DocGo.Net-Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel

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ninguÉm escreve ao coronel gabriel garcÍa mÁrquez colecÇÃo novis

biblioteca visÃo - 10 digitalização e arranjo

agostinho costa com a novela ningum escreve ao coronel! gabriel garcia m"rquez constr#i um universo rico em emoç$es humanas! atravs de %ersonagens inesquec&veis' o coronel e a sua mulher %erderam um (ilho! recebendo como herança um valioso galo de combate que se torna (onte de rendimento! mas tambm uma des%esa quase insustent"vel' na %obreza! vivendo a crdito! o coronel es%era todas as se)tas-(eiras! durante quinze anos! a chegada da %ensão %rometida %or um governo h" muito derrubado' esta obra anteci%a as qualidades liter"rias que culminam no romance cem anos de solidão' em 1*+,! garcia m"rquez recebeu o %rmio nobel da literatura'

t&tulo ningum escreve ao coronel t&tulo srcinal el coronel no ti.nne quien le escriba autor gabriel garc&a m"rquez

tradução jos colaço barreiros

tradução cedida %or quetzal editores 1*/1

bibliote)! s' l' %ara esta edição

abrilcontrol jornal im%ressão março de ,000

abril control jornaledi%ress

o coronel desta%ou a cai)a do ca( e veri(icou que não havia mais que uma colherinha' tirou a %anela do (ogão! des%ejou metade da "gua no chão de terra! e com uma (aca ras%ou o interior da cai)a %ara dentro da %anela at se soltarem as ltimas ras%as de %# de ca( misturadas com (errugem da lata' ao es%erar que (ervesse a in(usão! sentado junto do (ogareiro de barro numa atitude de con(iada e inocente e)%ectativa! o coronel teve a sensação de que lhe nasciam (ungos e l&rios venenosos nas tri%as' era outubro' uma manhã di(&cil de su%ortar! mesmo %ara um homem como ele que j" sobrevivera a tantas manhãs como esta' durante cinquenta e seis anos - desde que terminou a ltima guerra civil - o coronel não (izera outra coisa senão es%erar' outubro era uma das %oucas coisas que chegavam' a mulher ergueu o mosquiteiro quando o viu entrar no quarto com o ca(' nessa noite tivera uma crise de asma e agora %assava %or um estado de tor%or' mas levantou-se %ara receber a )&cara' - e tu - disse' - j" tomei - mentiu o coronel' - ainda havia uma colherada grande' / nesse momento! os sinos começaram a dobrar a (inados' o coronel esquecera-se do enterro' enquanto a mulher tomava o ca(! des%rendeu a cama de rede %or uma das %ontas e enrolou-a %ela outra! %ara tr"s da %orta' a mulher %ensou no morto'

- nasceu em 1*,, - disse ela' - e)actamente um m2s de%ois do nosso (ilho' a sete de abril' continuou a sorver o ca( nos intervalos da sua res%iração o(egante' era uma mulher constitu&da a%enas de cartilagens brancas %or cima de uma es%inha dorsal arqueada e in(le)&vel' as %erturbaç$es res%irat#rias obrigavam-na a %erguntar a(irmando' quando terminou o ca( ainda estava a %ensar no morto' - deve ser horr&vel estar enterrado em outubro - disse' mas o marido não lhe %restou atenção' abriu a janela' outubro j" se tinha instalado no %"tio' ao contem%lar a vegetação que brotava em verdes intensos e os minsculos buracos das minhocas no barro! o coronel voltou a sentir o m2s aziago nos intestinos' - tenho os ossos hmidos - disse' - É inverno - res%ondeu a mulher' - desde que começou a chover que ando a dizer-te que durmas com as meias calçadas' - h" uma semana que durmo com elas' chovia %ouco mas sem %ausas' o coronel teria %re(erido enrolar-se numa manta de lã e meter-se outra vez na rede' mas a insist2ncia dos sinos rachados recordou-lhe o enterro' 3 - É outubro - murmurou! e caminhou %ara o meio do quarto' s# então se lembrou do galo atado ao % da cama' era um galo de combate' de%ois de ir %4r a )&cara na cozinha deu corda na sala a um rel#gio de %2ndulo assente numa %eanha de madeira lavrada' ao contr"rio do quarto! demasiado estreito %ara a res%iração de uma asm"tica! a sala era am%la! com quatro cadeiras de baloiço de (ibra 5 volta de uma mesinha com uma toalha e um gato de gesso' na %arede o%osta 5 do rel#gio! o quadro de uma mulher vestida de tule rodeada de cu%idos numa barca coberta de rosas' eram sete e vinte quando acabou de dar corda ao rel#gio' a seguir levou o galo %ara a cozinha! atou-o a um % do (ogareiro! mudou a "gua da gamela e %4s-lhe ao lado um %unhado de milho' entrou um gru%o de crianças %ela cerca sem cancela' sentaram-se em volta do galo! a contem%l"-lo em sil2ncio' - não olhem mais %ara esse animal - disse o coronel' - os galos gastam-se de tanto olharem %ara eles' as crianças não se me)eram' um dos ra%azes iniciou na harm#nica os acordes de uma canção em voga' - não toques hoje - disse-lhe o coronel' - h" morto na terra' - o ra%az guardou o instrumento no bolso das calças e o coronel (oi ao quarto vestir-se %ara o enterro'

