Murillo Araújo - A arte do poeta

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A ARTE DO POETA

Livros publicados de MURILLO ARAUJO

EM VERSOS: A Galera Carrilhões Árias de Muito Longe A Cidade de Ouro A Iluminação da Vida As Sete Cores do Céu A Estrela Azul A Escadaria Acesa O Palhacinho Quebrado A Luz Perdida O Candelabro Eterno Poemas Completos (em três volumes) Ronda de Natal Meus Poemas Diletos (Antologia)

EM PROSA: Inspetor Geral (tradução) Aconteceu em Nossa Terra (pequenos casos de grandes homens) Ontem ao Luar (vida romântica de Catulo) A Arte do Poeta Quadrantes do Modernismo Brasileiro Histórias do Brasil Menino

MURILLO ARAUJO

A ARTE DO POETA 4•

EDIÇÃO

LIVRARIA SÃO JOSÉ RUA SÃO JOSÉ, 70 RIO

DE

JANEIRO

I9 7 3

íNDICE

9

PRóLOGO

I.

POESIA

2.

POESIA COMO FORMA

13

3.

OS TR!S ESTADOS DO POETA

14

4.

FORMAÇÃO DO VERSO

16 16 18

COMO

CONCEITO

Número e harmonia Sons fortes e fracos

19

Unidade

5.

11

ELEMENTOS DO RITMO Tempos e sua divisão Versos elementares e versos compostos Valor da pausa e do meio-tempo

20 20 21 23

6.

PRINCIPAIS VERSOS COMPOSTOS

26

7.

TERMINAÇÃO DOS VERSOS

37

Agudos, graves, esdrúxulos Brancos, rimados, toantcs

"

38

8.

CONSIDERAÇõES SOBRE RIMA

41

9.

DISPOSIÇÃO

43

DAS

RIMAS

10.

G!NEROS POÉTICOS

49

li. 12.

G!NEROS CLÁSSICOS A CESURA

51 58 61

13.

POEMA POLIMÉTRICO

14.

VERSO LIVRE MODERNO

64

15.

ELEMENTOS DA EPRESSÃO POÉTICA

67 67 71 72

Som das palavras A ordem das palavras A inflexão das palavras em grupo

16.

O IDIOMA DO RITMO

73

17

O ANDAMENTO POÉTICO

76

18.

CONCEITO DA NOVA POESIA

78

19.

DESVIRTUAÇõES

20.

TEORIA DA IMAGEM

2 1.

o TIMBRE VERBAL

DO MODERNISMO

O instrumento poético Correlações das vogais Aplicação

83 87 96 96 97 102

22.

A LIBERDADE E O POEMA

104

23.

O REAL E O POÉTICO

108

PRóLOGO NECESSIDADE DA POESIA

Quem poderia dizer sinceramente que os dias de h oje ostentam um clima de céu azul para a poesia, O público se afasta pouco a p o uco de poemas e poetas. E os poetas só não deixam a arte q uando é tão v iva sua vocação que morreriam sem ela . A crise tem três origens: nasce da vida, do público e do artista. A vida - se tornou brutal, o d iosa, mesqui­ nha, dominada pelo automatismo das máq uinas. pela sede do ganh o e dos prazeres, estéril e pro­ saica como uma novela de cordel. O público - é a massa dos contemporâneos_. massa de calculistas gananciosos, massa de um tempo de ambição e de ódios em que os fortes se atiram em hordas sobre os fracos, homens sobre h omens e nações sobre nações. O artista - é alguém esquecido de sua alta missão,· alguém q ue transige com o vulgo,· que fala mal o i d ioma d e sua arte e troca a técn ica 9

perfeita, que permite exprimir integralmente a alma, por um balbucio improvisado e ineficaz; alguém que perdeu a força e o arrojo nos cantos para tornar-se frouxo e céptico e cínico a tal ponto que sua Musa o abandonou. Eis por que enlanguece a Poesia - essa Poesia que é não só a alma essencial de toda a arte como o próprio espírito da Vida. Sem ela, sem sua luz de sentimento e criação, não passaríamos de uns macacos barbarescos. E é maior seu destino nos momentos como estes, conturbados e trágicos. Porque sua voz é o clarim do heroísmo, a sanfonina da pureza alegre, o harmônio do sonho alto que nos eleva para o eterno e para Deus. Ela não aconselharia jamais a trapaça, a falsidade, a exploração, a usura, os pre­ conceitos raciais, a tirania, a tortura, o imperia­ lismo ou a guerra . . Seu verbo exaltou sempre o que há de puro e iluminado no mundo - a in­ fância, o amor, o sacrifício, a coragem, a união, a paz, o bem. A terra atormentada precisa de poesia. Temos o dever de não deixar morrer essa força de reden­ ção. Não corn criptogramas sonâmbulos, mais es­ téreis do que os solilóquios simbolistas. Não com pilheriazinhas secas, 1·imadas ou não, mas sutis e intelectuais tanto quanto canalhas . Mas com a palavra que nasce do coração fraterno e ressoa ca­ lorosa de humanidade e de compreensão pela vida, sua beleza e sua angústia. 10

I.

POESIA COMO CON CEITO A missão divina de toda a arte é "recréer la vie d'apr�s une autre volonté" Essa ;r isão nova e harmoniosa das coisas, que nasce do entusiasmo ou da dor, é a Poesia. Ela apresenta os seres mais humildes, os aspetos triviais ou até miseráveis da existência, com auréola desconhecida, numa re­ denção transfigurada. Qualquer fato apresentado sem sentimento, em suas meras circunstâncias reais, numa exatidão fria, nunca seria um tema de novela ou de poema, mas uma simples noção científica. Para a sensação poética não basta a observação; é preciso o dom divinatório que nos dê a impressão de que a cousa observada acaba de ser descoberta. Uma forte emo­ ção que ponha em j ogo as forças da alma pode ge­ rar esse condão do lirismo. A criança sente muitas vezes tão pura alegria. Deslumbra-se a cada passo com o mundo. E ou o descobre ou o recompõe com o prdígio de um en­ tusiasmo virgem. Toma um pobre caquinho de 11

vidro colorido e vê nele um tesouro das índias. Sua emotividade puríssima facilmente se alvoroça. Pois bem. " Quem não for como esses pequeninos não entrará no Reino dos Céus" da poesia. A criança, todavia , se tem o conceito poético genuíno, não possui elementos para a sua expres­ são integral. Sua alma balbucia mas não fala ainda o idioma das artes. É bem difícil para ela esse idio­ ma que murmura em música.

12

2.

POESIA COMO FORMA É melódica a linguagem poética, porque toda emoção tende a criar ritmos. Assim é, e assim foi desde a infância do mundo. Quando o homem não falava ainda, nem pintava, já as emoções que o empolgassem - o amor, a ira, a guerra ou a morte - transmudavam-se em ritmos; e o primitivo dan­ çava. Entretanto quem fala definindo apenas, agar­ rado apenas à verdade das causas, sem o abalo da comoção criadora, jamais terá no estil o a cadên­ cia, a bela ordem, que é o espírito da vida . N unca um ritmo brotou do aranzel de um notá­ rio ou da caixa de um contabilista de banco . Mas mesmo na prosa de um Carlyle ou de um Alencar há tempestades de harmonia. É justa a definição de Paul Valéry : " Idéia Poética é aquela que posta em prosa exige ainda o verso"

13

3.

OS TRtS ESTAD OS D O POEMA Observam-se no fenômeno poético três opera­ ções diferentes : o Estado de Graça, o Milagre, a

Realização. O primeiro é o enlevo, o fervor que prepara a ação prática contemplação. O segundo - a emoção propulsora que move os elementos do mundo e que os transmuda -

imagznação. A terceira - a linguagem harmoniosa que fixa e transmite às outras almas o momento poético­

expressão. Esses três estados se sucedem sem esforço, com a lógica da vida. De um conceito germinai, de um pensamento de origem, vai brotando folha a folha, como um organismo vegetal, o poema; porém

cresce com ritmo cujo tema inicial é a primeira idéia, é a semente. É uma criação com todas as tendências natu­ rais. Nunca houve uma palmeira em que brotasse, entre as palmas, um ramo anormal de figueira ou 14

de murta. Essa concordância de elementos não significará monotonia. "A variedade na unidade" é a norma de todas as cousas que vivem. E é a do poema também. Por essa formação instintiva, a atividade do poeta tem de ser espontânea. Ou é fácil ou é im­ possível. Sem a legítima emoção não se alcança a perfeita expressão. Quem estiver em estado de Graça, e só esse, fará o miagre; e o perpetuará na forma absoluta. Como a arte, entretanto, é linguagem, o do­ mínio do idioma artístico, dos recursos que lhe são próprios , deve ser completo e integral como o de qualquer outro idioma. Devemos compor como falamos, sem esforço, dormindo até. E, para isso, é necessário que o ar­ tista possua perfeitamente uma técn·ica, que lhe permita exteriorizar plenamente o que imagina. É necessário que conheça tudo que seja a teo­ ria de sua arte.

15

4. FO RMAÇÃO D O VERSO NúMERO E HARMONIA

Toda beleza, nascendo da ordem e sendo su­ jeita a um ritmo, se marca pela quantidade de tempos desse ritmo. Há um número em toda har­ monia. O verso é uma sucessão ordenada de sons verbais. O número desses sons determina o movimen­ to do ritmo. Chamaremos som o conj unto de fonemas emitidos ao mesmo tempo. Julgamos útil a adoçã o da designação som para substituir a denominação imprópria de sílaba adotada nos compêndios de metrificação, a qual poderia causar confusões. A contagem dos elementos sonoros do verso não coincide com a das sílabas feita gramatical­ mente. Enquanto estas se processam de palavra em palavra, separadamente, no verso os fonemas se contraem em elisões, com a abstração das palavras 16

em que se encontrem formando sons) desde que se p ronunciem simultaneamente: Assim enquanto o gramático marca oito síla­ bas na expressão Na Jve J os Jci Jlan Jte J aJlém 1

2

3 4 5 6 7 8

o poeta contará apenas seis sons: Na Jve os Jci J lan J te a j lém

1

.......

