MENINA DE OURO - Chris Cleave (AL2)

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Ficha Técnica Título original: Gold Título: M enina de Ouro Autor: Chris Cleave Traduzido do Inglês por Elsa T. S. Vieira ISBN: 9789892322087 Edições ASA II, S.A. uma editora do Grupo LeYa R. Cidade de Córdova, n.º 2 2160-038 Alfragide – Portugal Tel.: (+351) 214 272 200 Fax: (+351) 214 272 201 © 2012, Chris Cleave Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor Licença de comercialização em todo o mundo, exceto no Brasil [email protected] www.asa.leya.com www.leya.pt

Para Cecily

Terça-feira, 24 de agosto de 2004 Balneários, Velódromo Olímpico, Atenas Finais da prova olímpica de sprint feminino em ciclismo de pista o outro lado da porta de metal sem pintura, cinco mil homens, mulheres e crianças entoavam o nome dela. Zoe Castle não estava a gostar tanto como pensara que gostaria. Tinha vinte e quatro anos e estava sentada onde o treinador lhe indicara, ao lado dele, num banco estreito ainda com a camada de plástico transparente protetor por cima. – Não toques na porta – disse-lhe ele. – Tem alarme. Estavam apenas os dois no pequeno balneário subterrâneo. As paredes tinham sido rebocadas há pouco tempo e havia pequenas espirais endurecidas de material no chão de cimento, onde tinham caído da colher de pedreiro. Zoe deu um pontapé numa delas, que se soltou, deslizou sobre o chão e embateu na porta com um som metálico. – O que foi? – perguntou o treinador. Zoe encolheu os ombros. – Nada. Quando visualizara o sucesso – quando se atrevera a imaginar que chegaria até aqui – os soalhos e as paredes de todos os edifícios em Atenas eram superfícies platónicas, feitas de um material olímpico que reluzia com uma luz interior. O ar não cheirava a cimento. Não havia uma bolsa de plástico no chão com o guia de instalação do aparelho de ar condicionado que se encontrava, parcialmente montado, ao canto da sala. O treinador viu a sua expressão e sorriu.

D

– Tu estás pronta. É o principal. Ela tentou sorrir também. O sorriso saiu como um potro recém-nascido – as suas pernas dobraram-se imediatamente. Lá em cima, o público batia com os pés. A partida estava atrasada. As buzinas de ar comprimido soaram. A sala estremeceu – o som era tão alto que os dentes dela vibraram. O barulho da multidão estava a liquefazer as suas entranhas. Pensou em sair do velódromo pela porta das traseiras, apanhar um táxi para o aeroporto e voar para casa no primeiro avião disponível. Perguntou-se se seria a primeira atleta olímpica a fazer essa coisa tão simples e compreensível: sair discretamente do Olimpo. Devia haver algo que ela conseguisse fazer na vida civil. As revistas adoravam-na. As roupas assentavam-lhe bem. Era bonita, com o cabelo curto, preto e brilhante, e os grandes olhos verdes, no rosto pálido e assombrado de uma santa medieval. Havia um leve toque de crueldade na linha dos seus lábios; uma sugestão de aço na expressão do rosto, que fazia com que os olhares se demorassem. Talvez pudesse fazer alguma coisa com isso. Podia dar entrevistas e rir-se nos bastidores, depois do programa, quando o jornalista lhe perguntasse se sabia que era muito parecida com aquela rapariga britânica que fugira dos Jogos Olímpicos – como é que ela se chamava, mesmo? Ah!, diria ela. Estão sempre a dizer-me isso! A propósito, o que foi feito dessa rapariga? A respiração do treinador era calma e regular. – Bom, tu pareces estar bem – disse Zoe. – Porque não havia de estar? – É só mais um dia de trabalho, certo? – Correto – disse Tom. – Estamos apenas a picar o ponto para pegar ao serviço. O que é que queres, afinal? Uma medalha? Quando viu como ela estava a olhar para ele, ergueu as mãos num gesto de súplica. – Desculpa. É uma velha piada de treinadores. Zoe franziu a testa. Estava irritada com Tom. A despreocupação dele não a estava a ajudar nada – o facto de ele estar a fingir que não se passava nada de extraordinário. Normalmente, era um treinador muito melhor, mas os nervos estavam a afetá-lo, precisamente quando ela mais precisava que ele fosse forte. Talvez devesse mudar de treinador, assim que voltasse a Inglaterra. Pensou em dizer-lhe isso agora, só para lhe apagar aquele falso sorriso sábio do rosto. O pior era que ela estava a tremer descontroladamente, apesar do calor. Era humilhante e não conseguia parar. Já estava equipada, já fizera o aquecimento. Dera uma amostra de urina e oito centímetros cúbicos de sangue, que devia ser

composto essencialmente por adrenalina. Gravara uma peça curta e nervosa em câmara para os patrocinadores, assinara os impressos oficiais da corrida e prendera o seu número às costas do fato colado ao corpo. Depois retirara-o e voltara a prendê-lo, desta vez de cabeça para cima. Não lhe restava mais nada com que ocupar estes terríveis minutos de espera. O frenesim da multidão aumentou de intensidade. Bateu com as palmas das mãos no banco. – Quero ir para cima! Porque é que têm a porta trancada? Tom bocejou e respondeu à pergunta com um aceno indiferente. – É para nossa segurança. Deixam-nos subir depois de os seguranças verificarem os corredores. Zoe escondeu o rosto nas mãos e baloiçou-se para trás e para a frente no banco. Era uma tortura, estar fechada nesta salinha minúscula, à espera da autorização dos fiscais da corrida. Não conseguia impedir o corpo de tremer e não conseguia tirar os olhos da porta metálica, que estremecia nas dobradiças com o barulho da multidão. Era uma porta forte, concebida para resistir indefinidamente a caçadores de autógrafos, ou a um incêndio durante trinta minutos, mas o medo atravessava-a com facilidade. – Céus… – sussurrou ela. – Assustada? – Estou a borrar-me toda. A sério, Tom, tu não? – Ergueu os olhos para ele. Tom abanou a cabeça e recostou-se. – Na minha idade, não é o grande evento que nos assusta. – Então o que é? Ele encolheu os ombros. – Oh, sabes como é. A sensação persistente de que, na perseguição dos meus próprios objetivos rígidos, talvez não tenha sido tão generoso em espírito como poderia, relativamente às necessidades e sonhos das pessoas que mais amo, ou por quem era emocionalmente responsável. Fez um balão com a pastilha elástica e inspecionou as unhas. Zoe ferveu de cólera. Nas bancadas por cima deles, uma nova vaga de aplausos e gritos fez estremecer o edifício. O apresentador estava a espicaçar o público. As pessoas rugiram o nome de Zoe. Bateram com os pés com mais força. Nos balneários, a luz fluorescente temporária apagou-se e regressou à vida por fases. Uma súbita chuva de poeira caiu de uma fenda por tapar no teto falso de estuque. – Achas que o edifício aguentará? – perguntou Tom.

Zoe explodiu. – Cala-te, está bem? Cala-te, cala-te, cala-te! Tom sorriu. – Oh, vá lá, é só mais uma corrida de bicicleta. É canja. – Não é por ti que cinco mil pessoas estão a gritar. Ele inclinou-se e segurou-lhe no braço. – Sabes do que devias ter medo? Do dia em que não gritarem o teu nome. Então serás como eu. Serás a poeira que se acumula nas fendas entre as tábuas da pista. Serás o cuspo a secar na pastilha elástica colada por baixo da cadeira. Serás o som das vassouras a varrer depois de a multidão se ter posto a andar. Preferias ser tudo isso? Preferias? Ela abanou a cabeça, amuada. Tom levou a mão ao ouvido. – O quê? Não te consigo ouvir por cima do barulho deste amor todo! Preferias ser a rapariga de quem ninguém se lembra? – Não, raios! Ele sorriu. – Então está bem. Levanta o traseiro do banco, vai lá para fora e ganha! Os dois olharam para a porta metálica fechada, depois para o chão, depois um para o outro. Passou um momento. Tom suspirou. – Mas foi um bom discurso de incentivo, não foi? Se calhar atingi o clímax cedo demais. Zoe lançou-lhe um olhar furioso. Era capaz de lançar faíscas. Por cima deles, o som dos pés da multidão era incessante. A poeira do estuque caía agora continuamente. Ela fixou os olhos na porta. – Porque é que não vêm? Estamos aqui em baixo há séculos. – Talvez este seja o nosso inferno pessoal. Talvez eles não venham e a multidão continue a fazer cada vez mais barulho, e fiquemos para sempre sozinhos com os nossos pensamentos. – Nem sequer brinques com isso, está bem? Já me sinto suficientemente culpada. Tom fitou-a com curiosidade. – Por causa da Kate? Zoe ficou surpreendida com o alívio que sentiu quando Tom disse o nome de Kate. Por baixo de todos os pormenores de última hora da sua preparação –

apertar os grampos dos sapatos, polir os visores – não se apercebera do quanto isso estava a atormentá-la. – Ela devia estar aqui – disse. – Devíamos ser nós as duas na final. O treinador apertou-lhe o joelho. – Boa menina. Mas não foste tu que obrigaste a Kate a ficar em casa. Ela fez as suas próprias escolhas. – Mesmo assim… – Quero que o digas, Zoe. Quero ouvir-te dizer: A Kate fez as suas próprias escolhas. Zoe olhou para o chão durante muito tempo. O rugido da multidão acelerou cada molécula de ar entorpecido na pequena sala inacabada. A vibração dos pés a bater no chão subiu através da armação de aço do banco e fez trepidar o assento de plástico branco por baixo dela. Lentamente, ergueu os olhos para o treinador. – A Kate fez as suas próprias escolhas – disse, baixinho. – E eu também. Tom devolveu o olhar. – Ótimo – disse, por fim. – E agora, tira isso da cabeça. Está bem? Isso é a vida; isto é desporto. Só precisas de pensar nos próximos dez minutos. Ela engoliu em seco. – Está bem. Tom riu-se. – Bom, então não faças esse ar tão aterrorizado. – Ouve este barulho todo. Estou aterrorizada. – Escuta, Zoe. Foste tu que trabalhaste arduamente. Foste tu que chegaste à final. O pior cenário possível, hoje, é seres a segunda ciclista mais rápida do planeta. O pior que pode acontecer nos próximos dez minutos é ganhares uma medalha de prata olímpica. – Exato. – Tens medo de ganhar a prata? Ela pensou nisso, depois acenou afirmativamente. – Merda, antes queria morrer. – Honestamente? – Honestamente. Ela respirou fundo e as tremuras do seu corpo acalmaram. Quando olhou de novo para Tom, ele estava a sorrir. – O que foi? – quis saber Zoe. – Jovem, creio que estás finalmente pronta para a tua primeira final olímpica.

Agora faz um favor a ambos, sai daqui e vence. – Mas a porta… Tom sorriu. – Esteve sempre apenas na tua cabeça. Ela levantou-se e empurrou a porta de metal com dois dedos, hesitante. Esta abriu-se facilmente, nas dobradiças bem oleadas, e o rugido da multidão aumentou de intensidade. A porta bateu na parede e ecoou com a nota grave de um sino. Zoe olhou para ele, de olhos arregalados. – O que foi? – disse Tom, enxotando-a com um gesto. – Vai lá. Na verdade, estás muito atrasada. Zoe olhou de novo para a porta e depois para ele. – Por acaso, és bastante bom – disse. – Com a minha idade, mau seria se não fosse. As escadas altas e pintadas de branco que subiam até à pista pareciam prateadas sob os raios de sol que entravam pelas claraboias altas no teto do velódromo. No espelho do degrau no cimo das escadas, em letras azuis quase direitas, o lema olímpico dizia: Citius, Altius, Fortius. Zoe inspirou lentamente uma golfada do ar quente e ensurdecedor. Os cabelos na sua nuca arrepiaram-se. Tudo o que se passara foi desculpado e esquecido. A multidão estava a gritar o seu nome. Sorriu, respirou e deu o primeiro passo para a luz. Barrington Street, número 203, Clayton, zona leste de Manchester Numa televisão minúscula, ao canto da sala atafulhada no apartamento de duas assoalhadas, Kate Meadows viu a sua melhor amiga sair do túnel para a arena central do velódromo. O ruído da multidão duplicou, distorcido pelas colunas da televisão. O seu coração deu um salto. O biberão da bebé estava equilibrado em cima do aparelho e o rugido da multidão causou ondas concêntricas no leite. Quando Zoe levantou os braços para agradecer o apoio do público, o rugido ensurdecedor fez o biberão deslizar sobre a televisão. Baloiçou à beira do aparelho, caiu para o chão e ficou tombado de lado, a pingar leite branco da tetina translúcida para a juta castanha e sedenta da carpete. Kate ignorou-o. Estava

hipnotizada pela imagem de Zoe. Kate tinha vinte e quatro anos e, desde os seis, o seu sonho fora ganhar uma medalha de ouro nos Jogos Olímpicos. Os seus dezoito anos de preparação tinham sido perfeitos. Alcançara o nível mais elevado da modalidade. Partilhara o treinador com Zoe, treinara com ela, vencera-a nos campeonatos nacionais e mundiais. E depois, no último ano de preparação para Atenas, a bebé Sophie chegara. Esta televisão era antiga e tinha uma péssima qualidade de imagem, mas era bastante nítido para Kate que Zoe estava agora sentada num protótipo de bicicleta de corrida no valor de doze mil dólares americanos, com um quadro monocoque preto de fibra de carbono unidirecional de alto módulo, enquanto ela própria estava sentada num sofá Klippan da Ikea, com pernas de aço de epóxi/poliéster lacadas e uma cobertura removível e lavável em vermelho Almås. Kate estava perfeitamente consciente de que podia alcançar certas vitórias ali sentada, mas eram triunfos pequenos e domesticados, medidos em bebés desmamados e campanhas de treino no bacio levadas até alcançar a secura. Levou os nós dos dedos às têmporas, forçando-se a recordar como estava apaixonada por Sophie e por Jack, que estava em Atenas a preparar-se para a sua corrida no dia seguinte. Tentou exorcizar todos os pensamentos invejosos da mente, comprimindo as têmporas até lhe doerem mas, Deus a perdoasse, o seu coração ainda desejava vencer o ouro. Em baixo da mesa de apoio, Sophie remexeu na mistela de pequeno-almoço e almoço ali caída, palrando alegremente enquanto levava à boca cereais e papa não específica. O médico dissera que ela estava demasiado fraca para viajar até Atenas, mas agora a criança parecia efervescente de saúde. Era preciso recordar a si própria que os bebés não faziam estas coisas de propósito. Não usavam o calendário da cozinha para seguir o horário exato dos seus sonhos com os dedinhos rechonchudos, para depois planearem a sua asma e alergias de acordo com isso. Estava um calor sufocante na sala. As janelas abertas não deixavam entrar qualquer brisa refrescante, apenas o calor opressivo de agosto, refletido pelo cimento claro do pátio das traseiras. Kate sentiu o suor a escorrer-lhe pelas costas. Do apartamento do lado, através da parede, ouviu a vizinha a aspirar. O aspirador gemia e batia com a cabeça de plástico contra o rodapé, uma e outra vez, um prisioneiro para a vida, sem esperança de liberdade condicional. Faixas de interferência elétrica crepitaram no ecrã da televisão, ocultando o rosto de Zoe enquanto esta se preparava para começar a corrida.

As duas ciclistas estavam agora à espera das ordens de partida. Uma voz neutral fez a contagem decrescente a partir do dez. Na linha de partida, por trás da barreira, Kate apanhou um vislumbre de Tom Voss no grupo de oficiais do Comité Olímpico Internacional e de VIP. À visão do treinador, a sua pulsação acelerou para lhe preparar o sistema para a atividade intensa que a chegada dele assinalava sempre. A adrenalina invadiu-a. Quando a contagem decrescente no velódromo chegou ao cinco, observou as mãos tensas de Zoe no guiador. As suas próprias mãos ficaram também tensas, involuntariamente, agarrando um guiador fantasma no ar abafado da sala. Os músculos das pernas estremeceram e a sua consciência aguçou-se, dilatando cada segundo. Kate detestava a forma como o seu corpo ainda se preparava desta maneira para correr, desesperadamente, como o coração exausto de uma viúva ainda devia dar um salto ao ver a fotografia do amante morto. Houve uma agitação aos seus pés e um gritinho excitado. Baixou-se para apanhar uma pequena ventoinha elétrica e a pôr em cima da mesa de apoio, longe dos dedos exploradores de Sophie. A brisa foi um alívio. Na televisão, a contagem chegou ao três. Kate viu Zoe humedecer os lábios, nervosa. Dois, disse o juiz de partida. Um. Kate tinha a testa coberta de suor. Esticou a mão e aumentou a velocidade da ventoinha. A imagem contraiu-se num pequeno ponto branco no centro do ecrã da televisão e depois extinguiu-se completamente. Do outro lado da parede, o zumbido do aspirador da vizinha diminuiu de intensidade e dissipou-se num suspiro longo, até ao silêncio total. Ouviu a voz da vizinha a dizer Merda. Kate viu as pás da ventoinha perderem a invisibilidade enquanto abrandavam, até pararem. Olhou para a ventoinha, aturdida, sentindo a brisa no seu rosto desaparecer, sem perceber porque é que a brisa faria tal coisa no exato segundo em que a televisão se desligara. Depois de um momento, compreendeu que qualquer coisa fizera disparar a caixa dos fusíveis. Como de costume, levara consigo a eletricidade de metade da rua. Sentiu uma rara vaga de autocomiseração. Só estas pequenas coisas a desencadeavam. Perder os Jogos Olímpicos era demasiado grande e contundente para magoar mais do que de forma embotada e pesada. Era como ser anestesiada e depois sufocada. Mas os bilhetes de avião de Jack, ao chegarem, tinham sido suficientemente cortantes para ferir. Fazer a mala dele deixara uma dor e um vazio muito específico no roupeiro que partilhavam. Agora, a falha da eletricidade apagara também algo dentro dela. Um segundo depois, riu-se de si própria. Afinal de contas, tudo podia ser

resolvido. Procurou na gaveta da cozinha até encontrar fio de fusível, depois pegou numa lanterna e entrou na casa de banho no vão das escadas, onde se encontrava a caixa dos fusíveis. Sophie gritou quando ela saiu da sala, por isso pegou-lhe e segurou-a debaixo do braço enquanto equilibrava a lanterna e o fio de fusível na outra mão, de pé em cima da sanita para chegar à caixa. Sophie agitouse e guinchou e tentou agarrar nos fios. Depois de tentar durante um minuto, Kate decidiu que se preocupava mais em não eletrocutar a filha do que em ver a corrida de Zoe. Pousou novamente Sophie no chão da sala. A bebé animou-se de imediato e retomou a sua busca constante por objetos perigosos para pôr na boca. A dois mil e quinhentos quilómetros de distância, a primeira das três corridas já tinha acabado, e Zoe vencera ou perdera. Era estranho não saber. Kate ligou e desligou a televisão, como se algum elemento restaurador na instalação elétrica da casa – algum glóbulo branco eletrónico – pudesse ter sarado os danos. Não apareceu imagem nenhuma. Em vez disso viu-se a si própria, com mais cinco quilos do que o seu peso de competição, ainda de camisa de dormir às três da tarde, refletida no ecrã preto da televisão. Suspirou. Podia resolver os problemas do seu reflexo. Alguns quilómetros de treino a sério devolver-lhe-iam a magreza ao rosto, o cabelo loiro não estaria eternamente preso num carrapito para escapar aos dedos peganhentos de Sophie, e os seus olhos azuis só estavam escondidos atrás dos óculos feios porque ainda não arranjara forças para se vestir e ir comprar líquido de limpeza para as lentes de contacto. Tudo isto podia ser resolvido. Mesmo assim, enquanto se observava na televisão, entrou em pânico por um momento, e pensou que era impossível que Jack ainda a achasse atraente. Contudo, não era bom demorar-se nesse tipo de pensamentos, por isso deixou-se cair de novo no sofá e telefonou-lhe. Por trás da voz dele, quando atendeu, ouviu o rugido de cinco mil pessoas. – Viste aquilo? – gritou ele. – Ela arrasou! Venceu como se nem sequer se estivesse a esforçar! – A Zoe? – Sim! Inacreditável. Não me digas que não estavas a ver? – Não consegui. Ouviu-o hesitar. – Vá lá, Kate, não sejas azeda. Para a próxima serás tu a correr, em Pequim. – Não, não consegui mesmo ver. A eletricidade foi-se abaixo. – Viste os fusíveis?

– Céus, Ken, tal coisa nem ocorreu ao meu cérebro de Barbie. – Desculpa. Kate suspirou. – Não faz mal. Tentei arranjar os fusíveis mas a Sophie não me deixou. – Apercebeu-se imediatamente de que a frase parecera um queixume mesquinho. – A nossa filha é muito forte para a idade – disse Jack –, mas ainda acho que conseguirias dar conta dela num combate justo. Ela riu-se. – Ouve, desculpa. Mas estou a passar um mau bocado por aqui. – Eu sei. Obrigada por tomares conta dela. Tenho saudades tuas. Os olhos dela encheram-se de lágrimas. – A sério? – Oh, meu Deus – disse ele –, estás a brincar? Se tivesse de escolher entre voltar para casa no próximo avião e competir pelo ouro aqui amanhã, sabes que escolheria o avião, não sabes? Ela fungou e limpou os olhos. – Não estou a pedir-te que escolhas, idiota. Estou a pedir-te que ganhes. Ouviu-o sorrir do outro lado da linha. – Se ganhar, é só porque tenho medo do que me farás se perder. – Volta para mim quando tiveres a medalha de ouro, está bem? Promete-me que não ficarás aí com ela. – Oh, Céus – disse ele. – Sabes muito bem que nem precisas de dizer isso. – Eu sei – respondeu ela baixinho. – Desculpa. Do outro lado, o som da multidão aumentou novamente de intensidade. – A segunda corrida vai começar – gritou Jack por cima do barulho. – Já te ligo, está bem? – Achas que ela vai ganhar? – Sim, sem dúvida. Na primeira ronda parecia que estava a passear. – Jack? – Sim? – Amo-te – disse ela. – Mais do que gelado depois do treino. – Eu também te amo – disse ele. – Mais do que à vitória. Ela sorriu. Foi um momento perfeito, e ouviu-se a si própria estragá-lo ao dizer: – Liga-me quando a corrida acabar, está bem? Fez uma careta, aborrecida por ser tão carente; por colocar mais esta exigência sobre ele. O amor não devia precisar de garantias constantes. Por outro lado, o

amor não devia estar sentado a ver o seu próprio reflexo numa televisão morta enquanto a tentação corria para a glória. A resposta de Jack foi abafada pelo som da multidão a entoar o nome de Zoe. Desligou e deixou o telefone cair na cobertura lavável e usada do sofá. Não era apenas que tivesse deixado de acreditar que alguma vez chegaria aos Jogos Olímpicos. Agora, se quisesse ser realmente honesta consigo própria, nem sequer estava certa de conseguir vencer as corridas que se disputassem em cadeiras de cozinha e sofás. Olhou para a janela com olhos vidrados. No calor tremeluzente do pequeno pátio, um esquilo encontrara algo no fundo de um pacote de batatas fritas. A minha vida agora é isto?, pensou. Levou as mãos às têmporas, agora mais suavemente, e mediu a pulsação em comparação com o ponteiro dos segundos do relógio da sala. Há meses que não treinava a sério, mas mesmo agora – mesmo com todo este stress – a sua pulsação estava abaixo dos sessenta. O segundo ponteiro estava no mesmo sítio e ela só contara cinquenta e dois batimentos. Às vezes, esta era a única pequena vitória dos seus dias: saber que estava mais em forma do que o tempo. Ergueu os olhos e viu que Sophie estava a imitá-la, a tentar encostar as mãozinhas aos lados da cabeça. Kate riu-se e, pela primeira vez, Sophie riu-se em resposta. Kate sentiu-se invadir pela euforia. – Oh, meu Deus, minha querida, tu riste! Caiu de joelhos, pegou em Sophie e abraçou-a. Sophie sorriu – um protótipo de sorriso, todo gengivas, que vacilou e ficou de esguelha e se reacendeu novamente. Gorgolejou ruidosamente, encantada consigo própria. – Oh, minha coisinha esperta! Espera só até eu contar ao Jack, pensou, e o pensamento foi tão leve e simples que, de súbito, soube que ia correr tudo bem. Que importava que Zoe ganhasse o ouro hoje, ou que Jack ganhasse o ouro amanhã? Aqui ajoelhada na sala de estar desarrumada, com a bebé contra o peito, a inspirar o seu cheiro quente a bolsado, era impossível acreditar que houvesse alguma coisa mais importante do que isto. Quem queria sequer saber que, até há pouco tempo, ela conseguira acelerar uma bicicleta a sessenta e cinco quilómetros por hora no velódromo? Parecia absurdo, agora que a vida a sério começara para ela – com a sua progressão real através dos maravilhosos marcos da maternidade –, que alguém se desse sequer ao trabalho de andar de bicicleta em pistas ovais intermináveis, ou que alguém tivesse tido a ideia bizarra de dar ouro à pessoa que conseguisse fazê-lo mais

depressa. De que adiantava, fosse a quem fosse, acelerar até voltar ao ponto de origem? Céus, pensou. O que é que alguém ganha com isso? Um minuto depois, durante o qual o seu coração bateu quarenta e nove vezes, sorriu, um sorriso cansado. – Oh, quem é que eu quero enganar? – disse, em voz alta, e Sophie ergueu o rosto ao som da sua voz e fez uma expressão experimental, única, perfeitamente equidistante entre um riso e um lamento.

Oito anos depois, segunda-feira, 2 de abril de 2012 Coberta de detenção 9, da Estação Espacial Imperial coloquialmente conhecida como Estrela da Morte rebelde – a miúda – resistiu, portanto fecharam-na numa cela escura de metal que cheirava a óleo de máquinas. Era demasiado para ela, e sorriu e agitou-se com entusiasmo. Agarrou-se ao pai. Ele segurou-lhe o pescoço magricela na dobra do braço e apertou apenas o suficiente para a agarrar, ou para transmitir um afeto silencioso, daquela maneira como os pais costumam aplicar a força. A criança torceu-se para escapar, dando ao abraço uma aparência de violência: ser pai não parecia mudar muito, onde quer que fosse no universo. Dois guardas imperiais estavam a vigiar os dois prisioneiros. Trocaram um olhar, decidiram que os detidos estavam em segurança por agora, e acenaram. Deixaram o bloco de detenção da Estrela da Morte, saíram discretamente por uma porta lateral e emergiram na luz forte de abril, no parque de estacionamento. Tiraram os capacetes, sacudiram o cabelo e compraram dois chás de uma carrinha de venda de comida. Eram duas mulheres, ambas com trinta e dois anos. Eram atletas na vida real. Tinham contratos de patrocínio, problemas de privacidade com a imprensa e uma percentagem de gordura corporal inferior a quatro por cento. Nos rankings mundiais de sprint feminino em ciclismo de pista, ocupavam o primeiro e o segundo lugar. – As coisas que eu faço por ti – disse Zoe. – Este fato é insuportavelmente quente. – Tinha madeixas de cabelo preto coladas à testa pelo suor. – Precisava de ir à casa de banho – disse Kate. – Como é que fazemos com os fatos?

A

– Não foram desenhados por uma mulher. – A Estrela da Morte não foi desenhada por uma mulher. Senão teria cortinas. Haveria uma creche. Zoe agitou os punhos. – Sim! Será que os mandachuvas não conseguem arranjar uma forma de equilibrar a maternidade com a repressão da maldita Aliança Rebelde? Kate abanou a cabeça, com tristeza. – Insubordinada dessa maneira, nunca passarás de guarda. – Estás enganada – disse Zoe. – Vão reconhecer o meu zelo e a minha paixão. Vão promover-me ao comando da estação de batalha. – Não te lisonjeies. Vão olhar uma vez para o teu perfil de personalidade e transformar-te num androide. Altamente especializada, mas basicamente solteira. – Oh, vai à merda – disse Zoe com um sorriso. – Não trocaria a minha vida pela tua. Uma rajada de vento frio agitou as poças de água castanha no parque de estacionamento do estúdio cinematográfico. Do lado oposto, num veículo azul salpicado de lama, o próximo grupo de detentores de bilhetes para a experiência Guerra das Estrelas já andava à procura de lugar para estacionar. Kate olhou para o relógio. A Estrela da Morte era deles por mais vinte minutos. – É melhor voltarmos para junto da Sophie – disse. As duas mulheres acabaram rapidamente o chá. Zoe olhou para Kate por cima do copo. – Sê honesta comigo – disse. – A Sophie está a morrer? – Não – respondeu Kate, sem hesitar. – A quimioterapia vai resultar. Tenho cem por cento de certeza de que ela vai melhorar. – Honestamente? – Já o provámos antes. Quando ela adoeceu pela primeira vez, a quimioterapia resultou e ela entrou em remissão. Isto é apenas uma pequena recaída e a quimio vai resultar outra vez. Devia haver dúvida no rosto de Zoe, porque Kate começou a franzir os lábios e a acenar decididamente com a cabeça. Zoe viu a certeza a aumentar; a subir no mostrador e a entrar no vermelho. Cento e cinco por cento. Cento e dez. – Está bem – disse. – Está bem. Mas achas mesmo que estes passeios a ajudam? Não são demasiado cansativos? Kate sorriu. – Deixa essa preocupação para mim. – Deixa-me perguntar, pelo menos. Como tua amiga.

O sorriso de Kate ficou tenso. – Achas que a faria passar por tudo isto se não estivesse a ajudar? Zoe tocou-lhe no braço. – Claro que não. Mas tens a certeza de que não organizas estes passeios um pouco pela tua própria paz de espírito? Para poderes pensar que estás a fazer tudo o que está ao teu alcance, como mãe? – Não me digas que de repente és especialista em maternidade. Zoe encolheu-se como se tivesse sido esbofeteada. Lentamente, recompôs-se e baixou os olhos, torcendo as mãos. Kate hesitou, depois avançou e pegou-lhe na mão. – Merda, Zoe. Desculpa. Zoe virou a cabeça. – Não, não, tens razão. Ultrapassei os limites. Eu sei aquilo que estás a passar. Kate colocou-se em frente dos olhos de Zoe e fitou-a com firmeza. – Eu também sei o que tu estás a passar. Isto deve fazer-te pensar no Adam. – Não há problema – disse Zoe. – E sabes que mais? O teu cabelo está uma desgraça. Kate riu-se. – Oh, tenho cabelo de capacete? – Achas que isso é mau? Eu tenho mamas de guarda imperial. Juro, estes fatos são tão apertados… Por detrás do alívio, o coração de Zoe ainda estava preso no arame farpado da cerca que a amiga erguera entre ambas. Desejou não ter abordado o assunto. Tinha de aprender quando devia manter a boca fechada, o que era quase sempre. Olhou para o copo de plástico, onde um centímetro de chá – do mesmo amarelo-acastanhado das poças – estava a atingir aquela temperatura em que o calor já não conseguia disfarçar o sabor amargo. Às vezes fartava-se de estar sozinha, de não ter um parceiro que empreendesse pacientemente a tarefa de eliminar os demónios dos seus dias e de lhe mostrar o que era o quê. Dava por si a desejar ter um companheiro – e sim, até mesmo um filho – apesar das evidências avassaladoras de que as crianças eram também poços sem fundo de necessidade, para os quais mulheres exaustas como esta, a sua melhor amiga Kate, atiravam incessantemente pequenas pedrinhas corajosas de certeza e aguardavam com ansiedade o chape que nunca se chegava a ouvir. – Devíamos mesmo voltar para a Estrela da Morte – disse Kate, arrancando Zoe aos seus devaneios. – Hum?

Kate enfiou novamente o capacete de guarda imperial e a sua voz mudou para um som áspero e metálico, transformada pelo modulador embutido na máscara. – A Estrela da Morte? Referes-te à grande nave espacial má? A que teve uma estreia prometedora na representação, ficou um pouco estereotipada, e nunca mais apareceu noutro filme depois da série Guerra das Estrelas? Zoe revirou os olhos. – Ooooh – disse Kate. – Que sensível que ela está. Zoe atirou o cabelo para trás, subitamente irritada. – Ouve – disse Kate –, estou naquela altura do mês e tenho uma arma de raios, por isso nem comeces. Zoe olhou cuidadosamente para a amiga, avaliando até que ponto as coisas poderiam voltar ao normal entre elas. Era difícil de dizer. Kate podia estar a sorrir, ou não. Era o problema dos guardas imperiais: só exibiam a expressão neutra moldada na parte da frente dos capacetes – uma expressão permanente, limpa, semipesarosa, igualmente apropriada para descobrir a queda do seu império ou do seu soufflé. Módulo de Comando da Estrela da Morte A estação de batalha estava suspensa no vácuo negro e frio do espaço. Sophie Argall conseguia sentir a sua vasta massa metálica debaixo dos pés. Era enorme. Tinha a sua própria gravidade, embora não parecesse tão forte como a gravidade da Terra. Sophie apercebeu-se de que os seus passos eram mais leves. Estar de pé na ponte da Estrela da Morte era como seria estar em casa, se o doutor Hewitt tivesse acabado de lhe dizer que a leucemia entrara em remissão. Sophie reviu os dados. Tinha oito anos de idade. A Estrela da Morte era mais nova. Sophie não sabia bem quanto. A Estrela da Morte era defendida por 10 000 baterias de turbolasers e 768 projetores de raios de tração. Uma tripulação de 265 675 mantinha-a em funcionamento e limpa, e tratava da comida e da roupa de 52 276 artilheiros, 607 360 soldados, 25 984 guardas imperiais, 42 782 membros das equipas de apoio, e 167 216 pilotos e técnicos. Apesar destas precauções, ambas as Estrelas da Morte construídas antes desta tinham sido destruídas. Estatisticamente, as hipóteses de uma Estrela da Morte sobreviver em combate eram zero. As probabilidades de Sophie sobreviver a uma leucemia linfoblástica

aguda eram superiores a noventa por cento. Quando pensava nas probabilidades, era presunçoso da parte da estação de batalha estar a exercer a sua atração gravitacional sobre ela. Sophie sabia as estatísticas de cor. Desenhara mil vezes a Estrela da Morte, em caneta de feltro e lápis de cera, mas nada a preparara para estar aqui, na ponte, a olhar pelas vigias para as estrelas. Ouviu o zumbido eletrónico dos circuitos de controlo e o assobio suave do ar condicionado. Tinham trazido o carro da família Argall – um Renault Scénic cinzentometalizado – até à escotilha espacial no estúdio cinematográfico: Sophie, os seus pais e Zoe. A viagem de carro demorara três horas e trinta e seis minutos, que Sophie contou com o cronómetro do seu iPod. Ouvira a banda sonora original da Guerra das Estrelas, por John Williams e pela Orquestra Sinfónica de Londres. Fizera miras com os dedos e apontara para a estrada do outro lado da janela. Os Nissans e os Fords eram naves rebeldes amistosas. Os Mercedes e os BMW eram caças TIE hostis. Tinham usado um transportador para ir do parque de estacionamento do estúdio até à Estrela da Morte. Demorara quarenta e nove segundos. O transportador parecia um elevador normal, mas não era. O papá fora capturado com ela, assim que saíram do transportador. Tanto quanto Sophie sabia, Zoe e a mamã ainda estavam em liberdade, algures no interior da Estrela da Morte. Sophie estava espantada por ainda aqui estar. Tinha de olhar constantemente para si própria, para confirmar que todos os átomos nas suas pernas e nos seus braços tinham atravessado bem o feixe do transportador. Dois guardas imperiais patrulhavam a ponte, com as suas armaduras imaculadas. Verificaram todos os interruptores em cada painel de controlo. Falaram um com o outro em vozes bruscas e metálicas. Os seus capacetes tinham visores completos, pelo que não era possível ver-lhes os rostos, mas percebia-se que estavam nervosos. Corriam rumores de que Darth Vader estava a chegar, no seu vaivém pessoal. Sophie tinha a boca seca e o coração acelerado. Deu a mão ao pai e apertou com força. Sabia que nada disto era mesmo real, mas isso não significava que não estivesse a acontecer. Nos raros dias em que se sentia suficientemente bem para ir à escola, a escola também não lhe parecia real. As outras raparigas tinham seguido outro caminho. Gostavam do YouTube e achavam-na esquisita por ainda gostar de coisas de criança. Ela tentara gostar das coisas de que elas gostavam, mas a verdade era que não queria aprender os passos de dança dos vídeos de música pop – queria ser um cavaleiro Jedi.

A leucemia também não parecia real. Eles enfiavam-te tubos e enchiam-te de químicos que te faziam os ouvidos zumbir e a pele ficar tão transparente que conseguias ver para dentro do corpo. Conseguias tocar nos tubos com os dedos e olhar para os tendões com os teus próprios olhos. Era possível que não estivesses a sonhar – simplesmente não parecia muito provável. Passado algum tempo, deixavas de te preocupar com o que era real. Os raros dias de escola duravam seis horas e meia e depois acabavam. A vida duraria até seres muito velha – com probabilidades de noventa por cento – ou mais alguns meses, com uma probabilidade de dez por cento. Estar aqui na Estrela da Morte duraria o tempo que durasse. Era assim que tinhas de ver as coisas. O pai ajoelhou-se e passou o braço à volta dela. – Não estás com medo, pois não, menina crescida? Sophie abanou a cabeça. – Não. Respondeu com o tom de voz de alguém que achava a pergunta estúpida, mas Vader vinha a caminho e a verdade era que estava mais assustada do que alguma vez se sentira na vida – mais assustada do que em janeiro, quando o doutor Hewitt lhe dissera que a leucemia voltara. No entanto, era importante não deixar o papá preocupado. Era mais difícil para ele. – Prisioneiros, parem de falar! – disse um dos guardas. Depois perguntou, em tom mais suave: – Precisam de uma bebida, ou qualquer coisa? Posso trazer-vos um sumo ou uma bolacha? Sophie perguntou: – Há sumo Ribena? – As palavras mágicas? – disse o guarda imperial. – Há sumo Ribena, por favor? – Claro que sim – disse o guarda imperial, e tirou um pacote de um saco térmico azul. – Temos um saco igual a esse em casa – disse Sophie. – Uau – disse o segundo guarda. – O universo é mesmo pequeno. O primeiro guarda virou-se para olhar para o outro e depois olhou rapidamente para Sophie. – Prisioneira! – disse o guarda imperial. – O nosso senhor é esperado a qualquer momento. Quando ele chegar, tem de ficar em sentido. Se ele lhe dirigir a palavra, tem de o tratar por «Lord Vader». Como é que tem de o tratar? – Lord Vader – respondeu Sophie baixinho. – Como? Não ouvi nada – disse o guarda, levando a mão em concha ao sítio do

capacete onde estaria a orelha. – Lord Vader! – disse Sophie, tão alto quanto conseguiu. Estava cansada da longa viagem de carro. A sua voz tinha um furo lento e estava a deixar sair ar. – Muito bem – disse o guarda, e afastou-se a trocar sussurros com o outro. O silêncio caiu sobre a ponte. Os guardas imperiais colocaram-se em sentido. As pernas de Sophie estavam a tremer. A «Marcha Imperial» soou em altifalantes escondidos. Sophie soltou um gemido involuntário. Uma porta de pressão abriuse. Nuvens de gelo-seco ondularam. Darth Vader emergiu entre o vapor, parou, imponente, apenas uma silhueta, e entrou na ponte. O seu respirador assobiava e soltava estalidos. Olhou para Sophie e para o papá e acenou lentamente. – Com que então – disse. – Os combatentes rebeldes capturados. Sophie sentiu a urina a escorrer-lhe pela perna, surpreendentemente quente. O líquido salpicou o chão de aço polido. O som era inegável. Olhou para a poça de urina no chão e sentiu a aproximação das lágrimas. O papá ia ficar mesmo aflito com isto. Ergueu os olhos para ele. – Estou bem – disse. – Estou bem. Houve um momento de silêncio surpreendido na ponte. O respirador de Vader sibilou. – Ah… sentes-te bem? – perguntou ele. – Acho que ela deixou escapar uma pinguinha de chichi – murmurou o papá. – O quê? – perguntou Vader. – Oh, onde estão as minhas boas maneiras? Queria dizer, acho que ela deixou escapar uma pinguinha de chichi, Lord Vader. Vader ergueu as mãos enluvadas, com as palmas viradas para fora. – Ei – disse. – Não façam de mim o mau da fita. O guarda imperial mais simpático aproximou-se, ajoelhou-se ao lado de Sophie e pôs o braço sobre os ombros dela. – Não faz mal – disse o guarda baixinho. – São coisas que acontecem. Sophie olhou para o rosto do papá, que estava contraído numa expressão de preocupação. Não suportava ter-lhe feito uma coisa destas. Começou a chorar. Darth Vader inclinou-se e deu-lhe uma palmadinha no ombro. – Que tubo é esse que tens aí enfiado? – perguntou. – É… é… um cateter Hi… Hi… Hickman – soluçou Sophie. O papá envolveu-a nos seus braços. – É para fazer os tratamentos de quimioterapia.

– Ah! – exclamou Vader. – Achas que isso é um cateter? Devias ver-me quando tiro este capacete. Tenho tantos tubos enfiados em mim que pareço um prato de esparguete. Sophie riu-se, entre os soluços. Uma bolha de ranho verde e perfeita cresceu numa narina, esticou até uma espessura molecular e voltou a encolher, como a membrana de uma rã a coaxar. – És uma jovem muito corajosa – disse Vader. Depois das lágrimas, Sophie ficara uma dor de cabeça latejante, uma pressão nas entranhas e uma dor de lado que a fazia querer enroscar-se. – Estou bem – disse, olhando para o papá. – Na verdade, sinto-me muito bem. Ele sorriu. Ela sorriu também. Isto era bom. A seguir, depois de limparem Sophie, Darth Vader pegou nela e pô-la às cavalitas. Olharam para os grandes ecrãs na ponte, que mostravam a galáxia estendida à frente deles, a tremeluzir. – Queres escolher um mundo para destruir? – perguntou Vader. – Porquê? – quis saber Sophie. Vader encolheu os ombros. – É apenas algo que ofereço aos meus convidados. – Tem de ser um mundo? Não podes destruir os meus glóbulos doentes? O ar saiu da grade na máscara de Vader, num suspiro. Ele agitou a mão na direção do campo estrelado. – Posso fazer o que quiseres naquele mapa – disse. Sophie apontou para uma estrela brilhante em Oríon. – Imaginemos que aquelas estrelas são os meus glóbulos brancos e que aquela é uma das más. – Muito bem – disse Vader. – Começar sequência de iniciação do raio da morte. Sophie ergueu a mão. – Desculpe, mas não é propriamente um raio da morte se está a salvar-me a vida. Vader apontou para o grande botão vermelho com uma etiqueta a dizer RAIO DA MORTE e disse: – É o único raio que temos. – Oh. Está bem. Vader agachou-se para deixar Sophie pressionar o botão. Ouviram um zumbido baixo, que cresceu lentamente de intensidade. As luzes tremeluziram. Todos observaram os monitores enquanto os oito feixes verdes do raio da morte convergiam num só, aceleravam através do espaço e aqueciam o núcleo do

glóbulo doente de Sophie até este explodir numa chuva de faíscas brilhantes contra o negrume do espaço. Viram as faíscas a extinguir-se e a desaparecer na escuridão perpétua. Parque de estacionamento, Estúdios Pinewood, Iver Heath, Buckinghamshire Jack levou Sophie ao colo para o carro enquanto Kate e Zoe despiam os seus fatos de guarda imperial. Ela estava estoirada. Agarrou-se ao pescoço dele e escondeu o rosto no seu peito. Jack transferiu o peso dela para um braço. A cabeça de Sophie tombou. Tirou a chave do carro do bolso de trás das calças de ganga, abriu a porta e sentou Sophie na cadeirinha de segurança. Tratou-a como um polícia paciente com um criminoso embriagado, com uma mão no cimo da sua cabeça para não a deixar bater na porta. Uma das últimas madeixas de cabelo na cabeça dela soltou-se. Soprada pelo vento, ergueu-se brevemente no céu encoberto e flutuou até cair na lama. Jack seguiu o seu progresso com os olhos e virou-se novamente para a filha. Não disse nada. Sophie ficou sentada com os olhos meio fechados, sem cooperar, enquanto Jack a instalava. Estava mole, como um réptil à espera de que o sol a aquecesse. Do outro lado do parque de estacionamento, crianças mamíferas com galochas encarnadas e gorros de lã às riscas riam e salpicavam-se umas às outras com a água castanha das poças. O cateter Hickman de Sophie estava exatamente no pior sítio possível para o cinto de segurança, onde este passava sobre a clavícula, por isso tinham sempre de pôr uma toalha dobrada debaixo do cinto. Verificou se o cateter Hickman estava protegido e se o cinto estava direito. Apertou o joelho de Sophie. – E aquele Vader? – disse. Ela abriu os olhos. – Foi tão fixe – disse. – Lembras-te de que ele na verdade é o pai do Luke Skywalker? Jack sorriu. – É?

Sophie acenou afirmativamente. – Ele diz-lhe! Em O Império Contra-Ataca? Mesmo no fim? Jack franziu a cara, como se estivesse a pesar essa informação. – Não acredites em tudo o que te diz um tipo de botas de cabedal preto pelo joelho. A animação abandonou o rosto de Sophie e uma expressão preocupada e provisória tomou o seu lugar. – O quê? Jack sentiu o estômago apertado. Fora um idiota por rebentar a bolha. – Desculpa, miúda. Esquece. Ergueu a mão para lhe acariciar a face, mas ela virou a cabeça e cruzou os braços. Agora Jack sentia-se péssimo por a ter provocado. Era com isto que ela sonhara – em que ela acreditava – enquanto as outras miúdas da rua andavam de bicicleta e faziam festas de pijama da Hannah Montana. O tipo que representara Darth Vader lidara bastante bem com a situação de Sophie. Melhor do que Jack teria feito, provavelmente. As pessoas eram boas, no fundo. O homem não devia ganhar mais do que – o quê? – dez libras por hora; oito por dia? Dentro daquela máscara preta sufocante, a ajudar pacientemente pré-adolescentes a escolherem mundos para destruir. Jack perguntou a si próprio se deveria ter dado uma gorjeta a Vader. Entrou para trás do volante e certificou-se de que o kit de emergência do cateter Hickman ainda estava no porta-luvas, ao lado do gel esterilizante, para o caso de Sophie começar a perder sangue pelo cateter e este ter de ser fechado. – Importas-te de parar de dar pontapés no meu banco, por favor? – Desculpa, papá. Jack ligou o carregador do telemóvel ao isqueiro do carro, para o caso de acontecer alguma coisa no caminho e precisarem de ligar para as emergências. Tirou o mapa das estradas de baixo do banco do passageiro e memorizou o caminho para casa, em Manchester. Depois verificou quais os hospitais mais próximos ao longo do caminho e tentou recordar-se de quais tinham serviços de urgências. Isto para o caso de Sophie ter convulsões, ou perder a consciência, ou ser picada por uma vespa ou uma abelha e precisar de uma injeção de adrenalina, por precaução, para impedir o pequeno corpo de entrar em choque. – Podes parar de me dar pontapés no banco? – Desculpa. Piscou-lhe o olho pelo espelho retrovisor. Não se importava, na verdade. Quando muito, até gostava – achava tranquilizador que ela o irritasse de formas

que uma criança normal faria. Um movimento no espelho chamou-lhe a atenção e Jack virou-se no banco e viu Kate e Zoe a atravessarem o parque de estacionamento. Zoe tinha a cabeça baixa. Kate caminhava lentamente, para deixar que Zoe se colocasse ao seu lado se quisesse, mas Zoe manteve-se alguns passos mais atrás. Jack perguntou-se se ela se teria arrependido de vir também. Debruçou-se sobre o banco para verificar se o pequeno cilindro de oxigénio de emergência de Sophie estava acessível na bolsa lateral da porta do passageiro. Confirmou que o tubo não estava dobrado nem obstruído. Rodou ligeiramente a válvula na parte de cima do cilindro e encostou a máscara de oxigénio ao ouvido para ver se estava a funcionar. Depois fechou a válvula e arrumou novamente o cilindro na bolsa da porta. Ergueu os olhos e ajustou o espelho retrovisor para ver Zoe e Kate a aproximarem-se do carro. Elas pararam para trocar algumas palavras e abraçaram-se. Jack sabia que não era o mais sensível dos observadores, mas hoje os sinais eram difíceis de ignorar: estas corridas loucas que as duas mulheres faziam até à beira da destruição, seguidas pela travagem e por um recuo cuidadoso. Tinham-no feito ao longo de toda a viagem até aqui. Sempre fora uma amizade difícil de manobrar, este afeto agridoce entre rivais, mas hoje isso parecia mais urgente. Kate sentou-se no banco de trás, ao lado de Sophie, segurou nas bochechas dela e beijou-a na testa. Sophie torceu-se e empreendeu ações evasivas, como qualquer maria-rapaz saudável de oito anos faria. Jack sorriu. Colecionava estes sinais de normalidade. Depositava-os no banco, sabendo que, se acumulasse os suficientes, os juros compostos acabariam eventualmente por aumentar o depósito até este ser uma criança em remissão. Zoe sentou-se no banco do passageiro, ao lado de Jack. Ele olhou para ela. – Tudo bem? Ela inclinou a cabeça. – Porque não estaria tudo bem? Jack não respondeu. – O que foi? – disse ela. – Vamos embora, por amor de Deus – pediu Kate do banco de trás. Ele encolheu os ombros, destravou o carro e recuou cinco metros. Sophie anunciou que tinha de fazer chichi. Jack sorriu. Era por causa do sumo – os guardas imperiais tinham sido muito generosos com a bebida. Avançou novamente cinco metros, puxou o travão de mão e ficou sentado, a olhar em frente.

Kate tirou o cinto de segurança a Sophie e ajudou-a a tratar do assunto na orla do parque de estacionamento, atrás de uma carrinha. Zoe e Jack olharam para elas. – Ultimamente, és mais pai do que humano – disse ela. Ele ignorou a provocação. – Pareces cansada, hoje. Zoe soltou uma fungadela. – Sabes mesmo como fazer uma rapariga sentir-se especial. – Andas a treinar demais? – A pensar demais, talvez. – Foi simpático da tua parte teres vindo. É importante para a Kate. Olhou para ela. – Às vezes torna-se tudo demasiado pesado, percebes? – disse Zoe. Jack apertou um pouco mais o volante. – Estás a aguentar? Zoe bateu levemente no peito, no sítio do coração. – Afeta-me mais do que antes. Quer dizer, a Sophie está tão doente… – Mas tu estás bem? Zoe hesitou. – Bem… – disse, a testar a sensação da palavra na boca, como se não fosse usada há algum tempo, como dona de casa ou Rodésia. – Bem – disse. – Sim. Quer dizer… merda, como posso não estar? Jack virou-se de novo para a frente e ficaram em silêncio enquanto Kate puxava as calças de ganga de Sophie para cima e a trazia de volta ao carro. – Do que estavam a falar? – perguntou Kate assim que abriu a porta. – Da Volta a França – respondeu Zoe. – Oh, já ouvi falar disso – disse Kate. Voltou a sentar Sophie e prendeu novamente o cinto de segurança. Jack observou-a pelo espelho e soube o que a mulher estava a pensar: como a filha estava a ficar magrinha. Em três meses de recaída, já perdera metade do peso que ganhara em três anos de remissão. Esticou a mão por trás do apoio para a cabeça do seu banco. Kate agarrou-a e apertou. A pressão criou um ponto fixo no tempo, ao qual podiam ser ancorados tantos eventos em aceleração. Depois de Sophie estar instalada, Jack arrancou. – Sophie? – Sim? – Da próxima vez que deres um pontapé no meu banco, levo-te para a Estrela

da Morte e deixo-te lá, para seres educada pelos Sith. – Desculpa, papá. Jack abrandou para passo de caracol nas lombas de velocidade na estrada de saída do estúdio e olhou para o retrovisor para se certificar de que Sophie não era muito sacudida. Quando entrou na estrada principal, conduziu de forma defensiva. Tirara um curso para aprender a fazê-lo, já que não era muito provável que qualquer tipo de acidente rodoviário melhorasse o prognóstico de Sophie. Jack planeou em que direção seria seguro guinar caso o Mercedes verde parado no cruzamento arrancasse antes de tempo. Quando isso não aconteceu, os seus olhos passaram para o carro seguinte, e depois para a pequena rotunda mais à frente. – Sophie… – Sim? – Pontapés. – Desculpa, papá. Jack tinha trinta e dois anos de idade, ganhara uma medalha de ouro nos Jogos Olímpicos e era um dos cinco ciclistas mais rápidos do mundo. – Sophie? – disse. – Se achares que estou a andar depressa demais avisa, está bem? Na autoestrada, seguiram pela faixa da direita, entalados entre camiões. Sophie sabia que era por causa da segurança dela. Era este o efeito que ela tinha nas pessoas: conduziam vinte por cento mais devagar, agarravam nas asas de panelas quentes com vinte por cento mais força, escolhiam as palavras com mais um quinto de cautela. Ninguém queria ter um furo e um acidente com ela no carro, ou entornar uma panela e queimá-la, ou dizer as palavras preocupado ou morrer. Ela queria dizer a todos que isso só servia para a deixar vinte por cento mais assustada, mas não podia. Eles faziam-no para lidar com a forma como ela se sentia. E ela sentia-se mal por fazer com que eles se sentissem assim. Pela janela, viu famílias normais a passarem nos seus carros. Eram, na sua maioria, famílias que não estavam do lado luminoso como os Argall nem do lado sombrio como os Vader. Famílias que não eram nada, iam apenas a caminho do jardim zoológico ou das lojas. Frequentemente, via-se que iam a discutir quando passavam. As suas bocas moviam-se de forma irritada por trás do vidro das janelas. Era como um museu de famílias humanas, onde as vitrinas passavam por ela sem etiquetas. Sophie escreveu as etiquetas na sua cabeça: Mãe Comprou as Batatas Fritas Erradas ou O Papá Não Nos Deixa Ouvir o Nosso Programa de Rádio.

Quando se fartou de observar as outras famílias, Sophie viu A Guerra das Estrelas na sua cabeça. Já vira os filmes tantas vezes que não precisava dos DVD. Viu os transportes blindados AT-AT a atacarem a base dos Rebeldes no planeta gelado Hoth, para não pensar em como se sentia doente. Sentia-se tão mal, hoje, que estava a ficar assustada. Doía-lhe tudo. Tinha a cabeça a latejar, a visão desfocada e os ossos doridos, como quando está muito frio e a pessoa sai para uma longa caminhada e a chuva cai cada vez com mais força. Vagas de náusea percorreram-na e causaram-lhe arrepios. Era incrível a forma como Skywalker pilotava o seu caça espacial. Era por ser um Jedi. Havia umas células especiais no sangue, chamadas midi-chlorians, que transformavam a pessoa em Jedi. Sophie sabia que as mudanças no seu sangue, que o doutor Hewitt pensava serem da leucemia, eram na realidade o início da formação de midi-chlorians. Não podia esperar que os médicos da Terra acertassem no diagnóstico – só com muita sorte veriam um caso desses ao longo de toda uma vida na medicina. Ainda assim, quando se sentia tão doente como hoje, havia alturas em que pensava que nunca se tornaria num Jedi. Mesmo a apenas noventa quilómetros por hora, estava desconfortável. O tremor da superfície da estrada sacudia-a e fazia-a sentir-se dorida por dentro. Como é que alguma vez conseguiria voar numa nave a centenas de quilómetros por hora, por entre as pernas de um transporte blindado imperial? Engoliu em seco. – Podes ir mais depressa, se quiseres – disse. O papá abanou a cabeça. – Vamos bem assim. Sophie olhou para os antebraços musculados do papá no volante e depois para os seus. Apertou os punhos para fazer sobressair os músculos. – Estás bem? – perguntou a mamã. – O que estás a fazer? – Nada. As veias nos seus braços eram azul-escuras e finas e não levavam a lado nenhum, como se alguém tivesse pegado numa caneta e desenhado um diagrama de um androide inútil no seu corpo antes de colocar a pele humana por cima. As veias do pai eram salientes como cordas, por baixo da pele, e formavam linhas com um objetivo, que levavam o sangue ao coração dele. O papá era o homem mais forte do mundo, provavelmente. Ela não compreendia como o papá conseguia olhar para ela – frágil e doente – e não ter medo. Tinha de tentar parecer forte e corajosa.

– Podes guinar um bocadinho – disse ela. – Não me importo. O papá olhou para ela pelo espelho retrovisor. – Porque é que havia de guinar? – Na verdade, estamos a ser perseguidos por um caça TIE. No banco da frente, Zoe fez uma expressão séria. – Muito bem. Desviar potência máxima para os escudos defletores da ré, Sophie, por favor. Sophie sorriu e carregou no botão no lado da sua cadeirinha que executava a ordem de Zoe. – Disparar turbolasers! – disse Zoe, e Sophie obedeceu. – Fixar as coordenadas do inimigo! Sophie estava espantada por ver como Zoe era boa nisto. Depois de o caça TIE estar destruído e estarem todos novamente em segurança, relaxou na cadeira. – Obrigada, Han! Zoe virou-se e tinha lágrimas nos olhos, algo que Sophie não conseguia perceber. Não se queixara, esforçara-se muito para não parecer doente, e ficava um bocadinho zangada e triste quando as pessoas tinham pena dela. Fez um esforço para continuar a sorrir. – Está tudo bem – disse a Zoe. – Na verdade, sinto-me ótima! Beetham Tower, Deansgate, número 301, Manchester Zoe saiu do carro. Enquanto este se afastava, acenou em despedida aos Argall e viu o rosto de Sophie a olhar para ela pelo vidro de trás. Os olhos da criança prenderam-se sem qualquer embaraço aos dela, tal como o seu irmão Adam costumava fazer, e o facto de estarem vazios de qualquer censura só fazia com que se sentisse pior. Apercebeu-se de que estava a tremer. Dormira pouco e depois a Estrela da Morte perturbara-a, e a viagem de regresso fora pior. Sophie parecia mesmo estar a caminho do fim e Kate estava em negação e Jack… bom, não conseguia perceber o que Jack pensava. Um único dia com aquela família parecera-lhe uma vida inteira. Não sabia como eles aguentavam. Havia uma quantidade louca de emoção, mas nada suficientemente concentrado para se poder chorar por isso a determinado

momento. Era impossível. Resolveu subir até ao seu apartamento e beber um café. Parecia uma coisa razoável para fazer. Conseguia facilmente imaginar uma mulher com emoções mais fáceis de gerir do que as que ela sentia neste momento a dizer para os seus botões: Sabem que mais? Acho que vou beber um expresso. Era o melhor que podia esperar hoje: fazer as coisas que as pessoas normais faziam e esperar que, por alguma espécie de magia solidária, a sensação normal de bem-estar dessas pessoas se transferisse para ela. Caía uma chuva do princípio de abril. O passeio em frente do átrio da Beetham Tower estava isolado com cones cor de laranja e barreiras de segurança brancas e vermelhas. Um guindaste amarelo estava a içar oliveiras para o céu, uma a uma. Zoe parou para ver. Havia uma dúzia de árvores à espera da sua vez de subir. Tinham dois metros e meio de altura, os troncos embrulhados em plástico de bolhas e as raízes envoltas em sacas cor de laranja. Nos vértices do vento que soprava em torno da torre, a parte inferior das folhas de oliveira brilhava quando se viravam, todas ao mesmo tempo, como que respondendo a um sinal invisível, como cardumes de peixes prateados. Zoe franziu os olhos por causa da chuva e viu uma árvore a girar no seu suporte, refletida nas janelas da torre, enquanto subia em direção ao céu cor de chumbo. A operação decorria há já dois dias. As árvores iam para a cobertura, um piso acima do apartamento dela. O condomínio estava a fazer um «espaço verde» com aves e plantas e uma coisa qualquer de água. Ficaria agradável – um souvenir da Terra. Zoe queria ver as árvores a subir mas não podia ficar muito tempo na rua antes de as pessoas começarem a reconhecê-la. Do outro lado da rua estava um cartaz iluminado de noventa e seis folhas. Mostrava uma imagem do seu próprio rosto, com seis metros de altura, os grandes olhos verdes emoldurados por cabelo verde e bâton verde. A mão, com as unhas pintadas de verde, segurava uma garrafa de Perrier coberta de condensação. Bebe-se melhor fria, dizia o texto do anúncio. No terço direito do cartaz, tão grandes como o rosto dela, estavam os anéis olímpicos cobertos por uma camada de gelo. Ergueu os olhos e viu a forma laranja de uma árvore embrulhada a desaparecer nas nuvens. A mancha de cor ficou por um instante no limite da sua visão e depois deu lugar ao cinzento. Zoe sentiu um pânico cuja causa não conseguia identificar. Antes que algum transeunte a visse, entrou no átrio da torre, de cabeça baixa. Atravessou apressadamente o chão de mármore e apanhou o elevador para o quadragésimo sexto andar.

Lá dentro, com o rugido da cidade cento e cinquenta metros mais abaixo, colocou a chave Yale num prato de estanho que tinha apenas essa finalidade. O tilintar da chave ao atingir o prato era o único som. Ao lado do prato, uma garrafa de água de alumínio, muito antiga e amolgada, era o único outro objeto na mesinha preta e reluzente do vestíbulo. Descalçou os ténis, enfiou papel de jornal amachucado dentro deles, colocou-os na prateleira e calçou os chinelos de feltro cinzentos que estavam exatamente onde ela os deixara. Tentou recordar-se do nome do homem que deixara a dormir na sua cama. Era simpático. Alto, de aspeto italiano, alguns anos mais novo do que ela. Carlo, tinha quase a certeza, ou Marco. Qualquer coisa acabada em «o», com um sorriso que dizia que isto não era nada sério. Mesmo assim, às vezes tinha esperança. Chamou: – Olá! Nada. Não havia qualquer bilhete no frigorífico, nem um recado em cima do balcão da cozinha. Procurou na sala – nada. No quarto, a cama estava desfeita – lembrava-se de terem feito isso – e os boxers dele estavam ao canto, para onde ela os atirara. O resto das roupas dele tinha desaparecido. As suas quatro medalhas de ouro não estavam na prateleira onde as guardava e, por um segundo, o seu coração parou. Depois viu-as a brilhar por baixo de uma almofada e pegou-lhes. Encostou o metal frio ao peito e suspirou. Ele era um idiota porque não lhe deixara um contacto, mas não era um ladrão. Supunha que tivera sorte, de novo – se podia chamar-se a isso sorte. O apartamento estava silencioso e havia talvez o fantasma do cheiro dele. Fez um café expresso na máquina de café encastrada e sentou-se num sofá cinzento de costas baixas, sem braços, na sala. As nuvens obscureciam a vista das janelas que ocupavam a parede, do chão ao teto. Só vivia aqui há uma semana. Nos dois dias de tempo limpo, conseguira ver até ao Centro Nacional de Ciclismo, onde treinava e competia, a cinco quilómetros de distância, para leste. Parecera-lhe as costas curvas e cinzentas de um escaravelho; como se pudesse escapar-lhe, rastejando entre a vegetação de parques industriais e centros logísticos que contornavam a cidade. Ao olhar para o horizonte pelos binóculos que o agente imobiliário lhe deixara, vira também as montanhas de Snowdonia, a catedral anglicana em Liverpool, a Blackpool Tower e a praia. Na sua terceira noite, vira relâmpagos e o vento a soprar nas planícies do Cheshire. Agora não havia nada para ver, apenas cinzento. Era difícil não se sentir como

um fantasma. Zoe ergueu a mão em frente do rosto e ficou espantada por não conseguir ver através dela. Levantou-se, dirigiu-se à cozinha e comeu uma fatia de pão de cereais seco. A textura era reconfortante. Bebeu um copo de água e sentou-se novamente na sala. Perguntou a si própria se esta seria a sua vida daqui para a frente, deslocandose sozinha entre estes espaços designados, habitando-os de acordo com os padrões de uso visualizados pelo arquiteto. Paolo – era esse o nome dele. Abriu o computador portátil e encontrou-o no Facebook. Ainda era mais atraente do que ela se lembrava. Fora uma noite agradável. O sexo fora bom, mas houvera mais do que isso. Sentira uma certa ternura – algo que a comovera. Estava ligeiramente surpreendida por ele não ter deixado um bilhete. Fechou os olhos e permitiu-se acreditar que ele estava neste preciso momento a caminho, no elevador, com flores. Sorriu. Era uma parvoíce, mas tinha de acreditar que estas coisas eram possíveis. Fora do alcance da sua visão, a vida podia estar a mover-se de formas que estavam apenas a momentos de lhe serem reveladas. Era um erro aceitar as desilusões sem levantar mais questões. Estamos sempre a uma batida na porta e uma dúzia de flores frescas da felicidade. Abriu os olhos e clicou no perfil do homem. O seu sorriso desapareceu. Leu o que ele escrevera sobre ela e viu as fotos que publicara do apartamento, seminu, com as suas medalhas de ouro olímpicas ao pescoço. Depois leu novamente o que ele escrevera. Ela era louca na cama. Ela era agressiva. Ela tinha de ficar por cima. Ligou para a sua agente. – Acho que sou capaz de ter um pequeno problema – disse, cuidadosamente. Depois, pousou o telefone no sofá, ao seu lado, recostou-se e olhou em volta, para esta casa que comprara com um depósito de trinta por cento que o patrocínio da Perrier lhe possibilitara, mais uma hipoteca de um milhão de libras que não tinha qualquer perspetiva de continuar a pagar a menos que vencesse o ouro em Londres, daí a quatro meses, e conseguisse outro contrato de patrocínio. A pressão extra ajudava-a a ultrapassar o limite da dor nos treinos. Tinha de se conservar desesperada – tão intrépida como era quando não tinha nada. Tinha de duplicar a parada a cada vez, ou veria alguém mais assustado do que ela deixá-la para trás em pista. Divertia-a que esta casa que comprara para se assustar a si própria se esforçasse tanto para ser tranquilizadora. As paredes estavam pintadas com tinta Farrow & Ball. Tinham a qualidade de não refletir nem absorver. O tom

chamava-se Archive. As altas janelas de vidro duplo adaptavam-se ao nível de luz no exterior, poupando as pupilas dos ocupantes a esse stress. Numa mesa de apoio baixa, de pau-ferro, ao lado do sofá, estava o último exemplar da revista Marie Claire com o rosto de Zoe na capa, a sorrir. Folheoua. Ela era ferozmente determinada. Ela era implacável e imparável. Ela era movida pelos seus demónios. Era o que eles tinham escrito. Nada disso lhe parecia ser ela. Fechou os olhos e tentou, com a respiração, acalmar o pânico que se espalhava a partir do seu estômago. Não havia o ruído do tráfego; não havia o som da televisão dos vizinhos; nada. Tão alto acima da superfície do mundo, aquilo que o agente imobiliário vendera como privacidade parecia-se muito com solidão. Tão alto acima da cidade sobre a qual Zoe se erguera, o silêncio parecia irrevogável. Não sabia o que lhe passara pela cabeça. Talvez achasse que podia deixar os seus problemas quarenta e seis pisos mais abaixo, na Terra. Tentou concentrar-se na respiração. Desejou que Tom estivesse aqui. Ele saberia o que dizer para a ajudar a ultrapassar aquilo que estava a sentir. Desde que o conhecera, aos dezanove anos de idade, confiara nele para a ajudar a ultrapassar os dias difíceis. O problema era que os dias difíceis já não eram os dias das corridas. Competir nos Jogos Olímpicos já não a assustava. A perspetiva de sair para o rugido da multidão, em Londres, parecia simples e natural e boa. Agora eram os dias normais que a assustavam – as intermináveis manhãs de terçafeira e tardes de quarta-feira da vida real, os dias em que tinha de se deslocar sem o auxílio do guiador. Fora da bicicleta, ela era uma fumadora sem cigarros, sem saber nunca o que havia de fazer com as mãos. Assim que descia da bicicleta, esperava-se que o seu coração desempenhasse uma série de funções secundárias desconcertantes – como amar alguém e sentir alguma coisa e pertencer a algum lado – quando tudo o que ela o treinara para fazer era bombear sangue. Estremeceu e pegou no telefone para ligar a Tom. Com o número dele no ecrã, parou. Sabia que ele lhe pediria que formulasse o problema, e tentou pensar no que lhe diria desta vez. Provavelmente devia começar com uma pergunta sobre a sua dieta, ou o seu regime de Pilates, e depois deixar Tom perceber o que se passava realmente. Era o que fazia frequentemente, agora, quando lhe ligava. Afinal de contas, era uma campeã e era humilhante dizer simplesmente em voz alta: Por favor, não estou a aguentar. Hesitou, de olhos postos na neblina cinzenta que cobria a cidade. Uma oliveira italiana passou silenciosamente pela janela, a girar devagar sobre si própria

enquanto subia. Barrington Street, Clayton, zona leste de Manchester Jack virou para a rua da casa dos Argall e abrandou a velocidade enquanto tentava evitar os buracos da estrada. Olhou para o espelho retrovisor para se certificar de que não estava a sacudir demasiado Sophie. A chuva abrandara e meia dúzia de crianças manobravam as suas bicicletas pela longa rua em linha reta, entre as casas vitorianas de tijolo vermelho, idênticas, todas com um degrau e um muro baixo a separar a porta da frente pintada do passeio. As crianças pararam as bicicletas para fazer balões de pastilha elástica e ver os Argall estacionarem em frente da sua casa. Jack abriu a porta do carro, saiu para as últimas gotas de chuva e franziu a testa. – Nunca estão dentro de casa, vocês? A criança mais alta era uma rapariga de oito anos, com leggings cor-de-rosa, ténis brancos e uma parka verde com o capuz na cabeça. Avançou ligeiramente, afastando a bicicleta dos outros, agarrou nos travões e inclinou a cabeça. Franziu o nariz e olhou para Jack como se este fosse ligeiramente atrasado. – Não ’tá a dar nada na televisão – disse. – Só merda. Ele franziu a testa. – O que foi? – disse a miúda. – Só disse merda. Não é uma palavra na merda da Lapónia, ou lá de onde vem, Mr. Argall? Inclinou-se para a frente e cuspiu para a estrada. Um fio de saliva não se separou e ela sugou-o como se fosse esparguete, por entre o intervalo nos dentes da frente, sempre a olhar para Jack de forma amistosa. – Venho da Escócia – disse Jack. – Saberias se aparecesse na televisão. Gaitas de foles? Kilts? Heroína? – Na boa – disse a rapariga. – A sua Sophie está bem? – Pergunta-lhe, Ruby. Ela sabe falar. Kate saíra do carro e estava debruçada a soltar o cinto de segurança de Sophie. A rapariga aproximou a bicicleta. – A mamã deixou um bolo para si, Mrs. A. No degrau. Kate olhou e ali estava, um Tupperware e uma lata de biscoitos no degrau da casa deles.

– Dois bolos – disse. – É muito amável. – Não, a lata é da mãe da Kelly. São biscoitos, mas eu não os comia, se fosse a si, porque a mãe da Kelly é porca. – Ruby, querida, isso não se diz – disse Kate. Jack lançou-lhe um olhar por cima da cabeça de Ruby que dizia «Sim, mas…» e Kate tentou não se rir. – Vamos lá tirar-te daqui, Sophie – disse, amparando a cabeça da filha enquanto a tirava do carro. Sophie olhou para a outra rapariga por cima do ombro de Kate. Pestanejou por causa do chuvisco. – ’Tá tudo, Soph? – perguntou Ruby. – Fantástico – disse Sophie. – Fomos à Estrela da Morte e conhecemos o Darth Vader e era mesmo ele, porque se não fosse porque é que eu teria estas recordações? Ruby revirou os olhos. – Quando é que voltas para a escola? – Não sei, pois não? – Em breve, Ruby – disse Kate. – Quando ela estiver melhor. – Já perdeste dois meses – disse Ruby. – Se faltares mais, terás de ir para a matemática atrasada com o Barney e ele vai mostrar-te a pilinha. Sophie encolheu os ombros, indiferente. – Já a vi. Ruby sorriu, estendeu o braço rapidamente e pegou na mão de Sophie. Olhou para os olhos dela durante um segundo e inclinou a cabeça para a frente, como se estivesse a tentar direcionar forças de dentro de si, através do braço, para o corpo de Sophie. Depois largou-lhe a mão, fez um balão com a pastilha elástica e pedalou para junto das outras crianças que andavam a fazer círculos na rua. Sophie deixou a mamã levá-la ao colo para dentro. A casa cheirava a torradas e a óleo de bicicleta. As bicicletas de estrada dos pais estavam penduradas em ganchos no corredor. A mamã colocou-a no chão e ela abriu caminho ao pontapé por entre a confusão de sapatos, luvas sem par e casacos atirados para o chão do corredor, até chegar à casa de banho no vão das escadas. Sophie atirou-se para dentro da casa de banho e deixou-se cair no chão, às escuras. Encostou as costas à parede e fechou os olhos. Aquele meio minuto de conversa com Ruby deixara-a esgotada. Mas era bom. A mamã vira, o papá vira. Correspondia a uma hora em que eles não se preocupariam. Depois disso, sabia que ia começar a ver as rugas a regressarem aos poucos aos rostos deles, e

ouviria a tensão a voltar às suas vozes, e repararia nos breves olhares de relance que lhe lançavam quando fingiam não estar a olhar. Começariam a discutir um com o outro, sobre coisas estúpidas como as horas de treino e arroz agulha, sem sequer saberem porque o faziam. Mas ela saberia porquê. Significava que estavam novamente com medo por ela, e teria de fazer uma das coisas que os faziam esquecer-se por mais uma hora. Se estivesses no carro, podias dar pontapés nas costas do banco. Isso deixavaos irritados, que era o oposto de assustados. Se estivesses em casa, tinhas mais opções. Podias responder torto ou ser mal-educada, o que fazia com que parecesses menos doente. Podias fazer um desenho. Podias correr pelas escadas acima e fazer muito barulho para eles repararem, mesmo que a seguir tivesses de te deitar na cama durante dez minutos. Podias fazer com que parecesse que tivesses comido a torrada toda, nem que tivesses de a enfiar dentro da T-shirt e a deitar para a sanita mais tarde. Podias jogar a jogos de rapaz, como a Guerra das Estrelas, que tinham lutas e naves espaciais e te faziam parecer dura, apesar de não teres forças suficientes nem para andar de bicicleta. À noite era mais difícil. À noite, quando tinhas pesadelos e a mamã ou o papá vinham a correr, podias dizer-lhes que era sobre um lobo ou um ladrão – as coisas sobre as quais as crianças saudáveis tinham pesadelos – e não sobre a Morte, que te deixava tão assustada que nem sequer conseguias forçar a voz a chamar a mamã e o papá. Quando era a Morte, só conseguias ficar quieta e calada. Noutras noites, podias fingir que estavas a dormir quando a mamã te vinha ver às dez da noite, à uma e às quatro da manhã. Se pusesses o despertador do iPod para cinco minutos antes do dela, podias fingir que estavas a dormir profundamente, apesar de teres estado a ler banda desenhada da Guerra das Estrelas metade da noite. Havia uma centena de coisas que podias fazer para que a mamã e o papá não se preocupassem. Podias engraxar os teus próprios sapatos, lavar os dentes, vestir-te bonita, embora estivesses tão cansada que só te apetecia deitar e fechar os olhos. Podias falar sobre o futuro – eles gostavam quando falavas sobre o futuro, desde que fosse próximo. Se dissesses «Amanhã posso ir às compras contigo?», eles ficavam felizes, porque significava que estavas a ser otimista. O doutor Hewitt chamava-lhe envolvimento positivo e era sinal de que não sofrias daquilo que mais assustava toda a gente, que era incapacidade de desenvolvimento. Por isso, se dissesses «Posso ir contigo às compras amanhã?», eles diziam «Boa ideia!», mas, se dissesses «Para o ano podemos ir a França nas férias?», eles ficavam com uma expressão vazia nos olhos, olhavam um para o outro de lado e diziam

coisas como «Vamos levar um dia de cada vez, está bem?». Se quisesses que eles não se preocupassem, havia também uma centena de coisas que não podias fazer. Não podias tossir, não podias sentir-te mal e nunca podias dizer que estavas triste ou cansada. Se estivesses mesmo a sentir-te mal, havia formas de o esconder, e se estivesses mesmo triste também havia maneiras. Havia tantas maneiras de fazer com que o papá e a mamã não se preocupassem, que era fácil pensar em qualquer coisa para cada hora. A única parte difícil era que tudo te fazia sentir muito cansada, e essa era uma das principais coisas que nunca podias estar. Era por isso que às vezes tinhas de descansar assim, na casa de banho, às escuras. Agora que descansara, Sophie estendeu o braço e puxou o cordão da luz. A pega de madeira saíra da ponta e perdera-se, e a mamã atara uma das suas medalhas de ouro dos Jogos da Commonwealth no seu lugar. A medalha baloiçou sob a luz da lâmpada nua, a reluzir enquanto girava. Ouviu música na cozinha. Sophie sorriu. O papá estava bem-disposto. Os Jesus & Mary Chain estavam a tocar «Never Understand». A música do papá era uma merda. Através da porta da casa de banho, conseguia ouvir o papá a cantar. Parecia um papá qualquer a cantar palavras. Sophie adorava os momentos em que a mamã e o papá estavam contentes. Se se concentrasse e os arrumasse na memória, podia colecioná-los, como velhas moedas de cobre, ou cristais. Sophie levantou-se com a ajuda do lavatório, sentou-se na sanita e fez chichi. Desta vez, a sua urina era de um verde-lima brilhante. Estava contente por a mamã e o papá não a poderem ver, porque ficariam assustados. Puxou o autoclismo e lavou cuidadosamente as mãos no pequeno lavatório, com o sabonete formado com os restos dos últimos dois. Limpou as mãos às calças de ganga. Através da porta, ouviu os pais a rirem no corredor. A mamã estava a dizer ao papá para parar com a cantoria. Sophie pôs-se em pé na sanita para olhar para o espelho por cima do lavatório. Tinha de ver como estava, todos os dias. Fazia-o aqui, para ninguém a ver. Tirou o boné da Guerra das Estrelas e examinou o couro cabeludo. Já só tinha uma madeixa de cabelo, pendurada sobre a testa do lado esquerdo. No espelho, viu olheiras escuras sob os olhos. Era apenas o efeito da lâmpada forte. Mas o seu rosto parecia mais magro. Levou as mãos às faces, passou os dedos sobre as maçãs do rosto e sentiu as arestas dos ossos. Ficou assustada por um momento, mas depois percebeu que não era da leucemia. Era só o que a microgravidade da Estrela da Morte fazia a uma pessoa. Fazia-a definhar. Provavelmente os guardas

imperiais eram todos assim, por baixo dos capacetes. Pôs novamente o boné na cabeça e olhou para o seu reflexo. Esfregou as faces para lhes dar alguma cor. Planeou o que faria em seguida: iria à cozinha, exibiria um ar saudável durante cerca de um minuto, diria ao papá que a música dele era uma porcaria, depois subiria para o quarto para se deitar. Não: «A tua música é uma merda», como Ruby diria. E o papá sorriria e cairia de joelhos e fingiria lutar com ela, e a mamã riria quando os visse e seria mais uma hora em que a mamã e o papá não se preocupariam. – Merda – disse Sophie baixinho, a praticar a palavra. Casa de banho, apartamento 12, The Waterfront, Sport City, Manchester Tom Voss ainda se lembrava de como se sentira no México, em 1968, quando falhara a medalha de bronze por um décimo de segundo. Ainda conseguia sentir a angústia no peito, crua e por vingar. Quarenta e quatro anos depois ainda reparava na passagem marcante de cada décima parte de segundo. As inflexões do tempo eram os dentes de uma serra, bissectando-o. Não era assim que as outras pessoas viviam o tempo. Os outros viam os seus dentes de forma indistinta, numa mancha de movimento, e ficavam espantados quando acordavam um dia e davam por si cortados ao meio, como os assistentes de um mágico negligente. Mas Tom sabia como esse corte era feito. Atendeu o telefonema da agente de Zoe enquanto estava de molho na banheira, a tentar persuadir os joelhos a dobrarem-se. – Ela anda outra vez a dormir com um e com outro – disse a agente. – Está por todo o Facebook. – Facebook? – disse Tom. – É um site de rede social, Thomas. As pessoas usam-no para trocar informações com os amigos. Um amigo é alguém que… – Muito engraçado – interrompeu Tom. – Eu sei o que é o Facebook. A Zoe tem muitos «gostos» na página dela, não tem? – Noventa mil, da última vez que verifiquei. Segurou o telefone com o ombro enquanto massajava os joelhos. Os ligamentos inflamados não estavam a responder à aplicação da pomada de ibuprofeno. Na verdade, sabia que só responderiam se ele aplicasse várias décadas de sabedoria

de treinador de primeira categoria à sua própria vida. Talvez estivesse na altura de admitir que um homem de sessenta e seis anos não devia andar a levantar um haltere pesado. Enfim. Havia contabilistas que metiam água nos seus próprios impostos. Havia médicos que fumavam Marlboro Reds. Porque havia ele de ser o primeiro velho a dar ouvidos a si próprio? Era um treinador desportivo; não era nenhum pioneiro. – Seja como for – estava a agente a dizer. – Ela foi para a cama com um tipo e, pelos vistos, ele acordou, apercebeu-se de quem ela era e espalhou o caso pela Internet. Onde, neste preciso momento, os detalhes picantes estão a ser lidos por todas as pessoas da Terra com a exceção dos Chineses porque o Facebook está bloqueado na China, e de ti, porque és um velho reacionário sem interesse nenhum por coisas divertidas. Queres que te leia as imundícies que ele escreveu? – Nem por isso. – Vou ler – disse ela, como se ele não tivesse dito nada. Tom ouviu, mas ficou sem saber o que havia de fazer com a informação. – Sou o treinador da Zoe na pista – disse, por fim. – Quem ela leva para a cama é problema dela. – De acordo – disse a agente –, mas isto é apenas para estares dentro do assunto e sugerir que… Tom gemeu. Porque é que as pessoas não diziam simplesmente «Queria dar-te a informação?». – Está tudo bem? – perguntou a agente. – Céus, essa é uma pergunta tremendamente filosófica. – Fizeste uma espécie de… ruído. – Sim, na verdade, rosnei-te. É coisa dos Australianos. E parece que funcionou, porque paraste de falar. – Ouve, estou apenas a tentar ajudar, está bem? – O que estás a tentar fazer, querida, é proteger os teus quinze por cento. – Ela é o rosto da Perrier, Tom. Vale a pena proteger. – Ouve, se a água com gás quer um rosto, isso é problema da água com gás. O meu trabalho é ajudar a Zoe a ganhar o ouro no sprint nos Jogos Olímpicos de Londres daqui a cento e vinte e sete dias. – Sim, e o que eu estou a dizer é que estamos os dois do mesmo lado. Com certeza que o facto de estar espalhada pelo Facebook não a ajuda a concentrar-se. – Não discordo, mas o que queres que faça? Que desligue o Facebook? Vou falar com o meu corretor, mas estou bastante certo de que não sou eu o dono. – Não podias apenas ter uma conversa com a Zoe? Ela respeita-te.

