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Tradução de Isabel C. Penteado
A presente obra respeita as regras do Novo Acordo Ortográfico.
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Para a minha Mãe e para o meu Pai, com amor e um obrigada por tudo.
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Capítulo 1
P
ru já estava chateada com o esparguete. Estava a dar-lhe muito trabalho. Enrolando-o com determinação, na esperança de que ficasse preso no garfo, interrogou-se invejosamente como seria ser-se como Liza, que raramente se dava ao trabalho de olhar sequer para o prato, mas cujo esparguete ficava milagrosamente preso. Era véspera de Ano Novo, quatro da tarde e já estava escuro lá fora. Na cozinha estilo provençal de Liza Lawson, em volta da mesa de pinho, estavam Dulcie, Liza e Pru a forrarem os estômagos em preparação para a longa noite que iam ter pela frente. Demasiado impaciente para se incomodar com o enrolamento, Dulcie tinha utilizado a ponta do garfo como faca e cortado o esparguete em pedacinhos. Podia não ser o comportamento mais correto, mas era eficiente; o seu estômago já não estava vazio e o prato estava limpo. De qualquer forma, se não fizesse o socialmente incorreto na cozinha de Liza, entre amigas, onde poderia fazê-lo? Depois de acabar de comer, Dulcie tirou um caderno usado de dentro da mala. — Vejam o que a minha mãe encontrou uma semana destas durante umas limpezas. — Levantou-o para que as amigas o vissem. Impressas na capa, numa letra curvilínea, estilo anos oitenta, estavam as palavras PRIVADO, ACESSO INTERDITO E INTRUSOS SERÃO PROSTITUÍDOS. — Uma piadinha minha — disse Dulcie com afeto. — Eu tinha quinze anos. Imaginem. Pousando o queixo na palma da mão, Liza sorriu abertamente. — Eu nunca tive quinze anos. — Eu passei dez anos com quinze — disse Pru com convicção. Quando todas as amigas tinham passado a usar collants, a sua mãe tirânica tinha-se recusado a deixá-la usá-los. O pesadelo recorrente de Pru envolvera entrar na igreja de meias brancas pelos joelhos. — Todas tivemos quinze anos — recordou-as Dulcie — e todas ao mesmo tempo. É este o sentido de termos amigas da nossa idade — ex9
plicou ela com exagerada paciência. — Para podermos partilhar as nossas experiências. Como, por exemplo, quando tínhamos uma paixoneta pelo Simon Le Bon, elas também tinham. Quando não conseguíamos dormir à noite porque estávamos preocupadas com aquela enorme borbulha no queixo, pelo menos sabíamos que elas também estavam preocupadas com as borbulhas delas. E quando não tínhamos a certeza acerca de um ou dois factos da vida, tínhamos sempre alguém a quem perguntar e que não iria rir-se de nós. — Eu nunca tive borbulhas — disse Liza. — E vocês as duas riram-se quando eu perguntei o que era o beijo francês — salientou Pru. — Disseram-me que tinha a ver com cartas francesas1 e que o rapaz precisava de usar um preservativo na língua. Sinceramente, é de admirar que tenha beijado alguém depois disso. Dulcie começou a rir baixinho ao recordar-se do que tinha dito sobre o assunto e de como Pru acreditara solenemente em cada palavra. — Seja como for, — disse Liza, — isso foi há séculos. — Esticou-se sobre a mesa e encheu os copos com Pouilly-Fumé. — E hoje é véspera de Ano Novo. Devíamos estar a tomar resoluções. — Foi por isso que eu trouxe o caderno. — Dulcie abriu-o e folheou as páginas repletas de rabiscos. — Céus, a escola devia ser mesmo entediante, para me fazer gatafunhar desta maneira. Ah, aqui está. — Mostrou-lhes a lista com um ar de triunfo. — Primeiro de Janeiro. As minhas resoluções de Ano Novo são: Comprar uma camisa preta de cetim (colarinho comprido em bico). Estar na marmelada com o «tal». Fazer mais trabalhos de casa, especialmente de matemática. Ver o Top of the Pops todas as semanas. Manter o quarto arrumado. Comprar verniz de unhas prateado. Inscrever-me no clube de fãs do Starsky and Hutch. — Uma camisa preta de cetim de colarinho comprido. — Liza fez uma careta. — Uh! — As que falam sobre fazer mais trabalhos de casa e manter o meu quarto arrumado foram na eventualidade de a minha mãe meter o nariz. Pru estava com um ar perplexo. — Quem era o teu «tal»? — Sabes, não faço a mínima. Tenho andado a tentar lembrar-me. Mas não é querido? — disse Dulcie alegremente. — Quando eu tinha quinze anos, aquelas foram as minhas resoluções de Ano Novo. Era aquilo que importava. Tanta inocência. 1
«Carta francesa» (French letter): nome dado pelos Ingleses ao preservativo. (N. da T.) 10
— Agora as coisas são um bocadinho diferentes — disse Liza num tom trocista. — Dezasseis anos depois. Estamos velhas. — Então, vá. — Dulcie fechou o caderno. — Qual é a tua resolução para este ano? Os divertidos olhos castanhos-escuros de Liza passaram de Dulcie para Pru. — Oh, eu quero casar-me. Ela falava com a natural confiança de quem sabe que tudo o que precisa de fazer é escolher. — E tu, Pru? — perguntou Dulcie. Pru bebeu um gole de vinho. Estava a pensar em Phil, seu marido, e na estranha forma como ele andava a comportar-se nos últimos tempos. Ela esperava que não houvesse problema nenhum no trabalho. — Eu só quero manter-me casada. Dulcie estava a equilibrar a cadeira nas pernas traseiras e a indagar-se de novo quem poderia ter sido o «tal». Era frustrante não ser capaz de se lembrar. Olhando de relance para o relógio, constatou que estava na hora de ir andando. Patrick perderia a cabeça se ela chegasse atrasada a casa; iam encontrar-se com amigos às sete, antes de irem à festa no clube de campo. — Dulcie — incitou Liza. — Agora tu! — Eu? — Dulcie baixou de novo a cadeira com um baque. — Eu só quero divorciar-me. — Então, quem é o felizardo? — perguntou Dulcie a Liza quando se despediam à porta. — Alguém conhecido? —Ainda não me decidi. — A tremer numa fina camisa branca, Liza abraçou-se e recuou para dentro do hall. Ao levantar os olhos, viu duas traças a esvoaçar furiosamente em redor da lâmpada exterior como amantes rivais a competir por atenção. — Ainda deves estar a fazer a rodagem. Tantos homens, tão pouco tempo. — Dulcie estava irreverente. O que esperava Liza? Solidariedade? — Talvez seja mesmo melhor que não venhas à festa desta noite no clube. Menos concorrência para mim. — Fez um ar presunçoso. — Pessoalmente, tenciono estar na marmelada com todos homens a que conseguir deitar as mãos. — Primeiro vais ter de os apanhar. — O sorriso de Liza era ilusoriamente inocente. — Fazes alguma ideia de quanto alho tinha aquele molho da massa? As mãos de Dulcie voaram até à boca em horror. — Odeio-te! — exclamou ela. — Quando eu disse que queria os ho11
mens caídos aos meus pés, queria dizer de desejo e não por causa dos vapores do alho. — Não devias querer que os homens caíssem aos teus pés. Tens o Patrick. — Estou cansada do Patrick! — disse ela quase a gritar. — Raios, sabes melhor do que ninguém qual é a sensação! Porque é que tu podes e eu não? — Não sou casada. — Claro que não! Quem é que te ia querer? — Anda, se queres boleia para casa — disse Pru, porque quando aquelas duas começavam, eram capazes de discutir indefinidamente. — Eu vou, eu vou. Ainda que a minha vida tenha acabado. — Dulcie bafejou para dentro das mãos fechadas em concha e olhou de modo comovente para Pru. — Podemos parar de caminho numa farmácia para comprar pastilhas para o hálito? — Adeus — disse Liza, abraçando ambas. Beijou primeiro a fase gelada de Pru e depois a indignada de Dulcie. — E feliz Ano Novo para nós três. Que todas as nossas resoluções se cumpram. No que à vida das pessoas dizia respeito, era consenso geral que a de Liza Lawson era do tipo invejável. Ela era solteira, bem-sucedida, loura e linda, tinha uns sedutores olhos castanhos-escuros, uma pele impecável e um sorriso enfeitiçador. Não há nada mais tentador do que uma mulher completamente à vontade com o próprio corpo e Liza — com o seu curvilíneo tamanho quarenta e dois — nunca tinha sentido a mínima necessidade de fazer dieta. Gostava de si exatamente como era e, aparentemente, os outros todos também gostavam. Nunca recebera, seguramente, nenhuma queixa. O trabalho de Liza era também bastante invejável. A carreira como crítica gastronómica tinha recebido um enorme impulso dezoito meses antes, quando uma crítica sua a restaurantes saíra no ofuscantemente bem-sucedido Herald on Sunday. Agora, todas as semanas, na última página do suplemento a cores, saía um artigo seu por baixo de uma fotografia em que ela aparecia a sorrir provocadoramente, com os cabelos dourados caídos sobre um ombro e o início de um divinal vale entre os seios visível acima do acentuado decote redondo do vestido preto de veludo. Os homens estavam constantemente a apaixonar-se por aquela fotografia de Liza e a escrever-lhe para lho dizer. As mulheres invejavam-na porque era certamente o sonho da vida de qualquer uma ter aquela aparência e comer por profissão. E os proprietários dos restaurantes interrogavam-se com frustração 12
por que motivo nunca teriam visto Liza Lawson no seu estabelecimento, mesmo quando sabiam que ela os havia visitado porque lá estava a crítica no lustroso suplemento de domingo do Herald. Liza acordou tardiamente na manhã seguinte e desceu cautelosamente as escadas. Estavam duas cartas no tapete da porta da frente. Ela enfiou-as no bolso do robe, ligou a chaleira para fazer café e abriu a caixa nova de paracetamol que tinha tido a previdência de comprar na tarde do dia anterior. Uma ressaca no dia de Ano Novo era obrigatória; mas era uma pena o facto de quanto mais envelhecia, mais causticantes se tornarem os efeitos. Era também uma pena ter de trabalhar naquele dia, mas prazos eram prazos e ela tinha de concluir o trabalho. Introduziu pão na torradeira — apenas uma fatia, para acalmar o estômago nervoso —, fez o café e esperou que o apetite recuperasse a tempo do almoço. Enquanto tomava o pequeno-almoço, Liza ouviu as mensagens gravadas no atendedor de chamadas. Uma era de um antigo namorado, a ligar-lhe de Londres para lhe desejar feliz Ano Novo e para a convidar a visitá-lo quando quisesse. A segunda era da irmã que vivia na Nova Zelândia, a berrar ebriamente «Auld Lang Syne» ao telefone juntamente com o que parecia ser uma equipa inteira de jogadores de râguebi. A terceira mensagem era de alguém chamado Alistair, que parecia constrangido, mas determinado, a dizer-lhe timidamente que depois de a ter admirado à distância durante muitos meses, ficaria encantado se Liza lhe desse a honra de o acompanhar uma noite ao teatro. «…nós nunca falámos, mas talvez já tenha reparado em mim a jogar squash no clube de campo», explicou ele de modo hesitante. «Tenho trinta e sete anos, um metro e oitenta e oito, não estou nada em má forma… hum, tenho cabelos escuros, olhos cinzentos e tenho um Volvo azul. Isto diz-lhe alguma coisa?» — Não — disse Liza, engolindo mais um paracetamol. «…oh, céus, isto não está a funcionar.» A voz de Alistair tinha agora um tom preocupado. «Não sei como mais posso descrever-me. Olhe, vou desligar. Não vivo muito longe de si. Se calhar vou enfiar uma fotografia minha debaixo da sua porta. Assim, pelo menos, vai saber…» Nessa altura a fita do gravador acabou porque Liza se tinha esquecido de a rebobinar na noite anterior. — Boa ideia, Alistair. — Liza sorriu ao retirar os envelopes do bolso. O primeiro era um cartão de Natal atrasado do seu ex, agora casado e com filhos, mas que, a avaliar pelo irónico pós-escrito, parecia desejar não ser. «Sinto a tua falta», leu Liza no final do cartão. «Sinto mesmo muito a tua 13
falta. Que tal jantarmos um dia destes?» e tinha rabiscado o seu número do telemóvel. O segundo envelope, entregue em mãos, como prometido, continha uma pequena fotografia de Alistair, que ela não teria reconhecido nem que ele lhe tivesse passado por cima com o Volvo azul. Ainda assim, ele era bastante apresentável e, tendo em conta que era tímido, o bilhete enviado junto com a foto estava escrito numa letra magistral. «Terei estragado totalmente esta tentativa de a convidar para sair comigo?» tinha ele escrito com uma encantadora candura. «Garanto-lhe que não sou o caso perdido que deve estar neste momento a pensar que sou. Mais alguns pormenores relevantes: sou advogado, divorciado, tenho três filhos, tenho um bom rendimento, uma vivenda, gosto de teatro, de ópera, de Scrabble e de Maltesers. Agora sinto-me de novo embaraçado; pareço uma agência de encontros unipessoal. Basta. Se quiser contactar-me, o meu número é… Se a perspetiva for demasiado horrível, por favor deite o bilhete e a fotografia fora e finja que isto nunca aconteceu. Mas eu espero que não o faça. Cumprimentos, Alistair Kline.» Era este o tipo de coisa que acontecia a Liza. Era o tipo de miúda que ela era. Quando Dulcie acusava Liza de ser uma sedutora, Liza afirmava que não era. Simplesmente, os homens gostavam dela; ela não fazia nada para os encorajar. A forma como agia com os homens nunca era forçada. — Eu por acaso faço-lhes olhinhos? Mostro-lhes o meu decote? — argumentava ela. — Aperto-lhes os bíceps e digo-lhes o quão grandes e fortes são? Não. Eu nunca faço nada disso. Tu é que fazes! Era verdade, Dulcie não podia negar. — Eu sou casada; não conta. Seja como for, é um tipo de sedução inofensivo. Coisa de amadora. Tu é que és a profissional. Tu não fazes os homens pensar que estás a seduzi-los, fá-los pensar que estás apaixonada por eles. Raios, — protestou Dulcie, — fazes os pobres idiotas pensar que são a única pessoa no planeta com quem vale a pena estar. — Estás com inveja. — Claro que estou com inveja! Quero saber como é que fazes isso! Depois de ter assistido um milhão de vezes ao fenómeno, Dulcie tinha uma vaga ideia. Ela desconfiava que tivesse alguma coisa a ver com os olhos castanhos de Liza e com o modo como ela olhava para os homens quando estava a conversar com eles, o modo como ela se concentrava neles com tão completa fascinação, o modo como ela sorria… Infelizmente, não parecia ser copiável. Dulcie já tinha tentado algumas vezes sozinha em frente do espelho, mas — para ser completamente honesta — só parecera estar com prisão de ventre. 14
Enfeitiçar os homens devia ter alguma arte, e ou se tinha ou não se tinha. Dulcie conseguia seduzir de forma normal — dava risadinhas, brincava, era capaz de fazer os homens rirem-se, o que já era alguma coisa — mas nunca iria conseguir chegar à excelência de Liza. O que era uma pena, porque era inegavelmente um talento que dava muito jeito ter. Contudo, por sua vez, Liza invejava Dulcie, porque os homens atraentes podiam nunca ter sido um problema, mas manter-se interessada neles, depois de os ter conquistado, era uma outra história. Ela não sabia porquê, pura e simplesmente não era capaz. Talvez tivesse algo a ver com um baixo limiar de enfadamento. Ela podia adorá-los inicialmente, ficar louca de desejo, de amor — o que fosse —, pensar que era desta, que desta vez era a sério… e após quatro ou cinco semanas os velhos sinaizinhos reveladores começavam a vir à tona. Ela já os conhecia bem, estava a par da vida deles, tinha ouvido todas as suas melhores piadas. O enfado começava a instalar-se insidiosamente. Enquanto eles continuavam fascinados com Liza, ela dava por si a reparar — e a ficar, por isso, cada vez mais irritada — na forma como pigarreavam, como raspavam com o garfo no prato da refeição, como revelavam uma queda para irritantes frases feitas, como viam continuamente reposições do Star Trek… Era um defeito sobre o qual não tinha qualquer controlo. Liza achava que devia ser uma pessoa extremamente fútil, feliz por tirar a cobertura do bolo, mas desinteressada no pão-de-ló que estava por baixo. Quando se aborrecia de alguém, não havia volta atrás. A adrenalina dissipava-se, a faísca desaparecia. Mais uma relação que falhava. Era triste. Por vezes Liza perguntava-se se algum dia iria conhecer um homem que não a matasse de tédio. Era algo que muito desejava. Ela queria ser normal, casar-se com alguém e ter filhos e netos. Queria partilhar uma vida com eles, não algumas semanas vertiginosas. Por aquele andar, ela iria acabar por transformar-se numa triste velha solteirona. Era por isso que invejava Dulcie, que podia naquele momento estar decidida a divorciar-se, mas que, ao menos, tinha passado os últimos seis anos casada com o mesmo homem.
