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Emi dedicou sua vida para se tornar o recipiente perfeito para a deusa Amaterasu, mas a traição insidiosa de outra divindade mudou tudo. Agora Amaterasu encarregou Emi de uma missão urgente: encontrar e libertar os deuses terrenos antes que a humanidade seja posta de joelhos sob a tirania divina.
Ao seu lado está Shiro, o misterioso espírito da raposa. Quando ela salvou sua vida pela primeira vez, ela nunca poderia ter imaginado que por trás de sua astúcia e confiança, ele estava perdido, seu poder preso por uma maldição devastadora e suas memórias obscurecidas. Sua história velada está de alguma forma ligada aos deuses perdidos, mas ele não consegue se lembrar como ou por quê.
À medida que sua busca os leva às profundezas obscuras do reino espiritual, as sombras do passado de Shiro começam a emergir. Com cada breve despertar de seu verdadeiro eu, ela perde um pouco mais dele. O destino dos céus e da terra está em suas mãos mortais, e ela deve encontrar os deuses perdidos antes que o tempo acabe para seu mundo, e para Shiro.
As árvores curvavam-se sob o peso da neve em seus galhos e, no alto, estrelas cintilavam no céu escuro. Emi corria, sombras dançando em seu caminho e neve voando atrás de seus pés. O ar gelado entorpecia sua garganta com cada respiração ofegante. Ela teve esse sonho antes. À frente dela, uma raposa branca saltou pela neve. Ela sabia que não a pegaria, mas ela tinha que tentar. Sua cauda espessa balançou enquanto ele aparecia e desaparecia de vista por entre as árvores e, quando reapareceu, ele havia mudado. Agora do tamanho de um lobo branco esguio e de pernas compridas, ele avançou com três caudas de raposa dançando em seu rastro. Sua consciência adormecida recuou contra o que viria a seguir, mas no sonho ela não podia fazer nada mais do que persegui-la. Ela desapareceu em torno de um espesso monte de abetos e ela correu atrás dela. O calor a atingiu como um vulcão aberto, empurrando-a para trás. Na clareira adiante, uma criatura de mitos e pesadelos esperava por ela. O enorme espectro branco de pelos e chamas elevava-se sobre ela, olhos brilhando como magma e nove caudas de fogo se contorcendo atrás dele. Chamas incandescentes cintilavam sob suas patas enormes enquanto ele avançava, transformando a neve ao seu redor em água fervente. Em seu caminho, a raposa lupina se encolheu, três caudas tremendo.
A kyubi no kitsune soltou um grunhido profundo que vibrou com fúria selvagem e fez todos os pelos de seu corpo se arrepiarem, mas ela ainda correu em direção a ele, uma mão estendida enquanto gritava um nome. As marcas vermelhas em seu rosto brilharam intensamente e ele se lançou para a raposa de três caudas, transformando o mundo inteiro em fogo branco-azulado. Os olhos de Emi se abriram, um suspiro silencioso travando em sua garganta. Seus músculos se contraíram com a adrenalina. —Não há nada. A voz suave de Yumei a fez acordar. Apertando os olhos na luz fraca das velas espalhadas pela sala circular, ela virou a cabeça, mas permaneceu imóvel onde estava deitada sobre o acolchoamento de cobertores. Do outro lado da sala, Yumei, também conhecido como Tengu, Senhor dos Corvos e arauto da guerra, estava sentado com um cotovelo na mesa baixa à sua frente e o queixo na mão. Um yokai sentado como um adolescente irritado era uma visão estranha por si só, mas saber que Yumei tinha pelo menos mil anos tornava tudo ainda mais desconcertante. Seu rosto liso não mostrava sua idade. Ele bateu a ponta do dedo com a garra na mesa para chamar a atenção de seu companheiro de mesa. Mesmo do outro lado da sala, os olhos de rubi de Shiro brilhavam à luz das velas enquanto ele se concentrava em Yumei. Suas orelhas vulpinas giravam, idênticas às da raposa de seu sonho. Kitsune era um dos incontáveis tipos de yokai, espíritos da terra que povoavam o mundo humano e seu próprio reino espiritual, Tsuchi. —O que você quer que eu diga? — ele perguntou, sua voz tão baixa quanto a de Yumei, mas não tão suave. A hostilidade endureceu seu tom normalmente ronronado. —Eu não tenho nenhuma resposta para você. —Se você não consegue se lembrar de nada, então nossa busca acabou.
—Mesmo que eu pudesse me lembrar, talvez não soubesse de nada relevante. —Você
deve. Por
que
outro
motivo
uma Amatsukami teria
se
incomodado em destruí-lo tão completamente? Por um breve momento, as marcas na testa de Shiro e em cada maçã do rosto brilharam carmesim com seu poder e temperamento. Duas semanas atrás, ele quase não tinha poder para contar, mas Emi mudou isso. Contas de oração onenju vermelhas formavam duas voltas brilhantes ao redor de seu antebraço, e dentro das contas havia uma maldição que prendia seu poder e memórias longe dele, uma maldição que ela falhou em remover como havia prometido. Os olhos prateados de Yumei brilharam em resposta, mas quando ele falou, ele parecia meramente impaciente. —A remoção da segunda ligação não liberou nenhuma memória? —Minha mente não é um livro para ser aberto e vasculhado. — disse Shiro categoricamente. —É uma paisagem envolta em uma névoa que não consigo penetrar. Assim que uma memória aparece, eu a perco de novo. Mal ousando respirar para que não percebessem que ela estava acordada, Emi observou os dois yokai. Às vezes, Shiro fazia isso: mudava seus padrões de fala da linguagem casual de alguém da idade dela para uma cadência estranha e antiga que parecia algo de outro século. Ela não tinha certeza se ele percebia que fazia isso. Seu sonho entrou em seus pensamentos, trazendo consigo a imagem do grande kyubi no kitsune. Em seu sonho repetido, ela corria em direção ao monstruoso yokai e gritava um nome, mas nunca conseguia se lembrar do nome ao acordar. O que ela não conseguia esquecer era a terrível fúria da besta ao atacar a raposa de três caudas. Nas lendas do kitsune, eles ganhavam outra
cauda a cada cem anos que viviam até atingir sua forma definitiva: a raposa de nove caudas, um yokai tão poderoso que rivalizava com os dragões. —Não conte comigo para lembrar de nada útil. — Shiro disse, voltando ao seu tom usual e casual, embora a frustração ainda marcasse suas palavras. —Não até que as contas estejam totalmente tiradas. —Então, nossa única opção é esperar que a kamigakari recupere força suficiente para removê-los. —Essa não pode ser nossa única opção. Nós nem sabemos se ela pode removê-las totalmente. Ela não é realmente uma Amatsukami. Emi se encolheu e deslizou o cobertor sobre o nariz, deixando apenas os olhos expostos para que ela pudesse continuar a observá-los. —Inari está desaparecido há um século. — disse Yumei. —Susano começou uma retirada gradual deste mundo décadas atrás e desapareceu cinco anos atrás. Sarutahiko e Uzume foram vistos pela última vez no solstício de inverno no ano retrasado e não mais desde então. Seus rostos eram duros, quase desanimados, enquanto falavam dos desaparecidos Kunitsukami, os quatro líderes dos yokai: Inari do Fogo, Susano da Tempestade, Sarutahiko da Montanha e sua esposa, Uzume da Floresta. Yumei e Shiro estavam procurando por eles desde antes de ela os conhecer. Ela havia recebido a mesma missão impossível, exceto que agora eles sabiam que os Kunitsukami não estavam desaparecidos, mas presos por Izanami, a Amatsukami da Terra. Yumei rosnou, o som estremecendo por sua espinha. —Não sei mais onde procurar. Saber que eles são prisioneiros apenas aumenta as possibilidades. —Como você aprisiona um Kunitsukami? — Shiro murmurou. —Não deveria ser possível.
—Claramente Izanami inventou maneiras, a menos que Amaterasu mentiu. —Ela não mentiu. — Disse Emi sem pensar. Eles
se
viraram. Ela
se
sentou,
puxando
seu quimono branco simples. Shiro a observou com um sorrisinho perverso e ela lutou para não corar. Ela estava várias camadas abaixo de uma roupa respeitável, mas isso era tudo que ela tinha. Suas roupas estavam arruinadas e Yumei não tinha mais nada para dar a ela. Quando ela reclamou, ele perguntou em tom ácido se ela achava que ele tinha o hábito de colecionar roupas femininas. Ela decidiu não prosseguir com o assunto. Conscientemente ajustando a faixa do obi em volta da cintura, ela levantou e atravessou a sala. Só depois que ela caiu em uma almofada entre eles, a surrealidade do momento a atingiu, ela, uma garota mortal, sentada com dois yokai perigosos. Quão casualmente ela se juntou a eles, como se de alguma forma pertencesse à companhia deles. Focalizando, ela se virou para Yumei. —Amaterasu não mentiu. — ela repetiu. —Ela estava me possuindo. Ela estava dentro da minha cabeça. Eu não acho que ela pudesse ter mentido para mim. Eu podia sentir sua urgência e raiva. Ela estava com muita raiva de Izanami. —Se ela se preocupa tanto com os Kunitsukami. — Shiro perguntou, — Por que ela não lhe disse onde olhar? —Eu já disse a você. — disse Emi, tentando manter sua exasperação sob controle. Eles já haviam tido essa conversa, mas ambos os yokai estavam abertamente inclinados a desconfiar de Amaterasu, a Amatsukami do Vento. —Ela tentou me dizer, mas eu... ou esqueci ou não a ouvi. Eu estava... era difícil me concentrar naquele ponto.
Ela estremeceu com a memória, a agonia ardente do poder de Amaterasu, seu espírito avassaladoramente vasto consumindo a mente mortal de Emi como chamas devorando papel. Como a kamigakari, esse era o destino que aguardava Emi no solstício de inverno, obliteração pelo poder de Amaterasu quando ela passasse a residir em seu novo corpo hospedeiro. Emi estava tentando não pensar nisso. Os Amatsukami celestial e os Kunitsukami terreno eram os dois lados da mesma moeda divina. Como os kami que governavam, os Amatsukami residiam no reino celestial e usavam kamigakari mortais como Emi como seus recipientes quando visitavam a Terra. Os Kunitsukami se originaram de Tsuchi, o reino espiritual de yokai, e não precisavam de corpos hospedeiros no reino humano. Juntos, os oito criavam um equilíbrio de poder e natureza que protegia os três mundos. Mas Izanami mudou isso. De alguma forma, ela aprisionou os quatro Kunitsukami, desequilibrando assim a harmonia crucial dos poderes elementais. Izanami deveria ter entendido que, inimigos ou não, os mundos precisavam dos Kunitsukami, mas por razões desconhecidas, ela se propôs a destruí-los. Amaterasu, pelo menos, tinha reconhecido a traição de Izanami e estava fazendo o que podia para impedir qualquer plano catastrófico que Izanami pretendia executar no solstício de inverno. Infelizmente, a única aliada de Amaterasu na Terra era Emi. Já que Izanami matou todos os kamigakari de Amaterasu no século passado, ela sem dúvida também matou quaisquer outros aliados que Amaterasu pudesse ter convocado. Foi assim que Emi terminou com a tarefa de encontrar os Kunitsukami desaparecidos, uma missão tão absurda para um kamigakari humano que ela mesma mal podia acreditar.
—Eu acho que você deve saber algo importante, realmente importante. — ela disse a Shiro. —Amaterasu me disse: Ele não deve morrer ou toda esperança está perdida. Ela sabe sobre você, e parece que você é vital de alguma forma para encontrar os Kunitsukami. Sombras passaram por seus olhos. —Não consigo me lembrar de nada. Exalando, ela empurrou o cabelo emaranhado de seus ombros. Yumei também não tinha pente. Sua tentativa de explicar a ele quanto cabelo comprido como o dela exigia cuidados regulares não produziu nenhum resultado melhor do que seu pedido por roupas adequadas. —Não temos tempo para esperar até que eu possa remover o onenju. — ela disse a eles. —Depois de cem anos, acho que não temos muita chance de encontrar Inari nas próximas semanas. Devemos nos concentrar em Sarutahiko. Como líder dos Kunitsukami, ele poderia nos ajudar a encontrar os outros. —Uma boa teoria. — disse Shiro com uma pitada de sarcasmo. —Mas ainda não temos como encontrar Sarutahiko. Ele não está em seu território ou no de Uzume, e nenhum de seus vassalos pode localizá-lo. —E quanto a coisas suspeitas? Você perguntou por aí sobre isso? —Suspeitas como o quê, exatamente? —Bem, eles foram presos. — ela bufou. —Certamente haveria algum sinal do sequestro e prisão dos Kunitsukami nos últimos anos. Izanami não teria que derrotá-los para capturá-los? Isso dificilmente seria um caso tranquilo. —Já questionei todos os yokai que poderiam ter informações sobre atividades incomuns. — disse Yumei. —Eu não minto quando digo que não há outras opções a seguir, a menos que você, qualquer um de vocês, possa fornecer novas evidências.
Emi cutucou a ponta denteada de uma unha. —Talvez eu possa tentar falar com Amaterasu de alguma forma... —Portanto, não temos nada. — Yumei disse com uma determinação gélida, se afastando da mesa. Ele se levantou e caminhou em direção à porta aberta cheia de escuridão total e não natural. Sua casa existia em Tsuchi, e a soleira em forma de abismo era uma passagem entre reinos. Quando ele desapareceu sem sequer olhar para trás, ondulou assustadoramente com uma luz vermelha. Seus ombros caíram. —O que fazemos agora? Shiro olhou para a parede em frente a ele, sua expressão distante. —Amaterasu disse que temos que libertá-los antes do solstício. — ela pressionou, a urgência rastejando em seu tom. —Faltam apenas cinco semanas. Se não pudermos chegar a... Shiro bateu com as duas mãos na mesa. —Eu não consigo me lembrar. — Ele rosnou. Ele se desenrolou de seu lugar com graça líquida e caminhou até a porta, cada passo irradiando raiva. Ela o viu desaparecer pela soleira, muito chocada para se mover. Shiro era normalmente tão sensato. Mesmo batalhas mortais e ferimentos com risco de vida não conseguiam abalar sua calma constante. Ela o viu ferido, hostil, até mesmo com medo, mas nunca realmente com raiva, até agora. Embora sua fúria contra Koyane, o vassalo de Izanami, depois que o kami roubou seu ki, tivesse chegado perto. Ela torceu as mãos no colo. Deve ser difícil se perder em um mundo onde você nem sabe seu nome? Ela se lembrou de duvidar da legitimidade do nome Shiro quando ele o ofereceu pela primeira vez, duvidosa que uma raposa branca fosse chamada de branca. Como ela poderia ter adivinhado que ele lhe deu um nome falso porque ele não conseguia se lembrar do verdadeiro?
E agora, suas memórias não eram apenas uma chave para seu passado, mas para salvar os Kunitsukami, e, no processo, o mundo. Emi não sabia o que Izanami estava planejando ou porque ela aprisionou os Kunitsukami, mas se Amaterasu disse que iria destruir o mundo, Emi não estava inclinada a duvidar dela. Shiro também não duvidava, e ele devia estar colocando mais pressão sobre si mesmo para se lembrar do que ela ou Yumei poderiam. Ela virou as mãos e empurrou o polegar esquerdo na palma da mão oposta, lembrando-se da magia elétrica que havia queimado sua palma. Apenas dois dias se passaram desde que ela tentou, e falhou, remover a penúltima amarração onenju, e apenas quatro dias desde o ataque de Izanami ao santuário, mas o tempo já era curto. Emi poderia ganhar poder suficiente da Amaterasu para remover completamente o onenju, não apenas antes do solstício, mas também com tempo suficiente para localizar e libertar os Kunitsukami? Levantando-se, ela enfrentou a porta cheia de escuridão pela qual ambos os yokai haviam desaparecido. Eles estavam procurando por muito tempo já, sua esperança desgastada pelo fracasso. Era hora de ela lutar por eles. Ela tinha que encontrar uma maneira, encontrar uma resposta, antes que fosse tarde demais. Dependia dela, e ela não aceitaria o fracasso. Ela só tinha que pensar em algo que eles ainda não haviam pensado. Se ao menos ela tivesse alguma ideia de por onde começar.
A casa de Yumei não foi projetada para um humano sem asas. Respirando pesadamente, Emi se agachou no galho mais baixo do carvalho colossal e apertou os olhos para o chão. As pegadas de Shiro eram tudo o que quebrava a neve lisa, suas pegadas levando para a floresta. No tronco lá em cima estava a porta escura que conectava a casa de Yumei com seu mundo. Do alto da árvore, um corvo desceu e pousou em um galho a alguns metros de distância com um grito alto. Outro saltou, olhos negros redondos olhando para ela. Um por um, uma dúzia de corvos ocuparam seus lugares ao redor dela, esperando. Embora parecessem tão inofensivos quanto qualquer outro pássaro, eles não eram criaturas mundanas. Eles eram karasu, corvos yokai que serviam ao Tengu. Sentada na casca áspera, ela balançou os pés sobre o nada. Os corvos se inclinaram ansiosamente. —Uma queda de dois metros e meio não vai me matar. — disse ela, — Então é melhor vocês irem embora. Eles não se moveram, esperando para ver se ela quebraria o pescoço para que pudessem comê-la sem que Yumei ou Shiro ficassem com raiva. Ser seguida por yokai ansiosos para devorá-la era mais assustador do que ela queria admitir.
Esticando as pernas para baixo, ela empurrou o galho. A queda precipitada durou apenas um segundo e então seus pés tocaram o chão. Ela caiu
sobre
as
mãos
e
os
joelhos,
comprimindo
um
pedaço
de
neve. Estremecendo, ela se levantou e limpou o quimono. —Viram? — Ela gritou para cima. —Eu lhes disse. Os corvos estalaram os bicos e farfalharam as asas em decepção. Balançando a cabeça, ela começou a se afastar do carvalho, seguindo as pegadas de Shiro. Yumei não deixou rastros, mas ela não esperava que ele deixasse; por que ele andaria quando ele poderia voar? Enquanto ela se movia para as árvores, os sons dos corvos diminuíram até que tudo ficou quieto. O céu claro da noite oferecia luz suficiente para ela seguir a trilha de Shiro, mas ela podia ver pouco mais. Os ramos pesados e carregados de neve dos abetos roçaram suas mangas enquanto ela deslizava entre eles, e uma folha vermelha ocasional escorregava dos galhos emaranhados de bordo acima. A música gotejante de um riacho alcançou seus ouvidos quando ela saiu de entre dois abetos grossos. Sua respiração soprava na frente dela em uma nuvem visível quando ela parou. Shiro estava sentado em uma pedra na margem do riacho, o cotovelo apoiado em um joelho e o queixo apoiado na palma da mão enquanto observava
a
água. A
branco. Seu kosode branco
luz sem
da
lua
brilhava
mangas contrastava
em
seu
fortemente
cabelo com
o hakama preto e mangas pretas escorrendo de suas mãos acima dos cotovelos, amarradas no lugar com laços vermelhos entrecruzados. E, claro, o brilhante onenju carmesim enrolado em seu braço direito. Uma orelha de raposa peluda girou em sua direção e ele virou a cabeça. Ela se forçou a se mover, cruzando para ele. Usando uma manga, ela limpou a neve de uma rocha plana antes de se sentar. O frio infiltrou-se em seu
quimono e ela estremeceu. A temperatura estava acima de zero, mas não muito. Ele a observou estremecer e ergueu a mão. O fogo faiscou em sua palma e uma esfera de chamas brancas e azuis, um kitsunebi, flutuou no ar. O calor tomou conta de seu rosto enquanto pairava na frente dela. Agradecida, ela estendeu as mãos para o calor. —Obrigada. — Ela murmurou. Ele acenou com a cabeça, seu olhar voltando para a água. Os galhos entrelaçados das árvores eram sombras escuras contra o céu noturno de um azul profundo salpicado de estrelas cintilantes. O rosto brilhante da lua espalhou tons de safira sobre a neve para criar uma bela, mas misteriosa paleta de azuis frios em toda a vista da floresta e das montanhas. A
floresta
estava
tranquila,
exceto
pelo
riacho
murmurante. Normalmente o som teria enviado apreensão por seus membros fazendo-os tremer, mas a presença de Shiro acalmou sua fobia de água. A luz do kitsunebi cintilou sobre seu rosto, lançando sombras indescritíveis em suas feições. Ela não estava acostumada com ele sendo tão quieto. —Sinto muito. — ela tentou novamente. —Eu não tive a intenção de pressioná-lo sobre suas memórias. Deve ser difícil não lembrar de nada. —Não é que eu não me lembre de nada. — Ele pegou uma folha de bordo vermelha na neve e a girou pelo caule. —Mas o que consigo lembrar não faz sentido. —O que você quer dizer? —Essas memórias... elas não têm contexto. Rostos, vozes, fragmentos de conversas, lugares que sei que estive, mas não reconheço. Nada está amarrado. Nada se encaixa no que eu sei agora. — Sua mão se fechou em torno da folha, esmagando-a. —Sem contexto, minhas memórias são inúteis.
—Você pode se lembrar de algumas coisas, no entanto. — Ela apontou para o kitsunebi flutuando na sua frente. —Tipo, como usar sua magia. Ele apertou os olhos para a esfera de fogo. —Eu chamaria de instinto, não de memória. Tenho descoberto conforme preciso. Suspirando, ela puxou as pernas para cima, envolveu-as com os braços e apoiou o queixo nos joelhos. —Eu gostaria que houvesse alguma maneira de Amaterasu nos ajudar, alguma maneira de falar com ela. —Eu não sei sobre você. — ele murmurou, retomando seu estudo da água correndo sobre as pedras escuras. —Mas não estou ansioso para vê-la possuí-la novamente. Ela olhou para ele com surpresa, mas seu perfil não revelava nada de seus pensamentos. —Mesmo que ela provavelmente pudesse nos dizer onde procurar os Kunitsukami? —Você acha que sobreviveria uma segunda vez? — Ele se virou para ela, e sua respiração ficou presa na garganta com seu olhar sombrio. —Você mudou tanto em apenas alguns minutos. Seus olhos, sua voz, até mesmo seu cheiro mudou. —Eles... eles mudaram? —Seus olhos e voz voltaram ao normal, mas seu cheiro... Ela piscou alarmada. —O que tem meu cheiro? Sua cabeça se inclinou para um lado enquanto suas narinas dilatavam. — Você ainda cheira um pouco como ela, como uma kami. Nenhum yokai vai acreditar que você é apenas uma miko agora. Sua mão subiu até o peito e fechou a frente do quimono. Abaixo estava sua marca kamigakari, um símbolo escuro que representava sua conexão com Amaterasu. O vínculo entre elas se formou quando Emi tinha apenas oito anos de idade, e nos anos seguintes, Amaterasu filtrou gota após gota de seu ki, sua
força vital e a fonte de sua magia, em Emi. Sua conexão com Amaterasu era ainda mais forte agora, ou a posse de Amaterasu deixou rastros do Amatsukami em seu corpo e alma? A mente de Amaterasu já estava vazando para a dela, mudando-a? Destruindo-a? —É... é inevitável de qualquer maneira, eu acho. — Disse ela, tentando acalmar uma onda de ansiedade. Cinco semanas. Ela ainda tinha cinco semanas para viver sua vida antes que Amaterasu a tomasse. Quando ela olhou para Shiro, algo brilhou em seu olhar, alguma emoção poderosa que ela não conseguiu identificar, antes que ele voltasse para o riacho. Ela piscou novamente, confusa e incerta. Ela disse algo para deixá-lo com raiva? Ele estava mais imprevisível do que o normal desde o ataque de Izanami. Ela queria desesperadamente aliviar o fardo de suas memórias perdidas de alguma forma e trazer de volta seu sorriso malicioso e provocador. —Talvez Amaterasu possa ajudar indiretamente. — ela disse, endireitando-se onde estava sentada. —Que tal uma cerimônia de bênção da primavera? —Uma o quê? —É uma cerimônia de renovação. — disse ela, com uma centelha de esperança brilhando dentro dela. —Mikos se apresentam para pessoas doentes e fiéis que desejam um novo começo ou rejuvenescimento. Talvez isso o ajude a recuperar suas memórias. —Essas cerimônias quase não têm poder. — disse ele, a dúvida estampada em seu rosto. —E mesmo que o fizessem, não acho que uma cerimônia kami funcione em um yokai. Ela ergueu um dedo. —Um, eu não sou qualquer miko. Dois, o poder da cerimônia virá de Amaterasu e ela quer que você se lembre, então tenho certeza de que ela abrirá uma exceção.
—Não acho que seja tão simples... Pondo-se de pé, ela agarrou o ombro de seu kosode e puxou-o. —Qual é o mal em tentar? Vamos. —Vamos onde? — Ele resmungou, cedendo a ela puxando e subindo. Seu kitsunebi pairando se apagou. —Eu preciso de mais espaço. Por aqui. Ela o conduziu até o centro de um ponto claro e plano nas árvores, a neve intacta por rastros de animais. Como kamigakari, ela aprendera todas as mesmas habilidades que uma miko normal, na verdade, ela as aprendera ainda melhor do que a donzela de um santuário comum. —Sente-se. — Ela ordenou. Ele olhou para ela de soslaio enquanto se sentava de pernas cruzadas na neve. —Isso não vai funcionar. —Não seja tão pessimista. — Ela explorou as árvores próximas e selecionou um galho fino de um pé de comprimento com um cacho de folhas douradas agarradas à ponta. Tirando-o, ela voltou a ficar na frente dele. —O que há com o galho? —Não tenho as ferramentas adequadas. Não consigo dançar sem algo para segurar. —Você vai dançar? —Quase todas as cerimônias miko envolvem dança. Seu olhar cético se intensificou. Ignorando-o, ela lhe deu as costas e ajustou o quimono. Roupa errada e sem os instrumentos adequados, mas teria que servir. O ritual da dança, os movimentos cuidadosos e precisos que invocavam os poderes da terra e dos céus, o ki humano e o ki kami se unindo, era o que importava. Fechando os olhos, ela respirou fundo algumas vezes e
se concentrou mentalmente. Deixando a tensão passar e a serenidade calma da cerimônia envolvê-la, ela clareou sua mente e se voltou para ele. Seus olhos se arregalaram quando ele viu a diferença em seu comportamento. Mantendo a expressão suave e tranquila, ela estendeu o galho para o lado, o braço perfeitamente paralelo ao chão, e posicionou os pés com a ponta da sandália esquerda tocando o chão na frente do pé direito. E então ela começou. Os movimentos fluíram de dentro dela, subindo de dentro de seu núcleo. Seu braço girou lentamente em um quarto de círculo até que o galho apontasse para a frente, e ela simultaneamente deslizou o pé esquerdo para fora e ao redor, desenhando uma linha curva na neve. Seu corpo começou a girar, seu outro braço se ergueu, a palma girando do céu para o chão, as mangas largas esvoaçando, os movimentos suaves e com lenta elegância. O calor brilhou através de seu corpo e ressoou no chão enquanto seus pés deslizavam de um passo a outro.
Enquanto ela se movia na coreografia precisa da dança, ela percebeu o olhar de Shiro seguindo cada movimento seu. Ela trouxe o galho em direção ao peito e passou a outra mão pelas folhas antes de erguer a palma para o céu, a dança exigindo que ela erguesse o rosto para as estrelas também. Ela girou lentamente, os pés deslizando pela neve em movimentos cuidadosos. Ela completou sua volta, automaticamente procurando seu rosto, e aquele olhar de rubi a pegou, segurando-a com força. Ela abaixou o corpo em um movimento dolorosamente lento e suave de joelhos que exigiu meses de prática. Enquanto ela descia, ela se sentiu caindo em seus olhos, afundando em suas profundezas. Das sombras de seu olhar, algo antigo olhou para ela, algo sábio, astuto e perigoso. Algo que sussurrou para ela e chamou sua alma. Quase sem conseguir respirar, ela estendeu o galho para ele, girando a mão no mesmo movimento. As folhas farfalharam enquanto roçavam seu kosode
em
seu
coração. Ela
não
conseguia
desviar
o
olhar
dele. Aquele algo antigo em seus olhos a teve, segurou-a, acorrentou-a. Os músculos das pernas dela se contraíram e ela começou a subir com precisão e medida até ficar de pé sobre ele, as folhas sobre sua cabeça. Seu olhar a seguiu, recusando-se a soltá-la. Ela estava se afogando nele, perdendo o controle do mundo ao seu redor. Mas a dança estava enraizada em seus próprios ossos e ela estava tão perto do fim. Ela deslizou o pé direito para trás, transferindo seu peso para ele enquanto abria os braços, as palmas das mãos voltadas para cima, as folhas farfalhando. Então seu calcanhar bateu em uma raiz de árvore sob a neve e seus movimentos graciosos chegaram ao fim. Ela caiu para trás, agitando os braços. Com um puf de neve deslocada, ela pousou com força, o ar foi expulso de seus pulmões. Enquanto ela ofegava,
o rosto de Shiro apareceu acima dela, sua boca inclinada em um sorriso torto que revelou um canino pontudo. —Essa é a maneira tradicional de terminar uma dança de cerimônia? —Obviamente não. — Ela resmungou, suas bochechas queimando de vergonha. Tentando convencer seus pulmões a funcionarem corretamente, ela se levantou e descobriu o galho quebrado em sua mão, quebrado em dois. Shiro se agachou ao lado dela, insuportavelmente divertido. Ela não tinha certeza se estava aliviada ou desapontada que o estranho e antigo poder que ela vislumbrou estava mais uma vez escondido entre as sombras em seus olhos. —Você se lembra de alguma coisa? — Ela perguntou esperançosa. —Nenhuma coisa. Seu sorriso se alargou quando ela murchou de decepção. Ele estendeu a mão e ela congelou quando os dedos dele deslizaram sobre seu cabelo logo acima da orelha, seu toque enviando arrepios por sua espinha. —Você tem neve na cabeça. — Ele a informou, sacudindo um pouco. Ela guinchou, suas mãos voando para cima. Ela rapidamente afastou a neve, tentando não corar mais do que já estava. Não adiantava esperar que ele não tivesse notado. Ele percebia tudo. —Sinto muito. — ela murmurou, puxando o cabelo sobre o ombro para tirar as folhas dele. —Acho que uma kamigakari não é muito melhor do que uma miko. —Eu senti algo. Só não memórias. Ela olhou para ele. Ele sentiu a mesma coisa que ela viu em seus olhos? Ou ela estava imaginando isso? Talvez a dança tinha começado a trabalhar, antes que ela terminasse de forma tão dramática. Mas aquela astúcia
ancestral... por mais que ela quisesse que ele se lembrasse de quem ele era, algo em seus olhos a assustava. —Não se preocupe com isso. — disse ele, interpretando mal o olhar preocupado dela. —É nosso trabalho encontrar os Kunitsukami. Nós yokai devemos ser capazes de localizar nossos próprios senhores. —Mesmo se Amaterasu não tivesse me dado essa tarefa, eu ainda...— Sua boca se abriu no meio da frase. Yokai procurando por lordes yokai. Por que ela não percebeu isso antes? Uma mão acenou na frente de seu rosto, tirando-a de seu torpor. Ela piscou para Shiro. —Você bateu com a cabeça, pequena miko? — Ele perguntou secamente, parecendo mais divertido do que preocupado. —Eu sei onde precisamos procurar pelos Kunitsukami. — Ela disse sem fôlego. Sua diversão desapareceu, substituída por um foco nítido. —O que? Ela se levantou de um salto. —Yumei disse isso, não foi? Ele perguntou a todos os yokai que ele pode pensar sobre os Kunitsukami, mas esse é o problema. Os Kunitsukami não se perderam onde os yokai podem encontrálos; eles são prisioneiros da kami. Temos tentado pensar em pistas yokai a seguir, mas não é com quem precisamos conversar. Izanami não tem motivo para esconder seus rastros de seus companheiros kami. Sua antecipação azedou. —Não podemos questionar kami. —Não, claro que não. Mas kannushi e miko são fofoqueiros como você não acreditaria. — Ela ergueu as sobrancelhas. —Eu saberia, não é? Se há algo estranho acontecendo com Izanami, então nossa melhor aposta para descobrir sobre isso é com seus servos humanos.
Ele considerou a ideia dela, então sorriu lentamente. —Teoria interessante. Vou apoiá-la com uma condição. —O que é isso? — Ela perguntou com cautela. —Você tem que convencer Yumei.
— Você quer perguntar aos seres humanos? Emi lutou contra a vontade de se afastar do Tengu. —Bem, você vê... —O
que
os humanos poderiam
saber
sobre
o
paradeiro
dos
Kunitsukami? —Eles podem não saber de nada diretamente, mas se houver algo suspeito acontecendo, é mais provável que tenham ouvido falar sobre isso do que um yokai... —Você não tem ideia do que seria necessário para aprisionar um Kunitsukami, nem os humanos dos santuários kami. Ela olhou impotente de Yumei para Shiro, que estava encostado na parede perto da lareira. Ele deu de ombros e continuou a comer, devorando o arroz e o feijão como se não comesse há um mês. Embora Yumei tivesse ignorado todos os seus pedidos de necessidades humanas, ele pelo menos reconheceu que ela não podia passar dias sem comer. A comida continuava aparecendo em sua mesa, refeições frescas e quentes em caixas brancas brilhantes. Ela estava curiosa para saber de quais restaurantes infelizes os seus karasu estavam roubando. Respirando fundo, ela tentou novamente. —Izanami sabe que precisa esconder sua atividade dos yokai, mas ela não tem razão para esconder o que
está fazendo de seus vassalos e servos do santuário. Alguém deve ter notado algo
estranho
quando
Sarutahiko
desapareceu,
mesmo
que
não
entenda. Talvez coisas estranhas ainda estejam acontecendo. É necessário algum tipo de recurso para manter um Kunitsukami trancado, então... —Você não tem ideia do que fala. — Sua voz calma a cortou como uma lâmina. —Como você pode determinar o que é estranheza relevante quando você não sabe o que... —Você também não sabe! — Ela retrucou, perdendo totalmente a paciência. O rosto de Yumei endureceu e até as sobrancelhas de Shiro se ergueram com sua rudeza descarada com o Tengu. Seu pulso acelerou, mas ela disse a si mesma que era raiva, não medo. —Você não sabe melhor do que eu o que seria necessário para confinar um Kunitsukami. — disse ela com severidade. —Você está procurando há anos e não encontrou nada. Você mesmo disse que não tem mais pistas para seguir. Bem, estou lhe dando uma pista e você nem me deixa explicar por que não é o que você quer ouvir. Com o olhar ártico de Yumei, ela se perguntou se ele estava prestes a matá-la. As sobrancelhas de Shiro se ergueram impossivelmente mais altas e ele parecia estar se esforçando para não rir. Ela o ignorou. —Izanami não pode fazer tudo sozinha. — ela continuou. —Nós sabemos que ela não está guardando os Kunitsukami pessoalmente desde que ela teve tempo de vir aqui e tentar me matar. Isso significa que alguém a está ajudando, seus vassalos, como Koyane. Yokai são bons em viver da terra e não gostam de humanos, mas os kami são diferentes. Eles usam um recipiente humano que precisa de cuidados adequados. Eles vivem entre os humanos e dependem dos humanos.
Ela cruzou as mãos com força no colo. —Em algum lugar, servos humanos do santuário estão apoiando kami que estão apoiando Izanami. Eu sei que as chances são mínimas, mas não temos opções melhores agora. Se pudermos descobrir informações sobre os servos de Izanami agindo de forma incomum, pelo menos teremos por onde começar O silêncio caiu, quebrado apenas pelos hashis de Shiro arranhando o fundo de sua caixa. Yumei a estudou antes de finalmente falar. —E como você propõe obter informações dos servos Izanami? — A pergunta, embora formulada de forma neutra, não foi amigável. —Kannushi normalmente serve apenas um santuário. — ela explicou. — Mas miko e sohei às vezes trocam de santuários e afiliações com base em preferências pessoais, ou se mudando para uma nova cidade, por exemplo. Não podemos falar com os servos Izanami diretamente, mas posso começar perguntando entre os servos do santuário Amaterasu. —Não temos tempo para uma investigação secreta. — Shiro interrompeu, cruzando a sala para colocar sua caixa vazia sobre a mesa. —E você é muito reconhecível como a kamigakari para fingir ser uma miko. Ele pegou a caixa de arroz comida pela metade e enfiou os hashis dentro. Ela franziu o cenho enquanto ele começava a comer sua refeição sem se desculpar. —Sei que não temos tempo para isso. — disse ela. —É por isso que preciso da ajuda do Guji. Os hashis de Shiro pararam a meio caminho de sua boca. —O Guji? Você quer dizer o sumo sacerdote dos seus santuários dos quais você fugiu porque ele planejava trancá-la até o solstício? —Bem, sim. Mas isso foi antes de Amaterasu me ordenar que encontrasse os Kunitsukami. Ele não pode discutir com Amaterasu.
—Mas Amaterasu não deu ordens a ele; ela deu a você. —Eu
posso
fazê-lo
entender. Guji
Ishida
está
absolutamente
comprometido com a vontade de Amaterasu. Ele pode contatar todos os kannushi de Amaterasu em todo o país e fazer com que eles investiguem qualquer comportamento incomum de servo do santuário Izanami. Não podemos realizar nada perto do mesmo por conta própria. O julgamento pesou nos olhos de Yumei. —Os servos de Amaterasu voltaram ao seu santuário ontem. Eles têm enviado os sohei para a floresta para procurar por você. Ela se endireitou, um ponto de tensão diminuindo em sua espinha. Quatro dias atrás, quando ela retornou ao Santuário Shirayuri, ela o encontrou abandonado pelos humanos que viviam lá e assumido por Izanami e seus vassalos. Ela ficou aliviada ao saber que todos pareciam ter retornado em segurança. —Guji Ishida provavelmente está lá então. — disse ela. —Ele deve estar desesperado para me encontrar. —Se você vai voltar. — Shiro disse, largando o jantar dela, a caixa agora vazia, ao lado dele. —Terá que ser agora. Izanami recuou por enquanto, mas se ela está tão determinada a nos matar quanto parecia, ela vai voltar. —Posso voltar ao santuário e falar com Guji Ishida imediatamente. — Seus nervos vibraram, mas ela ignorou o sentimento. —Podemos ter as informações de que precisamos em alguns dias. —Vá então. — disse Yumei. —Não podemos perder mais tempo. —Ir? Agora? —Não, claro que não.
— Shiro esticou os braços sobre a cabeça,
arqueando as costas. —Vamos esperar até dezembro para o desafio adicional.
—Mas estamos no meio da noite. — Quando ele apenas ergueu as sobrancelhas, ela se levantou. —Você está certo. Não há tempo a perder.
Contendo um bocejo, Emi seguia Shiro através das árvores escuras. Ele se enrolava entre elas, quebrando a crosta gelada da neve de meio pé de profundidade. Ela olhou distraidamente para as costas dele e girou as orelhas enquanto sua mente corria à frente deles para o Santuário Shirayuri. Desde que ela dormiu a maior parte das últimas setenta e duas horas, seu senso de tempo estava nebuloso. Não parecia muito tempo, mas quase cinco dias se passaram desde que ela fugiu do Santuário Shirayuri. Antes de fugir, ela estava prestes a encontrar Ishida pela primeira vez em seis meses. Suas visitas eram breves, mas regulares; duas vezes por ano, ele verificava suas acomodações atuais e trazia seu novo omamori. Sob seu quimono, a bolsa de seda lisa em um cordão fino descansava acima de seu coração. Dentro dele, um ofuda especial, um talismã de papel com uma invocação protetora inscrito, disfarçava seu ki para que yokai não a reconhecessem como uma kamigakari. Se Shiro estivesse certo sobre sua mudança de cheiro, o omamori não poderia mais protegê-la. Shiro parou, levantando a mão. Ela parou abruptamente, pensamentos ansiosos de ataques de yokai competindo com a imagem de um kami bonito e mortal deslizando pelas árvores em direção a eles. Suas orelhas se contraíram, seguindo sons que ela não conseguia ouvir. —Caw.
Acima de suas cabeças, um dos corvos de Yumei inclinou a cabeça e soltou outra nota bemol de zombaria. Shiro baixou o braço. Algumas dezenas de metros à frente, quase invisível ao luar, um cervo trotou por entre as árvores, seu cervo quase crescido correndo atrás dela. Emi exalou, o alívio levando embora sua apreensão. Quando os dois cervos desapareceram na escuridão, ela olhou novamente para o corvo. Yumei recusou-se a acompanhá-la de volta ao santuário, deixando o trabalho para Shiro, mas parecia que ele ainda tinha enviado alguns karasu para cuidar deles. Ela lutou contra outro bocejo, desejando que o Tengu tivesse se oferecido para usar suas misteriosas habilidades de teletransporte para poupá-los da longa jornada para fora das montanhas. Ela estava exausta desde a luta com Izanami; ela dormiu mais nos últimos dias do que normalmente dormia em uma semana. Shiro também dormira muito. Ele tinha sido gravemente ferido em sua batalha com Ameonna e seu servo canino, e ele lutou com Izanami em cima disso. Aproveitando a pausa de Shiro, ela trotou alguns passos para alcançálo. Eles caminharam juntos por alguns minutos antes que ela falasse, sua voz baixa desconfortavelmente alta em seus ouvidos após o longo silêncio na floresta. —Você tem alguma teoria. — ela começou. —Sobre como Izanami aprisionou os Kunitsukami? —Só que eu duvido que tenha sido pela força bruta. — Ele encolheu os ombros. —Isso é tudo que posso adivinhar. Ela deve ter encontrado alguma maneira de enfraquecê-los primeiro. Caso contrário, ela precisaria de um Amatsukami protegendo cada Kunitsukami em todos os momentos, e sem Amaterasu, é um a menos.
—Enfraquecê-los...— ela repetiu em um murmúrio. —Amaterasu acusou Izanami de enganá-la para destruir Inari. Destruir parece mais permanente do que enfraquecer. A mandíbula de Shiro flexionou. —Inari está desaparecido há cem anos. — ela continuou. —E Izanami começou a matar os kamigakari de Amaterasu cem anos atrás. Izanami deve ter enganado Amaterasu para fazer seu trabalho sujo se livrando de Inari, então Izanami se livrou de Amaterasu. Ela olhou para ele, esperando sua opinião, e viu a tensão em seu rosto. Suas bochechas coraram com seu descuido. —Sinto muito, Shiro. Eu não queria... Vamos conversar sobre outra coisa. Quão desconsiderada ela foi? Inari era o patrono do kitsune, e Shiro estava procurando pelos Kunitsukami por anos, e aqui estava ela, casualmente falando sobre a destruição de seu mestre. Ele caminhava rigidamente, as orelhas não bem achatadas na cabeça. Ela olhou em volta desesperadamente em busca de inspiração, não vendo nada além de neve e árvores. —Minha primeira grande apresentação solo em uma cerimônia foi a dança Benção de Inverno. — ela disse apressada, tropeçando em raízes escondidas na neve enquanto trabalhava para acompanhá-lo. —Eu tinha quatorze anos e não era particularmente graciosa, mas Guji Ishida decidiu que faria isso de qualquer maneira. Eu pratiquei por meses. A mandíbula de Shiro finalmente relaxou e ele piscou para ela, curioso e um pouco confuso enquanto ela continuava. —No dia da cerimônia, eu estava muito nervosa. O Santuário Shion é enorme. Milhares de pessoas se reuniram para o festival de inverno. Lembro-
me de estar no palco, esperando para começar e vendo todos aqueles rostos olhando para mim. Eram tantos que eram um borrão. Ela bufou, observando sua respiração virar uma névoa branca por causa do frio. —Por algum milagre, consegui fazer tudo perfeitamente, até as peças que tive problemas na prática. Eu estava segurando uma onusa, uma varinha com fitas de papel dobradas; você já as viu antes? De qualquer forma, parte da cerimônia envolve agitar a onusa em meio à fumaça de um pequeno braseiro no palco. Eu estava dançando perfeitamente, mas a onusa era mais sofisticada do que a que eu havia praticado e as fitas de papel eram mais longas. Quando a passei no braseiro, as pontas tocaram as brasas e pegaram fogo. Ele
bufou,
humor
iluminando
seus
olhos
e
afastando
as
sombras. Parando no caminho, ele perguntou: —O que você fez? —Eu não tinha muitas opções. Eu estava segurando uma varinha com fitas de papel em chamas que estavam queimando mais rápido do que eu poderia imaginar. Então dei ao meu braço uma espécie de aceno elegante e coloquei o papel no braseiro o mais rápido que pude. Instantaneamente se transformou em chamas de sessenta centímetros de altura e eu meio que girei e acenei meus braços como se tudo fosse parte da dança. —O que os espectadores acharam? —Eles adoraram. Eles pensaram que era uma variação nova e excitante da dança regular e chata. Guji Ishida ficou menos satisfeito. —Parece uma recuperação magnífica para mim. Ela sorriu, lutando contra o rubor em seu elogio. —Minha amiga...— Sua garganta tentou fechar e ela engoliu em seco. —Ela disse que nunca teria sabido, exceto pela expressão de puro pânico no meu rosto quando pegou fogo pela primeira vez. Ele inclinou a cabeça. —O que trouxe essa história?
—Oh, eu apenas pensei que você deveria saber que não testemunhou meu erro de dança mais espetacular. —Eu percebi. Ela agarrou a mão dele e puxou-o de volta ao movimento. A trilha quase invisível começou a se inclinar para baixo e, de alguma forma, enquanto ele seguia meio passo atrás dela, não pareceu necessário soltar sua mão. Seus dedos eram quentes e fortes, curvando-se levemente em torno dos dela enquanto ela liderava o caminho. Ela não gostava de ver aquelas sombras escuras em seu olhar, a dor distante que ele geralmente escondia com tanto cuidado. Não faz muito tempo, ele disse a ela parecia solitária e com medo e ele queria saber por quê. Ela se perguntou agora o quão solitário e com medo ele estava sob os sorrisos maliciosos e a confiança que normalmente projetava. A mão dela apertou a dele. Ela removeria o onenju e lhe devolveria suas memórias. Ela não iria falhar. O caminho tornou-se mais perceptível, seguindo a encosta de uma montanha com uma queda acentuada de um lado. Quando percebeu que a trilha era familiar para ela, eles fizeram uma curva. Logo além, uma árvore caída bloqueava o caminho, seus galhos estilhaçados cobertos de neve. Era um local familiar. —Ah. — ela disse. —A árvore. —A árvore. — Ele concordou. Seus olhos brilharam maliciosamente e então ele se moveu. Seus braços a envolveram, levantando-a do chão e contra seu peito. —Shiro!
Ele se dobrou de joelhos, se recompondo e então saltou. Mal a empurrando, ele pousou levemente do outro lado do obstáculo, um salto impossível para um humano, mas fácil para um yokai. —Exibido. — Ela murmurou. —Se eu deixar você escalar de novo, o sol nascerá antes de chegarmos ao santuário. —Dificilmente. Coloque-me no chão. —Por que você tem esse problema comigo segurando você? Ela abriu a boca, mas as palavras morreram em sua língua. Seu olhar a desafiou a falar, a discutir com ele, mas ela não sabia o que dizer. Ela era uma kamigakari; ela não deveria tocar em homens ou yokai, e ele era os dois. Isso é o que ela deveria dizer. —Por que você está tão determinado a me abraçar? — Ela quase se encolheu. Por que ela disse isso? —Você está tremendo. —Eu estou? — Ela não achava que estava, mas não podia discordar que ele estava deliciosamente quente no ar frio da noite. Se o esforço de caminhar não tivesse mantido seu sangue fluindo, ela estaria congelada até os ossos. Ele ergueu uma sobrancelha. —Você quer que eu coloque você no chão? Você quer que eu me mova? O calor percorreu todo o seu corpo quando sua pergunta desencadeou a memória de seu rosto a centímetros do dela, seu corpo quente prendendo-a no chão. A forma como a boca dele pairou logo acima da dela, as pupilas dilatando-se com antecipação, e a maneira como ela fechou os olhos em rendição. Era uma memória que ela lutava para manter fora de seus pensamentos nos últimos quatro dias. Com as longas horas de sono e a presença quase
contínua de Yumei, ela não tinha passado muito tempo sozinha com Shiro desde então. Mas a lembrança dele prendendo-a no chão e quase a beijando não estava longe de seus pensamentos desobedientes. —Eu... eu...— Ela tentou encontrar palavras, perguntando-se se ele pretendia imitar sua pergunta daquela noite. Seus braços se afrouxaram e ela deslizou para baixo até que seus pés tocassem o chão. Mas seus braços ainda estavam ao redor dela, mantendo-a presa contra ele. Borboletas dançaram em seu estômago. Por que ela não conseguia ler seu rosto? O que ele estava pensando? —Você vai tomar cuidado, pequena miko? — Ele murmurou. —Cuidado? —E não apenas com aquele seu Guji. Izanami estará esperando você aparecer em algum lugar desprotegida. —Eu sim. Eu vou tomar cuidado. Como seus olhos poderiam mantê-la prisioneira assim? Ela tentou se lembrar de como respirar. —Você me prometeu. — ele disse suavemente. —Isso significa que você tem que voltar. —Eu vou. — ela sussurrou. —Eu não vou quebrar minha promessa. Esse sorriso malicioso contraiu seus lábios. Então ele a ergueu do chão novamente e saltou para frente. Ela jogou os braços ao redor do pescoço dele enquanto ele descia a trilha em sua corrida que consumia quilômetros. Em poucos minutos, ele diminuiu a velocidade para um trote. Adiante, uma forma familiar apareceu. Os dois postes grossos e as vigas paralelas do portão torii vermelho marcavam a borda do terreno do santuário.
Ele parou a alguns metros de distância e a colocou no chão, nem mesmo sem fôlego de sua corrida. Ela cambaleou alguns passos e balançou a cabeça, ainda um pouco atordoada. —O karasu já verificou. — disse ele. —Nenhum kami, apenas alguns kannushi e uma dúzia de sohei que estão vasculhando a floresta por você. Quando ela fugiu naquela noite, seu quimono vermelho voando ao seu redor, ela de alguma forma nunca imaginou retornar e ter que enfrentar todos aqueles que ela abandonou. Eles acreditariam em sua história sobre o ataque de Izanami e a posse de Amaterasu? Eles teriam que acreditar nela. Ela não lhes daria escolha. Ela olhou de volta para Shiro. —Você estará por perto? —O mais perto que posso. Essas palavras em sua voz profunda e ronronante continuavam se repetindo em seus ouvidos enquanto ela se aproximava do torii, preparandose para reentrar no mundo dos kami e mais uma vez assumir seu papel de kamigakari.
Embora o amanhecer ainda estivesse a uma hora de distância, um brilho quente já emanava das janelas da casa. Os sohei lá dentro provavelmente estavam se preparando para sair às primeiras luzes para retomar a busca por ela. Embora os sacerdotes guerreiros fossem bem treinados em combate e exorcismo yokai, eles não eram lenhadores e sem dúvida apreciariam o fim de suas excursões na selva. Depois de sua própria jornada pelas montanhas, ela estava completamente gelada, e a perspectiva de um aquecedor quente e uma
almofada para se sentar foi o suficiente para superar seu medo de enfrentar todos. Embora ela pretendesse ir direto para a casa, quando chegou ao jardim, seus pés se viraram na direção oposta. Um torpor estranho e incrédulo tomou conta dela quando ela lentamente cruzou a passarela e parou na beira do pátio. Ela se lembrava de sua primeira visão do Santuário Shirayuri tão claramente. Emoldurada pelos torii no topo dos longos degraus de pedra, a enorme árvore sagrada, com suas folhas douradas tremulando com a brisa forte, lançara sombras manchadas no longo pátio. As estátuas komainu desgastadas pelo tempo, as sentinelas de pedra para sempre montando guarda sobre a casa dos kami, protegiam o salão de adoração de dois andares com seu telhado pontiagudo e beirais curvos. Ela mal conseguia reconhecer o santuário pitoresco na cena de destruição diante dela. Uma fissura profunda e denteada havia dividido as pedras do pátio, deixando uma cicatriz negra e feia sobre elas. A terra havia se dobrado em uma dúzia de lugares e vários abetos caídos jaziam sobre a pedra quebrada. Um bordo centenário pousou no pavilhão do palco, derrubando o telhado. O salão de adoração era uma concha vazia. As paredes foram despedaçadas, a madeira enegrecida pelo fogo. Algo, como um yokai gigante corvo, havia se espatifado na frente do prédio, demolindo a delicada estrutura de madeira ao redor da entrada. As estátuas koma-inu não eram mais do que pedaços de pedra espalhados entre os destroços. Apenas o carvalho sagrado sobreviveu ileso à destruição. Sua garganta se apertou. O lindo pequeno santuário, tão bem cuidado por Fujimoto e Nanako, era pouco mais que ruínas. Com a fratura de quase dois metros de largura na terra, consertar o pátio seria caro na melhor das
hipóteses e impossível na pior. E o santuário, que existia por centenas de anos, provavelmente estava inviável. Durante a batalha terrível quatro dias atrás, ela não tinha pensado na destruição; as vidas em jogo eram muito mais importantes. Mas vendo tudo agora, o dano feito por Yumei e o kami que ele lutou, então pelo poder catastrófico de Izanami, ela desejou que houvesse alguma maneira de desfazer isso. Enxugando o rosto, ela se virou para voltar para a casa. Do outro lado da passarela, Katsuo estava no centro do caminho. Embora seu cabelo estivesse despenteado como se ele tivesse acabado de sair da cama, ele estava totalmente vestido com seu uniforme sohei com uma katana no quadril. Uma sensação quente e apertada percorreu seu corpo ao vê-lo. Quando eles se separaram pela última vez, ela pediu a ele para beijála, então ela o amarrou no lugar com um ofuda para que ele não pudesse seguila para a floresta. A culpa se apegou a ela desde então. —Emi? — ele disse, tão baixinho que ela quase não conseguiu ouvilo. Seu rosto estava branco como a neve, os olhos arregalados. —Katsuo. — Pressionando as mãos nas coxas, ela se curvou em uma reverência profunda. —Eu sinto muito por... Seus passos rápidos bateram na passarela de madeira. Ela olhou para cima quando ele se abateu sobre ela. Ela gritou de surpresa quando ele a agarrou, apertando-a contra ele em um abraço apertado. —K-Katsuo? — Ela gaguejou. —Você está viva. — disse ele com voz rouca. —Quando eu vi você parada aí com aquele quimono branco, pensei que você fosse um fantasma. Ela piscou. Um fantasma? Ela supôs que, com seu quimono branco e cabelo solto e emaranhado, ela parecia um espírito perdido. Mantida com força em seus braços, ela inclinou a cabeça para trás para olhar para ele. Ele tinha
esquecido que não deveria tocar na kamigakari, ou ele simplesmente não se importava? Ele deu meio passo para trás para olhar para ela, segurando seus braços como se temesse que ela desaparecesse se ele a soltasse. —Você está viva, certo? Ela deu a ele um sorriso fraco. —Sim, muito viva. Seu aperto sobre ela aliviou e ele soltou um longo suspiro, seu olhar disparando por todo o rosto. —Onde você esteve? —Nas montanhas, principalmente. — ela murmurou, olhando para o chão. —Eu sinto muito por deixar você se preocupar por tantos dias. Eu não pretendia ficar fora tanto tempo. —Nas montanhas? Por cinco dias? E quanto a abrigo e comida...? —Eu estava... na casa do Tengu. — Quando os olhos dele se arregalaram com uma mistura de horror e raiva, ela continuou. —Ele não é o melhor anfitrião, mas não é assim tão mau. Ele trouxe comida, mas ele não quis me dar uma escova para o meu cabelo e ele ficou bravo quando eu pedi outra coisa para vestir. Seus corvos queriam me comer, mas ele disse a eles para me deixarem... —Seus corvos o quê? —Eu acho que cheiro bem? Eles queriam comer meu ki. Sua mandíbula cerrou. —Por que você estava lá? —É uma longa história, mas eu não tive muita escolha depois...— Sua atenção voou para as ruínas do santuário. Ele a soltou e deu um passo para trás, seguindo a direção de seu olhar. — Os habitantes da cidade disseram que houve um terremoto. Todo o dano parece estar aqui, no entanto. Eles mal sentiram os tremores em Kiroibara.
—Um terremoto é uma forma branda de descrever Izanami. — Ela respondeu com amargura. A cidade um quilômetro ao sul do santuário teve a sorte de ter escapado de qualquer dano. —Izanami? O que você sabe sobre Izanami? —Diga-me o que você sabe primeiro. —Um enviado de seus vassalos apareceu algumas horas depois que você fugiu. Eles estavam vestidos como sohei, mas eu, eu nunca tinha visto um kami em carne e osso antes, mas soube imediatamente que eles não eram humanos. Eles disseram a Guji Ishida e Kannushi Fujimoto que ouviram sobre o ataque yokai e que vieram para levá-la para um local seguro. Quando eles descobriram que você fugiu para a floresta, eles disseram que iriam encontrála e que a própria Izanami chegaria em breve para se certificar de que você estava segura. Ela fez uma careta. “Segura” e “morta” geralmente não eram sinônimos. —Os kami ordenaram que todos nós saíssemos porque a barreira torii estava danificada demais para nos proteger. Guji Ishida argumentou, mas... — Ele deu de ombros, infeliz. —Os kami não permitiam nenhum acordo e quando começaram a ficar com raiva, Guji Ishida cedeu. Nós saímos. A culpa pesou em suas feições. —Obviamente não deveríamos, já que você esteve nas montanhas sozinha esse tempo todo, sozinha com yokai. Guji Ishida tentou descobrir o que estava acontecendo com a busca por você, mas o Guji de Izanami não disse nada. Depois de três dias sem nenhuma palavra, voltamos apenas para encontrar o santuário danificado pelo terremoto e todos os vassalos de Izanami mortos. Ele procurou seu rosto. —Diga-me o que aconteceu, Emi. Por que você saiu sem mim? Por que você voltou para o Tengu? Por que você voltou agora?
Ela estremeceu sob uma onda de sua própria culpa. —Eu sinto muito pelo que fiz, Katsuo. Eu não poderia deixar você vir comigo. Era muito perigoso. —É meu trabalho protegê-la. —Você não poderia ter me protegido lá. O Tengu odeia humanos e só me tolera porque sou útil para ele. — Ela balançou a cabeça. —Isso não é importante. O que eu preciso agora é falar com Guji Ishida. —Ele não está aqui. Ele voltou para Shion ontem para descobrir o que está acontecendo nos santuários Izanami. Não tínhamos ideia se os vassalos de Izanami a tinham encontrado e levado para um lugar mais seguro, ou se você ainda estava perdida nas montanhas. —Voltou para Shion. — ela murmurou. Isso complicou as coisas. —Eu preciso falar com ele. —Assim que Ishida colocar os olhos em você, ele vai trancá-la no santuário até o solstício para ter certeza de que você não fugirá de novo. —Não, ele não vai. Tenho pedidos diretamente do Amaterasu e ele precisa me ajudar a cumpri-los. Sua boca se abriu de surpresa. — Diretamente de Amaterasu? —Sim. Precisamos partir para Shion imediatamente, e todos vocês precisam vir comigo. Não é seguro aqui. —A barreira torii... —Não o torii. Vocês não estão a salvo de Izanami e seus vassalos. Seus olhos se arregalaram. —Vou explicar tudo. — disse ela. —Kannushi Fujimoto está aqui? Eu deveria... Um grito vindo da direção da casa a interrompeu. Nanako veio correndo pelo caminho em direção a Emi e Katsuo enquanto um grupo de homens
apareceu na esquina da casa atrás dela. A miko corria, seu hakama vermelho balançando e as mangas largas de seu quimono branco esvoaçando. Recuando em antecipação aos tons ácidos de Nanako, Emi deu meio passo para trás quando a mulher se lançou sobre ela. Em vez disso, Nanako parou e agarrou as mãos de Emi, agarrando-as nas dela enquanto ela respirava estremecendo. —Emi! — Ela exclamou, a primeira vez que ela usou o nome de Emi em sua
audiência. —Você
está
segura! Oh,
graças
aos
kami! O
que
aconteceu? Você está tão pálida e, e seu cabelo. O que aconteceu com seu cabelo? Está um desastre. Os homens correram para a passarela, uma dúzia de sohei incluindo Minoru, com Fujimoto na liderança. Ele agarrou seu chapéu alto quando caiu na metade de sua cabeça, seu olhar chocado varrendo sobre ela da cabeça aos pés. Então sua descrença se transformou em raiva. —Kamigakari Kimura, onde... — Ele começou severamente. —Nem comece! — Nanako girou sobre o kannushi tão agressivamente que ele tropeçou para trás no sohei atrás dele. —Você não pode ver que ela está congelada até os ossos? Suas perguntas podem esperar. A kamigakari está aqui e segura. Isso é tudo que você precisa saber por enquanto. Ela colocou um braço em volta de Emi e puxou-a para frente. —Fora do caminho! Vocês podem falar com ela quando eu terminar. Sem discussão, todos os homens, incluindo Fujimoto, recuaram do olhar de aço de Nanako e gritaram ordens. Aturdida, Emi silenciosamente permitiu que Nanako a conduzisse em direção à casa, lançando apenas um olhar para Katsuo, que parecia tão confuso quanto ela. Nanako manteve o braço em volta de Emi e falou sobre banhos quentes, refeições quentes e roupas limpas sem uma única pergunta, exceto para perguntar o que ela queria comer.
Trinta minutos depois, Emi se viu reclinada em uma banheira fumegante. Uma toalha grossa e fofa esperava ao lado dela e outra já estava enrolada em seu cabelo. Nanako a ajudou a escová-lo, gastando quase dez minutos separando meticulosamente emaranhados e uma quantidade surpreendente de detritos. A miko a deixou para se banhar, prometendo ter o café da manhã pronto quando Emi terminasse. Ela não tinha ideia de porque Nanako estava sendo tão legal com ela de repente, mas não havia como negar a preocupação genuína, quase maternal da miko. Emi caiu mais abaixo até que a água lambeu seu queixo. O calor atingiu seus ossos e derreteu a tensão de seus músculos. Ela pode ter se sentido culpada pelo atraso, mas ela não achou que uma hora a mais faria muita diferença,
embora
Shiro,
onde
quer
que
estivesse,
provavelmente
discordaria. De certa forma, ela se sentia como se estivesse lavando o estilo de vida yokai casual que havia passado para ela nos últimos dias. Era bom descansar, comer e dormir quando ela queria, sem obrigações a cumprir ou expectativas a cumprir. Ela fechou os olhos, levando mais alguns minutos para se preparar para enfrentar Fujimoto. Essa conversa não seria agradável, mas ela aceitaria um confronto com o kannushi em vez de um com o Tengu qualquer dia.
Emi abriu as portas do armário dela. Atrás dela, Fujimoto, Nanako, Katsuo e Minoru esperavam em silêncio. Ela deslizou a mão entre as camadas da roupa de cama dobrada e extraiu o manual do kannushi. Virando-se para os outros, ela abriu o livro na
página que descrevia seu destino como a kamigakari e o estendeu para Fujimoto. Ele franziu a testa ao aceitar e folheou o texto. Ela enfiou a mão no armário e tirou o diário do esconderijo. Entre as páginas, ela tirou a pena de corvo preta. —Esse livro é o que começou tudo. — ela murmurou, deslizando os dedos sobre a pena brilhante. —Foi como descobri a verdade sobre ser a kamigakari e o motivo pelo qual acabei na floresta naquela noite. Ela contou a eles como encontrou a raposa branca ferida na floresta e, com a ajuda de Katsuo, a trouxe de volta ao santuário. Quando ela descreveu sua mudança de raposa para homem, Fujimoto largou o manual do kannushi e gaguejou incoerentemente. Pegando o livro do chão, Nanako o silenciou. Emi descreveu sua barganha com Shiro e seu subsequente encontro com o Tengu. Ela manteve os detalhes o mais breve possível, pulando direto para escapar do santuário e encontrar Koyane, o vassalo de Izanami. Ninguém tentou interrompê-la depois que ela explicou como o kami tentou matá-la. Gesticulando para que a seguissem, ela os conduziu para fora da casa e pela passarela. Parada no pátio em ruínas, ela apontou para as pedras enegrecidas. —Koyane enviou dois yokai para nos emboscar quando voltamos ao santuário. Shiro lutou contra eles. Seu kytsunebi foi o que queimou as pedras. A boca de Fujimoto se contraiu em uma linha fina e irritada quando ela contou como fugira do santuário para se reunir com Shiro e remover o resto da maldição onenju, mas a raiva dele desapareceu quando ela chegou à parte onde os kami os haviam capturado. Sentindo-se mal, ela caminhou até o corredor
principal
e
passou
por
cima
dos
destroços
da
entrada
demolida. Levantando uma prancha de madeira, ela a puxou do centro da sala
e olhou para baixo. Linhas brancas fracas ainda marcavam o círculo que a prendia. Sua náusea piorou. Engolindo em seco, ela apontou para a mancha escura no chão. —Depois de admitir ter matado todos os kamigakari do passado de Amaterasu, Izanami me esfaqueou no estômago. Nanako engasgou e o rosto de Katsuo ficou branco. Ao explicar o que acontecera em seguida, ela os conduziu para fora do santuário e contornou os escritórios. O solo ficou mais áspero, marcado por fissuras e árvores caídas. Ela parou na borda do círculo forrado de pedras, onde Izanami havia tentado religar Shiro com o onenju, e terminou sua história com a terrível batalha entre kami e yokai, e as instruções finais de Amaterasu. Voltando-se para os outros, ela levantou a pena preta ainda em sua mão. —Nos últimos dias, estive com o Tengu e Shiro, me recuperando da posse do Amaterasu. Mas agora devo cumprir a tarefa que ela me deu. Ela olhou da expressão sombria de Katsuo para Fujimoto. A mandíbula do kannushi mexeu enquanto ele olhava do círculo para o chão dividido e as raízes retorcidas das árvores que, depois de serem comandadas por Izanami, ainda estavam emaranhadas em formas bizarras acima da terra. Finalmente, seu olhar parou na pena preta em sua mão e suas sobrancelhas espessas se juntaram. Ela respirou fundo e se preparou para defender sua história. Fujimoto esfregou a mão no queixo. —Os caminhos dos kami são um mistério para mortais como nós. Pensar que uma Amatsukami se voltaria contra sua irmã... pensar que um yokai se aliaria a um humano ou lutaria ao lado de um kami... Absurdo, eu diria! E ainda assim as evidências que vejo... —Ele pressionou as mãos nas coxas e se curvou em uma reverência. — Kamigakari Kimura, peço desculpas por duvidar de você.
—Eu, eu só posso agradecer por acreditar em mim, Kannushi Fujimoto. — ela gaguejou surpresa. —Por favor, não se desculpe. Ele se endireitou muito rapidamente e seu chapéu caiu. Ele o agarrou e enfiou de volta na cabeça. —Devemos levá-la para Shion sem demora. E evacuem todos do santuário para o caso de termos mais visitantes divinos e traiçoeiros. Lágrimas inesperadamente ameaçaram por sua aceitação fácil da verdade, uma verdade totalmente absurda, como ele disse, e sua disposição imediata de ajudar. Ela o havia subestimado. Ela se inclinou para frente em sua própria reverência. —Você é um servo verdadeiro e leal de Amaterasu, Kannushi Fujimoto. —Oh, venha agora. — ele disse rispidamente. —Nada disso. Não temos tempo a perder. Nanako, você pegaria os pertences da dama? Minoru, vá buscar os sohei. Enquanto Nanako e Minoru saíam correndo, Fujimoto se virou para Emi. —Minha dama...— Ele ajustou o chapéu novamente. —Posso ver que sua história é verdadeira e vou apoiar sua palavra, mas Guji Ishida... Ela assentiu. Fujimoto não precisava completar seu pensamento porque ela já entendia perfeitamente. Convencer Ishida da verdade não seria tão fácil, e ela não queria considerar as consequências do fracasso.
O carro fez uma parada fácil. Emi não se moveu enquanto Nanako, sentada ao lado dela, desafivelou o cinto de segurança e abriu a porta. Uma brisa fresca soprou, trazendo os cheiros de neve fresca, agulhas de abeto e escapamento de carro. Emi olhou para as mãos cuidadosamente dobradas no colo, pálidas contra seu hakama vermelho. Eles deixaram o santuário em uma enxurrada de atividades, e ela não teve a chance de escapar para encontrar Shiro antes de Nanako e Fujimoto a conduzirem para dentro do carro. Ela estava confiante de que Shiro descobriria para onde ela tinha ido, mas não conseguiu evitar olhar pela janela traseira do carro enquanto eles se afastavam, apertando os olhos para a estrada vazia em busca de um lampejo de pelo branco. Vozes passavam de seus ouvidos, a conversa tranquila de adoradores indo e voltando do santuário. Alguns falavam com respeito, alguns com alegre admiração, outros com exclamações de admiração. Dentro do terreno do santuário haveria ainda mais adoradores, além de incontáveis kannushi, miko e sohei que treinavam ou trabalhavam em Shion. Quando ela caminhou pela última vez por aquele terreno, ela era uma celebridade, semelhante a uma princesa. Mas isso foi antes de ela aprender a verdade. Desde menina, pensava que ser kamigakari era se tornar uma kami. Quando ela descobriu a verdade sombria que estava escondida de todos, exceto alguns kannushi selecionados,
sua percepção dos dias que ela passou treinando aqui mudou. Como ela enfrentaria Ishida agora, sabendo que ele a havia guiado em direção à destruição por tantos anos sem culpa pelas mentiras, sem remorso pelo fim inevitável de sua vida? A porta ao lado dela se abriu. —Emi? Sem escolha, ela se forçou a olhar para Katsuo. A preocupação suavizou seu rosto. —Você está pronta? Ela estava? Ela não sabia. Ela deu outro longo suspiro. Ela havia lutado contra uma Amatsukami assassina. Certamente ela poderia enfrentar seu retorno ao Santuário Shion com um mínimo de coragem. Quando ela deslizou para fora do carro, sua atenção se voltou automaticamente para o lado oposto da rua, em direção ao som da água. Estendendo-se por mais de cem metros, uma ponte larga de madeira arqueava-se sobre o rio cintilante. A outra margem estava envolta em verde e branco: centenas de abetos e faias maduros, seus galhos carregados de neve. No final da ponte, um torii vermelho era a única outra cor. Fujimoto pigarreou. —Por aqui, por aqui. — disse ele, começando do outro lado da rua. —Apresse-se. Emi se pôs em movimento, grata pela presença constante de Katsuo à sua direita. Nanako a flanqueava à esquerda, e os sohei restantes seguiam atrás deles. Ao se aproximarem da ponte, os pequenos grupos de fiéis se posicionaram respeitosamente de lado. Homens de negócios, estudantes, mães com filhos, todos os tipos de pessoas vieram aqui para oferecer suas orações a Amaterasu. Algum deles percebiam o quão real os kami eram? Eles poderiam imaginar que a simples miko passando por eles logo se tornaria Amaterasu, uma vida imortal em carne humana?
O rio tranquilo corria por baixo da ponte, e Emi ficou aliviada por sua fobia de água permanecer em silêncio. A ponte era larga e a água muito abaixo, isolando-a de seus medos. À medida que se aproximavam da margem oposta, os enormes torii se erguiam sobre eles, cobrindo toda a largura da ponte e diminuindo todos os que passavam por baixo. Ela parou e se curvou profundamente. Quando ela colocou o pé no caminho de cascalho diretamente abaixo do torii, o calor subiu por seu tornozelo e encheu seu torso com um calor acolhedor. Ela
não
pôde
evitar
sorrir
quando
a
terra
sagrada
a
acolheu. Endireitando os ombros, ela desceu o caminho, forçando os outros a se apressarem para manter o ritmo. A trilha larga cortava as árvores, guiando os visitantes em direção ao santuário. Um segundo torii se arqueou sobre o caminho, então as árvores recuavam para criar um espaço aberto, quase como um parque. Várias dezenas de fiéis cercavam a longa estrutura coberta que abrigava a fonte de água, onde eles purificariam simbolicamente seus corpos enxaguando as mãos e a boca. Emi mal percebeu que eles observavam enquanto ela virava à esquerda, longe da estação de água. Se ela tivesse continuado, ela teria finalmente chegado ao salão de adoração, onde se poderia orar a Amaterasu. Mas ela não estava aqui para orar. Espreitando por entre as árvores, uma parede branca se estendia à esquerda e à direita, interrompida no centro por um portão aberto, a soleira coberta por seu próprio pequeno telhado de telhas. Ela atravessou a abertura e entrou no amplo pátio além. Grandes pedras quadradas formavam uma superfície lisa em todo o espaço, ininterrupta, exceto por oito cerejeiras plantadas para formar um círculo perfeito no centro. Folhas douradas ainda grudavam nos galhos, embora as cerejas já tivessem desaparecido.