+ a rou%a branca estava %or %assar a (erro %or causa da asma da mulher! de maneira que o coronel teve de se decidir %elo velho (ato %reto que de%ois do casamento s# usara em ocasi$es

muito es%eciais' custou-lhe um bom bocado a encontr"-lo no (undo do ba! embrulhado em jornais e %reservado das traças com bolinhas de na(talina' deitada na cama! a mulher continuava a %ensar no morto' - j" se deve ter encontrado com agust&n - disse ela' talvez não lhe conte a situação em que (ic"mos de%ois da morte dele' - a esta hora devem estar a discutir galos - comentou o coronel' encontrou no ba um cha%u de chuva enorme e antigo' ganhara-o a mulher numa t4mbola %ol&tica destinada a angariar (undos %ara o %artido do coronel' nessa mesma noite assistiram a um es%ect"culo ao ar livre que não (oi interrom%ido a%esar da chuva' o coronel! a es%osa e o (ilho agust&n - que na altura tinha oito anos - %resenciaram o es%ect"culo at ao (im! sentados debai)o do cha%u de chuva' agora agust&n estava morto e o tecido de cetim brilhante tinha sido destru&do %elas traças' - olha o que resta do nosso cha%u de chuva de %alhaço de circo - disse o coronel! usando uma antiga (rase sua' abriu %or cima da cabeça um misterioso sistema de varetas met"licas' - agora s# serve %ara contar as estrelas' sorriu' mas a mulher não se deu ao trabalho de olhar %ara o cha%u de chuva' - est" tudo assim - murmurou' - estamos a a%odrecer vivos' * - e (echou os olhos %ara %ensar com mais intensidade no morto' de%ois de se barbear %elo tacto - %ois j" não tinha es%elho h" muito tem%o -! o coronel vestiu-se em sil2ncio' as calças! quase tão justas nas %ernas como as ceroulas com%ridas! a%ertadas nos tornozelos com n#s corrediços! seguravam-se na cintura com duas %resilhas do mesmo tecido que %assavam atravs de duas (ivelas douradas cosidas 5 altura dos rins' não usava cinto' a camisa cor de cartão antigo! e dura como o cartão! (echava-se com um botão de cobre que servia ao mesmo tem%o %ara segurar o colarinho %ostiço' mas o colarinho estava roto! de maneira que o coronel renunciou 5 gravata' (azia cada coisa como se (osse um acto transcendente' os ossos das suas mãos estavam cobertos %or uma %ele brilhante e esticada! manchada das be)igas assim como a %ele do %escoço' antes de %4r os botins de verniz ras%ou o barro incrustrado na costura' a mulher viu-o nesse instante! vestido como no dia do casamento' s# então veri(icou at que %onto o marido tinha envelhecido' - est"s arranjado como %ara um acontecimento - disse' - este enterro  um acontecimento - re%licou o coronel' - É o %rimeiro de morte natural que temos desde h" muitos anos' %arou de chover de%ois das nove' o coronel dis%unha-se a sair quando a mulher o agarrou %ela manga do casaco' 10

