A PRINCESA QUE ACREDITAVA EM CONTO DE FADAS

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Marcia Grad

A princesa que acreditava em conto de fadas Uma fábula para toda mulher que já sonhou com o Príncipe Encantado Tradução de Gilson B. Soares

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Sumário

PARTE I

Capítulo Um Algum dia meu príncipe chegará Capítulo Dois A princesinha e o Código Real Capítulo Três Além dos jardins do palácio

PARTE II

Capítulo Quatro Um príncipe encantado para o resgate Capítulo Cinco Dr. Risinho e Sr. Oculto Capítulo Seis Você sempre esmaga a rosa mais perfumada Capítulo Sete Um encontro de mentes e corações Capítulo Oito Fazer ou não fazer... Capítulo Nove Um guia para se viver feliz para sempre

PARTE III Capítulo Dez A Trilha da Verdade Capítulo Onze O Mar da emoção Capítulo Doze A Terra da Ilusão

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Capítulo Treze Acampamento para viajantes perdidos Capítulo Quatorze A Terra do É Capítulo Quinze Um passeio pela Alameda da Lembrança Capítulo Dezesseis O Vale da Perfeição

PARTE IV

Capítulo Dezessete O Templo da Verdade Capítulo Dezoito O Pergaminho Sagrado

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PARTE I

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Capítulo Um

Algum dia meu príncipe chegará

Era uma vez uma princesinha meiga de cabelos dourados, chamada Victoria, que acreditava de todo o coração em conto de fadas e que as princesas vivem felizes para sempre. Ela acreditava na magia dos desejos, no triunfo do bem sobre o mal e no amor para conquistar tudo – filosofias bem fundadas na sabedoria dos contos de fadas. Desde quando podia se lembrar, a princesinha tinha se aconchegado – toda rosada e aquecida de seu banho borbulhante da noite – debaixo de suas colchas felpudas cor-de-rosa e recostado em um amontoado de travesseiros macios para ouvir a rainha ler histórias de ninar acerca de lindas donzelas em desgraça. Quer vestidas em farrapos, condenadas a um sono de cem anos, presas numa torre, ou vítimas de qualquer outra situação, as donzelas eram sempre ousadamente resgatadas por um príncipe encantado corajoso e bonito. A princesinha saboreava cada palavra lida por sua mãe e, noite após noite, caía no sono embalada por maravilhosos contos de fadas que ela própria criava. – O meu príncipe um dia chegará? - perguntou à rainha certa noite, seus ternos olhos cor de âmbar arregalados de fascínio e inocência. – Sim, querida – replicou a rainha. – Algum dia. – E ele será alto e forte, valente, bonito e encantador? – perguntou a princesinha. – Claro. Tudo com que você sonha e ainda mais. Ele será a luz de sua vida, sua razão de ser. Assim está escrito. – Viveremos felizes para sempre, como nos contos de fadas? perguntou ela sonhadora, sacudindo a cabeça e levando as mãos à face. A rainha passou os dedos lentamente pelos cabelos da princesinha, com longos e ternos afagos. – Tal como nos contos de fadas – replicou ela. - Agora é hora de dormir. Ela beijou de leve a testa da princesinha e saiu do quarto, fechando suavemente a porta. – Pode aparecer agora. É seguro – sussurrou a princesinha, inclinandose do lado da cama e erguendo o cortinado. – Vamos, garoto. Timothy Vandenberg III saltou para cima e assumiu seu lugar habitual ao lado dela. Ele não se parecia afinal com um Timothy Vandenberg III. Farrapos seria um nome. Mas a princesinha gostava dele como se fosse o mais nobre dos cachorros e abraçou-o, deliciada. Satisfeita, ambos caíram no sono.

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Com freqüência, a princesinha ia afagar as bochechas rosadas da rainha, e pedia para trajar um de seus vestidos de baile, e calçar os sapatos de dança de salto alto, que na sua imaginação se tornavam sapatinhos de cristal. Erguendo do chão as volumosas saias, ela sapateava pelo seu quarto batendo as pestanas pudicamente, suspirando com recato e dizendo: ―Eu sempre soube que você viria, meu príncipe‖ e ―Sabe, eu me sentiria muito honrada em ser sua noiva‖. A seguir, ela representava cenas de resgate de seus contos de fada preferido, recitando as falas de cor. A princesa praticava diligentemente, preparando-se para a chegada do príncipe, jamais se cansando de representar seu papel. Já adquirira grande perícia em bater as pestanas, suspirar e aceitar propostas de casamento. Na ceia do seu 17º aniversário, depois de ter formulado seu desejo secreto e ter assoprado as velas de seu bolo de aniversário cheio de chocolate, a rainha se levantou e entregou-lhe um pacote embrulhado com todo o cuidado. – Eu e seu pai achamos que já está com idade para apreciar este presente especial. Tem passado de mãe para filha por muitas gerações. Eu tinha exatamente a sua idade quando o recebi de minha mãe no dia do meu aniversário. E espero que um dia você possa também dar a sua filha. A rainha colocou o pacote nas mãos de sua filha, que, com grande expectativa, desatou a fita e a laçada sem pressa, porque assim ele poderia, seguindo seu costume, adicioná-los intacta à sua coleção. Depois, abriu o papel que o envolveu sem rasgá-lo e descobriu uma caixa de música antiga com duas estatuetas na parte superior que representava um casal elegante em uma posição de valsa. – Oh, vejam só! – exclamou, tocando de leve as estatuetas com as pontas dos dedos, – Uma donzela com seu príncipe! – Coloque em movimento, princesa - disse o rei. Cuidando para não dar muitas cordas, virou a chave pequena e, instantaneamente, o toque da música: "Algum dia meu príncipe chegará" se espalhou pela sala e o elegante casal começou a dançar. – Minha música favorita – exclamou a princesinha. A rainha ficou encantada: – É uma promeça do seu futuro. Um lembrete do que vai acontecer. – Adorei – respondeu a princesinha fascinada pela música e pelas figuras dançantes – Obrigada! Muito obrigada! Victoria mal podia esperar o momento de ir até o quarto dela naquela noite para brincar sozinha com a caixa de música e, ao mesmo tempo, poder conversar e compartilhar seus sonhos com Vicky, sua melhor amiga, embora o rei e a rainha insistirem em dizer a ela que era coisa da imaginação. – Depressa, Victoria! - Vicky disse a ela com grande excitação assim que a porta foi fechada – Dê corda! – Estou com pressa – Victoria respondeu, colocando a caixa de música em sua mesa de cabeceira e girando a chave. 8

Vicky começou a cantarolar "Algum dia meu príncipe chegará" enquanto sua música enchia toda a sala. – Vamos, Victoria, vamos dançar – disse ela. – Eu não sei se devemos fazer isso, eu acho... – Você pensa demais. Venha! A princesinha colocou-se na frente do grande espelho de bronze localizado em um canto de seu quarto rosa e branco e subiu. Sempre que ela olhava para ele, seu reflexo a fazia se sentir tão bonita que dava vontade de dançar. Naquele momento, com a música ao fundo, não pôde resistir. Ela começou a girar com grande elegância de um lado para outro, curvando-se para baixo e para cima em espiral, sendo levados por um sentimento que veio das profundezas do seu ser. Timothy Vandenberg III também dançou, à sua maneira, brincando e girando sem parar A empregada veio para preparar a cama como era seu dever, mas, estava tão entretida enquanto a observava dançando com tanta alegria, que levou mais do que o habitual para terminar o dever de casa. De repente, a rainha apareceu na porta. A serva não sabia como reagir porque ela foi flagrada observando a princesinha em vez de cumprir às suas obrigações. Timothy, instantaneamente sentindo a presença da rainha, escondeu-se debaixo da cama para ficar em segurança. No entanto, tão concentrada ficou a princesa com sua dança que ela não percebeu a presença da rainha até que ela o ouviu dizer para a empregada sair. Ela estava paralisada no meio de uma das suas melhores voltas. – Realmente, Victoria – disse a rainha! – como você poderia ter feito algo tão impróprio? A princesinha ficou mortificada. Como algo tão maravilhoso pode ser tão ruim? ela se perguntou. – Se você quer dançar – disse a rainha – você deve aprender a fazer bem. O Estúdio Régio de Representação Artística tem instrutores de balé magníficos, uma atividade muito mais digna do que se mover de um lugar para outro agitando os braços como um plebeu humilde e na frente de um deles, sem mais nem menos! Naquele momento, a princesinha se prometeu a não dançar sua música novamente na frente de qualquer outra pessoa em toda a sua vida, exceto na presença de Timothy porque ele era diferente. Desde que o encontrara vagando pelo palácio, faminto e abandonado, ela o havia adotado e confiado seus segredos mais íntimos e ele sempre retribuiu com carinho, ao contrário de outras pessoas que conhecia. A rainha se acalmou e ficou na companhia da filha enquanto tomava banho naquela noite. Ela ajudou a vestir sua camisola lilás com mangas arregaladas, e depois se sentou ao lado dela na grande cama de dossel de renda branca. Pegou o livro de conto de fadas sobre a mesa e começou a ler em voz alta. 9

Logo a pequena princesa estava novamente envolvida no mundo mágico da felicidade eterna. Ela se acomodou, e o incidente anterior que tanto a desconcertou foi completamente apagado de sua mente.

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Capítulo Dois

A Princesinha e o Código Real

A princesinha caminhava pelo caminho estreito e sinuoso do jardim do palácio, tentando segurar uma cesta, em que ela carregou três pequenos vasos de lindas rosas vermelhas, uma pazinha, alguns fertilizantes, algumas luvas de jardinagem, um pequeno regador e uma grande toalha de linho do palácio. Em seu caminho, os botões de rosa e as flores de cores diferentes, brilhantes, rosa, brancas e amarelas, abriram suas novas pétalas para o sol com grande delicadeza, e seu perfume atingiu o topo das árvores. Seu coração alegre cantava, feliz, e logo ela também cantava, enquanto espalhava a toalha junto a um canteiro de terra pronto para semear e se ajoelhava sobre ela. O jardineiro-chefe do palácio havia ensinado muito bem seu ofício e ela sabia como fazer seu trabalho. E assim ela fez sem manchar seu avental. A doçura de sua canção era tal que, antes de colocar a primeira planta na terra, os pássaros das árvores, sentindo-se atraídos, eles se atreveram a cantar em uníssono com ela. Uma vez terminado seu trabalho, ela retornou ao palácio seguido pelos pássaros, sua melodia encheu o vestíbulo real. O canto e o trinado eram tão grandes que a princesinha não ouviu o rei saindo de uma porta perto do enorme lobby. – Victoria – disse ele em um tom de fúria quando foi em direção a ela. – Pare de fazer tanto barulho agora. Já não falei repetidamente sobre isso? Você não me escuta! A princesinha ficou paralisada pela repentina presença do rei. – Desculpe, papai – disse ela com grande nervosismo, por cima do chiado e o trinado dos pássaros. – Sinto muito que meu canto seja ... – São os pássaros – ele respondeu. – É disso que se trata...um fato atestado por aquelas criaturas infernais se reunindo nos jardins e saindo e entrando pelas janelas do palácio, causando um grande alvoroço toda vez que você começa a cantar essa bobagem. – Ele balançou os braços para afugentar os pássaros. – Tire-os daqui de uma vez! Estou me encontrando com dignitários estrangeiros e não podemos falar com toda essa confusão sobre o que você chama de cantar! – Sim, papai – respondeu a princesinha, tentando por todos os meios não parecer abatida por esse golpe, pois sabia muito bem o que poderia acontecer se ela estivesse chateada na frente de qualquer pessoa, especialmente seu pai

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Satisfeito, o rei virou-se e na hora ele estava prestes a desaparecer pela mesma porta pela qual tinha chegado. Mas Timothy Vandenberg III apareceu, latindo com grande fúria, cruzou o seu caminho e estava prestes a derrubá-lo. – Guarda! – gritou o rei, "tire esse vira lata do palácio e certifique-se de que ele não volte!" – Não, não papai! Timothy, não! Não leve embora, por favor! – É apenas um incômodo, Victoria – Ele se virou para o guarda e apontou para a porta. – O cão deve ir. O guarda seguiu Timothy Vandenberg III, que tentou fugir de um lugar para outro, mas naquele momento, quando o guarda estava indo para alcançálo, Timothy tropeçou em um pedestal de alabastro e jogou mármore e um vaso de rosas vermelhas bonitas da haste longa. A pequena princesa, agarrando a perna do guarda no momento em que estava prestes a pegar o cachorro, e implorou: – Por favor, não o leve – suplicou – Por favor! A rainha, que ouvira a comoção e saíra rapidamente para descobrir a causa, levou a princesinha pelo braço e separou-a do guarda. – Victoria, ordeno que pare de se comportar de uma maneira tão imprópria, agora mesmo! Seu pai tem razão. Um cachorro é um animal indigno de uma princesa – Ela olhou em volta contrariada. – Olhe toda essa bagunça! A princesinha tentou esconder sua própria raiva e permaneceu em silêncio, embora a expressão em seu rosto a tivesse traído. – Você sabe muito bem como deve se comportar! – disse a rainha, examinando cuidadosamente o gesto carrancudo da princesinha. – Vá agora ao seu quarto e revise o Código Real, especialmente a parte que lida com o comportamento distinto e a manifestação indecorosa das emoções. E não saia até que haja um sorriso no seu rosto. A princesinha lutou para não se deixar levar pelo impulso que a levou a correr para fora do corredor. Em vez disso, um mar de lágrimas ameaçou inundar seus olhos. No entanto, ela conseguiu contê-los, embora uma pequena lágrima percorresse sua bochecha enquanto ela subia a grande escada em espiral que dirigia para o seu quarto. Uma vez no quarto, ela derramou muitas lágrimas enquanto relia o "Código Real de Sentimentos de Sentimentos e Comportamento para Princesas", pendurada em um lugar de destaque em cima de sua cômoda. Foi feito com grande dedicação pelo calígrafo do palácio, enquadrado e colocado com grande sucesso pelo decorador, seguindo as ordens da rainha. Decretou não só como a princesa deve se apresentar, agir e falar em todos os momentos, mas também o que tinha que pensar e sentir. Embora às vezes era assim que se sentia e pensava. Em lugar nenhum explicava como parar. Por que tinha de ser uma princesa, de qualquer modo?, ela se perguntava. – Você acha que é minha culpa, como de costume, certo, Victoria? – perguntou Vicky, aquela vozinha que veio da parte mais profunda do seu ser. 12

– Sim! Eu já lhe disse mil vezes que teríamos problemas se você continuasse a cantar e dançar, chorar e fazendo beicinho. Você não me escuta! – Eu odeio quando você fala como o rei – respondeu Vicky. – Sinto muito, mas não sei mais o que fazer. – Eu posso cumprir o Código Real, na verdade. Eu vou te mostrar. – Vicky levantou a mão direita, limpou a garganta e disse com grande solenidade: "Eu prometo seguir fielmente o Código Real em todos os momentos para ser boa, não, mais do que isso, ser perfeito. Juro por Deus e quero cair mortinha e beijar um lagarto se eu não conseguir! – Não vai funcionar – previu Victoria. – Eu prometi, não é? – Você já me prometeu centenas de vezes. – Mas eu nunca disse antes ―juro‖. – Eu desejo que o rei e a rainha possam entender que é você e não eu que causa tantos problemas, – disse Victoria suspirando. – Eu não posso fazer nada se eles pensam que eu sou uma invenção da sua imaginação – respondeu Vicky, docilmente. – De qualquer forma, isso não acontecerá novamente. Você vai ver. A princesinha realmente não queria jantar naquela noite e não queria descer, mas ela sabia muito bem o que aconteceria se ela não fizesse isso e se aparecesse de cara amarrada. No entanto, sorrir para os outros enquanto por dentro se sentia infeliz foi a lição mais difícil de aprender, mas desta vez estava determinada a aprendê-la. Ela se forçou a praticar sorrisos diferentes na frente do grande espelho de bronze. O rei havia dito a ela que o sorriso dela era uma bênção para os olhos dele, embora não parecesse isso. Finalmente, frustrada depois de várias tentativas, ela se contentou com um sorriso fraco e desceu para a sala de jantar real. Durante o jantar, a princesinha estava brincando com a comida e ficou mais quieta que o normal. – Alguma coisa errada no seu jantar? – perguntou o rei. A princesinha se mexeu um pouco nervosa na cadeira. – Princesa, você me ouviu? – Sim – ela disse suavemente. – Sim o quê? – Sim, eu ouvi – respondeu ela com respeito. – E então! – Não há nada de errado com o meu jantar, papai – ela respondeu, movendo o garfo de um lado para o outro, espalhando o macarrão. – Aparentemente há um problema – disse a rainha – e peço-lhe que me diga o que é. A princesa olhou para o prato. – Não é nada – ela respondeu, deixando de lado o garfo e torcendo o guardanapo de linho macio em seu colo. 13

– Victoria, eu quero que você me dê uma explicação agora – ordenou o rei. – E espero que não tenha nada a ver com aquele cachorro sarnento. A princesinha começou a ficar nervosa e a limpar a garganta várias vezes. – Não me atrevo a dizer – ela finalmente disse entre os dentes. O rei e a rainha continuaram a pressioná-la e, finalmente, incapazes de tolerar o olhar inquisitivo por mais tempo, ela admitiu que seu coração estava triste. – Eu quero Timothy de volta. – O seu pai deixou bem claro... – Por favor! – o rei disse à sua esposa abruptamente – Vou cuidar disso. – Ele levantou da mesa agitado e começou a andar de um lado para o outro com as mãos atrás das costas. – Por favor, papai – a pequena princesa disse sem pensar – Timothy não tem culpa por você ter quase caído. Ele sempre perde o controle quando Vicky fica nervosa. E quando você gritou por cantar ... – Vicky de novo! Sua mãe e eu já lhe dissemos que você não pode culpar nenhum amigo imaginário por você ser do jeito que é! – Não é verdade – Victoria respondeu timidamente – Vicky não é imaginária, é real. – Você está crescida demais para essas coisas – disse a rainha. "Já é tempo de você ter aprendido a distinguir entre o que é real e o que não é. As pessoas começaram a falar! Victoria disse com uma careta: – Eu não me importo com o que as pessoas dizem. Vicky é real, ela fala, ela ri, ela chora e sente. Ela ama dançar, sonhar, cantar e... O rei ficou furioso. – Então é ela quem atrai todos aqueles pássaros horríveis com ela, cantando desafinada, e dá aquele espetáculo na frente dos servos! E é a única responsável pelo cão atravessar meu caminho, e aquela que grita e protesta quando as coisas não te agradam! É isso que você quer me dizer, Victoria? – Mas... mas... o senhor não entende – disse Victoria em sua voz mais fina – O senhor sempre fica furioso com ela, mas na verdade, ela é um ser encantador. Ela é maravilhosa, doce, engraçada, legal e... ela é a melhor amiga que eu já tive. Não poderia tentar...? O rei reagiu como sempre fazia em tais situações, deu uma repreensão severa ao apontar com o dedo e olhou para ela com o rosto vermelho de raiva. Sua raiva terminou quando ele gritou: – Você é muito delicada, Victoria! Sensível demais, Você tem medo da sua própria sombra. E você é muito sonhadora! O que há de errado com você? Por que você não pode ser como outras crianças da corte? – Depois, dando os sinais de grande frustração disse: – O que eu fiz para merecer isso? A rainha tentou acalmá-lo, mas, como de costume, só piorou a situação. Os dois começaram a discutir sobre a princesinha como se ela não estivesse presente. Desejando que pudesse desaparecer, ela abaixou a cabeça e 14

olhou para a toalha de mesa a sua frente e evitou os olhos deles. Não agüentava ver-se refletida neles – um reflexo que vezes sem conta mostrou o que estava errado com ela. Então, foi agredida mais uma vez pelos seus olhares gélidos e suas vozes furiosas: – Olhe para nós quando estivermos falando com você, Victoria! – Ordenou o rei. A princesinha ergueu seus grandes olhos cheios de medo, quase incapaz de ouvir suas palavras enquanto Vicky gritava com toda a sua força para silenciar suas vozes. Depois de alguns minutos angustiantes, a rainha disse: – Olha o que você fez, Victoria. Você desapontou seu pai novamente. As princesas devem ser fortes, modelos de perfeição aristocrática. Tenho certeza que você já sabe e também que existe a maneira correta e incorreta de ser, a maneira correta e incorreta de agir e a maneira correta e incorreta de sentir. Bem, você saberá qual é a diferença, mocinha, de uma vez por todas! Vá para o seu quarto agora, fique lá e, pelo amor de Deus, apague essa expressão do seu rosto! Por um lado, Victoria estava abatida por tudo que havia acontecido e, por outro, os gritos de Vicky causava-lhe uma terrível dor de cabeça. Para dizer a verdade, era isso que Vicky se tornara: uma tremenda dor de cabeça. Vicky estava falando sem parar enquanto a princesinha subia a escada em espiral do palácio. – Se princesas são todas como dizem, é muito provável que não sejamos princesas reais. Aposto que a cegonha trouxe para eles o bebê errado. É isso mesmo, eu sei Victoria... Victoria – repetiu Vicky levantando a voz mais e mais. – Você está me ouvindo? – Você! – gritou Victoria acusando quando eles entraram no quarto – Você é que é a sensível e com medo das coisas. Você é a que está sempre sentindo coisas, mas não é você quem supostamente sonha com coisas que talvez nem aconteçam. Você até me faz dizer o que eu não deveria! Você é a que não se importa com o Código Real, e eu é que fico metida em toda a encrenca! – Eu sou assim – respondeu Vicky em uma voz tão baixa que Victoria teve que fazer um grande esforço para ouvir –, e o que sou não é bom o bastante, então você nunca se dará bem com eles enquanto eu ainda estiver ao seu lado. O melhor que posso fazer é sair e nunca mais voltar. – O que vou fazer? – Victoria protestou. – Você tem que ficar longe do rei e da rainha. Talvez se você esconder-se debaixo da cama a partir de agora... – Oh, assim como Timothy, como um cachorro? Eu me recuso a me esconder lá embaixo. É o esconderijo dele e eu quero que ele fique lá, como sempre. – Eu não posso fazer nada para recuperá-lo, mas posso fazer algo por você", respondeu Victoria. 15

Esconda-se em algum lugar e debaixo da cama é o único lugar em que posso pensar. Vicky aceitou, embora não estivesse muito feliz com a idéia. No entanto, uma vez segura abaixo da cama, continuou a falar sobre o quão injusto era o Código Real, o ódio e o comportamento mesquinho do rei e da rainha, da solidão que ela sentia debaixo da cama o dia todo, que ela não era a pessoa mais apropriada para ser a melhor amiga de ninguém e que ela ainda queria ir embora para nunca mais voltar. Naquela mesma noite, sentindo-se muito cansada para tomar seu banho de espuma e para ouvir qualquer conto de fadas, Victoria rejeitou a companhia do servo e da rainha e foi para a cama, enquanto Vicky não parava de falar. Incapaz de dormir, ela finalmente pediu para ela calar a boca. Mas em vez disso, guiado por sua impulsividade, ele rastejou de seu esconderijo e pulou na cama de Victoria. Enterrou o rosto nos travesseiros e começou a chorar. As lágrimas encharcaram a colcha de seda e gotejaram para o chão. – Chega – insistiu Victoria em um tom autoritário – Eu não agüento mais. Você vai molhar tudo. Além disso, eles vão ouvir você. O que há de errado com você? Você sabe que há um jeito certo e errado de ser, agir e sentir e você vai saber qual é a diferença, mocinha, de uma vez por todas! – O que você vai fazer? – Perguntou Vicky com uma voz chorosa. – O que eu deveria ter feito há muito tempo. Eu vou te esconder em um lugar onde você não possa ficar agitada para não me causar mais problemas! – Eu pensei que você fosse minha amiga, mas eu posso ver que não é assim! – ela respondeu gritando – Você é tão má quanto o rei e a rainha. – Não me culpe. Tudo isso é por sua culpa! Eu te disse para ficar longe deles – respondeu Victoria, levantando-se da cama instantaneamente, enquanto quase escorregava com os pés descalços no chão molhado com lágrimas. Ela acendeu a lâmpada de cabeceira. – Entre lá agora mesmo!- ela ordenou, apontando um dos guarda-roupas do outro lado da sala. – E não quero ouvi-la gritar ou reclamar. Então, ela puxou Vicky para fora da cama, gritando sem parar, arrastoua pelo chão, empurrou-a para o guarda-roupa e bateu a porta. Então, com o mesmo tom de voz usado muitas vezes pela rainha, ela disse: – Estou fazendo isso para o seu próprio bem, Vicky – Em seguida, ela colocou a chave de ouro na fechadura e fechou com firmeza. – Não feche! Eu prometo que não vou sair, Victoria. Eu juro e... – Suas promessas não significam nada – Victoria jogou a chave dentro de seu enxoval de noiva, feito de madeira branca, com buquês de rosas entalhados à mão que decoravam os cantos. – Eu te conheço, você vai começar a falar, a lamentar e abrir a porta do armário para me dizer isso ou aquilo sempre que quiser... – Você não pode me esconder – gritou Vicky através da porta. – Pertencemos uma a outra. Nós prometemos ser melhores amigas aconteça o que acontecer, você se lembra? 16

– Isso foi antes de você se tornar meu pior inimigo – respondeu Victoria. – Victoria, por favor, deixe-me sair daqui! Vicky implorou, batendo desesperadamente na porta. – Preciso de você. Nós devemos sempre estar juntas. Não me deixe! Estou com medo, Victoria. Eu serei boazinha e farei tudo que você me pede. Por favor, me deixe sair! Victoria subiu de volta em sua grande cama de dossel e, sozinha, fraca e exausta, ela cobriu as orelhas com travesseiros enormes para não ouvir os soluços de Vicky, que passou pela porta do armário. Finalmente, os soluços se tornaram gemidos e, depois, em silêncio. Victoria levantou uma ponta de seu edredom e se moveu para o peito para sentir a suavidade dela. Então, exausta, ela mergulhou em seu mundo particular de sonhos onde não há lugar para tristeza. Na manhã seguinte, antes de a princesa se levantar, o rei apareceu na porta do seu quarto com uma rosa vermelha, um sorriso tímido e uma caixa de brinquedos cheia de figuras de madeira de cores diferentes, cortado com muito cuidado pelo fabricante do reino. – Bom dia, princesa – disse ele, entrando no quarto e sentando ao lado dela na cama – Parece que hoje vamos começar um pouco mais tarde para construir nossa casa de bonecas. – A casa de bonecas? Oh, hoje é domingo – respondeu ela, tão cansada que mal conseguia levantar. – Eu não sabia, papai. – Venha, princesa. Aqui nós nunca perdemos um domingo, certo? – ele respondeu colocando a rosa na frente de seus olhos. – Pensei que isso poderia trazer de volta o sorriso encantador para aqueles lábios pequenos de botão de rosa. A princesa olhou para a rosa e depois para o rei, que lhe dirigia um sorriso e um gesto agradável. Como em muitas outras ocasiões, ainda não sabia o que deveria pensar, fazer ou sentir. O rei a pegou e a puxou para seu colo. Ele passou os braços ao redor dela, envolvendo-a nas mangas largas de seu roupão de veludo macio. – Minha querida filha! Você é realmente linda - disse ele. A princesinha sentiu o peito do rei inchar de orgulho enquanto a abraça. – Eu amo você, papai – disse a princesinha O rei olhou para baixo e viu aquele prêmio de cabelos dourados que segurava em seus braços. – Eu também te amo, princesa. – Victoria sabia que era verdade. Seguindo com o ritual semanal, a princesa e o rei estavam construindo uma casa de bonecas. Quando terminaram, a princesinha rastejou e sentou-se de pernas cruzadas, enquanto o rei estava deitado no chão de barriga para baixo, com grande dificuldade de entrar a cabeça e os ombros através da entrada para o que eles chamavam de porta principal. Eles tomaram chocolate quente em imensos canecos servidos pelo cozinheiro do palácio. 17

O rei levou o copo à boca enquanto se apoiava nos cotovelos, o que não era nada fácil. De tempos em tempos, uma gota de chocolate escorreu por seus braços e entrando nas mangas de seu manto real, embora não tenha mencionado isso. Tudo estava indo tão bem que Victoria decidiu tentar fazer as pazes, de uma vez por todas, com o tema de Vicky. Mas foi um verdadeiro desastre, porque no mesmo momento em que ela mencionou seu nome, o rei se levantou zangado, derrubando a casa de bonecas. – Vicky não existe, está me ouvindo? - disse ele gritando – eu desisto! Você é impossível! A princesinha cobriu a cabeça com os braços, enquanto as pequenas e coloridas peças caíam ao seu redor. – Desculpe, papai – ela conseguiu dizer com uma voz trêmula. Mas o rei saiu muito zangado do quarto, deixando a princesa aturdida, sentada no chão ao lado de uma pilha de detritos.

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Capítulo Três

Além dos jardins do palácio

Tudo estava diferente desde que Vicky foi confinada, pensou Victoria olhando pela janela de seu quarto num fim de tarde. Seus olhos pararam diante de uma árvore fina e solitária que podia ser vista no alto de uma pequena colina além dos jardins do palácio. Nunca havia prestado muita atenção até então, mas naquele dia deu a impressão de que a árvore se sentia triste e sozinha lá fora. Ela soltou uma lágrima esporádica que correu lentamente pela sua bochecha. É tão triste sentir só, pensou ela. E ao mesmo tempo, é tão solitário não poder contar a ninguém sobre isso. Enquanto ela lembrava que ela não deveria se sentir de qualquer maneira, nem sozinho nem triste, começou a ter dor de cabeça. As coisas não tinham corrido tão bem como ela previra desde que trancara Vicky. Era bem mais fácil seguir o Código Real sem a presença de Vicky, mas ser perfeito em tudo ainda era uma tarefa árdua. Por alguma razão, ela não conseguia tirar os olhos da árvore. Sentindose atraída pra lá, desceu as escadas, decidindo dar um passeio nos jardins, cuja beleza era tanta que a encheu de felicidade. Quando chegou ao topo do moinho, sentou-se no chão duro sob a árvore solitária e apoiou-se sobre o seu tronco, levando as mãos à cabeça dolorida. – Eu nunca vou ser boa o suficiente... não importa o quanto eu tente – Victoria suspirou. – Boa o suficiente, para quê? – Perguntou uma voz. Ela sentou-se imediatamente e começou a olhar em todas as direções. – Quem disse isso? – ela perguntou. – Quem? Quem? Fui eu – respondeu a voz, parecia que a voz vinha da árvore. – Quem é você? – perguntou a princesinha. – Quem é você? – a voz repetiu. – Essa é a questão. – Ok, eu lhe direi primeiro – disse Victoria, levantando-se devagar para que sua dor de cabeça não piore, e fazendo sua melhor reverência. – Eu sou a princesa Vitória, filha do rei e da rainha deste reino. Eu moro no palácio do outro lado dos jardins. Sou a primeira da minha turma na Real Academia Elementar de Excelência. Eu tento por todos os meios seguir sempre as regras do "Código Real de Sentimentos e Comportamento para Princesas. Sou muito melhor no plantio de rosas do que no jogo de bola. Antes eu tinha um cachorro chamado Timothy Vandenberg III. E às vezes sofro terríveis dores de cabeça... como a que tenho agora mesmo. 19

– É muito interessante, princesa, mas você ainda não me contou quem você é. – Contei sim! Claro que sei quem sou eu! – Victoria respondeu com indignação. – Todos devem saber quem é, mas poucos realmente se conhecem. – Está me confundindo. – Saber que você está confusa é o primeiro passo para deixar de confundir. – Estou discutindo com uma árvore? – murmurou ela para si mesma. – Talvez minha mãe e meu pai estejam certos e não sou capaz de distinguir o que é real do que não é. Ela olhou para os galhos que estavam ao seu redor. – Por favor, me diga que você falou comigo, Sr. Árvore – implorou Victoria – Falou, não é mesmo? – A resposta para essa pergunta é sim... e não – respondeu a voz. – Você fala, Sr. Árvore! Fala, sim! – As coisas nem sempre são o que parecem princesa. Naquele momento uma coruja desceu, flutuando para o chão como uma folha ao vento. Batendo suas asas rapidamente, endireitou o estetoscópio que pendia em seu pescoço e depositou cuidadosamente uma vasile preta a seus pés. – Deixe-me apresentar – disse ele com grande solenidade. – Sou Henry Herbert Hoot, D.C. Mas meus amigos me chamam de Doc. – Ah não, primeiro uma árvore falante e agora uma coruja que também fala e que se chama Henry Herbert Hoot? Agora acredito que sou incapaz de distinguir o que é real do que não é. – Pelo contrário. Sou tão real quanto um conto de fadas para uma princesa... Ah, isso me lembra uma canção – ele disse com grande prazer – embora haja muitas coisas que me trazem à memória nas canções. Dizendo isso, ele pegou sua vasile preta e tirou um chapéu de palha que foi colocado em sua cabeça, e um banjo em miniatura. Então ele começou a tocar e cantar: Tão real é um conto de fadas para uma princesa Quanto real é o poder supremo para um rei... – Pare, por favor – protestou Victoria, apertando as mãos na cabeça. – Me desculpe, mas minha cabeça dói tanto que eu não quero ouvir sua música agora. – Talvez não fosse doer se você ouvisse sua própria música com mais freqüência – sugeriu a coruja. – Eu não quero mais cantar, só isso. – Eu estava me referindo à música do seu coração. – Não sei o que é isso. Enfim, o que uma coruja sabe sobre o coração? 20

– Na verdade, muito – ele respondeu – Como explicado no meu título, D.C., eu sou um médico do coração, especialista em corações partidos. Victoria caiu para frente e inclinou a cabeça. Finalmente, perguntou com uma voz doce: – Como é que identifica um coração partido? – Vendo a tristeza em seus olhos, eu suspeito que você já sabe a resposta – respondeu Doc, tirando o chapéu e colocando-o na bolsa preta junto com o banjo. – Receio que meu coração esteja partido – disse a princesa com o olhar abatido. – O seu autodiagnóstico está correto. – Pode consertar isso? Quero dizer meu coração. – Não exatamente dar um jeito, mas posso ajudá-lo a fazer isso. Ainda assim, será mais difícil de fazer que desapareça a tristeza dos seus olhos, princesa. – Mas o que você quer dizer? – A cura – Bem, então, você pode curar meu coração? – Receio que não, princesa. Só você pode fazer isso. Victoria franziu o cenho. – Que tipo de médico você é se eu sou quem tem que curar meu próprio coração? – O mesmo que os outros. Podemos consertar muitas coisas e ajudar a consertar outras... mas não podemos curar. – Não entendo. – Há muitas coisas que você ainda não entende, mas entenderá um dia. E então? - disse Doc, mudando de assunto. – Você se sente melhor em saber que fui eu e não a árvore que falou com você? – Claro que não – respondeu Victoria, suas mãos descansando em seu quadril. Se eu não consigo entender a existência de uma árvore falante, muito menos de uma coruja médica que fala e que canta. – Algumas coisas não precisam de explicação. Você apenas tem que vivenciar. – Tente explicar para minha mãe, se por acaso algum guarda do palácio me ver aqui falando com ninguém... Oh, me desculpe. – gaguejou Ela – Eu não quis dizer ―ninguém‖, realmente. Isto é... bem, você sabe...De qualquer modo – Observando, como o sol desapareceu no horizonte. – Eu tenho que ir agora. Quando posso te ver de novo? – Sempre que seu espírito a guiar – respondeu a coruja. – Um espírito que me guia? O que isso significa? – Por agora, o importante é que você saiba que pode retornar quando quiser. – Você diz algumas coisas muito engraçadas – a princesa respondeu, balançando a cabeça e percebendo que não estava doendo mais. Então, ele 21

começou a descer a colina na direção do palácio, enquanto se despedia acenando. Quando ela se aproximou da porta principal do palácio, a princesinha viu a rainha observando-a de uma janela de sacada. Quando ela chegou à porta, sua mãe estava à espera. – É quase noite. Onde você esteve, Victoria? – Naquela árvore – murmurou ela. – Fazendo que? Infelizmente, o Código Real proibiu estritamente todos os tipos de mentiras, por mais insignificantes que fossem. Victoria não teve alternativa senão responder a verdade. – Conversando – ela disse hesitante. – Com quem? – Perguntou a rainha. – Com a árvore – ela respondeu, sabendo o que aconteceria em seguida. – Suponho que o que você vai me dizer agora é que a árvore te respondeu. – A pequena princesa sentiu um calafrio estremecendo todo o corpo para ouvir o tom de voz da rainha. – No começo eu pensei que o falante fosse a árvore, mas na realidade era uma coruja. – Realmente, Victoria, isso tem que acabar. Você não pode continuar contando essas histórias extravagantes. É hora de você parar de estar nas nuvens. Victoria não tinha certeza do que "estar nas nuvens" significava, mas ela pensou que deveria ser algo maravilhoso. – Eu posso te mostrar que a coruja fala - disse ela num tom submisso. – Nem mais uma palavra sobre o assunto, Victoria. E tanto quanto essa árvore ou coruja,... eu te proíbo de voltar lá. Assunto encerrado. – Então, a rainha se virou e saiu imediatamente. – Por que ela nunca acredita em mim? Victoria perguntou a si mesma em voz baixa. "Eu sei que a coruja está falando, eu o ouvi. Mas naquela noite ele começou a pensar que talvez a rainha estivesse certa. Afinal, quem tinha ouvido algum dia uma coruja falar? Além disso, a rainha sempre parecia estar certa em tudo. Cada vez que a princesa ficava mais velha, a cada ano, desejava que o próximo ano fosse mais feliz. Houve danças magníficas requintadas, festas campestres e noites de muita diversão, animadas com jogos de pólo no reino. No entanto, parecia que sempre faltava alguma coisa. Muitas vezes, a princesa observava tristemente da janela do seu quarto vendo como os pássaros voam de árvore em árvore, como eles cantavam e gostavam da liberdade. Ela imaginou como seria ser um deles. Não sentir-se diferente e solitária mesmo no meio de amigos. À medida que a primavera seguiu-se ao inverno e o verão deu lugar ao outono, Victoria floresceu para transformar-se numa jovem mulher adorável, graciosa e encantadora e tudo que uma princesa deveria ser. 22

Formou-se com honras na Real Academia Superior de Excelência. Mas talvez sua maior conquista tenha sido tornar-se perfeita em falar, agir, pensar e sentir exatamente como prescrevia o Código Real. Na tarde de sua formatura, o rei e a rainha deram uma grande festa no salão de baile do palácio, com tocadores líricos de alaúde e bufões coloridos da corte. Um mar de convidados notáveis presenciou o orgulhoso rei dar à filha um presente especial. – Nesta ocasião importante – começou ele – orgulhosamente presenteio com a Árvore Genealógica da Família Real, um tesouro da valor imensurável que foi responsável pelo bom rumo das vidas nobres de nossos ancestrais, desde o ponto em que nossa linhagem foi traçada. Na nobre tradição da família real desse reino, você deverá trilhar o caminho aqui estabelecido. Ele entregou à princesa o rolo de pergaminho acinzentado. Tinha uma cinta prateada reluzente em volta, afixada com o sinete real. Suas beiradas rasgadas revelavam seu uso leal por muitas gerações de famílias reais. O rei ergueu seu caneco de cerveja e gritou: – Vida longa para o legado real! – Bravo, bravo!- ecoou a multidão de simpatizantes, erguendo seus canecos para a princesa. – Vida longa para o legado real! Vida longa para a princesa! Vida longa para o rei e a rainha! Quando o último dos convidados partiu, Victoria voltou para seu quarto, tirou os sapatos e caiu na cama, pensando onde guardaria sua Árvore Genealógica da Família Real em segurança. Embora não tivesse dúvidas quanto a sua autenticidade e utilidade, esperava jamais ter necessidade dela, pois já sabia exatamente para onde estava indo. Primeiro para a Universidade Imperial, a fim de receber uma educação condizente com uma princesa e um diploma em MRS, e depois para o próprio palácio com seu Príncipe Encantado, onde viveriam felizes para sempre. Ela enfiou o pergaminho em seu baú e foi até a penteadeira, impregnada pelo forte perfume das rosas que o jardineiro-chefe colhera bem frescas naquela manhã, como sempre fazia. Formavam um arranjo perfeito com hera e flores brancas no vaso lapidado a mão que a princesa pegara da coleção de cristais do palácio. Seus olhos se demoraram nas aveludadas pétalas vermelhas e ela suspirou – como as donzelas sempre falassem – e imaginou seu dramático resgate das muletas do Código Real, do sacudir do dedo todo-poderoso do rei e dos vigilantes olhos da rainha. Um dia o verdadeiro amor seria dela, e tudo estaria de acordo com o mundo. Ela estendeu o braço e girou a chave de sua caixa de música. ―Algum dia meu príncipe chegará‖ começou a tocar. Ela pegou uma rosa na mão, tirou-a do buquê e tocou sua face suavemente com ela. Se ao menos ele se apressasse, pensou.

