O título rei dos judeus ocorre pela primeira vez na pergunta inicial de Pilatos a Jesus (v. 33). A pergunta És tu o rei dos judeus? encontra-se em todos os quatro evangelhos, e em cada um dos sinóticos a resposta de Jesus é não-comprometedora (lit.: “Tu o dizes”, Marcos 15:2; Mateus 27:11; Lucas 23:3), equivalente a resposta nenhuma. Neste Evangelho, entretanto, a pergunta é feita duas vezes (vv. 33, 37a); em cada caso, a resposta de Jesus resume-se num enigmático “tu o dizes ”, mas move-se para além, na direção de assuntos mais profundos (vv. 34, 37b).: Dizes isto de ti mesmo ou outros te disseram isto de mim? (trad. lit., v. 34). Tu dizes que eu sou rei. Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de d a r testemunho da verdade (v. 37b). A primeira resposta (v. 34) é dirigida a Pilatos em nível personalíssi­ mo, como se o Senhor lhe estivera perguntando, “Você quer saber mesmo a resposta, por você mesmo, ou você está apenas se desincumbindo de seu dever de magistrado?” Pilatos desvia a pressão contra sua pessoa ao admitir de modo livre que a pergunta não é dele propriamente. Ele não é judeu e tampouco tem algum interesse nas disputas judaicas a respeito de reinado. Tudo o que ele quer são os fatos a respeito do caso de Jesus.

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Como que para arrancar do próprio Jesus as acusações que as autoridades judaicas evantavam contra ele, Pilatos lhe pergunta: Que fizeste? (v. 35); contudo, Jesus não vai entrar em pormenores. Em vez disso, volta à primeira pergunta de Pilatos e redefine o que é reinado. Jesus tem um reino que não é deste mundo (v. 36). À semelhança do próprio Jesus, é um reino “de cima” (cf. 8:23). Para vê-lo, ou para nele entrar, a pessoa deve “nascer de novo” ou “nascer de cima” (3:3). Jesus não está falando da localização do reino, mas de sua origem — e, portanto, de sua natureza. Sua origem é Deus, assim como Jesus veio de Deus. Assim como Deus enviou a Jesus, assim também Deus, e só Deus, concretiza o reino. O reino não se toma realidade mediante violência armada; Jesus não é o tipo de rei que precisa da proteção da espada, e tampouco permite tal proteção (cf. vv. 10-11). Essa redefinição de Jesus esticou o significado de reinado a tal ponto que o conceito quase se rebentou. Pilatos, um tanto confuso, só consegue repetir a pergunta inicial: Então, tu és rei? (v. 37a; cf. v. 33). Desta vez a resposta de Jesus (v. 37b) reforça mais ainda, explicitamente, a agora tradicional expressão “Tu dizes que eu sou rei”, e, ao fazê-lo, parece ir além do tema do reinado para o tema mais caracteristicamente joanino da manifestação. Eu para isso nasci e p ara isso vim ao mundo, afirma o Senhor, a fim de d a r testemunho da verdade. E acrescenta, signifi­ cativamente, para benefício de Pilatos: Todo aquele que é da verdade ouve a m inha voz (v. 37b; cf. 8:47). Nem mesmo aqui Jesus está repudiando o reinado mas, apenas continua a redefini-lo, tendo começado no v. 36. Em última análise ele é Rei, mas no presente momento seu papel é o de d a r testemunho da verdade. Ele é o que revela a Deus (cf. 1:1, 18). Seu propósito não é chamar a atenção para si próprio, mas para a verdade, que Deus quer que ele tome conhecida, e para o que o chamou. Certa vez, quando essa revelação, levou o povo a concluir que ele era “o Profeta que devia vir ao mundo”, Jesus fugiu da tentativa daí resultante de “o fazerem rei” pela força (6:14-15). E embora seus seguidores houvessem reconhecido, em outra ocasião, que ele era o “Rei de Israel” (1:49; 12:13), a manifestação total de Jesus como Revelador e Rei aguardou a “hora” da morte e ressurreição do Senhor (cf. 12:16, 23). A segunda resposta de Jesus a Pilatos confronta o governador mais ainda do que a primeira, de modo pessoal, mediante a força das afirma­ ções do Senhor. A declaração, Todo aquele que é da verdade ouve a

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m inha voz (v. 37b) implica a pergunta: “E você, Pilatos, você está me ouvindo? você está do lado da verdade?” Em sermões e mais sermões, Jesus havia confrontado o mundo do judaísmo e, agora, num diálogo breve mas significativo, confronta o mundo gentílico, na pessoa de um único magistrado romano. A pergunta inicial de Pilatos, Que é a verda­ de? permanece sem resposta. Uma petição da última oração de Jesus, “que o mundo conheça que tu me enviaste” (17:23; cf. 17:21) ainda não foi atendida, ainda não se realizou, mas nesse breve entrevista com Pilatos, a missão aos gentios se inicia (cf. a alusão de Paulo a esta cena, em 1 Timóteo 6:13). Pilatos e as Autoridades Judaicas (18:38b-40). Com base em sua entrevista com Jesus, Pilatos faz a primeira de suas três declarações quanto à inocência do Senhor, segundo a lei romana (v. 38b, cf. 19:4,6; também Lucas 23:4, 14, 22). Ele propõe que Jesus seja libertado, de acordo com o costume por ocasião da páscoa, mas ao fazê-lo repete o termo provocativo, rei dos judeus (v. 39), e relembra às autoridades judaicas qual era, aos olhos deles, o crime de Jesus. Com isso, Pilatos lhes alimenta ainda mais a fúria. A questão não é, provavelmente, que Pilatos estivesse sendo hipócrita, mas que lhe seria difícil resistir à tentação de aproveitar aquela oportunidade para ridicularizar os judeus, tão preocupados a respeito de um rei capaz de inspirar tanta pena. De qualquer modo, as autoridades judaicas recusaram sua proposta e exigi­ ram que, no lugar de Jesus, fosse libertado um tal de B arrabás, identi­ ficado apenas como um assaltante. O narrador permite que a ironia da rejeição do Filho de Deus, e favorecimento de um criminoso famigerado, fale por si mesma (quanto a uma reflexão mais profunda sobre esta ironia, cf. Atos 3:14). Pilatos, Jesus, e os judeus (19:1-8). O toque de ridículo no emprego da parte de Pilatos da frase rei dos judeus, em 18:39, aparece com grande vivacidade no frontispício desta seção. Pilatos toma a decisão de drama­ tizar perante todos que figura lamentável e indefesa é Jesus, e que raça lamentável de povo são os judeus, pelo fato de o levarem tão a sério, quer como rei, quer como perigoso pretendente do trono e blasfemo. Tudo quanto acontece a seguir — presumivelmente no interior do pretório — nos vv. 1-3, é interlúdio à apresentação de Jesus aos principais sacer­ dotes e aos seus guardas, fora do pretório, nos vv. 4-8, e tudo aquilo — as pancadas e bofetões, a coroa de espinhos, o manto de púrpura e, de

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modo especial, os gritos de zombaria, Salve, Rei dos Judeus! — foi produto do anti-semítico e doentio senso de humor de Pilatos. Parece que o governador esteve o tempo todo obcecado com a nefanda brincadeira de que Jesus é o rei dos judeus. As palavras com que ele apresenta Jesus aos líderes religiosos judeus ali reunidos — Eis o homem! (v. 5) — não tinham a intenção primordial de despertar piedade, mas o sentido do ridículo. Entretanto, para o autor do Evangelho essas palavras têm um profundo significado, como lembrete de quem é que está sendo apresen­ tado como rei (v. 14) para depois ser crucificado (v. 18). Como “Filho do homem” é que Jesus haveria de ser “glorificado” (12:23; 13:31) e “levantado” (3:14; 8:28; 12:34), e homem era o máximo a que um gentio romano poderia chegar, em relação à expressão idiomática judaica “Filho do homem”. À semelhança do sumo sacerdote Caifás (11:51-52), Pilatos é apanhado aqui falando com mais discernimento do que ele mesmo percebe. A elaborada “brincadeira” de Pilatos serve para o autor do Evangelho como nada menos do que o último e decisivo anúncio da paradoxal “glorificação” de Jesus, frente à morte e vergonha. As palavras de Pilatos, e a visão de Jesus vestido de púrpura e coroado de espinhos, agitam ainda mais os sacerdotes e guardas ali reunidos, que se põem a vociferar: Crucifica-o! Crucifica-o! (v. 6a). Até certo ponto este diálogo entre Pilatos e as autoridades religiosas judaicas virtualmen­ te é re-encenação do primeiro encontro deles em 18:29-32. A resposta de Pilatos, Tomai-o vós e crucificai-o (v. 6b) reitera seu conselho anterior: “Levai-o vós, e julgai-o segundo a vossa lei” (18:31). Essa resposta também deixa bem claro que, no que concernia a Pilatos, os judeus tinham autoridade para executar a sentença de morte se assim decidissem. Conquanto os judeus se mostrassem indispostos ou incapa­ zes, para isso, talvez por falta de um apoio mais amplo, permaneceram firmemente convictos de que Nós temos uma lei, e segundo essa lei ele deve m orrer, (i.e., a lei da blasfêmia, Levítico 24:16) porque se fez filho de Deus (v. 7). A menção do título Filho de Deus, pela primeira vez na narrativa da paixão, relembra disputas anteriores entre Jesus e as autoridades judaicas (ver, 5:18; 10:33, 36). Entendia-se que Jesus afirmava ser “Deus”, ou “igual a Deus”, o que induziu às acusações de blasfêmia (10:33), às tentativas de apedrejá-lo (8:59; 10:31), e à determinação de que mais cedo ou mais tarde ele deverá morrer (5:18). Entretanto, para Pilatos, a

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filiação constituía novo fator na discussão, que despertou nele nova emoção (no que diz respeito à presente narrativa): o medo. Diferente­ mente dos judeus, Pilatos ouviu o título Filho de Deus num contexto politeístico, em vez de monoteístico. Se Pilatos estava lidando, não com um pobre coitado, um simulacro engraçado de rei dos judeus, mas com alguma forma de mensageiro favorecido dos deuses, a piada deixava de ter tanta graça! Pilatos e Jesus (19:9-11). O medo supersticioso de Pilatos vem à tona e expressa-se de vez nesta pergunta: De onde vens? (v. 9). Jesus já havia respondido a essa pergunta de modo implícito. Se seu reino não veio deste mundo, mas de cima, Jesus também veio de cima (cf. 3:31; 8:23). O Senhor prefere não dar uma resposta explícita; na verdade, nenhuma resposta oferece a Pilatos. Entretanto, quando Pilatos afirma que o destino de Jesus está em suas mãos (v. 10), o Senhor lhe responde com palavras significativas, pelas quais não só sua origem mas também seu destino vêm de cima, no sentido que estão nas mãos de Deus, e só de Deus. A reinvindicação de Pilatos de ter autoridade sobre Jesus, se traduzida literalmente, ressoaria como um eco vacilante da própria reinvindicação de Jesus em 10:18. As similaridades podem ser mostradas como segue: 10:18 19:10 (lit.) Ninguém a tira de mim, mas eu Não sabes que eu tenho o direito espontaneamente a dou. Eu tenho (gr.: exousian echó) para te autoridade (exousian echo) para soltar, e eu tenho o direito dá-la e autoridade (exousian (exousian echo) para te echo) para tomar a tomá-la. Este crucificar? mandato recebi de meu Pai. Quando Jesus diz, em resposta a Pilatos, Nenhuma autoridade (exousia) terias contra mim, se de cima não te fosse dada (v. 11), o Senhor está reafirmando sua própria reinvindicação de 10:18. Em relação a todos os seres humanos e a todas as instituições humanas, o destino de Jesus está em suas próprias mãos. Todavia, em relação ao Pai (10:18b), Jesus recebeu um mandato ao qual ele deve obedecer. Portanto, a autoridade de Pilatos sobre Jesus é uma autoridade delegada, derivada de Deus; veio de cima. Pilatos nada mais é do que um instrumento ignorante nas mãos de Deus, enquanto Jesus é o Filho amado do Pai, e servo obediente. Jesus não está falando de modo abstrato, em termos

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universais, a respeito de uma autoridade atribuída pela Divindade, ao estado, para reger questões de justiça humana, sobre a vida humana. O Senhor se refere à sua própria missão, em particular, e do plano especí­ fico, mediante o qual o Pai decidiu “glorificar” seu Filho unigénito. Toma-se claro que Jesus não vê Caifás (aquele, porém , que me entregou a ti m aior pecado tem), nem as autoridades judaicas, exata­ mente da mesma forma que vê Pilatos. Jesus não hesita em julgar tanto Caifás quanto Pilatos como culpados de pecado (cf. 9:41; 15:22); todavia, o Senhor declara que Caifás, e todos os que o representam, m aior pecado têm (v. 1lb). A razão não é que eles se safam da soberania de Deus mas que (como são vistos neste Evangelho) decidiram de vez alistar-se do outro lado, cerrando fileiras com seu “pai, o diabo” (8:44), o “príncipe deste mundo” (12:31; 14:30; 16:11). À semelhança do diabo, e à semel­ hança de seu filho Judas, as autoridades religiosas judaicas “nada têm em mim” (em Jesus, 14:30), e nada têm que ver com o plano redentor de Deus. As ações desses homens, não menos do que as de Pilatos, colabo­ ram na execução desse plano, conquanto o papel que desempenham seja um tanto diferente. Pilatos “pertence à terra (gr.: ge, 3:31) e fala como alguém da terra”; semelhantemente a João Batista, “só pode receber o que lhe for dado do céu” (3:27). Mas Caifás e seus cúmplices são “deste mundo” (gr.: kosmos; 8:23) e do príncipe deste mundo; como o diabo, são mentirosos e assassinos, porque rejeitaram o ensino de Jesus e buscaram encamiçadamente sua vida (cf. 8:37-38, 44-45). Pilatos não passa de um títere, ou joguete, enquanto os judeus são o Inimigo. Conquanto sejam judeus, não é o judaísmo deles que os distingue, nem que toma seu pecado maior. A tragédia deles está em sua persistente identificação com o “mundo”, com toda sua incredulidade e escuridão, e suas intenções assassinas contra Jesus, a verdadeira luz (cf. 1:5-9; 3:19-21). Pilatos, Jesus e os judeus (19:12-16a). É difícil saber que é que Pilatos pensou das observações de Jesus. Parece que o narrador está condensan­ do um longo relato, de modo que possa concluir a história mais depressa. A frase procurava soltar a Jesus no v. 12 (gr.: ezetei no imperfeito) dá a entender que poderia ter feito várias tentativas não especificadas no texto, a fim de libertar Jesus. Já temeroso de que Jesus pudesse ter poderes oriundos de deuses, Pilatos havia sido lembrado, em seguida, de ter que prestar contas a autoridades mais altas (v. 11). Todavia, ao tentar usar a

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autoridade que declarou possuir para libertar Jesus, verificou que seus esforços estavam bloqueados pelas realidades políticas de sua própria situação. O desfecho de todos os seus esforços foi que em determinado momento as autoridades religiosas judaicas jogaram seu trunfo, apresen­ taram-lhe o argumento decisivo: Se soltares a este, não és amigo de César. Q ualquer que se faz rei se opõe a C ésar (v. 12). A conclusão importantíssima desse argumento era que se o imperador viesse a saber que Pilatos estava protegendo um pretendente ao trono, a posição privilegiada de Pilatos como amigo de César (título honorífico concedido pelo impera­ dor, como recompensa por serviço leal) estaria em perigo — como estaria em perigo sua posição oficial e até mesmo, talvez, sua própria vida. A ameaça pessoal e rude produziu um efeito imediato e notável, em Pilatos. Trouxe Jesus para fora do pretório pela última vez, apresentando-o aos dirigentes religiosos judaicos ali reunidos, a quem disse: Eis o vosso Rei (v. 14). O paralelismo entre esta expressão e Eis o homem! do v. 5 poderia dar a entender que Pilatos está apenas reatando a zombaria dos versículos 1-5, e pondo um ponto final em sua grotesca cerimônia de coroação. Todavia, algo mudou. Há, agora, uma seriedade no comporta­ mento de Pilatos que esteve ausente antes. Percebendo que as autoridades judaicas o forçaram a atender a suas exigências, Pilatos se vinga. Ao sentar-se na cátedra do juiz (no tribunal, v. 13), Pilatos dá ao seu anúncio, Eis o vosso Rei, um caráter cerimonial e praticamente oficial. O insulto máximo que Pilatos pode atirar contra os judeus é que aquele verdadeira­ mente era o rei deles, o rei que mereciam e o único que jamais teriam. O insulto dele atinge seu objetivo, porque arranca dos judeus uma reação furiosa, a maior blasfêmia contra o Deus de Israel: Não temos rei, senão César (v. 15). Ao negarem a Jesus, negam por fim sua própria raiz e caráter judaicos; e num fraseado estranho, Pilatos o entregou p ara ser crucificado — método romano de execução! O narrador é meticuloso ao anotar com precisão a hora e o lugar em que tudo isso ocorreu. E ra o dia da preparação da páscoa; a hora seria perto do meio-dia (e quase à hora sexta); o lugar é chamado Pavimento, também designado pelo nome semítico G ábata (vv. 13-14). Por que seria o incidente tão importante ao ponto de exigir tantos pormenores? A resposta mais plausível é que se trata da tão esperada “glorificação” de Jesus. Se a cruz é o momento irônico de Jesus ser “levantado”, não seria sua apresentação formal como rei, fora do pretório, o momento irônico

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de sua glória? Seria apenas por coincidência que o lugar da crucificação e o lugar da apresentação de Jesus são cuidadosamente designados tanto em grego como em hebraico (w . 13, 17)? Parece que ambos os eventos formariam um par, de propósito, estando a referência precisa ao tempo, no v. 14, colocada bem no meio de ambos a fim de prestar-lhes o mesmo serviço. Os dois acontecimentos estão unificados não apenas por causa da acuidade cronológica, mas para permitir que a realeza e a crucificação de Cristo se iluminem e se interpretem mutuamente (Hei de crucificar o vosso Rei?) perguntou Pilatos, no v. 15. Jesus reina como rei, neste Evangelho — rei dos judeus e de todos os povos — não sentado num trono, mas pendurado numa cruz; a morte do Senhor não é a derrota trágica e vergonhosa que aparenta ser, mas a revelação decisiva de seu reinado, e da glória de Deus.

