Michelle Styles - O RETORNO DO VIKING -

166 Pages • 78,372 Words • PDF • 1.2 MB
Uploaded at 2021-09-24 05:41

This document was submitted by our user and they confirm that they have the consent to share it. Assuming that you are writer or own the copyright of this document, report to us by using this DMCA report button.


A grande batalha do viking! Kara agradeceu aos deuses quando foi desposada por Ash Hringson. Porém, esse destemido guerreiro estava desaparecido havia tanto tempo que a ela restara apenas boas lembranças. Agora, Kara precisa se casar novamente para garantir o futuro de seu filho. Contudo, no dia da cerimônia, o heroico conquistador retorna e é recebido por suspiros de horror e de surpresa. Afinal, todos acreditavam que Ash morrera… Mas aos olhos repletos de desejo de Kara, ele parece tão lindo e sensual quanto no dia em que partira… E também nada feliz por sua bela esposa estar prestes a entregar-se a outro homem.

Michelle Styles

O RETORNO DO VIKING

Tradução Silvia Moreira

2016

Capítulo 1

Início de outono, 793 d.C. – Sand, Raumerike, sudoeste da Noruega

JÁ SE passaram sete anos e Ash Hringson não conseguiria calcular quantos milharses de quilômetros viajara desde a última vez em que pusera os pés em Sand, a capital de Raumerike. Teria sido melhor ir direto para casa em Jaarlshiem, mas ele tinha a obrigação de informar ao rei sobre suas viagens e planos para o futuro. Ash passou a mão no queixo e sobre uma pequena cicatriz em formato de meia-lua. Já havia participado de mais de trinta batalhas e conflitos menores. Se não fossem as pequenas cicatrizes, seu rosto estaria limpo, mas ele mancava um pouco, um legado de uma batalha três anos antes, que agravou um ferimento que tivera numa masmorra dos germânicos. Ele não era mais o mesmo jovem destemido que deixara a costa do Raumerike, com sede de aventura e a certeza de um futuro glorioso. Para Ash, Raumerike e todo o resto que deixara para trás permanecia o mesmo. Ele sentiu um aperto no peito causado pela ansiedade do final de uma longa espera. Afinal estava em casa. Em seu país de origem. Com os pés em solo nativo. Ele já não era mais um estrangeiro em outras terras. Ash esboçou um sorriso amargo. Devia ter feito algo para recuperar um pouco do respeito do pai. Seu destino não seria mais pautado pela vergonha e não teria mais que andar nas sombras. Ele havia se tornado um líder e não um covarde que deixava outros homens para morrer no inferno. A cidade tinha mudado um pouco durante os últimos sete anos. Havia um ar de prosperidade provocado por algumas mudanças, mas as ruas continuavam no mesmo lugar. A ferraria, onde ele

comprara a primeira espada, parecia estar sob a gerência de outra pessoa, e o salão nobre do rei fora reconstruído. O mercado perto do porto estava maior, com um aumento do comércio de tecidos e peles, mas o peixeiro continuava vendendo no canto à direita do mercado, chamando os fregueses para comprar arenque e bacalhau salgado. Os comerciantes olhavam de lado, empalideciam e viravam o rosto conforme ele se aproximava. Alguns deles corriam para fechar as portas. Por instinto, Ash colocou a mão na empunhadura da espada, mas forçou-se a relaxar. Será que as pessoas lembravam-se da vergonha que ele causara ao pai e ao país? Ou da morte de irmãos, amigos e primos por causa de sua negligência naquela noite fatídica? Ou aquela seria uma reação típica dos moradores de Raumerike a um estranho? Ash vestia roupas de um viking, mas seu coração pulsava de amor por Raumerike. Ele jamais se esqueceria de onde viera. Era exatamente por isso que voltara… para fazer as pazes com o pai e dar aos jovens guerreiros de Raumerike a oportunidade de progredir, em vez de morrerem num mar nada amistoso. Foi preciso conter a vontade de gritar para os curiosos e desconfiados que a vergonha e a covardia não faziam mais parte de sua vida. O jovem, que havia encalhado o navio durante uma tempestade porque estava ansioso demais por riqueza, aprendera a lição. Agora, ele sabia que a vida de um homem era muito mais importante do que ouro e joias preciosas. Ash continuou de boca fechada, braços estendidos ao longo do corpo enquanto caminhava. Travou o maxilar e virou na direção do salão nobre do rei. Primeiro se apresentaria ao rei, em seguida ao pai e à esposa. Era essa a ordem natural de tudo, agora. Kara entenderia. Ele se lembrava dessa qualidade dela, apesar de não fazer ideia do tom exato da voz dela ou o louro de seu cabelo. Kara sempre o apoiara, desde que eram crianças. Ela havia colocado uma atadura na asa do falcão dele. A última cena em que estiveram juntos tinha sido quando ela de cabeça erguida, orgulhosa, com uma única lágrima escorrendo de seus olhos, implorou para que ele voltasse como herói. Ash afastou as memórias de Kara, do mesmo jeito que vinha fazendo havia sete anos. Logo, logo ele se lembraria de mais detalhes. Antes, porém, precisava cumprir sua obrigação com o rei e com o país. – Ora, ora, agora os fantasmas perambulam entre os vivos? – perguntou uma senhora de uma barraca de panelas de cerâmica. – Justo hoje. Ash deu um passo em falso e colocou todo o peso do corpo na perna ruim. De todas as pessoas para cumprimentar, tinha de ser aquela mulher. Ele se forçou a se lembrar de cada um dos filhos dela antes de responder. O mais velho morrera numa tempestade, porém o mais novo fora seu companheiro de cativeiro, e o mantivera vivo contando histórias sobre bravura de tempos atrás. Ash chorara bastante quando o último de seus amigos morreu. Durante um dia e uma noite, ele conviveu naquele buraco com o corpo. Quando um soldado germânico apareceu para ver como estavam, Ash o dominara e fugira através de um escoadouro estreito e fedido. Até o momento, depois de mais de seis anos, ele ainda não conseguia dormir e nem mesmo entrar em algum lugar subterrâneo. Pela primeira vez naquela viagem amaldiçoada, os deuses estiveram ao seu lado. Depois de sair

do escoadouro, ele encontrou um navio viking no porto, alistou-se e começou a vida de mercenário. – Não sou fantasma, estou vivo, Hildi, mãe de guerreiros e uma pérola entre as mulheres. – Ash falou o nome dos três filhos dela que tinham viajado com ele e que estavam mortos. – Vim fazer uma homenagem a você pelas vidas de seus corajosos filhos. Os três estão jantando com Odin agora. Dê-me sua mão. Sinta que estou aqui mesmo. Ela o cutucou com o dedo ossudo. – Bah. Sua fala continua mansa, Ash Hringson. Tomara que desta vez você esteja sendo sincero. Vivo e não afogado. Isto é realmente uma coisa nova. – Sim, eu sobrevivi, mas as mortes deles serão recompensadas. Dou a minha palavra, Hildi, da mesma forma como prometi a todos aqueles que me seguiram. – Ash fitou Hildi no fundo dos olhos. – Agora seus filhos moram em Valhalla, em vez de compartilhar a escuridão do reino das profundezas de Ran. O que mais você poderia querer? – Nunca duvidei disso. – Hildi gritou com alguém e saiu de trás do balcão da barraca. Com o passar dos anos, ela ficara mais curvada e ganhara algumas rugas, mas ainda era a mesma mulher que, chorando, acenara adeus para os filhos. Os três tinham saído numa expedição para que a mãe não tivesse que trabalhar vendendo peixes no mercado. Ash abaixou a cabeça em reverência. Sentiu a costumeira pontada de pesar no peito. Várias vezes desejara ter morrido no lugar de homens valorosos como os filhos de Hildi. Em silêncio, ele aumentou o fardo que devia a ela. Não que isso trouxesse os filhos dela de volta, mas tornaria sua vida mais fácil. – O rei continua o mesmo? – perguntou quando encontrou voz para continuar. – Aye, o rei Eystienn está apegado ao trono. Ele já não enxerga tão bem e o braço também não é mais tão forte para segurar uma espada, contudo está mais lúcido do que nunca. Ainda nos resta vê-lo morrer na cama ou empunhando uma espada. – Ele deve ser o primeiro a ouvir a história antes da homenagem. Não quero que ninguém questione. Onde ele está hoje? Em casa ou caçando? Hildi olhou-o de soslaio e riu. – Nenhum dos dois. Ele vai a um casamento. – De quem? A velha senhora olhou por cima dos dois ombros e apertou o xale ao redor do corpo. – Da sua esposa. Ela está casando de novo diante de toda a corte. – Kara Olofdottar ainda é minha mulher. – Ash contraiu o maxilar. – Não houve nem haverá divórcio. Ela é minha. O que era meu continua assim. Mantenho o lema do meu pai. – Então é melhor você reivindicá-la, Ash Hringson. – Hildi abriu um sorriso sem dentes. – Se quiser manter o que é seu de direito, apresse-se antes que outra pessoa chegue na sua frente. KARA OLOFDOTTAR sentiu um arrepio correr-lhe as costas. Não devia ter aceitado o pedido de Valdar para se casarem em Sand diante da corte inteira testemunhando a troca dos votos sagrados diante do sumo sacerdote de Var. Teria sido muito melhor se tivessem se casado em Jaarlshiem, entre os galhos majestosos do tuntreet, como ela sugerira. Havia aprendido a amar a árvore

centenária, o guardião nodoso que mantinha tudo na paz e na prosperidade. Seguindo o exemplo de seu falecido sogro, Kara confidenciou as novidades à árvore, como sempre. Assegurando, assim, que todos os seus atos beneficiariam a terra. Seu último marido não conversara com a árvore antes de partir em sua malfadada expedição, e ele também não tinha voltado. Talvez tivesse feito diferença. Ela entendia a razão pela qual Valdar queria que o casamento fosse público, mas sempre detestara multidões. – Está tudo bem, Kara? – quis saber Auda, uma das amigas próximas dela, lançando um olhar de preocupação. As duas se conheceram quando Auda veio à corte pela primeira vez, pouco depois que Ash havia partido em sua malfadada viagem. O filho mais velho de Auda era praticamente da mesma idade do filho de Kara. O marido de Auda tinha morrido de febre na última primavera, logo depois do enterro do sogro de Kara. – Você parece muito avoada. Ainda está preocupada com o cavalo que meu tio a forçou a examinar quando você chegou? Os cavalos que examina sempre melhoram depois. Tem um talento especial com animais. – Não é isso. Estou prestes a me casar diante do que me parece ser o reino inteiro. – Kara colocou uma mecha do cabelo louro para trás do ombro. Ela nem se lembrava mais como era usá-lo solto e como podia incomodar caindo em seus olhos ou prendendo-se nos lábios. – Todos estão interessados na linda viúva de Jaarlshiem e no que está acontecendo. Seu casamento me dá esperanças de um dia encontrar outro homem. – Auda entrelaçou os dedos das mãos. – Você e seu luxuoso vestido de noiva manterão as línguas ocupadas por muito tempo. Não se preocupe, porque ninguém se oporá a esse casamento, mesmo se não foi realizado a contento. Kara umedeceu os lábios. – Por que alguém seria contra o casamento? Nós dois somos livres para nos casar. Ou você sabe alguma coisa sobre Valdar? – Meu cunhado se manteve puro até o dia que você entrou na vida dele. – Auda começou a rir. – Estou mais preocupada com seu tio por matrimônio, Harald Haraldson. Meu finado marido costumava dizer que ele é tão cheio de truques quanto Loki. Ele jamais perdoou Harald pelas ovelhas doentes que comercializou. – Harald Haraldson não tem poder para impedir esse casamento. – Kara esforçou-se para continuar com as mãos no colo em vez de prender o cabelo atrás das orelhas, determinada a mantêlo arrumado para o casamento e não parecer uma bruxa descabelada. – O rei aprova o casamento. Tenho esperança de que ele finalmente confirme o direito do meu filho de ser o jarl de Jaarlshiem quando entender que Valdar protegerá os interesses de Rurik. – Como posso ajudá-la com os preparativos? Não é bom deixar seu novo marido esperando. Esses Nerison são bem impacientes quando querem alguma coisa. Na verdade, Kara queria mesmo era voltar correndo para a segurança de Jaarlshiem. Seria bom se a náusea e o pânico parassem. Ela não era mais uma noiva inocente de 16 anos, mas uma viúva de 23. Não podia arcar com o luxo de continuar sem se casar. O casamento em público mostraria a todo o reinado, inclusive todas as terras do Norte, que ela havia escolhido um guerreiro forte para

cuidar das terras até que seu filho tivesse idade para tanto. Enquanto o sogro era vivo, não havia necessidade de ela se casar de novo, pois ele ainda comandava todos os assuntos de Raumerike. Mas com a morte dele, Kara sabia que não conseguiria governar as terras sem ajuda. Não havia escapatória… Era preciso se casar de novo, ou estaria arriscando tudo pelo que trabalhara tanto para manter durante os últimos anos. No leito de morte do sogro, ela havia prometido que o futuro não seria o que ele havia previsto em seu último suspiro de vida… que uma mulher solitária deixaria todos os bens escaparem por entre os dedos, acabando com toda a herança de Rurik quando tivesse idade para assumir. Mas ela conseguiria provar o quanto ele estava errado. – Desembrulhe a coroa de casamento da minha mãe. Eu devia ter feito isso antes, mas tive de cuidar daquele cavalo e depois organizar tudo para a festa e… – As coroas antigas são as melhores. Eu tive de me contentar com uma coroa de flores quando me casei. – Auda bateu palmas de alegria. – Daqui a alguns dias você entenderá que não havia razão para tanta hesitação. Valdar me contou quantas vezes precisou fazer o pedido. Foram 15 ou vinte vezes? – Dezessete… Não que eu tenha contado. O casamento fazia todo o sentido. Valdar era um homem gentil, seguro e confiável, sem intenção alguma de se tornar um viking ou mesmo fazer longas viagens para comercializar alguma coisa. O sogro de Kara dizia que Valdar tinha nascido para ficar com os pés em terra firme, assim como Ash manteria os pés num navio. Valdar seria um pai perfeito para Rurik… paciente, carinhoso e presente, em vez de se arriscar mar adentro. Enfim, era uma pessoa com quem se podia contar. – Pena que Rurik não está aqui. – Auda colocou a capa branca sobre os ombros de Kara. – Ele iria adorar ver a mãe vestida como uma deusa. Seria a primeira oportunidade que ele teria de conhecer a capital. – É mais seguro ficar em Jaarlshiem. Lá há menos oportunidade de maldades. Eu já estou nervosa o suficiente para ter mais uma preocupação. – Kara pressionou os lábios, ignorando o comentário de Aura com sua semelhança a uma deusa. Se ela tivesse mais poderes do que uma mulher, Ash não teria partido. Ele teria ficado e garantido que ela tivesse um herdeiro saudável. As palavras amargas do sogro logo que descobriu a morte trágica de Ash ainda a magoavam. Kara balançou a cabeça. Mas naquele dia especial, o dia de seu casamento, não era o momento de pensar no último marido. Aquele era um recomeço, um capítulo novo que garantiria que Rurik crescesse sem medo. Fazia muito tempo que nenhum guerreiro ostentava o estandarte de Jaarlshiem. Ash Hringson pertencia ao passado esquecido assim como a menina que ela fora um dia. Se ela tivesse morrido primeiro, Ash não demoraria a encontrar outra para aquecer sua cama, antes mesmo de as cinzas dela serem espalhadas ao redor da tuntreet. – O que Rurik anda fazendo? – Auda sorriu, condescendente. – Imagino que ele tenha aprendido a lição depois de ter saído com um cavalo que mal podia controlar e pegado uma tempestade. – Ah, nem queira saber. – Kara pegou a mão de Auda. – Mas ele idolatra Valdar. Espero que ele seja uma boa influência.

Era melhor não pensar nas fugas do filho de 6 anos. Ele havia ficado bem assustado com o incidente com o cavalo, mas não perdia uma oportunidade para desafiar a mãe. Kara o deixara com Gudrun, a antiga babá de Ash, sua melhor opção. Gudrun estava acostumada com comportamentos rebeldes, dizendo sempre que Rurik era muito parecido com o pai, não só fisicamente. Os vários arranhões de Ash eram lendários. O primeiro encontro deles foi quando caiu depois de tentar recapturar seu falcão. O falcão machucara a asa e Ash o levara para a mãe de Kara para curála, em vez de torcer o pescoço da ave, conforme o pai tinha sugerido. A mãe de Kara era a melhor curandeira de todas. Ela havia permitido que Kara imobilizasse a asa do falcão de Ash, enquanto cuidava do tornozelo torcido dele. A mãe dela morrera cinco meses depois do acidente. Ash tinha conversado com Kara durante o funeral e acabara descobrindo o esconderijo dela atrás da árvore centenária e a presenteara com um doce. A paixão foi imediata. Quando ele a pediu em casamento, ela viu todos os seus sonhos de menina se realizarem. Mas percebeu tarde demais que Ash não compartilhava de seus sentimentos. Fora uma tola por não ter visto que seu herói era um homem egoísta e não um deus. Ela sentiu um arrepio correr-lhe a espinha. Rurik podia ser parecido com Ash, mas era ela quem o criava. E recusava-se a cometer o mesmo erro que o pai de Ash cometera, elogiando-o quando ele demonstrava coragem em seus atos de guerreiro ou quando fazia algo que o deixava orgulhoso, mas abandonando-o à própria sorte quando o desafio se revelara impossível. – Você está muito calada, Kara. – Sou uma pessoa quieta, Auda. – Você é assim apenas para quem não a conhece, ou quando está chateada. Sei que é bem falante quando está tudo bem. – Estou tentando delinear meu olho e não borrar. Não consigo entender por que tenho de usar isto. – Todo mundo sabe que uma noiva precisa estar bem maquiada. Imagino que não queira ofender Freya. Você não quer a bênção de uma deusa para essa união? – Auda continuou a tagarelar sobre diversos casamentos e como tinham se vestido as últimas noivas do reino e quais teriam ofendido Freya ou não. – Você manchou o risco. Comece de novo e pinte de uma extremidade à outra da pálpebra. Kara ajeitou o pequeno pincel entre os dedos e recomeçou. Dessa vez ela seria admirada como noiva e não motivo de riso ou de pena. Encolheu os ombros, lembrando-se que a maquiagem escorrera pelo rosto em seu último casamento. Ash tinha se mostrado muito compreensivo ao limpar a mancha com a ponta de seu lenço. Auda segurou a coroa reluzente. Kara não se lembrava de como era a joia. Na última vez, ela usara a coroa com orgulho, achando que Ash queria que ela estivesse radiante. Mas se lembrava bem de algumas pessoas murmurando e chamando-a de “filha da bruxa” conforme ela andava. – Você concorda, Kara? Ela piscou algumas vezes e entendeu que tinha de dizer alguma coisa. – Desculpe, Auda, não ouvi o que disse. – Eu estava dizendo que as mulheres têm motivo de sobra para invejá-la… uma coroa

matrimonial linda e um guerreiro lindo em sua cama. – Como alguém pode me invejar? – Kara se forçou a rir. Ela ficou gelada só em pensar que teria de dividir a cama com Valdar. Claro que não deixaria de cumprir com seus deveres de esposa, mas depois de ter aprendido como era amar uma pessoa com Ash, havia se tornado um pedaço de gelo. Valdar era um homem atraente, mas nem por isso ela gostava de seus beijos. Durante aquela primavera longínqua, bastava Ash tocá-la para incendiar seu corpo inteiro. – Você vai se surpreender. Segundo os rumores, Valdar é excepcional na cama. Muitas mulheres tentaram conquistá-lo, mas ele só quis se casar com uma mulher: você. – Bem, estas fofocas não chegaram a Jaarlshiem. Kara manteve a postura indiferente. Sabia que Valdar conquistava corações, mas que tinha sido a escolhida. As várias visitas e propostas de casamento contribuíram para fortalecer a amizade dele com Rurik, a proximidade de suas terras e os gênios compatíveis. Ash se mostrara bem mais interessado no cabelo louro dela, nas curvas de seu corpo e na boca bem desenhada. – A noite de núpcias será como tem de ser. – Você devia ver seu rosto, Kara, está mais vermelho do que uma beterraba. Parece que é uma virgem de 16 anos e não uma viúva. – Auda girou a coroa de um lado para outro. – Não gosta de se deitar com Valdar? Não duvido que você já tenha experimentado antes de aceitar o pedido de casamento. – Pare com estas brincadeiras, Auda. Quando tive tempo para passar com Valdar? Sou uma mãe e governo Jaarlshiem. Valdar e eu mal tivemos uma hora juntos desde que aceitei o pedido de casamento. – Kara pegou a coroa e colocou-a na cabeça. Era um assunto dela, e não dele. Não lhe pareceu certo desonrar a memória de Ash daquele jeito. Mas ela esperava que depois da cerimônia, quando fosse estabelecido que não pertencia mais a Ash, talvez as coisas melhorassem. Ao perceber a expressão de preocupação da amiga, Kara a confortou. – Só quero que essa cerimônia acabe logo. Na verdade, que o dia inteiro passe rápido. – Sabe que está estranha, não é, Kara? – Auda pousou a mão no ombro da amiga. – Qualquer pessoa que olhe para você agora vai entender por que vários dos melhores guerreiros disponíveis se ajoelharam aos seus pés. Repare na expressão do rosto do noivo quando você chegar. – Você é um doce, Auda. – Kara deu um beijo rápido no rosto da amiga. – Mas conheço minhas limitações. Vamos acabar logo com isto? Não podemos deixar que Valdar perceba com que tipo de mulher ele está se casando e mude de ideia. – Ah, ele não vai mudar. Se eu bem conheço meu cunhado, ele não mudará de opinião tão facilmente. Valdar é um teimoso incorrigível. – Sei que ele é muito decidido. – Em desalento, Kara se olhou no espelho uma última vez e repetiu a mesma frase que vinha dizendo nas últimas semanas. – Ele é o homem certo para mim. Estou casada há sete anos, seis como viúva. Mereço um homem na minha vida. – Esta é a Kara que conheço e amo. Mesmo com a estranha coroa balançando na cabeça, Kara caminhou até o templo e congelou ao chegar à entrada.

Havia tantas pessoas ali, que já lotavam o pátio também. Elas começaram a bater o pé e ovacionaram assim que a viram. Kara precisou se controlar para não fugir. Ela não se dera conta de que havia tanta gente em Raumerike, ainda mais na capital. De repente parecia que aquele casamento era um equívoco e que estava cometendo o maior erro de sua vida. Um casamento deve ser mais do que um acordo prático, como costumava repetir sua finada mãe. Ela contraiu os lábios, pensando logo em seguida que o maior erro de sua vida tinha sido se casar com Ash num arroubo de paixão. O casamento com Valdar prometia ser diferente, basea do no respeito mútuo. Nenhum dos dois estava sendo enganado. Kara viu que Harald Haraldson, tio de Ash, estava no meio do templo, sentado como se fosse uma aranha no meio de sua teia. Ele era a razão pela qual o casamento tinha de ser público. A presença dele era responsável por irradiar ódio e arrogância. Ela e Rurik eram herdeiros diretos de tudo que o sogro havia adquirido, impedindo Harald de assumir a fortuna. As leis de Raumerike para a herança eram muito claras: se um homem morria sem herdeiros, o estado passaria tudo para sua mãe, depois para o marido, ou mulher, e somente então para o parente mais próximo. O título de jarl só podia ser confirmado ao cavalheiro que provasse ser digno para tanto. Quando a viu, ele esboçou um sorriso cínico, o mesmo sorriso que um caçador dá à sua presa antes de matá-la. Karen não se sentiu muito à vontade. Não estava sendo forçada a se casar e continuaria a lutar por Rurik como vinha fazendo desde que ele era pequeno. A vida do filho e a dela continuavam a ser muito importantes. E Valdar os protegeria com a própria vida. Ela aguentaria a cerimônia com o alento de que em poucos dias estaria de volta a Jaarlshiem. Havia prometido a Rurik que voltaria com um novo pai para ele. Os últimos passos para chegar até onde Valdar estava foram bem mais fáceis do que os primeiros. Auda tinha razão. Ele parecia mesmo um guerreiro bonito e um oponente perfeito para qualquer gatuno. Não seria difícil compartilhar a cama com ele e estava disposta a fazer sua parte no sexo. Será que era muito difícil fingir a paixão? Outras pessoas conseguiam. Ash fingira também e ela seria tola demais se não tivesse percebido. Kara estendeu a mão e Valdar gentilmente entrelaçou os dedos nos dela. O simples toque a deixou mais calma. O sacerdote começou a evocar os deuses Freya, Odin e Var para testemunharem a união. Eram grandes as esperanças dela de que aquele casamento seria melhor do que o primeiro. Prometeu a si mesma que seria uma boa esposa para o futuro marido. O sacerdote perguntou se alguém tinha alguma coisa a dizer contra a união e que impedisse os deuses de abençoá-la. A pausa demorou tempo demais. Kara balançou a cabeça tentando se livrar da sensação de que uma maldição a impediria de se casar. Assim, meneou a cabeça para que o sacerdote se apressasse com a cerimônia. O sacerdote pigarreou e levantou a mão. – Eu protesto! Essa mulher não é livre para se casar! Esta cerimônia deve parar imediatamente! – A voz que tomou conta do salão parecia um trovão e vinha da porta de entrada do templo. O sacerdote abaixou o braço. Kara prendeu a respiração.

Ash! Aquela era a voz dele. Será que Ash voltara do mundo dos mortos? Impossível. Ele havia sido enterrado numa cova funda. Aquilo só podia ser uma brincadeira de alguém para retardar a cerimônia. Quem tinha ousado interromper e desonrar seu casamento? Ah, ela faria essa pessoa pagar caro por isso. – Parem esta cerimônia agora! Acreditem quando digo que essa mulher não é livre. Valdar olhou para a futura esposa procurando uma explicação e ela encolheu os ombros. Kara balançou a cabeça como se quisesse afastar um mau pressentimento. E procurou acreditar que aquilo não passava de uma distração. Ela não pertencia a nenhum homem. Mas quem quer que tivesse planejado aquilo conhecia seu ponto fraco. Ela colocou a mão sobre o ventre. Era melhor parar de ouvir fantasma. A objeção não tinha fundamento, era totalmente falsa. No entanto, a pessoa teria de ser ouvida. Perder a cabeça nunca a ajudara em nada. Durante os últimos anos, ela aprendera o valor de parecer calma e razoável mesmo que estivesse se remoendo por dentro. Um pequeno atraso valeria para acabar com as insinuações e falsos rumores. Pensando assim, ela procurou respirar com calma. – Apresente-se e mostre-nos provas do que diz – exigiu o sacerdote. – Esta mulher se diz livre. Os presentes abriram passagem para um homem que começou a andar na direção do altar mancando ligeiramente. A capa balançava pelo corpo dele, ressaltando os ombros largos e deixando antever as pernas e tronco musculosos. O azul do tecido fino combinava perfeitamente com o cabelo louro com mechas avermelhadas. O jeito dele era familiar. O perfume dos incensos misturado com o das flores a deixou nauseada. Kara balançou a cabeça, desejando que a coroa fosse mais leve e que o pajem parasse de balançar aquele incensário. De repente ela viu o inimaginável e cravou as unhas nas palmas da mãos. Aquilo era simplesmente impossível. Os mortos não reviviam. Ash estava morto. O navio havia afundado sem deixar nenhum sobrevivente. O dia em que o tio de Ash havia trazido um pedaço da madeira da proa do navio chamuscada e colocado aos pés do pai de Ash ficara marcado na memória de Kara. Ao se dar conta do acontecido, o sogro desmaiara e ela precisara cuidar dele, além de estar tratando de um resfriado terrível de Rurik. Ela não tinha tido tempo nem para respirar, muito menos ficar triste pela morte de um homem que um dia fora o mais importante de sua vida. Por alguns dias, lutara pela vida do sogro e de Rurik, enquanto o tio de Ash se apossava do salão nobre, dando ordens e se autoproclamando o futuro jarl. Quando a situação se normalizou um pouco, ela o colocou para fora, mas Harald saiu prometendo vingança. Kara chegou a pensar se não estava tendo um pesadelo e acabara de acordar com Rurik dormindo tranquilamente ao seu lado. Não, a forte dor no estômago provou a ela que estava bem acordada. Seria uma maldição? Uma aparição do além? O burburinho entre os presentes foi ficando cada vez mais forte. Ash. Ele estava ali, contrariando todas as expectativas. Totalmente impossível. Só podia ser um truque de mágica para evitar que ela se casasse. Harald Haraldson devia estar por trás daquela farsa. Mas ela não podia permitir que aquele ultraje continuasse se desenrolando. Dessa vez Harald passara dos limites. Ela acabaria com

ele, mas antes tinha de se casar com aquele guerreiro que defenderia suas terras. Kara fechou os olhos com força e os abriu de novo. O homem estava em pé no meio do salão, a apenas alguns metros dela. Ombros largos e cabelo acobreado. As roupas eram bem cortadas e mais provavelmente de Viken e não de Raumerike. O homem levantou os braços, e Kara tentou ver melhor o rosto dele através da fumaça do incensário, mas sua visão já estava prejudicada por um turbilhão de emoções… medo, raiva e uma esperança inusitada… A impressão era de que ela estava diante de uma cena imaginária. – Ouçam, minha gente. Atenção. Kara Olofdottar é minha esposa. – Ele se virou para olhar para a plateia. – Desafio qualquer um que diga o contrário. Eu me casei com ela primeiro e defenderei meus direitos com a espada, se necessário. Eu, Ash Hringson, declaro que Kara Olofdottar é minha legítima esposa!

Capítulo 2

AS PALAVRAS daquele homem reverberaram nas paredes do templo, ecoando várias vezes. Foi como se todos parassem de respirar, aguardando a reação dela. Kara sabia que precisava fazer alguma coisa, desafiar aquele estranho, mas seu corpo inteiro estava paralisado pelo choque. Ela encarou aquele homem bem-vestido de cabelo acobreado à procura de algum sinal que validasse que ele era mesmo quem dizia ser e que não se tratava de mais um ardil de Harald Haraldson. Ah, mas só podia ser. Qualquer outra explicação seria absurda. Ash havia morrido afogado. Raumerike inteira sabia da tragédia. O pai dele sofrera muito em todo aniversário da morte do único filho. Kara olhou para Valdar de soslaio. O bravo guerreiro estava impassível, fulminando o sacerdote com o olhar. A ansiedade aumentou a dor de estômago dela. Por que ele não tinha entendido logo o que estava acontecendo e intercedeu em sua defesa? Mas infelizmente nada aconteceu e mais uma vez ela teve que lutar sozinha. Ainda bem que estava bem treinada. – Você acredita que tem o direito de reivindicar esta mulher? – perguntou o sacerdote, cético. – Sei que tenho – respondeu o homem sem alterar o tom de voz. – Pelas leis de Raumerike, todas as objeções devem ser investigadas antes que um casamento se realize. Ou a lei de Raumerike atualmente permite que uma mulher tenha dois maridos? – Sim, a reivindicação deve ser investigada, se for de direito e segundo as formalidades – contemporizou o sacerdote. – Aproxime-se e mostre seu rosto. A luz está me impedindo de vê-lo melhor. Todos os homens devem ver seu rosto quando a reivindicação for feita. Valdar apertou ligeiramente a mão de Kara e se afastou como se ela estivesse doente. Em silêncio, ela jurou que faria Harald Haraldson sofrer um castigo longo e sofrido por aquela brincadeira de mau gosto.

– Você está surdo? Deixe-me ver quem é você – exigiu o sacerdote quando o outro não saiu do lugar. – Kara Olofdottar está muito pálida. Sugiro irmos para algum lugar privado para tratarmos desse assunto – disse o homem. – Vocês sabem que ela desmaiou no nosso casamento? Mas eu a segurei antes que ela caísse. Ela fica enjoada com o cheiro do incenso. Ou aquele homem era um ator ou… De repente, ela sentiu um frio na espinha num misto de insegurança e uma estranha animação, afastando o ceticismo. Quanto mais o ouvia falar, maior era a certeza de que aquele era mesmo Ash. Ela fechou as mãos em punhos, obrigando-se a pensar com a lógica e não se deixar influenciar por especulações infundadas. Rurik estava na idade de acreditar em sagas e heróis, mas não ela. Além do mais, fazia muito tempo que não desmaiava. – Aqui em Raumerike, costumamos tratar desse tipo de assunto em público – disse o sacerdote. – Estou pensando no melhor para Kara – continuou ele, sem se perturbar em ser o alvo de todas as atenções da igreja. – Minha mulher detesta multidões. Um marido deve saber dessas particularidades da esposa. Kara rangeu os dentes, apegando-se com toda a força numa nesga de lógica que ainda possuía. Não devia demorar muito para que aquele sujeito fosse desmascarado. Ninguém se deixa enganar por muito tempo. Ela só precisava ficar em silêncio, aguardando o desfecho inevitável e permitindo que outras pessoas se encarregassem. Assim, ela comprimiu bem os lábios para continuar calada. – Devo avisá-lo de que o marido de Kara Olofdottar morreu há muitos anos num naufrágio – disse o sacerdote. – Todos aqui sabem dessa história. – Meu nome é Ash Hringson, filho de Hring, o Audacioso, e Nauma – anunciou o homem em alto e bom tom, levantando as mangas da túnica e exibindo as cicatrizes dos pulsos. No pulso direito havia uma marca de nascença roxa no formato de uma serpente enrolada. – Estou bem vivo. As notícias da minha morte eram errôneas, no mínimo uma mentira deslavada. Kara foi assolada por um turbilhão de emoções… choque por ele estar vivo, confusa pela demora da verdade, sentimento de raiva profunda de precisar passar por um espetáculo humilhante daqueles, mas acima de tudo uma alegria tremenda por ele estar vivo e por terem uma segunda chance. Rurik teria o pai verdadeiro. De repente ela suspendeu a respiração por um segundo, lembrando-se de que se aquele homem fosse mesmo Ash como dizia, e o coração dela confirmava, ele deveria se submeter ao Grande Conselho de Raumerike. Os 12 membros do Conselho teriam de reconhecê-lo. A penalidade por tentativa de enganar o Conselho era a morte ou um castigo permanente. Ela fechou as mãos em punhos e procurou pensar com clareza. Se reconhecesse Ash, perderia Valdar, o homem que seria um guardião perfeito para Rurik. Ele seria a salvação dela. Mas não seria o certo. Não agora. Ela precisava falar alguma coisa. Tinha de ressuscitar os mortos. – Ash Hringson – chamou ela, cruzando os braços. – Onde esteve? Pensávamos que tivesse morrido num naufrágio na costa germânica há seis anos. Que hora conveniente você decidiu aparecer, não? – As notícias da minha morte eram falsas. Ah, o naufrágio aconteceu mesmo. Eu diria que escolhi a hora certa para voltar. – Os olhos azuis glaciais de Ash percorreram-na desde a coroa no topo da cabeça, passando pelo vestido de noiva até os sapatos. Parecia que a estava despindo inteira

diante de todos os presentes. – Sobrevivi ao inferno no mar e numa prisão germânica. Voltei para pagar minhas dívidas. Eu voltei. – É mesmo? – Eu me lembrava de você linda assim, Kara. – Os cantos da boca dele se ergueram num sorriso. – Lembro-me da coroa de flores que você usou na manhã seguinte do nosso casamento, quando confirmávamos nossos votos. À luz do sol, parecia que seu cabelo possuía fios de ouro e sua pele era ainda mais clara. Aquela coroa de flores a embelezara bem mais do que a coroa de casamento de sua mãe. Não gostei dela na cerimônia do nosso casamento e gosto menos ainda agora. Não combina com o seu cabelo nem com os seus olhos. A voz grave atingiu Kara como uma carícia. Por que ele tinha de lembrar da guirlanda de flores que ela havia feito e como insistira para que recitassem os votos nupciais novamente? Mas aquele era Ash, ótimo em lembrar detalhes ricos do passado, que não tinham um significado real, mas tocavam o coração dela. Aquilo fazia parte do charme dele. Kara procurou se isentar da magia da presença e das palavras dele. Afinal, havia ficado longe por sete anos! Por que levou tanto tempo para voltar, se ele a considerava tanto como dizia? – Você tem certeza de que esse homem é Ash Hringson, Kara? Não é difícil imitar uma marca de nascença em formato de cobra. – Valdar colocou a mão pesada no ombro dela. – Será que vale a pena arriscar sua reputação reconhecendo esse homem diante de todo mundo? Kara pensou no filho e que havia pedido um pai para ele em suas orações noturnas. Contudo, aquele homem ali era o verdadeiro pai do menino e por isso merecia sua lealdade. Em silêncio, ela se despediu da vida tranquila que Valdar proveria. O futuro seguro que vislumbrara naquela manhã tinha sido um sonho impossível que doeria muito para esquecer. Mas em seu íntimo ela sabia que seus instintos estavam certos, graças à garota ingênua que fora por lutar por Ash. – Tenho certeza, sim, Valdar. Esse homem é Ash Hringson. Impossível ser outra pessoa. As notícias da morte dele eram falsas. Houve um silêncio pesado assim que Kara terminou de falar, esperando que concordassem com ela. Harald Haraldson levantou-se. – Uma mulher pode garantir a identidade de um homem? – indagou ele, batendo a bengala no chão. – As leis de Raumerike permitem que um homem ateste a identidade de outro, mas uma mulher? Isto é improcedente. Mulheres e criados são influenciáveis com facilidade em seu julgamento. As leis e tradições de Raumerike ditam que 12 homens sejam escolhidos para decidir e não que uma mulher apenas ateste a identidade de um homem. Não ouvi nenhum homem se pronunciar a favor desse… desse… viking! Um burburinho tomou conta do ambiente. Kara congelou. Por que Harald Haraldson estava duvidando da identidade de Ash? Será que queria o sobrinho morto? – Estamos falando da vida do meu marido! Seu suposto sobrinho querido – interrompeu-o Kara, antes que ele conseguisse mais apoio dos presentes. – Você queria que eu negasse o meu marido? Que espécie de esposa eu seria? – Gostaria que você declarasse o homem certo como seu marido, sobrinha por afinidade – disse Harald Haraldson com um sorriso falso, instigando que os presentes rissem também.

Kara ergueu o punho fechado, qualquer que fosse o objetivo de Harald Haraldson, ela queria o contrário. – Estou falando que esse homem é meu marido. Os rumores da morte dele eram falsos. – Temos apenas sua palavra a favor dele, Kara Olofdottar. – O tio de Ash pressionou os lábios. – Ash Hringson teve uma morte trágica no mar. Todos ouviram o relato do pai dele. Os mortos podem ressuscitar? Ou esse homem é um impostor para atacar uma mulher vulnerável? Todos sabemos sobre os demônios contra os quais sua mãe lutou. – Minha inteligência nunca foi questionada. Já aconteceram erros antes – assegurou Kara, apesar das pontadas no estômago. Naquele dia, estavam acontecendo coisas bem diferentes de suas expectativas. – É verdade. Não quero que você passe por mais uma experiência ruim. – Harald Haraldson abriu as mãos nodosas. – Precisamos de tempo para ter certeza. É preciso investigar devagar e cuidadosamente sem histerias femininas. Kara contraiu-se de raiva. Harald Haraldson iria retardar a investigação o máximo que pudesse, mas enquanto isso pediria ao rei para empossá-lo das terras que julgava suas, mas que legalmente pertenciam a Ash e ao filho deles. Era possível até que ele encontrasse motivos para expulsar Ash dali para sempre ou até matá-lo. Entretanto, Kara não estava disposta a deixar que Harald vencesse com tanta facilidade. Teria de encontrar uma maneira de lutar por Ash e devolver-lhe a vida. Mais tarde, ela se preocuparia com o que fazer com o casamento e o que havia restado para os dois. Primeiro pensaria no filho deles. – Uma mulher reconhece seu marido com os olhos da alma. Não é preciso maiores investigações quando uma pessoa tem tanta certeza quanto eu – disse ela quando conseguiu se acalmar. – Você também devia conhecê-lo bem, a não ser que tenha ficado cego e surdo, tio. Harald não disse nada, apenas resmungou. – Kara Olofdottar tem o direito de ser ouvida nesta questão – declarou o sacerdote, quando ninguém disse nada depois de alguns minutos. – Quem melhor do que a esposa para conhecer bem o marido? As palavras dela precisam ter peso. Kara olhou para os presentes, procurando um rosto amigo. – Ouçam bem o que digo e guardem minhas palavras. Esse homem diante de vocês é o meu marido. Tirem as vendas imaginárias dos olhos e vejam que só pode ser Ash Hringson. Quantos cavalos fui capaz de salvar com minhas habilidades? Quantas asas de falcões curei? Quantos pontos não dei? Nos últimos anos, quantas vezes consegui madeira e lã para a aldeia? Eu falhei em cumprir alguma promessa? As pessoas começaram a murmurar entre si. – Este é Ash Hringson, o homem que já foi meu marido – continuou Kara assertiva, sabendo que todos a ouviam, incluindo Ash. A voz dela não se esvairia como acontecera quando ela era apenas uma garota diante de uma audiência. Agora era uma mulher crescida e com responsabilidades. – Estou vendo a mancha de nascença, a voz dele é a mesma da qual me lembro, porém o mais importante é que meu coração confirma que esse homem é Ash. Não sei a causa da demora tão longa, isso só ele poderá nos dizer. Quem vai reconhecê-lo e dar as boas-vindas a Raumerike comigo?

A expectativa de Kara era grande, mas ninguém se manifestou. – O voto de confiança de uma mulher que estava prestes a se casar de novo não é importante? – perguntou Ash com sua ironia de sempre. A pergunta doeu no coração de Kara e ela precisou olhar para o teto. Mesmo assim, ninguém disse nada. A maioria das pessoas mantinha o olhar baixo, apesar de um ou dois enfrentarem Ash com o olhar. – Foi você que quis se casar hoje, lady Kara – disse Harald, levantando-se de novo. – Devemos encerrar esta farsa? Meu caro rei e prezados nobres, ignoro as razões pelas quais Kara Olofdottar armou toda esta encenação com esse viking, mas uma atitude deve ser tomada para impedir esta traição, antes que ela coloque o país inteiro em perigo. Será que não está tramando alguma coisa em conluio com nosso antigo inimigo? Qual será o plano contra esta nação? Ao reconhecer a gravidade de sua situação, Ash perdeu a cor do rosto, salientando as cicatrizes. Kara fitava Harald boquiaberta. Ele havia torcido a verdade em benefício próprio. Se não tomasse cuidado era bem provável que Harald exigisse o controle de Jaarlshiem, usando a chegada de Ash como pretexto, alegando que o reinado precisava de proteção. – Minha lealdade a Raumerike é inquestionável – disse ela de súbito. – Isto não é um ato de traição viking. Harald ergueu uma das sobrancelhas. – Eu só pedi um tempo para averiguarmos. E você fala de lealdade e traição. Meu voto é a favor da cautela e da traição. – Será que ninguém mais reconhecerá esse homem como meu marido? – Kara abriu os braços, procurando apoio na plateia. – Imagino que o tio do meu marido tem razões escusas para desejar que Ash continue morto, mas e quanto a vocês? Por que querem Ash Hringson morto? O silêncio era ensurdecedor. O coração de Kara batia em descompasso. Mas o que ela esperava? Que todo o Conselho se levantasse e a apoiasse simplesmente para atender um pedido seu? Não era assim que o mundo funciona. Ela havia deixado de acreditar em milagres quando Rurik nascera. Naquele instante, ela desejou que o chão se abrisse e a engolisse. Talvez tivesse sido melhor ser mais cautelosa, mas seria errado renegar o próprio marido. Em silêncio, ela ficou inconformada com o fato de como havia sido enganada. Um homem maltrapilho levantou-se e disse: – Kara Olofdottar deu um voto de confiança a esse homem e eu acredito nela. Na primavera passada, ela evitou que meu cavalo perdesse uma perna e acredito que só diga a verdade por ser uma pessoa íntegra. – O homem olhou para o tio de Ash e emendou: – Diferente de outras pessoas que conheço. Depois dele outros dez homens se levantaram. Eles precisavam de só mais um. – Eu também o reconheço. Kara Olofdottar não deve ser punida por dizer a verdade. – A voz de Valdar soou como um trovão. Ele também lançou um olhar significativo ao tio de Ash antes de menear a cabeça para Ash. – Você já tem 12 homens para formar o Conselho, Hringson. Está vivo diante dos olhos de Raumerike. – O sacerdote precisa decidir – vociferou o tio de Ash. – Este é o jeito certo de se conduzir o assunto? Seremos liderados por mulheres de saias?

Kara colocou a mão sobre a boca e esperou pela decisão. – Os deuses proferiram. Kara Olofdottar atestou que esse homem é mesmo Ash Hringson, declarado morto anteriormente, e 12 homens concordaram com ela – declarou o sacerdote depois de fitar o altar por longos minutos. – De acordo com as leis de Raumerike, você está vivo Ash Hringson. Pode assumir os benefícios de seu status anterior. – E o casamento? – Não havia nenhuma linha tênue no rosto de Ash. – Kara Olofdottar é uma bela mulher, mas não pode ter dois maridos. O senhor aceita minha reivindicação? A plateia começou a rir. Kara sentiu o rosto inteiro corar. As palavras tinham um duplo sentido, mas não houve malícia no pedido dele. Não fora aquilo que Ash quisera dizer, assim como também não quisera elogiá-la sete anos antes. O pai de Ash provara isso quando ela lutara pela vida de Rurik. Ash era um homem sedutor que usava seu charme para conseguir o que queria. Ela sentiu um frio na espinha de raiva. Ela o havia reconhecido, mas isso não significava que o tivesse perdoado nem explicava a razão de ele ter demorado tanto para voltar para casa. A garota deslumbrada e ingênua que fora um dia não existia mais. – O casamento de Valdar Nerison e Kara Olofdottar não se realizará hoje – declarou o sacerdote. – Ash Hringson voltou ao mundo dos vivos. – Isto ainda não terminou – protestou Harald. – Vou conduzir uma investigação apropriada para descobrir quais os verdadeiros motivos desse homem. Eu me recuso a receber uma víbora Viken no nosso meio. A segurança de nosso país não pode se colocada em risco por causa dessa… dessa mulher incauta. Assim dizendo, Harald Haraldson saiu da sala feito um furacão, sem esperar resposta. A sala virou um pandemônio, as pessoas exclamavam votos de boas-vindas e um grupo acabou levantando Ash nos ombros e circulando com ele. Kara continuou imóvel e atônita no altar, sem conseguir planejar alguma coisa e nem mesmo pensar com clareza com aquele barulho todo. Ash conseguiu causar um caos com a sua chegada. Ele adorava comoções assim. Estavam casados, mas a união seria bem diferente daquela que tinham experimentado antes. Foise o tempo em que ela esperava a aprovação dele, acreditando que o marido era um herói e salvador. Nunca mais. Havia amadurecido e precisava de um homem bom ao seu lado, ajudando-a a cuidar da terra e a criar o filho, e não de alguém que tinha ido viajar em busca de glória. A pessoa certa para consolidar um matrimônio, que oferecia segurança, era Valdar, e não alguém que só se interessava em conforto pessoal e riquezas. – Obrigada, Valdar – disse Kara, dando as costas ao espetáculo que Ash havia criado e encarando o ex-noivo, que permanecera ao seu lado o tempo todo. – Agradeço pelo que acabou de fazer. Apesar do acesso de raiva de Harald Haraldson, sei que Ash será um verdadeiro cidadão de Raumerike. Ele voltou para reivindicar o que é dele e não para ameaçar o rei. Ele não é uma víbora Viken. – Kara? – Valdar encarou-a com uma expressão séria. – Por que não me disse que havia uma possibilidade de seu marido estar vivo? Devia ter confiado em mim e evitado que este espetáculo acontecesse. Podíamos ter dado um jeito. – Eu podia ter contado… o quê? – A coroa estava apertando a cabeça de Kara, que lutava para

controlar a raiva daquela acusação. Como era possível que Valdar imaginasse que ela arquitetara aquele fiasco? Ou mesmo que quisera que acontecesse? Era justamente o contrário, ela havia imaginado que o dia terminaria bem diferente. – Você deve saber que eu pretendia ser uma boa esposa, não é? Assim como todos, achei que Ash estava morto. Ora, os mortos não ressuscitam. Ou pelo menos, não até hoje… – Mas seu marido voltou, e você o reconheceu sem hesitar. Normalmente há investigações em casos como este. Foi por isso que achei que tivesse tramado… – Estou tão surpresa que ele esteja vivo quanto qualquer outra pessoa – respondeu ela, áspera, arrependendo-se logo em seguida ao reparar o semblante de preocupação e mágoa de Valdar. Qualquer um podia ser culpado daquela situação, menos ele. Kara suspirou antes de completar: – Lamento muito, Valdar. Acredite, não sei o que dizer. – Espero que esteja certa, Kara. É você que está casada com ele – disse Valdar, apertando a mão dela. Vocês dois terão o mesmo destino se ficar provado que ele é um espião viking ou algo pior. Em quatro anos que nos conhecemos, esta foi a primeira vez que a vi agindo por impulso. Kara fechou os olhos. Valdar conhecia apenas a mulher na qual ela havia se transformado e não aquela que se casara com Ash o mais rápido possível para que ele não mudasse de ideia. – Não posso me casar com você, Valdar. – Kara pressionou as mãos trêmulas uma contra a outra. – Sinto muito. Pelo visto já tenho um marido. Você merece alguém melhor do que eu. – Quem disse que quero outra pessoa? – Valdar ergueu a mão dela aos lábios. – Vá procurar uma esposa para você, Valdar Nerison! Essa já tem dono! – exclamou Ash atrás dela. – Por favor, Valdar. Detesto espetáculos. Valdar soltou a mão dela e deu um passo para trás. – Às suas ordens, milady. A dor evidente no olhar dele partiu o coração de Kara. Ela havia aceitado o pedido de casamento por causa de Rurik, mas pelo visto Valdar se apaixonara. Foi uma pena ele ter se magoado tanto. Ash levantou o braço pedindo silêncio. O burburinho cessou na mesma hora. – Fui reconhecido e acolhido na minha volta. Imagino que uma festa de casamento tenha sido preparada. Podíamos aproveitá-la para comemorar a minha volta. Estou ansioso para brindar com cada um de vocês. Gostaria de fazer um pedido sem segundas intenções ou malícia, mas seria querer demais ficar a sós com minha mulher antes que alguém queira roubá-la bem debaixo do meu nariz? Todos riram alto, menos Kara, que ficou furiosa. Ash tinha todos na palma da mão, sempre tivera. Hring havia jurado que o filho nascera com charme suficiente para encantar pássaros, sem mencionar a facilidade com que atraía moçoilas para sua cama. A última coisa que queria era ficar sozinha com Ash. Antes que ela reagisse, o sacerdote concordou, abaixando a cabeça e indicando que os dois usassem a antecâmara. – Acho que devemos ir para a festa. As pessoas querem cumprimentar você – disse Kara em desespero. – Alguém precisa estar lá para supervisionar tudo. – Devemos seguir para lá agora, minha esposa? – Ash fez uma mesura elaborada, mas seu olhar continuou gélido. – Acho que os homens não se importarão se demorarmos um pouco e nos

cumprimentarmos devidamente. Você não precisa estar presente para que a comida e a bebida sejam servidas. – Quer que eu a acompanhe? – perguntou Valdar, colocando a mão no cabo da espada. – Se precisar, estou aqui. O sacerdote concordará se eu pedir. Quero… gostaria de ser o seu campeão. Kara cobriu a boca com a mão. Qualquer dúvida que ela pudesse ter sobre Valdar se esvaiu naquele momento. Ele não apenas tinha reconhecido Ash, como estava disposto a lutar por ela. Kara realmente não o merecia. Na verdade, gostaria muito de sentir algo além de amizade e que tivesse marcado o casamento porque o amava e não apenas para dar proteção ao filho. – Comovente, Valdar. – Ash não poderia ter usado um tom de voz mais frio. – Mas minha esposa não precisa de nenhum campeão além de mim. – Lady Kara deve tomar essa decisão. – Estarei bem – sussurrou ela. – Nunca associei Ash ao medo. Valdar fez uma reverência. – Lembre-se, Kara, quero me casar por você e não pelas propriedades. Há que se considerar um divórcio também… – Eu jamais… – Kara sentiu a garganta se fechar. Como podia ter se enganado a respeito das intenções dele? A situação piorava a cada instante. Ela quase havia cometido o mesmo erro de sete anos atrás, só que na posição inversa. E por isso podia ser considerada tão perversa quanto Ash tinha sido? – Depende se… Valdar meneou a cabeça, sabendo que ela jamais abandonaria Rurik. Em todos os divórcios, os filhos ficavam com o pai. E Kara amava Rurik incondicionalmente desde que sentira os primeiros movimentos dele em seu ventre. Nunca o deixaria com um pai que poderia partir para uma aventura a qualquer instante, abandonando o filho. Por outro lado, a vida com Ash não seria a mesma de antes, quando ela só enxergava o lado bom de tudo e perdoava sempre o herói. – Vamos? – chamou ela com o mesmo tom gélido de voz. – Você tem muitas explicações a me dar. Ash puxou-a pela cintura num repente e abaixou a cabeça para beijá-la. Kara virou o rosto, mas sentiu os lábios se roçarem por uma fração de segundo e estremeceu; não perdeu o equilíbrio porque Ash a segurou com firmeza. – Você também, minha cara – murmurou ele, lançando a Valdar um olhar significativo. – Não quero que ninguém pense que não somos um casal feliz em se reencontrar. Kara pressionou os lábios, sabendo que ele a segurava para demonstrar posse e não um carinho verdadeiro. Talvez ela tivesse cometido o maior erro de sua vida ao reconhecê-lo.

Capítulo 3

– TENHO UMA dívida eterna com você – disse Ash no momento em que fechou a porta da antecâmara da capela, antes que ela começasse a gritar cobrando a longa ausência. A sala estava lotada com inúmeras vasilhas, jarras e muitas caixas de incenso. Parecia mais um depósito do que um lugar de devoção. Numa das paredes da sala havia uma imagem pavorosa de Thor enfrentando Loki. Ali não era nem de longe o lugar que Ash esperava levar a esposa, mas não tinha outro jeito. Kara precisava saber que ele entendera a atitude dela e a aprovava. Kara arrancou a coroa da cabeça e a jogou na mesa. O cabelo louro escorria pelos ombros como se fosse uma nuvem de ouro. – Podemos começar com qualquer coisa, mas saiba que você não me deve explicações ou desculpas – disse Ash, tenso. Era a primeira vez que via Kara tão brava e transtornada, sendo que esperava que ela ficasse muito feliz com a sua volta. E ela estava errada… ele tinha um grande débito. Os acontecimentos no templo podiam ter transcorrido de outra maneira, colocando a vida dos dois em perigo. Ele não imaginava que o tio fosse tão veemente em não o reconhecer, visto que nunca aprovara a sede de aventura de Ash. Será que ele achava que o sobrinho não merecia ser chamado de neto de Hring Haraldson? Ou tratava-se de um jogo de poder que ele desconhecia? Havia ficado claro que o tio era agora seu inimigo, e consequentemente da família também. – Sempre pago minhas dívidas, Kara – continuou ele, apesar de ela o encarar como alguém que queria torcer-lhe o pescoço. Ele havia se esquecido de como ela era bonita quando estava excitada. – Você devolveu a minha vida. – Como posso devolver algo que você nunca perdeu? – perguntou ela, sarcástica. – A verdade sempre beneficiou todo mundo. As mentiras são sempre descobertas. Nós nos casamos há sete

anos. Estou feliz que finalmente se lembrou de que tem uma família no meio de toda a aventura que é a sua vida. Ash controlou-se para não perder a cabeça. Ora, ele sempre soubera que tinha uma família. Havia suportado os últimos seis anos no inferno para poder voltar para casa de cabeça erguida e dignidade intacta… – O que estava acontecendo lá fora, Kara? – Eu estava prestes a me casar com um homem de honra. Geralmente é o que se espera de uma noiva no meio de uma cerimônia de casamento. – Os olhos azuis reluziram desafiando-o. – Até então eu achava que você havia morrido num naufrágio, Ash. – Eu prometi que voltaria. – Algumas promessas são impossíveis de se cumprir. Apren di essa lição muito bem, Ash. – Ela fechou as mãos em punhos. – Você deve saber como é difícil sobreviver para uma viúva. Ash esfregou a mão atrás do pescoço. Bem, talvez ele merecesse a repreensão. Lembrava-se de que Kara acreditava em tudo o que ele dizia e o adorava. Quando o pai exigira que ele casasse, Kara foi sua primeira opção. Segurança. Conforto. Ela esteve sempre presente e acreditava não só nele, mas também em seus sonhos. Aceitara-a como se fosse natural, assim como toda a sorte que tivera naqueles dias. Mas quando caíra numa armadilha e fora jogado numa masmorra com seus homens, que foram morrendo um a um, ele soube que não poderia voltar a Raumerike arruinado e sem fortuna. Ele havia mandado uma mensagem. Tentou pensar se a Kara que conhecera teria falado em público como tinha feito na igreja. Mas lembrava-se apenas que ela sussurrava com voz doce para tranquilizar os animais feridos que encontrava. E também como corava quando ele lhe roubava um beijo. – Por que ninguém me reconheceu antes de você perguntar? – indagou ele, evitando pensamentos desconfortáveis. Kara ergueu o queixo para responder. – Se quisesse ser reconhecido sem dúvidas, você devia ter voltado antes. – Tive algumas complicações. – Ash movimentou a mão como se quisesse que os últimos sete anos ficassem no passado. Quanto menos Kara soubesse o que ele havia passado, melhor. A única que coisa que ela precisava saber era que voltara como herói. Ela sempre amara os heróis. – Por que estava se preparando para se casar com Valdan Nerison? Ele não é o homem certo para você. Kara piscou os longos cílios várias vezes e ficou boquiaberta e furiosa com a presunção de Ash. – Como pode saber qual é o homem certo para mim, Ash? Sete anos se passaram, sem nenhuma notícia. Sete anos é tempo demais. Ash contou até dez mentalmente para não perder a calma. Será que ela teria achado melhor ele ter voltado falido depois de ter sido preso? Ele se lembrava bem das palavras sussurradas em seu ouvido antes de partir, sobre como ela se orgulharia dele e o esperaria de volta trazendo ouro. – Onde está o meu pai? Por que ele não estava na cerimônia? Ou ele não tinha aprovado o seu suposto casamento? O silêncio pesou no pequeno ambiente. Kara não respondeu de imediato. A raiva que sentia foi substituída por pena e tristeza. Ash apoiou a mão na cadeira, com esperanças de que o mau pressentimento estivesse errado.