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PARTE II

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Capítulo Quatro

Um Príncipe Encantado para o resgate

Numa

ensolarada manhã de primavera, enquanto a princesa se debruçava sobre um livro na biblioteca da Universidade Imperial, decorando a formação estelar da Ursa Menor, foi surpreendida por uma melodiosa voz de tenor. – Vim resgatá-la nas garras da Análise completa dos céus, de autoria do ilustre professor Dull. Resgatá-la? Alguém falou em resgatar? Victoria ergueu a vista e deparou com os dois olhos mais azuis que já vira, emoldurados por longas pestanas pretas que causariam inveja em muitas garotas. – Desculpe-me. Estava falando comigo? – Sim, princesa – disse o jovem, fazendo uma galante mesura. – De fato, estava. – Como sabe que sou uma princesa? – Porque um príncipe sempre conhece uma princesa. E desde que posso me lembrar dos meus dias de estudante, que parecemos estar escravizados à explicação do professor Dull acerca do que faz o mundo girar. Pensei que você gostaria de ouvir a minha – disse ele, com uma centelha nos olhos que fez o coração dela disparar e os joelhos fraquejarem. – E qual seria sua explicação? – perguntou ela, com recato. – Amor. O amor faz o mundo girar – respondeu ele, com um sorriso cálido o bastante para derreter uma avalanche de neve, antes de sequer atingir o solo. Poderia esta visão de masculinidade, com peito e ombros largos e cabelo preto retinto, ser talvez aquele que ela havia esperado por toda a sua vida? Ele parecia preencher todas as suas especificações. Era um príncipe. Tinha sido corajoso ao abordá-la. Era charmoso e bonito. E embora ser resgatada de morrer de tédio fosse diferente de todos os resgates que havia imaginado, não obstante era um resgate. – Concordo – replicou a princesa, tentando esconder sua excitação. – O amor faz o mundo girar, embora no momento o meu mundo pareça estar gravitando em torno do aprendizado do Urso Menor...quero dizer, Ursa – corrigiu rapidamente, tentando afastar os olhos das covinhas que pontuavam o sorriso dele, um sorriso que se alargou com o seu lapso de linguagem. – Estou a seu serviço, princesa – disse ele puxando a cadeira ao lado dela e sentando-se. Em breve ela ficou sabendo mais sobre as estrelas no céu e teve mais estrelas nos seus olhos do que algum dia imaginara possível. 25

Por todo o caminho de volta para casa, Victoria teve a sensação de que algo mágico havia acontecido. Enquanto recordava cada palavra, cada olhar que ela e o príncipe tinham trocado, uma sensação de excitamento espiralava dentro dela. Era tudo que podia fazer para se impedir de rir alto. De repente, foi dominada por lembranças de Vicky – a pobre e há muito esquecida Vicky. Victoria desejou que algum dia pudesse contar sobre o príncipe à sua primeira e verdadeira melhor amiga. Pensou sobre como ela ririam juntas e se abraçariam, dançando e cantando, como sempre faziam tempos atrás quando algo de maravilhoso acontecia. Mas ousaria deixar Vicky sair do armário? Inúmeras perguntas rodopiavam em sua mente. Como seria Vicky daqui a muitos anos? E o rei e a rainha? E quanto a isto ou aquilo? Usando sua técnica habitual para ordenar tais coisas, Victoria começou a compilar uma lista mental de prós e contras. Na hora em que chegou ao quarto e depositou seus livros, já havia decidido. Um segundo grande evento teria lugar naquele dia. Ela abriu a tampa de seu baú e remexeu entre os finos trajes de linho e renda, tomando cuidado para não amassar a Árvore Genealógica da Família Real que estava em cima. Ela chegou lá no fundo. Seus dedos longos sentiram o metal frio da chave do armário onde aprisionara Vicky. Seguiu lentamente até o armário e ouviu a porta. – Vicky... olá... sou eu, Victoria. – Ela bateu de leve. – Vicky, vou abrir a porta. Tenho algo maravilhoso para lhe contar... Vicky, responda. Ela pôs a chave dourada no buraco na fechadura, girou-a e entreabriu a porta. Só viu escuridão, e não ouve qualquer som. – Vicky, onde está você? – perguntou ela, escancarando a porta. Lá dentro, agachada no chão com os braços firmemente enrolados sobre a cabeça baixa, estava a pequena Vicky. – Você está bem? Não tenha medo. Sou eu... Victoria. – Vá embora e deixe-me em paz – gritou a garotinha, se enfiando mais fundo nos recessos do armário. - O que há, Vicky? Vim para tirar você daí – disse Victoria, adentrando o armário. – Não, dê o fora daqui. Não quero sair! – O que quer dizer? Você não pode ficar aí para sempre. – Posso sim. E quero ficar. Já me acostumei. Vá embora. – Tenho muito para lhe contar. Por favor, não fique com medo. Não vou magoá-la. – Já o fez. Diversas vezes. – Não tive intenção. Sinto muito, realmente.De qualquer modo, tudo está diferente agora. Não vai mais acontecer. Vicky choramingou. – Não acredito em você. – Acredite, Vicky, prometo. Te juro, e quero cair mortinha e beijar um lagarto se não cumprir... lembra? 26

– Ainda não acredito em você, e não vou sair. – Ela lançou um olhar furtivo para Victoria. – Mas acho que você pode ficar aqui por um minuto, de realmente quiser. – Isso é bobagem. Vamos lá. Sentaremos na cama, como costumávamos fazer e... – Não, não posso. Victoria ajoelhou-se ao lado de Vicky e a enlaçou com o braço para consolá-la. A princípio elas se abraçaram em silêncio no chão. Logo, já estavam conversando, relembrando e chorando. Finalmente, Victoria conseguiu retirar sua amiguinha do armário. Sentaram-se na grande cama de dossel e continuaram a conversar, relembrar e a chorar, ensopando as cobertas sedosas até as lagrimas pingarem o chão, como as lágrimas de Vicky tinham feito tantos anos antes. E à medida que a madrugada se arrastava, elas exultaram por estarem de novo unidas e por terem encontrado o príncipe tão esperado. Na manhã seguinte, por insistência de Vicky, Victoria recontou a historia do seu encontro com o príncipe, enquanto se ocupava em vasculhar seu guarda-roupa, procurando o traje mais adequado. – Ele parece maravilhoso, e realmente quero conhecê-lo – disse Vicky. – Mas... e se ele não gostar de mim? E se até mesmo me odiar, como o rei e a rainha? Aí, arranjarei encrenca para você, e aí você vai me trancar no armário de novo e... – Pensaremos em alguma coisa, Vicky, mas não hoje. Ainda é muito cedo para assumir quaisquer possibilidades, certo? Victoria e o príncipe se encontraram, como combinado, debaixo do grande carvalho do lado de fora da sala de aula do professor Dull. Os anos que passara treinando bater as pestanas e suspirar com recato provaram-se produtivos. Victoria representou seu papel admiravelmente. Conhecer o príncipe equivalia a amá-lo, e Victoria não foi a única a descobrir isso. Todos que o conheciam concordavam. Catedráticas, calouras e formandas chamavam-no afetuosamente de Príncipe Encantado. A princesa jamais conhecera alguém que merecesse tal reputação. Muitas tentaram conquistar o príncipe, mas ele só tinha olhos para Victoria. Ele adorava seus modos gentis e sua constituição delicada. Admirava sua sagacidade e sentia-se desafiado por seu intelecto. Quando estava na companhia dele, ela se sentia linda, especial, confiante e protegida. Um dia, Victoria convidou o príncipe ao palácio para conhecer o rei e a rainha, que ficaram satisfeitos por ela ter encontrado um bom partido adequado. Agradou-lhes especialmente que ele estivesse empenhando em obter um doutorado na diplomacia inter-reinados. Seus olhos cintilantes e a calidez do seu sorriso permearam o palácio. Ele contou piadas mais engraçadas do que as do bufão da corte e toda a equipe palaciana ficou encantada com ele. 27

Nos meses que se seguiram, Victoria permitiu que o príncipe conhecesse Vicky gradualmente. Foi um suplício nervoso no início, sem saber como ele reagiria. Mas as preocupações de Victoria e Vicky revelaram-se infundadas. Quanto mais via Vicky, mais o príncipe gostava dela. De fato, ele revelou sua sensibilidade a todos e a tudo que a cercava. Partilhava dos sonhos dela e apreciava o seu canto. O príncipe e a princesa brincavam, riam, conversavam e amavam. E eles estudavam com afinco. Os dias demoraram a passar quando estavam afastados. Quando estavam juntos, os dias nunca eram longos o suficiente. Na própria tarde de junho em que a princesa se formou, o príncipe conquistou seu coração para sempre. Ela aceitou tornar-se sua esposa. Uns poucos dias antes das bodas, a princesa começou excitadamente a embalar suas coisas. Claro que levaria seu baú para o novo palácio que em breve partilharia com seu príncipe. Foi uma decisão fácil. O baú aguardara anos por esse evento. Ela procurou entre as roupas penduradas no armário, decidindo o que levar e o que doar para os carentes. Enquanto sentava-se a penteadeira, vasculhando as gavetas, ela ponderou sobre o Código Real pendurado na parede a sua frente. Não tinha mais necessidade dele, pensou. Ela se transformara nele. – Eu não preciso – disse Vicky, borbulhando de alegria. – Não precisa o quê? – Não preciso me transformar no Código Real...como você. Mas isso não importa, de qualquer modo, porque o príncipe me ama do jeito que sou. – Sim, e que alívio que isso é. Mas lembre-se, Vicky, você ainda precisa se esforçar nisso... em caso de necessidade. Após embrulhar cuidadosamente seus frascos de perfume, um por um, em papel de seda, a princesa pegou sua pequena caixa de música encimada pelo elegante casal e deu corda. Enquanto os sons ―Algum dia meu príncipe chegará‖ tilintavam, ela se olhou no espelho de corpo inteiro com moldura de latão, que ainda permanecia no canto de seu quarto, e recordou o quanto se sentia linda ao se mirar nele – tão linda, que com freqüência era impelida a dançar. Mas isso tinha sido quando era muito. Após um momento, o espelho havia refletido a mesma imagem que ela via nos olhos dos pais, de modo que nunca mais quis mirar-se no espelho. Ela olhou fixamente para o seu reflexo. Era tão linda quanto aquela refletida nos olhos do seu adorado príncipe. Começou a oscilar com música, girando e sacudindo-se numa dança animada que vinha de algum lugar dentro de si. Vicky guinchava de prazer. Estavam cumprimentando o seu príncipe chegara. O verdadeiro amor seria dela para sempre. O casamento foi glorioso, e depois de uma lua-de-mel encantada, o casal feliz se estabeleceu para uma nova vida em comum num lindo palácio a curta distância dos pais da princesa. Os terrenos eram bordejados por árvores frutíferas e ervilha-de-cheiro rosa e lavada. Havia um amplo jardim de rosas 28

com um banco de pedra pintada de branco no meio, onde o príncipe e a princesa costumavam se sentar para reafirmar seus votos de amor eterno. O príncipe revelou-se bem mais do que encantado e bonito. Era também esperto, forte e muito habilidoso. Sabia consertar quase tudo, só que se tornou tão atarefado que às vezes passavam semanas até que arranjasse algum tempo. Mas sempre encontrava tempo de levar a princesa aos jardins para colher rosas vermelhas, as quais arrumava em vasos de cristal lapidados a mão e espalhava pelo palácio. O príncipe era a luz na vida da princesa, sua razão de ser. Ela o cumulava de atenção e afeto. Toda manhã ela se levantava cedo para acompanhá-lo no desjejum de mingau de aveia com canela e passas ou panquecas de leitelho com xarope de amora recém-prensado. Depois, quando achava que ele não estava olhando, ela secretamente escrevia ―eu te amo‖ com tinta vermelha num guardanapo e o enfiava na marmita que o cozinheiro real preparava para ele todos os dias. Com um abraço e um beijo, se despedia quando ele partia para trabalhar na Embaixada Real. A vida com o príncipe era tudo com que a princesa sempre sonhara, e mais. Ela adorava acompanhá-lo nas funções diplomáticas, onde usava os trajes mais na moda. Em reuniões de amigos ele era sempre a alma da festa. Todos se entusiasmavam com a sua famosa série ―Vida de Criança no Palácio‖, e com freqüência pediam bis. – Sempre imaginei que meus pais me queriam – contava ele, – mesmo quando estavam muito ocupados reinando. Isto é, até que um dia cheguei da escola e descobri que tinham se mudado! Isso provocava uma sucessão de risinhos. Então, no exato momento, ele acrescentava:- E não tinham sequer deixado o novo endereço! Com isso, o salão explodia em gargalhadas que estimulavam o príncipe à sua próxima, e mais engraçada, revelação d infância. Ele era tão engraçado que, em particular, a princesa começou a chamá-lo provocadoramente de Dr. Risinho. Donzelas do reino e do exterior, outras princesas, e até ocasionalmente uma duquesa, perguntavam: ―O príncipe é assim o tempo todo?‖ E diriam coisas como: ―Como ele é alegre. Que sorte você tem em ser esposa dele.‖ Quando o casal real retornava para casa, o Dr. Risinho envolvia a esposa em seus braços, como um cobertor de amor. – Oh, minha querida princesa, você é realmente uma beleza – dizia e ela sentia o peito dele inflar de orgulho enquanto a estreitava de encontro a si. Aos domingos, o príncipe e a princesa costumavam jantar com o rei e a rainha, que logo começaram a amar o príncipe como o filho que nunca tiveram. O príncipe discutia questões de Estado com o rei, enquanto a princesa e a rainha supervisionavam o preparo da ceia. Os quatro ouviam concertos juntos e iam aos Jogos Olímpicos Oficiais do Reino, no Estádio da Nobreza. E tiravam férias juntos no Lago Relaxação. Eram muitas as responsabilidades da princesa, que as desempenhava com precisão e graça e ainda tinha tempo para encher o palácio de canção e 29

riso, e planejar novas atividades interessantes, como tomar lições de arco e flecha. Mas na sua primeira lição, na manhã de domingo, tornou-se evidente que havia um problema. Embora a princesa empregasse cada reserva de sua força, ela simplesmente não conseguia retesar a corda do arco o suficiente para disparar a flecha além de uns poucos metros. Vicky estava mortificada. – Nunca mais voltarei àquele estande de arco e flecha – anunciou a princesa ao príncipe na carruagem de volta a casa. – Você não se saiu tão mal para a primeira vez, princesa. – Ele apertou o bíceps dela prazerosamente. – Se continuar tentando, talvez possa fortalecer os músculos desses lindos bracinhos. Lembranças vividas de fracassos no jogo de bola passaram por sua mente. – Eles costumavam a me chamar de Bola Fora – disse ela, sentindo-se tão humilhada quanto ficara nos tempos de escola. – Acho melhor eu me dedicar às coisas em que sou boa. – Felizmente, você é boa em muitas coisas mais importantes do que jogo de bola ou arco e flecha – replicou o príncipe, erguendo alegremente as sobrancelhas e dando-lhe um sorriso malicioso. A princesa sorriu sem entusiasmo e tentou não pensar no que já tinha sido uma vez, mas a primeira lembrança detonou outra. – Eles me chamavam de Princesa Metida a Besta e Srta. Perfeita – disse, baixando a cabeça. Ele pegou-a pelo queixo e erguer o rosto dela para o dele. – Esse tempo acabou. Amo você exatamente como é. Ela sabia que era verdade, pois podia ver seu reflexo nos olhos dele, e continuava linda. Quando voltaram para o palácio, a princesa enrolou-se no sofá e começou a ler as histórias em quadrinhos do Notícias do Reino. O rei as tinha lido para ela quando era pequena, e a princesa apreciava histórias em quadrinhos desde aquela época. O príncipe folheava a seção de espetáculos. – Tem uma coisa aqui que é boa para você, princesa – disse ele. – Uma trupe teatral local está realizando testes para Cinderela. Vamos ver... hã... a ser encenada nas escolas reais e nos mais antigos centros de vassalagem de reino. – Hum, bem, não sei. – Acho que deveria fazê-lo, princesa. Vai ser uma barbada, percebe? – insistiu ele, seu sorriso cálido e familiar ampliando e realçando as covinhas no rosto. – Acha mesmo que obterei um papel, se tentar? – Sua voz atrai os pássaros das árvores para se reunirem em volta e cantarem com você. E certamente não existe ninguém mais bela que você. Isso responde a pergunta? Ora, Dr. Risinho - disse a princesa, batendo as pestanas 30

com recato – Creio que você confundiu os contos de fadas. É a Branca de Neve e não Cinderela que é a mais bela de todo reino. – Não, princesa. Você é a mais bela de todas. A princesa passou no teste e ganhou o papel principal. Na noite de estréia, o auditório de sua primeira alma mater. – a Real Academia Elementar de Excelência ficou lotada. O príncipe sentou-se na fileira do meio, entre o rei e a rainha. Embora Vicky estivesse tão nervosa a ponto de os joelhos da princesa chocalharem ao entrar em cena, ela representou uma Cinderela soberba e recebeu uma ovação estrondosa. Quando ela fez uma mesura final de agradecimento, o príncipe entregou-lhe um buquê das mais lindas rosas vermelhas de caule longo que ela já vira. Mais tarde, nos bastidores, o crítico teatral do Notícias do Reino disse a princesa que ela possuía uma voz de anjo e que deveria considerar fazer um teste para um papel profissional no Grande Teatro Régio. O rei e a rainha a adejavam de um cumprimento para outro, respondendo com comentários do tipo: "Obrigado. Mesmo ainda criancinha, ela demonstrava muito talento para o canto e a dança."E:"Ela é muito esperta e espirituosa."E:" Ela teve a quem puxar eu mesmo fui bastante talentoso quando criança, você sabe" O produtor estava exultante. – Desde o momento em que a vi no palco no primeiro ensaio, soube que seu desempenho seria excepcional. – A seguir presenteou-a com um par de sapatinhos de cristal em miniatura com suas iniciais gravadas. – Mas o ponto alto da noite da princesa foi ver a cintilação nos olhos o príncipe e saber que cintilavam por ela. Cintilavam com muito brilho que iluminavam a escuridão, enquanto o casal caminhava de mãos dadas até a carruagem. Ele apertou a mão dela gentilmente – seu modo especial de dizer ―eu te amo‖. Estava de bem com o mundo.

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Capítulo Cinco

Dr. Risinho e Sr. Oculto

A princesa estava imersa em pensamentos quando o príncipe, fazendo uma pausa no trabalho que trouxera da embaixada para fazer em casa, perguntou o que passava na linda cabecinha dela. – Eu só estava imaginando o que aconteceria se eu seguisse o conselho do crítico para fazer um teste no Grande Teatro Régio. – Sem dúvida, você seria aprovada – disse o príncipe prosaicamente. – E aí ganharia papéis cada vez maiores e se tornaria uma atriz famosa. A princesa sorriu. – Eu nem fiz o teste ainda e você já está me transformando numa estrela. – Seria só uma questão de tempo. Posso até visualizar agora – disse ele, abrindo as mãos diante de si. – Seu nome escrito em letras gigantescas no cartaz do teatro, com lotação esgotada... um tremendo sucesso! – anunciou ele, parecendo um locutor narrando uma proeza esportiva. A seguir, o príncipe ficou em silêncio. Brincou nervosamente com as beiradas dos documentos empilhados diante dele. – A partir daí – disse ele por fim -, você seria tão requisitada que não teria tempo para mim. E teria legiões de novos amigos do meio teatral, com os quais eu não teria nada em comum... – Legiões de amigos do meio teatral. Muito espirituoso, Dr. Risinho – disse ela, tentando arrancá-lo de sua surpreendente melancolia. Ele se inclinou à frente e sua voz baixou: – Isso provavelmente significaria o fim de nosso casamento. – Isso é ridículo! Mal posso acreditar que você diga uma coisa dessas! – Conheço você, princesa. Sei que é capaz de se superar... vai acontecer, acredite. E eu a amo demais para correr o risco de perdê-la. Não quero que se meta nisso. Esqueça esse negócio de Grande Teatro Régio ou qualquer coisa parecida... por favor. Se quer fazer alguma coisa, talvez seja hora de começarmos uma família. A princesa ficou tão atônita quanto decepcionada. Mas sua primeira prioridade seria o príncipe. Ela abriu mão imediatamente de volta a pisar num palco. Vicky, porém, não estava disposta a desistir. – Tudo isso é uma estupidez – disse ela, depois que o príncipe saiu do quarto. – Você não vai dar ouvidos a ele, vai? – Claro que vou – respondeu Victoria. 32

– Mas não pode! Não é justo. Você sabe como adoro cantar e dançar. Talvez realmente pudéssemos ser famosas. – Oh, Vicky. Você ouviu o que o príncipe disse. E você prometeu parar de sonhar com coisas que talvez nunca aconteçam. – Mas poderiam acontecer! Lembro de que o rei dizia que nosso canto era para os passarinhos, e a rainha dizia que a nossa dança era um vexame. Mas agora, depois de Cinderela... todo mundo nos ama! – Eu sei, Vicky – disse Victoria com simpatia. – Mas o príncipe nos ama. E nós o amamos. Você não iria fazer qualquer coisa para deixá-lo infeliz ou para que o perdêssemos, iria? – Bem...acho que seria bem pior do que não nos tornarmos uma estrela famosa – resmungou Vicky e não tornou a mencionar o assunto. – Quanto mais pensava em ter um bebê, mais Victoria apreciava a idéia. E assim o príncipe e a princesa tentaram, cheios de esperança, mas, mês após mês, nada de bebê. Vários inversos em sequência foram especialmente frios e houve um surto virulento de gripe que se espalhou por todo o reino. A princesa freqüentemente adoecia. – O príncipe traia-lhe canja de galinha do reembolsável da embaixada e a servia na cama. Depois sentava-se com ela para contar-lhe as últimas novidades da Colina do Reino. À medida que o tempo passava, o príncipe começou a queixar-se de que seu trabalho na embaixada era por demais estressantes e seus colegas diplomatas muito formais e tediosos. Ele dizia que às vezes lamentava ter nascido príncipe, que seria muito mais feliz sendo um ferreiro. A princesa estava tão preocupada quanto desapontada. Sempre imaginava que, com todo o seu potencial e charme, ele certamente chegaria ao topo na carreira diplomática. Após um tempo, a quantidade de reclamações do príncipe cresceu tanto que ele foi nomeado presidente do Comitê Real de Reclamações – que não era exatamente o que a princesa tivera em mente para ele -, mas ele logo se cansou dessa nova responsabilidade. Na verdade, estava farto de responsabilidades de qualquer espécie. Nem mesmo queria que a princesa lhe pedisse mais para consertar coisas no palácio. Ainda assim, ele continuava adorável e encantador como sempre, e muito mais divertido. Passava cada vez mais tempo contando seu repertório de piadas – inclusive sua série ―Vida de Criança no Palácio‖ – para qualquer um que estivesse ao alcance de sua voz. O Dr. Risinho estava em grande forma. A princesa amava o Dr. Risinho de corpo e alma. Tentou mais do que nunca mostrar-lhe o quanto, mas o príncipe dizia que não era o suficiente. Acusava-a de não amá-lo tanto quanto ele a amava. Ela tentava a cada dia provar seu amor – inclusive buscando aconselhamento na Clínica Real da Fertilidade -, porém quanto mais amor ela lhe dava, mais ele parecia precisar. No final de uma tarde, a princesa dispensou o cozinheiro mais cedo. Adorava preparar ela mesma o jantar, especialmente quando tinham algum 33

convidado. Enquanto preparava uma das suas especialidades – fettuccine aos brócolis com molho de pistache, – ela dançava pela cozinha, cantarolando: Eu amo o meu príncipe Ele me ama por sua vez E seremos tão felizes Quando nós dois formos três. Os pássaros das árvores vieram voando através das janelas da cozinha para se juntar em volta e cantar em harmonia com ela. Tudo corria às mil maravilhas até que o príncipe chegou com o convidado mais cedo que o esperado. – Victoria, que diabo está havendo aqui?! – gritou ele. A princesa congelou. Ela torceu o nariz, encolheu os ombros e deu-lhe um sorriso sem graça. – Hã... eu estava fazendo um dos seus jantares favoritos – respondeu experimentalmente, varrendo farelos de pistache dos pés de um azulão que se contorcia por ter feito um pouso um tanto desastrado. O príncipe lançou-lhe um olhar que a enregelou até os ossos. Sem uma palavra, ele rapidamente conduziu o convidado para fora da cozinha através da porta branca de vaivém. Embora ela enxotasse os pássaros imediatamente, ajeitasse o avental, afofasse o cabelo e se recompusesse – e apesar do fato de que o fettuccine ao brócolis estivesse uma delícia -, o príncipe continuava furioso com ela quando o convidado partiu. – Aquela exibição pouco digna foi humilhante, Victoria! Completamente inadequado para uma princesa. Você deu um espetáculo de sí mesma. Será que não vai crescer? Vicky começou a choramingar em voz alto: – Oh, não! Primeiro o rei e a rainha, depois você, Victoria, e agora o príncipe! Eu pensei que ele me amava. A princesa baixou a cabeça para não ter de ver seu reflxo nos olhos do príncipe. Mais tarde naquela noite, ele veio até o quarto, onde a desolada princesa penteava o cabelo, preparando-se para dormir. Ele pegou uma rosa do arranjo sobre a penteadeira, caiu de joelhos e a estendeu para ela. – Desculpe por ter dito coisas tão terríveis, princesa. Tive um dia péssimo na embaixada. Não pretendia descarregar em você. Por favor, aceite este presente como prova do meu amor e saiba que isso nunca mais voltará a acontecer – disse ele, seu rosto irrompendo num sorriso que exibiu as covinhas. Seus olhos deram aquela piscada que ainda fazia o coração da princesa disparar e seus joelhos fraquejarem. Bem, pensou ela, as intenções dele eram certamente bastante puras. A seguir, ele a tomou nos braços e tudo foi perdoado e esquecido. 34

A princesa construiu uma sólida reputação como excelente cozinheira de pratos naturais para gourmets. Amigos e convidados para jantar disputavam suas receitas, deixando o príncipe muito orgulhoso. Uma noite, após jantar no palácio, a esposa do diretor da Companhia de Transportes Inter-Reinos elogiou a comida e sugeriu que a princesa compilasse suas receitas para publicação em livro. O príncipe achou que era uma excelente idéia. – Não sei como escrever um livro – disse a princesa mais tarde, depois da partida dos convidados. – E se ao menos eu pudesse imaginar como fazêlo, provavelmente não seria publicado, de qualquer modo. – Oh, princesa, você sempre duvidou que pudesse fazer coisas que nunca fez antes. Claro que pode fazê-lo. E assim a encorajou. Comprou para ela novas penas de escrever e pergaminho para registrar suas criações culinárias. Ele provou classificou novas receitas e elogiou seus esforços. Após vários meses de trabalho no livro, a princesa estava sentada na mesa da cozinha numa tarde ensolarada, sua pena deslizando pelo pergaminho enquanto registrava instruções para o preparo do seu Suflê Vegetal Cremoso de Limão e Ervas. De repente, sentiu um calafrio percorrer toda a extensão do seu corpo como se uma brisa soturna rodopiasse pelo cômodo. Ela ergueu a vista e viu o príncipe. Seu olhar gélido e penetrante a perfurou. – Você se preocupa mais com esse maldito livro do que comigo – disse ele, seu rosto se contorcendo numa careta de fúria. – Nem mesmo olhou quando entrei! A princesa sentou-se por um momento, atônita. – E-eu estava trabalhando nisso. Acho que não o ouvi – Não é nenhuma novidade. Você nunca mais me deu atenção. Toda vez que olho para você, ou está cozinhando ou escrevendo alguma coisa. – De-desculpe. Pensei que quisesse que eu escrevesse este livro – disse a princesa, começando a tremer por dentro. – O que faz pensar que será bom o bastante para que alguém queira publicá-lo, afinal? – Você me convenceu disso. Achei qu estivesse orgulhoso de mim. – Orgulhoso de quê? – replicou o príncipe. – De uma esposa que está sempre sonhando com coisas que provavelmente nunca irão acontecer? De uma esposa que não ama o marido o suficiente para estar com ele quando necessita dela?– Estou presente quando precisa de mim. E amo você. Amo de corpo e alma, e sempre amarei. Você sabe disso. Não fui eu que mandei o cozinheiro real preparar maravilhosos desjejuns para você? Mingau de aveia com canela e passas, ou panquecas de leitelho com xarope de amora recémprensado? E não me levantei cedo todo dia para sentar-me e comer com você? – replicou ela, sua voz começando a se alterar. – Não coloquei sempre bilhetes de amor nas suas marmitas, e não massageei seu pescoço e ombros quando chegou estressado depois de um dia terrível na embaixada? Não lhe disse repetidas vezes o quanto você é encantador, bonito e maravilhoso? Não sou a 35

melhor platéia que já teve para suas piadas e histórias? Não entretenho seus amigos, não mantenho o palácio impecável e espalho rosas vermelhas por toda parte para nos lembrar do nosso amor especial? Não sento com você no banco de pedra do jardim e... – Já basta, Victoria! Detesto quando você entra nessas explicações sem fim. – Ele virou-se abruptamente e saiu. A princesa sentiu-se como se no seu estômago houvesse uma batedeira de manteiga na velocidade máxima. Seu peito parecia apertado por um torno, e a cabeça começou a doer enquanto o som da voz histérica de Vicky berrava em seus ouvidos: – Ele nos odeia! Ele nos odeia! Mais tarde, enquanto a princesa chorava sobre o travesseiro, o príncipe entrou e sentou-se ao lado dela. Repetiu-lhe exaustivamente o quanto lamentava o acontecido, o quanto não tivera a intenção de lhe dizer aquelas palavras e que magoá-la era a última coisa que desejaria no mundo. Disse a ela o quanto a amava e prometeu que nada daquilo se repetiria. – Foi o que disse da última vez – replicou ela, sua voz abafada pelo travesseiro. – O que está havendo com você? – Não sei, princesa. Essa força se apossa de mim, e ouço-me dizendo coisas terríveis. Não consigo crer que estejam saindo da minha boca. – Bem, certamente não é o meu Dr. Risinho quem as está dizendo, com toda a certeza – disse ela, fungando. – Não, ele se oculta. – Oculta... hum... isso me faz lembrar de uma história que ouvi de um terrível monstro – disse ela, sentando-se e tentando clarear a mente. – Deixe-me ver... como é que foi mesmo? Ah, sim, lembrei. Às vezes esse monstro se apossava de um médico e o fazia praticar coisas terríveis. Ora, é exatamente o que acontece com você! – disse ela, de olhos arregalados. – O Dr. Risinho se transforma no Sr. Oculto. – Acha que realmente é isso? Como poderia ser? – perguntou o príncipe. – Não sei. Deve ser um feitiço ou coisa parecida. – É isso! É isso! Alguém lançou um feitiço maligno contra mim. – Bem, eu notei uma brisa sinistra rodopiando pelo quarto pouco antes do piscar de seus olhos se transformarem num olhar gélido. – Princesa, tem de me ajudar, por favor – suplicou o príncipe, apoiandose em desespero nos ombros da princesa. – Oh, meu querido, claro que irei ajudá-lo – disse ela, lançando os braços em volta do príncipe e puxando-o contra si. – Não jurei amá-lo e cuidar de você nas fases boas e ruins, na doença e na saúde, até que a morte nos separe? Procure não se preocupar. Haveremos de superar isso... de alguma forma.

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Capítulo Seis

Você sempre esmaga a rosa mais perfumada

No

dia em que a Editora do Reino publicou O Livro de Receitas Naturais para Gourmets da Família Real, o príncipe pediu à princesa para autografar dezenas de exemplares, que ele orgulhosamente distribuiu na embaixada e para seus colegas do Comitê de Real Reclamações. Também deu exemplares a seu escudeiro, seu cocheiro e até ao geleiro. Mas o príncipe em breve perdeu o entusiasmo, tendo se cansado de participar daquelas noites de autógrafo nas livrarias, vendo toda aquela gente enxamear em volta da princesa. O que o entediava mais ainda era que , nas reuniões sociais a que compareciam, as pessoas davam tanta atenção à princesa que mal lhe sobrava tempo para contar suas piadas ou encenar sua série ―Vida de Criança no Palácio‖. A glória era agridoce para a princesa, uma vez que se achava extremamente preocupada com o príncipe. Imaginar um modo de ajudá-lo era sua prioridade. Primeiro ligou para a Universidade Imperial e falou com o chefe do Departamento de Poderes Sobrenaturais, que prometeu retornar a ligação. A seguir foi à Biblioteca Pública do Reino e examinou tudo que pôde encontrar sobre feitiço e bruxaria, esperando descobrir um antídoto. O príncipe pediu a ela que fizesse a pesquisa, alegando estar assoberbado com problemas na embaixada para se concentrar em qualquer outra coisa. Mas antes que ela tivesse uma chance de acabar de ler o material que coletara, o Sr. Oculto retornou – muito mais cedo do que antes. De início o feitiço baixava sobre o príncipe apenas muito espaçadamente e duravam somente alguns minutos. Mas, com o passar do tempo, surgia com mais freqüência e duravam horas ou dias. Mas quando o Sr. Oculto partia, a princesa sentia-se como se tivesse sido atropelada por um cavalo desembestado. E cada vez levava mais tempo para se recuperar. O seu doce e alegre Dr. Risinho sempre aparecia depois com aquela familiar e irresistível piscada de olho. Pedia mil desculpas e suplicava por outra chance, jurando que não voltaria a acontecer. Mas acontecia de novo... e de novo... e mais uma vez. A princesa ficava muito nervosa, nunca sabendo quem despertaria junto com ela pela manhã ou quem voltaria para casa à noite, se o Dr. Risinho ou o Sr. Oculto. A cada vez que o Sr. Oculto surgia, parecia mais maligno que da vez anterior. Ele era tão crítico quanto o Dr. Risinho era tolerante, tão ferino quanto o Dr. Risinho era amável, tão odioso quanto o Dr. Risinho era adorável. Tinha prazer em magoá-la – e era bom nisso. Ele sabia tudo que a

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princesa confidenciava ao príncipe – todos os seus pensamentos secretos, medos e sonhos – e ele tornou-se especialista em usá-los para feri-la. Sabendo que o príncipe era bom e que não tinha consciência do que dizia e fazia quando sob a influência do feitiço maligno, a princesa tentava com mais empenho do que nunca encontrar um meio de libertá-lo. Recortava artigos de números atrasados do Jornal de Misticismo do Reino, que ordenara fossem enviados ao palácio. Sublinhava em vermelho as partes importantes para que o príncipe não desperdiçasse seu tempo precioso para lê-los. Deixava os artigos na mesa da cozinha, onde certamente o príncipe não deixaria de notá-los. Ainda assim, a informação era incompleta, na melhor das hipóteses. A princesa decidiu que precisava de um plano cuidadosamente esquematizado. Sentou-se com a pena na mão e fez uma lista de tudo em que pôde pensar que fosse útil para afastar o feitiço do príncipe. Afinal, pensava, cada problema tinha sua solução. Ela simplesmente precisava encontrá-lo, e ponto final. A seguir, decidiu tentar cada item de sua lista, um de cada vez. Primeiro sugeriu ao príncipe buscar aconselhamento profissional. Talvez com o diretor real da prece, que era eminentemente qualificado para lidar com ações maléficas. Ou com o mago da corte, especialista em fazer coisas desaparecerem. O príncipe recusou as sugestões. Achando que ele poderia se sentir mais à vontade com alguém que não conhecesse, ela sugeriu o astrólogo do outro lado do reino, do qual ouvira excelentes referências. O príncipe replicou que não pretendia discutir o problema com qualquer estranho que talvez nem fosse capaz de ajudá-lo. – Então você vai ter de se esforçar ainda mais para impedir que o feitiço o domine – disse a princesa resoluta. – Eu tenho me esforçado, me esforçado, princesa, demais. Mas o feitiço é muito poderoso. Justamente quando penso que estou melhorando, o Sr. Oculto reaparece... e aí nada posso fazer para neutralizá-lo. – O príncipe parecia desesperado. – Você sempre foi tão corajoso, meu príncipe. Certamente não vai se deixar vencer por um feitiço lançado sobre você. – Nada posso fazer sem sua ajuda. Você é muito melhor nessas coisas do que eu. Se me ama realmente, você descobrirá um meio de afastar o feitiço. Na próxima vez em que o Sr. Oculto apareceu a princesa tentou o segundo item da sua lista – apelar a ele para que parasse de atormentá-la, Mas não funcionou. Assim, ela passou para o terceiro item – ameaçar fugir se ele continuasse a voltar. Também não funcionou. A princesa não tinha a menor intenção de desistir, independente do que o príncipe fizesse ou não. Ela seria forte e valente o bastante para lutar pelos dois, se necessário. Tinha de ser. Na próxima vez em que o Sr. Oculto apareceu, ela ficou frente a frente com ele. – Lutarei com você até a morte para trazer meu Dr. Risinho de volta para sempre – disse ela, na voz mais decidida que pôde reunir. O Sr. Oculto lançou a cabeça para trás e riu. 38

– Você? Lutar comigo até a morte? Essa coisinha frágil que você é, que tem medo da própria sombra? Que não consegue sequer puxar a corda de um arco? Que adoece ao sopro de uma brisa mais forte? Estou tremendo medo, princesa – zombou. Ele talvez não estivesse tremendo, mas ela certamente estava. E seu estômago se revolvia, o peito estava tão rígido que mal conseguia respirar. Suas têmporas começaram a latejar quando os gritos angustiados de Vicky explodiram em sua cabeça. A princesa começava a se cansar e não tinha mais nada na lista a que recorrer. Assim, na próxima vez em que o Sr. Oculto apareceu, ela disse a Vicky para não ouvir, que o príncipe não sabia o que estava dizendo, que não podia impedir as coisas que o Sr. Oculto dizia e fazia. A princesa costumava se sentar e olhar esperançosa para o seu baú de madeira, com os feixes de rosas entalhados a mão nas beiradas, e formulou o desejo o mais ardentemente que podia... e lembrou... e esperou. Após um certo tempo, ela passava mais tempo esperando pelo seu Príncipe Encantado do que estando com ele. Tornou-se um esforço para ela enfrentar cada novo dia. Havia tanta confusão – com as idas e vindas de Victoria e Vicky, do Dr. Risinho e do Sr. Oculto, cada qual dizendo que os outros estavam confusos acerca do que estava acontecendo – que a princesa não podia mais ter certeza do que estava vendo, ouvindo, pensando e sentindo. E ela estava cansada de toda a preocupação, tremor, azia, peito apertado, dor de cabeça e gritos, bem como das dolorosas discussões com o Dr. Risinho, dos apavorantes encontros com o Sr. Oculto e dos contínuos esforços para acalmar Vicky. Ela também não estava dormindo bem – em especial nas noites em que o Sr. Oculto estava presente. Noite após noite, ele dizia alguma coisa má ou a acusava de algo perturbador pouco antes de ela cair no sono. Depois ele se virava e caía imediatamente num sono profundo, de modo que ela não tivesse qualquer chance de replicar. Por que ele dizia aquilo, se sabia o que fazia, se era verdade, o que ela poderia ter dito, teria dito, queria dizer – tudo isso ficava martelando na sua cabeça por horas. Quanto mais ela ficava deitada ali, mais intensos se tornavam a dor de cabeça, o tremor e o aperto no peito. Para piorar as coisas, ela receava se mexer – mesmo para se coçar – porque o Sr. Oculto poderia despertar abruptamente e gritar coisas terríveis para ela, acusando-a de tentar aborrecêlo de propósito. Finalmente ela escaparia para um sono intermitente, esperando e rezando para que fosse o Dr. Risinho quem acordasse ao lado dela de manhã. Quando o Sr. Oculto estava com ela, a princesa se preocupava com quanto tempo ele ia levar para ir embora. Quando o Dr. Risinho estava com ela, se preocupava com o tempo que ele ficaria. E quando estava sozinha, sua preocupação era qual deles aparecia da próxima vez. E imaginava um jeito de parar o tremor, a azia, o aperto no peito e a dor de cabeça. Após algum tempo, desistia de tentar, enquanto esquecia o que era sentir-se calma. 39