Notas Adicionais # 45 18:28/ os judeus levaram Jesus... não entraram no pretório: lit.: “eles tomaram Jesus... e eles [enfático] não entraram”. O primeiro “eles” no grego de propósito é indefinido ou impessoal (“Jesus foi levado”, GNB). O contexto mais amplo dá a entender que Jesus foi levado a Pilatos pela “escolta, o comandante e os guardas dos judeus” mais as autoridades judaicas que, de início haviam prendido Jesus (v. 12), mas a expressão indefinida permite que o narrador focalize a atenção nos que haviam enviado os guardas do templo, em primeiro lugar, a saber, “os principais sacerdotes e fariseus” (v. 3). Sendo designados aqui apenas pelo pronome enfático (gr.: kai autoi), e depois, na narrativa que se segue, apenas por “os judeus”, constituem os antagonistas de Pilatos por toda a história (cf. a expressão “os principais sacerdotes e os seus guardas” em 19:6). no pretório: (gr.: to praitorion, tradução do latim praetorium). Esse termo era aplicado a qualquer residência oficial do governador militar romano em território ocupado. Na Palestina, era natural que os romanos confiscassem e usassem os edifícios herodianos para aquele propósito (ver, “pretório de Herodes” na Cesaréia, em Atos 23:35). Em Jerusalém, a residência oficial de Pilatos seria o forte Antônia, uma fortaleza situada numa colina ao norte da área do templo, que Herodes, o Grande, transformara em palácio, ou no palácio mais luxuoso que Herodes construíra posteriormente, para si mesmo, na zona oeste da cidade, nas proximidades do atual Portão de Jaffa. O primeiro, o forte Antônia, tomou-se o centro dominante da tradição cristã, depois das cruzadas (é o ponto inicial da tradicional Via Dolorosa), mas o segundo é o mais provável, com base em documentos literários e arqueológicos. Veja R. M. Mackowski, Jesusalém, City of Jesus (Grand Rapids: Eerdmans, 1980), págs. 91-111; também J. Wilkinson, Jerusalem as Jesus Knew It (Londres: Thames &Hudson, 1978), págs. 137-44.

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(João 18:28-19:16a)

para não se contaminarem, mas poderem comer a páscoa: essa decla­ ração indica que a páscoa ainda não fora celebrada (cf. 19:14, “o dia da preparação da páscoa”) e que, portanto, a última refeição de Jesus com seus discípulos, no capítulo 13, não deve ser entendida como a páscoa. Também salienta uma terrível ironia: esses homens que se mostram tão escrupulosos a respeito de menor contato com um gentio, ou com a residência de um gentio, não têm a menor hesitação, contudo, em manobrar esse gentio para que faça aquilo que a lei deles mesmos lhes proibe que façam: assassinar um homem inocente (v. 31)! 18:36 / os meus súditos: a palavra empregada não é “discípulos” nem o termo usual para “servos”, mas a mesma palavra que nos vv. 3,12,18 e 22 é traduzida por “guardas”. Esse termo é empregado na suposição (que contraria os fatos) de que o reino de Cristo pertence “a este mundo”. Se fosse deste mundo, os discípulos de Cristo seriam “guardas” à semelhança dos que o prenderam, e haveria um confronto de forças (como Pedro procurou fazer). Visto que o reino de Cristo não é deste mundo, não há “guardas”. Os discípulos de Cristo desempenham um papel completamente diferente, determinado pelo seu próprio e único propósito de “dar testemunho da verdade” (v. 37). 18:39 / é vosso costume: esse costume de conceder anistia é mencionado também em Marcos 15:6 e Mateus 27:15 (pelos respectivos autores dos evan­ gelhos, e não por Pilatos), porém, disso não há menção fora do Novo Testamen­ to. Pode ser que a razão desse silêncio das fontes judaicas esteja no relativamente curto período de tempo em que tal costume prevaleceu — talvez apenas durante o governo de Pilatos, ou no máximo naquelas décadas em que as insurreições eram mais freqüentes, havendo mais prisioneiros políticos do que antes. É provável também que não fosse um costume judeu, mas uma concessão romana que objetivava levantar o moral do povo. 18:40/ era um assaltante, ou “um bandido”. O termo grego denota qualquer pessoa que comete roubo a mão armada, mas era usado com freqüência por Josefo para indicar um tipo particular de terrorista que combinava saque, desordem e insurreição (cf. Marcos 15:7; Lucas 23:19). 19:81 mais atemorizado ficou: não se mencionou antes que Pilatos sentira medo. É provável que o narrador não tenha intencionado uma comparação com um estado de espírito anterior; o comparativo é empregado apenas para expres­ sar a idéia de que Pilatos ficou bastante amedrontado diante da expressão “Filho de Deus”. 19:11 / Aquele, porém, que me entregou: o verbo “entregar” (gr.: paradidonai é o mesmo verbo traduzido por “trair” quando empregado sobre Judas (cf. 6:64, 71; 12:4; 13:2, 21; 18:2, 5). Contudo, Judas não entregou Jesus a Pilatos. A referência se dirige mais às autoridades judaicas (cf. 18:30, 35) e talvez (visto que é singular) de modo específico a Caifás. 19:12 / amigo de César: a frase em latim, amicus Caesaris (“amigo de César”) era termo técnico designativo de um título honorífico concedido pelo imperador. Há evidências de que Pilatos deve ter usufruído desse privilégio em

(João 18:28-19:16a)

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virtude de sua associação com Aelius Sejanus, fortemente anti-semítico (dele escreveu Tácito, em Armais 6.8 que “quem quer que fosse íntimo de Sejanus podia reivindicar a amizade de César”). Entretanto, Sejanus perdeu sua situação privilegiada no ano 31 e, por essa razão, Pilatos pode ter-se sentido vulnerável de modo especial, mais ainda diante das ameaças dos judeus. 19:13/ sentou-se no tribunal: tem-se discutido o emprego do verbo “sentar” aqui: i.e., se o próprio Pilatos sentou-se, ou se ele fez Jesus sentar-se na cátedra judicial (como parte de uma cerimônia de coroação escamecedora). Esta inter­ pretação se reflete nas tradições do segundo século em que Jesus recebe ordens por zombaria: “julga-nos” (Justino Mártir, Primeira Apologia 35), ou, “julga retamente, ó rei de Israel” (Evangelho de Pedro 7). Todavia, o tribunal (gr.: bema) não é, de modo específico, um trono, e o verbo “sentar-se” (gr.: kathizein normalmente é intransitivo quando empregado a respeito de alguém que age como juiz (em português é transitivo reflexivo). Josefo, de fato, usa esse mesmo verbo para o próprio Pilatos em Jewish War 2.172. A seriedade com que Pilatos age agora indica que deixou de escarnecer de Jesus, mas pronuncia seu próprio veredicto sobre os sacerdotes e o povo judaicos. Pavimento: (gr.: lithostrotos). Este lugar é freqüentemente identificado com um pavimento antigo de placas de pedra maciça (com mais de 1.600 metros quadrados) no local do forte Antônia, sob o atual hospício das Irmãs de Sião e da igreja da Flagelação, escavado em 1870. Conquanto seja isto possível, é bem provável que qualquer área quadrada grande em Jerusalém (quer neste período, quer depois de sua reconstrução pelos romanos no segundo século) teria a mesma aparência geral que tem este local. Essa descoberta não pode ser utilizada, portanto, com confiança, com o objetivo de estabelecer a localização do pretório (veja a nota sobre 18:28). O lithostrotos é mencionado como se fora algo mais específico do que um grande quadrado pavimentado — talvez uma plataforma pequena, levantada (veja a nota sobre Gábata) onde se colocava a cátedra do juiz. Como no caso de Betesda, o narrador escreve como se o lugar ainda pudesse ser identificado com certeza, hoje. Gábata não é a tradução hebraica de pavimento de pedra. De fato é palavra aramaica, provavelmente signifique plano elevado ou saliência, mas, se neste caso era um lugar elevado natural, ou feito pela mão humana (ver, uma plataforma de pedra elevada), o enigma permanece. 19:14 / quase à hora sexta: De acordo com o sistema judaico de contar as horas a partir das 6:00 (da manhã), esta menção significa “quase meio dia” (veja nota sobre 1:39). Interessados em harmonizar esta hora com os evangelhos sinóticos (ver, Marcos 15:25: “Era a hora terceira quando o crucificaram”), alguns têm argumentado que o Evangelho de João segue o tempo romano, que começa a contar a partir da meia-noite, de modo que “hora sexta” seria 6 horas da manhã. Isto faz que haja demasiada ação entre “cedo de manhã” (18:28) e 6 horas da manhã, deixando as três horas entre 6 e 9 da manhã sem relato algum. Faz suscitar também a pergunta: por que João fixaria a hora da apresentação de Jesus como rei, com tanta minúcia, deixando de mencionar a hora em que o

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(João 18:28-I9:l6a)

Senhor foi crucificado? Seja qual a resolução dos problemas das cronologias, a solene referência ao meio-dia, neste versículo, corresponde simbolicamente à observação dos sinóticos de que “chegada a hora sexta, houve trevas sobre toda a terra, até à hora nona” (Marcos 15:33, e passagens paralelas). Era o dia da preparação da páscoa: o termo gregoparaskeue, “preparação” indicava comumente a sexta-feira, como sendo o dia de preparação para o sábado (descanso, cf. vv, 31,42); porém, em conjunção com a páscoa refere-se ao dia em que o cordeiro pascal era morto, e se faziam preparativos para a refeição pascal. A cronologia pressuposta neste Evangelho é que no ano em que Jesus morreu, a páscoa também era um sábado. 19:16a / Pilatos o entregou para ser crucificado: Há uma mutualidade sombria na execução de Jesus. Primeiramente, as autoridades judaicas “o entregaram a Pilatos” (18:30,35), e agora Pilatos o entregou aos judeus. Quanto à estranha implicação de que em certo sentido as autoridades judaicas é que crucificaram Jesus, veja a nota sobre 8:28.

46. Crucificado, Morto e Sepultado (João 19:17-42)

A menção de soldados no v. 17 nos leva a fazer uma suposição natural e provavelmente correta de que foram os soldados romanos do v. 23 que tom aram a Jesus. Embora o verbo tom aram seja, de modo estrito, usado de forma impessoal (i.e., “eles” tom aram a Jesus, ou Jesus “ficou sob prisão”; veja a primeira nota sobre 18:28), a ligação íntima com o versículo 16 dá a entender que houve contínuo envolvimento dos princi­ pais sacerdotes (e seus guardas) em tudo quanto aconteceu. Fica bem claro que eles estão presentes, como está o próprio Pilatos (vv. 19-22). A presença de soldados romanos não é indicada senão ao chegarmos ao v. 23, onde ficamos sabendo finalmente que foram estes os soldados que cravaram o Senhor na cruz. (no v. 18). Os versículos 17-22 são uma extensão, num sentido importante — na verdade formam a conclusão — da batalha travada entre a vontade de Pilatos e a das autoridades judaicas, a partir de 18:28 até 19:16. Frustrado em seus esforços no sentido de libertar Jesus, Pilatos mais uma vez escarnece dos judeus — agora por escrito. De modo cerimonioso, em três línguas, para que o mundo todo possa ler, Pilatos coloca sobre a cruz onde Jesus será crucificado uma solene inscrição: JESUS DE NAZARÉ, O REI DOS JUDEUS (v. 19). Ele perdeu a questão substantiva em debate, mas ganhou a guerra de nervos. Quando instigado a modificar a inscrição de modo que a realeza era afirmada por Jesus, Pilatos faz pouco caso da reverência judaica, bem conhecida, e tradicional, pela palavra escrita, com a resposta seca: O que escrevi, escrevi (v. 22). Jesus, “glorificado” na apresentação como rei na Gábata, o “Pavimento”, agora é “levantado” como rei — e assim é designado por escrito — no lugar cham ado Caveira, que em hebraico se cham a Gólgota (v. 17). O cuidadoso interesse do narrador quanto ao exato tempo (v. 14) e quanto ao lugar exato (gr.: topos, vv. 13,17) destes grandes eventos redentivos, pode refletir o início do interesse cristão pelos lugares sagrados e, de certo modo, pelo calendário litúrgico. Alguns detalhes nos vv. 17-22 não acentuam de modo particular certos temas da seção precedente mas (à semelhança de muitas coisas que ocorrem nos vv. 23-42), baseiam-se simplesmente no interesse de teste-

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(João 19:17-42)

munhas oculares cristãs (i.e., o discípulo amado e as mulheres mencio­ nadas no v. 25) para que se preservem na memória da igreja as impressões de fatos que presenciaram. Quando Jesus saiu do pretório e do Pavimen­ to, foi levando a sua cruz (i.e., provavelmente a haste horizontal; é bem possível que o Gólgota fosse um lugar costumeiro de crucificações, onde já havia hastes verticais fincadas no chão). Não há interesse na Via Dolorosa, como tal, e tampouco, portanto, em Simão cireneu que, de acordo com os sinóticos, em determinado ponto da caminhada foi cons­ trangido a ajudar a carregar a cruz (Lucas 23:26), ou mesmo a carregá-la em lugar de Cristo (Marcos 15:21; Simão e seus filhos evidentemente são conhecidos dos leitores de Marcos). Em vez disso, a ação muda de imediato para o local da execução, onde Jesus é crucificado ao lado de outros dois, um de cada lado, e Jesus no meio (v. 18). Esses homens não são identificados como “ladrões” (Marcos 15:27) nem como “crimi­ nosos” (Lucas 23:32), e tampouco há registro de alguma conversa entre eles e Jesus. Eles são mencionados apenas para estabelecer o contraste entre eles e Jesus, nos vv. 31-33: a morte deles é apressada mediante o recurso de se lhes quebrar as pernas; contudo, nenhum osso de Jesus foi quebrado (v. 36). Exceto quanto à inscrição de Pilatos nomeando Jesus Rei dos Judeus, o narrador está menos interessado no procedimento da crucificação em si e mais no que aconteceu durante o tempo em que Jesus esteve na cruz, e interessou-se até mesmo após a morte do Senhor, pouco antes da remoção dos cadáveres (vv. 23-30,31-37). A história desdobra-se numa série de cenas distintas, ou vinhetas, que se centralizam, de início, em quatro soldados romanos (vv. 23-24), depois em Jesus e seus entes queridos mais íntimos (vv. 25-27), a seguir em Jesus a sós, à hora da morte (vv. 28-30), e finalmente, em certas minúcias físicas singulares observadas por uma testemunha ocular, relacionadas com a morte do Senhor (vv. 31-37). Três dessas cenas (a primeira, a terceira e a quarta) são entendidas de modo explícito pelo narrador como cumprimento das Escrituras (vv. 24,28,36-37). Muitos comentaristas encontram um simbolismo na referência à tú ­ nica de Jesus, que era sem costura, toda tecida, num a só peça, de alto a baixo (v. 23). Imagina-se que ela representa ou a unidade dos crentes (cf. 17:21,23) ou o papel singular desempenhado por Jesus como nosso Sumo Sacerdote (cf. a descrição de Josefo da túnica do sumo sacerdote