2

'--"

3 4

5 6

Os elementos do verso se formam mediante seguinte princípio:

o

A s vogais próximas fundem-se num som quan­ do emitidas ao mesmo tempo ou ainda quase ao mesmo tempo: An Jsie Jda Jde 1

2

3

Na expressão oJde_jJâmJbi(ca fazem elisão o e e o i; mas o ã pronuncia-se destacadamente, per­ tencendo a outro som . Também há fusões no meio das palavras: In Jquie Jtu J de ...__,

Podem fundir-se no mesmo som três ou mai familiares c espanh óis :

O alexandrino clássico é formado de dois ver­

sos de seis sons, dispostos de maneira que o seu conjunto conte doze sons. Para tal é necessário que a terminação do primeiro verso de seis sons seja aguda; ou que, sendo grave, faça elisão com o pri­ meiro som do segundo verso que o compõe. A esta peculiaridade do sexto som, que deverá por isso ser fortemente acentuado chamamos he­ mistiquio. Denominação também dada a cada uma das métodos do alexandrino clássico. Exemplo de alexandrinos clássicos: Doze brados. A dor li desceu do cé à terra 6

6

desceu do céu ao mar li na noite constelada . 6

6

O céu reza; o mar sollnha e !pelos ventos erra . . 6 .

O alexandrino que chamaremos familiar

é

um verso de doze sons composto de três de quatro sons, sem a obrigatoriedade do hemistíquio no sexto som: 33

"Intensamenllte, imensamenllte, eternamente" 4

4

4

Grandes poetas têm empregado esse alexan­ drino tricesurado, acrescentando, às duas cesuras do precedente, outra no sexto som. Eles o mistu­ ram aos alexandrinos clássicos, emprestando assim maior vareidade e colorido ao ritmo, embora lhe acrescentem o hemistíquio no sexto som: "Verá passar, !verá llsorrir, !verá brilhar" 4 4 4 Muito harmonioso é o alexandrino que apre­ senta na formação quatro versos de três sons, como este de Hermes Fntes: "Esperanlça, esperanllça, esperanlça, esperança!" 3 3 3 3 O alexandrino espanh o l é a justaposição pura e simples de dois versos de seis sons, sem o hemis­ tíquio, de sorte que o conjunto poderá dar a soma de treze ou mesmo quatorze sons: "?Quién volara a la tie[rra [donde un principe existe ...

6

6

La princesa está pa[Iida [a princesa está triste"

6 34

6

VERSOS DE TREZE (13) SONS

Os versos de treze sons não têm sido usados . Quando aparecem, são apenas alexandrinos espa· nhóis, como este de Castro Alves: "Eu, pálido poe l ta, !seguia, triste e grave. 6

6

Encontram-se, entretanto, alguns em compo­ sições livres, como estes de Magalhães de Azeredo, formados de um verso de cinco sons, grave, mais um de sete, sem hemistíquio: "Rouxinol que can I tas I escondido e o frágil ninho 5 7 tens no cavo tron l co Ide um carvalho centenário" 5 7 VERSOS DE QUATORZE (14) SONS

Têm sido usados com formações diversas, por exemplo um verso de oito sons seguido de um de seis: Para que o leque do Brasil não se fechasse mais. Empreguei certa vez, necessitando de um rit­ mo pomposo, longo e solene, versos de quatorze 35

sons, compostos de dois versos de seis sons, o pri­ meiro dos quais esdrúxulo e sem elisão no sexto som: Lua elevada e lím[pida [trêmula e taciturna, Que arminhos teus leví[ssimos [hoje me afagarão?

36

7.

TERMINAÇõES DOS VERSOS Quanto à terminação, os versos, considerados isoladamente, podem ser: agudos, graves esdrúxulos.

Tomam uma das denominações acima confor­ me a tônica da última palavra. Ei-los exemplifica­ dos numa estrofe de Gonçalves Dias:

5

-

10

-

"Um raio fulgura no espaço de luz, e trêmulo e puro se aviva, se esquiva, rutila, seduz" 37

Aí o sexto verso é esdrúxulo; 5 .0 e o décimo primeiro são agudos; e os demais são graves. Os versos agudos prestam-se mais para a ter­ minação das cadências; e não é muito recomendá­ vel que precedam aos graves em extrofes termina­ das com esses. Quanto aos esdrúxulos, a sua vibra­ ção prolongada cabe admiravelmente na expres­ são de sentimentos de êxtase, majestosos, solenes: "Sumiu-se o sol esplêndido nas vagas rumorosas. Em trevas o crepúsculo foi desfolhando as rosas . Quanto à terminação ainda, mas considera­ dos agora em conjunto, os versos podem ser: brancos, rimados, toantes BRANC0s são aqueles cujos vocábulos finais não são obrigados a apresentar entre si nenhuma analogia:

"Eras na vida a pomba predileta que sobre um mar de angústias conduzias o ramo da esperança; eras a estrela que entre as névoas do inverno cintilava apontando o caminho ao pegureiro. 38

Esses versos, empregados outrora frequente­ mente em longas composições, sujeitas à mesma medida, tornavam-se enfadonhos pela monotonia, quando não fossem manejados com estro excep­ cional. São precisos vocábulos de força e sonoridade invulgares para que supram, nessas longas cadên­ sias, a ausência das rimas. Raramente essa mestria é obtida, como ocorre em alguns poemas de Fa­ gundes Varela, um mestre no gênero: "Por toda parte onde arrastei meu manto deixei um sulco fundo de agonias. RIMADOS são os versos cujas terminações soam identicamente, pelo menos a partir da última vogal acentuada. As terminações em tal caso chamam-se rimas. E, se há também coincidência nas consoan­ tes que as precedem, chamam-se rimas ricas.

Candejlabro e descajlabro são rimas ricas.

A seguinte estrofe oferece, com o primeiro e o terceiro versos, exemplo de rimas esdrúxulas e, com o segundo e o quarto, exemplo de rimas graves: Quero a linha feliz da tua carne elástica para compor, com meu deslumbramento essa massa plástica o mundo, o espírito. amalgamada em sonho e sofrimento. 39

A citação que se segue apresenta um exemplo de rima aguda : "E vendo o rosto sem par que fazer, amor? amar" -

Convém notarmos que apenas a identidade do som é requerida para a rima; e não a da grafia. Assim texto e cesto, crasso e laço são boas rimas; enquanto colhêr e mulher, céu e teu são péssimas. ToANTES são os versos cujas terminações pos­ suem, de idêntico, apenas a última vogal tônica. São muito usados esses versos no idioma es­ panhol. O poema de Alberto de Oliveira "O Vento da Estiva" é composto em quadras com toantes no segundo e quarto versos: "Sobre a manhã torna o vento em mais desatada fúria; corno enraivado rnolosso rosna, exaspera-se e uzva. Abro a janela, olho o tempo; inda estava fora a lua, sem montanha onde esconder-se que a Estiva é toda planura.

40

8. CONSIDERAÇõES SOBRE A RIMA "

Elemento indispensável nas composições par­ nasianas, a rima tem perdido muito de seu antigo prestígio com o advento das modernas correntes poéticas. Grandes artistas de hoje a proscrevem in­ teiramente de suas obras. Há nisso evidente exa­ gêro. Outros a empregam parcamente. Entretanto é ela um elemento de primeiro ordem na orquestração do verso. É tão da índole poética que já a encontramos, há milhares de anos, em velhos salmos hebraicos . Pode pois e deve ser empregada, hoje, como foi ontem, embora com mais liberdade pelos autores modernos. O que é preciso é renovar-se o conceito da boa rima. Esse conceito era antigamente baseado na dificuldade : quanto mais difícil de obter-se tanto melhor a rima. O conceito de hoje deveria ser o da musicali­ dade : quanto mais sonora, natural e expressiva, tanto melhor a rima. 41

A poesia simbolista empregou com admirável efeito as rimas em ão, que faziam horror aos ve­ lhos parnasianos pela sua facilidade. E quantas vezes essa rima desprezada não se impõe, necessa­ riamente, como recurso imitativo ou sonoro, som de bordão na sinfonia verbal! Abandne-se o velho conceito da boa rima, comum nos tratados de métrica, que tomam gran­ demente em consideração a categoria gramatical das palavras rimadas ou sua frequência na língua! Para a estética dos nossos dias, ótimas serão as ri­ mas que apresentem estas três características: invulgaridade naturalidade sonoridade (•)

(!) Aos principiantes pode ser útil um dicionário de rimas. Para isso convirá, porém, que não seja ele empregado no momento da expressão poética, porque então o esforço de procurar a rima per­ turbará a emoção criadora emprestando frieza à composição. Ao mesmo tempo a leitura de numerosos vocábulos de sentido diferente desviará o sentido puro do poema. A rima não deve puxar idéias, ao contrário do que pensava B.ilac. O artista escreverá espontanea­ mente o que sente, e em falta de uma rima deixará em branco a palavra. Terminado esse primeiro escorço, o principiante poderá então ajustar a rima adequada com o concurso do rimário. Acon­ selhamos para isso o Dicionário de Rimas de Almerindo Martins de Castro.

42

9.