- %enteia-te - disse ela' ele tentou dominar com um %ente de corno as cerdas cor de aço' mas (oi um es(orço intil' - devo %arecer um %a%agaio - comentou' a mulher e)aminou-o' %ensou que não' o coronel não %arecia nenhum %a%agaio' era um homem seco! de ossos s#lidos e articulados que nem com %ara(uso e %orca' era a vitalidade dos seus olhos que (azia com que não %arecesse conservado em (ormol' - assim est"s bem - admitiu ela! e acrescentou quando o marido j" abandonava o quarto - %ergunta ao doutor se nesta casa lhe deitamos "gua quente em cima' viviam 5 sa&da da %ovoação! numa casa de tecto de %alma com %aredes de caliça meio ca&da' a humidade continuava! mas j" não chovia' o coronel desceu at 5 %raça %or uma rua de casas amontoadas' ao desembocar na rua central teve um estremecimento' at onde alcançava a sua vista! a terra estava ata%etada de (lores' sentadas 5 %orta das casas! as mulheres de %reto es%eravam o enterro' na %raça começou outra vez a chuviscar' o dono do salão de bilhar viu o coronel da %orta do estabelecimento e gritou-lhe com os braços abertos - coronel! es%ere! que lhe em%resto um guarda-chuva' o coronel res%ondeu sem virar a cabeça' - obrigado! vou bem assim'

11 ainda não tinha sa&do o enterro' os homens - vestidos de branco com gravatas %retas - conversavam 5 %orta debai)o dos cha%us de chuva' um deles viu o coronel a saltar %or cima das %oças de "gua da %raça' - meta-se aqui! com%adre - gritou' (ez es%aço debai)o do cha%u de chuva' - obrigado! com%adre - disse o coronel' mas não aceitou o convite' entrou directamente na casa %ara dar os %2sames 5 mãe do morto' a %rimeira coisa que sentiu (oi o cheiro de muitas (lores di(erentes' de%ois começou o calor' o coronel tentou abrir caminho atravs da multidão bloqueada na alcova' mas algum lhe %4s uma mão no ombro! em%urrando-o %ara o (undo do quarto %elo meio de uma galeria de rostos %er%le)os at ao lugar em que se encontravam - %ro(undas e dilatadas - as (ossas nasais do morto' ali estava a mãe! a(astando as moscas do atade com um leque de %almas entrançadas' outras duas mulheres vestidas de %reto contem%lavam o cad"ver com a mesma e)%ressão com que se olha %ara a corrente de um rio' imediatamente começou um vozear no (undo do quarto' o coronel arredou uma mulher! encontrou de %er(il a mãe do morto e %4s-lhe uma mão no ombro' cerrou os dentes' - os meus sentidos %2sames - disse' ela não voltou a cabeça' abriu a boca e lançou um guincho' o coronel sobressaltou-se' sentiu-se em%urrado contra o cad"ver

%or uma massa in(orme que irrom%eu num vibrante alarido' %rocurou a%oio com as mãos! mas não encontrou a %arede' 1,

16

havia outros cor%os no lugar dela' algum lhe disse ao ouvido! devagar! com uma voz muito terna - cuidado! coronel' - virou a cabeça e de%arou-se com o morto' mas não o reconheceu %orque era enrgico e activo e agora %arecia tão desconcertado como ele! envolvido em %anos brancos e com o cornetim nas mãos' quando levantou a cabeça 5 %rocura de ar %or cima dos gritos! viu o cai)ão aos tombos em direcção 5 %orta! ta%ado %or uma encosta de (lores que se des%edaçavam contra as %aredes' suou' do&am-lhe as articulaç$es' um momento de%ois soube que estava na rua %orque o chuvisco lhe (eriu as %"l%ebras e algum o agarrou %elo braço e lhe disse - des%ache-se! com%adre! estava 5 sua es%era' era d' sabas! o %adrinho do seu (ilho morto! o nico dirigente do seu %artido que esca%ara 5 %erseguição %ol&tica e que continuava a viver na terra' - obrigado! com%adre - disse o coronel! e caminhou em sil2ncio debai)o do guarda-chuva' a banda iniciou a marcha (nebre' o coronel deu %ela (alta de um metal e %ela %rimeira vez teve a certeza de que o morto estava morto' - coitado - murmurou' d' sabas %igarreou' segurava o guarda-chuva com a mão esquerda! com o cabo quase 5 altura da cabeça %ois era mais bai)o que o coronel' os homens começaram a conversar quando o cortejo abandonou a %raça' d' sabas virou então %ara o coronel o rosto desconsolado! e disse - com%adre! então o galo7 - o galo l" est" - res%ondeu o coronel' nesse instante ouviu-se um grito - aonde vão com esse morto7 o coronel levantou os olhos' viu o alcaide na varanda do quartel em atitude de discurso' estava em ceroulas de (lanela! com as bochechas %or barbear muito inchadas' os msicos sus%enderam a marcha (nebre' um momento de%ois! o coronel reconheceu a voz do %adre 8ngel a conversar aos gritos com o alcaide' deci(rou o di"logo atravs do cre%itar da "gua sobre os cha%us de chuva' - então7 - %erguntou d' sabas' - então nada - res%ondeu o coronel' - o enterro não %ode %assar 5 (rente do quartel da %ol&cia' - tinha-me esquecido - e)clamou d' sabas' - esqueço-me sem%re de que estamos em estado de s&tio' - mas isto não  uma insurreição - disse o coronel' - É um %obre msico morto' o cortejo mudou de sentido' nos bairros bai)os! as mulheres viram-no %assar roendo as unhas em sil2ncio' mas de%ois sa&ram %ara o meio da rua e lançaram gritos de louvor! de gratidão e de des%edida! como se julgassem que o morto as ouvia dentro do atade' o coronel sentiu-se mal no cemitrio' quando d' sabas o em%urrou %ara o muro %ara dar %assagem aos homens que