Quando ela achava que não suportaria a loucura por um minuto mais, o Dr. Risinho chegava em casa como sempre, derramando torrentes de lágrimas e dizendo que sentia muito. E diria a ela que o Sr. Oculto falava aquelas coisas para ferí-la, muito embora não fosse verdade. Que ela era doce, boa e especial, e que tinha sorte em tê-la como esposa. Diria que ele estava melhorando – que ela só estava imaginando que as coisas haviam piorado. E acrescentaria que se empenharia mais e tudo seria em breve tão maravilhoso como costumava ser. Ela saboreava cada palavra e acreditava de todo o coração. A cintilação nos olhos dele faria o seu coração disparar e os joelhos fraquejarem. Ela se derreteria nos braços dele, dizendo: ―Meu querido Príncipe Encantado, meu precioso Dr. Risinho, graças a Deus está de volta.‖ E a lembrança do olhar gélido do Sr. Oculto se desvaneceria de sua mente como se nunca houvesse existido. A princesa estava apreciando um raro momento de felicidade, enquanto a luz do sol filtrava-se através da janela da cozinha e bailava sobre os vasos de cristal, que ela esvaziava em preparação para as flores frescas que o príncipe tinha ido colher no jardim. Ela deu uma olhada no bilhete do príncipe que ela prepara na parede naquela mesma manhã, após encontrá-lo sobre a bancada da cozinha. As rosas são vermelhas E as violetas são azuis A melhor esposa do reino É você, princesa que me seduz

De súbito, a porta dos fundos se escancarou e o príncipe irrompeu. Ele jogou uma ampla braçada escorredor em frente a ela. Pétalas vermelhas caíram ma pia e no chão. – Aprecie estas, princesa. São as últimas que ganhará de mim! Sugiro que vá se acostumando a pegá-las você mesma! A princesa olhou para ele em descrença: – O quê?! Do que está falando? – Um espinho espetou meu dedo, e foi aí que percebí quem lançou esse feitiço sobre mim. – Isso é maravilhoso! Quem foi? – Como se já não soubesse! – gritou o príncipe. – Foi você, princesa. Você! – disse, apontando um dedo acusador para ela. – O quê?! Eu? A única pessoa que está tentando ajudá-lo? A única que... – Não comece tudo isso de novo. Dessa você não escapa. – Não escapo de quê? Não fiz nada. – Tem certeza? – retrucou furiosamente – Bem, o feitiço só me acomete quando estou com você. Não acontece com ninguém mais. Então o que acha disso, Srta. Perfeita? Princesa Metida a Besta? É culpa sua! Você esteve 40

fazendo isso comigo o tempo todo! – gritou, deliberadamente esmagando com a bota uma pétala caída no chão. Ela sentiu-se como se apunhalada no coração. – Nem mesmo sei como lançar um feitiço – mal conseguiu dizer, imaginando se possivelmente seria verdade. – Isso não importa. Sei que a culpa é sua. A princesa seguiu o príncipe, suplicando que a ouvisse, enquanto ele disparava para fora da cozinha, batendo as portas de vaivém a sua passagem. Uma das portas quase derrubou a princesa enquanto corria atrás dele. – Tenho de dar o fora daqui! – gritava ele através do palácio. A seguir já saia em disparada pelas portas da frente, chamando sua carruagem. A princesa foi atrás dele. Assim que ultrapassou as portas do palácio, viu o príncipe de pé junto a sua carruagem, esmurrando a porta. Resmungava algo que ela não conseguia entender – e preferia não entender. Ela parou abruptamente, depois, cautelosa, caminhou na direção dele. – Você está bem? – perguntou. – O que lhe aconteceu? – Você me aconteceu – gritou ele. – É culpa sua! O cocheiro, que estava de pé em silêncio, olhou zombeteiro para a princesa e deu de ombros. – Minha culpa? O que foi que eu fiz? – perguntou ela ao príncipe. – É isso, se faz de boba. Para alguém supostamente tão esperta, será que não consegue imaginar? Bem, me responda. Não consegue? A princesa sentiu a garganta seca. Não conseguiu emitir uma palavra. – Não faz mal, ó Ser Brilhante. Eu lhe direi. Bati com minha perna ao subir na carruagem. – E é culpa minha? – perguntou ela docilmente, temendo deixá-lo mais furioso. O príncipe veio marcando até ela, sacudindo o punho no ar. – Se eu não estivesse com tanta raiva de você, não teria precisado partir daqui tão apressado. E não teria ficado pensando em sua traição, em vez de prestar mais atenção no que estou fazendo – gritou ele, seu rosto se avermelhando. – Se não fosse você, eu nunca teria me machucado! Desejando que pudesse simplesmente desaparecer, a princesa baixou a cabeça e olhou fixamente para o chão diante dela, tomando cuidado para evitar os olhos dele. Seu olhar gélido e voz furiosa continuaram a agredí-la. – Olhe para mim quando falo com você, Victoria! – exigiu ele. Ela olhou para cima com grandes olhos assustados. Por trás do olhar glacial, viu o seu reflexo mostrando exatamente o que estava errado com ela. A princesa piscou de volta suas lágrimas. O príncipe sacudiu o punho vigorosamente diante do nariz da princesa, as veias do pescoço se destacando à medida que sua voz trovejava nos ouvidos dela. – Você é muito sensível, Victoria! Delicada demais. Não pode sequer gerar um filho. – A voz foi se elevando. – O que há com você? Por que não 41

pode ser como as outras esposas reais? – A seguir, ergueu as mãos em frustração – O que fiz eu para merecer isso? Vicky começou a fazer tantos ruídos altos para ocultar a voz que a cabeça da princesa começou a bater. Ela virou-se e correu de volta ao palácio, entrou pela sala de estar e bateu a porta. – O que vamos fazer agora? – fungou Vicky. – Não sei – Respondeu Victoria, afundando no sofá forrado de dourado. – Deixe me pensar. – Mas você tem de saber! – Vicky, por favor. Fique quieta por alguns minutos para que eu possa pensar. Vicky esperou. Depois, quando não conseguia mais ouvir sequer o tique-taque rítmico do relógio sobre a cornija da lareira, ela deixou escapar o que estivera por longo tempo em sua mente. – Talvez... talvez o feitiço maligno seja nossa culpa. Talvez tudo seja nossa culpa. – Você também?! Como pode dizer uma coisa dessas? – Eu apenas sinto. De qualquer modo, o príncipe não mentiria para nós. Ele é Príncipe Encantado. Todo mundo diz. – Você não pode acreditar sempre no que todo mundo diz, Vicky. E não estou tão certa acerca de o príncipe não mentir para nós. – Mas e se ele estiver certo? – perguntou Vicky. – E se ele for alérgico a nós ou coisa parecida? Ou se as coisas que nós dizemos e fazemos é que realmente lançam o feitiço sobre ele, como ele diz? – Oh, Vicky, pelo amor de Deus! – Só cai sobre ele quando está conosco. Ninguém jamais conheceu o Sr. Oculto. Exceto o cocheiro, ainda há pouco. Parecia ser bem verdade, portanto Victoria tentou desesperadamente pensar no que poderiam ter feito para lançar o feitiço maligno sobre o príncipe, mas não conseguiu chegar a qualquer conclusão. Especulou que deveriam estar fazendo montes de coisas erradas para causar tantas coisas ruins, mas sentia grande dificuldade em imaginar o quê. – Não sei mais em que pensar, Vicky – disse Victoria. – Estou tão cansada. Muito cansada. – Você é que é boa para imaginar coisas. Tem de pensar em algo. Vicky esperou nervosamente enquanto Victoria se agoniava com o problema. – Talvez exista alguma verdade no que você diz, Vicky. Claro que não podemos nos permitir correr riscos. Acho que teremos de tentar com mais empenho não fazer, dizer ou pensar qualquer coisa que possa trazer o feitiço maligno. – Mas como podemos tentar com mais empenho? – Teremos de ser boas. Mais do que isso. Perfeitas, de fato. 42

– Não posso fazer isso. Tentei com o rei e a rainha, lembra? Não posso fazer nada melhor do que já sou. – Bem, acho que você teve uma tentativa melhor. E desta vez espero que possa fazê-lo, ou o príncipe pode nos abandonar. Assim, a princesa tentou, um dia após o outro, ser perfeita o suficinte para não trazer à luz o feitiço maligno. Mas o que vinha num dia não era o mesmo que aparecia no outro. Não obstante, Vicky – que nunca se refizera de não ser boa o bastante para ser amada pelo rei e a rainha, ainda assim tinha pesadelos ocasionais acerca de ficar separada de Victoria por todo aquele tempo aprisionada no armário – não vinha tendo a menor chance com o príncipe. Esforçava-se para ser boa, a cada momento de vigília, mais que boa, ser perfeita de fato, o que prejudicava Victoria. Vicky não mais se satisfazia com o bom trabalho das criadas do palácio, por isso insistia para que Victoria circulasse e relimpasse as coisas. E embora a princesa, vezes sem conta, tivesse entretido os amigos importantes do príncipe com habilidade e talento, Vicky agora se preocupava e ficava ansiosa a cada vez que uma reunião de gala estava sendo planejada. Ela insistia para que a própria Victoria preparasse a comida, a partir do nada, e que cada prato fosse guarnecido com botões de rosa de manteiga enrolados a mão, e que cenouras e rabanetes fossem cortados em saca-rolhas perfeitos. A cozinheira tentou ajudar, mas Vicky não permitiu. Na hora em que os convidados chegaram, Vicky estava cansada demais para apreciar a noitada. Quando Vicky tinha uma decisão a tomar, não importava quão pequena, Vicky se encarregava de certificar-se de que não redundasse em erro. Tão temerosa estava Vicky de fazer a escolha errada, que convenceria Victoria de escrever um bilhete perguntando à rainha o que fazer – já que estava praticamente sempre certa – e mandar uma das criadas a cavalo para esperar a resposta. Mas as criadas perdiam tanto tempo cavalgando de ida e volta que ficavam muitos dias sem lavar ou passar – portanto Victoria tinha de fazê-lo. A situação ficava até pior quando a princesa tinha de decidir como votar uma matéria, na sua qualidade de membro honorário do prestigioso Comitê Soberano para os Desprivilegiados. Victoria faria uma lista de prós e contras e depois, exatamente quando achava que já sabia como votar, Vicky tentava influenciá-la. Se ela mudasse de opinião e concordasse com Vicky, sua amiguinha tentava fazê-la voltar atrás. Às vezes a princesa ficava sentada lá, confusa e aturdida, enquanto os outros membros do comitê esperavam com impaciência sua decisão. Mas nenhum dos esforços da princesa fazia qualquer diferença quando se tratava do Sr. Oculto. Ele ficava rodando com sua carranca e olhar glacial, procurando alguma coisa com que se enfurecer. Quando não havia nada, ele inventava. A expressão no rosto da princesa freqüentemente era o suficiente para causar-lhe um acesso de raiva. Mas nada podia fazer para evitar isso, porque nunca sabia que expressão iria desconcertá-lo. Às vezes ele realizava sua 43

proeza de leitura mental e ficava furioso com ela pelo que a acusava de estar pensando. Quando a princesa tentava dizer-lhe que não estava pensando aquilo que achava que estava, ele a acusava de contestar a verdade. – Sei muito bem o que se passa nessa sua cabecinha ardilosa – dizia ele. – Convencida de que nunca seria perfeita o bastante para parar o Sr. Oculto, Vicky tornava-se mais infeliz a cada dia, fazendo Victoria sentir-se igualmente infeliz. – Eu sou o que sou – murmurou Vicky um dia, tão baixinho que Victoria teve de se esforçar para ouví-la. – E o que sou não é bom o bastante. Você nunca vai se dar bem com ele enquanto eu estiver por perto. Talvez eu devesse ir embora e nunca mais voltar. Victoria sentava-se em silêncio, especulando que Vicky talvez estivesse certa. Depois disso, Vicky forçou-se a entrar no armário do quarto. Ela se enfiou lá dentro e bateu a porta atrás de si. Sentou-se no escuro, amontoou-se no canto, e tentou abafar o som do seu choro. Mas não adiantou – as atitudes do príncipe se tornavam cada vez piores. Noite após noite, a princesa ficava acordada, olhando fixamente para as sombras do quarto enquanto as lágrimas rolavam por suas têmporas e molhavam seu cabelo. Mas ela nunca as enxugava Receava demais perturbar o estranho imprevisível que dormia a seu lado. Às vezes ela o observava ressonando pacificamente. Via aquele mesmo lindo, encantador e corajoso príncipe por quem se apaixonara – e ainda amava. Ansiava percorrer os dedos pelo cabelo preto retinto que ela conhecia tão bem e aninhar-se nos fortes e confortadores braços, que tantas vezes haviam aquecido seu coração e alma. Estava deitada bem ali, tão perto e mesmo assim tão longe. Lembranças dele tangiam de seu coração. Muitas vezes ela ansiava desesperadamente por seu príncipe, mesmo enquanto ele estava deitado bem ao lado. Certa manhã, a princesa acordou tarde de um sono inquieto e arrastouse para fora da cama. Seu estômago doía de tanta azia, e o peito comprimido lhe provocara uma tosse terrível. O Dr. Risinho nunca antes permanecera longe por muito tempo. Ela não sabia quanto tempo mais poderia passar sem ele. – Onde está o Dr. Risinho? – perguntou ela ao Sr. Oculto, que já estava se vestindo. – Faz semanas que não o vejo. – Ele se foi. – Não pode ser! Sei que está em algum lugar por aqui. Jamais me abandonaria. Jurou me amar e cuidar de mim, nos bons e maus momentos, na saúde e na doença, até... – Até que a morte nos separe. Bem, adivinhe só, princesa. Ele está morto! O príncipe que você conhecia já morreu há muito tempo. Portanto, você poderia muito bem parar de desejar, esperar, ansiar e chorar. Ele está morto, e não vai mais voltar. 44

– Sei que está aí, meu precioso príncipe – disse ela, com um bolo tão grande na garganta que sua voz mal se filtrava por ela. Ela olhou bem fundo nos olhos dele, além do brilho gélido, além do reflexo dela, e lá, bem onde ela sabia que estaria, havia uma débil piscadela. A piscadela que sabia ser dirigida a ela. Um oceano de lágrimas elevou-se da alma da princesa e quase a afogou em pesar. Ela soluçou, recordando todos aqueles anos com que tanto sonhara por uma vida de contos de fadas com seu Príncipe Encantado. E tinha dado nisso. Soluçou mais forte ainda quando o príncipe saiu. De súbito, sentiu falta do conforto de seu antigo quarto, de sua colcha felpuda cor-de-rosa e das pilhas de travesseiros macios. Talvez, se voltasse a casa para uma visita, pudesse decidir em paz o que fazer. Mas Vicky detestou a idéia. – Não vou para lugar nenhum – lamuriou-se, enquanto Victoria empacotava algumas coisas em sua maleta de lã axadrezada. – Prefiro morrer a abandonar o príncipe. Ele precisa de mim, e preciso dele. – Só vamos até lá para descansar e pensar no que fazer. Ninguém falou em abandonar o príncipe. – Bem... não posso ficar aqui sozinha com o Sr. Oculto, isso é certo. Suponho que terei de ir com você. Mas prometa que voltaremos. Diga: ―Juro por Deus e quero cair mortinha, beijar...‖ – Juro por Deus e quero cair mortinha. Agora vamos, Vicky. Pé na estrada.

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Capítulo Sete

Um encontro de mentes e corações

Na viagem de carruagem até o palácio de seus pais, a princesa tentou imaginar uma desculpa para contar ao rei e à rainha por aparecer sem aviso e sozinha, com sua maleta na mão. Diversas possibilidades vinham-lhe à mente, mas na hora em que chegou, já tinha decidido contar a eles sobre o príncipe e o feitiço maligno. Ela guardara o segredo pelo maior tempo possível. – Onde está a rainha? – perguntou a princesa ao criado que abriu a porta. – Na biblioteca, acho, princesa. – Por favor, mande colocar isso no meu antigo quarto – disse, passandolhe a maleta. – Ora, ora, princesa – disse o rei, caminhando em direção a ela da outra extremidade do vestíbulo. – Achei ter ouvido a sua voz. Que surpresa! A princesa enlaçou o pai com os braços e apoiou a cabeça no ombro dele. – Foi uma maleta de viagem que Mandou para cima? – perguntou ele. – Está planejando ficar? – Pois dois dias, se puder – É claro, princesa, mas... – Preciso falar com o senhor e com a mamãe. – Está tudo bem com você? Não parece... – Por favor, papai. Será mais fácil se eu falar com vocês dois ao mesmo tempo. – Não estou gostando disso, Victoria. Não gosto nem um pouco – disse o rei, pondo o braço em torno dos ombros da filha, enquanto seguiam em silêncio pelo corredor rumo à biblioteca. – Victoria! – disse sua mãe, levantando do sofá. – Não a esperávamos. O príncipe está com você? – Não, mãe. Não está. – Você parece cansada – disse a rainha com preocupação. – Entre e sente-se. – Quando estavam acomodadas no sofá, a rainha observou a filha atentamente. – Você está doente? Lágrimas brotaram dos olhos da princesa e todo o seu corpo pareceu se atar num grande nó. Ela lutou para manter a compostura. – O que é isso, princesa? – perguntou o rei, sentando-se numa poltrona próxima. Uma torrente de palavras dolorosas irrompeu de seus lábios, acerca do terrível feitiço e do cruel Sr. Oculto. Ela omitiu as partes piores porque sabia 46

que o rei e a rainha adoravam o príncipe como a um filho e não queria magoálos mais do que o necessário. – Mal posso crer que isso seja verdade! – exclamou o rei. – Não admira que você pareça tão doente e cansada – disse a rainha, sacudindo a cabeça em descrença. – Eu estou doente e cansada, mãe. Estou doente de o príncipe viver furioso comigo. De me culpar por tudo que dá errado. De me retorcer de queimação no estômago, de meu peito estar apertado e de minha cabeça doer. De desejar e ansiar, de chorar e esperar... e de colher minhas próprias rosas... E estou doente e cansada de viver doente e cansada. – O nosso Príncipe Encantado? Como pode ser isso? - questionou a rainha. – Por que nunca vimos qualquer manifestação do seu comportamento esquisito, Victoria? – Porque só acontece na minha frente – respondeu a princesa, retendo as lágrimas. – Bem, então – disse o rei -, você considerou que talvez o príncipe estivesse certo em achar que você teve algo a ver com o feitiço maligno. Porque mais isso aconteceria só com você? Certamente uma coisa dessas não ia acontecer à toa. Você deve ter feito alguma coisa. A voz de Vicky reverberou na cabeça de Victoria: - Eu sabia que ele diria isso. Eu sabia! Isso é o que ele sempre disse. – Victoria?... Victoria! – disse a rainha, alterando a voz para chamar a atenção da princesa. – Tem certeza absoluta de que a situação é tão ruim quanto pensa? Perdoe-me por dizer isso, querida, mas houve uma ocasião em que você andou confundindo a fantasia com a realidade. – Não estou muito certa de não estar confundindo neste exato momento, mãe. O rei se levantou e ficou andando de um lado a outro, as mãos entrelaçadas às costas. – Não entendo isso. O príncipe tem se mantido um tanto reservado ultimamente... mas isso! – Lamento por tudo, Victoria – disse a rainha. – Talvez ajudasse se o seu pai e eu falássemos com o príncipe. – Duvido que alguém consiga se entender com ele. Mas como ele sempre estimou vocês dois, talvez... – Ela buscou o conforto do colo da mãe. – Não sei mais o que fazer. Não sei mesmo. Naquela noite os três tiveram uma ceia silenciosa, e a princesa recolheu-se cedo para seu velho quarto rosa e branco com a enorme cama de dossel. Tudo parecia exatamente como era quando ela saiu para casar com o príncipe. A rainha ordenara que a criadagem do palácio mantivesse tudo do mesmo jeito. A princesa passou a mão pelo tampo de sua penteadeira e olhou direto para o Código Real de Sentimentos e Comportamento para Princesas que ainda pendia da parede acima. Ela relanceou para o espelho de corpo inteiro, emoldurado em latão, no canto do quarto e pensou sobre o belo reflexo de 47

uma princesinha que costumava ver nele. Também recordou o reflexo que lhe tinha mostrado exatamente o que estava errado com ela. Não queria perturbar a calma que caía sobre ela, e manteve-se distante do espelho. Estava tão cansada que foi um verdadeiro esforço se despir. Ela pegou sua camisola azul de seda na maleta e a vestiu por cima da cabeça, notando que a cor combinava com seu estado de espírito. Enfiou-se na cama e aninhou-se debaixo das cobertas felpudas cor-de-rosa, puxando a ponta de uma e esfregando aquela maciez contra sua face. Sentiu-se de alguma forma reconfortada e cansadamente deslizou para o sono. De manhã, a princesa foi acordada pelo chilrear dos pássaros nas árvores diante do seu quarto. Foi saudada pelos raios de sol se filtrando através das janelas. Fazia meses que não dormia tão bem. Depois, a dolorosa realidade de onde estava a golpeou como um disco extraviado nos Jogos Olímpicos do Reino. Ela saltou da cama, enfiou-se no seu roube e foi tomar banho. Quando voltou, havia sobre a cômoda uma bandeja de panquecas de leitelho com xarope de amora recém-prensado e uma xícara de chá de ervas. Longo tempo se passara desde que lhe serviram o desjejum na cama pela última vez. Voltou a pensar em todas as outras manhãs em que lhe haviam trazido panquecas de leitelho naquele mesmo quarto. A mesma bandeja tinha sido colocada sobre a mesma cômoda. No tempo em que fora feliz, ela havia atacado cada panqueca com entusiasmo e apreciado cada pedaço. Quando tinha sido triste, irrefletidamente ficara esfregando pedaços pelo prato até que absorviam tanto xarope que eles pendiam molemente dos lados do garfo, quando finalmente os levava à boca. Este era, definitivamente, um dia típico de panquecas moles. Ela empurrou a bandeja para o lado e carregou a xícara de chá para o assento da janela. Enquanto se enroscava e apreciava a paisagem que vira tantas vezes antes, nas lembranças de todos os sonhos que havia construído e alimentado, sentada naquele mesmo lugar, rastejaram pela sua mente, uma a uma. Tudo parecia tão diferente, pensou, e ainda assim muita coisa continuava igual. Naquele momento seus olhos dirigiram-se para a árvore que permanecia solitária no topo do morrinho, logo além dos jardins do palácio. Parecia tão triste e solitária entregue à própria sorte, como estivera naquele dia tanto tempo atrás, quando tinha ido até lá e falado com ela, ou pelo menos assim achava. Foi naquele dia que conhecera Henry Herbert Hoot, Doutor do Coração. Uma lágrima solitária escapou do canto de seu olho e escorreu por sua face como ocorrera naquele dia tão remoto. Oh, Doc, pensou. Se ao menos eu pudesse falar com você agora. A porta se entreabriu e a rainha enfiou a cabeça no quarto. – Como está se sentindo hoje, Victoria.- perguntou, dando um passo para dentro, 48

– Um pouco melhor, acho mãe. Ficar aqui ajuda. – Ótimo – disse a rainha, juntando-se a ela na cadeira da janela e passando os dedos lentamente pelo cabelo da princesa. – A senhora se lembra de quando se sentava na minha cama à noite e fazia assim até eu adormecer? – perguntou a princesa. – E falávamos sobre contos e sobre como o meu príncipe um dia chegaria? Eu era tão feliz. Fico pensando se algum dia serei feliz de novo como naquela época. – Claro que será – replicou a rainha, dando na princesa um abraço encorajador. – Agora você deve se aprontar para descer. Seu pai e eu mandamos chamar o príncipe, que deve chegar a qualquer momento. Foi um príncipe triste que cumprimentou a rainha e a princesa, quando elas entraram na biblioteca. Ele inclinou-se à frente e beijou a rainha levemente na face. – Ola, mamãe. – disse ele suavemente. Ele olhou para a princesa e deu um meio sorriso que enrugou os cantos de seus olhos. Sem uma palavra, ele pegou a mão dela e apertou-a gentilmente em sua maneira especial. Conduziu-a até o sofá e sentou-se ao lado dela. Por um instante, os olhos da princesa encontraram os dele, e ela viu que uma débil centelha ainda reluzia bem lá no fundo. Ela estava pregada no assento, mal conseguindo respirar, nada sentindo senão o martelar do próprio coração. O rei, que estivera observando de uma poltrona, olhou direto para o príncipe. – Bem, que história é essa que ouvi sobre um feitiço maligno e um tal Sr. Oculto, e sobre a princesa ter tremores, azia, aperto no peito, e ser magoada e chorar e ter de colher as próprias rosas? O príncipe admitiu que era tudo verdade e contou-lhes tudo que ele e a princesa tinham feito para tentar afastar o feitiço. – Ela tem sido o meu melhor amigo em toda essa provação – disse ele, sua voz trêmula de emoção. Voltou a apertar a mão da princesa na sua maneira especial. – Acreditou em mim mesmo quando o Sr. Oculto estava sendo cruel com ela. Deu-me apoio, mesmo quando não era o meu eu que estava presente. – A princesa diz que você a culpou pelo feitiço – retrucou o pai. – Não, foi o Sr. Oculto quem a culpou. Eu sempre soube que ela não tinha culpa. – Você deve combater esse feitiço com todas as suas forças, ou ele destruirá tudo que mais preza – disse a rainha. – O feitiço é poderoso demais – replicou o príncipe. – Não posso combatê-lo. Não tenho forças. Já tentei. – Mas você precisa! – insistiu a rainha. – Desculpe – disse o príncipe, olhando da rainha para o rei e para ela de novo. – Amo demais vocês dois. Nunca pretendi magoá-los desse jeito. E jamais quis magoar a princesa. Eu a amei desde o primeiro momento em que a vi e não posso suportar a idéia de um dia viver sem ela... nem posso suportar o 49

fato de continuar magoando-a dessa maneira. – Os olhos do príncipe se inundaram com tantas lágrimas que, quando baixou a cabeça, elas pingaram uma a uma sobre o seu colo. Vicky começou a gritar tão alto que foi difícil crer que ninguém senão Victoria pudesse ouvi-la. – Alguém precisa fazer alguma coisa! Depressa! Pegue-o nos braços, Victoria. Passe os dedos pelo cabelo dele como costumava fazer e diga-lhe que tudo ficará bem. Olhe bem nos olhos dele e diga lhe que o amamos e amaremos para todo o sempre, custe o que custar. Por favor, Victoria! Faça isso, antes que seja tarde demais! Tão apaixonada, tão triste e tão confusa estava a princesa que tudo girava a sua volta num borrão nevoento.Tinha um bolo tão grande na garganta que nem conseguia falar. O rei se levantou e começou a andar de um lado para o outro, apertando as mãos. – Eu resolvo até os mais difíceis problemas... problemas que afetam as vidas de toda a população deste reino... e ainda assim não consigo pensar num meio de resolver esse para minha própria filha e meu genro. – Que nenhum homem separe o que foi unido por Deus – recitou a rainha. – Lamento, meus filhos, mas este é um momento em que não posso aconselhá-los sobre o que fazer. O príncipe levantou-se a fim de voltar para casa. Abraçou o rei e a rainha numa despedida mais firme e mais longa do que jamais fizera antes. Pôs o braço em torno da princesa enquanto ela o conduzia até a porta do palácio. A seguir, ele voltou-se e sussurrou no ouvido dela: – Eu te amo, princesa. Sempre amei e sempre amarei... haja o que houver. Sem esperar que a porta se fechasse atrás dele, a princesa correu pelo vestíbulo, subiu a escada em espiral, entrou no seu quarto e bateu a porta. Arremessou-se sobre as cobertas felpudas cor-de-rosa e chorou, tentou decidir o que fazer e chorou um pouco mais. Depois, completamente esgotada, caiu num sono conturbado.

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Capítulo Oito

Fazer ou não fazer...

A

princesa acordou com a vívida imagem de uma coruja cantante ainda fresca em sua mente. A coruja usava um chapéu de palha, tinha um estetoscópio pendurado no pescoço e tocava um banjo em miniatura. Ela percebeu que estivera sonhando com Henry Herbert Hoot, D.C. – ou achava que conhecera. A árvore parecia acenar para ela. Sabia ser improvável encontrar a coruja lá depois de tantos anos, mesmo se fosse real, mas sentia-se irresistivelmente atraída para a árvore. Decidindo que tinha tempo suficiente para ir até lá antes que escurecesse, vestiu um suéter e desceu rapidamente as escadas, encontrando a rainha, que vinha subindo. – Vou dar um passeio, mãe – disse ela. – Logo estarei de volta. Passando pelos jardins do palácio, ela seguiu até a pequena colina, protegendo os olhos do brilho do sol poente. A árvore já não era pequena, mas imóvel ali contra o céu alaranjado, parecia ainda mais solitária o que se lembrava. Esperançosa, olhou para os galhos acima. Nenhuma coruja à vista. O sol morria no horizonte, e seus espíritos com ele. – Oh, Doc – disse ela em voz alta. – Realmente espero que você esteja aí. É o único que conheço que poderia me ajudar. Desapontada, ela sentou-se por um instante observando o céu que escurecia. Uma estrela solitária apareceu, cada vez mais brilhante. – Faça um pedido à estrela, Victoria – sugeriu Vicky. – Oh, Vicky, está ficando tarde. De qualquer forma, não vai adiantar. Doc não está aqui. – Aposto que ele virá se você pedir à estrela. Por favor, Victoria. Por favor. – Tudo bem, vou tentar. A princesa olhou para a estrela. Estrela de luz, estrela sem véu, A primeira que vejo no céu, Gostaria de formular um pedido E que fosse esta noite atendido. Ela fechou os olhos firmemente e desejou muito que Doc aparecesse. Em seguida, esperou, esperou e esperou, mas nada aconteceu. Deixou-se cair ao solo e cobriu o rosto com as mãos. 51

Um momento depois, começou a música de banjo, e a voz que desejara ouvir estava cantando: Ouvi você formular seu pedido Aí, voei para cá num zunido. Quando dá a seus desejos liberdade, Magicamente eles viram realidade – Doc! – gritou a princesa, saltando de pé e correndo até a coruja. É você mesmo! Olhei lá pra cima dos galhos, mas não vi você. – Há muita coisa que você não vê, princesa. – Eu vejo montes de coisas. Vejo você, seu chapéu de palha e seu banjo. Vejo a árvore e o céu, e a estrela que à qual fiz o pedido. – Existem coisas para serem vistas que seus olhos não podem observar – disse Doc. – Que tipo de coisas? Coisas como desejar que os sonhos se tornem realidade? – Se os desejos tornam os sonhos realidade, por que todos os seus desejos não livram o príncipe do feitiço maligno? – Como é que sabe disso? – Um passarinho me contou. Um não, foi um bando inteiro de seus amigos emplumados. Eles vieram se consultar quando você parou de cantar suas canções. Tinham os corações tão pesados que mal podiam voar. – Sim, já sei como isso é... quero dizer, a parte sobre coração pesado. – A princesa suspirou. – Se ao menos pudesse pensar num meio de livrar o príncipe do feitiço maligno, então eu ficaria feliz e voltaria a cantar com os pássaros, e tudo ficaria bem com o mundo. Precisa me ajudar, Doc. Já tentei de tudo. Nada funciona. – Exatamente, princesa. Nada funciona. – Achei que certamente você saberia de alguma coisa. Alguma coisa em que não pensei. – Sei de alguma coisa. É nada. – Nada? – Sim, nada. Victoria franziu o cenho enquanto avaliava o que Doc tinha dito. – Não fazer nada? – Sim, princesa. Nada é algo que você ainda não tentou. Você deve parar de fazer tudo e começar a não fazer nada. Nada fazer e nada dizer. Não explicar, não defender, não arrumar as coisas, não suplicar, não se desculpar, não ameaçar, não se preocupar, não passar a noite pensando, planejando e imaginando. Pegou a idéia? – Não posso simplesmente não fazer nada! – Não fazendo nada você realmente estará fazendo alguma coisa... algo que ajudará o príncipe a tirar você do caminho dele. 52

– Isso não é uma coisa muito agradável de se dizer! – replicou a princesa, indignada. – Como é que estou no caminho dele? Estou apenas tentando ajudá-lo. – Perdoe-me, princesa. Não tive a intenção de ofendê-la. Mas o príncipe anda empenhado demais procurando o que há de errado com você para ver o que está errado com ele próprio. Se você não estiver fazendo nada, ele ficará mais propenso a ver que ele está fazendo alguma coisa. – Não posso parar de tentar ajudar o príncipe. O que seria dele? – O que seria dele com você dizendo e fazendo tudo que tem dito e feito? E o que seria de você? – Mas ele pediu minha ajuda. – Só porque alguém pede ajuda, isso não é razão suficiente para dá-la. Muitas vezes, a ajuda termina magoando. A princesa apertou as mãos nas têmporas quando sua cabeça começou a latejar. Vicky estava ficando mais agitada a cada minuto. – Mas nós temos de ajudar o príncipe – disse Vicky sem pensar. – Se Victoria ao menos pudesse imaginar o que estamos fazendo de errado, poderíamos começar a fazer direito, e aí tudo ficaria bem. – Ora, ora, se não é a pequena Vicky – disse Doc. – Olá, querida. – Como é que você sabe sobre Vicky? – perguntou Victoria – Os pássaros não poderiam ter lhe contado isso. – Corujas sabem muitas coisas. São muito sábias. – Ela geralmente fala só comigo, mas às vezes fala alto de modo que as pessoas possam ouvi-la. Claro que pensam que sou eu. Às vezes sou eu realmente, também. Bem, ela é eu... quero dizer... ela mistura tudo comigo, e aí mal posso dizer quem é quem. De qualquer modo, é difícil explicar. – Não precisa, princesa – replicou Doc. – Todo mundo tem companheiros como Vicky. O Jornal de Medicina do Novo Reino para Doutores do Coração tem publicado numerosos artigos explicando o fenômeno. – É mesmo? Pensei que eu fosse a única a... – Podemos discutir isso em outra ocasião. Neste exato momento temos de voltar ao problema principal. Você e Vicky precisam ouvir cuidadosamente. – Eu ouvirei, mas não creio que Vicky o fará – disse Victoria. – Ela não é muito boa ouvinte, especialmente quando está perturbada. – Veremos. Venha cá e sente-se – disse Doc, chamando a princesa com um aceno de asa. – O que você tem feito de errado? – disse – é acreditar que poderia ter lançado o feitiço sobre o príncipe e que, se conseguisse conjurar exatamente o elixir mágico certo, poderia afastar o feitiço. – Sim, sim, é isso! – gritou Vicky. – Precisamos de um elixir mágico! Mas Victoria não consegue imaginar o que seja, embora ela seja muito, muito boa em imaginar coisas. – Isso é porque a única pessoa que pode fazer magia funcionar sobre o príncipe é o príncipe – explicou Doc. 53

– Então não há menor esperança. Ele não pode fazê-lo – disse Victoria. – Ele já tentou. – Sim, ele pode – insistiu Doc. – Mas a sua felicidade não depende de se ele poderá ou não. – Sim, depende. – replicou Vicky. – Não tem de depender. – O que faremos? – perguntou Victoria. – Como sugeri antes, nada. Pelo menos nada que tenha a ver com o príncipe e o feitiço. Você, porém, pode fazer algo por si mesma. Aliás, há muita coisa que pode fazer por si. A princesa olhou suplicante para Doc, seus olhos banhados em lágrimas. – Não posso fazer outra coisa. Estou tão doente e tão cansada. Você é médico. Não pode me ajudar? – Claro que sim – replicou a coruja, abrindo sua valise preta e tirando um bloco de receitas. Rabiscou alguma coisa com sua pena de escrever flexível, destacou a folha e entregou à princesa. Ela franziu os olhos em meio à lágrimas, tentando ler o que estava escrito. NOME: Princesa Victoria ENDEREÇO: Palácio Real A VERDADE É O MELHOR REMÉDIO Tome a quantidade que puder, com a freqüência que puder. DOSAGEM: Ilimitada ASSINADO: Henry Herbert Hoot, D.C. – Verdade é remédio? – perguntou a princesa. – Sim. O mais puro e poderoso remédio do universo. É o único que pode ajudá-la. – Como posso encontrar essa verdade? – Pode começar com isto – disse Doc, vasculhando de novo sua valise preta. Extraiu um livro pequeno com uma rosa vermelha linda na capa e o colocou na mão da princesa. Ela olhou para a inscrição em dourado:

Um Guia Para Viver Feliz para Sempre Para princesas que estão doentes e cansadas de estar doentes e cansadas.

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Henry Herbert Hoot, D.C. – Isso é tudo que eu queria...viver feliz para sempre! – disse a princesa, apertando o livro contra o coração. – Lembre-se: ler o livro é apenas o começo – disse Doc. – Para as coisas mudarem, você deve mudar. – Eu? – disse Victoria. – Quem tem de mudar é o príncipe! – Isso é inteiramente impossível para o príncipe. Você deve se esforçar para manter isso em mente. – Ele provavelmente mudaria com mais facilidade se lesse o livro – disse Vicky experimentalmente. – Victoria poderia sublinhar em vermelho para ele as partes importantes, de modo... – Enquanto você continuar fazendo o que tem feito, continuará obtendo aquilo que tem obtido – disse Doc. – Chega de fazer o que não funciona. – Mas sabemos o que é certo para o príncipe melhor do que qualquer outra pessoa! – vociferou Vicky. – Você deve escolher ser feliz em vez de certa. – Escolher ser feliz? – indagou Victoria. – Sim. Felicidade é uma escolha. – Não posso nem pensar em ser feliz exatamente agora – disse a princesa. – Mas eu faria qualquer coisa por alguma paz e tranqüilidade. – Se isso é verdade, princesa, realmente verdade, você está a caminho de consegui-las. Mas deve começar do início. Vá agora e leia o livro. – Mas, Doc... – Leio o livro – disse Doc gentilmente. – Depois falaremos um pouco mais. – Tem certeza de que estará aqui quando eu terminar? – É a coisa mais certa do mundo, princesa. Fiz um juramento em prol da vida. – Fico feliz por ter reaparecido na minha – disse Victoria, dando um afetuoso abraço na coruja. Com esperança no coração, a princesa virou-se para voltar ao palácio dos pais, ainda apoiando o livro contra si. Mal podia esperar até chegar à quietude de seu quarto e começar a leitura. Enquanto caminhava pelo vestíbulo, o rei apareceu, acenando com um envelope. – Um mensageiro acabou de trazer para você. A princesa olhou para o seu nome no envelope, escrito no habitual estilo do príncipe. A tristeza a dominou enquanto rasgava o envelope e lia a mensagem no interior:

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Rosas são vermelhas Violetas são azuis. Volte cedo para casa, Para contemplá-las ainda na luz.