Uma dúzia de edifícios enchia o espaço dentro das paredes, mas a estrutura em frente a ela ofuscava todos eles. Três andares de altura com beirais elaborados e curvos, enfeites de madeira entalhada e duas estátuas koma-inu maciças protegendo os degraus da frente, o prédio era tão imponente quanto belo. O salão de purificação era a sede do Guji, um retiro para kannushi e o campo de treinamento para futuros servos de Amaterasu. Quando os vassalos kami de Amaterasu levassem hospedeiros humanos na Terra, eles também viveriam dentro do salão. O pátio fervilhava de atividade, miko com vassouras travando guerra contra a neve e as folhas, sohei carregando armas, kannushi cuidando de várias tarefas. Quando os primeiros olhos se voltaram para ela, Emi lutou contra a vontade de parar. Em vez disso, ela ergueu o queixo e avançou. Três anos atrás, ela foi mandada embora após a morte de Hana, sentindo-se como se tivesse sido banida de sua casa por sua imprudência, mas ela não se encolheria em seu retorno como uma criminosa culpada. Ela era a kamigakari, o recipiente de Amaterasu, e ela não vacilaria. Todos os outros movimentos no pátio pararam quando todos pararam para observar a kamigakari se aproximar do salão de purificação. Claro que eles a reconheceram. Todos neste santuário sabiam seu nome e rosto. Ela conhecia a maioria deles também. Quando ela estava na metade do pátio, quase diretamente no centro do círculo de cerejeiras, as portas largas do corredor se abriram. Dois kannushi saíram e se afastaram. Um homem saiu atrás deles, parando um pouco antes da escada para observá-la se aproximar. Guji Ishida era tão assustador quanto o corredor atrás dele. Mais alto do que a média, ele exalava poder e autoridade de uma forma que Fujimoto jamais poderia tentar imitar. Seu chapéu preto alto aumentava seu ar distinto, e seu
uniforme era da mais fina seda roxa, com um forro mais escuro dentro das mangas largas que pendiam quase até o chão. A atenção dele pesou sobre ela enquanto ela cruzava o resto do pátio. Só quando alcançou os degraus se atreveu a erguer os olhos. Seus olhos escuros a observavam de um rosto enrugado com maçãs do rosto salientes, bochechas encovadas e um queixo quadrado. Ele não era um homem bonito, mas seu semblante duro e objetivamente severo era impossível de esquecer. Ela se curvou em uma reverência baixa e respeitosa. O farfalhar atrás dela disse que os outros a tinham copiado. Depois de um momento, ela se endireitou, olhando para o chão. Até que Ishida a reconhecesse, ela não podia fazer mais do que ficar parada e esperar. Todos no pátio os observavam em silêncio. —Kamigakari Kimura. — Ishida finalmente disse, sua voz rouca nem fria nem quente. —Bem-vinda a casa. Seu olhar disparou para o dele, mas ela não pôde ler sua expressão nem um pouco. Ele inclinou o queixo em direção às portas e se virou, voltando para o corredor sem outra palavra. Ela olhou para Katsuo e Fujimoto. O primeiro parecia preocupado, mas o último deu a ela um aceno encorajador. Engolindo os nervos, Emi subiu os degraus e entrou no corredor pela primeira vez em três anos.
Após trazer uma bandeja de chá e deixar em frente a Emi e curvando-se, a jovem miko lutou para trás de joelhos, levantou-se e saiu rapidamente da sala, fechando a porta atrás dela. Emi tocou a borda de uma xícara, a porcelana
tão fina que parecia que a menor pressão certamente a quebraria. Ela não segurava a porcelana tão boa desde que deixou Shion. Ela estava sozinha na sala pequena, mas bonita, cercada por paredes de papel de arroz pintado e tatames finamente tecidos no chão. A almofada embaixo dela estava coberta de seda lisa e pesada. Ela nunca questionou a opulência de viver aqui, mas depois de passar tanto tempo em santuários que mal podiam se dar ao luxo de evitar que seus telhados vazassem, ela se perguntou de onde vinha o dinheiro para todos esses adornos. Ishida e Fujimoto estavam se encontrando em uma sala diferente. Ela apertou os lábios enquanto derramava o líquido fumegante em sua xícara. Ela deveria ter insistido em fazer parte do encontro? As boas maneiras estavam tão arraigadas nela que nem mesmo protestou quando Ishida a mandou esperar. Ela deveria ter dito algo, mas obediência a ele era um hábito igualmente arraigado. Pelo menos Fujimoto conhecia toda a história, as partes importantes; ela havia pulado a maior parte de suas interações com Shiro. Mas ele sabia o suficiente para transmitir sua missão e sua gravidade a Ishida. Talvez Ishida desse mais peso às palavras de um kannushi experiente do que às dela. Seu mentor nunca se entregou a qualquer conversa real com ela no passado. Suas interações sempre foram limitadas a breves perguntas sobre seu bem-estar. Ela tomou um gole de chá, esvaziando lentamente a xícara conforme os minutos passavam. Quanto tempo levaria para Shiro alcançá-la em Shion? Ele percorreria toda a distância a pé ou faria com que Yumei o transportasse? E se ele não conseguisse encontrá-la? À medida que sua ansiedade aumentava, ela forçou seu corpo a relaxar em um estado meditativo. Ela estava terminando sua segunda xícara de chá quando a porta se abriu. Fujimoto e Ishida entraram, e quando o Guji se virou para fechar a porta
atrás de si, ela avistou uma terceira pessoa parada no corredor. A porta se fechou e Ishida deu a volta na mesa, suas longas vestes esvoaçando, e se ajoelhou em frente a ela. Fujimoto também se sentou, fazendo uma careta para a mesa. Com uma pontada de nervosismo, ela olhou para Ishida. —Kamigakari Kimura. — ele disse, seu tom rouco quebrando o silêncio pesado. —Lamento que seu retorno a Shion depois de tanto tempo não tenha sido mais festivo, mas estamos aliviados por você ter voltado para nós em segurança. Ela franziu o cenho. “Festivo” dificilmente parecia apropriado, independentemente das circunstâncias de seu retorno. —Kannushi Fujimoto foi capaz de dizer a você o que aconteceu enquanto eu estava no Santuário Shirayuri? — ela perguntou. —E o que Amaterasu me disse para fazer? —As últimas duas semanas foram muito difíceis para você. — respondeu Ishida. —Sua segurança está garantida agora que você voltou para Shion, e faremos tudo o que pudermos para ajudá-la. —Ajudar-me... Você quer dizer me ajudar a encontrar os Kunitsukami? Ishida pegou o bule. Ele encheu uma xícara e a colocou na frente de Fujimoto antes de servir uma segunda xícara para si mesmo. —Seu bem-estar é a maior prioridade. — ele disse finalmente. —Com apenas cinco semanas até o solstício, devemos garantir que você esteja devidamente preparada em corpo e espírito para cumprir seu dever para com Amaterasu. Ela fechou as mãos em torno da xícara vazia, resistindo ao impulso de apertá-la. Cumprir seu dever. Ele sabia que ela agora estava ciente do alcance das mentiras que ele havia perpetrado. Ela respirou fundo e soltou o ar,
expelindo a onda de dor e raiva que suas palavras haviam desencadeado. A prioridade de Ishida acima de tudo era Amaterasu, e sua kami precisava de um recipiente disposto. A vida de Emi era insignificante diante dessa necessidade. Seus antecessores escolheram o engano para atingir esse objetivo, e sua decisão de continuar mentindo não mudaria, independentemente do que ela dissesse. Suas opiniões nunca importaram para Ishida. Ela buscava sua aprovação desde que era uma garotinha, sempre tentando ganhar uma palavra de elogio. Ela nunca o desafiou, nunca discutiu, nem mesmo reclamou. —Eu poderia te dizer. — ela disse lentamente. —Quão desprezível você e o outro kannushi são por terem enganado não apenas as kamigakari que me precederam, mas cada miko que se ofereceu para este papel. O Guji endireitou-se lentamente. Embora sua expressão não tenha mudado, seu olhar a varreu e voltou a subir como se a visse de novo. Ela nunca tinha falado com ele tão ousadamente antes. —No entanto, as mentiras, e a verdade, não importam agora. O que importa é a tarefa que Amaterasu me deu. A tarefa que Kannushi Fujimoto explicou a você. — Ela solicitou, olhando para o kannushi. Fujimoto pigarreou silenciosamente. —Eu disse a Guji Ishida tudo o que você transmitiu para mim. Ela olhou com expectativa para Ishida, mas ele apenas se recostou e deu um gole no chá, observando-a. Colocando sua xícara na mesa, ele cruzou as mãos sobre a mesa. —O Tengu é um yokai misterioso e altamente perigoso. Muitas histórias falam de sua propensão para roubar humanos, trazê-los para seu reino e prendê-los em mundos de fantasia. Mesmo as vítimas que escaparam muitas vezes lutam para retornar totalmente à realidade. Embora muitas vezes devamos confiar
em mitos e contos antigos para obter informações, às vezes os kami confirmam que as lendas realmente refletem a verdade. —O Tengu é certamente perigoso, mas não vejo por que ele jamais...— Ela parou, franzindo a testa. Por que ele estava falando sobre Yumei? —Eu não entendo. —Estou grato por você ter conseguido escapar das garras de uma criatura tão traiçoeira. —Escapar? Eu não... —Faremos todo o possível para ajudar na sua recuperação. Este será um momento difícil para você, Kamigakari Kimura, mas tenho fé em sua força de espírito. Um medo inexplicável se acendeu nela mesmo enquanto a confusão confundia seus pensamentos. Por que ele estava tão focado em Yumei? Por que ele contou a ela sobre as histórias de Tengu roubando pessoas? Ela ficou rígida ao perceber o que Ishida ainda não havia dito. —Você acha que eu tenho vivenciado algum tipo de fantasia colocada na minha cabeça pelo Tengu? — ela exigiu, seu peito apertado. —Você acha que tudo o que eu disse a Kannushi Fujimoto foi algum tipo de alucinação? E quanto aos danos ao santuário? Izanami... —Izanami lutou contra um poderoso yokai. — Ishida interrompeu, sua voz profunda ecoando sobre a dela. —Eu sabia antes de sua chegada que Izanami lutou contra o Tengu em Shirayuri. É realmente uma tragédia que Izanami não tenha sido capaz de matá-lo naquele momento e que você teve que suportar mais quatro dias como sua prisioneira. —Prisioneira? — Ela exclamou furiosamente. —Eu não era uma prisioneira! Izanami não estava tentando me salvar. Ela estava...
—Acalme-se, kamigakari. — Ishida se levantou, imperturbável pela raiva dela. —Não há vergonha em ser enganada por um yokai assim. Já tomamos providências para sua cura e purificação. Em breve, você será você mesma novamente. Emi ficou de pé, fazendo sua xícara cair. Ela rolou para fora da mesa e quebrou no tatame. Ela olhou desesperadamente de Ishida para Fujimoto. —Kannushi Fujimoto, diga a ele! — ela chorou. —Você viu o círculo no santuário, o sangue, o- o... — Ela hesitou, lutando para pensar no que mais poderia provar que Izanami era a traidora, não a protetora lutando contra um yokai traiçoeiro. —Você acreditou em mim quando estávamos no santuário! O rosto de Fujimoto se contraiu de aflição. Ele pigarreou novamente. — Guji Ishida, devo novamente expressar minhas preocupações de que as reivindicações da kamigakari justifiquem consideração, especialmente à luz de... —Fantasias selvagens de se aliar a yokai, de um humano exercendo o poder de Amatsukami, e buscas absurdas para encontrar Kunitsukami não valem a pena considerar. — disse Ishida friamente, seu olhar impressionado curvando a cabeça de Fujimoto novamente. —Os arranjos já foram feitos. Enquanto falava, ele foi até a porta. —A kamigakari precisa de cura e cuidados, e proteção, que não podemos oferecer. Ele abriu a porta e do corredor, um homem entrou. Seu rosto envelhecido e enrugado falava de sabedoria e autoridade, assim como suas vestes kannushi formais, mas a visão dele enviou uma cascata de gelo pelas veias de Emi. Suas vestes não eram do esquema de cores violeta dos servos de Amaterasu, mas tons de marrom e vinho. As cores de Izanami. Com um suspiro assustado, ela recuou para longe da porta.
—Izanami e seus servos ofereceram cuidado e proteção. — Ishida disse a ela calmamente enquanto o kannushi sorria benevolentemente. —A própria Izanami irá garantir a sua purificação e cura. Uma escolta chegará em breve para garantir seu transporte seguro para o santuário de Izanami. —N-não. — Emi gaguejou. Ishida a estava entregando a Izanami? Ele a estava entregando a Amatsukami que tentou matá-la, que a esfaqueou e a deixou para morrer? —Izanami me quer morta! Ela tem matado as kamigakari e vassalos de Amaterasu por cem anos... —Izanami não quer nada mais do que vê-la segura e inteira. — o novo kannushi interrompeu gentilmente. —Depois de ter sido purificada, você verá que o Tengu busca apenas semear discórdia entre os seguidores dos Amatsukami. —Izanami é uma traidora! Ela tentou me matar! — Ela deu mais um passo para trás, seu olhar suplicante passando do rosto impassível de Ishida para a cabeça inclinada de Fujimoto. Fujimoto olhou de soslaio para ela, preocupação e incerteza aumentando sua expressão. Como se estivesse fazendo uma observação educada, ele murmurou baixinho: —O servo de Izanami tem conferido com Guji Ishida desde o ataque do Tengu ao santuário, avisando-o de sua captura e encantamento, e informando-o dos valentes esforços de Izanami para recuperá-la com segurança. Suas mãos se apertaram ao entender o que Fujimoto estava tentando comunicar. Se este kannushi estava aqui há dias, sussurrando no ouvido de Ishida, culpando os Tengu por tudo e semeando dúvidas sobre o estado mental de Emi antes mesmo de ela chegar, ela não tinha esperança de convencer o Guji de que Izanami o estava manipulando. A julgar pelo conflito que apertou o rosto de Fujimoto, até ele não sabia ao certo em que história acreditar.
—Recuperar-me com segurança? — Ela repetiu, incapaz de se conter. — Por que ela deixou Shirayuri então, se ela estava tentando me resgatar? —Izanami conhece bem os métodos de yokai. — respondeu o kannushi. —A presença dela perto do covil do Tengu só iria encorajá-lo a apertar seu controle sobre você. A estratégia dela claramente funcionou bem, já que agora você está livre dele. Ela balbuciou sem palavras, sem saber como argumentar contra tais ridículas, mas de alguma forma lógicas, mentiras. —Você ficará bem de novo em breve, Kamigakari Kimura. — Ishida olhou para o kannushi e Fujimoto. —Vou deixar você sentar-se com a kamigakari enquanto saúdo sua escolta. Quando ele desapareceu pela porta, Emi ficou paralisada. Ishida descobriria que havia enviado voluntariamente sua preciosa kamigakari para a morte ou os servos de Izanami o alimentariam com mais mentiras quando ela não voltasse? Ela empurrou os ombros para trás. Não. Ela não permitiria isso. Ela não seria entregue a seu inimigo como uma criança impotente. Ela era a kamigakari, o recipiente de Amaterasu mais do que apenas no nome, e ela não iria falhar. —Kannushi Fujimoto. — disse ela, estendendo a mão para ele. —Eu preciso de seus ofuda. Ainda ajoelhado à mesa baixa, Fujimoto piscou tolamente, então colocou a mão na manga e retirou vários ofuda, carregados por todos os kannushi. Ela os pegou e espalhou-os. O kannushi de Izanami assistia com uma curiosidade ociosa, despreocupado. Afinal, os humanos não podiam usar ofuda contra outros humanos. A magia simplesmente não funcionava.
Selecionando o ofuda que queria, ela enfiou os outros no bolso da manga e deu a volta na mesa. O kannushi ainda estava sorrindo como um pai indulgente quando ela bateu o talismã de papel contra seu peito. —Sotei no shinketsu. Quando sua voz ecoou pela sala e o ofuda se iluminou com uma luz azul, o choque substituiu o sorriso do kannushi. Então o brilho percorreu seu corpo, envolvendo-o inteiramente. Fujimoto ficou de pé, com o queixo caído. Ela lançou um olhar na direção dele e ordenou: —Não o deixe sair desta sala. Quando ele se curvou em aceitação, ela caminhou para a porta. No corredor, dois sohei ficavam de guarda. Ao vê-la, um deles entrou em seu caminho, seu rosto familiar para ela de três anos atrás, um sohei que a protegeu, embora ela não pudesse se lembrar de seu nome. Antes que ele pudesse falar, ela o empurrou com força no ombro, fazendo-o cambalear, e passou correndo. Ela não tinha mais o lazer da gentileza ou obediência. O sohei gritou para ela voltar, correndo atrás dela. Ela começou a correr, disparando pelo longo corredor. Com as vozes altas, cabeças surgiram para fora das portas, mas ela passou por elas. As portas da frente do prédio estavam abertas, revelando o pátio movimentado, consumido pelas atividades do meio-dia. No meio do longo espaço, Ishida caminhava em direção ao portão, de costas para ela. Ela voou para fora das portas e desceu as escadas, vislumbrando brevemente Katsuo, Nanako e Minoru esperando ao lado do corredor. —Ishida! — Ela gritou. Todos no pátio ficaram paralisados. Ishida parou bruscamente e se virou, suas vestes brilhando para fora.
Emi deslizou até parar dentro do amplo círculo de árvores, seus ramos estendidos entrelaçados no alto. Ela encontrou os olhos de Ishida através da distância entre eles, e a fúria ferveu nela por ele confiar na palavra de um estranho kannushi sobre a dela, por ele dar as costas a sua kami. Amaterasu confiou a Emi esta tarefa e ela não poderia falhar. Mas como ela deveria convencê-lo de que sua versão dos eventos era a verdade? Um calor tremulante sussurrou em seu peito, quase como uma pergunta. Ela se lembrou da ferocidade de Amaterasu enquanto enfrentava Izanami através de Emi. Emi também poderia ser feroz. Ela era a nave de Amaterasu, sua voz na Terra. Embora a descida ainda não tivesse ocorrido, Emi estava mais perto de ser uma kami agora do que qualquer kamigakari já esteve antes. Ela estava cumprindo a vontade de Amaterasu. —Guji Ishida. — Sua voz encheu o pátio, o toque de comando desconhecido para seus ouvidos. —Seu dever é servir Amaterasu. Sua boca se estreitou. —Eu vivo para servir minha kami. — Ele respondeu baixinho. —Eu trago o comando do Amaterasu. — ela declarou. —Você se recusa a obedecer? A raiva, visível mesmo na metade do pátio, apertou seu rosto. —Até o solstício, temo que você não possa falar pela sagrada Amatsukami. A brisa agitou-se, varrendo as folhas caídas em um círculo ao redor de suas pernas. O calor dentro dela pulsava no mesmo ritmo de seus batimentos cardíacos. —Eu falo por Amaterasu. Ela me deu suas palavras e seu poder. — Ela ergueu o queixo. —Se você acredita na minha história é irrelevante. Sua opinião não é necessária. Amaterasu me comandou, e através de mim, você. Você vai obedecer a vontade de sua kami?
Tão imóvel quanto uma estátua, o Guji a analisou. Seus comandos autorizados podem ter sido detestavelmente arrogantes em diferentes circunstâncias, mas kami não pedia a cooperação de seus servos. Eles não convenciam, persuadiam ou bajulavam. Eles comandavam. E se Emi fosse a vontade de Amaterasu neste mundo, ela também comandaria. Seu olhar caiu para as folhas girando em um círculo preguiçoso ao redor de seus pés e a dúvida cintilou em suas feições. Então outra voz deslizou pelo silêncio do pátio. —Nenhum mortal pode falar por um kami, nem mesmo uma kamigakari. Atrás de um grupo de miko perto do portão do pátio, um homem apareceu, flanqueado por dois sohei armados. Suas longas vestes, flutuando atrás dele, eram uma mistura entre o uniforme de um kannushi e as roupas finas de um nobre. Seu cabelo era cortado em um estilo moderno e curto, em desacordo com suas roupas tradicionais, e seu rosto jovem parecia brilhar por dentro. Os joelhos de Emi enfraqueceram e ela pressionou as mãos contra as coxas para esconder o tremor. O homem não poderia ser outro senão a escolta do santuário de Izanami, vindo para levá-la embora. E ele era um kami.
O kami parou enquanto Ishida se curvava em uma profunda reverência de respeito. Imediatamente, todos no pátio copiaram sua genuflexão, mas ela manteve a coluna teimosamente ereta. Os olhos escuros do kami brilharam com diversão fria em seu desafio. —Você não é bem-vindo no solo sagrado do Amaterasu. — ela disse para o pátio silencioso, suas palavras facilmente transportadas para os kami. — Deixe este santuário imediatamente. Suspiros incrédulos ecoaram pelo pátio. Ela não se moveu, seu olhar travado com o do kami. Ele não a atacaria com tantas testemunhas, certo? Como ela se defenderia? Shiro não teve tempo suficiente para chegar ao santuário, e mesmo se tivesse, ela não tinha certeza se ele conseguiria lutar com um kami. Yumei lutou para derrotar Koyane, embora Koyane fosse excepcionalmente poderoso. —Estou aqui para escoltá-la até Izanami. — Disse o kami, uma gentileza doentia e doce escorrendo de sua voz, uma emoção que ele claramente não tinha prática em retratar. —Eu não vou te acompanhar a lugar nenhum. Saia agora. —Devo levá-la a Izanami para o seu próprio bem, criança. — Ele começou a avançar com passos deslizantes, seus sohei o seguindo. —Eu espero que você não resista à nossa ajuda.
Se ele chegasse perto o suficiente para tocá-la, ele seria capaz de incapacitá-la quase que instantaneamente. Ela não podia deixá-lo alcançá-la. —Fique longe! — Ela disse desesperadamente, dando um passo para trás. Em um lampejo de movimento, Katsuo apareceu na frente dela, uma mão no punho de sua katana. Minoru juntou-se a ele, seu bastão laminado sustentado defensivamente. Os dois sohei ficaram entre ela e o kami que se aproximava. —A kamigakari pediu para você deixar o santuário. — Disse Katsuo. O kami parou a poucos passos dos dois sohei, seu próprio par de guardiões o flanqueando. —Devo admitir... — ele murmurou baixinho o suficiente para que sua voz não ultrapassasse seus ouvidos. —Que não tenho desejo de jogar este jogo, Kimura Emi. Izanami não especificou se sua vida deveria terminar pelas mãos dela ou de outra. —Você me mataria na frente de todas essas pessoas? — Ela perguntou com um leve tremor. —Eu não me importo com as preocupações dos humanos. — Ele inclinou a cabeça em direção aos sohei que o flanqueavam. —Mate seus homens. Os sohei desembainharam suas espadas e avançaram com uma velocidade chocante. A espada de Katsuo tocou quando ele a tirou da bainha. O aço encontrou o aço em um estrondo ensurdecedor quando as armas colidiram, e gritos de pânico seguiram os servos do santuário que observavam. Os sohei do kami levaram Katsuo e Minoru de volta, empurrando-os para longe dela. O kami deu um passo à frente, estendendo uma mão para ela. Se ele a tocasse, estaria acabado. Ele poderia matá-la ou colocá-la em um sono
encantado em segundos. O calor pulsou em seu peito. Não tendo certeza se ela estava obedecendo Amaterasu ou instinto, Emi estendeu a mão. O poder desceu por seu braço. O vento entrou em erupção no pátio. Uma rajada rápida saiu dela e atingiu o kami. Ele voou para trás, mal ficando de pé. As armas se chocaram ruidosamente e vozes gritavam palavras ininteligíveis. O kami se endireitou, seu lábio superior se curvando em um sorriso de escárnio. —Uma brisa insignificante não será o suficiente, kamigakari. Com um movimento de sua mão, o chão retumbou violentamente. As pedras sob os pés de Emi se partiram. Ela mergulhou em uma fenda na terra, caindo dolorosamente de joelhos. Presa entre paredes de rocha, ela jogou a mão para baixo. O vento ganhou vida, lançando-a para cima enquanto o chão tremia. Ela disparou para fora da fenda quando esta se fechou novamente com um guincho de pedra rasgando, deixando não mais do que uma pequena rachadura. Se ela estivesse dentro da lacuna, ela teria sido esmagada. Ela
tinha
que
detê-lo
antes
que
ele
trouxesse
seu
poder
consideravelmente maior para suportar. Enfiando a mão na manga, ela agarrou o ofuda que havia tirado de Fujimoto. O kami se abateu sobre ela uma segunda vez. Talvez ele ainda pretendesse tomá-la viva, se possível. Ela não podia dar a ele uma chance. Com um suspiro, ela se lançou para frente para encontrá-lo. Surpresa disparou em suas feições. Ele estendeu a mão para encontrar a dela, e em vez de golpear seu torso com seu ofuda, ela acertou a palma de sua mão. —Sotei no shinketsu! — Ela gritou.
A magia correu por ela quando um brilho azul iluminou o ofuda. A luz cintilou sobre o kami, mas em vez de envolvê-lo como fizera com o kannushi, ondulou descontroladamente. O poder branco saiu do kami enquanto ele lutava contra a amarração com seu próprio ki. Ela apertou a mão com força contra a dele, lutando para segurar o feitiço. O vento entrou em erupção novamente, avançando pelo pátio e pegando todas as folhas douradas das cerejeiras no ciclone. Elas espiralaram para o céu enquanto ela se esforçava para forçar a amarração nele. Em um redemoinho de vestes violetas, Ishida apareceu ao lado de Emi, aparentemente imperturbável pelo redemoinho ao redor dela e do kami. —Segure-o um pouco mais, Kimura. — Disse ele. Ela empurrou a mão e o ki contra o ofuda enquanto o calor crescia em seu peito até que parecia que sua marca kamigakari estava pegando fogo. O poder queimava seus nervos. Concentrando-se no kami, ela dobrou sua vontade para segurar o ofunda nele enquanto o papel ficava preto sob sua palma. Mãos agarraram a parte de trás de seu quimono e a puxaram para longe. Ela engasgou quando sua mão deixou o ofuda. Sem seu ki para sustentálo, ele instantaneamente se dissolveu em cinzas negras. A boca do kami torceuse furiosamente enquanto ele estendia a mão na direção dela. —Sotei no shinketsu. — A voz profunda de Ishida retumbou. Uma luz branca cegante irrompeu. No chão ao redor do kami, as linhas de um marugata complexo brilhavam com poder. A luz varreu o kami, envolvendo-o onde seu ofuda havia falhado. O kami congelou no lugar, preso pela magia do círculo de exorcismo. Ishida parou na frente dela. Alguém havia dado a ele um longo bastão com uma elaborada argola de ouro no topo, e ele o segurava com a ponta
apoiada na borda do círculo que ele havia desenhado nas pedras ao redor dela e do kami. Usados para amarrar e selar o mais perigoso dos yokai, os marugata eram muito mais poderosos que o ofuda. Ela não percebeu que eles podiam amarrar kami também. Katsuo ficou ao lado dela, tendo-a puxado do marugata pouco antes de Ishida ativá-lo. Os dois sohei do kami foram desarmados e cercados pelo sohei vestido de roxo de Amaterasu. Respirando com dificuldade, Emi se virou para Ishida. —Acredita em mim agora? — Ela perguntou roucamente. Ishida encontrou o olhar dela, seu rosto ilegível. —Emi, você está bem? — Katsuo murmurou ao lado dela. —Hã? — Ela começou a se virar para ele e seus joelhos dobraram. Ele a agarrou quando ela caiu, seu corpo inteiro tremendo. Um toque estranho encheu sua cabeça enquanto um vazio doloroso se espalhava de seu peito para fora. Enquanto Katsuo a apoiava e Ishida caminhava em sua direção, o zumbido do pátio se fundiu com o zumbido em seus ouvidos, e tudo desapareceu na escuridão.
Juntando as mãos, Emi baixou a cabeça. Na frente dela, o pequeno santuário doméstico para orações privadas ocupava um recanto na parede, emoldurado por vasos brancos que eram cheios de flores frescas todas as semanas. O resto da suíte, a maior entre os alojamentos das miko, era tão familiar que ela podia imaginá-la perfeitamente sem abrir os olhos.
Belos tapetes de tatame cobriam os pisos espaçosos e vários rolos pintados
impressionantes
acentuavam
as
paredes
com
painéis
de
madeira. Uma mesa baixa retangular, cercada por almofadas de pelúcia, ocupava o centro do espaço. Em um segundo quarto semifechado, uma grande cama de tamanho normal esperava, uma atualização significativa dos colchões futon habituais armazenados no armário durante o dia. Era um dos poucos elementos não tradicionais no quarto. Armários de parede a parede com portas de madeira entalhada davam para o quarto. Ela voltou sua atenção para dentro, na esperança de sentir a presença de Amaterasu dentro dela. Depois de alguns minutos, uma dor quente cintilou através de sua marca kamigakari. Ela prendeu a respiração e esperou, mas, como antes, a breve dor foi tudo o que ela sentiu. Ela ergueu a cabeça, completando sua oração com uma reverência final. Ficando de pé, ela compassou o comprimento de seu quarto e voltou novamente. Depois de lutar contra o kami, ela desmaiou. Ela acordou tão tonta e fraca quanto se sentia depois que Koyane roubou a maior parte de seu ki. Yumei a avisou que ela precisaria de um tempo significativo de recuperação antes que ela pudesse exercer o poder de Amaterasu novamente; a posse dela pela Amatsukami havia enfraquecido seu corpo e seu ki. Pelo mesmo motivo, ela ainda não foi capaz de libertar Shiro do onenju. Canalizar o poder de Amaterasu no pátio não apenas a exauriu, mas seu suprimento
imensamente
diminuído
do ki de
Amaterasu também
enfraqueceu sua conexão com sua kami a ponto de ela não poder nem mesmo sentir a presença de Amaterasu. Felizmente, ela não precisava de nenhum poder divino por enquanto. O kami estava selado e não deixaria o santuário tão cedo. Ela não sabia
exatamente o que Ishida tinha feito com o kami, ou seu kannushi e sohei, e ela não perguntou. Até que ela deixasse Shion, eles não poderiam passar seu paradeiro para Izanami. E Ishida não estava arriscando outro atentado contra a vida dela. Ele triplicou a guarda ao redor do santuário e aumentou suas proteções mágicas também. Embora ele tivesse garantido que ela estava tão segura quanto poderia estar nas circunstâncias, ele ainda insistiu que ela ficasse dentro do complexo murado onde eles poderiam protegê-la melhor. O pequeno lado positivo da tentativa sem reservas do kami de matá-la era que isso havia revertido firmemente a posição de Ishida sobre sua versão dos acontecimentos. Quando ela reiterou novamente a ordem de Amaterasu para que ela encontrasse e libertasse os Kunitsukami, ele finalmente iniciou uma busca cuidadosa por pistas entre os santuários e servos Izanami. Ainda andando pelo quarto, ela torceu as mãos. Já era o quarto dia desde seu retorno a Shion, e Ishida ainda não tinha informações para ela. A demora a irritava, diminuindo sua paciência e aumentando a sensação de caça que a perseguia a cada passo. Ela se encontrou com ele nos dois dias anteriores para ver o que ele havia descoberto, mas ele não tinha nada para compartilhar. Ele garantiu a ela que levaria algum tempo para contatar todos os kannushi e, por sua vez, fazer com que questionassem discretamente os membros de seus santuários. Paciência, ele havia dito. A paciência era difícil quando os dias estavam passando rápido demais. Já era dia dezenove de novembro e o solstício era dia vinte e um de dezembro. Restavam menos de cinco semanas para encontrar e libertar os Kunitsukami. Menos de cinco semanas até o fim de sua vida.
Ela balançou a cabeça, banindo o último pensamento. Ela havia aceitado seu destino. Sua única preocupação agora era completar a tarefa crucial que Amaterasu havia dado a ela antes do solstício. Parando no meio do quarto, ela brincou com a ideia de importunar Ishida novamente. Ela não tinha mais nada para fazer. Por quatro dias ela permaneceu dentro dos aposentos das miko, onde estaria mais segura de novos ataques. Quatro dias andando de um lado para o outro em seu quarto, andando pelos corredores, andando pelo jardim interno no centro do edifício. Várias miko, sem dúvida por insistência de Ishida, se ofereceram para incluí-la nas atividades, ajudando no treinamento, observando uma nova classe praticando suas danças kagura, desenhando ofuda e outros talismãs. Ela não tinha aceitado nenhum dos convites. Ela não apenas estava muito consumida por preocupações e frustrações para dar atenção a qualquer uma dessas tarefas, mas também não conseguia se envolver em nada que se parecesse com sua rotina como uma miko. As memórias já a estavam assombrando... memórias de Hana. Em cada centímetro deste edifício, deste santuário, ela podia ver os fantasmas de sua amizade. Até agora, ela nunca tinha estado em Shion sem Hana ao seu lado. A amizade delas começou no primeiro dia de Emi aqui, como uma menina assustada de oito anos, e poucos dias após a morte de Hana, Emi deixou Shion para sempre. Cada lembrete de Hana e sua ausência cortava seu coração. Ela esfregou dois dedos na testa, massageando uma dor de cabeça crescente. Teria sido bom conversar com Katsuo, compartilhar suas preocupações e frustrações, mas ela não o via desde o dia em que chegaram. Cada vez que ela perguntava sobre ele, ela era informada que ele estava em algum tipo de treinamento. Ela não pôde evitar sua decepção por ele não ter vindo ver como ela estava.
Ela suspirou. Fazia ainda mais tempo desde que ela viu Shiro. Ela estava preocupada que ele invadisse o santuário ao perceber que uma batalha kami ocorrera no pátio, mas talvez ele não tivesse chegado perto o suficiente para notar. O Santuário Shion não era um lugar seguro para um yokai, especialmente com todos em alerta máximo. Ela deveria deixá-lo saber o que estava acontecendo; ele provavelmente estava enlouquecendo esperando por ela. Assentindo para si mesma, ela se dirigiu para a porta. Os corredores estavam silenciosos, a maioria das miko fora e cuidando de seus vários deveres. Perdida em pensamentos, ela caminhou pelos corredores familiares até que um murmúrio de conversa chamou sua atenção. —Mas não pode ser verdade. A voz da miko saiu de uma porta parcialmente aberta no final do corredor. Emi diminuiu o passo, surpresa com a negação veemente da garota. —Por que ela mentiria, então? — outra miko rebateu. —Miko Nanako não é exatamente amigável na maioria das vezes. Ao ouvir o nome de Nanako, Emi se aproximou da porta e olhou com curiosidade pela fresta. Quatro adolescentes miko estavam sentadas em um círculo,
suas
mãos
ocupadas
trançando cordas shimenawa enquanto
conversavam. —Ser hostil e mentirosa são duas coisas diferentes. — disse uma das meninas com firmeza. —Além disso, dificilmente é uma história maluca comparada com o que aconteceu no pátio. Outra garota bufou infeliz. —Eu gostaria de ter estado lá. —Não, não gostaria. Foi assustador. — As mãos da garota pararam na corda. —Eu nunca tinha visto um kami antes. Não tenho certeza se realmente
acreditei... mas ele era real. E quando ele fez o chão se abrir e engolir Kimura, pensei que ela estaria morta com certeza. —Mas por que um kami iria querer matar nossa kamigakari? —Miko Nanako disse que Izanami traiu os outros Amatsukami. O silêncio caiu sobre as meninas. —Sempre pensei que a kamigakari se tornaria imortal e viveria para sempre. — resmungou uma garota. —Ou pelo menos viver até Amaterasu precisar ascender novamente, o que pode levar séculos. —Tsukiyomi tem usado o mesmo kamigakari há muito tempo e ouvi dizer que ele ainda parece ter uns vinte anos ou algo assim. —O que Kimura vai fazer? Ela não sabia que iria morrer. —Ela vai de qualquer jeito. — disse aquela que testemunhou a luta no pátio, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. —Como ela poderia fazer qualquer outra coisa? Se ela desistisse agora... isso seria tão vergonhoso. —Mas ela não sabia quando foi escolhida. Se fosse eu, eu fugiria. —Eu também. —O mesmo aqui. —Ela não vai correr e nem eu iria. — respondeu a garota. —Você viu o que ela fez no pátio? Ela pode morrer no solstício, mas como ela poderia trair Amaterasu desistindo agora? Amaterasu precisa dela e ela sabe disso. As outras garotas murmuraram em concordância relutante e Emi se forçou a voltar ao movimento. O vômito se agitou em seu estômago. Se fosse eu, eu fugiria. Ouvir outras meninas dizerem com tanta certeza que, em face da morte, elas abandonariam seu dever abalou Emi. Havia algo de errado com ela por não ter reagido daquela forma? Uma única miko havia entendido. Recuar não era apenas vergonhoso; era imperdoavelmente egoísta.
Ela correu para as portas principais do corredor e para os degraus da frente. O pátio estava vazio, exceto por alguns kannushi perto do salão de purificação e um trio de sohei permanecendo perto das portas dos aposentos das miko, segurança adicional para a kamigakari, sem dúvida. Nuvens se acumularam no céu e o ar fresco e frio cheirava a neve chegando. Olhando para o outro lado do pátio, ela considerou onde era mais provável encontrar Shiro. Ele poderia ter entrado e saído à vontade do Santuário Shirayuri, mas entrar em Shion era um perigo que ele não enfrentaria levianamente. O torii poderia potencialmente rejeitá-lo, mas mesmo que não o fizesse, o solo estava coberto com cordas purificadoras de ofuda e shimenawa, além de alguns círculos de marugata de ligação e, é claro, os muitos kannushi e sohei habilidosos que detectariam a presença de um yokai próximo. A borda leste do terreno era a mais densamente arborizada e o lugar mais seguro para ele se esconder. Descendo os degraus, ela considerou como encontrá-lo discretamente uma vez que estivesse fora do terreno. —Minha dama? — Os três sohei correram para se juntar a ela. — Podemos perguntar onde você está indo? Ela inclinou a cabeça em direção ao portão que dava para o pátio. —Eu preciso sair do terreno do santuário por um momento. Eles trocaram um olhar alarmado. —Guji Ishida indicou que você deveria permanecer aqui. —É necessário. — ela os assegurou. —Não se preocupem, vocês podem me acompanhar. Isso levará apenas alguns minutos. Eles trocaram outro olhar conciso. Um deles girou nos calcanhares e disparou em uma corrida rápida em direção ao corredor de purificação. O mais velho hesitou, estranhamente cauteloso. —Fomos instruídos a garantir que você permaneça dentro do complexo.
—Não pretendo ir longe. — Ela se virou em direção ao portão novamente, mas assim que deu um passo, os dois pularam na frente dela, bloqueando seu caminho. —Nossas ordens são do Guji, minha dama. — o sohei mais velho disse rigidamente. —Por favor, entenda que devemos garantir que você fique aqui. Ela hesitou, sem saber como responder. Como kamigakari, ela era superada pelo Guji. Mas como a voz de Amaterasu, ela era a maior autoridade no santuário. Ela se recompôs. Para sua surpresa, ambos sohei recuaram e o mais jovem agarrou o cabo de sua espada. Ela congelou. Eles estavam com medo dela? Enquanto sua mente girava, o foco do jovem sohei mudou para a esquerda e o alívio varreu seu rosto. Emi se virou. Ishida se aproximou rapidamente com o terceiro sohei meio trotando atrás dele, lutando para acompanhar os passos largos do Guji. —Kamigakari Kimura. — disse ele. —Por favor, venha comigo. Lançando um olhar frio para os três sohei, ela seguiu Ishida enquanto ele retornava ao salão de purificação. Ele a conduziu diretamente para seu escritório e se ajoelhou do outro lado da mesa. Emi se abaixou para se ajoelhar em frente a ele. —Kamigakari Kimura, por que você tentou deixar o terreno? —Eu queria ver se Shiro ou o Tengu estavam por perto. Eles estão esperando por informações sobre Izanami para que possamos agir imediatamente. —E você não considerou o perigo de deixar o santuário? —Eu, é claro, mas eu estaria apenas... —Apesar de nossos melhores esforços, não podemos garantir sua segurança além do torii. Os servos de Izanami podem estar esperando para
atacar no momento em que você for exposta. — Ele cruzou as mãos sobre a mesa. —Você não vai deixar o terreno sob nenhuma circunstância, Kamigakari Kimura. Está claro? —Como vou me comunicar com Shiro e Tengu se não posso deixar o local? — Seus olhos se estreitaram. —Assim que tivermos uma ideia de onde procurar os Kunitsukami desaparecidos, terei que ir embora. Amaterasu me ordenou que os encontrasse e os libertasse. Não posso fazer isso de dentro do santuário. —Amatsukami tem vassalos e servos para completar tarefas perigosas para eles para que possam permanecer seguros, como precisamos que eles estejam. Você me trouxe essa tarefa e agora deve confiar em mim para levá-la até o fim. Todos os que servem neste santuário existem para colocar nossas vidas antes de Amaterasu, e, portanto, a sua. —Eu não vou sentar aqui sem fazer nada enquanto... —Você vai manter-se segura dentro do santuário. Amaterasu deu a você esta tarefa, e você a deu a mim. Vou garantir uma investigação completa de todas as pistas que descobrirmos e, se descobrirmos Kunitsukami presos, cuidaremos disso. —O que significa cuidar disso? — Ela lutou para manter o tom calmo. — O que quer que Izanami tenha feito para aprisionar os Kunitsukami não é algo que um humano pode desfazer. Eu vou precisar... —Não vou permitir que você chegue perto de um Kunitsukami. A cerimônia é daqui a pouco mais de um mês, e Izanami já está caçando você. Mesmo um único passo fora da proteção do terreno pode ser sua morte imediata.
—Libertar os Kunitsukami é mais importante. — ela insistiu. —Izanami está fazendo algo que Amaterasu disse que destruiria o mundo. Isso é mais importante do que minha vida ou a descida de Amaterasu. —Até que fique claro que o mundo está em perigo iminente, não vou arriscar você. —Amaterasu me disse... —No momento, não há nada para você fazer que nossos habilidosos e talentosos sohei e kannushi não possam fazer. —Não vou ser colocada de lado nisso, Guji Ishida. A temperatura de seu olhar caiu até ficar ártica. —Sua segurança e sobrevivência são minha maior prioridade e não vou permitir que você morra antes do solstício. Para isso, já tomei providências para movê-la para um local seguro e escondido, onde nem kami nem yokai possam encontrá-la. Ela respirou fundo. Ishida deveria ajudá-la, não tirar sua tarefa e trancála em um local escondido, isolado de tudo. —Você, você não pode... —Farei o que for preciso para servir a minha kami. Se ela tentasse partir contra a vontade dele, Ishida sem dúvida usaria a força para impedi-la, e ela não tinha poder para lutar, mesmo se quisesse; seu ki ainda estava exausto de lutar contra o kami. E, na pequena chance de ela passar por Ishida, cada kannushi e sohei no santuário se colocaria entre ela e escapar. —O Tengu e Shiro não vão lidar com você. — ela disse desesperadamente. —Sem eles... —Podemos nos virar sem a ajuda dos yokai. —Não, você não pode. Você nem sabe o que procurar além... —Não foi difícil identificar sinais das atividades dúbias de Izanami, uma vez que soubemos procurá-las. — Ele interrompeu com desdém.
Ela ficou rígida. —Você... você encontrou algo? Por que você não me contou? O que você achou? —Nada que você precise se preocupar. Nós vamos lidar com isso. —Esta é a minha tarefa! — Sua voz se elevou apesar de seus melhores esforços para controlá-la. —Você não pode simplesmente investigar você mesmo; você avisará Izanami que nós estamos... Ishida se levantou. —Eu sou muito mais capaz do que você acredita, Kamigakari Kimura. Claramente, compartilhar qualquer informação só vai te deixar angustiada. Recomendo que você relaxe à tarde e pratique sua meditação. A cerimônia do solstício é daqui a apenas um mês e você precisa estar com a mente e o coração mais puros antes disso. Amanhã à tarde, iniciaremos a sua realocação. Ele tirou uma pequena bolsa de seda do bolso e colocou-a sobre a mesa na frente dela. —Eu preparei um novo omamori para você. É o mais forte que posso fazer e você precisará dele nas próximas
semanas. Coloque
imediatamente. Antes que ela pudesse responder, ou retomar a discussão, ele saiu da sala, fechando a porta atrás de si. Pegando a bolsa de seda plana, ela apertou-a na mão. Como ela deixou isso acontecer? Em vez de trabalhar com ela, Ishida tirou todo o poder e responsabilidade dela, deixando-a sem nada. Ele tinha a informação que ela tinha vindo buscar, e ele não diria a ela nada sobre isso. Mais uma vez, ela era apenas um corpo aguardando a descida do kami, inútil e inconsequente. E amanhã, ele iria mandá-la embora para algum local remoto onde, provavelmente, nem mesmo Shiro e Yumei poderiam encontrá-la. Ela tinha que retomar o controle dele. Ela tinha que impedi-lo de mandála embora e levar a investigação longe demais por conta própria. Se Izanami
percebesse que alguém estava procurando os Kunitsukami aprisionados, resgatá-los passaria de ‘extremamente difícil’ para ‘totalmente impossível’. Ela tinha que pará-lo, mas ela não tinha nenhum poder, não agora. Se ela não tinha poder, então precisava de alguém que tivesse. A inquietação se apoderou dela com a ideia se formando em sua cabeça. Ela precisava de ajuda e só tinha uma opção.
Ao leste. No terreno do Santuário Shion, um pasto cercado continha vinte e quatro cavalos magros e prontos para a exibição. Em frente ao pasto estava o que se poderia supor ser uma grande arena de equitação, mas o espaço não era para treinamento de equinos. Enquanto uma leve neve caía suavemente ao redor deles, três dúzias de sohei segurando espadas de madeira para praticar se moviam em perfeito uníssono através de uma série de posturas lentas e precisas. Os movimentos sincronizados eram hipnotizantes e, uma vez, Emi passara muitas tardes fingindo acariciar os cavalos enquanto observava os jovens sohei treinarem, um sohei em particular. Marchando pelo caminho largo, ela teve que lutar contra o vômito que se contorcia em seu estômago. Ao norte da arena de treinamento havia uma trilha estreita que saía do terreno do santuário, atravessava uma pequena ponte para pedestres e entrava no parque densamente arborizado além. Era a mesma trilha que ela havia seguido com Hana para que pudesse espionar o adolescente Katsuo, e a mesma trilha onde Hana havia morrido três anos atrás. Ishida havia aumentado o número de sohei em guarda no pátio após sua última tentativa de deixar o complexo. Com paciência e uma dose de sorte, ela conseguiu entrar no meio de um grupo de miko e passar pelos sohei enquanto assistiam a uma discussão entre dois kannushi do outro lado do
pátio. Infelizmente, ela cortou muito perto da hora do jantar e alguém iria notar sua ausência nos próximos minutos. Katsuo a observou se aproximar da arena, mas não se alterou. Ele girou a espada em um arco perfeito enquanto deslizava o pé esquerdo para trás. Inclinando-se para o lado para contrabalançar, ele e o outro sohei estenderam as pernas direitas em um chute lateral em câmera lenta. Esses exercícios eram mais para condicionar o corpo e enraizar a forma adequada do que realmente lutar. Quanto mais lento o movimento, mais força e controle eram necessários para manter a forma perfeita, especialmente porque essas sessões normalmente duravam várias horas. Ela parou um pouco antes de o caminho de cascalho virar areia compacta e lisa que tinha sido cuidadosamente limpa da neve. O sohei de cabelos grisalhos e encaracolados que supervisionava o anel de exercícios ofereceu-lhe uma reverência. Normalmente, Emi teria se curvado mais do que ele para mostrar seu respeito por sua idade, experiência e habilidade, mas desta vez, ela mal baixou a cabeça em resposta. Um rubor por sua própria ousadia cresceu em suas bochechas, mas ela cerrou os dentes e se ergueu. As sobrancelhas do velho sohei se ergueram com a escolha da reverência. —Sensei. — ela disse. —Minhas desculpas por interromper. —Como posso ajudá-la, minha dama? —Eu preciso falar com Katsuo. —Katsuo? — O velho olhou por cima do ombro. Os sohei continuaram sua rotina, mas Katsuo estava claramente mais focado em Emi do que no que ele estava fazendo, embora sua forma permanecesse perfeita como sempre. — Como você pode ver, estamos ocupados. Você pode voltar em uma hora quando terminarmos.
—Eu exijo sua presença imediatamente. — Ela disse friamente, escondendo sua impaciência. —Eu temo que... Ela passou pelo sensei na areia, deixando-o com a boca aberta. Ela não tinha tempo para discutir. O sohei mais próximo quebrou a forma, virando suas armas para baixo de forma que não houvesse chance de eles poderem atacá-la. Katsuo também abaixou sua espada enquanto ela caminhava até ele. Sem dizer uma palavra, ela agarrou a manga dele e o arrastou de volta através da série de sohei, marchando direto para eles e forçando-os a pular para fora de seu caminho. Katsuo passou sua espada de treino para um de seus colegas e correu atrás dela. Ao voltar ao caminho, ela estendeu o passo, puxando-o com ela. —Emi... — ele gaguejou. —O que... —Aqui. — ela disse. —Rapidamente. Ela conduziu Katsuo em direção à cerca do pasto para que eles ficassem fora do alcance da voz da arena de treino. Ela inclinou a cabeça na direção dele e disse em voz baixa: —Não sei quanto tempo tenho antes que alguém venha me arrastar de volta. A mandíbula de Katsuo apertou. —Eu queria ver você, mas toda vez que tentei, você estava 'indisponível'. —Ishida tem medo que você me ajude em vez de obedecê-lo. —Ele tem razão. O que você precisar, Emi, eu vou te ajudar. —Obrigada, Katsuo. — Ela piscou rapidamente antes que seus olhos pudessem lacrimejar muito. —Ishida decidiu que seguir as ordens de Amaterasu é muito perigoso para mim. Amanhã ele vai me mandar embora para um local secreto.
—Por que não estou surpreso? — murmurou Katsuo. —O que deveríamos fazer? Ela fez uma careta. —Eu preciso que você saia do terreno do santuário e encontre alguns corvos. —Corvos. — Ele disse categoricamente, sem dúvida fazendo a conexão imediatamente. —Sim. Encontre alguns corvos que parecem estar prestando atenção em você. Diga a eles que eu enviei você e que o Guji tem as informações de que precisamos, mas não vai compartilhá-las e não vai me deixar sair. Se Shiro te encontrar primeiro, você pode dar a ele a mesma mensagem. —Shiro. — ele grunhiu em desgosto. —Devo dizer aos corvos para que o Tengu receba sua mensagem, certo? —Sim. —Emi, eu sei que eles ajudaram você antes, mas eles são yokai. Ela balançou a cabeça. —Você deveria estar mais preocupado com qualquer kami que possa estar lá fora. Ele bufou. —Ok. Qual é o resto da mensagem? —Só que não sei como conseguir as informações de Ishida e preciso sair daqui para que possamos decidir o que fazer a seguir. — Ela tentou manter o corpo relaxado para que o vigilante sensei não visse sua tensão. Pedir a Shiro e Yumei para ajudá-la era um grande risco; ela não tinha ideia do que eles poderiam fazer. Tamborilando com os dedos na grade superior da cerca, Katsuo franziu a testa. —Será que os corvos, uh, vão dizer alguma coisa? —Provavelmente não, mas se você ficar por perto, o Tengu pode aparecer para falar com você. — Ela hesitou. —Isso seria uma má ideia. Melhor não fazer isso.
—Sim, acho que não vou. Além das árvores, um grupo de sohei apareceu, caminhando rápido em direção à arena e ao pasto. —Você será capaz de fugir? — Ela perguntou rapidamente. —Sim, eu vou escapar hoje à noite. Não deve ser difícil. —Tenha cuidado, ok, Katsuo? Shiro não vai machucar você, mas o Tengu não gosta de humanos. —Eu vou tomar cuidado. — Ele sorriu tensamente. —Espero que o kitsune apareça. Eu estava querendo conversar com ele sobre algumas coisas. Seus olhos se arregalaram. —Quando eu disse que ele não machucaria você, quis dizer sem provocação. Não... —Terei cuidado. — Ele repetiu, não parecendo nem perto de ser cauteloso o suficiente. Ela suspirou, sabendo que não poderia dissuadi-lo de qualquer pequeno plano que ele estava tramando. —Obrigada, Katsuo. Se alguém perguntar, eu estava me despedindo de você. —Entendi. Com um aceno rápido, ela se afastou dele, indo em direção ao grupo que se aproximava. Atrás dela, Katsuo voltou para a arena com passos apressados. —Minha dama. — disse o líder sohei ao se juntar a eles. —Você não deve deixar o complexo. Ela ofereceu uma rápida reverência de desculpas. —Eu estava apenas dizendo adeus a sohei Katsuo. Podemos voltar agora. Ignorando os olhares suspeitos dos sohei, ela passou calmamente por eles. Eles seguiram em silêncio. Enviar Katsuo para enfrentar Shiro e Yumei sozinho fez seu peito apertar de nervosismo, mas com alguma sorte, ele poderia entregar sua mensagem aos
corvos e acabar com isso. Ela tinha quase certeza de que Shiro não machucaria Katsuo, mas não confiava em Yumei perto de nenhum humano exceto ela, e apenas porque ele precisava dela viva. Ela gostaria que houvesse outra maneira, mas Ishida não lhe deixou opções. Ela esperava não se arrepender.
A meia-noite se aproximava, Emi estava na frente de sua janela, olhando para a escuridão iluminada apenas pelos vestígios de luz vazando do pátio do outro lado do edifício. Seis sohei, acampados no corredor como alunos maleducados banidos da sala de aula pelo professor, guardavam sua porta. Ishida não queria correr riscos. Ela não sabia o que estava procurando lá fora; mesmo à luz do dia, a vista era de um jardim bem cuidado, mas simples, de arbustos e árvores que escondiam a parede dos fundos do complexo, a apenas alguns metros de distância. Ela se retirou da janela e se ajoelhou à mesa. Em preparação para dormir, ela já havia tomado banho e escovado o cabelo, deixando-o fluir solto pelas costas, as pontas descansando no chão onde ela estava sentada. Embora ela tivesse vestido seu manto de noite simples de algodão, seu quimono e hakama estavam em sua cama, esperando para serem guardados. Ela ainda não estava pronta para se acalmar para a noite, e guardar as roupas era a última tarefa que restava antes de dormir. O desejo de saltar e andar novamente a varreu, mas ela o reprimiu. Ela já passara a maior parte da noite, preocupada com Katsuo, imaginando se ele
havia conseguido escapar. Imaginando se ele encontrou alguns dos corvos de Yumei, entregou sua mensagem e voltou em segurança. Conforme a noite avançava, ela queria mais do que qualquer coisa que Katsuo estivesse seguro. Mastigando uma unha antes de se segurar, ela pegou sua xícara de chá frio e girou, observando o líquido girar. Como Shiro e Yumei agiriam com sua mensagem? Ela não tinha dúvidas de que eles teriam uma ou duas ideias sobre como tirá-la do santuário e como arrancar a informação de Ishida. Era o que eles poderiam decidir fazer que a preocupava, e quantos problemas eles poderiam causar no processo. Percebendo que estava com a unha entre os dentes novamente, ela colocou a xícara de chá na mesa e colocou as mãos no colo. Talvez ela devesse ir para a cama e pelo menos tentar dormir. Ficando de pé, ela vagou em direção à cama, distraidamente passando as mãos sobre uma mecha de cabelo. Um som suave de batidas quebrou o silêncio em seu quarto. Ela congelou, todos os músculos tensos enquanto as batidas se repetiam, vindas da parede oposta da sala principal. Cautelosamente, ela se voltou para o som. A silhueta de um homem encheu sua janela. Ela tapou a boca com as mãos para silenciar o grito que tentou saltar de sua garganta. Controlando seu medo, ela se aproximou cautelosamente, apertando os olhos através de seu próprio reflexo no vidro para ver o rosto do outro lado. —Katsuo! — Ela correu os passos finais para a janela e a abriu. —Katsuo, o que... Como você está...? Se agarrando desajeitadamente à parede e ao batente da janela, ele deu um sorriso tenso. A falta de guardas ao redor de sua janela pode ter parecido um descuido, exceto que a janela só abria horizontalmente cerca de vinte centímetros, o que significa que qualquer um que entrasse ou saísse teria que
se espremer de lado. E, como a maioria das estruturas tradicionais, o edifício ere elevado a vários metros do solo por palafitas pesadas. Se Katsuo estivesse no chão, sua cabeça estaria bem abaixo do nível da janela. —Oi. — Disse ele um pouco sem fôlego, enganchando um braço sobre o peitoril para se apoiar. —Desculpe por... Em um lampejo de pelos claros, uma raposa branca pousou em Katsuo, equilibrando suas patas traseiras nos ombros do sohei com as patas dianteiras plantadas no topo de sua cabeça. Ele se inclinou para dentro, as orelhas grandes girando. —Shiro! — Ela engasgou. Ele abriu as mandíbulas e deixou sua língua cair em um sorriso canino. Katsuo se encolheu quando Shiro pulou de cima dele e pousou levemente no chão do quarto. O fogo explodiu ao redor dele, chamas azuis e vermelhas surgindo. Shiro apareceu nas chamas e as dissipou com um aceno de mão. Seu olhar varreu seu fino roupão de dormir de algodão e subiu. —Pequena miko. — ele ronronou. —É uma mudança agradável ver você tão casual. Ela se recusou a corar e em vez disso se virou para Katsuo, que ainda estava pendurado na janela. Shiro passou por ela. Ele segurou o painel deslizante da janela e puxou-o para fora do trilho, abrindo mais alguns centímetros. Depois de encostar o painel na parede, ele agarrou o braço de Katsuo e puxou o sohei para dentro com força fácil, jogando-o de cabeça no chão sem cerimônia com um baque alto. A cabeça de Emi estalou em direção à porta de seu quarto. Um momento depois, alguém bateu na porta. Katsuo congelou no meio do caminho. —Minha dama? — uma voz abafada chamou. —Ouvimos um barulho. —Não é nada. — ela respondeu. —Deixei cair meu livro, só isso.
—Ah, desculpe incomodá-la. Ela olhou para Shiro. Ele ergueu as sobrancelhas, totalmente sem arrependimento. —Tantos pretendentes chamando à sua porta. Ignorando-o, ela se moveu para o lado de Katsuo enquanto ele endireitava as roupas e ajustava a espada em seu quadril. Ela baixou a voz para um sussurro. —Katsuo, o que você está fazendo aqui? Se você for pego no meu quarto... Um rubor tingiu suas bochechas e ele não olhou para ela. —Ele insistiu em falar com você. Ela olhou para Shiro, que havia entrado em seu quarto e estava examinando sua cama de estilo moderno, cutucando a grossa colcha de penas. —Então eu acho que você conseguiu escapar? — Ela perguntou a Katsuo. —Eu encontrei alguns corvos e dei a eles sua mensagem. Ele apareceu enquanto eu estava voltando. Ele disse que ia falar com você, então se transformou em uma raposa e disparou em direção ao santuário. Eu não queria que ele vagasse por aí tentando te encontrar, então eu o trouxe aqui. Ela olhou para sua cama novamente. Shiro agora estava esparramado sobre ela, os braços enfiados atrás da cabeça enquanto os observava. Katsuo seguiu seu olhar e seus olhos se arregalaram. —Yokai! — ele assobiou. —Saia da cama dela! O sorriso torto de Shiro apareceu. —Não seria a primeira vez que a pequena miko e eu dividimos sua cama.
Mostrando os dentes, Katsuo agarrou o cabo da espada. —Não o deixe chegar até você. — Emi murmurou. —Ele está apenas antagonizando você. —Mas falar tão desrespeitosamente de você e... Ela balançou a cabeça. —Ele é sempre desrespeitoso. Vamos. Ela o levou para o quarto e se sentou na beira da cama em frente a Shiro. O quarto ficava mais longe da porta e, com sorte, evitaria que o som de sua conversa sussurrada chegasse ao corredor. —O que você está fazendo aqui, Shiro? — ela exigiu. —Isso é perigoso. Você ao menos tem um plano? Ele fechou os olhos, parecendo tão relaxado como se estivesse deitado em sua própria cama. —Tão acusatória, pequena miko. Você deveria estar me agradecendo. —Oh? — Ela perguntou em dúvida. —Yumei está muito descontente que seu Guji tenha uma pista e não a esteja compartilhando. — Ele abriu um olho. —Estou aqui para ter certeza de que você tem um bom plano pronto para começar, porque assim que o Tengu chegar aqui, seu plano provavelmente envolverá demolir o santuário. O medo a invadiu. Katsuo
zombou. —Demolir este santuário? Seria
necessário
um
Kunitsukami para destruí-lo. Shiro abriu seu outro olho e fixou seu olhar no sohei. —O Tengu destruiu muitos santuários em seu passado, alguns muito mais poderosos do que uma denominação desbotada com um kami ausente por décadas e um Guji fraco. —Você ousa... — Katsuo rosnou. Emi ergueu a mão, silenciando-o. —Como você sabe disso, Shiro? Yumei te contou?
O kitsune piscou, confusão passando por seu rosto. —Eu... apenas sei? —Você se lembrou disso? — Ela se virou na cama, inclinando-se para ele com entusiasmo. —Você se lembra de mais alguma coisa? —Não em particular. — Ele fechou os olhos novamente. —Mas se o menino continuar dizendo coisas idiotas, posso me lembrar de outra coisa. —Hã. — Decepcionada por Shiro não ter recuperado mais memórias, ela franziu a testa. —Então qual é o plano? —É isso que estou aqui para lhe perguntar. —Eu? —A menos que você prefira a estratégia inevitável de Yumei de 'destruir o santuário, torturar Guji para obter informações'. —Isso não estará acontecendo. —Então é melhor você bolar um plano diferente. Ela tirou o cabelo dos ombros. —Você não vai ajudar? Ele abriu os olhos e se endireitou um pouco. —Eu poderia carregá-la agora, antes que qualquer um desses humanos pudesse me parar, mas precisamos de qualquer informação que o Guji esteja escondendo antes de partirmos. Portanto, a questão é: como obtemos essas informações? —Precisamos convencê-lo a nos dar. — Ela respondeu prontamente. —Como? —Já tentei convencê-lo de que ele precisa dar para você e Yumei. — Ela olhou impotente para Katsuo. —Ele não vai me dizer, isso é certo. Alguma ideia? —Torturá-lo não funcionará. — disse Katsuo. —Guji Ishida morreria sob tortura ou tiraria a própria vida antes de desistir de qualquer coisa. Ameaçá-lo não funcionará.
—Fingir ameaçar minha vida também não vai funcionar. — ela meditou. —Porque ele sabe que Shiro e Yumei precisam da minha ajuda. Ishida perceberia o blefe imediatamente. —Hmm. — Shiro murmurou. —Então ele é protetor com você, mas e os outros humanos neste santuário? —Ele é protetor com todos. — respondeu ela, suprimindo a dolorosa memória de sua reação à morte de Hana. —Ele leva a segurança dos servos do santuário muito a sério e... Shiro
sentou-se
abruptamente. —Alguém
está
vindo. Passos
no
corredor. —Uma mudança na guarda? — Emi sussurrou, ficando tensa. —Não é... Uma batida forte em sua porta o interrompeu. —Uma mulher. — ele terminou. —Minha dama. — uma voz feminina chamou através da porta. —Posso entrar? —M-miko Tamaki. — Emi gaguejou. —Eu já estou na cama. —Minhas desculpas, minha senhora. Sohei Jiro me disse há alguns minutos que você estava lendo. Como você não jantou muito, eu trouxe um lanche atrasado. —Não estou com fome. — Disse Emi. —Vou deixar isso para você sobre a mesa então, minha dama. A porta estalou quando a miko começou a abri-la. O olhar em pânico de Emi foi para Katsuo parado ao lado dela e então para Shiro sentado em sua cama. —Espera! — Emi gritou. —Estou, estou apenas me trocando. Me dê um minuto!
—Oh...— Tamaki murmurou em confusão. A porta estalou novamente quando ela a fechou. Emi saltou da cama. O armário era o melhor esconderijo, mas ficava do outro lado do quarto e se Tamaki abrisse a porta muito cedo, os visitantes ilícitos de Emi estariam à vista da miko e de todos os sohei no corredor. Shiro poderia se esconder como uma raposa, mas demoraria muito para fazer Katsuo sair pela janela. Girando, ela agarrou Shiro pelo braço e puxou-o para fora da cama. Ela o empurrou para o canto atrás da parede divisória que marcava a transição da sala de estar para o quarto. Pegando Katsuo pela manga, ela o empurrou para trás até que ele colidiu com Shiro. Quando ele tentou se afastar do kitsune, ela o pressionou de volta. —Fiquem aí, vocês dois! — Ela assobiou. Correndo para fora do quarto, ela correu em direção à porta assim que Tamaki gritou. —Posso entrar agora, minha dama? A comida está esfriando. —Sim! — Emi exclamou, abrindo a porta um pé. Shiro e Katsuo estariam escondidos enquanto Tamaki ficasse perto da porta, mas se ela entrasse, ela os veria do outro lado da parede estreita. A mulher de meia-idade estava parada na soleira, segurando uma bandeja cheia de pratos cobertos e pratos de comida. Uma variedade de sohei entediados enchia o corredor, tentando parecer alerta. Alguns olhavam para a bandeja. —Ah, minha dama. — Tamaki disse, dando um olhar crítico para o robe de noite de Emi. —Vou colocar isso na sua mesa para você... —Eu colocarei. — Disse Emi, rapidamente alcançando a bandeja e tentando não soar muito desesperada.
A miko deu um passo para trás com um olhar quase ofendido em seu rosto. —Oh, não, não, deixe-me. —Está bem. — Emi pegou a bandeja e puxou-a em sua direção. —Eu posso carregar uma bandeja. Não é problema, realmente. —Minha dama... Emi reivindicou a bandeja com força, conseguindo um sorriso conciso. — Obrigada, Miko Tamaki. Tenha uma boa noite. A expressão ofendida de Tamaki se intensificou. Após uma longa pausa de desaprovação, ela se curvou. —Tenha uma boa noite. Voltando
para
dentro,
Emi
usou
o
cotovelo
para
fechar
a
porta. Segurando a bandeja pesada com força, ela esperou, ouvindo. Do outro lado da porta, Tamaki murmurou baixinho enquanto dava boa noite ao sohei. Emi não se moveu enquanto contava lentamente até dez em sua cabeça, ouvindo apenas o silêncio atrás de sua porta. Soltando uma exalação de alívio, ela correu para a mesa e colocou a bandeja na mesa, então se virou. Katsuo, sua boca torcida em uma carranca, estava rígido com Shiro no canto. Em contraste, Shiro parecia perfeitamente à vontade apesar da proximidade forçada com um humano. —Eu acho que é seguro agora. — Ela sussurrou. Katsuo saltou de um canto e Shiro saiu atrás dele, sorrindo com o desconforto de sohei. Ao ver os dois juntos assim, um pensamento surgiu em sua cabeça: ela tinha beijado os dois, não tinha? Ela anulou a compreensão, mas era tarde demais. Um rubor instantâneo queimou em suas bochechas. Então, é claro, a memória de Shiro prendendo-a no chão se seguiu, intensificando seu rubor. Shiro passou por ela, vendo muito de seus pensamentos ocultos, e se jogou na frente da mesa. Ele ergueu a tampa da tigela de sopa, suas narinas
dilatadas enquanto ele inalava o aroma. Levantando a tigela, ele deu um longo gole. —Ah. — ele suspirou. —Eu não comia comida tão boa há cem anos. Ela lutou para se recompor, banindo todas as memórias inadequadas. Ela olhou para Katsuo, que estava lhe dando um olhar estranho, e se encolheu. Virando-se rapidamente, ela caminhou até Shiro e se ajoelhou sobre a mesa. —Quem disse que você poderia comer minha comida? — Seu sussurro foi mais forte do que o necessário. Como ele poderia afetá-la assim? Mesmo dias depois, com coisas muito mais importantes com que se preocupar, a mera lembrança de sua proximidade fez seu coração disparar. —Isso é suposto, espere. Você disse cem anos? —Figura de linguagem. — ele murmurou, tomando outro gole. Seu olhar se voltou pensativamente para o teto. —Talvez. Ela franziu a testa e pegou os hashis distraidamente. —Então não é uma memória? —Não. Já faz muito tempo. Desde antes do onenju, pelo menos, mas não sei por quanto tempo. —Hmm. — Ela cutucou um pedaço de tempura, depois o pegou com os hashis. Cem anos. Logicamente, ela sabia que Shiro provavelmente era pelo menos tão velho; caso contrário, como ele saberia alguma coisa sobre o desaparecimento de Inari, que estava desaparecido há um século? E então havia algo antigo adormecido em seus olhos... Ela sabia que ele era velho, mas ouvi-lo dizer era tão estranho. Como alguém com aquele sorriso irritante e provocador dele poderia ter cem anos?
Mordiscando a ponta da cenoura maltratada, ela o observou terminar a sopa e pensou sobre aquela presença antiga e astuta que ela acidentalmente acordou dentro dele. O que isso significa? Quem era ele? O que foi ele? Katsuo sentou-se à mesa, assustando-a. Ela desviou sua atenção de Shiro, percebendo com um rubor renovado que havia esquecido que Katsuo estava ali. —Vamos bolar um plano ou não? — Katsuo exigiu, sua voz baixa, mas agressiva. —Não temos a noite toda. Shiro mordeu uma fatia de pêra. —Você vai viver mais se relaxar um pouco, sohei. —O que? — Katsuo balbuciou furiosamente. —Você está terrivelmente tenso. —Shiro. — Emi repreendeu baixinho. —Pare com isso. Ele tem razão. Precisamos de um plano. —Feito. —O que? O que você quer dizer? Ele comeu outra fatia de pêra. —Eu tenho um plano. Acho que vai funcionar muito bem, na verdade. Yumei vai gostar. Provavelmente. —Você, quando você apareceu com um plano? O que é? —Tudo que eu preciso que você faça é deixar o Guji relativamente sozinho. Que tal o salão do santuário? Você pode levá-lo lá em, digamos, uma hora? —Uma hora? Mas o que... —Yumei e eu cuidaremos do resto. — Ele enfiou um punhado de frutas na boca e se levantou. —Por falar em certos corvos temperamentais, preciso interceptá-lo antes que ele chegue ao santuário.
—Você está saindo agora? — Ela deu um pulo, Katsuo seguindo o exemplo. —Mas Shiro, diga-nos o que... —Vai ser muito divertido, não se preocupe. —Divertido? — Ela guinchou em alarme. Enquanto ele se dirigia para a janela, ela agarrou seu braço e o puxou de volta. Para sua surpresa, ele não resistiu e ela sem querer o puxou para cima dela. Suas mãos pegaram seus braços antes que ela caísse para trás e quando ele a puxou para cima, ela se viu pressionada contra seu peito, seus olhos arregalados fixos nos dele. Ele se inclinou até que seus lábios estivessem separados por um segundo. —Tão angustiada por me ver partir, pequena miko? — Ele ronronou, seus rostos tão próximos, apenas um sussurro de espaço entre eles. O calor tomou conta de sua cintura. Suas mãos desapareceram de seus braços e ele saltou para longe, evitando facilmente a tentativa agressiva de Katsuo de agarrá-lo. As faixas vermelhas ao redor de seus braços se estenderam como fitas enquanto ele girava em direção à janela, sorrindo torto. Katsuo se plantou na frente dela, os braços abertos de forma protetora. Ignorando o sohei, Shiro colocou uma das mãos no parapeito da janela. —Não tema, não irei longe. — Seu sorriso desapareceu, uma súbita melancolia tomou conta de sua expressão, e aqueles olhos de rubi a capturaram mais uma vez. —Vejo você em breve... Emi. Seu coração bateu forte quando sua voz ronronante acariciou seu nome. Em um lampejo de fogo, a pequena raposa branca tomou seu lugar, sua cauda espessa já desaparecendo pela janela. E então ele se foi.
Ela olhou na janela vazia. Emi. A maneira como ele disse o nome dela... Ele não usava o nome dela com frequência, e nunca o disse assim antes. Katsuo abaixou os braços, exalando asperamente. Ele se virou, seus olhos procurando o rosto dela. Por um longo momento, eles apenas se entreolharam. Uma brisa fria entrou pela janela, esfriando sua pele através do robe e forçando um arrepio nela. Finalmente se movendo, Katsuo pegou o painel da janela e o colocou de volta no parapeito, bloqueando o pior da brisa. —Você está... bem? — Ele perguntou hesitante. —Estou bem. — disse ela, encolhendo os ombros para fora de seu torpor. —Shiro pode ser... difícil às vezes. —Ele é um animal. — Katsuo rosnou. —Chegar tão perto de você, tocar você, dizer...— Ele mordeu o resto da frase. —Ele é perigoso. Ela quase discordou, mas percebeu que soaria apenas tola. Claro que Shiro era perigoso. Ele já era poderoso, mesmo com metade de seu ki ainda preso pelo onenju. E ele era imprevisível. Ela nunca soube o que ele faria a seguir, e não saber que plano ele tinha em mente a assustava mais do que ela queria admitir. De que maneira seria melhor que ela não soubesse o que ele planejava fazer assim que levasse Ishida para o salão do santuário, presumindo que ela pudesse fazer isso?
—Ele deveria ter nos contado. — ela murmurou. —Como devemos nos preparar? —Acho que a ideia é que não. — Katsuo olhou para a porta. —Eu deveria... —Não vá! Ele piscou surpreso e ela corou. Ela não tinha a intenção de deixar escapar isso; ela nem sabia se era isso que ele estava prestes a dizer. —Eu só, eu não quero esperar sozinha, me preocupando com o que vai acontecer. — Ela terminou em um murmúrio. Um pequeno sorriso suavizou seu rosto e ele afastou o cabelo dos olhos. —Eu vou ficar com você. —Obrigada. Hesitando, ela voltou para a mesa e ajoelhou-se novamente. Katsuo se juntou a ela, observando enquanto ela pegava mais alguns pedaços de tempura. Os vegetais maltratados estavam deliciosos e seria uma pena desperdiçá-los. Ela não ficou surpresa que a comida tivesse impressionado Shiro; mesmo com as restrições de sua dieta, os cozinheiros da Shion nunca deixavam de produzir refeições de alta qualidade com os melhores ingredientes e temperos elegantes. Enquanto ela mordiscava a comida, eles discutiam as opções para atrair Ishida ao salão de adoração. No final, eles decidiram manter as coisas simples: se ela fosse para o salão do santuário tão tarde da noite, um de seus guardas iria imediatamente buscar Ishida para detê-la. —Eu me pergunto o que ele descobriu sobre Izanami. — ela meditou para se distrair do que estava por vir. —Se não nos levar a um dos Kunitsukami, não sei o que faremos.