trans%ortavam o morto! voltou %ara ele a sua cara sorridente9 mas de%arou-se com um rosto duro' 1:

- o que tem! com%adre7 - %erguntou' o coronel sus%irou' - É outubro! com%adre' regressaram %ela mesma rua' tinha %arado de chover' o cu (icou %ro(undo! de um azul intenso' j" não chove mais! %ensou o coronel! e sentiu-se melhor! mas continuou absorto' d' sabas interrom%eu-o' - com%adre! v" ao mdico' - não estou doente - disse o coronel' - o que acontece  que em outubro me sinto sem%re como se tivesse bichos nas tri%as' - ah - (ez d' sabas' e des%ediu-se 5 %orta da sua casa! um edi(&cio novo! de dois %isos! com janelas de (erro (orjado' o coronel dirigiu-se %ara a sua! ansioso %or largar o traje de cerim#nias' voltou a sair um momento de%ois %ara com%rar na loja da esquina uma lata de ca( e meia libra de milho %ara o galo'

; ; ; o coronel (oi tratar do galo! a%esar de ser quinta-(eira e ter %re(erido (icar na rede' não %arou de chover durante v"rios dias' no decorrer da semana rebentou a (lora das suas v&sceras' %assou algumas noites sem dormir! atormentado %elos silvos %ulmonares da asm"tica' mas outubro concedeu uma trgua na se)ta-(eira 5 tarde' os com%anheiros de agust&n - mestres al(aiates como ele tinha sido! e (an"ticos dos combates de galos - a%roveitaram a ocasião %ara e)aminar o galo' estava em (orma' o coronel voltou %ara o quarto quando (icou sozinho em casa com a mulher' ela reagira' - o que dizem eles - %erguntou' - entusiasmados - in(ormou o coronel' - estão todos a juntar dinheiro %ara a%ostarem no galo' - não sei o que viram eles nesse galo tão (eio - disse a mulher' - c" %or mim acho-o um (en#meno tem a cabeça muito %equenina %ara as %atas' - eles dizem que  o melhor do de%artamento - re%licou o coronel' - vale uns cinquenta %esos' 1/ teve a certeza de que este argumento justi(icava a sua determinação em conservar o galo! herança do (ilho varado de lado a lado nove meses antes no %avilhão de lutas de galos! %or distribuir %ro%aganda clandestina' - É uma ilusão que custa caro - disse a mulher' - quando se