– Seu pai entrou em choque quando soube da sua morte e não recuperou a movimentação dos braços e das pernas. – Não! Eu mandei uma mensagem. Achei que ele tivesse entendido o que eu precisava fazer. – Ash caiu sobre a palha que revestia o piso com o corpo inteiro tremendo. A maior motivação que o fizera passar aqueles últimos anos difíceis era pensar que o pai finalmente admitiria que ele merecia ser um guerreiro de Raumerike. Hring poderia finalmente andar de cabeça erguida, toda a vergonha passaria quando soubesse no que o filho se transformara. E agora nada disso seria possível. Hring tinha sido um homem tão firme e forte como a antiga árvore guardiã da família, a tuntreet. Mas entrara em colapso quando achou que perdera o único filho e não se recuperou mais. – Pode me levar para vê-lo? – pediu ele na esperança de ainda encontrá-lo vivo. – Você ainda não sabe de tudo. – Não me poupe. Quero saber tudo. – Bem, você pediu. Ash sentiu cada palavra como se fosse um soco no estômago. O pai estava morto, porém o mais importante era que Kara havia passado os últimos anos cuidando dele. – Seu pai morreu de febre – terminou ela o relato. – Fiz o que pude para cuidar bem de Jaarlshiem, mas a propriedade precisa de um senhor e uma senhora. Eu me recuso a perder meu lar, simplesmente porque não tenho um homem, Ash. – Pena não ter descoberto antes. – Ele fechou os olhos e rezou pela alma do pai para qualquer deus que porventura estivesse ouvindo. O filho que o pai gostaria de ter tido devia estar lá no enterro para espalhar as cinzas da pira funerária aos pés da tuntreet. Ash pensou na quantidade de coisas que planejara contar para o pai. Seu maior desejo era que ele finalmente o reconhecesse como um dos guerreiros legendários de Raumerike. – Eu… Eu teria feito tudo diferente. – É impossível reverter o passado, Ash. Ele se esforçou para pensar com a razão. A morte do pai explicava o motivo pelo qual o tio Harald havia se recusado a reconhecê-lo e explicava por que Kara estava prestes a se casar de novo. Harald Haraldson sempre cobiçara Jaarlshiem e o título que Hring conquistara com a força de sua espada. O título de jarl seria concedido ao parente mais próximo se não houvesse um herdeiro, ou se ele não fosse um guerreiro valente. O processo levava normalmente um ano ou mais. O destino de Kara estaria vinculado à propriedade para sempre. Ash fechou as mãos em punhos e fixou o olhar nas cinzas da lareira, sabendo que estava atrasado. Na realidade, nunca imaginara que o pai pudesse morrer antes de ele voltar. – Sei que você amava seu pai – disse Kara, quebrando o silêncio. – Ele certamente o amava também. Se quiser, pode chorar. Eu chorei muito quando ele suspirou pela última vez. Ash levantou o rosto. Talvez chorasse mais tarde, mas não naquele momento. Ele se recusava a chorar na frente de qualquer pessoa. Mas lembrou-se de que Kara o tinha encontrado aos prantos certa vez, quando seu pai o espancara por uma razão qualquer. Ela havia lhe enxugado as lágrimas com a ponta do avental. Mas o pranto ficara no passado e não pertencia mais ao homem no qual ele

se tornara. – Eu mandei um recado – disse ele quando a voz estava mais firme e virando-se para encará-la. – Meu pai deve ter entendido que fiz o que foi preciso para preservar minha honra. – Sua honra? – indagou ela, colocando as mãos na cintura. – Desde quando a honra vem antes da vida e da família? – Para o meu pai era assim – disse ele devagar. Ash havia apanhado muitas vezes quando menino por não atender às expectativas do pai e passara horrores quando o assunto era restaurar a honra. Voltar para casa sem a devida honra era impensável, tanto que ele desejara várias vezes que sua vida tivesse tomado um rumo diferente. – Voltei com riqueza suficiente para pagar todas as dívidas e tributos que devo. Sei bem o que meu pai esperava de um filho. Aprendi apanhando bastante quando menino. Os olhos de Kara reluziram de fúria. Parecia que ela havia se transformado numa Valquíria e não apenas invocado uma delas. – Seu pai achou que você estava morto! Morto! – Ela bateu o pé no chão com força. – Devia ter voltado, em vez de se preocupar com a sua preciosa honra. Seu pai queria que você estivesse aqui, cuidando da propriedade, quando ele adoeceu. – Está se escondendo na sombra do meu pai, Kara? Nós dois sabemos que ele usava muito os punhos. Seja honesta… Você queria que eu tivesse voltado, mas esperava que eu fosse um herói. Você mesma me pediu para voltar como um herói. – Eu mandei uma mensagem quando escapei da masmorra – continuou ele, ansioso para que ela demonstrasse algum sinal de compreensão. Durante meses ele havia aguardado uma resposta, mas não aconteceu. – O silêncio foi eloquente, mas sabia que meu pai queria que eu voltasse um herói e que pagasse minhas dívidas sem a ajuda dele, ou então era melhor morrer. Kara abaixou a cabeça, permitindo que o cabelo lhe cortinasse o rosto, escondendo-o. Ash notou que ela havia arquejado e silenciosamente rezou para que entendesse o que ele havia passado e o perdoasse. – Há anos a propriedade arca com os impostos – disse ela numa voz sem emoção. – Os naufrágios acontecem por vontade dos deuses. Ele queria o filho de volta. – Meu pai queria preservar a honra do filho morto e não precisava daquele que estava vivo – corrigiu-a Ash, impaciente. Será que era muito difícil de entender que o pagamento tinha de ser com os proventos dele e não com o que herdara? – Meu pai não devia ter sofrido pelos meus erros. Ninguém além de mim precisava ter sofrido. – Você ficou tão rico assim? – Kara levantou a cabeça e o encarou com seus imensos olhos azuis. – Quatro anos para pagar todo mundo. Jaarlshiem é uma das fazendas mais produtivas em Raumerike. – Sim, sou rico. Na minha última viagem saqueei uma igreja repleta de ouro e prata. Eu consigo pagar as dívidas e ainda sobra com a minha parte. – Ash colocou os dedos sob o queixo dela, levantando o rosto para que pudesse encará-la nos olhos. – Eu voltei para casa, Kara. Você não precisará de mais nada. Conheço minhas obrigações com a morte do meu pai e irei cumpri-las. Você é minha esposa. Ash abaixou a cabeça, pronto para relembrar o sabor doce daqueles lábios macios. Assim como

costumava fazer no passado, queria beijá-la para que a raiva passasse. Kara afastou-se, fixando o olhar numa imagem de Loki, que dominava a antecâmara da igreja, em vez de se deixar perder na imensidão azul dos olhos de Ash. Ele sabia muito bem como encantar as pessoas. Seria fácil se deixar envolver pelo charme dele, cada pedacinho do corpo de Kara desejava beijálo, mas seria um erro. A atração que ainda sentia por Ash era um resquício da fantasia de menina. Sete anos de distância não se perdiam com um sorriso ou um toque nas mãos. Os dias de adoração e desculpas haviam terminado quando seu sogro lhe contara que tipo de homem o filho era na verdade. Ash definitivamente não tinha nada do herói de ouro dos sonhos dela, que apareceria num passe de mágica para resolver os problemas. Não, ele tinha sede de glória, deixando tudo e todos para trás. Será que essa sede não voltaria? Mas dessa vez ele teria de pensar em Rurik e nela. Kara amadurecera naqueles anos por conta da necessidade e das responsabilidades que assumira. Ela havia governado a propriedade com sucesso. Tomara conta de todas as atividades da propriedade no lugar de Ash, enquanto ele estava atrás de glória. E agora ele esperava que ela caísse nos seus braços como se nada tivesse acontecido, como se ainda fosse aquela garota inocente que sempre o perdoava com um sorriso. Palavras românticas se esvaíam ao sopro da praticidade. – Não é a hora nem o lugar certo – disse ela, fitando-o como se ele tivesse a mesma idade de Rurik e acabara de fazer uma travessura. – Estamos num templo. As pessoas nos esperam nessa suposta festa de casamento. A desculpa soou fraca até mesmo aos ouvidos dela. Mesmo assim, continuou encarando-o como um menino levado. Contudo, em vez de ficar acuado, ele estava se divertindo. – Kara, deixe a braveza de lado. – Ash pousou a mão sobre o ombro dela. O calor da mão dele se espalhou pelo corpo dela, derretendo a camada de gelo que envolvia seu coração havia tanto tempo. – Para que precisamos de festa? O que importa é o futuro, o nosso futuro. A festa será um sucesso se tiver bastante cerveja. – Fique longe de mim! Não sinto nada com seu carinho! – exclamou ela, afastando-se e contrariando a vontade de seu corpo. Um toque daquela mão forte era o suficiente para disparar uma faísca que logo se transformava numa labareda que percorria todo o corpo dela. O desejo ainda permanecia latente mesmo depois de sete longos anos. Por que justamente Ash a tinha deixado esperando por tanto tempo? Ela cruzou os braços para não ceder. Percebendo-a tão fragilizada, ele tentou segurá-la pelos braços, mas ela tropeçou para trás. – Cuidado. Não quero que caia. – Estou perfeitamente equilibrada. Obrigada – afirmou ela, erguendo o queixo em desafio, embora estivesse sentindo a pele do braço queimar onde ele a segurara. – Algum problema, minha esposa? – perguntou ele, notando que ela resfolegava. – Você costumava implorar pelos meus beijos… um, dois, três… Já se esqueceu? Kara rangeu os dentes. Implorar por beijos! Nossa, ela havia se comportado pior do que se lembrava. Ou não seria ele a se lembrar de outra mulher? Ela nunca implorara. Talvez pedira. E esperara. Será que ele a achava uma tola? – Sua memória não está muito boa. – Ash abriu um sorriso triunfante. – Você se lembra do beijo

que me implorou sob aquela macieira, enquanto as flores caíam no seu cabelo? Eu me lembro muito bem. Foi quando a pedi em casamento e você aceitou. – Foram sete anos, Ash Hringson – disse ela, virando-se para a imagem de Loki de novo. Ele a pedira em casamento porque queria um navio para sair em suas aventuras, e não por querer mais do que beijos inocentes. Kara se odiava por um dia ter acreditado que ele era leal. Ash torcia a verdade ao seu favor, um defeito que o filho herdara. Ela já estava cansada de desculpá-lo, sempre enxergando o lado bom de suas atitudes. – Você podia ter mandado uma mensagem, mas preferiu manter o silêncio. Agora somos dois estranhos. É um erro achar que pode voltar para minha vida e recomeçar de onde parou. Não vou permitir. – Você é minha esposa. – Ash aproximou as sobrancelhas e soltou os braços ao longo do corpo. – É natural que um marido queira beijar a esposa, principalmente depois de uma longa ausência. Especialmente depois de uma longa ausência. Kara sentiu o sangue ferver nas veias. Virou-se de supetão, com vontade de sacudi-lo. – Antes de decidir se quero continuar casada com você, vamos dormir em camas separadas. Dito isso, Kara amordaçou a garotinha que o adorava. Em outras épocas, quando ela ficava furiosa assim ou protestava contra alguma coisa, Ash a beijava com paixão até que ela se esquecesse de tudo. Mas depois de tantos anos havia muita coisa em jogo que ela não podia se esquecer. Ash contraiu o rosto, enfatizando a cicatriz de meia-lua no queixo. No lugar de um rapaz, Kara se viu diante de um guerreiro implacável. Logo em seguida, como se o sol surgisse de trás das nuvens num dia de outono, ele sorriu. – Claro que devemos continuar casados, Kara. Você está um pouco alterada e não consegue pensar direito. Mas a culpa não é minha se a mensagem que mandei se perdeu. Um pouco alterada? Kara ficou boquiaberta. Parecia que ele havia ficado longe por alguns meses e que ela estivesse exagerando. Ele precisava entender que sete anos demoraram uma eternidade para passar e agora ela precisava de um tempo. Os dois precisavam, na verdade. As coisas tinham mudado. Ela havia mudado. Era simplesmente impossível voltar a ser a sonhadora romântica de antes. Agora Rurik precisava de proteção. De repente, ela sentiu uma pontada no coração. Rurik. Ash não sabia da existência dele. Precisava contar que tinham um filho. De soslaio, ela olhou para as imagens e incensários da sala e decidiu que ali não era o lugar mais adequado nem a melhor hora para aquela conversa. Na realidade, nem ela estava preparada para explicar a história inteira sobre o nascimento de Rurik. Era preciso ser muito cuidadosa. Ela respirou fundo para se acalmar antes de dizer: – Não se trata de estar alterada sem motivos. Tenho todo o direito de me divorciar. Não dividimos a mesma cama por mais de cinco anos. Eu posso exigir que você me pague pelo dano que fez em minha vida, mas prefiro ter um tempo. Não tente me seduzir. – Você tem todo o direito de exigir um tempo. Se é isso que minha linda esposa deseja, quem sou eu para negar? – disse ele, virando as palmas das mãos para cima e sorrindo. Ela respirou aliviada. Agora teria tempo para escolher a melhor hora e a melhor maneira de contar a ele sobre Rurik e o que havia feito. Ela o faria entender. Kara apertou os olhos e olhou para ele de lado. Ash tinha concordado com muita facilidade.

Talvez estivesse aprontando alguma, mas, conhecendo os truques dele, seria mais fácil resistir. – Obrigada – disse ela, meneando a cabeça. – Agradeço por compreender a dificuldade que nós dois enfrentamos. Eu gostaria que voltássemos a ser amigos. – Pode acreditar quando digo que entendo seu ressentimento pelo tempo em que fiquei longe, mas, você está nervosa. Nunca ficou assim comigo antes. Nunca. Os seus interesses são os mesmos que os meus. É assim que fazem os maridos. Ash deu um passo à frente e correu o dedo indicador pelo rosto dela. A carícia foi suficiente para deixá-la trêmula e ansiosa para beijá-lo. Tanto que chegou a entreabrir os lábios, enlevada pelo desejo, mas a porta se abriu de repente, e ela se assustou. Ainda bem que a interrupção a trouxe de volta à realidade. Os ombros largos de Valdar preenchiam quase todo o vão da porta. Ele parecia preocupado. Kara sentiu uma onda de calor corar seu rosto e agradeceu silenciosamente por ele ter chegado naquele momento. – Fiquei preocupado achando que havia acontecido alguma coisa, Kara – disse ele, fazendo uma reverência. – Você já devia estar na festa. As pessoas estão perguntando. – Faz muito tempo que não vejo minha esposa. Os outros precisam esperar a vez. – Ash colocou a mão no ombro dela. – A vontade de um marido vem em primeiro lugar. – Já estamos indo – disse Kara, tirando a mão enervante de Ash de seu ombro. Parecia que ele queria marcá-la como sua posse para que todos vissem. Os homens eram tão óbvios. Ela não era um móvel ou um bracelete que estivesse em disputa. – Eu precisava contar a Ash sobre o pai dele em particular. – Auda imaginou que você precisasse de ajuda, e eu me ofereci para vir aqui. – Valdar meneou a cabeça. Kara passou a mão atrás do pescoço, decidindo se devia abraçar a Auda por ter mandado Valdar para socorrê-la ou se gritava de raiva. Ash e ela precisavam estabelecer os limites do relacionamento, mas não naquele momento. Valdar tinha razão, as pessoas a aguardavam no salão. – Estou entendendo perfeitamente. – Ash alternou o olhar entre ela e Valdar. – Entendendo o quê? – exigiu Kara. – O motivo por você ter me pedido um tempo. – Ash inclinou a cabeça na direção de Valdar. – É óbvio, Kara. Óbvio demais. Você arrumou um cão de guarda. Kara comprimiu os lábios. A última coisa que a preocupava era Valdar ou o que ele queria fazer, mas a desculpa para sair dali era boa. Assim, ela forçou um sorriso. – Não há nada de errado em ser óbvio. Até você aparecer, Valdar era meu noivo. Ash apertou os olhos, e ela sentiu um aperto no coração. Antes ele estivesse com ciúmes ao imaginá-la com outro homem e não sendo orgulhoso e possessivo. Se Ash a quisesse de verdade, teria voltado antes. – Entendo. – É mesmo? – perguntou Valdar, colocando a mão no cabo da espada. – É mesmo. – Ash também colocou a mão na espada. – Ash, a festa – disse ela antes que a briga começasse. Antes de explicar sobre Valdar, ela teria de contar sobre Rurik e ali decididamente não era o lugar. Valdar tinha razão. As pessoas esperavam

ver Ash na festa. – Foram muitos os preparativos para garantir que a festa fosse memorável. – Agora será memorável por outras razões – disse Valdar por entre os dentes, sem afastar a mão do cabo da espada. – Pelas razões certas. – Ash também continuou na mesma posição. – Não foi isso o que Valdar falou? – perguntou Kara, colocando-se no meio deles. Os dois continuaram se encarando numa ameaça velada, um esperando que o outro se movesse. Kara ficou apavorada. Se não tomasse cuidado, os dois guerreiros se atracariam numa luta mortal. Se isso acontecesse, a festa seria mesmo memorável. – Obrigada, Valdar, por atender ao pedido de Auda e vir me lembrar que a festa precisa começar. Ash, seria bom que você fizesse um discurso antes da refeição, a não ser que queira que outra pessoa o faça em seu lugar. – Quem você sugere? Meu tio? Afinal ele foi o que mais se entusiasmou com a minha volta – disse Ash, relaxando a postura. – Harald Haraldson pede desculpas. – Valdar também abaixou a mão da espada. – Ele já não é mais tão jovem para suportar tantas emoções. Kara sentiu uma pontada no coração. O tio de Ash estava dando depoimentos deliberadamente, em vez de ir para a cama descansar. Ele não desistira de Jaarlshiem porque Ash voltara. – E o rei? – perguntou ela. Se o rei tivesse decidido comparecer à festa também, seria uma mensagem clara e poderosa de apoio à investigação de Harald. – Ele concordou com Auda e me enviou. Prefere se recolher cedo ultimamente. Kara ficou aliviada. A ausência do rei então significava que ele apoiaria Ash. As coisas não estavam tão ruins quanto pareciam. Harald Haraldson tinha poder suficiente para exigir uma investigação, mas Ash recorreria à sua hereditariedade enquanto tivesse o apoio do rei. A herança de Rurik estava a salvo. Kara prometeu a si mesma que depois da festa explicaria a Ash sobre Rurik. Ele tinha que entender que ela possuía obrigações com o filho, como, por exemplo, garantir que ele fosse bem criado e não precisasse se defender sozinho, tendo apenas uma enfermeira como companhia, assim como o pai. Ela se lembrou da vez em que enxugara as lágrimas de Ash depois de ele ter apanhado e o mandou de volta para a floresta de novo. Mais tarde Hring se gabara de como Ash fora tratado com métodos rudes, mas eficazes. Aquelas histórias deixavam Kara revoltada e até hoje sentia um nó na garganta ao lembrar. Rurik não precisaria passar por nada disso. Ash pegou a mão de Kara e passou pelo seu braço. Mesmo sorrindo, os olhos dele continuavam frios. – Vamos entrar na festa juntos como marido e mulher. Kara umedeceu os lábios e tentou não demonstrar a quantidade de sensações que a acometeram ao ouvir aquilo. – Juntos? Ash lançou um olhar significativo para Valdar. – Imagino que não queira que as pessoas pensem que neste curto espaço de tempo eu tenha perdido você.

Capítulo 4

GRITOS E aplausos e o som de pés batendo no chão ecoaram nos ouvidos de Ash quando ele se sentou. Seu breve discurso e o brinde em resposta à recepção do rei tinham sido muito bem acolhidos pela multidão reunida. Ligeiramente diferente do que ele planejara no navio. Era o tipo de discurso que eles, particularmente Kara, gostariam de ouvir, em vez de um relato preciso dos eventos. Ash sentira-se desconfortável em certas partes, que faziam parecer como se fosse um herói. Ele tivera sorte, apenas isso. Nada de heroísmo. Conseguira, mesmo tendo, em várias ocasiões, desejado morrer, em vez de prosseguir vivo. Mas ninguém queria saber disso. – Seu discurso foi bem recebido. – Kara dirigiu-lhe um sorriso amável quando ele se sentou. – Sem dúvida, você viveu uma aventura emocionante. – Perdeu duas de minhas brincadeiras. Isso nunca aconteceu antes – disse ele. – Eu as fiz especialmente para você, esperava que fosse gostar. Kara arqueou uma sobrancelha. – Para mim? Sinto-me honrada que tenha pensado em mim. Eu devia estar com o pensamento em outra coisa. Peço desculpas. Ash tamborilou o dedo na taça de chifre. Ela estava prestando atenção em outra pessoa? Esperando ver alguém? Valdar ainda não tinha aparecido no salão, apesar de sua interrupção inoportuna na antecâmara. – Eu só queria que você soubesse. – Impressionar-me deveria ser a última de suas preocupações, Ash – murmurou ela. Com ar pensativo, Ash tomou um gole de cerveja. Ela estava enganada. Sete anos atrás, ele se casara com ela para demonstrar ao pai que estava pronto para assumir responsabilidades e para ser o capitão de um navio. Kara era a mocinha que morava na propriedade vizinha e que enrubescia

toda vez que se falavam, que o olhava fascinada e considerava cada palavra que ele dizia. Ela acreditara em seus sonhos de ser um grande guerreiro. E ele abominava decepcionar alguém. – Eu só queria que soubesse. – Vou me esforçar mais na próxima vez que você discursar. Ash respirou fundo. As palavras estavam presas em sua garganta, mas as pessoas queriam ouvir histórias de heróis, não de fracassos. – Não haverá outra vez. – Eu estava distraída. Peço desculpas. A troca anterior de olhares entre Kara e Valdar tinha sido eloquente. Ela havia aceitado de bom grado a interrupção na antecâmara, talvez até a tivesse solicitado antecipadamente. Valdar certamente era devotado a ela. Até que ponto aquilo tinha ido? Kara era sua esposa. Mas será que ele ainda possuía algum direito com relação a ela? Tudo o que sabia era que a queria de volta. Quando a vira em pé diante do sacerdote, ao lado do guerreiro louro grandalhão, alguma coisa se retorcera em seu íntimo. Ele se lembrava daquele homem, de quando eram jovens. Eram rivais em jogos e treinos de esgrima. Seu pai sempre considerara Valdar como o tipo de filho que gostaria de ter. Kara era sua mulher, de ninguém mais, muito menos de Valdar Nerison. Ele a teria de volta e mostraria a ela que era digno de ser seu herói. Ele era capaz; estava mais do que apto a vencer Valdar. – Você está muito sério – disse Kara, franzindo a testa. – O discurso do rei foi bastante gentil, nas circunstâncias, e a narrativa de suas aventuras com certeza inspirou a imaginação dos bardos. Isso vai render uma saga. Você sempre quis fazer parte de uma saga. Pare de agir como Ragnarok no fim do mundo só porque eu não ri de uma piada que você fez. Ash forçou-se a beber mais um gole de cerveja. Não era aquilo que ela queria também… um herói como marido? E o que aconteceria quando ela descobrisse que ele era apenas um homem, um homem com imperfeições? Ele afastou o pensamento. – Estou só refletindo… As coisas mudaram desde a última vez que participei de uma festa em Sand. E eu não esperava reparar tanto nos espaços vazios e rostos que faltam, como reparei. Kara brincou com um pedaço de pão, desmanchando-o em pedaços menores. – Deve ser difícil ser o único que voltou daquele félag. Ash assentiu com relutância. Os mortos estavam sempre em sua lembrança, naquela noite mais do que nunca. Eles sabiam que ele não era um herói. Sabiam que suas palavras eram, no mínimo, um exagero, mas não podia arriscar-se a perder Kara dando a entender que estava longe de ser um herói. – Quero que saiba que eu teria trocado de lugar com qualquer um deles, se pudesse. Eram bons homens, melhores que eu. – Você os conhecia melhor do que eu. – É verdade. – Ash gesticulou na direção do bardo, que estava sentado dedilhando sua lira. – Quando vou ouvir o canto plangente que meu pai encomendou para a minha morte? Várias pessoas o mencionaram. Ou você não planejava que essa canção fosse tocada em sua festa de casamento?

O rosto dela ficou vermelho. – Não achei que seria apropriada para o meu casamento. Ele pode conhecer… Foi bastante popular por alguns anos em Raumerike. – Peça a ele que toque. – Por quê? Para saber o que meu pai pensava de mim. Um homem quer saber como é lembrado. Mesmo que não seja digno dessa lembrança. Ash reprimiu as palavras. Se queria recuperar Kara, ela precisava acreditar que ele era um herói, o marido ideal. – Achei que seria divertido. – Divertido… – Kara colocou sua taça na mesa com um baque surdo. – É assim que você considera um canto plangente? Uma diversão? Às vezes me pergunto se algum dia irei conhecer você de verdade, Ash Hringson. – E por que não? Diversão é muito melhor que tristeza, mas eu posso esperar. – Ash bateu palmas. – Quero ouvir algumas canções de Raumerike. Faz muito tempo que não ouço. Por favor, dê-me esta alegria, bardo, e será bem recompensado. KARA AGUENTOU a festa o máximo que foi capaz. Ouviu os brindes e as cantigas. Trocou algumas palavras superficiais com várias pessoas, mas a sensação de inquietude crescia a cada minuto. Tinha de se forçar a falar com voz firme, ao passo que Ash não parecia nem um pouco abalado. Ele realmente queria ouvir o canto que o pai encomendara. Numa prece silenciosa, ela agradeceu aos deuses pelo fato de o bardo ter sido contratado por Valdar, pois assim Ash não esperaria que ele conhecesse a canção de cor. Os últimos versos falavam do espírito de Ash pedindo ao filho recémnascido que crescesse forte e se tornasse um guerreiro corajoso como ele. Não havia quem não se emocionasse em Jaarlshiem quando a música era cantada. Em vez disso, o bardo cantou baladas de taverna e cantigas de batalhas do passado de Raumerike. Todos cantaram junto, e a fartura de cerveja era impressionante. Toda a situação lembrava a Kara as festanças e banquetes anteriores à partida de Ash, quando ela se escondia nas sombras enquanto ele encantava a todos com seu senso de humor espirituoso. Não mudara muito, ele não parava de brincar e alegrar os convivas, e parecia disposto a não perder nenhuma rodada de bebida. O ombro de Ash esbarrou em Kara ao final da terceira balada. Quando o bardo começou a cantar a quinta música, a mão dele deslizou sobre a dela enquanto ele se servia da mesma travessa de comida que ela. Uma carícia deliberada. Ela fez um movimento simulando furar a mão dele com a faca, mas ele deu um sorriso que não denotava arrependimento algum e pousou novamente a mão sobre a dela. Dessa vez, ele a segurou e levou-a aos lábios. Kara empertigou-se e fixou o olhar à frente, ignorando o repentino calor que a envolveu e o ritmo acelerado de seu coração. Não era uma fruta, madura e pronta para ser colhida simplesmente porque Ash tinha resolvido voltar depois de sete anos e desejava companhia. Ela se virou e viu Valdar olhando para ela e para Ash. No mesmo instante sentiu o rosto queimar. O gesto de Ash tinha sido de posse, não de consideração ou cavalheirismo. Kara levantou-se.

Ash interrompeu imediatamente a conversa em curso e segurou a mão dela. – Algum problema? – É hora de eu me retirar – disse ela, com um nó na garganta. – Ah, Valdar chegou, finalmente. Ele parece um pouco trôpego, não? Que estranho… – Ash acenou com a cabeça na direção de onde o ex-prometido de Kara se encontrava parado, ligeiramente cambaleante. Seu paramento nupcial estava amarrotado, e o maxilar dele parecia torto. Kara desviou o olhar, tentando lembrar se alguma vez vira Valdar embriagado. Ash passou o braço sobre os ombros dela. – Mas se você está pronta para ir, quem sou eu para contrariá-la? Ela se afastou. – Isso não tem nada a ver com coisa alguma. Eu estou cansada, tive um dia longo. – E estamos prevendo uma noite mais longa ainda! – exclamou um dos companheiros de Ash, da extremidade da mesa. – Você está se dirigindo a minha esposa. Veja lá como fala! – Ash fulminou o homem com os olhos. – Retrate-se! O homem engoliu em seco. – Perdão, milady. A cerveja me fez ser inconveniente. Ash espalmou a mão no meio das costas de Kara, num gesto possessivo. – Você tem razão, esposa. Está tarde. É hora de ambos nos recolhermos. – Por favor, não se sinta obrigado a me acompanhar – apressou-se a dizer Kara, num tom de voz abafado. – Eu posso ir sozinha. Seus admiradores estão aqui, querendo falar com você e ouvir suas aventuras. As comemorações se estenderão até o galo cantar de manhã. Ele semicerrou os olhos. – E por que eu iria querer ficar longe de você, minha leal esposa? Kara moveu-se, afastando-se de Ash. O simples toque dele causava uma sensação que se espalhava até seu ombro. Ele estava recorrendo aos seus velhos truques, dizendo coisas e induzindo-a a interpretá-las de maneira inteiramente oposta ao que ele pretendia. – Esses modos provocadores não combinam com você. Não estou disposta para isso e estou falando a sério. As pessoas querem ouvir a história toda. Você só contou uma pequena parte das suas aventuras. Quer que eles fiquem frustrados? Ele se inclinou para o lado e esfregou a perna. – Também estou cansado. Contar as histórias me faz reviver as experiências. As palavras estão presas na minha garganta. Amanhã, quando eu encontrar palavras mais adequadas, contarei tudo. O dia de hoje se desenrolou de uma maneira diferente do que eu esperava. Kara notou os círculos escuros sob os olhos dele e os lábios ligeiramente contraídos. Lembrou-se de Rurik quando estava caindo de sono, mas teimava em não querer dormir. Ela estava sendo dura com Ash, tão envolvida no próprio desconforto que não considerara o fardo que os eventos daquele dia tinham colocado nos ombros dele. – Hoje foi um dia diferente do que nós dois planejamos. Amanhã… – Amanhã é outro dia. Agora, deixe-me cuidar de você. A respiração ficou presa na garganta de Kara. Houvera um tempo em que ela ansiara por ouvir

Ash dizer aquelas palavras, mas agora sabia que eram apenas expressões sem significado. A única pessoa com quem Ash se importava era ele próprio. – Não há necessidade. Eu sei me cuidar. – Há toda a necessidade. Você é minha mulher. – Ele deu uma tossidela para clarear a voz e olhou para Valdar, que retribuiu o olhar com expressão nada amistosa. – Preciso deixá-los. Minha esposa tem de descansar. As palavras ecoaram no salão. Os pés começaram a bater no chão, em meio a novos risos altos e assobios. – Beijo! Beijo! Beijo! Queremos beijo! Kara sentiu-se gelar. Ali não… Ash estava apenas se exibindo para Valdar. O olhar dele, então, tornou-se pensativo e ele balançou a cabeça. – Não, amigos, esta minha arte eu só pratico entre quatro paredes. Já não tiveram o suficiente para um dia? Encontrem suas mulheres. – Ele olhou diretamente para Valdar. – Esta aqui já tem dono. Ele a conduziu para fora do salão, para o ar fresco da noite, a mão firme em suas costas. O som dos gritos e das brincadeiras maliciosas os seguiu, mas à medida que se distanciavam o burburinho se dissipou. Uma enorme lua cheia amarela brilhava no céu, iluminando o caminho. – Obrigada. – Por quê? Por não a beijar? – Ash esfregou a ponta do polegar nos lábios dela. – Eu disse a verdade, Kara. Não tenho necessidade de beijar você em público. Ao contrário, prefiro esperar o momento certo, pois a recompensa será maior… Palavras ao vento. Ela já cometera o erro de acreditar naquelas coisas antes. Eram as ações que contavam, não as palavras. O efeito das ações perdurava, já as palavras… desvaneciam tão logo eram proferidas. – Por sair da festa comigo. Meu pai… – A garganta de Kara apertou-se quando ela pensou nas humilhações às quais o pai submetera sua mãe quando ele voltava das viagens e em como a mãe se retraía em seu próprio mundo. – Seu pai era um homem difícil, atormentado pelos próprios demônios. – De qualquer forma, sou-lhe grata. – Esse tipo de festa é uma obrigação, na maior parte das vezes. Essa foi mais cansativa que as outras, mas acabou… para nós dois. – Você adorava festas. Passava dias praticando suas piadas e anedotas comigo. – Eu tinha me esquecido disso. Espero não ter aborrecido você. A boca de Kara ficou seca. – Não, eu gostava… Às vezes ainda penso nelas. Os olhos dele brilharam, azul-escuros, sob o luar. – Outras coisas passaram a ter mais importância. E minhas brincadeiras de anos atrás eram bobagens de um jovem inexperiente. Kara forçou-se a desviar o olhar. Mais um segundo e se atiraria nos braços dele, e isso não podia acontecer. – Eu posso ir sozinha agora.

– Você é minha esposa. Permita-me que eu a acompanhe. Que a leve em segurança. As pedras que pavimentavam a rua pareciam tremular na frente dos olhos de Kara. Ela piscou várias vezes, agoniada. A única pessoa que podia protegê-la era ela mesma. – Está bem – concordou por fim. Eles caminharam em silêncio até a porta da pequena casa onde ela ficava quando estava em Sand. O ar da noite carregava consigo a promessa de um inverno gelado. No céu, a enorme lua cheia lançava sua luz prateada sobre a cidade silenciosa. Parecia fazer tão pouco tempo que ela saíra dali para se casar com Valdar, e agora retornava com outro marido, um homem que no passado ela erroneamente acreditara que a conhecia bem, mas que agora era um completo estranho. Kara olhou-o rapidamente e em seguida desviou o olhar. Ele teria a intenção de ficar? Esperava que ela o convidasse? A casa era dele por direito. Ela não podia negar-lhe a entrada, embora pudesse recusar-se a se deitar com ele. Decidiu que não era o momento de contar sobre Rurik. Não naquela noite. E ninguém havia comentado nada na festa, apesar de seus temores. A expressão de Ash era impenetrável, impossível de decifrar. – Bem, aqui nos despedimos. – Ela estendeu a mão quando pararam diante da porta. – Kara… – Ele deu um passo à frente e ergueu o queixo dela. – É assim que você me dá boanoite? Como este gigante de gelo se apossou do seu coração? À luz pálida da lua, o rosto dele de repente se parecia com o de Loki… sedutor, porém traiçoeiro. Seria fácil derreter-se nos braços dele e oferecer os lábios para um beijo, mas também seria a pior coisa que poderia fazer. Ela deixara de acreditar que Ash era o que ela queria. Não precisava mais de heróis. Precisava de um homem firme, estável, que a ajudasse a criar Rurik do modo certo. Rurik. Kara sentiu a boca seca. Precisava contar a ele, antes que outra pessoa o fizesse. Viera por todo o caminho tentando pensar na maneira correta de contar, mas sua mente parecia vazia de ideias. Aquela era uma questão que devia ser tratada com seriedade. – É melhor não, Ash. A mão dele pendeu ao lado do corpo. – Por quê? – Porque há muita coisa que não foi resolvida. Precisamos conversar primeiro. Não quero apressar nada, nem me deixar levar por seus truques que conheço bem, Ash. Você diz coisas que acha que as pessoas querem ouvir. Lembro-me das suas velhas histórias para saber que as coisas foram bem mais complicadas e menos agradáveis do que você fez parecer no seu discurso de hoje. Algum dia, quando estiver disposto a me contar o que realmente aconteceu, então quem sabe possamos recomeçar. Ela o observou em silêncio, desejando que ele dissesse a verdade, que contasse por que ficara fora tanto tempo. Depois disso, confessaria sobre o filho deles. Era difícil saber a hora certa e o jeito certo de fazer isso. Como contar a um homem que ele tinha um filho de 6 anos? – Eu não ia lhe pedir para ficar, só ficaria se você pedisse, Kara. Respeito o seu tempo. Nunca forcei uma mulher e não pretendo mudar esse hábito, muito menos com minha esposa. – Ele pegou

um cacho de cabelo dela e o enrolou no dedo. – Tem medo de admitir esta verdade? Você me desejava tanto quanto eu desejava você. E ainda desejo. Poderíamos ter filhos lindos, Kara. Você sempre quis ter filhos. Um calafrio percorreu as costas dela. Era a oportunidade que esperava. Precisava contar a ele a verdade, pois quanto mais tempo demorasse para contar mais difícil seria. Ash tinha de saber sobre Rurik por ela, em vez de descobrir por intermédio de outra pessoa. Em silêncio, ela rezou para ao menos não ser obrigada a contar a história toda, não naquela noite. – Ash, escute… – As palavras saíram atabalhoadas, enquanto ela se desvencilhava do toque dele em seu cabelo. – Tudo mudou entre nós há seis anos, quando eu tive nosso filho. Ash fitou-a boquiaberto e com os olhos esgazeados. Sob a claridade mortiça do luar, o riso desapareceu do semblante dele. Parecia que alguém o golpeara nas costas com uma espada. Ele balançou a cabeça como que para assimilar a informação, sem desviar o olhar atônito e confuso do rosto de Kara. O estômago dela revirou. Fora seca demais, direta demais. Deveria ter tido mais tato, tê-lo preparado para a notícia. – Eu… tenho um filho…?! – As palavras não passaram de um sussurro, em voz chocada e diferente do tom usual dele. – Um filho… seu? – Sim, nós temos um filho… O nome dele é Rurik. Um filho. Ele tinha um filho. Seu filho. As palavras martelavam no cérebro de Ash. A exaustão desapareceu. Ele era pai! Não sabia o que pensar ou dizer. Estava completamente despreparado para aquilo. Nunca pensara naquela possibilidade. Kara havia tido um filho dele… Nunca imaginara uma coisa dessas. Emoções conflitantes de toda espécie causaram um turbilhão em sua mente… alegria, júbilo e êxtase por ter um filho, horror por perceber quão indigno ele era, um repentino senso de responsabilidade, bem como tristeza, amargura e remorso. Seu filho nascera e crescera sem ele por perto, nascera o primeiro dente, dera os primeiros passos, balbuciara as primeiras palavras, montara o primeiro potrinho, tudo isso sem que estivesse lá para ver. Ele havia jurado que se um dia tivesse um filho seria um pai presente, ao contrário do que fora o seu. Mas fora ainda pior. Seu pai ao menos o recebera neste mundo antes de partir para quatro anos de aventuras. Ash nem sequer vira seu menino, não o conhecia! Nem havia considerado a existência de um menino de 6 anos que era seu! Será que a ignorância podia ser considerada como desculpa? Não pela primeira vez, Ash desejou poder voltar nas areias do tempo. Ele passou a mão pelo cabelo e tentou manter as emoções sob controle. Ergueu os olhos para as estrelas brilhantes no firmamento e piscou para conter as lágrimas. Ele era pai… Isso mudava tudo, e nada mudava. Mais um erro para pesar em sua consciência. Sentia que, de alguma maneira, deveria ter previsto, tido uma intuição, mas não tivera nada. Que tipo de homem ele era? – Como ele se chama? – perguntou, com um nó na garganta. – Rurik, você disse? – Rurik. Rurik Ashson. Você disse uma vez que gostaria que seu primeiro filho se chamasse assim. Rurik, o nome de seu avô materno. As lembranças vieram no mesmo instante, dele e do avô

sentados numa pedra alta na margem do lago, das histórias de aventuras que o avô lhe contava. Kara se lembrara disso… Ele não merecia essa consideração, mas era grato de qualquer forma. Mais do que grato. – Você fez bem. Minha primeira escolha. – Antes mesmo de terminar a frase, ele soube que as palavras eram inadequadas. Mas então, uma onda de raiva o percorreu. Kara passara o dia inteiro guardando aquele segredo. A manhã inteira, a tarde inteira e a festa inteira. Não lhe contara a coisa mais importante, que deveria ter contado no primeiro momento em que se reencontraram. Era bom sentir raiva. Qualquer sentimento era melhor do que o remorso que corroía a alma. – Por que você esperou até agora para me contar? – Ash… Kara estendeu a mão, mas ele a ignorou. Com expressão magoada, ela abaixou a mão. Ash buscou forças para endurecer o coração e engoliu em seco, tentando afastar o sentimento de culpa. Todo mundo na festa sabia, menos ele! O que ela pretendia, humilhá-lo? – Isso é a primeira coisa que você deveria ter me contado! – recriminou. – Antes de me contar sobre a morte de meu pai. Você se arriscou a me fazer passar por bobo da corte de Raumerike. Ou talvez tenha sido proposital… uma forma de vingar-se de algo que não fiz. Eu esperava mais de você. – Fui interrompida antes de ter a oportunidade… – Kara cobriu os olhos com as mãos, sentindose arrependida e culpada. Agira mal. Ele estava certo, ela deveria ter contado. Abominava a si mesma por ter sido tão covarde em relação ao filho, a quem amava com todas as forças de seu ser. – Você havia acabado de saber da morte de seu pai. Perder um pai e ganhar um filho no segundo seguinte é demais para qualquer homem suportar. – Tem certeza de que ele é meu? – Ash segurou os ombros dela, fitando-a intensamente. O corpo inteiro de Kara enregelou. Ele tinha de acreditar nela! Relutava em confessar a Ash que ele fora o único homem de sua vida, principalmente depois de saber da infinidade de mulheres com quem ele tinha se deitado antes dela e muito provavelmente depois também. Ele não era do tipo de homem que passaria sete anos sem companhia na cama, mas Kara tinha seu orgulho. – Rurik é seu filho tanto quanto meu. – Ela ergueu o queixo. – Assim que você o vir, não terá mais dúvidas. Ele tem os seus olhos, o nariz é igual. Seu pai vivia dizendo como Rurik era igual ao pai e que eu teria de tomar cuidado para ele não desviar navios em direção às pedras. A tensão abandonou os ombros de Ash. As mãos dele penderam ao lado do corpo. – Eu não desejaria o meu nariz ao meu pior inimigo – murmurou ele, desconsolado. – Sempre gostei do seu nariz. – Quando ele nasceu? – perguntou Ash, num tom de voz mais brando. Kara afastou uma mecha de cabelo para trás da orelha e tentou não relembrar aquele dia fatídico. Ash não precisava saber dos detalhes naquele momento. Em outra ocasião, quem sabe, ela lhe contaria a história toda. – Ele nasceu em dezembro. Num dia muito frio. Ash soltou um suspiro. Cinco meses depois que ele havia partido. Dois meses depois que ele deveria ter voltado. Ele estava na masmorra naquela altura, esperando uma ajuda que nunca chegaria. Não havia

nada que pudesse ter feito. Mas esse pensamento não afastou o sentimento de culpa. Ela já devia saber, antes de ele partir. Por que não contara nada? – Eu quero vê-lo. Agora! Leve-me até ele. Kara abriu a porta, tremendo, nervosa. – Vamos conversar lá dentro, em vez de aqui fora para a cidade inteira ouvir? Ash entrou no cômodo mal-iluminado. Jamais o teria reconhecido. Em vez das tapeçarias pesadas retratando batalhas que o apavoravam quando ele era menino, as paredes estavam cobertas de figuras de animais fantásticos; o tear estava diante da lareira, em vez de relegado ao quartinho dos fundos. A casa da qual ele se lembrava como sendo um lugar frio e austero tinha, definitivamente, uma atmosfera muito mais calorosa e alegre. As coisas sem dúvida haviam mudado para melhor ali, mas tinha pavor de pensar em Jaarlshiem. A fazenda sofrera quando sua mãe estava no comando. – Ele está aqui? – perguntou Ash quando Kara parou logo ao lado da soleira da porta, em silêncio. – Eu quero vê-lo. Agora. Acorde-o! Diga que o pai dele chegou! – Está em Jaarlshiem com Gudrun, sua velha babá. Ela é babá de Rurik agora. – Em Jaarlshiem, em vez de em Sand para o seu casamento. Interessante. – Ash inclinou a cabeça para o lado e tentou afastar uma pontada de ansiedade. Ela havia deixado o filho deles com sua antiga babá, em vez de trazê-lo para a comemoração do casamento. – Você tem vergonha dele? Kara cerrou os punhos. – Claro que não! Eu jamais teria vergonha de Rurik. Como se atreve a sugerir um absurdo desses? – Foi Valdar que não quis que ele viesse, então? – Ele oscilou sobre um pé e outro, pronto para sair correndo e pular em cima de Valdar. Em silêncio, agradeceu aos deuses por ter chegado a tempo de evitar que algo de ruim acontecesse com o filho. Kara teria de compreender que precisava ficar com ele, pelo bem de Rurik. – Valdar e Rurik são amigos. Eles gostam da companhia um do outro. – Kara baixou os olhos. – Foi um dos fatores decisivos para eu concordar com o casamento. Valdar é muito bom para Rurik, e uma boa influência. E Rurik se sente seguro com ele. A frustração confrangeu o coração de Ash. – Mas ele não quis que Rurik viesse ao casamento – insistiu. – Valdar queria que Rurik viesse. Fui eu que decidi que era melhor para ele ficar em Jaarlshiem. Ash respirou fundo, mal conseguindo se conter. Kara estava escondendo alguma coisa dele. Havia alguma razão para ela preferir que o menino não viesse a Sand para o casamento. Será que tinha medo de seu tio? Ele sentiu a bile subir à garganta. – Ele tem algum problema? É doente, deficiente mental? – perguntou, preparando-se para o pior. Os ombros de Kara relaxaram um pouco e um sorriso espontâneo… o primeiro naquele dia… espalhou-se pelo rosto dela, transformando-o. Se ele já a achava linda, agora então estava estonteante! O orgulho que ela sentia do filho era evidente. – Ele é mais inteligente e sabido do que os garotos com o dobro da idade dele. Sabe tudo, observa tudo. Está sempre fazendo perguntas. A esperteza dele se equipara à sua, mas os olhos de Gudrun estão mais aguçados que nunca.

– Nada acontecerá com ele agora que estou de volta – declarou Ash, fazendo um juramento silencioso. Seu filho não seria criado com medo, como ele havia sido. O sorriso de Kara transformou-se numa expressão séria. – Isso me tranquiliza sobremaneira. – Eu tomo conta dos meus, Kara. – Um calafrio percorreu as costas de Ash, e ele perguntou, com uma sensação de desconforto: – Você já sabia que estava esperando um bebê quando eu parti? Teria ela guardado segredo por saber o quanto ele ansiava por aquela aventura? Lembrava-se de como os olhos dela brilharam quando ele lhe contara sobre o navio e o tempo planejado para a viagem. Não houvera nenhuma sombra, nada… Ao contrário, ela o encorajara a ir e provar que era um grande guerreiro. Ash moveu-se, desconfortável. O garoto que ele havia sido jamais a teria questionado tão diretamente. Ele aceitara a palavra dela porque isso facilitara para que perseguisse seus sonhos. – Você teria mudado de ideia se soubesse? Teria desistido da viagem? Ash fechou os olhos. O garoto que ele fora um dia era desesperado para provar a si mesmo que era um grande guerreiro, como o pai. Ele queria aventura; presumira que estaria de volta no fim do ano… em nenhum momento lhe ocorrera que poderia falhar. Ele sempre superava qualquer obstáculo que aparecesse. Agora sabia como os filhos eram importantes. Trabalhando na corte viking, vira guerreiros derretidos com o nascimento dos filhos; vira o sofrimento de seu melhor amigo Ottar quando a esposa morrera e, semanas depois, a filhinha recém-nascida dera seu último suspiro. Ottar aliviara sua dor na bebida e na luta. Morrera na rua depois de se envolver numa briga com o homem errado, um guerreiro selvagem chamado Bjorn. Tinha sido a morte dele que redobrara os esforços de Ash para voltar para casa e fazer algo de bom na vida. A verdade é que nunca lhe ocorrera que Kara pudesse estar grávida, nem naquela ocasião nem depois. Tinha sido mais fácil não pensar nesse tipo de coisa quando estava na masmorra, ou depois, quando servira como mercenário para os vikings. Kara pertencia a uma parte de sua vida na qual ele preferia não pensar quando se vira sem nada. No fundo, porém, sabia que era apenas mais um fracasso para ser adicionado à sua lista. Era impossível mudar o passado, mas o futuro podia ser mudado, e ele tinha um filho, o melhor talismã do futuro, um filho cujo rosto não conhecia. Ash queria ver seu filho. – O que você teria feito se soubesse? – repetiu Kara baixinho. – Eu teria voltado antes – respondeu ele, quando sentiu que a voz soaria firme. Ela retorceu os lábios. – E essa possibilidade nunca lhe ocorreu durante todos esses anos em que esteve longe? – Eu procurei me concentrar no que tinha à minha frente para fazer, em vez de ficar especulando sobre o que poderia estar acontecendo em casa. – Ele gesticulou, desamparado. – Como iria imaginar? Kara deu um sorriso enigmático. – Você deu um jeito de cumprir o seu dever antes de partir, Ash. Os batimentos do coração dele repercutiam na garganta. Seu dever? Talvez ele não estivesse preparado para se casar e o pai o induzira a isso, mas sem dúvida se lembrava da doçura do corpo

de Kara e do modo como se entregara a ele. Gostava dela e sentira saudade, ansiara por voltar para os seus braços. Até então não conhecera outra mulher que o fizesse pensar em casamento. – Eu me lembro com carinho dos momentos que passamos juntos. – Carinho? Eu sempre achei “carinho” uma palavra amena demais. Ash deu de ombros. – Eu nunca fui muito bom com palavras, Kara, você sabe disso. Ela cruzou os braços. – Você não consegue se favorecer muito com essa alegação. O que quero saber é se você vai reconhecer Rurik como seu filho. Vai ser um pai para ele? – Eu sou o pai dele! Rurik é meu filho… Ele foi aceito na família? Kara desviou o olhar. – Foi… foi, sim. Então, de repente, como uma trovoada de Thor, Ash viu como poderia ter Kara de volta. Ele poderia protegê-la, e ao filho deles. Não tinha direitos sobre ela, não importava o que dissesse a lei, depois do que ela passara. Mas isso não o impedia de desejar a mulher que ela se tornara e de querer protegê-la, bem como ao filho. Precisava fazer alguma coisa por Kara, alguma coisa para compensar sua negligência. Sua mente rodopiava, em turbilhão. Ele se apegou ao pensamento de que ela talvez tivesse escolhido Valdar só por causa da ameaça que seu tio representava. Ele poderia protegê-la e mostrar a ela que era verdadeiramente o herói que ela desejara que ele fosse, tantos anos antes. Talvez se tornasse um homem melhor por isso, o tipo de homem que Kara merecia… equilibrado, estável, confiável em qualquer situação. E se ela não o visse dessa forma, se não o considerasse digno e o odiasse, ele iria embora assim que ela estivesse em segurança. E ela não teria de se casar simplesmente para salvar a vida do filho. Teria liberdade, algo que não tivera antes. Ash sentia-se melhor agora que tinha um plano. – Quem o acolheu na família? – perguntou numa voz que ele mesmo mal reconhecia. – Quem ficou no meu lugar diante da tuntreet?

Capítulo 5

– SEU PAI aceitou o neto. – Kara teve a sensação de que as palavras estavam presas em sua garganta. Não se tratava de uma mentira, mas também Hring, o Audacioso, teria aceitado o neto no final. Contudo ela não queria contar sobre a ameaça de Hring em expor Rurik por ter nascido prematuro e fraco como um gatinho. Talvez dissesse algum dia, depois que Ash tivesse se encontrado com o filho, ou talvez depois que Rurik tivesse se tornado um homem de honra. Ela olhou para o rosto de Ash, iluminado pelo fogo, procurando algum traço do rapaz gentil a quem um dia adorara. – Ele fez os sacrifícios apropriados diante da tuntreet, colocando água nas raízes da árvore da maneira correta – disse Kara, interrompendo o silêncio. – Você teria se orgulhado. – Fico feliz em saber que meu pai desempenhou bem a função. – Ash meneou a cabeça. Não havia necessidade de dizer a Ash que depois do nascimento de Rurik acontecera o sacrifício. Ou então como Hring tinha tentado matá-la de fome para torná-la submissa. Tudo o que ele precisava saber era que a família havia aceitado Rurik. Assim era melhor. Kara pegou um fuso de um tear antigo e o apertou até as juntas ficarem brancas. A culpa se alojou na sua garganta deixando uma sensação horrível, como se estivesse fazendo algo errado. Salvar a vida de Rurik era de suma importância depois de ele ter nascido numa tempestade de granizo, e ela ter acordado no celeiro ao lado de um alazão, que pisava no feno todo ensanguentado. Kara sabia que nunca devia ter ido até ali. Fora um erro, e a sensação de culpa não a abandonaria, mesmo que tivesse garantido que Rurik sobrevivesse apesar de tudo. – Você sabe como seu pai encarava uma cerimônia – disse ela quando encontrou confiança para abrir a boca. – Ele gostava que tudo fosse feito com precisão e com toda a reverência devida. – Meu pai tinha costumes rígidos. Ele costumava dizer que se o bebê não fosse forte, era melhor

que tivesse uma morte rápida e não prolongada. Kara teve vontade de dizer que eram costumes bárbaros, mas preferiu ficar quieta, pois ainda não sabia a opinião de Ash sobre o assunto. Para Hring, era preciso deixar claro para todos que apenas os fortes sobreviveriam, e que não se gastasse comida e recursos com os fracos. Mas ela era radicalmente contra. Afinal Rurik era sangue do seu sangue. Era natural que tivesse lutado com todas as suas forças para que ele sobrevivesse, argumentando que quando Ash voltasse, seria dele o direito de decidir se o filho tinha forças ou não para sobreviver. Depois de tê-la feito passar fome para ser submissa e demonstrar a verdade sobre o casamento, Hring aceitou com relutância que ela ficasse com a criança. Na manhã seguinte de quando eles tinham descoberto que Ash havia morrido, Hring aceitara formalmente Rurik como seu herdeiro… o prêmio por ela ter cuidado dele. Quando o menino começou a andar, o avô entoara os cânticos e murmurara palavras sábias, enquanto Kara derramava o vinho nas raízes da tuntreet. A cerimônia não foi tão formal quanto ela gostaria que tivesse sido, mas paciência, pelo menos o filho tinha um nome e um futuro garantido. Pouco antes da morte de Hring no último inverno, Rurik e ele tinham se tornado bons amigos. Em seu leito de morte e com lágrimas nos olhos, Hring chegou a pedir desculpas a Kara e fez questão de nomear Rurik novamente como seu herdeiro. No entanto, no dia do funeral de Hring, Harald Haraldson mencionara que a cerimônia não tinha sido válida, deixando claro quais eram suas intenções. Kara cruzou os braços para se proteger. Nada iria acontecer a Rurik. Ela ganhara a batalha pela vida do filho. Ele seria um bom senhor daquelas terras, alguém que cuidava de sua gente e não os abandonaria para sair em busca de glória. – Rurik é um menino saudável de 6 anos – disse Kara com cautela. Rurik era saudável, apesar de ter pulmões fracos e propensão a ficar resfriado, o último durara o inverno inteiro. – Quando posso vê-lo? – Quando voltarmos a Jaarlshiem. – Kara procurou não gaguejar. – Não quero expô-lo à vida na corte enquanto ele ainda não estiver pronto. – Por que não? Eu me lembro de ter vindo com meu pai a Sand quando tinha a idade de Rurik. Senti como se as portas de um novo mundo tivessem se aberto para mim. – Sand está sempre sofrendo com uma doença ou outra. – E você evitou. – Ele está mais seguro em Jaarlshiem e continuará lá. – Mais segurança? – indagou Ash, incrédulo. – Acidentes e doenças acontecem em todos os lugares. – Se quer vê-lo, vá a Jaarlshiem. – É isso que pretendo fazer. Se quiser me acompanhar, ótimo, mas se preferir pode ficar com seu amante. – Não tenho amante! – exclamou ela, chocada por ele cogitar algo do gênero. Ash abriu um sorriso largo e triunfante. – É bom saber. Ela apertou o fuso de novo, com vontade de atirá-lo nele.