Katsuo mexeu em uma xícara de chá frio na bandeja, virando-a de um lado para o outro. —O que você vai fazer quando tiver as informações? —Procurar pelos Kunitsukami, é claro. Espero que não tenhamos que ir muito longe, e... —Nós? — ele interrompeu quietamente. —Você quer dizer o kitsune e o Tengu? Ela assentiu. —Você vai sair com eles sozinha de novo? — Ele puxou a mão da xícara de chá enquanto seus dedos se fechavam em um punho fechado. —Isso é muito perigoso, Emi. Sem contar com o Tengu, é muito perigoso ficar sozinha com aquele kitsune. A maneira como ele olha para você... Ela pousou os hashis, franzindo a testa para Katsuo. —Como ele olha para mim? —Como se ele quisesse devorar você. — Um rubor coloriu as bochechas de Katsuo. —Eu sei que ele estava me provocando de propósito, me deixando com raiva só porque ele podia. Eu vi o que ele estava fazendo, mas não pude evitar de reagir, não quando ele ficou olhando para você como se você pertencesse a ele. —Eu não pertenço a ele. — ela disse suavemente, solidária com sua angústia. —Shiro gosta de brincar com as pessoas para se divertir. Ele até provoca o Tengu. —É mais do que isso. — ele discordou. —Ele está brincando com você também, Emi. E não acho que seja uma diversão sem sentido para ele também. Ela distraidamente organizou os pratos vazios na bandeja. Shiro brincava com suas emoções, e às vezes parecia que ela era uma marionete e ele controlava todas as suas cordas. Mas ela também tinha visto o lado oposto da
confiante raposa trapaceira. Ela o viu perdido e confuso, vulnerável e até com medo. Ele estendeu a mão para ela por ajuda e deixou que ela o castigasse. Quaisquer que fossem os jogos que ele pudesse jogar, ela não acreditava que ele pretendia fazer mal a ela. Isso a tornava ingênua? Ela havia caído na armadilha de confiar nele? —Emi. — disse Katsuo, chamando sua atenção de volta para ele. —Me leve com você. —O que? —Quando você for com os yokai, me leve com você. Você não deve ficar sozinha com eles. Deixe-me protegê-la. Você não pode. Ela não podia dizer as palavras, não podia machucá-lo assim, mas a verdade era tão clara quanto um riacho na montanha. Katsuo era humano. Ela também era humana, mas o poder kami crescia dentro dela a cada dia que passava. Shiro e Yumei iriam protegê-la porque precisavam dela. Eles não protegeriam Katsuo. No primeiro encontro de Katsuo com o Tengu, Yumei o derrubaria com um simples olhar. Katsuo nunca sobreviveria e, ao contrário dela, ele tinha toda a vida pela frente. —Vou pensar sobre isso. — Ela disse, a mentira vindo muito facilmente para sua língua. Não importava o quanto isso a machucasse, ela amarraria Katsuo cem vezes para mantê-lo seguro. Levantando-se da mesa, ela foi em direção ao quarto. —Eu preciso me trocar. Espere aqui. Pegando seu quimono e hakama na beira da cama e verificando se Katsuo ainda estava de costas para ela, ela rapidamente tirou o robe e colocou o quimono. Depois de colocar o hakama, ela levou um minuto para endireitar a cama e afofar os travesseiros.
Chamando Katsuo, ela apontou para a cama. —Quero apagar as luzes antes que o sohei no corredor se pergunte por que ainda estou acordada. Em vez de ficarmos sentados no escuro, podemos pelo menos ficar confortáveis. Seu olhar disparou dela para a cama e de volta para ela. Ela sorriu com a hesitação dele e foi até a sala principal para acionar o interruptor da luz. A escuridão caiu sobre eles, mas o brilho fraco da janela ofereceu luz suficiente para ela voltar para o quarto. Ela deslizou para a cama em cima do edredom, recostou-se nos travesseiros e olhou para ele com expectativa. Ele puxou a katana do quadril e a apoiou na parede, depois subiu na cama e se recostou ao lado dela. Um silêncio suave encheu o quarto e ela fechou os olhos, perguntando-se se Shiro já havia interceptado Yumei. —Emi? —Hmm? — Ela abriu os olhos e lutou contra um bocejo. O rosto de Katsuo era uma sombra mais escura no quarto coberto pela noite. —Você vai seguir em frente, não vai? Quando você fugiu naquela noite em Shirayuri, pensei que você percebeu que sua vida valia mais do que isso, mas agora... você não parece estar mais lutando. Ela apertou as mãos no colo, muito ciente da marca oculta em seu peito. —Estou lutando por algo muito mais importante do que minha vida. Fui enganada, mas isso não muda nada. Tudo o que está acontecendo com os Kunitsukami só prova que Amaterasu é necessária na Terra. Ela precisa de um recipiente. Quantas vidas dependem de sua descida? Ela ergueu os olhos para o rosto sombreado dele. —Tirando isso, mesmo se eu pudesse de alguma forma parar de ser a kamigakari, eu não o faria. Sem mim, Amaterasu teria que escolher outra garota. Como poderia viver comigo mesma se de propósito deixasse outra pessoa morrer por mim? Uma vez que
Amaterasu desça, meu corpo será seu recipiente pelo tempo que ela precisar, e nenhuma outra garota precisará morrer. Katsuo a observava em silêncio, imóvel, exceto pelo leve movimento de seus ombros a cada respiração. Ela se perguntou se ele poderia dizer que seu pulso disparava em seus ouvidos com o pensamento de seu fim ou aquele medo doentio torcendo nela quando ela se lembrava do poder de Amaterasu rasgando sua mente. Embora ela tivesse aceitado seu destino, seu dever, não era fácil. A aceitação não o tornava menos assustador. —Você se preocupa muito até com o destino de estranhos. É muito nobre, Emi. — Ele suspirou. —Hana ficaria orgulhosa de você. Ela
piscou
rapidamente
enquanto
as
lágrimas
se
formavam
instantaneamente. Com o retorno deles a Shion, ele deve ter encontrado Hana perdida em seus pensamentos tanto quanto ela. Ela engoliu em seco. —Você acha... você acha que ela me perdoaria? —Acho que nunca houve nada a perdoar. —Eu a levei lá fora. Eu corri na frente dela. Se eu estivesse ao lado dela, poderia tê-la impedido de cair. — Sua voz falhou e gorjeou. A memória floresceu em sua mente como uma nuvem venenosa. —E eu acho... acho que... Seus dedos quentes tocaram suas mãos onde ela as apertou. —Você o que? O pesadelo sem fim surgiu das profundezas de seu subconsciente, onde esperava, sempre esperou, para submergir no sofrimento novamente. O riacho correndo, os gritos apavorados de Hana, as garras da yokai no tornozelo de Emi, seu aperto desesperado na mão de sua melhor amiga. —Eu estava segurando a mão dela, mas eu...— Seu maior medo, maior culpa, inchou dentro dela. Ela nunca havia admitido sua suspeita de culpa
para ninguém. —Eu estava tentando me segurar na ponte e os yokai estavam nos puxando para baixo e acho... acho que a deixei ir para me salvar. Um soluço a sufocou com as palavras finais. Ela pressionou as mãos sobre o rosto, com vergonha de olhar para ele. As lágrimas molharam seus dedos e ela conteve o grito de desespero que crescia em sua garganta. Como ela pôde ser tão egoísta? Como ela falhou com a única pessoa que ainda a amava? Katsuo tocou seu ombro, depois deslizou suavemente o braço para trás dela e puxou-a para si. A dor dela era demais para permitir espaço para surpresa e ela caiu contra ele, lutando contra as lágrimas. —Está tudo bem em chorar. — ele sussurrou, envolvendo os braços ao redor dela. —Até uma kamigakari pode chorar. Sua bondade quebrou o que restava de seu autocontrole, e antes que ela pudesse se conter, ela estava chorando incontrolavelmente contra seu ombro. Dor que ela suprimiu por anos veio à tona. Três anos de solidão, três anos de culpa e medo e pesadelos sem fim sobre a morte de Hana sem ninguém para conversar, ninguém para sofrer. Ela esteve sozinha por tanto tempo, selou seu coração por tanto tempo, focando apenas em ser a melhor kamigakari que ela poderia ser para que sua vida valesse alguma pequena coisa para compensar a bela alma que se perdeu por causa de dela. Quando
suas
lágrimas
finalmente
cessaram,
Katsuo
apertou-a
suavemente. —Eu não vi o que aconteceu. — ele murmurou. —Mas eu conheço você, Emi. Eu sei que você não a deixou ir de propósito. Você teria segurado aquela garota até o fundo do oceano. —Mas...
—Não. — ele interrompeu. —Eu conheço você. Você teria dado sua vida em um instante para salvar a dela, se pudesse. Você sempre deu mais valor à vida dos outros do que à sua. Ela enxugou as lágrimas dos olhos. Seu tom quando ele disse que ela colocava mais valor na vida dos outros sugeria que ele considerava isso mais uma falha do que uma virtude. —Como você me conhece tão bem? — ela murmurou. —Em tão pouco tempo... —Ah. — Ele se mexeu desajeitadamente, embora não tenha tirado os braços dela. —Suponho que seja tolice continuar a fingir. Sempre observei você... pelo menos enquanto você me observava. O calor atingiu seu rosto. —Eu não, quero dizer... Ele riu suavemente. —Não negue. Você não era incrivelmente sutil aos quinze anos. Seu rosto ficou ainda mais quente. —Eu pedi, não, lutei para ser designado como seu sohei no Santuário Shirayuri. Eu sabia que este solstício seria o seu último e precisava vê-la novamente. Eu não conseguia esquecer aquele dia em que Hana morreu, ou como você parecia quebrada quando eles te escoltaram para longe de Shion para ir para seu novo santuário, sozinha. Queria ver você de novo, para ter certeza de que você estava bem. Eu não... eu não percebi o quanto me ver iria machucar você. Ele deixou sua cabeça cair para trás contra a cabeceira da cama. —Eu costumava te observar muito em Shion, e naquele dia... Eu sabia que você estava na floresta. Eu sabia que você estava nos seguindo antes mesmo de deixarmos o terreno. — Ele fez uma pausa, a tensão endurecendo seus músculos. —Eu estava animado. Eu queria que você viesse. Eu esperava
impressionar você. Achei que talvez pudéssemos até conversar, ter uma conversa de verdade. Quando percebi que vocês duas tinham ficado para trás, voltei atrás para procurá-las. É por isso que estávamos perto o suficiente para ouvir quando Hana começou a gritar. Emi passou os braços em volta de si mesma, abalada pela mudança de percepção. Ela nunca havia pensado em se perguntar por que Katsuo e o outro jovem sohei chegaram tão rápido. Logicamente, eles deveriam estar muito fundo no parque para ouvir os gritos, muito menos correr de volta para ajudar, mas o trauma da experiência não permitiu que ela analisasse os fatos. —Então. — ele continuou pesadamente. —Se há culpa a ser colocada, é tanto minha quanto sua. Eu sabia que você e Hana tinham nos seguido e, mesmo assim, levei você para o interior do parque. Eu poderia ter parado e levado você de volta à segurança a qualquer momento, mas não o fiz. Eu egoisticamente queria você para mim, apenas uma vez. —É minha culpa. — ela sussurrou. —Eu decidi seguir você. —E Hana decidiu ir com você, e eu decidi deixar você. — Ele passou a mão levemente pela nuca dela, alisando seu cabelo. —Você só é responsável por suas próprias escolhas, Emi. Você não pode carregar o fardo por todos nós. Lágrimas renovadas escorreram por suas bochechas e ela apoiou a cabeça em seu peito. —Ver você em Shirayuri doeu. — ela murmurou. —Mas só no início. Estou tão feliz por você estar aqui por tudo isso, Katsuo. Obrigada por ficar comigo. Seus braços se apertaram ao redor dela e ela fechou os olhos, saboreando a sensação de ser abraçada. Um contentamento suave e quente deslizou por ela, e a dor de solidão que ela suportou por três anos ficou em silêncio pela primeira vez desde que Hana morreu.
Com um suspiro longo e silencioso, ela fez o possível para memorizar o sentimento, sabendo que provavelmente nunca o experimentaria novamente.
Emi estava na frente da porta de seu quarto. Ela já havia mandado Katsuo de volta pela janela para a noite. Ele queria ajudá-la, mas ela tinha outra tarefa para ele; no entanto, a próxima hora passou, ela não achava que ficaria em Shion por muito mais tempo. Por enquanto, ela estava sozinha. Engolindo em seco, ela abriu a porta do quarto. O sonolento sohei no corredor chamou a atenção, chocado por ela estar acordada e totalmente vestida. Como eles ainda estavam gaguejando em confusão, ela passou por eles. —Minha dama! Kamigakari, por favor, pare! —Eu estou indo para o santuário. — ela declarou sem desacelerar. — Devo rezar no santuário. Eles correram atrás dela, mas, proibidos de tocá-la, eles não puderam realmente impedi-la. —Minha dama, o Guji ordenou que... —Então vá buscar o Guji! — Ela disse quando alcançou as portas principais. —Eu devo orar. Ela abriu as portas e desceu correndo as escadas para o pátio. Uma leve neve caia do céu escuro, iluminada pelas luzes dos edifícios circundantes. Um dos sohei passou correndo por ela em direção ao corredor de purificação. Ela aumentou o ritmo, a urgência competindo com o alívio de que o plano estava
funcionando. Ela tinha que chegar ao santuário antes de Ishida, mas isso não deveria ser difícil. Ele precisaria pelo menos se vestir antes de correr atrás dela. O mundo poderia estar queimando ao seu redor e o Guji ainda não sairia correndo em sua roupa de dormir. Ela passou pelo pátio e chegou à entrada. Os portões eram fechados todas as noites, mas Katsuo tinha ido na frente por mais de um motivo. Um dos painéis pesados estava aberto apenas o suficiente para ela deslizar sem fazer uma pausa. Enquanto ela desaparecia pela abertura, um dos sohei praguejou baixinho; eles provavelmente esperavam que o portão a impedisse. Além do pátio bem iluminado, o caminho estava coberto pela escuridão. Sua pele formigou enquanto ela corria em direção às luzes fracas à frente. Luminárias de pedra, cada uma iluminada por uma vela bruxuleante, alinhavam-se no amplo caminho que conduzia ao santuário. Ela correu para o pavilhão de lavagem e rapidamente enxaguou as mãos e a boca. Embora ela tivesse certeza que Amaterasu iria perdoá-la por se aproximar do santuário sem completar o ritual de purificação, ela simplesmente não conseguia fazer isso. As luzes das aradelas penduradas nos beirais do salão de adoração a chamavam para a frente. Ignorando os protestos contínuos dos sohei, ela caminhou em direção à estrutura extensa. O grande salão estava entre os maiores do país, com dois mil anos e totalmente magnífico. Enfeites de madeira primorosamente entalhados decoravam cada viga, beiral e coluna. Toda a estrutura maciça foi construída sem metal, mantida unida pelo artesanato mestre de arquitetos antigos. Ele surgiu na escuridão, iluminado por uma luz laranja bruxuleante. Ela passou pelas enormes estátuas koma-inu, seus rostos bestiais lançados em sombras escuras, e subiu os degraus. Uma corda shimenawa tão
grossa quanto o tronco de uma árvore e decorada com fitas de papel dobradas pendurada nas vigas acima dela. Parando em frente à longa caixa de oferendas, ela pegou uma das cordas penduradas e puxou-a. O sino acima tocou suavemente. Ela se curvou duas vezes, bateu palmas e abaixou a cabeça. Abaixo dela, na base da escada, os sohei se mexeram impacientemente, resmungando entre si. Ela ficou rígida, esperando e ouvindo. Onde estavam Shiro e Yumei? O que eles planejavam fazer? O tom do sohei mudou para alívio, e então a voz rouca de Ishida quebrou o silêncio, suas palavras alinhadas com desagrado. —Kamigakari Kimura, o que você está fazendo? Ela esperou. Shiro disse para trazer Ishida para o santuário, e Ishida estava aqui. O que deveria acontecer agora? —Kamigakari. — Ele repetiu com raiva. —Estou orando. — Ela respondeu sem abaixar as mãos. Onde estava Shiro? Ela não podia protelar Ishida por muito tempo. —Nesta hora? Eu não estava claro que... —Caw. A cabeça de Emi se ergueu. Uma sombra escura deslizou para pousar no beiral acima dela. O corvo inclinou a cabeça e olhou para a reunião de humanos. Ela também olhou para os degraus abaixo para ver Ishida de pé rigidamente com as vestes formais de sua posição; ele até trouxe seu bastão, coberto com um grande anel de ouro. Outra meia dúzia de sohei o acompanhavam, elevando o total para doze. Haveria muitos agora para o plano de Shiro, qualquer que fosse, funcionar? Shiro disse ‘relativamente’ sozinho.
Com um bater de asas, outro corvo pousou ao lado do primeiro. Então, saindo da escuridão, um rebanho inteiro avançou com asas quase silenciosas para se empoleirar no telhado do santuário e nas árvores próximas. Penas pretas brilhantes brilhavam sob o brilho das aradelas penduradas nos beirais. Eles se mexiam inquietos, observando os humanos com um silêncio assustador. O olhar de Ishida se fixou nos corvos que se reuniam, enquanto os sohei agarravam os punhos de suas espadas, tensos e cautelosos, mas esperando pelas instruções do Guji. Um braço deslizou ao redor de sua cintura, puxando-a para trás em um corpo quente. —Você está com saudades de mim? — Shiro ronronou em seu ouvido.
Seu suspiro assustado chamou a atenção dos sohei. —Um yokai! — Um dos sohei gritou. Em uníssono quase perfeito, eles sacaram suas espadas. O rosto de Ishida se contraiu de fúria. Emi se contorceu no aperto de Shiro e o encontrou sorrindo, seus caninos pontudos em plena exibição. Ele estava sentado casualmente em cima da caixa de oferendas, um joelho apoiado e seu braço em volta da cintura dela, onenju vermelho brilhando em seu pulso. O sohei subiu em direção aos degraus, mas parou quando Shiro despreocupadamente bateu em sua bochecha com um dedo. —Agora, agora. — ele sussurrou. —Você realmente não quer se aproximar, não é? Eles mudaram de posição, pensando em como salvá-la quando o yokai já a tinha. —Deixe-a ir! — Um deles gritou. —Por que eu faria isso? — A mão de Shiro passou de sua bochecha para seu cabelo e capturou uma mecha. Ele a deslizou por entre os dedos enquanto olhava para o sohei. —Adorável, não é? —Shiro! — Ela sibilou, mal fazendo um som. Com os olhos ainda fixos no sohei, ele se inclinou e acariciou sua bochecha como um predador prestes a provar sua presa. Arrepios percorreram sua nuca. —Tente parecer assustada, pequena miko. — Ele respirou em seu ouvido. Ishida deu um passo à frente, os pequenos aros ligados pelo grande anel em cima de seu cajado tilintando com o movimento. Uma veia em sua bochecha latejava. —O que você quer, yokai?
—Não é óbvio? — O rosto de Shiro caiu perto do dela novamente enquanto ele a puxava de volta para seu peito, pressionando seus corpos juntos. —Eu quero a sua kamigakari só para mim. Ishida ficou perfeitamente imóvel, provavelmente pensando rápido. Ele sabia que Shiro não a machucaria, mas também não parecia querer mostrar o blefe de Shiro. —Mas não se preocupe, Ishida. — Shiro continuou. Sua omissão do título de Ishida foi um insulto por si só, mas o desprezo que Shiro acrescentou ao nome cortou como uma faca. —Você não tem que negociar comigo. As sobrancelhas de Ishida se curvaram em confusão. Uma sensação suave de tremor deslizou pelo chão e se enrolou no ar. Enquanto vazava das árvores, os sohei se aproximaram um do outro, com as mãos nas armas. O ki gelado engrossou o ar, gelando os pulmões de Emi. —Uma aura yokai. — um de seus sohei sussurrou com voz rouca. —Tão poderosa... As aradelas piscaram e diminuíram conforme as sombras se aproximavam, muito densas e escuras, quase vivas. O silêncio estremeceu. Com enormes asas abertas, o corvo gigante saiu da escuridão e cada corvo irrompeu em um grito triunfante. No momento em que os pés do corvo tocaram a cabeça esculpida do koma-inu, suas garras arranhando a pedra, um brilho azul irrompeu em torno de suas pernas, girando e girando com raiva. A barreira torii o estava rejeitando, tentando afastá-lo, mas ele não mostrou nenhuma reação, aparentemente imune ao ataque mágico. Para seu crédito, os sohei não recuaram, mas suas espadas oscilavam ligeiramente no ar e eles não sabiam se deveriam apontar suas armas para o corvo gigante ou para o yokai de cabelo branco e orelhas de raposa que já
estava com sua kamigakari. Pelo menos Yumei não estava usando sua forma mais massiva, o pássaro assustadoramente enorme que lutou contra Koyane e Izanami. O grande corvo voltou-se para o Guji. Embora esse fosse seu único movimento, os corvos se agitaram ao redor. Seus olhos brilhavam como brasas, uma centena de manchas vermelhas na escuridão. Os pássaros abriram suas asas enquanto sombras ondulavam sobre seus corpos até que não fossem nem sólidas nem espectrais, mas algo intermediário. Uma dúzia de corvos lançaram-se do santuário e voaram em direção aos sohei. Com gritos alarmados, eles cortaram os pássaros, mas suas espadas passaram direto pelos yokai. Os pássaros giraram suas asas em torno das cabeças dos sohei, envolvendo-os nas sombras. Bandos de escuridão ondulante espalharam-se dos corvos e envolveram os homens, prendendo seus braços ao lado do corpo. Seus gritos assustados cortaram Emi e ela reflexivamente se encostou em Shiro. Um por um, os sohei caíram de joelhos e caíram no chão. O grande corvo estalou o bico e os pássaros se separaram de suas vítimas e voaram de volta para pousar no prédio, deixando o Guji sozinho entre os doze sohei caídos. Shiro apertou suavemente sua cintura e ela percebeu que estava tremendo. —Eles estão bem. — Ele murmurou, seu hálito quente fazendo cócegas em sua orelha. O grande corvo abriu suas asas. Ele saltou da estátua, escuridão e luz vermelha ondulando sobre ele enquanto sua forma encolhia, e quando ele pousou, ele assumiu sua forma humana. O brilho feroz de seus olhos prateados desmentia sua expressão vazia. Sua aura fervilhava no ar e a luz azul dançava silenciosamente ao redor de suas pernas enquanto o solo sagrado
lutava inutilmente para expulsá-lo. Ele não tinha entrado no santuário sem más intenções. O rosto de Ishida estava duro. Ele sabia que precisava andar com cautela? —Tengu. — cuspiu Ishida, suas palavras marcadas por uma fúria fria. — Seja qual for a manobra que você está tentando, você não... O tom suave de Yumei deslizou através do Guji, silenciando-o instantaneamente. —Você vai me dizer o que eu quero saber. Você responderá a todas as perguntas de forma completa e sem hesitação. Os lábios de Ishida se contraíram em um sorriso de escárnio. —Se você acha que vou obedecer a um co... —Para cada palavra de desafio que você proferir... — Yumei entoou sem emoção. —...um humano no santuário morrerá. O sangue foi drenado da cabeça de Emi, deixando-a tonta. Yumei não iria realmente matar as pessoas inocentes no santuário, iria? Olhando para seu rosto frio, desprovido de emoção, ela sabia que ele faria. Shiro baixou o braço e recostou-se, apoiando-se com uma das mãos e parecendo completamente entretido. —Você sabe por que estou aqui. — A voz de Yumei sussurrou na escuridão como um veneno gelado. —Recuse-me e eu matarei todos os servos do santuário. Vou começar com os guerreiros aqui, a quem não vou dispensar uma segunda vez. Ishida olhou para os sohei caídos, guerreiros experientes que nem mesmo foram capazes de se defender. Ele endireitou os ombros, flexionando a mandíbula e o rosto pálido. —Para poupar as vidas que jurei proteger, direi o que você quer saber. —O que você descobriu sobre o desaparecimento dos Kunitsukami?
O olhar de Ishida disparou para Emi antes de retornar rapidamente para Yumei. —Não sei nada sobre os Kunitsukami. No entanto... — Ele ajustou o aperto em seu bastão, os anéis de metal tilintando. — ...na região nordeste de Sumire há um pequeno santuário chamado Hinagiku. Em quatro casos separados no ano passado, um servo do santuário Izanami foi transferido para o Santuário Hinagiku e nunca mais se ouviu falar dele. Emi enrijeceu, seu olhar passando rapidamente entre Ishida e Yumei. —O Santuário Hinagiku é muito remoto. — continuou Ishida. —Não há razão para exigir quatro funcionários adicionais em um único ano. Nenhum deles voltou de Sumire ou pode ser contatado. Embora possamos identificar apenas quatro, suspeito que mais pessoas desapareceram de Hinagiku. Emi perguntou hesitante: —Mas por que eles desapareceriam? É suspeito, eu concordo, mas o que os servos do santuário desaparecidos poderiam ter a ver com aprisionar Kunitsukami? O silêncio noturno vibrou com tensão antes de Yumei responder: — Sacrifício. —O-o quê? —Izanami. — Shiro murmurou. —Está enviando seus próprios servos para este santuário para serem sacrificados. Eu diria que é para magia de sangue. — Ele olhou para Yumei interrogativamente. —Isso parece provável, embora haja outras razões pelas quais alguém pode exigir sacrifícios regulares. Ela suprimiu um estremecimento. Yumei usou magia de sangue nela em um feitiço para salvar a vida de Shiro. A magia perigosa parecia ter vida própria, uma sensibilidade semelhante à de Tsuchi, o reino espiritual yokai. Quão poderoso se tornaria um feitiço se uma vida fosse alimento para
ele? Ela mordeu o lábio contra uma onda de pesar pelas pessoas inocentes que morreram sob o comando de Izanami. —Onde fica este santuário? — Yumei perguntou. —Sumire é uma região montanhosa com algumas cidades e um punhado de estações de esqui. — Ishida listou várias montanhas e marcos próximos até Yumei acenar com a cabeça em reconhecimento. —Mais alguma coisa, Guji? —Nada. Yumei se virou para Shiro e eles compartilharam um breve e indecifrável olhar. Ki carregou abruptamente o ar, estalando ao redor deles. Luzes pretas e vermelhas brilharam em Yumei, então explodiram. As asas enormes se espalharam, e o grande corvo sumiu na escuridão. Os corvos, com os olhos vermelhos brilhando, lançaram-se no ar atrás dele, desaparecendo com a mesma rapidez. O olhar de Ishida se voltou para Shiro. —Você tem o que queria, agora saia deste lugar. Kamigakari Kimura, venha comigo. Shiro agarrou seu quimono e puxou-a para trás até que ela esbarrou nele. —Eu disse a você o que eu queria, Ishida, e não era informação. Ela apertou os olhos em confusão, sem saber do que ele estava falando. —Você não pode tê-la. — Ishida rebateu, apertando seu cajado com mais força. Eu quero sua kamigakari só para mim. Shiro não quis dizer isso, não é? Tinha sido parte de sua atuação. —Não posso? — Shiro sussurrou. —Você pretende aprisioná-la nas últimas semanas. É um desperdício, você não acha? —Mesmo se você não a matasse, yokai, você a sujaria além da salvação, arruinando-a como um recipiente kami. Esse seria o verdadeiro desperdício.
Trancando olhares com Ishida, Emi ergueu o queixo. —Amaterasu me deu a tarefa de libertar os Kunitsukami, e eu vou ter isso até o fim, Guji Ishida. Não vou falhar com minha kami. —Você está jogando sua vida fora. —Não é como se você estivesse planejando uma vida longa e feliz para ela. — Shiro se inclinou para frente até que seu queixo estivesse quase encostado no ombro dela. —Se suas melhores proteções não podem parar alguns yokai, como eles vão parar Izanami? Ishida olhou de volta para Emi. —Não jogue fora todos os seus sacrifícios agora, Kimura. Não deixe tudo ser em vão. —É por isso que tenho que fazer isso. — disse ela. —Se eu ficar aqui e o Tengu e Shiro falharem sem mim, então tudo terá realmente sido em vão. Sua mandíbula se apertou. —Eu não vou deixar você sair. Ignorando Ishida, Shiro saltou da caixa de oferendas e espreguiçou-se preguiçosamente. —Você está pronta para ir? —Hum, acho que sim. — Ela olhou em volta e ergueu a voz. —Katsuo? Um som farfalhante vindo de mais longe no caminho respondeu a ela. Katsuo apareceu de um canto escuro atrás de uma árvore, e para a surpresa de Emi, Nanako o seguia, carregando uma mochila nos braços. Katsuo segurava um arco e uma aljava de flechas. Embora ele olhasse preocupado para os sohei caídos, ele passou direto por Ishida sem olhar para ele e se juntou a Emi no topo das escadas do santuário. Nanako parou vários degraus abaixo, olhando para Shiro com uma mistura de medo e fascinação. Katsuo gesticulou em direção à mochila. —Nós empacotamos tudo que você deveria precisar por alguns dias. E adicionei uma pilha de ofuda mais fortes que tenho.
Desviando o olhar das orelhas vulpinas de Shiro, Nanako se atreveu a subir mais um degrau. Ela passou a mochila para Emi. —Eu me certifiquei de que ele não esqueceria nada. Há um casaco quente para você também. Assim que ela colocou a mochila, Katsuo passou-lhe o arco e a aljava. — Você pode precisar disso também. Ela aceitou a arma com cautela. Era um pouco menor do que a cerimonial com o qual ela estava acostumada, mas a madeira brilhava e a corda lisa era esticada como aço. Ishida observou a troca em silêncio, o rosto rígido e a mandíbula cerrada, mas ele pareceu perceber que não poderia impedi-la. Ela pendurou o arco e a aljava no ombro. —Obrigada. —Emi... — Katsuo mudou seu peso de um pé para o outro. —Você não deveria ir sozinha. Deixe-me ir com você. —Você não conseguiria me acompanhar. — Shiro puxou levemente uma mecha de cabelo que havia escapado do rabo de cavalo. —E eu não estou carregando você. Concentrado na mão do kitsune perto do rosto dela, Katsuo flexionou a mandíbula. Ela deu um tapa na mão de Shiro. —Katsuo. — ela murmurou se desculpando. —Eu não posso trazer você. O medo sombreado seus olhos. —Fique segura, Emi. — Disse ele rispidamente. Afastando-se de Shiro, ela colocou os braços em volta de Katsuo em um abraço apertado. Depois de apenas uma breve hesitação, seus braços a envolveram, apertando-a com a mesma força, seu abraço tão reconfortante quanto quando ele a segurou enquanto ela chorava apenas uma hora antes. Relutantemente, ela deu um passo para trás. Ela compartilhou um breve abraço de despedida com Nanako também, então engatou seu equipamento mais alto no ombro. Ela lançou um breve olhar
para Ishida, mas não sabia o que dizer a ele. Quando ele não disse nada, ela olhou com expectativa para Shiro. Suas orelhas sacudiram para frente e para trás, sua expressão ilegível, então ele a pegou em seus braços com força fácil. Saltando da estátua para o telhado do santuário, ele saltou sobre as telhas com uma agilidade incomparável. Ela olhou para trás para ver Katsuo, Nanako e Ishida olhando para ela. Então Shiro caiu do outro lado do prédio e disparou em sua corrida. A escuridão se fechou em torno deles. Pela segunda vez, ela estava deixando o Santuário Shion para trás, e desta vez, ela suspeitava que nunca voltaria.
Em pé na borda do vale, Emi olhou para a visão diante dela. A neve nítida e ininterrupta descia por uma encosta ondulante até o que provavelmente era um prado exuberante no verão. O sol da manhã iluminava a neve, tornando-a de um branco ofuscante. Árvores escuras cobertas de neve cobriam as encostas das montanhas, que se erguiam em picos brancos. O vívido céu azul ofuscou seus olhos enquanto ela olhava para a paisagem. E pensar que apenas uma hora antes, ela estava a centenas de quilômetros de distância, em Shion. O ar frio da montanha era doloroso, mas o sol aquecia seu rosto com o calor e ela decidiu esperar um pouco mais para procurar em sua mochila o casaco que Nanako havia prometido. Depois que ela e Shiro se juntaram a Yumei fora do terreno do santuário, o Tengu não perdeu tempo em transportá-los para a região de Sumire em um único e impressionante salto de magia. Embora ela esperasse que Yumei os teletransportasse com sua habilidade única, ela não esperava que ele desmaiasse depois, ainda na forma de corvo. Yumei levou meia hora para se recuperar o suficiente para decolar novamente e planar sobre as montanhas em busca do santuário Izanami. Ela se perguntou quanto tempo levaria para encontrá-lo entre os picos e vales extensos. Embora estivessem na área correta, havia muitas montanhas para pesquisar e ela não havia pensado em trazer um mapa. Talvez Yumei pudesse pedir informações aos yokai locais.
Ela franziu os lábios. Considerando a resistência do homem humano médio em pedir informações, ela duvidava que um yokai tão orgulhoso quanto o Tengu se rebaixasse a isso. A neve esmagava sob os degraus que se aproximavam e ela olhou por cima do ombro quando Shiro se juntou a ela. —Até que Yumei encontre este santuário, teremos que acampar. — disse ele. —Mas não há nenhum abrigo de verdade por aqui. Ela soprou nas mãos para aquecê-las, sua respiração congelando o ar. — Pena que ele não trouxe nenhum de seus corvos para ajudá-lo. —Seus karasu teriam problemas para viajar até aqui, mas tenho certeza de que ele logo trará um novo rebanho sob seu domínio. Eles não serão tão poderosos, mas serão capazes de nos ajudar a pesquisar. Ela olhou de volta para a neve perturbada onde Yumei havia caído. Ela nunca o tinha visto enfraquecido assim. —Ele vai ficar bem, certo? —Está preocupada com o Tengu agora, pequena miko? — Ele tirou um pouco de neve do ombro. —Não se preocupe com ele. Foi uma longa distância para saltar com dois passageiros, mas ele vai se recuperar rapidamente. —Como ele faz isso? Teletransportar assim? —Entre os yokai, ele tem uma conexão extraordinariamente forte com Tsuchi. — explicou ele, referindo-se ao reino espiritual yokai. —Tsuchi não está permanentemente ligado a este mundo. Além de alguns pontos de ancoragem, como a casa de Yumei, ele muda e se move como uma maré fluindo. Quando Yumei quer viajar rapidamente, Tsuchi se curva para ele, mudando-o para um local diferente no reino terreno. Ela piscou, tentando envolver sua mente em torno do conceito. Não admira que a precisão fosse menos do que ideal.
Shiro olhou para o vale. —Eu irei procurar um abrigo melhor. Você quer esperar aqui? Assentindo, ela voltou o rosto para o sol. —Está quente aqui. —Não irei longe. Ela o viu desaparecer na densa floresta atrás dela antes de enfrentar o vale novamente. Tirando a mochila do ombro, ela a colocou na neve antes de colocar o arco e a aljava em cima dela. Seus dedos roçaram a madeira lisa do arco. Era uma arma simples, mas elegante. Pertencia a Katsuo ou ele a havia tirado dos suprimentos sohei? Agachando-se para sentar nos calcanhares e esfregando as mãos para se aquecer, ela olhou distraidamente para a neve cintilante no vale. Ela nunca tinha estado tão longe ao norte antes. A ansiedade vibrou em seu peito enquanto se perguntava o que aconteceria quando eles encontrassem o santuário. Eles teriam que questionar os
servos
do
santuário? Yumei
ameaçaria
matar
pessoas
inocentes
novamente? Ela não queria permitir tal coisa, mas ela não tinha certeza se eles tinham muita escolha. Eles não tinham tempo de convencer educadamente as pessoas a divulgar o que sabiam. Quanto a que informação poderia ser, ela não conseguia nem começar a adivinhar. Izanami estava enviando pessoas aqui para morrer, por magia de sangue, como Shiro suspeitava, ou outra coisa? Ela presumiu que era para alimentar uma magia poderosa o suficiente para manter um Kunitsukami preso, mas se fosse por algum outro propósito, eles voltariam a não ter nenhuma pista sobre o paradeiro dos Kunitsukami. O tempo estava acabando. Faltavam apenas trinta e dois dias para o solstício. Como eles encontrariam os quatro Kunitsukami e descobririam qualquer trama que Izanami estava planejando em menos de cinco
semanas? Ela já estava preocupada sobre quanto tempo essa tarefa levaria, encontrar o santuário, convencer os servos a contar a ela o que sabiam, rastrear para onde os humanos desaparecidos tinham ido. Eles perderiam dias ou semanas aqui, chegando a lugar nenhum? Suas pálpebras se fecharam, o cansaço se arrastando sobre ela. Ela tinha perdido uma noite inteira de sono, e ela não sabia quando ela iria descansar. Shiro poderia estar procurando por um acampamento protegido, mas ela não conseguia se ver dormindo na neve, não se ela planejasse acordar novamente. O tempo estava visivelmente mais frio aqui do que em Shion. O inverno não só havia chegado a essas montanhas, mas também havia se estabelecido de maneira genuína sobre a terra. Enquanto uma centena de preocupações competiam em sua cabeça, sons suaves se intrometiam em seus pensamentos. Sua cabeça levantou, mas nada se moveu no vale diante dela. O ar estava parado, a calma agradável da madrugada ainda dominava o vento. Depois de um momento de silêncio, ela ouviu novamente, um sussurro estranho e agudo. Então, claramente, uma risada estridente e infantil. Seu corpo ficou frio de ansiedade. Yokai? Mas não, Shiro não a teria deixado sozinha se houvesse yokai por perto. Poderia ser um humano? Talvez essas
montanhas
não
fossem
tão
remotas
quanto
imaginavam. Cautelosamente, ela se levantou e deu alguns passos hesitantes ao longo da linha das árvores na direção dos sons. O sussurro continuou, um balbucio de vozes altas falando no que parecia ser excitação. Emi rastejou em direção ao som, vasculhando as árvores e neve em busca de movimento. —Não é assim que você faz!
As palavras soaram claramente entre os sussurros. Emi congelou novamente. As vozes pareciam tão próximas, mas apenas árvores e uma pedra com menos de meio metro de altura interrompiam o manto de neve intocada. —Não, Mai, não gosto disso. Você está fazendo tudo errado. Quando a voz estridente se elevou acima das outras pela segunda vez, soando tão perto, Emi percebeu que não havia nenhuma maneira de um humano estar falando, não havia ninguém por perto, o que significava que ela devia estar ouvindo um yokai. Ela olhou para seu arco e flechas inutilmente colocados em sua mochila a seis metros de distância. —Eu vou te mostrar! — A voz gritou. Antes que Emi pudesse recuar, algo saltou de trás da rocha e pousou no topo da rocha. Uma segunda coisa saltou depois disso, agarrando-se à primeira. As criaturas tinham apenas trinta centímetros de altura, com corpos em forma vagamente humana e tufos selvagens de cabelo vermelho em suas cabeças excessivamente grandes. A segunda agarrou o galho grosso que a primeira segurava. No meio do movimento, seus grandes olhos verdes brilhantes se voltaram para Emi. Ficaram rígidos. Aquela com a vara ergueu seu prêmio em triunfo antes que também a visse. Ambos os yokai congelaram com choque óbvio em seus rostos redondos e estranhos. —É uma humana. — Um deles sussurrou. —O que uma humana está fazendo aqui? —Eu não sei. —Acho que pode nos ver. —Os humanos não podem nos ver. —Mas ela está olhando diretamente para nós.
—O que nós fazemos? Os dois yokai olharam para ela mudamente, e ela olhou de volta, completamente perdida sobre o que fazer quanto pareciam estar. —Talvez se não nos movermos... — sussurrou aquele com o galho. — ...ela irá embora. —Mas e se isso não acontecer? Eles perceberam que ela podia ouvi-los? Ela piscou repetidamente, recuperando seu juízo enquanto estudava as pequenas criaturas. Suas cabeças eram muito grandes para seus corpos, e seus cabelos despenteados apenas enfatizavam o tamanho desproporcional. Folhas e galhos se projetavam de seus cachos carmesim e seus corpos pálidos estavam cobertos por folhas verdes que não deveriam existir no final do ano. Ela cautelosamente se curvou em uma reverência. —Minhas desculpas por incomodá-los. —A humana está falando conosco. —Ela se curvou. Isso é muito educado. —Devemos responder? —Você deveria falar com ela. —Não você fala. —Bem. — Aquele com o galho pigarreou e exclamou imperiosamente: — Humana! Você invadiu nosso território! Ela se endireitou surpresa. —Oh, isso foi bem feito. — Disse o segundo. —Obrigado. — Ele agitou seu galho. —Humana! Você é culpada de entrar em nossa terra. O que você tem a dizer em sua defesa? —Hum. — Ela olhou entre eles. —Eu não sabia que esse era o seu território. Acabei de chegar.
—Ignorância não é desculpa! Você deve ser punida! —Punida? — Ela repetiu nervosamente. Os yokai pareciam inofensivos, mas isso não significava nada. —Eu acho que está com medo. — o segundo sussurrou. —Bom trabalho. O porta-galhos sorriu triunfante. —Você deve se submeter à penitência que lhe foi designada ou nós a faremos pagar. Seu olhar varreu o vale em busca de qualquer sinal de Shiro. —Uh, que penitência? O yokai piscou seus olhos enormes e se inclinou na direção de seu companheiro. —Qual é a penitência? —Eu não sei. Foi ideia sua. —Mas eu também não sei. —Uh. — A criatura apontou para o galho na mão de seu companheiro. — É uma humana. Faça com que nos mostre como. —Mas eu sei como! —Não, você não precisa. —Eu os vi fazendo isso. —Basta dizer a humana para nos ensinar! O yokai grunhiu e apontou o galho para ela. —Humana! Você vai nos ensinar uma coisa humana em pagamento pelo seu crime. —Uma coisa... humana? —Sim. — Ele bateu com o galho contra sua mão minúscula como um taco de beisebol. —Vimos humanos que deslizam montanha abaixo em gravetos e queremos aprender como. As palavras do yokai demoraram alguns instantes para serem assimiladas. Humanos descendo montanhas em gravetos? —Você quer dizer... esquiar?
—Oh. Hum. — Ele olhou para seu companheiro. —Sim! Esquiar! Nos ensine! Ishida mencionou que havia estações de esqui nesta área. Será que esses yokai viram humanos esquiando e decidiram que queriam experimentar? A surrealidade do momento desacelerou seus pensamentos e ela se perguntou se estava sonhando. —Recuse e nós a puniremos, humana! — O yokai ameaçou ruidosamente. Ela suspirou, desejando que Shiro se apressasse e voltasse. Ele saberia como lidar com esses yokai. —Você não pode deslizar montanha abaixo sem esquis. —Nós temos gravetos. — Ele ergueu seu galho. —Os
esquis
são bastões planos com
fundo
liso. Isso
os
torna
escorregadios para que possam deslizar sobre a neve. —Você está se recusando a nos ensinar! Faremos você se desculpar! Fazendo uma careta, ela olhou para a encosta do vale e de volta para o pequeno yokai furioso brandindo um galho. Parecia estar ganhando confiança. Talvez ela pudesse assustá-los? Então, novamente, se eles tivessem qualquer tipo de magia, ela poderia rapidamente acabar perdendo a cabeça. —Não posso te ensinar a esquiar. — disse ela. —Mas, em vez disso, poderia te ensinar a escorregar. É muito mais divertido. —Esco... rre... gar? O que é isso? —Também é uma brincadeira humana de deslizar montanha abaixo. — Disse ela solenemente. Os dois yokai inclinaram suas cabeças juntos, sussurrando. O portagalhos se endireitou. —Nós aceitamos! Ensine-nos esta brincadeira de escorregar.
—Você precisará de um pedaço grande e plano de madeira primeiro. — Ela estendeu as mãos para mostrar o quão grande. —Hmm. — O yokai bateu no queixo pensativamente com o galho. —Ah, eu sei! Ele pulou da pedra e correu em direção à árvore mais próxima. Saltando, foi de cabeça para baixo na árvore, desaparecendo. —Ah. Hum. — O yokai restante torceu as mãos ansiosamente, olhando para
ela. Enquanto
cautelosamente
esperava,
por
trás
mais da
duas
cabeças
pedra. Emi
ruivas
surgiram
suprimiu
um
estremecimento. Portanto, havia quatro deles, não dois. Encantador. Em um movimento rápido, o yokai saltou da árvore novamente. Em suas mãos, carregava um pedaço gigante de casca de árvore que diminuía sua estrutura minúscula. Ele saltou sobre a pedra e jogou a casca na neve na frente dela. —Isso é suficiente, humana? Ela pegou o pedaço, bastante impressionada que a minúscula criatura pudesse carregar um pedaço de casca de cinquenta centímetros por um metro. Era mais forte do que parecia. —Acho que sim. Agachando-se na neve, ela começou a puxar os pedaços mais ásperos de casca de árvore. O yokai chegou mais perto, seus três companheiros rastejando atrás dele. —O que você está fazendo? —Precisa ser liso para que possa deslizar. — Ela explicou enquanto puxava outro pedaço de casca. —Liso? — O yokai estendeu a mão e colocou a mão na casca. A madeira esquentou sob suas mãos e embaçou sua visão. Diante de seus olhos, ela se transformou em uma placa lisa e elegante. —Como isso?
—S-sim.
—
ela
gaguejou. Ela
passou
a
mão
sobre
ela,
maravilhada. Magia de fato. Provavelmente era inteligente que ela não tivesse hostilizado as criaturas. —Hum, antes de continuarmos, posso perguntar quanto desta terra é seu território? Então, eu não invado de novo acidentalmente? —Onde quer que as árvores se enraízem, a terra nos pertence! — O yokai exclamou. —Todo mundo sabe disso. —Oh, entendo. — Ela murmurou. Yumei provavelmente discordaria de sua reivindicação sobre todas as florestas do mundo. —Mas Mai. — um dos outros sussurrou. —Você esqueceu o vale enevoado. O líder dos quatro murcharam um pouco. —Oh, sim, o vale enevoado. Isso não é nosso. Mas você não deve ir lá! —Eu não deveria? —Não. Definitivamente não. — Ele olhou para ela da cabeça aos pés. — Você é muito mole. Você morreria. Um dos yokai se inclinou na direção do líder e sussurrou em seu ouvido. —Oh! Ai sim. — A criatura se esticou até sua altura diminuta. — Humana! Se você nos ensinar esta brincadeira de escorregar, permitiremos que você fique em nossa terra para que não tenha que ir para o vale enevoado. —Isso é muito generoso da sua parte. — ela disse cuidadosamente. —O que há de errado com o vale enevoado? —Ninguém que vai para o vale sai de novo. — Ele assentiu com firmeza. — Especialmente humanos. Você não é uma humana ruim, então vamos deixá-la ficar aqui em vez disso, se você prometer nos obedecer. Um vale onde os humanos desapareceram para nunca mais voltar? Ela apertou os lábios. —Onde fica o vale? Não quero ir para lá por acidente.
Todos os quatro yokai apontaram simultaneamente para o norte. —Por lá. Está sempre enevoado. Não entre na névoa e você estará segura. — Ele estufou o peito. —Nós vamos proteger você. —Obrigada. Todos eles sorriram um para o outro, parecendo incrivelmente satisfeitos com eles mesmos. —Mostre-nos a brincadeira! — O líder comandou. Forçando seus pensamentos para longe do vale nublado e sinistro, ela carregou a tábua de madeira até a beira da encosta e a colocou na neve. Ela nunca tinha escorregado, mas tinha visto outras crianças fazerem isso. Com um pouco de esforço, ela dobrou a borda frontal da madeira fina para formar uma borda; era tão flexível quanto a folha de casca de árvore com que começara, embora não se parecesse mais com casca de árvore. —Sente-se na madeira. — ela disse a eles. —E avancem. Então vocês deslizarão como os humanos fazem. Os quatro yokai correram com entusiasmo para o trenó improvisado e pularam nele. Emi deu um empurrão firme nas costas. A madeira lisa deslizou em movimento quando a gravidade a pegou. Os yokai guincharam de prazer enquanto eles aumentavam a velocidade. Depois de alguns metros, no entanto, seu ímpeto diminuiu e o trenó parou no topo da neve. —Nós não escorregamos montanha abaixo! — O líder exclamou com raiva. —Você nos enganou! —Não, não. — ela disse rapidamente, vadeando pela neve até a panturrilha para se juntar a eles. —Vocês pesam muito menos do que os humanos. Ela franziu a testa para o trenó e a inclinação relativamente suave, então examinou o vale iluminado pelo sol abaixo, liso exceto por uma elevação
sinuosa no centro como uma colina baixa e oblonga. Talvez devessem descer ainda mais a encosta e tentar lá, onde era um pouco mais íngreme. —Você é pesada. — disse o yokai de repente. —Você pode ajudar. —O que? —Suba! —Eu, não, eu não poderia... —Suba agora ou vamos puni-la por sua desobediência! Ela resistiu ao desejo de revirar os olhos. Eles eram muito mandões por serem tão pequenos. Com o declive suave e a colina ao fundo para absorver o impulso, ela supôs que não havia mal nisso. E esta provavelmente seria sua única chance de tentar escorregar antes que suas oportunidades de experimentar coisas novas acabassem para sempre. Tristeza sussurrou através dela com o pensamento, mas ela rapidamente a afastou e se aproximou do trenó. Os yokai saltaram e ela se sentou, mantendo um pé na neve para que o trenó não se movesse. As criaturas ruivas empilharam-se com ela, duas saltando destemidas em seu colo e as outras duas penduradas na parte de trás de seu quimono. Ela piscou no topo de suas cabeças, atordoada por ter um yokai estranho e selvagem sentado sobre ela. —Vocês estão prontos? — Ela perguntou, juntando seus pensamentos. —Vamos vamos! Engolindo em seco, ela usou o pé para colocar o trenó em movimento. Eles
deslizaram
lentamente,
ganhando
um
pouco
de
velocidade. Agarrando-se à frente do trenó, ela se inclinou para frente e a velocidade deles aumentou, a brisa provocando seus cabelos. O trenó ganhou impulso e o vento gelado roçou suas bochechas. Assim que o nariz do trenó afundou, ela percebeu que o sol forte e a neve sem sombras haviam disfarçado a inclinação real da encosta.
O trenó desceu a ladeira cada vez mais íngreme, ganhando velocidade. Seu rabo de cavalo chicoteou atrás deles e seus olhos arregalados lacrimejaram com o vento. O mundo passou como um borrão enquanto eles disparavam em direção ao fundo do vale. A risada selvagem e extática dos yokai ecoou sobre o rugido do vento em seus ouvidos. Enquanto o trenó navegava sobre a neve lisa, mal tocando o solo, seu medo se dissipou. Ela soltou sua própria risada quando a excitação do pico de adrenalina correu por ela. Eles deslizaram encosta abaixo enquanto o vale se nivelava. A colina semelhante a uma montanha erguia-se à frente deles, mas eles estavam indo rápido demais para a subida impedi-los. Eles subiram pela encosta da colina. E então eles estavam no ar. O trenó voou debaixo dela e um grito agudo escapou dela quando ela vislumbrou a faixa escura de pedras do outro lado da colina, brilhando ao sol. E então ela pousou no riacho com um respingo enorme. A água ártica a engolfou, o frio doloroso agarrando seus músculos. Ela atingiu o fundo rochoso e se debateu em pânico antes de ficar de pé. Ela saiu da água até a cintura. O líquido congelante derramou dela e ela engasgou por ar, batendo em direção à margem rochosa. Fora da água, ela tinha que sair da água. Ela já podia sentir as garras afiadas agarrando suas pernas, e ela podia ouvir Hana gritando dentro de sua cabeça. Agarrando-se às pedras, ela se arrastou para fora do riacho, ofegando. Ela rastejou para longe da margem até que seus braços cederam e ela caiu na neve. —Conseguimos!
— Os
quatro
yokai
excitadamente uns sobre os outros. —Conseguimos!
gritaram,
exclamando
—Humana! — o líder gritou feliz. —Vamos deslizar novamente agora! Humana, você é, Oh. — O som final saiu em um suspiro assustado. Engolindo o ar e tremendo da cabeça aos pés, Emi ergueu a cabeça, seus dentes batendo alto. —O que em nome de Yomi você está fazendo? Ela piscou lentamente quando seu olhar perscrutador encontrou hakama preto alguns passos à sua frente. Ela arrastou a cabeça para encontrar um olhar incrédulo de rubi. Elevando-se sobre ela com as mãos nos quadris, Shiro balançou a cabeça incrédulo. Algo bateu em cima dela. Com a pressão de pés minúsculos, todos os quatro yokai se amontoaram em suas costas. —Esta humana é nossa! — O líder guinchou agressivamente, batendo no topo de sua cabeça com uma pequena mão. —Vá encontrar sua própria humana. A expressão de descrença de Shiro se desvaneceu e seus olhos se estreitaram em fendas enquanto se focavam no yokai. —Ela é minha. —Nós
encontramos
primeiro! Pertence
a
nós!
— O ki desconhecido chamuscou o ar. —Não vamos deixar você tirar ela de nós! —Ela pertence a mim. Use seu nariz. —O que? O que você... Todos os quatro yokai fungaram ruidosamente. —A humana cheira como o kitsune. — Um deles sussurrou. —A humana deve pertencer a ele. —Não é justo. —Mas nós encontramos.
Depois de um suspiro alto, o líder declarou irritado: —Aceitamos sua reivindicação anterior. —Bom. Agora saia de cima dela. — Ele avançou e o yokai pulou para longe. Agarrando seus braços, ele a puxou para cima. Ela tentou ficar de pé. —Sh-sh-shi-rr-ro. — ela tagarelou, seu corpo inteiro tremendo com arrepios violentos enquanto a água gelada gotejava dela. —Eu n-nã-o q-qui... Ele a pegou em seus braços, sem se importar com suas roupas encharcadas. Ela pressionou em seu calor, tremendo ainda mais. — Kodama! — Ele latiu. —Vocês danificaram minha humana. Exijo recompensa. Uma vozinha resmungou: —Não a danificamos. —Vocês a molharam no frio. Os humanos são frágeis e ela precisa de calor antes de adoecer. Seu pagamento é para trazer toda a madeira seca que encontrar para o local onde as três pedras se encontram com o penhasco. Você conhece aquele lugar? —Sim. — o yokai guinchou relutantemente. —Vamos trazer madeira. —Não percam tempo. Vão! — Ele latiu, e os yokai deram um pulo de susto antes de sair correndo pela neve. Segurando-a com força contra ele, Shiro se lançou de volta na encosta do vale. Ela tentou manter a mandíbula imóvel, mas a tagarelice era imparável. —Miko idiota. — ele rosnou. —Por que você está mexendo com os kodama? Eles parecem inofensivos, mas são pequenos diabinhos sorrateiros com magia perigosa. —E-Eu N-n-não... —Não fale. — Ele retrucou quando alcançou o topo da encosta. Ela estremeceu com seu tom e escondeu o rosto contra o kosode, agora quase tão molhado quanto suas roupas. Seu cabelo encharcado batia em suas
costas com cada movimento. Se ela tivesse a chance de pensar sobre isso primeiro, ela teria esperado que Shiro risse dela por ser estúpida e cair em um riacho. Por que ele parecia tão zangado? Ele parou apenas o tempo suficiente para agarrar seu arco e mochila de suprimentos antes de atirar nas árvores. A floresta passou rapidamente, sombras salpicadas e manchas de sol brilhante brilhando em seus olhos. Logo, ele estava derrapando para parar novamente. Ela ergueu a cabeça para encontrá-los no centro de um espaço redondo com uma parede de penhasco de um lado e três grandes pedras formando uma parede do outro lado. As árvores se inclinavam sobre o local em forma de tigela, seus galhos pendentes adicionando outra camada de isolamento. Apenas uma fina camada de neve cobria o tapete de folhas caídas. Uma pilha de pequenos galhos e gravetos já estava empilhada no centro. Os kodama os colocaram lá? Tão rápido? Shiro estendeu a mão em direção ao monte de gravetos. O fogo saltou de sua palma e correu sobre os galhos, instantaneamente transformando-os em uma fogueira crepitante alegremente. O calor se apoderou dela. Ele a pôs de pé e ela se arrastou em direção às chamas, estremecendo da cabeça aos pés enquanto segurava as mãos em direção ao fogo. Atrás dela, ele abriu sua mochila e vasculhou-a. Ele puxou o uniforme de miko sobressalente e o que tinha que ser seu casaco: lã preta pesada em forma vagamente como um haori na altura do joelho, com uma fileira de botões de argola do outro lado, o casaco se dobraria como um robe se abotoado, aumentando o calor. Ele segurou o casaco aberto e o estendeu para ela. —Faixa. Sua cabeça se ergueu. —O-o quê? —Tire a roupa. — ele disse impaciente. —Saia dessas roupas molhadas. —Ma-Ma-mas...
—Não discuta comigo. — Sua expressão endureceu. —Tire-as antes que eu as arranque de você. Afastando-se dele, ela piscou rapidamente contra a picada de lágrimas. Ele ergueu o casaco mais alto até que pendurou entre eles, dando-lhe privacidade. Com as mãos trêmulas, ela desamarrou o obi, estremecendo quando o hakama se afrouxou em seus quadris. Rangendo os dentes, ela os deslizou para baixo e saiu deles enquanto tirava o quimono. Ela rapidamente agarrou sua muda de roupa e a vestiu, estremecendo quando as gotas grudadas em sua pele umedeceram as novas roupas. Uma vez que ela estava vestida novamente, ela vestiu o casaco que ele segurava aberto. Ele a envolveu antes que ela pudesse inserir os braços nas mangas, enrolando-a na lã com tanta rapidez que ela só conseguiu gritar de surpresa. Ele a pegou, colocou a barra do casaco embaixo dela e a colocou bem na frente do fogo. Deixando-a, ele agarrou suas roupas molhadas e as jogou sobre os galhos próximos, espalhando-as para secar. Enquanto ela se aninhava em seu casaco, o frio dificilmente parecia importar. Ela não conseguia desviar o olhar dele, pela nitidez de seus movimentos, a raiva neles dolorosamente óbvia. De repente, ela desejou ter trazido Katsuo com ela. Com dedos fracos, ela tirou as botas ensopadas e as empurrou para o fogo. Shiro terminou de arrumar suas roupas e voltou para ela. Elevando-se sobre ela, ele franziu a testa, procurando seu rosto. Sua carranca se aprofundou e ela murchou, os ombros curvados. Ele se inclinou e mais uma vez a agarrou. Pegando-a em seus braços, ele caiu de pernas cruzadas onde ela estava sentada e a segurou em seu colo. Seus braços a envolveram, puxando-a com força para ele.
—Shiro! — Ela engasgou, tentando se afastar enquanto seu rosto esquentava em um rubor. Seus braços se apertaram e ele rosnou: —Vou deixar você ir quando seus lábios não estiverem mais azuis. Piscando em confusão, ela parou de resistir, deixando-o apertá-la contra o peito. O calor irradiava dele, infiltrando-se no casaco. Enrolada na lã, o fogo em suas costas e o calor dele ao seu redor, ela sentiu seus estremecimentos cederem. Seus músculos doloridos relaxaram e ela inclinou a cabeça timidamente em seu ombro. Ela fechou os olhos, o nariz cheio com o cheiro amadeirado dele, sublinhado por uma pitada de fumaça que não tinha nada a ver com a fogueira. —Kitsune? — Uma voz guinchou. A cabeça de Shiro se virou. Emi espiou por cima da borda do casaco para ver os quatro yokai ruivos de pé bem longe do fogo. Outra pilha de galhos estava diante deles. —Será que a humana vai se recuperar? — O líder perguntou hesitante. —Se ela não o fizer, vou queimar sua floresta até o chão. Seus rostos empalideceram. —Shiro, não foi culpa deles. — ela sussurrou. —Eu não vi o riacho... Seu brilho baixou para ela e ele rosnou. Ela fechou a boca tão rápido que seus dentes estalaram. Ele olhou de volta para os kodama. —Vão embora. Eles correram, lançando olhares petulantes para Shiro enquanto desapareciam dentro dos troncos de árvore mais próximos. —Pequenas pragas. — Ele resmungou, seus braços apertando ao redor dela, seu aperto quase dolorosamente constringindo. —Shiro...
—Não comece. — ele estalou. —O que você estava pensando? Essas não são crianças inofensivas para brincar. E deslizando colina abaixo, caindo em um riacho neste frio... —Ele rosnou novamente. —Os humanos são tão frágeis. Você precisa ser mais cuidadosa. Ela se forçou a relaxar. Seus braços se afrouxaram um pouco, permitindo que ela respirasse com mais facilidade. Os humanos eram de fato frágeis comparados aos yokai, e ela finalmente entendeu de onde vinha o mau humor dele. Não estava enraizado na raiva, mas no medo. Ele não sabia exatamente como os humanos eram frágeis, e ficar encharcada até os ossos no frio sem abrigo era um perigo de magnitude desconhecida. —Eu sinto muito. — ela sussurrou, descansando sua bochecha nele, sua cabeça enfiada sob seu queixo. —Eles estavam me ameaçando, e eu não sabia mais o que fazer a não ser aceitar suas exigências. Seu peito subiu sob ela antes de ele exalar. —Eu não deveria ter deixado você sozinha. Ela queria protestar que não precisava de supervisão constante, mas sabia melhor. Quando se tratava de yokai, ela precisava de ajuda. Sacudindo um braço para fora do casaco, ela rapidamente puxou o laço de cabelo e espalhou o cabelo sobre as costas para secar. Quando ela estava prestes a retirar o braço, seus olhos encontraram os dela, seu rosto tão perto. A memória da última vez que eles estiveram tão perto a inundou. O olhar dela por reflexo caiu para a boca dele. Percebendo o que tinha feito, ela puxou o braço de volta para o casaco e o segurou firmemente ao redor dela, corando intensamente. —Você parece um pouco mais viva. — ele observou, estranhamente não comentando sobre o olhar muito óbvio dela para ele. —O rubor está ajudando.
Suas bochechas ficaram ainda mais quentes e ela fez uma careta para ele. —Ajudando o quê? —Você estava tão branca quanto a neve quando saiu do riacho. Lábios azuis, olhos vidrados. Você parecia a momentos da morte. —Frio não significa morte instantânea para um humano. — ela disse a ele secamente. —Seus lábios também estariam azuis se você tivesse mergulhado na água. —Eu não. O frio nunca me incomoda. Ela ergueu as sobrancelhas. —Bem, quase nunca. — Ele sorriu torto com o olhar cético dela. —O fogo está em meu sangue, pequena miko. O retorno de seu sorriso trouxe um sorriso de alívio ao rosto dela. Seu kitsune estava de volta ao normal. Ela não sabia como lidar com seu temperamento agressivo e protetor. —Do que você está sorrindo? —N-nada. —Você ainda está com frio? — Ele a puxou para mais perto novamente. —Você precisa de uma fogueira maior? —Não, estou bem. — ela disse rapidamente, sem querer explicar que sua gagueira não era de tremor, mas de medo de que ele pudesse de alguma forma ler seus pensamentos. Para distraí-lo, ela perguntou: —O que exatamente são kodama? —Espíritos das árvores. Sozinhos, eles não são nada com que se preocupar, mas eles têm poderes assustadores em grande número, especialmente em suas florestas nativas. Imagino que eles ficaram muito animados com a ideia de um animal de estimação humano só para eles. —Um animal de estimação?
—Se você estivesse sozinha, provavelmente teria acabado em Tsuchi por algumas décadas, enredada como sua serva e companheira de brincadeiras até que se cansassem de você. —Por décadas? — Ela sussurrou, sentindo frio novamente. Ela se aproximou dele. —Os humanos não têm histórias sobre yokai sequestrando crianças e outros enfeites? Isso não acontece mais com frequência, mas as histórias são razoavelmente precisas. Alguns yokai querem comer humanos. Outros... —Ele encolheu os ombros. —Embora eu esteja surpreso que eles presumiram que você era uma mortal normal e não, huh. Ele inesperadamente abaixou a cabeça para mais perto dela e suas narinas dilataram. —Na verdade, você não tem o cheiro de kami tão forte quanto há alguns dias. Eu mal consigo detectar. —Guji Ishida me deu um novo omamori para disfarçar meu ki. — Respondeu ela, tentando se afastar, mas sem conseguir escapar de seus braços. —Hmm. — Ele enfiou o nariz no cabelo dela, inalando novamente. — Não admira que os kodama não tenham notado. Um yokai teria que estar prestando muita atenção para pegar o cheiro de kami agora. —Shiro! — Ela se contorceu, abaixando a cabeça para longe do rosto dele enquanto suas bochechas queimavam de novo. —O que? Ela apertou a mandíbula, não querendo apontar como cheirá-la não era exatamente educado, e não querendo que ele percebesse que seu pulso estava acelerado novamente. Ela mentalmente procurou algo mais para dizer. —E as histórias dos Tengu sequestrando pessoas e prendendo-as em mundos de fantasia?
Endireitando-se novamente, ele bufou divertido. —Essas histórias não estão certas. Tsuchi pareceria um mundo de fantasia para um humano, não é? E você pode ver Yumei sequestrando humanos? Ele não poderia se importar menos. Alguns de seus karasu são criadores de problemas, no entanto. Eu não acreditaria que eles roubassem humanos. —Seus corvos pareciam querer apenas me comer. —Seus karasu hoje em dia são diferentes. Séculos atrás, eles eram mais poderosos. — Ele distraidamente observou as chamas dançantes. —Em tempos antigos, o Tengu era um senhor mais do que no nome. Ele governava suas terras com seus generais karasu em suas costas e exércitos de feras em seu chamado. A mudança em sua fala, sua voz mais profunda e suas palavras suaves e elegantes, imediatamente chamou sua atenção. Seus olhos desfocados olharam para trás no tempo e algo antigo se agitou em suas profundezas. —O que mudou? — Ela perguntou em um tom neutro, lutando para manter seu corpo relaxado apesar de seu intenso foco nele. —Ele se cansou do tédio exigente do governo. — ele respondeu naqueles tons lentos e suaves, sua atenção ainda nas chamas, em um mundo passado que só ele podia ver. Embora ele estivesse falando com ela, ele não parecia totalmente ciente de sua presença. —Seus generais partiram em busca de sua própria glória e ele se estabeleceu no vale da montanha para deixar as guerras se travarem sem ele, sempre vigilante e nunca totalmente esquecido. —Como ele era naquela época? — Ela murmurou. —Cruel, certamente. Seu temperamento amoleceu com o tempo em que passou por uma solidão tranquila, mas sua inteligência não se entorpeceu. —Quando vocês se encontraram pela primeira vez?
—A primeira vez? Eu não... —Seu olhar se concentrou abruptamente, sua testa franzindo em confusão. Seus olhos caíram para os dela e, por um instante terrível, seu olhar vazio não foi reconhecido. —Shiro? — Ela sussurrou. Ele piscou. —Emi? Ela exalou instavelmente. —Você está bem? —O que...— Ele olhou ao redor do acampamento circular, parecendo confuso e perdido. —O que foi que eu disse? —Você estava falando sobre Yumei e como ele costumava ser. — Quando ele não disse nada, ela perguntou cautelosamente: —Você não se lembra? —Eu me lembro de dizer isso...— Ele a soltou de um braço para que pudesse esfregar a mão no rosto. —Eu me lembro de ter falado, mas quaisquer que sejam as memórias com essas palavras, já se foram novamente. Não consigo me lembrar... Ela esboçou um sorriso fraco, tentando esconder sua preocupação. — Mas você se lembrou por um minuto lá. É mais um passo para recuperar todas as suas memórias, certo? —Certo... Ela se aconchegou contra ele, apoiando a cabeça em seu peito e esperando que ele não tivesse visto seu medo. Sua confusão e a maneira como ele a olhava como se estivesse tão enredado entre sua vida passada e a atual que, mesmo por apenas um momento, ele não conseguia descobrir quem ela era... Uma ansiedade nauseante retorceu-se nela. —Parece que você conheceu Yumei antes. — Ela sussurrou. Quantos anos teria Shiro? Bem mais de cem anos, isso era certo.
—Eu acho que não... eu provavelmente só conhecia a reputação dele. Talvez eu o tenha conhecido de passagem, mas se fosse mais, ele se lembraria de mim, mesmo que eu não me lembre dele. —Talvez você não fosse muito memorável naquela época. Um pequeno kitsune com uma cauda ou algo assim. Ele bufou uma breve risada. —Talvez. —Eu me pergunto o quão assustador Yumei era quando ele era um senhor da guerra? Suas sobrancelhas se ergueram. —Você não acha que ele é assustador agora? —Eu quis dizer mais assustador. —Provavelmente muito mais. Acho que todos os yokai eram mais assustadores naquela época, especialmente para os humanos. Os humanos não acreditam mais em nós. Ela inclinou a cabeça pensativamente. —Você não me disse uma vez que os yokai são mais poderosos quando as pessoas acreditam neles? —É difícil ter poder sobre alguém que nem sabe que você está lá. Ela riu baixinho que seu comentário misterioso só tinha a intenção de desequilibrá-la. Shiro era bom em desequilibrá-la. Seus olhos se fecharam enquanto ouvia o crepitar do fogo. O medo sussurrou por ela, espalhando um calafrio por seu corpo, apesar do calor ao seu redor. Mais cedo ou mais tarde, ela removeria as duas últimas voltas do onenju e libertaria suas memórias da maldição vinculante. O que aconteceria então? O quanto suas memórias o mudariam? Quão diferente do homem que ela conhecia era a pessoa que havia falado de um Tengu antigo e belicista? E se, quando suas memórias voltassem, ele a esquecesse?
Se isso acontecesse, ela simplesmente teria que aceitar. Suas memórias eram mais importantes. Além disso, se ele a esquecesse, não sentiria falta dela depois que ela partisse. Uma dor cresceu em seu peito. O cansaço se espalhou por ela, encorajado pelo conforto quente dos braços de Shiro ao redor dela, segurando-a perto. Meio acordada, ela derivou enquanto ouvia o coração dele batendo sob sua orelha. Enquanto o sono a levava para o esquecimento, um pensamento repentino lhe ocorreu. —Oh! — Ela se sentou tão abruptamente que quase deixou cair o casaco. Ela o fechou contra a corrente de ar frio. —O que há de errado? —Eu quase esqueci. Uma coisa boa saiu do meu encontro com os kodama. —O que seria? — Ele perguntou em dúvida. Ela sorriu severamente. —Yumei não precisa encontrar o Santuário Hinagiku. Eu desaparecidos.
sei onde
devemos
procurar
primeiro pelos
humanos
—Bem. — Emi disse nervosamente. —Definitivamente enevoado. Shiro ficou de um lado dela, Yumei do outro, e juntos os três estudavam o vale. A extensa floresta se estendia por toda a largura e comprimento de várias montanhas, as infinitas árvores se fundindo em um tapete de coníferas verdes e ramos esqueléticos, desprovidos de folhagem de outono. Apenas
as
bordas
externas
da
floresta
eram
claramente
visíveis. Preenchendo a bacia do vale, a névoa espessa pairava no ar como uma nuvem muito pesada para se manter à tona, obscurecendo tudo, exceto os topos das árvores mais altas aparecendo. O sol da tarde brilhava no céu azul, mas nem sua luz nem seu calor afetaram a névoa suavemente turva que encharcou o vale. —Você sente isso? — Shiro perguntou. Yumei
acenou
com
a
cabeça. —A
presença
de
Tsuchi
é
surpreendentemente forte. —Tsuchi? — Emi repetiu, semicerrando os olhos para a névoa, incapaz de sentir qualquer coisa incomum. —Mas isso não faz sentido. Izanami iria querer prender um Kunitsukami longe de Tsuchi. —Talvez isso seja outra coisa. — Shiro murmurou. —Não saberemos até verificarmos. Sem outra palavra, Yumei começou a avançar, deslizando pela encosta em direção à parede escura de árvores. Segurando seu arco em uma das mãos,
ela correu atrás dele, Shiro atrás dela. Ela gostaria de saber no que eles estavam entrando. Mesmo com o arco e o ofuda enfiados nas mangas, ela não se sentia bem preparada. As árvores se fecharam, os troncos grossos se elevando sobre eles, seus galhos nus emaranhados no alto. A neve no chão diminuiu até chegar à altura do tornozelo. Abaixo dela, um espesso tapete de folhas absorvia seus passos. A vegetação rasteira esparsa deixava o solo da floresta surpreendentemente aberto e fácil de atravessar. Ela apertou os olhos à frente. Os troncos escuros formaram linhas fortes na neve, mas à distância, as formas das árvores suavizavam e desapareciam na névoa branca. —Eu posso ver por que os yokai locais evitam esta floresta. — Shiro disse, seu murmúrio baixo a assustando. —É tão sem vida. —Sem vida? — Emi ecoou, olhando ao redor para as árvores sem fim. —Sem pássaros, sem pequenos animais. Não consigo ouvir ou cheirar nada vivo. Agora que Shiro havia apontado, ela não podia ignorar o silêncio assustador da floresta. Seus passos suaves, até o som de sua respiração, eram intrusivamente altos. Contraindo os ombros nervosamente, ela se apressou para ficar mais perto de Yumei. O Tengu deslizava pela neve, sua cabeça girando lentamente enquanto ele absorvia tudo, não com medo, mas uma atenção cautelosa tocava seus movimentos. —Yumei. — disse ela, ansiosa para encobrir o silêncio ameaçador. —Tem certeza de que nunca conheceu Shiro antes? Ele nem mesmo olhou para ela. —Sim. —Mas ele se lembra de você.
Ele parou e se virou, seus olhos prateados brilhando nas sombras enquanto passavam dela para Shiro. —Do que você está falando? Ela explicou o que Shiro havia dito sobre o Tengu do passado e como ele havia esquecido as memórias imediatamente depois. —E se vocês dois se conheceram há muito tempo, mas simplesmente não se lembra dele? —Não nos conhecemos. — disse Yumei sem emoção. —Eu não teria esquecido uma criatura tão irritante. —Estou feliz por ter causado uma impressão tão duradoura. — Shiro disse, seu sorriso sugerindo mais diversão do que insulto. —Como Shiro saberia tanto sobre você, então? — Emi persistiu. Yumei
se
virou
e
voltou
a
andar. —Provavelmente
de
seu
mestre. Embora eu não consiga me lembrar do rosto de nenhum Kunitsukami depois de tanto tempo, encontrei Inari em várias ocasiões. Como os Kunitsukami estavam tão longe dos mortais, seres de profundo poder e magia, suas aparências escaparam facilmente das memórias de seres inferiores. Parecia tão estranho para ela que Yumei pudesse se lembrar de tanto sobre eles, mas não de seus rostos. —Como é Inari? — Ela perguntou. —Irritante. Os kitsune seguem seu mestre. Emi
franziu
a
testa
com
uma
descrição
tão
rude
de
um
Kunitsukami. Yumei não deveria ser mais respeitoso, mesmo de passagem? —Então, como Inari e Shiro provavelmente se conheceriam? — Ela olhou entre os dois yokai, sem saber para quem estava direcionando a pergunta. — Tudo o que sei é que os kitsune são considerados os mensageiros de Inari. —Por que um Kunitsukami precisaria de mensageiros? — Shiro perguntou. —Se algum dia encontrarmos Inari, essa será minha primeira pergunta.