DISPOSIÇÃO DAS RIMAS O fenômeno estético é um só; apenas os seus meios de expressão é que variam nas diversas ar­ tes. Assim como nos compassos musicais existe um leit-motif, frase melódica que volta várias vezes no decorrer de uma peça, a poesia possui o estribilho ou refrão, versos ou estrofes que se repetem inter­ correntemente, a intervalos regulares ou não, atra­ vés do poma. E, assim como numa frisa decorativa o tema reponta periodicamente segundo certas leis, tam­ bém os versos e as rimas obedecem a análogos pro­ cessos de composição. E, como nas frisas, as rimas se repetem sucessivamente, alternadamente ou de modo variável, formando as diversas estrofes da métrica tradicional: Dísticos ou faehas, quando se seguem du�s a duas:

"Espaçoso é o salão; jarras a cada canto; admira-se o lavor do teto do pau santo"! 43

Tercetos :

"A isto esta cidade nos conv ida, entrai: por mais que a noite em vós se n ote) tereis um astro à frente na saída. Da cidade moderna é luz o m o te que na porta da entrada arte e flameja; Entrai a escola é catedral, igreja; Hostia, a ciência, o meste, o sacerdo te" Quadras :

"Dizem qu ehá gozos no correr da vida. só eu não sei em que o prazer consiste! No amor, na glória, na mundana lida foram-se as flores - a minh'alma é tristen

-

A quadra simples, em redondilha mazor, ao gosto popular, chama-se trova : Quando ris, um passarinho sai cantando de teu riso, para mostrar-me o camniho que conduz ao paraíso. Pode-se rimar ainda, nas quadras, o primeiro com o último verso e o segundo com o terceiro. 44

Quinti lhas:

"Passaram sobre o meu peito quatro rodas de mafim. Não vi o filho do rei tão bonito tão perfeito que não era para mim" Outras disposições de nmas nas quintilhas: a b a a b

ou

c d c d

c

Sextilhas:

Eis as disposições de nmas usadas com fre­ quência: "Minha noiva derradeira) és bela e triste ao luar! eu fui a garça altaneira cruzando as tardes vermelhas. Dos arcos das sobrancelhas por que frechaste um olhar?" Outras disposições há, muito usuais, nas sex­ tilhas: 45

a a b c c b

d e d

e d e

g h g g g h

Estrofes de sete versos :

Apresentam-se geralmente com estas disposi­ ções de rimas: b b c

d d d c

Oitavas :

Dois aspetos existem, mais freqüentes, de oi­ tavas em nossa língua:

A oitava clássica : "Cessem do sábio Grego e do Troiano as navegações grandes, que fizeram; 46

cale-se de Alexandre e de Trajano a fama das vitórias que tiveram; que eu canto o peito ilustre Lusitano a quem Netuno e Marte obedeceram: cesse tudo o que a Musa antigua canta; que outro valor mais alto se alevanta." A oitava romântica: "Naqueles tempos ditosos ia colher as pitangas, trepava a tirar as mangas, brincava à beira do mar; rezava às Ave-Marias, achava o céu sempre lindo, adormecia sorrindo e despertava a cantar! " ou ainda: "Era hoje ao meio dia. Nem uma brisa macia pela savana bravia arrufava os ervaçais . Um sol de fogo abrasava; tudo a sombra procurava, só a cigarra cantava no tronco dos coqueirais." 47

Estrofes de nove versos:

Podem-se dispor assim a a

h

c c

h

d d

h

Décimas:

Poderão ser arranjadas de vários modos como por exemplo: a a

h

c c

h h h d d d h

48

1 0.

GÊNEROS POÉTICOS Como todas as artes pode a poesia apresentar­ se em sua pureza essencial ou como arte aplicada. Podem ser incluídas nesta segunda espécie a poe­ sia humorística) a sátira de análise fria e sem emo­ ção, o tatro em verso e o velho poema didático . A poesia pura assume duas modalidades prin­ Cipais: O gênero épico e o gênero lírico . O gênero épico) pouco usado hoje, foi inicial­ mente uma criação do povo, constituída pela epo­ péia) a narrativa exaltada de um acontecimento heróico, de episódios da vida de um grande ho­ mem ou de uma nação. Os Lusíadas de Luís de Camões ,oferecem o melhor exemplo da grande epopéia no idioma que falamos. O gênero lírico é a poesia de sentimento, va­ sada diretamente do coração, emanada das dores, dos arroubos, das ternuras, dos êxtases humanos. 49

Assim, se na poesia ep1ca domina o caráter objetivo, a lírica é marcada pelo caráter subje­ tivo. A primeira se debruça sobre o mundo e os outros homens, para narrar um passado heróico; a segunda volve os olhos para o mundo interior do próprio poeta e procura expressar suas mágoas íntimas e seus sonhos. O gênero lírico, como o denota o próprio no­ me, é o das formas de poesia cantáveis. E nele estão compreendidos os cânticos) que podem ser: emoti­ vos (canções); heróicos (hinos) ou místicos (salmos). Incluem-se ainda no seu âmbito: a ode) o ma­ drigalJ a elegia) e nêniaJ o epicédioJ o epitáfio) o idílioJ o rondá) o vilanceteJ a balada) o epitalâmioJ o canto natalício) o trioléJ o soneto) o acrósticoJ a glosa) e a xácara. Essas formas poéticas estão hoje quase que in­ teiramente abandonadas, exceção feita do soneto, que continua a ter grandes e numerosos cultores.

50

11.

G:f:.NEROS CLÁSSICOS Das composições líricas que vêm de ser enu­ meradas, além das três espécies de cânticos, não estão sujeitas a formas determinadas as seguintes: Ode: Poema celebrando ardentemente o he­ roísmo, a fé, a vida ou o amor . Madrigal : composição breve e galante, con­ tendo louvor delicado e fino às graças femininas ou velada confissão sentimental. Elegia : poema de contemplação e tristeza me­ ditativa. Nênia e Epicé dio : cantos de luto, celebrando a memória e as virtudes dos mortos. Epitáfio : pequena poesia de saudade para ins­ crição nas campas. Epitalâmio : cântico nupcial augurando ale­ grias aos noivos. Canto natalício : versos de louvor, exaltando o aniversário ou um nascimento. 51

Dentre as composições mencionadas estão, po­ rém, sujeitas a certas regras, pelo menos na arte clássica ,estas outras: Rondó : Não tem propriamnete na poética do Brasil e Portugal uma forma rigorosamente fixa; mas é obrigado à repetição de certos versos de tempos a tempos: "Sôbre as ondas oscila o batel docemente . Sopra o vento a gemer ... Treme enfunada a vela... Na água clara do mar passam tremulamente Áureos traços de luz, brilhando esparsos nela. Lá desponta o luar Tu, palpitante e bela Canta! Chegate a mim, dá-me essa boca ardente! Sobre as ondas oscila o batel docemente . Sopra o vento a gemer... Treme enfunada a vela... Vagas azuis parai! Curvo céu transparente. Nuvens de prata, ouvi!. .. ouça do espaço a estrela, ouça de baixo o oceano, ouça o luar albente! Ela canta . e, embalado ao som do canto dela, sobre as ondas oscila o batel docemente"

A cadência e as repetições próprias do gêne­ ro traduziram aqui o rumor insistente das ondas. Vilancete: é pequeno poema em desenvolvi­ mento de um terceto inicial, segundo a disposição clássica. Eis as rimas, tomadas para modelo de um vilancete tradicional: 52

e1

etra 1nco InCO etra etra e1 ei

adas ei to ei to adas adas ei ei

e1

adas

Balada. Na forma pura originária apresenta, em suas quatro estrofes, as seguintes disposições de rimas:

elo oz elo os elo

elo oz elo oz elo

elo oz elo oz elo

1

1

1

elo

elo

elo

1

1

1

elo 1

elo

Modernamente chama-se balada a qualquer composição com versos repetidos quase sempre no fim das estrofes. Trio lés : são composições em cujas endeixas repetem-se os versos com intervalos fixos: "Fazem hoje vinte anos que deixei a minha terra. Fazem hoje vinte anos que deixei o Maranhão. 53

Os destinos inumanos desde então me fazem guerra. os destinos inumanos me maltratam desde então. Fazem hoje vinte anos que deixei o Maranhão . " O poeta, Artur Azevedo, evitou na estrofe acima a elisão, que seria de regra, do e mudo e do a seguinte na expressão vinte anos) obrigando­ nos à pronúncia vintí anos) que, além de mais na­ tural e brasileira, se alonga expressivamente, com o próprio sentimento da duração do tempo. Soneto : é um pequeno poema de quatro es­ trofes: duas quadras e dois tercetos. Presta-se per­ feitamente para as breves impressões, os conceitos sintéticos, os pequenos quadros, correspondendo em nossa lírica à tanka dos poetas orientais. Eis algumas disposições de rimas usadas nos sonetos: Ia

Ia

ava ava

ava ava

Ia

Ia

edos

ISCOS

ISCOS

edos

eos

lSCOS

ando ala ando

orta ala orta

Ou então: inha entes inha entes 54

inha entes inha entes

Ou ainda: ala ega ala ega

ega ala ega ala

ei to e i to i ta

oso oso i ta

Podem os tercetos apresentar outras dispo­ sições: antos ero ero

antos ono ono

Concorre para acentuar a unidade do poema a inclusão, nos tercetos, de uma ou mais rimas dos quartetos; ou a repetição de um dos versos desses últimos: A hora de ouro do ocaso, morta e branda, aveluiou-se em branca muselina. Que mau presságio pelos ares anda nos lacrimosos flocos da neblina?! Um rancho de aves para o mar debanda. Uma estrela -tão alta! - se ilumina. E há um presepe de neve na colina, à orla dos arvoredos, veneranda! As árvores, em) ronda funerária, se alongam, mudas, numa luz mortuária. Mas a estrela tão alta se ilumina! 55

É a minha· estrela? Ah! morra solitária, se é luminosa, vespertina e vária como o meu sonho e a minha vaga sina!

Acróstico : Esse gênero deve ser proscrito da

poesia atual, pelo que encerra de artificioso e fal­ so, com prejuízo da emoção e da virtuosidade poé­ ticas. Consta de uma ou mais estrofes, compostas de tal modo que as iniciais dos primeiros versos formam um nome determinado. Ora é claro que os poemaa não devem, jamais, surgir assim, como num problema charadístico; mas brotados da alma em função de um sentimento estético. Glosa : Cabe o reparo, que acaba de ser feito,

também a esse gênero de pequenos poemas, mui­ to usado no século XVIII, e que consistia em com­ por a peça lírica sujeito à obrigatoriedade de en­ cerrar as estrofes com os versos de um mote> for­ necido por outra pessoa. O vilancete, o rondó e a balada repetem também; mas repetem versos do próprio poeta, nascidos de sua emoção. A glosa é um exercício fútil de verbalismo; e dificilmente resultará em verdadeira poesia. Xácara : é uma criação do povo. Um longo

poema narrativo, com a presença insistente de 'Uma certa rima no final de todas as estrofes e a re56

petição as vezes de um ou mais versos. O gênero é ingênuo e agradável, desde que o poeta consiga evitar, por uma grande plasticidade de inflexões, a monotonia, que é o seu maior perigo. Ao velho rimanceJ de origem moçárabe, não falta gracioso pinturesco e um evocativo eco de vozes antigas .