Tom sorriu e o seu tom suavizou-se. – A lisonja leva-te onde quiseres, querida, mas não te iludas. Desde que a Zoe tinha dezanove anos que ando a tentar acalmá-la. Se pudesse, punha-a a dormir sempre que não estivesse a treinar ou a correr. Atirava-lhe um daqueles dardos tranquilizantes com uma zarabatana, como fazem aos tigres na selva. Mas o que posso fazer? Sou apenas um treinador. Só nos dão um apito e um cronómetro. A agente disse, em tom compreensivo: – Bem, espero que possas fazer alguma coisa, porque isto estará escarrapachado nos jornais todos amanhã, e estas coisas têm tendência para fugir do nosso controlo. Pelo menos, devias encorajá-la a não lhes dar mais munições. Tom suspirou. – Vou chamá-la e verei o que consigo fazer. Não posso prometer mais nada. – Obrigada, Tom. Fico a dever-te uma. – Bom, talvez possas fazer de mim o rosto de uma coisa qualquer. A agente riu-se. Ao telefone, o som parecia um ganso a grasnar com a cabeça enfiada numa lata de Lyle’s Golden Syrup meio vazia. – E querias ser o rosto do quê? – Não sei. Do Nurofen? Uso muito. – Acho que preferiam alguém jovem e sem dores. – Que ironia. – Ah, é assim o mundo do espetáculo. Tom desligou. Pensou por um instante, depois enviou uma mensagem a Zoe, a pedir-lhe que estivesse no seu apartamento dentro de uma hora. Se queria reafirmar alguma espécie de autoridade sobre ela, era melhor que fosse no seu território. Regra número um do treino de tigres: garantir que o animal sabe que vai entrar no nosso território. Zoe respondeu de imediato, também por mensagem: Ok, chefe. Linda menina – ela sabia do que se tratava. Apareceria, ele dar-lhe-ia um raspanete, depois faria uma chávena de chá Earl Gray para os dois e mandá-la-ia à sua vida. Sentiu uma pontada de preocupação com Zoe. Esforçara-se tanto por acertar com ela. Fora um pai terrível, mas Zoe e Kate, às vezes, pareciam a sua segunda oportunidade. Provavelmente preocupava-se mais do que devia, tendo em conta o que ganhava, com estas duas mulheres que treinava desde que tinham dezanove anos. Fantasiou um pouco sobre o que faria ao tipo que manchara a reputação de Zoe na Internet. Eram bastante boas, estas fantasias de vingança. Com joelhos

funcionais, podia dar uma carga de pontapés a qualquer um. Era uma das muitas vantagens da fantasia sobre a realidade. No entanto, preocupava-se realmente com Zoe. Ela era difícil de perceber, e talvez fosse por isso que gostava tanto dela. Tanto quanto sabia, ela acreditava mesmo nos falhados atraentes por quem se apaixonava. Tom tentara muitas vezes falar com ela sobre o assunto, mas Zoe fazia sempre uma piada, como se chegar à sessão de treino matinal com o coração em pedacinhos fosse um mal necessário que tinha de aguentar, como perder um brinco, ou não arranjar lugar sentada no autocarro. Ela era defensiva e, às vezes, isso manifestava-se como sarcasmo. E tinha razão – o que sabia ele sobre a busca de uma mulher pelo amor? No entanto, se Tom tivesse de apostar, diria que ela era mais vulnerável do que imprudente. Acrescentou mais água quente ao banho. O problema era que ele via coisas nos homens que Zoe nunca veria. Ele sabia como os filhos da mãe eram. – Não desfazendo dos presentes – disse, em voz alta. O vapor ergueu-se da água. Não podia culpar Zoe por estar desesperada. As probabilidades contra ela encontrar o amor aumentavam todos os dias. Estava a tornar-se cada vez mais conhecida, e os homens continuavam a piorar. O planeta estava a encher-se de jovens mundanos e atraentes, compostos inteiramente de opostos que se cancelavam mutuamente e – falando como homem – não deixavam nada que uma pessoa quisesse honestamente levar a beber um copo. Esta nova espécie de homem aliava sapatos citadinos com barbas rústicas. Tocavam em bandas mas trabalhavam em escritórios. Odiavam os ricos mas compravam bilhetes de lotaria, riam-se das comédias de vidas patéticas que eram claramente baseadas nas suas e, o pior de tudo, adoravam mexericos. Cada coisa que faziam, desde abrir a embalagem de um telemóvel novo a dormir com a atleta dele, despertava a compulsão de o colocar online e ver o que o resto do mundo pensava. As suas vidas eram um vácuo ensurdecedor que sugava as atenções. Não via como é que Zoe conseguiria encontrar o amor junto desta nova raça de homens com almas ciclónicas, que sugavam como aspiradores e nunca precisavam de mudar o saco para continuarem a aspirar e a aspirar. Tom praguejou entre dentes e afastou esse pensamento. A agente tinha razão: ele era um velho. Além disso, provavelmente estava a pensar demasiado em Zoe. Não devia ter favoritos e a verdade era que não tinha. Kate era a ciclista mais dotada, Zoe equilibrava-o com pura determinação, e Tom gostava igualmente das duas. Olhou para o relógio – faltavam quarenta minutos para Zoe chegar. O seu relógio era um Casio, à prova de salpicos, e fazia apenas uma coisa, que era dizer

o raio das horas. Esta era outra diferença entre ele e os homens de hoje em dia. Todos usavam relógios à James Bond, com mostradores separados para o cronómetro, resistentes até uma profundidade de mil metros. O que diabo é que pensavam que lhes ia acontecer? Achariam que iam ser arrancados às lojas onde trabalhavam e arremessados para o fundo da fossa das Marianas, de onde conseguiriam sair a nadar graças unicamente à sua capacidade de controlar o tempo até à fração de segundo? Esses tipos não saberiam o que era uma fração de segundo, nem que esta lhes negasse uma medalha olímpica. Não tinham qualquer conceito do que se podia ganhar e perder numa fração de segundo. O tempo era desperdiçado com esta nova raça de homem, capaz de passar a noite inteira com uma mulher e depois colocá-la online em menos de um minuto. Suspirou. Sabia que não estava a ser justo. O que quer que se passava com Zoe, era mais do que este último homem. Fora das pistas, a sua capacidade de julgamento era uma merda. Este seu novo apartamento, por exemplo. Um golpe de sorte com aquele patrocínio – os anúncios da Perrier, graças à beleza dela – e endividara-se mais do que uma carreira de ciclista alguma vez conseguiria pagar. Como treinador, Tom devia forçá-la a pôr os pés na Terra, literalmente. Tirá-la daquele apartamento e trazê-la de novo para o nível do solo, onde os atletas perseguiam o ouro apenas pela glória. Para ser honesto, deixava-o doente a forma como a agente dera a volta à cabeça de Zoe. Porém, sabia como era: uma pessoa sozinha perdia toda a perspetiva humana. Não tinha ninguém que lhe dissesse: miúda, estás a ser uma idiota em relação a isto. Começou a tentar dobrar os joelhos, num prelúdio para se levantar e secar. Massajou as articulações mais uma vez, para soltar os ligamentos, praguejando ritmicamente entre dentes. Por fim, frustrado, bateu com os punhos na parte de trás das dobradiças dos joelhos. A dor disparou e os joelhos recusaram-se terminantemente a obedecer. Troçavam dele, mudos e inarticulados. A água do banho arrefecera. Levantou uma perna, rígida e esticada, e tentou abrir a torneira de água quente com o dedo grande do pé. O dedo subiu pela corrente da tampa da banheira, cada pequeno elo cromado a marcar um trigésimo de segundo contra a pele molhada. Conseguiu rodar a torneira, mas não havia mais água quente. Apercebeu-se de que estava a ficar com frio. Os joelhos estavam a adotar a configuração de caixão. – Não se habituem, seus filhos da mãe preguiçosos. Vou mandá-los cremar. Quanto mais tempo aqui ficasse, pior seria. Ainda há pouco, quando ele tinha vinte e dois anos, fora campeão nacional da Austrália em contrarrelógio e número dois em sprint. E depois, há tão pouco tempo que ainda conseguia ouvir o hino

«God Save the Queen» a ecoar-lhe nos ouvidos, vencera duas medalhas de prata nos Jogos da Commonwealth. Sentira realmente cada ínfimo aumento de tempo nas quatro décadas desde então e contudo aqui estava ele, surpreendido por ser subitamente velho e inválido. Parecia que a corda não queria saber se o condenado reparava em cada flor no caminho para o patíbulo. Tentou levantar-se, apoiando as mãos nas beiras da banheira para içar o seu corpo seco com intenção de conseguir manobrar uma nádega para cima da beira, passar as pernas para o lado de fora e cair de forma razoavelmente controlada no tapete azul, recuperar o fôlego e arrastar-se pelo chão até aos toalheiros elétricos aquecidos, onde podia segurar-se para se pôr em pé. Raios me partam, pensou. Neste momento esse é mesmo o melhor cenário possível, cair desta banheira e aterrar no chão desta casa de banho moderna neste apartamento de três assoalhadas com as suas janelas de vidros duplos e a varanda com vista parcial para o canal, neste projeto de recuperação de um bairro residencial, a vinte mil quilómetros do sítio onde nasci. O frio apoderou-se dele. Não tinha força nos braços para se içar para fora da banheira. Pensou durante muito tempo no que havia de fazer, mas não lhe ocorreu nenhum plano. O problema agora não era ter falhado o pódio por um décimo de segundo. Era não conseguir sair da banheira. Lutou contra as lágrimas de frustração. Não chorava desde 1968, e não tencionava dar essa satisfação ao século XXI. Fazenda dos Lars, Grande Planície de Sal Chott, planeta Tatooine, Territórios da Orla Exterior, Setor Arkanis, a 43 000 anos-luz do Coração da Galáxia. Primeiro piso. Quando Sophie era um cavaleiro Jedi, era a única altura em que não se sentia exausta. Estava deitada de barriga para baixo na cama, no seu planeta natal, com as vestes negras de Skywalker. Tinha o sabre de luz a postos e estava a rever filmagens de si própria no iPad. No ecrã, ela estava a explicar a configuração do terreno a C-3PO, um androide protocolar. – Bem – estava ela a dizer –, se existe um centro luminoso do universo, estás no planeta mais distante dele. Os lábios de Sophie moveram-se enquanto se via a si própria a dizer as

palavras no ecrã. Através da parede do quarto, conseguia ouvir o papá a cantar no banho. Pela janela, ouvia as crianças a rirem e a chamarem-se umas às outras enquanto andavam de bicicleta na rua. Enfiou mais os auscultadores nos ouvidos para abafar o som. Era um fenómeno incómodo, que os sons da Terra se ouvissem tão longe, aqui em Tatooine. Só podia ser alguma espécie de efeito espáciotemporal causado pela gravitação dos sois gémeos do planeta. Como Jedi que era, tentou isolar-se do som. O tempo e o espaço eram como rodinhas de apoio numa bicicleta – a pessoa estava bastante limitada até conseguir andar sem elas. As paredes do seu quarto estavam forradas com posters da Guerra das Estrelas. O candeeiro de teto era a Estrela da Morte em construção. No chão, ao lado da cama, tinha o seu bem mais precioso, um modelo perfeito da nave de Han Solo, a Millenium Falcon. Tinha meio metro de comprimento e abria-se para revelar o interior. Ali estavam os motores gémeos de subluz Girodyne SRB42, o gerador de hiperpropulsão Isu-Sim SSP05, e o gerador de escudo Novaldex. Algo que a preocupava era o facto de a nave não ter casa de banho. Tinha lasers AG2G da Corellian Engineering Corporation, montados no dorso e ventre da nave, tinha uma complexa rede de compartimentos secretos debaixo do pavimento, mas não havia sítio onde ir fazer chichi. Mesmo quando o tempo e o espaço não significavam nada para uma pessoa, uma viagem através do universo era muito tempo para aguentar. Da rua, lá fora, o som dos miúdos a gritarem estava a tornar-se mais alto. A cantar no chuveiro, noutra galáxia, o papá estava a estragar a canção «Over the Rainbow». Sophie decidiu rever novamente todas as filmagens, para ver se descobria alguma coisa. Viu Uma Nova Esperança e O Império Contra-Ataca em velocidade superacelerada, abrandando sempre que encontrava uma cena com a Millenium Falcon. Mesmo assim, não viu nada sobre casas de banho. Já estava a sentir-se bastante agoniada, e as imagens aceleradas pioraram a sensação. Sentiu uma cãibra no estômago e as glândulas salivares produziram uma água doce e metálica. Ignorou-a e voltou a O Regresso de Jedi. Não havia muitas imagens da Falcon nestas filmagens e, pouco depois, estava de novo na cena na Estrela da Morte em que Skywalker finalmente confronta Vader. Abrandou a imagem e viu-se a si própria atingida pelos poderes lançados pelos dedos do imperador. – Sente o poder do lado negro. – Era o que o imperador estava a dizer. Tudo o que ela sentia era uma forte náusea. – Luke – disse Vader. – Eu sou o teu pai.

Na casa de banho, o papá estava a cantar: – …rebuçados de limão, numa cantilena qualquer com chaminés… A sua concentração vacilou. Estava a tornar-se mais difícil bloquear a sua vida na Terra. Do outro lado da janela, as crianças gritavam e riam. Sem tirar os auscultadores, pôs-se de pé em cima da cama para ver o que estava a acontecer. Pela janela, viu Zoe a chegar de bicicleta. Os miúdos na rua tinham formado uma fila e estavam a segui-la pela rua, nas suas bicicletas. Zoe estava a rir-se e a entrar na brincadeira, aos ziguezagues na estrada, conduzindo-os a todos em padrões de espiral. Ao lado do quarto, o papá cantou: – Se pequenos arco-íris voam sobre os pássaros azuis, porquê, precisamente, é que eu não posso fazer uma coisa dessas? – Procura no teu coração – disse Vader. – Sabes que é verdade. Viu Zoe parar em frente da casa. Agora que estava de pé, as náuseas pioraram. Sentiu o vómito a tentar subir e respirou fundo várias vezes para o forçar a descer de novo. – Nãããããoooo! – gritou Luke nos seus auscultadores. Lá em baixo, a campainha da porta tocou e Sophie ouviu a porta da frente abrirse. O vómito tentou subir novamente. A sua concentração desaparecera. Tirou os auscultadores e era outra vez Sophie, subitamente esgotada, no seu quarto no primeiro piso, na Terra. Correu para a porta e depois parou, a suar e a saltitar de um pé para o outro. O papá estava na casa de banho – não podia vomitar lá. E a mamã e Zoe estavam lá em baixo, por isso não podia descer e usar a casa de banho no vão das escadas. Levou as mãos à boca enquanto a náusea a invadia em vagas cada vez mais fortes. Olhou em volta, em pânico, à procura de alguma coisa onde vomitar. O cesto dos papéis era de verga. O estojo dos lápis era pequeno demais. Subiu para cima da cama e tentou desatarraxar o candeeiro da Estrela da Morte, mas era demasiado baixa e o vómito estava a chegar e não podia fazer nada para o deter. Saltou da cama, ajoelhou-se no chão e vomitou para dentro da Millenium Falcon. O vómito quente inundou os compartimentos secretos debaixo do pavimento. Fez curto-circuito no conversor de energia Koensayr TLB e subiu até à cintura das figuras de ação de Skywalker, Kenobi, Solo e Chewbacca. Eles não disseram nada; limitaram-se a fitá-la com repugnância. Quando acabou, Sophie estava tão cansada que mal conseguiu limpar o comprido fio de muco que lhe ficara pendurado da boca.

Tinha a cabeça a latejar. Não sabia o que fazer. Lá em baixo, Zoe e a mamã estavam a conversar. Ouviu as vozes delas aproximarem-se. A mamã disse: – Vou lá acima ver se ela está bem, antes de irmos. O coração de Sophie batia-lhe com força no peito. Agarrou na parte de cima da Millenium Falcon, encaixou-a na base e enfiou o modelo debaixo da cama. O vómito agitou-se lá dentro mas não saiu. Saltou para cima da cama, tapou-se com as mantas e ligou novamente os auscultadores. – Não vou lutar contigo, pai – disse Luke. A mamã apareceu à porta e sorriu a Sophie. – Como te sentes, querida? Sophie ergueu os olhos do ecrã e encolheu os ombros. – Bem. – Precisas de um abraço? Sophie abanou a cabeça. Não podia deixar a mamã aproximar-se e sentir o cheiro do vomitado. Sophie viu a mágoa no rosto da mamã. Não fazia mal. Mágoa era melhor do que preocupação. Apontou para o ecrã. – É uma parte importante. A mamã acenou com a cabeça. – Está bem. Vim só ver se estavas bem. A Zoe quer que eu vá com ela a casa do Tom. Sophie encolheu os ombros e olhou para o ecrã. – Ouve – disse a mamã –, não tenho de ir com ela, se precisares de mim. Sophie abanou a cabeça. – Estou bem. Vou ficar a ver isto. A mamã suspirou. – Bem, se tens a certeza… O papá está na casa de banho, se precisares dele. Sophie sentiu novamente vontade de vomitar. Por baixo do edredão, cerrou os punhos com força para se controlar. – Vai lá – disse. – Estás a fazer-me perder a melhor parte. A mamã olhou para ela por um instante, depois virou-se e fechou a porta. Sophie rebolou para o chão, tirou a parte de cima da Millenium Falcon e vomitou outra vez. O vómito chegava agora ao meio do peito de Skywalker. Sophie ficou de joelhos no chão, ofegante. Pensar na expressão do rosto da mãe dava-lhe vontade de chorar, por isso colocou novamente os auscultadores.

– Se não mudas, serás destruído! – disse o imperador galáctico. Desligou o DVD. A porta bateu e lá fora, na rua, ouviu os sons da mamã e de Zoe a montarem as suas bicicletas. – Ela está bem? – perguntou Zoe. – Sim, anda apenas perdida no seu mundo, ultimamente – disse a mamã. – É como se não quisesse qualquer ligação comigo. As vozes afastaram-se ao longo da rua. Sophie, ajoelhada, apertou os braços sobre o estômago. Olhou para Chewbacca, agora com vomitado até às axilas, que a observava com expressão acusadora. Se não se sentisse tão mal, teria rido. Quase conseguia ouvir o grito desolado do Wookiee. Casa de banho, apartamento 12, The Waterfront, Sport City, Manchester Tom tentou de novo, mas continuava sem conseguir sair da banheira. Precisava de calor para conseguir as forças necessárias e precisava de forças para sair e se aquecer. Era como uma versão merdosa de Artigo 22 em que estava preso numa banheira em vez de num esquadrão de bombardeiros. Demasiado realista, era o que era, e ainda por cima Zoe devia estar a aparecer. Podiam dizer o que quisessem da rapariga, mas ela nunca se atrasava. Sendo alguém que ganhava a vida a chegar milissegundos antes das pessoas mais rápidas do mundo, Zoe parecia ter menos problemas com a pontualidade do que a maioria dos civis. Içou-se novamente nas bordas da banheira, usando toda a força do tronco. Um músculo frio cedeu no ombro e caiu para dentro de água outra vez. – Oh, filhos da mãe traiçoeiros – disse, ao seu grupo deltoide esquerdo. Estremeceu, massajou o ombro e pensou na situação. Em última análise, o melhor cenário agora seria morrer de hipotermia, rapidamente, antes de Zoe chegar. A campainha da porta tocou. Suspirou, pegou no telefone e marcou o número de Zoe. Ela atendeu depois de dois toques. – Ouve – disse ele. – Mais vale ser direto e franco. Estou preso na banheira. Os meus joelhos estão bloqueados.

– Merda. Quer dizer, está bem. Alguém tem a chave? – Céus, Zoe. A quem é que achas que eu ia dar uma chave? – Não sei. – Pois não, porque tens uma falta de curiosidade básica sobre a vida das outras pessoas. Já a Kate, por outro lado… – Ela está aqui comigo. – O quê? – Pensei que, se a trouxesse, não serias tão duro comigo. Queres que arrombemos a porta? – Merda, não sei. Achas que conseguem? – Espera aí… Ouviu o som de madeira a partir-se e depois a porta do apartamento a bater contra a parede. – …sim – disse Zoe. – Graças a todo o trabalho de ginásio que nos obrigas a fazer. – Esperem aí – disse Tom. – Está bem? Não entrem ainda. A única coisa a que conseguia deitar a mão era a espuma de banho. Esvaziou um terço do frasco e agitou a água até fazer espuma, para que elas não vissem o seu corpo ossudo, com a pele flácida sobre os músculos gastos, e o pénis escondido do frio. Fez um esforço para relaxar. Era apenas uma situação má, nada mais. Podia pedir-lhes que lhe passassem uma toalha, ou coisa do género. Era possível encontrar uma forma de preservar a dignidade de todos os envolvidos enquanto as raparigas o ajudavam a sair da banheira. Este era apenas um daqueles momentos infelizes na vida, como ir a jantares de cerimónia. Não era preciso gostar para sobreviver. Tratariam do assunto, ele e as raparigas, e depois rir-se-iam da situação enquanto bebiam um café. Não estava propriamente a pedir-lhes que lhe limpassem o rabo. Na verdade, era exatamente essa a frase que usaria para aliviar a situação. – É melhor entrarem – gritou. Ouviu os passos delas no corredor e olhou para a porta da casa de banho, preparando o sorriso irónico que ia usar quando elas entrassem. Depois, no lado oposto da casa de banho, viu a sua dentadura dentro de seis centímetros de Listerine, no copo ao lado do lavatório; os seis dentes da frente de cima, moldados em acrílico e manchados progressivamente ao longo dos anos para condizerem com os seus dentes verdadeiros. Sentiu o estômago apertado. Levou a

língua à parte da frente do palato e sentiu a concavidade, com os dois parafusos de aço cirúrgicos que encaixavam na dentadura. Não sabia o que esperava – talvez que os dentes estivessem em dois sítios ao mesmo tempo, simultaneamente no copo e na sua boca. Algures, na sua mente, os dentes da frente estavam espalhados como sementes brancas nas tábuas de uma pista de velódromo. Mas, Céus, não queria essa memória. Ver a dentadura no copo deu-lhe uma força desesperada e tentou novamente içar-se com as mãos nas bordas da banheira. Desta vez conseguiu passar por cima da beira. Caiu no chão como um pedaço de carne molhada e arrastou-se até ao lavatório, correndo contra os passos das raparigas no corredor. A falta dos dentes era uma nudez pior do que a nudez propriamente dita. Moveu-se mais depressa, arrastando as pernas inúteis sobre as linhas do linóleo, e sentiu cada décimo de cada segundo a cortá-lo. Ouviu a porta da casa de banho abrir-se precisamente quando a sua mão esticada encontrou a dentadura. Agarrou-lhe, levou-a à boca e tentou colocá-la com as mãos geladas. A dentadura saltou-lhe dos dedos, bateu na borda do lavatório e rodopiou pelo ar. Por fim, com o chape discreto de um mergulho quase perfeito, afundou-se dentro da sanita. – Oh… vai-te foder, vida – disse ele. Kate e Zoe encontraram-no caído no chão, com um rasto de caracol de água, desde a banheira até aos seus pés, a pele enrugada por causa da longa imersão e arrepiada de frio, a torcer o pescoço para olhar para elas, sem outra coisa senão um sorriso desdentado. – Deviam ver como ficou o outro tipo – brincou ele. Foi o melhor que conseguiu, dadas as circunstâncias. Zoe levou a mão à boca, entre o riso e o choque. Kate pestanejou e olhou para ele por cima do ombro de Zoe. Tom suspirou. – Vá lá, não fiquem aí especadas a admirar o fato com que vim ao mundo. Zoe tirou o roupão do cabide atrás da porta e enrolou-o nele. Ajoelhou-se ao seu lado e pegou-lhe na mão. Os seus olhos percorreram a divisão, em busca de uma explicação. – Joelhos completamente paralisados – disse ele. – Problemas em sair da minha sepultura aquática. – Queres que chame uma ambulância? Ele fez uma careta. – Chama o veterinário. Manda-me abater.

As raparigas estavam abaladas, Tom conseguia vê-lo. Ele era um ponto fixo nas suas vidas e Deus sabia que elas precisavam de pontos fixos. Era melhor que voltasse a esse papel, mas estava a tremer tanto que as pernas batiam no linóleo. Parecia um peixe fora de água. – Vamos acalmar-nos todos – disse. A sua boca era John Wayne e o seu corpo era Flipper, o golfinho. Kate disse: – Queres uns cobertores, ou coisa assim? Ele pôs a ideia de lado com um aceno da mão. Quando uma pessoa chegava a uma certa idade, as amabilidades tornavam-se moscas invisíveis para enxotar. – O que podemos fazer? – perguntou Zoe. – Tu, minha querida, podes vender o teu apartamento de luxo. Não é bom para ti. Vem viver para o meu quarto de hóspedes, eu faço-te três refeições por dia e mantenho-te fora de sarilhos. Ela ergueu uma sobrancelha. – Foi para dizer isso que me fizeste vir aqui? – Sim – respondeu Tom. – Já podes ir. – Conseguiremos levantar-te? – perguntou Kate. – Kate, querida, eu peso sessenta e cinco quilos. Conseguias levantar-me como um haltere. Ela riu-se. – Não queres vestir qualquer coisa primeiro? – Talvez. Se começares a treinar mais. Ela fingiu que lhe dava um soco. – És um idiota, sabes? Pensei que tinhas tido um ataque cardíaco, ou coisa que o valha. Estava preocupada. – Vocês preocupam-se por dá cá aquela palha. Quando eu tinha a vossa idade isso ainda nem tinha sido inventado. Zoe apertou-lhe a mão. – Estás gelado. – Olhou para ele e Tom ficou espantado ao ver que ela se preocupava mesmo com ele. Sentiu o ardor de lágrimas nos olhos e esforçou-se por as combater. Tossiu e desviou o rosto. – Vamos lá pôr-me de pé, está bem? Conseguiram pô-lo na vertical e ele apoiou a maior parte do peso nas pernas enquanto elas o ajudavam até à sala e o sentavam numa cadeira junto da lareira fingida. Zoe foi buscar o edredão da cama dele, tapou-o e acendeu o fogo

simulado. – Oh, que glamoroso – disse ele. Nesse momento, começou a tremer mais. O frio afetara-o mais do que pensara. Kate trouxe-lhe um chá e Tom fechou os dedos sobre a caneca, tentando não a entornar com o tremor das mãos. Tinha de assumir o controlo da situação. – Muito bem, meninas – disse. – Um discurso diferente do que eu estava a planear. Faltam dezoito semanas e um dia para as primeiras eliminatórias em Londres. Todos os minutos contam e olhem para mim. Sou o treinador mais velho da profissão e estes são os últimos Jogos Olímpicos para vocês as duas. Tenho de vos dizer, como vosso treinador, que talvez devam pensar em arranjar alguém com joelhos para vos ajudar. Observou os rostos delas para ver como reagiriam, mas elas viraram a cara e olharam uma para a outra. Algo passou entre Zoe e Kate e, quando olharam novamente para ele, era evidente que tinham tomado uma decisão. – Não – disse Kate. – És o nosso treinador. Quem, senão tu, é que nos aturaria? Zoe acenou. O seu rosto estava calmo. – Por favor, não tornes a falar nisso. Tom engoliu em seco. – São as duas umas idiotas – disse. Dirigiu-se penosamente à cozinha e fez algo que não fazia desde 1968, no México. Permitiu que precisamente duas lágrimas lhe rolassem pelas faces. Depois tossiu, limpou a cara e voltou para a sala. – Vou levá-las às duas aos Jogos Olímpicos – disse. – É uma simples promessa. – Sim, sim – disse Zoe. – Mas o que é que aconteceu aos teus dentes? – Pergunta-me outra vez e terás de ir à procura dos teus. Kate riu-se. – Não, a sério. – A sério – disse ele. – Uma rapariga simpática como tu não quer saber como é que eu perdi os dentes. Quando saíram, Kate disse: – Deve ter caído. Zoe abanou a cabeça. – Deve tê-los mandado arrancar para fazer broches melhores. Kate fez uma careta.

– Tu precisas de ajuda. Zoe mostrou-lhe o dedo do meio. – E tu precisas de mais trinta centímetros de andamento na reta final. – Sou mais rápida do que tu. – Não és nada. – Sou muito mais rápida – disse Kate. – Quando te deixo ganhar às vezes, nos treinos, é só para te meter coisas na cabeça. Zoe lançou-lhe um olhar sombrio. – Quando te deixo meter-me coisas na cabeça às vezes, nos treinos, é só para te ganhar. Tinham as bicicletas de estrada presas a um corrimão em frente do prédio de Tom. Estava escuro e a chuva era agora mais fria. Tiraram os cadeados das máquinas, limparam a água dos selins e acenderam as luzes da frente e de trás. Kate colocou um capacete e enfiou um colete refletor amarelo; Zoe não se incomodou com essas coisas. Zoe sorriu quando Kate ergueu os olhos. – O que foi? – perguntou Kate. – Faço uma corrida contigo até ao meu apartamento novo. – O quê, o teu palácio no céu? A tua Xanadu num arranha-céus? – Vá, goza. Se tivesses as minhas maçãs do rosto eras tu que vivias lá. – Não sou como tu. Não preciso dessa confirmação. – Céus! – exclamou Zoe. – Se não fosses ciclista serias uma daquelas colunistas gorduchas mas estranhamente críticas. – Se tu não fosses ciclista, estarias a resolver os teus problemas de autoestima em filmes pornográficos, a levar com homens com tatuagens na barriga das pernas. Zoe atirou a cabeça para trás e soltou a gargalhada alegre e descuidada que só usava quando uma piada a assustava, mas quando olhou de novo para Kate o seu rosto estava composto. – Sim, mas somos ciclistas, portanto vamos competir. Kate não via como recusar. Ultrapassara os limites, portanto agora tinha de dar alguma coisa. – Está bem – acedeu. – Se tens mesmo essa necessidade. – Ooooh! – disse Zoe, a saltitar de excitação e a bater as mãos ao lado do corpo, como um passarinho a tentar voar. Kate sentiu a tensão aliviar e teve de se rir – Zoe gostava mesmo de correr. O assunto do qual não podiam falar estava a tornar-se mais insuportável de dia para

dia. Pelo menos podiam enfrentar-se nas suas bicicletas. Era mais perigoso do que discutir mas mais seguro do que conversar. – Vamos – disse Kate. – Sabes o caminho, certo? – Sim, sim. Dá-me só a chave do apartamento, está bem? – Porquê? – Bom, vou lá chegar primeiro do que tu, não é? Posso ir subindo e pondo a chaleira ao lume, ter uma bela chávena de chá à tua espera. – Poupa a fanfarronice para a bicicleta. As duas mulheres prenderam os pés nos pedais e arrancaram no meio da chuva fria e miudinha, com as luzes traseiras a deixarem rastos de luz vermelha. Por acordo tácito, pedalaram com calma nos primeiros minutos, mantendo-se perto uma da outra enquanto ziguezagueavam entre o trânsito lento que se dirigia ao centro da cidade. Depois, ao passarem pelo Estádio da Cidade de Manchester, olharam uma para a outra, acenaram e aceleraram o ritmo. O seu estilo era o estilo fácil e rápido de ciclistas que não faziam distinção entre o seu sistema esquelético e os ossos das suas bicicletas. Baixaram a cabeça e aceleraram para velocidade de corrida. Tinham agora o caminho livre por um quilómetro e meio, ao longo da Ashton New Road até ao centro da cidade, e, embora a estrada tivesse apenas uma faixa em cada sentido, havia uma faixa larga com raias oblíquas pintada entre ambas. Correram pela faixa central, lado a lado, uma a ficar ligeiramente para trás para aproveitar a deslocação de ar da outra antes de acelerar para a dianteira. Por duas vezes tiveram de guinar para a margem para evitar motorizadas em sentido contrário, passando na outra direção pela faixa central. Zoe raspou num espelho lateral, uma buzina soou e ela gritou de excitação. Zoe nunca estava mais feliz do que quando corria na estrada. Era sujo e veloz e tudo o que via queria matá-la. Os condutores dos automóveis eram lentos e desatentos, ou alerta e furiosos, e ambas as coisas podiam fazer com que guinassem subitamente e lhe acertassem. As raias brancas pintadas no chão, sobre as quais acelerava, estavam escorregadias por causa da chuva e do óleo, e salpicadas de vidros partidos que podiam rasgar um pneu e arremessá-la para a frente dos carros. Se caísse, não podia fazer mais nada senão rebolar como uma ginasta e rezar para bater no passeio antes de bater num carro. A chuva entravalhe nos olhos e transformava os faróis que se aproximavam numa mancha de velocidade e luz e, no meio deste caos, ela competia com outro ser humano em máxima forma, de tal modo que o seu ritmo cardíaco estava no auge e a

adrenalina lhe ofuscava os sentidos. Aceleraram mais. Zoe sorriu, sob o vento. Era uma corrida pura, porque não havia prémio nem glória e ninguém sabia quem elas eram. Não havia reconhecimento nem fama. Podia correr para um ponto além de si própria. Era disto que ela gostava. Quando corria assim, não conseguia pensar na sua vida. Estava atenta, para não cometer o mais ínfimo erro. Podia ir tão depressa que a velocidade se alimentava a si própria e as rodas começavam a rugir na escuridão e o seu coração batia tão depressa que pensava que mais um batimento por minuto a mataria, e depois, subitamente, ouvia uma motorizada e olhava em volta e via o farol branco atrás de si e, de alguma forma, acelerava ainda mais. As luzes passavam por ela como raios laser. Inclinou-se e pedalou e acelerou. Correr nas ruas era a única parte da sua vida em que Zoe se sentia no controlo. Era a única altura em que podia passar por um cartaz de seis metros de altura com a cara dela e reparar apenas na iluminação útil que dava à superfície da estrada. Kate e Zoe lutaram por posição na faixa central cada vez mais estreita, primeiro uma à frente, depois a outra. Estavam perfeitamente equilibradas. Depois de quase um quilómetro e meio, com os pulmões a rebentar, nenhuma conseguia afastar-se da outra. A faixa central estava a tornar-se demasiado estreita para correrem lado a lado em segurança e, por duas vezes, os seus ombros se tocaram e tiveram de se esforçar para não guinar para o meio dos carros. Duzentos metros mais à frente, um semáforo assinalava o entroncamento onde o seu caminho virava à esquerda, para a Great Ancoats Street. As luzes estavam verdes. Kate olhou para cima e calculou o ponto em que, se as luzes mudassem para amarelo, ela poderia continuar em vez de travar. Sem dar indicações na sua linguagem corporal, acelerou subitamente e abriu uma distância de cinco bicicletas para Zoe. Era uma jogada de poder numa corrida de estrada: esforçavase ao máximo durante alguns segundos, muito acima do seu limite aeróbico, sabendo que, se deixasse a rival para trás, havia a probabilidade de o semáforo travar Zoe depois de a deixar passar a ela. O risco era que as luzes não mudassem e, nesse caso, a sua rival podia ultrapassá-la com facilidade quando ela se afundasse no seu próprio débito de oxigénio. Kate arriscou, com uma careta quando as dores no corpo começaram a intensificar-se. Queria muito vencer. Ganhar a Zoe agora, mesmo numa corrida a brincar como esta, deixaria uma associação negativa na mente de Zoe da próxima vez que se alinhassem juntas numa corrida a sério. Esforçou-se mais. A esta intensidade, um mero segundo parecia insuportável, e vinte inimagináveis. Por um

esforço de pura vontade, visualizou Sophie. Era assim que lidava com o sofrimento. Pensou: se eu ganhar esta corrida, a Sophie vai melhorar. Não tinha qualquer lógica, mas a sua mente, com um ritmo cardíaco acima dos cento e sessenta por minuto, não precisava de lógica. Enquanto acelerava pela escuridão, imaginou Sophie à sua frente e a imagem puxou-a. Zoe conhecia de cor a armadilha do semáforo e estava à espera de que Kate se adiantasse. Preparou-se e acelerou a pedalada, recusando-se a deixar a rival abrir mais a distância. Olhou para a estrada e começou a calcular o ponto além do qual a luz amarela não a deteria. Tinha os músculos em agonia, mas recusou-se a reconhecer a dor. Os pneus deslizavam com a força lateral enquanto impelia a bicicleta para a frente com tanta força que a estrutura começou a estalar. Kate estava a funcionar no limite. Precisamente quando a dor nos seus músculos e pulmões atingia um pico insuportável, a luz do semáforo ficou amarela. Ainda estava a quinze metros do ponto que determinara como o ponto absoluto de não retorno. Sentiu uma vaga de alívio: podia travar. Arriscou um olhar rápido por cima do ombro para ver se Zoe estava a pensar o mesmo. Mas Zoe não ia abrandar. De olhos vidrados, a abanar de um lado para o outro num transe de esforço, Kate achava que ela nem a tinha visto olhar para trás. Kate hesitou. Estaria a ser demasiado cautelosa? Faltavam agora apenas cinco metros para o ponto que calculara e a luz ainda estava amarela; havia boas probabilidades de conseguir fazer a curva à esquerda enquanto o semáforo estava a mudar para vermelho. Olhou rapidamente para a direita, para o tráfego que aguardava, no último segundo do seu semáforo vermelho. Era uma faixa de rodagem dupla. Na frente, um Volvo preto e um BMW azul. A motorizada de um estafeta aproximava-se pelo exterior. Kate observou os carros, tingidos de laranja pelas luzes do cruzamento. Pareciam normais. Nenhum deles parecia ter um psicopata ao volante. O mais provável era que não arrancassem como carros de corrida no instante em que a luz mudasse. Kate deu duas pedaladas rápidas e depois hesitou de novo. Pensou em Sophie. De súbito, a zona na qual estava a entrar pareceu-lhe tão claramente demarcada como a linha de paragem branca pintada em frente dos carros. Era mãe de uma criança pequena. Estaria seriamente a pesar os riscos envolvidos em entrar a toda a velocidade num cruzamento que estava prestes a ser invadido pelo tráfego? Imaginou o rosto de Sophie, e os olhos da filha ligaram-se de forma tão poderosa aos tendões e à musculatura dos seus braços que, sem sequer pensar nisso, travou com tanta força que as rodas quase bloquearam. Quando a luz ficou amarela, Zoe viu a hesitação de Kate e acelerou o ritmo

instintivamente. Estava a trinta metros do seu ponto de decisão, mas nem pensou nisso. Estava a pensar em Adam. Aqui, no seu limite físico, sentiu o irmão morto a observá-la com o mesmo olhar curioso e imperturbável que Sophie lhe mostrara nesse dia. Aqui estava a onda no tempo, outra vez, a espalhar-se a partir do ponto comum de origem, a acompanhá-la, por mais depressa que tentasse deixá-la para trás. Quando Kate abrandou, Zoe guinou e passou por ela. Cruzou a linha branca pintada no chão e passou pelo semáforo vermelho a quarenta quilómetros por hora, inclinada para a esquerda, com as rodas a guincharem no alcatrão molhado, no limite da adesão. Secção de 30 metros isolada por fita policial na faixa de rodagem da direita, Great Ancoats Street, cruzamento com a Ashton New Road, Manchester O condutor do BMW azul disse ao agente que não tivera por onde fugir. Ia a três quartos do cruzamento, a acelerar talvez a vinte e cinco quilómetros por hora, quando Zoe aparecera na sua faixa, a meio metro do seu para-choques. Tivera menos de um segundo para reagir. À esquerda, tinha o Volvo preto; à direita, o estafeta de mota. Conseguira pisar os travões mas, mesmo assim, tocara na roda de trás de Zoe. Sentira algo debaixo dos pneus e ficara terrivelmente abalado porque pensara que só podia ser ela. – Não sei o que dizer – disse ao agente. O agente tinha um impresso na mão e uma esferográfica presa à pasta por um fio. – Podia dizer que ela entrou na sua distância de travagem – disse. – Assim não terá problemas com o seguro. Medindo a cena e a julgar pelas marcas na estrada e pelos detritos de matrículas desfeitas e vidros de faróis, o agente estava inclinado a apoiar a versão do condutor. A ciclista saltara da bicicleta e rebolara pela estrada, provavelmente passando uma fração de segundo à frente ou atrás da motorizada, antes de parar contra um protetor iluminado no separador central. Tivera muita sorte de escapar apenas com cortes e nódoas negras. O seu velocípede – foi assim que o descreveu no impresso de incidente

rodoviário – o seu velocípede tivera pior sorte. Pôs o que restava dele na parte de trás do carro-patrulha, a estrutura partida e os aros torcidos. Ficara debaixo das rodas de pelo menos três viaturas. A ciclista estava neste momento sentada na parte de trás de uma ambulância, embrulhada num cobertor térmico prateado, a tremer, enquanto a amiga a reconfortava. Depois de colocar os factos no impresso, quando chegou à última parte, intitulada SUMÁRIO, não pensou que fosse mais complicado do que isto: a ciclista ferida continuara e atravessara-se à frente do tráfego, enquanto a amiga travara. Era assim o mundo. Havia dois tipos de pessoas quando o semáforo ficava vermelho. Um acelerava, o outro travava. Era Adão e Eva, Caim e Abel. Não valia a pena pensar muito nisso. Pelo menos com aquilo que lhe pagavam. A caneta ficou suspensa durante alguns segundos sobre a caixa intitulada OUTROS COMENTÁRIOS, mas não lhe correu mais nada. O agente carregou no botão que recolhia o bico da esferográfica, encolheu os ombros e fez uma careta quando a chuva fria pingou do boné do uniforme, entre o pescoço e o casaco fluorescente. Perguntou-se o que raio se passaria na vida desta mulher para ela não poder travar, como todas as outras pessoas. Interior de ambulância de primeiros socorros Iveco Daily 40C15, unidade número 72, Serviço de Ambulâncias de North West A chuva escorria na janela de trás enquanto o paramédico tentava instalar Zoe de forma confortável, sentada numa maca. A maca tinha um painel informativo que indicava ser adequada para pacientes com, no máximo, 400kg ou 800lb. – É o peso de uma búfala adulta – disse o paramédico, afastando a conversa do facto de a mulher ferida se ter atravessado voluntariamente à frente do tráfego. Kate sorriu e olhou para Zoe, à espera de que esta respondesse, mas Zoe desviou o rosto e olhou para a chuva de testa franzida. Kate quebrou o silêncio. – Costumam apanhar muitas búfalas? – Apanhamos de vez em quando senhoras que gostam muito de bolos. Na verdade, temos um guindaste para as pôr na maca. Chamamos-lhe o Expresso Krispy Kreme. Kate riu-se, mas Zoe ainda estava distante. Kate segurou-lhe nas mãos enquanto

os paramédicos usavam pinças para tirar pedrinhas de um arranhão fundo e largo no seu antebraço. Kate não esperava que Zoe se mexesse, e ela não se mexeu. Se estivesse muito atenta, conseguia sentir apenas um leve tremor nos dedos de Zoe de cada vez que a pinça lhe tocava na ferida. – Podes olhar para mim? – pediu Kate baixinho. Zoe olhou para a janela de trás. – Olha para mim! Zoe virou-se para ela, exasperada. O paramédico parou o seu trabalho até ela se imobilizar de novo. Quando continuou, as pequenas pedrinhas que lhe removia do braço caíam num recipiente de metal com leves cliques. A ambulância moviase à velocidade do trânsito, com as sirenes desligadas. Duas luzes fluorescentes no teto emitiam uma luz forte e doentia. – Porque é que o fizeste? – perguntou Kate. – Queria ganhar. – Podias ter morrido. – Não pensei. – Pois não. Obviamente. Zoe franziu a testa, irritada. – Oh, quem és tu? A minha mãe? – Conheço-te há mais tempo do que ela te conheceu. Zoe estava outra vez a olhar para a janela. – Sim, mas se eu tivesse ficado debaixo daquele carro, ter-te-ia facilitado as coisas. Kate estendeu a mão e virou o rosto de Zoe para o dela. – Olha para mim. Se tivesses ficado debaixo daquele carro, eu teria morrido também. O paramédico parou momentaneamente e a leve percussão das pedrinhas a cair cessou. – Não sei porquê – disse Zoe. – Tu tens coisas por que viver. Tens tudo. – Tudo não. Zoe soprou, irritada. – Credo, Kate. É um pedaço de metal amarelo numa fita encarnada. – É fácil falar assim quando já a ganhaste. – Achas? – Sabes que mais? – disse Kate. – Nem quero saber. Desde que cheguemos ambas à final em Londres, e estejamos ambas no pódio, não me interessa qual de nós vence.

– Nem a mim – disse Zoe. – Desde que seja eu. Kate sorriu e abanou a cabeça. – Sinceramente, Zoe, o que havemos de fazer contigo? – Estou bem. – Estás, a sério? Estou preocupada. Pareces um pouco descontrolada. – A estrada estava molhada, Kate. As quedas acontecem, e nós sangramos. As raparigas que não conseguiam aguentar os danos desistiram do jogo há muito tempo. Kate suspirou. – Não estou a falar de quedas. Estou a falar de danos a sério. Zoe desviou o olhar e Kate apertou-lhe as mãos. – Não temos de estar sempre a provocar-nos uma à outra, pois não? Podemos declarar uma trégua. Podemos falar sobre o que te está a incomodar. – Não tenho nada a incomodar-me. – Zoe tirou as mãos das de Kate para fazer aspas imaginárias no ar em volta da palavra. Kate hesitou, depois pegou de novo nas mãos de Zoe. – É o Adam, não é? Zoe lançou-lhe um olhar cortante. – Não. – É difícil, não é? Eu conheço-te. Quando ficas assim, é porque andas a pensar nele. Zoe fitou-a com expressão firme. – Ando a pensar em rapazes e em compras. O paramédico continuou o seu trabalho em silêncio e a ambulância moveu-se entre o tráfego lento e molhado da chuva. Kate não sabia como lidar com a amiga quando ela estava assim. Se fechasse os olhos, era quase como estar a falar com uma bêbada numa paragem de autocarro – uma daquelas mulheres de olhos congestionados que eram alternadamente taciturnas e mordazes, de olhos semicerrados por causa do fumo do seu próprio cigarro, enquanto com os dedos teciam no ar um fio de opressões imaginadas e as tricotavam num sudário. Contudo, quando Zoe caía nestes estados de espírito, fazia-o por trás daqueles olhos verdes límpidos, naquele rosto perfeito com a pele impecável e o brilho olímpico de saúde. A incongruência era chocante, como levar um soco de um Ursinho Carinhoso. – Queres vir a minha casa depois do hospital? – perguntou Kate. – Comer qualquer coisa connosco? – Não tenho fome – disse Zoe, como se isso fosse a resposta a uma pergunta de

Kate. Kate teve de recordar a si própria que Zoe não era sempre assim e que se arrependia sempre depois. Pelo menos, preocupava-se o suficiente para tentar explicar, e fora assim que Kate ouvira falar pela primeira vez de Adam. Anos antes, muito antes de Atenas, Zoe entrara numa das suas depressões e fizera algo tão rancorosamente pessoal que Kate perdera mesmo uma corrida nos Campeonatos Nacionais em consequência disso. Nas semanas que se seguiram, Zoe ardera em remorsos. Era mesmo isso que parecia a Kate – que a amiga tremeluzia com uma luz pálida e ansiosa que procurava expulsar as sombras lançadas pelo seu comportamento. Ela convidou Kate para almoçar – imploroulhe que fosse – e encontraram-se num dos melhores restaurantes da cidade, The Lincoln. Kate nunca poderia pagar um almoço nesse restaurante, e duvidava que Zoe pudesse. Na sala de refeições movimentada, decorada com mármores de Carrara, um hipster curvado, com uma barba de três dias e um fato de linho, tocava Debussy com sapatos mas sem meias. Zoe encaixava na sala com naturalidade, sem maquilhagem, de calças de ganga e uma camisola de alças cinzenta e larga, mas ainda assim atraía olhares disfarçados. Kate escondeu-se atrás da ementa e não conseguiu encontrar nela um único item que não parecesse expressamente concebido para piorar a sua relação força-peso numa bicicleta. Estava furiosa consigo própria por ter aceitado o convite para uma reconciliação que parecia cada vez mais uma tentativa de a humilhar. Ergueu os olhos, infeliz, e viu Zoe a observá-la com expressão de pânico. – Merda – disse Zoe –, isto não está a ajudar nada, pois não? – Oh, não, é fantástico – disse Kate. – Muito agradável. Zoe ergueu a mão. – Espera – disse. – Eu consigo remediar isto. Levantou-se, dirigiu-se ao pianista e sentou-se com leveza no banco do piano, ao lado dele. Os préludes vacilaram por um momento enquanto ela lhe murmurava qualquer coisa ao ouvido, e depois recuperaram com um vestígio de allegrezza. Kate viu o pianista sorrir enquanto Zoe regressava à mesa. – Pronto – disse ela. – O que é que lhe disseste? Zoe agitou a mão num gesto indiferente e soprou uma madeixa de cabelo do rosto. – Disse-lhe que lhe dava o meu número de telefone se ele conseguisse fazer-te rir.

Kate sentiu uma pontada de raiva. – Não tem piada. – Eu sei. Desculpa. Tratei-te muito mal, Kate, e não sei o que fazer. Enquanto Kate olhava para os olhos de Zoe, tentando perceber se ela estava a ser sincera, o pianista passou calmamente para a canção «Oops!… I Did It Again», de Britney Spears, com um fraseado clássico grave e uma expressão perfeitamente séria no rosto. Kate não conseguiu evitar um sorriso. – Não sei o que me passa pela cabeça – disse Zoe. – Quero tanto ganhar que me esqueço de que tu és tu. De que somos amigas. Kate sentiu a raiva dissolver-se nas bolhas da água mineral e nos floreados impressionistas com que o pianista estava a adaptar a chef d’ouevre de Britney. – Bom – disse –, espero que não voltes a esquecer-te. Escreve-o na mão, ou coisa do género. Zoe mordeu o lábio. – Eu sei que tenho um problema com relações. Disse-te… disse a toda a gente que sou filha única, mas na verdade tive um irmão e perdi-o quando tinha dez anos, por isso… percebes. É uma história aborrecida e antiga. As pessoas aproximam-se demais e eu afasto-as. Desculpa. – Oh, Céus, não, eu é que peço desculpa. Oh, Zoe, devias ter dito alguma coisa. Zoe ergueu o rosto. Tinha os olhos cheios de lágrimas mas o pianista começou a tocar «Danger Zone» de Kenny Loggins, em grandioso, e ela riu-se em vez de chorar. – Não é coisa que se diga a qualquer um, pois não? Foste a primeira pessoa a quem contei. – Em Manchester? – Ou em qualquer outro planeta. – O Tom não sabe? Zoe franziu a testa. – Não interfere com o meu desempenho. – Mesmo assim, acho que é o tipo de coisa que devias contar-lhe. – Acho… que é o tipo de coisa que se conta à melhor amiga. Zoe esperou pela reação de Kate. Antes que Kate conseguisse pensar numa resposta, o empregado aproximou-se e colocou dois pratos à frente delas, cobertos por campânulas prateadas. Tirou as campânulas, fez uma pequena vénia e afastou-se com passo deslizante. Em cada um dos pratos estavam 150 gramas de arroz integral simples, cozido a vapor, 60 gramas de passas picadas, 100 gramas

de atum enlatado em salmoura e uma barra de 30 gramas de ProteinPlus PowerBar no seu invólucro azul e amarelo. Kate pestanejou, incrédula. Zoe sorriu. – Perguntei ao Tom o que estava na tua folha alimentar para hoje. Sabia que a ementa te ia deixar aterrorizada. Kate olhou para Zoe, enquanto o pianista intercalava um rápido intermezzo de variações barrocas no tema da série O Justiceiro. – O que foi? – disse Zoe. Kate estudou-a por mais um momento, depois sorriu e abanou a cabeça. – Nada – disse. – Bon appétit. Era mais fácil do que tentar encontrar as palavras para explicar que às vezes – nos raros momentos em que Zoe não estava a causar um grave desconforto mental – ser amiga dela era como ser arrebatada pela graça divina. Era nisso que Kate estava a pensar enquanto as duas se dirigiam às Urgências na ambulância. – Estás bem, Zoe? – perguntou. – Mesmo bem, a sério? Zoe olhou para o antebraço ferido e depois para Kate. – Sim – disse, baixinho. – Hei de sarar. Apartamento 12, The Waterfront, Sport City, Manchester Quando as raparigas saíram do apartamento, Tom estava cansado. Tirou a dentadura de dentro da sanita, lavou-a muito bem com lixívia, enxaguou-a e colocou-a na boca. Fechou a porta do apartamento com fita adesiva e prendeu a corrente. Sentou-se em frente da lareira falsa e tomou dois Nurofen e um trago de vinho tinto para as articulações. Acordou com o som dos seus próprios soluços. Estava desorientado. Conseguiu chegar à cozinha sobre os joelhos rígidos e pôs água a ferver para o chá. Respirou fundo. Estava tudo bem. Estava tudo bem. Aqui estavam os azulejos azuis e brancos da cozinha. Aqui estava a velha bancada com todos os seus círculos e riscos sobre os quais podia passar os dedos. Estava tudo bem. Tinha de parar de pensar nestes sonhos como uma prova de condenação. Eram apenas os malditos neurónios a crepitar e a assobiar, como senhoras entediadas a fabricar

mexericos. No saldo final, ele não era culpado. Fizera um trabalho razoavelmente bom com a sua vida, era assim que tinha de ver a coisa. Depois dos seus Jogos Olímpicos podia ter ficado na Austrália a beber copos à conta durante uns anos, mas não o fizera. Tomara uma boa decisão: viera para cá, para tentar uma vida nova como treinador. Começara uma família, também, o que não correra bem, mas ficara com a ideia de que, se conseguisse ajudar outros miúdos, isso compensaria as asneiras que fizera com o seu. Já nem conseguia lembrar-se de muita coisa sobre o filho. Talvez fosse bom sinal. A dada altura, todas as coisas boas que uma pessoa fazia tinham de começar a anular as coisas más, mesmo as memórias. Começara a treinar os juniores e, quando a BMX apareceu em final dos anos 80, teve muito sucesso. A BMX era como A Corrida Mais Louca do Mundo – uma data de miúdos com capacetes fechados e a darem às pernas como pequenos pistões a vapor. Deixara as corridas tratarem de si próprias e trabalhara com os miúdos entre as competições, para os compreender e poder ajudá-los a tornaremse mentalmente mais fortes. A psique de um miúdo era cem vezes mais poderosa do que a de um adulto. Se conseguisse perceber quais dos miúdos corriam para fugir do passado e quais corriam em direção ao futuro, tinha acesso a muito poder. Quando chegava o dia da corrida, os seus miúdos estavam sempre em plena forma e ganhavam todos os troféus que havia para ganhar. Ele adorava aqueles pequenos pirralhos que lhe davam pela cintura. Adorava especialmente os miúdos zangados. Se os ajudasse a ganhar vezes suficientes, a pouco e pouco, o sorriso deles no pódio era um pouco menos vão-se foder e um pouco mais eh, até estou a gostar disto. Talvez ainda estivesse à espera desse momento com Zoe, mas era paciente e sabia que viveria para ver o dia em que ela sorriria um sorriso descomplicado. Fizera um trabalho razoável com a sua vida. Se pesasse tudo – a sua tentativa de ser pai num dos pratos da balança, e todos os miúdos que ajudara no outro – quem podia dizer onde é que o raio da balança pararia? Fazia o melhor que podia com cada hora do seu tempo – era tudo o que podia fazer. Despejou a água quente e fez o chá. Com os olhos semicerrados, olhou para o relógio do fogão e viu que faltava pouco para as nove da noite. Não era idiota nenhum. Ia dar meia hora para o seu sonho deixar as instalações antes de correr o risco de tentar dormir de novo. Beberricou o chá e encostou-se ao balcão da cozinha. Doíam-lhe os joelhos, mas não se atreveu a sentar-se, com medo de não

conseguir levantar-se. Não precisava de ser novamente salvo pelas raparigas. Ainda assim, não era admirável que elas tivessem cuidado dele? Sempre acreditara que o mais importante eram os resultados. Imaginara que o que mais felicidade lhe daria seria ver os seus atletas melhorarem. Depois de anos a levar miúdos ao auge da BMX, fora promovido a diretor do Programa de Esperanças de Elite do Ciclismo Britânico. A ideia era pegar nos jovens de dezassete, dezoito e dezanove anos, com as melhores marcas de pista a nível nacional, e ver qual deles tinha o que era preciso para passar a internacional. Para esses jovens, era a morte ou a glória, e o programa ficou sediado nas melhores instalações disponíveis, o Centro Nacional de Ciclismo no Velódromo de Manchester. Foi uma época de ouro para Tom. Podia escolher os atletas com quem queria trabalhar. Maioritariamente, escolhia raparigas. Elas tinham tendência a pensar mais no que estavam a fazer do que os rapazes, o que encaixava bem no estilo de treino de Tom, que era mais de confidente do que sargento instrutor. Escolhera as suas raparigas, e depois escolhera as melhores das raparigas, e por fim largara toda a gente e ficara apenas com Zoe e Kate, porque não conseguia pensar em nada mais sensato para fazer com a sua vida do que levar estas duas ao topo. Dera-lhes os seus melhores anos e tudo o que sempre quisera fora vê-las ser bem-sucedidas. Mas a verdade era que as quatro medalhas de ouro olímpicas de Zoe e todas as vezes em que Kate falhara por pouco significavam menos para ele, agora, do que o facto de as suas duas meninas ainda acreditarem nele, mesmo quando todas as evidências indicavam que o seu treinador era uma velha ruína decrépita. Tom despejou o resto do chá no lava-loiça e foi deitar-se na cama. Sentia-se bem, para variar, realmente bem. Talvez fosse preciso a vida quebrarlhe o corpo para compreender. Talvez tivesse de bater no fundo do poço para se reconstruir a partir daí e perceber que aquilo que fizera pelo menos significara algo para alguém. Tom riu-se, com a cabeça na almofada. Sentiu-se novamente ensonado e fechou os olhos. Quase conseguia ver o resto da sua vida, e parecia-lhe agora bastante simples. Levaria ambas as raparigas aos Jogos Olímpicos, veria a melhor ganhar e depois reformar-se-ia e levaria os seus joelhos de volta para a Austrália; talvez até comprasse a velha casa, se ainda estivesse de pé. Beberia vinho tinto na varanda e estaria em paz com tudo o que acontecera. Um homem não estava completo enquanto não conseguisse olhar paras as suas memórias sem… não sem comoção, mas sem medo delas.

Cubículo 12, Urgências, Hospital Geral da zona norte de Manchester Kate apertou o joelho de Zoe. – Tenho de ir para casa – disse. – O Jack e a Sophie devem estar a estranhar a minha demora. Zoe sorriu. – Tudo bem. Obrigada por teres ficado comigo. – Ficas bem sozinha? Zoe olhou para o médico magro e atraente que estava a fazer cuidadosamente o penso no arranhão do seu braço. – Acho que tenho tudo aquilo de que preciso. Sede do Comité Olímpico Internacional, Lausana, Suíça Num departamento de administração desportiva, num andar alto de um prédio de escritórios modernista, seis oficiais intermédios encontravam-se reunidos em torno de uma mesa de reuniões de nogueira de meados do século. Estavam a finalizar uma pequena alteração às regras do ciclismo olímpico de pista. Era quase meia-noite e queriam despachar o trabalho e voltar para junto das famílias. No dia seguinte, iriam rever o pentatlo moderno. Em cima da mesa, havia chávenas meio vazias de café forte e frio e latas meio vazias de Diet Coke morna. Os subordinados iam e vinham entre a sala e as máquinas de bebidas. As cláusulas foram reescritas. No comprido corredor, lá fora, os empregados de limpeza aspiravam as carpetes. Os funcionários estavam a modificar as regras de admissão aos Jogos Olímpicos, para satisfazer os interessados nas operações de programação televisiva nos Estados Unidos, Europa e Ásia. Os programadores exigiam a participação de menos ciclistas, porque queriam menos eliminatórias e mais finais no horário nobre olímpico. Precisavam disso para satisfazer os interessados secundários – os anunciantes que compravam o espaço publicitário

em mil e duzentos mercados regionais – que tinham de apresentar um valor melhor aos seus clientes. Os clientes estavam apertados porque os bancos lhes tinham chupado o dinheiro até ao tutano, portanto havia menos para gastar. Os oficiais concordaram, assim, que a competição no velódromo tinha de ser acelerada. Fora isto que acontecera ao mundo onde as crianças costumavam pedalar as suas bicicletas lentas em curvas indiferentes. O tempo fora reestruturado, como uma dívida atrasada. A longa hora indolente fora pulverizada. Manifestos eram reduzidos a memes e discursos comprimidos em frases-chave e eliminatórias truncadas em finais e os oficiais não tinham culpa se a consequência de toda esta desvalorização era que um velho teria agora de escolher entre duas ciclistas que tinham crescido com ele, e que uma menina suspensa entre a vida e a morte sentisse esse fio frágil a desfazer-se. Os oficiais consagraram as revisões aos seus documentos e levantaram-se da mesa de reuniões. Enquanto percorriam o edifício vazio, trocando conversa de circunstância sobre as famílias, as luzes com sensores automáticos detetavam a sua presença e acendiam-se com clarões tremeluzentes e pequenos estalidos metálicos. Graças aos temporizadores, ficavam acesas depois de os interessados terem passado e desligavam-se na mesma ordem por que se tinham acendido. Era como se outro grupo de pessoas, silenciosas e com desejos de escuridão, seguisse o primeiro grupo através do edifício. Por fim, os corredores ficaram silenciosos e escuros. Os funcionários apanharam os elevadores diretamente para o parque de estacionamento subterrâneo. Entraram nos elegantes veículos pretos ou cinzentoprateados – Volkswagens, Audis, Volvos – que a organização disponibilizava aos administradores intermédios. Alguns ligaram a música; outros preferiam conduzir em silêncio. Se tivessem pensado no assunto durante as curtas viagens de regresso a casa e à família, parecer-lhes-ia que tinham feito apenas uma pequena alteração na competição. Nem sequer era suficientemente importante para aparecer nos jornais. Cidade das Nuvens, Territórios da Orla Exterior, Setor Anoat, em órbita planetária elevada, 60 000 km acima da superfície do planeta gasoso Bespin, a 49 100 anos-luz do coração da galáxia, coordenadas cartográficas K-18

Sophie estava a lutar contra Vader, com sabres de luz, na coberta de observação da Cidade das Nuvens, com o sol de um lilás desmaiado a pôr-se por trás das nuvens gasosas e fervilhantes do planeta muito abaixo deles, quando o alarme do seu iPod disparou. Acordou lentamente e desligou o alarme. Ignorou a fraqueza que lhe tornava os membros pesados. Sabia o que tinha de fazer. Esta era uma missão Jedi e os Jedis não se preocupavam por estarem doentes. Ligou o seu sabre de luz a pilhas, que brilhou, verde. Dava luz suficiente para conseguir ver. Saiu da cama e entrou em bicos de pés no quarto dos pais. Parou aos pés da cama deles, com o sabre de luz erguido para conseguir vê-los. Estava tudo bem. Eles estavam encostados um ao outro, a dormir, a cabeça da mamã no peito do papá, como era costume na Terra. Regressou ao quarto em bicos de pés e encostou o sabre de luz à parede. Ajoelhou-se e tirou a Millenium Falcon de baixo da cama. Levantou-a, perfeitamente nivelada, para que o vomitado não abanasse e não pingasse. – Calma, miúda – sussurrou Han Solo. – Um passo em falso e perderás o controlo deste velho caixote. – Ei, isto não é nada – murmurou Sophie. – É como manobrar o meu landspeeder. Pilotou a Millenium Falcon pelas escadas abaixo, evitando os caças TIE inimigos, e pisando na beira dos degraus para que o espaço-tempo não rangesse. Na cozinha, atracou a Falcon ao quadro de treino, removeu a secção superior e despejou cuidadosamente o vomitado para o lava-loiça. O cheiro era horrível, mas Sophie estava habituada a ele. Abriu a torneira da água fria e enxaguou o modelo até todo o vomitado ter desaparecido e as figuras de ação estarem novamente limpas. – Já acabaste, miúda? – murmurou Han Solo. – A água está fria. Chewbacca emitiu o seu som pesaroso. – Calma, sua grande bola de pelo – sussurrou Sophie. – Queres que o Império consiga localizar-nos pelo cheiro? Depois de a Falcon estar limpa, passou o lava-loiça por água e conduziu os últimos fragmentos sólidos pelo ralo abaixo. Depois limpou a Falcon e as figuras com um pano, repôs a parte de cima do modelo e subiu novamente pela cintura de asteroides até à Cidade das Nuvens. A meio das escadas, onde a gravidade era excecionalmente forte, foi acometida por um acesso de enjoos espaciais e teve de descansar uns minutos. Sentou-se na escuridão, a sentir o ardor no peito e a náusea a subir do estômago. Passado algum tempo, a sensação acalmou.

Levantou-se e continuou. Quando chegou ao patamar, cometeu um erro. Moveu-se demasiado depressa na escuridão e tropeçou. A Millenium Falcon deu um solavanco e raspou na parede. – Cuidado! – disse Han Solo. – Ela pode parecer um monte de sucata mas é a nave de contrabando mais rápida da galáxia. Sophie estacou. No quarto dos pais, ouviu sons de movimentos. Depois a voz do pai, entaramelada de sono: – És tu, miúda? Está tudo bem? Sophie percorreu em bicos de pés os últimos passos que a separavam do quarto, entrou, enfiou a Falcon debaixo da cama, deitou-se e tapou-se com o edredão. – Sophie? – chamou o pai. – Está tudo bem? – Sim – respondeu ela. – Tudo bem. – Linda menina – disse o papá. Sophie fechou os olhos, deu o salto para o hiperespaço e regressou à Cidade das Nuvens.

Terça-feira, 3 de abril de 2012 Apartamento 12, The Waterfront, Sport City, Manchester om acordou com a luz de abril a filtrar-se entre as cortinas e o DJ no rádiodespertador a anunciar tráfego intenso nas entradas da cidade. Levantou-se, abriu as cortinas e deixou o sol fraco iluminá-lo. Com um bocejo, sentou-se na cadeira da secretária, apoiando o peso nos braços para não sobrecarregar os joelhos. Abriu o software de que precisava para fazer os horários de treino de Zoe e Kate para a semana e, enquanto este carregava, consultou o e-mail. A primeira mensagem era do serralheiro, sobre a porta arrombada. A segunda era do seu patrão do Ciclismo Britânico. Tom, dizia, más notícias. Ontem à noite, já tarde, recebemos um memorando do COI, que vai anunciar brevemente uma alteração nos critérios de admissão às qualificações para Londres 2012. Apenas um atleta por cada nação olímpica poderá concorrer em cada evento de sprint em Londres. Terás de falar com a Zoe e a Kate antes do anúncio do COI, já que obviamente apenas uma delas pode agora qualificar-se. O e-mail continuava com ofertas de apoio e a garantia de uma contestação veemente à alteração das regras pelo COI – incluindo um aviso para não ter muita esperança nos resultados práticos dessa contestação. – Meu Deus – disse, baixinho, e releu o e-mail. Suspirou e baixou lentamente a cabeça até à secretária.