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Capítulo 2
L
iza estacionou em frente do Songbird à uma da tarde. Tratava-se de um restaurante bastante recente, situado a alguns quilómetros a oeste de Bath, cujas delícias — ou não — ela tinha tencionado investigar duas semanas antes, mas que uma forte constipação a tinha obrigado a adiar. Quando se era crítica de restaurantes, era imperativo que o sentido do olfacto e as papilas gustativas estivessem em pleno funcionamento. Mas o Herald on Sunday precisava do artigo para cumprir o prazo estabelecido pela gráfica e ela tinha de o enviar por fax ainda naquele dia. Por sorte, embora a maior parte dos restaurantes não abrisse para almoço no dia de Ano Novo, o Songbird abriu. Liza verificou rapidamente a sua imagem no espelho do retrovisor do carro. Era espantoso o efeito que uma desenxabida peruca pardacenta, pouca maquilhagem e um par de óculos nada favorecedores podiam ter. Ela nunca era reconhecida. E também nunca era engatada. Nenhum homem lhe dirigia olhares de admiração. Ela estava tão desinteressante que eles raramente davam pela sua presença. Ela tornava-se invisível. Era uma experiência que divertia sempre Liza. E também bastante útil, quando não se queria que os proprietários dos restaurantes, ávidos por publicidade, soubessem quem se era. Mark já lá estava, à sua espera, quando ela entrou no restaurante. Um ex de quem tinha ficado amiga — porque ele podia ser louco pelo Star Trek, mas pelo menos partilhava a sua paixão por boa comida —, cumprimentou Liza com um sorriso e um beijo na face não maquilhada. Companhia à refeição era outra coisa imperativa na profissão de Liza, permitindo a avaliação de dois pratos em vez de apenas um. Isso significava também que a curiosidade dos empregados não era despertada pela visão de uma mulher — apesar de desenxabida — a comer sozinha. — Estás com bom aspeto — disse-lhe Mark depois de o empregado de mesa ter levado a prática gabardina azul-marinho de Liza. — Roupa nova? Ela tinha vestido uma blusa creme de gola alta, um casaco de lã castanho, uma saia plissada bege que lhe chegava abaixo do joelho e uns ro16
bustos sapatos com atacadores. Mark adorava o disfarce; dava-lhe gozo. Quando partilhava aquelas refeições com Liza, dava frequentemente por si a receber olhares compassivos das empregadas de mesa, que se perguntavam por que motivo um sujeito tão bem-parecido como ele estaria com uma desenxabida daquelas. Foram sentados num canto afastado e deixados a examinar as ementas. Uma loura de ar agitado, na casa dos vinte, saiu rapidamente da cozinha, murmurou algo a outra empregada e tornou a entrar rapidamente. Quando as portas de vaivém se fecharam atrás dela, o cheiro a alho queimado flutuou até à mesa deles. Um grupo de oito indivíduos, evidentemente ainda animados da noite anterior, reuniu-se ruidosamente no restaurante e bombardeou com pedidos a rapariga atrás do bar. Ouviu-se uma enorme algazarra quando a rapariga se atrapalhou e deixou cair um copo no chão ladrilhado. Aquilo parecia ser prometedor. Liza tinha ouvido um sermão do editor-chefe na festa de Natal do jornal. — Temos recebido algum feedback negativo — tinha ele explicado enquanto despejava whisky para dentro de uma caneca de um quarto de litro. — As tuas críticas, minha querida. Demasiado lisonjeiras. Alguns leitores andam a perguntar se os restaurantes nos pagam para lhes fazermos publicidade. Essa treta toda de apresentação encantadora… molhos elegantes… pratos de peixe divinais… querida, um crítico tem de criticar, não achas? Precisas de mostrar as garras, de ser um bocado mais cáustica. Sê um bocadinho maldosa! Pensa mais Michael Winner, menos Dana. Mais Private Eye, menos Hello! Atira-te à jugular, querida. Dá aos leitores motivo para sorrir sarcasticamente. Não tenhas medo de fazer chorar os proprietários dos restaurantes. Liza não queria ser Michael Winner. Ela não era do tipo que se atirava à jugular. Mas entendia o ponto de vista do editor e a piada da Dana tinha-a magoado. Ela sabia que no passado tendera a abrilhantar a ocasional paelha menos perfeita, o uso excessivo de sal por parte do chef, a vichyssoise insuficientemente fria. Talvez ela estivesse prestes a ter a sua oportunidade para ser um bocadinho maldosa, ali no Songbird. Liza olhou para a nervosa empregada de mesa que estava ajoelhada a varrer o vidro partido e endureceu mentalmente o coração. Se a refeição não estava à altura, ela ia aproveitar, decidiu. Ela estava também ainda com os resquícios da ressaca. Isso iria ajudar. Para começar, Liza escolheu uma tarte de beringela e parmesão. Que estava boa, se bem que um bocadinho pesada. O molho de tomate que acompanhava podia ser um pouquinho menos doce. 17
Bah, desilusão! Mark escolheu sopa de peixe provençal e afirmou que estava deliciosa. Liza provou um pouco. — Demasiado açafrão — comentou ela secamente. — E o pão devia estar quente. Mark ergueu as sobrancelhas. — Na cama de quem acordaste do lado errado esta manhã? — Na de ninguém. Estou a treinar para ser uma vaca. O restaurante estava a começar a encher. O grupo de oito indivíduos, sentado à janela logo à entrada do restaurante, esvaziava garrafas de vinho a uma velocidade estonteante e cantava refrãos vibrantes de «Why Are We Waiting?». A nervosa empregada de mesa, que estava finalmente a servi-los, foi beliscada no traseiro. A outra rapariga, a loura, saiu da cozinha e disse rispidamente para guardarem as suas mãos errantes. Três dedos da sua mão esquerda estavam adornados com pensos rápidos azuis. — O que aconteceu? — zombou o principal «beliscador de rabos». — Não me digas; tentaste esfaquear o chef e falhaste. Para prato principal, Mark tinha pedido tornedós de carne com cogumelos selvagens e vin santo. — A carne está rija? — perguntou ansiosamente Liza. — Não. — Pediste mal passado. Isso não é mal passado, é médio. Mark recostou-se na cadeira. — Acho que não gosto de ti assim. — É o meu trabalho. — De olhos semicerrados, ela examinou o seu cordeiro com polenta e alcachofras. Tinha um aspeto fantástico, o que não dava jeito nenhum. Felizmente, quando ela provou o cordeiro com a sua cobertura de ervas e pão ralado, encontrou o que procurava. O alho queimado, do qual tinham anteriormente sentido o cheiro, estava ali, no seu prato. O vinho era bom e Mark recusou-se teimosamente a criticar a sua sobremesa — um trio de gelados caseiros numa tacinha de biscoito de gengibre — mas Liza já ia bem lançada. A sua tarte de ameixa e damasco estava decididamente pesada e a base de massa com amêndoa doce demasiado espessa. A crosta à volta do rebordo, que tinha sido polvilhada com açúcar em pó numa tentativa inútil de a tapar, estava queimada. — Está bastante cheio — disse Mark, defendendo corajosamente o pequeno restaurante. — Deve ser bom ser-se tão popular. — É dia de Ano Novo. — Liza não ia deixar-se dissuadir. — Todos os outros restaurantes estão fechados. De qualquer forma, — salientou ela, — só estás a dizer isso porque gostas da loura. 18
— Sinto pena dela. Pobrezita, está completamente atarantada. — Não é de admirar. Eu também ficava atarantada se tivesse de servir comida queimada como esta. — Queres que peça a conta? — Nem pensar. Quero experimentar o café. Não seria fabuloso se fosse instantâneo? Oh, meu Deus… Liza olhou fixamente para a porta que se abria para deixar entrar mais dois clientes. — O que foi? O que foi? Virando-se na sua cadeira, Mark esticou o pescoço para ver quem tinha entrado. Liza estava bastante contente por estar a usar os óculos e a peruca pardacenta. Era Phil Kasteliz, marido de Pru. Ele estava a rir-se e a segurar na mão de uma mulher de cabelo louro-platinado apanhado. O top de padrão leopardo terminava acima do umbigo e uma saia preta de látex começava vários centímetros abaixo do mesmo. A quantidade de maquilhagem que ela usava era impressionante. Ela parecia Lily Savage, só que menos recatada. Não era, de modo nenhum, Pru. — Aquele canalha! — sibilou Liza enquanto a empregada lhes indicava a mesa. Assim que se sentaram, a loura descalçou um sapato preto de salto-agulha e começou a provocar Phil com os dedos dos pés. Mark parecia pouco à vontade. Detestava escândalos (mais um motivo pelo qual Liza se tinha aborrecido dele; a atitude de «tudo-por-uma-vida-tranquila» tinha-a levado à loucura). — Quem é ele? — Esperava que não fosse o mais recente namorado de Liza. Ela estava com um humor tão estranho naquele dia. Pedia ainda com mais força para que ela não estivesse prestes a começar uma briga de mulheres. — Chama-se Phil. É o imbecil com quem a minha amiga Pru está casada. — Semicerrou com força os olhos escuros. — Acho que estou com vontade de o matar. — Então aquela não é a mulher dele? — Aquela bicicleta velha? Estás a gozar? Meu Deus, a lata do tipo! Os nós dos dedos de Liza estavam brancos em volta do garfo da sobremesa. Mark imaginou as manchetes: CRÍTICA DE RESTAURANTES PERFURA HOMEM ATÉ À MORTE. Ou: MULHER ESPETADA ATÉ À MORTE. Sentindo-se nauseado, ele disse: — Não acho que seja boa ideia provocares um escândalo. Liza olhou compadecidamente para ele. — Pois, tenho a certeza que não achas. 19
Mas, desta vez, Mark tinha razão. Talvez fosse mesmo melhor que Phil não a tivesse reconhecido, embora a sua atenção estivesse tão nitidamente absorvida pela sua companheira que ela duvidava que o disfarce fosse até necessário. Segundo parecia, ele dificilmente repararia se o SAS tomasse de assalto o restaurante e o bombardeasse com bombas de fumo. Liza nunca tinha tido muito tempo para Phil Kasteliz. Ela não teria gostado dele, mesmo que ele não fosse um agente imobiliário. Apesar de trabalhar — alegadamente — muitas horas, ele parecia ter sempre bastante tempo livre para jogar, beber e divertir-se com os amigos. Pru, que o adorava, sustentava resolutamente que não se importava com as excursões tardias do marido aos clubes noturnos e aos casinos de Bath. Phil trabalhava muito, explicava ela pacientemente sempre que alguém se atrevia a criticá-lo. Precisava de relaxar. Ele não era do tipo de pessoa que gostava de ficar em casa a ver televisão e a montar prateleiras. De qualquer modo, acabava invariavelmente Pru por dizer, onde estava o mal? Pelo menos Phil não era mulherengo, ela não tinha preocupações a esse respeito. Ele estava muito mais interessado na roleta. Uma pena que não seja do tipo russa, pensou Liza, que, de qualquer modo, nunca tinha acreditado em nada daquilo. Quando se tinha tanta falta de valores morais, como era o caso de Phil Kasteliz, para quê esforçar-se para permanecer fiel? Era como esperar que um viciado em crack levantasse as mãos, horrorizado, e dissesse: «Oh, não, eu nunca tocaria em erva». Assim sendo, não era propriamente uma surpresa encontrar o marido de Pru a dedicar-se ao adultério, mas a vontade de o matar mantinha-se. O que mais irritava Liza era o tipo de mulher com quem Phil estava. Era humilhante para Pru. Deixava-a ficar mal. Se ele tinha mesmo de a trair, podia ao menos ter tido a decência de o fazer com alguém que não fosse uma autêntica cadela. — Hum… desejam café? A jovem empregada estava de regresso, a fugir de mais confusão com os indivíduos abrutalhados e, mais do que nunca, com aspeto de estar à beira de um esgotamento nervoso. Ocorreu a Mark que qualquer ataque de apunhalamento instigado por Liza daria à empregada de mesa a oportunidade de que ela precisava para alinhar. Imaginem-se então as manchetes: BANHO DE SANGUE NO SONGBIRD. Não, ainda mais forte: BANHO DE SANGUE EM BATH. Mark começou a anuir com a cabeça. Liza abanou a dela. — Só a conta, obrigada. Quando a empregada de mesa começou a limpar apressadamente a 20
mesa deles, a sua mão escorregou. A base de tarte esturricada que Liza tinha deixado no prato deslizou para cima da toalha de mesa. — Oh, céus, lamento… Liza não era habitualmente rude, mas Phil Kasteliz não tinha melhorado em nada o seu humor. Pegou na massa, examinou-a especulativamente por um momento e disse: — Também eu. Quando se encaminhavam para a porta, passaram perto de Phil e da sua companheira de almoço. A mulher, que fingia ler a palma da mão de Phil, estava a dizer: —…prevejo uma tarde na cama com uma loura sexy. O sorriso afetado que Phil fez em resposta foi demasiado para Liza. Num tom de voz suficientemente alto para ele conseguir ouvir, e quando ela estava segura de que ele não conseguia ver-lhe a cara, murmurou para Mark: — Sim, mas onde diabo irá ele encontrar uma? Não havia como negar; quando se estava de mau humor, escrever uma crítica verdadeiramente maldosa era divertido. E fácil também. O artigo de seiscentas palavras escreveu-se praticamente sozinho. — Estaria o chef do Songbird num dia menos bom, — digitou Liza no computador, — ou em dia de folga? Demasiado cruel? Não! — …não pude deixar de reparar no conselho do gerente para se fazer a reserva antecipadamente para evitar dissabores. Bem, se quiserem mesmo evitar dissabores, o meu conselho seria: não façam reserva nenhuma. Injusto? Maldoso? Talvez, mas era a verdade. — …incapazes de encarar a perspetiva de café, saímos. Felizmente, o dia não foi totalmente desperdiçado. A caminho de casa, parámos no café Reg’s, à beira da A46. O ovo com batatas fritas do Reg’s — concluiu Liza com um floreado — foi o paraíso no prato. Nem uma pitada de alho queimado à vista. Verdade? Bem, não exatamente. O Reg’s tinha estado fechado. Mas se estivesse aberto, ela tinha a certeza que teria gostado do seu ovo com batatas fritas.
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Capítulo 3
L
iza podia invejar o casamento de Dulcie, mas para Dulcie o casamento era uma droga. De qualquer forma, ela já tinha tomado a sua resolução de Ano Novo. E ia mesmo mantê-la. Sim, era uma pena, especialmente quando todas as pessoas estavam constantemente a dizer-lhe o quão sortuda era por estar casada com alguém tão apetitoso e maravilhoso como Patrick Ross, mas não sabiam como era realmente. Porque de que valia ter um marido apetitoso e maravilhoso, quando raramente tinha a oportunidade de sentir essa «apetitosidade» porque o que ele só fazia era trabalhar, trabalhar, trabalhar? Era particularmente irritante, pensava Dulcie, quando se tinha estado tão certa de que se tinha acertado no jackpot marital. Após anos a apaixonar-se pelos homens mais errados que é possível conceber — e se ela tinha cá um talento para os farejar! —, conhecer Patrick tinha sido um choque tal para si que ela nem soubera bem como lidar com ele. Tinha demorado meses a aprender a confiar nele, a perceber que não precisava de saber como lidar com Patrick, porque ele não estava a pregar-lhe nenhuma partida rebuscada, ele era realmente tão simpático como parecia. Estranho. Foi preciso algum tempo para se habituar a isso, especialmente quando se tinha sido tão viciada em canalhas como ela. IVC, tinha-lhe chamado Liza, tipo: «Oh, a Dulcie sofre de IVC. É Irremediavelmente Viciada em Canalhas.» Não fora sua intenção, mas, de alguma forma, era sempre assim que os relacionamentos de Dulcie acabavam por se revelar. Tinha algo a ver com a descarga de adrenalina que andava de mãos dadas com a insegurança crónica, ou qualquer treta do estilo. Certa vez, ao ler sobre o assunto numa revista, Dulcie tinha-se reconhecido de imediato. Qualquer homem que fosse simpático para uma mulher claramente não a merecia e tinha de ser um autêntico banana. Se, por outro lado, ele mentisse, enganasse e a tratasse como lixo, era óbvio que ela não merecia alguém tão fantástico como ele e ficava imediatamente desesperada para o manter a qualquer custo. 22
Só que Patrick Ross não tinha sido horrível para ela, nem era nenhum banana. Era óbvio que nunca tinha estudado o livro das regras. Confusão total. Patrick era espirituoso, era inteligente e tinha raparigas a babar por si onde quer que fosse. Até os pais de Dulcie o tinham aprovado, o que era uma nova e surpreendente experiência para todos os envolvidos. Patrick tinha continuado a ser charmoso, a telefonar quando dizia que ia telefonar e a aparecer quando dizia que ia aparecer. Oferecia presentes a Dulcie, fazia-a rir e nunca a envergonhava nas festas. As outras raparigas, verdes de inveja, continuavam a desfalecer. Por uma ou duas ocasiões, até a mãe de Dulcie pareceu capaz de desfalecer também. Demorou o seu tempo, mas Dulcie acabou por não conseguir lutar mais contra isso. Entregou o cartão de sócia do clube IVC e deixou-se apaixonar por Patrick Ross. Ela tinha vinte e cinco anos, ele trinta e três. Ela era preguiçosa, ele era ambicioso. Ela gostava de peito de frango, ele gostava da perna. Ela gostava de beber, Patrick, que achava melhor manter-se sóbrio porque tinha uma reunião no dia seguinte, preferia conduzir. Era um casamento de sonho. Era perfeito. Pelo menos, durante os quatro primeiros anos. As coisas só tinham começado a correr mesmo mal quando Patrick, cansado de fazer dinheiro para a empresa de computadores para a qual trabalhava, decidiu arriscar e montar um negócio próprio. O número de horas que dedicava ao negócio era um absurdo. Fazia os médicos estagiários parecerem trabalhadores em part-time. Saía de casa antes de Dulcie acordar e regressava quando ela estava a deitar-se. — Eu nunca te vejo — lamentou-se ela uma noite quando já não suportou mais. — Tu nunca me vês maquilhada. Não é justo… — Desculpa. — Patrick sentou-se na beira da cama e abraçou-a, ficando com hidratante espalhado pelas lapelas do seu melhor fato. — Eu sei que não é justo, mas estou a fazer isto por nós. A partir de agora as coisas vão melhorar, prometo. Vou trabalhar mais a partir de casa. Ele tinha sido fiel à palavra e o resultado tinha sido tão desastroso como Dulcie havia previsto. Ela seria capaz de arrancar mais conversa de uma figura de cera do Museu Madame Tussaud. O corpo de Patrick podia estar presente, mas a sua mente estava tão ocupada com o trabalho que era como se tivesse partido num cruzeiro à volta do mundo. Como uma criança desesperada por atenção, Dulcie dava por si a colocar três cubos de açúcar nas chávenas de chá que lhe levava, apenas para provocar uma reação. Uma noite, já frustradíssima e depois de ter lido na Cosmopolitan que o elemento surpresa era capaz de revigorar muitíssimo um casamento, ela entrou a dançar nua no escritório de Patrick, atirou-se para cima do colo dele e abriu uma garrafa de champanhe com os dentes. 23
Crianças, não experimentem isto em casa. Tudo o que conseguiu com isso foi espuma por todo o lado, um molar superior lascado e uma unidade de disco fundida. Todo o trabalho que Patrick estivera prestes a gravar perdeu-se e ele tinha precisado de ficar acordado a noite inteira para o repor. Dulcie tinha ponderado processar a Cosmopolitan. O seu casamento tinha murchado. — Arranja um emprego — sugerira Liza quando Dulcie se tinha queixado do quão aborrecida estava. — Estás doida? — Dulcie fizera um ar horrorizado. — O propósito de o Patrick andar a trabalhar estas horas todas é fazer dinheiro. A última coisa de que precisamos é que eu também me esfalfe a trabalhar para ganhar mais da coisa. Isso iria derrotar o objetivo. — Podias gostar. — Não, não podia. — Sinceramente, às vezes Liza tinha umas ideias muito esquisitas. — Ok, e que tal trabalho de caridade? Apenas algumas horas por semana. — Por amor de Deus! — gritara Dulcie. — Eu não estou já a sofrer o suficiente? Felizmente, outra das sugestões de Liza foi recebida com maior sucesso. — Porque não vens até ao Brunton Manor? Ver se gostas. O Clube de Campo Brunton Manor, situado a três quilómetros de Bath, era onde Liza ia jogar ténis e squash. Pru, que também era sócia, nadava lá duas ou três vezes por semana. Dulcie, que estava para o desporto como o Scooby Doo para a astrofísica, franziu o nariz. — Não olhes para mim assim. Eras capaz de gostar — argumentou Liza. — As pessoas dizem isso quando tentam convencer-nos a comer pernas de rã. — E não precisas de fazer nada desportivo, se não quiseres. O Brunton é um clube de campo, não a Legião Estrangeira. Durante o dia, está cheio de donas de casa mimadas a beber gin e a fazer olhinhos aos homens musculados do ginásio. Entusiasmando-se consideravelmente com essa notícia, especialmente animada com a perspetiva de uns olhinhos, Dulcie tinha concordado em ir ver como era. Brunton Manor tinha sido uma revelação. Era, pura e simplesmente, um dos clubes de campo mais glamorosos de Inglaterra. A antiga casa senhorial, de duzentos anos e construída com pedra 24
cor de mel de Bath, estava gloriosamente situada na encosta de uma colina com uma vista incomparável sobre o Langley Stoke Valley. A herdade que rodeava a casa abrangia trinta e sete hectares de parque arborizado e ajardinado. O clube orgulhava-se da sua imagem decididamente requintada e as astronómicas quotas de sócio garantiam que assim permanecesse. As pessoas gostavam de se gabar — de passagem — que pertenciam ao Brunton; era o mesmo que exibirem ocasionalmente um American Express Platinum. Se pagar as quotas do ano seguinte o impediam de dormir à noite, então o Brunton não era para si. Era melhor ir a outro lugar menos exclusivo. Dulcie tinha-se apaixonado pelo clube à primeira vista. Brunton Manor era a sua ideia de paraíso. Não era preciso ser-se nada enérgica. Havia uma reserva interminável de gin, como lhe tinha sido prometido. Havia um terraço banhado pelo sol com vista para a cintilante piscina exterior azul-turquesa e — como Liza havia também prometido — muito material para comer com os olhos. Havia um magnífico restaurante, um cinema, camas de solário, saunas e um salão de beleza. Havia discotecas noturnas, festas improvisadas e churrascos em volta da piscina. Era o lugar do mundo onde era mais fácil passar todas aquelas horas livres. Podia-se ver outros membros a arfar e a suar em aulas de step ou a correrem de um lado para o outro em campos de squash. Podia-se vaiar — baixinho — os aspirantes a Wimbledon que jogavam um ténis péssimo. Podia-se admirar as pernas milagrosamente bronzeadas dos instrutores de ténis. Podia-se estender ao sol a beber Pimm’s e a fingir que se lia um livro. Talvez o melhor de tudo — e Dulcie sentia que nesse aspeto o clube tinha a mesma camaradagem de uma reunião nos AA, não que ela alguma vez tivesse participado numa — fosse o poder queixar-se livremente junto das outras donas de casa abastadas e entediadas acerca do marido viciado no trabalho e saber que elas sabiam exatamente do que se estava a falar. Para Dulcie, Brunton Manor era a resposta a todas as suas preces. Milagrosamente, e certamente sem intenção, tinha-se até revelado económico, já que todos os dias passados de biquíni à beira da piscina eram dias que não eram passados a fazer compras em Bath. O telefone tocou. Como Patrick estava a trabalhar no escritório — bem, era dia de Ano Novo, feriado oficial, que mais poderia esperar-se? —, Dulcie atendeu-o. — Sou eu — disse Liza. 25
— Bem, eu não falo contigo. Aquele alho estragou completamente as minhas chances ontem à noite. Até o Luigi do bar de vinhos fingiu que não podia aproximar-se de mim porque estava engripado… — Deixa lá a tua maratona de marmelada. Almocei hoje no Songbird e adivinha quem lá estava? — O Cliff Richard e a Angela Rippon. Estavam de mãos dadas. Não, espera, estavam na bajoujice. Não adoras esta palavra? — Dulcie suspirou. — Bajou-jou-jice… — Às vezes fico parva contigo — disse Liza. — Foste tu que começaste. Vá lá, então com quem estava ele, se não era com a Angela Rippon? — O Phil estava lá. Com outra mulher. De saia de látex. — Queres dizer…? Liza disse com firmeza: — Era ela que estava a usar a saia. E não tem piada. Ela era horrorosa. — Oh — disse Dulcie. — Eles estavam… hum… na bajoujice? — E de que maneira! — Oh, merda. Dulcie decidiu que devia haver alguma espécie de confusão, uma gralha, quando Deus, ou quem fosse que organizasse a vida, estivera a organizar a de Pru. Ela deveria ter recebido um marido dedicado. Em vez disso, tinha-lhe calhado um aventureiro. Pobre Pru, não era o que merecia. — Ele viu-te? — Não. — E agora? — Vamos contar-lhe. Quando o telefone tocara, Dulcie estava estendida no sofá a ver uma bodega de filme típico do dia de Ano Novo. Naquele momento, ao olhar para a televisão, viu a heroína a cobrir com as mãos a cara lavada em lágrimas e a soluçar: «Mas eu amo-o, eu amo-o! Por favor, não me faças isto… eu amo-o…» Dulcie pensou com desconforto que ninguém amava mais alguém como Pru amava Phil. — Isso vai matá-la. — Ele devia saber. É justo. Dulcie, temos de lhe contar. Liza não era fã da desonestidade. — Ok, contas tu. Se tens mesmo de o fazer. — Nós contamos-lhe — corrigiu-a Liza rapidamente. — As duas em conjunto. … 26
Pru e Phil Kasteliz viviam numa moderna vivenda nos arredores de Bath, num daqueles exclusivos conjuntos habitacionais tipo «nível social superior» pejados de lampiões e de loureiros. Qualquer pessoa cujo carro tivesse mais de dois anos de idade era olhada com desconfiança. Se as cortinas não tivessem reposteiro e véu e as janelas não fossem limpas todas as semanas, era-se povinho. Se a relva do relvado da frente da casa excedesse os quatro centímetros de comprimento… bem, era-se escumalha. Escusado será dizer que as crianças pequenas deviam mostrar consideração pelos vizinhos e brincar em silêncio. E sem desarrumar. Mas, de preferência, não brincarem de todo. Era esse tipo de conjunto habitacional. — E se ele lá estiver? — Dulcie olhou em frente com atenção quando viraram para Acácia Close. Montes de ruas tinham esse nome, ela tinha mesmo de descobrir o que significava. Ela não seria capaz de reconhecer uma acácia, mesmo que batesse com o nariz numa. — Não vai estar. É quarta-feira, está toda a gente de volta ao trabalho. De qualquer forma, — Liza dobrou a esquina e acenou com a cabeça em direção ao vazio caminho de entrada da casa, — vês? O carro dele não está. — Não sei se estamos a fazer a coisa certa. — Dulcie já se sentia dominada pela culpa. Para ela não tinha problema, que queria divorciar-se. Mas Pru não queria. — E se tu percebeste mal? Podia ter sido uma reunião inocente com uma cliente. — De saia de látex? — Liza não ia cair numa dessas. O seu tom era de desdém. — E com o pé enterrado entre as pernas dele? Deixa-te disso, a mulher era uma puta. Se alguém era cliente, era o Phil. Quando tocaram à campainha e a porta dourada e branca se abriu, Liza apanhou um susto ao deparar-se com a puta da saia de látex em pessoa.