– Eu estava prestes a me casar com Valdar. Você deve saber bem a diferença entre uma noiva e uma amante. – Ah, que pena que estraguei a festa, não é? – indagou ele, cínico. – Peço desculpas, mas minha reivindicação era mais importante. O que é meu permanece comigo. Deixe que Valdar encontre sua própria noiva… e filho. – Rurik também é meu filho. – Rurik se tornará um homem que deixará qualquer pai orgulhoso e não ficará pendurado na barra da sua saia. Kara começou a jogar o fuso de uma das mãos para a outra. Havia enfrentado Hring sobre o treinamento de Rurik, e se fosse preciso faria o mesmo com Ash. Ela precisava de um homem em quem pudesse confiar para treinar Rurik adequadamente, em vez de abandoná-lo ou forçá-lo cedo demais. – Temos um acordo, Ash. Você concordou em me dar um tempo. Ash bateu com o punho na mão aberta. – O acordo foi feito com bases falsas. Você devia ter me falado do meu filho antes. Por que não disse nada, Kara? Tinha medo que eu fizesse alguma coisa? Kara manteve a cabeça erguida e se concentrou num ponto na parede atrás do ombro dele. O homem que estava à sua frente era um estranho, um guerreiro sem gentilezas. O menino cuidadoso, que fora seu herói e que a salvara de cair em águas geladas não existia mais… se é que um dia existira de verdade além de na sua imaginação. – Eu acabei de contar. – O que achou que eu faria com você? – perguntou ele, contraindo o maxilar. – O acordo ainda está de pé? – sussurrou ela, não conseguindo falar mais alto. – Por favor, Ash. Você tem uma dívida de vida comigo. O silêncio pesou entre os dois. Kara pressionou as mãos e focou a atenção nas brasas quase apagadas na lareira. Ele tinha de concordar. – Como eu disse, o acordo foi feito sob falsos pretextos e foi uma barganha ruim, mas dei minha palavra. Cada palavra parecia mais uma pedra no relacionamento dos dois. – Você terá seu tempo para decidir sobre o nosso casamento. Mas meu filho é meu sangue. Não vou desistir do meu sangue nem mesmo por você. – Não sabe nada sobre ele. – Mas eu aprenderei. Vou aprender tudo. – Ele bateu as mãos fechadas uma contra a outra. – Parto amanhã de manhã para Jaarlsheim. Todo o resto pode esperar. Vou reivindicar meu sangue. Kara encarou-o sem se importar em esconder a surpresa. Ele queria conhecer Rurik. O que acharia do filho? Daquele garoto de pernas longas e finas e um sorriso lateral? E quando soubesse que ele não conseguia arremessar uma lança ou correr rápido? Ela mordiscou o lábio, receosa. Queria que Ash amasse e se orgulhasse do filho e não vê-lo como um fracote que deveria ter sido morto ao nascer, conforme proclamara Harald Haraldson no funeral. – Você pretende sair pela manhã? Mas talvez o rei e o conselho… – As palavras se esvaíram quando ele a encarou, incrédulo.

– O rei entenderá. Um homem tem o direito de ver o seu filho pela primeira vez. Tem coisas que superam a política. – E a investigação? – Terá de ser adiada. – Ash pousou a mão no ombro dela. – Meu tio não tem voz ativa nessa questão. Ele está tentando fazer barulho. O rei sabe de quem sou filho e o débito que tem com meu pai. – Mas e se o rei discordar? – Então ele não merece ser chamado de rei. – Ele girou sobre os calcanhares. – Parto pela manhã depois de jurar minha lealdade a um homem honrado. Conheço tão bem o caminho até Jaarlshiem que poderia voltar de olhos fechados. – E quanto a mim? – indagou Kara com as mãos nos quadris. Ela queria estar presente quando Ash encontrasse Rurik para garantir que ele visse o potencial do filho e não apenas seus defeitos. – A escolha é sua, mas terá de ir sozinha. – O olhar dele perambulou vagarosamente do topo da cabeça dela até a barra do vestido. – Valdar não é bem-vindo. Quero me encontrar com meu filho sem interferência externa. Kara engoliu em seco. Ela nem havia pensado em convidar Valdar para acompanhá-la, pensando nas complicações. Já o magoara e não teria coragem de usá-lo. – Duvido que ele queira ir. Tem obrigações na corte que vem antes de tudo. Ash deu um passo à frente e pegou uma mecha de cabelo dela, deixando correr os dedos antes de soltá-la. Ela avançou um passo. – Você sempre subestimou seu charme. – Nossas memórias diferem. – A voz dela saiu meio ofegante. Na verdade, estava muito insegura. Mesmo assim, respirou fundo e continuou: – Quero dizer, eu faço ideia sobre meu charme, já que meu rosto e corpo não são minhas melhores qualidades. Minha maior fortuna são as árvores e a terra que fizeram parte do meu dote. – Perdoe-me, mas discordo. Ash abaixou a cabeça e roçou a boca nos lábios dela. O carinho teve a leveza de uma pluma, mas uma força que a fez estremecer inteira. Foi como se ele estivesse pedindo um beijo e não exigindo. Por uma breve fração de segundo ela se apoiou nos músculos fortes daquele tórax largo. Ele deixou os braços caírem ao longo do corpo, soltando-a. – Está vendo, Kara. Você ainda é a mesma, diverte-se em provocar. O susto foi tanto que ela se desequilibrou e apoiou-se na mesa, preocupada em não demonstrar o que havia sentido. Era melhor que se mostrasse indiferente. Assim espalmou a mão sobre a madeira, recuperou o controle e ergueu o queixo. – Um beijo não muda nada, Ash. – Você está errada, Kara. Um beijo muda tudo. – Ash segurou o queixo dela com o dedo indicador e o polegar. Kara suspirou, disfarçando a ansiedade por ser beijada de novo. Será que ele tentaria novamente? Mas dessa vez com mais volúpia? – Tire a mão de mim. Ash obedeceu à ordem no mesmo instante. Ela passou as costas das mãos sobre a boca como se

assim apagasse a faísca do desejo que havia lhe percorrido o corpo inteiro. Seria a melhor conduta a seguir, pelo menos enquanto decidia se ele era mesmo o tipo certo de homem para ela. Dessa vez, ouviria a voz da razão em vez de mergulhar às cegas no mar turbulento da paixão. – Não gostaria que você se encontrasse com Rurik sem a minha presença. – Ela apontou para a porta. – Se sair sem mim, eu o alcançarei antes que o sol se ponha no horizonte. – Seu cavalo é ligeiro? – indagou ele, erguendo uma das sobrancelhas. Ela girou os olhos. – É rápido o suficiente. Você sabe que sei andar a cavalo. Valdar e eu tínhamos planejado voltar a Jaarlshiem depois da festa. Ele queria se certificar de que estava tudo pronto para a chegada do inverno. – Ah, que romântico. Uma lua de mel na fazenda. Você ia contar suas árvores? Ou pesaria a colheita de grãos? – Era isso que nós dois queríamos – respondeu Kara calmamente, quando sua vontade era de esmurrá-lo no tórax. Não queria pensar na pequena cabana onde ela passara a noite de núpcias com Ash e o jeito que ele chupara mel de seus dedos. – Valdar é um homem prático. – Não me esquecerei disso. – Ele tocou o rosto dela com a palma da mão. – Até amanhã de manhã. Tenha bons sonhos. Esteja pronta quando eu chamar, ou prepare-se para testar se seu cavalo é mesmo ligeiro. Assim dizendo, ele saiu, e Kara esmurrou a porta. Bons sonhos, pois sim! O infeliz iria gostar se ela sonhasse com ele. Mas era bem pouco provável. Sonhos cor-de-rosa como aqueles eram para a garotinha romântica que fora um dia, e não para a mulher na qual ela havia se tornado. ASH FIXOU o olhar no chalé fechado e silencioso em que Kara estava. Desde que a deixara, ele não dormira direito, mas usara o excesso de energia para garantir que seu plano funcionaria. Era impressionante o poder que tinha um homem determinado e um punhado de ouro. Ele inflou o peito com o ar fresco da manhã. Um passo de cada vez. O planejamento cuidadoso economizaria tempo mais tarde. Mas, pelo que soubera, Kara estava num perigo maior agora que ele voltara. Harald Haraldson parecia mesmo determinado a tomar o controle de Jaarlshiem. Ash teria de esperar o tio fazer o próximo movimento, mas imporia os seus termos. Ele manteria a promessa de proteger Kara e agora o filho também. Depois de ouvir algumas informações, entendeu que não a merecia, mas a desejava mais do que qualquer outra mulher. Depois de tê-la abandonado, teria que reconquistá-la. Se não conseguisse antes de derrotar o tio, então a deixaria livre. Mas, dessa vez, ela estaria livre para se casar com quem quisesse sem pensar no bem da propriedade ou do filho. – Que comece o jogo, tio – disse ele em voz baixa e levantando a mão. – Desta vez vou ganhar porque aprendi o que é perder. KARA ACORDOU do sono inquieto com fortes batidas na porta. Ao abrir os olhos, deparou-se com os primeiros raios de sol que se infiltravam pelas janelas da casa. Um dos criados havia acendido a lareira de novo. Ela dormira demais. Na noite anterior não conseguira dormir logo que havia ido para a cama,

mas quando pegou no sono foi difícil de acordar. – Kara! Vou derrubar esta porta se você não abrir logo. O sol já subiu há horas. Ash! Ele estava cumprindo a ameaça! Justo naquela manhã ela perdera a hora! Ela puxou um cobertor da cama e jogou em cima dos ombros, sinalizando para um dos criados ir atender. Ash não esperou e derrubou a porta. Kara ficou estarrecida com a figura máscula que surgiu. A capa curta enfatizava a cintura fina e os ombros largos dele. O capuz forrado de pelo cobria-lhe o cabelo. – Você vem ou não? – perguntou ele com um sorriso irônico. Kara não conseguiu responder num primeiro momento, atônita com a presença dele. Apertou mais a manta ao se lembrar das poucas roupas que vestia. – Você nunca se arruma cedo. – Eu mudei. E mal amanheceu – disse ela, voltando para o quarto. Em seguida, pegou as roupas de viagem e passou o vestido com avental por cima da cabeça. Blasfemou ao prender o dedo num dos broches, que caiu e rolou para longe. – Algum problema? – Meu cabelo está todo embaraçado – gritou ela, ao se abaixar para pegar o broche. – Tenho tempo para arrumá-lo? – Igual a todas as mulheres. – Ele forçou uma tossidela. – Vou sair em mais alguns minutos. Se quiser, pode me alcançar. – Isso é uma ameaça? – Kara ocupou-se em desfazer a trança do cabelo. – Não reajo muito bem a ameaças. – Meu pai já dizia que ameaças não têm valor algum, atitudes sim. Ou você vem comigo na hora em que eu for, ou volte sozinha a Jaarlshiem. Ela evitou responder à altura com uma malcriação, porém teve mais dificuldades em pentear o cabelo com as mãos trêmulas. Ainda bem que não gostava das tranças mais complexas que estavam na moda na corte. – Você sempre entra numa casa assim? – perguntou ela ao voltar para a sala principal. – Derrubando a porta da frente? Acho que é um costume viking. – A casa é minha e a porta também. Não gosto de ser barrado. – Ash fez uma mesura para a criada e colocou uma moeda de ouro sobre a mesa. – Isto é para pagar pela porta. Os criados são competentes para cuidar desta casa? Kara revirou os olhos. Como se ela tivesse criados que não fossem confiáveis! – Se você tivesse esperado um segundo a mais, não precisaria mandar consertar a porta. Ash tamborilou os dedos sobre os lábios. – Valdar não apareceu na corte esta manhã. Nem ele, nem meu tio. A falta deles ao mesmo tempo é de se desconfiar. Kara umedeceu os lábios, ignorando o comentário sobre Valdar. – Você viu o rei? – Foi a primeira coisa que fiz. O rei apoia meu pedido e me deu permissão para ir ver meu filho. Eu queria ter falado com Valdar também, caso ele sentisse vontade de se despedir. – Valdar não esperaria que eu me despedisse – retrucou Kara. – Ele aprovaria qualquer atitude que eu tomasse. Ele gosta de Rurik. Além do mais, saiba que ele nunca se aliou com seu tio, se é

isso que está insinuando. Ash fechou a expressão do rosto. – Era isso mesmo, mas você já me disse que ele é uma excelente pessoa. Kara escondeu o risinho de satisfação ao perceber que Ash estava com ciúmes, apesar de saber que ele não ligava para ela. Mas ele queria se encontrar com Rurik e aquilo era tudo o que ela pedia. Ignorando o olhar fulminante de Ash, Kara deu algumas últimas instruções, inclusive avisar a Valdar que ela estava de partida. A criada mais nova da cozinha se prontificou a ir avisá-lo imediatamente, mas Kara balançou a cabeça ao dizer que o aviso podia esperar até ela partir. – Você já terminou? – Ash bateu com as luvas na perna. – Ou pretende ensinar as criadas a tear também? – As criadas precisam saber disso também. Levo meus deveres muito a sério, mas já arrumei tudo. – Kara passou por ele e saiu para a rua. Ela levou um susto ao se deparar com a escolta, não eram apenas dois ou três homens, conforme previra, mas um batalhão de vinte homens em seus cavalos. Um friozinho correu pelas suas costas. Ash estava seguro, mas certamente esperava algum problema. Os aldeões saíram de suas casas impressionados com o número estranho de soldados. – Não há nenhuma carroça – disse ela com estranheza. – Já que você pode andar a cavalo, não precisamos de carroça. Se precisar de uma para manter sua dignidade, então terá de chamar sua própria escolta. Pretendo fazer uma viagem rápida. – Já fui até Jaarlshiem a cavalo antes. Por favor, tragam meu cavalo. – Kara rezou para agradecer às deusas por estar usando um vestido com várias camadas de tecido para que pudesse montar sem exibir as pernas. Mesmo que mostrasse um pouquinho os tornozelos, ela se recusaria a ir de carroça. Queria estar presente quando Ash e Rurik se encontrassem, pois queria se certificar de que Ash não rejeitaria o filho assim que o visse. Se isso acontecesse, Rurik ficaria arrasado. Os comentários maldosos de Hring quando disse a ela o quanto tivera sorte de Ash ter morrido, pois na certa o filho seria rejeitado, ecoaram na sua mente. Ela subiu no cavalo com extrema facilidade. – Kara! – Valdar aproximou-se, trazendo cerca de uns 15 amigos. Todos com as espadas empunhadas, prontos para uma batalha. Ao chegarem mais perto do cavalo dela, os homens se espalharam tomando praticamente a rua inteira, dando a entender que se Ash quisesse seguir viagem para Jaarlshiem, teria de passar por eles. O rufar dos cascos assustou o cavalo de Kara, mas ela o controlou para não empinar. Homens! Ela odiava aquela postura violenta desde que o pai criava brigas só para provar que era o mais forte. Um dia ele acabara perdendo uma luta e morrera por causa de um ferimento infeccionado. – Valdar. – Kara meneou a cabeça ao conseguir controlar o cavalo. – Vou voltar a Jaarlshiem. O que o traz aqui? – Milady está indo por vontade própria? – Você vai nos deixar passar, Valdar, o Abandonado! – gritou Ash, e manobrou o cavalo para postar-se bem diante de Valdar. – Não enquanto eu não souber a resposta de lady Kara. Está sendo forçada a voltar, milady?

– Claro que não! Está vendo alguma corrente? – Ash desceu do cavalo e seus homens fizeram o mesmo. Eram dois batalhões, um de frente para o outro. Qualquer palavra fora de hora acabaria em derramamento de sangue. Kara sentiu a cabeça retumbar. Bastava olhar para um lado e para outro para perceber que os homens gostavam de um confronto, mas ela não podia permitir. – Estou indo a Jaarlshiem. Ash Hringson está dizendo a verdade. Você já deveria saber que sou capaz de falar por mim mesma. – Ela lançou um olhar duro para cada um dos dois. Pelo jeito, nenhum deles tinha intenção de se desculpar. – Deixe-nos passar. Da próxima vez, Ash permitirá que eu responda por mim. Valdar levantou o braço e os homens abriram um espaço no semicírculo. – Se é essa sua vontade, milady, obedeço sem titubear. Eu… quero dizer, nós… estamos aqui para servi-la. Kara ajeitou melhor a capa nos ombros, desejando ter merecido tamanha lealdade. – É sim. Valdar ficou sem jeito. – E não precisa de ajuda, mas se precisar pode mandar chamar a qualquer hora. – Confio minha segurança ao meu marido e até meu conforto. Ele tem homens suficientes. Acho que está acostumado a viajar em Viken, por isso precisa de uma escolta assim, e não em Raumerike. As estradas daqui são bem mais calmas. Kara relanceou o olhar para Ash, que continuava com a expressão fechada, e sentiu o coração retumbar. Ela dissera a verdade. Do jeito dele, Ash sempre tomara conta dela… quando estava presente, claro. Valdar meneou a cabeça, aceitando o que ela dissera. – Hringson, serei bem-vindo em Jaarlshiem? – Não tenho nada contra você, Valdar. Nunca tive – respondeu Ash. – Não tenho problemas com ninguém. Estou apenas reivindicando o que é meu por lei. O rei me entende. Você teria ouvido isso se estivesse na corte esta manhã. – Acredito nas suas palavras. Eu não fui porque tive de tratar de outros assuntos. – Valdar corou ligeiramente, e Kara imaginou aonde ele teria ido, pois nunca perdia uma reunião com o rei, quando este estava em Sand. Kara deu uma tossidela, e seu cavalo deu alguns passos à frente. – Acho melhor irmos andando antes que aconteça mais alguma coisa. – Milady espera mais problemas? – Ash montou no cavalo sem esforço. – Você tem necessidade de fazer cena, não é, Ash? – indagou ela. – Não há razão para tanto. E também não vejo necessidade de uma escolta tão grande para nos acompanhar, a não ser por extravagância sua. Parece que estamos saindo para a guerra e não voltando para Jaarlshiem para visitar nosso filho. – Não é extravagância, mas cautela. O que é meu permanece comigo. – Um músculo saltou na lateral do maxilar de Ash. – Creio que Valdar, o Forte, e todos os outros entenderam assim. Kara sentiu a boca seca.

– Isso inclui as pessoas também? – Cuido das pessoas próximas a mim. Kara endireitou as costas e bateu com os calcanhares nos flancos do cavalo. – Eu nunca fui sua, Ash. Sete longos anos se passaram.

Capítulo 6

Kara nunca foi minha.

AS PALAVRAS dela reverberavam na cabeça dele a cada passada do cavalo. Houve uma época em que não tinha dúvidas que ela lhe pertencia. Kara sempre esteve ao seu lado, sorrindo e idolatrando seu herói, mas ele não soube apreciá-la, nem ao seu potencial. Aquela viagem significava mais do que encontrar o filho, mas também era para proteger Kara, mesmo sabendo que ela dizia não precisar. A cada encontro, a força e a lucidez dela o impressionavam mais e mais. Talvez ela tivesse achado que Valdar fosse o homem certo, mas não era; Ash tinha essa certeza no coração. Tudo o que ele almejava agora era uma chance para poder provar que podia ser o marido com quem ela sonhara durante todos aqueles anos… um guerreiro corajoso e valente… um verdadeiro herói. Ash afastou aqueles pensamentos circulares e se concentrou na estrada à frente. O crepúsculo sombreava o caminho que levava a Jaarlshiem. O ar frio do inverno soprou na caravana trazendo uma garoa de gelar os ossos. – Tio, você estava ouvindo e observando? Entendeu que meu recado era para você também? – murmurou Ash. – Quando pretende dar o próximo passo? Durante esta viagem ou contra meu navio que segue vagarosamente para Jaarlshiem? Ou será que vai agir como uma aranha, sentando e esperando que eu cometa o primeiro erro? Não cometo mais erros. Você passou a ser a presa. Ao olhar para trás, viu que Kara balançava a cabeça dormindo. De vez em quando acordava e incitava o cavalo a andar mais rápido, mas no minuto seguinte estava de olhos fechados de novo.

– Estou bem. Continue a viagem – disse ela baixinho. – Eu falei alguma coisa? Ash perscrutou ao redor para descobrir onde estavam e sorriu, aliviando a tensão que lhe pesava nos ombros. Os deuses estavam ao seu lado naquele dia. Se fosse mais novo, jamais teria notado que Kara estava exausta. Os deuses estão do lado de quem percebe pequenos detalhes. Lição essa que ele havia aprendido na lama durante sua primeira vitória, seis meses após ter escapado da masmorra. Depois disso ele passou a ser respeitado pelos outros homens. A lição valia até hoje. – Vamos parar para passar a noite. – Ash parou o cavalo quando a chuva se intensificou. – Existe um chalé de um lenhador numa clareira perto daqui. Eu já fiquei lá há alguns anos. Precisamos de abrigo numa noite assim. Ninguém ousará nos recusar. Eu trago a runa do rei, que nos garante segurança. Kara esfregou os olhos com as costas das mãos. – Estou preparada para continuar. Se viajarmos durante a noite, chegaremos à fronteira de Jaarlshiem. – Estou vendo que acordou, milady. Esta é uma novidade digna de uma comemoração. – Se for a ocasião – respondeu ela, fulminando-o com o olhar. Ele se ajeitou melhor na sela desconfortável. Talvez a escolha de palavras que fizera antes não tivesse sido muito sutil, pois a intenção era que Valdar levasse o recado para Harald Haraldson. Se tivesse permitido que Kara ficasse, havia uma grande chance de ela ser feita de refém, e isso ele não poderia deixar acontecer. – Algum problema, Kara? Não estou preparado para joguinhos de adivinhação. – Será que ainda não ficou claro que não sou objeto de nenhum homem? Você não precisa fazer concessões comigo. Em vez de responder de imediato, Ash preferiu sorrir. – Nós conseguimos sair de Sand sem sermos perturbados. – Por que alguém iria querer parar você? Por acaso está escondendo alguma coisa de mim? Um pingo de chuva correu pelo rosto dela, reluzindo à pouca luz do fim do dia, como se fosse uma lágrima, acentuando as olheiras. – Quando foi a última vez que você dormiu direito? – Pois eu faço a mesma pergunta! Leva tempo para organizar uma viagem destas. – Não tanto tempo quanto você imagina. Estou acostumado a dormir pouco. Quando se vende serviços, é preciso estar preparado para chegar à batalha na hora. – Você vai a uma batalha? Pensei que estivesse indo para casa. – Alguma vez já viajou durante toda a noite? – perguntou ele em resposta. Para Ash, voltar para casa era enfrentar seus demônios, mas ela não gostaria de saber sobre seus sofrimentos. – Você parece estar dormindo em pé. Kara empertigou-se na sela e puxou o capuz da capa para lhe cobrir o rosto. – Meu cavalo e eu estamos preparados para viajar muitos quilômetros ainda. – Não duvido, mas eu preciso descansar. Este lugar é um bom campo para uma batalha. Aprendi a acampar onde se conhece bem o lugar – disse ele, puxando as rédeas do cavalo. – O chalé está

localizado num bom solo. – Quem iria atacar aqui em Raumerike? – Quero estar preparado para o inesperado – respondeu ele. Entretanto, talvez ele estivesse errado e Kara certa. Harald Haraldson podia usar a lei em vez de enfrentá-lo numa batalha, mas ele duvidava. Na realidade, Ash estava lutando havia tanto tempo que reconhecera o olhar bélico do tio antes de ele ter saído do templo impetuosamente. – Hoje eu quero descansar e espero que consiga. – Se não tivéssemos saído tão cedo, você não estaria tão cansado. – Amanhã vou conhecer meu filho. Pretendo estar bem e não semimorto. Quando Kara tirou o capuz, ele vislumbrou aqueles olhos expressivos. – Você está decidido mesmo a parar? Ou está sendo gentil por me achar frágil. – E por que eu a consideraria fraca? – Você costumava ficar impaciente quando eu não conseguia acompanhá-lo. Até mesmo na noite de núpcias. Precisei implorar para que parasse. – Naquela época eu era mais jovem. – Seguindo um instinto, Ash passou a mão sobre uma perna ferida, que havia inchado com tantas horas de cavalgada. – Quando se envelhece, a gente aprende a respeitar os limites do corpo. Aprendi também o valor de conservar energia até a batalha começar. – Você pretende lutar contra nosso filho? – Difícil… a não ser que ele queira lutar comigo. Os filhos têm o hábito de desafiar os pais. Ash esperou por um sorriso em resposta, mas ela baixou o olhar e soltou as rédeas. – Você nunca lutou contra seu pai – murmurou ela, meneando a cabeça. – Rurik sonha em ser um guerreiro. Seu pai o encorajou. Ash desmontou do cavalo. Seu pai. Ele bem se lembrava o tipo de encorajamento. Hring sempre dizia que ele não estava pronto para lutar e que jamais seria um verdadeiro cavaleiro. – Vamos descer. Pare de protestar. Quando foi a última vez que você dormiu direito? Ash segurou-a pela cintura e a tirou do cavalo. Kara era bem mais leve do que ele imaginava, mas a força interior dela era perceptível. – Sei descer do cavalo sozinha. – Kara empurrou-o para trás. – Tente planejar um casamento que acaba sendo interrompido e gerenciar uma grande propriedade. Mal dá tempo para respirar, o que dirá dormir. Ash não a soltou de imediato, para poder se embriagar um pouco mais do perfume floral suave. A fragrância despertou lembranças. Nenhuma outra mulher tinha o perfume de Kara. Um dos grandes erros que cometera tinha sido deixá-la da maneira que fizera. Tomara que não estivesse cometendo outro erro ao voltar e virar a vida dela de ponta-cabeça. Mas agora era tarde, já estava ali e tentaria agir certo. – Você sempre foi independente assim? – indagou ele, encostando o rosto no cabelo dela, construindo uma nova memória. – Que eu me lembre, você sempre concordava com as minhas sugestões, por mais estranhas que parecessem. – Aprendi o valor da independência e a usar minha inteligência. – Ela se movimentou bruscamente e ele a colocou no chão. – Isso significa que a única pessoa que pode culpar é você mesmo.

– A única coisa que precisa fazer hoje é dormir. Isso é uma ordem. E lá. Dormir sem que ninguém a atrapalhe e ciente de que está segurança. Ela balançou a cabeça. – Ainda há muito o que fazer antes de me deitar. Para começar, os homens precisam comer. Alguém precisa se certificar de que os cavalos estão num lugar seguro e alimentados. Precisamos de uma fogueira para cozinhar. – Meus homens podem se cuidar sozinhos. É assim que funciona. – Ele levantou o capuz dela. – Não beneficiará a ninguém ficando acordada, mesmo porque está mais morta do que viva. É assim que os acidentes acontecem, Kara. A última coisa que precisamos é você se ferir. – Tem um talento especial para fazer com que uma mulher se sinta especial – comentou ela, estalando a língua. Ash correu os olhos pelo cabelo macio e a pele suave. Apesar de cansada, ela continuava linda. No entanto, era melhor se controlar para não a abraçar e cobrir de beijos. Naquele momento era preferível a paciência do que a força. Ele tinha de se mostrar merecedor. – Tive a impressão de que você queria saber da verdade nua e crua. Devo elogiá-la, então? – É preferível a verdade do que elogios que já deve ter feito a centenas de outras mulheres. Ash ignorou a parte das “centenas de outras mulheres”. Desde que a vira, ele não se lembrava mais de outras mulheres. Não tivera nenhuma enquanto estivera fora a fim de manter o foco em seus objetivos. – Terei isso em mente daqui em diante, mas não reclame se a verdade não for o que você quer ouvir. – Tem certeza que seus homens sabem como montar um acampamento decente? Eles parecem um pouco desesperados. Ash observou seus homens… eram um bando de homens não muito agradáveis de se ver, mas bons lutadores para se ter ao lado. – São guerreiros que contratei. Se não fossem bons de serviço, não os teria comigo. – Mas são tantos… – É por segurança. Com o passar dos anos, Ash havia aprendido que quanto mais homens, melhor. No caminho para Sand, ele planejara fazer as pazes com seu rei e com o pai antes de viajar para o leste em busca de novas rotas de comércio. O dinheiro que pretendera ganhar teria sido o suficiente para comprar outra propriedade, já que ele se recusava a morar sob o mesmo teto do pai. Mas nada acontecera conforme o planejado. E com as ameaças de Harald Haraldson, era melhor mesmo que tivesse vários guerreiros para manter Kara e Rurik a salvo, caso lhe acontecesse alguma coisa. Ele havia incumbido seu melhor remador e outro homem habilidoso de trazerem o barco rio acima. Naquele momento, ficaria claro a posição do tio. Ele teria de escolher se caçaria a caravana ou se iria atrás do navio. A partida de Sand havia transcorrido normalmente. Ash desconfiava quando tudo dava certo. Não demoraria para que o tio mostrasse as garras. Logo. – Guerreiros vikings? – Kara colocou a mão sobre a boca. – O rei aprovou? – São homens sem pátria, mas com braço forte e ansiosos para lutar. Eu sei bem o que é ficar sem

país e já lutamos juntos antes. Ash queria que ela entendesse a razão pela qual ele se recusara a deixar os homens e por que precisava deles agora. Tomara que isso não fosse motivo para Kara não permitir sua entrada em Jaarlshiem. Ele iria reivindicar o filho e manteria sua herança. Além disso, pretendia mostrar a Kara que ainda era o herói com o qual ela sonhara. – Mercenários. – Kara torceu a boca. – Você acha que nosso filho estará em segurança na presença deles? – Fala em mercenários como se fosse um palavrão. Acho melhor ser honesto sobre as razões que os levam a lutar por um lado em particular. A moeda é um motivador maravilhoso. Bem melhor do que a glória. Ash olhou por cima do ombro dela na direção do chalé. A porta estava aberta, mas não havia ninguém ali. Estava tudo em silêncio. Ele forçou a relaxar os ombros. Uma emboscada não viria do chalé. – É possível confiar num mercenário? – Eu mesmo fui um mercenário até pouco tempo atrás – disse ele de repente. – Acho que esse tipo de homem é pragmático. É preciso ter muito mais cuidado com aqueles que fingem lutar por grandes ideais e princípios. Guerreiros que lutam por dinheiro sabem bem o que enche uma barriga vazia. Eles também têm discernimento para saber a hora de parar. Não quero nenhum selvagem sob o meu comando porque é difícil de controlá-los. Aprendi isso na carne. Kara perdeu o sono de uma hora para a outra e fitou os olhos de cada um daqueles homens. Pareciam muito mais duros e desesperados do que achara na primeira vez. Eles mal se importavam com ameaças e cicatrizes. Mas e Ash? Será que ainda era um mercenário impiedoso? Ou será que o garoto gentil que ela conhecera continuava a habitar aquela armadura de músculos fortes? Como agiria quando encontrasse Rurik? O menino precisava de gentilezas e mão firme, em vez de socos e sermões. Ela fechou as mãos em punhos. Uma pessoa usava mercenários implacáveis para saques e conquistas. Mais cedo ouvira alguns deles reclamarem que sentiam falta do mar e que mal conseguiam esperar para voltar ao navio. Prova evidente de que Ash pretendia voltar à pirataria em vez de ficar na fazenda. Sofreria da mesma mágoa ao ver o amor partir. Ash já havia partido seu coração uma vez, e ela não lhe daria a chance de fazer o mesmo. Queria alguém que dividisse a responsabilidade de governar uma propriedade, e não aumentar o fardo. – Mas a lealdade de um mercenário dura enquanto ele tiver ouro no poço – sussurrou ela. – Contratar um mercenário só garante uma lealdade temporária. – Na verdade, ninguém compra um guerreiro. Geralmente os guerreiros lutam porque querem lutar por um líder em particular. Meus homens confiam em mim porque fui treinado num campo de batalha, pago um salário honesto e escolho as brigas que vou entrar. – E alguns não. – Ah, raramente acontece duas vezes. – Ash contraiu os músculos do rosto, como se tivesse vestido uma máscara de rocha. – Covardes e traidores costumam terminar o dia com um punhal fincado nas costas, isto é, se tiverem sorte. Caso contrário, acabam morrendo depois de longas torturas. Não tolero esse tipo de homem. A morte é boa demais para tipos assim.

Kara sentiu um friozinho na espinha. Pelo que ele havia acabado de dizer, provavelmente encontrara homens covardes. Será que Ash tinha sido alguém que precisara cravar uma adaga nas costas de um traidor para comprar sua liberdade? Será que ela queria mesmo saber quantos ele já assassinara? A mãe dela costumava dizer que o motivo pelo qual o pai dela mudara fora porque se perdera a cada vida que tirara. Kara não tinha certeza se isso era verdade ou não, mas o Ash que estava diante dela era bem diferente daquele que partira. Será que ele também havia ficado vazio assim como seu pai nos últimos anos de vida? – Você participou de muitas batalhas? – quis saber ela, afastando o pensamento. – Enfrentei o suficiente para saber que, se pudesse escolher, não lutaria de novo. Ultimamente só entro numa batalha se não tiver outro jeito. Por sorte, minha reputação é tamanha que muito poucos ousam cruzar meu caminho. – Ele fez uma reverência. – Meus dias de lutar para outra pessoa terminaram. – O que você quer? – perguntou ela, levando a mão ao pescoço. – Esta noite não preciso de muito… o calor do fogo e comida na barriga. Amanhã será outro dia. – Onde foram as batalhas que lutou? – perguntou Kara com cautela. – Você matou muitos homens? – Foram 21 batalhas de peso, milady – respondeu um dos homens de Ash. – As pequenas desavenças não valem o suor dos nossos rostos. Dizem que seu senhor tem mais de trinta vitórias. Foi isso que ouvi quando vim trabalhar para ele. Dizem também que é o mais sortudo de todos. – Quem lhe disse isso? – Seu marido, logo depois de matar um ladrão que tentou levar minha bolsa. Kara percebeu o coração disparar. – Eu não me surpreendo. Ash sempre gostou de bancar o herói. – Não é à toa, milady. Ele é um herói de verdade. A água do mar corre nas veias dele. A maneira como manuseia um navio e os ataques… beira a perfeição. Ele vive para lutar. – Obrigado, Saxi. – Ash meneou a cabeça agradecendo, mas parecia que o rosto ainda vestia a máscara de rocha impenetrável, que a remetia a Hring num de seus ataques. – É bom saber que meus homens me têm na mais alta estima. – Você é igual ao seu pai. – Ora, sou filho dele. – Você foi um herói? Costumava aclamar que conseguiria reverter o curso de uma batalha a seu favor. Foi assim mesmo? Ele a fitou com os olhos azuis reluzindo. – As promessas de um jovem não valem a saliva que gasta para proferi-las. Odin colhe os mais corajosos da batalha. Eu voltei para casa. Isso deve responder à sua pergunta. Uma coruja piou de uma árvore próxima e outras a seguiram. Os homens colocaram as mãos nos punhais das espadas no mesmo instante. Kara franziu o cenho. Seria uma reação natural de um mercenário ou havia algum perigo iminente? – As corujas castanho-amareladas piam para chamar os parceiros – comentou ela na intenção de dispersar a tensão. – Esse é o verdadeiro som do outono e não um chamado de guerra. Ash gesticulou impaciente na direção do chalé.

– Você anda até lá ou quer que eu a carregue? – E os seus homens? Onde irão dormir? O chalé não dá para todos. – Estão acostumados a dormir no chão úmido. A chuva passou. Não temos inimigos por aqui. Não há razão para dormirem no chalé. Mas não se preocupe, colocarei sentinelas. Os homens concordaram com Ash. – Não houve nenhum ataque de bandidos ultimamente. O rei mantém a paz. – Você me ouviu dizer que estava preocupado com isso? – retrucou Ash. – É sempre importante tomar algumas precauções. Agora, vá dormir, senão esta viagem vai levar mais dias do que deveria. Toda vez que você cai do cavalo, nós paramos. A expressão de indulgência de Ash a irritou profundamente. Será que ele tinha algum plano alternativo? O que é meu permanece comigo. Ela ficou pensando se a havia incluído. Ele a seduziria com os homens acampados do lado de fora do chalé? Será que queria garantir que permaneceriam casados? Kara sentiu um calor traidor percorrer seu corpo ao lembrar como era aninhar-se nos braços de Ash e sentiu a boca quente sobre a sua. Chegou a balançar a cabeça para afastar o pensamento. Fazer amor com Ash só traria mais problemas. E ela estava decidida a não perder a cabeça por amor novamente. Não se permitiria voltar à garota romântica que acreditava em heróis que não existiam. Culpou-se por não ter trazido seus homens, ou pelo menos uma acompanhante feminina. – E você? Onde pretende dormir? – indagou ela, procurando alguma pista das intenções dele. – Dormirei ao relento com meus homens – disse ele, mas uma covinha matreira apareceu do lado da boca dele. – A não ser que tenha uma ideia melhor… Estou esperando o convite, milady. Se a ideia não for ruim, diga logo, assim evitaremos passar uma noite fria e solitária. – Vou dormir sozinha. – Fica para outra vez, então. – Ash passou a mão no queixo. – Eu já dei minha palavra e ela deve bastar. Kara sentiu o rosto pegar fogo. Ele tinha entendido o que ela estava pensando. Para disfarçar, ajeitou melhor o vestido. – Você costumava apreciar confortos mundanos. Fico surpresa por tê-los abandonado tão rápido. – Ter um telhado sobre a cabeça, a barriga cheia e uma roupa decente… – Os cantos dos lábios dele se curvaram para cima. – É verdade, isso tudo são luxos e não necessidades. Passei sem isso nos últimos anos e sobrevivi. Hoje não há de ser diferente, a não ser que alguém fique com pena de mim. Kara colocou as mãos na cintura. Aquele Ash brincalhão ela conseguia driblar. Mas aquele outro, que contara sobre a vida de um mercenário, era um estranho. – Por que prefere fazer graça quando eu estava apenas curiosa para saber por que tinha se abdicado de conforto básico. Eu merecia mais do que isso. Ash tamborilou os dedos sobre os lábios. – Curiosa… Bem, já é um começo. – Um começo? – Kara piscou várias vezes seguidas. – As pessoas só ficam curiosas com aquilo que lhes interessa. – Ele espalmou a mão no peito e

abaixou a cabeça. – Já é uma migalha de conforto de minha senhora no chão frio que deitarei. Kara sentiu o coração se inflar ao ser chamada de “minha senhora”, remetendo-a a uma lembrança de tempos atrás. – Conheço seus truques faz tempo. Agora sou a minha própria senhora. – Ficará sozinha até mudar de ideia. – Ele fez uma mesura e seus olhos brilharam mesmo no escuro. – Estarei aqui quando você acordar, mesmo que durma até o meio-dia. Kara inclinou a cabeça, estranhando. – Quer dizer que sua atitude de hoje cedo foi apenas uma demonstração? Precisávamos mesmo sair como as Valquírias em disparada? O que foi aquilo? Um show para mostrar a Valdar que você estava no comando? – Gosto de saber quem são meus inimigos e como reagem. – Você os conhece? – Agora sim. Kara caminhou com toda dignidade que conseguiu até a cabana. Ao entrar, sentiu uma pontada no coração ao perceber que o novo Ash era tão perigoso para seu coração quanto o antigo. Ash usou uma pederneira para produzir uma faísca e colocar fogo num feixe de gravetos, que ergueu acima da cabeça. A luz iluminou um pouco o interior da cabana. – O teto parece firme o suficiente para conter a umidade da noite. E não creio que haja animais selvagens morando ali. – Ele apontou para uma pilha de folhas num canto. – Lamento não poder providenciar uma cama melhor, mas é melhor dormir ali do que numa sela com o risco de cair e se machucar. – Você não precisa fazer concessões para mim. Ash riu alto. – Fica linda quando está brava. Tão forte e cheia de paixão. Mas prefiro que minha mulher descanse. – Pare de tentar mudar o assunto. – Kara concentrou-se na cama improvisada. – Não pertenço a você. Nunca fui sua. Estamos casados, mas não sou uma escrava à sua mercê. Ash estreitou a distância que os separava e pousou as mãos sobre o ombro dela. – Lamento muito pelo garoto que fui. Eu devia ter esperado até a primavera para partir. Errei e paguei caro por isso. O coração de Kara se derreteu. Apesar da penumbra, o brilho dos olhos dele a envolvia numa névoa translúcida. Se agisse por impulso, encostaria a cabeça no ombro dele e sorveria sua força. No entanto, havia pelo menos uma centena de razões para se conter. Ainda assim, ela foi invadida por uma série de memórias. Lembrou-se das vezes em que Ash fora gentil e que ela havia esquecido deliberadamente. Seria melhor que aquelas doces recordações continuassem no passado. Afinal, estava decidida a não voltar a ser a menininha que esperava que seu herói resolvesse todos os seus problemas. Ela não precisava de heróis, mas sim de alguém que pelo menos fizesse sua parte. – Isso tudo pertence ao passado. – É aí que está o problema. Pode mentir para si mesma, mas não espere que eu acredite. Sempre soube quando você está mentindo, Kara. Ela se lembrou de quando acenou em despedida anos atrás.

– Nem sempre. – Eu voltei, Kara. Pretendo mostrar que posso ser o marido certo para você. Usando o restinho de energia, ela virou a cabeça. – Quanto mais cedo eu dormir, mais cedo sairemos deste lugar. Ele a soltou e Kara saiu cambaleante na direção da pilha de folhas que ele arrumara. Não era grande coisa, mas seria bem melhor dormir ali do que no chão sem nada. A consideração delicada mostrou que ele havia mudado. O antigo Ash esperaria que ela dormisse no chão. Talvez Hring tivesse exagerado ao descrever os defeitos de Ash. Talvez ela estivesse errada. – Uma bravata não ajuda ninguém. – Ele deu uma tossidela. – E se eu achar que estamos indo rápido demais, diminuiremos o passo. Fui claro? – Não sou feita de cristal frágil. Posso cavalgar mais rápido. Estou ansiosa para ver meu filho logo. Rurik é a luz da minha vida. – Diga-me quando quiser parar. É uma pena que adivinhar pensamentos dos outros não é um dos meus talentos. Mas tenho certeza de que nosso filho quer que a mãe chegue em casa em segurança. Nós dois sabemos o que é perder a mãe num acidente. – Vou me lembrar de avisar – disse ela, coçando os olhos. Ela havia esquecido que a mãe de Ash morrera num acidente na viagem de volta a Jaarlshiem, talvez porque estivesse exausta. – Quero dormir, Ash. Estava certo ao insistir para pararmos. Sinto muito se pareci uma ingrata, mas eu detesto admitir uma fraqueza. – Mais um progresso… Você está concordando com minhas atitudes. – Ash parou antes de chegar à porta e disse: – Quer que eu traga algo para comer? Ou prefere jantar com meus homens? Não será muito elegante, mas dá para matar a fome. Kara respondeu na mesma hora, balançando a cabeça. Ela se sentiu enjoada só em pensar em comer. Além do mais, seria o máximo da tolice dividir um jantar romântico com Ash, principalmente por estar com as defesas tão baixas. Se concordasse estaria a um passo para obedecer à vozinha de seu inconsciente que não parava de assoprar que ela queria dormir abraçada e que Ash era o homem certo para tanto. Se quisesse manter o mínimo de respeito era melhor ficar a pelo menos um braço de distância dele. Afinal, estava interessada em um homem e não numa lembrança. Queria alguém com quem pudesse compartilhar sua vida. Se bem que o que ela mais desejava naquele momento era dormir um sono profundo e, se possível, não sonhar, assim acordaria refeita e pronta para retomar a viagem para Jaarlshiem sem atrasar o comboio. Em casa seria bem mais fácil ficar longe de Ash. A última coisa que queria era manter controle sobre o próprio corpo. – Preciso mais de um bom sono do que de comida. Prometo que comerei amanhã antes de sairmos. – Tenha bons sonhos – desejou ele, meneando a cabeça. – Não costumo sonhar. Ash deu um beijo rápido na testa dela. – Posso ter esperanças. Assim dizendo, ele saiu da cabana.

Kara uniu as mãos. Tinha sido fácil ficar brava com Ash quando achava que ele estava morto. Até o dia anterior, quando ele voltou, ela ainda conseguia se manter indiferente. Mas, quando era gentil e carinhoso como havia acabado de ser, as memórias boas voltavam e ela mal conseguia respirar. No passado, ele havia sido o ídolo dela, mas tirou vantagem disso, usando-a para concretizar seus sonhos. O coração dela estilhaçara em milhões de cacos quando Hring lhe contou como Ash a traíra. Ela ainda ouvia os risos das mulheres conforme ele contava uma por uma as artes que o filho tinha feito ou dito a elas. E sempre olhando com o canto do olho para Kara, esperando triunfante que ela desistisse de seu filho. Enquanto segurava Rurik no colo, ela jurava que jamais esqueceria aquelas palavras para não passar por boba de novo. Naquela época ouvira o coração, e agora teria de ouvir a cabeça. – Eu desisti de todos os sonhos com você há anos. ASH CHEGOU bem perto dela e provocou-a roçando os lábios nos dela. Kara sabia que só podia estar sonhando. Ele continuou a brincadeira delineando os lábios dela com a ponta da língua, subiu para os olhos, atravessou a bochecha até chegar ao pescoço. Kara tinha a sensação de estar confortável e aquecida. Durante muito tempo ela havia ficado sozinha e lutando. Ash desceu as mãos pelas costas dela, aproximando os corpos antes de continuar a beijá-la com paixão. Eram beijos doces, preguiçosos, mas que despertavam cada parte do corpo dela. Totalmente entregue e umedecida, ela o enlaçou pelo pescoço e correspondeu aos beijos, abrindo a boca e permitindo que seus sabores se misturassem para deleite de ambos. Os lábios dele trilharam até o lóbulo da orelha dela para mordiscá-los e sugá-los. O corpo dela ardia de desejo a cada nova investida. Ela chegou a gemer quando a mão dele em concha tomou-lhe o seio, brincando e apertando o mamilo. – Você estava esperando por mim? – perguntou ele ao ouvido dela. – Sentiu saudades de mim? Está pronta para me receber? Kara abraçou-o com mais força, serpenteando contra o corpo dele, sedenta. Fazia tempo que ansiava por isso, queria fundir seu corpo ao dele com urgência. – Nunca mais me deixe, Ash – sussurrou ela, sem afastar a boca dos lábios dele. – Fique. Prometa que vai ficar comigo desta vez. Mas a imagem dele começou a se dissipar na escuridão quando ela mais precisava. Deixando-a sozinha e cheia de desejo.

Capítulo 7

KARA ACORDOU de supetão com o corpo latejando e coberto de suor por causa do sonho. Tinha sido tão real… Fazia muito tempo que não sonhava. Anos antes costumava ter sonhos eróticos com Ash, mas parou quando Rurik nasceu, depois que Hring dissera a razão pela qual Ash havia se casado e o que realmente sentia por ela. Sim, sentia-se muito atraída por ele, mas atração não era suficiente. Não dessa vez. Havia crescido e compreendido que um casamento era bem mais do que fazer amor à noite. Sete anos antes ela criara todo tipo de desculpas para o comportamento dele, esforçando-se para acreditar que era amada e que as palavras bonitas tinham um significado maior e verdadeiro. Depois do nascimento de Rurik, Hring trouxera à presença dela todas as mulheres que Ash havia desprezado. Elas confirmaram as palavras de Hring. Depois de toda a exposição, Kara se sentira suja e usada de uma maneira que nunca imaginara. Seu ídolo não tinha sido feito de ouro, mas sim da escória dos metais. Nessa época, jurou que nunca mais nenhum homem exerceria tamanho poder sobre ela. Kara dobrou os joelhos e os abraçou junto ao peito. O único intuito de Hring havia sido puni-la por desafiá-lo com relação a Rurik. Ele ficara furioso com a ideia de que Ash não se importava com crianças, nem com pessoa alguma, e que não aceitasse um filho com a saúde debilitada. Depois de reencontrar Ash e perceber o quanto ele queria encontrar Rurik, ela começou a imaginar que Hring poderia ter distorcido as coisas. Não seria a primeira vez. Atitudes, não palavras. Ash já tinha ido embora uma vez e talvez fosse de novo. Era bom nunca se esquecer disso. O que era mesmo que os homens dele disseram? … a água do mar corre pelas veias dele. Quanto tempo levaria para que respondesse ao chamado do mar e da aventura? Isso sim era real, e não sussurros ao vento.

A verdade era que ela não tinha certeza se Ash estaria presente quando precisasse, não podia contar com ele para nada. Havia aprendido com os próprios erros. Ao virar de lado, viu que alguém tinha colocado ali um pedaço de pão duro e de queijo. A pessoa também a cobrira com mais uma capa. Ao se mexer, sentiu-se envolvida por um perfume de especiarias. Ash. Quem mais poderia ser? Um nó se formou na garganta dela ao imaginar a razão de tanta delicadeza. Depois de comer, ela se enrolou na capa extra e tentou relaxar. O perfume de caras especiarias chegava a fazer cócegas em seu nariz, remetendo-a ao sonho que tivera. Talvez a delicadeza significasse algo mais. O interior da cabana ainda estava mergulhado na escuridão. Kara voltou a se deitar e começou a fazer uma lista de coisas que teria que fazer quando chegassem a Jaarlshiem. Não eram afazeres sérios, apenas o cotidiano como supervisionar a produção de lã, certificar-se de que as maçãs haviam sido armazenadas corretamente e se os animais tinham comida suficiente para o inverno. Eram tarefas tediosas, mas que tornavam a propriedade próspera. Se mantivesse a mente ocupada com coisas reais e práticas, não daria asas à imaginação, começando a acreditar em fantasias novamente. Quando chegassem a Jaarlshiem seria tudo mais fácil. Ela estaria em terreno familiar. Rurik estaria lá para distraí-la caso precisasse. Seria difícil ter tempo para respirar, muito menos para sonhar. Kara levantou-se, ajeitou as roupas e atravessou a cabana na direção da porta. O dia estava amanhecendo, mas já era possível ver que o céu plúmbeo e o orvalho da noite anterior haviam sido substituídos por um céu azul rajado pelas cores do sol. Ela respirou a brisa fresca da manhã. Os mercenários dormiam no frio à meia-luz, embrulhados e indistinguíveis. O campo estava em paz. Ninguém se importara em ficar de guarda no chalé, conforme Ash havia dito. Kara revirou os olhos. Ao ouvir um barulho, Kara se virou e deparou-se com Ash saindo da mata, provavelmente voltando de um mergulho. Gotas de água caíam do cabelo molhado, deixando a túnica transparente. Kara balançou a cabeça a fim de afastar as últimas reminiscências do sonho. Ele se apressou em alcançá-la. Numa distância menor, era ainda mais intoxicante. Uma gota de água se alojara no vão na base do pescoço dele. Os dedos dela coçaram de vontade de tirá-la dali. – Se eu soubesse que você estava acordada, teria chamado para me fazer companhia. – Companhia? – Sim, para tomar banho no lago. Está tudo em silêncio. Eu fiquei com o último turno de vigia com Saxi. – Saxi? – Um dos meus homens. Ele está descansando agora que voltei. As primeiras horas do dia sempre me preocuparam bastante. Mas me lembrei de ter visto um lago do alto da montanha e fui nadar. Kara formou um cenário com a descrição de Ash, imaginando-os brincando com a água. Assim que percebeu que começava a divagar, ela desviou o olhar fixando-o num pinheiro próximo.