Ela correu até seu quarto e rapidamente juntou suas coisas. Depois se enfiou na mochila axadrezada, pondo o livro por último. Em seguida, desceu às pressas e disse ao rei à rainha que estava voltando para casa e que não se preocupassem. Por um momento ela pensou em contar a eles que estava recebendo ajuda de um especialista em assuntos do coração, mas desistiu ao se lembrar de como a rainha reagira da última vez em que tentara explicar a ela sobre Doc. Enquanto a carruagem se afastava do palácio dos seus pais, a princesa abriu a mochila e puxou Um guia para se viver feliz para sempre. Ansiosamente, abriu na primeira página. ―Quando foi a última vez que se olhou num espelho e sentiu-se impelida a dançar?‖, começava. ―A última vez que cantou uma canção que atraía pássaros das árvores para se reunir e cantar com você? A última vez que um vaso de rosas vermelhas a inundou de felicidades?‖ As palavras começaram a se borrar enquanto os olhos da princesa ficavam marejadas de lágrimas. A última vez...? Ela não conseguia lembrar.

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Capítulo Nove

Um guia para se viver feliz para sempre

Tão

concentrada ficou a princesa no livro que só depois percebeu que a carruagem estava parada em frente ao seu palácio. Quase incapaz de desviar os olhos da página, ela desceu da carruagem e caminhou até a entrada do palácio, o livro ainda na mão, seu dedo marcando a página. O cocheiro pôs a maleta no chão, do lado de dentro das portas do palácio. Havia uma inconfundível fragrância de rosas no ar. Ela olhou para os vasos de cristal lapidados a mão, assentados sobre pedestais de mármore branco, que adornavam cada canto do vestíbulo. Com toda certeza os vasos estavam cheios de rosas vermelhas frescas. – Veja! Ele colheu rosas para nós, Victoria! – disse Vicky. – Ele está melhorando! – Talvez, Vicky. Mas ele pode ter colhido as flores só porque está com medo de que o abandonemos. Você sabe que ele sempre fica gentil quando acha que podemos ir embora. Isso não dura muito. – Hum, hum. Ele ainda nos ama. As rosas são a prova. – Não quero discutir isso agora, Vicky – retrucou Victoria, ansiosa para voltar ao livro. Aliviada por, aparentemente, o príncipe não estar em casa, ela subiu ao quarto principal e caiu pesadamente no grande leito de latão. O aroma de rosas a fez olhar rapidamente para o vaso sobre sua penteadeira, igualmente repleto de rosas vermelhas. Esperando que Vicky não recomeçasse, Victoria abriu o livro no ponto em que havia parado. Leu sem pausas, reconhecendo-se em cada página – um fato que Vicky achou terrivelmente desolador, tanto que ela continuou a interromper a concentração de Victoria. – Isso é um monte de baboseiras. Faria melhor se largasse esse livro e esquecesse tudo sobre as idéias obtusas de Doc. Elas vão causar um terrível problema no príncipe. Sei disso. Sei disso! – Que outra opção nós temos? – respondeu Victoria. – Já tentamos tudo em que pudemos pensar, e nada funcionou. Seguir o conselho de Doc é nossa única esperança. Ele é muito sábio, Vicky. E é um especialista. Nos dias que se seguiram, a princesa carregou o livro de Doc com ela, lendo uma página aqui e um parágrafo ali em cada oportunidade. Era como se Um guia para se viver feliz para sempre tivesse sido escrito de encomenda para ela. Victoria sublinhou as partes importantes em vermelho. Tão 57

acostumada estava a fazer isso para o príncipe que tinha de ficar se recordando de que desta vez o fazia por si mesma. Voltava vezes sem conta às passagens marcadas, especialmente quando o Sr. Oculto estava tendo um dos seus discursos críticos. ―Palavras podem atingir tão duramente quanto um soco. Você deve tentar se manter afastada‖, dizia o Capítulo Três, ―Discussões quentes e silêncios gélidos‖. Era certamente mais do que verdade. Embora não fossem visíveis, a princesa tinha as contusões que provavam isso. Ler o livro não era tarefa fácil. Á vezes a príncipe tinha de ler a mesma frase quatro ou cinco vezes antes, até que as palavras fizessem sentido para ela. E algumas partes, misteriosamente, continuavam à deriva por sua mente. Ela tinha de retê-las vezes sem conta. Mesmo então, com freqüência não conseguia se lembrar delas um minuto após virar a página. Nada disso jamais tinha acontecido com ela, nem quando ficava estudando longas horas para as provas finais quando aluna da Universidade Imperial. Mas claro que, à época, Vicky não vivia tentando distraí-la. Vicky vacilava entre fazer beicinho e ter acessos de fúria, num esforço para convencer Victoria e descartar o conselho de Doc. – Não acredito bulhufas nesse livro idiota e não ligo a mínima para o que diz! – gritou Vicky um dia. – Não me interessa se ele diz para parar de disputar jogos com o príncipe e de realizar a nossa dança juntas. Adoro os jogos e a dança... você sabe disso! Jamais vou parar! – Você não entende, Vicky. Não se trata desse tipo de jogos de dança. É... – E toda essa baboseira sobre como não podemos corrigir o príncipe, como todos os cavalos e todos os homens do rei não conseguiram corrigir o pobre Humpty-Dumpty, e sobre como ele tem de se corrigir sozinho. E sobre como vamos deixar o rei e a rainha, e magoar e amar, tudo misturado. Todo esse blábláblá. Está me deixando realmente louca! – Bem, alguma coisa também está me deixando realmente louca, Vicky... você! Estou quebrando a cabeça, tentando imaginar o que de fato aconteceu aqui e por que, e o que fazer a respeito, e isso já é difícil o bastante sem você brigando comigo o tempo todo – disse Victoria, voltando a olhar para o livro. Mas era difícil se concentrar depois de discutir com Vicky. Nada fazer em relação ao príncipe revelava-se muito mais difícil do que tinha sido fazer alguma coisa. A princesa cuidava de manter as mãos bem enfiadas nos bolsos da saia de modo a se recordar da sua nova política de mãos-fora. E imaginava sua boca amordaçada nas vezes em que precisava se lembrar de não dizer nada. Com freqüência repetia para si as palavras de Doc: Para que as coisas mudem, você deve mudar. Dedicou todo seu esforço em fazer exatamente isso. Após certo tempo, não estava mais gastando cada momento de vigília tentando ajudar o príncipe a livrar-se do feitiço, nem tentando explicar e dialogar com ele. 58

Ela tentou com mais empenho ainda parar de se preocupar a respeito de como estaria o príncipe ao voltar para casa no final do dia, planejando o que dizer e fazer se ele dissesse isto ou aquilo, e tomando cuidado extra para não dizer, fazer, pensar ou sentir qualquer coisa que o enfurecesse. Mas ela descobriu que nada fazer e nada dizer – por mais difícil que fosse – era ainda bem mais fácil do que nada pensar e nada sentir. Assim, apesar dos seus melhores esforços para interrompê-los, os pensamentos perturbadores continuaram a disparar implacavelmente em sua cabeça. Embora sua cabeça estivesse dolorosamente cheia, o resto do corpo se encontrava dolorosamente vazio. Havia um enorme vácuo em sua vida – e nela – que nada parecia capaz de preencher. À medida que o tempo passava, cada momento vazio pesava mais e mais em suas mãos... e na sua mente... e no seu coração. Ela voltou a Um guia para se viver feliz para sempre em busca de aconselhamento. O livro dizia que era comum para uma pessoa que estava trocando de tarefas sentir-se tão pleno quanto vazio. Sugeria substituir sua tarefa antiga de concentrar-se no príncipe por novas atividades que se concentrassem nela. A princesa recordou o quanto suas mãos e mentes estiveram ocupadas quando testava receitas para seu livro, e decidiu voltar a cozinhar. Galvanizou-se em atividade da manhã à noite, mas, exceto por alguns breves intervalos, a rajada de pensamentos persistia, e ela sentia-se tão vazia como antes. Achou que estar entre as rosas poderia fazê-las se sentir melhor, portanto tentou trabalhar no jardim do nascer ao pôr-do-sol. Mas isso só a deixava mais deprimida. As rosas continuavam a recordar-lhe o príncipe. Ela permaneceu vários dias na cama, tomando o tranqüilizante prescrito pelo médico do palácio, mas isso tampouco ajudou. A princesa decidiu que tinha de tentar alguma coisa nova. Pensou longamente até resultar numa lista de coisas a fazer que poderia funcionar melhor do que tudo que já havia tentado. A idéia mais promissora da lista era fazer compras. Ouvira dizer que isso operava milagres no espírito da pessoa, e era especialmente bom para preencher horas vazias e esvaziar mentes sobrecarregadas. Na manhã seguinte a princesa estava esperando a abertura das portas do Empório do Velho Reino. Dirigiu-se ao setor de vestuário e escolheu vários rolos de tecidos dos quais mandou tirar cortes. Planejava levá-los ao costureiro real, mas ficou tão envolvida com suas compras que não deu tempo. Quando a loja fechou, ela tinha sacolas de chapéus, com e sem flores, de luvas – de seda, de couro e lã – várias cores de cada. Havia bugigangas de cada tamanho e formas, e sapatos combinando com bolsas. Eram tantas as sacolas que foram necessários três funcionários da loja, e seu cocheiro para embarcá-las na carruagem. Depois disso, passou a ir às compras diariamente, da abertura ao fechamento do comércio, e trazia tantas coisas para casa que seus guarda59

roupas ficaram abarrotados. Dois deles nem fechavam as portas. Por fim ela transformou um dos quartos de hóspedes em closet, que por sua vez ficou também quase abarrotado. – Vai viajar Victoria? – perguntou a rainha um dia, ao passar para uma breve visita. – Você tem mais roupas aqui do que o Empório do Velho Reino! Porque cargas d’água, já que nunca vai usar tudo isso? Mas saber que nunca usaria aquilo tudo não impediria a princesa de voltar a comprar mais, à medida que o lugar vazio dentro dela estivesse maior do que nunca. Dia após dia, ela foi comprando até que caiu. Uma noite, ela foi trancada por acidente quando a loja fechava – e não se importou muito. Foi então que percebeu o quão sem sentido sua vida se tornara e a quão desesperançada e desamparada ela se tornara. No dia seguinte ela folheou desesperadamente as páginas de Um guia para se viver feliz para sempre, procurando por algo que lhe dissesse o que fazer. E logo achou: ―Ponha para fora seus pensamentos e sentimentos dolorosos escrevendo-os.‖ A princesa pegou sua pena e um pedaço de pergaminho. Depois sentouse à penteadeira para escrever, mas deu um branco na sua mente. Sua dor estava tão entranhada que criara raízes e não conseguia sair. Ela estendeu o braço e puxou para mais perto sua pequena caixa de música, lembrando as muitas horas que passara ouvindo-a e sonhando. Ela girou a chave. O elegante casal no topo começou a sua dança ao som de ―Algum dia meu príncipe chegará‖. Enquanto ouviu as notas tilintantes de sua canção favorita, a dor profunda dentro dela começou a se elevar. A princesa agarrou sua pena e, enquanto sua agonia se libertava e irrompia para fora, ela a despejava sobre o pergaminho e depois sobre outro e mais outro – chorando o tempo todo e derramando tantas lágrimas que a tinta formou pequenos córregos que corriam pelas beiradas das páginas. A cada dia que se seguiu, a princesa leu e releu e pensou e repensou várias seções de Um guia para se viver feliz para sempre. Com freqüência, ela descobriu, podia abrir o livro ao acaso e perceber que a informação exata de que precisava muito naquele momento estava bem ali, como se tivesse dado um passo à frente, prontificando se a vir em sua ajuda. ―Felicidade e uma escolha‖, dizia uma dessas mensagens. Ela revirou a frase vezes sem conta na mente, recordando que Doc lhe dissera a mesma coisa, mas a felicidade parecia tão distante, tão inalcançável... Ela continuou a ler: ―Uma vez feita a escolha, você deveria praticar ser feliz o melhor que puder, mesmo se tiver de simular isso até conseguir.‖ A seguir, vinha uma explicação de como a pensamentos sucediam ações e sentimentos seguiam pensamentos. A princesa avaliou cuidadosamente o que tinha lido. De repente, teve uma idéia. Rasgou sua antiga lista de coisas a fazer e escreveu uma nova. A primeira coisa nela foi resumir as responsabilidades reais que havia abandonado durante todo aquele tempo dedicado a ajudar o príncipe. 60

Prontificou-se a dirigir a peça infantil anual no Orfanato de Soberania e matriculou-e num curso de desenho floral na Universidade Imperial. Na maior parte do tempo ela precisava forçar-se a ir, mas acabava indo apesar de tudo, fazendo bom uso da sua capacidade de sorrir por fora e chorar por dentro, e repetir para si mesmo: ―Simule até conseguir. Simule até conseguir. Simule até conseguir.‖ Em breve, a princesa começou a preparar algumas de suas receitas preferidas e tentou esforçar-se ao máximo para comê-las, embora o Sr. Oculto costumasse aparecer na ceia determinado a estragar tudo. Gradualmente, ela começou a passar menos tempo pisando em ovos e ir até o fim no que se propusera fazer. E passava mais tempo pensando sobre coisas, em vez de em si mesma e no quanto se sentia mal. Numa tarde, enquanto reunia os ingredientes para seu fettuccine de brócolis ao molho de pistache, percebeu um som agradável que há muito não ouvia – o som de sua própria voz cantarolando. Mais tarde, ocupada em picar nozes de pistache, deixou-se cair na cantoria, para sua grande surpresa, De repente, um azulão roliço voou através de uma das janelas da cozinha e, calculando mal o seu pouso, caiu direto no meio do monte de pistache picado. – Você de novo não! – disse ela com um risinho, pegando o pássaro que se contorcia e limpando as migalhas de pistache das patinhas dele, como tinha feito da outra vez. – Pistaches estão sempre no seu caminho, não é, meu alegre amiguinho? – Ela examinou a face do azulão. – Veio para cantar comigo? – perguntou. – Está bem, vamos cantar. Ela recomeçou sua canção, e em breve os outros amigos emplumados se juntaram a eles. A cozinha ganhou vida com seu melodioso gorjeio. Enquanto o doce som de sua harmonia pairava através da cozinha, ela percebeu o quanto andara perdendo. Depois disso, a princesa passou a cuidar melhor de si. Porém, quanto mais cuidava de si e menos dava ouvido ás arengas do príncipe, mais furioso ele ficava. – Você não me ama mais – gritou ele um dia da porta da sala de estar, enquanto ela recortava receitas da seção de culinária do Notícias do Reino. A princesa lembrou a si mesma para permanecer calma. Não ia se deixar arrastar para uma peleja verbal que a deixaria ferida durante dias, como se tivesse sido atropelada por uma carruagem. – Oh, lamento que se sinta assim – replicou ela no tom descompromissado sugerido por Um guia para viver feliz para sempre. – Oh, oh – zombou ele, se aproximando e parando diante dela. – Isso é tudo o que tem a dizer? Você, que falava pelos cotovelos? – Não quero brigar com você – ela arriscou-se a replicar. – Por que não, Srta. Perfeita? Tem medo de perder? Como a coisa podia ter chegado a tal ponto? Embora não estivesse de acordo, ela não pôde se impedir de perguntar mais uma vez: – Desde quando me tornei o inimigo? 61

– Não sei. Talvez tenha sido no dia em que começou a me ajudar. – Mas você pediu minha ajuda. Suplicou por... – Não, eu não! Nunca pedi sua ajuda. E nunca a desejei. A habitual confusão perturbadora a dominou. – Chama de ajuda aquilo que esteve fazendo? Obrigando-me a fazer o quê? A mudar, porque não sou bom o bastante para você? – Isso não é justo – a abalada princesa se ouviu dizendo. – Eu amo você. Perdi você e o quero de volta. Quero nós dois de volta, não faço a menor idéia do que está havendo. O que preciso fazer para me dar bem com você? – Você não me ama. Provavelmente nunca amou. O príncipe que você queria é aquele com o qual sonhou, não o que você tem. – Mas eu o tinha. Você era ele. Você era tudo que eu queria que meu príncipe fosse, até que o feitiço maligno caiu sobre você. – Você simplesmente não ouve! Já lhe disse antes: aquele príncipe morreu! Mas você se recusa a acreditar. – Não posso evitar. Sei que ele permanece aqui. De vez em quando eu o vejo, o sinto. – Você sempre teve dificuldade em acreditar na verdade, mesmo quando pode vê-la com os próprios olhos. Olhe para mim – disse ele, pegando rudemente seu queixo na mão e virando-o na direção dele. – Olhe firme – exigiu. – O que está vendo é o que você tem. E obviamente não o quer. Você não me ama. Não consegue me suportar. Bem, tenho boas notícias para você. Também não consigo suportá-la, de modo que, seja lá o que ache disse, Srta. Metida a Besta, Srta. Chata Real... – Pare com isso! Pare! – gritou Vicky. A mente de Victoria girava... Doc. Ela precisava ver Doc. A princesa agarrou o braço do sofá para se firmar enquanto se levantava. Aturdida, caminhou em direção à porta da sala de estar, mas o príncipe chegou primeiro e bloqueou a passagem. – Aonde pensa que vai? – trovejou. O coração dela disparava. – E-eu não sei... a algum outro lugar... quero dizer... – Ainda não terminei com você. – Já ouvi o suficiente. E-eu não posso ficar mais. – Eu decidirei quando você já tiver ouvido o suficiente – disse ele, agarrando-a pelo braço. – Solte-me, está me machucando... Solte-me! Ele apertou os dentes, olhou penetrantemente para ela e apertou com mais firmeza. – Por favor, solte-me – gritou ela, tentando livrar-se da mão de ferro. De súbito, ele soltou-lhe o braço, arremessando-a no chão. – Você quer ir? Então, vá! A princesa lutou com suas saias emaranhadas enquanto tentava se levantar. Uma vez de pé, disparou para fora dali e correu pelo comprido corredor que conduzia às portas do palácio, o príncipe gritando atrás dela: 62

– Você e seus grandes sonhos. Você não merece viver feliz para sempre! Está me ouvindo? Você não merece!

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PARTE III

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Capítulo Dez

A Trilha da Verdade

Enquanto Victoria chamava sua carruagem, a voz de Vicky explodiu na sua cabeça: – Eu não quero ver Doc. Eu lhe disse que aquele doutor charlatão e seu livro idiota iam estragar tudo. O príncipe nos odeia! Ele nos odeia! E é tudo culpa sua! Victoria não teve energia para argumentar. Enquanto a carruagem afastava, ela enterrou a cabeça nas mãos, tentando não ouvir Vicky pressionando. Tinha esperança de que Doc saberia o que fazer. A princesa foi o mais longe que podia na carruagem, instruiu o cocheiro a esperar e depois continuou a pé até chegar à árvore no morrinho, o tempo todo tentando ignorar o incessante resmungar em sua cabeça. – Doc... Doc... Onde está você? Por favor, preciso de você – implorou, olhando ao seu redor. Não vendo a coruja em parte alguma, começou a tremer. E se não o encontrasse? O que faria? – Doc, preciso de você imediatamente. Neste minuto, por favor! – A impaciência, cara princesa, nada mais é que ignorância do que se espera estar acontecendo no presente momento – disse Doc, aparecendo de lugar nenhum. – Oh, Doc. Aí está você. Graças a Deus! Não sei o que fazer. Nada está funcionando. Ou melhor, o nada não está funcionando... quero dizer... Oh, Doc, tentei o máximo que pude... Qual a utilidade? Desisto. – É melhor ceder do que desistir. – Como assim? – Desiste-se da desesperança, mas cede-se à aceitação. – Aceitação? – Sim. Aceitação das coisas que não se pode mudar. Victoria pensou por um momento. – Você quer dizer que não tenho escolha senão aceitar o príncipe e todas as coisas desprezíveis que ele diz e faz, e que me fazem tremer, me agitar e chorar o tempo todo? – Sempre há escolhas – replicou Doc. – Mas mudar alguém não é uma delas. – Agora sei disso. Mas que outras coisas eu tenho? – perguntou a princesa. – Você pode optar por não reagir às coisas que ele diz e faz. Levar sua vida o melhor que puder e viver tão feliz quanto puder, aceitando o que ele continuará a dizer e fazer, seja lá o que for que andou fazendo e dizendo. 66

– É o que venho tentando fazer desde que você me contou a respeito de nada fazer, e me deu o Guia para se viver feliz para sempre. Mas nem sempre posso fazê-lo, muito embora, mantenho as mãos enfiadas nos bolsos da saia a fim de me lembrar da minha nova política de mãos-fora com o príncipe e imaginar que estou amordaçada de modo a me lembrar de nada dizer. Há uma gigantesca nuvem negra pairando sobre mim o tempo todo... mesmo quando estou cumprindo minhas responsabilidades reais, dirigindo a peça infantil no orfanato ou arranjando flores no curso da universidade ou fazendo uma de minha receitas preferidas. – A princesa suspirou. – Por tanto, que outras escolhas tenho? – Você pode escolher não estar no mesmo lugar que o príncipe. – Está sugerindo que eu deveria abandoná-lo? – Não estou sugerindo nada, mas esta é uma de suas escolhas. Vicky não agüentou ficar quieta nem por mais um segundo. Sua voz ribombou na cabeça de Victoria. – Eu nunca deixaria o príncipe ou desistirei dele, ou cederei, ou seja lá como você chame! Nunca, está me ouvindo? Nunca, jamais! – Vicky, por favor! Não agüento mais – gritou Victoria, lançando as mãos pelo ar. – Gostaria de poder fugir daqui. – Não existe mais esperança de fugir dos problemas de alguém do que existe de fugir da sombra de alguém. Fugir nunca funciona. Só ir de encontro – disse Doc. – Tudo está uma bagunça. Nada é do jeito que eu pensava que era. Toda a minha vida está desmoronando. E não tenho a força para impedir. – A princesa baixou a cabeça e caiu em silêncio. – Você demonstrou grande força em tudo que vem enfrentando. – Não me sinto muito forte. Estou esgotada, e ainda tremo, me agito e... – E continuará se sentindo assim até que decida se vai ficar ou partir, e ficar em paz com seja o que for que escolher. Victoria avaliou as palavras dele. – Toda vez que tenho uma grande decisão a tomar, eu sempre... – Sim, eu sei – disse Doc, entregando a ela sua pena flexível e um pedaço de pergaminho extraído de sua valise. No topo à esquerda do pergaminho ela escreveu: ―Prós – a favor de ficar‖. No lado direito anotou: ―Contras – contra ficar‖. Olhou pensativamente a distância por um momento. A seguir, a pena começou a fluir pelo pergaminho. – Escreva aí que ele trabalha muito na embaixada – instou Vicky – e que toda noite vem direto para casa e para nós e que é belo, vivaz, alegre e com muito jeito para consertar coisas. E escreva aí que sempre trouxe canja de galinha para nós quando estávamos doentes, e nos dizia que éramos as mais belas do reino e colhia lindas rosas para nós. Oh, e não esqueça de pôr aí que ele... – Vicky, por favor! Não posso escrever com você tagarelando. 67

– Então pare de exagerar nos defeitos dele. Aposto que montes de príncipes são muito piores do que ele. Ele não é tão mau assim. Posso agüentar isso, se você pode. – É verdade. Ele possui um monte de boas qualidades – admitiu Victoria, movendo a pena para a coluna de motivos para ficar. Mas logo a lista de contras recomeçou a crescer. Quanto mais crescia, mais Vicky entrava em pânico. – Esta cometendo um grande erro, Victoria. Como sabe que será um pouquinho melhor com algum outro príncipe? Poderíamos procurar a vida inteira e jamais encontrar outro príncipe que nos ame. Ficaremos sozinhas para sempre e será tudo culpa sua! – acusou Vicky. Alguns minutos depois, Victoria ergueu os olhos da sua lista e lágrimas escorreram por suas faces. – Mas eu ainda o amo, Doc – disse ela –, muito embora a coluna de Contras seja muito mais extensa que a de Prós. E sei que ele me ama, pelo menos o príncipe verdadeiro... o Dr. Risinho. Como é que eu poderia ir embora? – O amor faz bem – disse Doc. – Se não fizer bem, não é amor. – Mas faz bem como amor. – Se você sente dor com mais freqüência do que se sente feliz, então não é amor. É outra coisa. Algo que mantém você encarcerada numa prisão medíocre, incapaz de ver que a porta da liberdade está escancarada a sua frente. Quanto mais a princesa pensava em abandonar o príncipe, mais poderoso se tornava o aperto que a puxava de volta para ele. Mas ela sabia qualquer que fosse o sentimento – amor ou não –, se ela o deixasse vencer estaria de fato retornando para uma prisão, uma prisão de dor que se tornara insuportável. Ela sentou-se mordendo o lábio e lutando para evitar ser consumida pelo sentimento esmagador, que estava a ponto de deixar murchar e morrer no ato. Finalmente, ela voltou-se para Doc, que estava sentado em silêncio, esperando a decisão dela. Com voz trêmula, ela disse: – Sei que devo ir embora, mas para onde irei? – Você continuará na Trilha da Verdade. – Está querendo dizer que já estive nela? – Sim, Desde o dia em que lhe dei a receita e você a seguiu começando a ler o livro. – Por que não percebi a trilha? – Ela estava lá, mas freqüentemente só se vê a trilha após ter viajado nela por uma boa distância. Ninguém vê o que não está pronto para ver. – Bem, já aprendi alguma coisa a respeito da verdade – replicou a princesa, baixinho. – A verdade é que contos de fadas não se tornam realidade e viver feliz para sempre não é mais que um sonho infantil.

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– Pelo contrário, princesa. Contos de fadas se tornam realidade – disse Doc. – Mas são com freqüência diferentes daquilo que fantasiamos de início. O final feliz espera por você na trilha. – É mesmo? – disse ela, seu rosto se iluminando. – Um conto de fadas diferente? – A princesa nunca pensara na possibilidade de que poderia viver feliz para sempre sem ser resgatado por um corajoso, encantador e belo príncipe, chegando montado num robusto cavalo branco, arrebatando-a e fugindo com ela ao pôr-do-sol. Victoria suspirou. – Mas antes eu achava que a felicidade estava me aguardando, e olhe onde vim parar. – Veio parar onde está agora. – O que há de tão bom acerca de onde estou agora? – perguntou Victoria. – Você descobrirá quando estiver na trilha. Ela hesitou. – Não quero ir sozinha. Pode me indicar o caminho? – Gostaria de fazê-lo, princesa – replicou Doc gentilmente. – Mas cada um deve encontrar o seu próprio caminho. – Tenho medo de me perder. – Você não seria a primeira. Mas não tenha medo. Seu coração sabe o caminho. – Meu coração pede que eu volte para casa. Não sei se isso faz sentido. – A verdade faz tudo ter sentido. – Você é tão sábio, Doc. E já deve saber tudo sobre a verdade. Por que não me conta, para que eu não precise procurar por ela? – Nunca se pode aprender a verdade através de outra pessoa. Você deve encontrá-la por si mesma. – Tudo bem, então – disse ela com pesar. – Acho que irei até em casa para embalar algumas coisas. – Você já tem tudo de que precisa. Só que não está ciente disso. Mas faça como quiser. Esperarei aqui para dar-lhe as últimas instruções. – Não vou a lugar nenhum – gritou Vicky. – Não temos de abandonar o príncipe. Eu o convencerei de que o amamos e precisamos dele, e ele nos tomará nos braços e nos dirá que lamenta muito, que foi tudo um grande erro. Seus olhos cintilarão mais brilhantes do que nunca antes, e saberemos que cintilam para nós. Colheremos lindas rosas de nosso jardim e as espalharemos em vasos por todo palácio. O mundo voltará a ser cor-de-rosa. Prometo que dessa vez irá funcionar, Victoria. Juro por Deus e quero cair mortinha, e quero beijar um... – Oh, Vicky, minha pobrezinha e doce Vicky! Está tudo acabado – replicou Victoria debilmente. – Não, não. Não está. Não pode ser! Nunca estará acabado. Nunca! Está me ouvindo? – gritou Vicky, histérica. – Eu morrerei sem ele. – Não Vicky. Você morrerá com ele... e portanto eu também. 69

Sua mente apaziguada, Victoria caminhou rapidamente até a carruagem à espera e retornou ao seu palácio. Subiu a escadaria e seguiu para o quarto principal. Jogou alguns itens necessários na mochila, depois enfiou um exemplar do Livro de receitas naturais para gourmets da família real. Como poderia vir a precisar de Um guia para se viver feliz para sempre, ela o enfiou também mochila. Embrulhou o precioso par de sapatinhos de cristal com suas iniciais gravadas em uma de suas echarpes macias de lã e amarrou com uma fita de cabelo, depois os colocou com o maior cuidado dentro da mochila. Pensou em não levar sua caixa de música porque a mochila já estava ficando pesada – e, de qualquer modo, ultimamente a música estava deixando triste demais –, mas não poderia deixá-la para trás. Depois, achando que Árvore Genealógica da Família Real poderia ser útil na sua jornada, a princesa abriu seu baú de noiva e procurou lá dentro. Remexeu até que seus dedos sentiram as beiradas rotas do velho pergaminho. Enfiou-o na mochila. Quase como que num pensamento tardio, colocou a receita de Doc e fechou a mochila, lembrando a si mesma de passar na cozinha antes de partir a fim de levar alimentos para a jornada. Todo aquele tempo ouvindo a gritaria de Vicky estava causando uma terrível dor de cabeça em Victoria. A princesa foi até o grande leito de latão e sentiu-se compelida a passar a mão sobre a colcha de cetim que, vezes sem conta, havia ensopado com suas lágrimas. Mas recordava principalmente a época em que o príncipe a tomava nos braços e sussurrava palavras de amor. Inspirou profundamente, saboreando o aroma da colônia preferida do príncipe, que ainda impregnava no ar. Tão repleta estava com suas próprias lágrimas que receava que, se as liberasse todas de uma vez, certamente se afogaria. A dúvida chegou subitamente como o chorão de um relâmpago , e durou quase o mesmo tempo. – Eu preciso fazer isso. Preciso – Victoria lembrou a si mesma, sua voz soando como se pertencesse a outra pessoa. Nada parecia real. Ela meio que esperava que alguém a acordasse do pesadelo. Foi até a penteadeira, abriu a gaveta do meio e olhou para a pequena pilha de bilhetes de agradecimento em pergaminho branco, deixados depois da festa de seu casamento. Tirou um bilhete da gaveta, abriu-o e nele escreveu:

De violetas e rosas Nosso jardim viceja, Mas devo abandonar você Por mais triste que seja. Ela deixou o bilhete apoiado contra o vaso de rosas e seguiu para a porta, depois parou para dar uma última olhada no quarto que por tantos anos 70

partilhara com o príncipe. Seus olhos se detiveram no bilhete e no vaso de rosas vermelhas. Estivera tão preocupada que nem notara o quão murchas estavam as flores, e que pétalas enrugadas tinham caído de seus caules e formado pequenas pilhas em volta do fundo do vaso. Ela deixou a mochila e foi até a penteadeira. Sua garganta estava tensa, as mãos trêmulas. – Não! – gritou Vicky. – Não! – Nós as colhemos há mais de uma semana, Vicky – replicou Victoria. – As pétalas já devem estar caindo há vários dias. – Não, não as jogue fora! Elas podem voltar! Elas podem voltar?... Elas podem voltar? Seria possível Victoria suspirou. – Não, Vicky. Elas não vão voltar! – disse ela gentilmente. – E nem nós. Diversas vezes, durante a viagem de carruagem de volta à árvore onde Doc a esperava, a princesa mandou o cocheiro dar meia-volta e regressar ao palácio. A cada vez, passados apenas alguns momentos, ela o instruía a dar maia-volta de novo e continuar na direção da árvore. Não era de admirar que a convicção de Victoria de partir vacilasse à medida que Vicky a assustava, arengando e vociferando sobre quão perdidas e assustadas elas ficariam sem o príncipe e como ninguém jamais iria querê-las ou amá-las de novo e como passariam os anos tristes e solitários, para finalmente morrerem sozinhas. A princesa desceu da carruagem, pegou sua mochila e despachou o cocheiro, tremendo enquanto o observava se afastando. Caminhou lentamente na direção do morrinho, ciente de que cada passo que dava era um passo para longe do príncipe que amava e de tudo que ela um dia havia conhecido. A princesa viu Doc ao se aproximar da árvore. Chapéu de palha na cabeça estava empoleirado num galho mais baixo, tocando seu banjo. Ela ouviu sua voz melodiosa cantar: Não tenho mais carruagem, nem castelo onde morar, Mesmo assim, sigo em frente sem vacilar. Tenho o verde as árvores e o azul do céu, Ora, é um bom começo para uma vida ao léu. – Algum começo isto é. Sinto-me como se estivesse acabada – disse a princesa, olhando tristemente para ele. – É duro acreditar que não há nada para se aguardar. – Oh, mas há, princesa – respondeu Doc. – Embora, sem dúvida, seja difícil de acreditar neste exato momento, você tem muito a aguardar... quanto maior a dor, maior a oportunidade. – Oportunidade? Para que? – Neste caso, para uma maravilhosa vida nova. Hoje é o seu começo. 71

– Certamente não parece – disse a princesa. – Não quero fazer isso. Preferia não ter de fazer. – A capacidade de fazer o que é melhor, quando é diferente do que se quer, é um sinal de maturidade – disse Doc, caindo levemente para o chão. – Claro que isso não tornaria a coisa menos difícil. – Acho melhor começar antes que eu mude de idéia outra vez. Mas como posso seguir uma trilha que nem mesmo posso ver? – Olhe de novo, princesa – sugeriu Doc. A princesa arfou. – De onde surgiu isso? – perguntou ela, apontando para uma trilha que subitamente apareceu bem diante dela, sua superfície pedregosa serpenteando e se tornando uma íngreme subida que se perdia na distância. – Por que nunca a vi antes? – Algum dia você realmente se dispôs a olhar antes? – Não, acho que não – replicou ela, olhando para a trilha. – Não consigo ver onde termina. – Ela não termina. – Não termina? Mas como saberei se vou na direção certa se não posso manter a vista para onde supostamente terminaria? – Há letreiros indicativos. Infelizmente, as pessoas nem sempre os lêem. Ás vezes são difíceis de ver. Você deve observar atentamente para vê-los. – Parece muito difícil – disse a princesa. – Eu poderia me ferir. Ou me perder. Ou as duas coisas. – Você já passou pelas duas coisas e sobreviveu. Sobreviverá também a isso. – Não creio que eu seja forte o bastante para enfrentar tudo isso. Ficarei fraca demais para prosseguir – disse ela, ficando mais assustada a cada momento que passava. – Pelo contrário – replicou Doc. – Quanto mais você prosseguir, mais oportunidade terá para ficar mais forte. Lembre-se do que eu disse sobre a dor e a oportunidade. – Não estou muito certa sobre isso. Eu não fazia idéia de onde estava me metendo quando disse que iria. – Ninguém jamais disse que seria fácil ir em busca da verdade. Você precisará ser muitas coisas, exploradora, navegante, desbravadora... pois a trilha serpenteia através de terreno acidentado. É conhecida por ter muitos obstáculos. Buracos à espera de viajantes incautos. Cobertores de seixos que oscilam e rolam debaixo dos pés. E penedos que bloqueiam o caminho, alguns que parecem do tamanho de montanhas e são irremovíveis. Pois muitas coisas entram no caminho da verdade, umas grandes, outras pequenas. – Parece o lugar perfeito para ser resgatada. – A seguir, ela se lembrou. – Será que meu príncipe virá me resgatar na hora H? Doc sorriu. 72

– Vê? Você já está aprendendo. Agora preciso lhe dar umas instruções de última hora. Está pronta? – Acho que sim. – Você deve seguir a trilha, aconteça o que acontecer, e procurar a verdade que a espera. Não permita que nada a desvie de sua busca da verdade que irá curá-la. – Como conhecerei a verdade quando a encontrar? – A verdade se torna cada vez mais clara à medida que se percorre a trilha. É só segui-la fielmente e, por fim, alcançará o Templo da Verdade, Casa do Pergaminho Sagrado. – O Templo da Verdade? Nunca ouvi falar. O que é? E o que é o Pergaminho Sagrado – O templo é um dos lugares mais lindos o universo, de mais maneiras do que se pode imaginar. Uma vez transpostos os seus portais, você mudará para sempre. O Pergaminho Sagrado despertará sua mente e libertará seu coração. Você encontrará paz e serenidade, e aprenderá o segredo do verdadeiro amor – do tipo com que sonhou por toda a vida. Você estará no caminho certo para tornar seu conto de fadas realidade. – Oh, Doc, é a coisa que mais desejo no mundo! A coruja bateu suas asas e elevou-se no ar. – Então a terá. Vá em frente, cara princesa, e plante as sementes da verdade das quais brotarão paz, amor e felicidade. – Espero que eu possa imaginar como – disse ela. – Até hoje só plantei rosas. Ela pegou sua mochila. Depois, procurando por buracos, seixos, penedos, e coisas tais, ela foi dando passos tímidos ao longo da Trilha da Verdade, sacudindo a cabeça e murmurando para si: – Não posso crer que esteja realmente fazendo isso.