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Capítulo 4
N
o piso superior da casa, Pru não ouviu a campainha da porta. Estava dobrada para a frente com o secador ligado no máximo, a colocar o volume necessário no cabelo liso cor de castanha-da-índia. Felizmente, este era espesso e em abundância; com umas puxadelas e muita laca (fixação máxima, que mais?), a ilusão ficaria completa. As suas orelhas não apareceriam, não se veria sequer um vislumbre. Não haveria o mínimo sinal revelador de que estas espetavam como as asas das bilhas. Pru odiava que a alcunha carinhosa de Phil para ela fosse Toby. — Bem, não posso propriamente chamar-te bilhas, pois não? — tinha ele escarnecido, olhando para os peitos tamanho 32A. Na brincadeira, beliscou-lhe as horríveis orelhas. — Ora, Pru, onde está o teu sentido de humor? Preferias Dumbo? Pru teria preferido que ele tivesse parado de gozar com as suas orelhas. Era difícil ter sentido de humor em relação a uma coisa que tinha destruído a sua vida desde os onze anos quando um grupo de rapazes da turma lhe tinha perguntado até onde conseguia ela voar. Ela tinha tentado dormir com um lenço em volta da cabeça, rezando todas as noites para de manhã acordar com as orelhas milagrosamente achatadas. Numa noite de sexta-feira, sentira-se de tal forma desesperada que alinhara numa das brilhantes sugestões de Dulcie. A sugestão envolvera supercola. — Foi o que fez o Clark Gable — tinha exclamado Dulcie, encantada com a própria esperteza. — Vai ser como cirurgia plástica instantânea, só que sem dor! Como o médico comentara depois com ironia, talvez devessem primeiro ter experimentado com UHU. Elas tinham acabado no banco de urgências do Bath Royal United, com a mão direita de Dulcie colada à orelha esquerda de Pru, a mão esquerda de Dulcie colada a uma grande parte dos cabelos de Pru e Pru lavada em lágrimas de humilhação. As piadas de sobre serem as duas siamesas prestes a ser separadas não ajudaram. Após três horas de solvente em abundância e de trabalho complexo com um bisturi, tiveram alta do hospital. 28
— Não voltem a fazer isto — alertou o jovem médico, tentando manter uma expressão séria. — Bem, — Dulcie encolheu os ombros, — valeu a pena tentar. Quem não arrisca, não petisca. Pru, que tinha deixado a maior parte do cabelo no chão das urgências, foi obrigada a suportar os seis meses seguintes com as orelhas à mostra e um corte de cabelo dos infernos. Ela sobressaltou-se quando a porta do quarto se abriu e Liza e Dulcie entraram. — Olá! — Pru desligou o secador, encantada por vê-las. — O que estão as duas a fazer aqui? Esperem um bocadinho, estou mesmo a terminar. — Pru, o que é que aquela mulher está a fazer lá em baixo? — perguntou Liza. — Quem? A Blanche? Acho que está a aspirar. — Pru pegou na Elnett e borrifou energicamente, verificando a sua imagem refletida no espelho do toucador. Pronto, magia. Nada de orelhas. Mas Liza, atrás dela, estava com um ar sombrio. Pru virou-se para trás. — Porquê? O que se passa? Não me digas que a apanhaste a gamar as colheres de prata! — Ela é… a tua empregada de limpeza? — Dulcie parecia perplexa. Pru fez um ar envergonhado. — Eu sei. Loucura, não é? Aqui estou eu, sem emprego, em casa o dia inteiro… e tenho uma pessoa que vem cá fazer os trabalhos domésticos. Sinceramente, a ideia foi do Phil. Ele enfiou na cabeça, mesmo antes do Natal, que alguém que é alguém tem de ter uma empregada doméstica. Eu disse-lhe que era estupidez, que não precisávamos de empregada, mas sabem como é o Phil. Para ele é mais um símbolo de estatuto, como um cinto Gucci. — Calou-se por instantes e franziu o sobrolho. — Está tudo bem? Ela não estava mesmo a roubar colheres, pois não? Liza nem sabia por onde começar. Ela nunca se tinha apercebido de que Phil pudesse ter atitudes tão baixas. A necessitar de alguma coisa que lhe ocupasse as mãos e decidida a deixar para Liza o trabalho sujo, Dulcie começou a investigar a maquilhagem que estava em cima do bonito toucador de Pru. Quando destapava um batom Chanel cor-de-rosa, chegou-lhes aos ouvidos o som do Hoover a ser ligado no piso inferior. — Essa tal de Blanche. Como é que a descobriste? — Liza apercebeu-se de que estava a rodear o assunto. Dulcie examinou atentamente um rímel Lancôme. 29
— Numa agência. Deram-me muito boas referências dela. — Começando a parecer frustrada, Pru disse: — Ela vive a menos de um quilómetro daqui. É divorciada e tem dois filhos crescidos. Eu sei que ela não aparenta, mas tem quase quarenta anos… Oh, por amor de Deus, o que se passa?! O que me vais dizer? Que ela é uma assassina em série? Pó solto Estée Lauder e um pompom de flanela fina. Bom. Dulcie agarrou no frasco Youth Dew de Pru e deu uma borrifadela experimental. — Pru, lamento imenso. Isto não é fácil. Então, despacha-te, pensou Dulcie. — O que se passa é que… o que se passa é que… Liza era assim. Só garganta. Dulcie, que estava perto do espelho a experimentar uma sombra de olhos esfumada da Clinique, disse: — O que a Liza está a tentar dizer-te é que foi o Phil quem arranjou uma empregada doméstica. Só que não estamos a falar de aspiradores e não me parece que ela seja propriamente doméstica. — Isso não é justo. — Pru parecia quase zangada. — A Blanche é muito trabalhadora. Lá porque a roupa dela é um bocadinho… bem, um bocadinho escassa… — Não estou a falar da roupa dela — disse Liza. — E ela não é só muito trabalhadora, — acrescentou Dulcie, — como também é rápida. Liza aproveitou a deixa. — Olha, eu vi-os a almoçarem juntos no dia de Ano Novo. A cara de Pru estava sem pingo de cor. — Não viste nada. O Phil esteve a trabalhar. Ele disse-me. — Eu vi-os. E ouvi-os. Ele está de caso com ela. — Liza abanou a cabeça. — Lamento. Quem me dera que não fosse verdade, mas é. Dulcie pensou que era capaz de comprar uma daquelas sombras de olhos Clinique. Não tinha coragem de olhar para a expressão no rosto de Pru. Lá em baixo, o aspirador desligou-se. Momentos depois, bateram à porta do quarto. — Está tudo, Pru. Vou-me embora. Pru levantou-se lentamente e dirigiu-se à porta. Liza e Dulcie trocaram olhares alarmados. Liza engoliu em seco. Dulcie susteve a respiração. — Credo, sente-se bem? Está branca como cal! — Estou ótima, Blanche. Vou descer consigo para lhe dar o seu dinheiro. Com demasiada sombra nos olhos, Dulcie deixou-se cair na cama. — Achas que vai matá-la na cozinha? Era o que Liza tinha pensado fazer no Songbird. Atravessou o quarto e abriu uma fresta da porta. 30
— Se ouvirmos gritar, descemos — disse ela a Dulcie. Mas tudo o que ouviram foi o murmúrio de vozes, o som dos saltos altos de Blanche a batucarem no parqué luzidio e a porta da frente a bater. Dulcie e Liza correram até à janela a tempo de ver Blanche, agora de casaco de aviador encarnado por cima do top verde e da curta saia branca, a descer alegremente a rua. Pru reapareceu à porta do quarto e viu-as a ver Blanche afastar-se. — Não, não lhe disse nada, se é o que vocês estão a pensar. — Mas, Pru… — Parem. Eu gosto da Blanche. Ela é simpática e é boa companhia quando estou aqui sozinha. — Mas… — E eu amo o Phil. — Ela continuava pálida, mas o maxilar estava tenso, a expressão era de desafio. — Ele é meu marido e eu amo-o. Qual foi a minha resolução de Ano Novo, lembram-se? Claro que se lembravam. — Bem, mantenho o que disse — disse Pru. — Vou manter-me casada. Continuo a não acreditar no que me disseste acerca dele e da Blanche, mas ainda que seja verdade, não tem de ser o fim do mundo. Certamente não o fim de um casamento feliz. Liza tinha de dizer. — Pru, é verdade. Com os olhos cinzentos banhados de lágrimas, Pru perguntou: — Viste-os no ato propriamente dito?! — Praticamente. Ela tinha descalçado os sapatos e tinha o pé no… — Não digas! — A voz ergueu-se num grito e as mãos subiram subitamente, detendo Liza. — De qualquer forma, já te disse. Um homem pode fazer coisas piores do que ter um caso inocente. Se não os tivesses visto, ninguém teria sabido de nada. Se não me tivesses contado, eu nunca teria descoberto. — Pru, como pode um caso ser inocente quando se está casada com o homem?! — explodiu Liza. — Ele anda a enganar-te, que raios! Eu sei como deves estar transtornada, mas… — Não me dês sermões — disse Pru friamente. — Como podes saber como me sinto? Nunca tiveste um relacionamento decente na tua vida. — Correu bem — disse Dulcie num tom descontraído quando regressaram ao carro de Liza. — Ah, sim, eu diria que foi uma manhã muito produtiva. Um sucesso estrondoso. Liza abanou a cabeça. — Como é que ela aguenta? Como é que pode ouvir uma notícia daquelas e ficar tão calma? 31
— Ela não está calma. — Debruçando-se no lugar do passageiro, Dulcie apossou-se do espelho retrovisor. — Que tal umas comprinhas? — perguntou animadamente. — Quero comprar uma sombra destas. Esta cor fica-me mesmo bem. — Como podes ser tão descarada? Dulcie sorriu com ironia. — Descorada? Não estou descorada, estou bronzeada. Pru estava no meio da cama rodeada de álbuns de fotografias. Cada álbum estava repleto de fotografias suas e de Phil, separados e juntos, em casa ou no estrangeiro, na Cornualha, na Tunísia, na Escócia, a nadar, a tomar banhos de sol, a fazer esqui, numa festa… Como é que a Liza e a Dulcie podem entender como me sinto?, pensou Pru, virando cuidadosamente mais uma página e sorrindo para fotos tiradas com Phil no ano anterior durante as férias em Marrocos. Phil, queimado do sol, com a pele a cair, estava a equilibrar um copo em cima da cabeça, a exibir-se para ela. E ali estava uma com os dois, tirada por alguém com quem tinham feito amizade no bar do hotel. Estavam a dançar, os braços de Phil a apertar-lhe a cintura, e olhando simplesmente para aquela fotografia, Pru foi capaz de reviver aquele momento maravilhoso, sentir de novo a sensação de segurança plena. Não, nem Liza nem Dulcie poderiam alguma vez compreender o que sentia por Phil, decidiu Pru. Dulcie tinha dormido com muitos antes de assentar com Patrick, e Liza… bem, Liza ainda andava a dormir com uns e outros. Mas Pru, que estava com Phil há catorze anos, nunca sequer olhara para outro homem. Ele tinha sido o seu primeiro e único amor, salvara-a dos terrores dos namoros de adolescência e ela ficara mais do que feliz em ser salva. Phil era tudo o que queria; ele fazia-a sentir-se segura, ela era a namorada de Phil Kasteliz, pertencia-lhe… A mão de Pru tremia quando ela retirou a fotografia do invólucro de celofane e a examinou mais atentamente. Phil era a sua vida. Descobrir o que se passava entre ele e Blanche tinha sido horrível, claro que sim, mas ela não era completamente ingénua. Às vezes os homens faziam coisas estúpidas. As hormonas dominavam-nos, eles corriam riscos que não deviam… e eram descobertos. Mas isso não quer dizer que ele tenha deixado de me amar, pensou Pru. É uma fraqueza temporária, mais nada. Eu sou a mulher dele. Ainda sou eu quem ele mais ama. Lentamente, mordeu a língua. Não o suficiente para fazer sangue, mas quase. Embora fosse doloroso, a dor era suportável. 32
Como esta coisa do Phil com a Blanche, pensou Pru, recolocando cuidadosamente a foto no álbum. Dulcie e Liza estavam a agir como se fosse o fim do mundo, mas não precisava de ser. Ela também era capaz de suportar aquilo.
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Capítulo 5
D
izer ao marido que não queria continuar casada estava a revelar-se menos simples do que Dulcie tinha imaginado. Quando concebera inicialmente a hipótese, tinha-lhe parecido simples. Proferiria o seu discurso e pronto. Contudo, agora que estava pronta para a tarefa, havia surgido um problema. O problema era… …o timing. Seria tão mais fácil se Patrick fosse horrível, pensou Dulcie. Se ele a usasse como saco de pancada, lhe deixasse os olhos negros e lhe partisse os dentes, ela só precisaria de gritar: «Basta, sai da minha vida AGORA!» Idem se descobrisse que ele andava a traí-la. Mas Patrick não era horrível e ela não queria que a separação fosse mais traumática do que o necessário. E era por isso que o timing tinha de ser o certo. Antes do Natal tinha estado fora de questão. Seria demasiado cruel, demasiada falta de consideração. Saber que não teria coragem de o fazer em dezembro fora o que impelira Dulcie a transformar a decisão numa resolução de Ano Novo. Livrar-se-ia primeiro da época festiva e agiria em seguida. Só que estavam agora a meio de janeiro e aproximava-se a data de aniversário de Patrick. Ainda por cima, o quadragésimo. Tristemente ciente de que só uma autêntica vaca seria capaz de estragar o dia de anos do marido, Dulcie constatou que teria ainda de aguentar a bomba mais umas semanas. Quarenta. Céus, quanto mais pensava nisso, mais terrível parecia. Quem quer que tivesse dito que a vida começava aos quarenta devia ter estado senil. Sentindo pena do velho marido, Dulcie fez duas canecas de café e deslocou-se até ao gabinete de trabalho. Patrick estava a introduzir listas de algarismos num dos computadores e a fitar atentamente o ecrã. Provavelmente não demoraria muito para começar a precisar de óculos. 34
— Daqui a dez dias é o teu aniversário. — Dulcie encarrapitou-se na borda da secretária dele com a caneca presa entre as mãos. — O que queres? Ela já tinha decidido que o mínimo que podia fazer era comprar-lhe um bom presente. Patrick digitou mais alguns algarismos. — Não sei. Ainda não pensei muito nisso. — Vais fazer quarenta. — Então é melhor comprares-me um andarilho. — Vá lá, preciso de pistas. — Alguma coisa para depois te lembrares de mim com carinho, pensou Dulcie com uma explosão de sentimentalismo nada habitual. Talvez um belo relógio? Aulas de pilotagem? Um quadro fabuloso? Patrick olhou para ela e encolheu os ombros. — Não sei mesmo. Roupa, talvez. Davam-me jeito algumas camisas novas. Os homens eram um caso perdido. — Isso é tão chato. Do que gostarias realmente, mais do que tudo? Patrick sorriu com ironia. Ah, pensou Dulcie, agora estavam a chegar a algum lado. — Ok. — Ele estendeu o braço por cima dela, pegou num exemplar da PC Answers do mês anterior e folheou algumas páginas até encontrar o que estava à procura. — Aí tens. A nova da Hewlett Packard Laserjet. Que máquina… seiscentos dpi, nada menos… — Um computador! — lamentou-se Dulcie. — Não te vou comprar um maldito computador. — Não é um computador — explicou Patrick pacientemente. — É uma impressora. — Seja o que for, continua a ser uma porcaria de prenda. — Desculpa, mas perguntaste o que eu queria. — Ele fez um ar resignado e apertou-lhe a mão. — Deixa estar. Então podem ser as camisas. — Não, não. Vou comprar-te a impressora. — Ela era capaz de fazer isso por Patrick. Assim ele teria algo para lhe fazer companhia durante as longas e solitárias noites depois de ela o ter deixado. De qualquer modo, o dinheiro era dele. Dulcie pensou o quão irónico era o seu presente de despedida ser algo de informática, quando tinha sido isso que havia efetivamente destruído o seu casamento. Contudo, pelo menos o problema da compra do presente estava resolvido. — E o que faremos no dia do teu aniversário? — insistiu ela. Patrick estava a tentar concentrar-se no ecrã do computador. 35
— Decide tu, querida. Podemos ir jantar fora, se quiseres. Iam sempre jantar fora nos aniversários de Patrick. Aquela sugestão não ia ganhar o prémio de mais fascinante do ano. Dulcie desejava que ele dissesse, uma vez que fosse, «Que tal um tórrido fim de semana fora, a fazer amor sob o luar de Marraquexe?» Onde quer que fosse Marraquexe. Ela não fazia a mínima ideia, mas soava-lhe seguramente tórrido. Ela lembrou-se da discussão que tinha ouvido certo dia no programa Talk Radio acerca dos homens à beira dos quarenta. — Achas que vais ter uma crise de meia-idade? Patrick estava habituado às surpreendentes reviravoltas de Dulcie a meio das conversas. Acabou de beber o café e entregou-lhe a caneca vazia. — Não tenho tempo para crises de meia-idade. — Nunca se sabe. — Ela parecia pensativa. — Podes aperceber-te subitamente de que não fizeste outra coisa senão matar-te a trabalhar enquanto a vida te passava ao lado. A sorrir, ele olhou para o relógio. — Se eu não me despachar, o mais provável é ter uma crise de meio da manhã. Estes valores têm de ser enviados por fax para Manchester até ao meio-dia. Obrigado pelo café, querida. — Desgrenhou o cabelo escuro espetado de Dulcie. — Até logo, hum? Uma festa, decidiu Dulcie. Era isso que faria. Organizaria uma espetacular festa surpresa de quadragésimo aniversário, para mostrar a Patrick que ainda se preocupava com ele e para o lançar de forma indolor na singular meia-idade. Iria aliviar a sua própria culpa e ainda por cima seria divertido, pensou ela alegremente. E cerca de uma semana depois, quando toda a excitação tivesse acalmado e o timing fosse certo, ela deixá-lo-ia. — Uma festa? — Bibi Ross parecia divertida. — Querida, é uma ótima ideia, mas não podemos ir. É demasiado complicado. — Mas é uma surpresa para o Patrick — protestou Dulcie. — Tu és a mãe dele. Tens de vir. — Impossível — respondeu Bibi sem rodeios. — Como posso levar o James a uma… — Não tragas o James. — Dulcie já tinha pensado nisso. — Diz-lhe que estás doente. Diz-lhe que vais a uma reunião de antigas colegas de escola… 36
Bibi estremeceu visivelmente com as palavras «antigas colegas». Abanou a cabeça. — Não posso fazer isso. De qualquer forma, já estamos ocupados nessa noite. O James convidou um cliente extremamente importante e a mulher para virem cá jantar. A sério — insistiu Bibi quando Dulcie a fitou com desconfiança. Vasculhou a mala e retirou uma agenda. — Vês, até anotei. Sexta-feira, dia vinte e oito. Dennis e Meg Haversham, sete e meia. Era verdade. Dulcie cedeu de boa vontade. — Bem, é uma pena. Vais perder uma festa magnífica. — Deixa estar, não há nada a fazer. — Com algum alívio, Bibi fechou a agenda. — Seja como for, tu conheces-me. Nunca gostei muito de aniversários. Bibi tinha mais razão do que a maioria para não gostar de aniversários. Dulcie adorava a sogra, mas os últimos dois anos tinham sido definitivamente complicados. Complicados não era bem a palavra. Para manter o grau de ilusão em que Bibi os tinha metido, era preciso ter uma presença de espírito permanente. Para não falar de uma licenciatura em matemática. Aos dezanove anos de idade, Bibi — batizada Barbara — tinha conhecido e casado com George Ross. Aos vinte, dera à luz Patrick. Quando tinha quarenta e cinco, George havia morrido de um ataque cardíaco num campo de golfe. Desesperada, Bibi tinha-se fechado no luto durante três anos. Quando finalmente voltara a reunir-se com o mundo exterior, jurara nunca mais amar alguém como tinha amado George. A dor era demasiado grande. Ela não era capaz de arriscar voltar a perder alguém assim. Impressionados com a sua beleza, muitos haviam tentado, mas Bibi mantivera-se firme. Até conhecer James Elliott e perceber o que tinha andado a perder todos aqueles anos. Tinha sido nessa altura que tivera início o horrível embuste. Bibi sempre cuidara muito bem de si, mas os seus principais aliados eram os genes. A sua mãe tinha sido idêntica. Algumas pessoas não conseguem evitar, aparentam simplesmente ser mais velhas do que são. A culpa não é sua. Caindo no outro extremo, Bibi aparentava ser muito mais nova do que era. Sempre tinha sido assim. Aos quarenta, as pessoas recusavam-se a acreditar que ela podia ser mãe de um espadaúdo filho de vinte anos. Aos cinquenta, num alinhamento policial (Deus a livrasse!) ela poderia ter passado por trinta e cinco. Aos cinquenta e oito conhecera James Elliot e ficara aturdida com a intensidade dos seus sentimentos por ele. Quando, no terceiro encontro, 37
ele mencionara de passagem que tinha quarenta e três anos, Bibi ficara pasmada. A barba bem aparada de James tinha-a enganado; ela havia-lhe dado cinquenta. E gostava tanto dele. Gostava mesmo dele. A perspetiva de o perder era insuportável. Em pânico, dissera a James que tinha quarenta e seis. As repercussões da mentira não planeada tinham sido inúmeras. Bibi já não podia contar a história do dia em que o pai tinha regressado da guerra. As memórias dos seus anos de adolescência foram rapidamente reorganizadas. Todo o seu passado tinha precisado de ser abruptamente puxado mais de uma década para diante. E como confessar ter um filho de trinta e sete anos estava fora de questão — «O quê? Tiveste-o aos nove anos?» —, Bibi vira-se forçada a cortar-lhe também uns anos. Patrick não tinha ficado muito satisfeito. — É alguma brincadeira? — tinha ele perguntado. — Mãe, estás doida. Nunca vai funcionar. Mas Bibi não estava a brincar. Estava desesperada. — Vai, sim, vai. Ele não desconfia de nada. De qualquer forma, só precisas de ter vinte e nove. Eu já disse ao James que te tive aos dezassete. Só o facto de a sua mãe estar tão obviamente feliz pela primeira vez após tantos anos foi capaz de convencer Patrick a alinhar na ridícula farsa. — Não vai durar — tinha-a alertado ele. — Vais ser apanhada, mais cedo ou mais tarde. Bibi abraçara-o. — Se formos inteligentes, não serei. E, milagrosamente, ela não tinha sido apanhada. Todos desempenhavam o seu papel, todos os amigos de Bibi guardavam o seu vergonhoso segredo e Bibi guardava o passaporte e a carta de condução num local bem seguro. Ela e James eram um casal e eram mais felizes juntos do que qualquer outro casal que ela conhecia. De vez em quando, referindo-se aos três anos que os separavam, ele chamava-a carinhosamente de sua mulher mais velha. E também, de vez em quando, pedia Bibi em casamento. Se ela pudesse tê-lo feito sem ele descobrir a sua verdadeira idade, Bibi teria entrado na igreja como um relâmpago. Assim sendo, ela insistia que preferia viver em pecado. — Por amor de Deus, conta-lhe — tinha insistido um exasperado Patrick pouco antes do Natal. — Ele vai compreender. Depois deste tempo todo, como é que a tua idade pode interessar? É a ti que ele ama, não a tua data de nascimento. 38
Mas Bibi recusava-se terminantemente a sequer considerar contar a verdade a James. Não podia correr esse risco. Tinha demasiado a perder. Além disso, algumas idades soavam pior que outras. James já implicava suficientemente com ela por ter quarenta e oito. E ela tinha sessenta. Poderia alguma coisa, indagou-se Bibi com um arrepio, soar pior que isso?
