JAVIER @BIBLIOTECAVIRTUALBR F. Locks

311 Pages • 83,177 Words • PDF • 1.2 MB
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Copyright © 2019, Francine Locks Todos os direitos reservados. Nenhuma parte dessa obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma, meio eletrônico ou mecânico sem a permissão por escrito do Autor e/ou Editor. (Lei 9.610 de 19/02/1998.) 1ª Edição Capa e Projeto Gráfico: Thais Alves Diagramação Digital: Beka Assis Revisão: Beka Assis Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.

Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo10 Capítulo 11 Capítulo 12 Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo 10 Capítulo 11 Capítulo 12 Capítulo 13 Capítulo 14 Capítulo 15 Capítulo 16

Capítulo 17 Capítulo 18 Capítulo 19 Capítulo 20 Epílogo Biografia da Autora

A todos que se sentem como Javier. Eu vejo cada um de vocês. F. Locks

“Você sabia que pode e deve chorar o filho idealizado, e que depois precisa dar lugar para o novo. Sim, faz-se necessário ir em busca das oportunidades”. Livro “Deixe-me viver plenamente”, da autora Denise Pacheco.

Parte 1

Capítulo 1 Javier, 6 anos Espanha Eu gostava muito do meu pai, da forma como sorria para mim, de como me olhava quando me buscava na escolinha ou das duas batidinhas que dava no sofá quando queria que eu me sentasse ao seu lado no domingo para assistir a um filme. Amava como ele era disposto, como jogava bola comigo depois do trabalho, mesmo que estivesse cansado; como ele costumava trabalhar na carcaça que achou no lixo e que depois de muito trabalho se tornou uma bicicleta. Eu amava o meu pai, amava que ele tivesse pintado de preto os pedais cor de rosa que havia encontrado em um terreno baldio no caminho do trabalho. Amava que ele tivesse cortado tiras e pendurado em cada lado do guidão. Amava como ele havia pintado o quadro dela, com chamas vermelhas, porque ele desenhava bem pra caramba. Amava tudo o que ele criava, amava tudo o que ele construía. Eu o amava, e ele morreu. E eu estava pensando no quanto sentia falta do meu pai, porque naquele momento, Miguel, o novo marido da minha mãe, estava apontando o dedo no meu rosto e me dizendo o quanto eu era imprestável, o quanto de tempo que eu perdia alisando “aquele pedaço de merda”; que aliás, era a única coisa que meu pai me deixou, além da facilidade que eu tinha para desenhar. Eu ergui meus olhos para o homem a minha frente, sentindo vontade de gritar para o céu e suplicar para que meu pai, Pablo, voltasse ou que ao menos ele tocasse o coração — ou a bunda — do homem a minha frente, porque eu não conseguia suportá-lo; e a forma como ele me chamava de menino só me fazia sentir ainda mais falta do que eu mais amava no meu pai, que era exatamente a forma como ele me chamava. 1

Cariño .

Javier, 7 anos Espanha Eu me sentei em um canto da sacada do apartamento da patroa da minha mãe. Desde que me lembrava, ia para o trabalho dela; e desde que lembrava também, era o mesmo lugar, a mesma patroa, as mesmas coisas. Eu adorava Elisabeth, a forma como ela me tratava, como insistia que eu andasse pelos cômodos do apartamento mesmo que minha mãe ameaçasse cortar meus dedos se eu saísse do lugar durante as quatro horas que ela levava limpando. Mas, sobretudo, eu adorava a forma como ela falava o nosso idioma, o espanhol, mesmo sendo uma professora brasileira. Eu sempre amei isso nela, até que minha mãe se casou com Miguel e eu o ouvi falar português pela primeira vez. Ele insistia que eu repetisse as palavras dezenas e dezenas de vezes, exigindo que eu decorasse, assim como fazia com minha mãe, que só falava espanhol. Então eu me perguntava o porquê que ele não havia ficado no Brasil e nos deixado em paz, já que gostava tanto de lá. Eu impulsionei meu quadril, usando os pulsos contra o piso, erguendo meu corpo; então me apoiei na grade branca da sacada, olhando a vista daquele bairro de rico, pensando se talvez um dia eu teria uma vida daquela. Poder tomar um banho quente de verdade, usar um perfume gostoso, ter uma televisão no meu quarto, poder abrir a geladeira e poder escolher o que comer. Opções.

Ao pensar em comida, meu estômago roncou. Fazia pouco tempo que havíamos chegado e eu teria almoçado de verdade se não tivesse deixando a mesa e corrido para os fundos da casa para chorar depois de Miguel encher meus ouvidos com tantas informações desnecessárias sobre o Brasil. Eu desviei os olhos de Beth quando a vi carregando um sanduíche, porque eu sabia que os sanduíches dela eram os melhores não só da Espanha, mas do universo, porque ela colocava queijo e presunto e a última vez que havia comido queijo na minha casa foi quando meu pai ganhou na cesta de fim de ano da empresa que ele trabalhava. — Isso está tão bom, é uma pena que eu esteja cheia e que tenha sobrado um. — Beth disse caminhando pela sala, falando sozinha. — Ah, oi, Javi, não havia visto você aí. — Oi. — respondi, soltando a barra de ferro a minha frente e encarando sua mão. —Você quer? — ela perguntou e eu percorri os olhos pelo cômodo, procurando minha mãe. — Eu... Mamãe não gosta que eu coma na casa dos outros. — Eu não sou qualquer um, Javi. Que insulto! Pensei que fossemos amigos. — Nós somos, Beth. — Então? — Ela esticou a mão e eu aceitei o sanduíche, embora estivesse com medo de levar uma bronca. Imediatamente levei o pão até a boca, mordendo-o pela metade de uma só vez. — Coma devagar se não quiser ficar com dor de barriga. Eu assenti, mastigando sem pressa. — Está uma delícia. — confessei, ao mesmo tempo em que ela enfiava a mão nos meus cabelos, bagunçando-os. — Obrigado. — Não tem de que. — Ela se afastou, encarando o céu nublado. — Oh, oi, Elisabeth, gostaria de falar com você. — Minha mãe me encarou, seus olhos rolando rapidamente até uma das minhas mãos, que ainda

segurava um pequeno pedaço de pão. — Sim, claro. — Ela piscou para mim antes de se virar e sair, caminhando ao lado de minha mãe. Eu engoli o último pedaço, sentindo uma sensação gostosa de saciedade, então caminhei até a cozinha para que pudesse jogar o guardanapo no lixo. — Sim, mas como pedagoga, eu também aconselho que pense em Javier. Ele precisa se adaptar a um novo país, um idioma que ele não domina. — Estou pensando, estou fazendo isso. — Minha mãe suspirou. — Certo. É de suma importância que Javier tenha uma base quando estiver lá. Ele vai precisar de ajuda tanto fora quanto dentro de casa. — Beth continuou. — Sim, eu sei. — Perfeito. Ouvi o barulho da porta se fechando e corri até ela para ouvir a conversa, mesmo sabendo que minha mãe me mataria se me pagasse fazendo aquilo. — Ah, sim, minha irmã é diretora em uma escola muito próxima a esse bairro; posso falar com ela, ver o que pode fazer pelo Javi... seria muito mais fácil se ele fosse com as coisas já encaminhadas. — Oh, muito obrigada por isso, Elisabeth! Eu me afastei da porta, dando dois passos para trás, sentindo meu estômago se contorcer. — Alma? — ouvi Beth chamando pela minha mãe quando a maçaneta girou, então a porta se manteve entreaberta o suficiente para que eu ouvisse o que elas estavam dizendo àquela distância. — Sim... — Por que está indo? — Miguel quer ir. Ele herdou a casa dos pais dele. — Ela fez uma

pausa. — Não precisaremos pagar aluguel. Miguel... sempre Miguel... — Quer um conselho? Minha mãe não gostava de conselhos, sabia disso porque Miguel usava sempre aquela frase e ela sempre torcia o nariz, e ela o torcia porque não sabia dizer não a ele mesmo que quisesse; e eu não entendia como ela podia amá-lo, porque até mesmo eu, sabia que ele era tudo, menos amável. — Por favor. — ela disse, forçando as palavras. — Vá por você, pelo seu filho, por ninguém mais. — Sim. — ela se limitou a dizer enquanto abria a porta, então eu corri para longe, esbarrando em um vaso no caminho, fazendo com que ele caísse, quebrando em mil partes ao tocar o chão. — Javier! O que você está fazendo... seu... — Nós vamos para o Brasil? — eu respondi, sentindo meu coração batendo forte, torcendo para que as palavras erradas não deixassem sua boca. — Quantas vezes eu te falei que é horrível escutar atrás da porta? — Ela segurava o cabo da vassoura com tanta força que os nós dos dedos ficaram mais claros. — Você não respondeu, mamãe. — Sim, Javier, estamos indo morar no Brasil. Ela respondeu, fazendo meu peito se rasgar com aquela notícia, porque eu me mudaria para um pais que odiava, com uma pessoa que odiava ainda mais e teria que deixar tudo o que vivi ao lado do meu pai para trás, impregnado em cada tábua velha da casa que compartilhei com ele. Todo o amor que experimentei um dia ficaria para trás. Papai, eu te amo, Cariño.

Capítulo 2 Milena, 7 anos Sentei na cadeira e cruzei os braços sobre a minha mesa limpa, ainda sem nenhum desenho a lápis, me perguntando quanto tempo ela ficaria daquela forma até o primeiro idiota rabiscá-la. Talvez uma semana... quem sabe uma hora? O sinal bateu, então tirei meu caderno cor de rosa e o coloquei sobre a mesa. Eu odiava rosa. Nunca gostei de cores vibrantes e chamativas, mas minha mãe insistia em me vestir como uma boneca, embora eu sempre reclamasse. Eu estava ansiosa para o meu segundo ano na escola. Queria que tudo acontecesse logo, queria conhecer a professora e rever o professor Gian, de espanhol, que nos deu aula no ano anterior. Eu procurei um lápis e o segurei entre os dedos, enquanto uma mulher atravessava a sala em direção a mesa da professora. Então ela olhou em volta, suas mãos da cintura, um sorriso nos lábios. Ela era linda, negra, os cabelos cheios e volumosos, sustentando uma pequena flor amarela na lateral. Ela olhou para mim e piscou, então sorri para ela, ao mesmo tempo em que ela batia palmas, tentando acalmar a turma. Ela se apresentou para a turma. Seu nome era Jessy e em poucos minutos todos os alunos estavam agitados, lhe enchendo com um milhão de perguntas. Jessy perguntou a todos o que queriam ser quando crescessem e eu respondi que não sabia. Eu não fazia ideia. O que ser quando crescer? Uma dona de casa, como minha mãe; ou administrar uma fábrica como o meu pai? Ou ser algo diferente? Não conseguia imaginar meu pai aceitando, na verdade, porque desde que aprendi a entender as palavras, eu o escutava dizendo que eu faria administração, embora eu não fizesse a mínima ideia do que aquilo significava. No meio da manhã, alguém bateu na porta da nossa sala e ela entreabriu em seguida. Então a professora foi até ela, conduzindo um garoto pelos ombros, enquanto conversava com uma mulher. Seus cabelos mal cortados e a forma como ele encarava seus pés impossibilitavam que eu visse seus olhos. O menino usava uma calça jeans velha com um pequeno furo no joelho direito e uma camiseta preta desbotada. Ele segurava a alça da mochila

com força entre os dedos, enquanto se mantinha imóvel, quase como se não estivesse respirando. A professora disse algo para a mulher na porta antes dela sair, então se virou para nós e disse: — Este é Javier. — a professora o apresentou. O garoto fez uma careta e cochichou algo no ouvido dela, fazendo-a corar, envergonhada. — Desculpe, crianças, é Javier, com som de R no lugar do J. Se pronuncia Ravier. A sala inteira explodiu em risos, fazendo com que o menino se encolhesse, baixando a cabeça novamente, encarando os pés. Javier. Um nome lindo. Não me lembrava de já ter ouvido aquele nome algum dia. Era diferente; ele era diferente. Ele ergueu a cabeça, encarando com atenção cada aluno, seus olhos rolaram por toda a sala. Era engraçado como ele podia ser tão contraditório, porque ao mesmo tempo em que eu pensava que ele estava morrendo de vergonha, parecia que ele era o rei da escola, só pela forma como ele encarava os alunos. Como olhava com atenção para cada um deles, como ele me olhou. Javier fixou os olhos em mim por dois segundos, então baixou a cabeça novamente, encarando seus tênis velhos, enquanto eu ouvia alguns comentários maldosos atrás de mim. Alguém a minha esquerda comentou sobre sua roupa e que ele parecia um mendigo. Eles eram idiotas e senti vontade de enfiar meu caderno cor de rosa na cara deles, mas certamente eu não faria aquilo; então me limitei a encará-los, forçando uma careta, fazendo com que eles rissem ainda mais. — Javier veio da Espanha, não domina o português, então terá aulas de reforço na parte da tarde. Eu gostaria que vocês fossem acolhedores e o ajudassem a se comunicar. Ele mantinha a cabeça baixa e eu me perguntei o quanto ele entendia. Será que havia compreendido o que Jessy havia dito? Talvez não, não, sem dúvidas não, porque ele não esboçava nenhuma reação enquanto ela falava. De qualquer forma, as risadas indesejadas não precisavam ser traduzidas, porque era nítido que eram para ele e me fazia querer gritar com todos eles. — Se eu ouvir mais uma risada, vou levar com prazer para passar o resto da manhã ao lado da diretora. — ela disse, fazendo com que os alunos parassem de cochichar imediatamente. — Preciso de um aluno que se disponha a sentar todos os dias com Javier para ajudá-lo. Quem pode fazer isso? — ela perguntou; e antes que eu pudesse pensar, minha mão estava

levantada. Então Jessy sorriu para mim, ao mesmo tempo em que Javier erguia a cabeça para me encarar novamente e um pequeno sorriso, muito pequeno, estampou seu rosto enquanto ele me encarava, agradecido. — Hola. — eu o cumprimentei após a professora juntar nossas mesas em um canto onde, segundo ela, seria somente nosso, onde nós sentaríamos em todas as aulas. — Hola. — Javier respondeu, retirando um caderno e um lápis de sua mochila. Então aproveitei para olhar para ele com mais atenção. Seus cabelos eram realmente escuros e o topo caía para frente, alcançando a curvatura do seu nariz. De longe seus olhos pareciam quase negros, mas olhando de perto, com o sol entrando pela janela, eu podia jurar que havia traços de verde neles. Eram lindos na verdade; não possuíam uma cor específica, porque não eram caramelo, castanhos nem verdes e sim uma mistura de todas elas que formavam uma única cor. Uma cor linda. A cor dos olhos de Javier.

Capítulo 3 Javier, 9 anos Eu sentei na banqueta de plástico e peguei um pedaço de pão, então o enfiei na boca, mantendo minha cabeça baixa, torcendo para passar despercebido na manhã do meu aniversário, porque se Miguel começasse a implicar comigo, minha mãe não me defenderia e aquilo era o que me deixaria mais chateado. Triste. Dei um gole no meu café. Ele tinha um gosto ruim e estava gelado, parecia velho. Então, quando chegou na metade de xícara, eu o coloquei sobre a mesa e o afastei, porque até mesmo o cheiro dele me incomodava. Enfiei mais um pedaço de pão na boca e arrisquei um olhar em direção a minha mãe. Ela parecia distante, os olhos fixos na janela fechada, encarando as duas abas de madeira, sem se mover. Então desviei o olhar para Miguel e seus olhos estavam cravados em mim. — Por que você não vai tomar o seu café? — Ele se inclinou para a frente, chegando mais perto de mim. — Há algo errado com ele? — Não, senhor. — eu menti. — Então tome! — Havia tanta ameaça em uma pequena frase que eu fui obrigado a esticar meu braço sobre a mesa e alcançar minha xícara, porque eu sabia que se não fizesse o que ele estava mandando, ele começaria a gritar comigo e acabaria me batendo. — Beba, Javier. — minha mãe ordenou, me encarando sobre os ombros de Miguel. — Beba. Eu levei a xícara até a boca e o cheiro do café velho e gelado me deixou enjoado, mas eu precisava tomá-lo e acabar logo com aquilo antes que se tornasse algo pior, como muitos outros cafés da manhã com eles. Eu levei mais tempo do que esperava até ter coragem para beber o líquido, e quando eu dei o primeiro gole, Miguel empurrou a xícara com força e a ergueu, machucando minha boca e fazendo o café vazar pelas laterais e sujar minha roupa.

— O preço das coisas está um absurdo, Javier! Quantas vezes eu preciso dizer para não desperdiçar a comida, porra?! — ele gritou antes de dar um tapa na minha xícara, derrubando-a no chão. — Eu sinto muito. — respondi, me encolhendo, esperando até o momento em que ele me liberasse para ir à escola. E eu fiz a única coisa que sabia fazer, eu pensei em Milena e desejei estar com ela de uma vez.

Eu me sentei no meu lugar, ao lado da mesa de Milena, como fazia todos os dias desde o meu primeiro dia de aula no ano anterior. Estávamos na terceira série e a professora Jane havia conversado com Jessy, nossa outra professora, pois segundo ela, era preciso que sentássemos juntos por mais um ou dois anos. Ela sugeriu que eu me sentasse com outra pessoa, que interagisse mais, que fizesse amizade para que eu não me limitasse a uma pessoa, mas eu recusei. Recusava sentar com aquele bando de idiotas; e tenho certeza que elas entendiam, porque era nítido que eu era o palhaço da turma, principalmente porque eu não compreendia muita coisa do que eles falavam. Eu peguei meu lápis e continuei rabiscando a mesa enquanto Milena retirava as coisas da mochila apressadamente, já que estava atrasada. Seus cabelos estavam soltos e molhados. Eu gostava quando ela os deixava daquela forma, quando não os prendia. Eu também gostava de como ela se vestia, de como gostava de preto em vez de rosa, que era a preferência das outras meninas. Eu me sentia envergonhado na maior parte do tempo. Não tinha roupas boas e meu uniforme era o mesmo do ano anterior, gasto, velho, desbotado e curto. Todos os garotos ganharam uniformes novos para o novo ano letivo.

Eu não, porque eu não era como todos os garotos. Eu também usava o mesmo caderno, preenchendo as folhas que ainda restavam; e se não fosse por Milena, eu também não teria um caderno de espanhol, embora eu nunca anotasse nada porque eu era o único que sabia tudo. Ou quase tudo. Muitas palavras em português eram muito parecidas com o espanhol, então eu entendia pelo menos um terço do que diziam, levando em conta a entonação e o contexto, então eu estava começando a me virar sozinho. Milena havia me ensinado muita coisa, começando por escrever sobre cada coisa, os nomes em português. Sobre o meu caderno, meu lápis, minha mochila. Ela também havia escrito vários nomes e me auxiliado sobre onde colocá-los: roupeiro, criado-mudo, janela, abajur, geladeira, etc, assim todos os dias eu os veria e decoraria seus nomes. Era uma ótima ideia e funcionava muito bem porque no último ano eu havia aprendido muitas coisas, embora eu fosse muito melhor ouvindo do que falando. Por esse motivo, eu me limitava a poucas palavras; ao contrário de Milena, que me fazia um milhão de perguntas e falava sem parar. Mas eu gostava de ouvir sua voz, do barulho que ela fazia, como preenchia o lugar assim que passava pela porta e como ela mexia as mãos quando estava empolgada. Ela colocou um pacote pequeno e azul sobre a mesa, então se virou para mim, abrindo um largo sorriso. Então seus olhos desviaram para as minhas mãos enquanto eu rabiscava a mesa sem olhar, sabendo qual parte do desenho eu precisava sombrear. Ela odiava que eu sujasse as mesas, por isso me fazia apagar toda vez que me pegava desenhando. Mas era tão natural que eu não pensava, apenas riscava, riscava, pensando em um milhão de coisas e quando eu percebia, a minha mesa estava toda preenchida. Era nesse momento que ela esticava a mão e me entregava sua borracha gigante. — Hola, Javi. — Milena me cumprimentou pelo apelido que havia me dado no mesmo dia em que me conheceu, usando a saudação em espanhol, mesmo que eu sempre respondesse em português. Ela gostava de tentar falar meu idioma, e eu gostava de como o som saía de sua boca. — Oi. — Eu desviei o olhar para o professor de espanhol, que permanecia sentado, esperando que todos copiassem o texto que havia passado no quadro. Alguns dias eu falava melhor que outros, então eu me animava com o

quanto estava evoluindo. Ficava feliz por estar vendo uma diferença grande na forma como eu me comunicava; mas no dia seguinte era como se eu tivesse esquecido de tudo, e todas as palavras saiam em espanhol ou uma mistura errada dos dois idiomas. — Não vou conseguir copiar a tempo, Javier. É muita coisa. — ela disse, começando a escrever, e eu deixei escapar um pequeno sorriso. — Yo... Eu... — Não me lembrava como dizia a palavra copiar em português, então eu apontei para o caderno, mostrando que havia o feito para ela. — Oh. — Seu rosto formou uma expressão exagerada. — Gracias. — De nada. — Agora apague isso antes que vá para direção ou tenha que ficar depois da aula limpando as mesas da sala inteira como punição. — Eu estiquei o braço e alcancei a borracha. — E feliz aniversário, Javier. Ela me entregou o pacote azul que estava sobre sua mesa e eu senti meu rosto queimar. Milena não tinha como se esquecer do meu aniversário, porque era exatamente no mesmo dia em que o seu irmão, Gus, um ano mais velho que nós dois, também comemorava o seu. Não me lembrava da última vez que havia ganhado um presente de aniversário. Talvez quando meu pai estava vivo... não, foi no primeiro aniversário após a morte dele. Minha mãe queria me deixar mais animado, já que meu pai não estaria lá, então me deu uma bola; o que me deixou ainda mais triste porque ele não estava lá para jogar comigo. Eu abri o pacote e sorri ao me deparar com um dicionário de português espanhol. — Acho que será muito útil para você. Esse dicionário também contém as expressões que mais usamos aqui no Brasil. — Gracias. Yo... gostei. — Ela sorriu para a forma desastrada que usei para tentar me comunicar. — Que bom. Fico muito feliz que tenha gostado, Javi. — Eu assenti, muito grato por ela ter se lembrado de mim. — O que você desenhou na mesa, deixa eu ver! — Ela se curvou sobre mim, retirando meu caderno de cima da metade do desenho. — Minha nossa, que lindo!

— Gracias. — Quem é? — ela perguntou curiosa. — Um personage. — eu menti, porque seria estranho dizer que era ela quem eu estava desenhando enquanto deveria estar prestando atenção na aula. — Você aprendeu a desenhar com quem? — Milena cruzou os braços e me encarou, atenta. Eu nunca tinha conhecido uma pessoa que gostasse tanto de falar como ela. — Yo... eu... aprendi com meu paidre. — Eu fechei os olhos por um segundo, tentando me concentrar nas palavras e ignorar o quanto Milena me deixava ansioso. — Padre, meu pai. — Oh! Que legal, Javi. — Ela ignorou a quantidade de vezes que eu errei naquela frase, então sorriu para mim e eu sorri de volta, porque era natural. — Sí. — respondi, terminando de apagar o desenho. — Você quer brincar comigo na hora do recreio? — Milena perguntou. Suas bochechas coraram levemente enquanto ela colocava a franja para trás das orelhas. — Sí, me gostaria mucho brincar contigo. — Gracias. — A forma como ela fazia questão em usar algumas palavras em espanhol só me fazia ter a mais absoluta certeza que eu queria a amizade dela para o resto da minha vida.

Capítulo 4 Milena. 10 anos Penteei meus cabelos e calcei meu All Star branco, então alcancei a alça da minha mochila e saí do quarto correndo, atrasada como sempre. Eu desci as escadas em direção a cozinha, então peguei uma maça na fruteira e me curvei sobre a mesa, alcançando minha xícara de café, bebendo alguns goles depressa, evitando o olhar da minha mãe enquanto meu pai sequer havia erguido a cabeça detrás do jornal. Uma manhã normal. — Feliz aniversário, Milena. — ele disse, olhado sobre o jornal. — Obrigada, pai. Ele mudou de página, voltando sua atenção para qualquer coisa que estivesse lendo. — Feliz aniversário, filha. — Minha mãe me puxou para um abraço, fazendo minha mochila cair desajeitadamente sobre o tapete abaixo da mesa. — Oh, obrigada, mãe. — respondi, um pouco nervosa. Minha mãe me abraçava poucas vezes na vida, geralmente em datas especiais. Natal, páscoa, aniversários, dia das mães —, que na verdade, era eu quem abraçava. — Não entendo porque é que teimou em usar a mesma mochila do ano passado. — ela revirou os olhos, colocando uma mecha do cabelo escovado — sim, as sete e meia da manhã —, para atrás da orelha. — Não preciso que gastem dinheiro com uma mochila nova se a minha ainda está boa. Além do mais, eu gosto dessa. — Podemos comprar uma igual. — ela insistiu. — Não faz sentido, mãe. — eu juntei minha mochila pela alça e a coloquei nos ombros. Não queria dizer a ela que sim, eu certamente gostaria de uma mochila diferente, mas que depois que conheci Javier, eu havia percebido que não precisava, porque existia um milhão de coisas mais

importantes do que seus colegas repararem que você pode comprar uma nova todos os anos. — Você vai com esse tênis no dia do seu aniversário? — Meus pés e eu continuamos os mesmos no meu aniversário, mãe. — Eu sei, querida, mas você deveria se arrumar mais. Por que não amarra os cabelos? — O que há de errado com meus cabelos? Minha mãe era uma pessoa boa, mas me irritava a forma na qual ela me tratava, como se eu fosse uma boneca que ela gostava de vestir. Gustavo, meu irmão mais velho, foi “uma tentativa de menina”, ou pelo menos é assim que minha mãe se refere a ele quando perguntam se ela queria engravidar. Sim, ela até queria, eu acho, mas não imaginou que viria um menino. Por isso, quando ele tinha pouquíssimos meses, ela estava grávida novamente. — Não há nada de errado, maninha. — Gus chegou por trás de mim e colocou o braço sobre o meu pescoço, como se tivesse me dando um golpe mata leão, então me puxou para trás, fazendo minha maçã rolar pelo chão. — Feliz aniversário. — ele disse quando estávamos no chão, enquanto eu tentava sair do seu aperto. — Você é ridículo! — eu gritei, fazendo-o gargalhar ainda mais. Eu amava meu irmão. Amava a forma como ele me tratava, como ele me enxergava naquela casa, como se fosse o único que me via de verdade. Que assistia a filmes comigo. Que me abraçava constantemente e que graças a Deus existia, porque tudo era mais fácil de suportar ao lado dele. — Que Deus abençoe o seu dia e que te conceda muitos anos de vida. — Ele usou uma entonação como se tivesse lendo alguma mensagem escrita em um cartão de aniversários. — Pare com isso, Gustavo! Vai amassar a roupa da sua irmã. — minha mãe gritou, mas ele ignorou, como sempre fazia. — Gustavo. — meu pai interveio em tom passivo, o que era suficiente para que ele prestasse atenção.

— Obrigada. — eu disse, me desvencilhando do seu aperto, ao mesmo tempo em que levantava ajeitando minha roupa amarrotada. — Você parece uma moradora de rua, Milena. Não faz sentido você se vestir assim. — Eu passei a ponta dos meus dedos sobre minha roupa, desamassando-a. — Até mais! — Eu ergui a mão e acenei enquanto caminhava até minha maçã, então a juntei do chão. — Lave essa fruta antes de comê-la. — minha mãe gritou enquanto eu chegava a porta. Eu limpei a maçã com a manga do meu casaco e a mordi, respondendo de boca cheia. — O maior come o menor.

Meu coração batia pesado no peito, mas eu não entendia o motivo. Novos convidados atravessavam o pátio a cada minuto, sentando nas cadeiras com seus nomes escritos, enquanto minha mãe rodava o gramado, parando em cada lugar, cumprimentado cada convidado; então ela acenou para mim e eu forcei o sorriso para uma “amiga” que ela gostava de impressionar e que eu odiava o seu filho que desde que me entendia por gente. Gustavo também não o suportava, porque além de nossa mãe me forçar a brincar com ele desde os meus primeiros anos de idade, ela também o comparava a Gus. “Milena, vá brincar com o Madison”, “Milena, olhe esse novo brinquedo do Madison”, “Milena, olhe como o Madison está olhando para você, vá brincar com ele!”, “Gustavo, por que você não se comporta como o Madison? ”, “Gustavo, olhe como o Madison brinca comportado”.

E naquele momento, lá estava Madison... como se tivesse sido empacotado a vácuo na roupa, o cabelo lambido para o lado enquanto ele acenava para mim, como se fosse a rainha da Inglaterra ou uma miss após ganhar a faixa e a coroa de vencedora. Mal sabia ele que eu torcia para que não conseguisse abrir aquele cinto enorme quando estivesse apertado, para que se mijasse naquelas calças cáqui ridículas. Eu me virei para o portão e avistei Javier assim que ele o atravessou. Estava longe, mas não o suficiente para que eu não notasse na forma como ele caminhava ou o quanto parecia nervoso. Javier colocou as mãos nos bolsos e seu olhar varreu todo o gramado até me encontrar. Então ele sorriu, envergonhadamente. Seus cabelos estavam cortados e ele usava uma camiseta que eu nunca tinha visto antes. Eu me perguntei se ele não estava com frio, porque ventava bastante e todos os convidados usavam um casaco, por mais fino que fosse. Javier parou de andar, me encarando, pedindo socorro, me fazendo sorrir de uma forma que não conseguia explicar. Era exatamente a mesma sensação sempre que eu o via, como seu fosse a primeira vez, como se ele tivesse acabado de entrar pela porta da sala de aula. Uma sensação boa, de conforto, como sentir o sol quente tocar sua pele em uma manhã de inverno. — Oi. — Javier ainda mantinha as mãos nos bolsos quando eu o abracei e lhe dei um beijo no rosto. — Hola! — respondi, usando a mesma saudação de quanto falei com ele pela primeira vez. — Parabéns. — ele passou a mão pelos cabelos, como se eles ainda tocassem seu rosto, atrapalhando, mas metade dos fios haviam sido cortados e provavelmente ele ainda não tinha se acostumado. — Meu aniversário foi ontem e você já me parabenizou. — Sí. — Ele me deu um sorriso tímido. — Yo sei. Eu amava a forma como Javier mesclava os dois idiomas, como era natural que algumas palavras teimassem em sair em espanhol, mesmo que ele as tivesse praticado dezenas de vezes em português. — Eu gostei do seu cabelo.

Ele desviou os olhos, varrendo todo o gramado, provavelmente evitando meu olhar sobre o seu cabelo. — Obrigado. — ele respondeu. — Para ti. — Javier esticou a mão e me entregou um papel, que eu desdobrei com muito cuidado, encarando de boca aberta o desenho que ele havia feito para mim. Éramos nós dois sentados um ao lado do outro. Eu usava uma jaqueta jeans e botas desamarradas, minhas pernas estavam cruzadas uma sobre a outra e minha cabeça levemente apoiada em seu ombro, enquanto ele vestia um moletom com capuz e encarava um dicionário aberto em minhas mãos. Ele sorria para mim, ao mesmo tempo em que aparentemente eu lia para ele. — Uau... — É um regalo... — Um o quê? — Ele puxou seu dicionário do bolso detrás da calça e o folheou, então apontou para a palavra que havia dito, como sempre fazíamos quando não entendíamos o que o outro estava querendo dizer. É um presente. É claro que era, e eu havia amado, porque eu sabia como era difícil para ele estar lá sem poder pagar por um presente; mas principalmente por saber que para mim, o fato dele ter ido era muito melhor do que qualquer coisa que o dinheiro podia comprar. — Eu amei esse... regalo. — Ele sorriu e eu sorri de volta. Encarei seus olhos, que estavam esverdeados naquele momento. Talvez fosse o gramado verde que tivesse influenciado, porque seus olhos mudavam muito de cor dependendo de onde estávamos. — O que é isso no seu braço? — Eu puxei o antebraço de Javier, mas ele o puxou de volta, colocando para trás do seu corpo. — Yo caí. — Mentiroso. — Eu puxei seu braço novamente e ele deixou. — No es mentira. — O que aconteceu, Javier?

Ele deu um passo para trás. — No passa nada, Milena. Yo caí, es verdade. Mas não importava o quanto ele repetisse aquilo para mim, porque eu conhecia o meu melhor amigo e sabia que ele era um péssimo mentiroso.

Capítulo 5 Javier, 11 anos A cortina onde deveria ser a porta do meu quarto voava com a força do vento que entrava pela cozinha. Faltava um vidro na janela, por esse motivo era como se estivéssemos na rua, sentindo o frio maçante de uma manhã de junho tocar violentamente nossa pele. Eu baforei no ar, vendo a nuvem branca se formar, me fazendo desejar estar na Espanha, curtindo o verão que começaria em naquele mês por lá. Eu caminhei até a mesa da cozinha, espalmando as mãos para me esquentar, desejando ter um par de luvas ou idade suficiente para trabalhar e poder comprá-las com meu próprio dinheiro. A chaleira apitou e despejei a água fervida no coador, sentindo o cheiro de café se espalhar pelo pequeno cômodo não tão gélido naquele momento. Eu soprei o café preto, ardente, enquanto encarava a porta do quarto da minha mãe, sabendo que ela levantaria em poucos minutos junto de Miguel, e todo o silêncio daquela manhã seria substituído por um círculo vicioso de brigas matinais que se repetia todos os dias, sem exceção. Eu fechei os olhos quando a fechadura do quarto girou, desenhando estar na Espanha alguns anos atrás, montando minha bicicleta com meu pai, sem me preocupar com o amanhã. 2

— Joder , Alma! Eu falei que precisava de um ferro de passar. Por que diabos você não o comprou quando eu a mandei comprar? — Miguel bateu a porta do quarto exatamente quando minha mãe passaria por ela, fazendo com que seu pé ficasse trancado e ela gritasse de dor. Meu olhar em sua direção lhe perguntava se estava bem, mas àquela altura, minha mãe sequer compreendia o que eu queria dizer, porque ela havia parado de me enxergar. Não me conhecia há muito tempo e eu questionava em meu subconsciente em qual momento da vida aquilo tinha acontecido. 3

— Você me machucou, seu gilipolla ! — ela gritou para ele, enquanto mancava até a geladeira; então ela deu um empurrão da porta, ao mesmo tempo em que Miguel procurava por leite.

O leite que havia acabado há três dias. — Você está me estressando logo pela manhã, Alma. — Ele se virou para mim. — Você fez café, menino? — Sim. — Eu me limitei a responder, como sempre fazia, porque tudo o que eu dizia parecia irritá-lo; então começávamos uma discussão onde eu só respondia mentalmente e aí ele começava a ficar agressivo. — Eu não comprei o ferro porque você gastou o maldito dinheiro com suas merdas. Ele apertou o seu rosto com uma mão, forçando a ponta do polegar de um lado do rosto e a ponta dos dedos do outro lado. Senti meu coração acelerar e o sangue começar a correr mais rápido em minhas veias, desejando ter idade ou tamanho suficiente para poder encará-lo e mandá-lo tentar bater em um homem de verdade. Mas eu não era um homem de verdade, eu tinha apenas onze anos, doze no final do mês, para ser mais exato. Eu forcei a caneca entre as mãos, encarando a cena rotineira a minha frente, me perguntando o porquê dela aceitar aquilo. Como foi que havia conseguido mudar tanto? — Me larga, seu idiota. — ela gritou e ele o fez. Então ela finalmente me encarou, por poucos segundos, antes de encher sua xícara com o café. — Não tem carne para o almoço, Miguel. — ela disse, começando outra discussão. — Eu não vou almoçar em casa hoje. — ele afirmou, enrolando um baseado na minha frente; o que para mim era muito normal àquela altura e muito menos espantoso comparado às outras coisas que ele usava ali, dentro daquela maldita casa, naquele maldito país. — Mas eu vou. — Ela colocou sua xícara de café sobre a mesa com força, fazendo o líquido vasar e sujar a toalha encardida. — Javier também. Quando ela citou meu nome, senti vontade de gritar com ela, porque eu odiava quando me tornava o centro das atenções exatamente no momento em que os dois estavam brigando, porque sabia que tudo cairia sobre mim. Era questão de segundos para Miguel começar a gritar comigo antes da coisa ficar realmente feia.

— Vocês já são bem grandinhos e Javier já tem idade para trabalhar. — Ele tragou a fumaça, então a soprou no meu rosto, dando o sorriso ameaçador de sempre; o que era o menor dos meus problemas, porque nada se comparava a quando ele estava drogado e me enchia de porrada enquanto minha mãe assistia de boca fechada. — Joder! — minha mãe xingou enquanto jogava sua xicara na pia, fazendo o café se espalhar sobre ela. — Não é mesmo, merdinha? Acho que você já está bem grandinho, é... pensando bem, logo, logo você estará colocando a mão na massa comigo, porque é assim que um moleque vira homem de verdade. Eu assenti, concordando com ele, embora a possibilidade de ter que trabalhar ao seu lado um dia inteiro me deixasse apavorado, porque eu preferia carregar tijolos e caminhar sobre brasas a ter que passar todos os dias da semana ao lado de Miguel. Ele me encarou, menos furioso por eu ter concordado com ele. Minha mãe grunhiu; estava muito mais magra desde que chegamos ao país. Os olhos castanhos estavam arroxeados ao redor, olheiras fundas e marcadas e cheia de feridas no rosto. Na pele. Eu não fazia ideia do que estava acontecendo com ela. Talvez estivesse doente. Talvez. De qualquer forma, ela não conversava comigo, não me contava nada, mesmo que eu insistisse. Então eu havia parado de fazer perguntas, parado de falar. Já não era bom naquilo mesmo, de qualquer forma. Minha mãe não falava português, por isso nunca saiu para trabalhar. Ela havia se entregue aos afazeres da casa até que parou de fazer aquilo também, então ela apenas passava todo o seu dia bebendo e fazendo sei lá mais o que. Nós dois nos comunicávamos no nosso idioma, o que para mim era um pouco ruim porque eu tinha vergonha em tentar falar com outras pessoas e para Miguel sequer fazia diferença, porque ele falava os dois, já que seu pai também havia vivido na Espanha e de qualquer forma, eu também sabia que ele preferia que minha mãe não mantivesse contato com ninguém além de mim, e algumas vezes nem mesmo comigo, porque Miguel queria que ela fosse só dele. Ela não era.

Até que ela se tornou.

Assim que cheguei a escola avistei Matheo, que estava sentado na frente da nossa sala. Sua mochila era tão velha quanto a minha e ele parecia tão perdido quanto eu naquele lugar. Eu gostava dele exatamente por esse motivo — e pelo fato dele não ser um cuzão como os outros garotos. Ele acenou para mim, ao mesmo tempo em que eu caminhava em sua direção, evitando o olhar de dois idiotas que estudavam em nossa sala e que sempre tiravam sarro de nós dois por sermos pobres, estranhos e não termos um misero real para comprar algo na cantina, como eles. Eu dei a mão para ele, nosso cumprimento rotineiro, então ele usou minha mão para se ancorar e eu o puxei, erguendo-o a minha altura. Matheo passou os dedos pela calça do uniforme — tão gasta quanto a que eu usava — tirando a sujeira grudada nela. Seus olhos correram pelo pátio e eu sabia exatamente o momento em que ele havia avistado os dois garotos porque o sorriso que ele carregava no rosto murchou. Todos os dias nós éramos motivos de chacota e aquela situação me deixava puto, porque um, a escola deveria ser meu refúgio; e dois, eu odiava que zombassem de mim na frente de Milena, principalmente por um motivo tão fútil. — Ignore. — aconselhei, passando pelos garotos. — E aí, argentino. — um deles me zoou e eu senti uma vontade imensa de zombar do seu pouco conhecimento, porque a grande maioria dos alunos, quase todos na verdade, se limitava a achar que a Argentina era o único país

do mundo que falava o meu idioma. — Idiotas. — Matheo sussurrou para que somente eu pudesse ouvir. — Sí. — respondi, apressando meus passos. — Eu falei com você, Javier. — Meu coração batia acelerado, ansioso. Eu precisava sair de perto deles, principalmente porque da última vez um deles havia me batido, acabamos na direção e eu apanhei ainda mais quando cheguei em casa, porque eu não podia ir para a direção. — Não puedo fazer isso, Adrian. — Eu encarei o garoto, meus olhos suplicavam para que ele me deixasse em paz. Mas pelo sorriso que ele sustentava, era exatamente aquilo que ele queria, que eu implorasse. — Não puedo, não puedo... — ele imitou meu tom de voz — Você sequer sabe falar. — Adrian deu um passo a frente e puxou a mochila de Matheo. — Que porra de mochila é essa? — Me devolve! — Metheo gritou, tentando pegá-la, mas Lucas, o outro garoto, segurou ele pelo braço, enquanto Adrian abria o zíper. — Isso é só mais um monte de lixo. — ele virou a mochila de ponta cabeça, fazendo os cadernos de Matheo caírem no chão. — Como vocês dois. Eu olhei para o lado exatamente no momento que Milena chegou e meu coração bateu ainda mais depressa ao vê-la; seus olhos arregalados, encarando o chão, as sobrancelhas semicerradas, uma expressão de pena. Pena. Eu odiava aquele sentimento. Odiava que ela tivesse pena de mim por eu ser um fodido. Foi naquele dia, naquele momento, que eu decidi que não queria ser um monte de lixo, que não queria mais ser motivo de piadas, porque minha vida já era desgraçada o suficiente em casa, com meu padrasto viciado e minha mãe alcoólatra. Então eu agi, pela primeira vez depois de muito tempo sendo ridicularizado. Eu agi. 4

— Vete ! — eu o alertei, e a palavra estranha o fez unir as sobrancelhas, confuso. — Eu não entendi essa merda que você disse. — Adrian gargalhou, encarando um bando de gente que se formou ao nosso redor, nenhum deles disposto a me apoiar. Então eu sorri, ao mesmo tempo em que ele chutava a

mochila de Matheo no chão. — Azar o seu. — Eu dei um passo a frente. O primeiro soco acertou meu maxilar e ele cambaleou para trás, então eu chutei sua panturrilha, fazendo-o cair no chão e foi nesse exato momento que Lucas soltou Matheo e veio até mim. Eu desviei de um soco e o impulso o fez correr para frente, ao mesmo tempo em que eu o segurei pela gola da camisa do uniforme, puxando-o para trás, para mim, portando quando suas costas tocaram o meu peito, eu enlacei o braço em seu pescoço, imobilizando, enquanto com a minha mão livre, eu segurava seu braço esquerdo. — Javier pare! — Milena gritou. — Por favor, pare! — Filho da puta! — Adrian acertou um soco na lateral do meu rosto, então eu soltei Lucas com força, derrubando-o no chão, à medida que eu me virava de novo para Adrian. Foi então que Matheo reagiu, acertando um belo soco de direita nele, me fazendo querer gritar, explodir, porque pela primeira vez desde que eu cheguei naquele pais, eu sentia que ninguém podia passar por cima de mim, até a voz do diretor ecoou através do pátio. — Mas o que está acontecendo aqui? O silêncio gritante que se formou após a aparição dele foi cessado exatamente no momento em que ouvi os passos de Milena correndo até mim, então seus braços se enlaçaram ao meu pescoço. — Você está sangrando. — ela disse chorando. A ponta do nariz, adoravelmente avermelhada. E vê-la daquela forma por minha causa me fez sentir algo totalmente novo e descontrolado, algo forte, instável. Já não me importava o quanto eu apanharia quando chegasse em casa, porque com toda a certeza valeria a pena.

Capítulo 6 Milena, 14 anos Eu estava sentada no sofá que muito raramente sentava, principalmente ao lado de minha mãe; o que me fazia estranhar ainda mais, porque ela só se aproximava de Gus quando queria alguma coisa, e naquele momento ela estava com uma mão apoiada em seu ombro direito enquanto ele enviava um SMS. Ela me encarou, sustentado um sorriso e eu sabia que tudo o que viria a seguir seria exatamente algo que me desagradaria. — Falou com Madison? Madison. Ah, doce, Madison, por que existis? Sim, falei, combinamos de transar hoje à noite. Não, não foi isso o que eu disse, mas era o que eu gostaria de dizer, só para poder analisar seu rosto enquanto aquelas palavras saíam da boca de uma garota de catorze anos, apesar, é claro, de eu saber que sim, ela adoraria que eu falasse aquilo, principalmente que eu terminasse aquela frase com “e pretendo não usar camisinha, você sabe... é sempre bom engravidar de um milionário e ser mãe antes dos quinze”. Eu fechei o livro que segurava no colo. Aparentemente meu diálogo interno havia melhorado muito através da leitura, principalmente meu lado irônico e sarcástico, além de trabalhar muito meu vocabulário e a vontade que eu tinha de gritar que Madison era um engomadinho e parecia o homem do tempo do jornal do meio-dia e que se ela gostava tanto dele, podia se inseminar com o esperma do pai dele. Mas é claro que eu não faria, porque um, ela era minha mãe, apesar de tudo; e dois, meu pai estava no cômodo ao lado e causar tumulto era tudo o que eu menos queria, porque eles haviam jogado na minha cara que a culpa de eu estar agindo daquela forma era de Javier. Que ele era uma má influência para mim, portanto eu deveria me afastar dele. E eu estava me afastando. Ou era aquilo que eu dizia a eles. — Não, mãe, eu não falei. Um suspiro pesado deixou seus lábios e eu rolei meus olhos, evitando

encará-la. — Gustavo, você não acha que sua irmã deveria ir ao aniversário de Madison? Ele fez questão de trazer o convite pessoalmente, seria uma ofensa para sua família se ela não fosse. — Sim. — ele respondeu, concentrado no celular, me fazendo encará-lo. — Como é? Ao ouvir minha voz estridente, ele arregalou os olhos, pensando com o que havia concordado. — O quê? — ele perguntou, confuso. — Nada, você apenas concordou que eu deveria ir na festa do Madison. Pois agora minha única condição é: Eu só vou se você também for. Imediatamente o olhar cheio de expectativa da minha mãe caiu sobre o rosto zangado do meu irmão, fazendo-o jogar o celular em um conto do sofá, enquanto cruzava o braço sobre o peito, provavelmente pensando no que inventaria para se livrar daquilo. — Você sabe, Mi... — ele me chamou pelo meu apelido que eu detestava, porque Mi era um nome que se dava a um gato, ou algum animal, não a uma irmã. — É aniversário do meu melhor amigo neste final de semana, então não vou poder ir. — Perfeito! — Minha mãe bateu três palminhas, animada. — Porque o aniversário de Madison não é neste final de semana, é no outro. Uma risada escandalosa deixou meus lábios, porque sim, eu adorava quando ele se dava tão mal quanto eu, e ir a uma festa do Madison era tão deprimente quando participar da gincana da escola. — Obrigada, maninha. — Ele passou a mão pelo rosto e sorriu e apesar de estar tirando sarro dele, eu estava dando graças a Deus por ter meu irmão comigo, porque sem dúvidas aquilo faria um pouco mais de sentido tendo Gus lá. — Outra coisa que eu gostaria de falar com você, Milena, é sua festa de quinze anos. Precisamos decidir alguns detalhes. — Era tão engraçado a

forma como minha mãe exigia tanto e não dava nada. A forma como ela não se importava com o que eu queria. Como eu me sentia. Meu rosto esquentou e de repente eu senti uma vontade de gritar pela milésima vez que eu não queria uma festa, que não havia necessidade de gastar milhares de reais com uma coisa que duraria poucas horas e que eu odiava metade das pessoas que iriam nela, que a outra metade eu sequer conhecia, e que a única pessoa que eu gostaria que estivesse lá, provavelmente não poderia ir. — Mãe... — Não, Milena... nem ouse dizer que não quer esta festa. — Ela se levantou, cruzando os braços sobre os seios. Gustavo me encarou, seu olhar apoiava o que quer que eu iria dizer. — Eu não quero essa festa. — Era simples dizer aquilo, porque eu já havia dito outras milhares de vezes. — Milena, isso não será negociável, filha. Eu queria gritar para minha mãe que ela era uma pessoa horrível, mas eu sabia que nunca faria aquilo. — Ah, não? Então talvez eu não vá a minha própria festa. — Eu a encarei, à medida que seu rosto ficava vermelho, sentindo o olhar de Gus sobre mim, me apoiando a não baixar a guarda. — Você não ousaria! Está vendo? É a convivência com aquele garoto. — Ela apontou para mim. — É dessa rebeldia que estou falando! — E de repente uma ideia brilhante surgiu em minha mente. — Por isso não quero você perto dele. Por isso seu pai e eu proibimos a amizade de vocês! Eu me levantei, ainda sustentando meu olhar sobre minha mãe, então desviei o olhar para meu pai, que naquele momento estava na frente da porta do escritório, me encarando, enfurecido; porque sua opinião sobre o meu amigo era ainda pior que a da minha mãe e aquilo me deixava indignada e me fazia querer gritar para eles que Javier era perfeito, que apesar de tudo, do pouco que tinha, era a melhor pessoa que eu havia conhecido e que se dependesse de mim, eu estaria ao seu lado até dar o meu último suspiro, porque Javier era uma parte minha, porque nós dois juntos éramos uma

pessoa só. Não existia Milena sem Javier e não existia Javier sem Milena. — Ok, se você faz tanta questão que eu tenha essa festa, então beleza, sinta-se à vontade para fazê-la. — Ela encarou meu pai, agradecida, pensava que eu havia mudado de ideia porque ele estava ali, mas vê-lo com toda aquela pose esperando que eu mudasse de ideia por medo da sua figura só fez com que aquela ideia aflorasse. Então eu os encarei e fiz o que melhor sabia fazer. Negociar com eles. — Apenas duas condições. — Ouvi o riso leve e debochado de Gustavo e tive a absoluta certeza que ele estava gritando por dentro a frase “Manda a ver, Milena”. — Ora... — meu pai começou, porém, minha mãe o interrompeu: — Tudo bem, Edgar. — Ela me encarou, ansiosa. — Diga quais são suas condições. — Nada de rosa. — Ela sorriu. Eu tinha certeza que estava pensando nas opções de cores que podia usar no lugar do rosa e eu sorri, ansiosa para dizer minha próxima condições, porque com certeza ela enlouqueceria. — Tudo bem. Nada de rosa, querida. — Ela sorriu para o meu pai e Gus levantou a mão, um gesto para que eu prosseguisse, então o fiz. — E Javier irá. — Não! Isso não, Milena. — ela disse atropelando as palavras, enquanto meu coração batia pesado, apressando, me causando falta de ar. — Então não, mãe, eu não irei a minha própria festa. — Fale direito com sua mãe, Milena, ou sua conversa será diretamente comigo e então você não terá opções. — E o que vai fazer? Me algemar? Me levar arrastada a minha festa? Ele deu um passo a frente, mas minha mãe o impediu, com um gesto. — Ok., Javier poderá ir.

— Ele receberá um convite, em espanhol, e vocês serão gentis com ele se não quiserem que eu suma no meio da festa. — Certo. — ela respondeu entre os dentes, passando por cima do seu ego, à medida que meu pai deixava o cômodo, pisando duro no chão; e eu tinha a mais absoluta certeza que eles só fizeram aquilo porque queriam demais aquela festa. Porque o Madison e os pais deles estariam lá e eles teriam um belo troféu para exibir e encher os olhos deles e então ele teria tudo o que queria. Uma filha, um genro rico, uma empresa fundida a outra, e então tudo estaria perfeito, porque nossas finanças estariam bem.

Eu tranquei a porta e vesti meu pijama. Havia passado tempo demais debaixo d’água, e o vapor quente do banho e o tanto que chorei haviam deixado meus olhos inchados demais, como se tivesse chorado por dias. Eu me sentia horrível, odiava que tivesse que enfrentar meus pais daquela forma, que tudo tivesse que ser negociado com eles. Odiava que eles estivessem sempre esperando por algo, que achassem que em troca de como eles queriam que eu agisse, eu podia ter um teto, dinheiro no bolso e minha faculdade de administração estaria garantida. Mas eu odiava, odiava demais, principalmente o fato de não poder tomar minhas próprias decisões e não por ainda ter apenas catorze anos, mas sim, por ter que fazer e viver de acordo com as regras deles, com o que eles queriam ou não que eu fizesse. Eu gostava de ler, gostava de como me sentia quando a personagem fazia o que tinha vontade. Como elas podiam deitar suas cabeças no travesseiro e dormir tranquilamente pensando no que fariam no dia seguinte.

Que fariam o que quisessem no dia seguinte. Que seriam quem quisessem ser no dia seguinte. Gostava de ler livros onde a personagem tinha um bom relacionamento com os pais e podiam tomar um café da manhã sem que sua mãe criticasse seus cabelos, suas roupas e cada movimento. Porque eu não tinha aquilo, tudo era motivo de estresse e crítica. Se eu saísse com o cabelo solto ou molhado ou se eu o prendesse de uma forma que ela não gostasse eram o suficiente para mais reclamações. Coisas simples. Eu só queria coisas simples como tomar um café em paz, sem expectativas, porque eu era apenas uma garota e desde que me lembrava, meus pais tentavam fazer de mim, uma pessoa que eu não era. O vento frio soprava pelo pequeno espaço livre entre as duas folhas de vidro da minha janela, fazendo o fino tecido de voil da cortina chacoalhar. Eu caminhei até lá, alisando a minha pele exposta para que esquentasse à medida que eu me aproximava dela, encarando a lua através da brecha, me lembrando do livro Querido John, que havia lido há pouco tempo. Não importa onde esteja no céu, ou onde você esteja no mundo, se levantar a mão e fechar um dos olhos… ela nunca é maior do que seu polegar. Eu levantei meu polegar e fechei um dos olhos, sorrindo ao constatar pela centésima vez que John estava certo. Foi então que ele apareceu na minha frente, no segundo andar da minha casa, pendurado na minha janela. — O que você está fazendo aqui? — Eu o puxei para dentro. — Você estava há muito tempo lá fora? Você sabe que temos câmera, não sabe? — Sí, yo vi seus padres saírem. — Ah... — Eu encarei seus olhos avermelhados e meu coração quebrou, porque eu sabia que era mais um dia de merda para ele. — Yo sé que despues você dá um jeito nas filmagens. — Ah, espertinho. Mas você está bem? — perguntei enquanto fechava a janela. — Sí... — ele respondeu, mas eu sabia que era mentira, porque ele não aparecia na minha janela se não tivesse tido problemas em casa. — Miguel?

— Las mismas mierdas de sempre. Ele caminhou até a minha cama, então se deitou nela, fazendo meu coração se aquecer, porque eu amava quando ele fazia aquilo, que agisse de forma tão natural comigo. Eu caminhei até ele e me deitei ao seu lado, à medida que ele se ajeitava confortavelmente com o braço esquerdo dobrado para trás da cabeça e outro sobre a barriga, dentro do bolso do moletom preto desbotado. Eu encarei o teto escuro, me concentrando no silêncio que havia se formado no cômodo, sabendo que era tudo o que ele precisava para se acalmar. Eu funguei o ar gélido de início de agosto e o cheiro de Javier me fez corar. Eu amava seu cheiro. Amava que ele não precisasse de um perfume caro, porque era cheiroso o suficiente para me fazer querer encontrá-lo suado apenas para que eu pudesse cheirá-lo mesmo que isso parecesse nojento. Eu amava ainda mais seu cheiro no inverno, porque ele impregnava no tecido grosso do seu moletom e então eu o pedia emprestado para que pudesse sentir de perto. Eu gostava de tudo nele. De cada detalhe dele. Desde a forma desajeitada como ele pronunciava uma frase á forma rude que ele usava para lidar com algum garoto que tivesse me ofendido de alguma forma. Amava a sua simplicidade. A forma como corria para mim. A nossa amizade. — Ele bateu em você de novo? Ele deixou escapar um sorriso irônico, negando com a cabeça, mas eu sabia que não estava dizendo não para minha pergunta e sim se perguntando mentalmente porque aquilo acontecia com ele. Eu me virei de lado e segurei seu braço, deslizando minha mão para dentro do bolso, enlaçando meus dedos nos dele, como sempre ficávamos, como sempre fazíamos, mas que há um tempo havia se tornado estranho, pesado, como se cada pequeno detalhe começasse a ser notado, desde a forma como ele encarava minha boca quando eu falava, à forma como ele segurava eventualmente minha mão. —Yo... — Ele começou, mas não conseguiu terminar a frase. Então eu parei de encará-lo e afundei minha cabeça em seu ombro, tentando deixá-lo

confortável. — Ela... Yo a encontré usando drogas. — Oh meu Deus, Javi... Eu sinto muito. Eu respondi, apesar de ter certeza que Alma não era apenas alcoólatra, porque nas vezes em que estive na casa de Javier, eu havia visto de perto a sua realidade. Cada vez que eu aparecia por lá, ela parecia mais magra, mais doente; e na semana passada, quando apareci de surpresa, eu a vi, pele e osso, a casa imunda, afundada no lixo, enquanto ela olhava fixamente para a televisão desligada. Eu sabia que apenas o álcool não fazia aquilo com uma pessoa. — Miguel riu de mim como um maldito, como se yo fosse um idiota por não saber, entonces... ele me disse que ya faz mucho tempo. — Ah... eu sinto muito. — Yo sé. — Ele apertou minha mão dentro do bolso, seu rosto virando para o lado, sua boca tocando o topo da minha cabeça. — Ela está no fundo do poço. — Eu não sei o que dizer, Javi. Javier acariciou minha mão, tocando lentamente as pontas dos meus dedos, um por um, mapeando cada detalhe da minha pele, então ele deslizou a ponta dos seus dedos sobre cada pedaço da minha mão, apertando cada juntinha, cada traço, ao mesmo tempo em que meu coração batia tão forte que me causava cegueira e eu me perguntei como um simples toque podia me deixar tão enjoada naquela forma. — Não diga nada, amor, yo sé. Eu deveria estar acostumada, porque desde que conheço Javier, ele me chamava daquela forma. Era um apelido carinhoso, eu havia lido a respeito, mas ouvi-lo me chamar de amor fazia meu coração parar de bater a cada letra daquela palavra, principalmente com aquele sotaque pesado. Mas eu sabia disfarçar muito bem, obrigada; e ele sequer percebia o quanto eu parecia perdida ao lado dele nos últimos meses. Provavelmente Javier me veria apenas como sua melhor amiga pelo resto da vida.