57

12. A CESURA Consideramos que os versos são formados de sons, fortes ou fracos, os quais se agrupam em tempos marcado s ou atenuados. Os sons fortes se acusam pelas sílabas tônicas. Há entretanto em cada verso, um som mais que todos forte, que parece dominante, e onde se demora um pouco na prosódia, como numa pequena estação de repouso. Nesse ponto está situada a chamada cesura. Versos há com mais de uma dessas dominantes. Indicamos a seguir a incidência da cesura nos diferentes metros: De quatro sons: "O ven l to brando passou 1 brincando" De cinco sons : "Nos ma l res de prata despon I ta o 1uar" 58

De seis sons: "Rompe o sol [na colina alegran[do a campina'' Redondilha maior:

Una[mos as mãos [em ronda cantan[do à luz [do luar. De o ito sons: "Meu Deus, meu Deus! [Como é que pode Caber tanto ó[dio em tanto amor?! De nove sons: "Esta noi[te era a lu[a já morta. Anhangá [me veda[va sonhar." De dez sons: "Repousa lá no céu [eternamente e viva eu cá na ter[ra sempre triste." Ou ainda: "Para servir-[te braço às ar[mas feito, para cantar-[te mente às mu[sas dada" De onze sons: "Estorcem-se os leJques dos gran[des palmares volteiam, rebraJmam, doudeJjam no chão" 59

Ou A canção e o bei[jo como irmãos florindo na luxúria bran[ca das estrelas mortas . . . De doze sons: "E a lágrima celesJte, ingênua e luminosa Olhou, sorriu, tremeu Je quedou silenciosa" Ou ainda: "Vamos marchar, [vamos lutar, [vamos viver À luz do amor, [à luz do amor, [à luz do amor!" A cesura é a chave do ritmo; e o som em que recai deve ser destacado fortemente. Conviria, quando não isolado pela pontuação, como no caso do primeiro verso acima, que não se deixassem acentuados os sons que precedem ou seguem ime­ diatamente essa cesura. Assim o verso:

Pôs-se a despedaçar[ flores corn raiva não é perfeito, porque o son [flô[, acentuado, en­ fraquece a cesura no som [çar[.

60

1 3.

rOEMA POLIMÉTRICO Há vários séculos, os ritmos clássicos têm sido misturados numa mesma composição. Muitas ve­ lhas odes e a maioria das fábulas de La Fontaine apresentam essa disposição. Esse poema polimé­ trico foi usado pelo mestre francês para maior na­ turalidade, maior simplicidade nos diálogos. Os simbolistas deram ao verso polimétrico uma gran­ de plasticidade. Vários tratadistas dessa escola poé­ tica tentaram até sistemtizar sua técnica. Alguns aconselham, por exemplo, que se evite o emprego próximo de versos de números pares com os de números ímpares de sons. Não é tão simples o se­ gredo do ritmo. Convém levarmos em conta as pausas subentendidas no meio dos versos. Qual­ quer que seja o número de sons de cada verso composto, o que dá unidade ao poema polimétrico é a medida dos ritmos elementares que entram na formação de seus versos. Assim, um verso par de seis sons, formado de dois de três sons) combina

perfeitamente com qualquer de número ímpar. 61

Mário Pederneiras usou o verso polimétrico em busca de maior naturalidade, apenas, como o fizera La Fontaine. Facilita ainda excelentemente todos os efeitos musicais. Para esse fim, é claro, desde que aplica­ do com os recursos de uma técnica exata. Com as vozes nasais conseguem-se ressonâncias de cordas : São vãos soluços lúgubres no esconso do Outro Mundo? São de-profund is fúnebres que plangem? (Oh o responso em tom fundo . e os defuntos que rangem, num longo violoncelo, os ossos desconjuntas ! ) Com a s líquidas se obtêm modulações har­ pejados : Teus grandes olhos e as estrelas tremerão . Virás sonhando . E que unicorde e claro [coro as arpas de ouro, as harpas de ouro tangerão ! As vozes martelantes se prestam para o rumor da bateria : N egronegro chora e negro samba na macumba do quilombo, 62

com o malafo da moamba, dando bumba no ribombo do urucungo e do ganzá! N egro ca no congo, cai no congo dos mirongas ao muganga, todo o bando nesse jongo . roda, negro roda a tanga, chora banzo no gongá. Diante da riqueza dos versos polimétricos, os gêneros fixos têm apenas a cadência elementar das po lkas.

63

1 4.

VERSO LIVRE MODERN O Os ritmos livres como o da prosa, nascidos espontaneamente da idéia a expressar-se, consti­ tuem a mais elevada forma de arte poética e a mais difícil de realizar-se desde que não deixem de ser música. Um poema livre, mas realmente belo em sua larga orquestração, está, para qual­ quer das formas clássicas, como uma imponente sinfonia está para um minuete ou uma valsa. Longe de ser nova, essa maneira poética é, ao contrário, a mais antiga que se conhece. Ela apon­ ta nos versículos da Bíblia, há numerosos séculos. O verso livre bem compreendido e realizado é aquele em que melhor se sente pulsar o coração do artista ; mas essa linguagem plástica e harmo­ niosa nada tem de comum com os aglomerados de palavras e períodos, mais desordenados do que a prosa ruim, e sem nenhuma correspondência com as emoções que tentam exteriorizar. O poema li­ vre perfeito brota facilmente, cristalino , mas sin64

fônico, da pena dos poetas verdadeiros, que co­ nhecem de instinto os valores de sua arte ; que lançam mão deles sem esforço; que os aj usta plas­ ticamente ao corpo de suas idéias. Um poeta gi­ gantesco, Whitman, nos dá a medida da beleza dessa arte. Eis um fragmento de um desses cantos ma·· gistrais, "A Locomotiva", numa tradução apro­ ximada : Oh Beleza feroz! Roda através de um canto, ao pleno ardor da tua música selvagem! Com teu claro fanal que treme pela sombra; Com

a

gargalhada de teus silvos loucos, que retumbam nos vales

e

[despertam heróicos como trompas de guerra.

O teu grilo estridente tem resposta somente das colinas

c

rocas.

Tu o arrojas, além do infinito dos campos, sobre os longes dos lago� ...

até os céus desenfreados, jubilosos de luz!

I

Há latente no verso livre perfeito um elemen­ to formador análogo ao compasso das composições musiCais. A " Marcha Triunfal" de Ruben Dario, por exemplo, peça épica, de larga orquestração, tem a cadência perfeita de um dobrado marcial, desde o belo início até o final poderoso: Saludan con voces de bronce Ias trompas de guerra que trocan

[marcha

Ia

triunfal.

65

Aqui está para exemplo um fragmento com a sua indicação musical :

lle

CGir C t

La

es - pa - da

Etttí f P si C v1e - ne

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t ç.lr gl_( tM :'i

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rc - fle - Jo

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EU I r f !=! �

hie - rro el

cor - te - jo

de los

pa-la- dl- nes

A meu pedido, o dis tinto Maestro Martinez Grau marcou para o mesmo trecho, declamado com outras inflexões, os compassos de 6/8 ou de 2/4 com o emprego de quiálteras. Há em toda a arte um número.

66

15. ELEMENTOS DA EXPRESSÃO P OÉTICA Utilizando o instrumento de sua arte deve o poeta ter em vista três recursos principais de execução: o som das palavras; a ordem das palavras)· a inflexão das palavras agrupadas em períodos.

SOM DAS PALAVRAS A sonoridade dos vocábulos pode ser consi­ derada de per si ou pelo efeito em conjunto. Isoladamente, é, o termo, mais ou menos so­ noro; alguns até haverá de prosódia rebarbativa ou áspera. Como a pincelada na tela ou a percussão ins­ trumental na música, não deve, entretanto, ser j ul­ gada boa ou má a palavra senão pelos seus efeitos na harmonia geral. Mesmo se áspera ou dura, pode 67

ser necessária, e até insubstituível, para a expres­ são de sentimentos brutais. Observemos como a dureza dos tt finais se aj usta bem à expressão das costas selvagens, no pe­ ríodo de Herculano :

"A soledade dessas praias e ribas frago­ sas do oceano é absoluta e tétrica" Qualquer dos vícios de linguagem pode ser usado como recurso expressivo. A própria caco­ fonia pode produzir um som de ambientação ou assumir mesmo uma intenção irônica, na sátira. É inteiramente falsa a condenação, feita pelas artinhas poéticas, dos versos hom ófonos, isto é, dos versos com uma vogal insistente. Tornar obri­ gatória a po lifonia das vogais é tão absurdo como o seria tornar obrigatória a policromia na pintura ou o emprego de todas as notas em cada frase da melodia . As idéias monótonas pedem versos ho mófonos; e eles serão melhores do que os outros para tradu­ zir impressões do gênero desta que nos fala de uma gota dágua contínua : fina ferindo, fria, a fria cantaria.

As consoantes também podem, se insistentes, traduzir efeitos necessários, como nos célebres ver­ sos de Cruz e Souza : 68

"Vozes veladas, veludosas vozes, volúpias dos violões, vozes veladas vagam nos velhos vórtices velozes dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas . A essa repetição da consoante inicial dá-se o nome de aliteração. E ao efeito de imitar verbal­ mente o som das cousas, como nessa estrofe foi feito com o rumor dos ventos, dá-se a denomina­ ção de on omatopéia . Vários poetas tentaram fixar a correspondên­ cia instrumental das vogais e consoantes. Um sim­ bolistas francês , René Ghill tentou mesmo fundar uma escola - o instrumentismo, baseada nessa correspondência, que Rimbaud, já notara no fa­ moso soneto definindo a cor das vogais. A dificul­ dade está em que nem todos sentem de modo idêntico esses valores sonoros. Algumas impressões, todavia, podem ser con­ sideradas de ordem geral, dado o número de au­ tores em que se manifesta sua presença. Assim, a vogal a sugere emoções de amplitu­ de, iluminação, alegria : mar, alvorada. O é e o ô (fechados) convêm aos sentimentos recolhidos ou íntimos : ermo, doce, segredo. O i, vogal incisiva , de som cortante, denota idéias de agudeza, e retalhamneto: frio, ventania, arrepzo. O ó (aberto) , som gritante, sugere um triun­ fo : glória, vitória, apoteose. 69