(João 19:17-42)

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judeu, em Antiquities, 3.161). Todavia, tal simbolismo é duvidoso. O narrador chama-nos a atenção para o modo como a túnica fora tecida apenas para explicar-nos por que teria sido impossível rasgá-la sem arruinar a peça. Por causa disso, os soldados tiraram sortes com dados, para ver quem ficava com ela, e assim cumpriram Salmo 22:18 até o ínfimo detalhe. Esse versículo é poesia. Contém duas linhas: “Repartem entre si as minhas vestes, e lançam sortes sobre a minha túnica” (Salmo 22:18, baseado no texto hebraico), e são exemplo de paralelismo hebrai­ co; dizem a mesma coisa duas vezes. Contudo, da forma como o versículo é mencionado aqui, objetivam-se duas coisas distintas, havendo um cumprimento distinto para cada uma delas: Dividiram entre si as minhas vestes (cumpriu-se no v. 23a), e sobre a m inha túnica lançaram sortes (cumpriu-se nos vv. 23b-24) Conquanto o narrador entenda com perfeição a natureza do paralelis­ mo poético, ele aproveita a oportunidade (como qualquer intérprete rabínico judeu faria) para extrair sentidos separados de cada parte, se isso se enquadra nas informações históricas que está tentando explicar. Essa mesma técnica interpretativa encontra-se em Mateus 21:2-7, onde Jesus utilizou um jumentinho e uma jumenta, na entrada triunfal, e em Atos 4:25-27, onde se entende que Davi teria falado tanto de Israel como dos gentios. Além do interesse no cumprimento das Escrituras, o significado da primeira cena é que Jesus é retratado entregando suas posses, de modo específico suas roupas. A segunda cena mostra-o entregando sua família, de modo específico sua mãe, enquanto na terceira cena ele próprio é que se entrega. Há perigo em exagerar-se o elemento simbólico da primeira e da segunda cenas. A questão central aqui não é que a mãe de Jesus tomou-se a mãe espiritual dos crentes, nem que o verdadeiro discípulo de Jesus toma-se seu irmão ou irmã espiritual (cf. Marcos 3:33-35). A questão, muito simplesmente, é que Jesus, antes de morrer, tomou providências para que sua mãe e seu discípulo amado cuidassem um do outro, e atendessem às necessidades um do outro. Se houver aqui algum simbolismo, é simbolismo aparentado ao do lava-pés (cf. 13:14, 34). Aqueles a quem Jesus amou devem cumprir esse amor ao tomar-se servos uns dos outros, num ministério mútuo — neste caso particular, o minis­ tério de mãe e o de filho, respectivamente.

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Na terceira cena (vv. 28-30), Jesus voluntariamente entrega sua vida. A cena se inicia com as palavras mais tarde (gr.: meta touto), dando a entender que a provisão às necessidades de sua mãe e de seu discípulo foi a última responsabilidade de Jesus na terra. De Jesus foi dito antes que “havia amado os seus, que estavam no mundo” e que na verdade ele “amou-os até o fim” (gr.: eis telos, 13:1). Essa última expressão de amor toma-se o sinal de que agora tudo está consumado (ou “terminado”; gr.: telestai, v. 30). Despojado de suas posses e de seus entes queridos, o Senhor está pronto para abrir mão da própria vida. A certeza e a proximidade da morte são percebidas em conexão com a experiência da sede de Jesus (vv. 28-29). Todavia, a sede do Senhor seria real ou metafórica? Teria ele sede de água? A minha força secou-se como um caco, e a língua se me apega ao paladar; tu me puseste no pó da morte (Salmo 22:15). ou teria Jesus sede de Deus? Ó Deus, tu és o meu Deus, eu te busco ansiosamente; a minha alma tem sede de ti, o meu corpo te deseja muito em uma terra seca e cansada, onde não há água (Salmo 63:1). Em primeiro lugar, certamente é irônico que Aquele que afirmou poder satisfazer toda a sede (4:13-14) veio a sentir sede, por amor aos que sofrem necessidades (cf. 4:6-7). Entretanto, ainda que essa experiên­ cia de Jesus, de sede física, tenha sido marcante, sua última necessidade pessoal, a mais profunda de todas, foi sua necessidade de voltar a ter comunhão com o Pai (cf. 13:1, 3). Seria a morte dele, e não meramente sua sede, que traria o cumprimento da Escritura (para que a E scritura se cumprisse, v. 28). E não seria apenas uma passagem particular da Escritura que se cumpriria, mas todo o testemunho bíblico de que “O Cristo padecerá, e ao terceiro dia ressurgirá dentre os mortos” (Lucas 24:46; cf. João 2:17, 22; 20:9). É irônico que a sede física de Jesus tenha sido m om entaneamen­ te saciada por uma esponja impregnada de vinagre que lhe foi oferecida pelos soldados romanos (v. 29), mas tão logo sua sede

(João 19:17-42)

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ficou saciada, Jesus morreu: inclinando a cabeça, entregou o espírito (v. 30). No fim, todas as tentativas das autoridades religiosas para matá-lo falharam. Ninguém lhe tirou a vida, mas de sua própria e livre vontade ele a devolveu ao Pai que o havia enviado (10:18; cf. também Lucas 23:46). A clara referência à morte de Jesus no v. 30 significa que, num sentido, tudo quanto está descrito nos versículos 31-33 está fora de questão, no que concerne a Jesus. O propósito de quebrar as pernas da vítima era apressar-lhe a morte, de modo que o cadáver pudesse ser removido antes do pôr-do-sol (v.31) mas, no caso de Jesus, ficou comprovado aos judeus e aos romanos de igual modo que eles não poderiam controlar-lhe a morte. Todavia, o narrador conclui, mais uma vez, que tudo quanto ele descreve tem um propósito: Estas coisas aconteceram p ara que se cumprisse a Escritura. Neste caso, duas passagens específicas são mencionadas (vv. 36-37): Nenhum dos seus ossos será quebrado, provavelmente citação do Salmo 34:20, e olharão p ara aquele a quem trespassaram , citação de Zacarias 12:10. A primeira citação sumariza os versículos 31-33; a segunda, os versículos 34-35. O propósito dos versículos 31-33 é explicar por que nenhum dos ossos de Jesus foi quebrado, e por que isso é importante. O narrador nos prepara cuidado­ samente para esse fato, ao introduzir bem antes o v. 18, a respeito dos dois cujas pernas, em contraste, foram quebradas, a fim de apressar-lhes a morte. O propósito dos versículos 34-35 é chamar a atenção para outra ocorrência marcante, ocorrida após a morte de Jesus, que também cum­ priu a Escritura: um dos soldados trespassou-lhe o lado com uma lança, e im ediatamente saiu sangue e água. Quando os soldados descobriram que Jesus estava morto, e enquanto aguardavam que as outras duas vítimas morressem, um deles quis ter certeza absoluta da morte de Jesus e perfurou-lhe o lado, futilmente. Declara o narrador que isso fez brotar um fluxo de sangue e água (v. 34), referindo-se de modo explícito à palavra de uma testemunha ocular (v. 35). Quem é essa testemunha ocular anônima, e por que o apelo a uma testemunha ocular só se encontra no Evangelho, aqui? Certas similaridades de linguagem entre esta declaração e os resumos colocados no final dos capítulos 20 e 21, respectivamente, dão a entender que a testemunha ocular pode ser o próprio narrador. Por exemplo:

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Aquele que o viu testificou, e o Este é o discípulo que testifica seu testemunho e vevdciclexro destcis coiscis 6 âs cscrcvcu (19:35a). Sabemos que o seu testemunho é Ele sabe que é verdade o que verdadeiro (21:24). Estes porém diz, para que vós também o foram escritos para que creiais... creiais (19:35b). (20:31) As similaridades são consideradas, geralmente, como provas de que a testemunha ocular do v. 35 não é outro senão “o discípulo amado” (21:20-23), o narrador e autor do Evangelho todo. Entretanto, os paralelismos pouco comprovam, visto que constituem características comuns do estilo do autor. Por exemplo, Jesus havia falado de João Batista em termos semelhantes: Há outro que testifica a meu respeito, e eu sei que o testemunho que ele dá de mim é verdadeiro... ele deu testemunho da verdade. Não que eu recebo testemunho de homem; mas digo isto para que sejais salvos (5:32-34). Outro texto joanino, 3 João, que o “presbítero” escreveu para “o amado Gaio”, conclui com um elogio a certo Dernétrio: Nós também damos testemunho, e sabes que o nosso testemunho é verdadeiro (3 João 12). Estes paralelismos mais amplos sugerem que o versículo 35 reflete apenas o jeito normal de o autor falar acerca de um testemunho válido. A testemunha anônima permanece anônima. O versículo 37, com sua aparente identificação de pessoas (os que olharão para Jesus serão os mesmos que o trespassaram ), poderia dar a entender que a testemunha ocular seria um dos soldados romanos, talvez aquele mesmo que enfiou a lança no lado de Jesus (cf. o centurião que em Marcos 15:39 confessou a respeito de Jesus: “Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus!”). Todavia, a prova conclusiva não existe. O máximo que se pode dizer é que se a testemunha ocular não é aquele que narra (i.e., o discípulo amado), trata-se de alguém que tem grande intimidade com esse escriba, que o conhece muito bem, visto que o narrador afirma, a respeito dessa testemunha, sem a mínima hesitação ou necessidade de qualificação: Ele sabe que é verdade o que diz (v. 35b). À semelhança do discípulo anônimo de 18:15-16, essa testemunha é importante fonte de uma pequena porção da história, e pode ser (como a maior parte dos comentaristas afirma) o autor da história toda.

(João 19:17-42)

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Mas, que é exatamente que ele viu, que se considera tão decisivo? A cena toda da crucificação? Os dois cumprimentos da Escritura nos vv. 31-37? O golpe de lança? Ou o fluxo de sangue e água, em conseqüência do golpe de lança no lado de Jesus? É evidente que a ênfase se coloca nesta última alternativa (v. 34). É bem provável que o resto dos discípulos de Jesus tomou conhecimento pela primeira vez do ferimento da lança — detalhe de máxima importância para a identificação do Jesus ressurreto, em 20:20a, 25,27 — mediante o testemunho da testemunha ocular mencionada aqui. O fato de essa pessoa ter visto (aquele que o viu) não só cumpre a Escritura (v. 37) como estabelece a base do testemunho dos discípulos: “Vimos o Senhor” (20:25; cf. 20b). É muito importante também o sangue e água que ele viu fluindo do ferimento (v. 34). O sangue de Jesus foi mencionado antes, nesse Evangelho, apenas em 6:53-56; entretanto, nem a metáfora de beberse o sangue de Jesus, nem a associação ali encontrada entre sangue e carne têm alguma ligação com o incidente atual. As referências a sangue, em 1 João, provêm paralelismos muito mais íntimos. A convicção cristã básica e mais primitiva de que “o sangue de Jesus Cristo. . . nos purifica de todo pecado” é declarada quase que de início (1 João 1:7), enquanto sangue e água (com o Espírito) se vêem juntos, quase no fim do livro: “Ele não veio só pela água, mas pela água e pelo sangue” (5:6); “Pois três são os que dão testemunho na terra: o Espírito, a água e o sangue; e estes três concordam” (5:7-8). O testemunho que dão resume-se nestas palavras: “Deus nos deu a vida eterna, e esta vida está em seu Filho” (5:11). A noção de água como metáfora de vida eterna foi bem desenvolvida no Evangelho de João (ver, 3:5; 4:10-14; 6:35; 7:37-39; 9:7), e o propósito do testemunho ocular quanto ao sangue e água do lado de Jesus é apenas enfatizar o fato que essa vida eterna só é possível por causa da morte de Jesus. Assim como o Senhor nos sacia a sede ao tomar-se sedento, ele nos provê “água viva” (4:14; 7:38) mediante o derramamento de seu sangue, e não há outro meio. O relato do sepultamento de Jesus (vv. 38-42) é continuação natural dos eventos associados à remoção de seu corpo da cruz (vv. 31-37). No que concerne a Pilatos, permitir que José de Arimatéia levasse o corpo de Jesus foi apenas uma extensão da permissão dada anteriormente aos judeus para que removessem os três corpos do Gólgota (v. 31). José de

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Arimatéia é nova personagem na história, mas é mencionado em todos os evangelhos, sendo identificado em Marcos e Lucas como membro do conselho judaico, ou sinédrio. Não é de surpreender que ele apareça aqui ao lado de Nicodemos (v. 39), apresentado no capítulo 3 como “um dos principais dos judeus” (3:1) e “mestre em Israel” (3:10). A descrição de José como discípulo de Jesus, mas em oculto, por tem er os judeus (v. 38), corresponde ao que a informação fragmentária do Evangelho diz sobre Nicodemos; são palavas que também se aplicam a José (cf. 2:23­ 3:2; 7:50-52). O lembrete do narrador de que Nicodemos, aquele que anteriorm ente se dirigira de noite a Jesus (v. 39; cf. 3:1) parece que tenciona confirmar esta impressão. Pelo menos dois daqueles que “ama­ vam mais a glória dos homens do que a glória de Deus” (12:43) estavam, finalmente, saindo das trevas do medo e indo para a luz da identificação aberta com Jesus, e com os que choravam sua morte (cf. 3:21). O embalsamamento do corpo de Jesus foi algo extraordinário. Nico­ demos trouxe cerca de quarenta quilos (quase cem libras, veja nota, de uma m istura de m irra e aloés (v. 39), e os dois homens enrolaram o corpo em lençóis de linho com as especiarias. O procedimento e o uso das especiarias talvez estivessem de acordo com o que os judeus costu­ mam fazer (v. 40), mas isso não é verdade a respeito da quantidade de especiarias empregadas. Essa extravagância faz lembrar o casamento de Caná da Galiléia, em que Jesus transformou mais de quatrocentos litros de água em vinho (2:6) e, de modo especial, a “libra de um nardo puro, um perfume muito caro” que Maria lhe derramou nos pés, em Betânia (12:3), a fim de prepará-lo, como disse o Senhor, “para o dia do meu enterro” (12:7). O “embalsamamento” simbólico de Jesus, por Maria, em antecipação, toma-se realidade aqui, quando José e Nicodemos preparam o corpo do Senhor para o sepultamento. Quer a extravagância tenciona ser testemunho final da realeza de Jesus, quer seja apenas uma expressão de amor, comparável à de Maria, a conseqüência é que coloca José e Nicodemos para sempre no círculo dos verdadeiros discípulos de Jesus. Graças a eles, o corpo de Jesus não foi atirado numa vala comum, destinada a criminosos, mas foi depositado num sepulcro novo, no qual ainda ninguém havia sido posto. (v. 41), perto do lugar da execução e facilmente identificável (vv. 41-42). Estava montado o palco para os eventos decisivos da manhã de domingo.