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Capítulo Onze

O Mar da Emoção

A princesa caminhava cautelosamente ao longo da trilha serpenteante, sua mochila ficando mais pesada a cada minuto. Sua mente estava inteiramente preocupada em especular sobre o que saíra errado com o príncipe, exatamente quando havia começado, o que teria causado aquilo, de quem era a culpa e o que teria feito de diferente que pudesse ter mudado as coisas. Repassou suas lembranças em cada detalhe, buscando respostas, até sua cabeça latejar. Mas ainda não conseguia se impedir de tentar imaginar tudo aquilo. Finalmente, ela tropeçou num tronco velho e dentado, circundado pó um matagal que parecia desesperadamente necessitado de água. Ela receava que em breve também precisaria, ao pensar no seu escasso suprimento que se esgotava. – Talvez a gente morra de sede antes de torcer um tornozelo num buraco ou escorregar em alguns seixos ou bater com o nariz num penedo – disse Vicky, que iniciara um blábláblá ininteligível desde que tinham entrado na trilha. – Oh, Vicky, pelo amor de Deus! A última coisa de que preciso agora é você me perturbando. – Bem, a última coisa de que eu preciso agora é nós duas sozinhas nesta medonha trilha poeirenta, cheia demato semimorto, sem saber aonde estamos indo. Victoria pegou sua mochila e vasculhou até encontrar a Árvore Genealógica da Família Real. Ela puxou a fita prateada e desenrolou cuidadosamente o pergaminho quebradiço. – Talvez isso nos ajude a encontrar nosso caminho – disse ela, olhando intencionalmente para o mapa enquanto dava uma mordida num dos biscoitos que trouxera. – O único caminho que desejo encontrar é o de casa – disse Vicky. – E é melhor nos apressarmos antes que o príncipe se apaixone por outra princesa. – Não há nada que eu possa fazer a esse respeito – disse Victoria, seu coração disparando ao simples pensamento. – Mas você tem de fazer, ou ele irá colher braçadas de lindas rosas para ela e colocá-las em vasos de cristal por todo o palácio, e seus braços fortes irão estreitá-la e... – Ele não agiria assim conosco mesmo se voltássemos para casa. Você sabe que não. – Por que tudo não pode ser do jeito que era antes? – lamentou Vicky. 74

– Não pode, e ponto final. – Mas os dedos dela irão alisar o cabelo preto retinto dele... o cabelo do nosso príncipe... e o rosto dele se iluminará quando ela entrar no quarto, E os olhos dele cintilarão... só por ela. – Vicky choramingou. – Não posso suportar isso, não posso! Por favor, por favor, temos de voltar imediatamente! Victoria tapou os ouvidos com as mãos, lutando para não ouvir as palavras de Vicky. Mas ela as ouviu, altas e claras. E essas palavras invocaram um vívido retrato mental de outra princesa abraçando e amando o seu príncipe. O seu príncipe maravilhoso, encantador e bonito. – Não sei o que fazer, Vicky. Não posso sequer imaginar o que deu errado ou de quem foi a culpa. Mas sei que não podemos ir para casa. Você sabe que não podemos, não sabe? – Mas eu não posso viver sem ele. Não posso! – gritou Vicky. – É como se alguém tivesse cortado nossos braços e pernas. – Que coisa horrível de se dizer! – replicou Victoria, e depois acrescentou suavemente: - Horrível, mas verdadeira. Doc nunca nos disse que seria assim. Naquele momento, uma massa de nuvens pesadas e escuras passou na frente do sol, e o mundo de Victoria ficou mais ofuscado de dúvida. Ela se arrepiou quando uma brisa fria começou a soprar. Ela não estava preparada para uma tempestade. – É melhor procurarmos abrigo – disse Victoria e enfiou apressadamente o pergaminho na mochila quando pingos de chuva começaram a cair. – Veja – disse Vicky, desatando a chorar. – O mundo inteiro está triste como nós. Isso fez Victoria começar a chorar também. Quanto mais aumentava a chuva, mais elas choravam. Quanto mais choravam, mais chovia. Parecia como se o mundo inteiro chorasse com elas. Havia tanta chuva e tantas lágrimas que poças se formaram – primeiro pequenas, depois maiores. A chuva e as lágrimas continuaram a cair, transformando as poças numa corrente constante de água encrespada que viajava cada vez mais rápido até que inchou, para transformar num aguaceiro de tamanha força que arrastava tudo no caminho que não estivesse bem fincado no solo. A princesa estava tão perturbada que só notou o que estava acontecendo quando uma torrente de água em disparada a arrebatou e arrastou-a trilha abaixo aos trancos e barrancos, sacudindo-a e retorcendo-a no caminho. – Tenho medo de água! – gritou Vicky. – Eu sei – gritou Victoria de volta. - É por isso que não tomamos lições de natação. – Você não devia ter me criado! – Não é hora de falar sobre isso! – gritou Victoria, agarrando-se desesperadamente aos galhos de arbustos enraizados. Mas, apesar dos seus melhores esforços, a princesa foi varrida incontrolavelmente trilha abaixo. 75

– Victoria. Veja! – Mas já era tarde demais. Uma gigantesca massa de água assomou diante delas. – Caramba! Vamos ser levadas para as profundezas! A princesa foi arremessada, sem fôlego e aterrorizada, no Mar da Emoção. Rochas pontiagudas e pedaços de galhos quebrados rodopiavam na água gelada a sua volta, enquanto ela lutava ferozmente para permanecer à tona. Uma forte corrente puxava seus pés, enquanto pelotas de chuva batiam implacavelmente no seu rosto e cabeça. – Vamos nos afogar, com certeza! – gritou Vicky entre golfadas de água salgada. – Gostaria que o príncipe estivesse aqui para nos ajudar. A princesa continuava dando braçadas e chutando, gritando por socorro. Enquanto estava sendo de novo sugada para o fundo do mar, vislumbrou alguma coisa ao longe. Se ao menos pudesse alcançá-la... Quando voltou à superfície, a coisa ainda estava lá. Parecia ser um navio, balançando e arfando na sua direção. – Socorro! Salvem-me! – gritou o mais alto que pôde, esperando que quem quer que estivesse no navio possuísse alguma experiência em resgatar pessoas. Talvez fosse um belo príncipe encantado e corajoso, apanhado inesperadamente na tempestade enquanto saía para um cruzeiro. Ou talvez fosse uma das belonaves da Marinha Real. Continuou gritando, mas não houve resposta. Quando a embarcação se aproximou, ela soube por quê. Não havia ninguém a bordo. E o navio era muito menor do que julgara de início – era um bote a remos. Quando o bote a alcançou, ela agarrou-se à borda e tentou com todas as forças impulsionar-se para a segurança do casco, mas estava enfraquecida demais. Se ao menos pudesse descansar por um minuto, pensou, talvez conseguisse reunir forças. Portanto, agarrou-se com firmeza, primeiro com umas das mãos, depois com a outra. Finalmente, com um forte impulso, ela passou por cima da borda e caiu dentro do bote. Exausta, permaneceu bem ali onde tinha caído, esparramada no fundo da frágil embarcação, bem em cima de dois velhos remos de madeira. – Uau! Pensei que íamos mesmo nos afogar – disse Vicky – O que vamos fazer agora? – Tão logo eu recupere as energias, vamos usar estes remos para voltar à terra. Tudo que tenho a fazer é imaginar de que lado ela fica. A princesa ergueu-se com grande esforço e olhou para o norte – ou seria o sul? – Especulou. Ou... bem, isso não tinha importância, desde que avistasse terra. Mas, até onde podia ver em cada direção, não havia nada senão o mar escuro e turbulento. – É tremendamente assustador – disse Vicky em voz trêmula. – Não tenha medo. Tudo vai correr bem tão logo eu imagine para que lado seguir. – Essa sua mania de imaginar coisas é que nos botou nesse apuro, para começar. Quero ir para casa! – Se não ficar calada e me deixar pensar, podemos morrer aqui. 76

– Eu lhe disse que íamos morrer se deixássemos o príncipe. – disse Vicky acusadoramente. – Você não acreditou. Devia ter acreditado em mim, Victoria. – Vicky, por favor! Não tenho tempo para isso agora. – Não é justo! De todos os príncipes do reino, por que justamente o nosso tinha de pegar o feitiço maligno? – Só posso imaginar uma coisa de cada vez, Vicky. – Ele prometeu nos amar e cuidar de nós para sempre. Eu devia tê-lo feito dizer: ―Juro por Deus e quero cair mortinho, beijar um lagarto.‖ Porque ele quebrou sua promessa! Ele é pior do que mau. É tudo culpa dele termos tido que partir. Eu o odeio! Ele estragou tudo. Toda a nossa vida. Não posso suportar isso. Não mesmo! – gritou Vicky, lançando-se ao fundo do bote e batendo com os pés e socando com os punhos até que ficaram machucados e latejando. – Está tudo errado. Tudo está errado. Não é justo! E agora nós vamos morrer! – Pare com isso! Pare! Está me ouvindo? – gritou Victoria. – Você precisa se acalmar. Não consigo pensar com você gritando e esmurrando o bote! O céu escureceu ainda mais. Pouco depois, os céus pareceram se fender e gigantescos pingos de chuva tamborilavam sobre o mar. O bote jogava violentamente enquanto o mar descarregava sua raiva. A princesa aferrou-se à borda, mas ela e o pequeno barco não eram páreo para a fúria da tempestade. Ela era arremessada impiedosamente de um lado para outro do bote. Por duas vezes, quase passou por cima da borda. – Quero ir para casa! – gritava Vicky em meio ao vento uivante. – Alguém nos ajude, por favor, por favor! Doc! Alguém! Qualquer um! Tiremnos da tempestade e desse barco e façam o príncipe voltar a ser gentil como costumava ser e nos leva para casa. Prometo ser melhor do que nunca fui antes, de todas as maneiras. Se-serei perfeita. Farei tudo... qualquer coisa que você quiser. Prometo, realmente prometo. Juro por Deus e quero cair motinha, mas, como você provavelmente vê, meus braços estão ocupados. E, de qualquer modo, este não parece ser o melhor momento para esperar a morte! O fundo do bote começou a se encher de água. A princesa pôs as mãos em concha freneticamente e começou a despejá-la por sobre a borda. Mas a água continuava a subir. – Pelo menos como salva-vidas este bote deve servir – disse Victoria. – É tudo minha culpa – gritou Vicky. – Sei disso. Provavelmente abri um buraco no fundo do barco com meus socos naquela hora em que fiquei desesperada. – Duvido , Vicky. Este bote é simplesmente velho e pequeno demais para agüentar toda essa chuva e ondas em arrebentação. – Victoria arrebatou os remos da água que se elevava. – Vamos cair fora daqui imediatamente. – Mas não sabemos que caminho seguir! – Qualquer lugar é melhor do que aqui – replicou Victoria, começando a remar loucamente. Mas a correnteza puxava o bote para trás. 77

– Depressa! Temos de tirar este bote daqui antes que afunde. – Estou tentando! – gritou Victoria. À medida que a noite caía, a princesa continuava metodicamente empurrando e puxando os remos com a maior firmeza que podia, seus braços doendo. A água já subira até o meio do barco e o pânico de Vicky crescia. – E se estivermos seguindo o caminho errado, ou se não houver terra em lugar nenhum, ou se a gente estiver viajando em círculos sem sequer saber ou se... Victoria continuou a remar em silêncio. Pela manhã, seus braços tinham ficado tão fracos que não podiam mais continuar e largou os remos. – Acho que vamos afundar com o bote. – Não importa – disse Vicky. – De que adianta viver, de qualquer modo? Até nossa mochila se foi. Enquanto o barco ficava cada vez mais baixo na água, Victoria continuava tentando formular um novo plano. Se ao menos ela tivesse algo com que sinalizar para outro barco! – Parece que você está em apuros até o pescoço – disse uma voz. – Sim, e do jeito como estão indo as coisas, esses apuros vão chegar ao topo de minha cabeça – replicou Victoria sem hesitação. – Hum. Muito inteligente – disse a voz. – Também muito verdadeiro, acho, a menos que você faça algo para se salvar. – Me salvar? É o que estive tentando fazer para... Ei, quem é você? – perguntou a princesa, olhando em volta. – Socorro! Por favor, me ajude! – De repente, uma reluzente cabeça cinzenta surgiu à superfície da água. – Olá – disse, batendo os cílios de um jeito que fez a princesa lembrar do príncipe. – Sou Dolly. Dolly, o Golfinho. E eu deveria perguntar como é que vai você. Mas posso ver claramente que não vai nada bem no momento. Pelo menos você tem ambos os remos na água, o que é consideravelmente mais do que posso dizer de outros que tenho encontrado por aqui. – Um golfinho! Um golfinho falante! Sei de golfinhos que falam uns com os outros, mas não imaginava... E agora você veio nos resgatar. E bem na hora H! Engraçado, de alguma forma sempre pensei que seria resgatada por um príncipe. – Ninguém pode resgatá-la, minha cara. Nem eu, nem um príncipe, nem qualquer outro. Um fato freqüentemente impalpável, mesmo para alguém que é boa para imaginar coisas. – Está querendo dizer que vai deixar eu me afogar? – perguntou ela atônita. – Não quero dizer que você vai se deixar afogar... quer seja agora ou na próxima vez...isto , a menos que aprenda a nadar. – Da próxima vez? O que quer dizer com ―da próxima vez‖? – Mesmo que eu a carregasse nas costas para livrá-la dessa tempestade e a depositasse a salvo em terra firme, seria apenas uma questão de tempo até 78

que a próxima tempestade a alcance e aí, inevitavelmente, estará em apuros outra vez, pois há muitas tempestades prestes a desabar sobre a trilha. – Ainda estou imaginando um meio para não me afogar nesta aqui – disse Victoria. – Como já lhe disse, o meio de evitar o afogamento é aprender a nadar. – Mas a Vicky sempre se recusou. – Então você passará sua vida inteira tentando evitar se afogar... como agora... observando e esperando por um barco salva-vidas perfeito para salvála, de uma vez por todas. – Sim! Sim! É exatamente disso que precisamos! – deixou escapar Vicky. – Acha que poderia nos arranjar rapidinho um de verdade? – Mesmo que pudesse, provavelmente não seria muito bom para vocês. É comum barcos salva-vidas afundarem – disse Dolly. – Barcos salva-vidas não são feitos para afundar – replicou Vicky, indignada. – São feitos para salvar pessoas! – Muitas coisas não fazem aquilo que supostamente deveriam fazer. Barcos salva-vidas, por exemplo, com freqüência afogam as próprias pessoas que deveriam estar salvando. – É mesmo? – disse Victoria. – Sim. Quando avistou seu barco pela primeira vez, não achou que ele ia salvá-la? E não resultou ser pequeno e velho, e tão frágil que se encheu de água? – Acho que sim – murmurou Vicky. – E não estão se agarrando nele desesperadamente, muito embora esteja afundando e ameaçando levar vocês junto? – Acho que sim – disse Vicky, amuada. Depois, subitamente, ela se iluminou. – Já sei! Você poderia nos dar uma carona para fora daqui. Você atravessou a tempestade, é um golfinho, e golfinhos são realmente bons nadadores. E são espertos também. Aposto que você sabe exatamente onde encontrar terra. – Eu poderia fazer isso, mas não vou. – Por que não? – Porque quando você dá um peixe a um homem, você o alimenta hoje. Quando você o ensina a pescar, você o alimenta para a vida. Eis por quê. – E o que me interessa saber sobre um homem idiota e seu peixe! – disse Victoria, mais frustrada ainda. – Você tem de nos ajudar a sair daqui antes que a água suba mais! – Só posso ajudar ensinando vocês a se ajudarem a si mesmas. – Ajudarmos a nós mesmas? Como faremos isso? – perguntou Victoria. – Evacuando a embarcação, como se diz – respondeu o golfinho. – O que significa isso, Victoria? – Quer dizer que devemos pular fora do bote. – Você não entende! – gritou Vicky para o golfinho. – Já lhe disse, não sabemos nadar! 79

– É você que não entende. Você sabe nadar. Simplesmente escolheu não saber. Posso lhe ensinar como. – Estamos congelando e cansadas e, de qualquer modo, a água está agitada demais – disse Vicky, decidida. – Iremos nos afogar se tentarmos aprender agora. – Irão com certeza se afogar se não tentarem aprender agora. – Vicky começou a gritar e a se agarrar na borda do barco. – Não e não! Não quero sair do bote! – Uma pessoa pode sentir como se estivesse se afogando e ainda assim sobreviver. É importante lembrar disso – replicou Dolly. – Não vamos ficar por aí para ―lembrar de alguma coisa‖ – gritou Vicky. – Algumas pessoas têm de tocar o fundo antes que se disponham a aprender a se salvar. E, mesmo então, algumas ainda não se arriscam a tentar. Você veio nesta jornada para evitar ir para o fundo com um barco que está indo a pique – disse Dolly. – Tem certeza de que quer se deixar levar para o fundo por esse aí? – Não entendo – replicou Vicky. – Não estávamos tampouco sobre outro barco. – Dolly se refere ao príncipe – explicou Victoria. – Ele era o outro barco, de certa maneira. Aquela foi a primeira vez que tivemos de decidir se ficávamos e afundávamos, ou se partíamos e tentávamos nadar. Se tivéssemos ficado com ele, em breve nos afogaríamos em nossas próprias lágrimas. E se ficarmos aqui no bote, nos afogaremos no mar. Entende? Dolly agitou a barbatana. – Sim, às vezes você precisa parar de se agarrar e começar a se mover – disse ela. – Desculpe por apressá-las, mas o tempo está correndo. Sugiro que decidam rapidamente. – Vejamos – disse Victoria,, compilando uma rápida lista mental de prós e contras. Ela certamente se sentiria melhor se pudesse escrever seus pensamentos. Por fim, tentando soar convincente para si mesma, bem como para Vicky e Dolly, ela anunciou: – Escolhemos nadar, então. E escolhemos nadar agora. – Muito bem – disse Dolly, posicionando-se junto ao bote e erguendo o corpo levemente para criar uma pequena ilha cinzenta. – Subam a bordo e segurem-se em minha barbatana. – Se nos soltarmos da borda do bote nos afogaremos. Sei disso – disse Vicky. – Há anos que vocês vêm se agogando, e nem sequer foi na água – replicou Dolly. – Você está com tento medo que nem notou que a chuvarada diminuiu. A vida não chega com garantias. Você pode arriscar uma chance ou não ter nenhuma chance. Enquanto a princesa meio que rastejava meio que flutuava no dorso escorregadio do golfinho, Vicky começou a barrar: – Veja lá, Victoria! Estamos nos arriscando! 80

– Está tudo bem – assegurou-lhe Dolly. – Arrisca-se é uma conseqüência natural de se soltar e se pôr em movimento. Vicky agarrou-se à barbatana do golfinho. – Pensava que não nos daria uma carona para fora daqui por causa daquele homem e seu peixe – disse ela indignada, tentando manter-se montada no golfinho de modo a não escorregar. – Vou simplesmente demonstrar a técnica correta da natação – disse Dolly, deslizando sem esforço através da água agitada. – A vez de vocês logo chegará – Não se apresse – murmurou Vicky. – Nos sentimos inteiramente seguras montadas na suas costas, Dolly. – A única segurança permanece é a segurança de saber que cada um pode tomar conta de si mesmo – disse Dolly. – Agora entendem por que devem aprender a nadar? – Sim – disse Victoria. – Eu entendo. – Ótimo. Quem viaja pela trilha tem muito a aprender com as lições do mar. Sugiro que prestem bastante atenção. Dolly diminuiu a velocidade, quase parando. – Vocês serão bem-sucedidas se trabalharem em conjunto com as forças naturais. Isso significa trabalhar de comum acordo com a correnteza, ao invés de lutar contra ela. Vamos. Sigam com a correnteza. Tornem-se unas com ela. Entreguem-se ao mar. – Praticamente já fizemos isso – disse Vicky. – Fico contente ao ver que tem senso de humor, Vicky – disse Dolly, bastante satisfeita. – Com senso de humor fica mais fácil aprender as lições. Agora, antes de aprender a nadar, vocês devem aprender como flutuar. É como aprender a andar antes de correr. Reparem no quanto estou agora relaxada, quão parada, no quanto a água me dá apoio sem qualquer esforço da minha parte. Agora deitem retas sobre suas costas e me deixem segurá-las. Vou baixar mais na água, de modo que o corpo de vocês mal toque a superfície. Ficarei bem debaixo de vocês para que não afundem. – Nas suas costas? Não somos capazes de fazer isso – antecipou Vivky. – Duvidar de sua capacidade irá refreá-la e provocar seu fracasso – disse Dolly. Lentamente, o golfinho foi baixando na água. A princesa tentou seguir as instruções ao pé da letra, mas Vicky entrou em pânico. Dolly teve de se elevar várias vezes para manter a princesa à tona, dar-lhe confiança e repetir as instruções. Mas Victoria estava tão determinada quanto Vicky estava assustada. Seguia as instruções de Dolly, embora Vicky continuasse a enfrentar dificuldades. – Não consigo relaxar. Não consigo – insistia ela. – Inspire fundo e solte o ar lentamente. Sinta suavemente o corpo baixando devagar, relaxando. Seguindo cm a correnteza. – Mas como é que vou relaxar com o mar todo encapelado, me empurrando e me puxando para lá e para cá? 81

– Tranqüilizar a mente de alguém diante da turbulência é uma lição difícil de aprender, mas importante. Alguém raramente se sentirá apaziguado se a paz depende de se descobrir em mares tranqüilos. É inútil se concentrar no que pode fazer, ao invés de no que não pode fazer. Agora comece a respirar lenta e profundamente – instruiu Dolly numa voz calma. – Sinta sua mente e seu corpo se abrandando. Apesar da orientação perita de Dolly, a cada vez que ela deslizava mais baixo na água, a fim de permitir que a princesa adquirisse um senso de flutuação, Vicky se apavorava, agitava os braços desesperadamente e tentava se levantar. Repetidamente Dolly teve de recordar-lhe para respirar lenta e profundamente, induzir corpo e mente a relaxar e se concentrar no que podia fazer ao invés de no que não podia. Após um momento, Vicky gritou: – Não sou forte o bastante para continuar fazendo isso! – Há uma grande força em se entregar. Continue tentando. Mas de novo e mais uma vez, Vicky se apavorava, agitava os braços e tentava se levantar. – É sempre mais fácil continuar o que está fazendo, mesmo se não funciona – disse Dolly pacientemente. – Lembre-se de respirar. – Você está parecendo alguém que conheço – disse Victoria. – Já ouviu falar de Henry Herbert Hoot, Doutor em Coração? – Sim, claro. Aliás, eu e o doutor com freqüência trabalhamos juntos e nos tornamos bons amigos. Já que o mencionou, faz algum tempo que ele não aparece por aqui. – Você quer dizer que Doc vem aqui? Fico imaginando por que ele não aparece quando necessitamos dele. Ele sempre parece saber tudo que está acontecendo. – Ele deixa os assuntos do mar por minha conta, tal como eu deixo os assuntos do coração para ele. Bem, agora devemos voltar para a oportunidade à mão. – Oportunidade? Alguma oportunidade – murmurou Vicky, achando que Dolly soava como se tivesse passado tempo demais em torno de Doc. – O mar e a vida têm muito em comum – continuou Dolly. – Relaxe, deixe-se levar. Acredite que isso irá mantê-la à tona... e irá. Mas se resistir, acreditar que irá sugá-la para baixo... irá mesmo. A escolha é sua. Após várias tentativas e repetidos incentivos de Dolly, a princesa por fim flutuou triunfantemente à superfície. – Excelente! Você agora está pronta para virar ao contrário e boiar de rosto para baixo – disse Dolly. A princípio, Vicky se inquietou com a idéia de pôr a rosto na água, mas logo a princesa estava flutuando sem esforço sobre seu estômago, tal como fizera de costas. Dolly estava deliciada. – Agora você deve aprender a se impulsionar através da água – disse ela, demonstrando seu melhor estilo. – Repare na fluidez de meus 82

movimentos. Nada de lutar, de resistir, de golpear com minhas barbatanas ou cauda. É um esforço regular, suave e consistente. Vicky recusou-se a se mover. – Desejo acreditar que a água nos manterá à tona, como você diz, mas toda vez, só de pensar em me mover, sinto-me como se fosse afundar. – Você não acredita que pode fazer isso até que o faça – disse Dolly. – Irá descobrir que muitas coisas são assim. A princesa ergueu cautelosamente o braço no ar enquanto Dolly instruía, mas ela perdeu sua flutuabilidade e Vicky começou a bater as mãos contra a superfície e a chutar cascatas de água no ar. – É isso! – disse Vicky. – Já aprendemos tudo que podemos. Vamos parar, Victoria? Embora esgotada e frustrada, Victoria não tencionava desistir. Ela ouviu a voz de Doc em sua cabeça como se estivesse ali do seu lado. – Lembre-se do que Doc nos disse, Vicky: ―Desiste-se da desesperança, mas cede-se à aceitação. ― Nunca devemos desistir, apenas ceder. Devemos aceitar nosso medo e fazer isso de qualquer modo, ou nunca aprenderemos a nadar. Vamos, Vicky. É o único meio de voltarmos para terra firme. No momento em que Vicky finalmente concordou, a tensão foi drenada do corpo da princesa. Lentamente, ela ergueu um braço, depois o outro, girando-os em arcos que cortavam a água graciosamente. O mar ficou liso como vidro debaixo dela. A princesa ficou una com o mar. – A natureza é muito dadivosa com aqueles que cumprem suas regras simples – disse Dolly, observando a princesa deslizar através da água. – Mas não tem piedade para com aqueles que as violam. A natureza exige pouco, mas seu castigo para a desobediência é duro. Quando se vive em harmonia com a natureza , a vida flui. Pode senti-la? – Sim, sim. Eu a sinto! – gritou Vicky. A garota parou, as nuvens escuras se abriram e o sol surgiu brilhando através delas. – Veja! Um arco-íris! – guinchou, Vicky, espiando para o céu claro por entre suas braçadas. – Estou feliz por aquelas nuvens escuras e aquela chuva medonha terem isso embora. – É preciso juntar o sol e a chuva para formar um arco-íris, Vicky – disse Dolly. – Um fato que vale bem a pena lembrar. A princesa parou, levantou a cabeça e bateu as mãos levemente na água. Em toda aquela empolgação, ela havia esquecido que ainda não fazia idéia do caminho a seguir. Olhou numa direção, depois em outra. – Não consigo ver terra para a água – disse Victoria , sentindo que sua calma ia se desvanecendo com rapidez. – É como não ser capaz de ver a floresta para as árvores? – perguntou Vicky. Victoria sorriu. – Ora, Vicky, você está falando como eu! – exclamou ela, seus olhos atraídos de volta para o arco-íris, que parecia estar chamando-a. Ela tentou 83

imaginar de onde vinha aquela sensação e por que a tinha, mas não conseguiu. A seguir, concluiu que era ridículo ter tal sensação acerca de um arco-íris. Mas a sensação persistia. Finalmente, disse para si mesma que devia estar imaginando coisas. Mas a sensação persistia. – Poderia me dizer se, por alguma razão, espera-se que eu nade na direção do arco-íris? – perguntou a Dolly, hesitante. – Por que buscar com os outros as respostas que estão no seu próprio coração? Sua mente voltou ao tempo em que foi atraída para a pequena árvore na colina além dos jardins do palácio. Aquele foi o dia em que precisou tão desesperadamente encontrar Doc. E ele lá estivera. Agora precisava encontrar terra. Será que alguém estava tentando lhe dizer alguma coisa? Olhou mais uma vez para o arco-íris. Seu coração começou a bater enquanto seus olhos se prendiam na faixa vermelha. Era o tom exato das suas adoradas rosas. É este o caminho que seguiremos – anunciou para Dolly. Naquele momento, um distante ponto de terra apareceu. Victoria ficou atônita. – De onde foi que veio? Não estava lá antes! – Estava sim – replicou Dolly. – Então por que não pude vê-lo? – Porque o medo e a dúvida nos deixam cegos para o óbvio. – Você quer dizer que estava lá o tempo todo, mas não pude ver porque estava com muito medo? – Sim. E você duvidava da resposta do seu coração. – Não entendo. Doc disse uma vez que eu não podia ver a Trilha da Verdade porque não estava pronta para vê-la. Você diz que eu não via a terra porque estava com muito medo e cheia de dúvida. Então, é não estar pronta ou com medo e cheia de dúvida o que torna alguém incapaz de ver? – Tudo isso. Quando uma pessoa está com medo e cheia de dúvida, não está pronta. – Estou vendo por que você e Doc se tornaram bons amigos. Têm muita coisa em comum – disse Victoria. – Virá conosco, Dolly? – perguntou Vicky. A cabeça do golfinho reluzia ao sol, sua face estava radiante e sorridente. – Vocês devem alcançar terra firme por conta própria. E eu preciso estar disponível para o próximo viajante em luta para não se afogar. – Sentiremos sua falta, Dolly – disse a princesa. – Aqueles que vocês carregam no coração estão sempre próximos – disse Dolly, batendo os cílios. – Sempre me lembrarei de vocês. Com isso, ela se virou, acenou um adeus com sua cauda e desapareceu lentamente sob a superfície da água. O mar estava calmo. Receptivo. Cheio de esperança. A princesa lançou seu olhar por sobre as águas cintilantes e se alegrou, sabendo que poderia 84

chegar a terra firme por conta própria. Um súbito surto de poder elevou-se dentro dela, e uma sensação de paz a inundou, tal como faziam as suaves ondas às suas costas.

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Capítulo Doze

A Terra da Ilusão

Quando acordou, a princesa sentiu a firmeza da areia morna debaixo dela. Nunca tinha sentido a areia tão boa. Deslizou os dedos por ela e pegou um punhado. Parecia real. Parecia que tinham chegado a salvo na praia. Sua mente derivou de volta ao momento em que avistara terra. Pensara que suas dificuldades tinham acabado, mas nadar provara ser um árduo teste de resistência. Na hora em que alcançara o quebra-mar, a pouca energia que lhe restava esgotou-se de vez. Não conseguia dar nem mais uma braçada. Chegara longe demais. E se não conseguisse percorrer o resto do caminho? O medo começara a borbulhar dentro dela. Medo e dúvida nos deixam cegos para o óbvio, Dolly lhe dissera. O óbvio. Poderia ser uma solução que seu medo e dúvida a estivessem impedido de ver?, ela se perguntava. Foi então que outra das lições de Dolly lhe ocorreu: Acalmar a mente de alguém diante da turbulência é uma lição difícil de aprender, mas é importante. Especialmente se a turbulência é sentida dentro da gente, pensou a princesa. Certamente tinha de ser da pior espécie. Ela sempre acreditara que não havia escapatória. Mas confiava na sabedoria de Dolly. Ela se lembrou de ter respirado lenta e profundamente para acalmar-se. Aí relaxou e seguiu o fluxo e, ao fazê-lo, a correnteza a fizera chegar à praia. Exausta demais para se mover, havia rapidamente adormecido. Agora, ela inspirou o ar marinho fresco e ouviu o mar borrifando metodicamente a areia. – Estou jovem demais para ser toda lavada – disse Vicky alegremente. – Você está se tornando comediante de primeira – replicou Victoria, lembrando de repente do príncipe. Como sentia falta de sua disposição e humor! Como sentia falta dele. Desejava ter dito a ele que finalmente aprendera a nadar. Ele teria ficado tão orgulhoso – pelo menos uma vez na vida. Tentou afastar o pensamento com um suspiro, mas não era fácil deixar de pensar no príncipe. Imediatamente, a música de banjo elevou-se acima do ruído das ondas e uma voz cantou: Quando você vê um belo arco-íris Surgir através de nuvens sombrias, Isso é uma dádiva dos céus Para ajudá-la rumo a melhores dias. 86

– Doc! É Doc! – gritou a princesa, rapidamente se erguendo para ver coruja empoleirada sobre uma duna próxima. – Olá, princesa. – O que está fazendo aqui? – perguntou ela, feliz em vê-lo. – Esperando por você. Dolly me pediu para entregar-lhe isto – replicou ele, segurando uma mochila axadrezada um tanto castigada pelas intempéries. – Ela achou que você ia querê-la de volta. – Sim, é claro que quero! Mal posso crer que a tenha encontrado. Eu a perdi quando fui varrida da trilha e lançada no mar. Pensei que a tinha pedido para sempre. A princesa pegou ansiosamente a mochila e abriu-a. – Deve estar tudo arruinado – disse ela - , mesmo assim estou contente em tê-la de volta. Alguma das coisas que mais prezo no mundo estão aqui dentro. Ela procurou e extraiu os preciosos sapatinhos de cristal com suas iniciais gravadas. Estavam ainda embrulhados na echarpe de lã macia. Ansiosamente, ela desatou a fita, retirou os sapatinhos e examinou-os minuciosamente. – Nem mesmo se racharam! – Dolly disse que notou a mochila balançando ao longo de um tronco à deriva no mar, e imaginou que devia ser a sua. O conteúdo foi muito bem secado e permaneceu em boas condições... considerando tudo. Parece que você também, por falar nisso. – Devo parecer melhor do que me sinto – disse a princesa. – Você me disse que eu me sentiria melhor quando começasse a aprender sobre a verdade, mas nunca me avisou que eu poderia me afogar na tentativa. – Sentir como se estivesse se afogando é uma oportunidade de aprender sobre a verdade. – Engraçado... é mais ou menos o que Dolly disse. – Não é de surpreender – replicou Doc. – A verdade tem muitos professores. – Lembra de quando você me disse que a verdade é mais puro e poderoso remédio do universo? Bem... tem certeza? – Claro, princesa. Tenho certeza. Por quê? Está começando a duvidar de suas propriedades curativas? – É apenas que já aprendi bastante e não está funcionando do jeito que eu imaginava. Ainda tremo um bocado, o estômago dói e o peito aperta. – Lembro do que dizia a sua receita? Talvez devesse relê-la. – Não é preciso. Lembro me exatamente do diz: ―A verdade é o melhor remédio. Tome a quantidade que puder, com a freqüência que quiser.‖ Mas já tomei bastante. Não sei se seria tão difícil de tomar ou se funcionaria como se eu tivesse tomado demais por muito tempo. – Eu nunca lhe prometi que seria bater e valer. Apenas que funcionaria. – O rosto de Doc suavizou-se num sorriso animador. – Não se sinta 87

desestimulada, princesa. Está fazendo um excelente progresso, embora talvez não esteja ciente disso. Ele repôs o banjo e o chapéu de palha na sua valise preta – Oh, ia me esquecendo – disse, extraindo um pequeno pacote de nozes, semente e frutos e vegetais reluzentes, verdes, vermelhos e amarelos. – Achei que você gostaria disso. – Obrigada. Parecem deliciosos. Doc entregou o pacote à princesa e fechou sua valise. – Você é muito bem-vinda. Agora preciso ir. Tenho pacientes à espera... Ah – disse ele, deliciado. – É disso que você precisa: paciência e espera. – Todo mundo é humorista ultimamente – murmurou a princesa, lembranças do príncipe recomeçando a se agitar dentro dela. – É melhor você começar também. Tenho um longo caminho a seguir. Verifiquei você de novo – disse Doc, erguendo-se suavemente no ar. – Espere, Doc, por favor. Eu não sei onde estou! Como faço para voltar à Trilha da... Mas a coruja já estava em pleno vôo. A princesa se esforçou para ouvir sua voz acima do rumor das ondas, enquanto ele a chamava de volta. – Você ainda está nisso. Lembre-se... siga o seu coração. – Eu preferia seguir um mapa – resmungou ela, frustrada por Doc ter partido sem lhe indicar o caminho a seguir ou pelo menos ajudá-la a dicidir por um. – Um mapa – repetiu para si. – Se ao menos...ora, é claro. O mapa da Família Real! – Ela agarrou sua mochila e remexeu até encontrar o pergaminho, esperando que a tinta não tivesse sigo lavada. Ela o achou, soltou a fita prateada e o desenrolou. Ainda estava legível. Aliviada, estudou-o minuciosamente até que imaginou que caminho seguir. Depois pegou uma pequena maçã verde do pacote de comida que Doc lhe dera e pôs o resto na sua mochila, depositando o mapa em cima. Terminou o lanche às pressas, pegou a mochila e se pôs a caminho pela areia fofa. Caminhar era extremamente difícil. A cada passo, os pés da princesa afundavam na areia até os tornozelos. Algum tempo depois, continuar exigia um grande esforço. Parava com freqüência para consultar o Mapa da Família Real, determinada a evitar a mais leve possibilidade de se perder. Vicky era alternadamente uma chateação e uma benção. Ela se agitava, chorava e ficava histérica. Reclamava interminavelmente por Victoria não dar atenção a ela, sempre conferindo seu rumo no mapa ou tentando imaginar como o conto de fada delas tinha saído errado. Mas, mesmo tudo isso, Victoria estava contente com a presença de Vicky, pois sem ela teria sido uma jornada insuportavelmente solitária. Enquanto a princesa seguia penosamente, o som das ondas e o cheiro de ar marinho desapareceram. A areia se transformou em cascalho, e o cascalho se transformou em cobertores de seixos que rolavam sob seus pés, exigindo a máxima concentração a cada passo que dava. 88

– Doc nos falou que encontraríamos cobertores de seixos na Trilha da Verdade, mas não nos disse o que fazer em relação a eles – disse Victoria, lutando para manter o equilíbrio. – Se isso continuar, vai nos levar para sempre até lugar nenhum – gemeu Vicky. Ah, sim, para sempre. Ela e o príncipe haviam prometido se amar para sempre. – Poucas coisas duram para sempre, Vicky. – Poucas coisas, pensou ela tristemente, exceto que o sonho tinha dado errado. E a censura. E a culpa. E a frustração. E a raiva. E o vazio. E a perda dele. E o pesar pelo fim de seu adorado conto de fada. – Por que saímos de casa, de qualquer modo? – perguntou Vicky. – Continuo esquecendo exatamente por quê. – Como pode esquecer tal coisa? – É fácil. Sempre que penso no príncipe, tudo que me lembro é do quanto ele era gentil, doce e maravilhoso, e eu perdi... – E do quanto era torpe, amargo e cruel, você lembra? – Essa é a parte que tenho dificuldade de lembrar? Victoria suspirou. – Não sei, Vicky. Talvez se torne mais fácil com o tempo – disse ela, limpando os seixos de um ponto no chão para que pudesse deitar. – Já se passou um longo tempo. – Eu sei – disse Victoria sonolenta, se enroscando no chão e aninhando a cabeça na dobra do braço. – Está ficando escuro. Vá dormir agora. Na manhã seguinte a princesa preparou-se para prosseguir a jornada. Antes que se passasse muito tempo, chegou a uma trilha de terra bifurcada. Parou e examinou a parte esquerda. Era comprida e reta, até se retorcer preguiçosamente ao lado de uma montanha ao longe. Não de todo mau, pensou. Depois examinou a da direita. Era íngreme e estreita, serpenteante e pedregosa, com grandes buracos, mato crescido e árvores. De repente, teve a esmagadora sensação de que a trilha a estava chamando. Oh, não!, pensou. Não esta trilha. Mas a trilha e as pedras, o mato e as árvores pareciam estar chamando o seu nome. Por quê?, especulou. Por que se sentiria compelida a seguir aquela que era obviamente a mais difícil das duas trilhas? Não fazia sentido. Ainda assim, a sensação persistia. Convenceu sua mente de que não sentia nada disso, afinal – tudo era obra de sua imaginação. Mas a sensação continuava puxando-a de qualquer modo. Não querendo correr quaisquer riscos, a princesa abriu a mochila e extraiu o Mapa da Família Real. Fazia-lhe bem saber que podia contar com ele para dar-lhe orientação. Afinal, fazia gerações que o mapa havia sido confiado aos seus ancestrais, Ela inclinou a cabeça, primeiro para um caminho, depois para o outro, traçando sua trilha com o dedo. 89

– Para a esquerda. Vamos seguir a da esquerda – anunciou, enrolando o mapa e enfiando-o de volta na mochila. – Graças aos céus! Pouco depois de se embrenhar na trilha, a princesa notou que, embora o solo parecesse estar nivelado, tinha a distinta sensação de que estava seguindo colina abaixo. Curioso pensou. Estranho ainda foi que, em determinado ponto, ela viu um córrego à frente e estava na expectativa de ter água fresca da montanha para beber, mas quando chegou aonde tinha visto o córrego, ele não estava lá. Ela quase podia ouvir a voz da rainha: Ora, Victoria. Você deve aprender a diferença entre o que é real e o que não é. As pessoas vão começar a falar. Ela caminhou sem parar, pensou e pensou, mas não pôde imaginar o que ia acontecer na trilha nem um pouquinho mais do que podia imaginar o que tinha acontecido com o príncipe. De repente, deu de cara com uma enorme pedra assentada bem no meio da trilha. Podia ter jurado que não estava ali até que a pedra topou com ela – ou teria ela topado com a pedra? Não tinha certeza. Mas havia muita coisa de que ainda não tinha certeza Quanto maior o tempo em que estava na trilha, mais o céu ficava nublado. Ela logo perdeu a conta de quantas vezes o sol tinha nascido e se posto desde que deixara a praia. Também não estava muito certa de onde estivera e para onde ia, à medida que o terreno não parecia estar de acordo com seu mapa. Se não sabia com exatidão onde estava, podia se considerar pedida. Uma névoa suave baixou sobre a trilha, trazendo com ela uma brisa fria. Começou a sentir aquela familiar azia no estômago, e pôde ouvir a voz do Sr. Oculto martelando em sua cabeça: Doente a cada vez que sopra um vento frio. Estou tremendo de medo, princesa. Seria horrível cair doente ali sozinha, sem nenhum Dr. Risinho para trazer sua canja de galinha, pensou, de repente, sentindo-se melancólica. A névoa se tornou mais densa, e a princesa sentiu como se estivesse se afogando nela. – Posso ainda me afogar... e na terra! Quem é que ia acreditar? – murmurou. – Sentir como se estivesse se afogando é com freqüência uma dádiva – disse uma voz no meio da névoa. – Dolly não lhe contou sobre isso? – Quem falou? – Quem? Quem? Eu – disse a voz. – Doc! Você me assustou! – Você não precisa de mais ninguém para assustá-la, princesa. Já consegue fazer isso sozinha. – Dolly me ensinou a como não sentir medo, mas às vezes não consigo evitar. – Velhos hábitos custam a morrer. – É mesmo? 90