T

Conhecera as raparigas no mesmo dia, em 1999, quando dirigia o Programa de Esperanças de Elite. Na altura, tinha duas turmas de Esperanças por ano, no Velódromo de Manchester, e em cada evento dispunha de exatamente três dias para selecionar os mais talentosos entre uma dúzia de jovens. Não era muito tempo. Ao longo dos anos, desenvolvera um truque: no primeiro dia, sentava-se atrás da receção no velódromo e fingia ser o rececionista. Assim, podia falar com os miúdos novos, à medida que chegavam, e avaliar a sua atitude quando não estavam preocupados em portar-se bem. Conseguia obter uma perspetiva melhor quando os via assim. Zoe foi a primeira a chegar no primeiro dia, dezanove anos de idade, alta e intensa, com um blusão de penas preto, eyeliner preto e a cabeça rapada. Não sorriu, mas enfim. Tom respeitava os miúdos que chegavam cedo. Quem chegava primeiro reclamava o espaço. Na pista, os outros ficariam à espera da sua iniciativa no sprint. Procurariam aquele pequeno estremecimento dos músculos das pernas que indicava que ia libertar o poder. E, quando conseguissem reagir, ela já estaria uma ínfima fração à frente deles. Ao chegar uma hora mais cedo ao velódromo, era possível conquistar um décimo de segundo na pista. Eram dessas contas que se faziam as vitórias. Zoe dirigiu-se à receção e pôs o saco em cima do balcão. – Bom dia, menina – disse Tom. – Em que posso ajudar? Zoe olhou para além dele, para lá dos torniquetes que separavam o átrio do velódromo propriamente dito. – Programa de Esperanças de Elite – disse. Tom sorriu. – É uma das esperanças, é? Ela não estava com disposição para brincadeiras. – Zoe Castle. Estou na lista. O treinador é o Thomas Voss. – Voss? Não me diga que é o velho? Ela revirou os olhos. – Oiça, pode verificar a lista, por favor? Tom virou-se para o computador, fingindo-se perplexo. – Provavelmente ele ainda não está cá – disse ela. – Cheguei cedo. – Cedo para quê? Era evidente que ela não aguentava mais. – Olhe, já lhe disse. Estou aqui para o… – Bom, esperemos que tenha tanta velocidade como impaciência, Zoe Castle. Ela lançou-lhe um olhar sombrio e Tom deixou-a entrar. As alças do saco de

Zoe prenderam-se no torniquete e ela debateu-se por um minuto até conseguir libertá-las. Estava completamente furiosa. Tom observou-a com a expressão chocada mas encantada de uma criança que bateu no vidro da casa dos répteis e acordou um animal perigoso. Deu-lhe um minuto e entrou no velódromo atrás dela. Gostava de ver como os atletas reagiam a este espaço. Doze mil lugares erguiam-se até à cúpula do teto, tão alta que a luz dos painéis de vidro não chegava ao nível da pista. As colunas de luz do sol atravessavam o grande vazio e desvaneciam-se num tom acinzentado que mal tocava no verniz da pista. Estava uma manhã de inverno luminosa mas, ao nível da pista, era crepúsculo. Tom viu Zoe chegar à beira da pista e largar o seu saco ao pé da linha de partida. O som ecoou no espaço vazio. Ela descalçou os sapatos e as meias e pisou a pista, testando o ângulo sob os pés descalços. Percorreu uma volta, no sentido contrário aos ponteiros do relógio. Nas retas o ângulo era pouco acentuado, mas nas curvas a inclinação era tão agressiva que os seus pés quase não conseguiam manter a tração. Começou a correr, primeiro devagar, depois mais depressa, e Tom sentiu os cabelos da nuca arrepiados quando ela esticou os braços e gritou no espaço cavernoso. Trinta minutos depois, com Tom novamente na receção, apareceu Kate. Estava protegida do frio por duas camisolas polares e um gorro de borla, com o cabelo loiro a espreitar por baixo. Sorriu a Tom. – Desculpe, cheguei cedo demais, não foi? Não sabia quanto tempo demoraria a pé desde o hotel. Quer dizer, posso voltar mais tarde se for… não sei. Parou, a meio caminho entre a porta de entrada e a receção. Tom inclinou a cabeça e observou-a. – Venho para o Programa de Esperanças de Elite – disse ela. – É hoje, não é? Recebi uma carta daqui. Mas talvez haja várias sessões diferentes? Peço desculpa se estou a incomodar. Tom pousou os cotovelos no balcão, apoiou o queixo nas mãos e sorriu a Kate. – Respire fundo. Ela assim fez, e riu-se. – Vamos começar pelo princípio. Deram-lhe um nome quando nasceu, querida? – Oh, sim. Desculpe. Sim. Catherine Meadows. Kate. Tom olhou para os papéis e piscou os olhos. – Catherine Anne Meadows, Campeã do Norte de Inglaterra em estrada e pista de sub-12, sub-14, sub-16 e sub-18. Os nossos documentos mostram uma bonita série de resultados, mas nada nos últimos seis meses. Esqueceu-se de continuar a

vencer? Ela corou. – Não. – Então? – Não tenho competido. – Lesionada? Ela baixou os olhos. – O meu pai morreu. Desculpe. – E pensou que dar cabo da sua carreira de ciclista podia trazê-lo de volta? Kate ergueu novamente os olhos, chocada. – Aqui, dizemos as coisas como elas são, Kate. Quando se é tão bom como você, desde que as pernas continuem presas ao corpo, não se para de correr. Está bem? Ela corou ainda mais. – Lamento muito. Tom sorriu. – Os meus sentimentos pela sua perda. Traz o seu equipamento? Ela aproximou-se da receção e mostrou-lhe o saco. – Acho que sim. Quer dizer, só trouxe aquilo que costumava usar para correr. Não sei se tenho o material certo. Tom olhou para ela. – Não sabe mesmo, pois não? – O quê? – Se tem o material certo. Ela ficou parada, com os braços caídos ao lado do corpo. Estava agora perfeitamente atrapalhada. Tom recostou-se na cadeira. – Não se preocupe, Kate Meadows. Havemos de a colocar outra vez no caminho certo. Entre, o treinador irá ter consigo às nove. Recebeu os outros jovens à medida que chegavam. Às nove, quando já tinham aparecido todos menos Jack Argall, fechou a receção e entrou no velódromo para observar como as suas novas esperanças interagiam umas com as outras à média luz. Eram onze, no total, seis raparigas e cinco rapazes. Os rapazes estavam sentados juntos nas bancadas, refastelados nas cadeiras de abrir, a falar sobre Keats e porcelanas finas, ou o que quer que os rapazes falavam quando estavam prestes a passar oito horas a competir uns com os outros. Pareciam modelos

atléticos, com poucas peças móveis. Zoe estava de pé, com os pés abertos à largura dos ombros, a observá-los do ponto mais iluminado à beira da pista, onde toda a gente a conseguia ver bem. Pôs o seu saco nos melhores lugares e movimentou-se como se fosse dona do espaço. Tom observou-a enquanto ela observava as outras raparigas a fazerem o aquecimento. Quatro delas eram amigas, do circuito inglês de juniores: Clara, Penny, Jess e Sam. Tom fora vê-las competir, a todas. Estavam sentadas no chão na área técnica, juntas, a rirem e a ajudarem-se umas às outras com os alongamentos. Tom viu Zoe a analisar a forma das rivais. Clara era corpulenta, uma halterofilista em cima de uma bicicleta. Seria imbativelmente poderosa até ao instante em que os seus músculos apresentassem um pedido educado de mais oxigénio. Tom viu Zoe a pô-la de lado com os olhos. Penny era mais difícil de interpretar. Estava a ajudar Clara a alongar, com uma mão nas costas da amiga enquanto Clara tocava nos dedos dos pés. O braço de Penny nas costas de Clara era magro, escanzelado, até. Era evidente que andava a treinar para longa distância; a sua gordura corporal parecia perto do zero e a massa muscular estava no mínimo. Parecia mais uma triatleta do que uma estrela da pista. O seu rosto era seco e, quando se riu de algo que Clara dissera, as gengivas pareciam mirradas. Havia uma fina linha divisória – bastava uma ínfima fração de treino a mais para a ultrapassar – entre estar numa forma perfeita e cronicamente doente. Penny não parecia estar a fazê-lo bem. Zoe pareceu relaxar. Jess e Sam estavam sentadas frente a frente, com as solas dos pés encostadas, agarradas aos pulsos uma da outra e a alongar as costas alternadamente. Jess era bonita, com o cabelo pintado com madeixas vermelhas. Tinha uma tatuagem ao fundo das costas, um sol estilizado com um rosto e uma juba de raios. De cada vez que se esticava, o sol erguia-se acima da cintura das calças de corrida. Tinha umas boas costas e alongava como uma ginasta, elástica e flexível. Mas talvez fosse demasiado esguia para impor a sua vontade, fisicamente, numa situação disputada. Quando uma estreita janela de oportunidade se abria à frente delas na pista, era preciso ter a potência necessária para subir instantaneamente para outro nível e cobrir esse espaço antes que se fechasse. Jess parecia ter boa potência, mas talvez não tivesse esse arranque. Ao estudá-la, Tom deu-lhe cinquentacinquenta e, quando olhou para Zoe, percebeu que ela também estava curiosa. Viu a atenção dela desviar-se para Sam, mas era evidente que Sam não tinha o que era necessário. Havia uma rigidez nas suas costas quando as alongava e uma fragilidade na postura dos ombros que fez Tom questionar se não estaria lesionada. Não estava a sorrir e Tom percebeu que ela sentia a força superior que

percorria o corpo de Jess enquanto alongavam juntas. Talvez estivesse a perguntar a si própria, de súbito, o que estava a fazer aqui. Isso deixava apenas Kate. Tom viu Zoe virar-se para ela. Enquanto as outras raparigas vestiam os equipamentos de aquecimento dos seus clubes ou as suas cores de campeãs, Kate vestia um simples fato de treino amarelo, um conjunto civil, com capuz, da Adidas. Tinha cordões compridos na cintura e no capuz. Ela olhou em volta, para o velódromo, tão excitada como Zoe mas sem ter o bom senso de disfarçar. Tudo na sua linguagem corporal dava uma vantagem psicológica a qualquer pessoa que se desse ao trabalho de a observar. Tom viu Zoe pôr-se em pé quando Kate se aproximou dela. Kate sorriu, parou, e deixou um espaço para Zoe percorrer o resto do caminho, se quisesse. Algumas pessoas deixavam esses espaços vazios cautelosos para os outros, com a forma certa para os acomodar. Tom sabia que essas pessoas raramente eram campeãs. Viu Zoe retribuir o sorriso, friamente, depois arrasar Kate com o olhar e virarlhe costas. Tom desejava que ela não tivesse razão, mas não podia discutir com a conclusão a que ela chegara. Os resultados de Kate eram os melhores de todas as raparigas do programa, mas a verdade era que ela era o tipo de rapariga que parava de treinar quando o pai morria. Zoe era diferente. Parecia a Tom o tipo de rapariga que, se a família alguma vez se metesse entre ela e os treinos, os mataria ela própria. Não importava se Kate a vencesse esta semana. Pouco a pouco, corrida a corrida, ano a ano, uma rapariga como Zoe manter-se-ia no topo no desporto enquanto Kate se afundaria lentamente sob o peso da vida real. Tom já o vira acontecer uma centena de vezes. Eram nove e dez e Tom estava prestes a descer para junto da pista, para se apresentar, quando um rapaz saltou por cima do torniquete e se dirigiu à pista. Media um metro e oitenta. Era todo músculos. Vestia uma T-shirt da banda escocesa The Exploited. Trazia calças de ganga, o cabelo era preto, encaracolado e revolto e tinha uns auscultadores à volta do pescoço. Além disso, o miúdo parecia ser rápido. Parecia ter sido testado num túnel de vento. Correu pelos degraus abaixo como uma estrela de rock a entrar no estádio. Gritou «Olá! Olá!» e largou o saco. Parou na pista, em cima da linha de partida, bateu palmas e todos os outros se silenciaram. Tom recuou, fascinado. – Muito bem, pessoal! Juntem-se aqui! O meu nome é Jack Argall e sou o

treinador assistente. O Thomas Voss não está a sentir-se bem e pediu-me que o substituísse. Vou orientar-vos numa série de exercícios de aquecimento e avaliar a vossa aptidão para cada uma das disciplinas de pista. Muito bem, os rapazes podem formar uma fila aqui… assim mesmo… e as raparigas deste lado… obrigada, muito bem… e agora quero que corram sem sair do sítio durante dois minutos, só para ativar a circulação. Tom observou, de boca aberta, enquanto o miúdo organizava os outros em filas, dando ordens com um forte sotaque escocês. Os ciclistas começaram todos a correr no mesmo sítio. Até Zoe se dirigiu à pista e começou a aquecer. Jack aplaudiu. – Muito bem, sim senhor! Bom, agora os rapazes vão correr pela pista em sentido contrário aos ponteiros do relógio… obrigado… muito bem… e as raparigas vão fazer alguns alongamentos de tronco, mãos atrás das costas, estiquem o peito para a frente… obrigado, assim mesmo. Toca a esticar bem, meninas, as mais flexíveis ficarão com as bicicletas mais rápidas. As raparigas riram-se mas esticaram os braços para trás e os peitos para a frente. Kate esticou-se até as veias ficarem salientes. Os rapazes chegaram novamente à linha de partida. – Muito bem, rapazes! – disse Jack. – Mais uma volta, mas desta vez a correr para trás. E as meninas vão abrir as pernas à largura dos ombros e tocar nos pés. Ah, sim, muito bem. Mostrem-me até onde conseguem ir. Tom, a observar no alto da bancada, não conseguiu deixar de se rir. Os rapazes estavam a esforçar-se para correr para trás na pista, por causa do ângulo pronunciado. Tropeçaram. Praguejaram. As raparigas estavam de rabo no ar e mãos no chão. – Muito bem, cavalheiros! – gritou Jack. – Quero que continuem a correr para trás, mas agora têm de dar uma palmada na coxa passo sim, passo não, e a cada oito passos quero que batam na nuca com ambas as mãos. Tenho de transmitir ao treinador qual de vocês possui a melhor coordenação. Os rapazes eram terríveis. O som das palmadas, quedas e imprecações ecoou pelo velódromo. As raparigas começaram a rir e endireitaram-se para observar os rapazes. Do lado oposto da pista, os rapazes estavam a perder a cabeça e a situação resvalava para o caos. Jack sorriu às raparigas. – Agora, meninas, posso pedir a vossa atenção? Tenho uma confissão terrível a fazer. O meu nome é mesmo Jack Argall, mas o Thomas Voss não me pediu que fizesse isto. Sou apenas um de vós. Não faço ideia de onde é que está o Thomas

Voss, para dizer a verdade. Portanto, gostaria de aproveitar esta oportunidade para vos informar de que sou o atual Campeão Nacional da Escócia em bicicleta, que estes bíceps são mesmo meus, que não tenho presentemente namorada, que todas vocês são extremamente bonitas e flexíveis e que neste preciso momento sou o único atleta do sexo masculino no edifício que não está a fazer figura de urso com a dança bávara das palmadas em marcha atrás. Muito obrigado. Fez uma vénia. Pela cintura. Com um floreado. O silêncio invadiu o recinto. Depois Kate desatou a rir e Jack piscou-lhe o olho. A gargalhada transformou-se num ataque de tosse e Jack tocou-lhe no cotovelo. – Desculpa, estás bem? – perguntou. Kate acenou afirmativamente, com as lágrimas a deslizarem pelas faces. Os rapazes voltaram para a linha de partida. Estavam a ver o lado engraçado da situação. Insultaram Jack e deram mais cinco uns aos outros. Agora estavam todos a rir, ou quase todos. Zoe aproximou-se de Jack. Era tão alta como ele. Fitou-o nos olhos. Tinha o rosto a dois centímetros do dele e estava a tremer. Os risos pararam. Zoe disse: – Quem diabo pensas que és? Jack abriu os braços. – Vá lá! Estava só a brincar. – Olhaste bem para nós? Que tal foi? – Bom, para dizer a verdade, muito agradável… Zoe deu-lhe um murro no estômago. Colocou toda a sua força no movimento do braço. Apanhou-o desprevenido e Jack cambaleou e dobrou-se ao meio. – Agora – disse ela –, olha para mim de outra maneira. Jack recuperou o equilíbrio. Sorriu e ergueu a mão num gesto conciliador. – Por favor… Zoe esbofeteou-o e o som ecoou por todo o velódromo. Tom sentiu-o. Sentiu fisicamente a dor e susteve a respiração. Jack estava a esfregar a cara. – Lembra-te dessa sensação – disse Zoe calmamente. Todos os jovens olharam para ela na semiobscuridade. Tinha um olhar tresloucado. O seu rosto estava pálido. Os ecos demoraram demasiado tempo a dissipar-se. – Para onde é que estão todos a olhar? – gritou Zoe. – Isto não é a sério para vocês? Não estamos nos escuteiros. Isto não é uma coisa que eu faço aos sábados

para a minha mãe poder arrumar a casa. Enquanto os outros a observavam num silêncio chocado, Tom pegou no telefone e fez um telefonema rápido para a sala de controlo do velódromo. A luz dos holofotes mudou de laranja para branco. As sombras encolheram, o velódromo encheu-se de luz e as jovens esperanças, apanhadas na iluminação súbita, pestanejaram. Tom desceu calmamente até à pista, apoiado ao corrimão para tirar algum peso dos joelhos. Fitou-os a todos nos olhos. – Muito bem, pessoal – disse. – Suponho que a culpa é toda minha. Jack, és um imbecil. Estás magoado? Jack esfregou a cara. – Não. – Zoe, és uma ameaça – disse Tom. – Estás arrependida? Ela olhou diretamente para Jack e abanou a cabeça. – Bom, vou reformular. Zoe, se todos concordarmos que o comportamento de Jack ultrapassou os limites e que foi errado rir, estás de acordo em guardar a tua agressividade para a pista? Ela encolheu os ombros e fez uma careta que podia dar para os dois lados. Tom tinha idade suficiente para aceitar essa oferta, enquanto estava em cima da mesa. – Muito bem. – Levantou as mãos. – Oiçam, eu sou o Tom Voss. Não estou orgulhoso do que acabou de acontecer. Uso o truque do rececionista todos os anos. Sou um treinador decente mas só tenho três dias para decidir quais de vocês têm hipóteses a nível internacional, por isso disfarço-me e apanho a vossa psicologia. Acho que apanhei aquilo de que precisava. E agora vamos dar aos pedais, está bem? Os jovens sorriram. Não conseguiram evitá-lo. Os seus corpos mudaram. Perderam a rigidez e relaxaram. Os joelhos dobraram-se ligeiramente, os dedos fletiram-se. O equilíbrio passou dos calcanhares para as pontas dos pés. As barrigas das pernas ficaram tensas e as respirações mais aceleradas. Tom sorriu também. – Céus, parecem lobos esfomeados! Ninguém pode dizer que não têm vontade. Distribuiu bicicletas. Eram bastante básicas. As estruturas eram de aço pesado, com amolgadelas. Deixou-os ajustar as bicicletas ao seu tamanho e disse a cada um que as identificasse, escrevendo o nome com marcador em fita adesiva colada no tubo. Viu-os arrancar os nomes dos anteriores ciclistas. Disse-lhes para ficarem apenas com os equipamentos de corrida e aquecerem durante meia hora. Mandou-os fazer voltas lentas, cada um a observar os outros,

às voltas como navios num redemoinho. Tom observou-os enquanto orbitavam à sua volta. Analisou a sua forma e, depois de uma dúzia de voltas, já sabia quais os três que conseguiriam chegar ao nível mais elevado. Sob as luzes fluorescentes sem sombras, viu que Zoe, Kate e Jack seriam promovidos aos grandes eventos. Seriam eles que competiriam um contra um nas curvas inclinadas de madeira dos velódromos do mundo – essas arenas de gladiadores, rodeadas de multidões ensurdecedoras, onde a velocidade humana e a solidão humana eram contidas para poderem ser testemunhadas. Tornar-se-iam nos atletas mais poderosos da Terra, impelindo as máquinas silenciosas a velocidades em que o ar começava a gritar. No velódromo, os seus sprints durariam menos de dois minutos, mas a construção desses dois minutos começara já, perante os olhos deles. Cresceriam juntos no desporto, teriam confrontos juntos, amariam e odiariam e fariam as pazes juntos, e atingiriam o auge juntos no final da casa dos vinte, princípio dos trinta. Acompanhar-se-iam uns aos outros fôlego a fôlego, pedalada a pedalada, à velocidade de uma ave em mergulho, e venceriam ou perderiam por milímetros. O mais ínfimo erro – o mais leve toque de roda com roda – e ossos e bicicletas ficariam despedaçados. Não usariam proteções, apenas fatos aerodinâmicos que revelavam cada musculo esculpido e seco. Usariam visores espelhados, para esconder os olhos. Tornar-se-iam irreconhecíveis. As suas mentes, durante as corridas, transcenderiam. Estariam conscientes dos vórtices da corrente de ar dos seus rivais; da potência precisa de cada fibra em cada grupo de músculos; dos parâmetros constantemente flutuantes de calor, humidade e textura da superfície, que determinavam os limites da adesão dos pneus em cada centímetro quadrado da pista. Estariam conscientes da esperança que perseguiam e do fracasso que os perseguia a eles, estariam conscientes do seu futuro e do seu passado, e estariam conscientes de cada pixel do momento, desde os nós das tábuas da pista até às tranças da menina de vestido de xadrez azul na fila trinta e oito, a suster a respiração ao perceber que queria ser igual a eles. A jurisdição da psique nas suas corridas permaneceria intocada por literatura ou ciência. Saber-se-ia mais sobre as mentes de tubarões caçadores. O melhor que Tom podia fazer por estes miúdos era treiná-los até ao nível olímpico, onde eles corriam para se destruir uns aos outros, de quatro em quatro anos e por menos de dois minutos de cada vez, no maior palco mundial. Competiriam para os milhares a gritar nas bancadas e pelos três mil milhões a assistirem em casa. O vencedor receberia os seus sonhos de glória da infância, derretidos em forma de disco e apresentados numa fita. A medalha propriamente

dita teria sessenta milímetros de diâmetro, três milímetros de espessura, feita de prata e banhada com seis gramas de ouro puro. Tom lembrava-se do tempo em que a medalha era de ouro puro – mas, hoje em dia, pouca coisa ainda era pura. Tom observou-os enquanto o período de aquecimento terminava. Viu a força latente de Kate, o fluir perfeito de Zoe e a energia incandescente de Jack. Estavam agora a olhar para ele, excitados, à espera do sinal que poria fim ao aquecimento e daria início à ação. Segurou o apito entre os lábios. Quando desse o sinal, a vida destas pessoas mudaria de formas que ainda não tinham maneira de saber. Seria mais difícil para eles do que pensavam, porque, tirando esses exaltados dois minutos de cada corrida, estavam condenados a ser pessoas vulgares, sobrecarregadas com as mentes e corpos e ligações sentimentais humanas que não haviam sido concebidos para acelerar a tais velocidades. Passariam pelas agonias da descompressão, como mergulhadores que sobem demasiado depressa das profundezas. Teriam uma certa qualidade estranha e volátil, estas pessoas irreconhecíveis com os olhos escondidos atrás de visores: no momento exato em que cruzassem a linha da meta, tornar-se-iam seres humanos iguais aos outros. Tom hesitou. Tinha o apito pronto, mas faltava-lhe a coragem para soprar. E depois, Kate desceu da parte mais elevada da pista e parou a bicicleta ao lado dele. Tirou o capacete, com um sorriso radiante no rosto, e Tom sentiu o coração derreter. Olhou de testa franzida para aqueles olhos azuis cintilantes e para as faces coradas do aquecimento. – O que é que foi? – perguntou. – Não devias estar na escola? Ela mostrou-lhe o dedo do meio. – Já podemos correr, ou quê? Ele riu-se. Toda a hesitação e o embaraço de Kate tinham desaparecido. Era uma rapariga diferente, na bicicleta. Era isso que cada um fazia na pista, para o melhor ou para o pior – corria contra si próprio. E, pelo menos durante algum tempo, podia vencer. – Correr? – disse Tom. – Ah, então é para isso que aqui estão. Soprou o apito e chamou os ciclistas para junto de si. Tom levantou a cabeça da mesa e olhou novamente para o e-mail. Terás de falar com a Zoe e a Kate antes do anúncio do COI. Não adiantava lamentar-se. Cabia-lhe essa tarefa e não tencionava fugir-lhe. Se quisesse ser honesto, assumira para si estes desgostos no instante em que soprara

aquele apito. Beetham Tower, Deansgate, número 301, Manchester Zoe acordou nos lençóis escuros da sua própria cama à primeira claridade do sol fraco de abril. Era sempre assim. O mais leve indício de madrugada fazia-a abrir os olhos e lançava a adrenalina a correr-lhe pelos membros. A imobilidade era impossível. Ninguém conseguia treinar o corpo a este nível e obrigá-lo a ficar imóvel, por tão bem que lhe soubesse. Ao seu lado tinha o jovem médico que a atendera na noite anterior nas Urgências. Depois de ver que ela não tinha ossos partidos, e uma vez que o seu turno acabava às oito, ele oferecera-lhe boleia para casa e ela oferecera-lhe um eufemismo. Café fora provavelmente o eufemismo usado – não se lembrava. No sono, ele assumira uma posição na beira oposta da cama, deitado de lado, curvado como um parêntesis. Zoe acariciou-lhe a face mas ele não reagiu – estava profundamente adormecido. Passou os dedos levemente sobre a pele do ombro dele. A sua imobilidade comovia-a. Havia uma linguagem em dormir juntos e a maioria dos homens gritava-a. Mesmo os bons amantes se tornavam estridentes no sono; agitavam-se, esticavamse, agarravam-se a ela. Como se ela precisasse de ser abraçada. Como se só contra todas as probabilidades tivesse conseguido, em trinta e dois anos de vida, não sofrer um ferimento fatal ao cair da própria cama devido à ausência de um quase desconhecido para a segurar. Zoe acariciou-lhe novamente a face. Ele abriu os olhos. Eram verde-claros e algo se agitou dentro dela. Ele fitou-a com ar inexpressivo durante um segundo, depois fechou os olhos novamente, sem acordar. Os médicos mais novos chegavam a trabalhar cem horas por semana, ouvira ela dizer. A dormir, ele parecia muito jovem. Zoe gostava da forma organizada e reservada como ele dormia. Não fora tanto o sexo que a levara a convidá-lo, mais a necessidade de partilhar este espaço com outro ser humano, quarenta e seis pisos acima do solo, entre as nuvens. O sexo era dinheiro barato que podia imprimir quando era necessário e usar para comprar uma suspensão da solidão até de manhã. A seguir, o homem caíra para o lado, exausto. Dissera uma coisa simpática que

a fizera sorrir: – Na minha opinião profissional, não há rigorosamente nada errado contigo, Zoe. – Sou capaz de precisar de uma segunda opinião. – Sou capaz de precisar de dormir um bocadinho. Ela rira-se e tinham ficado deitados, juntos, na escuridão. Ela sentira o coração dele a bater, e ele sentira o dela. O seu ritmo cardíaco deixara-o preocupado, ao ponto de lhe pegar no pulso para o medir. – Não quero preocupar-te, mas… Zoe despenteara-lhe o cabelo. – A minha pulsação é trinta e nove. Eu sei. Não te preocupes, não estou a morrer. Sou sobre-humana. Ele sorrira, ensonado. – Quais são os teus superpoderes? – Oh, sabes como é, gosto apenas de estar em forma. Ele não sabia quem ela era e Zoe não lhe dissera. Assim era mais fácil ser ela própria. Beijara-o e ele adormecera com o dedo pousado ao de leve no pulso dela. Zoe ficara acordada, a ouvi-lo respirar. Não tirara o pulso de baixo da mão dele. A sua vida estava repleta de pessoas que sabiam quem ela era e que lhe davam horários de treino e lhe mediam a pulsação todos os dias. Mediam-lhe o ritmo cardíaco máximo, o ritmo cardíaco no limiar láctico, o ritmo cardíaco em potência máxima. Soubera-lhe bem ficar deitada, em silêncio, na sua escuridão privada, ao lado deste homem que parecia preocupar-se, por pouco que fosse, com o que o seu coração fazia quando estava em repouso. Na luz fraca da madrugada, Zoe tapou o médico com o edredão e deixou-o a dormir. Na sala, ligou a televisão no canal noticioso, sem som, enquanto fazia duzentos abdominais, oitenta elevações laterais e sessenta torções oblíquas sentada numa bola medicinal. Fez os alongamentos e depois tomou um duche, levantando o braço ferido no ar para proteger o penso. Limpou o cabelo e fez café. De pé, junto das janelas altas, beberricou o café enquanto o sol se erguia sobre a vasta extensão humana de Manchester. A luz forte associada ao brilho pós-exercício no seu peito fez Zoe sentir-se desprovida de peso e de complicações. Pela primeira vez desde que se mudara para esta torre, sentiu-se bem. Sorriu e saltitou nas pontas dos pés. Estes eram os momentos de felicidade; tinha de os aproveitar. Tinha de reparar nos minutos de silêncio em que a memória era clemente e a superfície da sua vida

era como o espelho de um mar calmo. Quase conseguia acreditar que correra tão depressa que deixara o passado para trás. Era uma sensação indistinguível da de ser perdoada. Nas espirais das torres, os vidros incendiaram-se sob a luz nova, os gasómetros pintados reluziram. Zoe esticou-se nas pontas dos pés, apoiando uma mão no vidro. Lentamente, apoiou de novo os pés no chão e o seu rosto perdeu a expressão. O ato de reconhecer que estava feliz fora suficiente para destruir as fundações do momento. Mais cedo ou mais tarde, o jovem médico teria de apanhar o elevador até à rua e ao sair, com as roupas da véspera, seria confrontado com o rosto dela num cartaz de seis metros de altura. Assim que soubesse quem ela era, o processo de desintegração começaria, como acontecia sempre. Fez outro café expresso, com as mãos a tremer ligeiramente, e foi vê-lo dormir. Ele afastara novamente o edredão e as suas costas esguias brilhavam sob a luz do sol nascente. Zoe lembrou-se da curva do corpo dele na escuridão; da sensação de cumplicidade que sentira com ele. Sentou-se na cama, com as costas encostadas à cabeceira e os joelhos dobrados contra o peito, à espera que ele acordasse. Agitou-se, tentando decidir se havia de ficar ou de ir dar uma corrida. Se fosse, não sabia se ele ainda ali estaria quando voltasse. Pressionou um botão e um ecrã de televisão saiu silenciosamente dos pés da cama. Ligou-a no programa da manhã, sem som, com as legendas ligadas. Piratas tinham-se apoderado de um cargueiro ao largo da costa da Somália. O Arsenal sofrera uma derrota pesada. Um planeta fora descoberto num sistema solar próximo, aproximadamente à distância certa do seu sol para, em teoria, poder suportar vida. O apresentador anunciou estas coisas sem ter a presunção de as querer ordenar hierarquicamente. O toque de mensagem do seu telemóvel tocou, assustando-a e acordando o homem. Ele sentou-se, olhou para ela e pestanejou. Quando os seus olhos se adaptaram, sorriu. – Olá – disse. – Olá. Desculpa se te acordei. – Não faz mal. Estendeu a mão e tocou-lhe na anca. Ela hesitou. A manhã não roubara a beleza dele. Olhou para o telemóvel. A mensagem era de Tom, e pedia-lhe para lhe reservar uma hora depois do treino da manhã. – Está tudo bem? – perguntou o homem.

– Sim. É do escritório. – A que horas entras? – Oh, sabes como é… Hoje vou trabalhar a partir de casa. – Queres que te deixe em paz? Zoe sorriu. – Não. Deitaram-se sobre o edredão e os seus corpos foram iluminados pela televisão muda enquanto as legendas se sucediam. Mais protestos na perturbada região tribal de Waziristão do Norte, no Paquistão, dizem as autoridades, enquanto ele lhe beijava o corpo e dezasseis civis alegadamente sepultados vivos nos destroços de um edifício destruído por um drone não pilotado e ela virou-o de costas e ajoelhou-se sobre ele e dignitários começaram a chegar para a abertura oficial do Velódromo Olímpico de Londres e ela fechou os olhos e conteve um gemido e abriu os olhos e ali estava ela, subitamente cara a cara consigo própria. Através de uma distância de oito anos, fitou-se a si própria no ecrã da televisão, no primeiro lugar do pódio em Atenas, o infame vídeo em que ela parecia infelicíssima. A televisão mostrou-a a descer do pódio e os jornalistas a espetarem-lhe microfones na cara e a perguntarem-lhe como se sentia. Zoe pestanejou. Lembrava-se exatamente de como se sentira. Com a quebra de adrenalina, nada consolada pela medalha de ouro que tinha ao pescoço, perdera a coragem, como uma criança aterrorizada que de súbito dá por si no corpo de um adulto e deseja que o pesadelo chegue ao fim. Oh, estou feliz, diziam as legendas, em amarelo, para indicar que as palavras eram dela. Não parece feliz, disse um texto verde sem rosto no ecrã. Honestamente, disse o texto amarelo por baixo dos seus lábios em movimento, ninguém está mais feliz do que eu. A televisão mostrou a linha suave da sua boca no momento em que compreendera que a vitória não mudava nada. Isso fora depois do último sprint. No dia seguinte conquistara outra medalha de ouro, na perseguição individual, e a sensação não fora diferente. O ouro saía da terra e ela sentira o peso do metal a puxá-la novamente para baixo. Zoe apercebeu-se de que ficara paralisada a meio do sexo. Sentiu-o a erguer o corpo para ela, tentando fazê-la retomar os movimentos. Não conseguiu reagir. – Está tudo bem? – perguntou ele. – Sim, está tudo bem.

– Sim? – Sim. – Meu Deus, não aconteceu nenhuma desgraça, pois não? Os olhos dele seguiram os dela para o ecrã. Texto azul: a voz do apresentador sobreposta a imagens de arquivo do seu momento no pódio: Ali está ela, a pequena Miss Felicidade. A imagem passou para os dois apresentadores a rirem no sofá do estúdio. A confirmação em texto branco: [RISOS] A imagem passou de novo para as filmagens de arquivo de Zoe, pálida, a murmurar o hino nacional. Texto azul: E agora, claro, ela é notícia pelos motivos errados. Texto vermelho: Correm pelo Facebook alguns detalhes bastante escabrosos, e agora temos as novas revelações no jornal de hoje. Texto azul: Ao que parece, ela está a ser descrita como «sexualmente agressiva». Texto vermelho: Aí está uma surpresa! [RISOS] Agora estavam a mostrar a primeira página do maior jornal diário britânico. O rosto dela estampado na primeira página, por baixo dos anéis olímpicos. CLASSIFICAÇÃO XXX, dizia a manchete. Era a trigésima Olimpíada. Por baixo de si, sentiu o corpo do homem mover-se. – Oh, meu Deus – disse ele baixinho. – És tu. – Sim – respondeu Zoe calmamente. Saiu de cima dele e sentou-se com o queixo apoiado nos joelhos, a olhar para as imagens. – Não te reconheci – disse ele. Ela encolheu os ombros. – Sou mais pequena ao vivo. Texto vermelho: Trinta e dois anos de idade. Escândalos à parte – e temos de sublinhar que esta última história não passa de alegações – será trinta e dois demasiado velha para ter perspetivas realistas nos Jogos Olímpicos? Texto azul: Bem, trinta e dois é demasiado para qualquer atleta profissional, Doug, e mesmo que Zoe seja selecionada para os Jogos Olímpicos depois disto, não há dúvidas de que serão os seus últimos Jogos. Ao lado dela, no edredão, o homem tocou-lhe na mão. – Devias ter dito qualquer coisa. Devias… – O quê? O que é que eu devia ter feito? – Devias ter-me dito quem eras.

Ela lançou-lhe um olhar irritado. – Tu não me disseste quem eras. Ele abriu as mãos, num gesto de desespero. – Eu tinha uma placa de identificação ao peito. – Oh, por favor – disse Zoe. – Eu tinha a merda da minha cara. Desculpa lá se não tenho mesmo lábios e cabelo verde. Ele olhou para ela e a sua expressão suavizou-se. – És linda. Não és nada daquilo que te querem fazer parecer. Ela soltou uma risada breve e amarga. – O quê? Uma rainha do gelo? A destruidora de rivais com coração de pedra? – Desculpa – disse ele. – Preciso de um momento para absorver tudo isto. Na televisão, o texto vermelho disse: Conseguiste falar com ela? Texto azul: Não, a agente disse-nos que ela não está disponível para dar entrevistas hoje. Ele olhou para ela. – Disseste-me que trabalhavas num escritório. – Desculpa – disse ela. – É só que quando as pessoas descobrem quem eu sou, acontece isto. – Apontou para a televisão. O médico corou. – O quê, achas que eu vou a correr para os jornais? Zoe fitou-o por um momento e encolheu os ombros. – Se fores, pelo menos diz-lhes que eu não sou má pessoa, está bem? Dizlhes… não sei. Diz-lhes que te ofereci o pequeno-almoço. A televisão mudou para uma imagem da rua principal de uma cidade de província, à chuva. Encolhidos debaixo de chapéus de chuva amarelos, as pessoas que pediam doações eram mais do que aquelas que andavam às compras. Estará a confiança dos consumidores a regressar ao comércio tradicional?, disse um texto branco. Zoe levantou-se. – Não tenho muita coisa na despensa que os seres humanos normais comam. Quer dizer… posso oferecer-te arroz, ou frutos secos? Ou arroz e frutos secos, se fores tentar bater um RP hoje. – RP? – Recorde Pessoal. Como quando estás a treinar e dás tudo por tudo e fazes a tua volta mais rápida de sempre. É preciso combustível para isso. – Não temos RP nas Urgências. Ela ergueu uma sobrancelha.

– Então como é que se mantêm motivados? – Basicamente, ressuscitamos pessoas. Zoe enfiou o roupão e dirigiu-se à cozinha para fazer mais dois cafés, enquanto ele procurava as suas roupas. O assobio da máquina de café expresso era o único som no apartamento, enquanto lançava vapor no silêncio sem conseguir preenchêlo completamente. Depois de se vestir, ele encostou-se ao balcão da cozinha e ela debruçou-se e pegou-lhe na mão. – Desculpa – disse. – Não me importo nada que fiques para tomar o pequenoalmoço, a sério. Ele parecia indefeso, na sua confusão. Zoe apertou-lhe a mão. – Amanhã já estará tudo esquecido. Seja como for, eu sou uma celebridade de lista B. Ninguém vai começar a seguir-te. Na verdade, gostaria de te voltar a ver. – Sim, mas isto é… quer dizer, Céus. Não sei se tenho estômago para tudo isto. Enquanto falava, olhou para a janela e abriu as mãos num gesto largo sobre a cidade de Manchester. O gesto parecia, de alguma forma, estabelecer uma ligação entre a situação deles e um milhão de toneladas de cimento, e Zoe sentiu subitamente o peso. – Mas eu gosto de ti – disse. – Não consegues ignorar o que dizem sobre mim? É inveja, nada mais… odeiam-me porque sou bem-sucedida e eles são apenas pessoazinhas que nunca fizeram nada de jeito na vida. E sentam-se a criticar a forma como vivo, e é como se me roubassem a minha vida. Quanto mais criticam, menos eu posso ter uma relação normal, e mais eles criticam. Não tenho forma de vencer nesta situação e agora se estás a dizer-me que te importas com o que os jornais dizem, isso dá-me a volta à cabeça porque eu sou uma vencedora, percebes? Sou uma vencedora e não tenho maneira de vencer. Apercebeu-se de que não estava a conseguir afastar o desespero da voz; conter a fúria crescente enquanto apertava com mais força a mão dele. Soltou-o, baixou os olhos para o balcão da cozinha e respirou fundo, trémula, para se acalmar. – Desculpa – disse. Ele fitou-a durante muito tempo com os olhos verde-claros, depois tocou-lhe no ombro. – Ouve – disse, baixinho. – Posso escrever-te um número? Tirou uma caneta do bolso e ela estendeu-lhe uma revista Marie Claire, virada ao contrário para ele não ver a cara dela na capa. – Toma – disse. – Podes escrever aqui.

Ele carregou no botão da caneta e começou a escrever um nome e número de telefone na cara de uma marca de água mineral rival. Zoe não conseguiu conter o riso. – O que foi? – perguntou ele. – Nada. Tens uma caligrafia mesmo horrível. Ele sorriu. – Letra de médico, não é? – Pois. Zoe sentiu-se invadir pelo alívio. Estava a ser uma manhã embaraçosa, mas pelo menos ele ia deixar o seu número de telefone. Na maior parte das vezes, os tipos de quem ela gostava não faziam isso. Observou os movimentos fortes e fluidos da mão dele, dos dedos que seguravam a caneta, e deixou-se acreditar na possibilidade de o voltar a ver. Ele carregou no botão que recolhia o bico da caneta, guardou-a novamente no bolso e rodou a revista para que o número ficasse virado para ela. Ela sorriu. Ele sorriu. – Este número é de uma grande amiga minha da faculdade de Medicina – disse ele, em tom gentil. – Na verdade, ela é psicóloga clínica, mas não quero que fiques com a ideia errada. É apenas uma pessoa muito boa com quem falar, sobre tudo o que te passar pela cabeça. Nem imagino o que deves estar a passar com esta intromissão toda da comunicação social, mas de certeza que não é fácil. Zoe sentiu um aperto gelado no peito e fez um esforço para continuar a sorrir. Sorriu como se isto não fosse absolutamente terrível, como se não fosse insuportavelmente embaraçoso, mas sim exatamente aquilo que estava à espera que ele fizesse neste preciso momento da longa e conturbada história da sua vida romântica: que lhe aconselhasse um médico. – Obrigada – disse. – Vou telefonar-lhe. Sorriu enquanto ele vestia o casaco, sorriu enquanto ele a beijava na face, e abriu um sorriso radiante enquanto ele se debatia com o mecanismo minimalista de abertura da porta de correr lacada e brilhante, cor de azeitona, do apartamento. – Está aberta – disse Zoe. O homem virou-se e sorriu-lhe por um instante. – Estarei a torcer por ti, está bem? – Sim – disse ela, em tom animado. – Ótimo. A porta abriu-se e depois deslizou atrás dele, nas calhas oleadas, com um sistema de fecho hidráulico que emitiu apenas um leve som, pouco mais alto do que o som de Zoe a soltar a respiração quando pôde finalmente abandonar o

sorriso para abrir espaço a uma expressão neutra. Frustrada, bateu com a mão no balcão da cozinha e fez uma careta quando o movimento lhe fez doer a ferida por baixo do penso esterilizado. Aproximou-se das janelas, inclinou-se para a frente e olhou para a cidade lá em baixo durante muito tempo. Às nove da manhã, com o sol a cintilar nas ruas molhadas lá muito em baixo, a sua agente ligou-lhe. – Está tudo bem? – perguntou a agente. – Sim, não te preocupes. Estás a ligar por causa da notícia? – Sim. Viste na televisão? Tens de controlar a situação. Se permitirmos que eles te rotulem desta maneira, os patrocinadores vão virar costas. – Acabará por passar. – Queres correr esse risco? Acho que tens de dar qualquer coisa interessante aos jornais, para os distrair. Antes da próxima edição. Caso contrário, isto ainda pode ser notícia amanhã, não achas? – O que queres que eu lhes dê? – Qualquer operação fotográfica positiva serve. Tens de estar a sorrir. E mostra um bocadinho de pele. – Oh, por favor. – Não sou eu que faço as regras, está bem? Eu apenas ganho quinze por cento para te implorar que sigas as regras. Zoe apertou mais o roupão. Na televisão, as legendas estavam a passar sobre uma história típica da televisão diurna. Jules Hudson e a equipa estão no Worcestershire para conhecer Meg Cox e a sua filha adolescente, Melissa. Melissa pode ser cega, mas isso não a impedirá de alcançar os seus sonhos. Com um grande talento musical, ela espera que a equipa encontre coisas suficientemente valiosas na sua bonita casa para poder comprar uma guitarra de doze cordas. Zoe estremeceu. – Está bem. Farei o que tenho de fazer. O alívio da agente foi audível através da linha. – Lamento. Ambas sabemos que és melhor do que isto, mas é o ciclo noticioso, percebes? Quer dizer… – Podes parar de falar. Essa operação fotográfica… o que tenho de fazer? – Temos de criar um evento positivo. Qualquer coisa que desperte simpatia. – Como por exemplo? – Não podes visitar uma instituição de caridade qualquer, ou coisa do género?

– Que tipo de instituição? – Não sei… qualquer coisa com crianças? – Sabes o que eu penso de crianças. – Está bem. Desporto, talvez? Zoe fechou os olhos. – Já tenho desporto que chegue na minha vida. A agente pensou por um segundo. – Bem, não consegues desencantar uma amiga especial? Se pudermos trabalhar o ângulo das melhores amigas, uma reportagem de fundo, qualquer coisa que te faça parecer mais humana… – Bom, tenho a Kate. – Não estou a falar de uma fotografia na bicicleta. Tens de fazer qualquer coisa interessante. – E o ciclismo não é interessante? – Querida – disse a agente –, aquilo em que os humanos estão interessados é em histórias de interesse humano. – Está bem, eu e a Kate podemos fazer qualquer coisa humana. – Espero bem que sim. Caso contrário, amanhã os jornais vão comer-te viva. E lembra-te de sorrir nas fotos, está bem? Tens um sorriso muito bonito. Zoe ficou calada, a pensar em Kate. De vez em quando, havia um momento – como no rescaldo da queda da noite anterior – em que se apercebia de como se tinham tornado íntimas. Para Zoe, significara mais do que tudo ter uma pessoa na sua vida, no meio da chuva negra e das luzes azuis a piscar, que estava a ajudá-la a levantar-se da superfície da estrada não porque era o seu trabalho, mas sim porque queria fazê-lo. Mais tarde, na ambulância, tinham falado como ela imaginava que duas irmãs falariam. Isso assustara-a. A sua relutância em abrir-se, a sua rispidez – eram uma forma de colocar de novo alguma distância entre elas. Precisava de Kate mas não confiava em si própria. Estava mais naturalmente equipada para lidar com a relação quando Kate era apenas uma rival – alguém para destruir na pista e desmoralizar fora dela. – O que se passa? – perguntou a agente. – Nada – disse Zoe. – Estava apenas a lembrar-me do tempo em que isto não tinha nada a ver com ciclos noticiosos. – O quê, ainda achas que tem a ver com bicicletas? Não podes armar-te em sentime… Zoe desligou e fechou os olhos.

* No dia em que conhecera Kate, na primeira manhã do Programa de Esperanças de Elite, só conseguira vencê-la porque a afetara psicologicamente. Ela e Kate eram as duas raparigas mais rápidas do programa, de longe, e Tom mandara-as fazer uma corrida de três voltas, uma contra a outra. Elas avaliaram-se mutuamente. Zoe tinha o coração aos saltos. Não conseguia pensar como devia ser, por causa da adrenalina. Estava sentada na bicicleta ao lado de Kate, na linha de partida. Tom segurava a bicicleta de Kate e Jack a de Zoe. A pele de Zoe brilhava. Tinha acabado de fazer três corridas seguidas. – Estás em condições de correr? – perguntou Kate. – Não queres descansar primeiro? Zoe abanou a cabeça. – Estou bem. Foi para aquecer. Tu é que devias ter cuidado. Há quanto tempo não estás em competição? – Seis meses. – Vê lá, não partas nada. Zoe pretendera afetá-la psicologicamente, mas Kate pareceu aceitar o comentário literalmente. – Obrigada – disse. Zoe começou a trabalhar na hipótese de que talvez Kate não fosse muito inteligente. Tom deu início à contagem decrescente: – Cinco… quatro… três… dois… Zoe olhou para os pedais de Kate e arregalou os olhos. – O que foi? – perguntou Kate. Zoe não respondeu. Tom disse: – Um… Kate olhou para baixo. Estava confusa. Tom soprou o apito para dar a partida. Quando Kate ergueu os olhos, Zoe já ia dez metros à frente dela. Era um avanço impossível de recuperar em três voltas, mas Kate quase conseguiu. Na meta, Zoe venceu apenas por uma roda. Kate exclamou: – Merda! Fizeram duas voltas para arrefecer. Estavam ofegantes. Desmontaram das

bicicletas e caíram por terra. Kate puxou os joelhos para o peito e Zoe ajoelhouse ao lado dela. – Estás bem? Kate olhou para Zoe. Tinha os olhos injetados de sangue. – Para a próxima vou-te vencer – disse. Zoe abanou a cabeça, com uma espécie de admiração. – Deves ser biónica – disse. Kate sorriu. Jack aproximou-se e, quando Zoe viu a mão dele no ombro de Kate e a forma como ela olhava para ele, foi como se lhe tivessem espetado uma faca no peito e afastou-se. No último dia do programa, ela já se sentava à parte dos restantes sempre que não estava a correr. Almoçava nas bancadas sombrias por cima da inclinação no lado sul do velódromo. Viu Kate e Jack trocarem números de telemóvel lá em baixo, na pista iluminada. Há três dias que os olhos de ambos brilhavam quando se viam. Zoe tinha um tabuleiro com salada de fruta e espetou as uvas verdes com o garfo de plástico como se cada uma delas a tivesse ofendido. Tom subiu as bancadas até junto dela. Apoiado no corrimão, içou-se com passos penosos. – Não pensas que ela é o tipo dele, pois não? – disse ele. – Não estou aqui para pensar. Só para correr. Tom riu-se. – Ainda estás zangada comigo por causa do truque do rececionista? Ela olhou para ele, mastigou uma fatia de maçã e não disse nada. – Está tudo bem? – perguntou ele. Zoe voltou a observar Kate e Jack. – Desde que eu continue a vencer, sim. – E se não venceres? Ela encolheu os ombros. – Não é uma opção. – Semicerrou os olhos para os ver melhor. – Gosto de ti, Zoe. Estou satisfeito por teres entrado no programa. Posso ajudar-te a lidar com os teus problemas, se quiseres. – Não tenho «problemas». – Digo isso porque não pareces muito feliz. – Como você? – Não estamos a falar de mim. – Porquê? – Porque eu sou o treinador.

Zoe tamborilou com os dedos nas costas do banco à sua frente. Passado algum tempo, ele disse: – Não precisas de falar, se não quiseres. – Eu sei. Tom esperou, mas ela não disse mais nada. – Está bem – disse ele, por fim. – Só quero que saibas que estou aqui para te apoiar. – Levantou-se. Quando ele se virou para começar a descer, ela perguntou: – O que aconteceu? – Ao quê? – Aos seus joelhos. A si. Tom sorriu. – Preferia não falar nisso. Zoe sorriu e imitou o tom de voz dele. – Só quero que saiba que estou aqui para o apoiar. – Merda, Zoe, estou apenas a fazer o meu trabalho. Ela desviou o olhar e sorriu. – Ah, já percebi – disse Tom. – Tens de vencer tudo. Até as conversas. Zoe massajou a nuca. – Sim, tem razão. Desculpe. Tom sentou-se outra vez e pousou-lhe a mão no ombro. – Sou um treinador bastante razoável. Já ajudei muitos ciclistas. Ela encolheu os ombros, mas não se desviou da mão dele. Tom apertou-lhe brevemente o ombro e afastou ele próprio a mão. Zoe olhou para a pista. Kate e Jack estavam a rir, diretamente por baixo das luzes fluorescentes. Jack atirou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada, Kate esticou o braço para lhe dar um soco fingido no ombro, e a luz incidiu no cabelo dela e a luz reluziu nos olhos dele e ambos pareciam brilhar como se fossem ocos e estivessem iluminados por dentro por holofotes de um bilião de volts, através de nuvens de brilhantes dourados e prateados que lhes enchiam as cavidades corporais onde as pessoas normais tinham fígados e pulmões e intestinos. Zoe franziu a testa. – Como é que eles conseguem gostar um do outro, assim? – disse, estalando os dedos. – Ah, é química, não é? Como treinador, estou sempre a vê-lo. Não há nada neste mundo mais disposto a apaixonar-se por si próprio do que juventude a velocidades elevadas.

Zoe abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas pensou melhor. – Vá, diz lá – pediu Tom. – Está bem – disse Zoe. – E você, alguma vez se apaixonou? Ele riu-se. – Só vinte ou trinta vezes por dia. Na minha idade, não conta. Se aplicarmos a voltagem, o sapo ainda estica a perna, mas está morto como uma discoteca a uma terça-feira de manhã. – Não – disse ela, irritada. – Quero dizer a sério. Tom suspirou. – Amor? Sim. Merda. Quer dizer, há muito tempo. – Como é? – Estás a perguntar ao tipo errado. Tal como já disse, foi noutra vida. Zoe ainda estava a observar Kate e Jack. Disse: – Na maior parte do tempo, sinto-me oca por dentro. Como morta. E noutras alturas fico superzangada. – Isso assusta-te? Ela pensou nisso. – Sim. Tom aquiesceu com um aceno, como um médico inclinado a concordar com o seu próprio diagnóstico. – O que foi? – perguntou ela. – Nada. Mas com certeza que isso conta como um problema. – Estou apenas a ser honesta em relação ao que sinto. – Estás apenas a ser uma miúda de dezanove anos, Zoe. Torna-se mais fácil com o tempo. Com a mão, ela imitou uma boca a falar. Tom sorriu. – Não, a sério. Como teu treinador, é meu solene dever informar-te de que ainda não viste tudo. – E você, viu? – Tudo o que estou a dizer é que o tempo passa. Vais encontrar alguém de quem gostas. Zoe lançou-lhe um olhar duro. – Não tenho medo de estar sozinha. Você tem? – Oh, meu Deus, és maluca? Morro de medo de estar sozinho. Ficaram ali sentados alguns minutos, a observar Kate e Jack. Não falaram. Por fim, Zoe passou a Tom o tabuleiro de fruta e ele tirou uma uva.

– Obrigado – disse. – Não fique mal habituado – disse ela. Tom riu-se; Zoe não. – Quero correr contra o Jack – disse ela. – Estás a brincar? – Não. Ele irrita-me. Deixe-me tentar vencê-lo. Tom lançou-lhe um olhar cético e ela devolveu-o, forçando-se a manter o rosto inexpressivo. Aguentou o olhar e uma certa tristeza ganhou forma entre eles. Zoe sentiu uma dor e não soube identificar o que estava a sentir. Talvez a sua própria fragilidade. A súbita dúvida de não ser mais forte do que os dias; de poder ser o objeto fixo em torno do qual o tempo se curvaria como fumo num túnel de vento. Tom disse: – Sou mais treinador de ciclismo do que alcoviteira. Quer dizer, se gostas do Jack provavelmente farias melhor se fosses lá abaixo falar com ele. Inesperadamente, Zoe corou. – Não gosto dele. – Então esquece. Ela agitou a cabeça num gesto de indiferença calculada. – Para o diabo com isso. Tom fitou-a atentamente. – O que foi? – perguntou ela. Ele sopesou duas massas invisíveis nas palmas das mãos em concha. – Vais acabar num pódio ou na morgue. Estou a tentar perceber qual. Zoe soltou uma fungadela desdenhosa. – Como se isso lhe interessasse. – Sou pago para me interessar, está bem? É o meu trabalho. Acredito piamente que, com o treinador certo, poderás ser uma campeã incrível. – Não preciso de treinador. Só preciso de correr. – Nesse caso, fazemos um acordo, pode ser? Se te deixar competir contra o Jack, deixas-me treinar-te durante um mês. Se ainda achares que não precisas de mim no fim desse mês, eu devolvo-te à Natureza. Talvez te ponha um dispositivo de localização qualquer, para a polícia ter mais facilidade em encontrar o teu cadáver. Ela sorriu. – Está bem. Tom deu-lhe uma palmadinha no ombro. – Linda menina. Agora diz-me, como queres competir com o Jack? Não tens

hipótese se for uma corrida sprint, pois não? Ela virou-se para onde Jack ainda estava a rir-se com Kate, ao lado da pista. Ele era grande para um ciclista, um metro e oitenta de músculos, e não possuía qualquer gordura corporal, apenas ossos compridos com quadríceps e glúteos e abdominais exibidos sobre a estrutura como um diagrama anatómico. Zoe mirou-o de cima a baixo e não havia ali falta de poder. – Distância? – sugeriu. – Não posso discordar. Talvez ele se vá abaixo depois de algumas voltas. Alguma vez correste em perseguição? Zoe acenou afirmativamente. Perseguição individual era o tipo mais fácil de corrida. Os dois adversários começavam em lados opostos da pista e corriam no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, perseguindo-se um ao outro. Davam tudo desde o princípio e quem apanhasse o outro era o vencedor. Se ninguém o conseguisse, o vencedor seria quem terminasse primeiro a distância determinada. – Muito bem – disse Tom. – Catorze voltas? – Pode ser. Desceram os degraus até à pista e Tom chamou os outros e gritou-lhes as regras da prova. Zoe não tirou os olhos de Jack e ele observou-a com expressão divertida. Os olhos dele faziam alguma coisa a Zoe. Atrapalhou-se com as presilhas do capacete antes de conseguir fechá-las. Escondeu-se atrás do visor espelhado e sussurrou Vá lá, vá lá. Controlou a respiração. Fechou os olhos com força e deixou que toda a fúria recalcada viesse à superfície. Aqui estava a raiva profunda que sentia de si própria. Começou a subir dentro dela, cada vez mais depressa, até Zoe saber que, se não subisse imediatamente para uma bicicleta e a pusesse em movimento, sairia dela um grito que faria com que fosse afastada do grupo. – Vamos – disse, de olhos fechados. – Vá lá, vá lá, vamos embora. Deixou-se conduzir até à linha de partida. Alguém trouxe a sua bicicleta. O seu corpo tremia, quase descontrolado, por causa da adrenalina. Estava sozinha na linha de partida. Todos os outros ciclistas do programa queriam que Jack ganhasse. Estavam aglomerados na linha de partida dele, do lado oposto da pista. Zoe não se importava com isso. Mas não havia ninguém para lhe segurar a bicicleta. Tom pediu um voluntário, mas ninguém se ofereceu. Por fim, foi Tom que veio segurar-lhe na bicicleta. Pegou-lhe no braço, mas ela sacudiu-o. – Vá lá, Zoe – disse ele baixinho. – Vamos estabelecer expectativas realistas

para ti, está bem? Tenta não deixar que ele te apanhe nas primeiras dez voltas. Se aguentares até às quatro últimas voltas, tu e eu consideraremos que foi uma vitória, está bem? Ela conseguiu dizer: S-s-s-i-i-m. Tom gritou para se prepararem para a contagem decrescente e as raparigas do outro lado da pista estavam todas entusiasmadas, aos gritos de Força, Jack! e Dá cabo dela, Jack!. Todas coxas e rostos iluminados. Zoe olhou através do centro do velódromo e Jack estava a olhar para ela, com um sorriso malicioso. Desviou bruscamente o olhar. Tom gritou a contagem. Dez segundos. Zoe olhou para a linha na pista, diante da sua roda da frente. A fina faixa preta que a trazia de volta a si própria. Acelerou a respiração para aumentar o oxigénio no sangue. Concentrou-se. Olhou para a linha curva preta que dobrava a gravidade em torno do núcleo da sua fúria, convocou todos os seus demónios e concentrou-os num ponto de energia infinitamente quente no centro de si própria. Estremeceu com a intensidade da sensação. Manteve-a no limiar do controlo enquanto a contagem se aproximava do fim. A raiva absoluta da sua energia matá-la-ia se tivesse de a aguentar mais do que alguns segundos. Lutou para a conter. A velocidade debateu-se histericamente para nascer. Nos últimos três segundos impossíveis conteve-a, concentrada entre a corrida e o mundo real, sob as ordens do juiz de partida. Os seus lábios moveram-se: estava a rezar para que o apito soasse. Sentiu o som estridente na sua coluna vertebral. O som ligou-se diretamente à vida que ela concentrara num ponto incandescente e vingativo. O apito libertou essa vida, deu-lhe movimento. Antes que o seu cérebro tivesse ouvido a pistola, os seus pés já estavam a fazer força nos pedais. Só recuperou a consciência vinte metros mais à frente. O primeiro e último pensamento devidamente formulado surgiu: Oh, olhem para isto, estou a competir. A técnica regressou-lhe. Todo o treino codificado no seu corpo começou a assumir o controlo. Na primeira curva inclinada, baixou-se sobre o selim. Tirou as mãos da parte larga do guiador, firmou os cotovelos e assumiu a sua posição aéro. O cérebro produziu palavras desconexas. Disse Foda-se, foda-se, foda-se vou perder. Disse Sapatos, preciso de um par de sapatos novos. Disse Her name is Rio, and she dances on the sand.1 Por esta altura o seu coração batia 140 vezes por minuto e a sua digestão desligara-se para conservar energia. A raiva transformou-se em ardor muscular. O ardor muscular transformou-se em velocidade. O seu cérebro disse Índio, estanho, antimónio, telúrio. O seu cérebro disse Vi coisas em que vocês não acreditariam. Quando chegou à

segunda curva inclinada, estava na sua faixa e a entrar no seu ritmo, e o seu batimento cardíaco já ia nos 150, e a sua mente estava entorpecida e a visão periférica a começar a ficar desfocada. Era o corpo a desligar a circulação sanguínea a todos os sistemas não essenciais. O cérebro emitiu mais algumas palavras sem sentido e perdeu-se no silêncio. Grande bosque de Birnam. Ejetar! Ejetar! O seu ritmo cardíaco atingiu os 170. Lamentos involuntários escaparamlhe do corpo. Ao fim de seis voltas o seu ritmo cardíaco era de 190. Não conseguia pensar nem sequer lembrar-se do seu nome e estava quase cega. Nesse momento, aconteceu algo surpreendente. Uma paz muito lenta invadiu-a. Cada joule amargo de raiva fora convertido em velocidade. Ela estava vazia. Não havia dor. O ar assobiava nos seus ouvidos. Escutou atentamente. Essa música silenciosa era a única coisa que existia. Era o som do universo a mostrar-lhe misericórdia. Finalmente, ela não era ninguém. Estes eram os momentos. Mas depois as coisas começaram a correr mal. Lentamente, primeiro apenas num murmúrio e depois num rugido impossível de ignorar, ouviu as rodas de Jack atrás de si e o som ofegante da respiração dele. A oito voltas do fim, ele estava a apanhá-la. Ela estava a funcionar no máximo e ele também. Jack era simplesmente mais rápido. Não havia nada a fazer. Ser perseguida por outro ser humano é uma coisa muito íntima. Zoe nunca fora apanhada antes. Ouviu cada arquejo dos pulmões de Jack. Ouviu-o prender a respiração de cada vez que chegava à parte superior da pedalada. Ouviu o assobio do fluxo do ar à volta dele mudar de tonalidade quando ele se encostava mais e mais à estrutura da sua bicicleta. A visão de Zoe estava reduzida a um túnel verde-vivo numa neblina de negridão, como se estivesse a correr com um farol pintado. Para além do limiar da escuridão havia apenas a sua respiração e a de Jack, cada vez mais próxima. Algures, lá fora, outros seres humanos entoavam o nome de Jack. A escuridão encheu-se de alucinações. Viu os troncos altos de faias a passarem por ela. Viu sombras intermitentes verdes e uma estrada de alcatrão a curvar para a esquerda à sua frente. Ouviu uma criança a rir-se por cima do barulho da corrente de ar e pedalou com mais força, na esperança de que o seu coração explodisse e não tivesse de o ouvir mais. E depois Jack disse-lhe qualquer coisa. Não precisou de gritar, porque estava muito próximo. Disse: Desculpa, Zoe. Ele pedia desculpa. Zoe sabia que era o único tipo de pedido de desculpas que significava alguma coisa. Com o ritmo cardíaco de ambos a 200 batimentos por minuto, com a paz da exaustão a apoderar-se dela, compreendia o esforço que ele

tivera de fazer para dizer aquilo. Tinha a noção do quanto lhe tinha custado. Podia simplesmente ter aceitado. Podia ter aliviado a pressão nos pedais, feito algumas voltas mais lentas e desistido. Era o que queria fazer. Mas alguma fúria estúpida, codificada durante anos e automatizada nos seus membros, fê-la continuar a pressionar até ao ponto de quase perder os sentidos. Deu tudo por tudo. Estava a perder a consciência. O guiador estremeceu. Ouviu um estrondo. Ao princípio, não soube se tinha sido ela a cair ou Jack. A sua visão começou a recuperar a clareza. As cores regressaram. Ainda estava em movimento. Mais tarde, quando Tom lhe explicou o que acontecera, disse-lhe que nunca tinha visto ninguém bater nas proteções interiores com tanta força. Ao que parecia, Jack raspara na sua roda de trás. Os socorristas de serviço olharam para ele e puseram-no inconsciente com uma injeção, ali mesmo na pista. Prenderamno a uma maca rígida para o deslocarem. Mais tarde, houve uma investigação e perguntaram a Zoe porque não parara. Ela disse-lhes que devia estar em estado de choque. Na verdade, não quisera que ninguém visse o seu rosto. Queria manter o capacete porque o visor lhe escondia os olhos e precisava de correr mais algum tempo para se recompor. Se pudesse ter continuado a correr para sempre, era o que teria feito. Em vez disso, fez vinte voltas lentas e tentou não olhar para Jack a ficar inconsciente. Quando finalmente o levaram, baixou para o centro do velódromo para arrefecer nas bicicletas de treino estáticas. Estava a tentar reduzir o batimento cardíaco de 160 para 80 em incrementos de 10 batimentos por minuto, perdendo dois minutos em cada passo. Já ia nos 140 quando algumas das outras raparigas se aproximaram e lhe lançaram olhares de lado. Encolheu os ombros. Ela não fizera outra coisa senão correr com força. E depois Kate aproximou-se, chorosa e trémula. – Desculpa, Zoe, mas podias tê-lo matado. Ela ia nos 130 batimentos por minuto. – Mantive-me na minha faixa, foi tudo o que fiz. – Não, cortaste para cima à frente dele. Ele teve de guinar para não te atingir. Não teve qualquer hipótese. – Não estava a tentar atingi-lo. Estava apenas a tentar não perder. Kate olhou para ela fixamente. Depois soluçou – um único soluço lancinante. – Foda-se! É só a merda de uma corrida de bicicleta, Zoe. Zoe não conseguiu fitá-la nos olhos. O gume cortante da infelicidade cravou-se

novamente nela, desfazendo a calma que a corrida lhe dera. Lutou contra isso, mas a confusão estava de volta. Baixou os olhos e abanou lentamente a cabeça. – Eu sei. Lamento muito, Kate. Não sei o que se passa comigo. Kate fitou-a durante muito tempo, depois aproximou-se e tocou-lhe no braço. – Se calhar devias falar com alguém, sabes? Com um médico. – Sim. – Tens alguém que possa acompanhar-te? – Sim. Quer dizer, claro que sim. Kate apertou-lhe o braço. – Quem? Zoe baixou os olhos para o monitor cardíaco. – Montes de pessoas. – Não tens ninguém, pois não? Não admitas. Foi a primeira coisa que Zoe pensou. Não mostres ainda mais fraqueza. Vais competir contra esta rapariga durante anos. Não lhe dês a mínima vantagem. Inventa uma família. Inventa um namorado. Inventa um pequinês, mas não lhe digas que estás sozinha. Disse: – Ouve, tu és melhor pessoa do que eu. Ficamos por aqui. – Por favor – disse Kate. – Estou apenas a dizer que podíamos ir juntas falar com alguém, se quiseres. Quer dizer, vamos passar a vida a competir uma com a outra, não vamos? Portanto gostava que fossemos amigas. Treze anos mais tarde, no seu apartamento no quadragésimo sexto andar, Zoe tentou controlar o tremor das mãos enquanto fazia o seu terceiro café expresso duplo. Devias falar com alguém. Era o que toda a gente dizia quando se preocupava com ela. As pessoas felizes acreditavam em alguém. Era essa a diferença entre ela e Kate, ali mesmo. Sempre à espera de companhia, as pessoas como Kate caminhavam com um espaço cuidadosamente reservado ao seu lado. Mesmo nos seus piores momentos conseguiam imaginar a possibilidade de alguém. Um alguém mágico que as colaria de novo com palavras. Esse alguém teria de ser bom ouvinte e teria de a compreender muito bem, e não podia ser alguém que ela tinha matado aos dez anos de idade. Zoe bebeu o café e lavou a chávena e foi à casa de banho para tomar o segundo

duche da manhã. Deixou a água lavar os vestígios do seu jovem médico, da sua agente, e a memória da queda de Jack. Quando desapareceu tudo e se viu novamente sozinha, chorou. Sem fazer muito barulho. Parecia mecânico: as lágrimas a derramarem-se apenas devido a um aumento de pressão interior. Chorou quase em silêncio, apenas lágrimas que se misturavam com a água do duche. Saiu tudo. Praticou o seu discurso para a medalha de ouro em Londres, numa tentativa de apagar a dor surda no corpo. Sabem, estou satisfeita apenas por ter dado o meu melhor nesse dia e por não ter desiludido os outros elementos da equipa e tenho de dizer que o apoio que tenho recebido de todos e dos fãs tem sido fantástico e ver aquelas bandeiras britânicas todas a esvoaçar, uau… obrigada a todos. Barrington Street, número 203, Clayton, zona leste de Manchester Jack pegou em Sophia para a levar para baixo e segurou-a com cuidado para não puxar o cateter Hickman. À porta do quarto dela, fez uma pausa. – Tens a certeza de que não consigo convencer-te a vestir qualquer coisa, miúda? Sophie riu-se e abanou as pernas. – Não! – Então vais ficar de pijama para o resto da vida, é? Jack não conseguiu ver, mas sentiu Sophie acenar afirmativamente contra o seu ombro. – Pijama? A sério? Mesmo quando voltares para a escola? Mesmo no dia do teu casamento? Sophie acenou outra vez. – Mesmo quando subires ao pódio olímpico para ouvir tocar o hino nacional? – Não vou ser atleta, esqueceste-te? Vou ser Jedi. – Ah, esqueci-me. Desculpa. – Vais arrepender-te. – É uma ameaça? – Uma promessa. Jack riu-se e depois fez uma careta quando Sophie lhe deu um murro na cabeça. – Ei! – exclamou. – Pensava que eras uma maria-rapaz que não estava a sentir-

se muito bem. Apertou a filha apenas o suficiente para a fazer rir-se e contorcer-se, mas não o suficiente para levar os seus glóbulos brancos a terem qualquer comportamento indesejado. Uma pessoa aprendia até onde podia pressionar. Levou Sophie para baixo e sentou-a à mesa da cozinha. Kate já lá estava, a fazer chá na grande chaleira castanha de esmalte. Mexeu o chá, trouxe-o para a mesa e cobriu cuidadosamente a chaleira com um abafador para chá com a bandeira britânica. O vapor saiu do bico da chaleira e teceu espirais suaves através dos raios da luz de abril. Kate estava de cuecas e vestia apenas uma Tshirt branca que deixou ver o traseiro quando se inclinou para servir o chá. Jack sorriu. – O que foi? – perguntou ela. – És a mulher mais sexy do mundo que ainda usa abafadores para chá. Kate sacudiu as mãos dele. – Vocês, escoceses… são tão insaciáveis! – Só porque tu estás mesmo a pedir uma invasão. Ela sussurrou Para com isso! e escapou-se das mãos dele. Jack beijou-lhe o pescoço, soltou-a e piscou o olho a Sophie. Kate foi para a divisão contígua dobrar roupa e Jack ligou o telefone à aparelhagem e pôs os The Proclaimers a tocar «500 Miles», porque era a canção preferida de Sophie e porque não havia melhor forma de começar um dia destes, com as longas horas de treino duro ainda pela frente e o sol nascente limpo, da cor de promessas de criança. Sophie cantou com a música. Jack adorava a forma como ela gostava dos The Proclaimers, aqueles pequenos mas intensos homenzinhos de Leith, com as suas melhores camisas de domingo enfiadas para dentro das calças de ganga baratas, e os óculos e penteados feios. Se ainda tocassem, talvez levasse Sophie para os ver, um dia, quando ela estivesse melhor, para ela os poder ver em palco. Um com a guitarra acústica e o outro só com o seu atrevimento, a cantarem esta canção como se estivessem a disparar balas de ferro contra as entranhas do próprio Diabo. O coro começou e Jack pegou em Sophie ao colo e rodou pela cozinha com ela. And I would walk five HUNdred miles! And I would walk five HUNdred more! Just to BE the man who’d walked a THOUSAND MILES to fall down at your door! Sophie gritou as palavras e Jack sentiu um amor furioso por ela. Era um grito de desafio, essa canção. Era o motivo pelo qual ele, Kate e Sophie sabiam que ela ia melhorar. No fundo do coração, Jack tinha a certeza de que todos conseguiriam

vencer esta leucemia se fossem suficientemente escoceses. Depois da música, era preciso tirar os comprimidos de quimioterapia de Sophie dos vários frascos castanhos e prepará-los para o dia. Sophie agarrou-se às pernas dele, tonta depois da dança. – Vá lá, Sophie. Senta-te, está bem? Estou a tratar dos teus comprimidos. Merda, perdera a conta. Seis cápsulas amarelas pequeninas. Quatro azuis e brancas. Seis vermelhas e verdes. Tudo para dentro da velha taça de prata com as fitas amarelas nas asas que dizia CAMPEÃO. Sophie sabia a ordem por que devia tomar os comprimidos. Também tinham um esquema na porta do frigorífico, em letra Comic Sans, com imagens alegres. Era uma sorte que a quimioterapia fosse tão alegre, na verdade, caso contrário Jack tê-la-ia achado muito assustadora. A mãozinha estava a puxar-lhe outra vez a perna. – Papá? – O que é? – E depois, em tom mais suave: – O que é? – Tenho de ir fazer chichi. – E então? Sabes onde é a casa de banho. – Sim, mas estou cansada. – O quê? Estás com preguiça de caminhar até à casa de banho? Ela sorriu. – Pois. Jack sorriu também, tentando manter a normalidade. Estaria ela mesmo cansada demais para se mexer, ou apenas a meter-se com ele? Às vezes, era tão difícil perceber. Jack agitou o dedo em frente do rosto de Sophie. – Não te armes em inglesa comigo, menina. Kate apareceu, pousou o telefone na mesa e pegou em Sophie. – Deixa estar – disse. – Eu levo-a. Sophie sorriu, abraçou-a e escondeu o rosto no seu pescoço. Kate inclinou-se e beijou Jack, um beijo de boca aberta e sem pressas, e enfiou a mão livre por baixo da T-shirt dele, nas costas. – Tu… – murmurou e, de repente, o medo de Jack desapareceu. Jack sentou-se à mesa da cozinha, a observar aquele traseiro perfeito enquanto se afastava, a perguntar a si próprio que raio de cálculos a vida teria feito para determinar que ele merecia Kate. Talvez o destino se tivesse simplesmente distraído e tirado o número errado de comprimidos dos frascos.

Casa de banho do piso térreo, Barrington Street, número 203, Clayton, zona leste de Manchester Kate levou Sophie à casa de banho e acendeu a luz. Tirou o boné da Guerra das Estrelas da cabeça da filha porque a pala lhe caía para os olhos quando ela se sentava na sanita. Esperou que Sophie fizesse chichi. Às vezes, a urina jorrava da criança quase antes de ela baixar as calças, e outras vezes podiam ficar assim mais de um minuto, à espera que ela fizesse. Às vezes era falso alarme e esperavam num silêncio solene até parecer seguro desistir. Era o problema da quimioterapia. Não havia nada que não afetasse. Pensou na mensagem que acabara de receber. – Eu e a Zoe temos de ir falar com o Tom esta tarde, depois dos treinos – gritou a Jack. – Uma situação qualquer. Podes olhar pela Sophie mais um bocadinho? – Tudo bem – ouviu Jack gritar em resposta. – De qualquer maneira, estava a pensar levá-la para te ver treinar. Kate endireitou-se e viu as coxas da filha ficarem tensas e relaxarem enquanto ela tentava urinar. – Queres vir ver a mamã e a Zoe a treinar? É capaz de estar frio no velódromo. Quase desejou que Sophie dissesse que não, mas a filha respondeu: – Está bem. O chichi ainda não tinha dado um ar da sua graça. Enquanto esperava, Kate reviu a logística do treino da tarde. Se Jack ia levar Sophie para assistir, teriam de sair para o velódromo com o saco do equipamento a rebentar pelas costuras. Precisariam do cilindro de oxigénio e do kit do Hickman e da lista de médicos de serviço. Precisariam das injeções de emergência de Sophie, do seu inalador e do conjunto completo de figuras de ação da Guerra das Estrelas. E precisariam da dezena de pequenas coisas que, de alguma forma, tinham acabado no fundo do saco de emergência. Já não se lembrava do que faziam, mas sabia que se lembraria assim que as deitassem fora. O que seria mais do que apenas chato, no caso deles. Não podiam deixar Sophie morrer porque a mamã e o papá tinham deitado fora o pequeno adaptador do seu tubo de oxigénio, confundindo-o com uma peça solta de alguma bomba de bicicleta obsoleta. Zoe, por outro lado, sairia do apartamento apenas com o equipamento de ciclismo num saco e uma pequena chave Yale no bolso de trás das calças de

ganga. Para chegar ao velódromo, Kate e Jack teriam de prender Sophie na cadeirinha do carro, verificar a lista de segurança e depois conduzir de forma defensiva, passando por uma dúzia de cartazes com a cara de Zoe. Os seus olhos verdes, o seu cabelo verde, o bâton verde na borda daquele copo fosco verde. Perrier: bebe-se melhor fria. Quando os Argall terminassem a pista de obstáculos e chegassem ao velódromo, Zoe já estaria a aquecer há uma hora. Como podia Kate competir com isso? Zoe vivia sozinha no cimo da torre mais alta de Manchester. Kate vivia aqui em baixo, na Terra, com a família. – Desistimos? – perguntou, gentilmente. Sophie suspirou. – Sim. Ajudou Sophie a vestir as calças do pijama e abraçou-a. Sabia que estaria a pensar em Sophie antes da sessão de treino de competição dessa tarde. De súbito, o apito de Tom soaria e ela voltaria à realidade; e Zoe já estaria um décimo de segundo à sua frente. A liberdade tornava Zoe mais rápida e mais triste do que ela e, se pudesse escolher, Kate não trocaria de lugar com ela. Mesmo assim, às vezes tinha de fazer um esforço para evitar o ressentimento. Mesmo sabendo o que movia Zoe, mesmo compreendendo o que acontecera com o irmão dela, era difícil esquecer as vezes em que ela colocara a competição acima da amizade. Por outro lado, talvez fosse assim que toda a gente se sentia. Talvez todas as pessoas se debatessem com esse defeito possessivo da memória humana que acumulava os episódios que mais queriam esquecer. Talvez, quando uma pessoa chegava aos trinta e dois anos de idade, fosse um milagre conseguir perdoar completamente os amigos. Kate estremeceu e afastou o pensamento. Sorriu a Sophie e afastou uma fina madeixa de cabelo da testa da filha. A madeixa ficou colada ao seu dedo e saiu do couro cabeludo de Sophie, pelas raízes. Era o seu último cabelo. Sophie não reparou. Kate pôs-lhe novamente o boné. – Vá, podes ir brincar com o papá – disse, em tom animado. Quando Sophie se afastou, Kate baixou a tampa da sanita e sentou-se pesadamente, caindo como se tivesse levado um soco no estômago que a deixara sem fôlego. Olhou para a madeixa de cabelo de Sophie no seu dedo. As minúsculas raízes amarelas tremiam na ponta dos fios negros como bolbos desenterrados. Levou o cabelo aos lábios e beijou-o, sentindo a sua suavidade nos lábios e inalando o leve cheiro a quimioterapia e a pó. Depois levantou-se, abriu a tampa da sanita, deixou o cabelo cair para dentro dela e puxou o

autoclismo. Não valia a pena fazer grande alarido por causa disso. Jack podia reparar no que acontecera, se precisasse; caso contrário, era melhor ela não chamar a atenção para o momento. Engano era uma palavra demasiado forte. Pensou naquilo que fizera como algo que um ilusionista poderia fazer: um passe de mágica, para esconder esses momentos sinistros e dirigir os olhos da família para outros sinais, mais saudáveis. O truque era esse. Uma família era apenas tão doente quanto se deixasse ser. Kate viu a água a escorrer do autoclismo para a sanita. Da primeira vez que Sophie tivera cabelo suficiente para cortar, com dois anos de idade, Kate cortara-o ela própria. Pusera a primeira madeixa cortada num álbum. Colara o caracol escuro à página com fita adesiva transparente e escrevera o nome de Sophie e a data com a sua melhor caligrafia. Na verdade, fora mesmo à loja da esquina para comprar uma caneta que não fosse uma esferográfica. E agora aqui estava a última madeixa do cabelo da filha, irreprimivelmente flutuante, a boiar na água da sanita. Puxou outra vez o autoclismo mas o cabelo não desaparecia. Na verdade, a vida nunca desapareceria. Depois da queda de Jack no Programa de Esperanças de Elite, Kate ficara sem saber o que fazer. Tom anunciara aos outros ciclistas que Jack fora levado para a Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital Geral da zona norte de Manchester, com ossos partidos, no mínimo. E foi o fim do programa, duas horas antes do previsto. Aturdida pelo choque, com os pensamentos abafados como vozes no nevoeiro, Kate tomara um duche e começara a dirigir-se do velódromo à estação de comboios. O saco do equipamento pesava-lhe no ombro e ainda tinha o cabelo húmido. Enquanto caminhava no ar frio, lembrou-se da mão de Jack no seu braço, das longas conversas que tinham entre corridas, da forma como ele lhe tocava no rosto. Viu os dedos dele agora, partidos e inchados, com um pedaço de osso à vista. Ou seria o braço, a perna, a coluna? A sua mente passou estas imagens. O que é que estava a fazer? «Anseio» ou «atração» não eram as palavras que usaria para o que estava a sentir. Apercebeu-se de que se importava – de que queria saber – exatamente que ossos é que ele tinha partido. No entanto, a ideia de ir ao hospital incomodava-a. Fazer o quê? Sentar-se à cabeceira dele, examinar-lhe a mão e, se não estivesse muito danificada, segurála? Não sentia ter o direito de o fazer. Só conhecia Jack há três dias. Mas também

lhe parecia errado não fazer nada; entrar no comboio para casa como se não se tivesse passado nada de importante entre eles. Seria apenas uma relutância natural em abandonar a cena, simplesmente porque as conversas com rapazes não deviam acabar assim – com o rapaz a ser imobilizado por uma injeção de sedativo e retirado da cena da conversa com o corpo imobilizado, por técnicos de emergência com luvas e batas verdes? Tanto quanto sabia, todas as outras raparigas do programa podiam estar a pensar exatamente a mesma coisa. Jack não lhes teria sorrido também? Teria sido ela a única cujo coração acelerara? Talvez aquilo que estava a sentir não fosse nada de extraordinário mas – pelo contrário – apenas causado por ser uma rapariga de província, vulgar e bastante inexperiente, a confundir a chuva com um arco-íris. Os pedestres vacilaram, corrigiram a sua trajetória e passaram ao lado dela quando Kate estacou subitamente no meio da rua. Levou as mãos à cabeça e tentou pensar. Não havia nenhuma etiqueta estabelecida, em tempo de paz, para suavizar este passo súbito, de um flirt agradável para uma visita séria ao hospital. Não havia jurisprudência emocional; apenas a dúvida sobre se os sentimentos que estava a começar a ter por Jack justificavam que ela achasse que o que queria fazer neste momento era sentar-se ao lado da sua cama de hospital e segurar-lhe na mão e talvez chorar um bocadinho. Sim, era isso – queria chorar. Não sabia se com ele, por ele ou por causa dele. Se visse alguém neste estado miserável, com a cabeça nas mãos no meio da rua, teria desviado os olhos educadamente. Seria normal? As outras mulheres também se sentiriam meio loucas como ela? Ou esta angústia seria única e relacionada com a intensidade da vida que escolhera? Talvez, afinal de contas, não estivesse a reagir exageradamente. Talvez estes fossem os seus verdadeiros sentimentos, tão intensos que pareciam subitamente insuportáveis, suprimidos por treze anos de treinos duros e que agora estavam a romper a gengiva como dentes adultos. Gemeu. Era por isto que as pessoas não eram ciclistas de competição. Era por isto que as pessoas não treinavam sete horas por dia. Era por isto que as pessoas cediam ao álcool, e à gordura corporal, e descontraíam com os amigos ao fim do dia, para não terem de lidar, como recém-nascidos, com estes sentimentos insuportáveis. Tinha o coração acelerado e a cabeça confusa. Fechou as mãos e cerrou os olhos com força, frustrada. O sol forte do dia tinha dado lugar às nuvens da tarde e agora as primeiras manchas de chuva escureceram o pavimento e fizeram os outros pedestres apressar o passo. Aqui estava aquele cheiro inesperado da primeira chuva, um

cheiro a juventude e a água fresca, a cortar através dos vapores do tráfego da cidade. Viu as pessoas dispersarem e perguntou-se o que seria mais assustador: o facto de ser igual às outras pessoas, ou o facto de não ser. Se todos se sentiam como ela se sentia, como é que as pessoas sobreviviam? Como é que aguentavam o dilacerar e o rasgar, a desintegração, enquanto camadas delas próprias se uniam à superfície de outros, completamente separadas do seu núcleo? Se ela se deixasse apaixonar, muito rapidamente não restaria nada. Uma memória de si própria, nas exalações das pessoas que se dispersavam à sua volta. Devia ir para casa. Tinha um calendário de treino que começava às cinco da manhã seguinte. Tinha um emprego como treinadora pessoal no LA Fitness e um curso universitário que faria dela fisioterapeuta dentro de dois anos. Tinha amigos. Tinha pessoas que precisavam dela. Kate recomeçou a andar, em direção à estação. Estava consciente de estar a pilotar-se a si própria, tristemente consciente da importância monumental de cada passo que a afastava de Jack e a conduzia de volta à sua vida. Sentia-se demasiado pequena para ter de pensar de maneira tão grande. Viu os ténis a abrandarem novamente nas pedras molhadas. Estava bastante consciente das texturas e singularidades sob os seus pés. Estas eram conversas demasiado grandes para as solas estarem a ter com as beatas molhadas e os velhos círculos endurecidos de pastilha elástica. Se desse meia-volta e fosse agora ao encontro dele, estaria a perder o foco. Planeara deixar o velódromo depois do Programa de Esperanças de Elite, apanhar o comboio diretamente para casa e depois esperar para ver se recebia a chamada do Ciclismo Britânico. Era um bom plano, e agora isto. A sua mente era ocaso e aurora ao mesmo tempo – uma confusão brilhante e meio iluminada. Era simultaneamente o momento mais excitante da sua vida e extremamente penoso e perturbador. Tinha dezanove anos. Estacou na rua, a meio caminho da estação, mudou de direção e correu para o hospital para ver Jack. Entrou, ofegante, num corredor largo no exterior da Unidade de Cuidados Intensivos. Havia filas de cadeiras de plástico castanho encostadas a ambas as paredes. As enfermeiras não sabiam dar-lhe qualquer informação e pediram-lhe que esperasse. Sentou-se e esperou uma hora, enquanto lia panfletos sobre a morte e as suas causas, mas continuava a não haver notícias. Estava cansada do treino do dia, por isso deitou-se em cima de três cadeiras e tapou-se com o casaco. Sonhou com Jack e, quando acordou, estava molhada no meio das pernas e tinha

palpitações e lá fora estava escuro. O corredor do hospital estava iluminado por lâmpadas fluorescentes, com moscas mortas apanhadas dentro das proteções de acrílico fosco. Foi a primeira coisa que viu, e a segunda foi o rosto de um homem de meia-idade a olhar para ela. Sentou-se e piscou os olhos. O rosto de homem era o de Jack, mas meio morto. Levou a mão à boca e sufocou um grito. Ao lado do homem, estava uma mulher, de braço dado com ele. A mulher murmurou: – Assustaste-a. A mente de Kate oscilou entre o sonho e esta realidade incompreensível. O homem parecia curioso, ou hostil, ou ambas as coisas. – Veio ver o Jack? Kate endireitou-se e apertou o casaco contra o peito. – Ah… sim. – É ciclista? – Sim. Sou a Kate. O homem olhou para ela. O seu rosto estava todo misturado com o de Jack, o que a estava a assustar. Pestanejou com força, para afastar o sono. Fechou os joelhos, subitamente envergonhada e em pânico. As imagens do seu sonho dissiparam-se. Perguntou-se se teria feito algum som enquanto dormia. – É a rapariga que fez o nosso filho cair? Oh, Céus – eram os pais de Jack. Abanou a cabeça. – Então porque é que está aqui? Kate percebeu que estava a corar. – Ah, deixa a pobre rapariga em paz – disse a mulher. – Chamo-me Robert Argall – disse o homem. – E esta é a minha mulher Sheila. Sheila vestia calças de ganga. Uma T-shirt azul. Botas de camurça bege com a camurça gasta e brilhante na parte interior dos tornozelos. Devia ter cerca de quarenta anos. Era magra e pálida. Tinha cabelo seco e olhos azuis com círculos escuros à volta. Não como se tivesse sido agredida, mas como se tivesse comido veneno. Em pequenas quantidades, sem se aperceber, durante anos. Quando se olhava para a pele dela, era ligeiramente amarelada. Era possível imaginá-la a dirigir-se sub-repticiamente ao armário por baixo das escadas, a tirar a tampa da graxa dos sapatos e a dar uma lambidela rápida. Depois a regressar rapidamente à cozinha para fazer o chá de Robert. Robert parecia… Kate não sabia. Parecia o tipo de homem capaz de fazer uma pessoa provar graxa. Sheila sorriu-lhe rapidamente e depois olhou para as mãos e brincou com o

blusão de ganga dobrado. Robert era mais pequeno do que o filho. Era mais magro, careca e com ar doentio. Facialmente, tinha algumas parecenças com Jack. Mas secara a vida de si próprio. A sua pele era amarela e curtida. Kate não conseguia compreender como Jack podia ser tão bonito, em comparação com o aspeto completamente envenenado dos pais. Jack era uma ave-do-paraíso que nascera de um ovo podre. Robert e Sheila sentaram-se do outro lado do corredor, virados para Kate. Deixaram uma cadeira vazia entre ambos. Robert colocou as chaves do carro e um jornal dobrado no assento vazio, um daqueles jornais com mamas na página três, com pequenas estrelas a cobrirem os mamilos para que ninguém se sentisse ofendido. Ao lado das chaves pôs um pequeno isqueiro e um maço de dez Benson & Hedges. Vestia um blusão de cabedal castanho com presilhas nos ombros. O ar à sua volta estava repleto do cheiro amargo de fumo de cigarro e vaca. Não olhou para Kate. Olhou para a parede por cima da cabeça dela. – O nosso filho veio para cá para ser o melhor no desporto, não para andar atrás de rabos de saias. Portanto escusa de se pôr com ideias. – Ele baixou os olhos da parede até estar a olhar para Kate. – Percebeu? Até a parte branca dos seus olhos era amarela, as irises de um azul leitoso. Sheila corou. Apertou as mãos sobre o blusão. Não olhou para Kate, mas disse: – Desculpe, Kate. Somos honestos. Mas não sabe como é, onde nós vivemos. Esta é a oportunidade dele para escapar a tudo isso. Abanou a cabeça várias vezes, depressa, para reforçar a verdade das suas palavras. Robert pegou no isqueiro. Fez girar a rodinha várias vezes, também depressa, mas sem pressionar a patilha do gás. Disse: – Viemos logo, assim que nos ligaram do hospital. Não sabíamos se ele estava vivo ou morto. – Vivo ou morto – repetiu Sheila. – Viemos pela M6. E com o preço da gasolina como está. Mas é o nosso filho. – O nosso filho – disse Sheila. Kate ouviu-se a dizer: – Lamento muito. Não sabia porque o dissera, estava confusa, e a súbita realidade de acordar do seu sonho com Jack para a presença dos pais dele era demasiado. Despediu-se rapidamente, pegou no saco e percorreu o corredor com passo apressado. Agora percebia. A interpretação errada que fizera da situação era horrível.