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Notas Adicionais # 46 19:17 / lugar chamado Caveira... Gólgota: Parece que Gólgota é tradução de uma palavra aramaica que significa caveira. É provável que esse nome tenha sido atribuído ao lugar por causa de sua aparência e também pela associação a execuções e morte. 19:25 / sua mãe, a irmã dela, e Maria, mulher de Clopas, e Maria Madalena: é certo que quatro mulheres estão sendo mencionadas aqui (em vez de apenas três). Gramaticalmente, Maria, mulher de Clopas, poderia ser expressão que se interpretaria como “aposto” de a irmã dela; contudo, é muito improvável que suas irmãs houvessem recebido o mesmo nome de Maria. Das quatro mulheres, só a mãe de Jesus (vv. 26-27) e Maria Madalena (20:1-2, 11-18) desempenharam algum papel nesta narrativa; todavia, as quatro estão relacionadas para que a lista fique completa, talvez quanto às testemunhas oculares (cf. v. 35). Maria Madalena também é mencionada em Marcos e em Mateus; todavia, é problemático tentar identificar as outras três como sendo aquelas mencionadas em Marcos 15:40 ou Mateus 27:56. 19:27 / em sua casa (gr.: eis ta idia: A mesma expressão é empregada em 16:32, onde Jesus prediz que seus discípulos serão “dispersos cada um para sua casa”. A presença do discípulo amado ao pé da cruz indica que ele não se dispersou com os demais (cf. 18:8-9) e só agora é que parte. Nem a dispersão dos discípulos e tampouco a saída de João são vistas como desgraças; a partida de João, em particular, para sua casa, é vista aqui como ato de obediência à ordem de Jesus (cf. também 20:10). 19:29 / vinagre (gr.: oxos) era um vinho azedo diluído, usado como bebida pelos pobres. Podia saciar a sede, tendo sido oferecido a Jesus (talvez pelos soldados) como ato de misericórdia. Conquanto esse incidente está registrado tendo o autor em mente Salmo 69:21, a semelhança é apenas formal, porque no salmo o “vinagre” é dado com intenção mais hostil do que misericordiosa: “Deram-me fel por alimento, e na minha sede me deram a beber vinagre”. Seja como for, o propósito do relato, no Evangelho de João, não é descrever um tocante ato de amor a Jesus, mas enfatizar que sua verdadeira sede foi saciada, não pelo refrigério momentâneo, misericordioso, que um soldado romano fosse capaz de administrar, mas pelo que se seguiu de imediato: seu retomo ao Pai. vara de hissopo: lit., apenas “hissopo”. A planta que usualmente recebia esse nome era um pequeno arbusto de flores azuis, usado na purificação de sacrifícios mediante borrifamento. Não tinha uma vara capaz de suportar o peso de uma esponja. Visto que a planta descrita aqui obviamente não tem uma vara ou talo rijo (cf. Marcos 15:36; Mateus 27:48), o termo hissopo está sendo usado com displicência (como eram usados os nomes de plantas no mundo antigo), refe­ rindo-se a uma planta maior, com um talo forte. Embora esse termo possa ter sido escolhido por causa de suas associações simbólicas com a páscoa (cf. Êxodo 12:22) e com a purificação cerimonial (ver, Levítico 14:6-7; Salmo 51:7, RSV;

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Hebreus 9:19), seu uso em conexão à oferta que se fez a Jesus de um último gole de vinagre não tem nenhum significado ritualístico discemível. Trata-se mais de um caso de imprecisão redacional do que uma tentativa consciente de produzir um enunciado teológico (e qual seria esse enunciado?). A famosa conjectura de que poderia tratar-se de um “dardo” (gr.: hyssos em vez de hyssopos, com apoio em apenas um único manuscrito mais recente, é mais imaginoso do que convincente). 19:30 / E inclinando a cabeça, entregou o espírito: alguns têm visto nesta expressão o ato de conferir o Espírito Santo à igreja (representada pelo discípulo amado e as mulheres, ali presentes), mas isso é improvável. O Espírito Santo será conferido em 20:22, quando Jesus sopra sobre a assembléia de discípulos e lhes diz, explicitamente: “Recebei o Espírito Santo”. O que o Senhor entrega na presente passagem é seu espírito (i.e., sua vida) e a Pessoa a quem ele a entrega é seu Pai; cf. Lucas 23:46, “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”, e Mateus 27:50, Jesus “rendeu o espírito” (lit.: “deixou partir o espírito”). Da mesma maneira em que o texto diz: “inclinando a [sua] cabeça”, no sentido de “cabeça dele”, quando o texto diz “rendeu o espírito”, significa “o espírito dele”, (cf. a expressão, “dá a sua vida” [veja a nota sobre 10:11], que põe uma ênfase semelhante no ato deliberado e voluntário da morte de Jesus). 19:31 / dia da preparação: a expressão se refere a duas coisas: era prepara­ ção para o sábado e preparação para a páscoa (veja nota sobre 19:14). esse sábado era um grande dia: lit.: “porque grande era o dia daquele sábado”. O dia seguinte era sábado e o décimo quinto dia do mês de Nisã, e primeiro dia da festa da páscoa. A lei judaica de que o cadáver de um criminoso executado não deve ficar pendurado do madeiro de um dia para o outro (Deuteronômio 21:22-23) deve ter causado conflito com o costume romano de deixar cadáveres pendurados nas cruzes, para servirem de advertência a outros criminosos. Em épocas de festivais, entretanto, os romanos faziam concessões à sensibilidade judaica (cf. Filo, Flaccus 83), e neste ano, o fato de o dia seguinte ser um sábado, representou razão adicional para que os romanos se mostrassem generosos. 19:38 / Arimatéia: A localização exata desta cidade é assunto de controvér­ sia, mas o local mais aceito é aquele mencionado por Eusébio, em sua obra Onomasticon, do quarto século: a oeste e ligeiramente norte de Jerusalém, não longe de Lida. Outros a têm colocado bem a leste, perto de Silo. Seja como for, José não era um discípulo da Galiléia, mas da Judéia. 19:39/ quase cem libras: A libra romana (gr.: litra tinha doze onças, em vez de dezesseis, de modo que pelos pesos de hoje, o peso de “cem litrai” (NIV marg.) seria aproximadamente “setenta e cinco libras”, que é o que aparece em NIV. Mirra e aloés: eram resinas secas fragrantes, ou seivas, às vezes utilizadas pelos egípcios para embalsamar cadáveres. Apesar de aloés parecer plural, é singular no grego. 19:41 / No lugar em que Jesus foi crucificado: Este versículo e o seguinte

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(“o sepulcro ficava perto”, v. 42) fornecem a base bíblica para a noção de que a crucificação e sepultamento de Jesus ocorreram no mesmo lugar (gr.: topos; cf. v. 17), embora não seja especificado com exatidão qual seria a distância entre a sepultura e o Gólgota. De acordo com a tradição, ambos os locais ficam tão próximos entre si, que um único edifício, a igreja constantina do Sagrado Sepulcro abriga a ambos, havendo ainda bastante espaço. Até mesmo o assim chamado Túmulo do Jardim, venerado por tantos protestantes, fica a apenas alguns passos do Calvário de Gordon, um promontório rochoso que dá para a estação rodoviária no lado leste de Jerusalém, fora dos muros da atual cidade antiga. Quer a veneração pela igreja de ambos os locais represente um atestado independente das declarações feitas neste texto, quer tal veneração se baseie nessas mesmas declarações, é questão difícil de se determinar.

47. 0 Túmulo Vazio e a Primeira Aparição (João 20:1-18)

A história do túmulo vazio é história de Maria Madalena. Até este ponto do Evangelho, Maria só foi mencionada uma vez, sem nenhuma identificação posterior (19:35), talvez porque se presume ser ela bem conhecida entre os leitores do Evangelho. Em Marcos, Mateus e Lucas ela é mencionada em primeiro lugar, entre as mulheres que vieram ao sepulcro, no domingo de manhã, mas parece que ela veio sozinha. Somente sua declaração de que (nós, plural) não sabemos onde o puseram, i.e., o corpo do Senhor (v. 2) indica a consciência de haver outras pessoas presentes ao seu lado no sepulcro (contraste com não sei onde o puseram , no v. 13). Pelo fato de a pedra à frente do sepulcro haver sido removida, Maria inferiu que o corpo também havia sido removido. Sem olhar dentro do sepulcro, ela correu e foi ter com Simão Pedro e com o outro discípulo, a quem Jesus am ava, e lhe disse que alguém havia roubado o corpo (v. 2). O relato da corrida dos dois discípulos até o túmulo e do que viram nos é dado não por razões teológicas, e tampouco para enfatizar a autoridade apostólica de um desses homens mas, simplesmente como registro histórico de testemunhas oculares. O discípulo amado chegou primeiro ao túmulo, olhou seu interior, e viu no chão os lençóis de linho (cf. 19:40) mas não entrou (vv. 4-5). Quando Pedro chegou, entrou no túmulo de vez; o que ele viu está cuidadosamente descrito (vv. 6-7), não, porém, sua reação. Por fim o discípulo amado entrou no túmulo, e sua reação ficou registrada: e viu e creu (v. 8). A implicação não é que Pedro viu mas não creu; o caso é que o narrador relata a história de Pedro como observador externo, mas narra a do discípulo amado como sendo a sua própria história. Ele pode afirmar com confiança que o discípulo amado viu e creu porque ele próprio é o discípulo amado, ou porque seu relato baseia-se no testemunho dele (cf. o relato de uma testemunha ocular anônima mencionado em 19:35). É provável que a disposição dos lençóis de linho bem como o lenço que cobrira a cabeça de Jesus, conquanto apresentada em conexão com Pedro (vv. 6-7), na verdade se baseie em

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relato do discípulo amado. Ambos, ele e Pedro, viram tudo isso, mas é o discípulo amado que “testifica destas coisas e as escreveu” (21:24). É ele o narrador da história; o cenário todo é descrito segundo o que os seus olhos viram. Todavia, em que, exatamente, creu o discípulo amado? E sua fé estaria baseada simplesmente no fato de que o corpo de Jesus havia sumido, ou no arranjo minucioso das peças de linho, lençóis e lenço, na disposição descrita com todo cuidado nos versículos 6-7? A resposta mais plausível para a primeira pergunta é que ele creu que Jesus havia voltado ao Pai, como dissera que faria (cf. 14:29: “Eu vos disse agora, antes que aconteça, para que, quando acontecer, vós acrediteis”). A base de sua crença era o simples fato de o corpo de Jesus haver desaparecido. A presença das faixas e do lenço servia para excluir a possibilidade de alguém haver roubado o corpo; que ladrão haveria de desenrolar cuida­ dosamente um cadáver antes de levá-lo embora? Esses panos excluiriam até mesmo uma ressurreição miraculosa como a de Lázaro, a quem Jesus havia chamado do túmulo, estando o ex-defunto com “as mãos e os pés enfaixados, e o rosto envolto num lenço” (11:44). A menção do lenço em particular poderia ter o objetivo de relembrar a história de Lázaro, mas é duvidoso que a posição exata do lenço em relação aos lençóis de linho tenha algum significado adicional, senão documentar a atenção da teste­ munha ocular a minúcias. Conquanto a fé do discípulo amado seja fé válida, e o seu testemunho também seja válido, não temos aí a fé na ressurreição em pleno desen­ volvimento, a fé da igreja cristã, por duas razões. Primeira, baseia-se apenas na palavra de Jesus, e não nas profecias das Escrituras, segundo as quais era necessário que ele ressurgisse dentre os m ortos (v. 9; contraste a fé dos discípulos após a ressurreição, baseada, de acordo com 2:22, “na Escritura e nas palavras que Jesus tinha dito”); nos termos empregados por Lucas, a mente do discípulo amado ainda não estava aberta para entender pelas Escrituras que “o Cristo padecerá, e ao terceiro dia ressurgirá dentre os mortos” (Lucas 24:46-47; cf. 24:25-27). Segunda razão, o discípulo amado, diferentemente de Maria e dos discípulos, como um grupo (cf. vv. 18,25) ainda não havia “visto o Senhor”. O Jesus ressurreto era, para ela, um Jesus ausente, visto que o que ele viu foi que Jesus não estava no túmulo. Embora formalmente ele viu e creu, a experiência dele assemelha-se à dos bem-aventurados “que não viram, e

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creram” em Jesus (cf. v. 29). A história de Maria recomeça depois de Pedro e o segundo discípulo terem voltado a suas respectivas casas em Jerusalém (cf. 16:32; 19:27). A narrativa pressupõe que ela os houvesse seguido desde onde estiveram, no túmulo; agora, ei-la sozinha de novo, chorando fora, ju n to à entrada do sepulcro (v. 11). Por fim, ela olhou dentro do sepulcro, como o fizera o discípulo amado (cf. v. 5), e viu algo que, pelo que sabemos, ele não viu: dois anjos vestidos de branco, assentados onde estivera o corpo de Jesus, um à cabeceira e outro aos pés (v. 12). Esta segunda experiência de Maria, mais ainda do que sua descoberta inicial do túmulo aberto, corresponde à das mulheres, como um grupo, nos evangelhos sinóticos (cf. Marcos 16:5, “viram um jovem assentado à direita, vestido com um manto branco, e ficaram espantadas”; Mateus 28:2, “um anjo do Senhor desceu do céu”; Lucas 24:4, “de repente pararam junto delas dois homens, com vestes resplandecentes”). A menção de dois anjos faz lembrar Lucas, de modo particular, mas o que acontece a seguir fica mais próximo da estrutura de Mateus. Os dois anjos se dirigem primeiro a Maria Madalena, depois, o próprio Jesus ressurreto conversa com ela: Anjos Jesus M ulher, por que choras? M ulher, por que choras? A (v. 13a) quem procuras? (v. 15a) Maria Maria Levaram o meu Senhor e não Senhor, se tu o levaste, dize-me sei onde o puseram (v. 13b) onde o puseste, e eu o irei buscar (v. 15b) Estruturalmente, esse diálogo relembra Mateus 28:5-10, onde primei­ ro o anjo na sepultura dirigiu-se a Maria Madalena e Maria, a mãe de Tiago e de José, e depois o próprio Jesus lhes falou. Disse-lhes o anjo: “Não tenhais medo, pois eu sei que buscais a Jesus, que foi crucificado. Ele não está aqui; já ressurgiu, como havia dito. Vinde ver o lugar onde ele jazia. Agora ide imediatamente, e dizei aos discípulos que ele ressur­ giu dentre os mortos, e vai adiante de vós para a Galiléia. Ali o vereis. Ora, eu vo-lo tenho dito” Mateus 28:5-8). Partindo do sepulcro, no meio do caminho encontraram-se as mulheres com Jesus, que repetiu as palavras do anjo: “Não temais! Ide dizer a meus irmãos que se dirijam para a Galiléia, e lá me verão” (Mateus 28:10). Tanto em Mateus como em João, o encontro com o anjo (ou anjos) no túmulo é reforçado por um

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encontro com o próprio Jesus. A principal diferença é que em Mateus o anjo dá testemunho da ressurreição de Jesus, enquanto que os dois anjos, em João, meramente perguntam a Maria por que ela está chorando. Entretanto, no Evangelho de João, a própria posição dos dois anjos um à cabeceira e outro aos pés, no lugar onde estivera o corpo de Jesus (v. 12) dramatiza o testemunho encontrado em Mateus, “Vinde ver o lugar onde ele jazia” (Mateus 28:6). Outra diferença entre os dois relatos é que Maria Madalena não reconheceu de imediato a Jesus quando o Senhor lhe apareceu (cf. Lucas 24:15). Ela cumpriu o papel que Jesus havia prescrito para seus discípulos em 13:33 (“Vós me buscareis, e o que eu disse aos judeus, eu o digo a vós também agora: Para onde eu vou vós não podeis ir”) e em 16:16 (“Um pouco, e não me vereis mais, e um pouco ainda e me vereis”). Ele lhes havia dito: “Vós chorareis e vos lamentareis enquanto o mundo se alegra. Vós ficareis tristes, mas a vossa tristeza se converterá em alegria” (16:20). É que Maria estava chorando porque procurara seu Senhor e não o encontrara. Quando o Senhor lhe dirigiu a palavra pela primeira vez (v. 15), pensou que se tratasse do jardineiro (cf. 19:41), mas quando ele se identificou ao pronunciar o nome dela, sua tristeza realmente se transformou em alegria (v. 16). A experiência de Maria Madalena, não menos do que a do discípulo amado, tipifica a experiência de todos os seguidores de Jesus. Sendo o “bom Pastor”, Jesus “chama pelo nome às suas ovelhas”, e ao fazê-lo, elas “conhecem a sua voz” e lhe respondem (10:3-4). Maria reagiu de imediato com uma expressão de reconhecimento (Rabôni, ou M estre, v. 16); a advertência imediata de Jesus, Não me detenhas (v. 17) dá a entender que no momento em que ela o reconheceu, abraçou-o (ou talvez tenha abraçado “os seus pés”, para adorá-lo, como em Mateus 28:9). A proibição serve ao propósito de adverti-la de que o momento da reunião ainda não chegou. Ainda que ela tenha visto Jesus, e o tenha reconhecido, ainda permanece a verdade: “Para onde eu vou vós não podeis vir” (13:33). O Senhor é quem parte, e não está de volta, ainda. A experiência dela assemelha-se à dos dois discípulos a caminho de Emaús que, finalmente, reconheceram o Senhor ressurreto e nesse preciso instante, ele desapareceu de diante de seus olhos (Lucas 24:31). Antes de partir, Jesus deixa um recado para seus irmãos (i.e., o resto de seus discípulos), como o faz em Mateus mas, em vez de convocá-los para