Capítulo 7 Javier, 14 anos Eu me lembro de um dos dias mais humilhantes da minha vida como se fosse ontem. Eu tinha nove anos, Milena usava um casaco grosso com um gorro nele e mesmo assim ela ainda usava uma touca azul com um pompom no topo. Seus cabelos estavam soltos por baixo do tecido. Fazia frio, muito frio. Meu corpo tremia, cada parte dele estava gelado, meus dentes batiam, mesmo que eu tentasse disfarçar, porque eu não tinha roupa que me esquentasse o suficiente. Então a professora me levou ao achados e perdidos do colégio e me deu dois moletons que algum aluno algum dia havia perdido. Me lembro de ficar pensando sobre aquilo por um longo tempo, no fato de um garoto perder uma peça de roupa importante e sequer se importar em procurá-la, como se não fizesse diferença. Um leque de opções sobre o que vestir antes de sair para a escola. Talvez cinco ou seis casacos para escolher? Talvez um a mais ou a menos não fizesse nenhuma diferença ou não fosse importante o suficiente para que perdessem cinco minutos dos seus tempos procurando por ele. Não foi humilhante para mim entrar na sala e ter metade dela rindo do fato de eu estar vestindo algo que ficava grande em mim, mas sim o olhar que Milena me lançou quando me sentei na cadeira ao seu lado. Me lembro de ficarmos em silêncio pelo resto da aula, porque eu não era capaz de olhar em sua direção, principalmente porque a ouvi fungar, e eu tinha certeza que ela estava chorando por mim. Então eu me sentia daquela forma novamente, não por não ter o que vestir em seu aniversário de quinze anos, mas pelo olhar que ela direcionaria para mim assim que me visse atravessar o salão de festas. Eu gostava de como ela me olhava, de como se importava comigo, e tudo isso não era sobre o que ela pensava das minhas roupas e sim sobre o que ela sabia que eu pensava sobre elas. Ela me conhecia melhor do que ninguém. Eu não queria e nem gostava de fazer parte daquilo. Só de pensar em estar em uma festa com centenas de pessoas ricas e bem vestidas que me

julgariam e me olhariam torto ao me ver já me fazia querer desistir, mas eu não o faria, por ela; porque sabia o quanto era importante para Milena que eu fosse, que estivesse lá, porque ela também odiava aquilo. Eu me joguei na cama, derrotado. Sabia que não tinha como mudar de ideia. Era tarde demais, ela havia me feito jurar. Eu precisava ir. Um estouro alto vindo da cozinha me chamou atenção, em seguida ouvi Miguel praguejar, então soube que era só mais uma manhã igual as outras, portanto, eu esperaria no meu quarto por um bom tempo até que eles não estivessem mais lá e eu pudesse tomar um gole de café em paz. Minha mãe gritou com ele e em seguida um barulho de algo quebrando ecoou através do cômodo. Talvez fosse nosso último copo de vidro. Ótimo, para que servem os copos senão para arremessá-los durante uma briga? O último ano havia tornado a nossa convivência insuportável, de modo que eu sequer saía do meu quarto se não fosse para ir comer algo ou ao banheiro, porque tudo era motivo para uma discussão, para brigas; e então ele caia para cima dela ou de mim de novo, e de novo, um maldito círculo vicioso. Além, é claro, da quantidade de drogas que eu encontrava sobre a mesa de centro. As fileiras de cocaína, as buchas de pedra, as latas que ele usava para se drogar. Uma fila infinita delas. E estava aí o motivo pelo qual eu não tinha a porra de uma roupa descente, porque minha mãe estava ocupada o suficiente se drogando. Ah, que ótimo, agora vamos falar um pouco dela e de como ela havia chegado naquela situação de merda? Pois bem, Alma sequer me olhava nos olhos. Estava pouco se fodendo enquanto Miguel enfiava a mão na minha cara e me chamava de lixo e me fazia limpar sua sujeira. Quando eu me lembro de amor, meu pai me vem a cabeça. Não conseguia me lembrar de uma boa relação com a minha mãe nem se eu buscasse nas minhas lembranças mais antigas, mas nada se comparava a quem ela havia se tornado nos últimos anos; porque não ser uma mãe amorosa era uma coisa, agora, ser quem a minha mãe era, era outra completamente diferente. Eu tinha algumas lembranças de quando meu pai era vivo. Alma me chamando para almoçar, podando algumas plantas, o cheiro do café matinal enquanto meu pai esperava sentado no sofá comigo no colo. Talvez essas lembranças com ela não fossem um poço de amor, mas eram aconchegantes.

Era diferente, era bom. Eu gostava de definir minha vida daquela forma. Minha vida antes do Miguel e minha vida depois do Miguel. Depois que meu pai se foi passou apenas um ano, então minha mãe se casou novamente. Eu consigo me lembrar exatamente do dia em que ele esteve na nossa casa com algumas coisas que meu pai mantinha no armário de funcionários onde os dois trabalhavam juntos. Ele foi para levar essas coisas e ficou por lá mesmo, até que... Brasil. E lá estávamos nós, estava eu: um pai morto, um padrasto viciado e abusivo e uma mãe drogada. Oh, bela vida a minha. Quais eram mesmo as minhas opções? Quinze anos em dois meses e nenhum plano. Talvez eu devesse agradecer a Deus se chegasse vivo até os meus dezoito. — Javier, você está indo mesmo na festa daquela menina rica? — Minha mãe se debruçou sobre a passagem da porta e enfiou a cabeça para dentro do meu quarto com os olhos arroxeados nas bolsas que os contornavam. — Sim. — respondi no nosso idioma, ao mesmo tempo em que eu ouvia Miguel estalar os lábios logo atrás dela. — Isso é um sonho de merda, Javier. Você é um sonho de merda, Miguel. — Traga algo de rico para eu comer. — ela exigiu, cambaleando até mim, abrindo meu guarda roupas. Para quê? Pretender vender a comida também? Milena vivia insistindo para que eu falasse. “Falar faz bem”, “falar faz você se sentir melhor”, mas qual a parte da frase que diz que minha mãe vende até nossa comida para comprar drogas que me faria sentir melhor? Que engraçado, porque sentado na minha cama, encarando Alma procurar por uma roupa que sabia que eu não tinha, ainda não sabia responder. — Você vai trazer algo para nós? Traga nos bolsos. — ela insistiu e eu assenti, mentindo, porque sabia que ela insistiria até que eu concordasse que sim. Porque era exatamente o que ela sempre fazia. Insistia. Insistia em algo que ela mesma acreditava. Algo tolo ou fútil. Quem traz comida nos bolsos de uma festa de gente rica, afinal?

— Responda a sua mãe, Gilipolla. Eu não olhei para o lado, mas sabia exatamente que ele estava com os braços cruzados sobre o peito magro, tentando parecer ameaçador. Todo santo dia. Eu não respondi, claro, porque havia parado de falar há muito tempo. Eu me limitava a poucas frases e a não ser que estivesse com Milena, meu vocabulário se sustentava com palavras monossilábicas e uma lista infinita de diálogos internos que me deixavam louco e que aparentemente, o deixava também. — Talvez você devesse ficar dentro de casa essa noite. Talvez você esteja merecendo um belo castigo. O que acha, Alma, deixo ou não esse merdinha ir ao aniversário da namoradinha dele? Eu suspirei, engolindo minha vontade de juntar minhas poucas coisas e sumir no mundo. Quais eram mesmo as chances de eu acabar como ele? Um drogado de merda? — Escute aqui, Javier. — Minha mãe tirou um baseado enrolado do bolso de trás do short e o acendeu usando um fósforo. — Você está se tornando muito desobediente, precisa respeitar seu pai e eu. Meus olhos caíram sobre os seus, enquanto meu sangue corria rapidamente até meu rosto, me fazendo corar. — O caralho que é o meu pai. — As palavras saíram tão rápidas da minha boca quanto o punho dele acertou o meu rosto, fazendo minha cabeça bater na parede atrás de mim. Bom, ele não queria que eu falasse, afinal? — Filho da puta malcriado. — Ele acertou outra vez meu rosto e eu fechei meus olhos, me sabotando, pedindo que ele fizesse mais e mais daquilo, porque quanto mais seu punho tocava o meu rosto, mais eu o odiava; e naquele momento da minha vida, odiar Miguel era a única coisa que eu sabia fazer.

Eu estava atrasado, também estava consciente disso, principalmente por ter passado uma hora na frente do espelho encarando o grande estrago que estava o lado direito do meu rosto. Mas, nada me faria faltar aquela festa, porque eu havia jurado para ela e nada no mundo me faria quebrar aquela promessa. Por isso, apesar de estar malvestido e parecendo uma grande merda, eu soube que estava no lugar certo quando seus olhos encontraram os meus e ela correu para mim, enlaçando os braços atrás do meu pescoço, enquanto lágrimas corriam imediatamente sobre sua pele impecável do rosto. — Deus, Javi! O que aconteceu com você? Deus? Eu senti vontade de rir. Deus aconteceu para começo de história. — Yo estou bem. As pontas dos seus dedos tocaram a pele ferida do meu rosto e um gemido grotesco escapou dos meus lábios, fazendo até eu mesmo me surpreender por estar doendo tanto. — Você sempre diz que está, mas você sabe que podemos dar um fim nessa merda. Eu amava quando ela usava aquele vocabulário, porque era tão espontâneo e natural quanto o fato de minhas mãos estarem ainda sobre sua cintura, sentindo o grosso tecido do vestido lilás dela. — Você está linda. — eu a observei sorrir, secando uma lágrima. — Você sabe que eu não gosto de elogios assim.

Eu sabia o que ela queria dizer, então desviei os olhos dela por um segundo, encarando meus pés. — Guapíssima. — Sim, assim que eu gosto; e não, você sabe que lilás foi o tom mais próximo que minha mãe encontrou do rosa, que era proibido. — Sí, sinto muito, mas ella nunca compraria um vestido preto para sua fiesta de quinze años. — Eu sei. Por isso eu digo que expectativas são sentimentos que antecedem a decepção. Eu a encarei novamente. A coroa no topo da cabeça fazia com que seu penteado se tornasse ainda mais angelical e por mais que ela usasse aquela postura de menina rebelde, ela nunca deixaria de ter aquele toque... aquela doçura na forma como ela sorria, como andava ou até mesmo a forma como ela movia as mãos enquanto falava. — Eu acabei de dançar a valsa com o meu pai. Você perdeu a metade da festa. Sua mão tocou novamente a lateral do meu rosto e sem querer meus olhos caíram sobre seus lábios cobertos por uma fina camada de brilho labial. O cheiro de uva chegou até mim e pela primeira vez desde que eu conheci Milena, eu quis beijá-la de verdade. Quis correr meus dedos sobre o seu rosto enquanto a beijava. Enquanto sentia o gosto daquela camada sobre seus lábios, só para saber mesmo se era uva ou eu estava ficando louco. Talvez ela estivesse desconfiando da minha sanidade também, porque seus olhos arregalados me encarando me fizeram voltar para a vida e perceber que estava mesmo delirando. — Tudo bem aqui? — A voz de Gustavo alcançou meus ouvidos, me fazendo dar um passo para trás. — Que merda é essa, cara? — Ele deu um toque, me saudando, então se afastou dramaticamente, encarando o meu rosto como se eu fosse algum tipo de aberração de circo. — E aí. — Eu desviei os olhos. — Deveria ver o outro cara.

— Ah, eu aposto que sim. — ele riu e pelo olhar que direcionou para mim, eu soube o quanto ele sabia sobre aquilo, mas não me importei, porque eu gostava dele. Gostava da forma como ele protegia sua irmã e de como eles se amavam, mesmo que eu sentisse inveja algumas vezes por eles terem um ao outro. — E agora, a valsa da debutante. — a voz de sua mãe atravessou todo o salão e ela me encarou apavorada, no mesmo segundo em que todas as luzes foram apagadas e milhares de pontos de luz dançavam lentamente sobre todo o lugar, acompanhando a música que aumentava o volume a cada segundo. — Gus, leve ele até a mesa. Eu vou ver o que está acontecendo porque eu já dancei o inferno da valsa. — Ela segurou as laterais do vestido armado, levantando a barra para que pudesse correr até sua mãe, ao mesmo tempo em que eu me virava para Gustavo e o seguia até minha mesa. — Ela odeia tudo isso. — ele disse puxando uma cadeira e se sentando ao meu lado. Eu assenti, porque eu definitivamente sabia... havia ouvido o bastante sobre aquilo nos últimos meses. Eu a observei de costas para mim, um foco de luz iluminando seu corpo, enquanto outro foco encontrava um garoto que caminhava até ela, lentamente, sorrindo como um maldito idiota. Gustavo praguejou ao meu lado, mas eu não era capaz de desviar o olhar dos dois. Como um filme na televisão, como uma história sobre príncipes e princesas onde tudo era lindo e caro, onde eles caminhavam para perto um do outro e dançavam lindamente antes de declararem seu amor para o mundo. — Quem é aquele cara? — Eu sentia meu coração batendo tão forte quanto há poucas horas, quando o punho de Miguel acertava meu rosto. — Madison, ou seja, apenas um idiota. — Gus respondeu. Eu não conseguia desviar os olhos dos dois, da forma como a mão dela tocava a curvatura das costas dele como ela apoiava um braço atrás de sua nuca e a cada segundo que passava, eu sabia que a única coisa errada em tudo aquilo era eu estar lá, porque eu definitivamente não fazia parte daquilo. E quando eu finalmente olhei para o outro lado do salão, eu encontrei a mãe de Milena me encarando com um pequeno sorriso de satisfação.

Não, eu realmente não fazia. E minha promessa estava cumprida, o que significava que eu já podia ir.

Eu me sentia ridículo sentado no degrau da porta da minha casa sob o sereno da noite, encarando a mangueira jogada sobre o gramado malcuidado do nosso quintal, pensando em um milhão de coisas ao mesmo tempo. A imagem de Milena com aquele garoto não saía da minha mente, não importava quantas vezes eu tentasse pensar em algo aleatório. Eu ergui minha cabeça para o céu, pensando no que ela estava fazendo naquele momento na festa e todas as opções incluíam Madison e suas roupas caras de merda. Por que do dia para noite eu comecei a me importar tanto com quem Milena anda? Por que eu não queria a mão dele sobre ela e por que eu havia enlouquecido ao sentir o cheiro doce do seu batom mais cedo? Eu não queria me importar tanto, não daquela forma, porque ela era Milena Rabelo e eu era só o filho de uma viciada que estava se drogando bem neste momento, exatamente por pensar que eu ainda estava na festa. Não queria me importar mais, ainda faltavam dois meses para eu completar quinze anos, mas já sentia o peso do mundo nas minhas costas. O excesso de drogas, a mesa de centro sempre coberta por cocaína, minha falta de comunicação com o mundo, a forma desajeitada como eu ainda falava o português, Milena, a escola. Mesmo se eu forçasse a mente tentando pensar no meu futuro, eu não era capaz de imaginar nada para mim. Eu não via além. Tudo estava limitado a Miguel, minha mãe e as merdas deles e a única coisa que eu fazia bem era desenhar, mas o que inferno aquilo importava?

Eu vou acabar como eles. Era a única coisa que eu pensava, em acabar como eles. Porque era tudo o que eu conhecia. Eu fechei meus olhos, inalando o ar frio de final de abril, o cheiro de grama molhada era a única coisa que me fazia acreditar que tudo aquilo era real, enquanto minha mente vagava para bem longe, na festa, na imagem dos dois dançando sobre as centenas de luzes dançantes enquanto eu permanecia sentado em uma das mesas como um verdadeiro idiota que só estava lá porque era a única condição de Milena. Luzes vermelhas e azuis iluminaram o gramado assim que eu abri meus olhos. O carro da polícia parou a minha frente e dois homens altos e fardados saíram de dentro dele, caminhando até mim lentamente, enquanto meu coração batia forte, pensando na mesa de centro coberta de drogas a poucos metros deles e na merda que Miguel ou Alma deveriam ter feito. Eu me levantei desajeitadamente, tentando não parecer um drogadinho de merda como Miguel dizia, porque não queria ser confundido e tratado como um. Eu limpei a sujeira da minha calça e encarei os dois, ao mesmo tempo em que um dele se aproximou mais, dando dois tapinhas no meu ombro esquerdo, enquanto encarava o lado direito do meu rosto, onde estava machucado. — Qual o seu nome, garoto? — ele perguntou, fazendo meu coração bater mais rápido. — Javier. — Sua mãe está? — Ele se curvou até a porta, mas eu dei um passo para trás, rezando para que ela tivesse ouvido os barulhos e limpado toda a merda lá dentro. — Sí, está. Ele assentiu. — Hola. — Ela abriu a porta da casa e sua imagem fez meus olhos sangrarem. Usava apenas uma camisa branca com a gola esgaçada e seus cabelos pareciam tão duros e sujos como eles realmente estava. Eu ouvi o suspiro de um dos policiais enquanto o outro permanecia com a mão no meu ombro, agora um aperto leve, apenas para me lembrar de que ele estava ali, ao meu

lado. — Ella só fala espanhol. Yo posso traduzir. — eles se olharam, esboçando uma expressão de pesar, então um deles ergueu a mão, para que o outro desse continuidade. — É sobre Miguel Antunes. — ele disse e eu torci para que ele estivesse preso, porque passar um tempo longe dele era a única coisa que eu queria nos últimos anos. — Ele se envolveu em uma briga de bar... — ele fez uma pausa, enquanto eu traduzia para minha mãe. Ela colocou uma mão sobre a barriga magra e outra sobre a boca, ao mesmo tempo em que ele continuou a falar: — Eu sinto muito. As três palavras não precisaram ser traduzidas porque elas eram similares ao nosso idioma e imediatamente minha mãe se jogou no chão, gritando, enquanto eu permaneci encarando os dois, sem saber ao certo o que aquilo queria dizer. Eles sentiam muito por ele ter se metido em uma briga? — Ele está no hospital? — eu perguntei, encarando os dois. — Não, filho. Eu sinto muito, mas ele não resistiu aos ferimentos. — Oh. Miguel estava morto e aquilo foi a única coisa que eu consegui responder.

Capítulo 8 Milena, 16 anos Eu me encarei no espelho, analisando o resultado. Sim, eu gostava do meu cabelo liso, porque o loiro o deixava mais brilhoso e por mais que eu não fosse muito vaidosa, eu me importava sim com a minha imagem. Ou pelo menos me importava mais naquele momento, apesar de não conseguir assumir em voz alta o porquê. Eu passei um pouco de gloss nos lábios e grunhi por estar tão nervosa e estressada; então esfreguei minha boca com o antebraço, praguejando por estar agindo como uma idiota na frente do espelho, enquanto já deveria estar chegando na escola para o primeiro dia de aula depois das férias de julho. Eu me sentia doente, meu estômago doía e por mais que fizesse um frio maçante, eu suava sob o tecido grosso da minha jaqueta. Eu olhei para porta assim que avistei Gustavo ao celular. Ele gritava com alguém, furioso, ao mesmo tempo em que gesticulava como se a outra pessoa pudesse vê-lo; usava uma touca grossa preta, assim como toda a roupa e os sapatos. Estava mais magro do que nunca e tão alto que havia passado de nosso pai, chegando na altura do nosso tio Humberto, que era o filho mais alto da minha avó e meu parente preferido no mundo. Seus olhos azuis encontraram os meus e ele suspirou, deixando os ombros caírem, então ele cruzou os braços. — Desde quando você usa tanta maquiagem? — ele perguntou impaciente. — Você vai ficar aí até amanhã? — Desde quando você se importa em chegar cedo na aula? — eu suspirei, alcançando minha mochila sobre a cama. — Você faltou a metade do primeiro semestre, agradeça se puder entrar pelo portão hoje. Feliz aniversário, aliás. — Fui até ele e beijei apressadamente seu rosto, então voltei para a frente do espelho. — Obrigado e anda logo com isso. — Ele ignorou meu comentário, como sempre fazia ultimamente. Havia mudado tanto no último ano que as vezes eu desconhecia meu irmão, apesar de compreender, porque ser filho

dos nossos pais não era a coisa mais simples do mundo. — Oi, querida. — meu tio Humberto me cumprimentou assim que pisei no último degrau da escada. — Vamos logo, eu vou me atrasar para o trabalho. — Ele tocou a lateral das minhas costas, enquanto nós três caminhávamos até a porta. — Não é como se você pudesse ser demitido por isso. — gracejei, porque meu pai e ele eram sócios na mesma empresa muito antes de nós dois termos nascido. — É, não é? Mas seu pai não anda de bom humor ultimamente. — Ultimamente desde que nasci? — Eu enlacei o braço em suas costas ao mesmo tempo em que andávamos até o carro. — Eu estou atrasada, eu sei, não consigo mudar. — Gus grunhiu, concordando, me fazendo revirar os olhos. — Algumas coisas nunca serão capazes de mudar, não importa o que aconteça. — Ele encarou o meu irmão, bagunçando seu cabelo antes de abrir a porta do motorista. A forma como ele o tratava era incrível, como se tivessem uma ligação que Gus nunca teria com nossos pais. — Desde quando você se tornou um homem reflexivo pela manhã? Gus abriu a porta do carro e jogou a mochila sobre o banco me fazendo questionar o motivo dele carregá-la se a única coisa que levava para escola era um caderno e ele sequer o abria durante a aula. E a cada segundo que ficávamos mais perto da escola, o meu coração batia mais forte, e, apesar de eu não dizer em voz alta, tinha a mais absoluta certeza que tudo aquilo só estava acontecendo porque Javier estava lá e nós não nos falávamos há duas semanas.

Ele não foi a aula no primeiro dia depois das férias e eu sabia que não tinha nada a ver com o seu aniversário porque ele também não foi a metade das aulas no primeiro semestre. Javier não se importava mais em prestar atenção no professor e sequer fazia diferença para ele se eu estivesse furiosa por esse motivo ou se virasse a cara para ele. Porque ele não se importava mais comigo. Depois de despistar meus pais, mentindo que faria um trabalho na casa de Brisa, minha única amiga da escola, eu segui a pé até a casa de Javier, determinada. Precisava conversar com ele, mesmo que isso terminasse com Javier gritando para que eu parasse de me meter na vida dele como fez há duas semanas, mas eu apenas precisava. Ver a forma como ele havia mudado no último ano, após a morte de Miguel, me fez temer o que viria no futuro, porque a cada dia que passava, de alguma forma, ele se distanciava de mim. E não era pelo motivo dos meus pais proibirem o nosso contato, era porque ele queria. Porque ele se afastava de mim e eu sentia que sempre que dava um passo à frente, ele dava dois para trás. Duas semanas. Aquela frase se repetia na minha mente todos os dias em que estive longe dele. Duas semanas. Eu nunca havia ficado tanto tempo sem vê-lo e a distância entre nós fez com que um nó se formasse na minha garganta me impedindo de engolir minha própria saliva toda vez em que eu pensava sobre aquilo. Toda vez em que eu pensava em Javier. Na forma como ele me encarava, como sorria, nos seus olhos e na cor única que eles tinham, na

forma como ele me amparava, como me amava e na forma como eu precisava dele. Meu consciente estendeu o braço e me atingiu no rosto com um livro de autoajuda, cujo título era “Você não precisa dele para viver”. Mas eu o dispensei, porque ele não era qualquer um, era meu melhor amigo e minha pessoa favorita no mundo; e além do mais, não existia Milena sem Javier e não existia Javier sem Milena. Dia trinta de julho. Aniversário de Javier. Meu coração batia forte conforme eu corria, as mãos enfiadas nos bolsos laterais da minha jaqueta grossa, enquanto eu olhava para os dois lados da rua antes de atravessar correndo, sentindo o vento cortar a pele do meu rosto ao mesmo tempo em que eu ofegava, fazendo um tipo de fumaça sair da minha boca por causa do frio. A mochila pesada batia nas minhas costas a cada passo apressado que eu dava e meu cabelo escapava sob a touca preta, fazendo alguns fios caírem sobre os meus olhos. Àquela altura, todo o tempo que eu havia passado em frente ao espelho me arrumando, havia sido o maior desperdício porque eu estava um desastre. Eu dobrei a última esquina, entrando em um beco de estrada de chão onde ficava a casa de Javier, então diminui a velocidade, me concentrando na minha respiração, retomando o ar para que parecesse menos desesperada ao fazer meu pedido de desculpa. “Me desculpe por surtar com você, Javier. Eu estava morrendo de ciúmes porque você beijou Cassandra, a puta”. “ Me desculpe por chamá-lo de idiota, Javier. Você estava se afastando de mim e então você beijou a Cassandra, a puta, e eu enlouqueci”. Não, Deus, aquilo nem era um pedido de desculpas, eu precisava treinar mais. “Me desculpe por... Cassandra, Javier, sério? Cassandra, a puta?”. Certo, talvez eu devesse pular o pedido de desculpas e ir direto para a parte onde era Javier e Milena, Milena e Javier e não Javier e Cassandra, a puta. Beleza. Talvez eu precisasse somente controlar a minha respiração e parar de pensar em Cassandra, a... Eu apenas não conseguia pensar nela sem me lembrar do seu apelido. Eu freei bruscamente o passo na estrada de chão e derrapei, fitando a faixada da casa dele. E de repente meu coração começou a bater tão rápido que minha visão

começou a ficar turva e quando vi, estava suando, mesmo fazendo tão frio. A casa parecia ainda mais desleixada. A grama estava tão alta que era impossível enxergar o trilho do portão, que agora não existia mais. Uma bicicleta velha estava jogada no quintal, um saco cheio de latas amassadas de cervejas, um par de tênis lamacento em frente a entrada da porta velha sem pintura e sem fechadura, apenas o buraco onde ela esteve um dia. Eu a empurrei, ouvindo o ruído alto das dobradiças enferrujadas ao tempo em que ela ia abrindo, me dando a visão do interior da casa. Latas e mais latas de cerveja, três garrafas de cachaça barata, um prato com uma comida velha onde uma barata caminhava sobre. Eu me arrepiei com a imagem a minha frente. Uma falta de higiene absurda, que não fazia parte da minha realidade e que eu não imaginava o quanto havia se intensificado no último ano, porque eu não havia aparecido mais desde que ele pediu. Ele não me queria em sua casa e eu sabia o motivo. Meus olhos deslizaram para a sala e a imagem de sua mãe deitada sobre o sofá fez meu sangue esvair enquanto eu corria até ela, encarando a quantidade absurda de drogas sobre a mesa de centro. Seringas, uma lata queimada com um furo na parte inferior. Que tipo de drogas eram aquelas? Eu chequei seu pulso, estava fraco, mas estava lá, mesmo que eu pudesse jurar que ela estava morta. Ela parecia morta. Sua pele estava machucada. Os braços arroxeados expostos ao frio. O cabelo mal pintado. Pele e osso. A situação de Javier nunca havia sido boa, mas eu não fazia ideia de que era tão ruim. Eu sabia que Alma usava drogas; inúmeras vezes ele havia me falado que ela não suportaria por muito tempo, mas você só consegue ter noção de uma realidade quando você vive ela. Ele vivia aquela. Uma realidade suja, feia e podre e por mais que eu quisesse gritar com ele e dizer o quanto havia me deixado de lado e mudado no último ano, eu entendia que ninguém continua sendo o mesmo vivendo aquele tipo de vida, e que tudo era banal e fútil comparado ao que estava diante dos meus olhos naquele segundo. Eu caminhei a passos lentos até o seu quarto e abri a porta que ele mesmo havia colocado lá. Enfiei a cabeça para dentro do cômodo, mas Javier não estava, então eu entrei. Um colchão no canto esquerdo do chão e o mesmo roupeiro desde que havia se mudado para o Brasil e que àquela altura não possuía mais as portas e as frentes das gavetas. As roupas estavam

perfeitamente dobradas dentro dele, assim como as duas cobertas sobre o colchão. Mesmo que ele tivesse pouca coisa, tudo era limpo e organizado, diferente do restante da casa. Dezenas de folhas de papeis com desenhos feitos a mão, a caneta e a lápis, cobriam a parede ao lado da porta e eu imediatamente caminhei até eles, encarando-os, admirada por nunca tê-los visto. Javier nunca me deixava ver seu caderno de desenhos e aparentemente havia colado todos eles na parede por saber que eu não iria mais lá. Era como ter a vida dele exposta em frente aos meus olhos. Como vê-lo nu e cru. Quem ele realmente era. Era como ouvir todas as palavras que ele nunca disse. Eu caminhei até ficar de frente com cada traço, encarando, boquiaberta, o trabalho bem feito de um artista que sequer fazia ideia do tamanho do seu talento. Dezenas deles se repetiam, cada vez de um ângulo diferente, mas muitos eram a mesa coisa, uma bicicleta em pé sobre um amplo gramado e duas pessoas olhando para ela. Um homem adulto segurando uma chave de fenda e um menino. Um menino lindo, sorrindo de todos os ângulos. Os desenhos ficavam misturados a muitos outros diferentes e um rosto preenchia quase a outra metade das dezenas de papéis. O mesmo rosto. O rosto de uma garota com diversas expressões. Meu coração batia depressa. Era o meu rosto. A mesma pinta que eu tinha embaixo do olho esquerdo. E de repente tudo o que eu conseguia ver era a minha imagem preenchendo todo o quarto de Javier e estar lá, encarando meu rosto, algumas vezes desenhado de forma tão crua e lasciva, fez meu corpo inteiro esquentar. Porque era eu. Não era Cassandra, a puta. E eu sorri, feliz, ignorando a podridão escondida por uma parede atrás de mim. — Qué cuños você faz aqui? Duas semanas sem ouvir a voz de Javier. Era como músicas para os meus ouvidos e eu me perguntei em qual momento da minha vida eu tinha me apaixonado pelo meu melhor amigo, porque vê-lo, na minha frente fez o sangue parar de correr dentro das minhas veias e me fez querer correr até ele, abraça-lo e nunca mais soltar. Eu encarei seu rosto, a pele mais bronzeada deixava a cor dos seus olhos ainda mais indecifrável e no último ano ele parecia ter ganhado no mínimo três.

Ele estava muito mais alto, de modo que minha cabeça ficava na altura de seus ombros, agora mais largos. Javier não parecia um garoto de dezesseis anos e eu me perguntava qual aparência seu pai tinha, se era tão alto quanto ele e... tão bonito. E depois de pensar sobre tudo aquilo, de analisar a sua aparência e resistir a vontade que senti de abraçá-lo, eu finalmente lembrei que ele havia me feito uma pergunta e que eu precisava respondê-la. — Por que você está fazendo isso? — Tienes que ir. — Ele deu um passo para trás, para que eu pudesse passar, mas eu não o fiz. — Por que está agindo assim, Javier? Eu... só... me desculpe por Cassandra, eu... Você só merece alguém que... — Cassandra? En sério? Você acha que tudo esto é por causa dela? — E por que então você... Isso é uma tatuagem? — Eu puxei seu braço e ergui a manga do seu moletom, encarando os traços. O desenho perfeito de um lobo em frente a alguns pinheiros pintados de um tom muito escuro ocupava todo o lado interno do seu antebraço. Um nó enorme se formou em minha garganta, porque aquilo era algo que eu queria ter participado. Eu queria estar lá na primeira tatuagem dele, na primeira vez dele para tudo, porque era assim que as coisas aconteciam. Primeiro dia de aula na escola nova, primeira vez em um parque de diversões, primeira vez no cinema, primeira vez na praia, primeira vez em uma pizzaria. — É o que parece, no es? — Ele puxou o braço de volta, andando até a janela, tentando me evitar. — E o que significa? — perguntei ignorando a forma como ele estava agindo. — O lobo é reverenciado por sua habilidade de sobrevivência, mesmo em ambientes hostis. — ele disse as palavras mais difíceis com o sotaque espanhol ainda mais forte, — Qué te parece esto? — Ele apontou na direção onde eu sabia que sua mãe estava deitada. — O que te parece toda essa merda, Milena? 5

— Eu não sei porquê de você está agindo como um... gillipollas — Eu

usei a palavra que ele mais usava quando insultava um idiota e seus olhos encontraram os meus pela primeira vez. — Mas espero que você vá se foder! Foda-se, Javier, foda-se! — Eu já sou um cara fodido, Milena. Não importa o quanto você deseje isso. Uma parte minha queria gritar com Javier e a outra, ainda maior, queria abraçá-lo e dizer que tudo ficaria bem, que tudo daria certo no final; mas eu não sabia se era verdade, eu não fazia ideia se tudo ficaria bem, porque eu não sabia o que era ter uma mãe drogada, eu não fazia ideia do que era morar no meio do lixo, rodeada de podridão. Mesmo assim, mesmo não sabendo eu disse: — Tudo vai ficar bem. Os olhos dele encontraram os meus e ele manteve seu olhar, me encarando de uma forma que eu não estava acostumada. — Otimismo só es valido quando se tem certeza, porque senão não passa de esperança; e ter esperança, para um tío como yo, só faz a decepção ser ainda maior. — Então só me diz, Javier, o que eu posso fazer por você. — Você quer mesmo saber, amor? — Ele deu um passo à frente, chegando perto de mim, as veias do seu pescoço evidentes, enquanto ele forçava os dentes, deixando seu maxilar marcado pela força que fazia enquanto tentava se controlar. Ele havia mudado demais. — Sim, é o que parece, não é? — eu aumentei o tom de voz. Javier deu três passos, lentos, mas significativos o suficiente para me fazer caminhar para trás, encostando minhas costas na parede cheia de papéis colados. A medida em que eu me encolhia, arfando, sentindo a pele do meu rosto arder, enquanto ele chegava mais perto, seu peito quase tocando meu queixo erguido. Eu fechei os olhos por um breve momento, mas só porque eu vacilei ao sentir seu cheiro. O cheiro de Javier. Eu abri meus olhos e o encarei, ainda esperando por uma explicação.

— Você quer saber o que pode fazer. Você pode parar de reclamar da sua vida perfecta, para começo de história. Pode parar de criticar sus padres o tempo todo, porque sí, yo também proibiria minha hijita de estar sempre andando com um merda como yo. 6

Eu deixei escapar uma lufada de ar à medida que começava a sentir as lágrimas queimarem os meus olhos, porque havia tanta coisa que eu queria dizer a ele, mas que eu nunca teria coragem. Havia tantas coisas erradas naquela frase que eu sentia a necessidade de bater nele até que ele parasse de se depreciar daquela forma. — Okay, agora você está sendo egoísta consigo mesmo, Javier. — Olha a sua volta, Milena. Mira toda a podridão que eu estou submerso. — um soluço deixou meus lábios juntamente com as lágrimas que consegui prender até aquele momento. — Você não é como ela, Javi. — Não? Você sabe? — eu desviei o olhar, secando as lágrimas com a manga da minha jaqueta. — É nisso que eu acredito. — eu o encarei novamente e agora ele quem desviou o olhar. — Você tem seus amigos, tem o Madison. Você vai ficar bien com ele. — Madison, sério? Tudo isso é porque ele me beijou há... — Duas semanas, exatamente o mesmo tempo que estávamos sem nos falar. Duas semanas. Merda. — Não significou nada, Javier. Ele apenas entendeu errado. — Ele me lançou um riso pungente e eu senti meu peito rasgar de dentro para fora, sentindo em poucos minutos algo que eu achei que seria incapaz de sentir em toda a vida. Uma dor tão forte que me fazia querer beijar Javier. Me fazia querer transformar toda aquela merda em algo bom. — Eu estou trabalhando muito, yo não tenho tempo para isso. Não tenho tiempo para todo esse drama. — Não tem tempo para mim? Você sempre teve, Javier. 7

— Até el tío que sustentava a casa morrer e eu ter que assumir o papel dele. Se eu não trabalhar, eu não como. Ela não come.

Mais lágrimas rolaram por meu rosto. Era injusto de todas as formas possíveis. Era triste e cruel que um garoto como ele precisasse passar por tudo aquilo, que precisasse erguer tijolos e fazer concreto embaixo de sol e chuva para que sua mãe e ele pudesse comer. — Eu não quero ser a sua ponte para toda essa merda, Milena. Então vete, enquanto ainda há tempo. Eu toquei as lateais dos seus braços, deslizando meus dedos para cima, fazendo a curvatura do pescoço, até tocarem a lateral do seu rosto, sentindo sua pele macia sob a minha. Ele fechou os olhos e o suspiro que deixou escapar foi tão angustiante que me fez enxergar uma parte que eu ainda não conhecia de Javier. A parte vulnerável dele. A parte que a partir daquele momento eu passei a amar mais. — Não importa o quanto você me mande embora se o que você diz não é o que realmente quer. Eu não vou. Sua respiração acelerada era capaz de ser vista através do grosso tecido do seu moletom e vê-lo daquela forma me fez perceber que ele sentia o mesmo que eu, mesmo que tentasse mascarar na maior parte do tempo. — Porque não existe Javier sem... Ele se curvou para frente, tocando seus lábios nos meus, suas mãos segurando as laterais do meu rosto enquanto eu descansava as minhas nas laterais da sua cintura. Ele me segurava com tanta cautela que eu acreditei que ele sentia que poderia me quebrar com um beijo, a medida em que ele sugava meu lábio inferior, gemendo satisfeito e eu só percebi que não estava respirando quando os meus pulmões começaram a queimar. — Feliz aniversário, aliás. — eu disse, sustentando um pequeno sorriso quando ele se afastou por um segundo, antes de voltar a me beijar. Eu me sentia perdida, mas é necessário que esteja perdida para que possa se encontrar. E eu havia me encontrado, porque era ele quem estava me beijando e porque não existia Milena sem Javier.

Capítulo 9 Javier, 17 anos As minhas mãos calejadas sangravam àquela altura depois de passar todo o final de semana trabalhando como um animal, erguendo tijolos, fazendo massa e servindo como burro de carga, carregando sacas de cimento sobre os ombros. Meu corpo todo doía. Cada pedaço de musculo pedia socorro. Mesmo assim, não era o suficiente. Nunca era o bastante, porque a geladeira nunca se mantinha cheia. A conta de luz vinha alta demais e o vazamento de água que não percebemos havia feito um rombo no meu orçamento. Eu empurrei para o chão todas as merdas que estavam sobre o sofá e me sentei nele, exausto, chutando com os pés as latas de cerveja sobre a mesa de centro para que eu pudesse apoiá-los. Eu soltei um suspiro de alívio, contemplando, por um breve momento, o silêncio instalado lá, até que a preocupação começou a me atormentar novamente, apontando um dedo na minha cara, me julgando por estar agradecendo o fato de minha mãe não estar em casa, mesmo que ela pudesse, e provavelmente estivesse, correndo perigo nas ruas. Mas eu só queria um momento, um segundo ou dois para absorver o meu dia de merda antes de começar a lidar com toda a sujeira, que era ainda mais desgastante do que arrastar barras de ferro por um quilometro de construção. Eu usei os pés para tirar meu coturno desamarrado antes de enfiar a mão no bolso e alcançar meu maço de cigarros, então eu o abri e tirei meu isqueiro de dentro, acendendo um cigarro e puxando o ar com força o suficiente para que pudesse encher completamente meus pulmões, sem nenhum remorso por estar fodendo com eles aos meus dezessete anos de idade, porque todo mundo sabe que idade não queria dizer nada no meu caso. Eu soprei a fumaça para cima e fechei os olhos, tentando aproveitar o máximo possível do meu momento de silêncio, pensando no quanto eu amava aquilo, pensando no quão bom seria poder viver sempre daquela forma, podendo fechar os olhos e me concentrar no barulho das cigarras cantando longe, nos ruídos que faziam os pingos que caíam da calha mal encachada.

Eu abri meus olhos quando um trovão rasgou o céu, a tempo de ver um relâmpago iluminando a janela atrás das cortinas e a imagem de Milena surgiu na minha mente, exatamente como sempre acontecia nos meus poucos momentos livres de reflexão. O rosto angelical dela, as mechas dos cabelos claros caindo sobre ele, a forma como ela me tocava, como me encarava, esperançosa, esperança. Milena me fazia, de alguma forma, sentir esperança; mas aquela sensação que eu sentia sempre quando estava no fundo do poço se instalava logo que ela ia embora, porque eu não conseguia manter aquele sentimento por muito tempo, não sendo criado da forma como eu fui. Que tipo de esperança se sente a respeito de um cara como eu? Que tipo de coisa alguém pode esperar de mim? O que ela achava que podia acontecer? Que eu me formasse no ensino médio e corresse para a faculdade? Mesmo que eu conseguisse uma bolsa, o que era quase impossível, porque no meu tempo de folga que eu poderia usar para estudar, eu tinha que trabalhar e ainda tinha a minha mãe. Como ela sobreviveria comigo fora todo o tempo? Faculdade é coisa pra ricos, porque ou você paga uma boa grana para estar lá ou consegue uma bolsa; mas para isso você precisa estudar em todo o tempo em que não está na escola, que é exatamente quando você está trabalhando. E mesmo que eu conseguisse uma bolsa e não tivesse que batalhar tanto por ela, como eu trabalharia e estudaria tendo aulas em momentos aleatórios do meu dia? Eu soltei a fumaça presa nos meus pulmões e esfreguei o rosto, sentindo as palmas das mãos latejarem, pensando outra vez na minha mãe, sentindo a mais absoluta certeza, como das outras milhares de vezes que eu havia pensado sobre aquele mesmo assunto, que não ia rolar. Que Javier Muniz nunca estaria numa faculdade. Sendo assim, que futuro Javier teria? Pensando sobre mim na terceira pessoa, tentando de todo o jeito achar uma forma que pudesse encaixar Milena na sua realidade, mas não era possível. Não existia nenhuma forma que me fizesse pertencer ao seu mundo ou que a fizesse se encaixar no meu, porque éramos o oposto e mais do que isso. Eu fazia mal para ela. Eu fazia mal para Milena. Eu a fiz acreditar por um momento que daria certo, então eu arranquei tudo dela e me afastei. Eu fugi. Eu fugi de Milena, do que sentia por ela, e, desde então, eu me sentia morto. A porta da frente foi aberta e minha mãe atravessou a cozinha

cambaleando, murmurando um milhão de coisas imundas, abrindo os armários e derrubando tudo para fora deles, procurando por algo. Eu não sabia se ela realmente havia colocado algo lá ou estava delirando, porque todo dia era uma coisa diferente, embora tudo se baseasse na mesma merda. Ele passou por mim, ignorando a minha presença, como sempre fazia, então abriu o armário onde antigamente ficava a televisão — que ela havia vendido para comprar drogas —, retirou um pote de lá e espalhou todo o conteúdo sobre a mesa de centro, sobre os meus pés. O sal preencheu cada espaço vazio da mesa e eu suspirei, buscando no meu interior qualquer indício de paciência, porque eu sentia uma raiva tão grande dentro de mim que as vezes achava que em algum momento meu autocontrole não seria o suficiente. Ela espalhou o sal com as mãos, como se procurasse algo em meio a eles, mas provavelmente estava delirando. Então ela finalmente me enxergou, porque provavelmente queria alguma coisa. — Ladrão! — ela gritou para mim, apontando o dedo na minha cara. Eu recolhi meus pés cobertos de sal da mesa e a encarei, me concentrando em minha respiração. — O que foi que eu roubei agora? — Você... Miguel está certo, você é um merda! — Ela empurrou o dedo no meu rosto e eu o segurei. — Miguel está morto. — Desgraçado! — Ela acertou o meu rosto com a mão livre e eu a segurei, tentando fazê-la ficar calma. — O que você quer, Alma? — perguntei. impaciente, me perguntando o que eu fiz para merecer tudo aquilo todos os dias, se tudo o que eu fazia era apenas tentar sobreviver. — Dinheiro! Eu quero dinheiro! Preciso comprar algo para comer. — ela mentiu enquanto tentava fugir do meu aperto. — Tem comida na geladeira. — Seu ladrão de merda! Você roubou o pendrive! — Ah, sim. E porque você guardaria um pendrive dentro de um pote de

sal, que oxidaria a placa dele? — eu perguntei impaciente. Àquela altura eu já havia passado tantas vezes por aquela mesma situação que eu nem tentava mais consertar as coisas, porque eu sabia que tudo já estava perdido. A minha única alternativa naquele momento era interná-la no próximo ano quando eu fizesse dezoito anos, já que não teria o conselho tutelar na minha porta me levando para algum abrigo. Mas para que isso acontecesse, precisávamos estar vivos. Então eu a larguei e apontei para que sentasse no sofá ao meu lado. Eu estendi o maço de cigarros em sua direção e ela o pegou tão rápido que suas unhas rasparam na pele da minha mão, fazendo um pequeno corte. — É tudo culpa do governo, Javier! Eu precisava esconder aquele pendrive... — Ela olhou para os lados, se certificando que ninguém estivesse ouvindo. — do presidente. Eu suspirei, cansado, então passei as mãos pelo rosto novamente, com força, esfregando-o antes de finalmente encará-la, Alma ainda me olhava, agitada, esperando que eu concordasse com aquela loucura, então eu assenti, levando o indicador até meus lábios, fazendo sinal de silêncio, participando daquele cenário que ela havia construído na cabeça. — Não fale isso em voz alta. Ela concordou, acendendo um cigarro. — Posso ficar com isso? — ela ergueu o maço, sinalizando-o e eu assenti, antes de pegar outro cigarro e acendê-lo. — Eu escondi o pendrive. Está em um lugar seguro. Minha mãe se levantou, foi até a janela e abriu uma pequena fenda na cortina, espiando a estrada. — Estamos seguros. Três batidas na porta fizeram minha mãe pular no meu lado, cravando suas unhas na pele do meu braço. Então eu fiz sinal pedindo silêncio e caminhei até ela, abrindo-a, avistando Gustavo do outro lado, na medida em que eu sinalizava para minha mãe que estava tudo bem. Eu calcei meus sapatos, fechei a porta atrás de mim e me virei para o meu mais novo amigo.

Depois que Gus reprovou na escola, no ano anterior e acabou na mesma sala que Milena e eu, nós começamos a nos aproximar e eu acabei me surpreendendo com a forma na qual ele se infiltrou na minha vida, estando por perto sempre que eu precisava, sem se importar com todas as merdas a minha volta. — E aí?! — ele me saudou enquanto nos distanciávamos da casa. 8

— Qué pasa ? — No pasa nada! — Ele imitou meu sotaque espanhol, enquanto enfiava um cigarro na boca. 9

— Gillipolla, você sabe que o que su hermanita acha sobre você fumar. — Sobre nós fumarmos. — Ele apontou o dedo indicar para nós dois, duas vezes, antes de levar o isqueiro próximo ao rosto e acendê-lo. Falar sobre Milena era difícil pra caralho, porque não havia um dia sequer que eu não pensasse no cara de merda que eu estava me tornando e no quanto a havia magoado no último ano, depois de beijá-la pela primeira vez e dizer a ela que não podíamos seguir em frente. Mas porra, como eu faria aquilo dar certo se tudo o que me rodeava era podridão, enquanto Milena tinha uma vida linda pela frente. Ela precisava se formar no ensino médio e ir a faculdade. Ela teria um futuro bom sozinha e as vezes você precisa ser altruísta e deixar que a outra pessoa acredite que é o oposto, porque quem ama, cuida e eu amava Milena com todas as minhas malditas forças e estava cuidando dela. — Como ela está? — As palavras deixaram minha boca antes mesmo que eu pudesse pensar sobre o que ele pensaria sobre eu estar fazendo aquela pergunta. Confuso. — Tentando. — Ele deu uma longa tragada enquanto eu sentia minhas tripas formarem um nó. — Lo siento, você sabe. — É, eu sei. — Nós deixamos o quintal da minha casa, em direção ao beco escuro onde sempre sentávamos quando Gus ia me visitar.

— Você não foi a aula de novo. 10

— Joder , isso se torna viciante. — confessei, porque quanto mais você falta a aula, mais você sente que lá não é o seu lugar. — Eu sei como é... cá estou eu, repetindo a porra do ano. Eu ri ao me lembrar da cara que Milena fez quando viu seu irmão entrando pela porta da nossa sala, depois de mentir que havia passado de ano. — Você é um fodido de mierda. — Eu estiquei o braço, pedindo um cigarro para o meu amigo e ele me entregou, levando o isqueiro até o meu rosto, acendendo-o para mim. Eu tirei a minha touca e passei a mão pelos cabelos, sentindo o alívio de estar descansado depois de um dia pesado no trabalho. — Eu sei. Por isso Milena não disse nada ao nossos pais. Depois eu me viro e foda-se aquele idiota egoísta, foda-se a faculdade de administração e foda-se aquela vida de merda. — Ele levou a mão até o bolso da frente do moletom e tirou um baseado de lá, então o acendeu. Eu encarei os cadarços desamarrados do meu coturno, minha mente viajando para longe de mim, pensando em Milena outra vez, porque não havia ido à escola naquela semana e fazia alguns dias que eu não a via; e apesar de querer estar com ela cada maldito segundo do dia, eu não podia. Eu precisava me afastar, precisava ser um idiota para que tudo fosse mais fácil para ela, para que Milena fosse embora no ano seguinte quando estivesse formada, e não pensasse duas vezes sobre o que ela queria. Eu só precisava que ela fosse embora sem olhar para trás. — Ter dinheiro não me faz menos fodido que você, Javier, você sabe disso. Eu sabia? Talvez, porque eu não fazia ideia do que era ter dinheiro ou ter pais saudáveis, estáveis e não viciados. Tudo o que eu conhecia sobre estabilidade parecia ter se passado em outra vida. Agora a minha realidade era algo que me deixava apavorado, porque eu nunca sabia como seria no próximo nascer do sol; e apesar de Gus viver uma vida de merda, uma coisa ele tinha certeza: ele teria o que comer no dia seguinte. Mesmo assim, quem era eu para julgá-lo? Porque você só pode opinar sobre uma situação depois

que você a vive. — Quer uma bola? — Gus esticou o braço e eu encarei o baseado queimando sozinho. A primeira coisa que veio em minha mente foi Miguel, a forma como ele fumava e influenciava minha mãe a fazer o mesmo. Lembranças da minha infância me inundaram, como um maldito lembrete da podridão que estive submerso desde que ele apareceu na nossa porta pela primeira vez. Para qualquer outra pessoa, aquilo seria o suficiente para que recusasse aquele terrível convite ao inferno. Mas eu não era qualquer pessoa. Eu era Javier, fodido de todas as formas. Uma merda a mais, uma merda a menos, não faria mais diferença àquela altura. Então estiquei o braço e toquei a seda macia com a ponta do polegar e do indicador, levando-o até a minha boca, fazendo o que eu sabia fazer de melhor. Me sabotar. — E que haces aqui uma hora dessas? — Eu passei o baseado para ele. — Você gosta de festas, Javier? — Gus me encarou com um sorriso diabólico. — Não. — respondi, desinteressado. — Isso é porque foi ainda não foi ao tipo certo de festa. — Isso nem é uma coisa. Eu me encostei no muro atrás de mim, olhando para o céu, sentindo o sereno cair sobre a pele do meu rosto, me sentindo alto. Meus batimentos estavam mais fracos, minha mente não estava trabalhando tão rápido quanto de costume e eu sequer estava preocupado com o dia seguinte, pelo menos naquele segundo. — Claro que é... tipo o que Milena fala sobre a leitura. — Pensar em Milena me fez enxergar o dedo dela apontado para mim, me julgando por estar tão alto. — Não existe alguém que não gosta de ler, e sim alguém que ainda não encontrou o seu tipo de livro. Ou alguma merda parecida. — Sorri. — Alguma mierda parecida com esto.

— É. — Ele saiu do meu lado, ficando frente a frente comigo. — E então, você está pronto? — ele insistiu. 11

— No es como se tivesse muitas opções de roupas, compa . — ele riu, apontando para o carro que havia ganhado de aniversário de dezoito anos, há um mês. — Você está um gato assim. — Eu ri alto pela primeira vez em semanas, porque Gustavo era o tipo de amigo que todo mundo deveria ter. Ele era verdadeiro e aleatório. Como Milena. — Vou passar na casa do Matteo, mande um SMS para ele. — Ele me entregou seu celular e eu o encarei como se fosse um alienígena. — Por Dios, como diabos eu uso esto? — Fala sério! — Ele o pegou de volta e digitou algo nele, então o enfiou no bolso do moletom. — Você nunca vai conseguir nenhuma garota se não tiver um celular. Eu sorri. — Yo nunca precisei de um desses antes. — ele grunhiu, ignorando meu comentário, enquanto eu lembrava que a única garota que eu queria de verdade, na verdade, nunca poderia ter.

Muito tempo havia se passado e eu permanecia no mesmo lugar desde que atravessei o portão principal e me sentei em uma das espreguiçadeiras em frente a imensa piscina. As mesmas garotas ainda nadavam na água aquecida, enquanto um vapor quente a deixava. Gus e Matheo permaneciam

conversando sobre o mesmo assunto desde que chegamos e eu sequer fazia ideia de como opinar sobre o modelo de um carro, porque eu podia contar nos dedos quantas vezes havia entrado dentro de um. A música eletrônica alta exigia que os dois gritassem entre si, e eu podia jurar que ela tinha uma duração de três horas, porque eu sentia que estava prestes a enlouquecer. Meus olhos percorreram as dezenas de pessoas que me rodeavam e eu tentei buscar algum significado em tudo aquilo quando minha mente voltou a funcionar a todo vapor, me convencendo que de qualquer forma, estar lá era melhor do que qualquer outra coisa que eu poderia estar fazendo em casa, como por exemplo, tentar convencer minha mãe que o governo não está atrás de nenhum pendrive. Havíamos fumado dois baseados e eu me sentia calmo, tranquilo, embora parte de mim ainda se sentisse perdido, exausto e de saco cheio. Porque eu estava cansado de decepcionar a única pessoa que eu tinha ao meu lado, Milena. Eu estava tão cansado de toda aquela merda, de não poder ser um garoto normal, de não ter uma vida como a deles, como de qualquer outro. Gus levantou o olhar quando dois caras atravessaram o pátio em nossa direção, e eu percebi na forma como ele caminhava apressadamente, que estava todo aquele tempo esperando por eles. Gustavo deu um abraço em um deles e apesar do movimento ter sido muito sutil, eu fui capaz de perceber uma pequena troca entre os dois. Ele saudou cada um com um toque e voltou para onde eu estava, mantendo a mão enfiada em um dos bolsos da frente. Eu sabia que independente do que ele tivesse pego deles, seria uma grande merda. Gus encarou os caras até que atravessassem o portão, então ele tirou três pacotes transparentes do bolso e os jogou sobre o meu colo e o de Matheo, enquanto abria o terceiro deles, com um sorriso sempre brincando em seu rosto. — Coloque essa gracinha na língua e tenha uma ótima noite!

Independentemente do que eu quisesse fazer, meu corpo exigia que eu não parasse de me mexer. Ansioso, nervoso, elétrico, eu não conseguia parar. A música eletrônica fazia sentido naquele momento e parecia incrível. Conforme eu ouvia cada nota, ela fazia com que eu me movesse junto, acompanhando cada batida. Eu tomei o último gole da minha água e antes mesmo de engolir, eu queria mais, muita água, estava com muita sede. Gus sorriu para mim e colocou um braço apoiado no ombro de Matheo, falando algo no ouvido dele, enquanto apontava para uma garota, então ele também sorriu e eu sorri para os dois, me sentia bem, me sentia feliz. Principalmente, me sentia vivo. — É essa merda aqui, Javi. É isso aqui que eu quero que você faça. — Do que está falando, Tío. — Isso aqui! — Matheo tirou uma mão do bolso, com drogas o suficiente para enlouquecer todos os convidados daquela festa. — É viver de verdade! — Pensa bem, Javier, Matheo, todos os seus problemas com dinheiro. Porra, eu ganho muita grana com isso, e juntos, nós três podemos ganhar muito mais! 12

— Joder, Gus, você está flipando ? — Olhe os meus bolsos e você vai saber se estou! Porra, Javier! O que você acha que eu faço todo o tempo em que passo fora da escola? — Ele esboçou um sorriso insano.

— É muita grana, Javier. — Matheo deu um passo a frente, me encorajando. — Não é como se isso fosse nos corromper... você sabe, nós já estamos na merda. — Ele deu de ombros. 13

— De onde sacaste esta puñetera ideia? — Vocês dois ainda não fizeram dezoito, ainda tem quase um ano para ganharem dinheiro. Eu sou o único que estou me arriscando aqui. — Ele levantou as mãos para o alto, ignorando a minha pergunta. — Você acha que porque meus pais têm dinheiro que eu também tenho? — A legítima frase que todo tío que tem dinheiro fala. — Pense sobre isso. — ele gritou quando eu virei. — Cinco mil para começar. — eu freei os passos, as palavras ricocheteando em minha mente. Cinco mil. Eu precisava trabalhar meio ano para ganhar tudo aquilo que ele havia me prometido em cinco minutos de conversa. Quanto um cara precisa fazer para garantir seu espaço no inferno ao lado do diabo? Eu não tinha certeza, mas sabia que havia acabado de garantir o meu. Não importava o quanto eu tentasse me manter fora de todas aquelas merdas, porque para um garoto como eu, tudo gira em torno do mal, do ruim, do podre, como um maldito imã que te puxa sempre que você está quase saindo, porque não há muitas possibilidades lá em cima. Não há um futuro me aguardando, há apenas a sobrevivência. 14

— Acepto . — Eu estendi a mão para selar nosso acordo, mas quando olhei sobre os ombros de Gus, encontrei Milena me encarando. — Você... Puta merda! — Ela tocou a ponte do nariz enquanto os olhos se enchiam de lágrimas. — Eu sabia que você estava envolvido em alguma merda, Gus... e... — Ela me encarou, o olhar carregado de descrença e decepção. — Quando foi que você se tornou isso? Milena secou uma lágrima solitária antes de virar e correr em direção ao portão, me fazendo, por impulso, correr atrás dela. Eu a alcancei assim que chegou do outro lado, onde muitos carros estavam estacionados, então toquei seu antebraço, tentando contê-la. As lágrimas corriam livremente sobre seu rosto angelical, fazendo meu coração quebrar ao vê-la tão vulnerável. Eu estiquei o braço e sequei sua bochecha e ela desviou o olhar ao sentir o dano

que o contato de nossas peles causava. Dei um passo à frente. Fazia tanto tempo que eu não a encarava e a enxergava de verdade que fazê-lo naquele momento me fez querer ir contra todos os motivos que me mantiveram longe dela até aquele instante. Eu a senti sob meus dedos e o pequeno gesto a fez inclinar a cabeça levemente para o lado, sentindo a palma da minha mão e instantaneamente meu corpo se aproximou do dela como um maldito imã que não conseguia se afastar por mais que eu tentasse. Estava a um passo de distância de beijá-la, meu corpo suplicava, ele implorava que eu a mantivesse sob meus braços, meu aperto... mas eu não podia, havia lutado demais para que nos afastássemos nos últimos meses, lutado para que ela pudesse seguir livremente no próximo ano e com muito esforço, eu dei um passo para trás. Foi o suficiente para que ela retomasse sua postura. — Por que em nome de Deus você está fazendo isso, Javi? Eu não entendo... você... — Você nunca entenderia... — Então me explique! — ela gritou, seu queixo tremeu e ela desviou o olhar, contendo as lágrimas. Eu amava que pudesse saber que ela cruzaria os braços em seguida. E ela cruzou. — Eu... — Eu amo você. Era tudo o que eu queria dizer a ela, mas eu não disse, porque mudaria tudo e confundiria ainda mais as coisas. Por mais que eu desejasse me ajoelhar aos seus pés e implorar que ela ficasse comigo, eu sabia que era um fodido de merda. Então abri minha boca e soltei as palavras que eu sabia que quebrariam o seu coração, mas que seriam definitivas o suficiente para que ela nunca mais perdesse seu tempo comigo. — Não gosto de você, Milena. Por isso eu quero que você siga o seu caminho. Eu não gosto de você, porra! Eu só não fazia ideia que fosse doer muito mais em mim.