Quando sentiu o coração voltar a bater normalmente, arriscou-se a olhar para Ash e viu que os olhos dele brilhavam com malícia. Ele havia adivinhado seu breve devaneio! – Não é… não é a melhor hora para nadar – disse ela, alisando o vestido. – É uma pena. – Ele balançou a cabeça, jogando a água do cabelo nos ombros e no peito. – Espero que da próxima vez que eu convidar seja a hora certa. Nunca será a hora certa, pensou Kara. Aceitar o convite e ir nadar com ele seria o mesmo que desistir da independência que ela ganhara a duras penas, além de saber exatamente como terminaria a brincadeira. Embora estivesse se policiando ao máximo, foi impossível não se lembrar de quando ele a havia ensinado a nadar. Kara levou a mão ao pescoço conforme o silêncio pesava entre eles. Não podia ficar ali de boca fechada e imaginando como seria tocá-lo de novo. – Comi o que você deixou no chalé. Não era preciso, mas foi bem-vindo – ela disse a primeira coisa que lhe veio à mente. – Que bom. Se você se sentir fraca ou desmaiar, vai acabar atrasando todo mundo. Precisa pensar nos outros. – Vou buscar sua capa. – Kara engoliu em seco depois do comentário. Não adiantaria nada discutir. – Você devia estar morrendo de frio aqui fora. Não precisava me dar a capa. Eu estava bem com a minha. Lembre-se disso na próxima vez. Ele a fitou com cara de poucos amigos. – Tenho outras capas. Você representa um risco se não descansar. Se fosse um dos meus homens que estivesse exausto, teria feito a mesma coisa. – Ah, claro. Eu não tinha pensado nisso. – Kara balançou o corpo, trocando o peso de uma perna para a outra, sentindo-se uma menininha de novo. Mais uma vez tirara conclusões precipitadas, achando que Ash teria feito um carinho ou demonstrado consideração, quando não fora nada disso. Ela tirou o sentimento do coração. Se bem que não tinha feito nada do que se envergonhar, a não ser não ter expressado gratidão. Ela mesma já chamara a atenção de Rurik por se esquecer de agradecer. – Obrigada mesmo assim. Ajudou bastante. – A água estava muito refrescante. – Ele gesticulou na direção do lago, deixando claro que o outro assunto estava encerrado. – Ainda temos tempo se você quiser se banhar antes de partirmos para Jaarlshiem. Vai se sentir mais fresca. Prometo não espiar… não muito. – Não! – Kara estendeu a mão e a abaixou logo em seguida, ao perceber que Ash se divertia com sua recusa. – Vou ficar bem. Estou bem – disse ela torcendo um pedacinho do vestido. – Estou ótima depois de uma noite de sono… e de ter comido. – De fato. Pensei que tivesse tido uma noite conturbada e por isso teria acordado tão cedo. – Você também acordou cedo – rebateu ela, fechando as mãos em punhos. – Pare com essa preocupação falsa. – Não há nada de falso. – Vou conseguir acompanhar o passo hoje. E você? – Minha habilidade para ficar em uma sela nunca foi questionada. – Bem, terei que acreditar na sua palavra, já que não o vejo há sete anos para atestar – disse ela,

erguendo o queixo. Ash esboçou um sorriso, erguendo um dos cantos da boca. – Ponha-me à prova. Mas por que você não quer nadar? – Estou ansiosa para chegar logo em casa e ver meu filho. Preciso verificar minha sela. Não quero ser acusada de atrasar os outros como fui ontem de manhã. O mergulho no lago terá de esperar até que eu tenha tempo para gastar. Ash meneou a cabeça. – Você gostava de nadar. Depois das minhas lições, lembro que não perdia a chance de nadar. Lembrei disso agora há pouco no lago. É engraçado como memórias simples voltam quando nos encontramos em situações semelhantes. O que houve com aquela garota que não tinha medo de nada? Kara uniu as mãos. Ele só lembrara daquilo agora, o que significava que não havia pensado nela durante sua ausência. Por pouco ela não perguntara quantas vezes ele tinha nadado em um lago nos últimos anos. – Eu amadureci. – E esqueceu o quanto se divertia na água? O meu filho sabe nadar? Kara hesitou. Rurik teria que crescer um pouco mais para aprender a nadar. Ela havia discutido com Hring sobre o assunto no dia em que ele falecera. Era melhor nem pensar em como ficaria preocupada quando Rurik finalmente aprendesse a nadar. – Ele só tem 6 anos, é muito novo. Ash mostrou-se irritado, estalando a língua. – Meu pai me fez aprender a nadar bem antes disso. Muitos homens já morreram por não saberem nadar. – A expressão do rosto dele ficou tensa. – Muitos homens, mas eu não. Precisei nadar quando o navio pegou fogo no mar. – Saber nadar salvou sua vida? – Tivemos de nadar até a praia quando o navio afundou. – O olhar dele ficou perdido nas árvores. – Um raio caiu no mastro e em questão de segundos o navio inteiro estava em chamas. Aqueles que não sabiam nadar morreram. Às vezes fico pensando se não tiveram mais sorte que nós. – Por quê? – Não tiveram de suportar uma fornalha e em seguida o frio numa masmorra germânica. Kara precisou se conter para não ceder ao ímpeto de abraçá-lo. O jeito de Ash contar o que havia acontecido o deixara muito parecido com Rurik. Não era a primeira vez em que pensava que os dois eram muito parecidos. – Não pense assim. Eles estão mortos e você continua respirando. – Eu não pensaria duas vezes para trocar de lugar. Eles não mereciam morrer. – O único destino que você pode influenciar é o seu – disse ela na esperança de ajudar. – Rurik vai começar a aprender a sobreviver assim que chegarmos a Jaarlshiem. – Mas… mas… – Eu insisto. Tenho esse direito como pai. Kara abaixou a cabeça. Ash tinha razão. Rurik precisava aprender, mas ainda não. O último

resfriado que tivera durara meses. – Há muito tempo para isso. O inverno está chegando. O lago deve estar muito gelado nesta época do ano. O gelo deve cobrir toda a superfície em questão de semanas. – Vou ensinar a ele, Kara. – Ash abriu um sorriso de derreter corações. – Ele aprenderá a patinar no gelo… a não ser que já saiba. Patinar no lago na época das Festas é mágico. – Ele vai gostar. – Kara sabia que sim. Rurik gostava de tudo que oferecesse perigo. No ano anterior, ele havia pedido várias vezes para usar patins de osso e ela o dissuadiu, prometendo que deixaria no ano seguinte. – O gelo deve estar bem espesso. Não vou deixar que ele patine sobre o gelo fino. Até mesmo andar sobre o gelo é proibido. Sei o quanto é fácil o gelo se romper. – Claro que sabe. Muito sábio de sua parte. – Obrigada. – Meu filho é obediente? – Claro que ele faz o que eu digo. Sou a mãe dele. – Kara torceu o nariz, pensando no assunto. Rurik até podia ser travesso de vez em quando, mas nunca tinha feito nada de muito perigoso, pelo menos não igual a Ash. Por sorte, Gudrun estava sempre de olho no menino e a informaria de qualquer comportamento inadequado. Era desagradável quando Rurik acusava Gudrun de espiã ou coisa pior, mas era preciso, principalmente depois que Hring morrera. – O que ele sabe fazer? – Ah, uma porção de coisas – apressou-se Kara em responder. Ela havia penado numa porção de coisas que Valdar poderia ensinar a Rurik da maneira certa, mas isso não significava que ela mantinha o filho preso na barra de sua saia. – O inverno do ano passado foi complicado para mim. Seu pai estava doente… Eu queria estar presente quando Rurik aprendesse a patinar. Mas mal tinha tempo de respirar. Rurik entendeu e ficou longe do lago. – Ela franziu a testa, lembrando-se de que houve um incidente certa vez, mas por sorte os cachorros a encontraram antes que Rurik desaparecesse debaixo do gelo. – Eu poderia me desculpar, mas palavras não servirão para nada. – É verde. Não adianta mais. – Ele pode aprender neste inverno. Não precisa dar desculpas. – Ash inclinou a cabeça para o lado. – Ainda sabe patinar? Você costumava se arriscar bastante quando pequena. Tive de resgatála uma vez, lembra-se. Sua mãe nos embrulhou em cobertores depois que você atravessou o gelo e caiu na água gelada. Kara sentiu o rosto corar. Não esperava que Ash mencionasse uma de suas tentativas de chamar a atenção do pai. Ela havia se distanciado mais do que deveria. E seu pai estava ocupado demais com a última amante para perceber. Ash pulara no espaço aberto no gelo e a salvara, e isso o elevara ao status de herói, selando a adoração dela. – Tenho muita coisa a fazer. A propriedade precisa ser cuidadosamente gerenciada. Eu teria de deixar muita coisa importante de lado para patinar. Mas conheço bem os perigos de se pisar no gelo fino. Ash pousou a mão no ombro dela. – Todo mundo merece tempo para se divertir. Agora que estou de volta, você poderá patinar de novo e vou garantir que ninguém tenha problemas.

Por quanto tempo? Quanto tempo levará até que o conforto da vida em casa deixe de ser interessante para as possíveis glórias numa guerra? Ela engoliu as palavras com dificuldade. – Muito gentil de sua parte, mas você vai estar aqui? – O inverno está chegando. Não quero deixar uma propriedade que precisa de atenção. Quando a primavera chegar, aí veremos. Você não pode pedir mais do que isso. Kara concentrou-se em respirar devagar. Inspire e expire. Ora, o que esperava? Que Ash declarasse que seus dias de viagens tinham terminado só porque a beijara? Esse tipo de ilusão pertencia ao passado. Claro que ele iria viajar de novo. Talvez ficasse até o fim da primavera, quando o plantio se iniciaria. Ou talvez a perspectiva não fosse tão interessante quanto tesouros e aventuras, e ele acabasse optando por partir no começo da primavera. O importante para ela era se certificar de que ele não levasse consigo o coração de Rurik. Ou o dela, sussurrou-lhe o coração, mas ela tratou de calar a voz da emoção. – Pode ficar no quarto que foi do seu pai. Está arrumado e é bem apropriado. Vou mudar minhas coisas para o quarto de Rurik. Nós dividíamos o quarto até seu pai morrer. – Você está determinada a não sair do acordo, não é? – perguntou ele com os olhos sombrios. Ela colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha. – Não aconteceu nada para alterá-lo. – Pretendo cumprir o que concordamos. Pode ficar com o quarto do meu pai, não tenho nenhuma intenção em ocupá-lo. Preciso lidar com muitas memórias e ficar lá só vai piorar. Minha antiga cama da copa será suficiente, se ainda estiver lá. Caso contrário, encontrarei outro lugar para ficar. Às vezes acho difícil dormir em um lugar fechado. – A cama ainda está lá. – Por enquanto vai servir. Lembre-se que estou aqui, Kara. Quero que nosso casamento volte a dar certo. Kara sentiu uma pontada no coração. Ela já havia perdido a conta das vezes em que o desejara perto, mas ele não estava. Quantas vezes deitara com o olhar preso no teto, imaginando-se aninhada naqueles braços fortes? – Eu avisarei quando começar a pensar em aceitar o seu convite. Ash gargalhou de um jeito muito gostoso e espontâneo. – Qual é a graça? – indagou ela, tentando se manter firme. O sorriso suavizou os traços fortes do rosto dele, remetendo-a ao antigo Ash. Mais jovem e despreocupado. Era difícil aceitar, mas só então ela percebeu como sentira falta daquele riso. – Você disse “quando” e não “se” aceitar. Estamos progredindo. Um pouquinho de cada vez. – Mas eu quis dizer “se”. – Ela revirou os olhos por causa da distração. Ash sempre distorcia as palavras em benefício próprio. – Não gosto que brinquem comigo. Nunca. Ele ficou sério e a expressão descontraída do rosto se esvaiu no mesmo instante. – Seja sincera, Kara… – O olhar penetrante dele chegou até as profundezas ocultas da alma dela. – Houve uma época em que você gostava bastante de brincadeiras. Imagino que não tenha esquecido nossos antigos joguinhos de beijar. – Eu… eu… – Ela sabia exatamente a que ele se referia. Durante o pouco tempo em que estiveram casados, ele costumava beijá-la em pontos estratégicos para observá-la estremecer de

prazer. Foi uma surpresa saber que Ash ainda se lembrava daquilo. Ela afastou a lembrança. Ele não tinha o direito de querer voltar à vida dela tão rápido. – Seus homens estão começando a se mexer – disse ela, olhando por cima do ombro dele. – Já amanheceu e precisamos partir. – Você fica muito mais bonita com o rosto corado. – Ele deslizou o dedo pela lateral do rosto dela. As respirações se misturaram. – Alguma vez o seu cão de guarda Valdar provocou você? – Essa é uma pergunta muito pessoal! – exclamou ela, virando o rosto. Ela devia ter percebido que ele não queria conquistá-la, mas sim lutar pela posse de um osso. Era melhor mentir ou no mínimo insinuar que tivera intimidade com Valdar, mas sabia que era impossível. Não seria justo usar Valdar como um escudo entre eles. – Você não me respondeu – exigiu ele, segurando-a no queixo com a boca bem perto. O coração dela disparou, retumbando nos ouvidos. Se respondesse errado, ele a beijaria. Um beijo de punição. O pior era que em parte ela queria que seus lábios derretessem de encontro aos dele, assim como os beijos do sonho que tivera. – Ele me trata com respeito – disse ela por fim, virando o rosto da tentação. – Valdar me ajudou muito depois que seu pai morreu. Ele é um homem de honra, queria esperar pela nossa noite de núpcias. Ash soltou-a num repente, desfazendo o momento de tensão. Kara desequilibrou-se ao dar uns passos para trás. – Você não faz ideia de como fico com o coração mais leve ao confirmar o que eu suspeitava. Valdar Nerison não aproveitou a oportunidade, mas, se tivesse, estaríamos tendo uma conversa bem diferente. Kara pressionou a mão na testa. Ele tinha entendido tudo errado de propósito. – Valdar comportou-se como um nobre e esperou porque… eu pedi que esperasse. – Ah… Isso é passado – disse Ash, acenando a mão para trás. – Fiz o que fiz para voltar com a cabeça erguida. Quero ser o tipo de marido que você sempre desejou e não um fracasso. – E por acaso sabe que tipo de marido eu quero? – Prefiro achar que sim. Meu objetivo é ser esse homem. – Ele pousou a mão no ombro dela. – Vamos nos encontrar com nosso filho e formaremos uma família. Aliás, vim para casa em parte porque queria uma família. Quando menina, Kara acreditava que queria um herói para marido, mas com o tempo acabou descobrindo o quanto estava errada. Ela queria um marido para dividir o fardo de administrar Jaarlshiem, e não precisar tomar importantes decisões sozinha. Um marido que aceitasse de bom grado os filhos e estivesse presente quando surgisse algum problema. Em resumo, ela queria alguém que fosse seu parceiro eterno e não seu mestre e senhor. Bem no fundo da memória, ela se recordava de tudo o que Ash havia dito sobre seus sonhos e o que esperava atingir na vida. Eram sonhos de glória e viagens e não colheitas e família. E se começasse a contar com Ash e de repente ele decidisse continuar a se aventurar pelo mundo? – Kara? – Ash abaixou um pouco para fitá-la nos olhos. – Você está me ouvindo? Está com um olhar perdido. Estamos indo para nossa casa. Quero ver as mudanças que fez. – Não vejo a hora de mostrar, mas agora preciso preparar meu cavalo para a viagem. A sela

estava muito escorregadia ontem. – E você ficou sofrendo em silêncio? Não posso consertar algo se não souber qual é o problema. – Você é impossível! Esse é o maior problema. Ash ficou observando-a se afastar, pisando duro. Sentiu o corpo reagir, ao notar que o vestido balançava de um lado ao outro, revelando uma parte do lindo tornozelo dela e também as curvas generosas dos quadris. Curvas que tinham ficado mais generosas com o tempo. Finalmente os deuses o favoreceram, ou talvez estivessem aplicando um de seus truques como há três anos, quando achava que tinha dinheiro suficiente, para depois ser roubado. Ele acariciou o queixo, pensativo, recusando-se a pensar nos prazeres antigos, pois estaria se autodestruindo e não seria nada produtivo almejar por coisas que não podia ter. Mas sua mente traiçoeira o remeteu a como ela ficava linda e corada depois de fazerem amor e como era extasiante acordar com o corpo bem encaixado ao dela por trás. Ele balançou a cabeça na tentativa de afastar os pensamentos e recuperar o controle do próprio corpo. Bastava estar próximo a ela para ficar perturbado daquele jeito. A sede de saber mais a respeito dela e o que havia conseguido parecia insaciável. Queria sempre mais, até se embriagar totalmente com a simples presença de Kara. Nenhuma mulher que conhecera durante os anos passados fizera alguma diferença em sua vida. Até então, ele achava que estava muito mais interessado em recuperar a honra do que numa aventura sexual rápida. No entanto, o motivo era mais profundo, o que o deixava mais apavorado do que enfrentar uma horda de guerreiros num mar revolto. Ele não se permitira pensar em Kara em sua ausência, mas agora que estavam próximos percebeu que, na realidade, nunca a esquecera. Ainda havia uma réstia de esperança de ser o herói dos sonhos dela. – O que aconteceu para relutar tanto para se arriscar? – indagou ele. – Quem fez isso com você. Como faço para recuperar a mulher com quem me casei? Será que consegue me aceitar como sou, ou tenho de provar o que sou? KARA ESTAVA sentada sobre a sela com as costas bem retas, desejando que a estrada fosse mais curta e que a viagem passasse mais rápido. Parecia que quanto mais se aproximavam de Jaarlshiem, mais devagar o tempo passava. Toda vez em que voltava para casa depois de uma viagem, ela procurava alguma coisa no caminho que mudara. Sempre havia alguma coisa diferente. Mas dessa vez não era preciso procurar. Ela sabia… o homem que cavalgava ao seu lado era a personificação da mudança. Kara saíra de Jaarlshiem pensando que se casaria com um homem, mas voltara com um marido diferente. À medida que Jaarlshiem e o encontro com Rurik se aproximavam mais, ela começava a pensar em como daria a notícia ao filho que o pai não havia morrido antes de ele nascer, mas que estava vivo. Que Valdar não voltaria, aquele com quem ele sonhava em ter como pai, mas que seu pai verdadeiro estava ali. Não seria melhor convencer Ash a esperar um pouco e contar quando ganhasse a confiança de Rurik? O menino era tímido, principalmente com estranhos. Ela queria muito que o encontro fosse bom e não tenso. – Estamos a quilômetros de distância – disse Ash, pegando as rédeas dela de surpresa.

O cavalo tropeçou e ela precisou segurar na sela para não cair. – O que está fazendo? – perguntou ela, indignada. Ash não tinha nada de pegar suas rédeas. Isso quase causou um acidente. – Você deixou seu cavalo sair da estrada e seguir na direção do pântano. Isso atrasaria a viagem. Os pântanos são cheios de truques. Antes de meu pai mandar construir esta estrada, perdemos muitos homens e cavalos todos os anos, principalmente no outono. Quando eu tinha 10 anos, meu pai me fez sair do pântano sozinho. Fiquei coberto de uma lama fedida e tremendo de frio ao chegar em casa. – Seu pai foi cruel. – Mas funcionou. Eu nunca mais me gabei das minhas habilidades, o que me ajudou a sobreviver depois que escapei. – Ele deu de ombros. – Não sei se você se preocupa com seu cavalo, mas eu me importo com a vida dele e a sua. Kara olhou na direção para onde Ash apontava e sentiu um friozinho na espinha. Ela não tinha percebido como estava perto do pântano. – Eu estava pensando em casa e no que nos espera – admitiu ela, olhando sempre para a frente. – Há muita coisa para ser feita quando chegarmos. Estou com um mau pressentimento que tem alguma coisa errada. Aconteceu algo… É sempre assim quando estou longe de Jaarlshiem. Mal consigo esperar a hora de voltar, mas estou preocupada achando que alguma coisa terrível aconteceu. – Você está preocupada com nosso filho. – Sim – admitiu Kara, relutante. – Estou sempre pensando nele. É muito pequeno, Ash. É meu dever me preocupar. Quero que ele cresça bem e feliz. – O que vai dizer a ele sobre mim e meu retorno? – Ele devolveu as rédeas a ela. – Imagino que queira contar, não é? Kara concentrou-se nas orelhas do cavalo. Ash estava lhe dando uma escolha, enquanto imaginara que ele chegaria e despejaria as novidades em Rurik assim que o visse. Ash não costumava ter tanta consideração com o sentimento dos outros. – Você vai me dar a oportunidade de contar a ele? Não vai saltar do cavalo às pressas e exigir ver seu filho? – Quantos anos ele tem? Seis? A última coisa que quero é uma cena diante da tuntreet. Eu ainda me lembro como foi encontrar meu pai pela primeira vez. – Verdade? Hring nunca me contou essa história – disse Kara, surpresa. Engraçado, porque aquilo era algo que Hring gostaria de ter contado… a volta do guerreiro ao lar. – Ele partiu antes do meu nascimento e só voltou quando eu tinha 5 anos, depois da morte da minha mãe. – Ash inclinou a cabeça para o lado. – Meu filho é tímido? Eu me escondi atrás das saias da minha tia quando vi meu pai e me recusei a cumprimentá-lo como devia. O encontro não foi muito bom. Kara mordiscou o lábio. Rurik era muito impulsivo e descuidado. Ele gostava de se gabar de não ter medo de nada, mas ela o conhecia bem. Já o vira com as mãos tremendo e o rosto pálido. – Ele não é tímido, mas adora Valdar e faz meses que fala que será filho dele. Vai ficar muito chateado.

– Quero que ele saiba antes de o sol se pôr, Kara. – Você vai permitir que eu faça isso no meu tempo? – Contanto que converse com ele quando chegarmos, pode usar suas palavras. – Mas isso não é a mesma coisa. – Estou permitindo que fale com ele primeiro, considere isso uma retribuição… – Ele deu um sorriso de lado que fez o coração dela bater em descompasso. – …por ter evitado que você e seu cavalo caíssem no pântano. – Não está facilitando para mim. Acho mais prudente esperar alguns dias – disse ela, decidida a bater o pé no que queria. – Dê tempo para ele se acostumar com você antes de pedir o amor dele. – Rurik é meu filho. Fiquei muitos anos longe dele. ASH ESPOREOU o cavalo e galopou na direção do último entroncamento da estrada antes de Jaarlshiem. Kara estava em silêncio e distante. Por alguns segundos naquela manhã, quando a espiara na cabana pela primeira vez, achou que havia rompido as reservas, mas ela acabou se retraindo de novo como uma pérola em uma concha impenetrável. E agora ela não queria contar a verdade a Rurik de uma vez. Será que ele ainda não tinha feito o suficiente? – Ash, pare! Você está indo depressa demais, isto não é uma corrida! Ash virou-se para trás na sela. – Imagino que o salão nobre ainda seja no mesmo lugar. – Não pegou fogo. Você disse que eu poderia contar ao Rurik. Se chegar antes de mim… Ash passou a mão no queixo. O que estaria preocupando Kara? Por tudo que ela dissera, o menino devia ser mantido com rédeas curtas. Não era o jeito certo de criar um menino. Quando ele era menor, tudo o que era proibido parecia bem mais atraente, levando-o a muitas vezes correr um perigo maior. – Vamos juntos. Chegaremos juntos. Quero estar presente quando contar a Rurik. – Sim, claro, já que não confia em mim – disse ela, corando. – Cautela é o meu lema. Eles contornaram a curva, e a grande construção com telhado íngreme e suas edificações externas surgiram diante deles. A estrada que atravessava o pântano não estava em boas condições, bem diferente daquela que levava à sede da fazenda. Havia uma aura de prosperidade no lugar. A tuntreet ostentava folhas de vários tons em todo o seu esplendor de outono diante das portas duplas da casa. Até mesmo o ar parecia mais suave e diferente. O coração de Ash se confrangeu. Quantas vezes não tinha sonhado em estar ali? Chegando para reivindicar sua herança e ver o brilho de orgulho nos olhos do pai ao saber que o filho voltara como um guerreiro? Mas, agora, ele não tinha tanta certeza se essa seria sua melhor descrição. Tudo o que sabia era que havia voltado para casa. Foi mais difícil cavalgar os últimos quilômetros para chegar a Jaarlshiem do que teria sido quando ele soubera da morte do pai em Sand. Para qualquer direção que olhava, via fantasmas e lembranças de uma vida passada, como se estivesse à espreita aguardando um erro. – Ash, seu pai ficaria muito feliz com a sua volta. – Meus sentimentos são tão óbvios assim? – perguntou ele num tom de voz que teria feito seus

homens correrem para se proteger sem se importar com a resposta. Kara segurou as rédeas com mais força. – Para mim sempre foram. Sou sua esposa. Aprendi a perceber as coisas há anos. Caso contrário… Ash foi tomado por uma onda de culpa. Kara percebia suas mudanças de comportamento, mas não esperava que ele a conhecesse tão bem assim. Quando pensava em sua arrogância e em seu egoísmo, tinha vontade de esganar o rapaz que fora. – Espero ter a chance de conhecer mais coisas a seu respeito. Quero saber tudo. Já tenho uma grande admiração por você. Não há muitas mulheres que teriam aguentado cavalgar tanto assim. Os cantos da boca de Kara se ergueram suavemente num sorriso triste. Ash precisou se conter para não parar os cavalos, puxá-la da sela e beijá-la com uma fúria indomável até que ela perdesse os sentidos. Mas isso seria um erro. Ela o fez lembrar o falcão que não confiara mais nele depois de ter quebrado a asa. Foi ela quem o ensinara a domar o pássaro para ganhar sua confiança novamente. Era preciso paciência e não querer tudo de uma vez como ele costumava fazer. Ao longo dos últimos anos, ele precisou reaprender a lição do falcão várias vezes. Aquele que era paciente e atento aos pequenos detalhes era mais bem-sucedido. – Quer dizer que você já esqueceu – disse ela com a tristeza e a resignação pontuando sua voz. – Quero saber tudo a respeito de quem é você hoje, e não tentar forçá-la a ser como a mocinha de anos atrás. – Ash ficou nervoso, ansioso por falar direito e desfazer o erro que cometera no dia anterior quando não escolhera as palavras certas. Era preciso nutrir a esperança de que aquela mulher de hoje pudesse enxergar e aprovar o homem que ele queria ser. Diante da tuntreet ele sabia que jamais seria o tipo de cavalheiro que seu pai exigira. – É mesmo? – Você é muito mais complexa do que posso imaginar e pretendo descobrir todos os seus segredos – disse ele, e a aguardou sorrir. – Não tenho segredos. Nunca tive. – As mulheres sempre têm segredos. Negá-los aumenta minha determinação em descobri-los. – Ash virou-se na cela e fitou-a direto nos olhos azuis, imaginando o que poderia fazer para que ela voltasse a encará-lo como herói. – Eu me lembro, Kara. Você sempre fazia seu cavalo andar mais depressa. Sempre teve muito jeito com animais, mas eu conseguia subir mais alto nas árvores até alcançar os ninhos dos pássaros. Você sempre se irritava com isso. – Você é impossível. Ash parou e o comentário irônico morreu em seus lábios. Ele se adiantou um pouco mais para enxergar melhor. Sim, alguma coisa se movimentara no alto da cumeeira esquerda. Ele sentiu o sangue gelar. Os deuses tinham estranhas maneiras de atender aos seus pedidos. Não se tratava de um corvo ou um gato, mas era uma pessoa. Era uma criança pendurada na ponta da cumeeira, tentando subir, mas voltava a escorregar, balançando perigosamente. Foi então que ele soube que não adiantaria nada ser um herói, mas aquele que salvava uma criança desconhecida. Ele esporeou o cavalo, sinalizando para que os homens o seguissem. – Há alguma coisa errada, Ash? – Kara também saiu a galope logo atrás.

– Olhe! – Socorro! – A voz da criança chegou até eles. – Alguém me ajude! Gudrun! Alguém! – Santos deuses! É Rurik! Ele vai cair! – gritou Kara desesperada. – Não se eu chegar a tempo de salvá-lo – disse Ash, espo reando o cavalo de novo.

Capítulo 8

RURIK ESTAVA balançando no alto da cumeeira, segurando-se com as duas mãos e concentrado em levantar a perninha para alcançar o telhado. Lá embaixo, os dois cães de caça favoritos de Kara, Dain e Durin, corriam em círculos latindo e uivando em desespero. Kara olhou a cena paralisada de medo e sem poder ajudar. Além de estar longe, subir no telhado sem uma escada apropriada seria impossível, ainda mais de saias. – Alguém faça alguma coisa, por favor! – gritou, agoniada. Ash chegou ao lado da casa, pulou do cavalo e começou a escalar as paredes, apoiando-se nas pedras, mais com a perna direita do que com a esquerda. – Vai ficar tudo bem. Não pare de falar comigo. Estou chegando até aí. Kara mordeu as juntas dos dedos. Ash mancava com uma perna. Será que doía para subir? E quando chegasse até Rurik, será que teria forças para carregá-lo de volta? Claro que ele tinha forças para resgatar o filho. Tinha de ter. Ela não queria perder nenhum dos dois. Começou a pensar em outro plano que tivesse maior chance de dar certo. Gudrun saiu correndo da casa, com vários outros empregados, batendo os braços como se fossem corvos em vez de fazer alguma coisa produtiva. Os dois cães deitaram-se cobrindo os olhos com as patas, como se tivessem medo de olhar. – Gudrun! – gritou Kara. – O que está acontecendo? A senhora de idade olhou para onde Rurik estava pendurado e foi logo se desculpando, dizendo que a culpa não era sua e sim de Virvir. Kara acreditou. O sobrinho-neto de Gudrun já tinha levado Rurik a aprontar antes. Muitas vezes, para o gosto dela. Se houvesse suspeita de alguma arte, a culpa era certamente de Virvir. O menino era um órfão de 8 anos. Ela não tinha coragem de expulsá-lo da fazenda, mas agora ele tinha ido longe demais, incitando o pequeno Rurik a subir no

telhado. – Segure-se firme, Rurik – gritou ela, olhando feio para Gudrun. – Mamãe está aqui. Vamos tirar você daí. O alento não era muito adequado, mas melhor do que nada. Rurik debateu-se com as pernas. – Mãe! Mãe! Por favor, ajude-me. – Segure firme. – Kara viu que Ash estava subindo rápido até o telhado. Ele já tinha feito aquilo uma centena de vezes antes. – O seu… um amigo meu vai ajudar. Ele está escalando a parede. Por pouco ela não disse “seu pai”. Era capaz de Rurik se distrair e acabar caindo. – Um bom amigo! Ele já subiu essa parede várias vezes. Vai trazer você de volta. Segure firme! – Valdar? – A voz esperançosa de Rurik foi de cortar o coração. Ash olhou para ela de um jeito estranho. Kara apertou os dentes. Ash tinha de priorizar a segurança de Rurik acima de qualquer outro sentimento inútil naquele momento. Gudrun puxou a manga de Kara. – Aquele lá é quem estou pensando? – perguntou ela em voz baixa. – Só existe um homem que conseguiria subir essa parede com tal rapidez. Kara respondeu que sim com um sinal de cabeça. Gudrun arregalou os olhos. – Eu nunca entendi como ele conseguia chegar até o telhado. Mas não vai chegar a tempo. – Um amigo meu está chegando para ajudar. Segure firme! – gritou Kara de novo, ignorando o mau agouro de Gudrun. – Ele vai trazer você aqui para baixo. Confie nele. – Eu quero o Valdar! – gritou Rurik, tentando alcançar a cumeeira, mas suas perninhas eram muito curtas. – Esse homem é um amigo. Você vai gostar dele. Quando Rurik e Ash estivessem a salvo, ela faria as devidas apresentações. A todos. Ash estava demorando muito para chegar ao telhado. Ela sabia que ele já havia escalado aquela parede várias vezes, geralmente para fazer pirraça. Algumas vezes ela até tentou segui-lo, mas morria de medo e acabava voltando para trás. Hring já dera uma sova no filho pela façanha, mas Ash não chorou nem se mostrou amedrontado. No dia seguinte à surra, Kara deu a ele um pouco de unguento. Ele passou no machucado, mas também jurou que subiria a parede de novo e faria uma marca na pedra mais próxima à cumeeira para provar que conseguia subir até lá. – Mãe! Eu não queria fazer isso! Não fique brava. Ajude-me. Brava? Imagine, ela estava apavorada e queria torcer o pescoço de Rurik por ter feito algo extremamente proibido, mas jamais bateria no filho assim como Ash havia apanhado do pai. Virvir podia ser o culpado por ter instigado, mas Rurik não devia tê-lo seguido como um escravo. Mas acima de tudo ela queria que ele não estivesse machucado e a aventura não terminasse bem, mesmo com a presença de Ash. – Fique quieto. Você vai ser resgatado, mas precisa ficar imóvel. Poupe suas forças e segure firme. Consegue fazer isso por mim?

– Meus braços estão ficando cansados, mãe. – Precisa aguentar firme! Por mim! Faça isso por sua mãe! Os homens de Ash agruparam-se perto dela. – Kara, dê sua capa a eles! – gritou Ash. Ele havia chegado ao telhado e começou a se arrastar até onde Rurik estava pendurado, mas seu rosto estava contraído de dor. A façanha de subir estava cobrando seu preço. – Minha capa? – Para servir de rede… no caso… sua capa é grande o suficiente. Kara levou alguns segundos para entender que, se os homens segurassem a capa esticada, poderiam amortecer uma possível queda. Com os dedos trêmulos ela desamarrou os cordões e com um puxão jogou a capa para eles. – Obrigado, milady. – Um dos mercenários mais assustadores pegou a capa com facilidade. – Logo seu filho estará bem. Ash sabe o que está fazendo. Agora entre e deixe-nos fazer nosso trabalho. Kara desmontou do cavalo e pisou firme no chão. Gudrun colocou o braço nos ombros dela, mas Kara tirou. – Vou ficar aqui, mas não vou interferir. Pegue Rurik se ele cair. – É o que pretendemos, milady. É o que queremos… Kara rezou em silêncio para qualquer deus que a estivesse ouvindo para que o filho fosse poupado. E que nada acontecesse a Ash também. Fazia pouco tempo que havia permitido que ele voltasse à sua vida. Não seria justo perdê-lo tão rápido assim, mas desde quando a vida era justa? Ela teve vontade de se enrolar e esconder o rosto, mas isso seria impossível. Precisava ficar olhando os dois. Ash se arrastava, chegando cada vez mais perto, e Rurik movimentava as pernas desesperadamente. Como aquilo tinha acontecido? Por que Rurik estava brincando livremente com Virvir se ela havia deixado ordens expressas para que os dois fossem separados? Rurik precisava estar sob vigilância 24 horas por dia. Ela confiara em Gudrun para tomar conta dele e o acidente acontecera mesmo assim. Na verdade, era previsível que alguma coisa errada aconteceria, mas levar Rurik a Sand teria sido muito mais problemático. Contudo aquele não era o momento de conjunturas, mais tarde ela trataria de saber as respostas a qualquer custo. Virvir teria de ser punido. E Rurik aprenderia as consequências de obedecer a Virvir. Ash finalmente alcançou Rurik e segurou-lhe o pulso segundos antes de o menino se soltar. Por uma fração de segundo, o filho dela ficou balançando antes de Ash puxá-lo para a segurança do telhado. Só então Kara respirou sossegada. Rurik estava a salvo. Ela secou com a ponta dos dedos uma lágrima solitária que correra pelo rosto. Depois do susto, sentiu as pernas fraquejarem e por pouco não caiu sentada. Ash tinha alcançado Rurik a tempo. Agora precisavam descer de lá de cima. Os dois murmuravam alguma coisa, mas ela não conseguiu ouvir. Logo em seguida, Ash apontou para ela e Rurik acenou entusiasmado. Kara tencionou o maxilar. Ash devia se preocupar em trazer Rurik para baixo e não incentivá-lo àquele comportamento.

– Desçam já daí! Os dois! Ash colocou a mão em concha na orelha. – O que foi? Não estou ouvindo direito. A vista é linda daqui de cima. Obrigado por perguntar. Ela ouviu Rurik rir e rangeu os dentes. Aquele era um comportamento típico de Ash, fazer show para uma plateia. Tudo se transformava em piada. Tomara que Ash tivesse lembrado que completara apenas metade da tarefa. Rurik tinha de ser levado para baixo. Enquanto aqueles dois pezinhos não estivessem no chão e ela pudesse abraçá-lo em total segurança, a missão não estaria cumprida. – Venham para cá! Já! – Impossível – retrucou Ash. – Mas… mas… você subiu até aí. – Kara ficou perplexa. – Não pode trazer Rurik de volta pelo mesmo caminho que subiu? – Vamos descer assim que você arrumar uma escada e colocá-la num lugar fácil de chegar. – Ash apontou para onde queria que a escada fosse posta. – Seria o máximo da tolice arrastar Rurik pela extremidade do telhado. Ele está muito cansado. E não confio na minha perna, está doendo muito. – Mãe, não estou cansado, não. Posso fazer qualquer coisa. – Kara ouviu a voz chorosa por trás das palavras. – Vou providenciar uma escada – anunciou Kara, apesar dos protestos de Rurik, e acenou para dois criados buscarem uma escada em algum lugar próximo. Minutos depois, a escada já estava encostada exatamente onde Ash indicara. Eles precisavam se arrastar por uns dois metros apenas, mas tinham onde se apoiar até colocar o pé num dos degraus e começar a descida. – Tomem cuidado, vocês dois – murmurou Kara ao ver Rurik enlaçar o pescoço de Ash com os braços e abraçar o corpo dele com as pernas. Ash começou a descer com dificuldade e dor na perna. Cada inspiração e expiração parecia levar uma década. Kara achou que Rurik fosse se soltar e descer sozinho, mas ele continuou abraçado a Ash. Kara respirou aliviada. Ash estava sendo cuidadoso e não incentivou o filho a mais uma aventura. Ash pisou em terra firme. Rurik se soltou, enquanto Ash se deixou cair na grama, esfregando a perna ruim com o rosto contorcido de dor. Rurik atravessou o pátio correndo, com o cabelo ao vento e os braços estendidos, como se não tivesse acontecido nada. – Mamãe! Você voltou para casa! Eu subi no telhado porque achei que estava chegando e queria ver. Mas não consegui ver nada e Virvir ficou me provocando. Daí ele levou a escada depois de descer dizendo que os homens precisavam usá-la. Ele disse que só bebezinhos não conseguiriam descer sozinhos. Eu não sou um bebê! Kara respirou fundo para se acalmar. Não adiantaria nada chacoalhar e socar Virvir, mas ele teria de partir antes do pôr do sol. Ela lançou um olhar significativo a Gudrun. A senhora de idade empalideceu e puxou Virvir pela orelha. O garoto gorducho deu um grito.

– Vou resolver isto, milady. Não acontecerá de novo. Mas a senhora sabe como é o seu filho. Sempre aprontando, assim como o pai. – Vamos conversar mais tarde, Gudrun. A criada se afastou arrastando Virvir, que ia gritando sua inocência. Kara ajoelhou-se e fitou Rurik direto nos olhos. Mesmo sabendo o quanto ele detestava que mexessem nele em público, dizendo que era grande demais para essas coisas, ela não conseguiu evitar de passar as mãos pelos ombrinhos estreitos e o corpo franzino, verificando se estava tudo bem mesmo. Rurik fez uma careta e tentou empurrá-la sem sucesso. – Eu prometi que voltaria – sussurrou ela com o rosto encostado na cabeça dele. – Subir no alto do telhado não apressaria minha volta. Rurik debateu-se e, muito relutante, ela o soltou. Ele só tinha 6 anos, mas já queria se desprender da barra da saia da mãe. – Você prometeu trazer Valdar! Onde está meu novo pai? – Rurik perscrutou ao redor, cada vez mais preocupado e ansioso. – Virvir disse que eu estava mentindo e que nenhum cavalheiro como Valdar Nerison iria querer ser meu pai, e que foi por isso que você não quis me levar a Sand. Ele disse que… você… estava envergonhada de ter um filho como eu. Mas falei que era mentira! Mentira! Mas eu quero Valdar! – Muito bem! – Kara arrependeu-se de não ter mandado Virvir embora meses atrás quando a amizade dos dois começara a ficar muito próxima. – Você precisava ficar em casa para tomar conta da propriedade na minha ausência. Isso é bem diferente de eu estar com vergonha de você! Como alguém sequer pensou numa coisa dessas? – Ouça sua mãe, Rurik – disse Ash, aproximando-se por trás de Rurik e colocando a mão no ombro dele. – Sei que ela se orgulha muito de você. Ela veio cavalgando até quase cair do cavalo de cansaço para chegar logo e contar as novidades para você. Apesar de estar em pé e andando, os olhos de Ash ainda estavam sombreados pela dor. Ao vê-lo agigantar-se perto do filho, ela se deu conta de como eram parecidos. Os dois tinham o nariz e o formato do maxilar igual e a estrutura do corpo também. Qualquer pessoa que visse os dois atestaria que se tratava de pai e filho. – Mãe, você não entendeu por que eu tinha de subir lá – protestou Rurik. – Virvir me desafiou. Não sou um bebê, o garotinho da mamãe. – Bem que eu disse que ela não iria gostar de ver você lá em cima. Há bons motivos para que a escalada na parede seja terminantemente proibida. Os guerreiros aceitam seus castigos como guerreiros. – Sim, o senhor falou. – Rurik estufou o pequeno tórax. – Mãe, vou assumir meu castigo como um guerreiro, assim como ele falou. Kara sentiu o coração diminuir. Punição como a de um guerreiro. Ela sabia o que aquilo significava. Durante anos brigara com Hring por causa disso, será que teria de discutir com Ash também? E pensar que depois da morte do sogro, ela achara que o filho estivesse em segurança. – Mas por que Valdar não veio? – Uma lágrima escorreu pelo rosto de Rurik. – O que eu fiz de errado? Ele partiu como fez meu pai… por causa… por minha causa? Kara olhou para Ash de relance. Ele tinha mantido a palavra salvando o filho sem dizer quem

era. E ela não levara em consideração as preocupações e medos de Rurik. – Você não fez nada de errado, a não ser subir onde era proibido. Eu nem sabia que estava grávida quando seu pai partiu. Então como pode ser culpa sua? Rurik escancarou a boca. Kara respirou fundo. Aquele era o momento de dizer a verdade. A aventura de subir no telhado fora aterrorizante, mas criara o momento oportuno para falar sobre Ash. E ele tinha razão, quanto antes Rurik soubesse sobre a identidade de seu verdadeiro pai, melhor. Era preciso deixar bem claro que Ash não estava decepcionado com ele. – Valdar não será seu pai, Rurik – disse ela com toda gentileza possível, ajoelhando-se e preparando-se para abraçá-lo. Rurik franziu o cenho e se afastou. Ele teria corrido se não fosse por Ash ter colocado a mão em seu ombro. – Então não terei um pai para sempre. Virvir estava certo. Nenhum guerreiro me quer como filho. Nunca. – Não é nada disso. Virvir está totalmente errado. Você tem um pai, sim. Seu pai verdadeiro voltou como você costumava dizer quando era pequenininho. Ash ainda segurava o ombro de Rurik quando Kara se levantou e o encarou. – O homem que resgatou você disse o nome dele? – Ele… ele disse que era um amigo seu e de Valdar. – Rurik balançou a cabeça. – E que, se eu fizesse tudo o que ele dissesse, veria minha mãe e meu pai logo. Kara cobriu o rosto com as mãos. Ela havia julgado Ash mal. Ele cumprira a palavra. Devia ter sido muito difícil para ele não contar tudo de uma vez quando estavam lá no telhado, quando não tinham certeza se desceriam a salvo ou não, mas agora tinha a chance de contar. – Ele é mesmo um amigo, um amigo verdadeiro, mas além disso, o homem que resgatou você é o seu pai verdadeiro. Rurik fez um beiço pronunciado antes de dizer: – Meu pai morreu num naufrágio e nunca mais vai voltar. Preciso ser um guerreiro mais corajoso do que meu pai. Ash ficou paralisado. Se Hring estivesse ali, Kara torceria o pescoço dele. Enquanto enchia os ouvidos de Rurik com histórias de aventura para passar o tempo, estava na verdade dando ao menino uma tarefa impossível. Incrível como mesmo depois de morto, ele ainda conseguia ferir Ash. – Não, querido. Seu avô estava muito errado. Todos nós estávamos. Pensamos que seu pai estava morto, mas ele está vivo e é um grande guerreiro. Olhe o tamanho do batalhão de homens que ele tem. Ela olhou para Ash por cima da cabeça de Rurik, e ele movimentou os lábios como se dissesse “obrigado”. – Meu pai foi embora porque tinha vergonha de mim? – perguntou Rurik de cabeça baixa. – Estou muito feliz em conhecer você – disse Ash. – Não quer cumprimentá-lo direito? – perguntou Kara, mas Rurik se recusou a levantar a cabeça. – O que foi, Rurik? Seu pai acabou de salvar sua vida.

– Ele foi embora por minha causa? – perguntou Rurik num sussurro. – Mas quem disse uma coisa dessa? – exigiu Kara, perplexa. – Virvir. – Quem é Virvir? Quem é esse bobalhão? Você já falou de Virvir várias vezes e quero ter uma conversinha com ele! – Ash perdeu a cabeça. – Precisa ouvir sua mãe. Ela sabe que eu não fazia ideia da sua existência quando voltei a este país. Rurik contraiu-se com a voz grave e forte. Ash ficou sem jeito por ter perdido o controle. A última coisa que queria era que o filho ficasse com medo dele. A lembrança de quando encontrara o pai ainda era muito vívida em sua mente. Ele tinha ficado tão animado que havia feito xixi nas calças e o pai fizera uma careta de desgosto. Apesar de a tia ter suavizado a situação com palavras doces, a lembrança da reação do pai o assustara durante anos, levando-o a aventurar-se a fazer coisas prematuras para sua idade. As dores na perna de Ash pioraram de uma hora para outra, levando-o a se curvar para a frente e massageá-la, mas sem tirar os olhos de Rurik. O ferimento na perna nunca se curara direito desde o naufrágio, mas a dor não se comparava com a que ele sentia no coração. Rurik, seu filho. O menino fizera algo muito perigoso, e se ele não tivesse chegado a tempo teria sido uma tragédia. E Rurik ainda achava que ele partira por sua causa! Não havia razão de ser. – Você falou de Virvir lá no telhado, Rurik, e agora sei como ele mentia. – Ash esforçou-se para falar da maneira mais gentil que conseguiu. – Virvir é meu melhor amigo para sempre – disse Rurik, inflando o peito. – Ele sabe tudo. De tudo mesmo. Ele corre mais rápido do que o vento e consegue patinar sobre o gelo fino. Não é um bebê como eu. Com muito esforço Ash se controlou, decidindo que lidaria com Virvir mais tarde. Naquele momento estava mais interessado em começar bem com o filho. Se possível abraçá-lo para sentir aquele cheirinho de criança. A experiência de resgatar o filho tinha sido mágica, mas também aterrorizante. A sensação de segurar a mão dele pela primeira vez foi indescritível, ainda mais sabendo que, se falhasse, os dois cairiam para a morte. – Ele não sabe de tudo porque eu sou seu pai e sei por que fui embora. – Ash encarou Rurik bem nos olhos azuis, que o remeteram à sua finada mãe. – Eu jamais teria partido se soubesse que tinha um filho, especialmente alguém que sabe escalar como você. Qualquer guerreiro ficaria orgulhoso de ter um filho assim. Rurik abaixou a cabeça de novo e desenhou uma linha na terra com a ponta do pé. – O que fiz foi perigoso. Mas Virvir me chamou de mentiroso e de bebê. Eu tinha de provar que não sou nada disso. – Não é mesmo. Você já devia saber! – repreendeu-o Kara. – Por que tinha de provar alguma coisa a Virvir? Ash repreendeu-a com o olhar. Será que ela não entendia os meninos daquela idade? Ele mesmo havia feito coisas igualmente perigosas por ter sido desafiado. Mas não era bom ficar falando de como aquele garoto era ruim, Rurik tinha de saber a verdade. Ele precisava de outros heróis. – Porque eu tinha – admitiu Rurik com o lábio de baixo tremendo. – Porque eu nunca consigo fazer nada! Nunca serei um guerreiro se não treinar minhas habilidades. Vovô me fez prometer

treinar bastante. Ash olhou para onde Kara estava e a viu completamente chocada e exausta. Ela só estava em pé por pura força de vontade. Ele teve vontade de levantá-la no colo e levá-la para a cama que costumavam compartilhar e ficar de vigília até ela se recuperar. Mas seria uma atitude errada por vários motivos. Pelo que ela dissera antes, ele concluiu que Kara não deixava Rurik muito livre para fazer o que quisesse, principalmente se apresentasse algum perigo. Ele sempre se rebelara contra os limites que Gudrun impunha. Kara sabia disso, tanto que ela e a mãe de vez em quando precisavam fazer curativos nele depois de algumas aventuras. Por que Rurik seria diferente? O menino precisava aprender a fazer as coisas direito. Quando Hring tinha finalmente voltado para casa, Ash começou a aprender, mas ele pretendia ser um pai diferente para Rurik. Para Hring, os ensinamentos giravam em torno do melhor guerreiro e como Ash o superaria. Ash queria que Rurik aprendesse a sobreviver caso o pior acontecesse. Rurik escolheria seu destino, mas teria habilidades suficientes para fazer a escolha certa. Kara teria de deixar esse assunto por conta dele. O treinamento de um filho era responsabilidade do pai. – Sei que sua mãe quer que você aprenda a escalar na hora certa. Um guerreiro precisa aprender a obedecer seus cuidadores, que no momento é a sua mãe. Rurik escancarou a boca de novo, enquanto assimilava o que ouvira. – Mas ela diz que sou muito pequeno, e Gudrun também acha. Elas sempre dizem isso. Ninguém me deixa fazer nada. Ash continuou sério. Era de esperar um comportamento assim de Gudrun, mas Kara sempre mostrara o gosto pela aventura e concordava que Ash corresse riscos. Era uma pena que tivesse mudado tanto. – Agora que voltei, as coisas vão mudar. – Jura – perguntou Rurik com os olhos brilhando. – Você só tem 6 anos – disse Kara com um tom sensato. Onde ela aprendera a falar assim? – Quantas vezes preciso repetir a mesma coisa, Rurik? Espere até crescer mais um pouco. Logo, logo poderá fazer o que quiser. – Mas eu quero que essa hora seja agora. – Agora que voltei – disse Ash, lançando um olhar significativo para Kara. – Ensinarei a você tudo o que um guerreiro precisa saber. Assim como meu pai fez comigo. Ele ignorou a expressão de reprovação no rosto de Kara. Ela podia decidir sobre o casamento deles, mas não o que estivesse relacionado com o treinamento do filho. – Você conheceu o vovô? Nós espalhamos as cinzas dele ao redor da tuntreet. Nesse dia eu fui grande e corajoso para fazer isso. Ash ficou quieto por não confiar no tom de sua voz. Rurik fora grande e corajoso, porque seu pai não estava ali. E ele perdera tanta coisa… Algumas por necessidade, mas outras por pura teimosia. Seria difícil substituir as areias do tempo, mas poderia tentar estar presente nos eventos importantes dali em diante. Ele engoliu em seco e esperou que a garganta clareasse. – Ele foi meu pai. É bom saber que você me representou bem. Mais tarde irei até a tuntreet e você me mostrará onde espalhou as cinzas, isto é, se lembrar onde foi.

– Eu lembro, sim. – Bom garoto. – Ash bagunçou o cabelo de Rurik. Ele podia jurar que o filho tinha crescido alguns centímetros depois daquela conversa. – Ash Hringson, você voltou mesmo – disse Gudrun, estragando o momento. Ela sempre conseguia fazer aquilo. Ele respondeu com um sinal seco de cabeça. – Bom dia, Gudrun. É bom saber que você está cuidando do meu filho com o mesmo zelo que costumava cuidar de mim. Gudrun ficou vermelha e abaixou numa cortesia, escondendo o rosto. – O senhor é real mesmo, milorde? Mentalmente Ash jurou que despediria aquela mulher e Virvir, a quem Rurik idolatrava, e os mandaria embora antes do anoitecer. Algumas mudanças teriam de ser feitas. – Acho que é melhor eu ser real, do contrário meu filho foi resgatado por um fantasma. Gudrun apertou os lábios para não rir. – Claro. Meu sobrinho-neto tinha acabado de ir buscar ajuda quando o senhor chegou. O jovem milorde escalou a parede, sabendo que era perigoso, e Virvir foi me avisar. Ele o teria salvado se o senhor não tivesse chegado na hora. Ash olhou para Gudrun com o canto dos olhos, deixando-a contar sua versão da história, como sempre fazia. – Por acaso seu sobrinho-neto se chama Virvir? – Isso mesmo, milorde. Ele é filho da minha irmã e um menino forte. O senhor se lembra da minha irmã? Ela costumava dar bolo para o senhor. – Gudrun inclinou a cabeça para o menino rechonchudo com olhos similares aos de um porco. Ash conhecia bem aquele tipo de criança, um intimidador covarde, sempre pronto para desviar o caminho dos outros. Ele encontrara várias pessoas daquele tipo durante suas viagens. – Ele é um menino forte e não causa problema algum, parte por causa da tia. Foi direto me procurar quando percebeu que Rurik precisava de ajuda. Virvir fez uma reverência, e Ash rangeu os dentes contendo-se para não explodir. – Posso imaginar. – Viu só, Virvir, eu consegui descer do telhado e tenho um pai – disse Rurik, orgulhoso. – Tenho certeza que ele sempre soube disso, milorde. – Gudrun abaixou em outra reverência, mas não sem antes dar um tapinha na cabeça de Virvir. – Se me permite perguntar, onde milorde esteve nestes últimos sete anos? – Ele esteve em Viken, Gudrun – disse Kara com a voz áspera. – Ash voltou como um herói. Ele participou da invasão em Lindisfarne, aquela que comentam ultimamente. Ele vai contar a história a todos para que não haja erros de interpretação. Acho melhor você levar Virvir para a cozinha para que ele continue a trabalhar. Ash segurou o sorriso. Kara já devia saber que Gudrun adorava uma fofoca. – Seu tio já sabe da sua volta, milorde? – perguntou Gudrun, parando no meio do caminho e olhando para trás. – Ele vai ficar muito feliz em vê-lo. Eu bem me lembro de como vocês dois eram próximos.

Sim, eles tinham sido próximos, mas há muito tempo. Será que, assim como Rurik, ele fora ingênuo demais ao escolher um herói? Kara costumava reprimi-lo por isso. Antes a tivesse ouvido, mas com a arrogância de um jovem ele agarrara a possibilidade de provar seu valor a todo custo. – Meu tio estava na cidade quando anunciei minha chegada – disse Ash, inclinando a cabeça. – Encontrei-o no casamento que, pelas razões óbvias, foi cancelado. – Mãe, você não vai se casar com Valdar? – A voz de Rurik soou chorosa. – Por quê? Ash ficou imóvel e aguardou. Kara sabia muito bem que não podia verbalizar o que estava pensando, mas também seria incapaz de mentir para o filho. – Como eu podia me casar com outro se já estou casada com seu pai? – perguntou ela, corando e fitando Ash. O filho deles parecia ter aceitado o fato como normal, mas mesmo assim Ash sentiu um frio correr-lhe a espinha. A pergunta de Kara não tinha sido tão enfática quanto ele desejava. Foi apenas um alento, mas ele gostaria que tivessem mais explicações agora que estava de volta a Jaarlshiem. Se ele tivesse uma chance, provaria ser o tipo certo de marido para ela. Ash tinha certeza de que o caminho para chegar até ela era Rurik. – Eu gostaria de dar uma volta para olhar a propriedade – disse ele para evitar a urgência que sentiu em pegar Kara no colo e levá-la para um lugar privado, onde pudesse seduzi-la a aceitá-lo de uma vez. Não, paciência. – Talvez queira me mostrar, Rurik, já que você tomou conta de tudo durante minha ausência. Rurik corou. – Foi a mamãe que tomou conta de tudo. Claro que tinha sido ela. Quem mais? Bastava olhar para o estado das edificações externas para saber que a propriedade era próspera. – Tenho certeza de que sua mãe vai deixar você me mostrar tudo por aí. Ela deve ter coisas que quer fazer, se não puder vir conosco. Ash esperou que Kara concordasse com o passeio. Enquanto isso, ele passou a mão na perna esquerda, que doía mais do que ele havia imaginado. A perna não estava boa desde a luta com os Ranerike, três anos antes. Ivar fizera o possível para endireitar o osso, mas ele não era curandeiro. Se pedisse para Kara olhar, era bem provável que ela começasse a perguntar por que ele não havia voltado para casa quando se machucara. Quanto mais tempo ficava ali, maior era a culpa. Mas ele tentou não pensar muito no assunto, mesmo porque não podia mudar o passado. Quanto menos explicasse, mais rápido a perna se curaria. – O que você acha, Kara? Rurik pode me mostrar a propriedade? Ou ele é novo demais para isso também? Kara ficou impassível propositadamente, o único sinal que ela não tinha gostado da pergunta foi uma pequena ruga de preocupação entre as sobrancelhas. A mãe dela diria que era sua expressão de teimosia. Ash sorriu por se lembrar de alguns detalhes do passado. – É melhor você perguntar ao Rurik – disse ela calmamente. – Tenho coisas mais importantes a fazer. – Um banho? – perguntou ele com voz sensual. – Você falou nisso mais cedo.

Ela revirou os olhos antes de responder: – Ora, não insulte a minha inteligência. Tenho uma lista de coisas a fazer antes de pensar em alguma coisa para mim. – Ou talvez prefira me esperar para tomarmos banho juntos… – Vá embora! – Ela apontou com o dedo, mas com o rosto vermelho, e não perdeu tempo em contradizê-lo. Já Ash ficou absurdamente feliz com a reação dela. – Rurik, mostre tudo o que seu pai quiser ver, mas nada de escaladas. O menino prometeu e os dois se distanciaram. Ash tentou acompanhar o passo de Rurik, mas com muita dificuldade. A cada passo, uma careta de dor. – Espere! O que aconteceu com a sua perna, Ash? – É um ferimento antigo. Vai passar. – Ele forçou um sorriso. – Quem ouve pensa que você se importa comigo, Kara. – Essa dor não me parece antiga – disse ela, batendo a ponta do pé no chão. – Forcei um pouco durante a escalada. Além disso, cavalgamos bastante sem muitas paradas. Meus músculos sempre se contraem em ocasiões assim, mas irão relaxar com a caminhada. Movimentar-me ajuda. Sempre. – Isso já aconteceu antes? – O suficiente. Faz anos que machuquei a perna. Quando fico sentado na mesma posição por muito tempo, ela trava e dói. – Já consultou um curandeiro? – E o que ele poderia fazer? Ela contraiu as sobrancelhas. – Há tantas coisas… – Talvez minha curandeira favorita não estivesse disponível. – Ele se aproximou e sussurrou: – Talvez você possa me examinar mais tarde. – Você é impossível, Ash. Mas não vou esquecer, quero ver essa perna. Ash passou a mão distraidamente sobre a coxa. – Qualquer hora dessas você examina, mas não agora. – Seu filho quer mostrar Jaarlshiem para você – disse ela, inclinando a cabeça na direção de Rurik. – Não se importa? – Ele esperou muito tempo para encontrar você. Agora vá – disse ela, abrindo um sorriso largo. – Prometo descansar assim que tiver certeza de que está tudo em ordem. – Espero que descanse mesmo que nada estiver em ordem. Ash balançou a cabeça. Pelo menos acertara alguma coisa, para variar. Agora teria de descobrir como levar Kara de volta para sua cama e para o casamento. Quando isso acontecesse, as coisas voltariam a ser como se ele nunca tivesse saído de casa. O sonho que tivera em Viken… a mulher e a família esperando pela sua volta. Ele teria tudo novamente. – Venha, pai – chamou Rurik, pegando a mão de Ash. – Você precisa ver o que mamãe e eu fizemos na sua propriedade.

