Vanessa Martinelli - Amigos Inimigos

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Você já teve um Amigo-Inimigo?

“Para Luiza, com amor de mãe. Nelson, companheiro de todas as horas. Por Deus, que me olha diariamente. À família, pela presença constante. Aos amigos, como é bom tê-los! Para pessoas como Alexandra, que com seus desenhos tornaram minha adolescência mais feliz e inspiraram este livro.”

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Um Amizade Antiga Um cheiro insuportável: jiló podre, gambá e gato molhado. O chulé do irmão não tem comparação. ― Rico, leva essa coisa para a lavanderia! ― grita Maria, segurando um par de meias com as pontas dos dedos. A outra mão ocupada em tapar o nariz, evitando que o odor impregnasse o cérebro. No sofá, o menino joga seu videogame portátil, alheio a qualquer comentário. Levanta os olhos, conferindo o rosto da irmã, avermelhado pela raiva. ― Ah, mana! Depois eu faço isso – disse, virando para o lado. Era o fim. Lá estava o irmão, um guri folgado com seus recém feitos onze anos. Sempre às voltas com novidades eletrônicas. ― Américo, sai logo daí ou eu vou chamar a mamãe! Lembra que ela pediu ontem para você se livrar dessas meias do jogo de basquete? Foi suficiente para o menino pular alguns metros. ― Ninguém me chama de Américo! É Rico, Ri-co! ― exclama visivelmente alterado.

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A mãe tinha talento para nomes diferentes. Felizmente abençoou a filha mais velha com um nome comum. Rico não teve a mesma sorte. ― Américo do Sul! Não me faça descer! ― a voz da mãe ecoando pelo corredor superior. Contrariado, abandonou o videogame em um canto, resolvendo dar conta do objeto malcheiroso. Puxou as meias, acomodando no bolso. ― Um porco, definitivamente um porco ― deduziu a irmã. Maria subiu as escadas, desistindo de entender em que momento a mãe errou na educação. Faltava pouco para o início da primeira aula. Caso atrasasse, ouviria a irritante dona Ana, bedel do colégio, com seus sermões intermináveis sobre “os jovens de hoje em dia”. Prende os cabelos revoltos em um rabo alto, evitando se incomodar. Olha o espelho, desanimada. Alisa a blusa do uniforme. Gostaria que seus seios crescessem um pouco mais. Tinha catorze anos, idade suficiente para um sutiã 40. A envergonhava entrar nas lojas e suplicar por um mísero 36. Magra demais, baixa demais. Maria tinha dificuldade em aceitar o que a genética decretou. Às vezes preenchia os espaços vazios do sutiã com bolinhas de papel, rezando para que estas não resolvessem saltar para fora, na frente de um menino interessante. Seria bom ter um corpo adulto, como o de Patrícia, uma de suas amigas de sala. Pescoços entortavam quando ela passava. Até o uniforme horroroso cor de abóbora do colégio ressaltava as curvas

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perfeitas. Em Maria ficava como um saco disforme, contribuindo para evidenciar a falta de conteúdo. Claro que Patrícia chamava atenção, senão pelo corpo, com certeza pelos cabelos loiros bem arrumados e os grandes olhos azuis. “Uma barbie”, conclui. A beleza da amiga poderia ser irritante, mas seu jeito meigo e alienado a fazia uma pessoa muito querida. Patrícia era a última a entender as piadas, inclusive as óbvias. Tinha dificuldade nas matérias difíceis e costumava recorrer à Camila, a inteligente da turma. Esta a salvou de muitas notas ruins, com seu comportamento prestativo, ensinando calmamente todos os pontos da lição. O rosto de Camila surgiu na mente de Maria. Desejava que a amiga estivesse melhor nesta manhã. Não gostava de vê-la triste pelas constantes brigas dos pais. Estavam se separando, havia um ano. Ainda dividiam o mesmo teto e usavam a filha em suas discussões prolongadas. Isso deixava Camila ansiosa, procurando refúgio na comida. Aumentou vários quilos desde que tudo começou. Nunca falou sobre isso com a amiga, mas a mochila repleta de chocolates e bolachas denunciava o novo hábito. Maria pega o celular de cima da cama, assustada. ― Caramba! Sete horas! ― disse, agarrando a mochila pesada. Desceu as escadas correndo, teria quinze minutos para fazer um percurso que normalmente levaria o dobro de tempo. ― Tchau, mãe! ― grita, batendo a porta.

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Um “tchau” abafado foi ouvido antes que Maria chegasse à rua. O safado do irmão saiu de fininho, sem alertá-la do adiantado da hora. ― Ele vai ver só ― praguejava. ― Vou comer todas as balas dele assim que chegar em casa! O vício de Rico: balas de morango, de uma marca importada. As guardava embaixo da cama, escondidas entre os tênis puídos e os carrinhos de controle remoto. Torcia para que Maria não encontrasse. Quando a irmã queria puni-lo, descobria o esconderijo se livrando das balas, uma a uma. Isso deixava Rico possesso, enchendo os ouvidos da mãe com acusações. Maria negava tudo e dizia que provavelmente um dos ratos que habitavam o quarto do irmão que fez o serviço. Andava em passos largos, cansada pelo material que carregava. Era dia de Educação Física. Maria optou pela natação, o que a obrigava a levar todo o apetrecho necessário. Óculos, maiô e toalha dividiam espaço com as apostilas, o penal, fones de ouvido. Por sorte, morava próximo ao colégio, facilitando a falta de um carro. A mãe pagava com dificuldade o bom colégio em que Maria e Rico estudavam, inviabilizando arcar com custos desnecessários como o de um automóvel. O pai faleceu há muitos anos e a mãe assumiu os dois papéis. Maria lembrava pouco dele. Cenas de passeios no parque, sorvetes derramados e risos ocupava a memória no que se referia àquele que a mãe descrevia como alguém importante.

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Não podia dizer que sentia falta do pai. Estava acostumada com a família que tinha. Apesar das desavenças, eram unidos e a mãe desempenhava muito bem a função de provedora. Ensinava a valorizar o que possuíam e a ajudar nos afazeres domésticos. Maria torcia para que a mãe esquecesse dela após o almoço, quando a louça pedia para ser lavada. Fugia quando podia, mas a voz insistente desta chamava à realidade. Às vezes, queria ter uma vida como a de Morgana, cercada de criados. Adivinhando os pensamentos, a amiga apareceu. ― Oi, quer uma carona? ― disse Morgana, abrindo a porta do carro, onde se podia avistar o motorista sorridente. ― Aceito sim, obrigada! ― respondeu Maria, aliviada. Morgana era uma boa amiga, estranha, mas presente. Tinha um jeito melancólico de ser, pessimista a maioria das vezes. Usava os cabelos lambidos na cara, meio curtos, e muitos brincos na orelha. A maquiagem pesada em volta dos olhos mal podia ser percebida, tendo em vista os grossos fios negros que cobriam parte do rosto. Costumava enfrentar a diretora, usando os mais diferentes acessórios para ir às aulas. Hoje mostrava seus coturnos militares. ― E aí, gostou? ― perguntou Morgana, levantando os pés. Maria riu, balançando a cabeça: ― Você não tem jeito! A diretora vai te chamar outra vez! Em um balançar de ombros desinteressado Morgana assentiu: ― Tudo bem, duvido ela achar o meu pai para reclamar. Um executivo importante era o pai de Morgana, dividido entre reuniões e viagens ao redor do mundo. Via a filha somente aos

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fins de semana, e de forma rápida, entre as voltas de iate e uma festa im-per-dí-vel. ― Ele deve estar na China, ou nos Estados Unidos, não sei ― completou, em um tom baixo. Um silêncio incômodo se fez, quebrado pelo motorista: ― Chegamos, senhorita Morgana, quando devo buscá-la? ― Não sei, Jonas, depende se eu ofender alguém hoje ― dito isso saiu do carro, dando passagem para Maria. O sino tocou estridente, avisando a última chamada para a primeira aula. Maria e Morgana correram, dispostas a se livrar da insistente bedel. Alcançaram a porta da sala, antes que dona Ofélia a fechasse. ― Essttãooo atraassaadasss ― disse a professora com a voz arrastada. As meninas sentiam vontade de rir sempre que dona Ofélia se dirigia a elas. Uma senhora de aparência cansada, bochechas rosadas e proeminentes. Era professora de Português e aparecia nas fotos das turmas do colégio desde as primeiras gerações. Tinha sonífero na voz, o que fazia com que metade dos alunos fosse tomada por um sono profundo após vinte minutos de aula. Era comum um estudante ser acordado por ela com uma reguada bem administrada na carteira. A vítima despertava em um susto, misto de surpresa e receio. Se dona Ofélia estivesse em um dia ruim mandaria o infeliz para a diretora Edmira. Maria e Morgana sentaram rapidamente, evitando mais olhares de reprovação. Normalmente, Morgana andaria lentamente,

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buscando provocar, mas pela cara da professora resolveu que a chance de ir para a diretoria era grande. À frente de Maria, Patrícia passava os dedos pelos cabelos, separando as mechas, distraída. Com certeza em outra dimensão. ― Psiu, Patrícia ― sussurrou Maria, chamando a amiga. Esta permaneceu alheia, conversando com um duende imaginário. Maria intensificou o chamado: ― Ei, Patrícia! Nada. Quando Maria se preparava para chamá-la outra vez, uma voz brotou do fundo da sala: ― Patrícia, ô sua surda, todo mundo já sabe que a Maria quer falar com você! Um rapaz alto e magro, com cabelos castanhos e uma cara debochada era o dono da voz. “Jack”, pensou Maria, ao mesmo tempo que a professora virou e disse três palavras: ― Maria. Jack. Diretora. Não podia acreditar. De novo esse ser intrometido cruzava seu caminho. Jack tinha a mesma idade de Maria, talvez meses mais velho. Conheciam-se há muito tempo, por serem vizinhos. As mães eram amigas e costumavam se encontrar para cafés ou coisas do tipo. Brincavam juntos quando pequenos, frequentando a vida um do outro. “Amigos”, resumiu Maria. Não lembrava quando simplesmente haviam se afastado.

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“Provavelmente quando ele se tornou esse bobo irritante”, concluiu. E lá foram os dois rumo à sala da diretora, onde provavelmente ficariam até dona Edmira se compadecer. Levantaram das cadeiras, se preparando para deixar a sala de aula. ― Tá na hora de comprar uma antena parabólica para se comunicar com a Patrícia. Toda essa confusão e ela nem percebeu! ― comentou Jack, irônico. Maria olhou a amiga e constatou que esta continuava viajando em um mundo só seu. Essa era Patrícia, linda e desconcentrada. Preferiu não responder ao comentário impertinente do rapaz. Não daria a ele esse gosto. Ignorou propositadamente, evitando maiores contatos. Este assumiu uma careta desgostosa, mas permaneceu quieto. Estava acostumado com o desprezo de Maria. “E ela já foi minha amiga, não sei como!”, se questionou. Chegaram à sala de porta verde, temida por todos os alunos. Lá dentro a diretora conferia os castigos adequados. A maioria tinha que escutá-la comentar casos de marginais conhecidos. Sempre terminava com a frase: “amanhã pode ser você”. Catastrófica. ― Quem ela vai citar hoje? Bin Laden? ― disse Jack, rindo do hábito da diretora.

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Maria sentiu vontade de rir também, mas se conteve, não queria intimidade. Não eram mais amigos, há muito tempo. ― Podem entrar! ― soou a ordem da diretora que aguardava sentada em sua mesa. Jack entrou, seguido por Maria. ― Senhorita, Maria, que novidade vê-la por aqui. Quando avisaram que uma aluna do nono ano viria, pensei se tratar da sua amiga Morgana, assídua frequentadora de minha humilde sala ― disse Edmira, caminhando até eles. Apontou para duas cadeiras. ― Sentem ― ordenou. Foi prontamente atendida. ― Senhor Jack, como está o seu pai? ― perguntou. ― Bem ― respondeu, sem dar atenção ao comentário. O pai de Jack era um político conhecido na cidade, figura melosa que insistia em beijar todos ao seu alcance. Tinha o sonho de ver Jack estudando no exterior. Para tanto, lhe deu um nome norteamericano e o obrigou fazer aulas de inglês desde cedo. A mãe trabalhava em casa, comumente submissa aos desejos paternos. Uma figura amorosa e apagada. Maria sentiu pena ao observar o rosto fechado de Jack. Todos só queriam saber de seu pai, só perguntavam dele. Desde que se lembrava era: “seu pai isso”, “seu pai aquilo”. Não deveria ser fácil viver às voltas com esse fantasma. ― E quem tumultuou a aula da senhora Ofélia? ― continuou a diretora.

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Edmira tinha mania de usar os mesmos pronomes de tratamento para se dirigir a todos: alunos, pais ou professores. Senhora para lá, senhor para cá. Maria achava isso engraçado. Silêncio. A diretora contornou as cadeiras, procurando reação. Como nenhum dos dois se pronunciou, resolveu agir: ― Já que vocês são tão próximos, penso que vão gostar de ficar em minha sala, olhando um para a cara do outro até o sinal tocar! ― E saiu batendo a porta. Frustração. Maria precisava assistir à aula de Português. Seu último teste não foi dos melhores. ― Afinal, o que você queria tanto com a Patrícia? ― Jack puxou conversa, quebrando da falta de assunto. Não lembrava a última vez que se falaram. Maria não sabia se respondia. Desejava perguntar à Patrícia sobre a ausência de Camila. A amiga nerd nunca perdia uma aula. Frequentava todas as matérias, absorvendo os conhecimentos possíveis. Mas naquela aula Camila não estava. O que teria acontecido? Ela e Patrícia caminhavam juntas até o colégio. Talvez Patrícia tivesse informações. ― Queria saber sobre a Camila ― respondeu, sem explicações. E assim permaneceram, fitando a parede, presos em seus pensamentos. Maria contemplou Jack furtivamente, percebendo como ele cresceu. Não parou para olhá-lo propriamente desde que se

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afastaram. Ainda lembrava o garoto de cara alegre e rechonchuda, mas agora era um adolescente magro e petulante. Jack girou a cabeça em sua direção, o que fez com que Maria parasse de olhar imediatamente, adquirindo um rubor estranho. A companhia de Jack deixava-a incomodada. Suspirou aliviada quando o sinal tocou, avisando que o martírio chegou ao fim. Saiu da sala correndo, deixando Jack sozinho. Desceu as escadas até o pátio, onde Patrícia, Morgana e agora Camila estavam sentadas em um banco. ― Olha lá a sortuda! ― disse Morgana. ― Sortuda, até parece ― resmungou Maria. ― Claro, você e aquele gatinho do Jack sozinhos na sala da diretora ― cutucou Camila, que sabia da ojeriza da amiga. A resposta de Maria foi uma cara mal-humorada, o que fez com que trocassem de assunto rapidinho. O comentário de Patrícia provocou risos: ― A Maria foi na sala da diretora hoje? Nem vi... Ai, ai, Patrícia, um dia eu te compro um satélite para melhorar sua conexão com o universo ― disse Camila. ― E falando em universo ― lembrou Maria ― o que aconteceu no seu que você não foi à aula hoje? Camila ficou séria. Maria percebeu que algo aconteceu. ― Nada demais ― respondeu curta e seca. Isso não é normal. Camila sempre foi uma pessoa falante. Por que agora esse comportamento? ― Desculpe perguntar, Camila, mas me preocupo com você ― insistiu Maria.