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Capítulo 6
A
ssim que se decidira sobre a festa, Dulcie começara a organizá-la com entusiasmo. Decidiu realizá-la no Brunton Manor. Em casa estava fora de questão porque era suposto a festa ser uma surpresa — ele podia estar embrenhado no trabalho, mas Patrick podia ficar desconfiado por ver uma discoteca móvel a ser montada na sala de estar e Dulcie a esfalfar-se na cozinha a espetar um milhão de salsichas em palitos. De qualquer forma, esfalfar-se na cozinha não era o forte de Dulcie. Ela era mais versada em comer do que em preparar a comida. Era muito melhor deixar a equipa de catering do Brunton Manor tratar disso tudo. Melhor ainda, ela não ia ter de limpar os detritos nojentos da festa no dia seguinte. — Tu vens, não vens? — perguntou Dulcie quando Pru telefonou. Pru hesitou. — O que quer isso dizer? Quem vais convidar? — Montes de gente! — Quero dizer, só eu, ou eu e o Phil? Elas não tinham tornado a falar desde a desconfortável confrontação em casa de Pru. Dulcie mordeu o lábio. — Tanto faz. Só tu, se preferires. Ou os dois. — Ui, ela tinha mordido com demasiada força. — Hum… queres trazer o Phil? — Ele é meu marido. Claro que gostava que ele estivesse presente. — Pru parecia tensa. — Bem, não tem problema. — Mas só se forem simpáticas com ele. Estou a falar a sério, Dulcie. Nada de comentários sarcásticos. Nada de provocações. Nem de ti, nem da Liza. Eu não ia suportar. Têm de me prometer que vão comportar-se. Estava na ponta da língua de Dulcie comentar que se alguém devia prometer comportar-se, devia ser Phil. Heroicamente, ela conseguiu guardar a opinião para si mesma. — Prometo. — Raios, ela sentia-se como uma menina de escola a ser repreendida por fumar na casa de banho. — E a Liza também. Seremos 40
ambas… angélicas. Vamos comportar-nos o melhor possível — garantiu à Pru. — Vamos tratar o Phil como um rei. Rei Rato, pensou Dulcie quando desligou o telefone. Talvez convidasse também a Rentokil para a festa. Um pouco de veneno na bebida de Phil podia resolver o assunto. Dulcie estava a embrulhar a caixa que continha a impressora a laser de Patrick na manhã da festa quando o telefone tocou. Armada até aos dentes com fita-cola, tinha usado pelo menos cinco quilómetros de papel de embrulho e nove quilómetros de fita de embrulho. Cozinhar podia não ser o seu forte, mas, se lhe era permitido dizer, tinha feito um embrulho espetacular. Patrick sabia o que a caixa continha, claro. Não confiando que Dulcie regressasse com a impressora certa, tinha ido até à Computerworld e tinha-a comprado ele. Mas era aquele presente que ele queria e estava espetacularmente embrulhado. Assim que Dulcie desse os últimos retoques dos lados, ia arrastá-lo até ao clube onde ele o abriria naquela noite. O telefone continuava a tocar. Dulcie agarrou no auscultador, fantasiando por breves instantes que seria uma das amigas a perguntar se podia levar o Kevin Costner à festa. Mas, vá-se lá saber porquê, a vida nunca era assim tão emocionante. Era Eddie Hammond, o gerente do Brunton Manor. Parecia agitado. — Dulcie, há um pequeno problema. Lamento imenso… — O quê?! — gritou Dulcie, subitamente também agitada. Se o clube tivesse ardido, onde iria ela dar a festa naquela noite? Mais ao cerne da questão: onde ia ela passar o resto da vida? — É o pessoal da cozinha, querida. Caíram como moscas. Esperemos que seja só um vírus, mas a inspeção sanitária ficou na dúvida. Até a salmonela estar completamente posta de parte, ele mandou fechar a cozinha. Por isso… ah… receio que não haja comida esta noite. Uh, oh, ataque de pânico! Dulcie ficou completamente transtornada. — Não há comida?! — Ela tinha vontade de chorar. — O quê? Nada de nada? Eddie, não podemos fazer uma festa sem comida! — Eu sei, eu sei — disse ele num tom tranquilizador. — Querida, não imaginas o quão mal me sinto com isto. Mas ainda tens umas horas… foi por isso que liguei assim que pude. Se organizares o teu próprio buffet, podes trazê-lo para cá. Eu perguntei ao inspetor sanitário e ele disse que não havia problema. — Oh, magnífico! Viva o inspetor sanitário — gemeu Dulcie. — Tal41
vez ele não se importe de bater umas dúzias de quiches na sua hora do lanche. Mas independentemente do quão solidário Eddie Hammond estivesse com o problema dela, não havia nada que ele pudesse fazer para ajudar. Então Dulcie fez a única coisa que podia fazer. Telefonou a Liza e a Pru. Liza tinha saído. Tinha ido a Londres encontrar-se com o editor, lembrou-se Dulcie assim que ouviu o atendedor de chamadas, e não estaria de volta antes das sete. Típico. Mas Pru estava em casa, graças a Deus. Pru e os armários de cozinha mais bem apetrechados de Bath. — Quantos convidados? — perguntou ela, passando por cima dos lamentos angustiados de Dulcie. — Cerca de cem. — Certo, vou começando as coisas aqui. Posso arranjar salada de arroz, salada de massa, batatas assadas recheadas, esse tipo de coisa… — Não vai ser suficiente. — Dulcie sabia que estava a parecer ingrata. Não era sua intenção, mas o coração já lhe ia nos pés. A qualquer momento ia começar a afundar-se na carpete. — Claro que não. É por isso que eu vou fazer isto. Deixando-te livre para fazeres as compras. Tens papel e caneta? — perguntou Pru, admiravelmente imperturbada com a crise. Mas isso era porque para Pru não havia problema, pensou Dulcie, a crise não era dela. — Agora começa a fazer a lista. Vou dizer-te o que precisas de comprar. Deus abençoe a M&S, pensou Dulcie uma hora depois quando passava habilmente com o seu carrinho de compras por uma velhota com um cesto com rodas. Estava tudo bem, não havia problema, o seu coração estava de regresso ao sítio legítimo e estava a começar a divertir-se. E açambarcar a secção de alimentos da Marks & Spencer era também muito mais divertido do que ir buscar apenas umas galinhas tikka e um bolo de limão. Enchendo um carrinho com baguetes, caixas de aperitivos, sacos de camarões, pacotes de presunto de Parma e vinte tipos diferentes de queijos era uma experiência entusiasmante. Não mais em pânico, Dulcie deambulou alegremente pelo meio da fruta e dos vegetais frescos, escolhendo os melões de Charentais mais maduros, os morangos mais vermelhos e brilhantes… Uma voz masculina ao ouvido sobressaltou-a. — Posso ir? Dulcie virou-se para trás. Deus do Céu, era James. — James! 42
Três limões e uma garrafa de água tónica rebolavam no fundo do cesto de arame dele. Dulcie lembrou-se de que ele e Bibi tinham convidados para jantar. Entretanto, James estava a examinar com interesse o conteúdo do carrinho sobrelotado dela. A sorrir abertamente, repetiu: — Posso ir? — Ir onde? — Dulcie esperava não estar a corar. — Bem, chama-lhe intuição se quiseres, mas alguma coisa me diz que vais dar uma festa. — Os olhos dele tremeluziram; ele e Dulcie sempre se tinham dado lindamente. — Ou isso, ou é um violento ataque de bulimia. Vacilando mentalmente, ela decidiu que seria mais seguro dizer-lhe a verdade. Afinal, ele e Bibi já estavam comprometidos naquela noite. — É uma festa surpresa para o Patrick — explicou Dulcie. — No Brunton Manor. Tudo muito em cima da hora — acrescentou ela rapidamente, para não o ofender. — Só decidi fazê-la ontem. E, sim, claro que estão ambos convidados. Hoje à noite, às oito horas, vai ser fantástico… o Patrick não faz ideia… Sorriu para James à espera que ele franzisse o sobrolho e dissesse: — Bolas, não vamos poder ir. Em vez disso, ele sorriu-lhe de volta e disse: — Isso é sensacional! Olha, nós temos uns convidados para o jantar, mas às dez já se foram embora. Têm de apanhar o último comboio para Oxford. O que vamos fazer é deixá-los na estação e regressar de imediato. É melhor tarde que nunca, não? Dulcie já estava completamente desnorteada. Se quisesse inventar uma desculpa plausível — uma razão para James e Bibi não poderem ir à festa de Patrick —, teria de o fazer nos milissegundos seguintes. Olhou fixamente para James, de olhos esbugalhados e a precisar desesperadamente de inspiração… Boing! Demasiado tarde. James estava com um ar preocupado. — Estás bem, Dulcie? — Hum… — Anda, já deves ter tudo o que precisas. — Assumindo o controlo do carrinho apinhado, começou a conduzi-lo em direção às caixas. — O mínimo que posso fazer é ajudar-te a meter isto no carro. Dulcie colocou a comida no tapete rolante e James pôs-se na outra extremidade a ensacá-la com muito mais eficiência do que ela teria feito. A solução surgiu-lhe quando ela estava a descarregar as últimas baguetes. Era simples. Só precisava de telefonar a Bibi a avisá-la. Então Bibi poderia alegar cansaço ou fingir uma doença súbita. Uma doença súbita devia ser melhor, assim James ficaria preocupado 43
com ela. Isso significava que não deixaria Bibi em casa para ir à festa sozinho. Dulcie olhou para ele, que continuava a ensacar diligentemente do outro lado da caixa. James era assim: atencioso. Amável. Dedicado a Bibi. Era realmente um homem encantador. Se Bibi pudesse ao menos ganhar coragem para lhe contar o seu segredo misterioso, eles poderiam casar-se. Como um relâmpago, a inspiração atacou uma segunda vez. Nesse momento Dulcie soube o que tinha de fazer. Porque Bibi nunca contaria nada a James. Assim sendo, a resposta teria de ser deixar James descobrir por si mesmo. E que melhor sítio para isso acontecer do que numa festa, quando toda a gente estava já despreocupadamente descontraída… e onde a mentirinha inocente de Bibi podia ser encarada como uma brincadeira? Dulcie sabia que estava certa. Era uma solução brilhante. James saberia finalmente a verdade e isso não faria a mínima diferença naquilo que sentia por Bibi. E Bibi ficaria muitíssimo aliviada. E grata. Estava escrito que eu havia de encontrar o James hoje, concluiu Dulcie. Tudo acontece por uma razão. Isto é o destino a dar uma mão. — Tive uma ideia — disse ela a James quando colocavam os sacos verdes e brancos na bagageira do carro. — A Bibi ainda não sabe da festa. Não lhe digas, ok? James fez um ar divertido. — Porque não? — Vai ser mais divertido! Diz só que é uma festa de aniversário de casamento de uns amigos e trá-la contigo. — Os olhos de Dulcie brilhavam. — Então, quando entrarem, vai ser superespecial. Uma dupla surpresa. Pru tinha trabalhado a tarde inteira sem parar. Às cinco horas, depois de ter feito o máximo que lhe tinha sido possível, foi para o banho. Às seis estava vestida e pronta. Só lhe faltava meter a comida no carro, levá-la até ao Brunton Manor e ajudar Dulcie a dispor tudo. Ligou para o escritório de Phil, mas ele tinha saído. — Foi mostrar uns imóveis a um cliente — disse Janet, a secretária. — Tente o telemóvel dele. Também não teve sorte aí; o telemóvel estava desligado. Pru resolveu então escrever um bilhete a explicar o que tinha acontecido e deixou-o em cima da mesa da cozinha. Quando Phil chegasse a casa, poderia tomar o seu duche, trocar-se e, a seu tempo, ir ter com ela ao clube. De certa forma, Pru estava contente por ter surgido a crise da comida. Ter ido em socorro da amiga faria com que Dulcie ficasse tão agradeci44
da que não se atreveria a dizer nada de mal acerca de Phil. Ela sabia que, de qualquer forma, Dulcie prometera solenemente não o fazer, mas uma chantagenzinha emocional extra não fazia mal nenhum. Dulcie já estava lá quando Pru entrou cambaleante na sala de banquetes com os braços cheios de saladeiras. — Eh, estás fantástica! — Dulcie correu até Pru, ajudou-a a descarregar a comida e deu-lhe um abraço. — E isto também está com um aspeto maravilhoso. És um anjo. Sinceramente, Pru, aquele teu marido imbecil não te merece. Pru afastou-se com um salto, como se tivesse apanhado um choque elétrico. — Se vais começar… — Não, não vou. — Dulcie puxou-a de volta e beijou-a sonoramente em ambas as faces. — Tudo bem, estou só a desabafar antes de o idiota do ano aparecer. — Sorriu. — Achas que diria alguma coisa que te chateasse, depois de teres feito isto tudo por mim? Provavelmente. — Não, se não queres levar com uma taça com salada de arroz pela cabeça abaixo — disse Pru. — Seja como for, — Dulcie mudou de assunto, — estás mesmo fantástica. Adoro esse vestido. Pru ficou agradada. O vestido de seda branco era mais justo do que os que usava habitualmente, mas, como sempre, ela tivera demasiado receio de ferir os sentimentos da vendedora da loja de roupa para sair da loja sem ele. Agora estava satisfeita por ter sido uma banana. Dulcie e a vendedora tinham razão; era um vestido muito bonito. — Também adoro o teu — disse Pru, animando-se. — E o cabelo. Muito chique. De faces ruborizadas e brilhantes devido ao esforço, Dulcie usava uma camisola cor de laranja sobre um alongado vestido verde-lima. O cabelo curto estava desordenadamente espetado e ela tinha uma lista de compras a caneta de feltro cor de malva num dos braços. Olhou para as horas. — Seis e meia. É melhor eu despachar-me. Olha, podes acabar de dispor tudo? A Liza prometeu aparecer antes das sete e meia e os outros têm indicações para estarem cá às oito. Eu vou chegar com o Patrick logo a seguir às oito. Qualquer problema, dá-me uma apitadela. — Certo. — Pru ficou perplexa com a expressão de entusiasmo na cara da amiga. Sorriu. — Mal podes esperar, não é? — Prometo-te que vai ser uma noite memorável — afirmou Dulcie com dramatismo. — E, dê por onde der, não te embebedes nem desmaies 45
antes das dez da noite. — Os olhos verdes cintilavam. — Vão chegar umas pessoas atrasadas. Podemos dizer que são uns convidados especiais. — Quem? A tentação de confiar em Pru era avassaladora. Com valentia, Dulcie conteve-se. Levou um dedo aos lábios. — Chiu, nem mais uma palavra. É segredo. — Piscou o olho a Pru. — Afinal de contas, se vou dar uma festa, porquê contentar-me com uma surpresa, se posso ter duas? Eddie Hammond não era muito dado a observar-se ao espelho, mas no estúdio de aeróbica, que tinha três paredes espelhadas do chão ao teto, não tinha muita escolha. Enquanto esperava para falar com Diana, a instrutora de aeróbica do Brunton Manor, que se encontrava em excelente condição física, observou-se sem grande entusiasmo na parede espelhada mais próxima. Péssima condição física, foram as palavras que lhe ocorreram. Ou, talvez, para lá de pesado, para lá de stressado e para lá dos quarenta. Eddie tentou encolher a barriga, mas só conseguiu sentir-se zonzo, já que não era possível encolher a barriga e respirar ao mesmo tempo. Acabou por desistir, passou os dedos pelo cabelo, que estava a ficar grisalho, fechou por instantes os olhos papudos e secou a testa transpirada com um lenço. Não admirava que estivesse com um ar transtornado, pensou ele lugubremente. Quem não estaria, depois de um dia daqueles, a sua primeira crise desde que se mudara para Bath e assumira a gerência do Brunton Manor dois meses antes? O seu pessoal continuava a cair como moscas, o inspetor sanitário não o largava, a publicidade podia ser desastrosa para o clube… O sorriso de Eddie era pesaroso. Não valia a pena, podia continuar a arranjar desculpas até ficar azul, mas não podia fugir ao facto de, com stress ou sem stress, ser aquele o seu aspeto. Era ele. Ele estava em má forma, tinha excesso de peso e mais de quarenta anos. Ok, quarenta e cinco anos. Convenhamos, não era nenhum Jean-Claude van Damme. Um flash de verde-lima e laranja assustou Eddie. Dulcie, cuja imagem ele tinha visto refletida num dos outros espelhos, parou e espreitou pela porta de vidro. — Está tudo bem? — Eddie esperava que ela não o tivesse seguido para lhe comunicar mais alguma catástrofe. Mas, graças a Deus, Dulcie estava a sorrir. — Não há problema nenhum. Está tudo sob controlo — disse ela a Eddie, divertida com a visão dele a examinar-se ao espelho com a mesma 46
intensidade de um adolescente. — O resto da comida está a ser preparada e eu vou para casa tomar um banho. Não sabia que te tinhas inscrito — acrescentou Dulcie. — Inscrito? — Eddie franziu o sobrolho. — Em quê? — Numa das turmas de aeróbica da Diana. — Piscou-lhe o olho. — Mal posso esperar para te ver de body. Divertido, Eddie disse: — Deve haver tantas hipóteses de isso acontecer como de eu te ver a ti enfiada num. Enquanto ele falava, Diana e a turma seguinte emergiram do vestiário e dirigiram-se para o corredor que dava acesso ao estúdio. Dulcie, que vivia com medo de acordar e descobrir que se embebedara na noite anterior e que se inscrevera numa das turmas de Diana, disse: — Socorro, vem lá a Cruella! Até logo. — Agitou os dedos para Eddie. — E anima-te, ok? Está tudo bem. Vai ser uma noite memorável.