Capítulo10 Milena, 18 anos Dezoito. Dizem que é a idade da liberdade. Você faz dezoito anos e de repente pode fazer o que quiser da sua vida. Bom, é o que dizem. Na prática, pelo menos para mim, não é exatamente assim que funciona. Portanto, lá estava eu, sentada na escrivaninha em frente a janela do meu quarto, usando um vestido azul marinho degotado o suficiente para fazer minha mãe surtar em plena formatura, encarando o meu celular e esperando que uma mensagem aparecesse na tela, qualquer coisa, um mísero sinal, ao mesmo tempo em que esperava minha mãe me chamar para me deixar na festa, porque eu tinha dezoito, mas diferente do meu irmão, eu não podia ter um carro ou dirigir, porque eu tinha uma “vagina” no meio das minhas duas pernas. Que deselegante. E foda-se isso também. Foda-se que eu não podia ter uma vida porque minha mãe estava vivendo por mim. Foda-se que meu pai havia me obrigado a me inscrever no curso de administração, assim como também fez com Gus. Foda-se que eu deveria estar usando algo menos ousado. Foda-se que meu irmão havia se tornado um babaca e foda-se também que eu falava tanto palavrão. Foda-se! Porque nada daquilo fazia sentido, porque Javier não estava mais ao meu lado e foda-se ele também, mesmo que eu estivesse esperando por uma mensagem, foda-se que eu ainda esperava por ele ou o amava, ou que desejava que ele corresse até mim implorando o meu perdão por ter me abandonado. Foda-se se ele foi o meu mundo e depois partiu, me deixando sem nada. Eu nem queria estar indo aquela festa de qualquer forma. Encarar uma porção de gente hipócrita que fingiu se gostar por tantos anos e que no fundo estavam dando graças a Deus por não terem que olhar mais um para a cara do outro. Como eu. Eu odiava todos eles e isso me deixava puta, porque eu não fazia ideia sobre o momento em que eu havia me tornado aquela pessoa: a garota impaciente, que revira os olhos lá no fundo da sala sempre que escuta alguém falando sobre uma cor nova de batom ou que alguma marca lançou

um modelo novo de sapato. Talvez tenha sido depois de crescer ao lado de Javier e perceber que ter o que comer e vestir era muito mais importante do que escolher o que comer e o que vestir. Viver uma vida ao lado dele me fez perceber coisas que ele mesmo havia deixado de acreditar no último ano, porque ele havia abandonado todos os seus ideais no momento em que Gus lhe deu a sua primeira proposta. Eu odiava que os dois tivessem se conhecido, porque a vida havia roubado meu irmão de mim, e depois, meu irmão havia me tirado tudo o que eu mais amava no mundo: Javier. E então, tudo o que eu tinha e acreditava sobre o amor e que havia aprendido com aqueles dois garotos foi arrancado de mim. Como um tapete que foi puxado sob meus pés, me fazendo cair, uma queda feia e muito doída. E lá continuava eu, sentada no mesmo lugar, olhando para o mesmo celular, desejando que ele me enviasse uma mensagem dizendo que estava largando tudo para ficar comigo, desejando que me contasse sobre a recente internação de sua mãe, rezando para que tudo estivesse bem com ela também. Mas não, eu não tinha nenhuma atualização sobre sua vida há muito tempo, principalmente depois que ele fez dezoito anos e pediu para mudar para o período vespertino. Desde então nosso contato havia se limitado a uma informação ou outra que Gus deixava escapar. Eu odiava os dois, como me jogaram para escanteio, como Javier me deixou sem nada, fazendo com que eu me sentisse vazia, sozinha, perdida, sem saber o que fazer, porque tudo o que eu fazia era para ele, pensando nele; e no meio daquele caos, a única coisa que eu podia agradecer era por Brisa estar ao meu lado, mesmo que metade dela estivesse com Gus, porque eles estavam namorando. Então, a única coisa que era minha, na verdade, não era na só minha, porém eu a tinha. A luz da tela do meu celular acendeu e um SMS de Brisa chegou na minha caixa de mensagens, as letras embaralhando conforme eu lia que Javier estava lá com Gus. Meu estômago se contorceu, eu comecei a suar e prontamente minha respiração começou a acelerar, me deixando tonta, aturdida, imaginando como seria a sensação de olhar para ele a poucos centímetros de mim, talvez sentir seu toque... Deus, eu sentia como se fosse quebrar.

Havia visto Javier pela última vez há um pouco mais de dois meses, quando Gus e ele apareceram na fábrica onde meu tio e meu pai eram sócios, exatamente no mesmo dia em que eu havia ido acompanhar minha mãe. Obviamente meus pais não os viram, porque até mesmo eu apenas havia conseguido vê-los de longe, correndo até o terraço, onde eu sabia que eles iam direto para usar sabe lá Deus o que. Eu odiei ver os dois juntos, principalmente por estarem tão diferentes do que eu conhecia. Javier estava bem arrumado, usando uma jaqueta nova que eu nunca havia visto antes, seus cabelos estavam muito bem cortados e eu desejei sentir o perfume que ele usava, pensando se talvez ele estivesse com um cheiro diferente também ou se algo nele ainda era o mesmo de antes, se havia qualquer indício do Javier que eu conhecia, que eu amava. Eu senti vontade de ir até ele, de perguntar como estava e de poder olhar em seus olhos e saber se sua resposta era verdade ou não. Mas eu não fui, porque mesmo que eu o amasse muito, que cada segundo do meu dia eu pensasse nele, eu tinha uma coisa muito importante e que toda mulher deveria ter: Amor próprio. Eu me amava em primeiro lugar e desde que ouvi de sua boca que ele não gostava de mim, eu estava tentando seguir em frete. Um dia de cada vez. Talvez pareça dramático demais eu estar sofrendo tanto, mas desde que me entendo por gente, nunca existiu uma Milena sem Javier.

— Eu ainda não acho que este seja o vestido ideal para esta ocasião. — minha mãe disse no meu ouvido após encenar um beijo carinhoso no meu rosto.

— Obrigada, mamãe. Eu sorri, encarando a nova namorada — que eu sabia que não duraria muito tempo — do meu tio Humberto, fingindo que ela estava me parabenizando pela formatura, então entreguei o canudo para o ele, que o ergueu, me lançando um sorriso enorme, conforme se curvava para me abraçar. — Você está graciosa. — meu tio me elogiou, me fazendo dar um giro completo. — Obrigada. — Eu o abracei. — Não fique triste pelo seu pai, ele apenas ainda não aprendeu que existem coisas mais importantes do que estar afundado no trabalho. — Eu assenti, evitando encará-lo, porque era demais para mim que ele sentisse muito por eu ter pais de merda. Bom, pelo menos minha mãe estava lá, mesmo que para me criticar boa parte do tempo, não é? — Obrigada. — eu abri meus olho, ainda sob seu aperto, e então eu o vi. Um segundo antes de Mirrors de Justin Timberlake começar a tocar e as luzes se apagarem. Você não é algo para admirar? Porque o seu brilho é algo como um espelho E eu não posso deixar de reparar Você reflete neste meu coração 15

Rápido, mas o suficiente para que eu pudesse enxergá-lo por completo, inteiro, lindo. O olhar sobre mim, como se apesar de estarmos rodeados de dezenas de pessoas, ele só pudesse me enxergar, como se eu fosse a única naquele lugar. Deus, como ele estava lindo! Tão lindo que chegava a ser injusto com os outros garotos. Ele era a única pessoa naquele lugar que não estava vestido com roupas sociais como pedia no convite. Eu sorri, porque era capaz de ouvi-lo em minha mente dizendo que ele não era como todo o mundo. O globo com luzes coloridas havia acendido, pontos coloridos e redondos começavam a se espalhar por toda a pista de dança, conforme os alunos corriam para o centro, na batida de Timberlake, mas eu permaneci

estática. Meus olhos correram por todos os lados disfarçadamente, embora meu coração batesse como um louco. Meus convidados haviam se afastado de mim e eu sequer havia percebido, porque eu apenas precisava olhar para ele por mais alguns minutos, porque eu precisava vê-lo para que pudesse voltar a respirar. Eu dei graças a Deus quando toda aquela enrolação acabou porque meus ouvidos não aguentavam mais ouvir a mesma ladainha do orador dizendo o quanto o ensino médio seria impactante em nossas vidas e blá-blá-blá. Brisa acenou para mim do outro lado do salão, sinalizando que Javier havia ido embora e meu coração sangrou com a ideia dele ido por minha presença, uma vez que ele havia acabado de chegar e sequer havia participado da colação. — O que você tem? — ela perguntou, recolhendo uma mecha loira que havia desprendido do penteado. — Eu... eu apenas preciso de um ar. — ela assentiu. — Gus acabou de sair, foi fazer um telefonema. — Eu a encarei, porque nós sabíamos o quanto Javier e ele estavam afundados em toda aquela merda. Mas mesmo assim nós os amávamos, mesmo que parecesse errado. — Eu disse a ele hoje que ele vai ter que escolher. — Meus olhos encontraram os dela, imediatamente. — E ele? — perguntei, ansiosa. — Disse que não é tão simples assim. — respondeu e eu grunhi, porque era o que eu estava acostumada a ouvir sempre que eu os policiava. — Mas, ele disse que vai tentar, por mim. — Já é alguma coisa. — eu dei de ombros ela assentiu. — E ele disse que me ama. A falta de luz não foi o bastante para que eu não percebesse suas bochechas corando. — Ninguém precisa ter olhos para enxergar isso. — respondi. Ela me abraçou, um abraço apertado o suficiente para que eu soubesse o que ela queria me dizer.

— Agora vá atrás da sua felicidade, Mi. — Brisa apontou para rua e eu a encarei, receosa. — Não faça essa cara. — Ele não me ama. — Ele mentiu e você sabe. — Muito tempo passou, Brisa... Não é como se eu soubesse o que esperar dele. — Ele estava tentando proteger você... — E de repente você o está defendendo? Ela me encarou, então sorriu. — É porque com todo esse lance com Gus, eu percebi uma coisa e estou certa quando a isso. — Ah, é? E o que seria? — perguntei, cruzando os braços sobre os seios, desejando, no âmago, que ela dissesse algo que me fizesse mudar de ideia e ir até ele. — Quem vive de orgulho, morre de saudade. Àquela altura eu não me importava em parecer ridícula e atrás de um cara que havia deixado claro que não se importava comigo, mas o amor a gente não vê com olhos, a gente sente com o coração, e tudo se resume a atos impulsivos que, de alguma forma, te arrastam até aquela pessoa, mesmo que talvez não seja a coisa certa a fazer. Porque você precisa, de todas as formas, sobretudo, tentar; tentar até que não seja mais possível, mesmo que seja imprudente e louco, você precisa tentar; tentar tudo antes de desistir. Eu atravessei o salão de festas a passos largos até a porta principal e quando eu finalmente cheguei na rua, respirei profundamente pela primeira vez, sentindo o ar preenchendo todo espaço nos meus pulmões, conforme eu inclinava a cabeça para o céu, sentindo o sereno tocar minha pele desnuda, ao mesmo tempo em que eu retomava o ar. — Você está bem? — Eu me assustei, colocando uma mão sobre o peito. Eu não podia dizer que não me lembrava mais como era a sua voz,

porque eu sonhava com ele quase todas as noites. Mas mesmo assim, ouvi-la novamente não foi menos impactante por esse motivo. — Lo siento. — ele se desculpou, enquanto eu permanecia petrificada. — Tudo bem... Pensei que estivesse sozinha. — Ele não se moveu, apenas permaneceu me encarando. Javier mantinha as mãos nos bolsos da frente enquanto escorava uma perna na parede atrás dele. Seus cabelos estavam bem cortados, embora os fios permanecessem em uma adorável desordem. Então ele finalmente sorriu para mim, e até mesmo seu meio sorriso era mais bonito do que o sorriso inteiro dos outros garotos. — Você está linda, amor. Amor. — Como você está? — Eu tinha tantas perguntas para fazer, queria tanto ouvir um pouco mais a sua voz, saber como ele estava, como se sentia, se parte dele me amava, mesmo como sua melhor amiga. — Bem. — Não quero a resposta que costumamos dar a qualquer pessoa, Javier. Quero realmente saber como você está, como tem passado. Como sua melhor amiga. Ou sabe lá Deus o que éramos àquela altura. — Estou bien. — Ele desviou o olhar e o ato foi o suficiente para saber que ele estava mentindo. — Você sempre foi um péssimo mentiroso. — Yo sé, como você. — Ele sorriu, me encarando brevemente antes de olhar para o céu, fixando o olhar na lua. — É... — Sim, eu também era uma péssima mentirosa, por isso sabia que eu diria boas verdades caso ele perguntasse como eu me sentia. — Como está sua mãe? — Javier finalmente me encarou por tempo o suficiente para fazer minhas bochechas queimarem. — Eu soube da

internação. — Qual delas? — Não entendi. Seu olhar parecia tão triste que me fez querer abraçá-lo, segurá-lo e nunca mais largar. — Da primeira ou da quarta e última vez em que tentei? — Oh, eu sinto muito. — E eu realmente sentia. — Não sinta, acredite, es muy cansativo sentir. — Você sempre fez tudo o que esteve ao seu alcance. — Yo fiz? — Ele tirou uma carteira de cigarros do bolso da calça e acendeu um deles, levando-o até os lábios. Então ele fechou os olhos para tragar pela primeira vez. Eu odiava que ele fumasse, odiava tudo o que ele estivesse fazendo consigo, além de todas as merdas nas quais ele e Gus estavam metidos. — Sim, você fez. Ele me encarou novamente, mas com os olhos marejados, fazendo um nó gigante se formar na minha garganta. — Nunca é o suficiente. — Não desista, Javier mas não se cobre tanto. Ele soprou a fumaça para cima e encarou o céu, como se pudesse ver através dele. — Como você está? — ele perguntou, olhando nos meus olhos. De repente eu não sabia o que dizer, então deixei escapar um sorriso sarcástico que mais pareceu um grunhido desesperado. — Como você acha que eu estou? — Siento. — Pelo o que exatamente? Por dizer que não gostava de mim ou por

exigir que eu seguisse minha vida sem você? — Meu coração batia tão rápido que eu podia jurar que ele estava falhando algumas batidas. — Por tudo. — Seja mais específico. — Eu cruzei os braços e seu olhar caiu sobre o meu decote. Um calafrio percorreu todo o meu corpo e de repente eu sentia minha pele começando a esquentar. — Você sabe, Milena. Sim, eu sabia, mas precisava ouvir. — A única coisa que eu sei é que fui totalmente descartável para você, Javier. Um ano e meio... esse é o tempo que você se manteve afastado de mim depois de me beijar. Ele jogou a bituca do cigarro no chão, então se afastou da parede; e o fato dele estar sobre uma pequena calçada mais alta, fazia com que eu parecesse ridiculamente pequena. 16

— Es una maldita broma ? — Uma brincadeira? Sério? Você acha que é isso o que significa para mim? — É melhor você entrar. Eu já estou de saída. — Oh, perfeito! Você é um maldito idiota egoísta de merda. — Sério? Isso e mesmo o melhor que eu podia fazer? — Você acredita mesmo que possa existir um futuro ao meu lado, amor? — Ele deu ênfase na palavra amor com tanto sarcasmo que até mesmo eu parecia a pessoa mais doce do mundo. — Oh, eu não sei, porque eu não tenho uma maldita bola de cristal! — eu gritei, então ele se curvou levemente para frente. — Yo não quero fazer esto, não quero discutir com você. — Ele se virou para deixar o local. O amor é redundante, porque no mesmo instante em que ele parece sutil, também pode se tornar enlouquecedor.

— Isso, fuja, Javier, é só isso que sabe fazer. Dar as costas para mim sem se importar com a porra dos meus sentimentos! — eu disse em bom som enquanto encarava a lateral do seu corpo, percebendo uma nova tatuagem em seu pescoço que descia e se escondia sob o tecido da sua camiseta. Ele deixou escapar um suspiro imperceptível, então se virou para mim. — Joder! — ele praguejou. — Será que você não é capaz de enxergar? Será que é tão cega que não é capaz de ler nas entrelinhas? — Bom, eu não preciso ter a melhor visão do mundo para enxergar que você apenas me descartou como fez com qualquer outra garota com quem esteve. O que quer que eu veja? Seu maldito desprezo por mim? — Não. — Ele esfregou a nuca algumas vezes, como sempre fazia quando estava nervoso. — Ver o quanto eu amo você! Oh. — Amar é dizer a outra pessoa que não gosta dela? É pedir para seguir seu caminho sem a outra pessoa? — É. — Como? Me explique, porque eu não sou capaz de compreender. — eu coloquei as mãos na cintura, encarando-o. — Amar é ser altruísta, porque você encontra no outro a sua própria felicidade. Yo estaré feliz se souber que você está bien sem mim, porque yo nunca serei capaz de te dar um futuro. — Mas eu não estou feliz, Javier, eu não sou feliz sem você. Droga, será que não consegue ver? Eu senti meu queixo tremer e imediatamente lágrimas correram sobre as minhas bochechas. — Eu sou pobre. — Não preciso do seu dinheiro. — Ele deu um passo a frente. — Minha mãe é uma viciada. — Eu vou ajudar você nisso. — Eu dei o próximo passo.

— Seus pais me odeiam. — Eles não precisam amar você. Eu amo por todos nós. — Eu tô envolvido em muitas merdas. — Você pode sair fora quando quiser. — Não é assim que as coisas funcionam, Milena. — Eu preciso de você, Javier. Você não pode me dar tudo de si por anos e simplesmente sumir da minha vida só porque acha que você não merece estar nela! — Eu subi o degrau, ficando tão perto dele que podia sentir sua respiração pesada em meu rosto. — Sou eu quem deve decidir isso e eu decido que não existe um lugar no mundo que seja mais certo para você... — Eu dei outro passo, estendendo o braço, tocando levemente seu peito com uma mão, deslizando-a para cima, esfregando levemente a pele desnuda do seu pescoço. Ele grunhiu, fechando os olhos e eu completei a frase: — do que estar ao meu lado! Ele apertou minha cintura com força o suficiente para me fazer dar um giro e encostar na parede atrás de mim. O impacto foi forte o suficiente para eu saber que não estava sonhando, era real, estava acontecendo. Então eu fechei os olhos, deslizando as mãos para as laterais do seu rosto, segurando com força entre meus dedos só para ter a segurança de que ele não ia fugir, pois eu não o deixaria ir, porque não existia outro lugar no mundo para estarmos se não um ao lado do outro. Nossos rostos se encontraram e ele esfregou seu nariz no meu, inclinando a cabeça levemente para um lado, enquanto pressionava seu quadril no meu, fazendo meus joelhos fraquejarem. Então Javier me beijou e eu deixei, visto que eu havia sonhado com aquilo por tempo demais, porque eu precisava dele para respirar, eu precisava estar com ele, precisava senti-lo em mim todos os dias. Eu abri a boca e senti sua língua procurar pela minha. De repente eu senti o melhor gosto da minha vida, o gosto do beijo de Javier e eu podia jurar que ele havia acabado de mascar um chiclete de menta. Eu mordisquei seu lábio inferior e ele gemeu, puxando meu quadril com mais força, me fazendo sentir uma ereção que fez derreter meus ossos, uma vez que aquela era outra linha que estávamos ultrapassando pela primeira vez.

Ele se afastou levemente, apenas para que pudéssemos respirar, apoiando sua testa na minha, enquanto retomávamos o ar. Um pequeno riso deixou seus lábios, então ele tornou a me beijar, e tudo parecia ser pouco, como se eu precisasse me fundir a ele, como se toda a força que eu estive fazendo para senti-lo sob meu aperto não fosse o suficiente. Como se eu necessitasse mais, e o mais ainda não fosse o bastante. Eu levantei a cabeça para que Javier beijasse a pele exposta do meu pescoço, ao mesmo tempo em que ele enlaçava um braço na minha cintura, mantendo o aperto firme o suficiente para não me deixar cair. — Deus... — Ele se afastou um pouco, ainda mordiscando minha pele, enquanto eu tentava controlar a minha respiração. — É... isso foi... Javier me puxou para um abraço, envolvendo seus braços sobre os meus ombros e apoiando sua cabeça sobre a minha, depositando um beijo em meus cabelos conforme nossas respirações voltavam ao normal. Eu enlacei meus braços em sua cintura, fungando o seu aroma, o mesmo perfume, porque nem tudo havia mudado, porque ele ainda cheirava como antes. Então eu afundei meu rosto em seu peito, aproveitando cada segundo daquele momento, visto que eu não fazia ideia do que viria a seguir. — Lo siento por tudo o que disse a você... — Eu sei... Ele me apertou ainda mais sob seus braços. — Vamos dar o fora daqui, amor. — Vale! — eu respondi ao mesmo tempo em que ele me puxou pelo braço. — Espere! — eu parei, me curvando para tirar meus sapatos de salto alto que estavam me matando. — Pronto, agora sim... Eu corri ao seu lado até que estivéssemos no estacionamento da escola, em frente a sua moto e de repente tudo parecia tão diferente do que eu conhecia. Eu só não sabia se era porque havíamos passado tanto tempo longe um do outro ou se era porque eu apenas não conhecia aquele lado dele, mais íntimo, mais meu. Javier pegou o capacete apoiado sobre o guidão e o colocou na minha cabeça. Ele me puxou para junto dele novamente e me

abraçou forte. Então eu me senti a garota mais amada no mundo, em pé, na noite da minha festa de formatura, descalça, usando um capacete e sendo beijada pelo garoto mais lindo do colégio.

Capítulo 11 Milena, 18 anos Eu me perguntava quando tudo ia mudar, quando meus pais aceitariam o que eu sentia por Javier; porque desde a formatura eu me mantinha praticamente trancada em casa fingindo que estava tudo bem. O fato de não ter mais uma escola para frequentar, onde eu podia encontrá-lo, só tornava tudo ainda pior, porque eu não tinha como vê-lo, embora nós nos falássemos todas as noites por telefone antes de dormir. Tínhamos que nos limitar a invasões noturnas e rápidos encontros quando eu conseguia inventar um motivo para sair; o que era absurdamente ridículo, porque eu já era maior de idade. Mesmo com todas as nossas diferenças, brigas e desencontros, eu o amava e não estava disposta a largá-lo por nada no mundo. E naquele momento, eu observava minha mãe roer as unhas impecáveis ao mesmo passo em que andava de um lado para o outro. — Esqueça seus cartões, as despesas com o carro que você ganhou no seu aniversário... — Minha mãe cruzou os braços e as veias do pescoço estavam evidentes. Eu a conhecia o suficiente para saber que mesmo que estivesse sobre um salto quinze e mantendo uma postura impecável, por dentro estava surtando. — Tudo bem. — Eu dei de ombros e o gesto a fez soltar um suspiro trêmulo. — Espere que ganhe bem o suficiente aonde quer que consiga um emprego. Eu assenti, concordando, mesmo que meu coração estivesse quase parando de bater. — Sim, mãe. Sinto muito que você não esteja disposta a conhecer Javier. Ela corou, sustentando uma expressão de repulsa. — Ele é o filho de uma viciada, outro maldito viciado.

Eu me levantei da cama, encarando-a. Eu odiava quando ela se referia a Javier daquela forma. — Quem você pensa que... — Sua mãe, ela é sua mãe! — Meu pai entrou pela porta do meu quarto e se posicionou ao seu lado, me encarando. Eu suspirei. Achava que aos meus dezoito anos algo mudaria, mas estava prestes a fazer dezenove e ainda me sentia como uma adolescente rebelde. — Eu não consigo entender vocês, pelo amor de Deus! — Eu joguei os braços para o ar, encarando a lâmpada que iluminava o meu quarto. — O que vocês querem de mim, afinal? — Que você termine seu namoro com aquele... — Meu pai deu um passo à frente, mas engoliu as palavras. — rapaz. — Eu o amo. — Ele vai acabar com a sua vida. — Você ouviu o que acabou de dizer, mãe? Minha vida. — Você já sabe como vai ser de agora em diante, Milena. Ou você termina com Javier ou esquece todas as mordomias que você tem! Seu irmão é a prova viva de que nós tiraremos, sim, suas regalias. — Uau, e veja como Gus está bem com esta disciplina, certo? Um vendedor de drogas e viciado! — O rosto do meu pai ficou roxo e eu podia jurar que seus dentes rachariam se ele continuasse pressionando seu maxilar. — Retire o que disse! — Minha mãe apontou o dedo no meu rosto, mas eu mantive minha postura. — Não. — respondi sem vacilar. — Continuem tapando o sol com a peneira, continuem fechando os olhos para o que está acontecendo dentro dessa casa e em pouco tempo o encontrarão morto em uma vala! — eu gritei, sentindo a fúria me dominar. Pensar em Gus me deixava histérica, porque era tudo culpa dos dois, pela forma como havia sido tratado por eles uma vida inteira e ver meu irmão se afundando sem que eu pudesse ajudá-lo, me arrastava junto com ele.

Eu senti a palma da sua mão acertar a lateral do meu rosto e por reflexo cobri o local com minha mão, sentindo o ardume enquanto a encarava, incrédula. Não era possível que suas reputações valessem mais do que nossa própria felicidade, porque ela sabia o quanto Javier era bom, ela sabia o quanto ele podia me fazer feliz; mas estava mais preocupada em me fazer casar com alguém que pudesse fundir suas empresas a me ver bem e ao lado de quem realmente era capaz de me amar. Madison seria capaz de nos reerguer agora que a empresa estava falindo, mas eu só tinha dezoito anos e não deveria estar sendo empurrada a um relacionamento de interesse. — Sinto muito que a empresa esteja falindo, mas eu não vou me casar com Madison aos dezoito anos para que vocês possam viver luxuosamente. — Você já tem quase dezenove! — ela gritou, fazendo a pouca esperança que eu sentia dissipar. — Eu casei com seu pai aos dezoito pelo mesmo motivo e olhe onde estamos hoje! — Falindo novamente. — eu disse entre os dentes. — Não é possível que vocês não desistam nunca! Uma vida inteira tentando reerguer um império que já deveria ser apenas escombros! Quanto vale suas liberdades, mãe, pai? Vocês sequer se amam! — As lágrimas corriam livremente sobre o meu rosto e meu corpo tremia com a adrenalina que sentia ao falar tudo o que estava entalado na minha garganta há muitos anos. — É claro que nós... — ela começou, sob o olhar do meu pai, mas não foi capaz de terminar. — Mesmo que vocês consigam manter a empresa pelo resto das suas vidas, vocês morreriam felizes? — É claro que sim! Olhe só para o que conseguimos! — minha mãe gritou, saindo da sua postura, diferente do meu pai, que se mantinha sério e estável. — Carros, propriedades, temos uma vida ótima. — Ótima e feliz são coisas muito diferentes. Ninguém morre feliz tendo uma vida ótima. As pessoas morrem felizes por ter uma vida feliz. — Você está apaixonada. — Ela me encarou, enojada. — Quando ele estiver conseguido o que queria, simplesmente vai cair fora. É assim que esse tipo de cara vive. Caindo fora! — meu pai proliferou.

— Talvez ele já tenha conseguido! — eu gritei de volta, insinuando uma mentira. Deus sabe como eu queria, mas Javier havia sido cauteloso e paciente nos últimos meses, tentando fazer com que seja na hora certa, para que eu nunca me arrependa; apesar de eu não ter nenhuma dúvida sobre o que eu quero com ele. — Aquele... — Os olhos da minha mãe marejaram, enquanto ela buscava uma palavra para descrever Javier, mas não havia uma sequer que eu ainda não havia escutado. Eu sabia o quanto ela odiava suas dezenas de tatuagens e eu me perguntava como era capaz de uma pessoa não amar aquele garoto, porque era impossível não o fazer. Mas talvez apenas uma pessoa apaixonada pensasse dessa forma. — Sinto informar, mas eu prefiro perder tudo o que tenho. Fiquem como carro, meus cartões, me coloquem para a rua, mas eu já tenho idade o suficiente para tomar minhas próprias decisões. Eu passei por eles, sentindo meus ombros rasparem em seus peitos ao atravessar a porta. As lágrimas corriam por meu rosto, mas eu não me importava mais.

Peguei meu celular e disquei o número de Javier, meu coração batia forte a cada toque não atendido. Então, quando eu estava prestes a desligar, sua voz preencheu o autofalante e o meu coração. — Cariño... — A palavra havia saído levemente arrastada. Eu podia jurar que ele havia acabado de acordar e pensar em Javier deitado na cama era o suficiente para que eu sentisse minhas bochechas corarem.

— Eu... você... — eu funguei, não sabia ao certo o que dizer. — Que te pasa? — Escutar sua voz era o suficiente para que eu pudesse finalmente respirar de verdade. Eu soltei o ar dos pulmões e meus ombros relaxaram pela primeira vez desde que minha mãe entrou no meu quarto. — Eu preciso de você, Javi. — Eu estou indo pra aí. — Eu o ouvi se mexer na cama. — Não... espere! Eu estou indo até você... — Eu sabia o quanto Javier detestava que eu fosse até sua casa, que eu presenciasse sua realidade, mas ele precisava entender que não fazia nenhuma diferença para mim, que eu iria a qualquer lugar que ele estivesse. — Por favor, apenas... — Estou aqui, ven pronto. Eu dei uma risadinha, secando o rosto com a mão livre. — Já estou na porta da sua casa, na verdade. — Carajo. — Eu o ouvi praguejar dois segundos antes de abrir a porta para mim. Meus olhos caíram imediatamente sobre seu peito desnudo que ficava exatamente na altura dos meus olhos; o que de fato tornava impossível que eu não o checasse antes mesmo encará-lo. Eu soltei um suspiro trêmulo quando Javier tocou lentamente minha mão caída ao lado do meu quadril e me puxou para dentro, fechando a porta com os pés no mesmo segundo em que me abraçava forte. — Como estas? — ele perguntou com a boca colada a minha testa, enquanto deslizava uma mão nas minhas costas. — Onde está sua mãe? — No sé. Ela saiu mais cedo e ainda não voltou. Deve estar fazendo bom uso do dinheiro que me roubou mais cedo. — Sinto muito. — eu disse, com a cabeça ainda colada em seu peito, sentindo sua pele quente, deslizando as mãos para sua cintura. — Você não respondeu a minha pergunta. — Ele se afastou de mim, me

puxando para seu quarto, enquanto eu silenciosamente olhava cada detalhe a minha volta. As paredes haviam sido pintadas há pouco tempo e não havia nenhum lixo pela casa, assim como nenhuma louça suja na pia; e eu me perguntei se Javier havia limpado tudo ou se sua mãe havia o feito. Alguma coisa me dizia que a primeira opção fazia mais sentido e pensar em Javier carregando tudo nas costas fazia meus problemas parecerem ridículos. Eu atravessei a porta do seu quarto e me surpreendi ao encontrar uma cama de casal lá, junto de alguns móveis novos que não havia visto antes. — Você comprou móveis novos. — Sí... — Ele desviou o olhar. Tudo o que se referia a sua casa era omitido em nossas conversas e isso fazia com que eu me esquecesse de sua realidade em alguns momentos. Por isso, toda vez que eu ia até ele, era uma novidade para mim. — E você ainda não respondeu a pergunta. — Oh. — Eu sentei a cama, tirando minhas sapatilhas antes de colocar os pés para cima e me acomodar em meio aos seus travesseiros novos. — Eu tive uma briga com meus pais. — O suspiro que ele deixou escapar foi alto o suficiente para que eu soubesse o motivo por trás dele. — Era exatamente por isso que eu... — Eu amo você, Javier, e foda-se tudo o que eles acham que eu deveria fazer. — Eu omiti a parte onde eles me queriam casada com Madison, porque eu sabia que Javier enlouqueceria. — Você não é mais a mesma pessoa, Mi, e você sabe o porquê. — Por que conheci você? — Eu soltei um grunhido estrangulado. — Fala sério, Javier! Eu era uma criança quando nos conhecemos. Ele se afastou de mim, se fechando ao sentar ao meu lado na cama, com as mãos apoiadas em seus joelhos. — Você... cuño! Você nem falava palavrão e olha só agora! — Ah, meu Deus! — Eu joguei os braços para o ar. — Eu tenho quase dezenove anos!

— E daí? — As palavras saíram mais ríspidas do que imaginei que sairiam e eu me perguntei quando que Javier conseguiria entender que eu não concordava com meus pais sobre ele. — Olha só, eu era uma criança, está bem? Obvio que eu mudei, as pessoas mudam o tempo todo! Eu não posso continuar sendo a mesma pessoa que era quando tinha oito anos ou quinze... não faz sentido! Ele torceu o pescoço, me encarando. Suas sobrancelhas unidas evidenciavam que ele estava pensando demais. 17

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— Es decir... que pasó ? — A empresa continua na merda, Gus continua na merda... — Eu deixei um suspiro pesado escapar quando abri meu aplicativo de mensagens para ver se meu irmão havia me respondido. — Você sabe aonde ele está, afinal? — Está com Brisa, acho. — Ele desviou o olhar e eu finalmente suspirei, um pouco mais aliviada. — Minha mãe me bateu hoje por dizer umas verdades a ela. — Eu dei de ombros quando ele me encarou, furioso. — De qualquer forma, eu já esperava que ela o fizesse. — Dios... — Ele se levantou imediatamente, abaixando e ajoelhando em frente a cama, enquanto puxava minha pernas para baixo e se posicionava entre elas. — Siento... Você sabe... eu tentei evitar, Mi, tentei te manter longe de tudo isso. — Seus ombros se curvaram em derrota. — Eu realmente... eu amo você, amor. — Eu sei. — Deslizei as mãos sobre o seu rosto e meu dedo correu em direção ao seu pescoço. Javier havia mudado tanto no último ano que as vezes não parecia a mesma pessoa. Ele havia crescido um pouco mais, àquela altura já passava dos 1,80m de altura e seu cabelo estava maior do que normal, um ondulado sexy que terminava com pontas caídas sobre sua testa e o deixavam ainda mais bonito. Sua barba estava mais grossa e alguns dias ele a deixava maior, mas eu preferia quando estava sem, porque eu podia correr meus dedos livremente pelo seu rosto. Seus ombros agora eram largos e seus músculos rígidos o suficiente para que parecesse que frequentava alguma academia.

Seus dois braços estavam cobertos por tatuagens, assim como o seu peito, pescoço e o lado direito da sua costela. Nada era colorido e todas elas eram sombrias, intimidadoras e despertavam muita curiosidade. Eu as amava e as odiava, porque elas faziam com que ele chamasse mais atenção e eu morria de ciúmes por esse motivo, porque parte minha, queria que ele fosse para sempre só meu. — Pare de me olhar como se estivesse louca para tirar a minha roupa. — ele ameaçou com a voz rouca, as palavras carregadas por um sotaque forte e atraente. —Talvez eu esteja olhando para você exatamente por esse motivo. — Eu senti minhas bochechas queimarem, mas não me importava, porque ele era Javier, meu melhor amigo e minha pessoa preferida no mundo. Um sorriso perverso deixou seus lábios e aqueceu o meu peito conforme ele se inclinava lentamente sobre mim. — Eu amo tudo o que sai de su boca. Eu coloquei as mãos ao redor de seu rosto, puxando-o para mim, fazendo com que ele apoiasse seus joelhos ao redor das minhas pernas, sobre a cama, o colchão afundando junto do meu corpo. Seu cheiro estava impregnado em cada centímetro do lençol e eu fechei meus olhos, inalando o aroma adocicado misturado a cigarro e menta. Meu cheiro favorito. Ele abriu os olhos, mostrando-me de perto o tom mesclado de verde, castanho e mel que eu nunca seria capaz de descrever. Poucos caras no mundo tinham a sorte de serem tão bonitos quanto ele e o fato dele estar alheio a esse detalhe o deixava ainda mais atraente. Javier encostou seu quadril no meu e pude sentir uma ereção se formar. Deveria ser um recorde para ele, porque estávamos juntos desde a formatura e abril estava quase chegando... e nada. E não era porque eu tinha dúvidas, era porque ele achava que eu tinha. — Você é tão lindo... Eu não me cansava de dizer aquilo a ele agora que podia, porque na maior parte do tempo eu omitia, já que guardava para mim o que sentia por ele. Mas tudo havia mudado; e apesar de ainda estar me acostumando, eu

amava nossa intimidade, a forma como éramos perfeitos um para o outro, como funcionávamos juntos. — Te quiero... — ele sussurrou com os lábios colados aos meus. Eu abri minhas pernas para que Javier se encaixasse melhor entre elas e a forma como estávamos íntimos fazia meu estômago se contorcer e pedir por mais, porque apesar de tudo, nunca me parecia o bastante. — Eu amo você. — murmurei antes de sugar seu lábio inferior, ouvindo-o gemer em seguida. Eu me contorci sob seu aperto, sentindo-o se mexer lentamente, forçando o quadril ainda mais para frente. Meus dedos correram sobre a pele de suas costas, descendo até o elástico da sua cueca boxer, então deixei que a ponta dos meus dedos entrasse alguns poucos centímetros. Javier deixou outro gemido escapar enquanto eu abria minha boca para dar acesso a sua língua e roubei sua respiração quente. — Deus, Milena! Pare com isso ou eu... — Você o quê? — eu o provoquei, sentindo sua mão dentro da minha blusa. Então Javier beijou o meu pescoço enquanto deslizava seus dedos sobre os meus seios, me fazendo gemer, ansiosa. — No me provoques... — Ouvi-lo suplicar com aquele sotaque só me fazia querer provocá-lo ainda mais. Javier pressionou sua mão sobre o meu punho na altura da minha cabeça, impedindo que eu a deslizasse sobre o seu corpo, então mordeu meus lábios, minha orelha, meu pescoço. Com a mão livre, ele puxou minha blusa para cima, então empurrou meu sutiã para baixo usando o nariz, mordendo-o, beijando-o, sugando-o pela primeira vez. Eu gemi alto, arqueando meu corpo contra ele. — Você é linda. — Ele soltou minha mão enquanto descia, deslizando seus lábios contra minha pele, deixando-a arrepiada; um rastro quente feito por pequenas lufadas de ar. Sua boca alcançou o cós do meu jeans e eu levantei meu quadril, aprovando o que quer que estivesse fazendo. Então ele abriu minha calça e a

desceu, deslizando-a por minhas pernas. Seus olhos estavam vidrados em mim, a testa levemente enrugada, a boca entreaberta, deixando escapar sua respiração pesada. Ele continuou me beijando, descendo até o interior das minhas coxas. Eu resvalei minha mão para baixo, alcançando seus cabelos caídos sobre a testa e os puxei ligeiramente entre os dedos, gemendo, ansiosa. Javier me olhou segundos antes de eu encarar o teto e arquear minhas costas, aprovando o que quer que estivesse pronto para faze. Ele deslizou o tecido fino da minha calcinha para o lado e o suspiro que deixou escapar ao encarar minha pele desnuda foi tão cru e instável que fez meu peito rasgar de dentro para fora; e quando sua boca tocou o ponto exato entre minhas pernas eu soltei um gritinho que não pude evitar, porque eu jamais havia sentido aquilo. Era bom o suficiente para que eu nunca o deixasse sair do meio delas. Ele esfregou o polegar em pequenos círculos enquanto sua língua descia e subia, lentamente, me fazendo contorcer em baixo dele. — Dios... seu gosto é... increíble. Eu queria dizer que incrível era como ele sabia usar sua língua, mas eu sabia que se abrisse a boca não seria capaz de proliferar nenhuma frase coerente. Eu rebolei sob seu toque, porque não era capaz de ficar imóvel. Eu não conseguia parar de me mexer, porque cada mínimo movimento me fazia sentir mil coisas que eu nunca seria capaz de explicar. Eu gemi mais alto quando ele deslizou um dedo para dentro de mim, sentindo um pequeno ardume quando o fez, mas a sensação de estar preenchida me deixou ainda mais sensível. Então eu... — Javier, eu... — Ele sorriu, com sua boca ainda em mim. Ele me conhecia o suficiente para saber que eu tinha vergonha de dizer aquelas palavras em voz alta. — Você o quê? — ele disse se afastando um pouco. Eu o puxei de volta e ele sugou mais forte, então eu finalmente gozei, sentindo minhas bochechas corarem e meu corpo derreter sob ele. Javier colocou minha calcinha para o lado e subiu, beijando minha barriga, meus seios, pescoço, até encontrar meus lábios novamente. Seus olhos brilhavam ao mesmo tempo em que ele esboçava um pequeno sorriso de satisfação e eu podia jurar que ele estava se vangloriando por dentro.

— Pare de ser presunçoso. — Eu puxei seus cabelos novamente, deslizando uma mão sobre a pele tatuada do pescoço. — Não consigo evitar. — Você nem está tentando... — Es difícil quando você é o primeiro a fazer a garota que ama gozar. Eu cobri o rosto com as mãos, sentindo o calor correr sobre minha pele. Então ele as afastou, encaixando a cabeça no meu pescoço, ainda sobre mim e eu me perguntei o porquê de ele ter parado, porque certamente ele também precisava... se sentir aliviado, mas eu não sabia se conseguiria perguntar para ele. Talvez Javier quisesse ir devagar, já que eu não tinha nenhuma experiência, e o pensamento me fez amá-lo ainda mais. — Eu amo você, apesar da sua boca suja. — Você me ama exatamente por esto, cariño. E por muitas coisas mais.

Javier, 19 anos A dor é boa, ela me faz sentir vivo, mesmo que parte minha estivesse morrendo. Eu diria que era a parte onde eu guardava esperança, porque a

cada novo dia, tudo se tornava mais difícil e eu sequer sabia pelo o que esperar. E, mesmo que eu tivesse largado toda a merda em que havia me envolvido assim que Milena e eu ficamos juntos em dezembro, nada entre a gente havia se tornado mais fácil por isso, porque depois que você se acostuma a ter dinheiro, é difícil se acostumar a não tê-lo mais. Nós brigávamos por esse motivo, porque eu ficava puto e me sentia um otário por estar duro, principalmente quando minha mãe usava as economias para comprar drogas. Havia sido fácil para mim dizer que não queria mais, que não podia mais vender drogas, porque eu vendia para Gus; então apesar dele ter ficado puto por eu dar para trás, ele compreendia. O problema era que, para ele, nada aconteceria de forma tão simples, porque ele pegava o bagulho com pessoas grandes, metidas tão fundo naquilo que você acabava se perdendo; então ele não só não saía, como também tinha que continuar pegando a mesma quantidade que pegava por nós dois para que ninguém desconfiasse de nada. Mas Gus já havia conseguido colocar outro no meu lugar. Gus gostava do que fazia e mesmo que eu passasse boa parte do meu tempo insistindo para ele parar com o que fazia, eu sequer conseguia imaginá-lo fazendo outra coisa porque o filho da puta tinha jeito com o negócio. A agulha foi substituída por um papel toalha com água para refrescar minha pele judiada antes dela tornar a rasgar toda a extensão do meu braço esquerdo. Então eu levei o baseado até minha boca e traguei a fumaça até que meus pulmões queimassem, me obrigando a tossir. Precisava que o efeito calmante da maconha fizesse efeito logo, antes que meus neurônios explodissem em minha cabeça, porque Milena estava me enlouquecendo. Gus estava me enlouquecendo. Minha mãe estava me enlouquecendo. Eu estava enlouquecendo. Mesmo que Milena repetisse um milhão de vezes que não fazia diferença, que ela não queria nada, que ela podia pagar ou o caralho que seja, eu odiava não poder dar as coisas para ela, porque aquilo era apenas um lembrete de que ela não tinha um futuro ao meu lado. Eu estava certo, sempre estive; mas eu apenas não conseguia ficar longe dela. Eu havia tentado, e acreditem, doeria menos se alguém arrancasse todos os meus ossos pela minha bunda. E o fato dos seus pais a trancarem naquela casa como se fosse uma

princesa em perigo apenas dificultava as coisas, porque eu mal conseguia encontrar com ela; e se não fosse eu me foder para entrar em sua casa no meio da noite, nosso relacionamento se limitaria a ligações noturnas. E lá estava eu, no dia do meu aniversário, sentado no estúdio de tatuagens do André, tio do Matheo, tentando prestar atenção nas técnicas que ele me explicava a mais de três horas e que eu já estava cansado de saber, porque estava indo todos os dias nos últimos meses ao estúdio para aprender a tatuar. Aquilo era a única coisa no mundo que me fazia sentir no caminho certo, como se eu tivesse nascido para aquilo, apesar de àquela altura estar parecendo um gibi. — Você não está aqui. — André me encarou, largando a máquina sobre a mesa envolta a um plástico que a mantinha higienizada. — Siento. — Eu me ajeitei na cadeira e ele alcançou o baseado, levando-o até a boca, fechando os olhos por um momento. — Sabe... eu costumava ser como você. — Bonito? Ele soltou uma nuvem de fumaça ao deixar escapar uma risada. — Também. — Ele se endireitou na cadeira. — Está assumindo que sou bonito? — ele grunhiu. — Pensei que preferia cabelos loiros. — Se foder, Javier. — Ele pegou a máquina de tatuar e a levou até minha pele novamente. — Você sabe o que eu quero dizer... — Vale. — Eu costumava achar que não era bom o bastante, que só porque vivia em meio a podridão não podia receber uma coisa boa mesmo que me fosse oferecida em uma bandeja de prata. — Eu o encarei, curioso. — Não achava que tinha futuro algum. Por esse motivo eu me afastei de todos, me afastei de alguém que amava muito, porque achei que estava sendo justo com ela. — E o que aconteceu? Ele afastou a agulha da minha pele por um momento, concentrado em

suas lembranças. — Deu certo... — Um frio correu sobre minha espinha ao pensar em Milena. — Por um tempo. Eu a vi construindo um futuro bonito, onde eu não estava nele. Ela casou, um cara aparentemente legal, com dinheiro, você sabe... — E então? — Ela o encontrou a traindo com sua melhor amiga, entrou no carro e saiu furiosa. — Ele fez uma pausa, encarando meus olhos com vivacidade. — Ela morreu naquela noite. Foi um acidente horrível... sua filha de três anos estava junto e não resistiu. — Deus... — Não o culpo, você sabe... Deus não tem nada a ver com a nossa puta ignorância. — O que você está tentando me dizer, Tío? — Você vai pensar tanto sobre não a merecer que vai acabar acreditando na sua própria loucura. Mas a vida é curta demais para ser altruísta, porque ela pode morrer atropelada indo colocar o lixo na rua. Não pense a longo prazo. Se ela ama você, deixe-a ficar. — Lo siento... por ela. Por vocês. — Eu também, todos os dias. — Ele passou o papel sobre a minha pele, tirando o excesso de tinta, deixando o desenho limpo. — Talvez eu só aprenda com meus erros, afinal. — Estaria disposto a arriscar? — eu neguei. Sentia meu coração rachar somente com a possibilidade de passar pelo o que ele passou. — Você não pode escolher por outra pessoa. — Você já acabou aqui? — Eu apontei para o meu braço e ele assentiu. — Você tem talento, desenha bem pra caralho e está fazendo um bom trabalho. — eu sorri, agradecido. — Está parecendo uma revista em quadrinhos, mas a gente precisa de uma cobaia, então quem melhor do que

nos mesmos? — Gracias por esto. Sinto que é isso, como se... fosse exatamente isso que eu fosse. Como se... — Eu o encarei. — tivesse me encontrado no mundo pela primeira vez. É fodidamente estranho, mas é... — Libertador. — Eu assenti. — Eu sei. É uma pena que eu tenha enxergado isso tarde demais. — Espero que isso não seja nenhum tipo de penitência para você. — eu me perguntava o motivo dele me ajudar tanto, mas nunca chegava a algo. Talvez ele apenas fosse uma boa alma bondosa. — Penitência? Sério? Acha que doeria menos em mim se eu poupasse você de passar pelo o mesmo que passei? — Ele fez uma pausa, fechando as tintas. — Nada que eu fizer vai ser capaz de diminuir a dor que sinto toda vez que penso nisso. Eu não a deixei ficar porque achei que estivesse sendo protetor com ela, foi totalmente o contrário. Eu estava sendo egoísta com ela e protetor comigo mesmo, porque no fundo o que eu tinha... era medo. Medo dela me deixar quando fosse tarde demais para que eu conseguisse seguir em frente. — Ele me encarou, então deu um pequeno sorriso cansado. — E olha quem sou hoje. — Eres um cara legal. — Sim, e a porra de um louco solitário. — De qualquer forma você estava errado, porque conseguiu ser alguém, ter suas coisas... — Eu olhei ao redor, encarando tudo o que ele havia conseguido. — Sim, e isso me faz ainda mais fodido, porque eu estava errado quando disse a ela que não teríamos um futuro. e agora ela não está aqui para usufruir comigo de tudo o que conquistei. Eu assenti, havia entendido tudo o que ele estava tentando me dizer e naquele momento, a única coisa que eu queria, era me desculpar com Milena por todas as merdas que vinha falando para ela nas últimas semanas, porque nós ainda tínhamos um ao outro e no fim, era só isso que importava. — Gracias, André. — Eu abaixei a minha cabeça. Não era acostumado

a ter pessoas me dando bons conselhos e sequer sabia como agradecer por eles, então ele me surpreendeu quando me puxou para um abraço e eu deixei, mesmo que parecesse estranho, porque não me lembrava a última vez que havia recebido um que não fosse de Milena. — Eu gostaria de ter tido um filho como você. — Ele deu duas batidinhas nas minhas costas. — Feliz cumpleaños , Javier. 19

— A água deveria estar muito quente, porque o barulho que a resistência fazia indicava que estava prestes a pegar fogo no chuveiro e eu sorri ao atravessar a janela, porque sabia o quanto Milena amava banhos quentes demais. Ela cantava uma música e a voz doce abafada pelo barulho da água preencheu todo o quarto, mesmo que fosse baixa, deixando o banheiro junto da fumaça quente que escapava pela porta aberta. Eu me sentia ansioso. Precisava me desculpar com ela por ter agido como um idiota mais cedo após ouvir seus pais no fundo da ligação perguntando se era eu, mesmo que parte minha ainda estivesse puto pela forma como eles usaram a frase “aquele moleque”, porque eu não era um moleque e não era muito diferente do filho deles também. Eu a ouvi desligar o registro e meu coração pulou, ansioso, porque eu sabia o quanto era ruim em pedir desculpas. Dios. Ela atravessou a porta do banheiro, enrolada a uma toalha branca tão pequena que eu podia jurar que era de rosto. Seus olhos encontraram os meus e eu perdi o fôlego que havia tomado para me desculpar. Então fechei a boca, tentando não parecer um idiota, mesmo que um pequeno sorriso sustentasse o meu rosto, porque Milena era a coisa mais bonita que meus olhos já haviam visto. Ela passou por mim como um míssil, direto para cama, então pegou um conjunto de lingerie sobre ela, me evitando. — Mi. — Eu toquei seu braço e ela o puxou de volta, em uma tentativa falha de me ignorar porque seu corpo sabia exatamente onde eu estava e minha presença era capaz de fazer sua pele arrepiar. — Siento... — Eu insisti no toque, movendo o polegar em pequenos

círculos no seu antebraço. — Pare... — ela sussurrou, virando para me encarar. — Apenas pare com isso. — Eu realmente sinto muito, Milena. Eu... — Você tem que parar com isso! Tem que parar de se isolar quando não está bem consigo. — Ela parecia muito irritada, mas tinha razão. — Esse sou eu, no puedo dejar de ser sem sou. É natural. — Sim, você pode, Javier. — Milena apertou o nó da toalha sobre os seios. — Não é justo eu arrastar você para as minhas mierdas. — Quantas vezes eu preciso dizer que estou nessa com você? Eu desviei o olhar. Era sempre difícil me abrir, porque falar me fazia sentir exposto demais. — Joder! — Eu me virei, encarando a janela. — E é exatamente isso que eu nunca vou ser capaz de entender! — Deus, Javier, eu não consigo entender você! — Tampoco yo. — Você está tornando isso mais difícil do que deveria ser. — Crees que eu não sei? — Isso não vai dar certo, Javier. — De que cuño você está falando?! — Eu a encarei. Seus olhos brilhavam e quando um fio de lágrima escorreu sobre sua bochecha, eu senti meu coração parar de bater, porque eu sabia onde ela queria chegar com aquela frase. Puta merda, eu precisava corrigir aquilo. Muito mais, eu precisava mudar por ela. Precisava parar de agir como um idiota se quisesse que o que tínhamos desse certo. Ela desviou o olhar para uma pequena prateleira de livros enquanto secava o rosto, me evitando.

— Você sabe. — Sua voz saiu estrangulada. — Eu não consigo sem você, Milena. — Então por que você vive me afastando? — Ela me encarou. — Se você diz que não consegue sem mim, por que então você me afasta sempre que estou perto o bastante? — Eu abaixei a cabeça, encarando os pés. — Está vendo só? É isso o que você faz. Você nunca fala. — Você nem consegue olhar para mim, Milena... Mírame... — Ela o fez. — Eu amo você. — O amor é a base de um relacionamento, mas sozinho ele não é o suficiente para consolidá-lo. — Joder! — É, Javier, Joder! Xingue, é só isso que saber fazer, porra! — Me desculpe. — Eu coloquei as mãos no bolso da frente do moletom depois de tirar meu capuz. — Você já se desculpou o suficiente. — Não foi o suficiente se ainda não me desculpou. Ela deixou escapar um suspiro. — Eu desculpo você. — Eu dei um passo para frente, mas ela recuou. — Eu amo você e isso não muda nada. Por que acha que minhas desculpas mudarão algo? Eu abri a boca e ela me encarou, ansiosa, o olhar caído sobre o meu rosto, esperando que eu dissesse algo que mudasse tudo, que me fizesse fazer mais sentido, que talvez a fizesse mudar de ideia, mas eu sequer sabia o que dizer ou por onde começar. Eu me sentia tão afundado em auto depreciação que não sabia se realmente a merecia, mesmo que o conselho que havia recebido mais cedo me fizesse acreditar que sim, ou que ele me assombrasse pelo resto da vida por achar que não. Eu não fazia ideia do que dizer, porque toda a minha vida, até aquele momento, havia sido baseada em me limitar a pensamentos. Eu era um ótimo pensador, mas péssimo com palavras. — Não, elas não mudarão.

Milena desfez sua pose ao me ouvir concordar com ela. —Você precisa parar de fazer isso. Pare de se sabotar e fale comigo... — Eu me sinto estagnado. — O que quer dizer? — Ela me deu um pequeno sorriso, me encorajando. — Como se desse um passo para frente e dois para trás. — eu comecei e Milena deixou escapar um suspiro pesado, então ela deu dois passos para frente, tocando levemente meu antebraço sobre o tecido do meu moletom, como um gesto de incentivo. — Sinto que... embora eu tenha com quem ir... — eu a encarei, sustentando um pequeno sorriso transtornado. — eu não tenho aonde ir. ¿Me entiendes? — Sim. — ela assentiu. — E em meio a todo o meu caos, eu também sinto que você está regredindo comigo... — Minha voz falhou e eu parei de falar, tentando disfarçar meu desespero. — Você tem o mundo, Milena e eu sempre invejei isso. Por esse motivo eu não quero ser a pessoa que vai tirar de você tudo o que tem. Eu não posso te fazer escolher entre suas oportunidades ou se limitar a minha miséria, mas ao mesmo tempo eu não consigo dejarte ir. Por isso... — Eu fechei os olhos quando ela enfiou a mão no bolso da frente do meu moletom, procurando pela minha mão. — eu me saboto quando o assunto é você. — Não faça mais isso então. — Milena sussurrou e eu senti seus lábios tocarem meu queixo e a sensação de tê-la tão perto, usando nada mais que uma maldita toalha de banho, só me deixava ainda mais louco em relação a ela. — Me prometa. — Te lo juro. Ela deixou escapar uma risada mansa que me fez abrir os olhos. — Só Deus sabe o quanto eu acho sexy toda vez que você abre a boca. — Eu sorri, porque não sabia como responder. — Feliz aniversário. — Gracias, cariño. — Eu enfiei uma mão em seus cabelos e a beijei, pressionando meu rosto com força no dela, conforme a puxava para mais

perto, segurando-a pela cintura com a mão livre. — Siento, de verdad. Eu caminhei, levando-a comigo até que ela tocasse a parede ao lado da janela; e quando suas costas encontraram a estrutura sólida, Milena deixou escapar um gemido, me fazendo ficar ainda mais excitado. Ela mordeu meu lábio inferior e segurou o lado direito do meu rosto com uma de suas mãos, a ponta do polegar acariciando meus lábios, enquanto ela os encarava. Sua pálpebra parecia pesada, com um brilho diferente no olhar. Eu a segurei em um aperto firme, como se a qualquer momento ela pudesse desistir de nós. Milena gemeu baixinho, escorregando suas mãos até minha cintura e me puxando até que minha ereção empurrasse sua barriga, me fazendo gemer enlouquecidamente, porque até aquele momento nós havíamos ultrapassado algumas linhas, mas nunca havíamos chego até o final e o brilho que ela sustentava no olhar me dizia que estávamos prestes a fazêlo. Ela curvou a cabeça para trás, me presenteando com a pele exposta do seu pescoço. Então eu a beijei, sentindo o cheiro adocicado do seu sabonete que há pouco tempo havia passado por ali e por outros lugares que eu estava louco para chegar. Eu me afastei o suficiente para que pudesse tirar meu moletom e assim que o fiz, Milena me puxou de volta para ela, correndo as mãos sob o tecido da minha camisa, sobre meu abdômen e a barra da minha cueca boxer. Eu estava nervoso. Havia feito aquilo dezenas de vezes, mas com Milena era diferente, porque ela o meu mundo e eu tinha medo de que ela pudesse se arrepender. De que caísse em si e se desse conta de que eu não era o cara certo para ter uma primeira vez, porque era instável e fodido. Mesmo assim, mesmo sabendo que eu estava cometendo um erro enorme em deixar que ela se entregasse para mim, eu movi meus dedos para baixo da toalha, tocando levemente a lateral de sua coxa, deslizando-os até sua bunda; então apertei forte o bastante para que um grunhido desesperado deixasse seus lábios. Ela abriu as pernas e eu a ergui até que estivesse com elas enlaçadas em minha cintura. Então caminhei até sua cama, empurrando algumas mudas de roupas para o chão, ao mesmo tempo em que beijava seu pescoço, descendo até o nó quase desfeito da toalha. Eu encarei rapidamente a porta do quarto

antes dela dizer: — Está fechada, e como já deve saber... estou sozinha. — ¿Estás segura? — Ela assentiu. — Eu não estou falando sobre estarmos sozinhos... Milena sorriu. — Eu sei... — Mi... eu não quero que você se arr.... — Pare de falar, Javier. — eu obedeci, sustentando um pequeno sorriso nervoso. Então eu levantei, de joelhos, uma perna em cada lado do seu quadril, enquanto ela me encarava com ansiedade. Nosso olhar estava conectado. Eu retirei minha camisa, ao mesmo tempo que sentia os dedos de Milena alcançarem meu abdômen, deslizando sobre a borda da minha boxer, brincando comigo, me provocando. Ela me ajudou a tirar o restante da minha roupa e eu joguei no chão, junto das outras. Ela encarou meu braço recém tatuado envolto a um plástico e sorriu, e o fato de eu saber que ela gostava de como meu corpo era coberto de tinta me deixava ainda mais excitado. Eu a encarei, ansioso, faminto, enlouquecido, então abri lentamente o nó da sua toalha conforme ela se curvava para que eu a puxasse por completo, fazendo com que seus seios, já expostos, empinassem, suplicando por mim. Milena era, de longe, a coisa mais linda que eu havia visto. Era como se sua pele fosse um tipo de tecido fino, como se cada parte dela fosse delicada e bonita o suficiente para que eu tocasse. Suas mãos correram pelas minhas costelas, deslizando sobre os meus ombros e parando no meu pescoço a medida em que eu me aproximava dela novamente, cobrindo sua pele exposta com minha boca, mordiscando, beijando, enquanto ela se remexia em baixo de mim e eu me perguntava, como podia sentir tantas coisas por uma única pessoa. Como era possível que eu a amasse mais que a mim. Meu coração batia rápido demais, me deixando sem ar, enquanto eu me posicionava no meio de suas pernas. — Mi, eu... — Ela soube na mesma hora o que eu ia dizer e seu rosto corou, graciosamente. — não tenho camisinha...