Como podia ter sido tão ingénua, ao ponto de confundir o flirt de Jack com algo mais significativo? Claro que ele dissera coisas doces às raparigas. E ela não possuía qualquer imunidade. Todos os anos que as outras raparigas tinham passado a inocularem-se contra os rapazes através de exposição progressiva, ela estivera a andar de bicicleta, cada vez mais depressa, em círculos, e agora aqui estava, sabotada, ultrapassada por estas forças dentro de si. Encolheu-se de vergonha enquanto caminhava, com as suas cuecas húmidas e o saco pesado, por entre a escuridão e a chuva, até Manchester Picadilly, onde conseguiu apanhar por pouco o último comboio para Grange-over-Sands. Depois da viagem de táxi até casa e das poucas horas sem dormir, a olhar pela janela para as ondas negras que lambiam a praia, subiu para a bicicleta de treino, regressou à estação e comprou outro bilhete para Manchester. Estava demasiado exausta para ficar sequer surpreendida consigo própria. Entrou no primeiro comboio para sul e sentou-se resignada a um canto da carruagem que se enchia rapidamente. Nem sequer estava a ser corajosa. Com as mãos cruzadas no colo e o rosto virado para ver a chuva, que a corrente de ar causada pela elevada velocidade lançava contra a janela em riscos horizontais, aguardou com mera aceitação a humilhação que tinha a certeza de a esperar. Era uma prisioneira condenada, na caminhada entre Manchester Picadilly e o hospital. Subiu as escadas até à UCI com pernas pesadas e, quando chegou ao corredor, as enfermeiras disseram-lhe que Jack fora transferido para uma enfermaria. Com a cabeça a zumbir, de fome e falta de sono, navegou pela sinalização de cores primárias dos corredores até encontrar o sítio para onde o tinham trazido. Parou com a mão encostada à placa metálica das portas pesadas. Não sabia como Jack reagiria quando a visse. Com incredulidade, talvez, e depois embaraço e pena. Sentiu o coração a bater na cabeça e a visão a perder a nitidez, como se fosse desmaiar. Empurrou as portas. Do outro lado, no centro da enfermaria meio vazia, Jack dormia na sua cama. Estava deitado em cima de lençóis verdes, com um suporte no pescoço e uma perna partida em tração. Ao lado da cama, numa cadeira castanha, com a cabeça rapada e o blusão preto, com ar de quem também não pregara olho desde o acidente, estava Zoe. Segurava a mão de Jack, ternamente, entre as suas. Quando Kate entrou na enfermaria, Zoe ergueu o rosto. Os olhos de ambas encontraram-se. O olhar que Zoe lançou a Kate nesse momento – o medo e o desafio e a infelicidade naquele olhar – era algo que Kate nunca conseguira esquecer, nem mesmo agora, tantos anos depois, quando só pensava em Zoe como

uma amiga. Kate rasgou duas folhas de papel higiénico, dobrou-as pelo picotado e pousouas cuidadosamente na superfície da água na sanita, de modo a cobrirem a última madeixa do cabelo de Sophie. O autoclismo estava novamente cheio – o tempo renovara-se a si próprio – e Kate descarregou-o e deixou a água levar o cabelo e o papel higiénico. Quando teve a certeza de que a madeixa desaparecera, baixou a tampa e sentou-se novamente em cima dela, sob a luz da lâmpada nua. Quando se sentou, roçou no fio que a acendia. Viu a sua velha medalha de ouro dos Jogos da Commonwelth a baloiçar para trás e para a frente na ponta do fio cinzento e gasto. Cozinha, Barrington Street, número 203, Clayton, zona leste de Manchester Jack ouviu o barulho do autoclismo pela terceira vez. Gritou: – Está tudo bem por aí? – Sim – gritou Kate em resposta. – Estou só a limpar o raio da sanita. Jack sorriu. Era assim que Kate – que ambos – lidava com o caos e a sujidade da parentalidade, perdendo de vez em quando a paciência e usando como exemplo uma sanita, ou um lavatório, ou uma panela, como se ao administrar uma limpeza punitiva as outras partes inanimadas das suas vidas pudessem ficar chocadas e entrar na linha. Talvez devesse contratar uma empregada de limpeza. Seria bom para os dois. E não faria mal nenhum à saúde de Sophie ter superfícies limpas por alguém com o coração dedicado ao trabalho, em vez de alguém com o coração no milésimo percentil superior da população em termos de capacidade ventricular no limiar anaeróbico. Jack assobiou uma melodia alegre. Aqui vinha Sophie, a entrar na cozinha com passos arrastados e a sentar-se abruptamente no chão de mosaicos azuis e brancos. Ela afundou-se como um telhado cansado da chuva. – Lavaste as mãos, miúda? Sophie encolheu os ombros e olhou para o chão. Não parecia ela. Jack agachou-se ao seu lado.

– Estás bem? – Ótima. – Tens a certeza? Sophia apoiou as palmas das mãos nos azulejos e entrelaçou os dedos. – Sentes-te mal? – perguntou Jack. Sophie hesitou e abanou a cabeça. – Linda menina. Estás a melhorar. Se te sentes cansada, é o efeito da quimioterapia a começar a fazer-se sentir. Já fizemos quatro sessões desta série, não foi? Essa é a sensação do teu corpo a melhorar. Sophie revirou os olhos. Jack sorriu. Quando a filha o fitava como se fosse ele o doente, parecia uma menina normal e saudável, por um segundo. – Sophie? – Sim? – Mesmo que penses que eu só digo disparates, continuo a ser o teu pai, está bem? – Apertou-lhe os ombros. – Vamos vencer esta doença. Vamos continuar desafiadores. – Vou ser forte. – Tens de ser desafiadora também. – Qual é a diferença? – Desafiadora, Sophie Argall, é, se alguma vez deres por ti em frente de um esquadrão de fuzilamento, dizeres não quando te oferecerem uma venda. – Porquê? – Para poderes continuar à procura de uma forma de escapar, até ao último segundo. O capitão do esquadrão de fuzilamento pergunta se tens um último desejo, e tu dizes «Sim, quero um cigarro», e fumas o mais devagar que conseguires e procuras uma maneira de fugir e encontra-la. Isso é ser desafiador. – Isso é fumar. – Sim, mas percebes o que quero dizer. – Causa cancro. Foi o doutor Hewitt que disse. Jack sorriu. – Ouve, querida, podes dizer ao doutor Hewitt que eu mandei dizer que, se alguma vez te apanhar a fumar sem ser mesmo em frente de um esquadrão de fuzilamento, eu próprio te fuzilo. A filha ergueu os olhos para ele com expressão paciente. Jack sentiu algum do cansaço invadir o seu próprio corpo. – Oh, querida. Eu digo estas coisas porque te amo, não por querer que sejas

fuzilada. É apenas parte do meu trabalho como pai, está bem? É o mesmo motivo pelo qual sou rigoroso em relação à hora de ir para a cama e a lavar os dentes. Desafiador em todas as ocasiões. Percebeste? Não houve resposta. Jack observou Sophie, que inclinou a cabeça. A sua expressão era inescrutável. – O que é? – perguntou Jack. – Alguma vez não tens a certeza, papá? – Eu? Não, eu tenho sempre a certeza. – Pareces sempre tão certo. – Sim. Porque estou. – Papá? – Sim? Sophie fechou os olhos. – Nada. – Engoliu em seco. A cor desaparecera-lhe do rosto. – Estás agoniada? – Não. Jack trocou-lhe na testa. – Estás um bocadinho quente. – Estou bem. Jack pegou-lhe na mão e sentou-se com ela, ali no chão da cozinha. Sophie apoiou a cabeça no ombro dele e manteve os olhos fechados. Jack não se sentiu triste; era isso que o surpreendia, por vezes. Adorava estar com Sophie, mesmo com tudo o que se estava a passar. Quando ela fora diagnosticada pela primeira vez, nunca imaginara que a felicidade voltaria a ser possível. A reação correta a ter um filho com uma doença crítica parecia ser uma espécie de calma estoica, ou uma solenidade pesada e interminável, capaz de fazer cair os pássaros do céu e de sugar o brilho do sol. Jack sentira-se assim durante o primeiro ano, mais ou menos, mas acabara por o ultrapassar. Só ficaria triste se se permitisse unir os pontos; se permitisse que os momentos separados, na sua totalidade, tivessem alguma tendência descendente e fosse suficientemente estúpido para extrapolar a partir daí. Se ficasse apenas sentado no chão da cozinha, assim, a apreciar a sensação dos pés descalços nos mosaicos aos quadrados, aquecidos pelo sol de abril, e se inspirasse o cheiro seco e medicado da sua filha, então estava tudo bem. Ser desportista ajudava. A única forma de aguentar os treinos, e certamente a única forma de aguentar a dor do sprint, era viver a vida uma fração de segundo de cada vez. Levava essa atitude consigo para além da linha da meta, através dos

balneários, para a sua vida normal, com o equipamento ainda molhado dentro do saco. Um momento de dor nunca era insuportável a menos que permitisse que tivesse algum tipo de relação com os momentos que o rodeavam. Os átomos de tempo podiam ser treinados para operar de forma bastante eficaz em cubículos rigidamente separados no espaço aberto do seu dia. Jack deixou Sophie adormecer encostada a ele. Sorriu. Praticamente conseguia ouvir os sabres de luz a zumbirem nos sonhos dela. Kate entrou na cozinha e olhou para os dois com carinho. Jack pensou que ela parecia mais cansada do que o habitual. Sabia que ela tinha mais dificuldade do que ele em deixar o dia passar à volta dela. Estava cansada e farta de ter a filha cansada e farta, era o que se passava. Jack confiava na quimioterapia, mas sabia que Kate estava sempre a perguntar a si própria se haveria mais alguma versão de arrancar o seu próprio coração e o oferecer aos deuses na ponta de um espeto que lhe tivesse passado despercebida, na sua determinação de fazer tudo o que podia por Sophie. Ficava acordada até tarde a ler sobre plasma ou leucócitos, levantava-se cedo para fazer o pão especial com cereais integrais e pouco glúten, e faltava aos treinos para organizar passeios para levantar a moral, como a viagem da véspera à Estrela da Morte. – Vocês os dois… – disse Kate. O som despertou Sophie, que se endireitou, confusa, e olhou para Jack com olhos que ele achou estranhamente vazios, como os olhos de um peixe depois de a vida lhe ser arrancada. Jack susteve a respiração. O medo, que conseguira até então manter ao largo, precisava apenas de um olhar para lhe mostrar como eram negociáveis as suas defesas. Quando olhou de novo, Sophie regressara aos seus próprios olhos. Jack estremeceu. – Ajudava se eu pusesse a música animadora especial? Sophie arregalou os olhos, em horror. – Nãoooooooo… Jack levantou-se de um salto, ligou o iPod à aparelhagem da cozinha e selecionou a banda de gaitas de foles das Terras Altas escocesas a tocar uma marcha originalmente composta para infundir terror nos Ingleses a uma distância de oito quilómetros, mesmo em condições adversas de vento, chuva e nevoeiro. Kate saiu rapidamente da cozinha. Jack aumentou o volume. As latas estremeceram nas prateleiras. As janelas vibraram. Jack imaginou os vizinhos a encolherem-se. As casas partilhavam uma parede, a que Jack gostava

de se referir como a muralha de Adriano. Pôs Sophie de pé e gritou por cima do barulho da aparelhagem: – Céus, Soph! Ouve bem estas gaitas e diz-me que não te sentes logo melhor! Ela enfiou os dedos nos ouvidos. – Não está a ajudar! – O que é que disseste, miúda? Não oiço nada por cima do som de quatrocentos escoceses de kilt a mandarem a leucemia dar uma volta! Ela tentou franzir o sobrolho mas em vez disso riu-se. – Aí está a minha miúda! Os dois ouviram a banda de gaitas de foles por um minuto e Sophie até conseguiu dançar um bocadinho com ele no chão da cozinha. Jack estava contente e, uma vez que existia apenas uma quantidade fixa de alegria no universo, então só podia presumir que numa cozinha igual e oposta, algures na Terra, o pai de outra menina doente estava a ouvir o Requiem de Mozart sem dançar. Quando Sophie precisou de recuperar o fôlego, Jack tirou um chocolate Mars do frigorífico, partiu-o ao meio e ofereceu-lhe metade. – Come tudo. Tem todos os grupos alimentares essenciais: caramelo, chocolate, e a misteriosa matriz bege que só podemos presumir tratar-se de vitaminas. Sentou-a numa cadeira e viu-a mastigar. Na aparelhagem, as gaitas de foles terminaram a marcha. – Papá, posso perguntar-te uma coisa? – Claro, querida. O que é? Ela suspirou, com uma expressão que implicava que Jack podia não ser a pessoa mais inteligente presente. – A mamã está bem? – Claro que sim. Porquê? Sophie baixou os olhos e corou. Pousou as mãos no balcão, uma sobre a outra, depois tirou a mão de baixo e colocou-a por cima. Repetiu o gesto uma e outra vez, perdida nos seus pensamentos. – O que é? – perguntou ele. Sophie parou abruptamente. – Ela tem andado a treinar como devia? – Com certeza. – Faltou aos treinos ontem por minha causa? – Não. Teve um dia de repouso no seu calendário. Eu e a Zoe também. – A sério? Jack fez uma cruz sobre o coração.

– A sério. – Quero que a mamã ganhe o ouro em Londres. – Também eu. – É a vez dela, papá. Ele encolheu os ombros. – Não há vezes, no desporto. Ganha quem for mais rápido. Ela fitou-o com firmeza. – E se ela não for a mais rápida, e se for por minha causa? Jack acariciou-lhe o rosto. – Oh, Sophie. Tenho a certeza de que, se perguntasses à mamã, ela diria que há coisas mais importantes do que vencer. Sophie continuou a olhar para ele por um segundo. Depois pestanejou. Jack percebeu imediatamente que dera a resposta errada. Ela virou a cara. Jack virou-a de novo para si e Sophie ficou ali sentada passivamente, com os ombros curvados. Jack hesitou. Claro que podia virar uma criança fisicamente para ele. Era algo fácil de fazer quando se tinha um metro e oitenta e se era sobre-humano. O truque era saber o que dizer. – Se calhar devias conversar com a mamã – disse, gentilmente. Sophie limitou-se a encolher os ombros. – Não posso falar com ela como falo contigo. – Porquê? Ela suspirou. – Porque não. Jack sentiu um aperto no peito – uma dor – mas não sabia se era por si próprio, pela filha ou pela mulher. Nunca fizera a si próprio essa pergunta. Se pensara sequer nisso, sempre julgara que era Kate que estava mais próxima de Sophie. Desde que Sophie nascera, a ligação entre os três sempre fora muito intensa, devido à quantidade de tempo que ele e Kate podiam passar em casa, em comparação com as pessoas que tinham empregos normais. Provavelmente, Jack conhecia a filha melhor do que a maioria dos pais. Ainda assim, por vezes sentira-se culpado pela sua felicidade inabalável enquanto Sophie estava a passar por tanta coisa. Muitas vezes temera que só um certo distanciamento lhe permitia sentir-se bem, de momento a momento. Kate sofria mais. Era ela que se debatia com as questões de nutrição e cuidados de enfermagem, era ela que largava tudo quando Sophie piorava, e era ela que ligava o despertador três vezes por noite para ir ver como estava a filha. E contudo aqui estava ele, aparentemente mais

próximo de Sophie. Baixou os olhos e fitou, infeliz, as costas das mãos. – Fui a primeira pessoa que te pegou, sabias? – disse, baixinho. – Quando tu tinhas nove horas. Não sabia como te segurar. Ensinaram-me a lavar as mãos e a calçar as luvas de látex e depois mostraram-me como enfiar as mãos nos buracos da incubadora. Depois pararam de me dar instruções. Ali estava eu, com as mãos enfiadas nos buracos e o teu corpinho minúsculo deitado no colchão de plástico azul e com uma data de tubinhos a saírem de ti, e eu perguntei: «O que faço agora?» E eles disseram: «Agora pegue-lhe.» E eu estava com tanto medo de te deixar cair. Não sabia como fazer algo tão simples como pegar-te, Sophie. Às vezes, ainda não sei. – Não faz mal – disse Sophie. – Não me importo. Abraçaram-se durante um bocadinho e depois Jack pegou-lhe e levou-a para o quarto para descansar. Kate entrou na cozinha depois de ele descer e viu-o a fazer mais chá. Ela riu-se. – Chá verdadeiro, num bule? Vá lá, o que é que fizeste? Ele deu um salto ao ouvir a voz dela e girou sobre si próprio. – O quê? – Tu és mais o tipo do saquinho de chá diretamente na caneca. Só me fazes chá elegante como deve ser quando estás arrependido de alguma coisa. – A sério? – Sim. Uma vez quando te esqueceste do nosso aniversário de casamento e outra vez quando o teu pai se embebedou e tentou beijar-me. Ele franziu a testa. – Nunca me tinha apercebido. Ela beijou-o. – Estás a ver? Consigo ler-te como se fosses um livro. – Que livro? – Um daqueles para quem está a aprender a ler, com uma lista no fim de «palavras novas que aprendemos». – E que palavras novas é que aprendemos? – Lindo, atraente, grande, idiota. – Contou-as pelos dedos. Ele abraçou-a. – Desculpa – disse. – Porquê? – Por ser um grande idiota tão lindo e atraente.

– É por isso que me estás a fazer chá? – Sim. Não bebas tudo de uma vez. Kate virou-se nos braços dele para o fitar nos olhos. – Agora a sério, passa-se alguma coisa? – Portanto se eu faço um bule de chá isso significa forçosamente que se passa alguma coisa? É isso que estás a dizer? – Sim. Ele ergueu uma sobrancelha. – Bom, tenho muita pena que penses assim. Honestamente, não se passa nada. – De verdade? Ele apertou-a mais. – De verdade. Passado algum tempo, Kate ligou o rádio e olharam para a janela da cozinha e beberam o seu chá enquanto os The The tocavam «Uncertain Smile». – Lembras-te disto? – perguntou Jack. – Oh, Céus, sim. – Depois da minha queda? Quando íamos de carro? Quando ainda pensavas que eu era um egoísta? – Ainda penso que és um egoísta. Jack olhou para ela, para ver se estava a falar a sério, mas Kate estava a olhar para a janela e ele não conseguiu perceber. Seguiu o seu olhar. Encostada ao telheiro, no pequeno quintal soalheiro, a bicicleta de Sophie enferrujava. Casa de banho, Barrington Street, número 203, Clayton, zona leste de Manchester Quando Kate subiu, encontrou Sophie a vomitar na casa de banho de cima. Estava a vomitar de forma pouco dramática, com a resignação de uma rapariga a fazer algo menos agradável do que lavar os dentes, mas menos chato do que os trabalhos de casa. Kate correu para ela. – Oh, pobrezinha – disse, acariciando o rosto de Sophie e sentindo o calor e a secura da sua pele. – Porque não me chamaste? – Está tudo bem – disse Sophie, limpando a boca.

– Estavas a sentir-te mal? Sophie abanou a cabeça. – Foi uma coisa súbita? – Sim. Kate molhou uma toalha na torneira do lavatório e limpou-a. – Já te sentes melhor? Sophie sorriu-lhe. – Muito melhor. Kate apertou-a contra si e suspirou. Devia ter-lhe dado qualquer coisa errada para comer, o que era mau da sua parte porque não havia muita coisa que Sophie pudesse comer. Fora o que o nutricionista lhe dissera. Sophie tinha alergias e intolerâncias, claro, o que era normal na leucemia e com o seu sistema imunitário deficiente. O nutricionista dissera a Kate que tinha apenas de ser imaginativa. Não fique obcecada com o que é proibido, insistira ele. Pense nos milhões de coisas que há na Natureza. Veja a questão desta maneira: a sua filha pode comer quase tudo. E ele tinha razão, pensou Kate, desde que não fosse comida. Passou a toalha por água e torceu-a. Sophie era intolerante ao trigo e não podia comer marisco. Podia comer fruta fresca e vegetais cozinhados, com moderação, e gostava tanto dessas coisas como qualquer outra criança. Além disso, não tinha resistência alguma aos germes. Tudo tinha de ser fervido ou descascado. Em teoria, podia comer peixe. O nutricionista dissera a Kate: O peixe é o superalimento da Natureza, mãe. É nutrição com barbatanas. É almoço com dois olhos. A sua filha podia viver até aos noventa anos só com peixe. No entanto, Sophie detestava peixe. Fazia caretas e cuspia-o. Porque, além de ter leucemia, tinha oito anos. Havia múltiplos protocolos para tratar a leucemia, mas a única cura conhecida para ter oito anos era fazer nove. Entretanto, nada de peixe. Nem de levedura. Nem de soja. Nem de amendoins. Nem de nozes. Nem de citrinos. Às vezes, Kate abria o frigorífico e ficava parada a olhar. Não sabia porquê. Para o caso de terem inventado um alimento qualquer mais comestível, talvez, e de ela o ter comprado num acesso de esperteza sem se lembrar. Por vezes ficava ali parada um minuto, a olhar para a luz branca, como se pudesse haver uma cura escondida atrás do milho-doce e das batatas novas cuidadosamente esfregadas. Tinha a certeza de não ter dado a Sophie nada da lista de alimentos proibidos, mas ela vomitara. Sentou-se na beira da banheira e telefonou ao nutricionista, enquanto Sophie se sentava com as costas contra o radiador quente e brincava

com a sua Millenium Falcon. Kate ligou para o número geral do hospital e pediu para falar com o médico dos alimentos. Na unidade pediátrica, havia uma presunção tácita de que o vocabulário técnico confundia as pessoas. Se pedisse para falar com o nutricionista, ter-lhe-iam perguntado: «Refere-se ao médico dos alimentos?», e ela teria de dizer «Sim, por favor», e seriam mais dez segundos da sua vida que nunca poderia recuperar. O nutricionista era o médico dos alimentos, o hematologista era o médico do sangue. Quando tinham conhecido o pediatra de Sophie, ele dirigira-se a eles e dissera: – Olá! Eu sou o médico dos bebés! Passado algum tempo, uma pessoa aprendia a representar o seu papel na pantomima. O guião dizia que os pacientes e familiares não eram muito informados, mas os médicos eram pacientes e simpáticos e todas as crianças eram corajosas. Depois de algum tempo de espera, o médico dos alimentos atendeu. – Como estamos hoje, mãe? – A Sophie vomitou. Ainda não tomámos o pequeno-almoço e queria saber se tem alguma sugestão para lhe acalmar o estômago. – Bom, mãe – disse o nutricionista –, o que tem de compreender em relação à leucemia é que é uma condição que afeta o sangue, e como o sangue é uma parte tão importante do corpo da pequenita, vai afetar todos os seus sistemas, portanto tem de estar preparada para que as tolerâncias alimentares se alterem… Kate deixou de o ouvir e olhou para os azulejos da casa de banho com a visão desfocada. Não sabia o que esperava que o nutricionista dissesse. Experimente pâté, talvez, ou Leite-creme costuma cair bem. Em vez disso, estava a ouvir uma palestra, aparentemente destinada a pais com lesões cerebrais, e apesar disso encontrava algum conforto nas palavras. Por vezes, mesmo quando Jack estava em casa, ela sentia-se sozinha. Por vezes parecia que estava apenas em órbita em torno do planeta onde viviam as pessoas normais. Vozes do hospital ao telefone eram reconfortantes, como as palavras do controlo de missão. Faziam-na sentir-se como se pelo menos estivesse a orbitar algo substancial, e não apenas à deriva no espaço. Ouviu os passos de Jack a subirem as escadas. Ele parou à porta da casa de banho e pediu-lhe uma explicação com o olhar. Ela fingiu estar a enfiar dois dedos na garganta, apontou para Sophie e para a sanita. Jack deu uma palmada na testa. Kate murmurou:

– O que foi? – Dei-lhe um chocolate Mars. Apenas metade. Pensei que não faria mal. Kate estava demasiado aliviada para ficar zangada. Pôs o nutricionista em alta voz. Jack ouviu por um momento, depois sorriu e fez gestos de palavras a saírem do traseiro, redemoinhando e dispersando-se no ar com um odor desagradável. Sophie e Kate riram-se, o que interrompeu o nutricionista a meio de uma frase. – Está tudo bem, mãe? – Sim, desculpe, está tudo bem. Olhe, surgiu aqui uma situação… desculpe, eu depois volto a ligar. Desligou o telefone e olhou para Jack. – Seu idiota – disse, simplesmente. Jack imitou a voz do nutricionista. – Oh, por amor de Deus, mãe, está a pensar de forma demasiado limitada. Considere todos os alimentos que existem neste nosso grande planeta. Já experimentou óleo de trator e leite de tigre? Já experimentou ovas de choco e acónito? Não? Então trate disso imediatamente, se faz favor, antes de me incomodar para dizer que a sua filha vomitou um chocolate Mars. Isso fez Kate rir, e Sophie também. Jack ajoelhou-se e puxou-as para si, e abraçaram-se no chão da casa de banho na pequena casa, e pareceu verdade a todos eles que, por um momento como este, valia a pena o trabalho incessante de ignorar as pequenas coisas que poderiam estragá-lo. Centro Nacional de Ciclismo, Stuart Street, Manchester Antes dos treinos desse dia, no velódromo, o treinador de Jack deu-lhe a notícia da alteração das regras olímpicas. Jack ouviu sem mudar de expressão. Depois acenou e disse: – Muito bem. – Pôs o capacete aerodinâmico, prendeu os pés aos pedais e treinou tão arduamente que quase desmaiou em cima da bicicleta. Depois da sessão fez o arrefecimento e desceu para o ginásio da cave. Tinha nele uma energia, uma fúria. Livrou-se de parte dela com abdominais, depois começou a levantar um haltere de oitenta quilos, agarrando-o e erguendo-o acima da cabeça sem pausa. Alguns tipos do Ciclismo Britânico estavam a arrefecer no ginásio. Eram todos atletas de nível nacional, e olharam para Jack como se ele

fosse maluco. No estado de espírito em que se encontrava, poderia ter levantado mais peso ainda. Tentou esgotar-se, mas não conseguiu. Sentiu as fibras musculares a rasgarem-se e forçou-se a parar antes de estragar alguma coisa. Ainda tinha tanta energia furiosa. Tomou um duche e ficou parado, com uma toalha enrolada à cintura, a olhar para o seu reflexo no espelho por cima do lavatório, nos balneários. Captou o seu próprio olhar, devolveu-o por um segundo e depois, de alguma forma, conseguiu afastar-se antes de dar um murro no espelho. Eram duas da tarde. Correu até casa para apanhar Kate e Sophie e as levar para o velódromo, para a sessão de treino de Kate. Pelo caminho, foi ensaiando como dar a Kate a notícia da modificação das regras. Abrandou o passo quando se aproximou de casa. Depois mais ainda, até estar a caminhar com passo de caracol. Quando finalmente enfiou a chave na porta, Kate estava no corredor, impaciente. O seu aborrecimento transformou-se em preocupação quando viu a cara dele. – O que foi? – perguntou. A coragem abandonou Jack. Forçou o rosto a permanecer calmo. – Nada – disse. – Desculpa o atraso. Kate tinha preparado um saco com as coisas de Sophie, além das suas, por isso tudo o que Jack tinha de fazer era conduzir. Doíam-lhe as pernas do treino na pista, os ombros por causa dos pesos, e os dedos mal conseguiam segurar o volante. O ideal seria estar neste momento em posição horizontal, a recuperar, com as pernas ligeiramente elevadas e um saco de gelo nos deltoides. Ao nível de elite, não era o treino que os distinguia – todos treinavam até à beira da destruição. A vitória estava na forma como geriam a fase de recuperação. – Não dês pontapés no meu banco, por favor. Os pontapés pararam. Olhou para o retrovisor. Sophie estava encolhida na sua cadeirinha com os braços cruzados. Olhava para o trânsito com os olhos enormes meio escondidos por baixo da pala do boné. – Porque é que te atrasaste? – quis saber Kate. Jack encolheu os ombros. – Já pedi desculpa. O Dave não me largava. – Ele é o teu treinador, Jack, não o teu patrão. – Não me aborreças, por favor. – Então não te atrases, por favor. Isto é uma merda para mim. – Vinte minutos de atraso. Não é o fim do mundo. – Vinte e cinco minutos.

– Não sejas mesquinha. Tu não és uma pessoa mesquinha. Ela lançou-lhe um olhar que dizia: Não, mas tu és um imbecil. Jack conduziu no tráfego congestionado, cada vez mais lento. Pensou na recuperação. Devia ter tido tempo para si próprio, para acalmar os pensamentos enquanto o corpo reabastecia a energia e os fluidos perdidos no treino e iniciava a síntese de novas proteínas. Não era suposto estar em atividade, vinte e quatro horas por dia, a conciliar o desporto e esta doença. A verdade era que, com os últimos Jogos Olímpicos das suas carreiras apenas a quatro meses de distância, ele e Kate estavam a ficar mais cansados de dia para dia. E agora surgia esta mudança de regras e, de repente, a pressão duplicara. Era mais um golpe pesado. No ano anterior, o COI anunciara que a perseguição individual fora eliminada das Olimpíadas. Fora duro para todos, ter menos uma oportunidade de conquistar uma medalha, mas Kate fora a que mais sofrera com a notícia, uma vez que a perseguição individual era a sua melhor prova. Aceitara a notícia sem se queixar, reconstruíra o corpo numa nova configuração para dedicar tudo ao sprint – e agora isto. Tentou encontrar as palavras para lhe dar a notícia, mas mal conseguia pensar no assunto de forma coerente. No banco do passageiro, ao seu lado, Kate estalou os dedos, impaciente. Zoe já devia estar a aquecer há meia hora. Kate provavelmente imaginava que este era o seu maior problema neste momento. Soprou, aborrecida. – Posso ajudar-te? – disse ele. Kate apontou para um intervalo no tráfego que acabara de se fechar à frente deles. – Podias ter ido por ali. – Talvez. – De certeza. Jack deu uma palmada no volante e desviou os olhos. Ela estava a culpá-lo pela lentidão do trânsito, como se fosse culpa sua que toda a gente em Manchester tivesse escolhido este exato momento para se meter no carro e ir comprar gerânios, ou entregar toner para a fotocopiadora, ou o que quer que as pessoas faziam com o seu tempo quando não tinham de se preparar para os Jogos Olímpicos. Sophie começou a bater outra vez com os pés nas costas do banco dele; Kate estalou os dedos. Jack pensou: Claro, este é o meu trabalho principal, transportar estas mulheres de um lado para o outro. Apercebeu-se de que o pensamento não era digno, mas era difícil não se sentir ressentido. Os seus adversários não estavam tão próximos dele como no caso de Kate, mas mesmo

assim. Só havia um lugar no sprint masculino em Londres e só lhe restava uma quantidade finita de joules no corpo. Os seus rivais estariam neste momento a relaxar, a recuperar. Tinham sido suficientemente inteligentes para escolher mulheres sem carreiras no desporto e filhos sem cancro. Jack amaldiçoou-se a si próprio pelo pensamento. Avançou no tráfego lento e tentou apertar o volante. Cuidadosamente, mudou de faixa para colocar uma carrinha alta entre o carro e um dos cartazes de Zoe. Kate disse: – Esta faixa é ainda mais lenta. – Se calhar cometi um erro. Ela lançou-lhe um olhar cortante. – Sentes-te bem? Estás a ser um bocado idiota. – Eu é que estou a ser idiota? – Sim. Jack manteve os olhos na estrada. – Está tudo bem. – O treino correu bem? – Sim, foi excelente. – Não estás a sorrir. – Estou estafado, Catherine, está bem? – Catherine? Ele levantou os braços. – Desculpa. Ela suspirou. – Desculpa-me também. – Estou estafado, Kate, a sério. – O quê, até nos pequenos músculos da cara? Kate sorriu maliciosamente e puxou-lhe as bochechas insistentemente até conseguir um sorriso. – Assim está melhor – disse, e ficou tudo melhor instantaneamente. O mau humor de Jack evaporou-se. Ligou os quatro piscas, parou o carro no meio da estrada e inclinou-se para a beijar. Beijaram-se enquanto os condutores ultrajados buzinavam e passavam à volta deles. Os motoristas fizeram sinais a acusá-los de incapacidade mental, rodando os dedos ao lado da cabeça para indicar o centro da deficiência. Sophie começou a ficar ansiosa. – Vá lá! – sussurrou. – Mexe-te! Jack teve pena dela, mas não estava com pressa. Agora que a irritação

desaparecera, sentia a euforia pós-treino, um confortável casulo analgésico dentro do qual era difícil dar mais prioridade às necessidades do mundo impaciente do que às suas. Com relutância, interrompeu o beijo. Em momentos como este, uma velha ansiedade acometia-o com choque renovado: não compreendia por que motivo ela o escolhera, porque ficara com ele apesar de tudo o que acontecera e porque continuava com ele. Por vezes, Jack sentia-se como um animal com garras a quem tinham dado uma rosa para segurar. Sabia o suficiente para perceber que era bela, mas não o suficiente para saber como cuidar dela. Kate estava a ficar com os olhos cheios de lágrimas e Jack limpou-as com o polegar. Atrás deles, Sophie estava a passar-se. Lá fora, as buzinas dos carros confundiam-se numa cacofonia de indignação. Os outros condutores estavam a começar a fazer o outro sinal, com o dedo do meio esticado, com a implicação de que havia algum reto ou vagina nos quais algo – possivelmente o dedo exibido, ou possivelmente alguma outra coisa da qual o dedo exibido era um representante, significante ou substituto – poderia ser inserido de forma a acelerar a viagem do queixoso para a loja de móveis ou reunião de marketing, ou qualquer que fosse o seu destino imediato. Tão pouco tempo depois de levantar halteres pesados, Jack descobriu que era difícil levar muito a sério as pessoas ou os seus sinais de mãos. – É melhor seguires – disse Kate, e ele obedeceu. – Finalmente! – exclamou Sophie, num tom ofendido que os fez rir aos três. O tráfego pareceu diminuir um pouco. Tentando manter um tom casual, Jack disse: – A mensagem do Tom, esta manhã… ele disse o que queria falar contigo? Kate abanou a cabeça. – Disse apenas para reservar um tempinho depois do treino. Não deve ser nada. Jack continuou a olhar em frente. Quando Dave lhe dera a notícia, nessa manhã, o seu primeiro pensamento fora para como ia garantir o seu próprio lugar em Londres. Pensara em como podia treinar mais. Não se importava se tivesse de treinar até o mundo começar a girar ao contrário. Aquele lugar em Londres ia ser dele. Agora, ao virar para o parque de estacionamento do velódromo, Jack apercebeu-se de como era típico dele só ter pensado no que a notícia significaria para Kate mais tarde, nos balneários. Quando estava concentrado no jogo, a existência dos outros – até daqueles que amava – podia facilmente não lhe ocorrer durante horas a fio. As pessoas entravam e saíam indistintamente da sua consciência, como figuras numa sala escura onde alguma mão desconhecida acendia e apagava a luz de forma aleatória. Contudo, assim que se lembrava

delas, queria fazer a coisa certa. Era tudo o que podia dizer em sua defesa, supunha. Estacionou e foi ajudar Sophie a sair da cadeirinha. Pegou-lhe ao colo e fechou a porta. Os seus olhos cruzaram-se com os de Kate por cima do tejadilho do carro. Ela estava aos saltinhos, de um pé para o outro, com a antecipação do treino iminente. O saco do equipamento baloiçava no seu ombro e o cabelo esvoaçava no vento que soprava à volta da cúpula cinzenta do velódromo. Este seria o momento certo, se tencionava fazê-lo. Devia falar-lhe da modificação das regras e dar-lhe pelo menos a ínfima vantagem psicológica de saber antes de Zoe. Mas aqui estava ela, alegre, e aqui estava Sophie nos seus braços, excitada por sair de casa, para variar, encantada por poder ver Kate a treinar. Jack percebeu que não ia dizer nada. A próxima hora, o próximo minuto, até os próximos dez segundos de felicidade eram o máximo em que a sua mente queria pensar. Enquanto houvesse risos em casas de banho e beijos roubados no meio do trânsito e sorrisos em parques de estacionamento ventosos, deixá-los-ia perdurar. Jack agarrou-se ao momento e agarrou-se à pequena mão quente da sua mulher e percorreram a curta distância que os separava da entrada do velódromo. Kate apressou-se a ir mudar de roupa e Jack levou Sophie para junto da pista. Sentou-a cuidadosamente numa cadeira ao lado da área técnica e enrolou uma manta polar preta à volta dela. – Confortável? – Sim. Sophie puxou a ponta da manta sobre a cabeça para fazer um capuz de Jedi. Os seus olhos estavam fixos em Zoe, que aquecia com voltas suaves e fluidas à pista. Nas curvas íngremes em cada extremidade, Zoe subia até ao ponto mais alto da inclinação, suspensa por um instante entre a energia e a gravidade, e depois baixava novamente para a linha preta com um som agudo das rodas. Vestia um fato colado ao corpo e tinha um capacete branco com um visor preto que refletia as linhas da pista. Sophie estava hipnotizada. Levantou as mãos para Zoe, com os dedos ligeiramente dobrados. – O que estás a fazer? – perguntou Jack. Sophie franziu a testa, aborrecida por ele ter quebrado a sua concentração. – Estou a usar a Força nela. – Porquê? Sophie baixou as mãos e olhou para ele. – Para a fazer cair, claro.

Jack abriu a boca mas não conseguiu pensar em nada para dizer. Sophie virou o rosto e ergueu novamente os braços. Jack beijou-a no alto da cabeça, deixou-a com a sua missão e aproximou-se de Tom, na área técnica. – A Zoe parece em forma – disse Jack. Tom esticou o braço para lhe apertar a mão. – Desculpa por não me levantar. O raio dos joelhos estão piores do que nunca. – Sim, a Kate disse-me. Quando é que te decides pela operação? – Operação? Vou é mandar amputá-los. Dão mais trabalho do que merecem. Vou mandar prender os pés ao traseiro, acabar com o intermediário. – Resulta para os pinguins. – Sim, é uma coisa do hemisfério sul. Observaram Zoe na pista. – Já lhe contaste? – perguntou Jack baixinho. Tom abanou a cabeça. – Quando é que soubeste? – Esta manhã, antes do treino. – Eu ia dizer às raparigas depois do treino. Pelo menos durante mais esta sessão queria que estivessem concentradas. – Talvez fizesse o mesmo, no teu lugar. Tom ergueu os olhos para ele. – Disseste alguma coisa à Kate? – Isso é contigo. Eu sou só o marido dela. Tom não tirou os olhos de Jack. – Não sabias como havias de lhe dizer, pois não? – Mais ou menos isso. – Nem eu – disse Tom, baixando os olhos. – É uma pena, é o que é. – Já sabes como é que eles vão fazer? Tom encolheu os ombros. – Vai haver uma eliminatória formal para decidir quem fica com o lugar. Dentro de três meses, poucas semanas antes dos Jogos. Veremos qual das duas será mais rápida nesse dia. – Tens algum palpite? – Não me faças essa pergunta. – Mas tens? Tom manteve uma expressão neutra. – Três meses é muito tempo, não é? Jack sentiu o estômago apertado.

– Achas que vai ser a Zoe. Tom não respondeu. Virou-se para ver Zoe correr. Ela estava agora a fazer pequenos sprints, abrandando a bicicleta nas retas e depois acelerando para entrar nas curvas em velocidade antes de abrandar de novo. Mantinha uma pedalada descontraída e fluida, ainda a aquecer, sem se esforçar ao máximo. Parecia completamente controlada. Observaram-na em silêncio durante algumas voltas. – Estás confiante em relação ao teu lugar? – perguntou Tom por fim. – Claro – respondeu Jack. Tom acenou, ainda de olhos postos em Zoe. – Estive a falar com o Dave há bocado. Ele disse que tu estavas «calmo e confiante». – Calmo? Não sei. Disse-lhe que era capaz de aparecer nas eliminatórias de BMX com um paraquedas atrás e mesmo assim dar voltas de avanço aos outros tipos. – Sempre foste um filho da mãe arrogante. – Já fui pior. Tom virou-se para ele. – Eu lembro-me. Aquilo que nunca percebi, no entanto, é porque competes. Não encaixas no perfil. A Kate quer saber que fez o seu melhor e quer que tu e a Sophie se orgulhem dela. A Zoe, é como se estivesse a ser perseguida. Corre mais por medo de perder do que pela alegria quando ganha. Mas tu, é como se só competisses a este nível porque podes. Jack sorriu. – Só compito a este nível porque fui corrido da Escócia. Tom riu-se. – Não me digas que nunca te contei essa história? Tom abanou a cabeça. – Comecei no ciclismo quando tinha para aí uns dez anos de idade – disse Jack. – Fazia corridas urbanas em Leith e todos os dias dávamos grandes quedas. O meu pai fartou-se de me levar às Urgências e convenceu-me a entrar no programa de Ciclismo Escocês. Decidiu que eu estaria mais seguro do que na rua. E o meu pai fumava como uma chaminé… imagina-o no escritório do treinador, a tresandar a cancro e a dizer-lhe que éramos uma família muito saudável. Seja como for, deram-me uma bicicleta a sério e eu venci todos os juniores da Escócia. Perseguição, sprint, qualquer prova individual… não importava. Era fisicamente incapaz de perder. Cheguei aos dezasseis anos e os treinadores estavam a

alimentar-me com substâncias até então desconhecidas para mim… sabes, vegetais e fruta. Dar-me uma alimentação correta era como fazer batota, foi o que o treinador principal disse ao meu pai. Nessa altura, os outros ciclistas estavam a desistir de competir contra mim e as corridas começaram a ser canceladas por todas as Terras Altas e Baixas. Foi então que todos os treinadores escoceses se reuniram para uma conferência. Disseram a si próprios: por amor às nossas carreiras, temos de tirar este rapaz da Escócia. – E foi assim que foste chamado para o Ciclismo Britânico? – Eu nem sequer queria vir. Basicamente, passava o tempo na borga, atrás das raparigas, e uma noite cheguei a casa, bêbado, e tinha uma carta à minha espera. Fora incluído no Programa de Esperanças de Elite no Velódromo de Manchester e devia levar comigo uma toalha, artigos de higiene e roupas apropriadas para um dia de corridas. Suponho que foste tu que escreveste aquilo, não? E ao pequenoalmoço estava de ressaca e o meu pai disse: Que carta era aquela? E eu respondi: É dos Ingleses, pai. Estão a implorar-me que seja o seu legítimo rei. E o meu pai disse: Não, a sério? Então contei-lhe o que dizia a carta e disse-lhe que não tencionava vir a Manchester. Nunca me passara pela cabeça sair da Escócia, tal como nunca me ocorrera deixar de ser quem era. – Então o que é que te convenceu? Jack sorriu. – O que o meu pai fez, foi pegar no telefone. Quinze dias depois, na véspera do programa, um amigo dele bateu à nossa porta e este amigo, por acaso, era excampeão de peso médio da Escócia e Hébridas Exteriores. Sabes como são esses tipos… tatuagens no pescoço e nos braços com imagens de atos de violência imaginativos. Chamava-se Jim. Abri a porta e o Jim sorriu-me com duas filas de dentes de ouro. E o meu pai disse: O Jim veio cá para te ir pôr no comboio para Manchester. Tentei escapar-me, mas o Jim agarrou-me. Vais gostar de Inglaterra, disse ele, e eu disse Não vou nada. Portanto o Jim agarrou-me pelo cabelo e levantou-me do chão e empurrou-me a cara contra a parede. Vais gostar de Inglaterra, disse. O clima é bom e as pessoas são bem-educadas, e terão todo o gosto em ensinar-te as suas boas maneiras. Nesta altura eu quase não conseguia respirar, por isso disse Sim, sim, vou adorar terrivelmente. E o meu pai disse algo que nunca esqueci: É para o teu próprio bem, Jack. Não te quero ver a acabar como eu. E eu respondi: Mas eu gosto de si, pai. E ele disse: Bom, gostarás ainda mais de mim quando venceres uma medalha de ouro. – E foi o que aconteceu? Jack suspirou, enquanto via Zoe fazer as suas voltas lentas à pista.

– Nunca lhe disse o quanto isto significou para mim, e claro que ele morreu no ano a seguir a Atenas. A cuspir os pulmões para uma máscara de oxigénio. Se não tivesse feito o que fez, eu teria seguido o mesmo caminho. – Parece que ele não era tão mau como isso – disse Tom. Jack viu Zoe começar outra volta. – Fazemos o que podemos, não é? – disse, por fim. Kate apareceu ao lado da pista num fato colado ao corpo, azul, a prender o cabelo. Aproximou-se de Tom e beijou-o nas faces. – Desculpa – disse. Tom apontou para o relógio. – Nove minutos atrasada, querida. – Desculpa, havia trânsito e… – A culpa foi minha – disse Jack. – Cheguei atrasado para cuidar da Sophie e… Tom silenciou-o com um dedo no ar e usou os olhos para correr com ele da área técnica. Agora que a sessão de treino começara, a dinâmica alterara-se. – Preparámos a tua bicicleta – disse Tom a Kate. – Na remota probabilidade de apareceres. Apontou para uma pesada bicicleta de carga preta, com um enorme cesto de vime na parte da frente, ao lado das bicicletas de arrefecimento no centro do velódromo. Kate gemeu. – A sério, não me vais obrigar, pois não? – Considera-te uma rapariga de sorte. Se te atrasares mais alguma vez, obrigote a competir com ela. Kate baixou os ombros, soltou um suspiro teatral e foi buscar a bicicleta. Era um castigo há muito estabelecido – por cada minuto de atraso, uma volta de aquecimento na bicicleta de carga. Enquanto Kate empurrava a bicicleta para a pista, Zoe, ainda em movimento, tirou as mãos do guiador e começou a aplaudir lentamente, um som que ecoou no velódromo vazio. Kate olhou para Sophie e fez uma careta. – Queres vir dar uma voltinha? – perguntou. Sophie arregalou os olhos. – Posso? Kate empurrou a bicicleta até onde ela estava sentada e segurou-a enquanto Jack colocava Sophie cuidadosamente no cesto de vime à frente. – Estás bem instalada, miúda? Sophie acenou afirmativamente e agarrou-se à beira do cesto, meio

desconfiada. – Não te preocupes. Jack segurou na bicicleta enquanto Kate montava e a levava para a pista. Manteve um andamento estável e cauteloso, sempre sobre a linha preta inferior da pista, e um sorriso espalhou-se lentamente no rosto de Sophie. Zoe entrou na brincadeira, descendo até junto delas, ultrapassando-as e deixando-se ultrapassar. Guinou e rodou no seu rasto de ar enquanto Sophie gritava de alegria e pedia a Kate para andar mais depressa. Lua florestal de Endor, Territórios da Orla Exterior, Setor Moddell, a 43 300 anos-luz do Coração da Galáxia, coordenadas cartográficas H-16 Sophie abriu a válvula do motor de repulsão-elevação e acelerou com o landspeeder por entre as árvores. A sensação da deslocação do ar no seu rosto, à medida que a aceleração aumentava, era fantástica. Por trás do seu veículo, um batedor imperial perseguia-a. Sophie agarrou no guiador com força e fez algumas manobras evasivas. Este batedor imperial era bom. O que quer que Sophie fizesse, a outra viatura acompanhava-a, curva por curva. O seu perseguidor parecia saber o que Sophie ia fazer, quase antes de ela própria o saber. Sophie sentiu assombro a par da excitação. Este não era um soldado imperial qualquer. Talvez fosse o próprio Vader. – Mais depressa! – gritou, e sentiu o landspeeder acelerar. No chão da floresta, o androide C-3PO parecia preocupado, aquele saco de parafusos ansioso. Tens a certeza de que sabes conduzir esta coisa em segurança?, era o que o seu rosto mecânico pateta parecia dizer. – Relaxa – disse a voz de Han Solo entre o vento. – Uma perseguição não tem a ver com segurança. Ao lado da pista, Centro Nacional de Ciclismo, Stuart Street, Manchester Jack sentiu o peito apertado enquanto via as três na pista, e ficou aliviado

quando Zoe olhou para ele. Implorou-lhe com os olhos. Ela fitou-o por um momento, inescrutável por trás do visor, e ele estremeceu. Foi um alívio quando ela pôs fim à perseguição fingida. Zoe colocou-se ao lado de Kate e Sophie, abrandou para o ritmo delas e começou a fazer um comentário ao estilo dos analistas televisivos: – E Sophie Argall vai na frente quando entram na reta. Este tem de ser o desempenho mais espetacular de uma miúda de oito anos que já se viu nos Jogos Olímpicos. Ela está a esmagar a oposição, e vejam a determinação no seu rosto quando acelera na última curva, e agora está na reta da meta e… conseguirá? Disseram que era impossível, mas, oh meu Deus, ela conseguiu, a rapariga maravilha de Manchester, conseguiu vencer o ouro! Quando cruzaram a meta, Sophie levantou os braços numa saudação vitoriosa. Jack viu o sorriso de Zoe por baixo da linha do visor enquanto acelerava para continuar o seu aquecimento. Era raro ver Zoe ligar-se a Sophie daquela maneira. Era raro vê-la ligar-se a quem quer que fosse. Tirou cuidadosamente Sophie do cesto e sentou-se com ela ao lado da pista. A excitação deixara-a exausta. Jack enrolou-a na manta preta e ficou com ela ao colo. Viu Kate e Zoe correrem. Kate deu algumas voltas de aquecimento com a sua bicicleta verdadeira e depois Tom mandou-as fazer treino de intervalos – dez segundos no máximo do esforço, seguidos de um minuto para baixar o ritmo cardíaco. Jack manteve os braços à volta de Sophie enquanto assistia. Sempre que as duas ciclistas passavam por eles, Sophie murmurava: – Vá lá, mamã, tu és muito mais rápida! Ao ver as duas mulheres, Jack não teve tanta certeza. Nunca fora fácil escolher entre elas. No hospital, depois da queda de Jack, Zoe pegara-lhe na mão. Ele acordara da anestesia e vira-a a olhar para ele com uma expressão mais de sarcasmo do que de pena. – Demoraste que tempos – disse ela. – Para?… – Para acordares. Já estava entediada. Jack olhou em volta. Parecia, pelas muitas camas de lençóis verdes e cortinas à volta, que estavam na enfermaria de um hospital, ou nalguma espécie de conceito de hotel barato que provavelmente não pegaria. A rapariga estava a dizer que

lamentava muito um acidente qualquer. – Qual acidente? – perguntou Jack. O traumatismo craniano fizera-o perder uns dois dias. No entanto, reconhecia vagamente Zoe. Lembrava-se até do seu nome, mas não de onde a conhecia. Deu por si a sorrir-lhe. Parecia o mais seguro. Lembrava-se de ter tido uma discussão com ela, uma vez. Ou recentemente ou há muito tempo. Talvez estivesse bêbado. Talvez ainda estivesse – talvez fosse esse o problema. Perguntou-se porque estaria ela a pegar-lhe na mão. – Desculpa, mas nós… somos namorados, ou coisa do género? Ela sorriu e abanou a cabeça. – Queres ser? És muito atraente. – Céus – disse ela. – És ridículo. Mas não parou de sorrir e começaram a conversar. Ela contou-lhe como tinham discutido no velódromo e sim, ele lembrava-se agora. Lembrava-se de ela lhe bater, enraivecida. Devia tê-la irritado mesmo. Parecia diferente, agora. Toda a dureza que Jack recordava derreteu enquanto ela falava. Era muito bonita. Parecia-lhe um pouco triste, ou talvez zangada, ou talvez estivesse apenas a falar de ir buscar chá e uma bolacha – ele estava a ter dificuldade em acompanhar as palavras dela. A sua voz subia e descia como o arco-íris de sons no fim de «Bold as Love». E, enquanto isso, estava ali uma coisa branca num suporte verde inclinada para cima. Depois de algum tempo, percebeu que a coisa branca era a sua própria perna, engessada, suspensa do teto por uma corrente. Era um sítio estranho para a pôr. Conseguia ver os dedos do seu pé a espreitarem na ponta do gesso e, com os movimentos certos no cérebro, conseguia agitar os dedos. No entanto, era difícil – era preciso uma concentração extrema, como para aterrar um avião. Só para agitar os seus próprios dedos dos pés. Riu-se, interrompendo o que ela estava a dizer. – O que foi? – perguntou ela, irritada. – A minha perna! – disse ele, incrédulo. – Que raio é que está a fazer ali em cima? Ela começou a explicar-lhe outra vez o acidente, mas Jack interrompeu-a. – Apalpa lá debaixo do cobertor – pediu. – Vê se pelo menos esta perna ainda está ligada a mim. – Debaixo do cobertor? – Ela sorriu. – Isso querias tu. Ele sorriu também. – Não podes censurar-me por tentar. – És sempre assim?

A pergunta confundiu-o. O efeito da morfina estava a passar. Perdeu o fio aos pensamentos e reparou de novo na perna partida. Desta vez, doía-lhe. Ergueu os olhos e viu agora Zoe mais claramente. Pálida; intensa; cabeça rapada como uma penitente. – Fala-me sobre ti – pediu. Era uma coisa que se esperava que uma pessoa dissesse, e disse-a para ganhar algum tempo. Os olhos verdes da rapariga perderam-se no vazio. – Ah, tu não queres saber. – Quero. Zoe olhou novamente para ele e Jack viu uma centelha de raiva, que rapidamente se dissolveu em incerteza. – Queres? Jack teve pena de ter trazido aquela expressão ao rosto dela; Zoe não conseguia perceber se ele estava ou não a brincar com ela. Apertou-lhe a mão. – Quero mesmo. Algo nos olhos dela se fechou, e ela riu-se. – Esquece. Quando ela se riu, isso perturbou-o. Os olhos faziam algo diferente do rosto. Uma enfermeira apareceu e deu-lhe mais morfina. – Amo-a, enfermeira – disse ele. – É a criatura mais bela que alguma vez vi. Quando a enfermeira se afastou, Zoe abanou a cabeça. – Que raio se passa contigo? A pergunta confundiu-o. Depois reparou outra vez na perna. – Acho que é isto – disse. – Oh, meu Deus, acho que parti a perna. As horas passaram. Os seus pais entraram e saíram numa neblina de morfina e traumatismo. Quando acordou, era outra vez dia e Zoe ainda estava a segurar-lhe na mão e Kate estava ali, na enfermaria, a fitá-los sem dizer nada. Assim que viu o rosto dela, Jack lembrou-se. Era a rapariga com quem falara na pista, aquela de quem não conseguia estar afastado. Adorava a forma como ela se ria e como lidava graciosamente com a derrota; como transformava em positivo tudo o que era negativo. Ela era uma energia boa e gentil e uma pessoa sentia-se mais simples e mais forte só de estar ao pé dela. Ela pareceu ficar devastada quando viu a sua mão na de Zoe. Jack tentou sentar-se na cama mas tinha as costelas partidas e caiu novamente sobre a almofada, cheio de dores.

– Desculpa… – disse. – Não, não, eu é que peço desculpa – disse Kate. – Não sabia que vocês os dois eram… eu… – Oh, não é… quero dizer… – Tropeçou nas palavras enquanto o lábio inferior de Kate começava a tremer. – Desculpa – disse ela. – Estou tão cansada. Acho que vou… – Não, por favor, é só… Jack tirou a mão da de Zoe mas Kate já estava a virar-se para partir. Viram as costas dela desaparecer ao fundo da enfermaria. – Merda – disse Jack, levantando a cabeça e deixando-a cair sobre a almofada. Os ténis de Kate chiavam no chão enquanto atravessavam a comprida enfermaria. As portas pesadas ao fundo fecharam-se atrás dela. Zoe disse: – Queres que a vá chamar? A escolha é tua. Viram as portas de batente regressar à imobilidade em oscilações cada vez mais pequenas. Quando pararam, Jack percebeu que era perfeitamente possível acreditar que aquela cena não tinha acontecido. Suspirou. – Não. Estendeu a mão para tocar de novo nas de Zoe, mas ela retirou-as para o colo. O que era compreensível mas também um pouco dramático, pensou ele. – Está bem, sou má pessoa – disse ele, simplesmente. – Não. Não há problema. Quer dizer, ela é engraçada. – É? Quer dizer… – Não me venhas com merdas, está bem? Andas a fazer-te a ela há três dias. – Bom, sabes, eu sou assim. Menos interessante do que a bicicleta que monto. – Isso é suposto fazer com que eu me sinta melhor? De súbito, Jack sentiu-se cansado de pedir desculpas. Tinha uma dor latejante na perna e nas costelas, agora que o efeito da morfina estava novamente a passar. – Não me interessa como é que te sentes – disse. Ela pestanejou. – Obrigada pela informação. – De nada. Ficaram em silêncio por um minuto e depois Zoe fungou e recostou-se na cadeira. – De qualquer maneira, eu sei que ela é mais o teu género. Ele sorriu. – Sim? E qual é o meu género?

Ela encolheu os ombros. – Feliz e bonita. Normal e bonita. Bonita e bonita. – Por oposição a?… Zoe conseguiu sorrir levemente. – Eu sou feia por dentro. Dar-te-ia cabo da cabeça. – Sim, também já usei essa conversa. Sou um rapaz mau, vou partir-te o coração. Resulta, é muito sexy. – Pensas que estou a brincar. – Não me farias nada disso – disse Jack. – Quer dizer, olha para mim. Sou indestrutível. Zoe sorriu e abanou a cabeça. – Ninguém é indestrutível. – Experimenta – disse ele. Estendeu a mão, pegou na dela e puxou-a para si. Ela resistiu, inicialmente, depois deixou-se puxar. Não estava a sorrir agora. Com os lábios quase a tocarem-se, disse: – Ninguém é indestrutível, Jack. O movimento dos seus lábios fê-los roçarem nos dele. Foi o primeiro beijo de ambos, esta coisa que começara como um aviso, e quando os seus lábios se tocaram ele pensou em Kate. Não gostava disso. Não compreendia porque é que o rosto dela lhe surgia na mente, nem porque é que isso o incomodava. Não acontecera nada entre eles nos três dias do programa, o que não era o seu estilo habitual. Tinham namoriscado, mas ela mantivera uma certa distância e, se pensara sequer nisso, Jack imaginara que isso a tornaria mais fácil de esquecer. Aborrecia-o estar a pensar nela agora, no momento exato em que o seu corpo insistia que não devia fazê-lo. Beijar Zoe era bom e fazia-o pensar em Kate, o que era inexplicável, como preparar-se para sair de casa, vestir o casaco e calçar os sapatos e abrir a porta e, em vez de ver a rua, ver o seu próprio hall de entrada. Zoe ficou com ele todo o dia e depois o resto da semana. Houve beijos e conversas sussurradas, e foi tudo bom, e lentamente a sensação de desconforto dissipou-se e ele deixou de pensar em Kate quando Zoe lhe tocava. Habituou-se aos lábios dela, e gostava de a ouvir, e seguia a morfina para um estado delicado entre a dor e a felicidade. A enfermaria começou a encher-se. Agora que estava a ficar movimentada, as enfermeiras impuseram um horário de visitas. Zoe tinha de sair entre as seis e as nove da noite, mas assim que as enfermeiras a deixavam voltar a entrar, ali estava ela, a empurrar as portas de batente. Sentou-se à cabeceira dele durante horas. Enfiava a mão debaixo dos lençóis para a pousar no

coração dele. Ele deixava a sua própria mão vaguear, do braço dela para o seu joelho, para a sua coxa. No segundo dia, ela pegou-lhe e enfiou-a rapidamente na cintura da roupa. Segurou-a aí durante alguns segundos enquanto os outros pacientes viam o programa Countdown, aos berros na televisão. Enquanto o resto da enfermaria via os concorrentes a tentarem configurar seis números para produzir um total aleatoriamente selecionado, Jack sentiu o calor do sexo dela. Era uma justaposição que achou fácil de confundir com a sensação de se apaixonar, súbita e deliciosamente. Provocavam-se um ao outro. Ele adorava a forma como Zoe se estava borrifando – era-lhe realmente indiferente que fossem apanhados. Adorava como ela enfiava a mão cada vez mais para baixo, sob os lençóis, lhe segurava nos testículos e lhe sussurrava ao ouvido: Quando sairmos daqui, não estás seguro. Ele tinha dezanove anos, estava cheio de morfina e não via mal nenhum nisso. Era um jogo que jogavam: enquanto a enfermaria estava cheia de doentes e das suas visitas, ela cobria o colo com uma manta, como se tivesse frio, e ele enfiava o braço por baixo e ela lia-lhe artigos desportivos do Daily Mail na voz mais natural que conseguia. Sempre que os fãs de futebol se reunirem para refletir na beleza do jogo, falarão da noite em que o Manchester United deu à Juventus um avanço de dois golos antes de lançar calmamente um sudário sobre Turim. Este jogo ficará para sempre entre as recuperações mais magníficas dos anais do futebol europeu. Uma visita na enfermaria teria reparado apenas na ligeira falha da sua voz nas palavras «lançar calmamente» e no súbito afluxo de sangue ao seu rosto. Depois, ela recostou-se languidamente na cadeira e leu os horóscopos com voz sonhadora. – Touro – disse. – Conhecerá uma rapariga alta e morena. E ela jura por Deus que, de uma maneira ou de outra, há de encontrar uma maneira de lhe fazer um broche sem ninguém na enfermaria reparar. – Não diz mesmo isso. – Tens razão, é o Daily Mail. – Olhou novamente para o jornal. – A expressão exata que eles usam é ato sexual lascivo. – Nunca conheci ninguém como tu – disse ele. – É por isso que ainda és feliz – respondeu ela casualmente. No dia seguinte, estava a dar o programa Antiques Roadshow na televisão. Era popular na enfermaria e todos os olhos estavam no ecrã. Discretamente, ela fechou a cortina à volta da cama e enfiou a cabeça debaixo dos cobertores, e Jack fechou os olhos e teve a certeza de que estava a formar-se um elo de ligação entre eles que, por algum processo – cuja mecânica ainda não estava clara na sua

mente, mas no qual a sua fé cresceu enquanto uma senhora de idade chegava à frente da fila com uma aguarela pintada por um artista local e Zoe o levava ao ponto de não retorno –, levaria a uma felicidade partilhada que teria lugar entre eles por um período de tempo não especificado – uma vida inteira, por exemplo, e em locais ainda por determinar – um estúdio arrendado, talvez, com bicicletas penduradas no corredor, e depois um apartamento maior, e depois talvez uma casa pequena com um quarto de criança… A seguir, indolente com prazer, enquanto a televisão avançava para o noticiário, eis como Zoe lhe pareceu: como um futuro condensando-se vagarosamente a partir dos gases escaldantes da juventude, como uma estrela sem pressa para se formar. Começou a achar que a amava. Foi isso que lhe disse no quinto dia, e percebeu de imediato que fora um erro. Disse-lho, na luz cinzenta de uma tarde entediante naquela enfermaria que já não era um palco vazio onde apenas eles brilhavam, mas que estava cada vez mais cheia de doentes e necessitados, que traziam com eles os seus próprios visitantes com a sua corpulência e a sua flatulência e o barulho de sacos de papel cheios de livros de bolso e caramelos. – Desculpa? – perguntou Zoe, distraída. Por um momento, viu os olhos dela pousarem nele enquanto percorriam as fileiras dos pacientes. – Quero dizer, temos uma ligação fantástica, não achas? As palavras soaram muito estúpidas, mesmo a ele. – Ligação? – perguntou ela. As enfermeiras estavam a distribuir tabuleiros de comida tépida preparada em grandes cozinhas de aço inoxidável, não descuidadamente, nem sequer com incompetência, mas com um tipo de indiferença relativamente a qualquer qualidade de conforto ou sustento que pudesse conter. Um tabuleiro desses aterrou na mesa com rodas sobre a sua cama, com um cheiro a garam masala neutralizada por baixo da tampa brilhante com o buraco para enfiar o dedo e levantar. De súbito, Jack apercebeu-se da perigosa vulgaridade de tudo isto – da velocidade com que a sua individualidade fora diluída. A enfermaria – o mundo – absorvera-os. – Nem sequer sei do que estás a falar – estava ela a dizer. – É como se a tua boca se mexesse e eu só ouvisse blá blá blá. O desespero dele transbordou. – Amo-te, Zoe. Ela parou.

– Oh… – O que foi? Zoe passou as mãos pela cabeça e soltou a respiração. – Uau… Jack sentiu o coração a martelar nos ouvidos. – Ouve – disse ela. – Isto é um bocadinho rápido demais para mim. Quer dizer, só vim aqui porque a Kate estava interessada em ti e agora… Jack apertou-lhe a mão. – O quê? Ela parou e olhou para ele. – Oh… pensava que tinhas percebido isso. Não? Era óbvio que a Kate ia acabar por vir cá, por isso pensei que devia cá estar quando isso acontecesse. O que foi? Não olhes para mim assim. Ela veio e tu fizeste a tua escolha. Jack largou-lhe a mão e tentou sentar-se na cama. – A Kate estava interessada em mim, portanto tu… – Ouve, ela vai ser a minha maior ameaça na pista, com certeza, por isso pensei… Ele fitou-a. – O que foi? – perguntou ela de novo. – Estou só a dizer que foi por isso que vim. Fiquei porque gosto de ti, por isso não te enerves. Mas amor é… sabes. Sem ofensa, mas é um bocadinho súbito para mim. Gosto mesmo de ti, mas amor… Jack esfregou os olhos. – Estás aqui para afetar a Kate psicologicamente? Ela abanou a cabeça. – A morfina deixou-te a compreensão lenta? Vim para a afetar psicologicamente. Fiquei por tua causa. Ele passou as mãos pelo cabelo. – Quando é que me ias contar? Ela soltou uma risada nervosa. – Oh, pensei que tinhas percebido. – Não, claro que não percebi. Não é assim que a minha cabeça funciona, Zoe. Não é assim que a cabeça de ninguém funciona. Ela esforçou-se por manter o sorriso. – Desculpa. Provavelmente penso demais no ciclismo. Quer dizer, se isso… Jack esforçou-se por manter a voz num murmúrio que não se ouvisse nas camas vizinhas. – Isso é muito estranho, é o que é!

Ela tentou manter a voz baixa. – O que é estranho é dizeres que amas alguém que nem sequer conheces. Eu faço o que quero, está bem? – Oh, está bem. Então durante quanto tempo queres ficar comigo? Apenas até teres a certeza de que a Kate não vai voltar? Ela olhou tristemente para o chão. – Não sejas estúpido, Jack. Olharam um para o outro em silêncio. Lentamente, Jack recostou-se novamente nas almofadas. Ela pegou-lhe na mão e ele deixou-a segurá-la sem retribuir a pressão. – Eu gosto de ti – disse ela. – Mais do que pensei que gostaria. Quero mesmo acreditar que podia estar contigo. Ele suspirou. – Também gosto de ti. – Gostei de conhecer os teus pais. Sabes? De ver de onde vens. Ele lançou-lhe um olhar cortante. – Conheceste-os? – Quando vieram visitar-te. Não te lembras? Ele abanou a cabeça. – O meu pai tentou dar-te conversa? – Estava furioso comigo por ter provocado o acidente. Agarrou-me nos braços e sacudiu-me. Jack gemeu. Ela sorriu. – Não faz mal. Quer dizer, assim que ele sentiu os meus músculos começou logo à procura do primeiro momento conveniente para parar. – Desculpa. – Não, eu gostei dele – disse Zoe. – Gostei dos dois. São uma unidade. – Queres dizer que a minha mãe repete tudo o que o meu pai diz. Ela apertou-lhe a mão. – Vais acabar por casar com alguém assim. – Não, não vou. – Vais, sim. Casarás com uma mulher virtuosa que arrumará tudo o que tu desarrumares. Ele abanou a cabeça. – Não quero acabar como os meus pais. – Toda a gente diz isso.

– E tu, não? Ela olhou para o chão. – Os meus já não estão presentes. O meu pai deixou-nos e a minha mãe suicidou-se quando eu tinha doze anos. Fui criada em lares de acolhimento. Ergueu os olhos e viu que ele estava a observá-la. – E então? Acontece. Que é que tem? Ele pegou-lhe nas mãos. – Não, nada. – Não, vá, diz lá. Ele disse: – Isso é muito intenso, mais nada. Zoe fitou-o. – Intenso?… Ele abriu as mãos. – Sim, quer dizer… Ela riu-se e Jack viu a centelha de amargura novamente nos seus olhos. – Acabaste de dizer que me amavas. Desculpa lá por ser intensa. Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. Ele tentou pegar-lhe no pulso mas ela afastou a mão. – Vais-te embora? Uma lágrima escapou-lhe e ela limpou-a. – Não posso ficar. Jack viu-a afastar-se e cada passo que ela dava na enfermaria deixava uma dor que ele sabia que teria de preencher com morfina. Quando a hora das visitas começou, no dia seguinte, Jack olhou para as portas ao fundo da enfermaria. Esperou todos os dias, mas ela nunca mais voltou ao hospital. Quinze dias depois, quando ele ainda estava sob o efeito dos analgésicos, os médicos deram-lhe alta e passaram-no para um programa de fisioterapia intensa. Jack sentou-se numa cadeira de rodas do hospital, no átrio, e pegou no telefone para ligar aos pais e lhes pedir que o viessem buscar. Fez uma pausa, enquanto via um concurso na televisão suspensa por cima do balcão da receção. Mudou de ideias e marcou outro número. Ela atendeu, ofegante. – Estou? – Parecia ter estado a correr. – Sou eu – disse ele. Uma longa pausa. – Apaguei o teu número.

– Eu teria feito o mesmo. – Pois. – Magoei-te. – Não faz mal. Ouve, estou a correr, por isso… – Kate, por favor. Quero explicar. Eu tinha um traumatismo craniano. Só me lembrei de ti mais tarde. – Lembraste-te da Zoe. – Não imediatamente. E depois ela não me deixou esquecê-la. Outra longa pausa. Ao fundo, ouviu o som do tráfego. – Estás bem? – perguntou ela. – Não sei. Ainda há pouco tempo era o ciclista mais rápido da galáxia e agora estou numa cadeira de rodas com… deixa-me ver os bolsos… nove libras e quarenta cêntimos e uma chave Allen de quatro milímetros e três comprimidos de paracetamol. A minha perna precisa de mais uma operação. Tenho fissuras vertebrais. O médico diz que há cinquenta por cento de hipóteses de eu voltar a competir. – Merda. Lamento muito. – Não te preocupes. Esse tipo de probabilidades são fáceis de bater, para mim. Ela riu-se. – Os médicos não disseram se podiam fazer alguma coisa em relação ao teu ego? – Não, receio que seja uma metástase. É completamente inoperável. – Tu és completamente impossível. Ele sorriu. – E tu, estás bem? Ela suspirou. – Passei uma semana a odiar-me a mim própria, depois outra semana a odiar a Zoe, e depois uma semana a odiar-te a ti. Estava precisamente a voltar a mim outra vez. – Parece que liguei na altura certa. – Para com isso. Estás com ela? – Não. – Aconteceu alguma coisa entre vocês? – Nada de bom. – E agora resolveste telefonar-me? – Bom, és a única rapariga inglesa que conheço que não tentou matar-me. Ela riu-se outra vez.

– O que te leva a pensar que não o farei ainda? – Cometi um erro. Fui levado, e peço desculpa. Liguei apenas para dizer isso. E para te desejar boa sorte e te dizer para teres algum cuidado com a Zoe. Ela não é má pessoa, mas fará coisas pouco saudáveis para vencer. Kate fez uma pausa. – Obrigada. – Ótimo. Bom, vemo-nos por aí, está bem? Suponho que nos veremos na pista. – Sim. Põe-te bom, está bem? E obrigada. Obrigada por teres ligado. Ela desligou e Jack ficou sentado na cadeira de rodas na receção do hospital. Agarrou nas rodas cromadas, aplicou alguma força e perguntou-se como seria competir com uma coisa destas. Não devia ser mau de todo. Teria de arranjar uma daquelas cadeiras artilhadas, com a posição aéro e as rodas projetadas para a frente como um carro de Fórmula 1. Aí poderia acelerar a sério. Agarrou-se a essa imagem demasiado tempo e a euforia da morfina começou a passar. Olhou para o telemóvel, pensou na voz de Kate e uma tristeza oca invadiu-lhe o peito. A perna partida latejou, elevada na armação frontal da cadeira. Pela primeira vez na sua vida, sentiu-se frágil. Afundou-se no estofo de vinil estalado da cadeira de rodas e olhou para a televisão sem prestar grande atenção. Dois concorrentes, equipados com campainhas, estavam a tentar adivinhar o preço de vários artigos. Observou e tentou aprender, para o caso de as suas lesões o virem a tornar num civil. O seu telemóvel tocou. – Ouve – disse Kate –, onde é que estás? – Estou no hospital. A preparar-me psicologicamente para ligar aos meus pais para me virem buscar. Uma curta pausa. – Não te mexas. Entrou no átrio do hospital pouco menos de duas horas depois, ainda com o equipamento de corrida. – Sou uma idiota por ter vindo – disse, com um sorriso tímido. – Parei duas vezes na M6. Quase voltei para trás. – Estás fantástica – disse Jack. Ela encolheu os ombros. – E tu estás com péssimo aspeto. Não falaram muito. Ouviram a Radio 2 na autoestrada para norte, no velho VW Golf que ela pedira emprestado a uma colega de trabalho. Quando passaram por Preston o sol espreitou e os The The começaram a tocar «Uncertain Smile» na

rádio e Jack estendeu o braço e pousou a mão no joelho dela. Kate pegou-lhe na mão sem dramas e devolveu-lha cuidadosamente, sem tirar os olhos da estrada. Ele gostava da forma como ela conduzia, demasiado perto do volante, com as mãos apertadas na parte superior do mesmo, a olhar pelo para-brisas com a testa franzida, como se estivesse a deslocar-se por algo mais complicado do que uma estrada de alcatrão a direito com as faixas de rodagem bem demarcadas, ocupada por carros espaçados entre si que se deslocavam a velocidades aproximadas da deles. Só mais tarde é que soube que ela tinha tido um problema com as lentes de contacto e não quisera que ele a visse de óculos. Na altura, Jack disse: – Conduzes como uma velhinha. Mais uma vez, uma ligeira pausa. – Nenhuma velhinha te deixaria entrar no carro dela. Quando pararam para beber café numa estação de serviço ela teve de tirar a cadeira de rodas do porta-bagagens e de a montar. Ele dirigiu-se sozinho à casa de banho dos deficientes, estacionou ao lado da sanita, inverteu a posição, baixou as calças e içou-se para a sanita. Urinou sentado, agarrado aos grandes suportes cromados para se equilibrar, e tentou não pensar em todos os traseiros cheios de escaras que se tinham sentado onde o seu estava agora pousado. Quando saiu para o parque de estacionamento, a cadeira pisou merda de cão e sujou-lhe a mão direita. No carro, limpou-a a um lenço de papel que ela lhe deu enquanto Kate explicava que não estava a prometer-lhe nada. Foi um longo discurso. Jack ficou com a impressão de que ela passara a viagem toda a ensaiá-lo, na faixa central da autoestrada. O apartamento dela era apenas uma pequena divisão com vista para a água castanha da baía, com uma cama que recolhia num móvel. Uma vez que era ele que tinha lesões na coluna, dormia na cama enquanto ela dormia num colchão insuflável no chão. Durante o dia ela ia para o emprego no ginásio enquanto ele fazia os seus exercícios de fisioterapia e lia as revistas de ciclismo dela. Kate não tinha televisão. À noite, ela treinava na sua bicicleta de estrada e chegava tarde. Ele cozinhava-lhe massa, esticando-se na cadeira de rodas para usar o lava-loiça e o fogão. Duas vezes por semana, ela levava-o à consulta de fisioterapia em Manchester, e todas as manhãs lhe segurava a cabeça e pescoço enquanto ele se deitava no chão e fazia os seus abdominais. Quando ele conseguiu levantar-se da cadeira de rodas pela primeira vez e equilibrar-se sem ajuda, ela estava lá para o ver fazê-

lo, e estava lá para lhe segurar nas mãos e o ajudar a regressar à cadeira quando a dor nas costas se tornou insuportável. Essa época foi cheia de progressos brilhantes seguidos de reveses. No segundo mês ele caminhou do apartamento dela até à loja da esquina, e de regresso, e depois ficou de cama dois dias com espasmos nas costas. Na segunda dessas noites ela enfiou-se na cama com ele e, embora ainda não o beijasse, dormiu com o braço sobre o seu peito e o rosto escondido no pescoço dele. Na manhã seguinte, contudo, não disseram nada e começaram o dia da forma habitual, ambos com o cuidado de desviar os olhos enquanto o outro se vestia. Entre eles, começou a crescer uma felicidade. Pareceu normal quando, no primeiro dia em que ele conseguiu percorrer essa distância, caminhou até ao ginásio onde ela trabalhava. Pareceu natural que ela o beijasse no carro, no caminho para casa. Partilharam a cama e o colchão de ar foi arrumado contra a parede. No primeiro dia pareceu demasiado dramático, ou demasiado definitivo, esvaziá-lo. No dia seguinte Kate chegou tarde e Jack andou pela casa, a olhar para ele, mas uma decisão unilateral parecia presunção da sua parte. No terceiro dia, enquanto Jack dava a sua caminhada à volta do quarteirão, Kate chegou a pôr a mão no pipo do colchão. Já era boa demais para ser verdade, esta coisa que estava a acontecer entre ela e Jack. Não queria agoirá-la. No fim da semana, ambos tinham deixado de ver o colchão. Além disso, era útil para pendurar o equipamento de treino depois de lavado. Ficou encostado à parede durante um mês, a perder o ar lentamente, a mirrar à medida que a ligação entre eles se tornava mais firme, até que começou a tombar tanto que já não servia para estender a roupa. Nessa altura, Kate tratou do assunto sem espalhafato, tendo já esquecido as qualidades talismânicas do colchão. Deitou-o no chão, tirou o pipo e enrolou-o para expulsar quaisquer vestígios de ar. O quarto que ela e Jack partilhavam agora com tanta naturalidade encheu-se do fôlego inseguro com que ela enchera o colchão na noite da chegada dele. O primeiro telefonema de Zoe para Jack aconteceu quatro meses depois, enquanto Kate estava fora, nos Campeonatos Nacionais, e ele numa das longas e lentas viagens de bicicleta que marcavam o início da sua reabilitação para o ciclismo. Estava a levar as coisas com calma, sem se forçar demasiado. O telemóvel tocou quando ia a meio de uma longa subida em Duddon Valley, e ficou grato pela desculpa para parar e ver quem era. Quando viu o número de Zoe, hesitou com o polegar sobre o botão verde. Estava um dia luminoso, com uma brisa fresca, e nuvens distantes a ameaçarem chuva. No ar havia o cheiro de ovelhas e fetos molhados. Ele sentia-se bem.