acabar o milho! vamos ter de aliment"-lo com os nossos (&gados' - o coronel demorou muito tem%o a %ensar enquanto %rocurava as calças de cotim no rou%eiro' - É %or %oucos meses - disse ele' - j" se sabe de certeza que vai haver combates em janeiro' de%ois %odemos vend2-lo %or melhor %reço' as calças estavam %or engomar' a mulher %assou-as em cima do (ogão com duas %lacas de (erro aquecidas nas brasas' - %ara qu2 tanta %ressa em ir 5 rua - %erguntou' - o correio' - tinha-me esquecido de que hoje  se)ta-(eira - comentou ela de volta %ara o quarto' o coronel estava vestido mas sem as calças' ela observou-lhe os sa%atos' - esses sa%atos j" s# estão bons %ara deitar (ora - disse' %$e outra vez os botins de verniz' o coronel sentiu-se desolado' - %arecem sa%atos de #r(ão - %rotestou' - sem%re que os calço! sinto-me (ugido de um asilo' - n#s somos #r(ãos do nosso (ilho - disse a mulher' tambm desta vez o %ersuadiu' o coronel dirigiu-se %ara o cais antes que %al%itassem as lanchas' botins de verniz! calças brancas sem cinto e a camisa sem o colarinho %ostiço! 13 (echada em cima com o botão de cobre' observou as manobras das lanchas da %orta do armazm do s&rio moiss' os viajantes desceram! esgotados ao (im de oito horas sem mudarem de %osição' os mesmos de sem%re vendedores ambulantes e a gente da terra que tinha sa&do na semana anterior e regressava 5 rotina' a ltima (oi a lancha do correio' o coronel viu-a atracar com um angustiante con(rangimento' no tejadilho! amarrado aos tubos do va%or e %rotegido com um oleado! descobriu o saco do correio' quinze anos de es%era haviam agudizado a sua intuição' o galo havia agudizado a sua ansiedade' a %artir do instante em que o administrador dos correios subiu 5 lancha! desatou o saco e o %4s ao ombro! o coronel não tirou os olhos de cima dele' seguiu-o %ela rua %aralela ao cais! um labirinto de armazns e barracas com mercadorias coloridas em e)%osição' sem%re que o (azia! o coronel sentia uma ansiedade muito di(erente mas tão constrangedora como o terror' o mdico es%erava os jornais no %osto do correio' - a minha mulher manda %erguntar-lhe se l" em casa lhe deitaram "gua quente! doutor - disse-lhe o coronel' era um mdico jovem com o cr o coronel e)%4s a sua inquietação antes de revelar o %ro%#sito da visita' - eu avisei-o logo de que não seria de um dia %ara o outro disse o advogado numa %ausa do coronel' estava amar(anhado %elo calor' (orçou %ara tr"s as costas da cadeira e abanou-se com um cartão de %ro%aganda' - os meus agentes escrevem-me com (requ2ncia dizendo que não devemos deses%erar' - É a mesma coisa desde h" quinze anos - re%licou o coronel' - isto começa a (icar %arecido com a hist#ria do galo ca%ão' o advogado (ez uma descrição muito gr"(ica dos labirintos administrativos' a cadeira era demasiado estreita %ara as suas n"degas outonais' - h" quinze anos era mais ("cil - disse ele' - nessa altura e)istia a associação munici%al de veteranos com%osta %or elementos dos dois %artidos' - encheu os %ulm$es com um ar abrasador e %ronunciou a (rase como se acabasse de a inventar - a união (az a (orça' - neste caso não (ez - disse o coronel! a%ercebendo-se %ela %rimeira vez da sua solidão' - todos os meus com%anheiros morreram 5 es%era do correio' o advogado não se alterou' - a lei (oi %romulgada demasiado tarde - disse' - nem todos tiveram a sua sorte! que (oi coronel aos vinte anos' alm disso! não se incluiu uma verba es%ecial! de maneira que o governo tem sido (orçado a (azer remendos no orçamento' 6/ sem%re a mesma hist#ria' sem%re que a ouvia! o coronel sentia um surdo ressentimento' - isto não  uma esmola - disse ele' - não se trata de nos (azer um (avor' n#s demos couro e cabelo %ara salvar a re%blica' - o advogado abriu os braços' - assim ! coronel!- res%ondeu' - a ingratidão humana não tem limites' tambm esta hist#ria j" o coronel conhecia' tinha começado a ouvi-la no dia seguinte ao do tratado de neerl/ - eu creio que  um animal com %s de cabra' - É %oss&vel - admitiu o coronel' - =s vezes sucedem coisas muito estranhas' %ensou no administrador dos correios a saltar %ara a lancha com um im%erme"vel de oleado' havia %assado um m2s desde que mudara de advogado' tinha o direito de es%erar uma res%osta' a mulher de d' sabas continuou a (alar da morte at que re%arou na e)%ressão absorta do coronel' - com%adre - disse ela' - deve estar com alguma %reocu%ação' o coronel recu%erou o seu cor%o' - assim ! comadre - mentiu' - estou a %ensar que j" são cinco horas e que ainda não se deu a injecção ao galo' ela (icou %er%le)a' - uma injecção %ara um galo como se (osse um ser humano7 gritou' - isso  um sacrilgio' d' sabas não aguentou mais' levantou o rosto congestionado' - (echa a boca um minuto - ordenou 5 mulher' ela com e(eito levou as mãos 5 boca' - h" meia hora que est"s a incomodar o meu com%adre com os teus dis%arates' - de maneira nenhuma - %rotestou o coronel' a mulher saiu batendo com a %orta' d' sabas en)ugou o %escoço com um lenço im%regnado de lavanda' o coronel