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Camila olhou os joelhos. ― A verdade é que não consegui me vestir a tempo ― respondeu. ― Nenhuma das minhas roupas me serve. Estou gorda e feia! ― desabafou. As amigas se entreolharam sem saber o que responder. O fato é que Camila engordou uns dez quilos desde o início do ano. E os pais pareciam não se importar com isso. ― Pense bem, Camila, poderia ser pior ― colocou Morgana. ― Você podia estar igual à Gertrudes – disse apontando para uma menina alta e esquelética, com cabelos que lembravam a noiva do Frankenstein. ― Isso não me consola ― respondeu Camila. ― Vocês sabiam que no horóscopo de hoje, Câncer está na lua de Escorpião, favorecendo as relações familiares e os amores antigos? ― falou Patrícia, que costumava trazer comentários sem nexo. ― Tudo o que precisamos: outra dose de família e relações mal resolvidas! Iupiii! ― disse Morgana, jogando as mãos para cima, fazendo Camila e Maria rirem, melhorando o clima. ― Você deveria ler a coluna astral, tem bons conselhos ― argumentou Patrícia, fingindo-se ofendida, mexendo os cabelos. ― Claro, claro ― respondeu Morgana, compreensiva. Neste momento, Maurício cruzou o pátio, fazendo Maria se esquecer das amigas. ― Terra chamando Maria, depois sou eu a desligada ― disse Patrícia em um risinho.

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― É só o Maurício passar que a Maria se desconecta de tudo! ― colocou Camila, dando tapinhas nas costas da amiga. ― Aquele riquinho chato! ― exclamou Morgana, mostrando a língua em uma careta de nojo. ― Ele não é chato! ― reclamou Maria, em defesa daquele que ocupava seus sonhos. Maurício prendia a atenção de praticamente todas as meninas da escola. Loiro de olhos azuis, dizia ser o melhor jogador de futebol do time. Gostava de mostrar os presentes caros que recebia da mãe. Colecionava tênis e roupas de marca enquanto a mãe colecionava maridos, atualmente no terceiro casamento. Um mais rico que o outro. Não gostava de Jack, com quem costumava entrar em conflito. Ambos jogavam no time da escola, mas não se entendiam, para desespero do treinador. ― E você também é riquinha! ― disse Maria para Morgana. ― Mas eu sou um amor! ― respondeu a amiga, fazendo as colegas gargalharem. Morgana era assim, uma contradição ambulante. ― E que tal se fôssemos ao meu quarto depois da aula para organizar minha coleção de bonecas? ― sugeriu Patrícia. ― Prefiro cortar os pulsos ― disparou Morgana. Patrícia ignorou o comentário, murmurando um “eu acho bem legal”. ― Desculpe, Patrícia, mas minha mãe pediu que eu fosse até a venda da esquina comprar umas frutas ― disse Maria, fugindo do compromisso de gosto duvidoso.

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― E eu tenho que estudar para recuperar o que perdi da aula de Português ― justificou Camila. Rapidamente, cada uma seguiu seu caminho, evitando que Patrícia tivesse outra ideia para um programa “agradável”. Bem a tempo do sinal tocar, avisando a próxima aula: Física. – Ninguém merece – resmunga Maria que detesta com todas as forças a matéria. Tudo compensado pelo professor Pedro, um cara engraçado e não muito mais velho do que os próprios alunos. Tentava encaixar uma frase engraçada ao final das explicações. Normalmente conseguia arrancar risadas de solidariedade, devido às piadas muito ruins. ― Ele deve achar que nós temos oito anos ― comenta Morgana. ― Ora, vamos! Dê um crédito para ele, é esforçado! ― defende Camila, mais interessada no professor do que na aula. Isso ficava claro pelos inúmeros corações desenhados nas folhas do caderno e o fato de a amiga tirar dúvidas que não existiam depois da aula. ― E viva o amor platônico! ― debocha Morgana, irritando Camila. ― Não é nada disso que vocês estão pensando! ― Se explica. ― Tudo bem... ― acalma Maria. ― Do que vocês estão falando? ― surge Patrícia do além. E assim transcorreram as aulas daquele dia: Matemática, Literatura e Educação Física.

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Apenas Maria escolheu a natação, enquanto Camila decidiu fazer vôlei, Patrícia dança e Morgana fingia que corria. Maria ajeitou a touca de látex que repuxava os fios do cabelo. O maiô com o emblema da escola a fazia se sentir desproporcional. ― Praticamente uma tábua ― concluiu Maria encarando o espelho do vestiário. Caminhou até a piscina, lutando para que o maiô grande demais ficasse no lugar. Atrasou um pouco e todos os alunos estavam em fila, no aquecimento. A professora Roseli dava as últimas coordenadas, os instruindo a dar cinco voltas caminhando em volta da piscina antes das séries. ― Que bom que se juntou a nós, Maria ― disse a professora, em um leve puxão de orelha. Maria virou um pimentão quando todos repararam em quem havia chegado. Queria se esconder, mas logo notou que não olhavam diretamente para ela. ― Desculpe o atraso professora, é minha primeira aula, perdi o horário ― falou uma voz masculina. ― Não pode ser, não pode ser, não pode ser, não pode ser... ― repetiu Maria de olhos fechados, como um mantra. Mas era. Jack caminhou até a fila, com a sunga laranja de gosto duvidoso da escola. A maioria dos nadadores eram meninas, o que obrigou Jack a se posicionar entre duas morenas gêmeas. Estas ficaram alvoroçadas e felizes pela presença do rapaz.

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― Que bom tê-lo aqui, Jack! Quando o treinador Heitor me disse que o capitão do time de futebol iria nadar conosco não acreditei! ― disse Roseli, feliz por ter finalmente um atleta no grupo. Maria permaneceu estática, processando na cabeça o motivo de Jack ter escolhido justamente a natação como esporte esse ano. O interesse dele estava voltado único e exclusivamente ao futebol. Era muito azar ele decidir morrer de amores pelo mesmo esporte. ― E será que você poderia se juntar a nós, Maria? ― insistiu a professora, apontando para o final da fila. –― Vai ver a touca está apertando o cérebro dela ― falou Jack, com um jeito engraçado. Riso geral. A raiva que Maria sentia daquele rapaz transbordava pelos poros. Criou em sua mente cenas em que o atirava em uma piscina cheia de tubarões. Decidiu acordar e se colocar no lugar apontado por dona Roseli. Por sorte, bem longe de Jack. A aula começou e Maria não teve mais tempo de pensar no infeliz. Depois de várias voltas em torno da piscina e muitas idas e vindas em séries de nado, estava exausta. Foi para o vestiário, preocupada com a hora. A mãe não gostava de atrasar o almoço, precisava voltar cedo ao trabalho. Lavou os cabelos desajeitada, sem ter tempo de secá-los. Vestiu a roupa aos turbilhões, enfiando o tênis no meio do caminho. Carregando a mochila saiu do colégio, intercalando pulinhos que a levariam mais depressa para casa. ― Cheguei, mãe! ― disse, batendo a porta.

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Rico estava em seu habitat natural, jogado ao sofá, compenetrado no game. Maria lembrava da vingança das balas e sabia que em breve teria sua chance. ― Oi, mãe ― falou se aproximando do fogão, onde Joana fritava bifes. ― Oi, filha ― respondeu, dando um beijo. ― E como foi na escola? ― Mais ou menos ― comentou Maria, revendo os episódios passados. ― Ela foi parar na sala da diretora! ― entregou o irmão, berrando do sofá. Uma aberração da natureza, só isso poderia descrever a criatura que dizia ser seu irmão. ― Com a diretora! ― falou alto a mãe, virando para encarar a filha com um ar de reprovação. ― Calma, foi um mal-entendido! ― explicou Maria, esperando que isso a contentasse. ― Mas a diretora não achou isso quando deixou a Maria e o Jack na direção por toda a primeira aula. ― Entregou mais uma vez o irmão, satisfeito por ver Maria em uma encrenca. “Um alien que veio a este planeta para atazanar a vida das irmãs.” ― Você não arranjou briga com o filho da Sônia de novo, né? ― exigiu saber a mãe. ― Ele é um chato ― reclamou Maria, engolindo as palavras ao se deparar com o olhar bravo de Joana.

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― Pois gosto muito da Soninha e acho que você deveria tentar conviver com o Jack. Um rapaz tão querido! ― emendou a mãe, ressaltando as qualidades do “Jackzinho”. “Um entulho, isso sim!”, pensou Maria. Joana levou a travessa de arroz até à mesa, terminando de dispor os pratos. ― Eu não entendo, vocês se davam tão bem até pouco tempo, brincavam tanto juntos! ― continuou a mãe. ― Ah, mãe, deve fazer uns cinco anos que eu não brinco, muito menos com o Jack! ― disse Maria, escandalizada pela mãe acreditar que ela ainda poderia ter laços com aquele inconveniente. Sentaram para comer, sem maiores comentários. O irmão bagunçava a comida, enfiando na boca tudo o que estivesse ao seu alcance. ― Como disse, um porco ― definiu Maria. A mãe terminou rapidamente, se ajeitando para sair. ― Se eu chegar atrasada o Sr. Ranoldo vai me matar! ― avisou, procurando sua pasta. Beijou os filhos e saiu para não perder a carona até o trabalho. ― E não se esqueçam de comprar abobrinha e cebola para amanhã ― berrou a mãe, já no banco do passageiro. Para Maria, ficou uma pia repleta de louça e a tarefa de ir até a quitanda. Não sobrava tempo à mãe para as tarefas domésticas, restando à Maria e seu irmão ajudarem na casa. Em termos, pois até um pouco antes da mãe chegar nada era feito.

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Resolveu ir comprar o que faltava ao perceber que todos os iogurtes desapareceram da geladeira como num passe de mágica. Pegou uma nota de cinquenta que a mãe deixou escondida em um falso vidro de biscoitos. Caminhou até a esquina da rua, carregando uma sacola onde se lia: “preserve o meio ambiente”. Andava distraída, quando avistou o letreiro berrante da venda do Seu Alceu. Lá se vendia de tudo, o que fazia com que Maria não precisasse enfrentar os grandes mercados para as compras do dia a dia. Selecionou itens que faltavam para o almoço: ovos, abobrinha, cebola. E outros itens também muito necessários: iogurte, chocolate, cereal, bolacha. Indispensáveis. Levou tudo até o caixa, quando um saco grande de ração para cachorro invadiu seu campo de visão. ― Ei, tira esse treco da minha cara! ― pediu Maria, lutando contra o pacote de cinco quilos de ração “Bau-Bau” que insistia em sufocá-la. ― Desculpe, não vi que tinha alguém na minha frente ― respondeu Jack, sem perceber de quem se tratava. ― Quero que esse dia acabe! ― gritava Maria por dentro. Lá estava Jack, atrapalhando sua vida outra vez! ― O que você está fazendo aqui? ― perguntou Maria sem paciência. Ela sabia que Jack morava perto de sua casa, afinal eram vizinhos, mas também sabia que Jack nunca precisou levantar um dedo para os afazeres domésticos. Sua mãe cuidava de tudo, enquanto o pai trazia todo o dinheirinho para o pequeno Jack.

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― Ué, vim comprar ração para o Edu, meu labrador, esqueceu dele? ― respondeu com um sorriso casual. O comentário soaria simpático se Maria não estivesse tão enfezada. É claro que lembrava de Eduardo Príncipe I, o cachorro de Jack. O conheceu no dia em que ela e Jack ficaram amigos, brincando no parquinho da praça. Deviam ter uns quatro anos e depois disso passaram a se ver todos os dias. ― Minha mãe comprou uma marca muito ruim, com um gosto horrível, é claro que o Edu não quis comer ― explicou Jack, fazendo uma careta feia. ― Você ainda come a ração do Edu? ― questionou Maria. ― Não é comer, eu apenas provo para ver se está boa ― justificou Jack. Um clima ameno se fez entre eles, e Maria não gostou nem um pouco. Estavam se aproximando e um alarme soou. ― Preciso ir, ao contrário de você, tenho muito trabalho em casa ― disse Maria, atrevida, indo até a porta da venda. Do balcão, ouviu-se a voz do quitandeiro: ― Você vai pagar por esses produtos, mocinha? Maria estava tão preocupada em sair de perto de Jack que esqueceu que precisava pagar. Jack passou por ela rindo, carregando o pacote de ração. Recebeu

uma

abobrinhada

na

cabeça,

devidamente

administrada por Maria. ― Paguei por ela ― sorriu ao ver o rosto surpreso de Jack. Este inesperadamente não reagiu e nem a ofendeu. Saiu sem dizer uma palavra.

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Maria preferia que ele a tivesse xingado. Ou dito alguma coisa sem graça, como costumava fazer. Estranhou a atitude. ― Acho que ele ficou magoado ― disse Seu Alceu, apoiando a cabeça com a mão, coçando o bigode. ― É verdade ― concordou dona Genuína, moradora da casa 49. O que faltava, plateia! Maria correu para casa. O rosto queimava. Raiva, talvez. Jogou as compras em cima da mesa e subiu para o quarto, se jogando na cama. Tinha vontade de chorar, mas nenhuma lágrima saía. Por que dava tanta importância para o que aquele guri pensava ou sentia? Deveria se preocupar com Maurício, muito mais interessante. Levantou e olhou seu mural de retratos. Perdeu a conta dos anos que se passaram e que as fotos foram se acumulando uma em cima da outra. Ali repousava uma imagem de Maurício, durante um dos treinos de futebol. Patrícia conseguiu no arquivo da escola. Embaixo de todas as fotos, uma figura meio apagada pelo tempo apareceu. Nela Maria e Jack se abraçavam, fazendo “chifrinho” na cabeça um do outro. Tinham oito anos. A última foto que tiraram juntos. Maria sentou ao chão e retirou todas as camadas, uma a uma. Guardou as fotos em que Jack surgia, deixando as atuais.

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Um pouco antes da mãe chegar, arrumou a casa e colocou a roupa para lavar. Esperava-a todas as noites para ver a novela das sete. Nesse dia decidiu ficar no quarto, olhando a parede. A campainha tocou. Quem poderia ser? ― Oi, Jack! Que bom ver você por aqui! Quanto tempo! ― disse Joana. Agora é demais! Ele estava na casa dela! Maria correu para o banheiro e trancou a porta. Ligou o chuveiro, torcendo para a mãe não a fazer sair do banho e receber a visita ilustre. Joana dirigiu-se ao quarto de Maria e, ouvindo o som da água que caía, desceu as escadas. Maria percebeu que o diálogo cessou, mas não conseguiu entender o desfecho. Ao sair do banheiro, viu um pequeno cartão com desenhos de coelhinhos encostado em seu travesseiro. Nele uma frase rabiscada à mão com os dizeres: Desculpe por tudo, Jack. Mais tarde, a mãe estava sentada ao sofá acompanhando a última novela. Chamou ao ver Maria no quintal: ― Filha! Você reparou no cartão que Jack deixou para você? ― Sim, mãe ― respondeu Maria ― estou colocando ele no devido lugar. Maria coloca o último monte de barro em cima do buraco raso. Vê-se apenas um punhado de terra, nenhum sinal do cartão. A mãe não entendeu o comentário, mas resolveu deixar para outra ocasião.

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― Esses adolescentes...