— Ah... Tudo bem... — Suas mãos não deixavam o meu corpo e eu sequer conseguia pensar direito. — Eu comecei a tomar pílula. — Eu posso... você sabe... tirar... quan... — Deus... pare de falar. — Ela me puxou, um sorriso envergonhado brincava em seu rosto. — Eu preciso de você agora, Javi. Sem pensar duas vezes, eu a penetrei, sentido o interior de uma mulher sem uma camada de látex atrapalhando pela primeira vez e a sensação era enlouquecedora; principalmente pelo fato da mulher ser ela, Milena. Com os olhos fechados, eu me lembrei de todas as vezes que eu havia sonhado com aquele momento. Quente. Molhada. Apertada. Não nos movemos, apenas ficamos parados, sentindo um ao outro e a forma como nos entregamos aquele momento. Certamente não era a minha primeira vez, mas era a primeira que realmente fazia sentindo para mim, que parecia certo, que era bom o bastante antes mesmo de começar. Se eu pudesse congelar algum momento da minha vida, teria congelado exatamente aquele, porque a sensação de senti-la completamente era boa o suficiente para me fazer acreditar que eu nunca mais precisaria de outra pessoa. Apenas dela. — Está com dor? Ela negou com um brilho diferente nos olhos, fazendo meu peito arder. Eu comecei a me mover lentamente, conforme ela me puxava e me afastava com as mãos no meu quadril, remexendo embaixo de mim no mesmo ritmo. Devagar. Milena enterrou a cabeça no meu ombro e mordeu minha pele para tentar abafar um gemido quando eu acelerei, suavemente, ao mesmo tempo em que eu me afastava apenas o suficiente para que pudesse beijá-la. Então eu roubei um gemido seu, suas unhas cravadas na pele das minhas costas. — Deus...

Eu sussurrei, me sentindo tão perdido nela que àquela altura sabia que nunca mais a deixaria ir, nunca mais, porque eu precisava dela, tê-la, senti-la. Precisava de Milena comigo, ao meu lado ou embaixo de mim, tanto quanto precisava de oxigênio para sobreviver. Ela colou os lábios nos meus, sugando e mordiscando meu lábio inferior, roubando minha respiração, enquanto sussurrava meu nome baixinho. — Javi, eu... Milena arqueou as costas, pressionando seu corpo com força no meu e vê-la gozar foi o maior presente que um dia eu havia ganhado. Era bonito, quente, sexy e parecia tão surreal quanto enlouquecedor. Eu apoiei um braço na cama e outro enfiei em seus cabelos, ao mesmo tempo em que encaixava meu rosto em seu pescoço, sentindo o gosto da sua pele suada, me perdendo nela. Eu finalmente gozei e a sensação era ainda melhor ao senti-la tão húmida e quente por isso eu não era capaz de parar e eu continuei me mexendo, devagar, deixando de me mexer aos poucos, lentamente, até que parei. Eu apoiei minha testa a dela, me perguntando como era capaz de me perder no lugar em que havia me encontrado. — Nada mal para uma primeira vez. — ela sussurrou assim que eu caí ao seu lado na cama. — Ha, ha, engraçadinha. — ela gargalhou baixinho, se virando de lado e se enroscando em mim. — Como se sente? — eu coloquei uma mecha de cabelo para trás de sua orelha e ela retirou de lá, como sempre fazia. — Como se tivesse acabado de transar. — Ela corou, antes de enfiar a cabeça em meu peito para que eu não pudesse olhá-la. — Você parece de bom humor. — Eu a abracei, beijando o topo da sua cabeça. — Eu amo você, Javi. — Sorri com suas palavras. — Eu poderia ouvir você repetir isso uma vida inteira. Ela beijou meu peito, deslizando a mão livre sobre a pele do meu abdômen. — Eu poderia repetir isso uma vida inteira também. — ela fez uma

pausa, se afastando um pouco, mas o suficiente para que eu pudesse ver as suas bochechas corarem. — Eu me sinto ótima, você foi perfeito. — Eu amo você. E eu amava, a amava com todas as minhas forças. Por inteiro. Suas qualidades e seus defeitos. Meu telefone tocou em algum canto do quarto e eu grunhi, impaciente, porque não tinha forças para me levantar para atender, e sabia que poderia ser apenas Gus, Matheo ou seu tio, porque eles eram as únicas pessoas no mundo, além de Milena, que me ligavam. Ela se afastou para que eu pudesse sair e imediatamente eu senti a falta do seu corpo no meu. — Fique aqui. — Eu a puxei de volta, ignorando a chamada. — Você não vai atender? — ela perguntou, e eu a conhecia o suficiente para saber que parte dela estava enciumada. — Deve ser Gus ou Matheo. Depois eu retorno. — Ela assentiu no mesmo segundo em que o telefone deixou de tocar. — Conversou com seus pais sobre a faculdade? — Ela assentiu. — Depois de algumas semanas sem falar com eles, sim, eu falei. Eles estão putos por eu ter perdido o semestre passado, mas eu precisava dar um tempo depois do ensino médio. Eu assenti, concordando. Sabia que aquele tempo depois da formatura era um tipo de aceitação para ela, onde ela trabalharia em sua mente que não podia ser o que realmente queria ser, e sim o que eles queriam que fosse; apesar de eu dizer a ela o quanto ela podia ser livre e fazer o que quisesse. — Sí, amor. E o que decidiu? — Começo administração nesse semestre. Vou entrar um pouco atrasada, mas foda-se porque eu nem queria fazer. Além disso, mil coisas estão acontecendo. A empresa do meu pai não vai muito bem ainda, ao que tudo indica; mas ele não costuma falar sobre isso de qualquer forma. — Siento... Queria poder ajudar você nessa mierda.

— Eu sei, mas não pode. — Ela deu de ombros. — Como está sua mãe? Deixei escapar um suspiro pesado. — Você sabe... fugindo das internações, roubando o que eu coloco dentro de casa... — Ela apertou minha mão. — Tudo na mesma. — Um dia seremos somente nós dois, Javi. Você e eu contra o mundo. — Milena entrelaçou seus dedos aos meus, fechou os olhos e sorriu, uma covinha surgindo em sua bochecha. — Parece un sueño, ¿No? — Eu beijei sua testa. — Sim, parece. — ela gemeu. — A que horas seus pais chegam? — perguntei preocupado. Havia perdido completamente a noção do tempo. — Eu não quero que você vá. — ela choramingou, me prendendo com suas pernas. — Eu não quero ir, mas preciso, cariño. — Tudo o que eu menos queria era ser pego com Milena e lhe causar ainda mais problemas. — Eu sei. Meu celular tornou a tocar e eu praguejei quem quer que estivesse ligando, enquanto o procurava em meio as nossas roupas, ainda nu. Eu juntei minha cueca e a vesti, antes de atender a chamada. — Porra, Javier, por que não atende essa merda? — Que cuños você quer, Gus? — Porra, venha até a fábrica, eu preciso falar com você... Caralho Javier, eu descobri uma merda grande, venha logo! — Ele desligou a chamada, me deixando ainda mais preocupado, porque Gus era tudo menos dramático, então se ele precisava falar comigo, ele realmente precisava. e imediatamente eu gelei por dentro com a possibilidade dele ter se metido com alguma coisa na qual não podia sair ileso. — O que Gus quer? — Milena perguntou preocupada, então eu forcei meu melhor sorriso.

— Ele esqueceu a carteira na minha casa mais cedo e você conhece ele... quando quer algo, tem que ser na hora. — Eu me sentia péssimo por estar mentindo para ela, mas eu omitia muita coisa quando o assunto era o seu irmão, porque ele também era o meu melhor amigo e ele não queria deixá-la preocupada. Nem eu. — Ele fica ainda mais chato quando está de aniversário. — Assenti com suas palavras. — Como se sente não sendo mais velha do que eu? Ela deu de ombros. — Mal, porque eu não posso mais pegar no seu pé. — Eu sorri, me curvando para beijá-la. Milena apertou o lençol sobre os seios. — Mas eu posso fazer isso entre abril e julho do ano que vem. — O fato dela estar fazendo planos para o ano seguinte fazia meu peito arder de ansiedade. 20

— Eu preciso ir. — ela assentiu, fazendo beicinho. — Te extraño . — Você ainda nem saiu. — Eu sorri, beijando-a novamente. — Mas já é suficiente para que eu sinta a sua falta. — Segurei seu rosto entre as mãos e a beijei uma última vez. Eu vesti minha roupa, enquanto ela se enrolava no lençol, me observando. Quando eu estava pronto para sair, ela me puxou para um abraço e eu senti uma puta sensação ruim dentro do peito, mas eu decidi ignorar, pensando que talvez o motivo de eu estar me sentindo daquela forma tivesse a ver com o novo passo que havíamos dado. Mas no fundo, eu sabia que algo estava prestes a dar errado. — Eu amo você. — ela sussurrou, colando os lábios aos meus, enquanto eu lutava para conseguir deixa-la. — Te quiero... — sussurrei de volta antes de deixar o quarto, mas a cada passo longe dela parecia me aproximar do nosso fim.

Capítulo 12 Javier Eu pisei no telhado em frente a sua janela antes de me pendurar na ponta dele e pular no gramado. Eram movimentos que eu podia fazer de olhos fechados porque eu a visitava escondido desde o ensino fundamental e conhecia cada pedaço do seu quintal, cada ponto cego das câmeras de vigilância como a palma da minha mão, ou talvez melhor. Subi o muro dos fundos, me sustentando na raiz grossa das plantas que o cobria até que cheguei ao topo e pulei para fora do quintal e quando meus pés tocaram o chão eu ouvi a voz dele, do homem desprezível que eu não suportava. — Você parece um ladrãozinho de merda. — Edgar, pai de Milena, me encarou com desprezo, enquanto eu limpava as mãos nas calças. — Vindo de um cara como você, você sabe... Muchíssimas gracias pelo elogio. — ele grunhiu. — Se eu o pegar outra vez dentro da minha propriedade, ficarei feliz em alegar legítima defesa ao usar minha pistola. Eu sorri com escarnio. — Eu ficaria surpreso se você conseguisse me acertar, mas valeu a dica, chaval . 21

Eu me virei para sair, mas ele pegou meu braço com força. — Fique longe dela, garoto ou eu vou destruir todas as oportunidades que lhe chegarão. — Fique à vontade. — Eu me desvencilhei. — Nunca fui um garoto afortunado, afinal. — Estou te avisando... — ele garantiu. — Uma pessoa é mais ameaçadora cumprindo promessas do que fazendo ameaças.

— Quanto você quer? — A voz estridente de Sandra, sua mãe, deixou o carro estacionado logo atrás de mim. — Joder... — praguejei. — Cinquenta mil? — Eu ri, não era possível que fossem os pais de Gus e Milena porque eles eram totalmente o oposto dos dois. — Cem mil e você muda de cidade. — Ela pegou o talão da bolsa. — É um número bem alto para uma empresa que está indo mal. — Ela me encarou, furiosa. — Como voc... — Escutem bem, porque eu não vou repetir. — Os dois me encararam, enfurecidos. — Eu amo a filha de vocês, amo aquela garota mais do que tudo no mundo e não há dinheiro, ameaças ou uma maldita pistola apontada na minha cara que me fará mudar de ideia. Então se já acabaram, eu preciso ir. — Eu me virei novamente, sem olhar para trás e caminhei rumo a fábrica deles porque ainda tinha um amigo para socorrer.

Apesar do que havia acontecido há poucos minutos, eu me sentia estranhamente feliz. Estranhamente, porque eu desconhecia o sentimento de felicidade. Felicidade mesmo, como andar na rua de um jeito diferente, encarar as pessoas de outra forma, respirar com pureza. Sentir e enxergar tudo o que estava a minha volta. Sorrir a ponto a ponto de sentir seu maxilar formigar. Felicidade de verdade, que faz você se sentir um idiota. Eu me sentia como uma pessoa normal. Eu estava feliz.

Eu levei o cigarro até minha boca e abri o portão de ferro dos fundos, que sabia que estaria aberto, assim como a porta que dava acesso as escadarias, porque Gus sempre as deixava quando sabia que eu o encontraria lá, na empresa da sua família. Eu atravessei o pátio escuro e silencioso, meu peso causava um ruído alto conforme pisava sobre as pequenas pedras que cobriam toda a extensão, sentindo o frio cortar minha pele. Eu abri a porta dos fundos, encolhido em resposta ao vento forte; então dei minha última tragada antes de soltar toda a fumaça e jogar a bituca do cigarro no chão e entrar no prédio. Meu celular apitou e eu encarei a tela, sorrindo como um idiota ao ler a mensagem de Milena. Você e eu contra o mundo. Você e eu contra o mundo. Te quiero, cariño. Eu subi as escadas, dois degraus por vez, seguindo em direção a onde eu sabia que Gus estaria, onde sempre nos encontrávamos, no terraço do galpão de dois andares. Então eu atravessei a porta já aberta e me certifiquei de que a pedra que a segurava estivesse bem firme, porque ela só abria por dentro e passar uma noite inteira a céu aberto em pleno inverno era uma péssima forma de acabar aquela noite que havia começado tão bem. Eu o avistei, sentado sobre um pedaço de concreto mais alto que toda a superfície, encolhido, os olhos fechados. Ao seu lado estava uma garrafa de uísque quase vazia, um cartão de crédito sujo com pó branco, algumas bitucas de cigarros e pontas de baseados. Ele deveria estar lá a tempo suficiente para que pudesse estar muito alto; e estava, porque ele sequer havia escutado eu chegar. Chutei levemente a garrafa com um pé e ela virou, caindo ao seu lado, mas ele não se moveu. Então eu me curvei sobre ele e cutuquei seu braço com medo da possibilidade de Gus estar morto, mas ele grunhiu, virando a cabeça para o lado oposto o que dizia que não, não havia morrido, mas estava bêbado o suficiente para ter apagado. E seja lá qual tivesse sido o motivo, sem dúvidas tinha a ver com a ligação que havia me feito mais cedo. Sentei ao seu lado, pegando o cartão de crédito e colocando-o no bolso para que ele não o perdesse, peguei os restos dos baseados e guardei para que

ninguém encontrasse, soprei a cocaína para que se espalhasse pelo chão e não pudesse ser vista. Eu me ajeitei, peguei um torrão de maconha do bolso e o enfiei dentro do dechavador para triturá-la antes de montar meu baseado, então peguei o isqueiro no bolso e risquei, encarando a chama por vários segundos, até que a ponta do meu dedo começou a arder. Eu não o acendi. Encarei meu amigo ao meu lado. Ele havia mudado demais nos últimos anos, estava muito mais magro devido a péssima alimentação e a quantidade abusiva de drogas que usava. E, apesar de Gus ter mudado muito depois de conhecer Brisa e principalmente depois da nossa formatura, onde os dois estabeleceram alguns limites, ele não havia parado de usar nada, nem por ela; e há duas semanas ele estava muito estranho, e eu sabia o motivo: Sua família. A família Rabelo não era exatamente uma família unida e amorosa. Pelo contrário, eram ditadores de merda. Faça isso, seja aquilo, arrume sua postura e blá-blá-blá. Um monte de merdas. Mas, o que eu, Javier, sabia sobre ter uma família, se tudo o que eu conhecia era torto e errado também? Mas, de uma coisa eu sabia: Gus não era um garoto feliz, por mais que tivesse tudo. Uma casa grande, uma empresa lhe aguardando, carros e a mulher que quisesse... ele não era feliz porque não tinha a única coisa que o dinheiro nunca será capaz de comprar: Amor. Quando olhamos para nós mesmos, não somos capazes de enxergar quem realmente somos; apenas quando você compara seus hábitos com os de outra pessoa que você sabe que está indo por um caminho errado e vê que é exatamente o mesmo que você está fazendo, é que você consegue enxergar com clareza quem você realmente é, o que realmente está se tornando. É muito mais fácil julgar uma pessoa por ser errada do que assumir seus próprios erros. E naquele momento, eu estava julgando Gus por ser um idiota viciado; mas ao mesmo tempo em que o fazia, acendia um baseado. O pior tipo de mentiroso é o que acredita nas suas próprias mentiras e eu mentia para mim todos os dias. Eu dizia para mim mesmo que não era um viciado. O problema é que somente um viciado diz isso para si mesmo. Eu encarei o cigarro de maconha em uma das minhas mãos, encarei o isqueiro na outra. Milena odiava profundamente o fato de eu usá-la, e eu

odiava a energia que ela gastava tentando me convencer a parar de fumar e pela primeira vez eu realmente me importei de verdade com isso, o suficiente para que eu enfiasse no bolso e não o fumasse. Eu suspirei, sentindo o peso do dia cair sobre mim, encarando meu amigo ainda imóvel, então apoiei minhas costas na parede atrás de mim e fechei meus olhos, pensando em Milena e em todas as merdas que havia escutado de seus pais. — Você pareceee... — Ele soluçou. — Ridículo olhando para esse baseado... — Cuño, Gus, que susto, joder! — Eu me inclinei para frente, deixando a maconha cair aos meus pés. Então ele se abaixou, juntando. — Acende essa porra aqui logo, caralhooo. — Ele ergueu o baseado. — Porque eu preciso de maisss. — Acho que você já usou demais por hoje. 22

— Escuchame ... — Ele cutucou meu peito três vezes seguidas e eu soltei uma gargalhada. — Você é ridículo falando espanhol. — Sou sexy falando espanhol. — Ele acendeu o baseado, fechando os olhos na primeira tragada. — Não, não é... Joder, parece uma dublagem malfeita! — Foda-se, porque eu tô na merda hoje. — Eu sorri, porque me sentia o oposto. — E você está agindo estranho, o que aconteceu? — Nada. — Eu desviei o olhar. — Pega. — Ele esticou o braço, segurando o baseado e eu o encarei por tempo suficiente para que ele desconfiasse, então ele sacodiu a maconha no ar, chamando minha atenção. — Anda logo. — Caralho, calma... — praguejei, levando-o até a boca. — Você... está com cara de quem deu uma trepada! Eu passei para ele, tentando não sorrir tanto.

— Eu não acho que você queira ouvir sobre isso. — Gus tossiu, seu rosto corando gradativamente. o que me fez sorrir ainda mais, porque ele nunca ficava sem jeito. — Filho da putaaa! — ele xingou entre os dentes e eu sorri. — Eu a amo, você sabe. — Ele franziu a testa, com uma expressão de falsa repulsa. — Por favor, apenas não diga mais nada. — Ele fez um gesto com as mãos para que eu parasse de falar. — Gus... En serio... — Ele me encarou atentamente pela primeira vez. — Eu não acho que posso continuar fazendo isso. — Ergui o baseado no ar e ele assentiu. — Eu diria que você está agindo como um grande cuzão, massss — ele disse de forma esquisita, enrolando a língua. — Estamos falando da minha irmã, entããão... Você está certo! — Obrigado. — Eu o encarei, sustentando um pequeno sorriso em agradecimento. — De nada. — ele imitou meu sotaque. — Mas não deixa de ser um cuzão. — Gus sorriu, tocando levemente meu ombro. — Eu invejo, você, irmão, sabe... Toda a sua força de vontade e tudo mais. — O que seria o tudo mais? — eu ri, porque não fazia ideia aonde ele queria chegar com aquela conversa. — Porra, Javier, eu prometi a Brisa que mudaria por ela, e olha só para mimmm! — Ele encostou seu indicador no próprio peito. — Eu sou uma pessoa de merda. Um namorado de merda. — Não, você não é. — Ele me encarou. Sua expressão havia mudado drasticamente, e apesar de eu saber que era o excesso do álcool falando, eu também sabia que Gus estava aproveitando aquele momento para desabafar com um amigo. — Você apenas toma algumas decisões erradas, mas isso não significa que seja uma pessoa de merda. — Eu amo você, cara. — Ele colocou a mão no meu ombro novamente, curvando-se um pouco sobre mim e eu tentei segurar o riso.

— Você vai me beijar agora? Ele se afastou, soltando um grunhido antes de cairmos na gargalhada. — Eu quero mudar, caralho eu quero, mas eu não sei ser diferente. Gus tirou um saquinho branco do bolso da frente da jaqueta, então saltou de onde estava, dando alguns pulinhos para espantar o frio, enquanto eu me jogava para trás para encarar o céu. Bela forma de acabar no meu aniversário, nosso aniversário, aliás. Dois idiotas drogados no telhado de uma empresa quase falida. — Você deveria começar... tentando. — Ele riu, ou quase. Eu não sei, estava chapado demais para diferenciar. — Tome isso aqui. — Ele esticou o braço sobre mim, atrapalhando minha vista, então chacoalhou o litro de bebida na mão. Eu encarei a garrafa que havia substituído a minha visão do céu estrelado acima de mim, pensando que talvez encher a cara fosse minha melhor opção. Talvez fosse mesmo, ou talvez não... que se foda, porque meu encontro de merda com os pais de Milena havia fodido com a minha cabeça. Eu odiava nossas posições. Odiava ser o cara que não tinha nada a oferecer. Eu estiquei meu braço para cima, tocando o vidro gelado com a ponta dos dedos, então girei a tampa lacrada com força e o estalo do lacre sendo rompido atravessou nosso silêncio mórbido. Gus sorriu para mim quando eu virei a garrafa no ar, os braços ainda esticados, deixando o fio de bebida chegar até minha boca aberta, ainda no chão, então e engoli. O álcool queimava minha garganta e meu estômago vazio, me fazendo capaz de sentir exatamente por onde ele passava. — É nosso aniversário, porra! — ele gritou bem alto, enquanto eu permanecia no chão gélido, encarando o céu. — Vamos fazer isso apenas mais uma vez e entãoooo... a genteee... Sei lá, caralhooo, a gente muda? — Ele sorriu, posicionando a cocaína sobre a superfície mais alta antes de se curvar sobre ela, cheirando a carreira inteira de uma vez. — Porraaaa! — ele gritou, limpando o nariz. Eu não sabia se seria realmente a última vez, porque era assim que nós havíamos passado os últimos anos e nos sentíamos bem. Eu me sentia bem

quando o álcool corria em minhas veias e me sentia ainda melhor quando a maconha fazia a minha cabeça, e Gus nunca ficava tão feliz quanto à quando se curvava sobre uma carreira de cocaína e a cheirava de uma só vez. Nós éramos assim, fodidos da pior maneira possível; e eu mudava de ideia sempre que sentia o álcool começando a fazer efeito, porque ele era bom comigo, era bom sentir que o mundo podia desabar nas suas costas e você estar de bem com isso, então eu começava a desacreditar mais uma vez que seria a última vez, porque o mundo real era uma merda. — Feliz aniversário para nós então. — eu disse sem humor, erguendo a garrafa no ar como um brinde. Então fechei os olhos, mas não foi escuridão que eu vi, foi o rosto de Milena, e sua expressão era de desaprovação. — Feliz aniversário de merda. — Ele se sentou ao meu lado, juntando os joelhos perto do peito, uma mão envolta as pernas, enquanto a outra alcançava a garrafa. — Qué há pasado, aliás? — Eu me referi ao motivo dele ter me ligado. Gus levou a bebida até a boca, bebendo um gole atrás do outro, entornando a garrada de uísque. Então fez uma careta antes de limpar usando a manga da jaqueta, o líquido que escorreu sobre o seu queixo. Ele encarou o céu, mas estava alto o suficiente para que pudesse pensar com clareza em algo, então ele se levantou num pulo e bateu palma duas vezes, soltando o ar com força, e o frio fazia com que parecesse fumaça saindo de sua boca. — Foda-se issssso! — Ele fez um gesto dispensando minha preocupação. — Foda-se essa empresa de merda e foda-se o meu pai. — Do que você está falando? — Eu me sentei, alcançando o Jack Daniels. — Foda-se, Javierrr, eu nãoooo... quero maisss falar sobre isso... Meu tio que se foda! — Ele se ajoelhou, me encarando, uma mão sobre o meu ombro. — Você e Milena são as únicas pessoas no mundo em que eu confio. — Eu sorri, mesmo que parte minha estivesse preocupada com o que quer que estivesse acontecendo com ele. — Você é a porra do meu melhor, amigo, Gus. — Eu toquei seu ombro em resposta. — Quando você quiser conversar sobre isso, eu vou estar bem

aqui, tío. — Eu sei. — Ele colocou o braço sobre meu ombro e se sentou ao meu lado. — Você é meu melhor cunhado. — Você só tem uma irmã, cuzão. — É, eu sei. — Nós caímos na gargalhada, e não tinha nada a ver com a maconha que havíamos fumado; ou pelo menos eu achava que não. De qualquer forma, na merda ou não, nós tínhamos um ao outro. O cheiro da fumaça era forte o suficiente para que eu pudesse sentir o gosto dela na minha língua e abri os olhos, que rapidamente arderam em resposta. Eu não entendia o que estava acontecendo e levou alguns segundos para eu começar a raciocinar direito. Para eu perceber que havia um incêndio acontecendo. Um incêndio! Eu me levantei imediatamente, sem saber o que fazer, sem saber para onde correr. Gus não estava mais ao meu lado e eu não fazia ideia em que momento tudo havia acontecido. Não fazia ideia sobre como agir ou o que fazer. A fumaça estava cada vez mais forte, então eu corri para dentro do galpão pela porta ainda presa com uma pedra, em direção as escadas e ao chegar lá, pude avistar o fogo. Chamas deixando as salas, altas o suficiente para conseguirem tocar o teto. Eu entrei em choque, não podia acreditar no que estava vendo. Todo o trabalho de uma vida estava sendo corroído pelas chamas. Eu desci alguns degraus, chamando por Gus. — Gustavo! — eu gritei antes de tirar meu moletom e colocá-lo sobre a boca e nariz. — Gustavo! Eu toquei o corrimão e minha pele queimou de imediato ao entrar em contato com o ferro quente. — Gussss! — eu gritei, alto, mas não parecia ser o suficiente. As chamas não eram silenciosas, elas eram ruidosas, gritavam em resposta, chamavam a morte a cada novo passo meu em sua direção. Eu dobrei a escada, ainda gritando por Gus e quando dei um novo passo, uma parte do teto se soltou, caindo a minha frente, com os escombros envoltos em chamas, quase me acertando em cheio. Eu caí sentado, queimando a mão no degrau da escada, me obrigando a levantar imediatamente. Eu precisava encontrar Gus, então pulei sobre o escombro, alcançando a porta da saída, que estava fechada; o que só podia significar

uma coisa: Gustavo havia ido embora. O que também não fazia sentido, porque, por qual motivo ele iria sem mim? A fumaça me sufocava de uma forma que eu sequer sabia se conseguiria chegar ao topo novamente, mas eu não tinha mais acesso as janelas e as salas estavam tomadas pelas chamas. Então eu subi, degrau por degrau, tentando me concentrar na minha respiração sob o tecido grosso do casaco. O calor do fogo doía nos ossos, conforme eu encarava a destruição a minha volta e corria contra ele. Degrau por degrau. Em busca de ar, da única saída, da minha sobrevivência. Eu cheguei ao topo, então dei o último grito chamando por Gus, tão alto que exigiu meu último fôlego, tudo o que ainda restava em meus pulmões, me fazendo cair de joelhos no terraço. Meus olhos só podiam ver uma coisa. Fogo. Porque era a única coisa lá. Fogo. Não existia mais nada. Nada. E eu ainda precisava deixar o local antes que ele desmoronassem comigo, mas eu estava a dois andares altos do chão, sem nenhuma escada externa, sem algo para amortecer a queda, e parte minha ainda queria voltar e procurar pelo meu amigo, mas eu não conseguia acreditar que ainda era capaz de existir vida lá. O fogo chegava perto da porta de saída, então eu a fechei e corri até a beirada, procurando pelo ponto onde seria menos provável que eu morresse quando pulasse. Era muito alto. Mas eu não tinha opção. Foi então que eu o ouvi gritar, do outro lado da porta, em meio as chamas. Gus. Eu corri até a porta de saída, gritando enlouquecido para que ele a abrisse, mas eu não conseguia compreender o que estava querendo dizer. — Está quente, Javier! Me ajuda! — Abra a maçaneta, Gus! Abra a porta! — eu gritei de volta. — Ela derreteu! — Suas palavras desesperadas me atingiram. Eu não sabia como salvá-lo. — Se afasta da porta, Gus, eu vou chutar. — E eu chutei, várias e várias vezes, mas ela era reforçada o suficiente para que não pudesse ser arrombada. Então eu peguei uma barra de ferro que estava próxima a mim e bati na porta, uma, duas, dezenas de vezes, mas nada acontecia. — Gus, como você está? — eu perguntei apavorado, retornando a chutar a porta, mais uma, duas,

repetidas vezes, até que senti o osso do meu pé quebrar, me fazendo cair. Então eu permaneci chutando a porta com o outro pé, diversas vezes, sentindo a dor de novos ossos quebrando, mas eu sequer fazia ideia quais eram. Eu apenas precisava salvá-lo. — Gustavo! Gus! Eu deixei meu corpo cair para trás, chorando, sem saber o que fazer, ouvindo-o gritar e implorar por socorro, como se eu pudesse fazer alguma coisa. Sua voz desesperada. Eu podia ouvir as chamas chegando, podia ouvir o som da morte, os uivos dele, até que ele parou, me fazendo gritar desesperado em meio as lágrimas, a dor. Desespero. Eu me obriguei a me arrastar para a beirada do prédio, o peito e a barriga queimando no chão quente. Tudo embaixo de mim era fogo e eu estava prestes a queimar junto. Coloquei um braço para frente e me arrastei, depois outro, um de cada vez, remoendo a voz de Gus na minha mente a cada centímetro que eu conquistava. Eu alcancei o peitoril, puxando meu corpo para cima, usando o pouco de força que me restava, encarando as pessoas lá embaixo, as luzes dos carros de polícia, então eu fechei os olhos e me joguei.

Parte 2 Dias atuais

“Mas tudo é possível. Esta criança precisa se sentir amada, recebida, não poderá ser deixada de lado. Vocês, pais, não poderão cometer o erro de apenas alimentar, trocar fraldas e dar banho. Mas também é imprescindível a interação, pois ele necessita ocupar seu espaço”. Livro “Deixe-me viver plenamente”, da autora Denise Pacheco.

Capítulo 1 Milena - 26 anos As aves fazem seus ninhos em uma ilha distante da costa. Elas constroem montes de lama que elevam os ovos, o que os mantem ligeiramente mais frescos do que estariam no nível do solo. A água que cerca a ilha é tão salgada que os predadores não se aventuram a atravessá-la. — Como são os flamingos? — Juan pergunta, de costas para a televisão, construindo um castelo usando peças de Lego. — Parecem galinhas cor de rosas. — Ele deu uma gargalhada que me fez sorrir enquanto dobrava uma pilha de roupas que estava se acumulando há três dias. — Galinhas cor de rosa. — ele repetiu, gargalhando. — Deve ser estranho para o flamingo macho ser... rosa. Eu continuei sorrindo. — Já conversamos sobre isso, Juan. Não existe cor de menino e cor de menina. — Qual a cor da blusa que eu estou usando? — ele perguntou, apesar de já saber. — Azul, querido. — eu respondi, dobrando uma blusa de flamingos e sorrindo pela coincidência. — Ah, que engraçado, não? — ele debochou, acertando o castelo com um soco certeiro, derrubando tudo no chão, antes de começar a construir outro. — Você é bem engraçadinho para sua pouca idade. Ele deu de ombros. É o fim de uma longa jornada, mas é somente a primeira das provações que serão impostas a estes flamingos pela irregularidade das chuvas. Se as chuvas fossem mais previsíveis e constantes, a vida poderia prosperar de forma mais abundante, tanto em número, quanto em variedade.

— A palavra abundante é engraçada. — Porque parece bunda. — eu respondi, porque conhecia ele bem o suficiente para saber que ele faria essa associação. — Sim. O que significa? — Ele segurou um Lego no ar, esperando que eu respondesse primeiro. — Bastante de alguma coisa. — Como o tanto de roupas que você tem para dobrar? — ele encaixou a peça no lugar correto. — Tipo isso. — E o que seria a vida a prosperar? — As plantas. — respondi, colocando sobre a cama uma nova pilha de calças dobradas. — Por isso se chovesse mais, as plantas poderiam prosperar bastante? Então os flamingos teriam o que comer? — Isso mesmo, mas agora estão falando de outro animal. Os gnus. — Como são os gnus? — Como cabras grandes com chifres de touro. Ele gargalhou. — Parece assustador. — Juan respondeu. — E é. São marrons e grandes. — Ele se concentrou no ruído que faziam, inclinando a cabeça para a televisão. — E fazem um barulho estranho. — Eu assenti, sentindo meu coração se aquecer com o sorriso que ele deu para mim. Juan permaneceu brincando, sentado sobre o grande tapete felpudo que cobria parte do chão da nossa sala e eu espiei seu castelo pela porta aberta do nosso quarto, onde eu o observava enquanto dobrava as roupas. Apesar de tudo o que passei, ele era uma criança saudável, incrível, inteligente e muito curiosa. Juan gostava de saber sobre as coisas, fazer perguntas. Ele queria

entender tudo, como cada coisa funcionava e isso me enxia de orgulho. Seus cabelos castanhos estavam maiores e eu fiz uma anotação mental de levá-lo para cortar naquela semana. Seus olhos rolaram pela extensão do cômodo quando eu fiquei em silêncio, então eu deixei escapar uma risadinha e ele me encontrou. Olhos castanho-esverdeados com um leve toque de cor de mel, que eu era completamente apaixonada. Juan se levantou e caminhou até mim, lentamente, subindo na cama, o som da televisão preenchendo o silêncio instalado em nossa casa. As florestas tropicais cobrem apenas sete por cento das terras do planeta. Longe dos trópicos, onde o clima é sazonal e mais fresco, elas são bem diferentes. A maior de todas é a floresta boreal, que se estende por toda a América do Norte e Eurásia. — O que é sazonal, mamãe? — Não sei, querido. Depois eu pesquiso para você. — Ele se jogou para trás, sua cabeça tocando o travesseiro depois de bater levemente na cabeceira de madeira. — Tenha cuidado, você não pode se jogar antes de conferir se há algo atrás de você. — Ele assentiu, fechando os olhos, as pernas para cima, batendo um pé no outro. — Tudo bem... e o que é Eurásia? Eu suspirei. — Você faz eu me sentir burra. — E culpada por admitir isso a uma criança tão pequena. Juan gargalhou, se virando em outra posição, derrubando uma pilha de roupas que eu havia acabado de dobrar. — Pare quieto, você está derrubando tudo. — Você não é burra. Burro é um animal com orelhas grandes e cinza. — Parece que você quis dizer que eu sou outro tipo de animal. Juan riu alto, tapando a boquinha. A forma como eu podia conversar com ele e ele ser capaz de compreender meu senso de humor era uma das coisas que eu mais amava no meu filho. Sua inteligência.

Seus sorrisos. Sua aparência. — Não, mamãe. — Ele esticou os bracinhos para cima, para que eu o abraçasse; então eu larguei a camiseta que segurava e fui até ele, me jogando sobre seu pequeno corpo deitado na cama. Eu beijei sua bochecha, enquanto ele deslizava a ponta dos dedos sobre o meu rosto. — Você é uma gatinha. — Você está dizendo que eu gosto de beber leite em uma tigela no chão, Juan? Ele deu uma gargalhada alta e meu peito se encheu. — Nãoooo! — Eu acho que está! E eu não admito isso! — Eu deslizei minhas mãos para sua barriga. — Ataque de cocegas! — gritei antes de começar a fazer, então Juan gritou alto se contorcendo sobre meu toque, enquanto eu tocava os pontos onde eu sabia que ele tinha mais sensibilidade. — Não, não! — ele implorou entre as risadas, então eu parei, para que ele pudesse respirar. — Eu quis dizer que você era fofa, mamãe. — Fiz um barulho de espanto para que ele soubesse que estava surpresa, enquanto ele retomava o ar, dando pequenos risos. — Ah, então tá. — Eu o abracei, beijando sua bochecha, antes de voltar para as roupas. Juan permaneceu deitado, com os olhos fechados enquanto sustentava um pequeno sorriso no rosto, os lábios pressionados com força, como se estivesse vergonha de sorrir. O pôr do sol entrava pela pequena fenda da janela e o raio de luz acertava seu rosto, fazendo corar suas bochechas. A sensação de admirá-lo nesses pequenos momentos fazia meu peito se encher de tanto amor que muitas vezes pensei que não fosse possível sentir. Ele era a cara do pai, cada traço, cada linha, cada expressão. — Por que parou de dobrar? — ele perguntou, os olhos ainda fechados, apesar de não fazer diferença. — Você é lindo, Juan. Espero que sempre saiba disso.

— Como o meu pai? — sua pergunta fez um nó se formar na minha garganta e eu tentei engolir minha saliva antes de respondê-lo. — Sim, querido... Muitas vezes eu me sentia fracassada por não ter feito nada da minha vida. Por não ter escutado meus pais e tê-los julgado, mesmo que muitas vezes eles estivem errados, porque uma coisa eles tinham razão, eu precisava ter me graduado, mas não fiz, porque eu estava ocupada o suficiente, apesar de ter tido tempo depois. Podia ao menos ter tentado. Podia tentar agora. Mas eu não tinha forças, estava estagnada no mesmo lugar de sempre, sem me mover, sem servir para muita coisa. Grande parte do que eu sentia se misturava a culpa, talvez por ter ouvido tantas vezes dos meus pais que a culpa era minha. “Gus está morto e a culpa é sua”... talvez eu tivesse acabado acreditando... talvez, eu não sabia, não sabia de nada àquela altura, porque desde que Gustavo havia partido, tudo havia se tornado um borrão e a dor que senti pelos meses seguintes a sua morte haviam afetado a minha mente e feito eu me sentir morta também, como se minha alma tivesse ido com ele. Mas não, eu estava bem aqui e precisando dele mais do que em qualquer outro momento da minha vida. Mas ele estava morto e a culpa talvez tivesse sido mesmo minha. Eu só queria respirar em um mundo onde ele ainda existia. Eu só queria que tudo tivesse sido diferente. Eu só queria não ter me apaixonado por Javier Muniz.

Capítulo 2 Javier - 25 anos Assim que chego a minha rua, sou inundado por lembranças que fazem meu estômago se contorcer. Seis anos. Seis malditos anos de merda. A estrada não é mais de terra e se não fosse a velha, grande e familiar árvore no fim da rua, eu poderia jurar que estava no lugar errado. As duas pedras ainda estavam embaixo dela, logo à frente da minha casa e eu segui até lá. Meus pés doíam tanto àquela altura que que acreditava que estavam sangrando dentro dos meus sapatos e eu contava os segundos para que pudesse tirá-los. Minha mão estava congelando, minhas articulações não funcionavam tão bem quanto deveriam e eu ainda estava apenas chegando até a metade da rua. Eu enfiei as mãos nos bolsos e peguei meu maço de cigarros, mas estava vazio; então eu o amacei, tentando fazer as juntas dos meus dedos trabalharem, enquanto fazia uma anotação mental de comprar mais cigarros assim que tirasse um cochilo. Mas então me lembrei que tudo deveria estar sujo e que os ratos provavelmente estavam dormindo sobre a minha cama àquela altura. Eu baixei a cabeça, tentando evitar a meia dúzia de olhares sobre mim, praguejando mentalmente o fato deles saberem que eu estava de volta, principalmente por se tratar de uma cidade pequena, porque em uma hora, era provável que estivesse sendo anunciado na rádio local. Levei a mão até a boca, soprando sobre os meus dedos para mantê-los aquecidos, embora meu pulmão queimasse com o pequeno esforço. Meu corpo inteiro suplicava por uma folga, enquanto eu caminhava até a calçada da casa, encarando através das grades de ferro, o mato alto o suficiente para alcançar meu peito. Eu me curvei sobre o portão, usando minha pouca energia para puxá-lo para cima antes de abri-lo para o lado, porque eu sabia que ele estava emperrado há muitos anos e que ninguém o havia arrumado. Eu atravessei o mato, empurrando-o com as mãos, afastando-os do meu rosto, ao mesmo tempo em que caminhava até a porta, levando a mão aos bolsos, procurando pela chave que havia ficado guardada por seis anos juntos

das minhas roupas. Então subi o degrau de cimento, enquanto abria a fechadura emperrada, forçando a porta com o ombro. O rangido alto das dobradiças sem óleo ecoou através da casa vazia. Eu encarei o chão e um sapato de minha mãe estava virado logo na entrada e eu senti meu peito rasgar com a imagem a minha frente. Respirei fundo, diversas vezes, tentando afastá-la da minha mente, enquanto pensava se tirar os sapatos era mesmo uma boa opção, pois estava dividido entre o alívio de ficar descalço e o medo de pisar em algum bicho morto, embora esse fosse o menor dos meus problemas. Então eu os tirei, sentindo o alívio momentâneo em tocar o chão depois de passar horas com os pés apertados dentro dele. Eu me sentia nervoso e com raiva de mim por não ter dinheiro para comprar cigarros no caminho, porque naquele momento eu teria como me distrair do impacto que era estar de volta, seis anos depois. Todos os móveis estavam empoeirados, havia alguns pratos sujos na pia, mas àquela altura, sequer conseguia identificar o que havia dentro deles, porque haviam se tornado uma espécie de crosta que eu não faria questão de limpar e o pensamento de fazer algo no futuro era estranho para mim, porque há muito tempo eu não tinha planos. Eu caminhei lentamente, atravessando a cozinha, parando na frente da porta do meu quarto, enquanto minha mão sobre a maçaneta não era capaz de se mover. Não sabia se era capaz, mal sabia como fazer aquilo sozinho, embora grande parte da minha vida havia se resumido a estar só. Mas eu estava de volta a minha casa e não sabia como agir ou quais providencias tomar. Eu sequer sabia como seriam os próximos dias, tampouco se eu estava pronto para aquilo. Eu girei a maçaneta e no mesmo segundo em que a porta rangeu e eu avistei meu quarto, um milhão de lembranças inundaram a minha mente. Um lampejo do que um dia eu havia vivido, uma lembrança boa em meio ao caos que eu era, que sempre fui, uma imagem boa, como uma manhã de sol depois de uma semana de chuva. Como era possível que algo bom também pudesse fazer mal a você? — Pare de me olhar como se estivesse louca para tirar a minha roupa.. — Talvez eu esteja olhando para você exatamente por esse motivo. Eu corri a mão pela parede onde sabia que os desenhos estavam colados, sentindo a textura do papel velho e úmido. Eu não precisava que o quarto

estivesse iluminado, porque eu sabia o que estava desenhado em cada um deles. Sabia com exatidão cada traço, esfumaçado, cada detalhe, porque eu havia passado horas passando para aquelas folhas as imagens que eu criava na minha mente. O rosto dela preenchia a metade da parede, porque era só nela que eu costumava pensar quando fechava meus malditos olhos, até aquela noite, depois de tudo... a única coisa que eu consigo ver é o fogo queimando enquanto eu o escuto implorar. Eu caminhei até o quarto em frente ao meu, a porta estava aberta e mesmo que eu não pudesse enxergar com clareza devido a falta de iluminação, eu podia ver que a cama estava desfeita e que algumas cobertas estavam amontoadas nos pés da cama. As portas do roupeiro estavam abertas e eu podia ver a sombra de algumas roupas no cabide. O cheiro forte do pó e do mofo tomava o ambiente, a solidão parecia instalada em cada centímetro. Eu não a tinha mais e muito embora grande parte da minha vida havia sido resumida a frustação, eu não a tinha mais e ela era minha mãe, apesar de tudo. Era a única pessoa que eu tinha. — Porra! Eu gritei, acertando um soco na parede do quarto, caindo de joelhos no chão sujo. Eu podia jurar que estava chorando, mas eu não conseguia sentir. Não sentia as lágrimas escorrendo sobre o meu rosto e nem a mão que eu havia acabado de machucar, porque a dor dentro do meu peito era maior do que qualquer machucado externo e o medo que eu sentia do meu futuro não me deixava pensar em mais nada que não fosse no quanto eu estava perdido. Porra! Eu busquei em minha mente lembranças do meu passado, algum momento que talvez eu tivesse agido como um idiota e que talvez eu tivesse que pagar pelos meus pecados. Mas eu fui um bom garoto, eu havia ido pelo caminho certo por muito tempo antes de desviar para o errado; e naquele momento eu precisava mapear um novo trajeto, embora eu precisasse de muita coragem. Uma vez eu ouvi de certa pessoa que na vida você só tem dois caminhos, que se errar na primeira vez, você pode acertar na segunda. Mas, será que isso se aplicaria a um cara como eu? Com uma sequência de erros que nunca seria capaz de consertar? Não, provavelmente não. E eu não fazia ideia de como seriam meus dias dali para frente, porque eu precisava

sobreviver de alguma forma e arrumar um trabalho, mas quem empregaria alguém com um passado como o meu? Com uma aparência como a minha? Eu era o resto de uma pessoa, eu era o que havia sobrado da vida de alguém, eu era alguém que ninguém nunca iria querer por perto.

Eu abri os olhos, minhas roupas ainda estavam molhadas, mas eu estava sob um teto. O meu teto. Minha cabeça estava apoiada sobre o meu joelho dobrado em frente ao peito. Sentado no chão do meu quarto. Minha mente voltava a funcionar aos poucos, enquanto eu forçava minha visão para enxergar com mais clareza, mas estava escuro demais. Somente quando um relâmpago rasgou o céu é que minha realidade voltou à tona, uma enxurrada de boas lembranças que haviam se tornado meu pior pesadelo. Permaneci sentado, pensando no meu próximo passo, sem luz e sem água para poder tomar um banho decente para espantar o frio, sem roupas limpas para poder tirar as minhas molhadas, sem dinheiro para comer, sem cigarros, sem nenhuma pessoa para quem ligar. A esperança seria o pior sentimento já existente se não houvesse o desespero. Eu precisava recomeçar de alguma forma, mas qualquer recomeço exigiria algo que eu não tinha como conseguir. O pensamento de bater na porta de Milena pedindo por ajuda passou pela minha cabeça por um segundo, mas então eu me lembrei de suas últimas palavras para mim. — Eu queria que você tivesse morrido. Eu havia repetido aquela frase tantas vezes na minha cabeça nos últimos anos que em alguns momentos desejei estar mesmo morto, desejei que os anjos dissessem amém para ela, mesmo que eu não fosse um cara religioso.

Talvez fosse exatamente por esse motivo que eu quisesse que ela estivesse certa. De qualquer forma, eu não fazia ideia de como ela estava, apenas conseguia imaginar o inferno que havia passado nos últimos anos sem o irmão ao seu lado. Talvez eu tivesse passado pelo mesmo inferno sem o meu melhor amigo e sem a pessoa mais importante do mundo para mim, rodeado por pessoas que podiam me matar se eu piscasse o olho por mais de dois segundos. Eu me arrastei até a sala, retirei minha jaqueta grossa e a pendurei no encosto da cadeira, sentindo o frio me acertar. Então fui até o meu quarto e procurei por um moletom no roupeiro, porque embora eles fedessem a mofo, ao menos estavam secos. Eu tirei minha camisa úmida e o vesti, sentindo o tecido esquentar imediatamente minha pele arrepiada. O estômago se contorcendo de fome me fazia pensar em quando seria minha próxima refeição e dadas as minhas circunstâncias, eu imaginava que não seria muito em breve, então mais uma vez eu senti vontade de fumar. Um ruído no portão me fez ficar alarmado e imediatamente eu me levantei, indo até a pia para alcançar uma faca na primeira gaveta, embora àquela altura eu soubesse me defender muito bem sem ela. Então eu me posicionei com a mão na fechadura, esperando o que quer que estivesse do outro lado, mas, quando a porta abriu e eu vi o rosto familiar de André, eu senti alívio anteceder a esperança, enquanto encarava a sua expressão de surpresa. — Joder... Como você... — É uma cidade pequena, meu amigo. — Ele empurrou a porta para entrar na casa, então seus olhos correram sobre o cômodo em questão de segundos. — Fico feliz em ver você de novo. — Ele me puxou para um abraço e eu permaneci imóvel. Talvez ele não fizesse ideia do que realmente era se sentir feliz.

Capítulo 3 Milena - 26 anos Eu arrumei os cabelos em um coque perfeito, preparei minha pele, cobrindo as imperfeições com uma base, vesti meu jeans novo e um blazer grosso, antes de passar um cachecol cinza ao redor do pescoço, então me encarei no espelho, mas tudo o que via era desconhecido, apesar daquela realidade não ser nova ainda era estranha para mim. Era estranho que eu me vestisse tão bem quando eu nunca me importei com minha aparência, ou pelo menos não tanto quanto deveria. Juan empunhava uma espada de plástico cinza que eu havia comprado pouco tempo depois dele ouvir a gritaria saindo das caixas de som do home theater enquanto eu maratonava GOT, muito embora eu tenha parado de assistir depois que percebi o tanto de gemidos que saíam pelos alto-falantes quando Tyrion visitava um prostibulo. Agora ele queria saber como exatamente se usava uma espada, como a segurava de forma correta, e principalmente, como ele podia derrotar seu inimigo com ela. Por esse motivo, eu havia sido acertada no mínimo umas oito vezes nos últimos dez minutos. — Eu gostaria de saber o motivo de você ainda não estar pronto, Juan. — Ele revirou os olhos, achando que eu não perceberia. — E eu estou vendo você revirar os olhos para mim. — Seus ombros caíram em derrota, enquanto ele caminhava lentamente até o seu quarto e a ponta da espada foi arrastada sobre o tapete. — Eu não gosto de ir ao médico. — ele reclamou, tocando a parede a sua frente antes de entrar no quarto. — E eu não gosto de ir ao dentista, mas se eu não o fizesse, meus dentes certamente estariam podres a essa altura. — Meu comentário o fez dar uma gargalhada que ecoou através dos cômodos. — Sua roupa está sobre a cama. — Tá! — ele gritou de volta. Eu aproveitei os poucos minutos para organizar os documentos que

deveria levar os médico, pegando todos os exames novos de Juan e os antigos para comparar, então eu os enfiei em uma pasta e a coloquei na minha bolsa, chegando meu celular uma última vez antes de ir até Juan para apressá-lo. Uma mensagem de Brisa avisando que chegaria em cinco minutos preencheu a tela e eu acelerei meus passos até o quarto em frente ao meu. — A tia Brisa está aqui. — Ele lutava para amarrar os cadarços, então eu me abaixei em sua frente da cama, pegando suas mãos junto das minhas enquanto fazia os movimentos da amarração. — É muito mais fácil quando você me ajuda. — Eu sei, filho. Aos poucos você vai aprendendo... — Porque tudo na vida fica mais fácil com prática. — ele completou minha frase e sorri antes de lhe dar um beijo na testa. — É isso aí, garoto! — Ele pulou da beirada da cama, tocando os dois pés no chão em sincrônica, antes de eu segurar sua mão. — Posso levar minha espada? — ele pediu, a voz mansa que ele sabia que sempre me convencia. — Se você me prometer que não vai dar com a espada em ninguém, por mim tudo bem. — Ele sorriu, buscando a espada onde sabia que havia deixado poucos minutos atrás. — Eu prometo. — ele respondeu, apesar de eu saber que ele não iria cumprir.

— Mamãe, podemos tomar um sorvete? — Juan perguntou do acento no banco traseiro do carro de Brisa. — É inverno, Juan. — eu interrompi brevemente minha conversa com minha amiga. — E daí? — ele perguntou, realmente interessado em uma resposta. — E daí que está fazendo dez graus. — respondi. — As pessoas deveriam tomar sorvete quando estão com vontade e não porque faz calor. — O que tinha no seu útero quando você engravidou? — Brisa perguntou, tamborilando no volante. — Não sei, mas talvez ele esteja passando muito tempo no YouTube. — Concordo. — Ela sorriu, encarando meu filho pelo retrovisor. — Quando ele fala essas coisas, parece que estou assistindo aquele filme do garoto velho. — eu grunhi, não pelo o que disse, mas pela forma como disse. — O curioso caso de Benjamin Button. — eu a corrigi. — E aí? — ele insistiu. — Você não me respondeu. — Não foi bem uma pergunta, querida. E não, está muito frio, você vai ficar doente. — Eu estou com vontade. — ele insistiu. — E eu estou com vontade de ir a Europa, mas nem por isso eu vou. — Brisa o respondeu, me fazendo ir, porque as vezes eu tinha a impressão de que eles eram irmãos da mesma idade. — Você não vai porque não tem dinheiro. — ele respondeu, sem humor da voz. — Não seja rude com sua tia, ela só está brincando. — Eu não podia julgá-lo por responder daquela forma, porque ele ainda tinha muito o que aprender em relação a entonação, saber quando estamos fazendo uma piada ou não, e ele ainda era muito novo para aquilo.

— Sinto muito, tia. — ele respondeu baixinho e a forma como ele a chamava sempre fazia meu coração bater mais forte, porque eu me perdia no pensamento de Brisa se casando com Gus. Assim ela seria de fato sua tia e ele poderia tê-lo conhecido. Eu sonhava com ele e Juan juntos muitas vezes, apesar de saber que nunca aconteceria. — Tudo bem, querido. — ela respondeu, dobrando uma rua que não era caminho da minha casa. — Por que está indo por aqui? — Vamos tomar um sorvete. Eu ouvi Juan gritar atrás de mim no mesmo segundo em que eu suspirei. — Que ótimo, em pleno julho. Vou mandar a conta da farmácia quando eu estiver gastando com antibióticos. — Não seja superprotetora, Juan só quer um sorvete. — Em julho. — eu insisti. — Quando foi que você se tornou tão chata? — ela parou em frente a uma padaria. Quando o meu melhor amigo e amor da minha vida tirou a vida do meu irmão. Meus olhos estavam fixos na fita de borda vermelha da mesa em MDF na qual escolhemos, mas minha mente viajou para muito longe, tão longe que os ruídos que preenchiam o local pareciam ter abafado, sendo substituído por um zumbido no meu ouvido. Eu odiava ser tão chata com Juan, mas todo mundo que me conhecia sabia como eu agia no mês de julho, porque era o aniversário de morte de Gus, exatamente no mesmo dia em que deveríamos estar celebrando mais um ano com ele. Que irônico, não? Eu desviei o olhar para a tela do meu celular, conferindo se haviam novas mensagens ou ligações perdidas, imaginando em qual momento naquela semana ele tocaria e eu receberia a notícia. Todo mundo sabia que estava prestes a acontecer, claro, porque em uma cidade pequena como a minha, uma notícia como aquelas se espalha mais rápido que fogo em mato seco. Mas nada preenchia a linha preta de notificações da barra superior do

meu aparelho celular, então eu deslizei o dedo até o botão lateral e a tela se apagou em resposta. Eu me sentia estarrecida, embora pudesse sentir o sangue circulando violentamente dentro das minhas veias e meu rosto corando gradativamente após eu contar que ninguém havia me ligado. Sequei a ponta dos dedos no tecido da minha calça, desviando o olhar para a rua, observando as pessoas caminhando despretensiosamente pela calçada. Eu as invejava, porque para mim eram apenas corpos caminhando sem rumo, esbarrando umas nas outras, mas seguindo seus caminhos. Nenhuma preocupação. Eu sabia que estava errada, que cada um tinha sua cota de problemas para resolver, mas elas pareciam tão alheias, enquanto eu era uma bomba prestes a explodir. Eu senti a presença de alguém ao meu lado e me virei, encarando-o a minha frente. Seus olhos aparentavam confusão, então ele abriu um pequeno sorriso. — Oi, desculpe. Eu não queria assustá-la. — Oh, tudo bem, me desculpe eu estava distraída. — eu desviei o olhar para o menu em suas mãos, antes de retornar a olhá-lo. — Um café preto sem açúcar. — o atendente assentiu, me dando um pequeno sorriso e apesar de eu ter retribuído, eu me perguntei se ele teria rido para mim igualmente se soubesse que eu tinha um filho. — Volto já. — ele disse antes de se virar e ir em direção a cozinha. Talvez. Por que não? Afinal, Madison não se importava com isso. — Não acredito que você também está tomando um sorvete. — eu encarei minha amiga. Ela ajudava Juan a se sentar ao meu lado. — Ah, qual é! Eu não preciso ter cinco anos para tomar um sorvete no inverno. — Juan assentiu, deslizando sua mão sobre a mesa, procurado pelos guardanapos. — Não me diga. — respondi, me curvando levemente para o lado para que o rapaz colocasse minha xícara fumegante de café em minha frente. Ele sorriu novamente para mim, antes de perguntar: — Desejam algo mais?