Yumei balançou a mão em aborrecimento. —Mensageiro, servo, vassalo. Muitas palavras para o mesmo papel. Como eu tenho meus karasu, Inari tem os kitsune. Emi franziu os olhos, imaginando uma figura régia e severa cercada por um bando de raposas brancas e fofas. Não é uma imagem tão intimidante quanto Yumei e seu bando de corvos negros de olhos redondos. —Então Shiro é provavelmente o vassalo de Inari? Acho que faz sentido. —Eu não sei. — Shiro entrelaçou as mãos atrás da cabeça, virando o rosto em direção ao dossel da floresta envolto em névoa. —Eu tenho minhas dúvidas. —Por quê? — Ela perguntou. —Não sei se você notou. — ele respondeu secamente. —Mas não sou do tipo obediente e confiável. Nenhum Kunitsukami em sã consciência iria me querer como vassalo. Emi não respondeu. Apesar da opinião ruim de Shiro sobre si mesmo, ela suspeitava que sua capacidade para honra e lealdade superava em muito suas tendências imprevisíveis. —No seu perfeito juízo? — Yumei repetiu em um murmúrio. —Inari é muitas coisas, mas essa não é uma das primeiras descrições que eu aplicaria. Tirada de seus pensamentos, Emi olhou para as costas do Tengu com os olhos arregalados. —O que você quer dizer? Você está dizendo que Inari não é... são? —As vezes. —O que isso significa? Yumei parou, sua cabeça girando. Emi parou também, apreensão deslizando por ela. Segurando seu arco com as duas mãos, ela vasculhou os
arredores, as árvores imóveis e faixas de neve intacta. Levou um momento para ver o que estava errado. Duas dúzias de metros além dos troncos mais próximos, tudo era branco. Durante a caminhada, a névoa se espessou, obscurecendo a floresta. A luz difusa do sol não lançava sombras, criando um mundo misterioso de luz fraca e indistinta. —Estamos perdidos? — Emi sussurrou, lembrando-se de sua caminhada circular pela floresta da montanha algumas semanas atrás, quando ela encontrou Shiro e seu perseguidor oni pela primeira vez. —Ainda não. — Shiro respondeu. —Fiquem
perto.
—
disse
Yumei,
retomando
sua
caminhada
deslizante. —E fiquem quietos. Shiro mudou-se para o lado dela e eles seguiram o Tengu pela floresta. Os minutos passaram e ela se perguntou quanta luz do dia eles ainda tinham. Algumas horas, pelo menos, mas não era o suficiente para vasculhar o vale inteiro. Yumei e Shiro provavelmente não se importavam com a escuridão, mas a ideia de vagar por essa floresta estranha e silenciosa após o anoitecer a encheu de pavor. O que eles encontrariam aqui? Talvez este lugar não tivesse nada a ver com Izanami e os Kunitsukami desaparecidos. Mesmo que existisse, eles estavam vagando sem direção em um vale extenso. Com a visibilidade limitada, eles podiam passar por pistas óbvias sem vê-las. Obedecendo à exigência de silêncio de Yumei, ela não compartilhou seus pensamentos. Até que o Tengu desistisse da busca, eles não estariam deixando esta floresta. Tremendo de frio e puxando nervosamente uma mecha de cabelo que havia escapado de seu coque apertado, ela o seguiu sem palavras.
Shiro caminhou ao lado dela, examinando a floresta. A névoa entrava e saía das árvores, engrossando inesperadamente em nuvens densas antes de diminuir novamente. Eles entravam e saíam dos bolsões de névoa, alguns tão densos que a forma escura de Yumei à sua frente quase desapareceria. Sua pele formigou. O frio no ar aumentou, parecendo vazar do chão e se enroscar em seus tornozelos a cada passo. A silhueta de Yumei desbotou para um cinza enevoado quando a névoa rolou sobre eles novamente. Ela se aproximou de Shiro até que sua manga roçou seu braço, o leve contato acalmando seus nervos um pouco. Yumei parou, a névoa lentamente girando em torno dele como uma nuvem. Ele virou a cabeça de um lado para o outro. —Eu perdi de novo. — Ele murmurou. —Eu também perdi. — disse Shiro. —Rastrear nessas condições é impossível. —Perderam o quê? — Emi perguntou, esfregando o braço com a mão livre. O arco apertado em seu outro punho fez pouco para confortá-la. Shiro girou os ombros para liberar a tensão. —Posso sentir uma presença estranha, mas não tenho certeza do que é. —Tsuchi está obscurecendo nossos sentidos. — Yumei acrescentou irritado. —Espere, vocês dois estão seguindo alguma coisa? — Ela olhou entre eles,
uma
carranca
puxando
sua
boca. —Por
que
vocês
não
me
contaram? Achei que estávamos andando sem rumo. —Os reinos terrestre e espiritual estão perigosamente interligados aqui. — disse Yumei, ignorando sua reclamação. —Eles mudam continuamente com a névoa.
Shiro tirou o cabelo dos olhos. —Já que a névoa está vindo de Tsuchi, você pode fazer alguma coisa a respeito? Yumei se virou, seu olhar varrendo as árvores enevoadas. —Eu não tenho poder sobre Tsuchi aqui. Eu nem consigo... Um redemoinho varreu sobre eles e suas palavras desapareceram com a névoa rodopiante. A densa névoa obscureceu sua forma inteiramente, embora ele estivesse a apenas alguns passos de distância. Sua voz desapareceu junto com sua sombra. Os braços de Shiro a envolveram, puxando-a contra ele. Ela se agarrou a ele, o medo dançando em seus nervos. Ela não conseguia ver nada além de branco. —Yumei? — Ela chamou. —Ele não está lá. — Shiro disse em um rosnado áspero. —Eu deveria ser capaz de ouvi-lo, mas não posso. —O quê, mas o que aconteceu? —Não tenho certeza. Tudo que sei é que ele não está onde estava um momento atrás, ou não estamos. Os reinos continuam mudando com essa névoa maldita. — Sua cabeça girou, as orelhas girando rapidamente. — Estamos saindo daqui. —E quanto a Yumei? —Ele pode cuidar de si mesmo. — Ele agarrou a mão dela, entrelaçando os dedos com força. —Não me solte. Ela assentiu com ansiedade e ele começou a voltar pelo caminho de onde vieram. A névoa pesada se agitou ao redor, escondendo a floresta. Árvores apareceram na frente deles, visíveis apenas a alguns metros de distância. Shiro a conduziu sem hesitar, contornando troncos e arbustos. Emi olhou para a
neve, procurando os rastros que eles haviam feito em seu caminho para a floresta, mas ela não conseguiu ver nada além de uma pegada. —Como você sabe que caminho seguir? — Ela perguntou em um silêncio. —Eu tenho um bom senso de direção. — Ele parou, suas orelhas girando, então começou novamente em um ângulo diferente. —Essa névoa está dificultando as coisas, no entanto. Eu nunca vi os dois reinos misturados assim antes. —E a casa de Yumei? —A casa dele é uma âncora, mas isso é outra coisa. — Ele circulou uma árvore de abeto irregular. —Não sei muito sobre como funciona. Yumei é o especialista, não eu. —E se esta floresta...— Ela começou. Shiro recuou no meio de um passo, ou tentou. Ele se retorceu estranhamente, quase tendo uma convulsão no local. Agarrando sua mão, ela se aproximou. —Shiro, o que... —Fique atrás! Ainda segurando a mão dela, ele enfiou um pé na neve e se esticou para trás, mas de alguma forma ele não se moveu, como se uma força invisível o estivesse segurando no lugar. Quando ela agarrou a mão dele, um brilho estranho e dourado chamou sua atenção. Ela apertou os olhos. Quando Shiro se moveu, uma linha fina brilhou como um fio de ouro fiado, estendendo-se dele até as árvores. Outro fio cintilou, quase invisível na névoa, depois outro e outro. Quando ela se inclinou para trás, a forma se materializou diante dela. Uma teia. Uma teia de aranha dourada brilhante se estendeu entre as árvores.
Shiro se esforçou contra a enorme teia, seu braço esquerdo e o lado esquerdo presos aos fios brilhantes. Emi agarrou a mão dele com as suas e puxou, jogando todo o seu peso nela. O som de uma costura rasgando acompanhou seu grunhido enquanto ele cravava o pé livre na neve. Os dois puxaram com força a teia enquanto os fios se curvavam sob a pressão. Então seu pé escorregou. A teia voltou ao normal, puxando-o com ela, e arrancando sua mão da dela. Quando ela caiu, a névoa turvou violentamente. Subindo, ela se lançou para Shiro enquanto a névoa os envolvia. —Emi! Sua voz saiu da névoa e ela alcançou o local onde ele deveria estar. Suas mãos não encontraram nada além de névoa fria enquanto ela tropeçava para frente. —Shiro? Shiro! Seu grito de pânico ecoou ao seu redor. Ela congelou no lugar, seus sentidos se esforçando. Estava em silêncio. Uma névoa branca impenetrável a cercava. Ela não conseguia ver ou ouvir nada. —Shiro? — Ela chamou desesperadamente. Ele deveria estar bem ali. Bem ali na frente dela. Por que ele não estava respondendo? Por que ela não podia vê-lo? Esticando as mãos, ela deu mais alguns passos cuidadosos, com medo de entrar na teia de aranha e ficar presa com ele. Onde ele estava? Por que ele não estava lá? Depois de mais alguns passos e chamadas frenéticas, ela sabia que estava sozinha. Fechando os olhos com força, ela viu Yumei desaparecer bem diante deles, engolido pela névoa. A mesma coisa aconteceu com ela. Ela ainda estava no reino terreno? Ou ela foi transferida para o reino espiritual?
O pânico passou por sua cabeça. O que ela deveria fazer? Ela não tinha pensado em perguntar a Shiro ou Yumei o que fazer se eles se separassem. Abrindo os olhos, ela olhou ao redor para a névoa. Ela não deveria fazer nada e esperar. Se ela vagasse por aí, ela apenas tornaria mais difícil para eles encontrá-la. Lutando para manter a calma, ela deu um passo para trás, refazendo seus passos até o local onde ela percebeu que Shiro havia partido. Ela esperaria lá até que ele a encontrasse. Ela mordeu o lábio com força. Ele se libertaria daquela teia gigante, não é? Ele poderia convocar suas espadas e se libertar antes que o fiador de teia chegasse para ver o que ele havia prendido. Ela estava se esforçando para não pensar sobre o que havia feito aquela teia. Ninguém que vai para o vale sai de novo. Focada em conter o pânico, ela recuou mais um passo. Suas costas bateram em algo estranho, algo que resistiu ao seu movimento, mas não era totalmente sólido. Seu estômago embrulhou de terror e ela se jogou para longe. Ela se moveu cerca de quinze centímetros antes de ser puxada de volta ao lugar. Com o coração na garganta, ela olhou para cima. Fios pegajosos de ouro se cruzaram atrás dela, estendendo-se até as árvores mais próximas. Ela recuou para outra teia. Mas como? Ela tinha acabado de caminhar com segurança por este local exato! Soltando seu arco, ela se lançou para frente novamente apenas para ser puxada para trás pela teia elástica. Mal contendo um grito, ela se debateu quando o terror absoluto e intenso de estar presa, de ser a presa indefesa de um monstro, esvaziou sua cabeça. O braço dela bateu na teia e ficou preso por um instante petrificante antes de ela se soltar novamente. Pense. Ela precisava pensar. Forçando-se a parar, ela respirou fundo e examinou a teia. Ela se lembrou do som das roupas de Shiro se rasgando. Sim,
claro. Suas roupas estavam grudadas na teia, não sua pele, e com os braços livres, ela poderia se livrar das roupas que a prendiam no lugar. Com o cuidado de manter os braços longe da teia, ela tirou as alças da mochila dos ombros. Seu torso se soltou, deixando a mochila presa no lugar. Apenas a metade inferior de seu corpo estava presa agora. Ela se abaixou em direção ao chão, a barra inferior do casaco e a parte de trás do hakama ainda coladas na teia, e remexeu na neve até que suas mãos encontraram uma raiz de árvore. Usando-a como alavanca, ela puxou com toda sua força. A teia se curvou. Com o estalo de fios quebrando, ela se libertou de uma vez. Ela desabou na neve. Ofegante, ela se levantou e se voltou para a teia. A mochila dela estava pendurada, alças vazias penduradas. Pegando as alças, ela se preparou e puxou. A teia se curvou em sua direção, mas não liberou sua vítima. A bolsa foi fundida no lugar. Ela a inspecionou rapidamente. Sua aljava de flechas saía do zíper aberto em cima da mochila, a penugem escura contrastando com a névoa branca sem fim. Talvez ela pudesse cortar os fios com uma ponta de flecha. Ela deslizou a aljava, arrancou uma flecha e colocou a aljava no ombro. Quando ela pegou sua mochila novamente, ela balançou na teia. Seus dedos congelaram no lugar, pairando alguns centímetros da alça. A mochila deu outro pequeno estremecimento, movendo-se sozinha. Não, não era a mochila que estava se movendo. Era a teia. Dando um passo para trás, ela olhou para cima. Na névoa três metros acima de sua cabeça, uma forma escura flutuava no ar. Em seguida, duas pernas longas e finas se desenrolaram do corpo, estendendo-se para baixo como dedos em busca. Com o instinto de um
pequeno animal caçado, ela lentamente se agachou, sem tirar os olhos da forma escura, e pegou o arco na neve. Em seguida, ela se afastou da teia. A enorme aranha desceu pelos fios trêmulos. Suas quatro patas dianteiras eram assustadoramente longas, com o dobro do comprimento de seu corpo, enquanto as quatro patas traseiras eram mais curtas. O centro plano de seu corpo era de um ouro fosco, com listras pretas fracas marcando seu abdômen alongado. Suas pernas, lisas na parte superior com cerdas duras na parte inferior, tinham faixas de cores iguais. Das pernas dianteiras às costas, tinha pelo menos um metro de comprimento. Seu coração disparou em um frenesi, sufocando-a. Ela continuou se afastando lentamente, seu arco estendido atrás dela para que ela não caísse em outra teia. A aranha desceu, com movimentos ritmados e precisos, até alcançar sua bolsa. Uma longa perna dianteira se abaixou e bateu no tecido. Tão rápido que ela teria perdido se tivesse piscado, a aranha pulou em sua mochila. As protuberâncias bulbosas em seu rosto se estenderam e afundou um par de presas gigantescas e brilhantes na frente da mochila. Fios úmidos de veneno escorreram de sua boca enquanto ela cravava as farpas curvas em sua presa. Ela não percebeu que ofegou audivelmente até que a aranha se acalmou. Sua cabeça apareceu e seis olhos negros a fitaram, um agrupamento de quatro no centro e dois maiores de cada lado de sua cabeça. Um par de minúsculos apêndices parecidos com braços em cada lado de seu rosto se mexeu ativamente, deslizando sobre as presas como se os preparasse para outra mordida. Recuando mais um passo, ela lentamente colocou a flecha em sua mão contra o arco. Cautelosamente, ela ergueu o arco e mirou. A boca da aranha se contraiu com fome e ela esticou suas longas patas dianteiras, como se a
alcançasse através do espaço entre elas. Ela puxou o barbante de volta para sua bochecha. Um grande peso bateu no topo de sua cabeça. A flecha disparou na névoa quando pernas longas se enrolaram sobre ela. Um grito horripilante rasgou sua garganta enquanto ela se abaixava e se debatia, tentando jogar a aranha de cima dela. Ela a pegou com a ponta do arco e arrancou-a das costas, jogando-a no chão. Ela se ergueu, mais alta do que ela, as patas dianteiras se agitando e as presas estendidas. Mais rápida do que nunca em sua vida, ela agarrou outra flecha, encaixou-a e atirou. No último segundo, a aranha caiu e a flecha atingiu seu abdômen bulboso em vez de sua cabeça. Ela estremeceu com uma dor silenciosa, mas nem mesmo deu um passo para trás. Em meio ao pânico, ela percebeu que havia esquecido de adicionar seu ki à flecha. Com um tremor final, a aranha flexionou suas presas e se lançou contra ela. Ela gritou novamente, empurrando seu arco na frente dela. A aranha acertou e ricocheteou, as pernas balançando no ar. Ela agarrou outra flecha e a encaixou. —Shukusei no tama! —Ela gritou e disparou a flecha. Ela voou pelo ar, brilhando em branco, e atingiu a aranha em sua barriga. A luz brilhou intensamente e a criatura caiu na neve, as pernas moles. Ela girou em direção à teia onde sua mochila ainda estava pendurada, pingando veneno, mas a primeira aranha não estava à vista. Ela pegou outra flecha e colocou-a contra o arco, pronta para puxá-la ao primeiro sinal de movimento. Enquanto ela ofegava, com as mãos tremendo, a mochila balançou na teia mais uma vez. Seu olhar se ergueu. Uma forma escura e nebulosa pairava entre os galhos acima dela. Então ela viu a segunda. Depois a terceira. Seus joelhos enfraqueceram quando ela
contou cinco aranhas gigantes agarradas a teias invisíveis seis metros acima de sua cabeça. Quase simultaneamente, elas estenderam as pernas e começaram a se mover. Sua coragem acabou. Girando, ela disparou por entre as árvores. Batidas soaram atrás dela e ela olhou para trás para ver as aranhas caindo no chão e correndo atrás dela, suas pernas um borrão. Gritando em sua cabeça, mas apavorada demais para fazer qualquer som, ela correu às cegas pela névoa, esquivando-se das árvores que surgiam do branco infinito. Um aglomerado de árvores surgiu diante dela. Na grande lacuna entre as duas, uma teia dourada media os galhos. Derrapando até parar na neve, ela enfrentou a teia. Um buraco do tamanho de um humano havia sido rasgado, as bordas irregulares pretas como se carbonizadas pelo fogo. —Shiro? — Ela gritou. —Shiro! O silêncio foi sua única resposta. Ela se virou, olhando para trás por onde tinha vindo, arco e flecha em punho, mas ela não conseguia ver nada através da névoa. As aranhas a estavam seguindo? Ela ergueu os olhos. Uma aranha saiu da névoa. Ela deu um salto para trás e ela pousou na sua
frente,
levantando
os
membros
dianteiros
de
forma
ameaçadora. Retrocedendo, ela agarrou seu arco. A aranha caiu sobre todas as oito pernas e recuou rapidamente. Ela mirou. Outra aranha saltou da névoa à sua esquerda. No momento em que ela girou em direção a ela, a primeira cambaleou em sua direção do outro lado. Girando, ela recuou com as pernas trêmulas. Uma terceira aranha caiu na neve bem à frente dela. Ela puxou o arco em direção a ela, mas não atirou. A ameaça da flecha era a única coisa que as mantinha longe dela, e se ela atirasse em uma delas, as outras duas atacariam antes que ela pudesse puxar outra flecha.
Ofegante, ela continuou a recuar. Uma quarta desceu casualmente pelo tronco de uma árvore, as pernas movendo-se em ondas sinistras e graciosas. Seus olhos negros a observavam. —Shiro! — Ela gritou desesperadamente. Quão longe ele poderia estar? As aranhas se aproximaram enquanto ela balançava o arco entre elas como um pêndulo. Uma quinta desceu dos galhos acima, pendurada de cabeça para baixo por um fio dourado. Lutando para respirar, ela recuou passo a passo enquanto as aranhas avançavam sobre ela. Ela deveria atirar? Ela deveria correr de novo? Ela tinha certeza de que elas eram mais rápidas do que ela. A quinta aranha desceu ao chão, o fio arrastando-se atrás dela, e juntou-se às suas companheiras. Espalhadas em um semicírculo, as aranhas se aproximaram, diminuindo a distância. Emi puxou a corda do arco de volta para a bochecha, convocando seu ki enquanto se preparava para falar o encantamento. As cinco aranhas se lançaram contra ela. Ela se atirou para longe enquanto atirava na mais próxima, assustada demais para pronunciar o encantamento de purificação. Suas costas acertaram algo macio atrás dela ao mesmo tempo em que sua flecha acertou a aranha no centro de seu agrupamento de olhos. Ela caiu no chão, as pernas estremecendo violentamente antes de ficar imóvel. Emi se lançou para frente, mas seu corpo não se moveu. Fios dourados brilharam em sua visão periférica, mas ela não conseguia nem virar a cabeça para vê-los. Seu cabelo estava colado na teia. Suas costas, braços e pernas estavam presos. Ela saltou para trás direto nela. Enquanto as aranhas casualmente se aproximavam, ignorando sua camarada morta, ela percebeu que elas a agruparam deliberadamente na teia como uma ovelha em um cercado. A dor atingiu seus músculos enquanto ela
lutava para se libertar, mesmo em um braço. Se ela conseguisse esticar um braço, poderia tentar tirar as roupas. As aranhas se aproximaram. A maior alcançou o outro lado da teia e subiu nela, abrindo caminho em sua direção. Seus apêndices parecidos com uma boca balançaram enquanto suas longas presas se desenrolavam, brilhando úmidas. Ela se aproximava com cautela lenta, preenchendo sua visão com seu corpo dourado opaco e um aglomerado de olhos sem pálpebras. Uma perna esticada, a ponta em forma de garras alcançando-a enquanto estendia suas presas. Ela gritou, se contorcendo loucamente na teia. Do nevoeiro, uma luz brilhante apareceu. Uma forma branca saiu da névoa e caiu no aglomerado de aranhas. Chamas azuis e brancas ondulavam do pelo de raposa enquanto suas três caudas chicoteavam atrás dele. Com olhos vermelhos e marcas no rosto brilhando ferozmente, ele agarrou a perna da aranha em suas mandíbulas antes que pudesse tocar Emi e arrancou-a da teia. Todas
as
quatro
aranhas
enxamearam
em
direção
ao
kitsune. Impossivelmente ágil, ele saltou para longe e girou, agarrando outra pela perna. O fogo estourou de suas mandíbulas e ele arrancou a perna. Ele correu e girou entre as aranhas que se debatiam e se agitavam, sua forma do tamanho de um lobo muito mais adequada para lutar contra as aranhas do que sua forma humana de duas pernas. Kitsunebi ganharam vida ao seu redor, as esferas de fogo espiralando no ar. Elas bombardearam as aranhas enquanto Shiro dançava entre as criaturas, tão rápido que parecia uma rajada de fogo e pelo. Chamas se arrastavam atrás dele enquanto ele as pegava uma após a outra, arrancando membros enquanto seus kitsunebi as atacavam.
Quando ele finalmente parou de se mover, apenas corpos mutilados e em chamas restaram, as pernas desmembradas espalhadas na neve. Shiro girou em sua direção quando o fogo explodiu sobre ele. Sua forma humana apareceu. Quando ele saltou em direção a ela, seu kitsunebi disparou à frente dele e rasgou a teia ao redor dela. Ela cedeu, seu arco escorregando de sua mão trêmula quando ele a agarrou. —Emi! — Ele a puxou e a colocou de pé. Suas mãos agarraram os lados de sua cabeça e ele ergueu seu rosto, seu olhar varrendo freneticamente através de suas feições. —Você está machucada? Você foi mordidoa? —Eu... Ele soltou seu rosto e passou as mãos sobre seus ombros e para baixo em seus lados, vasculhando seu corpo em busca de ferimentos. Ele a girou e a olhou de volta, então a virou novamente para encará-lo. —Shiro, estou bem. — Ainda sem fôlego, ela tonta agarrou seus pulsos para que ele não pudesse girá-la novamente. —Elas não me morderam. Seus olhos varreram o rosto dela novamente, as marcas em suas bochechas brilhando fracamente, e ele finalmente assentiu. —Vamos sair daqui. — Disse ele, abaixando-se para pegar o arco dela. —O que está acontecendo? O que são aquelas... —Tsuchigumo. — ele rosnou, estendendo o arco para ela. —Aranhas yokai do reino espiritual. Caminhamos direto para um ninho maldito e precisamos sair desta floresta antes... Ele se virou, as mãos voando para cima. Uma sombra gigantesca saiu da névoa e se chocou contra ele. Ele caiu para trás em Emi, jogando-a no chão e caindo em cima dela. A parte de trás de sua cabeça atingiu uma raiz sob a neve, sacudindo seu crânio como um golpe de martelo.
No instante em que a dor e o choque fizeram com que o tempo se arrastasse, ela viu tudo. Shiro estava em cima dela, tirando o ar de seus pulmões, de costas para ela e os braços estendidos na frente dele. Em cima dele estava um monstro de pesadelo. A aranha era quatro ou cinco vezes maior que as que atacaram Emi. As marcas em seu corpo maciço eram de um amarelo brilhante e vibrante, com uma faixa vermelho-sangue em seu abdômen protuberante. Suas pernas intermináveis se contorciam ao redor deles, raspando na neve enquanto ela pressionava. Em suas mãos, Shiro segurava seu arco. Ele empurrou a fina faixa de madeira na boca da aranha colossal e seus braços tremeram enquanto ele se esforçava para conter a aranha, suas presas mortais pairando a apenas trinta centímetros de sua carne desprotegida. Ela viu tudo isso em um único instante. Então, com um estalo alto, o arco se partiu em dois. O fogo explodiu de Shiro enquanto as presas da aranha mergulhavam em sua direção. A aranha recuou com um silvo alto e furioso, e o peso de Shiro sumiu dela. Por um momento, Emi não conseguiu entender seu movimento repentino. Então a aranha gigante recuou, arrastando Shiro com ela, arrastando-o pelas presas enterradas profundamente em seu ombro.
Emi entrou em choque. Ela não conseguia desviar o olhar de Shiro, das presas perfurando seu corpo. De joelhos nas garras do monstro, ele agarrou o rosto da aranha com uma das mãos. O fogo faiscou em seu outro, e quando sua espada apareceu em suas mãos, ele a empurrou para cima. As chamas explodiram sobre a lâmina enquanto ele a cravava profundamente na barriga da aranha. O monstro o deixou cair, recuando com um silvo tão alto que era quase um grito. Um fluido pálido jorrou de seu corpo enquanto se afastava dele com as pernas agitadas e assobios altos. Então a espada de Shiro caiu de sua mão e ele caiu no chão. A paralisia de Emi acabou. Ela ficou de pé e voou para o lado dele. Agarrando seu braço, ela tentou arrastá-lo para cima. Ele cedeu de lado para ela. —Shiro! — Ela engasgou, sua voz falhando. Seu peso era demais para ela e ele escorregou para o chão, meio de lado. O sangue gotejava das duas grandes feridas de punção que atravessavam seu ombro da frente para trás, mas o fluido claro e brilhante que revestia as feridas a assustava mais. —Emi. — disse ele com voz rouca. Seus olhos, já vidrados e perdendo o foco, ergueram-se para os dela. —Corra. —O-o quê?
—Corra. Antes que ela volte. —Ela? A aranha? — ela gaguejou, olhando para cima. O monstruoso aracnídeo amontoou-se a algumas dezenas de metros de distância, quase invisível na névoa. —Então levante-se para que possamos correr. Sua mão se fechou em sua manga. —Você tem que correr. —Não sem você. Levante-se, Shiro. —Emi...— Seus olhos perderam totalmente o foco e suas pálpebras caíram. Enquanto ela engasgava em pânico, ela percebeu como a respiração dele estava lenta. —Levante-se, Shiro! A mão dele escorregou do braço dela e caiu molemente no chão. Ele olhou sem ver, seu peito subindo e descendo com respirações lentas, cada uma mais lenta que a anterior. Sua espada de repente se dissolveu em uma onda de chamas. —Shiro! — Ela sacudiu o ombro dele com violência, as lágrimas escorrendo pelo rosto. —Shiro, levante-se! Eu não posso fugir sem você! Ela agarrou o rosto dele, virando-o em sua direção. Seus olhos vidrados e velados não a viam. Sob suas palmas, sua pele era fria, quase fria. Seu coração se comprimiu sob o peso da agonia. Não. Não, isso não poderia estar acontecendo. Amaterasu! Ajude-me! Seu grito interno ecoou dentro dela, mas a marca kamigakari estava em silêncio, ainda para se recuperar após sua batalha com a kami. Ela estava sozinha. Ninguém iria salvá-la ou a Shiro. Um silvo alto interrompeu seus pensamentos frenéticos. Sua cabeça se ergueu quando a aranha colossal se aproximou, pingando sangue branco na
neve. Estava voltando para eles, para Shiro. Suas mãos se apertaram ao redor de seu rosto. Ela não permitiria que aquele monstro o tivesse. Uma fúria ardente como ela nunca sentiu antes ferveu dentro dela, alimentada pela angústia. Ela ficou de pé, colocando-se entre Shiro e a aranha. Ela não deixaria a yokai ficar com ele. Ela não o deixaria morrer. Ainda não. Não antes que ela pudesse remover o onenju e dar suas memórias, sua vida, de volta para ele. Ele não poderia morrer antes de ter sua vida de volta. A raiva agitou violentamente dentro dela quando ela olhou para cima para encontrar o olhar negro da aranha. Ela enfiou as mãos nas mangas e retirou o ofuda. —Você não pode tê-lo. — Ela disse, sua voz rouca enquanto a determinação crescia dentro dela. Uma brisa, a primeira que ela sentiu desde que entrou na floresta, sussurrou sobre ela, provocando seu cabelo e esfriando as lágrimas em seu rosto. A aranha empinou, elevando-se sobre ela com as pernas estendidas e as presas à mostra. Ela agarrou seu ofuda com força enquanto a brisa girava em torno dela, enviando a névoa em redemoinhos selvagens pelo chão. A aranha atacou. Ela se jogou para frente, mergulhando sob as presas letais. Pulando embaixo dele, ela bateu um ofuda contra sua barriga. —Sotei no... A aranha saltou para fora dela e uma perna grossa saiu, atingindo-a no peito. A agonia atingiu suas costelas enquanto ela voava pelo ar. A brisa aumentou, girando em torno dela em uma rajada repentina. De alguma forma, impossivelmente, o vento varreu sob ela, impedindo sua queda e empurrando-a para cima. Ela pousou perfeitamente em pé. Ofegante, ela olhou ao redor em confusão. O que aconteceu? O vento a pegou, assim como
fez quando Amaterasu usou o corpo de Emi para lutar contra Izanami. Mas a marca kamigakari de Emi era fria e desprovida de magia. Ela não podia sentir nenhum poder de Amaterasu dentro dela ou ao seu redor. A aranha assobiou alto. Atrás dela, Shiro estava deitado na neve, imóvel. Uma raiva desesperada borbulhou dentro dela novamente e o vento agitou-se, enviando neve dançando ao seu redor. Ela agarrou seu ofuda. Mais uma vez, a aranha avançou sobre ela, depois girou para o lado e subiu no tronco de uma árvore. Emi cambaleou para trás, esticando o pescoço enquanto a forma escura desaparecia na névoa acima. Sem pensar, ela empurrou a mão para cima. Uma rajada violenta seguiu seu movimento, surgindo em direção ao céu. Os galhos das árvores rangeram e a névoa se contorceu como se resistisse ao impulso do vento. Conforme a névoa se dispersou, uma forma escura diretamente acima de Emi se manifestou. A aranha caiu da teia acima. Emi saltou para trás, o vento empurrandoa e segurando-a de pé ao mesmo tempo. A aranha pousou diretamente na frente dela, as presas estendidas, mas ela já estava estendendo a mão. O encantamento floresceu em sua mente, embora ela não tivesse tempo de falar as palavras. O ofuda amarrado em sua mão atingiu a aranha nos olhos enquanto as palavras ecoavam em sua cabeça. Sotei no shinketsu! Uma luz azul surgiu sobre a yokai, imobilizando todo o seu corpo. Emi agarrou outro ofuda e o jogou em cima do primeiro. —Shukusei no tama! Com as palavras do feitiço de purificação, o ar ao redor da aranha brilhou intensamente. Ela esmagou a mão contra o ofuda, trazendo cada grama de sua vontade e concentração sobre ele. O calor cresceu dentro dela, não da marca
kamigakari, mas do fundo de seu peito, do fundo de seu coração. Ki desceu pelo braço dela. A luz faiscou em toda a aranha e o vento soprou violentamente ao redor delas. Em um clarão final, ambos os ofuda se transformaram em cinzas pretas sob sua mão. A aranha desabou no chão e sua forma começou a amolecer na morte yokai. Emi cambaleou para trás. Ela matou a aranha purificando todo o seu ki, destruindo sua força vital. Balançando a cabeça, ela tropeçou para longe do corpo, um pensamento, um nome, enchendo sua mente até que ela não conseguia pensar em mais nada. Shiro. Ela caiu de joelhos ao lado dele e tocou sua bochecha. Sua pele fria esfriou sua palma. Seus olhos estavam fechados e apenas sua respiração fraca e superficial revelava a vida à qual ele ainda se apegava. —Shiro. — ela sussurrou. —Shiro, por favor, acorde. A brisa tremeluziu sobre ela. Era apenas uma brisa, mas de alguma forma ela soube olhar para cima, atender ao seu aviso silencioso. A névoa vagou pela clareira e dentro dela uma nova sombra tomou forma. Do nada além do branco turvo, uma figura se fundiu em uma forma sólida. A mulher era pequena, mais baixa do que Emi, com uma figura magra e esguia, vestida com um quimono de seda dourada cintilante. O cabelo preto emoldurava suavemente um belo rosto de traços delicados, linda, exceto pelos olhos. Seus olhos eram sólidos, orbes negras sem pálpebras brilhando em seu semblante gentil. A cabeça da mulher se virou, seus longos cabelos negros balançando atrás dela. Amarradas em intervalos regulares por laços dourados, as mechas sedosas caíam até o chão, roçando a neve. Ela franziu os lábios em forma de
botão de rosa para o corpo da aranha antes que aqueles olhos negros feios deslizassem por Emi e caíssem em Shiro. —Eu perguntaria... — disse a mulher em voz baixa e sibilante. —Qual de vocês eu deveria punir por matar minha filha, mas vejo que um de vocês já pagou o preço. Emi agarrou o ombro de Shiro, seus dedos se cravando. —Quem é você? —Você o segura como se ainda tivesse esperança. — observou a mulher. —Você sabe que ele nunca vai acordar, não é? —Ele não está morto. — Emi respondeu, sua voz alta com desespero. —Oh não. — a mulher respondeu docemente. —Ele não morrerá por muito tempo, mas a morte ele desejaria se fosse capaz de desejar agora. Todo o corpo de Emi ficou frio. —Do que você está falando? —Ah, então você não sabe. — A mulher se aproximou, seu quimono dourado ondulando a cada passo. —O que é você, eu me pergunto? Você parece não ser mais do que uma humana, mas posso sentir o cheiro da presença de um kami no ar. Agarrando seu ofuda, Emi se levantou e deu um passo na frente de Shiro. —Eu sou uma humana. —Talvez você seja, mas você não é tão humana quanto os doces pedaços que eu jantei nos últimos meses. Meu benfeitor não mandou você para minhas teias. —Você, você tem comido as pessoas do santuário? —Ah. — A mulher sorriu conscientemente. —Então você não é a andarilha inocente que você quer que eu acredite, hein? Já que você sabe tão pouco sobre meus filhos e filhas, duvido que venha caçar monstros, como tantos fizeram no passado. Você procura por um dos Kunitsukami perdidos?
Emi se endireitou, lutando para se concentrar enquanto o pânico girava sem parar em sua cabeça. —O que você sabe sobre os Kunitsukami? —Eu sei que eles me proíbem de caçar humanos, como é meu direito, meu legado. Eu sou a Devoradora de Almas, mas eles me confinaram neste vale e me permitem consumir apenas qualquer presa tola que entre nele. Você sabe como poucos humanos vêm aqui? A Devoradora de Almas. Emi conhecia esse nome. —Você... Você é Jorogumo? A yokai alisou o cabelo, parecendo satisfeita por ser reconhecida. — Então você não é totalmente ignorante. O que você sabe de mim? Jorogumo era uma yokai presente em quase tantos contos quanto o Tengu, mas suas histórias eram muito mais sombrias. Contos da aracnídea Devoradora de Almas deram pesadelos a Emi quando criança. Antes que ela pudesse responder, uma sombra estranha caiu sobre a clareira. A yokai inclinou a cabeça para trás enquanto olhava curiosamente para o céu, e Emi copiou o movimento. Acima, a névoa branca escureceu como se o sol tivesse diminuído. A escuridão engrossou até que um crepúsculo não natural caiu sobre a floresta. —Jorogumo. Emi reconheceu a voz profunda, mas os tons trêmulos que sussurravam de florestas antigas, sombras escuras e longas noites eram totalmente desconhecidos. —Devoradora de Almas, Rainha dos Aracnídeos, Senhora de Tsuchi. — o orador continuou, e Emi percebeu que ele estava respondendo à pergunta de Jorogumo. —Senhora do Sangue e Seda, e Bruxa Aranha do Norte. Saindo da escuridão, Yumei deslizou para a clareira, mas ele não era exatamente o yokai que ela conhecia. Seus movimentos eram lentos, precisos,
envoltos em uma graça predatória. As penas que normalmente se misturavam com seu cabelo escuro agora se estendiam além da parte de trás de sua cabeça, por trás de cada orelha pontuda, e seus olhos tinham ficado totalmente prateados, sem pupilas ou esclera. Em sua mão ele segurava uma longa lança negra, o cabo alinhado com seu braço e a ponta afiada apontada para o chão. E por trás de suas costas, asas negras lentamente se desdobraram, longas penas se projetando para fora. —Ah. — Jorogumo respirou. —Tengu, quanto tempo faz. Assombrou você, seu fracasso em me matar tantos séculos atrás? Yumei parou ao lado de Emi e dobrou suas asas contra suas costas. Seus olhos claros brilharam fracamente na escuridão não natural. —Embora fosse uma gentileza livrar o mundo de sua sujeira. — disse ele sem emoção. —Não posso dizer que sua existência passou pela minha mente desde a nossa separação. O rosto de Jorogumo se contorceu. —Você mente. Você jurou me destruir. Você não esqueceria. —Você acha que uma miserável como você ocuparia meus pensamentos? A
mulher
sibilou
furiosamente
antes
de
recuperar
a
compostura. Balançando a cabeça, ela enrolou uma mecha de cabelo escuro em volta do dedo. —Se você veio para salvar seus companheiros, você chegou tarde demais. Um já caiu nas presas da minha filha. O olhar de Yumei se voltou para Shiro e depois de volta para a rainha aranha. —A companhia que você mantém fala de sua destreza caída. — ela continuou orgulhosamente. —Embora eu só tenha ficado mais poderosa com uma dieta de sangue humano fresco e um poderoso ki yokai. Seu companheiro vai me alimentar ainda mais.
As mãos de Emi agarraram seu ofuda. —Yumei. — ela sussurrou com o canto da boca. —Jorogumo mencionou os Kunitsukami. Acho que ela sabe de alguma coisa. —Ela não saberia nada sobre tais assuntos. — Yumei disse sem abaixar a voz. —Ela está muito aquém da menção aos Kunitsukami. —É
por
isso
que
você
veio,
Tengu?
— Jorogumo
exclamou
alegremente. —Mais uma vez, você chegou tarde! —Ela não sabe de nada. — ele repetiu indiferentemente para Emi. Jorogumo sibilou, sua compostura quebrando novamente. —Eu não sou uma serva humilde, Tengu! Você se acha tão poderoso, abençoado pelas graças de Sarutahiko? Ninguém pode resistir ao meu beijo venenoso, nem mesmo seu precioso mestre. Só porque ela estava prestando atenção, Emi viu a pequena flexão na mandíbula de Yumei, mas ele soou tão desdenhoso quanto antes quando disse: —Suas mentiras não me impressionam. Você acha que eu acreditaria que você é capaz de derrubar o Daimyojin? Jorogumo desviou o olhar antes de retornar seu olhar para Yumei. — Asseguro-lhe que já provei a potência divina de seu sangue, e ele caiu, pego no sono eterno do meu beijo. —Izanami ajudou você. — disse Emi em voz alta. —Não foi? O choque passou pelo rosto de Jorogumo, uma resposta em si. — Independentemente de como você chegou a esse conhecimento, não importa. Você nunca vai deixar esta floresta para falar sobre isso. A rainha-aranha fixou seu olhar sem piscar em Yumei e abriu os braços, as mangas drapeadas de seu quimono esvoaçando. —Você vem para o meu vale, onde eu governo com todos os meus filhos e filhas ao meu lado, onde nos empanturramos de ki de humanos e yokai, e você pensa em me desafiar? Você,
o patético corvo murcho que uma vez travou
batalha com seu
guerreiro daitengu ao seu lado, mas agora veio rastejando diante de mim sem um único soldado para comandar? Você não pode me derrotar. Yumei estendeu sua lança para o lado, fazendo as penas penduradas no cabo logo abaixo da lâmina balançarem. —O tempo não melhorou sua arrogância. Ela riu, os braços ainda estendidos. —Eu deveria dizer o mesmo para você. Vou gostar de beber seu ki, Tengu. Ela ergueu as palmas das mãos para o céu. Quando suas mãos se levantaram, formas gigantescas desceram da escuridão do crepúsculo. As enormes aranhas desenrolaram as pernas e emitiram assobios ansiosos quando dezenas de suas irmãs menores caíram para se juntar a elas. Jorogumo jogou a cabeça para trás, soltando uma risada gargalhada enquanto o ki feroz rasgava o ar. A névoa fervilhava e fervia, girando ao redor dela e se reunindo em uma nuvem densa que obscureceu completamente sua forma. Em uma rajada repentina, a nuvem se dispersou. A aranha mais enorme de todas se erguia sobre pernas grossas, pretas e amarelas, as pontas com garras em forma de gancho. Onde deveria estar a cabeça da aranha, o torso humano de Jorogumo fundia-se grotescamente ao corpo do aracnídeo, seus longos
cabelos
e
quimono
dourado
espalhados
pelo
abdômen
protuberante. Ela ergueu os braços humanos e riu. —Tome sua verdadeira forma, corvo! — Ela zombou. —Abra suas grandes asas dentro dessas árvores!
Yumei desfraldou suas asas menores, mas não se transformou no imenso corvo que Emi vira lutar contra o kami Koyane. Como poderia uma forma tão grande lutar nessas árvores densas, seus galhos cheios de teias de armadilha? Mas sua forma humana, mesmo com asas, era tão pequena quando ele enfrentou a monstruosa mulher-aranha. Sem nenhum sinal de medo, Yumei ergueu sua arma. A escuridão se aprofundou e as sombras sob as árvores ondularam. Elas se contorciam e dançavam, crescendo, crescendo sólidas. Asas se espalharam das sombras e olhos vermelhos brilharam de dentro delas, três olhos vermelhos por corvo ondulante. Os pássaros se libertaram das sombras das quais nasceram e pairaram sem peso no ar parado, sem um único bater de suas asas espectrais. A cabeça de Jorogumo balançou rapidamente para frente e para trás enquanto ela observava o exército de criaturas das sombras que se reunia. Yumei sorriu e Emi estremeceu com a visão. —Você esqueceu, Jorogumo? — Ele perguntou suavemente, escuridão deslizando através de sua voz. —Eu não sou um mero Senhor dos Corvos. Eu sou o Príncipe das Sombras, e sempre meus soldados aguardam meu chamado. O medo percorreu o rosto de Jorogumo antes que ela apertasse a mandíbula. Com um grito furioso, ela se atirou em Yumei. Sua horda de aranhas correu atrás dela. As asas de Yumei se abriram. Ele saltou no ar e seus corvos de sombra mergulharam como mísseis para as aranhas que se aproximavam. O Tengu e a rainha-aranha se chocaram enquanto as aranhas e os corvos se chocavam. Emi se encolheu sobre Shiro, agarrando-se a ele como fitas de magia negra e vermelha, ondulando com estranhas runas, desenroladas em torno de Yumei. Jorogumo atacou com sua magia. As duas forças colidiram e
explodiram para fora. Uma onda de sujeira e neve choveu sobre Emi e ela se enrolou em Shiro, protegendo o rosto. Enquanto os dois yokai lutavam, Emi agarrou Shiro pelos ombros e o arrastou para longe. Seus músculos tensos quando ela o puxou passo a passo meticuloso. Empurrando-o para trás de um grosso tronco de árvore, ela desabou ao lado dele, ofegando enquanto o chão tremia sob a batalha de antigos poderes. Ela colocou os braços em volta de Shiro e pressionou a bochecha contra o rosto dele até sentir sua respiração fraca em sua pele. Lágrimas escorreram pelo seu rosto. Jorogumo disse que nunca acordaria, e que até Sarutahiko, o mais poderoso dos Kunitsukami, havia caído para o veneno da aranha. Enquanto a terra tremia e as sombras se contorciam, Emi agarrou Shiro contra ela e lutou contra os soluços que cresciam em seu peito. O que ela estava fazendo aqui? O que ela, uma humana patética, poderia fazer? O que ela pensou que poderia fazer neste mundo de deuses e monstros? Ela mal conseguiu matar uma aranha, e agora Yumei teve que lutar contra a rainha aranha e seu exército de aracnídeos sozinho. Ela falhou com Shiro. Ela falhou com Amaterasu. Izanami e Jorogumo já haviam derrubado Sarutahiko com veneno de aranha. Como Emi poderia libertar o líder dos Kunitsukami de um veneno? Como ela poderia salvá-lo antes do solstício? Ela era inútil. Ela fechou os olhos com força enquanto o desespero a dominava. Desça agora, ela gritou silenciosamente. Desça agora e pegue meu corpo, Amaterasu! Eu não posso fazer isso! O vazio frio dentro dela não ofereceu resposta. —Shiro. — ela chorou. —O que eu faço? O que eu deveria fazer?
Algo bateu no lado oposto do tronco da árvore, o impacto sacudindo a neve dos galhos superiores. Uma rajada de penas pretas caiu com a neve. Emi ficou de pé quando Yumei atingiu o chão, de costas para a árvore e as asas abertas. Fios dourados, restos de teias quebradas, saíam dele. A rainha-aranha avançou atrás dele, sua forma monstruosa emergindo da escuridão enquanto sua gargalhada quebrava o silêncio. Yumei tropeçou para frente e cambaleou, as penas de uma das asas dobradas na direção errada. O sangue escorria de rasgos em seu kosode e respingava na neve branca ao redor dele. A monstruosa yokai avançou em sua direção. Evitando seu ataque, ele cortou sua lança em sua perna enquanto ela empurrava o membro com força letal. A garra em forma de gancho na ponta atingiu a árvore onde ele estava, rachando o tronco. Sangue branco escorria de vários cortes nas metades humanas e de aranha de seu corpo, mas ela riu faminta, não afetada por seus ferimentos. —Finalmente de castigo, Tengu? — ela gritou triunfantemente. —Você não pode fugir de mim para sempre! Vou beber o seu ki antes do pôr do sol! O frio se espalhou por Emi quando ela agarrou a árvore. Yumei disparou para longe, a magia vermelha ondulando em seu rastro, e Jorogumo a seguiu, o poder vazando de seu corpo como fios brilhantes de ouro fiado. Entre as árvores, as aranhas e os corvos das sombras lutavam em uma guerra inútil, os corvos pequenos demais para causar sérios danos às aranhas gigantes, mas as aranhas não conseguiam ferir as criaturas das sombras. Suas sombras podem ser imunes a danos, mas Yumei não. A rainha aranha estava certa. Sozinho e fora de seu território, em um lugar onde não podia usar sua forma mais poderosa, ele estava em grande desvantagem. Ela
iria matá-lo, ou dar uma mordida incapacitante e prendê-lo no mesmo sono eterno de Shiro e Sarutahiko. A brisa sussurrou em Emi, provocando fios soltos de seu cabelo. Ela quase podia saborear a pergunta hesitante em sua carícia. Girando de volta para Shiro, desabado sem vida contra a árvore, ela agarrou seu ofuda de onde os havia deixado cair descuidadamente. Depois de separar os talismãs de purificação, ela puxou uma flecha de sua aljava e envolveu todos os cinco ofuda ao redor da haste. Deixando a aljava ao lado de Shiro, ela examinou a batalha: a onda de sombras e aranhas, o violento confronto de Yumei e a rainha da aranha. Ela se virou para a árvore ao lado dela, seus longos galhos serpenteando acima da batalha. A brisa dançou ao redor dela. Enfiando a flecha em seu obi, ela deu dois passos correndo e saltou, alcançando o galho mais baixo. A brisa se transformou em uma forte rajada que varreu por baixo dela, impulsionando-a para cima. Ela pousou em cima do galho e cambaleou perigosamente antes de agarrar o tronco. Sem se dar tempo para pensar, ela saltou para um ramo próximo. Novamente o vento a pegou, jogando-a para cima. Ela agarrou o galho grosso e balançou em cima dele. De pé com os braços bem abertos para manter o equilíbrio, ela correu ao longo do galho, seguindoo pela clareira. Abaixo, a rainha da aranha pegou Yumei com sua longa pata dianteira, jogando-o no chão. Ela se lançou, levantando um membro frontal com garras. Antes que ele pudesse se recuperar, ela cravou a garra em seu peito. —Você perdeu, Tengu! — Jorogumo cantou. —Eu derrotei você! Nunca mais serei considerada inferior!
Yumei, com a lança ainda em uma das mãos, mostrou os dentes para a aranha enquanto agarrava a perna que perfurava seu corpo. —Não estou morto ainda. Emi puxou a flecha de seu obi. O vento girou em torno dela, uma promessa não dita. —Você nunca poderia admitir a derrota. — zombou Jorogumo. Ela ergueu outro membro frontal, a ponta em forma de garra brilhando. —Mas não importa. Eu vou... Emi saltou do galho. Ela navegou em uma rajada de ar e mergulhou no abdômen bulboso da rainha-aranha. A flecha já estava em suas mãos, erguida acima de sua cabeça. Ao pousar, ela abaixou a flecha, enfiando-a entre as omoplatas humanas da yokai. —Shukusei no tama! — Emi gritou com cada gota de força de vontade que possuía. O ofuda e a flecha se transformaram em uma
luz branca
ofuscante. Jorogumo recuou com um grito agonizante quando a luz iluminou seu corpo. Uivando, ela jogou os braços para trás e agarrou os ombros de Emi. Embaixo da rainha-aranha, Yumei saltou, sua lança nas mãos. Em um movimento suave, ele enfiou a lâmina em sua barriga e por baixo de sua caixa torácica. Luzes vermelhas e negras subiram pelo cabo em direção à lâmina enterrada. Jorogumo se contorceu e gritou, e então o poder das trevas irrompeu de seu corpo, rompendo seu torso em um jato de sangue branco. A explosão jogou Emi para trás. Ela tropeçou no abdômen da aranha e caiu da garupa, caindo no chão. Uma dor penetrante percorreu suas costelas, lembrando-a do golpe da aranha anterior.
A rainha-aranha caiu no chão, as pernas se contraindo roboticamente enquanto a morte a levava. Emi estava deitada de costas, ofegante e tonta de dor. Com assobios angustiados, as aranhas fugiram, desaparecendo na névoa. De repente, a escuridão não natural se dissipou e a luz voltou, tingida de laranja quando o sol invisível começou a descer. Yumei circulou a rainha caída com passos deslizantes e predatórios, sua lança ainda pingando sangue. Emi não se moveu quando ele parou ao lado dela e olhou para baixo com aqueles olhos de prata sólidos. Um arrepio de medo percorreu sua espinha. Então ele estendeu a mão para ela. —Hoje, reivindicamos vitória. — Sua expressão sempre ilegível se suavizou um pouco. —Boa luta, Emi. Sua respiração ficou presa. Ele realmente a chamou pelo nome. Ela esboçou um sorriso exausto quando estendeu a mão para pegar a mão dele.
Yumei puxou ela a seus pés. Ela se encolheu com a dor aguda em suas costelas, perguntando-se como ela havia ignorado por tanto tempo. Ou ela se machucou ainda mais quando caiu da aranha? Fazendo uma careta, ela ajeitou o casaco. A lã escura estava generosamente salpicada de sangue espesso e branco. Yumei se virou para o norte. —Posso sentir mais uma vez a presença que estávamos seguindo. Emi assentiu, mas virou na direção oposta, onde Shiro estava caído na base da árvore. Seus pulmões se contraíram. —E quanto a Shiro? —Ele foi mordido. —Existe uma cura ou um tratamento...— Sua voz falhou e ela não conseguiu terminar a pergunta. Os olhos de Yumei mudaram, suas pupilas reaparecendo e o prata encolhendo para formar íris com bordas escuras. —Apesar da relativa facilidade com que podem ser mortos, os tsuchigumo estão entre nossos inimigos mais mortais. Se eu soubesse que eles estavam presentes nesta floresta, não teria trazido você e o kitsune comigo. — Ele pousou a ponta da lança no chão. —Seu veneno inflige um sono eterno nos yokai, então seu ki pode ser alimento à vontade para aranha.
—Mas... — Ela sussurrou, suas mãos tremendo tanto que ela agarrou a bainha de seu casaco para detê-los. Ela queria protestar, negar, mas não sabia o que dizer. Seu olhar deslizou sobre ela, sua expressão ilegível. —Matá-lo é a despedida mais gentil. —O que? — Ela engasgou. —Eu imagino que seja difícil para um humano aceitar a morte... — Seus ombros se moveram em um suspiro silencioso. —Matá-lo enquanto seu ki está intacto ajudará em seu eventual renascimento do reino espiritual. —Mas... mas quanto tempo... Ele pensou por um momento. —Com o onenju amarrando-o, várias décadas, pelo menos. — Décadas? — Ela engasgou. —Nem todos os yokai revivem. Alguns revivem muitas vezes apenas para nunca mais voltar. Ela mordeu com força o interior da bochecha. —Você não pode matá-lo. —Ele não vai acordar, e quanto mais fraco ele fica, mais suas chances de avivamento diminuirão. —Você não pode matá-lo. Amaterasu disse que se ele morrer, toda esperança está perdida. —Ele já está perdido. — Yumei se afastou dela, em direção a Shiro. — Você pode me achar sem coração, mas sua fraqueza é muito mais cruel. Sem pensar, ela pulou na frente dele, com os braços abertos. —Você não pode matá-lo! —Eu não vou deixá-lo ser alimento. —Então vamos levá-lo conosco.
—Eu não posso carregar vocês dois, e não podemos demorar. O tsuchigumo retornará em breve. —Tem que haver alguma outra opção. —Não há outra opção. —Você não tem certeza disso. —Mova-se, kamigakari. —Eu não vou deixar você matá-lo! Ele fechou os olhos como se reunisse a paciência restante. Quando ele os abriu, seu olhar brilhou com fria resolução. Emi recuou, depois plantou os pés na neve, as mãos cerradas. Ela não o deixaria matar Shiro. Ela não aceitaria que Shiro tivesse partido, que ele já estava morto em todos os sentidos que importavam. Ela não desistiria dele. Yumei deu um passo em sua direção, e ela sabia que ele pretendia incapacitá-la ou contê-la para que pudesse matar Shiro. Ele era mil vezes mais poderoso e ela não era mais um obstáculo para ele do que os flocos de neve eram para o vento. Ela não ligou. Ela não o deixaria tocar em Shiro. —Eu disse não! — Gritou ela, estendendo o braço. A palma de sua mão atingiu o peito dele, um golpe inofensivo, exceto no instante em que ela o tocou, o vento explodiu em um vendaval estridente. A rajada de vento o atingiu como um aríete, jogando-o para trás. Suas asas se abriram e ele pousou a dez metros de distância, derrapando na neve, a surpresa claramente estampada em suas feições normalmente impassíveis. Emi esperou por seu contra-ataque enquanto o vento girava em torno dela em um lento ciclone de folhas e neve, pronto para defendê-la.
Ele observou o redemoinho girando antes que seu olhar se erguesse para encontrar o dela. Ela se perguntou o que ele viu em seu rosto. Ela cerrou os dentes, o coração martelando na garganta e as mãos tremendo. Ele se endireitou e dobrou suas asas. O sangue escorria de suas feridas, mas ele o ignorou. —Termos então, kamigakari. Ela piscou. —O-o quê? —Eu disse que não posso carregar dois. Eu trarei o kitsune, mas apenas se você puder acompanhar o meu ritmo com sua própria força. Sua postura tensa relaxou ligeiramente. —Você não vai matá-lo? —O vento não é um inimigo que desejo combater. Sua sobrancelha enrugada em confusão. —Você concorda? — Ele perguntou. —S-sim. Pela segunda vez, ele sorriu bruscamente, revelando uma sugestão de caninos pontiagudos e predadores. Enquanto ele deslizava por ela para pegar Shiro, ela desejou saber o que aquele sorriso significava.
Com os braços em volta das pernas, Emi, cansada, apoiou o queixo nos joelhos e observou Yumei andar. Suas costelas doíam ferozmente. Ele a conduziu em uma corrida angustiante pela floresta, nunca diminuindo seu ritmo cansativo. Ela a seguia em uma corrida desesperada, com os músculos em chamas e o peito em chamas, mas também não diminuiu a velocidade. Sozinha, ela teria sido deixada para trás em instantes, mas mais uma vez o vento veio em seu socorro. Tinha varrido as árvores com ela,
empurrando-a, levantando-a até que quase se sentisse como se estivesse voando. Eles aceleraram pela floresta, indo em direção a algo que apenas Yumei podia sentir. Ela começou a duvidar dele enquanto as árvores infinitas chicoteavam, intactas por qualquer coisa além de teias douradas que ele rasgava sem parar, mesmo com Shiro pendurado em seu ombro. Então, entre uma etapa e a próxima, a floresta mudou. O calor se precipitou sobre eles e a neve desapareceu sob seus pés. Ela e Yumei pararam, chocados e imóveis. Eles correram para uma bela clareira de verão sem névoa. As árvores transbordavam de folhas verdes largas e frutos brilhantes, a grama alta balançava com a brisa suave e as flores desabrochavam em todas as cores. Ela e Yumei entraram cautelosamente no calor, com o sol do fim da tarde brilhando sobre eles. No centro da clareira, uma fonte de água cristalina brilhava em uma centena de tons de água-marinha, tão nítida que o fundo de cascalho cinco metros abaixo era visível. Com o sol agora mergulhando em direção aos picos das montanhas distantes, Emi observou Yumei caminhar outro círculo ao redor da fonte. Suas asas e lança haviam desaparecido em algum momento quando ela não estava prestando atenção e ele mais uma vez parecia o Tengu que ela conhecia. Ao lado dela, Shiro estava encostado no tronco de uma ameixeira, seus galhos carregados de frutas maduras. Ela deslizou uma mão em direção a ele e enrolou os dedos nos dele. Sua pele estava tão fria. Ele não se mexeu desde que caiu inconsciente. Yumei finalmente parou de andar, parando a alguns metros de distância para olhar para a água.
—Eu posso sentir isso. — ele rosnou. —Eu posso sentir isso, mas não há nada aqui. —Tem certeza de que não está sentindo a clareira em si? — Ela perguntou, levantando a cabeça e olhando ao redor. Esse pequeno bolso na floresta era o mais próximo do céu que ela poderia ter imaginado. Certamente havia magia nisso. —Esta clareira é o resultado do ki que emana deste local. — disse ele. — Mas de onde vem o ki? —É ki Kunitsukami? Ele acenou com a cabeça, olhando para a fonte como se fosse pessoalmente responsável pela falta de respostas na clareira. —Sente-se um minuto, Yumei. — disse ela, cansada. Seu brilho estalou para ela, mas ela estava exausta demais para recuar. —Jorogumo abriu um buraco em seu peito. Você deveria descansar um pouco. Suas feridas precisam de tratamento? —Eu não sou tão frágil quanto o kitsune. — ele disse irritado, mas apesar de suas palavras, ele pisou na grama alta e caiu ao lado dela. —Se viemos até aqui para nada, não ficarei satisfeito. A mão de Emi apertou a de Shiro. Se ela tivesse perdido Shiro por nada... Ela fechou os olhos e novamente apoiou o queixo nos joelhos. Ela estava tão cansada e a dor percorria sua caixa torácica a cada inspiração. Mas a dor física não era nada comparada com seu sofrimento interno. A angústia e o terror pelo destino de Shiro agitavam-se interminavelmente e ela não suportava olhar para ele, ver seu rosto pálido e feições flácidas. A emboscada da aranha, o arco estalando, o monstro arrastando-o com suas presas enterradas em seu ombro, isso continuou se repetindo em sua cabeça, repetidamente até que ela quis gritar.
—Fica mais fácil quando você vive muito tempo? — Ela sussurrou, uma lágrima escorrendo pelo seu rosto. —Ou a dor ainda causa o mesmo sofrimento? O arrependimento ainda torna difícil respirar? Yumei passou a mão na grama. —A cada ano, a cada século, os fardos só aumentam. Yokai que não conseguem suportar o peso não sobrevivem. A perda de uma vida... — Ele olhou para Shiro. — ...é um arrependimento entre muitos que devo sempre carregar. Ela fungou, enxugando o rosto com a manga. —Talvez os yokai que não conseguem carregar os fardos de uma vida longa sejam os que param de voltar depois de morrer. Eles não querem mais se machucar. —Talvez. — Ele murmurou. —Você já morreu alguma vez? —Sim. —O que... o que acontece? —Se você perguntar sobre a vida após a morte, não posso responder. Não nos lembramos. — Ele arrancou uma folha de grama e a deslizou entre os dedos. —Quando retornamos... quando revivemos... não é um nascimento, mas um lento despertar, uma reunião gradual de nosso eu interior e nosso poder. Nossa consciência retorna primeiro, seguida por memórias. A primeira memória é sempre dos momentos finais da vida, não do que se segue. —Deve ser bom saber que você vai voltar, certo? Você não precisa ter tanto medo de morrer... —E a morte é para ser temida? Os fardos da vida podem ser tão grandes que seria um conforto saber que um dia ela acabará... que um dia, teremos conquistado o descanso final.
Ela ergueu a cabeça e olhou para ele, para seus distantes olhos prateados que observavam a folha de grama deslizar por entre seus dedos. Ele a deixou ir e ela caiu entre suas companheiras, onde iria murchar e desaparecer enquanto elas continuavam a crescer. A fadiga tocou suas feições, um cansaço que falava mais da alma do que do corpo. Ela se desenrolou de sua bola e se levantou, resistindo à vontade de olhar para Shiro. Pressionando uma mão contra as costelas, ela contemplou o lago cintilante. —Você acha que a água é segura para beber? —Eu imagino que sim. Ela desabotoou o casaco e o tirou, segurando-a nas mãos. Após uma breve hesitação, ela se virou para Shiro. Sua forma imóvel, seu peito mal mudando com cada respiração lenta e fraca, rasgou seu coração. Inclinandose, ela estendeu o casaco sobre ele. A clareira estava quente como uma noite de verão, mas sua pele ainda estava gelada. Com um suspiro, ela caminhou até a beira da fonte. Como chegou a isso? Ela estava tão esperançosa, tão determinada a cumprir sua missão para Amaterasu... para o bem do mundo. Mas eles não haviam realizado nada. Ajoelhando-se nas pedras na beira da água, ela mergulhou a mão no líquido frio. Emi. A confusão a congelou no lugar. Sua sobrancelha franziu enquanto ela olhava para a água. Emi, venha até mim. Seus olhos ficaram fora de foco. A água ondulou suavemente, enchendo sua visão com turquesa cintilante e luz do sol cintilante. Sem pensar, ela
empurrou a outra mão na água. O chamado ecoou dentro dela, puxando-a para a frente. Em um torpor de sonho, ela rastejou para a fonte, sem se importar com a água fria que inundava seus membros e encharcava suas roupas. Yumei chamou seu nome, mas ela seguiu em frente. Um líquido acariciante correu sobre seu torso e ela deslizou sob a superfície. O fundo de seixos caiu e ela afundou, os olhos fechados, vagando pacificamente. Ela desceu lentamente, perdida em uma névoa tranquila, até que se acomodou suavemente no fundo. Suas mãos se fecharam em torno de folhas macias de grama e ela respirou fundo o ar doce. —Bem-vinda, Emi. A voz era ainda mais doce do que o ar melado. Emi piscou os olhos abertos. Um rosto entrou em foco diante dela. Pele branca como um lírio, cabelo em incontáveis tons de castanho dourado e olhos brilhantes da cor do sol. A mulher escovou os dedos suavemente na bochecha de Emi. —Eu sinto muito, criança. A passagem é difícil para um humano. —Passagem? — Ela sussurrou. O torpor de sonho se agarrou a sua mente, desacelerando seus pensamentos. Ela não tinha afundado na primavera? Mas agora... Ela se virou, tentando observar os arredores, mas ao seu redor havia um estranho borrão de cores ondulantes como se ela ainda estivesse debaixo d'água. As cores, porém, todas as cores que ela podia imaginar, todas as sombras do arco-íris e mil mais, giravam infinitamente ao seu redor, lindas demais para serem palavras. Os dedos em seu queixo viraram sua cabeça para trás. —Olhe para mim, Emi. Este não é um mundo para olhos mortais.
Ela piscou novamente, focando na mulher ajoelhada em frente a ela. Seu rosto era desumanamente lindo, como uma kami ainda... mas de alguma forma mais terreno. Folhas e flores grudavam em seu cabelo caramelo, o comprimento longo tecido em uma trança grossa, e seu quimono, estampado com flores rosa, era de algodão macio e simples. —Quem é você? — Ela perguntou fracamente. —Eu acho que você sabe, Emi. Ela lutou contra a névoa em sua mente. —Você é Uzume, a Kunitsukami da Floresta. A mulher sorriu. —É um prazer conhecê-la, Emi. A confusão deslizou por ela. Como uma Kunitsukami saberia o nome dela? Depois de um momento de confusão mental, ela colocou as mãos na grama à sua frente e se curvou para frente em uma profunda reverência. —Levante-se, criança. Sentando-se, ela apertou os olhos embaçados. —Como você sabe quem eu sou? E... eu pensei que você estava desaparecida. —Eu sei o seu nome, mas pouco mais. — A voz de Uzume era suave e gentil, tão bela como uma brisa nas folhas de verão. —Os kodama disseram à floresta sobre sua chegada, e minhas árvores têm vigiado você desde então. Eu esperava... Apesar do perigo, eu realmente esperava que você chegasse a este lugar. —Que lugar é esse? Você está presa aqui? —Em uma maneira de falar. — Ela pegou as mãos de Emi nas dela, sua pele macia e quente. —Diga-me como você veio me procurar aqui, Emi. Hesitante, Emi explicou da forma mais simples possível como Amaterasu veio dar a Emi a tarefa de encontrar os Kunitsukami.
—Entendo. — murmurou Uzume. —É bom termos Amaterasu como aliada. Eu admito que pensei mal dela depois que perdemos Inari... Emi se endireitou, mas antes que ela pudesse perguntar sobre Inari, Uzume continuou. —Eu não sei o que Izanami planeja, ou como minha família e eu ficamos entre ela e seu objetivo, mas ela está determinada a acabar conosco. —Jorogumo estava dizendo a verdade? — Emi perguntou. —Sobre Sarutahiko? A tristeza se apoderou do rosto de Uzume, mas por trás da tristeza exterior, algo cintilou no fundo de seus olhos amarelos, uma explosão de raiva que enviou um arrepio por Emi. Esta doce e gentil Kunitsukami não era tão passiva quanto parecia. —A bruxa aranha falou a verdade. Ela infectou meu amado marido com seu veneno asqueroso. — Suspirando, Uzume apertou as mãos de Emi. — Podemos ser poderosos, mas não somos perfeitos, nem somos onipotentes. Ao longo dos últimos séculos de relativa paz, de silenciosa simplicidade, nos tornamos complacentes. Devíamos ter suspeitado quando Inari morreu, mas presumimos que fosse uma luta com Amaterasu. Afinal, a imprudência sempre foi a companhia mais próxima de Inari. A raiva queimou no olhar de Uzume novamente enquanto ela continuava. —Meu amado não suspeitou de atos infames quando veio a esta floresta para subjugar a bruxa aranha, uma tarefa que ele completou com certa regularidade ao longo dos séculos. Como ele saberia que Izanami estava esperando por ele? Ela o emboscou e antes que ele pudesse invocar qualquer defesa, a bruxa aranha atacou. —Quando ele não voltou como esperava, vim aqui para o encontrar. As árvores me mostraram o que havia acontecido com ele. — Ela soltou as mãos
de Emi e se recostou, sua trança balançando atrás dela. —Não existe cura para o veneno da bruxa aranha no mundo mortal porque os tsuchigumo não são do mundo mortal. Mas nas profundezas de Tsuchi existem lugares que até os yokai relutam em se aventurar, onde a verdadeira magia vive e prospera. —Em alguns desses lugares cresce uma árvore extraordinária. Suas flores contêm uma magia de cura tão potente que podem reviver até mesmo os recém-falecidos. Quando percebi o que havia acontecido com meu amado, soube que sua única esperança era uma flor de cura. Eu abri uma passagem para Tsuchi no mesmo lugar que eu estava, a borda da fonte, e mergulhei fundo em suas terras mais distantes. Mas quando eu cheguei... Ela olhou para o lado, seu belo rosto contraído por uma dor furiosa. O borrão de seus arredores mudou, revelando o tronco despedaçado de uma grande árvore deitada na grama, seus ramos quebrados e nus. O toco denteado ainda estava ancorado na terra e de cima dele, uma pequena rosa muda, tão fina quanto o polegar de Emi e apenas trinta centímetros de altura. Um punhado de folhas verdes agarrou-se a seus galhos finos e um único botão de flor branca pendurado a ponto de se abrir. —De alguma forma, Izanami sabia dessa árvore e a destruiu antes de eu chegar. — murmurou Uzume com tristeza. —Ela se preparou bem. Como ela soube desta árvore e convenceu um yokai a derrubar tal majestade ancestral, eu não consigo imaginar. Emi considerou a flor, seus pensamentos se reunindo lentamente. —Você não está presa aqui, está? Não há nada que impeça você de partir, mas você não pode ir, porque se a árvore morrer ou Izanami a destruir, você não será capaz de reviver Sarutahiko. Uzume acenou com a cabeça. —Esperei dois anos para que alguém me encontrasse, mas em troca das ofertas de humanos inocentes por Izanami, a
bruxa aranha guardava o vale para garantir que minha localização permanecesse desconhecida. — Ela sorriu tristemente. —Além disso, quem iria procurar por mim? Com Inari perdido e Susano capturado, quem além do meu amado notaria minha ausência? —Yumei percebeu. Ele está procurando por você e pelos outros. — Emi olhou ao redor. —Por que você não o trouxe aqui também? Tenho certeza que ele quer ver você. —Não me atrevo a trazê-lo tão longe, tão fundo. Tsuchi ama seu príncipe das trevas e nunca o deixaria ir. O medo gotejou por Emi. —Serei capaz de sair? —Ah, sim. — respondeu Uzume com uma risadinha. —Tsuchi não gosta de você de jeito nenhum. — Sua cabeça inclinada para um lado, seus olhos se estreitando ligeiramente. —Você é humana, mas não é. Eu posso sentir o gosto do kami em sua alma, Emi. —Bem, eu sou uma kamigakari. —É mais do que isso agora, criança. Eu vi através de minhas árvores como o vento respondeu ao seu chamado. Aquilo não foi Amaterasu agindo através de você. —Foi... não foi? — Embora ela não tivesse sido capaz de sentir o poder do Amaterasu, ela ainda assumiu que a Amatsukami a estava ajudando de alguma forma. —Amaterasu comanda o vento. Ela nunca permitiria que ele corresse selvagemente como você fez. —Eu... eu não... Uzume passou o polegar suavemente sobre a testa de Emi, onde uma ruga confusa se formou. —Minha querida criança, isso é muito para lidar, não é?
O lábio inferior de Emi tremeu de emoção repentina. —Você está indo incrivelmente bem. Sua coragem e força são claras para mim, e para Amaterasu, tenho certeza. Embora você deixará esta vida muito cedo, nós, que somos imortais, nunca a esqueceremos. Você vai viver conosco para sempre. As lágrimas correram pelo rosto de Emi e um soluço ficou preso em sua garganta. Uzume pressionou a mão quente em seu rosto. —Vou contar a todos. — prometeu ela. —Sarutahiko acenará com a cabeça solenemente, ele é sempre solene, e ele vai memorizar cada palavra perfeitamente, para homenageá-la. Susano nada dirá, pois raramente fala de assuntos sinceros, mas o orgulho iluminará seus olhos por sua coragem. E Inari vai rir e dizer, 'Que garota ousada! Eu teria o prazer de conhecer uma criança tão explosiva.' Emi fungou, sorrindo em meio às lágrimas. —Como você sabe o que Inari vai dizer? —Eu os conheço há mais tempo do que você pode imaginar. Mesmo o sempre imprevisível Inari ainda é previsível de muitas maneiras. — Ela se endireitou onde estava sentada. —Emi, embora eu não queira pedir mais de você, devo colocar mais um fardo sobre seus ombros. Com as palavras de Uzume, Emi teve vontade de chorar por não poder fazê-lo, por não poder assumir outro fardo, por não poder suportar o peso de mais responsabilidade, mais vidas, mais dor. Mas ela se lembrou do que Yumei havia dito sobre as centenas de anos e centenas de arrependimentos que carregava todos os dias sem fim à vista. Ela só precisava carregar seus fardos por mais algumas semanas antes que pudesse descansar. Respirando fundo, ela se concentrou em Uzume o melhor que pôde através de seus pensamentos sonhadores.