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Dois Relações Perigosas Ressaca emocional. Só podia ser emocional tendo em vista que a mãe de Maria não a deixava beber nenhuma gota. Claro que as bicadas nos drinks da tia Marta em festas de final de ano não contavam. Dormiu mal, um sono agitado, repleto de sonhos confusos e esquisitos. Patrícia aparecia vestida de Estátua da Liberdade, carregando uma tocha acesa. As amigas a rodeavam rindo de algo que não sabia definir. No final, Jack aparecia vestido de noivo, se casando com uma menina desconhecida. Maria ficou pequena, miúda e desapareceu como um grão de areia. Acordou assustada, maldizendo Jack por interferir em suas noites. Caminhou sonolenta até a escola, repassando as cenas. ― Ei, Maria, espere por nós! Patrícia e Camila abanavam para que desacelerasse o passo. ― Oi ― respondeu Maria, ainda desanimada. ― O que aconteceu? ― perguntou Camila. ― Nada, insônia ― justificou. Não tinha a mínima vontade de falar de Jack. ― Tenho uma simpatia ótima para insônia! Você bebe três copos de água, dá dois pulinhos, beija um sapo preto e...

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― Prefiro ficar sem dormir ― disse Morgana, que se juntou ao grupo naquele instante. As amigas estranharam ver Morgana sem o motorista. ― Dei folga ao Miguel ― respondeu, adivinhando os olhares. ― E o seu pai sabe disso? ― questionou Camila. ― Ele vai saber quando chegar a conta das férias nas Bahamas ― colocou Morgana em uma meia risada. As amigas imaginaram o motorista cercado de dançarinas de ula-ula. ― Seu pai vai ficar louco! ― previu Maria, tapando a boca com as mãos. ― Ele não vê meu extrato do cartão desde que eu tenho nove anos ― falou Morgana, displicente. ― E olha que eu até comprei uma cobra africana quando tinha onze! Todas lembravam de Marta Regina, um réptil até simpático. ― Ele só a descobriu no ano passado, quando me obrigou a doá-la ao Butantã – conclui Morgana. “Sinto saudade daquela pele fria.” ― Cruz! ― benzeu-se Patrícia, que tinha pavor de tudo que era gosmento. Andaram mais um pouco, olhando a paisagem, procurando um assunto que desviasse da vida caótica de Morgana. ― E vocês vão lá em casa hoje? ― perguntou Maria. ― Sim, já falei com a minha mãe, tá tudo certo! ― disse Camila. ― Vou levar o Monopoly. ― Legal, eu levo o veneno de rato! ― comentou Morgana, “animada” pela ideia de Camila.

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― Para com isso, você gostava de jogar! ― falou Camila, empurrando a amiga. ― Prefiro brincar com dinheiro pessoalmente ― riu Morgana e todas acompanharam. ― Mas jogaremos de brincadeira, nada de comprar outra cobra ― colocou Maria, puxando o cabelo de Morgana. ― Tudo bem, tudo bem ― sorriu esta. ― E eu posso levar um acompanhante? Silêncio geral. As amigas pararam de caminhar e olharam instantaneamente para Patrícia. ― O quê? ― disseram todas em uníssono. ― Vocês sabem, um amigo, para deixar o jogo melhor. Só nós quatro vai ficar chato. ― Mas aí ficaremos em cinco ― informou Maria. ― Então cada uma leva um acompanhante! Vai ser divertido! ― sugeriu Patrícia. ― Não sei ― pensou alto Maria. A casa ficaria cheia de gente. A mãe sabia que as amigas viriam, não outros jovens. ― Pode ser legal ― continuou Camila. ― Vou levar o Pedro. Será meu par no jogo, ele sempre ganha. ― Ei, o chefe do clube de matemática e xadrez não vale! ― reclamou Morgana. ― Ficaremos pobres rapidinho! ― Só assim para você ser pobre mesmo! ― ironizou Maria. ― E você Maria, quem vai levar? ― perguntou Camila. ― Vou convidar meu primo André, faz tempo que estou devendo uma tarde com ele.

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André era para Maria um amigo. Tinha quatro anos a mais e estava careca, pois passou no vestibular de engenharia. Morava em um bairro mais afastado, o que fazia com que não se vissem muito. Maria sentia falta dele e pensou que essa tarde com as amigas poderia ser uma desculpa para ver o primo. ― E você, Patrícia? E você, Morgana? Quem vão levar? ― quis saber Camila. ― Ainda não decidi ― respondeu Patrícia olhando o infinito. ― Talvez eu resgate o Miguel das Bahamas ― disse Morgana, fazendo as amigas rirem novamente. O assunto morreu chegando ao colégio, junto com o sinal da primeira aula. Todas se acomodaram em seus lugares de sempre. Maria surpreendeu-se com um Jack muito quieto. Nem parecia estar na sala. Não fez comentários durante todas as matérias. Permaneceu calado, rabiscando a página do caderno. Quando faltavam quinze minutos para a última aula terminar, um bilhete chegou até Maria: Preciso falar com você! Jack. Uma grande interrogação surgiu. O que aquele menino queria com ela? A última coisa que Maria esperava era conversar com ele. Devolveu o bilhete: Não temos nada para falar! Maria. Guardava o material quando outro bilhete chegou: É importante! Jack. Maria respondeu:

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Problema seu! Maria. Uma bola de papel em um tamanho considerável foi arremessada na cabeça de Maria, que virou gritando: ― Quer parar de me encher? ― Sua burra, custa me escutar? ― respondeu Jack apoiado em cima da carteira, devolvendo no mesmo tom. O tempo parou quando ambos perceberam que toda a sala, inclusive o professor, observavam atônitos a conversa. ― Talvez devessem partilhar conosco a questão e juntos acharemos uma solução – disse o professor de filosofia com sua calma usual. Maria ficou vermelha. Queria sumir em meio às apostilas. Camila olhava com os olhos arregalados e Morgana ria baixinho. Patrícia se manifestou: ― Por que tá todo mundo parado? ― Nada, Patrícia, Nada ― respondeu Morgana. Na saída da escola, Maria correu em direção ao portão, se distanciando o máximo possível de Jack. Se não bastassem as provocações que normalmente sofria, agora tinha que aturar a presença desse rapaz. Por que ele a perseguia? Não esperou pelas amigas e seguiu seu caminho, o mais rápido que as pernas podiam aguentar. Chegou em um turbilhão, batendo a porta. A mãe estranhou o comportamento, mas nada falou. Provavelmente a filha tinha se desentendido com uma das amigas. “Coisas da idade”, pensou.

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Maria almoçou quieta e não respondeu a nenhum dos comentários idiotas do irmão. ― Fiz um bolo para você e suas amigas ― disse a mãe, puxando conversa. ― Elas vêm hoje aqui? ― Sim ― respondeu Maria, monossilabicamente. ― Pedi para o Américo passar a tarde na casa de um amigo para deixar vocês à vontade ― continuou a mãe. ― Obrigada ― agradeceu Maria, encerrando o assunto. A mãe não insistiu, deu um beijo na filha e foi se arrumar. Não podia perder sua carona. ― Você está esquisita ― falou o irmão, remexendo com o garfo um pedaço da sobremesa. ― Me deixa em paz ― disse Maria sem a mínima intenção de abrir com o irmão tudo o que aconteceu. ― Está bem, está bem, deve estar na TPM. Maria tentou chutar Rico, mas ele saiu da mesa a tempo. Ela recolheu as louças, organizando a pia. Deixaria tudo limpo antes das amigas chegarem. Imaginou que trariam mesmo companhia e ligou para André: ― Oi, primo! ― Oi mana, quanto tempo! ― respondeu André com sua personalidade feliz. Maria lembrou o quanto gostava dele. Era uma pessoa que a fazia se sentir bem. ― Escuta, hoje vou chamar umas amigas para vir aqui em casa. Elas vão trazer companhia. Gostaria que você viesse também.

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― Pode ser, hoje não tenho nenhuma prova na facul ― disse André, contente por rever Maria. Terminaram a ligação prometendo se encontrar mais vezes. André contou das primeiras semanas de aula, da faculdade de Engenharia, dos professores carrascos. Riram juntos dos colegas nerds que André conheceu. Justo ele, andando com nerds! Maria não conhecia pessoa mais brincalhona do que o primo. Talvez Jack. A lembrança do colega fez com que uma nuvem cobrisse o coração de Maria. Não sabia o porquê dele incomodá-la tanto. Era apenas um rapaz bobo, e só. Quando terminou de arrumar a casa, a campainha tocou, tirando Maria de seu sentimento. ― Oi amiga! Cheguei cedo? –―perguntou Camila, junto de Pedro. ― Oi ― disse o rapaz timidamente. ― Obrigado pelo convite ― agradeceu educado. ― Imagine, pode entrar Pedro ― respondeu Maria. Camila e Pedro se sentaram no sofá. Na mesinha de centro havia copos de refrigerante e pedaços do bolo que a mãe fez. Camila se serviu de duas fatias, acompanhadas de uma boa porção de “Popa-Cola”. Antes que Maria pudesse se sentar a campainha tocou novamente: ― Oi, querida! ― disse Patrícia, toda feliz. Maria não entendeu a empolgação até observar quem ela trouxe à reunião.

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― Tudo bem? ― acenou Maurício com uma bola debaixo do braço. ― O treino de futebol acabou faz pouco tempo e eu estava passando pelo campo quando vi o Maurício. Ele estava com fome e eu o convidei para tomar um lanche na sua casa, olha que legal! ― falou Patrícia, tentando explicar em apenas uma frase tudo o que aconteceu. Um formigamento tomava conta dos braços e pernas de Maria. Não podia acreditar! Estava frente a frente com Maurício! E ele estava na casa dela! ― Po-pode en-entrar ― conseguiu dizer. ― Valeu ― respondeu Maurício, seguido por Patrícia, que deu uma piscadinha para a amiga ao pronunciar um “de nada” silencioso com a boca. Maria não sabia se saía gritando ou se assumia uma atitude do tipo “tô nem aí”. Caminhou até o sofá, onde Patrícia acabou de sentar. Maurício se alojou em uma poltrona fofa e parecia ainda mais bonito. ― Oba, comida! ― exclamou ele, atacando com vontade. Camila olhava Patrícia com o canto dos olhos, questionando o que Maurício fazia ali. Pedro e Maurício começaram uma conversa a respeito de um novo filme sobre robôs espaciais no cinema. Blim-blom, a campainha. ― Vou atender ― disse Maria, levantando graciosamente, desfilando até a porta. ― Pois não... A voz morreu na boca.

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― Aí, beleza? Trouxe companhia ― falou Morgana, arrastando Jack consigo. Este parecia contrariado, tentando se desvencilhar. ― Você não disse que vínhamos na casa da Maria! ― protestou Jack. ― Eu disse que íamos a um lugar bem legal, com muita comida caseira e pessoas interessantes! ― explicou Morgana assumindo uma expressão de santa. O que ele fazia ali outra vez? Já não bastavam todas as saiasjustas que passaram nos últimos dias? Morgana entrou, puxando Jack. Maria deu passagem, ainda sem saber o que fazer. Por que a amiga trouxe aquele rapaz chato? Morgana sabia que ela não o suportava. Jack parou ao perceber Maurício sentado, enchendo a boca de bolo. ― Você também não falou que eu ia ter que aturar o Maurício! ― reclamou Jack para Morgana. ― Não tem problema, você também não é meu amigo preferido ― debochou Maurício. As faíscas começaram quando Patrícia se manifestou: ― Muito bem, eu vim aqui para jogar! ― Eu também ― disse Camila apontando para o tabuleiro. ― E somos convidados, não devemos brigar ― falou o comportado Pedro, separando as casinhas e os dinheiros de mentira. Maurício e Jack ficaram emburrados, mas em silêncio.

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Um vulcão entrava em erupção na cabeça de Maria. Maurício e Jack, reunidos no mesmo lugar e pior, na sua sala! Sabia das desavenças dos dois, das constantes discussões. Agora estavam calmos e Maria sentou no chão para começarem a brincadeira. Rezaria para ninguém atirar um vaso. Talvez devesse esconder as facas. Por fim, resolveu respirar fundo e contar até dez. Ao final de duas horas se ouvia as risadas do grupo. Camila acusava Morgana de pular duas casas, esta se defendia com uma expressão forçada dizendo: ― Euuuu? Pedro estava rico e ameaçava uma das casas de Maria, que fazia caretas de medo. Até mesmo Maurício e Jack interagiam. Patrícia perdeu todo o patrimônio nos primeiros dez minutos de jogo. ― Acho que vou ter que mendigar ― concluiu, causando uma gargalhada geral. Quando o relógio acusou seis horas Pedro levantou: ― Desculpe, Maria, mas preciso voltar. Tenho tarefa de matemática para terminar. ― Vou com você, também tenho que estudar ― disse Camila. ― Ah, fiquem mais um pouco ― insistiu Maria. ― Acho melhor irmos todos ― colocou Patrícia. ― Daqui a pouco sua mãe chega. Sem falar que se não for logo posso perder o início da novela. ― Que preocupação! ― ironizou Morgana.

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Maria acompanhou Camila, Pedro, Patrícia e Maurício até a porta. Camila e Patrícia deram um abraço na amiga, enquanto Pedro estendeu a mão, bastante formal. ― Obrigado pela tarde agradável ― complementou. ― Ele é um querido! ― gesticulou Camila, por detrás dele. Faltava apenas Maurício. ― É assim que gosto de agradecer ― disse Maurício, se aproximando de Maria, ameaçando dar um beijo. “Não acredito!”, pensou Maria, que fechou os olhos. A cena foi interrompida por um tênis tamanho 43 que atingiu o rosto de Maurício. ― Olha só, esse tênis tem vida própria ― riu Jack, olhando para os dois. ― Seu idiota! Tá com ciúmes? ― provocou Maurício. Jack ficou vermelho. ― Não é nada disso! ― Chega vocês dois! ― berrou Morgana. ― Se não perceberam a Maria não está bem! As lágrimas escorriam pelo rosto de Maria. Raiva, frustração. Por que Jack se meteu de novo em sua vida? Correu para o quarto, deixando as visitas sozinhas. ― Seus lesados! Precisavam dar showzinho? ― irritou-se Morgana. ― Todo mundo sabe que o Jack gosta da Maria, só ele que não sabe! ― riu Maurício.

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Jack não ouviu o último comentário. Subiu as escadas atrás de Maria. Encontrou a porta fechada. ― Maria, me deixa entrar. ― Vai embora, seu chato! Quero ficar sozinha! Silêncio. O que Jack poderia dizer? Realmente sua atitude não foi das melhores, mas não podia deixar aquele intratável do Maurício se aproveitar da Maria. Ela seria só mais uma. Alguém que ele descartaria na primeira oportunidade. ― Você sabe que eu nunca quis te magoar ― conseguiu pronunciar Jack. Maria nada respondeu. Os sentimentos entravam em conflito. ― Vai embora! ― disse após um tempo. Jack desceu as escadas de cabeça baixa. Na sala Morgana o aguardava. ― Ela atirou a cama em você? ― Antes tivesse atirado ― respondeu cabisbaixo. Maurício já não estava mais lá. ― Gostei do que você fez ― afirmou Morgana. ― Diga isso para a Maria. ― Ela não sabe de nada, está gostando de alguém que não vale o chão que pisa! ― disse, confortando. ― Você acha que ela gosta mesmo dele? ― questionou Jack. ― Pode ser, pode ser ― colocou Morgana vagamente. ― Por que a pergunta? ― Deixa pra lá, esquece. Vamos embora? ― sugeriu, oferecendo o braço.