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irem à Galiléia (cf. Mateus 28:10), explica (a Maria e a eles também) por que os chama agora de seus irmãos (contraste com 2:12 e 7:3-5, onde seus “irmãos” são seus irmãos naturais): Eu volto (lit.: “estou subindo”) para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus (v. 17). Pela primeira vez em todo o Evangelho, Deus é visto como o Pai dos crentes, como o é de Jesus. Deus é Pai dos crentes, porque é Pai de Jesus. Ao reunir-se ao Pai que o enviou, Jesus estabelecerá agora um novo e íntimo relacio­ namento com seus discípulos, também. De agora em diante, serão “irmãos” e “irmãs” de Jesus (cf. Marcos 3:35), a ele unidos mediante a fé, tendo o privilégio, juntamente com o Senhor, de chamar a Deus de Pai. Maria Madalena deveria levar essas boas notícias por ter sido a primeira pessoa a ver o Senhor (v. 18; cf. v. 25). Passo a passo, Jesus manifestou-se a seus discípulos numa série de incidentes dispostos numa seqüência que forma um quiasmo (i.e., um padrão que pode ser repre­ sentado assim: a b c-b' a a Maria Madalena olhou para o túmulo, estando do lado de fora, e viu que a pedra havia sido removida (v. 1). b O discípulo amado olhou para dentro do túmulo e viu os lençóis de linho (v. 5). c Pedro entrou no túmulo e viu os lençóis de linho e o lenço dispostos com cuidado, de certo modo (vv. 6-7). b ’ O discípulo amado entrou no túmulo, viu o que Pedro havia visto, e creu (v. 8). a ’ Maria Madalena olhou para dentro do túmulo, viu os dois anjos e, finalmente, viu o próprio Senhor (vv. 11-18). O efeito dessa disposição é enfatizar o papel desempenhado por Maria Madalena (e do discípulo amado, em menor proporção) na história da ressurreição de Jesus. Foi ela, e não Pedro (cf. 1 Coríntios 15:5; Lucas 24:34) a primeira a ver Jesus ressurreto. Os discípulos nunca são chama­ dos de “apóstolos” no Evangelho de João. A palavra grega apostolos, “apóstolo”, ocorre apenas em 13:16, no sentido de “mensageiro”. Con­ tudo, Maria foi uma espécie de “apóstolo enviado aos apóstolos”, uma mensageira enviada a o s discípulos de Jesus, reunidos, com as boas novas de que ele estava voltando para o Pai, Pai de Jesus — e Pai de todos os discípulos (vv. 17-18). O próprio Senhor estava por trás de sua mensa­ geira e logo haveria de confirmar pessoalmente aquelas boas novas (vv. 19-23).

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Notas Adicionais # 47 20:1 / Maria Madalena: O nome Madalena (cf. 19:25) indica que o lar dessa mulher ficava no vilarejo de Magdala, perto de Cafamaum, na Galiléia. Eviden­ temente, ela estava entre “as mulheres que o haviam seguido desde a Galiléia” até Jerusalém (Lucas 23:49,55). 20:2 / o outro discípulo, a quem Jesus amava: O “discípulo a quem Jesus amava” (cf. 13:23; 19:26) é recorrentemente mencionado na presente narrativa como o outro discípulo (vv. 3, 4, 8), talvez para ligá-lo ao “outro discípulo” que levou Pedro ao pátio da casa do sumo sacerdote, de acordo com 18:15-16. Em todos os casos em que ocorre a expressão “o discípulo a quem Jesus amava” (exceto este) o verbo grego para “amar” é agapcin, enquanto no presente caso, o verbo empregado é philein. Essa diferença talvez seja apenas de estilo (cf. o emprego alternado dos mesmos dois verbos em 21:15-17), não constituindo base para argumentar-se que há dois discípulos em pauta, aqui! As variações de terminologia poderiam ser atribuíveis a fontes escritas utilizadas pelo autor do Evangelho, aqui ou em outras passagens. 20:3 / Pedro saiu com o outro discípulo, e foram ao sepulcro: Em Lucas 24:12 (pelo menos de acordo com a maioria dos manuscritos mais antigos), Pedro sozinho “levantou-se e correu para o sepulcro. Abaixando-se, viu no chão os lençóis de linho, e foi-se embora, pensando consigo mesmo que é que teria acontecido”. Este relato pode ter-se originado da observação pessoal de Pedro, ou da observação externa do discípulo amado (sem referências ao seu próprio envolvimento). Em contraste com ambos os relatos, a narrativa joanina parece basear-se no testemunho pessoal do discípulo amado, como participante dos acontecimentos. 20:16 / Rabôni: (gr.: rabbouní). O sentido é o mesmo de “Rabi” em 1:38, exceto que uma espécie de sufixo o qualifica (lit.. “meu Mestre”), e o toma menos formal. É empregado no Novo Testamento somente aqui e em Marcos 10:51 (num apelo por cura). Maria teria escolhido esta palavra em vez da outra, mais comum, “Rabi” (oito ocorrências no Evangelho de João) porque não a usou como título, ao dirigir-se ao Senhor, para dizer-lhe alguma coisa, mas como grito de reconhecimento, uma interjeição de alegria. 20:17 / Não me detenhas. Esse imperativo dá a entender que Jesus está pedindo a Maria ou que pare de fazer algo que ela já começou a fazer, ou que pare de tentar fazer algo que está procurando fazer (alguns manuscritos antigos acrescentam, no final do versículo precedente, estas palavras: “e ela correu na direção dele, e tocou-o”). A questão em tomo das palavras, Não me detenhas não é que o corpo de Jesus seja intocável (em contraste com o que ocorreu depois, quando o Senhor convida Tomé a tocar-lhe as mãos e o lado, v. 27), mas simplesmente porque ele está a caminho de seu Pai, não pode deter-se e ficar conversando com Maria. Só há tempo para dar-lhe a mensagem que ela deverá levar aos demais discípulos.

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20:18 / foi e anunciou aos discípulos: Embora o termo “discípulos” seja reservado para os seguidores do sexo masculino, no Evangelho de João, o entremeamento da história de Maria com a de Pedro e o discípulo amado, o uso que ela faz de sua própria experiência a fim de tipificar a experiência de todos os discípulos (cf. 13:33; 16:16, 20-22), e de modo especial a declaração, Vi o Senhor! sugerem que Maria é considerada também, de modo implícito nesta narrativa, como um dos discípulos (e, portanto, no sentido do v. 17, como “irmã” de Jesus; cf. Marcos 3:35).

48. A Segunda Aparição e Sua Seqüência (João 20:19-31)

Muda-se o cenário. Ficou para trás o jardim com seu sepulcro, e estamos agora numa sala trancada, em algum lugar de Jerusalém. Mudase a hora. Não é mais “na madrugada do primeiro dia da semana” (v. 1) mas a tarde daquele dia, o prim eiro da semana (v. 19). A despeito da fé do discípulo amado (v. 8) e da mensagem trazida por Maria Madalena (v. 18), os discípulos como um grupo ainda têm medo. Não ficou registrado no Evangelho de João a reação deles diante da mensagem que ela lhes trouxe, mas, outra tradição acrescentada a Marcos por escribas posteriores, declara que depois de Maria ter visto Jesus, ela partiu e “anunciou-o àqueles que tinham estado com ele, os quais estavam tristes, e choravam. Quando ouviram que Jesus vivia e que tinha sido visto por ela, não acreditaram” (Marcos 16:10; cf. a reação dos apóstolos perante o relato das mulheres que haviam visto os anjos no túmulo, de acordo com Lucas 24:11). Em João, a incredulidade dos discípulos, como um grupo, não é mencionada explicitamente, mas apenas seu temor das autoridades ju ­ daicas. Em vez disso, a incredulidade é atribuída a um discípulo, Tomé, em particular (vv. 24-25). A aparição a Tomé nos versículos 26-29 na verdade é uma extensão da aparição aos discípulos reunidos, nos versí­ culos 19-23, ainda que ocorra uma semana depois. Os versículos 24-25 unem os dois incidentes, de modo que com efeito o que é dito aos discípulos nos versículos 19-23 também é dito a Tomé, e o que lhe é dito nos versículos 26-29 é dito a todos. Se assim foi, é incorreto separar Tomé como o único cético entre os discípulos. Antes, Tomé representa os discípulos, dos quais é porta-voz, tanto no ceticismo (v. 25b) quanto na fé (v. 28). O resto dos discípulos, exceto quanto ao relato deles a Tomé, no v. 25a, Vimos o Senhor! fica em silêncio durante toda a história; contudo, a confissão de Tomé, Senhor meu e Deus meu! (v. 28) também lhes pertence, no final. O medo e desamparo dos discípulos antes de verem Jesus, e receber o Espírito Santo evidencia-se no fato de que na noite de domingo,

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estando cerradas as portas do lugar onde estavam os discípulos, com medo dos ju d e u s... (v. 19). Não desfrutavam de uma posição melhor do que a daqueles que antes “creram nele” mas, temerosos “dos fariseus não confessavam a sua fé, pois tinham medo de ser expulsos da sinagoga” (12:42). Desses havia dito o narrador que “amavam mais a glória dos homens do que a glória de Deus” (12:43). Os discípulos haviam fugido por ocasião da prisão de Jesus (cf. 16:32; 18:8) voltando a suas casas em Jerusalém (cf. 19:27; 20:10); agora (a despeito do que dois deles haviam visto, nos w . 3-9), viviam atemorizados, como fugitivos. Só a presença de Jesus e do Espírito poderia transformá-los numa comunidade missio­ nária pronta para executar a obra de seu Senhor (cf. 17:9-19). Entretanto, oito dias mais tarde, depois de haverem recebido o Espírito Santo, ainda estavam escondidos, reunidos talvez no mesmo lugar, a portas trancadas (v. 26)! A única explicação possível é que a reunião deles com Jesus e o recebimento do Espírito ainda não haviam começado a vigorar — de algum modo estavam incompletos — até que o ceticismo deles (perso­ nificado por Tomé) fosse vencido e a fé se lhes expressasse na voz de confissão decisiva: Senhor meu e Deus meu (v. 28). Isto significa que os versículos 19-29 apresentam essencialmente uma aparição de Jesus, após a ressurreição, mas em dois estágios, com uma semana entre um e outro. As duas aparições juntas ilustram a mesma ambigüidade que cerca a fé dos discípulos, que tem estado presente na narrativa o tempo todo (cf., 16:29-33) e que dramatiza a declaração concisa do Evangelho de Mateus, quando Jesus apareceu a seus discípulos numa montanha da Galiléia, “Quando o viram, o adoraram; mas alguns duvidaram” (Mateus 28:17). A ordem, Não sejas incrédulo, mas crente (v. 27), conquanto dirigida a Tomé, em particular, é ordem apropriada a cada discípulo e a cada leitor (cf. o clamor do pai de um menino possesso de demônio em Marcos 9:24: “Eu creio; ajuda-me a vencer a minha falta de fé!”). A automanifestação de Jesus a seus discípulos, no domingo da páscoa, e uma semana depois, é apropriadamente entendida como cumprimento de virtualmente tudo que ele lhes prometera em seus sermões de despedida: A Promessa Virei para vós (14:18,28). [Meu Pai e eu] viremos para ele (14:23).

O Cumprimento Chegou Jesus, pôs-se no meio (20:19,26).

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Paz seja convosco (20:19), Deixo-vos a paz; a minha paz vos dou (14:27). Disse-vos estas coisas para que em mim tenhais paz (16:33). Os discípulos se alegraram Um pouco e não me vereis ao verem ao Senhor (20:20). mais, e um pouco ainda e me vereis (16:16). Outra vez vos verei, e o vosso coração se alegrará, e a vossa alegria ninguém poderá tirar (16:22). Dizendo isto, soprou sobre Eu rogarei ao Pai, e ele vos eles, e disse: Recebei o dará outro Consolador... o Espírito Santo (20:22). Espírito da Verdade (14:16-17). O Consolador, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas (14:26; cf. também 15:26; 16:7-15). Se o túmulo vazio significou para o discípulo amado a partida de Jesus para estar com o Pai, a aparição de Jesus aos discípulos reunidos atrás de portas trancadas significou seu retomo. Ele voltou, não para fazer-lhes uma visitinha breve e depois partir de novo, mas para ficar. O retomo de Jesus não é um incidente momentâneo, mas o início de um novo relacio­ namento. “Ainda um pouco”, dissera ele aos discípulos, “e o mundo não me verá mais, mas vós me vereis. Porque eu vivo, vós também vivereis. Naquele dia conhecereis que estou no meu Pai, e vós em mim, e eu em vós” (14:19-20). O novo relacionamento é possibilitado pelo Espírito que, assim dissera Jesus, “habita convosco, e estará em vós” (14:17). A alegria dos discípulos nesta reunião é alegria que “ninguém poderá tirar” (16:22). Três vezes o Jesus ressurreto se manifesta a seus discípulos com a saudação Paz seja convosco (v. 19,21,26). Na primeira visita, o Senhor demonstrou sua presença e identidade ao mostrar-lhes suas mãos lacera­ das e o lado perfurado (v. 20). Na segunda, comissiona-os, Assim como o Pai me enviou, eu vos envio (cf. 17:18) e sopra sobre eles, como sinal da atribuição do Espírito Santo (vv. 22-23). O ato de soprar comprova que Jesus está vivo outra vez (contraste 19:30) e, mais do que tudo,

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capacitado a transmitir vida. O verbo soprou (gr.: enephysesen corres­ ponde à tradução grega de Gênesis 2:7, quando Deus “soprou... o fôlego da vida” em Adão e toda a criação (cf. 6:63: “o Espírito é que vivifica”). O Espírito, retratado nos sermões de despedida como Pessoa (“o Conso­ lador”, 14:16,26; 15:26; 16:7) é visto aqui como o poder divino mediante o qual os discípulos serão capacitados a completar sua missão, i.e., prosseguir a obra do próprio Jesus (cf. a alusão de Paulo a Gênesis 2:7: “Assim também está escrito: O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente”, e acrescenta, então: “o último Adão [i.e., Jesus] espírito vivi­ ficante”, 1 Coríntios 15:45). De modo específico: a obra de Jesus a que o Espírito dá continuidade é perdoar (ou não perdoar) os pecados das pessoas, a obra de duas facetas de atribuir vida, por um lado, e trazer julgamento, ou condenação, por outro (cf. 5:19-29). O mesmo Jesus que disse ao oficial do rei, “o teu filho vive” (4:50, 53), e chamou a Lázaro para fora de seu túmulo (11:43) também disse aos fariseus: “permanece o vosso pecado” (9:41; cf. 15:22-24). Ele veio “a fim de que os que não vêem vejam, e os que vêem se tomem cegos” (9:39). Neste aspecto, a missão dos discípulos no poder do Espírito não seria diferente da missão de Cristo. A terceira saudação com Paz, à semelhança da primeira, se faz acompanhar da verificação da identidade de Jesus pelas cicatrizes em suas mãos e no lado (v. 27). Neste caso, o modo de verificação corres­ ponde com exatidão ao sinal que Tomé, neste meio tempo, exigira de —1 seus colegas de discipulado (v. 25). A profissão de fé dai resultante, Senhor meu e Deus meu (v. 28) foi o reconhecimento da parte de Tomé de que, primeiro, aquele homem de pé à sua frente era Jesus, seu amado Mestre (cf. “Rabôni”, ou “meu Mestre”, nos lábios de Maria Madalena, no v. 13), e segundo, que ele entendia agora ser seu amado Mestre ninguém mais senão o próprio Deus (cf. as palavras proféticas de Jesus em 8:28, “Quando levantardes o Filho do homem, então sabereis que eu sou quem digo ser”). A reação de Jesus diante desta grande profissão de fé do Evangelho de João é muito semelhante à reação do Senhor diante de todas as demais profissões. Ela a aceita sem, porém, nenhuma palavra especial de elogio (ver, 1:50; 6:70; 16:31-32). Em vez de abençoar Tomé, como o faz no Evangelho de Mateus, quanto a Simão Pedro (“Bem-aventurado és tu, Simão Barjonas”, Mateus 16:17), Jesus atribui sua bênção a outros que