—As flores desta árvore florescem apenas ao luar. — Uzume disse a ela. — E as flores morrem sem ele. Se eu arrancasse a flor solitária agora e corresse para Sarutahiko, ela poderia murchar e morrer antes que eu o alcançasse. Eu não posso arriscar isso. —Então você precisa que Sarutahiko seja trazido para você. — Adivinhou Emi. —Sim. E embora eu não tenha conseguido deixar este lugar, não fiquei ociosa. Procurei o que precisamos saber por entre as árvores. Izanami fez com que Sarutahiko fosse levado para a costa leste perto das Ilhas Sabuten. Você conhece este local? —Acho que sim. Por que eles o levariam lá? —Izanami é cautelosa. Embora Sarutahiko tenha caído no veneno, ela não se arrisca. Ela o mudou para as ilhas e o deixou sob a guarda de Tsukiyomi. Tsukiyomi, o Amatsukami da Água, seria mais poderoso em uma localização oceânica. Uzume prendeu uma mecha solta de cabelo atrás da orelha pontuda. — Não vou pedir a você que desafie Tsukiyomi; ele iria inquestionavelmente destruir você. O único com chance de derrotá-lo é Susano. —O Kunitsukami da Tempestade. — Emi murmurou. —Você não disse que ele foi capturado? —Eu disse. E é essa a tarefa que devo encarregar você. Tenho procurado por ele. — Seus ombros murcharam. —Eu deveria ter começado a busca muito antes, mas ele é sempre esquivo e desinteressado de companhia, então não reconheci sua ausência nos últimos anos como anormal. A trilha era antiga e custou muito procurar e procurar entre as árvores para saber o que eu sei. —Onde o Susano desapareceu, as árvores falam da escuridão, de um lugar bem abaixo de suas raízes. Eu sei que ele não foi voluntariamente a tal
lugar, pois ele é uma criatura do céu e nunca se aventuraria no subsolo por conta própria. Você conhece as fontes termais de Wasurenagusa? —Sim, elas são muito famosas entre os humanos. —Ele está lá... em algum lugar subterrâneo. Não sei mais do que isso, mas primeiro você deve procurar um lugar onde o poder de Izanami seja forte. Quando as árvores não falam comigo, é porque ela reivindicou sua vontade. —Nós iremos imediatamente... — Emi se interrompeu, a tristeza a dominando ao perceber que ‘nós’ não incluíamos mais Shiro. Ela engoliu em seco. —Uzume, quando estávamos lutando contra as aranhas, Shiro foi mordido... —Eu sei, criança. As lágrimas mais uma vez encheram seus olhos, suas emoções muito mais perto da superfície na estranha névoa do sonho. —Só existe uma flor… E dada a escolha entre Sarutahiko e Shiro, Uzume nunca escolheria Shiro. Ela e Uzume olharam para o botão branco. Enquanto elas observavam, ela se ergueu como se estivesse inclinando o rosto para o céu e as pétalas se desdobraram uma por uma, espalhando-se em uma flor rosa brilhante com um interior corado. Uzume estendeu os dedos finos e acariciou as pétalas externas. Então ela beliscou uma gentilmente entre os dedos e puxou-a para fora da flor. Pegando a mão de Emi, ela colocou a pétala em sua palma. —Dê isso ao Tengu e peça-lhe que coloque na língua até que se dissolva. Seus ferimentos por si só não reivindicarão sua vida, mas ele se enfraqueceu muito mais do que permitiu que você visse. Em sua próxima batalha, a menos que ele seja curado, seus ferimentos certamente causarão sua morte.
Uzume puxou outra pétala da flor e colocou-a na palma da mão de Emi com a primeira. —Esta aqui, coloque sobre sua língua e conte até três. Não mais, pois sua magia é muito potente para seu corpo mortal. —Eu não preciso... —Você tem quatro costelas quebradas, criança. Eu garanto a você, você precisa disso. — Uzume arrancou uma terceira pétala e colocou-a sobre as duas primeiras. —Esta aqui, coloque na boca de Shiro. Pode não ser o suficiente para salvá-lo. Se isso o reviver, ele acordará em algumas horas. Se não, ele vai dormir para sempre. —Eu poderia dar a ele a minha também... —Não dê a ele uma segunda. É um risco dar a um mero kitsune até mesmo uma pétala; duas irão destruí-lo. — Ela enrolou os dedos de Emi em torno das pétalas. —Seja corajosa, criança. Nem toda vida pode ser salva, mas devemos continuar independentemente. Uzume levantou-se, o cabelo castanho caindo em cascata pelas costas até o chão, a trança tecida com folhas e flores. Ainda segurando a mão de Emi, a Kunitsukami puxou Emi com ela. —Você é uma filha de Amaterasu, Emi, mas agora eu reclamo você como minha filha em nome e alma. Com minha bênção, as florestas deste mundo sempre irão recebê-la, a menos que outro as reivindique. Se você estiver perdida, volte para as árvores da terra e eu enviarei toda a ajuda que puder. —Obrigada. — Emi sussurrou. Uzume ergueu a mão de Emi e uma estranha leveza se espalhou por seu corpo. Seus pés deixaram o chão enquanto ela flutuava em direção ao céu, ancorada apenas pelo aperto de Uzume em sua mão. —Fique na clareira enquanto se recupera; vou mantê-la segura. Sorte e coragem vão com você, criança. — Uzume a soltou.
Emi flutuou em direção ao céu como se a gravidade a tivesse esquecido. Sorrindo serenamente, Uzume observou-a subir até que o borrão aquoso obscurecesse sua forma. As cores vibrantes esmaeceram e mudaram, transformando-se em mil tons de água-marinha. Emi engasgou com a respiração assustada, e engoliu um gole de líquido frio. O torpor sonhador se estilhaçou e ela se debateu na água, completamente desorientada. Qual o caminho
para
cima? Seus
pulmões
queimaram
ferozmente e o pânico a perfurou. Uma mão se fechou ao redor de seu braço e a puxou violentamente para cima. Sua cabeça apareceu na superfície, o ar frio atingindo sua pele encharcada. Ela inalou desesperadamente e imediatamente se dobrou tossindo, quase escorregando de volta para baixo da superfície. Yumei agarrou-a pela cintura e puxou-a para fora da fonte. Ele depositou sua forma pingando e tossindo na grama. —O que aconteceu? — Ele exigiu, elevando-se sobre ela. Em resposta, ela ergueu a mão e desenrolou os dedos. As três pétalas brancas imaculadas repousavam em sua palma, decoradas com gotículas de água cristalina que brilhavam sob a luz da lua recém-nascida.
Emi deitou na grama, a cabeça apoiada em um braço. As folhas largas enchendo os galhos acima dela farfalhavam suavemente com a brisa, e além delas, estrelas cintilantes polvilhavam o céu escuro. Ela lutou contra o peso de suas pálpebras, recusando-se a fechá-las. Shiro estava deitado ao lado dela, o luar e as sombras dançando em seu rosto. Seu peito subia em um ritmo lento e fraco que não mudava conforme a noite se aproximava cada vez mais do amanhecer. Yumei sentou-se contra o tronco da árvore atrás de Emi, com os braços cruzados e a cabeça baixa. Ele tinha adormecido algumas horas atrás. Os poderes curativos das pétalas haviam causado a ambos uma fadiga terrível, mas o Tengu esperava com ela enquanto as horas se arrastavam antes de sucumbir à exaustão. Emi ainda se agarrava teimosamente à consciência, apesar de sua necessidade desesperada de dormir. Ela deu a Shiro sua pétala de cura, deslizando-a em sua boca antes de pegá-la e tocá-la em sua língua por uma contagem de três. Sua doçura floresceu em sua língua e se espalhou por todo seu corpo em uma onda de calor. Ao longo da hora seguinte, a dor em suas costelas havia desaparecido, assim como todas as outras pequenas dores e sofrimentos, incluindo as normais da vida cotidiana. Ela nunca se sentiu tão inteira, tão forte, tão viva. Embora uma hora tivesse passado, depois outra, depois outra, Shiro não se mexeu. Sua respiração não tinha ficado mais forte. Seus olhos, quando ela
ergueu as pálpebras, estavam opacos... vazios... sem vida. As ‘poucas horas’ que Uzume indicou já haviam passado. Ele não tinha acordado. Ele vai dormir para sempre. A angústia cresceu, esmagando seus pulmões. A pétala não o salvou. Não foi o suficiente. Ela traçou levemente o símbolo vermelho em sua bochecha. As pontas dos dedos dela deslizaram por sua mandíbula até o queixo, em seguida, traçaram a coluna de sua garganta até encontrar o pulso em seu pescoço. Ele vibrava muito lentamente contra seus dedos, sua pele tão fria. Vivo, mas fora de alcance. Vivo, mas desaparecido. Além da clareira, as montanhas eram silhuetas escuras contra o céu estrelado. Pairando logo acima dos cumes, a lua gradualmente afundou em direção ao horizonte. Com uma mão ainda descansando em sua garganta, ela abriu a outra. Em concha em sua palma estava a pétala branca que ela tocou brevemente em sua língua. Ela brilhava como se emitisse seu próprio luar. Assim que a lua acima afundasse abaixo das montanhas, a pétala morreria. Ela deslizou a mão até o ombro de Shiro e apertou com força. Uzume disse que isso o destruiria, mas Emi não teve a chance de explicar as circunstâncias
de
Shiro,
seu
poder
amarrado,
sua
identidade
desconhecida. Uzume o havia chamado de ‘mero’ kitsune, mas ele era mais do que isso. E se uma segunda pétala pudesse reanimá-lo quando a primeira falhou? Ou talvez a pétala o destruísse inteiramente, destruísse qualquer possibilidade de que ele revivesse do reino espiritual.
Seu olhar se voltou para a lua novamente. Ele vai dormir para sempre. Antes que ela pudesse se questionar, ela pegou a pétala entre dois dedos e a empurrou entre os lábios dele. Rígida de tensão, ela olhou para ele, esperando. Os segundos se transformaram em minutos, mas nada aconteceu. Nada mudou. Ele não entrou em combustão espontânea, nem acordou. Ela caiu na grama, apoiando a cabeça no braço novamente. A lua deslizou abaixo dos picos e sua luz prateada diminuiu. O medo sussurrou através dela, ganhando força. Ela tinha acabado de condenar Shiro a uma morte permanente? Ele nunca iria reviver novamente por causa dela? O que ela fez? Suas mãos tremiam e a náusea a percorreu. Por puro egoísmo, querendo-o de volta enquanto ela ainda estava viva, ela roubou sua imortalidade? Fechando os olhos com força, ela se aproximou até que seu rosto estava pressionado contra o ombro dele. A exaustão arrastou-se sobre ela, lutando contra sua dor e culpa. Deslizando a mão pelo peito dele, ela mais uma vez encontrou a pulsação em seu pescoço. Ele estava vivo. Ela manteria a esperança até que toda a esperança se fosse.
Emi andava de mãos dadas com Hana, seus braços balançando para frente e para trás como crianças pequenas. Hana ria, seus olhos castanhos brilhando de felicidade. Elas passaram pelo lago do Santuário Shirayuri, a água cintilante cercada por uma profusão de folhas verdes e flores brilhantes, as cores do verão.
Ela sorriu ao ver Hana tão feliz, mesmo com a tristeza crescendo em seu coração por nem ela nem Hana verem o Santuário Shirayuri em pleno verão. Quando chegaram à passarela, Hana largou a mão dela e saltou para o centro da ponte, ainda rindo. O prazer permanecia gravado em seu rosto, mesmo quando as águas paradas começaram a se agitar. Uma aranha monstruosa explodiu do lago. Ela quebrou a ponte em uma onda de água espumosa e pernas se contorcendo. Hana desapareceu embaixo dela enquanto a arrastava para baixo da superfície. Emi cambaleou para frente, mas seu corpo estava lento e sem resposta, um peso invisível arrastando em seus membros. A aranha emergiu da lagoa novamente e subiu a margem em direção a ela, o veneno pingando de suas longas presas. Em uma explosão de chamas azuis, uma raposa de três caudas do tamanho de um lobo passou correndo por ela. Ela saltou sobre as costas da aranha, suas caudas, parte pele, parte chama branca, balançando para frente e para trás para se equilibrar. As marcas em seu rosto brilhavam e uma bola de fogo engolfou ele e a aranha. O calor a atingiu, forçando-a a dar um passo para trás. A fumaça subiu para o céu e enquanto as chamas morriam, revelando o cadáver da aranha carbonizado, o kitsune saltou livre. Ele pousou na margem do lago ao lado dela e olhou para ela com olhos de rubi inquisitivos. Então seu olhar se embotou e ele caiu no chão. Duas perfurações em seu ombro vazavam sangue e veneno. Ofegando, ela caiu de joelhos e pegou a raposa em seus braços, suas mãos enterradas em seu pelo espesso e macio. Ela acariciou seu focinho enquanto lágrimas de desespero escorriam por seu rosto. O calor a envolveu e um grunhido profundo e selvagem retumbou atrás dela. Ela se virou, ainda segurando a raposa em seus braços.
O enorme kyubi no kitsune elevou-se sobre ela, suas nove caudas chicoteando atrás dele enquanto chamas brancas subiam de seu corpo. Suas narinas dilataram-se, seu nariz a apenas alguns metros dela. Olhos carmesim flamejantes brilharam, suas orelhas achatadas em direção à cabeça e seu rosnado aumentou de volume. Ele mostrou suas enormes presas e chamas explodiram sobre seu corpo enquanto se lançava sobre ela. Seus olhos se abriram, um suspiro estrangulado travando em sua garganta. Uma luz inesperada a cegou. Sacudindo a névoa e a adrenalina remanescente do sonho, ela piscou rapidamente enquanto se ajustava à luz quente do amanhecer. O perfil de Shiro entrou em foco e sua agonia interior reacendeu ainda mais ferozmente. Mordendo o lábio para conter as lágrimas, ela roçou levemente os dedos em sua bochecha. O choque passou por ela antes que ela entendesse o porquê. Então ela percebeu: a pele dele estava quente. Em seu suspiro, suas pálpebras se abriram. Seu peito subia em uma respiração profunda e sua cabeça se virou lentamente em direção a ela. —Shiro! — Ela exclamou com voz rouca, seu alívio tão potente que doeu. Seus olhos encontraram os dela, grogues e não muito focados. Mas por baixo da névoa sonolenta havia outra coisa. Seu sangue gelou. De alguma forma, ela sabia que o yokai olhando para ela não era exatamente o Shiro que ela conhecia. Ele era cada vez mais diferente... e perigoso. Com os dedos ainda tocando levemente sua mandíbula, ela engoliu em seco e sussurrou: —Shiro? A antiga astúcia em seu olhar se aguçou. —Esse não é o meu nome. Seu coração gaguejou. Sua voz era mais lenta, mais suave, alinhada com aquele tom ronronante que enviou calafrios sussurrando sobre sua pele. —Qual é o seu nome então? — Ela respirou, mal fazendo um som.
Suas orelhas giraram para trás. Sua pulsação trovejou em seus ouvidos quando percebeu que ele não estava hesitando porque não sabia. Em vez disso, ele estava decidindo se queria contar a ela. Ela pressionou os dedos contra sua bochecha. —Me diga seu nome. Sua expressão era um mistério. Quem era ele? Havia algo do Shiro que ela conhecia neste yokai, que não mostrou nenhum sinal de ternura ou misericórdia em seu olhar? Antes que ele pudesse responder, ou não responder, algo brilhou em sua visão periférica. Alguns metros acima dela, o tronco da árvore ondulou como uma miragem. Um kodama ruivo saiu voando da casca com um grito alto. Shiro se endireitou de um lado dela e do outro, Yumei se levantou em um movimento suave. Emi estava apenas na metade do caminho, seus reflexos muito mais lentos, quando a kodama agarrou seu cabelo e puxou-o dolorosamente. —Humana! — O kodama exclamou. —Eu tenho uma mensagem! —Uma mensagem? — Ela gaguejou. —As árvores disseram para te dizer. A kami da terra está chegando e você deve partir agora. —A kami da terra, espere, você quer dizer Izanami? — Ela engasgou. —Sim. Sim. A kami da terra! Você deve ir agora. — O kodama olhou ao redor com medo. —Eu não gosto do vale enevoado. Estou saindo agora. —Espere, de que direção está vindo Izanami? —Da luz do sol. Saia agora. Estou saindo agora! — Sem outro olhar, ele disparou de volta para a árvore e desapareceu em um piscar de olhos. O silêncio pulsou por um longo momento. —Você acordou. — Yumei observou.
Subindo, Emi se virou para Shiro quando ele deu de ombros. —Parece que sim. — Ele arrancou os dois buracos manchados de sangue em seu kosode. —Eu admito que estou surpreso. —Assim como eu. — Yumei murmurou, considerando Emi com o que poderia ser suspeita, mas ela estava muito focada em Shiro. —Shiro, você disse... Ele piscou enquanto puxava novamente seu kosode furado, como se não conseguisse acreditar no que viu. —O que foi que eu disse? Ele não se lembrava? Assim como quando ele falou sobre o passado do Tengu, ele parecia ter esquecido suas memórias recuperadas brevemente. Ele havia esquecido seu nome novamente, sem perceber que se lembrava dele. Se ao menos ele tivesse contado a ela antes da chegada do kodama! Mas isso realmente importa? Ele estava vivo. Ele estava acordado. —Você vai me informar ou o quê? — Ele perguntou, revirando os olhos. —Ou eu tenho que fazer todas aquelas perguntas irritantes sobre o que aconteceu e onde nós... Ele parou quando ela jogou os braços ao redor dele e enterrou o rosto em seu peito. Um arrepio percorreu seu corpo ao sentir seu calor, ao ouvir a batida forte e constante de seu coração sob sua orelha. Ela o agarrou o mais forte que pôde, como se pudesse espremer toda a dor e sofrimento da noite. —Emi...— Ele murmurou. —Vocês podem se permitir uma reunião mais tarde. — Yumei disse impacientemente. —Se
Izanami
entrou
na
floresta,
devemos
recuar
imediatamente. Corando com sua própria ousadia, Emi rapidamente recuou. Ela não conseguia olhar para Shiro quando se afastou dele. Ele não retribuiu o
abraço. Suas bochechas queimaram mais quentes e uma sensação dolorosa e doente torceu silenciosamente dentro dela. —Você pode nos teletransportar, Yumei? — ela perguntou. —As fontes termais de Wasurenagusa não estão em nenhum lugar perto daqui. Quando ele assentiu e começou a mudar de forma, ela olhou para Shiro. Ele estava estudando a fonte cristalina, seus olhos distantes. Ela se abraçou. Ele não retribuiu o abraço, mas ela deveria saber disso. O que a levou a acreditar que ele sentia afeto por ela? Atração sim, mas carinho? Não importa. Ele estava vivo. Ele estava acordado. E assim que pudesse, ela removeria o onenju e libertaria suas memórias, mesmo que isso significasse que o Shiro que ela conhecia estaria perdido para sempre.
As
fontes
termais
de
Wasurenagusa
eram
legitimamente
famosas. Variando de grandes lagoas interconectadas a pequenos buracos quase ferventes na rocha, elas cobriam uma grande parte da montanha. No ar frio, parecia quase como se a floresta estivesse pegando fogo enquanto o vapor subia por entre as árvores no alto do cume. Emi sentou-se ao lado de Shiro em um tronco, esfregando as mãos para se aquecer enquanto esperavam o retorno de Yumei. A temperatura estava mais baixa do que em toda a estação, e seus dedos estavam brancos e dormentes de frio. Ela estremeceu dentro do casaco e amassou os dedos dos pés congelados e doloridos nas botas.
Ao lado dela, Shiro olhava vagamente na direção das nascentes, uma pequena ruga entre as sobrancelhas. Ele parecia alheio ao desconforto dela e ela não queria pedir que ele criasse um kitsunebi para aquecê-la. Ela o contara sobre tudo o que havia acontecido desde que ele foi mordido pela tsuchigumo, desde Yumei matando Jorogumo até as informações de Uzume e sua nova missão. Mas sua reação não foi muito certa, quase como se ele não se importasse, ou ele estava muito distraído com outra coisa para dar a devida consideração. Ela não deveria tê-lo abraçado. O que a tinha possuído para fazer isso? Ela estava tão aliviada, tão dominada pela emoção que ele estava acordado. Ela pensou que ele tinha partido para sempre. E realmente, um simples abraço foi tão chocante quando ele já a beijou? Quando ele a prendeu no chão e quase a beijou pela segunda vez? Talvez seu desejo de proximidade fosse puramente físico. Seu abraço foi muito emocional. E ainda, depois de resgatá-la da teia da tsuchigumo, ele parecia tão frenético... Ela afastou o pensamento e se concentrou em esperar. Yumei deveria voltar em breve. Depois de se recuperar do esforço de transportá-los para Wasurenagusa, ele partiu para fazer um reconhecimento da área. O sol havia desaparecido atrás de nuvens cada vez mais espessas enquanto a tarde diminuía e a temperatura continuava a cair. Um vento errante puxou erraticamente sua roupa e soltou seu cabelo no coque. O que Uzume quis dizer quando disse que Amaterasu comandava o vento, mas Emi o deixava correr solto? E Yumei disse que não queria o vento como inimigo. Ambos falaram como se o vento fosse sensível, ou pelo menos semiconsciente e capaz de uma ação independente.
Quando o vento a ajudou a lutar contra Jorogumo, Emi não tinha pensado muito se ela estava no controle. O vento respondeu a sua vontade, agindo da maneira que ela precisava, então ela assumiu que era Amaterasu, mas agora ela não tinha certeza. Nas palavras de Uzume e Yumei, ela sentiu um aviso. Ela gostaria de poder falar com Amaterasu e descobrir o que estava acontecendo com ela. Ela pressionou a mão fria no casaco sobre a marca kamigakari. Seja porque ela havia se recuperado o suficiente do ki de Amaterasu ou por causa dos poderes de cura da pétala da flor, ela pôde mais uma vez sentir um calor familiar e reconfortante na marca. Logo, ela estaria pronta para tentar remover outra conta do onenju de Shiro. Ela olhou para ele novamente. Ele ainda estava contemplando o horizonte montanhoso, sua expressão indecifrável. —O que há de errado? — As palavras escaparam dela antes que ela pudesse detê-las. —Hmm? — Ele olhou para ela pela primeira vez em quase uma hora. Ela encolheu os ombros. —Você parece distraído. Ele sorriu torto. —Quer minha atenção, pequena miko? Ela quase desistiu, mas em vez disso o estudou. Era quase imperceptível, mas seu sorriso parecia vazio, desprovido do humor travesso que geralmente o acompanhava. Sua preocupação cresceu apesar de seus melhores esforços para manter suas emoções neutras. —Qual é o problema, Shiro? Algo cintilou em seus olhos. Desânimo? Irritação? Ela não tinha certeza. Ele bufou, sua respiração embaçando o ar. Apoiando um pé no tronco, ele apoiou o braço no joelho. —Eu me lembrei de algo de... antes do onenju. Uma memória real.
Seu coração saltou com uma dolorosa mistura de esperança e medo. —O que você lembra? Seu olhar desviou antes de voltar para o dela. —Morrer. —Você, você morreu? —Lembro-me de me sentir enraivecido, consumido pela fúria... pela traição. — Ele ergueu o braço com o onenju, girando o pulso para que as contas brilhassem. —Eu tinha acabado de ser preso pelo onenju, eu acho. Eu me senti rasgado e vazio, meu poder foi esvaziado de minha alma. Sua mão se fechou em torno da frente de seu kosode. —Então eu fui... perfurado. Por trás. —Alguém amarrou você com o onenju e depois esfaqueou você pelas costas? — Ela sussurrou, horrorizada. —Eu pensei, todo esse tempo, que não tinha nenhuma memória porque o onenju as selou ou destruiu ou... algo assim. Mas agora eu me pergunto... talvez o onenju não tenha um efeito direto em minhas memórias. Talvez eu não tenha lembranças porque morri. —Yumei disse que as memórias de yokai retornam gradualmente depois de reviverem. —Isso é o que eu ouvi também. Leva alguns meses, talvez até mais, dependendo da força do yokai, para que o ki e o eu se regenerem totalmente. —Mas se o onenju está bloqueando seu ki. — disse ela lentamente, — Então também está bloqueando o retorno de suas memórias. Ele assentiu. —Nós sabemos onde encontrar Susano e Sarutahiko, mas se eu sozinho tiver a chave do desaparecimento de Inari em minhas memórias... Mesmo que você removesse o onenju neste momento, poderia levar meses para eu lembrar de tudo. Simpatia brotou nela com o vinco preocupado entre suas sobrancelhas.
—Não perca a esperança. Susano e Sarutahiko podem saber mais. — Sem pensar, ela colocou a mão na dele. —Talvez Susano... Ele engasgou, puxando sua mão debaixo da dela. Ela puxou a mão de volta, seu rosto aquecendo de vergonha por sua rejeição. A dor passou por ela antes que ela a esmagasse. —Seus dedos estão como gelo. — Seu tom era uma mistura de descrença e reclamação. Ela piscou surpresa quando ele franziu a testa em clara desaprovação. Antes que ela pudesse reagir, ele segurou suas mãos nas dele e as pressionou entre as palmas maravilhosamente quentes. —Por que você não disse que estava com frio? — Ele demandou. —Eu...— Ela olhou para suas mãos envolvidas pelas dele. —Eu só... —Só queria me transformar em um bloco de gelo enquanto eu não estava prestando atenção? Eu tenho que cuidar de você a cada minuto? — Quatro kitsunebi ganharam vida e formaram um círculo ao redor dela. O calor a invadiu, quase doloroso depois de ficar tanto tempo no frio. —Isso é algum tipo de punição feminina porque quase morri ou algo assim? —O-o quê? —Não me peça para explicar como funcionam as mentes das mulheres. Por que mais você congelaria até a morte sem dizer nada? —Eu não estava morrendo de frio. — ela protestou fracamente. —Eu estava com um pouco de frio. —Um pouco? — Ele apertou as mãos dela com mais força. —Eu não posso ler sua mente. Se precisar da minha ajuda, é só me dizer. Ela abaixou a cabeça, desejando que pudesse escapar de seu olhar intransigente, mas incapaz enquanto ele ainda segurava suas mãos. —Eu não achei que você quisesse...— Seu murmúrio indiferente terminou em silêncio.
—Não queria o quê? Ela balançou a cabeça. —Emi. —Não é nada. Deixe para lá. —Emi. — Ele rosnou e sua barriga se agitou um pouco ao som dele dizendo seu nome daquele jeito, mesmo que ele estivesse irritado com ela. Antes que ela pudesse dar uma resposta, um corvo enorme voou do céu e pousou na neve a alguns metros de distância. Escuridão ondulou sobre ele e Yumei apareceu da onda de magia. Para seu alívio, o exame minucioso de Shiro finalmente mudou para o novo alvo. —Encontrou alguma coisa? — Ele perguntou a Yumei, ainda segurando suas mãos presas. —Nada imediatamente suspeito. Uma tempestade está se formando no oeste e chegará em uma hora. Precisaremos de abrigo. —Um abrigo ao ar livre não será suficiente para uma humana. A miko já está um bloco de gelo. A irritação percorreu os olhos de Yumei como sempre acontecia sempre que sua frágil humanidade o incomodava. —Você não pode mantê-la aquecida? Um sorriso malicioso curvou os lábios de Shiro. —Não com roupas. A boca de Emi caiu, mas ela ficou sem palavras. Ela tentou puxar as mãos dele, mas seu aperto era muito forte. Yumei inclinou a cabeça em direção às plumas de vapor subindo das fontes termais distantes e invisíveis. —Ajisai não está longe. Shiro piscou. —Você quer dizer a pousada? Essa é uma boa ideia?
—O que há de errado com uma pousada? — Ela perguntou, finalmente encontrando sua voz. Ela determinadamente não reconheceu o comentário de Shiro sobre roupas. —Uma estalagem yokai. — Ele esclareceu. —Qual você prefere arriscar? — Yumei perguntou. —A tempestade ou os yokai? Shiro se levantou, puxando-a com ele. —Ponto justo. —Na verdade. — Emi começou nervosa. —Poderíamos ir para uma pousada humana em vez disso e... —Os estabelecimentos humanos estão no lado oeste do cume. — Yumei interrompeu. —Teremos sorte se chegar a Ajisai antes da tempestade. —Oh. — Ela sussurrou. Shiro a puxou para mais perto dele. —Com medo, pequena miko? —Eles não vão querer me comer? —Provavelmente. — Disse ele, não parecendo nem um pouco preocupado, apesar de já ter expressado preocupação. Ela suspirou. Um vôo de dez minutos depois, Emi se aninhou sob o braço de Shiro enquanto eles marchavam pela neve profunda. O vento uivante jogou bolinhas de gelo em seus rostos e a luz da tarde diminuiu até que uma escuridão desagradável pairava sobre a montanha. As nuvens acima se agitavam com raiva, lançando sua fúria sobre a terra. Enquanto Yumei liderava o caminho por entre as árvores, ela se perguntou a que distância estava a estalagem, e como yokai poderiam encontrá-la no meio do nada. Nenhuma estrada ou caminho interrompia a natureza intocada. A floresta parecia vazia de vida. Por fim, Yumei parou. Ela apertou os olhos na neve. Na frente dele estava um poste de madeira simples, na altura da cintura e sem marcas. Yumei
colocou um dedo na face frontal e traçou um símbolo complexo que brilhou brevemente em vermelho. O ar diante dele brilhou estranhamente. Ele entrou no brilho e desapareceu. Shiro a conduziu em direção a ele. Quando eles alcançaram a barreira, um frio ainda mais profundo que o vento roçou sua pele. A magia negra e estranha deslizou sobre ela, procurando, saboreando. O ar ficou mais espesso, empurrando-a para trás. Com Shiro puxando-a para frente, ela lutou para dar um passo à frente enquanto isso a forçava a recuar com igual força. Yumei reapareceu ao lado dela. Ele enrolou o braço em volta das costas dela, logo abaixo do braço de Shiro, e juntos eles a puxaram para a parede espessa e gelada de ar. A magia fervilhava com raiva em sua pele, sibilando imperceptivelmente em seus ouvidos. Shiro e Yumei a arrastaram para frente, comprimindo-a contra a parede invisível e inflexível. Então,
com um estremecimento de
magia,
acabou. A pressão
desapareceu e ela tropeçou, quase caindo. Shiro a pegou e a puxou para cima. Yumei a soltou. —Tsuchi não gosta de você. —Uzume disse a mesma coisa. — Ela murmurou com os dentes batendo. O vento soprou novamente, chicoteando sobre eles. Ela olhou para cima para ver o que a barreira cintilante estava escondendo.
Uma parede alta apareceu entre as árvores, interrompida por uma entrada com um telhado estreito e inclinado. Cascas de madeira podre e tinta velha manchavam a superfície e um poste de lanterna de pedra manchado com musgo verde estava assentado na frente, a chama tremeluzindo loucamente com o vento. Além da abertura, um calçadão de pranchas de madeira antigas e irregulares curvava-se através de um jardim da frente esparso, os canteiros de flores vazios pontilhados com árvores finas sem folhas. Com Shiro ao seu lado, ela seguiu Yumei em direção a uma residência baixa e ampla com aradelas brilhantes penduradas nos beirais para receber os visitantes. O exterior desgastado inspirava tanta confiança quanto o calçadão e o jardim, mas com as mãos entorpecidas sob os braços e o rosto tão frio que doía, tudo em que conseguia pensar era em se aquecer. Enquanto subia os degraus, Yumei abriu a porta, espalhando luz pela varanda, e passou pela soleira. Apertando os olhos, ela entrou em uma onda de ar quente que cheirava a comida cozinhando. Shiro fechou a porta atrás deles com um baque. O estrondo de uma conversa descontraída permeava o ar. Enquanto ela piscava sob a luz suave das velas e luminárias espalhadas pelo salão, seu coração batia cada vez mais rápido. O interior da pousada era significativamente menos gasto do que o exterior, mas estava longe de ser um estabelecimento sofisticado. As paredes eram de madeira escura, assim como o teto abobadado, dando a todo o espaço um ar sombrio. Além da pequena entrada, largas portas duplas estavam abertas para o salão comum, onde longas mesas baixas e almofadas foram colocadas em preparação para o jantar. As melhores estalagens serviam aos hóspedes em seus quartos, mas as pequenas estalagens rurais, com as quais esta se parecia, serviam uma única refeição comunitária para os hóspedes
compartilharem. Uma fogueira quadrada no centro do salão fumegava fracamente e uma chaleira de ferro preta estava sobre as brasas. Embora o jantar ainda não tivesse sido servido, vários alimentos leves foram deixados para os hóspedes famintos comerem. E, de fato, uma variedade de visitantes descansava no grande salão, alguns à mesa e outros nas proximidades. Em uma das almofadas puídas, dois animais peludos que pareciam um cruzamento entre um macaco e um cachorro estavam enrolados juntos. A criatura sentada a uma mesa com uma xícara de chá era definitivamente mais macaco do que qualquer outra coisa, se os macacos tivessem um metro e oitenta de altura e usassem uma armadura de samurai. Seu rosto sem pelo era rosa brilhante e seus olhos escuros observavam as três criaturas do outro lado da mesa. Seus companheiros de mesa eram baixos como crianças, com pele vermelho-escura, orelhas pontudas e longos cabelos negros. Os três yokai iguais estavam curvados sobre algo na mesa, gesticulando energicamente. Um homem reclinado contra a parede, separado dos outros, com uma tigela de comida na mesa ao lado dele. Ele poderia ter parecido humano, exceto pelas listras escuras em sua pele e as orelhas de tigre subindo de seu cabelo prateado, amarrado para trás em uma longa cauda que pendia sobre um ombro. Sua roupa era decididamente boa e uma espada embainhada estava no chão ao lado dele. Antes que ela pudesse dar uma boa olhada no punhado de outros yokai que povoavam o salão, Shiro agarrou sua mão e a colocou em movimento. Yumei já havia chegado à recepção onde um membro da equipe o estava dando as boas-vindas, ou ela presumiu que o yokai era um membro da equipe. Ele parecia um menino de dez anos, exceto pelo único olho grande no centro da testa.
Enquanto ela tropeçava atrás de Shiro, o grande yokai macaco olhou para ela e as três pequenas criaturas de pele vermelha se viraram para ver o que ele estava olhando. Quase em uníssono, eles sorriram avidamente e seu rosto ficou frio. —Uma humana? — Um disse em voz alta, sua voz rouca cortando o murmúrio da conversa. —Você insulta o estalajadeiro ao trazer seu próprio jantar. O yokai com orelhas de tigre olhou e os cachorro-macacos ergueram a cabeça, as orelhas voltadas para a frente. Duas mulheres yokai no outro extremo do salão interromperam a conversa. Shiro lançou um olhar cortante por cima do ombro para o orador. — Ciumento, moryo? —Também é rude se entregar a sangue humano fresco sem compartilhar. — Acrescentou o yokai, exibindo duas fileiras de dentes pontiagudos em uma horrível paródia de um sorriso. —Por que eu compartilharia com um nanico como você? —Talvez você não tenha escolha. Shiro parou e virou-se no meio do caminho em direção ao moryo. Seu movimento casualmente o colocou entre Emi e o yokai. As marcas em seu rosto brilharam brevemente em vermelho. —Seus maus modos são uma afronta a todos os hóspedes desta pousada. — interrompeu o yokai tigre inesperadamente em tons lentos e profundos. — Cuidado, moryo. —Você não consegue sentir o cheiro daquela humana, Byakko? — O yokai de pele vermelha estalou. —Você acha justo que o kitsune desfile sua presa na nossa frente?
Inesperadamente, Yumei se colocou entre ela e Shiro. Suas mãos desceram em cima de suas cabeças e ele empurrou para baixo, dobrando seus pescoços desconfortavelmente. —Ambos pertencem a mim. — ele disse no salão repentinamente silencioso, sua voz sem inflexão ecoando com uma sugestão de cavernas escuras e ventos gelados. —Qualquer um que quiser me desafiar por eles, faça isso agora. O moryo deu um passo para trás e deixou-se cair na almofada novamente. Todos, exceto o yokai tigre, retomaram visivelmente suas atividades interrompidas. Yumei encontrou os olhos dourados de Byakko e inclinou levemente a cabeça. Byakko devolveu o aceno com uma curvatura um pouco mais profunda da cabeça, reconhecendo que o Tengu o superava. Yumei soltou ela e Shiro. Ela se endireitou, tentando não fazer uma careta. Ela tinha quase certeza de que entendeu o que Yumei tinha feito, ele demonstrou a submissão dela e de Shiro à sua vontade, mas ela não gostou. O yokai de trás da mesa se aproximou. Emi estremeceu quando seu único olho permaneceu nela por muito tempo antes de levá-los para fora do saguão. Ele os levou para um quarto no final de um longo corredor, onde abriu a porta e fez uma reverência. Emi passou correndo por ele e entrou no quarto, quase pisando nos calcanhares de Shiro. O estalajadeiro fechou a porta atrás deles. —Acho que nunca vi tantos yokai começarem a babar ao mesmo tempo. — Shiro observou, sorrindo por seu óbvio desconforto. —Eu já disse a você que seu cheiro é de dar água na boca? —Pare com isso, Shiro. — Ela colocou os braços ao redor de si mesma, estremecendo apesar do calor. Ela mudou-se para o centro do quarto e ajoelhou-se à mesa baixa. Ao lado dela, um braseiro redondo aquecia o
ambiente. O quarto simples estava vazio, exceto pela mesa e algumas almofadas, mas haveria futons e roupas de cama no armário. —Não tenho certeza se a ameaça de Yumei foi o suficiente para eles me deixarem em paz. —Só não vá sozinha. — Disse Shiro, vagando pelo perímetro do quarto. —Byakko é o único com poder para falar. — disse Yumei. — E ele não vai fazer mal a você. Emi ergueu os olhos. —Você tem certeza? —Ele não tem interesse em humanos. — Ele se voltou para a porta. — Vou ver o que ele sabe dessa área. Fiquem aqui. O estalajadeiro trará seu jantar para o quarto. Quando a porta se fechou atrás dele, ela se aproximou do braseiro. Ele não teve que dizer a ela para ficar no quarto. Ela não tinha intenção de colocar os pés fora dele até que eles pudessem deixar este covil de monstros.
— Eu não acho que isso é uma boa ideia. — Emi sussurrou. Shiro estava ao lado da ampla soleira preenchida com uma cortina vermelha, uma sobrancelha levantada. Ela cruzou os braços teimosamente, ainda não totalmente certa de como ela acabou neste corredor, longe da segurança de seu quarto. Ela não decidiu ficar parada até que estivessem prontos para partir? —Você quer ficar em uma pousada com fontes termais e não as usar? — Ele perguntou. —Eu simplesmente não acho... —Você não pode me dizer que não quer tomar banho. Miko normalmente não tomam banho a cada duas horas? —Não muitas vezes. — ela balbuciou. Ela se afastou da porta com cortinas. —A tempestade lá fora está... —A lagoa é bem protegida e a água quente. —Mas e se houver yokai... —Não há ninguém lá, e estarei por perto. — Ele se inclinou na direção dela. —A menos que você esteja dizendo que quer que eu vá com você, pequena miko? —Não! — A palavra saiu em um guincho envergonhado e seu rosto corou.
Ele revirou os olhos. —Estou indo tomar banho. Se você ficar com medo, apenas grite. Deixando-a parada no corredor, ele caminhou até a porta com cortinas azuis e desapareceu lá dentro. Ela piscou atrás dele, então se virou para a cortina vermelha desbotada. Ela queria tomar banho desesperadamente. Se ele pensava que era seguro... Ela puxou a cortina de lado e olhou para dentro. O vestiário estava realmente vazio. Ela deslizou para dentro e se aproximou das prateleiras de madeira forradas com cestos desgastados. Engolindo em seco e mantendo uma vigilância apreensiva na porta com cortinas, ela tirou a roupa, dobrou-a e colocou-a em uma cesta. A única coisa que ela manteve no lugar foi o omamori em volta do pescoço. Ela pegou duas toalhas brancas simples da pilha acima das cestas de armazenamento, surpresa ao descobrir que o tecido era macio e grosso. Com esforço, ela deixou a cesta, e seu ofuda oculto, e rastejou até a porta que levava à próxima sala onde a água corrente espirrava ruidosamente. As paredes mudaram de madeira para pedra e, ao longo de um lado, canos de bambu despejavam água fumegante em uma trilha no chão. Banquetas e bacias de madeira esperavam no canto. Mais uma vez, ela ficou surpresa, estava escrupulosamente limpo e bem abastecido. A pousada poderia não ter os melhores acabamentos, mas não era exatamente o estabelecimento monótono e decadente que ela havia assumido. Depois de pendurar as toalhas em um gancho, Emi puxou um banquinho até um dos canos, empoleirou-se na beirada do assento e usou a bacia para derramar água fumegante sobre si mesma, enxaguando a poeira, sujeira e sangue de sua pele. Ela despejou uma bacia cheia sobre a cabeça, ofegando enquanto a água escorria por seu rosto, então pegou o sabonete. Depois de se
lavar bem, ela enrolou uma toalha em volta do cabelo e prendeu-a no topo da cabeça. Segurando a segunda toalha contra a frente, ela espiou pela porta final. Uma brisa gelada deslizou por sua pele molhada, fazendo-a estremecer. Coberto por uma saliência de madeira, o piso de pedra estendia-se por mais vários degraus, depois afundava na lagoa. O vapor subia em redemoinhos que flutuavam na leve brisa, e pedras altas e cobertas de neve cercavam a primavera. A parede à sua esquerda, no entanto, era de madeira: a divisória entre os banheiros masculinos e femininos. Para seu alívio, a lagoa estava vazia. Ela rapidamente dobrou sua toalha sobressalente e a colocou perto da borda rochosa, então esticou um pé na água, procurando o degrau mais alto. Encontrando uma pedra lisa com os dedos dos pés, ela desceu na água fumegante. Um suspiro ofegante escapou dela enquanto o calor irradiava por sua pele e aquecia seus ossos. Parecia que semanas haviam se passado desde a última vez que ela se aqueceu adequadamente. Encontrando uma crista de rocha semelhante a um banco sob a água, ela se sentou perto da escada, perto de sua toalha e o caminho de volta para a lavanderia, se necessário. O vapor subiu ao redor dela, borrando as paredes de pedra próximas, mas falhando em obscurecer o pico majestoso que se erguia acima da pousada. Afundando um pouco mais, ela se encostou na borda rochosa da piscina. Em algum lugar do outro lado da parede de madeira em frente a ela, Shiro estava ensopado na mesma água. Suas bochechas queimaram com o pensamento. Shiro, do outro lado da parede... sem roupas. Ela mordeu o lábio, tentando sem sucesso banir o pensamento. Em vez disso, uma imagem surgiu em sua mente: Shiro encostado na parede de seu quarto, seu torso nu brilhando fracamente após o banho, seu cabelo despenteado por causa da toalha.
Ela tirou as mãos da água e as pressionou nas bochechas para esfriar o rubor. Certamente ela poderia encontrar algo mais produtivo, e apropriado, para ocupar seus pensamentos. Afinal, ele era um yokai. Só porque ele fez piadas sugestivas... e a beijou uma vez... e quase a beijou uma segunda vez... Ela deixou suas mãos caírem de volta na água. Ele não poderia ser mais confuso se tentasse. Fechando os olhos, ela procurou a calma meditativa interior que ela havia negligenciado tão completamente ultimamente, mas sua mente teimosamente permanecia onde não deveria. Uma letargia sonolenta se apoderou dela e, enquanto ficava encharcada, ela se entregou a pensamentos proibidos que nunca teriam a entretido se não estivesse sozinha. Ela estava ouvindo a conversa tranquila de vozes femininas por vários minutos, vagamente apreciando o som familiar e reconfortante, quando percebeu que uma conversa próxima não deveria ser reconfortante, exatamente o oposto. Seus olhos se abriram e ela se sentou, com os ombros saindo da água. A brisa fria lutou com o vapor quente. Em uma explosão de som e movimento, um grupo de mulheres saiu pela porta, rindo juntas. A nudez delas não a surpreendia, os banhos comunais tradicionais sempre eram apreciados nus, mas ela não esperava acréscimos menos humanos. Cada mulher tinha um par de orelhas de gato saindo de seu cabelo e uma longa cauda peluda balançando atrás delas. Ainda rindo, elas caíram direto na lagoa. Emi afundou até que seu queixo tocou a água e colocou as mãos sobre o peito, cobrindo sua marca kamigakari. O que ela deveria fazer? Pedir a ajuda de Shiro? Mas... mas ela estava nua, e se ele viesse em seu resgate... ele provavelmente não estaria mais vestido. Ela tinha quase certeza de que preferia morrer nas mãos das mulheres felinas.
—Kaori! — A mulher com cabelos e orelhas pretos de repente engasgou. —Não me belisque! Uma yokai gata com cabelo castanho-acinzentado amarrado em um coque no topo da cabeça deu uma risadinha. —Não consigo evitar, Noriko. —Damas. — Aquela com orelhas listradas de laranja e cabelo combinando disse exasperada. —Comportem-se. Não estamos sozinhas. Todas as quatro yokai-bakeneko, ela estava adivinhando, viraram os olhos brilhantes em Emi. Ela se encolheu, nervosamente notando que todos tinham pupilas verticais em suas íris amarelas ou verdes. —Ooh. — Kaori exclamou, ajustando a gravata em seu cabelo. —É a humana do saguão! Quatro pares de orelhas felinas se animaram em direção a Emi. Eles se entreolharam, então Noriko se aproximou. —Olá. Após uma breve hesitação com medo, Emi sussurrou: —Olá. —Aw, ela é tímida. — Kaori observou. Noriko deu um tapa no ombro dela. —Ela não é uma muda, Kaori. Ela pode ouvir você. — Ela deu um sorriso de dentes pontudos para Emi. —Não se preocupe. Você está perfeitamente segura conosco. —Nós só comemos humanos do sexo masculino. — Kaori acrescentou. O de cabelo laranja lançou um olhar de repreensão a Kaori. —Eu não acho que ela precisava saber disso. Emi abriu a boca, depois fechou sem dizer nada. Seu olhar disparou em direção à porta. —Oh, não, você não precisa sair. — Noriko agarrou os braços de sua companheira yokai. —Em vez disso, iremos até lá. Ela começou a arrastá-las para longe, mas Kaori se soltou e caminhou com determinação até Emi. Ela plantou as mãos nos quadris e olhou para Emi
sem a menor inclinação para a modéstia. Não que ela tivesse qualquer motivo para ter vergonha de seu corpo. —Kaori. — Noriko repreendeu. —Eu só quero saber. — disse Kaori, inclinando-se para inspecionar Emi com olhos dourados brilhantes. —De quem é você, okini? Do kitsune ou do outro? —O-o quê? — Emi gaguejou. Okini, como ela conhecia a palavra, significava ‘favorito’ ou ‘animal de estimação’, mas ela não tinha ideia de qual significado a yokai pretendia. —Qual? É uma pergunta simples. Noriko agarrou Kaori por uma orelha felina e a puxou para trás. —Você é tão rude. —Ai! Eu só quero saber! —Não é da sua conta. —Como você não está curiosa? A curiosidade é o nosso traço definidor. —Então é cautela, e eu não quero perturbar aquele daitengu incomodando sua humana. —O que é um daitengu? — Emi perguntou sem pensar. Jorogumo havia usado a mesma palavra. Todos elas olharam para Emi com surpresa. —O yokai de preto que você trouxe. — Kaori disse. —Ele é um daitengu. Ele cheira a corvo. —Os corvos e os yokai corvos vêm em três tipos. — acrescentou Noriko. —Os corvos fracos, os generais mais poderosos e seu líder. —Oh. — respondeu Emi. —Então os daitengu são os generais do Tengu. Eu vejo.
—Por que você não sabe o que é um daitengu? — Kaori perguntou. — Isso é o que o seu mestre é. Emi balançou a cabeça. —Não, ele é o Tengu. Kaori bufou. —Talvez seja isso que ele disse a você, mas não tem como. O Tengu não sai de seu território. Emi não respondeu. Talvez fosse melhor ela não confirmar a identidade de Yumei. Kaori se aproximou mais uma vez. —Você não respondeu minha pergunta. De quem você é okini? Noriko revirou os olhos. —Por que você se importa tanto? —Eu não quero chegar ao lado ruim daquele daitengu, mas não tenho medo de um kitsune. — Kaori examinou Emi. —Hachiro disse que a recompensa era para uma jovem miko humana com cabelo comprido. Ela se encaixa, então por que não a entregar? Emi
respirou
fundo. Uma
recompensa
por
miko
com
cabelo
comprido? Tinha que ser obra de Izanami. Como Emi estava viajando com dois yokai, virar outros yokai contra ela era a maneira mais certa de garantir que ela fosse capturada ou morta antes que pudesse causar mais problemas a Izanami. Noriko fez uma careta. —Eu não quero me envolver nisso. —Então dê o fora. — Kaori disse. —Eu não queria compartilhar a recompensa de qualquer maneira. —E quando aquele daitengu destruir você, não vamos impedi-lo. —Eu não acho que ela pertence a ele. Acho que ela é a okini do kitsune. —E o kitsune pertence ao daitengu. Se você matar a garota, aquele corvo vai esfolar você viva de qualquer maneira. Apenas deixe isso, Kaori. —Ugh. Bem. — Ela deu as costas para Emi. —Você é tão chata, Noriko.
—Acho que 'inteligente' é a palavra mais adequada. — Disse a de cabelo laranja. Juntos, as quatro yokai caminharam até o final da piscina sem olhar novamente para Emi. Ela não perdeu tempo. Assim que elas cruzaram a piscina, ela agarrou a borda da nascente e puxou-se para fora, a água caindo dela. Pegando sua toalha, ela correu pela porta, atravessou o banheiro e entrou no vestiário. Secando o mais rápido que pôde, ela vestiu as roupas e verificou se o ofuda ainda estava escondido nos bolsos internos da manga. Cautelosamente, ela enfiou a cabeça para fora da cortina, olhando para frente e para trás no corredor vazio. Onde estava Shiro? Ele não tinha ouvido a gata yokai falando sobre entregá-la por uma recompensa? Ela considerou suas opções, então decidiu voltar para seu quarto. Talvez Yumei tenha retornado. Puxando o cabelo úmido sobre o ombro para não encharcar a parte de trás do quimono, ela se dirigiu para o corredor. —Pequena miko! Ela se virou. Shiro estava do outro lado do corredor. Ele deve ter terminado nas nascentes também, porque estava completamente vestido como se nunca tivesse entrado. —Shiro? O que você está... —Por aqui. — disse ele, gesticulando para que ela fosse até ele. —Rápido. Ela correu de volta para o corredor. Então ele tinha ouvido o que a gata yokai havia dito. Não era seguro voltar para o quarto? —O que é... Acenando para que ela o seguisse, ele empurrou outra porta com cortinas. Ela deslizou atrás dele para um corredor estreito e escuro, claramente não uma área destinada aos hóspedes da pousada. Ele acelerou pelo corredor
e ela correu para acompanhá-lo. Apreensão doentia se estabeleceu em seu intestino. —Shiro, onde... —Shh. — ele sibilou, sem olhar para trás. —Depressa, pequena miko. Seus passos hesitaram, sua pele formigando com a maneira como ele disse ‘pequena miko’. E por que ele parecia conciso e quase... nervoso? Shiro raramente perdia a calma. —Onde estamos... Ele parou e se virou. Seus olhos brilharam como pedras preciosas nas sombras e ele mostrou os dentes. —Você quer morrer? Então fique quieta e me siga. O medo zuniu por ela e ela tropeçou e parou. —Onde está Yumei? —Esperando por nós. —Onde? —Siga-me e eu vou te mostrar. A cautela cantava em seus nervos, avisando-a de que algo estava errado. Ela deu um passo para trás. —Diga-me o que se passa. Com um silvo de raiva, ele caminhou até ela e agarrou seu pulso, puxando-a atrás dele. A dor subiu por seu braço com a força de seu aperto e ela olhou para sua mão em choque. Ele a estava machucando. Ele nunca a machucou. Ela olhou para a mão dele, para o envoltório preto que envolvia as costas da mão, o antebraço e o cotovelo, preso no lugar por laços vermelhos. O gelo deslizou por suas veias. Sua mão direita. Ele a segurava com a mão direita, mas onde estavam as contas vermelhas brilhantes que deveriam ter sido enroladas duas vezes em seu pulso? O onenju estava faltando. Shiro não conseguiria remover o onenju. Ninguém poderia, exceto ela.
Se ele não estivesse usando o onenju, então o yokai que a arrastava pelo corredor escuro não poderia ser Shiro.
Ele a puxou atrás dele, seu aperto machucando seu braço, ela reuniu seu raciocínio desgastado. De alguma forma, apesar de parecer e soar como Shiro, este yokai não era ele. Ela enfiou a mão na manga e apertou um retângulo fino de papel entre os dedos. —Ei! — Ela gritou. Sua cabeça girou em direção a ela, os dentes à mostra com furiosa impaciência. Ela estendeu a mão e bateu com o ofuda no rosto dele. —Sotei no shinketsu! Uma luz azul iluminou o ofuda e percorreu seu corpo. Ele congelou no lugar, os dentes ainda à mostra com raiva. Empurrando para fora de seu aperto, ela tropeçou para trás, as mãos tremendo. Por um momento, ela entrou em pânico, com medo de ter acabado de bater em Shiro com um ofuda, mas olhou novamente para o pulso dele e para o onenju em falta. Não era ele. Não podia ser ele. Ela deu outro passo para trás, imaginando freneticamente o que deveria fazer. Um passo suave soou atrás dela e ela se virou. Um yokai baixo e atarracado que parecia um anão peludo caminhava pelo corredor em sua direção, seu rosto horrível contorcido em uma careta. Ela agarrou outro ofuda. Em um movimento repentino, o yokai a agarrou pelo pescoço e a jogou.
Suas costas bateram na parede, a dor sacudindo seus membros. Antes que ela pudesse reagir, o yokai a cutucou no peito com um dedo. A magia atingiu seu corpo como um relâmpago e todo o ar de seus pulmões desapareceu. Suas mãos voaram para sua garganta enquanto seu peito arfava, mas não importava o quanto ela tentasse inalar, nenhum ar entrava em seus pulmões. O pânico explodiu por ela e ela caiu de costas contra a parede, agarrando inutilmente o pescoço. A tontura varreu sobre ela enquanto seus pulmões gritavam por ar. —Você tinha um trabalho. — o yokai atarracado rosnou. —Tirar a miko da pousada. Você não conseguiu nem mesmo fazer isso. Ele alcançou o ofuda brilhante no rosto do outro yokai, mas ele brilhou intensamente e ele puxou sua mão de volta. —Como você é tão incompetente para deixar uma humana amarrar você? Agora tenho que esperar que o feitiço siga seu curso. Idiota. Quando as faíscas brilharam em sua visão, Emi pressionou as mãos contra o peito. Fechando os olhos com força, ela voltou seu foco para dentro, onde o calor de seu ki esperava. Formando as palavras em sua mente, ela jogou toda a sua vontade no encantamento: Shukusei no tama! Seu ki percorreu seu corpo, purificando a magia yokai. Ela respirou fundo, o ar viciado do corredor enchendo seus pulmões. O yokai girou ao ouvir o som. Ele zombou quando a viu respirar novamente. —Então você quer fazer isso da maneira dolorosa? Quando ele puxou o pé para trás para chutá-la, a voz de Shiro saiu das sombras. —A maneira dolorosa parece certa.
Ele apareceu da escuridão, seus passos vagando silenciosos no chão. Água pingava de seu cabelo e gotas escorriam por seu torso nu. Ele usava apenas seu hakama preto e o onenju vermelho em volta do pulso. O yokai rosnou e ergueu a mão em direção a Shiro. Em um movimento suave, Shiro agarrou o yokai pela frente de seu kosode e o jogou contra a parede. A madeira rangeu com a força do impacto. Shiro levantou a outra mão e o fogo faiscou em sua palma, formando uma esfera dançante de chamas. —Respire isso. — Disse ele, um sorriso selvagem deslizando em seus lábios. Ele tapou a boca do yokai com a mão, empurrando a cabeça para trás na parede. A chama surgiu em torno dos dedos de Shiro e o yokai gritou, o som abafado pela mão de Shiro. O yokai convulsionou em agonia por um longo minuto antes de cair. Shiro puxou a mão para trás e o yokai caiu no chão, seu olhar morto vazio e a fumaça subindo de sua boca carbonizada. Shiro se virou para o outro yokai, seu sósia, ainda preso pelo ofuda de Emi. Olhos vermelhos idênticos se encontraram antes de Shiro agarrar o yokai pelo rosto. Seu ofuda chamejou azul e se transformou em cinzas sob sua mão. Ele girou o yokai e bateu com a cabeça na parede. —Quem...— Ele bateu a cabeça do yokai na parede novamente. —— Disse... — Outra pancada. —Que você... poderia... me... personificar? Ele pontuou cada palavra com o estrondo da cabeça do yokai batendo na parede. Com
o
impacto
final,
o
impostor
soltou
um
gemido
lamentável. Cintilantes e dançantes luzes verde giravam sobre seu corpo, e quando desapareceu, um yokai completamente diferente se encolheu diante de Shiro: orelhas escuras com pelo branco brotando de dentro delas, despenteado, cabelo castanho claro com raízes escuras e uma cauda espessa
que tremia visivelmente. Shiro soltou o rosto do yokai e ele se enrolou em uma bola, choramingando e segurando a cabeça. —Sinto muito, sinto muito. — ele choramingou. —Ele me fez fazer isso. A expressão de Shiro não suavizou. —Você ainda fez isso. —Ele ia roubar meu fôlego! —Você ia roubar minha humana. —Por favor, por favor, não me mate. Shiro se agachou ao lado do yokai. —Você viu o que eu fiz com o yamachichi? O yokai choramingou novamente. —Será uma carícia doce em comparação com o que o Tengu fará com você quando souber disso. —N-não, por favor, não... —Bem...— Shiro se inclinou sobre ele. —Eu te direi uma coisa. Vou pleitear seu caso com o Tengu e pedir a ele que o poupe, se você fizer algo por mim. O yokai espiou Shiro com olhos castanhos aterrorizados. —Você vê aquela miko? — Shiro inclinou a cabeça em direção a Emi, onde ela estava encostada na parede, ainda sem fôlego. —Eu quero que você assuma a forma dela. —E-ela? —Sim. Assuma a forma dela. Então quero que você passeie por toda a estalagem, certificando-se de que todos a vejam. Compreende? O yokai acenou com a cabeça instavelmente. —E então você vai deixar a pousada e ir para as montanhas. —Onde nas montanhas?
—Eu não me importo. Mas eu quero que você tenha certeza de que qualquer yokai que te seguir continue te seguindo. Você entende? A compreensão surgiu no rosto do yokai. —Por quanto tempo? —Dois dias. Então você pode assumir outra forma e escapar. Você é bom em escapar, sim? O yokai assentiu novamente. —Bom. E tanuki? — Shiro se inclinou, seu sorriso mais próximo de um olhar malicioso malévolo. —Se você não fizer exatamente o que eu disse, não serei eu quem vai te encontrar. O Tengu vai. Seus corvos estarão vigiando você, então não dê a ele um motivo para caçá-lo. —S-sim. Vou fazer exatamente como você disse, eu juro. Shiro se levantou. O tanuki levantou-se e limpou as roupas, mais para mascarar seu tremor contínuo do que por preocupação com sua aparência. Ele apertou os olhos para Emi e a concentração apertou seu rosto. Seu corpo brilhou intensamente novamente, e quando a luz verde desapareceu, a sósia perfeita de Emi estava em seu lugar. Ela ficou boquiaberta com o próprio rosto, seus longos cabelos soltos ao redor de seus quadris, seu quimono branco e hakama vermelho imaculado e perfeito. —Isso está bom? — O tanuki perguntou a Shiro em um tom feminino leve e doce. Ele, ela, Sorriu lindamente. —Bom. Vá em frente. O impostor Emi passou por Shiro e desapareceu no corredor sombrio. Emi franziu a testa após o yokai. Ela não balançava os quadris daquele jeito quando andava. Que ridículo. Shiro se virou para ela. —Vamos. Precisamos tirar você de vista para que nenhum de seus caçadores perceba que agora há duas de vocês.
Ele estendeu a mão para ela. Quando a mão dele, a mesma com que ele empunhou as chamas que mataram o outro yokai, veio em sua direção, ela se encolheu, incapaz de se conter. A mão dele vacilou, então se fechou suavemente ao redor de seu cotovelo e a puxou para cima. Ela se levantou com dificuldade, os joelhos ainda fracos, e evitou olhar para o yokai morto no chão, mas não conseguiu bloquear o fedor de carne torrada. Shiro a conduziu de volta ao quarto. Ela tropeçou, desejando que suas pernas recuperassem alguma força, e se encostou na parede. A habilidade da yamachichi de roubar o ar de seus pulmões era mais aterrorizante do que ela queria admitir. Com os olhos fechados, ela viu novamente o sorriso sombrio de Shiro enquanto ele colocava um punhado de fogo na boca do yokai e o incinerava vivo por dentro. Um estremecimento rolou sobre ela. A porta bateu com força. Um momento depois, dedos quentes tocaram seu queixo, levantando seu rosto. Seus olhos se abriram. Shiro virou a cabeça para o lado enquanto olhava para o pescoço dela. — Parece que é apenas uma contusão. Dói respirar? —Não. — Ela sussurrou. Seu olhar subiu para encontrar o dela e brilhou com desafio. —Você tem medo de mim agora? — Ele perguntou suavemente. Ele havia queimado um yokai vivo na frente dela. Um yokai que a atacou... tentou sufocá-la... e a teria matado por uma recompensa. Yamachichi aparecia em muitos contos em que eles invadiam as casas das pessoas e sugavam o fôlego de um humano adormecido, deixando a família da vítima para encontrar o cadáver pela manhã. Um monstro no verdadeiro sentido da palavra. —Não. — Ela respondeu com firmeza. —Eu te disse antes...
—Que sou uma tola por não ter medo de você? — Ela fechou a mão em volta do pulso dele, onde ele ainda segurava seu queixo. —Você me disse uma vez que me mataria se tivesse um bom motivo. Isso ainda é verdade? Sombras deslizaram por seus olhos. —Como você descobriu que o tanuki não era eu? Ela ergueu as sobrancelhas ante sua evasão e soltou seu pulso. Ele tirou a mão do rosto dela, mas não recuou, ainda parado perto. —Ele me chamou de 'pequena miko' como você faz. — disse ela. —Mas estava fazendo errado. Então eu vi que o onenju estava faltando e percebi que não poderia ser você. —Existe uma maneira errada de chamá-la de pequena miko? —Não... é apenas diferente quando você faz isso. —Diferente como? —Eu... eu não sei. — Ela mudou seu peso, com a intenção de deslizar ao longo da parede para sair da frente dele. Ele plantou a mão na parede ao lado dela, bloqueando sua fuga com o braço. Seu braço nu. Antes que ela pudesse se conter, seu olhar caiu para seu torso nu, deslizando de seu peito para seu estômago liso e musculoso e os laços de seu hakama em volta de seus quadris. Ela puxou sua atenção de volta para onde pertencia, seu rosto em chamas. —Eu, eu estou bem agora. — Ela forçou em um sussurro. —Eu tinha assumido isso. Por que ele estava tão perto? Por que ele não a estava deixando se afastar? —Você... você pode se mover agora. Sua cabeça se inclinou para um lado enquanto ele sorria, aquele sorriso malicioso que uma vez a deixou louca e agora inexplicavelmente a aquecia.
—Você quer que eu me mova? — Ele perguntou, um ronronar deslizando por sua voz profunda. Seu rosto empalideceu com a pergunta familiar e um tremor a percorreu. Será que ela queria que ele se movesse? Ele estava tão perto, o calor irradiando dele. Seu sorriso se alargou, mostrando uma sugestão de dentes. Ele se inclinou mais perto, fechando a distância entre seus rostos, e seus pulmões congelaram. A ponta de seu nariz tocou sua bochecha antes de desenhar uma linha suave em sua orelha. Ele se moveu ainda mais perto. —Você quer que eu me mova agora? Seu hálito quente em sua orelha enviou um arrepio por sua espinha e começou a dar cambalhotas lentas e leves em seu meio. Quase um centímetro de espaço separava seus corpos. Ela respirou fundo para acalmar o coração galopante. Ela deveria dizer a ele para se mover. Ela definitivamente deveria. Mas por alguma razão, ela não conseguia se lembrar por que essa era a resposta certa. Os lábios dele de repente roçaram o lóbulo da orelha dela, então deslizaram lentamente pelo lado do pescoço, enviando arrepios por sua pele. O calor invadiu seu centro. Quando ele alcançou o local onde seu pescoço se juntava ao ombro, sua língua sacudiu contra sua pele, provando-a. Ela ofegou silenciosamente, rígida com a tensão e pressionada com força contra a parede. —Que tal agora? — Ele perguntou. Ela não conseguia fazer nenhum som. Ela não sabia o que diria se pudesse falar. Seu sangue correu por ela como chamas. Seus lábios tocaram seu pescoço novamente, deslizando de volta para o ponto macio sob sua mandíbula. Seus dentes a roçaram.
—Shiro! — Ela engasgou com a voz rouca. —Isso não é uma resposta. — Ele murmurou contra sua garganta, novamente deslizando as pontas de seus caninos sobre sua pele. —Eu ...— Ela ofegou, tentando reunir seus pensamentos dispersos. — Por que você é tão persistente em me perguntar isso? —Por quê? — Sua cabeça apareceu e sua capacidade de respirar desapareceu completamente. Seus olhos a queimaram, desmontando-a pedaço por pedaço e reivindicando cada um. Seu sorriso nunca pareceu mais perigoso ou mais atraente. —Então você não pode mentir para si mesma, pequena miko. — Sua voz ronronante a acariciou, desvendando-a. —Então você não pode dizer a si mesma que o yokai do mal se forçou em você. Ele se inclinou mais perto, apoiando a outra mão na parede, prendendoa entre seus braços. Sua boca caiu em direção à dela, mas parou com apenas um sussurro de espaço entre eles, pairando tão perto. —Você está mentindo para si mesma, pequena miko? — Ele sussurrou. —Diga-me para sair. Seu olhar a manteve prisioneira, sugando-a até que ela estivesse se afogando, negando-lhe qualquer fuga. Seus lábios,
tão próximos, a
provocavam. Nenhuma parte dele a tocava, mas seus nervos formigavam com a sensação com antecipação. Ela espalmou as mãos contra a parede, com medo do que elas poderiam fazer se ela as movesse. —Diga as palavras, Emi. — ele respirou. —Diga que você não me quer. Com os olhos arregalados, ela tremia, incapaz de falar, incapaz de pensar. Ele estava dizendo a ela o que dizer, mas ela não conseguia. Ela não queria.
—Shiro. — Ela não tinha certeza do que pretendia dizer, mas o nome dele saiu em um sussurro suplicante e até ela podia ouvir o desejo nele. Essa era toda a resposta de que ele precisava. Sua boca se fechou sobre a dela e ele se empurrou sobre dela, esmagandoa contra a parede. Cada plano rígido e magro de seu corpo pressionado contra ela enquanto ele a beijava com uma fome feroz e inegável. O calor mergulhou por ela, incendiando-a. Seus dedos se fecharam sobre seu queixo novamente, segurando sua boca onde ele queria. Ele deslizou o outro braço em volta das costas dela e puxou-a com força contra ele. Ela engasgou, seus pés mal tocando o chão. Com o peito arfando, ela timidamente escovou os dedos sobre o lado nu dele. Ele prendeu a respiração e ela puxou a mão de volta, incerta. Ele ergueu a cabeça. Liberando sua mandíbula, ele capturou seu pulso e pressionou sua mão firmemente em seu estômago, surpreendendo-a. Ele trouxe seu rosto de volta para o dela, mas desta vez o toque de seus lábios era suave, provocando-a, explorando suavemente em vez de pegar o que ele queria. Seus dedos flexionaram contra ele e ele soltou seu pulso, enredando a mão em seu cabelo na nuca. Timidamente, ela deslizou a mão sobre ele, sobre a sensação maravilhosa de pele quente e músculos rígidos por baixo. Ela levantou a outra mão e encontrou sua pele com a ponta dos dedos. Com seu toque repentino, os músculos sob suas mãos se contraíram. Ela correu as mãos por seu abdômen e sobre o peito, saboreando cada momento de sua pele tocando a dele. Seus lábios se moveram sobre os dela, suavemente encorajando até que ela esqueceu que estava nervosa, esqueceu que não sabia como beijar um homem. Perdida na sensação de seu corpo sob suas mãos, de sua boca na dela, ela o beijou de volta, movendo os lábios como ele movia os dele até que
finalmente abriu os lábios para ele. A língua dele deslizou em sua boca e ela quase ficou mole quando novas sensações dançaram por ela, correndo em linhas de formigamento para a piscina de calor em sua barriga. Ele a segurou contra ele e novamente a empurrou contra a parede. Sua boca travou na dela, lábios e língua se movendo com crescente urgência enquanto sua fome se libertava novamente. Suas mãos deslizaram por seus ombros e seu pescoço em seu cabelo úmido. Ela o puxou com mais força, dizendo que queria mais. Ela o queria. A necessidade ardia em cada centímetro de seu corpo. Ele rosnou contra sua boca. O som, em camadas com desejo e sua própria necessidade, enviou outra onda quente correndo por ela. A porta se abriu com um estalo alto. Shiro interrompeu o beijo e virou a cabeça para a porta, mantendo-a presa contra a parede. O pânico e o constrangimento a invadiram, mas ela não conseguia se mover, não conseguia nem se esconder. Yumei parou na soleira, nojo cintilando em seu rosto. —Saia de cima dela, kitsune. —Você tinha que ter o pior momento. — Queixou-se Shiro. —Eu diria que é um momento excelente. — Yumei entrou no quarto e agarrou o braço de Shiro, puxando-o para longe de Emi. —Você abandonou seu desejo de se livrar dos onenju? —Claro que não. — Resmungou Shiro, cruzando os braços. Com o rosto em chamas, Emi ficou onde estava, desejando que ela pudesse derreter na parede e desaparecer. —Então mantenha suas mãos longe da kamigakari. — Yumei ordenou categoricamente. —Se você comprometer a pureza dela, você irá sabotar sua própria salvação.
Sua pureza. Ela nem mesmo considerou se a intimidade com Shiro ameaçaria sua pureza. Se ela se afastasse muito do makoto no kokoro, o estado de harmonia interna, sua capacidade de receber e canalizar o ki de Amaterasu seria reduzida ou mesmo prejudicada. Sem o poder de Amaterasu, ela não seria capaz de remover o onenju. Ela lançou um olhar alarmado para Shiro, que retribuiu o olhar com uma ruga de preocupação entre as sobrancelhas. Ele também não deve ter pensado nessa consequência potencial. Para proteger sua pureza, Ishida e o outro kannushi a mantiveram separada dos homens, de qualquer tipo de tentação física. No entanto, eles também a restringiram de muitas coisas que ela achava que não estavam diretamente relacionadas à sua pureza. Ela não sabia se a intimidade poderia arruinar seu makoto no kokoro, mas ela não podia arriscar. Sua turbulência interna sobre a verdade sobre seu destino e as aventuras das últimas semanas desmontaram completamente suas rotinas normais de kamigakari, deixando-a longe de um estado de paz e harmonia, mesmo sem distrações adicionais. Libertar Shiro dos onenju era muito importante, e o solstício estava a apenas um mês de distância. Ela tinha que ser o mais pura possível para garantir que seu corpo sobrevivesse à descida de Amaterasu. Sua mão trêmula subiu aos lábios e ela se forçou a desviar o olhar de Shiro. A alegria sem fôlego que ela sentiu momentos antes encolheu dentro dela, substituída por uma dor que atingiu seu coração.