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Nessa momento, uma pessoa conhecida entrou, causando um sorriso em Jack: ― André! ― Oi, meu camarada! Não sabia que você estava aqui! A Maria não falou nada quando me convidou. ― Talvez porque ela não sabia que eu vinha. ― E cadê a galera? ― questionou André. ― Serve eu, desconhecido? ― cutucou Morgana. ― Eu já ia te cumprimentar, Morganinha. Está ainda mais bonita! ― disse o contente André. Conhecia todos os amigos da infância de Maria. Morgana cumprimentou André com um aperto de mão esquisito, parecendo um líder de gang. ― Vejo que não perdeu o jeito ― falou André abraçando Morgana. ― Sem contato, sem contato ― disse a amiga se afastando com uma cara engraçada. ― Está bem, está bem. E onde está a minha prima querida? Silêncio de sepultura. ― Tivemos alguns desentendimentos no jogo. Ela está lá em cima. Pode ser bom você ir lá ― colocou Morgana. Jack nada comentou. ― Sim, vou falar com ela. Desde pequena nunca soube perder ― riu o primo, subindo as escadas. Morgana voltou-se para Jack. ― E agora, vamos? Jack concordou oferecendo novamente o braço.

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Uma feliz Morgana aceitou o convite e ambos cruzaram a porta, atravessando o jardim, em direção à rua. Da janela Maria acompanhava a cena. Ver Jack e Morgana caminhando

juntos,

braços

dados,

causou

uma

sensação

desconfortável. Tinha vontade de socar Jack, mas não gostou de ver a intimidade que existia entre os dois. ― Devo estar ficando louca! ― desabafou para si mesma, balançando a cabeça. O bater de porta veio acompanhado de uma voz estimada: ― Prima, sou eu! Abre a porta! Maria sentiu-se aliviada ao ouvir André e o abraçou quando a porta se abriu. Permaneceu assim por um bom tempo. Não contou nada sobre o que aconteceu e André não insistiu. Conversaram animadamente, fazendo com que Maria se sentisse melhor. O primo se despediu prometendo voltar. Às sete a mãe chegou, trazendo Rico consigo. ― Oi, filha! Como foi a tarde? ― Ei! Não deixaram nem um pedacinho de bolo pra mim! ― reclamou Rico, desolado com a tigela vazia. ― Estou com dor de cabeça, mãe. Vou ficar no meu quarto ― respondeu Maria. A mãe achou melhor não perguntar. A filha parecia chateada. Esperaria o momento certo para conversarem. ― Está bem filha, tome um remédio e vá dormir. O travesseiro às vezes é o melhor amigo. Maria seguiu o conselho. Naquela noite teve novos sonhos agitados. Desta vez Maurício era um gigante e a segurava em uma

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das mãos. Jack pilotava uma nave e tentava atingi-lo. No final o gigante escala as torres gêmeas, que caem em chamas. Qualquer semelhança com King-Kong é mera coincidência.

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Três Gincana A professora Amélia tentava acalmar os alunos, alvoroçados pela possibilidade do passeio. A gincana anual era um evento aguardado, onde todos teriam a possibilidade de fugir das aulas. Três dias sem matérias, tarefas ou provas. Cada turma formava uma equipe, coordenada pelo professor regente. No caso, a professora Amélia de geografia. Uma mulher alta e loira, com expressão de miss-velha. Sempre altiva, com uma maquiagem forte e colorida. Usava saltos altos que desafiavam a gravidade. Ternos mal cortados e broches brilhantes completavam o conjunto. ― A mais cafona das cafonas ― comenta Morgana, se referindo ao terno Pink-socorro que a professora escolheu para usar esta manhã. ― Você percebeu que toda vez que a dona Amélia vai encontrar o professor Ricardo capricha mais no visual? ― perguntou Camila. ― Capricha mais na cafonisse, você quer dizer ― completou Morgana. ― É verdade, Camila ― disse Maria, desconsiderando o comentário de Morgana.

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Ricardo era o professor de química, tinha óculos que encobriam metade do rosto e uma careca brilhante. Meio gago, demorava para passar a matéria e se fazer entender. ― Nós poderíamos dar uma de cupidos! ― sugeriu Patrícia, empolgada. – Tipo programa de televisão! ― Sei, “Namoro na TV!” ― riu Camila. ― Parem o mundo que eu quero descer! ― colocou Morgana, tapando os ouvidos. As colegas gargalharam, chamando a atenção dos demais alunos. ― Muito bem, pessoal! Hoje começa a gincana anual e nós representaremos o Nono B ― disse a professora Amélia. Sim, havia o Nono A. Tinham fama de serem os “mais, mais” segundo os professores. Mais inteligentes, mais aplicados, mais calmos. ― O grupo que vencer ganha um final de semana em um hotel! ― lembrou a professora, sonhando com a possibilidade de usar seus chapelões enfeitados. ― Isso seria bem legal! ― disse Patrícia. Camila não parecia muito feliz com a ideia. Sabia que nenhum dos seus biquínis serviria. ― Soube que nesse hotel tem um serviço de SPA maravilhoso... ― sussurrou Morgana para Camila. Esta levantou em um impulso. ― O que estamos esperando? Somos fortes! Somos capazes! Podemos ganhar essa gincana com os pés nas costas! ― berrava alterada.

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― Isso foi sujo ― cochichou Maria para Morgana. ― Ora, ela é o cérebro do grupo, precisamos dela! ― riu Morgana, feliz pela amiga estar motivada. ― Muito bem, separei os bilhetes para definir as equipes. Serão duas ao todo. Uma deverá cumprir as tarefas relacionadas com reciclagem de lixo ― disse a professora. ― Espero não estar nessa equipe ― comentou Morgana, fingindo que se enforcava. ― A segunda criará o novo hino da escola e precisará apresentá-lo na frente de todos no final da gincana. ― Peraí, não tem uma terceira equipe encarregada de comer os docinhos, ou de dar apoio moral? ― cogitou Morgana, causando risos em todos. ― Não, mas como você se pronunciou pode fazer a escolha dos nomes ― apontou Amélia. Morgana comandou o sorteio, fazendo piadas como “foi mal”, após cada nome selecionado para a prova do lixo. Maria, Morgana, Camila e Patrícia foram escaladas para a segunda equipe. Juntamente com Pedro, Maurício e Jack. Do fundo da sala se ouviu um “marmelada” prontamente ignorado por Morgana. A equipe ainda contava com Gertrudes, que estava esquisita com seu novo aparelho dentário, lembrando um capacete de astronauta. ― Muito bem, alunos, peço que todos combinem como desempenharão as tarefas. Vocês têm dois dias para cumpri-las antes da apresentação final.

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A segunda equipe formou um círculo. Jack torceu o nariz para a presença de Maurício, que também não parecia satisfeito. Pedro estava feliz em ficar mais uma vez ao lado de Camila. Gertrudes mostrava-se contente por finalmente fazer parte de uma equipe. Maria fuzilou Morgana. ― Já não bastou a experiência lá em casa? ― disse meio baixo, para que apenas a amiga ouvisse. Mas Morgana sentia-se realizada com toda a confusão. Sentou perto de Jack, prestando atenção em seus movimentos, o que causou uma sensação estranha em Maria. O que estava acontecendo com Morgana? Nunca viu a amiga tão interessada no que Jack fazia ou pensava. Patrícia saltitava cantarolando uma canção antiga que provavelmente sugeriria como hino, o que fez com que os amigos rapidamente decidissem escolher músicas bem atuais como pano de fundo para a letra. O sino tocou anunciando que o período de aulas terminou, justamente quando a equipe acabou de se organizar. ― Bom, precisamos de um lugar para fazer a letra e ensaiar ― disse Camila. ― Lá em casa infelizmente não tem clima. ― Na minha também não dá ― tratou de dizer rapidamente Maria, a mãe não toleraria tanta confusão. ― Pode ser na minha casa! A mamãe tem uma receita de chá de funcho com boldo e bolo de batata doce que é uma delcia! ― sugeriu Patrícia. ― Não, obrigado! ― responderam todos sem pensar.

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― Essa semana meu pai está em campanha pré-eleitoral. Lá em casa está uma bagunça ― desculpou-se Jack. ― Minha mãe não recebe ninguém a não ser as amigas dela ― avisou Maurício, antevendo que a mãe reclamaria da “plebe”. ― A sala lá em casa está em reforma, não teremos nem onde sentar! ― justificou Pedro. ― Meu pai é dentista e moramos no consultório dele ― falou Gertrudes, o que fez com que todos tivessem um arrepio. Estavam sem opções. ― Parece que vai ter que ser lá em casa – disse Morgana. As amigas olharam assustadas. Morgana nunca levou ninguém à sua casa. O que existia lá se tornou folclore no colégio. Havia estórias mirabolantes falando de um zoológico particular e índios escravos. Mas Maria, Camila e Patrícia não ousavam perguntar. Se Morgana nunca as convidou, tinha motivos. ― Bom, não sei o porquê dessas caras de espanto! Pode ser amanhã à tarde lá em casa ― colocou Morgana, se levantando. Caminhou até a porta. ― Não esqueçam de levar uma muda de roupa ― completou, saindo. Os demais se entreolharam. Melhor acatar a sugestão. No início da tarde, todos se encontravam em frente à mansão de Morgana. Um portão alto encobria tudo, dificultando a visão. ― Estou com medo ― deixou escapar Pedro. A lenda sobre a tribo de zumbis poderia ser verdadeira. ― Deixe disso, Morgana é rica, não louca ― afirmou Camila. ― Será? ― riu Jack.

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― Estou curioso para ver todo o luxo que deve ter aí dentro ― disse Maurício, deselegante. Maria percebeu que seu sentimento por Maurício mudava quando ele abria a boca. Ocorreu que ela nunca teve oportunidade de conversar com ele por mais de dois minutos. Agora via um Maurício diferente do sonhado. ― Mas ele continua lindo – suspirou. Os portões abriram e Morgana apareceu dirigindo um carrinho de golfe. Usava um fraque de mordomo e estava muito engraçada. Ainda mantinha seus coturnos. ― Bem-vindos a minha humilde residência! Hoje serei o guia de vocês. Por favor, mantenham os braços para dentro do carrinho e não façam gestos obscenos para os pinguins ― falou em um tom sério. ― Pinguins? ― perguntou Pedro. ― Ela está brincando ― explicou Camila. ― Será? ― disse Jack. ― Você fica do meu lado ― exigiu Morgana apontando para Jack, que obedeceu. ― Sabe que vocês ficam bonitos juntos? ― exclamou Patrícia, recebendo uma cotovelada de Maria. ― Ei! ― exclamou a loira. ― Desculpe, foi sem querer ― desculpou-se Maria, sem entender por que fizera aquilo. Camila, Patrícia e Maria se acomodaram atrás de Morgana, enquanto Pedro e Maurício ficaram no final do carrinho, meio

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pendurados. Gertrudes estava espremida entre Maria e a saída do carrinho. Morgana arrancou, com certeza desrespeitando todas as normas de direção existentes. Atravessaram um jardim bonito, com estátuas gregas e muitas árvores. À frente, duas colunas se delineavam, parecendo um fórum romano. ― Hoje estamos sem o Miguel . Ele ainda está torrando no sol das Bahamas – comentou Morgana. ― Mas teremos a companhia do Chico, meu ajudante ― concluiu, apontando para um senhor chinês que aguardava na entrada da casa. ― Sejam bem-vindos! ― cumprimentou Chico, curvando o tronco. ― Chico, esses são os amigos que falei ― explicou Morgana. ― Que bom, que bom! A senhorita Morgana nunca convida ninguém para vir aqui. Morgana andou mais rápido, evitando o comentário de Chico. ― Venham ― falou ela. Os amigos a seguiram. Um hall de entrada enorme e recoberto por mármore. A mesa com um vaso de flores gigante dividia a entrada da escada bifurcada. ― Pensei em nos divertirmos um pouco antes de começar o trabalho ― continuou Morgana, os levando cada vez mais para dentro da casa. Passaram pela sala de jantar para trinta pessoas, a sala de estar onde se poderia acampar, a cozinha que deveria ter o tamanho

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de toda a parte de baixo da casa de Maria, a lavanderia onde moraria uma família, chegando ao quintal. ― Cansei! ― disse Camila, reclamando da distância percorrida. Maurício estava deslumbrado, enquanto Jack, Maria, Pedro e Camila assustados. Patrícia se perdeu duas vezes no percurso. Gertrudes a ajudou a retomar o caminho. ― Guardem energias para o que vem a seguir! ― sugeriu Morgana, misteriosa. ― Acho que não quero saber ― tremeu Pedro. Chegaram até um galpão grande, com pintura camuflada. ― Ganhei do papai faz dois meses, mas ainda não testei ― piscou Morgana, jogando para os colegas sete trajes completos. ― Paintball? ― riu Jack. Morgana estendeu sete armas abastecidas: ― Claro, o que mais? ― disse, com um ar sem importância. Maria começava a gostar dessa história. Seus apelos de vingança afloraram. ― Meninas contra meninos. Gertrudes você conta como menino, sem ofensa ― falou Morgana. Todos se vestiram. Em pouco tempo eram uma equipe de guerra. Entraram no galpão e contemplaram um estande completo. Trincheiras, muros para serem escalados, valas, morros, um cenário impressionante. ― Quem vencer escolhe o gênero musical do hino. E torçam para não ser a Patrícia ― disse Morgana que logo ouviu um “Ei!”, proferido pela loira.

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Cada equipe correu para um canto. ― Vamos acabar com elas! Somos fortes! Somos homens! ― berrou Gertrudes, para surpresa dos meninos. ― Calma! Não vamos matar ninguém! ― aconselhou Pedro, continuando preocupado... – ou vamos? ― Tem certeza que ela não tem um parafuso a menos? ― cochichou Maurício. ― Não! ― riu Jack divertido. ― Vamos acabar com elas! ― coroou o comentário de Gertrudes que sorriu por detrás do arco de metal. Infelizmente o capacete não entrou. Camila, Maria, Morgana e Patrícia estavam encolhidas no canto. ― Vira essa coisa pra lá! ― pediu Camila, afastando a arma de Patrícia. ― Como se usa isso? ― perguntou ela, quase disparando em Maria. ― Morgana, você tem certeza que é seguro? ― questionou Camila. ― Não! ― gargalhou Morgana. ― Mas vamos chutar o traseiro deles! ― gritou chamando a atenção. ― Vamos! ― riu Maria, pensando em todas as formas de acertar Jack. Hoje iria a desforra. ― Isso deve ser ilegal ― disse Patrícia. ― Provavelmente ― respondeu Morgana, levantando. ― E aí? Estamos nisso juntas? ― Sim! ― responderam as amigas. E a disputa começou.

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Bolinhas de tinta voavam para todas as direções. Patrícia atirava em qualquer coisa que se mexesse. Pedro traçou um plano complexo, mas acabou sendo atingido primeiro. ― Bem no coração! ― apontou Camila. O que fez com que Pedro corasse como um pimentão. ― Está fora! ― berrou Morgana, apontando para um banco comprido escrito “perdedor”. Maurício se escondeu atrás de um muro camuflado. Pensava em deixar todos serem atingidos, sobrando apenas ele. “Vou ganhar sem fazer esforço”, se convenceu. Maria e Morgana trabalhavam em equipe. Tentavam atingir Gertrudes e Jack, que desviavam. Jack atirou em Camila, quando esta correu em direção à trincheira. ― Yes! ― berrou Jack. ― Agora faltam três! Patrícia procurava se entender com a arma, disparando sem querer. ― Não vai jogar contra! ― reclamou Morgana que quase foi atingida. ― Desculpe... ― falou Patrícia que, em uma de suas tentativas acertou Maurício pelas costas. ― Isso não vale! ― disse este, tentando limpar a mancha de tinta. ― Ah, vale sim! ― afirmou Morgana. ― Está fora! Camila, Pedro e Maurício acompanhavam o desenrolar do jogo. ― É uma disputa acirrada ― comentou Pedro.