A letra u� surda e fechada, é melancólica : se­ pulcro. Quanto às consoantes : As dentais, marteladas prestam-se a idéias in­ cisivas : bater, bradar, desbragadamente ; As labiais, letras macias, prestam-se às expres­ sões de ternura : mãe, meigo, amor, bem; As líquidas sugerem idéias de enovelamento : charola, enrolar. Caberiam ainda, a respeito do valor da acen­ tuação das palavras, as observações anteriores so­ bre os finais agudos, graves ou esdrúxulos . De passagem incluo aqui uma advertência : nas composições destinadas à música é indispensá­ vel que a tônica das palavras coincida com os acen­ tos da melodia, a fim de que não haja desnatura­ ções, tão frequentes no gênero, que se encontram até na própria letra do H ino N acionai . Aí, realmente, a música nos leva a pronunciar mal vários proparoxítonos : "Ouviram do Ipiranga as margens p 1 a/ . . cz"d as "E o sol da liberdade em raios fúl . . gi dós" I

"

Ainda neste capítulo do som das palavras se inclui o emprego das rimas adequadas às idéias do poema. Tônicas e rimas são elementos de destaque para certas palavras e devem recair de preferên­ cia sobre as que encerram idéias principais. 70

Não é, pois, muito aconselhável o emprego do chamado "enjambement", efeito que, absorven­ do a rima, faz com que o repouso desta venha a recair em palavra no meio do verso seguinte. Esse recurso é útil apenas no verso dramático onde im­ prime mais naturalidade às réplicas. A ORDEM DAS PALAVRAS Sob esse título compreendemos os efeitos de expressão resultantes do ritmo próprio. Com sua cadência, r.á pida ou demorada, curta e martelante ou alongada, deve nascer instintivamente, nos bons poetas ,em função da idéia emocional que lhe deu origem. Ainda nestas considerações se inclui a cons­ trução dos períodos e a disposição das palavras nos versos. A ordem direta deve ser sempre a preferida. Expressões como "da pátria os filhos" ou outras em ordem inversa produzem sempre uma sensação de dificuldade que prejudica o efeito estético. Finalmente as repetições de palavras ou de frases iniciais, os refrões, as anáforas são recursos expressivos que se prendem à ordem das palavras. O arranjo e a seqüência dos próprios vocábu­ los nas frases podem produzir expressões sugesti­ vas. Assim a idéia de ondulação, de vaivém, está traduzida neste exemplo pela aproximação de pa71

lavras como aloendro e o leandro cujos sons pare­ cem inversos : Verdes ondulações de flores e de palmas nos aloendros e nos oleandros . A IN FLEXÃO DAS PALAVRAS EM GRUPO Essa é a modulação determinada pela emoção e obtida com os recursos da pontuação , das nota­ ções léxicas : vírgulas, interrogações e reticências.

72

16. O ID IOMA DO RITMO O ritmo é um instintivo recurso de expressão. Nós o encontramos freqüentemente no primi­ tivo ou na criança seguindo a cada frase os movi­ mentos da alma. Ouça alguém uma criatura simples que narra uma cena e verá que o andamento de sua fala acompanha as circunstâncias da narartiva. - "Tudo estava calmo . Nem viUm silêncio de morte . valma . dirá o narrador calmamente, retardada­ mente, para exprimir o repousado da hora. Mas logo em seguida apressará seu discurso e num tumulto agitado é que "De repente sai dirá a frase seguinte : de uma casa um homem correndo, com seis soldados loucos atrás dele . Com o mesmo instintivo impulso o ritmo acompanha o frasear dos bons poetas , num para­ lelismo constante . 73

Examine-se um bom poema : " Eu te bendigo, oh mar das ondas quérulas, que choras pérolas. Eu te bendigo, oh mar de sedas e de plumas que ris espumas ! Eu te bendigo, oh mar saudade, mas tristeza, Mar - Prometeu da natureza . Sentimos bem nessas vozes a perfeita cadência do mar. Na primeira estrofe, uma primeira onda vem de leve e brinca modulando um sch erzo; na segun­ da nova onda, mais forte se avoluma e estoura ; e na terceira a vaga maior se espraia e alaga a costa de espumas. Um outro exemplo:

5

" Mestre ! Tu que exaltaste a vertigem da vida nas forças tumultuárias do progresso morres sentindo-as sob as rodas de um expresso - com seus cavalos de vapor a toda a brida, na horrenda procissão dos vagões de transporte, na indiferente e célere corrida ao ruidoso rumor de seus carros de morte . "

mos 74

No segundo, terceiro e quarto versos senti­ o trem que entra em movimento e ganha, a

pouco e pouco, força; no quinto e sexto segue em andamento normal; no sétimo apressa ainda a mar­ cha e apita com a rima final aguda : corrida; e se esvai enfim num rumor marcado, com o troc-troc "ao ruidoso rumor de seus carros dos truques : de morte." O ritmo sincopado traduz com justeza o estrépito de uma dança ainda bárbara : As pretas rodando os tundás se arredondam em cateretês . Os pretos são doidos Sacis Pererês. Os sentimentos íntimos, ao contrário, pedem ritmos que se dissolvem imprecisos: Meu destino, Infinito, originou-se em tuas mãos como a alga arremessada nos abismos. O ritmo é, assim, um poderoso idioma como é a chave essencial de toda a beleza. Exalta-nos o belo porque contém o ritmo, que é o princípio da vida e todo o ser normal exalta-se com a vida .

75

1 7.

ANDAMENTO POÉTICO Como na música, a maior ou menor velocida� de do ritmo constitui no poema um elemento de harmonia e sugestão. Se a maior parte dos metros empregados decorre num andante moderado, al­ guns há que perecem tender para a aceleração, num presto : " Oh guerreiros da taba sagrada ! oh guerreiros da tribu tupi" Outros são saltitantes como um sch erzo : O vento leve passa a brincar. Flores de neve parecem voar. Que anjo vem breve jogar de leve flores de neve, de neve, no ar? ! 76

Não faltam ainda os que se seguem em tempo de marcha : Monsieur Duclerc avançando à frente, d e ares chibantes, já move, airoso, o bastão bonito de marechal. Gorjeios. Flores. Nos céus o arco-íris brilha triunfal.

E há também ritmos de abandono, que se arrastam desamparados e lentos : Como bói a esta alma pela luz levada nas marés da lua que perdida corta! De bubuia voga pelos astros, nua, como um trapo branco de naufrágio - morta!

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18. CON CEITO DA N OVA POESIA Um pouco de reflexão nos leva a crer que o simbolismo foi o mais fecundo dos movimentos estéticos. Primeiro - porque inovou profunda e radi­ calmente. Segundo - porque trazia em gérmen todas as tendências que viriam depois. Inovou na forma e inovou no fundo. Rom­ peu com os mais antigos preconceitos e abalou as vigas mestras mais intocáveis de todas as artes. Com ele vieram a j ustaposição de tons na pin­ tura, o livre-ritmo nas medidas poéticas, as disso­ nâncias na música, a incompletação na escultura. Qualquer tendência novíssima tem naquela escola morta um precursor muito ilustre. Ve­ rhaeren e Whitman antecederam Marinetti como Francis ]ames brincou ingenuamente muito antes dos dadaístas. O próprio suprarrealismo tem em Lautréa­ mont e até em Rimbaud antecessores gloriosos. 78

Hoje como ontem a arte busca a impressão sugestiva e não a estrita verdade ; e hoj e como ontem a plástica não repete a natureza servilmen­ te, mas a estiliza. Há, porém um elemento de distinção entre o simbolismo e as tendências mais novas - um ele­ mento de extensão - é a síntese. As expressões novas são muito mais sumárias - no poema ou na música como na estatuária ou arquitetura. Para a compreensão do modernismo artístico, deveremos notar antes de tudo que o realismo nas artes não passou de uma palavra. Em todos os tempos, e mais e mais sempre, o artista é um cria­ dor de realidades novas, ainda quando pareçam nascidas das realidades do mundo. Foi assim ontem e é hoj e. Quem dirá que não é uma estilização, e bem audaz , o desenho antropomórfico de uma urna selvagem? E porque os leões dos relevos assírios têm as jubas em cara­ coizinhos frisados como as barbas dos ferozes guer­ reiros do tempo? N inguém há de crer que eles, como os leões da moda) freqüentassem os salões dos cabeleireiros. Deu-lhes tal aspeto a visão pes­ soal de um artista. Ora os poetas também estilizam ou deformam a natureza com o seu poder de expressão. Visio­ nam as causas do mundo e dão-lhes outro sentido, um sentido mais vivo e um interesse maior, atra­ vês de vivas imagens . E não só os de hoje; os de ontem como os de todos os tempos. 79

Não é grandioso comparar, por exemplo, a formosura que passa a um desfile marcial com os pavilhões ao vento? Ora essa forte imagem não é doidice de ne­ nhum futurista . É apenas do grande Rei Salomão ; e está no " Cântico dos Cânticos : " Teu corpo tem a impo­ nência de um exército com bandeiras" Imagens de mil anos como essa, mas moder­ nas pela síntese e a audácia, se encontram nos au­ tores de todas as épocas . Citadas por Mário de Andrade em pessoa e referidas por Manuel Ban­ deira, eis aqui duas de dois grandes clássicos : De Shakespeare: "O vento senta no ombro de tuas velas" E de Homero : " Muge a terra ao tropel dos corcéis e dos homens " O próprio Ronsard, tão sóbrio, transfigurava as coisas como os outros: " Olha a primavera nas­ cendo dos raios de seus olhos ! " E escreve assim outro ilustre velh o : "Sou feito de sombra e mármore. Como os negros pés das árvores eu me aprofundo na noite. 80

Sou a escadaria Trevas ; e em minhas espiras fúnebres há os vagos olhos da sombra." N enhum suprarrealista é o autor desses ver­ sos. Eles são simplesmente de vovô Victor Hugo . . . E o seu neto d a América, o seu neto Castro Alves , não atirava também o laço das imagens, longe, colhendo os mundos? E com que força ! "A terra, na vaga de azul do infinito, cobria a cabeça com as penas da noite ! " E se querem exemplos mais atrevidos ainda, aqui está um de um poeta filósofo que nunca foi modernista, um de Augusto dos Anjos :

"A morte é esse danado número um . Imagem novíssima, admirável, exata. Porque a morte é a unidade inexorável que todo o ser tem de conter. Serão mais audaciosas as imagens modernas? Muitas delas, e grandes, são até mais simples. As de Garcia Lorca : "A guarda civil se afasta sob um túnel de silêncio"

A deste português novo: "Eu caibo em minha tristeza como num caixão fechado" 81

Ou esta do famoso Fernando Pessoa :

"O cais é uma saudade de pedra" De Raul Bopp : " Música com gosto de lua e do corpo da filha da Rainha Luzia . O que dá força e vida a imagens de épocas tão diferentes é a sua essência lírica : elas têm poesia. Que há de mais em que o poeta deforme as suas sensações? Perdurarão seus versos se tiverem o fundo de humanidade que dá vida à criação do homem : se brotarem com o calor de sua alma e a umidade da sua ternura.