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nem sequer estão presentes: Bem-aventurados os que não viram , e creram (v. 29). O propósito dessa distinção não é tanto repreender Tomé e a assembléia de discípulos, pelo ceticismo demonstrado antes, mas enfatizar que as palavras memoráveis e as obras tangíveis de Jesus não se destinam apenas aos participantes imediatos do drama de sua ressur­ reição, mas também para outros crentes, de outras gerações. Esse pro- nunciamento estabelece a base de um comentário importante da parte do autor do Evangelho, a alguns que não viram as cicatrizes dos cravos nas mãos de Jesus e a do ferimento em seu lado — de modo específico os leitores do Evangelho (vv. 30-31). Em certo estágio do crescimento das tradições desse Evangelho, os dois últimos versículos do capítulo talvez funcionassem como uma espécie de declaração de propósitos, resumida, para o Evangelho como um todo. Todo o ministério de Jesus se caracteriza por uma série de sinais miraculosos que foram registrados a fim de promover a fé no Senhor como o Cristo, o Filho de Deus (em contraste com os que viram seus milagres mas recusaram-se a crer, cf. 12:37). Tal interpretação teria muito a recomendá-la se o final desse capítulo fosse também o final do livro; todavia, no Evangelho de João, como o temos, esse não é o caso. Segue-se mais um capítulo com um pós-escrito apropriado ao livro, como um todo (21:25). A que sinais miraculosos referem-se, então, os versí­ culos 30-31? Alguns têm argumentado que esse resumo em certa época ficava no fim de uma antologia de histórias milagrosas (talvez os sete “sinais” do ministério público de Jesus: o casamento em Caná, a cura do filho do oficial real, a cura do paralítico de Betesda, a multiplicação de pães para cinco mil pessoas, Jesus caminhando sobre as águas do mar, a cura do cego de nascença em Siloé e a ressurreição de Lázaro), mas essa teoria, ainda que válida, nenhuma ajuda apresenta no sentido de explicar como aquela declaração funciona em sua atual posição no Evangelho, como o temos hoje. É mais provável que o termo sinais miraculosos é empregado aqui a fim de denotar os sinais da ressurreição, à semelhança das “muitas e infalíveis provas” de Atos 1:3. Trata-se de palavras ou obras do Senhor ressurreto que o tomaram conhecido perante os discí­ pulos ou reforçaram as ordens e instruções que ele lhes deu (ver, vv. 16, 17, 22, 27; cf. Lucas 24:30, 39-42). O narrador dá a entender que ele conhece muitos desses sinais, e poderia ter incluído outros mais, mas o que ele registrou é apenas uma pequena amostragem. O propósito dessa

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amostragem é que creiais (i.e., os leitores do Evangelho) que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e p ara que, crendo, tenhais vida em seu nome (v. 31). A intenção do narrador é que mediante seus escritos (especial­ mente o relato das aparições pós-ressurreição), seus leitores conheçam a experiência definitiva de seus discípulos originais (cf. o convite dos discípulos originais para que se faça exatamente isso em 1 João 1:1-3). Ele deseja que os novos discípulos recebam a última bênção de Jesus: Bem-aventurados os que não viram, e creram (v. 29). A profissão deles, que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, faz eco à exclamação de Tomé, Senhor meu e Deus meu! (v. 28), enquanto a promessa acom­ panhante de vida em seu nome faz lembrar a vida que Jesus soprou sobre os discípulos ao conferir-lhes o Espírito Santo (v. 22). Muito se tem escrito sobre a questão de se os versículos 30-31 poderiam ter sido dirigidos aos que já fossem “crentes”, ou se a frase p ara que creiais dá a entender que seus destinatários fossem incrédulos. A resposta provavelmente prende-se menos a se o verbo certo é crer (ECA e NIV) ou “continuar a crer” (NIV, marg.) e mais à analogia entre os leitores do Evangelho e os discípulos que literalmente viram o Jesus ressurreto. Os discípulos eram “crentes” em Cristo logo de início (cf. 2:11); entretanto, neste encontro pós-ressurreição, o grupo (representado por Tomé) “creu” mais uma vez (vv. 28-29), da mesma forma que haviam crido em outras ocasiões, após a primeira manifestação de fé (cf. 6:69; 16:30). O narrador tenciona que o mesmo aconteça a seus leitores também. Para ele, a fé não é uma coisa estática que vem uma vez à pessoa, e nela permanece latente, mas é uma reação perante Deus que se expressa vezes e vezes sem conta, cada vez que a pessoa se defronta com a história de Jesus (cf. 4:50,53). Portanto, é provável que a narrativa da ressurrei­ ção — à semelhança do resto do Evangelho de João — se dirija aos que já “crêem”, a fim de engajá-los de novo, à base dos eventos em que se sustenta sua fé, eventos que aparentemente estariam sendo sepultados depressa demais num passado menos definido e menos insistente.

Notas Adicionais # 48 20:19 / a tarde daquele dia, o primeiro da semana: (cf. v. 1). É possível que a frase “daquele dia” tenha significado escatológico, visto que os eventos a serem registrados são cumprimento das palavras de Jesus, promessas de seus sermões de despedida (cf. 14:20: “Naquele dia conhecereis que estou em meu Pai, e vós em mim, e eu em vós”). É mais provável, entretanto, que a frase se

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projete para trás, do ponto de vista do narrador, para “aquele (memorável) dia”, o domingo em que Jesus ressuscitou dentre os mortos (cf. “aquele ano” em 11:49 e 18:13). Se assim for, a linguagem reflete um estágio anterior, num processo que culminou na observância formal da páscoa. 20:22 / Recebei o Espírito Santo: A maneira mais natural de entender-se estas palavras é que os discípulos deveriam receber (e de fato receberam) o Espírito Santo, naquele exato momento. Visto que o livro de Atos registra a vinda do Espírito cinqüenta dias depois, no Pentecoste (Atos 2:1-4), alguns têm considerado esta declaração como sendo proléptica (i.e., promessa de que mais tarde os discípulos haveriam de receber o Espírito). Poder-se-ia apelar para 2:19, onde Jesus usa um imperativo aoristo (“Destruí este templo”) referindo-se a algo que não ocorreu enquanto ele não foi crucificado. Todavia, os casos não são semelhantes, porque o imperativo de 2:19 é condicional (i.e., “Se destruirdes este templo, em três dias eu o levantarei outra vez”), enquanto o imperativo aqui é uma ordem real. Este é o único cumprimento registrado da promessa de Jesus da dotação com o Espírito, feita em seus sermões de despedida (cf. também 7:39), e fica claro que o autor do Evangelho intenciona que isto seja o cumpri­ mento. Nesse sentido, é o equivalente joanino do Pentecoste, e não mera degustação do Pentecoste. Historicamente, há indícios em Lucas e em Atos, de que até mesmo antes do Pentecoste, o Espírito desempenhou algum papel no ministério de Jesus ressurreto, em prol de seus discípulos. O prefácio ao livro de Atos declara: “até o dia em que foi recebido em cima, depois de ter dado mandamentos, pelo Espírito Santo, aos apóstolos que escolhera” (Atos 1:2). Em Lucas 24, quando Jesus se revelou a seus discípulos reunidos, dele se diz que "lhes abriu o entendimento para compreenderem as Escrituras” (i.e., pelo poder do Espírito? 24:45); com relação a isto, disse mais: "Envio sobre vós a promessa de meu Pai” (24:49a). Esta última declaração vem literalmente traduzida no tempo presente: “Envio (agora)”. Esta interpretação dá mais sentido ao que se segue de imediato: “Mas ficai na cidade, até que do alto sejais revestidos de poder” (24:49b). Fica bem claro que algo é dado e algo mais ainda é esperado. A ênfase de Lucas é maior naquilo que ainda se espera, enquanto a ênfase de João recai no que já foi dado. 20:23 / Aqueles aos quais perdoardes os pecados, são-lhes perdoados; aqueles aos quais não perdoardes, ser-lhes-ão retidos. O equivalente meta­ fórico desta declaração é a promessa de Jesus a Pedro, em Mateus 16:19 e a todos os discípulos em Mateus 18:18 (segundo a ECA, quanto aos verbos “ligar” e “desligar”). “Ligar” entende-se que seja “não perdoar, reter pecados”; e “desligar” entende-se que seja “perdoar”. O contexto joanino não é a disciplina eclesiática (como em Mateus) mas a missão, a proclamação da mensagem de Jesus ao mundo. A primeira parte da declaração de Jesus tem um paralelismo num contexto semelhante da ressurreição, no Evangelho de Lucas: “E em seu nome se pregará o arrependimento e a remissão dos pecados, em todas as nações, começando por Jerusalém” (Lucas 24:47). 20:24 / Ora, Tomé, chamado Dídimo, um dos doze: Veja a nota sobre

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11:16. Tomé havia sido apresentado de modo mais repentino, ao aparecer pela primeira vez no Evangelho, do que aqui. Ele é chamado um dos doze nesta passagem a fim de enfatizar um ponto: de ordinário ele deveria estar presente quando ocorreu o incidente narrado nos versículos 19-23, mas nessa ocasião esteve ausente. Os doze (conquanto agora fossem apenas onze, por causa do abandono de Judas) ainda são vistos como um grupo constante, representativo de toda a igreja (cf. 6:70). Ainda que Judas tenha desaparecido, Tomé deve estar presente a fim de a revelação ser completa. 20:261Oito dias mais tarde: (trad. lit.). O costume antigo era contar a partir do primeiro dia até o último, numa série, de modo que oito dias seria o equivalente a uma semana. O significado é que a aparição ocorreu no domingo seguinte, após a páscoa (cf. v. 19). 20:29 / Porque me viste, creste. Não há dúvida quanto à fé de Tomé, nem quanto a base dessa fé. Jesus não afirma que Tomé o tocou, e não há evidência, no texto, de que o ceticismo do discípulo foi tão longe, ao ponto de aceitar o desafio do Senhor, no v. 27. Ele creu porque viu, à semelhança do resto dos discípulos (vv. 20,25; cf. v. 8).

49. A Terceira Aparição (João 21:1-14)

Contrastando com uma série de designações cuidadosas que regridem pelo menos até 19:14 (“Era o dia da preparação da páscoa, e quase à hora sexta”), e prosseguem, passando por 19:31, 42; 20:1, 19, 26 (“o dia da preparação”, “preparação dos judeus”, “na madrugada do primeiro dia da semana”, “chegada a tarde daquele dia, o primeiro da semana”, “oito dias mais tarde”), o relato da última aparição de Jesus, pós-ressurreição, inicia-se com uma vaga expressão, depois disto (v. 1; cf. 5:1; 6:1; 7:1). Quanto tempo está envolvido em “depois disto” não ficamos sabendo; tampouco ficamos sabendo das circunstâncias que cercaram a viagem dos discípulos, de Jerusalém à Galiléia. A mensagem angelical de Marcos 16:7 destinada a “seus discípulos e a Pedro” foi que “ele vai adiante de vós para a Galiléia. Lá o vereis, como ele vos disse”. Pode ser que a aparição de Jesus nos vv. 1-14, a sete dos discípulos, junto ao m ar de Tiberíades (i.e., “o mar da Galiléia”, cf. 6:1), com o diálogo com Pedro (vv. 15-22), foi lembrada pelos seguidores de Jesus como sendo o cumprimento daquela promessa específica. O narrador não o afirma de modo explícito, mas parece que ele achou por bem que pelo menos um dos “muitos outros sinais miraculosos que não estão escritos neste livro” (20:30), deveria ficar registrado a fim deste livro ficar verdadeiramente completo. Concorda-se amplamente em que o capítulo 21 forma uma espécie de apêndice ao Evangelho. No entanto, ele está intimamente ligado ao que o precede de imediato, não apenas pela expressão conetiva depois disto, no versículo 1, mas pela nota mais minuciosa no versículo 14, de que era a terceira vez que Jesus se manifestava aos discípulos, depois de ter ressurgido dentre os mortos. A maior parte dos comentaristas presume que é a terceira em relação a 20:19-23 e 20:26-29, sendo estas a primeira e segunda, respectivamente. Argumentam alguns com muita imaginação que em estágios anteriores da tradição, este teria sido o terceiro dos milagres de Jesus na Galiléia, em relação a 2:1-11 e 4:43-54, que seriam o primeiro e o segundo (cf. 2:11; 4:54). Todavia, no texto do Evangelho, como se nos apresenta, os vv. 1-14 se entendem de modo mais plausível como referindo-se à terceira aparição de Jesus, em relação a 20:11-18 e

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20:19-29, respectivamente. Se o autor do capítulo 21 é o mesmo do capítulo 20 (i.e., se o autor do Evangelho também for responsável pelo apêndice), a referência no versículo 14 à terceira aparição pressupõe a linha histórica de ambas as aparições anteriores. O anúncio feito pelo discípulo amado: É o Senhor! no versículo 7 corresponde, assim, ao de Maria: “Vi o Senhor!” em 20:18 e ao do grupo todo: “Vimos o Senhor”, em 20:25. Conquanto seja verdade que as duas aparições aos discípulos como um grupo são, com efeito, 20:19-23 e 20:26-29, os discípulos no capítulo 21 não constituem o mesmo grupo a quem Jesus apareceu no capítulo 20. Não constituem “os doze”; nem são onze ou dez; são sete, não havendo certeza de que os dois discípulos anônimos do versículo 2 estavam incluídos entre “os doze” mencionados em 20:24. A aparição descrita aqui é a terceira aparição aos discípulos de Jesus, não a um grupo de discípulos em particular. A aparição a Maria Madalena representou uma manifestação sínguíar e distinta a alguém que operou como se fora discípulo (ainda que esse termo não lhe fosse atribuído), enquanto a aparição a Tomé apenas completou a aparição decisiva aos assim cha­ mados doze. Por que estavam os discípulos pescando, em vez de cumprindo a tarefa para a qual Jesus os havia enviado (20:21-23)? O Evangelho de João não preserva a tradição que encontramos, por exemplo, em Marcos 1:16-20, texto segundo o qual Jesus chamou vários de seus discípulos do ofício de pescar, passando-lhes a tarefa de “pescadores de homens” (Marcos 1:17). Entretanto, a aparição decorrente da ressurreição, descrita nos versículos 1-14 baseia-se nessa tradição exata. A atividade da pesca serve ao narrador de duas maneiras: em primeiro lugar, como descrição literal do que os discípulos estiveram fazendo e, em segundo, como metáfora. Isto significa que a história precisa ler lida em dois níveis. No primeiro nível, a história relata de modo literal uma pescaria miraculosa, que só foi possível pela presença do Senhor ressurreto na Galiléia. Não é tão estranho o fato de os discípulos estarem de volta à Galiléia e engajados de novo na tarefa secular da pescaria, se nos lembrarmos da advertência de Jesus: “Sereis dispersos cada um para sua casa. Vós me deixareis só” (16:32). O discípulo amado havia tomado a mãe de Jesus “em sua casa” (19:27), e mesmo depois de ele e Pedro terem visto o túmulo de Jesus vazio, “os discípulos voltaram para casa” (20:10).