— Sim. Você. — Brisa respondeu e eu me engasguei, tossindo loucamente. — Como é? — ele perguntou com o rosto completamente vermelho. — Não disse nada. — ela respondeu, lambendo o sorvete de forma vulgar. — Oh, sim... e-eu... estou indo então. — ele deixou o local, tropeçando sobre os próprios pés. — Você tem que parar de fazer isso. — eu a alertei, embora meu sorriso contradissesse meu pedido. — Não consigo me controlar, é mais forte do que eu. — eu assenti, concordando. — Você me faz passar vergonha. — Mas faço você rir. — eu desviei o olhar para o meu filho, que lambia o sorvete por todos os lados, tentando mantê-lo firme sobre a casquinha. — E passar vergonha. — eu insisti. Eu estava brincando, é claro. A única coisa que eu podia fazer era agradecer o fato de Brisa ter entrado na minha vida, porque eu não podia me imaginar passando por tudo o que passei se não a tivesse ao meu lado. Depois de Gus... eu entrei em negação, pois estava passando por muita coisa ao mesmo tempo. Embora ela também estivesse de luto pelo namorado, ela era a pessoa mais otimista que eu conhecia, então sua positividade havia me ajudado a superar, dia após dia, mesmo quando eu não queria vê-la, mesmo quando eu desejava estar morta para que pudesse parar de sentir aquela dor. A tela do meu celular se iluminou sobre a mesa e eu o peguei imediatamente, olhando as notificações. As mãos tremiam, suavam, enquanto meu coração batia tão rápido a ponto de me causar cegueira. Mas não, não era nada, apenas uma notificação do meu aplicativo do banco, informando uma nova ferramenta. Então eu suspirei aliviada, ou não, porque sabia que a qualquer momento eu pararia por aquele desespero de novo, era inevitável. — Você está surtando. — Brisa alegou, mastigando a casca do sorvete, enquanto eu desviava os olhos para a rua, observando a chuva cair

violentamente sobre o asfalto. — Merda, minhas roupas estão na rua. — Merda é palavrão. — Juan interrompeu, com o líquido do sorvete escorrendo sobre o queixo. — Pare de mudar de assunto, Mi... você sabe que está surtando pelo inevitável. Eu assenti, sentindo meus olhos arderem. — Eu não consigo pensar em nada além disso. — Eu sei. — ela confessou e eu a encarei, surpresa. — Eu não sei o que seria capaz de fazer quando ficasse cara a cara com ele. Desviei o olhar novamente. Eu também.

Eram nove horas da noite quando terminei de dar banho e colocar Juan para dormir. Então caminhei até a lavanderia para que pudesse pôr a roupa molhada pela chuva na secadora. Eu me sentei no piso gelado em frente e ela, enquanto encarava os tecidos girarem, sentindo o ambiente começar a ficar quente por conta do calor da máquina. Dobrei os joelhos sobre o peito e segurei as pernas com uma mão, pegando a taça com a outra, levando-a até minha boca, sentindo o gosto doce do vinho tinto sobre minha língua. Eu curvei a cabeça para cima, encarando o teto mal iluminado antes de

fechar os olhos, sentindo meu coração bater depressa ao pensar sobre o assunto novamente. Lágrimas desciam por meu rosto enquanto meu corpo sacodia por causa do choro silencioso. O aniversário de morte se aproximava e eu ainda não sabia como respirar sem que me sentisse culpada. Lembro o dia em que o meu professor de filosofia disse que o homem superior atribui a culpa a si próprio, enquanto o homem comum, aos outros. Naquela época eu havia achado a frase interessante, mas não fazia ideia do que era sentir culpa por algo, até que eu enterrei meu irmão. Depois disso, a cada maldito dia eu queria poder voltar no tempo para que pudesse fazer algo diferente. A maldita culpa por não tê-lo ajudado, por tê-lo visto se afundar, dia após dia, enquanto eu assistia sem fazer nada. Preferia ser comum a me sentir naquela forma, porque o sentimento de culpa te faz afundar e faz com que você sinta que não merece tudo o que tem. E foi exatamente enquanto eu me martirizava, que a tela do meu celular se acendeu com uma nova notificação.

Capítulo 4 Javier – 25 anos André colocou uma pilha de roupas perfeitamente dobradas sobre a cama, ao lado de uma toalha de banho e de produtos de higienes pessoais. Suas botas pesadas faziam um barulho alto no assoalho, quebrando o silêncio ensurdecedor instalado no cômodo. Eu tirei meu moletom, o cheiro do mofo havia se misturado ao de suor, cigarros e roupa molhada. As juntas dos meus dedos ainda doíam, mas eu sabia que melhorariam depois que sentisse a água quente caindo sobre o meu corpo, e estava certo, pois enquanto o vapor preenchia o pequeno banheiro e a água quente me cobria por inteiro, uma sensação de alívio percorreu cada parte do meu corpo, fazendo parecer que minhas horas de caminhadas embaixo de chuva haviam acontecido há muito mais tempo do que realmente havia. Sentei no chão do banheiro, a água caía sobre minha nuca, enquanto eu mantinha minha cabeça baixa, observando a pequena correnteza até o ralo. Há seis anos eu não tomava um banho decente; me limitava a uma pequena ducha de água fria que ficava sobre o vaso sanitário embutido no chão sujo. Seis malditos anos em um presídio de merda, dividindo um retângulo minúsculo com oito caras que eu sequer podia confiar. Pensando em qual maldito passo que deveria tomar. Era tanta coisa que eu precisava resolver, tanta gente que eu precisava encarar, que a cada novo segundo eu sentia vontade de voltar para onde saí, porque há conforto em viver sem expectativas. Um dia de cada vez. Alguns minutos haviam se passado quando eu me obriguei a levantar para desligar o registro, apoiando minha cabeça no azulejo frio a minha frente, enquanto a água diminuía até cessar sobre mim completamente. A fumaça quente abafava minha respiração, me deixando cansado. O banho havia me deixado limpo, mas por algum motivo eu ainda estava longe de me sentir bem. Depois de muito tempo, quando a fumaça dissipou e começou a ficar frio, eu saí do box do banheiro e me sequei, antes de vestir a roupa de André, que por coincidência, era exatamente o meu estilo; muito embora não fosse um problema para mim, levando em conta meu traje laranja no qual

passei os últimos anos da minha vida. Eu abri a porta do banheiro e encarei a cama, uma coberta grossa dobrada sobre ela e me puxava como um maldito imã. Eram quase duas da manhã e eu havia passado grande parte do meu dia caminhando, portanto tudo o que eu queria era me deitar nela. Se eu conseguiria dormir era outra questão, porque apesar de todo o cansaço, minha mente não parava de trabalhar. Eu apenas me perguntava como ela estava, como deveria aparentar, seis anos depois, sendo uma mulher completamente formada. Se ela ainda mantinha o mesmo corte de cabelo, se ainda os mantinha solto, em vez de presos atrás da orelha, onde eu costumava prendê-los. Se ela ainda era aleatória e descontraída, se sua risada ainda soava igual. Se suas palavras ainda tinham o mesmo peso sobre mim. Se ela ainda acreditava que eu era um assassino. Provavelmente sim, porque depois de tanto tempo, até eu acreditava. Depois do que pareceu muito tempo que eu estava deitado, desviei o olhar para o relógio apenas para contar que somente meia hora havia passado. Eu soltei um suspiro, forçando as mãos nas laterais do meu quadril para me arrastar até que tivesse sentado. Eu encarei a janela, observando os relâmpagos atravessarem o céu, me sentindo ansioso e estressado, desejando que tudo se resolvesse logo para que eu pudesse voltar para minha casa, onde não incomodaria ninguém. De saco cheio de ser um peso para minha mãe e Miguel, para Milena, até mesmo para o governo e agora para André. Não importava qual rumo minha vida tomasse, no fim das contas eu sempre acabava como um maldito fardo para alguém.

23

— Buenos días, cabrón . — A péssima imitação de André me fez rir enquanto eu caminhava até a cozinha, hipnotizado pelo cheiro do café. — Por favor, não comece com o seu espanhol de merda. — eu o repreendi, exatamente no mesmo segundo em que lembrei do meu melhor amigo fazendo o mesmo. A voz de Gus preencheu minha mente e eu abaixei a cabeça, conforme caminhava até a pequena bancada. — Comprei várias coisas para o seu café. Aposto que faz muito tempo que não come nada descente. Suspirei, encarando vários pratos repletos de comida, agradecendo tanto mentalmente quanto me culpando por ele estar gastando dinheiro comigo. — Não precisava se preocupar, tío, eu não quero dar trabalho para você. — Eu puxei mais o capuz do moletom para frente, tentando esconder as marcas na minha pele, mesmo que eu soubesse que partes dela preenchiam a lateral do meu rosto. — É sobre dar trabalho que eu quero falar com você, Javier. — Ergui meu olhar para ele, sentando em uma das banquetas enquanto me inclinava para alcançar uma xícara. — Você deve ter uma porrada de coisas para resolver, não? — eu assenti. — Joder, nem sei por onde começar. — O que exatamente você precisa fazer? Já pensou sobre isso? — Pensei tanto que siento que minha cabeça vai explodir. — Eu enchi minha xícara com café, ouvindo-o gargalhar. — É, eu imaginei que todo aquele barulho durante a madrugada fossem mais do que gatos andando no telhado. — Lo siento. — eu bebi um gole do liquido fumegante. — Tenho que fazer o pedido da luz e da água, pagar o que mi madre deixou em aberto... Preciso limpar a casa, cortar todo aquele mato... Roupas que sirvam em mim... Joder... — Você precisa de um emprego. — ele afirmou, me observando assentir em resposta.

— Antes de qualquer outra coisa, porque tudo o que eu tenho que fazer envolve um dinheiro que eu não tenho. — Você sabe que pode contar comigo. — Está aí uma frase que ouvi poucas vezes na vida. André me encarou, sustentando um pequeno sorriso amigável. — Acredite em mim quando eu digo que você não está sozinho nesse lance de receber ajuda. — Obrigado... Como está Matheo? Ele deu uma gargalhada, me pegando desprevenido. — Você não sabe? — Seus lábios se curvaram ao perceber o que havia acabado de perguntar. — Claro que não sabe. — Então ele revirou os olhos, levando a xícara até a boca. — Ele se juntou com uma coroa cheia da grana. Eu sorri pela primeira vez desde que deixei aquele lugar. — Aí está uma frase que eu não esperava sair da sua boca. —Beberiquei meu café. — Ele passou a maior parte da vida metendo o pau em qualquer buraco em vez de trabalhar, então ele finalmente juntou o útil ao agradável... agora ele mete em um único buraco em troca de dinheiro. — Parece horrível quando é colocado dessa forma. Ouvi-lo falar sobre aquele assunto me fez desviar o olhar, porque se eu fechasse os olhos e me concentrasse, ainda era capaz de sentir cada pedaço do corpo de Milena junto ao meu, podia sentir cada respiração roubada, podia ouvir cada gemido ecoado em meu ouvido, mesmo que seis anos tivessem se passado e eu não tivesse estado com ninguém durante todo esse tempo. — Horrível é ter que trabalhar todos os dias para poder ter o que comer, Javier. Agora, não vejo nada horrível ter que foder para ter o que comer. — ri espontaneamente, imaginando Matheo na nova vida dele. — Principalmente por ele ter se apaixonado por ela... então é mais do que útil e agradável. — É, parece uma boa vida, afinal.

— Não é? — Ele enfiou um pão de queijo inteiro na boca, enquanto eu preparava um cachorro quente, sentindo meu estômago se contorcendo, ansioso. — E quanto a você, meu amigo. Como você realmente está? Como se sente? Eu mordi um pedaço grande do meu pão, tentando ganhar tempo para a resposta, porque um, eu não era acostumado a falar sobre meus sentimentos e dois, eu sequer havia pensado sobre eles realmente. Como eu me sentia? Como um merda. Talvez não fosse exatamente isso que ele esperasse que eu dissesse, mas era como eu me sentia. Como se minhas energias tivessem sido drenadas junto do meu futuro. Meu consciente riu da minha cara, gritando para mim “que futuro, Javier?” e ele estava certo, porque de qualquer forma, eu nunca teria um. Não era como se minha fosse ter um rumo bonito caso eu não tivesse ido preso. Eu estava fadado ao fracasso de qualquer forma, afinal. — Bem. — André colocou sua xícara sobre a mesa e o barulho ecoou através do silencio constrangedor, deixando tudo ainda mais dramático. — Você sabe que não precisar estar bem, não sabe? Você foi preso, Javier, por seis longos anos sua vida foi roubada de você, é seu direito se sentir mal, porque só Deus sabe pelo o que você passou. — E eu estou vivo, não estou? Não fui eu quem ficou dentro das chamas naquela noite. — Infelizmente. — Você pode falar comigo quando quiser. Pode me contar o que aconteceu de verdade. Eu desviei o olhar para a comida nas minhas mãos, o molho correndo sobre os meus dedos me deixava enjoado porque eu tinha acabado de perder meu apetite. — Eu sei... — Eu sabia sim, mas não significava que o faria, de qualquer forma. — Quanto a todo resto, acho que a gente pode começar de onde paramos, se isso estiver ok para você. Eu finalmente tornei a encará-lo, confuso.

— Não entendi. — Eu estou disposto a voltar a ensiná-lo de onde paramos... você estava quase lá, Javier. — Não entendo o motivo de você perder seu tempo comigo. — Não vejo como perda de tempo, entretanto. — E como você vê? Porque eu não consigo pensar direito, eu não faço ideia do que fazer da porra da minha vida e fica ainda mais difícil arrastar outra pessoa junto para as minhas merdas. — Apenas aceite e ponto final. Seus desenhos são excepcionais e se você realmente correr atrás do tempo perdido, você pode ter tudo o que quiser. Eu duvidava muito que fosse verdade, porque as únicas duas coisas que eu queria no mundo pareciam ser impossíveis. Gus estava morto. Milena me queria morto. — Eu agradeço, de verdad. — eu coloquei minha xícara vazia sobre a mesa e me levantei. — Podemos começar quando você quiser. — Há várias técnicas que se aprimoravam ao longo dos últimos anos, então precisamos rever tudo o que você aprendeu. Eu assenti, me lembrando das tatuagens que fiz em alguns detentos, mas não ia tocar no assunto ainda, porque tudo era muito recente e talvez saber demais o fizesse recuar, quem sabe? — Certo. — Sobre todo o resto que você precisa resolver... Eu posso adiantar um pouco de dinheiro para que você possa reativar a luz e a água, mas fica a seu critério, porque você pode ficar por aqui o tempo de precisar. Há um quarto extra e tudo mais... — Eu não quero te dar trabalho.

Ele dispensou meu comentário com um gesto no ar. — Um velho como eu precisa de um pouco de distração e ter um exdetendo sobre o meu teto irá fazer com que me achem mais fodão e irá atrair mais clientes. — Isso nem faz sentido. — eu ri. — Eu sei, só queria ser engraçado. — ele deu de ombros, enquanto se levantava, caminhando até a pia. — E André... — Ele olhou sobre o ombro, enquanto eu enfiava as mãos no bolso da frente da calça emprestada. — Eu me sinto como um merda. — ele sorriu, retornando a olhar para frente. — Mesmo que eu tenha ficado por poucos dias... — ele fez uma pausa. — Eu me senti como você quando saí de lá também.

Capítulo 5 Milena – 26 anos Nós não podemos mudar um acontecimento, mas um acontecimento pode mudar uma vida. O que aconteceu com Gus mudou não só a minha, como também a de todos a minha volta. Minha mãe, meu pai, meu tio, e até mesmo a vida de Juan, que sem dúvidas teria sido diferente se tudo não tivesse sido como foi. Um acontecimento tem o poder de mudar até mesmo uma vida que ainda nem começou. As pessoas deveriam morrer de velhas, aos seus noventa e tantos anos, de preferência dormindo, se pudessem escolher; e mesmo assim, a vida ainda teria passado como um sopro. Imagine só, então, morrer aos dezenove anos, queimado em um maldito incêndio iniciado pelo seu melhor amigo, enquanto o álcool ainda corre dentro de suas veias e o efeito da droga ainda esteja fazendo a sua cabeça, ao mesmo tempo em que você grita por socorro. Morrer não deveria ser um acontecimento. E você se pega remoendo mil vezes sobre algo que nunca será capaz de mudar, mesmo sabendo que tudo o que acontece deveria ser rotulado como processo em vez de acontecimentos, porque a vida é uma constante mudança onde cada nova etapa faz parte do caminho até a linha de chegada. Mas, se em algum momento da minha vida tivessem me perguntado sobre alcançar a linha não estando ao lado do meu irmão, eu teria rido, desesperada, porque não era uma hipótese. Não ter Gus fazendo parte da minha vida era algo que nunca havia passado na minha cabeça. E lá estava eu, bebendo vinho demais para um dia de semana e mentindo para mim mesma que eu não precisava de álcool para tornar minhas noites mais toleráveis, enquanto todos os dias eu tomava duas taças ou mais, logo depois de engolir meus remédios para dormir, fazendo com que a tontura fosse ainda maior, antes de apagar de vez e acordar no dia seguinte com uma puta dor de cabeça. Mas e daí? O fracasso é mesmo uma opinião momentânea. Então foda-se, quem sabe amanhã eu mude de ideia com relação a quem eu havia me tornado.

A única coisa que eu precisava era me esconder e evitar encontrá-lo vagando como um maldito pelas ruas, respirando o mesmo ar que eu quando ele não merecia sequer estar vivo. E por que diabos pensar dessa forma fazia eu me sentir ainda pior? Minha terapeuta me dizia que por ter passado boa parte da minha vida ao lado de Javier, era normal que eu não pudesse odiá-lo de verdade, apesar do que ele havia feito. Era como se tudo o que eu conhecia tivesse sido arruinado. E foi. Tudo o que eu era havia deixado de existir e tudo o que eu tinha havia sido arrancado de mim. Meu irmão. Meu melhor amigo. Minha vida. Minha casa. Meu celular apitou sobre a mesa e a tela iluminou a sala escura. Eu parecia uma louca, sentada a mesa na sala de jantar com as luzes apagadas enquanto bebericava um vinho. Quem sabe eu estivesse louca mesmo, quem é que sabe, afinal? Minha terapeuta só dizia que eu estava em negação. Seis anos haviam se passado e eu sequer conseguia imaginar qual seria minha reação ao encarar Javier. Eu não fazia ideia de como ele estava, se ainda parecia com o que lembrava, ou se os anos naquele lugar haviam o transformado. Eu suspirei fundo, evitando outra chamada da minha mãe, que provavelmente estava surtando àquela altura. Mas quem era eu para julgá-la se eu só sabia fazer o mesmo desde que meu celular apitou na noite passada com a notícia de que ele estava livre. Libre. Eu podia ouvi-lo dizer com seu sotaque carregado. Por muito tempo eu me perguntei o porquê, em nome de Deus, ele havia feito aquilo. Eu não conseguia imaginar Javier fazendo o que fez de propósito, e até o presente momento, eu ainda acreditava que ele nunca quis ferir o meu irmão, mesmo que todos que eu conhecesse insistissem em dizer o contrário. Eu acredito que Javier fez tudo aquilo para punir meus pais ou que em algum momento ele tenha invejado a vida que Gus levava. Talvez até mesmo os dois tenham começado aquilo como um ato de rebeldia, mas eu não conseguia acreditar que ele pudesse ter ouvido os gritos do meu irmão enquanto gritava por socorro e não tivesse tentado ajudá-lo.

— Oi. — Eu atendi após perceber que ela nunca desistiria. — Por favor, diga que é mentira. — a voz estridente alcançou meus tímpanos. — É mentira. — Não é mentira, Milena, ele saiu mesmo. — Eu sei, você apenas pediu e eu... — Como você consegue se manter lúcida com tudo isso? — Eu soltei uma risada sarcástica, encarando minha taça de vinho e o pequeno frasco de vidro do meu remédio para dormir. — Você deve estar muito feliz, não é? Suspirei. Eu ouvi a porta da frente se abrir e em seguida o barulho das chaves sendo arremessadas sobre o aparador de vidro da entrada. — O que você quer, seja rápida. — Você... você não vai falar com ele. — ela disse entre os dentes. — Isso foi uma pergunta? — Dei um longo gole no vinho, sentindo minha garganta arder. — Ele já arruinou coisas demais, ele destruiu nossas vidas, ele matou o seu irmão. — Você não precisa me lembrar disso, mãe, acredite. — Oi. — meu marido acenou para mim, antes de passar os olhos sobre a taça de vinho e em seguida para o meu celular, então ele deixou o local, tentando me deixar a vontade com quem quer que eu estivesse conversando. — E se ele tentar falar com você? — ela perguntou, me deixando ainda mais nervosa, porque eu não conseguia imaginar minha reação. — Eu preciso ir, mãe. Depois eu falo com você. — Tentei soar calma. — Você não respondeu a minha pergunta. — Eu não tenho como saber, não sou capaz de prever o futuro ainda. —

Eu não gostava de falar com ela daquela forma, principalmente depois que Gus se foi e eu me tornei filha única; mas nossa relação era um reflexo de anos de frustração vivendo por aparência. — Fique calma. — suavizei minha voz. O celular apitou, anunciando uma mensagem recebida de Brisa. — Preciso ir agora, Brisa está na linha. — Não sei o que você vê naquela garota. — A forma acusatória como ela disse aquelas palavras me fizeram lembrar de como ela sempre tratou Javier. — O mesmo que Gus viu. — eu disse antes de desligar. Eu deslizei o dedo sobre a tela do celular, encarando uma mensagem breve de Brisa na qual me perguntava como eu estava, então respondi com um simples “bem”, porque se eu fosse mesmo digitar como me sentia, provavelmente faltariam caracteres. — Oi, Mi. — meu marido em deu um beijo na testa antes de se sentar em uma cadeira ao meu lado, então ele alcançou minha taça e deu o último gole do vinho, deixando a taça vazia; e eu podia jurar que era uma forma sutil de dizer que eu havia bebido o bastante. — Você não deveria estar misturando remédios com álcool. — Eu sei, eu só... estou uma bagunça por esses dias. Ele assentiu. — Eu sei... — Ele me encarou com seus olhos claros, tentando não me julgar, mas eu podia jurar que conseguia ler nas entrelinhas, podia saber que ele o fazia no seu íntimo, e eu não podia culpá-lo, porque ninguém me julgada mais do que eu mesma. — Como foi o seu dia? — perguntei. Ele se inclinou para trás, encostando suas costas no encosto aveludado da cadeira. — O mesmo de sempre, você sabe. — eu assenti. — E Juan? — Ele dormiu cedo, Brisa passou por aqui hoje e lhe deu uma grande canseira. — Ele sorriu, o sorriso alcançando os olhos pela primeira vez.

— Aposto que amanhã ele terá grandes histórias para me contar. — Aposto que sim. — respondi, sustentando um pequeno sorriso, conforme me sentia mais leve por ter mudado drasticamente de assunto. — Vou precisar viajar a trabalho esse final de semana. — Eu ergui meu olhar para ele, podia sentir o medo de ficar sozinha e acabar com Javier na minha porta correndo os meus ossos. — Você pode convidar Brisa para ficar por aqui. — Ele deu de ombros. — Talvez você apenas precise de um daqueles finais de semana de meninas que costumavam ter. Era engraçado ele citar aqueles finais de semanas como se fosse uma espécie de encontro adolescente, quando na verdade eu já era mãe de um menino de um ano. — Talvez seja uma boa ideia. — Levantei, pegando a taça sobre a mesa. — Você terminou o livro? — Neguei com a cabeça. — É mais fácil pela internet. — confessei. Ele sorriu, me fazendo sorrir pela primeira vez. — A que horas é seu terapeuta amanhã? — perguntou, ansioso. — As oito. — Ocultei a parte que havia ligado para desmarcar por medo de encontrar Javier andando pelas ruas. — Talvez eu consiga te dar uma carona se sair mais tarde um pouco. Deixei escapar um suspiro estrangulado. — Não se preocupe, Brisa vai me dar uma carona a hora que estiver saindo para o trabalho. — É totalmente contramão para ela. Não se preocupe com isso, Milena, eu levo você. Ele sabia que eu estava mentindo, então me lançou um pequeno sorriso compreensivo. — Não quero sair de casa amanhã. — Você não pode se privar, não pode se isolar. Quanto mais adiar o

inadiável, mais angustiada você vai passar os dias. — Juan volta as aulas na semana que vem, de qualquer forma, então não é como se eu fosse fazer isso para sempre. Ele assentiu, concordando com minhas palavras; mas então ele finalmente tocou minha mão como uma forma de deixar suas palavras mais sutis. — Você sabe que uma hora terá que encarar tudo isso, não sabe? — eu assenti, incapaz de encará-lo. — Seis anos se passaram, Mi... você precisa disso para seguir em frente. — Eu sei. — concordei, deixando a sala. Mas também sabia que havia uma grande diferença entre saber e o fazer.

Capítulo 6 Javier – 25 anos O dia não estava tão frio como pensei que estaria quando acordei. Abri as cortinas e encarei o vidro embaçado. Ainda bem, porque eu não tinha roupas o suficiente. Mas por outro lado, eu praguejava mentalmente o fato de não estar frio o suficiente para que eu colocasse um capuz e escondesse minhas cicatrizes que ele ainda não havia visto. Não era uma coisa que eu me importava com muita frequência, até porque nos meus últimos seis anos eu havia visto mais cicatrizes do que era capaz de contar. Mas agora era diferente, porque eu havia voltado para um lugar no qual as pessoas não me viam há anos, e elas sabiam os meus motivos que fizeram ficar longe, então consequentemente, elas me olhariam por mais tempo do que o normal e buscariam em mim o máximo de informação que pudessem absorver para comentarem quando chegassem em casa. E, apesar de eu estar pouco me fodendo para as opiniões alheias, eu ainda me espantava com o fato de ter que encarar as pessoas enquanto seus olhos corriam sobre a lateral do meu rosto em direção a minha orelha e cabeça, porque por mais que você não ligue para ninguém que não seja você mesmo, ainda assim você não quer ser tratado como uma maldita atração de circo. Quando ouvi o barulho da máquina de tatuagem em pleno domingo, eu mudei de ideia e vesti um moletom que havia sido colocado sobre a cômoda do quarto em que eu estava instalado, praguejando pela minha falta de atitude, enquanto eu deveria estar ligando meu foda-se e mostrando a todos que eu era um fodido de todas as formas e que estar cheio de cicatrizes era só mais uma das merdas que eu tinha que lidar diariamente. — Deu certo? — André perguntou, sua voz soou levemente abafada por causa da máscara descartável. — Depois de voltar pela terceira vez, sim. — Seus olhos continuaram fixos no braço no qual estava tatuando.

— Odeio essas coisas, por isso contratei Becker, porque eu realmente odeio essas coisas. — Assenti, tentando buscar na minha mente alguma lembrança que o incluía falando de Becker. — Ela é a menina que cuida de tudo por aqui. — ele respondeu, sem que eu tivesse que perguntar. — Qual o prazo para religarem a luz e a água? — André perguntou quando viu que por mim, nossa pequena conversa havia encerrado. — Dentro de quinze dias. — Não que eu esteja ansioso para você dar o fora. — Ele ergueu as sobrancelhas, me encarando por um segundo antes de retornar ao braço do cliente. — Claro que não. — O couro do sofá rangeu quando sentei. Eu inclinei o corpo levemente para frente, tentando me concentrar nos movimentos de André tatuando. — Você está fedendo a cigarros. — ele alegou e eu sorri. — Gostaria de estar fedendo a bebida também. — Meu comentário fez o cliente sorrir. — Tá aí uma coisa que me deixaria feliz agora. — ele respondeu, me olhando antes de voltar a se concentrar em qualquer coisa que não fosse a dor da agulha rasgando sua pele. — É sua primeira? — eu perguntei. — E provavelmente a última. — André sorriu por trás da máscara, passando o líquido gelado para tirar o excesso de tinta e ele fez uma careta. Ele desviou os olhos para dentro do meu capuz, rolando eles sobre a lateral do meu rosto, próximo a minha orelha e eu virei levemente a cabeça. — No começo a sensação de ter a água com o antibacteriano sobre sua pele é relaxante, mas depois de tantas vezes, começa a parecer uma tortura. Ele assentiu. — É como se quanto mais tempo você estiver tatuando, mais passa a doer. — Isso é porque sua adrenalina sobe.

— Javier, chega aí. — André fez um gesto com a mão livre. — Preste atenção na técnica que eu uso para fazer uma linha curva. — Eu me posicionei ao seu lado, prestando atenção em cada movimento. —Você precisa segurar a máquina desta forma, pressionado os três dedos, mindinho, anelar e médio, sendo que o médio você deve manter atrás da biqueira para sustentação. — Certo. — O ângulo da máquina influencia muito nesse tipo de traço, então você deve incliná-la um pouco para o lado. — Eu assenti, mesmo que ele não tivesse prestando atenção em mim. — Mas, não incline demais, apenas o suficiente para que você veja com clareza o que está sendo feito e na hora de colocar tinta, molhe apenas a ponta da agulha quando estiver fazendo isso. — Certo. — Enfiei as mãos nos bolsos, tentando conter minha ansiedade de voltar a tatuar. — Você ainda se lembra das coisas que ensinei a você há seis anos. — Sim. — E tem desenhado com frequência? — Eu neguei. — Então pegue um lápis e algumas folhas e comece o quanto antes, meu amigo. — Ele uniu as sobrancelhas. — Talvez hoje a noite podemos tomar algumas cervejas e ver quem consegue fazer o desenho mais bonito. — Parece estranhamente divertido. Ele assentiu. — Talvez eu possa participar. — o cliente começou. — Faço os melhores bonecos de palito. — Seu comentário fez André gargalhar. — Me chamo Adrian, aliás. — Javier. — Eu ergui as mãos. — Eu cumprimentaria você e tal se não fosse todo esse lance de biossegurança. — Ao menos você é um bom aluno. — André gargalhou, e eu podia jurar que ele estava relembrando a última tatuagem que fez em mim enquanto nós dois fumávamos maconha.

Bela biossegurança de merda — Eu não faço ideia de que merda vocês estão falando. — Adrian tirou o celular do bolso quando recebeu uma notificação. — Javier também é tatuador. — Ou quase. — A imagem das últimas tatuagens que havia feito dentro do presidio usando, invadiram minha mente. — Não está muito longe, de qualquer forma. — André parou de tatuar, mostrando seu antebraço para Adrian. — Essa aqui foi a primeira tatuagem dele em alguém, seis anos atrás. — E você foi a cobaia? — ele perguntou animado. — Ele foi sua própria cobaia por alguns meses, depois eu meio que virei seu primeiro cliente. — Ele fez uma pausa, enquanto gargalhava. — Digamos que eu tenha bebido uma quantidade significativa de álcool quando resolvi topar fazê-la, mas confesso que ainda assim, é uma das melhores que eu tenho no corpo. — Ficou bonita pra caralho, na real. — Claro que ficou, fui eu quem fez. — Eu dei de ombros, sentando no pequeno banco ao lado da maca. — Ele não é um cara modesto, como pode você é capaz de ver. — Adrian sorriu. — Ao menos ele pode se gabar de algo que realmente seja bom. — Ele deu de ombros. — Você precisa ver a pasta de desenhos que ele criou. — Você ainda a tem? — eu perguntei, surpreso. — Você está mesmo falando sério? — Ele parou de tatuar, indicando com a cabeça o local onde ela estava. — Porra, as pessoas tatuam os seus desenhos o tempo todo. Eu o encarei. Ficar seis anos longe havia me privado de pequenos e grandes detalhes, como por exemplo, saber que pessoas andavam na rua com

meus desenhos sobre suas peles. — Puta merda... Eu me sentei no sofá, colocando a pasta sobre minhas coxas, então eu a abri e os traços tão familiares tiveram um grande efeito sobre mim. Uma mistura louca de esperança e tristeza; a aflição de ter perdido tanto tempo, um tempo que talvez eu nunca fosse capaz de recuperar e a esperança de que talvez eu estivesse errado ao ser um pessimista de merda. Mas havia algo familiar naquelas linhas traçadas. Talvez fosse a angústia que eu sentia enquanto as desenhava, porque era a mesma sensação que eu sentia enquanto revia cada uma delas. Duas fases diferentes, mas o mesmo maldito sentimento de sempre. Não importava o que eu estivesse passando, nunca era por algo bom. Uma subsistência de consternação. — São desenhos fodas demais, cada um deles. — André encarou Adrian por um segundo, antes de voltar a tatuar. — Minha melhor pasta. — Talvez eu mude de ideia e não termine por aqui. — Adrian apontou para o braço. — Tenho certeza que vai mudar. — Você nomeou a minha pasta? — Eu contive o riso. — Aleatoriedade. — ele disse o nome dela. — Estou vendo. Não fazia ideia do quanto eu sou aleatório até rever isso. — Eu me referi aos desenhos, que em uma página os traços de uma rosa preenchiam o papel e na próxima, um duende verde ocupava todo o espaço livre. — Você desenha de acordo com o seu humor. Eu assenti, lembrando de todas as vezes em que desenhei os traços de Milena. Eu havia feito aquilo tantas vezes que podia desenhá-la de olhos fechados, cada linha do seu rosto. Durante algum tempo nos últimos anos eu apreciei as lembranças, a forma como elas parecia dançar na minha mente, como eu me apegava a cada

doce imagem. Pequenos sorrisos passageiros, alguns cruzares de braços, uma curta olhada sobre os ombros, um rápido erguer de sobrancelhas, algumas erguidas de braços levando garrafas até a boca. Pequenas lembranças sem som que me mantinham preso ao meu passado enquanto eu lutava para sobreviver no presente. O mais louco é que as falsas lembranças do que eu nunca vivi é que pareciam mais reais. Um pedido de casamento não feito, filhos correndo no quintal, meu melhor amigo e minha mãe sóbria indo nos visitar, a vida que eu nunca teria era esfregada na minha cara todos os dias, enquanto eu me perguntava como eu havia parado ali, dividindo uma cela apertada com pessoas que podiam matar enquanto eu tirava um cochilo. De início as lembranças eram a forma que eu usava para mantê-los vivos em mim, mantê-los vivos em uma realidade ilusória, que servia para que a dor de não tê-los pudesse de certa forma ser amenizada. Depois de um tempo, eu passei a odiá-las, porque quanto mais eu pensava sobre quem eu amava, mais eu criava falsas esperanças e me sentia atormentado pela minha doce e amarga memória.

E me sentia exatamente como uma maldita atração de circo enquanto caminhava a pé em direção a minha casa, praguejando no meu íntimo o fato de eu ter recusado o carro de André. Entretanto, eu achava que precisava de ar. Precisava caminhar sem nada que me prendesse em um maldito e limitado espaço. Eu precisava me sentir livre. Mas porquê a única sensação que eu sentia era de reclusão? Eu havia andado apenas dois quarteirões quando decidi acelerar meus

passos até finalmente estar correndo, sentindo o ar deixando e retornando os meus pulmões, enquanto os muros e cercas ao meu lado se tornavam apenas um borrão distorcido conforme eu mantinha o ritmo. Então a uma distância segura, eu a avistei, saindo de uma pequena padaria, carregando algumas sacolas. Ela olhou para os dois lados da rua e a atravessou correndo, graciosamente, até estar na pracinha do outro lado. Seus cabelos estavam ainda mais claros, porém agora eles eram curtos demais para o seu estilo. Bem, talvez o seu antigo estilo. Ela calçava botas de salto e um sobretudo preto que a deixava ainda mais... eu não sabia explicar o que sentia vendo uma figura tão desconhecida a minha frente. Como eu podia explicar a sensação de conhecer tão bem uma pessoa que me parecia tão desconhecida? E eu me peguei pensando se talvez ela tivesse mudado também no seu interior. Se Milena ainda era tão aleatória e espontânea como antes e apenas sua aparência havia mudado. Ela passou a mão, cuidadosamente, em uma mecha caída sobre seu rosto, empurrando-a para trás, mas não a colocou atrás da orelha; o que fez meu estômago se contorcer porque eu sabia o quanto ela odiava quando eu o fazia. Talvez ela fosse mesmo a mesma pessoa, ou não, eu não tinha como saber e certamente não iria perguntar. Eu sequer seria capaz de dizer oi a ela depois de tudo o que havia acontecido. Depois de ouvi-la me chamar de assassino e desejar que eu tivesse morrido no lugar de seu irmão. Eu podia entender, juro que podia; mas isso não fazia com que doesse menos. O que doía de verdade era saber que ela acreditava em tudo o que havia escutado sobre mim, em todas as mentiras que contaram a ela sobre eu inveja-lo, sobre o quanto eu queria destruir aquela família ou arruinar aquela empresa. Tudo bem, em partes, porque os advogados da família Rabelo haviam sido tão convincentes que em alguns momentos eu mesmo acreditei que havia cometido aquele crime, mas eu não havia. Eu não tinha culpa, era inocente. Mas apenas pessoas acusadas de um crime dizem isso, então se torna difícil acreditar. Uma coisa é fato: é menos prejudicial correr o risco de soltar um homem culpado do que prender um inocente. Uma porra que quem comete injustiça sente mais do que quem a vive, porque ela faz você sentir que está morrendo lentamente. Eu sentia que estava morrendo a cada nascer do sol; só que agora eu estava livre. E ela estava na minha frente, diferente, mas tão bonita quanto

há seis anos. Engoli o nó na minha garganta, arfando, sem saber se a corrida havia roubado meu fôlego ou se era o fato de Milena estar a poucos metros de mim o fazia. Eu puxei o capuz ainda mais para frente, tentando esconder o máximo possível da minha pele antes de dar um passo para trás, recuando para que pudesse correr para o mais longe possível. Mas era impossível me mover, era impossível deixar de encará-la, mesmo se isso me fizesse parecer louco. Seis anos e ela ainda era capaz de roubar meu ar, de fazer meu coração dar uma batida errática. Ela se sentou ao lado de alguém que eu reconheci assim que virou seu rosto. Era Brisa... e ela tinha um menino em seu colo. Ele passava suas mãos sobre o rosto dela e dava risadas que por causa da distância, eu não era capaz de ouvir, mas pude deduzir que se tratava de seu filho; e a julgar pela aparência de sua idade, ela não deveria ter esperado muito tempo após a morte de Gus para ter engravidado, ou talvez... Deus, ele podia ser filho do meu melhor amigo? O pensamento me trouxe a sensação de ter meu peito rasgando de dentro para fora e eu precisei me apoiar na parede ao meu lado antes que eu desmaiasse. Meus olhos rolaram para Milena novamente, seu rosto era tomado por um sorriso gigante, enquanto ela colocava alguma comida na boca do menino. Meu coração batia tão rápido que tudo parecia um borrão e por um segundo, a lembrança de algo que não vivemos invadiu minha mente, a mesma imagem que remoí durando os seis anos em que eu estive preso: a cena de nossos filhos correndo sobre o gramado enquanto ela mantinha seus braços em volta do meu pescoço e sorria embaixo de um raio de sol. Brisa se levantou assim que o garoto desceu de seu colo, se espreguiçando antes de enfiar a mão na sacola de Milena e pegar algo para comer. Então ela rolou os olhos pela estrada e seu olhar encontrou o meu e a expressão que seu rosto tomou fez eu sentir que um buraco se abriu no meu estômago e minhas tripas foram arrancadas de mim. Ela me encarou como se eu fosse um maldito monstro, um demônio, enquanto mantinha as mãos em seu filho como se eu pudesse machucá-lo de alguma forma. E antes que Milena pudesse me ver, eu me virei e comecei a correr.

Capítulo 7 Milena – 26 anos — Mamãe, você pode colocar aquele filme sobre animais. — É um documentário, filho. Sim, me dê um minuto. — Eu me levantei, colocando o material em que estava trabalhando ao meu lado no sofá. — Estou ligando a televisão agora. — ele assentiu, esperando, o corpo virado para direção da janela, de modo que seu ouvido ficasse concentrado no som que saída dos autofalantes da tv. — Eu gosto de saber sobre os animais. Eu sorri. — Não me lembro em qual episódio paramos. — No episódio das florestas. — Eu tentei buscar em minha mente. — A Netflix não começa de onde parou, mamãe? Ah. — Sim, querido. — Segurei o riso. Estava tão concentrada no impacto que aquele dia tinha para mim que sequer conseguia raciocinar direito. — Você anda estranha hoje. — disse, deitando sobre o tapete felpudo. — Você não está falando muito. — Estou buscando o episódio neste exato momento. — narrei o que estava fazendo, como sempre fazia com ele, para que ele pudesse acompanhar cada movimento meu. — E depois vou fazer uma pipoca para nós dois. — Hoje é aniversário do tio Gus, mamãe? Engoli em seco. Ouvi-lo citar meu irmão sempre me deixava abalada demais. — Sim, Juan.

Ele ergueu suas sobrancelhas, pensativo. — E do seu amigo Javier também. — Eu abri a boca, mas não consegui pronunciar nada. Nada saia. Manter um assunto longe dos ouvidos de uma criança era extremamente difícil, principalmente de Juan, que se atentava a cada som a sua volta por conta de sua deficiência. Ele tateou o tapete, buscando pelo carrinho que sabia que havia colocado ao seu lado alguns minutos antes. — Eu escutei você falando com a tia Brisa ontem. — Não me diga! — Deixei um suspiro escapar. — O que mais você ouviu? — Que ele estava prestes a sair da prisão. O que ele fez, mamãe? Oh meu Deus! — Deus, Juan. Você não estava brincando com seu amigo enquanto eu conversava com sua tia? Ele deu de ombros. — Sim, mas enquanto eu estou brincando, meus ouvidos ainda funcionam. Eu mordi a boca. Ele me surpreendia com suas respostas a cada dia. — Posso ver o quanto seus ouvidos estão funcionando bem. — O que ele fez? — Eu selecionei o episódio. — Essa é uma história para adultos. Quando você tiver idade suficiente, nós conversaremos sobre isso. — Eu tentei desconversar, mas ele era tão insistente quanto o pai. — Ontem você disse que eu já estava quase um adulto porque eu consegui limpar minha bunda, sozinho. — ele disse a palavra “sozinho” com muito orgulho de si. Okay. Por que é que os assuntos com Juan sempre acabavam com a palavra bunda?

— Eu certamente estava exagerando um pouco. — Mentindo? Eu dei play no episódio. Pela primeira vez na história, observamos de longe o nosso próprio planeta. Desde então, a população humana mais do que dobrou. Esta série exaltará as maravilhas da natureza que ainda nos restam. E revela o que devemos preservar para garantir que a natureza e as pessoas prosperem. — Vamos mudar de assunto. — Ele agora se concentrava no som que saía da tv. — O planeta Terra está passando na tela agora. — Ele continua redondo. Eu fui obrigada a rir. — Não acho que seria capaz de ficar quadrado um dia. — Você pode pegar meu planeta Terra para eu ver enquanto assisto a série? — Eu já estava fazendo quando ele disse aquilo. — Aqui está. — Eu o entreguei, observando os pequenos dedos de Juan tateado todo o globo. Se em algum momento da minha vida tivessem me falado que eu teria um filho deficiente visual, eu teria surtado, porque primeiro, eu sequer podia pensar em estar grávida; e segundo, ninguém que está grávida consegue pensar na possibilidade de ter um filho cego. Eram tantas perguntas que sondavam a minha mente que em certo momento, eu senti que estava prestes a enlouquecer. Como ele irá à escola? Como ele vai andar na rua? Como meu filho vai caminhar por dentro de casa ou como ele vai conseguir brincar? Somente o dia a dia é capaz de lhe responder a estas perguntas, muito embora as dezenas de livros que li assim que deram o diagnóstico ainda no hospital, após o teste do olhinho, haviam me preparado de quase todas as formas. A criança é capaz de ter uma vida normal. Era o que dizia todos os livros e o que fez com que eu me sentisse mais calma. Não era fácil nem justo. Como eu podia explicar a ele como eram as coisas se ele não as conhecia? Como dizer que o mar é azul se ele não sabia

como o azul parecia? Não era fácil, mas também não era impossível; e principalmente, não me fazia amá-lo menos. Ele era perfeito de todas as formas possíveis. E inteligente. Sua curiosidade só o fazia aprender mais e meu peito se enxia de orgulho. Eu lhe daria assas, e mesmo que eu tivesse medo do que lhe aguardava, eu lhe ajudaria a saltar num voo lindo.

Durante a maior parte da minha infância e toda a minha adolescência, Javier e Gus tiravam sarro de mim nesta mesma data. Era um dos dias em que os dois mais me deixavam irritada, porque Gus se vangloriava sempre por ter nascido primeiro, sem contar que ele começava o dia com “Pegue para mim porque é meu aniversário”, “Arrume minha cama porque é meu aniversário”, enquanto Javier dizia “Hola, tudo bien com você neste dia em que você não é mais velha que yo?”. Eu não fazia ideia do quanto eu amava aqueles dois até que recebi uma ligação no meio da noite dizendo que a fábrica havia pegado fogo e que Gus estava morto e Javier ferido. E um ano depois, a mesma dor e um maldito vazio que só não me matou porque eu tinha uma criança para cuidar. Eu me lembro tão claramente daquele primeiro ano, enquanto eu segurava Juan nos braços e chorava com todas as minhas forças sem poder usar minha voz para não assustá-lo. Lembro da sensação de ter minhas costas arrastando pela parede conforme meu corpo descia até o chão frio pelo mês de julho. Lembro como se fosse

ontem da dor que senti por não ter as duas pessoas que eu mais amava no mundo — depois do meu filho. — Você quer que eu acompanhe você? — Meu marido perguntou, curvando seu corpo sobre meu ombro. — Como você está se sentindo hoje? — Eu não sei exatamente. — Sua mão deslizou sobre a lateral do meu braço, sua forma sutil de tentar me deixar mais calma. — Você tomou seus ansiolíticos? — eu assenti. — Certo, me avise se precisar de mim. — Eu assenti novamente, como se fosse a única coisa que eu conseguisse fazer. — A que horas você vai até lá? — ele perguntou, fazendo um nó na gravata. Eu me perguntava todos os dias o que ele ainda estava fazendo comigo, quando podia estar tendo uma vida de verdade com alguém que tivesse muito mais a oferecer. Ele era tão novo, atraente e tão cheio de vida. — Acho que umas seis horas, talvez... O sol do fim da tarde no inverno esquenta demais. Ele assentiu. — Tudo bem, querida. Vou tentar chegar a tempo para acompanhá-la; e caso não o fizer, eu te encontro lá. — Ele se curvou, me dando um pequeno beijo na testa. Eu deslizei minhas mãos sobre sua cintura, apoiando o queixo em seu peito. — Chame um Uber. Depois nós iremos juntos pegar Juan na casa da Brisa. — Obrigada por tudo o que tem sido para mim. — Ele se afastou o suficiente para poder me encarar, então sorriu. — Eu amo você. — Eu amo você também. — Ele disse antes de sair.

Me lembro tão bem da forma como todos me olhavam como se eu estivesse doente, como se eu não fosse capaz de cuidar de Juan, como se eu pudesse me matar a qualquer momento; mas eu nunca o faria, porque apesar de tudo o que havia acontecido e de toda a dor que me trazia, não estávamos só falando do efeito que teria sobre mim e sim sobre o meu filho também. Talvez eu tivesse mesmo tirado minha vida se eu não tivesse um bebê, quem sabe? Eu só sentia vontade de estar morta também, porque Gus era parte de mim, como se não fizesse sentindo viver em um mundo onde ele não mais pertencia. E no meio de todo o meu caos particular, havia outras mil coisas acontecendo ao mesmo tempo. A empresa arruinada pelo fogo, falta de dinheiro, boletos atrasados, funcionários sem poder trabalhar. Minha mãe nos meus ouvidos, a pressão por um casamento que eu não estava preparada, pessoas sem seus empregos alegando estarem passando fome. Meu tio e todo o álcool que ele passou a tomar — e ainda toma. Meu pai apontando o dedo na minha cara e a forma como eu levei os meses seguintes, como se estivesse apenar tentando sobreviver. O peso de tudo o que estava acontecendo sendo largado sobre minhas costas, como se eu fosse a única que pudesse mudar tudo e dar um novo rumo. A sensação da perda era imensurável. E ainda é. Quando eu cheguei ao cemitério, ainda faltavam quinze minutos para as 18h, mas o tempo havia se fechado naquela tarde, então o sol se foi muito mais cedo do que o habitual. As nuvens brincavam no céu, cobrindo toda a extensão azul, transformando-o em um cinza triste e monótono. Eu arrumei

um vaso de flores que estava virado sobre o túmulo ao lado de Gus. O nome dele era John e eu podia detalhar cada traço do seu rosto porque eu havia visto aquela foto tantas vezes que podia, inclusive, me considerar uma grande amiga àquela altura, se ele não estivesse morto, é claro. Meia hora havia se passado desde que havia chego. Eu não era capaz de derramar mais nenhuma lágrima, porque havia chorado por mais um ano inteiro nos últimos trinta minutos. Tanto tempo depois e eu ainda era capaz de sentir sua falta em meus ossos. Se eu fechasse os olhos e me concentrasse um pouco, eu podia sentia sua mão bagunçando os meus cabelos, enquanto eu tentava fugir do seu aperto. Minha mão deslizou sobre o seu túmulo, o mármore limpo, ofuscado pelo péssimo tempo. Tinha certeza de que havia sido a única pessoa a ir visitá-lo em seu aniversário de vida e morte, porque meus pais nunca o faziam. Eles se limitavam a mandar alguém limpá-lo uma vez ou outra quando algumas datas se aproximavam e eles sabiam que eu iria. Brisa talvez aparecesse mais tarde quando eu buscasse Juan em sua casa, mas eu não a cobrava e nem achava que era sua obrigação, apesar de saber que ela sempre aparecia, porque também não havia sido fácil enterrar o seu primeiro amor. O que me deixava ainda mais estarrecida ao pensar nisso é que eu geralmente me imaginava no lugar dela, tendo que enterrar Javier. Refletir sobre isso era capaz de me deixar louca, porque apesar de tudo, eu ainda pensava nele daquela forma, mesmo depois do que aconteceu, mesmo depois de estar visitando meu irmão em um cemitério. Eu me sentei na superfície mais alta que emoldurava o túmulo em frente ao de Gus, passando os dedos sobre o meu rosto, tentando limpar a bagunça que deveria estar, quando ouvi alguns passos atrás de mim. Então a voz que ouvi em seguida fez meu sangue parar de correr em minhas veias. — Lo siento. Não sabia que você estava aquí. — Eu senti meu coração parar de bater e me vi incapaz de olhar em sua direção. Havia tantos elementos diferentes naquela frase. Um, sua voz era muito mais grossa e grave de quando eu a ouvi pela última vez. Dois, eu podia jurar que havia sentido no som de cada letra pronunciada, desprezo. Eu sabia que em algum momento precisaria encará-lo, mas não era capaz de fazê-lo tão imediatamente; então, eu olhei sobre os ombros, ainda sentada, fixando o

olhar sobre suas botas pesadas. Não queria ver o homem que ele havia se tornado porque tinha medo de como reagiria a isso. — Como você está? — perguntou, insistindo. Hoje ou nos últimos seis anos? — Como acha que eu estou? — Meus olhos subiram até suas calças camufladas em vários tons de verde. — Siento. — ele repetiu, a palavra carregada por um sotaque forte, que eu podia jurar que ele acentuava para me fazer perder as estribeiras. E eu perdia? — Sente mesmo? — Eu me levantei, mantendo o olhar sobre seu corpo conforme eu me movia. Uma jaqueta preta cobria do cós da sua calça a quase seu queixo e por um segundo ou dois, eu me perguntei quantas tatuagens deixaram de estar exposta graças a ela. — Você sabe que sim. — Sua voz parecia tão grave e diferente que se eu fechasse os olhos e ignorasse seu sotaque, poderia jurar que estava conversando com outra pessoa. — Eu sei? — De repente eu parecia estar gritando. A péssima iluminação, sua cabeça levemente virada para o lado e o capuz pesado me impossibilitava de vê-lo por inteiro. Mesmo assim, eu era capaz de enxergar com precisão a linha grossa que contornava seus lábios mantido em um aperto rígido. A mandíbula proeminente acentuava as maçãs do rosto, deixando-o mais viril e eu me perguntei como diabos ele podia parecer tão bem depois de seis anos em uma prisão. Seus olhos encontraram os meus e se mantiveram fixos, a familiar mistura de cores, castanho, verde e mel. Seis. Anos. — Queria que soubesse... — Ele começou, enquanto eu lutava para manter meus olhos longes dele. — Que yo nunc... — Eu preciso ir, Javier. — menti, não sabia quanto tempo era capaz de

aguentar sem que desmoronasse. — Milena? — A voz do meu marido ecoou através de nós dois e eu deixei meu celular cair sobre os meus pés, como se eu estivesse fazendo algo errado. — Estou indo. — eu respondi, juntando o aparelho do chão antes de olhar mais uma vez para Javier e perceber que seu rosto estava pálido e seus olhos estavam fixos no homem atrás de mim. — Isso só pode ser una puta broma! — Ele deu uma risada incrédula, enfiando as mãos nos bolsos laterais na jaqueta conforme inclinava o rosto, encarando o céu como se tivesse falando com alguém lá em cima com um sorriso de escarnio em seus lábios. — Una puta broma — eu imitei seu sotaque. — é você aparecer aqui, quando o único responsável pelo o que aconteceu com o meu irmão é ninguém além de você! — Quer saber? Vá se foder! — ele disse entre os dentes e eu ergui a mão no ar para acertar um tapa em seu rosto, mas ele segurou meu pulso antes que eu o fizesse. Seus dedos estavam quentes demais para um dia tão frio. Talvez fosse o sangue correndo como louco em suas veias que o mantinha aquecido, porque era como eu me sentia. Eu senti meu queixo tremer enquanto as lágrimas tomavam os meus olhos, então inclinei a cabeça, tentando fazer com que elas não desmoronassem sobre o meu rosto enquanto eu o encarava. Seis anos depois, a familiaridade de seus traços, cada maldito piscar de olhos. Deus, Javier estava na minha frente e era seu aniversário. Mas em vez de parabenizá-lo, eu deixei que aquelas palavras deixassem meus lábios pela segunda vez. — Vá se foder você! — Puxei minha mão de volta. — Você não é tão diferente de seus pais, no fim das contas. — Suas palavras tiveram a força de um tapa no meu rosto e eu ergui meu queixo para encará-lo. — O que você sabe afinal? Esteve numa porra de prisão nos últimos seis anos.

— Milena... — a voz doce do meu marido me repreendendo me chamou a atenção atrás de mim. — O que eu sei? — Javier sorriu, embora sua expressão fosse de desprezo. — O que eu sei que é você se casou por dinheiro no fim das contas. — O dinheiro que precisamos depois que você destruiu tudo o que tínhamos. — eu bati com o indicador no seu peito e o contato com seu corpo me fez estremecer, então eu cruzei os braços, totalmente perdida. Javier se inclinou na minha direção e sorriu. — Você manteve a cama dele aquecida enquanto aquecia a minha também? Parabéns, Madison, você conseguiu o casamento de merda que tanto queria. — ele se virou para sair, então eu gritei atrás dele. — Eu queria que você tivesse morrido. — Mas dessa vez, minhas palavras não tiveram o mesmo peso sobre ele como da primeira vez em que eu as disse, porque Javier sequer olhou para trás antes de responder: — Eu também.

Capítulo 8 Javier – 26 anos — Que porra você está fazendo? — Becker gritou do balcão de atendimento enquanto mordia a pele ao lado de suas unhas pontudas. Mais uma coisa que havia mudado nesses seis anos. As mulheres usavam unhas pontudas agora. — Estou varrendo o chão. As pessoas fazem isso o tempo todo. — Ela empurrou os cabelos negros para trás e eles eram longos o suficiente para baterem no telefone fixo e derrubá-lo ao chão. — As pessoas não, você faz isso o tempo todo. Ela praguejou, saindo de trás do balcão para juntar os pedaços do aparelho que somente hoje, havia caído no mínimo três vezes. O som dos saltos de sua bota de couro ecoou através da sala e um cara que esperava por André torceu o pescoço para olhar para o pequeno espaço entre elas e sua saia curta. Becker o encarou tão violentamente que até mesmo eu fiquei com medo de ter minhas bolas servidas no jantar. Com um pequeno sorriso, eu tornei a varrer o chão. Trabalhar com ela havia trazido um pouco de emoção para os meus dias, porque eu nunca sabia qual história ela contaria no começo de cada segunda-feira, mas geralmente, começava com “ele estava olhando demais para mim” e terminava com “ e aí eu peguei meu spray de pimenta”. Becker era uma filha da puta, mas, apesar dela não saber, era minha filha da puta preferida. — Ele já está chegando. Você pode se sentar ali e aguardar por ele. — ela disse ao cliente com um pequeno sorriso carinhoso no rosto. Apesar de trabalhar com ela pouco mais de duas semanas, eu sabia era sua encenação para manter seu emprego e mantê-lo longe dela. Becker odiava homens que olhavam demais. — Ela apareceu ontem? — ela perguntou quando eu coloquei a vassoura

dentro do armário atrás do caixa. — Não. — Eu não a encarei. Becker apoiou os cotovelos no balcão e me encarou sobre os cílios postiços. Seus olhos azuis eram delineados por traços grossos e eu me perguntei como diabos alguém conseguia se arrumar tanto antes das oito da manhã, porque eu apenas vestia a primeira muda de roupa que encontrava e calçava as minhas botas antes de sair. — Talvez ela saiba que você está trabalhando aqui agora. — Isso é você tentando me incentivar ou algo do tipo, porque não está ajudando. — Eu a encarei. — Desculpe, eu não quis dizer isso... — Ela uniu as sobrancelhas, pensativa. — Na verdade eu quis sim. — eu sorri. — Cara, foi mal, mas tipo, se ela quer mesmo se manter longe de você, ela não iria a uma pracinha sendo que sabe que você está aqui perto. Eu assenti. — Não acho realmente que devemos voltar a ter contato. Ela revirou os olhos. — Disse o cara que anda sondando a pracinha todos os dias. — ela prendeu seu piercing labial entre os dentes enquanto tentava esconder um sorriso. — Talvez até tenham ligado para a polícia e alegado que um tarado anda vigiando as crianças. Eu grunhi. — Você é ridícula. Ela deu uma gargalhada. — Eu não. Você é. — Ela fez uma pausa e seu semblante mudou drasticamente. — Acho que você deveria parar de viver os seus dias esperando algo dela, porque eu acho que ela não só não vai voltar para você, quanto não merece. — Eu a encarei, ansioso por uma opinião de fora. — Se vocês eram mesmo melhores amigos e tudo mais, se ela amava mesmo você, ela deveria pelo menos tê-lo escutado.