O torii vermelho enviou uma pontada de saudade solitária por Emi. Ao se curvar automaticamente, ela pensou no pequeno e humilde torii no Santuário Shirayuri. Tudo parecia tão simples quando ela passou pela primeira vez sob aquele torii, esperando passar pacificos, embora enfadonhos, dois meses no santuário antes de encontrar seu destino no solstício. Muita coisa mudou desde então. Ela caminhou através do torii, caminhando ao lado de Shiro. Eles não tiveram nenhuma oportunidade de falar em particular desde que Yumei os interrompeu na noite anterior. O Tengu mal havia saído do quarto, embora ela não tivesse certeza se ele a estava supervisionando ou simplesmente não tinha motivo para sair. À frente deles, ele caminhava lado a lado com outro yokai: o Byakko de cabelos prateados e orelhas de tigre. Seus finos kosode e hakama brancos, acentuados com azul claro e toques de prata cintilante, teriam inspirado inveja em um imperador, e um haori fluindo ondulava atrás dele, roçando o solo coberto de neve enquanto ele caminhava. Byakko era seu guia. Quando Yumei o abordou para obter informações sobre um local subterrâneo onde o poder de Izanami dominava a terra, Byakko imediatamente sugeriu este lugar. A coleção de edifícios era muito familiar, uma fonte de lavagem decadente, um pequeno salão de adoração com telhas caindo aos pedaços e um
palco desgastado para cerimônias e danças. Muitos santuários, especialmente os menores, não tinham kannushi em tempo integral para cuidar deles, mas com o ar de abandono que pairava ao redor dos prédios, ela se perguntou se um kannushi mantinha esse santuário. Sua pele formigou de nervosismo, a sensação intensificada pelo calor do poder kami desconhecido vazando da terra sob seus pés. Este era o domínio de Izanami e Emi nunca se sentiu tanto como uma intrusa como agora. Byakko os conduziu pelos edifícios do santuário em um caminho orlado com uma cerca baixa de corda e árvores maduras de bordo de um lado. Por outro lado, elevando-se em direção ao cume da montanha acima, a parede rochosa do penhasco se inclinava sobre a trilha. O musgo se agarrava à rocha irregular, e a tempestade de ontem havia levado a maior parte da neve. A calçada serpenteava ao longo da base do penhasco. Com Shiro ao lado dela, ela seguiu Byakko e Yumei até uma curva acentuada onde a rocha se projetava da parede de pedra. Ao virar da esquina, três grandes aberturas quadradas foram cortadas na face plana do penhasco. Dentro delas, as sombras engoliam toda a luz, não deixando nenhuma indicação de quão longe os túneis iam. Em frente às aberturas, cinco lápides com bases quadradas e marcadores ovais esculpidos formavam uma linha perfeita paralela à calçada. —As cavernas funerárias Tenjikubotan. — Byakko disse em sua voz lenta e profunda. —As cavernas originais existem há tanto tempo quanto a própria montanha. Mil e quinhentos anos atrás, adoradores humanos de Izanami começaram a usá-los para armazenar as cinzas de seus mortos na esperança de receber a bênção de Izanami em sua jornada para Yomi. Para aqueles que acreditavam nisso, Yomi era o quarto reino, o submundo onde os espíritos humanos passavam após a morte. Terra, o reino
onde os humanos viviam, Tsuchi, o reino espiritual dos yokai, e Takamahara, o reino celestial dos kami, completavam o conjunto. Como a Amatsukami da Terra, Izanami às vezes era considerada a kami guardiã de Yomi. —Os humanos acreditam que os espíritos malignos assombram as cavernas. — continuou Byakko. —Eu não vi nenhum sinal de espíritos aqui, malignos ou não, mas os yokai da área evitam este lugar. Alguns dizem que nas profundezas do labirinto interno adormece uma besta terrível que devora qualquer intruso, corpo e alma, sem deixar nenhum ki para reviver de Tsuchi. Outros dizem que, se você vagar muito fundo, você cairá em Yomi, para nunca mais voltar. Suas orelhas giraram e ele voltou seus olhos dourados para Yumei. — Qualquer que seja a verdade dos contos, é sabido que os yokai que se aventuram muito longe nessas cavernas não voltam, nem mesmo da morte. —Isso soa familiar. — Shiro murmurou. —Primeiro aquele vale, agora isso. —Você observou algo incomum nesta área na última década? — Yumei perguntou. —Não pessoalmente. — Byakko respondeu. —No entanto, geralmente fico fora por meses ou mesmo anos. —Se encaixa, no entanto. — disse Emi, estudando o interior escuro da caverna mais próxima. —Um local subterrâneo onde Izanami já é poderosa. É exatamente o que estamos procurando. As orelhas de Byakko balançaram para frente e para trás novamente. — Yumei, devo advertir sinceramente contra entrar nas cavernas. Você pode possuir mais força e magia do que aqueles que o precederam, mas o que poderia valer o risco?
Emi olhou para eles, surpresa de Yumei não ter contado a Byakko porque eles estavam aqui. Ele não confiava em Byakko ou estava apenas sendo cauteloso? —É necessário. — Yumei respondeu, avaliando as cavernas. —A escuridão não representa nenhum problema para mim, mas se for um labirinto como as lendas sugerem, eu preferiria um método secundário para traçar meu caminho. —Se você insiste em ir, posso ajudá-lo. — Byakko disse com óbvia relutância. —Uma âncora é mágica o suficiente para mim. —Sua ajuda é apreciada. — Yumei se virou para Shiro. —Seu fogo pode ser útil. —Não se preocupe, estou indo. — Shiro sorriu. —Eu não vou deixar você se divertir toda. —Eu também vou. — Disse Emi. Todos os três yokai olharam para ela. —Você vai esperar com Byakko. — Yumei disse categoricamente. —Não, estou indo. — Ela cruzou os braços. —Esta é a minha tarefa e não ficarei para trás. —Temos outras preocupações além de proteger você. — ele retrucou. — Izanami não terá deixado seu prêmio desprotegido. Você deseja repetir a mordida do tsuchigumo? Ela se impediu de olhar culpada para Shiro. —Se eu puder intervir. — Byakko disse. —Ela seria um receptáculo mais eficaz para a minha âncora. É improvável que o ki dela flutue se você se envolver em uma batalha. Após uma breve pausa de reflexão, Yumei concordou. Byakko passou por cima da cerca de corda e se ajoelhou atrás das lápides. Ela, Yumei e Shiro
o seguiram. Na terra compactada, ele desenhou um pequeno círculo e traçou um padrão complexo dentro dele. As linhas brilharam suavemente. —Sua mão. — Disse ele para Emi. Ela estendeu a mão e ele pegou seu pulso, virando a palma da mão para ele. Com a ponta do dedo, ele desenhou levemente um círculo com um símbolo semelhante sobre a palma da mão, deixando linhas brilhantes em sua pele. Sua magia vibrou por sua mão e por seu braço. Ele empurrou o polegar no centro da palma da mão dela, e ela vislumbrou uma garra parecida com a de um gato se estendendo antes que ele perfurasse sua pele. Uma gota de sangue brotou em sua palma. Ele virou a mão dela e a gota caiu, caindo no centro do círculo na terra. A luz brilhou e uma linha brilhante saltou do círculo para sua mão, conectando-os. Com os lábios abertos de espanto, ela virou a mão. A linha brilhante estava presa ao círculo em sua palma. Quando ela ergueu o braço, a linha se estendeu, uma fina fita de pura luz. —Vou mantê-lo até o amanhecer. — disse ele. —Se vocês não voltarem até lá, presumo que vocês estarão perdidos. Emi olhou para o céu. O sol estava baixo acima dos picos e logo começaria sua descida final do dia. Ela certamente esperava que eles não ficassem nas cavernas a noite inteira. —Voltaremos o mais rápido possível. — Disse Yumei a Byakko. Ele caminhou em direção à caverna central. Emi correu atrás dele, observando a faixa de luz se esticar a cada passo. Às vezes ela se esquecia de como a magia yokai podia ser estranha e bela. Desviando sua atenção do feitiço âncora, ela seguiu atrás de Yumei, Shiro seguindo atrás dela. A caverna os envolvia, seu teto um pouco baixo demais para o conforto, mesmo para ela. O peso da montanha parecia pressioná-la.
Dentro da caverna, fileiras de lápides de pedra formavam linhas curvas ao longo das paredes de rocha. Na parte de trás da caverna principal, uma entrada em arco levava ao nada negro. Yumei desapareceu dentro dele, sem hesitar na escuridão. Emi o seguiu, e enquanto ela caminhava pelo arco, o símbolo em sua palma e o fio cintilante de magia lançavam um brilho branco suave nas paredes da próxima cavidade de pedra. Várias outras aberturas em arco se ramificavam na nova caverna. Yumei escolheu o mais central, indo em uma linha mais ou menos reta para o fundo da montanha. Emi torceu o nariz quando o ar ficou úmido e bolorento, o cheiro de podridão e mofo obstruindo suas vias respiratórias. Ao passarem por outra caverna, mais lápides marcavam os locais de descanso dos antigos adoradores de Izanami. As cavernas ficaram mais úmidas e o ar mais frio. Ela estava grata pelos passos suaves, mas constantes de Shiro atrás dela enquanto ela seguia Yumei. A escuridão tinha se tornado impenetrável, exceto pelo brilho do feitiço da âncora. Ela olhou para trás, confortada ao ver a linha radiante serpenteando de volta pelas cavernas, flutuando como uma fita leve. —Byakko parece um yokai decente. — disse ela, quebrando o silêncio opressor apesar de sua tentativa de falar suavemente. —Foi legal da parte dele nos ajudar. —'Legal' provavelmente não tem muito a ver com isso. — Shiro murmurou, alongando seu passo para caminhar ao lado dela. —Aposto que ele gosta da ideia do Tengu devendo um favor a ele. —Por que Yumei não disse a ele que estamos procurando Susano? —É apenas mais fácil. E se Byakko não gostar de Susano ou tiver algum outro motivo para se recusar a ajudar um Kunitsukami? —Eu suponho.
—Não confie em um yokai se não for preciso. — acrescentou ele, lançando-lhe um sorriso malicioso. Seus olhos captaram o brilho suave do feitiço e brilharam. —Eu já avisei você antes. —Eu não esqueci. — ela disse, sorrindo brevemente antes que a dor em seu peito voltasse. A memória de beijá-lo invadiu seus pensamentos, mas ela a reprimiu. —Uzume disse que Susano não fala muito. Eu me pergunto como ele é? O conhecimento de Susano de Emi começava e terminava com seu elemento: ele era o Kunitsukami da Tempestade. O que isso significava, exatamente, ela não tinha certeza. —Uma espécie de eremita, ouvi dizer. — respondeu Shiro. —Ele supostamente não se dá bem com os outros Kunitsukami. —Izanami escolheu seus alvos com sabedoria. — Yumei disse à frente deles quando eles entraram em outra caverna. O solo rochoso havia se tornado mais áspero, inclinado para baixo. Os marcadores de sepultura não interrompiam mais as cavernas de pedra natural. —Ela eliminou Inari primeiro. — ele continuou. —Ele conectava os outros
três
Kunitsukami e
manteinha
uma
relação vaga
com os
Amatsukami. Sem ele, as linhas de comunicação foram interrompidas. Se qualquer um dos outros tivesse desaparecido primeiro, ele teria notado. —Ela capturou Susano a seguir. Como um recluso conhecido, era improvável que ele passasse por algum tempo, reduzindo as chances de Sarutahiko ou Uzume suspeitarem. —E então ela foi atrás de Sarutahiko e Uzume. — Emi murmurou. —Ela teve que lidar com eles ao mesmo tempo porque nenhum deles deixaria de notar se algo acontecesse com o outro.
Ela esfregou as mãos para aquecê-las. O ar tinha ficado ainda mais viciado e fétido, fedendo a mofo e bolor e coisas que só cresciam no escuro e úmido. As ásperas paredes de rocha brilhavam com umidade na luz fraca do feitiço âncora. —Há quanto tempo você acha que Izanami está planejando isso? — ela perguntou. —Pelo menos cem anos se foi quando Inari desapareceu. —Provavelmente séculos. — disse Shiro. —Talvez mais. O que quer que ela tenha planejado, não é um empreendimento pequeno. —Ajudaria se soubéssemos o que ela pretende fazer. — Emi murmurou. —Uzume não sabia e duvido que Susano tenha as respostas. Eu gostaria que Amaterasu tivesse me contado. O silêncio caiu sobre eles novamente enquanto as cavernas ficavam menores e mais estreitas, girando e girando até que Yumei teve que parar nos cruzamentos, considerando-os cuidadosamente antes de escolher uma direção. Ela se pegava verificando cada vez mais se a fita de luz conectada à sua mão, a única esperança de encontrar o caminho para fora, ainda estava perdida de vista. Eles entraram em outra caverna com paredes de rocha recortadas e um piso fortemente inclinado. O ar viciado fedia e o fedor a mofo e viscoso revestiu seu nariz. Ela automaticamente levantou a mão para cobrir a boca, fazendo com que a fita tremulasse. Sua luz ondulou sobre as paredes da caverna, iluminando formas longas, estreitas e sinuosas. Ela tropeçou e parou. —O que é isso? —Raízes? Vines?
— Shiro
encolheu
os
ombros. —Uma
planta
subterrânea estranha? —Continuem se movendo. — Disse Yumei por cima do ombro. Ele já estava no meio da caverna, pouco mais do que uma sombra na escuridão.
Ela forçou seus pés em movimento novamente, examinando a massa de raízes emaranhadas. Ou eram vinhas? Ela não sabia dizer. As raízes pareciam improváveis; como uma árvore poderia lançar raízes tão longe através da rocha sólida? Mas ela não conhecia nenhuma videira que pudesse crescer sem luz solar. Enquanto ela caminhava, a passagem estreitou para alguns metros de largura, trazendo as formas semelhantes a cobras para mais perto de sua luz. Ela semicerrou os olhos para eles. Suaves e resistentes, pareciam raízes. Saliências pequenas e cônicas que se assemelhavam a cracas formaram aglomerados nas plantas mais grossas. Ela diminuiu novamente, segurando a mão mais perto para lançar mais luz sobre as coisas estranhas. A luz mais próxima pareceu estremecer. Um buraco como uma pequena boca se abriu no pico e uma lufada de ar descolorido jorrou dele. O fedor fétido e mofado atingiu seu nariz e ela engasgou. —Ugh. — ela engasgou. —Isso era algum tipo de esporo de fungo? —Seja o que for, é nojento. — Shiro disse, empurrando-a para frente. — O cheiro está fazendo minha cabeça doer. Ela correu para alcançar Yumei, que estava em outro cruzamento, estudando as três passagens. Ela parou ao lado dele e apertou os olhos para cada um. —Todas elas parecem iguais. Como sabemos que caminho seguir? — Quando ele não respondeu, ela se virou para ele com uma carranca preocupada. —Yumei? Ele olhava para frente, seu rosto nas sombras. Uma exalação lenta, quase sem som escapou dele, e ele caiu para o lado, caindo em Emi. Ela engasgou, pegando seus ombros. Shiro agarrou seus braços e puxouo de cima dela quando ela se dobrou sob seu peso.
—Yumei! — Shiro baixou o Tengu até o chão rochoso. —O que há de errado? Yumei caiu molemente, olhos fechados. Shiro o sacudiu com força, então puxou uma de suas pálpebras. Sua pupila estava enrolada no meio do caminho para trás em sua cabeça, cega e vazia. —Ele desmaiou. — resmungou Shiro. —O que aconteceu? O pânico tomou conta dos pensamentos de Emi. O Tengu era o mais forte entre eles, mais forte do que a maioria dos yokai. Ele deveria ser quase infalível. Mesmo depois de Jorogumo ter feito buracos nele, ele caminhou, correu, na verdade, para longe do campo de batalha sem vacilar. O que poderia tê-lo deixado inconsciente sem aviso? —Não podemos deixá-lo aqui. — Shiro pressionou a mão na cabeça, rosnando baixinho. —Não consigo pensar. Este fedor está me deixando louco. Ela enrijeceu com uma suspeita repentina. A poucos metros de distância, outro aglomerado de fungos cuspiu nuvens nojentas no ar. As formas retorcidas de videiras cobriam as paredes da caverna. Ela agarrou o braço de Shiro. —Leve-o! Precisamos sair daqui. Ele apertou os olhos vagamente. —O que? —Faça como eu digo! Você pode carregar Yumei? Leve! Percebendo sua urgência, ele se virou e puxou os braços de Yumei sobre seus ombros, puxando o Tengu em suas costas. Ele se levantou rapidamente, e cambaleou. Cambaleando, ele se conteve, o alarme piscando em seu rosto. —Prenda a respiração, Shiro! — Ela saiu do caminho dele. —Você primeiro. Vá! Ele se lançou em uma corrida rápida de volta pela caverna. Ela correu atrás dele, rezando para que não fosse tarde demais. Os bulbos cuspiram mais nuvens de esporos enquanto corriam para fora da caverna e para a anterior,
seguindo a faixa brilhante de luz. Shiro tropeçava mais do que deveria, mas se controlava a cada vez sem diminuir seu ritmo determinado. Quando eles alcançaram uma caverna mais ampla, as paredes misericordiosamente livres de qualquer trepadeira ou bulbos, ela diminuiu a velocidade. Shiro cambaleou de uma corrida para uma caminhada pesada, respirando com dificuldade. Ele ajustou seu aperto em Yumei e lançou olhos opacos para ela. —Você está bem? — Ela perguntou a ele rapidamente. —Não particularmente. — disse ele. —Mais um minuto naquela caverna e eu também teria desmaiado. —Eu deveria ter percebido antes. — Ela esfregou a mão no rosto. — Esporos venenosos. Izanami não precisa de guarda para Susano se o ar nas cavernas for muito tóxico para entrar. —Pelo menos você descobriu. Sem você, eu ainda estaria lá me perguntando por que Yumei desmaiou. Ela sorriu fracamente. —Vamos tirá-lo daqui e ver se ele acorda. Eles marcharam de volta através do labirinto infinito de cavernas, seguindo a linha brilhante do feitiço da âncora. Quando ela viu o primeiro vislumbre de luz à frente, seu coração saltou e ela apressou os passos. Byakko os encontrou na caverna mais externa e seu rosto se contraiu quando viu Shiro carregando Yumei nas costas. O tigre yokai ajudou a carregar Yumei para fora da caverna, onde a última luz do sol poente brilhava atrás dos cumes ocidentais. Shiro e Byakko encostaram Yumei na parede rochosa a cerca de três metros da primeira caverna. —O que aconteceu? — Byakko exigiu enquanto Shiro erguia uma das pálpebras de Yumei novamente, verificando se havia algum sinal de retorno da consciência.
Emi contou a ele sobre as plantas estranhas e os bulbos que cospem esporos. —Sem dúvida, foi um veneno virulento para afetar tanto o Tengu. — Byakko disse solenemente, estudando Yumei. —Yokai não são suscetíveis ao ambiente natural como os humanos, e ainda menos do que a maioria. Shiro esfregou a mão no cabelo, achatando uma orelha. Seu rosto estava pálido e seus olhos ainda turvos. —Não entendo por que isso o derrubou antes de mim. Ele é mais forte. —A menos que essa seja a própria natureza do veneno. — Byakko murmurou pensativamente. —Um veneno mundano afetaria os humanos com mais força, seguido por yokai fracos e, finalmente, yokai poderosos. No entanto, vejo o oposto. — Ele olhou para os três. —O mais forte caiu primeiro, o mais fraco luta para resistir, mas a mais fraca de vocês está ilesa. Emi acenou com a cabeça em compreensão. —Portanto, não deve ser um veneno mundano. Talvez Izanami tenha criado esse fungo para atacar poderosos yokai. Ela não se importaria tanto com um yokai fraco entrando nas cavernas, mas definitivamente quer manter fora os poderosos que têm uma chance de resgatar... —Ela fechou a boca, engolindo o resto da frase. A cabeça de Byakko girou em sua direção. —Resgatar quem? Ela considerou brevemente como responder, então jogou a cautela ao vento. —Susano. —O prêmio de Izanami. — ele sussurrou, repetindo a palavra anterior de Yumei. —Se este veneno reage mais fortemente em relação à força do ki de um yokai, seria perigosamente tóxico para um Kunitsukami. Shiro caiu contra a parede de rocha ao lado de Yumei, dando um longo suspiro. —Bem, a menos que você tenha uma ideia brilhante, ele vai ficar onde está. Duvido que Izanami parasse com um único obstáculo entre Susano e um
salvador. Qualquer yokai fraco o suficiente para atravessar os esporos sem desmaiar, supondo que isso seja possível, não será forte o suficiente para libertar Susano de qualquer outra coisa que Izanami tenha à espreita lá embaixo. Emi olhou de Yumei, ainda inconsciente e sem sinais de acordar, para Shiro, que tinha fechado os olhos, cansado. Ficando de pé, ela caminhou de volta para as cavernas e parou ao lado do círculo de Byakko, ainda brilhando no chão. Seu estômago se agitou com terror crescente enquanto ela olhava para a escuridão. Depois de alguns minutos, Byakko veio ficar ao lado dela. Os raios finais do sol desapareceram atrás das montanhas, encharcando a terra de sombras. —O veneno não me afetou. — Ela sussurrou no silêncio. —Talvez tivesse dado mais tempo. — Byakko respondeu, igualmente quieto. —Eu poderia durar muito mais tempo do que Shiro e Yumei. — Ela olhou para a escuridão. —Talvez o suficiente. —Um sentimento corajoso, mas sozinha, o que uma humana pode fazer? —Eu sou mais do que uma humana. Ele se virou para ela. —Pensei ter sentido o cheiro de kami em você. —Eu sou a kamigakari de Amaterasu. Ela me deu essa tarefa, salvar os Kunitsukami e impedir Izanami. —Eu percebo agora. — Ele a considerou. —Você acha que pode alcançar Susano sozinha? —Eu não sei. Posso tentar, no entanto. Mesmo se eu puder ir longe o suficiente para ver o que mais o protege, podemos fazer um plano adequado e tentar novamente.
—Os esporos ainda podem envenenar você. Você precisará se mover rapidamente. Ela apertou as mãos para esconder o tremor. Byakko ergueu uma das longas amarras do obi azul em volta da cintura e a rasgou com um puxão rápido. Ele entregou a tira de seda para ela. —Amarre isso em volta do rosto para diminuir os esporos. — Ele olhou para o céu escuro. —Dos quatro Amatsukami, sempre achei a Amaterasu a menos intragável. Compartilhamos uma afinidade com o mesmo elemento. Ele deslizou a mão por baixo de seu haori e retirou uma katana com um cabo azul trançado e uma bainha branca. —Leve isso com você. O nome dela é Kogarashi, e se você também compartilha nossa afinidade com o vento, ela será útil para você. Ela deu um passo para trás, levantando as mãos em protesto. —Eu não poderia, e se eu a perder ou... —Eu posso chamá-la de volta para mim, caso você falhe em devolvê-la você mesma. Leve-a. Ela pegou a arma, segurando a bainha lisa. Kogarashi, um nome que significa vento frio de inverno, era surpreendentemente leve em suas mãos. — Obrigada. —Use-a bem. Eu vou segurar a âncora enquanto puder. Ela endireitou a coluna, esperando que ele não pudesse dizer que seus joelhos já estavam fracos. —Você pode distrair Shiro? Se ele me ver entrando, vai tentar me impedir. Byakko inclinou a cabeça e se virou. Uma vez que ele começou a conversar com Shiro, posicionando seu corpo para escondê-la de vista, ela respirou fundo, saboreando a doce e fria brisa em seus pulmões.
Então, com as mãos trêmulas e o queixo erguido, ela caminhou sozinha para as entranhas escuras da montanha.
Ela nunca conheceu tal escuridão completa. Sua respiração ecoava alto em seus ouvidos, o som amplificado pela tira de seda amarrada firmemente em seu rosto. A única luz vinha da fita brilhante que a seguia pelas cavernas. Há quanto tempo ela estava vagando na escuridão, ela não sabia. Sua garganta estava seca e seu corpo doía de cansaço. Ela havia passado pela caverna estreita onde Yumei havia caído há muito tempo, embora ela tivesse que voltar várias vezes para encontrá-la. As cavernas tinham ficado mais ásperas, diminuindo até que ela teve que se abaixar em alguns lugares. Elas desciam quase constantemente agora, levando-a mais e mais fundo na montanha. As videiras rastejaram sobre a rocha, os bulbos de fungo lançando seus esporos venenosos quando ela passava. Onde as cavernas se ramificavam, ela escolheu seu caminho seguindo o fungo. Se a pedra nua se estendesse por muito tempo, ela se virava e tentava novamente até encontrar um caminho com trepadeiras se entrelaçando na rocha. Ela tinha poucas dúvidas de que havia localizado o caminho correto sob a montanha. Não havia mais galhos ou bifurcações, apenas um túnel tortuoso que conduzia cada vez mais fundo. De onde estava pendurado em seu quadril, Kogarashi batia em sua perna a cada passo. A espada era um conforto, mesmo que ela não tivesse ideia de como manejá-la. Aponte a ponta afiada para o inimigo, ela supôs. Isso era o
melhor que ela pôde fazer. Ela engoliu em seco, a garganta seca arranhando dolorosamente. A escuridão absoluta pressionou sobre ela. Cada pequeno som, sua bota raspando na pedra, sua respiração acelerada, o barulho de uma pedra perturbada por sua passagem, ecoava nela continuamente. Ela olhou mais uma vez para o fio de luz prateada se estendendo atrás dela. Não tinha escurecido, não é? Ela tinha ido longe demais? E se a linha se rompesse? Ela nunca iria encontrar o caminho de volta, nem mesmo se tivesse semanas para pesquisar. O pânico se agitou em seu peito. Ela o enfiou novamente, controlando seu medo pelo que parecia ser a centésima vez. Seu coração bateu rapidamente, ignorando seu monólogo interno de ‘fique calma, não entre em pânico, fique calma.’ Enquanto ela passava por uma seção estreita do túnel, um aglomerado de fungos próximos expeliu uma nuvem de esporos em seu rosto. Ela bufou pelo nariz, soprando os esporos para longe. A dor em seus músculos pelo esforço ou o veneno estava começando a afetá-la? A leveza em sua cabeça levaria inevitavelmente à inconsciência ou seria apenas o pânico persistente que ela não conseguia evitar? Passando rapidamente pela nuvem de esporos, ela seguiu em frente com passos firmes. Yumei já tinha acordado? E se ele não acordasse, envenenado permanentemente? Ela disse a si mesma que ele não morreria. Izanami provavelmente tinha usado os mesmos esporos venenosos em Susano, e seu plano não incluía matar os Kunitsukami. Se algum deles morresse, eles eventualmente reviveriam e viriam atrás dela. Seus pensamentos se voltaram para Shiro enquanto ela caminhava pela escuridão sem fim, suas pernas queimando com a tensão do solo irregular. Ele ficaria tão furioso com ela. Ela sorriu ao pensar em sua raiva. Ela gostaria de
ouvir gritos, porque isso significaria que ela voltou em segurança. E também significaria que ela o assustou. Ele só ficava com raiva dela quando ela o assustava com sua mortalidade frágil. Ela seguiu em frente. Por mais que ela tentasse ocupar sua mente, eventualmente, ela não conseguia encontrar a voz de seus pensamentos em sua cabeça. Tudo que ela podia ouvir era o raspar de suas botas na rocha e o som de sua respiração ecoando de volta para ela. O pânico latente cresceu e sua pulsação acelerada latejava em seus ouvidos. O estreito túnel alargou-se gradualmente. Seus passos diminuíram à medida que as paredes de cada lado se afastavam mais dela até serem engolidas pela escuridão. Ela parou, ficando em um isolamento assustador em um pequeno círculo de luz fraca. O ar estava totalmente parado e repugnantemente viciado. O fedor de fungo era insuportável e os esporos formavam uma nuvem amarela nauseante que era mais espessa aqui do que ela tinha visto em qualquer outro lugar. Tentando molhar a boca ressecada, ela engoliu em seco e avançou com passos cautelosos, com a mão no punho de Kogarashi. Ela se sentia como se estivesse caminhando pelo esquecimento vazio do espaço, uma única estrela com um brilho fraco em meio ao vasto nada. Por fim, a parede oposta da caverna tomou forma em sua luz fraca. Ela hesitou, procurando na rocha por algum sinal de onde deveria ir em seguida, mas não viu aberturas ou túneis. Em vez disso, ela encontrou uma forma escura e protuberante nas sombras profundas a alguns metros de distância, uma forma que definitivamente não era feita de pedra. Com uma forte inalação de ar rançoso, ela se aproximou,
pronta
para
desembainhar sua
espada. Quando ela se aproximou, o brilho fraco do feitiço âncora iluminou a forma o suficiente para ela reconhecê-lo.
Uma pessoa. Ele estava sentado contra a parede da caverna, encostado quase casualmente nela. Poderia ter parecido como se ele tivesse acabado de parar para descansar se não fosse pelas videiras grossas que o envolviam. Elas se enrolavam em seus braços, tronco e pernas, e se espalhavam pela pedra próxima, prendendo-o ao coração da montanha. —Susano. — Ela sussurrou. Entre a escuridão e as vinhas, ela não podia ver muito dele. De corpo esguio, ele não era um homem grande. Seu cabelo despenteado estava pálido na escuridão, com uma única mecha escura caindo em sua testa entre as mechas mais claras. Ela se agachou na frente dele, inclinando a cabeça para ver seu rosto. Seus olhos estavam fechados, seu rosto bonito e jovem, quase infantil na luz fraca. Havia marcas em suas bochechas que ela não conseguia distinguir, e suas orelhas eram pontudas como as de Yumei. Depois de uma rápida e cautelosa olhada ao redor, ela o examinou. Além das vinhas que o prendiam e da nuvem tóxica de esporos, nada mais parecia protegê-lo. Shiro deve ter se enganado sobre Izanami estabelecer uma proteção adicional. Com
um
suspiro
de
alívio,
ela
desembainhou
Kogarashi
cuidadosamente. A espada zumbia suavemente em sua mão como se perguntasse o que ela precisava. Segurando o cabo com uma das mãos, ela fechou a outra ao redor da videira mais espessa do peito de Susano para que pudesse levantá-la e deslizar a lâmina por baixo. No momento em que ela tocou a videira, ela percebeu seu erro. Cada bulbo de fungo à vista ejetou seus esporos em uma explosão violenta. A videira sob sua mão se contorceu como uma cobra. Ela se afastou de Susano e se chocou contra ela, jogando-a para trás.
Ela caiu com força de costas, mal impedindo a cabeça de bater na rocha. Lutando para se sentar, ela engasgou com um grito enquanto uma centena de vinhas se contorciam em sua direção. Elas enrolaram rapidamente em torno de seus tornozelos e deslizaram por suas pernas. Empurrando para longe, ela cortou com Kogarashi. A lâmina de prata cortou as vinhas como se fossem nada mais do que papel. Levantando-se cambaleando, ela acenou com a espada novamente, cortando as videiras enquanto elas avançavam em direção a seu rosto. Mais rastejaram
sobre
seus
pés
e
começaram
a
subir
suas
pernas
novamente. Balançando precariamente, ela puxou um pé livre. Uma videira agarrou seu braço com a espada, enlaçando seu pulso. Ela perdeu o equilíbrio e caiu, a espada batendo ruidosamente contra a rocha enquanto ela lutava para segurá-la. As plantas serpenteantes deslizaram sobre ela e uma imagem de pânico surgiu em sua mente: seu corpo coberto de trepadeiras assim como Susano, presa para sempre neste buraco escuro e fedorento sob a terra. Um grito rouco saiu de sua garganta enquanto ela se torcia violentamente, lutando para se libertar. As vinhas resistentes se esticaram e se retorceram com ela, enrolando-se cada vez mais. —Shukusei no tama! — Ela gritou o encantamento de purificação. — Shukusei no tama! A luz brilhou, quase a cegando. As vinhas murcharam e pararam de se mover, mas não se quebraram ou se dissolveram. Elas a seguraram com força, tão fortes na morte quanto foram em vida. Dezenas mais rastejaram sobre ela, girando sobre seus predecessores purificados. —Shukusei no tama! Shukusei no tama!
Novamente as vinhas morreram, mas mais continuaram chegando. Ela estava sendo enterrada sob elas, mal conseguindo respirar. Ela sacudiu os pulsos e a lâmina de Kogarashi se contraiu. Uma leve brisa sussurrou em seu rosto. Ela apertou mais a espada. Kogarashi era uma lâmina de vento e Emi, por qualquer fenômeno estranho, certa vez chamou o vento em seu auxílio. Cerrando os dentes, ela se concentrou na pequena brisa que sentiu, enchendo sua mente com ela. As vinhas deslizaram sobre ela, rastejando em seu rosto e cutucando o pano que cobria seu nariz e boca. Ela fechou os olhos com força e concentrou seus pensamentos na brisa, no vento, procurando por ele, chamando-o. Kogarashi brilhou intensamente e cantarolou silenciosamente em sua mão. A brisa sussurrou através dela novamente. Os olhos de Emi se abriram e ela jogou seu apelo sem palavras ao vento. O ar na caverna aumentou. Um vendaval estridente chicoteou ao redor dela, formando um ciclone selvagem. Rasgou as vinhas, arrancando-as da rocha. Quando seus pontos de ancoragem foram liberados, a pressão sobre Emi diminuiu. Ela levantou seu corpo do chão, quebrando os tentáculos restantes. Enquanto o ciclone uivava ao seu redor, destruindo as novas vinhas que surgiam em sua direção, ela arrancou os restos de seu corpo e se lançou em direção a Susano.
Metade das videiras que o cobriam se ergueram como cobras, preparando-se para atacar. Ela balançou Kogarashi, cortando aquelas que a alcançavam. Ela agarrou uma das vinhas mais grossas que o prendiam. —Shukusei no tama! Com um lampejo de luz, as vinhas que o cobriam morreram. Quando o vento destruiu as plantas atacantes, ela começou a cortar a rede de fungos mortos o mais rápido que pôde. Uma vez que ele estava livre, ela vacilou, percebendo que tinha que de alguma forma carregar um homem adulto de volta pelas cavernas. Ela embainhou Kogarashi, rezando para que o vento não cessasse. Ele continuou a rasgar a caverna e a espada zumbiu, ainda trabalhando sua magia. Ou estava canalizando a nova capacidade de Emi de comandar o vento? Ela não sabia e não tinha tempo para se preocupar com isso. Agarrando os braços de Susano, ela os puxou sobre os ombros como Shiro havia feito com Yumei. Ao colocar o Kunitsukami nas costas, ela novamente pediu ajuda ao vento. Ele surgiu atrás dela, diminuindo o peso de Susano e ajudando-a a se levantar. Ela cambaleou para frente, meio carregando, meio arrastando-o. Os músculos das costas gritaram em protesto. Não era o suficiente. Ela precisava de mais. O ciclone na caverna diminuiu, perdendo velocidade e se aproximando dela. Ao mesmo tempo, o vento soprou atrás dela novamente, quase a levantando enquanto a empurrava para frente. Uma onda de videiras se contorcendo rompeu o ciclone enfraquecido e disparou em sua direção. Ela cambaleou em uma corrida cambaleante, seguindo a linha cintilante da âncora de Byakko.
Com o vento nas costas, ela correu. Em cada corredor rochoso, as vinhas se contorciam furiosamente e a alcançavam. As rajadas em espiral os repeliam, mas cada vez que precisavam derrubar as vinhas, o vento que a sustentava enfraquecia e o peso de Susano a fez cair de joelhos. Ela ficou de pé novamente e correu, o vento a arrastando. Túnel após túnel. O vento uivante e as videiras serpenteantes. Seu corpo se encheu de dor, tanto que ela não conseguia nem dizer o que doía. Ela respirou fundo, a cabeça girando com o esforço. Por um tempo incontável, suas pernas cederam. Seus joelhos bateram na rocha, a dor a sacudindo. Ela caiu, raspando os cotovelos no chão de pedra. Ofegante, ela se ajoelhou e segurou os braços de Susano. O que ela não daria por força yokai agora. O vento girou ao redor dela como se a encorajasse e Kogarashi cantarolou sua música silenciosa. Ela cambaleou e caiu imediatamente. Mordendo o interior da bochecha até sentir o gosto de sangue, ela se levantou. Desta vez, ela deu dois passos antes de cair. Ela caiu no chão de quatro e Susano escorregou de suas costas, caindo ao lado dela. Ela ofegou por ar, tentando diminuir a rotação em sua cabeça. Ela precisava se levantar. Ela precisava continuar. Seus pensamentos estavam tão confusos. Era tão difícil pensar. Sua cabeça se ergueu. Eu não consigo pensar. Shiro havia dito isso quando o veneno começou a afetá-lo. Não, ela não poderia sucumbir. Agora não. Não quando ela estava tão perto. O pânico tomou conta dela, agravando sua tontura. Ela se apoiou nas mãos e nos joelhos. Seus músculos tremiam de fraqueza. O veneno devia estar afetando-a, mas por quê? Por que agora? O vento soprava ao redor dela como
se perguntasse o que fazer. Será que o uso do vento, de qualquer magia que lhe permitiu comandá-lo, a tornou suscetível aos esporos? —Não. — Ela gemeu, alcançando Susano. Muito fraca para movê-lo, ela não conseguia nem mesmo virá-lo. Lágrimas desesperadas se acumularam em seus olhos. O vento girou em outro círculo, mas não era tão rápido ou forte. Isso iria falhar em breve, junto com seu corpo, e ela e Susano ficariam presos aqui para sempre. Com membros estremecendo, ela cambaleou e puxou Kogarashi. Ela tinha que protegê-los das vinhas. Baixando a ponta, ela cravou na rocha. Ela pretendia apenas arranhar uma linha, mas a lâmina brilhou e afundou alguns centímetros na rocha como se fosse terra macia. Muito frenética para se surpreender, ela arrastou a espada em um círculo ao redor de Susano. Ela completou o círculo e caiu de joelhos, incapaz de ficar de pé por mais tempo. O veneno se arrastava em seus membros, chamando-a para a escuridão. Largando a espada ao lado de Susano, ela puxou seu ofuda. Eles caíram de suas mãos trêmulas e ela choramingou enquanto se esforçava para pegar o certo. O vento perdeu velocidade ao seu redor. Vinhas rastejaram para fora da escuridão, alcançando o círculo. Agarrando o ofuda de que precisava, ela deu um tapa na linha entalhada na rocha. —Sekisho sem seishi. — Ela engasgou. A luz cintilou sobre o ofuda e uma cúpula cintilante surgiu, envolvendo ela e Susano. O vento diminuiu para uma brisa fraca que redemoinhava fracamente, agitando os esporos flutuantes presos dentro da barreira. Ela caiu no chão ao lado de Susano, com o corpo todo trêmulo. Enquanto as trepadeiras subiam pelas laterais de sua barreira, ela lutava para ficar
acordada. Cada pensamento, cada momento de consciência, era um esforço de vontade. Um dos ofuda que ela deixou cair estava a alguns centímetros de seu rosto. Ela avançou uma mão ao longo da rocha até que seus dedos tocaram a borda do papel. —Shukusei no tama. — Ela sussurrou. Os esporos dentro da barreira purificados em uma centelha de luz. Ela inalou o ar viciado mas limpo e suspirou. Então, sem mais nada a que se agarrar, rodeada de escuridão e terror, ela caiu no esquecimento.
O medo a perseguiu através do nada. Suas pálpebras se contraíram, a consciência retornando lentamente enquanto o pânico martelava nela. Sua cabeça girava como se a rocha dura sob ela fosse um oceano agitado. Seu corpo doía todo, com uma dor aguda e cortante que queimava seus joelhos e cotovelos e uma dor terrível latejando profundamente nos músculos das costas. Com um suspiro estremecido, ela forçou os olhos a abrirem. O brilho suave de seu feitiço de barreira iluminava o interior do círculo. Além dele, um tapete sólido de videiras cobria a cúpula, tão espesso que ela não conseguia ver além delas. Seu ofuda tinha escurecido, deixando apenas um pequeno pedaço de papel brilhante no centro. Tremores percorreram seus membros. Ela falhou. Ela havia libertado Susano apenas para desabar na metade do caminho para trás, ainda muito longe para que alguém pudesse alcançá-los. Ela falhou com todos, Shiro, Yumei, Uzume, Amaterasu. Por que ela pensou que poderia fazer isso?
Com desespero crescente, ela olhou para Susano, deitado de lado ao lado dela, e a luz fraca iluminou as esferas de safira líquida. Seus olhos estavam abertos e olhando para ela. —Susano! — Ela engasgou com a voz rouca. A miséria desolada surgiu por ela como um alcatrão preto sufocante, arrastando em seus pulmões, e uma lágrima escorregou por sua bochecha. —Sinto muito. — ela engasgou. —Eu não consegui tirar você. Eu sinto muito. —Quão longe? — Sua voz era ainda mais áspera que a dela. —Eu não sei. — Ela olhou para o fio da âncora cintilante estendendo-se de sua palma, depois para a barreira ofuda com um minúsculo ponto de papel não queimado no centro. —Eu sinto muito. Com doloroso esforço, ele se levantou para se sentar ao lado dela. Os tremores em seus membros refletiam sua fraqueza trêmula. Seus olhos, entretanto... suas íris safira agitavam-se como nuvens de tempestade. —Você está pronta para morrer? —Não. — Ela sussurrou. —Então levante-se e pegue sua espada. — Ele esticou o braço para cima e pressionou a palma da mão contra o topo da barreira, com o dedo bem aberto. —Até que você esteja morta, a batalha não acabou. Ele estava certo. Enquanto ela estivesse respirando, ela não poderia desistir. Enquanto seu ofuda chamejava com o resto de sua magia, ela se levantou e recuperou Kogarashi, apertando o cabo com dedos trêmulos. Com uma piscada final, a barreira se dissolveu. As videiras ganharam vida e, no mesmo instante, Susano soltou um suave encantamento. Uma luz azul-petróleo crepitante e elétrica explodiu de sua mão levantada e atingiu as vinhas. Um fedor de fumaça pairava no ar e na esteira da luz, as videiras escureceram e morreram.
Emi ergueu Kogarashi. A espada zumbiu suavemente e o vento girou, depois soprou, rasgando as trepadeiras que Susano havia matado. Subindo, ela o alcançou. Ele enganchou um braço em volta dos ombros dela para se levantar. Ela colocou o braço em volta das costas dele, Kogarashi na outra mão, e juntos eles cambalearam para fora do círculo, seguindo a linha brilhante do feitiço âncora. Eles caminharam por intermináveis cavernas. Susano lutava a cada passo, seu corpo terrivelmente enfraquecido por anos de veneno e abandono. As vinhas os atacavam incessantemente, mas entre seu vento e sua magia, eles forçaram seu caminho. Muitas vezes, ela tropeçou e caiu, puxando Susano com ela. Muitas vezes, suas pernas se dobraram e os dois atingiram o solo rochoso. Cada vez, eles se levantaram novamente. Finalmente, ela percebeu que não havia mais videiras. As paredes da caverna estavam limpas. Susano não estava mais caindo. Ele caminhava com firmeza e agora era o braço dele em volta da cintura dela, puxando-a para frente. Ele puxou o braço dela sobre os ombros, segurando seu pulso e sustentando seu peso enquanto ela cambaleava ao lado dele, ofegando por ar. Em algum momento, ele tirou Kogarashi de sua mão trêmula e devolveu a espada à bainha em seu quadril. Quando o mais tênue raio de luz na escuridão sem fim os alcançou, ela pensou que devia estar alucinando. Os passos de Susano diminuíram e o braço dele apertou sua cintura. —Vamos voltar para o sol. — Ele sussurrou. O ar estremeceu ao redor deles e o ki pesou no ar como o silêncio de uma tempestade prestes a desencadear sua fúria. Sua conexão com o vento desapareceu, reivindicada por Susano. Ele girou ao redor deles, reunindo-se,
crescendo. Suas pernas dobraram em um agachamento quando o poder se formou ao redor deles. Em uma explosão de força, ele se lançou para frente. O vento os pegou e eles explodiram através da caverna, voando e voando nas rajadas turbulentas. As cavernas passaram, a luz crescendo até que de repente o teto escuro de rocha se foi e a luz do sol atingiu seus olhos. Eles meio pousaram, meio se espatifaram na terra. Emi desmaiou, protegendo o rosto com os braços. Ela arrancou a seda de sua boca e respirou fundo doce e limpo. Passos soaram em direção a eles e uma confusão de vozes assaltou seus ouvidos depois de tanto tempo no estranho eco das cavernas. Mas havia apenas uma voz que ela queria ouvir. —Emi. A voz de Shiro quase se perdeu sob os tons profundos de Byakko. Ele não gritou o nome dela, em vez disso apenas sussurrou, mas ela ouviu muito no som silencioso. Braços fortes a levantaram do chão. Ela teve um breve e meio cego vislumbre de seus olhos de rubi antes que ele a esmagasse contra seu peito, segurando-a com tanta força que ela quase não conseguia respirar. Ele se afastou dos outros, os braços em volta dela. —Você é uma idiota. — ele sibilou. —Uma completa idiota. Uma risada fraca e trêmula estremeceu por ela enquanto pressionava o rosto contra ele, as lágrimas escorrendo por suas bochechas. —Eu sou uma idiota. — Ela concordou com voz áspera. Apertando os olhos com os olhos turvos, ela virou a cabeça para olhar para o céu. O sol aparecia por trás de nuvens pesadas acima dos picos do leste. Seu significado tardiamente ocorreu a ela.
—É, é de manhã? — Ela engasgou. —Eu estive lá a noite toda? Ele não respondeu, pois a resposta era óbvia. Seus braços se afrouxaram e, segurando seus ombros, ele deu um passo para trás para olhá-la da cabeça aos pés, observando seu hakama rasgado e joelhos ensanguentados, seus cotovelos arranhados e rosto coberto de lágrimas. Seu nariz enrugou. —Você fede. Antes que ela pudesse responder, ele a soltou e se virou para Susano, que se recompôs e se levantou. Como ela notou nas cavernas, sua constituição era esguia. Ele era vários centímetros mais baixo que Yumei e meio pé mais baixo que o alto Byakko. O sol brilhava em seu cabelo, agora revelado ser um azul pálido de aço que não era branco, mas também não estava longe. A faixa escura que caía em sua testa com sua franja desgrenhada era de um preto-azulado profundo. Suas roupas imponentes estavam cobertas de fuligem que escurecia os ricos azuis e verdes em tons de cinza. Ele parecia totalmente humano, exceto pelas orelhas pontudas. Assim que ele se levantou, Yumei e Byakko se afastaram dele, abrindo uma distância respeitosa. Então, em uníssono quase perfeito, os dois yokai se ajoelharam, colocaram as palmas das mãos no chão e se curvaram para frente até que suas testas quase tocassem suas mãos. Emi ficou boquiaberta com os dois poderosos yokai em plena súplica. Ignorando seu espanto, ela rapidamente caiu de joelhos, estremecendo quando eles tocaram o chão. Com as mãos apoiadas na terra à sua frente, ela se abaixou para tocar a testa nas mãos em uma reverência ainda mais profunda. Uma batida de coração de silêncio passou. —Bem. — disse Susano, a voz ainda dolorosamente rouca. —Por que não estou surpreso?
Emi piscou para o chão em confusão, então virou a cabeça para espiar de lado. Shiro ainda estava ao lado dela. Parado. Ele não se curvou. Por que ele não estava se curvando? De todas as vezes em que costumava ser rude em face de yokai mais poderosos, por que ele estava testando a tolerância de um Kunitsukami? —Você tem uma capacidade nojenta de arrogância. — continuou Susano. Uma raiva negra e cruel revestiu sua voz, ficando mais forte com cada palavra. —Se alguém deve ficar prostrado aos meus pés, é você. Apesar da falta de cortesia de se levantar tão cedo, Emi se sentou. Seu olhar estalou entre Susano e Shiro, que permaneceu imóvel, seu rosto inexpressivo e seu olhar ilegível travado com o de Kunitsukami. Por que Shiro estava apenas parado ali? Ele não conseguia ver que seu desafio enfurecia Susano? Yumei se endireitou também, sua atenção fixada em Shiro. —Você não tem nada a dizer? — Susano rosnou venenosamente. Sua íris safira fervilhava de fúria, uma tempestade negra se formando em seus olhos. O vento soprou em torno de seus pés e as marcas em suas bochechas brilharam com luz azul-petróleo. —Você sempre foi um tolo. Você pensou, mesmo por um momento, que eu iria deixar você viver? Um vendaval o envolveu quando ele pôs os pés no chão. Com um uivo de vento, ele se lançou para frente no mesmo salto rápido que ele usou para carregar Emi para fora das cavernas. Ele se lançou contra Shiro. Eles dispararam pela clareira em um borrão e, com um estalo alto, uma das enormes árvores de bordo estremeceu violentamente. Emi se virou, lenta demais para seguir o movimento de Susano. Do outro lado da trilha, Susano segurava Shiro pela garganta contra a árvore em que ele havia acertado o kitsune com força letal. O Kunitsukami ergueu a outra mão e
um raio, um raio de verdade, estalou sobre seus dedos e se reuniu em sua palma. —Não! — Ela deu um pulo e correu na direção deles. —Susano, pare! Com os dentes à mostra para Shiro, ele a ignorou. —Quando você ficou tão pateticamente fraco? Ela se jogou em Susano. Com as duas mãos, ela agarrou o braço que segurava Shiro pela garganta. O sangue encharcava um lado do rosto de Shiro e pingava de sua mandíbula, sua expressão vagamente atordoada com o impacto na árvore. Ele pendeu frouxamente, sem fazer nenhum esforço para se defender. —Susano, pare! —Saia do caminho. Ela olhou freneticamente para Yumei em busca de apoio, mas ele e Byakko ainda estavam a vários metros de distância. Quando nenhum dos dois se moveu, ela percebeu que eles não ficariam entre um Kunitsukami e o alvo de sua ira, nem mesmo para salvar a vida de Shiro. Ela se abaixou sob o braço de Susano e colocou as costas para Shiro, protegendo-o com seu corpo. —Você não pode matá-lo. —Tenho uma grande dívida com você. — resmungou Susano. —Mas não vou mais me conter. Mova-se! Ela pressionou as costas contra Shiro, aquela esfera crescente de relâmpagos se contorcendo na mão de Susano tão perto de seu peito. Seus membros tremiam e ela mal podia acreditar que estava se colocando entre um Kunitsukami, um deus inconcebivelmente poderoso, e sua futura vítima. Mas o que mais ela poderia fazer? —Você, você realmente pretende matá-lo só porque ele não se curvou? — Ela perguntou desesperadamente.
—Eu poderia pelo menos tê-lo ouvido se ele tivesse rastejado em reparação por sua traição, mas... —Traição? — Ela deixou escapar, interrompendo-o sem pensar quando a confusão superou brevemente seu medo. Ele estava falando sobre a falha de Shiro em se curvar ou algo mais? —Que traição? —Ele sabe o que fez. —Mas ele... — Ela gaguejou incerta. —Mas Shiro não poderia... Os olhos de Susano se estreitaram. —Como você o chamou? Shiro? Que nome idiota é esse? —Isso é, é... — Ela gaguejou, incapaz de responder enquanto muitos pensamentos desordenavam sua mente de uma vez. O olhar de Susano atingiu Shiro atrás dela, e com suas palavras seguintes, ele quebrou seu mundo em incontáveis pedaços e a deixou cambaleando entre os restos mortais. —Você nunca se cansa de seus jogos distorcidos. — sibilou o Kunitsukami. —Não é, Inari?
Ela não conseguia se mover. Ela não conseguia pensar. O nome tocou em sua mente, obliterando todo o resto. Ecoou várias vezes até encher sua cabeça e ameaçar quebrar seu crânio. Inari. Inari, Inari, Inari. —Não. — A palavra escapou dela em um gemido sem fôlego e sem esperança. Ela se sentia como se estivesse caindo, como se o mundo se abrisse e a engolisse. —Você está errado. —Errado? — Susano latiu, sua raiva inabalável, inconsciente da revelação que alterou o mundo que ele casualmente deixou cair sobre ela. —O que você quer dizer com errado? Ela mal o ouviu. O nome reverberou por ela. Um kitsune misterioso que não tinha nenhuma memória de quem ele era. Um yokai de cabelo branco, orelhas de raposa e portador de fogo que foi amarrado por uma maldição Amatsukami perturbadoramente poderosa por décadas. Uma criatura sorridente, provocante e destemida que às vezes olhava para ela com olhos antigos, que sabia tanto, mas sabia tão pouco. Inari. Como ela nunca adivinhou? Como ela nunca suspeitou? A ideia era absurda. Absolutamente ridícula. A pequena raposa branca que se chocou contra ela na floresta escura e cheia de neve, o yokai que a enganou, protegeu,
sangrou por ela, a beijou, como ele poderia ser Inari, o antigo, imortal e todo poderoso Kunitsukami do fogo? Suas pernas cederam. Ela começou a cair quando o braço de Shiro deslizou ao redor de sua cintura. Sua outra mão se levantou e quando ele alcançou a esfera giratória de relâmpago de Susano, o pânico explodiu nela. As chamas brilharam sobre sua mão quando ele fechou os dedos sobre o raio de Susano, e o raio se extinguiu. A descrença apareceu no rosto de Susano quando Shiro puxou seu braço para trás. Em seguida, ele golpeou, batendo a palma da mão no esterno de Susano. O fogo explodiu de sua mão, jogando Susano para trás. As chamas subiram pelo braço de Shiro e explodiram sobre ele em uma tormenta de fogo. O calor lavou suavemente sobre ela, o fogo que lambeu sua pele totalmente inofensivo para ela, mesmo enquanto queimou a árvore atrás deles. Quando as chamas morreram, desaparecendo quase tão rapidamente quanto apareceram, Shiro passou o outro braço ao redor dela, puxando-a de volta para ele. Ele pressionou o rosto contra o cabelo dela, segurando-a com força com um braço em volta de sua cintura e outro na parte superior de seu peito. Enquanto sua cabeça girava com muitos pensamentos e sentimentos, ela percebeu que podia senti-lo tremer.
Ele a segurou contra si enquanto estremecia, segurou-a como se ela fosse sua única âncora em um oceano furioso. Ele também não sabia. Ele não sabia seu nome, sua identidade. Se a percepção de que ele era Inari tinha a abalado tão mal, o que estava fazendo com ele? Susano se levantou, suas roupas fumegando com o ataque de Shiro. Ki fervilhava no ar enquanto o Kunitsukami reunia seu poder, a raiva ainda torcendo suas feições. O trovão retumbou nas nuvens e o vento veio uivando pela encosta da montanha. —Eu vou destruir você por sua traição, Inari. — Ele rosnou. Shiro não se mexeu. Ele segurava Emi como se fosse incapaz de qualquer outra coisa até que ele juntou os pedaços de si mesmo. Ela enrijeceu, o medo deslizando por ela. Ela tinha que parar Susano, mas o que poderia enfraquecer sua raiva alimentada por vingança? Pela primeira vez em muito tempo, o calor sussurrou através da marca kamigakari de Emi. O poder passou por seu corpo, queimando quente. Sua mão se ergueu por conta própria, os dedos bem abertos. O vento uivante que Susano havia chamado dos céus desapareceu. O ar ficou mortalmente parado, sem o mais leve indício de uma brisa. —Susano. — disse ela, sua voz soando com comando. As palavras saíram de seus lábios, fora de seu controle. —Deixe de lado seu rancor. Inari não é seu inimigo, pois ele também sofreu nas mãos de Izanami, e por muito mais tempo do que você. Susano sibilou, os olhos brilhando. —Amaterasu. —Ouça o que eles devem dizer a você. O tempo está se esgotando. Com outra onda de calor, o poder de Amaterasu retirou-se de Emi, deixando-a com frio e tremendo. Apenas os braços de Shiro ao redor dela a
mantinham de pé. Uma brisa natural soprou entre as árvores, o vento liberado do controle do Amatsukami. Susano lentamente se endireitou de sua postura agressiva e a pressão de seu ki diminuiu. Seu olhar frio estalou sobre Emi. —Estou ouvindo. — disse ele categoricamente. —Explique-se.
Emi se sentou na beira da fonte e observou Shiro molhar o pedaço de seda no fio de água que escorria de um tubo de bambu. Ela segurou a concha em suas mãos, tendo acabado de beber pela terceira vez. Sua sede depois de uma noite inteira nas cavernas ainda não havia sido saciada. Ele torceu a tira rasgada do obi de Byakko que ela havia usado no rosto nas cavernas. Agachando-se na frente dela, ele empurrou seu hakama pela perna e começou a lavar seu joelho ensanguentado. Ela estremeceu quando ele cuidadosamente esfregou a areia e pedaços de rocha dos arranhões. Ele não falava desde que Susano o atacou. Nem uma palavra. Ele limpou o joelho dela, enxaguou o material e começou no outro. De volta à entrada da caverna, Yumei estava contando a Susano tudo que eles sabiam. Ela estava grata por pular essa conversa. O temperamento de Susano a assustou. Quando Uzume disse que era quieto, ela presumiu que ele era temperamental. Claramente, não era esse o caso. Ela se encostou em uma das colunas que sustentavam o pequeno telhado do pavilhão de lavagem. Shiro se levantou e começou a enxaguar o pano novamente. Depois de deslizar o hakama de volta para baixo, ela tirou o pano das mãos dele e se levantou. Alcançando-o, ela gentilmente limpou o sangue
de sua mandíbula, trabalhando seu caminho até o lado de seu rosto. Ele não olhava para ela. —Shiro. — ela começou suavemente, então estremeceu. —Ou, quero dizer... —Não. — Ele murmurou. Seus olhos, vazios e assombrados, desviaram para os dela e se afastaram. Mordendo o lábio, ela esfregou o pano contra o lado de sua cabeça, encontrando o corte onde ele bateu na árvore. Ele se afastou e se sentou na beira da fonte. Apoiando os cotovelos nas coxas, ele baixou o rosto entre as mãos. —Por anos... — disse ele, com a voz quase inaudível abafada pelas mãos. —Pensei que se pudesse encontrar Inari, ele consertaria tudo. Ele saberia o que fazer, saberia como remover o onenju, saberia como recuperar minhas memórias. Mas todo esse tempo, eu estava procurando por mim mesmo. Ela se sentou ao lado dele e, hesitante, colocou a mão na nuca dele, sem saber se ele aceitaria seu conforto. A brisa sussurrava sobre eles, fresca depois de tantas horas nas cavernas rançosas e fedorentas sob a montanha. —Eu não tenho nenhuma resposta. — ele sussurrou. —Eu não me lembro. Eu não sei de nada. —Vou tirar o onenju de você assim que puder e suas memórias vão começar a voltar. — Deslizando os dedos em seu cabelo, ela se encostou em seu ombro. —Mesmo que você não se lembre de tudo de imediato, agora que Susano está livre, podemos resgatar Sarutahiko. Ele é o líder dos Kunitsukami. Se alguém tem respostas, é ele. Ele pode assumir e descobrir como parar Izanami. As orelhas de Shiro se moveram para frente e ele ergueu a cabeça. Yumei apareceu, caminhando em direção a eles com passos deslizantes. Ele parecia
ter se recuperado dos esporos venenosos, o que deu esperança a Emi de que Susano voltaria a sua força total rapidamente também. Ele já havia recuperado uma quantidade surpreendente de poder em tão pouco tempo desde que acordou. Yumei parou na frente de Shiro, avaliando friamente o kitsune. —Você sabia? — Shiro perguntou, sua voz plana. —Não, mas a possibilidade passou pela minha cabeça. — Yumei estudou Shiro. —Seu nome desperta sua memória, Inari? Emi estremeceu ao ouvir o nome Kunitsukami novamente. Parecia tão errado, tão impossível. Ela olhou para Shiro. Essa presença ancestral espreitou em seus olhos enquanto cortavam Yumei. —Não. —Você duvida da sua identidade? A sombra do poder atemporal se agitou, mais perceptível do que nunca, como se chamas estivessem despertando no fundo de sua íris. —Não. A expressão de Yumei endureceu. —Suas memórias são necessárias ou não podemos ir mais longe na libertação de Sarutahiko. Emi se endireitou, lutando contra a exaustão. —O que você quer dizer? —Falei com o Susano. Contei-lhe tudo o que sabemos e o que Uzume ordenou que fizesse, mas sua recusa foi imediata. Ele não pode desafiar Tsukiyomi com qualquer esperança de sobrevivência. — O olhar de Yumei cortou Shiro. —Por sua causa. A mandíbula de Shiro apertou. —A raiva de Susano por você é bem justificada. — continuou Yumei. — De acordo com ele, cem anos atrás, você roubou Ame-no-Murakumo. Então você desapareceu, junto com a espada.
Ame-no-Murakumo, as Nuvens Coletivas dos Céus, era uma arma lendária apresentada em muitos contos sobre Susano. —Eu entendo que ele está chateado. — disse Emi hesitante. —Mas ele não pode usar uma arma diferente para resgatar Sarutahiko? —Murakumo não é simplesmente uma espada. — Yumei disse impacientemente. —É um artefato de grande poder, ligado ao ki de Susano e um conduíte dos elementos. Sua perda é o que o enfraqueceu a ponto de cair para Izanami há cinco anos. Sem isso, seu poder é muito limitado para desafiar Tsukiyomi. Seu foco voltou para Shiro. —Susano procurou por Murakumo, e por você, por quase um século antes de sua prisão aqui. Ele não pode lutar contra um Amatsukami sem ele. Onde você escondeu? —Não me lembro. —Você precisa se lembrar. —Eu não me lembro. — Shiro rosnou, e Emi estremeceu com o som vicioso. —Não me lembro de ter roubado. Não me lembro de ter escondido. Eu nem sei o que parece. O que você quer de mim, Yumei? —Eu quero que você seja útil pelo menos uma vez. Shiro ficou de pé, as marcas em seu rosto brilhando em vermelho. Ele se aproximou de Yumei, ficando em seu rosto. —Por que não provo minha utilidade arrancando sua língua insuportável? As sombras ao redor de Yumei ondularam assustadoramente. —Você não tem nem perto do poder ainda para tentar. —Vamos descobrir? Pulando para cima, Emi se colocou entre eles e deu um passo para trás, forçando Shiro a se mover com ela. —Parem com isso, vocês dois. Isso não está
resolvendo nada. Ele não se lembrará apenas porque precisamos que ele o faça. A única solução é eu remover o onenju. As sombras se contorcendo pararam enquanto o poder de Yumei se restabelecia. —Você precisa descansar antes de tentar. Ela conseguiu acenar com a cabeça, grata por estar encostada em Shiro. Oprimida pelo cansaço, ela mal conseguia ficar de pé. —Descansar seria bom. —Voltaremos para Ajisai. Quando Yumei saiu para se juntar a Susano e Byakko, Emi caiu contra Shiro. Ele enrolou um braço em volta da cintura dela, tirando um pouco do peso de suas pernas cansadas. —Você acha que pode removê-los? — Ele perguntou baixinho. Ela fechou os olhos. —Eu vou. Eu prometi, não foi? Ele não respondeu, talvez não querendo expressar suas dúvidas em voz alta, as mesmas dúvidas que ela não queria expressar. Ela havia prometido e não poderia falhar.
Emi não lembrava a jornada de volta à estalagem yokai. Ela havia adormecido em algum momento antes de deixarem o santuário e sua única memória clara estava se acomodando em uma cama macia e alguém puxando um cobertor sobre ela. Ela acordou tarde da noite para descobrir que tinha dormido distraidamente no mesmo quarto que quatro yokai extremamente poderosos que não se davam bem. A tensão era palpável mesmo no quarto espaçoso. Byakko havia adquirido um prédio independente de um cômodo no terreno da pousada, que normalmente era usado para banquetes e reuniões, mas funcionava bem o suficiente para hospedagem. Mais importante ainda, os manteve longe de outros hóspedes da pousada. Um futon e uma pequena mesa foram montados para eles. Ela agora estava sentada à mesa, forçando-se a comer. A comida estava deliciosa e ela teria gostado se não fosse a tensão hostil que permeia o ar. Shiro sentou-se atrás dela, quase como um guarda-costas, enquanto Yumei pairava perto das portas de correr para o pequeno jardim. Com os braços cruzados, Susano estava encostado na parede oposta, a luz suave da lamparina da mesa piscando em seu rosto. Ele estava significativamente mais limpo do que da última vez que ela o tinha visto, a sujeira e a poeira das cavernas levadas embora. Ela tentou não se encolher com seu próprio estado menos que fastidioso.
Byakko havia se retirado do quarto após trazer a bandeja de comida. Talvez ele não gostasse da pressão desagradável de temperamentos mal controlados também. Ela queria dar um sermão em Yumei e Susano sobre suas atitudes terríveis, mas sabia que seria inútil. Um Príncipe das Sombras de mil anos e um Kunitsukami da Tempestade imortal não iriam ouvir uma garota humana dizendo que eles estavam agindo como crianças. Selecionando um pedaço de peixe frito com seus pauzinhos, ela mordiscou a borda. Susano havia passado um século alimentando seu rancor, então ela supôs que podia entender seu temperamento, que ele estava pelo menos tentando controlar. Mas a animosidade de Yumei em relação a Shiro era além de frustrante. Suas memórias perdidas não eram culpa dele. Ela cutucou os peixes restantes. Shiro não era Shiro, ela se lembrou. Ele era Inari, um Kunitsukami com amnésia e severamente debilitado de energia, mas ainda um Kunitsukami. Ela precisava parar de pensar nele como o astuto e provocador Shiro que ela conhecia, mas ela simplesmente não podia chamálo de Inari, mesmo em seus pensamentos. Pensar em sua identidade real, nas diferenças irreconciliáveis entre o yokai que ela conhecia e o Kunitsukami de que ouvira falar, fez seu estômago se revirar nauseante. Ela empurrou o prato. Imediatamente, todos os três yokai olharam para ela, olhos de rubi, prata e safira. Ficando de pé, ela se virou para Shiro. —Você está pronto? —Você está? — Ele perguntou. Ela assentiu. Yumei empurrou a mesa para fora do caminho e se moveu para ficar ao longo da parede oposta ao lado de Susano. No centro o quarto, Shiro a encarou, procurando seus olhos. Ela deu um sorriso vacilante. —É hora de tirar essas contas de você. —Tenha cuidado. — Ele murmurou, estendendo o braço direito.
Pegando o braço dele logo acima das contas, ela estudou os dois laços que restavam. A volta anterior havia desbloqueado suas três caudas de fogo. Quanto mais caudas um kitsune possuía, mais poderoso ele era. A próxima volta, ela suspeitava, liberaria mais três, para um total de seis. E com a remoção do laço final, ela já sabia que forma seria liberada. Ela vinha sonhando com isso quase todas as noites por duas semanas: o espectro bestial da chama de nove caudas, o kyubi no kitsune. Em seus sonhos, a raposa de nove caudas sempre devorava Shiro de três caudas. Ela não tinha sido capaz de dar sentido ao sonho antes, mas agora ela se perguntava se ela de alguma forma soube, quando viu pela primeira vez suas caudas de fogo e as marcas brilhantes em seu rosto, quem Shiro viria a ser. De qualquer forma, ela finalmente entendeu o que o sonho significava e o que ele representava: que mais cedo ou mais tarde, Inari consumiria Shiro, destruindo-o para sempre. A mão dela apertou seu braço. Ela tinha que liberar seu poder, liberar Inari de suas memórias, para que ele pudesse estar inteiro novamente. Se isso significasse que o Shiro que ela conhecia iria embora... Ela engoliu em seco. Quando ela encontrou seu olhar, ela tinha certeza de que podia ver o mesmo medo em seus olhos. Ela fechou a outra mão em torno do laço inferior das contas. O poder lambeu seus dedos e estalou seu braço. Ela voltou sua atenção para dentro, invocando o ki quente adormecido dentro dela. A marca kamigakari chamejou com o calor. Ela puxou as contas para baixo. O poder saltou por seu braço como um raio. Ele explodiu em seu peito, onde seu próprio ki esperava. Os dois poderes se entrelaçaram, então atiraram de volta em seu braço para colidir com o feitiço do onenju. As contas se
agarraram teimosamente ao braço dele e ela se esforçou para movê-las, para movê-las mesmo que uma fração. Sua marca kamigakari chamejou mais forte e um vendaval estourou no quarto, girando descontroladamente ao redor dela. Ela puxou as contas, os dentes cerrados. A luz brilhou sobre eles e o vento uivou mais alto. Uma maré insuportável de poder rasgou através dela, a maldição surgindo nela e ricocheteando novamente, sua magia e seu ki combinando em eletricidade agonizante. O poder cresceu e cresceu, e então explodiu. As contas se arrancaram de sua mão quando ela foi arremessada para trás com força letal. Um lampejo de movimento ao lado dela e ela bateu em Susano. Suas costas bateram na parede enquanto ele absorvia o impulso dela e amortecia a colisão com seu próprio corpo. O impacto ainda tirou o ar de seus pulmões e ela cedeu, tremendo com a força da magia que havia caído em cascata por ela momentos antes. —Você está ferida? — Susano perguntou, firmando-a nos pés. Ela balançou a cabeça, ofegando por ar. Olhando para cima, ela viu Yumei puxando Shiro da parede quebrada em frente a ela e Susano. Shiro estava mole, a cabeça pendendo para trás e os membros pendurados sem vida. Yumei o deitou no chão e se ajoelhou ao seu lado, inclinando-se sobre ele. Seu olhar se voltou para ela e Susano. —Ele não está respirando. O coração de Emi deu um salto. Ela correu pelo quarto e caiu do outro lado de Shiro. Ela pressionou a mão em seu rosto. Sua bochecha estava muito quente. O calor irradiava dele como se uma fogueira queimasse sob sua pele. —Shiro! — Ela deu um tapinha no rosto dele, impotente. —Shiro, respire! Susano se aproximou por trás dela. Ele olhou para Shiro, então ergueu um pé e pisou no peito de Shiro.
Shiro engasgou, seus olhos se abriram, então ele teve uma convulsão violenta de tosse. —Ele parece estar vivo. — Susano observou secamente. Ele se agachou ao
lado
de
Shiro
enquanto
sua
tosse
diminuía. —Uma
maldição
impressionante, ao que parece. Posso? Emi piscou, surpresa com o tom neutro de Susano. O peito de Shiro se contraiu quando ele recuperou o fôlego e, com relutância, estendeu o braço direito para Susano. O Kunitsukami pegou seu pulso e tocou levemente o onenju. —Quantas vezes ela tentou, mas não conseguiu remover uma ligação? — Ele perguntou. —Esta é a segunda vez. — Emi murmurou, com vergonha de suas falhas curvando os ombros. —A terceira. — Yumei corrigiu. —Você tentou remover a segunda ligação sob meu comando. Também tentei removê-la duas vezes. —Ah sim. — Ela inconscientemente tocou seu pescoço com a memória das garras de Yumei perfurando sua pele. —Cinco vezes no total então. —E a cada vez... — Susano perguntou. — A reação foi cada vez mais severa? Shiro se sentou estremecendo, massageando a nuca. —Sim. E esta era significativamente pior. Susano soltou seu braço. —Seja intencionalmente ou não, cada tentativa de removê-lo parece desencadear uma reação ainda mais violenta. Outra tentativa pode matar você. Emi enrijeceu em alarme. —Mas, mas não vou saber se posso removê-lo sem tentar novamente.
—Você estaria brincando com a vida dele. — Susano examinou Shiro. — Se Amaterasu estiver correta ao dizer que você é necessário para se opor a Izanami, esse pode não ser um risco que podemos correr. Shiro flexionou a mandíbula. —Não podemos localizar sua espada se eu não consigo lembrar de nada. E não consigo me lembrar de nada se ela não conseguir remover o onenju. Os ombros de Susano se mexeram em um suspiro e seu temperamento finalmente acalmou. Pela primeira vez desde que eles saíram das cavernas, ela viu o Kunitsukami firme e de aço que disse a ela para pegar sua espada e continuar lutando. —Izanami é desconcertantemente astuta ou doentiamente sortuda? — ele murmurou. —Você roubou minha espada, aleijando meu poder, e antes que eu pudesse reclamar Murakumo, ela aleijou seu poder e sua memória. Em um movimento especializado, ela incapacitou nós dois. —Por que eu roubaria sua espada em primeiro lugar? — Shiro murmurou, esfregando a mão no rosto. —Em suma, porque você é um vira-lata de duas caras. Emi estremeceu e imediatamente se sentiu culpada por se perguntar se a avaliação de Susano sobre o caráter de Inari era correta ou um produto de seu ressentimento. Ela se lembrou de Yumei sugerindo que Inari nem sempre estava em seu juízo perfeito e uma vibração estranha e ansiosa percorreu seu corpo. Incapaz de suportar a companhia deles depois de sua falha em remover a amarração onenju, ela pediu licença para ir às fontes termais. Shiro e Yumei devem ter sido completamente distraídos por seus próprios pensamentos, pois nenhum deles sugeriu que não seria seguro ou tentaram acompanhá-la.
Felizmente, os banhos estavam vazios e ela foi capaz de dissipar suas dores, dores e rigidez sem interrupção. Ela esfregou uma mão contra o peito, cobrindo sua marca kamigakari. Fechando os olhos, ela tentou resistir à picada das lágrimas. Era tão difícil contê-las. Exaustão, ansiedade, confusão, desespero, medo... as emoções sombrias agitavam dentro dela, lutando por uma saída. Ela estava tão cansada. Ela não tinha dormido, descansado ou comido o suficiente no que pareceram semanas. Ela não teve uma pausa da tempestade sem fim de emoções sugando sua energia: ciclos de pânico e dor que se repetiam. Agora, depois de todas as suas lutas, todo o seu sofrimento, eles não estavam mais perto de alcançar algo de valor. Eles localizaram três Kunitsukami e sabiam onde encontrar o quarto, mas não fez diferença. Susano estava livre, mas a perda de sua arma debilitava seu poder. E Inari não tinha memórias e ainda menos poder do que Susano. Para adicionar um obstáculo final e impossível, ela não poderia fazer outra tentativa de remover o onenju sem arriscar a vida de Shiro. Sem remover o onenju, ele não conseguia se lembrar do que havia feito com Murakumo. Sem Murakumo, Susano não poderia resgatar Sarutahiko. Sem Sarutahiko e, por extensão, Uzume, eles não podiam parar Izanami. Tudo dependia de remover o onenju, e ela falhou. Pegando um punhado duplo de água quente, ela jogou no rosto para limpar as lágrimas. Se ela tentasse e falhasse novamente, Shiro poderia morrer. Ela não podia arriscar. Mesmo que ela estivesse disposta a colocar sua vida em risco, Amaterasu tinha sido clara: ele precisava viver.
Amaterasu sempre soube de sua identidade. Se ele morrer, toda esperança estará perdida. Amaterasu sabia quem era Shiro, e também Izanami. Nenhuma delas revelou seu nome, no entanto. Por que Amaterasu não contou a ela? Emi deslizou mais fundo na água e fechou os olhos com força. Cada amarração do onenju era mais difícil de remover do que a anterior. Era possível que ela nunca tivesse poder suficiente sozinha, e ela não podia arriscar outra tentativa. A única que poderia garantir a remoção segura do onenju era Amaterasu. Emi exalou lentamente e se concentrou em acalmar seu medo agitado. Uma voz desesperada de negação tagarelou freneticamente no fundo de sua mente, mas ela sabia o que tinha que fazer. Ela tinha feito tudo o que podia fazer sozinha. Ela tinha feito tudo o que um mero mortal poderia fazer. Seu tempo acabou. Saindo do banho, ela se secou e voltou para o vestiário, já temendo ter que colocar seu uniforme de miko imundo de volta. Mas quando ela puxou a cesta onde havia deixado suas roupas, elas haviam sumido. Em seu lugar havia uma vestimenta dobrada de tecido azul claro e macio com um padrão azul mais escuro. Uma nota manuscrita estava em cima, a curta mensagem informando-a de que suas roupas haviam sido levadas para serem lavadas. Até mesmo suas botas haviam sumido, substituídas por sandálias tradicionais e meias tabi. Confusa, ela pegou o quimono e encontrou roupas íntimas e um obi de cobalto embaixo dele. Ela se vestiu rapidamente, apreciando o aroma floral do tecido, e trançou o cabelo úmido para mantê-lo fora do caminho. Montando um plano enquanto seu coração batia desagradavelmente, ela saiu do banho. Quando ela virou no corredor, Byakko dobrou a esquina à sua frente.