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Temporariamente a “casa” deles ficava em Jerusalém, mas presume-se que o mesmo princípio pode ser aplicado a suas casas permanentes na Galiléia. De Natanael se diz de modo específico que era de C aná da Galiléia no v. 2, e Pedro, pelo menos, havia sido identificado como sendo galileu, em 1:44 (quanto a Tomé e os filhos de Zebedeu, cf. Marcos 1:19; 3:17-18). Não há condenação alguma relacionada ao aviso de Pedro de que ele ia pescar, nem aos demais discípulos que decidiram ir com ele (v. 3). A pescaria como meio de vida é apenas uma expressão do que significa “dispersos” pelo mundo, estando os discípulos na verdade “dispersos”, não só segundo a palavra profética de Jesus (16:32), mas também segundo sua ação soberana (18:8-9). O fato de estarem dispersos pelo mundo seria a ocasião em que desenvolveriam a missão no mundo (17:9-19), “para reunir em um só corpo os filhos de Deus” (11:52; 17:20-23). Este contexto para as palavras de Jesus salienta o caráter metafórico dos versículos 1-14. Duas coisas estão sendo descritas de modo simultâ­ neo: os esforços dos discípulos para encherem suas redes com peixes e seus esforços a fim de completar a missão de tomar Deus conhecido no mundo, mediante a proclamação da mensagem que Jesus lhes dera. No primeiro estágio do encontro deles com Jesus (vv. 4-6), a identidade do Senhor estivera oculta perante eles, como estivera oculta a Maria Mada­ lena, em 20:14-15 (e aos dois discípulos a caminho de Emaús, em Lucas 24:15-30). Viram-no tão somente como um estranho de pé na praia lacustre, bem cedo de madrugada, após uma noite inteira de insucesso na pescaria (v. 4). A sugestão daquele estranho, que tentassem à direita do barco precipita o milagre (uma rede sobrecarregada de peixes) e assim dramatiza a declaração anterior de Jesus de que “sem mim nada podeis fazer” (15:5). O milagre também lhe revela a identidade, primeiramente ao discípulo amado, a seguir a Pedro e, por fim, a todos os demais. O próprio modo de o estranho dirigir-lhes a palavra teria sido o primeiro indício: Lançai a re d e ... e achareis (v. 6) talvez houvesse relembrado ao discípulo amado o ditado familiar de Jesus: “buscai e encontrareis” (Mateus 7:7; Lucas 11:9). Mas, sem dúvida alguma foi a pescaria maravilhosa, repentina, que lhe despertou o reconhecimento do estranho como sendo Jesus. Ele havia visto a sepultura vazia e crera que Jesus partira para estar com o Pai (20:8); é de presumir-se que partilhara com os demais discípulos esses fatos, ao juntar-se a eles naquela reunião

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decisiva com o Senhor ressurreto, em Jerusalém. Agora, à semelhança de Maria, ele também tem seu próprio encontro com Jesus, e a oportuni­ dade de partilhá-lo com Pedro e os demais. O testemunho do discípulo amado, é o Senhor!, revelou a identidade do estranho a Pedro (v. 7a), embora os outros discípulos possam ter ficado sabendo que era o Senhor só no versículo 12, depois de Jesus tê-los convidado a participar de sua refeição de pão e peixe. A reação imediata de Pedro foi atirar-se à água e nadar para a praia, enquanto os demais discípulos seguiram de barco (vv. 7b-8). Normal­ mente, a pessoa tiraria a casaco a fim de nadar sem roupas que atrapalhem os movimentos, mas Pedro estava vestindo só um casaco, sem outra peça de vestuário por baixo e, por isso, ele cingiu-se, ou amarrou-o no corpo, de modo que tivesse movimentos livres ao máximo, sem ter que sair nu da água. Pedro não quis cumprimentar seu Mestre nu (contraste com o jovem que “fugiu nu” da presença de Jesus e a cena de sua prisão de acordo com Marcos 14:51). Detalhes tão vívidos assim evidenciam mais uma vez as observações de uma testemunha ocular (presumivelmente o discípulo amado), e não de modo primordial os interesses simbólicos de um teólogo. Entretanto, essa narrativa apresenta alguns aspectos simbólicos. Quando os discípulos chegaram à praia, Pedro a nado e os demais de barco, a primeira coisa que viram foram brasas acesas (v. 9) que serviriam de lembrete (para os leitores do Evangelho, se não para os discípulos) de outra fogueira acesa no pátio da casa do sumo sacerdote (18:18), ocasião em que Pedro negou seu Senhor três vezes. Durante alguns momentos Pedro adotara como seu o lar dos inimigos de Jesus mas, agora, tanto ele quanto seus companheiros dispersos estavam de volta ao Senhor, no verdadeiro lar a que pertenciam, livres para usufruir aquele fogo, e partilhar o que Jesus lhes havia providenciado. A história da pesca maravilhosa funde-se aqui com a história de uma refeição em que os discípulos são hóspedes, e o Senhor ressurreto, o hospedeiro. Ambas as histórias se sobrepõem: o relato da refeição ocupa os versículos 9-13; entretanto, o final decisivo da história da pesca maravilhosa está entretecido nesse relato (vv. 10-11). E é justamente a sobreposição das histórias que, de modo notável, levanta a questão da intenção simbólica da narrativa como um todo. A conclusão da história da pesca maravilhosa sugere a muitos o tema da missão, ou evangelização. Essa pesca é

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utilizada aqui, assim diz a exortação, como simbolismo de os discípulos serem “pescadores de homens” (Marcos 1:17), a saber, a missão deles é converter homens a Cristo ao proclamar-lhes a mensagem. A rede transbordante (153 peixes fazem volume enorme, se os peixes forem grandes) indica o cumprimento vitorioso da missão, enquanto a rede que não se parte (contraste com Lucas 5:6) ilustra o princípio gravado por Jesus várias vezes, de que “não perdi nenhum dos que me (o Pai) deste” (18:9; cf. 6:39; 10:28; 17:12). Contudo, quando essa metáfora é espremida demais, o resultado é confusão. Se os cento e cinqüenta e três grandes peixes representam “aqueles que por sua palavra (palavra dos discípulos) hão de crer em mim” (17:20), como se explica que Jesus de imediato os convida a tomar o desjejum — composto de pão e peixe (vv. 12-13)? Há o perigo de a metáfora tomar-se símbolo de canibalismo! É verdade que Jesus tem alguns peixes que ele mesmo arranjou para aquela refeição (v. 9), mas ele também pede aos discípulos que tragam alguns dos peixes que apanhastes (v. 10). Um meio fácil de eliminar essa confusão seria eliminar de vez a idéia de simbolismo; todavia, um jeito melhor seria reconhecer que os peixes são utilizados aqui, pelo narrador, de duas maneiras distintas: primeira, como metáfora sobre uma nova comunidade que passa a existir como resultado da missão dos discípulos (cf. “um rebanho” de 10:16), e segunda, como elemento de uma refeição comu­ nitária, mediante a qual se reúnem Jesus e seus discípulos, de novo. Essa distinção não ajuda muito enquanto não se reconhece que o pão certa vez funcionou com ambos esses significados. No manual eclesiás­ tico do segundo século, conhecido como Didache, o “pão” tanto é elemento da ceia do Senhor (Didache 9.3), como também metáfora de igreja (9:4): “Assim como este pão partido espalhou-se pelas colinas, mas foi recolhido, e veio a tomar-se um, que a tua igreja seja recolhida desde os confins do mundo, para tomar-se o teu reino”. Esta figura de lingua­ gem baseou-se no relato dos evangelhos segundo o qual Jesus alimentou cinco mil pessoas (talvez de modo especial João 6:1-13). Parece que a narrativa da pesca maravilhosa, no lago de Tiberíades, trata de peixes da mesma forma que a narrativa da multiplicação de pães para cinco mil (junto ao mesmo lago, cf. 6:1) trata de “pão”. E assim como os peixes constituíram elemento incidental na narrativa sobre o “pão” (6:9), assim também o pão é elemento incidental na narrativa sobre peixes (21:9 ,13).

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Até mesmo a exatidão estatística de “cinco pães de cevada e dois peixinhos” (6:9) e “doze cestos... que sobraram” (6:13), com o cuidado que “nada se perca” (6:12), encontra seu paralelismo em cento e cin­ qüenta e três peixes e uma rede que não se rompeu (21:11). É bem provável que se a multiplicação de pães para cinco mil no Evangelho de João não fosse acompanhada de um sermão sobre Jesus, o Pão da vida (6:26-59), esse milagre teria sido interpretado simbolicamente com referência à unidade e à vida comunal da igreja, de modo especial a fraternidade que se alimenta em comunhão. No capítulo 21 não há, é claro, nenhum sermão comparável, de Jesus, a respeito de peixes que dão vida, ainda que Tertuliano, mais de um século depois, haveria de escrever isto: “Mas nós, sendo peixinhos, assim como Jesus é nosso grande Peixe, iniciamos nossa vida na água” (On Baptism 1.3). Até mesmo as letras da palavra grega para peixe [ichthys] vieram a ser amplamente utilizadas como abreviatura do equivalente grego de “Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador”. Conseqüentemente, a história da pesca maravilhosa e do desjejum à beira do lago deve ser entendida em conexão com a missão e unidade da igreja (cf., capítulo 17), e em particular, com a expressão dessa unidade numa fraternidade que se alimenta unida. Até mesmo a terminologia usada por Jesus na distribuição do alimento às pessoas sentadas é bastante semelhante, nas duas passagens (o itálico indica o paralelismo verbal): Então Jesus tomou os pães, deu graças, e repartiu-os com os que estavam assentados. E fez o mesmo com os peixes (6:11). Veio Jesus, tomou o pão e lhes deu, e semelhantemente o peixe (21:13). A descrição dos atos de Jesus tem um quê de cerimonioso, ressoa quase litúrgica, inclusive quanto à ordem estabelecida (primeiro o pão e depois o peixe, não importando que elemento desempenhou o papel mais importante no relato). Tal descrição sugere que o narrador poderia ter em mente as refeições de confraternização (ágapes) nas igrejas, com que ele está familiarizado, além dos incidentes históricos específicos que está relatando. A terceira aparição de Jesus ressurreto toma desse modo os discípulos que estavam dispersos em seus lares, na Galiléia, e os envolve integral­ mente na missão para a qual foram vocacionados e, dessa forma, de volta à comunhão com Cristo, e entre si (cf. 13:1-20). O Evangelho de João,

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diferentemente do de Lucas, não é a primeira metade de uma obra constituída de duas partes; entretanto, o capítulo 21 funciona como um “Atos dos Apóstolos” em miniatura, narrado na forma de sinal, ou história mais simbólica, em vez de relato contínuo do estabelecimento e expansão da igreja, na história. Instituído o sinal, ou simbolismo, resta apenas comparar brevemente os atos de dois apóstolos, em particular, como modelos do que significa seguir a Jesus.

Notas Adicionais # 49 21:2 / de Caná da Galiléia: a observação é feita como se o leitor já soubesse que Natanael veio de Caná, mas (a despeito da conjunção entre 1:43-51 e 2:1-11), não há declaração explícita disso no Evangelho. Entretanto, que ele viera da Galiléia, e de uma cidade próxima de Nazaré (como Caná), os leitores poderiam inferir de 1:46. 21:5 / Filhos, tendes alguma coisa de comer? Visto que Jesus aparece incógnito, o vocativo filhos (gr.: paidia; lit.: “servos” ou “filhos”) não deveria demonstrar nada do relacionamento pessoal íntimo do Senhor com seus discí­ pulos. Ele está usando uma palavra comum, utilizada pelo povo ao dirigir-se a estranhos de modo familiar ou amistoso (à semelhança de “meus amigos”, ou “senhores”). Tendes alguma coisa de comer? Temos aqui uma expressão idiomática que significa: “tendes alguma coisa de comer [com seu pão]?” (Gr.: prosphagion; é palavra que poderia referir-se a quase qualquer coisa que se come com pão, o elemento principal, mas freqüentemente significa “peixe”. No resto da história emprega-se outra palavra para “peixe”). 21:7 / aquele discípulo a quem Jesus amava: o adjetivo demonstrativo aquele (gr.: ekeinos) não foi usado nesta frase, antes, mas aparece aqui a fim de antecipar o v. 23 (“divulgou-se... que ‘aquele’ discípulo não havia de morrer”), e a apresentação decisiva dele (“este é o discípulo”) no v. 24 como o autor do Evangelho. Cf. talvez 19:35: “Aquele (gr.: ekeinos) que o viu testificou” (embora não haja certeza absoluta de que se trata da mesma pessoa; veja comentários sobre 19:35). pois se havia despido: lit.: “porque ele estava nu”. A questão não é que Pedro se havia despido, i.e., tirado a túnica (por que então a vestiria de novo para mergulhar na água?). A questão é que Pedro não vestia nada debaixo da túnica, pelo que a amarrou ao redor do corpo a fim de ter movimentos livres para nadar. 21:8 / duzentos côvados: um côvado era a medida aproximada do antebraço de uma pessoa, ou 33 centímetros. Portanto, cerca de 66 metros. 21:11 / puxou a rede para a terra: Pedro tem maior sucesso sozinho no manejo da rede cheia de peixes, do que todos os discípulos juntos, no v. 6. É duvidoso que o verbo “puxar” ou “arrastar” (gr.: elkyeirí) tenha sido escolhido de propósito, tendo 6:44 ou 12:32 em mente, como alguns têm sugerido. O relato diz respeito em primeiro lugar a uma história de pescaria literal, não a uma

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alegoria de Deus ou de Jesus (ou de Pedro!) “arrastando” homens e mulheres para a salvação. cheia de cento e cinqüenta e três grandes peixes: a melhor explicação para um número tão preciso é que os peixes foram contados um por um, e que a testemunha ocular (o discípulo amado) anotou o número total (a saber, cento e cinqüenta e três grandes peixes mais os pequeninos: todos os peixes segundo se lembravam eram grandes). Interpretações mais simbólicas têm sido apresen­ tadas, várias delas baseadas no fato de que 153 é um número “triangular”, isto é, a soma de todos os números sucessivos, de um a dezessete, é 153. Todas essas interpretações são altamente especulativas, e nenhuma delas suficientemente convincente. A observação mais intrigante é a de Jerônimo que, no quarto século afirmou que zoólogos gregos relacionaram 153 diferentes tipos de peixes (Commentary on Ezekiel 47.6-12; cf. a parábola de Jesus em Mateus 13:47, na qual a rede colhe “toda espécie de peixes”). É preciso, entretanto, que tomemos a palavra de Jerônimo sem comprovação; os textos remanescentes dos zoólogos gregos não trazem tal declaração. A tradição teria surgido entre os cristãos com base nessa observação, a fim de explicar a referência em João. 21:13 / tomou o pão e lhes deu... e semelhantemente o peixe: o emprego dos verbos tomou e deu e a frase e semelhantemente o peixe (lit.: “semelhan­ temente” como reminiscência não apenas da multiplicação dos pães para os cinco mil mas, da instituição da ceia do Senhor (ver, Marcos 14:22-23; Lucas 22:19-20; 1 Coríntios 11:23-25). É de duvidar-se, todavia, que o narrador tenha em mente a ceia do Senhor, de modo específico, numa passagem que não menciona de modo algum o cálice. É provável que o Senhor tenha tido em mente uma refeição tipo ágape, de caráter comunitário, num sentido mais genérico (cf., 13:1-5,21-30).

50. Jesus, Pedro e o Discípulo Amado (João 21:15-25)

Ainda há assunto pendente, a ser resolvido com Pedro. Os discípulos esparsos foram unificados mas, a negação tríplice de Pedro, contra Jesus (13:36-38; 18:15-18, 25-27) constitui caso especial que precisa ser resolvido agora. As três negações precisam ser canceladas mediante três afirmações. Ao dirigir-se a Pedro três vezes, chamando-o de Simão, filho de João (v. 15, 16 e 17), Jesus lhe fala como se não fosse mais (ou não fosse ainda!) seu discípulo, visto que o Senhor volta a empregar o nome que Pedro tinha antes de encontrá-lo (cf. 1:42). A estrutura do conjunto de perguntas é o princípio: “Se me amais, guardareis os meus mandamentos” (14:15). Jesus havia dito: “Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me am a... e eu também o amarei e me manifestarei a ele” (14:21; cf. 14:23). A forma da primeira pergunta a Pedro: Amas-me mais do que estes? (v. 15), pressupõe que todos os sete amam a Jesus — o que fica evidenciado pelo fato que Jesus acabara de manifestar-se a eles (v. 14). O propósito da pergunta não é colocar Pedro em competição com os demais discípulos (cf. Marcos 14:29), mas apenas pinçá-lo, separá-lo dos demais, a fim de o Senhor poder examinar seu amor em particular. A pergunta marca uma transição da narrativa da aparição de Jesus para a segunda metade do capítulo, transição que o leitor poderia ser levado a aguardar, pelas ações impetuosas de Pedro nos versículos 7 e 11. O padrão repetido três vezes, composto de pergunta, resposta e ordem, pode ser demonstrado como segue: Pergunta de Jesus

Resposta de Pedro

Ordem de Jesus

1. Simão, filho de João, amas-me mais do que estes?

1. Sim, Senhor, tu sabes que te amo.

1. Apascenta os meus cordeiros,

2. Simão, filho de João, amas-me?

2. Sim, Senhor, tu sabes que te amo.

2. Apascenta as minhas ovelhas.

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3. Simão, filho de João, amas-me?