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1 9.

DESVIRTUAÇõES D O MODERNISMO As novas escolas acentuaram inegavelmente, nas artes, justas e fecundas tendências : a liberdade de criação e de forma; a síntese de expressão; o dinamismo; a surpresa estética; o apelo ao subconsciente ; o conceito da poesia pura; a abolição da retórica. Essas reivindicações, porém, não alcançam êxito quando se apresentam desvirtuadas pelo abuso. E cada uma dá lugar a um conceito exage­ rado ou falso. Assim, a li berdade construtiva degenera às vezes em desordem destrutiva, com a abolição com­ pleta do ritmo , quando o ritmo - libérrimo que sej a - é elemento essencial de toda a beleza. 83

A síntese d e expressão, tomada, não no verda­ deiro sentido de condensação de idéias, mas no falso sentido de pequena extensão, determina a moda dos poemas microscópicos ou das tankas orientais . que podem nada ter de sintéticos ; porque três linhas contendo a idéia de três pala­ vras são mais prolixas do que trinta linhas conten­ do a matéria de trinta páginas. O d inamismo, a exaltação do movimento e o conseguinte entusiasmo pelas máquinas, acordes com os velozes tempos atuais, chega em alguns casos a um automatismo frio, vazio de subjetivi­ dade, sem emoção e sem alma. A máquina sobre­ põe-se ao homem; o criador subordina-se à cousa criada. A surpresa est é t ica, recurso admirável e eter­ no em todo engenho artístico, e tão freqüente no velho Rabelais como no novo Alfred Jarry, perde, todavia, o efeito quando resulta do absurdo arti­ ficioso e procurado. É o que sucede às imagens da­ quele modernista que julgava tanto melhor uma comparação, quanto mais distantes de sentido fos­ sem seus termos, de sorte qu� quem comparasse uma estrela a uma flor de ouro teria feito uma imagem mil vezes pior do que quem a comparasse a um pepino . . . O apelo ao su bconsciente é o recurso à fonte mesma da poesia, é a extração no âmago da mina. Quem negará o valor do subconsciente nos gran­ des artistas de todos os tempos? Num São João 84

Evangelista, num Novalis, num Gerard Nerval ou num Poe? Mas o exagero do processo resulta em mudar o estado poético em mero estado de so­ nambulism ou alucinação. Abolir completamente a intervenção da consciência na criação artística seria proceder como um arquiteto paisagista que formasse j ardins deixando crescer, ao Deus dará, num terreno, as plantas que ali espontaneamente nascessem . O conceito da p oesia pura, levado ao extremo, resultaria em poesia absolutamente sem forma; e sem forma só poderá haver o incriado, pois a vida se afirma em uma forma qualquer, tanto melhor quanto mais viva. Toda a expressão que decorre necessariamente da idéia a exprimir-se é boa e a idéia harmoniosa suscita a forma harmoniosa. E como admitir-se que antes da poesia pura só se houvesse criado poesia impura? Finalmente a a bo lição da retórica é por vezes tomada como a abolição da técnica. Já houve quem defendesse o absurdo de que, quanto mais primi­ tivo e ignorante o criador tanto mais espontânea e legítima a sua obra ! Como se toda a arte não fosse uma linguagem, ou como se quem menos conhe­ cesse uma língua fosse quem melhor a falasse ! Ao contrário, o artista, moderno ou antigo, deve estar tão seguro de seus meios de expressão, que eles se tornem um prolongamento de seus nervos e não traiam na criação o esforço que era tão visível na velha retórica. Quem nunca tocou violino poderá 85

ser mais espontâneo arranhando as cordas do que Paganini foi ou é M isha Elman? Não se confundi­ rá, é certo, uma técnica com uma forma precon­ ceitual ou acadêmica. O artista precisa ter um ins­ trumento e dominá-lo, ainda que tenha ele mesmo inventado esse instrumento; e será até melhor que o invente . se tiver gênio para tanto. Depois de todos esses reparos, ressalvemos, contudo, que houve e há um modernismo legítimo - que usa da liberdade para achar uma nova har­ monia; da síntese para intensificar a emoção ; do movimento para pintar os dias de nosso tempo agitado; da surpresa estética para a criação com­ pleta e nova; do subconsciente para a descoberta de deslumbramentos virgens; e cuja poesia pura, assuma, pela técnica segura, a expressão simples e nova de um mundo recém-surgido das águas.

86

20.

TEORIA DA IMAGEM "No princípio era o verbo" - disse o apóstolo­ poeta . E assim o mundo nasceu do verbo , brotou do Espírito criador. A terra e os mares, o éter e os astros, o homem e os seres são simples fragmen­ tos da imagética de Deus. E a Vida? Que chamamos Vida? - Uma série de imagens, uma sucessão de sombras na consciência. Por isso é que a Arte, que exalta e embeleza os fenômenos da vida, serve-se a todo instante da imagem, que tem o dom de animar a verdade . O fato que, secamente expresso, não comove nem impressiona, é morto. Mas a arte pode ressus­ sitá-lo tranfigurado. Um exemplo? ! - A pobreza de uma frase di­ dática - uma banal expressão geográfica como -

a Inglaterra está situada junto ao Canal da Mancha

toma um interesse vivo e novo com uma simples imagem de poeta : -

a Inglaterra é um navio, que Deus na Mancha ancorou ! "

87

A metáfora de Castro Alves é legítima tanto quanto engenhosa. Traça a situação física da Bri­ tânia isolada nos mares ; e mais ainda; resume a vocação de seu povo, o seu destino no mar . " Um navio, que Deus na Mancha ancorou . " - uma prancha de marujos, nascidos para as ondas por uma fatalidade divina. Castro Alves, como pintor, estiliza a Inglater­ ra em linhas breves, expressivas e harmoniosas. A

BOA IMAGEM É QUASE SEMPRE SIMPLES

A complicação, o pernosticismo - são como o empastamento de tons numa decoração : prej u­ dicam o conjunto. Querendo ouvir canções lentas, de nostalgia e doçura - o grande poeta lembrou-se apenas de pedi-las "tristes, bem tristes, como à noite o mar . A analogia simplicíssima bastou para uma su­ gestão sem limites de desolação e de música.

A BOA IMAGEM É INCISIVA E SINTÉTICA É

que sendo um elemento de ornato, ela é ainda um meio explicativo. E a explicação não poderia ser mais confusa do que o fato que ela esc1 arece. Os preciosismos à Saint-Paul-Roinard, 88

que comparava o galo a "um pequeno campaná� rio vermelho bimbalhando pela aurora" são afinal de um mau gosto irritante. A imagem moderna tira da síntese seu vivo dinamismo. São desse gê­ nero as dos verdadeiros poetas novos : " Manhãzinha . Os leiteiros dão de mamar aos portões . A

BOA IMAGEM EMBELEZA O OBJETO QU E EVOCA

É mais harmoniosa sempre que a causa que vem exprimir. Por isso compreende-se o poeta que transmu­ da o cheiro acre da maresia em "aroma de flores maceradas" : ninguém póde admirar todavia aque­ le outro que, diante do mesmo fato, nos fala do "mau hálito do mar . E certas aproximações, caras aos decadistas de outrora, como "poentes de gangrena" ou ocasos de morféia" - passaram já de moda felizmente, sem deixar saudades. A BOA IMAGEM TEM O MOVIMENTO DA VIDA Vitaliza o próprio ser inanimado. É assim que, pintando uma pobre pedra bruta , Hermes Fontes a arroja no caos primitivo : 89

" Corpo que se encontrou abandonado de alma, corpo que se não pôde à ação do ar decompor ­ uma pedra é uma vaga imóvel; é uma calma recordação do mar de que foi leito e estrada, e uma vaga do mar dos tempos retardada, que por aí ficou, sem sentidos . parada, adormecida por um íntimo torpor . A

B OA IMAGEM, COMO O BOM TRAÇO, D EVE SER LANÇADA FIRME, SEM TITUBEIOS

Tem um partido tomado, como as linhas de uma composição decorativa. A hesitação faz com que ela erre o alvo. É o que sucede com as ana­ logias de um poeta ao " Quarto Crescente" : "Lua - saudade em forma d'astro, iluminado bogari . "

Fica-se a pensar se a lua é saudade ou é boga­ ri . E tem-se mesmo a impressão de que deveria ser uma flor maior . . . A BOA IMAGEM SE AMBIENTA COM O ASSUNTO Quem compara o céu com uma sala de festas não pode, simultaneamente, comparar a lua com uma frigideira nova. Junqueiro porém, compara 90

E não é plebéia a estrela dalva a uma espora . a imagem ,porque, seguindo em cavalgata nas nu­ vens, era natural que o ginete tomasse, "como roseta d'oiro, a estrela da manhã . A BOA IMAGEM É UN IVERSAL EM SUA FORÇA Quanto maior o número de características da cousa expressa abranja, tanto maior o seu poder. Se Alencar, mostrando a coma de Iracema, em vez de usar a graúna e a palmeira, tivesse achado uma asa longa de pássaro escuro que desse, a um tempo, a cor e o basto dos cabelos - teria feito ainda uma melhor imagem. Quando o poeta nos pinta a paixão e a vida no dístico célebre : "um amor que domina uma existência inteira como a lua domina os vagalhões do mar . resumiu na figura toda a aspiração amarga e an­ siada da vida e toda a pureza inatingível do amor.