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Ao final de meia hora, Jack e Gertrudes estavam encurralados em uma vala. ― E agora? ― questionou Jack. ― Logo elas vão estar aqui e não temos para onde ir. ― Somos soldados! Somos homens! Defenderemos nossa honra! ― respondeu Gertrudes em um papo que deixou Jack com medo. ― Do que você está falando? ― perguntou. Gertrudes agarrou a arma junto ao peito e em um grito pulou para fora do esconderijo disparando na direção de Maria e Morgana. ― O que é isso? ― disse Morgana vendo a doida desvairada correndo para junto delas. ― Não sei, mas é ela ou nós ― resolveu Maria, acertando em cheio Gertrudes. Essa permaneceu estática. ― Fui atingida! ― repetia catatônica. Foi preciso que Pedro e Maurício a ajudassem a sair da área do jogo. ― Agora somos nós e ele! ― disse Maria para Morgana. “Agora são elas e eu”, pensou Jack que aproveitou a confusão com Gertrudes para sair sorrateiro, se ocultando atrás de um muro de escalada. ― Vingarei sua nobre morte, Gertrudes! ― concluiu divertido. Passado um tempo, Morgana e Maria estranharam o silêncio de Jack. ― Ele está planejando alguma coisa ― falou Maria que o conhecia muito bem.

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― Bom, não podemos ficar aqui o dia todo. Vamos nos dividir ― sugeriu Morgana. Maria caminhou até um monte de barro enquanto Morgana se arrastava pelo chão com uma tática militar esquisita. Jack via Morgana, mas não Maria. ― Onde ela está? Quando Jack se preparava para atingir Morgana uma voz atrás dele o fez virar: ― Encurralado! Maria o fitava, mirando a barriga, pronta para acertá-lo. Finalmente vingaria as chacotas, as brincadeiras sem graça que sofreu todos esses anos. Jack não reagiu, permaneceu parado, esperando. ― E aí, vai demorar? ― cobrou, não entendendo o porquê de Maria ainda não o ter acertado. Os dois se encararam. Maria abaixou a arma. Não sabia explicar, mas seu ímpeto sumira. Sentiu pena de atirar em Jack. Justo ela que tinha tantos motivos. ― ATIRA! Termina logo com isso! – exigia Jack, confuso com a atitude de Maria. Esta não esboçou reação. Nem ela entendia o que estava acontecendo. Quando os olhos se encontraram um sentimento estranho remexeu dentro deles. “TCHUM!” Jack sentiu um calor nas costas, seguido de uma sensação escorregadia. A mancha colorida denunciava a vencedora.

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― Seu desejo é uma ordem ― disse Morgana com um sorriso no canto dos lábios. ― Parece que eu escolherei a música. Tudo menos funk, pagode e sertanejo ― brincou. ― Ganhamos! ― gritaram Camila e Patrícia. ― Aceitaremos a derrota como bons perdedores! ― disse Pedro estendo a mão para Camila que o abraçou. ― Perdedor... Só se for você! ― retrucou Maurício. ― Acredito que devemos voltar para dentro de casa e começar a trabalhar. Não quero ninguém dormindo aqui essa noite! ― disse Morgana. Todos pensaram que até a casinha de cachorro deveria ser confortável. Jack e Maria foram os últimos a sair do galpão, ainda meio lentos. Maria evitava fitar Jack. Ele a olhava questionando o que havia acontecido. Por que ela não o acertou? Por que recuou? E o que foi aquele momento antes de Morgana o atingir? Jack ficou sem resposta. Tiraram os uniformes sujos e seguiram Morgana. Entraram na cozinha onde Chico preparava um verdadeiro banquete com bolos, tortas e outras coisas deliciosas. ― Acho que todos os trabalhos devem ser feitos na sua casa de hoje em diante ― riu Camila, se enchendo de doces. ― Vai sonhando! ― respondeu Morgana. Quando todos estavam satisfeitos, Chico os levou para outro ambiente, uma sala com almofadas dispostas, poltronas e uma TV enorme. Acomodaram-se com conforto. Maria bem longe de Jack.

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― Muito bem, sugiro que elejamos uma música pop ou rock para o hino, de preferência, uma fácil de cantar ― disse Camila, acatando a ideia da vencedora Morgana. Em poucos minutos, escolheram a música, do gosto de todos. Patrícia ainda tentou sugerir uma música do tempo da bisavó que só Pedro conhecia, mas por fim, desistiu ao ver o desinteresse dos demais. ― E a letra? Por onde começamos? ― colocou Maria. ― Eu, com meus talentos artísticos compus o primeiro verso! ― disse Maurício, prontamente vaiado após começar a cantar: “Nossa escola é legal! Nossa escola é maneira! E a gente tira zero à vida inteira!” ― Eu gostei ― falou a sem-noção Patrícia. ― Ignorando o último comentário, alguém tem uma sugestão realmente boa? ― perguntou Morgana, recebendo um silêncio em retorno. ― Isso vai longe ― disse Camila, compreendida por todos. Após duas horas a letra aparecia em versos. Jack sugeriu uma parte, Camila outra, Maria umas palavras e até Gertrudes, que agora voltou ao normal, participou. ― Mais um pouco e terminamos. Quem vai cantar? ― quis saber Camila. Os colegas olharam para o teto, disfarçando. Nenhum deles poderia se gabar de ter uma voz abençoada. Apenas Maurício acenava com a mão como que dizendo “escolhe eu!”.

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― Tirando o Maurício, ninguém mais quer cantar? ― questionou Morgana. Silêncio novamente. ― Então vamos todos! ― concluiu. Jack, Maria, Camila, Maurício, Patrícia, Pedro e Gertrudes a olharam surpresos. Como fazer para todos entoarem uma única frase sem desafinar? ― Não temos tempo para pensar em ensaios. A professora deixou claro que só tínhamos dois dias. Isso quer dizer que amanhã precisaremos nos apresentar! ― explicou Camila desesperada. ― Então que a força esteja com vocês! Cada um ensaia por conta própria e amanhã entraremos para o livro da escola como o pior coral dos últimos tempos! ― colocou Morgana. ―

Lembrem

que

a

prova

envolve

que

estejamos

caracterizados ― informou Camila. ― É verdade! Caprichem no visual e quem sabe eles esquecem a música! ― riu Jack imaginando a cena bizarra. Despediram-se após Morgana os deixarem no portão. Cada um seguiu para sua casa, a cabeça repleta de ideias. O dia nasceu bonito, o sol iluminando o palco montado para as apresentações. A equipe iniciante foi o Nono A. Um grupo de meninas vestidas de torcedoras de futebol americano, com “pompons” nas mãos, cantou o hino de forma sincronizada, dançando em passos perfeitos. Terminaram com a entrada dos meninos carregando as letras com o nome da escola. ― Estamos perdidos ― disse Maria vestida de colegial com trancinhas e tudo.

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― Juntos pela dor e pelo amor – falou Morgana mostrando a língua, fazendo o símbolo do heavy metal com os dedos. Usava roupas que imitava membros de uma banda de punk rock. O rosto pintado de preto e branco dava medo. Os demais se aproximaram, receosos. Patrícia vestia uma roupa de hippie com os cabelos loiros soltos e uma tiara de crochê em volta da cabeça. Tinha ainda colete, calça e um girassol na lapela. Respondia ao gesto de Morgana fazendo “paz e amor”. Maurício era o próprio Elvis, com a roupa branca completa. Um topete, que Morgana jurou ser aplique, parecia duro como pedra. ― Ele deve ter gasto uma montanha de gel ― disse Camila, baixinho. Ela usava um uniforme de coral de igreja, acompanhada por Pedro vestido de professor de matemática. ― Quando eu falei para caprichar no visual, não quis dizer isso! ― colocou Camila para os colegas. ― Vamos parecer um bando de doidos! ― No amor e na dor! ― disse novamente Morgana mostrando a língua. ― O pior que pode acontecer é alguém encaminhar a gente para acompanhamento psicológico com a Eulália ― falou Jack, como um cantor de rap. Eulália era a psicóloga do colégio e normalmente a encontravam dormindo em sua sala. Meio vesga, ficava um tempão calada, olhando para o rosto do aluno. Ao final da reunião dizia

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algo como “está se sentindo melhor?”. Ninguém em sã consciência diria que não. ― Vamos aplaudir a turma do Nono A, pessoal ― gritou a diretora Edmira, quase engolindo o microfone. ― Agora vamos assistir a apresentação do Nono B. Pânico. Maria olhava para Camila, que olhava para Pedro, que olhava para Jack, que olhava para Morgana, que olhava para Patrícia, que olhava para Maria. Ninguém olhava para o Maurício. E faltava Gertrudes. Subiram no palco causando burburinho. A plateia procurava entender a confusão de fantasias. ― Todos lembram a letra, certo? ― disse Camila. ― É só alguém puxar o início e os demais fazem coro – sugeriu. Entreolharam-se. Quem seria louco de começar? Mesmo Maurício parecia inseguro na frente de tanta gente. O microfone ampliou uma voz conhecida. Gertrudes apareceu, produzida como uma cantora de música pop barata, cabelo escovados, saia curta, maquiagem forçada, até tirou o aparelho! Cantava com vontade, impressionantemente afinada. Quando os amigos acordaram da surpresa, passaram a acompanhar os versos, cantando relativamente bem. A plateia vibrava ao final de casa estrofe. Gritavam: “Gertrudes”, “Gertrudes”. ― A Gertrudes foi abduzida! ― disse Morgana, sem entender o que acontecia. Ao término da música agradeceram e Gertrudes jogando beijos.

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― Muito bem, vamos aplaudir a belíssima apresentação do Nono B! ― pediu Edmira. No meio do público, a professora Amélia carregava uma placa com o escrito: “Já ganhou!”. O corpo de jurados formado por professores deu notas altas à apresentação, mais que ao Nono A. Estes jogavam os pompons no chão, revoltados. Maria, Morgana, Patrícia, Camila, Patrícia, Pedro, Jack e Maurício desceram do palco, atordoados. Gertrudes permaneceu ainda um tempo acenando para os fãs. ― Se me contassem isso eu não acreditaria! ― falou Camila. ― Bom, agora podemos ir para casa e tirar essas fantasias ridículas? ― pediu Maria. O falatório da diretora Edmira chamou a atenção: ― Parece que quem desfrutará de um final de semana no hotel será o Nono B! A professora Amélia subiu ao palco: ― Quero agradecer a todos pelo ótimo trabalho! A equipe da coleta de lixo também se saiu muito bem! ― disse, apontando para oito alunos encardidos. Maria não ouviu o comentário final. Já estava a caminho de casa.

Queria

tomar

um

banho,

esquecer

um

pouco

os

acontecimentos. Mal se despediu dos amigos, queria ficar sozinha, em silêncio. Quando estava próxima de casa alguém a chamou: ― Espere, por que tanta pressa? Maurício a seguiu, ainda vestido de Elvis.

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― Oi, Maurício ― respondeu Maria desanimada, um pouco assustada pela falta de entusiasmo próprio. ― Não conseguimos terminar a conversa que começamos no outro dia ― continuou o rapaz, se aproximando, pegando uma das mãos de Maria. ― Você fica bem bonitinha com essa roupa. Antes Maria morreria por palavras como essas, mas agora, tinha vontade de puxar a mão e correr para dentro de casa. ― Desculpe, Maurício, mas preciso entrar ― respondeu. ― Qual é o problema? Achei que você tinha uma queda por mim ― disse o convencido, alisando o topete armado. Maria não respondeu, largou Maurício falando sozinho, fechando a porta rapidamente. O garoto coçou a cabeça sem entender a mudança de comportamento. ― Ninguém diz não para Maurício ― pensou alto, indo embora. Dentro de casa, Maria permanecia apoiada na porta. Por que não deixou Maurício se aproximar? Ele ainda era um dos meninos mais populares do colégio. Muitas desmaiavam por ele. Subiu as escadas deixando as ideias para trás. Jack sorri satisfeito. Acompanhava toda a cena a distância. Viu Maria sair do pátio do colégio e quando Maurício a seguiu. Achava que Maria cederia aos encantos daquele nojento. Ficou feliz ao vê-la se afastar. O que teria acontecido? Não importava. Uma sensação quente encheu o coração. Entrou assobiando em casa.

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Quatro Separação Apenas uma semana se passou desde a gincana. Em breve chegaria a tão esperada viagem. Maria nunca ouviu falar do hotel onde se hospedariam, mas acreditava que qualquer lugar seria um problema com aquela turma. Não sabia como sobreviveram até então. Jack e Maurício continuavam se degladiando. Morgana fornecia seus comentários ácidos, Pedro voltou aos estudos, Gertrudes virou ídolo na escola com direito à distribuição de autógrafos. Patrícia já arrumou a mala duas vezes e só fala na viagem. E Camila? Bem, Camila estava desaparecida desde segunda. Nunca a viu faltar tanto. Não atendia aos telefonemas insistentes de Maria. Combinaram de ir até a casa da amiga depois da aula e ver de perto o que estava acontecendo. ― Por que estamos indo na casa da Camila, mesmo? ― perguntou Patrícia. ― Ai, Patrícia. Queremos saber se está tudo bem! ― respondeu Maria. ― Ah... E por que não estaria? ― continuou Patrícia.

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― Vai ver a Camila resolveu se rebelar contra o mundo e virou andarilha ― ironizou Morgana. ― Gente, é sério. Estou preocupada com a Camila. Isso não é normal dela ― colocou Maria ao chegarem em frente à casa da amiga. Tocaram a campainha, duas vezes. Uma inchada Camila abriu a porta. ― Caramba! Um trator passou em cima de você! ― exclamou Morgana. ― Morgana! ― repreendeu Maria. ― Está tudo bem, estou imprestável mesmo ― afirmou Camila. ― Querem entrar? Dentro o caos. Uma casa bagunçada com coisas jogadas por todos os lados. Justo Camila, a mais organizada das quatro? ― O que aconteceu aqui? ― perguntou Patrícia que pareceu acordar naquele momento. Camila jogou-se no sofá antes de responder. ― Minha mãe foi embora ― disse, rompendo o choro. As amigas se olharam comovidas. Maria sentou ao lado de Camila. ― Você devia ter ligado. ― Eu sei, mas estou me sentindo tão perdida. Faz quase uma semana. Papai resolveu ir na minha avó passar uns dias. Ele também está arrasado. ― E é definitivo? ― perguntou Maria. Camila lançou um olhar triste.

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― Acho que sim. Nunca os vi brigar dessa forma. Eu sabia que isso poderia acontecer a qualquer momento, mas não estou preparada ainda ― desabafou Camila. Maria a abraçou, confortando o novo acesso de choro. ― Tudo vai se resolver... ― falou Maria. ― Pelo menos nem eu, nem a Maria passaremos por isso ― riu Morgana que conseguia fazer piada em qualquer situação. Teve sucesso em sua empreitada, arrancando um tímido sorriso de Camila. ― Eu também não corro esse risco. Meus pais não podem se separar ― disse Patrícia, colocando em um tom secreto. “Acho que nunca se casaram.” Riso geral. Essa era a Patrícia. ― Estamos tentando animar a Camila, não queremos fazê-la chorar mais ainda! ― retrucou Maria. ― Deveríamos pensar na viagem, isso ajudaria! ― sugeriu Patrícia. ― Eu não vou ― respondeu Camila para desespero de todas. ― Mas você não pode ficar aqui sozinha! Sabe lá quando o seu pai vai voltar! Ou quando sua mãe vai aparecer! ― disse Maria. ― É verdade, Camila, sou obrigada a concordar, qualquer lugar é melhor do que aqui ― convenceu Morgana. ― Está certo, mas não me obriguem a ser animada ― disse Camila, olhando para Patrícia. ― Tem a minha palavra ― colocou cruzando os dedos. ― E agora vamos levantar e dar um jeito nessa bagunça. Depois ajudaremos a Camila a arrumar a mala! ― falou Maria.