— O irmão dela morreu naquela noite. — E você era o amor de sua vida e poderia ter morrido também. Era para ela estar em luto pelo irmão, mas parte dela deveria estar feliz por você. Fazia sentido, de fato. — Ela deveria ter dado uma chance a você, Javier... ou pelo menos deveria ter dado agora; mas ela está ocupada tendo uma vida perfeita enquanto você se autodestrói por uma coisa que não teve culpa. — Então você está confiando em um cara que passou os últimos seis anos preso por assassinato? — Sim. — Existem provas que me fazem criminoso. — Mas se você está olhando em meus olhos, seis anos depois de ser julgado, condenado e pago pelo seu crime, sendo que não teria mais nada a perder, e está me dizendo que é inocente, então eu acredito. Ela girou sobre os saltos e pegou o telefone quando ele tocou, mas eu não era capaz de me mover, porque até mesmo uma estranha que eu havia acabado de conhecer havia me dado a chance de contar minha versão e acreditava em mim, enquanto a garota que foi minha melhor amiga e o amor da minha vida sequer conseguia olhar na minha direção.

Seis anos antes Tudo parecia distorcido, incerto; e se não fosse a dor absurda que eu estava sentindo naquele momento, eu poderia jurar que estava tendo um pesadelo. Tudo era claro demais para os meus olhos e isso fazia com que eu sentisse uma pontada dentro da minha cabeça. Mas, diferente das outras vezes em que eu abri os meus olhos, desta vez eu era capaz de me mover, então levantei o braço direito até o rosto e cocei próximo a minha orelha e a dor que senti ao fazê-lo fez meu estômago se contorcer. Então eu olhei para o meu braço com atenção e as manchas de queimaduras cobriam grande parte do meu antebraço, fazendo com minha tatuagem de lobo parecesse um grande borrão, uma confusão de pele morta, queimada. Pela dor que sentia pulsando no rosto, eu tinha certeza que o havia queimado também; e de repente eu senti um enorme pânico ao pensar na forma como as queimaduras deveriam tê-lo deixado. Eu olhei para o lado, mas avistei apenas uma poltrona vazia; e enquanto eu corria os olhos pelo quarto, as lembranças daquela noite invadiam a minha mente. Nós dois no terraço, o frio, a bebida, Gus, o fogo. Nada fazia sentindo, como quando você acorda depois de um sonho deturpado. Mas eu não havia sonhado, porque eu estava na porra de um hospital com o meu corpo repleto de ferimentos. Gus? Como está Gus? Morto. Eu tinha certeza, porque havia ouvido alguém pronunciar algumas vezes, mas eu não sabia quando, quem e não sabia a quanto tempo. Eu podia ouvir as sirenes zumbindo nos meus ouvidos e as cores azul e vermelho refletindo sobre as paredes que me cercavam. Eu podia ver as chamas devorando as estruturas a minha frente e não precisava me concentrar para ouvir a voz de Gus gritando por ajuda. Quanto tempo se passou? Eu olhei para as minhas mãos e estavam amareladas. O que era aquilo? Pareciam inflamadas, eu podia ver o quanto a carne havia sido queimada, foi então que me lembrei do momento exato em que havia acontecido. Eu

procurava por Gus, um escombro em chamas despencou a minha frente e eu caí, apoiando as mãos no degrau de ferro atrás de mim. Ele parecia não estar lá, por isso voltei. Eu me lembro de algumas faixas envolvendo meu braço, mas por que é que eu não as usava mais? Meu coração batia tão rápido me causando falta de ar que nem percebi que eu estava chorando. Gus... meu melhor amigo estava morto. Eu fechei os olhos, podia avistar os aparelhos de refrigeração enquanto eu me arrastava até o peitoril, era capaz de sentir o chão quente sob mim, enquanto eu girava meu corpo para o lado, me jogando à incerteza, enquanto deixava meu amigo para trás. Uma enfermeira entrou no quarto e sorriu para mim. Ela anunciou que estava trocando meus curativos, por isso eu estava sem as gazes, porque ela havia esquecido e voltado para buscá-las, mas eu não me importava com nada. Não me importava com minha aparência ou com a dor, porque meu melhor amigo estava morto. Morto. Ela deixou o quarto depois de explicar que passei quase quinze dias sendo sedado por causa da dor das queimaduras de segundo e terceiro grau e que eu estava muito agitado, por esse motivo havia sido sedado. Mas eu não me importava também; pelo contrário, gostaria de voltar ao estado deturpado em que me encontrava, porque eu não precisava conviver com a perda se estivesse inconsciente. A porta se abriu novamente e Milena entrou, segurando um copo fumegante. Seus olhos pareciam tristes e embaixo deles, olheiras marcavam sua pele clara, então imediatamente eu senti meu coração bater forte. Eu me sentia melhor somente por estar na presença dela, e então eu já não queria mais ser sedado, mesmo que fosse o meu pensamento mais egoísta. Eu a amava tanto, pensei, que precisava estar com ela todos os meus malditos dias. Precisava fazê-la superar, ser seu ombro, ampará-la no seu momento de dor, porque só Deus sabe o quanto ela amava o irmão. Milena finalmente me olhou, seus ombros sacodiram quando soluços escaparam de sua boca. O som que ela deixou escapar rasgou meu peito de dentro para fora, enquanto ela se aproximava com cautela. Então ela me tocou, como se soubesse exatamente em quais pontos ela pudesse fazê-lo sem

que me machucasse; o que fez com que eu pensasse que talvez ela estivesse todo o tempo ao meu lado, esperando que eu acordasse. E outra vez uma enxurrada de lembras daquela noite invadiram meus pensamentos; mas eram boas, porque antecediam a tragédia. Era exatamente antes de eu sair para encontrar Gus, era exatamente quando eu a tive pela primeira vez. Quando fizemos amor. E eu me perguntei como podia aquela noite maravilhosa ter se tornado um pandemônio. Talvez se eu tivesse ignorado o meu amigo, ele estaria vivo. Eu não fazia ideia de como o fogo havia começado e tinha lembranças distorcidas de vozes que diziam o mesmo. Ninguém sabia. Talvez Gus tivesse ido para casa se eu não tivesse aparecido por lá. Quem sabe? Nunca iriamos saber, porque ele estava morto.

Dias atuais Há alguns anos, me lembro de pensar sobre a solidão. Naquela época, para mim, a solidão era uma forma de me manter liberto, porque era somente quando eu estava sozinho, que podia ser quem eu realmente era. Mas depois de passar os últimos anos rodeado por pessoas, eu me sentia vazio. Não por não ter ninguém, mas pelo silêncio estrangulador que é estar só. Você é capaz de ouvir a batida do seu próprio coração, da sua respiração acelerada quando pensa em algo que te deixa ansioso e até mesmo o barulho das cobertas quando você muda de lado na cama pela centésima vez.

Minhas mãos doíam depois de passar horas capinando o terreno da casa, tentando deixar tudo menos feio, por assim dizer; mas as paredes estavam desbotadas, bolhas de tinta desprendiam delas e as telhas precisavam ser trocadas se eu não quisesse que chovesse dentro de casa em breve. Eu não sabia mais o que fazer. Quanto mais eu tentava, mais parecia estar longe de um recomeço. Eu me sentia como um maldito, como se tivesse nascido somente para me foder na vida. Bem, aqui está, Javier, vamos lhe abençoar com uma vida de merda. E assim foi. As palavras de Becker dançavam em minha mente. Eu peguei meu celular sobre o criado mudo e apertei o botão, a tela acendeu em resposta. Um modelo tão antigo que faziam com que as pessoas virassem o pescoço em minha direção quando me viam retirando do bolso; mas era o único que eu tinha e nunca havia me importando com tecnologia, afinal. Eram duas horas da manhã, e mesmo que eu soubesse que precisava estar cedo no estúdio do André, não era capaz de dormir. Então eu abri as mensagens antigas mais uma vez, relembrando uma das duas únicas coisas que tive na vida que me fazia bem e que era real. Milena. Ela: Eu amo você. Eu queria poder dizer a ela o quanto a amava também, o quanto eu precisava abraçá-la, mesmo que por um segundo que fosse, apenas para que pudesse sentir a sensação de ser amado por alguém novamente, mesmo que nos dias de hoje nosso amor não fosse mais real. Mas então as palavras dela chicoteavam na minha mente. Como eu poderia desejar amor de uma pessoa que me queria morto? Eu gostaria de saber. Talvez, no fundo, como eu, ela sentisse uma pontada de esperança e a camuflasse com uma péssima escolha de palavras. Porque eu também o fazia, eu a odiava fielmente por não ter acreditado em mim, por ter dito o que disse quando não me restava mais nada, por ter me deixado sem dizer um misero adeus, mesmo depois de tudo o que significamos um para o outro. Saber que ela dividia a cama com o homem que eu jamais seria, havia me destruído. Como ela podia ter sido capaz de casar com ele quando sabia o quanto eu o detestava. Como ela teve a coragem de ficar com a pessoa que seus pais sempre quiseram que ela ficasse quando ainda estava comigo?

Derrota. Eu me sentia derrotado de todas as formas possíveis, porque em todas as minhas falsas lembranças e em todas as histórias que deduzi, em nenhum momento eu a imaginei se casando com ele. Jamais. Podia imaginá-la viajando o mundo, estudando no exterior, levando uma vida calma e serena, se tornando professora ou administrando uma empresa. Um namorado, talvez um noivo que ela achava que amasse o suficiente para se casar com ele; mas nunca, em nenhuma hipótese, ela se casaria com ele. Mas eu estava errado. Milena Rabelo havia seguido sua vida. E eu continuava a foder com a minha.

Capítulo 9 Milena – 26 anos Muitas vezes durante os últimos seis anos eu quis correr até Javier para ouvir o que ele tinha a me dizer. Queria gritar com ele, xingá-lo, abraçá-lo... não importava, eu apenas queria que ele estivesse comigo, nem que fosse apenas para respirarmos o ar do mesmo ambiente. Sua presença sempre me acalentou. O mundo podia estar desmoronando sobre mim, mas o sutil toque das pontas de seus dedos correndo sobre minha mão era capaz de fazer com que eu esquecesse completamente de tudo; e o que eu mais precisei depois de Gus, era exatamente esquecer. Mas ao mesmo tempo, como eu seria capaz de fazê-lo justamente com a pessoa que me mais me fazia lembrar do que havia acontecido? A diferença entre os seis anos que se passaram e os últimos vinte e tantos dias é que antes eu não podia ir até ele, e agora eu não só sabia que podia, como sabia que o trajeto levaria poucos minutos para ser feito. E era uma tentação. Uma agonia sem fim, capaz de fazer meu peito coçar pelo lado de dentro. Como eu podia ser capaz de querê-lo longe, ao mesmo passo em que o queria perto? Eu não fazia ideia, a única coisa que sabia, é que não havia dormido nada desde o dia em que o encontrei no cemitério. — Aqui fica a escada. — Eu coloquei as mãos de Juan junto as minha, deslizando-a sobre a madeira recém pintada pelo governo. — Quando estiver lá no alto, há um corrimão que vai te levar até o escorregador. — Eu o ajudei a subir enquanto ele tateava a madeira a sua frente. — Quando sentir a inclinação dele, você se senta e desce, mas preste atenção nos sons a sua frente, porque pode ter alguma criança no final do escorregador. — ele assentiu, ansioso. — Está bem, mamãe. — Ele se concentrou nos sons e quando percebeu que não havia nenhuma criança, ele escorregou, os pés tocando desastradamente o chão. — De novo! — ele gritou animado e eu sorri, baixinho. — Cuidado, Juan, o hospital é sempre mais cheio aos domingos.

Ele gargalhou, descendo pela segunda vez. Até mesmo sua risada era parecida com a de seu pai. — Eu gosto de escorregadores. — ele admitiu, tateando o corrimão conforme andava em direção a rampa novamente. Todas as outras vezes em que fomos a praça, ele apenas brincava nos brinquedos baixos. Desta vez ele finalmente quis usar o escorregador pela primeira vez e sua coragem fez meu peito inflar; então peguei meu celular e bati uma foto para Brisa, que respondeu na mesma hora. Ela: Que garoto corajoso! Diga a ele que estou orgulhosa e que esta semana tomaremos um sorvete. Eu revirei os olhos antes de ler a mensagem para o meu filho e ouvi-lo gritar de felicidade. Ainda bem que Deus o abençoou com uma garganta que quase nunca inflamava. Logo em seguida, ela enviou uma mensagem dizendo que queria seu sorvete com DUAS bolas e eu respondi com um emoji de um bonequinho revirando os olhos enquanto gargalhava e tentava explicar minha reação para o meu filho com uma história que não fizesse sua tia parecer uma maldita depravada. Meia hora havia se passado quando eu avisei Juan que compraria pipoca no carrinho a uns cinco metros de distância, então caminhei até lá, olhando para trás para verificá-lo a cada dois segundos, quando eu me virei para frente novamente depois da quarta verificada, meu rosto colidiu com algo rígido. Uma parede de músculos firmes. Eu me segurei no tecido do seu moletom, tentando me equilibrar. Foi quando ele olhou para trás. Tão perto, tão lindo. Eu dei um passo, mantendo distância, o olhar em seus lábios, ele os abriu para dizer algo, mas os fechou em seguida, mudando de ideia. Não sabia o que fazer, podia sentir o meu rosto se aquecendo, mas não sabia se era a raiva acumulada ou se meu corpo ainda era capaz de responder a sua presença. Ele usava a mesma calça camuflada do outro dia e meu estômago se contorceu pelo fato de eu conhecê-lo tão bem. Quando Javier gostava de alguma peça de roupa, ele a usava até que não a pudesse usar mais e não

tinha nada a ver com suas condições financeiras, e sim com sua simplicidade. Ele fazia muito com pouco, e fazia do pouco, algo especial. Eu olhei para trás rapidamente. Juan estava sentado na areia, brincando com um carrinho, então fiquei mais tranquila ao constar que estava livre de uma queda. Seus olhos rolaram sobre os meus ombros, encarando-o, e meu coração acelerou tão rapidamente que eu podia jurar que desmaiaria. Morar em uma cidade pequena era mesmo uma merda. E em poucos segundos um filme passou em minha mente. Em algum momento, ele precisaria saber da verdade. Mas certamente aquele não era o momento. Eu dei outro passo para longe, me afastando. Precisava voltar para Juan e levá-lo para casa, precisava respirar. Eu estava ao ar livre, mas sentia que precisava de ar. Seus olhos não desviavam de mim em nenhum momento e a mistura de cores tão familiar me deixava ainda mais perdida. Eu me virei antes de ele dissesse algo, mas o toque de sua mão quente no meu antebraço me fez parar. — Precisamos conversar. — A urgência em sua voz fez meu peito arder. Meus olhos rolaram sobre o seu rosto, absorvendo cada detalhe. Seus cabelos haviam crescido bastante desde a última vez que o vi. Ele virou levemente a cabeça, mas não foi rápido o bastante para que eu não percebesse a cicatriz que cobria a lateral do seu rosto, em sentido a sua orelha. Imagens dele na cama de hospital preencheram minha mente. Seus ferimentos cicatrizando, a forma como ele tentava parecer calmo com sua aparência e o quanto eu era capaz de perceber que ele estava prestes a surtar. Como pode uma cicatriz tão proeminente tê-lo deixado ainda mais bonito? Talvez fosse coisa da minha cabeça. De qualquer forma, jamais seria capaz de explicar o que sentia por ele. — Não é uma boa hora. — Eu encarei sua mão sobre minha pele. Sentia tanta necessidade de tirá-la de lá quanto mantê-la. — E quando será? — ele perguntou, aparentemente ansioso. — Em algum momento que não seja agora. — Eu parecia tão madura quanto no ensino fundamental. — Cómo estas? — Sua voz era tão baixa que eu precisei me concentrar

nela. Eu desviei o olhar. Havia sido dura o bastante da última vez que ele havia aquela mesma pergunta. — Estou levando. — Eu cruzei os braços, mas desfiz assim que me lembrei o quanto ele pegava no meu pé por fazer isso sempre que eu estava brava ou nervosa. — Ahora é a hora em que você pergunta como eu estou. — Eu preciso ir, Javier. — pronunciar seu nome era tão estranho. Eu girei meu corpo para trás, mas não encontrei Juan. — Ele está sentado no banco. — Javier apontou e voltei a respirar, então mudei para o seu lado, de modo que meu filho estivesse em minha direção. O saco de pipoca em suas mãos estava cheio, mas ele não havia comido uma sequer. — Por que ele? — os olhos encararam os meus e se mantiveram fixos, esperando uma resposta, em dias de sol como aquele, o tom de verde prevalecia. — O quê? — Eu cruzei os braços. — Madison. — Ele pronunciou o nome com escarno. — O que tem ele? — Engoli em seco. — Você o ama? — Eu desviei meus olhos para meu filho. — Sim. — afirmei. Mas não tanto quanto eu amei você um dia, pensei. O frio na barriga não passava nunca. — En sério? É mesmo? — ele perguntou, enfiando uma mão no bolso da frente do moletom. Deus, como eu havia sentido falta daquele sotaque. — Eu... eu preciso ir. — As palavras saíram estranguladas e eu me odiava por me sentir naquela forma. — Tome um café comigo. — ele pediu, a letra “e” da palavra café soou carregada, como se não houvesse acento.

— Eu... — Respirei fundo. — Não é uma boa ideia. Depois de tudo o que aconteceu, sabe... não faz sentido. — Nós sempre fizemos bem ao outro. Ele parecia tão diferente, seus sentimentos mais expostos do que em qualquer outra vez em que falei com ele. Cada palavra pronunciada, visivelmente carregada por emoções. Ele me tocou, as pontas de seus dedos correram pela palma da minha mão, enquanto o polegar pressionava o outro lado, sobre os nós dos meus, deslizando. Um pequeno toque sutil, mas grande o suficiente para me fazer sentir culpada o bastante. — Até que deixamos de fazer. — Eu puxei minha mão de volta. — Quer saber? — Ele deu de ombros. — Tudo bien, vá nessa. Seu marido deve estar precisando de você. — Sim, ele está. — eu disse antes de me virar. E quanto mais eu me afastava de Javier, mais perto parecia que estava chegando.

Seis anos antes Eu sentia como se estivesse sido drenada, todo o meu corpo ainda doía. As vezes as pessoas falavam comigo e eu sequer percebia. Era a minha

forma de passar pelo luto. Eu me afastei. Nunca imaginei que a dor da perda pudesse ser daquela forma. A sensação de que algo arrancado de você drasticamente. Um maldito vazio sem fim. Eu me sentia sozinha, perdida, sem saber para onde ir ou o que fazer. Eu teria deitado no ombro de Gus e chorado sem parar se ele estivesse vivo, mas se ele estivesse, eu não estaria precisando tanto de seu ombro amigo. Talvez fosse mais fácil se Javier não tivesse inconsciente por tantos dias após a sua morte. Talvez se eu tivesse podido contar com o seu acalanto, eu tivesse passado melhor pelos primeiros dias sem o meu irmão. As mensagens que não chegavam mais. O número que caía na caixa postal. Suas botas pesadas que não faziam mais eco no corredor enquanto ele se aproximava do meu quarto. O número da pizzaria que ele me pedia toda sexta-feira, porque nunca lembrava de salvar no seu celular. Pequenos detalhes, mas que formavam um vazio enorme no fim do dia, um buraco que eu me via contornando, cogitando me jogar. Por alto, eu ouvia o quanto meu tio havia começado a beber depois da morte de Gustavo, o que, contando com Brisa e eu, somaria um total de três pessoas que pareciam sofrer por sua morte. Meus pais não eram capazes de olhar em minha direção e eu não conseguia entender como minha mãe era capaz de manter seu penteado tão firme durante os dias seguintes, enquanto eu sequer lembrava a última vez que havia tomado um banho. Três. Pessoas. Brisa estava destruída também, mas ela parecia tão forte, tão determinada a me ajudar com todos os detalhes ou revezar comigo no hospital, porque eu era a única pessoa que se preocupava com a saúde e recuperação de Javier e ficava com ele quando eu precisava sair para tomar um banho e levar comida a sua mãe que eu sabia que dependia dele. Talvez Brisa fosse tão forte por ter perdido sua mãe alguns anos antes e saber que nada nunca seria tão grande quanto sua perda. E eu me sentia um monstro quando eu me via pensando que eu preferia perder a minha a Gus. Meu irmão era a minha pessoa no mundo. Os braços, mãos e a lateral do rosto de Javier, estavam cobertos de queimaduras que eu, em primeiro momento, durante uma troca de curativos, quase desmaiei, pensando na dor que ele sentiu enquanto o fogo tocava sua pele. Mas o que me confortava era saber que pelo menos ele havia

sobrevivido aquela tragédia. Minha cabeça estava cheia de perguntas e ninguém me deixava saber sobre o andamento das investigações. Eu acreditava que Gus havia começado o incêndio para punir meus pais e havia se perdido quando ele tomou grandes proporções. Mas eu não tinha como comprovar nada, porque a única pessoa que estava presente não estava consciente. Quando ele finalmente acordou, eu dei o meu primeiro sorriso depois de quase quinze dias. Ele parecia muito confuso, seu rosto estava coberto por lágrimas e eu podia jurar que as memórias voltavam com força em sua cabeça. Então eu me aproximei dele e toquei exatamente onde sabia que podia tocar sem que o machucasse. Tantos dias ao seu lado naquele quarto, me fizeram ainda mais próxima dele, e eu sabia que o que sentia por Javier havia se transformado em algo muito maior. A única certeza que eu tinha, era que eu nunca seria capaz de deixar de amá-lo. Ele me explicou como tudo aconteceu naquela noite, e o fato de Gus estar no andar de baixo sozinho só fazia entender que ele mesmo quem havia começado o incêndio. Ele me contou como tentou ajudá-lo, como foi parar no terraço novamente, o quanto ele se queimou indo procurar por Gus e seu pé que havia quebrado tentando abrir a porta para o meu irmão. Mas após poucos minutos de resumo, eu não podia ouvir mais nenhuma palavra, porque doía demais pensar em uma morte tão trágica; e então Javier prometeu não tocar mais no assunto. Foi o mesmo que senti quando fizemos amor. Suas queimaduras estavam muito melhores e eu estava tão cansada, então me espremi a ao seu lado na cama de hospital. Não tinha intenções nada além de buscar conforto em seu corpo rígido, mas quando um gemido deixou seus lábios conforme nosso beijo se tornava mais urgente, eu sabia que ele precisava de mim tanto quanto meu corpo dele. E quando Javier me preencheu inteiramente, as minhas lágrimas se misturavam as dele. Ele não precisava dizer que me amava, porque eu sentia em cada movimento seu. Mas três dias depois, quando a tragédia estava prestes a completar um mês e Javier havia ganhado alta, a polícia entrou no quarto com um maldito mandato de prisão. Eu ainda segurava suas malas quando eles colocaram suas mãos para trás e o algemaram sobre a pele queimada do punho. Meu coração batia descontroladamente dentro do meu peito e eu não fazia ideia

do que estava acontecendo; mas quando olhei para os rostos dos meus pais, eu soube na hora que ele estava sendo preso pelo o que havia acontecido à Gus. Javier tentou se explicar, mas provas foram arremessadas no meu rosto enquanto minha mãe gritava comigo, e eu não sabia o que fazer, em quem confiar. A polícia não deveria ser a voz maior, afinal? Eles não prenderiam um inocente, eu pensei. Mas ao mesmo tempo, não podia acreditar que Javier havia feito algo daquela magnitude. Ele parecia tão confuso quanto eu. Um policial olhou para mim e fez um resumo breve, dizendo que ele queria se vingar dos meus pais por não aceitarem o nosso relacionamento e o arrastou para fora do quarto. Javier abriu a boca para tentar se explicar, mas a única coisa que consegui dizer, foi que eu queria que ele estivesse morto, então eu vomitei sobre as malas feitas no chão. Eu só não fazia ideia de que meu vômito não tinha nada a ver com meu nervosismo. Eu não sabia, mas já carregava o filho de Javier no meu ventre.

Capítulo 10 Javier – 26 anos Só se perde a liberdade por culpa de sua própria fraqueza. Eu era um cara fraco, eu não quis lutar. Mas também, como faria? Era eu, Javier, um garoto fodido de todas as formas contra uma família montada na grana, com altos padrões sociais, uma vida inteira de estabilidade. Não tinha como. Eu era o culpado perfeito e não tinha o que fazer além de pagar por algo que não cometi. Eu, Javier Muniz, não matei meu melhor amigo, Gustavo Rabelo. Mas a maioria dos caras que conheci na prisão diziam a mesma coisa. O sistema era manipulado e ia para cadeia quem lhes era mais conveniente; e graças a Deus, a pena de morte foi tirada do Código Penal em 1889, ou provavelmente muitos inocentes estariam mortos agora. Não importa, de qualquer forma, eu havia pago por um crime que jamais teria cometido. Nunca comprei porra de nenhuma de gasolina naquela noite, sequer tive contato com o líquido e sem dúvidas, alguém havia implantado aquelas provas. Parece ridículo quando dito em voz alta, por isso eu nunca tocava no assunto... não queria que as pessoas rissem de mim em seu interior enquanto eu as tentava convencê-las de que eu sou realmente inocente. É claro que os pais de Milena me queriam morto ou preso, longe de sua filha, porque eu jamais podia dar o que Madison oferecia e nem preciso explicar, porque a essa altura, todos já conhecem minha maldita história. Então, o que eu precisava realmente descobrir era o filho da puta de merda que havia fodido com a minha vida. Dois meses haviam se passado desde que fui liberto. Eu praticava todos os dias no estúdio do André, de modo que eu havia começado fazendo desenhos minimalistas e frases; e por incrível que pareça, era exatamente o que mais vendia, os desenhos pequenos e simples, e eu gostava do que fazia. Gostava pra caralho. Era incrível saber que seu traço ficaria na pele das pessoas até o dia de sua morte. Eu as encontrava nas ruas, no mercado, e elas apontavam para suas tatuagens e sorriam. Estavam satisfeitas.

Pela primeira vez em toda a porra da minha vida eu me senti útil. Conseguia ver futuro, estabilidade, um emprego fixo, clientes, quem sabe um dia, meu próprio estúdio. Eu devia imensamente a André, porque ele havia feito mais por mim do que qualquer outra pessoa fizera um dia. Ele estendeu a mão para mim sem pensar duas vezes e eu me perguntava como seria se minha mãe tivesse encontrado alguém com ele em vez de Miguel. Provavelmente ela não estaria morta agora. Eu agarrei a oportunidade que André havia me dado, porque sabia que oportunidades não vinham com tanta frequência quanto os problemas, e eu estava mais do que farto de andar para trás. Um passo para frente, dois para trás. Isso havia mudado. Dois meses haviam se passado e eu não havia regredido. Minha ansiedade estava estável de modo que eu havia conseguido diminuir o número de cigarros que fumava ao longo de um dia. Eu não havia visto mais Milena desde o dia em que a encontrei na pracinha; e não, não havia sido coincidência, visto que eu circulava por lá o final de semana inteiro esperando por ela. Milena havia sido estupida o bastante para não me dar a oportunidade de conversar com ela, mas eu não podia viver uma vida inteira correndo atrás de uma pessoa que sequer conseguia olhar na minha direção por muito tempo. Ela não me queria perto e a reação que teve quando olhei para o filho de sua amiga havia deixado claro. Será que ela havia pensado que eu podia machucá-lo? Não importava mais, eu havia decidido que quando ela quisesse deixar de ser egoísta, ela viria até mim, e se não o fizesse, tudo bem também; seis anos dormindo sobre uma cama de cimento não havia me matado e não era seu desprezo que o faria. — Odeio estar menstruada. — Becker jogou um pacote de absorventes dentro do meu carrinho de mercado. — Esses tampões devem ser desconfortáveis. Ela deu uma gargalhada tão alta, que uma senhora que escolhia cebolas logo a frente deixou uma cair no chão. — Se você se abaixar bem e o enfiar fundo, não. Cristo. — Quão fundo você gosta de enfiar, Javi? — ela perguntou, deslizando

as unhas pontudas sobre a pele queimada do meu braço. — Joder. As pessoas estão olhando. — eu a alertei. Ela deu de ombros, o salto tilintando no chão. — Foda-se as pessoas! — ela cantarolou. — Sí, tudo o que eu preciso é de mais atenção, porque no basta ser um ex-presidiário e estar coberto por cicatrizes. — Se você soubesse. — Ela revirou os olhos enquanto eu semicerrava os meus. — Do quê? — Peguei dois vidros de desodorante e um pacote de barbeadores. — Do quanto as garotas gostam disso. — Becker fez um círculo imaginário ao redor de mim com a ponta do indicador. — Todo esse mistério, o passado sombrio e essas cicatrizes sexys pra caralho. — Ela colocou a mão no meu capuz e eu o segurei. — Não o tire. — eu a alertei. Ela bufou. — Estamos na primavera há dois dias, Javier... você vai usar isso o verão inteiro? — eu a ignorei, fingindo estar procurando por algo específico nas prateleiras. — Talvez. — Ela já viu? Eu a encarei. — O quê?! — exclamei, enquanto dobrávamos o corredor, entrando na sessão dos produtos de limpeza. — Milena já viu seu rosto? — Eu gostaria que Becker não tivesse uma boca ou que ela fosse muda. — Você me lembra muito o Gus... ele era tão chato quanto você. Ela sorriu abertamente. — Obrigada pelo elogio, considerando que ele era seu melhor amigo.

— É, mas você não é minha amiga. — brinquei. — Claro que não, só estou colocando meus absorventes internos no seu carrinho porque somos inimigos. Eu assenti. — Exatamente. — E ela já viu? Um suspiro exasperado deixou meus lábios. — No hospital, assim que acordei... você já conhece a história. — A cidade inteira conhece, pensei. — Ah, isso não conta. — Eu peguei um frasco de álcool e um sabão em pó. — Talvez ela tenha visto na última vez que nos vimos. Ela olhou demais para o meu rosto. — Desde quando eu falava tanto? — Mas você se escondeu. — Becker segurou meu antebraço novamente, prendendo seus braços nos meus, como se estivéssemos entrando no altar. — Desde quando você passa tanto suas mãos em mim? — Eu estava realmente desconfiado. — Tente não surtar. — Ela encostou sua cabeça no meu ombro. — Por favor. — Que cuños você está fazendo, caralho? — Ela está no caixa, disfarça. — Eu me virei imediatamente para o lado. — Qual a parte da palavra disfarça que você não entendeu? Milena estava a minha frente, no mesmo caixa em que eu, seus olhos correram pelo corpo de Becker, dos pés à cabeça, então suas bochechas coraram de uma forma na qual eu não estava mais acostumado, muito embora eu conhecesse tão bem. Foi só quando ela se moveu que percebi que Madison a acompanhava. Ele retirou sua carteira do bolso de trás, entregado um punhado de dinheiro para a atendente. Então ele olhou para mim enquanto

pegava algumas sacolas e a enfiava no carrinho de compras do outro lado, um pequeno sorriso estampando o seu rosto e eu podia jurar que era um sorriso de cumprimento. Que porra é essa? Milena ainda parecia totalmente perdida enquanto lutava para encaixar as alças de sua bolsa nos ombros e o celular no bolso de trás, enquanto seus cabelos caíam sobre o rosto. Madison se curvou sobre ela, movendo uma mecha atrás de sua orelha e ela permitiu, em seguida, sussurrou algo em seus ouvidos e ela negou com o olhar transtornado. Ele colocou uma mão sobre seu ombro e lhe deu um aperto, parecia um pequeno ato com intuito de encorajá-la a algo. Talvez voltar a respirar, dito que ela parecia estar prestes a desmaiar por falta dele. Eu só percebi que eles haviam saído, quando a moça do caixa gritou a palavra próximo e Becker me puxou pelo braço. — Puta merda, isso foi tenso. — Eu desviei o olhar. — Vá falar com ela. Eu neguei, confuso. — Es una puta broma? Porque eu deixei claro tudo o que ela me disse nas vezes em que nos encontramos — Um grunhido exagerado deixou seus lábios. — E você certamente não prestou atención na parte em que ela me desejou a morte e na outra em que ela dizer que não fizemos bem um ao outro. — Talvez não, realmente. — respondeu, enquanto colocava alguns produtos sobre o caixa. — Porque eu estava prestando atencíon na parte em que vocês precisam de sexo de reconciliação. — A atendente tossiu. — E na parte em que ela está sozinha na porta do mercado, aparentemente esperando para falar com você. — Então ela vai esperar, porque agora eu estou ocupado fazendo compras e se ela quer realmente falar comigo, terá de me chamar. Também tinha toda a questão do meu orgulho que não me permitia correr até ela. — Desse jeito fica difícil mesmo.

Nós passamos nossas compras devagar, colocando os produtos sem pressa sobre o caixa, enquanto Becker corria suas mãos por mim sempre que tinha uma oportunidade e eu deixei, mesmo que fosse ridículo, mas eu sabia que minha amiga estava tentando provocar ciúmes em Milena. E foda-se se parecesse imaturo, porque eu queria que parte dela sentisse um pouco do que sentia quando a via com Madison, muito embora eu soubesse que nunca poderia se comparar, porque havia muitas outras questões pessoas envolvidas no meu ciúme. — Vocês, heterossexuais, são mesmo uma piada. — ela deixou escapar uma risada conforme se curvava vulgarmente sobre o carrinho enquanto colocava as compras dentro. Sua saia subiu ligeiramente. Eu desviei o olhar para Milena e seu rosto continuava vermelho conforme ela encarava Becker. — Desse jeito, você vai fazer com que metade dos clientes gozem nas calças antes mesmo de chegarem no banheiro. — Está funcionando pelo menos. Eu segurei o riso. — Aparentemente sim. — Então ela se inclinou mais um pouco. — Então pegue meu celular no meu bolso de trás porque estou com as mãos ocupadas. — Eu o fiz. — Obrigada, querido. — Vai se foder. — respondi, sorrindo. — Acho que acabou o show, é hora de ir falar como sua musa, antes que eu mesma vá, porque ela faz exatamente o meu tipo. — Becker segurou a barra do carrinho de compras e foi em direção a outra saída. Eu caminhei até Milena, minhas botas pesadas fazendo um ruído ao andar sobre o piso. Ela me encarava, nervosa, enquanto mordia o interior de sua bochecha direita. Seus braços estavam cruzados sobre os seios e ela havia mudado o peso de perna umas três vezes nos últimos dez segundos. Quando eu finalmente cheguei, ela abriu a boca, mas seu cérebro não havia formulado nenhuma frase ainda. Então ela a fechou, desviando o olhar para Becker, enquanto atravessava a saída. — Não sabia que esse era o seu tipo de garota.

— Há muitas outras coisas que você não sabe mais sobre mim. — Eu podia jurar que seu queixo estava tremendo. — Eu conheço você. — ela sussurrou. — Não, você conhecia. — Eu olhei para os lados e havia, no mínimo, umas três pessoas nos encarando, que provavelmente conheciam bem os detalhes de nossa história e eu me perguntei quanto tempo levaria para os boatos chegarem nos ouvidos de seus pais. — Certo. — ela suspirou. — O que você quer? — perguntei. — Acho que nós precisamos conversar. Ela desviou o olhar para onde seu marido estava. — No me diga. — eu o encarei. — E o que mudou? Você está de saco cheio de sexo por dinheiro? — eu me inclinei um pouco para frente. — Ele não é tão bom quanto eu? — Não faça eu me arrepend... — Aposto que ele goza nos primeiros três minutos. Seu rosto corou violentamente e eu sorri satisfeito. Ou ele era um idiota por deixá-la falar comigo ou ele era muito confiante de si mesmo para tal. — Seu marido engomadinho não se preocupa em vê-la falando comigo, amor? — Eu forcei a palavra, tentando ser o mais arrogante possível. Eu estava cansado de tentar ser perfeito para uma pessoa tão cheia de defeitos. — Não se refira a ele dessa forma. — Ela descruzou os braços. — Era exatamente assim que você costumava chamá-lo. — Eu a lembrei. — Ele não é exatamente aquela pessoa que conheci quando criança ou adolescente... — Ela o encarou antes de retornar a mim. — Madison é incrível.

Eu deixei escapar uma risada que transbordava ironia. — Você me chamou para jogar na minha cara o quanto seu marido é incrível ou realmente há algo que você queira me falar? — Seus ombros caíram em derrota. — Sexta-feira, no Starbucks, às 19h. — Ela fez uma pausa, desviando o olhar quando seus olhos se encheram de lágrimas. — Há muitas coisas que eu preciso te falar. — eu assenti. Então ela me olhou como se fosse a primeira vez que estivesse realmente me enxergando depois de tantos anos. Eu podia jurar que ela estava implorando por um abraço e meu corpo implorava pelo mesmo. Sentia a necessidade de tê-la nos meus braços, de sentir seu aperto forte sobre minha cintura enquanto eu enfiava minhas mãos por entre seus cabelos e me deleitava de sua presença depois de tanto tempo. Mas, em vez disso, ela simplesmente se virou e saiu. E eu mal podia esperar para sexta-feira.

Capítulo 11 Milena – 26 anos Eu estava sentada no sofá há horas seguidas, passando a pequena história que havia criado, para um livro feito à mão, usando um reglete , mas era difícil para caramba, embora eu adorasse passar o meu tempo montando livros para Juan. Eu amava que ele estivesse aprendendo Braile tão cedo, e principalmente, que estivesse tão disposto e empolgado. Enquanto isso, ele montava um castelo de Lego enquanto um desenho musical rolava na televisão, baixinho. Uma tarde deliciosa de sexta-feira. 24

Mas por que diabos eu parecia estar prestes a enfartar a qualquer momento? Bom, exatamente porque eu teria um encontro com Javier dentro de uma hora e meia. Eu sequer estava preparada. Eu me sentia nervosa e o fato de eu ter passado o dia inteiro montando aquele livro só era mais uma prova de que eu necessitava ocupar minha mente se não quisesse surtar. Eu havia cogitado desmarcar inúmeras vezes, mas não tinha seu número de telefone e sem dúvidas eu não teria coragem de aparecer no estúdio e dizer pessoalmente. Eu sequer fazia ideia do que diria a ele. Talvez se tivesse coragem contaria sobre Juan, muito embora eu acredite que preciso de uma boa conversa antes. Preciso saber como anda sua vida antes de jogar meu filho para dentro dela. Eu contaria a ele, isso era certo... só não tinha certeza se o faria neste dia. De qualquer forma, eu precisava me levantar e entrar no chuveiro, então o fiz. Quando deu seis horas e Madison chegou para olhar Juan. Ele havia insistido demais nos últimos dias para que eu finalmente tivesse a coragem de dizer a Javier que ele tinha um filho comigo. Havia pensando tantas vezes sobre aquilo, sobre contatar seu advogado e lhe dar o recado, mas eu não podia. Não podia simplesmente jogar essa bomba para ele, porque eu sabia que não seria fácil receber essa notícia enquanto se está de mãos atadas. Eu o conhecia melhor que ninguém: ele surtaria comigo por manter esse segredo por seis anos, mas ele teria surtado sozinho lá dentro também, e teria sido

muito feio. — Mamãe já volta. — Eu abracei meu filho, enquanto seus bracinhos corriam sobre mim. — Porque está usando essa roupa bonita. — sorri. — Você só usa esse casaco em círculos especiais. — Circunstâncias. — Eu não pude conter o riso, muito embora eu estivesse quase desmaiando. — Você vai se encontrar com seu melhor amigo Javier que foi preso? Deus. — Como você... — Eu ouvi você falando com o MadMax. — Ele baixou a cabeça. — Estão falando mal de mim? — Madison entrou no meu quarto, sentando na ponta da minha cama. MadMax era a forma como Juan o chamava desde sempre, tudo porque um dia cheguei em casa e Madison estava deitado no tapete da sala, bêbado, enquanto o filme de ficção cientifica passava na televisão, e quando disse para ele que adorava MadMax, Juan escutou o nome e o associou a Madison e depois daquele dia, era somente assim que o chamava. — Não. — Ele desviou o olhar, como se estivesse guardando um segredo. Madison me encarou e inclinou a cabeça levemente, me incentivando. — Sim, eu vou me encontrar com ele. Tem muito tempo desde a última vez em que conversamos e existe um montão de coisas que mamãe precisa saber sobre ele. — Ele é legal? — A mão de Madison encostou a minha. — Sim, ele é. — Eu quero conhecê-lo, então. Eu soltei um suspiro trêmulo, ao mesmo passo em que sentia meu

coração batendo rápido demais. Por muito tempo, pensei que aquilo nunca aconteceria. Que algo pudesse acontecer a Javier dentro da prisão e que talvez ele nunca conhecesse o filho. E qual seria sua reação ao saber de sua deficiência? Eu não fazia ideia. Sabia como as pessoas podiam ser cruéis com o que era “diferente”, mas ao mesmo tempo não conseguia imaginar Javier tendo uma reação negativa a sua condição. — Preciso ir, Juan. Até logo, filho. — Eu beijei sua testa e saí, dando uma pequena olhada para Madison. Ele me seguiu até que estivéssemos longe o bastante dos ouvidos apurados de Juan. — Você vai contar a ele sobre nós? — Madison perguntou. Eu cruzei os braços, pensativa. — Não sei exatamente o que seria capaz de dizer a ele hoje, Mad, eu acho... eu não sei, eu apenas acho que é informação demais de uma só vez. — Talvez devesse então começando sobre a gente. Vai ser mais fácil para digerir a próxima informação. Eu assenti. — Obrigada por ter sido meu melhor amigo durante todos esses anos. Ele assentiu, me abraçando. Seu rosto tocou suavemente minha cabeça. — Eu amo você, Milena. Também agradeço o fato de você ter suportado tudo ao meu lado, mas acho que é hora de nós assumirmos quem realmente somos. — Eu o encarei, surpresa. — Eu provavelmente teria o feito há uns dois anos, quem sabe, já pensei muito sobre o assunto, mas estar com Juan e você me faz realmente bem e eu não os queria deixar, mas... — Ele suspirou, me encarando. — Agora ele está de volta e eu sei que Juan precisa mais do que um MadMax. Ele precisa de um pai. — Lágrimas começaram a escorrer sobre minhas bochechas. Madison estava certo. Juan precisava de seu pai. E nós dois precisávamos viver nossas vidas de verdade.

Ou seja. Sem mentiras.

Eu estava tão nervosa, que mal conseguia pensar direito. Havia ensaiado tantas frases na minha mente, mas tinha a mais absoluta certeza de que nenhuma delas seria dita. Eu já podia me ver pisando duro ao caminhar em direção a porta de saída depois de Javier me falar a primeira merda e ferrar com tudo. Era capaz de visualizar todas as coisas erradas que podiam acontecer naquele encontro — que não era um encontro. Eu entrei na cafeteria, estava exatamente no horário certo pela primeira vez na vida, estaria orgulhosa se aquela não fosse a situação. Meus olhos rolaram por todo o ambiente, mas ele não estava em nenhum lado, então caminhei até uma mesa vazia no canto e me sentei, pedindo um café preto sem açúcar. Minhas mãos tremiam conforme eu brincava com um sachê de maionese, então eu o larguei e as coloquei sobre o colo, tentando me concentrar nas pessoas que passavam do outro lado da rua, mas de repente eu começava a procurar o rosto de Javier em cada uma delas. Quando eu olhei no relógio de pulso, vinte minutos haviam se passado e ele não havia aparecido. Então eu levantei para deixar o local, pegando meu celular para chamar um uber. Maldito medo de dirigir, eu pensei. E maldita hora que resolvi acreditar que podia fazer dar certo. Eu estava errada. Muito errada. Foi exatamente quando desbloqueava a tela, que percebi três mensagens de um número desconhecido, então deslizei meu dedo para abrilas.

Ele: Acho que ficaríamos mais à vontade na minha casa. Você pode vir até aqui? Ele: Você não visualizou minha mensagem. Você está na cafeteria? Ele: Estou tentando ligar para você. Meu coração batia muito rápido conforme eu atravessava a porta do estabelecimento e quando meus pés pisaram do lado de fora, meu rosto foi golpeado pelo vento frio, segundos antes da chuva começar a cair sobre mim, molhando meu casaco conforme eu corria em busca de um taxi, uma vez que não me lembrava do nome da rua em que Javier morava e não podia colocar no aplicativo. Quando sinalizei para um carro, ele parou imediatamente, os pneus cantando com a freada brusca, então abri a porta de trás e entrei. Eu: Estou indo. Sequer precisei chamar por Javier. Assim que o taxi parou na frente de sua casa, ele abriu a porta para eu descer, se curvou sobre o vidro aberto do carona ao lado do motorista e lhe entregou algumas notas. A chuva ainda caía com força quando alcançamos a porta de sua casa e eu retirei meu casaco assim que entrei. Javier o pegou, colocando estendido sobre o encosto de uma cadeira, então ele andou até o banheiro e voltou poucos segundos depois com uma toalha de rosto. — Você está ensopada. — Ele a entregou para que eu pudesse me secar. — Obrigada. — respondi, ainda sem poder encará-lo nos olhos. Eu peguei a toalha de suas mãos, deslizando-a sobre o meu rosto, agradecendo o fato dela ser colorida, senão teria ficado totalmente manchada pela quantidade de base que havia passado na pele. Eu me perguntava como deveria estar aparentando, provavelmente como uma grande bagunça, muito embora não fosse pior do que como eu estava me sentindo naquele momento. Eu finalmente o encarei, seus olhos fixados em mim, a mistura perfeita de cores que eu via todos os dias dentro da minha própria casa quando olhava para o meu filho. Javier mantinha a boca em um aperto e o maxilar cerrado salientava as maçãs no rosto, deixando-o ainda mais viril. As mangas de seu moletom preto, enroladas perto do cotovelo, deixava os braços a amostra, um deles coberto por tatuagens e a outra por cicatrizes de queimadura; e se eu

não soubesse que ali havia o desenho de um lobo em meio à pinheiros, eu jamais poderia imaginar. Próximo a gola, uma caveira cobria um lado de seu pescoço, mas eu não era capaz de explorá-la, uma vez que o capuz grosso cobria parcialmente as laterais do seu rosto. — Sua blusa está encharcada também. — eu assenti. — Vou ficar bem... eu... apenas ficarei por pouco tempo. Ele apontou para o sofá e eu caminhei até ele, sentindo a nostalgia de estar naquela casa depois de tantos anos. Se eu fechasse os olhos, podia enxergar sua mãe deitada sobre ele, a mesa de centro coberta por latas de cerveja, a pia repleta de louça suja e eu me perguntei como estaria seu quarto, se todos aqueles desenhos ainda cobriam sua parede. Provavelmente não, pensei... Javier não era mais um garotinho, ele era um homem agora e Deus havia sido justo, porque era um homem lindo pra cacete. — O que a traz aqui? — ele ficou de pé, as mãos nos bolsos do moletom. — Bom, tecnicamente, você me trouxe aqui. — Bom, tecnicamente o taxi trouxe você aqui. Eu suspirei. Sabia que não chegaríamos a lugar algum se não mudássemos nossa abordagem. Não tínhamos mais 18 anos, nem tempo a perder. — Eu acho que precisamos conversar, você sabe... — Eu deixei um suspiro exagerado sair, enquanto tentava controlar minha respiração. — Sí, por favor. — ele fez um gesto para que eu prosseguisse, mas eu sabia que ele ainda estava na defensiva, e enquanto Javier mantivesse aquela postura, eu nunca seria capaz de começar uma conversa. — Sente, por favor, eu estou ficando nervosa. — O fato de eu admitir o fez baixar a guarda. — Tudo bem. — ele se sentou ao meu lado no sofá, curvando o corpo levemente para frente, os cotovelos apoiados por sobre a coxa. — Como você está? — um sorriso sarcástico deixou seus lábios.

— Não quero falar sobre mim. Como você está? — Bem. — Metade da minha resposta havia sido sincera. — Consigo imaginar como se sente bem. Algumas empresas, um marido perfeito, a casa dos sonhos. — Ele sequer olhou para mim enquanto dizia aquelas palavras. — Você me chamou aqui para jogar tudo isso na minha cara? — perguntei, enfurecida. Meu coração batendo rápido demais, incapaz de manter o controle. — Joder... Não. — Ele passou as mãos no rosto. — O que você teria feito, afinal? — Pra começar eu não teria fodido com o primeiro filho da puta rico que tivesse um pau. — O que acha que eu sou? Você não tem o direito de falar comigo dessa maneira, Javier. — Ah, sim, e você tinha todo o direito de correr para a cama de Madison na primeira oportunidade. Como acha que eu me sinto sabendo que você manteve suas malditas pernas abertas para ele nos últimos seis anos enquanto eu sequer recebia a visita de alguém naquela porra de lugar? — Madison é gay! — respondi, impulsivamente. Teria deixado para depois, talvez; mas algo dentro de mim queria que ele soubesse logo. — De que cojones estas falando? — ele estava me encarando, a boca levemente aberta, enquanto seus olhos rolavam sobre cada canto do meu rosto, buscando, talvez, uma expressão que denunciasse uma mentira. — É uma longa história. — suspirei. — Não é como se eu tivesse alguém esperando por mim. — Havia tanta amargura naquela frase que eu pude sentir meu peito se rasgando. — E aquela garota que estava com você? — Eu me sentia tão ansiosa para saber quem ela era, o que realmente significava para ele. — É Becker... nós trabalhamos juntos.

— Só isso? — Talvez eu estivesse gritado ao perguntar. Alívio? Talvez. — Me conte sobre Madison. — Ele ignorou minha pergunta. — Me conte você sobre aquela noite. — Minha voz saiu estrangulada por causa das emoções. Eu não sabia se era capaz de ouvi-lo falar sobre aquilo. — Eu não quero falar sobre isso agora. — Ele desviou o olhar. — Eu preciso de um tempo sobre esse assunto. Eu... realmente sinto que preciso disso. — Havia algo por trás daquelas palavras, mas eu sabia que ele não queria me contar. — Eu não tive culpa, apenas preciso que você acredite nisso. — Eu já nem sei mais no que acreditar. — Eu sei que você o amava, mas eu também o amava. Gus era mi mejor amigo; então se você não é capaz de acreditar em mim, talvez não seja uma boa ideia se aproximar. — Javier parecia muito seguro de suas palavras. — Eu acredito que você não queria tê-lo matado aquela noite... Mas isso não significa que não tenha provocado aquele incêndio que o levou a morte. — Meus ombros caíram em derrota. — Isso basta, por enquanto. — Ele inclinou suavemente o corpo sobre mim, então mudou completamente o rumo da conversa. — Me conte sobre Madison. Eu deixei escapar um suspiro. — Madison é... bom, ele é a pessoa que me manteve sã. — Eu deixei escapar um riso amargurado. — Quer dizer, ele tem tentado, mas bem... não é totalmente fácil tentar consertar uma vida tão fodida como a minha. Ao dizer aquelas palavras, eu me lembrei da forma como Javier costumava se sentir com relação a sua vida também. Todas as merdas que ele aguentava de seus pais e tudo o que veio a seguir. Até hoje. Eu não conseguia encontrar um vencedor para ganhar o troféu de “melhor merda de vida”.

— Depois daquela noite, com o incêndio e tal, a empresa passou a ser toneladas de cinzas. Nada mais que isso. A polícia, peritos, advogados, visitavam nossa casa todos os dias, até que a perdemos também. Com o dinheiro do seguro trancado durante as investigações, nós não conseguimos nos manter. — Eu omiti a parte em que eu contaria que estava grávida. — Eu estava passando por muitas coisas. — Engoli em seco. — A única solução, era me casar com Madison. Eu queria estar morta quando meu pai me propôs. Javier se mexeu no sofá, um pouco ansioso eu diria, então prossegui. — Eu chorei dias a fio, não conseguia pensar em estar com ele. Mas, nós não tínhamos onde cair mortos. Meu tio havia passado a beber depois do que aconteceu, não dizia coisa com coisa, ele... ele está realmente na pior hoje em dia e minha mãe não o quer mais por perto, aliás... — Eu fiz uma pausa. — Sem casa, sem empresa, funcionários na porta nos cobrando. Muitas pessoas ficaram sem emprego, tendo famílias para sustentarem. Eu não sabia o que fazer. Eles fizeram cartazes, protesto, saímos na televisão. Ninguém respeitou nossa perda. — Uma lagrima escorreu sobre o meu rosto. — Nós estávamos quase falidos, mas tínhamos nome, e era essa fusão que os pais de Madison e meu pai precisavam naquele momento. Várias vidas dependendo que eu dissesse sim. — Então você disse. — assenti. — Foi então que Madison veio me ver. — Eu dei um pequeno sorriso. — Eu teria me poupado de muita raiva por ele se soubesse quem realmente era. Mas tudo era uma encenação para não me fazer apaixonar por ele na adolescência. Ele não queria se casar comigo também, obviamente... mas me fez uma boa proposta. — Vocês casariam, as empresas fundiriam, empregados recontratados, pessoas felizes e você vivendo com ele como amigo. O útil ao agradável. Eu assenti. — Sim e foi a melhor coisa para mim. Ter Madison ao meu lado... ele foi quem eu realmente precisava. Ele não podia se assumir gay, já que sua família é rigorosa e religiosa. Uma merda. Eles o teriam deserdado e ele não queria isso... ele ama sua mãe.

— Por isso ele foi tão tolerante com a minha presença. — Javier afirmou, os olhos corriam sobre os meus lábios, me deixando ansiosa demais. — Você não seria uma ameaça de qualquer forma. É mais fácil que eu me sinta ameaça, porque bem, você pode até fazer o tipo dele. Um pequeno sorriso deixou seus lábios e o som de familiaridade fez meu coração partir. Você faz o tipo de qualquer um, pensei, mas não podia dizer. Meu coração doía por tudo o que havia acontecido conosco, e principalmente, por eu ainda ser capaz de amá-lo tanto como a malditos seus anos. Cada pequeno movimento seu. Eu o amava por inteiro. E me odiava pelo mesmo motivo. Como era capaz de amar a pessoa que havia causado a morte do irmão? O que isso faria de mim? Que tipo de pessoa eu era? Uma pessoa de merda, provavelmente, mas, saber disso sequer fazia com que eu sentisse menos por ele. — Você não está jogando limpo, também. — eu o acusei. — Como assim? — Eu perguntei sobre a garota e você desconversou. Depois perguntei sobre o incêndio e você o fez novamente. — Becker é uma amiga, Milena... nós não estamos fodendo se é isso que você quer saber. Suas palavras me afetaram muito mais do que pensei que poderia, embora eu jamais acreditasse que as ouviria. Foder. Cristo, fazia uns dois anos desde que estive com alguém pela última vez, e havia sido tão ruim e desastroso que apenas me fez sentar no chão do banheiro e chorar por uma hora seguida. Nunca ninguém havia me feito sentir como Javier havia feito. Nunca era bom o suficiente; sempre rápido ou demorado demais e todas as vezes, demasiadamente contrafeito depois de acabado. Carma. Havíamos estados juntos apenas duas vezes. Na primeira, estivemos escondidos no meu quarto, com medo de que alguém pudesse chegar a qualquer momento; e na segunda, precisei ser cuidadosa, porque Javier estava

coberto por queimaduras em processo de cicatrização, mas aquelas duas vezes, haviam sido as melhores da minha vida. Uma puta combinação que só podia ser resumida com um palavrão. Caralho! Nós dois nos resumíamos a química pura de todas as formas e saber disso, enquanto ele pronunciava a palavra fodendo, com aquele sotaque, só me deixava ainda mais certa disso. — Era isso que precisava saber? — Ele parecia tão ofendido que de repente eu me vi tentando elaborar uma desculpa. — Eu não sei exatamente o que preciso saber. — Certamente o que você quer saber não é o mesmo do que precisa saber. Ele estava certo. Eu precisava saber sobre o incêndio e como ele havia passado os últimos anos, seus planos para o futuro, mas me via querendo saber sobre a garota com quem ele andava. — A última garota quem eu fodi foi você. Eu senti meu coração bater tão forte que podia jurar que estava tento um ataque. Havia tantas coisas que me enlouqueciam naquela frase. Uma delas era a forma como ele acentuava aquela palavra, como se soubesse que ela me balançava, e outra, era saber que eu havia sido sua última. No hospital, eu fechei os olhos por um segundo, me lembrando da sensação de tê-lo dentro de mim. Eu ainda podia sentir suas mãos correndo sobre o meu corpo, mesmo que sutilmente, uma vaga lembrança quase apagada, mas forte o suficiente para jamais ser esquecida. — Está surpresa? Não é como se pudesse comer qualquer buceta nos últimos seis anos. — Ele parecia tão diferente. Suas palavras estavam cheias de amargura. Javier era uma pessoa completamente diferente, mas eu não podia julgá-lo por isso, quando eu também havia mudado demais. — Não eu... — Eu o encarei com os lábios entreabertos, ofegante. Eu não sabia o que dizer. — Não sei o que dizer exatamente. — Seu olhar caiu sobre minha boca novamente, e eu me vi tão desconsertada que não sabia sequer como agir em seguida.