—Emi. — Ele olhou para ela. —Vejo que você recebeu o quimono. Foi a única vestimenta que pude adquirir em pouco tempo. Atende às suas necessidades? —Você conseguiu isso para mim? — Ela passou a mão na frente e se curvou rapidamente para mostrar sua gratidão. —Sim, claro, é muito bom. Vou devolvê-lo assim que puder. —Você pode ficar com ele. —Oh. Obrigada. — Ela colocou o mistério de onde ele tirou o quimono de sua mente. —Byakko, você sabe se há algum santuário Amaterasu perto daqui? —Santuário Amaterasu? Sim, há um pequeno santuário perto da cidade humana do outro lado da montanha. —Você poderia... você poderia me levar lá? Ele franziu a testa. —Se necessário. Eu não sei o que Susano e Yumei planejam... —Eu preciso que você me leve agora. — As palavras saíram com pressa. —Agora mesmo. Ele olhou para ela de soslaio. —Sem o conhecimento de Susano, Inari ou Tengu? —Sim. — Ela mordeu o lábio. —Eu preciso fazer algo importante, mas Shiro... Inari... não vai aceitar isso bem. Ele pode tentar me parar e vai acabar lutando com Susano e Yumei. Byakko a considerou, provavelmente se perguntando se ele gostaria de receber a ira de qualquer um dos três yokai que esperavam por ela. —Esta tarefa. — ele disse lentamente. —Seria para Amaterasu? Ela assentiu.
—Vou levá-la. — disse ele finalmente. —Mas vou fazer o estalajadeiro dizer a seus companheiros de nosso destino pretendido depois de partirmos para que eles não entendam mal. Ela assentiu novamente. Contanto que ela alcançasse o santuário antes que Shiro a alcançasse, isso seria o suficiente. Apesar do que ela disse a Byakko, ela não tinha certeza se Shiro realmente tentaria impedi-la... mas ela queria acreditar que ele se importava com ela o suficiente para que o fizesse. E ela queria levar essa crença com ela quando ela deixasse este mundo para trás.
Ela tinha estado correta em assumir que Byakko poderia viajar muito mais rápido do que ela sozinha, mas ela não tinha adivinhado o quão rápido. Somente quando ela se sentou nas costas de um enorme tigre branco enquanto ele corria com rajadas de vento, ela considerou exatamente o quão longe estava no mundo dos yokai. Não importava quanto poder ela pensava ter ganho, ela ainda era apenas humana. Enquanto o grande tigre galopava ao longo do vento, ela avistou o santuário do céu: alguns prédios pequenos em torno de um pátio de pedra iluminado por luminárias brilhantes e cercado por árvores carregadas de neve. Ele saiu em espiral do céu escuro e pousou diante de um pequeno torii desbotado. Ela escorregou de suas costas, tremendo de frio e desejando seu casaco. Ela esfregou as mãos e as soprou para se aquecer. O vento girou em torno do tigre e uma luz azul prateada dançou sobre ele. Em uma explosão de luz, ele retomou sua forma humana.
—Vou esperar aqui. — Ele disse a ela. Ela enfrentou o torii. Agora que ela estava aqui, seu corpo tremia com mais do que arrepios. O medo a envolveu e uma centena de pensamentos girou em sua cabeça, uma centena de razões pelas quais ela não deveria fazer isso. Mas ela precisava. Apenas Amaterasu poderia remover o onenju de Shiro. Lutando para controlar seu tremor, ela se curvou para o torii e pisou em terra sagrada. O poder quente de Amaterasu sussurrou sobre ela quando ela começou a subir o caminho escuro em direção ao santuário. O céu noturno estava sem lua ou estrelas, deixando a terra coberta por uma escuridão profunda, mas as luminárias do santuário a puxaram para frente. Do céu, ela viu uma pequena casa escondida entre as árvores; o kannushi ou a miko que morava aqui provavelmente já havia se retirado para passar a noite, mas os santuários sempre mantinham suas luzes acesas. Na estação de lavagem, suas mãos tremiam tanto que ela deixou cair a concha e teve que começar de novo, enxaguando uma das mãos e depois a outra com água gelada antes de dar um pequeno gole na boca. Nós de terror contraíram seus pulmões, apertando cada vez mais. Ao se aproximar do pequeno salão de adoração, ela se concentrou nas experiências incríveis que tivera nas últimas semanas. Conhecendo Shiro. Conhecendo Yumei. Vendo muito da magia e mistério de yokai. Ela tinha visto, ouvido, sentido, experimentado mais do que ela jamais poderia ter imaginado. Subindo
os
degraus,
ela
tocou
a
campainha
e
fez
duas
reverências. Depois de duas rápidas palmas de suas mãos dormentes, ela as juntou e abaixou a cabeça para orar pela última vez. Amaterasu. Ela teve que recuperar a compostura antes de se concentrar novamente. Tentei fazer o que você pediu, mas não fui forte o suficiente. Não posso remover o onenju de Shiro... de Inari... e se eu tentar de novo e falhar, ele pode morrer.
Ela apertou as mãos trêmulas. Eu não posso fazer isso, mas você pode. Por favor. Ainda não é o solstício, mas não podemos esperar mais. Estou pronta. Sei quem eu estou. É hora de você descer de Takamahara para que possa ajudar os Kunitsukami a parar Izanami. Calor suave pulsou através da marca kamigakari, e pânico em resposta correu por Emi. Era isso, seu momento final. Sua vida acabou agora. O calor suave puxou seu peito. Não construiu a labareda agonizante que ela sentiu quando Amaterasu a possuiu para lutar contra Izanami. A brisa varreu sobre ela, girando estranhamente e puxando suas roupas como dedos invisíveis. Emi piscou e abriu os olhos, franzindo a testa enquanto sua marca kamigakari continuava a latejar estranhamente. O vento empurrou suas costas como se a mandasse se mover. As portas do corredor sacudiram com uma rajada repentina. Abaixando as mãos, ela contornou a caixa de oferendas e se aproximou das portas. Com o coração batendo forte contra as costelas, ela colocou a mão em uma e a abriu. A luz das aradelas nos beirais se espalhou pelo salão. Ela deslizou para dentro, as sandálias estalando no chão de madeira e o quimono azul balançando em suas pernas. Na outra extremidade do salão, uma luz fraca vazava pela fresta entre um par de portas corrediças, luz que era muito pálida e prateada para vir de uma luminária ou aradela. Ela cruzou o salão e abriu as portas do santuário interno. Dentro da pequena câmara, um santuário de madeira ocupava a parede posterior e, assentado em um pedestal baixo na frente, havia um grande espelho oval. A luz prateada ondulou sobre a superfície brilhante. Sua
marca
kamigakari
pulsava
no
mesmo
ritmo
da
luz
crescente. Tremendo, Emi se ajoelhou diante do espelho, o shintai de
Amaterasu, um canal através do qual ela poderia canalizar seu poder para este mundo.
Emi lutou para conter o choro de medo e angústia crescendo dentro dela. De ser desfeita, de ser destruída, de ser obliterada de dentro de seu próprio corpo. Ela não queria morrer. Ela não estava pronta para deixar este mundo. Ela não disse adeus. Ela queria se despedir de Katsuo e agradecê-lo novamente por tudo que ele havia feito por ela. Ela queria dizer adeus a Shiro, dizer a ele que sentia muito e que não teve escolha a não ser deixá-lo para que pudesse cumprir sua promessa. Ela teve que deixá-lo, embora ele precisasse dela. Ele pode não admitir, mas ele o fazia. Ele a segurou com tanta força, apertando-a contra ele, enterrando o rosto em seu cabelo para se esconder da verdade, da realidade aterrorizante de seu passado, de sua própria identidade. Ele não deveria enfrentar isso sozinho. Mas ela tinha que deixá-lo em paz e queria dizer a ele que sentia muito. Talvez ela devesse ter contado a ele e aos outros o que planejava fazer, mas estava com medo. Ela temeu que, se tivesse contado a Shiro que sabia como libertá-lo dos onenju, ele não teria tentado impedi-la. Ele não teria se importado o suficiente para impedi-la. E ela preferia deixar esta vida acariciando suas memórias dele e sabendo que Amaterasu o salvaria do que deixar esta vida com o coração despedaçado. Mas oh, como ela desejava que ele pudesse estar com ela agora, segurando-a em seus braços, envolvendo-a em seu calor e força para que ele pudesse ser a última coisa que ela conhecesse antes de morrer. O espelho brilhou com luz, chamando por ela. Levantando lentamente a mão, ela pressionou os dedos no copo de espera.
—Emi. O vidro liso sob sua mão estava frio, mas o que ela viu não foi o santuário e o shintai. O espelho se expandiu até que tudo o que ela podia ver era o reflexo do pequeno salão atrás dela, as paredes escuras e o piso de madeira, a porta aberta e o pátio além, e seu reflexo, pálido e assustado. —Emi. — Seu reflexo disse novamente. A voz suave era familiar, mas não era a dela. Os tons suaves de Amaterasu ecoaram no espelho e sussurraram dentro de sua cabeça ao mesmo tempo. Emi olhou para sua mão tocando a mão de seu reflexo. Uma lágrima escorregou por sua bochecha, mas nenhuma lágrima tocou o rosto de seu reflexo. —Eu não posso segurar essa conexão por muito tempo, Emi. — seu reflexo disse com a voz de Amaterasu. —Mantenha sua mão no espelho. Emi empurrou a mão com mais força contra o vidro frio, mas invisível. — Você vai descer agora? Seu reflexo sorriu tristemente. —Minha doce e corajosa criança. Você está pronta para dar sua vida, mas eu não estou pronta para aceitá-la. Há mais para você fazer no seu mundo e mais coisas que devo fazer no meu antes do solstício. —Mas o onenju... —Inari pode suportar sua maldição por um pouco mais de tempo.
Emi enxugou a única lágrima de sua bochecha com a mão livre, vagamente surpresa que seu reflexo não a copiou. —Por que você não me disse quem ele era quando o salvamos de Izanami? —Ele não estava pronto para saber, e nem você. Mas agora devo contar a vocês que não tive tempo de contar antes. — Uma expressão grave deslizou pelo rosto de seu reflexo. —Não sei exatamente quando começou, mas Izanami passou décadas, séculos, preparando-se para a transgressão que cometerá no solstício, ato que devemos prevenir a todo custo. —Todos os crimes de Izanami tiveram um único objetivo. No solstício, ela pretende abrir a Ponte para o Céu. Emi, você sabe por que os kami não têm corpos físicos no reino terreno, porque devem usar o kamigakari? —Porque kami não podem deixar Takamahara. — Ela respondeu, referindo-se ao reino celestial onde os kami viviam. —Correto. A Ponte para o Céu, no entanto, é uma passagem direta entre Takamahara e seu mundo, a única passagem. Foi criada no início dos tempos pelos deuses do passado e apenas raramente foi aberta por um kami. Nunca um kami a usou para pisar fisicamente nas terras mortais da Terra. — O rosto do reflexo de Emi apertou. —Isso é precisamente o que Izanami pretende fazer no solstício. —Ela... ela vai abrir a ponte. — disse Emi lentamente. —E vir para a Terra? Por quê? —Ela afirma que tem o dever de fazer isso, mas entenda, Emi. — Algo sombrio e assustador passou pelos olhos de seu reflexo. —Se Izanami colocar os pés em seu reino em plena glória de sua forma kami, a vida na Terra mudará para sempre. —Quando os kami enviam nossos espíritos a um recipiente no reino terreno, somos limitados pela carne mortal que habitamos. Mas o verdadeiro
corpo de um kami não tem tais limitações. Na Terra, Izanami será todapoderosa de uma maneira que você não pode compreender. Seu poder será ilimitado, seu corpo indestrutível, sua vontade irresistível. —Ela
vai
destruir
os
Kunitsukami,
destruí-los
total
e
permanentemente. Ela provavelmente irá destruir todos os yokai e arrancar Tsuchi de suas âncoras neste mundo, separando os reinos para sempre. Ela será uma deusa como os mortais nunca conheceram e seu poder absoluto dominará todas as facetas da existência da humanidade. Seu reflexo se aproximou. —Um Amatsukami na Terra, fisicamente na Terra, significará o fim do livre arbítrio para a humanidade. Izanami não pode abrir a ponte. Ela não pode descer à Terra. Isso é o que os Kunitsukami devem prevenir. Eles devem impedi-la de abrir a ponte no solstício. Emi fechou a mão em torno de um punhado da saia do quimono, mantendo a outra mão espalmada contra o espelho. —Então você deve descer, Amaterasu, para que possa remover o onenju... —Emi, eu não posso... Seu reflexo oscilou, ondulando como uma pedra atirada em águas calmas. A luz brilhou intensamente e se estabilizou. —Um dos meus vassalos desabou. — Amaterasu disse laconicamente, um pouco sem fôlego. —Não podemos segurar o feitiço por muito mais tempo. Emi, ouça com atenção. Não posso tirar essa tarefa de você. Você deve... —O reflexo ondulou novamente, as palavras de Amaterasu distorcendo além da compreensão. —Amaterasu, não consigo ouvir você! —… A magia do onenju responde à sua vontade. Você não pode... — Outra onda violenta. —... se o seu compromisso não for... falhará novamente. —Amaterasu! — Emi gritou. —Não consigo ouvir você!
O reflexo se estabilizou novamente, mas a dor e a concentração apertavam seu rosto. —Mesmo se você remover o onenju agora... — Amaterasu disse, falando tão rápido que suas palavras mal eram coerentes. —Inari não se lembrará o suficiente a tempo. Eu não tenho o poder de... —O reflexo desbotou para prata antes de piscar de volta à vista. —… Vou deixar você com uma memória. É tudo que posso fazer agora. Seu reflexo estendeu a mão e tocou a outra mão no vidro. —Não serei capaz de alcançá-la assim novamente, mas irei ajudá-la no que puder. Dê-me sua outra mão. A luz cresceu em um ponto brilhante e pulsante na palma de seu reflexo. Emi pressionou a outra mão contra o vidro frio. A luz brilhou, enchendo sua visão até que ela não pudesse ver nada além de luz.
A luz se apagou, Emi olhou em confusão e horror crescente. O santuário interno se foi e ela não estava mais ajoelhada diante do shintai. Ela estava na beira de um penhasco, olhando para um vale. Várias centenas de casas de madeira estavam agrupadas em torno de um rio sinuoso e terras agrícolas ocupavam o vale entre as montanhas cobertas de florestas, envoltas em uma rica vegetação verde que não mostrava sinais do toque do outono. Mas o que deveria ter sido uma pacífica e idílica aldeia agrícola era tudo menos isso.
A fumaça saia dos destroços das casas e chamas selvagens rasgavam os escombros e rastejavam pelos campos. Grandes goivas haviam rasgado a terra e, mesmo à distância, ela podia ver muitas formas pequenas e imóveis que pareciam corpos carbonizados e mutilados. Parecia que uma grande fera havia pisoteado a aldeia, destruindo tudo em seu caminho e deixando um inferno em seu rastro. Sem pensamento ou comando consciente, Emi se virou. Quando ela viu a mulher parada ao lado dela, ela engasgou de terror, ou tentou. Seus pulmões não reagiram à onda de medo, e ela percebeu que não tinha nenhuma conexão com seu corpo. —Eu te disse. — Izanami disse baixinho, seu lindo rosto desenhado com uma preocupação inesperada. —Eu não exagerei. —Vejo que não. — respondeu Emi, ou melhor, o corpo sobre o qual ela não tinha controle. —Peço desculpas, prima, mas eu não queria acreditar... —Você pode sentir claramente os resquícios do poder que ele desencadeou sobre este lugar, seu ki inconfundível, não pode? — Izanami insistiu. —Amaterasu, você não pode desculpar isso. Sei que você não deseja reconhecer, mas não podemos mais ignorar suas ações. Sarutahiko se recusa a controlá-lo. Nós devemos entrar em cena O corpo emprestado de Emi enfrentou a destruição de fogo no vale novamente. Ela lutou para se orientar. Esta tinha que ser uma visão do passado do Amaterasu, uma memória de pelo menos cem anos atrás. —Não é nosso lugar intervir. — Amaterasu disse, soando quase hesitante. Izanami também se virou em direção ao vale. —Você permitiria que ele continuasse massacrando humanos impotentes para seu entretenimento? Seu apego a ele está atrapalhando seu julgamento.
—Eu posso falar com Sarutahiko... —Que não fará nada. Você sabe disso. Ele nunca tentou conter o poder de seus companheiros Kunitsukami e não vai começar agora. —Talvez ele não perceba... —Ele está mais atento, tenho certeza. — Izanami estendeu a mão, a manga comprida de seu quimono bordô esvoaçando. —Que desculpa você pode dar para isso, Amaterasu? Um de seus santuários foi destruído e seus próprios servos foram mortos. Você não fará nada? Emi sentiu Amaterasu apertar os lábios com força. —Você sabe a verdade. — Izanami disse quando Amaterasu não respondeu. —Você sabe que Inari está instável. —Ele não está. —Ele está. Você sabe que ele está. Ele sempre foi imprevisível, até errático. Agora, sua natureza volátil se transformou em violência desenfreada. —Este é apenas um exemplo... —Um exemplo de carnificina sem sentido não é suficiente para você, prima? — Izanami exigiu duramente. Sua voz se suavizou. —Amaterasu, você entende, não é? Uma vida imortal não é para ser vivida sozinha. Susano também mostra sinais de instabilidade, sua aversão até mesmo por interação casual e seu afastamento dos outros Kunitsukami. Ele, no entanto, não está infligindo seu poder aos indefesos. Ela colocou a mão no ombro de Amaterasu. —Izanagi e eu sempre tivemos um ao outro, assim como você e Tsukiyomi. Sarutahiko e Uzume se encontraram há muito, muito tempo, mas por milênios e mais, Inari está sozinho. Nem mesmo as mentes de Kunitsukami são imunes à tensão dessa solidão sem fim. —Ele não esteve totalmente sozinho. — Amaterasu disse suavemente.
—Companheirismo
intermitente
não
é
o
mesmo.
—
Izanami
murmurou. —Você sabe disso. Amaterasu suspirou pesadamente. —O que podemos fazer? —Seu poder deve ser contido. Você é a única que pode realizar esta tarefa infeliz. Você é a única Amatsukami em quem ele confia. —Você quer que eu o amarre? —Uma ligação completa, Amaterasu. Se não for forte o suficiente, ele irá quebrá-lo e matá-la. —Eu nunca poderia... —Você deve. —Nenhuma ligação dura para sempre, Izanami. Ela se desgastará em alguns séculos e ele a quebrará. O que então? —Não precisa ser permanente. Com seu poder contido, talvez você ou Uzume possam ajudá-lo... curar o que o aflige. —Como podemos curar uma eternidade de solidão? —Eu não sei. Mas devemos agir agora, antes que ele sucumba a outra raiva. Antes que ele mate novamente. — Ela gesticulou para o vale. —É nosso dever proteger os humanos deste mundo. Enquanto Amaterasu olhava para os restos fumegantes da aldeia novamente, a visão de Emi turvou. Tudo girou e ela se sentiu como se estivesse flutuando no nada. Com um lampejo de luz, a memória se reformou. Ela agora estava caminhando por uma clareira de árvores, suas folhas farfalhando suavemente com a brisa. Lírios-aranha vermelhos acarpetavam o chão, as flores brilhantes pairando na altura dos joelhos enquanto ela caminhava por eles. Adiante, um lago brilhava ao sol da tarde e pássaros cantavam na floresta tranquila. Era lindo, tranquilo.
Amaterasu caminhou até a beira da lagoa e parou, ponderando a superfície ondulante que refletia o céu azul brilhante. —O que há neste local que a atrai tanto, Amaterasu? De dentro da Amaterasu, Emi ficou surpresa, um medo estranho escorrendo por ela com aquela voz familiar. Amaterasu olhou para cima. Acima dela, nos galhos da árvore, ele estava sentado com as costas apoiadas no tronco, um pé apoiado no galho grosso embaixo dele e o outro pendurado. Olhando para ela com olhos de rubi brilhantes, ele deu uma mordida na ameixa vermelha pela metade em sua mão. Se Emi estivesse em seu próprio corpo, seu coração estaria batendo forte. O yokai sentado na árvore era idêntico a Shiro, seu cabelo branco despenteado pela brisa, suas orelhas vulpinas voltadas para Amaterasu, uma sobrancelha levantada em aparente diversão. E ainda, embora ele parecesse o mesmo, ela sentiu uma necessidade em pânico de se afastar silenciosamente, para se esconder de sua atenção. A antiga astúcia que ela apenas vislumbrou em Shiro queimava em seus olhos, inconfundível. Este homem não era seu kitsune. Ele era Inari, o Kunitsukami do Fogo, e a aura de poder mortal e calculista que ele carregava era palpável no ar. —Às vezes... — ele continuou com aquela voz muito familiar com um tom desconhecido. —Eu suspeito que você só me visita para poder olhar pensativamente para o meu lago. Isso fere meu orgulho. —Eu estava com a impressão de que seu orgulho era imune a ferimentos. — Amaterasu respondeu em um tom leve e provocador. —Embora o resto de você claramente não seja. Um sorriso apareceu no rosto de Inari, mas era uma versão mais fria e dura do sorriso malicioso de Shiro. Ele se afastou do galho e caiu no chão com
uma graça fácil. Sangue meio seco encharcava o lado esquerdo de seu kosode branco, o material desfiado e agarrado precariamente a seu ombro. Feridas profundas surgiam do sangue. —Ontem foi inesperadamente desagradável. — disse ele casualmente, dando outra mordida em sua ameixa. Sua cabeça inclinada, orelhas girando em direção ao Amaterasu. —O que a traz ao meu domínio, Dama do Vento? —Eu preciso falar com você. — Amaterasu disse, seu tom sério. — Sobre... sobre uma vila. —Uma vila? —A aldeia de ontem. Sombras astutas se reuniram em seus olhos. —Aquela aldeia? O que você sabe dessa aldeia? —Muitos humanos morreram. — Amaterasu murmurou. —Eu sei. — Sua expressão ficou fria e ele jogou o resto de sua ameixa fora. Ela atingiu o lago com um respingo, enviando ondas violentas pela superfície. —Você vem zombar de mim, Amaterasu? —Zombar de você? Não, eu... —Minhas batalhas não são da sua conta. —Batalhas? Esses humanos foram abatidos como gado. —Eu não... A raiva endureceu a voz de Amaterasu. —O vale estava saturado com o seu ki, Inari. Não negue sua liberação de poder. —Por que eu negaria isso? —Você não sente vergonha? — Amaterasu sussurrou, sua raiva desaparecendo e deixando apenas tristeza em seu rastro.
—Então você veio zombar de mim. — Ele bufou de desgosto. —Que típico de uma Amatsukami. Achei que você fosse diferente, mas suponho que não seja possível, é? Nós somos o que somos. —Nós somos o que somos. — ela repetiu, um leve pesar revestindo as palavras. —Inari… Seu nome foi um apelo suave em seus lábios quando ela o alcançou. A surpresa confusa cintilou em seu rosto e ele hesitou apenas o tempo suficiente para Amaterasu segurar seu pulso direito com as duas mãos. Assim que ela o tocou, um encantamento voou em sua língua. Em um único instante explosivo, a luz brilhou intensamente e dezenas de minúsculas orbes brilhantes apareceram do nada, disparando em direção ao braço de Inari. Descrença e raiva rasgaram seu rosto. O vento entrou em erupção quando Amaterasu chamou em sua defesa, mas Inari foi mais rápido. O fogo explodiu dele enquanto sua outra mão cortava em direção a ela. A dor rasgou Amaterasu. Emi também sentiu, mas era distante, não a tocava bem. Sua visão turvou e girou quando ela caiu para trás. O vento formou um ciclone protetor ao redor dela, carregando mil pétalas vermelhas nele. Amaterasu olhou para seu abdômen, dando a Emi um breve vislumbre da ferida horrível que Inari infligiu em um único e breve ataque. Respirando pesadamente, Amaterasu pressionou as mãos contra o estômago e uma luz branca acendeu sob suas palmas. A carne carbonizada e os cortes profundos começaram a cicatrizar. Concentrando-se em reparar sua nave mortal antes que o corpo morresse, Amaterasu não se moveu. A dor diminuiu e ela se levantou. O vento se dispersou, liberando as pétalas para flutuar em direção ao solo como flocos de neve vermelhos esvoaçantes.
A alguns passos de distância, Inari estava de joelhos, cabeça baixa e segurando o braço onde o onenju vermelho brilhante se formou. Quatro voltas em seu antebraço direito brilhavam com força. Ele ofegou, seu corpo estremecendo. —O que você fez? — Ele rosnou roucamente. Ele levantou a cabeça e a raiva terrível que queimava em seus olhos teria enviado Emi aos tropeços. Amaterasu não vacilou. —O que você fez? — Ele rugiu, pondo-se de pé. Ele cambaleou, o peito arfando, mal mantendo o equilíbrio. —Eu limitei seu poder. — Amaterasu disse, impressionantemente calma em face de sua fúria violenta. —Você não está bem, Inari. Não podemos permitir que você mate humanos por capricho. —Matar humanos por capricho? — Ele rosnou ferozmente. —Zombe de mim por ter caído para aquele dragão miserável, se for preciso, mas não me chame de assassino de humanos. —Então como você chama o massacre daquela vila? — Ela exigiu. —Como eu saberia que Orochi estava me caçando? Eu nem sabia que ele havia ressuscitado, mas você me culpa por sua matança de... —Orochi? — Amaterasu repetiu, tropeçando no nome. —Do que você está falando? Inari lutou para se endireitar, ainda segurando seu braço e ofegante. — Você acha que eu sofri esses ferimentos nas mãos de humanos? Eles já estavam mortos quando encontrei a aldeia. —Já mortos? — Ela sussurrou. —Você sempre pensa o pior de mim. Orochi os matou para esconder sua presença e me emboscou quando parei para investigar. —Mas... eu não senti Orochi...
—Nem eu até que ele estava me abrindo. —Eu... eu não entendo. — Amaterasu sussurrou. —O que há para entender? Orochi queria Murakumo e... —Murakumo? Espada de Susano? —Sim, eu peguei emprestado. Sem permissão. — Um breve sorriso sem humor apareceu em seu rosto enquanto ele continuava a apertar o braço como se estivesse em agonia. —E agora devo recuperá-la antes que Susano descubra que perdi sua espada preciosa para seu inimigo. —Inari… A raiva queimou em seu rosto novamente. —Tire isso de cima de mim, Amaterasu. Ela apertou as mãos. —Eu sinto muito, Inari. Eu estava, eu estava enganada. Assim que o selo for concluído, posso removê-lo. Ele grunhiu, sua fúria abrasadora diminuindo de uma forma quase doentia enquanto a luz do onenju se iluminava. Finalmente, o brilho começou a diminuir. Amaterasu estendeu a mão em direção a ele e ele enrijeceu, apertando a mandíbula. A mão dela pairou sobre o braço dele. —Inari... como posso recuperar sua confiança? Ele olhou nos olhos dela, nos olhos de Emi, e em seu olhar estava uma solidão antiga e amarga que era tão profunda que ela não conseguia ver o fim disso. —Você não pode. Amaterasu encontrou seu olhar, então alcançou o onenju. O chão estremeceu sob seus pés. Com um estalo, o chão atrás de Inari se abriu. Amaterasu não teve chance de reagir, se mover, nem mesmo desviar o olhar. Seu olhar ainda estava preso
nele enquanto seus olhos se arregalaram em choque. Seu corpo sacudiu violentamente. Sangue quente respingou em sua pele e uma traição furiosa passou por seu rosto. Então a luz desapareceu de seus olhos e sua cabeça caiu para trás. Ela cambaleou um passo para trás, sua atenção fixada na raiz pontiaguda da árvore que se projetava de seu peito. Ele ficou pendurado sem vida, empalado em uma raiz que havia rasgado seu coração. Seu olhar caiu para o onenju brilhando intensamente ao redor de seu braço. —Não. — Ela sussurrou em horror. O vento soprou em sua pele, um aviso. Amaterasu se virou. Izanami estava entre as árvores, sua expressão era de silenciosa satisfação, sua mão já levantada em um gesto de comando. A agonia atingiu o corpo de Amaterasu. Uma raiz de árvore idêntica rompeu seu peito em um jato de sangue. Sua visão turvou, então tudo se transformou em uma luz prateada brilhante que engoliu o mundo.
Emi atirou-se para trás, agarrando o peito e ofegando por ar. Suas costas bateram no chão, sacudindo-a, e a dor fantasma desapareceu. Rolando, ela ficou de joelhos, uma mão apoiada no chão e a outra pressionada contra o coração. Ele batia de forma reconfortante sob suas costelas. Respirando fundo e deliberadamente, ela tentou acalmar seu pulso rápido. Em sua mente, ela ainda podia ver a raiz espessa perfurando seu corpo. Ela ainda podia ver a forma sem vida de Inari pendurado na raiz empalado, seus olhos mortos fitando o céu brilhante. Shiro tinha se lembrado daquele momento, o instante em que ele morreu, ainda furioso com Amaterasu por prendê-lo com as contas. A mão de Emi deslizou de seu peito para seu abdômen, onde ela vislumbrou os ferimentos que Inari havia infligido em Amaterasu quando ela o amarrou. Sem hesitação, sem misericórdia. Sem nem mesmo saber o que Amaterasu estava fazendo ou porque, ele atacou com força letal, feridas que teriam matado qualquer um sem a habilidade de cura de Amatsukami. Mas sua magia de cura não foi suficiente para salvar seu corpo humano do golpe direto de Izanami em seu coração. Emi balançou a cabeça lentamente, a imagem dos olhos de rubi em sua mente mudando da astúcia fria de Inari para o humor travesso de Shiro e viceversa. Atrás dela, as portas do santuário interno se abriram com um estrondo.
Ela se virou. Iluminada por trás pelas luminárias externas, uma silhueta escura familiar com uma luz avermelhada varreu em sua direção, a agressão predatória revestindo seus movimentos, uma mão estendida. Quando a mão dele veio em sua direção, a memória das garras de fogo de Inari passou por sua mente e ela recuou com um suspiro assustado. A mão de Shiro hesitou, os dedos parando a alguns centímetros de seu braço. Ele ergueu a palma da mão e uma pequena chama acendeu. Uma luz bruxuleante iluminou seu rosto, lançando sombras nítidas em suas feições. —O que você fez? — Ele exigiu em um rosnado. Seus pulmões congelaram, suas duas identidades lutando em sua mente. Ouvir a mesma pergunta de Shiro como Inari exigiu de Amaterasu apenas a confundiu mais. Ela podia ver Inari em Shiro como nunca antes, ou seria que ela tinha visto Shiro em Inari? Seu olhar varreu o rosto dela. —Você não acabou de fazer algo estúpido como pedir ao Amaterasu para descer, não é? Sua boca se abriu, mas nenhum som saiu. —Se foi isso que ela tentou. — Yumei disse, sua voz vindo inesperadamente de trás de Shiro. —Ela não parece ter conseguido. Ela olhou além de Shiro para ver Yumei e Susano parados na porta, com Byakko pairando atrás deles. —O que você está fazendo aqui, Emi? — Shiro perguntou, comando em seu tom. —Eu...— Ela olhou entre eles antes de se concentrar em Shiro, agachado na frente dela. —Falei com Amaterasu. —Falou com ela? Como? —Através do shintai. Ela me disse... Ela me disse o que Izanami está planejando fazer.
Yumei e Susano fizeram o resto do caminho até o santuário interno, juntando-se a Shiro. Engolindo em seco, ela repetiu tudo que Amaterasu havia dito a ela sobre a Ponte para o Céu. Quando ela terminou, o silêncio pairou no ar. Por fim, Susano falou. —Se ela descer pela ponte, nossa única esperança será fugir para Tsuchi e cortar suas âncoras, separando-a do reino terreno. —Tsuchi sempre esteve ligado a este mundo. — Yumei disse sombriamente. —Ele sobreviveria sozinho? Emi olhou entre eles. —Temos que impedi-la. —Não sei como a ponte é aberta. — disse Susano. —Então não consigo imaginar como podemos evitar isso. No entanto, Sarutahiko saberá. Ele é o guardião da Ponte neste mundo, assim como Izanagi é a guardião dela em Takamahara. Izanagi, o Amatsukami do Céu, era o governante final de Takamahara e irmão de Izanami. Guardião da Ponte ou não, Emi sabia que não podiam contar com ele para impedir que sua irmã abrisse a passagem dos céus no solstício. —O que é significativo sobre o solstício? — ela perguntou. —O que isso tem a ver com a ponte? —O solstício é uma época de poder kami. — Susano respondeu. —À medida que as estações mudam e os ciclos lunares aumentam e diminuem, o equilíbrio de poder entre yokai e kami muda. O solstício de inverno pertence aos kami. Como isso afeta a Ponte, eu não sei. Novamente, essa é uma pergunta para Sarutahiko. —Mas, mais uma vez, não podemos atuar. — Yumei disse categoricamente. —Não podemos libertar Sarutahiko sem Murakumo, que não podemos localizar sem as memórias de Inari.
Emi respirou fundo e olhou para Shiro, que a observava com uma expressão ilegível. —Amaterasu me mostrou... ela me disse outra coisa. Cem anos atrás, Orochi emboscou Inari e roubou Murakumo dele. —Orochi? — Susano rosnou, as manchas azuis em suas bochechas brilhando com luz enquanto seu temperamento reaparecia em um lampejo. — Orochi reviveu? — Seu olhar furioso se voltou para Shiro. —Você perdeu minha espada para Orochi? —Inari também não sabia que Orochi tinha revivido. — disse Emi rapidamente. —Orochi armou uma armadilha para roubar a espada. Ele... — Ela olhou para Shiro. —Você estava planejando trazer Murakumo de volta para Susano antes de... Shiro não disse nada, sua expressão era indecifrável. —Então eu sei onde encontrar Murakumo. — Susano rosnou. —Orochi é uma fera previsível. Ele sem dúvida tem esperado nos últimos cem anos que eu vá buscar minha espada. Sua sede de vingança nunca será saciada. —Esperando por você onde? — Yumei perguntou. —O mesmo lugar onde eu o matei da primeira vez. —Você pode recuperar sua espada dele? Nunca encontrei Orochi, mas sua reputação é assustadora. —Vou recuperar minha espada ou perecerei na tentativa. — disse Susano, com os olhos brilhando como aço safira. —Essa besta segurou o que é meu por tempo suficiente. —Se Amaterasu falou a verdade... — Byakko disse atrás deles, onde tinha ouvido a discussão. —Orochi derrotou Inari, que provavelmente estaria com força total no momento. Não quero ofender, mas você tem alguma chance em sua condição atual?
—Orochi emboscou Inari. — Emi corrigiu. —Ele foi gravemente ferido antes mesmo de ter a chance de revidar. —Eu só preciso colocar as mãos em minha arma e a morte de Orochi será garantida. — Susano se levantou. —Voltaremos para a pousada e nos prepararemos. Yumei e Byakko o seguiram, mas Shiro não se mexeu. Emi ficou onde estava, incapaz de olhar para cima. Seu olhar pesou muito sobre ela. —Você não veio aqui para falar com Amaterasu. — ele disse, as palavras baixas e duras. —Você veio aqui para cumprir seu papel de kamigakari, não é? —Eu... — Ela engoliu em seco. —É a única maneira de remover o onenju com segurança. Amaterasu precisa fazer isso, não eu. —Então você saiu, sem uma palavra, esperando morrer? Você não pensou em pedir minha opinião antes de fugir para acabar com sua vida? Ela se forçou a olhar para ele. —Eu... eu não pensei que você iria... —Não pensei que faria o quê? Ela não queria admitir que tinha medo de que ele não se importasse, pelo menos não o suficiente. Seus olhos fixos nos dela. —Eu faria o quê, Emi? — Ele repetiu, se aproximando. Ela se encolheu com o movimento repentino dele, sua mão voando para cima defensivamente quando viu novamente as garras de Inari brilhando em sua direção. Ele recuou, as orelhas inclinando-se para trás. —Qual o problema com você? O que mais Amaterasu disse sobre mim? —N-nada. Sua boca se curvou em um sorriso vazio e sua voz caiu para um sussurro perigoso de gelo e fogo combinados. —Não pense que eu não posso dizer quando você mente para mim, pequena miko.
—Eu... eu não estou... —Eu posso cheirar seu medo. Eu posso ouvir seu coração acelerado. —Eu não estou com medo. —Mentira,
pequena
miko. Outra
mentira.
— Ele
se
levantou
abruptamente, afastando-se dela. —Não se apresse em sua morte por minha causa. Não tenho pressa em lembrar todas as razões pelas quais sou tão detestado. —Shiro...— Ela sussurrou. Ele falou ainda de costas para ela. —Se você vai me temer por isso, me chame do que eu sou. Sua garganta fechou, silenciando-a. Ele se virou apenas o suficiente para olhar para ela e em seu olhar fixo ela viu a sombra da solidão amarga de Inari já ficando mais escura, já afundando profundamente em sua alma. Shiro estava escapulindo. Ela podia ver isso acontecendo, podia ver a frieza de Inari vencendo-o a cada rejeição, começando com a raiva violenta de Susano, depois a aversão inesperada de Yumei e agora seu medo. Ela estava com tanto medo que as memórias de Inari alcançassem Shiro, mas parecia que o nome do Kunitsukami por si só era o suficiente para destruí-lo. Ela ergueu a mão, estendendo a mão para ele enquanto procurava desesperadamente por palavras que pudessem chamá-lo de volta para ela, que pudessem banir a escuridão de seus olhos. Byakko chamou de fora do santuário. Ao ouvir o som, Shiro se afastou dela, sem ver sua mão estendida. Ele saiu do salão. Respirando fundo, ela se levantou e correu para fora do santuário interno. Ele já estava passando pelas portas principais, prestes a descer as escadas para o pátio. Ela tinha que impedi-lo. Ela tinha que dizer a ele que não
tinha medo dele, que ela tinha ficado confusa com a memória que Amaterasu tinha mostrado a ela. Enquanto ela voava para fora da porta, um braço apareceu na frente dela. Ela parou aos tropeções, surpresa ao encontrar Susano parado na escada com o braço estendido como uma barreira em seu caminho. —Deixe-o ir. — Ele disse. Shiro, já na metade do caminho através do pátio, estava se dirigindo para as árvores. Ele passou por Yumei e Byakko sem uma palavra ou um olhar. —Eu preciso... — Ela começou. —Você precisa deixá-lo ir. — Susano interrompeu implacavelmente. —É hora de ele se lembrar do que é ser um Kunitsukami. —O que você quer dizer? —Atrasar o inevitável só vai enfraquecê-lo ainda mais. Ele já está definhando nessa forma diminuída há muito tempo. Seu estômago se apertou. Ela empurrou Susano, mas ele agarrou seu braço, puxando-a para trás. Na outra extremidade do pátio, chamas dançantes azuis e brancas ondularam sobre Shiro. A grande raposa de três caudas tomou forma nas chamas e, à medida que o fogo se apagava, ele saltou para o meio das árvores, desaparecendo de vista. Ela lutou para controlar o pânico inexplicável que florescia dentro dela. Com os dentes cerrados, ela olhou para Susano e se desvencilhou de seu aperto. Ele a soltou, não tendo necessidade de segurá-la agora que Shiro havia partido. —É hora de ele se lembrar o que é ser um Kunitsukami? — Cruzando os braços, ela deu mais um passo para longe dele. —O que isso significa? O olhar safira de Susano se desviou de Yumei para Byakko, depois se ergueu em direção ao céu escuro, seus olhos tão distantes quanto as estrelas.
—O que significa ser um Kunitsukami? — Ela repetiu. Quando ele respondeu, a única palavra soou com uma finalidade cortante. —Sozinho.
Com um destino finalmente identificado,
Susano não perdeu
tempo. Logo depois de retornar a Ajisai, o estalajadeiro chegou com uma cesta, que entregou ao Kunitsukami antes de se curvar e se retirar. Na mesa com a cesta, Susano retirou folhas de papel branco, uma pedra de tinta lisa, um bastão de tinta preta, um frasco de porcelana com água e um pincel. Emi observou com curiosidade enquanto ele molhava a pedra de tinta e começava a moer o bastão de tinta na água. Ela reconheceu os suprimentos para criar ofuda, mas ela não sabia que yokai usavam ofuda. Por vários minutos, ele preparou metodicamente a tinta antes de pegar o pincel. Ele o enrolou na tinta, mas em vez de escrever no papel, ele tocou o pincel diretamente na mesa. Ela se encolheu quando ele moveu o pincel, a tinta escura deslizando pela madeira lisa e polida em um círculo perfeito. Ele preencheu o círculo com marcas estranhas e soprou a tinta para secar. Só então ele colocou o primeiro papel no centro do círculo e começou a escrever a invocação, exceto que não era uma invocação que ela reconheceu. Certamente não era um ofuda de barreira, ligação ou purificação. Shiro, a quem ela não tinha visto desde que ele desapareceu na floresta no santuário Amaterasu, entrou na sala quando Susano estava terminando. Ele carregava um arco e uma aljava cheia de flechas em uma das mãos. Ele os
passou para Emi com apenas um olhar antes de se mover para a mesa para estudar o ofuda de Susano. Emi segurou o arco com uma das mãos, o coração na garganta enquanto ela tentava e não conseguia chamar a atenção dele. Susano observou Shiro folhear seu ofuda. —Você se lembra do seu? Shiro colocou o ofuda no chão novamente. —Não. Pegando um punhado de papéis em branco da cesta, Susano os empurrou junto com a escova para Shiro. —Tente. —Não me lembro. —Alguns conhecimentos são mais profundos do que a memória. O poder antigo tocou brevemente seus olhos. —Alguns, mas não este. Susano considerou-o, juntou os mantimentos e devolveu-os ao cesto. Ele enfiou seu novo ofuda nas mangas de seu kosode. —Yumei está preparando uma passagem através de Tsuchi para o ninho de Orochi. — disse ele a Shiro. —Você está pronto para esta batalha? —Provavelmente não. Você está? —Você nunca teria admitido isso cem anos atrás. — Susano hesitou, depois suspirou. —Também não me sinto bem preparado para enfrentar Orochi de novo tão cedo. Segurando seu novo arco e flechas, Emi se aproximou da mesa e se ajoelhou. —Susano? Posso usar seus suprimentos ofuda? Em seu aceno de permissão, ela puxou a cesta em sua direção e começou a misturar um novo lote de tinta. Quando ficou pronto, ela escreveu um conjunto
de
ofuda
de
purificação. Ao
completá-los,
ela
envolveu
cuidadosamente cada um ao redor da haste de uma flecha. Ela roubou olhares para Shiro enquanto trabalhava, mas ele não sentiu necessidade de olhar em sua direção ou estava fazendo um excelente trabalho evitando seu olhar. —O que devemos esperar de Orochi? — Ele perguntou.
Susano tamborilou com os dedos na mesa. Emi olhou para o estranho som e viu que seus dedos tinham garras escuras nas pontas. —A maior força de Orochi é sua força física. Ele não tem afinidades elementais próprias, mas é um pouco resistente à magia elemental usada contra ele. Derrotá-lo não será nosso objetivo inicial. Em vez disso, você, Yumei e Byakko irão distraí-lo para que eu possa recuperar Murakumo. Assim que estiver armado, posso destruí-lo mais uma vez. —O que aconteceu da primeira vez? — Emi perguntou, olhando para cima da flecha em sua mão. —Eu só conheço as histórias. Susano se afastou da mesa e apoiou o braço em um joelho. —Orochi já reinou sobre uma região inteira, espalhando terror por toda a terra. Ele devorou todos os kamis da área e a maior parte dos yokai. Encontrei um senhor yokai mais velho e sua senhora que fugiram do território de Orochi com sua última filha sobrevivente. Orochi os estava caçando, determinado a devorar a família inteira. Emi franziu a testa. —Orochi matando tantos yokai e kami não chamou sua atenção antes disso? —Isso foi há muito tempo. — disse ele. —Mais do que um humano pode conceber. O mundo era muito mais selvagem, com muitos yokai poderosos controlando territórios vencidos em batalha e derramamento de sangue. Era um mundo violento. O que era mais um yokai violento? Envolvendo outro ofuda em torno de uma flecha, ela tentou imaginar um mundo tão cheio de yokai malignos que um monstro como Orochi passaria despercebido. —Orochi, porém, parecia determinado a exterminar todos os yokai que cruzassem seu caminho. O senhor me contou sobre o apetite insaciável de Orochi e me implorou para agir. Quando Orochi veio buscá-los, eu o
desafiei. No entanto, sua força era mais do que eu esperava. Eu não poderia derrotá-lo, mas ele também não poderia me derrotar. Depois que ele recuou para seu território, eu o segui e novamente lutei com ele. A batalha foi feroz, pois ele havia se empanturrado de ki que não era seu por muito tempo, mas no final eu o matei. —Ele reviveu séculos depois e imediatamente me procurou em busca de vingança. Um erro tolo, pois ele estava muito mais fraco e eu o matei com facilidade. Ele reviveu duas vezes desde então, quando eu rapidamente acabei com ele. —Você pensaria que ele teria aprendido a evitá-lo. — Shiro observou. — Ele viveria muito mais tempo. —O que me pergunto... — Susano murmurou. —Se ele esperou que eu me separasse de Murakumo para agir, ou se a pura casualidade permitiu que ele roubasse minha arma de você. Ele não demonstrou habilidade nem paciência em nossos confrontos anteriores. —Se Izanami estiver envolvida, não acho que devemos supor que algo seja uma coincidência. — Quando os dois yokai olharam para ela, Emi continuou. —Orochi matou uma vila inteira de pessoas para que ele pudesse emboscar Inari e roubar a espada. Depois, Izanami mostrou a vila para Amaterasu e disse a ela que Inari havia matado todos. Ela convenceu Amaterasu de que ele se tornou instável e que seu poder precisava ser vinculado para a segurança de todos. Sua mão apertou a haste da flecha. —É por isso que Amaterasu colocou o onenju em Inari, não para machucá-lo, mas para controlá-lo. Só depois Amaterasu percebeu que Izanami a havia enganado. Assim que ela tentou tirar o onenju, Izanami matou os dois.
Shiro esfregou o peito como se lembrasse da raiz explodindo em suas costelas. —Então foi isso que aconteceu. — Susano olhou para Shiro. —Enquanto procurava por você, ouvi um boato de que você matou Amaterasu e se escondeu antes que os outros Amatsukami pudessem se vingar de você. Por anos, presumimos que você não tinha sido visto porque estava evitando a Amatsukami. Quando Uzume sugeriu pela primeira vez que você não estava se escondendo, mas sim desaparecido, a trilha era tão antiga que não sabíamos por onde começar a procurá-lo. Koyane, o vassalo de Izanami, também disse a Emi que Inari havia matado Amaterasu, e desde que ela estava morrendo naquele momento, ele não tinha motivo para mentir; ele deve ter acreditado no boato tanto quanto Susano. —Aposto que Izanami disse isso a todo mundo. — disse ela. —E desde que ela estava impedindo Amaterasu de descer, não havia ninguém para contradizê-la. Susano pensou por um momento. —Você consegue se lembrar de quanto tempo atrás, Inari? Shiro revirou os olhos para o teto pensando. —Hmm. Quinze anos? Vinte, talvez? Eu não estava contando. —Vinte anos. Duvido que tenha demorado oitenta anos para reviver. — Susano bateu uma garra na mesa. —Eu também duvido que suas memórias tenham se desbotado e distorcido tão completamente com uma única morte e renascimento. —O que você está sugerindo? —Mesmo com o ki severamente limitado, suas memórias deveriam ter retornado em algum grau, mas eu suspeito que você morreu mais de uma vez
desde que Izanami o matou cem anos atrás. Preso pelo onenju, você teria sido fácil de matar. A cada reavivamento, suas memórias e sentido do eu se tornavam mais dispersos... até que você não se lembrava de nada. Shiro olhou para a mesa, seu rosto pálido e a angústia por ele retorcia dentro de Emi. —Quando Yumei me disse que você não tinha memórias... — Susano continuou. —Eu não acreditei nele. Como tal destino pode acontecer a um de nós? Mas posso ver que é mais do que verdade, e posso ver que o dano é profundo. Você está quebrado, Inari. Eu não pensei que um Kunitsukami pudesse quebrar, mas você quebrou. E eu não sei se suas memórias serão o suficiente para torná-lo inteiro novamente. Shiro e Susano se avaliaram, palavras não ditas passando entre eles. —Bem. — disse Shiro secamente. —Se eu ficar louco depois que o onenju for tirado, tenho certeza que você vai se divertir me matando a cada poucas décadas pelo resto da eternidade. A expressão de Susano era indecifrável, mas seus olhos safira iluminaram inesperadamente um tom de cobalto suave. —Não, eu não acho que eu gostaria disso. Emi embrulhou sua última flecha em um ofuda e severamente ordenou a si mesma para permanecer calma. Você está quebrado, Inari. Ela não entraria em pânico. Ela não choraria na frente deles. Shiro, Inari, ficaria bem. Assim que o onenju fosse removido, suas memórias seriam restauradas e ele voltaria ao seu estado normal. Ela se virou para Shiro, mas ele ainda estava evitando seu olhar. Ele estava com medo se olhasse para ela, ele veria o medo nela novamente? Ou ele estava se distanciando por algum outro motivo? Ela não se atreveu a perguntar a ele com Susano na sala.
Ela olhou para a última flecha. Supondo que todos eles sobrevivessem à batalha que se aproximava, ela faria o que fosse necessário para fazer Shiro inteiro novamente.
Trovões soavam pelos penhascos distantes enquanto Emi seguia Susano e Yumei pela floresta escura. Shiro e Byakko seguiam atrás dela. Acima, estrelas espiavam por entre as nuvens que se acumulavam; o nascer do sol ainda estava a várias horas de distância. A ilha de Orochi ficava mais ao sul do que Shion e as folhas nítidas de outono ainda cobriam o chão da floresta sem neve. Sua pele arrepiou quando ela agarrou seu arco. A floresta estava estranhamente silenciosa, exceto pelo barulho abafado das ondas nas rochas. Seu arco parecia pateticamente frágil. O vento viria em seu auxílio novamente ou ela teria que lutar com nada além de sua força humana? —Eu não sinto a presença de Orochi. — Yumei murmurou. —Este é o lugar correto? —Sim. — respondeu Susano, igualmente quieto. —Orochi pode não estar aqui, mas Murakumo me chama. Está perto. —Você já pode sentir isso? — A cabeça de Yumei girou. —Tenha cuidado. É improvável que Orochi a deixasse desprotegida. Susano abriu o caminho mais fundo nas árvores, as folhas esmagando-se sob seus pés. A floresta se estendia indefinidamente, o solo subindo e descendo em ladeiras e colinas cada vez maiores. Suas pernas queimavam com o esforço. Claro, nenhum dos yokai mostrava qualquer sinal de fadiga.
Enquanto caminhava atrás deles, ela olhou de Susano para Yumei, então para Shiro e Byakko atrás dela. Quatro poderosos yokai, entre os mais poderosos a caminhar pela terra. Yumei conhecia poucos desafios, e Susano e Shiro eram Kunitsukami. Mesmo enfraquecidos, eles eram formidáveis. O que ela estava fazendo aqui? O que ela, uma humana, estava fazendo com essas criaturas poderosas de outro mundo? Ela tentou esconder sua respiração difícil enquanto lutava para acompanhar. Os yokai estavam se movendo rapidamente, forçando-a a trotar a cada poucos passos. Conforme o terreno ficava mais íngreme, a distância entre ela e Yumei aumentava. Ela empurrou com mais força, as folhas voando sob suas sandálias e seu quimono totalmente inadequado arrastando atrás dela. Ela deveria ter insistido em algo mais para usar, ou pelo menos um calçado mais apropriado. O que ela estava fazendo, caminhando por uma floresta estranha com quatro yokai que podiam mudar de forma e voar e lançar magia letal com um movimento de suas mãos? Ela não pertencia a eles. Ela deveria ter ficado para trás, onde ela não iria atrapalhar. Com um farfalhar de folhas, Byakko a alcançou. Ela tropeçou quando o yokai avançou para ocupar o lugar atrás de Yumei. Cerrando os dentes, ela cambaleou para frente, apressando-se ao mesmo tempo que um ponto apertava sua caixa torácica. Em sua pressa, seu pé se prendeu em uma raiz escondida e ela tropeçou em pernas cansadas. Uma mão agarrou seu cotovelo, puxando-a para cima. Shiro encontrou os olhos dela pela primeira vez desde que ele deixou o santuário Amaterasu. —Estou bem. — disse ela sem fôlego antes que ele pudesse comentar. — Eu posso acompanhar.
Ele a considerou, então olhou para frente, onde Susano, Yumei e Byakko eram meras sombras na escuridão. —Você uma vez me disse que mesmo quando não precisasse de ajuda, você deve aceitar de qualquer maneira, porque é mais fácil assim. —Quando eu disse isso? —Quando você praticamente me jogou na banheira porque eu estava muito sujo para olhar. —Oh. — Ela se lembrava agora. Coberto de lama e sangue coagulado, ele apareceu em seu quarto para contar a ela sobre a pista de Yumei em um Amatsukami. Ela disse algo sobre aceitar ajuda porque era mais fácil, não disse? Ele tinha sido tão teimoso em não precisar de nada dela. —Acho que sim. Ele a olhou de soslaio. —Então você caiu sobre si mesma e jogou uma tigela de comida no meu colo porque não conseguia manter os olhos no meu rosto. Você se lembra dessa parte? —Eu não! — Ela engasgou, embora fosse uma descrição precisa de sua reação ao estado sem camisa dele. O calor queimou em suas bochechas. Sua boca se curvou em um sorriso, um canino pontudo brilhando à luz das estrelas. Seus olhos se arregalaram e seu estômago caiu. Lágrimas ameaçaram escorrer por seu rosto e, sem pensar, ela se jogou contra o peito dele, agarrando-se ao kosode. —E-Emi? — ele gaguejou, cambaleando meio passo para trás. —O que...? —Sinto muito. — ela sussurrou, agarrando-o. Ela não o tinha visto sorrir daquele jeito desde que saiu das cavernas com Susano. Ela estava com tanto medo de nunca mais ver aquela expressão, nunca mais ver seu provocador e travesso Shiro. Ela temeu que ele já tivesse partido para sempre. —Senti sua falta.
—Sentiu minha falta? — Seus dedos pegaram seu queixo e ele ergueu sua cabeça para que pudesse olhar para seu rosto. —Do que você está falando? —Eu só... você não tem... — Ela administrou um sorriso vacilante. —Eu senti falta de você me provocando. Ele fez uma careta. —Você não deveria gostar. A ideia é irritar você. Seus sentimentos de afeto esmaeceram e ela devolveu sua carranca. — Eu sabia que você estava me irritando de propósito todo esse tempo. Por que você faz isso? Seu sorriso reapareceu. —Porque quando você está irritada, seus olhos piscam e suas bochechas ficam rosadas e você faz beicinho para mim. — Ele roçou o polegar sobre seu lábio inferior. —Bem desse jeito. —Eu não, você, eu não... — Suas bochechas queimaram mais quentes. — Você é horrível! —Obviamente não, já que você acabou de dizer que sentia minha falta. Você também ainda está espremendo o ar dos meus pulmões. —Eu não estou! — Ela exclamou, abrindo os braços como se ela não tivesse acabado de segurá-lo com força. Seus braços se fecharam ao redor dela e ele a tirou do chão. —Shiro! — Ela reclamou, tentando se livrar. Ele a segurou com mais força enquanto caminhava para frente, seus longos passos comendo o chão com facilidade. —Não reclame. —Eu não estou reclamando! —Por que se exaurir se você não precisa? Carregar você não me custa nada. Guarde sua força para a luta. Franzindo a testa, ela ajustou o arco e a aljava no ombro. —Já sou a mais fraca aqui. Se eu não consigo nem andar rápido o suficiente para acompanhar, qual é o sentido de eu ir?
—Alguém sugeriu que você ficasse para trás? Ela piscou, surpresa ao perceber que ninguém tinha. —Não… —Se Yumei não quisesse você aqui, você sabe que ele teria te contado isso. Nenhum de nós acha que você é fraca, Emi. Um estranho calor apertou seu peito quando ela olhou para ele. Não havia nenhum indício de decepção em seus olhos, nenhuma mentira ou exagero, nenhuma provocação ou humor. —Mas... —Você provou a si mesma. Você provou sua força para todos nós. Você entrou nas cavernas sozinha. Você entrou nas profundezas da montanha através de nuvens de veneno e carregou Susano para fora. Você fez o que nenhum de nós poderia fazer. —Só porque o veneno não me afetou da mesma maneira... —Isso importa? Nós não poderíamos fazer isso. Você fez. Vimos como você estava quando saiu. Quantas vezes você caiu e bateu os joelhos daquele jeito? Mas você continuou. —Isso me torna teimosa, não forte. — Ela murmurou. —A força vem em muitas formas. Susano sabe disso. Você não pode dizer que ele te respeita? Se não o fizesse, ele teria matado você no momento em que você se colocou entre nós. Ele trata você como um yokai, não como uma humana. Ele ouve você, fala com você. Lembra como Yumei mal falou com você quando você o conheceu? Ela escondeu o rosto em seu ombro. Ela não tinha percebido que Susano não a tratava de maneira diferente de Yumei e Byakko, mas agora que Shiro havia apontado, ela percebeu o quão surpreendente isso era. Ela era apenas uma humana, mas um Kunitsukami falava com ela como se ela fosse um dos seus.
—Eu ainda não acho que serei útil contra Orochi. —Eu duvido que eu seja muito útil também. — confessou Shiro. — Vamos apenas ficar fora do caminho e deixar Susano e Yumei fazerem o trabalho. —Você viu Yumei fazer sua coisa de sombra? — Ela perguntou. — Quando ele lutou contra Jorogumo, ele fez a floresta escurecer e transformou as sombras em soldados corvos. Ele ergueu uma sobrancelha. —Eu também ouvi que você saltou de uma árvore e a esfaqueou nas costas com uma flecha antes que ela pudesse fazer outro buraco nele. —Ele, ele te disse isso? —A contragosto. — disse ele com diversão óbvia. —Ele não está muito satisfeito que uma humana o tenha salvado. Ela descansou a cabeça em seu ombro, recuperando o fôlego enquanto ele se arrastava atrás dos outros três yokai. O terreno foi ficando cada vez mais íngreme, até que Shiro estava escalando mais do que caminhando, e ela estava ainda mais grata por não ter que acompanhá-lo. Seu peso não parecia incomodá-lo. Era uma tolice, especialmente considerando que eles estavam invadindo o covil de um inimigo temível, mas ela não podia deixar de apreciar sua proximidade, seu calor, seu perfume amadeirado. Ela acalentava a memória de seu sorriso provocador, aliviada por ele ter recuperado um pouco mais de seu estado normal. E, por baixo disso, a memória de beijá-lo em Ajisai continuava ameaçando vir à tona. Ela firmemente se recusou a revisitar aquilo... embora ela já tivesse voltado a ela em seus sonhos.
Seu estômago embrulhou. Ela tinha beijado um Kunitsukami. Mas ele não era realmente Inari, ainda não. Ele era apenas Shiro, seu kitsune provocador que a irritava porque ele gostava dela fazendo beicinho. O terreno subiu até chegarem ao topo de uma crista rochosa. Do outro lado, a terra caía, revelando uma cratera enorme e antiga que já fora a boca de um vulcão. Agora era uma floresta de árvores jovens carregadas de folhagem de outono, sua cor sugada pela luz das estrelas. —Murakumo está em algum lugar no centro. — Disse Susano. —Você sente Orochi? — Yumei perguntou. —Não. —Nem eu. —Talvez a sorte esteja conosco. — Byakko murmurou. —E a besta não está presente. Eles começaram a descer a borda íngreme da cratera. Os quatro yokai alternaram entre pular e deslizar pela encosta rochosa até que as árvores se espessassem demais para que eles se movessem rapidamente. Emi passou a se agarrar às costas de Shiro, liberando seus braços para que pudesse empurrar os galhos baixos. Ela rapidamente sentiu saudades das florestas antigas, com suas árvores enormes e arbustos esparsos. O ritmo deles diminuiu para um engatinhar e até mesmo Shiro, que normalmente se movia tão silenciosamente para nunca trair um passo, teve que trabalhar para se mover com o mínimo de ruído no mato. Eventualmente, o solo nivelou novamente. Quando entraram em uma pequena clareira com o leito de um lamaçal há muito seco, Susano fez sinal para que parassem. —Murakumo está perto. — ele murmurou. —Esperem aqui.
Ele deslizou silenciosamente para a floresta. Emi deslizou das costas de Shiro e esticou a coluna, lutando contra seus nervos erráticos. Sua pele formigava incessantemente com a sensação de olhares atentos. —Por que Orochi não está aqui? — Shiro perguntou baixinho. —Por que ele não está guardando a espada? —Cem anos se passaram desde que ele a roubou. — respondeu Yumei. —Talvez ele tenha relaxado em proteger seu troféu. Pairando ao lado de Shiro, Emi tirou o arco de seu ombro, apenas no caso, e esfregou a mão na nuca para acalmar a sensação de arrepio em sua pele. Ela bufou em uma tentativa vã de liberar alguma tensão. Eles esperaram em silêncio enquanto os minutos passavam. O ar estava desagradavelmente frio, mas não tinha a picada gelada do norte. Ela se pegou tremendo de qualquer maneira quando sua atenção disparou sobre a clareira de sombra em sombra. —Yumei? — Ela sussurrou quando não aguentou mais. —Você não vê nada, não é? — Ela tinha quase certeza de que ele podia ver no escuro melhor do que ela em plena luz do dia. —Eu não diria nada se visse? — Ele respondeu irritado. —O que há de errado? — Shiro perguntou a ela. —Nada. — ela murmurou. —Estou apenas me sentindo paranóica. Seus olhos se estreitaram. —Você tem certeza? —Eu só... sinto que estamos sendo observados. — Ela balançou a cabeça rapidamente, envergonhada por ter mesmo admitido. —Não é nada. Estou imaginando coisas. —Você está? — Ele murmurou, dando a Yumei um olhar significativo. O Tengu entrou em movimento, rondando em direção a uma das extremidades da clareira. Byakko deslizou em direção à outra extremidade e os dois yokai
começaram um círculo lento e metódico ao redor do perímetro, inspecionando a escuridão além das árvores. Shiro estava ao lado dela, suas orelhas girando para captar cada som. — A quanto tempo? Ela piscou em confusão, arrastando sua atenção para longe de Yumei. — Quanto tempo o quê? —Há quanto tempo você sente que estamos sendo observados? —Hum, dez minutos, talvez? —De qual direção? Ela fechou os olhos, concentrando-se na sensação de formigamento de observadores invisíveis, então apontou. —Por lá. Ela abriu os olhos enquanto Yumei, Byakko e Shiro giravam para encarar a direção que ela havia indicado. Suas bochechas coraram. —Eu não acho... Com um leve farfalhar, Susano saiu das sombras na direção oposta. —Eu posso sentir Murakumo, mas não consigo encontrar. Parece... — Ele se interrompeu, carrancudo. —O que está acontecendo? —Emi acha que estamos sendo observados. — Disse Shiro. —Eu... eu provavelmente estou apenas imaginando coisas. — ela disse desesperadamente, incapaz de acreditar que eles estavam levando seu caso de nervos tão a sério. —Se nenhum de vocês pode sentir nada, então... —Então, talvez nosso adversário saiba como se esconder dos sentidos yokai. — interrompeu Susano. —Um kami pode perceber coisas que nós não podemos. —Eu não sou uma kami. —Não, mas você é mais do que humana. Antes que ela pudesse responder, Shiro arrancou uma flecha da aljava em seu ombro e a estendeu para ela. —Dispare isso.
—Em quê? Ele acenou com a cabeça em direção às árvores onde ela apontou. — Nessa direção. —Mas...— Quando ele apenas olhou para ela com expectativa, ela encaixou a flecha na corda e relutantemente ergueu o arco. —Você tem certeza? —Muita certeza. Apertando os lábios, ela puxou a corda de volta para sua bochecha e focou sua vontade. A única coisa pior do que quatro yokai ultra-poderosos pensando que sua paranóia humana era real seria atrapalhar seu feitiço de purificação também. —Shukusei no tama. — Ela sussurrou. Ela lançou a flecha e disparou através da clareira nas árvores. Ela esperava o baque de um impacto com um tronco ou o som deslizando dele caindo no chão. Ela não estava esperando o baque estranhamente maçante que soou em vez disso, ou o lampejo de luz brilhante através das árvores. —Ah. — Shiro disse com um sorriso satisfeito. —Lá se vai a barreira deles. Um formigamento de ki quente deslizou sobre sua pele, mas não era ki yokai. Era ki kami. Algo farfalhou na escuridão. Yumei ergueu as mãos e a luz vermelha ondulou em fitas estranhas sobre suas palmas. A luz se retorceu e se solidificou na longa lança negra que ele usou para matar Jorogumo. Byakko sacou Kogarashi, a espada com poder sobre o vento que ele emprestou a ela. Shiro apenas colocou uma mão no quadril, sem fazer nenhum movimento para convocar suas lâminas gêmeas.
Da escuridão, uma figura emergiu. Um uniforme sohei em cores escuras envolvia uma forma esguia e, quando a luz das estrelas iluminou a cabeça da pessoa, Emi ficou surpresa ao ver os traços mais suaves do rosto de uma mulher. Com um bastão laminado em uma das mãos, a kami olhou para os quatro yokai com olhos escuros em um rosto desumanamente belo. Com passos suaves, mais dois kami em roupas sohei saíram da escuridão das árvores para flanquear a mulher, e atrás deles, ainda mais sombras tomaram forma. O medo fez os membros de Emi ficarem frios. Pelo menos uma dúzia de kamis. Yumei mal conseguiu derrotar Koyane. Eles tinham alguma chance contra tantos? A kami feminina focou em Emi. —Kamigakari. — Embora ela não usasse nenhum volume significativo, ela também não falou em voz baixa, e sua voz monótona soou alto na noite tranquila. —Eu pretendia pegar os Kunitsukami vivos, mas desde que você destruiu minha barreira e interrompeu nossos preparativos, não tenho escolha a não ser matá-los. —Fascinante. — Shiro disse, seu tom seco muito mais baixo que o dela. — Embora seja extremamente generoso de sua parte nos dizer isso, você se importaria de manter sua voz baixa? —Eu informo a kamigakari para que, quando eu a apresentar à minha senhora, ela possa confirmar o que eu disse. —Você ouviu isso, pequena miko? Certifique-se de dar nosso amor a Izanami. Enquanto isso, cale a boca, kami. —Não serei silenciada por gente como você. — disse a mulher em voz alta, quebrando novamente o silêncio. —Minha senhora antecipou sua chegada aqui uma vez que foi descoberto que Susano tinha escapado, e eu irei...
—Sim,
sim.
—
Shiro
interrompeu. —Mas
você
pode
fazer
isso silenciosamente? O lábio superior da mulher se curvou. —Vejo que sua insolência não diminuiu por um século de fraqueza patética, Inari. Sua arrogância equivocada será corrigida em breve. Ela ergueu a mão em um gesto de comando. A dúzia de kamis atrás dela avançou até ficarem em uma linha curva em uma das extremidades da pequena clareira. O ar esquentou com o crescimento do ki que os pressionou como um peso invisível. —Yumei. — Shiro disse tão suavemente que suas palavras foram quase inaudíveis. —Para mim. Onde ele estava mais próximo dos kami, Yumei se moveu para trás em pés silenciosos, retirando-se até ficar um passo longe de Shiro. —Recuar não vai te salvar! — A kami anunciou, aparentemente determinada a falar o mais alto possível. —O que é isso? — Yumei assobiou. Do outro lado de Shiro, Susano e Byakko se aproximaram. —Eu não sei. — Shiro sussurrou laconicamente. —Estou tentando me lembrar. —O que? — Yumei rebateu. A kami ergueu seu cajado e apontou a lâmina para os cinco amontoados. —Em nome da minha senhora, vou matar vocês, Kunitsukami! —Ela está protelando. — Byakko sussurrou. —Eles estão preparando uma armadilha. Deveríamos... —Espere. Eu me lembro agora.
Contra toda sabedoria, os três yokai desviaram o olhar do inimigo para encarar Shiro. Astúcia ancestral brilhava em seus olhos enquanto ele ria baixinho, uma risada rouca e perversa que Emi nunca tinha ouvido dele antes. —Espero que você esteja pronto para isso, Susano. — Sussurrou ele. A surpresa cintilou no rosto de Susano. —O que... —Shhh. — Shiro passou um braço pela cintura de Emi, puxando-a para perto, e baixou a voz para um sussurro. —Só não... faça... um som. A kami olhou para trás e quando ela se virou, o triunfo esvoaçou em suas feições perfeitas. —Kunitsukami! É hora de... A kami parou quando o chão tremeu, a confusão substituindo sua euforia quando ela olhou para baixo. Com um estrondo ensurdecedor, a floresta atrás dos kami se ergueu. As árvores voaram e uma nuvem de sujeira e poeira ferveu para fora. Todos os kami giraram, a magia saltando para suas mãos. Uma forma enorme surgiu da nuvem de sujeira. Uma boca aberta forrada por presas gigantes se fechou sobre a kami, envolvendo-a dos ombros às coxas, antes de se retrair de volta para a nuvem escura com o estalo úmido de ossos quebrados. Por uma única batida que pareceu durar muito mais, ninguém se moveu. Então, com gritos alarmados, os kami restantes se afastaram. O solo se ergueu novamente, as árvores arrancando da terra. Outra monstruosa cabeça de réptil saiu da escuridão, dentes pontiagudos brilhando. Ele agarrou dois kami em suas mandíbulas e os ergueu no ar. Jogando a cabeça para trás, ele os esmagou em uma única e horrível mordida. Sangue choveu do céu. A compostura dos kami se quebrou e eles dispararam em todas as direções. Mais duas cabeças de dragão saíram das árvores, raízes e sujeira
ainda agarradas às escamas escuras enquanto atacavam os kami em fuga. Gritos e o som de ossos quebrando encheram a floresta. O braço de Shiro apertou Emi e ele a puxou para trás. Com Susano, Yumei e Byakko seguindo, eles recuaram com passos lentos e cautelosos por várias dezenas de metros antes de Shiro se virar e começar a correr em disparada. Com os outros em seus calcanhares, ele correu, escalando a lateral da cratera até passarem pela linha das árvores. Ele parou na grama rochosa e se virou. Abaixo, no centro da cratera, uma sombra imensa se ergueu, oito pescoços longos e ondulados encimados por cabeças angulares e mandíbulas pesadas. Gritos ecoaram na escuridão enquanto as cabeças mergulhavam nas árvores e se erguiam novamente, agarrando-se aos corpos em luta que devorou rapidamente.
Emi recostou-se em Shiro, tremendo da cabeça aos pés. —É... ele é... —Susano disse que Orochi era grande. Ela balançou a cabeça. Grande nem mesmo começava a descrever a monstruosidade de oito cabeças. Ela não conseguia pensar em uma palavra para abranger o quão impossivelmente enorme o dragão era. —Inari. — Os olhos safira de Susano se agitaram como nuvens. —O que você lembra? —Uma impressão um tanto vaga e pouco clara dele saltando do chão e quase arrancando meu braço. — Ele encolheu os ombros. —Eu estava indo mais por instinto do que por memória. —Você se lembra de mais alguma coisa? —Nada útil. Susano voltou-se para a cratera onde a sombra da besta gigantesca estava destruindo a floresta em busca dos kamis sobreviventes. —Isso é lamentável, porque pelo que posso sentir, Murakumo está diretamente abaixo dele.
Sob a copa das árvores, Emi se aconchegou ao lado de Shiro e tentou controlar seu terror fervente. Os rosnados profundos de Orochi reverberavam na escuridão, o volume flutuando conforme as cabeças invisíveis se aproximavam ou se retiravam. Mesmo sabendo que eles estavam fora do alcance do dragão, cada vez que o volume de seus rosnados aumentava, ela se pressionava mais perto de Shiro. A silhueta de uma cabeça de dragão passou pela abertura nos galhos acima deles. Um momento depois, uma pequena sombra alada passou correndo, deixando rastros de magia vermelha. A maior forma de corvo de Yumei pode ser mais adequada para lutar contra o dragão, mas sua forma humana alada era mais ágil e seu objetivo era distrair e agravar Orochi, não lutar contra ele. Em algum outro lugar na escuridão, o tigre branco que era a verdadeira forma de Byakko também estava provocando Orochi no ar. Susano estava no chão, esperando sua chance de arrebatar Murakumo de debaixo da barriga da fera. Ela estremeceu ao lado de Shiro, grata, mas também culpada por ter sido relegada a um segundo plano. Shiro provavelmente poderia ter ajudado a distrair Orochi, mas Susano ordenou que ele a protegesse. Então, eles esperavam a uma distância relativamente segura.