Ash apertou a mãozinha na sua. Pai. Ele nunca achou que seria chamado assim, pelo menos não de verdade. Jurou que faria por merecer ser chamado de pai, mais do que seu pai havia feito. Rurik seria treinado e educado da forma correta, e não seria constantemente desafiado para provar seu valor. Antes de se afastarem muito, ele olhou para Kara, que conversava alguma coisa com uma criada. A brisa fresca desordenou o cabelo dela, mas ela tratou logo de prender uma mecha atrás da orelha. Ali estava a imagem perfeita de uma mãe e dona de casa. Ele devia muito a ela. Por causa dela a propriedade prosperava, porém o mais importante era que ela lhe dera um filho. Nenhuma palavra teria um significado tão amplo quanto o necessário para descrevê-la. Bastava que ela pedisse alguma coisa, e ele faria o melhor para conseguir. Qualquer coisa. Ash pensou que aquelas palavras podiam ter um duplo sentido e preferiu ficar quieto. Por falar demais ele estava naquela situação desagradável. A única coisa que ela provavelmente pediria e também a única que ele recusaria… deixá-la partir. Não, dessa vez ele faria o certo no tempo certo também. Sua hora chegaria. E não tinha nada a ver com levá-la para cama, como ele pensara em Sand, mas sim em mantê-la ao seu lado para o resto da vida. Sua vontade era que ela fosse sua esposa e mãe de seus filhos e não uma figura mística, mas simplesmente Kara. A ideia era dividir a vida com ela. Isso o assustava mais do que quando ficara deitado com os corpos mortos de seus amigos e permitira que alguém tivesse aquele tipo de poder sobre ele. Por que só dava valor às coisas depois de tê-las perdido? Paciência. Deu certo quando ele procurava recuperar a honra. Agora precisava esperar que todos os seus instintos físicos lhe ordenassem para agir. Ele não podia. Era o seu futuro que estava em jogo e ele sabia que queria ficar ao lado de Kara acima de qualquer outra coisa. – Ajude-me a fazer a escolha certa, Kara – sussurrou ele. – Antes de nós dois cometermos algo irrevogável.

Capítulo 9

KARA HAVIA acabado de inspecionar a cozinha e se dirigia para a casa de banho quando ouviu os gritos. Alguma coisa terrível devia ter acontecido com Ash ou Rurik. Era melhor checar rápido, pois Ash tinha feito o mesmo por ela ao salvar o filho. Mas o que poderia ter dado errado com um simples passeio? Ao identificar que os gritos eram de Rurik, ela ergueu a barra da saia e saiu correndo para o cemitério, pois era dali que achava que vinham os gritos. Rurik estava em pé do lado de fora da cripta da família, chorando. – Aconteceu alguma coisa? – indagou ela, abraçando o filho. – Onde está Ash? Onde está seu pai? – Meu pai… – Rurik desatou a chorar convulsivamente. – Eu só queria mostrar onde estava a lápide dele e os gritos começaram e o fizeram ir embora. Não quero mais ele aqui. Vovô disse que ele sempre o desapontava e por isso eu teria de ser um guerreiro melhor. – Quando ele disse isso? Rurik esfregou os olhos com as costas das mãos. – Assim que chegamos aqui. – Você disse alguma coisa ao seu pai? – Ele não quis ver a lápide de pedra onde o vovô havia cinzelado os dizeres! Depois ele gritou comigo quando insisti que ele visse. – Vá ficar com Thora. Eu estava na cozinha e vi que ela tem umas guloseimas para você – disse Kara, apontando para a cozinha, esperando que Ash não tivesse ouvido o que Rurik dissera. Ela sabia o quanto Ash gostaria que o pai tivesse orgulho dele. – Guloseimas? – Os olhos de Rurik voltaram a brilhar e as lágrimas cessaram. – Gosto de guloseimas.

Assim dizendo ele saiu correndo na direção da cozinha. Kara respirou aliviada por ninguém mais ter aparecido, pois precisava conversar com Ash a sós. Ao entrar no cemitério, encontrou Ash sentado no chão, com a cabeça apoiada nas mãos. – Ash, por que gritou com Rurik? Ele levantou a cabeça para dizer: – O menino queria que eu fosse ver a lápide. Disse que meu pai se envergonhava de mim. Respondi que não ligo nem um pouco para o que meu pai pensava. – Rurik detesta quando alguém grita com ele. – Não era bem com ele que eu gritava, mas não quero ver nenhuma lápide. Pelo menos, não hoje. E não estou interessado no que meu pai queria! E muito menos no que ele sentia ao meu respeito! Por que eu quebraria um hábito de anos? Kara colocou as mãos na cintura. Não estava dando nada certo. Havia sinais de um desastre iminente por toda parte. Rurik e o avô adoravam visitar a lápide de Ash. Provavelmente Rurik devia estar muito animado em mostrar o que o avô tinha feito e Ash reagiu gritando. – Isso podia ter sido evitado. – Como? – Você gritou com Rurik porque é teimoso demais para ter me deixado examinar sua perna antes de vir para cá. Que tipo de pessoa grita com um menino de 6 anos por causa do que um morto poderia pensar? – Rurik precisa entender que os homens gritam, senão ele não conseguirá enfrentar um campo de batalha. – Você me permitiria examinar sua perna? Agora? – exigiu Kara, ajoelhando-se ao lado dele. – Se tivesse me deixado olhar antes, não estaria com tanta dor. Rurik já tinha passado por muita coisa hoje para acontecer mais essa. Você era o novo herói dele, agora o destruiu. – Esqueça, Kara! – Ash levantou a mão para interrompê-la. – É óbvio que não há nada que eu faça que esteja certo aos seus olhos, então, esqueça. Para que explicar? Eu já disse e repito, sei como lidar com a minha perna. Aprendi sozinho. Mas não foi por causa da minha perna. Não sei se consigo continuar com isso. – Por que tinha de voltar, Ash? Por que não quer aceitar ajuda nenhuma? – Vá embora! – Eu vou, mas talvez seja bom você pensar na razão pela qual voltou. Ash dobrou as pernas, cruzou os braços sobre os joelhos e apoiou a cabeça em vez de observar Kara ir embora. A dor na perna era excruciante, mas nada que se comparasse à dor que sentia no coração. Ele havia assustado o filho. Em vez de ser o herói, ele se comportara como o fracote chorão que seu pai dizia. E sabia que não podia mais bancar o herói. Não podia ser o homem que gostaria para Kara, e essa dor superava em muito a dor na perna. Ash pressionou as mãos sobre os olhos. Bem, se não poderia ser o tipo de homem com o qual seu pai sempre sonhara, nem o herói dos sonhos de Kara quando criança, ainda poderia ser o pai de Rurik. Poderia ser o tipo de pai que desejara ter, aquele que ensinava aos filhos, em vez de gritar com

eles. Além disso, também não estava preparado para deixar Kara. Pelo menos não enquanto não saboreasse aqueles lábios fartos. – Ir embora? Mas acabei de começar a lutar, Kara, mas desta vez estou lutando por você nos seus termos e não nos do meu pai. – Ash enxugou as mãos nas calças. – E vamos começar olhando o meu túmulo. EVITANDO ASH, ela estava sendo o pior tipo de covarde, arrumando pequenos serviços para não o enfrentar sobre o comportamento dele no cemitério. Kara queria que ele gostasse do que ela estava fazendo, mas tinha certeza de que se oporia a várias coisas que não deviam importar. A opinião dele não devia fazer diferença. E ela se recusava a voltar a ser aquela menininha cujo humor dependia de Ash sorrir ou não. Ela se orgulhava do que haviam conseguido fazer e queria ser vista como uma boa mãe, mas depois da pequena aventura de Rurik, ele devia pensar horrores dela. Kara espalmou as mãos sobre a mesa em que os novelos de lã estavam alinhados, aguardando por sua inspeção, desejando que as preocupações se esvaíssem. As mulheres da fazenda tinham estado ocupadas na sua ausência, e ela não podia decepcionálas, especialmente Gudrun. Era fácil notar quais eram os novelos de Gudrun pela maneira diferente que ela enrolava o fio. Ninguém conseguia dar aquela viradinha no final. Gudrun sempre obedeceu a todas as ordens sem pestanejar. Kara estava impressionada em como ela havia conseguido trabalhar tanto. Infelizmente, a eficiência de Gudrun significava que depois de terminar a inspeção dos novelos, quando todas as suas desculpas tivessem se esgotado, ela precisaria voltar ao salão nobre e enfrentar Ash. – O que você faria se fosse eu? Iria até os estábulos checar se as baias dos cavalos estão forradas com feno suficiente, ou iria para o salão nobre? – perguntou ela a Dain, que respondeu com um latido. – Foi isso que eu pensei. Primeiro o estábulo, depois o salão nobre. Kara abaixou para correr a mão no pelo macio de Dain. Era muito bom estar entre os animais, pois não era julgada, além de ser muito mais fácil lidar com eles do que com pessoas. Durante os últimos anos com a doença de Hring, ela não podia escapar para ficar com os animais o tanto que desejava, mas valorizava cada segundo quando conseguia, permitindo que eles corressem livres pela propriedade. O que poderia dizer a Ash depois de ele ter salvado Rurik, e logo em seguida o assustado com gritos desnecessários? Ela havia se descontrolado, mas isso não mudava os fatos. Ash seria o pior pai para Rurik. – Ah, encontrei você. – A voz suave dele envolveu-a. – Eu não sabia que novelos de lã eram mais importantes do que convidados. Kara assustou-se, derrubando alguns novelos no chão. Dain latiu e saiu da sala. Ela se apressou em se concentrar para recolher os novelos e não na figura máscula à porta. – Mas você não é visita. Cresceu aqui, esta é a sua casa. Você esperava ser recebido com uma cerimônia? – Fui recebido bem o suficiente, mas gostaria de saber por que está se escondendo. Eu queria que soubesse que fui visitar a sepultura do meu pai e a minha. Obrigado pelas runas nas duas lápides. – Pensei que talvez quisesse ficar sozinho um pouco. – Ir até o cemitério foi mais difícil do que pensei.

Kara resistiu à vontade de desfazer as rugas na testa dele. A morte do pai foi difícil de aceitar. Ela havia visto a expressão de alívio e paz no rosto de Hring depois de tantos anos de luta pela sobrevivência. Ash só se lembrava do pai com boa saúde. – Seu pai teria gostado. – Rurik disse… Kara levantou a mão para interrompê-lo. – Shh, Rurik é uma criança. Seu pai admirava você. É por isso que Rurik quis mostrar a lápide. – Eu gostaria muito de acreditar. – Ele se abaixou, pegou um novelo e o colocou sobre a mesa. – Encontrei mais paz aos pés da tuntreet do que no cemitério. Mesmo depois que você saiu, levei uma eternidade para ter coragem de olhar as runas. Fiquei feliz por ter conseguido. As palavras da lápide eram simples, mas meu pai chegou a construir o túmulo. A dor da minha perna melhorou. De vez em quando trava. Kara percebeu as gotas de água que caíam do cabelo dele. O perfume masculino invadiu o ambiente, substituindo o cheiro ruim de lã e tintura. Ainda bem que tinha trocado o vestido, colocando um azul-escuro, com um avental azul mais claro por cima. A cor lhe caía bem, além de ressaltar-lhe os olhos da mesma cor e contrastar com a pele pálida. Mas ela logo reconheceu que queria parecer bonita aos olhos dele e se reprimiu. Ficar esperando a aprovação de Ash era o mesmo que escolher o caminho mais curto para a loucura. Da última vez em que fizera essa opção, demorara séculos para se recuperar. Ash precisava provar que tinha voltado para ficar e que arcaria com as responsabilidades. – Eu mandei construir, pois me pareceu ser o certo. Hring concordou depois que recuperou a habilidade da fala – disse ela, cabisbaixa. Ash meneou a cabeça. – Então, obrigado a você. Conseguiu superar todas as minhas expectativas. Sem você esta propriedade não teria prosperado tanto. – A festa de boas-vindas foi marcada para amanhã à noite. – Ela colocou a meada de lã sobre a mesa com a mão trêmula. Finalmente ele elogiara o que ela fizera. – Haverá muita comida e um trovador para cantar. Ele conhece as últimas sagas, ou pelo menos foi o que Thora me garantiu. Ash ergueu uma das sobrancelhas, demonstrando que havia percebido a mudança de assunto proposital. – Você não esperou para tomar banho comigo. Kara odiava quando memórias antigas ressurgiam, principalmente aquela em que compartilhavam o banho para depois mergulhar no lago para se refrescar. Para afastar o pensamento, ela o substituiu pela lembrança do dia em que Hring revelara as intenções de Ash e sobre as outras mulheres que tinha. – Aproveitei a oportunidade – disse ela, respirando fundo. – Você não imagina quantos afazeres eu tinha. Só os deuses sabem quando terminarei esta noite. É sempre assim quando me ausento de casa. Dito isso, ela fingiu contar os novelos sobre a mesa, esperando que ele se desculpasse e saísse. – Você ainda não me perguntou o que achei da sua administração da fazenda. – Ele tirou o novelo da mão dela. – Pensei que estaria curiosa.

– Sei que havia muita gente querendo falar e dar as boas-vindas a você. Imaginei que me encontraria quando tivesse um tempo a despender. – A desculpa soou fraca até para os ouvidos de Kara, mas foi a melhor que ela encontrou naquele momento. – Você se superou. Rurik me disse que é a responsável por todas as mudanças e não Valdar. Estou inclinado a acreditar. Minha dívida com você aumentou tanto que creio jamais poder pagar. Kara fingiu ajeitar as dobras do avental. – Obrigada, muito obrigada. – Precisamos falar sobre o treinamento de Rurik. É uma maneira que posso ajudar a aliviar o fardo das suas costas. Quais são as habilidades dele? – O treinamento dele não precisa começar imediatamente. – Kara concentrou-se em enrolar outro novelo de lã, evitando pensar que Ash havia quebrado o braço e outros ferimentos quando começara a treinar para ser um guerreiro. – Dê tempo a ele para se acostumar com você. Lá no cemitério, ele disse… – O treinamento começará amanhã de manhã. Você o deixou ser bebê por muito tempo. Kara encarou Ash, boquiaberta. Depois de deixar Rurik uma pilha de nervos, ele ainda esperava que ela o deixasse em suas mãos. – Você sabe como treinar um menino? – Claro, já fui um garoto também. Kara conhecia os métodos de Hring tinha usado para treinar Ash. Ela sentiu o sangue gelar só em pensar nas tarefas que ele tivera de executar. Tarefas que incluíam passar a noite sozinho na floresta, ser forçado a lutar com o braço quebrado e apanhar por não ter ganhado. Jamais permitiria que qualquer filho seu passasse por isso. Nunca. Seria o mesmo que destruir Rurik e a pouca confiança que tinha em si mesmo. Ele não era tão forte assim. Deveria haver uma maneira de Ash entender que Rurik precisava ficar em segurança, e não ficar enchendo a própria cabeça com as coisas que aprenderia e alimentando expectativas de que o filho se superaria. Rurik começaria a amá-lo, mas depois se desiludiria muito. Uma vozinha em sua consciência a alertava que estava sendo injusta com Ash. Não podia julgálo pelo que tinha feito a ela, talvez fosse diferente com o filho. Ela suspirou. Seria muito bom se conseguisse agir com lógica e calma e não tomar decisões no calor da emoção. Ela sabia do fundo do coração que não estava certo deixar Ash treinar Rurik. O risco de Rurik se ferir, emocional e fisicamente, era imenso. – Não quero interferir na organização do seu tempo. Mas precisa acomodar seus homens antes de pensar em treinamento. Podemos voltar ao assunto quando tiver algum tempo livre. – Quando eu tiver tempo livre? – Ash demonstrou não ter gostado muito do que ouvira. Ele pegou um novelo de lã, jogou para cima e o pegou várias vezes, antes de colocá-lo na mesa de novo. – Eu era tão egoísta assim quando éramos casados? Pelo jeito que você fala, era provável ter me beijado e eu não ter percebido. – Você estava sempre muito ocupado. Estava se preparando para uma longa viagem, e havia muita coisa a se fazer. – Mesmo sete anos depois a resposta ainda estava na ponta da língua. Ela abaixou a cabeça, culpando-se pelo lapso. Foram muitas desculpas para o comportamento dele, quando na verdade ele não estava

preocupado com nada além da viagem. Ela não era importante para ele. Não foi fácil aceitar o fato, mas no fim das contas, não havia outra alternativa. – Preparar-se é essencial, mas é o mar que decide como será a viagem. Não prestar atenção às marés pode levar ao desastre. – Mas não tinha como prever. – Você está sempre pronta para me desculpar sobre aquela época. – Ele inclinou a cabeça para um lado. – Fui muito egoísta, mimado e bastante desleal a você. Kara, saiba que uma coisa fiz de bom naquela época, foi me casar com você. Eu não poderia ter feito escolha melhor para cuidar desta propriedade e de nosso filho. Quero que continue a gerenciar como fez para meu pai. Eu não saberia como lidar com a fazenda depois de tanto tempo fora. Kara abaixou a cabeça. As palavras de Ash foram como um tapa no rosto. Ash não queria assumir a responsabilidade. – Quero alguém para me ajudar a cuidar das terras. Essa foi uma das razões pelas quais eu iria me casar com Valdar. Ash ficou em silêncio por algum tempo, digerindo as palavras de Kara. Sentiu cada uma delas como um prego no coração. Ele cometera muitos erros, mas casara-se com ela, o que havia sido muito bom. A volta que dera pelos arredores o convencera. O engraçado é que ele tinha pensado que ela se orgulharia em continuar com o trabalho. Ele poderia cuidar da fazenda, pois a responsabilidade não o assustava. Afinal, fora criado para tanto e sabia o que fazer. As mulheres eram mesmo difíceis de entender. Mas ele sabia que não poderia ficar se ela não o quisesse, mas jamais admitiria isso. – Vou levar em consideração o que disse. – Ele inclinou a cabeça para o lado, tentando entender como ela se sentia. – Eu me lembro de estar muito feliz na primeira noite no navio, pois você havia facilitado tudo para mim. Não me senti culpado. – Você teria mudado de ideia? – sussurrou ela a pergunta. – Teria ficado se eu tivesse revelado meus medos de ficar aqui sem um rosto amigo por perto? Ash suspirou e passou a mão no cabelo, lutando contra a vontade de abraçá-la e beijá-la até que as dúvidas se dissipassem. Pensando melhor, ele se lembrou de que tinha ficado preocupado em deixá-la com Hring. Não que fosse sua obrigação, mas ela lidou muito bem com a situação. Parecia que não precisaria dele, o que o magoou bastante, pois Ash queria ser necessário. – Não sei como responder – começou ele a falar devagar, tentando explicar com cuidado para não dar mais motivos para ser odiado. Infelizmente, só percebera o erro de ter partido tarde demais. – Eu me arrependo de não ter estado aqui para apoiar você, Kara, mas isso é passado. Daqui em diante, pretendo estar presente para você e nosso filho. Quero que Rurik cresça sob a responsabilidade de nós dois, e não só sua. Ele será treinado de forma adequada, Kara. – Vou tentar me lembrar disso – disse ela, pegando distraidamente outro novelo de lã para não cruzar o olhar com o dele. – Lembre-se. – Ash estreitou a distância entre eles, tirou o novelo das mãos dela e o colocou sobre a mesa. – Para de se fingir ocupada para evitar falar comigo. Diga-me o que a aborrece para que eu possa ajudar. Quero desempenhar meu papel.

– Eu… – O coração de Kara batia tão alto, que ela pensou que ele fosse ouvir. Cada parte de seu corpo vibrava com a expectativa de que estivesse sendo sincero. Ash tinha a facilidade de dizer o que os outros queriam ouvir, mas ela precisava de mais do que isso. Não queria contar apenas com palavras ditas da boca para fora. Ela colocou as mãos no rosto e respirou fundo para recuperar o controle do corpo. – Você o quê? – perguntou ele com rispidez. – Eu gostaria que você se acostumasse um pouco com as mudanças antes de discutirmos sobre o treinamento de Rurik – disse Kara, pressionando as mãos sobre a mesa para equilibrar o corpo. Se ele a abraçasse naquele momento, ela acabaria se derretendo e permitindo ser beijada. Ainda havia muita coisa a ser resolvida entre eles. E aquela era a maneira como costumavam resolver os problemas… um beijo. Ash usava a atração mútua contra Kara. Muitas vezes ela mesma chegava a provocar uma briga para terminarem na cama. Um jogo louco e perigoso demais. Sua mãe fizera o mesmo jogo e ela vira as consequências. – Nessa última viagem, quanto tempo você ficou fora? – perguntou ele, mantendo-se sem se aproximar. – Uma semana. – Kara prendeu uma mecha de cabelo atrás da orelha, sentindo-se mais equilibrada. Seu coração poderia ser salvo se mantivesse o foco em coisas práticas. – Você se impressionaria com a quantidade de coisas que podem ser feitas em uma semana. E quantas outras podem ficar por fazer se os criados acreditarem que você não se importa. Esta propriedade quase foi à ruína quando Hring caiu de cama. – Mais mudanças em sete anos. Eu não tinha direito algum de criar expectativas sobre como estaria a fazenda. Foi uma surpresa agradável. – Espero que goste das mudanças, especialmente o novo galpão externo para os animais. – Sei que este deve ter sido obra sua. Você sempre quis garantir que os animais fossem bem cuidados. Meu pai só se interessava pela glória e prestígio que a propriedade podia trazer. Kara forçou-se a dar de ombros, mas seu coração se confrangeu. Ele havia aprovado as construções externas. – Eu pedia permissão ao seu pai sempre que queria fazer alguma coisa, mas passei a resolver sozinha quando ele adoeceu, e depois não tive mais ninguém para perguntar. – Nem mesmo Valdar? – Ash encarou-a para perguntar. – Valdar nunca morou aqui. A responsabilidade de cuidar da fazenda era minha. Mas ele gostou da ideia do estábulo novo para os cavalos. Eu cuidei da égua premiada dele no começo deste ano, quando ela deu cria. – A opinião de Valdar não tem nada a ver com esta propriedade ou com o nosso casamento. – Ash bateu o punho fechado contra a palma da outra mão. – Nosso filho me contou que já estava na hora de construir um estábulo novo e como ele queria um cavalo quando crescesse. Ele também quer um cachorro que durma na cama dele. Imagino que os dois perdigueiros durmam aos pés da sua cama. Ele tem o mesmo amor aos animais que a mãe dele. Kara pegou um fio e começou a enrolar num novelo para ocupar as mãos. – Quando ele for maior poderá ter um cachorro, mas não quero nenhum animal descuidado. Ele tem 6 anos e esquece as coisas.

– Talvez em julho, ou na primavera, ele esteja pronto para assumir a responsabilidade de ter um cãozinho. Os olhos de Kara reluziram de contentamento. Ash aprovara o que ela havia feito na fazenda e gostava de Rurik também. Pelo jeito de ele falar, parecia que passaria uns tempos na fazenda. Ele concordou inclusive em esperar um pouco para dar a Rurik a incumbência de cuidar de um cão. – Podemos resolver isso depois, quando ele estiver preparado. Não quero que nenhum animal sofra apenas para provar que eu ou você estamos certos. – Ele estará pronto. – Ash deu um sorriso de lado. – Você precisava ter visto os olhos dele brilharem quando falamos no assunto. – Rurik fala bastante. Seu pai costumava dizer que ele devia ser parente de papagaio. Espero que não tenha perturbado você. – Rurik nunca vai me amolar. Isso é um crédito seu, mas acho que o superprotege. – Isso não é verdade! – Ela franziu o cenho. – Como sabe se só o conheceu hoje? Você perdeu os seis primeiros anos da vida dele. Ash mexeu a cabeça, mostrando que a alfinetada tinha doído. – Você fazia a mesma coisa com os animais que gostava. – Ash pegou as mãos dela. – Há uma coisa que quero de você. Deixe-me treinar Rurik. Deixe-me provar que darei conta da tarefa mesmo que meu pai tenha me treinado de maneira tão errada. O coração de Kara retumbou forte no peito. Sim, ele gostava de Rurik. Era melhor confessar como tinha sido o nascimento do menino antes que fosse tarde demais. As palavras demoraram a vir. – Eu contei a ele, Ash. Reconheci você como pai dele. O que você fez foi incrível. Agora é um herói verdadeiro aos olhos de Rurik. Acredito que vamos ouvir sobre essa história do resgate muitas vezes ainda. Mas precisamos aguardar. – Que coisa, Kara, você está sempre me pedindo para esperar. Kara teve a sensação de que a sala estava ficando pequena demais e que estava muito sensível. A situação parecia longe de ser a ideal para revelar a Ash o que havia acontecido. A decisão teria de ser lógica e pragmática, e não através de um beijo. – Não quero mais discutir sobre o passado com você desse jeito. É por isso que pedi um tempo para resolver. O passado agiganta-se cada vez mais entre nós, Ash. Devemos reconhecer isso e seguir em frente. – E se eu não estiver pronto para continuar? Ash segurou-a pelos ombros e capturou os lábios dela num beijo intenso. Era como se a alma dela tivesse sido convocada a corresponder e a se deixar derreter nos braços dele. Contudo, a voz da consciência se fez ouvir através daquele turbilhão de sensações arrasadoras. Deixar-se beijar daquela forma era a pior atitude que poderia tomar, pois significaria que estava pronta para voltar a ser a esposa dele, quando isso estava longe de ser verdade. A lógica precisava derrotar o desejo. Ele deslizou o polegar, redesenhando aquela boca de lábios fartos. – Dê-me uma segunda chance, minha doce Kara. Deixe-me provar que mereço estar ao seu lado e de Rurik. Você verá como formamos o par perfeito. Seremos uma família. Valendo-se do último fio de autocontrole, ela se afastou e passou as costas da mão sobre a boca.

– Acha que pode me convencer a fazer o que quer beijando-me? Você prometeu que não me forçaria a nada. – Mas eu não forcei. Nós dois ansiávamos por esse beijo, Kara. Você também queria. Ela fechou as mãos em punhos, odiando seu corpo por reagir daquela forma e os lábios ansiando por mais beijos. – Bem, mas não deu certo. Ash encarou-a com os olhos semicerrados, do mesmo jeito como fazia no passado. – Mas costumava funcionar. Uma vez quando a impedi de me pedir para ficar. – As coisas mudaram, Ash. Eu me recuso a ser manipulada desse jeito. Esse beijo não adiantou nada, mas me fez ficar ainda mais determinada a resistir. Ela cruzou os braços sobre os seios inchados e rezou para que a mentira que acabara de dizer tivesse sido convincente. Ash estudou-a com critério. – Ou eu a beijava, ou a sacudia pelos ombros para que você entendesse o que quero dizer. Escolhi a opção mais agradável. Pena que divergimos nesta questão. Assim dizendo, ele se virou e saiu da sala. Kara bateu com as duas mãos fechadas sobre a mesa com tamanha força que os novelos pularam, três caíram no chão. Ela se agachou e os pegou. Os dois cães perdigueiros, Dain e Durin, entraram na sala para cheirar seu rosto, abanando os rabos freneticamente. Kara sorriu e acariciou o pelo macio de cada um deles. A tristeza abriu uma fenda no coração dela. Ash tinha chegado havia apenas um dia e já julgava a maneira como ela criava Rurik. Ora, ele tinha assustado o menino, depois de um ataque de fúria pior do que os de Hring. Pena que as coisas estivessem tomando esse rumo, mas ela teria de lutar as mesmas batalhas novamente. E daí, quando confiasse nele piamente, ele partiria achando que a deixara bem. Quando Ash havia chegado ali minutos antes, ela pensara que ele queria beijá-la, mas, não, a verdadeira intenção era lhe dar ordens. Kara pressionou a palma da mão na testa. Estavam ali havia apenas um dia e ela já estava planejando estratégias para manter Rurik a salvo. Era melhor recuperar a confiança e as certezas e a maneira mais indicada de começar era procurando Rurik.

Capítulo 10

– MÃE! VOCÊ veio dizer boa-noite e trouxe os cachorros! – Rurik sentou-se na cama. Os cabelos louros caíam desgrenhados no rosto dele. O coração de Kara inflou de tanto amor. Toda vez que via Ash e o filho juntos achava-os cada vez mais parecidos. Sentiu um frio na espinha imaginando o que teria acontecido se Ash não tivesse conseguido resgatá-lo em tempo. – Ora, sempre que estou em casa não deixo de vir dizer boa-noite – disse ela, relutando para abraçá-lo bem apertado. Mas nos últimos dias Rurik estava arredio a qualquer contato, principalmente os abraços dela. O menino estendeu a mão para agradar os cachorros. Eles já tinham vindo ao quarto e Rurik os adulara com guloseimas, indiferente às emoções que assolavam Kara. – Olhe, mãe! Eu os treinei enquanto você estava fora. – Muito bem. Rurik estava orgulhoso porque os cães se sentavam ao seu comando, aguardando um biscoito como recompensa. – Já posso ter um cachorro só para mim? Quero que ele durma no pé da minha cama. – Veremos – respondeu Kara com cuidado. Ash tinha razão. Rurik precisava da responsabilidade de possuir um cão e treiná-lo. Eles haviam decidido que o novo animal chegaria na noite do Ano-Novo em vez de nas Festas, conforme Ash sugerira. No Ano-Novo, Rurik estaria mais velho e pronto para cuidar de um cachorro. – Dain e Durin adoram vir dizer boa-noite para você. Como posso não dar o biscoito a eles? Rurik corou. – Gudrun disse que você não gostaria porque tenho sido muito levado. Não queria ser levado. Eu só queria… ser o primeiro a ver meu pai chegando. Sabia que ele viria, apesar do que Virvir disse.

Não sou um bebê! – Quem chamou você de bebê? – perguntou Kara, indignada. – Foi seu pai lá no cemitério? – Ah… não faz mal. – Mas eu quero saber! – Foi Virvir na cozinha quando me viu chorando. Gudrun concordou com ele. Gudrun! Kara contraiu os lábios, ocupando-se em arrumar os lençóis e cobertores ao redor do corpo de Rurik, cobrindo-o até os ombros. Teria de conversar com Gudrun de novo. Ela não permitiria que o filho fosse menosprezado assim como Hring fizera com Ash. Kara achava que aquilo tinha parado havia anos, mas estava enganada. – Sei o que você queria fazer, mas subir pela parede é expressamente proibido. Eu não queria que meu menino se machucasse. E você não estragou nada. Eu só estava preocupada com a sua segurança. – Não está brava comigo. Primeiro o papai disse que você não ficaria, depois ele começou a gritar e eu fiquei zangado comigo. Agi feito um bebê. – Gudrun estava errada. – Kara tirou as mechas de cabelo do rosto de Rurik. – A perna dele estava doente por ter subido até o telhado para salvar você. Rurik torceu o nariz. – Pensei que ele pudesse estar com medo. Não deve ser fácil ver a própria sepultura. Os guerreiros têm medo? Kara mordiscou o lábio. Jamais imaginaria que o filho tivesse pensado numa coisa daquelas. Além do mais, ela adorava aquela casa, mas não devia ter sido fácil para Ash voltar, imaginando o que o pai devia ter pensado ao seu respeito. – Sabe de uma coisa? Acho que ele estava com medo mesmo. Todo mundo tem medo. Rurik arregalou os olhos. – Pensei isso também, mas a perna dele estava doendo mesmo, dava para perceber. Ele não queria que eu soubesse, mas os lábios dele pareciam brancos de tanta dor. – Você percebe os pequenos detalhes, Rurik. Isso é muito bom. Vai ajudar bastante quando se tornar um guerreiro. Seu pai me falou. – Meu pai terá orgulho de mim? Kara ajeitou de novo o cobertor ao redor do corpo de Rurik. – Você é filho dele. Todos os pais se orgulham dos filhos. Rurik abriu a boca num bocejo grande. – O vovô não. Ele me falou. – Seu avô às vezes dizia coisas sem pensar. – Kara teve vontade de ter chacoalhado Hring por isso. – Ele escreveu a saga de seu pai. Você conhece a história que diz que ele queria ser um herói. – Ah, eu tinha esquecido. Uma nesga de dor surgiu nos olhos de Kara. Ela escondera coisas importantes de Ash. Se ele soubesse a razão por ela estar preocupada com Rurik, talvez entendesse por que o treinamento teria de ser adiado. E por que Rurik não podia ser treinado da mesma forma como Ash fora. Kara suspirou lembrando-se de que precisava contar a Ash a verdade sobre o nascimento de Rurik. E seria naquela noite, antes que perdesse a coragem. Estava na hora de parar de ter medo

sobre o que Ash pensaria a respeito da maneira com a qual ela havia salvado a vida do menino. Depois de ter conhecido Rurik, Ash entenderia por que ela agira daquele jeito. Havia chegado a hora de explicar por que o filho deles precisava ser mantido em segurança. E para começar a conversa, ela levaria um unguento para a perna dele para demonstrar boa vontade. – Mãe, está tudo bem? Você parece chateada. – Rurik colocou a mão no ombro dela. – Papai vai ficar, não vai? Será que ele vai se envergonhar de mim e ir embora por que eu chorei quando ele gritou? Gudrun disse que é capaz de ele ir se eu não for corajoso e superbom. – Gudrun nunca devia ter dito isso. – Mais uma vez, Kara precisou controlar a raiva de Gudrun. Talvez fosse melhor que a criada se aposentasse. – Ela está completamente errada. Seu pai está muito orgulhoso de você pela maneira como reagiu lá no telhado. Você obedeceu a tudo e não entrou em pânico. Ficou se segurando até ele chegar. Não são todos os meninos da sua idade que conseguem ser assim. Kara tinha certeza de que dizia a verdade. Ash estava orgulhoso de Rurik. O que quer que acontecesse entre eles, Ash não iria embora por causa do filho. – Mas ele vai ficar para sempre? Ou vai sair em busca de novas terras? Algumas vezes os guerreiros levam as famílias nessas viagens. Valdar disse que poderia nos levar se fosse meu pai. E o meu pai de verdade? Ele vai me treinar? – Espero que ele fique. – Kara beijou Rurik na testa e colocou o cavalinho de madeira, com o qual ele dormia sempre, ao lado do travesseiro. Ir viajar com Ash? A ideia era tentadora, mas como deixar a fazenda mesmo que ele pedisse? – Durma, querido. Preciso conversar com seu pai. – É sobre um cachorro para mim? – Rurik aninhou-se debaixo das cobertas. – Ele já me prometeu. Vou ganhar um cachorro e vou treiná-lo do meu jeito assim que ele arrumar um. Ele sabe como convencer você a fazer as coisas. – Ele disse isso mesmo? – Antes de eu agir como um bebezinho e ficar apavorado. Os guerreiros nunca se importam com um grito ou outro. Kara engoliu a raiva. Ash devia tê-la consultado antes de fazer promessas ao filho, ou mesmo contar que tinha meios para convencê-la de alguma coisa. – Quer tentar se aproximar dele de novo? – Mãe, ele é meu pai. Quero que ele se orgulhe de mim. KARA ENCONTROU Ash no quarto que fora de Hring e que agora era dela. Haviam concordado que o cômodo tinha de ser dela. Sentiu-se indignada. Ele parecia sempre à vontade com as promessas e suposições que fazia. Na verdade, não mudara em nada, sempre dizendo o que fosse mais fácil e beneficiasse o resultado pretendido. E agora, ali estava ele jogando tafl com um de seus homens no quarto que havia declarado como sendo de uso particular dela. Kara pediu ajuda e força a Skaldi e às outras deusas para enfrentá-lo. Era preferível ser racional e se manter fria a provocar outra briga. Em tempos passados as poucas brigas que tiveram haviam acabado na cama. E agora a cama cheia de cobertas e peles estava perto demais. Uma vozinha interior perguntava se ela não queria ser beijada com paixão… Kara desviou o

olhar da cama, decidindo que dormiria sozinha naquela noite. Para chamar a atenção, ela deu uma tossidela, segurando um pote de unguento na mão. – Desculpem-me pela interrupção. Ash sinalizou para os homens, que se levantaram num repente, desculparam-se e se retiraram. – Você não está interrompendo nada. O quarto é seu e não meu – disse Ash, inclinando-se para trás com a cabeça apoiada nas mãos entrelaçadas. A luz indireta da tocha na parede iluminava a barba que emoldurava o rosto dele. Achei que você viria para cá em algum momento e queria estar preparado. Não faz bem ficarmos bravos um com o outro. Temos de trabalhar juntos. Rurik pertence a nós dois, seja o que for. Kara esforçou-se para manter a calma. Trabalhar junto para Ash significava que ela teria de seguir a vontade dele. Porém não seria mais assim. – É verdade. – Não gosto muito deste quarto, mesmo com as tapeçarias diferentes. Lembro-me de ter ficado aqui por várias vezes, esperando horas sem fim para meu pai aparecer e me castigar por alguma arte ou desobediência, real ou imaginária. Njal, o Zarolho, queria tirar algumas dúvidas sobre nossos afazeres para os próximos dias e ficou porque eu pedi para jogar um pouco comigo. – Ash passou a mão no rosto com força. – Nós dois temos assuntos inacabados. Quero resolver tudo ainda esta noite. – Assuntos inacabados! – Kara respirou fundo e fixou o olhar no jogo de tabuleiro, procurando manter o foco e não se deixar distrair com as lembranças de infância, principalmente depois dos recentes comentários de Rurik. – Quais assuntos seriam esses? – Ainda não entramos num acordo sobre o que faremos com a educação de Rurik. Faço questão que meu filho tenha uma supervisão adequada. Algumas coisas precisam mudar por aqui. Eu já treinei homens, Kara. Essa foi uma das minhas obrigações em Viken nesses dois últimos anos. – Ele sobreviveu seis anos comigo. – Mas não está sendo cuidado da maneira apropriada. – Ash bateu na mesa e as peças do tabuleiro pularam. – O que aconteceu hoje é prova disso. Gudrun já está velha e é maldosa. Prefere favorecer aquele que for mais poderoso. Ela costumava me trancar no porão. Mas não é só isso. Rurik precisa aprender as habilidades de sobrevivência de um guerreiro. Ele tem seu lugar no mundo. – Você está dizendo que sou uma péssima mãe? Ou superprotetora e fazendo dele um fraco? – Kara estava preparada para brigar, segurando com força o pote de unguento. Todas as suas intenções de permitir que Ash participasse da educação de Rurik foram esquecidas quando ela se lembrou das conversas que tivera com Hring nos últimos três invernos. Ela se recusava a entregar a educação do filho a Ash simplesmente porque ele reaparecera. Estava lidando com isso muito bem. E Ash devia ter notado que a sequência de eventos daquele dia saíra da rotina habitual. – Como ousa me julgar assim baseando-se apenas no pouco tempo de convívio que teve com nosso filho? O que houve hoje foi um acidente terrível. Poderia ter sido pior, mas ainda bem que Rurik está bem. Eu sou uma boa mãe! – Se você for uma boa mãe, então, não terá objeção que nosso filho seja educado de maneira apropriada – disse Ash, exibindo um sorriso triunfante. – Imagino que queira que ele seja bem

treinado para não colocar a vida dele e dos outros em perigo. – Ele se levantou. – Kara, ele não pode continuar preso à barra do seu avental. Rurik está crescendo. Não quer um filho que seja respeitado e que possa administrar esta fazenda quando você não estiver mais aqui? Falo pelo que é melhor para Rurik, e não o que é melhor para seu estado de espírito. Não fazia nem um dia inteiro em casa e Ash já tinha decidido que ela era superprotetora. Kara se segurou para não jogar o pote na cabeça dele. – Fiz todo o possível para garantir a segurança de Rurik enquanto você estava viajando pelo mundo. Essa foi uma das razões pelas quais eu estava me casando com Valdar, para que Rurik tivesse um bom pai que o treinasse de forma adequada. – Não vai se casar com Valdar. Ele não é o tipo de homem certo para você. – Se pretende continuar nessa linha de raciocínio, peço que se retire. – Kara apontou para a porta. – Este quarto é meu e não seu. Não se esqueça disso. Recuso-me a discutir meu relacionamento com Valdar. Nunca falarei a respeito com você. Ash fechou as mãos em punhos e a fuzilou com o olhar. Kara aguardou, mas percebeu que estava arrepiada. Mesmo furiosa, outra parte de si queria beijá-lo de novo. Então, depois de um esforço evidente, ele relaxou as mãos. – Você não me entende por estar decidida a brigar porque ainda sente raiva por eu não ter voltado antes para casa. Fui um tolo irresponsável quando nos casamos e não soube dar o devido valor ao que era importante. Bem, eu cresci e voltei, espero que mais sábio. Levo sim minhas responsabilidades a sério e sei que precisamos merecer o que temos, e não esperar receber as coisas por direito. Sei também que sou perturbado. Nunca serei o homem que um dia quis ser – confessou ele num tom mais baixo de voz. – Perturbado? – Testemunhei coisas que nenhum homem deveria ver. – O semblante do rosto dele ficou mais grave. – Não é fácil ver seus amigos morrerem e ouvir seus gritos bem depois de o mar os ter engolido. – Ele levantou a mão. – Não quero aborrecer você com minhas histórias nem gostaria que tivesse pena de mim. Mas ouço os mesmos gritos toda noite quando tento dormir numa cama. – Eu gostaria de ouvir… tenho o direito de ouvir suas histórias. Ash ficou em silêncio por longos minutos. – Ainda não estou pronto para falar sobre isso. Na verdade, acho que nunca estarei. Por favor, não me force. Kara ergueu o olhar para os nós da madeira da viga do quarto. Seu sonho sempre foi dividir tudo com o companheiro, mas já havia visto Ash amargurado antes e precisava dar um tempo a ele. – Quando estiver pronto para falar, estarei pronta para ouvi-lo, mas enquanto isso ainda está em período de observação. Você pode treinar Rurik, mas só se me disser o que pretende fazer com antecedência. – Você já tinha pensado nisso antes? – Essas são as minhas condições – disse ela, intensificando o olhar. – Você já fez o seu melhor, agora quero fazer a minha parte. Pretendo garantir que nosso filho cresça adequadamente. É por isso que estou aqui neste quarto. Seria melhor se chegássemos a um acordo antes do pôr do sol. Não é isso que você costumava dizer quando me confrontava depois de

uma briga? – Os cantos da boca dele se curvaram num sorriso tão encantador que nenhum coração feminino passaria impune. – Vamos chegar a um meio-termo, Kara, como você costumava fazer. Kara teve vontade de concordar, mas se conteve. Ash estava muito errado em lembrá-la de atitudes que ela tivera no passado, quando se esforçava para amenizar qualquer desentendimento. Ash nunca nem tentara. Ele costumava beijá-la para deixá-la submissa… isso até agora. E ela de fato achava que a educação de Rurik tinha de mudar. Respirou duas vezes para se acalmar o máximo que podia. – Você estava me esperando aqui, no último lugar que eu imaginaria procurá-lo. Estive em todos os lugares possíveis à sua procura. – Para mim foi ótimo, assim eu a esperei num lugar para o qual você voltaria uma hora ou outra e poderíamos conversar com um pouco de privacidade. As fofocas correm fácil e acabam forçando as pessoas a tomarem partidos. A corte Viken é um poço de cobras. A rainha de Thorkell é venenosa. – Ele inclinou a cabeça. – Havia alguma razão especial para me procurar? Você disse que estava me procurando. Aposto que não era para me pedir um beijo. Kara preferiu olhar para as tapeçarias nas paredes do que olhar para Ash. – Dois motivos. Eu trouxe um unguento para a sua perna. – Ela estendeu o pote a ele. – Você deve passar toda manhã quando acordar e à noite. Isso dá certo para cavalos machucados. – E homens feridos? – Pode aliviar a dor se você passar regularmente. Não prometo milagres. Mas daqui a alguns dias a dor estará mais suportável. Ash pegou o pote e cheirou. – Essa é uma das poções da sua mãe? O cheiro é bem forte. – Eu melhorei um pouco – disse Kara, orgulhosa. – Se você passar com movimentos circulares, faz mais efeito. – Obrigado pelo presente. Tomara que a dor melhore e eu não assuste mais Rurik. – Ele focou os olhos azuis no rosto dela. – Foi por isso que me deu, não foi? E não porque estava preocupada com a minha perna. Sei que não gostou de eu ter gritado com ele. Já me desculpei. Kara envolveu a cintura com os braços. Ela não queria explicar muita coisa profundamente. – Se você entender em que condições Rurik nasceu, talvez entenda por que sou superprotetora. Nós dois quase morremos. Se não fosse Gudrun não teríamos tido chance alguma. Foi ela quem fez o parto. Ash contraiu todos os músculos. Ele nunca imaginou que pudesse existir alguma complicação em partos. Além disso, Kara e Rurik pareciam muito bem. – Você correu perigo de vida? Como? – exigiu ele, abatendo-se por um manto de culpa. – Gudrun nunca foi parteira. – Rurik nasceu antes do tempo. Gudrun me encontrou sob o feno no estábulo. Eu tinha ido trocar um curativo na perna de um dos cavalos e a dor veio muito de repente. Gudrun me levou de volta para casa e ficou comigo durante o parto. Depois ela me alimentou com caldos para eu me fortalecer rápido. – Rurik nasceu prematuro. Quanto tempo? – Ash procurou ficar calmo e manter os braços ao longo do corpo em vez de seguir o instinto e abraçá-la para prover algum conforto. – Conte-me

tudo. – Ele era muito pequenininho. Foi culpa minha. Seu pai tinha me proibido de ir ao estábulo, mas eu estava determinada a ajudar seu cavalo favorito. Eu sabia que podia salvar a perna e a vida dele. – Kara desviou o olhar para o tabuleiro de tafl em vez de encarar Ash nos olhos. – Floki? Você foi até o estábulo por causa dele? – Ele sempre foi manso comigo e eu queria que estivesse aqui quando você voltasse. Ele tinha machucado a perna. Eu queria tentar passar o unguento. – Ela levantou a mão para evitar que Ash dissesse alguma coisa. – Fui descuidada e imprudente, eu sei. Seu pai repetiu isso centenas de vezes, mas eu sabia o quanto você amava aquele cavalo. – Meu filho, que ainda estava no seu ventre, teria sido mais importante. – Ash fez uma pausa e contraiu os lábios. Ele havia falhado com ela em todos os sentidos. Não merecia sequer um filho ou uma esposa, mas os deuses tinham sido generosos e lhe concederam uma segunda chance. Dessa vez ele iria acertar. – Conheço como você age com animais feridos. Se alguém tem culpa, essa pessoa sou eu. Floki se assustava com facilidade. – Estava tudo calmo naquele dia e eu estava quase terminando – explicou Kara. – Senti uma fisgada nas costas. Gemi, não foi muito alto, mas o suficiente para Floki dar um coice. Eu me joguei para trás para não ser atingida e cai com força no chão. A dor seguinte foi excruciante, comecei a rezar e não havia nada que eu pudesse fazer a não ser pedir ajuda aos deuses, e eles responderam mandando Gudrun para me ajudar. Não faço ideia de como ela conseguiu me tirar daquele estábulo. Ash ouviu o relato com uma agonia crescente. A dívida que tinha com ela crescia a cada frase que dizia. A maioria dos bebês que nasce antes do tempo morre em semanas, apesar dos esforços de todos ao seu redor. Os deuses são cruéis. Ele pensou em se ajoelhar e beijar os pés de Kara. Enquanto ele escapava da masmorra, ela sofria mortalmente. – Mas ele sempre foi um lutador – terminou ela. – Eu sabia que tinha de lutar pela vida dele. A culpa de o acidente ter acontecido foi minha. Seu pai mandou sacrificar o cavalo. – O que meu pai disse do nosso filho? Ele mandou que você sacrificasse Rurik? – Seu pai não estava nada feliz, mas eu disse que você deveria tomar a decisão. Você era a única pessoa que poderia decidir se nosso filho viveria ou morreria de maneira tão brutal. – E o meu pai? – Ele me olhou como se eu tivesse enlouquecido, ficou roxo e disse que eu não poderia comer nada a menos que obedecesse. – Kara ficou com o olhar triste com a lembrança. – Respondi que nunca abandonaria meu filho. A admiração de Ash por ela aumentou. Podia não parecer terrível desafiar Hring, mas Ash sabia como ela devia ter ficado apavorada. Kara odiava qualquer tipo de desentendimento, mas aquele não tinha sido culpa dela. Apesar de contar como se tivesse sido um confronto fácil, ele sabia que fora muito pior. – E ele deixou passar? Mesmo sabendo que você não poderia se movimentar? – Gudrun salvou minha vida uma segunda vez. Ela ficou do meu lado, trouxe comida e assim eu não morri de fome. Por sorte, Rurik se recuperou e seu pai apiedou-se de nós algumas semanas depois. Tenho uma dívida com Gudrun que jamais conseguirei pagar.

– Você passou semanas desafiando meu pai? – perguntou Ash boquiaberto, e nem se importou em disfarçar o espanto. – Kara! – Foi mais fácil quando falávamos do meu filho. – Kara ergueu o queixo. – Hring sabia que podia me curvar com o vento, mas minhas costas são de aço flexível e não frágeis como o feno. Eu me curvo, mas não me deixo vencer, e há coisas que não cedo de jeito nenhum. Ash percebeu o tom de desafio. Ora, se ela tivera coragem de enfrentar Hring, por que não faria o mesmo com Ash? A determinação de sua esposa equivalia a milhares de homens. – Eu gostaria que você tivesse me contado isso antes. – Eu queria que você tivesse uma boa impressão de Rurik. Não posso imaginar o que aconteceria se virasse as costas para ele. Ash correu os dedos pelo cabelo. Já havia cometidos erros suficientes naquele dia, agora teria de pensar bem o que diria. – O fato de você e Rurik terem sobrevivido foi graças a você e não a Gudrun. Nunca reconhece seus méritos. – Isso é passado. – Ela uniu as mãos. – Eu gostaria que você entendesse a razão pela qual exigi o direito de ter a palavra final na educação do meu filho. O coração de Ash disparou. O futuro do filho estava na balança. Rurik não cresceria numa redoma de vidro com medo de tudo. Nem tentaria fazer coisas sem saber como usar um equipamento de maneira adequada. Treinar um guerreiro era uma tarefa difícil e delicada, mas Rurik precisava se tornar um guerreiro, caso contrário perderia a propriedade. Era uma forma egoísta de pensar, mas ele tampouco queria perder Kara. – Rurik é meu filho. Ele herdará estas terras e todos os proventos um dia. Quero torná-lo um bom líder de soldados. – Ele fez uma pausa e fixou os olhos nos dela. Kara recuou como se fosse um falcão amedrontado. – Sei o tipo de treinamento que você teve e sei que Rurik não aguentará algo similar. – É por isso que sei o que fazer – disse ele com calma. – Você precisa acreditar quando digo que vou tomar conta de Rurik. Dê-me uma chance de agir corretamente. – Ele é muito novo. Espere Rurik crescer mais um pouco. Ash estreitou a distância que os separava. Ele havia se precipitado antes, tentando beijá-la sem conceder um tempo a ela para se acostumar à sua presença. Mesmo depois de tanto tempo, ainda precisava aprender a ser paciente. – Confie em mim, Kara. Houve uma época em que você disse que sempre confiaria em mim. Confie agora. Faça valer o que disse. – Está tentando provocar outra discussão? – Ela inclinou a cabeça na direção da cama coberta de peles. – Para me beijar e acabarmos na cama? – A última coisa que quero é brigar com você, mas gostaria que me prometesse que se esforçará para que nosso casamento dê certo. Estou dando o tempo que pediu, mas, por favor, será que podemos trabalhar juntos em vez de um contra o outro? Ele estava pedindo e não exigindo. Kara engoliu em seco e sentiu o coração retumbar. Era muito difícil argumentar quando Ash se comportava daquele jeito. – Vou tentar.

Ash encarou-a com os olhos velados. – Quero que Rurik cresça com pais que trabalham juntos em vez de travarem uma disputa constante. Vamos ver se nosso casamento ainda pode dar certo, deixando que eu comece a treinar nosso filho imediatamente. Kara ainda estava relutante, mas meneou a cabeça, aceitando o que ele havia dito. Também se lembrava das brigas que seus pais tinham tido. Os dois estavam sempre brigando ardorosamente nas raras ocasiões em que seu pai estava em casa. – Parece que Rurik gosta de você. O maior desejo dele é se tornar um guerreiro forte como o pai. Ash fez um sinal de pouco caso com a mão. – Ele só sabe histórias de como eu era. Dê tempo a ele. Deixe-me usar essa admiração para ensiná-lo a como empunhar uma espada, como patinar e nadar. – Você o resgatou de uma morte iminente – lembrou-o ela, franzindo o cenho. – Aos olhos de Rurik, já é o herói dele. – Qualquer um dos meus guerreiros teria feito o mesmo por uma criança. Eu estava mais perto, só isso. Kara encarou-o, perplexa. Em outros tempos ele se vangloriaria como se fosse um guerreiro maior do que era na realidade. Ash havia mudado muito mais do que ela achara possível. Ela admirava o Ash de agora. – Nunca mais menospreze o que fez por nós, pois isso não perderá a importância que tem para Rurik. Ela percebeu certo respeito através dos olhos dele. – Nunca tinha imaginado. – Pois imagine da próxima vez. – Ela cruzou os braços, perturbada pela presença dele em seu quarto. – Fique certa de que Rurik receberá o treinamento adequado, Kara. Não repetirei os erros do meu pai comigo, mas darei desafios para ele cumprir que sejam apropriados para a idade. Ele correrá alguns riscos, mas nada que seja muito perigoso. – Você… tem certeza que sabe transformar meninos em guerreiros? – Aprendi direito quando estava em Viken. Aprendi a diferença entre um guerreiro temido pelos homens e outro que é seguido por batalhões por vontade própria e dispostos a dar sua vida por seu líder. Um líder forte é respeitado e não temido. Ter medo é a maneira mais fácil de ser apunhalado pelas costas. Kara suspirou, reconhecendo que Ash tinha razão. Rurik precisava ser treinado por alguém que respeitasse. Por isso que tinha pensado em se casar com Valdar. Agora teria de confiar que Ash ainda estaria em casa para terminar o treinamento. Ela queria que ele tivesse uma boa razão para ficar. – Não se esqueça que Rurik ainda é pequeno. Ele tem grandes ideias, mas seu corpo… – Se quiser, você pode assistir aos treinos e interromper se achar que fui longe demais. Mas ele precisa treinar direito com alguém que confia, para não ficar tentado a aprender com um bobalhão como Virvir e correr perigo. Então, estamos de acordo? Em vez de encará-lo, ela preferiu levantar uma peça caída do tabuleiro. A peça de pedra estava

fria. Hring nunca permitira que ela ficasse no campo de treinamento. – Você vai mesmo me deixar assistir? – Não mentirei dizendo que vou acertar sempre, pois nunca treinei um menino de 6 anos antes, mas estou disposto a tentar e fazer o melhor que puder. Kara mordiscou o lábio inferior. Arrependeu-se por não o ter ouvido antes, quando dissera que não estava preparado para ver o próprio túmulo. Enfim, os homens dele pareciam ter sido treinados com muita disciplina. Pelo menos até então, nenhuma mulher havia reclamado. Geralmente, quando recebia visita de guerreiros, as mulheres da fazenda a enchiam de reclamações. – Vou confiar que você vai me procurar se estiver inseguro sobre alguma coisa. – Ainda tenho muito a aprender em como ser um pai. Você está bem na minha frente. – Faça o melhor que puder. Eu erro a toda hora também. – Ela olhou para o teto e piscou várias vezes. – Quase cometi um grave erro esta noite. Ash tomou as mãos de Kara nas dele. – Você vai me ajudar? Eu quero… Pretendo ser um pai melhor do que o meu, pelo bem de Rurik. Ash estava pedindo ajuda. Kara lembrou-se de que fazia muito tempo que ele havia pedido ajuda. Tinha sido quando o falcão dele quebrara a asa. Ela engoliu em seco e apertou a mão dele. – Ajudarei, se puder, mas a maneira mais segura para atingir seu objetivo é amá-lo. Ash não soltou a mão dela e se levantou. A presença máscula se agigantou sobre ela. – Quero ter um novo começo com você, Kara. Quero conhecê-la melhor. – Ah, mas já me conhece bem. – Conheço a menina que você foi, mas não a mulher que se tornou. Não conheço a mulher que gerencia sozinha esta propriedade nem a que está preparada para brigar pela madeira diante de toda Storting. – Quem contou isso? – Rurik. Ele tem muito orgulho da mãe e também é protetor. Não vou mais fazer você chorar. Ele me fitou no fundo dos meus olhos e me desafiou. Nosso filho não é covarde, Kara. Duvido que eu tivesse dito uma coisa dessas ao meu pai. – Eu costumava chorar no aniversário da sua morte, mas fico surpresa que Rurik saiba. – Lamento muito ter feito você chorar. Ash puxou-a e os corpos se colidiram. Diferente do beijo anterior, esse foi mais persuasivo e gentil. Enquanto o outro tinha sido estimulado pela raiva, este a fez derreter nos braços dele. Os lábios se roçaram até que ela entreabriu os dela para deixar que ele explorasse o interior de sua boca com a língua. Foi um beijo infinitamente melhor do que aquele com o qual ela sonhara na noite anterior. De repente, ele se afastou. – Boa noite, Kara. – Como assim, boa noite? – Ela espalmou a mão naquele peito largo e sentiu o coração dele retumbar. Ash estava tão enlevado pelo beijo quanto ela. Ora, então por que ir embora? Será que aquilo era rejeição? – Não estou entendendo. – Se eu ficar, não será apenas um beijo e será muito prazeroso. – Ele deslizou as costas da mão

pelo rosto dela. Kara sentiu a pele inteira se levantar em doces arrepios. Foi difícil ceder à vontade de apoiar o rosto na mão dele e pedir que não fosse embora, porém sabia que se odiaria na manhã seguinte. – Mas… Não é isso que você ou eu queremos. – Irmos além? – sussurrou ela. Um friozinho delicioso correu-lhe a espinha ao se lembrar que ele costumava tocá-la com a mesma gentileza como quem toca uma harpa. Ela ansiava para mergulhar naquele torvelinho de emoções e esquecer de tudo. Claro que ele estava ali no quarto dela de propósito. – Quero continuar, mas só quando estiver pronta. Não quero que me acuse que a forcei a nada. Quero que leve o tempo que precisar para tomar essa decisão. – Ele enrolou um cacho do cabelo dela no dedo. – Amanhã jogaremos tafl. Vamos apostar como amigos e não como amantes. Pretendo ser seu amante de novo… mas quando você estiver pronta. Quero que nosso casamento seja verdadeiro e não algo para exibir para os outros. – Ele pegou o pote de unguento. – Obrigado por isto, vou usar. – E se eu não estiver pronta para jogar? – perguntou ela com os lábios ainda formigando por causa do beijo. – Vamos jogar pelo prazer de jogar. Quero conhecer essa Kara nova. Já gostei de tudo o que vi até agora. Ela fechou os olhos, pensando no que tinha acabado de ouvir. Podia fazer o mesmo e tentar conhecer o novo Ash, em vez de esperar que ele voltasse a se comportar como há sete anos. – Acho que podemos jogar, mas sem apostar. Nós já passamos desse tipo de coisa. – Covarde. – Ele deu um sorriso matreiro, do tipo que derretia todas as resistências dela. – Você não quer nem saber o que iríamos apostar? Kara meneou a cabeça, enquanto morria de curiosidade para saber qual seria a aposta. Sentiu-se lânguida só em imaginar se não seria o jogo da sedução, que terminaria com os corpos nus se tocando. Seria fácil moldar-se àquele corpo viril e derrubar todas as barreiras e medos que ainda tinha, principalmente se não tivesse escolha. Agarrando-se a uma réstia de lucidez, ela endireitou o corpo e perguntou: – Por que eu seria covarde? – Você me desafia, mas depois corre e se senta sozinha no alto de sua superioridade e diz ao mundo que eu a encurralei e por isso se rendeu. Kara corou até a raiz do cabelo. – Sou tão óbvia assim? – Não, eu sou ganancioso. – Ele fez uma mesura exagerada. – Quero possuir você por inteiro e não apenas ter seu corpo por uma noite. Ash saiu do cômodo antes que ela conseguisse formar uma frase de protesto, ou explicar que até mesmo uma noite não seria uma boa ideia. Kara apoiou-se na mesa a fim de se recuperar. Tinha de raciocinar com lógica e não com emoção. Precisava parar de pensar na boca bem desenhada de Ash e se a pele do corpo dele ainda continuava aveludada como antes. Rurik precisava de um pai, alguém que pudesse treiná-lo de maneira adequada.