Estava feliz por estar em cima da bicicleta e a apreciar o cenário. Podia facilmente ter ignorado o telefonema. No entanto, a relação com Zoe parecia muito distante, no tempo e espaço. Não faria mal nenhum falar com ela. – Não acredito que não estás aqui nos Campeonatos Nacionais – disse ela quando Jack atendeu. – Ainda estou a recuperar as forças. – A Kate disse-me. Acabei de a vencer na final. Sou a campeã nacional, caraças! Ainda estou sem fôlego. – O que é que fizeste? Alargaste-lhe as rodas? – Simplesmente passei por ela. Foi fácil. Ela tem estado a montar-te em vez de montar a bicicleta. – Que observação tão reles. – É verdade. Estão a amolecer-se um ao outro. Ela está a puxar-te para baixo, para o nível dela. – Ligaste para te gabares? – Liguei porque tenho saudades tuas. Estava a recuperar o fôlego e a sua voz era agora suave e urgente. Em fundo, a multidão no velódromo estava aos gritos. Jack sentiu uma vaga fria de adrenalina. Afastou o telefone do ouvido por um momento e olhou para o vale. Nos intervalos das sombras das nuvens empurradas pela brisa, manchas douradas de sol deslizavam sobre as colinas baixas e pelos flancos das montanhas altas. Os corvos chamavam dos carvalhos resguardados e os balidos das ovelhas chegavam até ele, provenientes dos rebanhos que pastavam acima da linha de fetos. – A Kate e eu estamos muito bem – disse. – Já devias estar de volta à competição. Ela não é boa para ti. – O que não foi bom para mim, Zoe, foi partir as costas. Ela riu-se. – Que coisa tão previsível de se dizer. Até a tua voz parece tensa. Estás a ficar domesticado. Ele riu-se também. – Estás maluca. Eu amo a Kate, está bem? – Amor, amor, amor. Essa palavra escorre da tua boca como óleo para as correntes. Jack não podia continuar a fingir que estava divertido. – Sei o que sinto. – Sim, mas a Kate? Quer dizer, eu também gosto dela, e é gira, mas tem um hábito terrível de ficar em segundo lugar. Ainda não tinhas reparado nisso?

Ele desligou, furioso, e olhou para o dia estragado. As colinas ainda eram belas, a luz ainda era subtil e suave, mas tudo lhe parecia agora muito distante da ação. Guardou o telemóvel no bolso, montou a bicicleta e fez o resto do trajeto com uma intensidade furiosa. Os seus pulmões ardiam e os músculos doíam, mas o sofrimento sabia-lhe novamente bem. Reencontrara a ligação com o poder dentro de si, e saber que fora Zoe que o chamara novamente para o jogo só intensificava o veneno com que atacou as colinas. Quando chegou ao apartamento de Kate estava esgotado, mas havia nele uma energia que o exercício não conseguira dissipar. Enquanto tomava duche, pensou em Zoe. Treze anos depois, ela ainda conseguia infiltrar-se na cabeça dele só com um olhar. Jack apertou Sophie contra si e tentou concentrar-se na filha enquanto Tom acabava o aquecimento das raparigas e as alinhava para um sprint de um para um. Tom colocou Kate na faixa interior e Zoe na exterior. Ambas encostaram a roda da frente à linha de partida. Olharam uma para a outra. Tom soprou o apito. – Vê isto – sussurrou Jack a Sophie. Começaram muito lentamente. De pé nos pedais, olharam uma para a outra, com os olhos ilegíveis por trás dos visores espelhados. Mediram-se mutuamente e esperaram. Kate adiantou-se um pouco e Zoe moveu-se para a cobrir. Com um equilíbrio extraordinário, movimentos mínimos do guiador e pequenas mudanças na pressão nos pedais, elas manobraram para obter vantagens posicionais infinitesimais. Kate, na faixa de dentro, podia ser direta. A faixa exterior era mais subtil e mais longa, mas Zoe podia correr mais acima na inclinação, pelo que qualquer ataque seria lançado com a ajuda da gravidade. As duas ciclistas aceleraram em graus impercetíveis. Kate adiantou-se, ainda muito devagar, virando a cabeça para trás, atenta a qualquer reação. Zoe deixou-se ficar atrás, preparada para emboscar Kate se a sua atenção vacilasse por uma fração de segundo. Jack sabia que isso não aconteceria. Ele próprio quase não pestanejou. Não se via competição melhor do que esta. Elas faziam-no desde os dezanove anos e conheciam o estilo uma da outra. Cada ciclista conseguia antecipar na perfeição a outra, e ninguém cedia vantagem. Agora Kate e Zoe abrandaram de novo, convergiram e encostaram os ombros uma à outra. Reduziram a velocidade até pararem completamente e ficaram imóveis, ambas relutantes a correr o risco de ceder a mais ínfima vantagem de posição corporal ao virar a cabeça para

observar a outra. Em vez disso, procuraram qualquer alteração no contorno nítido das suas sombras iluminadas pelas luzes fluorescentes, unidas nas tábuas de ácer da pista. Equilibraram-se juntas, atentas a qualquer aceleração denunciadora na respiração da outra. Usando-se uma à outra para equilíbrio, naquele momento não pareciam rivais nem colegas de equipa mas, na intimidade da sua dependência mútua, amantes. Sophie disse: – Elas pararam. Jack apertou-lhe o braço. – Não. Estão a começar. Quando aconteceu, aconteceu de forma incrivelmente rápida. Sem possibilitar qualquer premonição, Kate estremeceu e arrancou. Zoe respondeu, a potência das suas pernas instantaneamente elevada ao máximo. Agora ambas as ciclistas estavam a tomar decisões instantâneas, escolhendo o rumo por instinto, numa reação imediata e irrevogável ao que a outra fizera. Manobravam para a esquerda ou para a direita e nunca podiam voltar atrás. Em poucos segundos, o ar gritava enquanto elas o cortavam. Na segunda volta Zoe fechou a distância e colocou-se na corrente de ar de Kate. As duas ciclistas trabalharam explosivamente, no limite da força humana. Na terceira e última volta Zoe colocou-se ao lado de Kate na reta final e era possível ver o crânio por baixo da pele quando abriu os maxilares para inspirar. As duas ciclistas cruzaram a linha da meta, no esforço máximo, pulmões a explodirem, arremessando as bicicletas para a frente, olhando uma para a outra para ver quem fora mais rápida por uma fração de segundo. Era sempre assim que terminava, quer a audiência fossem três pessoas ou três mil milhões. Kate e Zoe não olhavam para a linha na pista nem para as bandeiras dos juízes nem para os cartazes da multidão, mas uma para a outra. Abrandaram, com as rodas a ribombar no espaço amplo. – Quem ganhou? – perguntou Sophie. Jack olhou para Tom com a pergunta nos olhos. Tom abanou a cabeça. – Companheiro – disse. – Demasiado renhido para se perceber. Balneários, Centro Nacional de Ciclismo, Stuart Street, Manchester

Depois do treino Kate sentia-se cansada e bem. O treino de um para um era sempre um campo de batalha, mas ela aguentara-se. Mostrara pelo menos tanta força como Zoe e não cedera aos seus jogos mentais. E aquela parte ao princípio, com Sophie no cesto da bicicleta – isso fora divertido. Zoe não lhe parecia a ameaça que em tempos fora. Apressou-se a entrar no chuveiro antes que os músculos arrefecessem, vestiu-se calmamente e depois sentou-se em frente do espelho para tratar do cabelo. Zoe já estava vestida. Tirou o pente da mão de Kate e pôs-se atrás dela para a ajudar com os nós. Kate deixou-a fazê-lo, encolhendo-se com a forma brutal como Zoe lidava com o cabelo embaraçado. – O teu cabelo está uma desgraça – disse Zoe. Kate bocejou. – O meu cabelo tem solução. Zoe apanhou a sua inflexão. – Estás a dizer que a minha vida não tem? – Estou apenas a dizer que devias manter-te nas sombras durante algum tempo. – Não é uma opção. – Porquê? – Porque os jornais vão para a gráfica às nove. Só tenho três ou quatro horas para fazer alguma coisa, sabes? A minha agente diz que tenho de lhes dar uma fotografia, hoje. Qualquer coisa que agrade às famílias. – O que vais fazer? Dormir com um Teletubby? Zoe riu-se. Estavam a manter o ambiente quase demasiado leve. Para Kate, conversar com Zoe era muitas vezes como andar em cima de gelo fino com uma quantidade de balões de hélio na mão, quase suficiente para contrabalançar o seu próprio peso. Tinha de pisar cautelosamente a superfície. Era este o tipo de leveza que tinham agora. Não era invulgar, supunha. Era apenas a amizade: esta fé de que podia agarrar em mais balões à medida que a bagagem que transportava se multiplicava. Tinha de continuar a andar; claro que sim. – Então o que vais fazer? – perguntou Kate. – Vou tatuar os anéis olímpicos. Aqui. Operação fotográfica. Zoe indicou o local passando o pente pelo antebraço que não estava ferido, depois continuou a trabalhar no cabelo de Kate. – Esta tarde? – Porque não? Há um salão de tatuagens na esquina. Queres vir e fazer uma também? – Zoe. Tem juízo. Sou eu.

– E depois? Podes ser tu com uma tatuagem. – Esse devia ser o slogan deles. – Não precisam de um slogan. Têm agulhas e tinta e homens meio carecas com rabos de cavalo e luvas de látex e… oooh, é tão sexy, Catherine! Diz que vens comigo! Zoe abraçou-a pelo pescoço e encostou o rosto ao de Kate, com um beicinho para o espelho. Kate sacudiu-a. – E a reunião com o Tom? Zoe endireitou-se. – Não há tempo. Podemos sair pela porta das traseiras. Quer dizer, o que é que o velho pode fazer? Correr atrás de nós? Kate fez uma expressão cética. – A sério. Com os jornais… não devias ficar longe dos radares durante algum tempo, Zo? Era o que eu faria. Kate sentiu o pente parar por um momento e, quando ergueu os olhos, viu a expressão franca de Zoe no espelho. Uma expressão que dizia: Sim, mas isso és tu. Essa expressão dava a entender que Kate não tinha o rosto, não tinha a imaginação, não tinha o carisma necessários para pensar mais alto. Kate viu Zoe tentar desfazer a expressão, tentar transformá-la em algo menos crítico, mas já era tarde demais. Tentou não se importar. Não era que não soubesse que, ao lado de Zoe, era menos misteriosa e menos atraente e menos interessante. Mas uma pessoa habituava-se a estes factos e era fácil ligar cada um deles a algo equivalente e oposto. Por exemplo, ela era uma excelente mãe, era mesmo. Era prestável e paciente com Jack e com Sophie. Era bastante inteligente. Aprendera imenso sobre problemas de sangue e nutrição para o desenvolvimento. Reparava nos sentimentos das outras pessoas. Tentou devolver a Zoe um olhar que não fosse intimidado nem, no extremo oposto, agressivo. Acabou por sair uma expressão ligeiramente estúpida. Céus, por vezes era difícil saber como ser perto de Zoe. Havia algo em Zoe que fazia com que Kate se sentisse sempre uma boa pessoa e uma cobarde, as duas coisas ao mesmo tempo. Quando pensava nas relações de Zoe era por vezes com uma sensação serena de que, graças a Deus, ela não era assim, mas mais frequentemente com uma espécie de fascínio cansado – não por a amiga ser insaciável, mas por ela própria estar grata por tão pouco. Durante imenso tempo,

estivera feliz apenas por Jack ser feliz com ela. Era essa a extensão da sua ambição. Quando descobriu que Zoe andava a telefonar a Jack, logo no início da relação de ambos, não se sentira propriamente ameaçada. Tinha a certeza de que Jack não amava Zoe, e a prova estava no facto de não terem ido além dos telefonemas. Tinha a certeza de que Zoe também não amava Jack e que só andava atrás dele para desestabilizar Kate. O que a desanimou foi perceber que Zoe considerava tudo isto parte da corrida. Acontecera antes de elas serem amigas – ainda não havia um historial de coisas boas entre elas para contrabalançar a mágoa. Fora no início da época baixa. Os Campeonatos Nacionais tinham ficado para trás e Tom ordenara-lhes que fizessem uma pausa de um mês nos treinos, para deixarem os corpos recuperarem de um verão de competição. Kate tentou descansar, mas era aborrecido, estar enfiada no apartamento que ela e Jack arrendavam na zona leste de Manchester. Jack tivera também indicações para relaxar, e deitava-se no sofá com as pernas para cima e os auscultadores nos ouvidos, de olhos vidrados pela inatividade forçada, acenando com a cabeça ao som das músicas populares e do rock indie escocês. Kate tentou esquecer os telefonemas de Zoe mas, de cada vez que o telemóvel de Jack tocava – a mãe estava constantemente a ligar-lhe, e o treinador para se certificar de que ele não estava a treinar – imaginava que era Zoe, o que era provavelmente aquilo que Zoe queria. Lia romances sem grande interesse, ou chegava a meio e atirava os livros contra a parede, irritada por os protagonistas nunca conseguirem decidir-se. Raramente havia grande coisa na vida dos protagonistas que Tom não fosse capaz de resolver decompondo o problema em componentes solucionáveis, ou desmontando calmamente a sua psicologia, ou simplesmente ordenando-lhes que se aguentassem. Tinha pena de Anna Karenina e de Clarissa Dalloway e de Holly Golightly, por não poderem simplesmente telefonar ao seu treinador, e ficava contente por ela própria nunca poder ficar tão emaranhada nos nós da vida. Não acontecia nada, dia após dia. O céu estava cinzento e as estradas pretas com a chuva. O rádio, com uma banda sonora de sinos natalícios, já se oferecia para consolidar todas as dívidas de cartão de crédito numa só prestação mensal, mais fácil de lidar. Kate sentava-se à janela, macambúzia, a ver os carros arrastarem-se entre a geada de novembro. A época baixa era um pressentimento de morte. Não havia ação na pista e a imprensa desportiva perdia completamente o interesse neles. A desconexão era tão súbita e absoluta como se alguém tivesse desligado um interruptor. Durante todo o verão a imprensa lutava por fotografias e mexericos e

entrevistas, e depois silenciavam-se e viviam até à primavera numa obscuridade tão completa que apenas eles próprios sabiam que ainda estavam vivos. Habitavam a cidade como fantasmas, vagueando sem destino. Tinham estado tão ocupados a treinar e a competir e a dar entrevistas durante todo o ano que não tinham amigos civis com quem passar o tempo e, ao mesmo tempo, não queriam estar com os seus amigos do desporto. Por vezes havia encontros na época baixa, mas eram situações desconfortáveis em que os ciclistas se juntavam para fazer piadas sobre ciclismo. Eram como festas do trabalho onde todos os petiscos tinham sido otimizados para melhor fornecimento de proteínas e ninguém se embebedava nem tirava fotocópias ao próprio traseiro. Kate andava a trepar paredes no apartamento. Uma tarde, depois de quinze dias de repouso, desistiu, enfiou um impermeável e saiu com a bicicleta de treino no meio de um temporal. Subiu às colinas de Peak District e, a cada volta dos pedais, sentia-se melhor. A chuva chicoteava-lhe o rosto e abriu a boca, para saborear o seu gosto bravio. Passou por Glossop e pelo Snake Pass, sempre a subir a inclinação íngreme e longa, contra o vento, saboreando a sensação de ardor nas pernas. A estrada molhada subia entre os arbustos e os pinheiros baixos – ela conhecia cada curva de cor. Era a única grande subida do circuito normal que todos os ciclistas faziam uma vez por semana no treino: sair de Manchester para leste, dar uma volta ao pico e regressar a casa. Kate entrou no ritmo da subida, de pé em cima dos pedais quando a estrada se tornava mais íngreme, sentada no selim quando a inclinação diminuía um pouco. O cume surgiu a cerca de duzentos metros, e viu outra ciclista a alcançá-lo vinda da direção oposta. Estava mais vento no cume, sem a proteção da colina, e a outra ciclista estava a ser empurrada pelo vento enquanto começava a descida, demasiado depressa na estrada molhada, com o impermeável amarelo a agitar-se nas rajadas de vento, sem capacete, de olhos semicerrados por causa da chuva. – Zoe! – gritou Kate quando a outra ciclista passou por ela a toda a velocidade. Parou, ofegante, e viu Zoe estacar com uma derrapagem cinquenta metros mais abaixo. Zoe virou a bicicleta na estrada e voltou a subir ao encontro dela, com um sorriso. Kate quase se arrependeu de a ter chamado. Talvez fosse estúpida por tentar ser amiga dela. Não tinha ainda perdoado Zoe. No entanto, a adrenalina da subida tornara-a ousada e talvez as duas semanas de isolamento a fizessem ficar contente por ver alguém. Kate retribuiu o sorriso a Zoe quando ela se aproximou. Zoe gritou, por cima do barulho do vento:

– O que estás a fazer aqui em cima? Kate ainda estava ofegante. – Duas semanas. Sentada em casa. A ficar maluca. Tu? Zoe riu-se. – Tenho vindo todos os dias. Não digas ao Tom. Sou um submarino nuclear. Se me pararem as turbinas, entro em fusão e levo toda a civilização comigo. Kate sorriu de novo. – Vais para casa? Zoe acenou afirmativamente. – A menos que queiras companhia? Kate fungou e limpou a chuva da cara com as costas da luva. Baixou os olhos para o computador de bordo instalado no guiador. – Vou fazer mais uns quarenta e cinco, cinquenta quilómetros – disse. Zoe olhou para o céu, para cruzar esta informação com a força do vento e o volume das nuvens de chuva. – Com uma paragem para um belo café quentinho? – perguntou. Kate hesitou e depois riu-se. – Não precisas de perguntar duas vezes. Pedalaram juntas até ao cimo e desceram os seis quilómetros até à estalagem de Snake Pass. Deixaram as bicicletas no exterior e sentaram-se ao lado da lareira. Ao princípio, não disseram nada. Puseram os ténis a secar, despiram os impermeáveis e olharam para as brasas enquanto o vapor se erguia dos seus corpos. Zoe segurou o café com as duas mãos para as aquecer e olhou para Kate por cima da beira da caneca. – O que foi? – perguntou Kate, por fim. – Desculpa – disse Zoe. – Peço desculpa pelos telefonemas. Kate lançou-lhe um olhar cortante. – Vais fazer disso um hábito? Zoe baixou os olhos. – Não. Acabou-se. – Então está bem. Kate descalçou as luvas e colocou-as sobre a grade da lareira. Estas crepitaram enquanto a água fervia e se evaporava delas. – Tens a certeza? – perguntou Zoe. – Estou perdoada? Kate sorriu e sentiu um peso sair-lhe de cima. – Sim.

Zoe levantou a caneca. – Brindamos a isso? Kate sorriu do cabelo desgrenhado de Zoe e da sua expressão esperançosa. Pela primeira vez, apercebeu-se de que Zoe podia não ser má de todo. – Com café não – disse. – Vamos beber um copo de vinho. Zoe pareceu ficar em pânico. – Vinho? Kate acenou. – Os Franceses fazem-no, a partir das uvas. É uma bebida, e pode ser branco ou tinto. Zoe franziu a testa e saboreou a palavra. – Vinho… – Oh, vá lá – disse Kate. – É a época baixa. Vive um bocadinho. Dirigiu-se ao bar antes que a adrenalina da subida a abandonasse e pediu dois copos de Pinot Grigio. Não bebia num pub desde o seu décimo sexto aniversário e ficou surpreendida com o tamanho dos copos que o empregado lhe deu – cada um tinha quase um quarto de litro. Enfiou a mão no bolso do colete para tirar dinheiro, pagou com uma nota húmida de vinte libras e ficou surpreendida com o pouco troco que recebeu. Voltou para junto da lareira, deu um copo a Zoe e sentou-se. – À nossa – disse. – À nossa. Tocaram com os copos um no outro. Zoe cheirou o vinho, mirou-o com ceticismo e depois esvaziou o copo de uma só vez. Levou as mãos à boca e baloiçou-se na cadeira. – Blargh. Céus. Enfiou a mão no bolso do impermeável e tirou um pacotinho de gel energético cafeínico. Rasgou a saqueta, chupou o gel, engoliu e fez uma careta. – Credo – disse. – Sabem melhor quando estamos na bicicleta, não é? Kate riu-se. – A maioria das pessoas come aperitivos nos bares. – A maioria das pessoas não acabou de pedalar cem quilómetros com aquele vento – contrapôs Zoe. – Era capaz de comer o bar todo. Levantou-se e foi à procura de comida. Kate ficou sentada a olhar para as chamas, a sentir o calor devolver a vida aos dedos das mãos e dos pés, a beberricar o vinho e a apreciar a euforia pouco habitual. Eram as únicas pessoas no pub e, lá fora, a tempestade estava a piorar. A água escorria pelos vidros das

janelas e o vento lançava rajadas violentas que abafavam o som de Robbie Williams na jukebox. Zoe voltou do bar com um tabuleiro de sanduíches e mais dois copos de vinho. Kate arregalou os olhos. – O que foi? – perguntou Zoe. – Pedi-lhe que usasse pão integral. – Sabes o que quero dizer. Zoe indicou a janela com a cabeça. – Sim, mas quem é que quer voltar a sair agora? Está água gelada a cair do céu. Nunca devia ter-me mudado para o Norte. Kate soltou uma risada desdenhosa. – Isto é o Sul, querida. Devias experimentar lá em cima, na região dos lagos. A nossa chuva vem diretamente do Ártico. – Eu sou do Surrey – disse Zoe, beberricando o vinho com o dedo mindinho esticado. – A nossa chuva vem em garrafas com rótulos a dizer Evian. Kate riu-se e esvaziou o primeiro copo de vinho para a acompanhar. Zoe olhou para ela. – Não é uma corrida, sabes? Algo nos olhos de Zoe pareceu a Kate um desafio, e bebeu o segundo copo de vinho de um trago, sem pensar duas vezes. Zoe imitou-a e pousaram os copos ao mesmo tempo. – Photo-finish – disse Zoe. – A multidão enlouquece. – És capaz de ter vencido por pouco – disse Kate, pensando o oposto. Ficaram sentadas, juntas, a olhar para o fogo. Passado algum tempo, Zoe perguntou: – Como foi? – Como foi o quê? – Crescer na região dos lagos. – Sei lá. Húmido. – Tens irmãos? Kate abanou a cabeça. – Eu também não – disse Zoe. – Filha única. Eras feliz? Kate pensou nisso. Não era uma pergunta com resposta fácil, e assustava-a um bocadinho o facto de Zoe a ter feito. – Porquê? – perguntou, por fim. Zoe levantou a mão. – Desculpa. Eu e a minha grande boca. – Não faz mal.

A primeira euforia do vinho começou a dissipar-se. Com o calor do fogo a criar um campo gravitacional em expansão e o vento lá fora a uivar, começou a arrepender-se de ter bebido o segundo copo. Devia pensar em voltar para casa, para Jack. Imaginou-o deitado no sofá. Imaginou-se a entrar em casa, vinda da chuva, ensopada até aos ossos, e deixá-lo aquecê-la. Ele abraçá-la-ia e ajudá-laia a despir o equipamento e… enfim. Era bom ter alguém em casa à sua espera. Zoe estava a comer uma sanduíche. Suspirou, pousou a côdea e apontou para os copos vazios. – À maior de três? – perguntou. Kate sorriu. – Devíamos voltar. Estará escuro dentro de poucas horas. – Podíamos chamar um táxi. Púnhamos as bicicletas atrás. Kate hesitou e pensou em Jack. – Devia mesmo ir andando. A frase soou demasiado formal e uma ínfima centelha de desespero nos olhos de Zoe fez com que Kate desejasse ter encontrado uma forma mais calorosa de o dizer. – Claro – respondeu Zoe rapidamente. – Estava só a brincar. – Oh, está bem – disse Kate, baixando os olhos com uma pequena risada autodepreciativa que esperava que fosse suficiente para dar a entender que ela é que fizera figura de idiota. Zoe começou a pegar nas luvas e impermeável. – Vais para casa? – perguntou. – Sim – disse Kate. – E tu? – Oh, vou para casa do meu namorado. – Ótimo – disse Kate, a pensar na viagem para casa. – Fica na cidade? – Não – disse Zoe, apontando para sul. – Para aqueles lados. Lá fora, depois do calor da lareira, o vento e a chuva pareciam ainda mais fortes. Zoe virou à esquerda e Kate à direita e só meia hora depois, enquanto descia a colina e as primeiras luzes de Glossop pintavam a chuva de vermelho com o brilho do sódio, é que Kate se apercebeu de que não havia absolutamente nada na direção que Zoe indicara – nada num raio de oitenta quilómetros, exceto o pico árido e batido pela chuva, com as colinas molhadas e negras contra o disco cinzento do sol poente. Perguntou-se se existiria mesmo algum namorado, ou se Zoe ainda andava na rua com este tempo, a percorrer o arco solitário entre o calor do álcool e as garras da noite que se aproximava.

Quanto mais gostava de Zoe, mais difícil era perceber como ela a fazia sentirse. Nos balneários, Kate afastou os olhos dos de Zoe no espelho enquanto ela lhe penteava o cabelo. Olhou para si própria. Detestava estes espelhos, com as suas duras luzes de halogéneo: não mostravam nada a não ser a verdade. O seu rosto envelhecera nos últimos meses, isso era inegável. Mantivera o aspeto dos vinte anos muito além do prazo de validade e agora a vida escolhera este ano, de todos os anos, para cobrar o empréstimo. O espelho não admitia a possibilidade de uma época em que ela fora radiante, em que Jack tivera realmente dificuldade em escolher entre Zoe e ela. Agora parecia mesmo uma mãe e Zoe ainda parecia uma modelo. Tentou não sentir ressentimento. Fora a sua escolha, afinal de contas, ser mãe. Ninguém a obrigara a isso. E aqui estava ela, com trinta e dois anos e aspeto disso, e aqui estava Zoe, a perguntar-lhe se queria ir com ela fazer uma tatuagem. O tempo arranhou-lhe a nuca nos golpes secos e insistentes do pente de Zoe. Zoe observou-a no espelho, à espera da sua resposta com aquela mesma expressão de desespero quase perfeitamente escondido que mostrara junto da lareira naquele dia chuvoso de treino, o primeiro dia em que se tinham tornado amigas. O silêncio instalou-se e o momento incipiente persistiu. – Sim, que se lixe, Zo – disse Kate, de súbito. – Eu vou contigo ao salão de tatuagens. Estúdio de tatuagens Made in Manchester, Newton Street, Manchester Zoe ligou à agente e a agente despachou um fotógrafo para o estúdio de tatuagens. Ele chegou quarenta minutos depois, de motorizada. Era jovem e estava convencido dos seus encantos. Zoe precisava de boas fotos, por isso sorriu como se concordasse. Kate sorriu também e o fotógrafo tirou as fotografias enquanto os tatuadores trabalhavam. Zoe ia tatuar no antebraço um triplo X, por baixo de anéis olímpicos do tamanho de moedas de cinquenta cêntimos. Na cadeira ao lado, Kate estava a tatuar os anéis mais pequenos, do tamanho de moedas de cinco cêntimos, exatamente onde Zoe adivinhara que ela os colocaria: na omoplata, bem acima, onde poderia escondê-los com uma T-shirt.

Depois de as fotografias estarem despachadas, Zoe assinou a camisola do fotógrafo com uma caneta de feltro. Passou-a a Kate para esta poder assinar também, mas o fotógrafo já tinha dado meia-volta para sair. Zoe viu uma expressão momentânea de mágoa passar pelo rosto da amiga e depois a sua recuperação rápida. Teve pena de Kate. Sentiu algo fazer pressão no seu peito e deixou o sentimento crescer por um momento. Era reconfortante saber que sentia alguma coisa. Não era uma pessoa sem coração. Um momento depois, Kate pareceu ter ultrapassado o momento. Ligou para Jack e riu-se enquanto admitia o que estavam a fazer. – Estamos ao virar da esquina! Viemos fazer tatuagens! Sussurrou a palavra, num tom de excitação e espanto pela sua própria ousadia. Por vezes, Zoe perguntava-se se Kate alguma vez cresceria. Ouviu a amiga a falar ao telefone. Havia na sua voz uma hesitação – uma timidez, quase – na forma como dava a notícia de uma pequena tatuagem ao homem com quem era casada há oito anos. A Jack, por amor de Deus. Como se ele tivesse algum direito de a julgar. Suspirou. A agulha zumbiu no seu braço, magoando quando se aproximava do pulso, mas nunca tanto como, digamos, um sprint de bicicleta. Não sabia o que fazer por Kate. Lá porque fora Zoe que roubara a confiança de Kate, não significava que soubesse como a devolver. Era mais fácil acreditar que Kate não sofrera demasiado; que ela estava inconsciente de como tudo fora injusto para ela. Era mais fácil esperar que Kate não se apercebesse de como estava a começar a parecer cansada ao lado de Zoe, que não reparasse em como o fardo de Sophie a estava realmente a abrandar. Era tudo uma chatice. Se Kate compreendesse realmente o que lhe acontecera – o que ainda lhe estava a acontecer – então o facto de ela não estar a chorar por causa disso dava vontade de chorar a Zoe. Ali estava: um ardor nos olhos. Zoe cartografou-o e ligou-o aos outros pontos de referência; as pontadas e apertos e faltas de ar que sentia quando se permitia pensar demasiado em Kate. Parecia haver um padrão constante dentro dela – uma constelação de emoções desligadas que, quando vistas na sua totalidade, pareciam assumir a forma de alguém que se preocupava. Por outro lado, uma pessoa podia unir as estrelas como quisesse. Algumas pessoas viam uma ursa, outras um arado. Zoe desconfiava da ideia de que, a algum nível, podia ser boa pessoa. Prestou atenção à conversa de Kate com Jack, que estava a azedar. – O que foi? – estava Kate a dizer. – Oh, não sejas assim. É só pela piada.

Zoe viu a sua expressão ensombrar-se. – Só uma hora, mais ou menos. Podem esperar uma hora, não podem? Está bem, Céus! Diz ao Tom que pedimos desculpa. Não devíamos ter saído sem dizer nada. Outro silêncio. – É só a merda de uma tatuagem, Jack. Os anéis olímpicos. Não estou propriamente a tatuar a cara do Tony Blair. Zoe viu a confusão no rosto de Kate e perguntou-se o que estaria Jack a dizer. Não era coisa dele armar-se em estúpido por uma coisa destas. Zoe conhecia Jack, conhecia-o bem. No outono de 2002, tinham todos vinte e dois anos de idade. Jack andava a ganhar corridas importantes e Zoe ganhava tudo em que participava. Perseguição, sprints, contrarrelógios. Todas as outras raparigas competiam pelo segundo lugar, nessa época. Zoe competia tão frequentemente que mal precisava de treinar. Foi assim durante todo o verão, e Zoe habituou-se a ver Kate no segundo lugar do pódio, a olhá-la ligeiramente de cima. Agora que eram amigas, era fácil fazer piadas a esse respeito. Para a próxima és tu, dizia Zoe de cada vez, e riam-se enquanto as cerimónias das medalhas se desenrolavam à volta delas. Só quando perdeu é que Zoe se apercebeu de que não tinha graça nenhuma. No outono, uma semana antes dos Campeonatos Nacionais em Cardiff, Kate venceu-a numa corrida de sprint noturna no Velódromo de Manchester, transmitida no horário nobre pela televisão nacional. Zoe não conseguiu aguentar. Tom teve de a obrigar a subir ao pódio para receber a sua medalha de prata. Teve de ficar no segundo degrau e de erguer os olhos para o sorriso radiante de Kate e para as suas maçãs do rosto delicadas. Ficou com uma dor no pescoço que durou uma semana. Os Nacionais foram muito importantes, nesse ano. O ciclismo começava a ter audiências e as multidões eram uma excitação. Todas as finais eram transmitidas ao vivo pela ITV. Jack venceu o sprint. Zoe e Kate passaram as suas eliminatórias e a seguir iam correr uma contra a outra. Enquanto Kate via Jack subir ao pódio, Zoe procurou o telemóvel no saco do equipamento e enviou uma mensagem de texto a si própria. Mais tarde, enquanto despiam o fato de aquecimento ao lado da pista e se preparavam para correr, fingiu ter acabado de a receber. Susteve a respiração e tentou parecer atrapalhada. – Oh… Kate pousou-lhe a mão no ombro. – O que foi?

Zoe abanou a cabeça. – Nada. Desculpa. Pegou no capacete e nos ténis e dirigiu-se à partida, esquecendo-se de levar o telemóvel. Bastou isso. Na linha de partida, Kate estava desfeita. A final de sprint era à melhor de três e Zoe não precisou da terceira corrida. No pódio, no degrau da medalha de prata, Kate não conseguia parar de chorar. Zoe sentiu-se pior do que julgara. No seu quarto, no hotel onde todos estavam instalados, passou a tarde sentada na cama, a olhar para a sua medalha de ouro de campeã nacional de sprint e a desejar poder devolvê-la. Ao final da tarde, Jack bateu à porta. Estava a tremer. Não conseguia falar. Zoe tinha os olhos vermelhos de chorar. – Ela ainda cá está? Jack abanou a cabeça. – Foi para casa. – Não foste com ela? – Ela não me deixou. Preciso que lhe telefones e lhe digas que foste tu que mandaste a mensagem. – Ela não acreditou em ti? Jack abanou a cabeça. Zoe gesticulou, impotente. – Então porque há de acreditar em mim? Jack fitou-a durante um longo momento e Zoe viu o desespero no seu rosto quando se apercebeu de que ela tinha razão. – Porque é que és assim? – perguntou ele, por fim. Zoe recomeçou a chorar e não conseguiu parar. Não lhe pediu que a consolasse, e ele não se ofereceu para o fazer. Saíram para uma caminhada junto ao porto. Ela pediu desculpa; garantiu que não voltaria a acontecer. Estava um dia frio e cinzento, com as ondas a rebentarem na areia. O cabelo dela estava nessa altura a crescer e esvoaçou ao vento. As gaivotas soavam como anjos que tinham perdido o emprego. O ar sabia a sal. Ela atirou a medalha de campeã nacional para o porto. Não caiu na água. Ficou presa a um pedaço de corda acrílica azul, pendurada pela fita, o ouro a reluzir logo abaixo da superfície cinzenta. Observaram-na durante muito tempo mas não se afundou. Zoe estava de volta a Manchester doze horas depois e começou a treinar para Atenas quinze minutos depois. Com os Jogos a menos de dois anos, o trabalho tinha uma nova intensidade. Cada metro que pedalava na pista era um metro mais

perto da glória. A sensação de destino causava-lhe um formigueiro na pele, mas a sua mente estava inquieta e demorou duas semanas a perceber porquê. Compreendeu que não conseguiria concentrar-se inteiramente nos treinos enquanto não pedisse desculpa e não resolvesse as coisas com Kate. Era uma sensação nova para ela, esta noção de que o seu próprio bem-estar estava de alguma forma ligado ao bem-estar de outra pessoa. Um obstáculo inesperado. À medida que a sensação se intensificava, uma fraqueza cresceu no seu corpo em proporção direta, até mal conseguir levantar um peso do tapete. A sua inquietação aumentou e foi sentindo cada vez mais ressentimento de Kate – na verdade, quase começou a odiá-la pelo facto de gostar demasiado dela. Convidou-a para almoçar, sem ter a mínima intenção de dizer fosse o que fosse sobre si própria. Planeara apenas fazer qualquer coisa simpática por Kate e pedir desculpa, mas depois acontecera e ela contara-lhe sobre a morte de Adam e dera por si a chorar no meio do The Lincoln – a chorar a sério, com as lágrimas a deslizarem-lhe pelas faces – enquanto Kate a abraçava e o pianista tocava o tema de Os Três Duques em affrettando, cada vez mais depressa quando se apercebeu de que não estava a conseguir animá-la. Depois disso, treinou com Kate todos os dias. As suas forças regressaram de imediato. Ficou espantada por Kate conseguir perdoar-lhe o que acontecera em Cardiff. À medida que o inverno avançava, Kate perguntou-lhe várias vezes se não achava melhor ir falar com um psicólogo. Acabou por concordar, mais para provar que estava arrependida daquilo que fizera do que por achar que podia ajudar. Comprometeu-se a ir uma vez por semana. Kate ia com ela até às sessões e deixava-a à porta com um sorriso e um aperto solidário no braço. Zoe sentavase numa cadeira que não era propositadamente um sofá enquanto o psicólogo fazia perguntas curtas e cheias de segundas intenções e depois se recostava na sua cadeira, cuidadosamente escolhida para que os olhos dele ficassem mais baixos do que os dela. Ele transformava a sala num vácuo silencioso que ela devia preencher com memórias. Como se essas coisas pudessem ser libertadas em segurança. Como se já tivessem servido o seu propósito, como as fases gastas de um foguetão, e pudessem cair silenciosamente de novo sobre a Terra. Não punha a hipótese de as suas memórias ainda lhe fazerem falta; de ainda terem combustível para gastar; de que libertá-las agora seria reduzir as suas hipóteses de fuga. Quanto mais falava sobre Adam, mais sentia a força da gravidade a puxá-la. Falar deixava-a vazia e fraca, embora o psicólogo insistisse que estava a fazerlhe bem. No fim de cada sessão, unia as pontas dos dedos e encostava-as ao lábio

inferior enquanto fazia um resumo e pedia humildemente a opinião dela sobre o mérito do seu sumário. Zoe deu por si a concordar que tinha um problema com a raiva, que sofria de uma incapacidade de aceitar as derrotas ocasionais que eram inevitáveis e uma parte saudável da vida. No entanto, ouvir-se admitir que tinha um problema de raiva só a deixava mais furiosa. Fazia-a sentir-se derrotada, admitir que não sabia lidar com a derrota. Depois de cada sessão, Kate encontrava-se com ela à porta da clínica e iam beber um café e Zoe fazia questão de se rir e de pedir mais licor de avelã no café e de admitir que realmente se sentia muito melhor. Os seus resultados nos treinos foram prejudicados. Quando se colocava lado a lado com Kate para os sprints, descobriu que já não conseguia convocar a velha fúria dentro de si e concentrá-la nos músculos. Em vez de raiva, havia uma dor surda, tão gelada e cinzenta como o mar em novembro, e estava vencida antes mesmo de o apito soar. Nos dias em que via Kate adiantar-se mais a cada volta, o seu maior medo era que o psicólogo a conseguisse curar. Tom fazia-a correr contra Kate todas as semanas e, quando deixou completamente de vencer, deixou de ir ao psicólogo. Disse a Kate que tinha ultrapassado a crise, e Kate ficou feliz por ela. Na sessão seguinte, no treino, venceu Kate pela primeira vez num mês. Durante duas semanas, ouviu as mensagens de voz deixadas pelo psicólogo, sugerindo em tom paciente que ela voltasse à terapia. Passado algum tempo, ele deixou de ligar. As coisas intensificaram-se entre Kate e Jack. Zoe tentou ficar feliz enquanto Kate lhe contava os seus planos – que iam comprar uma casa juntos, talvez pensar em casar e ter filhos. Kate começou a convidá-la para sua casa depois do treino e Zoe habituou-se a conversar com os dois enquanto lanchavam. Ao princípio foi estranho, estar com Jack, mas, à medida que se habituou, Zoe conseguiu descontrair ao pé dele, ao ponto em que ela e Kate conseguiam fazer turnos a troçar dele por causa dos seus gostos musicais. Por fim, chegou a manhã em que os três estavam a rir à volta da mesa da cozinha, Jack recostado e Kate a mexer o chá e Zoe a imitar o sotaque de Tom, e Zoe pensou com os seus botões: é isto. A minha vida finalmente começou e estes são os meus amigos. Então, no final de março, Kate e Jack tiveram uma discussão. Zoe não soube por Kate. Reparou apenas numa nova frieza nas conversas durante os treinos e numa interrupção inesperada dos convites para ir a casa de Kate e Jack depois dos treinos. Kate arranjou desculpas, dizendo que estava cansada ou que tinha outros compromissos, até que chegou ao ponto em que praticamente não se falavam fora da pista. Ao princípio, Zoe ficou preocupada, depois confusa,

depois de coração partido. Todas as mensagens que deixava ficavam sem resposta. Kate era a sua primeira amiga – a sua única amiga – e perdê-la era desorientante. Pela primeira vez na sua vida, Zoe tinha dificuldade em se levantar de manhã. Ficava sentada na beira da cama, com a cabeça nas mãos, sentindo-se vazia. Por fim, encontrou Jack no velódromo e perguntou-lhe o que se passava. Ele disse-lhe que ele e Kate se tinham separado. Estavam a conversar, Zoe viera à conversa e ele cometera o erro – erro fora a palavra usada por ele – de admitir o que sentira por Zoe ao princípio. Tinham discutido – uma discussão estúpida, já que era tudo passado. Não era estúpido? Não era triste discutir por causa de água que há muito tinha passado sob uma ponte tão distante? Zoe deu por si a concordar que sim, fora uma discussão muito triste, por absolutamente nada, e depois voltara para o apartamento e passara metade da noite acordada a pensar neles. Uma semana depois, Jack viajou sozinho para o campo de treinos do Ciclismo Britânico na Gran Canaria, um dia antes de Kate. Zoe já lá estava. À noite, já tarde, Zoe bateu à porta dele. Disseram um ao outro que não fazia mal, mas fazia. Kate estava a mil quilómetros dali mas, quanto mais tentavam perder-se um no outro, mais a presença dela crescia no quarto. Zoe sentiu-a – aquela primeira sensação de desconforto, que cresceu e se transformou num dilacerar inegável no seu coração. Nua na cama, com Jack, após a euforia das primeiras horas juntos, viu nos olhos dele que estava a sentir o mesmo. – Desculpa – disse ele. Ela abanou a cabeça. – Não faz mal. Vou-me embora. Ele segurou-a. – Não tens de ir. Fica e vamos dormir, está bem? Ambos fingiram dormir, deitados de costas um para o outro, a olhar para as paredes, até que uma luz pálida começou a filtrar-se entre as persianas. Zoe deixou-o ali deitado, pegou rapidamente nas suas coisas e saiu em bicos de pés para permitir a ambos a dignidade de saberem que, se não fosse ele estar a dormir, um deles teria dito palavras de despedida que seriam leves, e sábias, e resolveriam pelo melhor toda esta situação horrível. Era importante deixar espaço para a ideia de que essas palavras estavam disponíveis para serem pronunciadas, precisando apenas de serem colhidas dos ramos baixos da madrugada. Desceu do hotel para a praia, deixou as roupas nas dunas e entrou no Atlântico

enquanto o sol se erguia entre as ondas. Três pelicanos em formação voaram baixo sobre a água, a sua silhueta recortada contra a luz, a deslizar sem qualquer som. O horizonte era jovem e suave. Com os pés pousados no fundo, virou-se para o mar e lavou-se da noite. A água era suave e a brisa subtil. Levantou os pés e nadou para longe da margem com braçadas fluidas. Para lá da linha da rebentação, onde o fundo do mar adquiria subitamente um azul profundo, o frio sem fundo envolveu-a. O seu peito contraiu-se e susteve a respiração. A brisa fresca, aqui, soprava a crista das ondas em lençóis salgados e transparentes que a esbofeteavam. Teve de virar a cara contra o vento e de flutuar de costas até recuperar o fôlego. Era a primeira vez que olhava para trás. Baixou e subiu na ondulação e, na parte mais baixa entre as ondas, sentiu-se completamente sozinha no seio da água cintilante, e nos picos viu que a praia estava muito mais longe do que julgara. O hotel, e Jack, e os treinos, e as corridas, eram um bloco de betão baixo no cimo das dunas distantes. Aqui, havia apenas ela. A sua perna roçou em algo grande e pesado. Agitou as pernas, aterrorizada, pronta para lutar, mas a coisa flutuou até à superfície. Era uma secção de um barco de madeira. Ficou a boiar ao lado dela, enegrecido pelo tempo e saturado de água, coberto de lapas brancas por baixo. Quando deu uma braçada para se afastar, a madeira seguiu-a, languidamente, sugada pelos redemoinhos causados pelo seu corpo. Fez um esforço para manter a calma. Flutuou de costas, com os membros esticados como as pontas de uma estrela, a olhar para a cúpula azulacinzentada da madrugada. Ali, com o corpo branco gelado suspenso no oceano e ainda a vibrar com a memória do corpo de Jack, sentiu o terror de não ter ninguém. Era uma sensação tão vasta e fria e selvagem como o mar. * No salão de tatuagens, Kate deixou cair o telemóvel no chão e este desintegrouse, bateria para um lado e plástico para o outro. O som interrompeu os pensamentos de Zoe e ela ergueu os olhos. Kate estava a olhar para ela. – O que foi? – perguntou. Kate tinha as mãos a tremer. – O Tom vem a caminho. Tem notícias para nós. Renault Scénic cinzento-metalizado

A mamã tinha um penso branco na omoplata do ombro direito. Sophie conseguia ver o canto do adesivo por cima da gola da T-shirt amarela. Olhou para ele, da sua cadeirinha no banco de trás, enquanto o papá conduzia no regresso a casa. Tentou perceber o que significaria. – Mamã – disse –, o que é isso nas tuas costas? – Não é nada, Sophie. – Caíste? O papá disse: – Não é nada, está bem? Usou aquela voz que te fazia querer fechar dentro de ti própria, como uma anémona numa poça entre as rochas quando lhe tocamos com o dedo. Sophie fechou a boca. A mamã e o papá estavam a falar no tom de voz baixo que os adultos usavam quando não queriam que ouvisses. Os adultos pensavam que os teus ouvidos eram piores do que os deles, mas na verdade eram melhores. Em termos de audição, a ordem era a seguinte, de cima para baixo: Jedi, morcegos, corujas, raposas, cães, ratos, adultos. – O que é que te passou pela cabeça, afinal? – estava o papá a dizer. – Não me chateies. Achas que isto já não é suficientemente mau? – Estou apenas a dizer… o que é que pensaste? – Não sei, está bem? Tenho de saber sempre, é? – O quê? É essa a tua pergunta? Se envolve a pele que está permanentemente ligada a ti, não seria razoável ter a certeza? A mamã disse, em voz triste: – A pele é minha. Sophie sentiu o estômago apertado. Era cancro. Era isso que se passava. Ela tinha cancro da pele nas costas. Era por isso que tinha um penso. Sophie sabia tudo sobre cancro, e a mamã tinha um na pele e fora operada. Era por isso que desaparecera depois do treino, porque os adultos tentavam sempre fazer segredo do cancro e dessas coisas. Mas, em termos de capacidade para guardar segredos, a ordem era a seguinte, de cima para baixo: Jedi, raposas, adultos. A mamã tinha feito uma operação e correra mal e agora estava tudo estragado. O papá estava a dizer: – Mas os anéis olímpicos… quer dizer, não devias ter lá chegado primeiro? – Pensávamos que já lá estávamos, não era? Somos a número um e a número

dois. Não há mais ninguém sequer remotamente perto. E agora acontece isto. E, como se não fosse suficientemente mau, agora tenho esta… esta merda no ombro. Sophie observou-os pelo espelho retrovisor e viu a mamã torcer o cinto de segurança entre as mãos. O papá olhou para ela e estendeu a mão para lhe tocar no joelho. Ela olhou para ele e a tristeza do seu rosto suavizou-se ligeiramente. Sophie sentiu-se imediatamente melhor, também. Era como se o joelho da mamã fosse o botão de OK e o papá o tivesse pressionado. – Eu sei – disse o papá. – Desculpa. – Mamã? – disse Sophie. A sua voz era tão frágil que a mamã não a ouviu. Tentou de novo, enchendo os pulmões com um assobio e forçando o som a passar pelo nó na sua garganta. – Mamã? A mamã virou-se para olhar para ela e Sophie estendeu a mão, entre os dois bancos, para lhe tocar. – Está tudo bem – disse Sophie. – Na verdade, não é tão mau como pensas. – Deves ter razão, querida. – Às vezes sentimo-nos mesmo doentes, mas se fizermos a quimioterapia toda melhoramos. Tu vais ficar melhor. Olhou firmemente para a mamã, acenando para que ela visse como estava segura do que dizia. Uma expressão de confusão passou pelo rosto da mamã. – Desculpa? – disse ela. – Essa coisa nas tuas costas – disse Sophie. – O cancro. A mamã fitou-a durante muito tempo e Sophie viu uma expressão estranha nos seus olhos que não compreendeu. Engoliu em seco. Não devia ter dito cancro. Ela estava habituada, mas as pessoas novas demoravam muito tempo. No hospital, havia muitas pessoas que não conseguiam dizer a palavra, especialmente os crescidos. As mulheres diziam Tenho um tumor, o que fazia com que parecesse suficientemente pequeno para segurar, mas não tão pequeno que escorregasse entre os dedos. Os homens diziam Estou a lutar contra o grande C, o que era melhor para eles porque podiam pensar num C enorme, como os dos posters do alfabeto, a atacá-los como um caranguejo, e era mais fácil para eles imaginar como lutariam contra algo assim do que contra um C mais pequeno e suave, como uma célula. – Não faz mal, mamã – disse. – O doutor Hewitt diz que na verdade ficamos mais fortes se o tratarmos pelo nome verdadeiro. A mamã tinha os olhos cheios de lágrimas. – Oh, querida, desculpa. Não é cancro. É apenas uma tatuagem parva.

O papá estacionou na berma da estrada e ambos saíram e voltaram a entrar para o banco de trás. Soltaram-lhe o cinto de segurança e abraçaram-na com força e os três ficaram ali sentados enquanto o crepúsculo caía e os carros do tráfego do final do dia passavam, com os faróis a iluminarem a chuva. – Aconteça o que acontecer – disse o papá –, não é nada em comparação com o orgulho que temos de ti. – O quê? – disse Sophie. – Mas eu não fiz nada. Isto fez o papá e a mamã rirem-se, por alguma razão. Porque é que estavam orgulhosos dela, quando tudo o que ela fizera fora perceber tudo mal? Uma tatuagem era muito diferente de cancro da pele. Muito. Sophie suspirou, exasperada. Assim que sobrevivesse à leucemia, teria de sobreviver a estes pais. Beetham Tower, Deansgate, número 301, Manchester Zoe entrou no apartamento, largou a chave no pratinho à entrada e pousou um saco de plástico azul em cima da bancada de pedra brilhante da cozinha. Tirou uma garrafa de vinho branco do saco e olhou para ela. Não bebia álcool desde aquela sessão de treino à chuva, com Kate, nas profundezas da época baixa, há mais de uma década. Não tinha nada em casa especificamente construído para colocar vinho. Nem sequer sabia que quantidade era costume beber. Escolheu uma das pequenas chávenas de loiça do café expresso e encheu-a. Levou a garrafa e a chávena para junto das janelas altas e olhou para as luzes da cidade lá em baixo. Cheirou o vinho, fez uma careta e bebeu. Depois aguardou dez minutos, de pé, para avaliar os efeitos. Num corpo afinado ao ponto de conhecer o seu ritmo cardíaco ao pormenor e de processar com uma clareza ártica as mensagens aferentes que percorriam cada feixe nervoso, não houve nenhum calor agradável, apenas uma sensação imediata de traumatismo e o terror pelo poder da química. Encheu novamente a chávena e bebeu. Depois de ter bebido metade da garrafa, sentiu-se suficientemente corajosa para pensar no significado desta alteração das regras. Se queria o lugar nos Jogos Olímpicos, teria de lutar com Kate por ele. Manteve o pensamento e saboreou-o. Era verdade que estava desesperada pelo lugar. Sem ele, perderia os patrocinadores, perderia este apartamento e perderia uma razão para manter o

coração e os pulmões em funcionamento. No entanto, para ter a certeza de que o conseguiria, tinha de forçar o corpo mais do que alguma vez o forçara antes. Hoje, no treino, não houvera ninguém a escolher entre ela e Kate. Bebeu mais um trago de vinho e usou a chávena de café fria para arrefecer a tatuagem olímpica no antebraço. Ao olhar para aqueles anéis, conseguia ouvir o rugido da multidão em Atenas e Pequim. Olhou para o seu coração e perguntou-se se seria capaz de destruir Kate, apenas para voltar a ouvir aquele som. Fechou os olhos, encostou a testa ao vidro fresco e pensou. Nos meses depois da Gran Canaria – primavera e princípio do verão de 2003 – Zoe praticamente não entrou em competições. Tencionava poupar-se para os Campeonatos Mundiais de Pista em Estugarda, no final de julho. Estava a bater recordes mundiais nos treinos. Deixou Jack e Kate em paz, para reconstruírem a sua relação, e canalizou toda a sua dor e confusão para a energia na bicicleta. Partiu mais cedo para Estugarda. O Ciclismo Britânico instalara-a no hotel que toda a equipa de ciclismo usava quando viajava. Ficava perto do velódromo e durante um mês inteiro, antes do evento, ela treinou na pista onde competiria. Debateu-se contra um vírus que lhe sugava as energias e a deixava tonta, mas o ciclismo nunca tivera tanta visibilidade e todos os átomos do seu corpo estavam concentrados. Praticamente nem reparou que estava na Alemanha. A língua era diferente mas a pista era igual. Jack e Kate chegaram juntos, uma semana antes da prova. Estavam novamente felizes, mas não ainda tão seguros que conseguissem estar à vontade ao pé de Zoe. Ela sorria-lhes educadamente quando se encontravam nas reuniões da equipa ou quando passavam uns pelos outros na mesa de buffet do pequeno-almoço. Os Campeonatos Mundiais de 2003 eram maiores do que nunca. Havia equipas de países tão distantes como o Brasil e a China. Todas as corridas eram transmitidas ao vivo pela Eurosport. Zoe andava agoniada, com os nervos e a excitação. Por mais do que uma vez vomitou no seu quarto de hotel. No entanto, sentia-se calma. A sua preparação fora impecável. Estava em toda a comunicação social: ela ia arrasar com a concorrência. Os media estavam apaixonados por ela. No Guardian, um filósofo popular escrevera um artigo sobre a sua ética de trabalho. No News of the World, havia fotografias dos seus seios em Lycra, e especulações sobre se usaria alguma coisa por baixo. Havia algo para toda a gente. Os Campeonatos Mundiais começaram num clarão de flashes de máquinas

fotográficas. Em Estugarda, no último dia de julho e nos primeiros dois dias de agosto de 2003, Jack conquistou o maior número de medalhas de ouro alguma vez alcançado por um ciclista britânico nos Mundiais. Kate venceu duas medalhas de ouro e uma de bronze. Zoe não conseguiu sequer qualificar-se para a final em três das provas em que participava. Ficou atrás de Kate na luta para a medalha de bronze em sprint. Sentiu-se péssima em todas as suas eliminatórias. Uma vez, até vomitou na linha de partida. Tiveram de atrasar o apito inicial. Um homem limpou a pista e depois secaram a água com secadores industriais. Zoe alinhou-se novamente para a partida. O apito soou e uma fraqueza quente invadiu-lhe o corpo. As outras raparigas destacaram-se dela como se Zoe nem sequer estivesse a pedalar. Um vídeo dela, à beira da pista, a chorar lágrimas de incompreensão e a pisar repetidamente a sua bicicleta de fibra de carbono, de última geração, no valor de nove mil libras, rapidamente se espalhou pela internet. Tom chamou um táxi e levou-a diretamente da pista para uma clínica. Estiveram lá duas horas. Os médicos fizeram exames. Zoe esperou. Fizeram mais exames. Ela continuou a esperar, numa salinha branca minúscula, com revistas de moda em alemão e um ar condicionado que fazia barulho. Um médico entrou, cheio de sorrisos, e disse-lhe que estava grávida. – Parece que está no fim do primeiro trimestre – disse ele. – Parabéns! Depois, ao ver a cara dela, disse: – Desculpe, não é a palavra certa? O meu inglês não é muito bom. Zoe obrigou-o a repetir o teste. Não acreditava que fosse possível, quando estivera a treinar tão intensamente. Ele não era um médico especializado em medicina desportiva, por isso Zoe falou-lhe nas alterações fisiológicas. A forma como o corpo se apercebia do quão baixas eram as reservas de gordura. Como registava a dor insuportável a que era sujeito todos os dias. Como partia, naturalmente, do princípio de que estava a morrer e efetuava os ajustes necessários ao sistema reprodutor. O médico ouviu-a educadamente enquanto ela lhe explicava que os seus níveis hormonais tinham mudado, que o seu estrogénio caíra e a sua testosterona aumentara. Disse-lhe que não tinha uma menstruação há três anos; que não usava contracetivos desde 1999. O médico disse-lhe que talvez tivesse feito melhor em usar. Os médicos eram diretos, na Alemanha. Quando saiu do consultório para o átrio da clínica, Tom estava à espera dela. Zoe sorriu debilmente e disse-lhe que era apenas uma virose. No quarto de hotel, vomitou outra vez. Bebeu água gelada. Kate ainda estava no velódromo, a falar com a imprensa. Zoe viu-a na Eurosport. Parecia radiante. Desligou a televisão e olhou para a parede durante uma hora. Depois ligou o

computador, marcou uma consulta numa clínica de interrupção da gravidez em Manchester e começou a pensar nas revisões que teria de fazer ao seu calendário de treino para Atenas. Kate bateu à porta do quarto. Tivera a decência de deixar as medalhas no saco, mas era impossível ocultar a sua vitória. O ouro reluzia dentro dela: através da pele, nos olhos. Brilhava no ar à sua volta. – Já estás contente? – disse Zoe. – Não sejas assim. Pensei que pudesses querer falar com alguém. – Tenho o Tom. Kate fez uma pausa. – Ótimo. Ainda bem. Bom, sendo assim, deixo-te sozinha, sim? Zoe suspirou. – Não vás. Foi simpático da tua parte apareceres. Kate sentou-se na cama com ela. – Então o que é que se passa? O que é que os médicos disseram? Zoe soltou uma risada breve e derrotada. – Apenas uma gastroenterite. Ouve, quando voltarmos para Inglaterra vamos… sabes. Fazer qualquer coisa. Ver um filme, ou coisa do género. – Nunca no primeiro encontro. Não sei o que ouviste dizer, mas não sou esse tipo de rapariga. Zoe riu-se, mas a meio da gargalhada começou a chorar. – Zoe? O que foi? Ela fungou. Mordeu os nós dos dedos e murmurou: – Estou grávida, Kate. – Tinha o rosto tão contraído que a palavra foi apenas um gemido. – O quê? – Estou grávida. Ninguém sabe. – Ninguém? Zoe abanou a cabeça. – Oh… Uau. Quer dizer… bom… – Não faz mal. Quer dizer, não é nada. Tenho de me livrar disto, certo? Kate pestanejou. – Oh, Céus, quer dizer… Zoe engoliu em seco. Tinha a voz embargada. – Eu sei. Mas tenho de o fazer. Não é? Quer dizer, vou estar em Atenas. Não posso… sabes… ter um bebé. Kate não disse nada.

– Kate? Zoe viu o rosto dela contrair-se, mas não fazia sentido. Demorou imenso tempo a perceber que Kate estava a tentar não chorar. Sentiu uma pontada de raiva. Porque é que Kate estava a chorar, quando era a vida de Zoe que estava de pernas para o ar? – Qual é o teu problema? – perguntou. – Não tenho escolha, está bem? – Zoe, por favor… – Não tenho escolha nenhuma. Portanto não tentes fazer-me sentir culpada. Viu os olhos vermelhos de Kate procurarem os seus. – É do Jack? – perguntou Kate calmamente. Zoe só sentiu o impacto alguns segundos depois. Não pensara de quem poderia ser a criança que tinha no ventre, apenas na forma mais rápida de se ver livre dela. Quando ouviu a pergunta, o choque foi tão total que não conseguiu fingir que tal era impossível. Kate olhou para ela, com uma expressão carregada de tristeza. – Eu sabia que tinha acontecido alguma coisa – disse, por fim. – Ele estava tão calado no campo de treino… Zoe levantou-se, saiu do quarto e foi dar uma longa caminhada sozinha pelas ruas de Estugarda. Enquanto caminhava, percebeu que não havia outra maneira de fazer as contas. Não dormira com mais ninguém depois de Jack e também não tivera nada com ninguém no mês anterior. Isso significava duas coisas: que o bebé era dele e que dormir com Jack significara algo para ela, pelo menos o suficiente para quebrar os seus padrões de comportamento. Havia algo a crescer nas suas emoções, além daquilo que crescia no seu ventre, e de alguma forma tinha de encontrar forças para se livrar de ambas as coisas. No avião de regresso a Londres, estava de rastos. Não dormira nada. Tapou a cabeça com uma manta e apertou os joelhos contra o peito no banco junto da janela, três filas atrás de Kate e Jack. Ao fim de meia hora de voo levantou-se e percorreu a coxia até eles. Queria pedir desculpa. Mais do que isso, estava desesperada para falar. Tom estava furioso com ela e, uma vez que Jack e Kate também lhe tinham voltado as costas, não tinha com quem falar sobre a escolha agonizante que estava a tentar fazer. Chegou à fila deles. Quando sentiram a presença dela, julgando que fosse uma hospedeira, eles ergueram os rostos com os sorrisos de alguém que está prestes a recusar educadamente uma oferta de café ou chá. Quando Zoe viu o choque nos rostos deles, a que se seguiu o embaraço de Jack e a confusão infeliz de Kate, murmurou um pedido de desculpas e voltou para o seu lugar.

Havia fotógrafos à espera deles em Heathrow. Zoe passou pela alfândega numa galáxia de flashes. Houvera dinheiro a trocar de mãos. Alguém na clínica dera com a língua nos dentes. Um repórter chamou-a, aos gritos. Era do maior jornal dominical britânico. Algures, atrás da barreira da multidão, ele gritou: – Zoe! Zoe! Vai ter o bebé, ou vai aos Jogos Olímpicos? Uma vez que a questão era colocada assim, em público, a escolha deixava de ser dela. Uma centena de flashes brilhantes apanhou a decisão no seu rosto pálido. Cozinha, Barrington Street, número 203, Clayton, zona leste de Manchester Depois de terem comido e de Sophie estar na cama, Kate pôs os pratos de molho. No parapeito da janela, por cima do lava-loiça, estava o recipiente de metal perfurado onde guardava as esponjas e escovas da loiça e, ao lado, a taça de prata para onde Jack contara os dezasseis comprimidos de Sophie nessa manhã. Estava agora vazia. – São só as Olimpíadas – disse Kate. – Podia simplesmente desistir, sabes. Passar mais tempo com a Sophie. Viu uma centelha cautelosa de medo nos olhos de Jack. – Para com essa conversa – disse ele. – Vais lutar com a Zoe pelo lugar, vais ganhar e vais competir em Londres. Hoje estiveram par a par na pista. Kate olhou pela janela. – Preocupa-me, ter de lutar contra ela. Acho que a Zoe está a ficar mais instável. Acho que está a perder a sanidade. – Não penses nela. Pensa em como a Sophie se sentiria se desistisses. Pensa em como tu te sentirias. – E tu? Como te sentirias? – Se tu desistisses? – Sim. Viu a tensão contrair-lhe o rosto. – Se desistisses, eu desistia também – disse Jack. Ela acenou, acreditando que ele estava a ser sincero mas não acreditando que o faria realmente.

Abriu a torneira de água fria e enxaguou a travessa. Talvez fosse assim que terminava, afinal de contas, aos trinta e dois anos de idade. Não em glória ou derrota na pista, mas aqui, com uma nova carga de equipamento de treino no cesto da roupa suja lá em cima, e estes três pratos brancos simples com restos de massa e de molho no lava-loiça, enquanto o detergente dissolvia a gordura obstinada. – Talvez precise de algum tempo para pensar – disse ela. – Oh, Céus – disse Jack, levando as mãos à cabeça. – Desde quando é que é preciso pensar? E ele tinha razão – era terrível ouvir-se a si própria dizer estas coisas. Na parede de cortiça por trás deles estavam os desenhos de Sophie, desde bebé até aos oito anos de idade. Os sóis sorridentes e as naves espaciais. As pegadas da filha em tinta amarela, a formar as pétalas de um girassol. Kate lembrava-se de pegar no tornozelo pequenino de Sophie para carimbar cada pegada. Com o outro braço segurara Sophie – isto fora antes de ela se conseguir pôr em pé sozinha. O caule forte e as folhas largas tinham sido desenhados por Kate, com lápis de cera verde, enquanto Jack estava num avião para Atenas. – Pensa bem – estava Jack a dizer. – O que farias, se desistisses? Ela acenou com a mão, um gesto de indiferença, e fez uma careta quando o movimento lhe fez doer a tatuagem. – Há outras formas de ganhar a vida, certo? Quer dizer, a menos que todas as pessoas que vemos nos transportes públicos estejam a fingir, existem outros empregos. Jack acariciou-lhe o rosto. – Não depois de ter ouvido as multidões. Ela afastou-lhe a mão, gentilmente. Na verdade, os urros da multidão muitas vezes assustavam-na. Faziam disparar a adrenalina, sim, mas havia um silêncio particular no centro daquele som. A multidão era composta por pessoas que tinham trinta minutos para almoçar. Pessoas que fumavam à porta do escritório, à chuva, apagando os cigarros e deitando as beatas para uma grade metálica montada na parede, de acordo com a diretiva constante do e-mail que todos tinham recebido. Essa multidão era Jack, se o pai não o tivesse forçado a sair da sua zona de conforto. A multidão era ela, se o seu pai não a tivesse levado para ver uma corrida de bicicletas quando tinha seis anos. Era uma separação ínfima, e o barulho da multidão atravessava facilmente esse espaço e assombrava-a. Estremeceu. Estava escuro lá fora e aqui estavam estes pratos no lava-loiça e a roupa suja no cesto e o clarão laranja dos candeeiros da rua a revelar a linha dos telhados. Nas janelas dos vizinhos, um brilho quente e confiante. O tremeluzir

subjacente das televisões. E no lava-loiça, esta nuvem de bolhas de sabão, mais rala de cada vez que ela olhava. Tom sempre os avisara em relação a isto: Um dia, mais cedo do que pensam, a vossa vida no desporto chegará ao fim. O som suave das bolhas de sabão a rebentar. Este desespero na voz do marido enquanto lhe dizia: – Pensa no que é melhor para ti, para variar. Não deves nada a ninguém. Ela virou-se para ele. – Mesmo assim, acho que preferia cuidar da Sophie do que lutar contra a Zoe. – Uma coisa não exclui a outra. Oh, Kate, isto tem a ver com a tua confiança? Eu sei que consegues vencer a Zoe. A única coisa que te impede é o medo de perder. Kate ouviu o tom cortante na sua própria voz. – Tenho é medo de ganhar. Vencer é tudo o que ela tem. Fico nervosa quando penso no que ela fará a si própria se a deixarmos aqui, sem nada. Morro de medo do que ela poderá fazer-nos a nós. Viu nos olhos dele que Jack também o sentia; que estivera a debater-se para o colocar em palavras até agora. Ele não pensava além do imediato, era esse o maior problema de Jack. A sua simplicidade era o motivo pelo qual tinham acabado com uma vida de tamanha complexidade. Ele não tinha culpa de ela conseguir lidar com as complicações e ele não. Afinal de contas, as pessoas tinham os seus habitats naturais, demarcados não em ecologias mas em idades. Ele estivera perfeitamente adaptado aos dezanove anos, e ela estava melhor adaptada aos trinta e dois. Beijou-o, cuidadosamente, na face, e ambos contornaram esta coisa que ela dissera finalmente em voz alta. Procuraram maneiras de a rodear de mais palavras, para a tornar segura. Jack disse: – Ela não pode magoar-nos mais, Kate. Isso foi há quase dez anos. Estamos mais velhos e mais sábios. – Também ela. – Mas o que é que pensas que ela nos poderia fazer, se confiarmos um no outro e não a deixarmos meter-se entre nós? A pergunta ficou suspensa entre ambos. Kate olhou pela janela, para os quintais escuros e para as casas escuras, cada vez mais escuras sob a chuva súbita. Podia ter tido tantas outras vidas.

* Quando Kate tinha seis anos, o pai levara-a à sua primeira corrida de bicicleta. Era algo que podiam fazer juntos, fora de casa. O pai tinha visto a corrida anunciada no jornal local – podia perfeitamente ter sido uma gincana, ou judo. A mãe e o pai tinham discutido ao pequeno-almoço, nesse dia. Kate estava a comer ovos estrelados. Não deu muita importância à discussão. A mamã andava rabugenta há semanas – o seu novo emprego deixava-a infeliz. Era vendedora de porta em porta, para uma companhia que vendia tecidos ao metro. Às vezes fazia viagens e, uma ou duas vezes por mês, tinha de passar uma noite fora de casa. Ao pequeno-almoço, no dia da corrida, a mamã tirou-lhe o prato da frente antes de ela acabar de comer e atirou-o para o lavatório com estrondo. Tinha olheiras sob os olhos. O pai disse: – Voltamos tarde, está bem? Eu e a Kate almoçamos no pub depois da corrida. – Sorriu e apertou a mão de Kate. Ela estava a pensar num ploughman’s lunch2, com o pão castanho em fatias grossas e a manteiga num invólucro de papel dourado. Com queijo e chutney e aqueles pickles de cebolinhas pequenas, estranhas e translúcidas, em que era possível arrancar as camadas uma a uma. O papá beberia uma cerveja e ela uma Diet Coke. A mamã disse ao papá: – Porque é que tu é que és sempre o mais divertido? E o papá exclamou: – Essa é boa! E foi então que discutiram. Kate enfiou os dedos nos ouvidos. Às vezes, à noite, sonhava em encontrar dinheiro. Centenas de libras que desenterraria do jardim e correria para dentro e daria à mamã, para que ela não tivesse de trabalhar tanto. Ela e o pai foram até à corrida no Rover 3500. O velho carro era lindo. Era de um amarelo escuro e opulento, como gema de ovo. Rangia e estalava. Mas era lindo e grande e sólido. Ali dentro estavam num mundo à parte, completamente seguro e inquebrável. O papá disse-lhe que podia ir à frente, excecionalmente. A mamã estava a dizer qualquer coisa. O papá fechou a porta do carro e cortou a frase a meio: – A que horas tencionas estar… – Clunk. E depois silêncio, porque as portas eram grandes e pesadas. E o cheiro dos bancos de napa. E também o cheiro do pai. Ele pôs-lhe o cinto de segurança. Usava um aftershave chamado Joop!, com um ponto de exclamação, como se devesse ser gritado. Por vezes, quando estava

sozinha, Kate fazia-o. Sem sequer saber porquê. Joop! O pai entrou na estrada e ela viu os lábios da mãe a moverem-se através da janela. – O que é que a mamã está a dizer? – Não sei. – Não devíamos voltar para trás e perguntar-lhe? O papá suspirou e apertou-lhe a mão. Ligou o rádio. O vaivém espacial Challenger tinha explodido na véspera. Desfizera-se depois do lançamento. Ainda estavam a falar nisso – fora um grande choque. Num momento estava branco e intacto, como um dente de leite, uma forma branca e brilhante na atmosfera azul e limpa. E depois o céu azul estava cheio de pedacinhos de branco. Cada cor ficara saturada da outra. Kate ficara triste porque uma das astronautas era mãe de alguém. Tinham dito Challenger a todo o gás e depois tudo se desintegrara, disseram na rádio. Mas Kate não queria ouvir. Cantarolou uma canção com os dedos enfiados nos ouvidos. No centro do volante do Rover havia um grande parafuso hexagonal prateado, que segurava o volante. Era um instrumento, tal como os outros; sempre a dizerlhes que estavam exatamente a quarenta e cinco centímetros da morte. As pessoas eram mortas por esses parafusos. A polícia chegava ao local dos acidentes e encontrava pais com feridas perfeitamente hexagonais entre os olhos, mas sem qualquer expressão de surpresa no rosto. Eles conheciam o risco. Tinham olhado para ele durante anos. Quando chegaram à corrida, o papá tirou a bicicleta dela do porta-bagagens. Deu-lhe a mão e levou a bicicleta até à linha da partida. Estavam lá umas quarenta ou cinquenta crianças e ela assustou-se. Muitas das outras meninas eram maiores do que ela. Algumas tinham bicicletas rápidas, com guiadores virados para baixo e pneus finos. A de Kate tinha apenas autocolantes do Scooby Doo. Escondeu-se atrás das pernas do pai até ser hora de a corrida começar. Era uma pista de relva, com o trajeto assinalado por postes de madeira com cordas cor de laranja finas esticadas entre eles. Kate foi muito mais rápida do que praticamente todas as outras. Ia tão à frente que pensou que tivesse feito qualquer coisa errada. Esperou que alguém lhe gritasse. Só havia outra miúda tão rápida como ela. Pedalaram lado a lado durante algum tempo. Kate olhou para ela e sorriu, mas a outra rapariga não retribuiu o sorriso. Kate podia ter acelerado mais, mas achou que seria cruel deixar a outra rapariga sozinha, por isso ficou com ela. Quando chegaram novamente à linha de partida, ao fim da primeira

volta, o seu pai estava a sorrir e levantou-lhe os polegares. O pai da outra rapariga também lá estava. Gritou: – Vá lá, vá LÁ! Tu consegues vencê-la! A outra rapariga tentou ir mais depressa. Estava a ficar com a cara encarnada. Kate abrandou um bocadinho, para que a outra rapariga pudesse abrandar também. Passaram de novo pela linha de partida. O pai dela aplaudiu. O pai da outra rapariga gritou: – Mexe-te! És mais rápida do que isso! Estava zangado. Kate teve medo pela outra menina. Na última volta, abrandou ainda mais, mas a rapariga estava a ficar cansada. Tocou num dos postes com o guiador e rebolou sobre a relva. Kate parou a sua bicicleta e largou-a. Com dedos frios, a inspirar o cheiro enlameado da relva molhada, levantou a bicicleta da outra rapariga. – Depressa! – disse. Estava nervosa por causa do pai da outra menina. A rapariga olhou para ela. Era muito pequena. Tinha lama na cara e na parte da frente do fato de treino. Estava a começar a chorar. Kate murmurou: – Não chores. – Segurou-lhe na bicicleta e ela montou. A rapariga recomeçou a pedalar e todas as outras ultrapassaram Kate enquanto esta subia para a sua bicicleta. Cruzou a meta em último lugar, lavada em lágrimas. – Isto foi muito injusto – disse o pai. Kate estava a soluçar. Disse sim, sim, sim, e queria dizer que era injusto que a outra menina tivesse medo do pai. Não conseguia explicar por que motivo o facto de a sua vida ser fácil a deixava triste; por que razão tinha medo da sua felicidade. Entraram no carro para se irem embora. As mudanças rangeram. O papá conduziu mais depressa do que o normal. Tinha os nós dos dedos brancos nas mãos que apertavam o volante. – Tens uma natureza boa, Kate – disse. – As outras pessoas vão tentar aproveitar-se disso. No rádio, estavam a falar dos objetos recuperados do Challenger. Mil coisinhas ínfimas tinham caído no mar, cada uma à sua velocidade particular. Havia emblemas da missão a flutuar nas ondas. As coisas mais pesadas tinham-se afundado. Algumas nunca seriam recuperadas. O papá disse: – Aquela rapariga não devia ter arrancado assim. Kate disse: – Ela estava assustada. Eu quis que ela ganhasse. O papá ficou calado durante muito tempo e depois disse:

– Kate, estou mais orgulhoso de ti do que se tivesses vencido. Contornou uma rotunda demasiado depressa e os pneus chiaram. Kate fechou os olhos e inspirou o cheiro de Joop!. O papá disse: – Desculpa teres ouvido aquilo tudo, ao pequeno-almoço. Disse-o baixinho. Conduziu ruidosamente. O parafuso no volante brilhou. – É só porque a mamã anda cansada – disse Kate. O papá não disse nada e conduziu mais depressa. – Todos andamos cansados, Kate. Ela agarrou o cinto de segurança com as duas mãos. O papá não parou no pub. – Não vamos almoçar ao pub? – perguntou Kate. O papá disse: – Vamos ver se a mamã quer vir connosco. – A sua voz era tensa. Chegaram a casa e o papá travou a fundo. Kate teve de esticar os braços para não bater no porta-luvas. Estava outro carro em frente da casa deles, preto e reluzente e novo. – Quem é? – perguntou ela. – É o patrão da tua mãe – disse o pai. A sua voz era demasiado calma. – Fica aqui enquanto eu entro. Ele fê-la esperar no Rover. Kate não se importava. Não podia acontecer nada de mau enquanto aqui estivesse. O papá deixou o rádio ligado. Ouviu muitos gritos vindos de dentro de casa. Aumentou o volume do rádio. Tinham encontrado centenas de pedaços de papel. Eram folhas dos manuais de voo que tinham flutuado até ao mar. Alguns eram apenas cinzas. As partes pesadas tinham-se afundado – as capas dos manuais de voo, as argolas dos dossiers. As instruções flutuavam à deriva no mar. Instruções de como voar para o espaço. De como alcançar a velocidade máxima. O pai apareceu à porta de casa com o patrão da mamã. Estavam a empurrar-se um ao outro. Kate teve medo. Baixou-se no seu banco e espreitou por cima do tablier. A mamã estava a vê-los da porta, de roupão. Viu Kate a olhar para ela e desviou o rosto. Depois dos gritos, a mamã partiu com o patrão e o papá levou Kate ao pub. Ela comeu um ploughman’s lunch e ele comeu tarte e batatas fritas. Bebeu uma cerveja. Ela bebeu uma Diet Coke, com cubos de gelo e um quarto de rodela de limão a flutuar. Não falaram. Os cubos de gelo no seu copo tinham o feitio de dedais. Se os segurasse de pernas para o ar com a palhinha contra o lado do copo, enchiam-se de bolhas. O papá suspirou quando viu o que ela estava a fazer. Kate

encostou-se ao peito dele e murmurou: – Joop! O papá disse: – O quê? Ela disse: – Nada. – Sorriu-lhe. Os cubos de gelo boiaram e tilintaram. Algumas das palavras nunca se afundavam e algumas das coisas mais pesadas nunca eram recuperadas. O papá sorriu e disse: – Antes de sair, a mamã disse-me para te dizer que gosta muito de ti. Kate sabia que ele estava a mentir. – Papá? – disse. – Sim? – Estou mais orgulhosa de ti do que se tivesses vencido. Vinte e seis anos depois, enquanto passava os pratos a Jack para os limpar, ofereceu-lhe o mesmo sorriso tranquilo que oferecera ao pai naquele dia. – O que foi? – perguntou Jack. – Se calhar estamos a ser paranoicos. Talvez a Zoe também não queira vencerme, se isso significar que a outra não pode ir aos Jogos Olímpicos. Acho mesmo que ela mudou. Ele tocou-lhe no braço. – Bom, uma de vocês tem de ganhar. Kate inclinou a cabeça. – Alguma vez te arrependes de me teres escolhido a mim e não a ela? Ele nem hesitou. – Sabes muito bem que não. Kate raspou com o pé uma das tábuas manchadas do soalho da cozinha. – Porque essa é a única pista em que realmente quero vencê-la. Jack fitou-a por um momento e depois sorriu. – Porque estás a sorrir? – Devíamos vender bilhetes, então. Se é aqui que está a ação, devíamos arranjar uma bancada e cobrar cinquenta libras por pessoa. Ganhávamos uma fortuna. 1 Excerto da letra da música «Rio», dos Duran Duran. (N. do E.)