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― Lembrei que tenho um compromisso ― justificou Morgana, saindo pé ante pé, quando Maria a puxou. ― Nada disso! Na dor e no amor, lembra? ― Você venceu! Mas eu não lavo banheiro! ― exigiu Morgana causando novo riso nas amigas. O clima melhorou e todas passaram a tarde arrumando a bagunça caótica da casa de Camila e falando amenidades. Passados dois dias, o ônibus aguardava na entrada da escola. Lia-se na lateral do veículo: “Expresso pé na cova” ― Vocês não esperam que eu entre aí, né? ― questionou Morgana. ― Não deve ser tão ruim ― cogitou Patrícia. ― Não, deve ser pior ― continuou Morgana, nada disposta. ― Precisamos cuidar da Camila, ela chegará logo e não quero ninguém gorando o passeio! ― disse Maria, que tinha motivos de sobra para recuar e sair correndo. Em seguida, chegaram Jack e Gertrudes. Ela, irreconhecível desde que se tornou celebridade. Não conseguiu se livrar completamente do aparelho, mas seu visual estava bem diferente. ― E aí, galera? Vamos curtir! Vai ser dez! Será que tem alguma night boa por lá? ― falou Gertrudes. ― Acho que eu preferia a Gertrudes de antes ― afirmou Morgana olhando torto. Jack chegou quieto, cumprimentando sem reparar em Maria. ― Ele parece meio distante ― colocou Morgana.

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Maria nada respondeu, mas resolveu observá-lo com mais atenção. Notou quando ele subiu no ônibus e lá permaneceu sozinho. Maurício chegou falando alto e abraçando todo mundo. Usava

óculos

escuros

enormes

e

roupas

de

grife,

meio

espalhafatosas. ― Espero que esse hotel seja de luxo. Não estou acostumado com acomodações de outra categoria ― explicou Maurício. Morgana respondeu com uma expressão cômica, insinuando que iria vomitar. Quando Camila chegou, as amigas se espalharam em volta dela. ― Não estou nos meus melhores dias ― falou Camila ― Minha mãe ligou e disse que não volta mais. Vai ficar em um hotel até que as coisas se resolvam. E eu vou ter que escolher com quem morar. ― Bem-vinda ao clube “tenho algo contra o mundo”! ― gritou Morgana abrindo os braços, conseguindo como de costume arrancar um riso de Camila. ― Sinto muito ― disse Maria ignorando a falta de seriedade de Morgana. Gostaria de ajudar. ― Eu sei ― murmurou Camila. ― Acho melhor entrarmos no ônibus antes que ela desista ― cochichou Patrícia para Maria e Morgana. Neste momento Pedro chegou. Carregava uma mochila enorme que fez com que as amigas cogitassem se passariam mesmo só um final de semana.

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― Oi, meninas ― disse Pedro, reparando no estado de Camila. ― Oi, Pedro ― responderam. Patrícia fez uma linguagem de sinais estranha para Pedro, mexendo os lábios devagar. ― Como é? Os canais da Camila se apagaram? ― perguntou Pedro, sem entender o que Patrícia queria dizer com isso. ― Ai, credo! Os pais da Camila se separaram! Pronto! Caput! Acabou! ― falou Morgana, impaciente com toda àquela situação. ― Gente, cadê a consideração? ― pediu Maria, indignada. ― Está tudo bem, vou ter que me acostumar com isso ― acalmou Camila que estava mais tranquila ao ver Pedro. Quando a

professora

Amélia chegou

parecendo um

pinheirinho de Natal ― que Morgana descreveu como “só faltam as luzinhas” ― todos embarcaram. Foi uma viagem longa, que não tinha fim. Camila e Jack permaneceram calados durante todo o percurso. Maria sabia o porquê do silêncio de Camila, mas e Jack? Morgana sentou ao lado dele, permanecendo também calada. Maria não entendeu a atitude da amiga, mas algo dentro dela não gostava

daquilo.

Sentiu-se

mal-humorada

e

respondia

aos

comentários de Patrícia sem entusiasmo. ― Chegamos! ― cantarolou Amélia despertando todos. Ao descerem do ônibus, caras assustadas surgiram. ― Isso só pode ser um pesadelo! ― beliscava-se Morgana, querendo acordar. Uma placa encardida e antiga dizia: “Bem-vindos ao Recanto do Esquilo Querido”.

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― Tem certeza que é aqui, moço? ― perguntou Camila ao motorista. Uma construção velha, rodeada de árvores e trilhas apareceu. Estátuas de esquilos enfeitavam o jardim. A piscina assemelhava-se à um tanque de sapos, tamanho o limo que encobria as bordas. ― Bem que eu estranhei os risinhos do pessoal da equipe do lixo quando a professora anunciou que só os que haviam feito mais pontos poderiam ir na viagem! ― deduziu Morgana. ― Esqueci uma coisa em casa, vou voltar e buscar ― disse Maurício antes de perceber que o ônibus partiu, deixando as malas. Passou a correr desesperado, berrando: ― Não me deixe aqui! – Acho que não temos outra opção – concluiu Maria. ― Você sugere que passemos a noite neste muquifo? ― perguntou Morgana. ― Olha a cara desses esquilos! ― Eu achei bonitinho ― disse Patrícia, tirando fotos abraçada em uma das estátuas. ― Concordo com a Morgana ― falou Jack, se colocando pela primeira vez. ― Tem que ter outro jeito! ― Bom, não tenho sinal no meu celular ― avisou Maria, confirmada por todos. ― É verdade ― concordou Pedro ― deve ser por causa das montanhas à volta. ― Não acredito! Isso está parecendo um daqueles filmes de terror no qual morre todo mundo! ― balançou a cabeça uma inconformada Morgana.

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― Eu sou muito jovem para morrer! ― berrou Gertrudes histérica. ― Morrer? Quem vai morrer? ― perguntou Patrícia. ― Vamos nos acalmar! Tenho certeza de que dentro do hotel tem um telefone. Podemos entrar e ligar para alguém nos buscar ― solicitou Maria. A professora Amélia se aproximou, carregando duas bolsas douradas: ― Que lugar magnífico! Este ano a escola caprichou! Bem melhor do que a “caça ao porco” do ano passado! Morgana fingiu desmaiar, caindo no colo de Patrícia, que derrubou um dos esquilos. ― Então vamos até a recepção do hotel ― colocou Jack para Maria. Permaneceu em frente a ela, esperando uma resposta. Se esticasse a mão poderia tocá-la. Maria não o sentia tão perto desde a guerra na casa de Morgana, quando resistiu em atingi-lo. ― Ce-Certo ― respondeu, tomando a liderança. Os amigos a seguiram. Degraus rangiam após cada passo. Uma porta de madeira puída tinha desenhos de esquilos gravados. Janelas grandes com cortinas velhas brotavam na fachada. ― É a casa monstro ― disse Morgana caminhando atrás de Jack. No hall de entrada, um senhor de bastante idade se encontrava atrás do balcão. Permanecia com os olhos fechados, cochilando.

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― Com licença... ― falou Maria Nada. ― Será que podemos usar seu telefone? ― insistiu. Nada. ― Ele está vivo? ― questionou Morgana. ― Morgana! ― ralhou Camila. ― Ué, ele não responde! ― justificou. Jack foi até o outro lado do balcão, cutucando o velhinho. Este pulou assustado, quase caindo da cadeira. ― Quem são vocês? ― quis saber. ― Acho que somos seus hóspedes ― respondeu Pedro. O senhor arrumou os pequenos óculos, analisando os garotos. ― Sim! Devem ser da Escola Nacional! Minha velha avisou que vocês viriam! Sou Gregório, o dono deste empreendimento ― apresentou-se. ― Muito prazer ― respondeu Maria. ― Na verdade, gostaríamos de usar seu telefone. ― Mas aqui no hotel do Esquilo Querido não temos essas modernidades! ― colocou Gregório. ― Vocês não têm telefone? ― perguntou Camila. ― Se precisarem telefonar, devem caminhar até a Vila, na venda da dona Rita ― explicou. ― E isso fica longe? ― falou Maurício. ― Não, não, uma hora de caminhada e vocês estarão lá! ― disse Gregório para desânimo de todos. ― Uma hora! ― repetiu Pedro.

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― Sim, mas não aconselho irem agora. Aqui escurece cedo e os lobos não costumam ser simpáticos com os visitantes ― falou Gregório piscando. ― Lobos! ― gritou Gertrudes, retomando a histeria. ― Crianças, é hora de conhecermos nossos quartos ― aconselhou a professora Amélia. ― Claro, venham comigo, é logo adiante ― disse Gregório. Seguiram, sem saber o que fazer. Quando o senhor parou em frente à uma porta escura o grupo recuou. ― Estou cogitando abraçar um lobo ― afirmou Morgana de boca aberta. Um grande quarto com cheiro de mofo e oito colchões espalhados apareceu. ― Infelizmente não temos espaço aqui para a senhora ― explicou Gregório à professora Amélia. ― Mas temos uma cabana muito boa onde poderemos acomodá-la esta noite. ― Será maravilhoso! ― falou a professora. ― Acredito que meus alunos irão se comportar ser mim. Maurício virou-se, esticando o dedo no rosto de Gregório: ― Eu exijo que me leve para um lugar descente! Você sabe quem eu sou? ― falava, fora de si. ― Se eu fosse você, eu não diria nada ou vai acabar dormindo com a professora Amélia ― ameaçou Morgana que pretendia cumprir o intento. Maurício engoliu em seco. Pedro tomou a dianteira, entrando no quarto escuro. As paredes pediam uma pintura e o chão implorava limpeza.

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― Juro que vi um rato! ― disse Camila, aproximando-se mais de Pedro. ― Eles é que devem jurar ter visto um humano! ― bufou Morgana. Maria e Jack acompanhavam o cortejo. Gertrudes e Maurício preferiram ficar do lado de fora. Maria deu um grito e alguns passos para trás ao sentir uma barata passando em cima de seus pés. ― Que nojo! ― pulou encostando sem querer em Jack. Ele colocou as mãos em seus braços, afastando a barata. ― Sai daqui, anda! ― mandou, pisando forte. Passado o susto, Maria percebeu onde estava. Mesmo Jack estranhou ver Maria ao seu lado. Assemelhava-se aos momentos que tinham quando crianças. Maria corria, fugindo de todos os insetos imagináveis. Jack sempre a defendia, se sentindo o próprio super-herói. Separaram-se, esquecendo o ocorrido. Voltaram à atenção para o quarto de cheiro duvidoso. ― Como faremos para dormir aqui? ― questionou Camila, desolada. ― É isso ou ficar acordado ― disse Pedro, cansado. ― Acho que teremos de encarar o mausoléu! ― concluiu Morgana, jogando a mochila no chão. ― Faremos dois cantos de camas, um para as meninas, outro para os meninos ― colocou Camila. ― Mas não temos nem lençóis! ― exclamou Maria, encarando o colchão surrado. Patrícia se manifestou:

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― Acontece que meus pais são peritos em acampamentos. Eu costumo levar várias roupas de cama e outros itens de sobrevivência indispensáveis quando viajo. Dito isso retirou da mala cinco mudas com desenhos de bichinhos e corações. ― Sugiro que juntemos os colchões e façamos uma cama só ― afirmou Patrícia sem atentar para os olhos esbugalhados de Maria e Camila. Patrícia

passou a

organizar

tudo, envolvendo quem

encontrava no caminho. Camila limpava o chão com lenços umedecidos, fugindo dos cantos onde afirmava ver coisas se movendo. Ao final da organização estava um quarto “passável” nas palavras de Morgana. ― Acho que ficarei por aqui ― avisou Maurício que depois de todo o trabalho dos amigos, resolveu entrar no quarto. Maria percebeu que o local onde Maurício se acomodou era coincidentemente próximo a ela. Formou-se um momento incômodo quando Jack deitou entre Maria e Maurício. ― Ei! Sai pra lá! ― gritou Maurício indignado. ― Mas como eu vou ficar longe do meu amigão? ― disse Jack ameaçando beijar Maurício, o que fez com que este mudasse para a outra ponta da cama improvisada. Não percebeu que estava ao lado de Gertrudes, cujos olhos brilhavam de contentamento. ― Ai, bobinho, se queria ficar perto de mim era só dizer! ― falou Gertrudes esticando os braços.

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― O quê? ― respondeu Maurício saindo dali rapidinho. Sobrou para ele ficar junto de Pedro, no fim do colchão. Maria e Jack riam das peripécias de Maurício, sem perceber o quão perto estavam. Jack estava praticamente deitado no colo de Maria e assim permaneceu até a mesma reparar no fato. ― Lembro quando ficávamos horas assim, no quintal da sua casa, falando besteiras ― comentou Jack, com uma ponta de saudade. Maria emudeceu. Fazia muito tempo desde então. Não podia negar que estes últimos dias trouxeram memórias que ela preferiu esquecer. Por que Jack falava tudo isso? Por que simplesmente não continuava com a mania de atormentá-la com chacotas sem graça? Decidiu levantar e procurar alguma coisa escondida em sua mochila. Jack acompanhou o movimento. Não teve tempo de continuar a conversa, pois Morgana se jogou na cama, fazendo todos pularem. ― Já aviso que ronco! ― riu, recebendo um travesseiro na cara, golpeado por Camila. E assim permaneceram: Maria, Camila, Patrícia, Morgana e Gertrudes de um lado. Jack, Pedro e Maurício do outro. A noite veio e com ela um sono exausto e atormentado. Morgana abriu os olhos feridos pela claridade. Conferiu que havia um pé em sua cara. ― Ei, tira esse chulé daí! ― berrou para Maurício que babava quase caindo do colchão.

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Isso fez com que os demais acordassem, percebendo o estado. Gertrudes abraçava Maurício com um sorriso nos lábios. Pedro dividia o travesseiro com Camila. Maria e Jack dormiam colados. Jack enrolava o cabelo de Maria nos dedos, em um cacoete antigo da infância. Patrícia não estava. A confusão se estabeleceu, todos procurando se recompor. Somente Gertrudes se recusava a largar Maurício. Foi necessário que Pedro intervisse, puxando-a com cuidado. ― Ele é meu príncipe, é meu príncipe ― repetia Gertrudes. ― Sei, só se alguém esqueceu de beijá-lo e ele continua sendo um sapo! ― colocou Morgana. Camila e Pedro pareciam reflexivos àquela manhã. Não estavam tão envergonhados quanto Maria e Jack. Na verdade, mostravam-se

felizes.

Camila

cantarolava

uma

música,

automaticamente assobiada por Pedro, enquanto arrumavam o quarto. ― Vocês estão pensando o mesmo que eu? ― disse Morgana, apontado discretamente para Pedro e Camila. ― Pensando em ir embora daqui? ― respondeu Maria. ― Que está na hora do café? ― continuou Jack. ― Que hoje tem jogo de futebol na TV e que eu não vou ver? ― completou Maurício. ― Falando em café! ― fez-se anunciar Patrícia naquele momento. Trazia junto de si uma bandeja com rosquinhas e copos de suco. ― Foi tudo o que consegui com o Gregório e dona Veridiana, a mulher dele.