Ela havia tomado a decisão certa ao permitir que Ash fosse seu instrutor. Sabia também o que esperava de um parceiro para a vida inteira, e esse homem era completamente diferente daquele com quem sonhara quando mocinha. Bem, Ash teria sua chance. E ela queria descobrir se o que sentia ia além do desejo e da memória daquilo que tiveram um dia. Por que as coisas tinham complicado tanto com a volta de Ash?

Capítulo 11

– EU TROUXE o tabuleiro de tafl para você – disse Kara, colocando o tabuleiro perto de onde Ash estava sentado no salão nobre, conversando com um de seus homens. O que restara da festa de boas-vindas estava espalhado diante dele. Kara duvidava que ele sequer tenha percebido que ela havia saído da mesa. Pouco antes de ela sair, estava engajado numa conversa sobre cordames de velas, uma confirmação velada de que não pretendia ficar muito tempo em terra. Queria que ela tomasse conta da propriedade e cumprisse as ordens dele enquanto estivesse fora. Ah, mas não seria assim, não. Tinha sido por isso que ela rejeitara vários pretendentes mais cedo naquele ano. Kara sabia muito bem o que queria e precisava apenas prender-se à sua estratégia bem estruturada e manter o coração longe dos negócios. Ash interrompeu a conversa e, ao virar-se para ela, seus olhos brilharam como se estivesse se divertindo com uma brincadeira secreta. – Kara, você voltou. Pensei que tivesse de mandar alguém procurar você. O amigo de Ash riu. – A senhora não faz ideia de como milorde estava preocupado. Nunca o vi tão perturbado assim. Ah, não, minto. Uma vez ficou muito preocupado sobre um ataque a Ranerike. Ele fez bem ter sido cauteloso naquele dia. Mas, hoje, eu o vi virar a cabeça à sua procura várias vezes, embora tivesse negado. Normalmente ele não presta atenção em saias ou num sorriso. Nós achávamos estranho, mas depois de chegar aqui descobrimos que ele havia deixado uma linda mulher o esperando. – Saxi! Chega! – Ash bateu o punho na mesa. Ash havia ignorado outras mulheres? Kara relembrou os nomes das amantes dele antes do casamento. Hring fizera questão de que ela soubesse de cada uma delas. Será que não tivera mais

nenhuma depois do casamento? Ela achou melhor apagar logo a fagulha de esperança. Precisava ser realista em vez de se pegar a ilusões românticas. Se ele não tivesse tido ninguém, provavelmente fora por não ter tido tempo por estar mais determinado a recuperar a honra e não porque tinha intenções de se manter fiel. No entanto, foi impossível calar a insistente vozinha interior que sussurrava: Agora parece que ele gosta de você. – Disse que queria jogar e agora me parece o lugar e a hora perfeitos. – Kara se sentou de novo onde estava e procurou controlar o coração que batia descontrolado. Ali parecia ser um lugar seguro, depois de ter vistoriado a cozinha após a festa e checado se Rurik estava dormindo de fato ou se bisbilhotava a festa de algum lugar escondido. Como estavam na frente de várias pessoas, o jogo permaneceria uma brincadeira inocente, bem diferente de fazer apostas em seus aposentos. Seria muito difícil concentrar-se tão próximo de uma cama, que a induziria a jogar errado. Deixar-se cair na cama com Ash seria um erro, além de piorar a situação, apesar de seu corpo clamar pelo dele, e a mente estar poluída com sonhos românticos. Confiança e disciplina eram os ingredientes necessários para um casamento feliz. Ela havia feito uma lista depois da morte de Hring. Nada mudara sua determinação de segui-la a contento. Fazer amor era ceder ao desejo efêmero. – A perfeição depende do seu ponto de vista. – Os olhos dele se tornaram mais azuis, escuros como a noite. – Eu esperava jogar mais tarde, mas podemos jogar agora. Vamos testar nossas habilidades um contra o outro e provar como combinamos bem. – O trovador pode cantar enquanto jogamos. – Kara preferiu sorrir ao deixar transparecer a excitação que lhe percorreu o corpo. Ela se lembrava de como eles combinavam muito bem na cama. O que a incomodava, porém, era a vida fora do quarto. – Quem sabe não organizamos um torneio com outros participantes? Fizemos um há três invernos com seu pai. Ele se divertiu bastante. – Quem foi o campeão? – perguntou Ash com um sorriso de lado. – Meu pai de novo? Ele sempre gostou de ser o campeão e ficava mal-humorado quando perdia. – Para desgosto do seu tio e diversão do seu pai, eu fui a campeã. – Meu tio e meu pai são parecidos de várias maneiras. Os dois odeiam perder. Kara fixou o olhar no tabuleiro, lembrando-se do torneio. – Seu tio sabe quando perde, mas seu pai jamais gostou de admitir. – Meu tio é meio pragmático. Você não precisa ter medo dele. – Ash colocou a mão sobre a dela. – Eu gosto mais de jogar quando há um bom desafio. Kara puxou a mão. Se quisesse mostrar suas habilidades a Ash, teria de se concentrar ao máximo. – Então, já que concorda, vamos jogar aqui diante de todos. Ash fingiu-se de inocente. – Onde mais poderíamos jogar? Precisa me esclarecer certas coisas, minha esposa. – Você está brincando comigo porque quer me distrair do meu jogo. – Ela o encarou no fundo dos olhos azuis. – Conheço todos os seus truques, Ash. – Espero que nem todos – murmurou ele. – Vamos começar e ver se sou páreo para uma vencedora? O jogo começou bem. Não demorou muito para que Kara percebesse como Ash era um bom

jogador, talvez até melhor do que o pai tinha sido. Mas ela não estava preocupada, pois havia passado horas nos últimos invernos treinando para jogar contra Hring e os outros. O jogo funcionava como um calmante, muito mais relaxante do que perder energia preocupando-se se tinham grãos o suficiente no armazém ou se as árvores seriam podadas na hora certa. E ela não havia perdido nem um desafio desde a morte de Hring. As duas vezes em que jogara com Valdar, a vitória fora fácil. Ash tinha razão, havia certa responsabilidade em ser campeão sempre. Kara estudou o tabuleiro. A estratégia básica de Ash era a mesa que Hring tinha usado antes. Tal pai, tal filho. Ela fez um movimento e capturou uma peça dele. – Você jogava bastante tafl durante suas viagens? – Uma vez eu consegui salvar a vida de um homem com um jogo de tafl. – Ele era um bom homem? – Kara inclinou-se para a frente, curiosa para saber mais sobre a vida dele. – Melhor que eu. – Por quê? – Ele simplesmente não teve sorte. Não sentia vergonha por ter causado a morte de outros homens. – Qual era a relação dele com você? – Foi meu protetor. Acreditou em mim e me tirou da obscuridade. – E por que você jogou, em vez dele? – Ele estava machucado, meu escudo tinha colidido com a cabeça dele. Mas de qualquer forma era um jogador fraco de tafl, e eu sabia que, se ganhasse, poderia negociar nossa liberdade. Mas se ele perdesse, estaríamos todos mortos. – E você ganhou. – Pela expressão dele, Kara percebeu que tinha ganhado. – Ele perdoou você? Afinal, salvou a vida dele. – A esposa dele e as duas crianças me perdoaram quando o levei para casa, mas precisei encontrar outro senhor. – Ash deu de ombros como se aquilo fosse algo sem importância. – Não vi Gudrun na festa. – Gudrun partiu esta tarde. Eu ofereci um chalé a ela. – Kara percebeu a mudança de assunto. Talvez um dia ele confiasse nela o suficiente para contar sua história. – Ela agradeceu pelo chalé e levou Virvir. – Você mandou Virvir junto? Interessante. – Pensei melhor e achei que seria uma boa alternativa em vez de castigá-lo. Ele não podia mais ficar conosco. Causou muitos contratempos desde que chegou depois da morte dos pais há dez meses. O incidente do telhado foi a gota d’água. – Castigos raramente funcionam – disse Ash, movimentando uma de suas peças e capturando uma dela. – Virvir terá menos tempo disponível. Deixe que Rurik o visite, Kara. – Vai dar conselhos fora do campo de treinamento? – Kara deixou cair sua peça e rapidamente moveu outra. – Você deve estar brincando. Sabe no que deu a última arte dele. Os dois precisam continuar separados. Não permitirei que aquele menino influencie meu filho para o mal. – Nosso filho. – Ash levantou a mão. – Por favor, considere o que eu disse e decida depois.

Mesmo relutante, Kara concordou meneando a cabeça. – Se proibir, vai acabar despertando o interesse de Rurik e, com isso, ele vai se acostumar a desobedecê-la. Virvir é o melhor amigo dele no momento. Eu costumava desobedecer meu pai para encontrar meus amigos. – Você está falando bobagem. – Kara revirou os olhos. Ash cobriu a mão dela com a dele. Kara sentiu o calor daquela mão forte percorrer seu corpo inteiro. – Falo por experiência própria. Rurik precisa de tempo para criar um novo deus para adorar. Com o tempo ele verá que esse Virvir não é um bom amigo, como já sabemos, mas você precisa dar a Rurik a chance de descobrir isso sozinho. – Ah, você pretende ser o novo deus dele? – exigiu ela, entrelaçando os dedos das mãos. Não podia permitir que a atração por ele nublasse seu bom senso. Ela bem sabia o que era ter Ash como um deus e sabia que essa adoração podia ser destruída pela indiferença. – Você ainda precisa ser adorado? – Nem tanto. – Ele deu de ombros e movimentou mais uma peça no tabuleiro. – Seria melhor que ele adorasse um dos meus homens. Alguém a quem possa apreciar mais do que o pai ausente. – E aqui está você, aquele que salvou a vida de um homem com um jogo de tafl. – Pode ser Saxi – disse ele, insistindo no assunto anterior. – Ele já teve filhos. Por enquanto Rurik está repetindo todas as bobagens que Virvir diz enquanto segura a espada ou o arco de forma errada. Ele estava observando nosso treinamento hoje de manhã com a sua criada, em vez de ajudar no armazém de cereais. Aproveitei a oportunidade para testá-lo. Kara torceu o nariz. Thora devia estar tomando conta de Rurik, mas era de esperar que ela não resistisse a presenciar os treinamentos dos guerreiros. E Ash nunca perdia uma oportunidade. – Rurik não sabe segurar um arco. – Concordo. Ele está posicionando os dedos no lugar errado. Desse jeito, jamais conseguirá matar uma presa ou acertar algum alvo além da porta do celeiro. Mas ele insiste em dizer que Virvir lhe ensinou daquele jeito. Kara pressionou os lábios e fez uma jogada rápida com uma de suas peças. Rurik estava usando um arco sem a permissão dela, e escalara a parede sem permissão… O que mais tinha feito? – Você deve ter entendido por que precisa ser treinado direito. Ele precisa aprender a não apontar a flecha para ninguém, a não ser que esteja em um campo de batalha. – Sem qualquer cerimônia, Ash derrubou mais uma peça dela. Kara franziu o cenho. O jogo não estava acontecendo como ela previra. – Ele é muito pequeno, Ash. – Mas está desesperado para ser um guerreiro. Afinal, ele é um menino e quer ter um herói, alguém em quem se espelhar. Não estou falando em mandá-lo para uma batalha ou para o mar, mas em ensinar habilidades de sobrevivência. – Como você conhece tanto sobre meninos? Ash gargalhou e o som a aqueceu até os pés. – Eu já fui um menino. – O que houve quando descobriu que seus heróis não eram exatamente o que você achava que

fossem? – indagou ela, mais concentrada na expressão do rosto dele do que no tabuleiro. Ash precisava entender a mágoa, quando o herói, a quem se venera, mostra-se ser alguém comum e cheios de erros. Ela sabia o quanto a descoberta doía no fundo do coração. – Estamos falando de Rurik ou de você? – Ash segurou o queixo dela com os dedos. – Eu gostaria de saber se você se lembra o que sentiu – disse ela, mantendo a cabeça imóvel, resistindo à tentação de virar o rosto e beijar-lhe a mão. – Lembro e sei o quanto dói – admitiu Ash com um suspiro, e soltou-a. – Você ficaria louca se tentasse proteger Rurik das dores e decepções, Kara. Precisa relaxar e confiar no bom senso do seu filho. Ele é um menino inteligente. Ninguém é perfeito. Não está certo transformar um homem num deus e depois odiá-lo quando descobrir que ele é apenas humano. Sua vez. Kara estremeceu ao segurar a peça do rei. Era fácil para Ash criticar, quando conhecera Rurik bem e forte, enquanto ela havia presenciado a luta do filho pela sobrevivência e cuidado dos resfriados que o abatiam todo inverno. Ela tratara todas as doenças dele até quando também estava fraca. – Perdi o interesse nesse jogo. – Ela colocou o rei de volta no tabuleiro. – Ainda preciso fazer uma série de coisas antes de me retirar. Talvez seja melhor terminarmos por aqui. – Há muito tempo aprendi que fugir não muda a verdade. – Ash apoiou a cabeça para trás nas mãos entrelaçadas. – Você vai desistir fácil assim? Nunca imaginei que fosse do tipo que foge ao primeiro sinal de derrota. Tanto que essa foi uma das razões principais pela qual me casei com você. Nunca desistia. Será que mudou tanto assim? Kara olhou para o tabuleiro. Ela ainda podia vencer, e Ash estava certo. Odiava admitir a derrota. – Minha batalha está apenas começando. Dito isso ela derrubou uma das peças dele só para mostrar que podia vencê-lo. – Muito bom. – Ele se inclinou para a frente para continuar. – Deixe-me seguir meu instinto com Rurik. Prometo que não acontecerá nada além do bem. Dê-me sua permissão e me deixe lutar pelo nosso filho. Aquele era um comportamento típico de Ash! Concordava num ponto e usava como alavanca para pedir mais. No entanto, ela entendia as razões dele e percebeu que pelo menos estava pedindo. – A última vez em que permiti que seguisse seus instintos, você partiu e só voltou sete anos depois. – As circunstâncias excederam ao meu controle. – Ele balançou os braços, efusivo. – Se eu soubesse o que estava perdendo aqui, teria me esforçado mais para voltar antes para casa. Kara sentiu o coração derreter. De certa forma, Ash estava se desculpando e gostava de estar em casa. – Vou levar isso em consideração. A luz da lareira ressaltou as maçãs bem delineadas do rosto dele. Os olhos haviam se transformado em piscinas da cor do mar de verão. A expressão do rosto era a mesma de Rurik, quando implorava para ser treinado. – Por favor, Kara.

O coração dela deu um salto. Odiava admitir que Ash poderia estar certo sobre Rurik e seus heróis. Além do mais, ele estava concordava em aceitar a decisão dela e não implorando perdão pelo que havia acontecido. Era uma questão de escolher o menos pior. – Está bem, não vou proibir Rurik de ver Virvir, e você será o responsável por manter nosso filho ocupado, mas em segurança. – Ótimo. – E sem qualquer cerimônia, Ash derrubou o rei dela. – O jogo é meu. Kara ficou perplexa. – Como você fez isso? Ash sorriu. – Meu pai lhe ensinou bem, mas conheço essa abertura que usou. Você é muito cautelosa e quer segurança quando se trata de ilusão. Eu esperei que cometesse um erro. Nunca desisto, mesmo que o horizonte seja negro. – Você não sabe como eu jogo. – Ela o encarou. – Não mais. Um músculo saltou no maxilar dele. – Nestes últimos dias eu a estudei com cuidado. Você é uma mulher fascinante, Kara. Incrivelmente fascinante. Kara umedeceu os lábios, desejando ser beijada, mas manteve o olhar preso no tabuleiro. – Você está me avisando que trapaceou? – Prefiro dizer que aproveitei todas as oportunidades, tendo paciência para esperar o momento certo. – Ele sorriu de lado. – A vida fica mais fácil assim. – Está tentando me dizer alguma coisa? – Kara retraiu-se. Odiava quando Ash a considerava óbvia, fácil de ser entendida. – Bem, saiba que eu também aprendo com meus erros e não pretendo repeti-los. – E eu sou um erro? – Ainda não decidi. – Ela percebeu que ele não gostou do que tinha ouvido e sentiu remorso. – Mas você me deu Rurik, e ele jamais será um erro. – Então concorda em jogar de novo amanhã à noite? Assim você pode me mostrar como ficou mais sábia depois desta noite. Kara franziu o cenho, decidindo que encontraria uma desculpa para não jogar depois. – Aceito o desafio. – Ótimo. Não vejo a hora de testar suas habilidades. Mesmo que se recuse a admitir, somos um páreo duro. – Ash alcançou a jarra de cerveja e se serviu. – O trovador deve cantar outras músicas. Alguma coisa mais agradável aos ouvidos. – Ele se lembrou de uma das sagas que ela adorava ouvir. – Agora não. Já é tarde e a canção é muito longa. Preciso descansar – disse ela, balançando a cabeça. – Desejo-lhe bons sonhos. Lembre-se de que a escolha de onde vamos jogar é sua. Kara sentiu o olhar intenso direto nos seus lábios, e foi como se estivesse sendo beijada com paixão. – Podemos jogar aqui mesmo. Mas sem apostas… Percebi o jeito que você joga. – Se eu quisesse desequilibrá-la, usaria outros métodos. Vou deixar que se iluda por enquanto. A voz grave de Ash acompanhou-a até que ela saísse do salão.

KARA ENTROU no quarto, encostou-se na porta fechada e escorregou até o chão, desconsolada com o poder que Ash exercia sobre seu corpo. Mas não podia arriscar seu coração de novo. Negar a atração era praticamente impossível, mas o coração pulsando em descompasso de novo era pior. Ash não era nem um pouco confiável. Por mais que ela procurasse listar os defeitos dele, acabava descobrindo que nenhum deles se aplicava mais. Ela respirou fundo, procurando se conformar que teria uma longa noite pela frente entre brigar contra os sonhos e como eles podiam se dar bem. – MILADY! – THORA entrou correndo na cozinha, onde Kara supervisionava a fornada de pães algumas manhãs mais tarde. – Eles começaram a treinar cedo hoje. Seu filho está empunhando uma espada de verdade. – Uma espada? Mas ontem era apenas um pedaço de madeira. – Kara observou a massa do pão antes de ser manuseada. Ash devia tê-la consultado antes de colocar uma espada afiada na mão de Rurik. Eles deveriam ter discutido o assunto antes, talvez até durante os jogos noturnos de tafl. Ela deu um soco na massa de pão. A conversa mansa de Ash a ludibriara. Fazia apenas uma semana que haviam conversado e ele invertera as coisas. Será que não aprenderia nunca que Ash usava um jeitinho para tudo o que queria? Não era coincidência o treino ter começado mais cedo. Talvez ele quisesse fazer segredo. – Achei que a senhora gostaria de saber. É um prazer observar os mercenários treinarem, a maneira com que os músculos se retraem com cada movimento… É uma festa para os olhos. Kara apressou-se para limpar as mãos. – Sim, obrigada. Continue a sovar esta massa, por favor. Kara ergueu o vestido e seguiu às pressas para o campo de treinamento. Havia vários mercenários treinando e várias mulheres observando. Ela bateu as mãos com força para dispensar todas para que voltassem para o trabalho. Ash e Rurik estavam no centro do campo. Rurik lutava para erguer uma espada da mesma altura que ele. A lâmina afiada reluziu com os raios de sol. Qualquer movimento em falso e Rurik podia se cortar, ou algo pior. – Ash! Ash! – gritou ela acenando os braços. – Rurik é pequeno demais! Pare com esse absurdo agora mesmo. – Veja por si mesma e decida. – Mas… – Você prometeu me dar uma chance! Que seja, então. Ash não desviava o olhar de Rurik, mas viu quando Kara se sentou esbaforida. Ele sentiu os ombros ficarem tensos, não fazia aquilo apenas por Rurik, mas também para provar a Kara que era merecedor de sua confiança. Se ela não confiasse nele num treino, por certo não acreditaria que o casamento podia dar certo. Rurik precisava aprender que tinha de crescer antes de usar uma espada. Naquela manhã, Ash o encontrara tentando erguer uma espada e se vangloriando para os meninos assistentes da cozinha. Ele não sabia onde Rurik havia encontrado a espada, mas o menino precisava aprender que uma espada não era brinquedo e devia ser tratada com o respeito apropriado.

– Segure a espada assim, Rurik, e não como você estava fazendo. Desse jeito, você vai perder a arma antes mesmo da batalha. – Ash mostrou a Rurik como balançar uma espada de forma adequada pela décima vez. – Sei que você queria usar a espada no treino de hoje. Vamos ver o que consegue fazer então. Rurik concentrou-se, franzindo o cenho, e repetiu os movimentos básicos que Ash fazia. Kara não se mexeu, atenta a todos os movimentos. Toda vez que Ash olhava para ela, notava o quanto estava preocupada. Linda, mas muito crítica e fria. O coração dele deu um salto. Ela precisava entender que o intuito do exercício improvisado era para que Rurik aprendesse a respeitar uma espada. Ash sabia que estava agindo corretamente. Depois, se necessário, pediria desculpas a Kara. – Quando vou poder lutar de verdade? – perguntou Rurik, tirando o suor do rosto, cheio de felicidade. – Os guerreiros precisam lutar contra outros guerreiros e com as espadas apropriadas. A briga deve continuar até ter sangue e eu conseguir uma cicatriz. – Quem disse isso para você? – indagou Ash, já sabendo a resposta. – Virvir. Ele disse que enquanto eu não lutar não serei um guerreiro de verdade. Um guerreiro precisa de cicatrizes. – Mas que diabos, quando ele disse isso? – Ontem à noite – respondeu Rurik cabisbaixo. – Nós combinamos de nos encontrar. Eu queria mostrar o que tinha aprendido, mas ele disse que isso era coisa de bebezinho. Ash não se surpreendeu por Rurik ter encontrado uma maneira de encontrar o amigo. Ele esperava que em poucas semanas, quando Rurik começasse a treinar de verdade, entenderia que Virvir era um bobalhão. Mas tinha de ser com calma. – Virvir é um guerreiro? Rurik ficou pensativo. – Não, mas ele sabe de muita coisa importante. Ele ouve o que dizem atrás das portas. Meu treinamento é coisa para bebezinho. Guerreiros de verdade usam espadas. – Como Virvir entrou na casa? – Pela cozinha. Ele me disse onde meu avô guardava as armas. Foi fácil pegar uma espada. Ash agachou-se e encarou Rurik nos olhos, orgulhoso da inteligência do menino. A primeira providência seria trocar o esconderijo das armas. Se Virvir sabia, os outros também deveriam saber. – Da próxima vez em que ele disser alguma coisa, venha me perguntar se é verdade, antes de pegar uma arma. – Ash colocou a mão no ombro de Rurik. – Eu já lutei muito mais batalhas do que ele e não preciso mais ouvir rumores. – Não está bravo por eu ter me encontrado com ele? – quis saber Rurik, piscando várias vezes seguidas. – Mamãe ficaria furiosa. Virvir disse que eu não devia contar a ninguém. Tinha de ser o nosso segredo e agora eu estraguei tudo. Ash olhou por cima dos ombros do menino e viu que Kara estava furiosa, de fato. Os dois cães perdigueiros estavam deitados aos pés dela. O sol de outono realçava as mechas mais louras do cabelo dela e beijava-lhe a pele. O desejo se fez presente, embora ele já estivesse se acostumando às reações de seu corpo ao vê-la. Como uma mulher podia ser tão atraente e tão enlouquecida ao mesmo tempo? O que mais ele precisaria fazer para merecer um lugar na cama dela? Toda vez em que se aproximava, ela dava um jeito de escapulir. Ele precisava descobrir qual seria a chave para

destrancar a paixão que residia no coração dela, mas estava ficando sem ideias de como encontrála. Tinha de ser algo simples. – Por que você fez uma arte dessas se sabia que sua mãe ficaria brava? – Se não fosse assim, eu não conseguiria nada. Não sou mais um bebê. Quero me aventurar e Virvir sabe tudo. – É preciso um aprendizado maior para ser um guerreiro do que correr atrás da glória ou contar histórias. Um guerreiro precisa usar a cabeça e a força. Levante essa espada e nada de reclamação. Eu prometi que vou fazer de você um guerreiro, mas precisa confiar em mim. Rurik assentiu com a cabeça e levantou a espada. Os bracinhos começaram a tremer e ele a derrubou em seguida. – Mas eu… eu… – Tente de novo, Rurik! – ordenou Ash. O treino seria mais curto do que de costume para que Rurik não se cansasse tanto. Mas Ash precisava agir com cuidado, pois a última coisa que queria era que o menino se sentisse um fracote. Rurik ficava furioso quando alguém insinuava que ele era doente ou que não aguentava completar uma tarefa. Seu filho era um lutador, e Ash agradecia aos deuses por isso, mas aquela energia toda tinha de ser bem canalizada. Ele já havia visto inúmeros homens cometerem erros quando ficavam bravos. – Rurik está cansado – gritou Kara de onde estava sentada, quando Rurik não conseguiu levantar a espada uma terceira vez. – Ash, ele precisa entrar e descansar. O menino balançou a cabeça. – Não sou o bebê que minha mãe acha que eu sou. – Rurik precisa levantar a espada primeiro – gritou Ash de volta, e disse para o menino: – Vamos lá, levante a espada acima da sua cabeça. Mostre a sua mãe que você consegue. Rurik redobrou os esforços, fincou os pés no chão e levantou a espada. Por uma fração de segundo a espada permaneceu no ar e o menino ficou perplexo. – Você conseguiu, Rurik! – gritou Ash, e Rurik soltou a espada arfando. – O treino de hoje acabou. Um bom guerreiro obedece a seu comandante. Pense em sua mãe como comandante. Respeite-a. – Acabou? – exigiu Kara, aproximando-se de onde eles estavam. – Por que você não fica mais um pouco e observa meus homens treinarem? – disse Ash, antes que Kara tivesse a chance de arrastar o filho dali. – Você verá que verdadeiros guerreiros também usam espadas de madeira. Os olhinhos de Rurik brilharam. – Posso ficar, mãe? Por favor! Kara não ficou muito satisfeita, mas permitiu, meneando a cabeça. Ela havia concordado que ele treinasse Rurik, mas assim que fosse possível afastaria o filho. E naquele dia o menino havia aprendido a não desistir ao primeiro obstáculo. Contudo, apesar de ter dominado a situação, ele precisava dar a ela a opção. – Por favor, Kara. Mas a decisão de decidir se o treino acabou por hoje ou não é sua – disse ele, estudando-lhe o rosto delicado.

Toda vez que olhava para ela, lembrava-se de que não tinha levado a sério os votos dela havia sete anos. Ou talvez não quisesse ter prestado a atenção. Ela se empertigou logo em seguida e alisou o avental com as mãos. Estava usando os broches que prendiam o avental, que ele a presenteara na manhã seguinte à noite de núpcias. Naquele dia, os olhos dela reluziram e o fitaram como se ele fosse digno de sua admiração, um olhar que ele ansiava presenciar novamente. Se fosse possível, ele estrangularia o jovem que havia sido por tê-la magoado. O que quer que acontecesse com o tio, ele jurou que Kara e Rurik seriam mantidos em segurança. – Está bem, ele pode ficar – disse ela depois de suspirar. – Como posso negar alguma coisa quando ele fica tão ansioso assim? Ash abaixou-se para falar com Rurik, olhos nos olhos. – Viu, só? Sua mãe permite que você faça as coisas, basta pedir. Agora, vá conversar com Saxi. Veja se aprende algumas dicas daquele velho guerreiro. Ele adora contar sobre a quantidade de batalhas que já lutou na vida. – Ash bagunçou o cabelo do filho e o empurrou na direção dos guerreiros. Rurik saiu correndo e já foi conversando com vários dos homens de Ash, inclusive Saxi. Ash meneou a cabeça, satisfeito. Saxi daria bons conselhos a Rurik, além de uma ou duas de suas histórias. Virvir e suas histórias sedentas de sangue logo seriam coisas do passado. E Ash poderia se concentrar em Kara. – Ele está em segurança entre seus homens? Você disse que são desesperados. – Os homens ficam bem mais calmos quando estão com a barriga cheia e um teto sobre suas cabeças. – Mas não são fazendeiros e sim guerreiros. Há uma grande diferença. Ash inclinou a cabeça para o lado, avaliando o humor dela. – Os guerreiros sabem seu lugar. – Mas quero alguém que entenda da propriedade. – Assim como você. Kara contraiu os lábios numa linha. – Eu aprendi por uma questão de necessidade. – Vai fazer bem a Rurik observar os guerreiros em ação e conversar com eles. Pode aprender algumas dicas. – Ash fez uma pausa, sabendo que precisava contar a ela o que Rurik lhe confiara. – Ele se encontrou com Virvir ontem à noite. Foi por isso que se meteu em encrenca agora cedo. Achei que você devia saber. – Virvir! – Kara ficou furiosa. – Por que Rurik continua me desafiando? Às vezes me arrependo de ter deixado Virvir morar aqui. Ele só traz problemas. – Meninos sempre serão meninos. Deixe-me resolver isso, Kara. – Em silêncio, ele torceu para que ela concordasse. – Veja como ele está animado. Meus homens o manterão protegido. Ele aprenderá que os melhores guerreiros respeitam as mulheres. – Você está falando de mercenários? – Falo de homens que sabem usar uma espada de forma adequada e não de valentões que

encorajam o mau comportamento – corrigiu-a Ash. Kara mordiscou o lábio, deixando-o da cor das rosas de outono. – Muito bem, é melhor eu ir e inspecionar as costuras. Tenho muito o que fazer para nos prepararmos para o inverno, e não posso ficar observando guerreiros treinando, por mais que as criadas digam o contrário. Quando seus homens forem embora, imagino que teremos um grande número de grávidas. – Fique… Fique e me observe treinando – pediu Ash com uma voz insinuante, ansioso para que ela aceitasse. Ele sempre encontrava desculpas para afastá-la, mas naquele momento queria tê-la por perto. Queria se exibir para ela. Seria impossível que ela não amolecesse um pouco. – Fique como você costumava fazer. Kara corou ligeiramente e virou a cabeça na direção dos cachorros. – E por que eu ficaria? Não preciso aprender a lutar com espadas. Não tenho nenhuma intenção de participar de uma batalha, além de ter milhares de outras coisas a fazer. – Eu me empenho mais no treinamento quando sei que você está olhando. – Exibicionista – disse ela, umedecendo a língua ligeiramente. O rosto assumindo a cor de cerejas maduras. – Estarei demonstrando minhas habilidades. – As habilidades de um guerreiro não são necessárias numa fazenda em paz. Por que não demonstra suas habilidades com os animais ou ensacando os grãos? Ash contraiu o maxilar. Kara estava disposta a brigar por qualquer motivo, e ele sabia que não podia explicar sobre o plano que tinha em mente. Se soubesse, ela levaria Rurik embora junto com todas as esperanças de ganhar a confiança dela. Um dia ele ainda provaria que ela precisaria dele e de suas habilidades específicas. – Eles garantem que a fazenda continue em paz. Você tem homens suficientes para cumprir as outras tarefas, mas esta propriedade não está bem defendida. – Ele fez uma pausa e observou como ela ficara abalada com a constatação. – Vai negar? Kara desviou o olhar dos cães e ergueu o queixo, parecendo-se com a pintura de uma dama virtuosa. E ele só podia observar em vez de dar vazão ao desejo e abraçá-la cobrindo-lhe os lábios vermelhos com um beijo apaixonante. Fazia muito tempo que não exercitava tanto seu autocontrole. – Vou assistir apenas para poder responder às perguntas de Rurik esta noite – disse ela, esboçando um sorriso triunfante. – Que tipo de mãe eu seria se não soubesse responder às dúvidas do meu filho. – Tenho certeza de que ele está feliz por você se interessar. – Ash baixou o tom de voz e completou: – Eu estou. – Ora, pare com isso. – Kara abaixou a cabeça e fingiu tirar o pó do vestido com as mãos. – Você se supera. Ash capturou a mão dela entre um movimento e outro e a beijou suavemente. Ela sentiu a pele se elevar em doces arrepios. – Sinto muito se a ofendi. Kara puxou a mão de súbito, mas havia um brilho maroto em seu olhar.

– Desculpas aceitas. – Ela franziu o nariz. O coração de Ash deu um salto. O gesto discreto era tão característico de Kara que ele se culpou por ter se esquecido. Costumava fazê-la franzir o nariz só pelo prazer de observá-la. – A quem estou enganando? Sim, gosto de ver você lutar. Sempre gostei. Apesar de ser muito emocionante assistir, estou aqui por Rurik. – Eu sempre dava o melhor de mim sabendo que você estava me vendo, Kara, até mesmo quando se escondia atrás das moitas antes de nos casarmos. – Oh, eu não… Quero dizer… Foi apenas uma vez, quando eu o procurava para devolver seu falcão. – Ela arregalou os olhos. – Nossa, você se lembrou disso! – Faz tempo que eu não pensava no assunto – admitiu Ash. – Mas a cena está gravada na minha memória. Essa foi uma das razões que dei ao meu pai quando ele me perguntou com quem queria me casar e eu escolhi você. Achei que daria certo… ainda tenho a mesma opinião. – Você não pensava porque tinha coisas mais importantes para pensar, não é? – Kara não conseguiu esconder a indignação. – Eu entendo. Não se esqueça que meu filho não é algo que se esqueça ou ignore como eu fui. Ele também não deve ser humilhado. Ash precisou conter a fúria. Ela havia distorcido suas palavras. De fato, ele colocara as lembranças deliberadamente de lado, pois de nada valeriam numa guerra infindável onde estava preso. – Lembro-me do meu pai gritando comigo neste mesmo campo de treinamento, exigindo que eu fosse um homem, um guerreiro e nunca fosse fraco como uma mulher. Eu jamais humilharia Rurik dessa forma. – Acredito em você. – Os olhos dela adquiriram um brilho novo. – Meu filho é o meu futuro. Quero que ele tenha sucesso em vez de achar que nunca estará à altura dos outros. Ele precisa saber que sempre pode voltar para casa se quiser. – Ótimo, fico feliz em saber. É que às vezes você parece mais interessado em exibir suas habilidades do que em ensinar. – Ela ergueu a mão, impedindo-o de protestar. – Foi só uma observação, Ash… analisando de onde estou. Ele fez uma careta, pois achava que merecia rebater a observação, mas mudou de ideia dizendo apenas. – Suas observações são sempre muito bem-vindas. – Ora, é muita gentileza sua… e algo inesperado. – É a verdade. – Ash estendeu a mão e pegou a dela. – Prometo que vou tomar conta dele direito, Kara. Rurik é tão precioso para mim quanto é para você. Não o conheço há tanto tempo, mas gosto do que vi. Ele é um menino que qualquer homem se orgulharia de chamá-lo de filho. Nunca poderei pagar pelo que você fez pela sobrevivência dele. – Obrigada – disse ela, segurando a mão dele com mais força. – Do que você tem tanto medo? – perguntou ele, sem desviar a atenção dos lábios dela. Kara desviou o olhar e puxou a mão. O ar fresco do outono preencheu o espaço entre eles. O breve momento de espontaneidade passou tão rápido quanto a névoa da manhã. – Eu já me demorei bastante. – É uma pena. Quem sabe uma próxima vez você assista ao treino.

– Vou pensar a respeito. – Em silêncio, Kara jurou encontrar outra maneira de ficar de olho em Rurik, algo que não levasse Ash a presumir coisas erradas a seu respeito. Ou observá-lo pessoalmente não seria a melhor ideia? A vozinha incômoda em sua mente estava sempre fazendoa repensar. Mas dessa vez ela relutou. Ash partiria quando a neve do inverno derretesse. O mar e o amor por aventura corriam junto ao sangue em suas veias. É por isso que ele submetia seus homens a um treinamento tão rígido. Ele também partiria. Mas dessa vez o coração dela permaneceria em terra firme. Se bem que ela não estava tão certa disso quanto gostaria. Cada vez que se encontrava com Ash, seu coração batia mais forte. Kara colocou a mão na boca e saiu correndo. Ele era um homem confiável para se amar. – EU ME rendo! – Saxi levantou o escudo. – Você provou o que queria. Ash fez o movimento seguinte de ataque e abaixou a espada. Seu rosto estava molhado de suor. Era bom demais se exercitar e lutar. – Está um pouco lento hoje, Saxi. – Você treina muito pesado, velho amigo. Vai acabar machucando a perna de novo. Por instinto, Ash esfregou a coxa sobre o ferimento. Quando parou de se movimentar, a perna começou a doer de novo. No entanto era mais fácil treinar forte do que pensar em Kara e em como o vestido evidenciava seu corpo curvilíneo. – Sei o que estou fazendo. Saxi pressionou os lábios, como se quisesse dizer mais alguma coisa. – É você que paga o ouro. – Você consideraria ficar depois…? – Ash inclinou a cabeça de lado. Estava sendo pragmático. Kara parecia mais distante do que nunca. Era apenas uma questão de tempo antes de o tio dar o próximo passo e a luta seria ferrenha. Preparando-se para se o pior acontecesse, seria bom deixar alguém de confiança tomando conta de sua família. Saxi desenhou uma linha na terra. – Sabe que devo minha vida a você. – Você deu uma olhada nos arredores? – Ash içou uma das sobrancelhas. – Ou nas mulheres? – Fico impressionado por você ter esperado tanto tempo para voltar. – Eu tinha meus motivos – disse Ash, olhando para a tunt reet. Alta e majestosa. – Você não conheceu meu pai. – Sua esposa é um desses motivos? – quis saber Saxi. – Isso não é da sua conta. – É da minha conta a partir do momento que você nos faz treinar forte para parar de sonhar com ela. Ainda está dormindo fora de casa, Ash. Isso não é bom. – Você está ficando um molenga. Acho que é muita cerveja, festas e mulheres. Quero que todos estejam na melhor forma. – Ash olhou para o rio vazio. – Meu tio vai aparecer em breve. Quero estar pronto. – Acha que seu tio virá atrás de você? – Escapamos de Sand com muita facilidade. – Sua esposa sabe que foi uma escapada? – perguntou Saxi. – Parece que ela está mais

preocupada em armazenar comida do que tomando precauções. – Ela achou que saímos às pressas por eu estar ansioso para ver meu filho. Não esclareci nada. – Ash espreguiçou-se. – Eu queria vê-lo, é verdade, mas queria também estar de posse de Jaarlshiem quando meu tio avançasse. – Conte a ela, meu amigo. Mas conte já. As mulheres gostam de se preparar em caso de guerra. – Eu não quero causar preocupação. Pode ser que meu instinto esteja errado. Quando eu era mais jovem, meu tio era meu amigo. – Quando você disse que nosso navio chegaria? Deixei meu melhor escudo a bordo. Ash toldou os olhos com a mão contra o sol e olhou para o rio. – Eu achava que fosse hoje, mas pode demorar um pouco mais. Helgi, o Baixinho, me pregou uma peça. Ele tem várias dívidas de vida comigo e sabe que vou caçá-lo. – Você pode ser muito cruel quando quer. – Prefiro ser sincero. Eu me recuso a me preocupar até metade da semana que vem. Terei tempo suficiente para contar a Kara se o navio não aparecer. Ash fez uma pequena oração para os deuses na esperança de até lá já ter despertado a paixão dela. – Minha esposa gostava de saber dessas coisas com antecedência. – O guerreiro grisalho encolheu os ombros. – Confie nela e pare de encará-la como se quisesse devorá-la. – Se souber, Kara vai entrar em pânico e levar Rurik para longe. Eles estão mais seguros aqui. – Ou seja, estão mais seguros com você. – Nada acontecerá a ela ou ao nosso filho. Eles ficarão aqui. Foi por isso que comprei sua parte. – Um músculo saltou do maxilar de Ash. Ele sabia o que estava fazendo, pois já havia feito esse mesmo jogo antes em Viken, mas nunca apostara tão alto e não com alguém que gostava. – E então, está preparado para lutar de novo? – Durma com ela e conte antes de o sol nascer. As mulheres amam se sentir protegidas. Minha esposa gostava. Vocês devem ter mais filhos. Seu filho é crédito de vocês dois. – Saxi tirou o elmo. – Assim nós teremos uma chance de descansar. Pense que está nos fazendo um favor. Ash revirou os olhos. Tinha sido muita ingenuidade que todos não estivessem desconfiados de suas maquinações. Mas não estava nem um pouco interessado em ser aconselhado sobre como seduzir a esposa. – Ela precisa de tempo. Foram sete anos separados. – Vale a pena lutar por ela, Ash. Isso vale para todos os bons. – Se eu precisar de seu conselho, pedirei. – Ash ergueu a espada. Se continuasse lutando talvez os sonhos com uma linda mulher loura de olhos azuis profundos parassem de atormentá-lo. – Vamos continuar ou você está ficando velho?

Capítulo 12

KARA INSPIROU o ar doce do estábulo. Ao perceberem sua presença, os cavalos bateram os cascos no chão. Para variar, estava sozinha. O que era bom, pois pensava melhor quando estava entre os animais. Os cães estavam sentados num canto do estábulo, aguardando que ela terminasse. Ela pegou uma escova e começou a trabalhar numa égua que estava mais próxima. Era uma tarefa simples, mas a ajudaria a ficar mais calma e segura para conseguir dominar o desejo por Ash que só fazia crescer. Como se não bastasse, ainda procurava se convencer de que se tratava apenas de uma forte atração física e não de um sentimento mais profundo. Seria muito tola se entregasse seu coração a ele uma segunda vez. – Por que você nunca está onde deveria? – exigiu Ash, entrando no estábulo como se os pensamentos dela o tivessem atraído. O cavalo reagiu ao susto, mas continuou parado. – Eu espero até você terminar para conversarmos. Kara concentrou-se em escovar a égua, preferindo procurar carrapatos do que olhar para a porta, onde Ash estava. Quando terminou, ela se afastou, surpresa por ele ainda estar esperando. – Sempre gostei de cuidar dos cavalos. Thora sabia onde eu estava. – Mas eu não sabia. – Por acaso tenho de informá-lo sempre que mudar de tarefa? – indagou ela, colocando a escova sobre um banco. – Senti sua falta e queria dizer que você estava certa – disse ele, trocando o peso de uma perna para outra. – O unguento que me deu ajudou minha perna a melhorar. Quis esperar um pouco para ter certeza antes de agradecer. Não queria que pensasse que sou mal-agradecido. O coração de Kara deu um salto ao pensar que ele tinha sentido saudades. E o unguento tinha ajudado.

– Que bom. Posso ver? Ash agachou-se e aos poucos levantou a calça. Havia uma grande cicatriz a partir do calcanhar. O músculo cicatrizara torcido. – Está vendo por que eu disse que nada adiantaria? Atingiu o joelho também. – Se me permite… – Ela se ajoelhou ao lado dele e passou a mão pela cicatriz, a fim de sentir como os nódulos reagiam com a pressão de seus dedos. – Isso pode melhorar com massagens constantes. – Você tem mesmo um toque que cura. Isso é uma oferta? – Talvez. – Então, eu aceito. O ambiente de repente ficou mais leve e provocante. Kara sentiu uma tentação quase incontrolável de chegar mais perto e roçar os lábios nos dele. Mas, em vez disso, ela se levantou rápido e fingiu estar ocupada, pegando a escova novamente. – Como soube onde me encontrar? – Eu me lembro que você costumava vir ao estábulo quando estava chateada. – Ash desceu a calça e abriu um sorriso maroto, como se não tivesse notado que ela havia se retraído. – Fizemos amor em cima do monte de feno quando a encontrei aqui depois que meu pai ralhou com você por causa do caldo de carne do jantar. Você se animou bastante. Eu queria ter certeza de que não estava magoada. Kara largou a escova com a mão trêmula, visivelmente perturbada por ele ter lembrado daquela noite. Ela chorara sobre o tórax de Ash, até que ele a fez parar com um beijo apaixonado. Contudo, mesmo depois de terem se amado loucamente, o problema com Hring não se resolvera. E Ash partira cinco dias mais tarde, sabendo que ela precisava de alguém para protegê-la do sogro. – Sinto-me feliz porque Rurik está bem e a fazenda é próspera. Por que eu estaria triste? – Você não falou nada sobre a minha presença aqui. Há muita coisa por resolver entre nós. – Rurik está muito contente por finalmente ter o pai, o verdadeiro, por perto. Ele se desenvolveu bastante. Ash colocou a mão sobre o ombro dela e a puxou para mais perto. As respirações se confundiram. – Mas quero ser um marido tão bom quanto um pai. Dito isso, ele cobriu os lábios dela com os seus. A paixão dominou os sentidos dos dois, despertando a chama ardente que Kara vinha tentando apagar. A ponta da língua de Ash pediu passagem por entre os lábios fartos dela. Quando não houve resistência, ele passou a brincar com a língua dela como se estivesse num doce bailado. Kara suspirou e embrenhou as mãos no cabelo dele, acariciando-o languidamente. Aos poucos o calor do desejo envolveu os dois. Kara sentiu-se no centro de um vulcão prestes a entrar em ebulição. Ash de repente deixou a boca de Kara desamparada para deslizar os lábios até o lóbulo da orelha dela, provocando-a ao mordiscá-lo e sugá-lo. Ash passou as mãos pelas costas dela, aproximando-a mais e deixando que ela percebesse o quanto estava excitado. Numa lentidão torturante, ele ergueu as saias volumosas e insinuou as mãos entre as coxas dela. Não encontrando resistência, ele ousou mais, até sentir o centro da

feminilidade dela já umedecida. – Ash… – murmurou ela, mas já não saberia dizer se queria que ele parasse ou continuasse. – Deixe-me… – suplicou ele, caindo de joelhos diante das saias levantadas. Em algum lugar uma porta bateu e um casal rindo também entrou no celeiro. Kara congelou. – Aqui não – sussurrou. – Então, onde, Kara? Quando? – perguntou ele ofegante, como se tivesse participado de uma corrida. Kara deu um passo atrás com o rosto pegando fogo, tomando consciência de que tinha se comportado como uma égua no cio, pior do que uma meretriz que se deitava com desconhecidos. Ash observou-a, sem compreender o medo que viu no rosto dela. – Fale comigo, Kara. Diga o que há de errado. – Preciso de tempo, Ash. – Ela passou as mãos nas saias, alisando-as, embora suas coxas protestassem a falta das mãos másculas que as acariciara. – Onde? Estamos casados. Costumávamos nos divertir antes de eu viajar. – Se é que nosso relacionamento podia ser chamado de casamento. – Kara estalou os dedos numa bravata. – Você partiu algumas semanas depois. – Nós nos conhecíamos há anos. – Sim, é verdade, mas eu era uma menina que vivia com a cabeça nas estrelas e os olhos reluzindo, enquanto você era o menino que não podia fazer nada errado. – Sempre gostei de como seus olhos brilhavam e como eu me sentia bem perto de você. – Pouco mais de um ano depois eu era uma viúva, até onde se sabia – disse ela com o olhar sombrio. – Você chega sem avisar, quer entrar de novo na minha vida e virá-la de cabeça para baixo. – Não faz ideia de como me arrependo por isso ter acontecido – disse ele, segurando o queixo dela com a ponta do dedo. – É impossível mudar o passado. – Você não se importava em estar longe da sua esposa? Ou procurou consolo como estão fazendo aqueles dois? – Ela cobriu o rosto com as mãos. – Ignore aquilo. Prometo que nunca serei como minha mãe. Ash colocou as mãos sobre os ombros dela, mas estava diferente dessa vez. – Kara, serei honesto com você. Eu tentei não pensar em Jaarlshiem, Raumerike ou até mesmo em você. Assim consegui enfrentar melhor os horrores de minha vida. Saiba que passei por muita coisa, principalmente ao ver meus amigos morrerem e ter de sobreviver apenas com a minha força de vontade. Kara ficou prestando atenção, ansiosa para que ele contasse mais. – Não voltaria para casa coberto de vergonha. Você não me aceitaria como marido. Mas não houve outra mulher. Eu era um mercenário casado à procura de sua honra, e não um selvagem procurando alguns momentos de paz entre as coxas de uma desconhecida. Kara revirou os olhos. – Você perguntou e merece a verdade. Tentei não pensar em você. Mas voltei para casa e, para qualquer lugar que eu olhe, encontro nossas lembranças. Estou ansioso por recomeçar quando

estiver pronta. – Ash – disse ela, espalmando as mãos no tórax dele, antes de ele inclinar a cabeça para a frente de novo. Se ela cedesse, haveria muitas incertezas entre eles. Ash acreditava que uma noite de amor ajeitaria tudo. Mas ela acreditava que só complicaria. – Seu pai me contou sobre as outras mulheres. Ele me forçou a conhecê-las e a ouvir suas histórias. Depois me disse como você fazia amor… e o que gostava e como as seduzia. – Meu pai fez isso? – Ash ficou vermelho de raiva. – Ainda bem que está morto, caso contrário eu arrancaria o coração dele com as minhas mãos. Ele não tinha esse direito. – Ele queria que eu me desanimasse com Rurik. – Ela fechou os olhos, lembrando-se das outras mulheres… todas mais bonitas do que ela. – E quase conseguiu. – Essa era a estratégia do meu pai para conseguir o que queria. – Ash ergueu o queixo dela com a ponta do dedo, forçando-a a fitá-lo nos olhos. – Ele não devia ter feito isso. Nunca me casei com nenhuma daquelas mulheres. Você foi a única com quem quis me casar. Voltei para casa por você. – Mas aquelas mulheres diziam a verdade – disse ela sem nenhuma emoção na voz, passando os braços pela cintura e reprimindo o desejo de encostar a cabeça no tórax dele e chorar. Ela esperava outra reação; tinha esperanças de que ele negasse tudo. – De hoje em diante você terá de pedir um beijo. Não tomarei a iniciativa – disse ele, deixando os braços penderem ao longo do corpo. – Pedir? – Ela piscou. – A última coisa que quero é forçá-la a fazer alguma coisa, Kara. Por mais que queira, não posso mudar o passado. Eu a quero de volta, mas não quero que me acuse de seduzi-la. Vale tanto para mim quanto para você. Se quiser ser beijada terá de pedir e não provocar ou insinuar, apenas pedir. – Não sei se estou entendendo direito… Ele assumiu um ar sério antes de dizer: – É a sua vez de fazer um movimento neste nosso jogo. Pare de hesitar e faça alguma coisa. Saia do conforto. Se quer se desvencilhar do passado, faça alguma coisa. Está no comando agora. As coisas podem ser diferentes do passado. Você também tem um pouco de responsabilidade pelo nosso antigo casamento. Mas eu estou disposto a mudar. E você? Ela se empertigou toda para não perder a postura, mas estava muito nervosa por dentro. Ash não estava certo, pois ela sempre tentara se comportar da maneira correta. Não estava apenas evitando os sentimentos, mas protegendo o coração de uma segunda grande desilusão. – Vou levar seu conselho em consideração. KARA AFASTOU-SE da roca depois de ter terminado de enrolar todos os novelos de lã. Agora vinha a parte mais interessante: usar o tear para confeccionar o tecido. Já era tempo de assumir responsabilidades em vez de ficar sonhando com Ash ou se escondendo com os animais. Ash tinha acertado no dia anterior quando dissera que ela estava evitando assumir responsabilidades. Thora e as outras mulheres tinham trabalhado bastante em suas rocas ou teares com a lã daquele ano. Ela, ao contrário, negligenciara as obrigações para observar Rurik e Ash treinarem. Na noite anterior ela tivera um sonho bastante elucidativo sobre as tarefas que havia deixado por fazer em

vez de ficar estudando como os músculos de Ash se moviam enquanto treinava Rurik. Fora um aviso para ela reassumir o curso natural de sua vida. Não que estivesse negando a atração que sentia por Ash, mas não estava preparada para arriscar seu coração. Ele o menosprezara uma vez. Era preciso ter certeza de poder manter o coração em segurança se quisesse continuar com aquele casamento. Já tinha cometido o erro de se entregar de corpo e alma e não recebera nada em retorno. Ele precisava demonstrar um desejo maior. – Aí está você, Kara. Trabalhando duro como de costume. – Ash surgiu à porta com o cabelo brilhante, a luz de fora sombreava o corpo másculo, deixando a impressão de que os ombros eram maiores e os quadris bem estreitos. Kara estremecia só em olhar para aquela silhueta. – Estava me procurando? – quis saber ela, forçando um tom de voz natural para desviar a atenção do coração que parecia bater para fora de seu tórax. – Você não apareceu para assistir aos treinos desta manhã. – Estamos atrasadas para tecer toda esta lã. – Eu queria falar com você sobre Rurik e não pode esperar. Por isso o tear terá de ficar para trás. Kara ficou desapontada. Precisava parar de pensar que ele a procuraria simplesmente para passar algum tempo em sua companhia. Ele havia dito que caberia a ela a próxima atitude, mas era ele que estava ali procurando-a. Isso era um bom sinal. – Vamos. – Diga a verdade. Por que não foi ao nosso treinamento hoje? – Esta manhã, durante o café da manhã, Rurik me informou que já era um menino grande e que não precisava da mãe para tomar conta dele. – Kara cruzou os braços debaixo dos seios. Focar o assunto em Rurik era mais seguro. Ela não queria continuar a conversa que tinham tido no estábulo ali, onde muita gente poderia ouvir. – Ele só tem 6 anos e não tem tempo para a mãe. Mas eu obedeci e não fui. – Ele precisa da mãe. Ele te adora. – Você está sendo gentil. Tenho de admitir que sua ideia de afastar Rurik de Virvir tem dado certo. Em vez de repetir o que Virvir diz, ele agora só fala em Saxi. – Que notícia excelente! – Saxi é um bom exemplo de homem para Rurik se espelhar? – Saxi não é apenas um bom homem, mas um grande guerreiro também. – Ash demonstrou tristeza. – Ele tinha três filhos, e foram mortos pelos germânicos. O filho mais novo tinha a idade de Rurik. Kara concentrou-se no tear, pensativa. Ela nunca nem imaginara que um guerreiro podia ter outra vida que não aquela. Ash tinha sido delicado com o amigo. – Lamento a perda dele, e também por ter duvidado de você. – Desculpas. Você nunca vai parar de duvidar? – Os olhos azuis dele reluziram. – Você educou nosso filho muito bem. Qualquer homem ficaria orgulhoso em tê-lo como filho; fico feliz que seja meu. – Você queria me ver por mais algum motivo? O tear me espera – disse ela, mudando o assunto. – Quero levar Rurik numa caçada adequada, e quero que ele vá com a sua permissão. Ele precisa aprender. Saxi concorda comigo. Ele costumava levar o filho mais velho dele quando tinha a mesma

idade de Rurik. Kara levou as duas mãos à boca. Uma caçada. Ela não queria nem pensar sobre a possibilidade de Rurik se machucar. O pai dela havia morrido num acidente durante uma caçada. – Ele é muito pequeno. Caçar é bem diferente de treinar no campo daqui. – Rurik precisa aprender. – Ash estava animado com a aventura. – Ele sabe manejar bem o arco e a flecha, e esse talento precisa ser estimulado e não ignorado. – Ele não pode atirar em alvos falsos aqui mesmo e aprender? – O menino precisa do desafio. Algo que ocupe sua cabeça. – Será que ele andou fugindo para se encontrar com Virvir de novo? – Não, mas em algum momento ele encontrará Virvir e terá alguma coisa para se vangloriar. – Ash colocou a mão sobre o tear. – Deixe isso e venha comigo, Kara. Agora. – Isso é uma ordem? – Kara gesticulou, abrangendo a sala toda. Caçar e Rurik eram duas palavras que não combinavam. Mesmo sabendo que Ash estava certo, ela não se sentia preparada para deixar o filho sair naquela aventura. Desde a conversa que tiveram no estábulo, sempre que Ash a procurava era para falar de Rurik e não sobre o relacionamento deles, algo que a frustrava muito. – É um pedido, e não uma ordem. – Olhe ao redor e veja você mesmo o quanto há por fazer. – Kara esforçou-se para não perder a calma. Por que a vontade dele tinha de ser satisfeita na hora? – Estamos com falta de uma criada com a ausência de Gudrun. Thora está treinando a sobrinha dela, mas a menina é muito desajeitada no tear, pois está muito mais interessada em falar sobre os seus guerreiros. Palavras não aquecerão ninguém quando chegar o inverno. – Estou pedindo que saia uma tarde apenas. Esta tarde. – O tom austero da voz não dava espaço para uma recusa. – Nem notará a diferença com a sua ausência. Você sempre odiou tecer, Kara. Eu me lembro de como reclamava a respeito quando era menor. Kara colocou a mão na boca. Até aquilo ele se lembrava?! Depois que a sua mãe havia falecido, a tia viera para tomar conta da casa para o seu pai e insistira para que Kara aprendesse a tecer em vez de ficar tomando conta dos animais. – Você não entendeu que tenho muito a fazer? O inverno está chegando e não espera ninguém, nem mesmo você. – Quero mostrar o que planejo fazer quando levar Rurik sozinho para que se acalme. Você produzirá muito mais se não estiver com a cabeça constantemente cheia de preocupações. Os olhares se cruzaram. Ela havia cometido o erro de encará-lo e se afogar nas profundezas daqueles olhos azuis. – Quero que esteja segura de que Rurik estará bem, em vez de ficar imaginando os perigos que ele poderá correr. Sei que tem uma imaginação muito fértil. Se não ficar satisfeita, não direi a ele que pretendia levá-lo para caçar. O coração de Kara se confrangeu. O convite tinha sido inesperado. Ash estava fazendo aquilo por ela, para acabar com seus receios, em vez de levar Rurik sem permissão ou criar expectativas no menino. Ela precisava ceder também e confiar em Ash. – Por acaso está me convidando para ir caçar com você sozinha?