47
Capítulo 7
A
grande vantagem das festas surpresa, descobriu Pru com algum alívio, era a forma como faziam com que toda a gente chegasse a horas. Em vez de ter de suportar aquelas aborrecidas primeiras horas em que os convidados chegavam a conta-gotas, saindo todos o mais tarde possível porque ninguém queria ser o primeiro, tinham todos entrado de uma só vez às cinco para as oito. Todos exceto Phil. Dando uma escapadela até à receção às oito e cinco, Pru tentou de novo ligar para casa. Ninguém respondeu. Idem com o telemóvel dele. Mas ela não tinha tempo para começar a preocupar-se. Dulcie e Patrick tinham chegado. — O que se passa? — Patrick estava com um ar apropriadamente confuso. — Pensei que a mesa no Langham’s estivesse reservada para as oito e um quarto… Olá, Pru, o que estás a fazer aqui? A Dulcie disse-te que era o meu aniversário? Vem dar-me um grande beijo. — Pronto, já chega — resmungou Dulcie momentos depois. Agarrou no braço dele. — Não há tempo para marmelada. Assim que eu marcar o bronzeamento para amanhã, vamos embora. Pru, onde está a Anna? Pru apontou na direção da sala de banquetes. — Por aqui. — Eu mereço-te? — murmurou Patrick, abraçando a mulher enquanto dançavam ao som de algo lento e piegas. Dulcie estava linda num curto vestido preto justo e com o tipo de saltos extremamente altos de que ele gostava. Os cabelos escuros estavam penteados para trás ao estilo Valentino. Os brincos de diamante que ele lhe tinha oferecido no Natal cintilavam-lhe nas orelhas. Dulcie tinha o corpo, a beleza e as pernas; mais, sabia como pavoneá-los. E ela tinha-se dado ao trabalho de lhe organizar uma festa surpresa, até a ponto de fazer toda a comida. Bem, com uma ajudinha de Pru. Patrick estava emocionado. 48
Dulcie deitou-lhe a língua de fora. — Se me mereces? Claro que não. — Os olhos castanhos-escuros dele franziram divertidos. — Amo-te mesmo. Patrick não o dizia muitas vezes, não era esse tipo de homem. Mas Dulcie sabia que ele amava. Era uma pena que ele amasse mais o trabalho. — Eu devia saber disso. — Esticou-se e tocou no lobo da orelha dele com a língua. Havia já tanto tempo, que ela quase se esquecera do quão agradável era dançar com Patrick. Se não estivesse tão excitada com a iminente chegada de James e Bibi, ela seria capaz de atribuir a agradável sensação de nervoso na barriga ao efeito do corpo do marido pressionado contra o seu. — Vá lá. — Patrick deu-lhe uma beliscadela na cintura. — É a tua vez. É justo. Era uma piada antiga entre os dois. Quando ela dizia, Patrick não dizia. Quando ele dizia, ela não dizia. Mas aquele era o último aniversário que comemorariam juntos. Num impulso, Dulcie fez uma última tentativa. — Também te amo. Patrick fez um ar espantado. Ela continuou: — Mas amava-te mais se trabalhasses menos. — Dulcie… Ele estava com aquela expressão no rosto, aquela expressão que ela ficara a conhecer tão bem durante o último par de anos. Aquela que estava prestes a acabar com o seu casamento, pensou Dulcie com amargura. — Não muito menos, — insistiu ela, — só um bocadinho. — Querida, não achas que eu faria isso se pudesse? — Ela também reconheceu o tom de irritação na voz dele. Tinham tido demasiadas vezes aquela discussão no passado. A novidade tinha passado. — Estou a construir um negócio. É duro. Podes crer que é duro, pensou Dulcie. — Mas estou a fazer isto por nós — continuou Patrick. Era assim que ele se justificava sempre; ela seria capaz de recitar as palavras de cor. Dulcie odiava aquela parte. Odiava a forma como ele conseguia sempre fazê-la sentir-se uma criança mimada. Ela não era egoísta. Bem, não muito. Ela só queria um marido que pudesse ver ocasionalmente, e com quem pudesse falar. Ela queria uma vida conjugal normal. — Ok, já sei o resto — disse Dulcie antes que ele se lançasse na fase seguinte da sua defesa. — Não vamos discutir. Esta é a tua festa. E também não podemos ficar aqui a dançar. 49
Tão ansioso para mudar de assunto como ela, Patrick fez um ar ofendido. — Porque não? É o meu aniversário. — É suposto circulares por aqui, dançares com outras mulheres. — Dulcie libertou-se dos braços dele e olhou em volta. — Vá, ali está a Pru. O filho da mãe do marido dela ainda não apareceu. Pru ficou contente por estar a dançar com Patrick quando Phil apareceu finalmente. Bem, ela preferia não ter estado ali de todo, mas dançar com Patrick era, pelo menos, melhor do que estar sozinha a sustentar uma parede. Não era muito melhor, considerando que aquele era o momento mais horrível da sua vida, mas um pouco. Pru sentiu a cor esvair-se-lhe das faces. Phil estava bêbedo. Extremamente bêbedo. E… oh, céus… Blanche estava ao seu lado. — Merda, merda! — sussurrou Liza, assustando o banqueiro a quem tinha sido apresentada apenas momentos antes. Horrorizada, viu Phil entrar tropegamente na pista de dança. Blanche usava a infame saia de látex e saltos-agulha mais altos do que os de Dulcie. A blusa sem costas verde-esmeralda estava cravejada de pedrinhas a imitar diamantes. Apesar dos saltos altos, ela estava a conseguir manter Phil de pé. — Pru, desculpe ele ter chegado atrasado. Encontrei-o no Forester’s Arms. Ele não parava de dizer que devia estar aqui, por isso enfiei-o no meu carro. Não vai ficar chateada com ele, pois não? Ele bebeu uns copos, mas nada de grave. Pru, que nunca tinha ficado chateada com Phil na vida, olhou fixamente para ele. Do outro lado da sala, ouviu Dulcie dizer vagamente: — Oh, céus! O ex-marido de Blanche tinha sido um bêbedo inveterado. Ela tinha tido muita prática com beberrões; comparado com o seu ex, Phil estava apenas alegre. Endireitando-o habilmente, ela virou-se para sair. — Tudo bem, Pru? Bem, vou-me embora. Phil olhou para a expressão gelada no rosto de Pru e virou-se como um boneco animado bêbedo, puxando-a de volta. — Não vais, não. Não vás. Fica e dança. — Não posso, a sério. — Blanche sacudiu-o. — Volta aqui! — vociferou Phil. Gesticulou estouvadamente na direção de Pru. — Olhem para ela, a senhora socialmente correta… Blanche, quero que fiques. Eu não a amo, amo-te a ti. Já não a quero… QUERO-TE A TI… 50
Patrick não podia fazer nada — estava agarrado a Pru. Então, Dulcie lançou-se como um foguete pela pista de dança e socou Phil Kasteliz com tanta força que ele caiu no chão. — Lamento, lamento imenso — murmurou Blanche, sem olhar para Dulcie. Aparentemente tão forte como um boi, ela ajudou Phil a levantar-se e quase o arrastou para fora da sala. À porta, encontrou Liza. — Eu não devia tê-lo trazido. Isto não devia ter acontecido. Estava só a tentar ajudar. A voz de Liza transbordava escárnio. — Bom, então está bem. Pode felicitar-se, já fez a sua boa ação da noite. Pru não estava a chorar. Estava sentada numa cadeira da casa de banho, estranhamente calma. Só que ela não estava calma, constatou Liza quando lhe entregou um brandy enorme. Como poderia estar? Devia estar em estado de choque. — Estás em estado de choque — disse ela a Pru. — Estou? — Pru olhava firmemente em frente, o olhar fixo no secador de mãos. Toda de branco como uma noiva abandonada, encolheu os ombros. — Provavelmente. Liza sentia-se desconfortável. Chorar e lamentar-se não era o estilo de Pru, mas seria muito mais fácil lidar com isso. — O que queres fazer? Mais um encolhimento de ombros. — Não sei. Ir para casa, suponho. — Tens a certeza? O Phil pode estar lá. Fica comigo esta noite. — Liza estava a sentir-se bastante heroica; tinha estado a divertir-se imenso. Agora parecia que ia ter de perder o resto da festa e levar antes Pru para casa. Dulcie entrou disparada pela porta. — Ele foi-se embora. Acabei de lhe bater outra vez, lá fora no parque de estacionamento. E disse àquela vaca escanzelada para desaparecer também. — Os olhos verdes dela cintilavam. — Eu disse que se ela voltar a pôr os pés na tua casa, é uma mulher morta. Oh, Pru, lamento imenso que as coisas tenham acontecido desta forma. E eles podiam ter arruinado a festa…! Foi abraçar-se a Pru, que continuava estaticamente sentada na sua cadeira. Pru lançou o conteúdo do copo contra a cara de Dulcie. Pelo menos foi essa a sua intenção, mas errou a pontaria. A maior parte da bebida atingiu o espelho acima do lavatório. — O que…? — Dulcie cambaleou para trás, estupefacta com a reação de Pru. Era como apanhar uma cuspidela de uma freira. 51
— Planeaste isto tudo, não foi? — sibilou Pru, e começou a tremer. — Espera até às dez para uma surpresa extraespecial. Dois convidados que iam chegar atrasados. Por amor de Deus, Dulcie, o que é que te passou pela cabeça?! Liza olhou fixamente para Dulcie. Decerto ela não tinha… — Ora, por favor! — lamentou-se Dulcie, tentando limpar o ombro esquerdo molhado e o vestido manchado de brandy. — Não eram eles a surpresa! Acham realmente que eu faria uma coisa assim tão crassa? Ninguém respondeu. Dulcie bateu com o pé em frustração. Ricas amigas, as suas. — Bem, nunca faria. O que eu tinha planeado era sensacional, a solução para um problema que mais ninguém teve a coragem de resolver. E, bolas, — olhou para o relógio, — se não formos já lá para fora, vamos perder a coisa toda. Vai acontecer sem mim. Pru levantou-se. — Dulcie, desculpa. Não consigo acreditar que acabei de fazer isto. — Estava com um ar preocupado. — O teu vestido está bem? — Eu também não consigo acreditar que tu fizeste isto. — Dulcie sorriu. — E o meu vestido vai ficar bem. Ainda bem que não era cocktail de ovo. — Vá, vamos embora. Não queremos perder a tua grande surpresa — disse Pru, esboçando um sorriso. — O que é? Um stripper para a Liza? Bibi fez um ar bastante chocado quando chegou de braço dado com James e percebeu para que festa ele a tinha levado. Correndo para os cumprimentar, Dulcie viu os olhos dela perscrutarem a sala em busca de faixas a anunciar: 40 HOJE! Para acalmar os receios de Bibi e evitar que ela arrastasse James de volta para o carro, Dulcie cumprimentou-a com um beijo e sussurrou-lhe ao ouvido: — Não entres em pânico, está tudo controlado. Ela não era completamente insensível. Não ia propriamente saltar para cima do palco com um megafone a gritar: «Levante a mão quem estiver interessado num passe de autocarro.» Oh, não, isso seria totalmente parolo. A chave para o problema era a subtileza, tinha Dulcie decidido. Ela não ia dizer absolutamente nada. Ia simplesmente esperar que a revelação viesse casualmente a público. E veio casualmente a público mais cedo do que ela previra. Tendo já recuperado do incidente Pru-e-Phil, toda a gente se havia dirigido entusiasticamente para a pista de dança. Dulcie e James estavam a contar a Bibi o que acontecera com a comida e a correria de Dulcie com o carrinho 52
de compras pela Marks & Spencer. Patrick voltou com bebidas para Bibi e James. Suzannah Somers era a mulher efervescente de um dos velhos amigos do râguebi de Patrick — de longa data, quando ele tivera tempo para jogar râguebi. Chegou ao pé de Patrick e deu-lhe um toquezinho no ombro. — Olá, aniversariante! Dulcie, não te importas que eu o leve emprestado, pois não? A minha outra imprestável metade dança como um gorila com gota. — À vontade. — Dulcie moveu um braço indulgente na direção da pista de dança. O DJ estava a tocar alguma coisa esquisita que Patrick nunca tinha ouvido. Com um ar preocupado, ele disse: — Não esperes milagres. Suzannah deu risadinhas. — Ora, tu costumavas ser um excelente dançarino! Mas atenção, isso foi nos bons velhos tempos. Antes de fazeres quarenta. James olhou de forma estranha para Suzannah. Incapaz de se controlar, Dulcie engasgou-se com a bebida. Bibi empalideceu. A gargalhada de Patrick foi alta e pouco convincente. — Suzannah, alguém andou a pôr-te droga na bebida. — Como, nitidamente, o melhor a fazer era afastá-la dali, ele agarrou-a e começou a puxá-la para a pista de dança. — Quarenta, ah! Ah! Ah! Lá há de chegar o dia! Nesse momento, a música parou. Suzannah, que estava já completamente confusa, disse em voz alta: — Patrick, estás bêbedo?! Claro que tens quarenta. É por isso que estamos todos aqui. Patrick não estava para aturar aquilo. Foi dançar com Suzannah ao som de uma canção dos Babylon Zoo, fossem eles quem fossem. Se aquela situação embaraçosa tivesse alguma coisa a ver com Dulcie — como ele desconfiava que tinha —, então Dulcie que a resolvesse.
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Capítulo 8
–O
que se passa? — perguntou James, que estava ainda mais confuso que Suzannah. — O Patrick não tem quarenta. Não pode. Tem trinta e dois. A expressão aflita de Bibi fez Dulcie sentir-se desconfortável. Aquilo não estava a correr tão bem como ela tinha planeado. De alguma forma, quando imaginara toda aquela situação, todos tinham feito uma expressão muito mais feliz. Em vez disso, Bibi parecia que estava prestes a desmaiar. Em pânico, desesperada para chegar à parte feliz (e como seria possível lá chegar se ninguém dissesse nada?), Dulcie balbuciou: — Escuta, James, foi uma mentirinha inocente que fugiu ao controlo… e agora chegou a hora de esclarecer tudo, de desanuviar o ambiente, começar de novo… — Esclarecer o quê? — perguntou James. Dulcie tentou dar uma gargalhada alegre, mas não lhe saiu. Incapaz de suportar mais aquela tortura, Bibi virou costas e saiu. — Esclarecer o quê? — repetiu James, num tom de voz perigosamente baixo. — Olha, as mulheres mentem acerca da idade, fazem isso a toda a hora — murmurou Dulcie. — Tu amas a Bibi, não amas? Ela só cortou alguns anos… O que é que importa se ela é mais velha do que disse que era? Ela não fez propriamente nada de verdadeiramente horrível, como arranjar um amante! — Quando eu conheci a Bibi, ela disse-me que tinha quarenta e seis — disse James. — Agora estás a dizer-me que o Patrick tem quarenta. Por amor de Deus, Dulcie. Então que idade tem ela? Dulcie retraiu-se e fez todos os possíveis para suavizar o impacto. — Perto de… hum… sessenta. — Perto de sessenta! Quão perto? Bem, não tinha funcionado. — Hum… na verdade, é isso. Sessenta. — Apressadamente, acrescentou: — Mas acabados de fazer. 54
James fechou os olhos; parecia que estava a ter um pesadelo e que queria desesperadamente acordar. — Oh, James, eu sei que é um choque, mas é realmente assim tão terrível? Ele abriu lentamente os olhos. — Obrigado, Dulcie. Já ouvi o suficiente. — Mas a Bibi continua a ser a Bibi… — Para. — …e ela só não queria casar-se contigo por ter medo que descobrisses! — Não estou surpreendido. Em desespero, Dulcie gritou: — Só queríamos que vocês fossem felizes! — A sério? — James fitou-a por instantes. — Tens uma maneira muito engraçada de o mostrar. Depois de ele se ter ido embora, Liza e Pru juntaram-se a Dulcie. Paradas não muito atrás dela durante a desagradável discussão, tinham escutado tudo. — O que foi aquilo? — perguntou Liza. — Era aquela a tua outra surpresa? Dulcie anuiu pesarosamente com a cabeça. — Oh, céus. — Estava a tentar ajudar. — Hum. Não sei porquê, acho que tentar ajudar não é o teu forte. Patrick tinha devolvido Suzannah ao marido. Juntou-se a elas com uma expressão carrancuda. — Parabéns. — Precisava de ser feito — disse Dulcie na defensiva. — E cá com um estilo. — Ora, cala-te. — Ela sentia-se injustiçada. — De qualquer forma, o James vai ficar bem. Assim que recuperar do choque. — Viste a cara dele, Dulcie. Não contes com isso. Quanta solidariedade marital. — Como podes ser tão horrível? — Dulcie estava com vontade de lhe dar pontapés nas canelas. — E ainda por cima depois de todo o trabalho que tive! Organizei esta festa para ti. Queria que fosse memorável… — Ah, isso conseguiste sem dúvida. Ninguém se vai esquecer desta noite tão cedo. Especialmente a Bibi. — O tom de Patrick era de escárnio. — Vais ter sorte se ela voltar a falar contigo. Mas a sorte não estava do lado de Dulcie. Bibi falou com ela outra vez. 55
Ela reapareceu quando Dulcie se estava a servir de um gin tónico quádruplo e a resmungar: — Da próxima vez que eu disser que estou a planear uma festa surpresa, vê se me bates com alguma coisa na cabeça até eu parar. Pru, que um tanto estranhamente estava agora a consolá-la, murmurou: — A Bibi está de volta. Por uma fração de segundo, Dulcie fantasiou que tudo ia acabar bem. James tinha perdoado Bibi e Bibi tinha voltado para lhe agradecer. Haveria riso e lágrimas, abraços emotivos e finais felizes… Esperanças extremamente vãs. A fantasia derrapou para um triste fim assim que ela se virou e viu a expressão glacial na cara pálida e lisa de Bibi. O ambiente fazia lembrar horrivelmente o tiroteio em O.K. Corral. — Bem, ele foi-se embora. Não me parece que vá voltar a vê-lo, graças a ti. Dulcie estremeceu. Seria imaginação sua, ou tinham acabado de desligar o aquecimento central? — Bibi, não imaginas o quanto… — Lamentas? Oh, por favor! — Bibi cuspiu as palavras como se projetasse cascalho. — Sabias exatamente o que estavas a fazer. Tinhas de meter o bedelho, não tinhas? Tinhas de interferir. — Mas eu… — Destruíste a minha vida, Dulcie. Nunca te perdoarei isto. Quem me dera que nunca te tivesses casado com o Patrick. Oh, não, isto já é de mais, pensou Dulcie. Olhando de relance para Patrick — decerto agora ele iria em seu socorro? —, viu que estava sozinha. Patrick não fazia qualquer tenção de a apoiar. Estava a olhar sombriamente para ela, de todo do seu lado. Muito bem. — Quem me dera também não me ter casado com ele. — As unhas dos dedos de Dulcie cravaram-se-lhe nas palmas suadas das mãos. Bem, era a verdade. Bem podia dizer já. Ela tinha começado, por isso ia acabar. — Mas podemos resolver isso em breve. Uma visita ao advogado, um divórcio rápido… e bingo, acabou-se a nora metediça. — Para se certificar de que Patrick compreendia, olhou para ele e concluiu amargamente: — Acabou-se a mulher entediada. À exceção do círculo mais chegado, os convidados continuavam a divertir-se em grande. Eddie Hammond, que tinha estado atarefado a organizar o torneio de squash do dia seguinte, viu Dulcie e Patrick através de uma brecha na multidão e aproximou-se a mastigar um crepe da Marks & Spencer. 56
— Estão todos a divertir-se? Estão a gostar? — Deu um aperto encorajador no ombro de Dulcie. — Querida, a comida está ótima. Deves ter gasto os teus lindos dedos de tanto trabalhar. Espero que este teu marido saiba reconhecer todo o trabalho que tiveste. Bibi virou-se e afastou-se sem dizer mais nada. Demasiado descontrolada para falar, Dulcie bebeu um gole da sua bebida. Dando o braço a Eddie, Liza afastou-o diplomaticamente dali, murmurando: — Que tal dançarmos um pouco? Dulcie foi em busca de mais bebida. Depois encarrapitou-se na borda da mesa em que estava a impressora a laser de Patrick e começou a mexer irritadamente numa fita de embrulho azul e prateada que tinha usado para a decorar. O problema com as explosões emocionais irrefletidas, constatou, era que ninguém acreditava que a pessoa estava a falar a sério. Não ocorrera a Patrick que ela queria mesmo divorciar-se. Ele pensava que ela estava apenas furiosa. Bem, pensou Dulcie, em breve ele vai descobrir. Dulcie viu-o avançar na sua direção, ainda com a expressão de «eu-sou-o-diretor-da-escola-e-tu-estás-de-castigo». — O Terry e a Jean estão de saída. Têm de ir substituir a baby-sitter. — Então é melhor ires despedir-te deles. — Vens? Ela sentiu o lábio inferior projetar-se praticamente por iniciativa própria. Ela tinha de novo catorze anos de idade. — São amigos teus, não meus. — Vá, Dulcie, não amues. Isso não resolve nada. — Ela estava com vontade de lhe atirar o gin tónico à cara, mas Pru já tinha feito isso essa noite. Já não era original. Além disso, o seu copo estava vazio. Dulcie viu Patrick soltar um suspiro. Ela estava claramente a ser muitíssimo incómoda. O castigo podia não ser suficiente. Talvez ela estivesse prestes a ser expulsa. — Olha, foste tu que provocaste isto — disse ele de modo cansado. Dulcie explodiu. Saltou da mesa e agarrou-a dos lados. Levantá-la foi fácil. A impressora a laser XPTO deslizou para trás e aterrou no chão com um estrondo. Virando-se, ela observou a impressora destruída com imensa satisfação. — Também tu. 57
… Liza acordou na manhã seguinte com frio e com o apartamento lotado. Dulcie, deitada ao seu lado, tinha-se apoderado do edredão. Pru, que tinha ficado com o sofá, estava à porta com canecas de chá nas mãos. — É diferente, — comentou Liza alegremente, — acordar ao lado de alguém que não tem pernas peludas. — Tocou levemente com um dedo em Dulcie, que estava a ressonar, e olhou para Pru. — Como te sentes? Ou é uma pergunta estúpida? — Com dores de cabeça — resmungou Dulcie. — Ai! — Não és tu. — Bem. — Quando já estavam ambas direitas, Pru entregou-lhes os chás. — Melhor, pelo menos, agora que tive tempo para pensar. Dulcie recordou rapidamente os acontecimentos da noite anterior. Que diabo, tinha realmente acontecido. As coisas estavam mesmo más. — Então é isso. — Ela bebericou e queimou a língua. — Aqui estamos nós, as miúdas todas juntas. Bem-vindas ao clube das solteiras. Pru sentou-se pesadamente aos pés da cama. Tinha estado a beber chá nas últimas cinco horas. — Eu não sou solteira. — Fez um ar defensivo. — Ora — exclamou Dulcie. — Não podes ficar com o Phil! Não depois do que ele te fez ontem à noite. — Ele não estava a falar a sério. Estava bêbedo, só isso. — Pru sabia por experiência como era Phil quando ia para os copos. Acordava sentindo pena de si mesmo, incapaz de se lembrar de muita coisa, quando se lembrava de alguma, do que tinha acontecido na noite anterior. Suplicava por sopa de tomate da Heinz e passava o dia arrependido como um menino. Ficava também extremamente carinhoso com ela. O padrão era sempre o mesmo. E embora ela tivesse vergonha de admitir, mesmo para si própria, apesar de odiar as bebedeiras, Pru gostava dos períodos de recuperação que se seguiam. Faziam-na sentir-se desejada e segura. — Ele humilhou-te em frente de todos — protestou Liza, mas com menos convicção do que da última vez. Ela sabia quando estava a desperdiçar saliva. — Vale a pena eu lutar pelo meu casamento. O Phil não queria dizer as coisas que disse ontem à noite. Ele nem sequer se vai lembrar de as ter dito. — Estás doida — disse Dulcie sem rodeios. Pru olhou para ela. — Vais mesmo deixar o Patrick? — Podes crer que sim. — Dulcie pensou por um momento. Tinha 58
saído da festa sem dizer nada, não tinha? Não estava em casa, mas ali. — Já deixei. Pru levantou-se, com um ar desamparado numa das Lizashirts largas de Liza, mas totalmente decidida. — Nesse caso, — disse ela a Dulcie, — és tu quem está doida.