– Claro. Requer-se muita prática para desaprender os velhos hábitos e pôr os novos em seu lugar. – Você tem sorte, Doc. Aposto que não precisa mais praticar. – Não é uma questão de sorte. Por que acha que minha prática médica é chamada de prática? Sempre há novas lições a aprender. – Você que dizer que nunca conseguirei? – perguntou a princesa, aflita ao pensamento de sua provação não ter mais fim. – À medida que for aprendendo mais, a viagem se torna cada vez mais fácil. E vai ficando cada vez mais agradável. A princesa sentiu-se estimulada. – O que quis dizer quando falou que a sensação de afogamento costuma ser uma dádiva? – perguntou ela, querendo aprender mais, o mais depressa possível. – Não foi a ameaça imediata de se afogar no Mar da Emoção que fez Vicky finalmente querer aprender a nadar? – Sim. – Desafios trazem com eles o dom de aprender sobre a verdade. – Já estou farta de desafios. Esta trilha não é afinal o que parece ser. Pude ver algumas coisas que não estavam lá. E não pude ver algumas que estavam. Isso me deixou toda confusa. – Eu pensei que a essa altura você já estivesse acostumada com coisas que não são o que parecem. – O que quer dizer? – Raramente se vê as coisas tal como elas são na Terra da Ilusão. – Terra da Ilusão! Como vim parar nela? – Você não parou em qualquer lugar. Quanto a como chegou aqui: isso é onde você esteve a maior parte de sua vida. – Estive vagueando nesta névoa durante anos e nem sequer sabia? – Sim. Todo mundo vagueia pela névoa na Terra da Ilusão. Mas não importa muito que exista névoa ou não, pois aqui a pessoa é incapaz de ver um palmo adiante do nariz mesmo em tempo bom. – Não admira que eu tivesse tenta dificuldade em imaginar o que de fato acontecia a maior parte do tempo. Como chego à Terra da Ilusão, de qualquer modo? – Utilizando o mapa de alguém... de uma forma ou de outra. – Mas este mapa guiou gerações de meus ancestrais reais – disse a princesa, extraindo o Mapa da Família Real de sua mochila. – Certamente pode me orientar também. – A viagem é diferente para cada um. A trilha certa para um pode não ser a trilha certa para outro. Só o coração de alguém sabe o caminho. Você ouviu seu coração quando foi chamada até a arvorezinha na colina além dos jardins do palácio. E me encontrou. Você ouviu seu coração quando o arcoíris a chamou, e ele a conduziu na direção da praia. Mas quando deparou com a trilha bifurcada, você não ouviu seu coração. Em vez disso, confiou na idéia 91

de outro quanto ao caminho que deveria seguir. É justamente assim que alguém se perde. – Se você está aqui, não posso me considerar como perdida – disse a princesa, experimentalmente. – Pelo contrário, princesa. Você está para lá de perdida, não importa quem esteja aqui. No mesmo instante a princesa reconheceu a verdade das palavras de Doc ao relembrar todas as vezes em que estivera pedida mesmo quando o rei, a rainha ou o príncipe tinham estado próximos. – Então, o que é que faço agora? – perguntou ela. – Volto até a ponto em que a trilha se bifurca? – Não é necessário, princesa. Muitas trilhas conduzem à mesma montanha. – A seguir, num piscar de olhos, Doc abriu as asas e desapareceu na névoa de onde surgira. Sentindo-se nervosa por não poder confiar no seu mapa, a princesa continuou ao longo da trilha sinuosa que serpenteava através da Terra da Ilusão. A névoa se tornou tão densa que ela quase deixou passar um poste de sinalização. Chegou bem perto para ler o que dizia, esperando que não fosse outra miragem. Ali, em grandes letras pretas, perto o croqui de um dedo apontando direto à frente, estavam as palavras: ACAMPAMENTO PARA VIAJANTES PERDIDOS

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Capítulo Treze

Acampamento para viajantes perdidos

Uma cobertura de nuvens pairava sobre o acampamento, tornando-o carregado e úmido, e retalhos de névoa pontuavam a paisagem. Havia tendas, cabanas e o que pareciam ser umas poucas CCR ( Carroças Cobertas Recreativas). Espalhados aqui e ali estavam grupos de pessoas, alheias aos esquilos e coelhos que corriam a sua volta. O alarido de vozes humanas era um som bem-vindo para a princesa. Um bangalô de madeira estava situado à entrada do acampamento. Sobre a porta pendia um letreiro em madeira entalhada: ESCRITÓRIO E CENTRO DE INFORMAÇÕES A princesa subiu os poucos degraus e abriu a porta de tela, que rangeu estridentemente nas dobradiças. Lá dentro, um homem de aspecto magro mas resistente, usando camisa de flanela axadrezada em verde e grená, seus pés cruzados sobre a mesa, entalhava um pedaço de pau. – Olá – disse com entusiasmo, continuando a entalhar. – Sou Willie Grená. – Prazer em conhecê-lo – replicou a princesa, achando interessante que um homem chamado Grená usasse uma camisa que continha essa cor. – O que está entalhando? – Entalho apitos de madeira... para trabalhadores, principalmente. – É mesmo? – É, eles gostam de apitar enquanto estão trabalhando. E eu gosto de entalhar madeira enquanto trabalho. É por isso que me chamam de Willie o Entalhador – disse ele, dando outro comprido corte com seu canivete. O que posso fazer por você neste dia lindo? – Mal sei por onde começar – respondeu a princesa, depositando sua mochila e achando que Willie estivera tão concentrado em entalhar que nem havia notado como o tempo era sombrio lá fora. – Eu estava viajando pela Trilha da Verdade, tomei o caminho errado e descobri que meu mapa não era lá grande coisa e... Bem, é uma longa história, mas um amigo meu disse-me que eu não tinha de voltar, que posso chegar aonde quero ir seguindo por este caminho. – Isso explica – replicou Willie com uma voz de auto-satisfação. – Explica o que? – Como você chegou aqui, claro. Muitos ficam perdidos ao seguir mapas de outros. E acabam aqui. 93

A princesa não queria terminar no acampamento. Então se lembrou de Doc ter dito que ninguém terminava em qualquer lugar – mas era muito educada para não mencionar isso. – Estive viajando por longo tempo, e agora não tenho muita certeza de se estou onde deveria estar. – Um companheiro meu... bem, uma espécie de companheiro, me disse uma vez: ―Alguém geralmente está onde se espera que esteja.‖ Foi isso que ele disse. – Willie fechou seu canivete, enfiando-o junto com o pedaço de pau no bolso de sua camisa. – Os alojamentos são bastante bons. Vou lhe mostrar. – Ele se levantou. – Primeiro, deixe-me atiçar um pouco o fogo desta lareira. – Obrigada, mas não planejo ficar. Tenho de continuar em frente, em busca da verdade. E existe um templo... – Ah, sim. Outros aparecem aqui na mesma busca, mas a maioria decide permanecer aqui... pelo menos por um tempo. Muitos acabam se fixando para sempre. – Por que o fariam? – A Terra da Ilusão é um lugar muito sedutor, se não se importa que eu diga, senhorita. Aqui, os companheiros só vêem o que eles escolhem ver. – A caminho daqui entrei por uma trilha que parecia plana, mas que realmente era em declive. E vi um córrego que na realidade não estava lá. Acha que eu só vi o que queria ver? – Acho. Acontece o tempo todo. – Imagino que a névoa torna difícil ver o que realmente está acontecendo – disse ela, especulando se ela própria distinguia. Depois se lembrou de Doc dizendo que as pessoas não podiam ver claramente aqui, com ou sem névoa. – A névoa não faz grande diferença – disse Willie. – O que é importante não se vê com os olhos. De qualquer modo, a névoa por aqui não está toda no céu... isto é certo. – O que quer dizer? – Apenas que os companheiros aqui são um pouco nevoentos da cabeça. Você sabe, brigando a toda hora acerca do que é e do que não é. É claro que eles estão perdendo o seu tempo, porque na Terra da Ilusão ninguém jamais sabe ao certo o que é. – Isso tudo parece muito confuso. – É. Os companheiros são confusos demais por aqui, certo. E não são apenas os companheiros que se mostram confusos. Temos coelhinhos com medo de pular e pássaros com medo de cantar. – Por quê? – perguntou a princesa, achando difícil acreditar. – Porque acham que não podem fazê-lo bem o suficiente. – O que os faz pensar assim? – Comparando-se com outros da mesma espécie. Há sempre outra criatura que pode pular mais alto ou cantar mais docemente. Entende o que quero dizer? 94

– Mas isso é ridículo! Que possível diferença pode fazer se um coelho não pode pular tão alto quanto outro ou se o canto de um pássaro soa diferente do de outros? - Ou se não posso puxar a corda de um arco tão longe quanto outra pessoa?, pensou a princesa imaginando como isso pipocou na sua mente. Depois ela começou a lembrar todas as outras vezes na sua vida em que tivera medo de fazer as coisas por achar que não podia fazê-las bem o suficiente. – Não faz qualquer diferença – replicou Willie. – Alguns companheiros tentaram dizer isso a eles, mas não acreditaram. Aí os coelhinhos e pássaros ficam furiosos com suas mães por tê-los tido e com o mundo por não fazê-los melhor. – Pobres criaturas – disse a princesa, entendendo perfeitamente bem como deviam se sentir. – Isso não é nem a metade, senhorita. Temos tartarugas que acham seus cascos grandes e pesados demais e que as impedem de fazer um bocado de coisas. – Mas espera-se que tartarugas tenham cascos. – Tente dizer isso a elas. Elas nem querem saber. Puxam-se para dentro do casco de mau humor, esperando que ninguém possa ver quem está lá. A princesa se entristeceu pelas pequenas criaturas. Especulou por que não podiam entender o quanto era desnecessário todo aquele sofrimento. Depois especulou por que, na maior parte da sua vida, tampouco fora capaz de entender o quanto era desnecessário todo o seu sofrimento. – Há mais, também – disse Willie. – Existem montes de lagartas que rastejam por aí tentando esconder seus rostos, porque se acham feias demais. Não fazem idéia de que já são lindas borboletas por dentro. Então, quando finalmente se tornam borboletas, algumas continuam vendo nada mais que seus antigos e feios seres, lagartas fitando-as de volta quando se miram numa distante piscina natural. Outras se esquecem de que um dia já foram lagartas, afinal. Ficam convencidas, se sabe o que quero dizer. Nada de falar com elas. A princesa pensou nas borboletas que ainda se sentiam lagartas. Ela recordou que se sentira como uma borboleta quando era muito pequena – linda e livre –, mas como, à medida que crescia, vezes sem conta tinha visto a si mesma como uma lagarta ao se mirar no espelho. A voz de Willie a trouxe de volta ao presente. Ele estava dizendo alguma coisa a respeito de uma macieira que se sentia embaraçada demais para dar maçãs. – Por que isso? – perguntou ela. – Porque as árvores em volta davam peras. A macieira acha que está dando a fruta errada. De súbito, a princesa pôde ver o dedo do rei se agitando vigorosamente diante do seu nariz, e pôde ouvi-lo urrando para ela: Você é delicada demais, Victoria! Sensível demais. Tem medo demais da própria sombra. Que sonhadora! O que há com você? Por que não pode ser igual às outras crianças do corte? 95

Mas aquele tinha sido simplesmente o modo como ela era. Poderia possivelmente ter desejado ser daquele jeito o tempo todo? Victoria sentiu-se triste quando recordou a primeira vez em que a doce e pequena Vicky murmurou baixinho: Eu sou o que sou. E o que sou não é bom o bastante. Como poderia ter gritado com ela e a feito chorar e trancado a coitada num armário quando tudo que a pobre criança tinha feito foi ser ela mesma? Victoria sentiu um nó na garganta e o peito apertado. Oh, Vicky, lamento muito, disse em silêncio. Eu não sabia. Eu não percebi... O que fiz com você? Naquele momento a princesa ouviu um som alto vindo do lado de fora da porta aberta do escritório. Curiosa, ela foi ver o que era. Uma silhueta foi aos poucos se formando na névoa. Ela mal pôde crer nos seus olhos – o que não era nenhuma novidade. Um homem estava pulando de quatro. – O que ele está fazendo? – perguntou a princesa, dando um passo fora da porta para ver melhor. – Oh, é apenas o príncipe. Ele pensa que é um sapo – disse Willie casualmente, indo até o alpendre. – Se você acha estranho, deveria ver o sapo que circula por aí usando um manto real e coroa. Pensa que é um príncipe. Eu lhe disse que o pessoal é confuso por aqui. Até as flores andam perturbadas. – As flores? Como as flores podem estar perturbadas? – Fácil. Elas se sentem culpadas. – Do que se sentiriam culpadas? – perguntou a princesa com ceticismo. – De se embeber da luz do sol, de ocupar espaço e de sugar da terra todos os nutrientes de que precisam. – E por que se sentiriam culpadas disso? – Porque acham que não merecem. – Elas não sabem o quanto são lindas e fragrantes? Quanto prazer elas fornecem? Jamais esquecerei das horas maravilhosas que passei nos jardins de rosas. – As flores não sabem do seu valor. Não são as únicas, pensou a princesa. Ela olhou em volta para os grupos de pessoas e para a atividade. – Gostaria de fica e descobrir o que está acontecendo, mas preciso retomar minha busca da verdade. – Há um bocado de verdade bem aqui. – Aqui? Ninguém aqui sabe sequer o que é isso! – Aí é que está, senhorita. Há um bocado de verdade a ser descoberta no que não é. Venha, vou levá-la para dar um passeio. A princesa não estava certa de se deveria ficar. Então se lembrou do que Willie lhe dissera acerca do que o amigo dele tinha dito: Alguém geralmente está onde se espera que esteja. Talvez seja verdade, pensou ela, voltando para dentro e pegando sua mochila. – Não vai encontrar muitos acampados e felizes por aqui... embora alguns às vezes pensem que são – disse ele, conduzindo-a escadas abaixo. 96

Logo depararam com um macaco sob uma árvore que pendia molemente acima da beira de uma ampla piscina natural. – Deixe-me ajudá-lo gentilmente, ou irá se afogar – dizia o macaco, tirando um peixe da água com as mãos em concha e colocando-o cuidadosamente em cima da árvore. – O que ele está fazendo? Vai matar aquele peixe! – exclamou a princesa. – Acha que o está ajudando – respondeu Willie. – Não podemos fazer alguma coisa? – Não é preciso. Os peixes daqui aprenderam o que fazer quando os macacos tentam salvá-los. – Quer dizer que isso acontece sempre? – Sim. E até pior. Se você acha ruim macacos salvando peixes, deveria ver o que acontece quando companheiros se metem a salva outros companheiros. – Conheço isso muito bem – disse a princesa, lembrando de como tentara ajudar o príncipe de maneiras que ele alegrava não querer ser ajudado. A princesa e Willie observaram enquanto o peixe coleava para se livrar do galho onde o macaco o havia depositado. Caiu graciosamente na água abaixo e nadou para longe. – Entendo agora o que você quis dizer acerca de os peixes saberem o que fazer – disse a princesa com um risinho. Enquanto permaneciam nas cercanias da piscina natural, os dois depararam com um homem de chapéu branco de pescaria sentado imóvel num tronco. – O que há de errado com ele? – perguntou a princesa. – Não se sabe ao certo. Começou naquele dia quando sua mente não conseguia decidir qual vara de pescar ele usaria. Foi perguntado a todos que passavam, mas uns diziam para usar tal vara, outros diziam para usar a outra. Sua mente não conseguia decidir se usava um engodo ou isca fresca, ou de que lado da piscina sentar. Ele perguntou aos companheiros o que eles achavam, mas, com toda certeza, alguns disseram sente-se aqui, outros disseram sente-se ali, e outros disseram que não sabiam, ou que não se importavam, ou as duas coisas. Ele começou a parecer realmente nervoso, andando sem parar de lá para cá. ―Então ele perguntou aos companheiros se realmente havia peixes naquelas águas. É a Terra da Ilusão, nada se sabe ao certo. Alguns disseram que havia peixe. Outros afirmaram que não. Ele finalmente parou de perguntar. A próxima coisa que soubemos é que ele se sentou naquele tronco e desde então ninguém mais o viu se mexer. Imagino que a única coisa que ele pôde decidir por si mesmo foi decidir não se mover.‖ – Alguém algum dia perguntou-lhe por que achava que qualquer um sabia mais do que ele? – quis saber a princesa, instigada por um fio de lembrança. 97

– Bem, nós perguntamos a ele por que tinha tanta dificuldade em decidir. Ele disse que ficava apavorado em fazer a escolha errada. – E se fizesse? – disse ela, sentindo pena do homem. – O mundo is parar se ele escolhesse o caniço preto em vez do marrom? Ou se decidisse usar um engodo em lugar de isca fresca e descobrisse mais tarde que não funciona? Lembranças de ter mandado a criada levar a cavalo um bilhete para a rainha, perguntando o que fazer a respeito disso ou daquilo, cruzaram a mente da princesa. A seguir, páginas de prós e contras relampejaram diante de seus olhos. Um velho e familiar desconforto se arrastava dentro dela. Percebeu que, durante boa parte da sua vida, ela também buscara respostas com os outros e se sentira nervosa ao ter de tomar uma decisão, receando cometer um erro. – Ele mais parece uma estátua do que um homem – disse a princesa. – Oh, ele está vivo e respirando. Se chegar perto, você pode ver seu hálito saindo como um bafo de vapor no ar frio. – Ele pode estar respirando, mas certamente não está vivendo! Ele deve ser muito infeliz – disse a princesa, seu pesar aumentando... pesar não apenas pelo homem lastimável diante dela, mas por ela própria. Enquanto a princesa olhava para o homem-estátua sentado no tronco, lembranças vívidas borbulhavam dentro dela por causa da confusão, da infelicidade e da desesperança que a haviam esmagado em todos aqueles dias em que se recolhera ao leito, recusando-se a se mover. – Há uma infinidade de companheiros infelizes aqui que não estão muito mais vivos do que ele. Não sei quem são nem o que fazem aqui. Eles conseguem seu objetivo de qualquer jeito dia após dia, preocupando-se por uma coisa ou outra, fazendo uma loucura após outra e tentando extrair sentido disso tudo. Mas nunca conseguirão, porque um monte de coisas não faz sentido na Terra da Ilusão. Justamente por isso ela tem esse nome. Naquele momento, uma pequena criatura de luvas brancas, trajando smoking preto de calças curtas e uma faixa de cintura com um grande molho de chaves pendurado nela, aproximou-se da princesa. Fez uma mesura formal entregou-lhe um envelope branco como se fosse a mais delicada das gemas. Na frente, em letras pretas clássicas, estavam as palavras ―Convite Especial‖. – O que é isso? – perguntou ela, olhando. Mas o baixinho já se fora. A princesa abriu o envelope e leu o convite. – Não é o que parece – disse Willie. – Que sendo de oportunidade perfeito! – exclamou a princesa, sem dar atenção ao comentário de Willie. – Estamos convidados para um banquete, e estou faminta! – Parece que você não pensou muito em alimentar-se ultimamente, mas espero que não o tenha feito por muito tempo, hã? – Como poderia? Primeiro, estive ocupada demais tentando não me afogar, e depois... – Quando alguém está se afogando é que precisa de mais força do que nunca – declamou Willie como se estivesse citando de um grande livro. 98

– Suponho que o seu companheiro um dia lhe disse isso, não? – Foi. Como é que sabe? A princesa sorriu. Willie a conduziu, avisando de novo que o banquete não seria aquilo que ela estava esperando. Mas à medida que se aproximavam do local do banquete, a princesa foi ficando eufórica. Havia mesas compridas cobertas com toalhas, rodeadas por dezenas de entusiasmados comensais. O burburinho de vozes festivas pairava sobre o cenário, enquanto um grupo de pequenos garçons de luvas brancas e trajando smokings serviam de bandejas de prata equilibradas precariamente em suas mãozinhas e antebraços. – O que são essas criaturinhas? – sussurrou Victoria ao alcançarem a mesa mais próxima. – Duendes perversos. Mas eles acham que são fadas boas. Ela olhou ansiosa para os pratos de fina porcelana e copos de haste com bordas douradas, imaginando o que estava sendo servido. Deu uma olhada mais atenta no prato de um dos convidados. Depois passou para outro e mais o seguinte. – Ora, não há comida naqueles pratos! – disse ela atônita, enquanto observava convidados finos como lápis levando os garfos repetidamente à boca, mastigando educadamente e conversando alegres enquanto comiam. – E essas pessoas são tão magras! – É, estão morrendo de fome, mas não sabem disso. E nem querem ouvir. – Não entendo. Por que eles ficam e toleram essa encenação? – Olhe aqui embaixo – disse Willie, erguendo a beira da toalha para expor uma fileira de tornozelos acorrentados por toda a extensão da mesa. Era inacreditável. – Estão acorrentados aqui? Por que parecem tão felizes? – Eles não vêem as correntes ou as chaves que poderiam libertá-los. E estão sentado alimentados com comida saborosa em troca de seu excelente trabalho para a comunidade dos duendes. Eles não parecem fazer o bastante por aquelas criaturinhas. Os garçons continuavam a deslizar de um lado para o outro, servindo com estilo de bandejas vazias, suas chaves balançando. – Mas como pode ser isso? – perguntou a princesa, consternada. – Uma vez já fiz esta mesma pergunta ao meu companheiro. Ainda lembro de sua resposta: ―Quando alguém tem uma fome persistente, mas desconhece a verdadeira fonte de seu vazio, torna-se escravo da ilusão.‖ A princesa continuou observando a inacreditável cena enquanto pensava nas palavras de Willie. Ela se tornara escrava das suas ilusões?, especulou. Teria o seu próprio vazio levado Victoria a crer que o príncipe era uma fada boa, quando na verdade era um duende perverso? – Muitos dos companheiros aqui tentam preencher o seu vazio – disse Willie, conduzindo-a na direção de um grupo de acampados não muito longe dali. 99

Homens e mulheres, jovens e velhos, estavam sentados em volta de um círculo, sobre um leito de pedras pontiagudas. Alguns estavam comendo bagas, enquanto outros traziam as mãos cheias delas de uma ampla terrina dourada, que parecia um ídolo colocado sobre um pedestal no meio do círculo. – Por que estão sentadas num local pedregoso quando há grama macia por toda parte? – perguntou a princesa, apontando para uma área que parecia consideravelmente mais confortável. – Eles acham que é tudo pedregoso. Esta é uma das razões por que correm bagas. – Elas parecem deliciosas. Acha que eles iriam se importar se eu pegasse um pouco? – É melhor ficar longe daquelas bagas. Elas deixam os companheiros mais adormecidos do que aquelas pedras onde estão sentados. – O que quer dizer? – Eles nada mais fazem exceto se empantufar de bagas e ficar sentados, com o olhar fixo no espaço. Como aqueles dois ali – disse ele, acenando com a cabeça na direção de dois jovens sentados de pernas cruzadas sobre uma pilha de pedras. – Percebe o ar distante nos olhos deles? Eles pensam que estão numa bela praia em Honolulu e não aqui, perdidos. Eu sei, já perguntei a um deles. ―E olhe aqueles ali... aqueles com o rosto todo triturado. Preocupandose angustiados acerca de lhes faltar aquelas bagas suculentas. Não podem pensar em outra coisa senão como vão conseguir mais. Muito em breve estarão pulando e correndo por todo lugar, procurando aqui e ali. Devem estar procurando por muito mais do que bagas.‖ – O que acha que estão realmente procurando? – perguntou a princesa, sentindo que, de certa maneira, já sabia. – Um meio de pararem de se ferir, em primeiro lugar, acho. Deve ser terrivelmente doloroso ter os traseiros e pés cortados diariamente naquelas pedras. Uma onda de tristeza se abateu sobre Victoria. – Ferir-se a cada dia pode levar a pessoa a fazer coisas estranhas, certo. E assim podem sentir-se vazias. No momento em que disse isso, tornou-se consciente do seu enorme vazio interior que a levara a beber frascos de tranqüilizante e a comprar sem parar no Empório do Velho Reino. Ela olhou para as pessoas a sua volta e lamentou, sabendo que comer bagas não iria preencher o vazio deles mais do que o tranqüilizante e a febre consumista preenchera o seu. Willie sacudiu a cabeça enquanto ele e a princesa se afastavam. – Isso é péssimo. Eles estão desperdiçando suas vidas. É uma vergonha que dá vontade de chorar. – Sim, uma vergonha que dá vontade de chorar – repetiu ela, sentindo que já tivera o suficiente das duas coisas, vergonha e choro. E, por falar nisso, ela já tivera também o suficiente da fome que, sabia, era conseqüência de não ter comido nada já fazia um bom tempo. 100

– Existe alguma coisa por aqui que possa matar minha fome? – perguntou a princesa. – Não há muita coisa na Terra da Ilusão para satisfazer a fome de quem quer que seja, mas isto aqui talvez possa minorá-la – disse Willie, conduzindo-a até uma árvore cítrica com umas poucas laranjas carnudas pendendo de seus galhos. Ele estendeu o braço, pegou uma fruta e entregou-a à princesa. Ela sentou-se debaixo da árvore e apoiou-se no tronco, pousando a mochila a seu lado. Enfiou as pontas dos dedos na casca e puxou um pedaço. O aroma pungente lhe deu água na boca. – Todo mundo aqui é infeliz? – perguntou, ansiosamente para morder o primeiro gomo suculento. – Alguns companheiros lhe dirão que são plenamente felizes. Pelo menos, às vezes. Há um bando inteiro deles que pensa que tudo aqui é lindo e maravilhoso. Você sempre pode distingui-los pelos óculos de lentes cor-derosa que usam. Willie procurou no bolso e tirou seu canivete e o pedaço de madeira. Executou um talho curto, depois outro, enquanto a princesa comia avidamente a laranja. – Coisa engraçada, aqueles óculos – disse ele, olhando de relance para Victoria. – Os companheiros que os usam circulam por aí dizendo como tudo é fantástico, mas estão carrancudos a maior parte do tempo. Pergunte a eles por que, e dizem que você é louca. Eles não estão carrancudos. Como poderiam estar, quando tudo é tão belo e maravilhoso? – É por isso que permanecem aqui? Porque pensam que são felizes? – Eles ficam aqui por um monte de motivos. A maioria se fixa porque se acostumou a isso. De uma estranha maneira, sentem-se à vontade em meio à loucura, sem saber o que é real e o que não é. Capazes de ver apenas o que querem ver. Mesmo à custa de infelicidade e ferimento. De qualquer modo, eles não sabem o que esperar em outro lugar. Receiam que seja tão ruim ou pior do que aqui. Então pensam: por que ir para toda aquela confusão e correr risco? A princesa entendia bem demais como era fácil permanecer num lugar onde se estava acostumado, mesmo quando se era infeliz. Mesmo quando isso magoava. Enquanto ouvia Willie, percebeu quanta coragem tivera de reunir para largar tudo que lhe era familiar e lançar-se em uma jornada ao desconhecido. De repente, um surto eletrizante de energia percorreu seu corpo. – Por certo, algumas pessoas devem ter partido daqui, não? – perguntou ela, sabendo que já era tempo de ela partir também. – Oh, sim. Correm boatos rápidos e furiosos acerca da terra além, e alguns companheiros anseiam ir para lá. Mas a neblina impede que muitos deles achem a trilha certa. Acabam tomando uma que conduz ainda mais profundamente à Terra da Ilusão. E eles acabam em pior situação do que estavam aqui. 101

– Sei como escolher a trilha certa – disse a princesa com convicção. – Mesmo assim, é uma viagem bastante dura. Diversos companheiros retornam quando vêem o quanto é perigosa a trilha que parte daqui. Eles dizem que a Terra da Ilusão gruda nas pessoas e não as deixa partir. – Já deixei um lugar que se agarrara em mim e não me deixava partir, mas finalmente consegui me soltar. Enfrentei uma inundação repentina e tempestades no mar que quase me afogaram. Enfrentei cobertores de seixos rolantes que ameaçavam me derrubar e penedos que me bloqueavam o caminho quando eu tentava passar. Eu me senti vazia, solitária, assustada e perdida. Sobrevivi a tudo isso e ainda mais – disse a princesa, surpresa pela mensagem de força que suas próprias palavras transmitiam. – Mesmo se você conseguisse, poderia voltar correndo. Muitos companheiros voltam. Eles contam as histórias mais apavorantes que já se ouviu a respeito do que encontraram lá. – Como o que? – Como o que é. – O que quer dizer? – Eles encontraram o que realmente é. Não que eles queiram coisas para ser, ou o que eles acham que são, ou o que pensam que poderiam ser... mas o que, verdadeira e realmente, é. É por isso que chamam o lugar de Terra do É. – Por que fugiriam de lá? O que verdadeiro e realmente é, é a verdade. A verdade que pode curá-los. – Os companheiros dizem que a cura é pior do que a doença. Você deveria ver aqueles que fogem de volta, balbuciando e gaguejando sobre como eles nunca deveriam ter ido. Leva um longo tempo até se recuperarem. Mesmo assim, nunca voltam a ser os mesmos. – Não quero ser a mesma – disse ela, pensando em todas as coisas que ainda precisava saber sobre a verdade. Por exemplo: se o príncipe tinha sido ou não tomado por um feitiço maligno. E, em caso positivo, quem o havia lançado sobre ele e por quê. Quem havia feito o que a quem, enquanto ela tentava ajudá-lo. Por que o rei e a rainha tinham insistido para que ela fosse quem eles queriam, em vez de ter sua própria personalidade. E por que ela acreditara, na maior parte de sua vida, que aquilo que era não era quem deveria ser. Quanto mais pensava sobre tudo que ainda precisava descobrir, mais ansiosa ficava para encontrar a Terra do É. Agarrou a alça de sua mochila e a pôs no ombro. – Preciso saber o que é, o que era e o que será. E não posso descansar até saber. – Bem, se você está decidida a partir... – Estou – replicou ela, dando em Willie um abraço rápido. Ele mudou seu peso de um pé para o outro e baixou os olhos timidamente. – Achei que você seria um dos companheiros que cairiam fora daqui – disse. – Você adquiriu muita coragem. Espero que consiga. 102

– Obrigada por tudo, Willie. Ela inspirou fundo uma vez, depois outra, e ouviu seu coração enquanto ele a levava para fora do acampamento.

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Capítulo Quatorze

A Terra do É

A neblina onipresente pairava pesada no ar quando a princesa deixou o acampamento. Ignorando o que tinha pela frente, sentiu-se nervosa ao passar pelo letreiro de saída. Depois parou por um momento e examinou a terra. Seu nervosismo aumentou ao recordar as palavras de Willie: A neblina impede que muitos deles achem a trilha certa. Acabam tomando uma que conduz ainda mais profundamente à Terra da Ilusão. A princesa estreitou os olhos, tentando enxergar em meio à densa neblina. À frente, só pôde ter um vislumbre das várias trilhas, todas parecendo ser difíceis aclives. Olhou em volta, esperando que seu coração lhe mostrasse o caminho, mas tudo que ele fez foi começar a bater mais rápido, enquanto as dúvidas percorriam sua mente. E se tomasse a trilha errada e nunca chegasse à Terra do É? Ela não suportaria a idéia de jamais descobrir a verdade acerca do que é e do que foi. Então nunca chegaria ao Templo da Verdade e nem saberia o que contém o Pergaminho Sagrado. Nunca encontraria a paz e a serenidade ou aprenderia o segredo do verdadeiro amor. Vinda do nada, a voz de Doc pipocou em sua mente: Observe cuidadosamente os postes de sinalização. Claro, os postes de sinalização! Ela olhou de uma trilha para outra, depois para mais uma. Mas não havia nenhum poste à vista. Por quê?, ela se perguntou ansiosamente. Por que não podia ver nenhum? Ela esperou ciente apenas da umidade que a envolvia e do martelar no seu peito. De súbito, quase pôde ouvir a voz de Dolly: O medo e a dúvida nos deixam cegos para o óbvio. Não era de admirar!, pensou ela. O medo e a dúvida a impediam de ver os postes e faziam seu coração bater tão forte que ele não conseguia indicarlhe o caminho. Ela ordenou a si mesma que se acalmasse, porém, quanto mais combatia o medo e a dúvida, mais eles se fortaleciam. Quanto mais fortes ficavam, mais medo e dúvida ela sentia. A seguir ela recordou a instruções de Dolly para superar o medo e a dúvida no mar, que certamente deveriam funcionar também em terra. Inspirou fundo várias vezes e soltou o ar lentamente, induzindo corpo e mente a relaxarem. Depois esperou calmamente até seu coração indicar o caminho. Momentos mais tarde, sua atenção foi atraída para a trilha diretamente a sua frente. Seus olhos prenderam-se na indistinta silhueta de um poste que se elevava em meio à névoa branco-acinzentada. – Deve ser esta – disse Victoria. Hesitante, ela deu alguns passos à frente, depois outros, e viu-se ao lado de um poste de madeira com um letreiro ao topo: 104

TERRA DO É DIRETO À FRENTE – Não estou certa se quero saber o que é – disse Vicky, enquanto a princesa entrava decidida na trilha. – Vicky! Onde esteve? Ficou tão calada no acampamento – replicou Victoria, empurrando para o lado o arbusto crescido demais que arranhava seus braços e pernas enquanto tentava passar. – Estive ocupada sentindo a essência. – Você é boa nisso. – E suponho que você esteve ocupada imaginando a essência e procurando a verdade. Você é boa nisso, não é, Victória! – Acertou Vicky. A princesa caminhava com dificuldade por entre raízes de árvores protuberantes e densas ervas daninhas que ocultavam o solo. Ela pegou um galho caído para afastar os arbustos. – Victoria? – disse Vicky humildemente. – Sim? – Foi culpa minha, não foi? Retiro-me ao fato de o rei, a rainha e o príncipe não me amarem do jeito que sou. – Não, Vicky. Não foi. – Mas você também não me amou do jeito que sou – disse ela tristemente. – Quando estávamos no acampamento, você disse que estava arrependida. Está? – Sim. Mais do que posso dizer – replicou Victoria, um bolo se formando em sua garganta. – Perdoe-me, Vicky. Quero amar você o jeito que é. – Por que deveria, de qualquer modo? Ninguém o faz – disse Vicky numa voz que atingiu o âmago de Victoria. – Porque as macieiras são feitas para dar maçãs, as tartarugas são feitas para ter cascos. Porque as lagartas são borboletas por dentro, e os cantos dos pássaros são todos lindos. É difícil de explicar, mas confie em mim. Estou trabalhando nisso. À medida que a princesa seguia em frente, os arbustos espinhentos pareciam agarrar-se nela, tentando puxá-la de volta. Ela forçou seu caminho entre eles, um passo doloroso após outro, lembrando do aviso de Willie de que a Terra da Ilusão agarrava os companheiros e não os deixava prosseguir. Ela se concentrou em desobstruir a trilha com seu galho e manter os pés no chão liso entre as raízes de árvores. – Victoria? – disse Vicky numa voz sumida. – Sim? – Acho que você pode fazê-lo. E talvez eu também posso. – Fazer o que? – perguntou Victoria. – Me amar do jeito que sou. 105

Victoria subiu cada vez mais alto, a encosta da montanha ia ficando rochosa e a folhagem escassa. Ela podia enxergar mais longe à medida que a névoa se dissipava. Esperava que a trilha se tornasse mais fácil, mas ela ficou mais íngreme e o solo estava tão úmido que ela escorregou para trás. A cada vez que isso acontecia, mais frustrada ficava. Parecia que, a cada dois passos que dava à frente, escorregava um para trás. Várias vezes pensou em voltar, mas sua visão do Templo da Verdade e tudo que Doc havia prometido que encontraria por lá a impeliam a prosseguir. Finalmente, ficou tão cansada de subir e escorregar que perdeu o passo e caiu, com mochila e tudo, num enorme e áspero arbusto que se empoleirava precariamente à beira de um penhasco. – Uau! Foi por pouco! – disse Vicky, examinando por trás do arbusto o profundo abismo abaixo. – Sim, foi – concordou Victoria. – Por um momento pensei que íamos escorregar de volta ao ponto de partida. – Está tudo bem – disse uma voz. – Embora escorregões sejam comuns na trilha, ninguém nunca desliza todo o caminho e volta ao ponto em que estava antes. – Doc! – gritou Victoria, libertando-se da folhagem espinhosa e rolando para o chão. – Tenho muito a lhe contar! O acampamento era incrível e você estava certo: Meu coração conhece o caminho. E aprendi a impedir que o medo e a dúvida... Oh, Doc, mal sei por onde começar! – Por que não veio cantando, tocando banjo e usando seu chapéu de palha? – Vicky deixou escapar, soando desapontada. – Você sempre canta e toca antes de aparecer. – A vida é curta demais para sempre se fazer alguma coisa – disse Doc –, mas já que insiste... – Ele sacou seu banjo da valise preta e pôs o chapéu de palha na cabeça. Existe um mágico maravilhoso Que vive numa terra chamada É Se você busca sabedoria e crescimento É só consultar o mágico e ter fé! – Deveria conhecê-lo – disse Victoria. – Seu desejo está prestes a se tornar realidade, minha dama – replicou Doc, inclinando-se e tirando o chapéu educadamente para a princesa. – É mesmo? Um mágico? Vamos conhecer um mágico de verdade? – gritou Vicky. – Como ele é? Irá nos contar tudo que queremos saber? Podemos conhecê-lo imediatamente? – O mágico por certo vai assombrar você... de mais maneiras do que poderia imaginar – disse Doc, sorrindo maldosamente. – Ele está vindo para cá? – quis saber Victoria. – Não, vocês é que vão para lá... para a Terra do É. – Já ouvi falar dela, mas não sei onde fica. 106

– Fica no topo da montanha – respondeu Doc. – Vocês estão quase lá. Mantenham-se no seu caminho, pois a parte mais excitante da viagem ainda está pela frente. – Ele se elevou bem alto no ar. – Continuem o bom trabalho! – gritou e desapareceu de vista. Excitada com a perspectiva de conhecer um mágico e saber que a Terra do É estava perto, a princesa pulou de pé, puxou a mochila do arbusto e se embrenhou mais uma vez na Trilha da Verdade. Mas, antes que pudesse alcançar o topo da montanha, a subida cobrou seu tributo. Ela estava exausta, e cada parte do seu corpo parecia doer. Finalmente, incapaz de dar outro passo, caiu no chão e adormeceu antes de sequer apoiar a cabeça na mochila. Ao acordar, a princesa sentiu sua energia renovada e estava ansiosa para reiniciar a jornada – Ouça Victoria – sussurrou Vicky. – O quê? – sussurrou Victória de volta. – A quietude. Ninguém está gritando para nós. É estranho, não acha? – Sim, é – replicou Victoria, prestando atenção ao silêncio e lembrando. – E também está quieto dentro de nos. Passado um momento, Vicky falou de novo. – Victoria? – Sim? – Por que ainda trememos a maior parte do tempo, e sentimos azia e o peito aperta? O Sr. Oculto não aparece há um bom tempo. – Não tenho certeza. Acho que nos acostumamos com isso. Talvez a verdade na Terra do É possa nos curar, como diz Doc. A princesa agarrou sua mochila e se apressou no resto do caminho montanha acima. Mas o nevoento topo da montanha não parecia nada diferente do que tinha sido na Terra da Ilusão. Ela estava tanto desapontada quanto aliviada – desapontada porque estava ansiosa para descobrir a verdade do que é e do que foi, e aliviada porque os avisos de Willie tinham-na deixado terrivelmente nervosa acerca do que poderia lhe acontecer quando lá chegasse. De repente, o sol irrompeu através da névoa e um raio de luz brilhou diretamente sobre um poste de sinalização a curta distância dela. Deve ser este pensou. Caminhou rápido até o poste e leu: BEM-VINDO À TERRA DO É – Bem, aqui vamos de novo – disse para si mesma, pensando que talvez o sol que a saudava fosse um bom sinal em si, depois percebendo que idéia inteligente era aquela. A princesa olhou para o outro lado da montanha. A Terra do É parecia bastante agradável. O ar era limpo e a encosta suave coberta de musgo, convidativa. A princesa não entendia por que as pessoas mencionadas por Willie haviam pedido a coragem e corrido de volta para o acampamento. Ela sabia que ela não voltaria, não importa o que encontrasse ali. Depois pensou 107

sobre as pessoas que não tinham chegado à Terra do É. Ela nunca se considerara uma pessoa forte e determinada, mesmo assim, chegar tão longe quanto havia chegado exigira enorme força e determinação. Era estranho pensar em si mesma nesta nova personalidade, mas sentia-se bem. Enquanto seguiam em frente, Vicky continuou quando iriam conhecer o mágico, e Victoria continuou respondendo que não sabia. A princesa chegou a uma enorme pedra lisa e plana, e agradecidamente se sentou. Ela abriu sua mochila e remexeu no seu interior. Extraiu seu livro de receitas e segurou-o com amor nas mãos. Olhou para o seu nome em grandes letras debaixo do título, depois folheou as páginas, recordando quantas vezes duvidara ser realmente capaz de escrever um livro e publicá-lo. Lembrou-se de todo o planejamento, avaliação, testes de receitas, de tudo que fora exigido para terminar o livro. Ela pegou de novo a mochila e tirou os sapatinhos de cristal com suas iniciais gravadas, que o produtor de Cinderela lhe dera de presente. Recordou que não acreditara que fosse boa o bastante para ganhar o papel e que, depois de obtê-lo, que não seria boa o bastante para representá-lo bem. Sentiu orgulho das coisas que tinha feito. Ocorreu-lhe que tinha o direito de se sentir orgulhosa. Conquistara esse direito. O pensamento era estranho para ela. Será, imaginou, que a Terra do É a estava afetando de alguma maneira? Após repor o livro e os sapatinhos na mochila, a princesa recomeçou sua jornada, entristecida por intensas lembranças do príncipe, de como nos seus primeiros dias juntos ele a havia estimulado e acreditado nela mesmo quando ela não tinha acreditado em si mesma. Suspirou. Se ao menos ele tivesse continuado como era naquela época – tudo teria sido bem diferente. Mais do que nunca, precisava descobrir a verdade sobre por que ele havia mudado. Ainda não parecia possível ele ter-se transformado naquele monstro. Quando pensava nele – em tudo que lhe fizera, no som dele, no cheio dele, no sorriso que produzia covinhas nas bochechas, no modo como seus olhos cintilavam só para ela, na maneira especial como apertava sua mao gentilmente para dizer em mudo ―eu te amo‖ –, a dor ainda a marcava como um ferro em brasa. Mas sempre que pensava nele , voltavam também a azia e o aperto no peito, relembrando-a de todas as coisas cruéis que ele dissera e fizera desde aquele dia mágico em que a abordara pela primeira vez na biblioteca da universidade. – O mágico deverá saber o que aconteceu com ele – sugeriu Vicky. Naquele momento, um sopro de fumaça branca encapelada sobressaltou a princesa. Ela tropeçou e escorregou encosta abaixo, vindo parar, aprumada, debaixo de um poste de sinalização. Ela olhou para cima e leu: DÊ UMA ESCORREGADA NA ALAMEDA DA LEMBRANÇA