– Eu diria que vamos rastrear os animais, e aprenderemos a rastrear os mais difíceis. – Ash deu um sorriso de lado. – Você costumava me implorar para levá-la sempre que eu saía em uma expedição. Kara colocou as mãos na cintura. – Você se divertia me levando para rastrear os animais. – Mas você nunca desistiu. – É verdade. – Kara sentiu a garganta seca. Antes de ter Rurik, ela costumava aceitar a ideia dos outros sem reclamar. Sempre querendo encontrar o melhor em tudo. – Sou uma mulher muito determinada. – Venha comigo esta tarde. – Ash abriu os braços, mostrando todas as outras mulheres que trabalhavam ali. – Deixe o trabalho para elas. Diga que vai sair. Só nós dois, como nos velhos tempos. O coração de Kara aqueceu-se. Ash estava querendo passar algumas horas juntos. Sozinhos. – Dessa forma saberei o que você fará Rurik passar. – Exatamente. – O sorriso alargou-se, iluminando o rosto dele. – Prometo que nada acontecerá com você. Quero dizer, nada que não queira. Não vou pedir que lance uma flecha para matar um passarinho. – Ash começou a enumerar alguns incidentes de outras épocas que ambos se lembravam muito bem. – Eu nunca reclamei – disse ela, firme. – Teria sido melhor se tivesse reclamado. É impossível saber o que está pensando quando se fecha dessa forma. – Não se arrependa daquelas excursões, eu gostei bastante… de certa forma. Ash deu outro sorriso de lado. – Eu achava que você era uma amolação. Mas era muito tolo naquela idade. – É difícil andar com uma garotinha pegando no seu pé. Você foi muito bom, Ash. Eu nunca me machuquei. – Saki tomará conta de Rurik enquanto estivermos fora e o ensinará a como colocar as penas na extremidade de uma flecha. – Thora pode cuidar dele – disse Kara, decidindo de outra forma. Ela queria ir, não apenas por causa de Rurik, mas também para passar algumas horas sozinha com Ash. Fazia muito tempo desde a última vez em que haviam passado uma tarde juntos. E ela não estava com medo, porque estava no controle da situação. – VOCÊ SABE me dizer qual animal passou por esta trilha? – indagou Ash, ajoelhando-se num montículo ao lado de um pequeno lago. – Use o que eu ensinei hoje e não o que já sabia. Finja que é Rurik. Kara respirou fundo, deixando-se invadir pelo ar fresco da mata, e isso era muito melhor do que estar fechada numa sala tecendo. Aquela era uma das últimas tardes inesperadamente quentes de outono. De manhã o lago ficava coberto por uma camada fina de gelo, mas quando o sol da tarde incidia sobre a água o ar ficava mais fresco. Kara não se lembrava quanto tinha sido a última vez que desfrutara daquela sensação de liberdade, sem nenhuma responsabilidade além de se divertir.

– Ainda bem que você reconheceu finalmente que sei rastrear animais. Ash começou a rir. – Eu sempre soube, mas queria que você soubesse que posso ensinar também. Ela olhou para várias pegadas no terreno enlameado. Uma variedade enorme de animais tinha passado por ali. – Em quais rastros você está interessado? – Naqueles que estiverem mais perto do lago. Esses são os mais difíceis de rastrear e são os que quero seguir com Rurik. Você acha que pode descobrir? – Claro que sim, e com um pouco de ajuda Rurik também saberá. – Kara abaixou-se e examinou as diferentes pegadas. Fazia anos que ela não fazia aquilo e havia se esquecido de como podia ser divertido, ainda mais em companhia de Ash. – Ali temos pegadas de um coelho sendo seguido por uma raposa. Os cascos de um cervo enlamearam a trilha, mas os dois animais menores passaram por aqui primeiro. Ela segurou um pouco a respiração, embora confiante de que tinha acertado. Mas a opinião de Ash era muito importante. Ele fora um professor paciente, bem diferente de quando eram menores. Ele perdera tempo em explicar tudo, até mesmo quando ela o lembrava que já havia aprendido aquilo. – Bom. Muito bom. – Ele se agachou ao lado dela com um sorriso largo. O coração dela disparou, levando-a a imaginar como tinha passado tanto tempo sem a luz daquele sorriso. – Pensei que levaríamos várias tardes de trabalho intenso até você conseguir rastrear os animais separadamente. As pegadas da raposa estão bem difíceis de rastrear. – Eu aprendo rápido. Sempre aprendi. Tinha esquecido de alguns detalhes, que você me relembrou. – Ela passou a mão pelos olhos. – Não entendo como confundi cascos de um alce e de um cervo. Você tem sido bem paciente, Ash. Agora entendo por que Rurik gosta tanto de suas aulas. – Você se esqueceu? Pensei que tivesse se lembrado de tudo. Kara prendeu uma mecha solta de cabelo atrás da orelha. Se inclinasse o corpo um pouco mais para a frente, alcançaria os lábios de Ash. Ela só pretendia roçar os lábios para sentir o gosto. Mesmo que fosse um beijo rápido, destruiria a amizade que estavam construindo. – É óbvio que não. – Não contarei a ninguém. Kara balançou o corpo para trás e apoiou as mãos nas coxas. Estava muito mais difícil esconder a atração por ele do que imaginara. – Ash… Ele estendeu o braço e afastou uma mecha de cabelo da testa dela, e ajeitou melhor o lenço. – É mais fácil enxergar sem cabelo nos olhos. Concentre-se e tente identificar mais algum animal. A voz de Ash soou rouca e aveludada aos ouvidos dela. Kara estava ciente de que teria de tomar a iniciativa. Agora. Antes da conversa que tinham tido, ela sempre esperava que ele fizesse o primeiro movimento. Para o bem dos dois. Ele estava certo quando dissera que precisavam se desvencilhar do passado.

Sem pensar muito mais, ela o enlaçou pelo pescoço e puxou o rosto dele para mais perto. Em seguida deu um beijo rápido nos lábios dele, mas conseguiu sentir o frescor da boca de Ash. Chegou a pensar em aprofundar o beijo, mas… Acabou afastando-se e esperando que ele demonstrasse que o beijo havia sido bem-vindo. Em vez disso ele a encarou como um felino observa a toca de um rato. Aguardando, mas sem se movimentar. Será que o beijo deveria ter sido mais longo? Ou será que ele não a desejava mais? – Queria agradecer por você ter me ensinado, e por tudo o que fez por Rurik – disse ela para romper o silêncio, mas sentiu que o rosto devia estar roxo de vergonha. Beijá-lo tinha sido um erro. Arriscara-se demais seguindo um impulso, e agora sentia um gosto amargo na boca. – Não precisa agradecer, eu garanto. O prazer foi meu. – A voz dele estava áspera e as mãos dobradas em punho, como se estivesse se esforçando para se conter. – Mas eu quis agradecer mesmo assim. – Ela respirou fundo. Precisava continuar falando. – Quero beijar você de novo… se quiser, aproveitando que estamos sozinhos aqui. Ash respirou fundo e ruidosamente. – Não diga nada que não tenha certeza. Se começarmos, Kara, não há como voltar atrás. Não sou feito de pedra. Ela segurou o rosto dele com as duas mãos. A barba por fazer provocou cócegas nos dedos dela e incitou uma onda de arrepios que terminou por atear a chama da paixão. Os olhos dele escureceram, e Kara se sentiu no controle do poder. – Estou falando sério. A fim de provar o que dizia, Kara foi mais ousada e redesenhou a boca dele com a ponta da língua, terminando por mordiscar e sugar-lhe o lábio inferior. Ash abraçou-a e suas mãos viajaram pelas costas dela, antes de puxá-la para bem perto. As curvas suaves do corpo dela se encontraram com os seus músculos fortes, principalmente o órgão intumescido, prova que ele a desejava. Kara estava certa do que queria e estava cansada de esperar. Se voltassem ao salão nobre, ainda haveria muita gente zanzando por lá e a noite demoraria uma infinidade para chegar. Além do mais, a brisa de outono estava muito agradável e ela queria senti-la na pele nua. Todos os medos se esvaíram com a segurança dos braços dele. Ash entreabriu a boca, permitindo que ela a explorasse com a língua afoita até encontrar a língua dele num bailado eletrizante. De repente, Ash levantou a cabeça. A respiração quente acariciava a pele de Kara. – Precisamos parar. – Por quê? – Este lugar… não é exatamente onde eu gostaria de estar com você, bem diferente do que pensei desde a minha chegada. – Ele colocou as mãos nos ombros dela e a afastou um pouco para fitá-la nos olhos. – Se continuarmos, eu perderei o mínimo de controle que consigo ter perto de você. Ela soltou um risinho e percebeu a pele levantar em arrepios. Ash não estava cansado de esperar, mas tentava continuar no ritmo dela. Sete anos atrás, fora forçada a seguir o passo dele. Mas havia chegado a hora de caminharem juntos. – Ash, estou cansada de esperar. Sonhar ficou insuportável. Ajude-me a tornar os sonhos reais.

– Sonhos? Você sonhou comigo? Mas duvido que sejam tão vívidos quanto os meus sonhos com você. – Não faz ideia. – Antes eu não conseguia dormir por causa das lembranças do naufrágio e dos homens que matei, mas ultimamente não consigo fechar os olhos pensando no que quero fazer com você – disse ele, segurando o rosto dela com as duas mãos. – Uma cama macia opera milagres, Kara. Aqui a terra é dura e o ar é frio, no mínimo desconfortável. Ela sentiu um nó na garganta. Se esperassem para voltar ao salão nobre, era bem provável que algo os interromperia. Kara queria fazer amor ali, antes que perdesse a coragem. – Achei que você não gostasse de dormir num quarto. – Eu falei em dormir? – Ele a beijou na testa com carinho, olhou-a no rosto e a afastou. – Isso não está certo. Lamento, mas não está, Kara. – Está errado? – perguntou ela num sussurro. – Antes de fazermos amor, você precisa saber o que passei – disse ele com a decisão já tomada. – Quero que saiba antes… Assim não se sentirá obrigada a ficar comigo. Você precisa saber de tudo, senão nosso casamento será falso. Sei disso com a mesma clareza com que enxergo seu rosto agora. Kara respirou devagar e concluiu que o fato de Ash dividir sua vida era muito mais importante do que fazer amor. E pensar que ele havia dito que talvez nunca estivesse confortável o suficiente para dividir seu passado. – Se é assim que você quer – concordou ela. – Sou toda ouvidos. Quero saber tudo a seu respeito. – Não consigo dormir dentro de casa desde que fiquei preso no navio depois do raio. Um capitão decente teria afundado junto com seu navio, mas havia alguma coisa em mim que me fez lutar para sobreviver. – Você estava dormindo quando o raio caiu? – O navio virou e fiquei preso durante uma eternidade. Aos poucos Ash foi contando a história de como tinha sobrevivido, inclusive como usara os corpos sem vida de seus amigos como escudo para sair vivo do calabouço. Kara ficou ouvindo horrorizada ao que ele havia passado, e passou a respeitá-lo por ter sobrevivido. Ele falou sobre os homens que tinha matado e quando, sem deixar nenhum detalhe de fora. – AGORA SABE a parte ruim e feia. – Ash virou-se de costas. – Já podemos voltar ao salão nobre. Quando você se decidir, avise-me. – Já me decidi. – Ela o alcançou e, depois de segurá-lo pelo braço, beijou-o na boca. – Vamos ficar aqui. Não haverá mais segredos entre nós. Sua história, no mínimo, me fez admirá-lo mais. Você passou por tudo isso e continuou determinado a não desistir. Eu já vi você com Rurik e com seus homens. O que passou não o destruiu, Ash, mas o transformou no que é hoje. – Se é isso que quer – disse ele com os olhos escurecidos. Segura do que fazia, Kara tirou a capa e a estendeu na grama da clareira. – Teremos o resto das nossas vidas para aproveitar uma cama macia, mas, agora, vamos desfrutar a beleza e a quietude deste lugar. Mas, se preferir, posso lhe dar um tempo. A gargalhada dele ecoou pelo lugar ermo.

– Se você soubesse como tem sido difícil, principalmente nestes últimos dias… Eu prometi que daria tempo a você e foi o que fiz, mas nunca disse que seria fácil. – Foi difícil para nós dois. – É bom saber. Fiquei preocupado. Ash abraçou-a e acariciou-lhe as costas, envolvendo-a no calor de suas mãos. O toque dele era melhor do que nos sonhos mais delirantes que ela tivera. Ela se virou e ele lhe segurou as mãos acima da cabeça. Fitando-o, ela percebeu a vulnerabilidade nos olhos dele. – Você teria saído comigo se eu tivesse pedido? – Queria confessar o que fiz. Você estava certa quando disse que precisava saber – disse ele com a boca a milímetros da dela. – Isso não podia mais ficar entre nós e eu queria falar aqui. Tinha certeza de que você perguntaria. Eu tinha um fio de esperança que entendesse, mas foi o suficiente. – Tinha esperança. – Eu não teria sobrevivido se não tivesse tido esperança. Do fundo do meu coração, queria rever você e sentir sua pele macia contra a minha – assim dizendo, ele capturou os lábios dela, depois seguiu beijando-a nas bochechas, no nariz, na testa, como se assim construísse uma memória daquele momento. A cada toque, a cada beijo, Kara percebia que seus sonhos sequer faziam sombra às verdadeiras sensações. Ela tentou acariciá-lo também, mas ele meneou a cabeça. – Paciência – disse ele segurando as mãos dela. – Pretendo aproveitar cada segundo. Você iniciou a dança sensual, Kara. Mas agora é hora de aprender sobre um pequeno sofrimento prazeroso. As mãos permaneceram entrelaçadas, enquanto eles se ajoelhavam sobre a capa dela. Ash deitou-a de costas e a soltou para livrar-se da própria capa e túnica. A luz do sol de outono bronzeou a pele dele, mas mesmo assim Kara viu uma teia de cicatrizes e lembrou da história que ele contou sobre como lutara para voltar. Mas ela não queria nem pensar na dor que ele deveria ter sofrido com cada cicatriz daquela. Kara esticou o braço e tocou a cicatriz mais próxima. A pele parecia derreter de tão quente. – Não sou mais tão perfeito quanto já fui – disse ele, ajoelhando-se ao lado dela e entrelaçando os dedos das mãos com os dela. – É isso que está querendo me dizer com esse olhar sério? Eu não estou à altura de suas expectativas? Kara fitou aqueles olhos azuis da cor do céu de outono e tentou recuperar o controle de suas emoções. Como ele podia pensar uma coisa daquelas? – Lamento por você ter sentido tanta dor. – Tire a dor, e a vida se vai também. – Ele ergueu a mão dela até os lábios e beijou-a no antebraço. – Hoje você aliviou bastante a dor que eu tinha na alma. Ela passou a mão sobre os olhos. Algumas cicatrizes podiam não ser tão visíveis quanto aquelas do tórax, mas certamente estavam ali também. – Sim, claro. Com toda delicadeza, ela se inclinou para a frente e começou a beijar a ponta da cicatriz mais protuberante, que ia desde o mamilo direito até a extremidade esquerda da cintura, onde alguém

provavelmente tentara parti-lo ao meio. Tinha acontecido durante a segunda batalha contra os germânicos. Depois seguiu com a língua sobre a pele macia e imaculada. – Eu gostaria de ver você, posso? – sussurrou ele ao ouvido dela. – Quero admirar a perfeição do seu corpo. – Já não é mais assim. Tive um filho. – Para mim você é perfeita. Ela se levantou e começou a tirar o cinto, mas não conseguiu desatar o nó. Com a habilidade de um ladrão, ele desfez o nó e se abaixou para segurar a barra do vestido, junto com a camisola de baixo, e puxou-os para cima. O vento fresco do outono beijou a pele dela, deixando-a inteiramente arrepiada. Ela estremeceu ligeiramente. Ash abraçou-a, aquecendo-a com o calor de sua pele, e juntos agacharam-se até o chão. – Está melhor assim? – perguntou ele, ao cobrir o corpo dela com seu peso. Sem esperar resposta, ele mordiscou o lóbulo da orelha dela e deslizou a boca pelo rosto, deixando uma trilha de beijos rápidos, mas que despertaram o desejo que ela havia reprimido durante tantos anos. A sensação abrasadora remeteu-a ao passado, quando se amavam loucamente, e como ele era bom em provocá-la. Ash sabia como excitá-la e quais carícias ela mais gostava. Kara curvou as costas para cima quando a mão dele lhe capturou um dos seios e acariciou os mamilos, prestando atenção especial quando logo se retesaram. Bastou roçar as unhas na pele rosada para que ela se enlevasse de desejo. Em seguida, ele abaixou a cabeça e beijou-lhe os mamilos, sugando-os e explorando-os. Em outra ocasião eles poderiam ir mais devagar, mas naquele momento estava ansiosa para sentilo dentro de si. Abraçou-o e instintivamente afastou as pernas. – Calma… deixe-me explorá-la – sussurrou ele ao ouvido dela, ao mesmo tempo que deslizava a mão pelo ventre dela e permeava os dedos por entre a penugem macia. Com os dedos experientes ele a penetrou, mas não sem antes massageá-la um pouco para deixá-la ainda mais umedecida. – Oh, por favor… – suplicou ela, o corpo ardendo nas chamas do desejo. Ash posicionou-se entre as coxas dela e a penetrou. Ela se abriu para recebê-lo e abrigá-lo no calor do interior do seu corpo, movimentando ligeiramente os músculos para acariciá-lo. Por alguns minutos, eles se mexeram apenas para se ajustarem melhor. Em seguida ele começou a se movimentar para a frente e para trás, aprofundando as investidas cada vez mais. Kara lembrou-se do ritmo daquela dança antiga e movimentou-se com ele. Sabia que o que vivenciaria seria bem diferente de seus sonhos e que ele não sumiria com a névoa; mesmo assim, enlaçou-o com as pernas, prendendo-o ali até alcançarem o clímax juntos. ASH VOLTOU à terra depois daquela viagem alucinante ao nirvana e apoiou-se nos cotovelos para admirar Kara, que dormia em paz. Enquanto ela dormia, exaurida pela paixão que tinham acabado de compartilhar, ele experimentou uma deliciosa sensação de estar vivo e pleno como não se sentia havia muitos anos. Ele se esquecera que tais sentimentos existiam. Kara não se afastara depois de ouvi-lo contar sobre o passado, e tampouco o encarara diferente pelas barbaridades que ele fizera. Ash queria garantir que ela nunca mais se magoaria. Tinha feito bem em não contar sobre seus

temores de um possível ataque de seu tio. Aquilo era o futuro e não o passado. Deslizou a mão pela pele macia das costas e imediatamente sentiu o corpo dela reagir. Levaria anos para conseguir aplacar o desejo que sentia por Kara. Concentrou-se em respirar com calma. Eles tinham todo o tempo do mundo, estavam juntos de novo, um pertencendo ao outro. Ele faria por merecê-la e Kara logo reconheceria. – Hora de acordar – chamou-a ele, passando a mão no rosto dela. – Acordar? – indagou ela com a voz sonolenta, aninhando-se nos braços dele. – Está muito confortável aqui. – Agora sim, mas logo o sol vai se pôr e a temperatura cairá. – Ash beijou-a no ombro em vez de abraçá-la. Até o carinho mais singelo já fazia com que seu coração disparasse. Ele tinha sido um tolo por tê-la deixado durante tanto tempo. – É melhor irmos para que Rurik não fique preocupado. Ouvir o nome do filho foi o suficiente para impulsioná-la a se levantar e pegar as roupas. Ficou corada quando prestou atenção no estado em que estavam. As pregas do vestido estavam muito amassadas. – O que ele vai dizer se me vir assim? – Ele ficará feliz em saber que estamos providenciando irmãos. Kara colocou a mão na boca e tirou em seguida para dizer: – Nossa, eu não tinha pensado nisso. Você quer mais filhos. – Você quer mais filhos? – perguntou ele com voz doce, tentando entender a razão da mudança abrupta de comportamento. – Você sempre quis uma família grande. – Sim, claro – respondeu ela rápido demais, enquanto sacudia o lenço de cabeça e alisava o vestido. – Eu não estava pensando nisso. Você voltou há muito pouco tempo. – Sim, é verdade. – Ash capturou uma mecha do cabelo dela e enrolou no dedo. – Quero uma menina loura e forte como a mãe. – E se não vier? – Continuaremos felizes com um filho apenas. – Ele pousou a mão no ombro dela e sentiu-a estremecer. – Eu não terei problema em ser um fazendeiro, Kara, posso tentar, se for essa sua vontade. Quero ser um bom marido. – Pode ser… – disse ela, mordiscando o lábio em seguida. – Algum problema? – Não, nenhum, mas já está tarde. As pessoas vão ficar preocupadas conosco. – Ela se inclinou para a frente e beliscou o queixo dele de leve. – Se alguém perguntar, direi que tive uma bela lição de rastreamento de animais. Ash soltou uma gargalhada tão alta, que os pássaros saíram em revoada do alto das árvores. Dessa vez as coisas dariam certo. Primeiro derrotaria o tio e depois se esforçaria para se tornar o homem que Kara queria.

Capítulo 13

KARA RESPIROU fundo ao tirar a capa dentro do quarto. Ash tinha ido verificar se o equipamento que trouxera fora bem armazenado, deixando-a entrar em casa sozinha. Ela agradeceu aos deuses por ter tido a sorte de chegar ao quarto sem encontrar ninguém no caminho, ficando livre de olhares maliciosos, ou pior, de perguntas. Uma mecha de cabelo cobriu-lhe os olhos, e ela a colocou para trás da orelha. A declaração de Ash de que poderia ser um fazendeiro a pegara de surpresa. Ser um fazendeiro era a última coisa que ela imaginava que ele poderia ser, e com certeza não seria feliz, mas ele havia sido sincero. Ora, por que estava tão perplexa? Não era isso que queria? Uma pessoa ao seu lado para dividir o fardo de cuidar de uma fazenda? O par perfeito. Só que não fazia sentido. Devia estar feliz, mas, não, alguma coisa a perturbava; talvez Ash estivesse escondendo algo. – Milady, graças aos deuses a senhora voltou. Temos visitas no salão nobre. – Thora entrou correndo no quarto, sem se importar em bater na porta. O lenço estava torto na cabeça e ela ficou aliviada ao se encontrar com Kara. – Eles estão bem acomodados? – Kara alisou a saia do vestido com as mãos, agradecendo silenciosamente ao deus que a havia mandado direto para o quarto sem passar pelo salão. Se tivesse se encontrado com alguém, sua aparência teria revelado o que havia acontecido e ainda era muito cedo para contar a notícia. – Sim, milady. – Thora torceu o avental. – Aconteceu alguma coisa, Thora? Você parece assustada. Por acaso é Harald Haraldson? Não precisa se preocupar com o mau comportamento dele e de seus homens porque dessa vez Ash está aqui. – Não, milady, é Valdar.

O coração de Kara deu um salto. Valdar. Ainda não estava pronta para vê-lo. Tinha acabado de atar relações com Ash e ainda estavam se acostumando um ao outro. – Valdar – disse ela, mordiscando a ponta do dedão. Thora sorriu. – Rurik ficou superanimado, mas considerando o rompimento e a presença de milorde a senhora quer mesmo se encontrar com ele? Kara rezou para não ter perdido a cor do rosto. As fofocas e segredos sempre circulavam pelo salão, mas ela não estava preparada para compartilhar o que acontecera na floresta com ninguém. Ela e Ash nem tinham discutido onde seriam seus aposentos. Talvez ele não quisesse dormir na mesma cama por causa dos pesadelos. – Eu não tenho muita escolha. Ash entrou no quarto e olhou para Thora, que corou. E de propósito seguiu até onde Kara estava e beijou-lhe os lábios. Thora deu alguns passos para trás e saiu do quarto. A novidade correria pela fazenda toda antes do anoitecer. – Problemas? – perguntou Ash, abraçando-a. – Então, terá de esperar. Vamos tomar um banho juntos para tirar a poeira. Eu esfrego suas costas. – Temos visitas – disse ela, afastando-se. – Eu sei. Kara ficou paralisada. Ele sabia que tinham visitas e mesmo assim queria tomar um banho juntos? Será que ele já sabia da visita antes de irem para a floresta? – Você já sabia. Ele gargalhou alto. – É difícil não notar uma meia dúzia de cavalos se aproximando. Kara relaxou. – Ah, eu pensei que… não tem importância. Mas não vamos tomar banho juntos. Seria uma mudança de comportamento muito drástica perante todos. – Bem, eu sugeri no caso de você querer parecer bem e não como alguém que se divertiu na floresta. – Eu… eu não posso abandonar minhas obrigações. – Sempre haverá uma tarefa importante, Kara – disse ele dando de ombros. – A honra da casa está em jogo. – E o que pretende fazer? O ciúme de Ash ficou evidente pelo tom de sua voz. Ela ficou feliz por dentro. Além do que haviam compartilhado naquela tarde, Ash devia ter certeza de qual dos dois ela preferia. – Vou cumprimentá-lo com o carinho de costume. Valdar é um bom amigo. Mas só amigo. Kara dirigiu-se para a porta e depois para o salão. A última coisa que queria era que Ash começasse uma inútil competição contra Valdar, sendo ela o prêmio. Era por isso que ele queria banhar-se, para apresentá-la a Valdar como um troféu. Ela não queria magoá-lo. – Milady, não está esquecendo alguma coisa? – chamou-lhe Ash a atenção. – E o que seria? – indagou ela, parando no meio do caminho até a porta. – Seu marido. Nunca se sabe se os visitantes são amigáveis. Um dia talvez agradeça ao meu

passado de guerrilheiro. Kara sentiu uma pontada no peito. Tomara que Ash não estivesse decidido a ser um fazendeiro apenas para agradá-la. – É dever da esposa cumprimentar qualquer visitante – respondeu ela com cautela. – Valdar sempre foi bem-vindo aqui. Sempre será. Rurik deve estar muito feliz em rever um velho amigo. – Não tenho dúvidas. – Ele a estudou com critério. – Preciso lembrar a Rurik de mostrar algumas manobras que ensinei. – Valdar é apenas um amigo e nada mais – repetiu Kara com o coração aos saltos. – Rurik gosta de Valdar porque ele foi o primeiro homem a demonstrar interesse pelo menino. Valdar sempre lembrava de trazer algum presente em suas visitas para Rurik. E eram visitas frequentes, já que ele estava me cortejando. Auda brincava dizendo que Valdar queria conquistar a mãe através do filho, mas eu sei que a relação dos dois era de mútuo respeito. – Eu perguntei alguma coisa? – indagou Ash, erguendo uma das sobrancelhas. – Não, mas insinuou. – Kara colocou as mãos na cintura. – Quero que você sempre saiba da verdade. Nada de segredos, lembra? Não concordamos começar de novo? – Você sabe o que ele veio fazer aqui? Kara colocou o dedo indicador na testa. – Deixe que eu me concentre. – Ela contou até dez. – Lamento, mas não sei. Nada. Não faço a menor ideia da razão de ele estar aqui. Nunca fui muito boa em adivinhar, Ash. – Já que você não sabe, eu posso imaginar. – Ele contraiu o maxilar com força. Kara rodopiou os olhos. Era gratificante ser alvo de uma cena de ciúmes, mas não precisava que os dois saíssem aos socos. Valdar já tinha sido amigo de Ash no passado. Poderiam reatar a amizade. – Por que não vamos perguntar a ele e descobrimos logo do que se trata? Podem ser milhões de motivos, inclusive para nos desejar felicidades. Jaarlshiem não fica muito longe da propriedade dele. Valdar pode até dar uns conselhos a você sobre como cuidar de uma fazenda. – Ele dá conselhos a você? Kara colocou a mão no pescoço, lembrando-se de que havia pensado em ouvir os conselhos de Valdar depois de casados. Não que ela não tivesse feito um bom trabalho antes disso. – Eu acho que vale a pena ouvir. – Vai ouvir minhas sugestões também? – Eu ouvi o que disse sobre Rurik. Não está bom? – indagou ela, inclinando a cabeça de lado. – Acha que ele veio ver você, a antiga noiva, para verificar se está tudo bem e oferecer proteção de novo? Vai contar a ele sobre nós? Ela deu de ombros e abaixou a cabeça. – Até onde sei, ele não tinha planos de vir aqui. Estou chocada que tenha vindo. – Você pode ser inocente, Kara, mas eu não estou tão surpreso assim. Na verdade, estava esperando por ele. – Ash passou o braço nos ombros dela numa atitude de posse. – Vamos recebêlo juntos? Ele precisa saber que é bem-vindo como amigo, mas terá de procurar em outro lugar se estiver procurando por uma amante. – Não sou como um osso de cachorro para ser disputada.

Kara afastou-se dele. Ash tinha adivinhado. Ela não conseguia parar de pensar que ele a havia seduzido naquele dia. Seria por isso que ele fizera a oferta? – Eu desisti de lutar, lembra? – indagou ele, estreitando o olhar. – Serei um fazendeiro, conforme seu pedido. O coração dela deu um salto. Ash estava fazendo algo para agradá-la, esforçando-se para tanto do mesmo jeito que lutara para ser um guerreiro. – Não sou um prêmio para ser exibido. Sou sua esposa e sempre me comportei corretamente, com decoro e modéstia. O reino inteiro irá fervilhar com a fofoca como abelhas atrás de pólen. – Não haverá disputa nenhuma. Eu garanto. – Os olhos de Ash reluziram. – Eu sou o vencedor. Confio em você para contar a ele. – Você não resiste a espezinhar seu oponente mesmo que ele já esteja no chão, não é? – acusou-o Kara. – Não sou meu pai ou meu tio. – Mãe? Pai? Vocês não vêm? – chamou Rurik do outro lado da porta. – Quero mostrar o que Valdar trouxe. Minha primeira espada! E é muito afiada. Ash ergueu uma das sobrancelhas, enquanto Kara balançava a cabeça. – Eu já sabia sobre a espada, Ash. Valdar pretendia presenteá-lo quando se tornasse o pai dele. A espada não deve ter o tamanho normal, mas é uma arma que todo garoto se orgulharia. – Rurik já tem um pai e não precisa de outro. Enfatize isso quando cumprimentar Valdar. Kara não se deu o trabalho de responder, mas saiu do quarto com passos firmes até o salão. Valdar estava de costas para ela, de frente para a lareira e com as pernas afastadas. O coração dela se confrangeu. Ela imaginara que Valdar estivesse vestido casualmente, mas pelo visto parecia que estava esperando uma briga, com a espada embainhada e presa no cinturão. – Valdar, que surpresa agradável. O que o traz aqui? – Esta não é uma visita social, milady – respondeu ele, já com a mão no cabo da espada. Kara nem precisou olhar para saber que Ash vinha logo atrás. Ouviu também outros passos, que só podiam ser dos homens dele, aguardando apenas um sinal de Ash. Aquilo significava que Ash tinha feito planos que ela desconhecia. Isso porque tinham concordado que não haveria mais segredos entre eles. Será que ele dissera que seria um fazendeiro apenas da boca para fora? – Nada de derramamento de sangue – pediu ela. – Se ele puxar a espada, não sei se poderei controlar meus homens – disse Ash por entre os dentes. – Eles são muito leais. – Você não seria um bom comandante se não conseguisse controlá-los. – Às vezes acredito que minha esposa não precisa apenas de um fazendeiro – disse Ash com muita ironia. – Valdar Nerison, você sempre será bem-vindo aqui como um amigo, se vier em paz – afirmou Kara, avançando alguns passos e ignorando que Ash estava logo atrás com o olhar fixo no outro guerreiro. Ash devia saber que depois do que tinha acontecido naquela tarde, ela não poderia ter sentimentos por outro homem. Ela parou e recuperou o equilíbrio para continuar a conversa formal.

– Por você, milady Kara, sempre. – Valdar inclinou a cabeça numa reverência, mas sem tirar a mão do cabo da espada. – Lamento por não estarmos aqui para cumprimentá-lo assim que chegou. – Ash passou por ela. – Kara e eu estávamos rastreando animais. – Entendo. – Valdar fechou a expressão do rosto e soltou o cabo da espada. – Ash assumiu o treinamento de Rurik e eu queria me certificar de que a próxima tarefa seria segura e aceitável. – Kara estava ciente de que seu rosto reluzia de tão vermelho. A explicação piorou mais a situação, e Valdar empalideceu. – Kara acha que meu treinamento é mais do que aceitável. – Ash deu um risinho, começando a se divertir com a situação. – E Rurik é meu filho também. É engraçado como tudo deu certo. – Rurik é o filho que qualquer homem se orgulharia em ter. – Valdar inclinou a cabeça. – Fico feliz porque finalmente lady Kara concordou que ele fosse treinado. Tive esperanças de que ela me considerasse para tanto, mas vejo que o pai é uma escolha melhor. – A responsabilidade é grande, porém estou mais do que ansioso para assumi-la – comentou Ash. Valdar olhou para ela e demonstrou preocupação em seu semblante. – Ash pretende ficar, Valdar – disse ela. – Entendo. Kara pressionou os lábios. Valdar sempre achou que aquilo fosse impossível. Em silêncio, ela rezou para que Valdar não tivesse aparecido na esperança de que ela e Ash estivessem discordando. – Rurik me fez companhia antes de vocês chegarem e me contou muitas histórias sobre seu treino. – Valdar bagunçou o cabelo de Rurik. – Você será um grande guerreiro. Tomara que eu possa vê-lo patinando na neve nesse inverno. Kara não gostou do comentário e franziu o cenho. Então Valdar também achava que ela era superprotetora em relação a Rurik. – Vamos aguardar para saber quais surpresas o inverno trará. – Rurik entende por que sua mãe tem sido tão cuidadosa – comentou Ash. – Minha mãe só tinha a mim para tomar conta dela. Agora que meu pai verdadeiro voltou, as coisas vão mudar. – Rurik elevou a voz. – Quem ensinou isso a ele? – exigiu Kara, olhando para Ash de canto de olho. Ash não mostrou nenhum arrependimento. – Acho que o que Rurik disse tem um pouco de verdade. – De fato. – Kara rangeu os dentes. – Você veio até aqui apenas para ver como Rurik está? – perguntou Ash, elevando a voz também. – Ou existe algum motivo obscuro para a visita. – Na realidade, Ash Hringson, vim para ver você em caráter de urgência. – Valdar corrigiu a postura e tirou uma tábua de madeira da bolsa. – O rei pediu que eu entregasse isto nas suas mãos. Você precisa voltar a Sand imediatamente para responder a um inquérito. Se não vier por bem, tenho autoridade para acorrentá-lo e transportá-lo até lá. Kara sentiu um nó no peito. O rei tinha se virado contra Ash. E ela achara que estava tudo certo

quando saíram de lá. – Por quê? – Meu tio prendeu meu navio e exige o pagamento de impostos. Isso seria uma agressão contra Raumerike sob as minhas ordens. Sem fundamento, mas eficaz. Meus remadores tinham ordens para vir direto para cá. O rei está sendo cauteloso e quer investigar. Eu já esperava por isso. – Você já sabia disso? – Kara fitou-o, estarrecida. Como ele havia mantido segredo de uma coisa tão importante?! E depois de terem declarado que não esconderiam nada um do outro. Os mercenários eram conhecidos por irem atrás de uma presa fácil. Ela se deixou cair numa poltrona. Se Ash fosse declarado culpado, Harald Haraldson teria direito de exigir todos os bens do sobrinho, inclusive aquela propriedade. – Eu suspeitava que meu tio fosse agir de um jeito ou de outro. Pensei que o navio fosse chegar três dias atrás, ontem na pior das hipóteses. É bem melhor saber que meus homens estão a salvo e não sofreram um naufrágio. – Ash inclinou a cabeça. – Agradeço por ter sido rápido, Valdar Nerison. Fico bem mais tranquilo. – Eu me vi na obrigação de avisar a você e lady Kara o quanto antes. – Valdar empertigou-se e lançou um olhar significativo para Kara. – Você não pode pensar só em si mesmo, Hringson, ou Ash, o Desonesto. – Conheço bem esse apelido. Meu pai não foi muito justo em me chamar assim porque adormeci enquanto tomava conta de algumas ovelhas, quando deveria ter ficado acordado a noite inteira. Mas eu tinha apenas 10 anos. Faz tempo que ninguém me chamava assim. – Ash apontou para a porta. – Você está empoeirado e cansado da viagem. Sugiro que tome um banho antes de discutirmos as novidades. Podemos esperar até amanhã para partir. – Você virá por livre e espontânea vontade? – Quem sou eu para desobedecer a uma ordem do meu rei? Sou leal ao nosso rei, independentemente do que Harald Haraldson diz ao meu respeito. – Ash sorriu, mas seu olhar era sério. – Está muito tarde. Partiremos assim que raiar o dia. Ash ordenou que as coisas de Valdar fossem colocadas em seu antigo quarto e que os soldados fossem tratados com respeito. – Você devia ter me dito alguma coisa ao suspeitar que havia algo errado – disse Kara quando Rurik saiu do salão acompanhando Valdar e ela ficou sozinha com Ash. Estava confusa por Ash ter escondido um assunto tão importante. – Você devia ter confiado em mim e contado que estava preocupado. – Por que preocupar você com algo que talvez nem acontecesse? – Não estamos prontos se Harald Haraldson decidir atacar Jaarlshiem. Os grãos e a lã precisam ser trocados de lugar. – Kara uniu as mãos para evitar o tremor. – Você errou. – Você teria se preocupado e usado isso como uma desculpa. Kara mordiscou o lábio. – Devia ter me contado. – Harald Haraldson não ousaria nos atacar aqui. Não com meus mercenários de guarda. Além do mais, ele quer esta propriedade e não vai querer sujá-la. – Como você sabe? – Kara olhou para a porta. De repente a insistência de Ash de ter sempre um

soldado por perto e homens espalhados pela propriedade não era mais tão extravagante. – Ele pode estar vindo para cá agora. Há coisas que precisam ser armazenadas adequadamente. Talvez tenhamos de enfrentar um cerco por muito tempo. – Pense direito, Kara, em vez de ficar cega pelo pânico. – Ash bateu o punho fechado sobre a mesa. – Meu tio almeja ser o dono deste salão acima de tudo e planeja consegui-lo com a ajuda do rei. Não faz sentido me atacar se ele já prendeu meu navio. Ele precisa ficar em Sand, se pretende influenciar o rei. Kara cobriu a boca com a mão. Ash tinha razão. Se Harald Haraldson queria influenciar o rei, não podia mesmo deixar Sand. Ash sabia o que estava fazendo, mas isso não a deixava mais tranquila ou feliz por ter sido usada. – Você não tinha certeza como seu tio atacaria. Foi por isso que trouxe seus homens e não por temer uma ameaça de Valdar. Você esperava a guerra e vem me usando como um peão num tabuleiro de tafl. – A guerra aconteceria, indiferente à sua expectativa. O melhor é estar sempre preparado. – Ash encolheu os ombros e começou a arrumar as peças no tabuleiro de tafl, preferindo se concentrar na tarefa e não olhar para Kara diretamente, pois percebera que a estava perdendo. Naquela tarde ela havia sido dele, mas… Era triste saber que ela se recusava a entender que sua intenção era protegêla. – Algumas vezes é preciso esperar que o adversário ataque para escolher qual será a melhor estratégia para vencê-lo. – Quem você acha que é o adversário deste jogo? O rei? – Meu tio. – Ash colocou o tabuleiro sobre uma mesa. Kara merecia saber a verdade agora de como Harald tinha agido. Assim que ouvisse tudo, entenderia que ele estava certo. – Meu tio quer que eu seja expulso ou morto. Ele quer a posse de Jaarlshiem e está usando o rei como instrumento para me destruir. Kara continuou impassível. – Você me disse que estava tudo resolvido e que o rei tinha dado permissão para que partíssemos. Acreditei em você. Foi por isso que vim. Você me usou, Ash. Isso é imperdoável. Devia ter confiado em mim. O que é um casamento sem confiança? Imagino que a promessa de se tornar um fazendeiro também era falsa. Ash recuou. Para protegê-la, ele havia perdido a confiança dela. – Eu queria ficar com você e o nosso filho. Estou disposto a tentar, mas preciso resolver isso antes. Estou acostumado a agir sozinho. – A última vez que você pediu permissão para fazer algo primeiro, acabou sumindo por sete anos. – Não levará tanto tempo assim. Eu já tomei todas as medidas necessárias. O rei tinha me dado permissão para voltar a Jaarlshiem, e eu não podia ter reagido antes de o meu tio se mexer. – Ash forçou um sorriso, sabendo que não a enganaria. – Você sabe que sou um excelente jogador de tafl. E quero ganhar. Os olhos de Kara entristeceram. – Devia ter me dito quando começou a suspeitar. – O que você poderia ter feito? – perguntou ele, pousando as mãos nos ombros dela. – Sei o que estou fazendo. É assim que vivo há seis anos. Deixe-me provar que vale a pena ficar ao meu lado.

Com um gesto brusco, ela tirou as mãos dele de seus ombros. Seus olhos o fuzilaram. – Você partirá para Sand assim que o sol nascer e não estará aqui para arrumar as coisas. – Todos estão preparados. – Ele se esforçou para entender por que ela estava tão magoada. Ele sabia o que estava fazendo e voltaria assim que possível. – Você estará segura aqui. – Por vezes a segurança é uma ilusão. Você me mostrou isso com Rurik. – Ela abaixou bem a cabeça, deixando visível apenas a trança. – Pensei que Rurik estivesse a salvo com Gudrun e veja o que aconteceu. – Assim como você, eu daria minha vida pelo nosso filho. – Ela ficou boquiaberta. – Valdar quer me acorrentar, mas imagino que me deu a opção de ir por vontade própria por causa de nosso filho e de você – continuou Ash. – Tenho de ficar grato por ele gostar do meu filho. Não faria bem a Rurik me ver saindo daqui acorrentado. – Valdar não é assim. Ele é seu amigo. – Kara começou a brincar, distraída com a corrente presa em sua cintura. – Foi por isso que ficamos mais amigos. Ele contava histórias suas para Rurik. – Ele foi meu amigo um dia, mas acabou se apaixonando pela minha mulher. Ficará feliz em me ver humilhado. É por isso que meu tio persuadiu o rei de que ele seria perfeito para o trabalho. Por que ele não estava na corte naquela manhã? Ele é leal ao meu tio agora. – Se ninguém defender você, seu tio vencerá? – Kara começou a andar de um lado para outro do salão, as saias balançavam com o movimento insinuando seus tornozelos. Mas Ash admirava mais a postura rígida. – Meu tio alegará que sou um espião viking. Kara parou no meio da sala. – Você é um espião? – Fui um mercenário que luta à luz do dia e não um espião que se esconde nas sombras. Nunca traí meu país. Nunca saqueei navios de Raumerike e nunca o farei. – Ash fez uma pausa, aguardando que ela compreendesse. – Acredito em você, meu marido. Ash sentiu a tensão se esvair. Kara acreditava nele. Reconhecera-o como marido. Ele a abraçou com força. – É um bom começo. Mas havia uma ruga de preocupação no meio das sobrancelhas dela. – Você pode provar? – Se precisar, acredito que sim. Meus homens atestarão ao meu favor. – Quem acreditaria na palavra de um mercenário? Todo mundo sabe que eles dizem qualquer coisa por dinheiro. Isso não é bom, Ash. Outras pessoas precisam apoiar você. Não pode fazer isso sozinho. – Meu tio não me ajudará. Ele só precisa de um empurrãozinho, e usará todas as armas que dispuser. – Você desistiria de seus homens se ficar provado que seu tio tem razão e que seu navio atacou o dele de fato? Ash pensou em Helgi. Os remadores eram cautelosos demais para atacar. Ele só atacaria se tivesse certeza de estarem em maior número. O navio tinha poucos homens disponíveis para subir o

rio. Ash tivera o cuidado para que fosse assim. Seus homens não eram os agressores, Ash sabia. – Helgi, o Pequeno, estaria agindo contra a sua natureza se tivesse atacado. – Não foi isso que perguntei! Você o mataria se ele se voltasse contra você? O rei fará essa pergunta. Hesitar só dará razão aos nossos inimigos. Ash balançou a cabeça. – Nossos? Desde quando meus inimigos também são seus? Um homem não abandona os amigos ou aqueles que confiam nele, Kara. Helgi não faria isso. – Nem mesmo para se salvar? – Principalmente. Vou provar a inocência de Helgi e a minha também. – Atacar você com esse navio significa que a herança de Rurik está em jogo. Não posso permitir que isso aconteça. Prometa que não colocará seu amigo acima do seu filho. Ash ficou perplexo e balançou a cabeça sem acreditar. Queria ser mais importante do que Rurik. Desde quando tinha ciúmes do próprio filho? Queria que Kara confiasse nele. – Quero saber a verdade, Kara. Se Helgi desobedeceu às minhas ordens, então serei o primeiro a desembainhar minha espada e decepá-lo. Mas um homem tem de ser considerado inocente até que provem o contrário – disse, com esperança de que Kara acreditasse. Se ele não conseguisse convencer Kara, que chances teria de convencer o rei? Silenciosamente ele rezou para qualquer deus que o estivesse ouvindo, para que conseguisse provar a inocência e não precisasse tirar a vida de Helgi. Ele devia muito a Helgi. – Nunca aconteceu no passado, mas não hesitarei se ele tiver me traído. Deixe-me ir. – Por quê? Você quer me deixar e não voltar? – Vou lutar por nós dois. – Ele ergueu o queixo dela com a ponta do dedo para fitá-la nos olhos. – Eu também irei. Você me deve isso, Ash – disse ela, batendo no tórax dele com as mãos fechadas em punhos. Ash encarou-a, perplexo. Será que Kara não ouvira nem uma palavra do que ele dissera? Já havia deixado tudo preparado para ela. – Você ficará aqui em segurança e ninguém a perturbará. Ninguém duvidará que Rurik reivindicará a posse de Jaarlshiem. Vou garantir esse direito a ele. Será melhor cuidar de Rurik aqui. – Rurik também vai a Sand. Ou vamos todos, ou ninguém vai. Ash continuou encarando-a, boquiaberto. – Por que quer arriscar levar Rurik a Sand? Ele estará muito mais seguro aqui. – Acho que ele estará mais seguro com você do que ser deixado para trás. Desta vez não confio em ninguém para tomar conta dele; veja o que aconteceu da última vez. Pronto, se alguém perguntar, você pode usar essa desculpa. Quero que estejamos unidos como uma família deve ser. Vamos enfrentar isso juntos. Unidos contra o mundo. Ash engoliu em seco. Kara estava decidida a acompanhá-lo. Houve uma época em que ele ansiara ouvir aquelas palavras. Mas agora a situação estava pior. Não era mais uma questão de provar seu valor como um guerreiro, mas salvar sua família. Ele precisava superar o tio e não poderia ficar preocupado com Kara e Rurik ao mesmo tempo. Eles estariam bem mais protegidos se ficassem em Jaarlshiem. Ele providenciaria um pequeno exército para tanto. Já em Sand, qualquer

coisa poderia acontecer. Durante os últimos sete anos ele só se preocupara consigo mesmo, mas agora era responsável por Kara e Rurik e estava apavorado. Ele queria protegê-los a qualquer custo, não por ser uma obrigação como marido, mas porque gostava dos dois. – Você me pegou de surpresa. – Ash correu a mão pelo cabelo, imaginando como poderia impedi-la de acompanhá-lo sem destruir o elo tênue que havia se formado entre eles nos últimos dias. Mesmo reconhecendo que seria muito egoísta de sua parte, Ash queria a família com ele, o que era errado. Se fosse mesmo o homem que queria ser, teria de dar um jeito para que ela ficasse em casa e em segurança. – Foi uma surpresa inesperada ou não muito bem-vinda? – perguntou ela pontualmente. – Estou acostumado a ficar sozinho e me preocupar apenas comigo e com ninguém mais. Tenho tudo sob controle. – Mas você não está mais sozinho – disse ela, deslizando a mão pelo braço dele. Ash sentiu uma pontada no peito. Aquelas palavras o deixaram pior. De repente parecia que as paredes estavam se fechando ao seu redor, impedindo-o de respirar direito. Já havia planejado tudo meticulosamente e, pelos seus cálculos, Kara ficaria em Jaarlshiem e longe do perigo por vontade própria. Ela não tinha nada que se oferecer para acompanhá-lo. – A viagem até Sand pode ser uma armadilha. É capaz de o meu tio ferir você ou Rurik para me atingir. Imagine como me sentirei se isso acontecer. – Disse que tem a situação sob controle. Então, se for seguro para você, será também para mim e Rurik – insistiu ela teimosamente. – Comigo é diferente. Conheço os riscos. Você pode ficar. Deixarei alguns homens aqui para proteger vocês. – Ele desceu as mãos pelos braços dela. – Quero que fique em segurança. Faça isso por mim. Os cílios longos de Kara toldaram a expressão dos olhos dela. – Você me pediu uma oportunidade para provar o quanto está mudado. Eu lhe darei essa oportunidade. Permita que Rurik e eu o acompanhemos? Ash roçou os lábios nos dela e tentou disfarçar a sensação repentina de pânico. Ele não se tornaria um homem melhor, mas alguém egoísta que agarraria qualquer oportunidade para ficar com a esposa e o filho. Essa consciência destruía seu coração. – Depois do que aconteceu esta tarde, eu não gostaria que você fosse. – Ah, então concorda. Eu irei. – O que posso fazer para impedi-la? As paredes do salão continuavam a oprimi-lo, lembrando-o de sua obrigação e de como falhara no passado. Mas agora tinha muito mais coisas em jogo. Não haveria uma segunda chance para consertar nada. – Preciso ver meus homens e verificar se está tudo pronto, inclusive uma carroça para você e Rurik. KARA ANDAVA de um lado para outro no quarto. Ela havia se retirado depois de desistir de esperar

Ash voltar depois dos preparativos para a viagem. Sua cabeça estava em turbilhão com as preocupações sobre o futuro. Ash estava de partida de novo e ela não tinha nenhuma garantia de quando e se ele voltaria. Será que ele pretendia mesmo ser um fazendeiro? Ou tinham sido apenas palavras ao vento? Depois de uma batida breve na porta, Ash entrou no quarto. – Valdar e seus homens já se recolheram sãos e salvos. E está tudo preparado para a viagem. Partiremos quando o sol raiar. – Foi difícil? – Nada muito sério. – Ash correu os dedos pelo cabelo. – Ele ainda não sabe que você irá conosco. – Se ainda tem esperança de usar seu poder de persuasão comigo, perca as esperanças porque já me decidi. Vou com você – disse ela, encarando-o nos olhos. Ele balançou a cabeça. – Eu a conheço bem para nem tentar convencê-la. Não disse nada a Valdar para evitar que ele faça objeções, pois quero passar a noite com você e não contra-argumentando com ele. Tive de mostrar a fortificação, provando que você estaria em segurança aqui. – Então ele não está totalmente do lado do seu tio. – Pode ser, Kara. Você não é apenas um rostinho bonito. Kara estranhou como seu corpo reagiu a um simples elogio, mas não queria ir para a cama com ele antes de se certificar de que seus termos estavam explícitos. – Valdar me conhece. Tenho certeza de que ele prefere que eu viaje com vocês em vez de ir a Sand sozinha. – Teimosa. Mas é assim que gosto de você. – Ele estreitou a distância que os separava. – Preciso provocar outra briga para beijá-la? – Cansei de brigar. – Você verá, Kara, provarei que mereço uma mulher como você. Voltaremos em poucas semanas. O coração dela deu um salto ao se lembrar do que ele dissera havia sete anos. – Levará o tempo que for necessário – disse ela com a voz ligeiramente trêmula. – Sei disso, Ash, e já aceitei. – Ela esperava que ele acreditasse nisso mais do que ela mesma. – Parei de pensar no futuro, Kara. Quero viver o momento presente com toda intensidade. Ele afastou uma mecha de cabelo da testa dela. Foi como se tivesse despertado uma faísca que a aqueceu inteira, levando-a a ansiar por reviver aqueles momentos de cumplicidade e muita emoção. – Você consegue fazer isso? – perguntou ao ouvido dela. Kara sentiu como se já não controlasse mais a paixão que lhe incendiava o corpo. Só Ash era capaz de deixá-la naquele estado de total enlevo. O desejo a deixava viva e atraída a ele como uma mariposa à luz. O movimento preguiçoso dos lábios dele sobre os seus era impossível de resistir. Seria impossível tentar explicar com palavras a avalanche de sensações que a acometia, mas podia permitir que seu corpo falasse. – Vou tentar – disse ela, enlaçando-o pelo pescoço.

– Chega de filosofar e vamos ao que interessa.