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Capítulo 9
D
ulcie não estava com pressa nenhuma de chegar a casa. Que se lixasse Patrick, ele que se preocupasse mais um bocado, o hipócrita que se perguntasse onde estaria ela. Mas a consciência estava a pesar-lhe no que respeitava a um outro assunto. Ok, ao outro assunto! Não que tivesse sido propriamente culpa sua. As suas intenções tinham sido as melhores. Mas Dulcie sabia que iria sentir-se muito melhor se conseguisse resolver pelo menos um dos problemas delicados que a festa da noite anterior tinha gerado. Ligou a James do seu telemóvel. — James, olá, sou eu! Onde estás? Ele não parecia muito satisfeito por ouvi-la. De alguma forma, ela conseguiu perceber. — É esta a tua ideia de subtileza, Dulcie? Se queres saber se estou em casa enfiado na cama com a Bibi, então não, não estou. Estou no Berkeley Hotel. Céus, ele parecia mesmo contrariado! Dulcie fez uma careta e exibiu um polegar para baixo a Liza, que estava a arranjar-se para sair. Sem perder tempo, como era habitual, ia almoçar fora com o banqueiro da noite anterior. — Certo, muito bem, fica onde estás. — Dulcie decidiu que também não ia perder tempo. Seria atrevida e assertiva. Ia obrigar James a ganhar bom senso, nem que tivesse de lhe martelar a cabeça com um dos seus saltos altos. — Dulcie… — Não te mexas, vou a caminho — disse ela, de facto, com bastante firmeza. — Encontro-me contigo na receção daqui a vinte minutos. Dulcie sentiu-se vítima de olhares bastante dúbios quando atravessou a receção do Berkeley. Não havia sinal de James, por isso ela sentou-se num sofá ao pé de uma das longas janelas. No espaço de dois minutos foi aborda60
da por um porteiro, uma rececionista arrogante e o gerente a perguntarem se podiam ajudar, minha senhora. — Estou à espera de uma pessoa — disse simpaticamente Dulcie ao gerente. — Não estou ao ataque. Só estou com este vestido porque deixei o meu marido ontem à noite, de um modo bastante inesperado, e não tinha uma muda de roupa comigo, ok? Fiquei em casa de uma amiga que veste uns seis números acima do meu e se pensa que eu vestiria alguma coisa do tamanho de uma tenda de circo só para manter felizes os seus hóspedes geriátricos… bem, você não podia estar mais errado. James apareceu atrás do gerente. — Outra vez metida em sarilhos, Dulcie? Ele estava com péssimo aspeto, como se não dormisse há uma semana. A olhar de modo fulminante para Dulcie, o gerente resmungou um insincero pedido de desculpas e desapareceu. Dulcie fulminou-o também com o olhar. — Não sou nenhuma arruaceira. Ele é um imbecil afetado. — Bem, pelo menos tenta puxar a saia para baixo. Está toda a gente a ver-te as cuecas. — Que bom para eles. — Dulcie estava com um ar agressivo. — Pelo menos tenho cuecas. James ignorou-a e esperou que ela conseguisse tapar, pelo menos, mais uns centímetros de coxa. O vestido de veludo preto tinha, certamente, uma tarefa difícil. Pediu café a uma empregada de mesa e acendeu um cigarro. — Dás-me um? — Em alturas de stress, Dulcie gostava sempre de fumar; fazia-a sentir-se como Bette Davis. Pré-1950, claro. Antes daquelas rugas e pregas que se tinham instalado. — Não. O que estás a fazer aqui, Dulcie? — A ver se ganhas bom senso. Ele não sorriu. — Tenho quarenta e cinco anos. A Bibi tem sessenta. Por amor de Deus, onde está a sensatez? O déjà vu pairava no ar. Dulcie só esperava conseguir desencantar algo original, alguma nova estratégia brilhante que não tivesse ainda tentado. — Sim, mas ela não parece ter sessenta anos, não fala como uma mulher de sessenta anos e não age como se tivesse sessenta anos! Seria imaginação sua, ou estaria James a encolher-se cada vez que ela pronunciava a palavra começada por S? Ele parecia irritado. — Claro que não, senão ela nunca teria conseguido levar esta mentira tão longe. 61
— Então, aí tens. — Dulcie, não é essa a questão. Bem, pelo menos não é só essa. Não entendes? A Bibi mentiu-me… — Não foi uma mentira, — interrompeu Dulcie apressadamente, — apenas uma mentirita sem importância. — Foi uma mentira. E grande. Pensava que não tínhamos segredos um para o outro. Agora descubro que toda a nossa relação foi construída em cima de uma mentira. As relações são baseadas na confiança, Dulcie. Como poderei acreditar em qualquer coisa que ela me diga agora? Ela pode estar a mentir. É uma perita. — James, ela não faria isso! Esse era o único segredo dela, acredita! — Era? — Ele apagou mais um cigarro com uma mão trémula e acendeu imediatamente outro. — Mas a questão é exatamente essa, Dulcie. Como é que eu poderei ter a certeza? Phil estava esparramado no sofá quando Pru entrou em casa. Uma tigela meio vazia de sopa de tomate, vários pãezinhos e uma caixa de paracetamol enchiam a mesinha de centro. Espalhado no chão à frente dele estava um monte de cartas. Parecia que, tal como quase todos os outros, Phil ainda tinha vestida a roupa da noite anterior. E também não parecia bem. — Olá. — Pru esperava não soar tão nervosa como se sentia. — Como te sentes? Phil agarrou numa das cartas e olhou de relance para esta, evitando o olhar de Pru. — Indisposto. — Oh. Queres mais sopa? Era nessa altura que ele normalmente lhe estendia os braços, lhe fazia uma expressão de menino e dizia com tristeza: «Pru, faz-me um carinho. Não me sinto muito bem.» Em vez disso, ele disse: — Quero dizer, tu sabes. Aquilo de ontem à noite. — O q-quê? — Ora, Pru! Posso não me recordar de o ter dito, mas a Blanche garantiu-me que eu disse. Seja como for, é a verdade. Vou-me embora daqui. Desculpa se te envergonhei em frente dos teus amigos, mas não conseguimos planear estas coisas. Às vezes acontecem simplesmente. Pru não conseguia acreditar. Não era aquilo que Phil devia dizer. Oh, céus, era horrível, horrível…! — Vais viver com a Blanche? 62
Ele encolheu os ombros. — Acho que sim. Provavelmente. Só sei que tenho de sair daqui. — Mas… mas… — Olha, desculpa. — Pela primeira vez os seus olhos raiados de sangue cruzaram-se com os dela. Ela viu cansaço e culpa contidos neles. — Vais ter de sair daqui também. — O quê?! Phil estendeu-lhe a carta que tinha na mão. — Vá, lê. E não te preocupes, — apontou desdenhosamente para as outras no chão, — há muitas mais de onde veio essa. Está à vontade, lê quantas quiseres. Escolhe. A tremer descontroladamente, perguntando-se como raios podia aquilo estar a acontecer-lhe, Pru leu a primeira carta. Depois a segunda. E a terceira. Leu-as todas, obrigando-se a continuar até chegar ao fim. Era inacreditável. Phil devia dinheiro em toda a parte. O jogo que ela sempre pensara tratar-se de um passatempo inofensivo tinha nitidamente fugido ao controlo. — Não sabia que tinhas penhoras — disse ela estupidamente. — Porque havias de saber? — Phil, o tradicionalista, sempre tinha tratado das contas. Bem, até ter deixado de as pagar e começado a enfiá-las antes no balde do lixo. — Seja como for, agora percebes porque tens de sair. — Encolheu os ombros. — Esta casa vai ser devolvida na terça-feira. — Mas eles não podem… — Não sejas tão ingénua — gritou-lhe Phil. — Claro que podem. De qualquer forma, perder a casa é a menor das minhas preocupações. Na próxima semana, por esta hora, já posso estar sem emprego, sem carro… e sem outras coisitas vitais, se aquela máfia do casino levar a sua avante. No espaço de cinco minutos, Pru tinha perdido o nome, o marido… toda a sua vida. — Quanto, no total? — Ela falava por entre dentes tiritantes. — Quanto deves? Phil abanou a cabeça. — Não queres saber. — Oh, meu Deus. — Olha, foi um percalço, só isso. Estava tudo a correr bem até ao verão passado. Então tive uma fase de azar. Quanto mais ela durava, maiores tinham de ser as minha apostas para cobrir as perdas. Mas tudo se há de recompor, vais ver. 63
Os olhos dele tinham-se iluminado. Céus, pensou Pru, só o simples facto de falar sobre o assunto anima-o. — Phil, tens de ir ao Jogadores Anónimos. — Não, não tenho. Escuta, a minha sorte vai ter de mudar em breve. Tem de ser. Então, assim que isso aconteça, vou recuperar a casa… Os olhos de Pru encheram-se de lágrimas. — É por isso que estás a fazer isto? Vais deixar-me porque tens vergonha do que aconteceu? — Ela sentiu uma avassaladora onda de esperança. — Phil, jogar é uma doença, não deves culpar-te! Juntos podemos ultrapassar isto, podemos ultrapassar qualquer coisa… — Entendeste mal. — Phil abanou a cabeça. — Isto não é para te proteger. Vou-me embora porque não quero continuar casado contigo. Costumava pensar que eras o meu estilo. Mas não és — concluiu ele friamente. — A Blanche é que é. Dulcie percebeu que ia mesmo em frente quando chegou a casa e Patrick, que estava com um ar extremamente despreocupado, disse: — Onde estiveste? Em casa da Liza, calculo? Lá se vai a paixão, a possessividade, a viril explosão de ciúmes, pensou Dulcie. Ela imaginou a reação dele se lhe dissesse que tinha passado a noite a ser alegremente violada pela equipa principal de râguebi de Bath. Isso iria captar a atenção de Patrick, sem dúvida. «A sério? O quê, na sede do clube? Por acaso conseguiste ver qual era o sistema informático deles?» Viris explosões de ciúmes não faziam o género de Patrick. — Sim, em casa da Liza. — Dulcie nem sequer se deu ao trabalho de inventar uma história mais fascinante. Para quê? — Café? — perguntou Patrick, quando ela o seguiu até à cozinha. — A chaleira acabou de ferver a água. Aquilo era a sua contribuição para desanuviar o ambiente. Era assim que eles resolviam as discussões. Um pouco de conversa trivial afetada realizada numa voz tipo «estou-certo-e-tu-estás-errada-mas-perdoo-te», seguida de um abraço e de um beijo. Então tudo regressaria ao normal. Só que desta vez isso não ia acontecer. — Não, obrigada, — disse Dulcie, — mas adorava um divórcio. — Tens a certeza que não preferias um KitKat? Patrick estava de costas para ela. Dulcie viu-o verter água fervente para dentro de uma caneca. Ele tinha vestido uma camisola de râguebi verde-escura e branca e as calças de ganga semi-razoáveis, as que estavam remendadas no rabo. Oh, ela ia sentir saudades daquele rabo. 64
Dulcie sentou-se, sentindo-se subitamente extremamente cansada. Tinha sido uma manhã cheia de emoção até então e ainda não tinha terminado. — Não era uma piada — disse ela, quando conseguiu finalmente a atenção dele. — Ora, Patrick! Olha como têm andado as coisas. Este casamento não está a funcionar, sabes isso tão bem como eu. Chegou a hora de darmos o assunto por terminado. Era uma situação em que se era preso por ter cão e preso por não ter. Se havia coisa mais inútil do que tentar engarrafar ar, era convencer Dulcie a mudar de ideias. Patrick tinha aprendido isso durante os sete anos que estivera casado com ela. Quando Dulcie tomava uma decisão, não havia volta a dar. Nada do que pudesse fazer ou dizer teria qualquer efeito. Ele tentou, mas não por muito tempo. Dulcie estava irredutível e Patrick era incapaz de suplicar. Uma das razões era o orgulho. Outra era o saber que — para Dulcie — não havia coisa menos desestimulante no mundo do que um homem servil. Assim, tinha decidido manter-se aparentemente calmo e ouvi-la. Oh, sim, Dulcie estava, definitivamente, decidida. — Ok, se é o que queres — disse finalmente Patrick, num tom neutro. De qualquer modo, como podia ele discutir? Ela tinha razão, ele tinha-a realmente negligenciado. Saber que tinha, pelo menos parcialmente, culpa do que estava a acontecer, tinha-o deixado de rastos. Dulcie olhou para ele. — Ok, então está decidido. — Ela mordeu o lábio, decidida a não chorar. — Ainda bem. — Vais passar o resto do dia aí dentro? — gritou ela, horas depois, à porta do escritório de Patrick. Os computadores estavam todos ligados, mas Patrick não tinha trabalhado nada. Só conseguia pensar em Dulcie, que queria separar-se dele. Que, por amor de Deus, queria o divórcio…! Patrick secou os olhos, satisfeito por se ter lembrado de trancar a porta. A última coisa de que precisava era que ela o visse naquele estado. — Estou ocupado. Dulcie teve vontade de deitar a porta abaixo aos pontapés. Como se atrevia Patrick a estar ocupado?! Quando virou costas, disse amargamente: — Qual é a novidade? Como é que isto pode estar a acontecer-me? Pru estava à porta a olhar fixamente para o quarto do minúsculo apartamento de uma assoalhada que estavam a mostrar-lhe. Era hediondo 65
— apertado e imundo e num terceiro andar — mas estava disponível. Podia mudar-se imediatamente. — Fico com ele — disse Pru, e até o sebento senhorio fez o favor de fazer uma expressão de surpresa. — Tem a certeza? A partir de quando? — De hoje. — De boca seca, ela abriu a carteira e retirou o dinheiro do sinal do maço de notas que estava a minguar a olhos vistos. — E o primeiro mês adiantado. — O senhorio pigarreou, salivando com a visão do dinheiro. Depois de enfiar as notas no bolso, entregou a chave a Pru e fez um movimento vago em direção ao vidro rachado na janela. — Eu ia… hum… reparar aquilo. Se eu fizesse isso esta tarde, você podia mudar-se amanhã. Céus, como é que isto pode estar a acontecer-me?! Pru abanou a cabeça. — Tenho de me mudar hoje. Nem sequer ligeiramente curioso, o novo senhorio encolheu os ombros e dirigiu-se para as escadas. — Como quiser. Como quiser, pensou Pru depois de ele ter saído. Acharia ele realmente que era isso que ela estava a fazer? Tinha de se mudar para aquele apartamento deprimente e tinha de ser naquele dia. Porque entre Phil, os oficiais de diligências e a sociedade de crédito imobiliário, ela não tinha muita escolha.
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Capítulo 10
E
stou solteira, pensou Dulcie. Estranho. Tecnicamente, claro, ainda era casada, mas estava separada. Moralmente, para Dulcie, isso significava que era de novo solteira. E livre para fazer o que quisesse. Fazia exatamente cinco semanas desde a festa de Patrick. No dia anterior ele tinha saído de casa e mudado para um apartamento por cima do escritório no centro de Bath. O apartamento era pequeno, mas o caminho da casa ao emprego demorava quatro segundos. Ou então dois, se ele instalasse um poste de bombeiro. Dulcie continuava a sentir-se culpada. Ela tinha querido acabar com o casamento e ele é que tinha tido de arranjar outro lugar para morar. Mas Patrick tinha feito questão. «Os teus pais deram-nos o sinal desta casa», tinha-lhe ele lembrado. «É mais tua do que minha. De qualquer forma, tu precisas do espaço do guarda-roupa.» Ele tinha sido tão sensato que Dulcie tivera vontade de lhe bater. Se tivesse esperado que ele discutisse, que lutasse para salvar o casamento, teria ficado amargamente dececionada. Só que ela conhecia Patrick demasiado bem. Era coisa que ele nunca faria. Então, estava feito. Ela estava de novo disponível, o Sol estava a brilhar e o céu estava azul. Tragam os dançarinos. Dulcie pôs os pés com ténis Reebok em cima da cadeira em frente e fechou os olhos, desfrutando do calor do Sol no rosto enquanto esperava que Liza terminasse o jogo de squash. O solário do Brunton Manor era contíguo ao bar. Era onde as pessoas relaxavam e bebiam Perrier — com gelo se estavam em decadência — depois de se esfalfarem nos campos de ténis. Era onde Dulcie — num fato de treino atraentemente branco — relaxava enquanto bebia gin tónico e comia aperitivos de sal e vinagre. Liza apareceu acalorada e desgrenhada, mas satisfeita consigo própria. 67
— Dei uma surra na cabra, seis a um. Foi uma lição por ela ter dito que eu tinha engordado. Mais uma bebida? Dulcie anuiu com a cabeça. — E mais aperitivos. Mas, falando de cabras, — Dulcie acenou a Liza com o suplemento a cores do Herald on Sunday, — o que te aconteceu? Estavas um bocadinho maldisposta quando escreveste isto, não estavas? Liza encolheu-se. O número que trazia a crítica que fizera acerca do Songbird tinha saído na semana anterior. Sempre que a lia, parecia-lhe pior. O editor tinha ficado encantado: «Assim está melhor, querida! É isto que põe as pessoas a falar», mas Liza estava cheia de culpa. A comida não tinha sido perfeita, mas não era assim tão má, não tão terrível como ela tinha dado a entender. — Foi no dia de Ano Novo, no restaurante onde vi o Phil e a Blanche. — Oh, agora entendo. — Dulcie sorriu com ironia. — A culpa é do restaurante por os ter deixado comer lá. Esta é a tua vingança. — Claro que não é. Foi uma ideia brilhante do meu editor. — Com um olhar desafiante, Liza aproximou-se do bar. — Ele queria que eu fosse controversa, só isso. Eddie Hammond, que se tinha cruzado com Dulcie mais cedo, tinha-se certificado de que Liza iria encontrar-se com ela para almoçar. Ele tinha explicado que alguém telefonara a perguntar quando é que ela estaria por lá. — Um dos namorados apaixonados de Liza — calculou Dulcie, mas Eddie tinha franzido o sobrolho. — Isso não sei. Ele não me pareceu nada apaixonado. Dulcie viu Liza fazer-se ao responsável do bar. Ele era gay, mas ela insinuava-se na mesma. E, mais estranho ainda, ele correspondia. Ela esperava que o telefonema que Eddie tinha atendido não fosse de um atirador, contratado pelos proprietários furiosos do Songbird. Para o editor da Liza não há problema nenhum em incitá-la a ser controversa, pensou Dulcie, não são as rótulas dele que correm perigo. Liza regressou à mesa junto da janela que dava para a entrada do clube. Como não podia propriamente colocar um PS no artigo da semana seguinte a dizer «Ah, já agora, o que escrevi acerca do Songbird foi um bocadinho maldoso, a comida não era assim tão má», atirou a revista para cima de uma cadeira vaga e mudou de assunto. — Então, como te sentes agora que o Patrick saiu de casa? Dulcie abriu o pacote de aperitivos e começou a mastigá-los. — Ele também nunca lá estava. Vou levar um ano a aperceber-me da diferença. Bravata. — Estás à procura de outra pessoa? — perguntou Liza. 68
— Nem pensar! — Os brincos de prata e olho-de-tigre (não muito desportivos) de Dulcie chocalharam de um lado para o outro quando ela abanou a cabeça. — Sair com muita gente, é tudo o que quero fazer. Isto é o início da minha nova vida. Quero comemorar sendo louca e irresponsável! Vou divertir-me mais, com mais homens, do que possas imaginar. Por favor, outro relacionamento é a última coisa de que preciso. Mais bravata. Na verdade, corrigiu Liza, era mais treta. Até Patrick, Dulcie tinha passado a vida a saltar entre homens extremamente inadequados. Ela ansiava por emoção, mas precisava de segurança. Ela não era, nem de perto nem de longe, tão independente como gostava de fazer crer. Mas isso não era o tipo de coisa que as pessoas gostassem de escutar acerca de si mesmas. Uma vez mais, Liza mudou diplomaticamente de assunto. — Falaste com a Pru? Ela vem cá hoje à tarde? Dulcie abanou a cabeça. — Foi a uma entrevista, uma coisa horrível qualquer de televendas. Por amor de Deus, consegues imaginar a Pru a vender? Ela não vai conseguir. — Ela precisa de alguma coisa. Aquele estúdio dela é uma espelunca. — Eu sei, eu pedi-lhe para ela ir morar comigo. — Dulcie, que estava a olhar pela janela, viu um Bentley verde-escuro virar para o caminho de entrada ladeado de árvores. Credo, olhem para aquilo, quem virá visitar o clube? A Rainha? — Teria sido ideal, mas a Pru recusou, disse que não podia. Ela está decidida a ficar onde está. Acho que deve ter a ver com orgulho. — Dulcie inclinou a cabeça para trás, esvaziou as últimas migalhas para dentro da boca, limpou as mãos às calças de fato de treino e encolheu os ombros. — Talvez seja melhor assim. Se eu vou levar homens lá para casa a toda a hora, ela era capaz de sentir que estava a atrapalhar. E eu não quero sentir-me constrangida, não é? — Hum. — Liza já não estava a prestar atenção. Estava a espreitar pela janela, juntamente com Dulcie, no momento em que alguém que conduzia o Bentley travou a fundo e estacionou num ângulo esquisito em frente da entrada. Se é a Rainha, pensou Dulcie, está desesperada por não chegar atrasada à aula de step. Não era a Rainha. — Caraças! — Dulcie assobiou. — Pensei que só os velhos excêntricos conduziam aquele tipo de carros. Presidentes de Câmara e afins. Não estava à espera de uma coisa destas. Depois de ter saltado do carro e se ter dirigido apressadamente para o lance de degraus de pedra que dava acesso à receção, o condutor depres69
sa desapareceu de vista. Liza, que olhava descaradamente como Dulcie, só teve tempo para vislumbrar um rapaz em boa forma, de vinte e poucos anos, com cabelo escuro comprido. Se o Bentley lhe pertencia, o mais provável era que ele fosse ou jogador de futebol, ou estrela de rock, decidiu Liza. Do tipo que gostava de dar nas vistas e que comprava à velha mãe uma casa Barrett em Basingstoke. Dulcie estava já com um ar entusiasmado. — Quem será ele? — Não faço ideia, mas sei o que ele é. — O quê? Diz-me! Liza sorriu e tornou a atar o rabo-de-cavalo, que estava frouxo. — Demasiado novo para ti. Dulcie tinha-se esquecido completamente do telefonema misterioso de Eddie. Havia tantas outras coisas fascinantes para discutir, como o mais recente ex-amante de Liza (haveria coisa mais desestimulante no mundo, argumentava Liza, do que descobrir que o novo Sr. Maravilha da sua vida tinha conta numa cooperativa?), o facto de Pru estar livre de Phil, mesmo que ainda não apreciasse esse facto, e os clubes de Bath que Dulcie deveria frequentar se quisesse conhecer milhões de homens verdadeiramente atraentes. — …sem esquecer este lugar, claro — disse amavelmente Dulcie enquanto enumerava lugares pelos dedos. — Sempre se encontra um ou dois jeitosos que não são casados. Oh, uau… — O que foi? — Liza tinha retirado a rodela de limão da bebida e estava ocupada a chupá-la. Ergueu as sobrancelhas em direção a Dulcie, que tinha ficado com um ar completamente estupidificado. Logo em seguida, Liza percebeu que estava alguém atrás de si. Virou-se para trás, com a casca de limão ainda pendurada num dos cantos da boca. — É a senhorita Lawson? — Exatamente. — Ela sorriu, removendo rapidamente a casca. — Liza, por favor. E sabemos quem você é; vimo-lo a chegar agora mesmo. É o rapaz do Bentley. De perto ele era ainda mais bonito do que Dulcie tinha desconfiado. Ela absorveu avidamente todos os detalhes: olhos amarelos-dourados, da cor de moedas de libra acabadas de cunhar; espessas pestanas pretas; umas maçãs do rosto de morrer; um bronzeado semelhante a manteiga de amendoim; e uma boca estreita com um aspeto sensacionalmente cruel. Bocas cruéis eram o tipo favorito de Dulcie. Ela adorava a transformação que sofriam quando sorriam. 70
Só que aquela não parecia correr muito o perigo de fazer tal coisa. — O meu nome é Kit Berenger, senhorita Lawson. Credo, pensou Dulcie, sem perceber porquê, mas constatando pelo frio tom de voz que ele estava tão chateado como parecia. Liza, que reconheceu imediatamente o nome, parou de sorrir. De repente, percebeu do que se tratava. A L.B. Berenger era uma empresa de construção sediada em Bath, especializada em anexar novas urbanizações a aldeias pitorescas já existentes. As pessoas que viviam nas aldeias — e aquelas cujas vistas privilegiadas se encontravam ameaçadas pela multiplicação destas novas urbanizações — tinham dado início a uma intensa campanha contra a aproximação do buldózer da companhia. Na carta da véspera de Ano Novo, Alistair Kline tinha-se esquecido de mencionar que os seus fins de semana eram passados a atravessar-se no caminho dos buldózeres da Berenger e a lidar com seguranças da empresa. Longe de ser tímido, tinha-se revelado um obstinado manifestante. Era também eloquente e tinha convencido Liza — enquanto importante jornalista — a escrever ao jornal local a denunciar os últimos planos da L.B. Berenger. Ela não se tinha importado de fazer isso, mas passar fins de semana com lama pelos tornozelos e apenas um termo para a manter aquecida não era a sua ideia de paraíso. O relacionamento com Alistair Kline tinha durado três semanas. Para ela, até tinha sido bastante bom. — Entendo — disse ela, observando com atenção o que devia ser um filho de Berenger. — E você é do pessoal da pesada? Veio dizer-me para não me meter onde não sou chamada e para deixar a sua família em paz para poderem fazer dinheiro descansadamente? Dulcie olhava fixamente para Liza. Que raios pensava ela que estava a fazer? Se estava a tentar uma nova forma de engate, alguém tinha de lhe dizer que era uma autêntica bodega. Nitidamente, Kit Berenger também achava o mesmo. O cruel lábio superior torceu com desagrado. — Que engraçado. Você acha que nós devíamos ter vergonha da forma como fazemos o nosso dinheiro. Nunca lhe ocorreu envergonhar-se da forma como ganha o seu? Dulcie olhava fixamente para os dois, totalmente fascinada. Ela sempre fora doida por lábios torcidos. — Olhe, — disse Liza, — eu sou jornalista. É meu dever escrever a verdade como a vejo. As pessoas que já vivem naquela aldeia nunca se teriam mudado para lá se soubessem que ia ser transformada numa maldita Milton Keynes. Kit Berenger olhava intensamente para Liza. Por fim, disse: — Se está 71
a falar de West Titherton, trinta e seis casas e uma minirrotunda não perfazem propriamente uma Milton Keynes. Seja como for, não é por isso que aqui estou. Olhando de relance para a cadeira onde Dulcie tinha os pés apoiados, pegou no suplemento a cores que Liza tinha atirado para lá. Dulcie estremeceu de prazer quando o braço bronzeado — ele estava a usar uma camisa de ganga com as mangas arregaçadas — roçou no seu tornozelo nu. Liza desejava que o copo não estivesse vazio. Agora desejava desesperadamente que ele só estivesse ali para lhe dar um raspanete por causa da estúpida carta ao jornal local. Ela não queria ouvir o que vinha a seguir. — É por causa disto, — disse Kit Berenger, — que estou aqui.