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– Essa foi muito engraçada – disse Vicky, tendo apreciado bastante o escorregão pela suave encosta. – Uma escorregada na Alameda da Lembrança. Mas Victoria não estava nada de bom humor por ter fumaça soprada no rosto e escorregado encosta abaixo. – Bela escorregada – resmungou. – Aposto que é o mágico! – exclamou Vicky. – Eles não costumam aparecer numa nuvem de fumaça? Mas só quem estava ali era uma pequena mulher avoenga usando uma blusa amarela e sapatos de Mamãe Hubbard que aparentemente tinha tingido de amarelo para combinar. – Oh, coitada! – disse numa voz vívida. – Tudo bem com você? – Sim, acho que sim – disse a princesa, imaginando de onde a mulher tinha vindo. – Estou apenas desapontada. – Por que, meu bem? – Porque pensei... bem, um sopro de fumaça me fez escorregar pela encosta e cair bem aqui, e achei que o Mágico de É ia aparecer. Acho que estava enganada. – Sem dúvida, às vezes a gente está – replicou a velha. – Mas não desta vez. – O que quer dizer? – Quero dizer que você está certa. A fumaça era para anunciar a chegada do Mágico de É. – Então, onde está ele? – perguntou a princesa, olhando em volta. – Ele sou eu – respondeu a velha, soando quase divertida. – O quê? Você não pode ser o Mágico de É! Nem sequer tem barba! – Muita gente diz a mesma coisa. É por isso que trago uma comigo – replicou ela, sacando uma coisa peluda e grisalha de sua bolsa superestofada e balançando-a diante da princesa. A princesa olhou descrente para ela. Se aquela mulher era mágica, constituía uma deplorável exemplo da classe. Nem conseguia aparecer adequadamente numa nuvem de fumaça. – E quanto à fumaça? – perguntou a princesa. – As pessoas esperam por ela. – Não creio que esperem ter um sopro direto na cara delas. – Na verdade, eu estava treinando um de meus aprendizes para executar a técnica. Parece que ele precisa praticar mais. Lamento muito. Pode achar um lugar em seu coração para nos perdoar? – Acho que sim - disse a princesa, um tanto relutante. – Fico contente por dizer isso – replicou a mulher. – Será uma boa prática para você, meu bem. Agora que esclarecemos todas as dúvidas, deixeme recepcioná-la formalmente na Terra do É. – Obrigada, mas...tem mesmo certeza de que você é o Mágico de É? – perguntou a princesa, ainda não convencida. 109

– Claro que sou. Tenho todas as credenciais adequadas. Deixe-me mostrar a você. – Ela puxou um punhado de papéis de sua bolsa protuberante e entregou à princesa um cartão de aspecto oficial. – Este é o meu cartão de identidade com meu retrato. A princesa examinou o cartão minuciosamente. Não pôde acreditar no que viu. Bem debaixo do retrato da mulher estavam as palavras: ―Título oficial: Mágico de É‖ E ―Endereço: Terra do É‖. – E aqui está a prova de meu certificado como atual sócia ativa da Associação Nacional dos Mágicos. De fato, no ano passado atuei como presidente. Gostaria de ver o resto? – perguntou ela, segurando os outros documentos. – Não – retrucou a princesa. – Lamento ter duvidado de você. Mas eu pensava que os mágicos fossem... bem, você sabe. – Sim, meu bem, eu sei. Está tudo bem. As pessoas novas aqui costumam ter problemas com a realidade. – Como assim... ―problemas com a realidade‖? – Simplesmente que muitos têm idéias preconcebidas de como são ou deveriam ser as coisas... ou eram ou serão, quanto a isso, mas falaremos a respeito uma outra hora, Seja como for, essas idéias os impedem de ver como é a realidade. Às vezes a condição é bastante séria. Tenho encontrado pessoas que se recusam a aceitar que sou o Mágico de É, mesmo depois de examinarem minhas credenciais e testemunharem elaboradas demonstrações de meus poderes. A princesa pensou por um momento. – Percorri um longo caminho para descobrir o que é e o que foi, e não vou deixar que coisa alguma me impeça. – Excelente. Então você encontrará a verdade que busca. Finalmente, aceitando que estava em companhia de um mágico autêntico, a princesa fez as perguntas que a vinham atormentando. – Por que sempre fui tão delicada? Tão sensível, com medo de minha própria sombra? Tão sonhadora? E quem lançou o feitiço maligno sobre meu Príncipe Encantado? – E continuou sem parar, a toda velocidade. O Mágico de É ouviu atentamente até o furioso fluxo de perguntas diminuir o suficiente parar dar-lhe a oportunidade de falar. – Ninguém jamais conhece a verdade de outra pessoa – disse ela. – Cada um tem de descobri-la por si mesmo. Creio que o Dr. Hoot já lhe explicou isso previamente, não? – Também o conhece? – disse a princesa. – Ele certamente circula por aí. – Ela suspirou em frustração. – Eu pensava com toda certeza que, tão logo encontrasse você, eu descobriria a verdade a respeito do que é e do que foi. – Descobrirá, meu bem. Mas suas idéias de como os mágicos trabalham são tão errôneas quanto suas idéias de como eles se parecem. Os mágicos dedicam-se a ajudar pessoas a verem a verdade por elas mesmas. Por falar nisso, você tem uma peça teatral para assistir. Agora venha comigo. – Uma peça teatral! Adoro teatro. Uma vez representei Cinderela. 110

– Sim, eu sei. Você representou excepcionalmente bem. E não foi a única vez. Venha comigo. Verá o que estou querendo dizer. A princesa se pôs de pé, agarrou sua mochila, que a acompanhara na escorregada, e seguiu ao lado do mágico pela Alameda da Lembrança.

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Capítulo Quinze

Um passeio pela Alameda da Lembrança

Enquanto ela e o mágico desciam a alameda calçada com pedras, a princesa sentia como se estivesse percorrendo outro tempo e lugar. Exóticas construções de madeira ladeavam a trilha e ramos não aparados de hera escalavam suas paredes. As casas eram separadas por convidativos trechos gramados, sombreados parcialmente por castanheiros gigantes e frondosos. – Tudo nesta rua tem se dedicado esforçadamente a ajudar as pessoas a descobrir a verdade do seu passado – disse o mágico. – Tenho certeza de que você a descobrirá de algum modo incomparável. Primeiro elas chegaram ao que parecia um armazém de um velho país. – Este é o Velho Negócio de Família – anunciou o mágico em tom de guia turístico. – Que tipo de negócio é? – perguntou a princesa. – Artefatos... artefatos antigos. São de grande interesse para muitos que nos visitam. A seguir vinha uma construção rústica, com uma sacada e uma porta de entrada larga de carvalho. A concentração de hera na parede tinha sido aparada para revelar um letreiro em que se lia: ESTALAGEM ALAMEDA DA LEMBRANÇA – As pessoas ficam na estalagem? – perguntou a princesa, preocupada de que talvez fosse passar mais tempo do que pensava. – Sim. Pelo tempo que precisarem. – Quanto tempo é isso? – Para alguns, um curto tempo. Para outros, mais longo. Os únicos que nos preocupam, porém, são os poucos que ficam relutantes em partir. Eles exigem atenção extra, já que se apegar ao passado é um assunto sério. O que veio a seguir era sem dúvida um teatro, com um cartaz afixado num amplo cavalete de madeira anunciando a peça em cartaz. – O TEATRO VELHO LEGADO APRESENTA –

FANTOCHES DO PASSADO Uma saga a relembrar

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Estrelando PRINCESA VICTORIA com O rei, a rainha e o príncipe A princesa estava atônita. – Eu estou estrelando essa peça! Você disse que eu ia ver uma peça, não atuar em uma! – Esta é uma remontagem da produção original que você esteve estrelando por toda a sua vida. Irá explicar tudo que foi e tudo que é, por causa de tudo que foi. Devemos nos apressar agora. Já vai começar. Mas a princesa não saiu do lugar, olhando fixamente para o chão. – Qual é o problema, querida? – perguntou o mágico. A princesa deu de ombros. – E se... e se eu descobrisse... quero dizer, eu esperei por tanto tempo, e se... – Na Terra do É não existe e se. Só existe que é. – Espero gostar das coisas que descobrir – disse a princesa nervosamente. – O mais provável é que você gostará de algumas partes da verdade e não gostará de outras. Algumas partes você adorará, outras, pode odiar. Mas o que é, é, seja bom, mau ou indiferente. E ignorar a verdade não vai mudar isso. Só dá a ela o poder de dirigir sua vida sem qualquer interferência sua. – Realmente tenho de fazer isso? – perguntou a princesa. – A vida é vivida olhando-se à frente, mas é entendida olhando-se para trás. Você esperou um longo tempo para poder entender. A escolha é sua. A princesa inspirou fundo e acenou a cabeça para o mágico, que pegoulhe a mão gentilmente e levou-a para o teatro. – Agora, meu bem – disse o mágico, sentando-se ao lado da princesa. – Existe um aspecto mais importante para esta produção inusitada sobre o qual você deveria saber. Você não só vê a ação e ouve os diálogos, como também ficará ciente do que as pessoas estão pensando e sentindo. – Você quer dizer que ouvirei o que se passa em suas cabeças? – Sim, e sentirá o que se passa nos seus corações. O mágico estalou os dedos e o teatro escureceu. – Que a peça comece – gritou, estendendo os braços e erguendo-os bem alto no ar. Uma nuvem de fumaça branca encheu o palco e rapidamente se dissipou, revelando um cavalete de madeira com um letreiro onde se lia ―Primeiro Ato‖ O mágico estalou de novo os dedose uma garotinha entrou em cena, parecendo triste e solitária. A princesa a reconheceu de imediato da pintura que pendia parede da sala de estar no palácio de seus pais. Era a rainha quando criança. A princesa ficou assombrada ao ver a vida de sua mãe sendo representada bem diante de seus olhos. E achou estranho saber tudo que ela estava pensando e sentindo. 113

A princesa presenciou cenas da garotinha crescendo. Viu-a com seus pais e com amigos. Viu-a em seus sonhos, seus medos e dúvidas. A princesa ria com a alegria dela, chorava ao sentir-lhe a dor. Quando o Primeiro Ato se aproximava do encerramento, a princesa entendeu pela primeira vez como a rainha havia se tornado a espécie de mulher, governante, esposa e mãe que era. Com um estalar de dedos do mágico, um novo cartaz apareceu no cavalete anunciando o Segundo Ato. A princesa foi imediatamente capturada nos ensaios e triunfos de um garotinho, que ela sabia ser o rei. Compartilhou seus anos felizes e tristes, preocupou-se quando ele se preocupava, magoavase quando ele era magoado e exultava quando ele estava exultante. Em breve a princesa entendeu como o rei se tornara o homem, governante, marido e pai que era. O Terceiro Ato abria com a rainha segurando a princesa recém-nascida nos braços, o rei observando cheio de afeto. À medida que as cenas se desenrolavam, a princesa revivenciava muitos momentos de sua vida – alguns tão dolorosos que ela soluçou baixinho. Algumas cenas eram exatamente como ela recordava. Outras eram de certa forma diferentes. Outras ainda, ela havia esquecido por completo. Ela viu Vicky em todo o seu esplendor e inocência. Viu-a em todos os seus momentos mais sombrios. Ao final do Terceiro Ato, a princesa compreendeu como se tornara a mulher, filha e esposa que era. A princesa ficou aliviada quando houve finalmente um intervalo. Estava também dominada pela tristeza para assistir a mais. Enquanto ela e o mágico conversavam, a tristeza se transformou em raiva. Mas ficar com raiva não condizia com o Código Real de Sentimentos e Comportamentos para Princesas que vociferava em sua cabeça. Alternadamente, a princesa ia da raiva à tristeza e de novo para a raiva. Finalmente, com algum estímulo do mágico, a princesa gritou que estava furiosa com seus pais e com todos na sua vida que lhe tinham dito que seu modo de ser não era o certo. E estava furiosa consigo mesma por ter acreditado neles. Ela sentiu-se culpada por estar furiosa. E sentiu raiva por sentir-se culpada por estar furiosa. Vez por outra sua mente ficava entorpecida e ela esquecia por um momento do que ela e o mágico estavam conversando. O mágico disse que era perfeitamente compreensível para uma princesa que havia seguido o Código Real desde a infância julgar o que estava sentindo, e que não era coisa trivial qualquer criança real testemunhar o rei e a rainha descerem de seu pedestal e caírem ao solo como qualquer plebeu inferior. – Mas talvez eles não pudessem evitar o que fizeram comigo – disse a princesa, relembrando o passado de seus pais e sentindo-se mais culpada do que nunca por censurá-los pelo modo como haviam tratado. – É verdade que as pessoas fazem o melhor que podem à ocasião com as ferramentas disponíveis e a dor que sentem – respondeu o mágico. - E ter compaixão por eles é ótimo. Isso abre a porta também para a auto-compaixão. 114

Mas saber o que aconteceu com você não estava certo. E nenhuma razão, nenhuma história, seria algum dia boa o bastante para desculpar o seu ser diminuído , pôr em dúvida aquilo em que você acreditava e pensava, e forçarse a negar o que você sentia. E você merece isso. A dor, a raiva, a culpa e a tristeza continuavam a redemoinhar através da princesa como um poderoso tornado. – De onde vieram todos esses sentimentos? – perguntou ela. – Na maioria das vezes, os sentimentos das pessoas têm as mesmas raízes que elas. Depois disso, a princesa chorou sem parar, até que, finalmente exausta, adormeceu nos braços do mágico. – Acorde, meu bem – disse o mágico algum tempo mais tarde. – Está na hora do Quarto Ato. A princesa preparou-se para o que sabia que estava vindo – a aparição do príncipe criança. A partir do momento em que ele apareceu em cena, ela ficou fascinada pelo garoto pequenino que ia crescer e tornar-se o seu Príncipe Encantado. O ânimo dela se elevava e caía com os altos e baixos da vida dele. Ela testemunhou seus desafios e suas vitórias, sentiu sua luta e viu como ele fazia piadas do próprio sofrimento. A princesa sentava-se rígida na poltrona enquanto testemunhava os primórdios do feitiço maligno que mais tarde transformou seu carinhoso Dr. Risinho no hediondo Sr. Oculto. Quando o Quarto Ato terminou, a princesa olhou intencionalmente para o mágico. – É tudo tão difícil de acreditar. Sempre achei que o príncipe real fosse o meu doce e maravilhoso Dr. Risinho e que o Sr. Oculto fosse apenas um feitiço maligno que alguém lançara sobre ele. Eu não fazia idéia de que o príncipe verdadeiro fossem os dois juntos. – Assim é a natureza dos Srs. Ocultos... e a natureza dos contos de fada, que fazem tudo mais real do que é. A seguir, a um estalar de dedos do mágico, o Quinto Ato começou. Abria na biblioteca da universidade, com a princesa fitando os olhos mais azuis que já tinha visto. A excitação pulsou através dela como da primeira vez. Ela reviveu todo o êxtase e agonia de seus dias com o príncipe. Mas desta vez entendeu o que estava acontecendo e por quê. Embora fosse um alívio ter imaginado isso, seu entendimento não afastava a dor, a raiva, o pesar ou o vazio de ficar sem ele. Ela e o mágico falaram sobre isso até que a princesa finalmente gritou: – Estou furiosa com o príncipe por destruir meu conto de fadas, por trair minha confiança e meu amor. – Claro que está, meu bem – replicou o mágico piedosamente. – E há alguém mais com quem esteja furiosa?

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– Sim, comigo mesma! – gritou a princesa, sacudindo os punhos no ar. – Estou furiosa comigo mesma por permitir que ele me magoasse tão profundamente por tanto tempo. Enquanto ela continuava a sentir o que precisava ter sentido e dizer o que precisava ser dito, sua fúria cresceu até mais não poder. Depois, foi se dissipando lentamente, liberando-a do pesado fardo que carregava por tanto tempo. Pensou de novo nas cenas que presenciava da fase de crescimento do príncipe. – Ele estava furioso a respeito de um monte de coisas antes de nos conhecermos, e descarregou tudo isso sobre mim. Eu nunca tive uma chance. Ele usou o amor que eu tinha por ele para me magoar. E extraía prazer da minha dor. Mas por muito tempo não consegui me obrigar a ir embora. – As pessoas se tornam a vítima das vítimas quando a necessidade delas de ser amadas sobrepõe-se à necessidade de ser respeitadas – replicou o mágico. – No geral, as pessoas obtêm aquilo que irão determinar. Nem mais nem menos. – Talvez elas fixem aquilo a que estão acostumadas – disse a princesa, relembrando a profundeza de seu amor pelo rei e a rainha e a profundeza da dor que era parte disso. – É verdade. As pessoas procuram aquilo que elas conhecem. O que é familiar é confortável. – Mesmo se for um conflito? – Sim, especialmente se for um conflito. As pessoas mudam. Mas estão ainda tentando desesperadamente acertar, pôr em prática, finalizar seus negócios pendentes. Infelizmente, em geral, elas tentam fazer isso do mesmo modo que não funcionou da primeira vez. A princesa se remexeu desconfortável na poltrona. – É isso que o príncipe estava fazendo? Ele disse que não podia evitar transformar-se no Sr. Oculto. – Talvez, mas prosseguir num legado de sofrimento é sempre uma opção, e irresponsável, ainda por cima. Todo mundo é responsável por suas ações e por resguardar sua própria dor de modo a não infligi-la aos outros. As portas do Teatro Legado estão abertas a todos. – Se ao menos ele tivesse estado aqui anos atrás... – disse a princesa, sombria. – Talvez ele tivesse se saído melhor, e as coisas poderiam ter sido diferentes. – Talvez, mas algumas pessoas receiam demais enfrentar o que elas devem enfrentar aqui e são avessas a fazer o devem fazer. A princesa franziu o cenho. – Que desperdício. Todos aqueles anos de tremores, azia e aperto no peito, de sentimentos impotentes e confusos, de doença e cansaço... – Quando você permite que os juízes de outrem sejam mais importantes que os seus, você deixa o seu poder escapar. – Manter o poder deve ser fácil para você. Seu poder é tão grande. 116

– Bem como o seu, meu bem. Mas, como todo poder, deve ser reconhecido e exercido, do contrário fica entorpecido. A princesa inspirou fundo, tentando relaxar a tensão no seu corpo. – Se sou tão poderosa, por que sinto que ainda o amo, mesmo sabendo tudo que sei? O mágico tomou as mãos trêmulas da princesa nas suas. – Saber é uma coisa e sentir é outra completamente diferente. Pode levar muito tempo para que o sentimento alcance o conhecimento. Seja paciente, meu bem. Ele virá. A princesa meditou a respeito de tudo que o mágico disse. Havia muito em que pensar. Depois, outra indagação pipocou na mente da princesa, e que surgia ser respondia: – Eu o amei de todo o coração e alma, mas ele disse que não bastava. Por quê? – Nem dez princesas o amariam o suficiente para satisfazê-lo – disse o mágico. – As pessoas que não se sentem dignas de ser amadas, como o príncipe, costumam duvidar do amor de outras pessoas por elas. Não acreditam que o amor pudesse chegar para gente indigna, como elas. Lágrimas rolaram pela face da princesa. Foram caindo cada vez mais rápido, até que ela se viu soluçando incontrolavelmente devido à angústia e futilidade de tudo aquilo. Em breve, a vozinha vacilante e fungada de Vicky rastejou para a consciência de Vicky. – Temos de ter cuidado para não inundar o teatro – disse ela. – Você sabe o que nos aconteceu na última vez em que derramamos tantas lágrimas. Quase nos afogamos. – Isso foi antes que aprendêssemos a nadar – disse Victoria. – Por mais funda que seja a água, nunca mais teremos medo de nos afogar. – As lições bem aproveitadas trazem enorme paz – disse o mágico, com um tapinha na cabeça abaixada da princesa. – Gostaria de me sentir em paz a respeito de tudo o que me aconteceu. – Você pode. – Como? – perguntou a princesa, olhando para o rosto amável do mágico. – Tendo boa vontade. – Boa vontade para quê? – Para continuar demonstrando todos os sentimentos acerca do que lhe aconteceu no passado até que eles percam o seu poder. Boa vontade, dessa vez, para confortar e tranqüilizar Vicky em tudo, em vez de culpá-la. E boa vontade para perdoar a si mesma por ter sido incapaz de fazer melhor do que foi, na época, o seu melhor esforço. A princesa enxugou os olhos com o lenço que o mágico lhe entregou. – Não entendo por que tudo isso aconteceu. 117

– A vida é difícil. Algumas pessoas entram na vida de outras pessoas e deixam marcas nos seus corações, e elas nunca mais são as mesmas. Mas isso pode ser até melhor. – Você não se tornou mais sábia acerca do que o amor é e do que não é? Não aprendeu mais sobre quem você é e sabe quem não é? E não aprendeu a reunir energia do seu interior que nem mesmo sabia possuir? – Acho que sim – respondeu a princesa. – Existe uma valiosa dádiva em cada relacionamento, em cada experiência. Quanto mais cedo você puder ver a dádiva, mais cedo você pode progredir através da dor. – Doc uma vez me disse que desafios carregam dentro deles o dom de aprender sobre a verdade. Porém ainda não vejo por que tenho de sofrer para aprender. – A dor é um professor muito melhor do que o prazer. Pense em si mesma como uma pessoa em treinamento. Então suas experiências se tornam lições. E de suas lições vem a sabedoria que torna a vida mais plena, mais gratificante e mais fácil. A princesa sacudiu a cabeça. – Certamente é uma maneira dura de aprender. – Sim, mas é como se aprendi melhor. E o sofrimento pode alargar seu coração para dar mais espaço ao amor e à alegria. A princesa suspirou. – Amor e alegria? Não sei. Depois de tudo que aconteceu... – A maneira como você viveu ontem determinou o seu hoje. Mas a maneira como você viveu hoje determinará o seu amanhã – disse o mágico. – Cada dia é uma nova oportunidade para ser a maneira como você quer ser, e ter sua vida do jeito que você quer. Não precisa mais se prender nas suas velhas crenças. Como viu, elas provêm de outras pessoas, de outros tempos. O mágico pôs as mãos nos ombros da princesa. A ternura dos seus olhos acalentou a princesa ainda mais. – Preste bem atenção, querida. O que digo a você agora é de suma importância. – O mágico falou lenta e determinadamente: – Os anos passaram. Os perigos passaram. Está a salvo para ser você.

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Capítulo Dezesseis

O Vale da Perfeição

Enquanto deixavam o teatro, a princesa revirava na mente as palavra do mágico. – Está me dizendo que não devo continuar tentando ser diferente? Que estou ótima do jeito que sou? – ela perguntou por fim. – Você está melhor do que ótima – replicou o mágico. – De fato, está perfeita. – É o que tentei ser por toda minha vida. Mas, não importa o que fiz, eu ainda era delicada e sensível demais, tinha medo das coisas e sonhava com coisas que provavelmente nunca aconteceriam. – Algum dia lhe ocorreu que talvez você pretendesse ser todas aquelas coisas? A princesa suspirou. – Sim. Ocorreu-me, mas achei difícil de acreditar. Realmente não sei como eu pretendia ser. Ou quem, ou por quê. – Já é hora de você descobrir, não acha? Felizmente, nos encaminhamos para o lugar perfeito – disse o mágico, rapidamente pondo a mão sobre a boca para abafar um risinho travesso que, apesar dos seus melhores esforços, conseguiu escapar. – Venha comigo, meu bem. Tem uma coisa que quero lhe mostrar. O mágico conduziu a princesa ao topo de uma grande colina. – Permita que eu lhe apresente uma das vistas mais espetaculares do mundo, o Vale da Perfeição – disse ela, abrindo os braços como se para abraçar a beleza que se espalhava sobre a campina ondulada abaixo. – Vale da Perfeição? Você quer dizer que tudo lá embaixo é perfeito? – Sim, tudo. Rodeado pelo verde mais luxuriante que a princesa já tinha visto estava um lago mais azul que os olhos do príncipe. Faixas de raios de sol dançavam sobre a água. Morangueiros e canteiros de flores silvestres cresciam livremente, sua fragrância se mesclando e subindo até o topo da colina. Esquilos corriam, borboletas esvoaçavam, e a doce canção das calhandras percorria o ar. Tudo parecia fresco e limpo, como se lavado por uma chuva benigna. – Se ao menos eu pudesse ser tão perfeita! – disse a princesa, estupefata pela beleza impecável que testemunhava. – Podemos ir lá embaixo? – Claro – respondeu o mágico, conduzindo-a pela longa e suave encosta.

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Enquanto caminhavam, a princesa percorreu o vale com os olhos. Quanto mais ela via, mais percebia que as coisas não era tão perfeitas quanto haviam parecido do alto da colina – e quanto mais ela percebia, mais desapontada se sentia. – Pensei que você tinha dito que tudo neste vale era perfeito. Quero dizer, isto aqui é lindo, mas quando você vê tudo de perto, não é tão perfeito. As folhagens não parecem tão verdes. As árvores são comuns. O lago não é tão límpido. Há insetos e... bem, pelo menos esses ainda parecem bons – disse ela, esticando o braço para colher um roliço morango de um vermelho reluzente e mostrando-o ao mágico. – Esta é a única coisa que ainda parece perfeita. Mas quando ela enfiou os dentes no morango de aspecto saboroso, seu rosto fez uma careta e a boca se enrugou. – Está azedo! Nada é perfeito aqui. Absolutamente nada. – Você, meu bem, é muito definitiva em fazer pouco caso da grandeza do que é. – Não costumo fazê-lo. Mas você disse que tudo aqui era perfeito, e não é. Estou decepcionada. Eu esperava... – A perfeição, assim como a beleza, está nos olhos do espectador. A princesa estava intrigada. – Mas qualquer um pode ver que os arbustos e as árvores, o lago e os morangos não são perfeitos. – Ela os olhos e resmungou: - Vai ver que nada é. Nem o rei ou a rainha, ou eu e o príncipe... ou mesmo o amor ou meu conto de fadas. – Tudo é como se pretende que seja – disse o mágico, animando-a. – Isso faz a perfeição. O que é falho é a sua maneira de perceber a perfeição. – À medida que o mágico prosseguia, a princesa apenas entreouvia, pois estava preocupada com o fato de que sua maneira de perceber a perfeição fosse evidentemente imperfeita. – As pedras são duras e a água é molhada, e às vezes os morangos bem vermelhos e roliços são azedos. O que é, é. Em toda a natureza, tudo é e faz o que está destinado a ser e a fazer. – Tudo que me era destinado foi ser imperfeita. – Pelo contrário. Foi perfeitamente destinada a preencher o plano do universo para você. A princesa sacudiu a cabeça. – Não sei sobre um plano. Só sei que tentei me convencer de que estou ótima do jeito que sou, mas existem muitas coisas a meu respeito que eu gostaria de mudar. – A parte mais profunda de você, a parte que é una com tudo, é perfeita – explicou o mágico. – Sempre foi e sempre será. Perfeição é um dom da natureza. Não é alguma coisa que você tem de obter. É algo que você é, independente das coisas sobre você que acha que poderiam ser mudadas para melhor. 120

A princesa pensou em todos aqueles anos em que tentara parecer perfeita e fazer tudo à perfeição. – Você quer dizer que sempre foi perfeita? – Exatamente! Você faz parte de tudo que é. E o que é é perfeito em sua assim chamada imperfeição. – Mas e quanto ao meu ser delicado e sensível demais, com medo das coisas e sonhando acerca de coisas que provavelmente não vão acontecer? E minhas listas de prós e contras? – Quando você aceita o milagre de quem você é e ama a si mesma incondicionalmente, mudando as coisas que precisam ser mudadas, tudo virá mais fácil. Mas algumas das próprias coisas sobre você que sempre acreditou que precisavam ser mudadas, coisas que acreditava serem falhas suas, seus inimigos, foram na verdade seus servos leais – disse o mágico. – É por causa delas que você é a pessoa que é. Uma você perfeita, única, ao contrário de qualquer outra que veio antes ou que virá depois. A mente da princesa começou a disparar. Seria possivelmente verdade? Ela pensou em todos aqueles anos que tinha lutado contra ser do jeito que era. As centenas, milhares, talvez milhões de vezes em que ficara furiosa consigo mesma por não ser diferente, não ser melhor. – Houve ocasiões em que pensei que não era boa o suficiente para se amada – disse ela, o lábio inferior trêmulo. – Minha pobre querida – disse o mágico, pondo as mãos nos ombros da princesa e olhando-a direto nos olhos. – Você sempre boa o bastante para ser amada. Não por causa do que você disse ou não disse, ou do que fez ou deixou de fazer. Mas simplesmente porque você é uma filha do universo. Chegou a hora de honrar aquilo que você condenou a maior parte da sua vida. Ela tomou a mão da princesa nas suas. – É hora de apreciar ser tão delicada quanto suas adoradas rosas que brotam no jardim do palácio. É hora de apreciar a sensibilidade que abriu para você a porta aos prazeres do universo, pois quem sente as profundezas da dor também sente os ápices da alegria. É hora de apreciar seus medos, pois eles a desafiaram a devolver a força e a coragem de um valente cavaleiro na batalha. E é hora de apreciar os sonhos que falam dos desejos do seu coração, pois eles estão tentando revelar o segredo do plano do universo para você. – E o mgico continuou, indicando amorosamente a verdade inegável. A princesa sentiu como se estivesse suspensa no tempo e no espaço. Gradualmente, um peso opressivo ergueu-se de seus ombros e flutuou para longe. Tudo começou a adquirir um novo significado. Pensou acerca de tudo que tinha passado e tudo que havia aprendido. Pensou no quanto havia crescido e florescido, no que era agora por causa de tudo que fora antes. Recordou tudo – e sentiu-se bem. De repente, tudo no vale pareceu diferente. Radiantes raios de sol beijaram a maravilha de tudo que havia. Árvores e arbustos ganharam mais verde. O lago ficou mais azul. E a fragrância de milhares de flores tornou-se mais doce. A princesa observou os esquilos correndo, as borboletas voejando, 121

e ouviu a canção das calhandras. Tudo parecia tão fresco e novo como se ela o estivesse vivenciando pela primeira vez. De repente, elevou-se nela uma sensação de amor intenso. – Sinto-me mais linda agora do que jamais fui antes, exceto talvez quando era bem pequena – disse ela, retroagindo no tempo e tentando lembrar. – Quando procura beleza em tudo que existe, você começa a ver também a beleza em si mesma – replicou o mágico. – Se procurar a beleza no que é, você a encontrará. Se procurar imperfeição, a encontrará por sua vez. Naquele momento, uma vozinha familiar invadiu os pensamentos da princesa. – Victoria? Victoria sentiu um bolo na garganta. – Eu estava certa sobre uma coisa – disse Vicky. – Sobre o que? A resposta veio um momento depois. – Sobre ser capaz de amara mim mesma se você puder me amar do jeito que sou, Soluços de felicidade vieram em ondas, enquanto Vicky e Victoria riam, choravam, choravam e riam, até que submergiam em poças de lágrimas felizes. – Não temos mais que nos preocupar com afogamento, não é, Victoria? – disse Vicky em júbilo. – Nunca mais nos afogaremos porque temos uma à outra. E sabemos nadar. Certo, Victoria? – Certo. Uma sensação de calma baixou sobre a princesa, diferente de qualquer outra que sentira antes. – Sinto-me como se, de alguma forma, tivesse voltado a casa. – E voltou – replicou o mágico. – Para a casa e a família que você, muito tempo atrás, esqueceu que um dia teve. Para a casa e a família que muita gente passa uma vida inteira procurando, jamais percebendo que já estavam lá o tempo todo. – Família? Que família? – Na Terra do É tudo é família, inclusive coelhos, pássaros, peixes, flores e estrelas, você e eu. A partir deste momento, aonde quer que vá, onde quer que esteja, estará em casa, porque, em qualquer situação, estará em família. A princesa olhou para a beleza que a circundava – a beleza da qual fazia parte – e sentiu-se plena. – Agora, querida, o Templo da Verdade e o Pergaminho Sagrado esperam por você. – O Templo da Verdade! – gritou a princesa. – Eu não vi. Onde fica? – No topo da montanha – disse o mágico, apontando em direção ao outro lado do vale. – É uma bela caminhada. Você vai gostar. – Não vai vir comigo? – Não, esta parte da jornada você deve seguir sozinha. 122

– Mas por quê? – Porque é a única maneira de você poder ouvir a voz do Infinito. – O que é isso? – A voz do Infinito não pode ser explicada. Para saber o que é, tem de vivenciá-la. – Voltarei a ver você? – perguntou a princesa, já começando a sentir falta do mágico. – Claro, meu bem! Mais cedo do que pensa – respondeu o mágico, soprando um beijo para ela. A seguir, desapareceu numa nuvem de fumaça branca. De coração leve, a princesa foi atravessando o vale na direção da montanha, viu um enorme salgueiro-chorão, ereto como um monumento contra o céu crepuscular. Embora vergado sob o fardo de seu enorme peso, a árvore se elevava com força e esperança. Ela parou por algum tempo debaixo dos seus galhos, especulando por que o salgueiro a fascinava tanto. Por fim, percebeu o que era. Ele a fazia lembrar de si mesma – e de toda a vida – enquanto subia com determinação rumo ao céu, transformando o peso que suportava em beleza e graça. Ela pousou sua mochila e sentou-se ao lado da árvore, apoiando a cabeça no tronco e fechando os olhos. Sentiu-se tão relaxada que, dentro de poucos minutos, até mesmo o clamor de seus próprios pensamentos se afastou. Foi quando a ouviu. A voz do Infinito era diferente de qualquer outra. Era uma voz gentil que lhe falava ao coração como um sussurro. De início, a princesa pensou que fosse fruto da sua imaginação. A voz tornou a falar, suavemente. Não foi tanto o que disse que a fez pensar que algo muito incomum estava acontecendo, mas a sensação que tinha em sua presença. Sentiu-se aliviada, tranqüilizada e validada. O amor parecia envolvê-la como um cobertor quente no inverno. – Por que não falou comigo antes? – perguntou ela. – Falei, muitas vezes. Mas você não me ouviu – foi a resposta. – Perguntas importantíssimas começaram então a se amontoar na mente da princesa, disputando atenção. – Tenho um milhão de perguntas a lhe fazer – disse ela, sentindo-se tola e pouco à vontade, como se ainda não estivesse convencida de que não falava consigo mesma. – Qualquer que seja a pergunta, a resposta é verdade – disse a voz. – Descubra a verdade e saberá tudo que necessita saber. – Mas e quanto ao amor? – quis saber a princesa. – Aonde vai a verdade, vai o amor. Destemida, a princesa então perguntou: – São a verdade e o amor o que está por toda parte? Da vida, quero dizer. A voz do Infinito a gratificou com uma resposta: – A vida está em toda parte descobrindo que a vida está em toda parte. 123

Depois, tão misteriosamente quanto tinha vindo, a voz pareceu desaparecer. – Espere, não vá! Não me deixe – chamou a princesa, preocupada com que, na ausência da voz, ela perdesse a sensação inteiramente abrangente de amor e reconforto que sentia. – Sou uma parte de tudo que é, tal como você. Estou dentro de você e você está dentro de mim – disse a voz. – Estamos juntos para sempre, mesmo que possa pensar que estejamos separados. O grande vazio que permaneceu entranhado na princesa durante anos encheu-se de contentamento, pertencimento e paz. – Promete? A resposta veio como um distante eco ao vento: – Sempre estarei para você. É só chamar... e depois ouvir. O silêncio que restou após a partida da voz pareceu, de alguma forma, mais pleno. Em seguida, a princesa começou a subir a montanha rumo ao Templo da Verdade, seu coração batendo de expectativa, e a mochila balançando feliz no seu flanco.