A imagem, como toda a estilização, afirma um temperamento, mostra a individualidade. Se o Amor para esse amargo, estranho e vigoroso Au91

gusto dos Anjos é ' ' como a cana azeda, e a toda a boca que o não prova engana" , para um sensual, como Bilac, é o momento de grandeza que é de inconsciência e de êxtase bemdito: os dois corpos são toda a natureza, as duas almas são todo o infinito . Para uma personalidade orgulhosa e avassa­ ladora "Todo o amor não é ma1s do que um eu que [transborda. " Para outra, d e puro enlevo místico, será "Reticências no céu .

parênteses na terra"

A imagem varia até com o estado d'alma do mesmo poeta. E a Via Láctea ora lhe parecerá "uma camândula de jóias" ora "um jorro de lá­ grimas ardentes" •





Em seus processos a imagem se amolda ainda às escolas e varia com as idades. Paralelamente à evolução humana, sua expressão é cada vez mais rápida. Parabólica a princípio, ela se arrastava, di­ luindo-se numa lenta narrativa. Depois passou a rodar as suas analogias com o peso de lentos com­ parativos. Assim era ela nos tempos do Patriarca: 92

- "Qual a palmeira que domina ufana os altos topos da floresta espessa tal bem presto há de ser no Mundo Novo " o Brasil bem fadado . Na era romântica ia a passo de mazurka, saltitando de como em com o : "Minha alma é "como" o deserto por onde o romeiro incerto procura uma sombra em vão; é "como" a ilha maldita, que sobre as vagas palpita queimada por um vulcão . O processo simbolista , ainda lento, emprega a imagem comparativa, porém mais solta, com a su­ gestão vaga e agradável, a graça heráldica da escola. Que encantador raiar de plenilúnio este de Alphonsus : "Como uma rosa dentro de um ninho a lua nasce num céu de outono . De outras vezes a imagem surge dinâmica, feita símbolo ,sem termos de comparação: " E atirei a seus pés para que ela os pisasse meus andrajos de pobre e meus mantos de rei. " Finalmente, o processo modernista aglomera ou j ustapõe idéias em movimento abrangendo uma imagem várias sensações simultâneas : 93

O sol clown estridente atiru aos milhões pedacinhos de espelho no capote do mar . -

A imagem moderna mais do que qualquer outra é surpresa e pinturesco. Seu ineditismo não deve porém sacrificar-lhe a graça. A que fica reduzida a pobre lua nesta comparação comercial?: "A I ua cheia, Iuminosa e exul, alegra todo o céu como a etiq ueta alegra a tampa de um estojo azul . . .

"

Menos originais, mas também muito menos prosaicas, são de certo estas sugestões de luar: "Toda de branco a lua, ancila triste, passa pelo mosteiro celestial, celestialmente." •





Nem sempre o acúmulo de metáforas envilece um poema. Muitos dos mais célebres de Castro Al­ ves são simples camândulas sucessivas de imagens : "São duas flores unidas. V nidas bem como as penas das duas asas pequenas de um passarinho do céu; 94

unidas bem como os prantos que em parelhas descem tantos das profundezas do olhar . . . como o suspiro e o desgosto como as covinhas do rosto como as estrelas do mar . . . "

O poeta sabe criar antes de tudo através de imagens. E é justo o conceito de Mauclair: "Quanto mais imagens inventa um poeta mais alto [é ele em sua glória. " Assim tem acontecido com todos os grandes líricos do mundo . E até com o mais alto, com o Poeta dos Poe­ tas - que é Deus.

95

21 .

O TIMBRE VERBAL O INSTRUMENTO POÉTICO

"Não é com idéias que se fazem versos" afirmou certa vez Mallarmé - "é com palavras." Manuel Bandeira, que muitas vezes tem repe­ tido essa tirada, não se enganou, porém, sobre seu correto conceito. E tanto assim que comenta : Não é que o sentido das palavras não impor­ te. Importa; mas não independentemente da sono­ ridade, como pensava Gide." A verdade é que os meios de expressão por tal modo se integram na natureza do artista que o poeta sente em palavras como o pintor pensa em cores e o escultor - em formas ; e assim também sonha o músico através dos acordes. É essa instintividade de exprimir-se que torna possível a legítima realização artística. Para o êxito total é preciso que o criador se manifeste sem esforços no idioma estético, como o homem comum quando usa o idioma comum . 96

Só cnhece uma língua quem, falando alto no sono, a manej a com facilidade e justeza. Assim, o artista deve dominar sua língua harmoniosa a ponto de falá-la facilmente . sonhando. Essa expressão automática, espontânea, que é dócil como um reflexo dos nervos - só a conse­ gue quem tem a perfeita posse da técnica. CORRELAÇõES DAS VOGAIS

Ora, sendo a palavra o instrumento do poe­ ma, não é demais, para a criação da harmonia , que pesquisemos o timbre musical dos vocábulos. Esse timbre vibrado pelos sons das vogais ; às consoantes cabe apenas a modulação das vozes livres. Com intuição e dedução não é impossível acharmos correspondências cromáticas e mus1ca1s para as vozes livres da linguagem. É o que vou tentar, a seguir. Não poderai tomar como norma inicial - e tantos o têm feito ! - o afamado soneto das vogais de Rimbaud. Nesse poema, como tantas outras vezes, o ga­ roto de gênio quis simplesmente brincar . "A

noir,

e

blanc, i rouge,

u

vert,

o

bleu .

Ora, por que e como o a poderia ser negro? O negro não é côr. O negro é apenas a ausência da 97

luz, a supressão de toda cor. Preto, pois, só o si­ lêncio. E por que o e seria branco? Não há cor bran­ ca. O branco é a fusão de todos os tons ; N ewton o provou perfeitamente com o famosíssimo disco. As cores que o menino poeta empresta a i e ao o vieram ao acaso também e sem a menor som­ bra de lógica . O i vermelho? O o azul? E onde fica o amarelo, que é um dos tons fun­ damentais? - " O u francês é o amarelo" - afirmou René Ghil, no seu outrora discutidíssimo e hoj e esque­ cidíssimo "Traité du Verbe" E, com essa afirmação, anulou afinal a única cor em que Rimbaud acertara : o u francês que parece mesmo ser verde. Não se pode negar que o fenômeno estético é um e único e análogos entre si são os meios de expressão nas várias artes. E, raciocinando, observo que, como há três cores primárias (amarelo, azul e vermelho) de cuja fusão, duas a duas, nascem o verde, o laranja e o violeta - há também três vogais fundamentais. Os filólogos ensinam que são elas : o a, o z e o u. A vogal e nasce da união do a com o i . E isso é visível em francês, onde o som e se exprime com 98

a mais i : mais) mauvais. E é patente ainda no inglês : m ai d . E se observa até mesmo entre nós,

onde os rústicos dizem reiva em vez de raiva . A vogal o) por sua vez, provém de a mais u . E assim é escrita em francês - sauf) mauve - e em daugh ter. E entre os nossos simples tam­ ingles bém, que mudam saudade em sodade . Acrescento, por minha conta, que o u e o i se fundem no som do u francês, que as gramáticas chamam som intermédio. É o mesmo som do ü alemão e do y que os lusos acharam em certos ter­ mos de nossos índios e grafaram à moda grega para distingui-lo do i comum. Comparando agora os tons puros - azul> ver­ melh o e amarelo - com as vogais básicas - a> i e u> não posso deixar de reconhecer que a cor azul, a mais doce, a mais grave das três , deve corresponder à vogal mais fechada e mais suave - o u. O u é, pois, azul. A mais forte das cores, a mais rica de sol - o amarelo - terá como correlata a mais viva e estri­ dente das vozes - o i) vogal gritante que está até no termo grito. E o i> assim, é amarelo . Para a cor para vermelho resta então o som básico do a. O a por isso é vermeho. E as demais vogais, formadas das vogais bási­ cas, correspondrão às cores nascidas dos respectivos -

99

tons fundamentais. Assim, o e) o u francês e o o serão, correspondentemente, o laranja) o verde e o vio leta (roxo.

Cores

e

Vogais básicas

e

compostas

Entretanto, são sete verdadeiramente as cores como se mostram no espectro solar. E, às já estuda­ das, devo acrescentar o ani l. Existirá uma voz livre que lhe seja análoga? Pens o que sim. Será a vogal situada entre o o e o u . Ela existe e nasce da fusão das duas : é o ô) que se grafa também o u . Assim é que a forma ver1 00

bal p oude se escreve atualmente pôde, conservan­ do, sem a menor alteração, a antiga pronúncia. As palavras findando em ô rimam exatamente com as terminadas em ou. Temos pois uma outra vogal derivada - ô - (entre o e u) - correlata à cor de­ rivada anil, situada entre o violeta e o azul. Nem se diga, como obj eção, que o ê (fechado) é também vogal nova, em relação ao e (aberto) . É que esse ê não resulta de nenhuma fusão; e nem os sons eu ou ei se confundem com ele. Seu timbre acusa apenas uma variação de instrumento : é (aberto) é metálico , como ê (fechado ) é som em madeira e como as vozes nasais são vibradas em fagote ou violino. Conhecidas agora as correspondentes cromá­ ticas - vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil e violeta - para as vozes a, e, i, u francês, u, ô e ó - será possível deduzirem-se as correlações musicais, uma vez que há também sete notas . A mais grave dessas - o dó - será por analo­ gia a cor mais séria - o viole ta. As notas mais vivas - o sol e o si - serão correlatas dos tons ricos - o amarelo e o vermelh o . E, preenchidas as demais tonalidades do nosso quadro com as notas restantes, na ordem da es­ cala - concluo que, para a, e, i, u francês, u, ô e ó, cabem em correspondência respectivamente as no­ tas s i, la, sol, fa, mi, re, dó. Quanto aos ditongos - são acordes ; e os hiatos serão quiálteras . 1 01

APLICAÇÃO Evidentemente, traçando esse esquema de ana­ logias visuais, musicais e lingüísticas, não tenho a intenção de, com os coloridos das vogais, oferecer ao poeta uma paleta com que esboce, em vezes li­ vres, as paisagens de seu mundo estranho . . . nem lhe dar uma pauta para compor melodias em vogais . Lembremo-nos sempre de que a arte compõe com o instinto. E, ao escritor verdadeiro, acudirá espontaneamente o tom próprio para cada emoção. O estudo dos timbres verbais servirá, no má­ ximo, para um ajustamento a posteriori. E ainda assim muito relativamente. Muitas objeções levantaria a aplicação literal do método. Nem todas seriam justas talvez. Quando inúmeros autores viram no u uma letra triste que aponta sempre nas palavras lúgu­ bres - houve quem objetasse que luz e lua tam­ bém se escrevem com u. Mas a luz que nasce da noi te e a lua doce e quieta podem bem ter a voz que em nosso quadro é azul . . . A verdade é que não se podem aplicar estri ta­ mente_ as correlações que estudamos por dois mo­ tivos principais : primeiro, por que as palavras não são, em geral, feitas com uma só vogal e a cor do termo resulta das várias vozes que o formam; e se­ gundo, porque os vocábulos não nasceram das co1 02

CORRELAÇõES CROMÁTICAS E SONORAS DAS VOGAIS

res das coisas, mas do som delas; porque a lingua. gem foi a princípio imitativa. O esquema das correlações das vogais servirá simplesmente para que, num verso ou numa es· tância, a predominância de uma ou algumas delas acentuem o sentimento triste ou alegre do poeta. Há cor também no reino misterioso da idéia.