2 Prato frio típico dos pubs britânicos. (N. do E.)

Quarta-feira, 4 de abril de 2012 Café Turco, Ashton New Road, Manchester om entrou num café onde tinham todos os jornais. Sentou-se a uma mesa ao canto. Era o único cliente e era demasiado cedo. Este era um estabelecimento mais para a noite, com narguilés nas prateleiras e as paredes pintadas de roxo. Por trás do balcão de alumínio, o empregado observou-o com a curiosidade educada reservada para os velhos que foram desalojados do seu devido lugar no tempo. Tom ignorou-o e abriu um jornal. Por um minuto, não conseguiu olhar. Esperou, enquanto massajava os joelhos e olhava para o sol forte da manhã através das tiras de plástico vermelhas, azuis e brancas penduradas à porta. O seu café chegou, forte e espesso, com borras no fundo, numa chávena de vidro transparente. Olhou de lado para o jornal. Tudo nos jornais o fazia sentir-se cansado e derrotado. Os colunistas eram como moscas a bater no vidro de uma janela, a querer sair em liberdade para a vida. Os editoriais escolhiam as suas frases como esquiadores de nível intermédio que optavam pela segurança das pistas verdes e azuis mas terminavam com o floreado retórico e os gestos triunfantes de um campeão de downhill a travar com uma derrapagem depois de uma prova vencedora. Perguntou-se como era possível que as pessoas nunca se fartassem destas tretas. Detestava saber que permitira que as vidas das suas atletas fossem tão distorcidas pelos jornais. Cada centímetro de cada coluna era uma incursão em território que ele devia ter protegido. Se tivesse sido forte, teria dito a Zoe: faz o aborto ou não faças, e que se lixe o que os jornais dizem sobre ti. Se tivesse a integridade que faltava aos

T

jornais, teria feito as suas ciclistas escolherem, logo no primeiro dia, se queriam ser figuras públicas com patrocinadores, ou atletas unicamente concentradas nos resultados. Olhar para o jornal agora era como olhar para si próprio. Permitira às suas raparigas correr nas páginas dos jornais em vez de nas tábuas da pista – fora esse o seu fracasso. Obrigou-se a olhar. A reportagem sobre a tatuagem podia ter sido pior, mas também não era fantástica. Tinham dado grande destaque a Kate na segunda página, usando Zoe como contraste. Kate estava em primeiro plano, com ar tímido e aparentemente entusiasmada com a tatuagem. Tinham ligado a fotografia às notícias sobre a mudança de regras de participação nos Jogos Olímpicos e tratado o assunto como se fosse uma aposta, como se Zoe e Kate já soubessem antes de irem fazer as tatuagens que apenas uma delas podia ir aos Jogos Olímpicos. CORAJOSA KATE APOSTA A PELE NOS JOGOS, dizia a manchete. Por baixo da fotografia, a legenda dizia: Isto é que é confiança: a menos favorita, Kate Argall, faz uma tatuagem lado a lado com a escandalosa rival Zoe Castle, depois da chocante decisão de que apenas UMA delas pode lutar pelo ouro em Londres. Havia uma foto mais pequena de Sophie, careca debaixo do boné da Guerra das Estrelas, a sorrir para a câmara. A legenda dizia: Sophie: significava muito para mim que a mamã ganhasse o ouro. Ficou sentado, a pensar, durante um instante. As suas atletas estavam a desfazer-se – isso era inegável. Sempre imaginara que conseguiriam aguentar-se, os três, até estes últimos Jogos, para depois decidirem o que fazer. Agora, contudo, tinha de vestir o seu fato de treinador e enfrentar as probabilidades. Quanto mais isto se prolongasse, mais Zoe ficaria desequilibrada e mais Kate ficaria desmotivada. Não servia de nada prolongar esta tensão entre ambas e, como seu treinador, era trabalho dele perceber qual a melhor maneira de lhe pôr fim o mais depressa possível. Se pelo menos tivesse conseguido endireitar as coisas entre elas depois de Estugarda, talvez muito do que acontecera a seguir tivesse sido mais fácil. Em vez disso, a reconciliação fora impossível durante meses. Jack tornara-se taciturno e descarregava o seu mau humor na pista. Kate, apesar de ter resolvido o assunto com ele de alguma maneira, não conseguira ainda perdoar Zoe, e Zoe, de qualquer modo, não se considerava a única merecedora de culpa. Zoe sentira-se ressentida e encurralada na sua gravidez e Kate sofria mais de dia para dia, à medida que a barriga dela crescia. Tom não fizera nada – como treinador ou como amigo – para as levar a conversar. Por fim, os danos causados pelo silêncio acabaram por as

colocar frente a frente. Tom não podia voltar a falhar-lhes desta maneira. Bebeu o resto do café e pediu outro. O rádio estava ligado, na estação Gold FM. Como o DJ disse, era a rádio número um para sucessos dos anos 60, 70 e 80. Phil Collins começou a cantar «In The Air Tonight». O empregado trouxe-lhe o café. Tom sorriu-lhe: – Traz recordações, não é? O empregado não percebeu. – O quê? – Phil Collins. – Quem é o Phil Collins? Tom apontou para as colunas. – Ele. – Oh, sim – disse o empregado. – Boa música. Muito gira. Acenou com entusiasmo fingido e levou a chávena vazia. Tom abanou a dentadura com a língua e uma leve tristeza abateu-se sobre ele, como neve sobre uma churrasqueira no inverno. Longe da pista, os jovens tinham começado a tratá-lo com condescendência. Quando o tratavam como uma relíquia, isso fazia-o pensar em salas futuras onde seria encorajado a sentar-se em poltronas de napa reluzentes ao lado de outros da sua geração. Viu-se a si próprio a insistir que, em tempos, competira nos Jogos Olímpicos, enquanto auxiliares de bata concordavam educadamente com ele. Falhei por um décimo de segundo, diria. Um maldito décimo. Que bom, Thomas, agora coma a sopa toda para estar em forma para as próximas Olimpíadas, está bem? Quando pensava em lares de terceira idade, imaginava sempre uma banda sonora de Vera Lynn e clássicos do tempo da guerra. Agora apercebia-se de que, na altura em que fosse a sua vez de ser geriátrico, a música nostálgica seria MC Hammer e Sade e Phil Collins. Imaginou-se a si próprio num grupo de meia dúzia de octogenários de fato de treino a fazer exercícios leves de aeróbica ao som de «Vogue», de Madonna, e compreendeu imediatamente que teria de se matar basicamente no mesmo mês em que se reformasse da carreira de treinador. Esperaria talvez uma semana para tratar dos seus assuntos e depois encontraria uma forma sensata de o fazer. Tinha de haver qualquer coisa que envolvesse comprimidos – algo relativamente pouco dramático. Escreveria um bilhete breve e depois trataria do assunto de forma a deixar o mínimo possível de confusão para os outros resolverem.

Preocupava-o a quem dirigiria esse bilhete. Um e-mail para a polícia parecia excesso de autocomiseração – com certeza que era um exagero fingir que não havia mais ninguém que precisasse de saber. Por outro lado, uma carta de suicídio seria uma forma horrível de retomar o contacto com a família. Para Matthew, o melhor seria nunca mais ouvir falar dele. Também isto era inegável. Ele quisera que o filho fosse bem-sucedido onde ele falhara, por isso pressionara-o demais nos treinos. O miúdo perdera a cabeça, um dia, e atirara-lhe o cadeado de uma bicicleta, e fora esse o fim dos dentes da frente de Tom. Uma semana depois, a sua mulher partira e Matthew fora com ela, e assim acabara tudo. Por vezes, Tom pensava nisso – ocorria-lhe um vislumbre do rosto de Matty, como agora – mas depois a sua mente fechava-se para se proteger da dor. Estava tudo bem, na verdade. A cada ano, as arestas tornavam-se menos afiadas. No café vazio, Tom ouviu Phil Collins e tentou analisar a letra da canção como faria se o artista fosse um dos seus atletas. Havia algo no ar esta noite. Phil conseguia senti-lo aproximar-se, portanto era obviamente algo grande. O tipo esperara por este momento toda a sua vida, portanto, fosse o que fosse, não era algo que acontecesse todos os dias. Aqueles acordes perturbadores; o eco da bateria; a insistência na iminência de algum cataclismo. Tom franziu a testa e pensou no conselho que daria a Phil. Ali sentado no café, empurrou a dentadura com a língua e mexeu o café no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, languidamente. Por fim, chegou à conclusão profissional de que Phil Collins era um filho da mãe por nunca dizer o que era realmente essa coisa – esse algo que ele detetara a aproximar-se, como se fosse um avião-radar de meia-idade, careca, com baquetas e uma máquina de eco. Era assim que a mente de Tom recuperava depois de pensar no filho. Como sempre, roçava na superfície da mágoa e depois fugia e ligava-se à distração inofensiva mais próxima. Olhou para a fotografia de Zoe no jornal. Sabia que havia sofrimento no passado dela, tão profundo como o seu. Não tinha outra explicação para a forma desesperada como ela se comportava, ou para a forte ligação que sentia a ela. Não era amor – Tom era velho demais para isso – mas era uma espécie de afeto insuportável. Nem sequer podia dizer que ela o fazia desejar ser trinta anos mais novo – a própria vida se encarregava disso, por si só. Resmungou entre dentes. Era frustrante. Quando a única coisa de que percebia era de ritmos cardíacos e limiares lácticos, era como se a vida lhe desse grandes emoções mas apenas instrumentos reles e baratos para as medir. A letra de Phil Collins continha tanto significado como um espelho de mão continha a Lua, e

contudo estas coisas insuficientes eram tudo o que ele tinha: estas velhas canções pop em cafés vazios, estas medalhas de ouro que as suas atletas tinham conquistado, estas pequenas redenções devolvidas por uma história idiossincrática que desqualificava décadas inteiras mas contava cada segundo em décimos. O tempo nunca se portara como devia ser perto dele. Tocava como um disco riscado, ora repetindo uma frase interminavelmente, ora saltando versos inteiros, de tal forma que as coisas aconteciam sempre tarde demais ou cedo demais. Ainda conseguia sentir a pressão feroz das mãos de Zoe nas suas, na sala de partos. A culpa de ela não ter conseguido levar a gravidez a termo era dele. Ainda o assombrava pensar que não conseguira persuadi-la a deixar de treinar. Tudo o que conseguira fora abrandá-la ligeiramente. Ela lidara com a gravidez da mesma forma que lidaria com uma lesão – mantivera o treino regular, com algumas cedências à restrição temporária ao seu desempenho. Mesmo com vinte e seis semanas de gravidez, ele não conseguira fazê-la pensar no bebé como algo que ia mesmo acontecer. Uma tarde, conversara com ela sobre isso no velódromo. Tivera mesmo de se atravessar na pista à frente dela para a obrigar a parar, e segurara-lhe no guiador enquanto ela tentava libertar-se. – Por favor – dissera ele. – Por favor, o quê? – Por favor, para. Vais fazer mal ao bebé. Ela tinha a respiração ofegante e estava a escorrer suor. – Não sejas melodramático. Não estou a exagerar. Só tenho de manter o nível básico de fitness, e assim que ele sair posso voltar a treinar a sério para Atenas. – Exceto que assim que ele sair, Zoe, será um ser humano e tu serás a sua mãe a tempo inteiro. Ela acenou e esperou, como se precisasse de mais explicações. – Então? – disse ele. – Estás a dizer-me que o pai é que vai cuidar do bebé? Tenho a impressão de que ele não está envolvido. Ela atirou a cabeça para trás e riu-se. – Tens essa impressão? Ele levantou a mão. – Ouve, não é da minha conta quem é o pai, mas devias pensar em, pelo menos, pedir a ajuda dele. Os bebés dão muito trabalho. É incessante. Precisam de comer e de mudar as fraldas e de colo, dia e noite.

– Eu posso fazer essas coisas. Treinamos o tempo que for preciso e eu encaixo o resto das coisas. – Não é propriamente uma lista de tarefas que eu possa marcar nos intervalos dos treinos. – Então o que é? – É uma vida. É suposto que te preocupes com ela. Zoe olhou para além dele, para a pista. – Claro que me preocupo. – Então desce da bicicleta, Zoe. Tens vinte e três anos. Tudo isto ainda aqui estará para ti quando estiveres pronta para voltar. Mas, neste momento, tens de descer da bicicleta. Zoe olhou para ele. – O bebé é do Jack, Tom. Descerei da bicicleta quando ele fizer o mesmo. Tom ficou tão surpreendido que largou o guiador, e ela estava tão furiosa que pisou os pedais com força e acelerou além de qualquer limite seguro. De cada vez que passava por Tom, ele implorava-lhe que abrandasse, mas isso só a fazia esforçar-se mais. Por fim, ele sentou-se e ficou a observá-la. Depois de vinte voltas, Zoe abrandou, parou, arrumou a bicicleta e fez o arrefecimento nas bicicletas estáticas no centro do velódromo. Tom levou-lhe uma toalha seca e uma bebida isotónica à temperatura ambiente. – Estás bem? – perguntou. Zoe olhou para ele. Estava pálida e tinha olheiras fundas debaixo dos olhos. – Desculpa – disse ela. – Não te preocupes. Eu sou apenas um velho filho da mãe que nunca conseguiu fazer as coisas certas na vida. Simplesmente acho que és capaz de ser melhor do que eu. Colocou a toalha sobre as costas dela, apertou-lhe os ombros e usou uma ponta da toalha para lhe limpar o suor do rosto. Zoe parou de pedalar. Fechou os olhos e encostou a cabeça ao peito dele. Tom não sabia o que fazer com as mãos, por isso deixou-as caídas ao lado do corpo. Ficaram assim durante um minuto, enquanto a bicicleta desacelerava com uma nota pesarosa e decrescente no espaço amplo do velódromo. – Estou tão cansada, Tom – murmurou ela. – Hás de sentir-te melhor – disse ele. – Achas? – perguntou ela. – Tu sentes-te? Tom pensou nisso e depois, como era o treinador dela, disse: – Sim.

Zoe sorriu. – Mentiroso. Quando aconteceu, foi de repente. Ela saiu da bicicleta de exercício, deu dois passos na direção dos balneários e caiu com um grito. Tom correu para ela e Zoe apertou-lhe as mãos. Quando Tom percebeu o que estava a acontecer, quase lhe faltaram as forças nas pernas. Teve presença de espírito suficiente para a ajudar a despir o equipamento de treino do Ciclismo Britânico e a vestir as roupas civis. O que quer que estivesse a acontecer, sabia que seria melhor para ela não ser o centro das atenções. Quando a ambulância chegou, entrou com ela e Zoe apertoulhe novamente as mãos, enquanto revirava os olhos. Quando o paramédico pegou nos papéis e lhe pediu os detalhes da paciente, Tom deu-lhes o apelido de solteira da sua mãe. Ela ainda estava a apertar-lhe as mãos, quarenta minutos depois, quando os paramédicos empurraram a maca para a sala de partos. Despiram-na e enfiaramlhe uma bata do hospital, e Tom teve o cuidado de não olhar enquanto o faziam. Deram-lhe injeções para parar as contrações, mas não fizeram efeito. Uma hora depois de terem chegado, a parteira disse-lhes que nada impediria o bebé de nascer. – É o pai? – perguntou-lhe. Tom abanou a cabeça. – Sou apenas um amigo. Eu espero lá fora. Zoe apertou-lhe as mãos. – Não me deixes sozinha. Por favor. – Fico ali à porta. Ela fitou-o com expressão suplicante. – Por favor. Tom fechou os olhos e depois abriu-os. – Está bem. A parteira olhou para Zoe. – Só para confirmar, pretende que este cavalheiro esteja presente durante o parto? O rosto de Zoe franziu-se na dor de uma contração. Quando passou, olhou para a parteira. – Não tenho mais ninguém. – Isso é um sim? – Sim. Deram-lhe petidina, e gás anestésico e oxigénio, e depois disso as contrações

pareceram aliviar. Tom segurou-lhe na mão e ajoelhou-se ao lado da maca para lhe sussurrar palavras de encorajamento. Trinta e cinco anos antes, não o tinham deixado entrar na sala de partos, mas disse a Zoe aquilo que dissera à sua mulher antes de a levarem. Disse-lhe o que dissera a todos os seus atletas, durante décadas: Respira. Zoe estava esgazeada, por causa do choque e dos opiáceos e do anestésico. Apertou-lhe a mão e gemeu. – Está tudo bem – disse ele. – Está tudo bem. – Sabia que era o que se devia dizer quando não estava tudo bem. Ela virou a cabeça para ele e o seu olhar era frenético. – Tom – disse. – Quando eles me deixarem sair daqui, voltamos imediatamente e acabamos a sessão de treino, está bem? – Respira, Zoe. Temos muito tempo para isso. Ela abanou a cabeça e contorceu-se com dores. – Tenho de voltar. O suor escorria-lhe pelo rosto e a sua mão apertava-o tanto que lhe fez sangue com as unhas. A parteira disse-lhe para fazer força. Tom fez questão de manter os olhos no rosto dela, e Zoe tinha os olhos fechados com força, e os médicos tiraram qualquer coisa mas nenhum deles reparou e ninguém lhes explicou nada. Quinze minutos depois Zoe expulsou a placenta e ambos pensaram que era o bebé. – Vem aí – gemeu Zoe. – Oh, meu Deus, vem aí. Tom sentiu um arco de tensão erguer-lhe o corpo e, quando passou, ouviu o peso flácido de qualquer coisa a sair de dentro dela. Olhou, à espera de ver um recém-nascido. Em vez disso, viu uma coisa ensanguentada, do tamanho de um bife, nas mãos da parteira. Estava envolta numa capa translúcida e gelatinosa. O cordão umbilical pendia dela. Forçou-se a olhar de novo e seguiu o cordão até ao sítio que devia ser o umbigo, tentando encontrar algum sentido naquilo que via. Olhou para a placenta durante imenso tempo, julgando que era a convexidade da barriga, e procurou nas extremidades os sítios onde deviam estar bracinhos e perninhas e um pequeno rosto irritado. Quando não os encontrou, sentiu uma vaga de pânico e uma vergonha lancinante por algo ter corrido terrível e obscenamente mal. No ar havia um cheiro a sangue quente e metálico e a parteira parecia atrapalhada e pouco comunicativa. Estava concentrada agora no que acontecia do outro lado da sala, onde médicos e enfermeiras estavam reunidos à volta de algo em cima de uma mesa, que os seus corpos não o deixavam ver.

Zoe estava deitada, exausta. – Está tudo bem? – perguntou baixinho. Tom apertou-lhe a mão e tentou não vomitar. – Sim – disse. – Está tudo bem. Um auxiliar estendeu a mão enluvada e agarrou na coisa que acabara de sair de Zoe. Tom viu a mão levantar a massa mole para dentro de uma grande bacia de aço inoxidável, tapá-la com um pano verde simples e colocá-la sem cerimónias na prateleira do meio do carrinho de metal ao lado da cama. Claro, pensou – estas pessoas viam coisas destas de vez em quando. Era natural que não se mostrassem sentimentais. Então é isto, pensou. A coisa não era viável. Não conseguia esquecer a imagem das terríveis malformações. Deu graças por ninguém obrigar Zoe a olhar para aquilo. Ajoelhou-se ao lado da orelha dela. – Ouve, querida – disse. – Tenho de ser direto contigo. Era lindo, mas era um nado morto. Zoe olhou para ele e Tom viu o alívio nos seus olhos. Minutos depois, os médicos aproximaram-se com aquilo em que tinham estado a trabalhar. Era uma caixa de acrílico transparente, rodeada de máquinas e perfurada por fios. Lá dentro estava um prematuro minúsculo, muito mais pequeno do que a coisa hedionda que o auxiliar colocara na bacia e levara. Este recémnascido estava quase completamente coberto por tubos de ventilação, tubos de alimentação, uma proteção para a cabeça e pedaços de plástico. Tom perguntouse porque estariam a mostrar a Zoe o bebé de outra mulher. Talvez fosse uma coisa psicológica. Talvez, quando alguém dava à luz uma coisa monstruosa, houvesse pesquisas que indicassem que a mulher precisava de ver uma criança normal imediatamente. – O que é isto? – perguntou-lhes. A parteira ignorou-o e sorriu a Zoe. – É a sua filha, mãe. Zoe agitou a mão educadamente enquanto o auxiliar lhe limpava as coxas com toalhetes húmidos. Explicou aos médicos, clara e calmamente, que não fazia mal – que era simpático da parte deles, mas que não precisava do bebé de outra mulher. Disse-lhes que não era o fim do mundo, para ela, que o seu bebé tivesse nascido morto. Tom viu as reações estupefactas dos médicos e enfermeiros. – Só faltam nove meses para Atenas – explicou Zoe. – Preciso de voltar aos

treinos. Os médicos trocaram alguns murmúrios e levaram rapidamente a bebé para a unidade de cuidados intensivos neonatais. Mesmo quando Tom compreendeu o que acontecera e o explicou a Zoe, ela não parecia sentir qualquer ligação com a coisa na incubadora. Os médicos disseramlhe que a bebé estava a respirar praticamente sozinha. Estavam satisfeitos – com vinte e seis semanas, era a melhor notícia possível. Prepararam uma cama para Zoe ao lado da incubadora e mostraram-lhe como lavar bem as mãos e as enfiar pelas aberturas estanques ao ar na parte lateral da caixa. Queriam que ela tocasse na bebé. Em vez disso, ela adormeceu, esgotada. Tom telefonou a Jack e Kate e chamou-os ao hospital. Eles vieram imediatamente e ficaram ao lado da cama, de mãos dadas. Olharam para a bebé na caixa. Kate suspirou e Jack abraçou-a com força. – É tão linda – disse Kate. – Sim – disse Jack. – Tem a tua carinha. Jack não disse nada; limitou-se a olhar para a filha enquanto as lágrimas lhe deslizavam pelas faces. Kate olhou para Tom. – Ela disse-te que a bebé é do Jack? Ele acenou afirmativamente. Kate olhou para a mão de Jack na sua. – O que é que achas? Tom encolheu os ombros. – Não acho nada. Só estou aqui para ajudar. Todos olharam para Zoe, que dormia, deitada de lado, com os joelhos dobrados. Tinha o cabelo preto colado à cara pelo suor. Havia sangue no lençol, no qual todos tentaram não reparar. Kate acariciou o rosto de Zoe. Ela não se mexeu. Kate ajoelhou-se ao lado da cama dela. – Olha o que aconteceu, Jack – disse, baixinho. – Lamento muito – disse ele. Kate não lhe respondeu. – Ela parece tão fraca. Zoe? Zoe? Oh, meu Deus, será que vai recuperar? – Ela está bem. Os médicos dizem que vai estar em baixo uns dias, mas tu conheces a Zoe. Vai deitar as paredes abaixo se não a deixarem ir para casa depois de amanhã.

Tentou aligeirar o ambiente, mas Kate não estava a sorrir. – Eu devia ter falado com ela. Há meses que não falamos. Nem acredito que a deixei sozinha a lidar com… com tudo isto. Tom tocou-lhe no braço. – Não te culpabilizes. Nenhum de nós sabia bem o que fazer. Kate não tirou os olhos de Zoe. – Vou compensá-la. Ela é minha amiga. E agora, olha para ela… olha para todo este sangue… e ela não tinha ninguém. Tom acenou. – Mas olha para a bebé. Não me digas que não é linda. Não há nada a lamentar. Todos olharam em silêncio enquanto a pulsação da bebé apitava suavemente no monitor ligado à incubadora. Kate endireitou-se e virou-se para Jack. – O que é que vais fazer? – Não sei. – Queres ficar aqui com a Zoe e… e a tua filha? Queres que eu saia? Ele abanou a cabeça. Kate abraçou-o pelo pescoço e encostou o rosto ao dele. – Mas devia – sussurrou ela. – Pensava que ia aguentar, mas não faço parte disto. Devia ir-me embora. Olhou para ele, perfeitamente desesperada, e dirigiu-se rapidamente à porta. Parou antes de sair e Jack soergueu-se do sofá, mas o desespero surgiu de novo nos olhos de Kate e ela saiu. Jack levantou-se, fitou Tom nos olhos e acenou tristemente. – Oh, rapaz – disse Tom. Abraçaram-se, brevemente. Jack virou-se de novo para a incubadora. Pousou ambas as mãos na parte de cima e olhou para a cara da filha. – Café? – ofereceu Tom passado algum tempo. – Obrigado. Tom saiu e esteve fora do quarto vinte minutos. Encontrou uma máquina de venda automática, comprou um chocolate e comeu-o lentamente, para dar tempo a Jack de organizar as ideias. Tirou dois copos de café de outra máquina e empurrou as portas da UCIN com as costas. Quando regressou ao quarto, Zoe ainda estava a dormir e Jack tinha as mãos dentro da incubadora e estava a acariciar muito suavemente a face da bebé com a ponta do dedo. – Achas que ela ficará bem? – perguntou. Tom pousou o café de Jack na mesa de cabeceira de Zoe.

– Não sei. Os médicos dizem que ela nasceu com vinte e seis semanas. Nem sequer sei se isso é muito ou pouco. Jack acenou lentamente, ainda a olhar para a incubadora. – Achas que eu sou um imbecil, não é? – Estás a falar comigo ou com a bebé? – Contigo. Tom bebeu um gole de café. – Não acho que sejas um imbecil. Fizeste asneira, apenas isso. É o nosso principal papel, enquanto pais. Jack riu-se tristemente. – Eu fi-lo um bocadinho mais cedo do que a maioria. – Bom, eu sempre disse que eras espetacularmente rápido. Jack olhou para a incubadora. – Achas que ela está bem ali dentro? – Provavelmente está a olhar através do vidro e a pensar o mesmo de ti. Parece muito confortável. – Tens fome? – Não. Comi um Twix lá fora. Jack não respondeu e Tom percebeu que ele estava a falar com a bebé. – Jack – disse. – Tens estado frequentemente com a Zoe? Jack abanou a cabeça. – Dormi com ela uma vez. Depois de a Kate ter acabado comigo. Foi uma altura complicada. – Achas que eras capaz de viver com a Zoe? Criar a miúda? Jack virou-se para a ver dormir. – Vou ajudá-la a criar a miúda – disse, por fim. – Então, nada de famílias felizes? Jack olhou para ele. – Não a amo. E ela também não me ama. Acho que foi preciso dormirmos juntos para percebermos isso. Tom desviou o olhar. – O que foi? – perguntou Jack. – Que raio se passa com os tipos da tua idade? Têm respostas psicológicas para tudo. Olha para a Zoe. Olha para ela. É terrivelmente frágil e a única coisa que faz sentido na sua vida é ir a Atenas. E agora tem uma bebé e tu não sofres qualquer consequência. Se fosse noutros tempos, eu levava-te para o mato e davate uma tareia até assumires as tuas responsabilidades.

Jack fitou-o nos olhos. – Não és pai dela – disse, calmamente. Tom devolveu o olhar, com o sangue a ferver. Estava tão furioso que seria capaz de lhe dar um soco. Lentamente, o seu coração acalmou e olhou para o chão. Baixou os ombros. – É verdade – disse. Jack recuou um passo e passou as mãos pelo cabelo. – Preocupo-me com a Zoe, mas o que hei de fazer? Em termos emocionais, ela está aqui, em relação a mim. – Com a mão, indicou um ponto meio metro acima da sua cabeça. – Acho que podia cuidar de um bebé, mas não sei como cuidar dela, nem quero fazê-lo. Não a amo, amo a Kate. Tom olhou para Zoe. A dormir, a dureza desaparecera-lhe do rosto. Tinha as mãos debaixo do rosto e as narinas estremeciam levemente de cada vez que respirava. Parecia muito jovem. Tom disse: – Acho que posso cuidar dela, mas não me parece que ela possa cuidar da bebé. Sob as luzes frias da UCIN, Tom e Jack não disseram nada durante muito tempo. Tom acabou de beber o café. Um pouco das borras espessas passou-lhe para a boca e triturou-as entre os molares, saboreando o gosto amargo e escuro. Phil Collins ainda estava a cantar que conseguia sentir algo a aproximar-se no ar, esta noite. Tom estava bastante certo de que, se Phil se tivesse dado ao trabalho de expressar o problema um pouco mais honestamente, Tom conseguiria ajudá-lo a decompô-lo nas suas partes constituintes e a resolvê-lo. Era assim que funcionava, como treinador. Quando a pessoa era honesta em relação ao desafio, havia sempre uma forma de o decompor. Zoe não queria a bebé; Jack não queria Zoe. Depois de Tom colocar a questão nestes termos, a solução parecera simples. Ele mandara Jack, Kate e Zoe afastarem-se durante uma semana, para dar espaço a todos para pensarem no assunto, e ficara no hospital com a bebé. Uma semana depois, Zoe estava de volta aos treinos, aos poucos, e Tom ajudava as enfermeiras a mudar as fraldas minúsculas da bebé e a trocar os cilindros da sonda alimentar. Dormia na cama que eles tinham preparado para Zoe e comia o que tirava das máquinas de venda

automática. As enfermeiras chamavam-lhe avô, e Tom descobriu que era mais fácil não as corrigir. Ligava a Zoe todos os dias e pedia-lhe para ir ao hospital, e às vezes ela aparecia. Tom sentava-se com ela enquanto ambos olhavam para as mãozinhas minúsculas da bebé a enxotar moscas invisíveis dentro da incubadora. – Não queres pegar-lhe? – perguntou Tom. Zoe torceu as mãos. – Não consigo sentir nada por ela. – Não consegues, ou não consegues deixar-te sentir? Zoe ainda não tirara os olhos da bebé. – Será melhor para ela não estar comigo. – Mas tens a certeza de que queres que o Jack fique com ela? Como sabes que não pensarás de maneira diferente daqui a alguns meses? Zoe dobrou os joelhos até ao queixo e olhou para a bebé. – Não tem nada a ver com o que eu penso. Tem a ver com o que eu sou. Não serei boa para ela, Tom. Passados alguns dias, numa das visitas de Zoe, Tom disse: – Pelo menos dá-lhe um nome. – Sophie – disse ela, sem hesitar. – Oh, tens andado a pensar nisso. – Passo o tempo a pensar nela. Não consigo pensar noutra coisa. – Porque é que não disseste nada? Zoe fechou os olhos. – Não sabia se podia dar-lhe um nome. Não sabia se tinha esse direito. Ele abraçou-a. – Dá-lhe o máximo que conseguires. É tudo o que qualquer um de nós pode fazer. As enfermeiras escreveram Sophie na pulseira da bebé e na sua ficha. Um otimismo silencioso instalou-se na UCI, agora que a menina estava ligada ao mundo por mais do que tubos de alimentação e respiração. O pessoal do hospital parecia mover-se com mais ligeireza e falava em tom mais animado. Tom gostava do nome. Havia nele algo suave e esperançoso, adequado a uma criança cuja reivindicação à vida ainda era provisória. Quando Jack voltou ao hospital, Kate veio com ele. Substituíram Tom, fazendo turnos para um ficar com Sophie enquanto o outro treinava. Tom viu Jack tornarse num pai apaixonado e viu Kate apaixonar-se também pela bebé. Observou-os durante um mês, com a mesma atenção cautelosa ao posicionamento e à linguagem corporal que dava aos seus atletas na pista. Depois, quando teve a certeza de que

ia resultar, ajudou-os a tratar dos documentos. Jack ficou com a custódia, Zoe com direito de visitas, e os jornais tiveram uma história completamente diferente. A imprensa teria destruído Zoe se ela tivesse desistido da filha, por isso Tom mandou a agente dela dizer-lhes que o bebé nascera morto. Foi a única notícia relacionada com ciclismo que os jornais principais publicaram em toda a época baixa. Durante algum tempo, chamaram-lhe CORAJOSA ZOE, ou TRÁGICA ZOE, e publicaram fotografias dela a sair dos treinos de óculos escuros. Três meses depois, Sophie estava suficientemente forte para deixar o hospital com Jack e Kate. Esperaram mais um mês e depois anunciaram, através do gabinete de imprensa do Ciclismo Britânico, que Kate dera à luz uma filha e não competiria nessa época, mas que esperava estar em forma para Atenas. Ela não deu entrevistas, e Tom sussurrou ao ouvido de um ou dois repórteres que era por consideração à perda de Zoe. Jack fez um segmento de três minutos no programa matinal da BBC e saiu um artigo ligeiro e engraçado sobre as agruras do papel de pai no The Times, com uma fotografia dele a pegar cuidadosamente em Sophie, vestido com o equipamento de treino, baseado em algumas frases vagas que ele dissera aos subeditores do jornal por telefone. Uma vez que tudo acontecera no inverno, e Kate não era vista em público desde os Mundiais, ninguém fez perguntas. Era apenas mais uma atleta promissora que pusera a família em primeiro lugar; Jack era apenas mais um tipo atraente que caía nas graças do público com uma anedota sobre cocó espalhado por todo o lado na mudança da fralda. Tom gerira toda a farsa. Decompusera cada problema nas suas partes constituintes e resolvera-o. E, nos anos que se seguiram, sempre que Zoe se decompusera em várias partes, fizera o seu melhor para a resolver também. A canção de Phil Collins chegou ao fim. Tom afastou a chávena e olhou para a fotografia no jornal, de Zoe e Kate. A partir de agora, todos os dias os jornais iam elevar a temperatura. Sabia que não conseguiriam todos aguentar três meses assim, antes de as eliminatórias para os Jogos Olímpicos decidirem qual das raparigas ia competir em Londres. Mais cedo ou mais tarde, algo ia quebrar. Zoe faria alguma estupidez, ou Kate ir-se-ia abaixo sob a pressão, ou algum jornalistazeco descobriria a verdade sobre Sophie. Quando decompunha este problema, ele tinha duas partes: uma, que a comunicação social estava em cima da rivalidade entre Zoe e Kate; e duas, que tinham três meses inteiros para a fazer render. Deixou uma nota de cinco debaixo da chávena, endireitou-se e tomou a sua decisão. Não podia mudar a comunicação social, mas havia uma forma de

encurtar o tempo. Acenou ao empregado, saiu com os joelhos rígidos para a luz do dia e telefonou às raparigas, uma a seguir à outra. Beetham Tower, Deansgate, número 301, Manchester Ainda era cedo quando Zoe desligou o telefone, o pousou no balcão da cozinha e se dirigiu à janela. Estava uma manhã clara, com pequenas nuvens fofas a pairar entre a linha do horizonte e o céu. Observou as suas sombras ao nível da rua. Os intervalos entre as sombras eram surpreendentemente regulares. Daqui de cima, era possível reparar em padrões que pareciam aleatórios quando se vivia ao nível do solo. As nuvens dispunham-se no céu com o mesmo instinto de separação que as pessoas exibiam em grupos grandes. Havia muitas nuvens no céu, mas nunca as víamos colidir. Não havia qualquer atrapalhação na forma como as sombras alinhadas marcavam as manchas do tempo nos telhados da cidade. Encostou a mão ao vidro para se equilibrar e levantou os tornozelos para alongar os quadríceps. Tom ligara para perguntar se ela concordava em correr contra Kate na manhã seguinte e aceitar o resultado. Seria melhor despachar já o assunto, dissera ele, do que andarem três meses a arrancar cabelos enquanto esperavam pela eliminatória oficial. Ela dissera sim sem pensar, como sempre dissera sim a Tom. Lá em baixo no centro da cidade, em Princess Street e ao longo de Portland Street, viu os anúncios com o seu rosto. Se perdesse com Kate no dia seguinte, não haveria outra campanha. A sua cara seria tapada por outros anúncios. Aqui e ali, nos subúrbios, por causa da economia, podiam ficar alguns cartazes órfãos. O verde seria a última cor a desvanecer-se. Primeiro seria a cor da sua pele, depois o prateado dos cubos de gelo no copo que tinha na mão. Por fim, restariam apenas os olhos, com a mancha de bâton verde e a franja de cabelo verde, coloridos em pós-produção. Ela olharia para as ruas cinzentas do branco de anúncios desbotados. Estremeceu e afastou essa imagem. Não podia pensar nesse desfecho. A única maneira de se despedir do desporto seria no cimo do pódio em Londres. Tom devia pensar que ela ia vencer Kate, ou não lhe teria pedido que competisse. Ele sabia que ela não fora feita para sobreviver a um desaparecimento lento. A única coisa que a mantinha viva era vencer, e, sem a vitória, restava apenas a

escuridão e o desespero. Era assim desde que se lembrava. Nascera numa ambulância, depois de um trabalho de parto muito rápido, e o primeiro som que ouvira fora as sirenes. O que podia fazer, quando nascera debaixo de uma luz azul a piscar em vez de uma estrela? Só podia tentar adiantar-se ao destino. Só podia contar calorias, e fazer trezentos abdominais todas as manhãs, e transformar o corpo no seu lar. Aos dez meses, ela já gatinhava mais depressa do que os outros bebés. Quando havia bolachas e rocas para alcançar, ela alcançava-as primeiro. Aos onze meses, já andava enquanto os outros mal se equilibravam. As fotografias antigas mostravam-na como uma mancha em movimento, no seu pequeno vestido. Com dois anos, corria com os cotovelos espetados para fora, para que nenhuma das outras crianças pudesse ultrapassá-la. A mãe arranjara-lhe bicicletas em segunda mão até aos dez anos. Depois, na manhã do seu aniversário, correu escadas abaixo e encontrou à espera a sua primeira bicicleta novinha em folha. Estava embrulhada em dois papéis diferentes, um amarelo-canário, o outro encarnado com estrelas. Um rolo de papel não fora suficiente. A bicicleta era cor-de-rosa com pneus brancos, tinha fitas brilhantes nas pontas do guiador e um cesto para levar a boneca. Zoe não adorava a sua boneca, não tão cegamente que tencionasse dar-lhe boleias de graça, por isso desaparafusou o cesto para tirar peso à bicicleta. Alargou os parafusos com a ponta de um descascador de cenouras e depois desenroscou-os com as unhas. Cortou as fitas brilhantes do guiador com a tesoura de cortar cabelo da mãe. Sabia que os rapazes eram mais rápidos nas suas bicicletas, e pensou que talvez as fitas fossem a diferença. Deixou-as à vista no meio do chão, sem se dar ao trabalho de as apanhar, apesar de saber que teria problemas por causa disso mais tarde. No entanto, se o mais tarde tivesse importância, devia chegar mais cedo. Chamou o irmão, Adam, e disse-lhe para descer porque era altura de uma corrida. Adam tinha sete anos e meio e era muito mais pequeno do que ela. Punha-se em bicos de pés quando a mãe marcava a sua altura na ombreira da porta, mas mesmo assim a marca dele ficava uma cabeça abaixo da de Zoe. Tinham ambos o mesmo cabelo, de um preto azulado e reluzente. Era a mãe que lhes cortava o cabelo, enquanto eles se sentavam num banco de três pernas no meio da cozinha, a abanar as pernas e a ouvir o programa dos tops na BBC Radio 1. Debbie Gibson e os Fine Young Cannibals. Não importava se era o filho ou a filha: o corte de cabelo que a mãe lhes fazia era o mesmo que Luke Skywalker tinha no primeiro filme da Guerra das Estrelas, aquele em que ele viajava através da galáxia sem encontrar ninguém que o chamasse à parte e lhe dissesse: Escuta, Luke, ou o deixas crescer,

ou o cortas como deve ser para mostrar essas bonitas maçãs do rosto. Zoe queria ser um rapaz, e incomodava-a que Luke não tivesse jeito para o ser. No entanto, a mãe cortava-lhe o cabelo curto, e tinha de se contentar com o penteado à Skywalker. Antes Luke do que Leia. Partilhavam uma cama no pequeno quarto debaixo da empena e, quando a mãe subia a escada para os acordar, todas as manhãs, eles estavam enrolados um no outro, com os olhos inchados do sono, ou então acordados e a discutir os detalhes de um sonho que tinham partilhado. A mãe vestia-os mais ou menos de igual, mas punha ganchos de borboletas no cabelo de Zoe, que Zoe por vezes conseguia convencer Adam a usar se assumisse a responsabilidade pelo chichi que ele fizera na cama. Além do cabelo, Adam tinha os mesmos olhos verde-jade e a mesma habilidade para já não estar na sala quando a outra pessoa terminava a frase. Tinham aprendido o truque de viver depressa e depois fugir a toda a velocidade antes de se meterem em sarilhos por isso. Assim, claro que ela chamou Adam quando chegou a altura de testar a sua bicicleta nova, descendo do cimo de Black Hill, até ao fundo. As fitas do guiador ainda estavam no chão da cozinha, todas misturadas com os cabelos pretos do corte que a mãe lhe fizera para o dia do seu aniversário. Ela devia tê-los varrido, mas não tinha tempo. Esse tipo de tarefas, quando se tem dez anos, demora para aí dois séculos. Viviam numa pequena casa com terreno ao fundo de uma estrada comprida. O pai deixara-os quando Zoe tinha quatro anos, portanto era a mãe que fazia tudo. Além de Zoe e de Adam havia quatro dúzias de galinhas de Bantam e nove ovelhas Jacob. As ovelhas tinham quatro cornos e olhos demoníacos – pareciam Lúcifer com um casaco de lã. Não havia muita coisa para fazer, além de olhar para as ovelhas, e não havia muitos carros nas estradas, por isso eles iam de bicicleta para onde queriam. Black Hill era a montanha local. Tinha sessenta e cinco metros de altura, a altitude máxima a que um ser humano podia subir sem precisar de oxigénio suplementar. Do cimo da colina conseguiam ver a curvatura da Terra, se virassem a cabeça ao contrário num ângulo específico. No dia do aniversário dela estava calor. Era a parte mais viva do verão, a parte em que se conseguia mesmo ver as plantas a crescer pelo canto do olho – embora parassem assim que se olhava diretamente para elas. O trigo estava a rebentar mas ainda era fresco e verde, com papoilas e flores azuis salpicadas pelo meio. Pedalaram pela estrada, a cantar «Back to Life», dos Soul II Soul, tirando as mãos do guiador para bater palmas ao ritmo da música. As andorinhas mergulhavam no ar e desapareciam novamente nas alturas. Quando chegaram ao sopé de Black Hill, desmontaram e empurraram as bicicletas. A colina era demasiado íngreme.

Partilharam uma garrafa de água, uma daquelas garrafas de alumínio que os ciclistas profissionais usavam nos velhos tempos. Estava amolgada e riscada, com meros vestígios da tinta original. Adam bebeu várias vezes dela e com ruído, para se certificar de que Zoe via como isso o fazia parecer profissional. Também o fez ter de parar para fazer chichi. Zoe fechou os olhos, ouviu e fingiu que o som da urina de Adam era da sua, a dispersar os insetos e a infiltrar-se no solo e a libertar os aromas sombrios de barro e pederneira fresca. Supunha que os rapazes tomavam como garantida esta consolação. Por piores que as coisas fossem, podiam sempre fazer as formigas fugir e os escaravelhos debandar para terreno mais elevado. No cume de Black Hill, pararam para recuperar o fôlego. Colocaram os capacetes de ciclismo. Estava-se em 1989. Antes de a segurança ter sido inventada. No entanto, Greg LeMond acabara de vencer a Volta a França com um capacete aerodinâmico futurista – aparecera nos noticiários – portanto ela e Adam tinham feito capacetes aerodinâmicos com rede de arame, cola e jornal. O jornal era o Daily Telegraph, que a mãe comprava. Por baixo da cola, no capacete de Zoe, era possível ver três quartos da fotografia do homem na praça de Tiananmen, de pé em frente dos tanques. O homem dos tanques era famoso por ser lento. Quatro tanques a avançarem sobre ele, todos os nervos do seu corpo a gritarem-lhe que corresse, e, de alguma forma, ele não se mexera. Era o único tipo de corrida possível de ganhar com a imobilidade. Adam e Zoe pararam ao lado do carvalho que usavam sempre como linha de partida e viraram as bicicletas para a descida. A estrada tinha dois metros de largura e estava ladeada de faias que formavam uma espécie de túnel. A luz era verde e suave. Ela ficou do lado esquerdo e deu a direita a Adam. Era mais velha, por isso podia dar-lhe ordens. Escolheu o lado esquerdo porque o caminho curvava para a esquerda ao longo de toda a descida, portanto o seu lado da estrada era mais curto. Tinha uma pista mais curta e uma bicicleta nova com rodas direitas. Ia deixar Adam a quilómetros. Ele olhou para ela e sorriu. Nunca percebia porque é que perdia sempre as corridas com ela. Ou talvez soubesse, mas não lhe interessava. Adam não dava tanta importância como ela. Os seus capacetes estavam presos com um cordel. Era possível ler um fragmento da manchete na parte da frente do capacete de Adam. Dizia REGOZIJO POR. Ele sorriu sob a luz verde, com os intervalos onde os dentes definitivos ainda não tinham crescido, e havia o cheiro de plantas em flor no trilho e REGOZIJO POR. Zoe interrogou-se: porquê? Fizeram a contagem decrescente a partir de cinco e puseram-se de pé nos pedais. Ela começou a afastar-se de

Adam. Pouco depois, pedalavam como loucos. Zoe conseguia ouvir a respiração ofegante de Adam e ele a rir-se ao mesmo tempo. Quanto mais o irmão tentava apanhá-la, mais depressa ela pedalava. Iam tão depressa que os olhos dela se encheram de lágrimas. Não via grande coisa, mas não havia muito para ver – apenas as rampas elevadas ao lado da estrada, entre as quais tinham de se manter. O ar rugia-lhe nos ouvidos e estava a gritar de entusiasmo, e Adam também. Havia uma velocidade em que a bicicleta começava a vibrar, e as vibrações através do guiador e do selim deixavam-na num transe de concentração. Reparava em tudo. Cada estalido das asas a abriremse quando uma joaninha na erva alta se assustava com a sua aproximação. Cada pedrinha que os pneus arrancavam do asfalto e atingia o aço da estrutura da bicicleta. O tempo tinha uma qualidade de indecisão. Tudo era invulgarmente rápido e invulgarmente lento. Gritou, excitada. Adam gritou também, mais atrás. A seguir à curva, um carro subia a colina a acelerar, negro e silencioso contra o rugido da deslocação do ar, e impossivelmente perto. Zoe viu a cara da mulher que o conduzia. Viu-a formar um O com a boca. Tinha um bâton rosa-choque, pouco natural. Zoe estava encostada à rampa do lado esquerdo e a condutora ao seu lado esquerdo, e Zoe passou a toda a velocidade pelo espaço entre o carro e a rampa do seu lado. Estava surpreendida. Pensou: Não se costuma ver muitas mulheres de bâton por estes lados. Depois ouviu o estrondo, que foi muito mais alto do que o fim do mundo, e continuou a pedalar. Sabia que não seria verdade, a menos que ela olhasse para trás. Tinha a certeza de que, se conseguisse pedalar mais depressa do que a notícia, a notícia nunca a alcançaria. Foi esta a hora em que ela começou a emergir distintamente do fluxo principal do tempo. Ela e o tempo eram como azeite e vinagre misturados e deixados em cima de uma mesa: começavam a separar-se em água e magia. Pedalou sem parar durante quarenta quilómetros e, quando a polícia finalmente a encontrou, era crepúsculo e ela estava numa estrada de duas faixas, a cambalear de exaustão, enquanto os camiões TIR se desviavam e lhe buzinavam. Estava delirante. Perguntou aos polícias se estava metida em sarilhos por ter cortado as fitas das pontas do guiador e as ter deixado no chão da cozinha. Eles puseram-na no banco de trás do carro da polícia, tiraram-lhe o capacete de papel e pousaramno no banco ao seu lado. Levaram-na para o hospital e deram-lhe fluidos e, mais tarde, deram-lhe a notícia. A mãe veio ao hospital na tarde seguinte e levou-a para casa, em silêncio. As fitas brilhantes e os cabelos ainda estavam no chão da cozinha. A mãe foi para a

cama sem dizer uma palavra e ficou no quarto dez dias, até a sua mente a deixar atender o telefone e dar consentimento para tirarem Adam da câmara frigorífica na morgue e o levarem para a igreja, para ser cremado. Chegaram cartões e flores. Zoe não parecia tão certa de que estava tudo acabado como todas as pessoas pareciam insistir. Várias vezes por dia, subia até ao cume de Black Hill e descia novamente a colina, o mais depressa que podia. O acordo era, se ela conseguisse pedalar mais depressa do que nunca – se conseguisse ser mais rápida do que o tempo – então olharia para o lado e Adam estaria ali outra vez, a pedalar ao seu lado. Tinha a certeza de que conseguiria trazê-lo de volta. Afinal de contas, fizera tantos acordos destes quando era pequena, e cerca de metade resultava e a outra metade não. Uma vez, na noite de Natal, dormira no seu saco-cama no chão, deixando a cama para Jesus dormir. De manhã, fora ver se alguém tinha dormido na almofada. Não tinha. Mas, de outra vez, passara por uma raposa que fora atropelada na estrada, sem uma marca, ainda quente e de olhos brilhantes como fogo negro, e fizera o acordo de que, se a levasse até debaixo de uma faia e deixasse bolotas ao pé da cabeça dela para quando acordasse, então a raposa ressuscitaria. E quando voltara no dia seguinte, a raposa desaparecera, e isso era prova de que resultara. Se conseguira enganar o tempo por uma raposa, podia tentar roubar-lhe o seu irmão. Desceu Black Hill uma e outra vez, mais e mais depressa, e sempre que olhava para trás e Adam não estava lá, pensava: Para a próxima, serei ainda mais rápida. Nunca mais perderei uma corrida. Não se lembrava de um dia em particular em que deixara de acreditar que vencer traria Adam de volta. Não sabia quando deixara de olhar para trás quando corria, para ver se ele vinha atrás dela. Simplesmente cresceu, aos poucos, e o tempo, com o seu olho egoísta, construiu um monumento a si próprio com as memórias dela, erguendo-o das planícies da sua experiência até lhe bloquear a visão do passado. Barrington Street, número 203, Clayton, zona leste de Manchester Enquanto Kate ainda estava ao telefone com Tom, Sophie desceu as escadas, agarrada com força ao corrimão e de olhos franzidos por causa da luz. – Tom – disse Kate –, tenho de desligar.

– Claro. Aceitas? – Sim. Eu corro contra ela. – Podemos esperar mais algum tempo, se quiseres. Uma semana ou duas, se precisares de te preparar mentalmente. Ela fechou os olhos por um momento enquanto pensava nisso. – Não – disse. – Estou preparada para competir amanhã. – Posso ajudar-te com alguma coisa? Precisas de rever alguma coisa comigo? – Não – disse Kate. – Preciso apenas que tenhas a minha bicicleta pronta. – Linda menina – disse Tom. – Então amanhã ao meio-dia, está bem? Vem às onze, para aqueceres. – Está bem. Kate enfiou o telemóvel no bolso e abraçou Sophie. – Está tudo bem? – perguntou. Sophie estava inchada do sono. Interrompeu o abraço e olhou para Kate como se estivesse a tentar localizá-la na taxonomia geral das espécies. – Desculpa – disse, em voz rouca –, mas que planeta é este? – É hora do pequeno-almoço no planeta Terra – disse Kate. – Rice Krispies ou banana às rodelas? – Rice Krispies. Pertences ao Império ou aos Rebeldes? – Aos Rebeldes. Sumo ou chocolate quente? – Sumo. Onde está o papá? – A treinar. Sophie gemeu e sentou-se à mesa da cozinha com a cabeça nas mãos. – Sentes-te bem, querida? – Sim. – De certeza? Sophie puxou os joelhos para o queixo e olhou para a janela da cozinha sem dizer nada. Kate sentiu um aperto no peito. Apertou Sophie contra si, reparando na sua magreza. Parecia que havia menos Sophie de dia para dia. Kate fechou os olhos e inspirou o cheiro da filha. Amara Sophie desde aquela primeira semana no hospital. Ficara totalmente absorvida – adorara-a desde o momento em que a vira na incubadora. Simplesmente parecia-lhe óbvio que ninguém tão pequenino devia ter de sobreviver sozinho. Depois de passar semanas sentada com ela no hospital, com o

coração a dar um salto de cada vez que o corpinho invulgarmente imóvel mexia um braço ou abria um olho, já se sentia como se Sophie fosse sua. Adaptara-se naturalmente ao trabalho de cuidar dela, de enfiar a mão na incubadora para ajeitar os tubos, ou de a lavar cuidadosamente com um pano húmido aquecido. Fora principalmente ela que cuidara de Sophie. Jack fazia os seus turnos sem reclamar, mas Kate tinha dificuldade em deixar Sophie quando era a sua vez de ir treinar. Sentia sempre que podia fazer mais qualquer coisa. Quanto mais tempo passava com Sophie, mais em sintonia ficava com os ritmos subtis do seu sono e alimentação, e mais aprendia a trabalhar com esses ritmos, com o objetivo de a tornar saudável. Quando levaram Sophie para casa, reafirmaram o seu compromisso de dividir igualmente os cuidados da menina, mas sempre que via as tentativas desastradas de Jack para cuidar de Sophie, Kate encontrava mais um motivo para ficar e ajudar. Conseguia fazer todas as partes desta nova rotina, exceto pegar no seu saco de equipamento e afastar-se da filha, nem que fosse por apenas cinco horas. Por fim, Jack acabou por treinar muito melhor do que ela. Um mês antes dos Jogos Olímpicos ele já conquistara o seu lugar na equipa e Kate falhara nas provas de seleção. Registou o facto com um choque aturdido, que enterrou debaixo da rotina de cuidar de Sophie. Depois a dupla desilusão, quando o pediatra lhes disse que o sistema imunitário de Sophie ainda não estava suficientemente desenvolvido para lhe permitir viajar. Era perfeitamente normal, com bebés prematuros – nada que não se pudesse esperar que o tempo resolvesse, disse-lhe ele – mas, entretanto, Kate teria de ver os Jogos pela televisão. Quando os bilhetes de avião dele chegaram e a realidade da sua exclusão começou finalmente a magoar, ela fez um acordo com Jack. Depois de Atenas, fariam turnos iguais com Sophie e ambos competiriam em Pequim. Fora esse o acordo. No fim, ficar de fora não foi tão duro como ela imaginara. Ela e Jack sempre tinham planeado ter filhos um dia, depois de as suas carreiras na pista terminarem. Se pensasse nisto como um acidente normal – como se se tivesse esquecido de tomar a pílula – era mais fácil. Disse a si própria que Sophie não era diferente de uma em cada três crianças: não planeada, mas não indesejada. Ficou feliz pelos sucessos de Zoe e, no dia seguinte, não sentiu nenhuma emoção mais complexa do que alegria quando viu Jack conquistar também o ouro. E depois, quando ele a pediu em casamento do lugar cimeiro do pódio, gritou «SIM!» no meio da sala, a mais de três mil quilómetros de distância, sozinha com Sophie em frente da pequena televisão. Vinte minutos depois, tinha uma dezena de

fotógrafos em frente da casa e uma equipa de filmagens deixou-a falar com Jack em direto. – Sim – disse ela de novo, desta vez mais calmamente. – Sim, quero casar contigo. À porta de casa, Sophie sorriu nos braços dela e essa foi a fotografia na primeira página de todos os jornais do dia seguinte. Alguém colocara uma bandeira britânica à volta das duas para a fotografia. Depois de Atenas, surgiu um patrocinador para Jack. A Nike foi muito generosa. Podiam ter-se mudado para uma casa maior, algures nos subúrbios a sul, num sítio sossegado e simpático, mas decidiram não deixar esta rua normal perto do velódromo. Queriam ficar na vida real. Encheram o pequeno quintal com um trator de plástico, uma caixa de areia, um pequeno trampolim. Festejaram o primeiro aniversário de Sophie em março de 2005, não na data do seu nascimento mas no dia em que a tinham trazido para casa do hospital. O pai de Jack embebedou-se, tirou a máscara de oxigénio da qual já estava dependente na altura e disse a Kate: – Para ser honesto, agora que somos família, é melhor mesmo deixares esses disparates da bicicleta para trás. O único motivo pelo qual o ciclismo feminino é falado nos jornais é por causa das mamas nos fatos de Lycra, e não queremos que a mãe da nossa neta tenha esse tipo de tratamento. Ela riu-se e ficou contente por Robert lhe ter chamado mãe de Sophie, mas no dia seguinte fez duzentos e vinte e cinco quilómetros de bicicleta. Deixou Sophie com Jack e saiu antes de o dia nascer na sua bicicleta de treino. Virou à direita ao fundo de Barrington Street, pedalou cento e dez quilómetros até Colwyn Bay, comprou um pacote de batatas fritas e comeu-as enquanto olhava para o mar da Irlanda. Era a única à beira de água, sob a chuva miudinha. Depois voltou para casa. Tomou duche, fez o chá para Sophie, levou os pais de Jack ao autocarro de regresso a Edimburgo e telefonou a Tom para lhe dizer que estava pronta para regressar aos treinos. Tom e Dave ajudaram-nos a dividir o dia em quatro blocos de quatro horas. Das seis às dez, das dez às duas, das duas às seis e das seis às dez. Cada um deles fazia dois blocos de treino e dois blocos com Sophie. Depois dormiam oito horas, acordavam e começavam tudo de novo, todos os dias, durante três meses, sem qualquer discussão. Quando o pai de Jack morreu, isso interrompeu a rotina durante uma semana. No cemitério, de mão dada debaixo de um chapéu de chuva, viram o caixão baixar para a cova. Uma coroa de cravos brancos formava a palavra PAI. Os

coveiros tinham-na tirado de cima do caixão e colocado sobre a relva artificial, a apanhar chuva. Kate não sabia se era suposto que a levassem para casa com eles. A coroa não tinha nenhum anagrama útil; nenhuma aplicação óbvia em tempo de paz. Deveriam decompô-la, removendo os cravos um a um e colocando-os numa jarra? Ou manter o arranjo intacto, no parapeito da janela da cozinha, até ao momento em que pudesse ser decentemente colocada no lixo? Quando o pai de Kate morrera, nunca lhe passara pela cabeça soletrar algo com flores, e agora perguntava-se se isso significaria que o amara demais, ou de menos. Apertou a mão de Jack e disse: – Como estás? – Não sei. Pergunta-me depois de Pequim. – Ainda faltam três anos. Ele fungou. – Três anos e dois meses. Falaremos disso quando ambos tivermos medalhas de ouro ao pescoço. Intensificaram o treino até o ímpeto ser imparável. O frigorífico estava repleto de bebidas desportivas de recuperação e Tupperwares de comida para criança. A rotina era interminável. O chão do chuveiro nunca estava seco. Cuidar de Sophie, treinar, duche, cuidar de Sophie, treinar, duche. Dormir. Repetir. O domingo era o dia de recuperação. Lavavam os equipamentos de Lycra. Congelavam carne com molho à bolonhesa em saquinhos com etiquetas com os dias da semana. O evento de regresso de Kate foram os Campeonatos Nacionais Britânicos no outono de 2005. A logística era mais complicada do que a prova. Ela e Jack tinham de coordenar eliminatórias, arrefecimentos, hidratação, nutrição, finais, cerimónias de entrega de medalhas e Sophie. O pessoal do Ciclismo Britânico foi fantástico. Uma das raparigas tomou conta de Sophie no último dia, quando a intensidade da competição atingiu o auge. Andava pela área técnica do velódromo com Sophie ao colo e Kate riu-se e disse aos jornais que a sua filha era a única bebé na Grã-Bretanha com um treinador pessoal. Beijou Jack. Estava perfeitamente feliz. Venceu a perseguição individual, o contrarrelógio de 500m e o sprint. Venceu Zoe nas finais de todas essas provas. Jack venceu também os seus eventos, mas era Kate que estava na primeira página dos jornais no dia seguinte. O REGRESSO DOURADO DE KATE, com uma fotografia sua no pódio. Flores num braço, Sophie no outro. Sophie piscava os olhos aos flashes como um morcego despertado do seu sono. Queria brincar com as medalhas de Kate. Punha-as ao pescoço. Ria-se e as câmaras adoravam-na e Kate tornou-se no rosto da Mothercare. Pagaram a

hipoteca da casa deles e instalaram a mãe de Jack num bonito bungalow novo na comunidade onde ela insistia em ficar. À medida que Sophie crescia, Tom adaptava os blocos de treino de Kate às horas que a menina passava na creche. A primeira palavra de Sophie foi «Adeus!». A sua fala estava muito atrasada, mas eles não deram importância. Ela era feliz e linda. A sua segunda palavra foi «Mãteiná», que significava «A mamã está a treinar». Dormia no meio dos dois. Kate adorava quando estavam assim os três, debaixo do edredão quentinho, os olhos fechados de Sophie a estremecerem. Não a amamentara, mas sentia que conseguia alimentar a filha com o sono. Durante o dia, ajudava-a a alinhar os bonecos de peluche. Sophie ralhava com eles, imitando Tom. Dizia «Ige teina mais!», que significava «Tigre, estás a treinar de mais!» Em 2006, Kate e Jack limparam os Campeonatos Mundiais. Em 2007, no seu terceiro aniversário, Sophie ainda era mais pequena do que devia ser. Kate marcou as suas medidas na tabela de altura e peso. Sophie estava a baixar de percentil. Kate estava preocupada, mas Jack disse: – Sabes qual é o problema? A miúda é meio inglesa! No final do ano, ainda estavam a dizer piadas sobre o assunto. Era fácil: ainda estavam a vencer. Manchester era espetacular e Jack e Kate concordavam: estavam aqui para ficar. Os miúdos da creche vinham brincar com Sophie, e Kate fazia os seus alongamentos enquanto rebolavam juntos. Sophie gostava de brincar com rapazes – lutava e batia e dava pontapés e, geralmente, vencia. Kate e Jack teriam passado bem sem as tosses e constipações que os amiguinhos traziam, mas era agradável aquele vaivém constante de pequenos visitantes. Sophie era a única da família que tinha vida social. Sophie soprou as velas do seu bolo no quarto aniversário com o mesmo peso que tinha um ano antes. Estava mais alta, mas viam-se todas as suas costelas. No entanto, também se viam todas as costelas de Kate, e ela era o rosto da maternidade saudável. Jack tranquilizou-a. Concordaram que as curvas de peso e altura médias incluíam muitos miúdos que comiam muitas batatas fritas. Isso tornava-os perigosamente gordos, mas não tornava Sophie perigosamente magra. De qualquer forma, mal tinham tempo para discutir o assunto. Cruzavam-se durante cinco minutos entre blocos de treino e tinham uma conversa rápida ao fim de cada dia, quando conseguiam manter os olhos abertos. Todas as manhãs o despertador tocava às seis e Sophie saltava para cima deles, já vestida com as

suas calças de ganga e T-shirt e boné de baseball. Fazia-lhes cócegas até eles já não conseguirem fingir que dormiam. Gritava: – Mamã! Papá! Está na altura de andar mais DEPRESSA! Tom intensificou os treinos de Kate na última etapa antes de Pequim. Nas corridas de um para um, ela estava a vencer Zoe duas em cada três vezes. Por vezes vencia por uma roda, outras vezes apenas por milímetros. Trabalhava com uma intensidade perigosa. Podia ficar doente. Tom controlava cada sessão de treino e monitorizava os seus valores sanguíneos para não a deixar treinar em excesso. Fisioterapeutas iam a casa dela trabalhar nas suas dores. Um nutricionista planeava as suas refeições. O Ciclismo Britânico pagava a alguém para lhe tratar da roupa e das limpezas. Nunca um atleta britânico tivera o tipo de monitorização e apoio que Kate e Jack tinham na preparação para Pequim. Kate deu tudo por tudo. Começou a vencer Zoe três em cada quatro vezes. Chegou ao limite do que era humanamente possível e depois, quando todo o trabalho duro estava concluído, apanharam o avião para a China, para a formalidade de ir buscar as medalhas. Zoe foi um mês antes deles, com expectativas realistas de conseguir a prata no sprint e na perseguição individual mas com esperança de que uma semana extra de treinos na humidade de Pequim pudesse devolver-lhe a vantagem. Kate e Jack foram o mais tarde que podiam, uma vez que o seu horário familiar era mais difícil de transpor para outro cenário. Culminaram os treinos com um último esforço sobre-humano em Manchester, e seguiram para Pequim para recuperar antes das provas. O voo demorou onze horas. As hospedeiras trataram-nos como estrelas de rock. Sophie estava constipada, por isso Kate e Jack iam sentados com a cabeça virada para o lado oposto, respirando levemente, como se assim os germes não conseguissem entrar-lhes nos pulmões. Sophie ia sentada entre eles, a ver desenhos animados. Kate olhou para Jack por cima dela. Há meses que não passava tanto tempo acordada com o marido, e apercebeu-se de que ele era ainda mais bonito agora do que quando se tinham conhecido. Estava mais forte; a musculatura reduzida ao mínimo necessário para alcançar os seus objetivos. Ia calmo e calado, com uma camisola de capuz azul-clara. O seu cabelo estava a começar a ficar grisalho nas têmporas. Ele sorriu. O sorriso fê-la estremecer. Estendeu-lhe a mão. Quando as hospedeiras trouxeram uma refeição, Kate e Jack recusaram. Tinham o seu próprio calendário alimentar e Sophie também não tinha fome. Quando ela adormeceu com a cabeça na mesinha, Kate reparou que ela tinha uma nódoa negra na nuca: uma grande nódoa negra, roxa e com mau aspeto. Perguntou a Jack como

é que ela a fizera, mas Jack não sabia. Era típico dele, na verdade – não era o tipo de coisa em que ele reparasse. Havia ecrãs nas costas dos bancos, com uma imagem minúscula do avião a deslocar-se sobre um mapa. Aqui estavam eles. Kate debruçou-se sobre Sophie e beijou Jack, dez quilómetros acima da estepe da Ásia Central. Sophie fizera um desenho antes de adormecer – a hospedeira dera-lhe lápis de cor. Kate tirou-o de baixo da cabeça dela porque estava a molhá-lo com baba. Usou a parte de trás dos dedos para não apanhar germes. Era um desenho bonito. No ramo mais alto de uma árvore, uma coruja bebé estava no ninho, entre os seus pais corujas. O pai coruja era azul, a mãe coruja era cor-de-rosa e o bebé coruja tinha um sabre de luz. Kate mal olhou para o desenho. Estava a visualizar o velódromo de Pequim. Tom mostrara-lhe vídeos do interior. Dera-lhe um exercício para fazer no avião: visualizar a vitória. Imaginar cada pormenor. Reclamar cada centímetro do local. Sophie dormiu até Pequim. Kate não estava à espera disso. Trouxera jogos, livros e brinquedos e, se tudo isso falhasse, ia tentar suborná-la com guloseimas para sossegar. Trazia seis pacotes de gomas na mala. Mas Sophie simplesmente dormiu. Quando aterraram, Kate teve de a acordar. Ela acordou confusa e irritada, como um animalzinho no veterinário a despertar de uma anestesia. Tinha uma marca na testa, no local onde adormecera em cima de um lápis de cor. Mas Kate não estava a ver a marca, estava a visualizar a vitória. Nem quis acreditar que estavam finalmente na China. Pequim era como aterrar em Marte. A nova marca de Sophie não desapareceu enquanto passavam pela imigração e pela alfândega, mas Kate pensou: é apenas uma nódoa negra. Sophie voltou a adormecer nos seus braços e Kate segurou-a de forma a que ela respirasse na direção oposta. Não tinha treinado durante vinte anos para apanhar uma constipação antes do grande evento. Tinham um carro à espera deles, que os levou através da cidade. Sophie adormeceu no colo de Kate. Chegaram ao hotel onde a equipa do Ciclismo Britânico estava instalada e Jack tirou Sophie do carro. Os seus dedos deixaram marcas nos braços dela. Kate e Jack estavam finalmente a começar a reparar. As duas semanas em Pequim foram um borrão indistinto. Sophie passou o tempo a entrar e a sair do hospital. Era complicado. Os médicos pensaram que fosse uma infeção pulmonar. Depois pensaram que ela tinha um problema renal. Sophie estava com febre. O COI deu-lhes uma intérprete. A intérprete aprendera o vocabulário de vinte e oito desportos, mas não conhecia todos os termos médicos, portanto era difícil para Kate avaliar a seriedade do caso. Os médicos falavam com eles e as suas frases duravam uma eternidade. Depois, a intérprete tocava-lhe

no braço. Fazia uma cara triste e as suas traduções eram breves. O médico diz que a sua filha está muito doente. Os médicos olhavam para a intérprete enquanto ela traduzia. Kate não conseguia traduzir as suas expressões. Ela e Jack faziam turnos a treinar no velódromo olímpico enquanto o outro ficava com Sophie no hospital ou no hotel. Quando não estavam a treinar, estavam com Sophie. Kate mal dormia. Acordava e ia treinar. Ou acordava e chorava. Acordava e sentia-se demasiado fraca para competir, e ia ao velódromo e via Zoe a ficar mais forte. Fizeram mais exames. A intérprete foi novamente com eles ao hospital. Sentaram-se numa salinha e esperaram pelo médico. Não havia janelas. Havia uma mesa redonda com verniz branco e marcas de chávenas de café. Havia uma jarra de plástico branco, com flores pálidas. Havia luzes fortes de halogéneo. Havia um quadro numa moldura de plástico, de um cavalo branco, a correr. A carpete era cinzenta e havia cadeiras de plástico cinzentas. Ficaram ali sentados meia hora e a intérprete traduziu perfeitamente o seu silêncio. Sophie dormia nos braços de Kate, com o seu pijama preto da Guerra das Estrelas. Ouviam passos no corredor. Sempre que os passos se aproximavam, todos se viravam para a porta. Sempre que os passos continuavam, voltavam a olhar para o chão. O ar condicionado zumbia. Havia uma quarta cadeira na sala. Estava vazia, era para o médico quando ele chegasse. As paredes pareciam mexer-se e ondular. Os ponteiros do relógio pareciam dar grandes saltos e depois ficar parados durante longos períodos. A sala estava à deriva no tempo. A intérprete torceu as mãos. Quando a porta se abriu, Kate deu um salto. O médico desabotoou a bata branca. Sentou-se. Pousou uma mão no joelho. Olhou para os seus papéis e depois para eles. Falou durante muito tempo. Depois parou de falar e olhou para a intérprete. Ela trouxera um dicionário. Folheou as páginas. Depois olhou para Kate. Disse: – A sua filha tem leucemia. – Tem o quê? A intérprete verificou novamente a tradução, apontou para a palavra com o dedo e mostrou-a a Kate. – Leu-ce-mia – disse. – Têm infelicidade porque é uma em dez mil pessoas. Agora têm de começar tratamento furioso imediatamente.

Quase quatro anos mais tarde, à mesa da cozinha, Kate começou a contar os comprimidos diários da filha para a taça de prata. Já sentia a adrenalina a dominar-lhe os gestos e a dispersar-lhe os pensamentos, em antecipação da corrida com Zoe no dia seguinte. Contou os dezasseis comprimidos como velhos amigos, sabendo que, quando eles tivessem sido consumidos, apenas uma noite insone a separaria da corrida que podia ser a sua última. Centro Nacional de Ciclismo, Stuart Street, Manchester À tarde, Tom tirou as bicicletas das raparigas do armazém e instalou-as em suportes no centro do velódromo. Meia dúzia de ciclistas da equipa de juvenis estava a treinar na pista, e as instruções do seu treinador ecoavam no edifício quase vazio. Tom deixou a ação desenrolar-se à sua volta, à distância, enquanto se concentrava nos seus preparativos. Rodou as rodas de ambas as bicicletas, à procura de exatidão e alinhamento. Verificou se o mecânico instalara o equipamento certo para cada ciclista. Certificou-se de que os pneus eram novos e verificou a pressão do ar. Tudo isto era o trabalho do mecânico no dia seguinte, mas Tom não queria esperar para descobrir no último minuto que alguma parte essencial estava defeituosa. Depois de terminar as verificações, colocou-se entre as duas bicicletas, com uma mão no guiador de cada uma delas. Era possível sentir algo das ciclistas na forma como as bicicletas estavam preparadas. A bicicleta de Zoe era maior, com mais quatro centímetros de altura na estrutura e mais seis centímetros de alcance. Ela corria com uma engrenagem maior e usava as longas alavancas das suas pernas para dar força à pedalada. A de Kate era mais compacta, com uma engrenagem mais leve que ela fazia rodar até as suas pernas deixarem de se ver, compensado a relativa falta de força com um ritmo de trabalho fenomenal. A bicicleta de Kate estava pintada de branco, com uma imagem tamanho passe do rosto de Sophie a sorrir no tubo superior, por baixo do verniz transparente do acabamento. O guiador estava coberto por uma fita leve cor-de-rosa, que era fofa e quente ao toque. A bicicleta de Zoe não estava pintada, pelo que a disposição funcional da fibra de carbono escura era visível sob o verniz mate. O seu guiador tinha uma pega de borracha preta na parte descendente. De cada lado do tubo do selim, visível de ambos os lados pelas oponentes na linha de partida, estava

escrito INVENCÍVEL em grandes letras douradas. Enquanto a bicicleta de Kate fora concebida para a fazer sentir-se em casa no cockpit, a de Zoe estava calculada para intimidar. Havia uma certa intimidade apenas em tocar nestas máquinas, cujas estruturas se adaptavam a cada ciclista com tanta precisão como os seus próprios ossos; estas estruturas que tinham transportado as suas ciclistas, as duas mulheres de quem ele mais gostava, a limites de dor a par, e ocasionalmente para além, do ponto de rutura emocional. Tom apertou os guiadores e debateu-se com o sentimento que lhe causava saber que, depois de amanhã, uma destas bicicletas nunca mais seria montada. À uma da tarde do dia seguinte, ele estaria a empurrar uma destas máquinas de novo para a sala de equipamento do Ciclismo Britânico, enquanto a perdedora levaria a sua bicicleta para casa como recordação, onde ficaria no corredor alguns meses e depois, finalmente, quando a dor e o choque tivessem diminuído, seria leiloada em benefício de uma instituição de caridade por ela escolhida. Quando permitia a si próprio visualizar o rescaldo, o ato físico de empurrar a bicicleta da vencedora para a sala onde estavam guardados os sonhos, sabia que seria melhor se Zoe vencesse. Não que preferisse que ela vencesse – nunca admitira qualquer confusão entre a proximidade que sentia dela e um desejo de que Zoe prevalecesse sobre a sua outra atleta. Simplesmente parecia verdade, como treinador de ambas as mulheres, que se vissem para além dos simples resultados na pista, se olhassem para o domínio do bem-estar geral, então seria melhor que Zoe vencesse Kate amanhã. Kate tinha razões para continuar a viver se perdesse. No entanto, era uma merda. Se alguém merecia um lugar nos Jogos Olímpicos, era Kate. Em Pequim, quando Sophie recebera pela primeira vez o seu diagnóstico, faltavam seis dias para as provas de ciclismo. Tom chegara junto deles uma hora depois de o médico ter dado a notícia, quando eles ainda não sabiam se Sophie ia morrer ou não. Estivera a falar com os médicos e, uma vez que não se tratava da filha dele, conseguira ter a presença de espírito suficiente para fazer algumas perguntas. Sabia mais do que Jack e Kate. Tivera de abrir caminho à força para entrar no hotel, pelo meio da multidão de repórteres. De alguma forma, a comunicação social pressentira que havia aqui uma história. A cerimónia de abertura já começara e Jack e Kate não estavam lá e os repórteres tinham feito as suas próprias perguntas. As duas melhores esperanças da Grã-Bretanha para as medalhas, e uma emergência médica qualquer. Era tudo o que sabiam, e Tom não tencionava dar-lhes mais nada.

Passou entre eles no átrio do hotel, ignorou as suas perguntas e pediu ao gerente que o levasse para cima no elevador de serviço. Quando o gerente lhe abriu a porta do quarto, Kate e Jack estavam ajoelhados ao lado da cama de Sophie. Os olhos dela estavam imóveis por trás das pálpebras. O telefone de Kate não parava de tocar, bem como o de Jack. A televisão do quarto estava ligada, baixinho, na cerimónia de abertura. Havia fogo de artifício, e estrelas prateadas a caírem do teto do estádio. Todas as equipas iam enroladas nas suas bandeiras, e sorriam e acenavam enquanto davam a volta à pista. Tom obrigou-os a sentarem-se aos pés da cama e tirou-lhes os telemóveis. Eles obedeceram, como crianças, e olharam para ele. – Muito bem – disse Tom –, estive a falar com os médicos, portanto deixem-me explicar-lhes a situação. Apontou para Sophie. – Facto número um. Noventa e um por cento dos miúdos com o problema dela recupera, portanto estamos a lidar com uma situação muito positiva. Facto número dois, vocês não querem envolvê-la nos protocolos de tratamento neste país porque nenhum de nós perceberá que raio se está a passar e não poderão tomar as melhores decisões para ela. Assim, facto número três, um de vocês tem de voltar para casa com ela logo de manhã. Foi o que apanhei na minha conversa com os médicos aqui, e também o que me aconselhou um médico em Manchester que está pronto para tratar do internamento da Sophie. Kate não conseguia olhar para ele. Inclinou-se e escondeu o rosto no pescoço de Sophie. Tom disse: – A menos que pensem que há outra maneira de fazer isto? Podíamos arranjar alguém para acompanhar a Sophie no avião, mas não a vão deixar voltar para casa sem um de vocês, pois não? Não quando ela vai começar a fazer quimioterapia. Se eu achasse que havia alguma maneira de ainda conseguirmos medalhas para os dois nestes Jogos, seria isso que estaríamos a fazer. Mas o melhor que podemos retirar desta situação é pôr um de vocês a competir. Jack passou o braço sobre os ombros de Kate e disse: – Voltamos ambos para casa. Ela apertou-lhe o joelho. – Sim. Vamos os dois. Tom ajoelhou-se no chão. Olhou de um para o outro. – Não.

Silêncio. Tom disse: – Não vos posso culpar por não estarem a ver bem as coisas, mas trata-se de desfechos vencedores. A Sophie pode ficar melhor. E vocês podem ganhar o ouro. Se um dos dois ficar, podem conseguir ambas as coisas como uma família. É assim que têm de ver a coisa. Jack disse: – Não, Tom. Não. – O Dave dir-te-á o mesmo, Jack. Telefona-lhe, se quiseres. – Falaste com ele? – Claro que falámos. Ambos achamos que um de vocês tem de vencer agora, pelos três. Ninguém treina tanto como vocês treinaram para ficar de mãos a abanar. Kate olhou para Jack. Ambos estavam a acariciar o cabelo e o rosto de Sophie, como se conseguissem curá-la com as mãos. Kate disse a Jack: – Achas que ele tem razão? Jack levou as mãos à cabeça e gemeu, como se estivesse a conter uma explosão num espaço limitado. – E, lamento muito – disse Tom –, mas também têm de pensar no lado monetário. Pelo menos um de vocês tem de manter o seu patrocinador feliz. Os próximos anos vão ser complicados e a última coisa de que precisam é de uma quebra nos rendimentos. Kate virou-se para Tom e ele viu-a fazer um esforço para respirar. – Está bem – disse ela, por fim. – Quem fica e quem volta para casa? – A questão é essa, não é? Acho que vocês é que têm de escolher. Jack gemeu novamente e o som era tão desesperado que Tom sentiu as mãos a tremer. Perguntou-se se Kate estaria a aceitar a situação mais depressa porque era mais forte do que o marido, ou se seria mais fácil para ela por não ser a sua filha biológica que estava ali deitada na cama – moribunda, tanto quanto qualquer um deles sabia. Talvez o sangue trouxesse um nível de dor mais profundo. Era certo que, quando contara a Zoe, ela recebera a notícia como se tivesse sido atropelada por um autocarro. Só estava neste momento na cerimónia de abertura porque Tom a obrigara. Não podiam correr o risco de a imprensa estabelecer alguma ligação entre ela e Sophie. Kate olhou para ele. – Como decidirias, se tivesse apenas a ver com resultados?