a%ro)imou-se da janela' chovia im%lacavelmente' uma galinha de grandes %atas amarelas atravessou a %raça' >3

- É verdade que estão a injectar o galo7 - É verdade - res%ondeu o coronel' - os treinos começam na semana que vem' - É uma temeridade - comentou d' sabas' - voc2 j" não est" %ara essas coisas' - de acordo - re%licou o coronel' - mas isso não  razão %ara lhe torcer o %escoço' - É uma temeridade idiota - disse d' sabas! dirigindo-se %ara a janela' o coronel notou nele uma res%iração de (ole' os olhos do com%adre (aziam-lhe %iedade' - siga o meu conselho! com%adre - continuou d' sabas' venda esse galo antes que seja demasiado tarde' - nunca  demasiado tarde %ara nada - retorquiu o coronel' - não seja teimoso - insistiu d' sabas' - É um neg#cio em que ganha %or dois lados' %or um! tira de cima de si essa dor de cabeça! e %elo outro mete novecentos %esos no bolso' - novecentos %esos@ - e)clamou o coronel' - novecentos %esos' o coronel so%esou a quantia' - cr2 mesmo que irão dar esse dinheirão %elo galo7 - qual creio7 - re%licou d' sabas' - tenho a certeza absoluta' era a quantia mais alta que o coronel j" havia tido na cabeça de%ois de ter restitu&do os (undos da revolução' >+ quando saiu do escrit#rio de d' sabas sentia uma (orte contorção nas tri%as! mas tinha a consci2ncia de que desta vez não era %or causa do tem%o' no correio (oi ter directamente com o administrador' - estou 5 es%era de uma carta urgente - disse ele' - É de avião' o administrador %rocurou nos com%artimentos classi(icados' quando acabou de ler re%4s as cartas na letra corres%ondente! mas não disse nada' sacudiu as %almas das mãos e dirigiu ao coronel um olhar signi(icativo' - devia chegar hoje de certeza - disse o coronel' o administrador encolheu os ombros' - a nica coisa que chega de certeza  a morte! coronel' a mulher recebeu-o com um %rato de %a%as de milho' ele comeu-as em sil2ncio com longas %ausas %ara %ensar entre cada colherada' sentada 5 (rente dele! a mulher %ercebeu que alguma coisa tinha mudado em casa' - o que tens - %erguntou' - estou a %ensar no (uncion"rio de quem de%ende a %ensão mentiu o coronel' - daqui a cinquenta anos n#s estaremos muito descansados debai)o da terra enquanto esse %obre homem

agonizar" todas as se)tas-(eiras 5 es%era da sua re(orma' - mau sintoma - disse a mulher' - isso quer dizer que j" começas a resignar-te' - continuou a comer as %a%as' mas um instante de%ois a%ercebeu-se de que o marido %ermanecia ausente'

>* - agora o que deves (azer  a%roveitar as %a%as' - estão muito boas - disse o coronel' - donde vieram7 - do galo - res%ondeu a mulher' - os ra%azes trou)eram-lhe tanto milho que ele decidiu re%arti-lo connosco' É assim a vida' - assim  - sus%irou o coronel' - a vida  a coisa melhor que j" se inventou' olhou %ara o galo atado ao % do (ogareiro e desta vez %areceu-lhe um animal di(erente' tambm a mulher olhou %ara ele' - esta tarde tive de correr os garotos com um %au - disse ela' - trou)eram uma galinha velha %ara a cruzarem com o galo' - não  a %rimeira vez - comentou o coronel' - É o mesmo que (aziam nas aldeias com o coronel aureliano buend&a' levavam-lhe ra%arigas %ara cruzarem' ela celebrou a ocorr2ncia' o galo %roduziu um som gutural que chegou at ao corredor como uma surda conversação humana' - =s vezes %enso que este animal vai (alar - disse a mulher' o coronel voltou a olhar %ara ele' - É um galo que  dinheiro em cai)a - disse ele' (ez c"lculos enquanto sorvia uma colherada de %a%as' - vai dar-nos de comer durante tr2s anos' - as ilus$es não se comem - res%ondeu ela' - não se comem! mas alimentam - retorquiu o coronel' - são uma coisa assim como as %astilhas milagrosas do meu com%adre sabas' /0