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Capítulo 11
O
maxilar de Liza retesou numa atitude de autodefesa. O lábio superior estava a começar a transpirar. Ela não gostava de ser ridicularizada por um mero miúdo. — Como eu disse, escrevo a verdade como a vejo. — E dá-lhe um prazer especial — retrucou Kit Berenger — escrever este tipo de porcaria vingativa? Faz alguma ideia o quão ofensiva pode ser, ou isso também faz parte da diversão? — Eu não… — começou Liza. — Não, cale-se e oiça-me. O que você escreveu foi uma treta completa. Já comi lá dezenas de vezes e nunca houve nada de errado com a comida. O Songbird é um pequeno restaurante fantástico que luta para construir uma reputação e a sua crítica foi completamente inadequada. Liza já sabia isso, mas diabos a levassem se o ia admitir agora. Como se atrevia aquele arrogante filho da mãe a repreendê-la assim publicamente? — Quem gere o restaurante? A sua namorada? — perguntou ela furiosamente. — Ok, você está do lado dela porque eu fiz uma crítica desfavorável e feri-lhe os sentimentos. Mas eu estou do outro lado, do lado do cliente. Quando um homem economiza e poupa durante um mês para poder deixar os miúdos com uma baby-sitter e levar a mulher a comer fora, ele não quer que a comida seja uma porcaria, pois não? — Mas a… — Não, é a sua vez de me ouvir. — Liza apontou-lhe um dedo acusador. — Não percebe? É nisso que consiste o meu trabalho. Eu experimento estes lugares e dou a minha sincera opinião acerca deles. Se um lugar é bom, eu digo que é bom. Mas garanto-lhe que comi no Songbird no dia de Ano Novo. E se esse casal tivesse gasto o dinheiro tão suado na refeição que encomendei, teriam tido a sua grande noite arruinada. Dulcie continuava a olhar intensa e discretamente, admirando as longas pernas de Kit Berenger com as Levi’s brancas e os Timberland. Ela também gostava do aftershave dele. O relógio de pulso era um tanto dece73
cionante, mas ele era jovem, ela era capaz de lhe perdoar isso. De qualquer forma, havia algo de indubitavelmente fixe num homem que conduzia um Bentley e usava um Swatch. Era uma desilusão a notícia acerca da namorada, pensou Dulcie corajosamente, embora, para ser sincera, fosse de admirar que ele não tivesse nenhuma. E era querido que ele se preocupasse o suficiente com os sentimentos dela para ir até ali desembestado para a defender. Dulcie não pôde deixar de reparar que Liza, de todo acostumada a que lhe falassem naqueles modos, parecia cada vez mais um gato indignado cuja cauda ficou presa numa porta. — Ela não é minha namorada — disse Kit Berenger. — É minha prima. Dulcie animou-se imediatamente. — E matou-se a trabalhar para erguer aquele restaurante. Se você fizesse ideia das horas que ela… Os lábios de Liza estavam comprimidos. — É um negócio difícil. — Eu sei, eu sei. Os restaurantes estão constantemente a falir. — Os olhos âmbar dele fitaram os dela. — Mas faça-me um favor, ok? Diga-me só quando saiu esta crítica. Há quanto tempo saiu para as bancas? Liza não falou. — Eu digo-lhe. Há cinco dias — disse Kit Berenger. — Certo, próxima pergunta. Um pouco mais complexa, desta vez. Durante esses cinco dias, quantas pessoas acha que telefonaram a cancelar reservas no Songbird? Hum? Dulcie começou a sentir pena de Liza. Liza abanou a cabeça. — Vá, atire um palpite — disse ele num tom persuasivamente aveludado. — Não? Desiste? Ok, eu digo-lhe. Oitenta e duas reservas. Oitenta e duas malditas reservas em cinco dias! Dulcie engoliu em seco. Todos os pelinhos da nuca se eriçaram. Kit Berenger era lindo quando estava zangado. Era decididamente letal… — Então pode congratular-se, senhorita Lawson. Como diz, é um negócio difícil. E agora, graças à sua crítica injusta, parece que conseguiu sozinha fechar o restaurante da minha prima. Dulcie estava a começar a enervar seriamente Liza. Se não se calasse depressa, ia levar com uma raquete de squash pela goela abaixo. — Bocas cruéis, eu adoro bocas cruéis — disse Dulcie, derretida, assinalando com os dedos cada vantagem. — Aftershave Calvin Klein, também o meu favorito. Reconheceste que era isso que ele estava a usar? Liza estava demasiado ocupada a sofrer intensamente e a pensar em 74
contra-ataques brilhantes. Claro que era já demasiado tarde, ele já se tinha ido embora, mas existia sempre a horrível probabilidade de ela tornar um dia a dar de caras com Kit Berenger. Não fazia mal nenhum ter algumas objeções prontas. Para a eventualidade. — …e ele é o oposto do Patrick, sabes? Quero dizer, olha-me só que galante! Olha para a forma como ele saltou em defesa da prima. O Patrick nunca saltou em minha defesa… na verdade, ele saltava o mais longe possível, na direção oposta; era o quão leal e galante ele era. — É a questão da família. Tu chateaste a mãe do Patrick. Ele estava a ser leal para com a mãe. — Sim, mas eu sou a mulher dele! — Dulcie abriu outro pacote de aperitivos. — Bem, era. Bem, acho que ainda sou… Liza perguntou-se o que seria pior se fosse raptada e mantida refém numa cave húmida durante cinco anos. Se o cárcere solitário, ou ser obrigada a partilhá-lo com Dulcie. — …de qualquer forma, tens de admitir que ele é lindo. Imagina os filhos lindos que vocês os dois teriam. Céus, decididamente eu era capaz de me casar com alguém como ele… Cárcere solitário, sem dúvida. — O que foi que aconteceu com o seres louca e irresponsável e trocares de homem com a frequência com que trocas de camisa de noite? — comentou Liza com ironia. — O que aconteceu com o comemorar uma vida completamente nova? — Pois, mas que forma de comemorar — suspirou Dulcie, já bem acomodada na Ilha da Fantasia. — E quem ia precisar de camisa de noite? Pru tinha uma vida completamente nova e não lhe apetecia muito comemorar. No espaço de cinco semanas, tinha trocado uma casa perfeita, um marido amoroso e fiel (ah! ah!), nenhuma preocupação financeira e um Golf cabriolet por um estúdio hediondo, nenhum marido e preocupações financeiras suficientes para fazer flutuar o Titanic. Ironicamente, ela teria sido capaz de perdoar Phil e de ter ficado do lado dele. Juntos poderiam ter superado as dívidas. Mas Pru não tinha tido essa opção. Uma pessoa só podia ficar ao lado de um marido que a quisesse ao seu lado, tinha ela descoberto tardiamente. Se ele não suportasse a sua presença, se a visse com ódio e desprezo patentes e só estivesse interessado na nova mulher da sua vida… bem, não parecia fazer muito sentido. Como um carro era uma necessidade se queria encontrar trabalho, Pru tinha respondido a um anúncio de jornal e comprado um Mini antigo por cem libras. Os impostos e o seguro do carro tinham acabado com o resto das suas modestas economias. Pelo menos tinha sido dinheiro seu, 75
lembrou Pru a si mesma. Quando tinham comprado a casa, ela tinha ficado magoada com a insistência de Phil para que só o nome dele constasse na hipoteca. Agora, graças à sua ganância, as dívidas eram também unicamente dele. Na verdade, descobrira Pru, ficar falida de uma forma tão repentina e impressionante tinha as suas estranhas vantagens. Quando se passava o dia todo em pânico, a tentar desesperadamente encontrar soluções para lidar com os problemas financeiros, não restava muito tempo para se sentir deprimida pelo facto de o marido se ter pisgado. Ela não via Phil desde o dia a seguir à festa de Dulcie, embora soubesse onde ele estava a morar. Com Blanche. Ele também não estava a trabalhar. Pru indagava-se se, desesperado por dinheiro, ele teria sido apanhado a fazer algum negócio duvidoso e teria sido despedido. Ela desejava conseguir odiar Phil. Se tal acontecesse, Pru tinha a certeza que se sentiria melhor. Mas como posso odiá-lo, indagou-se pesarosamente, quando daria qualquer coisa para o ter de volta? A entrevista tinha sido um pesadelo, nem pensar que ia conseguir o emprego. — Vá, vá — incitou Pru por entre dentes cerrados quando rodou a chave na ignição e rezou para que o motor pegasse. No último mês já tinha ganho prática suficiente a fazer pegar o Mini por empurrão para entrar no Mastermind («E qual é o assunto da sua especialidade, Sra. Kastelitz…?»), mas naquele dia ela estava numa subida. De qualquer forma, os entrevistadores sádicos podiam estar à espreita da janela do escritório a troçar da imbecil, que era uma nulidade tão grande com carros como ao telefone. Tinham-lhe dado uns auscultadores, uma folha de orientação e tinham-na instruído para lhes mostrar o que era capaz de fazer. — Vá! Mostre-nos a sua veia de vendedora… mostre algum entusiasmo! — tinham-lhe vociferado. — Não, não; entusiasmo, não exaustão. Ok, respire fundo e tente novamente! Dê o seu máximo! Ok, já chega. — Tinham revirado os olhos uns para os outros. — Depois entramos em contacto. Da segurança do seu carro, Pru olhou para cima para as janelas vazias e disse corajosamente: — Bem, vão-se foder! O motor, evidentemente espantado com aquele ato de escandalosa rebelião, tossiu, gaguejou e pegou. Também não queria vender umas estufas de merda, decidiu Pru, decidida a manter a atitude positiva. Principalmente num escritório horrí76
vel onde sempre que se fazia uma venda, era suposto pular-se na cadeira e dizer-se «Viva!» Ela conseguiu chegar a casa… a casa! Às cinco da tarde. Habituada a uma maravilhosa cozinha totalmente equipada com eletrodomésticos Neff topo de gama, Pru enfiou cinquenta cêntimos no velho contador e preparou uma caneca de chá. Com um exemplar do jornal da tarde numa mão e uns biscoitos na outra, trepou para a sua estreita cama para se manter quente. Vou ficar bem, pensou Pru, surpreendida por constatar que não ter conseguido o emprego não a tinha transtornado, nem de perto, tanto quanto havia imaginado. Na verdade, até a tinha animado. Qual era o problema se ela não tinha sido feita para as televendas agressivas? Havia muitas outras coisas que podia fazer. Decididamente. Era apenas uma questão de descobrir o quê.
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Capítulo 12
D
uas semanas depois, às seis e meia de uma tempestuosa manhã de quinta-feira, Pru ia a caminho do trabalho quando um carro surgiu desembestado sabe-se lá de onde e foi embater no lado do passageiro do Mini, projetando-o para dentro de uma valeta do outro lado da estrada. A estrada, a cerca de um quilómetro do Brunton Manor, era estreita e pouco iluminada. Pru gritou quando o carro tombou de lado e os faróis se apagaram, atirando-a para uma escuridão cerrada. O espesso cachecol que trazia ao pescoço caiu-lhe sobre o rosto. Uma lata de Mr. Sheen saltou do banco traseiro e atingiu-a na parte de trás da cabeça. Ela não estava ferida. Depois de ter conseguido sair com dificuldade do carro, constatou que não tinha sequer uma nódoa negra, nem um arranhão. Era um milagre. Estava também a chover a cântaros. — …oh, graças a Deus! Já saiu… e está viva… Um homem atravessava a escuridão na sua direção. Deslizou para dentro da valeta encharcada, colidindo com Pru e quase fazendo com que ela caísse. Agarrou-se freneticamente aos braços dela. — Está ferida? Sente-se bem? O carro derrapou… — Estou bem. — Pru tinha os dentes a tiritar. — O meu carro é que não. — Não se preocupe, vou tratar disso. Pru deu por si a ser puxada, não muito cerimoniosamente, ladeira acima até à estrada. Atordoada, ela perguntou-se se aquilo significaria que ele era um mecânico, prestes a arregaçar as mangas para começar a resolver imediatamente o assunto. Mas seria possível? Decerto seria preciso mais do que umas chaves inglesas e um macaco para retirar o carro da valeta. — Vamos t-ter de ligar para a p-polícia — disse-lhe ela, esforçando-se, sem sucesso, para controlar os dentes tiritantes. — Não é preciso. Eu disse que ia tratar de tudo e vou. 78
— M-Mas tem de os informar do aci-ci-cidente. Numa voz tensa, ele respondeu bruscamente: — Olhe, esqueça a polícia por enquanto. É com o Arthur que estou preocupado. Ele precisa de ajuda e depressa. Pru estava confusa. Seria Arthur o condutor do outro carro? Oh, céus, não me digam que está morto… — Rápido, entre. — Evidentemente transtornado de preocupação, o homem abriu a porta do passageiro do seu carro. Pru estremeceu e preparou-se, mas não havia nenhum cadáver à vista. Aliás, não havia ninguém à vista. Receosa, indagando-se se estaria a ser raptada por um louco, virou-se e abriu a boca para dizer: «Onde está o Arthur?» Em vez disso, ao conseguir vislumbrar pela primeira vez o homem que tinha chocado contra si, exclamou: — Oh, graças a Deus! És tu! Eddie Hamond olhou com atenção para Pru. A luz dentro do carro era fraca e ela estava bastante molhada e enlameada, mas ele reconheceu-a finalmente como uma das sócias do clube. Ele esperava que isso abonasse em seu favor. — Exatamente. E tu és uma das amigas da Dulcie. — Pru. Pru Kasteliz. — Estendendo a mão gelada, e sentindo-se uma idiota, ela disse: — Ufa, estava a começar a ficar preocupada! Pensava que pudesse ser um sequestrador. Eddie contornou a frente do carro — um luzidio Jaguar vermelho-vivo — e sentou-se no lugar do condutor. Ligou o carro. — Espera. — Com um ar perplexo, desta vez Pru lembrou-se de dizer: — Onde está o Arthur? — No banco de trás. Alarmada, ela virou-se para trás. E viu, meio escondido debaixo de uma amarrotada manta axadrezada, um golden retriever. A dormir. — O Arthur é um cão?! Eddie anuiu veementemente com a cabeça. — Ele está doente. Tenho de o levar ao veterinário. Ele estava a recuar, reiniciando a marcha do Jaguar. Pru, que nunca tinha gostado muito de cães, disse: — E o meu carro? — Eu trato disso. — Mas eu nem sequer tranquei as portas! Tenho montes de coisas lá dentro… — Que diabo! O que é mais importante?! A vida do Arthur, ou… as tuas coisas? — Exasperado, Eddie olhou fixamente para a sua passageira. Então, lembrando-se de que não podia afastá-la, obrigou-se a sorrir. — Pru, 79
por favor. Vamos levar primeiro o Arthur ao veterinário. Assim que o tiverem atendido, resolvo tudo contigo. É uma promessa, ok? Sentindo-se terrivelmente envergonhada, porque, para si, a vida de Arthur era muito menos importante que o conteúdo do seu carro, Pru anuiu com a cabeça e cedeu. Não era culpa sua não gostar muito de cães. Um ataque inesperado que sofrera enquanto criança por parte do pastor alemão de um vizinho, tinha-lhe deixado marcas vivas tanto na mente como no braço. Mas, a bem da verdade, não tinha sido culpa de Arthur. Para compensar o facto de ter sido insensível, Pru virou-se para trás e olhou novamente para o animal que ressonava no banco traseiro. — O que tem ele? — Não sei. Acordei há meia hora e encontrei-o assim. Completamente frio no chão da cozinha. A voz de Eddie vacilou. Por um horrível segundo, Pru perguntou-se se ele iria chorar. Ela constatou que ele estava desesperadamente preocupado. Não admirava que estivesse a conduzir como um louco ao longo de Brunton Lane. E então, de repente, lembrou-se de algo que Dulcie havia comentado de passagem na semana anterior… O veterinário, que vivia por cima do consultório em Primrose Hill, estava habituado a ser acordado a horas impróprias por desesperados donos de animais de estimação. — Ele vai sobreviver — afirmou ele depois de ter examinado Arthur. Abrindo um olho cansado, Arthur pareceu horrorizado com a perspetiva e fechou-o prontamente de novo. — Graças a Deus, graças a Deus! — Desta vez os olhos de Eddie encheram-se com trémulas lágrimas de alívio. — Mas o que lhe fez isto? O que teve ele, algum tipo de convulsão? O veterinário abanou a cabeça. — Mais algum tipo de conhaque. — Laconicamente, acrescentou: — Ou podia ter sido whisky. Encarrapitada num banco a uma distância segura da marquesa, Pru exclamou: — Quer dizer que ele está bêbedo?! O veterinário anuiu com a cabeça. Eddie fitou-o, perplexo. — Glenfiddich — balbuciou Eddie. — Estava a beber isso ontem à noite. Adormeci na poltrona. Quando acordei hoje de manhã, vi a garrafa ao lado dele. Pensei que a tinha derrubado com o pé. Arthur gemeu e abriu novamente os olhos com um esforço nitidamente enorme. 80
— Oh, meu pobre bebé — consolou-o Eddie, acariciando-lhe a cabeça. — Deves estar a sentir-te tão mal. — Leve-o para casa e deixe-o beber bastante água — disse o veterinário. — E, desta vez, sem whisky a acompanhar. A última coisa de que o Arthur precisa é de mais álcool para curar a ressaca. — Pronto — disse Pru, depois de terem colocado delicadamente Arthur dentro do carro. — Está na hora de chamar a polícia. Ele olhou-a com uma expressão aflita. — Podemos só levar primeiro o Arthur a casa? Pru olhou firmemente para Eddie Hammond por cima do lustroso teto vermelho do carro. Em seguida estendeu a mão de palma para cima. — Eu conduzo. Ele contraiu-se visivelmente. — Porquê? — Porque perdeste a carta de condução na semana passada. Olhando-a fixamente de volta, Eddie não disse nada. Finalmente, anuiu desanimadamente com a cabeça. — Sim. — O que foi? Estavas a conduzir bêbedo? Eddie fez um ar ofendido. — Claro que não. Apenas excesso de velocidade. E passei um sinal vermelho. Nada muito perigoso — continuou ele na defensiva. — Nada de mais. Foi por acumulação de pontos. Três meses e uma pequena multa, mais nada. — Não admira que não tenhas querido chamar a polícia — disse Pru. — A conduzires quando estavas inibido. Sem seguro. Responsável por um acidente. E quanto bebeste ontem à noite, antes de adormeceres na tua poltrona? — Ela consultou as horas. — São só sete e meia. Provavelmente ainda tens álcool em excesso no sangue. Um Eddie mudo passou-lhe as chaves. Ele conhecia Dulcie, mas nunca tinha falado com Pru. Depois de ter presumido que ela fosse uma pessoa calada e plácida, ele estava agora com uma nítida sensação de desconforto. Naquele momento ela parecia tão plácida como Rudolf Hess. Eddie esperou que Pru começasse a conduzir para então tentar explicar. — Eu sei que foi estupidez minha. — Ele só podia dizer-lhe a verdade. — Mas entrei em pânico. Pensei que o Arthur estava a morrer. Fiquei desesperado. O Jaguar era maravilhoso de conduzir depois do temperamental Mini; as mudanças pareciam manteiga. Maravilhada com o movimento 81
metronómico das escovas limpa-vidros — sem soluços, sem trepidação, sem nenhum daqueles horríveis guinchos tipo ave de rapina que as suas escovas gostavam de fazer —, Pru olhou de soslaio para Eddie. — Podias ter chamado um táxi. Ele abanou pesarosamente a cabeça. — Da última vez que fiz isso, o maldito demorou quarenta minutos a aparecer. — E um amigo? Não tens nenhum daqueles que se pode chamar numa emergência? Desde que, quatro meses antes, se mudara de Manchester para Bath, Eddie tinha descoberto em primeira mão que as balelas sobre os nortenhos serem mais amistosos que os sulistas eram verdade. — Muitos, obrigado. — Ele ouviu a própria voz endurecer, mas não conseguiu evitar. — Tenho muitos amigos. Em Manchester. Que tolice da minha parte, acho que lhes devia ter dado uma apitadela. — Foi tolice tua conduzires. — Pru manteve-se calma. — Podias ter matado alguém. Podias ter-me matado! — frisou ela. Eddie estava a começar a desejar tê-lo feito. Sentia os olhos a arder e a cabeça doía-lhe. Desistiu. — Então o que vais fazer? Chamar a polícia e entregar-me? Pru fez sinal para a esquerda ao virar para a entrada do Brunton Manor. Ele parecia tão arrasado que ela não pôde deixar de sentir pena. A voz dela suavizou. — É isso que pensas? Na verdade, não estava a pensar fazer isso. — Oh. — Olha, liga para uma oficina. Vê se me rebocam o carro e mo arranjam. — Pru estacionou sem dificuldade o Jaguar junto da entrada lateral do clube, mas não desligou o motor. — Tenho seguro para conduzir este? Um pouco tarde para perguntar, pensou Eddie, mas anuiu com a cabeça. — Tem seguro para qualquer condutor. Exceto os inibidos de conduzir. — Ok. — Pru olhou rapidamente para o relógio; já estava atrasada para o trabalho. — Então, se não te opuseres, vou levar este carro emprestado até o meu estar pronto. Eddie entrou em pânico. Sentia-se como um fumador a quem confiscaram os cigarros. — Mas eu posso… — Podes o quê? — As delicadas sobrancelhas de Pru ergueram-se. — Precisar dele? Oh, não, não vais precisar dele, Eddie. Estás inibido de conduzir. 82
Capítulo 13
Q
uando Pru chegou ao local do acidente, alguém havia chegado antes dela. O Mini ainda estava tombado dentro da valeta, mas os cinco volumosos sacos para lixo que ela tinha amontoado no banco traseiro tinham desaparecido. Era um golpe fortíssimo; o senhorio de Pru ainda não sabia, mas o pagamento da renda dependia bastante do conteúdo daqueles sacos. Pru, que se tinha surpreendido a si própria naquela manhã — nunca antes tinha sido audaz e assertiva com ninguém —, sentia naquele momento os olhos a começarem a arder com lágrimas distintamente inseguras. Toda a sua roupa boa, acumulada ao longo de quinze anos, tinha sido roubada. Ela tinha levado horas a lavá-la, a passá-la e a verificar cada peça, para se certificar de que não faltava nenhum botão, que nenhuma bainha se encontrava desfeita. A mulher que geria a loja de roupa de marca como nova na Charlton Street, a Changing Room, tinha ficado entusiasmada em adquirir toda a roupa, com as suas impressionantes etiquetas, de que Pru quisesse livrar-se. Pru não queria livrar-se de nenhuma, mas estava a tornar-se rapidamente uma questão de vender ou a roupa ou o corpo, e ela não acreditava que naquele momento alguém pudesse interessar-se pela sua magricela figura. Por outro lado, vender a roupa render-lhe-ia o suficiente para seis meses de aluguer. Pru olhou fixamente para o vazio banco traseiro do Mini e para as portas abertas e indagou-se quem as teria roubado. Teria uma jovem mulher de negócios, elegantemente vestida, visto o carro a caminho do trabalho, parado para se certificar de que ninguém estava ferido e espreitado para dentro de um dos sacos? Talvez tivesse puxado o fato Escada azul-marinho, encostado ao próprio corpo e pensado, «tamanho trinta e seis, que golpe de sorte, vejamos o que mais temos aqui…». Depois, tendo nitidamente gostado do que tinha encontrado, teria enfiado os cinco sacos para lixo na mala do próprio carro desportivo e saído disparada para o trabalho, feliz por saber que tinha o guarda-roupa de primavera tratado? 83