A mandíbula de Shiro estava tensa, suas orelhas girando enquanto seguiam os sons do dragão. Mesmo admitindo que não seria muito útil contra Orochi, ele claramente não gostava de esperar inutilmente enquanto os outros se arriscavam. Outra cabeça de Orochi passou rapidamente por sua linha de visão, rosnando alto. O tom de seus grunhidos e a agitação de seus movimentos pareciam aumentar. Estava funcionando? Assim que Susano tivesse sua espada, ele seria capaz de assumir a batalha e mais uma vez derrotar Orochi. Um berro alto quebrou a noite. A sombra de Yumei cruzou sua visão pela segunda vez, uma cabeça de dragão em rápida perseguição. —Cuidado. — Shiro murmurou, seus olhos fixos no céu. —Cuidado, Yumei. Ele é mais rápido do que parece. Yumei voltou na direção oposta. Suas asas se dobraram e ele despencou para baixo. Uma cabeça se lançou no local onde ele acabara de estar, suas mandíbulas agarrando as pontas de sua asa emplumada. Shiro respirou fundo enquanto Yumei girava, perdendo o equilíbrio. Mais duas cabeças chicotadas para cima, fechando em cada lado. Yumei abriu as asas e disparou sob um crânio com chifres. A segunda cabeça girou, mais rápido do que deveria ser possível para algo tão grande. Antes que Yumei pudesse evitá-lo, a imensa cabeça se chocou contra ele. O golpe o lançou contra o chão e ele desapareceu de vista. Emi tapou a boca com as mãos. Quão forte o dragão o atingiu? Quão prejudicial foi esse impacto? Ao lado dela, Shiro irradiava tensão, com as mãos cerradas e as orelhas coladas à cabeça. Em silêncio, eles esperaram enquanto os segundos passavam. Yumei não reapareceu. As cabeças do dragão balançaram para
frente e para trás, mergulhando e subindo em movimentos incomuns. Então Emi entendeu o que elas estavam fazendo. —Elas estão procurando por ele. — ela sussurrou freneticamente. —Elas estão procurando o local onde Yumei caiu. Shiro rosnou uma maldição e segurou-a pelo braço, puxando-a para trás. Ela agarrou seus ombros e puxou-se de costas. Ele se lançou para frente, saltando por entre as árvores. Entre a escuridão e a vegetação rasteira, ela mal conseguia ver para onde estavam indo, e esperava que a mesma falta de visibilidade os ocultasse de Orochi. Acima, os rosnados enfurecidos do dragão vibravam no ar e estremeciam através dela. Quando Shiro entrou no alcance das cabeças ondulantes de Orochi, ele diminuiu a velocidade para um trote cauteloso, desviando da folhagem mais densa para reduzir o ruído de sua passagem. Ele congelou no lugar quando uma vasta sombra passou pelas copas das árvores próximas, uma exalação alta farfalhando as folhas. Esgueirando-se para frente novamente, ele escorregou pela vegetação rasteira na direção em que Yumei havia caído. Ela se perguntou desesperadamente como eles o encontrariam na floresta escura. Shiro virou a cabeça, orelhas girando enquanto vasculhava as árvores. Suas narinas dilataram e ela percebeu que ele estava rastreando Yumei pelo cheiro. Com uma lentidão meticulosa, eles silenciosamente caminharam pela floresta, com as cabeças de dragão passando por cima deles repetidas vezes. Eles encontraram Yumei caído de bruços nos restos de uma árvore que ele havia arrancado ao pousar, suas asas espalhadas desajeitadamente no chão. Deixando Emi escorregar de suas costas, Shiro se agachou ao lado do Tengu e murmurou seu nome com um olhar inquieto para o céu escuro. O
sangue escorria pelo lado do rosto de Yumei e emaranhava em seu cabelo escuro. Emi ajoelhou-se do outro lado e cuidadosamente segurou uma das asas. Ela cuidadosamente desembaraçou as longas penas pretas dos galhos da árvore caída e guiou a asa fechada contra suas costas. —Yumei. — Shiro disse novamente, apertando seu ombro. —Hora de acordar. Seu intervalo acabou. —Shiro. — ela sibilou em advertência. —Ele não está descansando. Ele está ferido. —Ele está bem. Os olhos de Yumei se abriram, íris prateadas brilhando à luz das estrelas. —Estou bem. Ela suspirou de alívio por ele ter acordado. —Se você estivesse bem, não estaria deitado no chão. — Ela apontou exasperada. Ele puxou sua outra asa e se levantou. —O dragão bate forte. —Eu não acho que isso está funcionando. — Shiro disse, puxando Yumei de pé. —Não importa o que você e Byakko façam, Orochi não se esquecerá de guardar a espada. Ele deve saber que Susano está aqui. Yumei se encostou em Shiro, ofegando silenciosamente. Emi o observava ansiosamente, com medo de vê-lo demonstrando fraqueza. Ele estava muito ferido? Ele provavelmente não admitiria se estivesse ferido, especialmente se seus ferimentos não fossem visíveis, como ossos quebrados pelo ataque de Orochi e seu subsequente impacto em uma árvore. O estalo alto e violento dos galhos acima foi o único aviso. Shiro agarrou Emi e Yumei e saiu correndo. Lá de cima, uma forma enorme se espatifou nas árvores. Orochi bateu com o focinho na terra, arrancando um bocado de raízes.
Deslizando e mal conseguindo manter o equilíbrio, Shiro girou, puxando Emi e Yumei com ele. A cabeça monstruosa se voltou para eles. Os olhos escuros de Orochi brilharam sob as sobrancelhas grossas cobertas por escamas em tons de terra. Uma espessa juba de pelo preto emoldurava a cabeça enorme e ondulações semelhantes a chifres se projetavam do emaranhado. As narinas do dragão dilataram-se e seus lábios escamosos puxaram para cima, revelando fileiras de enormes dentes pontiagudos. Uma segunda cabeça quebrou a copa da floresta. Pegando Emi em seus braços, Shiro mergulhou para um lado e Yumei saltou para o outro. A primeira cabeça chicoteou em direção a eles e Shiro saltou entre duas árvores. O dragão passou direto pelos obstáculos, estilhaçando os troncos e suas presas monstruosas estalaram na direção deles. Shiro girou em um pé e saltou na direção oposta, diretamente para o dragão. Ele pousou no nariz de Orochi e correu até o rosto do dragão. Com um rosnado furioso, Orochi jogou a cabeça para cima, catapultando Shiro para o ar. Emi sufocou um grito enquanto voavam acima do dossel da floresta antes de cair por entre as árvores. Shiro pousou na serapilheira com um baque pesado e disparou, segurando Emi com força. Com o estalo de um tronco de árvore se estilhaçando, outra cabeça de dragão caiu na frente deles. Shiro derrapou e se retorceu, batendo na lateral da cabeça em vez de na mandíbula aberta. Com um golpe rápido de seu imenso crânio, Orochi jogou Shiro no chão. Ele caiu em cima de Emi, esmagando o ar de seus pulmões. As marcas em seu rosto se iluminaram com um brilho feroz e o fogo explodiu para fora dele, inofensivo para Emi, mas acendendo as árvores próximas como se tivessem sido encharcadas com óleo.
Orochi se afastou das chamas e Shiro se levantou e recuou com passos rápidos, puxando Emi com ele. Três caudas fantasmas chicoteavam atrás dele enquanto seus kitsunebi ganhavam vida ao redor deles. A cabeça de Orochi se ergueu, observando-os enquanto flutuava mais perto em seu pescoço curvo de cobra. As orelhas de Shiro giraram para trás. Ele girou e a agarrou. Uma segunda cabeça saiu do meio das árvores enquanto a primeira era arremessada na direção deles. Preso entre as duas, Shiro saltou para cima. As duas cabeças se juntaram e os dentes pegaram a bainha do quimono de Emi, puxando-a e Shiro para baixo novamente. O material se soltou, mas ela foi arrancada das garras de Shiro. Ela caiu e bateu no chão. Shiro pousou em uma cabeça de dragão e rolou para longe. Mal ficando de pé, ele cambaleou para trás quando a segunda cabeça o atacou. Os dentes gigantes morderam seu antebraço direito, envolvendo sua mão. Com um rosnado cacarejante, o dragão sacudiu a cabeça para cima, erguendo Shiro para o céu. —Não! — Emi gritou, lutando para ficar de pé. A cabeça do dragão se ergueu, Shiro pendurado pelo braço preso. O fogo faiscou em sua outra mão e uma espada curta tomou forma. Ele enfiou a lâmina em chamas na parte inferior da mandíbula de Orochi, enterrando-a até o cabo, mas o aperto do dragão não vacilou. Saindo da escuridão, mais cabeças de dragão balançaram em direção a que segurava Shiro. Em outro momento, um segundo conjunto de mandíbulas iria rasgá-lo. Emi puxou o arco do ombro e pegou uma flecha. Ela tinha segundos. Sem tempo para planejar, para pensar. Puxando a corda de volta,
ela convocou cada grama de vontade, cada grama de poder e canalizou em sua flecha. Ela nem teve tempo para pensar na invocação. Assim que as penas tocaram sua bochecha, ela atirou. O vento explodiu ao redor dela quando a flecha foi atirada na direção da cabeça ondulante do dragão. As rajadas se juntaram ao redor da flecha brilhante, formando uma espiral de lâminas brilhantes. Atingiu o olho esquerdo do dragão. Lâminas de vento e força branca explodiram para fora, abrindo um buraco na lateral do rosto de Orochi. Sua cabeça estalou para trás, as mandíbulas se abrindo em um grito de dor. As outras sete cabeças lançaram-se para o céu, soltando seus próprios gritos ensurdecedores de sofrimento compartilhado até que o som ameaçou despedaçar o mundo. Livre das garras do dragão, Shiro mergulhou de volta ao chão, desaparecendo de sua vista em algum lugar perto da base dos pescoços se contorcendo. Ela teve apenas um segundo para entrar em pânico sobre sua segurança antes de perceber que ele não era o único em perigo imediato. Em uníssono quase perfeito, todas as oito cabeças se voltaram para ela, quinze olhos negros olhando para ela onde ela estava bem à vista entre as árvores caídas. Com presas gigantes à mostra, as oito cabeças correram atrás dela. Saindo da escuridão, um borrão brilhou em sua direção. Yumei a agarrou do chão enquanto suas asas se alargavam. A cabeça mais próxima se inclinou em direção a eles, suas mandíbulas abertas a um instante de se aproximar dela e de Yumei. Uma rajada uivante explodiu sob eles, pegando as asas de Yumei e catapultando-os no ar, direto através das mandíbulas de Orochi. Os dentes do dragão se fecharam, tão perto que rasgaram a bainha esfarrapada de seu
quimono. Yumei acelerou em direção ao céu enquanto as oito cabeças se erguiam com eles. Ele puxou suas asas e girou, evitando outro par de mandíbulas estalando. Finalmente escapando do alcance do dragão, ele se virou para Orochi, suas asas batendo forte para mantê-los no ar. Oito cabeças enormes ondulavam no ar, os pescoços incrivelmente longos se curvando e recurvando como cobras. Elas se encontravam na base em um grotesco aglomerado de escamas e músculos que se projetavam do solo. O resto do corpo de Orochi estava submerso na terra, e em algum lugar embaixo dele estava Murakumo. Enquanto Orochi permanecesse enterrado no solo, Susano não conseguiria alcançar sua espada. Em um redemoinho de escuridão, uma horda de corvos espectrais de Yumei se formou nas sombras da floresta e se ergueu para pairar ao redor deles, seus olhos vermelhos encarando o dragão. Do outro lado de Orochi, o grande tigre branco rondava no ar. Emi não conseguia ver Susano ou Shiro. Yumei a segurava com um braço ao redor de sua cintura, sua lança na outra mão. A magia vermelha enroscava-se no cabo e deixava um rastro nas pontas de suas asas emplumadas. —Você pode disparar outra flecha? Sua voz, cheia de cavernas escuras e céus noturnos antigos, deslizou sobre ela, fazendo-a estremecer. Seus olhos de prata sólida brilharam fracamente. —Eu... eu acho que sim. — Ela disse. Esforçando-se para respirar fundo com o aperto doloroso dele em torno de sua caixa torácica, mas não ousando pedir-lhe para afrouxar o aperto, ela puxou outra flecha e a encaixou no arco. Erguendo-a, ela tentou mirar em uma
das cabeças de Orochi enquanto ela e Yumei subiam e desciam a cada batida de suas asas. Pela segunda vez, ela puxou a corda de volta à bochecha, convocando seu ki para preencher a flecha. O vento aumentou, aumentando em torno da ponta da flecha. As cabeças de Orochi recuaram. Todas as oito mandíbulas se abriram e soltaram rugidos ensurdecedores. Onde os pescoços se juntavam e afundavam no solo, a terra se ergueu. As árvores se ergueram e tombaram, arrancadas de suas raízes e pedaços gigantes de terra se espalharam em todas as direções. Sob o solo, o corpo colossal de Orochi se ergueu. O torso longo e grosso de escamas terrestres era absolutamente gigantesco, com pernas curtas que pareciam grotescamente pequenas em comparação. Uma única cauda pesada se soltou da terra, rolando sobre as árvores enquanto batia de lado a lado. Orochi se ergueu com suas pernas inadequadas. Mover seu corpo gigantesco com aquele horrível aglomerado de cabeças era quase impossível, mas parecia que o dragão não pretendia mais permanecer imóvel. Yumei bateu suas asas para baixo, levantando-os mais alguns metros. — Parece que ele não deseja suportar mais uma de suas flechas. Mire novamente. Emi puxou novamente a corda até a bochecha. Orochi rugiu. O ar ao redor do dragão cintilou e o ki vil e abrasivo estremeceu no ar. Suas escamas marrons começaram a cintilar e brilhar. As cabeças se retorceram violentamente e uma estranha ondulação as percorreu. A luz brilhou intensamente, cegando-a. Ela recuou, o arco balançando em suas mãos. Pontos dançaram em sua visão quando ela voltou. O agrupamento de cabeças de Orochi havia desaparecido. No chão, onde o corpo do dragão estivera, havia uma massa se contorcendo de formas
semelhantes a cobras. Enquanto Emi assistia com horror, o nó torcido se separou, separando-se em oito dragões independentes totalmente formados. —O que...? — ela engasgou, seu objetivo oscilando. —Ele, você sabia que ele poderia fazer isso? —Eu não. — Yumei rosnou. —E Susano não mencionou isso. Orochi não era mais um dragão de oito cabeças, mas oito dragões de uma cabeça. Com foles triunfantes, três das oito criaturas serpentinas saltaram do chão. Elas subiram sem nenhum esforço aparente, ondulando sem peso no ar, diretamente em direção a ela e Yumei. Emi puxou a corda de volta para sua bochecha e disparou. A flecha atingiu o dragão líder, mas com agilidade chocante, disparou para fora do caminho da flecha. A falta de manobrabilidade de Orochi tinha sido sua única desvantagem, mas esses dragões separados claramente não tinham essa limitação. Embora sua massa combinada não chegasse nem perto de sua forma original, eles compensavam seu tamanho menor com velocidade, e menor era totalmente relativo. Eles ainda eram enormes. Mandíbulas se abrindo em antecipação, os três dragões lançaram-se pelo ar em direção a eles. O braço de Yumei apertou com mais força ao redor dela e ele dobrou suas asas. Eles caíram, mergulhando em direção à floresta. Os dragões mergulharam
em
perseguição
enquanto
corvos
espectrais
os
enxameavam. Emi agarrou seu arco enquanto o vento soprava em seus cabelos e roupas. Abaixo, ela teve um vislumbre do tigre branco e uma figura de tamanho humano, Susano, movendo-se sobre os cinco dragões restantes. A floresta correu para encontrá-los. Yumei abriu suas asas, pegando o ar, e saiu do mergulho pouco antes de chegar ao topo das árvores. Mesmo com a
velocidade adicional de seu mergulho, os dragões ondulantes estavam avançando sobre eles, fechando a lacuna rapidamente. —Você tem controle do vento? —O-o quê? — ela gaguejou, segurando o braço dele ao redor de sua cintura. —Eu, eu não tenho certeza... —Tente não morrer. Enquanto os dragões se aproximavam deles de cima, Yumei a soltou. Ela despencou com um grito. No momento em que ela deixou seu aperto, a luz vermelha e negra engolfou seu corpo e se expandiu para fora. Asas imensas tomaram forma na escuridão. Com o poder vermelho ondulando de suas penas, o grande corvo Tengu girou no ar e agarrou o dragão mais próximo com suas enormes garras. Emi mergulhou no topo das árvores, galhos agarrando suas roupas e cabelos. O vento soprou sob ela, diminuindo sua queda, e ela caiu de costas com um baque doloroso. Ela rolou para ficar de pé, segurando o arco com as duas mãos. Os dragões rosnavam e uivavam acima das copas das árvores enquanto lutavam contra o grande corvo. Ramos estalaram ruidosamente. Ela olhou para cima quando um dragão enfiou a cabeça entre os galhos emaranhados de uma árvore próxima. Olhos negros fixos nela. O corpo de Emi ficou frio. Ela arrancou uma flecha de sua aljava e a encaixou. O dragão puxou a cabeça para trás, desaparecendo na escuridão. Ela ficou com a flecha embainhada, as pernas tremendo. No céu, a batalha furiosa continuava e o pânico martelava nela a cada segundo que passava. Liberando a tensão na flecha, ela se virou e disparou. O vento aumentou novamente, dançando ao redor dela enquanto a empurrava para uma corrida
ainda mais rápida. Nas árvores atrás dela, a folhagem estalou e se quebrou quando o grande dragão avançou pela vegetação rasteira em sua perseguição. Desespero e pânico se entrelaçaram em sua cabeça. O que ela deveria fazer? Em algum lugar acima, o grande corvo gritava furiosamente e um dragão rugia. Yumei não poderia ajudá-la, ele já estava lutando contra dois dragões sozinho. Ela não tinha visto Shiro desde que Orochi o largou. Susano e Byakko estavam lutando contra os outros cinco dragões, que provavelmente estavam protegendo Murakumo. Não havia ninguém para ajudá-la e ela não poderia fugir para sempre. Ela irrompeu em uma clareira, o chão coberto de folhas caídas. A dor estremeceu através de suas mãos quando ela agarrou seu arco com muita força. Ela não conseguia acertar o dragão porque era muito rápido. Como ela diminuiria sua velocidade? Ela era apenas uma humana! Ela não tinha o poder de lutar contra um dragão! Sua respiração ficou presa. Sohei também eram apenas humanos e eles vinham lutando, e derrotando, poderosos yokai por milênios. Ela estava pensando apenas em termos de força bruta e magia, mas essas não eram as únicas maneiras de lutar contra um yokai. Ela estendeu a mão em direção à clareira. Uma rajada violenta passou por ele, varrendo as folhas caídas para expor a sujeira do chão da floresta. Segurando uma ponta do arco, ela cravou a outra ponta no chão. Com o coração batendo forte, ela fechou os olhos e começou a dançar. Enquanto ela se movia pela coreografia suave, Katsuo sussurrou em sua memória. Porém, se você realmente quiser amarrar um yokai, precisará de um marugata adequado. Você sabe como fazer a dança das Cinco Flores do Jardim Celestial nos festivais de primavera? Ela não sabia como desenhar um círculo de
exorcismo, mas a dança estava enraizada nela, e como Katsuo havia explicado, parte da dança era desenhar um simples marugata. Ela acelerou os passos em um ritmo que teria horrorizado seu instrutor de dança, arrastando a ponta de seu arco pela terra para entalhar primeiro um círculo, depois os símbolos que o preenchiam. O poder zumbia em seu sangue enquanto ela se movia e ela podia sentir a magia crescendo como nunca antes. O som do dragão batendo na floresta ficou mais próximo e mais alto. Ofegante, ela desenhou a última linha no centro. O dragão avançou por entre as árvores, esmagando várias mudas embaixo dele. Emi disparou através do círculo, agitando os braços para se equilibrar enquanto pulava sobre as linhas sem pisar nelas. Rosnando, Orochi se lançou atrás dela. Ela se atirou para fora do outro lado do círculo enquanto a boca do dragão se abriu avidamente. Suas patas dianteiras pousaram na marugata. Suas linhas simples na terra brilharam em branco. O ar estalou e o dragão congelou no lugar, completamente imobilizado, ou pelo menos a parte dele que havia pousado no círculo. Sua forma maciça abrangia toda a extensão da clareira, e o marugata havia capturado apenas suas patas dianteiras e a maior parte de seu pescoço. Desequilibrada com seu salto selvagem final, Emi caiu no chão. Ela rolou quando as mandíbulas do dragão estalaram furiosamente, logo além de seus pés. A metade posterior de seu corpo se contorceu loucamente e a luz branca da marugata ondulou em protesto. Empurrando-se para cima, Emi recuou enquanto pegava uma flecha de sua aljava e a colocava no arco. O dragão rosnou. Ela puxou a corda e mirou na cabeça dele a apenas alguns metros de distância.
Com um grito agudo, um segundo dragão rasgou o dossel acima de sua cabeça. Ela chicoteou o arco e atirou quando o dragão caiu em cima dela. Sua flecha atingiu sua mandíbula inferior, explodindo um pedaço dela. A besta se chocou contra ela, esmagando-a no chão. Ela engasgou e estendeu a mão, batendo a palma contra suas escamas ásperas. —Shukusei no tama! Uma luz branca brilhou sob sua mão e o dragão se ergueu com um rosnado furioso, mas o feitiço de purificação fez pouco mais do que irritá-lo. O vento girou e uivou ao redor do dragão, mas não foi forte o suficiente para desalojar a besta. As mandíbulas gigantescas, capazes de devorar sua cabeça e ombros com uma mordida, se abriram amplamente, sua longa língua brilhando. Sua cabeça caiu para a mordida mortal. Uma torrente de fogo se acendeu no espaço entre eles. O dragão recuou uma segunda vez quando kitsunebi chamejaram brilhantemente ao redor de Emi. Shiro saltou da escuridão, suas caudas de fogo chicoteando atrás dele. Ele saltou sobre as costas do dragão e agarrou sua crina, puxando sua cabeça para trás. Em sua outra mão, sua lâmina katana iluminada com fogo branco, o metal brilhando em brasa. Ele enfiou toda a extensão de aço na garganta do dragão. O fogo estourou ao redor do cabo e o dragão convulsionou, as chamas da espada saindo de sua boca. Quando o dragão entrou em colapso, Shiro saltou livre e pousou ao lado dela. —Emi, você está machucada?
—Não, eu estou bem. — ela engasgou quando ele agarrou seu braço e a puxou para cima. —Você está bem? Seu braço está...? O sangue manchava sua mão e pulso, mas seu braço estava intacto. —Ele mordeu o onenju. — disse Shiro laconicamente. —Pelo menos aquelas contas amaldiçoadas são boas para alguma coisa. Nós precisamos... O dragão preso em seu círculo rugiu. Com um estrondo, um terceiro caiu do céu e se chocou contra a retaguarda do dragão enredado. Ele se soltou da marugata e eles tombaram no chão antes de se desenredar. Shiro a agarrou e mergulhou para o lado enquanto os dois dragões atacavam. O fogo se contorceu ao redor dele e seus kitsunebi se reuniram em uma parede defensiva. Os dragões mergulharam nas chamas e uma das cabeças disparou para eles. Shiro agarrou as mandíbulas superior e inferior com cada mão, mal conseguindo segurar a espada. O dragão o empurrou para trás com uma força terrível, afastando-o de Emi. Ela caiu, caindo de costas com força. O dragão empurrou Shiro contra uma
árvore,
tentando
pegá-lo
com
as
mandíbulas
enquanto
ele
desesperadamente o mantinha sob controle. Rolando para ficar de pé, ela agarrou uma flecha e se jogou na cabeça do dragão. —Shukusei no tama! — Gritou ela enquanto enfiava a ponta da flecha no olho do dragão. O poder surgiu da flecha. O dragão recuou com um uivo, a flecha saindo da órbita do olho e sangue negro jorrando pelas escamas. —Emi! O segundo dragão encheu sua visão, presas e boca aberta piscando em sua direção. Ela se jogou para trás, já sabendo que era tarde demais. Shiro agarrou seu braço, puxando-a para longe das mandíbulas, mas não rápido o suficiente.
A dor não foi registrada, apenas esmagando a pressão quando as mandíbulas pegaram seu corpo, dentes curvos perfurando sua carne. Seus ossos rangeram e sua caixa torácica ameaçou desabar quando o dragão a ergueu no ar com um grunhido triunfante. —Emi! O grito frenético de Shiro a perfurou como uma lâmina, mas ela não pôde fazer nada além de se pendurar nas garras do dragão, imobilizada pelo choque. O fogo explodiu ao redor deles. Ela não viu o que Shiro fez, ela mal estava ciente de nada, mas a próxima coisa que ela percebeu, as mandíbulas do dragão a soltaram. Braços a pegaram e o mundo girou. Ela piscou embaçada e viu que Shiro havia saltado para o centro de sua marugata destruída. O fogo estourou ao longo do perímetro de seu círculo, gravando uma nova linha ao redor deles. Com a mão revestida de sangue vermelho brilhante, ele tocou a linha carbonizada e desenhou um símbolo estranho sobre ela. Uma cúpula cintilante de luz avermelhada se formou sobre eles. Os dragões cambalearam até parar na borda da barreira. —Emi. — disse Shiro com voz rouca, segurando-a contra o peito. —Sua idiota. —Você fez uma barreira. — Ela ofegou. Ela não conseguia respirar direito, mesmo sem as mandíbulas esmagadoras do dragão ao seu redor. —Eu não sabia que você poderia fazer isso. —Nem eu. Ela começou a olhar para baixo, para ver o quão ruim estava, mas a mão dele, molhada de sangue, agarrou sua bochecha. Ele puxou a cabeça dela, suas íris rubi brilhando fracamente. —Olhe para mim, Emi. — Ele murmurou.
Assim que seu olhar encontrou o dele, ela soube que estava morrendo, morrendo rapidamente. Ele a segurou perto, embalando-a em seus braços, escondendo sua dor. Mas ela podia ver nas sombras agitadas e agitadas em seus olhos, angústia, raiva, tristeza, culpa. Sua garganta se moveu enquanto ele engolia. —Você pode curar seus ferimentos com a magia de Amaterasu? Em resposta a sua pergunta, o calor vibrou dentro dela, reunindo-se na marca kamigakari. Poder rapidamente construído, canalizado em seu corpo por Amaterasu. O calor dentro dela cresceu e uma luz branca fraca irradiou de sua pele. Além da barreira de Shiro, os dragões que esperavam caminhavam impacientemente, três dragões, não dois. O que Shiro havia queimado havia subido, seus ferimentos já desaparecendo. Estava se regenerando. Eles não podiam morrer? Apesar de seus corpos separados, eles estavam amarrados juntos, uma vida que não poderia ser extinta por pedaços danosos do todo? Conforme o poder de Amaterasu se reunia nela, seu olhar voltou para o de Shiro. Três dragões esperavam além de sua barreira, uma proteção que não duraria muito. Três dragões enormes que não podiam ser mortos. Como ele poderia derrotá-los? Como ele poderia escapar vivo? O calor pulsou através dela. Amaterasu não estava descendo para possuir e curar Emi como ela havia feito da última vez; Emi teria que se curar de alguma forma. O poder esperava por seu comando, crescendo cada vez mais forte. Se Emi curasse seus ferimentos, ela não morreria neste momento, mas ela ainda morreria. E Shiro morreria com ela, porque não havia como escapar dos três dragões e protegê-la ao mesmo tempo. Curar a si mesma só atrasaria sua morte por alguns minutos.
Talvez Amaterasu não estivesse descendo para curá-la porque a cura não era para o que esse poder era. Ele não deve morrer ou toda esperança será perdida. Shiro… Inari… era crucial para impedir Izanami de abrir a Ponte para o Céu. Emi não era. Ele tinha que sobreviver, não ela. A resolução endureceu dentro dela e ela ergueu a mão, surpresa ao encontrá-la tremendo, e pressionou-a sobre a mão dele onde ele segurava sua bochecha. —Sinto muito, Shiro. — ela sussurrou. —É minha culpa não ter conseguido remover o onenju antes. —O quê...? —Eu não posso remover as contas a menos que eu realmente queira fazer isso. Yumei nos contou isso da primeira vez que o conheci, lembra? Eu pensei que sim, mas eu... —Sua garganta fechou e ela engoliu em seco, lutando contra a tontura que deslizava por ela. —Mas eu estava com medo. Seus olhos se arregalaram. Ela se esforçou para conseguir ar suficiente para continuar falando. — Mas eu prometi. Não vou falhar com você de novo. —Emi... Ela puxou a mão dele de sua bochecha e enrolou os dedos sobre a alça inferior do onenju. O poder pulsou nas contas frias, faiscando contra sua pele. A compreensão flamejou em seus olhos quando percebeu o que ela pretendia fazer. Remover as contas era simples, realmente. Tão simples que ela não podia acreditar que tinha sido tão cega. Além da primeira ligação, algo a estava segurando durante cada tentativa de remover um laço. Quando ela tentou remover as contas pela última vez, ela apenas pensou que estava devidamente comprometida em cumprir sua promessa. Mas no fundo, ela estava consumida
pela dúvida e pelo medo. A relutância havia manchado sua resolução, e sua falta de compromisso, não sua falta de poder, a fez falhar. Seu medo de perder Shiro para Inari tinha sabotado sua última tentativa, mas ela não podia deixar isso pará-la agora. Se ela falhasse, Shiro morreria. E ela não precisava mais ter medo, porque ela não viveria o suficiente para ver Inari tomar o lugar de Shiro. —Emi, não... — Negação afiada estalou em sua voz enquanto os músculos de seu braço se contraíam, preparados para se afastar dela. Mas era tarde demais. Sorrindo suavemente, ela enrolou os dedos em torno das contas e puxou. A magia da maldição subiu por seu braço enquanto seu ki infundido de kami explodiu por ela e atingiu o onenju. O laço de contas escorregou facilmente sobre sua mão, sem oferecer resistência alguma. O poder irrompeu das contas quando o selo foi liberado. A força a jogou para trás, arrancando-a de seus braços. Quando ela caiu no chão, a dor a encontrou pela primeira vez desde a mordida do dragão, transformando seu mundo inteiro em uma agonia sufocante.
— Não se atreva a morrer em mim agora, Emi! O rosnado furioso de Shiro penetrou na névoa de dor e escuridão que envolvia seus pensamentos. Ela lutou para se concentrar, para superar seu torpor. —Você está me ouvindo? Abra seus olhos! Com muito mais esforço do que deveria, ela forçou os olhos a abrir uma fresta. O rosto de Shiro encheu sua visão, seus dentes à mostra em uma fúria desesperada. Ele estava ajoelhado sobre ela, onde ela estava deitada no chão. Ao redor deles havia chamas rugindo saltando para o céu, um inferno sem começo ou fim. —Cure suas feridas, Emi. — Ele ordenou. Ela não teve fôlego para dizer a ele que não sabia como. Seus pulmões vibraram com urgência, mas ela estava se afogando no ar, incapaz de obter o oxigênio de que precisava. —Você tem o poder de Amaterasu. Eu posso sentir isso. Cure-se! Ofegando fracamente, ela lentamente levou as mãos ao peito. Seus dedos encontraram a seda rasgada de seu quimono, o tecido encharcado de sangue. Seu sangue. Sua mente ficou em branco e suas pálpebras piscaram, querendo fechar.
—Não, você não quer. — Shiro rosnou. Suas mãos se fecharam em cada lado de seu rosto, chocantemente quente contra sua pele fria. —Você não está me deixando sozinho nessa bagunça, está me ouvindo, Emi? Cure-se! Ela lutou contra o peso de suas pálpebras, contra a pressão sufocante e ardente em seus pulmões. Apesar de remover o laço onenju, sua marca kamigakari ainda pulsava com mais força esperando por ela comandar. Mas comandar como? Ela não conseguia pensar. Quando ele se inclinou, suas mãos ergueram o rosto dela, forçando seus olhos a encontrar os dele. —Você não pode morrer agora, Emi. Eu preciso de você comigo. Eu preciso de você. Suas palavras afundaram por ela, trazendo novo calor para seus membros gelados. Eu preciso de você comigo. Seus dedos cavaram em sua carne dilacerada e ela fechou os olhos com força. Me ajude, Amaterasu! Não sei como! O ki quente pulsou por seu corpo. Amaterasu não estava assumindo o controle dela. Ela estava muito fraca e ferida para resistir ao espírito de Amaterasu desta vez? Mas como Emi deveria se curar sem a ajuda de Amaterasu? A escuridão se apoderou dela, chamando-a para ceder, relaxar, dormir. Desistir. Mas ela não conseguia. Shiro precisava dela. Amaterasu a curou uma vez antes. Ela sentiu isso. Ela experimentou o calor acumulando em seu ferimento e a dor abrasadora da carne se entrelaçando mais rápido do que a natureza jamais pretendia. Se ela tivesse experimentado isso, ela não poderia duplicar? Mas ela não se lembrava do que Amaterasu tinha feito. Alguns conhecimentos são mais profundos do que a memória.
Uma respiração ofegante deslizou de seus pulmões quebrados. Ela se imaginou preenchendo seu torso com uma luz branca quente. Ela imaginou seus ferimentos absorvendo a luz e os buracos das presas do dragão se fechando. A agonia atingiu seu peito. Seu corpo se arqueou do chão. As mãos de Shiro em seu rosto eram tudo o que ela podia sentir, exceto a dor. Pareceu durar para sempre, o tormento se alastrando por seu corpo, apertando seus pulmões e sufocando-a. Ela engasgou e o ar encheu seus pulmões. A dor desapareceu e um frio vazio encheu seu corpo na ausência do poder de Amaterasu. Shiro ergueu uma das mãos do rosto dela, e ela sentiu seu toque enquanto ele verificava suas feridas. A mão dele em sua bochecha apertou, e então sua boca cobriu a dela. Ela ofegou contra seus lábios, seus olhos se abrindo. Ele a ergueu em seus braços, sua boca ainda pressionada contra a dela. Ela colocou os braços trêmulos em volta do pescoço dele, beijando-o com o mesmo desespero, a mesma necessidade feroz. Muito cedo, ele ergueu a cabeça. Ele se levantou, segurando-a com força contra ele com um braço. Ela se agarrou a ele, tonta e tremendo de fraqueza. Paredes de fogo os cercavam, deixando apenas o círculo em que estavam
intocados. Os
esqueletos
negros
das
árvores
já
estavam
desmoronando enquanto as chamas aumentavam. O ar ondulava e tremeluzia com o calor, mas ela mal o sentia. Shiro ficou tenso enquanto se recompunha, então saltou para cima. Kitsunebi formaram-se sob seus pés e ele pousou nas chamas como se fossem pedras flutuantes. Ele saltou para o céu, correndo acima do inferno
furioso. O fogo já havia engolfado uma vasta faixa de floresta e as chamas estavam se espalhando rapidamente em todas as direções. Uma sombra escura saiu das grossas colunas de fumaça. O enorme corvo flutuou em asas abertas, carregando um dragão que lutava fracamente em suas garras. Seu bico brilhou para baixo. Ele arrancou a garganta do dragão em um jato de sangue negro e o lançou, deixando a criatura mergulhar nas chamas. O corvo dobrou suas asas e mergulhou em direção à linha das árvores onde Orochi emergiu da terra. Shiro correu atrás dele e Emi só conseguiu agarrar seu pescoço, tonta e enjoada e mal conseguia ver quando a fumaça ardeu em seus olhos. Pouco antes de chegar ao solo, a forma do corvo se suavizou. A escuridão se dissipou dele, dissolvendo-se em nada, e a forma alada de Yumei pousou na borda das árvores pouco antes da terra agitada. Shiro pousou ao lado dele com um estalo de folhas secas. Yumei dobrou as asas contra as costas. Seu kosode estava meio retalhado e o sangue empapava o material escuro. —Você planeja reduzir a ilha inteira a cinzas, Inari? — A pergunta de Susano o precedeu das sombras quando ele saiu das árvores. Ele também mostrava sinais de batalha, com sulcos profundos marcando um braço e sangue manchando seu rosto. Byakko mancou atrás dele, parecendo ainda pior. —Talvez. — Shiro respondeu. —Vejo que você ainda não recuperou Murakumo. —Orochi sabe que eu procuro. — Susano fez um gesto com uma das mãos. —Ele a guarda e não muda. A cem metros de distância, no centro da floresta revirada e da terra perturbada,
uma
massa
se
contorcendo
de
dragões
se
retorcia
incessantemente. Enquanto Emi observava, outro dragão voou para fora das nuvens de fumaça, suas escamas enegrecidas pelo fogo, e caiu para se juntar à massa. —Não podíamos violar suas defesas. — continuou Susano. —Talvez nós quatro juntos... —Não. — Shiro disse, olhando para Yumei e Byakko. —Não aqueles dois. Não nessa condição. —Você sugere que abandonemos a batalha? — Susano perguntou, um rosnado vibrando em suas palavras. —Não é o que estou sugerindo. Shiro se virou e empurrou Emi nos braços de Yumei. Por mais surpresa que ela estivesse, o Tengu quase a deixou cair. Recuando, Shiro estendeu suas mãos recém-libertadas e com redemoinhos de fogo correspondentes, suas espadas curtas tomaram forma. —Diga-me, Susano. — disse ele. —Já lutamos lado a lado antes? Os olhos de Susano se estreitaram. —Não exatamente. Seus lábios se curvaram em resposta, mas não era o sorriso habitual de Shiro. Era o sorriso agudo e perigoso de Inari. Ele ergueu suas espadas, o laço final do onenju brilhando em torno de seu pulso, e apontou as lâminas para longe uma da outra. O fogo estourou sobre as espadas e preencheu a lacuna entre os punhos. As chamas aumentaram até ficarem incandescentes e então se extinguiram com um lampejo final. Em vez de suas espadas, ele agora segurava um longo bastão carmesim com uma lâmina larga de um gume em cada extremidade. Símbolos vermelhos tremeluziam sobre o cabo, sempre mudando e deslizando sobre a superfície brilhante. Lâminas e cajado combinados, a arma era mais longa do que ele e brilhava com um poder misterioso.
Ele girou o bastão com uma graça fácil e familiar, as lâminas assobiando no ar. Atrás dele, seis caudas espectrais de chamas chicotearam e dançaram. Seus kitsunebi ganharam vida ao seu redor, as chamas ondulando e dançando antes de se espalharem. As órbitas se expandiram e se deformaram, tomando a forma de grandes raposas fantasmas com olhos brilhantes e duas caudas cada. Shiro se aproximou de Susano. —Vou tentar não te queimar muito. Susano enfiou a mão nas mangas e puxou o ofuda. Selecionando um, ele bateu contra o braço de Shiro. Ele brilhou fracamente. —Seria uma pena parar seu coração com um raio perdido. — Ele se virou para os dragões. —Corte direto por eles. Eu estarei bem atrás de você. O medo se agitou no peito de Emi. Lutando contra sua letargia, ela abriu a boca para gritar o nome de Shiro e detê-lo. Em uma onda de chamas, ele se lançou em direção aos dragões. O fogo se reuniu ao redor dele, ondulando em seu rastro e se misturando com suas caudas fantasmas. Suas raposas kitsunebi saltaram ao seu lado, suas patas de fogo correndo no ar e suas presas flamejantes à mostra. Susano correu atrás dele.
Os dragões se levantaram e se separaram, preparando-se para enfrentálos. Shiro avançou para o meio deles. O fogo explodiu dele, faíscas enchendo o ar. As chamas giraram descontroladamente, formando um furioso ciclone que se espalhou para fora. Shiro e os dragões desapareceram na enorme bola de fogo. As mãos de Emi cerraram-se, seus pulmões bloqueados de terror. Um relâmpago crepitou em Susano e o vento girou em torno dele. Ele se lançou para frente em um movimento rápido e repentino e desapareceu na torrente de fogo junto com Shiro. Bicos de chamas giratórias e lampejos de luz saíram do ciclone de fumaça e fogo. Shiro saltou para longe das chamas, seu bastão de lâmina dupla em uma das mãos. Ele pousou e disparou de volta na direção deles. Atrás dele, todos os oito dragões explodiram da bola de fogo, voando em todas as direções, fugindo? A massa giratória de fogo, fumaça e luz crepitante se separou, revelando um breve vislumbre de Susano com os braços erguidos, um pedaço de aço brilhante estendendo-se do cabo em suas mãos. Um estrondo alto estremeceu pelo céu. As estrelas desapareceram enquanto as nuvens rolavam sobre a ilha, formando-se com uma velocidade inacreditável. Elas
engrossaram
rapidamente
enquanto
o
céu
rugia
novamente. O inferno devorando a floresta iluminou a parte inferior das nuvens com um escarlate assustador. Com um estalo ensurdecedor, um relâmpago desceu das nuvens e atingiu a ponta da espada de Susano. Shiro chegou ao local onde eles esperavam, mas não diminuiu a velocidade. Em vez disso, ele passou correndo por eles. Girando com Emi em seus braços, Yumei meio corria, meio voava atrás de Shiro, Byakko logo atrás
dele. Shiro saltou para cima e seus kitsunebi se formaram sob seus pés enquanto ele saltava no ar. Com as asas se abrindo, Yumei o seguiu para o céu. Por cima do ombro, Emi viu um lampejo de luz brilhante. O brilho se expandiu para cima, formando oito longas linhas. O corpo gigante de oito cabeças de Orochi mais uma vez tomou forma. O dragão rugiu de raiva. Em resposta, o trovão rasgou o céu enquanto um relâmpago arqueou dentro das nuvens. Emi agarrou o ombro de Yumei. —Espera! Não podemos deixar Susano! —Estamos muito perto. — Respondeu ele laconicamente. —Mas... —A tempestade vem. — Byakko apareceu ao lado deles, navegando com rajadas de vento. —O Kunitsukami da Tempestade mais uma vez detém Murakumo, e tudo em seu caminho será destruído. Shiro não parou até chegar à borda da cratera vulcânica. Yumei pousou na saliência rochosa e no momento em que seus pés tocaram a terra, ela se soltou e correu para Shiro enquanto ele se preparava com seu bastão laminado, respirando com dificuldade. Ela tocou seu braço, seu olhar procurando por novos ferimentos. Parado ao lado deles, Yumei suspirou de uma forma quase ansiosa. — Faz mais tempo do que eu gostaria de lembrar desde que testemunhei a força de um Kunitsukami sendo liberada. Emi se virou. Acima da cratera, o céu ondulava como um oceano fervente. Nuvens negras fervilhavam, iluminadas de dentro por relâmpagos incessantes. Ciclones giratórios surgiram da tempestade, rasgando a terra. Eles encontraram o inferno na floresta e sugaram as chamas. No centro de tudo isso, Orochi se contorcia, seus gritos eram audíveis mesmo acima do trovão sem fim.
As nuvens agitaram-se ainda mais violentamente, e então uma forma tomou forma, descendo do coração da tempestade. O corpo serpentino se desenrolou, espinhos graciosos correndo por suas costas. Uma luz branca brilhava nas costuras de suas escamas e relâmpagos crepitavam em seu corpo. Nuvens escuras se agarraram a ele, arrastando-se atrás dele com cada movimento fluente. Orochi gritou de fúria. O novo dragão abriu suas mandíbulas e um raio ferveu de sua garganta. As nuvens se agitaram, girando juntas, e a luz se reuniu dentro delas. Com um estrondo para quebrar os próprios céus, um imenso raio de luz saltou do céu. Ele passou pelo dragão da tempestade e se dividiu em mil lanças de luz mortais que atingiram Orochi. O mundo ficou branco ofuscante. Shiro agarrou Emi e deu as costas para a tempestade, protegendo-a com seu corpo. O vento quente soprou sobre eles, carregando uma onda de detritos fumegantes e cinzas brilhantes. Quando o vento diminuiu, ele deixou cair o braço e se virou. Emi cautelosamente olhou ao redor dele para a cratera. As nuvens espiralaram lentamente, quase preguiçosamente. Onde Orochi estivera, havia um fosso fumegante coberto com os pedaços rasgados da besta enorme, completamente obliterada por um raio. Acima
dele,
o
dragão
da
tempestade
pairava,
ondulando
languidamente. Embora mal tivesse um quarto do tamanho de Orochi, o dragão enviou um arrepio de medo por Emi. A luz ainda brilhava entre as escamas da criatura como se estivesse cheia de relâmpagos em vez de carne e sangue. A verdadeira forma do Kunitsukami da Tempestade.
Com uma exalação trêmula, ela se encostou em Shiro, exausta demais para fazer mais alguma coisa. Susano havia recuperado sua espada. Embora ela devesse ter se alegrado com sua vitória, ela se viu olhando para a destruição, oprimida pela maravilha e terror do poder total de um Kunitsukami.
Um grito alto sacudiu Emi de seu sono. Ela forçou os olhos a abrirem, piscando para afastar a sensação desagradável de ter dormido muito. O barulho de vozes masculinas próximas continuou, e ela escolheu os tons suaves de Shiro. Como ninguém parecia chateado, ela não se levantou, mas a confusão enrugou sua testa. Por que eles estavam sendo tão barulhentos? Estremecendo e bufando silenciosamente em seus músculos doloridos, ela se sentou. Um cobertor deslizou por sua frente, revelando um quimono pêssego desconhecido com um padrão de pétalas de flores. Ela franziu o cenho. Ela não se lembrava de se trocar. Na verdade, ela não se lembrava de muito além de se apoiar em Shiro, oprimida pela exaustão enquanto esperavam Susano se juntar a eles para que pudessem deixar a ilha de Orochi. Ela puxou seu quimono aberto para examinar seu torso. A marca kamigakari negra se destacava fortemente contra sua pele. O único sinal de que um dragão quase a mordeu ao meio era a linha rosa curvando-se ao longo de sua caixa torácica. Reajustando o quimono, ela se desvencilhou dos cobertores e olhou ao redor. Ela reconheceu o final do quarto deles na pousada Ajisai, mas paredes com painéis foram colocadas para dividir um pequeno espaço para seu futon. Ela alisou o cabelo, perguntando-se há quanto tempo estava dormindo. Seu peito ainda parecia oco e vazio, sem ki.
—Seriamente? — Shiro exclamou do outro lado da parede fina. —Você só pode estar brincando. Com um lampejo de preocupação, Emi se levantou com as pernas bambas e deslizou um painel de lado para entrar na sala além. Três yokai sentados no chão ao redor da mesa baixa, e ela rapidamente determinou que não tinha adormecido por muito tempo. Shiro, Yumei e Susano estavam amplamente envolvidos em bandagens brancas, as tiras de pano enroladas em várias partes de seus braços e torsos. Ela podia ver exatamente como eles estavam enfaixados, porque nenhum deles estava usando nada além de hakama, as roupas amarradas na cintura. O calor inundou suas bochechas. Ela brevemente considerou recuar para seu espaço separado, mas naquele momento, Shiro olhou e a viu. Apoiando um antebraço no joelho levantado, ele se virou e, deixando as bandagens à parte, deu a ela uma visão excelente de um braço bem musculoso e os planos de seu peito. —Ah, a pequena miko acorda. Você acordou mais cedo do que esperávamos. —Bem. — ela murmurou, seu olhar disparando através deles em busca de um lugar seguro para parar. —Vocês não estavam especialmente calados. Embora ela estivesse se esforçando para não notar, Yumei e Susano eram tão
bonitos
quanto
Shiro,
com
corpos
magros
e
músculos
rígidos. Concentrando-se rapidamente em Shiro, ela quase deu um passo para trás para a segurança de seu quarto, mas então ela percebeu o leve, mas distinto rubor em suas bochechas. A preocupação imediatamente acendeu. Ele estava febril? Quão ruins estavam seus ferimentos? Ele parecia ter o menor número de ferimentos, ou pelo menos o menor número de curativos, mas ele estava mais ferido do que ela percebeu?
Ela abriu a boca para perguntar, mas Susano falou primeiro. —Não demore. — ele disse a Shiro bruscamente. —Você perdeu a rodada, Inari. Emi piscou em confusão, a boca ainda aberta. Shiro gemeu e pegou um pequeno copo branco da mesa. Ao jogá-lo de volta, Susano derrubou outro copo na sua frente. Shiro engoliu esse também. —O que...— Ela olhou do copo em sua mão para a mesa. Os restos de uma refeição e uma variedade de frascos brancos e pequenos copos cobriam a mesa. —Isso é sake? Ela caminhou até a mesa e parou entre Shiro e Yumei. O cheiro de álcool pairou sobre ela. Seu olhar incrédulo caiu para Shiro. —Você está bêbado? —Não bêbado. — disse ele com um sorriso. —Ainda. —Se você continuar perdendo, logo estará. — Yumei disse secamente, levantando um frasco e despejando mais líquido no copo de Shiro. —Você...— Ela balançou a cabeça. Dois Kunitsukami, um Príncipe das Sombras e garrafas de saquê suficientes para encher uma banheira. —Por que você está nos olhando assim? — Shiro revirou os olhos. —Eu disse antes que nós yokai somos um bando casual. Ela olhou para ele, incapaz de encontrar sua voz para expressar sua descrença absoluta. Eles não achavam que havia coisas mais importantes a fazer do que jogar jogos de bebida? Shiro se virou para os outros. —Você vê aquele olhar? Ela está nos julgando. —Talvez ela julgue suas perdas repetidas. — Susano sugeriu. —Eu só perdi mais duas rodadas do que você. O verdadeiro problema aqui é Yumei. — Shiro apontou agressivamente para o Tengu. —Você só perdeu uma vez. Você está trapaceando?
—Não preciso trapacear. — Yumei deu um gole em sua bebida. —Passei mil anos bebendo com meus daitengu. Ninguém perde para seus próprios generais. Susano grunhiu. —Você já bebeu com Sarutahiko? Yumei estremeceu levemente, o equivalente a um estremecimento óbvio para qualquer outra pessoa. —Apenas uma vez. Não é um erro que vou repetir. —Uma decisão sábia. — Susano lançou um olhar para Shiro. —Eu nunca fiquei bêbado com você antes, Inari. Não em todas as eras de nossa existência. —Primeira vez para tudo. Emi estava prestes a falar, mas perdeu a linha de pensamento quando Susano disse ‘eras’. Com a bebida em uma das mãos, Yumei apoiou o cotovelo na mesa e apoiou o queixo na palma. —De quem é a vez? Susano empurrou o frasco de saquê para ele. —Sua. —Não, é a minha vez. — disse Shiro. —Você acabou de ir. —Você bebeu demais? É a vez de Yumei. Ela olhou para os três yokai novamente. —Onde está Byakko? —Ele saiu no início da noite. — Yumei respondeu enquanto Shiro e Susano continuavam a discutir. —Obrigações que ele não podia mais atrasar, disse ele. —Que tipo de obrigações? —A maioria dos yokai de certa posição tem os deveres de um senhor governante, com território e vassalos para proteger. Ela franziu os lábios. —Mas não você?
Ele olhou para ela e, ao contrário de Shiro e Susano, seus olhos estavam claros e penetrantes. Os outros dois podem ter decidido relaxar e beber mais do que provavelmente seria sábio, mas Yumei não baixava a guarda. Ou talvez, ela percebeu, era porque Shiro e Susano estavam bebendo que Yumei não. Ele poderia não ter mais um vasto território e um exército de yokai, mas o Tengu ainda carregava os deveres de guardião sobre seus ombros. Ele protegeria os dois Kunitsukami pelo tempo que precisassem dele. Pressionando as mãos nas coxas, ela se curvou para frente em uma reverência,
silenciosamente
transmitindo
sua
compreensão,
e
seu
respeito. Quando ela se endireitou, ele a estudou antes de acenar com a cabeça em reconhecimento. Levou um momento para perceber que a sala havia ficado em silêncio. —O que há com vocês dois? — Shiro perguntou. Emi se virou para ele e seu olhar desobedientemente desceu para seu torso nu. Suas bochechas aqueceram novamente. —Nada. Eu, eu vou tomar um pouco de ar fresco. Deixando os três yokai com suas bebidas, ela correu para as portas de correr e saiu para a calçada. Somente quando seus pés calçados com meias tocaram a madeira fria e a brisa gelada a atingiu, ela se lembrou que o tempo não era apropriado para um passeio noturno ao ar livre. Envolvendo os braços em volta de si mesma, ela teimosamente se afastou das portas, sem vontade de voltar para dentro. Ela parou no final da passarela e encostou o ombro em um pilar. Uma cortina suave de flocos de neve caia do céu escuro, obscurecendo parcialmente o pequeno jardim coberto de neve. Ela fechou os olhos na tentativa de relaxar, mas tudo o que fez foi tornar mais fácil para sua mente repassar as vistas de dentro da sala. Susano e Yumei podiam
ser mais do que atraentes o suficiente para qualquer outra pessoa, mas Shiro era quem fazia seu pulso acelerar de uma forma mais desconfortável. Todas as eras da nossa existência. Ignorando as palavras de Susano, ela esfregou uma mão no rosto. Apesar de seus esforços, outra memória tomou forma: Shiro esmagando sua boca na dela depois que ela curou seus ferimentos. Beijando-a como se ele não pudesse se conter, seu toque queimando com um desespero incomum. A quase morte dela o assustou tanto? Eu preciso de você comigo. Sua exalação afiada formou uma nuvem de névoa branca na frente dela. Seus pensamentos se contorceram e giraram, consumidos por preocupações que não tinham nada a ver com as provações que viriam, preocupações que ela nem deveria estar considerando. Sua vida restante medida em poucas semanas agora. Ela não deveria estar preocupada com outra coisa além do que Shiro pode ou não sentir por ela? Atrás dela, passos silenciosos soaram na passarela de madeira. Ela se virou e os olhos de Shiro capturaram os dela. Ele vestiu um kosode branco desconhecido com mangas compridas, mas não o enfiou para dentro, deixando uma faixa de seu torso exposta ao ar frio. Parando ao lado dela, ele colocou um pesado haori azul sobre seus ombros. Agradecida, ela deslizou os braços nas mangas, suprimindo um arrepio. —Esqueceu-se de pensar no futuro novamente, hein? — Profunda e suave, sua voz se misturou com a noite suave. Ela bufou, não querendo admitir que ele estava certo. —Seu jogo de bebida acabou? —Eu admiti a derrota. Eu não consigo acompanhar esses dois.
Encostando o ombro no pilar novamente, ela olhou para o jardim. A neve caia preguiçosamente do céu para cobrir os arbustos baixos e as pedras artisticamente dispostas. —Você se manteve bem quando atacou Orochi sozinho. — murmurou ela. —Achei que meu coração fosse parar. —Você não pode reclamar sobre eu te assustar. — ele disse secamente. — Não depois de ver um dragão te morder ao meio. Um arrepio percorreu sua espinha ao se lembrar da pressão esmagadora e da lenta sufocação quando seus pulmões entraram em colapso. Ela tinha sorte de estar viva. E, no entanto, a cada respiração que ela dava, o curto tempo que ela tinha deixado parecia cada vez mais escuro, uma sombra em seus pensamentos que ela não conseguia se livrar. —O que acontece depois? — Ela perguntou suavemente. —Recuperaremos o máximo de força que pudermos nos próximos dias. Desde que Izanami enviou seus vassalos para nos emboscar, ela obviamente sabe que Susano escapou. Precisamos nos mover rapidamente para chegar a Sarutahiko, caso Izanami decida que seria mais seguro matá-lo. —Ela faria? — Emi perguntou em alarme. —Se Sarutahiko morresse, Uzume saberia imediatamente. Ela iria deixar Tsuchi e caçar Izanami implacavelmente. De todos os Kunitsukami, Uzume é a mais adequada para encontrar e derrotar Izanami. Acho que Izanami manterá Sarutahiko vivo pelo maior tempo possível, apenas para atrasar a ira de Uzume. — Ele encolheu os ombros. —Depois disso, teremos que esperar pela sabedoria de Sarutahiko sobre a Ponte para o Céu e como impedir que Izanami a abra. Ela pegou uma lasca de madeira no pilar. —Para resgatar Sarutahiko, teremos que lutar contra Tsukiyomi, não é?
Shiro assentiu, observando a neve cair. —Susano provavelmente pode sobreviver a Tsukiyomi, mas derrotá-lo? Eu duvido. E serei inútil nessa luta. Contra a água, o fogo sempre perde. O medo cresceu em sua barriga ao pensar em Shiro com sua raposa indo contra o Amatsukami da Água. —Yumei será capaz de ajudar Susano? —Possivelmente. — Ele franziu a testa, esfregando a mão no queixo. — O Tengu está ligado às montanhas de sua casa, à própria terra ali, de maneiras que um ser humano não pode compreender. Ele extrai poder de seu território e de Tsuchi, e quanto mais longa sua ausência, mais seu poder diminui. Izanami fugiu dele em Shirayuri, mas Jorogumo bem poderia tê-lo matado sem sua ajuda. —Yumei provavelmente não vai se conter, no entanto, se Susano precisar da ajuda dele. Ele a olhou de esguelha. —Vamos ter que bolar um bom plano que mantenha Yumei fora da linha de fogo direta de Tsukiyomi. —Yumei e você. —Você precisa ficar longe da vista de Tsukiyomi mais do que eu. Mesmo em desvantagem elementar, sou significativamente mais difícil de matar. —Mas você precisa sobreviver para... —Você precisa sobreviver. — Ele se virou para encará-la, seus olhos brilhando na luz suave das janelas. —Você está ansiosa demais para jogar sua vida fora. Ela desviou o olhar dele e torceu as mãos. —Você e Susano têm que sobreviver para parar Izanami. Eu sei que Amaterasu precisa de mim para que ela possa descer no solstício, mas eu não... Ele agarrou seu ombro e a girou para encará-lo. Seus olhos arregalados encontraram seu olhar ardente.
—Você é mais do que um corpo, Emi. Você é mais do que um recipiente para a vontade e o poder de outra pessoa. —Mas eu sou a kamigakari. — Ela mudou seu peso, resistindo à vontade de desviar o olhar. —É o meu dever... —Morrer? Colocar minha vida à frente da sua? — Sua mandíbula flexionou. —Amaterasu pode estar disposta a deixar você morrer por ela, mas eu não estou. Não se atreva a escolher minha sobrevivência em vez da sua novamente. —Mas o que... Um grunhido surgiu em sua voz. —Você deveria ter se curado primeiro, em vez de tirar o onenju de mim. Ela se afastou dele e esbarrou no pilar atrás dela. —Eu não sabia se poderia me curar, então removi o onenju para dar a você uma chance de... —Eu teria descoberto. Carrancuda, ela teimosamente endireitou os ombros sob seu olhar de desaprovação. —Ajudar você era tudo que eu podia fazer. Você teria feito a mesma coisa. —Claro que eu teria salvado sua vida ao invés da minha. Se eu morrer, posso voltar novamente. Você não pode. —Yumei disse que não há garantia de que um yokai vai reviver. —Mas é garantido que um humano não o fará. —Shiro...— Ela apertou os lábios. —Shiro, você sabe que não vou sobreviver ao solstício. Seus olhos brilharam. —Eu só tenho mais algumas semanas de qualquer maneira. — Sua voz tremeu e ela limpou a garganta. —Mas eu sabia que poderia tirar o onenju, então como poderia escolher algo diferente?
Ele inclinou a cabeça, um pouco de sua intensidade desconcertante se dissipando. —Você sabia que poderia tirá-las? Como você estava tão certa? —Eu...— Ela olhou de volta para o jardim. Puxando uma mecha de cabelo sobre o ombro, ela a deslizou pelas mãos. —Quando falei com Amaterasu, ela disse que eu precisava estar totalmente comprometida para remover a maldição. Eu pensei que estava comprometida antes, mas não estava. Eu estava... —Você estava com medo. — Ele terminou suavemente. Ela assentiu. —Com medo de quê? Suas mãos se apertaram ao redor da mecha de seu cabelo e ela mordeu o interior da bochecha. —Do que você estava com medo, Emi? Ela se virou de costas para ele e apoiou uma das mãos no pilar. —Eu não queria remover o onenju porque... porque eu estava com medo do que ele faria com você. — Ela engoliu em seco. —Eu estava com medo de que quando suas memórias retornassem, você se transformasse em Inari e... Ela curvou os ombros e forçou as palavras, mal conseguindo um sussurro. —E Inari não teria nenhum motivo para se preocupar com uma garota humana como eu. O silêncio pairou entre eles. Conforme os segundos se estendiam mais e mais, ela se encolheu, uma dor terrível crescendo dentro dela. —Sinto muito. — ela sussurrou. —Eu prometi remover o onenju, mas eu era egoísta e estúpida e... Seus braços deslizaram ao redor dela, pegando-a desprevenida. Ele envolveu-se em torno dela por trás e empurrou o rosto em seu cabelo. Ela hesitantemente colocou suas mãos sobre as dele, segurando seus braços contra
sua cintura. Os dedos dela roçaram a única parte restante do onenju em torno de seu pulso. Ele a abraçou, sua respiração agitando seu cabelo. Ela se recostou nele, perdendo-se em seu calor, em sua proximidade. Por que seu toque a fazia se sentir tão animada, tão exultante... tão viva? Seus lábios roçaram sua orelha quando ele finalmente falou, suas palavras suaves, quase sem som. —Não sei como vou me sentir sobre nada quando minhas memórias retornarem. — Seus braços se apertaram ao redor dela. —Mas eu sei que temo perder você mais do que qualquer coisa que possa me acontecer. Lágrimas arderam em seus olhos. —Shiro… Ele iria perdê-la não importa o quê. Ela estava destinada a morrer, para ser consumida por Amaterasu em apenas algumas semanas. Mas ela não deveria ter que dizer isso a ele. Ele já sabia, então por que estava dizendo a ela que temia perdê-la? O que ele estava tentando dizer? Talvez fosse melhor se, quando suas memórias voltassem, ele parasse de se preocupar com ela. Inari não temeria a morte inevitável de uma garota mortal fraca. Inari não choraria por ela. Inari não ligaria. Inari não a amaria. Mas Shiro sim. Seu coração gaguejou. Isso é o que ele estava dizendo sem realmente falar as palavras. Isso é o que ele quis dizer quando disse que perdê-la era seu maior medo. Como ela passou a significar tanto para ele em tão pouco tempo? Como ele poderia amá-la, uma garota mortal cuja única realização era ser hospedeira de uma kami, quando ele era muito mais? Ela se virou em seus braços para encará-lo. Lutando contra o desejo de se encolher, de se esconder, ela forçou o olhar até o rosto dele. Sombras
deslizaram por seus olhos. E sob as sombras, um lampejo de poder antigo espreitava bem no fundo. Ela ergueu a mão, os dedos tremendo levemente, até que as pontas dos dedos encontraram a borda de sua mandíbula. Ela deslizou os dedos pela lateral de seu rosto até que roçou o símbolo vermelho em sua bochecha. Tocá-lo era proibido. Ser segurada por ele era proibido. Sua pureza era sua maior prioridade, seu maior dever. Se ela comprometesse seu makoto no kokoro, sua harmonia de espírito, com pensamentos e desejos impuros, a descida de Amaterasu mataria seu corpo. Se ela perdesse sua conexão com Amaterasu, ela não seria capaz de remover a ligação final do onenju e Shiro não seria capaz de ajudar os outros Kunitsukami a impedir Izanami de abrir a Ponte para o Céu. Tudo dependia dela, e ela tinha que proteger sua pureza acima de tudo. Se ela falhasse, ela condenaria o mundo ao governo celestial e tirânico de Izanami. Então, por que ela não conseguia tirar a mão de sua pele quente? Por que ela não conseguia sair de seus braços? Por milênios e mais, Inari está sozinho. As palavras de Izanami, e embora ela estivesse torcendo a realidade para enganar Amaterasu, Emi tinha visto a verdade: ela vislumbrou a agonia da antiga e amarga solidão em Inari. Ele não era capaz de amar um humano, mas Shiro... Shiro podia. Eventualmente, suas memórias voltariam, e com elas, a solidão eterna de Inari. Sabendo disso, como ela poderia se afastar dele? Mesmo se ela tivesse a força para escolher sua pureza em vez dele, como ela poderia negar a ele sua única chance de experimentar algo diferente? Esta poderia ser sua única chance de amar, e definitivamente era sua única chance antes que seu tempo neste mundo acabasse.
Seus dedos pressionaram contra sua bochecha e ela lentamente puxou seu rosto para baixo. Seu olhar a manteve cativa e fervia de palavras que ele não diria, talvez nem mesmo soubesse como expressar. Um imortal que nunca foi capaz de amar, até agora. Ela inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos. Seus
lábios
encontraram os
dele
e
suas bocas se
fundiram
suavemente. Enquanto o calor se espalhava de seu meio para preencher seu corpo, seu coração inchou em seu peito até que ela mal conseguia respirar. Ela desistiu de tudo pelo dever, até mesmo sua vida. Mas isso... isso ela não podia sacrificar, nem mesmo para salvar o mundo. Com os braços dele ao redor dela, sua boca na dela, seu calor e força a envolvendo, ela sabia que não era forte o suficiente para se afastar dele. Não importavam as consequências.
Ajisai - Uma pousada, localizada perto das fontes termais de Wasurenagusa, que é administrada e patrocinada por yokai. Ela só pode ser acessada por Tsuchi.
Amaterasu - A Amatsukami do Vento, irmã de Tsukiyomi.
Amatsukami -
Os
quatro kami mais
poderosos que
governam Takamahara, o reino celestial. Eles consistem em Izanagi do Céu, Izanami da Terra, Amaterasu do Vento e Tsukiyomi da Água.
Ame-no-Murakumo - Uma espada antiga e poderosa pertencente ao Kunitsukami Susano. Seu nome significa “as nuvens dos céus”.
Ameonna - Um yokai do vento e da água, e a autoproclamada Senhora da Chuva.
Bakeneko - Um tipo de gato yokai.
Byakko - Um poderoso tigre yokai com magia do vento elementar.
Daimyojin - um título pertencente ao Kunitsukami Sarutahiko, que significa “o grande deus virtuoso”.
Daitengu - Um título pertencente aos poderosos corvos e yokai que são generais sob o comando do Tengu.
Fujimoto Hideyoshi - O kannushi do Santuário Shirayuri. Observação: em japonês, o sobrenome precede o nome fornecido.
Guji - Um título pertencente ao sacerdote do santuário de mais alta patente que lidera o kannushi de seu santuário e todos os santuários subsidiários de seu kami. Hakama - Uma vestimenta tradicional japonesa que se assemelha a calças largas pregueadas. Os hakama dos homens são amarrados nos quadris, enquanto os das mulheres são amarrados na altura da cintura.
Hana - Uma miko em treinamento no Santuário Shion (falecida).
Haori - Uma vestimenta tradicional japonesa semelhante a uma jaqueta que se assemelha a um quimono na altura do quadril ou da coxa usado aberto na frente.
Hinagiku - Um santuário Izanami na região de Sumire.
Inari - O Kunitsukami do Fogo.
Ishida - O Guji do Santuário Shion e líder de todos os santuários Amaterasu.
Izanagi - O Amatsukami do Céu e governante final dos kami, irmão de Izanami.
Izanami - A Amatsukami da Terra, irmã de Izanagi.
Jorogumo - Uma poderosa aranha yokai, também conhecida como Devoradora de Almas, que comanda o tsuchigumo e cuja mordida venenosa pode incapacitar qualquer yokai.
Kagura - Um tipo de dança cerimonial, às vezes teatral, tradicionalmente executada por miko.
Kami - Seres espirituais que se originam de Takamahara, o reino celestial, e visitam o reino terreno através do uso de kamigakari.
Kamigakari -
Significando
literalmente
“possessão
de kami”,
um kamigakari é um humano que hospeda o espírito de um kami em seu corpo. Dependendo das circunstâncias, um kamigakari pode ser voluntário ou vítima de posse forçada.
Kannushi - Um sacerdote que administra e mantém um santuário, lidera a adoração dos kami do santuário e administra e/ou se apresenta em festivais, cerimônias e outros eventos do santuário.
Kaori - Um bakeneko yokai que Emi encontra na Pousada Ajisai.
Karasu - Um tipo de corvo yokai.
Katana - Uma espada tradicional japonesa com uma lâmina curva, fina e de um gume.
Katsuo - Um sohei designado para proteger Emi.
Ki - Significa “energia espiritual ou força vital”, ki é o poder interno usado por kami e yokai e, em menor grau, humanos. O ki puro de uma mente e alma equilibradas é mais forte do que o ki impuro.
Kimono - Uma vestimenta tradicional japonesa que se assemelha a um robe com mangas longas e largas. Os quimonos são enrolados no corpo e amarrados com um obi.
Kimura Emi - A atual kamigakari de Amaterasu. Observação: em japonês, o sobrenome precede o nome fornecido.
Kiroibara - Uma pequena cidade localizada 0,5 milhas (1 km) ao sul do Santuário Shirayuri.
Kitsune - Um tipo de raposa yokai. Quanto mais antigo e poderoso for um kitsune, mais caudas ele terá, até um máximo de nove.
Kitsunebi - Orbes de fogo de raposa usados pelo kitsune.
Kodama - Um tipo de espírito yokai que habita a maioria das florestas e é conhecido por ser muito tímido, mas poderoso em grande número.
Kogarashi - Uma katana com magia de vento elementar pertencente ao yokai Byakko. Seu nome significa “vento frio de inverno”.
Koma-inu - Estátuas emparelhadas na forma de criaturas parecidas com leões que guardam um santuário, destinadas a afastar os maus espíritos.
Kosode -
Uma
vestimenta
tradicional
japonesa
semelhante
a
um quimono, mas para uso mais casual, com mangas mais curtas e comprimentos variados.
Koyane - Um kami, vassalo de Izanami.
Kunitsukami - Os quatro yokai mais poderosos que governam Tsuchi, o reino espiritual terreno. Eles consistem em Sarutahiko da Montanha, Uzume da Terra, Susano da Tempestade e Inari do Fogo.
Kyubi no kitsune - Uma raposa de nove caudas yokai, a forma mais poderosa do kitsune.
Makoto no kokoro - Significa “pureza de coração”, é um estado de equilíbrio espiritual e pureza que os humanos que adoram kami se esforçam para alcançar.
Marugata - Um círculo de exorcismo criado desenhando símbolos rituais específicos dentro de um círculo; eles variam em complexidade com base em poder e propósito.
Miko - Uma donzela do santuário que auxilia o kannushi, se apresenta em festivais,
cerimônias
e
outros
eventos,
e
desempenha
funções
administrativas.
Minoru - Um sohei designado para proteger Emi.
Moryo - Um tipo de yokai aquático conhecido por se alimentar de corpos humanos mortos.
Murakumo - Uma forma abreviada do nome Ame-no-Murakumo.
Nanako - Uma miko no Santuário Shirayuri.
Noriko - Um bakeneko yokai que Emi encontra na Pousada Ajisai.
Obi - Uma faixa usada para amarrar o quimono e o kosode, variando em largura e comprimento dependendo da roupa e do gênero de quem o usa.
Ofuda - Um talismã feito de uma tira retangular de papel com a inscrição de uma invocação.
Okini - um termo que normalmente significa “favorito” ou “animal de estimação”. Quando usado por yokai para descrever um ser humano, o significado não é claro.
Omamori - Um talismã de proteção semelhante a um ofuda, usado ao redor do pescoço em uma pequena bolsa de seda ou brocado.
Onenju - Contas de oração, também chamadas de rosário de oração.
Oni - Um tipo de yokai semelhante a um ogro.
Onusa - Uma varinha de madeira com fitas de papel usadas em rituais de santuários.
Orochi - Um dragão yokai de oito cabeças.
Ilhas Sabuten - Um grupo de pequenas ilhas na costa leste.
Sake - vinho de arroz japonês.
Sarutahiko - O Kunitsukami da Montanha e governante final dos yokai, marido de Uzume.
Sekisho no seishin - Um encantamento para criar uma barreira protetora, traduzido literalmente como “barreira do espírito”.
Sensei - Um termo honorífico que significa “professor”.
Shimenawa - Um tipo de corda tecida usada para purificação em um santuário.
Shintai - Um objeto físico que pode atuar como um canal temporário para o
poder
e
espírito
de um kami. Os
santuários
têm
um shintai como kami no santuário interno.
Santuário Shion - O maior santuário de Amaterasu e a sede do Guji, localizado na cidade de Shion.
Santuário Shirayuri - Um pequeno santuário Amaterasu que serve à população de Kiroibara.
Shiro - Um kitsune yokai.
Shukusei no tama - Um encantamento para purificar o ki, traduzido literalmente como “purificação da alma”.
Sohei - Um tipo de sacerdote guerreiro treinado em combate marcial e espiritual que atua como guardião do santuário e exorcista yokai.
Sotei no shinketsu - Um encantamento para imobilizar um inimigo, traduzido literalmente como “ligação do sangue do coração”.
Sumire - Uma remota região montanhosa do norte.
Susano - O Kunitsukami da Tempestade.
Tabi - Um estilo de meias japonesas tradicionais, tipicamente na altura do tornozelo, com o dedão separado dos outros dedos, que são usadas com calçados e sandálias com tiras.
Takamahara - A “alta planície celestial”, um reino habitado por kami.
Tamaki - Uma miko no Santuário Shion.
Tanuki - Um tipo de cão guaxinim japonês yokai que é conhecido por sua natureza malandra e habilidades de mudança de forma. “Tanuki” referese tanto aos cães-guaxinins regulares quanto aos yokai.
Tatami - Um tipo de tapete, normalmente feito de palha de arroz, usado como material de piso em quartos tradicionais japoneses.
Tengu - Título pertencente ao corvo yokai Yumei, também conhecido como Senhor dos Corvos e Príncipe das Sombras.
Tenjikubotan - Cavernas funerárias localizadas em um santuário Izanami perto de Wasurenagusa.
Torii - Um portão tradicional que indica a entrada para um santuário e a fronteira entre o mundo mundano e a terra sagrada. Eles são normalmente feitos de madeira ou pedra e muitas vezes são pintados de vermelho.
Tsuchi - O reino espiritual terreno habitado por yokai, que se sobrepõe e reflete a Terra.
Tsuchigumo - Um tipo de aranha yokai que é temida por sua picada venenosa, que pode incapacitar qualquer yokai. Tsuchigumo existe apenas em Tsuchi, ou onde os reinos de Tsuchi e a Terra se misturam.
Tsukiyomi - O Amatsukami da Água, irmão de Amaterasu.
Uzume - A Kunitsukami da Floresta, esposa de Sarutahiko.
Wasurenagusa - uma montanha famosa por suas inúmeras fontes termais.
Yamachichi - Um tipo de macaco yokai que rouba o fôlego de suas vítimas.
Yokai - Seres espirituais que se originam de Tsuchi, o reino espiritual terreno, e estão intimamente ligados à natureza. Às vezes, os yokai são considerados um subconjunto dos kamis e costumam ser vistos como monstros ou demônios.
Yomi - O reino dos mortos para o qual os espíritos humanos passam após a morte.
Yumei - Um yokai corvo conhecido como Tengu, assim como o Senhor dos Corvos e o Príncipe das Sombras.