Capítulo 14

NAS PRIMEIRAS horas da manhã, a bruma vinda do lago envolveu o vale inteiro. Ash olhou para a fortificação que deixara para trás. Kara tinha ficado dormindo. Na noite anterior eles fizeram amor, mas num clima estranho demais, muito frenético e forçado, como se ambos soubessem que talvez não houvesse outra chance de ficarem juntos. Depois, deitado ao lado dela, parecia que o ar estava muito pesado no quarto e ele mal conseguia respirar. Beijou-a no ombro e se esgueirou para fora da cama. Vestiu-se correndo e saiu em direção ao lago com a intenção de nadar para aliviar os nódulos da perna. Ao chegar diante da tuntreet, ele se deixou cair de joelhos sob os galhos desfolhados e cobriu o rosto com as mãos. De certa forma havia encontrado um meio de garantir a segurança daqueles que amava. Voltar para casa devia ter sido simples. Mas, para qualquer canto que olhasse, via saídas que jamais teria considerado. Uma dor profunda invadiu seu coração. – Ah, aqui está você, Ash. – A voz fria de Valdar ressoou através do lago, assustando alguns gansos. – Está pensando em partir ou pretende ficar aqui? Ou está rezando para os deuses por misericórdia? Ash levantou-se devagar e encarou aquele que um dia tinha sido seu amigo. – Eu lhe dei minha palavra. Vou a Sand por vontade própria e não acorrentado ou arrastando os pés. Meus homens obedecerão às minhas ordens. Isso devia ser suficiente. – Isso incomoda você? – Nem um pouco. – Ash inclinou a cabeça, imaginando quantas batalhas Valdar teria lutado ou se algum dia se sentira inseguro ou com medo. Se ele falhasse, Kara precisaria de um braço forte. Ash comprimiu os lábios. Aquele era o momento certo para fazer sua jogada e ver se era possível separar Valdar de seu tio.

– Kara pretende levar Rurik a Sand. Você permitirá que ela viaje conosco ou vai forçá-la a viajar sozinha? – Ele fitou o outro nos olhos. – Preciso saber como dividir meus homens. Os cantos da boca de Valdar se elevaram. – Lady Kara deve ficar aqui. Essa é mais uma de suas ideias malucas? – Longe disso. A ideia foi dela. Espero que tenha mais sorte do que eu em persuadi-la a ficar. – Vai permitir que ela nos acompanhe? – perguntou Valdar de olhos arregalados. – Rurik nunca esteve em Sand. – Ash estava de cabeça baixa, mexendo nos pedregulhos com a ponta do pé, mas na verdade estava atento a todos os movimentos de Valdar. – Achei que seria um momento oportuno em atender o desejo de minha mulher para levá-lo. – Essa é a vontade dela? – Valdar colocou a mão no cabo da espada. – Tenho uma opinião a seu respeito, Hringson, mas nunca pensei que fosse mentiroso. Lady Kara jamais sugeriria uma coisa dessas. Ela vai ficar com Rurik aqui por temer pela vida dele. – Ela está decidida a viajar com Rurik, quer eu queira ou não. Já discutimos muito sobre isso, mas eu perdi. – Ash aguardou na esperança que Valdar entendesse o que estava pedindo. – Prezo pela segurança dela, independentemente do que vier a acontecer. Você me daria sua palavra? Valdar pressionou os lábios. – De bom grado. A disputa é com você e seu navio e não com lady Kara. Harald Haraldson foi bem claro ao dizer que lady Kara deve permanecer aqui. Ele me prometeu. Ash sentiu uma nesga de satisfação. Então o tio não queria Kara por perto. Ou estava preocupado que Valdar não o apoiasse caso houvesse um ataque contra Ash e Kara. Ash fora testemunha do respeito que ela impunha. Kara tinha razão. Ela precisava ir a Sand também. Ele precisava dela ao seu lado. – Acredita nas promessas do meu tio quanto a isso? – Você não. – Valdar abaixou a cabeça. Ash estendeu a mão. – Se alguma coisa acontecer, traga ela e Rurik de volta. Meus homens se encarregarão do resto. – Você a ama. – Acredito que nós dois a amamos. – Obviamente. – Valdar começou a seguir na direção do salão nobre e parou no meio do caminho, franzindo a testa. – Como conseguiu? Foram sete anos em que ficaram separados e ela se apaixonou de novo assim que você voltou. O que tem de melhor? – Não foi tão rápido assim e não faço ideia. Ela quer o que for melhor para o filho, simples assim. Valdar consentiu com um sinal de cabeça. – É verdade, Kara Olofdottar se recusou a olhar para mim enquanto não comecei a prestar atenção ao menino. Ele é um garoto adorável, mas fala bastante e não é muito forte. Tenho sérias dúvidas se um dia ele se tornará um guerreiro. Eu cheguei a dizer isso ao seu pai. Ash relaxou os ombros. – O que define um guerreiro não é apenas a força bruta. Daqui a um tempo ele será um guerreiro esperto e bom. – Então, ainda bem que você voltou para casa. – Tomara que seja assim. – Ash pegou um pedregulho e jogou na água, formando vários círculos

ao redor de onde caiu. – Você sempre foi um canalha de sorte, Hringson. – Valdar também pegou um pedregulho e o jogou na água. Ash passou a mão atrás do pescoço, com a cabeça latejando de dor. – Dizem que você constrói a própria sorte, mas tenho esperanças. – Lady Kara é uma mulher linda, apesar de ser mais fria do que uma estátua. Ou pelo menos era o que eu achava até vê-la no casamento. Ela se renova quando está perto de você. Basta olhar como ela se movimenta com maior segurança. Você a faz viver. Ash pressionou as mãos nas laterais das calças. Se fosse em outras épocas, ele alardearia as reações de Kara, mas era melhor manter a discrição. – Eu diria que ela mudou além da aparência física. – Ash deu um sorriso irônico. – Eu a subestimei durante anos. Agora reconheço a força dela. O que Kara fez por Jaarlshiem é impressionante. E Rurik é um menino que dá orgulho. Ele herdará uma propriedade que faz jus ao seu nome. Valdar coçou o queixo com o olhar perdido no lago. O sol começava a abrir caminho através das nuvens, incidindo os primeiros raios sobre o lago, deixando-o avermelhado. – O que acontecerá se ela for a Sand? Você conseguirá manter esta propriedade? Ash fulminou-o com o olhar. – A quem você é fiel? – Eu era fiel a lady Kara até você voltar. – Valdar inclinou a cabeça. – Mas ela tem um lugar cativo no meu coração. Se alguma coisa acontecer a você, não se preocupe com sua família. De quantos homens precisa? Ash respirou aliviado, por ter ganhado uma pequena vitória. – Vou deixar meus homens aqui para cuidarem de Jaarlshiem na minha ausência. Saxi está em débito comigo. Traga-a para cá e ele tomará conta do resto. – Não vou fingir que estou feliz com isso. Alguma coisa não está certa. Kara devia se convencer a ouvir a razão. Sand será um perigo para você. É capaz de ela cair em alguma armadilha sem perceber. – Ainda bem que você está aqui ao meu lado vendo o sol nascer, e não foi envenenado pelo meu tio. Valdar meneou a cabeça. – Dei ao rei minha palavra de que levaria você de volta. Seu tio não espera que eu consiga, acha que você lutaria contra. Agora estou enxergando mais claramente. – Meu tio nunca me entendeu de fato. O erro dele é me subestimar. – A cabeça de Ash voltou a latejar. Ele fizera o possível e agora tinha esperanças de que Kara não se arriscasse durante a viagem e que o tio não os atacasse nas cercanias da cidade. – TENHO DE levar Ash direto à presença do rei quando chegarmos a Sand, mas você pode ficar comigo até sabermos o resultado desse caso – disse Valdar, emparelhando o cavalo com a carroça em que Kara e Rurik estavam acomodados. – Ah, você vai voltar a falar comigo? – perguntou Kara num tom leve de voz, resistindo à

tentação de rodopiar os olhos com o discurso arrogante. – Não tenho com o que brigar, lady Kara. – Entendi errado… – Kara colocou um travesseiro entre o encosto do banco e suas costas, distraindo-se dos pulos incessantes da carroça. Com o movimento, ela acabou derrubando a espada de Rurik no chão. Rurik gritou angustiado e pegou-a de volta. Aquela espada só atrapalhara desde que Valdar o presenteara. – Você mal falou comigo desde o começo da viagem. E de repente, a menos de um dia de Sand, quer conversar. – Quero que as coisas entre nós fiquem claras. O rei não tem nada contra você. – Ele também não devia ter nada contra Ash. – Kara olhou para Valdar quando Rurik fechou os olhos e a espada ameaçava cair de novo. – De que adiantará humilhá-lo dessa forma? Ash deu sua palavra. Você evitou que os homens dele nos acompanhassem. Ash não fez nada de errado. Apesar de ter concordado prontamente que eles viajassem com ela, Valdar não permitiu que nenhum dos guerreiros de Ash a acompanhasse, alegando que pareceria uma atitude bélica. Para surpresa de Kara, Ash concordou prontamente. Parecia que um respeito mútuo tinha crescido entre os dois, mas nenhum deles revelou a razão. A viagem a Sand levou vários dias a mais do que quando ela e Ash tinham feito o caminho contrário, tudo porque Ash insistira que ela e Rurik viajassem numa carroça coberta. – Faça isso por mim, Valdar, pelo que já tivemos um dia. Permita que meu marido mantenha um pouco de dignidade. Valdar ficou sério. – Kara, você ama esse homem. Ela se concentrou. Será que seus sentimentos eram tão evidentes? Tivera esperanças de que, se os ignorasse, ninguém os notaria também. A última coisa que desejava era que sentissem pena dela. – Sei como proteger meu coração. – Eu a considero uma amiga. – Então, não diga nada ao… ao meu marido. – Meus lábios estão selados. Saber não o ajudará em nada. – Ele meneou a cabeça. – O que acha que acontecerá quando chegarmos a Sand? – Não faço a menor ideia – disse ela, sincera. – Mas quero ajudar, se possível. – E o que ajudará a presença de Rurik? Kara inclinou-se e afastou o cabelo da testa do filho. – O pai o ama. Rurik dará maior credibilidade à disputa. Um grito repentino abafou a resposta de Valdar. A carroça sacudiu e parou, jogando Kara e Rurik no chão. – Fique abaixada, Kara! – gritou Ash. – Pelo amor de todos os deuses, fique abaixada! TODOS OS tendões e ligamentos do corpo de Ash se retesaram. Fazia já algumas milhas que ele vinha esperando por um ataque. O ar parecia parado. Ele escutara a folhagem farfalhar, percebera movimentos esquivos e divisara figuras ocultas nas sombras do bosque. Em silêncio, amaldiçoou a própria falta de bom senso ao permitir que Kara e Rurik viajassem

com ele. Felizmente, pelo menos, Valdar havia decidido cavalgar ao lado da carroça de Kara. – O que está acontecendo, Hringson? – perguntou Valdar, de cima de seu cavalo. – Por que parou esta coluna e deixou sua mulher em pânico? E por que está recuando? Ash acenou com a cabeça na direção do bosque. – Não gosto do modo como as sombras estão se movendo. Mande alguém verificar. Vou me certificar de que minha esposa esteja em segurança. Valdar deixou escapar um suspiro de impaciência e mandou dois de seus homens vasculharem a floresta. – Você está em Raumerike, não em Viken. Sua esposa está bem. Seu filho está dormindo. Nossa conversa ia muito bem, até você a interromper. – Raumerike me preocupa de uma maneira que Viken jamais me preocupará. Um dos homens acenou os braços. – Vê…? Não há nada aqui. – Valdar deu um sorriso presunçoso. – Vá explicar para lady Kara. Enfrente a indignação dela. Na próxima vez, certifique-se de que realmente viu os homens em vez de… – Corujas não piam de dia. E os animais se escondem de homens a cavalo. Um grito estrangulado cortou o ar e um homem caiu com uma flecha enterrada no coração. Valdar retesou-se e no mesmo instante desmontou. Dois criados se aproximaram e pegaram as rédeas do cavalo. – Devo investigar? – perguntou Ash, tentando manter o controle. – Por certo, homem, você há de concordar que algo está errado. Precisa proteger minha esposa. Valdar desembainhou a espada e pegou um escudo leve. Seus homens formaram um círculo ao redor de Ash. – Calma lá, Hringson. Você não vai escapar. – Se eu quisesse escapar, não teria deixado minha mulher e meu filho sob a sua proteção. – Ash balançou a cabeça. Mesmo agora, o outro guerreiro não percebia como havia sido manipulado. Ash arrependia-se de não ter pensado nessa possibilidade. Kara não deveria estar ali. Deveria estar em Jaarlshiem, onde ficaria segura. Então, um grupo de homens emergiu de trás das árvores e se posicionou no caminho deles, brandindo os escudos. O coração de Ash ficou pesado. Eram muito mais numerosos, três para cada um deles, e não confiava na capacidade de Valdar e seus homens para escapar de um saco de linho amarrado, quanto mais para se evadir de uma emboscada planejada com aquela precisão. – Entregue-nos Ash Hringson! – trovejou o líder que usava a insígnia de seu tio no ombro esquerdo. – Então poderão seguir seu caminho em paz. – O grupo de boas-vindas? – perguntou Ash baixinho para Valdar. – Eles estão um pouco longe de Sand. Vai cumprir sua promessa e cuidar de minha família? – Eu dei minha palavra ao rei. Não entregarei você a homem algum. – A expressão de Valdar era sombria. – Seu tio tinha outros planos que não divulgou. Nep era um dos meus melhores homens. – Se você me entregar, sairá ileso – insistiu Ash, observando o homem que ele reconhecia vagamente como o capitão da guarda de seu tio. – E meu tio terá a oportunidade de livrar-se de um vizinho incômodo.

Valdar lançou a ele um olhar eloquente. – E herdeiro da propriedade que ele cobiça. Nós caímos direitinho nas mãos dele. Fui um idiota. Lady Kara não deveria ter vindo conosco. – Ele nos enganou a ambos. Eu não esperava esse tipo de cilada. Achei que estaríamos seguros até chegar a Sand – confessou Ash. – Senão eu teria prevenido você. E jamais teria colocado minha mulher e meu filho em perigo. Valdar ergueu o punho. – Então vamos lutar! Prometi levar você até o rei, e por todos os machados de Thor, é exatamente o que farei! – Para mim é uma honra. O coração de Ash disparou. Não estava preocupado consigo mesmo, mas com Kara e Rurik. Felizmente, Kara parecia ter acatado seu grito de advertência e continuava dentro da carroça. – Tem uma arma para mim? – Não temos nenhuma sobrando. Fique na retaguarda. Logo teremos armas de sobra. – Valdar começou a avançar para a frente. Ash sentia-se impotente, e a sensação era abominável. Tudo o que ele tinha era a faca de seu conjunto de talheres. Sentia-se contrariado em ter de ficar atrás dos outros quando poderia ser útil lá na frente. Cada célula de seu corpo ansiava por lutar. – Ash! – A voz assustada de Kara soou da abertura de lona da carroça. – Abaixe-se, Kara! – Rurik tem uma espada! Você vai precisar dela mais do que ele. Ash agradeceu em silêncio e foi até a carroça em que Kara e Rurik estavam acuados. Os braços de Kara estavam em volta do corpinho de Rurik, e o rosto do menino estava pálido. Ash segurou o cabo do florete. Estava longe de ser a arma ideal, mas naquele momento era melhor do que nada. Ele sorriu para o filho. – Você me empresta? Rurik assentiu com a cabeça. – É uma honra para mim… pai. – Bom garoto. Fique aí com sua mãe e tome conta dela. Fique com a cabeça baixa e espere até a batalha terminar. Kara gesticulou na direção da balbúrdia do lado de fora. – Vá. Faça o que tiver de fazer e volte rápido. Nós… estaremos aqui esperando por você. Ash assentiu e contemplou mais uma vez a cena de Kara e Rurik abraçados. – A sorte não irá me abandonar. Ela nunca me abandonou. – Você não precisa de sorte. É um grande guerreiro, lembre-se sempre disso. – Eram as mesmas palavras que ela dissera ao despedir-se dele antes daquela viagem infeliz. – Eu confio em você! A garganta de Ash fechou-se, bloqueando a voz. Ele forçou seus pés a se moverem; ficar ali parado não traria benefício a ninguém. Quando chegou ao local da luta, Valdar e seu pequeno grupo de homens tinham conseguido fazer os homens de seu tio retrocederem um pouco. Valdar era melhor guerreiro do que ele se lembrava.

– Cuidado, atrás de você! – Ash avançou e aparou o golpe da espada do capitão do grupo antes que esta atingisse as costas de Valdar. Sua espada tilintava sem parar, chocando-se com as outras. Ele se virou para a direita, mas calculou mal o movimento e a perna machucada latejou de dor. Escorregou e caiu de joelhos, brandindo a espada às cegas e errando o alvo. Então uma ardência aguda e profunda rasgou seu rosto e o gosto pungente de sangue se espalhou por sua boca. Ele passou a mão pelo rosto, sem ter noção da profundidade do ferimento. A dor era lancinante. Seria mais fácil deixar-se cair no chão e admitir a derrota. Ele nem conseguia mais se lembrar de por que estava lutando. Não tinha que provar mais nada a ninguém. Ash sentiu o sopro leve de uma Valquíria aproximando-se, cavalgando graciosamente em sua direção para recolher sua alma e levá-la para Odin. Uma Valquíria. Kara. Ash ficou imediatamente alerta. Era por Kara que ele lutava. Queria passar a vida com ela. Sempre lutara para voltar para ela. Não era a consideração de seu pai que tinha medo de perder, era a de Kara. Fora um tolo… Precisava garantir que, enquanto seus pés pisassem na terra, Kara estivesse ao seu lado. E ele havia partido sem dizer a ela o que sentia e por que queria ser um homem melhor. Precisava ter a oportunidade de explicar e esclarecer tudo. Ash redobrou os esforços e levantou-se. Sua espada colidiu com a de um adversário e o esforço reverberou ao longo de seu braço. Ele girou para a esquerda, viu a oportunidade e esticou o braço, enterrando a espada até o fim. – Eu lhe devo esta! – gritou Valdar quando o corpo do capitão tombou no chão. Ash limpou a espada na relva e virou-se para enfrentar seu próximo inimigo. Sobreviver. Isso era tudo que ele tinha de fazer… sobreviver. – Esta batalha está longe de terminar.

Capítulo 15

KARA ESTAVA paralisada, sentada com a cabeça de Rurik em seu colo, incapaz de desviar o olhar da batalha em curso. Era impossível saber quem estava ganhando, ou até mesmo localizar Ash. Ela rezava repetidamente para que Odin não quisesse receber Ash ainda, nem naquele dia nem nunca. Arrependia-se de não ter dito que o amava, antes de ele sair. Fora uma falha imperdoável. Ela cometera erros no relacionamento, tanto quanto ele, agora percebia isso. No início, logo que se casaram, sonhava em ser a esposa de um grande guerreiro. Tinha-o encorajado a partir na expedição, e quando ele voltara havia insistido para que se tornasse um fazendeiro e a ajudasse a cuidar da propriedade, quando a pessoa que ela queria era Ash do jeito que ele era, com todos os seus defeitos. Ela teria todas as condições de administrar a propriedade sozinha, sabendo que Ash estaria ali para apoiar suas decisões. Queria que ele fizesse parte de seu futuro, queria compartilhar sua vida com ele, queria que fosse seu. Não seria feliz de outra maneira. E ele tinha de ser ele mesmo, o homem com quem se casara, não alguém que tentasse ser apenas para agradá-la. Ela era mulher de um homem só. – Por favor, não o deixe morrer… – sussurrava ela repetidamente. – Por favor, dê a ele uma segunda chance… De repente, o silêncio pairou no ar. Súbito e opressivo. Em algum lugar um pássaro piou, rompendo aquela quietude esmagadora. – Mãe, já acabou? – perguntou Rurik, em tom de voz assustado. – As Valquírias levaram os mortos para Valhalla? Elas não vão vir me buscar, vão? Não estou pronto ainda para ir para Valhalla. – Já acabou, meu amor. – Kara beijou a cabeça de Rurik. Ele estava trêmulo. Mas estavam em segurança, conforme Ash prometera. Sim, mas onde estava Ash? Ele já deveria ter voltado. – Não

se preocupe, as Valquírias já vieram e foram embora. Elas só vêm buscar guerreiros caídos, não menininhos. Kara ficou de pé na carroça e esticou o pescoço, tentando ver onde Ash estava. Seu coração se apertou, e ela cerrou os punhos, aflita. De onde estava era impossível localizá-lo, mas ele tinha de estar ali… e tinha de estar vivo! Ela queria ter a chance de dizer que o amava. – Meu pai ganhou? – Acho que sim. Ninguém se aproximou da carroça nem dos cavalos, não é? – Kara ajoelhou-se, de modo a ficar com o rosto na altura do de Rurik. – Quero que faça uma coisa para mim. Quero que fique aqui quietinho, está bem? Não saia daqui, nem se mexa. Vou procurar seu pai e trazê-lo para cá. Pode fazer isso para mim? É muito importante. Rurik assentiu com um aceno de cabeça. – Um verdadeiro guerreiro obedece à mãe. Papai me disse. Eu obedeço à sua ordem. Em silêncio, ela agradeceu pelo abençoado conselho de Ash. Ele estava certo quanto a isso. Kara tinha tanto medo de perder Rurik que o protegera demais. O retorno de Ash mudara muitas coisas. – Eu volto assim que puder, com seu pai. Seja um bom guerreiro. – Ela começou a se afastar, mas cometeu o erro de olhar para trás. Rurik parecia tão pequenino e desamparado! – Por favor, mamãe, posso ir junto? Eu estou com medo… – O rosto dele se franziu. – Ainda não consigo ser um bom guerreiro. Ainda sou pequeno, preciso da minha mãe. Kara esfregou o nariz. Como recusar um pedido daqueles? Ele ficaria mais seguro na carroça, mas ela estendeu a mão. – Vamos, então. Juntos eles abriram caminho por entre os cavalos, equipamentos e acessórios jogados e espalhados, até o local onde a batalha acontecera. Havia incontáveis corpos no chão de terra batida ensopada de sangue. Kara deu um gritinho e virou o rosto quando Rurik apertou sua mão com mais força. – Eu não gosto disso, mamãe. – Ninguém gosta. – Kara respirou fundo, preparando-se. Se fosse preciso, ela viraria cada um daqueles corpos até encontrar Ash. Depois iria para Sand e daria um jeito de fazer justiça ao marido. Não para salvar a propriedade, mas para assegurar que todo mundo reconhecesse o homem bom que ele tinha sido. À direita, ela avistou os contornos da choupana onde haviam passado a primeira noite. Bom local para uma batalha. As palavras de Ash ecoaram em sua mente. Esperava que ele estivesse certo e que a sorte tenha estado do lado dele. – Vamos encontrar seu pai. Ela se forçou a virar o primeiro corpo. Respirou fundo quando não reconheceu o homem. – Este guerreiro foi para Valhalla, Rurik. O rosto de Rurik ficou pálido, mas ele não chorou. – Temos que encontrar o papai. – E Valdar. – Meu pai primeiro. – Sim, seu pai primeiro. – Ela rezou em silêncio, pedindo para encontrar uma maneira de evitar

que Ash lutasse outra vez. De repente, o som de risadas masculinas flutuou no ar. Havia alguém na choupana! O alívio inundou Kara, e ela começou a correr na direção do som. – Ash? Os risos pararam imediatamente. – Kara! Eu lhe disse para ficar na carroça – disse ele, aparecendo na porta. – E desde quando eu faço o que você manda? – retrucou ela, com a mão no ombro de Rurik. Ash sentou-se no chão, do lado de fora, e colocou a espada de Rurik sobre as pernas, o rosto virado para o lado. Sua túnica e as calças estavam manchadas de sangue. Valdar apareceu no umbral da porta, sem o elmo e com o ombro enfaixado. – Algum problema, Ash? – Você deveria ouvir o que digo. – Ele continuou evitando fitá-la. – E não deveria ter trazido Rurik aqui. Não é seguro. Pode haver uma nova leva de ataques. Eu… não quero que corram esse risco. – Deixe-me ver você. – Ela cruzou a distância entre eles com dois passos largos e cobriu a boca com a mão. Ash tinha uma ferida enorme no rosto. Poucos centímetros para cima ou para baixo, e ele talvez estivesse morto em vez de conversando e rindo com Valdar. – Ash! – Não é tão grave como parece. – Ele limpou um filete de sangue que escorria. – Há outros em condições piores. Pelo menos, sobrevivi. – Eu é que vou dizer se é grave ou não. – Kara abriu a bolsa de pano e pegou uma tira de linho. Esticou-a sobre o corte no rosto de Ash, notando como por muito pouco a espada não furara o olho dele. – Tem razão… Parece ser profundo, mas não letal. Segure aqui enquanto vou buscar meu material de curativo. – Eu vou! – exclamou Rurik. – Sei onde está! Deixe-me ir, mãe? – Tem certeza? – perguntou Kara, hesitante. Ela sabia que deveria ir, mas queria examinar melhor o ferimento de Ash, preferivelmente sem Rurik por perto. – Sim! E eu posso correr bem mais rápido, porque a senhora está usando saia, mamãe. – Então vá depressa. Vou ficar olhando daqui. – Acha que fez bem em deixá-lo ir? – perguntou Ash. – Ele é pequeno demais para andar por um campo de batalha. Principalmente quando acabou de acontecer uma. – Ele é mais capaz do que você pensa – disse Kara, colocando a mão em concha acima dos olhos. – Você mesmo me mostrou isso. É bom para ele começar a ter um pouco de responsabilidade. – Eu confio em você. – Ash meneou a cabeça. Rurik voltou da carroça e largou a sacola de couro no chão, aos pés de Kara. Em seguida dobrouse para a frente e colocou as mãos nos joelhos, ofegante por causa da corrida. – Eu fui rápido, mamãe? – Mais rápido que o vento! – Kara vasculhou rapidamente o conteúdo da sacola e encontrou as ervas que sua mãe costumava usar. – Estas devem servir. São eficazes para estancar um sangramento, quando misturadas com um pouco de mel. Aplicou a mistura no rosto dele, afastando a sujeira. Ash retraiu-se enquanto ela colocava o medicamento.

– A ferida está limpa. Acho que não vai infeccionar, mas vai ficar com uma cicatriz. – Trouxe o remédio certo, Kara… você e Rurik – disse ele, levantando-se. – Já me sinto melhor. Espero que não se importe de ter um marido com uma marca no rosto. – Quero meu marido de qualquer maneira – respondeu ela –, mas precisa se sentar e descansar. Parece que perdeu muito sangue. – Não, eu preciso devolver uma espada. – Ash apoiou-se sobre um joelho. – Um guerreiro sempre devolve uma arma ao dono. Ela está manchada de sangue, Rurik. Tem uma boa envergadura. Está destinada a se tornar lendária. Use-a com bom senso e sabedoria. – Mesmo? – O rosto de Rurik iluminou-se com um sorriso. – Sim. – Ash pousou a mão no ombro de Rurik. – Valdar escolheu bem. – Como ele está? – Um arranhão no pulso e um corte no ombro – respondeu o guerreiro, aproximando-se. – Rurik, quer vir comigo para ver meus homens? Preciso saber como eles estão. Seus pais podem me emprestar você por um tempinho… Valdar afastou-se com Rurik, deixando Kara com Ash. – Você se machucou em mais algum lugar? Suas roupas estão ensanguentadas. – A maior parte do sangue é de outras pessoas, Kara – disse Ash. – Posso ver? – Ela segurou a túnica dele. – Vou sobreviver – disse ele, afastando-se. – Você é mais teimoso que Rurik! Eu quero ver se está bem… Ash tirou a camisa e Kara viu que não havia outros ferimentos. – Os deuses foram misericordiosos – murmurou. – Eu já lutei em muitas batalhas. Além deste corte, tenho só algumas contusões. Meu joelho está esfolado, porém consigo andar. Mas Valdar sofreu um corte no ombro. Eu o enfaixei, mas ele vai precisar fazer repouso e não pode cavalgar. – Se aquilo é um corte, eu não quero ver como seria um buraco feito com uma espada. – Kara cerrou os punhos. Havia tantas coisas que ela queria dizer, mas Ash parecia diferente. Mais disposto e em paz consigo mesmo. Ele estava gostando daquilo tudo, percebeu ela. – Seu pai ficaria orgulhoso. – Meu pai era diferente de mim. – Ele ficou sério. – Não preciso da aprovação dele, sei como fazer meu trabalho. – Ele entrelaçou os dedos com os dela e beijou-lhe a mão. – Não achei que meu tio fosse nos atacar aqui. Assim como não pensei que o raio fosse atingir o navio, anos atrás. Eu deveria ter insistido para você ficar em Jaarlshiem… Jamais quis que Rurik corresse qualquer risco. Você me perdoa? – Se Rurik e eu não tivéssemos vindo, você não teria uma espada e eu nunca teria me perdoado por isso. Ash inclinou a cabeça para o lado, estudando-a. – Você diz as coisas mais inesperadas. Eu não tinha olhado para a situação dessa maneira. O coração de Kara se aqueceu. Com grande dificuldade, ela reprimiu as palavras que tinha vontade de dizer… que o amava. Mesmo machucado, ele irradiava felicidade e contentamento. Como ela poderia algum dia pedir a ele que não lutasse mais? Entretanto, por outro lado, como

poderia suportar a dor de não saber o que iria acontecer com ele? Como conviveria com a ideia de que ele poderia viver apenas metade da vida? – É a verdade – respondeu. Ash observou-a por um longo momento. – E eu aqui preocupado que você ficasse furiosa comigo. – Por salvar minha vida e a de Rurik? Tem uma opinião muito dura de mim. O herói da batalha é você. – Não, sou um homem que quis garantir que a família ficasse protegida. Não estava disposto a perder nenhum de vocês. São preciosos demais para mim. Kara cruzou os braços, abraçando a si mesma. A força do impacto do que quase acontecera a atingiu em cheio. Calafrios percorreram seu corpo. Ash chegara muito perto da morte. O mundo começou a escurecer. – Eu quase perdi você. – Respire fundo, Kara. Concentre-se no momento presente em vez de no que poderia ter sido. Não pense mais nisso, já acabou. Nós sobrevivemos. – Os homens de seu tio atacaram. – Sim. – Ash protegeu os olhos com a mão. – Um ou dois devem ter escapado durante a luta. Lamento não ter podido detê-los, mas estava ocupado com outros. – Escaparam? – O significado da revelação de Ash penetrou em sua consciência. Aquilo não fora o final, mas apenas o lance inicial. Eles estavam tudo menos seguros ali. – Você quer dizer que eles estão indo ao encontro de seu tio? – É bem possível. O que meu tio irá fazer com eles é outra história. Ele detesta fracassar. Kara bateu os punhos cerrados, tomando uma súbita decisão. – Precisamos falar com o rei, antes que seu tio fique sabendo sobre hoje. Temos de mantê-lo instável. Ash levantou-se com alguma dificuldade. – Concordo com você. Vamos pressionar. Ainda temos algumas horas de luz do dia e à noite teremos lua cheia. – Depois que meus homens forem atendidos – disse Valdar, retornando com Rurik. – Temos de esperar, Ash. – Eu peguei os emblemas dos guerreiros mortos. – Rurik estendeu a mão, segurando uma penca de distintivos antes que Ash tivesse tempo de responder. – Como o senhor me disse, pai, todo guerreiro deveria fazer isso, para saber com quem lutou. Posso ficar com eles? – Pode, sim – confirmou Ash. Rurik soltou uma exclamação de alegria e enlaçou os bracinhos ao redor do pescoço de Ash, que imediatamente o abraçou e rodopiou com ele. – Por que temos de esperar, Valdar? – perguntou Kara, observando pai e filho. – Estamos em vantagem agora. – Precisamos de escolta. Temos de agir com cautela, particularmente agora que seu tio deu esse passo. – Seus homens podem cuidar de si mesmos e viajar no ritmo deles, mas nós precisamos chegar a

Sand – disse Ash, colocando Rurik no chão. – Não quero que você seja visto como traidor porque ergueu a espada contra os homens de meu tio. Ele vai tentar distorcer o que aconteceu aqui hoje. Valdar retorceu os lábios. – Eu entendo o que quer dizer, mas mesmo assim precisamos ser cautelosos. Sugiro que fiquemos aqui até sabermos que temos forças para lutar. E eu sou o responsável por levar você para Sand. Tem que concordar. Kara apertou os lábios. Mesmo com seu conhecimento limitado de estratégias de guerra, ela reconhecia que Ash estava certo. Às vezes era preciso arriscar. O que quer que acontecesse, sabia que estaria mais segura com Ash do que se ficasse ali com os homens de Valdar. – Deixe que Kara decida. Eu confio no discernimento dela – disse Ash. – Faça isso por mim e sua dívida para comigo estará quitada. Uma onda de alegria envolveu-a. Ash confiava nela, acreditava nela! – Você tem uma dívida com Ash, Valdar? – Ele salvou minha vida e ganhou esse corte no rosto. – Valdar deu um sorriso torto. – Pelo menos melhorou a aparência dele. – Qual é a sua decisão, Valdar? – Ash clareou a garganta. – Concorda com a opinião de Kara? Ou quer sentir a força da ira dessa mulher? – Muito bem… Lady Kara, o que deseja fazer? Pressionar ou esperar? Kara olhou ao redor. Por alguns dias, os homens de Valdar não estariam em condições de viajar. E eles não tinham tempo para esperar. Mas viajar também significava que correriam perigo se Harald Haraldson decidisse atacá-los novamente. Valdar era muitas coisas, mas não era um jogador de tafl. – Eu confio no bom senso de Ash. Ele é experiente. Vamos atender os feridos mais graves e depois partimos. Valdar deve ir na carroça, com o braço machucado não conseguirá controlar o cavalo. – Quem vai levar o cavalo dele? – Eu posso montá-lo, até avistarmos os portões. A essa altura Valdar já deverá estar bem para cavalgar. Haverá menos comentários se você estiver em sua montaria. Quanto mais desprevenido pegarmos Harald Haraldson, melhor. Ash beijou o rosto dela, mas seus lábios estavam frios. Kara sentiu um nó no estômago. Ia deixálo embarcar outra vez e não sabia se seu coração estava preparado para isso, mas como impedir que ele fosse? Queria Ash, mais do que qualquer outro homem, por mais estável e presente que esse outro pudesse ser. Ash era o único para ela. – Esta é minha mulher. Seu pensamento estratégico é excelente, mas eu irei no cavalo de Valdar. O meu cavalo já conhece você. – Então está combinado. Valdar inclinou a cabeça. – Espero que saiba o que está fazendo, Kara. – NÃO FALTA muito, Kara – disse Ash, de seu cavalo. Seus ossos doíam de cansaço, e a ferida no rosto latejava, alternando com entorpecimento e uma

dor excruciante. Ele passara a maior parte da noite concentrando-se em cavalgar a montaria de Valdar, que vinha na carroça com Rurik; teria sido impossível ele vir cavalgando com aquele ombro ferido. Felizmente, fora sensato e concordara. Contudo, naquele exato momento, Ash não tinha muita esperança de que seu plano desse certo. Todo o seu conhecimento e experiência em campos de batalha esbarravam com a tarefa que tinha pela frente. – Veja, já estamos nas fazendas adjacentes. Chegaremos aos portões antes do alvorecer. – A terceira fazenda é de Auda. Sugiro que paremos lá para descansar até que os portões sejam abertos pela manhã. Valdar é cunhado dela, e ela nos dará abrigo. Kara estava abatida e cansada, e sua determinação de chegar a Sand surpreendeu Ash. Se eles levassem o plano adiante e realizassem aquela façanha, as pessoas comentariam a respeito por anos a fio. Em outros tempos, essa ideia o teria agradado, mas agora ele se preocupava. Fama e glória não significavam nada se não tivesse Kara ao seu lado para compartilhar. – Vocês podem ficar lá, se quiserem. Esperem por mim até que eu resolva isso. Lá, você e Rurik ficarão em segurança. – Eu quero que isso acabe logo. Quero ficar do seu lado. Ash lançou a ela um olhar penetrante. À luz do luar, o perfil altivo dela se destacava. – Confie em mim para resolver essa questão. Protegerei a herança de Rurik e voltaremos para Jaarlshiem. Posso fazer isso sozinho, sem a sua ajuda. – Acho isso muito difícil. – Kara puxou a rédea do cavalo, fazendo-o parar. – Difícil ou impossível? – perguntou ele baixinho. Seu coração se confrangeu. Precisava saber o que se passava na mente dela. – Assim que eu souber que você está a salvo do meu tio, Kara, poderemos conversar sobre o futuro. Ela abaixou a cabeça. – Difícil, mas não pelo motivo que você pensa. Eu quero estar lá, Ash. Deixe-me ir com você. Eu posso ajudar, não me deixe de fora. – Fui responsável por essa confusão, é minha a obrigação de consertar. – Por que é tão difícil para você aceitar ajuda? Por que sempre tem que ser o único herói? – Os músculos no pescoço dela se retesaram. – Tem horas em que eu tenho vontade de estrangular o seu pai… Você não precisa provar nada para mim. Ash olhou para Kara. Podia não precisar provar nada para ela, mas queria provar algo para si mesmo. – Eu te amo, Kara. Não quero que nada de ruim lhe aconteça, quero que fique em segurança. – Às vezes, você tem somente a ilusão de segurança quando não enfrenta aquilo que teme. Você mesmo me ensinou isso. – Kara acenou com a cabeça na direção de onde a fazenda se estendia, sobre um vale suave. – Enfrentaremos juntos o que vier pela frente. Se me ama como diz que ama, permitirá que eu o acompanhe e interceda por você. O coração de Ash bateu mais forte. Não estava sozinho. Ele tinha Kara. Ela não recuara, ao contrário, estava comprometida, e ele só podia sentir-se grato por isso e mostrar a ela que a merecia. Eram as ações que valiam, não as palavras.

OS PORTÕES se abriram com um rangido e os soldados do rei cavalgaram para fora. O coração de Kara deu um salto quando ela reconheceu o líder, um leal seguidor do tio de Ash. Teriam eles chegado tão longe somente para Harald Haraldson ganhar? – Nós queremos ser levados à presença do rei! – gritou Ash, desmontando. – Nossas ordens são outras, Ash Hringson. Você é suspeito de ter ordenado um ataque sem motivo nem provocação. Deve ser levado primeiro à presença de Harald Haraldson. – Nós fomos atacados a caminho da residência do rei! Será que as leis de Raumerike mudaram tanto assim? – Ash gesticulou, estendendo as mãos. – Valdar, o Forte, está conosco e você sabe que ele é um homem honesto. Permita que ele fale com o rei e depois nos leve até meu tio. – Eu exijo ser levado à presença do rei! – trovejou Valdar. – Fui encarregado de acompanhar Ash Hringson, e aonde ele for eu irei! Os homens se entreolharam confusos e rapidamente reuniram-se para confabular. Após alguns agonizantes segundos, o líder dirigiu-se a eles outra vez. – Vamos acompanhá-los até o salão nobre do rei. Não estamos em guerra com você, Valdar, o Forte, pode guardar a espada. Valdar assentiu com a cabeça, mas cambaleou. Kara olhou-o, preocupada. A viagem tinha sido exaustiva demais para ele. – Ele precisa descansar antes de irmos falar com rei – disse ela. – Está mais morto que vivo. O capitão sorriu. – Ele pode descansar. Pode ir aonde quiser. – Perdão – murmurou Valdar. – E lady Kara? – perguntou Ash, ignorando a exclamação reprimida dela. – Para onde eles irão? – Irão diretamente à presença de Harald Haraldson. Ele os manterá em segurança. São parte da família dele. Kara cerrou os punhos. Deveria ter lhe ocorrido a possibilidade de tornar-se refém. Ao invés de ajudar, ela havia se colocado diretamente nas mãos de Harald Haraldson. – Nem o filho nem a esposa de Hringson foram acusados – disse Valdar, olhando rapidamente para Ash, que confirmou com um movimento de cabeça. – Mas eles estão sob minha proteção e precisam viajar comigo. Podem ficar na minha casa. – Eles têm de ficar com Valdar Nerison – concordou Ash. Kara sentiu o estômago se contrair. Aquelas palavras e ações não combinavam com Valdar. Será que os dois tinham combinado alguma coisa antes de ela os encontrar na choupana? Ela relembrou as palavras de Ash durante a viagem. Ele estava desistindo dela. – Kara – começou Ash. – Desculpe, mas preciso ter certeza de que vocês estarão seguros. Valdar vai cuidar de vocês se algo acontecer comigo. Irei ao encontro do rei sozinho. Assim que estiverem instalados, Valdar irá se encontrar comigo no salão nobre do rei. O líder dos guardas assentiu. – Eu concordo. A presença de Valdar Nerison não é necessária, ele só precisava trazer você até aqui. – Quero compartilhar o seu destino – insistiu Kara em tom de voz mais baixo, enquanto os homens se preparavam para levar Ash. – Deixe-me ir com você.

– Tem que pensar no seu filho. Ele precisa de pelo menos um de nós, caso as coisas não transcorram conforme eu planejei. Valdar saberá o que fazer. Kara mordeu o lábio. – Eu pensei que estivesse decidido. Quero estar ao seu lado. – E eu pensei que você tivesse compreendido. – Ele levou a mão dela aos lábios. – Pelo menos uma vez na vida, faça o que lhe peço. Por favor. – Eu confio em você, mas quero que saiba que estarei do seu lado para apoiá-lo, em espírito. – Não quero que meu tio use você. – Ele franziu a testa. – Valdar e eu fizemos planos para o caso de isso acontecer. Ele vai cuidar de você… se acontecer o pior. – E você sempre disse que, quando as coisas parecem mais tenebrosas, é quando você se sai melhor do que nunca. Lembra-se do jogo de tafl? Você vai conseguir, Ash. – Apegue-se a esse pensamento. O coração de Kara afundou. Apesar da bravata anterior, Ash não estava tão convencido de que o resultado daquele confronto seria o que ele desejava. – Não vai acontecer nada com você. Eu não vou permitir. – Está certo. Valdar me deu proteção durante esta viagem, e continuará protegendo você. É dele que você precisa, Kara. Um homem forte, firme. Ela balançou a cabeça. – Não, está enganado. Eu preciso de você. Nunca se esqueça disso. – Farei o possível para me lembrar. ASH ENTROU no salão nobre sozinho. Seu corpo inteiro doía, mas pelo menos Kara estava em segurança. Os homens de seu tio o haviam espancado e depois o levaram até o rei. No centro do salão, seu tio estava de pé ao lado do rei, com um sorriso triunfante no rosto. O rei parecia mais velho do que quando saíra de Sand, mais cansado e abatido. Seria difícil para quem o conhecesse agora acreditar que tinha sido um dos maiores guerreiros que as terras nórdicas haviam conhecido. – Você voltou, Ash Hringson – disse o rei. – Seu tio receava que você relutasse. – Mas está longe de parecer determinado – escarneceu o tio. – A capa está rasgada e o rosto machucado. E onde está o homem que foi enviado para buscar você? Jogado em alguma vala? Ash inclinou a cabeça. – Valdar Nerison foi um acompanhante perfeito. Mas foi ferido durante a luta e está repousando. Pediu-me para apresentar desculpas. – Como ele se feriu? – indagou o rei. – Cuidado, meu soberano. Meu sobrinho já foi um mercenário. As mentiras lhe vêm rapidamente aos lábios. – Fomos atacados na estrada de Jaarlshiem – explicou Ash, sentindo o estômago contrair-se. Conhecia a linha de ataque do tio e como ele contra-atacava. – Atacados em Raumerike? – O tio riu. – Desde quando isso acontece? Quem atacou vocês? – Os seus homens – respondeu Ash. – Você tem provas disso? – quis saber o tio.

– O senhor tem provas de que o meu navio atacou o seu, tio? – retrucou Ash, tentando manter a calma. – Eu tenho a palavra do meu capitão. Um homem que nunca vendeu sua espada, nem pela oferta mais alta. Ele é leal a mim por causa da minha estirpe, não por causa do ouro que pago a ele. – Onde está o capitão? – perguntou Ash. – Gostaria de falar com ele e saber mais. – Traga-o aqui, Harald – disse o rei. – Um homem tem o direito de encarar quem o acusa. Nisso nós concordamos. Ash é filho de Hring, o Audacioso. Eu devo isso ao falecido pai dele. – Podemos providenciar. – O tio de Ash estalou os dedos e o capitão da guarda se aproximou. – Este é meu homem e todos vocês sabem que ele diz a verdade. – Onde está meu remador? – Não precisa se preocupar. Vocês dois terão o mesmo destino. – O rei inclinou a cabeça. – Primeiro quero saber mais sobre esse ataque. Valdar Nerison estava lá? – Valdar é apaixonado pela esposa de meu sobrinho. Talvez haja outro motivo para a ausência dele. Ou talvez ela o tenha iludido. Kara Olofdottar é ardilosa. Ash contraiu o maxilar. Seu tio era pior do que ele imaginara. Ele deveria ter trazido Valdar, fora um erro não o ter trazido, talvez um erro fatal. – Quando ele chegar, confirmará o que digo. – Precisaremos de provas concretas. – Eu tenho provas de quem meu pai combateu! Ash olhou ao redor e viu Rurik parado no umbral da porta, com Kara. Os homens de seu tio bloqueavam a passagem deles. Não havia sinal de Valdar, mas Kara parecia furiosa. Ela se desvencilhou do braço esticado à sua frente quando Rurik avançou e atravessou o salão correndo. Ash disfarçou um sorriso quando viu que Rurik usava sua espada. – E quem são vocês? – exigiu o rei, franzindo a testa, confuso. – Eu sou Rurik Ashson e trouxe os distintivos dos homens com quem meu pai lutou. Um guerreiro deve sempre ter provas de com quem combateu. Minha mãe concordou comigo quando eu expliquei isso para ela. Foi por isso que viemos. – Rurik colocou os distintivos no chão, diante do rei. – Meu avô disse que o senhor é um homem justo e que me ouviria se algum dia eu precisasse pedir um favor. Ele disse que o senhor me atenderia por causa da promessa que o senhor fez para ele naquela batalha em que o senhor conquistou a coroa. Mas só posso pedir um favor. Meu avô disse que eu podia pedir para ser um guerreiro, mas quero pedir outra coisa. Ouça o que meu pai tem para lhe dizer. – Eu vou ouvi-lo… pelo seu avô – respondeu o rei. Ash olhou para os distintivos. Ele havia dito a Kara que não precisaria de ninguém ao seu lado, mas eles tinham vindo mesmo assim. Isso, por si só, lhe dava esperanças. Ele pegou a insígnia do capitão de seu tio e ergueu-a no alto. – Aqui está sua prova, tio. Ou vai negar a evidência que está diante de seus olhos? Seu capitão me atacou, a mim e a minha família. O mesmo capitão que atacou meu navio. Eu me lembro do brasão dele, desde que eu era pequeno. Meu pai me fazia descrever os brasões como castigo. Uma serpente enroscada num corvo. Os olhos do tio de Ash brilharam, fulminantes.

– Receio que possa ter me enganado. Meu capitão agiu sem ordem minha. – Eu pensei que seus homens sempre seguissem as suas ordens. – Eu… eu… O rei ergueu a mão e gesticulou para os guardas. – Levem Harald Haraldson. Durante um tenso momento, ninguém se moveu. Então um dos guardas segurou o tio de Ash e prendeu os pulsos dele atrás das costas. – Minha lealdade é para com o rei! Ash abaixou a cabeça. Acabara. Seu tio perdera. KARA ESPERAVA por Ash do lado de fora do salão nobre do rei. Auda viera para a cidade e levara Rurik para brincar com os filhos dela, para que Kara pudesse ficar sozinha com Ash. O rei, no entanto, solicitara uma audiência privada, que se estendia até então. O tio de Ash fora derrotado, Ash triunfara. Tudo que Ash um dia desejara estava se tornando realidade. Ele era a essência do herói guerreiro, um homem que os outros homens admiravam. Deveria sentir-se feliz por ele, mas isso significava que iria perdê-lo. Gostaria de voltar para o tempo em que podiam ficar só os dois no bosque, descontraídos, antes que tudo aquilo começasse. Queria alguém ao seu lado, compartilhando sua vida, mas como poderia negar a Ash aqueles sonhos? Ela se enganara; não salvaguardara seu coração, e não restara nada para salvaguardar. Ela o havia entregado a Ash anos antes, e agora queria socar o peito dele e gritar que queria que ficasse. Kara cruzou os braços na cintura. Não tivera como detê-lo sete anos antes e não podia detê-lo agora. Mas podia deixá-lo saber que o receberia de volta de braços abertos e que o esperaria o tempo que fosse necessário. Para sempre, se preciso fosse. Arriscaria o coração, mas não tolheria Ash. – Kara! – Ash saiu do salão e a abraçou. – Você tem de me contar tudo! Ele explicou rapidamente que o tio havia confessado tudo, inclusive a trama para destituir o rei. Kara escutou horrorizada, dando-se conta de quão perto haviam chegado de um resultado desastroso. – Mas nada disso importa. Você esperou por mim – disse Ash, afastando o cabelo dela da testa. – Quero pedir desculpas. Seu raciocínio ágil e o de Rurik também me salvaram. Eu disse que não precisava de vocês, mas estava enganado. Preciso da minha família. – Eu sempre irei esperar por você. Ele apoiou o rosto na cabeça de Kara. – É bom saber disso. Ela respirou fundo, inalando o cheiro másculo dele, saboreando o momento. – Você vai partir novamente. Não precisa esperar um momento propício para me contar. Ele deixou os braços penderem ao longo do corpo e olhou para ela. – Você quer que eu vá? Vai me deixar ir sem discutir? – Se for isso que o rei ordenar, quem sou eu para dizer que não? Você só vai ter problemas se

não voltar para casa. Eu sairei à sua procura. – Kara endireitou os ombros. Precisava correr o risco e dizer o que tinha para dizer. Se não dissesse e ele partisse outra vez, nunca ficaria sabendo. – Eu te amo, Ash. Amo o homem Ash, não o herói, nem o guerreiro, nem mesmo o fazendeiro que pode vir a ser, mas todos eles são parte de você. Eles fazem de você o homem que eu amo. E prefiro poder amá-lo do que qualquer outro homem do mundo. – Mas quer que eu parta. Será mais fácil para você se eu não estiver no meio do seu caminho, obrigando-a a fazer mudanças na sua vida bem organizada. Ela balançou a cabeça, sorrindo. – Prefiro o seu caos à minha ordem. Gostaria que ficasse e se tornasse fazendeiro, mas acho que você não gostaria. Ash riu. – Responda à pergunta. Posso substituir minha espada por um arado, estou disposto a tentar. Kara fitou-o, séria. – Eu quero que fique, mas vi sua expressão depois do ataque, depois que o combate tinha terminado. Você respira aventura, é o que alimenta a sua vida. Não quero que tenha uma vida que considere monótona. Ficaria entediado cuidando de uma fazenda em Jaarlshiem. Eu dou conta de administrar a propriedade, se souber que você vai voltar. – Você se engana, Kara. – Novamente ele afastou o cabelo do rosto dela. – Eu vivo por você. A única razão pela qual estou vivo é por sua causa. É por você que eu luto, é o seu rosto que me inspira. Eu não tinha compreendido isso até que fomos atacados e eu tive de lutar, mas estou sempre lutando para voltar para você, não para me afastar de você. Eu preciso de você em minha vida. No passado eu a amei de uma forma egoísta porque me fazia sentir como se eu pudesse ser um herói. Você acreditou nos meus sonhos. Depois, quando meus sonhos viraram pó, eu não conseguia imaginá-la me dando as costas. Ainda quero ser seu herói, Kara, mas quero ser mais que isso na sua vida. O coração dela deu um pulo. Ash queria ficar com ela! – Por que ficou tanto tempo a portas fechadas com o rei? – O rei me ofereceu um novo cargo, como conselheiro. – Ash empertigou-se. – Ele quer alguém que tenha conhecimento do mundo atual. Alguém que seja capaz de inspirar os homens mais jovens e dizer a eles onde estão os melhores mercados. Mas eu não preciso ir para esses lugares. Tenho apenas de dizer a eles para onde ir. – E você vai aceitar? – Kara uniu as mãos. – É o tipo de coisa para a qual você nasceu, Ash! – Eu queria falar com você antes de dar uma resposta definitiva ao rei. Ele me concedeu algum tempo. – Então, qual é o problema? – Kara deu um passo para trás. – Aceite, Ash! – Você estava enganada quando disse que tudo o que eu fazia era tentar provar alguma coisa para o meu pai. – Ele afagou o rosto dela com a mão calejada. – Faz muitos anos que parei de tentar fazer meu pai sentir orgulho de mim. Eu queria que você me visse como herói, Kara. Ela fechou os olhos, recriminando-se mentalmente, apesar de tudo aquilo ter acontecido quando era muito jovem e inexperiente. – Você foi, Ash. Nunca precisou provar nada para mim. Você é o meu herói!

Ash colocou os dedos sobre os lábios dela. – Eu estava errado. E você se engana. Em vez de querer ser seu herói, eu deveria ter desejado ser seu marido. Um marido é mais do que alguém para ser apenas admirado. É alguém com quem pode contar e que estará ao seu lado nos momentos bons e nos maus. Quero compartilhar minha vida inteira com você, em vez de só de tempos em tempos. Você me deixa ser seu marido, Kara? – É o que quer, Ash? – Kara olhou para ele, mal ousando respirar. – Quer ser meu marido? – Com todo o meu coração. – Ele se apoiou em um dos joelhos. – Kara, você quer ficar comigo para sempre e ser minha esposa de verdade? Eu posso não ser um marido perfeito, mas serei sempre um marido que quer você ao lado dele. Eu te amo, Kara, não tenho medo de admitir isso. – Eu quero! – Ela segurou as mãos dele e o fez levantar-se. – Vá dizer ao rei que você aceita a oferta dele. Ficaremos em Sand o tempo que precisar. Ficaremos juntos, a nossa família! Ash segurou o rosto dela entre as mãos. – Não mereço você. – Eu sei, mas você me tem. – Ela também envolveu o rosto dele com as mãos delicadas. – Da mesma forma como não mereço você. Eu tinha tanto medo de amá-lo de novo, Ash, que quase perdi minha segunda oportunidade de ser amada! Preciso de você na minha vida porque me completa… – Assim como você me completa. – Ash abraçou-a e sentiu que tinha, verdadeiramente, voltado para casa.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ S931r Styles, Michelle O retorno do viking [recurso eletrônico] / Michelle Styles; tradução Silvia Moreira. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Harlequin, 2016. recurso digital Tradução de: Return of the viking warrior Formato: ePub Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web ISBN 978-85-398-2253-9 (recurso eletrônico) 1. Romance inglês. 2. Livros eletrônicos. I. Moreira, Silvia. II. Título. 16-33823

CDD: 823 CDU: 821.111-3

PUBLICADO MEDIANTE ACORDO COM HARLEQUIN BOOKS S.A. Todos os direitos reservados. Proibidos a reprodução, o armazenamento ou a transmissão, no todo ou em parte. Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência. Título original: RETURN OF THE VIKING WARRIOR Copyright © 2014 by Michelle Styles Originalmente publicado em 2014 por Harlequin Historicals Gerente editorial: Livia Rosa Assistente editorial: Tábata Mendes Editora: Juliana Nóvoa Estagiária: Caroline Netto Arte-final de capa: Isabelle Paiva Produção do arquivo eBook: Ranna Studio Editora HR Ltda.

Rua Nova Jerusalém, 345 Bonsucesso, Rio de Janeiro, RJ – 21042-235 Contato: [email protected]

Capa Texto de capa Rosto Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo 10 Capítulo 11 Capítulo 12 Capítulo 13 Capítulo 14 Capítulo 15 Créditos
Michelle Styles - O RETORNO DO VIKING -

Related documents

166 Pages • 78,372 Words • PDF • 1.2 MB

522 Pages • 187,713 Words • PDF • 3.4 MB

12 Pages • 461 Words • PDF • 51.7 MB

47 Pages • 2,928 Words • PDF • 4 MB

187 Pages • 69,501 Words • PDF • 655.2 KB

14 Pages • 226 Words • PDF • 635.8 KB

3 Pages • 1,073 Words • PDF • 114.1 KB

235 Pages • 81,646 Words • PDF • 652.9 KB

89 Pages • 72,898 Words • PDF • 741.6 KB

24 Pages • 9,633 Words • PDF • 982.3 KB

9 Pages • 1,011 Words • PDF • 4.5 MB

3 Pages • 238 Words • PDF • 205.8 KB