Ou teria um grupo de miúdos de escola encontrado os sacos, rasgado os mesmos e atirado a sua roupa para dentro do lago mais próximo, em repugnância? — Não te aflijas com isso — afirmou Marion Hayes quando Pru apareceu finalmente na Beech Farm. Ter chegado duas horas atrasada, num carro de luxo, despertou a curiosidade de Marion. Antes de começar a trabalhar, Pru foi obrigada a sentar-se, a comer Hob Nobs, a beber chá e a contar tudo. — Isso é problema dele, não teu. — Marion desdenhou as preocupações de Pru com um descontraído movimento de mão. — Dá-lhe uma estimativa de quanto valia tudo. Ele que recorra ao seguro. Eles que paguem. Pru anuiu com a cabeça e tentou fazer um ar adequadamente aliviado. Ela não tinha tido coragem de contar a história toda a Marion — acerca de Eddie Hammond estar inibido de conduzir e, consequentemente, sem seguro — não por qualquer sentido de lealdade, mas porque era simplesmente mais seguro deixar por dizer algumas coisas. Não lhe agradava a ideia de ser detida e atirada para dentro de uma prisão por ser cúmplice de um criminoso. Ela também não era capaz de deixar de se perguntar o quão desconfiado iria ficar Eddie quando ela o presenteasse subitamente com uma pesada fatura adicional por bens roubados. Isto é, o quão provável soaria, pensou Pru soturnamente, milhares de libras em roupas de marca serem roubadas da traseira de um Mini a cair aos bocados? Ela costumava comprar sapatos que custavam mais que o carro. — Bem, pelo menos não ficaste ferida — disse Marion, terminando o chá e levantando-se quando o relógio de parede anunciou as nove. — Está na hora de me pôr a andar. As vacas devem estar a perguntar-se quando será que vão comer. Deixo-te em paz. Depois de acabar de lavar as coisas do pequeno-almoço, Pru lavou o chão da cozinha. Enquanto este enxugava, ela aspirou o piso inferior. Em seguida, limpou as janelas da sala de visitas. Quando o chão da cozinha já estava seco, ela enfiou um monte enorme de calças de ganga enlameadas na máquina de lavar roupa. Depois sentou-se à mesa a polir prata e a ouvir um programa de rádio sobre a desonestidade. «Quando o meu marido é horrível para mim», confessava Teresa de Tunbridge Wells com uma risadinha de culpa, «eu espero que ele adormeça e tiro-lhe uma nota de cinco da carteira. No dia seguinte, gasto-a em chocolate.» Pru considerou indolentemente telefonar para o programa para dizer que se algum ouvinte tivesse os seus sacos, que fizesse o favor de os devolver. 84
Ela imaginou-se na rádio, a apelar para a boa índole do ladrão: «Eu sei que a roupa é boa, mas, por favor, não pense que sou rica. Porque já não sou. Estou completamente falida.» Nessa altura, o apresentador perguntaria delicadamente: «Pru, se não for uma pergunta muito pessoal, o que aconteceu?» «Bem, Gary, deixe-me colocar a coisa desta forma. Há dois meses, eu tinha um marido maravilhoso, uma casa perfeita. Tinha uma empregada doméstica. Agora não tenho marido, nem casa e sou empregada doméstica.» «Pru, isso é terrível. Mas como é que aconteceu?» «Como é que aconteceu? Gary, eu digo-lhe como aconteceu. Alguns maridos fazem o procedimento de rotina e têm casos com as secretárias. Mas o meu marido tinha de ser diferente, Gary. Nem sequer teve a decência de ter um caso com a secretária, oh, não, tinha de ser diferente, não tinha? Resolveu ter um caso com a nossa empregada de limpeza.» — Pru, sentes-te bem? Pru deu um salto enorme na cadeira. Marion estava à porta a observá-la com um olhar extremamente esquisito. Horrorizada, Pru constatou que estava com um candelabro de prata meio polido encostado à orelha, como se fosse um auscultador de telefone. Rapidamente, fingiu estar a testar a temperatura contra a bochecha escaldante. — Oh, olá! Espantoso como quanto mais esfregamos, mais quentes ficam, não achas? — Pru, és capaz de ter batido com a cabeça no acidente. — Marion parecia nervosa. — Talvez seja melhor consultares um médico, afinal de contas. Liza nunca se tinha sentido realmente culpada. Era horrível; não gostava nem um bocadinho. Perguntou-se quanto tempo teria de esperar que passasse. Também andava a fazer coisas muito estúpidas, comprazendo-se com o tipo de disparates habitualmente reservados para ex-amantes obcecadas. Embora o Songbird estivesse a quilómetros do seu caminho, Liza dava por si a passar por ele duas ou três vezes por semana. Com um nervoso na barriga, punha-se a contar o número de carros no minúsculo parque de estacionamento e a tentar perceber quantos clientes estariam no interior. Não muitos, pelos vistos. Tinha ligado uma ou duas vezes para o restaurante, a fingir ter ligado para o número errado, apenas para ver se lhe soava movimentado. Ela tinha até convencido Dulcie a ir até lá numa noite de sexta-feira, 85
para relatar o ambiente e a comida. Dulcie tinha arrastado uma amiga protestante consigo — «Credo, Dulcie, não podemos ir a outro sítio? Aquele lugar recebeu uma péssima crítica» — e tinha gostado da refeição, mas tinha ficado bastante desapontada por não se ter cruzado com Kit Berenger. — Pensei que ele tinha dito que tinha comido lá montes de vezes — queixara-se ela a Liza no dia seguinte. — Estava mesmo desejosa de voltar a encontrar-me com ele. Mentiroso, aposto que nunca lá põe os pés. Que intrujão. — Mas a comida estava boa? — perguntara Liza, ansiosa por detalhes. — O que comeste? Fala-me de cada prato. — Não me lembro — protestou Dulcie. Olhou para Liza como se ela fosse louca. — Bebemos três garrafas de Côte não sei de onde, contámos milhares de piadas porcas e tiveram de nos pôr num táxi. Não chega? — Não tens remédio. — Se estás tão desesperada para avaliar a comida, vai lá tu. — Dulcie estava ofendida. Francamente, fazia-se um favor a uma pessoa e era-se maltratada. — Oh, claro, vou fazer isso — dissera Liza com algum sarcasmo. — Tenho a certeza que irão receber-me de braços abertos. Céus, Liza conseguia ser mesmo estúpida. Dulcie revirou os olhos em desespero. — Faz o que fizeste da última vez, estúpida. Vai disfarçada. Os mecânicos da Oficina do Joe riram com vontade quando souberam o que Eddie Hammond queria que fizessem com o carro de Pru. Joe explicou a Eddie ao telefone o significado do termo perda total. — Basicamente, quando um carro destes parte um farol, é perda total. Reparar o farol vai custar mais do que o valor do carro, percebe? E eu examinei ainda os estragos na porta do passageiro, no guarda-lamas, no aro da roda, no capô… não vale a pena, Sr. Hammond. Estamos a falar de quinhentas libras em reparações num monte de ferrugem. — Eu sei, eu sei, — disse Eddie com um suspiro, — mas repare na mesma. O carro ficou pronto três dias depois. Eddie marcou o número que Pru lhe tinha deixado. Um hippy, que parecia estar com a cabeça nas nuvens, atendeu e resmungou: — Iá, meu, vou chamá-la, ok? Cerca de meia hora depois, Pru atendeu o telefone. Eddie indagou-se quem seria o hippy; talvez um filho? Deus a ajudasse se fosse o marido. Mas não era propriamente uma pergunta que se fizesse ao telefone. Resolveu entrar em modo enérgico. — Pru? Fala Eddie Hammond. O teu carro está à tua espera, todo 86
arranjado e… — Não, não, ele não podia propriamente dizer bom como novo. — …hum, ansioso por sair daqui. Por isso, se não te importares de trazer o Jaguar, podemos fazer uma troca. — Certo. — Pru perguntou-se porque seria que as oficinas faziam sempre o mesmo. Quando a pessoa estava desesperada para ter o carro de volta, demoravam quinze dias só para trocar um parafuso da roda. Por outro lado, quando a pessoa se estava a divertir como nunca, a circular velozmente por Bath num Jaguar vermelho-vivo, conseguiam concluir seis meses de reparações em menos de nada. Muito despeitosos, os mecânicos. Pru mordeu o lábio e respirou fundo. Estava outra vez na mesma; propositadamente a sonhar acordada para evitar fazer o que tinha de ser feito. Andava a adiar há três dias e agora não podia adiar mais. — Ok, muito bem, vou aí agora. Muito obrigada. Só que há… hum… uma outra coisa que tenho de… — Até já — disse Eddie, cujo outro telefone tinha começado a tocar. — Sabes onde fica o meu escritório. Vem até cá. Eddie perguntou-se porque seria que Pru Kasteliz parecia tão nervosa. Ele achava que ela devia estar satisfeita por ter o carro de volta. Que diabos, pensou Eddie, que tinha acabado de passar um cheque à Oficina do Joe no valor de quinhentas e trinta e seis libras. Se alguém devia estar nervoso aqui, era eu. Entregou as chaves do Mini a Pru. Ela deixou-as cair imediatamente. Ele viu-a ajoelhar-se e os longos cabelos escuros penderem para a frente quando ela tirou as chaves de debaixo da secretária. — Então está tudo tratado, — disse ele com amabilidade, — tudo resolvido e ninguém saiu prejudicado. Pru sentia-se enjoada. Ela sabia que devia tê-lo feito ao telefone. Cara a cara era impossível. — O que foi? — perguntou Eddie depois de ela ter aberto e fechado a boca algumas vezes sem emitir qualquer som. Três dias antes, tinha estado a transbordar com autoconfiança. Pru perguntou-se para onde teria esta ido, agora que precisava realmente dela. Talvez eu só tivesse aquela e a tenha gastado toda de uma vez só, como o Phil na mesa de roleta. Uma gloriosa e emocionante explosão de segurança… e depois, bum! Acabou-se. Os mansos herdarão a terra… desde que todos os outros não se importem. Os bananas lideram, ok? Não, mas a sério, tem a certeza que não se importa? — Olha, eu disse-te que tinha umas coisas no carro — desembuchou 87
Pru — e tu disseste que não havia tempo para voltar atrás para o trancar, por isso não voltámos. A questão é que quando eu lá voltei, as minhas coisas tinham sido roubadas. Por isso, lamento, mas aqui está uma lista do que foi levado. Eu falei com a minha seguradora, mas não estou coberta, por isso receio que isto também seja responsabilidade tua. Eddie fitou Pru com incredulidade. Depois fitou ainda com maior incredulidade a folha de papel que ela tinha empurrado sobre a mesa na sua direção. As mãos dela tremiam tanto, que até parecia tratar-se de uma bomba. Não era propriamente uma surpresa que estivessem a tremer, pensou Eddie quando viu o tamanho da conta. Era mesmo uma bomba.— Estás a dizer-me que queres que eu te dê mais quatrocentas libras? — Ele parecia completamente perplexo. — Por um saco de roupa velha?! — Cinco sacos — sussurrou Pru. Ela queria dizer-lhe que se as tivesse vendido através da loja Changing Room, teria lucrado mais do que isso, mas as palavras recusaram-se a sair. — Não podes estar a falar a sério — disse Eddie. Pru olhou fixamente para os próprios dedos, emaranhados sobre o colo. Ela sabia o que devia estar a fazer. Ela devia estar a fitar o Sr. Eddie Hammond, o alcoolizado, com um olhar altivo e a dizer-lhe sem rodeios que não era culpa dela que o carro tivesse sido abalroado e atirado para dentro de uma valeta, que era ele quem tinha prevaricado e que se ele achava assim tão terrível a perspetiva de a reembolsar… bem, então ela vê-lo-ia em tribunal. Joan Collins tê-lo-ia feito. Joan tê-lo-ia executado magnificamente. Talvez seja esse o meu problema, pensou Pru. Não tenho chumaços nos ombros. — Como é que eu posso saber que estás a dizer a verdade? — perguntou subitamente Eddie Hammond. Passou-lhe pela cabeça perguntar quem era o hippy ao telefone. Haveria um problema de droga envolvido? Estaria Pru tão desesperada por dinheiro para alimentar o vício do filho/ amante/marido que estava disposta a fazer qualquer coisa para conseguir dinheiro extra? Apontou para a lista com um dedo agitado. — Como é que posso saber que estas roupas foram realmente roubadas? Bem, pensou Pru, eu podia mostrar-te alguns guarda-roupas embutidos vazios. Ou antes, podia tê-lo feito se a casa não tivesse sido retomada. Ele estava certo, claro. Ela não tinha forma de o provar. E também não o podia censurar por estar desconfiado. 88
Eu sou ingénua, pensou Pru, mas até eu teria as minhas dúvidas numa situação semelhante. — Tudo bem, não tem importância. — Apercebendo-se de que tinha começado a tremer, ela levantou-se e dirigiu-se rapidamente para a porta. — Onde vais? — Eddie começou a levantar-se da cadeira, confuso com o abrupto volte-face. Rápido, pensou Pru, tenho de sair daqui antes que desate a chorar. — Para casa. Obrigada por me teres reparado o carro. — Abanou violentamente a cabeça. — A roupa não importa.
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Capítulo 14
L
iza levou Pru consigo ao Songbird no sábado à noite. Foi buscá-la às oito horas. Encantada por ter sido convidada (qualquer coisa para sair daquele apartamento minúsculo!), Pru disse: — Que maravilha! Pensei que ias levar o teu novo namorado. Ele não pôde? — Não. — Liza enfiou Sibelius no leitor de cassetes. — Principalmente porque eu não o convidei. Pru reconheceu a expressão no rosto dela. Nitidamente, o novo namorada já era. — Mas na semana passada disseste que ele era lindo. — Na semana passada, ele era. Esta semana, — disse Liza com ar grave, — ele começou a fazer-me perguntas acerca do meu signo estelar. Poupem-me! É suposto ele ser adulto. Passou pela cabeça de ambas, embora nenhuma o tenha verbalizado, que, tendo em conta estar-se já em meados de abril, até àquele momento as resoluções de Ano Novo não estavam a correr lá muito bem. Entrar no restaurante era angustiante. De peruca e mal arranjada, Liza sabia que estava a ser irracional. Ainda ninguém a tinha reconhecido, por isso porque haveriam de a reconhecer agora? Mas isso não impediu o seu coração de bater como um tambor do Exército de Salvação enquanto eram cumprimentadas e sentadas. Liza olhou rapidamente para a esquerda. Lá estava a pequena empregada de mesa que tanto se havia atrapalhado da última vez. Um olhar rápido para a direita… e a servir ao bar estava a atraente loura que tão corajosamente havia tentado refrear a malta do râguebi. Liza perguntou-se se seria aquela a rapariga que tanto havia magoado, a prima de Kit Berenger. O suor começou a fazer-lhe comichão no couro cabeludo debaixo da peruca cinzento-rato nada favorecedora. Ela sentia-se uma espia, uma agente secreta em tempo de guerra louca para não atrair a atenção do inimigo. 90
— Relaxa, — disse Pru, — não está ninguém a olhar. — Eu sei. Só não quero ser reconhecida. — Não é muito provável, se nem o Phil te reconheceu. Oh, droga. — O Phil! — disse Liza sobressaltada, tapando a boca com consternação. — Merda! — Bem, sim, — disse Pru, — agora sei disso. — Quero dizer, não posso crer que te fiz isto. Foi aqui… e eu esqueci-me completamente… Que diabo, como pude ser tão insensível?! Porque não disseste nada? Liza retraiu-se. E de seguida retraiu-se ainda mais ao constatar que estavam sentadas na mesa onde Blanche tinha, tão entusiasticamente, tocado com os dedos dos pés nas entrepernas de Phil. — Não faz mal. Eu sabia que te tinhas esquecido. Seja como for, não interessa. — Pru encolheu os ombros. — Porque haveria eu de me incomodar? Liza disse, admirada: — És corajosa. — O meu marido fugiu com a minha empregada de limpeza. Vivo num estúdio infestado de insetos. O hippy do rés-do-chão toca discos do Donovan sem parar e, para além deste vestido, tenho precisamente duas camisolas, três camisas de noite e uma saia. — Pru hesitou, parecendo não saber se havia de rir ou chorar. — Ias ficar surpreendida; após um certo tempo, aprendemos a não nos preocuparmos com muita coisa. Liza olhou fixamente para Pru. Pru fitou-a de volta. Pru lutou por manter um ar sério. Liza disse lentamente: — Discos do Donovan? Pru anuiu com a cabeça. Liza começou a fazer um sorriso amarelo. Em poucos segundos, Pru estava com um ataque de risinhos. Liza estava a rir a bandeiras despregadas. Agarrada à barriga, mal conseguindo falar, disse: — Esse teu hippy, chamas-lhe Mellow Yellow? Pru ria tanto que o rímel tinha começado a esborratar. — Exatamente. Elas estavam a atrair as atenções. A família na mesa do lado observava-as. Com um enorme esforço, Liza controlou-se. — Estou a falar a sério — disse a Pru depois de se terem ambas acalmado. — És corajosa. — Não sou nada — disse Pru, revivendo mentalmente o momento em que tinha fugido do escritório de Eddie Hammond. Oh, sim, tinha sido muito corajoso da sua parte, tinha sido assombrosamente corajoso. Deem uma Cruz Vitória à rapariga. 91
— Decididamente, tu não podes continuar naquele apartamento minúsculo — insistiu Liza. — Morte por excesso de Donovan, imagino. Vem antes morar comigo. — O quê? No teu T1? — Pru ficou tocada com o convite, mas nada tentada. Pela primeira vez na vida, aos trinta e um anos de idade, estava sozinha. O mínimo que podia fazer era aprender a lidar com isso. — O meu apartamento é bastante agradável. — Liza saltou em defesa da sua casa. — É amoroso. — E se eu me mudasse para lá, iria limitar muito o teu campo de ação. Obrigada, — disse Pru, — mas estou bem assim. A sério. Deviam estar a fazer o pedido. Liza obrigou-se a concentrar-se na ementa. Sempre que levantava os olhos, constatava que Pru estava a olhar em frente. — Muito bem, eu escolho o soufflé Stilton e o pato com kumquats. E tu? — disse finalmente. Pru estava outra vez a fazer o mesmo. —Alguém teu conhecido? Pru abanou a cabeça. A rapariga loura chegou para anotar o pedido. Era bonita e extremamente simpática e Liza, concluindo que deveria tratar-se da prima, indagou-se como reagiria ela se soubesse para quem tinha acabado de ser simpática. — Vá lá, quem é? — insistiu ela, depois de a rapariga as ter deixado. Os olhos de Pru continuavam a fitar a outra ponta da sala. — Não faço ideia. Mas ele não para de olhar para cá. — Gostou de mim. Sente-se fatalmente atraído pela minha deslumbrante peruca, — disse Liza com um sorriso afetado, — para não falar no casaco de malha. — Olhou por cima do ombro e viu Kit Berenger a olhá-la fixamente. — Merda. — É ele, não é? Liza anuiu com a cabeça, de rosto completamente pálido. — Como sabias? Envergonhada, Pru fazia vincos no guardanapo. — A Dulcie disse que ele era lindo. — Mais importante, — disse Liza, — ele sabe quem eu sou?! — Mas como é possível, indagou-se, se eu estou assim disfarçada? — E agora? — O estômago de Pru roncou; ela não tinha comido o dia inteiro. A perspetiva de afinal não ficarem para almoçar quase lhe deu vontade de chorar. — Ok, não é preciso entrar em pânico — disse Liza com firmeza. — Isto é, vamos pensar com lógica. É impossível que ele me tenha reconheci92
do. E já fizemos o pedido, por isso não podemos ir-nos embora. — Irritada, disse: — O que eu não compreendo é como é que não o vi antes. — Não estava ali quando chegámos — segredou Pru. — Ele entrou por aquela porta. — Acenou com a cabeça em direção a uma porta que dizia PRIVADO. O olhar que Liza lhe dirigiu foi longo e ponderado. — Então tu calculaste logo quem ele era. — Não pensei que interessasse, — protestou Pru, sentindo-se culpada, — desde que ele não saiba quem tu és. Não quis que perdesses o apetite. O Songbird era um restaurante de quarenta lugares. Naquela noite — e os sábados são a noite mais movimentada de qualquer restaurante — estava meio cheio. Ou meio vazio, dependendo do ponto de vista. Seja como for, não era uma situação nada animadora. Liza perguntou-se quantas mesas desocupadas seriam responsabilidade sua. Não podia culpar o soufflé Stilton, que estava cremoso e leve com uma crosta exterior tostada na perfeição. O pato assado com kumquats também estava magnífico. — Isto — afirmou Pru, espetando o salmão escalfado com um garfo — é divinal. Liza perguntou-se como diabo seria fisicamente possível sentir um par de olhos a perfurar-lhe as costas. Ela não precisava de se virar, mas tinha a certeza que estava a acontecer. — Se te quiseres ir embora, — disse estoicamente Pru, sentindo o desconforto dela, — podemos ir. Liza queria. O problema é que queria ainda mais provar as sobremesas. — Ele continua a olhar para cá? — Bem, mais ou menos. — Isso quer dizer que sim. — Ele está a levantar-se — murmurou Pru, observando-o discretamente a empurrar a cadeira para trás. — Raios… — Não faz mal, ele voltou a entrar por aquela porta que diz PRIVADO. Ele esteve ausente por algum tempo. Quando a porta reabriu finalmente, Liza tinha acabado de provar a tarte de amêndoa e damasco. Pru, que tinha escolhido o gelado de mel, estava tão arrebatada com o seu sabor e textura milagrosos que tinha os olhos fechados. — Não se incomodam que lhes faça companhia por uns instantes — disse Kit Berenger, puxando a cadeira vazia ao lado de Pru. 93
Liza perguntou-se rapidamente se valeria a pena fazer sotaque alemão. Se ele a desafiasse, ela poderia simplesmente negar tudo, dizer que não sabia do que ele estava a falar. Mas, realmente, para quê? Indagou-se então se Kit Berenger estaria prestes a arrancar-lhe a peruca. Não seria uma visão muito agradável, se o fizesse; ela estava a usar uma rede de cabelo Ena Sharples por debaixo. Ele não o fez. Olhou-a fixamente durante alguns segundos. Depois, com o dedo indicador, bateu levemente na toalha de linho azul-escura, a menos de dois centímetros do pulso de Liza. — Muito bom, mas foi isso que a denunciou. Pru olhou fixamente para a toalha de mesa. Céus, estaria um microfone escondido lá debaixo? Estaria a mesa sob escuta? — Ouvi-a rir-se. Quando me virei para trás, não consegui ver a sua cara. — Bateu de novo na toalha. — Mas vi isto. Ela sempre tinha usado o relógio, um Longines de homem em aço, no pulso direito. No dedo mínimo, usava um fino anel de platina. Liza ficou tão impressionada com o poder de observação dele que quase sorriu. Talvez seja esta a minha oportunidade para me desculpar e fazer as pazes, pensou ela, para lhe dizer o quão fantástica é a refeição que estamos a ter… — Não sei que diabo pensa que veio fazer aqui outra vez, — continuou Kit Berenger friamente, — mas não é certamente bem-vinda. Por isso sugiro que saia neste instante. — Olhe… — Não fez já estrago suficiente? — perguntou ele exaltado, sibilando as palavras como se fossem dardos venenosos. — Não magoou já suficientemente a Nicky? Liza estremeceu. Mortificada, Pru olhava fixamente para o gelado a derreter. — Este restaurante não precisa de clientes como você — disse Kit Berenger, levantando-se. — Vá, fora daqui. E não comece a choramingar por causa da conta, porque também não queremos o seu dinheiro. — Disse à sua prima quem eu sou? — perguntou Liza, nauseada. Lá se iam as pazes. — Está doida? Por que raios acha que a quero daqui para fora? — Está a fazer um escândalo. — Não estou, não. Estou a livrar-me de si antes de fazer um escândalo. Porque, se o fizesse, — disse Kit Berenger por entre dentes cerrados, — garanto-lhe que seria muito maior que isto.
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