— Quer saber? Foda-se. — Ele deslizou sua mão sobre o capuz, empurrando-o para trás. — Eu estou farto de toda essa mierda. Eu engoli em seco, sentindo a sensação de estar sendo empurrada em um penhasco. Suas cicatrizes cobriam grande parte da lateral do seu rosto, deixando sua orelha desfigurada. Eu havia visto um pedaço delas quando o vi da última vez, mas ele havia virado o rosto antes que eu pudesse explorá-las, e agora ele não se escondia atrás de um pedaço de tecido. Deus do céu. Eu toquei seu rosto antes mesmo que pudesse pensar sobre aquela ação. Meus dedos pareciam gelados sobre sua pele quente. Eu deixei um suspiro pesado escapar e ele fechou os olhos. Eu estava chorando? Puta merda, o que estava acontecendo comigo? O que havia acontecido com a gente? Como eu era capaz de amá-lo tanto? As pontas dos meus dedos aqueceram gradativamente, conforme eu as deslizava sobre sua pele e quando percebi, estavam tocando sua nuca, enquanto o polegar acariciava sua orelha. Um gemido curto e rouco deixou seus lábios enquanto eu o tocava, meu corpo inteiro aquecido pela sensação de estar com ele. Cada movimento era incerto, como se uma bomba estivesse prestes a explodir. E foi então que aconteceu, em um movimento tão rápido que não tive reagir, ele segurou minha nuca enquanto segurava minha cintura com a outra, me levando até seu colo. Eu estava montada dele, e sua boca se colou na minha. E nós não nos beijamos de imediato, apenas sentimos o poder de ter nossos corpos colados enquanto roubávamos a respiração um do outro, até que ele abriu a boca e sua língua adentrou a minha. Menta. O mesmo gosto que eu ainda podia me lembrar. Eu me agarrei tão forte ao seu corpo que podia jurar que o estava machucando; mas foda-se, porque nunca parecia ser o suficiente. Eu precisava dele, precisava de cada pedaço do seu corpo ao meu. Javier sugou meus lábios, mordendo-os em seguida e o som que deixou escapar foi tão cru e instável que me fez quebrar. E quando me dei por mim, minhas mãos corriam até a bainha do seu moletom, ao passo que o puxava por cima, observando o tecido correr sobre o seu corpo musculoso e viril. Eu estava tão perdida que podia jurar ter me encontrado pela primeira vez. Como era possível? Eu era capaz de ver sua ereção sob o tecido grosso da calça e a visão de Javier daquela forma me assombraria pelo resto da vida. Sua mão apertou minha cintura, me puxando

para frente e me empurrando para trás, ao passo em que eu rebolava junto. — Joder, eu preciso foder você agora. — Ele puxou minha calcinha úmida, arrancando-a de meu corpo, então a jogou no chão. Não havia nada sutil ou delicado na forma como nos beijámos. Era selvagem, urgente e desesperado, como se tivéssemos prontos para algo que havíamos esperado durante toda a vida. Eu precisava dele. precisava tanto que podia sentir o fio de lágrima correndo sobre o meu rosto. Droga, eu estava chorando, mas eu podia jurar que Javier estava prestes a fazê-lo também. — Rápido, por favor. — eu implorei antes dele se levantar, ainda comigo no colo, como se meus setenta quilos não fizessem nenhuma diferença para ele. — Eu vou gozar nas calças se continuar se esfregando assim. — e novamente eu senti o peso de suas palavras sobre mim. Poucos passos depois, estávamos em seu quarto, sobre uma cama de casal. Eu senti o colchão afundando dos meus lados, conforme ele se apoiava nos joelhos, sua boca colada a minha. Javier se afastou um pouco para que pudesse tirar minha calça, então tirou a sua, juntamente com a boxer, jogando-a ao chão em seguida. Seus olhos se mantiveram colados aos meus, como se fossem capazes de dizer centenas de coisas somente olhando para mim e eu podia ouvir cada palavra não dita. — Joder. — Javier praguejou ao me preencher e eu me senti tão loucamente completa que todos os pelos do meu corpo se ouriçaram. Joder para você também, eu pensei, porque mesmo que o que tínhamos fosse errado, nada era mais certo do que nós dois juntos. Ele começou a se mover, começando lentamente, até que suas estocadas se tornaram fortes e desesperadas; e quanto mais rápido ele ia, mais rápido e forte eu o queria dentro de mim. Podia sentir cada pedaço dele, cada centímetro do seu pau entrando e saindo de mim e poucos segundos foram suficientes para que eu alcançasse o clímax. Ao perceber que eu me desfazia sob seu aperto, ele pressionou os lábios nos meus, esmagando-os conforme afastavam seu quadril do meu. Então ele gozou sobre a pele da barriga, se

masturbando lentamente. Eu podia sentir meu coração acelerado, as bochechas corando e meu pulmão queimar levemente enquanto admirava Javier, os joelhos dobrados, um de cada lado do meu corpo, conforme sua mão deslizava sobre a base até a ponta do seu membro conforme o liquido quente atingia minha pele em chamas e meu corpo sequer havia absorvido totalmente a sensação de alivio pós sexo quando minha mente gritou para mim: Que porra você acabou de fazer?

Capítulo 12 Javier – 26 anos Eu virei para o espaço vazio ao meu lado. O cheiro do seu perfume permanecia espalhado pelo meu corpo, travesseiro, lençol. Milena havia ido assim entrei no banheiro para me limpar. Eu pude ouvir seus passos através da porta, como se ela estivesse buscando cada peça de roupa espalhada pela casa para poder se mandar antes que eu saísse do banheiro. Então eu deixei que o fizesse, lhe poupando de todo o drama pós sexo. Obviamente eu a queria ao meu lado durante a noite, talvez pelo resto de nossas vidas; mas eu não podia forçá-la a estar comigo. Ainda estava surpreso com o fato dela ter acabado na minha cama quando há muito pouco tempo sequer conseguia olhar para mim. Eu estava de bem com isso, muito embora eu sentisse a porra de um vazio quando não estava com ela. Mas o que eu podia fazer, afinal? Precisava seguir minha vida e talvez encontrar o verdadeiro culpado pelo incêndio, se eu tivesse sorte. Eu ri. O cara mais azarado do mundo sendo otimista. Talvez o fato de ter acabado de gozar depois de tanto tempo estivesse me deixando um pouco tolo, rindo de algo totalmente sem graça. Eu ainda estava excitado, podia sentir sua buceta deslizando sobre o meu pau, e pensar na sensação de estar dentro de Milena me fez endurecer novamente. Então eu segurei meu membro e deslizei minha mão, começando devagar, até que estava ofegante, pensando nela... porra, tão gostosa e molhada. Eu precisava dela de novo, precisava estar dentro de Milena apenas mais uma vez, quem sabe duas, e eu imaginei podendo fodê-la todos os dias pelo resto da minha vida e a sensação pulsante se intensificou, até que eu gozei, sentindo o líquido quente sobre a palma da mão, mas eu não estava saciado. Joder. Quantas vezes eu precisava gozar até que pudesse colocar seis anos sem sexo em dia?

— — Você chegou cedo pra caralho. — André abriu o portão pequeno que dava acesso ao seu quintal. — Seu primeiro cliente é daqui duas horas. — Eu o dispensei com um gesto. — Yo sé. Posso limpar as coisas, sei lá, estudar um pouco sobre longevidade antes de começar a tatuar. — Que disposição... — ele me lançou um pequeno sorriso antes de se virar em direção a casa e começar a andar. Então ele freou o passo e me olhou, estagnado. — Porra, você está sem o capuz. — ele encarou meu rosto, os olhos deslizando sobre as cicatrizes. — É eu estou. — ele apoiou uma mão no meu ombro, então deu três tapinhas. — Eu gostaria de ter todas essas cicatrizes quando tinha a sua idade. Provavelmente eu comeria muito mais mulheres se as tivesse. — Então ele deu uma gargalhada. — Você sabe, todo esse lance de virilidade e tal. — Ele apontou para o abdômen trincado. — Não que eu precise, mas né? — eu grunhi. — Você é ridículo. — Ele deu uma gargalhada antes de abrir a porta da casa. O cheiro de café preenchia cada espaço vazio. — E você está de bom humor. Conte! Ou falou com Milena, ou fodeu alguém. As duas coisas, pensei. — Eu não quero falar sobre isso. — respondi, me sentando em uma das banquetas que contornavam a mesa. — Então uma delas é verdade? — perguntou curioso, apoiando os braços sobre a bancada, as tatuagens se destacando em contraste ao mármore branco. — Já estou arrependido por ter chego cedo. — eu enchi minha caneca com café. — Havia me esquecido de como você pode ser chato pela manhã. — ele apontou o controle para o som e em poucos segundos, U2 começou a tocar nos autofalantes embutidos no teto.

— Você sabe que falar comigo ajuda. — Ele me encarou sobre os cílios, erguendo as sobrancelhas, sugestivamente. — Você é a porra de um psicólogo agora? — brinquei. — Não, mas sou a porra de um homem curioso. Sorri. — Milena foi até minha casa ontem. — Eu o observei. Seus olhos se arregalaram, surpresos. — Puta que caralho! E aí? — Seu corpo se inclinou levemente para a frente, ansioso. — Joder, ela disse que precisávamos conversar e eu sugeri que o fizéssemos lá em casa. Mas bom... não sei se foi uma boa ideia. Um sorriso diabólico brincou sem seu rosto. — E eu aposto que que isso tem a ver com o fato de que vocês fizeram tudo menos conversar. — Assenti. — Bom garoto. — Sou um bom garoto por ter fodido com a única oportunidade de consertar as coisas com ela? — perguntei. André sorriu novamente. — Sexo é a única forma de se entender com alguém cem por cento. O som da campainha fez nos dois nos olharmos. André caminhou até a janela, empurrando a cortina levemente para o lado. Então ele foi abrir o portão e segundos depois, Becker entrou na casa, com os saltos batendo no chão. Ela me encarou, surpresa, os olhos correndo sobre o meu rosto, então ela me deu um abraço e um beijo, exatamente do lado onde minhas cicatrizes ficavam. — Eu sabia que você ficaria atraente como o inferno com essas coisas no seu rosto. — André riu baixinho. — Buenos días. — Eu ergui minha xícara no ar. — Bom dia o caralho. Você precisa me dizer o porquê decidiu parar de

se esconder. — Ela se esticou sobre a mesa, alcançando um sanduiche. — Faça o seu próprio, este é meu. — André arrancou das mãos dela. — Eu acabei de fazer xixi e nem lavei minhas mãos. — ela disse, convencida de que ele devolveria o pão. — Já contei a você sobre o meu fetiche? — ele sorriu diabolicamente para ela, que deixou seus ombros caírem em derrota. — Quando mais eu tenho contato com homens, menos eu quero dar para eles. — Becker pegou uma fatia no pacote e passou manteiga sobre ela, então me encarou, ansiosa. — E aí? Você a viu, não foi? Eu encarei André, que permanecia com um sorriso satisfeito no rosto, esperando que eu contasse detalhes. — Porra, vocês são insistentes pra caralho. — Dei um longo gole no meu café, evitando os dois. — Vocês se acertaram? — Não. — respondi ao mesmo tempo em que André disse que sim. — O que foi que eu perdi? — Becker perguntou de boca cheia, então ela arregalou os olhos, surpresa. — Vocês transaram! Oh, meu Deus! — Ela cobriu a boca. — Você fodeu com a única chance que tinha de concertar as coisas. Eu lancei um pequeno sorriso da direção do meu amigo. — Não me diga?

Eram onze da noite quando eu caminhava pelas ruas em direção a minha casa, exausto. Havia trabalhado direto desde as nove da manhã e meu corpo inteiro doía; mesmo assim, recusei a carona que André ofereceu. Precisava tomar um ar puro e de uns minutos de reflexão, sozinho, antes de entrar naquele lugar e encarar os cômodos vazios que aguardavam por mim. As imagens da noite anterior ainda brincavam em minha mente, cada maldito detalhe que antecedia o momento em que a arrastei para o meu quarto, até o som dos seus passos enquanto ela procurava seus pertences para que pudesse ir embora antes que eu saísse do banheiro. Ainda podia sentir o gosto doce dos seus lábios e a sensação de estar dentro dela. Eu dobrei a esquina, saindo da rota da minha casa, para que pudesse ir ao bar que sabia que estaria aberto àquela hora. Tinha de comprar cigarros para a noite caso eu tivesse insônia novamente. Precisava parar de fumar, mas era única coisa que me mantinha são; então talvez eu pudesse adiar por mais um tempo... tinha certeza que meu pulmão aguentaria alguns poucos anos a mais. Assim que deixei o estabelecimento, meus ombros colidiram com algo, um homem, aproximadamente minha altura. Ele se desculpou por impulso e imediatamente eu reconheci sua voz, virando para ele no mesmo segundo. Seu rosto era mais do que familiar, Humberto Rabelo, o tio bonzinho que nunca me enganou. Havia algo doentio em seus olhos, mas somente alguém que havia convido com aquele olhar era capaz de reconhecer. Grande parte do seu rosto agora era coberto por uma espessa camada de barba, a pele estava levemente manchada por uma camada de sujeira

acumulada e podia jurar que fazia algum tempo que ele não tomava banho. Seus olhos... algo havia mudado. Como se sua alma tivesse sido arrancada. Talvez tivesse, eu não tinha como saber. A única coisa que sabia é que Humberto parecia prestes a vomitar nos meus pés. — Javier. — ele sussurrou com a voz enrolada. — Você saiiiu daa prisãum? Havia tantas respostas sarcásticas que eu podia dar a ele, mas senti pena da forma como ele parecia arruinado. De qualquer forma, estava tão bêbado que sequer teria entendido minhas palavras. — Eu cumpri minha pena. — Eu... — ele soluçou. — Eu sinto muiiito. Eu não, meu Deus. — Humberto começou a chorar. Então ele levou a garrafa até a boca, bebendo um longo gole. O cheiro do álcool que estava impregnado em suas roupas embrulhou o meu estômago. — Eu o amava, Gustavo, euuu... — Ele apontou para o próprio peito. — sinto mu-ito porrr tudo. — Pelo que exatamente você sente? — perguntei entre os dentes. Então ele desapareceu na escuridão a minha frente, se enfiando em um beco no qual eu não estava disposto a entrar, pois não podia ser parado pela polícia... não quando havia acabado de sair da cadeia. O que eu diria caso acontecesse? Então eu me virei e segui meu caminho até minha casa, onde eu provavelmente passaria a noite em claro, pensando no que inferno ele queria dizer.

Domingo Eu tinha certeza que ela apareceria, por isso eu me sentei em uma das mesas da padaria ao lado da praça e pedi um café. Eu ficaria ali até que Milena desse as caras, então eu iria até lá falar com ela. Precisámos conversar, de verdade, em um local público, onde havia pequenas chances de acabarmos sem roupas. Não que eu não quisesse, Cristo, eu havia sonhado com ela as últimas duas noites e acordei duro feito uma rocha. Precisávamos conversar sobre o que aconteceu entre nós. Ainda havia um milhão de coisas que eu queria saber, gostaria de perguntar sobre seus pais, sobre Brisa e o filho dela, queria saber se ele era de Gus e se fosse, eu adoraria conhece-lo melhor, queria saber mais sobre o seu tio e a forma como havia falado comigo, como se soubesse de algo. Eu havia omitido sobre a noite do incêndio quando tivemos nossa conversa, mas eu não podia ficar dizendo a ela que não havia começado o fogo naquela noite, porque eu não sabia para quem ela repetiria aquelas palavras. E se Gus não o tivesse começado? Se não tivesse sido ele, então o culpado ainda permanecia entre nós, e eu não podia correr o risco de ser acusado novamente por algo que não fiz apenas para me tirarem no caminho. Duas horas e três cafés depois, eu a vi chegar com o menino. Ela colocou uma sacola pesada sobre um banquinho, antes de levá-lo até o escorregador; então ela o ajudou a subir e segurou sua mão conforme ele escorregava até seus pés encostarem a areia. Meus olhos percorreram o local, procurando por Brisa ou Madison, mas não os encontrei em nenhum lugar, então eu paguei pelo café e corri até o outro lado da rua.

Milena retirava um livro verde da sacola, abrindo em uma determinada página, então ela pegou um tipo de régua azul e colocou sobre o papel, erguendo a cabeça para olhar para o menino que sequer virava a cabeça em sua direção. Minhas botas não faziam nenhum barulho sobre a areia, então ela não me viu chegar. Eu contornei o banco de concreto e me sentei ao seu lado, encarando o escorregador, ao passo que ignorava seu olhar. — Acho que nós ainda precisamos conversar. — sibilei segundos antes de encará-la. — Você está me seguindo? — ela disse entre os dentes. — Talvez. — sussurrei, os meus olhos percorreram por sua face. Ela parecia péssima, não havia um indício de maquiagem em seu rosto, os olhos arroxeados, a boca pálida como toda a pele e eu podia jurar que ela havia chorado minutos antes. Seu queixo tremeu sutilmente, então ela desviou o olhar para o livro em suas mãos. — Você não parece bem. — Estou resfriada. — ela mentiu. — Parece mais do que um simples resfriado. — insisti. — Por favor, você precisa ir. — Milena implorou. — Eu não vejo nenhum problema em estar aqui com você. Ela desviou os olhos por um segundo. — Por favor, não me faça ter que sair. — Como fez na minha casa quando eu estava no banheiro? — Eu a observei cruzar os braços sobre os seios. — Foi melhor assim. — Milena respondeu, mas não parecia certa de sua resposta. — Para quem? Para você? Joder! Já falou para sua mãe que trepou com o cara que tirou a vida de seu filho? Ela me encarou, furiosa.

— Não se refira a eles dessa forma! — ela alterou o tom de voz. — Tenho certeza que se sente arrependida por aquela noite, cariño. O que foi? Não é bom para sua reputação ter dormido com um ex-presidiário? Seu rosto inteiro corou. — Não é isso. — Ela olhou para o menino que estava de costas, sentado sobre a areia, brincando com um carrinho. — Por favor, Javier, você precisa ir... eu prometo que podemos nos encontrar de novo e então eu posso contar tudo o que você precisa saber, mas... essa apenas não é a ocasião certa. — Para quê? Me contar o quê, porra?! — Eu me levantei, furioso. — Sou a porra do seu segredo sujo que você só pode ter quando não está sob o olhar de outras pessoas? — Eu apontei a nossa volta. — Foda-se cada um deles, foda-se que eles conhecem a porra da nossa história e foda-se que você esteve na minha cama, porque isso não significou nada para mim. Seus olhos se arregalaram assim que as últimas palavras deixaram a minha boca e eu quase senti pena dela. Quase, mas eu não podia sentir. Eu compreendia seus motivos, mas estava puto por ela não compreender os meus. — Eu quero conversar com você agora! Que caralho eu preciso saber? — Eu fiz uma pausa, fechando os olhos por um segundo enquanto tentava retomar o ar. — Isso nunca vai dar certo de qualquer forma. — eu admiti entre os dentes. — Isso o quê? — Milena perguntou, furiosa. — Parece que estamos andando em círculos. — Seu corpo inteiro tremia. — Quer saber? Eu acho que não precisamos mais um do outro. — Eu dei de ombros, inclinando levemente meu corpo para que pudesse encará-la de perto. — Siento mucho por Gus, mas foda-se tudo o que veio depois dessa merda! Ela estava chorando. Caralho. Como foi que minha abordagem se transformou em tantas mentiras? É claro que eu precisava dela, eu apenas era orgulhoso demais para admitir isso enquanto ela me pedia para ir embora. E por que ela estava chorando por eu estar gritando com ela se tudo o que Milena havia tentado fazer era me manter longe? Foi então que eu olhei para

o lado e encarei o menino vindo em nossa direção. Ele usava um par de óculos de sol estilosos, seus cabelos estavam bem cortados e ele vestia um conjunto de moletom cinza escuro. O garoto andava de forma diferente, como se estivesse tendo dificuldade de enxergar com aquelas lentes escuras, então ele ergueu a mão, como se tivesse tentando apalpar algo. Pensei que ele pudesse estar fazendo algum tipo de brincadeira com Milena, mas eu não tinha como saber, porque sua expressão era séria. Então ele abriu a boca e disse uma palavra que fez meu coração parar de bater: — Mamãe?

Capítulo 13 Milena – 26 anos — Oi, filho. Aqui a sua frente. — respondi, tentando não olhar para Javier e ignorar seu corpo imóvel ao meu lado. — Filho? — ele disse entre os dentes, enquanto Juan se aproximava de nós. — Eu queria uma pipoca doce. — Ele esticou os braços, até que me encontrou; então apoiou sua cabeça em minha barriga. Eu arrisquei olhar para Javier, seus olhos estavam presos em nós dois, mas seu rosto não apresentava nenhuma reação. — Eu vou pegar. — respondi e as palavras soaram estranguladas. — Sente-se aqui. — Ele assentiu, tateando o banco antes de fazê-lo. Eu praticamente corri até o carrinho de pipocas. Precisava sair de perto de Javier e buscar em minha mente uma forma de fazer aquilo da melhor maneira possível. Mas o que eu diria? “Oi, Javier, esse é o seu filho. Ele tem cinco anos e alguns meses e ele é deficiente visual... por que não comem a pipoca juntos?”. Não existia uma forma de fazê-lo sem que eu parecesse uma vilã. Eu precisava me recompor, parar de chorar, já que provavelmente todos na fila achavam que eu era louca, inclusive eu. Assim que fiz o pedido, eu olhei para Juan sentado no banco, os pés suspensos balançando em sincronia, enquanto Javier permanecia um pouco longe, sentado sobre o meio fio. Juan não havia o ouvido e Javier, acho que não sabia o que fazer, ele parecia perdido. Quando entreguei o saquinho de pipoca para meu filho, ele se levantou imediatamente, caminhando até onde havia deixado seu carrinho, então se sentou com as costas apoiadas na madeira espessa das estruturas do escorregador. Eu arrisquei olhar para Javier, sem dizer nada e seus olhos fixos no filho. Será que ele fazia alguma ideia? Será que havia notado as semelhanças?

— Quantos anos ele tem? Cinco? — eu assenti. — Então assim que casou com Madison e mesmo ele sendo gay, você decidiu aproveitar o clima e foder com ele? — Ele se levantou, limpando a areia grudada na parte de trás da calça. — Quem sabe assim vocês poderiam ter mesmo a família dos sonhos em vez todo esse arranjo ridículo. Eu sequei meu rosto. — Ele não é filho de Madison, Javier. Ele me olhou com repulsa. — Joder! — ele gritou. — Então é muito pior do que pensei. Como você teve coragem de dormir com alguém? Eu estava no caralho de uma prisão! Que porra de pessoa você é? — Eu tentei segurar suas mãos, mas ele as puxou como se eu tivesse algum tipo de doença contagiosa. — Javier, eu... — ele sabia, claro que sabia... ele apenas não conseguia dizer em voz alta. Seus olhos continuavam fixados em Juan, correndo sobre cada detalhe. Os cabelos do mesmo tom do seu, a pele mais morena do que a minha. Eles eram extremamente parecidos! Eu tinha uma foto de Javier quando criança que se não estivesse tão danificada pelo tempo, eu podia dizer as pessoas que era meu filho nela. Javier se aproximou dele com o olhar perdido. Ele estava possesso, não conseguia descrever com exatidão a forma como agia, porque era a primeira vez que o via daquela forma. Na metade do caminho, ele parou tão bruscamente que meu rosto colidiu com suas costas, então eu o contornei, segurando seu antebraço, enquanto o encarava. — Eu não sei o que dizer exatamente. — Minhas palavras saíram cortadas pelos soluços. — Não... — Ele inclinou seu corpo, encarando os meus olhos como se pudesse me matar. Ele estava muito bravo. — Eu... Deus, eu sinto muito, Javier. Eu apenas preciso que entenda os meus motivos. — Nenhum de nós dois ainda havíamos usado a palavra filho. — Eu estava com medo, havia muita coisa envolvida... você precisa me

ouvir. — Estou ouvindo. — respondeu entre os dentes. — Foi... — Eu usei a ponta dos dedos para limpar meu rosto. — na nossa primeira vez. — Não, isso é impossível. — Eu podia jurar que ele estava apenas tentando se convencer de que eu estava errada para que não sofresse com a possibilidade. — Não, não é. Não nos cuidamos na primeira e nem da segunda vez, no hospital. — Tampouco da terceira, pensei. Mas pelo menos agora eu tomava anticoncepcional. — Por favor, não diga que ele é... — Juan é seu filho. — Ele parecia prestes a explodir. — Não, eu não posso ter um filho. — ele sussurrou com os olhos cheios de lágrimas e a fala estrangulada. — Não só pode como tem. — respondi, cautelosa. — Nós precisamos conversar com calma sobre isso. — Calma? — ele me olhou, incrédulo. — Você esperou seis malditos anos para dizer que sou pai e você quer que tenhamos uma conversa calma? Eu vou falar com ele. Eu segurei o seu braço. — Não! — eu o parei. — Ele não sabe sobre você. Um sorriso perturbado se formou em seu rosto. — Não me diga! — Javier puxou seu braço do meu aperto. — O que disse a ele? Que eu estava morto? — Eu sequei meu rosto novamente. — Eu disse que você estava viajando a trabalho. Ele soltou uma risada acida, estava surtando. — Por quantos anos? Quando anos você o faria esperar por mim? Você não faz ideia do que a espera pode fazer com uma pessoa, porra!

— O que inferno queria que eu dissesse a ele? — perguntei, tentando me controlar para que Juan não me ouvisse. — A verdade? Ele deu mais um passado para frente, mas eu o detive. — Que você estava preso porque matou meu irmão? — Minhas palavras o atingiram da pior forma. — Eu não o matei, caralho! — ele gritou, se distanciando de mim. Então ele olhou para o meu filho, nosso filho, e sua expressão suavizou. — Me desculpe. Eu não quis dizer isso, eu não sei como agir... — Pode começar não agindo como uma filha da puta egoísta que já seria um bom começo... — Ele passou uma mão nos cabelos, parecia não saber o que fazer. — Eu tenho um filho. — ele sussurrou, incrédulo. — Un hijo... — E você pode começar parando de falar palavrão na frente do seu filho! Seu filho. — Eu preciso conhecê-lo. — Ele deu outro passo, que eu novamente tentei impedir, mas desta vez não pude detê-lo. Assim que suas botas pesadas tocaram a areia fofa ao lado de Juan, ele se ajoelhou. Seus olhos estavam cheios de lágrimas, observando cada traço familiar, cada detalhe dele. — Mãe? — Juan perguntou. — Aqui ao seu lado. — respondi. — Quem é você? — Juan tocou o joelho de Javier, então começou a tatear seu braço estendido para ele, deslizando a ponta dos dedos. — É Javier, aquele meu amigo... Sua boquinha se abriu, surpreso. — Aquele que saiu da prisão porque fez coisas de adultos? — ele sussurrou, surpreso. — Oi, eu sou Juan. — Ele esticou os dois bracinhos para

cima, as mãos correndo sobre o rosto de Javier, enquanto eu tentava juntar minhas forças para não desmoronar. — O que você disse a ele? — Javier perguntou entre os dentes. Juan sentiu a aflição nas palavras de Javier, então explicou: — Nada. Eu apenas escutei escondido. — Javier, há outra coisa que preciso lhe contar sobre Juan. — alertei, enquanto soluçava. — Você está chorando, mamãe? Por que os dois estão chorando? — Juan correu os dedos sobre a pele de Javier, secando suas lágrimas. Eu cobri a boca, emocionada demais com a cena a minha frente. — O que mais tem a me dizer? — ele perguntou, segurando o antebraço do filho, enquanto ele ainda corria as mãos sobre o seu rosto, sobre suas cicatrizes. — Juan é... ele é deficiente visual. — Eu tranquei a respiração, enquanto as lágrimas rolavam soltas sobre o meu rosto. Javier começou a soluçar e o som do seu choro me fez querer gritar para o mundo. Por que é que tudo havia acontecido daquela forma? Por que estávamos fadados a tristeza, desgraça e derrota antes mesmo que pudéssemos tentar? — Por que vocês estão chorando? O que é isso no seu rosto? — meu filho perguntou, curioso, enquanto eu tentava me recompor. — Não seja grosseiro, Juan. — eu o policiei. — São queimaduras. Suas sobrancelhas se ergueram sobre o óculos. — Oh. Doeu? Javier assentiu. — Sim, mas já não doem mais.

— Você tem mais delas em outros lugares? — Ele é muito curioso. — alertei Javier, mas ele sequer se virou para mim. — Tenho nos braços, na mão, orelha. — Enquanto dizia, Juan deslizava suas pequenas mãozinhas, sentindo cada uma delas. Havia outros lugares que ele não mencionou, como no peito, no abdômen e em uma das coxas. Eu havia visto e sentindo cada uma delas na outra noite. — Eu gosto de sorvete. — Juan se afastou de Javier, sentando a sua frente, com o rosto inclinado, já esperando por uma resposta. — Eu também gosto muito de sorvete. — Ele secou o rosto, esfregando o tecido do moletom sobre a pele. — Tia Brisa e MadMax me levam todo dia para tomar sorvete. — A menção a Madison fez meu coração errar uma batida. — Não seja exagerado, filho. Todo dia é muita coisa. — Seus ombros caíram em derrota. — Quem é MadMax? — Javier perguntou, cauteloso, embora eu pudesse sentir seu nervosismo. — Madison... Eu... — Juntei o carrinho no chão. — Nós precisamos ir, Juan. — Ah, eu queria ficar mais um pouco. — Ele permaneceu sentado, enquanto tentava pensar no que dizer a Javier. Como seria de agora em diante? Eu não conseguia pensar direito. Ele o queria como filho? Claro que queria! Deus, ele era Javier e eu o conhecia como a palma de minha mão e sabia que certamente ele seria para Juan o pai que nunca pode ter. Por outro lado, o medo de que ele pedisse a guarda compartilhada me fez retomar minha postura, tentando ser forte para o que viria a seguir. Eu não estava preparada para ter meu filho apenas pela metade do tempo, assim como ele não estava preparado para a deficiência de Juan. Eu não podia soltá-lo nas

mãos de Javier sem antes conversamos muito sobre isso, sem antes preparar sua casa, se livrar de coisas e fazer modificações para que ele não tivesse nenhum acidente doméstico. Um milhão de possibilidades aleatórias passavam em minha mente. Eu não sabia o que fazer, sequer sabia como puxar assunto com ele naquele momento em que ele encarava seu filho pela primeira vez. Ele deveria estar puto, afinal não havia se preparado para ter um filho e provavelmente estava se remoendo por não amar Juan da forma que deveria. Eu podia imaginar o tamanho da sua dor. Não é como se ele fosse sair de casa naquele dia para descobrir que era pai de um menino de cinco anos. — Só mais cinco minutos? — ele perguntou, choramingado. — Cinco minutos. — respondi, depois olhei para Javier. — Precisamos conversar. — Eu só tenho cinco minutos e gostaria de gastar com ele. — Senti meu coração parar de bater novamente. Não esperava por aquelas palavras. — Tudo bem. — respondi apreensiva. — Estarei no mesmo banco, Juan. — Ele assentiu, ansioso. — Você vai brincar comigo, Javier? — Juan perguntou, aumentando o tom de voz. — Sí, eu vou, cariño.

Capítulo 14 Javier – 26 anos Cinco minutos. Eu tinha cinco minutos com o meu filho. Cristo. Eu provavelmente precisaria de uns cinco dias apenas para absorver a informação de que tinha um filho, mas agora eu só tinha cinco minutos com ele. Juan, até mesmo seu nome era gracioso; e o fato de ser de origem espanhola apenas confirma o fato de que quando fui preso e ela descobriu que estava grávida, mesmo com provas de que eu havia iniciado o incêndio, mesmo assim ela ainda me amava. O nome do seu... nosso filho era a prova disso. Meu corpo inteiro tremia. Sentia medo de contar a ele, dele não gostar de mim. Eu não sabia como lidaria com isso. A raiva percorria cada centímetro do meu corpo; raiva por ter perdido cinco anos da vida dele, raiva por ela ter omitido de mim a verdade, que carregava um filho meu. Parecia mentira que aquilo estivesse acontecendo. Quando Juan tirou os óculos, eu pude ver com exatidão que ele era a minha cara. A cor da pele, o cabelo, as sobrancelhas grossas, o mesmo desenho delas e os olhos. A mesma mistura de cor que Milena sempre disse amar. Era como olhar para uma fotografia antiga minha e o fato dele se parecer tanto comigo fez meu peito se aquecer com um sentimento novo que eu ainda não era capaz de descrever. O que era aquilo que eu estava sentindo? Eu queria protegê-lo... Deus, como era possível que ele pudesse ser completamente cego? O fato dele não conseguir enxergar sequer o brinquedo que tinha em mãos me fazia querer gritar e esmurrar algo. Ele era uma criança, porra! Ele não merecia não poder enxergar as coisas! Era informação demais para eu digerir, por isso eu não conseguia dizer muita coisa a ele, apenas permaneci sentado a sua frente, enquanto o relógio continuava trabalhando. Meus cinco minutos se tornando quatro, três, dois, um e eu não queria deixá-lo ir. — Eu queria tomar um sorvete com você. — ele sussurrou, como se sua mãe pudesse ouvir.

— Nós podemos tomar um qualquer dia desses. Ele sorriu, satisfeito. — Meu dente está mole, olha aqui. — Ele colocou as mãos sujas de areia na boca e isso me fez rir, enquanto o via balançar o dente que estava prestes a cair. Ele era tão aleatório quanto a mãe e isso me fez sentir um pouco de inveja. Eu queria que Juan fosse completamente parecido comido, porque talvez eu sentisse que ele fosse mais meu. — Você pode arrancar para mim? — perguntou com dificuldade, enquanto continuava balançando. — Não sei se sua mãe irá gostar. — o policiei. — Quando ela ver, eu já terei arrancado então ela vai ficar feliz. Aí, a noite ela pode colocar a moeda embaixo do meu travesseiro e dizer que foi a fada do dente. — Eu segurei o riso. — Mas eu sei que fada do dente não existe. Aí está, minha personalidade. Eu certamente havia escondido várias coisas de Milena, coisas que eu já sabia, mas que não contava porque não queria vê-la chateada, então deixava ela acreditando em sua própria versão. — Quem disse que não existe? — perguntei, curioso. — Eu ouvi ela dizendo para o MadMax que faria isso quando meu dente caísse e agora eu quero o dinheiro para comprar um sorvete. Eu deixei escapar uma gargalha e me vi completamente surpreso quando isso aconteceu. Embora eu me sentisse completamente enciumado por saber que Madison tinha com Juan algo que eu nunca poderia ter. Seus primeiros anos. Seus primeiros passos. Sua primeira refeição sólida. Sua primeira risada... — Deixa eu ver como isso está, então. — Limpei a mão na calça, então levei até sua boca. — Está por um fio, certamente nem vai ficar aí até a noite. — E se eu engolir? — Vai sair por um lugar depois. — ele gargalhou e o som da sua risada

se pareceu muito com o som da minha. — Eu preferia que você arrancasse. Nem mamãe nem MadMax tem coragem de fazer. — eu assenti. Então me lembrei que ele não estava me vendo e a sensação de injustiça me dominou novamente. — Você não vai chorar? — perguntei, um pouco nervoso, enquanto ele negava com um gesto. — Tudo bem, então vou contar até três. — Tá. — respondeu, ansioso, abrindo a boca novamente. — Um. Dois. — Eu arranquei antes do tempo. — Por que parou no dois? — Uniu as sobrancelhas, confuso. — Porque eu já arranquei. — Eu peguei sua mão e a abri, virando a palma para cima, então o coloquei sobre ela. — Uau. — Juan colocou a língua no buraco vazio. — Tem gosto de sangue. — É porque está sangrando um pouco. — Eu vou morrer? — ele perguntou, sussurrando. Eu ri e baguncei seus cabelos. — Não seja um bebê chorão. — ele deu outra gargalhada, passando a língua de novo no espaço vazio onde era o dente. — Eu não sou. — Seus cinco minutos acabaram. — Seus ombros caíram em derrota. — Você vai sair para tomar um sorvete comigo qualquer dia? — Juan perguntou, ansioso. — Sim, cariño. — respondi, contendo a vontade de lhe dar um abraço. — O que significa cariño? — ele perguntou e eu sorri, satisfeito. — Significa que você é muito especial para mim. O sorriso que Juan, meu filho, deu para minha resposta, me fez amá-lo de imediato e eu sorri em resposta, engolindo o nó que se formou na minha

garganta. Era impossível não o fazer. Era impossível não se apaixonar por ele instantaneamente. Principalmente por ele carregar os mesmos olhos que meu pai.

— E o que ela está dizendo. — Becker roeu o canto da unha pontiaguda pintada de roxo. — Ela está dizendo que precisava de uns dias para pensar no que dizer a Juan. Becker suspirou dramaticamente. — E uma semana não foi o suficiente? — ela revirou os olhos. — Ela foi a psicóloga hoje. Parece que ela ajudou com alguns pontos. — E então? Quando vai ser? — Você o está deixando ainda mais ansioso. — André a policiou, erguendo o baseado na minha direção. — Não, tô de boa. — recusei, encarando o celular. — Desde quando você recusa? — Becker perguntou, surpresa. Eu dei de ombros. — Desde que ele tem um filho. — André começou. — E ele está mais

do que certo. — Aonde está escrito que um pai não pode fumar maconha? — Ela cruzou as pernas. — Não é essa a questão. Porra, posso saber por que demônios você fala tanto pela manhã? — ele a repreendeu. — Fala pra caralho. — completei, ignorando seus comentários sobre eu fumar ou não. — E então? — Becker insistiu, me olhando enquanto eu encarava o celular, esperando por uma resposta. Depois do expediente da noite passada, ficamos para beber uma cerveja, mas acabamos tão bêbados que sequer podíamos andar até a porta; então acabamos os dois dormindo sobre o sofá e quarto de hospedes. Era a primeira, e provavelmente a última vez que eu bebia depois do incêndio. Não era mais a mesma coisa, eu não queria mais estar bêbado, tampouco a sensação de estar de ressaca. — Você parece enjoado. — André comentou, colocando mais café preto em sua xícara. — Joder. É porque eu estou enjoado. — Ainda é estranho acreditar que você tem um filho. Concordei. — Ela foi sacana, não deveria ter escondido isso. É seu filho, cara, como assim? — Becker ergueu as sobrancelhas e os ombros. — Eu a entendo. Porra, não deve ter sido uma decisão fácil. Se coloca no lugar dela, Becker! — Ela fechou os olhos por um momento. — Dezenove anos, o único irmão morto de uma forma horrível, a empresa em ruínas, sem ter onde morar. — Pensando nesse lado... — Os Rabelos foram notícia na televisão por muito tempo. Os funcionários faziam protestos na frente da casa dela, até que eles tiveram que vendê-la também. Enquanto isso, Milena seguia grávida? Porra! Eu não me

lembro de ter escutado que ela estava grávida na época. — Talvez seus pais tentaram abafar o assunto. — comentei, observando Becker assentir. — Acho que ela achou que saber que tinha um filho te deixaria louco por não poder conhecê-lo e aquele lugar... bom, não é um lugar onde você quer levar seu filho para conhecer o pai. — Eu não deixaria que o fizesse, de qualquer forma. — Joder. Eu havia pensado tanto naquele assunto. — Eu não sei quem está ou não errado, mas nada faz eu me sentir melhor quando penso em tudo isso. — Eu imagino o quanto deve estar sendo fodido para você, mas porra, cara, você tem um filho agora! — eu deixei escapar um pequeno sorriso quando ele disse aquilo. — É eu tenho. — Eu tinha alguém, afinal. Eu não era mais sozinho no mundo. Yo tenía un hijito. — Vou indo nessa. — me levantei, observando Becker fazer o mesmo. — Eu também. Boa sorte, Javi. — ela desejou. André me deu um pequeno sorriso de encorajamento e eu assenti, antes de atravessar a porta e partir. Desde quando eu me abria tanto? Não importava, porque pela primeira vez na vida eu podia imaginar um futuro para mim. Um futuro ao lado do meu filho.

Mais tarde, naquela noite, quando saí para comprar cigarros, eu caminhei pelo bairro, pensativo. Sentindo o cansaço do dia cair sobre mim, conforme eu respirava o ar fresco, sentindo o clima mudar lentamente, logo estaríamos na primavera, a estação do ano preferida de Milena. E pensar nela, me trouxe frustação novamente. Milena estava certa, realmente precisávamos dessa semana para que pudéssemos pensar com clareza. Porém, quando mais os dias passavam, mais eu queria estar perto deles, do meu filho, mais eu queria conhecê-lo. Meu peito ardia com a ansiedade pela reação de Juan. Havia sonhado quase todas as noites com o dia em que contaríamos para ele sobre mim e duas vezes, sua reação havia sido horrível. Ele gritava dizendo que não me queria como seu pai, que preferia que Madison o criasse como seu filho e eu havia acordado chorando, transtornado. Eu achava que já sabia o que era sentir medo até aquele momento chegar. Senti muito medo no meu primeiro dia no presídio, quase morri apavorado quando caminhei algemado até minha cela, onde vários detentos me encaravam. Eu podia sentir o cheiro da morte. O medo de dormir naquela noite foi o maior que senti em toda a minha vida. Eu não sabia de seus passados, apenas sabia que podia ser morto dormindo apenas porque um deles podia estar entediado. Mas quando acordei às três da manhã depois de sonhar com Juan, o que eu senti foi desesperador, porque eu preferia realmente estar morto a ouvir meu filho dizer que não me queria como pai. Esperava, com todas as forças, que Juan me tratasse como havia o feito da última vez. Ele era adorável,

gracioso, espontâneo e engraçado. Juan era um moleque incrível e eu nunca poderia desconfiar de sua deficiência, porque ele agia de forma tão natural, sendo tão ágil com tudo. Durante os dias que se passaram, eu aproveitei para ler mais sobre o assunto. Becker me ajudou com a internet e com as ferramentas de pesquisa, que certamente haviam mudado demais nos últimos seis anos. Eu entrei no bar, comprei meus cigarros e acendi um assim que atravessei a porta de saída. A longa e demorada tragada fez meu peito se acalmar. Eu ergui a cabeça para o céu, soltando a fumaça com força, a observando se dissipar no vento fraco, desejando que meu celular vibrasse no bolso com uma boa notícia, e, pela primeira vez, alguém lá em cima me ouviu. Milena: Amanhã às 14h na sorveteria do bairro. Beijos. Eu: Estarei lá. Besos.

Capítulo 15 Milena – 26 anos Meu coração batia rápido demais, minhas mãos suavam. Ele estava um minuto atrasado e eu já era capaz de sentir meu estômago se contorcendo. Havíamos escolhido a mesma mesa de sempre, ao lado da janela e eu encarava a rua, procurando por ele. Estava ansiosa demais. Não sabia se era porque contaríamos a Juan ou porque eu o veria novamente. Em poucos segundos o teria na minha frente. Por tanto tempo eu fechei os olhos e desejei que estivesse com Javier, que agora, que podia estar, mal sabia como agir. Meu corpo reagia de forma cruel a sua presença, como se eu precisasse estar perto dele, como se quisesse abraçá-lo a todo momento. Como era possível? Nós havíamos acabados na mesma cama há poucos dias, mas eu sentia que precisava de um abraço seu. Um abraço apertado, que eu pudesse sentir toda a saudade dos últimos seis anos se dissipando entre nós. Mas não era possível, porque eu era a pessoa mais orgulhosa do mundo. Brisa vivia repetindo isso quase todos os dias desde o ensino médio. Ela usava uma frase de Voltaire para pegar no meu pé “Os infinitamente pequenos têm um orgulho infinitamente grande”. Voltaire estava certo, e ela também; mas é mais fácil apontar os erros dos outros do que consertar os seus. Ela não sabia sobre meu deslize com Javier, porque ela teria me matado; mas tirando esse pequeno detalhe, Brisa sabia de todo o resto e me encorajou durante a última semana a contar a Juan sobre seu pai. Juan esperava impaciente com os braços cruzados sobre a mesa, com uma carranca incrivelmente familiar no rosto. Ele queria tomar logo o sorvete, mas eu esperava Javier chegar para que o fizéssemos juntos. E o pensamento de estar esperando Javier para um sorvete a três me fez suspirar novamente, enquanto encarava minha imagem na câmera frontal, me certificando se que não havia tinta preta no meu rosto, uma vez que passei a manhã inteira trabalhando no livrinho de Juan. — Você está linda. Os anos haviam deixado sua voz ainda mais grave e o sotaque, embora

não fosse mais tão carregado, ainda estava presente e só Deus sabia o quanto eu o amava. — Ãn... obrigada. — gaguejei, baixando meu celular, colocando-o sobre a mesa. — Javier, oi. Eu já posso tomar meu sorvete? — Juan perguntou, atropelando as palavras. — Claro que sim, cariño. Não precisavam esperar por mim. Javier usava uma blusa de manga comprida, preta, o tecido fino agarrava cada pedaço de músculo, deixando seu peitoral exposto e o tecido levemente folgado sobre o abdômen, a bainha caída escondia o cós da calça jeans preta, rasgada em um joelho. Será que ele fazia ideia do quanto era bonito? Provavelmente sim, claro que sim. — Você também quer, mamãe? — Não, filho. Eu vou pedir um café para mim. — ele sorriu, revelando o espaço banguela na boca. — Conseguiu algum trocado com a fada do dente? — Javier perguntou e Juan assentiu. Um sorriso cumplice surgiu em seus rostos, mas eu não sabia o motivo. — Vou pagar o sorvete de hoje com o dinheiro que a fada deixou. — Juan enfatizou a palavra fada e eu ergui as sobrancelhas, curiosa. — Bom, já que estão tão amigos e cheios de segredos, eu vou pegar o café e vocês escolhem os sabores. — Bien, eu olho ele. — Sua mão estava apoiada sobre o pequeno ombro de Juan e ver os dois juntos fez meus olhos lagrimejarem novamente. — Vocês querem algo para beber? — Água. — os dois responderam juntos e comprimi um sorriso. — Volto logo. Eu pedi meu café preto, duas águas e voltei para mesa, e nenhum dois ainda havia terminado de montar seus sorvetes. Javier abria um freezer,

perguntava para Juan se ele queria, Juan assentia e ele colava, então fechava novamente e abria o do lado, perguntava, Juan concordava e Javier servia. Eu podia enxergar de longe a pirâmide coberta por calda de várias cores, em suas mãos. Juan havia puxado muito Javier nisso também, pois ele comia feito um adulto... um saco sem fundo, como eu costumava chamá-los. Quando finalmente colocaram tudo o que conseguiram no pequeno pote, Javier colocou sobre a balança e eu vi Juan inclinar a cabeça em sua direção e perguntar algo, provavelmente o valor, porque ele sempre o fazia. Em seguida, ele colocou as duas mãozinhas sobre a boca, apavorado. Sem dúvidas era o sorvete mais caro da história da humanidade. — Mãe, deu quarenta pratas! — Juan disse, tateando a cadeira antes de se sentar. Javier esperou que ele estivesse acomodado, então sentou ao seu lado, de frente para mim. — Você provavelmente precisa arrancar mais uns três dentes para conseguir pagar o sorvete de hoje. — brinquei. Juan jogou a cabecinha para trás, caindo na gargalhada. O som de sua risada fez um sorriso gracioso se formar no rosto de Javier. — Posso arrancar, se quiser. — Javier respondeu. — Não tenho mais nenhum dente mole. — ele enfiou uma jujuba em formato de dentadura na boca, tentando coloca-la certinha em frente aos seus dentes. — Você e nojento, pare com isso. — eu grunhi e ele enfiou o doce para dentro da boca. — Quando eu acabar, vou querer mais. — Você nem começou ainda. Deixe de ser esfomeado. — Com esse tanto de calda, aposto que vai estar no banheiro antes mesmo de terminar o sorvete. — Javier disse a Juan, observando-o comer. Ele me encarou. Eu podia identificar desespero em seu olhar, porque era

o mesmo que eu havia visto no espelho antes de sair de casa. Eu soprei o café quente e aproveitei o momento para suspirar, esvaziando meus pulmões de uma única vez. — Nós vamos comer sorvete outra vez, então? — Juan inclinou a cabeça na direção de Javier, que por sua vez me olhou brevemente antes de responder. Então eu lhe dei um pequeno sorriso de encorajamento. — Sim. Nosso encontro havia sido um grande passo a decência e eu temia o momento onde um de nós explodiríamos e começaríamos a nos ofender novamente, porque aparentemente era assim que tudo terminava sempre. — Bom, então vocês são amigos de novo? Você não está mais brava com Javier, mamãe? Eu gelei, ao mesmo tempo que sentia meu peito queimar. Que contradição. — Bom... eu... bem, é que nós... — eu suspirei. — Sim. Um pequeno sorriso surgiu no rosto de Juan. — Nós precisamos te contar algo, Juan. — comecei, limpando as mãos no tecido da minha calça. Javier largou sua colher sobre o pote ainda cheio de sorvete, então o empurrou para longe. Provavelmente estava enjoado o suficiente para não conseguir comê-lo. — Sobre o quê? — ele perguntou, indiferente. — Sobre Javier. — respondi. — Que ele é meu pai? Eu abri a boca, descrente, então a fechei novamente. Em seguida, encarei Javier e sua expressão era séria, tão aturdido quanto eu. — Você disse alguma coi...

— Claro que não. — Javier sequer esperou eu terminar. — Juan, como você sabe? — perguntei nervosa. — Eu ouvi você no telefone com a tia Brisa amanhã. Javier soltou um pequeno risinho. — Ontem. — eu o corrigi e ele assentiu. — Me desculpe, mãe, mas eu apenas... — Ele deu de ombros. — Eu escuto vocês conversando... vocês falam alto. — Eu revirei os olhos. — Tudo bem... eu apenas não deveria falar as coisas tão perto de você, afinal. — Você está bem, Juan? — Javier perguntou baixinho ao seu lado e ele assentiu. — Tem alguma pergunta para mim? — Sim. — Juan sussurrou. — Você pode me perguntar sempre o que quiser. Tudo bem? Juan assentiu novamente. — Por que você me abandonou? Eu senti a força de suas palavras como um soco da boca do estômago. Não era capaz de imaginar como Javier se sentia naquele momento, mas pela expressão de dor que transparecia em seu rosto, não era nada bem. — Eu cometi alguns erros, por isso precisei ficar algum tempo longe e... — Eu não contei a Javier sobre você, Juan... Ele não fazia ideia. — eu o defendi por impulso. — Por que você não contou? — Suas sobrancelhas se uniram em confusão. — Porque a mamãe teve medo. — Minhas palavras saíram como um sussurro. Eu sequei as lágrimas que corriam sobre minha bochecha. — Sua mãe estava certa. Ter me contado teria me feito surtar, porque eu não tinha como chegar até você, cariño.

Desde quanto nós dois nos defendíamos ou concordávamos com algo? Javier me encarou, mantendo seus olhos fixos nos meus, sua expressão mudando lentamente. — Eu estava de luto, brava e fui egoísta com você. Deixei que o medo e as pessoas fizessem minha cabeça e eu sinto muito por isso. Sinto muito mesmo. — Deixei escapar um soluço pesado. — Eu não... — Javier começou, mas não completou a frase. — Não é o momento para falar sobre aquilo. — eu assenti. — Mas, eu entendo você, entendo seus motivos. — Seus olhos desviaram para minha boca. Depois ele encarou a mesa, pensativo. — Você vai em bora de novo? — Juan perguntou e Javier negou com a cabeça. Então ele se lembrou de que Juan não podia vê-lo. — A partir de agora, eu vou apenas para onde você for. Um sorriso de satisfação surgiu no rosto do nosso filho. — Você é meu pai de verdade então? — É, eu sou. — Javier respondeu, quase cantarolando. Eu funguei. — Eu... — Juan começou, envergonhado, as bochechas corando levemente. — posso chamar você de pai? Javier piscou demoradamente. Eu podia jurar que ele estava agradecendo a alguém lá em cima. Seus olhos estavam vermelhos. — Eu ficaria muy feliz se você me chamasse de papá. De repente eu me vi ansiosa com a possibilidade de ter Juan falando algumas palavrinhas em espanhol. Um pequeno mini Javier meu. — Tudo bem, papá. — Juan riu, contente. — Gracias, hijo. — Javier respondeu. — Podemos ir um pouco na pracinha? Por favor, por favor, por favor! — Eu não sei, querido. Javie... seu pai pode ter algum compromisso. —

Deus, como era estranho dizer aquelas palavras para o meu filho. — Nada é mais importante. — ele respondeu e meu peito se aqueceu em resposta.

Capítulo 16 Javier – 26 anos Eu estava menos ansioso agora que Juan sabia sobre mim, e melhor, ele gostava de mim. O pequeno sorriso que nunca deixava seu rosto era a maior prova da sua aprovação. Apesar de todas as merdas que resumiam a minha vida, eu me sentia um cara de muita sorte. Eu tinha um filho de cinco anos e ele era incrível, e a cada novo segundo ao seu lado, só me fazia querer nunca mais me afastar dele. Eu queria fazer planos a longo prazo com ele, queria levá-lo a lugares, ensiná-lo a andar de bicicleta e a pescar. Queria que Juan aprendesse tudo o que qualquer outro garoto podia aprender. Queria ajudá-lo a pular o muro que o limitava a ter uma vida normal. Milena disse a Juan que estávamos no mesmo banco de sempre, e sozinho, ele caminhou até o brinquedo, sabendo exatamente quantos passos tinha que dar até chegar lá. Ele se sentou no balanço, depois de passar suas mãos sobre ele e constar que estava limpo e firme e em seguida, balançou seus pés para frente e para trás, pegando impulso. Eu o admirei em silêncio, observando cada pequeno gesto, tentando absorver tudo o que ele fazia, cada passo seu, buscando conhecê-lo o mais rápido possível. — Eu sei o quanto está sendo difícil para você. — Milena disse ao meu lado. — Mas ele te ama, Javier... mesmo sem tê-lo conhecido. Eu uni as sobrancelhas, confuso. — Acho que ele precisa mais do que um dia para me amar, Milena. Eu perdi toda a sua vida. Eu não estive lá em nenhum momento para ele. Ele tem Madison como pai. — Dizer aquelas palavras fez meu estômago se contorcer. — Não é bem assim, na verdade. — Eu a encarei. — Ele tem MadMax como um tio. Nunca foi diferente. Sempre falei a ele sobre você. — Como assim? — perguntei confuso. — Bom eu... — ela suspirou. — Comprei presentes e deixei na porta da nossa casa todos os anos. Cartões em seus aniversários. Eu... contava histórias sobre nós, nossa infância. Você, de certa forma, sempre esteve

presente em sua vida. Eu engoli o nó que se formava na minha garganta. — Tudo isso enquanto me odiava? Enquanto desejava que eu estivesse morto. — As palavras deixaram minha boca antes que eu pudesse pensar sobre elas. — Eu... — Ela se virou para mim, encarando seus pés. Seus cabelos estavam um pouco mais compridos do que na primeira vez que a vi saindo da padaria em direção a pracinha, ela parecia mais radiante também; seu olhar era mais vivo e suas bochechas levemente mais coradas. Linda, como ela sempre havia sido, e gostosa pra caralho. E eu me vi pensando em como ela havia ficado quando estava grávida. Provavelmente o excesso de curvas me faria gozar apenas de olhar para ela. Mas me obriguei a me concentrar no estrago que sua falta de confiança havia feito em mim. — Não. Parte minha odiava você, mas a outra... — Eu a entendia completamente, porque vivi os últimos anos com aquele conflito infernal. Odiá-la e amá-la com a mesma intensidade era algo normal para mim. — A outra parte sempre te amou. — Ela completou a frase e eu senti que estava prestes a desmaiar. E eu queria perguntar a ela quando ela havia parado de fazê-lo, mas não tinha coragem o suficiente. Não estava preparado para a sua resposta, quando na verdade, meu coração ainda batia inteiramente por ela. — Obrigado por ter feito isso. Por ter lhe dado essas lembranças, porque mesmo que não sejam reais, ainda são melhores do que visitar seu pai em um presídio. Ela assentiu. — Eu encontrei seu tio vagando pelas ruas. — Eu decidi abrir o jogo. — Nós precisamos conversar sobre algumas coisas agora que... bom, agora que temos Juan. Não quero segredos entre nós. Seus olhos se arregalaram para o novo rumo da conversa. — Tudo bem. — respondeu, olhando Juan por um segundo antes de retornar para mim.

— Ele está... joder, ele é um viciado agora. — Eu a observei assentir. — Em drogas. Milena arregalou os olhos. — Pesei que estivesse apenas bebendo. — confessou. — Acredite, eu conheço um viciado. — Pensar em minha mãe sempre me traz um desconforto enorme. Um sentimento de impotência, saudade e ódio. — Eu sinto tanta pena dele. Não consigo imaginar o que o fez sofrer tanto. Meus pais não tiveram metade de sua reação e eu... — Seus olhos se encheram de lágrimas. — Gus merecia muito mais pesar do que uma porra de um velório chique. — Lo siento, cariño. — Eu estiquei o braço por impulso, secando uma lágrima solitária que correu sobre suas bochechas e a sensação de familiaridade me fez querer beijá-la. Milena fechou os olhos por um segundo, com uma expressão de dor, enquanto seu corpo se mantinha rígido, como se estivesse tentando se controlar. — Sobre isso... bom, eu acho que ele sabe de algo. — Como assim? — ela perguntou agitada. — Eu preciso que você não comente com ninguém sobre isso. — Ela assentiu. — Eu não comprei aquela gasolina, não iniciei o incêndio... acredito que Gus também não. Aquelas provas foram forjadas. Ela deu um passo para trás, descrente. — Não brinque com isso, Javier. Eu... — Ela passou as mãos pelos cabelos, nervosa. — Eu acredito que você não teve a intenção de matá-lo quando começou aquele incêndio para atingir meus pais. — Porra, Milena! Você acha que eu teria provocado aquela merda? Um incêndio arruinaria sua vida também, caralho! Vocês teriam terminado de falir e eu nunca quis ver você na pior. Eu nunca teria prejudicado você e Gus. Eu amava vocês dois.