103

22. A LIBERDADE E O POEMA Já em tempos que vão longe chamou Shope­ nhauer à arte - "a região da liberdade." Mas, tomado no mais amplo sentido, o con­ ceito se aplicaria apenas à fase criacional da ima­ ginação.

A liberdade de expressão não pode ser total - é condicionada a razões de harmonia; porque a harmonia se mostra em tudo que vive ou há de viver. "Não quero mais saber do lirismo que não seja libertação" -exclamou o poeta querido num poema famoso. E esse grito seduz pela beleza. Mas essa libertação é ilusória. A liberdade do artista ao exprimir-se é a que tem um jogador de bilhar: pode tomar as posições mais diversas, curvar-se sobre a mesa, levantar a perna ao alto, passar o taco por detrás da espinha . .

.

contanto que carambole afinal! E sem isso perde­ ria a partida.

104

O artista tem a opção nos elementos que emprega .

contanto que saiba criar a harmonia.

Essa é a lei das coisas que vivem e das que não querem morrer. Só dentro da ordem há a existên­ cia - só o que se organiza é que existe.

A Libertação que o poeta quer no lirismo não seria certamente maior do que a usada por Heitor Villa-Lobos em sua música genial. Pois bem. Foi justamente esse grande jongleur de sons, esse rei dos rebeldes, quem afirmou certa

arte é dis­ vez com energia convicta: "Para mim ciplina de idéias> disciplina .ie formas> disciplina dos sentidos." -

De resto o autor de "Libertação" sabe muito bem da verdade.

É a razão por que escreveu, ele próprio, de­ sencantado: "O modernismo teve isto de catastró­ fico: trazendo para nossa língua o verso-livre, deu a todo o mundo a ilusão de que uma série de li­ nhas desiguais é um poema .

E é ele, e com a maior razão, quem repete a palavra de Castro Alves: "o ritmo é

o

talismã da

verdadeira poesia." E é ele ainda quem recorda o conceito ilustre de Quental: "O ritmo é necessá­ rio mesmo no delírio." Corra um músico as mãos pelo teclado, impro­ visando, e buscará instintivamente o modo menor, se estiver triste, e o compasso lento para a sua tris­ teza.

105

Não nasceria nunca a sinfonia, porém, aos pulos de um gato num piano aberto. Nem nasceu obra-prima quando André Salmon fez um quadro moderno, com um pincel molhado de tinta e atado

à cauda de um burro que espantava as moscas . Nem um poema nasceria de certo com a receita dadaísta de Tzara, tirando-se ao acaso, e reunindo­ as, palavras cortadas de um jornal e postas na copa de um chapéu. Seria isso rematada sandice se não fosse uma pilhéria artística.

A beleza não é arbitrária e a arte nunca foi loteria. O ritmo livre resultará, como vimos, da har­

monização dos versos simples que vão constituir seus metros complementares. Não é preciso para compô-lo recorrer ao pro­ cesso que Oswaldino Marques foi buscar em dois ensaístas americanos - o da persistência de dadas consoantes nos períodos. Não concordo nesse pon­ to com o genial dramaturgo de "Ciméria . " As consoantes são elementos secundários na sinfonia verbal. São no máximo a bateria da or­ questra que acentua o fraseado melódico. Servem apenas para as aliterações ou outros pequenos re­ cursos expressivos . Mas fazer delas a trama do ritmo é recair no velho instrumentismo do sim­ bolista René Ghill, abandonado por falta de êxito. O que marca o ritmo é a sucessão dos tempos, sejam quais forem os sons que os compõem.

106

Com ela surgirá a variedade na unidade que é o sistema essencial da beleza.

É assim que a natureza cria suas grandes má­ gicas.

A diversidade dos triângulos é infinita. Assu­ mem os mais diferentes aspetos simétricos ou assi­ métricos, equiláteros ou escalenos; mas em qual­ quer deles a soma dos ângulos internos é igual à soma de dois ângulos retos! Maravilhoso exemplo da liberdade dentro da ordem . Em vão quer o homem de hoje, além de de­ sumanizar-se, desnaturar-se até - fugindo das leis que formaram o Código de Deus. Cedo se arrependerá de seu erro.

A arte não nasce do acaso. Nada nasce do acaso. E o mundo tem razões lógicas na Suprema Consciência que o rege .

A vida é música.

107

23. O REAL E O POÉTICO Onde mora a Poesia? E como é o seu sem­ blante? Bem difícil será ver de perto seu vulto, que é o vulto de um espírito. Mas, se não sabemos precisar bem onde está, podemos mais facilmente dizer onde não está. Já afirmei no início destas breves reflexões que ela foge da exatidão vazia e fria. A aridez de­ serta da verdade científica não é clima próprio para aquela frágil menina. Oiçamos, para prova, um meticuloso cosmó­ grafo, descrevendo, num idioma glacial como a própria terra do polo, o esplendor de uma aurora boreal. Diria assim:

O termômetro baixou a 50, 60 e 70 graus cen­ tígrados abaixo de zero. E desde então foram notados, cerca de 2 ho­ ms e 35 minutos pré-dilúculo, eletrizações helio108

cntódicas) que oscilavam entre os raios inferiores e médios do espectro. Os objetos circunjacentes assumiram virides­ cência amarelada. E as radiações moviam-se com uma aceleração J}n78 por segundo. Bem pouco oiro poético extrairíamos nós de ganga tão pedregosa. No entanto, um pobre esquimó, um filho da raça mais inculta do mundo, e de uma raça tão infensa à emoção que julga inconveniência um simples adeus do marido à mulher em público, um ingênuo esquimó nos pinta o mesmo fato lu­ minoso em tons muito mais ricos. Eis sua palavra autêntica, transcrita do livro "Comock, o Esquimó", pelo explorador do ártico Robert Flaherty:

"E vieram os dias muito frios. As noites desses dias eram a noites das Gran­ des Luzes. E essas Grandes Luzes eram como o vermelho da carne pálida e como o pelo de inverno do urso e como a alga do mar. Algumas vezes as Grandes Luzes eram tão vi­ vas que a lua ficava verde como o gelo claro)· e toda a terra ficava verde como o gelo claro; e toda a brancura do mar ficava verde como o gelo claro. E essas luzes moviam-se lentamente como on­ on das l gas no mar; ou então giravam ou saltavam) porque nunca estavam paradas.

109

Minha mulher dizia que aquelas Grandes Lu­ zes eram sem dúvida espíritos de crianças não nas­ cidas� brincando no céu." Por essas frases singelas bem se vê que a Poe­ sia,

como o

Espírito de Deus,

pode baixar

a

qualquer dos seres humanos. E baixa, ainda mais, para o milagre de trans­ figurar em beleza as cousás mais humildes do mundo. Sim. Tudo o que existe pode vir a ser tema poético- desde que, pelas forças do sentimento e a imaginação, alcance a outra vida

o real trans­ cendente que é da essência da arte. Sem essa ilumi­ -

nação não há poesia. Por isso há apenas um falso convencionalismo em expressões como realismo

artístico ou verismo artístico. Reafirmo, convicto, que nunca a realidade estrita pode constituir arte. Não pode ser arte o plágio de Deus, sem ne­ nhum elemento criacional da mente humana. Desse modo não procede muito esta recente audácia de Manuel Bandeira, num dos últimos poemas:

"Vou lançar a teoria do poeta sórdido. Poeta sórdido: aquele cuja poesia tem a mar­ ca suja da vida. Vai um sujeito. Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada� e na primeira es110

quina passa um caminho salpica-lhe a calça de uma nódoa de lama. É a vida. O poema tem de ser como a nódoa no brim: Fazer o transeunte satisfeito dar o desespero." Não é bem assim. A função da poesia é lavar na fonte Castália as manchas mais ominosas do mundo. E quando um poeta se debruça sobre uma poça de lama é para ver nela, refletido, o céu. A poesia não ama, igualmente, a sujeição pela utilidade forçada. Como o menino do Passeio Pú­ blico ela "é útil brincando". Sem dúvida pode ser, e é quase sempre, uti­ líssima; mas sem saber verdadeiramente que é útil. Um poema pode resultar num belo argumento social ou político.

desde que não tenha cal-

culado isso o poeta que o compôs. Se o grão de tigo soubesse que brota para o destino de ser moído e ser pão, talvez não flores­ cesse, tão alegre e tão sadio, pelo campos. E assim o interesse, como a exatidão, não tem os ares puros do país da Poesia. E onde está, pois, esse país? Podemos dizer apenas que é um país triste ou alegre ,porém nunca impassível; que é mais distante do que próximo; mais do mistério que da certeza;

111

mais do dinâmico que do ·estático; mais do ignoto que do comum; mais do profundo silêncio que do vazio rumor; mais do passado que do presente; mais da morte talvez que da vida. Quando vemos, tendo os olhos úmidos, que uma névoa luminosa muda o aspecto do mundo, que as formas fogem, irreais, que o silêncio é so­ noro, que o mar rola ondas de astros

e

que, em

caminhos que sobem, passam anjos sorrindo reconhecemos logo o bom Reino do Poema, que faz fronteiras com a Vida.

112

Reviu a meu pedido� e com prazer� o texto para esta edição� sem nada acrescentar ou modifi­ car� a não ser uma ou outra melhor apresentação formal� o Prof. Jesus Belo Galvão. Rio de Janeiro� 18 j9 j72. CARLOS RIBEIRO

113

COMPOSTO NAS

E

IMPRESSO

OFICINAS

DA

GRAFICA OLíMPICA EDITORA LTDA. RUA

DA REGENERAÇÃO, RIO DE

JANEIRO

EM

JANEIRO

475 GB DE

BONSUCESSO BRASIL

1973
Murillo Araújo - A arte do poeta

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