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A turma não questionou, passando a devorar a comida. Pararam após provar goles do suco preparado por Patrícia. ― Que coisa é essa? ― perguntou Morgana com a língua verde. ― Ah, é uma receita de suco de capim com alface que a mamãe costuma fazer para mim. Não é uma delícia? ― Bem, acho que vou recusar o suco ― disse Camila terminando de comer o biscoito doce. Todos acompanharam. ― Acredito que agora devemos ir à tal venda da dona Rita e tentar telefonar ― falou Jack, recebendo acenos de cabeça positivos. ― Vamos todos ― sugeriu Pedro. ― Não acho seguro nos separarmos. ― Não concordo em andar uma hora nesse caminho desconhecido. Vou ficar na pousada e esperar o resgate! ― colocou Maurício, naturalmente impertinente. ― Tudo bem, o assassino sempre escolhe aquele que ficou para trás ― disse Morgana, já com sua mochila nas costas. ― Pensando bem, acho que vocês vão precisar de mim! ― mudou de ideia Maurício se colocando à frente. ― Ele é tão prestativo! ― suspirou Gertrudes. Morgana revirou os olhos, empurrando Maria, Patrícia e Camila para fora do quarto. Jack seguiu, acompanhado por Pedro. ― Vejo que estão bem-dispostos! ― Gregório lendo um jornal de cinco anos passados. ― Iremos até a venda fazer uma ligação ― explicou Pedro.

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― Muito bem. Mas não se atrasem, hoje teremos caça ao esquilo! ― disse Gregório com um rosto feliz. ― Mal posso esperar ― resmungou Morgana saindo rápido do hotel. Logo estavam na estrada que levava à Vila. Caminharam por cerca de meia hora quando o cansaço começou a incomodar. ― Nossa, eu poderia comer uma caixa inteira de biscoitos! ― falou Camila cuja fome não foi aplacada pela rosquinha e o suco esquisito. ― Tenho certeza de que na Vila encontraremos algo do gênero ― disse Maria, encorajando-a. ― Ainda falta muito! ― reclamou Camila, irritada em ver Patrícia que colhia flores e saltitava. ― Mais um pouco e chegaremos ― concluiu Jack, vendo Camila se alegrar. ― Vejam, um cachorrinho! ― exclamou Patrícia, apontando para um lobo com uma cara não muito boa. Congelaram de medo. O lobo rosnava, encarando o grupo. ― Patrícia, sai daí! ― sussurrou Maria. ― Ele parece querer fazer amigos! ― falou Patrícia sorrindo para o lobo. ― Ele parece querer comer os amigos! ― completou Morgana assustada. ― Quando eu disser “agora” cada um corre em uma direção ― sugeriu Jack. “O lobo não poderá alcançar todos e vai desistir.” ― Assim eu espero! ― sussurrou Camila que tremia.

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― Prontos? Agora! ― berrou Jack e todos passaram a correr desordenados. Maurício saiu na dianteira, esbarrando nos mais lentos. Empurrou Camila, amparada na mesma hora por Pedro. Gertrudes gritava, perdendo fôlego na corrida. Maria e Jack haviam percorrido um bom trecho quando Maria parou: ― Cadê a Patrícia? ― questionou. ― Achei que ela estava logo atrás ― respondeu Jack. ― Será que ela resolveu ficar com o lobo? ― disse Camila, preocupada. ― Sendo a Patrícia, isso não surpreende ― comentou Pedro. Uma voz vinda de cima despertou a atenção: ― Alguém me tira daqui! A figura de Maurício apareceu no galho de uma árvore. Subiu no impulso e agora receava a altura. ― Essa árvore deve ter algum problema, olha a qualidade da fruta! ― disse Morgana, saindo por detrás de uma pedra, junto com Gertrudes. ― E o lobo? ― perguntou Gertrudes ainda escondida às costas de Morgana. ― Espero que ele não tenha resolvido conversar com a Patrícia ― falou Maria. ― Devemos voltar e tentar achá-la. ― Isso seria bom se soubéssemos onde estamos ― explicou Camila, com razão. Haviam desviado da trilha. ― Seria mais sensato tentar caminhar até a Vila e pedir ajuda ― aconselhou Jack.

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―Se você acha que vou deixar a minha amiga no meio dessa floresta cheia de lobos, está enganado! ― falou Maria, ríspida. ― Mas não temos como localizar a Patrícia! Não conhecemos o lugar! E eu não vou deixar você perambular por aí sozinha! ― respondeu Jack, irritado. ― Pois eu quero ver quem vai me impedir! ― gritou Maria, com uma cara desafiadora. Jack suspirou e em seguida a pegou nos braços, colocando-a por cima do ombro. ― Me solta! Me coloca no chão! ― exigia Maria, se debatendo. ― Bom, agora que resolvemos o problema, vamos até a Vila? ― sugeriu Jack displicente, sendo confirmado por todos. Caminharam até avistar casas e comércios. Jack carregou Maria por todo o percurso, tendo esta desistido de berrar após os primeiros dez minutos. Ao chegarem à venda de dona Rita, deixou Maria alcançar o chão. ― Seu, seu... ― dizia, contrariada. ― Vamos deixar os elogios para depois ― falou Morgana. ― Tem alguém esperando por nós ― concluiu, apontando para Patrícia, parada em frente ao estabelecimento. Alisava o lobo, que agora parecia mais um gatinho. ― Oi, amigos! Olha só que coincidência! O Carniça é o lobo de estimação da dona Rita! ― colocou Patrícia, com sua cara contente usual. ― Ele me trouxe direto para cá depois que vocês tomaram outra rota. ― Nós não tomamos outra rota! Nós corremos apavorados e desesperados! ― exclamou Maria desanimada.

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― Ah... – deixou escapar Patrícia, para em seguida continuar a alisar o simpático Carniça. De dentro da venda saiu uma senhora: ― São seus amigos, Patrícia? ― questionou dona Rita. ― Sim, Maria, Jack, Morgana, Camila, Pedro, Gertrudes e Maurício ― apresentou Patrícia. ― Oi ― responderam coletivamente, sem muita vontade. Jack adiantou-se: ― Gostaríamos de fazer uma ligação ― pediu esperançoso. ― Mas é claro! ― respondeu dona Rita, apontando para a entrada da venda. Jack seguiu, enquanto os demais aguardavam do lado de fora. ― Não acredito que você fez amizade com um lobo! ― disse Morgana para Patrícia. ― Na verdade ele não é bem um lobo, é uma raça alternativa de cachorro ― justificou Patrícia, sem que alguém acreditasse. ― Sei ― falou Morgana, rindo em seguida. ― Ele até que parece bonitinho sem aqueles dentes todos aparecendo ― encorajou Camila. ― Eu é que não vou arriscar um cumprimento ― disse Pedro. ― Esse animal deveria estar em um zoológico ― falou Maurício cruzando os braços. ― Se você circula por aí e ninguém reclama, ele também pode ― respondeu Morgana. Antes que Maurício pudesse retrucar, Jack apareceu:

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― A escola vai pedir o transporte em uma cidade próxima, logo estará aqui. Todos assumiram um semblante de alívio. ― Bom, enquanto isso, vocês podem entrar e provar um pedaço do bolo que acabei de assar ― sugeriu dona Rita. Não foi preciso repetir o convite, em um piscar de olhos os amigos estavam sentados em uma mesa. Ao final da refeição, pareciam mais calmos. Patrícia jogava pedaços de comida para Carniça, que abanava o rabo contente. ― Vou sentir falta dele ― disse bagunçando o pelo cinza. ― Não sei como... ― resmungou Maurício, contando os minutos para voltar ao seu conforto. Em menos de duas horas, o ônibus apareceu, para a alegria geral. Tinha um aspecto velho e enferrujado, mas perto da hipótese de permanecer no “Recanto do Esquilo Querido” soou como uma limusine. Viajaram em silêncio, cansados pela aventura. Quando estavam próximos do destino final, Maria falou em um sobressalto: ― Esquecemos a professora Amélia! ― É verdade! ― disse Camila, apoiando a mão na testa. ― Não se preocupem, ela deve estar nadando com os sapos ou caçando esquilos ― colocou Morgana. ― Tenho certeza de que a escola mandará alguém buscá-la ― explicou Pedro. ― E ela parecia bem mais feliz do que nós ― riu Jack, confirmado por Morgana.

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― Afinal, onde mais ela poderia usar sua coleção de chapéus de pena e paetês? ― concluiu fazendo os amigos concordarem. Chegaram em frente ao colégio, onde o ônibus os deixou. O motorista de Morgana aguardava, bem como as mães de Jack e Maurício. ― Meu filhinho! ― exclamou uma perua loira com maquiagem carregada e muitas joias. Esta abraçou Maurício, enchendo-o de beijos melados de batom rosa-shocking. ― Tá bom, tá bom! ― disse ele, envergonhado, entrando no carro conversível. ― Bem que eu disse que essa escola está de mal a pior! ― reclamava a mãe, disparando em alta velocidade. ― Já vai tarde ― disse Morgana, completando: ― Vamos meninas? Deixo vocês em casa e esqueceremos todos os esquilos passados! Antes de entrar no carro, Maria escutou uma voz familiar: ― Há quanto tempo! ― exclamou a mãe de Jack, abraçando-a. Maria ficou sem reação. Sempre viu dona Sônia assim: terna e tranquila. ― Pergunto sempre de você quando encontro a Joana ― continuou. ― Disse para Jack convidá-la um dia desses para tomar um lanche lá em casa! Vocês se viam tanto! ― Sim... – respondeu Maria, sem olhar para Jack. Entrou no carro, fechando a porta. Do lado de fora, Jack abraçou a mãe, beijando-a na testa. ― Lembro quando era eu quem o beijava desse jeito ― ralhou Joana. ― Mas você me passou em altura faz tempo.

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― Claro... ― respondeu sério, fitando o carro de Morgana que se distanciava, levando também Maria, Patrícia, Camila e Gertrudes. ― Será que podemos dar uma carona para meu amigo Pedro? ― questionou, recebendo um sorriso feminino como resposta.

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Cinco Perdas e Ganhos ― Ainda sinto calafrios quando vejo o desenho de um esquilo! ― disse Morgana, arrepiando-se. As amigas riram, sentadas em um dos bancos da escola, durante o recreio. ― Pois eu achei uma viagem muito legal – comentou Patrícia. ― Para onde mandarão os campeões do próximo ano? ― Não sei vocês, mas eu serei uma perdedora feliz! ― completou Morgana. ― Concordo ― falou Camila, mordendo uma maçã. ― Maçã, Camila? ― apontou Maria, reparando na mudança da amiga. Camila engasgou: ― Não é nada demais, apenas resolvi que deveria perder uns quilinhos. ― E o Pedro não teve nada a ver com essa história? ― riu Maria, cutucando Camila. Esta quase sufocou com um pedaço da fruta, corando. ― Deixem ela em paz! ― defendeu Patrícia. ― Até porque não é novidade que a Camila gosta do Pedro.

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― Patrícia! ― exclamou Camila com uma cara de surpresa. ― Mas tenho de certeza que o Pedro também tem a maior queda por você, Camila! ― insistiu na conversa, Maria. ― Se vocês continuarem com esse papinho vou falar sobre quem gosta de quem nessa roda! ― ameaçou Camila. ― Tudo bem! Não está mais aqui quem falou! ― riu a amiga. Jack atravessou o pátio do colégio, usava o uniforme completo do time de futebol. Tinha um semblante sério, quase triste, enquanto caminhava fitando o chão. As meninas acompanharam o trajeto, notando a evidente sombra que pairava acima da cabeça dele. ― Nossa, nunca vi o Jack assim ― comentou Camila apreensiva. ― É verdade, ele normalmente é tão divertido! ― sorriu Patrícia. Maria permaneceu quieta. Percebeu esse comportamento de Jack na viagem para o acampamento. Não entendeu seu jeito silencioso durante a excursão de ônibus. Contudo, desta vez parece que a tristeza cresceu. ― É o cachorro dele, sei-lá-o-nome ― respondeu Morgana. As amigas arregalaram os olhos. ― Como você sabe disso? ― questionou Maria. Morgana a fitou com um rosto fechado. ― Se prestasse mais atenção em Jack, saberia ― respondeu. Um minuto desconfortável se formou entre elas, antes que Morgana continuasse:

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― Quando viajamos para o hotel do terror, sentei ao lado de Jack o tempo todo. Vi que ele estava diferente e resolvi perguntar o que era. Morgana fez uma pausa, percebendo que prendia a atenção das amigas, de Maria principalmente. ― Ele não disse muita coisa, mas quando perguntei se estava bem, respondeu: “Eu sim, meu companheiro de infância não”. Deduzi que era o cachorro ― concluiu. Maria sentia como se um peso de cem quilos estacionasse sobre seu cérebro. Príncipe Eduardo I era tudo para Jack. Quando Jack pediu irmãos para dona Sônia, que não podia mais ter filhos, deixou que escolhesse um cachorro. Desde então, Príncipe estava presente em todos os momentos. Mesmo Maria tinha uma pontinha de tristeza ao se lembrar do tempo que passou ao lado de Príncipe. ― E o que ele tem? ― perguntou Patrícia, acordando Maria de suas lembranças. ― Não sei, ele não disse ― colocou Morgana. E a conversa parou ali. O sinal tocou e as amigas se dirigiram para a sala de aula. Foram aulas compridas e distraídas para Maria. Um comichão crescia dentro de si e a vontade de saber mais sobre Jack e seu cachorro também. Mas não poderia ter essas informações, pois se recusava a ter qualquer contato com Jack. E porque isso a importava tanto? Afinal, ela e Jack deixaram de ser amigos há muito tempo.

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― Será? ― disse alto, chamando a atenção da professora de Matemática. ― Será o quê, senhorita Maria? O quadrado da hipotenusa? Todos riram e Maria desculpou-se. Olhou para os lados e percebeu a carteira de Jack vazia. Isso se explicaria pelo fato de que os jogos entre escolas iniciavam esta tarde e Jack, sendo capitão do time, provavelmente se preparava. ― Soube que o Maurício ficou uma fera porque o treinador não aceitou que ele fosse o capitão do time de futebol ― cochichou Camila. ― Ah é... Vai ter jogo hoje, né? ― falou Patrícia. ― Ai, Patrícia, não se fala em outra coisa na escola! Hoje à tarde teremos uma partida no ginásio. Já convidei o Pedro para ir com a gente. Vai ser emocionante! v respondeu Camila, aos gritinhos. ― O Pedro, é? ― disse Patrícia. ― E você Morgana, vai também? Morgana respondeu com um ar de provocação: ― Claro, alguém tem que segurar a mão do Jack se ele perder. Tal comentário chamou a atenção de Maria: ― Como? ― Disse apenas que devemos ir para torcer pelo nosso time ― respondeu Morgana, divertida. A professora anunciou o final da aula, lembrando os alunos que na próxima semana teriam prova. ― Vou arranjar alguma viagem inesperada ― comentou Morgana.