– Unicamente em termos de desempenho desportivo? – Sim. Tom baixou a cabeça e pensou durante muito tempo. Massajou a nuca. – Sabem que eu detesto isto, certo? – Sim. Ele olhou diretamente para ela. – O Jack é uma aposta segura para a medalha de ouro, na minha opinião. E tu estás na melhor forma da tua vida. Se estivéssemos a falar apenas de resultados, pediria à Zoe que levasse a Sophie para casa. Estudou atentamente o rosto dela quando a expressão de choque o invadiu. Kate aproximou-se mais de Sophie e segurou-a, instintivamente. – Não – sussurrou. Ele pressionou um pouco mais. – Nesse caso, vamos mandar o Jack para casa com a Sophie e deixar-te competir. É a tua vez. Ela abanou a cabeça e acariciou o cabelo de Sophie. – Não consigo deixá-la – disse. Engoliu em seco. Sabia que era o fim. Jack pousou a mão no ombro de Kate. – Mas é a tua vez – disse. Ela olhou para Sophie, passou os dedos pela face pálida, endireitou a gola do vestido da filha. – Não consigo deixá-la – disse, simplesmente. Tom levantou-se e afastou-se um pouco, para lhes dar espaço. – Nesse caso, Kate, lamento muito. É melhor fazeres as malas. – Sim – disse Kate. Tom percebeu que ela estava a concentrar-se em não chorar. Nos próximos dias teria de a ajudar a decompor as horas em objetivos alcançáveis: não chorar, não gritar, não desmaiar. Se ela conseguisse desempenhar estes feitos ao nível olímpico, havia boas probabilidades de conseguir sobreviver à semana. Jack escondeu o rosto nas mãos. Agora que a decisão estava tomada, ninguém sabia o que dizer. O jornalista desportivo da BBC estava na televisão do quarto de hotel, com ar sério. Encontrava-se no átrio do hotel, lá em baixo, a falar para a câmara. Passaram para imagens de Jack a vencer o ouro em Atenas, e de Kate à porta de casa a aceitar o seu pedido de casamento em direto para a televisão, com Sophie nos braços e a bandeira enrolada à volta de ambas. Depois o apresentador

apareceu novamente, com uma mão no auricular e um microfone na outra. Tudo o que sabemos nesta altura é que parece tratar-se de uma situação muito grave. Sophie acordou a chorar. Disse: – Sinto-me mal. Jack apoiou-lhe a cabeça e murmurou-lhe ao ouvido: – Vai correr tudo bem, minha menina corajosa. Estás apenas cansada. Vais voltar para casa com a mamã, para descansares. Certamente que coloca tudo isto em perspetiva, estava o jornalista a dizer. É demasiado fácil esquecer que, por detrás de todo o brilho e glamour de uns Jogos Olímpicos, se encontram pessoas reais, famílias reais como a vossa e a minha. Tom viu Kate olhar para Sophie e, nesse momento, Sophie olhou para ela e esticou os braços naquele gesto que as crianças pequenas fazem quando querem colo. A confiança no seu rosto era simples: sentia-se péssima e era algo com que sabia que Kate seria capaz de lidar. Não sabia que isto era diferente de todos os joelhos esfolados e dores de ouvidos e pesadelos que Kate passara anos a acalmar. Kate pegou-lhe e Sophie agarrou-se a ela e encostou a cabeça ao ombro de Kate. Kate ficou com ela ao colo durante muito tempo. Depois Sophie estendeu os braços para Jack e ele pegou-lhe e embalou-a e murmurou-lhe ao ouvido. Kate dirigiu-se à janela e olhou para a rua, onde já estava a reunir-se uma multidão de câmaras. Tom aproximou-se dela e disse baixinho: – Mais do que ninguém, eu sei aquilo por que passaste para chegar a estes Jogos Olímpicos e sei como te vai custar virar costas. Dentro de poucas horas estarás num avião com a tua filha, e isso vai doer-te mais do que um parto. E sabes que mais? É assim que saberás que és mãe dela. Kate encostou-se a ele. – Obrigada – murmurou, com os olhos cheios de lágrimas. – Tu consegues fazer isto – disse Tom. – Consegues pôr a tua filha melhor. Os médicos disseram-me que será um caminho lento, difícil e penoso, mas que ela vai ficar boa. – Eu sei que sou capaz de lidar com caminhos difíceis – disse ela. – Sei que aguento um caminho penoso. Mas terás de me ajudar a lidar com a parte do lento.

Barrington Street, número 203, Clayton, zona leste de Manchester Enquanto o sol se afundava por trás dos telhados, Jack preparou o banho de Sophie e ajudou-a a despir-se. Ela estava apática e sem expressão. Sentada na banheira, torceu a esponja distraidamente entre as mãos enquanto Jack inventava uma história para ela. Pôs Han Solo e Luke Skywalker a pilotarem a Millenium Falcon através de uma difícil cintura de asteroides. Assumindo ele próprio todas as ações e efeitos sonoros, fez os dois heróis vencerem probabilidades avassaladoras e derrotarem o ataque de uma frota de caças TIE. Depois, como nada disso provocou reação em Sophie, fez os exultantes Han e Luke beijarem-se apaixonadamente no porão de carga da Falcon. Foram surpreendidos por Chewbacca, cuja reação furiosa mostrou que ele tinha uma visão antiquada sobre o amor humano, o que era típico da sua espécie mas, ao mesmo tempo, não ficava bem a um Wookiee tão viajado. Jack observou o rosto de Sophie mas ela continuou a fixar as torneiras, com os olhos vidrados. – Estás a ouvir, menina? Estalou os dedos. – Ei! Terra chama Sophie Argall. Responde, Sophie! Ela virou lentamente a cabeça e fitou-o com os olhos semicerrados. A sua expressão era a de uma naturalista que pensava – mas não tinha a certeza absoluta – ter descoberto os contornos de uma criatura bem camuflada entre a vegetação. – O que é? – disse. – Sentes-te bem, querida? Ela fechou os olhos. – Só quero ir para a cama, por favor. A sua voz era um murmúrio que mal se ouvia por cima do zumbido do exaustor na casa de banho. Jack tirou-a da banheira, limpou-a, vestiu-lhe o pijama e sentou-a ao colo para lhe lavar os dentes. – Vai correr tudo bem, querida – disse-lhe. – Vais ficar boa. – Sim – disse ela. Jack beijou-a na testa. A sua pele estava quente, mas talvez fosse apenas do banho. – Achas que tens febre? Ela encolheu os ombros.

Jack encontrou o termómetro digital no armário da casa de banho e viu-lhe a febre. O pequeno ecrã marcava 38,6°. – Vou dar-te qualquer coisa para a febre – disse. – Mas não digas nada à mamã, está bem? – Porquê? – Porque ela tem uma corrida muito importante amanhã. Não queremos preocupá-la com uma coisinha de nada, pois não? Sophie encolheu outra vez os ombros. – Eu estou bem – disse, mas deixou Jack dar-lhe duas colheres de xarope paracetamol. Deitou-a e ela adormeceu sem um murmúrio. Parecia mais quente do que antes. Jack sabia que devia dizer alguma coisa a Kate e, ao mesmo tempo, sabia que não devia. Sentou-se no degrau de cima durante muito tempo, a pensar no assunto antes de descer. Kate estava sentada à mesa da cozinha com os olhos fechados e as mãos cerradas sobre a beira da mesa, inclinada para a esquerda na cadeira. – Chá? – perguntou ele baixinho. Ela franziu a testa, ainda de olhos fechados. – Chiu. Estou a visualizar. Ele tocou-lhe no ombro. – Queres visualizar uma chávena de chá? Kate encostou a cabeça ao braço dele. – Sim, está bem. Ele começou a preparar o chá. Quando voltou para a mesa, Kate perguntou: – Como estava a Sophie? Ele pousou o bule. – Bem. Inventámos uma história e ela adorou. Kate encheu a chávena e soprou. – Consegui treinar-te a usar um bule, Jack Argall. De tudo o que alcancei, será este o meu legado. Ele estudou-lhe o rosto. – Estás bem? – Entusiasmada. Acho que consigo vencê-la. – Também acho. Só não faças o que eu fiz em Pequim. Ela sorriu e pegou-lhe na mão. – Agora é diferente. A Sophie está a melhorar.

– Sim – disse ele, animadamente. Olhou para as mãos de ambos, entrelaçadas em cima da mesa. Na sua primeira eliminatória em Pequim, Jack competira com um dos ciclistas franceses – nem sequer chegara a saber o seu nome. Apertara-lhe a mão na linha de partida e experimentara o seu francês com ele, em nome das relações internacionais. Dissera: Bonjour, amigo. O francês sorrira, mas parecia morto de medo. Jack teve pena dele, por ter de enfrentar Jack Argall na primeira eliminatória. Aquele velódromo em Pequim era fabuloso. Estava apinhado. Havia vinte mil homens, mulheres e crianças nas bancadas, e metade dessas pessoas estava a tirar fotografias. Enquanto o relógio fazia a contagem decrescente para a partida, os flashes das câmaras aumentaram, como as almas dos salvos, até já não serem pontos individuais mas apenas uma grande teia de luz, a tremeluzir e a pulsar sobre a superfície da multidão como os sinais a fluírem sobre a pele de uma criatura das profundezas. E o rugido da multidão – era colossal. Causou medo a Jack. Ele tinha auscultadores nos ouvidos por baixo do capacete e um iPod preso na manga do fato justo. Estava a ouvir a Drambuie Kirkliston Pipe Band, aos berros, a tocar «Battle of Killiecrankie». Era uma música para meter medo ao próprio Diabo, mas não era suficiente para abafar o som da multidão. Toda a superfície da pista estremecia. Ele sentia a vibração do público a ser transmitida até ao tubo do selim da sua bicicleta e através do selim de carbono rígido para o seu traseiro. Os seus pulmões vibravam também. Os seus dentes zumbiam como se estivessem a apanhar sinais de rádio. A atmosfera cortou-lhe os nervos, separou-os da sua carcaça e deitou-os fora como o cordel do assado de domingo. Junto da pista, havia câmaras de televisão por todo o lado. Tinham uma câmara presa num cabo, que pairou a meio metro da sua cara, como uma gigantesca vespa preta. Mostrou o seu rosto no ecrã gigante que estava suspenso sobre o centro do velódromo. Jack tinha o capacete com o visor azul espelhado que o cobria até abaixo do nariz, portanto naturalmente que mostrou à multidão o seu rosto de Juiz Dredd. E eles adoraram, e aplaudiram-no e bateram com os pés até toda a estrutura estremecer. Olhou para a equipa de apoio do Ciclismo Britânico, na área técnica. O seu treinador estava a fazer-lhe sinais com as mãos para se acalmar, para se concentrar na contagem decrescente e parar de brincar com a multidão. Portanto, naturalmente, Jack ergueu as mãos acima da cabeça e começou a bater palmas ao

ritmo da música nos seus ouvidos. A multidão rugiu ainda mais alto. Bateram palmas com ele. O barulho era incrível. Vinte mil almas de todas as nações da Terra a baterem palmas ao ritmo de «Battle of Killiecrankie». Era possível esquecer, apenas por um momento, que Sophie estava a oito mil quilómetros dali, num pequeno quarto, a iniciar a quimioterapia. Sorriu, a brincar com o público. Viu-se a si próprio a bater palmas no ecrã gigantesco. Mostraram-no em câmara lenta. Os seus músculos contraiam-se de tal forma, sempre que movia os braços, que parecia que tinha um extraterrestre debaixo da pele, a lutar para se libertar. Cristo, pensou ele. Sou mesmo extraordinariamente forte. A câmara aproximou-se novamente do seu rosto e, sem pensar, ele gritou: – Isto é para ti! Põe-te boa depressa, Sophie! Olhou para a equipa. Ao lado do treinador, estava o mecânico. Duas horas antes de Jack ter sequer chegado, este tipo já lá estava, para desmontar a sua bicicleta, a limpar, lubrificar e voltar a montar, usando uma tabela com as suas preferências discriminadas ao meio milímetro. O homem apertara todos os parafusos Allen até 0,5 por cento da sua tensão ótima com uma chave digital. Depois examinara os pneus de Jack, centímetro a centímetro, com uma lupa, à procura do mais pequeno sinal de desgaste. Se encontrasse alguma coisa, substituía o pneu e recomeçava. Uma hora antes de Jack sair do hotel, o seu treinador chegara ao velódromo, verificara o trabalho do mecânico e certificara-se de que havia toalhas lavadas ao lado da pista e uma bicicleta estática de arrefecimento limpa e pronta para depois da eliminatória. Ao lado do treinador e do mecânico estava o assistente do treinador. Meia hora antes de Jack chegar, o assistente tinha aparecido, com um saco térmico com bebidas isotónicas para ele usar durante o aquecimento e bebidas de recuperação com alto teor de proteínas para depois da eliminatória. Todas estas bebidas eram mantidas à temperatura do corpo, de forma a causarem o mínimo possível de choque fisiológico ao seu sistema. Ao lado do assistente estava o fisioterapeuta da equipa. Ele monitorizara os alongamentos préaquecimento de Jack e preparara a sala de massagem para depois do seu duche. Ao lado do fisioterapeuta estava o médico do Ciclismo Britânico, preparado para poder reagir no espaço de quinze segundos caso Jack caísse, ou desmaiasse, ou sofresse algum tipo de convulsão induzida pela combinação de adrenalina, vinte mil seres humanos aos gritos e a baterem palmas ao ritmo dele e uma música de gaitas de foles a comemorar a vitória das forças de Jaime VII da Escócia sobre Guilherme de Orange de Inglaterra. Jack não sabia bem qual seria o termo médico para isso.

Olhou para todas aquelas pessoas – todo aquele mecanismo que, supostamente, o levaria à vitória – e um vazio começou a crescer-lhe no estômago. Não conseguia esquecer que Kate e Sophie estavam a correr uma corrida muito mais difícil. As gaitas de foles tocaram na sua cabeça. A multidão abafou as notas. Tentou manter a cabeça no jogo mas o gelo espalhava-se dentro dele. Aconteceram então duas coisas. Primeiro, o francês arrancou da linha de partida. Depois, o treinador de Jack começou a fazer gestos frenéticos, apontando para o francês que desaparecia ao longo da pista. Jack estava a pensar: Aí está o que faz a inexperiência. O pobre tipo está tão nervoso que arrancou antes do apito. Mas o seu treinador ainda estava a abanar as mãos e a gritar e o ciclista francês estava vinte metros mais à frente e a olhar por cima do ombro. Jack pensou: Ele vai perceber o que aconteceu e terá de dar meia-volta e voltar para a linha de partida, o que será terrivelmente embaraçoso, mesmo para um homem acostumado à música popular de Johnny Hallyday e Jean-Michel Jarre. Mas o francês não deu meia-volta. Em vez disso, baixou a cabeça e acelerou. Por isso Jack desligou o iPod para perceber melhor o que estava a acontecer. Foi então que ouviu a multidão cair num silêncio agonizante. No silêncio súbito, o treinador estava a gritar-lhe Vai! Vai! Vai! Merda, pensou ele, não reparei na partida. Mas sabia que, com o tipo de esforço que conseguia facilmente fazer, ainda era capaz de apanhar o francês. Estava calmo. Levantou-se no selim e pisou os pedais. O francês levava cinquenta metros de avanço e abandonara todas as táticas: vira uma oportunidade e estava a correr para a meta. Jack deu o seu máximo. Colocou tudo por tudo na perseguição e ao fim da primeira volta a diferença fora reduzida a trinta metros. Sentia o rosto contorcido com a dor, mas estava a funcionar. Quando cruzou a linha de partida, o treinador fez-lhe sinal com os dois polegares levantados, ao lado da pista. Acelerou ainda mais, forçando o seu corpo a ir aquela última fração de percentagem mais além. Estava a chegar lá. A estrutura da bicicleta fletia-se a cada pedalada. Era a bicicleta mais rígida alguma vez construída e, mesmo assim, não conseguia aguentar a força que ele estava a aplicar. Ao fim da segunda volta, o francês levava apenas dez metros de avanço. O ritmo cardíaco de Jack era de 195, a potência superior a mil watts. Os jornalistas que cobriam a corrida da bancada de imprensa poderiam ter ligado um aquecedor elétrico a Jack e ainda sobraria potência suficiente para os computadores portáteis. Jack estava a pensar, é isto que escreverão sobre mim: Fantástico, fantástico, fantástico. E depois pensou: Sophie. Uma imagem formou-se na sua mente. Estava sozinho num quarto, a segurar na

mão de Sophie, que estava deitada, absolutamente imóvel. Era difícil perceber, apenas pela imagem, se ela estava viva ou morta. A imagem tirou-lhe o fôlego e quebrou-lhe o ritmo. Hesitou e, por um momento, parou de ganhar terreno ao ciclista francês. Tentou recuperar o ritmo. Pedalar pedalar pedalar. Respirar respirar respirar. Mas a imagem voltou, agora mais nítida. A mão de Sophie na sua, o rosto dela uma máscara de imobilidade. O treinador estava a fazer mais gestos frenéticos ao lado da pista. Gritava: Acelera! Acelera! Ao fim da terceira volta, Jack tinha vinte metros de atraso. Pedalou o mais depressa que pôde e o treinador estava a gritar, Vamos embora, Jack, isso mesmo! A imagem voltou. Já não conseguia bloqueá-la. Toda a força se esvaiu dele, como se alguém tivesse tirado as tampas de ralos nas solas dos seus pés. O francês venceu-o com quarenta e cinco metros de avanço. Jack estava a sair da curva da reta final quando o viu cruzar a meta com os braços no ar. A multidão estava silenciosa. O silêncio cobria o velódromo. A humidade era esmagadora. O suor escorria de Jack. Abrandou durante duas voltas, até parar, e segurou-se à proteção lateral. Tinha a respiração ofegante. Estava demasiado exausto para desmontar da bicicleta. O médico correu para ele com a sua maleta. O treinador correu também e passou-lhe o braço sobre os ombros. – Que raio é que aconteceu, Jack? Estás bem? Que merda foi esta? A dor estava a queimar-lhe o corpo todo. Era agonizante – apercebeu-se de que estava a gemer. O médico perguntou-lhe se conseguia dizer-lhe o nome do primeiro-ministro. Encostou o estetoscópio ao peito de Jack. Dave estava à frente dele, a perguntar-lhe se se sentia bem. Jack ficou ali sentado, com o corpo a tremer, e deixou o fisioterapeuta arrefecê-lo com uma esponja, como se faz aos cavalos de corrida. A sua mente insistia em saltar entre o momento presente e aquela sala terrível onde estava a segurar na mão imóvel de Sophie. Estava tão assustado e confuso que só lhe apetecia gritar. Era assim que um touro se sentia numa tourada, a sangrar por causa das estocadas. Queria destruir coisas. Queria morrer ali mesmo, ao lado da pista. Queria que o mundo se reduzisse a cinzas e que todas as pessoas desaparecessem e que a Natureza recomeçasse sem ele. A câmara aérea aproximou-se do rosto dele e Jack levantou-se e começou aos gritos e a tentar afastá-la com os punhos. Olhou diretamente para a lente, para mostrar que não estava quebrado. Estava a tentar devolver o olhar de dois mil

milhões de pessoas. Dave agarrou-o pelos ombros e obrigou-o a virar-se. – Para com isso, Cassius Clay. Vamos embora daqui. – Mas a próxima corrida… O treinador abanou a cabeça. – Vamos desistir, meu amigo. Tu deste as últimas. E foi o fim dos Jogos Olímpicos de Pequim. Enquanto se dirigiam aos balneários, os joelhos de Jack dobraram-se e ele começou a chorar. À sua frente ia um homem com uma câmara ao ombro, a caminhar às arrecuas e a captar cada momento. Jack ergueu os olhos, viu-o e disse a única coisa que lhe ocorreu, diretamente para a câmara. – Desculpa, Sophie. Desculpa. * Na calma da cozinha, abraçou Kate com força. – Concentra-te na corrida de amanhã – disse. – Não tens com que te preocupar. A Sophie está a melhorar e tu nunca estiveste em melhor forma. A única coisa que tens de fazer é pedalar. Kate beijou-o na ponta do nariz. – O desporto é tão mais simples do que a vida, não é? – disse. – Por isso é que é muito mais popular.

Quinta-feira, 5 de abril de 2012 Beetham Tower, Deansgate, número 301, Manchester 06h35m manhã da corrida estava limpa e fria. Pela primeira vez desde que se mudara para a torre, Zoe fez o aquecimento no terraço, cento e cinquenta metros acima do tráfego, sob a luz direta do nascer do sol, com o tema de Blade Runner a tocar nos auscultadores. Por vezes, a vida era boa. Era impossível não se deixar elevar pela elevação. Tinha uma bicicleta estática no telhado, encostada ao corrimão do lado leste, e agora tirou-lhe a cobertura e montou, para aquecer enquanto o sol subia no céu. À medida que o seu ritmo cardíaco subia lenta e calmamente para os 130, uma felicidade simples estremeceu dentro dela: pela luminosidade, pelo potencial mal contido dos seus músculos, pelos sinais da aproximação do verão na brisa fresca e limpa que soprava dos Pennines. Quando o seu ritmo cardíaco atingiu os 150, sentiu-se como se pudesse libertar os pés dos pedais, saltar por cima do corrimão sem grande espalhafato e simplesmente voar. Sentia-se como se não pesasse o suficiente para se magoar. A sensação assustou-a. Reduziu a resistência da máquina, pedalou até diminuir o lactato das pernas e parou. Depois desatou a chorar, inesperadamente. Acalmou-se, desmontou da bicicleta e desceu do telhado para a escada fresca de mármore da torre. Entrou no apartamento. Na sala, viu-se a si própria na televisão. Estava em todos os noticiários matinais. Uma psicóloga com um fato de saia-casaco verde-lima e uma corrente de ouro ao pescoço estava a concordar com a apresentadora: seria melhor que

A

fosse Kate a ir aos Jogos Olímpicos. A apresentadora disse: – Muitos dos nossos espectadores perguntarão se será aceitável alguém representar a Grã-Bretanha depois de ser notícia por todos os motivos errados. A psicóloga disse: – É exatamente essa a questão. As raparigas são inspiradas por estes Jogos… as minhas filhas são inspiradas por estes Jogos… e veem em alguém como a Zoe um exemplo de uma mulher bem-sucedida. Zoe tirou o som da televisão e sentiu-se a baloiçar no limite do controlo. Depois de um café e trezentos gramas de arroz agulha cozido a vapor com frutas secas, enfiou-se no chuveiro e deixou-se imaginar que escolhera outra vida. Imaginou-se como mãe de Sophie – a alimentá-la cuidadosamente, a transportá-la de um lado para o outro como se fosse um ovo frágil, a dar-lhe todos aqueles comprimidos pela ordem certa – a fazer todas as coisas que via Kate fazer. A tatuagem ardia-lhe num braço, o raspão da queda ardia-lhe no outro, e tentou afastar ambos do jato de água. Não conseguiu lavar-se, apenas girar sobre si própria. Tentou colocar a mente de novo no espaço tranquilo onde tinha de estar para vencer Kate. Era frustrante que a sua cabeça lhe estivesse a fazer isto, logo hoje. Havia dias em que nem sequer pensava em Sophie. Depois, de repente, como acontecera esta manhã na bicicleta estática, do nada, chorava durante alguns minutos. Na maioria das noites, sonhava ter perdido algo que não sabia o que era e andava freneticamente à sua procura. Primeiro, julgara que era do ouro que andava à procura, mas depois de vencer as medalhas de ouro em Atenas e novamente em Pequim, os sonhos continuaram. Noutras vezes, sonhava que estava a correr e que havia algo horrível a persegui-la e que a apanharia se ela abrandasse. Por outro lado, toda a gente tinha esses sonhos. Saiu do duche, enrolou-se numa toalha e olhou de novo para a televisão enquanto secava o cabelo. Estavam agora a mostrar a página do jornal da véspera, com a fotografia dela e de Kate no estúdio de tatuagens. Zoe olhou para a pequena fotografia de Sophie. Ainda achava impossível ligar a criança que Sophie era agora com aquela coisinha minúscula na incubadora que toda a gente insistira ser sua. Quando via Sophie – como na pista no dia anterior, por exemplo, a sorrir no cesto da bicicleta – achava-a encantadoramente doida, como todas as crianças, e inspirava-lhe uma certa tristeza como todas as pessoas doentes em geral, mas nada mais se agitava dentro dela. Sentia mais por Kate – sabia que Kate sofrera, que continuava a sofrer, e isso comovia-a.

Agora, contudo, ao olhar para a fotografia, era inegável que Sophie se parecia com ela. Tinha muita coisa de Jack também mas, se se forçasse a olhar, conseguia ver um fantasma muito leve do seu próprio rosto no rosto de Sophie. Perturbavaa, ver esta evidência de si própria a emergir através das feições de um homem que pusera para trás das costas. E tinha-o posto para trás. Era a única coisa que fizera de que realmente se orgulhava. No lava-loiça, abriu a torneira e deixou a água fresca aliviar o ardor da tatuagem recente. Como seria a sua vida, se não tivesse desistido de Sophie? Teria Jack ficado com ela e não com Kate? Estariam os três juntos, neste momento? Permitiu a si própria imaginar como seria ter Jack na sua cama, a respirar suavemente, em vez do vazio gritante do vento que soprava das colinas e fazia oscilar a torre com as suas rajadas. Uma velha angústia apoderou-se dela e cravou as unhas na tatuagem, forçando um grito de dor. Na televisão, a psicóloga estava a explicar que alguém com o nome de Zoe Castle apresentava todos os sinais clássicos de alguém num estado de negação. Contou os comportamentos reveladores pelos dedos enfeitados com anéis de diamantes e unhas pintadas de vermelho: a promiscuidade, a vontade insaciável de vencer, a ausência de contrição. Mostraram novamente a página do jornal. A legenda da imagem dizia Sophie: significava muito para mim que a mamã ganhasse o ouro. Zoe tentou lembrar-se do estado em que estava quando deixara Sophie no hospital. Esses dias estavam obscurecidos na sua memória. Quando os recordava, havia apenas a neblina ofuscante dos analgésicos e a certeza das lágrimas se tentasse analisar melhor o que acontecera. Pela primeira vez, pensou na possibilidade de Kate não ser alguém que assumira um fardo que Zoe não conseguia carregar, mas sim alguém que chegara quando Zoe estava mais vulnerável e que lhe tirara algo. Mordeu o lábio e tentou pensar claramente. E se Tom também estivesse metido nisso? E se Tom sempre tivesse gostado mais de Kate? E se tudo o que ele fizera fora para manipular Zoe e dar a Kate aquilo que ela queria? E se não fosse no melhor interesse de Zoe competir com Kate hoje, e isto fosse apenas mais uma das manipulações de Tom? Afastou o pensamento. Era irracional, sabia que era. Tom era boa pessoa e Zoe sabia o que ele sentia por ela. E também gostava dele. Na televisão, a psicóloga estava a contar pelos dedos paranoia, pensamento delirante e auto-obsessão patológica. Havia tanta coisa errada com esta mulher

chamada Zoe Castle que a psicóloga tivera de continuar a contar com os dedos da outra mão. Zoe fechou os olhos e tentou bloquear tudo exceto a visualização calma da corrida que faria contra Kate daí a menos de quatro horas. Em vez disso, surgiulhe a imagem do rosto de Sophie. Algo que vinha a combater há anos agitou-se dentro dela. Ao princípio era apenas uma dorzinha, algo quase indistinguível da vaga crescente de emoção que não a deixava pensar claramente esta manhã. Transferiu o peso de um pé para o outro e fechou as mãos com tanta força que as unhas se cravaram nas palmas, e lentamente a dor cresceu, transformou-se numa ferida em carne viva e depois numa agonia furiosa que ela já não conseguia conter. Sophie era sua filha, e ela permitira que a levassem. Sempre que o pensamento tentara vir à superfície, Zoe empurrara-o para baixo, para as profundezas geladas onde a luz raramente chegava, mas sempre soubera que isto era parte do motivo pelo qual se sentia como se sentia, pelo qual passara todos estes anos a correr de um campeonato para outro, a deitar-se com este e com aquele. Seria por isso que nada conseguia tocar esse lugar dorido e inconsolável dentro de si? A sua vida era uma curva interminável pela qual ela corria, com curvas inclinadas e íngremes para nunca poder mudar nem abrandar. Regressava sempre a si própria, uma e outra vez. Julgara estar a fazer a coisa certa. Acreditara que era o melhor, uma vez que não sentia nada pela filha, dá-la a alguém que sentisse. Agora, contudo, só conseguia pensar que, ao desistir de Sophie, desistira da sua vida. Deixou a dor vir à superfície e gritou. Mais tarde, depois de as lágrimas pararem, sentiu-se fria e calma e racional. Subiu de novo para o telhado. O sol ainda estava a brilhar mas a brisa começava a refrescar e nuvens escuras aproximavam-se vindas das colinas. Se se debruçasse sobre o corrimão e semicerrasse os olhos, Zoe conseguia ver a rua onde os Argall viviam – a linha irregular de telhados sob os quais eles estariam neste preciso momento a tomar o pequeno-almoço. Sentiu novamente aquela dor, algures entre o amor e o desespero. A necessidade dentro dela era descontrolada. Precisava de ver Sophie. Tentou limpar a cabeça para a corrida mas, pela primeira vez na sua vida, não sabia se queria ganhar. Significava muito para mim que a mamã ganhasse o ouro. Abanou violentamente a cabeça, tentando expulsar o pensamento. Cuspiu por cima do corrimão e viu o pontinho branco a descer em espiral até se perder nos

tons claros da alvenaria. Mal conseguia lembrar-se de como alcançara esta altura, mas percebia agora que o caminho até lá abaixo era muito, muito longo. Lua florestal de Endor, Territórios da Orla Exterior, Setor Moddell, a 43 000 anos-luz do coração da galáxia, coordenadas cartográficas H-16 07h45m Sophie viu o verdadeiro rosto de Vader pela primeira vez, enquanto Vader jazia moribundo. Depois de o espírito o abandonar, ficou com ele nos braços durante muito tempo. Embora tivesse levado uma vida má, no fim ele fora um bom pai. Levou o seu corpo para uma clareira na lua florestal de Endor e construiu uma pira para o cremar. Enquanto as chamas se erguiam, o sonho começou a desintegrar-se. Algures, lá fora, a mamã e o papá estavam a falar. O papá disse: – Estás preparada para correr? A mamã disse: – Penso que sim. Sophie tentou abrir os olhos mas ainda estava muito ensonada. Através das pálpebras, a luz era da cor de fumo. O som da mamã e do papá a falarem estava distorcido. Doía-lhe o peito. A voz da mamã disse: – Amo-te. A voz do papá disse: – Eu também. Sophie sorriu. A voz da mamã disse: – Ela está a acordar? Cores introduziram-se na luz. Primeiro vermelho, depois verde, depois amarelo. Brilharam através das suas pálpebras. Era como se o dia estivesse a encontrar as suas canetas de feltro uma a uma, atrás do sofá e na gaveta dos talheres e onde quer que as tivesse deixado. Doía-lhe muito a cabeça. Queria água ou sumo ou qualquer coisa, com uma palhinha. Só queria beber água ou sumo

fresco. Tinha tanta sede que seria capaz de beber durante um milhão de anos. A mamã disse: – A televisão esta manhã só fala na Zoe, outra vez. Estavam a comparar-me com ela. – Sim, eu vi. – O Tom está certo em querer despachar isto. E se começam a remexer e encontram alguma coisa? O papá disse: – Chiu, ela está a mexer-se. Sentiu a mão do papá na testa e esforçou-se por abrir os olhos e por se sentar. Sentia-se como se o seu corpo estivesse a ser montado de novo, como o C-3PO quando o montavam depois de ser desmanchado. Mas os fios estavam todos mal ligados. Tentou mexer as pernas, mas não se mexeram. As últimas manhãs tinham sido todas assim. Cada dia era mais difícil acordar. A luz tornou-se mais forte através das suas pálpebras. Por vezes, mesmo antes de acordar, era difícil deixar de ser um Jedi. Era linda, a lua florestal de Endor. Eram radiantes, os campos de estrelas do Setor Moddell. Todos os dias, queria cada vez mais ficar por lá. Seria tão fácil. Tinha de se concentrar, era isso que tinha de fazer. Tinha de se lembrar de quem precisava dela aqui na Terra. Assim, repetiu uma e outra vez, mentalmente: Eu sou a Sophie Argall, tenho oito anos, a minha mãe e o meu pai são campeões. Eu sou a Sophie Argall, sou a humana com as calças de pijama cor-de-rosa e a Tshirt da Guerra das Estrelas e a mamã e o papá precisam de mim. Sentiu uma mão acariciar-lhe a face. A mamã disse baixinho: – O que havemos de fazer? Achas que eu devia esquecer os Jogos Olímpicos? – Não. Porquê? – Para cuidar da Sophie. Para passar mais tempo com ela. – Já tivemos esta conversa. Concentra-te na corrida. Tu consegues vencer a Zoe. – Eu sei. – Então vence-a e depois prepara-te para os Jogos. Preocupamo-nos com o resto depois. – Mas… e se não houver um depois? – Não digas isso. – Mas se não houver? – Por favor, para.

– E se eu conseguir chegar a Londres e a Sophie… sabes… não? E eu ficarei para o resto da vida com uma medalha de ouro e a sensação de que podia ter feito mais por ela. Percebes? Consegues imaginar ter o peso dessa medalha ao pescoço? – É exatamente assim que não deves pensar. A Sophie vai ficar boa. Sophie sentiu novamente a mão do pai na testa. – Ouve – disse ele –, não vale a pena ficarmos aqui os dois à espera de que ela acorde. Porque não vais dar uma volta de bicicleta, pôr as ideias em ordem, e chegas cedo ao velódromo como a Zoe faz? A mamã ficou calada por um momento e depois Sophie ouviu-a beijar o papá. – Obrigada – disse ela. – De nada. Agora desaparece e ganha. Liga-me depois de a teres esmagado, está bem? – Jack… – Chiu, nada de dramas. Tu és a melhor. Vai-te embora. – Amo-te, Jack. – Já eu, sou apenas um ator pago para representar um homem que te ama. – Odeio-te. – Já eu, sou meramente indiferente. Sophie ouviu a mamã sair do quarto e depois ouviu novamente a voz do papá, baixinho e perto do seu ouvido. – Estás bem, pequenina? Céus, estás mesmo quente… estás a arder. Ela entreabriu os olhos e depois teve de os fechar outra vez com força porque a luz era a luz mais forte de todo o universo. Às vezes, a mamã e o papá diziam-lhe para não olhar diretamente para o sol. Bom, esta luz era mais forte do que o sol. Se vivessem no sol, este seria o tipo de luz para a qual a mamã e o papá lhe diriam para não olhar diretamente. Era assim tão forte. – Sophie? Consegues ouvir-me? – disse o papá. Sophie sabia que tinha de acordar como devia ser agora, antes que ele começasse a ficar preocupado. O papá inspirou para falar e Sophie convocou toda a Força para os seus músculos e sentou-se na cama, apesar de estar cheia de dores. Tinha a cabeça a latejar e abriu os olhos mas a luz era demais e o vómito saiu-lhe da boca. Ficou ali sentada naquela luz mais forte do que o sol e o papá estava subitamente muito calado e não havia som nenhum exceto o bater acelerado do seu coração dentro do peito.

Barrington Street, número 203, Clayton, zona leste de Manchester 07h55m – Estou bem – disse Sophie. – Sinto-me ótima. Jack limpou o vomitado e deu-lhe banho. Limpou-a com uma toalha que aquecera especialmente para ela no radiador. – Vais vomitar outra vez? – perguntou. Ela abanou a cabeça. – De certeza? – Sim. Jack ajudou Sophie a vestir-se. – Pequeno-almoço? – Ainda não. – DVD? Ela encolheu os ombros. – Jogos? – Pode ser. Jack deu-lhe o iPad e viu-a mexer-lhe letargicamente. Deu-lhe mais uma colher de paracetamol e ela engoliu-o sem tirar os olhos do ecrã. Pôs o boné da Guerra das Estrelas na sua cabeça pequena, branca e careca enquanto ela o ignorava completamente, com a língua entre os dentes numa expressão de concentração. Jack ficou aliviado por ela estar a dar atenção a alguma coisa. Desceu para preparar o pequeno-almoço de ambos e para contar os comprimidos do dia para dentro da taça de prata. Fez uma tigela de Rice Krispies para ela e uma tigela de muesli para ele, enquanto ouvia The Exploited na aparelhagem da cozinha. Subiu as escadas a cantarolar a música e quando chegou ao quarto de Sophie ela estava caída no chão, com a cara encostada ao ecrã do iPad e uma linha interminável de letras G a correr numa janela de processamento de texto. Pegou-lhe, sentou-a e olhou para ela. Sophie estava inerte, ao princípio, depois abriu os olhos e olhou para ele. – O que foi? – disse. – Sophie, sentes-te bem? – Sim! Ela tentou afastá-lo. Estava corada e tinha um fio de baba ao canto da boca. Não pareceu reparar.

– Desmaiaste, Sophie? Sophie abanou furiosamente a cabeça. – Estava só a descansar. – Caíste em cima do ecrã. Sophie afastou-o. – Estava… a… DESCANSAR! Jack hesitou. Talvez estivesse a exagerar. Olhando para Sophie agora – para a força da sua indignação – era verdade que ela não parecia muito mal. Era difícil saber o que devia ser minimizado e aquilo que devia valorizar. Quando saíra do quarto, Sophie estava concentrada numa atividade. Quando voltara, menos de dez minutos depois, estava completamente inconsciente. Justificaria uma visita ao médico de família, uma ida ao hospital ou chamar uma ambulância? De alguma forma, era suposto que assumisse a responsabilidade, minuto a minuto, de decidir que eventos podia considerar menores, não que algum o fosse. Engoliu em seco. – Não deve ser nada, mas acho, sabes, que devíamos dar um salto ao hospital para te darem uma vista de olhos. Renault Scénic cinzento-metalizado 08h45m Jack prendeu Sophie na cadeirinha e conduziu em direção ao hospital, mais depressa do que devia. – Papá! – disse Sophie. – O que é? – Mais devagar! – Desculpa – disse Jack. Travou momentaneamente e depois, aos poucos, aumentou de novo a velocidade. Ouviu Sophie a agitar-se na cadeirinha e suspirou. – O que foi? Precisas de fazer chichi? A pobre miúda estava stressada porque ele também estava. Tinha os nervos em franja. Provavelmente reagira com exagero à febre de Sophie. Estas coisas aconteciam constantemente, mas entrara em pânico. Correra com Kate de casa sem lhe dar a devida atenção, e só Deus sabia o que isso faria à sua moral para a

corrida, e aqui estava ele a caminho do hospital, onde o pediatra lhe sorriria de forma tranquilizadora, o trataria por «pai» e os mandaria para casa com instruções para dar paracetamol a Sophie de quatro em quatro horas até a febre passar. Abrandou e pensou em desistir da viagem e voltar para casa. – Sophie – disse, pacientemente –, se não precisas de fazer chichi, por favor, podes parar de dar pontapés no meu banco? Ela continuou a fazê-lo. Jack decidiu ignorar, por enquanto. Mudou para a faixa da direita, que lhe permitiria sair por uma estrada lateral, fazer inversão de marcha e voltar para casa. – Queres ouvir música? – perguntou. Ela respondeu aumentando a frequência dos pontapés nas costas do banco. Jack sentiu uma pontada de irritação. – Não estou para brincadeiras hoje, Sophie. Vou considerar que a resposta é sim. Colocou o CD de De Rosa a cantar «New Lanark» e encostou-se enquanto as guitarras o invadiam. Aliviou a força com que estava a apertar o volante. Tinha de se acalmar. Respirou fundo. – Desculpa ter-te arrancado ao teu jogo. Ainda te sentes mal? Não houve resposta do banco de trás. Os pontapés petulantes contra as costas do seu banco continuaram, um pouco menos fortes mas ainda o suficiente para serem irritantes. – Não é preciso ficares amuada. Jack suspirou e ligou o limpa-para-brisas porque estava a começar a chover. A chuva fria de abril cheirava a mudança. Incomodava-o de uma forma que não conseguiu identificar. A chuva caiu com mais força. Jack aumentou a velocidade do limpa-para-brisas e ligou o ar quente para desembaciar o vidro. Havia uma saída mais à frente. Ligou o pisca, depois hesitou e desligou-o de novo. O hospital ficava a poucos minutos. Talvez não fosse o fim do mundo levar Sophie para um check-up rápido, e depois talvez pudessem beber ambos um chocolate quente da máquina no átrio do hospital. Sessenta cêntimos, opção A3 – ele já sabia as escolhas de cor. – Sophie? – disse. – Se parares de me dar pontapés no banco, depois do hospital vamos beber qualquer coisa, está bem? E depois vamos à loja de brinquedos comprar-te uma figura de ação nova da Guerra das Estrelas. A que tu quiseres. Pode ser?

Não obteve resposta. – Sophie? Ainda nada. Virou o espelho retrovisor para olhar para ela. A cabeça de Sophie estava caída para o lado. Estava a revirar os olhos e a agitar os braços. Jack parou na estrada lateral, tirou o cinto de segurança e atirou-se para o banco de trás. As pernas de Sophie agitavam-se, com espasmos. Tirou-lhe o cinto e deitou-a. Ela continuou com a convulsão. Jack segurou-lhe nos braços e tentou imobilizá-los, mas havia uma força terrível dentro dela. Jack sentiu o sangue fugir-lhe da cabeça. Não conseguia pensar. Tirou o telemóvel do bolso e ligou para o número das emergências. A voz perguntou-lhe que serviço pretendia e ele não sabia. A voz era fria e profissional. Perguntoulhe: Polícia, bombeiros ou ambulância? Dentro do carro, os De Rosa continuavam a desfiar o triste tecido prateado de um sonho. Dentro dele, tudo o que Jack ouvia era um grito agudo. A voz ao telefone perguntou-lhe qual era a natureza da urgência. Jack recuperou a compostura o suficiente para gritar que precisava de uma ambulância, mas na verdade a natureza da urgência era que ele e Kate tinham andado a mentir a si próprios sobre a situação. A natureza da urgência era que tinham corrido uma cortina entre a degradação da filha e os seus sonhos de medalhas de ouro e não havia nenhum tipo evidente de veículo com uma equipa de especialistas lá dentro e alguma espécie de sirene que pudesse ser enviado para o local para resolver o problema. Centro Nacional de Ciclismo, Stuart Street, Manchester 09h00m Tom marcara o velódromo durante quatro horas, a partir das dez. Às nove, verificou novamente as bicicletas das raparigas com o mecânico, enquanto os juniores treinavam na pista. Na cozinha junto do seu escritório, na colmeia de salas por baixo da pista, fez uma dose de bebida isotónica, colocou-a em garrafas e arrumou-as numa caixa térmica. Pegou em mais garrafas vazias e preparou as bebidas de recuperação das raparigas. Zoe preferia um batido de proteínas em pó feito inteiramente de produtos de excelência desidratados, que vinha num

recipiente preto e dourado com extravagantes promessas nutricionais. O cheiro dava vómitos a Tom, mas era verdade que estava perfeitamente otimizado em termos de minerais e aminoácidos essenciais. Kate preferia leite magro batido com bagas e mel. Tom comprava-lhe leite e frutas frescas uma vez por semana e guardava-os no frigorífico no seu escritório, na prateleira por cima das amostras de urina e sangue. Despejou as bebidas das raparigas para as suas garrafas e juntou-as à caixa térmica. Eram vinte para as dez e tinha as mãos a tremer por causa dos nervos. Levou a caixa térmica para junto da pista e viu os juniores a fazerem os exercícios de arrefecimento. Os seus rostos brilhavam e estavam a dizer piadas. Eram os sub-16 e ainda acreditavam que tinham sorte por estar aqui. Quando as dez horas chegaram, mandou a equipa de manutenção varrer a pista e passar a máquina para limpar todos os vestígios de suor, lubrificante e óleo. Telefonou para a sala de controlo e disse-lhes para ligarem os holofotes, como fariam numa competição à noite. Mandou inicializar a câmara de photo-finish Lynx na linha da meta. Às dez e meia, o fisioterapeuta chegou e colocou duas bicicletas estáticas à medida de Kate e Zoe, em extremos opostos da zona de aquecimento. Com tudo pronto, Tom sentou-se numa cadeira à beira da pista, de onde conseguia ver a entrada. Estava à espera de ver Zoe chegar primeiro. Kate chegou às dez para as onze, desceu as escadas a correr e largou o saco de equipamento no chão, ao lado da pista, com um estrondo que ecoou no espaço vazio. Beijou Tom nas faces. Ele disse: – Não preciso de te perguntar se estás preparada. – Sinto-me ótima. Foi boa ideia fazer isto. – Dormiste bem? Ela sorriu. – Posso dormir depois. A Zoe, está a mudar de roupa? – Ainda não chegou. Kate pestanejou. – Está bem. – Sim, eu sei. Achas que ela encontrou uma nova maneira de mexer com a tua cabeça? Kate riu-se. – Oh, vá lá, Tom, já ultrapassámos isso. Tom estendeu a mão.

– Mesmo assim, é melhor dares-me o teu telemóvel. Kate suspirou, mas obedeceu. – Não há necessidade, a sério. Tom guardou o telefone no bolso. – Regras de dia de corrida. Vamos mantê-las afastadas uma da outra até à hora da partida. Faremos tudo como se se tratasse de uma prova importante. Sem contacto. Sem psicologia. Usarão os balneários uma depois da outra, e a seguir vou isolá-las e terão de aquecer em extremos opostos do espaço. – Está bem. Tom tocou no cotovelo dela. – Para variar, vamos contar apenas com o que acontecer na pista, está bem? Mandou-a mudar de roupa e sentou-se para continuar à espera. Kate saiu do balneário às onze e ele mandou-a aquecer na sua bicicleta estática com o fisioterapeuta. Às onze e dez ligou a Zoe, mas foi o gravador que atendeu. – Vá lá – disse ele. – Já devias estar aqui. Às onze e vinte, três representantes do Ciclismo Britânico, com os seus blazers, chegaram para assistir à corrida. A chuva caía com mais força lá fora e eles entraram a sacudir chapéus de chuva e a queixar-se por terem de estar aqui. Tom informou-os das regras da corrida: ao melhor de três sprints, a vencedora ficaria sujeita aos novos procedimentos de seleção olímpicos, a perdedora anunciaria formalmente não estar disponível para ser selecionada. Sem jornalistas, amigos ou familiares presentes, sem conferência de imprensa, sem equipamento de gravação, exceto a câmara de photo-finish. Deu a cada um dos representantes uma cópia da documentação com os regulamentos, e os quatro assinaram. Tom explicou como os sprints seriam organizados, com um dos representantes como juiz de partida oficial enquanto os outros dois segurariam as bicicletas das raparigas na partida. Os três arbitrariam então os sprints, e Tom manter-se-ia fora do processo. Tom instalou os representantes nos seus lugares e ofereceu-lhes café e bolachas. Às onze e meia, Zoe ainda não aparecera. Para se acalmar, verificou novamente as bicicletas das raparigas. Sacudiu partículas de pó inexistentes da pista. Testou o equipamento de photo-finish, atravessando a linha da meta e ligando para a sala de controlo para verificar se a imagem fora gravada e estava a aparecer nos ecrãs. Ligou para Zoe e o gravador atendeu novamente. Deixou uma mensagem que, com esforço, tentou manter impessoal. Subiu até à receção e olhou para fora. O céu estava cinzento como grafite, a chuva não abrandara e não havia sinais de

Zoe. Kate já fizera o aquecimento e Tom aproximou-se do tapete onde o fisioterapeuta a ajudava a fazer alguns alongamentos ligeiros. – Tudo bem? – perguntou, em tom ligeiro. – As pernas ainda estão no sítio? Ela ergueu o rosto para ele. – Alguma notícia? Ele abanou a cabeça. – E se ela não aparecer? Tom olhou para o relógio. – Ainda tem vinte minutos. Já sabes como ela é. Está a fazer isto para te desestabilizar. Deve estar escondida ao virar da esquina, a fazer o aquecimento. Enquanto o dizia, apercebeu-se do som da chuva a cair pesadamente nas claraboias por cima deles. Kate olhou para os holofotes, protegendo os olhos com a mão. – Sim, mas se não vier? Tom suspirou. – Os juízes estão cá. Os papéis estão assinados. Se ela não entrar por aquelas portas antes do meio-dia, tu vais aos Jogos Olímpicos e ela não. A Zoe sabe quais são as regras para hoje. Ambas concordaram em se reger por elas. Kate abanou rapidamente a cabeça. – Se tivesse acontecido alguma coisa, eu não a forçaria a obedecer às regras. Tom indicou os juízes com a cabeça. – Mas eles sim. Infelizmente, nove décimos da corrida é chegar à linha de partida. Devias saber isso melhor do que ninguém. Olhou para o rosto de Kate enquanto ela processava a informação. – Deixa-me ligar-lhe, está bem? – pediu ela. – Não. Vês? É assim que ela mexe com a tua cabeça. Ela virá. Tens apenas de estar concentrada na tua própria corrida. Kate fechou os olhos e respirou fundo. – Está bem. Aos dez para o meio-dia, Tom subiu as escadas até à receção e parou à porta, a olhar para a rua. Tinha o peito apertado e estava agoniado e zangado. Porque é que Zoe tinha de ser assim? Porque não podia simplesmente usar o talento que tinha para vencer na pista, sem deixar toda a gente com os nervos em franja antes? Lá fora, a chuva abrandara e o sol de abril brilhava no alcatrão molhado. Os carros, ao passar, lançavam cortinas de água em arco sobre o passeio. Zoe apareceu a chapinhar nas poças, na sua bicicleta de treino, largou-a sem

cerimónia junto do passeio e entrou de rompante no velódromo ao meio-dia menos oito. Estava ensopada da chuva, com o cabelo colado ao rosto e o saco de equipamento a pingar no chão industrial da receção. Parou a dois metros de Tom e olhou para ele, ofegante. O vapor erguia-se das calças de ganga molhadas e da camisola preta de capuz ensopada. A raiva de Tom dissipou-se e apressou-se a atravessar o espaço que os separava. – Que raio aconteceu? Ela baixou os olhos e fungou. – Quase caí. – Da bicicleta? Ela encolheu os ombros. – Da minha torre. Tom não sabia como reagir. Depois de uma longa pausa, disse: – Pelo menos já vens com o aquecimento feito. – Diz-me o que fazer. Ele olhou para o relógio. – Consegues mudar de roupa em quatro minutos? – Sim. – Vai. A bicicleta está pronta. Encontramo-nos na linha de partida. Falamos sobre isto depois, está bem? Tu e eu. Vamos beber um café. Mas neste momento quero apenas que encontres esse lugar na tua cabeça para onde vais quando corres. Não existe mais nada, está bem? Não olhes para a Kate quando desceres. Não olhes para os juízes. Muda de roupa e dirige-te à linha de partida e não tires os olhos de mim. Eu cuido de ti, Zoe, está bem? – Está bem. – A sua voz tremeu ligeiramente. Ele estendeu a mão. – Telemóvel. Zoe tirou-o do bolso das calças e entregou-lho. Ele enfiou-o no bolso. – Porque é que ainda estás aqui? Ela desceu as escadas a correr e Tom seguiu-a. Mesmo perturbada, a física do corpo e dos movimentos dela era graciosa. Enquanto Tom coxeava, com os joelhos destruídos a ranger, os movimentos de Zoe eram fáceis e fluidos, como luz oleada. Havia na forma como se movia uma sensação inconsciente de prerrogativa, como se o tempo e o espaço encolhessem a barriga para a deixar passar, como seguranças deslumbrados à porta de uma discoteca.

– Merda – murmurou Tom entre dentes. Só neste momento se apercebera do quanto queria que ela ganhasse. Um telemóvel vibrou no seu bolso. Era o de Kate e viu o nome de Jack no ecrã. Atendeu. – Jack – disse. – Sou eu. Vou atender as chamadas da Kate até depois da corrida. Jack não disse nada. – Jack – disse Tom, mais alto. – Sou eu, o Tom. Quando falou, a voz de Jack estava embargada e pouco natural. – Temos aqui uma situação. Uma merda de uma situação. Estou nas Urgências e eles levaram a Sophie e tenho de dizer à Kate que… – Certo. Espera. Mais devagar. Estava agora junto da pista. Virou costas a Kate e à área de aquecimento e aos juízes e protegeu a boca com a mão em concha. – O que é que estás a fazer nas Urgências? A Kate não me disse nada. – Ela não sabe. A Sophie estava com febre e eu ia levá-la ao hospital e de repente piorou. É muito grave. Não sei o que se está a passar, por isso podes dizer à Kate, se faz favor, que tem de vir para cá? Não, deixa-me falar com ela. Tom hesitou. – Sabes o que estamos a decidir aqui hoje, não sabes? – Sim, eu sei, Tom, mas isto é… merda, é mesmo… – Sim, sim, já percebi. Tom olhou para a zona de aquecimento. Kate estava aos saltinhos de um pé para o outro, cheia de adrenalina, à espera de que Zoe saísse dos balneários. Tinha o capacete na cabeça, os olhos escondidos. Respirou fundo, para se acalmar. – Ouve, é contigo. Faltam cinco minutos para a corrida. Vou ser honesto e dizerte que neste momento a Kate parece ter boas probabilidades de vencer. Precisas dela aí, ou precisas que ela faça o que tem a fazer aqui? A família é tua. Tens de decidir o que é melhor para vocês. Houve um breve silêncio do outro lado da linha. Depois Jack disse: – Não lhe dizer nada, é o que estás a dizer? – Estou a dizer para lhe dizeres depois da corrida. Se ela conseguir vencer as duas primeiras e não tomar duche, estará despachada dentro de quarenta minutos. Durante esse tempo, tu estarás aí com a Sophie e podes lidar com a situação. A Kate está aqui e é a corrida mais importante da vida dela, é só isso que estou a dizer.

– Sim, mas se acontecer… sabes… alguma coisa e eu não lhe tiver dito nada? – Sim, e se correr tudo bem e tu lhe fores dizer isso agora? Seriam os terceiros Jogos Olímpicos que ela perderia. Sou o treinador dela, Jack. Estou a contar, mesmo que tu não estejas. – Isso não é justo, Tom. Tom suspirou. – Eu sei. Estou stressado, e tu também. Ouve, como já disse, a decisão é tua. Jack disse: – Posso falar com ela? Tom olhou para a área de aquecimento. Zoe já lá estava, equipada, a calçar as luvas. Olhou para ela. Zoe devolveu o olhar com uma expressão desesperada. – Está bem – disse baixinho, ao telefone. – Vou passar. Fez sinal a Zoe para ir para o lado oposto da área de aquecimento e levou o telemóvel a Kate. Quando lho entregou, sentiu-se como se estivesse a traí-la. – Passa-se alguma coisa? – perguntou ela. Tom manteve uma expressão neutra. – É o Jack. – O que foi? Ele encolheu os ombros. – É o Jack. Kate segurou o telemóvel na mão enluvada. – Jack? – disse. – Está tudo bem? Tom viu o seu próprio rosto no visor espelhado de Kate. Viu a linha insegura da sua boca. Depois, quando ela encostou o telefone ao ouvido, viu-a começar a sorrir. – Oh, Jack… – disse ela. Ouviu mais um pouco e Tom viu o seu rosto corado por baixo do visor e o sorriso abrir-se mais. – Está bem – disse ela baixinho. – Obrigada. Sim. Eu sei que consigo. Viu-a inclinar-se para o som da voz de Jack, encostar o telemóvel à face. – Também te amo – disse, e Tom viu duas pequenas lágrimas aparecerem por baixo do visor e deslizarem-lhe até ao maxilar. Quando desligou, Kate virou-se para Tom. – Obrigada – disse. – Porquê? – Por o teres deixado desejar-me boa sorte.

Unidade Pediátrica de Cuidados Intensivos, Hospital Geral da zona norte de Manchester 11h58m Jack guardou o telemóvel no bolso e deixou-se cair numa cadeira. Os seus neurónios crepitavam e estalavam com a corrente estática. Não sabia se Sophie estava a dormir ou inconsciente, e as enfermeiras da UCI estavam demasiado ocupadas para lhe dizer. A filha estava silenciosa, mas o seu corpo falava através das máquinas de monitorização. Estas apitavam e transmitiam informação. Jack viu-as transmitir os sinais vitais no ecrã. Segundo a Siemens Instruments, o ritmo cardíaco de Sophie era 88. Estava a respirar, sem auxílio, 22 vezes por minuto. Jack deu por si a bater com o pé ao ritmo dos monitores. O seu corpo ondulou com as estranhas síncopes, como que forçando-a a viver. Ao telefone com Kate, ainda agora, estivera quase a contar-lhe tudo. Era insuportável ter sobre si toda esta responsabilidade. Ao olhar para Sophie, com a respiração a embaciar o interior da máscara de oxigénio verde transparente, sentiu uma aceleração terrível. A ideia de que Sophie podia morrer sempre estivera presente, desde o primeiro diagnóstico, mas ao mesmo tempo parecera apenas um sítio mau no mapa, uma Costa do Marfim, um sítio cujo carácter assustador não era urgente porque o próprio medo os mantinha afastados de lá. Pensavam nele como um sítio onde as pessoas mais corajosas iam, ou pelo menos como se ainda tivessem muito tempo para fazer as malas. E contudo aqui estava ele, de súbito, com o seu fato de treino vestido, as chaves de casa, a chave do carro, o telemóvel e cinco libras e setenta e três cêntimos nos bolsos, a ver Sophie fazer algo que podia muito bem ser estar a morrer. Era esta a natureza do tempo: era uma escadaria em espiral larga, elegante e pouco íngreme, cujos últimos degraus se revelavam inesperadamente podres. Precisava de Kate. Precisava de lhe dar a mão. Se esta era a queda final, e não caíssem juntos, cairiam separados para sempre. Tentou manter-se ocupado. Ligou os auscultadores e pôs a tocar The Proclaimers. Pôs a canção «500 Miles» porque era a preferida de Sophie. Quando chegou ao coro, tirou um dos auriculares e colocou-o no ouvido dela. O ritmo da canção por vezes coincidia com o bater do coração de Sophie. A

expressão dela não se alterou. Inclinou-se para lhe sussurrar que Kate vinha a caminho; que Sophie devia lutar e aguentar. Agora deixavam-no pegar na mão de Sophie e, por um momento, isso pareceralhe bom sinal – uma indicação de que ela estava fora de perigo. Agora, porém, Jack começou a pensar que as enfermeiras tentavam passar-lhe uma mensagem que ele estava relutante em compreender. Ao princípio, tinham-no obrigado a esperar lá fora, a fazer gestos a Sophie através do painel de vidro reforçado da porta. Sophie não sabia o que lhe estava a acontecer e Jack fizera os possíveis, mas eram sinais difíceis de fazer com as mãos: Está tudo bem, tu estás bem, todos estes médicos e enfermeiras que correm de um lado para o outro à tua volta estão apenas a exagerar, mas seria rude contradizê-los depois de fazerem um esforço tão grande. Era uma mensagem complicada de transmitir, através do vidro grosso. Tinha de dar um desconto por causa da refração. Sophie sorrira antes de adormecer. Esse sorriso, emoldurado pelo vidro reforçado, estava agora emoldurado dentro da cabeça de Jack. Médicos e enfermeiras tinham entrado e saído, e Jack não conseguira isolar um individuo dessa maré vestida de verde para perguntar: a minha filha está a morrer ou apenas a dormir? Nesta extremidade, por fim, havia vergonha. Estava envergonhado por a filha ter piorado tanto sem que ele se tivesse apercebido. Agora, o que quer que estivesse a acontecer a Sophie, não parecia estar a melhorar nem a piorar. Os sons das máquinas eram constantes. Jack tinha medo de quebrar o feitiço ou de chamar a atenção do tempo para o caso concreto de Sophie. Ficou sentado, muito quieto. Dentro deste quarto, com os monitores ligados, o tempo era um diamante cortado pela respiração de Sophie e polido pela sua pulsação. Enquanto estes sons persistissem, era cristalino. Centro Nacional de Ciclismo, Stuart Street, Manchester 11h59m Kate teve o cuidado de não olhar para Zoe enquanto se alinhavam na linha de partida. Zoe ficara com a faixa interior para a primeira corrida, por sorteio, portanto estava à esquerda de Kate. Tentou não pensar no drama da chegada de

Zoe, no que poderia ter acontecido. Agarrou-se ao som da voz de Jack ao telefone, a dizer-lhe que a amava. Deixou as palavras ecoarem na sua cabeça até serem o único som que ouvia, até todos os desapontamentos serem silenciados. Olhou em frente, para a pista, segurou melhor o guiador e acalmou a mente. – Um minuto – disse o juiz de partida. Os seus sentidos estavam alerta. Rodou o guiador para a esquerda e para a direita, testando a adesão da borracha do pneu enquanto a força de torção o fazia guinchar contra o verniz da pista. Quando rodou o corpo, a fricção do fato justo irritou-lhe a tatuagem recente na omoplata, causando uma pontada de raiva. Fletiu e relaxou os grupos musculares, à vez, transformando a raiva em potencial. Reparou nos mais ínfimos detalhes: a rede ultrafina nas costas das suas luvas; as notas de sândalo no perfume da mulher de blazer que segurava na sua bicicleta pela parte de trás do selim. Enquanto o juiz fazia a contagem decrescente dos últimos dez segundos, olhou para Zoe pela primeira vez. Zoe estava a olhar em frente. Kate sentiu a expansão dos pulmões de Zoe e a tensão dos músculos dela, como se fossem os seus. Nos últimos segundos antes da partida, deixou o corpo adotar os ritmos do da sua rival. Quando o apito do juiz soou, Zoe arrancou e Kate seguiu-a a uma distância de dois metros, pronta para fechar rapidamente a distância se Zoe acelerasse. Zoe manteve um ritmo lento e olhou para trás, atenta a qualquer movimento de Kate que pudesse indicar que estava prestes a acelerar. Na primeira curva, ambas a fizeram por baixo, devagar, e quando a reta se abriu à sua frente Zoe guinou para a direita e dirigiu-se à parte de cima da pista. Kate seguiu-a e mantiveram a posição, acelerando para ter adesão na segunda curva e depois mantendo a velocidade na reta da meta. Quando cruzaram a meta ao fim da primeira de três voltas, estavam a aumentar gradualmente a velocidade e Kate continuava colada a Zoe. A meio da segunda volta, ainda iam na parte mais alta da pista e Kate continuava atrás, atenta a qualquer sinal de que Zoe ia arrancar. Quando chegaram ao ponto mais alto da curva que as levaria de novo à reta da meta, Zoe inclinou a cabeça e preparou-se para mergulhar para a parte mais baixa. Kate reagiu instantaneamente para a seguir e só tarde de mais se apercebeu de que era um truque. Zoe manteve a posição elevada e, quando Kate caiu para a linha preta, com os músculos a arder enquanto lhes exigia subitamente a potência máxima, Zoe colocou-se atrás dela, precisamente quando tocava a sineta a indicar a última volta.

Kate compreendeu de imediato as consequências. Agora que perdera a vantagem, a única coisa a fazer era acelerar até ao fim. Não restava qualquer tática possível – estavam ambas na parte baixa da pista, a acelerar para a velocidade máxima na linha mais curta, e Zoe estava a aproveitar a sua deslocação de ar. Se não conseguisse produzir agora uma potência extraordinária, Zoe simplesmente ficaria onde estava até aos últimos cem metros e depois sairia do seu rasto e passaria por ela para a vitória. Agora que já não havia nada em que pensar, Kate estava muito calma. Acelerou até ao limite do seu poder e usou a imagem de Sophie para desligar as mensagens de agonia que explodiam nas suas pernas e pulmões. Quando entraram na última curva, tinha centelhas a explodir nas retinas devido ao esforço. Saiu da curva para a reta final e sentiu a perturbação do ar e ouviu o rugido das rodas quando Zoe saiu da sua sombra e se colocou ao lado dela. Durante quinze metros estiveram lado a lado. Kate recorreu a todos os átomos de força que possuía e lentamente, centímetro a centímetro, o ataque de Zoe começou a fraquejar. Primeiro ficou um centímetro para trás, depois uma roda, e, com uma pontada fria e silenciosa de espanto no coração, Kate percebeu que ia ganhar. Cruzou a meta uma bicicleta à frente de Zoe e começou a abrandar, aliviando a pressão nos pedais e deixando a bicicleta pedalá-la a ela por duas voltas enquanto a velocidade diminuía lentamente. Quando abrandou, olhou para trás e viu Zoe com uma postura derrotada, ombros caídos e cabeça baixa. Zoe olhou para ela, ofegante. – Vou ganhar a próxima – disse. Kate abanou a cabeça, demasiado ofegante para falar, mas dentro dela começava a formar-se uma pequena esperança cautelosa. Unidade Pediátrica de Cuidados Intensivos, Hospital Geral da zona norte de Manchester 12h05m Sophie acordou com um gemido e o coração de Jack deu um salto. A voz dela estava abafada pela máscara e teve de se inclinar para ouvir o que ela estava a dizer. – Papá?

– Sim? – Posso dizer-te uma coisa? – Sim. – Quando morremos, é a mesma coisa, exceto que ficamos com uma linha brilhante à volta de nós. – Eu sei, querida. Vi os filmes. – Mas não são apenas filmes. A Força é real. Jack olhou para os olhos da filha e viu o medo neles. Engoliu em seco. – Sim, querida. É real. Lentamente, Sophie sorriu. – A sério? – A voz dela era uma boneca de corda a perder a força. Jack disse: – A sério. Ela fechou os olhos. – Nunca me senti assim. – Já, sim. Já passaste por coisas muito piores. – Como é que sabes? – O meu trabalho é lembrar-me por ti. – Como sabes que te estás a lembrar bem? – Porque sei. Quando fores crescida, compreenderás. É tudo muito mais claro para nós. – Vou morrer, papá? – Não, não vais. – Dizias-me se fosse? – Sim. – Mesmo? Jack encontrou forças para não hesitar. – Sim – respondeu. – Eu dizia-te. Ficaram em silêncio. O ar cheirava a urina e lixívia. Procuraram sinais de dúvida no rosto um do outro. Foi um alívio quando Sophie voltou a fechar os olhos, uma pausa no trabalho esgotante de projetar confiança. Só mais tarde chegou o choque, quando Jack se apercebeu do que o fechar dos olhos podia significar agora. A sua mente estava a demorar a ajustar-se à situação. Ainda estava a reagir a coisas vulgares, no seu contexto vulgar. Via os olhos da filha a fecharem-se e pensava: descanso. Não pensava: descanso eterno. Poucos minutos depois os olhos de Sophie abriram-se de novo. Olhou em volta,

confusa. – Porque é que a mamã não está aqui? Jack apertou-lhe a mão. – Ela está aqui, querida. Tem estado aqui connosco enquanto estiveste a dormir. Saiu agora só por um bocadinho. Sophie pareceu aliviada e relaxou novamente na almofada. – Papá, está tão silencioso aqui. – Sim. Uma longa pausa. – Porque é que não há mais médicos? – Para que queres mais médicos? – Para fazerem coisas. Para eu ficar melhor. – Eles estão a tratar disso. Descobriram que tens uma infeção. Estão a dar-te antibiótico. – E se eles não estão aqui porque não há mais nada que possam fazer? – Estão a fazer exatamente o que devem fazer. Neste momento, o melhor que podes fazer é esperar, e descansar. – Então porque estamos aqui e não em casa? – Ficámos aqui por precaução. – Como sabes? – Porque os médicos me disseram. – Os médicos diziam-te se eu estivesse a morrer? – Sim, diziam. – Como sabes? – Já te disse! Os adultos sabem coisas. É como quando temos aqueles óculos especiais e conseguimos ver tudo em 3D. Sophie abriu a boca para negar mas depois Jack viu uma centelha de astúcia nos seus olhos. A expressão desapareceu e o rosto de Sophie tornou-se novamente infantil e simples. – Quando é que eu posso ter esses óculos especiais, papá? – Quando tiveres vinte e um anos, Soph. – Falta séculos. – Pois. Ela esperou durante exatamente seis batimentos do seu coração e depois o sorriso desapareceu. – Eu acho que os médicos não te dizem tudo. – Porque é que não me diriam tudo?

– Porque tu podias chorar. Estava a observar o rosto de Jack, atenta à sua reação, e Jack teve o cuidado de não reagir. Em vez disso, abraçou-a. – Não há motivos para chorar. Tu vais ficar boa. Mais tarde, quando ela perdeu novamente a consciência, Kate telefonou e Jack deu um salto. O toque do telemóvel não tinha o mesmo ritmo do coração e da respiração de Sophie. O som estilhaçou o cristal de tempo que se formara no quarto. Os fragmentos espalharam-se, dispersos por esta nova espécie de tempo que chegava em toques antiquados, a imitar o som de um velho telefone de disco, codificado no software do telemóvel de Jack. Antes de atender, fechou os olhos e escutou a dissonância. Coração, pulmões, telefone. O toque continuou, parecendo aumentar de volume e dissonância, até não lhe restar outra alternativa senão sair do quarto e atender longe das máquinas de monitorização. – Jack? – disse Kate. A sua voz era linda, no silêncio súbito. – Olá – disse ele. – Como está a correr? Conseguia ouvir o entusiasmo dela mesmo com a má ligação aqui no centro do hospital, com a voz modulada pelo pulsar rítmico da antena telefónica. – Venci a primeira corrida – disse ela. – Estou mais forte do que ela, hoje. Acho que consigo vencê-la. – Eu sabia que eras capaz. – Eu também sabia. Vamos correr outra vez dentro de cinco minutos. Se eu vencer a próxima, acabou-se. Tenho de ir, está bem? Não devia ter o telemóvel, mas o Tom esqueceu-se de mo pedir. Mas não me ligues porque vou pô-lo no saco do equipamento. Ele sorriu. Sentiu uma leveza no peito à medida que o corpo reagia à voz dela, estupidamente, como se não se passasse mais nada. O tempo cristalino do quarto de Sophie desaparecera, mas aqui havia um novo tipo de tempo que brilhava sobre ambos, que irradiava do brilho quente das suas vozes nos eixos da ligação. Podiam viver aqui, só por um momento, e ser felizes. Afinal de contas, era nestes momentos que se vivia, nestas reviravoltas rococós do tempo. Podia fazê-las durar para sempre, ou até dizer a verdade. Olhou para trás, através do vidro de segurança. Sophie parecia completamente em paz. O monitor cardíaco ainda dizia 88. O monitor respiratório continuava nos 22. Quem podia dizer que ela não abriria outra vez os olhos, não sorriria, e não ficaria tudo bem?

Afastou com esforço a vontade de dizer a verdade, de pedir à mulher que viesse depressa. – Boa sorte – disse. – Vai lá ganhar isso. Depois de ela desligar, Jack entrou novamente no quarto e sentou-se ao lado da cama de Sophie. Fechou os olhos e imaginou Kate, sem nada que a perturbasse a não ser a corrida que tinha pela frente. Sorriu porque lhe dera algo mais raro do que ouro: uma hora fora do tempo. Centro Nacional de Ciclismo, Stuart Street, Manchester 12h29m Zoe preparou-se no lado mais alto da pista e viu Kate preparar-se à sua esquerda para a segunda corrida. Sabia de cor o ritual de partida de Kate: a verificação e reverificação redundante do fecho na nuca do fato; o rodar bilateral dos calcanhares para confirmar que os ténis estavam solidamente unidos aos pedais; os movimentos silenciosos dos lábios enquanto recitava o mantra calmante que usava para esvaziar a mente, fosse ele qual fosse. Zoe viu-a inclinar a cabeça e olhar para o retrato de Sophie que a fitava do tubo da bicicleta. Viu o sorriso involuntário de Kate. Procurou fraquezas – qualquer assimetria na forma como estava sentada na bicicleta, que pudesse indicar inflamação de um grupo de músculos em particular, ou qualquer desvio do comportamento habitual que pudesse indicar preocupação. Não viu nada. Quando muito, havia uma confiança invulgar na forma como ela estava sentada; uma fluidez na linha das suas costas e ombros que falava de uma força descomplicada. Zoe fungou e segurou no guiador com as mãos enluvadas. A confiança de Kate não a incomodava. Quando muito, causava-lhe uma pontada de pesar porque o desapontamento de Kate seria ainda maior quando perdesse. Zoe tinha de vencer – ia vencer – mas isso não significava que gostasse de pôr fim à carreira de Kate. Simplesmente a vitória era o cenário esmagadoramente mais provável. Zoe reviu as suas vantagens. Tinha a cabeça mais limpa agora do que quando chegara. Na primeira corrida não fizera o aquecimento como devia e desorientara-se com a tática. Agora estava em modo de corrida. Além de estar psicologicamente animada, sabia que devia estar menos cansada do que Kate. Na primeira corrida, Kate fizera uma volta inteira na força máxima enquanto Zoe aproveitara a sua

deslocação de ar e só mostrara a cara ao vento nos últimos metros. Embora tivesse perdido a primeira corrida, sabia que estava mais fresca para a segunda. O juiz de partida verificou o apito no cordão ao pescoço. Transferiu o peso para as pontas dos pés. Zoe sabia que estava prestes a começar a contagem decrescente de dez segundos. Como sempre, sabia que Kate escolheria esse momento para olhar para ela pela primeira vez. Por impulso, soltou a correia por baixo do queixo e empurrou o capacete para trás de modo a deixar os olhos visíveis sob o visor refletor. Dez, disse o juiz. Quando Kate se virou para ela, Zoe estava a olhar também. Viu o sobressalto de Kate ao ver os olhos dela e depois o movimento rápido quando se virou de novo para a frente. Zoe baixou o capacete, prendeu a correia e reparou na tensão que surgira nos ombros de Kate. Três, disse o juiz. Zoe fletiu as coxas, depois as barrigas das pernas, sacudiu as pernas para as relaxar e pôs-se de pé nos pedais. Dois, disse o juiz. Um. O tempo acumulou-se contra uma represa enquanto ele levava o apito aos lábios e depois fluiu de novo quando o som o libertou. Zoe deixou Kate assumir a liderança e colocou-se atrás dela. Durante a primeira volta, concentrou-se em perturbar Kate, desviando-se da sua linha de visão sempre que Kate se virava para olhar para ela. Usando o próprio corpo de Kate para lhe bloquear a visão, Zoe manteve-a na dúvida, sem saber se ela estaria prestes a acelerar pelo seu ângulo morto. O resultado foi que, quando começaram a segunda volta, Kate estava no fundo da pista, encostada ao limite, para que Zoe não pudesse escapulir-se pelo canal interior. Estava a observar Zoe por cima do ombro direito e Zoe começou a subir impercetivelmente o declive da pista e a aumentar lentamente a velocidade para se colocar a par de Kate. Zoe deu por si a sorrir. Adorava isto. Dera a Kate apenas duas opções táticas e ambas eram más. Kate podia ignorar a forma inexorável como Zoe estava a ganhar altitude sobre ela, e nesse caso acabaria por ser tarde demais e Zoe podia simplesmente usar a gravidade para descer rapidamente o declive e se colocar à frente dela. Ou, se Kate começasse a subir também para se proteger dessa jogada, deixaria o canal interior aberto e Zoe podia mergulhar por trás dela e passar por aí. Kate virou a cabeça para trás, nervosa, e Zoe viu a indecisão da rival aumentar. Mais cedo ou mais tarde, Kate teria de sair da armadilha que Zoe lhe montara, na única direção possível: em frente, aplicando a sua força e começando o sprint propriamente dito. O problema de Kate era que queimara as pernas na primeira

corrida, portanto, quanto mais cedo lançasse o sprint, mais vantagem estaria a dar a Zoe. A três quartos da segunda volta, Zoe forçou a decisão quando acelerou subitamente e subiu mesmo até ao topo da curva. Kate foi meia pedalada lenta demais para cobrir a jogada. Em vez disso, ao ver que a vantagem de altura de Zoe era demasiado grande, mergulhou para o fundo da pista e acelerou a pedalada ao máximo. Com a gravidade do seu lado, Zoe desceu para trás de Kate sem esforço. Kate acelerou freneticamente, numa tentativa de abrir a distância entre elas. Quando a sineta da última volta tocou, Kate ia a toda a velocidade e ainda mantinha a liderança, mas Zoe sabia que a apanharia. Conseguia ver pela mudança gradual de postura de Kate na bicicleta que Kate também o sabia. Zoe relaxou a pedalada, conservando a energia nas últimas duas curvas enquanto Kate começava a abrandar, e depois saiu da sua sombra na última reta para vencer a corrida por uma roda. Desceu a pista em frente de Kate enquanto ambas abrandavam gradualmente, certificando-se de que a rival via apenas a sua roda traseira. Manteve uma postura forte na bicicleta, não deixando a cabeça baixar com a respiração ofegante. Projetou força e ausência de esforço até ambas pararem, e depois saltou da bicicleta como se não tivessem feito nada mais cansativo do que uma ida às compras. Mais tarde, enquanto arrefecia na bicicleta estática, olhou para Kate no lado oposto da zona de isolamento que Tom montara entre elas. Kate estava a observála também. Kate baixou os olhos e Zoe desviou os seus enquanto a verdade da situação cruzava o vácuo entre ambas, como faíscas. A tática de Zoe controlara as primeiras duas corridas e agora, embora tivessem uma vitória cada uma, Kate entraria na última corrida esgotada. Zoe sabia que devia estar exultante. Em vez disso, as pernas pesavam-lhe subitamente, como se uma mão invisível tivesse aumentado a resistência da bicicleta estática. Unidade Pediátrica de Cuidados Intensivos, Hospital Geral da zona norte de Manchester 12h35m

Os antibióticos que lhe pingavam para o braço deviam salvar Sophie, fora o que o doutor Hewitt dissera. Jack queria acreditar. Ela ainda estava pálida e a dormitar frequentemente. Jack segurava-lhe na mão e apertava-a de vez em quando, um submarino a enviar uma pulsação de sonar, à procura de uma retribuição da pressão. – Tudo bem? – murmurou. – Tudo bem – disse Sophie. A sua voz ainda era distante dentro da cápsula da máscara de oxigénio. – Mesmo? – Sim. Pareço o Vader com esta máscara. Apertou-lhe a mão e Jack sentiu-se melhor. O doutor Hewitt puxou uma cadeira e sentou-se ao lado da cama, virado para Jack e Sophie. – Tenho boas notícias e mais notícias para ti, Sophie. Consegues ouvir com atenção durante um minuto? Sophie acenou, um pequeno movimento contra a almofada verde com o nome do hospital impresso em tinta roxa na orla da fronha. – Bom, a boa notícia é que fizemos análises ao teu sangue e os resultados são muito, muito bons. Estou muito contente e tu também devias estar. Sei que pode parecer estranho quando te sentes tão mal, mas a contagem de células más baixou muito e, se eu tivesse que apostar, diria que parece que a quimioterapia está a funcionar. Sophie murmurou: – Então porque é que eu estou assim? – O problema imediato é que a quimioterapia enfraqueceu muito o teu corpo. Tens uma infeção no cateter Hickman e é isso que te tem feito sentir tão mal. O ideal seria que tivéssemos dado por isso mais cedo. Jack gemeu. – Desculpa, Sophie. – Não se martirize. Muitas vezes os sintomas são indistinguíveis da fadiga generalizada. O problema é esse. A infeção pode estar no eixo do cateter durante imenso tempo e depois, por alguma razão, acelera. Vamos tirar o cateter e limpálo. Uma vez que o cateter já lá está há algum tempo, há bastante formação de tecido em torno do ponto de inserção, por isso teremos de te pôr a dormir durante alguns minutos para o tirar. Pode ser, Sophie? Sophie hesitou, com os olhos muito abertos e preocupados por cima da máscara.

– Não é nada de especial – disse o doutor Hewitt. – Primeiro limpamos a tua pele com um lenço especial para matar todos os germes maus que possam lá estar escondidos. Depois fazemos umas pequenas incisões, com uma faca muito pequenina. Estarás anestesiada, o que significa que estarás a sonhar. Sophie olhou para o doutor Hewitt. – A sonhar com o quê? O médico olhou para Jack. – Com a Guerra das Estrelas – disse Jack rapidamente. – Prometo. Ela engoliu em seco. – Está bem. O doutor Hewitt disse: – Vamos tirar o cateter devagarinho e, assim que estiver fora da veia, vamos passar um antibiótico pelo cateter à medida que o retiramos, o que tratará o local da infeção. Depois levas dois pontinhos e um penso por cima. A mão de Sophie estava a tremer. Jack desejou que o doutor Hewitt parasse. Apertou-lhe a mão outra vez e ela olhou para ele sem qualquer expressão por uns segundos e depois, subitamente, sorriu, o sorriso mais perfeito do mundo. Jack abriu também um sorriso radiante. Não havia escolha: o seu corpo simplesmente reagiu. Era uma sensação muito estranha, ser a filha a devolver-lhe a coragem. – Depois de tirarmos o cateter, levamos-te à radiologia e a enfermeira tira-te uma radiografia do peito, para termos a certeza de que não deixámos nada lá dentro. Depois trazemos-te novamente cá para cima e fazemos-te um exame rápido. Sophie sorriu de novo a Jack e ele fez uma careta. Ela riu-se. O momento tinha uma certa persistência. A luz de abril que entrava pelas janelas parecia a Jack a luz mais clara que alguma vez caíra sobre a Terra. Os ritmos do equipamento de monitorização eram melhores do que qualquer música no seu iPod. A leve pulsação que latejava nos seus ouvidos. Bip, bip, bip. Pulsação, pulsação, pulsação. And I would walk five HUNDRED miles. Sophie a rir. Ele a rir também. O doutor Hewitt dissera que a quimioterapia estava a resultar. Jack apercebeuse, só agora, de que fora mesmo isso que ele dissera. – Depois da operação, Sophie, vais sentir-te muito em baixo, infelizmente. Vais ter um ardor no peito e podes ter dores de cabeça e sentir-te cansada e enjoada. Até podes vomitar, mas isso é perfeitamente normal e não precisas de te preocupar. Significa apenas que os antibióticos estão a fazer o seu trabalho. Sophie olhou para Jack e meteu os olhos para dentro. – Blargh! – murmurou. – Vomitar!