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PARTE IV

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Capítulo Dezessete

O Templo da Verdade

O

tempo parecia passar com rapidez enquanto a princesa subia a montanha, sua mente repleta de curiosidade acerca de que segredos maravilhosos o Pergaminho Sagrado revelaria e de visões do magnificante templo, que estava prestes a contemplar. Mas nem mesmo as suas mais elaboradas fantasias a haviam preparado a beleza espetacular que a recepcionou quando finalmente chegou lá. Quando ficou parada na calidez do sol do meio da manhã, espiando através do elaborado gradeamento dos dois portões altos, brancos, de ferro batido, eles inesperadamente se abriram convidativos, revelando a estrutura interior imponente. Colunas entalhadas de pedra branca, degraus amplos e graciosos, e portas de entrada de vidro chanfrado que reluziam à luz do sol tornavam o templo mais assombroso do que o maior palácio que a princesa já vira. Trechos de grama verde atapetavam o pátio e canteiros de flores repletos de folhagem luxuriante e explodindo cores envolviam o templo em esplendor. Ela inspirou fundo e atravessou o pátio, com amplo degraus de granito em forma de coração sob seus pés e fofas nuvens brancas cavalgando uma brisa suave acima. Um instante depois, um coro de sussurros a envolveu. ―Cresça... cresça... cresça‖, as vozes encorajavam, como se estivessem falando para cada talo de grama, para cada árvore, arbusto e flor. A princesa reconheceu imediatamente as vozes como sendo só uma. Era a voz do Infinito. Tudo estava se movendo, oscilando, pairando à luz do sol, pulsando ao ritmo do universo. Naquele momento a princesa conheceu até as profundezas do seu ser, a quem Doc, o mágico e a voz do Infinito tinham todos falado a verdade acerca de quem ela era e de tudo que era. As portas se abriram quando se aproximou do templo. – Então é isso – disse ela dando um passo para dentro, seu coração disparado de emoção. Uma fonte branca disposta em três prateleiras se destacava alta no centro de um amplo vestíbulo. Água cristalina cascateava em tremeluzentes camadas que lançavam sua música ao ar. A princesa continuou lentamente, seu corpo ressoando o rumor da água cadente. Quando chegou ao outro lado do vestíbulo, olhou para o salão principal do templo. O que viu tirou sua respiração Painéis alternados de pedra branca polida e vidro chanfrado formavam uma maciça rotunda. No extremo oposto 128

do salão, em frente a uma parede de pedra sólida, havia uma ampla plataforma sobre a qual assentava-se um trono generosamente forrado de veludo com a tonalidade exata do manto real de seu pai. De cada lado do trono estava um pedestal de alabastro que sustinha um excêntrico vaso de cristal lapidado a mão contendo dúzias de rosas vermelhas de caule longo. O verde intenso e o arranjo de cores admiráveis do pátio atravessavam os painéis de vidro, salpicando um jardim de matizes por toda a rotunda. Feixes de radiante luz solar se irradiavam através de um enorme domo de vidro chanfrado. Pasma, a princesa adentrou o salão. – Olá – chamou, imaginando quem seria o encarregado. Certamente haveria alguém por perto. – Olá – repetiu. Sem saber o que viria a seguir, ela foi até o trono. Subiu a plataforma e instintivamente foi até um dos vasos de rosas. Inalou profundamente o perfume. Sempre se sentira tentada a parar e cheirar as rosas, muito embora, por algum tempo, tivesse sido incapaz de apreciá-las plenamente. Ela depositou a mochila e passou os dedos pelo suave forro de veludo do trono. – Há alguém aqui? – chamou, imaginando a quem pertenceria aquele trono. Continuou sem resposta. Sentindo-se cansada da jornada, afundou no veludo macio, esperando que o dono do trono não se importasse. Ela sentiu-se como no tempo em que era pequena, enrolando-se no manto do rei quando ele a abraçava apertadamente, seu peito inflando de orgulho. Ela refletiu sobre sua jornada até aqui. Tinha sido longa e difícil, mas a trouxera até onde estava hoje, e ficou contente por ter empreendido a viagem. Então, lembrando-se do Pergaminho Sagrado e dando-se conta de que não o tinha visto, olhou em volta do salão. Mas não viu o pergaminho em lugar nenhum. Abruptamente, vindo de lugar nenhum, um azulão veio voando e pousou no seu ombro. Ela ficou espantada. De onde teria vindo?, especulou. Fazia um bom tempo que um amiguinho emplumado não se empoleirava no seu ombro. Achou isso maravilhoso. Estendeu a mão para o pássaro e ofereceu-lhe o dedo. O azulão subiu nele. Ela baixou a mão e olhou direto na face do pássaro e reparou no seu corpo anormalmente roliço. – Ora, conheço você! É o mesmo azulão que costumava voar pela janela de minha cozinha e pousou no meu pistache ralado! – gritou ela com satisfação. Os olhos do azulão pareciam estar brilhando, e ele começou a gorjear uma alegre melodia. De súbito, a música de banjo ecoou na rotunda, executando a mesma melodia. A princesa pulou do trono, com o pássaro canoro ainda empoleirado no seu dedo. – Doc! Oh, Doc, como estou feliz em vê-lo! – gritou ela. – O que está fazendo aqui? – Estou acompanhando o Azulão da Felicidade, é claro. De outras maneiras além desta – replicou a coruja, continuando a dedilhar o banjo. 129

– Azulão da Felicidade? Este aqui? – disse a princesa, olhando surpreendida para a criatura canoro sentada no seu dedo. Olhou nos olhos dele de novo. – Não é de admirar que eu sempre me sentisse tão bem quando você aparecia amiguinho. Creio que é verdade que, para encontrar a felicidade, a pessoa não deve procurar além de seu próprio pátio, ou cozinha, como pode ser o caso – disse a princesa com um risinho. – A verdadeira felicidade não é encontrada nem nos pátios e nem nas cozinhas – replicou Doc. – E não vem dos pássaros, nem mesmo deste, nem do outro lado da cerca onde a grama parece mais verde. Ela borbulha do âmago quando a pessoa conhece a verdade das coisas. – Você quer dizer que o azulão não traz felicidade? – Como um Príncipe Encantado, o azulão vem para ajudar alguém a celebrar a felicidade de alguém. Não é responsável por trazê-la. A princesa pensou nas palavras de Doc enquanto ouvia a melodia. – Vocês fazem uma música tão linda juntos! O príncipe e eu uma vez fizemos uma música linda juntos. Oh, como anseio ter isso de novo. – E você o terá um dia. Mas há outras coisas a atender primeiro. – Como o Pergaminho Sagrado? Olhei por toda parte e não o encontrei. Quem quer que seja o encarregado deve saber onde... – Nós somos os encarregados aqui. – Mas... mas de quem é este trono? – Seu, princesa – respondeu Doc. De repente, um enorme sopro de fumaça branca apareceu. No meio dela estava uma figura animada de cabelo prateado, acenando vigorosamente para limpar o ar. – Espero não estar atrasada! – disse o Mágico de É. – Não queria perder isso por nada. – Ambos sabemos que você nunca perde uma coisa – disse Doc, piscando divertido para ela. – Henry, que prazer em vê-lo. E a você também, querida – disse o mágico para a princesa. – Vejo que chegou bem aqui, como eu sabia que chegaria. – Voltando-se para a coruja, perguntou: – Está tudo preparado, Henry? – Preparado para quê? – quis saber a princesa. – Ela ainda não sabe – Doc sussurrou para o mágico. – Saber o quê? – perguntou a princesa. – Que planejamos uma cerimônia especial de iniciação para você – replicou Doc. – É mesmo? Para mim? – disse a princesa com um prazer infantil. – É para quando eu for ver o Pergaminho Sagrado? Antes que Doc pudesse responder, um bando de pássaros entrou chilreando ruidosamente no salão. Ficaram circulando em torno da princesa, alguns pousando brevemente nos seus ombros e braços. – Meus velhos amigos emplumados! – exclamou ela, reconhecendo os pássaros de dias passados. 130

Um por um, ela acariciou suas cabecinhas com o dedo, e um por um eles arrulharam enquanto ela o fazia. – Estou tão feliz de vê-los de novo – disse ela. – Senti tanta falta de vocês! Quando a princesa terminou de acariciar o último pássaro, o mágico falou: – Poderia, por favor, assumir seu trono agora, princesa? E todos os convidados façam o favor de tomar seus lugares. A cerimônia de iniciação já vai começar. Os pássaros voaram em volta e rapidamente vieram descansar em fileiras alinhadas, ao estilo teatral, de frente para o trono. O mágico assumiu seu lugar ao lado. Enquanto a princesa se aninhava de volta no assento de veludo, um pombo – aparentemente vagueando atrás dos outros – voou com dois envelopes no bico e os entregou a Doc. – O que são? – perguntou a princesa acima do chilreio dos pássaros, que tinham recomeçado quando o pombo chegou voando. – São passarogramas, claro – respondeu Doc. – Para você. Quer lê-los? – disse, oferecendo-os a ela. – Não, você lê, de modo que todos possam ouvir. Fez-se silêncio enquanto Doc abria o primeiro envelope. Ele limpou a garganta e começou a ler: GOSTARIA DE ESTAR COM VOCÊ HOJE, MAS NÃO POSSO — POR MOTIVOS ÓBVIOS. ESPERO QUE SUA FELICIDADE SEJA TÃO PROFUNDA COMO O OCEANO, TÃO ALTA COMO O CÉU. ESTOU COM VOCÊ EM ESPÍRITO, SEMPRE. AMOR, DOLLY.

– Que gentil da parte de Dolly – disse a princesa e chilreios de aprovação percorreram a rotunda. Doc e o mágico disseram ter achado adoráveis os sentimentos de Dolly, que soavam exatamente como ela. A seguir, Doc abriu o segundo envelope e leu: PARABÉNS. FIQUEI FELIZ EM SABER QUE VOCÊ NÃO APENAS ESCULPIU SEU TEMPO. ESPERO QUE ENTALHE UM BELO NICHO NA VIDA.

Doc olhou brevemente para a princesa, depois de volta para o passarograma. – Está assinado ―Melhor‖, mas isso foi riscado. Debaixo está ―Que diabo. Amor, Willie Grená, o Entalhador‖. A princesa gargalhou. – Não é adorável?

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Doc deu um risinho e disse que achava o passarograma de Willie inteligente. Os pássaros irromperam numa rodada de chilreios entusiasmados e bater de asas. O mágico achou tudo extremamente divertido. Quando cessaram o chilrear, o bater de asas, as conversas e os risos, Doc – em sua melhor voz de mestre-de-cerimônias – disse: – Estamos reunidos aqui hoje para homenageá-la, princesa, por sua força, coragem e determinação na sua busca da verdade. Força, coragem e determinação... A princesa sorriu. Sim, Doc estava certo. Ela nunca se sentira mais forte, corajosa ou mais determinada na sua vida. – Você teve de enfrentar no seu caminho mares tempestuosos e areia profunda, escalou montanhas e atravessou a neblina densa – continuou Doc. – Você deslizou e escorregou, tropeçou, caiu, só para se erguer de novo e prosseguir. Tudo isso e mais você suportou na busca da verdade... verdade que prometeu curar você e trouxe a paz e o amor que desejava tão desesperadamente. Ele ajustou cerimoniosamente o seu estetoscópio e continuou: – Você ganhou merecidamente a honra de estar aqui, hoje, no Templo da Verdade e de segurar nas suas mãos o precioso Pergaminho Sagrado. – Não vejo o pergaminho em parte alguma – sussurrou a princesa ansiosamente para o mágico. – Nada para se preocupar. Tudo acontece no devido tempo – sussurrou de volta o mágico.

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Capítulo Dezoito

O Pergaminho Sagrado

O

silêncio se abateu sobre o templo. O coração da princesa batia tão alto que ela pensou que todo mundo poderia ouvi-lo perfurando o silêncio. O mágico voltou-se e encarou a parede de pedra. Ela ergueu as mãos para o alto, no ar. Um sopro de fumaça branca apareceu. Um momento mais tarde, um grande estrondo dilatou a parede. Pareceu fazer toda a rotunda vibrar. A princesa se inclinou à frente e agarrou os braços do trono. De repente, uma seção da parede se abriu, expondo um velho pergaminho de aspecto delicado, afixado com um sinete dourado e assentado sobre um altar cravejado de jóias. O mágico ergueu o pergaminho do altar, como se fosse uma peça de fina porcelana, e o ofereceu à princesa. Victoria o pegou e cuidadosamente removeu o sinete. – Esperei um longo tempo por este momento – disse ela, sua voz tremendo, ainda que levemente. – Você fez mais do que esperar – lembrou-lhe o mágico. – Receber o Pergaminho Sagrado é uma honra que você mereceu. Seu estômago agitando-se tremendamente, a princesa desenrolou o pergaminho. Parecia como se tivesse sido escrito pelo calígrafo do palácio real, fazendo a princesa lembrar do Código Real de Sentimentos e Comportamento para Princesas. – Deverei ler em voz alta? – perguntou ela. – Sim, meu bem. Seria ótimo – respondeu o mágico, que se ocupava em colocar um par de óculos de leitura de arame levemente curvo, que ela pelejava para tirar de sua bolsa. A princesa inspirou lenta e profundamente para se acalmar, depois leu em voz alta: – O Primeiro Pergaminho Sagrado. O primeiro? – repetiu, desviando a vista do pergaminho. – Não é o único? Eu não vi quaisquer outros. – Não há necessidade de discutir isso agora – disse o mágico.

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– Espere que não signifique o que acho que significa – replicou a princesa, olhando de Doc para o mágico e de volta para Doc. A seguir, recomeçou: O Primeiro Pergaminho Sagrado Considerando estas verdades evidentes por si sós... Ainda assim, muito freqüentemente elas não são I Somos, primeiro e acima de tudo, filhos do universo – completo, lindo, perfeito em cada detalhe – pois somos como o Infinito pretendeu que fôssemos. Assim, temos o direito inato de merecer respeito e amor – e nossa obrigação é não aceitar nada menos.

nunca mais o farei de novo – disse a princesa, olhando de volta para Doc e o mágico, que acenaram em concordância. – Isso deveria ter estado incluído no Código Real de Sentimentos e Comportamento para Princesas, que ficou pendurado na parede de meu quarto durante todos os anos de meu crescimento. Ela baixou os olhos e continuou lendo: –E

II Assim como a totalidade do oceano é formada por cada gota de água, da mesma forma somos parte da totalidade da vida. Assim como o mar flui e reflui, da mesma forma nós fluímos e refluímos com a maré da vida, aceitando que a única constante é a mudança, e sendo resolutos de que tudo é como devia ser, mesmo quando não sabemos por quê.

– Ler sobre o mar me faz lembrar de Dolly – disse a princesa. – Ela me ensinou tudo sobre o mar... como relaxar e seguir a correnteza, em vez de lutar contra ela. Eu gostaria que ela pudesse ter estado aqui. Teria adorado isso! III Dentro dos braços da fraqueza está a força, ansiosa para irromper livre. Dentro do aperto da dor está o prazer, esperando só para ser. E dentro da trilha de obstáculos jaz a oportunidade. Pois deveríamos ser para sempre gratos a tudo que esses professores trazem para a vida.

Um ar de súbito percepção atravessou o rosto da princesa. – Nunca pensei na dor que o príncipe me causou como sendo um professor mas acho que aprendi tudo que sei por causa dela. 134

– Lembre-se, algumas das maiores lições são provenientes do maior sofrimento de alguém – replicou Doc A princesa suspirou, depois baixou os olhos e leu: IV Existe um grande desígnio do qual somos uma parte, Cuja guarda não nos é confiada. Todo mundo e todas as coisas têm um lugar de direito neste grande desígnio, e uma razão de ser.

Enquanto a princesa prosseguia a leitura, suas mãos e pés começaram a formigar, e uma sensação de calor surgia em seu peito. Ela nunca sentira nada semelhante. O mágico estendeu o braço e descansou a mão sobre o ombro da princesa. – Está tudo bem, querida. O que está sentindo é conseqüência daquilo em que esteve pensando e acreditando. Parecia estranho à princesa que o mágico pudesse dizer-lhe o que ela estava sentindo sem que tivesse proferido uma palavra. Tentando expulsar isso da mente, ela voltou sua atenção para o pergaminho: V A experiência nem sempre é verdade, pois é colorida pelos olhos através dos quais é vista. É no silêncio de nossa mente que ouvimos a verdade. A voz gentil que fala ao nosso coração como um sussurro é o Criador se agitando lá dentro, tentando nos conscientizar do que verdadeiramente somos, de tudo que nos propomos a fazer e de tudo que já sabemos.

A princesa recordou a voz gentil do Infinito enquanto falava para o seu coração e pensou na sensação que teve na sua presença. Gradualmente, o formigamento nas suas mãos e braços subiu para o topo da cabeça e desceu para as pontas dos pés, e o calor no seu peito começou a se espalhar. Ela pôs a mão em concha sobre a boca e sussurrou para o mágico: – Desculpe-me, mas agora estou realmente me sentindo estranha. Não entendo a razão. O pergaminho é lindo, mas parece tão simples, e óbvio... quero dizer, não é como se eu já não soubesse alguma coisa disso. – Saber a verdade não basta – sussurrou o mágico de volta. – Deve ser sentida como parte de você para que sua magia funcione. – É isso que está acontecendo? A verdade está se tornando parte de mim? – A verdade sempre fez parte de você, mas você não estava ciente disso. 135

– À medida que eu me tornei mais ciente disso, serei capaz de produzir sopros de fumaça branca, tal como você? - perguntou a princesa com prazer infantil. – Não haverá sopros de fumaça, meu bem, mas haverá magia mesmo assim. Você em breve verá o que quero dizer. Por enquanto, vamos continuuar. VI Cada momento novo é um banquete de possibilidades novas. Cada dia é uma fruta madura à espera de ser colhida.Vezes sem conta, devemos olhar a safra, compartilhando a fartura mas não o desperdício – pois precioso é tudo aquilo que é. E tudo o que é muito em breve será tudo o que foi.

– Embora tudo o que era e tudo o que é sejam um – interveio o mágico. A princesa parou de ler e olhou para ela, perplexa. – Desculpe – disse o mágico. – Eu não tive a intenção de interromper. De qualquer modo, isso é outro assunto para uma outra hora. Por favor, prossiga, querida. VII Quando percorremos a Trilha da Verdade, sentimos fluir através de nós a beleza e a perfeição de tudo que somos, de tudo que os outros são, e de tudo que é. Nosso caminho escolhido é o da gentileza, bondade, compaixão, aceitação e apreciação. Com essas qualidades nossa mente estará plena. Tal plenitude mental irá criar amor em nosso coração. E o amor em nosso coração criará amor em nossa vida.

VIII Quando percorremos a Trilha da Verdade devemos estar sempre atentos para que o que faz dentro de nós tenha muito mais importância do que o que está atrás ou diante de nós.Por isso o que está dentro de nós é o maior de todos os tesouros – a própria magnificência do universo.

O silêncio reinava em toda a rotunda. Não se ouvia nenhuma palavra ou gorjeio. Uma energia poderosa pulsava por todo o corpo da princesa. E a sensação de calor continuou a se espalhar cada vez mais até que pareceu abarcar toda a rotunda e todos que nela se encontravam – e os jardins lá fora e o céu acima. Ela se sentia leve e inebriada, embora experimentasse uma sensação de pureza profunda que jamais conhecera. A princesa tornou-se de súbito consciente o motivo pelo qual o Pergaminho Sagrado a afetara tão profundamente. Ela olhou para o 136

pergaminho em suas mãos. Relanceou para Doc, para o mágico e para a platéia de pássaros, todos aguardando ansiosos. – Este é o meu Novo Código Real – anunciou ela. Imediatamente, ela foi envolvida por um sopro de fumaça branca. Quando se dissipou, o pergaminho tinha desaparecido. Em seu lugar surgiu um lindo espelho de mão de cristal com pequenas rosas gravadas. A princesa estava atônita. – O que aconteceu com o pergami0nho? – perguntou ela, alarmada. – Eu queria ficar com ele para sempre. – Não se preocupe. Está aqui comigo – replicou o mágico, segurando o pergaminho. – Agora olhe-se no espelho, querida – pediu. – Mas só verei a mim mesma. Não entendo. – Vamos lá, princesa, olhe – disse Doc, excitado por um débil anel de luz que se tornava mais e mais visível, como um halo em torno dela. A princesa obedeceu e olhou-se no espelho. Irradiando-se de volta para ela de seus grandes olhos cor de âmbar estava uma centelha muito mais brilhante que qualquer outra que já vira em sua vida – mais brilhante até que a cintilação que certa vez houvera nos olhos do seu adorado príncipe. Subitamente, a voz de Vicky soou, quebrando o silêncio. – Então cintilando para nós, Victoria – Sim – respondeu ela, olhando mais profundamente no espelho e sabendo que era verdade. – Ninguém pode tirar isso de nós desta vez. Nunca mais! – disse a excitada vozinha que Victoria viera a adorar. Plena de alegria, a princesa pôs os braços em torno de si e abraçou-se com toda força. Doc piscou para o mágico, que sorriu de satisfação. Os pássaros se aquietaram, e todos os olhos se fixaram de novo na princesa. – O que é, Vicky? – perguntou a princesa, enxugando as lágrimas de felicidade no seu rosto com um lenço que o mágico lhe dera. – Promete me amar e cuidar de mim nos bons e maus tempos, na doença e na saúde, e em todas as outras coisas? – Prometo – replicou Victoria. – E juro tomar conta de você. E ouvir você. E tentar compreendê-la. – Impedirá que alguma coisa torne a me magoar? – Isso não posso prometer. Mas posso prometer estar sempre a seu lado e ser sua melhor amiga. – Jura por Deus e quer cair mortinha? – Sim, Vicky – disse Victoria, depositando o espelho ao lado dela e jurando com a mão sobre o coração. – Juro por Deus, quero cair mortinha e beijar um lagarto. Victoria olhou para cima timidamente, percebendo o quão tolas ela e Vicky pareciam. O mágico sorriu reconfortante para ela. Victoria inspirou fundo e limpou a garganta. 137

– E você promete, Vicky, ser para sempre o meu fardo de espanto e inocência, meu elo com um coração feliz? – Prometo. Não importa o quê! – E promete me presentear com seu riso, suas lágrimas e a doçura de suas canções? – Prometo, prometo! Victoria tirou uma única rosa de um dos vasos de cristal e segurou-a reverentemente diante de si. – Isto é para você, Vicky. Um símbolo do nosso amor. – É para você também, Victoria. É para nós e de nós! E não porque alguém mais parou de nos dar rosas, tampouco! A princesa saltou de pé. – Nunca imaginei que podia ser tão feliz sem um príncipe! Você estava certa – disse ao mágico. – Quando sente a verdade como parte de você, isso é como magia! Ela agitou a flor no ar e girou graciosamente, subindo e descendo o corpo numa dança animada que vinha de algum lugar no fundo de seu ser. Ao mesmo tempo, não fazia idéia de que um halo de luz radiante estava agora brilhando a sua volta. Os pássaros gorjeavam e trinavam ao máximo de suas pequenas vozes, batendo suas asas e esvoaçando em volta. Doc bateu as asas, esvoaçou e piou junto com eles. O mágico, rindo a valer, juntou-se à alegria. No meio das festividades , a princesa subitamente relembrou seu conto de fadas e ficou intrigada. Chamou Doc. – Você me disse no início da jornada que, quando chamasse ao Templo da Verdade, eu estaria bem encaminhada para transformar meu conto de fada em realidade. – E está, princesa – replicou ele. – Para amar a outro verdadeiramente, precisa primeiro amar a si mesma. – Mas supostamente os contos de fada não deveriam inclui um príncipe? – Sim, quando eles são da espécie que é lida para ninar as crianças. Os contos de fada da vida real supostamente devem ter um final feliz... com ou sem um príncipe. A princesa pensou por que ansiara por um príncipe durante boa parte da sua vida – de fato, com freqüência, se sentira uma nulidade sem um príncipe. Havia necessitado de um príncipe para amá-la, precisava da centelha nos olhos dele para ser feliz e se sentir bela, especial e amada. Isso só servia para mostrar o quão errada alguém podia ser, pensou ela, lembrando o que aprendera sobre príncipes, resgates e amor. Ela agora sabia que, se continuasse querendo um príncipe na sua vida, ele poderia nunca ser de novo a sua vida, e que agora se amava o suficiente para se tornar feliz – com ou sem príncipe.

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– Você uma vez me disse que meu conto de fadas podia se tornar verdade, mas que poderia ser diferente daquele que fantasiei pela primeira vez – disse ela. – Estou começando a entender o que quis dizer. Ela sentou-se na beirada do trono, inclinou a cabeça e apertou a face com as mãos. – Mas ainda quero um príncipe que fará meu coração tamborilar e meus joelhos fraquejarem, quando me olhar fixamente nos olhos. – Uma noção romântica, com certeza, mas existe um bocado mais na escolha de um Príncipe Encantado do que olhar fixamente nos olhos de um estranho e achar que ele é o próprio. – Então como o conhecerei? – Pela pureza de seu espírito e a plenitude de seu coração. – Você quer dizer que ele será como diz o Pergaminho Sagrado: gentil, amável, compassivo e tudo mais? – Sim – replicou Doc. – Tanto em relação a ele quanto aos outros. Pois deve-se amar os outros como a si mesmo, com gentileza e tolerância, ou com aspereza e rejeição. – É esse o segredo do verdadeiro amor? – perguntou a princesa. – Parte dele – respondeu Doc. – A outra parte é inclinação. – Inclinação? – Sim, porque não se pode amar uma pessoa de quem não se goste. E que significa gostar do que a outra pessoa realmente é, não do que você queria ou precisaria que fosse. – A princesa pensou por um momento, depois perguntou, ansiosa: – Existem mais outras partes para o segredo? – Sim, muitas outras, tais como confiar, partilhar e ser os melhores amigos. O verdadeiro amor significa liberdade e crescimento, em vez de propriedade e limitações. Significa paz em vez de tumulto, segurança em vez de medo – disse Doc, começando a falar mais rápido. – Significa compreensão, lealdade, estimulo, compromisso, união e... ah, esta é uma parte especialmente importante para você, princesa... respeito. Pois quando alguém não é tratado com respeito, vem inevitavelmente a dor, de um tipo profundo, desagradável, destrutivo, de esfrangalhar os nervos, que nunca é uma parte da beleza que é verdadeiro amor. – Sei muito bem a respeito disso. E agora sei que era minha obrigação aceitar nada menos que respeito, como diz o pergaminho. Mas até mesmo o verdadeiro amor deve ter seus momentos difíceis. Quero dizer, às vezes as pessoas ficam perturbadas e dizem coisas... – Sim, mas pode-se ficar perturbado com o que outra pessoa diz ou não, sem desgostar ou maltratar a pessoa que o disse ou não. O verdadeiro amor significa concordar ou discordar como amigos ou colegas de equipe, em vez de como inimigos ou concorrentes, pois o verdadeiro amor não se ocupa com competição ou triunfo. – Sua voz ficou mais alta e profunda, e ele parecia alto, o peito inflado como pavão. – E ele nunca é aviltante, cruel, agressivo, violento. Faz de uma casa um castelo, nunca uma prisão. O verdadeiro amor... 139

– Doc... Doc – chamou o mágico insistentemente. A coruja parou abruptamente de falar e agitou sua asa sobre a boca. – Epa, parece que fui um pouco longe demais – disse, baixando a asa. – Desculpe, isso tende a acontecer quando estou falando de meu tema preferido. – Está tudo bem. É meu tema preferido também – replicou a princesa, suspirando profundamente. – Engraçado. Sonhei por toda a minha vida em descobrir o verdadeiro amor, mas nem mesmo soube o que é isso. – O que explica por que você teve dificuldade em descobri-lo, Ninguém pode encontrar o que está procurando a menos que saiba primeiro o que é. Ela sentou-se em silêncio, seus olhos enchendo-se de lágrimas. Por fim, disse: – Meu conto de fadas me manteve acreditando que o que eu tinha era amor de verdade. – Ela se remexeu desconfortável no assento. – Eu acreditava no êxtase do conto de fadas, a despeito da agonia da realidade. Esperei e sonhei que meu conto de fadas ainda iria se tornar realidade. – Aquilo foi antes, e isto é agora. Seu conto de fadas ainda pode se tornar realidade, se for o correto. A princesa recordou o que o Pergaminho Sagrado dissera a respeito de plenitude mental e como o amor no coração de alguém cria amor na vida de alguém, e ela imaginava o que o futuro poderia lhe assegurar. – O verdadeiro amor soa até melhor do que jamais sonhei, exceto aquela parte sobre nenhum coração tamborilar e os joelhos não tremerem. É muito triste. É mais do que triste, é verdadeiramente deprimente! Doc sorriu. – Eu não diria que seu coração não iria tamborilar nem que seus joelhos não virariam geléia. Só que escolher um príncipe para amar exige que você considere mais do que sua anatomia inconsciente, que, aliás, pode impedi-la de perceber postes de sinalização importantes. A princesa enrubesceu e tentou sufocar um risinho. Depois aquietou-se. Doc, o mágico e os pássaros esperavam pacientemente. Finalmente, com a voz trêmula de emoção, a princesa disse: – Tenho um novo conto de fadas. Um conto de fadas diferente. Um conto de fadas melhor. É que eu vivo feliz para sempre e encontro o verdadeiro amor com um príncipe que está vivendo feliz para sempre. E, juntos, celebramos a nossa felicidade! – Você percorreu um longo caminho, princesa – disse Doc. – Você uma vez precisou amar a fim de sentir-se bem. Agora você pode escolher amar porque se sente bem. – Viveremos em harmonia perfeita, meu príncipe e eu? – perguntou sonhadora. – Será perfeita na sua imperfeição. Ela poderia ter adivinhado esta, pensou a princesa. – E nossos corações bateram como um só? – Não, mas seus corações baterão juntos, como dois que sentem como um. 140

– Oh, isso soa maravilhoso – disse a princesa. – Mas não sei como um dia o encontrarei naquele grande mundo lá fora. – Não se preocupe – disse o mágico. – Há muitas coisas que você ainda não sabe, querida, mas saberá. – Oh, não – disse a princesa, acomodando-se mais fundo no trono. – Tive uma sensação quando vi o Pergaminho Sagrado, dizia ―O Primeiro...‖ – Você estava inteiramente certa – replicou Doc. – A jornada de uma pessoa nunca termina. – Pensei que já tivesse acabado de subir encostas, escorregar em seixos e bater com o nariz em enormes penedos. Não é disso que trata essa iniciação? – Pelo contrário, iniciação significa começo. – Na verdade não quero perguntar, mas que história é essa de começo? – indagou ela, ansiosa. – Pôr em pratica um conhecimento recém-adquirido. Uma parte importante de aprender a verdade é vivê-la. A princesa olhou para o veludo macio debaixo dela e acariciou-o com os dedos. – O que há – perguntou Doc. – Imagino que é apenar porque já cheguei longe demais, e agora sinto que preciso ir ainda mais longe. – É? E para onde? – Não estou certa Algum lugar que parecerá como se eu tivesse chegado aonde supostamente devesse ir, acho. – A maior parte da vida é a ida... não o chegar lá, pois quando alguém chega aonde supostamente estava indo, inevitavelmente sente a necessidade de ir a algum outro lugar. É tudo aventura. Seja feliz, o melhor está por vir. De repente, a princesa percebeu o som abafado de algum tipo de música. Ouviu atentamente, tentando imaginar de onde vinha, depois olhou desconfiada para sua mochila, que jazia ao chão, perto do trono. – Vá em frente, querida – disse o mágico. Quando ela abriu a mochila as notas ásperas e tilintantes de uma flauta se espalharam no ar. Perplexa quanto ao que havia acontecido com ―Algum dia meu príncipe chegará―, ela estendeu o braço e pegou sua pequena caixa de música. Mas viu que não era a sua caixa de música, afinal! Ela só tinha uma figura no topo, e que parecia com ela. Oscilava ao som da música, girando graciosamente, se abaixando e levantando, jogando os braços para o alto, numa dança animada que parecia vir de algum lugar bem fundo no interior da caixa. De repente, eram duas flautas. A seguir, um Piccolo. A figurinha girava cada vez mais e erguia o braço mais alto e baixava o corpo, como se a sua dança estivesse impregnada com o pot-pourri de sons vívidos espiralando em torno dela. Clarinetes se juntaram, e a música ficou mais forte e plena. A figura pareceu ganhar vida enquanto valsava alegremente e rodopiava com abandono no topo da caixa de música. 141

– O que está havendo aqui? – perguntou a princesa, presumindo que fosse um dos truques habituais do mágico. O rosto do mágico estava radiante. – Continue olhando, meu bem. A música ficou mais plena ainda, e mais doce, quando entraram violinos. A dança apaixonada da figura deixou a princesa hipnotizada. A música continuou a aumentar de intensidade. Crescia dentro dela, mais e mais, até que finalmente ela e a música se tornaram uma só. De olhos arregalados, ela olhou para o mágico, – Ainda não acabou. Vai ficar melhor ainda – disse o mágico, erguendo a voz acima da sinfonia de sons. A princesa estava assombrada. – Melhor! Como poderia ficar melhor do que isso? – Você verá. Olhe de novo. Quando ela o fez, para seu espanto, a figurinha da princesa dançava nos braços de um belo príncipe. Eloqüentemente, eles rodopiavam, se abaixaram e deslizaram num uníssono perfeito. Cellos se juntaram e a dança continuou a crescer. O pequeno casal evoluía cada vez mais rápido no topo da caixa de música. Quanto mais instrumentos se juntavam, mais a música ficava mais plena, mais rica e mais forte, até que toda a rotunda reverberou com o som dos tambores e os painéis de vidro chanfrado vibraram com o fragor dos címbalos. O pequeno casal real, rindo descontroladamente, se abrigava um nos braços do outro. Espantada, a princesa olhou de volta para o mágico, que estava empertigado, nitidamente orgulhoso de sua obra. – É um pequeno presente de iniciação – disse. – Um lembrete do seu novo conto de fadas. A princesa pulou de pé e apertou a caixa de música contra o peito. – Adorei! Vou tocá-la sem parar. A cada vez me recordará de que estou inteira e de que o amor no meu coração criará amor em minha vida, e que tudo será como tinha de ser, quando tiver de ser, pois tudo acontece como tem de acontecer e no seu devido tempo – declarou como se soubesse disso a vida toda. O mágico sentiu-se altamente gratificado com a resposta da princesa. – Você aprendeu bem suas lições, querida. – Obrigada – replicou a princesa, inflando de orgulho. – Agora só tenho de vivenciá-las. – Sim! – disse o mágico. – Sim! – repetiu Doc. – E o farei... à perfeição. – À perfeição? – perguntou o mágico, descrente. – À perfeição? – perguntou Doc com óbvia preocupação. Mas a princesa nada disse. O único som foi uma súbita agitação de gorjeios e trinados. Ela ergueu as sobrancelhas, tentando com todo o seu esforço prender um sorriso que suplicava para aflorar. 142

– Sim, à perfeição, tão perfeitamente como toda princesa perfeitamente imperfeita pode vivenciá-las! – disse ela por fim, explodindo em riso. Doc e o mágico também irromperam em risos. Os pássaros contribuíram com seus arrulhos e gorjeios, bater de asas e esvoaçares. Todos eles envolveram a princesa num anel de alegria. Passado algum tempo, o mágico disse: – É chegada a hora de você partir. – Agora? Mas estou me divertindo tanto! – Sim, meu bem, agora – replicou o mágico. – Mas para onde irei? – indagou a princesa, lembrando-se de ter feito a mesma pergunta quando abandonou o príncipe e embrenhou-se na trilha. E percebendo que, embora seu coração estivesse batendo como fizera tanto tempo atrás, desta vez sentia mais excitação do que medo. – Você continuará na Trilha da Verdade – respondeu Doc. – Descerá do outro lado da montanha, para a aventura que a espera. – A aventura do esclarecimento. Não é, Doc? – Sim, princesa, pois sempre há novas trilhas a desbravar e novas canções para cantar. Ah, isso me faz lembrar... Temos um musical especial de despedida em preparação, ao ar livre. – Parece maravilhoso – replicou a princesa, pegando sua mochila e recolocando a caixa de música. Depois, ela retirou os passarogramas do pedestal onde Doc os colocara e jogou-os cuidadosamente na mochila, junto com o Pergaminho Sagrado, que o mágico havia enrolado e entregado a ela. – Posso levar isso também? – perguntou ela, pegando o espelho. – Claro – replicou o mágico. – Eu o conjurei especialmente para você, querida... com as rosas e tudo. – A princesa enfiou o espelho na echarpe de lã que abrigava seus sapatinhos de cristal e fechou a mochila. Ombro a ombro, ela e o mágico foram caminhando pela rotunda, com Doc seguindo ao lado e os pássaros se entrecruzando felizes atrás deles. Passaram pelo vestíbulo, pelo pátio, e saíram através dos portões brancos de ferro batido para o sol de fim de tarde. – Muito obrigada por tudo! – disse a princesa, pousando sua mochila e abraçando Doc e o mágico, sem vontade de partir. – Algum dia os verei de novo? – perguntou esperançosa. Mas antes que qualquer outro pudesse responder, ela lembrou: - Eu sei – disse, recordando as palavras de despedida de Dolly: ―Aqueles que você leva no seu coração estão sempre por perto.‖ Extasiado, Doc tirou seu banjo e o chapéu de palha de sua valise. Pôs o chapéu na cabeça e começou a tocar e cantar: Enquanto viaja para lá e para cá, Pouco importa onde você está. Lembre-se: seu coração nunca se engana, Conto de fadas de fato podem se tornar realidade. 143

Um coro de vozes em júbilo se juntou. A princesa ouviu por um momento, depois tornou a abraçar Doc e o mágico. Pegou sua mochila e olhou com ternura para o adorável grupo a sua frente. Ela queria memorizar o momento – tal como todos o viam e tal como ela o sentia. – Mantenham a música tocando – disse ela numa voz tão melodiosa quanto a canção mais doce jamais ouvida. – Manter a música tocando será tarefa inteiramente sua agora, princesa – replicou Doc, batendo suas asas no ar acima dela. – Vá em frente e viva sua verdade mais elevada, princesa. – Eu o farei – replicou ela com convicção, o belo anel de luz a sua volta reluzindo mais brilhante do que nunca. Ela voltou-se e se afastou do topo da montanha. Sua empolgação a respeito da maravilhosa vida nova que ia começar aumentava a cada passo que dava. Mesmo assim um toque de tristeza continuava atado a ela. Incerta sobre se e quando iria rever seus adorados amigos, ela parou e voltou-se para acenar em despedida. Para seu espanto, tudo e todos se tinham ido! O templo, Doc, o mágico e os pássaros – tudo sumira! Como poderia ser? Ela esfregou os olhos em descrença e olhou de novo. Não havia nada, afinal. Ela tomou uma calma e profunda inspiração, depois outra. Gradualmente, tomou consciência de um sussurro distante e familiar, ecoando suavemente de uma montanha para outra. Ouviu com atenção. – Acredite... acredite... acredite... – dizia. Naquele exato momento – ainda que debilmente – uma nova versão da canção de Doc, ―Conto de fadas de fato podem se tornar realidade‖, começou a tocar. De inicio, a princesa ficou perplexa. Passou-se um momento. Depois aquilo a atingiu como um relâmpago. A música vinha de dentro de si mesma! Com um sorriso nos lábios, uma mola nos pés e uma canção no coração, ela desceu em meio a um glorioso crepúsculo de mil cores. O Começo

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Uma palavra da Autora

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Cara amiga, Como uma mulher que passou anos convivendo com o sofrimento e emergiu feliz, mais forte e mais sábia, eu a estimulo a seguir a Trilha da Verdade. Ela conduzirá você a um lugar pacífico e feliz onde cada dia será como uma dádiva, e o seu riso será muito mais farto que as lágrimas. Sou grata a minha própria jornada para a escuridão por ter me conduzido àquele lugar pacífico e feliz, e extraio grande satisfação em lançar luz ao longo do caminho – para aqueles que desejarem segui-lo –, através de palestras e escritos e, como editora da Wilshire Book Company, por procurar e tornar acessíveis livros singulares que ensinem, inspirem e habilitem. Os meus preferidos são histórias alegóricas que abordem o significado da vida e do amor, e ofereçam insights para a pessoa compreender, aceitar e amar a si mesma e o universo, tal como A princesa que acreditava em conto de fadas e um livro poderoso e muito especial de Robert Fisher, intitulado O cavaleiro preso na armadura.* Estou empolgada por ter esta oportunidade de apresentar você ao cavaleiro. Ele a ajudará ao longo de sua jornada e terá grande apelo para os homens de sua vida, que se identificarão com ele e aprenderão lições inestimáveis com sua história. O manuscrito original desta deliciosa e perspicaz fábula destacou-se entre os milhares que recebemos a cada ano. Tive um interesse especial nele, que veio a se tornar um dos títulos mais vendidos ao Wilshire. Qualquer um que já tenha se defrontado com o significado da vida e do amor descobrirá a profunda sabedoria e a verdade inseridas na história do cavaleiro. Eu a convido a juntar-se a ele enquanto enfrenta um dilema de mudança de vida, ao descobrir que sua brilhante armadura não pode ser removida. Enquanto procura um meio de se libertar, ele recebe orientação do sábio Merlin o Mágico, que estimula o cavaleiro a embarcar na mais difícil cruzada da sua vida. Com a ajuda de uma intuitiva criaturinha chamada Esquilo e de uma pomba leal e esperta chamada Rebecca, o cavaleiro percorre a Trilha da Verdade, onde conhece o seu verdadeiro ser pela primeira vez. Enquanto vai passando pelos Castelos do Silêncio, Conhecimento, e Vontade e Ousadia, ele defronta-se com as Verdades universais que regem sua vida – e a nossa. A jornada do cavaleiro reflete a nossa própria jornada – repleta de esperança e desespero, crença e desilusão, felicidade e tristeza. Suas percepções se tornam as nossas enquanto o seguimos ao longo desta intrigante aventura de autodescoberta. O cavaleiro preso na armadura é mais que um livro. É uma experiência que irá expandir sua mente, tocar seu coração e nutrir sua alma.

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A PRINCESA QUE ACREDITAVA EM CONTO DE FADAS

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