Ela apoiou o braço no encosto do banco ao seu lado, os olhos fixados no chão, se concentrando em suas memórias, enquanto absorvia minhas palavras. — Não faz sentido, Javier. — Escute aqui. — Eu segurei os dois lados do seu rosto, com força, fazendo-a olhar para mim. — Te juro, amor. Por mim, por nós, por Juan, por tudo o que me resta. — Suas lágrimas tocaram a pele da minha mão. — Não jure em falso por nosso filho. — ela sussurrou, seu queixo tremia levemente. — Eu nunca o faria se não tivesse certo. Alguém armou para mim, mas eu preciso que você jure que não contará a ninguém, nem Madison, nem Brisa. Eu não posso correr o risco de voltar para aquele lugar... não agora que tenho Juan. — Eu juro. — ela sussurrou e eu encostei minha testa a dela, sentindo o sopro quente de sua respiração sobre o meu rosto. — Seu tio sabe de algo, mas eu não sei se vale a pena arriscar minha liberdade. — eu senti suas mãos deslizarem até minha cintura e ela deu um passo à frente. — Mas nós precisamos da verdade. — Milena sussurrou. — Não mais do que eu preciso estar com meu filho. — Eu o encarei, me certificando de que estava bem, então voltei a ela. — Posso abraçar você. — ela sussurrou. Puta merda. — Não acho que preciso de outra coisa agora, senão abraçar você. Suas mãos escorregaram para as minhas costas, enquanto eu deslizava meus braços para trás, prendendo-a ao redor do pescoço. Eu podia senti-la por inteiro, as laterais dos seus sapatos encostando nas laterais do meu coturno gasto, as laterais dos seus joelhos encostada aos meus, uma coxa sua presa entre as minhas duas, sua barriga quase inteira encostada a minha, a lateral do seu rosto apoiada em meu peito, seus cabelos roçando em meu

queixo. Eu desejei por tantos anos que aquele ato se repetisse ao menos uma única vez antes que de eu morrer. Rezava para que pudesse sentir Milena pelo menos mais uma vez. Um abraço reconfortante, um olá depois de tanto tempo. Uma saudade deixando de existir. Nós estávamos juntos de novo, mesmo que de uma forma diferente. Naquele dia pude sentir um pingo de esperança com relação a nós dois, porque de certa forma, Juan nos unia para sempre e eu a teria próxima, mesmo que não fosse como eu realmente queria. Não podia suportar a imagem dela com outro cara ou saber que ela estava seguindo em frente, namorando, casando de verdade, amando outra pessoa; mas podia me contentar, por ora, com o pouco que tinha dela, porque era muito mais do que imaginei que teria e muito mais do que tive nos anos que se passaram. Eu não fazia ideia do que podíamos ser em um futuro próximo, mas eu realmente esperava que pudesse ser mais do que o pai do nosso filho. Eu queria ser o pai dos seus filhos. — Eu ainda amo você. — ela sussurrou entre soluços. — Para o caso de estar se perguntando.

A minha conversa com Milena ainda estava viva em minha memória, A sua reação de surpresa por saber que seu tio usava drogas, quando na verdade ela pensava que se tratava apenas de álcool. Por que ele sofria tanto? Gus era seu sobrinho preferido, todo mundo sabia... mas por que acabar daquela forma? Um homem que tinha uma empresa grande e embora estivesse financeiramente abalada na época, todos sabiam que era capaz de se reerguer. Ele era bem-sucedido, um homem de negócios, sério, coerente, inteligente...

não fazia sentido. Eu entrei no bar, comprei meus cigarros e acendi um assim que atravessei a porta de saída, então a imagem do nosso último encontro invadiu minha mente novamente. Eu não conseguia parar de pensar nele, na forma como havia me abordado aquela noite, como se soubesse de algo. Eu havia voltado duas vezes naquele lugar mas não havia o encontrado por lá e nem em nenhuma rua por perto. E enquanto caminhava de volta para casa, pensei que talvez eu tivesse sorte dessa vez, então eu dobrei a esquina e voltei lá. Meu sangue corria depressa dentro das veias, a sensação de adrenalina me deixava com frio, conforme eu caminhava pelo beco escuro e lamacento. Muros altos dos dois lados me faziam sentir preso; e se alguém me cercasse, eu não teria muitas opções. Ainda assim, preferia qualquer coisa à polícia. Não podia ser pego andando num lugar como aquele, porque sabia como eles lidavam com ex-presidiários. Com alguém como eu. Joder! Maldito lugar que fui me enfiar! Eu dei mais alguns passos, avistando uma grande lixeira verde mais a frete, a pouca iluminação dificultava minha visão. Mas aparentemente, parecia ter alguém ao lado dela, no chão e eu torci para que fosse Humberto. Conforme me aproximava, me sentia ainda mais ansioso. Uma perguntava solitária vagando na minha mente vazia. Apenas uma. Eu precisava falar com ele, precisava saber da verdade. Quem inferno havia colocado fogo naquele lugar? Certamente não havia sido eu; e para ter sido incriminado, também não poderia ter sido Gus. Claro que não. Eu havia pensando tanto naquilo nos últimos dias que minha mente estava prestes a parar de funcionar. Então sua voz me atingiu como um soco no estômago. — O que caralhos você está fazendo aqui? — Ele levou a garrafa até a boca. — Eu vim a trás da verdade. — Ele virou o corpo, tentando fugir, mas eu segurei seu braço. — Você sabe a verdade. — Nós dois sabemos que eu nunca estive naquele posto de combustível comprando a gasolina que incendiou aquele lugar. Ele desviou o olhar.

— Pare de fuçar demais, garoto, ou você vai... — Acabar como ele? Foi você? — Eu segurei a gola de sua camisa suja, pressionando-o na parede mais próxima e um som estrangulado deixou sua garganta. — Fala, porra! — Eu o prensei ainda mais forte. — Você não vai ter o que quer, eu não posso deixar que isso aconteça. Você... — Humberto tossiu quando eu o pressionei ainda mais sua garganta. — Você já pagou por isso. — Não fui eu, caralho! — Eu dei um soco em seu rosto e o sangue do seu nariz respingou no meu. — Eu não vou contar, esse segredo vai morrer comigo! — ele gracejou. — Então esse segredo vai morrer agora mesmo. — eu o ameacei, antes de atingir mais um soco em seu rosto. — Pode me matar! Acabe logo com meu sofrimento! Eu perdi a única pessoa que tinha, afinal. — Ele deu de ombros, um sorriso asqueroso surgiu em seu rosto, completamente diferente da noite em que o encontrei vagando. Dessa vez, ele estava menos bêbado, e estar quase sóbrio lhe trazia a sensatez de não falar o que não deveria. — Você ainda tem Milena. Por que está fazendo isso com ela, porra? Ele parou de rir quando eu afrouxei o aperto. — Ela não é minha. — Seu comentário me fez recuar, enquanto suas palavras giravam em minha mente, juntamente com a frase que Gus havia dito para mim quando me ligou naquela noite. — Porra, venha até a fábrica! Eu preciso falar com você... Caralho, Javier, eu descobri uma merda grande! Venha logo! Eu dei um passo para trás, as peças começando a se encaixar. Gus havia me chamado para conversar sobre um assunto, mas não o fez quando tivemos a chance, porque ele estava bêbado o suficiente para que pudesse dizer algo coerente. Ele estava estranho, como se tivesse descoberto algo, mas que não quisesse considerar momentaneamente a ideia. — Ele era seu filho. — sussurrei mais para mim mesmo do que para ele.

Humberto arregalou os olhos, então sorriu antes de gritar, enlouquecido. — Bingo!

Capítulo 17 Milena – 26 anos Assim que cheguei em casa, depois do nosso encontro com Javier, eu me sentei no sofá, pensativa, com um sorriso tolo no rosto. Eu era uma idiota por agir como uma adolescente, mas estava feliz demais para disfarçar. Não era capaz de deixar de agir naquela forma, porque havia me surpreendido demais com o homem que ele havia se tornado e com o fato de eu saber que ele seria um ótimo pai para o nosso filho. Eu havia dito a Javier que ainda o amava e sequer conseguia imaginar de onde havia tirado coragem para dizer a ele. Parte minha queria dizer isso a ele desde o momento em que o vi depois de tantos anos, mas a outra parte, me reprimia por não ter esperado mais, por não ter tido uma resposta. Ele ainda me amava? Eu não tinha como saber, apenas podia torcer para que sim. Não sabia o que seríamos dali em diante, mas agradecia aos céus por ele ter recebido a notícia tão bem, apesar de tudo. Minha psicóloga estava certa. Quando eu liguei para ela depois de contar para Javier pela primeira vez, ela disse que uma semana era essencial para que ele pudesse absorver a informação. Recomendou não fazer as coisas de cabeça quente, mas também não esperar demais. Tinha que ser balanceado, um meio termo, então, estipulamos uma semana. E havia dado certo. — Fico triste por saber que nunca consegui fazer você sorrir dessa forma. — Mad entrou na sala e se sentou ao meu lado no sofá, puxando meus pés sobre suas coxas. — Você não conta, você é gay. — Eu me afundei em meio as almofadas. — É sério, eu estou muito feliz por você. — Ele me encarou, sério. — Você acredita em sua inocência? — eu assenti, omitindo a conversa que havia tido com Javier sobre terem forjado as provas.

— Eu confio no seu julgamento. Se confia Juan a Javier, então acho que vai ficar tudo bem. Assenti, concordando com ele. — Obrigada por tudo. — Eu puxei sua mão, apoiando-a sobre o meu colo. — Nós fomos felizes no nosso matrimonio. — ele gargalhou. — Sem o lance do sexo e tal. — E sem as obrigações de um casal real. — eu sorri. — Talvez por esse motivo tenha dado tão certo. — Ele jogou a cabeça para trás, encostando no encosto do sofá. — Sem dúvidas. — respondi. — E o Heitor, como vão as coisas? — perguntei sobre seu caso. Madison parecia estar apaixonado pela primeira vez. — Eu vou contar aos meus pais sobre nós primeiro e depois foda-se se eles descobrirem o resto... eu não me importo mais. — Ele deu um sorriso enorme. — Você não precisa fazer isso, você sabe. Podemos continuar como estamos. — Não. — Ele dispensou meu comentário com um gesto. — Você tem um futuro pela frente, com Javier ou quem quer que seja e eu também mereço ter alguém quando chegar em casa. — Oh, obrigada. — Fingi estar ofendida. — Você tem eu, seu idiota. — Sim, mas eu quero ter alguém com quem posso dividir o chuveiro depois de um sexo quente. — Sua sorte é que Juan está na casa da Brisa, porque com aquele ouvidinho, tenho certeza que amanhã todo o bairro saberia dos seus fetiches. Ele deu uma gargalhada alta. — Você quer beber algo? — ele perguntou, ansioso.

— Não, obrigada. Eu ainda pretendo visitar minha mãe hoje. Madison deu um grunhido dramático. — Eu preferia estar morto a visitar sua mãe em um domingo. — Pois é. Vou aproveitar que Juan não está comigo para contar a ela sobre nós. Vou omitir a parte em que eu digo que você gosta de rola, porque tenho muitos outros assuntos para tratar com ela e gostaria que não enfartasse até o fim da conversa. A risada que Mad deixou escapar ecoou através do cômodo e quando percebemos, estávamos gargalhando juntos, com lágrimas escorrendo sobre o meu rosto. — Certo. — Ele começou, secando a lágrima dos olhos. — Por favor, peça para ela ficar de boca fechada até que meus pais também saibam. — eu assenti. — E ela vai achar que nossa separação tem a ver com Javier. — Eu não me importo mais. — Dei de ombros. — Eu já fiz minha parte, casei com quem eles queriam para que pudesse reerguer a empresa. Hoje eles têm tudo nas mãos graças a nós dois, então o resto que se foda. Eu mantive esse casamento porque amo você e poderia continuar minha vida inteira nesse nosso lance, mas nós precisamos viver nossas vidas com quem quisermos. — Eu vou enlouquecer sem Juan. — confessou. — Você pode registrar Juan e depois exigir a guarda compartilhada. Confesso que seria bom tirar quinze dias de folga por mês. E eu quero uma pensão, uma vez que não trabalho. — Nós só conhecemos a pessoa com quem casamos quando estamos separando. O que mais você quer? Meu Camaro também? — Cala a boca, você nem tem um. — Eu o chutei de leve. — Mas não é por falta de querer. — Muito menos por falta de dinheiro. — Eu sorri. — Você é a porra do cara mais inteligente que eu conheço. — confessei. — Um elogio seu sempre vem acompanhado a “mas”. Mas, o quê? Sou gay?

— Não. Não existe “mas”. Eu realmente amo você. — Eu dei uma piscadela para ele. — Você teria casado comigo mesmo se eu fosse um bandido ou qualquer coisa do tipo, Mi; e não é porque você é interesseira ou como eles, e sim porque tem um coração do tamanho do mundo. Você nunca teria deixado aquelas pessoas desempregadas. Meus olhos se encheram de lágrimas. — Obrigada por isso. — agradeci, apertando levemente sua mão. — Não tem de que. Podemos morar perto um do outro para que eu possa acompanhar o crescimento do Juan; e eu estarei sempre aqui para o caso de querer se casar comigo de novo. Eu seguei as lagrimas que escorriam sobre o meu rosto, então eu respondi: — A casa do vizinho está à venda, aliás.

É impossível não perceber o momento em que antecede uma tempestade. A direção do vento é diferente, o ar cheira de outra forma, o céu age de maneira distinta e até mesmo o silêncio monótono que está prestes a ser quebrado por um ecoo no céu logo após um trovão. Você não é capaz de contemplar a calmaria, porque sabe que ela está prestes a acabar. Era como eu me sentia enquanto atravessava o gramado da casa dos meus pais. Tudo era ostensivo e exagerado. Luzes demais, plantas demais, verde demais, silencioso demais. A sensação era de estar em uma casa mal-

assombrada, só que bem cuidada. Eu nunca me senti realmente em casa naquele lugar. Não foi aonde fui criada, era a casa nova que compraram depois do meu acordo com Madison e eu podia contar nos dedos a quantidade de vezes em que coloquei meus pés lá. Eu entrei pelo Hall de entrada, observando o novo aparador com um vaso de flores quase do meu tamanho. Tudo era sempre diferente toda as vezes em que eu voltava e eu me perguntava qual era o problema de passar alguns anos com os mesmos moveis, afinal de contas? A baixa iluminação e a falta de recepção de algum empregado me fizeram estranhar logo na entrada. Conforme adentrava os cômodos do andar de baixo e não encontrava ninguém, me sentia ainda mais estranha, com a sensação de que algo estava acontecendo, mas somente quando ouvi alguns ruídos vindo do segundo andar é que subi as escadas em direção. Eu dei passos silenciosos, querendo prestar atenção no que pareciam sussurros. Precisa ter uma conversa particular sobre minha separação e sobre meu tio. Precisava perguntar a ela se sabia de algo. Foi então que meu coração gelou. Eu conhecia aquela voz, era a mesma que costumava ser muito reconfortante nos almoços de família ou quando ele me dava uma carona para a escola. Amava o meu tio e não era capaz de acreditar que ele estivesse aqui quando minha mãe havia passado os últimos anos o afastando de todos. Eu havia procurado por ele algumas vezes, queria tê-lo ajudado, mas ele não quis minha ajuda. Ele havia recusado todas as vezes que tentei me aproximar, até que perdi completamente o contato com ele. — Só Deus sabe o quanto eu queria que aquela praga tivesse morrido naquela noite. — Eu pude ouvir o suspiro pesado da minha mãe. — Mas ele não morreu. — meu tio respondeu, ríspido. — O que inferno você está fazendo aqui, afinal? Todo mundo sabe que Javier está solto, isso não é mais novidade para ninguém. — Você quer uma novidade? — Ele alterou significantemente o tom da voz. — Diga logo antes que Edgar pegue você aqui.

— Edgar, Edgar. — Ele imitou seu tom de voz. — Sempre foi e sempre será Edgar. — Achei que já tivesse superado. — ela respondeu com um tom de sarcasmo na voz. — Acredite, querida. — Fala logo o que quer. — Ela atropelou as palavras, impaciente e eu tranquei o ar, tentando me concentrar o máximo possível na conversa. — Minha parte de volta. — ele respondeu e a risada vazia que deu em resposta ecoou através das escadas. — Você abriu mão da sua parte. — ela gritou. — Não seja ridículo. — Você me obrigou a fazer isso. Você jogou sujo comigo, porra! — Sujo? Eu preciso dizer o que você fez? — Você sabia que eu o faria, caralho! Você não fez nada para impedir! Enquanto eu estava com o pau enfiado em você e seus bolsos estavam cheios, tudo estava bem, mas na primeira oportunidade que teve para foder com a minha vida... Mas o quê?? — Foder com a sua vida? Você é capaz de se ouvir, Humberto? Você arruinou com a minha vida! Você me destruiu! Você levou um dos meus bens mais preciosos! Minha mãe eu meu tio...? Do que estavam falando? — Você nunca os mereceu! — ele gritou de volta, a voz ficou mais próxima, então eu recuei um degrau. — Ele era meu filho! Eu perdi o ar dos meus pulmões. — Seu filho? — Eu podia sentir a amargura em sua voz e podia jurar que ele estava chorando. — Só seu? — ele repetiu.

Eu senti uma forte tontura e ao me segurar e imediatamente procurei pelo corrimão, mas era uma escada moderna apenas com degraus flutuantes então eu caí, batendo o quadril em um degrau, enquanto me agarrava em outro. Quando olhei para cima, os dois estavam me encarando, os olhos da minha mãe quase saltavam do rosto. — O que você está fazendo aqui? — ela perguntou ofegante, as lágrimas correndo sobre sua pele impecável. — Do que estavam falando? — Levantei, subindo os degraus com dificuldade por causa da dor no meu quadril. — Ele já estava de saída. — minha mãe encarou meu tio. — Ele não parecia estar de saída. — E eu não estava. — ele respondeu. — Mas agora estou. — Não apareça nunca mais aqui! — minha mãe disse entre os dentes. — Isso eu não posso prometer, querida... nós ainda temos assuntos pendentes. — Que assuntos pendentes? — eu gritei. — Do que estavam falando? Por que você obrigou ele a abrir mão da parte na empresa? Desde quando vocês têm um caso e qual é o bem mais precioso ele levou? — Estou indo. — Humberto tentou passar por mim, mas eu segurei seu braço. — Vá para casa Milena. — ela cruzou os braços sobre o peito. A única coisa que tínhamos em comum era a forma como fazíamos aquilo quando estávamos nervosas e eu agradecia aos céus por não ter nada mais naquela mulher. — Ir para casa? Você está se ouvindo? Eu quero respostas! — Respostas? Eu não devo nenhuma satisfação para você, garota! — Para mim não, talvez, mas para o meu pai. — Peguei o celular do bolso de trás. — Vamos lá, vamos ver quais serão suas respostas para ele e vamos ver também o que ele acha de sua esposa ser amante do seu irmão por

anos. — Eu adoraria ver a cara dele. — Humberto se encostou na parede. — Coloque no viva-voz... posso me contentar com isso. — Vá para o inferno! — eu gritei para ele. — Não faça isso, Milena! — Ela deu um passo para frente. — Por favor, não faça isso. — Eu estou pouco me fodendo se você aquece a cama dele ao mesmo tempo que a do meu pai. Vocês sempre foram pessoas de merda, mesmo, não é nenhuma surpresa para mim. Eu apenas quero saber o que foi que vocês fizeram! — Eu soltei o ar que estava preso em meus pulmões, enquanto encarava minha mãe, encurralada. — O que Gus tem a ver com isso? — Tem a ver que ele era meu filho! — meu tio gritou de volta para mim, batendo no peito para dizer aquelas palavras. — Meu filho! Não... — Não pode ser. — Eu cobri a boca, enquanto as lágrimas corriam livres sobre o meu rosto. Como era possível que um dia tão bom e importante como aquele pudesse ter se transformando em um pandemônio? — Meu pai sabe? — perguntei. — Não. — os dois responderam em uníssono. Eu não conseguia raciocinar direito, sequer conseguia me lembrar da conversa que estavam tento e as acusações que haviam feito. Tudo era confuso demais para que eu pudesse absorver cada frase dita, e naquele momento, a única coisa que eu era capaz de pensar, é que Gus era meu meioirmão. Ele não merecia estar morto, mas certamente estava mais feliz onde quer que estivesse do que estaria tendo uma família de merda como a nossa. Eu me afastei, transtornada, descendo as escadas apressada, tentando pensar em tudo o que haviam dito, mas não conseguia me lembrar. Não tinha mais nenhuma pergunta, poia a única que fiz havia me destruído com a resposta. — Depois disso você nunca vai ter sua parte. — Eu a ouvi dizer a ele

conforme eu me afastava. Como ela era capaz de estar preocupada com dinheiro enquanto me via desmoronar? Da mesma forma que ela quis que eu casasse por interesse enquanto eu estava de luto, grávida do homem que havia sido condenado pela morte do meu irmão. — Não vou? — ele respondeu amargamente. — Eu não posso mais viver assim! Eu estou morando na rua, sua vagabunda! — Humberto gritou muito mais alto. — Fale direito comigo ou eu vou até a delegacia fazer um boletim de ocorrência contra você! — ela o ameaçou da ponta da escada onde estava, enquanto ele descia atrás de mim. — Vá. — ele riu, sarcasticamente. — Vá até a polícia, querida. Talvez você precise mesmo estar lá para perceber como é o lugar que você vai parar caso eu... Eu já não podia ouvir, havia atravessado a porta e estava do lado de fora, também não me importava se ela fosse parar atrás das grades por qualquer ilegalidade que tenha cometido. O que havia feito com meu pai, tendo um caso com seu irmão, e a Gus, por ter escondido sua paternidade, era a prova de que ela não merecia menos do que ter uma vida de merda. Meu tio e ela poderiam se matar naquele momento que eu não me importava mais. Eu ouvi o estouro da porta batendo atrás de mim, então os dois ficaram sozinhos na casa. Foi então que as peças do quebra cabeça começaram a montar. Como se pequenas memórias tivessem sido reorganizadas em uma sequência onde tudo fazia sentido para mim. Pequenos detalhes. Pequenas memórias. Pequenos acontecimentos. Algo grande. E eu perdi o fôlego, lágrimas corriam sobre o rosto, meus joelhos fracos e a sensação de que eu estava prestes a desmaiar, mas eu não podia, precisava ser forte por todos nós, por Juan, Javier, Brisa, por mim. Foi então que eu tive a brilhante ideia de me esconder e fingir que havia ido, porque eu tinha a certeza que eu tinha muito mais a ouvir.

Capítulo 18 Javier – 26 anos Eu não podia acreditar que Humberto era pai de Gus... não era possível. Hijo de puta! Que porra de família era aquela? Eu fechei os olhos conforme caminhava sem rumo. Não havia sido capaz de arrancar mais nada dele e estava começando a achar que na realidade aquela era a única verdade. Talvez Gus tivesse descoberto sobre seu pai biológico e surtado, então me chamado para conversar, mas mudado de ideia depois de usar drogas demais e quando acordou no meio daquela noite, ele havia começado o incêndio para se vingar da família. Fazia sentido, afinal de contas. Eu peguei meu celular para ligar para Milena. Fazia quase uma hora que eu estava andando pelo bairro, sem rumo. A chamada caiu da caixa postal e eu repeti a ação por mais três vezes, até que minha bateria acabou. Eu segui em direção a pracinha e sentei no mesmo banco onde estive mais cedo, me perguntando como aquele dia podia ter mudado bruscamente o rumo, se transformando em uma bomba prestes a explodir. Milena surtaria quando soubesse e eu gostaria de contar a ela a notícia, pois eu sabia como deveria fazer. Eu a conhecia como a palma da minha mão e tinha certeza que ela não fazia ideia daquela informação. Eu fechei os olhos, levando o cigarro até minha boca, me policiando pela primeira vez na vida por estar fumando. Sabia que precisava parar e criar bons hábitos. Eu tinha um filho agora e precisava dar exemplo para ele, além de estar saudável. Então eu saboreei o cigarro lentamente, sabendo que seria um dos últimos, talvez se aquela carteira acabasse, eu não compraria outra. Eu apoiei a cabeça no encosto do banco, dando as últimas tragadas, até que o gosto passou a ficar forte demais e eu joguei na areia, pisando em cima e pegando-o de volta para descartar em um lixo quando me levantasse para ir em bora. O som de um carro parando ao meu lado chamou minha atenção, então virei o rosto para encarar e precisei apenas de uns dois segundos para reconhecer a imagem atrás do volante. Eu havia odiado tanto aquele cara para perceber que era uma boa pessoa no fim das contas. Ele era melhor do que toda a família Muniz e Rabelo juntas. Madison.

Ele abriu a porta do carro e desceu, sorrindo conforme caminhava em minha direção. Eu podia enxergar o brilho do seu sapato perfeitamente polido até mesmo no escuro. Ele se sentou ao meu lado, os olhos passando sobre a carteira de cigarro entre nós, procurando por algo mais, talvez um baseado, eu não sei; mas me vi querendo dizer a ele que eu havia parado, por Juan, mas não o fiz. — Não se preocupe, eu não vou molestar você. — Seu comentário me fez rir apesar da merda que havia acabado de descobrir. — Não estou preocupado. Na verdade nunca fiquei tão feliz em descobrir que alguém é gay. — confessei. — Bom, eu suspeito que suas intenções com Milena são boas então. — Não que eu deva a você alguma explicação. — respondi. — Claro que não, mas sendo a pessoa com quem ela dividiu o teto por seis anos, talvez você pudesse abrir uma exceção. — Por que tenha a sensação de que você falou isso como algo no passado? — Porque eu vou me mudar muito em breve. Meus olhos encararam os seus, imediatamente. — E como Juan está lidando com isso? — minha pergunta surpreendeu até mesmo a mim. Ele sorriu, aparentemente também muito surpreso. — Ele me tem como um tio e eu trabalho o dia inteiro. Quando chego ele já está dormindo, quando saio, ele ainda não acordou, então eu não acho que vá fazer muita falta além dos finais de semana... mas eu posso pegá-lo para ficar comigo. Eu senti um frio na barriga ao ouvi-lo fazer planos futuros com meu filho nos finais de semana, quando na verdade, eu planejava fazer o mesmo. — Não se preocupe, eu não estou aqui para ser uma pedra no seu sapato. — Ele sorriu e eu relaxei.

— Tudo bem. — respondi. — Você falou com ela hoje? — ele assentiu em resposta. — Sim. Você lhe causou uma ótima primeira impressão para o caso de estar curioso. — Eu não fui capaz de esconder o sorriso. — Ele é incrível. — E tem muito mais de você. — Madison respondeu. — Você sequer me conhece. — Conheço Milena e Juan o suficiente para saber que metade das atitudes dele não condizem com a personalidade dela; o que significa que elas devem ter vindo de outro lugar. — Espero que ele tenha ficado com as partes boas, afinal. — Conheço sua história e as partes ruins não vem de você. — Seu comentário me fez encará-lo novamente. — Obrigado por isso, de verdade... — eu fiz uma pausa, buscando as palavras certas. — Estou realmente tentando me tornar uma pessoa melhor. — Eu ergui o maço de cigarros. — Mas, faz apenas uma semana que estou absorvendo essa informação. — Vocês vão ficar bem. Tudo o que precisam é serem honestos um com o outro. — Pode apostar que sim. — garanti. Eu observei Madison se levantar. — Vou indo nessa, preciso pegar Juan na casa da Brisa. — Onde está Milena? Estou tentando falar com ela há mais de uma hora, mas fiquei sem bateria. — Ela foi na casa da mãe. — O fato dele saber onde ela e de ter a responsabilidade de pegar o meu filho da casa de alguém me deixava muito puto. — Se você ver ela ainda hoje. — Eu fiz uma pausa, me lembrando de

que obviamente ele a veria, uma vez que dividiam o mesmo teto. — Diga que preciso falar algo muito importante. — O olhar que dei em sua direção fez ele entender o recado. — Tudo bem. — Madison colocou as mãos nos bolsos da calça. — Até mais, Javi. — Ele brincou com meu apelido, então eu sorri antes de dizer: — Hasta luego, MadMax.

Capítulo 19 Milena – 26 anos Eu me escondi atrás de uma coluna, tirando meu celular do bolso da minha calça jeans, então deslizei a tela, observando algumas chamadas perdidas de Javier. Eu havia passado a tarde inteira com ele e não havia um motivo para ele estar me ligando, portanto eu sabia que algo estava errado e era muita coincidência falar sobre isso enquanto eu me escondo tentando escutar a conversa de minha mãe com meu tio, que por sinal, é pai do meu irmão. Eu contornei a casa quando percebi que não podia escutar com clareza através da grossa porta de entrada, então rezei para que a porta dos fundos estivesse aberta e agradeci a Deus quando constatei que estava. Sem fazer barulho, eu entrei pela lavanderia, tirando meus sapatos, a meia tocando lentamente o chão limpo e frio. A cada passo meu coração batia mais depressa e o meu nervosismo parecia abafar as vozes diante de mim. Quando eu atravessei a cozinha e me escondi atrás do sofá da sala de estar, eu estava realmente perto o suficiente para que pudesse ouvir até mesmo suas respirações. Meu tio Humberto estava extremamente alterado, enquanto minha mãe tentava acalmá-lo; o que de fato comprovava que eles estavam escondendo algo realmente grande e o que quer que fosse, eu temia que fosse descoberta antes que pudesse ouvir. — Por que você tinha que abrir sua maldita boca para eles? — ela sussurrou. — Ele passou os últimos anos da cadeira, Sandra, e ele carregava o olhar de quem nunca sairia de lá sem alguma informação. — Então você abriu a boca e contou que Gus era seu filho. — E o que você queria que eu dissesse? Gus ser meu filho era o que menos causaria alarme. Você sabe que eu estou certo então pare de agir como uma filha da puta porque você está comigo nessa. — Escute aqui, seu viciado de merda... — Ela começou com tom

ameaçador, mas foi interrompida por Humberto. — Viciado? Bom, então seu filho era o quê? — Lave sua boca para falar dele, seu imundo! Ele era meu filho e eu o amava. — Que tipo de amor é esse? Você fechou os olhos para o que ele estava metido, deixou que se afundasse cada vez mais nas drogas! Sua preocupação era que Milena se casasse com alguém que beneficiasse vocês. Por sua causa ele está morto! Meu coração batia tão rápido que eu sequer conseguia enxergar com clareza e eu podia jurar que estava prestes a vomitar. — Minha causa? Não fui eu quem incendiou aquele maldito lugar! — ela gritou, a voz ecoou através da sala. — Não, não foi. — ele respondeu. Quando eu abri os olhos, a imagem de Rosie, nossa antiga governanta e que nunca havia abandonado minha mãe, surgiu na minha frente. Ela me encarou, meu rosto estava coberto por lágrimas, então eu levei o indicador até a boca, implorando que ela não contasse. — Quem está aí? — minha mãe perguntou, nervosa. — Me desculpe, senhora, eu... — ela me encarou por um segundo, abriu a boca, depois fechou novamente. — Vi o portão batendo e pensei que Humberto havia ido. Desculpe. — Tudo bem, Rosie, pode ir. Eu ainda estava em choque quando ela se virou e partiu. Rosie conheceu Gus e eu quando ainda éramos crianças e ela foi mais mãe para nós dois do que nossa própria mãe. Sua mentira sobre o portão havia me dado a chance de descobrir a verdade, uma verdade que talvez ela também pudesse saber ou desconfiar e quando a porta dos fundos bateu, minha mãe continuou. — Você está chamando muita atenção, Humberto. Vá em bora. — Para onde? Para rua? Eu não tenho para onde ir, graças a você!

— Eu não tenho nada a ver com... — Ligue para o seu advogado agora e refaça o contrato. Eu quero minha parte de volta. — E o que devo dizer a Edgar? Com Milena e Javier sabendo sobre Gus, você deve agradecer por ele ainda não estar sabendo. — Tenho algumas sugestões do que dizer a ele. — Mesmo que eu não pudesse vê-lo, eu sabia que estava rindo. — Conte, vamos lá, você não é homem para tal. Eu peguei meu celular no bolso da calça e as minhas mãos estavam suadas. Tentando não fazer barulho, deslizei a tela, procurando pelo gravador. Estava me sentia ridícula, como num maldito livro ou filme, mas era real, eles estavam envolvidos em algo grande e minha única ideia era gravar a conversa. A bateria piscou, dez por cento e eu sabia que tinha pouco tempo para fazê-lo porque o celular podia desligar a qualquer momento. — Adulteração de provas... O que acha que Milena vai pensar de você quando souber que você sempre soube que Javier era inocente? Eu levei a mão na boca, tentando abafar meu gemido involuntário, mesmo sabendo que não havia mais tempo, rezando para que não tivessem ouvido. Meu coração batia rápido demais, minhas lágrimas corriam sobre meu rosto, minhas mãos tremiam e minha bateria havia mudado para sete por cento rápido demais, então salvei o primeiro áudio, antes que ele desligasse. — Como acha que ela vai reagir quando souber que estava grávida de um garoto que estava sendo preso por um crime que não cometeu? Não fazia sentido. Nada fazia. Não era possível? Javier estava certo sobre as provas e eu me odiei imediatamente por condená-lo. — Ela vai superar. Como acha, Humberto... — Ela sussurrava e eu precisei me levantar e chegar mais perto. — ... fogo. Eu não havia escutado a frase inteira, não sabia se havia acontecido pelo meu nervosismo, se por estar me movimentando pela sala de estar ou porque ela havia dito baixo demais, então serpenteei até a porta, me encolhendo ao lado de uma planta.

— Claro, vamos lá, eu estou de saída agora, Sandra. — ele fez uma pausa. — Eu não estou sozinho nessa, você sempre soube de tudo. A ideia do incêndio, o culpado perfeito. Sinto muito que Gus estivesse lá naquela noite. Só Deus sabe o quanto eu também o amava, mas aconteceu, infelizmente... não havia nada que pudesse ser feito para voltar atrás, então alguém precisou pagar. Não, não, não... Por favor, não... — Como pôde exigir que sua filha grávida se casasse com alguém que ela não amava? Como pôde conviver com fato de que sabia que ele era inocente? — Da mesma forma como você conseguiu. A ideia foi sua, Humberto. — Ela fez uma pausa, enquanto eu tentava abafar meus soluços. — O dinheiro do seguro demorou demais por causa das investigações, os funcionários estavam enlouquecendo e nós precisávamos logo do dinheiro. — Sua voz estava trêmula e eu podia jurar que estava chorando. — Eu amava o meu filho e nós prometemos nunca tocar nesse assunto. A bateria apitou novamente. De repente eu não sabia mais como salvar a gravação. Tudo era um borrão, distorcido e doloroso. O celular desligou quando cliquei em salvar. Mas eu não tinha certeza se o havia feito. As lágrimas escorriam sem que eu pudesse perceber. Eu só precisava fazer uma coisa antes de ir a delegacia. Precisava ver Javier.

Capítulo 20 Javier – 26 anos Era, definitivamente, o dia mais logo da minha vida. Felicidade, ansiedade, saudade, cansaço, estresse e agora medo. Milena não me atendia, havia ligado para ela até que minha bateria morreu, e depois, quando estava em casa e pude carregar o celular, o dela estava desligado. Desligado. O que ela havia ido fazer na casa da sua mãe que não podia esperar? Eu tinha certeza que ela iria confrontá-la e tinha medo do que pudesse descobrir com tudo isso. Eu havia acabado de tomar banho quando ouvi um barulho vindo da cozinha, então abri a porta do banheiro, a fumaça se espalhando pelo pequeno corredor que conduzia aos dois únicos quartos, conforme eu deixava o cômodo, segurando o nó da toalha mal amarrada na minha cintura. Eu me curvei, cautelosamente tentando enxergar através do pequeno espaço entre a sala e a cozinha, mas não havia ninguém ali, então dei alguns passos até que pudesse ter a visão completa e quando meus olhos encontraram Milena, eu quase caí duro. — Qué cojones le ha pasado? — perguntei, apavorado, caminhando até ela. Seu rosto estava coberto por lágrimas que haviam se misturado a tinta preta da sua maquiagem, a ponta do nariz estava levemente avermelhada, igualmente aos seus lábios e seus cabelos presos em um coque improvisado. Milena correu até mim, suas mãos me envolvendo com tanta força que pensei que pudesse cair e o soluços que ela deixava escapar eram tão fortes e pesados que eu podia sentir uma pontada de dor no peito. Ela abriu a boca, me encarando, então me largou, ficando de joelhos na minha frente, um ato desesperado que eu não fazia ideia do motivo. — Deus... — ela sussurrou entre soluços. — Me per...doa. — Ela cobriu o rosto com as palmas das mãos, os ombros mexendo conforme seu choro se intensificava. Eu não sabia o que fazer. — O que você está fazendo? — Eu deslizei minha mão até seu pescoço,

correndo os dedos sobre sua pele até que tivessem na ponta do seu queixo, então o ergui para mim. — Me perdoe por não ter acreditado em você. — Milena me encarou sobre os cílios grossos, os olhos manchados. Eu nunca havia visto ela daquela forma antes. Desesperada, como se estivesse prestes a explodir ou desmaiar. Meu impulso foi puxá-la para cima, mas ela se desvencilhou do meu toque, permanecendo de joelhos e eu novamente insisti. Eu lhe lancei um pequeno sorriso. — Eu... — não sabia o que exatamente dizer a ela. — Eu nunca quis que você tivesse morrido naquela noite... eu nunca quis você morto, Javier! Eu sempre te amei, eu não suportaria viver em um mundo no qual você não existisse. — ela confessou, enquanto eu trancava o ar nos pulmões até que eles começaram a queimar. — Me perdoe... Milena foi a única criança que me acolheu no ensino fundamental. Ela me deu comida quando eu estive com fome. Me trouxe algumas roupas quentes de seu irmão quando eu estive com frio. Ela riu das minhas piadas quando ninguém mais o fez. Se sentou ao meu lado durante anos a fio, porque ela era a única garota do colégio que me enxergou de verdade. Ela amou meus defeitos e minhas qualidades. Puxou minha orelha quando fui para o caminho errado e me trouxe de volta logo em seguida. Ela me amou. Ela me ensinou a amar. Foi minha âncora quando eu estava prestes a me perder no meu mar. Ela confiou em mim para ser seu primeiro. Ela me deum filho. Ela ainda me amava. Como eu poderia não a perdoar por cometer um único erro quando ela havia sido uma sequência de acertos na minha vida? Ela havia me transformado em quem eu me tornei, havia trilhado ao meu lado nos meus piores momentos, lutado contra os meus próprios demônios. Ela merecia o meu perdão, afinal havia sido tão enganada quanto eu, e eu podia entender tudo o que ela fez em seguida; assim como podia entender o que ela estava querendo me dizer naquele momento. Ela havia descoberto tudo. — Eu já perdoei você. — Eu a puxei para cima, sentindo suas mãos

tocarem as laterais do meu rosto. — Como pode fazê-lo? — ela soluçou. — Como pode me perdoar? — Sua cabeça encaixou perfeitamente na curvatura do meu pescoço, conforme eu sentia seu corpo sacodir contra o meu. Eu suspirei, correndo as mãos em suas costas, então dei de ombros. — Eu não sei... — Eu beijei sua testa, tentando acalmá-la. — Talvez porque eu tenha ficado longe por tempo o suficiente para saber que não existe Milena sem Javier e não existe Javier sem Milena. Eu ouvi seu riso manso, uma lufada de ar tocando minha pele nua. Ela suspirou, correndo a mão sobre o rosto, limpando a sujeira que havia se transformado sobre sua pele. Milena baixou a cabeça, tentando se esconder; mas eu a ergui, encarando seus olhos, ignorando todo o borrão preto sobre sua pele leitosa. — Eu realmente sinto muito. — Seus olhos ainda estavam molhados. — Eu sei. — eu fechei meus olhos, encostando minha boca na dela, conforme respirámos juntos, roubando o ar um do outro. Eu senti uma lágrima alcançar minha boca. — Foram eles. — ela sussurrou ao se afastar um pouco. — Eu sempre soube, afinal. — Coloquei uma mecha para trás de sua orelha e ela permitiu. — Eu nunca iniciei aquele incêndio, nunca comprei aquele combustível. Seus lábios tremeram quando ela os abriu e o que disse em seguida fez com que eu desmoronasse de dentro para fora: — Não estou falando apenas das provas... eu estou falando do incêndio. — Como assim? — perguntei confuso. — O incêndio, foram eles... — Ela tapou a boca, tentando abafar outro soluço. — Humberto e minha mãe, para conseguirem o dinheiro do seguro. Eu abri a boca, mas não consegui dizer nada. A ganância deles havia ido muito mais longe do que pensei. Achava que as provas tivessem acontecido para me incriminar e consequentemente, deixar o caminho livre para que

Milena pudesse se casar com Madison, mas nunca, nem em mil anos, eu imaginei que havia o dedo deles no incêndio. Nunca. Não era capaz de imaginar a dor que Milena sentia naquele momento. Ter perdido seu irmão por causa da ganância da sua família. — Você sabe de Gus? — ela assentiu antes que eu perguntasse o quê. — Sim, meu tio falou para mim sobre isso, e eu ouvi quando ele disse que havia te contado. — Eu sinto muito por isso. Sinto muito por tudo, cariño. — Eu a abracei forte, minha boca colada no topo da sua cabeça, enquanto eu tentava lhe dar um pouco de conforto. — Deixa essa merda pra lá. Não tem por que nós levarmos isso a diante, afinal de contas, nós temos um filho, Mi... vamos focar na nossa família e dar a Juan tudo o que não tivemos na nossa. — Sim, nós vamos. Mas antes, eu tenho algo para você. — Ela estendeu seu celular na minha direção. — O que é isso? — perguntei confuso. — Isso é a sua verdade. — Não estou entendo... — Eu os gravei, tenho suas confissões. — ela se afastou um pouco mais. Eu passei as mãos no rosto, pensando em tudo o que mudaria caso ela fosse até a polícia. — Ela é sua mãe... — Eu estava pouco me fodendo com isso, mas não queria que Milena sofresse com o remorso de ver sua mãe atrás das grades graças a ela. — Sim, e ela era mãe de Gus também. Mesmo assim, deixou com o grande culpado da sua morte saísse ileso. Também me deixou grávida para casar com alguém que eu não amava, enquanto você... — ela apontou com o indicador no meu peito. — pagava por um crime que ela sabia que não havia cometido. — Você não precisa fazer isso por mim, Mi. — Eu segurei seu rosto

com as duas mãos e seus olhos encontraram os meus. — Eu estou fazendo isso por nós. — ela sussurrou. — Você vem ou não? — perguntou confiante e meu peito se apertou, ansioso, enquanto eu assentia, confirmando. — Mais uma coisa. — sussurrei, encarando Milena entre minhas mãos. — Te quiero. — confessei, a boca colada na dela. — Para o caso de você estar se perguntando também.

Epílogo Javier - 31 anos Havia dezenas de livros espalhados sobre a mesa de madeira de demolição que preenchia grande parte da nossa varanda dos fundos. Milena movia seus dedos ágeis — só eu podia dizer como eram realmente ágeis — enquanto folheava as páginas escritas em Braile. Então ela fechou o livro que estava em mãos e o posicionou no canto esquerdo da mesa, onde estavam os livros prontos. Eu a encarei da porta, meu peito se encheu com a sensação de gratidão e plenitude que nunca havia sentido na vida, até que um dia eu me virei de costas para ela e mostrei minha nova tatuagem que dizia “Quer se casar comigo?”. Graças a Deus ela disse sim, caso contrário, aquela tatto teria se tornado minha marca da vergonha. Ela era perfeita, atenciosa, uma mãe e uma esposa maravilhosa. Quando ela finalmente se levantou, alongando os braços, eu pude ver a saliência em sua barriga. Quando me perguntei como seria Milena Rabelo grávida, eu nunca poderia imaginar que seria tão gostosa. Todo o excesso de curvas serviu apenas para me manter duro por nove meses e eu sentia que meu pau estava prestes a quebrar em duas partes porque ela nunca, nunca cansava e eu fiz um lembrete mental de mantê-la grávida pelo resto de sua vida. Seu olhar estava cansado, mas eu sabia o quanto ela era feliz, porque ela repetia aquilo todos os dias para mim. Mesmo que ela tivesse perdido o contato com sua mãe quando ela simplesmente sumiu logo após ter saído o mandato de prisão e mesmo que seu tio estivesse preso pelo assassinato do seu irmão, ainda assim ela havia lidado muito, muito bem com a situação, visitando seu pai semanalmente, criando com ele um laço que nunca teve. E eu estava feliz por ela. Não precisámos demais ninguém quando tínhamos um ao outro e nossa pequena família. Eu caminhei até ela, ignorando o desconforto de ter a casa sem Juan, ou seja, silenciosa. Eu não gostava do silêncio porque ele me fazia sentir solitário e eu não era mais um cara sozinho... eu tinha uma família agora e ela estava prestes a aumentar em um par de dias. Milena sorriu ao me ver entrar. Estava cansado, minhas costas doíam por ter passado todo o dia sentado

tatuando, mas eu estava feliz, tinha muitos clientes e chegavam mais a cada dia no estúdio que abri depois que André decidiu vender tudo e ir em bora, viver na Tailândia. — Oi, amor. — Milena serpentou para mim, enroscando suas mãos na bainha da minha camiseta. — Senti sua falta. — sussurrou. — Essa casa fica muito vazia sem os dois amores da minha vida. — Ela me beijou com dificuldade por causa da barriga. — Peça a Madison para trazer Juan de uma vez. Diga para ele fazer seu próprio garoto. Ela sorriu por meu comentário. — Você não tem que ter ciúmes dele. — ela garantiu, suas mãos subindo até meu pescoço. — Além do mais, ele é nosso vizinho... não é como se Juan estivesse em outra cidade. — Tudo bem, já superei isso, afinal. — Eu a observei gargalhar. — Como foi o seu dia? — perguntei, olhando sobre a mesa. — Produtivo. — ela apontou para os livros em Braile que produzia. A história que havia inventado recentemente era de um anjo chamado Gus, que ele fazia travessuras no céu, entre as nuvens mais altas, e eu não era capaz de ler sem que me emocionasse. Era uma puta homenagem ao seu irmão com uma mensagem linda para suas crianças. Depois que saí da prisão, havia encontrado Milena um par de vezes trabalhando em algo que eu nunca soube o que era, até que um dia ela me contou que escrevia os próprios livros de Juan, usando um reglete para escrever a história. Foi quando tivemos a ideia de criar um site na internet onde ela pudesse receber encomendar e não foi surpresa para mim quando ela acordou em uma manhã e sua caixa de mensagens estava lotada e logo depois disso, Brisa começou a se dedicar em tempo integral a criação dos livros com Milena. — Você precisa descansar, Mi. — eu a policiei, enquanto ela revirava os olhos. — Estou tentando terminar essas encomendas antes desse garotinho

nascer. — ela apontou para a barriga usando os dois indicadores. Sim, estávamos esperando outro menino e ele se chamaria Pablo, como meu pai, e eu não via a hora de tê-lo nos braços. — E o seu? O que fez de incrível hoje? — ela perguntou, e eu sorri ansioso, louco para mostrar minha nova tatto, então eu ergui a camiseta, deixando minha pele da costela a amostra e imediatamente ela levou as mãos até a boca. Eu havia escrito a palavra “Cariño em Braile”. — Isso é lindo. — ela secou a lágrima, suspirado com dificuldade, então deixou escapar um gritinho. — Não pensei que ficaria tão emocionada. — Eu beijei seus lábios, e quando me afastei novamente. Eu a encarei, confuso, pois seus olhos estavam arregalados. — Bom, na verdade... minha bolsa acabou de estourar.

1 ano depois Aniversários. Eu nunca tive uma festa de aniversário. Por esse motivo, quando Milena disse que não faríamos festa para o nosso pequeno Pablo, eu quase surtei. Ele precisava de uma festa, e mesmo que estivéssemos cansados

para caralho criando dois filhos e trabalhando bastante, nós precisamos arrumar um tempo extra para organizar os pequenos detalhes, e o fizemos. O tema da festa era Espanha, em um dia, lá estavam os balões presos no arco atrás da mesa de decoração, amarelos e vermelhos, bandeirinhas do país fincadas nos pequenos doces, “Olé” fixado em cada caixinha decorativa ao lado dos cupcakes e no outro, quando nós acordamos, o quintal estava repleto de balões furados, havia chapeuzinhos por todo o gramado e Billy, o cão guia de Juan, estava correndo como um louco com um prato decorativo entre os dentes e eu me vi quase arrependido por ter decidido fazer aquela festa. Quase, porque quando Milena chegou até a porta dos fundos com nosso pequeno nos braços e meu coração derreteu ao encontrar sua boquinha completamente suja com glace vermelho do bolo. — Papá. — ele ergueu os bracinhos para mim. — Oh, seu pequeno pestinha. — eu o peguei no colo, dando um beijo de bom dia na minha esposa. — Bom dia. — ela sorriu com os lábios colados aos meus. — Bom dia. Olhe para esse estrago. — eu apontei para o quintal e seu olhar acompanhou o meu dedo. — Você decidiu fazer a festa. — Sim, mas nós tínhamos um acordo. Eu organizo a festa, você limpa a sujeira. — Ela ergueu as sobrancelhas, e eu sorri. — Oh, tudo bem, mas podemos fazer outro acordo sobre esse acordo. — ela sugeriu, passando suas unhas vermelhas sobre o meu bíceps, sorrindo maliciosamente. — Você limpa essa sujeira e eu faço aquele negócio que você queria. — Sua mão correu até meu pau e ela o apertou, me fazendo praguejar. Milena sempre negociava favores em troca de sexo e eu sempre aceitava. Infierno. — Bien. — Eu segurei os dois lados do seu rosto com o polegar e o

indicador. — Mas eu vou foder você tão duro hoje que amanhã você não vai nem conseguir se levantar. — Eu mordi seus lábios e ela gemeu, se afastando. — Me parece um ótimo acordo. — sorriu. — Vou passar um café. — ela se virou e entrou de volta para a cozinha. — Vocês não deveriam fazer isso na frente dessa criança. — Becker gritou do portão. — Onde está Juan? Aquele maldito pestinha me prometeu uma massagem nos pés se eu pulasse no pula-pula com ele até o fim da festa e depois sumiu. Eu gargalhei, encarando André e Matheo logo atrás dela. — Coitado, você não pode forçá-lo a tocar nesse pé gótico. Aposto que essas suas malditas botas causam um chulé do inferno. — Matheo a cutucou. Ainda era estranho ter todos eles juntos, quando na verdade, eles eram tudo o que eu tinha. Matheo estava de volta na cidade, visitando seus pais enquanto sua esposa rica viajava pela Itália pela segunda vez no ano e segundo ele, ele estava cansado de voos longos. Mas observando um pequeno sorriso malicioso em seus lábios, eu sabia que ele estava zoando comigo. Talvez ele quisesse mesmo estar no primeiro aniversário de Pablo, só não era bom confessando aquilo. — Foi uma ótima festa. — André me cumprimentou com um toque, depois puxou uma cadeira e se sentou, observando Billy correr feito um maluco pelo quintal. — O que deram para ele? — Talvez eu tenha deixado cair algum ecstasy enquanto eu pulava no pula-pula. — Becker sorriu. — Espero que não tenha trago nenhuma droga para nossa casa. — Milena gritou da cozinha. — De novo. — ela completou, enquanto André erguia as sobrancelhas, observando a intimidade entre as duas. — Você sabe que eu parei com esse lance depois que vocês me convidaram para batizar o pequeno Pablito. — Ela esticou seus braços, pequeno meu filho do meu colo. Becker havia batizado nosso filho e Brisa e ela discutiam quase o tempo

inteiro para tentar chegar a uma conclusão de quem era a melhor madrinha. — Vou tentar acreditar nisso. — respondi. — Eu também. — Matheo disse atrás de mim. — Como está nosso pequeno garoto de um ano? — André perguntou, sorrindo para o meu filho do colo de Becker enquanto ele erguia o dedo indicador, mostrando a eles sua nova idade. — Garoto esperto. Puxou o tio Matheo. — ele bateu palmas como um idiota e eu sorri. — Estou ansiosa para ver Milena trabalhando pesado na limpeza do quintal. — Becker gritou sobre a cabecinha de Pablo. A gargalhada de Milena atravessou a cozinha. — Parece que algo mudou. — André sorriu maliciosamente, esticando as penas sobre outra cadeira. — Bien... — comecei, mordendo a boca para segurar o riso. — Por que eu acho que tem a ver com sexo? — Matheo sorriu, diabolicamente. — Porque tem. — Becker respondeu. — Ainda bem que tenho vocês três comigo nessa. — respondi, ouvindo os três reclamarem em uníssono. Então Juan saiu da porta dos fundos com os cabelos revirados e a cara de sono. Cada vez que eu olhava para o meu filho, eu ficava mais impressionado com a nossa semelhança e a sua altura. Aos seus onze anos, sua cabeça encostava nos meus ombros. Ele sorriu, a cabeça baixa, conforme enfiava as mãos nos bolsos da frente. — Vocês me acordaram. — ele reclamou. — Sente-se aqui, pequeno pirralho. Você me deve uma massagem. — Becker se sentou em uma das cadeiras, com Pablo no colo, esticando as pernas para cima.

— Eu não prometi nada. Algum de vocês me ouviu fazendo promessas? — ele respondeu e nós três sorrimos enquanto Becker grunhia. — Ora, seu pequeno trapaceiro... Ele deu de ombros. — Que bom que está de pé, Juan. Agora eu tenho uma pessoa a mais para me ajudar com toda essa bagunça. — Passei o braço sobre os ombros de Juan, observando Milena colocar a garrafa de café sobre a mesa da área. Matheo, Becker, André e Juan fungaram o aroma da cafeína e fazendo comentários sobre estar morrendo de fome ou sobre o quanto os salgadinhos requentados são mais saborosos. — Primeiro o café, meninos. — Minha esposa passou os braços pela minha cintura e beijou meu ombro, e eu sorri, porque sabia no que ela estava esperando. A noite seria uma criança. Quando nós todos pegamos grandes sacos de lixo e nos espalhamos pelo quintal, André caminhou até mim, apreensivo. Era a terceira vez que o via depois que ele havia ido embora há alguns anos. Ele estava feliz, havia conhecido alguém e vivia do seu trabalho, fazendo novos cursos e aprendendo novas técnicas. Eu sentia falta de tê-lo na minha vida, ele era como um pai e melhor amigo, mas nós ainda conversávamos quase diariamente pelas redes sociais e eu podia me contentar com isso. Além disso, ele estava a par de todas as minhas conquistas e sobre cada passo na vida dos meninos. Sabia sobre as aulas de natação de Juan, sobre o sucesso dos livros de Milena, sobre os dentinhos de Pablo e sobre as centenas de milhares de reais que eu havia recebido no último ano depois de processar o estado pela minha prisão. Eu era inocente e agora todos sabiam. Ele abriu a boca, mas a fechou em seguida. Eu não fazia ideia do porquê ele parecia tão nervoso naquele momento. Nunca, em nenhuma hipótese, eu podia imaginar quem realmente era André, o cara que havia lutado por mim, me recolhido da lama, me apoiado em todos os meus momentos, me ajudado financeira e emocionalmente. Eu nunca poderia imaginar o que sairia de sua

boca nos próximos segundos. Então ele se aproximou de mim, colocou um prazo sobre o meu ombro e disse: — Acho que chegou a hora de você finalmente saber a verdade. — eu sorri para o seu comentário, pensando que talvez ele fosse fazer uma brincadeira idiota, dizendo que era gay ou meu verdadeiro pai; mas quando vi a seriedade em seu olhar, eu realmente fiquei preocupado. — Qué cuños você está falando. — Larguei meu saco de lixo. — Primeiro de tudo, quero que saiba que eu realmente via muito de mim em você e que tudo o que fiz, foi porque eu verdadeiramente via muito potencial no seu trabalho e em você como pessoa. — Ele parecia muito nervoso conforme dizia as palavras. — Fala logo, porra. — disse ansioso. — Você é como um filho para mim, Javi, e como um melhor amigo. Eu amo você, garoto... e sempre soube que teria o mundo aos seus pés, eu só... — Ele deu um passo para trás, então espalmou as mãos, nervoso. — Eu só quero que você saiba que... caralho, eu nem sei como dizer isso. — Você está me deixando nervoso, André, fala logo o qu... — Fui eu... Aquela noite, naquele bar... — Do que está falando? — perguntei, confuso, buscando na minha mente algo que pudesse associar a informação que saia da sua boca. — Ele estava alterado, falando um monte de merda como sempre. Então tinha um menino, andarilho, pedindo dinheiro, ele estava com fome e... — Ele fechou os olhos por um segundo. — E ele se aproximou do menino e lhe deu um tapa no rosto e eu fiquei irado, e quando o mandei ficar longe do garoto, ele caiu para cima de mim. — Eu ainda não estou entendendo... — Ele puxou uma faca, Javier. Quando eu a vi, eu sabia que ele buscava encrenca, e ele estava tão drogado que podia me matar por qualquer coisa. Quando ele acertou a primeira facada... — Ele fez uma pausa. — Eu o empurrei e ele caiu sobre ela. Ele morreu segundos depois.

Eu ainda estava muito confuso, mas não sabia o que dizer, porque não fazia ideia do quem ele estava falando. Ainda estava absorvendo a informação de que André havia tirado a vida de alguém. — Eu passei um tempo preso, mas meus advogados fizeram um bom trabalho. Eu me afundei, de verdade. Não conseguia comer ou trabalhar, mas sabia que se não tivesse o feito, eu estaria morto enquanto aquele cara continuava sendo um filho da puta. Foi então que eu pesquisei mais sobre ele e encontrei você, que coincidentemente era amigo do meu sobrinho. Não pode ser... — Você está querendo dizer que... — Sim, fui quem matou Miguel naquela noite naquele bar. FIM

Biografia da Autora Formada em Letras com habilitação em Espanhol, F. Locks mora em Florianópolis com o marido e a filha, a quem se dedica integralmente. Apaixonada por séries, filmes e livros, ela tenta conciliar as mamadeiras e um milhão de fraldas sujas com sua escrita, redigindo algumas páginas cada vez que sua filha dorme por alguns minutos. Entre um capítulo e outro, ela realiza seu maior sonho, que é dar vida aos seus personagens.

Conheça os outros livros da autora: Série Iminente: Amor Iminente Desejo Iminente Atração Iminente Tragédia Iminente Passado Pequena Ariel

Biografia.

Notas

[←1] Querido.

[←2] Foda-se!

[←3] Pentelho.

[←4] Vai-te ou sai de perto.

[←5] O que isso parece?

[←6] Filhinha.

[←7] O tio.

[←8] O que foi?

[←9] Irmãzinha.

[←10] Foda-se.

[←11] Companheiro.

[←12] Surtando.

[←13] Maldita.

[←14] Aceito.

[←15] Aren't you somethin' to admire / Cause your shine is somethin' like a mirror / And I can't help but notice / You reflect in this heart of mine.

[←16] É uma piada?

[←17] Quer dizer...

[←18] O que aconteceu?

[←19] Feliz aniversário.

[←20] Sinto sua falta.

[←21] Criança.

[←22] Me escute.

[←23] Bom dia, idiota.

[←24] Régua utilizada para realizar marcações em Braile.

Table of Contents Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo10 Capítulo 11 Capítulo 12 Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo 10 Capítulo 11 Capítulo 12 Capítulo 13 Capítulo 14 Capítulo 15 Capítulo 16 Capítulo 17 Capítulo 18 Capítulo 19 Capítulo 20 Epílogo

Biografia da Autora
JAVIER @BIBLIOTECAVIRTUALBR F. Locks

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