(João 21:15-25)

3. Senhor, tu sabes 3. Apascenta as tudo, tu sabes que minhas ovelhas. eu te amo. Há certo gosto especial por sinonímia neste diálogo — duas palavras diferentes para “amar” no grego, duas para “apascentar” e palavras diferentes para rebanho: “cordeiros” e “ovelhas”. Entretanto, o interesse do narrador está na repetição do pensamento igual, e não em hipotéticas diferenças sutis no significado de certas palavras. Pedro se entristece (v. 17), diante da persistente repetição de uma pergunta a que ele já respon­ deu; todavia, o propósito da repetição é neutralizar sua tríplice negação anterior, e extrair dele um compromisso firme de que continuará a obra do Pastor, durante a ausência deste. Se ele ama de verdade a Jesus, deve obedecer-lhe os mandamentos; o mandamento único para Pedro é: apascenta as minhas ovelhas (cf. 10:7-16). A Pedro, dentre todos os discípulos de Jesus, é dada uma responsabilidade pastoral: deve ele ajudar a ver que o que a rede não rompida significa se tome realidade — a saber, que nenhum dos que pertencem a Jesus se perca. “O bom Pastor”, dissera Jesus, “dá a sua vida pelas ovelhas (10:11, 15), não sendo de surpreender que a menção da responsabilidade pastoral de Pedro nos leve a uma reflexão sobre a morte que o aguardava (w . 19-19; cf. 13:36, “mais tarde, porém, me seguirás”). O próprio Pedro havia adotado a terminologia do sermão do pastor, em 13:37 (“Por ti darei a minha vida”), entretanto, sem a consciência específica da responsabi­ lidade para seus companheiros de discipulado. Agora, Jesus volta ao tema da morte de Pedro em seu contexto adequado, e tendo o panorama apropriado de seu ministério de pastor fiel do rebanho de Cristo. O Senhor fala com solenidade a Pedro, utilizando a mesma fórmula (“Em verdade, em verdade te digo”; gr.: amem amem) com que antes havia predito a negação de Pedro (13:38; veja nota sobre 1:51). O ditado introduzido pela fórmula baseia-se numa espécie de provérbio a respeito da juventude e da velhice, mas para Pedro deveria ter ressoado mais como um enigma. Duas condições da humanidade estão sendo contrastadas (v. 18): ^ quando eras mais moço te quando fores velho estenderás cingias a ti mesmo as mãos e outro te cingirá e andavas por onde querias e te levará p ara onde não queres.

(João 21:15-25)

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O contraste parece perfeito, exceto pela expressão estenderás as mãos, que não tem equivalente na coluna da “mocidade”. Parece que se trata do gesto de um ancião, equivalente a resignação ou desamparo, antes de receber ajuda de outros — ao custo, inevitavelmente, da liber­ dade pessoal. Todavia, o narrador, consciente de estar sob inspiração do Espírito, presumiu que se trata de sinal de morte, possivelmente por crucificação. Jesus disse isso, acrescenta o narrador, significando com que tipo de m orte havia ele de glorificar a Deus (v. 19; a palavra “significando” no grego é semainon, lit., “dar sinal”). Entretanto, em contraste com 12:33, onde a mesma terminologia é empregada para a crucificação de Jesus (o Senhor disse isso “para mostrar o tipo de morte que ia morrer”), a morte de Pedro não consiste em ser “levantado” (cf. 12:32). A crucificação de Jesus é singular porque concretiza e proclama a vitória completa, final, sobre a morte. A crucificação de Pedro (se esse for o tipo de morte predito) é apenas o resultado de um discípulo ser fiel a seu Mestre; todavia, à semelhança da morte de qualquer discípulo fiel a Jesus, sua morte há de glorificar a Deus (v. 19). Em palavras tiradas de outras passagens do Evangelho, poder-se-ia dizer que Pedro iria “comer a carne do Filho do homem” e beber “o seu sangue” (6:53) ou que, como servo de Jesus, haveria de seguir a Jesus: “onde eu estiver, ali estará também o meu servo” (12:26; cf. 13:38). Mas, Jesus diz simples­ mente: Segue-me! (v. 19b), e deixa que Pedro deduza algo que o leitor do Evangelho já sabe: que Pedro seguirá a Jesus em morte talvez violenta. Mais uma vez um bom pastor morrerá cuidando de seu rebanho (10:11, 15; cf. 15:20; 16:2-4). A cena final, envolvendo Cristo, Pedro e o discípulo amado (vv. 20-22), prepara o palco para o encerramento do Evangelho. A presença do discípulo amado dramatiza o fato de que há mais de um modelo de verdadeiro discipulado, porque ele também estava seguindo a Jesus (viu que o seguia o discípulo a quem Jesus am ava, v. 20). Quer Pedro tenha ouvido o enigma contido no v. 18, entendendo existir aí uma predição de sua morte, quer não, dificilmente deixaria ele de perceber que se tratava de algo desagradável que o aguardava, de modo que Pedro quis saber se o discípulo amado também partilharia do mesmo destino (v.21). Visto que esse diálogo ocorreu antes da informação de máxima importância, a respeito desse discípulo, a saber, que ele é o autor do Evangelho (v. 24) — ele é identificado (v. 20b) em termos da cena em que fora apresentado

372

(João 21:15-25)

(ou ele próprio se apresentou) aos leitores do Evangelho, 13:23-25. A ênfase da rude resposta de Jesus a Pedro foi que o destino do discípulo amado não era da conta de Pedro: Se eu quero que ele perm aneça até que eu venha, que te im porta a ti? Segue-me tu. (v. 22). O discipulado implica um nível específico de fidelidade, não, porém, um final especí­ fico para a vida do discípulo. Toda pessoa que deseja ser discípulo deve prestar total obediência ao chamado e às ordens de Deus; todavia, o chamado e as ordens não são as mesmas para todas as pessoas. Para Pedro, “seguir” a Jesus significou “imitar Jesus” como pastor, acabando em morte parecida com a de Cristo (embora não idêntica). Para o discípulo amado, “seguir” a Jesus significou algo diferente. Jesus não disse a Pedro qual seria esse algo diferente, apenas dá a entender que o discípulo amado poderia “permanecer” (gr.: menein) longo tempo, pelo menos sobreviveria a Pedro. Seja como for, não é da conta de Pedro. Jesus encerra o breve diálogo reiterando a ordem com que o iniciou: Segue-me tu (lit.: “quanto a você, siga-me!”). A narrativa encerra-se com uma visão retrospectiva, para as últimas palavras de Jesus ressurreto, porém, de uma perspectiva posterior do Evangelho. Ao longo dos anos espalhou-se o ditado entre os cristãos (à base da última declaração de Jesus a Pedro), de que aquele discípulo não havia de m orrer (v. 23). O narrador dá um esclarecimento: Jesus não havia prometido que o discípulo amado não ir morrer (i.e., que ele viveria até que Jesus voltasse), mas disse meramente que se isso aconte­ cesse, teria sido por decisão de Jesus (e implicitamente, por decisão do Pai), e não por decisão de Pedro. Este esclarecimento tomar-se-ia neces­ sário ou porque o discípulo amado já teria morrido à época em que estas palavras foram escritas, ou porque havia uma possibilidade forte de que ele viesse a morrer. Se a declaração de Jesus, no v. 22, fosse tomada como promessa firme, e o discípulo amado viesse a morrer, a própria certeza da Segunda Vinda do Senhor seria questionada. Conquanto a Segunda Vinda de Jesus não seja um tema importante nesse Evangelho (cf. apenas 14:3), a esperança de tal acontecimento não pode depender da sobrevi­ vência de um único indivíduo. Ainda que Jesus houvesse prometido que “se alguém guardar a minha palavra, jamais verá a morte” (8:51; cf. 11:26), ele sabia que a morte física, pelo menos, continuaria a ser uma realidade persistente no mundo, e que nenhum de seus seguidores poderia ter a presunção de estar isento de morrer. A promessa duradoura de Jesus

(João 21:15-25)

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não foi que alguma pessoa em particular poderia ter certeza de continuar vivendo até que ele voltasse, mas que “quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá” (11:25) e “eu o ressuscitarei no último dia” (6:44,54). Não ficou bem evidente quem é que faz o esclarecimento expresso no v. 23. Teria sido o discípulo amado mesmo, ou outra pessoa? Outra voz se faz ouvir no v. 24: Este é o discípulo que testifica destas coisas e as escreveu. Sabemos que o seu testemunho é verdadeiro. O discípulo amado é identificado aqui, não só como a fonte da matéria que forma o Evangelho de João, como um todo, mas também como a pessoa que o redigiu. A afirmação é que esse discípulo é o autor do Evangelho e, portanto, presumiríamos, também é quem o narrou. Entretanto, não é ele quem narra o v. 24. Alguém está reconhecendo e endossando sua auto­ ridade: Sabemos que o seu testemunho é verdadeiro. É provável que a mesma pessoa, ou grupo de pessoas, que anexou o versículo 24, também é responsável pelo versículo 23 e, talvez, por todas as referências ao discípulo amado, por toda a última parte do Evangelho. Visto que cada referência faz parte da narrativa em que se inseriu, é preciso fazer uma distinção em alguns lugares, entre o autor, que em primeiro lugar pôs por escrito o Evangelho, e o narrador (ou narradores) que editou o que estava escrito, de tal maneira que fez justiça à participação do próprio autor na história, e ao mesmo tempo lhe preservou o anonimato. Con­ quanto o Evangelho em sua essência de início foi compilado pelo “discípulo a quem Jesus amava”, sua forma final provavelmente é o trabalho combinado daqueles que se identificaram com o pronome oculto (nós) do versículo 24: (nós) sabemos. A identidade desses discípulos só pode ser objeto de conjecturas. Parece que tinham relacionamento íntimo com o discípulo amado; a teoria mais plausível é que eles teriam sido líderes da igreja à qual pertencia o discípulo amado, e que talvez ele próprio tenha fundado, tendo escrito logo antes, ou logo após sua morte. Um deles adiciona uma palavra final, em prol do grupo presumido no v. 25, um pós-escrito modelado até certo ponto por 20:30. O propósito aparente é defender o Evangelho contra as acusações de não ser comple­ to, ou contra as críticas de que esta ou aquela história familiar, ou favorita, acerca de Jesus (talvez proveniente de uma das tradições dos evangelhos sinóticos), foi omitida. A expressão cuido, com que o escriba põe um ponto final no Evangelho, permite-lhe destacar-se por um momento do grupo percebido em (nós) sabemos, do v. 24, e até dar um mergulho na

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(João 21:15-25)

imaginação literária: as coisas que Jesus fez poderiam encher livros e mais livros, suficientes para cobrir o mundo todo, e mais ainda!

Notas Adicionais # 50 21:17 / pela terceira vez: Nesta terceira vez Jesus emprega um verbo diferente para “amar” (gr.: philein, o verbo que Pedro vinha usando, em vez de agapan, o verbo que Jesus usou nos w . 15 e 16). Contudo, Pedro se entristece por causa da repetição da pergunta, e não porque Jesus mudou o verbo. 21:18 / estenderás as mãos: Encontram-se aplicações desta expressão idio­ mática à crucificação, em citações cristãs primitivas de Isaías 65:2 (“Estendi as mãos o dia todo a um povo rebelde, que caminha por caminho que não é bom, após os seus próprios pensamentos”) e em reflexões cristãs a respeito dos braços estendidos de Moisés, em Êxodo 17:12 (veja, Baniabé 12.2,4). te cingias: Aqui, a mesma palavra noutra, passagem traduzida por “vestir” é traduzida por “cingir”, que é literal. Há um contraste entre agir-pela própria iniciativa, no v. 18a, e estar sujeito Ji iniciativa de outros, em v. 18b. Outras traduções (ver, GNB, traz “amarrar”) sâo indevidamçnte) influenciadas pela pressuposição de que estas palavras são predição explícita de martírio. 21:23 / os irmãos: O emprego desta palavra para descrever a comunidade cristã (quer numa congregação, quer numa vasta área geográfica) é mais característica das epístolas de João do que deste Evangelho (ver, 1 João 3:14, 16; 3 João 5), embora possa ser considerado ampliação natural da designação que Jesus usou para seus discípulos, èm 20:17. Jesus, porem, não disse: O grego inclui um pronome: “lhe”, “não lhe disse”, a ratei veíbo. NIV e EÇA, provavelmente deixaram de incluí-lo porque seu antécedente não é claro. Poderia referir-se a Pedro — como o v. 22 e a citação direta do que for^-dito a Pedro poderiam sugerir — ou poderia referir-se ao discípulo amado (observe no contexto imediato as frases aquele discípulo e não havia de morrer). É provável que esta última forma seja a intencionada. 21:25 / os livros que seriam escritos: Esta declaração implica que o Evangelho agora sob conclusão também é considerado livro ou “rolo” (gr.: bibliori). É termo que não dá indício algum quanto ao gênero literário do Evangelho, porque significa apenas livro, ou rolo, considerado objeto físico que ocupa um espaço, e não um determinado gênero literário.

Glossário

ANÁTEMA — Como substantivo masculino: maldição, opróbrio, excomunhão. Como adjetivo: amaldiçoado, maldito, excomungado. ANTÍTESE — Figura de linguagem pela qual se salienta a oposiçAo entre duas palavras ou idéias. Ex.: “Era o porvir — em frente do passado, / A liberdade — em face ã escravidão” (Castro Alves). AORISTO — Tempo da conjugação grega que indica haver a açào ocorrido em época passada, sem determinar, porém, se está inteiramente realizada no instante em que se fala. APODOSE — A segunda parte de um período gramatical, em relação à primeira, chamada prótase, de cujo sentido é complemento. CIRCUNLÓQUIO — Rodeio de palavras, perífrase. CODA — Seção conclusiva de uma composição (sonata, sinfonia, etc.) em que há repetições. COGNATO — Diz-se do vocábulo que tem raiz com outro(s). Ex.: as palavras belo, beleza e embelezar são cognatas. DATIVO — Caso gramatical das línguas com declinações (como o grego, o latim, o alemão), que exprime a relação do objeto indireto. EQUANIMIDADE — Igualdade de ânimo tanto na desgraça qunnto na prosperidade; moderação; imparcialidade. ESCABELO — Banco pequeno para descanso dos pés. ESCATOLOGIA — Doutrina sobre a consumação do tempo e da história; tratado sobre os fins últimos do homem. ESPONDAICO — Adjetivo: que tem espondeus. ESPONDEUS — Diz-se de um pé de verso, grego ou latino, consti tuído por duas sílabas longas. ESTOICISMO — Designação comum às doutrinas dos filósofos gregos Zenão de Cicio e seus seguidores, caracterizadas sobretudo pela consideração do problema moral, constituindo a imperturbabilidade o ideal do sábio. ESTÓICO —Partidário do estoicismo; austero, rígido; impassível ante a dor e a adversidade. EXEGESE — Comentário ou dissertação para esclarecimento ou minuciosa interpretação de um texto ou de uma palavra. [Aplica-se de modo especial em relação à Bíblia, à gramática e às leis.]

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Glossário

GENITIVO — Caso de declinação de certas línguas, que representa, por via de regra, complemento possessivo, limitativo, e algumas vezes circunstancial. GNOSTICISMO — Ecletismo filosófico-religioso surgido nos pri­ meiros séculos da nossa era e diversificado em numerosas seitas, e que visava a conciliar todas as religiões e a explicar-lhes o sentido mais profundo por meio da gnose (sabedoria). [São dogmas do gnosticismo: a emanação, a queda, a redenção e a mediação, exercida por inúmeras potências celestes, entre a divindade e os homens. Relaciona-se o gnos­ ticismo com a cabala, o neoplatonismo e as religiões orientais.] HENDÍADIS — Figura de linguagem na qual uma idéia única se expressa mediante dois termos utiidos por um “e”. Ex.: com poder e vigor. INTERPOLAÇÃO — Alterar, completar ou esclarecer (um texto), nele intercalando palavras ou frases que não lhe pertencem. JÂM BICO — Variação de iâmbico ou iambo. Na poesia grega e na latina, pé de verso constituído de uma sílaba breve e outra longa. PARÁFRASE — Desenvolvimento do texto de um livro ou de um documento conservando-se as idéias originais; tradução livre ou desen­ volvida. PARÓDIA — Imitação cômica ou burlesca de uma composição literária; imitar, remedar. PÉ DE VERSO — Parte em que se divide o verso metrificado. PROSÉLITO — Pagão que abraçou o judaísmo. PRÓTASE — No antigo teatro grego, a primeira parte da ação dramática, na qual o argumento é anunciado e se inicia o seu desenvol­ vimento; no sentido gramatical é a primeira parte de uma sentença. QUIASMO — Figura de linguagem na qual os termos paralelos, em sentenças ou orações adjacentes, são colocados em ordem invertida. Ex.: Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou. QUINTESSÊNCIA — Variação de quinta-essência. O que há de principal, de melhor ou de mais puro; o essencial. SIMONIA — Venda ilícita de coisas sagradas. TRÍM ETRO — Na métrica greco-romana, verso de três pés.
4- JOÃO-J-RAMSEY-MICHAELS

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