dormiu mal essa noite! tentando riscar nmeros de cabeça' no dia seguinte ao almoço! a mulher serviu dois %ratos de %a%as de milho e consumiu o seu de cabeça bai)a! sem %ronunciar %alavra' o coronel sentiu-se contagiado de um humor sombrio' - o que tens7 - nada - res%ondeu a mulher' ele teve a im%ressão de que agora lhe calhara a ela a vez de mentir' tentou consol"-la' mas a mulher insistiu' - não  nada de es%ecial - e)clamou' - estou a %ensar que o morto j" vai (azer dois meses e ainda não dei os %2sames' %or isso (oi d"-los nessa noite' o coronel acom%anhou-a a casa do morto e a seguir dirigiu-se ao salão de cinema atra&do %ela msica dos alti(alantes' sentado 5 %orta do seu gabinete! o %adre 8ngel vigiava a entrada %ara saber quem assistia ao es%ect"culo a%esar das suas doces advert2ncias' a luz a jorros! a msica estridente e os gritos das crianças o%unham

como que uma barreira (&sica' um dos midos ameaçou o coronel com uma esco%eta de %au' - o que  (eito do galo! coronel7 - %erguntou com voz autorit"ria' o coronel levantou as mãos' - est" aqui o galo@ um cartaz a quatro cores ocu%ava totalmente a (achada do salão virgem da meia-noite' era uma mulher em traje de dança com uma %erna descoberta at 5 co)a' /1 o coronel continuou a deambular %elas imediaç$es at que de re%ente eclodiram trov$es e rel0 começou a trabalhar como jornalista em barranquilla! %ro(issão que e)erceu durante anos! dedicando o seu tem%o livre 5 leitura e 5s tertlias liter"rias' incans"vel viajante! vive no m)ico desde 1*/1! com um %ar2ntese de oito anos %assados em barcelona' tem dois (ilhos rodrigo e gonçalo' a revoada B1*>>C! o seu %rimeiro romance! revela uma (orte in(lu2ncia de Dilliam (aulAner9 deste e do seu m&tico condado de EoAna%ataD%ha! garc&a m"rquez tirou a ideia de dar vida a um es%aço (ict&cio que! ba%tizado de macondo! ser" o cen"rio das suas obras mais clebres' a transbordante imaginação deste re%resentante m")imo do realismo m"gico mani(esta-se %oderosamente em ningum escreve ao coronel B1*/1C e nos contos os (unerais da mamã grande B1*/,C e alcança a sua e)%ressão m")ima em cem anos de solidão B1*/3C! romance traduzido em mais de doze l&nguas e galardoado com quatro %rmios internacionais' a sua (orma de combinar a (antasia com a hist#ria numa narrativa de grande (orça e invenção lingu&stica deslumbrou milh$es de leitores e desencadeou o chamado boom da literatura his%ano-americana' em 1*31! a universidade de colmbia concedeu-lhe o doutoramento honoris causa' no ano seguinte! recebeu o %rmio r#mulo gallegos! cuja verba entregou ao mas! %artido venezuelano de esquerda' em 1*+1! (oi distinguido com a legião de honra (rancesa' em 1*+,! garc&a m"rquez recebeu o %rmio nobel da literatura'

obras %rinci%ais romances horas m"s B1*/,C! relato de um n"u(rago B1*30C! olhos de cão azul B1*3:C! o outono do %atriarca B1*3>C! cr#nica de uma morte anunciada B1*+1C! o amor nos tem%os de c#lera B1*+>C! o general no seu labirinto B1*+*C! de amor e outros dem#nios B1**:C! not&cia de um sequestro B1**/C'

contos a incr&vel e triste hist#ria de c
DocGo.Net-Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel

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