Isso fê-los desatar a rir a ambos, até ficarem corados. O doutor Hewitt falou mais alto, tentando recuperar o domínio. – Desculpe, Jack. Desculpa, Sophie. Estão a ouvir? Tinha-os perdido. Estavam com um ataque de riso. O doutor Hewitt sorriu e abanou a cabeça. – Vocês os dois são qualquer coisa, sabiam? – Desculpe – disse Jack. – Mas temos passado por muito. Olhou para Sophie e nunca se sentira tão cansado nem tão contente. As máquinas apitavam. O sol da tarde entrava pelas janelas. A luz fora feita no núcleo do sol, milhares de anos antes de Sophie ter adoecido. Chegara a este ponto no preciso instante em que ela estava a melhorar. A Jack, parecia-lhe a primeira luz. Depois de deixar passar um período adequado, o doutor Hewitt disse: – Muito bem, Sophie, vamos até à sala de operações? Sophie encolheu os ombros. – Como queira, Trevor. – A sua despreocupação embaciou a máscara de oxigénio. Jack caminhou com o doutor Hewitt atrás da cama de Sophie, empurrada por dois auxiliares pelos corredores. O doutor Hewitt inclinou-se para ele e murmurou: – Há alguns riscos envolvidos no procedimento. Esperamos que corra tudo bem, mas ela está mais fraca do que gostaríamos. Quero apenas que esteja consciente disso. Jack sentiu um nó no estômago. – O que significa isso? Que riscos? – Obviamente que faremos todos os possíveis para os mitigar. Usaremos a anestesia mais leve possível e temos uma equipa de ressuscitação de prontidão. Jack acenou. Torceu as mãos enquanto percorriam os longos corredores, sob os olhares desconfiados dos visitantes do hospital. Jack sabia o que eles sentiam. Uma criança como esta – careca, frágil e a respirar por uma máscara – fazia silenciar os corredores e recuar os curiosos. Sophie limpava as mentes que, até então, estavam repletas de pensamentos sobre hipotecas e deveres desagradáveis e conversas difíceis adiadas. Depois de ela passar as pessoas reagrupar-se-iam, em grupos de dois ou três, e confidenciariam a estranhos que o momento os marcara. Faz-nos pensar, não é? Põe as coisas em perspetiva. Eram essas as coisas que diriam. Na sala de operações, uma enfermeira sorridente deu a Jack uma bata cirúrgica

com um dinossauro na parte da frente. Ajudou Jack a mudar Sophie da cama para uma cadeira de rodas e indicou-lhes um pequeno cubículo com uma cortina de nylon onde Sophie podia mudar de roupa. – Eu dispo-me sozinha – disse Sophie quando Jack tentou ajudá-la. Sentada na cadeira de rodas, despiu a T-shirt da Guerra das Estrelas. Enfiou a bata e Jack prendeu os atilhos de lado. Tentou não pensar nos médicos a desatarem os laços e a exporem o seu peito escanzelado com o cateter Hickman. Na parede do cubículo estava um autocolante de um livro de autocolantes. Alguém tentara removê-lo mas tinham conseguido apenas rasgar as orlas. Era um Homem Aranha vermelho e azul a lutar contra um Homem Aranha preto. Sophie olhou para ele, hipnotizada. – Achas que vai correr tudo bem, papá? Jack ajoelhou-se e virou a filha para ele. – Claro que sim. Olha para mim. Claro que vai correr tudo bem. – A sério? Ele sorriu. – Vais ficar boa, prometo. Foi isso que ele disse. Deixaram Jack segurar-lhe na mão enquanto a anestesiavam. O anestesista pressionou o êmbolo da seringa e disse a Sophie para contar até dez. Sophie olhou para Jack com expressão de desafio. – Vou contar até cem – disse. Jack acariciou-lhe a face. – Começa pelo um, Sophie. – Um… – disse Sophie, e adormeceu profundamente. Territórios da Orla Exterior. Setor Sluis, a 50 250 anos-luz do Coração da Galáxia, coordenadas cartográficas M-19, região do espaço coloquialmente conhecida como Sistema Dagobah Um X-wing perseguiu um caça TIE pela escuridão infinita do espaço.

Centro Nacional de Ciclismo, Stuart Street, Manchester 12h57m Com a prova empatada a uma corrida e as raparigas lado a lado na linha de partida para a corrida decisiva, Tom subiu as escadas e sentou-se nas bancadas, onde comera uvas com Zoe treze anos antes. Aqui em cima era mais fácil resistir à tentação de lhe dar indicações; de lhe acenar com a cabeça e fazer o gesto ciclónico com as mãos que significava que ela devia simplesmente arrancar a toda a velocidade desde o apito de partida. Se ela atirasse o livro de regras pela janela, aplicasse cem por cento da sua potência desde o primeiro segundo e ganhasse avanço a Kate, Tom sabia que Kate não conseguiria ripostar. Kate tinha as pernas curtas, mas Tom conhecia Zoe. Ela estaria a pensar em táticas. Na última corrida usara a cabeça, conservara a energia e resistira à tentação de esmagar Kate completamente. Mantivera a calma e vencera pela margem mais pequena a que se atrevera. Vencera com elegância. Na maneira de ver de Tom, o perigo era que ela tentasse vencer assim outra vez. Dar tudo por tudo desde o apito inicial seria feio e brutal, mas resolveria o assunto. Queria dizer-lhe isso, mas era esse o problema de ser treinador: tinha de recuar precisamente no momento em que mais queria avançar. Observou Kate na linha de partida enquanto ela verificava e voltava a verificar os pedais. Colocou-se na mente dela. Devia estar a pensar em formas de abrandar a corrida e, uma vez que agora Zoe tinha a faixa interior, isso não ia ser fácil. Se pudesse sussurrar ao ouvido de Kate, dir-lhe-ia para arrancar como um foguete assim que o apito soasse. Assim, se Zoe decidisse dar tudo por tudo também, Kate não deixaria que ela ganhasse grande vantagem e podia aproveitar a corrente de ar de Zoe, mas se Zoe decidisse começar devagar, Kate podia pôr-se em frente dela, abrandar e usar a posição de liderança para ditar a velocidade da corrida. Praguejou entre dentes e teve de sorrir. Era a isto que chegara, depois de quarenta anos de treinador ao mais alto nível: o seu melhor conselho tático para as suas duas melhores ciclistas seria pedalarem as suas bicicletas o mais depressa que pudessem. No entanto, era insuportável ver as suas raparigas lado a lado, a prepararem-se para se magoarem uma à outra desta maneira. Dentro de menos de um minuto o juiz de partida avançaria e então, três minutos depois disso, as vidas de todos eles mudariam para sempre. Havia uma distância íntima que Kate e Zoe tinham mantido entre si durante mais de uma década, chamando-lhe agora amizade, mas

sempre a menos de uma frase terminada, a menos de uma respiração ofegante, a menos de uma roda de distância. Esta última corrida era a faca que cortaria o elo de ligação entre elas e as lançaria para as suas vidas separadas. Para ser honesto consigo próprio, o motivo pelo qual viera sentar-se sozinho aqui em cima, na bancada, não era por ter medo de ceder à tentação de treinar Zoe para a ajudar a vencer. Era porque cada vez tinha mais dificuldade em resistir ao impulso de descer até à linha de partida e implorar a ambas que não competissem. Têm trinta e dois anos de idade, queria ele dizer-lhes, porque não desistem sem se matar uma à outra primeiro? Mais cedo ou mais tarde ambas terão de descer das alturas olímpicas e aprender a caminhar calmamente nos vales, com o que restar das vossas forças. Odiava-se a si próprio pelo papel que tivera neste último confronto. Fizera-o para as proteger da comunicação social, mas agora desejava ter agido de outra forma. Levantou as mãos num gesto de impotência, desejando saber como fazer o sinal que as faria olhar uma para a outra na linha de partida e compreender tudo isto por si próprias. Um movimento ciclónico, talvez, mas em sentido oposto ao dos ponteiros do relógio, querendo dizer: por favor, quando o apito soar, esqueçam tudo o que eu alguma vez lhes disse. Enquanto o juiz começava a contagem decrescente dos dez segundos e a tensão da partida se apoderava dos corpos das suas duas atletas, Tom baixou lentamente os braços. Era o melhor treinador que conhecia. Não tinha mais nada na vida e a sua concentração era perfeita e absoluta. Sabia tudo o que havia para saber sobre como fazer os seres humanos serem mais rápidos, mas absolutamente nada sobre como os fazer parar. Recostou-se na cadeira quando o apito soou. Não ficou nada surpreendido por ver que Zoe e Kate fizeram ambas exatamente aquilo que deviam ter feito, acelerando desde a partida. Uma vez que Kate antecipara a sua partida rápida, Zoe não conseguira ganhar vantagem e, quando saíram da primeira curva, Kate encostou-se atrás dela. Com o ritmo elevado, Zoe estava a fazer todo o trabalho e, a cada metro que percorriam, gastava a energia que conservara nas duas primeiras corridas. Guinou através da pista, do ponto mais baixo para o mais alto e no sentido inverso, tentando expor Kate a alguma resistência do ar. Kate respondeu bem, acompanhando todas as mudanças de direção de Zoe. Quando entraram na segunda volta, Tom observou com o coração aos saltos. As suas ciclistas iam agora na velocidade máxima, guinando e virando a cinquenta e cinco quilómetros por hora, com a roda da frente de Kate a quinze centímetros da roda de trás de Zoe, enquanto Zoe tentava desesperadamente afastar-se dela. Mais

uma volta assim e as pernas de Zoe falhariam, deixando Kate escolher o melhor momento para sair de trás dela e a ultrapassar. Se Zoe não conseguisse tirar Kate da sua corrente de ar muito em breve, teria de abrandar a corrida para uma velocidade em que essa deslocação de ar não fosse uma vantagem. Mesmo antes de acontecer, Tom viu o risco. Pôs-se de pé e levou as mãos à boca. Viu Zoe indicar, pelo relaxamento dos ombros e ligeira elevação da cabeça, que ia abrandar. Kate não viu, ou decidiu que Zoe estava a fingir, porque não abrandou nem se desviou. Próximo da velocidade máxima, no ponto mais alto da pista, a sua roda da frente tocou na roda de trás de Zoe. A bicicleta de Zoe estremeceu e lançou-a numa trepidação a alta velocidade, mas conseguiu controlá-la. Kate teve menos sorte. A direção torceu e arremessou-a para a frente, com os pés ainda presos aos pedais. Deslizou sobre as tábuas lisas do seu lado, com a bicicleta ainda agarrada a ela. Parou na parte mais baixa da pista, aos gritos de choque e aflição. Em menos de um segundo, estava tudo acabado. Tom viu Zoe abrandar e olhar para trás, para a rival caída. Kate já se levantara e estava de pé, ao lado da bicicleta, a olhar para Zoe com ar impotente. Zoe abrandara para velocidade de caracol e tinha a cabeça virada para trás. Tom sentiu uma vaga de revolta. Uma coisa era vencer por um golpe de sorte – era assim que as coisas aconteciam nas corridas – mas não precisava de se vangloriar. Devia apenas pedalar silenciosamente até à meta. Enquanto ele observava, Kate levantou lentamente o braço com o polegar erguido. Os olhos de Tom encheram-se de lágrimas. Todos os seus sonhos tinham sido destruídos por uma queda – a pior maneira de perder uma corrida – e aqui estava ela, cinco segundos depois, a aceitar o desfecho e a dizer a Zoe que estava bem. Enquanto o seu coração começava a abrandar, Tom suspirou. Era por este motivo que Kate ficaria bem no que quer que a vida lhe reservasse agora, enquanto a vitória apenas adiaria a desintegração de Zoe. Começou a descer penosamente as escadas para consolar Kate e dar os parabéns a Zoe. – Vá lá! O grito de Zoe ecoou pelo velódromo. Tom ergueu os olhos. Zoe gritou de novo: – Monta! Viu a confusão de Kate. – O quê? – Ainda falta uma volta, sua cabra preguiçosa! Podes parar quando isto acabar! Kate hesitou. Já tinha tirado as luvas, que atirara para o lado da pista.

– Estás a falar a sério? – gritou. Zoe riu-se. – Eu estou. E tu? Tom estacou nos degraus. Estaria Zoe mesmo à espera de Kate? Não queria acreditar. Quase desejou que Kate não estivesse a rodar as rodas da bicicleta para verificar se não havia nada partido e a montar de novo e a enfiar o pé no pedal. Não aguentaria ver Zoe acelerar e deixá-la para trás antes de ela a apanhar, ou testemunhar o desespero a substituir a esperança hesitante na linguagem corporal de Kate quando se apercebesse de que fora apenas um truque cruel. No entanto, não era. Quando Kate prendeu o segundo pé no pedal, Zoe ainda estava à espera dela, a pedalar à velocidade mais lenta possível para se aguentar direita. Quando as duas ciclistas ficaram lado a lado, estavam a entrar na reta que as levaria à última volta. Viu Kate e Zoe olharem uma para a outra. Olharam durante muito tempo e depois viraram-se para a frente. Sem dizerem nada, aceleraram, lado a lado, e passaram a linha juntas. A sineta tocou e ambas se puserem em pé nos pedais e lançaram o sprint final. Agora não havia tática, apenas uma corrida desesperada para a meta. Kate enfiou-se por dentro e Zoe pedalou ao lado dela, ambas com a cabeça baixa, as bicicletas a abanarem de um lado para o outro enquanto aceleravam para velocidades impossíveis. Por baixo dos visores, respiravam com a boca aberta e a agonia do esforço estava escrita nos maxilares contraídos. Quando fizeram a primeira curva da última volta Kate adiantou-se alguns centímetros, mas Zoe recuperou na reta e entrou na última curva meia bicicleta à frente. A faixa interior ajudou Kate a recuperar e, quando as duas ciclistas entraram na reta da meta, não havia nada entre elas. Voaram os últimos cinquenta metros num turbilhão de velocidade, equiparadas pedalada por pedalada e respiração por respiração, e quando lançaram as bicicletas para a meta no último esforço desesperado olharam uma para a outra para ver qual tinha conseguido. Sala de recobro, Hospital Geral da zona norte de Manchester 13h15m Fora uma operação muito rápida – três golpes de bisturi e a retirada hábil do cateter Hickman. Quase antes de Jack se aperceber de que os cirurgiões tinham

começado, os auxiliares já tinham entrado para levar Sophie para o quarto do lado. Aqui, o silêncio e a calma desestabilizaram-no. As enfermeiras tinham saído e ficara sozinho com Sophie. As máquinas de monitorização tinham o som desligado. Fez a pergunta com os olhos, mas a respiração de Sophie era tão fraca que o seu peito não se movia em resposta. O subir e descer do peito dela era o seu pêndulo e, sem ele, este era um quarto fora do tempo. Segurou-lhe na mão. Através do painel de vidro da porta conseguia ver pessoas a passarem no corredor, a chegarem para os seus turnos, a cumprirem os horários de visitas, a oscilar de acordo com as suas frequências naturais. Jack murmurou: – Sophie? Acariciou-lhe o rosto. Havia nele uma imobilidade para além da simples ausência de movimentos. Era isso que o assustava mais do que tudo. Parecia Sophie, mas a anestesia silenciara até o eco de carácter que o seu rosto mostrava quando dormia. Estas eram as feições de Sophie, fielmente reproduzidas nos seus aspetos superficiais, mas desligadas do espírito que as animava. Muito real, foi a expressão que surgiu na mente de Jack. Tentou apagá-la, mas era impossível. O ar estava neutralizado em termos de humidade e a uma temperatura controlada de 19,5º Celsius. Era ar reciclado por condutas de aço inoxidável de boca escancarada e cheirava à tragédia de outras pessoas. Jack fechou os olhos e rezou. Por favor, não a leves, disse. Esperou. E depois, quando não obteve resposta, quer nas vocalizações da sua mente, quer na pressão neutral da mão de Sophie na sua, e uma vez que as feições de Sophie continuavam paradas como um lago que o mar abandonara, disse: Se deixares a Sophie viver, viverei para ela daqui em diante. Pendurarei a bicicleta. Farei da vida dela o meu único ouro. Foi esse o acordo que Jack tentou fazer com o universo. Tinha trinta e dois anos. Apercebeu-se que este momento, com a mão de Sophie na sua, neste quartinho, estivera com ele desde o princípio. Estivera com ele, a desgastar as fundações das suas conversas de circunstância, quando estava de roupa interior e o alfaiate lhe tirava as medidas para os Jogos Olímpicos de Atenas. Estivera com ele, a crescer em definição sob o olhar da sua mente, quando escondera o rosto nas mãos, no quarto de hotel em Pequim. Ele sempre estivera neste quarto. Abriu os olhos, na esperança de ver algum movimento, mas Sophie estava

perfeitamente imóvel. Centro Nacional de Ciclismo, Stuart Street, Manchester 13h17m Tom subiu à sala de controlo com os três juízes da corrida para ver a imagem da câmara de photo-finish. Os juízes reuniram-se em torno do monitor enquanto o técnico descarregava a imagem. Tom não estava preparado para ver. Sentou-se no lado oposto da pequena sala, a olhar para a pista pelas janelas altas. Os holofotes estavam agora desligados e Kate e Zoe estavam a caminhar pela pista, descalças, de braço dado, a fazer o arrefecimento. Enquanto ele olhava, ambas viraram o rosto para a sala de controlo. Acenou, mas elas não o conseguiam ver. O vidro era espelhado no exterior. Ligou para Jack e foi o gravador que atendeu. Estava prestes a deixar uma mensagem quando o técnico disse que a imagem estava pronta. Tom levantou-se, deu os cinco passos que o separavam do ecrã e obrigou-se a olhar. Dez mil vezes por segundo a câmara filmara a secção transversal mais estreita possível da meta, criando dez mil linhas verticais microscopicamente finas. O software colocara as linhas lado a lado, da esquerda para a direita, na ordem como tinham sido tiradas. Tom olhou para o ecrã com os olhos franzidos. Tinha de recordar a si próprio que aquilo que estava a ver era o oposto de uma fotografia normal, em que o espaço estava paralisado no tempo. Esta era uma imagem criada para uso dos profissionais do segundo fracionado. Mostrava o tempo paralisado no espaço e dava estranhas distorções aos corpos das duas atletas que ele conhecia tão bem. A qualidade de relativa imobilidade traduzia-se bem do espaço para o tempo, pelo que os seus braços e rostos estavam fielmente reproduzidos, mas as suas pernas, que se moviam tão depressa, estavam mais finas no cimo da pedalada, quando se moviam mais depressa do que a bicicleta, e mais grossas na parte de baixo. As rodas das bicicletas eram círculos perfeitos, mas os raios descreviam parábolas fantasmagóricas do eixo até ao aro. Era impressionante ver as raparigas espalhadas pelo tempo, desta maneira. Fora assim que ele perdera a medalha em 1968. Nessa altura, usavam ainda filme real, exposto continuamente enquanto era arrastado sobre uma fina faixa vertical. A velha máquina estampava linhas sobre a imagem a intervalos de um décimo de

segundo. Fora por isso que ele perdera: um décimo de segundo, um dezasseis avo de um centímetro de tempo. Era o máximo que conseguiam fracioná-lo, nessa altura, e tudo o que fosse mais próximo era considerado um empate. Naquele tempo, ainda deixavam uma fração de segundo para a ideia de que aquilo que Deus unira, nenhum homem devia separar. Olhou para o rosto de Zoe, perfeitamente em paz enquanto cruzava a meta, e sentiu orgulho dela. Pareceu-lhe que, o que quer que tivesse acontecido na meta, ela vencera a corrida da sua vida. Era um sintoma desta época perdida, que os três juízes estivessem a pedir ao técnico para sobrepor uma linha vertical vermelha que intercetasse a parte da frente da roda dianteira de Kate, e a obrigálo a aumentar a imagem, e a apontar excitadamente para uma ínfima lasca de luz clara entre a fina linha vermelha e a extremidade da roda dianteira de Zoe. – Merda – disse Tom baixinho. O juiz principal virou-se para ele. – Há algum problema? Tom abriu a boca para falar, mas depois abanou a cabeça. Era inútil explicar que, durante a maior parte da sua vida, não houvera tecnologia no mundo capaz de separar estas duas raparigas hoje. Era impossível expressar o seu ultraje por terem atomizado o segundo ao ponto de Zoe poder perder por um milionésimo do mesmo. – Não há problema nenhum – disse, finalmente. – Lamento – disse o juiz. – Quer que seja eu a dizer-lhes? Tom abanou a cabeça. – Não, eu é que tenho de o fazer. A descida dos degraus até à pista foi demorada, com os joelhos a protestarem a cada movimento. Zoe e Kate estavam ao fundo das escadas, a observá-lo enquanto ele se aproximava. Tentou manter uma expressão neutra e, quando chegou junto delas, pegou na mão de Kate com a sua mão direita e na de Zoe com a esquerda. – Foi a Kate que ganhou – disse. – Por um milésimo de segundo. Apertou-lhes as mãos por um momento e depois largou-as. Elas viraram-se uma para a outra e ficaram em silêncio enquanto a informação começava a sua lenta metamorfose em entendimento. Ele disse: – Podem ver a fotografia, se quiserem. Zoe não tirou os olhos de Kate. – Não é preciso. Parabéns.

Os olhos de Kate encheram-se de lágrimas. Abanou a cabeça e levou as mãos à boca. – Vamos correr outra vez. Zoe encolheu os ombros, impotente. Kate virou-se para Tom. – Podemos repetir? Só a última corrida. – Sabes muito bem que não. – Lamento muito, Zoe – disse Kate. Zoe não reagiu. A forma como ela estava ali de pé, com as mãos caídas ao lado do corpo e os olhos desfocados, preocupou Tom. Pôs a mão no braço dela. – Anda – disse, gentilmente. – Vamos falar. Ela sacudiu-o. – Não há nada para dizer, pois não? É por isso que pintamos uma linha da meta na pista, para sabermos quando acabou. Ele suspirou e baixou a cabeça. Tinha de encontrar forças para ser o treinador dela agora; para lhe dar instruções simples, minuto a minuto, de que ela precisaria para ultrapassar a próxima hora e os dias de merda que se seguiriam. – Vai tomar um duche. Depois veste-te e vem ter comigo ao meu escritório. Está bem? Zoe fungou e olhou para a tatuagem olímpica no antebraço. – Está bem – disse, por fim. Depois virou-se para Kate e inclinou ligeiramente a cabeça. – Vou ter saudades tuas – disse. Kate pegou-lhe nas mãos. – Zoe… Abraçaram-se com força, quase demasiada, até que Zoe se afastou, virou costas e se dirigiu aos balneários. Tom viu-a afastar-se, depois sentou-se e disse a Kate que se sentasse ao lado dele. – Como te sentes? – perguntou. Ela olhou para o chão. – Uma merda. – É normal, diria eu. És boa rapariga, Kate, mas ela não te deixou ganhar. Deixou-te apenas correr. – Não me devia ter voltado a levantar. Não devia ter deixado que ela me trouxesse de volta. – Então porque é que te levantaste? Ela franziu o rosto e a sua voz era um sussurro fino e estrangulado.

– Porque me esforcei tanto, Tom. Queria ganhar. Queria ir aos Jogos Olímpicos. – E agora irás. A menos que partas três pernas ou que alguém apareça do nada nos próximos três meses que seja tão rápida como tu, irás a Londres. Pensa nisso por um momento, está bem? Kate levou as mãos à cabeça. – Estou a tentar. Mas quando lá chegar vou estar a pensar: Era a Zoe que devia aqui estar, não eu. Ele passou o braço sobre os ombros dela. – A Zoe estará onde a Zoe estiver. Se ela não te deixasse voltar depois da queda, teria perdido mais do que a corrida, e penso que ela sabe disso. – Mesmo assim, sinto-me péssima. Tom apertou-lhe o ombro. – Vai passar, Kate. Já era altura de teres um golpe de sorte. Ficaram sentados em silêncio durante um momento, a ver a equipa de manutenção limpar a pista. Tom encheu o peito de ar e soltou-o lentamente. – Kate? – disse, cautelosamente. Ela olhou para ele, desconfiada, sentindo a mudança de tom. – Sim? – Devias ligar ao Jack. – Viu-a arregalar os olhos e levantou as mãos. – Tenho a certeza de que não há motivo de preocupação, mas ele teve de levar a Sophie ao hospital. Ela levantou-se de um salto e a cadeira fechou-se com estrondo. Abriu as narinas. – Quando? Quando é que isso aconteceu? A verdade era que acontecera noutra vida, noventa minutos antes, quando aquilo que acontecera na pista ainda parecia crucial. Tentou olhá-la nos olhos mas não conseguiu. – Desculpa – disse. – Acho que devias ir para o hospital. Ela ficou calada por um segundo, a absorver a informação, e depois Tom viu-a correr através da área de aquecimento e pelas escadas acima, em direção à entrada principal. Levantou-se, fechou cuidadosamente a cadeira e começou a longa caminhada até ao seu escritório.

Torre de acesso ao poço central do reator principal, Estação de Batalha Imperial coloquialmente conhecida como Estrela da Morte 13h55m Vader disse: – Eu sou o teu pai. Sophie gritou: – Não! Acordou a soluçar, confusa. O papá estava a segurar-lhe numa mão e a mamã na outra. A mamã tinha lágrimas nos olhos. Tinha o equipamento de corrida vestido, com uma gabardina por cima. – Está tudo bem, querida – disse a mamã. – Está tudo bem. Sentiu um ardor no peito, perto do coração, e levou a mão ao sítio familiar onde o cateter Hickman lhe saía do peito. Desaparecera. No seu lugar estava uma ferida que doía muito quando lhe tocava. – Fui atingida! – disse. A sua voz estava abafada e tinha uma máscara a obstruir-lhe a boca. Debateu-se e tentou sentar-se, mas o papá empurrou-a de novo contra as almofadas. – Não foste atingida, querida. É da anestesia. Vais sentir-te confusa durante um bocadinho. Sophie olhou para ele e pestanejou. Olhou em volta. Havia uma série de instrumentos com fios que se estendiam até ao seu corpo. Seguiu os fios até ao ponto em que desapareciam debaixo do lençol. O lençol tapava-a. Espreitou para baixo e viu o seu próprio corpo familiar, vestido com uma bata de hospital com um dinossauro alegre na parte da frente. Havia algo errado. A mão grande e forte do papá estava a apertar demasiado a dela. A da mamã estava quente demais – tinha suor a escorrer-lhe pelo braço. E o cateter Hickman desaparecera. Isto não era normal. Ela não devia estar aqui. Isto era o sonho, apercebeu-se. Fechou os olhos e tentou urgentemente acordar. Havia uma batalha em curso na lua florestal de Endor e precisavam dela. Não era altura de dormir. – Sophie – disse o papá. – Fica connosco, está bem? Ela abriu novamente os olhos, irritada. – Nem sequer és real – disse. O papá sorriu. – Aí está a minha menina.

Sophie debateu-se fracamente e tentou tirar a coisa que lhe tapava a boca. A mamã segurou-lhe no pulso. – Está a sufocar-me! – Querida, é a máscara de oxigénio. Está a ajudar-te a respirar. Sophie lutou por um momento e depois relaxou sobre as almofadas. Ficou quieta por um instante, a recuperar o fôlego, e arregalou os olhos. – Estou atrasada para a escola? – perguntou. O papá olhou para a mamã, a mamã olhou para o papá, e ambos sorriram. – O que foi? – perguntou ela, aborrecida. A mamã inclinou-se e beijou-a na testa. – Estás um bocadinho atrasada para a escola, Sophie. Mais ou menos dois meses atrasada, mas tenho a certeza de que recuperarás rapidamente. Os médicos acham que estás a melhorar. Sophie franziu a testa. – Não vou para a matemática atrasada com o Barney – disse. A mamã e o papá riram-se, o que era muito irritante porque parecia que achavam tudo o que ela dizia hilariante. Estava tão zangada que usou a Força neles, o que só devia fazer em combate e nunca com as pessoas da família, mas estava tão furiosa que não conseguiu conter-se. Levantou a mão direita, que estava canalizada em todas as veias com cateteres presos ao pulso com fita adesiva, e apontou o polegar e o indicador para a mamã e para o papá. Fechou a distância entre os dois dedos e semicerrou os olhos daquela maneira especial que fazia a Força fluir dos seus dedos. Os pais olharam um para o outro e arregalaram os olhos, assustados. Sophie acenou, satisfeita – não eram tão arrogantes agora que a situação se invertera. Primeiro o papá e depois a mamã levaram as mãos à garganta e fizeram sons estrangulados, debatendo-se para respirar. Quando decidiu que já marcara a sua posição, libertou-os. A mamã e o papá relaxaram nas cadeiras, ofegantes, e depois de recuperarem o fôlego pegaram-lhe de novo nas mãos enquanto as máquinas de monitorização mostravam a sua pulsação a regressar ao normal. – Queres saber uma notícia boa? – disse a mamã. – Acho que vou aos Jogos Olímpicos. A mamã estava a observá-la, à espera de uma resposta. Sophie estava a ouvir apenas com metade da atenção e, porque parecia importante para a mamã, fez um esforço. Repetiu as palavras na mente, tentando encontrar o sentido delas, mas estava exausta. As palavras não faziam qualquer sentido. Havia apenas aqueles

dez dedinhos dos pés cor-de-rosa a espreitar ao fundo dos lençóis. Este chão de linóleo azul e brilhante que dava vontade de calçar os patins. O cheiro brilhante e limpo do hospital, como detergente líquido elétrico. Era lindo e deixava-a feliz mas, de repente, era tudo demasiado e a escuridão subiu de novo e engoliu-a e arrastou-a de volta ao sono. Centro Nacional de Ciclismo, Stuart Street, Manchester 14h05m Tom esperou por Zoe no seu escritório por baixo da pista. Ela estava a demorar uma eternidade no duche, e ele não a censurava. Tinha duas décadas de corridas para lavar. Conseguiu entrar em contacto com Jack, que lhe disse que Sophie estava muito fraca, no pós-operatório. Tentou afastar esse assunto da mente, por agora; retirálo do espaço dos problemas e concentrar-se nas necessidades da sua atleta. – A minha atleta – disse em voz alta, sentindo o som das palavras no ar parado da pequena divisão. A menos que ela quisesse continuar no desporto a nível mais terrestre – e não conseguia realmente vê-la a continuar a aparecer para competir nos Nacionais, ou no circuito de seniores – então talvez já não fosse atleta de ninguém. O que dizer a uma mulher como Zoe, agora que ninguém lhe pagava para o dizer? Como seu treinador, sempre soubera o que lhe dizer. Fora fácil ajudá-la quando o que importava era a elevação da sua cadência de pedalada, ou quantos gramas de proteína devia comer por semana antes dos dias de corrida. Agora que o jogo era a vida real, seria fácil para ela perder. Estaria indefesa num mundo onde a vitória raramente era completa e a derrota era frequentemente negociável. Não sabia o que lhe dizer. Não podia protegê-la como a protegera quando ela tinha dezanove anos. Instalara-a no seu apartamento, na semana que ela passara no hospital, depois da queda de Jack. Cozinhara para ela, falara de ciclismo com ela e depois, quando ela decidira que não podia ficar com Jack, hospedara-a mais uma semana e tentara mantê-la concentrada. Cuidara dela o melhor que sabia e desde então que existia uma ligação especial entre ambos. Era difícil perceber como podia ajudá-la agora. Queria sugerir-lhe que viesse para sua casa outra vez, mas tinha medo de lho pedir. Zoe podia imaginar que ele

estava apaixonado por ela; que era um velho solitário, aterrado pela perspetiva de os restantes dias da sua vida continuarem a apresentar-se ao serviço, um após o outro, sem a presença dela. Teria razão, claro – as mulheres tinham sempre razão –, mas talvez amor não fosse a palavra certa. Um homem prescindia do direito de estar apaixonado por uma mulher de trinta e dois anos assim que fazia algo tão imprudente como nascer em 1946. Não, não era amor. Era apenas que, sem ela, os dias incessantes seriam como leões-marinhos no jardim zoológico, a subir ao pódio e a bater palmas com as barbatanas, para pedir aplausos que ele supunha que teria de se treinar a produzir. Era um truque que as pessoas dominavam. Talvez, com prática e um copo de tinto de vez em quando, ele também o conseguisse. Zoe entrou no escritório, descorada pela tristeza, mais pequena do que alguma vez a vira. Uma vez que não sabia o que lhe dizer, perguntou: – Chá? Ela acenou afirmativamente e sentou-se em cima da secretária enquanto ele preparava duas chávenas de chá. – Estou orgulhoso de ti – disse ele. – O que fizeste hoje naquela pista foi a melhor coisa que alguma vez vi um atleta fazer. – Agora estou arrependida. – Bom, és apenas humana. Quer dizer, tenho quase a certeza. Ela conseguiu fazer um sorriso fraco e ambos beberam o chá. Zoe olhou para ele por cima da beira da caneca. – O que é que hei de fazer, Tom? Ele tirou um bloco e uma caneta de cima da secretária. – Vamos fazer uma lista, que tal? Primeiro temos de falar com o Ciclismo Britânico e delinear um trajeto de carreira para ti no desporto, encontrar-te o primeiro lugar como treinadora, dar o primeiro passo. Depois devíamos preparar um comunicado à imprensa. Antes disso, provavelmente devias falar com a tua agente e com os teus patrocinadores. Depois temos de… – Para – disse Zoe baixinho. Levou as mãos à testa. – Não me referia ao que hei de fazer hoje. Queria dizer, o que hei de fazer com o resto da minha vida? Tom pestanejou. – Vida é uma grande palavra, não é? Vamos decompô-la em segmentos mais pequenos. Vamos encontrar um nível de granularidade em torno do qual possamos fazer planos… vamos pensar um mês de cada vez, ou uma semana de cada vez, e tratar esses módulos quase como uma unidade de treino…

Estava a entrar no ritmo, a usar as mãos para esculpir unidades de tempo complacentes no ar abafado do escritório. Calou-se quando viu como ela estava a olhar para ele. – Acabei de perder por um milésimo de segundo – disse ela. – Não me fales em semanas e meses. Tom pousou o bloco e a caneta na secretária, sem ter escrito uma palavra. Zoe olhou para ele, com os joelhos a abanar de nervosismo, uma expressão atenta no rosto. – Tiveste um filho, não foi? Ele acenou afirmativamente. – Ainda tenho, algures. O Matthew. Não o vejo há… nem sei, uns vinte anos. – Em todo este tempo, nunca falaste sobre isso. – Bom, nunca se tratou de mim, pois não? Ele sorriu, mas ela não. Zoe disse: – Alguma vez tens aqueles sonhos em que estás na rua e perdeste um filho e o sonho dura e dura e procuras cada vez mais freneticamente e a única coisa que encontras são os sapatinhos da criança? O sorriso desapareceu lentamente do rosto de Tom. Olhou para ela sem dizer nada. – A merda dos sapatos, Tom. Às vezes estão cheios de sangue, mesmo até acima. Tão cheios que se lhes tocarmos de lado, mesmo ao de leve, o sangue transborda e nos suja os dedos. Não? – Oh, Zoe – disse ele. – Quando é que me vais contar o que te aconteceu? Ela ignorou-o. – Tenho esse sonho na maior parte das noites. Noutras noites, é aquele em que anda alguém atrás de mim. É por isso que tenho medo de estar sozinha. Tu nunca ficas com medo? Ele baixou os olhos para as mãos. – Suponho que uma pessoa se habitua. Ela respirou fundo, trémula. – Eu não me habituo. A única coisa que me ajudava era a bicicleta. Quando corro, é a única altura em que consigo pensar noutra coisa. – Está bem – disse Tom –, então vamos trabalhar nisso. Vamos estudar os fatores que desencadeiam os pesadelos e arranjar estratégias para lidar com eles. Ela soltou uma gargalhada seca, aguda e perturbadora. – O fator é estar viva. Como achas que devo lidar com isso?

– Nem sequer brinques a esse respeito. Ela desviou os olhos. – Suponho que cada vez faço menos esforço para ficar viva. Corro riscos que não devia correr. Atravesso-me à frente dos carros. Olho para baixo, do telhado do meu prédio, e debruço-me e… – E o quê? Os olhos dela brilharam enquanto o fitava, com o rosto tenso. – Podes ajudar-me a recuperar a minha filha? Podes ajudar-me a recuperar a Sophie? Tom bebeu um gole de chá e pousou a caneca cuidadosamente na secretária. – Esse não é o tipo de pergunta que deves fazer ao teu treinador. Ela levou a mão à dele e roçou com as pontas dos dedos no seu pulso. – Não estou a pedir-te como treinador, Tom. Tom lutou contra o arrepio de prazer que percorreu os nervos aferentes do seu braço, encontrou a medula e evoluiu, à medida que se propagava pela matriz mais sofisticada do seu sistema nervoso central, para uma dor aguda indistinguível do desejo. Hesitou e depois, gentilmente, afastou o braço. – Como amigo, digo-te que não conseguirás pensar como deve ser enquanto não processares o que aconteceu. É natural que te sintas de rastos neste momento. Durante alguns dias, vai-te parecer que o mundo acabou. Ela esticou o braço e pegou-lhe novamente na mão e segurou-a nas suas, estudando-a como se fosse um mapa que lhe mostrasse a melhor forma de navegar nesta conversa. – Confio em ti desde que tinha dezanove anos – disse, por fim. – Nunca questionei o que me disseste. Quando sugeriste que a Sophie devia ficar com o Jack e a Kate… Ele libertou-se de novo e pôs a mão dela na secretária. – Nunca te disse o que fazer. Tu não te sentias capaz de cuidar da Sophie e todos te respeitámos por a entregares aos cuidados de alguém que podia fazê-lo. Ela fitou-o com um brilho de raiva nos olhos. – Bom, mas agora estou em posição de cuidar dela, não estou? Ele ensaiou um sorriso. – Espera alguns dias, está bem? Descansa, organiza as ideias e depois falaremos sobre a Sophie. Ela está doente, Zoe. Não é a altura certa, para ela ou para ti. – Então quando é a altura certa?

– Não sei. Talvez quando não estiveres a atravessar-te à frente dos carros. Zoe apertou a beira da secretária. – Podias dizer-lhes que me deste um mau conselho, não podias? Podias dizerlhes que eu estava perdida e não sabia o que estava a fazer e que nunca me devias ter deixado desistir da minha filha. – Dizer a quem? – Aos tribunais. Ele suspirou. – Não queres envolver os tribunais nisto, Zoe. Se fores para tribunal, a comunicação social vai atrás. Sabes o que a imprensa dirá, se a verdade vier ao de cima? Ela olhou para ele e encolheu os ombros. Tom forçou-se a fitá-la nos olhos. – Dirão que a Kate Argall desistiu dos Jogos Olímpicos pela filha, enquanto a Zoe Castle desistiu da filha pelos Jogos Olímpicos. Ela encolheu-se. – Isso não é justo. Ele encolheu os ombros, tristemente. – Sim, mas será completamente falso? – Eu pensei que era verdade que tinha de levar a gravidez para a frente porque tu me disseste que nunca mais me deixariam em paz se eu abortasse para poder competir. Depois pensei que era verdade que tinha de manter o silêncio em relação a ser a mãe da Sophie, porque tu me disseste que a comunicação social me faria em pedaços se descobrissem. – A sua voz ergueu-se, em tom acusador. – Não me digas que isso não era verdade. – Sim, mas eu própria me estou a fazer em pedaços. Isto é pior do que tudo o que os jornais me poderiam fazer. Ele tentou manter a respiração calma. – Não te importaste com isso enquanto estavas a vencer. Aceitaste as medalhas de ouro e subiste àquele pódio e levantaste os braços. Zoe olhou para ele, furiosa. – Os meus braços, Tom? Vamos lá olhar para os meus braços. Arregaçou a manga esquerda do casaco e mostrou-lhe a ferida da queda, ainda com o penso ensanguentado. – Esta é uma história verdadeira – disse ela. – Quando aceleramos demais, caímos e dói como a merda. Arregaçou a outra manga e mostrou-lhe os anéis olímpicos na pele, coloridos e

inflamados. – Esta é uma mentira. Mais rápido, mais alto, mais forte. Só nos faz sentir cada vez mais sozinhos. As pessoas veem-me naquele pódio e pensam que estão a ver a glória, mas tudo o que estão a ver é o único minuto cintilante em que eu me ergo acima da merda que fiz para chegar até aqui. Olha para todos os campeões que alguma vez conheceste. Olha para mim e para o Jack. Não somos bons da cabeça. Passámos a vida inteira a colocar-nos a nós próprios em primeiro lugar. Agora olha para a Kate, sempre em segundo. Todos os santos eram perdedores, Tom. Mas não dão medalhas por isto – agitou o braço ferido –, dão medalhas é por isto. – Esticou o braço tatuado na direção da cara dele, com força, e Tom recuou. – Não estás a ver como deve ser. – Consigo ver com os olhos fechados, Tom, porque dói. Dói muito. Ele suspirou e encostou-se na cadeira. – Querias ganhar. O meu trabalho era ajudar-te a ganhar. Ela abanou a cabeça furiosamente, com manchas vermelhas a aparecerem-lhe na pele do rosto e do pescoço. – Sinto-me como se me estivessem a arrancar o coração. Sinto-me como se pudesse começar a gritar e nunca mais parar. Se alguma vez tivesses realmente querido ajudar-me, ter-me-ias dito há oito anos como é que eu ia sentir-me hoje. Tom olhou para ela, incrédulo. – Por favor. Eu não podia mudar-te. Ninguém podia. Ela sorriu-lhe selvaticamente, uma expressão quase animal. – Então o teu trabalho era apenas vender bilhetes para o espetáculo de aberrações, como todos os outros. – Isso não é justo. Eu gosto de ti. Sempre gostei. – Apercebeu-se de que estava a corar. Ela disse: – Se gostas de mim, então deixa-me pôr fim a todas as mentiras. Agora é a minha vez. Ele lançou-lhe um olhar cortante. – O que queres dizer? – Quero dizer a verdade à Sophie. Quero dizer-lhe hoje. Ele abriu as mãos num gesto suplicante. – Ela está no hospital, Zoe. Arrependeu-se imediatamente de o ter dito. Viu os músculos dela ficarem tensos e o seu corpo rodar na cadeira giratória, configurando-se para se levantar e sair. Agarrou-lhe no pulso.

– Por favor, não vás lá agora. Espera algum tempo. Já vi isto antes, com atletas ao fim de uma longa carreira. Nunca mais te vais sentir tão mal como hoje em toda a tua vida, mas acredita quando te digo que tens um futuro. Ela puxou o braço. – Não sem a minha filha. Estou a falar a sério, Tom. Tom olhou-a nos olhos e acreditou nela. – Vou contar a verdade à Sophie – disse ela. – Vou ao hospital e vou dizer-lhe agora. Levantou-se e Tom ergueu-se também para a bloquear, mas a dor explodiu-lhe nos joelhos e o seu ânimo desapareceu. Caiu de novo na cadeira. – Não posso impedir-te – disse. E depois, quando Zoe saiu do pequeno escritório abafado, disse: – Nunca consegui. Olhou para as mãos por um minuto e depois pegou no telefone para avisar Jack e Kate. Hospital Geral da zona norte de Manchester 15h30m Zoe chegou à receção do hospital e apresentou-se como familiar. Disseram-lhe onde Sophie estava e ela seguiu os sinais até à unidade pediátrica de cuidados intensivos. Percorreu os longos corredores com chão de linóleo, sentindo nas pernas a fraqueza pós-corrida. Na derrota, não havia pico de endorfinas para contrabalançar as dores. Na junção de dois corredores teve de descansar, encostando o peso à parede por um minuto, até as dores agudas nos tornozelos aliviarem. Os funcionários do hospital passavam por ela, movendo-se com a eficiência prática de corpos raramente levados aos seus limites operacionais. A dor nos tornozelos fê-la pensar em Tom. Teria sido assim que começara para ele – a artrite e os problemas de articulações? Tê-lo-iam atingido no minuto em que abandonara o desporto? O corpo era assim – tinha a capacidade de se aguentar até poder desfazer-se. As pessoas saíam de prédios a arder a caminhar sobre duas pernas partidas e só caíam quando se encontravam em segurança, longe das chamas. Cônjuges morriam dias depois um do outro, e as pessoas chamavam-lhe coração partido.

Centelhas de luz dourada passaram-lhe pela visão e o chão pareceu distante e irregular. Não comia desde antes da corrida – ficara demasiado perturbada para se lembrar da bebida de recuperação – e agora os seus níveis de açúcar estavam a cair. Ignorou a dor dos tornozelos e forçou-se a movimentar-se de novo, seguindo as instruções que a rececionista lhe dera. Kate estava sentada no corredor, à porta da unidade de recuperação, numa de duas cadeiras com estofo de napa que ladeavam as portas de batente. Em frente das cadeiras havia um aquário com peixes fulvos e lentos, a mordiscarem as minúsculas folhas verdes das algas que cresciam no interior do vidro. Havia um quadro de avisos com cartazes do governo a recomendar a ingestão diária de vegetais e a explicar a melhor forma de espirrar. Kate ergueu os olhos ao ouvir o som dos ténis de Zoe no linóleo. Não pareceu surpreendida por a ver. O seu rosto era inexpressivo e fatigado. Ainda vestia o fato de corrida, com a gabardina por cima. – Olá – disse ela, calmamente. Zoe franziu a testa. – O Tom disse-te que eu vinha, não foi? Vou entrar, está bem? Encostou a mão à porta. Kate não olhou para ela. – Senta-te, Zoe. Havia algo na sua voz que fez Zoe hesitar. – Não podes impedir-me – disse. – Eu sei – disse Kate. – Por isso senta-te. Zoe fungou. – Está bem – disse. – Um minuto, e depois vou entrar. Sentou-se na outra cadeira e virou-se de lado para olhar para Kate. – A Sophie está muito fraca – disse Kate. Zoe sentiu o que restava das suas forças a desaparecer. As luzes douradas na orla da sua visão multiplicaram-se, ao ponto de quase não conseguir ver. A cadeira pareceu mexer-se debaixo dela e o chão inclinou-se, de tal modo que teve de se segurar à cadeira para não cair. – Ela vai ficar bem? Viu Kate apertar os lábios, tentando controlar as emoções. – Pensamos que sim. Zoe suspirou, aliviada. – Graças a Deus. A boca de Kate estremeceu por um instante e depois relaxou numa linha pálida

e cansada. Ela disse: – Sentes-te bem? – Sinto-me como se tivesse levado uma tareia. Kate acenou. – O Tom disse que estavas perturbada. Disse que estavas a falar em contar a verdade à Sophie. Zoe olhou para ela. Era difícil ver Kate como a vencedora, mesmo agora. Desde que tinham dezanove anos que Zoe desenvolvera o hábito de procurar as fraquezas na postura de Kate; os sinais de hesitação no seu rosto; as inseguranças no seu discurso. Aproveitara sem hesitar todas as vantagens que Kate lhe concedera, apesar de se arrepender sempre depois. Agora já não havia depois. Era difícil ajustar-se à realidade de que Kate finalmente vencera – vencera tudo. Ali estava ela, sentada numa cadeira exatamente igual à de Zoe, e contudo o conhecimento de que Kate ia aos Jogos Olímpicos fazia da cadeira dela um trono. Zoe passara tantos anos deslumbrada pelos Jogos que era impossível deixar agora de sentir a sua força. Todo o poder que ela investira em Londres pertencia subitamente a Kate. O que tornava tudo ainda pior era o facto de Zoe nem sequer ter sido vencida, realmente vencida – ela dera a Kate uma segunda oportunidade na corrida de hoje porque lhe parecera a coisa certa a fazer por Sophie, que queria tanto que a mãe vencesse. A mãe. Enquanto olhava para a rival, pálida e sentada em frente dela, apercebeu-se com uma força inesperada de que Kate nunca a vencera realmente em nada. Zoe é que desistira de Jack, e entregara Sophie, e oferecera-lhe os Jogos Olímpicos. Kate simplesmente estivera ali, pateticamente à espera, em segundo lugar, para poder estar perto de Zoe quando ela largasse todas estas coisas preciosas. Enquanto Zoe lutara contra fantasmas, Kate andara a aspirar atrás dela como uma boa dona de casa. Semicerrou os olhos ao sentir parte das forças regressarem. – Sim – disse. – Quero contar a verdade à Sophie. Viu as lágrimas encherem os olhos de Kate. No aquário do outro lado do corredor, os peixes aprisionados roíam a fina camada de musgo verde, agitando as caudas e levantando grãos de areia que caíam novamente em silêncio no fundo do aquário. – Está bem – disse Kate, por fim. – Tens o direito de contar à Sophie, se é isso que precisas de fazer. Mas… Levantou-se, aproximou-se da cadeira de Zoe, ajoelhou-se e pegou-lhe na mão. – És a minha melhor amiga, Zoe. Sei como isto é difícil para ti. Confio em ti,

sei que farás o que é melhor para a Sophie. Mas posso pedir-te que esperes? Podes esperar até a Sophie estar mais forte, antes de lhe contarmos juntas? Zoe olhou para ela e sentiu uma força a dilacerar-lhe o peito. Era sempre assim que a apanhavam – Kate, Tom e Jack. Falavam tão docemente que ela sentia algo erguer-se na parte enterrada de si própria que queria desesperadamente acreditar que podia ser ela. Entregava-se a esse sentimento, só por um minuto, e quando dava por si eles tinham-lhe tirado qualquer coisa. Uma raiva intensa invadiu-a. – Não estou a falar apenas de contar à Sophie. Quero que façamos qualquer coisa a esse respeito. – O quê? – Quero ser a mãe da Sophie, Kate. Quero noites sem pesadelos. Quero tudo aquilo que me tiraste. Lentamente, Kate abanou a cabeça. – Oh, Céus, Zo. Eu não te tirei a Sophie. Fiquei com ela porque tu… não podias. Zoe abanou a cabeça furiosamente. – Enganaram-me. Todos vocês. Viu a boca de Kate abrir-se num grito silencioso ao compreender que Zoe estava a falar a sério. – Por favor – disse Kate. – Por favor. – Por favor, o quê? – Não podes. – Posso. Se não fizerem o que é correto, lutarei por isso em tribunal. Eu estava desfeita, Kate. Não sabia o que estava a fazer. – Por favor. Não estás a pensar no que isto fará à Sophie. – Kate deixou-se cair contra o braço da cadeira. – Não aguento isto, não aguento. Zoe fitou-a com frieza. – Nesse caso, devias ter-me deixado alguma coisa. Devias ter ficado no chão quando caíste, hoje. Kate ergueu para ela os olhos cheios de lágrimas. – É disso que se trata? Porque podes ficar com ele. Podes ficar com o meu lugar em Londres. Telefono imediatamente ao Ciclismo Britânico. Digo-lhes que fiz batota. Digo-lhes que sabotei a tua bicicleta. Digo-lhes aquilo que tu quiseres, Zoe, mas, por favor, não metas a Sophie nisto. Zoe levantou-se e passou à volta dela. – Não. Não vou permitir que me enganes de novo. Vou entrar agora mesmo e

vou dizer a verdade à Sophie. Kate agarrou-lhe no braço. – Por favor. Dou-te o que tu quiseres. Zoe tentou soltar o braço mas Kate apertou-o ferozmente, aumentando o peso sobre os tornozelos de Zoe ao ponto de esta ter de sufocar um grito. – Larga-me! – Por favor, Zoe. Se tens de fazer isto, pelo menos não o faças agora. Está bem? Dou-te o meu lugar em Londres se deixares a Sophie em paz durante um mês. Deixa-a recuperar um pouco as forças, está bem? Se a amas, então fica com o meu lugar nos Jogos Olímpicos… fica com o que quiseres… mas dá-lhe algumas semanas para recuperar. Depois podes fazer o que tiveres de fazer. Mas, por favor… por favor… não faças isto à Sophie agora. Zoe puxou o braço e soltou-o da mão de Kate. Tapou os ouvidos com as mãos para não ouvir as súplicas de Kate. – Já não te vou ouvir mais. Há sempre um motivo para tu acabares feliz e, para variar, não quero ouvi-lo! Zoe recuou do alcance das mãos de Kate e lançou-se contra as portas de batente, entrando na unidade de recobro. Passou rapidamente pelo balcão das enfermeiras, ignorando a dor nos tornozelos, ignorando a mulher de uniforme que lhe perguntava em que podia ajudar. Ouviu as portas abrirem-se de novo quando Kate entrou atrás dela. Apressou-se pelo corredor central, a olhar para a esquerda e para a direita pelas estreitas janelas de vidro reforçado em cada porta. A quarta porta era a do quarto de Sophie – viu Jack sentado ao lado da cama e entrou. Jack olhou para ela mas não a viu. Zoe olhou para Sophie, pálida e imóvel, com a boca e o nariz tapados por uma máscara translúcida de oxigénio. Estacou. Não estava à espera disto – de que Sophie estivesse inconsciente. Agarrara-se à imagem de Sophie tal como a vira dois dias antes, a rir no cesto da bicicleta enquanto Kate pedalava na pista do velódromo. Zoe imaginara-a indisposta – doente, talvez, mas sentada na cama com um sorriso corajoso. Até ensaiara algumas das coisas preliminares que poderia dizer. Sophie, lembras-te de como nos divertimos na pista no outro dia? Gostavas de te divertir assim todos os dias? Este silêncio perfeito, esta imobilidade absoluta, fizeram-na estacar abruptamente. O rosto de Sophie, imóvel e pálido, era um eco perfeito de um rosto que jazia nas profundezas do silêncio da memória de Zoe. Zoe levou as mãos à boca e susteve a respiração. Um temor crescente roubou-lhe todo o calor do sangue e

ficou paralisada, a olhar para o rosto de Sophie, a lutar contra a imagem de outro rosto pálido que não via desde os dez anos de idade. – Oh, meu Deus… – murmurou. Cambaleou e agarrou-se à grade lateral da cama de Sophie para não cair. Jack pegou-lhe na mão e Kate segurou-a pelos ombros, mas Zoe não sentiu nada disso. Perguntaram-lhe se se sentia bem, mas tudo o que ela ouvia era o silêncio frio e próximo do quarto. O cheiro intenso a desinfetante do hospital acelerou a memória que agora se erguia, imparável. A cama de hospital, com os seus pés de borracha, sustentou a memória, e os lençóis verdes do hospital envolveram-na e, quando Zoe caiu de joelhos, os seus olhos baixaram até ter novamente dez anos e estar a caminhar com uma assistente social pelos corredores vazios e repletos de ecos de uma cave de hospital. Tinham-lhe dado comprimidos para a manter calma, mas o único efeito fora deixar um zumbido agudo nos seus ouvidos e uma confusão aturdida na sua mente. Adam caíra da bicicleta – era tudo o que recordava. Adam caíra da bicicleta e ela tinha de o encontrar e de o levar para casa. Tinha de o fazer ela própria porque a mãe não conseguia. Acontecera qualquer coisa no coração ou na cabeça da mãe que significava que ela não conseguia sair da cama e não conseguia parar de chorar e de gritar. Tinham passado quarenta e oito horas desde que a polícia encontrara Zoe, delirante e a pedalar erraticamente pela autoestrada, depois do acidente. Ainda lhe doíam muito as pernas e era difícil andar. – Falta muito? – perguntou. – Em que quarto é que o Adam está? A assistente social acariciou-lhe o cabelo. – O corpo do Adam, querida. É aquela porta ali ao fundo. As palavras estavam todas misturadas na cabeça de Zoe. A assistente social estava a apontar para uma porta de metal amolgada, sem pintura, ao fundo do corredor. Zoe apressou o passo. Empurrou-a, mas estava trancada. Quando a assistente social chegou ao pé dela, ajoelhou-se e disse: – Muito bem, querida. Só quero confirmar que consegues mesmo fazer isto. Vai ser muito difícil para ti ver o Adam como ele está. Receio que isso te deixará muito triste, mas pensamos que a longo prazo ficarás provavelmente ainda mais triste e mais perturbada se não vires mesmo o corpo dele. Zoe não estava a ouvir. Agora que tinham chegado ao pé de Adam, não aguentava o facto de a assistente social a estar a obrigar a esperar. Empurrou

insistentemente a porta até a mulher a abrir. Lá dentro estava muito frio. Não havia janelas, apenas luzes fluorescentes no teto. O chão era de azulejos, e havia o que parecia ser um lavatório e armários de cozinha numa das paredes. No centro da sala, Adam estava a dormir em lençóis verdes limpos, numa cama alta de metal. Tinha a cabeça virada para ela e Zoe viu o seu cabelo preto e brilhante na almofada. Sorriu, aliviada. – Adam! O estrondo do acidente fora tão forte, ainda bem que ele estava tão descansado. Zoe temera que ele estivesse ferido e a gritar de dores, ou apenas a gritar sem razão, como a mãe. Em cima do balcão, na parede dos armários, estava um par de luvas de borracha encarnadas e mais nada. Ela não compreendia por que não havia comida na cozinha, nem porque é que o irmão estava a dormir aqui. Talvez ele estivesse tão confuso como ela. Adam puxara o lençol verde para cima da cara para fazer escuridão suficiente para dormir. Zoe dirigiu-se à cama e puxou o lençol para baixo mas ele não se moveu; continuou ali deitado, perfeitamente adormecido. Estava pálido, mas era ele, e tão tranquilo. Ela sorriu e beijou-o na face e depois o seu sorriso vacilou porque a pele dele estava gelada. Recuou e olhou para ele e reparou novamente na sua palidez. Tocou-lhe. Ele estava tão frio. – Adam, acorda! Ele não abriu logo os olhos, por isso sacudiu-lhe o ombro. Não se mexeu como devia ter mexido. Em vez disso, todo o corpo abanou de um lado para o outro. Abanou-lhe o ombro e viu os pés seguirem o movimento, debaixo dos lençóis, na ponta da cama. – Adam? – sussurrou. Um medo terrível apoderou-se dela e soltou o ombro de Adam para fazer com que o medo não fosse verdade e saiu a correr da sala e correu pelo corredor. Era rápida, apesar da dor nas pernas, e a assistente social demorou muito tempo a apanhá-la. Sentiu alguém levantá-la do chão e lutou para escapar. Passado algum tempo, estava demasiado cansada para continuar a lutar e deixou-se levar para uma pequena sala, com uma mesa baixa e carpete aos quadrados e cadeiras com estofos arranhados. Escutou atentamente o que a assistente social lhe estava a dizer. As palavras eram mais claras desta vez, mas, como era impossível que pudessem ser verdade, ela entrou numa espécie de sonho longo e terrível durante mais de vinte anos e tentou uma e outra vez

despertar dele. Atenas não a acordou e Pequim não a acordou e depois, finalmente, acordou aos trinta e dois anos de idade, ajoelhada ao lado desta cama de hospital, a ver o rosto de Sophie noutra almofada verde, pálido e absolutamente imóvel. Os ombros de Zoe tremiam e Jack e Kate ajoelharam-se ao seu lado e disseramlhe que ia correr tudo bem. Trouxeram-lhe uma cadeira e os três ficaram sentados ao lado da cama de Sophie toda a tarde. Lentamente, enquanto via o peito de Sophie subir e descer levemente, Zoe sentiu a dor da derrota desse dia a dissipar-se. Viu a forma natural e inconsciente como Kate cuidava de Sophie – ora puxando o lençol quando ela parecia ter calor; ora ajeitando o elástico da máscara de oxigénio quando escorregava. Lentamente, lembrou-se de algo que esquecera no amargo rescaldo da vitória de Kate: que este trabalho que Kate fazia não era algo que ela conseguisse fazer. Não era apenas difícil, era sempre uma roda à frente do impossível. Cuidar de uma criança muito doente era os Jogos Olímpicos da parentalidade. Se Sophie tivesse estado com ela, durante os longos anos da sua doença, Zoe sabia que não teria aguentado. A dor não desapareceu com a aceitação, mas tornou-se lentamente mais fácil de guardar dentro de si. Cada momento a rodeava de pequenos confortos, tratando de suavizar as arestas mais cortantes. Sophie estava viva – isso era o principal. E Zoe tinha Tom, e Kate, por isso não estava completamente sozinha. Toda a tarde, os três ficaram sentados em silêncio em torno da cama de Sophie, sem nunca tirarem os olhos do seu rosto, desejando que ela ficasse bem. Por fim, com o sol vermelho a pôr-se por trás das nuvens cinzentas do outro lado das janelas do hospital, Sophie abriu os olhos. Ficou em silêncio alguns minutos, a olhar em volta e a absorver a presença de Zoe, Kate e Jack. Kate pegou num copo de água e tirou-lhe a máscara para a ajudar a beber, e Zoe viu os olhos calmos de Sophie erguerem-se para o rosto de Kate e sorrir. – Mamã? – disse ela num murmúrio rouco. – Porque é que a Zoe está aqui? Zoe sentiu Kate e Jack a olharem para ela. Inclinou-se e pegou na mão pequena e quente de Sophie entre as suas. – Queria apenas dizer-te… – disse. Depois hesitou e sentiu as lágrimas arderem-lhe nos olhos. – Dizer-me o quê? – perguntou Sophie. – Uma coisa que nunca te disse antes. Uma coisa que te devia ter dito há muitos anos.

Sophie pestanejou. – O quê? Jack e Kate agitaram-se nas cadeiras. Jack abriu a boca para falar, mas Kate deteve-o com uma mão no braço. Zoe apertou a mão de Sophie e sorriu-lhe. – Quero apenas dizer-te quem são os teus pais. És uma menina de muita sorte, Sophie. Tens um papá que gosta tanto de ti que mal conseguiu pedalar a direito por estar a pensar em ti, mesmo na maior corrida da sua vida. Não há muitos homens assim no mundo, espero que saibas. E tens uma mamã, Sophie… Engoliu em seco e tentou de novo. – Tens uma mamã que te ama tanto que estava disposta a desistir da coisa mais importante do mundo para ela, só porque era o melhor para ti. Pestanejou rapidamente, para conter as lágrimas. Sophie olhou para ela com ar desconfiado. – Sim – disse. – Eu sei. Quando as lágrimas começaram a cair, Zoe sentiu um braço à sua volta e encostou a cabeça ao ombro de Kate. – Desculpem – disse. – Estou tão cansada. As mãos de Kate acariciaram-lhe o cabelo. – Chiu – sussurrou. – Está tudo bem. Estamos apenas cansadas porque andamos a correr há tanto tempo.

Duas semanas depois, pub The Townley, Albert Street, Bradford, Manchester om voltou do bar com um whisky duplo para ele e uma água com gás para Zoe. Ela estava sentada numa mesa de canto, num banco reservado, com o queixo apoiado nos joelhos, a observá-lo. – O que foi? – disse ele. – Um velho já não pode beber um copo depois de um dia destes? Ela conseguiu fazer um sorriso fraco que o animou um pouco. Estava satisfeito com a forma como ela estava a aguentar-se. Ainda não era o sol, mas era uma vela na cave. Ele estava disposto a aceitar qualquer tipo de progresso, depois da escuridão absoluta das horas após aquela última corrida. Zoe apontou para o copo na mão dele. – Mas whisky? – Se fizessem alguma coisa mais forte estaria a bebê-la, acredita. Ela ensaiou outro sorriso. Tom não a deixara sozinha durante quinze dias. De dia, mantinha-a ocupada com as tarefas simples de desfazer o acordo de patrocínio e com a mudança do apartamento. À noite, no pequeno apartamento de Tom, espreitava para o quarto dela de meia em meia hora. Dormia apenas em períodos de vinte minutos, destroçados pelo apito do alarme do relógio de pulso. De qualquer maneira, na idade dele, precisava mais do perdão da vida do que de dormir. Esta manhã, alugara um pequeno carro branco, com o logótipo da companhia de aluguer nas portas, movido por algo a que podia chamar-se um motor. Levara-a à velha e decrépita igreja do Hampshire, a sul, com o cemitério cheio de ervas

T

daninhas que ela nunca visitara. Demoraram meia hora a encontrar a campa do irmão dela. A lápide era de mármore preto, liso e brilhante, em forma de ursinho de peluche. As componentes canónicas tinham sido gravadas na pedra com precisão desumana, por uma fresadora controlada por computador, por um fabricante que presumivelmente era especializado nestas estelas e as produzia em pequenas séries de dez ou doze de cada vez, a uma velocidade determinada por algoritmos estatísticos proporcionais à taxa a que as crianças faleciam na área geográfica do distribuidor. Numa fase posterior, possivelmente mais à frente da cadeia de fornecimento, as linhas gravadas dos olhos e sorriso do ursinho de peluche tinham sido preenchidas com uma tinta dourada patenteada e resistente às intempéries, que possuía a propriedade de aderir a pedra metamórfica quando devidamente utilizada, e de aí se manter basicamente para sempre. Tom detestara a lápide. A sensação de desapontamento, por um mundo que produzira um artefacto destes e obrigara esta jovem de quem ele gostava a olhar para ele, era quase insuportável. Descarregara na vegetação descontrolada da campa, arrancando-a tão violentamente que ficara com as mãos arranhadas e a sangrar. A lápide, depois de finalmente a revelarem, parecia austera e nova e demasiado direita naquele campo liso de cruzes tortas e rústicas. Zoe não dissera uma palavra, limitando-se a olhar silenciosamente para aquele terrível monumento infantil, a viajar em eterna formação com as pedras de arestas mais suaves dos idosos mortos. Depois ajoelhara-se, pegara no seu primeiro ouro olímpico – a medalha do sprint em Atenas, com a fita azul desbotada, e pendurara-a ao pescoço do ursinho de peluche. Do bolso do casaco tirou a garrafa de água de alumínio amolgada que ela e Adam tinham partilhado. Pousoua cuidadosamente na campa, empilhando as lascas de mármore branco para a manter direita sobre a base irregular. Venceste, disse baixinho. Deves ter tanta sede. No regresso ao carro, tinham-se agarrado um ao outro em busca de apoio. Os joelhos dele estavam uma desgraça, os tornozelos dela estavam questionáveis, e os corações de ambos estavam no estado em que, se fosse qualquer outro músculo, Tom teria recomendado que o repousassem durante o resto da época. Ficaram sentados no carro alguns minutos, em silêncio, antes de ele ligar o motor. – Devia ter vindo aqui há vinte anos – disse ela por fim. – Devia ter resolvido o assunto na minha cabeça. Era isso que uma pessoa normal faria, não era? Ele pensou por um momento e depois suspirou. – Não vamos começar a pensar no que devíamos ter feito.

Zoe olhou para a igreja. – É sempre assim, quando alguém abandona o desporto? – Assim como? – Não sei. Parece que morri. Ou que nasci. Tom refletiu, com os dedos a tamborilar no volante. – Não – disse, por fim. – Quer dizer, quando se retiram, os outros ciclistas com quem trabalhei têm mais ou menos delineado o que querem fazer a seguir. Talvez seja por isso que ganharam muito menos do que tu. Nunca pensaste realmente no depois, pois não? Isso deu-te uma grande vantagem na pista. – Achas que foi injusto para os outros, ou que foi injusto para mim? Ele sorriu. – Querida, não há justiça neste mundo. Ela riu-se e regressaram a norte num silêncio confortável. Chegaram a Manchester ao fim do dia e entregaram o carro alugado. Depois foram ao apartamento de Zoe no quadragésimo sexto andar, arrumar o resto das suas coisas num saco de viagem da Equipa CB, enquanto a lua se erguia sobre a cidade do outro lado das janelas altas. Por fim, colocaram a chave Yale de Zoe num envelope branco e deixaram-no na caixa de correio dos advogados que estavam a tratar da venda. Ficaram parados no passeio, sem saber o que dizer um ao outro. – Apetecia-me um copo – disse Tom. Zoe encolheu os ombros. – Suponho que podia ir ver-te beber. Agora, Tom estava sentado em frente dela e colocou os copos sobre as bases. O pub estava quase vazio. As carpetes cor de sangue tinham um padrão destinado a disfarçar o que se entornasse sobre elas no futuro, e cheiravam a bafio por causa do que já se entornara sobre elas no passado. Ninguém pusera dinheiro na jukebox, que estava a tocar músicas aleatórias. Neste momento, era «God Only Knows», dos Beach Boys. – Como te sentes? – perguntou Tom. – Bem. – Que estás a achar do tempo cá em baixo, onde nós, os comuns mortais, vivemos? Ela mostrou-lhe o dedo do meio. O empregado do bar, com a cara lisa e redonda como a de um bebé, tocou uma sineta suspensa sobre o balcão, para indicar que o tempo atingira um ponto de divisão.

– Últimos pedidos – disse. Tom olhou para o relógio com a testa franzida. – Tens a certeza de que não queres qualquer coisa mais forte, Zo? Ela abanou a cabeça e Tom tocou-lhe no braço. – Queres ir ver a Kate e a Sophie amanhã? – Em breve. Ainda não. Preciso de algum tempo para deixar a poeira assentar. Ele observou-a atentamente. – Estás arrependida por não teres dito nada à Sophie? Zoe fungou e abanou a cabeça. – Não, estou contente. A Kate é a mãe dela. A Kate passou pelo Inferno por ela e eu simplesmente… passei. Tom apertou-lhe o braço. – Fizeste o melhor que podias. É o que fazes sempre. Não gostaria tanto de ti se isso não fosse verdade. – Mas, Tom, eu amo-a. É possível amar uma criança mesmo quando não somos mãe dela, não é? Ele sorriu. – Acho que sim. Os olhos dela estavam parados, o verde baço. Ainda tinha um longo caminho a percorrer. Em breve, talvez dentro de uma semana, começaria a ouvir as insinuações que ele estava a fazer. Ainda não estava recetiva à ideia de que podia fazer algo grandioso com os seus dias. Falara em contratos de modelo, ou em tornar-se comentadora, ou em uma dezena de outras vidas que ele sabia que a fariam infeliz. Apesar disso, Tom não ia desistir. Era preciso paciência para convencer os cometas a abrandarem até à velocidade da vida. – Não te preocupes – disse. – Vai correr tudo bem. O empregado de bar estava a arrumar as cadeiras em cima das mesas e a pulverizar aquele tipo de detergente que tinha a qualidade de ser simultaneamente fresco como citrinos e insuportável. A televisão ao canto mostrava a guerra no Afeganistão. A jukebox passara para Ella Fitzgerald a cantar «Dream a Little Dream of Me». – És boa pessoa – disse Zoe por fim. – Se os teus tornozelos piorarem, querida, bem podes começar a ser simpática também. Ela sorriu, um sorriso a sério que o elevou a um lugar onde não estava há semanas. Lentamente, os lábios dela voltaram a ser uma linha suave e séria.

– És bom para mim – disse ela baixinho. – Tu és a história da minha vida – disse ele. – Porque é que não havia de ser bom para ti? O empregado deu dois toques na sineta e disse: – Está na hora, senhoras e senhores.

Três anos depois, domingo, 5 de abril de 2015 Centro Nacional de Ciclismo, Stuart Street, Manchester ack estava sentado ao lado de Kate, no alto das bancadas, a ver Sophie treinar sozinha na pista. Não falaram, limitando-se a ouvir as suas rodas nas tábuas e os bips do contador de voltas. Gostavam de esperar aqui em cima, longe do alcance da visão de Sophie, deixando-a correr à vontade. Gostavam de ouvir os gritos excitados de Zoe enquanto treinava a filha deles. Por vezes, quando Sophie curvava no ponto mais alto da pista e descia de novo para a sua faixa, sentiam as próprias mãos a tremer sobre guiadores fantasmas, e os músculos das pernas ansiosos por arder. Os seus ritmos cardíacos subiam e estavam na pista com ela, a rugir nas curvas de madeira polida, levando a biomecânica àquele limiar perfeito onde tudo encaixava e as mentes ficavam silenciosas. Quando se deixavam levar assim, tinham de fechar os olhos e abrandar a respiração e recordar a si próprios que o seu tempo passara. Persistia apenas no silêncio imutável do ouro de Jack de Atenas, enterrado no chão com o pai dele, e nos movimentos diários do ouro de Kate de Londres, a baloiçar no seu devido lugar, na ponta do fio da luz da casa de banho no piso térreo da sua casa. Depois de todos os anos de velocidade, o maior desafio de todos era forçaremse a ficar sentados, aqui em cima na escuridão das bancadas. Era o que se aprendia, depois de a corrida terminar: que as voltas mais difíceis eram as que se faziam depois de as multidões irem para casa. – A miúda parece bem, não achas? – disse Jack passado algum tempo. Kate viu Sophie a sorrir enquanto entrava noutra curva.

J

– Sim, parece muito rápida. – Achas que chegará ao ouro, um dia? Kate estava prestes a avisá-lo para não ter esperanças demasiado elevadas, mas fechou a boca. Quem era ela para falar das probabilidades? Sophie recuperara de uma leucemia. Disparara o raio destruidor da Estrela da Morte para as constelações ilimitadas do espaço, e atingira exatamente o alvo certo. Vencera essas probabilidades. Observaram a filha. Caracóis escuros saíam por baixo do capacete. Quando o tirava, gostava de usar o cabelo em dois totós e tinha a tendência de recorrer a acessórios como um cinto de munições e uma arma de raios. Os desconhecidos que viam os Argall, hoje em dia, provavelmente diagnosticariam mais depressa um desastre de moda do que um problema de saúde. Sophie encorpara, tão depressa como eles. Com a remissão da leucemia viera o alívio das alergias e intolerâncias. Agora que Sophie estava livre da quimioterapia e eles das dietas de treino, a família tornara-se numa equipa de segundos pequenos-almoços e piqueniques à meia-noite. As bochechas de Sophie estavam a arredondar. As calças de ganga de Jack eram seis centímetros mais largas na cintura. Tinham comido até regressar ao normal, ou tão normal como qualquer família podia ser quando a filha estava neste momento a pedalar à volta do velódromo nacional com um fato de Lycra da Princesa Leia especialmente mandado fazer para ela, sob a supervisão de uma detentora de quatro medalhas de ouro olímpicas, às sete da manhã de um domingo, enquanto as amigas da escola estavam numa festa de pijama. Jack apertou o joelho de Kate. – Os Nacionais de Juvenis são este verão. Achas que devíamos deixá-la competir? Kate pensou nisso. – O que diz a Zoe? – Diz que a Sophie ia deixar as outras tão para trás que precisariam de terapia. Kate riu-se. – Ela não muda. Jack sentiu a ansiedade no peito. – Mas, não sei. Será seguro para a Sophie fazer tanto esforço físico? – Ela diz que se sente ótima. – Mas isso era o que nos dizia quando estava praticamente a morrer. Como havemos de saber no que acreditar? Kate abraçou Jack pela cintura e encostou a cabeça ao ombro dele.

– Veremos a verdade na pista – disse baixinho. Ambos olharam para a ação. Muito abaixo deles, entre ecos de ataques de riso e rios de profanidades, Zoe incentivava Sophie a atingir a velocidade de corrida. Nos anos que começavam a desvanecer-se atrás deles, as multidões tinham gritado os seus nomes. Muito acima deles, a cair pelas claraboias no teto alto do velódromo, a corajosa luz de abril era dourada.



NOTA DO AUTOR O ciclismo é duro. Os treinos são brutais e implacáveis, as corridas desesperadas e perigosas. Na pesquisa para este livro passei algum tempo em cima de uma bicicleta, para ver até onde conseguia forçar-me a ir e a tentar registar o que sentia. Sou um ciclista com vontade mas sem talento, e a cada pedalada admiro mais os campeões. Existem barreiras de dor física e emocional que eles conseguem ultrapassar e eu não. São pessoas extremamente corajosas e acho que é importante registar aqui alguns dos seus feitos reais. Neste romance, nos Jogos Olímpicos de Atenas, Zoe Castle venceu o ouro no sprint e na perseguição individual feminina, enquanto Jack Argall venceu o ouro no sprint masculino. Na realidade, o ouro no sprint feminino foi conquistado por Lori-Ann Muenzer do Canadá, o ouro na perseguição individual por Sarah Ulmer da Nova Zelândia e o ouro no sprint masculino por Ryan Bayley da Austrália. Neste romance, nos Jogos Olímpicos de Pequim, Zoe Castle conquistou o ouro no sprint e na perseguição individual feminina. Na realidade, Rebecca Romero da Grã-Bretanha conquistou o ouro na perseguição individual feminina enquanto Victoria Pendleton da Grã-Bretanha venceu o ouro no sprint feminino. Que as suas vitórias sejam recordadas, e as suas personalidades celebradas, para sempre. Na altura em que escrevo, ainda falta um ano para os Jogos Olímpicos de Londres. Boa sorte para todos os atletas. Cuidar de filhos doentes é os Jogos Olímpicos da parentalidade. Enquanto fazia pesquisa para este romance, pude acompanhar o doutor Philip Ancliff, um

hematologista no Hospital de Great Ormond Street, onde chegam crianças gravemente doentes de todo o mundo. Estive presente quando o doutor Ancliff, um homem brilhante e compassivo, deu a notícia de alguns diagnósticos muito graves aos pais de algumas crianças bastante doentes. Nada me preparou para o impacto emocional de ver as reações dos pais nestas ocasiões. E nunca nada me encheu de tanta esperança e antecipação do que ver como esses pais, juntamente com a extraordinária equipa de Great Ormond Street, cuidavam posteriormente dos seus filhos doentes. Pais e equipa, da mesma forma, pareciam entrar num estado de graça e concentração em que todas as preocupações mundanas eram postas de lado até restar apenas amor. Como investigador, era como estar rodeado de anjos. Às vezes fico deprimido ou desencorajado com o comportamento de instituições e indivíduos neste mundo, incluindo eu próprio, e frequentemente tive dificuldade em encontrar algo que pudesse admirar sem medo de ficar desiludido. Para mim, o Hospital de Great Ormond Street é esse algo. Incorpora não só um espírito de missão e altruísmo puros por parte da equipa, mas também o extraordinário progresso feito por médicos e cientistas. Apenas há quatro décadas, um diagnóstico de leucemia infantil era uma sentença de morte em nove de cada dez casos. Hoje, graças aos avanços na investigação médica, as probabilidades inverteram-se e nove em cada dez crianças entram em remissão. Há, claro, muito mais trabalho a fazer. Se tiver um momento livre, incentivo-o a visitar o website da instituição de caridade do Hospital de Great Ormond Street, onde pode conhecer crianças com problemas como os de Sophie e saber as coisas extraordinárias que é possível fazer por elas. Se quiser fazer um donativo, acredito que estará a efetuar uma das mais eficientes conversões de dinheiro em amor disponíveis em todo o nosso planeta. www.gosh.org Obrigado. Chris Cleave Londres 2011



AGRADECIMENTOS Este romance evoluiu através de seis rascunhos e Jennifer Joel leu-os a todos. As suas críticas perspicazes e apoio inabalável significam tudo para mim. Obrigado, Jenn. Peter Strauss é um homem brilhante que está sempre ao meu lado, e eu não chegaria a lado nenhum sem a sua sabedoria e força. Suzie Dooré é uma editora única e corajosa que me salvou do esquecimento e continua a salvar-me em praticamente todas as páginas. O meu agradecimento e admiração para todos na Sceptre e na Hodder & Stoughton, especialmente Carolyn Mays, Carole Welch, Jamie Hodder-Williams e James Spackman. Alasdair Oliver é o diretor artístico dos meus livros. Eu acho que ele faz um trabalho maravilhoso. Se escolheu este livro porque achou que tinha bom aspeto, fico a dever-lhe uma. Os meus sinceros agradecimentos também a Simon Appleby, Tina Arnold, Leena Balme, Nikki Barrow, Auriol Bishop, Amber Burlinson, Maite Cuadros, Stephen Edwards, Harriet Ferguson, Ben Gutcher, Katie Haines, Lucy Hale, Kerry Hood, Jonathan Karp, Jessica Killingley, Sarah Knight, Laurence Laluyaux, Eleni Lawrence, Job Lisman, Bea Long, Zoë Nelson, Gunn Reinertsen Næss, Jorge Oakim, Marina Penalva, Jane Rose, David Rosenthal, Louise Sherwin-Stark, Eleanor Simpson, Mathilde Sommeregger, Henrikki Timgren, Francine Toon e Synnøve Helene Tresselt. Obrigado aos meus amigos do ciclismo por me porem a par: Matt Rowley, Matt

Hinds, Jake Morris, Neil McFarland, Ian Laurie, Jonny Moore e Alex Cleave. Um agradecimento muito especial a Danielle Ryan pelo apoio incrível que deu à minha família. E obrigado, como sempre, à minha família e amigos.
MENINA DE OURO - Chris Cleave (AL2)

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