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― Me leva com você! ― pediu Patrícia, desconsiderando o motivo de Morgana viajar. – É só estudar! – disse Camila. – Se quiser pode ir lá em casa no final de semana e repassamos toda a matéria. ― Programa ideal de domingo, certo Maria? ― comentou Morgana, cética. Esta permanecia aérea. Desconectada dos assuntos conversados. ― A convivência com a Patrícia tem causado danos na Maria ― apontou Morgana. ― Ei! ― falou Patrícia. ― Calma, calma, reparou que a Maria não escutou nada do que falamos? ― justificou Morgana. ― É verdade, isso geralmente sou eu quem faço ― confirmou Patrícia provocando risos em Camila e Morgana. ― Deve ser por causa do Jack, ela parecia preocupada com ele ― disse Camila. ― Mas ela detesta o Jack! ― colocou Patrícia sem entender. Morgana olhou para as duas sem proferir comentários. Caminharam até a entrada da escola onde o motorista aguardava. ― Querem uma carona? ― ofereceu Morgana. ― Vou caminhando, preciso me exercitar! ― justificou Camila. ― Eu aceito! ― sorriu Patrícia. Maria nem respondeu, continuou andando, ocupada com os pensamentos. À tarde o colégio fervia com a animação das torcidas. O ginásio estava abarrotado de gente gritando e pulando. Faltavam

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poucos minutos para o jogo começar e os times se preparavam na quadra. Camila, Patrícia e Morgana sentaram na arquibancada. ― Esse jogo promete, olha quantos alunos! ― disse Camila surpresa. ― Tá cheio de gatinho do colégio Dom Amarildo! ― falou Patrícia, recebendo uma cutucada de Morgana. ― Nem pense em se aproximar do inimigo! ― riu, curtindo com a cara assustada de Patrícia. Mas Maria não estava. ― Vocês falaram com a Maria? ― perguntou Patrícia. ― Liguei duas vezes e ela não me atendeu ― respondeu Camila. ― Passei com o motorista em frente à casa dela, mas não tinha ninguém ― concluiu Morgana. A amiga desapareceu. Coincidentemente Jack também não estava. Maria analisava o cadarço dos tênis. Parada em frente à casa de Jack, cogitava se deveria ou não tocar a campainha. ― Ele já deve estar no colégio, falta apenas meia hora para começar o jogo! ― justificava ao hesitar. Mas dentro de si sabia que não. Levantou a mão. Abaixou a mão. ― Ai, ai, ai... ― resmungou indecisa. Ergueu o dedo em riste, pronta para tomar uma atitude. Antes que pudesse concluiu o movimento a porta se abriu. Ali estava Jack, com uma expressão de questionamento.

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― Oi ― disse ele, ainda sem saber o que Maria fazia plantada em frente à sua porta. ― Oi ― devolveu, procurando as palavras. E assim permaneceram. ― Preciso ir ao jogo ― continuou a conversa, Jack. Maria respirou e falou de uma só vez: ― Eu sei, mas preciso saber o que está acontecendo. Jack a olhou intrigado: ― Como assim? ― Morgana me falou que seu cachorro não está bem ― explicou Maria. O rosto de Jack tornou-se sisudo: ― E o que isso te interessa? ― colocou, indelicado. Maria abriu os olhos em uma reação alterada, tomando-se de raiva em seguida: ―– Seu besta! Eu só queria saber se o Príncipe estava bem! ― gritou, dando as costas. Jack segurou-a em um dos braços. Uma lágrima escorria levemente pelo rosto masculino. ― Desculpe ― pronunciou baixo, audível o suficiente para que Maria se voltasse a ele. Deu espaço para que ela entrasse. Na sala, uma grande almofada abrigava o amigo de anos de Jack. Príncipe tinha pelos grisalhos que denunciavam a idade avançada. Parecia fraco e emitiu um som desmilinguido quando Maria se aproximou.

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― Ele lembrou de você ― disse Jack, deixando a voz sumir em seguida. Maria acariciou o amontoado de fios gastos, sentindo o rosto arder quando Jack abaixou-se junto dela, repetindo o gesto. ― O que ele tem? ― perguntou Maria, levantando. ― Acho que é a idade. O veterinário disse que o coração está muito fraquinho, talvez não dure até amanhã ― respondeu, olhando para a parede. Maria sentia-se novamente culpada. ― Olha, eu... ― tentou falar, quando Jack passou a empurrá-la para fora de casa. ― Agora é melhor você ir porque eu preciso me preparar para o jogo. E sem cerimônia obrigou Maria a sair, deixando-a sozinha na porta de entrada. Um misto de pena e indignação ocupava o coração de Maria. Resolveu esquecer o que aconteceu e dirigir-se para a escola. ― Aquele grosso! ― repetia compulsivamente no caminho. Ao chegar, avistou as amigas acenando para ela, na arquibancada. ― Guardamos um lugar para você! ― disse Patrícia. ― Obrigada ― agradeceu Maria. ― E onde você estava? ― quis saber Camila. ― Vindo para cá ― respondeu Maria, sem maiores informações. Morgana entendeu que havia mais coisas.

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― Estranho Jack também ainda não ter aparecido ― continuou Morgana. ― Ele deve chegar a qualquer momento ― colocou Maria. ― Como você sabe? ― perguntou Patrícia. Maria ignorou o comentário. Mas era estranho Jack demorar mais do que ela a chegar. Afinal, com a pressa que tinha viria correndo até o colégio. Alguns minutos se passaram e nada de Jack. ― Daqui a pouco o treinador vai chamar o Maurício para ser o capitão ao invés de Jack! ― concluiu Camila. Pedro acenou para as meninas. Camila acenava de volta, feliz. ― Oi, tudo bem? ― Oi, Pedro ― responderam juntas. ― Sente-se aqui ― sugeriu Camila, abrindo espaço ao seu lado. Pedro aceitou. ― Alguém sabe onde está o Jack? ― questionou, ajeitando os óculos. ― Não, infelizmente ― respondeu Camila. ― Olha lá ― disse Patrícia apontando para o juiz. ― Estão conversando algo. Acho que o treinador está pedindo mais tempo. ― Já passou do horário do início do jogo. Se Jack não chegar logo irão começar sem ele. ― Isso quer dizer que o sem graça do Maurício vai conseguir o que quer! ― disse Camila, desgostosa.

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Neste momento Jack apontou na entrada da quadra. Era visível a expressão de alívio do treinador. ― Que bom! ― gritou Pedro. Maria duvidava, tendo em vista a cara de desânimo que seguia Jack. O Jogo começou com vários passes de bola errados e muitos gritos do treinador. ― Nossa, o que está acontecendo com o Jack? Nunca o vi jogar tão mal! ― disse Patrícia. ― Se continuar assim esse jogo vai terminar no primeiro tempo! ― exclamou Pedro. ― E eu vou ter que descer e tirar o sorriso idiota da boca do Maurício na marra! ― falou Morgana. ― E você Maria, o que acha? Maria? Maria? ― perguntou Patrícia estranhando que a amiga já não estava mais. Maria corria com todas as forças. Precisava chegar rápido à casa de Jack. Rápido o suficiente para trazer reforços no segundo tempo. Em sua cabeça não questionava se o que fazia era certo ou errado. Se Jack merecia seu sentimento ou não. Apenas sabia que tinha que agir. Queria ajudá-lo. E assim o faria. 2X0 O placar não deixava mentir: estavam em desvantagem. Pedro escondia o rosto entre as mãos enquanto Camila roía as unhas. Jack perdia as bolas, distraído, e Maurício as perdia de propósito. ― É isso, vou lá acertar aquele filhinho-de-mamãe! ― exclamou Morgana, sendo segurada por Patrícia.

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― Não vai adiantar ― entendeu Patrícia, tentando acalmá-la. ― Você será expulsa do ginásio. ― Mas a lembrança dos meus cinco dedos atingindo aquele ser miserável será saboreada eternamente! ― dizia Morgana, tentando se desvencilhar de Patrícia. Um urro da torcida chamou a atenção. Jack corria com a posse de bola, desviando dos adversários. Seu rosto estava tomado de alegria, em nada lembrava o Jack desanimado de antes. Quando estava frente ao gol gritou algo como: ― Essa é para você, amigo! ― Antes de chutar uma bola meteoro, que o goleiro nem viu. A rede agitou-se denunciando um gol. O primeiro. Pedro, Camila, Patrícia e Morgana nada entenderam até notar, no canto da quadra, Maria. Esta lutava para segurar um cachorro de tamanho descomunal no colo. Príncipe latia feliz. Se pudesse falar, com certeza seria: Vai, Jack! E o jogo continuou repleto de gols e gritos da torcida. Quando o juiz apitou anunciando a vitória do time da casa Maurício retirou a camisa, jogando-a ao chão. ― Não pode ser! Era para eu ser o capitão! Eu deveria levantar a taça! ― gritava, pisoteando a camisa. Os jogadores levantavam Jack e cantavam: ― É campeão! É campeão! Maria afastou-se sem ser notada. Já não aguentava mais o peso de Príncipe e precisava descansar. Sentia-se bem por Jack ter vencido o jogo em uma reviravolta exemplar. Precisava agradecer a

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dona Sônia por tê-la trazido gentilmente até a quadra. Caso contrário, nunca teria chegado a tempo com Príncipe. Ela aguardava do lado de fora. ― Obrigada, dona Sônia ― disse Maria se aproximando da mãe de Jack. Ela a olhou por um tempo com uma curva contente nos lábios: ― O Jack tem sorte de ter alguém como você na vida dele ― falou, deixando Maria sem chão. Dona Sônia tomou Príncipe nos braços, acomodando-o no banco traseiro. Abanou as mãos despedindo-se, enquanto o carro se afastava. Maria caminhou até em casa. Tinha um turbilhão de coisas na mente. Os eventos passados, sua relação-não-relação com Jack. Afinal, o que eles eram? Amigos? “As atitudes não condiziam com uma amizade”, pensava. Chegou à sua porta de cabeça baixa, levantando ao avistar um par de tênis conhecido. Jack esperava com os braços cruzados, encostado na parede. ― Da última vez que estive aqui as coisas não correram muito bem ― disse, começando a conversa. Maria permaneceu calada. Jack aproximou-se: ― Por que você saiu tão rápido do jogo? ― questionou. Maria podia dizer que as costas doíam pelo peso de Príncipe, que dona Sônia a esperava, mas o fato é que queria evitar encontrálo. Não tinha respostas que pudessem ser ditas.

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― Vamos, não me deixe falando sozinho! ― exigiu Jack, segurando-a pelos braços. Não queria encará-lo. Adivinhava os olhos deste mirando seu rosto. ― Jack, eu... Não pôde continuar. Sentiu quando Jack encobriu seus lábios com os dele. Um beijo longo, que quase aconteceu muitas vezes. Que Jack desejava há muito tempo. Que Maria evitava há muito tempo. Que ambos reconheciam como inevitável. Na lanchonete da escola Camila e Pedro aguardavam. Dividiam um lanche com suco. De mãos dadas conversavam. ― Nem parece que já se passaram seis meses desde o campeonato de futebol ― disse Pedro, mordendo o pão com queijo. ― Sim – sorriu Camila. ― O dia B de beijo! ― e ambos desataram a rir. ― Foi nesse dia que o Jack e a Maria assumiram o romance ― continuou Pedro. ― Só eles? ― fingiu-se brava Camila. Pedro abraçou-a ternamente: ― Nós também, nós também... ― completou. ― Até hoje eu ainda não acredito que você me beijou quando o jogo terminou! Camila ficou vermelha: ― Alguém precisava fazer alguma coisa! ― riu, recebendo um carinho de Pedro. ― Foi a melhor coisa que me aconteceu ― disse, beijando-a. ― Vamos parar com essa pouca vergonha! ― falou Patrícia, perto dos dois.

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― Oi, Patrícia, senta aí! Notícias da Morgana? ― perguntou Camila. ― Não ainda... ― respondeu a amiga, virando-se ao ouvir outras duas vozes. ― Oi! – cumprimentaram Jack e Maria. Abraçados, atravessavam o pátio, aproximando-se da mesa. ― Essa é uma cena de filme! Um romance! ― disse Patrícia. ― Está mais para uma comédia-romântica! ― falou Camila. ― Está mais para um dramalhão mexicano! ― gritou Morgana, que também atravessava o pátio. Chegaram todos juntos. ― Olá, casais e solteirona! ― saudou Morgana causando uma reação indignada em Patrícia. – Ei! Só porque o meu instrutor de Ioga não está aqui não quer dizer que eu esteja sobrando! ― afirmou. Combina mesmo com a Patrícia namorar um instrutor de Ioga! ― riu Maria. ― Os meus pais adoraram. O Krisna trouxe umas receitas com tofu maravilhosas para o restaurante de cozinha natural deles ― explicou Patrícia. Todos riram até Camila continuar: ― E você, Morgana? Qual é o motivo de nos chamar aqui?― perguntou. ― É verdade, ainda preciso estudar para o simulado de amanhã disse Pedro.

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― Meus queridos nerds e demais amigos ― começou Morgana. ― Reuni vocês para distribuir ingressos do show do Caveira. ― Combina mesmo com a Morgana namorar um astro do rock! ― parodiou Jack. ― Ele praticamente caiu no meu colo quando eu fiz um buraco no palco do último show ― explicou. ― Se essa forma de arranjar namorado pega vai dar problema! ― cutucou Camila. ― Mas de qualquer forma, ele se apaixonaria pelo meu espírito brilhante! ― completou Morgana. Os amigos aceitaram os ingressos, combinando como seria à noite. Por eles passou Maurício, carregando um saco de lixo. Ajuntava coisas jogadas no chão junto com outros alunos. ― Oi, Maurício, querido! ― disse Morgana com um sorriso de canto. Este não respondeu, grunhindo palavras mal-educadas. ― Assim eu fico ofendida! ― choramingou Morgana, abusada. ― Ele bem que mereceu esse trabalho comunitário que o juiz decretou ― disse Camila séria. ― É verdade, já era tempo de alguém dar um jeito no Maurício ― assentiu Pedro. ― Era o mínimo que poderia acontecer depois de ele quase atropelar uma senhora e acabar com o carro da mãe-perua em um muro ― falou Maria.

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Aos poucos os amigos se despediram, cada um com um compromisso. Restou apenas Jack e Maria. Caminharam abraçados até a casa de Maria, despedindo-se em um beijo que se tornou vários beijos. Ao entrar em casa, Jack foi recebido por Príncipe Eduardo II, presente de Maria no mês passado. Um filhote cor de chocolate, gordinho e brincalhão, mordia sem piedade um chinelo todo babado. Jack lhe afaga a cabeça, contente: ― Oi, amigão! Príncipe sobe as escadas atrás do dono, abanando o rabo. Percorre os degraus, pulando alguns. Jack o observa, evitando que fique do lado de fora quando a porta se fecha. Jack retira a mochila pesada das costas. Joga as coisas em cima da cama, feliz por um banho. Em seu quarto, uma foto recente com Maria faz companhia à outra, mais antiga, onde duas crianças, também abraçadas, fazem “chifrinhos”. O rapaz sorri para Maria, impressa no papel lustroso.

Fim....

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Sobre a Autora: Vanessa Martinelli

Vanessa Martinelli Levandowski é Neuropsicóloga e Mestre em Psicologia, graduada também em Educação Artística. "Amigos Inimigos", pela editora Novo Século, é seu primeiro romance.

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Esta obra foi formatada pelo grupo Menina Veneno para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício da leitura àqueles que não podem pagar, ou ler em outras línguas. Dessa forma, a venda deste e‐book ou até mesmo a sua troca é totalmente condenável em qualquer circunstância. Você pode ter em seus arquivos pessoais, mas pedimos, por favor, que não hospede o livro em nenhum outro lugar. Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras.
Vanessa Martinelli - Amigos Inimigos

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